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A Lã e A Neve - Ferreira de Castro

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A L E A NEVE:

Romance
Ferreira de Castro
Obras de Ferreira de Castro
Reservado para todos os pases todos os direitos de traduo reproduo e adaptao.
Cpyright by Ferreira de Castro
PORTICO

Os primeiros teares criaram-se, em j difusos e incontveis dias, para a l que produ
ziam os rebanhos dos Herminios. O homem trabalhava, ento, no seu tugrio, erguido n
as faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das sole
dades alpestres, os lobos desciam tambm e vinham rondar, famintos, a porta fechad
a do homem. A solido enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa s
ombra. A serra, porque s a p ou a cavalo se podia vencer, parecia incomensurvel, mu
ito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refe
gos brotavam supersties e lendas histrias que os pegureiros contavam, ao lume, a e
ncher de terror as noites infindas.
O homem viera para ali h muitos sculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda
os que levantavam o seu abrigo de granito nos stios mais propcios; e, quando o fa
ziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circ
undante. Os gnios da montanha e as frias do cu possuam, assim, quase toda a majestos
a extenso da serrania, ermticos domnios onde podiam transitar com passos de fantasm
as ou bramir livremente.
No comeo do Vero, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixava
m, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braos possantes, fiada d
epois, a l subia, um dia, ao tear. E comeava a
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tec&agem. O homem movia, com os ps, a tosca construo de madeira, enquanto as suas mo
s iam operando o milagre de transformar a grosseira matria em forte tecido. Const
itua o acto uma indstria domstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a se
rra no dava, nessas recuadas eras, mais do que l e centeio.
Pouco a pouco, porm, foi sendo tradio no reino que os homens da Covilh e suas redond
ezas eram mestres, como nenhuns outros, em tecer bifas, almafegas e buris. Ento, o
s monarcas e seus aclitos acabaram atentando nesses teceles dispersos pelas abadas
da serra; e com ordenaes, pragmticas, alvars e regimentos, ora os estimulavam em se
u solitrio labor, ora os constrangiam sob pesadas sisas. Da Planares vinham panos
concorrentes, que exibiam mais esmerada tessitura; apesar disso, os humildes te
ares continuavam a mover-se, alimentados pelos rebanhos da Estrela.
Depois, Portugal descobriu longnquas terras e tambm a rota martima da ndia; e houve
que vestir a muitas gentes exticas, a troco do que elas, foradas ou voluntariament
e, entregavam aos descobridores. E os teares da serra multiplicaram-se. Cada tec
elo trabalhava, ainda, no seu casebre, de lume aceso no Inverno e porta escancara
da no Estio. A maior casa pertencia, ento, ao deus do povoado. Mas um dia, na Cov
ilh, ergueu-se uma casa maior do que a do deus. Era a primeira fbrica de tecidos.
Muitos teceles deixavam a faina individual e iam trabalhar em conjunto. Da Inglat
erra e da Irlanda chegavam outros homens para lhes ensinar os ltimos progressos d
a sua arte. A l da serra j no bastava; ia-se merc-la ao Alentejo e a outras terras d
o pas. E os teares comearam a vestir os exrcitos reais. Cada sculo aportava novos ap
erfeioamentos tecelagem e levantava novas fbricas nas margens das duas ribeiras qu
e desciam da serra, cantando, a um lado e outro da cidade.
Um dia, tudo se revolucionou. J no se tratava de melhores debuxos, de mais gratas
cores, mas de coisa mais profunda da produo automtica. L nas nevoentas terras ingle
sas o padre Cartwright inventara o tear mecnico. A gua, fazendo girar grandes roda
s, comeara a
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produzir o movimento dado, at a, pelos ps do homem. Mas continuavam a ser precisos
os homens junto das novas mquinas.
Os serranos, que nas solides da Estrela ora pastoreavam as suas ovelhas, ora teci
am a l que elas forneciam, tornaram-se cada vez mais raros. A maioria entrara nas
fbricas. Eles tinham de pautar, agora, a sua vida por um salrio fixo, chegasse ou
no chegasse para as exigncias de cada dia. Isso, porm, carecia de importncia; ningum
pensava em aumentar-lhes os ganhos, pois havia de se ter sempre em conta o preo
da mo-de-obra para a concorrncia dos tecidos nos mercados.
Os homens passavam os dias e as noites dentro das fbricas, s saindo aos domingos,
para olvidar o crcere. J no viam as ovelhas, nem ouviam o melanclico tanger dos seus
chocalhos nos pendores da serra, ao crepsculo; viam apenas a sua l, l que eles des
ensurravam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, l por toda a
parte.
A indstria ia crescendo sempre. Agora no eram grandes apenas a casa do deus dos ho
mens e as casas das fbricas; ao lado destas, outras casas grandes tinham surgido
as residncias dos industrieis. E todo o pas falava da prosperidade da Covilh.
Mais tarde, operou-se nova revoluo. As enormes rodas que giravam nas ribeiras deti
veram-se: o poder da gua fora substitudo pelo da electricidade. E fbricas existiam
onde j laboravam pais, filhos e netos. Os centos de teceles que, outrora, viviam n
os lugarejos da serra, tinham-se multiplicado e constituam, agora, milhares. Ladi
nas personagens, que, de magros dinheiros dispondo, compravam o fio a uns, manda
vam-no tecer a outros e a terceiros vendiam os panos, acabaram desaparecendo tam
bm, devoradas pelos industriais poderosos. E s ficavam as grandes fbricas, com seus
milhares de operrios.
A l do pas j no chegava; tinha-se de procur-la em terras estrangeiras. Da Austrlia, da
Nova Zelndia, da frica do Sul, passaram a vir grandes carregamentos. Rebanhos dis
tantes alimentavam, atravs dos mares, as fbricas quase escondidas nas ribeiras da
Estrela.
IO
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A indstria sofria, porm, constantes oscilaes. Ora fabricava sem descanso, ora, por e
scassez de matria-prima ou parco consumo, diminua os dias de seu trabalho. Ento, ho
mens e mulheres, que l haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma misria m
ais descarnada ainda do que a normal. com seu fabrico reduzido, a Covilh, em vez
de exportar panos, passara a exportar raparigas para o meretrcio de Lisboa.
A sujeio ao destino comum criara, todavia, alguns vnculos entre os descendentes dos
primeiros teceles. No sculo XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do
alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, pr
otestos, rumores dos homens que, s vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais
de po.
PRIMEIRA PARTE
OS REBANHOS
JOGO que as cabras e as ovelhas entestaram corte, o "Piloto" deu por findo o seu
trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os servios, se dirigir
a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspan
do a terra, ia triste, cismtico, como perro vadio de estrada, descorooado da vida.
Subitamente, porm, sorveu no ar algo que lhe era conhecido. A cauda ergueu-se nu
m pice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabea levantou-se tambm e ne
la luziram os olhitos at a amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava
cheio de tentaes, de paragens obrigatrias, estabelecidas por todos os ces que passa
ram ali desde que Manteigas existia, desde h muitos sculos. Forado a deter-se, ele
regava, esquerda e direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, m
as fazia-o alegremente e com o visvel modo de quem leva pressa. Em seguida, volta
va a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era mai
or o seu alvoroo. Por fim, lobrigou-o. Horcio estava junto
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de Idalina, tambm conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que
emergia da terra, ao cabo das decrpitas e negrentas casas do Eir, no cimo da vila.
E to atarefado parecia Horcio com as palavras que ia dizendo rapariga, que no deu,
sequer, pela chegada do co. Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquant
o agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se dec
idiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costum
e quando este o chamava, hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastore
ando o gado, l nos picarotos da serra. S ento o amo deu por aquela presena. Ele regr
essara nessa tarde do servio militar e, no entusiasmo de ver pai e me, os vizinhos
e, sobretudo, Idalina, no se havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Ago
ra, porm, afagava-lhe a cabea e metia, enternecido, um parntesis na narrativa que e
stava fazendo:
Olha o "Piloto"! O meu "Piloto"!
Idalina desviou ligeiramente os olhos para o co e voltou a fix-los na rocha, com a
quele mesmo ar preocupado que tinha quando o bicho chegara. Houve um pequeno siln
cio e Horcio volveu ao torn de voz anterior:
Como eu ia a dizer, o quartel de artilharia anti-area prantava-se mesmo beira do
mar. Viam-se passar os navios, que iam para Lisboa. s vezes, era cada um, to gra
ndalho, que dentro dele ningum podia ter medo de afundar-se. Ali perto ficava o E
storil. Tu j ouviste falar no Estoril ? Aquilo que uma terra bonita! como um jard
im a perder de vista. S te digo que l at os pinheiros parecem rvores mansas! Nalguns
, as roseiras trepam por eles arriba at chegar mesmo aos galhos. E todas as estra
das so mais limpinhas do que o cho de uma igreja! Nas horas de dispensa, eu nunca
me fartava de ver aquilo. H l automveis por toda a parte e pessoas que falam o rai
o de umas lnguas que a gente no percebe nada...
De sbito, Horcio ps freio sua loquacidade.
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Pela atitude e teimoso silncio de Idalina, compreendeu que ela, desinteressada de
quanto ouvia, pensava noutra coisa, aguardando que ele voltasse ao caminho de o
nde se desviara. com a mo, Horcio afastou da sua perna a cabea do "Piloto" e justif
icou-se:
Eu estava a falar disto s por mor das casas... Tu no podes imaginar! As dos indust
riais daqui nada so comparadas com as que l se vem! H-as de todos os feitios e lind
as a valer! Todas esto no meio de jardins e, mesmo no pino do Inverno, tm flores.
Eu passava horas a andar em frente delas e a olhar para dentro. Ento eu ia pensan
do que ali que se podia viver bem e ter muitos filhos e no aqui, na nossa terra.
Depois, eu via que no gostava muito daquelas casas grandes. Parecia-me que, se
uma delas fosse minha, me perderia l dentro. Aquilo estava bem para gente com out
ros costumes, gente rica, que gosta de se deitar em quartos separados e de ter
muitas salas. No para mim, que quero dormir sempre agarrado a ti...
Horcio riu, contemplando-a e desejando contagi-la com o seu fervor. Mas o sorriso
dela foi to melanclico, coisa to a despegar-se dos lbios, tanto de deitar fora, que
ele protestou:
No ponhas essa cara de enjoo, que at me ds raiva! O que eu pensei no nada contra ti.
Vais ver! Tornou a mudar de torn: Um dia, fui alm do Estoril, a um lugar chamad
o Parede, que fica ali perto. de menos luxo, mas tambm muito limpo. Foi l que eu e
ncontrei uma casa pequenina, mas engraada a valer. Se a viesses! A sua mo indicou
o fim da congosta: Olha: pouco mais ou menos do tamanho daquela ali, da tia Lu
ciana, mas, em vez de ser assim negra, era toda branquinha e com as janelas pint
adas de verde. E, em volta, muitas plantas. Eu pensei logo que uma casita assim
que estava mesmo a calhar para ns, no l, j se v, mas aqui. Podia ter outro feitio, pa
ra ficar ainda mais barata. O que eu queria era ter uma casa asseada e alegre e
no com burros por baixo, como se vem por a. Foi por isso que eu
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te disse que devamos deixar para mais tarde o nosso casamento...
Pela primeira vez, depois que ele alvitrara aquilo, Idalina pronunciava-se:
Ests muito mudado... Se ainda gostasses de mim, no me dirias isso...
Ele olhou-a com olhos sorridentes e glutes:
Ora essa! Se estivssemos num lugar em que ningum nos visse, havia de te morder t
anto a boca que j no falavas assim! Se tambm por ti, minha tola, e pelos nossos fil
hos! Pois eu quero que me ds muitos filhos, que se paream contigo. Percebes ? Aind
a esta manh eu vinha no comboio a pensar como serei feliz quando tivermos crianas.
Mas eu no quero que elas vivam num chiqueiro, como vivem muitas daqui. Se tu vis
ses como l, no Estoril, se tratam as crianas! Aquilo, sim, que saber criar filhos!
Eles andam em carrinhos quando tm poucos meses e, depois, quando so mais
crescidos e vem o Vero, brincam na praia e nos jardins das casas, que mesmo um r
egalo v-los. Tu sabes que eu sempre gostei de crianas. E, at por causa disso, uma
vez apanhei l um susto. Eu estava a ver uns petizes a brincarem num jardim, quan
do o dono da casa, que ia a entrar, me disse com maus modos: "Se voc continua aqu
i a desinquietar a minha criada, eu fao queixa ao seu comandante!" Eu nem vira ne
nhuma criada, mas no pude explicar-lhe, porque ele voltou-me logo as costas. P
arece que o homem tinha adivinhado que eu estava h pouco na tropa e que ainda e
ra lorpa. Durante alguns dias andei com medo de vir a ser castigado... bom! Est b
em de ver que os nossos filhos no podem ser criados como os de l, porque ns
somos pobres, mas podemos ter uma casinha limpa para eles e para ns. Demais a mai
s, no foi s no Estoril que eu vi casas assim; em muitas partes as h. Eu, antigament
e, que no reparava nelas...
Idalina interrompeu:
E onde tens tu o dinheiro ?
Optimista e confiante naquele poder de adaptao
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e de trabalho que ele sentia, instintivamente, em si prprio, Horcio no vacilou:
Arranjo-o! No o tenho, mas arranjo-o! Por quatro ou cinco notas compro ao tio Ber
nardo um pedao de monte, ali em cima, que lugar soalheiro. E se no for ali, ser n
outra parte. Eu no desejo grande coisa. com meia dzia de contos devemos pr a casa e
m p. Basta que ela tenha dois quartos, um para ns, outro para quando as crianas for
em crescidas, uma sala de jantar, a cozinha e uma latrina pegada. Se adregar hav
er perto uma pedreira, j faremos uma economia. Eu mesmo, aos domingos e em todas
as horas que puder, arranjarei a pedra. Mas, claro, sempre so precisos pedrei
ros e carpinteiros. E, para isso, tenho de arranjar maneira de poder forrar algu
m dinheiro. J pensei muito no caso, que julgas? A guardar ovelhas que eu no morro!
Hei-de arranjar outro trabalho, onde ganhe mais. Baixou a voz, como numa confi
dncia : Quando me licenciaram e antes de vir para aqui, eu procurei em Lisboa...
A ver se me empregava... Enquanto estive no quartel, ensinaram-me alg
uma coisa de ler e de escrever, pois eu, quando fui para a tropa, era uma desgr
aa; pouco mais sabia do que as primeiras letras. Assim, sempre posso governar-me
melhor. Ainda ontem, de manh, fui a duas casas, a dois armazns de vinhos, no Poo do
Bispo. No arranjei emprego porque no tinha ningum de peso que me recomendasse. O p
ai de um soldado que se tornou meu amigo acompanhou-me, mas como gente pobre, q
uando ele falava eu percebia que os patres ligavam-lhe pouca importncia. Foi po
r isso... Mas eu tenho outras pessoas. No garanto que possa forrar num ano ou doi
s todo o dinheiro preciso para a casa; mas estando a ganhar bem, logo arranjo qu
em me empreste o resto, para eu pagar, depois, aos poucos. Mas... que tens tu ?
Duas lgrimas desciam pelas faces de Idalina. Ele repetiu, surpreendido:
O que tens ? Por que choras ? Ela comeou a soluar:
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-g- Se tivesses muito amor por mim, no tinhas querido ficar em Lisboa, depois de
sares da vida militar... Quando comeou a guerra, eu nem podia dormir. Como tu eras
soldado e muitos diziam que Portugal, mais dia, menos dia, tambm havia de entrar
na guerra, at se me partia o corao por tua causa. Bem tola eu era! Eu, aqui, a pad
ecer e tu, agora, sem nenhuma pressa de vires. Porque mentiste h poucp, dizendo q
ue estavas mortinho por me ver ?
Horcio exaltou-se:
E estava! Deixa-te de tolices, anda! Uma coisa no tem nada com a outra! Eu estava
doido por vir, por te ver... Mas era por tua causa que eu ficava se tivesse arr
anjado alguma coisa de jeito...
Cada vez te vejo mais mudado...choramingou ela ainda. Essas terras por onde and
aste fizeram-te mal...
Horcio tentou sorrir:
O que diriam os outros recrutas se te ouvissem falar! Eles que ficaram cheios de
inveja quando eu fui mandado para a artilharia anti-area! Todos eles gostavam de
ir, porque assim podiam ver Lisboa, que ficava a dois passos... Mas v; deixa-t
e disso! Limpa-me essa cara! Se eu mudei, foi para melhor. Pegou-lhe numa das
mos, apertou-lha e olhou os olhos dela: Compreendes ?
com as costas da outra mo, Idalina enxugou o rosto de faces largas, morenas, e bo
ca de lbios grossos lbios que a ele apeteciam veementemente, embora preferisse ver
o de cima sem essa penugem que anunciava um futuro bigodito, semelhante ao da me
dela...
Bem... Por que no nos casamos e, depois, vamos fazendo a casa, pouco a pouco ?
Ele acorreu em defesa do seu critrio:
No a mesma coisa! Tambm j pensei nisso, mas vi que no era a mesma coisa. Vm os filhos
, h mais responsabilidades e no se pode pr vintm de lado. Pensei muito nisso. Ou j
ulgas que s tu tens pressa ? A sua mo apertou mais a mo dela: Se soubesses!...
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Alugvamos uma casa, como se tinha combinado... teimou Idalina. o que tod
os fazem. Poucos so os que tm casa sua. Por que havemos de querer ser mais do que
os outros ?
Eu no quero ser mais do que os outros. Mas quero ter uma casa que me d alegria. A
gente aluga um destes poleiros daqui, acostuma-se, vai-se desmazelando e deixand
o ficar. Quando menos nos precatamos, a famlia cresceu e pronto! j no se pode faz
er nada. No quero isso! Quando fizermos a boda, o quarto e toda a casa ho-de ser n
ovos e s nossos. E quando ficarmos sozinhos, eu hei-de atirar-me a ti, como um lo
bo... aos beijos. Assim... Ele estendeu os lbios: Assim... Muitas vezes, eu imag
inava isto, quando me deitava l no quartel e apagava a luz. Comeava a pensar em t
i e era como se j tivssemos acabado de casar. Pensava tanto que no podia dormir e a
t me vinham dores de cabea...
Anoitecia. Nos topes da serra ainda havia rsea claridade, mas, c em baixo, boiavam
sombras cada vez mais densas. com suas altivas lombas, as ramificaes da montanha
cercavam, de todas as bandas, a vila postada quase no fundo do grande vale, ao p
do Zzere, que na paz crepuscular adquiria voz forte, correndo e cantando entre os
penedais do seu leito. A luz parecia desprender-se, como um vu, da imensurvel cav
idade, deixando ainda vermelhar a telha francesa das casas abastadas, enquanto o
s negros telhados dos pobres se somavam j escurido que avanava. Nas encostas, os pi
nheiros formavam mancha compacta e, nos vastos soutos, os castanheiros, de arred
ondadas frondes, dir-se-iam sem troncos apenas largas copas pousadas nos pendor
es, como um acampamento aguardando a noite.
Idalina procurou soltar a sua mo de entre as mos de Horcio:
Vou-me embora. Faz-se o que tu quiseres. pena, porque eu e a minha me
j tnhamos arranjado umas coisitas para o enxoval e todo o povo estava
espera de que o nosso casamento fosse logo
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depois de tu voltares da vida militar, como tnhamos dito*
A sua voz mostrava-se to melanclica, to passiva, que ele comoveu-se:
No se faz o que eu quiser, no, senhor! S se faz o que eu quiser, se tu quiseres tam
bm. Eu acho que uma asneira, pois somos ainda novos e podamos esperar. Tu ainda no
fizeste vinte anos e eu poucos mais tenho. Dois ou trs anos levaramos a levantar a
casa e podamos comear a nossa vida em melhores condies. Mas se tu no quiseres, pacinc
ia! s vezes, at desejo que tu no queiras... Porque eu estou a dizer-te isto e, ao m
esmo tempo, estou mortinho por fazer o contrrio. Compreendes ?
Ela no respondeu logo. O "Piloto", que havia desaparecido, voltara a deitar-se ju
nto da rocha, aos ps deles. A sombra da noite ia j meia encosta e l em baixo, na ru
ela, a tia Joana Pucareira passava com um molho de lenha cabea.
No seu silncio, Idalina transigia, lentamente. Depois das ltimas palavras de Horcio
, aquela ideia acamava-se, com mais facilidade, no seu esprito. Agora, ele pareci
a-lhe sincero.
Talvez seja melhor como tu dizes murmurou ela, por fim. Pensando bem, ta
lvez seja melhor. Custa-me muito, mas faz-se assim, como tu queres...
J te disse que tambm a mim me custa. Mas quando penso que, ao voltar do trabalho,
tu estars minha espera numa casinha nova e que as crianas tero um cho limpo, sinto u
ma grande alegria. Havemos de ser muito felizes, vers!
Num impulso, estendeu os braos, para apert-la. Ela afastou-o:
No... No... Podem ver-nos! Vamo-nos embora, que j tarde...
O lusco-fusco apardaara toda a terra, desde o vale s cristas das Penhas Douradas.
Dir-se-ia que uma poalha escura e flutuante envolvia tudo, as casas dos homens e
os fojos dos lobos, nos declives abruptos, e se apossava do prprio cu.
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Os dois levantaram-se. Depois do longo dilogo, ela voltava a olhar direito para e
le. Parecia-lhe, na tnue obscuridade, ainda mais forte, mais msculo do que quando
partira dali. Ela, agora, sentia orgulho de vir a t-lo por marido e, ao mesmo tem
po, melancolia por no o ter j.
Iam caminhando, calados, um ao lado do outro. Por vezes, os seus corpos tocavam-
se. Esse roar de ombros, que parecia casual, provocava-o Horcio, obediente a uma i
deia fixa. A cada passo, os olhos dele vasculhavam os derredores. No havia ningum.
A luz, que saa de frinchas e de postigos, projectava-se sobre as pedras e a lama
da ruela e tornava-se cada vez mais viva na noite nascente. Um vulto surgiu, ao
longe, mas logo entrou num dos casebres. Ao passarem sob as janelas da tia Luci
ana, ele ainda olhou para cima. Encontravam-se fechadas. Idalina dera pelas prec
aues dele, pressentia o seu intento e desejava a mesma coisa, mas fingia-se distrad
a. "Ali seria melhor pensou do que no penedo, que estava mais vista".
Horcio estendeu o brao e atraiu-a a si. Ela ainda simulou reagir, mas logo as suas
bocas se colaram. E j uma das mos dele descia para os seios dela, numa carcia, qua
ndo se ouviu algo que rangia, timidamente. Horcio levantou os olhos e adivinhou,
mais do que viu, a car atua da velha Luciana sua janela acabada de abrir.
Idalina ficara perturbadssima. Ele, porm, sorriu, bonacheiro, e falou para cima:
Bico calado, tia Luciana, se no quer que lhe caia um raio em casa. Entendeu ?
A velha, em vez de responder, fechou estrepitosamente a janela, mas logo voltava
a abri-la, curvava-se no peitoril e gritava, furiosa e escandalizada, para
Idalina:
Pouca vergonha! Andar a pelos caminhos, como as cadelas! No pode esperar, a prince
sa! V-se cada coisa nestes tempos!
Antes que recebesse troco, tia Luciana cerrou a janela, novamente com violncia.
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Idalina comeara a andar, apressada. Ele seguia-a com dificuldade, sorrindo ainda,
ocultando o seu nervosismo. Percebeu que ela chorava.
Deixa l! consolou. feitio da velha, bem sabes. No casou, no teve quem a quisesse.
No te rales... Ora esta! Ento o diabo no queria que eu passasse tanto tempo fora
daqui e, ao voltar, nem ao menos te beijasse ? O estupor esteve, com certeza, a
espreitar-nos por detrs dos vidros toda a tarde...
Vai encher tudo, por a... murmurou Idalina.
No vai... Mas se for, acabou-se! No vamos ns casar?
Tinham comeado a descer a congosta. Era uma rua estreitssima, que cheirava a burro
s, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que
terminavam em ptios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avanando para sombrios
recantos, numa sugesto de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se
umas s outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte ci
meira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais ba
ratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de
madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzi
to quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas do paleio com as vizinhas. Alguma
s das portas e janelas estavam abertas e, atrs delas, pairava a rbida claridade do
fogo que, l dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianas, as s
uas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espao domstico, ciranda
vam numa confuso de movimentos humanos t de trapos dependurados.
Calcando as pedras abauladas e irregulares da rua onde, no Inverno, as enxurrada
s faziam correr todos os detritos, os detritos que, no Vero, secavam, cheios de m
oscas, ao bom sol da serra, Horcio procurava distrair Idalina:
Vs ? isto que eu no quero. Quanto melhor uma casinha como a que eu penso!
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Ela no respondia, sempre lesta no seu passo curto, zape-zape ladeira abaixo. Por
fim, deteve-se. Estavam em frente da sua casa, igual maioria das outras, com dua
s portas sobre a rua, uma sempre fechada, que eles, de to pobres, no podiam ter ne
m porco nem onagro na loja escura, e outra dando para a escada interna, estreito
s degraus de madeira que ligavam ao primeiro piso.
At amanh...
At amanh... E no te apoquentes! Aquilo no tem importncia. Mesmo nenhuma!
Ele falava assim, mas estava, tambm, enervado, sobretudo pelo mal-estar que senti
a em Idalina, ao despedir-se. Decidiu de repente:
you dar a salvao aos teus pais.
E, com ela adiante, temerosa do que iria acontecer, meteu s escadas. A senhora Ja
nuria, que estava para o fundo da habitao, ao pressentir a entrada da filha, admoes
tou de l, com sua voz roufenha:
Boas horas de voltar, no haja dvida!
Ao ver, porm, a cabea dele emergir na abertura do soalho, retraiu-se:
Ah, tu vens tambm!...
Nosso Senhor lhes d boas noites. Como tm passado ?
Vem com Deus. C vamos indo... E tu?
No h mal que me chegue... Vaso ruim no quebra...
A senhora Januria, cinquenta anos bem contados, pele arregoada e to escura que nem
a de uma cambojana, avanava para ele:
O meu homem ter gosto em ver-te. No queres subir ?
O piso em que se encontravam era formado por uma diviso estreita, atravancada com
duas arcas de pinho, alfaias agrcolas e roupas velhas dependuradas. Ao fundo est
ava um quarto simples tapume contornando, rente, a cama, como era costume nas c
asas pobres. Horcio lanou-lhe um olhar, condutor de voluptuosas ideias, por saber
que Idalina dormia ali. Mas j
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a senhora Januria fazia gesto de lhe franquear a outra escada, como se lhe tivess
e aberto uma porta. Ele comeou a subir, por entre os irmos mais novos de Idalina,
que, tendo sentido presena estranha, haviam corrido de cima, aglomerando-se nos d
egraus.
Ests muito crescido... E tu tambm... E tu tambm...ia-lhes dizendo.
O segundo piso, todo negro de fuligem, era ocupado pela cozinha, sem chamin, e um
outro quarto, maior do que o de baixo, pois alm da tarimba conjugal havia nele,
a um dos lados, uma enxerga sobre o soalho, para as crianas. E como nas demais ca
sas de operrios, jornaleiros e pastores da vila, os dois andares, com estreitura
de corredor, terminavam num meio forro, sob a telha v, para o qual se marinhava p
or uns escadotes de vindimas. Ali, a uma banda, se espalhavam as batatas que a f
amlia pudesse cultivar e, na outra, dormiam, sobre palha, os filhos mais velhos.
O tio Vicente, fraco de ouvidos, s deu pelo Horcio quando este e a senhora Januria
se puseram em frente do seu nariz. Estava deitado no quartelho, de porta aberta,
esperando a hora da ceia. Saltou da cama:
Viva! J sabia que tinhas vindo. E, ento, como te deste por l ?
Os outros irmos de Idalina, o Romo, o Zeca, j uns homens, aproximaram-se tambm. Ele
cumprimentou-os, inquiriu da sade de todos, e, medida que ia contando a sua vida
na tropa, ia dobrando, dobrando cada vez mais, sob nascente covardia, a ideia qu
e o fizera, de sbito, trepar ali. "No, no diria nada nessa noite. Tinha de pensar p
rimeiro como havia de dizer aquilo. Era conversa para depois, quando tivesse arr
anjado novo trabalho e se encontrassem sozinhos, sem o Romo e o Zeca".
Estavam todos de p e o tio Vicente puxou um banco:
No queres sentar-te ?
No, muito obrigado. Hoje no posso demorar-me. J tarde. Vim apenas para os ver.
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Comeou a desandar para a escada, falando ainda. Pareceu-lhe, porm, que Januria fare
java na alma dele, pois ao topar os seus olhos vira-os com uma expresso incerta,
vagamente pesquisadora, que no lhe conhecia.
Idalina esperava-o no primeiro piso. Sussurrou-
-Ihe:
Disseste-lhes algumas coisa ?
No. Fica para outro dia. Olha: se tiveres ocasio, diz-lhes tu...
A luz do candeeiro projectou na parede, deformando-a, a sombra da mo dele ao afag
ar, de partida, a face de Idalina.
J na rua, de dedos nos bolsos e passo vagaroso, Horcio comeou a assobiar. "No fora g
rande coisa o dia da sua chegada. Pensara que Idalina acharia logo bem a resoluo d
ele e, afinal, tivera de gastar um ror de tempo para a convencer. E, ainda assim
, parecia que ela no estava l muito convencida..."
O "Piloto" continuava a seu lado. Depois, adiantou-se e meteu a cabea a uma porta
que se encontrava apenas encostada e que, com a sua passagem, se entreabriu. Ho
rcio entrou tambm e subiu os degrauzitos que davam para o primeiro andar, sobre a
loja destinada ao "vivo" aos animais domsticos como nas outras casas.
Que fumaceira! protestou, ao chegar acima. Mal via a me acocorada sobre a pedra
onde o fogo comeava a pegar. Mais adiante, sentado num cepo de carvalho, o pai co
sia as solas de uns velhos sapatos. O senhor Joaquim no era sapateiro, mas sobrav
a-lhe jeito para aquilo. Remendos, meias-solas, taces, tudo quanto no exigisse mqui
na, punha-os to bem e com maior pontualidade do que os profissionais de banca e t
ripea porta, seus inimigos de lngua solta, porque ele, assim sentado em casa, sem
pagar contribuies, trabalhava mais barato. Para o tio Joaquim aquilo constitua ocup
ao apenas de horas vagas, pois nas outras, a menos que fosse semana de pastorear o
gadito prprio e o alheio, ele cuidava das
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duaj courelas que possua ao p da encosta ou alugava os seus braos para a terra de o
utrem.
Horcio tirou o chapu e, passeando os olhos desde a figura do pai at as negras pared
es da cozinha, disse, como se falasse sozinho:
Est tudo na mesma...
De tarde, ao regressar de Lisboa, nem reparara na casa, comovido como se encontr
ava. Agora, aquela cena lembrava-lhe todos os comeos de noite que ele passara ali
, na infncia, at ser pastor do Valadares, e nos dias que antecederam a sua partida
para a vida militar.
O velho Joaquim ergueu os olhos da sola que cosia:
Est na mesma o c[u ?
Isto. Tudo isto. tal-qual como quando eu abalei...
Ento tu querias que estivesse diferente ?
No, no. Digo isto por dizer...
Voltou a olhar a quadra, toda negra e suja, com uma cama de ferro l ao fundo, ond
e dormiam os pais, uma arca rstica, a cantareira com pratos e tigelas, sobre a la
reira o canio para as castanhas e, em frente, a porta do seu quarto. Ao lado da p
orta, os saies, o alforge, o capote e o seu chapu de pastor, como se ele, durante
a sua ausncia, tivesse ficado, sem corpo, dependurado naquele prego.
Famlia pequena, a casa era tambm mais acanhada do que a maioria das outras: contav
a apenas a loja e aquele pisito por cima, onde eles cozinhavam e dormiam, onde s
e instalara a vida deles. Havia electricidade na vila, mas nenhuma casa pobre a
tinha; a luz, noite, dava-a um candeeiro de petrleo ou trmula candeia de azeite.
Horcio sentou-se em frente do pai e ficou calado, de braos sobre as coxas, as mos s
oltas entre as pernas, a cabea vergada. A ideia de se casar e de viver num casebr
e assim atafegado e sombrio, parecia-lhe, agora, ainda menos aceitvel do que quan
do, momentos antes, a repelira junto de Idalina.
Pois h diferena, h afirmou, lentamente, o
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tio Joaquim. Tu que no reparaste. Estou mais velho... Quando tu foste, ainda eu
via bem e agora mal enxergo o buraco da sovela. Fazem-me falta uns culos, mas no t
enho tido dinheiro...
Horcio tornou a olhar o pai. Estava, com efeito, mais engelhadito, as costas mais
dobradas. S a me, abanando pachorrentamente o lume, que comeava a levantar cristas
sob a panela, parecia no ter sofrido alterao alguma. H dez anos que ela dir-se-ia i
nsensvel ao tempo, com sua tez queimada pelo sol, as faces secas, de ossos sali
entes, os lbios pregueados sob um nariz pequeno. O povo, ao v-la trafegar na vida
dura, fosse nas suas territas, fosse a auxiliar os demais, a troco de alguns es
cudos, dizia que ela, apesar dos seus sessenta anos bem contados, havia de assis
tir ao enterro de todos os moradores da vila. "Qual! protestava a senho
ra Gertrudes. Cada vez tenho mais brancas!" Protestava, mas, no fundo, sentia o
rgulho da sua resistncia. "L feita de manteiga, como essas reparigas de agora, no e
ra ela, isso no, louvado fosse Nosso Senhor!"
D-me um tio, me.
A senhora Gertrudes passou-lhe um garaveto a
arder.
Resolvi adiar o casamento... Combinei, agora, com a Idalina... disse Horcio, a
cendendo o cigarro.
Adiaste o casamento ? estranhou a velha. O pai, de sovela na mo e um sapato entr
e as pernas, olhava tambm para ele, surpreendido. No seria mau, no, porque isso se
mpre traz despesas e agora no nos fazia jeito volveu a senhora Gertrudes. Mas
por que
adiaste ?
Ele narrou, ento, a sua ambio aquela casita que trazia nos olhos, o seu desejo de
comear a vida de casado num lugar airoso e limpo, para eles e para os filhos. O p
ai, sem o interromper, ia aprovando com a cabea. A senhora Gertrudes, de olhos fi
xos nele, parecia suspensa no do que ouvia, mas do que ele ainda no dissera. E qua
ndo Horcio se calou, perguntou-lhe :
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Olha l! E como vais arranjar isso?
>Era a segunda vez que, naquela tarde, ele tinha de defrontar-se com a mesma int
errogao a mesma dvida na boca da me e na de Idalina. Mas a sua confiana em si prprio
continuava, absoluta. Estendeu os braos com as mos fechadas e sorriu:
com estes! Pois como h-de ser ? Tenho c umas ideias... you entrar para as fbricas o
u arranjar um emprego...
Mas como ?
Depois se ver!
A senhora Gertrudes esperou, algum tempo, que ele adiantasse mais. Mas como Horci
o prosseguisse nos seus modos reservados, ela ergueu-se e caminhou para a pequen
a mesa. Apertou algumas couves na mo esquerda e, com uma faca, comeou a cort-las.
Ento tu pensas deixar o Valadares ?
Pois! No guardando o rebanho dele que levantarei cabea...
Mas ele contava contigo. Tinha-se combinado que ele no meteria outro moo, para que
tu no ficasses boa vida quando voltasses...
Est bem... Se eu arranjar outro trabalho, dou-Ihe uma desculpa.
O Valadares no vai ficar satisfeito e com razo. Para poder guardar o lugar para ti
, ele no tem pastor. So os filhos que tm tomado conta do gado. E como os rapazes lh
e faziam falta nas terras, teve de pagar a jornaleiros...
Horcio cortou:
Eu no gosto do Valadares, me! H muito tempo que no gosto dele. Nunca disse n
ada, porque vossemec, sempre que eu fazia alguma queixa, no me ligava importncia; d
izia que eu era um fedelho e que no sabia o que era a vida. Mas vossemec est engana
da. Se ele guardou o lugar para mim, no foi pelos meus bonitos olhos, nem para me
fazer favor. Foi no interesse dele. Ele mesmo, s vezes, dizia que no havia ningum
como eu para saber fazer queijos e tratar bem o rebanho...
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Parece que te estragaram, l na vida militar... Ests com uma vaidade! Se o Valadare
s dizia isso porque boa pessoa e gostava de ti. Outro, mesmo que fosse verdade,
calava-se.
... gostava de mim! Duas vezes que lhe pedi aumento de soldada, no me deu nem mais
um chavo. Acostumou-se a pagar-me como quando eu era garoto, quando comecei a a
companhar o tio Lus e nada! Vossemec bem sabe o trabalho que teve para ele me dar
mais alguma coisa quando eu fiz dezanove anos. Foi preciso vossemec ir l com chor
adeiras...
Eles tambm no so ricos desculpou a senhora Gertrudes. Tm aquelas terras que lhe to
mam todos os braos e por isso no podem cuidar do gado. Mas no que a riqueza por l ab
unde...
Vossemec j pensou quanto eles teriam de pagar, agora, por um moo que fosse para o m
eu lugar ? Pouco, que isto de ser pastor uma desgraa, mas com certeza muito mais
do que a mim. Se eu puder deix-lo, deixo-o! Eu j tinha resolvido isso mesmo antes
de ir para a tropa. Estava s espera de arranjar outra coisa. Pois como que eu po
deria manter uma casa com o que ele me paga ? Mesmo que arrendasse uma courela p
ara a Idalina amanhar, no podamos viver s com isso e a minha soldada. No verdade ?
A senhora Gertrudes no disse nada. Ps as couves num alguidar, lavou-as e, por fim,
meteu-as na panela. O pai debruara-se mais sobre o sapato, mostrando-se mui aten
to aos buracos que ia abrindo com a sovela. Horcio estranhava-os. Nunca eles havi
am defendido assim o Valadares, que, embora pequeno proprietrio, era um dos trs nic
os donos de ovelhas que fruam alguma prosperidade em terras de Manteigas.
A senhora Gertrudes tapou a panela, tornou a espevitar o lume e, depois, foi fec
har as janelas que abrira pouco antes, para sada do fumo. Quando voltou, colocou-
se em frente do filho, as gretadas mos postas sobre as ancas, os braos em forma de
asas de cntaro, como era seu costume sempre que se exaltava ou tinha de falar co
m solenidade a algum.
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*Pode ser que tu tenhas razo... No digo que no... Mas ns no podamos adivinhar o que tu
tinhas resolvido. O teu pai adoeceu, esteve morte. Nunca te mandei dizer toda a
verdade, para no te afligir. Mas eu pensei que tu nunca mais o verias. At c veio o
doutor, oito vezes. E os remdios custavam uma fortuna. Foi-se tudo o que tnhamo
s, que bem pouco era. Vendi todas as nossas ovelhas. Ficmos reduzidos s trs cabras.
E eu precisava ainda de mais quinhentos mil ris. Um dia, botei-me at a casa dess
e malandro do Rufino. Pensei que ele ainda tivesse uns restos de corao, mas aquilo
pior do que um cigano. Prometi que lhe pagaramos em dois anos. Ele respondeu-me
que emprestar, no emprestava; mas que no tinha dvida em comprar, por trs contos, a
nossa courela que est pegada s suas terras. Eu vi logo a inteno dele. Como no
tnhamos querido vender aquilo das outras vezes, mesmo quando ele oferecera qu
atro contos, o maroto, ao ver-nos com a corda na garganta, queria aproveitar-se
da ocasio. Eu, ento, disse-lhe que guardasse para ele todo o seu dinheiro. Que eu
preferia atirar-me, viva, cova onde enterrassem o meu homem, do que ver a nossa
courela nas mos dele! E preferia!
A senhora Gertrudes fez uma pausa e deu outro torn sua voz:
As lgrimas que eu chorei depois, quando vim para casa! Foi, ento, que me lembrei d
o Valadares. Mais ruim do que o Rufino no podia ser. Fui at l. Ele recebeu-me bem
e emprestou-me os quinhentos mil ris, para descontar nas tuas soldadas...
O qu ?! Nas minhas soldadas ?
Pois foi... Eu no podia adivinhar... Se soubesse que tu no querias voltar para cas
a dele, eu no tinha aceitado isso...
Ento foi o Valadares quem falou em descontar ?
Eu prometi-lhe, como ao Rufino, que pagaria em dois anos. Mas ele disse-me:
"No vale a pena incomodar-se. Desconta-se nas soldadas do rapaz".
Horcio levantou-se e caminhou at o janelo que
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a me havia fechado. Abriu-o e nele meteu a cabea a receber o ar de fora. Tornou a
cerr-lo.
Quer dizer que eu tenho, agora, de trabalhar para ele um ror de meses... Se eu j
no tivesse resolvido adiar o casamento, tinha agora de o adiar por isto...
A me no respondeu. Mas o pai, que at a se conservara em silncio, um silncio humilde, c
omo se ele, por haver estado doente, fosse o culpado de tudo aquilo, disse:
No vale a pena ralares-te. Ns tnhamos pensado, em ltimo caso, vender a courela, para
tu casares. Se quiseres, vende-se. No ao Rufino, claro, mas a outro qualquer...
com tempo, sempre se h-de arranjar quem fique com ela... Assim como assim, essas
territas eram para ti...
Horcio fez um gesto negativo. Ele sabia que os pais dificilmente poderiam viver s
em aqueles dois degraus abertos na anca da montanha, alguns metros de cho onde cu
ltivavam centeio e batatas, seu principal alimento. com isso, os tostes da sovela
, alguns jornais que ganhavam e o rendimento das onze ovelhas, se mantinham. Ago
ra, vendidos os bichos, bem teriam de apertar a barriga, pois sem o dinheiro da
l e do queijo no poderiam mercar todas as coisas precisas numa casa, mesmo o po, j q
ue o das courelas mal chegava para quatro meses.
No quero... Foi para a sua sade, est bem. Mais que fosse!
A me olhou-o, inquiridora:
Que pensas fazer ?
No respondeu. Sentou-se e prolongou a sua mudez, um minuto atrs de outro e outro e
outro, com o lume crepitando e a senhora Gertrudes a soltar, de vez em quando,
um suspiro. Finalmente, ergueu a cabea:
Ainda demora muito a ceia ?
Est quase pronta.
Vendo-o assim preocupado, o pai, ansioso de desanuvi-lo, meteu-se a contar histria
avulsa. Ele mal o ouvia. Consultara o relgio e impacientara-se: "Eram
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quase nove horas; come e no come, no saa dali antes das nove e meia. Quando chegass
e, o vigrio era capaz de j estar deitado". O pai sentia que ele pensava noutra coi
sa, mas continuava o seu monlogo, com aquela voz dbil e afvel que parecia pedir des
culpa de falar.
Sentaram-se, por fim, mesa. Ele soprou a sopa, comeu, soprando de novo, e, quand
o chegou ao po e ao conduto, devorou-os mais rapidamente ainda. com a ltima fula a
dilatar-lhe a face esquerda, abalou.
Em breve palmilhava a estrada que dividia a vila em duas partes. Meteu a uma rue
la que ali desembocava, dobrou a segunda e enfiou noutra ainda. De passagem, rec
onheceu, ao longe, a voz de Anbal, que falava num grupo; tinha vontade de o ver,
de o abraar, seu amigo desde os ninhos, mas no se deteve.
A casa do padre Barradas, toda de granito bem cortado, nua de cal como parede de
bastio, mas aligeirada na severidade por dois vasos de sardinheiras em cada jane
la, parecia adormecida na rua sossegada. Uma lmpada de iluminao pblica, que existia
em frente, lavava-lhe toda a fachada e no deixava perceber, por frincha de porta
ou de ventana, se l dentro havia tambm luz ou se estavam todos deitados. Horcio hes
itou e, depois, bateu, timidamente, com a aldrava. Aguardou, aguardou, sempre de
ouvido escuta, mas no ouviu rudo algum. Considerou que se j no era muito cedo, muit
o tarde no era tambm, tanto que o relgio de Santa Maria no dera ainda as dez; pensou
que, sem saber a resposta do padre Barradas, no podia buscar outro rumo para a s
ua vida e, assim impelido, bateu, de novo, com mais fora. Sentiu, ento, l dentro, u
ns passos que se acercavam lentamente. Pouco depois, a porta abria-se e, na sua
frente, recortava-se a senhora Alice, ama do abade, com gestos pesados e fofas c
arnes nos seus quarenta anos.
Ele salvou-a, humildemente, desejoso de colher-lhe a simpatia quela hora que tinh
a por molesta.
Eu precisava de falar ao senhor vigrio... Ele j sabe o que ... Se no fosse muito in
cmodo...
Alice advertiu:
O senhor vigrio, com certeza, j no pode falar-Ihe hoje. Mas eu you ver...
Desandou e, pouco depois, volveu:
o que eu tinha dito. O senhor vigrio diz que venha amanh...
A que horas ?
bom... Ele no me disse. Mas o melhor ser aparecer por a de tarde...
Horcio agradeceu, pediu de novo desculpa de haver incomodado, lanou desejo de boa
noite e partiu. Ia calcorreando as pedras, contrariado: "Assim, j no podia aprovei
tar a camioneta, no dia seguinte, para a Covilh, se aquilo no desse resultado. E o
utra camioneta s havia dali a trs dias".
Ainda no dobrara a esquina, quando ouviu um "pst!", "pst!", "pst!", cada vez mais
forte, rasgando o sossego da rua. Voltou-se. A senhora Alice estava outra vez p
orta e acenava-lhe, para que retrocedesse.
Logo que ele se aproximou, ela disse-lhe:
O senhor vigrio esteve a pensar que, amanh, tem o dia todo tomado. Depois da missa
, tem de ir s suas terras do Sameiro. , noite, h a novena. Que voc entre agora...
Ele sentiu alma nova, embora turbada pela emoo que lhe dava o entrar, pela primeir
a vez, na casa do proco. Alice ia frente, no corredor, com as suas grandes ndegas
estremecendo, direita e esquerda, conforme o movimento das pernas. porta que est
ava iluminada, ela deteve-se:
Entre.
Ele avanou e logo viu o padre Barradas, que procurava adaptar-se, comodamente, ao
cadeiro de braos onde acabava de se sentar, com um palito nos dentes. Era homem m
ais forte, mais entroncado ainda do que a sua ama. Tinha na cara redonda, de fac
es e nariz avermelhados, uns olhitos pequenos e vivos, que contrastavam com os s
eus lbios grossos, descados e levemente austeros. Contava cinquenta e quatro anos,
mas Horcio, que dele recebera a comunho em
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criana, e a ele se confessara vrias vezes, sempre o tivera por um homem velho.
Agora, o padre Barradas, ouvidos os cumprimentos, perguntava, tirando o palito d
e boca:
Quando chegaste ?
Saiba o senhor vigrio que cheguei hoje mesmo. O padre considerou-o de alto a baix
o e afirmou,
amvel:
Fez-te bem a tropa. At parece que cresceste mais! E aprendeste a ler e a escrev
er bem, dizes-mo na tua carta...
O senhor vigrio desculpe o meu atrevimento. Se calhar ela est cheia de erros...Hes
itou, ps-se a rodar a aba do chapu entre os dedos e, como o padre fizesse um gesto
de absolvio e dissesse "no, erros no dei por eles", animou-se: Eu peo muita desculp
a. Mas estive a pensar e vi que no tinha mais ningum a quem fazer um pedido assim.
Ainda andei vai e no vai para escrever directamente ao senhor Martins, a ver se
ele me metia l na sua fbrica... Mas depois disse, c de mim para mim, que, sem um em
penho, o senhor Martins decerto no faria nada. Por isso escrevi ao senhor vigrio,
que o amigo dos pobres...
Sentia-se perturbado. Desde pequeno habituara-se a respeitar o padre, que lidava
com as coisas divinas, fizera estudos, pertencia a outra classe e exercia vasta
influncia na sua freguesia metade da vila que era como um condado. Quando ele s
e encontrava no quartel, esse prestgio do abade esmorecera com a distncia, tanto m
ais que outro recruta, o Jangada, anti-clerical, no passava dia sem lhe contar hi
strias mariolas de frades e de curas. Agora, porm, de p em frente do padre Barradas
, que continuava sentado e com as suas mos gordas e macias pousadas nos braos da p
oltrona, o antigo respeito volvia a renascer, tolhendo-lhe os gestos e dificulta
ndo-lhe as palavras. O proco escutava-o, atentamente, mas, medida que ele tartamu
deava, ia pondo uma cara de desconsolo. Por fim, comunicou-lhe:
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Eu tratei de fazer-te a vontade, logo que recebi a tua carta. Falei ao senhor Ma
rtins, como me pedias. Tambm falei ao senhor Fragoso e, ainda ontem, toquei no ca
so ao senhor Cabral. Mas todos eles me disseram mais ou menos a mesma coisa. Tm o
s quadros cheios e no precisam de mais pessoal. Antigamente, eles metiam q
uantos aprendizes quisessem, mas agora no podem meter mais de vinte por cento em
relao ao nmero de operrios. Tu compreendes ? Se uma fbrica tem cem operrios e empregad
os, no pode ter mais de vinte aprendizes... Percebeste?
Horcio fez um gesto afirmativo. O padre Barradas continuou, com expresso desolada:
Eu tenho muita pena de no poder ser-te til. Ainda pensei em falar com mais algun
s industriais, mas o senhor Cabral disse-me que era tempo perdido. Como os patres
tm de pagar quatro dias de salrio por semana, mesmo que no haja trabalho para os o
perrios, ningum quer ter gente que no seja absolutamente indispensvel. Alm disso, os
outros industriais pertencem outra freguesia e os da outra freguesia, como sabes
, no gostam de fazer nada em favor da nossa...
O padre calou-se. Em frente dele, sempre de p, Horcio ficou silencioso, de olhos p
ostos no cho. To imvel estava que a prpria aba do seu chapu deixara de lhe rodar entr
e os dedos, com aquele movimento inconsciente que ele lhe dera at ali.
Olha l! volveu Barradas, como se houvesse tido um sbito pensamento. Por que quer
es deixar a vida de pastor? Uma vida to bonita, que at os santos gostavam dela e
os poetas antigos a cantavam! A voz do padre tornara-se mais doce, evocativa, c
omo se ele prprio sonhasse: O cu por cima, o ar livre, o nascer do sol visto l do
alto... noite, as estrelas... No tens visto figuras de pastorinhos, com s
uas flautas, nos altares e nos prespios ? No h dvida que os poetas antigos tinham ra
zo!
Eu queria casar-me disse Horcio e, por Jsso, que pensei mudar de vida
. A guardar gado
2 Vol. Ill
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no" ganho o suficiente. Ainda se as ovelhas fossem minhas ou os meus pais tivesse
m alguma coisa de seu... Mas, como o senhor vigrio sabe, o que temos e nada a mes
ma coisa... Vejo-me um homem, quero trabalhar e no sei o que hei-de fazer. Os meu
s pais no puderam dar-me estudos, mas, agora, que aprendi alguma coisa, tinha pen
sado...
O padre Barradas, depois de um ligeiro bocejo, interrompeu:
Bem. Tu l tens as tuas razes. No quero contrariar-te. Desta vez no tiveste sorte, ma
s podes ir descansado que, se aparecer alguma coisa, eu no me esquecerei de ti. No
queres um copo de vinho ? Alice! Alice!
No, muito obrigado, no quero!
Toma! Toma! Eu you deitar-me, que amanh tenho de me levantar cedo.
Padre Barradas bocejou de novo e levantou-se. Horcio repetiu:
Eu agradeo muito ao senhor vigrio. Se eu tivesse aqui outra pessoa,
no o teria incomodado. Mas assim...
No incomodaste nada. Vai com Deus! E para Alice, que aparecia porta: D aqui um c
opo de vinho...
Ele saiu da sala, humilde, modesto, cabea baixa, com a sensao de se encontrar no fu
ndo de um poo, respirando mal. No corredor, disse:
Eu no quero vinho, senhora Alice. Muito obrigado, mas no tenho vontade.
A ama insistia, empurrando-o para a cozinha:
Ande l! Ande l! Uma pinga no faz mal a ningum.
J com o copo na mo e enquanto Alice punha uma fatia de queijo sobre a fatia de po q
ue cortara, ele pensou: "Talvez aquilo fosse desejo de Nosso Senhor, para bem de
le. Sempre ouvira dizer que a indstria da Covilh era muito mais importante do que
a de Manteigas. L os teares eram de ferro e muitos teciam fio de estambre; ali er
am de pau e s havia fio cardado.
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Por mor disso, os teceles da Covilh ganhavam mais do que os de Manteigas. E talvez
o Manuel Peixoto ou o padrinho lhe conseguissem alguma coisa, pois a Covilh j era
uma cidade grande".
Mais aliviado do pesadume e com a esperana de novo a bulir-lhe na alma, olhou, en
quanto bebia, as prateleiras pintadas de branco, os grandes tachos de cobre area
do, para o dia do sarrabulho, as panelas e caarolas esmaltadas, dzias de pratos, vr
ias malgas e, ao fundo, o grande fogo, tudo muito em ordem, tudo muito limpo, a b
em dizer dos cuidados da senhora Alice. Os olhos fugiam-lhe para aquilo. "Assim
que ele gostaria de ter uma cozinha. No precisava de ser to grande, nem com tantas
coisas, nem com tanto luxo, mas assim asseada como a do senhor vigrio, que era m
esmo um gosto v-la".
II
QUANDO desceu da camioneta, na Covilh, voltou a olhar o seu fato. Durante o servio
militar, como andava de farda, poupara-o; apesar disso, j estava lustroso e fica
va-lhe, agora, apertado. As calas, especialmente, despraziam-lhe. Formavam joelhe
iras e mostravam-se mais estreitas em baixo do que as usadas nas cidades. "Era p
ena que ele no pudesse ir bem-posto, pois quem sabia se o padrinho no lhe arranjar
ia um emprego no comrcio?" Abotoou o casaco e ajeitou o chapu. No obstante o descon
tentamento que o fato lhe produzia, sentia-se muito mais senhor de si do que das
duas outras vezes que viera Covilh. A cidadezita serrana, de ruas tortuosas e ngr
emes, no lhe impunha, agora, aquele acanhamento de homem do mato que ele tinha, p
erante ela, antes de conhecer Lisboa e o Estoril. A Covilh parecia-lhe, desta fei
ta, muito mais pequena do que antigamente.
Ao chegar s Portas do Sol, deteve-se, um instante,
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a vei as obras do mercado novo. Pensara tanto, durante a noite e enquanto vinha
na camioneta, sobre o que diria ao padrinho Marques e o que dele poderia ouvir,
que a sua vontade, agora, era no pensar no resultado pela incmoda incerteza que es
te lhe dava. Novamente a andar, lembrava-se do mercado que havia ao ar livre, no
dia em que ele, ainda garoto, viera ali, com o pai, trazer umas trutas que o Dr
. Couto, de Manteigas, enviara ao Dr. Caetano, da Covilh. Mas logo a outra ideia
se sobreps. Por muito que se esforasse, ele no conseguia dominar aquela preocupao. Or
a desejava falar imediatamente com o padrinho, ora surdia-lhe o desejo de demora
r um pouco mais esse momento. Por fim, decidiu-se e estugou o passo, encosta aba
ixo.
O estabelecimento do Marques ficava perto, na rua afogada entre duas filas de ve
lhas casas. Era uma mercearia de bairro pobre. Ao fundo, no centro da prateleira
que cobria totalmente a parede, havia uma porta em arco, dando para soturna div
iso que, de fora, mal se enxergava. Foi de l que, chamado pelo marano, surgiu o pad
rinho.
Ol, rapaz! H que tempos no te vejo! Por pouco no te conhecia! E estendeu-lhe a mo.
O Marques era um homem baixo e gordo. Comeara a vida com uma taberna em Manteigas
e fora nessa poca que o tio Joaquim o convidara para seu compadre. Mais tarde, t
omara de trespasse aquela mercearia da Covilh e, por sua vez, trespassara a taber
na a um irmo. Nos primeiros anos, ainda voltara a Manteigas, no Estio, para tomar
banhos nas caldas. Depois, deixara de o fazer. Desde ento, Horcio s o vira uma vez
. Mas, pelo Natal, Marques enviava-lhe sempre vinte escudos e uma carta desejand
o felicidades a toda a famlia. Ao receb-la, a senhora Gertrudes dizia: "Tem de se
pedir Romana que lhe escreva em teu nome, a agradecer. Ele nunca se esquece de t
i e tu tambm nunca te deves esquecer dele. O compadre no tem filhos e hoje conta m
uito dinheiro; hora da morte deixa-te, com certeza, alguma coisa". A senhora Ger
-
trudes s renunciara a falar assim quando se soubera que o Marques, alm da mulher,
tinha por sua conta uma amante de pouco mais de vinte anos. Contudo, porque o pa
drinho era estabelecido numa cidade, Horcio creditava-lhe larga importncia social.
Agora, Marques interrogava-o sobre a sade dos pais e de outras pessoas de Manteig
as e, como Horcio lhe dissesse que havia regressado na vspera de Lisboa, ps-se a el
ogiar a capital, que ele tinha visitado tempos antes:
Aquilo que uma cidade!
Por fim, mudou o torn de voz e lanou:
Ento o que te traz por c ?
Queria cumprimentar o padrinho e, ao mesmo tempo, ver se me fazia um favor...
Marques ficou em inquieta expectativa, no fosse sair dali pedido de dinheiro.
Dize l... murmurou.
Ele, ento, falou, atabalhoadamente, da sua vontade de deixar a vida de pastor e d
e conseguir um emprego na Covilh.
Pelas expresses e movimentos da cabea que o padrinho comeara a fazer, mal ele desve
lara a sua ambio, Horcio compreendeu que teria fraca resposta. E ia continuar a ins
istir naquilo em que podia e no podia trabalhar, quando entrou uma mulher. Marque
s abandonou-o prestemente, feliz por essa apario, que lhe dava tempo de raciocinar
. E, adiantando-se ao marano, ps-se em frente da freguesa, com as mos apoiadas no b
alco:
bom dia, senhora Ana. Como tem passado ? Ento que deseja ?
Do seu canto, Horcio viu-o pesar acar e arroz e, depois, embrulhar uma vela de este
arina.
Por fim, a mulher saiu e Marques voltou para junto dele:
muito difcil o que tu queres, meu rapaz... Muito difcil! Vontade de te ajudar no me
falta, j se v; mas no vejo ponta por onde lhe pegue. Quem tem um emprego no o larga
, mesmo que ganhe muito
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A L E A NEVE
pouo; e ningum quer meter mais gente. Andam por a muitos homens ao alto. E aqui ain
da pouca coisa, porque em Lisboa e no Porto parece que muito pior. No estrangeir
o, no se fala! Todos os dias vejo coisas nos jornais que de se ficar pasmado. Ter
ras ricas como a Amrica, onde parece que havia de haver trabalho a rodos, tinham
milhes de desempregados... O que lhes est a valer a guerra, que mata uns e d que fa
zer a outros... Se no fosse isso, no sei o que havia de ser. C no nosso Portugal, q
ue vive em paz, o que se v...
Marques ficou um momento em atitude pensativa e, depois, acrescentou:
Eu compreendo a tua situao... Compreendo muito bem... Tu o que querias era ganhar
mais alguma coisa. Vs-te sem futuro, no assim ? Mas os tempos esto maus, rapaz. E
stendeu o queixo, indicando o empregadito: Olha: vs aquele ali ? Quando se soube
que eu precisava de um marano, porque o outro tinha morrido de tifo, apareceram-
me mais de vinte. E com cada recomendao! At o presidente da Cmara me recomendou um!
E a alguns deles as famlias ofereciam-nos mesmo sem ordenado: s pela comida e pel
a roupa. Eu que no gosto de explorar ningum. Olhou para o marano com ar superior:
Fiquei com aquele e pago-lhe vinte e cinco escudos por ms. As coisas so assim. So
sempre mil ces a um osso. Tu s pastor e tens o teu emprego. Queres um conselho ?
Deixa-te estar! Ganhas pouco e um moo de pastor nunca levanta cabea, certo.
Mas tem pacincia! Espera melhores dias!
O humilde sorriso de Horcio desaparecera completamente. Ao ver-lhe o rosto, Marqu
es procurou tornar mais afectuosa a sua voz:
Eu queria ser-te agradvel, l isso queria. Mas que posso eu fazer ? Calou-se, com
o se estivesse a investigar na memria. No, no vejo nada... disse, depoi
s. Antigamente, ainda os armazenistas, quando lhes fazamos urn pedido, procur
avam atender-nos. Mas, hoje, no nos ligam nenhuma. Foi o que
A LA E A NEVE
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nos trouxe esta guerra. Toda a gente ficou malcriada. Se se vai comprar alguma c
oisa, parece que nos fazem um favor em vend-la. Os empregados j no do ateno, como anti
gamente. Quem quer, quer; quem no quer, que v a outra parte! Marques voltou a olh
ar, com sobranaria, o seu caixeiro: Outro dia, at aquele bisbrrias, que ainda no la
rgou os cueiros, estava aqui a tratar uma freguesa com duas pedras na mo. Imagina
, uma freguesa que gasta muito e paga sempre a pronto! Claro, obriguei-o a pedir
-lhe desculpa e se ele no pedisse, eu punha-o no olho da rua! Que os outros sejam
como quiserem, mas no em minha casa. Em minha casa no admito ms-criaes!
Preocupado consigo mesmo, Horcio mal o ouvia. Marques continuou a falar e, depois
, mudou de torn:
Se eu souber de alguma coisa, mando prevenir-te. Mas j te digo que no deves guarda
r muitas esperanas. No calculas a pena que tenho, pois sou muito teu amigo e dos t
eus pais. Aquilo gente de cara direita!
Horcio saiu confrangido. Tanto como a negativa, desorientavam-no as palavras que
ao Marques ouvira. Parecia-lhe que todos se haviam combinado, pois em Lisboa tin
ham-lhe dito quase a mesma coisa. E agora ele lembrava-se de que, desde pequeno,
ouvira sempre falar de pessoas que queriam trabalho e no o tinham, dos muitos pa
ssos que davam, dos pedidos que faziam, muitas vezes passando fome e sem arranja
r nada. No era, portanto, coisa s de agora; era coisa j antiga. Ele que no dava, nes
se tempo, ateno ao caso, por ser ainda garoto.
To aborrido ia, que, em vez de subir a rua, como lhe convinha, descera-a. Metendo
a outra, passara em frente do quartel da Covilh, depois ladeara vrias fbricas, sem
pre a caminhar ao acaso; sempre a magicar naquilo. "At o padrinho vira que ele es
tava sem futuro!" Reagiu: "No; em moo de pastor no acabaria ele! Iria falar j ao Man
uel Peixoto. Decerto, o Manuel Peixoto no lhe diria que no. Era melhor, l isso era,
um emprego no comrcio, do que entrar para as
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A L E A NEVE
fbricas. No comrcio, se ele estudasse de noite, podia vir a ser algum. Mesmo um hom
em importante, como se tinha visto com outros. Mas j que no tinha lugar, pacincia!"
Esgueirou-se entre a parede e um camio que, parado na rua estreita, lhe dificulta
va a passagem; voltou na primeira travessa e, pouco depois, cruzava, de novo, o
centro da Covilh. Ao chegar ao jardim da Praa da Repblica, examinou o seu relgio. Er
am onze horas e vinte e cinco. Da Aldeia do Carvalho mediam-se sete quilmetros e e
le tinha de voltar a tempo de tomar a camioneta. Comeou a descer apressadamente a
estrada, com os olhos a correrem sobre as fbricas de fiao e tecelagem que se esten
diam l em baixo, nas margens da Ribeira da Carpinteira o maior conjunto industri
al da Covilh. Ele olhava para aquilo de maneira muito diferente do que o fizera d
a outra vez que passara ali. Descobrira o casaro da firma Azevedo de Sousa, Lda.,
de que Manuel Peixoto tambm lhe havia falado, por nele trabalhar, como mestre, o
seu irmo e diminuiu o passo para melhor o contemplar. "Se Manuel Peixoto conseg
uisse met-lo na indstria, decerto seria para aquela fbrica que ele viria" pensou.
E demorava-se a fixar o longo e comprido edifcio, de dois pisos e muitas janelas,
erguido entre outros, tambm compridos, mas mais velhos. Em seu redor no se via ni
ngum. S um vago rumor de mquinas atestava o labor humano dentro das paredes.
A- estrada salvava a ribeira e, voltejando, subia. Agora, Horcio enxergava vrios h
omens estendendo tecidos nas rmulas, por detrs das fbricas. Ele voltou a dar pressa
s suas pernas. A estrada continuava deserta. O rudo fabril ficara para trs e ali h
avia silncio um silncio de sol em terra abandonada. Logo, porm, que ele ultrapasso
u a Borralheira, que espairecia, com suas casitas, na encosta, a expresso da estr
ada modificou-se. O que era mudez e solido enchera-se de gentes e de falas. O mei
o-dia estava a cair e numerosas mulheres e crianas, com cestos na cabea ou nas mos,
corriam a levar o almoo aos
A LA E A NEVE
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operrios. Essa revoada feminina em breve, porm, desapareceu. Aos grupos foram-se s
ucedendo figuras isoladas e, em seguida, a estrada mostrou-se novamente solitria.
Pouco depois, Horcio entrava na Aldeia do Carvalho. O lugar, de ruelas sinuosas,
becos soturnos, casas a derrurem de velhice e de pobreza, assemelhava-se, no seu
aspecto fsico, carregado de negrume, a quase todos os povoados beires. A Aldeia do
Carvalho distinguia-se de muitas outras apenas porque, em vez de se entregar so
mente vida pastoril e agrcola, a maioria dos seus habitantes trabalhava nas fbrica
s da Covilh.
Horcio viera ali s uma vez; apesar disso, lembrava-se bem da casa de Manuel Peixot
o, companheiro de pastoreio nos altos da serra. Justamente porque Maio ia no fim
, ele temia que o amigo houvesse j abalado para as pastagens dos cimos. Mas, mal
bateu porta, a mulher, que veio abrir, tranquilizou-o:
Ele anda a para riba a tratar das chaves duns borregos que esto mal armados.
Aonde ?
A mulher saiu rua, estendeu o brao e indicou-Ihe, com bastas explicaes, o caminho q
ue ele devia seguir. Horcio agradeceu e ps-se a atravessar a aldeia, enquanto mast
igava o po e o pedao de queijo que havia trazido consigo.
Foi encontrar Peixoto num campo sobranceiro ao povoado. Dois dos seus filhos sop
ravam o lume que ele acendera debaixo duma panela, fincada sobre trs pedras e na
qual se coziam batatas destinadas a amolecer os chifres dos carneiritos. Perto d
ali, o rebanho aguardava o incio da operao, metido dentro do bardo uma cerca de red
e de corda, segura por estacas.
Reconhecendo Horcio, Peixoto caminhou ao seu encontro:
Que novidade! Tu, por aqui ? Quando chegaste ? O convvio na serra, durante
vrios Estios, nas
horas em que os seus rebanhos confluam aos limites das reas concedidas a Manteigas
e Aldeia do Car-
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A L E A NEVE
vafho, criara, entre os dois, grande intimidade, apesar de Peixoto ser mais velh
o do que Horacio quase trinta anos. Este tratava-o sempre por "senhor" ou por "v
ossemec"; o outro dirigia-se-lhe, muitas vezes, com um torn paternal, mas essa di
ferena de tratamento no influa nos seus longos dilogos, travados nos ermos alpestres
, onde Peixoto confidenciava at as volpias que tivera com mulheres, como se ambos
fossem da mesma idade.
Agora, Peixoto abraava-o:
Que alegria! Que alegria! Deixa-me ver-te bem! Pusera-lhe as mos sobre os om
bros, afastara-se
ligeiramente e examinava-o de alto a baixo:
Como te deste l na tropa ? Anda! Conta! Senta-te aqui.
Os dois sentaram-se no cho. E Horacio ps-se a responder pergunta do amigo. Os filh
os de Peixoto tinham-se esquecido do lume que ardia sob a panela e seguiam todos
os seus gestos. Horacio falou da vida militar e de Lisboa, do que vira e do que
passara. Por fim, o palreio transitou para a vida na serra. Peixoto queixou-se
do Inverno:
Um tempo medonho! J no sabia que dar de comer ao gado. Cheguei a arrendar, por qua
tro notas, um lameiro que no valia um pataco.
Sempre espera de momento azado para expor a razo que o trouxera ali, Horacio apro
veitou o primeiro silncio que lhe pareceu propcio:
Pois verdade... Eu queria falar a vossemec... Pelo seu torn de voz, Peixoto julgo
u ser caso para
ficarem sozinhos. E fez um gesto aos filhos.
No assim coisa de segredo...interveio Horacio.
Os garotos afastaram-se. Ao Marques, no quisera ele falar do seu casamento. Agora
, a Manuel Peixoto, contava tudo, a ideia que tivera, o motivo por que adiava a
boda.
Eu queria ver se vossemec pedia ao seu irmo para me meter numa fbrica... Naquela o
nde ele mestre ou noutra qualquer...
A L E A NEVE
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Numa fbrica ? Na tua idade ? perguntou Peixoto, admirado. Logo, ao reparar na
expresso dele, consertou: bom! L falar, falo. E podes ter a certeza de que se e
le no o fizer a mim, no o far a mais ningum. Mas isso no coisa que se possa arranjar
assim de p para a mo. Se dependesse s do Mateus, estava bem; mas no depende. H sempre
muitos pedidos feitos ao patro. Depois, com os anos que j tens... O que que tu qu
erias ser ?
Eu queria ser tecelo...
Peixoto meditou um momento e logo volveu sua:
Tu j pensaste que tinhas de entrar como aprendiz?
-J...
Eu digo-te isto, porque um aprendiz ganha muito pouco. E, s vezes, passa muito te
mpo antes de chegar a operrio. So coisas boas para os garotos. Em vez de andar por
a na brincadeira, vo pegar fios e aprender um ofcio. Sempre recebem alguma coisa e
ajudam os pais. Mas tu s um homem, que at j foste s sortes. No sei se pensaste bem..
.
Pensei. Fiz as contas. Dinheiro, ganharei mais do que me d o Valadares. claro q
ue l no pago comida e aqui terei de a pagar. Mas uma coisa de mais futuro. Se cheg
o a tecelo, j serei compensado. Que isto de ser pastor, no vida! Para vossemec, est b
em, porque o gado seu. Mas ganhando noventa escudos, que quanto me pagam, no se r
esolve nada.
Calou-se. De cara magra e negra de barba, um casaco remendado em cima da camisa
suja e sem colarinho, Peixoto deixou, tambm, correr o silncio.
Tu l sabes...disse, por fim, o velho pastor. Mas talvez pudesses arranjar outra c
oisa...
Qual o qu! Julga que tambm no pensei nisso ? Em Lisboa bati vrias casas e, agora m
esmo, antes de vir falar consigo, estive com o meu padrinho, na Covilh. com o M
arques, aquele que tem uma mercearia abaixo do mercado novo. Todos me dizem o m
esmo. No basta um homem querer trabalhar; preciso arranjar trabalho e a que est a c
oisa. Eu nunca
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A LA E A NEVE
imginei que fosse to difcil! Depois, no tenho quem me proteja. Amigo verdadeiro, s vo
ssemec... No tenho outro.
E em Manteigas ? Nas fbricas de ]? Sempre ficavas com a famlia...
Pois isso era o que eu queria! At por causa da rapariga. Se eu vier para aqui,
fico muito longe dela... Mas no arranjei nada. Escrevi ao vigrio, ainda eu estava
em Lisboa, e ontem fui saber a resposta. Ele pediu por mini a vrios industriais
e todos lhe disseram que no. Tambm no me admirei muito. L todas as fbricas so pe
quenas e muita gente a querer entrar.
Veio novo silncio. Peixoto fixara os olhos no bardo e deixou-os assim fixos, como
se estivessem mortos. Foi Horcio quem voltou a falar, perguntando com ansiedade:
Diga-me, senhor Manuel: no lhe parece que melhor ser operrio do que pastor ?
Peixoto respondeu:
O meu pai entregou o gado a mini e mandou o meu irmo para as fbricas. Eu tambm you
mandar dois filhos para l, assim que eles tiverem idade. Mas eu te digo: o meu pa
i teve bom olho. Para o meu feitio no h como a liberdade. L passar os'dias metido
entre as quatro paredes de uma fbrica no comigo! Claro que se eu estivesse no teu
lugar j seria outra coisa...
Peixoto levantou-se e destapou a panela. O vapor da gua fervente subiu at o seu ro
sto, mal lhe deixando ver as batatas que l dentro se encontravam.
Olha l: ests com muita pressa ?
Eu tenh(r) de tomar a camioneta s cinco menos um quarto, na Covilh. Porqu ?
que talvez pudesses dar-me uma ajuda, pois com os garotos no se pode contar. S ser
vem para atrapalhar.
Ainda tenho tempo disse Horcio, levantando-se tambm. E, apanhando os trapos e o
gadanho que ali estavam, caminhou, com Peixoto, que levava
A LA E A NEVE
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a panela, para dentro do bardo. Junto do rebanho,
notou:
Vossemec, agora, tem mais cabras do que ovelhas...
No me fales nisso! No sabes a minha arrelia... H pouco, no te disse nem metade do q
ue foi o Inverno. Pasto, nenhum! Depois de arrendar dois lameiros, fiquei sem
dinheiro para arrendar mais. Fiquei depenado de todo e o gado sem ter onde come
r! Foi ento que me resolvi... Fiz como tinham feito os outros. Vendi umas ovelhit
as e comprei cabras... As cabras roem tudo, tudo lhes serve. As ovelhas querem b
ons pastos, como sabes... Que havia eu de fazer? O que tem acontecido em Cortes,
vai acontecer tambm aqui. Agora, na Aldeia, s h trs rebanhos de ovelhas. O r
esto tudo cabras. Os pobres no podem manter ovelhas. O rendimento das cabras mais
pequeno, mas sempre lhes vai dando o leitito, at colherem o centeio e as batatas
. Mas eu que no posso com cabras! A sua voz entristeceu: No imaginas a ralao que te
nho tido! Nunca pensei que tivesse de findar em cabreiro... Quando vi levar
em as ovelhas que eu tinha vendido, parecia que me separava de pessoas de famlia,
Deus me perdoe...
Peixoto moveu a cabea e ergueu os ombros, como se quisesse sacudir o seu desgosto
. Depois saiu atrs de feltroso carneirito que se escapava por entre as ovelhas, f
ura aqui, fura ali, fugindo sempre.
Horcio seguia a cena, sem a ver. Havia pensado pedir a Manuel Peixoto o dinheiro
que os pais deviam ao Valadares e libertar-se do patro, logo que disso carecesse.
Agora, as dificuldades que o amigo lhe revelara aumentavam as suas prprias dific
uldades. "Se, de um dia para o outro, o irmo de Peixoto lhe arranjasse um lugar n
as fbricas, como poderia ele deixar o Valadares sem, antes, lhe pagar?"
Eh, Horcio! Anda! gritou Manuel Peixoto.
Havia filado o bicho e metera-o sob os seus joelhos. Horcio aproximou-se. De gada
nho em punho, tirou da panela uma grande batata e passou-a para
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A LA E A NEVE
o ifapo. O carneirito mostrava dois chifres mui petulantes, a atestar a sua juve
ntude. com um gesto rpido de Horcio, um desses rebentos sumiu-se, enterrado na bat
ata escaldante. O animal teve um estremecimento e a haste amoleceu rapidamente.
Horcio ps-se, ento, a retorc-la, para que ela, ao crescer, no fosse tapar a vista do
bicho ou mesmo penetrar-lhe no pescoo, como sucedia muitas vezes, quando os pasto
res se descuidavam de intervir.
Trouxe outra batata e repetiu o acto na ponta que ainda se arrebitava sobre a ca
bea do borrego. Em breve os dois chifres pendiam, retorcidos, para o cho, como con
vinha a um carneiro que se prezasse, a um bom futuro padreador que quisesse boni
tas e avantajadas armas, sem ser, ele prprio, ferido por elas.
Amarrados os comos a um pedao de pau, que assim esfriariam mantendo a forma receb
ida, Peixoto lanou-se a pegar segundo borrego.
Ia em meio a tarde quando Horcio se despediu, j longe da aldeia, para onde o amigo
tinha vindo a caminhar com o seu rebanho. Peixoto tornava a repetir:
you tratar do que me pediste. O pior a tua idade... Mas vamos a ver o que se arr
anja... Eu abalo l para cima, com o gado, depois de amanh. Tu tambm vais qualquer d
ia destes, no verdade ? E como visse Horcio fazer um gesto incerto: bom! De qual
quer maneira, o que eu souber mando dizer-te...
De regresso, a camioneta entrou em Manteigas ao fim do dia. No meio do vale, bei
ra do Zzere, a vila, com as alvas torres das duas igrejas e o punhado de casas em
derredor, parecia uma construo infantil, um burgo de Liliput, no fundo de grande
concha verde. Da terra linda dir-se-ia terem sado ciclpicas figuras, ptreos vultos
que haviam ficado esculca, protegendo e vigiando o povoado, de sobre as altssimas
lombas que corriam das Penhas Douradas at os Cntaros.
A L E A NEVE
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Horcio desceu da camioneta e dirigiu-se a casa de Valadares, no fundo da vila.
O patro acolheu-o afavelmente. Era um homem alto, seco, cara rstica, toda queimada
pelo sol nos trabalhos dos campos. Fora tambm pastor de seu gadito antes de ser
dono de copioso rebanho e daquelas terras que comprara com o dinheiro que, por i
ndirectas vias, a mulher recebera do pai, um cura de Gouveia em transes de consc
incia beira da morte.
Ento como tens passado ? Como te deste por l ? Perante a resposta e a expresso de H
orcio, ele
quedou-se a contempl-lo, sorridente, mas inquiridor:
Pensei que estivesses zangado comigo...
Nada, no... Porqu?
Como chegaste h dois dias e ainda no tinhas aparecido... Sorriu mais: Estiveste
a matar saudades da rapariga ?
Horcio tomou por til aquela justificao e fez um gesto vago.
Eu virei amanh. Valadares mostrou-se generoso:
No, no venhas. Disseram-me que te queres casar e eu sei o que isso . Necessita
s de uns dias de folga. Prepara as tuas coisas e vem no fim do ms. O meu filho, o
Tnio, anda com o gado e pode andar mais um tempo.
Eu resolvi adiar o casamento... Posso vir amanh.
Adiaste ? Porqu ? Perante o silncio do seu pastor, Valadares no insistiu. Bem; t
u l sabes da tua vida... Queres comear, ento, amanh?
Sim, senhor. Amanh irei ter com o Tnio. Tudo aquilo fora rpido. Valadares murmurou:
Como queiras...
Horcio ainda perguntou pela sade da senhora Ludovina, que ele sentia andar l por de
ntro, na trafega domstica e saiu. Atravessou a vila a passos largos, a caminho d
e casa. Desde que comunicara ao Valadares que voltaria a pastorear-lhe as ovelha
s, aumentara a sua ternura por Idalina, o desejo de se encontrar ao seu lado. Pa
recia-lhe que, junto dela,
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A LA E A NEVE
ag"ra que o casamento se tornara mais difcil, ele teria maior coragem e seria men
os infeliz. "O que ele precisava era de convenc-la a esperar, mas convenc-la a val
er. Porque, agora, no se tratava s da casa; tratava-se mesmo do dinheiro para eles
viverem. Se casassem j, com que iam passar os primeiros meses, se a soldada fora
recebida adiantadamente ? E o pior que a sua me no queria, decerto, que ele disse
sse aquilo..."
Ao empurrar a porta da sua casa, viu, l dentro, os pais de Idalina. Estavam senta
dos em frente dos pais dele e tinham uma cara severa.
Horcio soltou uma "boa-noite" cordial, mas a senhora Januria e o marido respondera
m friamente.
Foi a me dele quem procurou romper o mal-estar que envolvia os seres e as prprias
coisas:
Vieste to tarde! Que aconteceu ?
To tarde ? estranhou ele. A camioneta chegou ainda no h meia hora...
A senhora Gertrudes olhou-o, ansiosamente, aguardando outro esclarecimento, mas
ele desviou os seus olhos e no disse mais coisa alguma. Ento, a me preveniu-o:
Aqui o senhor Vicente e a tia Januria h j um bocado que esto tua espera. Querem fala
r contigo...
Como no havia mais bancos, ele encostou-se parede, para ouvir. Mas os pais da Ida
lina continuavam calados. A senhora Januria, o tronco envolvido num xaile preto,
tinha os braos cruzados no peito e os olhos postos nos joelhos. Sobre o seu lbio i
nferior, repuxado para dentro, desciam, nos cantos, os cabelos negros do lbio sup
erior, retorcidos como miniaturas de chifres de carneiro. E na terra onde, naque
les apuros, os homens cediam sempre a iniciativa s mulheres, o senhor Vicente, alm
de tudo desconfiando de seus ouvidos, no desejava tambm antecipar-se. Foi ainda a
me de Horcio quem tornou a afastar o silncio:
Eles no querem que se adie o casamento. Eu j estive a explicar-lhes, mas eles...
A LA E A NEVE
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S ento, ao ouvir aquilo, a senhora Januria irrompeu, com a sua voz fanhosa:
Est bem de ver que isso no tem jeito nenhum! A rapariga estava comprometida contig
o, toda a gente o sabe, e, agora, se o casamento no se faz, o povo comea por a com
murmuraes...
Mas que murmuraes podem fazer, se eu no falto ao prometido ? Se s uma questo de deixa
r para mais tarde e toda a gente pode saber porqu... Demais a mais, eu no devo nad
a sua filha. Hei-de casar, porque gosto dela. Que que podem dizer?
A senhora Januria exaltou-se:
Muita coisa! Honra, creio que no lhe deves! Mas tambm te digo que se lha devesse
s e no pagasses, quando no houvesse mais ningum que te tirasse a vida ela olhou, a
ssanhada, para o marido estava eu aqui! Mas que tu andas a desacreditar-me a ra
pariga, no h dvida! A tia Luciana j encheu os-ouvidos do povo com as poucas-vergonha
s que viu ontem. A minha primeira teno foi partir-lhe a cara, mas, depois, pensei
se no seria verdade o que ela andava a espalhar. E, afinal, era. L a rapariga j apa
nhou duas bofetadas, para no ser desavergonhada como tu. Mas nisto so sempre
os homens que se adiantam e tu j ficas prevenido...
Os nervos da senhora Gertrudes comearam tambm a excitar-se, no por encontrar falta
de razo nas palavras de Januria, mas porque a irritava a forma como a outra se dir
igia ao seu filho. Alm disso, ela j assentara que, para os seus interesses, o melh
or era, efectivamente, adiar o casamento. A senhora Gertrudes conteve-se, porm, d
urante o pequeno silncio que Januria fez. To-pouco os outros falaram. O tio Joaquim
continuava, como na vspera, debruado sobre a sola de um sapatorro, como se no ouvi
sse coisa alguma; e o pai de Idalina no passara de uma expresso carregada, para mo
strar que apoiava a clera da mulher.
Encontrando o campo livre, a senhora Januria voltou:
5o
A LA E A NEVE
, Isso da casa estaria muito bem, se a pudesses fazer j. Mas podes?
Horcio hesitou. A sua prpria me tornava a contempl-lo, ansiosamente, como h pouco.
J, j, no posso disse, por fim. Tem de correr algum tempo, at ver se arranjo ou
tro modo de vida.
o que eu pensava! exclamou Januria. o que eu pensava! Quem sabe l quando ser isso!
Pode ser daqui a muitos anos, pode no ser nunca. E a rapariga que fique a espera,
como se fosse um traste usado.
Antes mesmo de Horcio responder, a senhora Gertrudes gritou, nervosa:
No posso ouvir uma coisa dessas, tia Januria! Se voc e a sua filha esto assim com ta
nta pressa, ela que case com outro. L favores desses no queremos, nem precisamos..
.
Horcio acenou me, pedindo-lhe que se calasse. Januria recuou:
Agora no se cuida disso. Isto falar por falar.
E voltando-se para Horcio: Vocs podiam casar agora e, depois, com tempo, tratar l
da tua ideia...
Eu j expliquei tudo Idalina defendeu-se ele.
Ela no lhe disse ?
A tia Januria fez um gesto que nem afirmava nem negava. Horcio continuou:
Vossemec no tem mais gosto de v-la casada do que eu de casar com ela. Acredite nist
o que lhe digo! Mas mesmo sem pensar na casa, eu no poderia fazer agora a boda...
Perante o olhar da me, acrescentou:
Ganho muito pouco...
Ora essa! Mas quando tu resolveste casar j sabias isso... Ganhavas a mesma
coisa.
Pois , mas...
A senhora Gertrudes interveio, apressadamente, no fosse vir ainda baila que ela t
inha recebido, adiantado, o salrio do filho:
Est tudo cada vez mais caro...disse.A mim tambm me parece melhor esperar mais algu
m tempo.
A L E A NEVE
51
A senhora pode ter a certeza de que eu caso com a Idalina. E no h-de demorar muito
. Mas deixe-me arranjar as coisas. Estou farto de dizer que isto de ser moo de pa
stor no ofcio! No s se ganha uma misria, como se vive longe da mulher. Quando eu pens
o que tinha de deixar a Idalina aqui e ir passar meses seguidos na serra ou l par
a a Idanha, sinto logo vontade de largar aquilo. No; quando eu casar, para estar
junto dela e dos filhos que vierem.
Tanto amor sua filha no bastava para convencer a senhora Januria. Ela comeou a pres
sentir que, alm da casa, havia ali algo mais, que contrariava no s os desejos dela,
mas os do prprio Horcio e da famlia.
Bem; eu no quero nada fora. O que eu tenho medo da lngua do povo. Mas se tu c
ontinuas com tenes de casar...
Foi o pai de Horcio quem respondeu:
J se v que continua, mulher! Se ele no casasse, tambm ns ficvamos desgostosos...
Era a primeira vez que o tio Joaquim, interrompendo o seu trabalho, intervinha n
a discusso. O senhor Vicente, perante aquele exemplo, decidiu tambm dizer alguma c
oisa:
Pois era isso que ns queramos saber. E voltando-se para a mulher: No verdade ?
Pouco depois, os dois saam. E a senhora Gertrudes, de nervos j apaziguados, coment
ava:
Pressa assim nunca vi! Porem-nos a faca ao peito!...
Coitados! desculpou-os o tio Joaquim. Tm uma data de filhos e esto mortos por fi
car com uma boca a menos.
A senhora Gertrudes colocou um prato na mesa, para Horcio:
com certeza a ceia j est fria. Olha l: sempre vais para o Valadares ?
Perante o gesto do filho ela ficou tranquila.
52
A L E A NEVE
in
Z\ serra corre de Nordeste a Sudoeste, como imensurvel raiz de outra cordilheira
que rompesse longe do seu tronco. Belo monstro de xisto e de granito com terra a
encher-lhe os ocos do esqueleto, ondula sempre: contorce-se aqui, alteia-se aco
l, abaixa-se mais adiante, para se altear de novo, num bote de serpente que quise
sse morder o sol. Ao distender-se, forma altivos promontrios, dos quais se pode i
nterrogar o infinito, e logo se ramifica que nem centopeia de pesadelo, criando,
entre as suas pernas, trgicos despenhadeiros e tortuosas ravinas, onde nascem ri
os e as guas rumorejam eternamente.
Vista de alto, sugere um fabuloso rptil, anfbio e descomunal, cortando em dois o g
rande vale que teria surgido aps haver secado o lago que aquele habitava. Examina
da de banda, vem-se-lhe inmeras patas estendidas e, a trechos, o lombo serrilhado.
Esse gume com muitas mossas , porm, ilusrio. Contemplado de perto, o dorso da serr
a, como o dos cetceos, mostra largas superfcies, ora chatas, ora abauladas, umas l
impas de acidentes, outras cercadas de frages, que, com estranhos perfis e enigmti
cas atitudes, parecem defender as terras solitrias. O ser humano tem volume mais
mesquinho do que uma velha giesta, do que uma velha urze, nesses planaltos que s
e alargam entre altas vagas de terreno, entre montanhas que cresceram no cimo da
montanha. E uma luz de mistrio, ao clarear as chapadas e pendores, enche de temv
eis sombras os silentes penedais, os rochedos majestosos, todos esses gigantesco
s vultos de granito que povoam a serra, como seus feros senhores.
O homem instalou-se, primeiro, nos vales, depois foi acendendo a sua lareira a q
uinhentos, a oitocentos, a mil metros; daqui, porm, no passou o tecto do seu abrig
o permanente. Mas, mais para cima, desde que as neves se derretiam at que outras
viessem,
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expunha-se ao sol uma efmera riqueza nos vastos piainos. E, para aproveit-la, o ho
mem subiu ainda, j sem casa e acompanhado apenas do seu gado. Assim, a grande ser
ra e seus mistrios foram conquistados mais do que com fundas, lanas ou arcabuzes,
com homens pastoreando ovelhas e cabras.
Desde ento, em Abril, se o gelo j se sumiu, ou em Maio, se a invernia se prolongou
, ouve-se tilintar, encostas arriba, as campainhas e os chocalhos dos rebanhos.
essa msica matinal que anuncia a Primavera na serra. Seria grato ouvi-la distanci
ar-se lentamente e continuar deitado, embrulhando-se mais na roupa, nessas manhs
ainda frgidas da montanha. Mas no pode ser. Cada pastor leva ovelhas ou cabras de
trs, quatro, cinco donos e cada um destes se reveza uma semana no pastoreio. Os q
ue ficam, saltam, tambm, da cama, trocando o cajado de pegureiro pela enxada de c
avador, que nas rampas da serra todos eles criam gado, duas ou trs dzias de cabeas,
e cuidam do seu agro duas ou trs pobres courelas. E se algum raro, por ter prdio
s maiores, pe um moo ao seu servio, que zagal assalariado, que lhe substitua o filh
o no pascigo alpestre, fica mais barato do que jornaleiro pago ao dia para subst
ituir o segundo nos amanhos da terra.
Os rebanhos partem e s volvem em Junho, para a tosquia; partem de novo e a sua msi
ca de regresso s se torna a ouvir quando o Outono comea a acobrear as folhas dos c
astanheiros.
Desta feita, porm, e pela primeira vez na sua vida de pastor, Horcio no carece de l
evantar-se com a alba. O gado de Valadares h trs semanas j que anda na serra e ele
encontr-lo- quando, meio-dia passante, o rebanho surja na Nave de Santo Antnio. Horc
io ouve o velho relgio do pai dar seis horas; ouve, depois, dar as sete; sente a
me lidar na cozinha e o tio Joaquim sair e continua deitado. J no dorme, que as pr
eocupaes da vspera voltaram e de manh ele v sempre tudo mais difcil, mais triste; mas
ao corpo continua a agradar a cama. S s nove
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se,levanta, bocejante. Roupa de pastor no se gasta com lavagens, mas a me teve tem
po de lavar a do filho durante o ano e meio em que ele esteve no quartel. Horcio
esvazia os bolsos do fato futriqueiro, veste as calas e o casaco de surrobeco, me
te os ps nos sapatorros ferrados de brochas e pega nos rsticos saies, feitos, por e
le, de uma pele de ovelha que morreu de parto. Ao amarr-los s pernas, parece-lhe,
confusamente, que se amarra, ele prprio, no l ensuj alhada e ainda com manchas de s
angue que mudou de cor, mas a algo mais forte do que aquilo, a algo que o escrav
iza. A me tem o caldo quente e d-lhe uma malga cheia. Ele toma-o, pe, em seguida, o
chapu de abas anchas, acomoda, sobre o ombro, o alforge e a manta, agarra no caj
ado e assobia ao co.
Bem; adeus. At vista diz me.
Vai com Deus, meu filho.
Ela fica, um momento, a v-lo afastar-se e ele, j porta, assobia de novoum assobio
autoritrio, mal-humorado.
O "Piloto" rompe, que nem flecha, de um negro boqueiro do bairro e, ao v-lo assim
vestido, festeja-o, lana-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto o seu rabo
se agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar at boca dele. Tomba,
impelido pelo andamento das pernas do amo, e logo corre para a esquerda e para a
direita, cheira aqui, cheira ali, tudo pressa e sem ateno, s por fazer alguma cois
a, doido de contente, como se a ruela se houvesse tornado para ele a via da feli
cidade. O dia est enevoado, cinzento, triste; mas "Piloto" dir-se- haver descobert
o um sol individual para sua completa volpia.
Em casa de Valadares, a mulher veio porta, tornou a desaparecer no corredor e to
rnou a voltar. E Horcio comeou a encher os alforges com o po de centeio, o pedao de
queijo e o pedao de toucinho que ela lhe entregou.
Batatas ainda o Tnio tem que bonde disse a senhora Ludovina, depois de o haver a
bastecido.
Ele partiu, com o "Piloto" sempre frente e sem-
A L E A NEVE
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pr com aquela cauda erguida, aqueles passos midos e aquele ar de co feliz. Quando a
tentava nele, Horcio odiava-o, por essa alegria. Mas o "Piloto" continuava, como
se a vida tivesse comeado, para ele, nesse dia e perene de novidades e de encanto
s. Horcio vergou-se, ergueu-se e assentou-lhe uma pedrada. O co ganiu, voltou-se e
olhou-o surpreendido, percebendo que fora ele quem o agredira. Depois, a gemer
de novo, deixou-se cair de lado, dobrou-se e comeou a lamber a perna atingida.
Horcio volveu sua perplexidade. Desde a vspera ele estava ansioso de tornar a fala
r a Idalina, de ouvi-la, de lhe dizer no sabia bem o qu, de convenc-la de tranquil
izar-se a si prprio. A ideia de que encontraria a senhora Januria fazia-o, porm, he
sitar. Por fim, decidiu-se: "no podia partir assim, sem a ver".
Foi um dos garotos, irmo de Idalina, que veio porta, quando ele bateu:
Ela est para o prdio do senhor Vasco.
Qual?
O da beira da estrada...
Ele abalou rapidamente, satisfeito por no ter visto a senhora Januria. O "Piloto"
ia, agora, atrs dele, focinho baixo e triste, rabo entre as pernas e coxeando. H
orcio meteu estrada. A propriedade do senhor Vasco ficava entre a humilde capelit
a da Senhora dos Verdes e as Caldas. Descia, em degraus, desde a beira da via at
margem do Zzere e continuava para alm da margem oposta. Industrial de lanifcios, Va
sco da Gama Sotomayor, de ascendentes fidalgos, havia adquirido, pouco a pouco,
por herana de famlia e por compra em momentos aflitos dos pequenos pastores e agri
cultores, muitas das melhores terras do vale. Ele explorava umas directamente, o
utras arrendava-as aos operrios, aos pobres, algumas vezes at queles ou aos filhos
daqueles que haviam sido donos delas. Entre os vrios industriais, Sotomayor era u
m dos mais respeitados do povo, pelo muito trabalho que dava na sua fbrica e nos
seus campos. Havia numerosas fam-
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lias que viviam apenas para ele. Enquanto alguns dos sfus membros criavam o gado
cuja l ele comprava, outros, na fbrica, transformavam a l em tecidos e outros, ai
nda, amanhavam as terras que Sotomayor adquiria com o lucro obtido nos lanifcios
. Todos os industriais tinham muitos afilhados, que os pobres, ao pedirem-lhes
o apadrinhamento dos seus filhos, j futuravam um lugar nas fbricas para estes, log
o que chegassem a rapazes; Vasco da Gama Sotomayor contava, todavia, mais afilha
dos do que qualquer outro. A princpio, ainda se escusava, se no por si, pela mulhe
r, que considerava aquilo repetida maada; um dia, porm, j bem longnquo, tendo os o
perrios de Manteigas esboado um protesto contra os baixos salrios, Sotomayor verif
icara que, na sua fbrica, os afilhados no haviam acompanhado os camaradas, no por g
anharem mais, mas, decerto, com a esperana de que ele lhes deixasse alguma coisa
em testamento. E, desde ento, nunca se negava a apadrinhar qualquer recm-nascido.
Agora, contemplando aquele vasto prdio em socalcos, um dos muitos que Sotomayor t
inha dispersos no vale, Horcio lamentava-se novamente: "At naquilo tivera pouca so
rte. Se em vez de os seus pais haverem pedido ao Marques, houvessem pedido ao se
nhor Vasco para ser seu padrinho, outro galo lhe cantaria. Estaria, agora, a tra
balhar na fbrica e no ali, de alforge s costas, a servir o Valadares, como um criad
o".
Avistou Idalina l no fundo, entre outras mulheres e homens, cuidando de terra de
milho, beira do rio. Foi descendo lentamente. O co seguia-o, procurando a extrema
dos botarus, para evitar saltos, pois, agora, andava apenas com trs patas a quar
ta encolhida junto do ventre.
Idalina s os viu quando ambos estavam perto. Largou a enxada e avanou para Horcio,
os olhos postos na sua andaina de pastor. Ele sentia-se surpreendido e s soube
dizer: you para o gado...
Ela continuava a contempl-lo, intrigada, e ele, com a garganta a apertar-se-lhe,
s pde repetir:
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you para o gado...
Mas, ento, no podias ficar mais uns dias ? Pensei...
Ele sentia uma emoo cada vez maior.
para acabar mais depressa...murmurou. Queria poder dizer-lhe que era por
ela que partia
j, para mais rapidamente pagar a dvida, ser livre e trabalhar apenas para os dois.
Mas o desejo, que ele adivinhara na senhora Gertrudes, de que aquilo no se soube
sse, detinha-o.
Idalina voltava a olh-lo com expresso de ternura e de pena:
Desde que se adia, tanto faz uma semana a mais ou a menos... E eu mal te
vi. Estiveste tanto tempo fora e, agora, abalas de caminho!
Pois ... Mas eu quero a boda o mais depressa que possa ser. Assim vamos ganhando
tempo. Os teus pais estiveram ontem l em casa, sabes?
Ela fez um movimento com a cabea um movimento que o sensibilizou ainda mais, por
que parecia de indiferena, mesmo de desacordo, com a atitude tomada pela senhora
Januria e seu marido.
No h-de demorar muito...volveu ele. O vigrio prometeu-me interessar-se por
mim e ontem botei tambm Aldeia do Carvalho, a falar com um amigo que tenho l. Aqui
ou na Covilh, hei-de entrar para uma fbrica...Calou-se um momento e, como ela tam
bm se conservasse silenciosa, acrescentou com outro torn de voz: Era isto que eu
queria dizer-te...
Ambos sentiam-se pletricos de palavras a pronunciar, mas a emoo retinha-as a emoo e
aqueles golpes de enxadas na terra, ali pertinho, que pareciam marcar, sonoramen
te, os minutos de Idalina.
E quando que nos voltaremos a ver ? perguntou ela.
Para a tosquia. Para a tosquia, venho com o gado. A no ser que antes aparea luga
r numa fbrica...
Idalina continuava a ouvir o rudo das enxadas tape, tape, tape a chamar por ela,
jornaleira paga para amanhar a terra e no para estar ali de palreio,
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coisa de que o senhor Vasco no gostaria se o sou- i
fifesse. J
Bem. Ento, adeus. Tenho que ir...E pare- l
cia seca de alma, ao despedir-se assim, j uma face l
voltada para ele, outra para o lugar onde os demais l
ganhes trabalhavam. l
Horcio olhava-a, com um misto de carinho e de l
infelicidade, enquanto lutava com aquela pergunta que l
ora lhe vinha boca, ora recuava, para vir de novo, l
como uma tortura. Por fim soltou-a: B
Tu esperas, no verdade ? l Ela virou-se para ele: i
Espero o qu ? l
Por mim... balbuciou, timidamente. l Os olhos de Idalina mostraram-se novamente
sur- l
preendidos: l
Que tolice essa ? Pois no havia de esperar! l
Ento, adeus... l Ele voltou a cortar os campos, desta vez para a J
estrada. Atravessou as Caldas, a ponte sobre o rio, J
logo o flanco da mata nacional. O dia tornara-se mais 1
sombrio. E ele caminhava inquieto. S agora lhe au- i
diam as palavras que devia ter dito a Idalina, as que j
deviam t-la convencido definitivamente. Parecia-lhe l
que no dissera as suficientes, parecia-lhe que a ds- j
pedida fora brusca, que tudo ficara em suspenso, que j
ela no tomara um verdadeiro compromisso. l
Ia no vale estreito, profundo, sufocado, que ante- J
cede a nascente do Zzere. Era um corredor quase l
recto e compridssimo e dir-se-ia rasgado pelo casco l
de um navio, que ali imprimira a sua forma de U,
acrescentada, na base, pela inciso da quilha, onde
deslizava o rio. O Zzere, ainda infante, mal se enxer- I
gava entre os esbranquiados penedos que se erguiam l
no seu leito e as urzes que o ladeavam. Nas decli- I
vosas orlas, pacientes braos haviam semeado de cen- l
teio quantos escassos metros eram propcios e cons- l
trudo uns casebres de pastores, tudo metido l em l
baixo, como no fundo de um abismo. Em cima, muito l
ao alto, as beiorras da serra corriam quase a pique e |
por elas passavam, ligando-as um instante, farrapos de neblina.
Horcio trilhava, h mais de uma hora, a estrada que acompanha a fenda gigantesca, q
uando sentiu que algo lhe faltava. Voltou-se sua procura. L vinha, ao longe, arra
stando-se nas trs patas. Trazia o focinho roando o cho, pensativamente. De quando e
m quando, deitava-se, repousava um momento e volvia andana, a manquejar grotescam
ente, como se cumprisse um destino. Horcio detivera-se a seguir-lhe, com os olhos
, o penoso avano. O "Piloto" no o vira ainda a olhar para ele e s quando o assobio
lhe chegou aos ouvidos levantou a cabea. Ps-se, de sbito, alegre, a cauda no ar, os
olhitos muito vivos a sorrirem com humildade. Quis correr, acercar-se depressa,
para que o dono no tivesse de esperar. Ora punha a pata doente no cascalho, ora
a levantava, dorida, e prosseguia, desequilibrado, cada vez mais caricato, nas t
rs pernas. Por fim, deixou-se descair de novo, vencido, a dez passos, sempre a ol
har para o amo, humildemente. Horcio aproximou-se, pegou nele ao colo e continuou
a andar. Sentia, agora, vontade de lhe pedir perdo.
De sbito, Horcio reconheceu, ao longe, a figura de Valadares, que marchava em sent
ido oposto ao dele. Logo estranhou v-lo assim de mos livres, sem enxada, sem cajad
o, sem coisa alguma que indicasse jornada de trabalho. "Que andaria o patro a faz
er por ali, to longe de casa, quela hora? Por mor do recado para o Tnio no era, seno
tinha-o encarregado a ele de o dar. Queijos tambm no levava..."
Valadares aproximava-se e saudava-o:
bom dia! Vais-te chegando, hem? O Tnio anda mesmo a em cima. Eu vim ver o alqueive
que temos no Covo da Metade... Quando a outra malhada estiver estrumada, hs-de le
var as ovelhas para l... O que tem o co ?
Est coxo...
Parecia a Horcio que o patro no lhe falava com a naturalidade habitual, mas j Valada
res se ds-
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pedia e continuava o seu caminho. Ele prosseguiu, tambm, estrada acima.
Da banda da Nave de Santo Antnio surgira uma baforada de nevoaa, logo outra e outr
a e, em seguida, compacto nevoeiro, que descia para o vale. Pouco depois, baixav
am do cu uns rumores surdos, prolongados, como se o deus das alturas estivesse a
arrastar os seus mveis. Pumba, deixara tombar um! E o silncio, um silncio hmido de f
im de mina, volvia.
O "Piloto" comeara a mostrar-se nervoso nos braos do seu dono. Estavam o homem e o
co ao p da nascente do Zzere e a mudez da terra era, agora, quebrada pelo som de d
ispersas campainhas. Horcio ouviu a voz de Tnio praguejar, irritada, contra as ove
lhas, mas no via coisa alguma no meio da nvoa que o cercava. Os seus olhos estavam
cheios de branco, um branco espesso e frio, que se movimentava, mas que, de per
to, parecia esttico, como uma branca e lgida eternidade.
Horcio deps no cho o "Piloto" e chamou-:
Tnio! Tnio!
O outro respondeu-lhe de longe:
Estou aqui... Vem c!
Ele arriscou alguns passos atravs da bruma, em direco voz. Mas, pouco depois, volta
va a gritar:
Tnio! Eh, Tnio! Onde ests ?
Estou entrada do Co vo da Metade...
Comeou a orientar-se pela estrada, que branquejava sob os seus ps. O som das campa
inhas era, agora, mais ntido e, de quando em quando, ouvia-se um balido de ovelha
, perdida na cerrao.
Horcio divisou os sapatos e a ponta do cajado de Tnio, antes mesmo de lhe ver o ro
sto, que o bulco envolvia. Estava encostado a um rochedo, na atitude de quem se r
esigna, impotente. Mas, ao ver Horcio, largou o varapau e abriu os braos, num alvo
roo:
D c esses ossos! E abraou-o fortemente. Ento, como ests ? A modos que a tropa te fez
bem...
Era o primeiro gosto que Horcio tinha naquele
dia. De toda a famlia do Valadares, s por Tnio, o filho mais velho, ele lavrava que
nte estima. Haviam passado juntos quase toda a adolescncia e comeo da mocidade. Se
parados no Vero, quando Horcio pastoreava na serra, logo que as ovelhas eram levad
as para a Idanha, os dois conviviam todos os dias, iam crescendo e trabalhando l
ado a lado, nas mil tarefas que, com sua casa e terras, Valadares descobria semp
re para os filhos e para o moo assalariado. Havia horas em que Tnio parecia mais s
eu amigo do que do prprio irmo e fora at por intermdio dele que Horcio, por duas veze
s, pedira, inutilmente, aumento de soldada ao Valadares. Agora Tnio dizia:
J sabia que tinhas voltado, mas no pensei que viesses para aqui to cedo... No ias ca
sar?
Ele fez um gesto vago e Tnio ficou um momento a olh-lo, em silncio. Depois, Tnio con
siderou que ia ser-lhe mais difcil do que, a princpio, lhe parecera, dizer a Horcio
aquilo de que o haviam encarregado.
Na encosta prxima, um chocalho badalou, solitrio :
Por onde aquela anda! comentou Tnio, para afastar as suas prprias preocupaes. H um b
ocadinho, o gado tresmalhou-se de repente. Nesta semana a segunda vez que isto
me acontece. Houve uns dias de muito sol e, depois, os nevoeiros vieram outra
L
De quando em quando, passava, por eles, uma ovelha, passava como numa paisagem s
ubmarina e a sua l branca parecia diluir-se, tornar-se tambm nvoa. De cajado estend
ido, Tnio procurava desviar-lhe o rumo, met-la na abertura que se adivinhava entre
o nascimento de duas pedras, flor da terra. Mas, com trs passos, a ovelha desapa
recia na fumarada, como se, numa rpida tremura, se houvesse desfeito. Junto deles
via-se somente o focinho do "Lanzudo", que parecia no ter corpo, que parecia ser
apenas uma cabea de molosso suspensa no ar.
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, Dize-me uma coisa: como te deste por l ? Horcio teve um sorriso melanclico:
A princpio, custou-me muito, mas, depois, habituei-me, que remdio!
Hs-de contar-me como isso . Quando me lembro de que se o vigrio no tivesse metido em
penhos por mim, eu tambm teria de ir, at tremo!
A neblina comeara a esgarar-se para a banda do vale, batida por uma aragem mais fo
rte. E, por cima deles, voltaram a fazer-se ouvir os tumultos celestes. Por fim,
o nevoeiro rasgou-se, um momento, e Horcio examinou o cu suspeito:
Parece-me que no posso chegar com o gado Nave sem apanhar uma carga de gua...
o que eu j tinha pensado concordou Tnio. O melhor ficarmos c dentro, nas cabanas,
at isto passar.
Agora, a bruma desprendia-se da terra, em volta deles. E, nos acidentados derred
ores, cheios de urzes e de penedos, apareciam, pastando tranquilamente, vrias ove
lhas. Tnio chamou-as:
Tchi! Tchi! Velhinhas!
Uma e outra obedecia logo e, s que faziam ouvidos moucos, ele enviava uma pedrada
. O "Lanzudo", j mostrando todo o seu enorme corpo de co da serra, foi, de andar p
esado e com o "Piloto" a cheirar-lhe o rabo, postar-se atrs das ovelhas teimosas,
para as decidir obedincia.
Junto de Horcio e de Tnio viam-se, agora, dois altssimos frages. Mostravam uma abert
ura que dir-se-ia cortada a prumo por mo fabulosa e servia de porta natural para
o circo onde nascia o Zzere, porta que parecia dar para o tmulo de um deus. Atravs
dela, as ovelhas, chamadas, enxotadas ou apedrejadas, iam passando, enquanto Tnio
as contava.
Faltam quatro, mas talvez j estejam l dentro.
Os dois entraram. No Covo da Metade, a bruma,
encarcerada por vastas massas ptreas, elevava-se mais
lentamente do que c fora. Mas j se via a terra plana,
de uma banda coberta de verde cervum, que o reba-
nho ia devorando, da outra vrios alqueives e, ao centro, o rio correndo, aos zigu
ezagues, sob aquela fumaceira, como se fosse a ferver.
Tnio recontou as ovelhas e tranquilizou-se: estavam todas. Depois fez um cigarro
e ofereceu o tabaco e o papel a Horcio. Esse momento pareceu-lhe prprio para lanar
a ideia, mas deteve-se. "Talvez fosse melhor noutra ocasio e quando estivessem se
ntados. Tinha de fazer um grande rodeio, pois Horcio era esperto e ele no devia co
mear logo a falar daquilo".
Em frente deles viam-se vrias "cabanas" abrigos que velhos pastores tinham ergui
do no fundo do Covo da Metade, como no fundo de uma grande cratera. Eram formados
por trs paredes de pedras soltas arrumadas a uma fraga, pouco maiores do que cas
ota de co e onde, pela porta estreita e baixa, s como um co se podia entrar. Tnio fo
i encaminhando Horcio para um dos abrigadoiros e ao seu portelho se sentaram.
A bruma subia cada vez mais, deixando a descoberto os contrafortes speros, medonh
os, do bero do Zzere. Uma rotunda imensa, grave, misteriosa, de contornos imprevisv
eis, comeava a aparecer, como se as nvoas do princpio do Mundo a abandonassem pela
primeira vez. Iam-se desvendando enormes moles de granito, ao fundo, direita, es
querda, pedra de todos os milnios, basties de um s bloco e rude traa, que se apresen
tavam com uma soberba, uma majestosa solenidade. Essa muralha ciclpica e irregula
r, cheia de arestas, de vincos, crescia rapidamente, atrs do nevoeiro que se reti
rava. Cada vez se mostrava mais alta, mais arrogante cada vez e, assim tapada n
os cimos, dir-se-ia no ter fim. Pouco depois, porm, tripartia-se, libertando as su
as trs cabeas das toucas de algodo-em-rama e um relmpago recortava num fundo gneo, l
nas alturas, as formas orgulhosas, absurdas, fantsticas, dos trs Cntaros. Logo veio
o trovo. O "Piloto" ergueu o focinho para o cu e desatou a uivar lugubremente, in
terrompendo Horcio, que, puxado por Tnio, falava da vida militar.
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* O anfiteatro colossal em que eles se encontravam exibia-se, agora, em toda a
sua imponncia. Era de uma grandiosidade severa, essa rotunda propcia para um temp
lo de mitos alpestres. Estava metida entre assombrosas floraes de granito e termin
ava no Cntaro Magro, que lembrava a carcaa de imensurvel castelo de outrora, do qu
al se aproximassem fulminantes coriscos. Dir-se-ia que a natureza quisera defend
er e impregnar de mistrio a nascente do Zzere fechando-a como uma fortaleza. E, c
ontudo, parecia que o rio fora apenas um pretexto. Era uma pobre, trmula fita de g
ua, ora muito estreita, ora mais larguita, s vezes quase invisvel, que se lanava l d
o alto por um sulco ou diclase da rocha negra, aberta para lhe dar melhor caminho
. Ao seu lado, porm, tudo se agigantava. Sob os frequentes relmpagos, alguns trech
os dos paredes, cheios de estrias, de salincias, de avanos e de recuos, pareciam or
iundos de uma floresta petrificada. Outros, poliformes, laminados, lpides desm
esurveis coladas umas s outras, sugeriam livros de gigantes incrustados na montanh
a, escuros e corrodos pelo tempo, no meio de um caos de linhas verticais, tocadas
de irrealidade.
Havia um contnuo trovejar. A tempestade aproximava-se e o cu ia escurecendo cada v
ez mais, como se a noite fosse cair sobre o meio-dia. Uma guia veio remando de lo
nge, lentamente, e pousou nos topes do Cntaro Raso. Deu dois pulinhos, perscr
utou a distncia borrascosa e, depois, volveu o bico adunco para baixo, para o
stio onde Tnio e Horcio estavam. Da porta da sua lura, eles seguiam-lhe os movime
ntos e viram-na desaparecer numa cavidade da rocha. Mas j outras guias acorriam al
i, acossadas pelo temporal. Agora, por detrs dos Cntaros surgiam, estendendo-se so
bre o circo, grandes, pesados, grvidos bandos de nuvens. Em seguida, um relmpago,
uma enfiada de troves e ainda outra fasca rabiante, ali pertinho, ali por cima, no
pico do Cntaro Magro. O ar chiava e houve um gemer de pedra, fino, cortante, que
pairou, a enervar tudo, uns segundos. Horcio e Tnio vol-
taram, repentinamente, a cabea para a escurido do abrigo. Parecia-lhes que aquele
golpe de luz lhes havia ferido os olhos, que o raio havia cado nas suas prprias pu
pilas, traspassando-as como um punhal em brasa. Logo se deu, por cima deles, uma
exploso de catstrofe csmica, que fez estremecer a terra transida e ps tudo a vibrar
deixando errante na atmosfera um grito humano, lancinante, que vencia o ecoar l
ongnquo do ribombo. Horcio fechou os braos em volta da cabea, receando que as pedras
da cabana se desmoronassem sobre o seu corpo. porta, o "Piloto" ladrava para as
nuvens, desesperadamente. De novo, outros relmpagos laceraram a escuridade e de
novo reboou aquele grito de desespero impotente, de alucinao, um grito de cristal,
que dir-se-ia vir das entranhas da rocha e morrer em temerosos desfiladeiros Re
ceando pelos seus olhos, Horcio descerrou as plpebras. Via. Quedou escuta, no gran
de silncio que se fizera no circo, com o "Piloto" subitamente calado, com o cu cal
ado, com o grito morto. Tnio escutava tambm. Nada. Os dois levantaram-se e vieram
rotunda, esquadrinhar, com a vista, as redondezas. O silncio prosseguia, tudo est
ava quieto e parecia que tambm em expectativa, como eles. S as nuvens, por cima, s
e moviam, grossas, alvacentas, cada vez mais carregadas. Mas j o "Piloto", dando
gozo curiosidade, arrastava a perna e ia meter a cabea na porta do ltimo abrigo. H
orcio e Tnio caminharam para ali e, ao assomar abertura, viram, l dentro, estendido
no cho, um garotelho de olhos pvidos, to inchados de pavor que dir-se-iam fora das
rbitas e prestes a rebentar.
Eh, rapaz! Que fazes a?
No respondeu. Continuava a olh-los com aqueles seus olhos esbugalhados, como se no
os visse nem os ouvisse. Mas todo ele tremia e uma baba escura sujava-lhe a boca
.
Foste tu que gritaste ? Continuou calado.
alma do diabo, tu no sabes falar ?
3 Vol. Ill
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Devia ter nove, dez anos, estava vestidito de remendos e continuava a tremer. Fe
z um esforo, viu-se que queria dizer alguma coisa, mas ficou sem palavra. Horcio e
ntrou e, ento, deu conta de que era uma dessas crianas que os pais mandavam pastor
ear seu gadito por silvedos, valados e caminhos dos derredores da vila, como a e
le, outrora, quando pequeno. Por detrs do garoto, na escuridade, estavam cinco ov
elhas, muito juntas, de cabeas encostadas umas s outras.
Horcio levantou o corpito e conduziu-o para a beira do rio. Tnio reconheceu-o:
o mais novo do tio Avelino. Molharam-lhe a testa vrias vezes e continuaram
a falar-lhe, no desejo de lhe colher resposta. Ele continuava mudo, mas o espant
o ia-se levitando dos olhos arregalados e a excitao diminua. Horcio sentou-o e ofere
ceu-lhe do seu po. Ele no lhe pegou. As suas pupilas adquiriram outra expresso, mas
volviam-se, numa consulta de medo, para o Cntaro Magro, para a gigantesca mole q
ue atraa os raios.
Por que diabo vieste para aqui ?
A vozita saiu-lhe difcil, ainda entrecortada de tremuras :
As ovelhas vieram andando... L em baixo tinham pouco que comer... Depois veio a t
rovoada...
Parece-me que tambm eu te conheo... Ontem, quando fui tomar a camioneta, tu no ias
para a escola ?
Ia, sim, senhor.
E ento no foste hoje ?
O meu pai precisou do meu irmo para o campo e eu vim no lugar dele...
A chuva desabara, finalmente. Horcio e Tnio, com o pastorito entre eles, correram
para a caseta onde haviam estado e nela se recolheram. O "Piloto" sentara-se por
ta, com o focinho de fora, muito quieto, a olhar.
As minhas ovelhas... murmurou o garoto. Horcio tranquilizou-o:
Deixa l as ovelhas... Elas no fogem... E c est o co para os lobos...
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O pequeno sorriu e aceitou o naco de po. Tnio enervava-se com aquela presena.
Se queres ir, vai... disse-lhe. Mas j Horcio protestava:
No! Isso, no! Ia-se molhar todo e, daqui a pouco, estava outra vez com medo.
Cada vez mais contrariado, Tnio renunciou a insistir.
A chuva, que comeara por bagos gordos e raros, transformara-se, rapidamente, em g
rossas cordas lquidas. E prosseguia, ininterrupta, meia hora, uma hora, num dilvio
, enquanto Tnio ia falando de coisas vagas e Horcio lhe respondia tambm monotonamen
te. Perto deles, o Zzere, ainda to pequenito ao atravessar a alfombra da rotunda,
crescera num instante, transbordava atravs dos magotes de juncos e urzes das marg
ens e regougava, adquirindo subitamente voz de adulto ao despenhar-se na sada do
grande circo.
Por fim, o cu principiou a clarear. Tnio voltou-se para o garoto antes mesmo de a
chuva acabar de todo:
J podes ir s tuas ovelhas...
O pastorito levantou-se e, timidamente, sem dizer palavra, saiu.
Tnio sentiu-se aliviado por ter vencido aquela primeira dificuldade. Deixou o siln
cio correr alguns momentos e, depois, lanou:
H pouco no me disseste por que voltaste para o servio do meu pai antes de casares..
.
Resolvi adiar o casamento...
Porqu ?
Horcio encolheu os ombros, de novo mal-humorado.
Foi por falta de meios ? insistiu Tnio.
Por que havia de ser ?
Tnio ficou calado, como se meditasse. Abriu o 'eu alforge, tirou po e queijo e ps-s
e a mastigar.
No comes ?
No. Ainda no tenho vontade.
O "Piloto" voltara-se para eles, de olhos pedinches. Em frente da casinhola, sob
a aba de uma laje, estava
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o rebanho de Valadares, com o "Lanzudo" ao p. Tnio chamou o seu co. E entre este e
o "Piloto" dividiu quanto po lhe sobejava. Depois disse, olhando para a chuva ral
a, miudinha, que subsistia:
Talvez eu saiba como podes arranjar dinheiro... Horcio voltou-se, surpreendido, p
ara ele:
Como ?
Tnio no respondeu logo. Olhou novamente atravs da chuva e ps-se a mastigar com mais
rapidez, para desimpedir a boca. Sentia, ao seu lado, a ansiedade de Horcio, mas
ele prprio hesitava, agora, em falar daquilo.
Bem...Eu no sei se deva dizer-te... Mas, enfim... tu s quase como meu irmo...Mu
dou o torn de voz: Tu juras que no contars nada a ningum, mesmo que no quei
ras fazer o que eu te disser ?
Horcio olhava-o, espantado. Tnio baixara a vista e aguardava.
Homem, est bem, juro! De que se trata? Tnio parecia vacilar ainda. Ia tirando, len
tamente,
as migalhas que lhe haviam ficado coladas na ponta dos dedos e contemplando os d
edos, como se neles se encontrasse o seu segredo.
Eu tenho confiana em ti...murmurou. Sim, eu penso que tu no eras capaz de
dizer fosse o que fosse que me pudesse fazer mal... No verdade?
Horcio estava impaciente:
Podes falar vontade! E, demais a mais, para eu ganhar dinheiro!
uma coisa simples... A questo tu quereres. com as florestas... Em volta de Mantei
gas j no h um nico pasto, como sabes. Todas as encostas esto cheias de florestas do
Governo e no se vem seno rvores. O povo, se quer manter o seu gado, tem de andar lg
uas e lguas e ir para os picotos da serra, para os infernos. E se, ao passar nas
canadas, as ovelhas ou as cabras entram, mesmo contra nossa vontade, numa flores
ta zs! vem logo uma multa. Ainda o ano passado apanhei uma sem ter nenhuma
culpa. De duas notas, deram-me de volta dez mil ris. Imagina: cento e noventa mil
ris sem um homem ser culpado. O meu pai ficou furioso! Ao senhor Vasco sucedeu a
mesma coisa. O rebanho dele ia para as bandas do Poo do Inferno, quando apareceu
um guarda e bumba! passa para c duzentos mil ris. O senhor Vasco meteu empenhos
para no pagar, -mas foi o mesmo do que nada. Ento ele foi aos arames! No por mor d
o dinheiro, est claro, que o dinheiro no lhe fazia falta, mas porque tomou aquilo
como uma desconsiderao para um homem to importante como ele.
No sabia que o senhor Vasco tinha, agora, um rebanho.
Teve, mas j no tem. Comprou-o para ajudar o Marcelino. O Marcelino estava
rebentado, tinha mesmo de se desfazer das ovelhas, mas os outros pouco lhe d
avam por elas. Ento o senhor Vasco, com pena dele, comprou-lhas e deixou-o como p
? st or, como se os bichos fossem ainda do Marcelino. MMS aquilo durou pouco. Qu
ando foi da multa, o senhor Vasco ficou to aborrecido que resolveu vender o gado
e no se importar mais com aquilo. Nas outras terras, os rebanhos aumentaram de d
ia para dia; aqui, por causa das florestas, cada vez h menos ovelhas e s aumentam
os pinheiros.
Tnio fez uma pausa, para os seus olhos perscrutarem os de Horcio. Depois, continuo
u:
Antigamente no era assim. O meu av ainda se lembra dos pastos estarem mesmo ao p d
a porta. Os pastores tinham queimado as rvores dos tempos antigos e havia ovelhas
por toda a parte. Agora o que se v... Todos se queixam, mas ningum faz nada de je
ito. A princpio, ainda algum pastor ia deitando fogo onde podia... Mas depois que
h a Torre de S. Loureno, com um homem a vigiar, l do alto, as florestas e a. telef
onar c para baixo mal v um pouco de fumo, j no h fogo que pegue a valer...
Horcio sabia daquilo, ouvia falar daquilo, quase com as mesmas palavras, desde cr
iana.
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* Est certo interrompeu. Mas que tem isso que ver com eu ganhar dinheiro ?
Tnio disse, lentamente:
Se eu puser fogo em dois ou trs lugares na mesma tarde, eles no podem acudir a
toda a parte. Acodem ao que virem primeiro. Mas o primeiro seria s para os chamar
para l. O segundo que seria a srio. Trs ou quatro homens lanavam fogo, de ponta a p
onta, a uma floresta e, com vento de feio, aquilo ia num instante. Quando os outro
s voltassem do primeiro incndio, alm de estarem cansados, j seria tarde. Um f
ogo seguido, ningum o podia apagar... E, no ano seguinte, j haveria pastos com fa
rtura e tenrinhos perto da vila. com duas ou trs florestas queimadas, cada qual
podia criar mais ovelhas. At uma vez, antes da multa, o senhor Vasco tinha dito q
ue se no fosse a falta de pastos ele teria um grande rebanho. Como ele tem de com
prar l para a fbrica, ficava-lhe tudo em casa. Os outros industriais dizem que no v
ale a pena para eles terem ovelhas, mas o senhor Vasco no pensa assim...
Em Horcio desaparecera o entusiasmo inicial:
Ento eu seria um dos que...
Se quisesses. Receberias cinco notas da primeira vez. E mais cinco de cada outra
vez, se se tornasse a fazer.
E quem paga ? Tnio titubeou:
Bem... Algum paga. No importa saber agora. Eu mesmo te entregaria o dinheiro.
o teu pai ?
No, que ideia!
Ento o senhor Vasco...
Nem o meu pai nem o senhor Vasco tm nada com isso! E no so para aqui chamados prot
estou Tnio. escusado quereres adivinhar quem , que no acertas. E eu no posso dizer
mais. O que preciso saber se aceitas ou no.
Horcio no respondeu logo. De dentro do abrigo os seus olhos iam seguindo, abstract
amente, o pasto-
7i
rito que, com um ramo na mo, atrs das suas cinco ovelhas, regressava a Manteigas,
sob os ltimos choviscos.
Quinhentos mil ris quanto devo a teu pai. No you, por isso, arriscar-me a dar com
os ossos na cadeia...
Mas quem te disse que tu ias para a cadeia ? Est tudo bem pensado. E, depois, tod
a a gente de Manteigas nos encobria, se fosse preciso. uma coisa para o bem de t
odos. Todos tm o mesmo interesse. De vez em quando, aparece um fogo na serra e ni
ngum pode garantir que fogo posto...
Est bem... Est bem... No digo que no. Mas eu no tenho ovelhas e por cinco notas no you
arriscar-me. E olha l: no dizem que as florestas fazem bem lavoura, que trazem ma
is chuvas, que prendem as terras quando h enxurradas e que ainda por cima do quant
a lenha se quer ? J uma vez ouvi que no haveria campo que se aguentasse beira do r
io, que tudo ficaria cheio de calhaus, se no fossem as florestas.
Isso dizem os que recebem dinheiro do Governo, para as conservar. Que haviam ele
s de dizer, se vivem disso ?
Horcio comeara a sentir-se menos amigo de Tnio:
Por que no pes tu sozinho o fogo ?
J te disse que um homem s no faz nada de jeito! Os dos servios florestais vm e apaga
m logo. Ardem meia dzia de pinheiros, e pronto!
E, ento, quem ia connosco ? Tnio voltou a tartamudear:
So pessoas de confiana... Por ora no posso dizer o nome... Tu depois saberias...
S falta um e por isso te falei... Mas se tu no queres acrescentou, de mau humor
pacincia!
Ficaram os dois calados. A chuva passara completamente e o rebanho voltara a des
unir-se, pastando, tranquilo, sobre a relva.
Hei-de pensar nisso... declarou, por fim, Horcio. Depois te direi. Como s no pin
o do Vero a coisa pode pegar, ainda temos muito tempo...
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Tambm Tnio sentia esmorecer a sua amizade por Horcio.
Est bem... Mas no tardes a resolver, porque, se no quiseres, tenho de arranjar outr
o...
O cu j estava quase lmpido e a luz solar tornava a encher o covo. Tnio ainda se demor
ou a dar mais pormenores do projecto coisa certa, que no falhava e no trazia, per
igo a ningum e, finalmente, levantou-se:
Vou-me embora! As ovelhas, agora, so cento e dezasseis. E trs cabras. As ferradas
e o resto esto nuns penedos, ao fundo da malhada, esquerda de quem olha para Man
teigas. O sinal uma pedra grande e uma pequena, em cima de um graveto. Eu you ag
ora por l e levo os queijos... Ps aos ombros o alforge e a manta, pegou no cajado
e no chapu e, hesitante, murmurou: Adeus...
Adeus.
Tnio deu alguns passos fora da casota e voltou-se, ainda apreensivo:
Se eu no tivesse a mesma f em ti que tenho em mim, nunca te diria o que te disse.
Portanto, v l...
Vai descansado. J jurei, que queres mais ? Horcio viu Tnio desaparecer no fim do gr
ande
circo e levantou-se tambm. Reuniu as ovelhas e, pouco depois, subia, com elas, a
encosta coberta de altas urzes e adustas penedias, que dava para a Nave de Santo
Antnio, principal pastagem. Pela ltima vez, divisou, na lonjura, esquerda, l no ex
tremo do compridssimo corredor por onde, remotamente, deslizaram tremendos glacia
res e onde, agora, corria o Zzere recm-nascido, a sua pequena vila de Manteigas. E
ra um trecho apenas, umas pinceladas de branco, vermelho e escuro num fundo verd
e de campos agricultados e de florestas. Logo ao burgozito se associou outra ima
gem. E rapidamente Horcio amoleceu de saudades, como se fosse para longe, muito l
onge. "Raio de vida! Ia estar apenas a trs horas de caminho, mas com tantos dias
sem ver Idalina, como se estivesse no fim do Mundo".
O rebanho entrou, finalmente, na Nave de Santo Antnio, vasto planalto, ao fundo d
o qual se levantavam espectaculosos conjuntos ptreos, arestosas lombas que corria
m desde a pesada grandeza dos Cntaros at o Espinhao do Co, todo serrilhado. O sol ve
ncera as derradeiras placentas que a tempestade deixara no cu e prateava, agora,
o verde, muito fresco, da grande manta de cervum que cobria a Nave.
Quando Horcio ali chegou com as ovelhas de Valadares, j outros rebanhos iam rapand
o a erva, enquanto desgarradas cabras, trepando pelos alcantis prximos, buscavam,
para roer, solitrias folhitas. Dispersos, sentados ou de p, os pastores vigiavam,
corrigindo com gritos e pedradas, a lenta mas constante deslocao do seu gado. Um
ou outro, reconhecendo Horcio, acenava-lhe de longe. E dois deles, o Canholas e o
Papagaios, deixando, por momentos, os seus rebanhos, acercaram-se. Como estava,
como no estava, como era e no era aquilo da vida militar, depois destas vinham aq
uelas outras palavras que j comeavam a irrit-lo: "Pensei que ias casar antes de vol
tares para a serra. Quando casas?"
Horcio respondia com boa cara, mas sentindo uma raiva surda, no sabia porqu, nem pa
ra quem. "Parecia que as pessoas no sabiam falar de outra coisa!" Os pncaros petri
ficados, a grande bacia relvada aberta na sua frente, os zimbros que, mais alm, s
e lanavam sobre as pedras como polvos envolventes, as speras encostas, toda essa b
rava paisagem das alturas, cheia de corcovas, de ondas, de cristais e de esbarro
ndadeiros, que constitura, para ele, durante muitos anos, um mundo familiar, apar
ecia-lhe agora odiosa, sufocante, inimiga da nsia que ele sentia, opressivamente,
dentro do seu peito. Reconhecia tudo, at as moitas de urzes que haviam crescido
durante a sua ausncia, beira do regato que cortava a Nave; mas via tudo isso com
raiva, como se houvesse tido um conflito com tudo quanto o cercava, vegetal, min
eral e animal, com o prprio milhano que, no cu, agora limpo, traava lentas voltas e
que ele desejaria abater
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com um tiro de escopeta, para vingar-se de alguma coisa.
De longe, por entre o tilintar das campainhas dos rebanhos, veio um som alegre d
e flauta. Ele distendeu a vista, mais irritado ainda, e descobriu o tocador, mas
no pde identific-lo quela distncia.
Quem ?
o Chico da Levada informou o Canholas. Horcio sentia-se afrontado com a alegria
que o
outro parecia fruir e tinha, ao mesmo tempo, a sensao de que o haviam roubado. Dur
ante anos ele fora o nico que trouxera uma flauta para a montanha. Os pastores de
Manteigas vinham para ali como para um presdio, sem ganas de se divertir, sempre
a revezarem-se e sempre a pensar nas territas e nos trabalhos que os aguardavam
na vila. S ele, pastor efectivo, todo o Vero na serra, se entretinha a quebrar o
silncio e a solido dos cimos com aquela velha flauta que comprara a um homem de N
espereira e qual, antes de ir para a tropa, estimava mais do que a um amigo. Ago
ra, porm, a msica que vinha de longe dava-lhe desejos de chorar.
O Chico, antigamente, no tocava...
Pois ... concordou o Canholas. Toca desde que lhe morreu a mulher. Diz que no p
ode estar sozinho sem fazer alguma coisa, seno do-lhe muitas saudades dela...
Pouco depois, os outros dois pastores acorriam aos seus rebanhos. Horcio quedou-
se sobre uma pedra, a mastigar um pedao de po, que a garganta dificilmente deixava
passar. Estava, agora, crente de que no errara ao nomear, horas antes, o Valada
res e o Vasco Sotomayor. "Era um deles, ou os dois juntos, no havia dvida. Quando
encontrara o Valadares no caminho, com ar encavacado, decerto ele vinha d
e falar no caso ao filho. Por isso, o Tnio, em vez de ir direito da malhada Nave,
com o gado, fora descendo para a banda do .Zzere, pois assim fazia companhia ao
pai at ao comeo da estrada. Mas ele que no estava pelos ajustes. Primeiro, havia de
falar com Ma-
nuel Peixoto. No se ia arriscar a perder a sua liberdade para ser agradvel ao forr
eta do Valadares. Depois, todas as pessoas que sabiam alguma coisa diziam que as
florestas davam cabo do gado, era verdade, mas que, por outro lado, eram boas p
ara o povo. At o vigrio Barradas, h anos, quando tinha havido muitos incndios, falar
a nisso, numa prtica, na missa".
As ovelhas iam avanando e ele acompanhou-as. Tudo aquilo lhe parecia montono, lent
o, interminvel. Nunca tarde alguma de pastoreio se lhe apresentara to longa. Senti
a o tempo como uma vontade fria contrria sua, contrria quela nsia de que chegasse o
dia seguinte, para ele ouvir de Manuel Peixoto a resposta ao pedido que lhe fize
ra. De quando em quando, a flauta do outro pastor rompia, de sbito, a quietude da
montanha, com aqueles sons alegres, curtos, agudos e ele entristecia mais.
Finalmente, o rebanho atingiu o extremo da Nave e volveu. Todos os dias ocorria
a mesma coisa. Quando o crepsculo se aproximava, as ovelhas tomavam, espontaneame
nte, o caminho do lugar onde deviam dormir. Dir-se-ia conhecerem, com preciso de
relgio, o tempo de que careciam para alcanar a malhada, antes de a noite cair.
Os rebanhos regressavam a petiscar, aqui, ali, acol, ervita que, ida, escapara su
a fome. Regressavam lentamente, enchendo de melancolia a serra, com a dolncia das
suas campainhas nas derradeiras horas do dia. E sempre, a perturbar a sua msica
sempre igual, arrastada e triste, os sons jocosos, saltitantes, da flauta do Chi
co da Levada, a quem morrera a mulher.
A luz do poente, que doirava os pncaros, os pastores seguiam atrs dos rebanhos, co
mo guiados por eles; nos flancos marchavam os ces, uns e outros atentos a que no s
e tresmalhasse alguma ovelha, pois se alguma quedasse ali seria ceia de lobos. O
Chico da Levada vinha atrs de todos e atrs dele estendiam-se as primeiras sombras
da noite.
O rebanho de Valadares foi, pouco a pouco, afastando-se dos outros, meteu por en
tre grupos de fragas
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e chegou, por fim", sua malhada. Era um alqueive plano, rodeado de aflorament
os de pedra e coberto com excrementos de ovelhas. Por toda a parte onde as fl
orestas do Estado no tinham fechado ao sol as lombas e pendores, a crosta verdoen
ga da montanha apresentava numerosas malhadas semelhantes quela. Algumas, com as
formas irregulares de quanta terra fora possvel aproveitar, escondiam-se entre gi
gantescas famlias de rochedos, enquanto outras pareciam escorregar pelas prpria
s declividades. Os habitantes dos povoados serranos, vivendo em acanhados vales
e as melhores terras na posse de industriais, padres e outros senhores lugarenh
os, haviam ido, desde remotas eras, s adustas alturas e, onde descobriram b
aldio propcio a um punhado de centeio, cavaram-no e regaram-no com o seu suor. Ma
s o cho era pobre: por baixo dele, a um metro, s vezes menos ainda, jazia a rude o
ssatura de xisto ou de granito. Por cada ano que dava po, a terra alta tinha de
descansar, em esterilidade, um ano ou dois. Assim, perto ou longe de uma searaz
ita, quem a semeara possua sempre, prprio ou arrendado, outro tracto devoluto, o
alqueive onde as suas ovelhas vinham dormir, adubando a terra que criaria o po n
o ano vindoiro.
A malhada de Valadares no era maior do que as dos outros, mas ele contava mais du
as nas redondezas. Um bardo cercava o trecho a estrumar e nele o rebanho entrou.
O lusco-fusco apardaara j a montanha, comeando a dissolver as formas das suas quebr
adas e baixios. A flauta do Chico da Levada vinha aproximando-se, cada vez mais,
cada vez mais e, por fim, calou-se. Um grande silncio dominou a serra.
Horcio procurou as pedras que indicavam o esconderijo duas aqui, duas alm, sobre
um garaveto, at um dos magotes de rochedos que se erguiam na sua frente. Entre os
primeiros e os ltimos vultos granticos, em estreito espao, encontrou uma rima de b
atatas e os utenslios para fazer o queijo. Pegou em trs grandes latas trs "ferrada
s" e volveu ao bardo.
Mas, ao ordenhar, no procedia com a rapidez que mostrava antes de ir para a tropa
uma dzia de apertes em cada bere e logo outras tetas entre os dedos. Parecia-lhe
que as prprias ovelhas, to passivas, para ele, outrora, se rebelevam agora contra
as suas mos, que haviam perdido o jeito antigo. Contudo, o leite, muito branco l n
o fundo da vasilha, ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com
que a noite prxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia.
Horcio avanava, de ccoras, entre as ovelhas, empurrando para trs de si as que
j mungira. Por fim, ordenhou as trs cabras que faziam parte do rebanho e trouxe as
ferradas para entre os penedos. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando
um agudo pio. Ele levantou os olhos, mas j no a viu. Aquele silncio de terra molha
da e altaneira comeara a desagtadar-lhe. Dir-se-ia que, em vez de ar, era esse si
lncio frio que lhe descia para os pulmes, que lhe enchi-x a boca, o nariz, os ouvi
dos, que lhe penetrava a prpria pele. Horcio admirava-se de como, outrora, o supor
tava sem pensar sequer nessa mudez das coisas, nessa solido da noite, habituado qu
ilo, to habituado que, no quartel, o que mais lhe custara, nos primeiros tempos,
fora dormir com outros soldados, na grande quadra comum. Pensava, agora, que
no lhe comprazia nenhuma das duas situaes e que s quando ele trabalhasse numa fbrica
e dormisse em sua casa a vida lhe seria apetecvel.
Sentados na sua frente, o "Piloto" e o "Lanzudo" no tiravam os olhos dele. Estava
m quedos, mas ansiosos, sabendo que no comeriam sem ele fazer, primeiro, o queijo
e sofriam por v-lo com gestos to lentos. Horcio coava o leite, derramando-o das f
erradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano.
Os ces seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado
o pedao de cardo que devia produzir o coalhamento e ficaram mais nervosos. Era a
sua hora. Mas ele continuava com uns vagares de arreliar. O "Lanzudo",
78
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^.consciente de seus direitos de molosso, chegou mesmo a estender a cabea para um
a das ferradas e a cheirar o leite das cabras, que se destinava apenas a eles trs
. A escuridade aumentara mais. Uma estrela, ainda plida, surgira no cu, para as ba
ndas das Penhas Douradas. Ento Horcio comeou a esfarelar po sobre a ferrada que o "L
anzudo" e o "Piloto" contemplavam, famintos. E quando o po ficou embebido de lei
te, empurrou a lata para a frente dos ces renunciando sua parte.
Os dois companheiros comeram, ruidosos na sua gula, e quedaram, de novo, espera.
Ele fixou a rima de batatas, mas desistiu de as cozer. Abriu o alforge, content
ou os bichos com mais po e, lascando um naco para si, cobriu-o de toucinho e ps-se
a tasquinh-lo lentamente, de olhos vagueando no cu, agora todo estrelado. Uma voz
soou na noite: Horcio...
Ele estremeceu. De entre os penedos no via ningum. O "Lanzudo", na sua importncia d
e grande senhor sem medo, limitou-se a olhar para a banda de onde a voz sara; o "
Piloto", mais plebeu, ladrou. A voz repetiu:
Horcio...
Era uma voz discreta, quase tmida, como se tivesse receio de acordar a serra ou d
e espantar a noite. Horcio conhecia-a, mas no conseguiu identific-la.
Quem ?
A voz parecia encontrar-se, agora, mais perto:
Sou eu... O Chico... Onde ests?
Horcio saiu do esconderijo e encaminhou-se para a malhada. A sombra humana esboava
-se junto do bardo e, ao divis-lo, acercou-se. As suas palavras tremiam:
Ento como passaste por l ?
Eu passei bem... Tu, j sei que tiveste um grande desgosto...
No chegou a dizer mais. O Chico da Levada baixara a cabea, cruzara, depois, as mos
sobre os olhos e pusera-se a soluar, como se tivesse vindo ali somente
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para aquilo. Horcio agarrou-o e f-lo sentar-se numa pedra, ao seu lado.
Tem pacincia, homem! Acontece a toda a gente... Quando morreu a Lusa?
H trs semanas... murmurou o Chico da Levada chorando cada vez mais forte.
Horcio no sabia que dizer. Via a mulher do outro, to nova como ele, de ps de arvola e
feies delicadas, usando sempre, mesmo depois de casada, blusas de chita multicolo
r, na terra em que quase todas as mulheres se vestiam de negro, como se andassem
de perptuo luto pela sua prpria vida. Via-a, assim, airosa, nas ruelas de Manteig
as e lembrava-se de que, muitas vezes, ele mesmo desejara o seu corpo. E, agora,
sentia-se sem jeito para encontrar uma palavra de consolo.
Tu desculpa-me...disse o Chico da Levada, procurando dominar-se. No tenho esta n
oite ningum na malhada. Foi a irm do Canholas que me trouxe os acinchos. Ela no po
dia, j se v, dormir comigo e foi para a malhada do irmo. Assim sozinho, se eu no fal
asse agora com algum, parece-me que rebentava. Por isso vim. De dia ainda me you
aguentando, mas, noite, se estou sem companhia, um tormento. Estou sempre a pens
ar na que Deus levou e parece-me que a vejo, coitadinha, andar na escurido, sempr
e em meu redor, como se tivesse pena de mim. Ento, julgo que endoideo!
Horcio continuava a no saber como dar conforto.
De que morreu ela ?
Ela morreu... nem me quero lembrar! Uma coisa assim! Ela teve uma criana e parec
ia que tudo ia bem. Aos trs dias, como era a minha vez de tomar conta do gado, vi
m por a acima. Eu tinha deixado a. meio cavar o campito para milho que temos arre
ndado. Ela, ao quarto dia, levantou-se e andou por casa. Ao quinto, pegou na enx
ada e foi para o campo acabar aquilo, pois estava a passar o melhor tempo. Quand
o voltou, tinha muita sede e bebeu gua fria na fonte
8o
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*da Senhora dos Verdes. Logo nessa noite se sentiu mal. E, no dia seguinte, tin
ha febre. L a comadre disse que muitas mulheres, depois de dar luz, ficavam com
febre e no lhes acontecia nada. Fizeram umas ; rezas e queimaram umas ervas,
para ver se aquilo ' passava. Quando eu voltei, vi-a muito mal. Mandei j de
caminho chamar o doutor, mas j ela estava per- ; dida... Coitadinha, morreu abraad
a filha e lanou-me um olhar to triste que, s de pensar nisso, se me ; parte o corao.
.. i
Voltou a soluar. i
Tu o que devias era andar, agora, na serra, para j no estares sozinho... j
Pois era... Tenho pensado muito nisso... A peque- j nita est com a av e se en est
ivesse junto dela tal- j vez me consolasse mais. Mas que you fazer ? Agora
' s me faltam trs dias para acabar a semana que me j compete, mas, quando chegar
de novo a minha vez, j tenho de voltar. Os outros tambm no podem, coitados! Que
o meu gado cada vez menos. Vendi trs cabeas para pagar as despesas do enterro e,
na segunda-feira, um lobo deu-me cabo de mais duas.
Aonde ? perguntou Horcio, alarmado.
Aqui mesmo, ao lado, na malhada do Pimenta. Foi uma noite como a de hoje. Para no
estar sozinho, fui ter com o Canholas e a irm dele e o diabo do co seguiu-me... E
u no devia largar o gado, bem ; sei, mas que queres ? Quando voltei e vi o co
atrs j de mim, tive um pressentimento. Corri para o bardo
e ainda vi o bicho fugir... Ainda assim, tive sorte. As ovelhas eram minhas; s
e fossem dos outros, seria pior, pois perdiam a confiana em mim. Mudou o torn d
e voz: Peo-te que no digas nada disto a ningum. S a ti e ao Canholas eu disse a v
erdade. j Parece que, noite, depois de falar da Lusa, se falo ] de como
o lobo veio malhada no posso mentir... Mas aos outros eu contei uma histria
que arranjei, ; seno ainda por cima se riam de mim...
Calou-se. Horcio olhava na direco da malhada do Pimenta, auscultando o grande silnci
o nocturnal.
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O Chico da Levada acabou por sentir a mesma preocupao :
Hoje o co ficou l. Em todo o caso, no me posso fiar nele. No presta para nada. Vo
u-me embora... disse, mas continuou sentado, sem se mover. Os seus olhos erguer
am-se para o cu e demoraram-se como se estivessem a contar estrelas. Olha l, Horci
o ! Tu pensas que no outro mundo a nossa alma ter a mesma cara que ns tem
os c na terra? No deixaremos de ter um corpo igual ao que temos aqui ?
Horcio fez um gesto vago:
No sei. Como posso eu saber ?
Eu queria tornar a ver a Lusa, mas tal-qual ela era antes de morrer. com a mesm
a cara, com o mesmo corpo... No como dizem que uma alma, assim como um
fantasma. Se ela estivesse igual ao que era, eu no me importava de morrer
tambm.
Tem juzo! protestou Horcio. Tens agora uma filha a criar...
Ele levantou-se vagarosamente.
Pois ... Tenho a pequenita. isso que me prende... seno deitava fogo s flo
restas e depois dava cabo de mim.
Horcio olhou para ele, surpreendido:
Por conta de quem ?
Tambm o Chico o olhava pasmadoj vendo sarcasmo na pergunta:
Por conta de quem, o qu? No percebo...
Homem, no dizes que deitavas fogo s florestas ?
Pois deitava... E at com quanto petrleo eu arranjasse. Se me vissem, que import
ava? Antes de me apanharem, j eu me teria morto. Se no fossem as florestas, eu an
daria com o gado perto de casa e no deixaria que a Lusa fosse para o campo assim to
cedo...
Isso parece-te a ti, agora. Quantas mulheres se levantam ao fim de trs ou quatro
dias e trabalham sem que os homens andem longe de casa! A questo haver preciso.
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Eu c no deixaria a Lusa trabalhar naquelas condies, coitadita! Podes crer que no deixa
ria... A voz sara-lhe novamente trmula, enternecida. Durante um momento ele quedou
-se em silncio e, depois, comeou a afastar-se lentamente. At amanh...
Enquanto o Chico da Levada se sumia na noite, Horcio dirigiu-se ao esconderijo, p
ara acabar de fazer o queijo. O leite estava coalhado. com ele atestou os "acinc
hos", os arcos de folha que, postos sobre quadrados de madeira, davam massa lctea
forma redonda e baixa e pelos seus orficiozitos deixavam o soro escorrer livreme
nte.
Horcio respirou alvio: da sua parte, aquilo estava pronto; em casa do Valadares po
riam sal nos queijos e acabariam de prepar-los.
A noite esfriara. Os dois ces haviam-se deitado entrada do bardo e o cu e a terra
continuavam cheios de silncio. Horcio escolheu o stio mais propcio e deitou-se tambm
no cho, enrolado na sua manta, junto do rebanho. com o sono arisco, ps-se a divaga
r: "O Chico da Levada at faria aquilo de graa, porque todos os pastores eram contr
a as florestas. A ele, ao menos, pagariam quinhentos escudos. Quinhentos escudos
no resolviam a sua vida, mas chegariam para ele se ver livre do Valadares". A hu
midade da terra molestava-lhe a face e Horcio meteu entre a face e a terra o seu
alforge. Divagou novamente: "O vigrio no era homem que mentisse. Se lhe dissera aq
uilo, porque aquilo era verdade. Mas, com certeza, os pastores antigos no eram ig
uais aos de hoje, seno os santos e os tais poetas no iam gostar da vida deles".
Adormeceu para acordar, de repelo, a horas altas. O seu ouvido de pegureiro, que
dir-se-ia continuar desperto quando o resto do corpo dormia, acusava a quebra do
silncio alpestre. com a ideia nos lobos, Horcio olhou, rapidamente, para o bardo.
Mas antes mesmo de divisar os ces deitados, identificou a flauta do Chico da Lev
ada, tocando na noite morta, enquanto rebanhos de nuvens erravam no cu, a pastar
as estrelas. Pareceu-lhe que a alma da Lusa tambm andava
em volta dele e quis mal ao Chico da Levada por t-lo acordado. Voltou a adormecer
com a flauta ainda a tocar e, quando tornou a si, j para o lado dos Cntaros vadia
vam as primeiras claridades do dia. Ainda com o crebro ensonado, Horcio pensou em
Manuel Peixoto: "Ia, finalmente, saber a sua resposta!"
A serra continuava silente, mas, quela hora, por todas as malhadas, nas que se ex
punham sobre os declives e nas que, entre fragas, s do cu se viam, comeava a faina
dos pastores. Horcio pegou nas ferradas e ordenhou, de novo, as ovelhas. Queijou,
repetiu as operaes da vspera, -as operaes que ele havia de repetir, de manh e noite
at o fim de Junho, quando os beres secavam. E, tudo pronto, abriu o bardo. De anda
ina humedecida, o cajado na mo direita, no brao esquerdo uma ferrada com batatas,
partiu atrs do rebanho.
As ovelhas, ao princpio de lesto e decidido pa?so, logo que venceram o fraguedo v
izinho da malhada, abrandaram a marcha, pondo o focinho a quanto pasto lhes verd
ejava. E uma hora aps outra, pelas dez, j ao largo dos Poisos Brancos, Horcio via s
urgir de todos os desvos da serra, metendo a encostas e piainos, numerosos rebanh
os.
A manh pintara-se com as suas melhores cores. Um sol de prata a arder estadeava-s
e em cu azul e de tanta limpidez, que a grande redoma dir-se-ia mais espaosa do qu
e noutros dias; e a luz matinal, vinda do alto, desquitava a montanha das suas d
uras linhas, dilua as suas rudezas de outras horas, fazendo branquejar, num trans
parente flux, o eterno negror dos Cntaros e de quantos brutos penhascais cortavam
o passo aos olhos.
Resvs terra, a louania era maior ainda: os humildes sargaos mostravam-se todos garr
idos com suas amarelas floritas, as agulhas das giestas estavam enfloradas tambm
ao lado de moitas de urzes, sobre cujas brancas flores saltavam ledos insectos.
Annimas folhas retinham ainda lgrimas da noite, que o sol, agora, irisava; e as prp
rias carquejas, rasteiras e aspe-
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*as no seu verde-escuro, dir-se-iam mais verdinhas e macias sob a manh de mil ful
gores. As campainhas dos rebanhos iam enebriando com a sua msica a majestade da m
ontanha, enquanto frente das ovelhas se levantavam, em voos rpidos, cotovias e cr
ielvos cantadores e esvoaavam bandos de borboletas. Aqui e mais alm e depois novam
ente, outro cntico surgia, suave, baixinho, ininterrupto, que assim cantavam as r
ibeiras da serra, correndo para os vales as suas guas frescas, entre grandes pedr
as que elas arredondavam e macios de abetoiros em flor.
Mas nenhum dos homens que, na montanha, acompanhando rebanhos, esgotavam a melho
r parte da sua vida, primariamente vestidos, sumariamente alimentados, trazia es
prito vazio de ralaes, alma livre para fruir o esplendor da manh. De expresso resigna
da, um vago fatalismo nos olhos sombrios, mesmo quando riam, mesmo quando cantar
olavam, eles dir-se-iam apartados, por uma velha maldio, dessa alegria de viver qu
e se revelava em seu redor, no voo das aves, no voo dos insectos, no florir dos
vegetais e na rtmica toadilha que as guas soltavam na montanha.
De cajado estendido, Horcio correu a deter a marcha do seu rebanho, que metera a
terra que lhe era defesa. A montanha estava dividida em vrias zonas de pastoreio
cada uma delas reservada a um dos concelhos serranos, pois s assim se conseguira
pausa nas bravas discusses entre pastores, nas brigas que manchavam de sangue as
encumeadas. Murmuro fio de gua, um cordo de rochedos, por vezes uma torrezita de
pedras soltas um "talegre" indicavam os extremos de cada rea e transp-los seria
desafiar a razo, a clera e o varapau dos pastores da outra banda.
Retidas, as ovelhas de Valadares mostravam-se inquietas e uma e outra, mais afoi
ta e alheia aos acordos humanos, saltava a linha convencional que separava a par
te da serra atribuda a Manteigas daquela onde s deviam campear os rebanhos da Alde
ia do Carvalho. com pragas e pedradas, Horcio ia obri-
gando a recuar as atrevidas, quando viu, finalmente, recortar-se sobre uma lomba
a figura de Manuel Peixoto. Atrs do seu rebanho, o amigo acercava-se lentamente
e, mesmo quando chegou fala, parecia no ter pressa de o sossegar. Pairou sobre mu
itas outras coisas e s depois, ante o teimoso silncio com que ele o ouvia, disse:
L falei com o meu irmo... O que tu queres no fcil. Mas ele prometeu-me fazer o que
puder. o que eu pensava: alm de haver falta de lugar, tu j passaste a idade. S por
muita preciso ou grande cunha eles metem aprendizes com mais de dezasseis anos...
O Mateus diz que a lei assim. Mas desde que ele prometeu, decerto arranja. O pa
tro tem respeito por ele e em ele lhe pedindo, faz-lhe a vontade...
Horcio continuava ansioso:
E demorar muito, senhor Manuel ?
Isso que eu no sei. Pode ser uma semana, pode ser meses. questo de haver vaga ou
aumentar muito o trabalho.
IV
f\ o crepsculo, posta a um canto a enxada com que labutara o dia inteiro, pessoa
da famlia de cada pastor, um filho, um irmo, a maioria das vezes a mulher, empreen
dia o caminho da serra, com um burro frente. E, por canadas e atalhos, grimpava
dez, doze, mais quilmetros, ora em silncio fatigado, ora soltando cantigas que esp
airecesse o seu cansao. Todas as encostas eram vencidas assim, ao sol poente, por
estas isoladas figuras, subindo para as malhadas. Ao chegar, j noite fechada h mu
ito, cada qual descarregava do onagro o po e o conduto que o pegureiro e seus ces
comeriam no dia seguinte e os acinchos vazios para os novos queijos a fazer. Dep
ois, rendido da caminhada e do labor diurno, o familiar recm-
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^-chegado deitava-se na terra, junto do pastor, at que o tecto celeste, que a amb
os cobria, ameaasse clarear. Ento, acomodados sobre o burro os queijos feitos na vs
pera, os parentes dos ovelheiros abalavam de novo, agora serra abaixo, anda, and
a, a toda a pressa, para casa, para a enxada para outro trabalho.
malhada de Valadares era um dos filhos deste o Tnio ou o Leandro que ia l todas a
s noites. Nunca mais, porm, Tnio voltara a falar a Horcio , da sua proposta. Pareci
a at que evitava referir-se a i tudo quanto pudesse record-la. Tambm Horcio no aludia
ao caso, embora sentisse, muitas vezes, que os j dois pensavam na mesma coisa,
quando, deitados de : faces para o cu, na escurido, ficavam calados antes de a
dormecer. Na manh seguinte, Tnio partia; ; noite, vinha o Leandro e os dias
iam fluindo e pare- l cendo, a Horcio, sempre iguais, enervantemente iguais,
] densos de uma monotonia que, para ele, s Manuel i Peixoto quebrava ao surgir,
com suas ovelhas, na serra, j O amigo, porm, dizia-lhe sempre o mesmo
: "Que i tivesse pacincia, que desse tempo ao tempo".
Horcio sentia-se cada vez mais desventurado. Os : outros pastores, porque cada
rebanho pertencia a qua- ' tro e cinco donos, revezavam-se, de sete em sete
dias, no pastoreio enquanto ele ficava sempre ali. Todas as semanas chegavam un
s e partiam outros, deixando-lhe a sensao de que a vida, para ele, era mais i
ruim, de que ele andava ali como um degredado. Os outros viam as mulheres, os fi
lhos, os pais; ele, parte ' Manuel Peixoto, no via a ningum que estimasse, poi
s j com Leandro no simpatizava e de Tnio era cada vez menos amigo. Comeara a co
ntar os dias, ansioso de que chegasse o perodo da tosquia, para ele se encontrar,
de novo, com Idalina. i As ovelhas haviam j estrumado o primeiro alqueiye j
e dormiam, agora, no segundo. O tempo aquecera. s i vezes ainda surdia uma
tempestade, com nuvens brancas explodindo em raios e troves, mas isso era coisa q
ue passava abaixo das cristas da serra, conflito de elementos que os pastores
viam, de cima, a deitar
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grandes sombras sobre os vales, enquanto o cu continuava azul e o sol a brilhar.
Vrios rebanhos tinham j partido para ser tosquiados, sem que Valadares mandasse di
zer que o dele partisse tambm. Mas, uma noite, pelo S. Joo, Tnio trouxe, finalmente
, a ordem to desejada: Horcio devia baixar, com as ovelhas, no dia seguinte.
Partiram os dois ao alvorecer. Tnio conduzia o burro com os ltimos queijos e ele d
irigia o rebanho. O tempo continuava quente. Tnio comentou o facto e acrescentou:
At a carqueja j estala debaixo dos ps! O pasto ser cada vez pior...
Ao ladearem a floresta que se estendia desde a Fonte Santa at alm do Poo do Inferno
, Tnio comeou a olhar para os pinheiros, de forma demorada, ostensiva. Horcio adivi
nhou-lhe o intento, mas no disse coisa alguma. Ento, baixando a vista para a terra
, Tnio murmurou:
C em baixo est tudo seco...
Horcio continuou calado. As ovelhas haviam metido a uma canada, tortuosa, estreit
a, atravancada ae pedregulhos, como o leito de um ribeiro; o burro ia atrs delas
e, atrs do burro, os dois homens desciam com dificuldade e em silncio.
Subitamente, Tnio voltou-se:
J resolveste aquilo ? Horcio respondeu secamente:
No resolvi nada. Arranja outro.
De novo calados, continuaram a descer o spero caminho, fundo regueiro aberto entre
a linde da floresta e a terra maninha. Mais abaixo, Tnio lembrou:
Foi aqui que, no ano passado, me multaram. E mudou o torn da sua voz: Se quiser
es, recebers, da primeira vez, seis notas...
As ovelhas iam muito apertadas, roando-se os seus corpos uns pelos outros nas cur
vas da canada. O "Lanzudo" e o "Piloto" acompanhavam o rebanho, mas pela parte d
e cima, fora do caminho. Por entre os pinheiros
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*j se divisavam o hotel das termas e outras edificaes das Caldas. Horcio tardou a re
sponder:
Hei-de ver isso... disse, por fim.
Mas quando ? Est-se a perder o bom tempo!
A voz de Tnio soava, pela primeira vez, a irritao. As ovelhas continuavam a descer.
Via-se, agora, o balnerio e a muralha que, ali, subia do Zzere.
Amanh... o mais tardar depois de amanh. Nos arredores das Caldas, o rebanho pastou
, algum
tempo, num campito que Valadares possua ali. Tnio havia partido e, ao meio-dia, Ho
rcio meteu as ovelhas estrada. Pouco depois via, entre a Senhora dos Verdes e o O
uteiro, os dois castanheiros de que Tnio havia falado. J l o esperavam sombra das l
argas frondes, o tio Marrafa, a mais afamada e cara tesoura de Manteigas, e outr
os tosquiadores. Nas mos de Marrafa cada ovelha dir-se-ia massa inerme, plstica, s
em fora nem vontade. Em dois movimentos ele "apernava-as" amarrava-lhes as q
uatro patas, sentava-as entre as suas pernas e metia-lhe a tesoura vizinhana
do pescoo. A l, cortada cerce, ia-se arregaando suavemente e descendo em ondas
fofas, sem nunca se romper em volta do corpo. De quando em quando, deixava a d
escoberto, agarrado pele da ovelha, que nem verruga negra, um repugnante carrapa
to, outro e outro. Se algum lhe ficava a jeito, Marrafa cortava-o em dois, reso
luto. Um derradeiro instinto de defesa animava o parasita, que, embora de cabea
decepada, continuava a fugir, largando sangue. Mas nem plos mutilados, nem plos in
teiros, Marrafa desviava jamais a tesoura de seu caminho. Ele considerava que, e
m dia de tosquia, as ovelhas pastavam pouco e os carrapatos que elas comiam nas
costas umas das outras, logo que tosquiadas, lhes serviam de alimento, pois lhes
devolviam o, prprio sangue delas.
O velo continuava a descer. A l saa numa nica pea e sem um s esgarce, como um vestido
que no fora sequer desabotoado.
A tosquia do rebanho durou dois dias. Na primeira noite, ao p de Idalina, Horcio e
squeceu as suas agru-
A L E A NEVE
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rs na serra. Tudo isso lhe parecia j mui remoto, como se o instante que ele vivia
agora fosse o nico da sua vida e encerrasse todos os destinos do Mundo. Dissera a
Idalina que teria um lugar certo na Covilh, mais dia, menos dia; ela mostrara-se
muito alegre com aquilo e, desta vez, no lamentara ter de sair de Manteigas, log
o que casassem. Idalina no lhe fizera perguntas e s abandonara a mo dele, naquele r
ecanto do Eir, submerso no lusco-fusco, quando sentira passos na ruela.
Na segunda noite, vspera de S. Joo, o povo acendera grande fogueira numa praa da vi
la e, em sua volta, largara a danar, enquanto, no coreto, a banda da freguesia de
So Pedro tocava. Eles danaram tambm e, depois, somaram-se aos ranchos que, em desc
antes, ao som de pfaros e harmnicas, iam s orvalhadas, para a banda das Caldas. A e
strada enchera-se de grupos. A noite estava clida e estrelada. De toda a parte vi
nham sons musicais e nas termas, em frente do balnerio, haviam acendido outra fog
ueira.
Horcio foi retardando o passo e deixando os demais distanciarem-se. Depois, com a
mo no brao de Idalina, seguiu a estrada que contornava as Caldas, pela parte de c
ima, em direco ponte. Quando se sentaram, no havia ningum perto deles. Mas via-se, l
em baixo, a fogueira e os pares que bailavam sua roda. A noite estava cheia de c
anes de raparigas e de uma mornido voluptuosa. A terra que sucedia estrada era em s
uave declive e eles deixaram-se deslizar. Beijando Idalina e com a mo a acariciar
-lhe as mais inflamveis zonas do seu corpo, ele sentia correr, em si, toda a volpi
a da noite e toda a fome que sofrera a sua carne celibatria, vagueando na soledad
e da serra, soledade propcia, como a de um crcere, constante evocao do amor. Mas con
tinha-se. Outras vezes, como agora, ele pudera tentar aquilo, mas sempre se cont
ivera, sob a fora dos vetos tradicionais. Ela seria dele quando casassem.
Estavam deitados, um ao lado do outro, em silncio, a ouvir a noite, as cantigas d
a noite, a msica
go
A L E A NEVE
j, que chegava at ali com as canes, vinda de l dei
baixo. O fulgor da grande fogueira espalhava-se para]
alm do Zzere e ia doirar, do outro lado, a fmbria j
da floresta. Ele contemplou, Um momento, os pinhei- j
ros distantes, de formas mal definidas, e, depois, visio- j
nou aquele mesmo claro a ampliar-se, a ampliar-se j
sempre, a iluminar toda uma encosta do vale, a ilu- i
minar a noite, no aquela mas uma outra noite, no \
aquelas chamas baixas de fogueira, mas outras, altas, l
muito altas, rompendo de entre os pinhais, com homens j
de p, lutando contra elas, sudorosos, bronzeados pelo
fogo, enquanto ele fugia nas trevas e se ocultava algu- i
rs, como um lobo. "Seis notas... Pega l. Para outra l
vez ters outras seis". E, depois, um dia, um guarda
em frente dele: "Vem comigo". Quando os seus olhos l
voltaram fogueira, estranharam, um segundo, que l
quem em seu redor andava no estivesse a apag-la l
e sim a bailar e a cantar, rapazes e raparigas, como eles l
dois, enlaados na noite de S. Joo. Sentia a Idalina l
to sua, to pronta a entregar-se a ele, to pronta a i
esperar por ele, que mais uma vez venceu a tentao l
de aceitar a proposta que lhe haviam feito. l
Na manh seguinte, ao tirar o gado das cortes que l
Valadares possua perto dali, disse a Tnio: I
Sobre aquilo, no temos nada feito. Eu no quero, l
Est bem. Ningum te obriga ripostou Tnio, l com um sorriso plido. J
Ele voltou para a serra com o rebanho. E ia con- l tente consigo prprio. Arrumara
aquela indeciso que i o moera muitos dias e, por outro lado, vira e falara l tia
Januria sem que ela lhe fizesse observao alguma, l Quanto a Idalina, parecia que c
ada vez gostava mais l dele. l
S a meio da encosta, com as ovelhas subindo vaga- l rosamente, o seu estado de es
prito se alterou. Ao l voltar-se para o vale, que se mostrava cheio de sol l mati
nal e cromtico no casaredo, verde na moldura l das florestas, todo de uma beleza,
tranquila, lembrou-se l de que, nesse dia de S. Joo, ningum trabalhava l e entri
steceu de repente. "Se no fosse o raio daquele |
A LA E A NEVE
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ofcio que ele tinha, estaria tambm na vila e passaria a tarde com Idalina, em vez
de andar por ali a rebentar pedras com os ps. E de agora em diante seria sempre p
ior, pois o Valadares, furioso por ele no lhe fazer a vontade naquilo de deitar f
ogo, havia de o tomar de ponta".
No mais lhe voltara a satisfao de h pouco. Sentia-se, agora, como antes de descer a
Manteigas, com as mesmas impotncias, as mesmas dvidas, o mesmo futuro confuso. "Se
Idalina se mostrara assim como se mostrara, porque ele lhe dera muitas esperanas
e pintara tudo cor-de-rosa. Mas ele sabia l quanto tempo teria ainda de passar f
eito pastor! E se, depois do que dissera, se casava sem mudar de vida, ainda se
iam rir sua custa".
Passou manh e tarde a batalhar consigo prprio, a lutar com quanta ideia contrariav
a os seus desejos. Esperava topar Manuel Peixoto e desanuviar-se com ele, mas ta
mbm o amigo no sara da sua aldeia nesse dia. Na vastido da serra, s encontrou o Chico
da Levada. J no trazia flauta. Estava mais magro e de olhos fundos, fatigados. Fa
lava com voz triste, mas parecia resignado. Agora a sua malhada ficava muito dis
tante da terceira de Valadares a ltima a estrumar.
noite, Horcio dormiu sozinho. Porque os beres das ovelhas comeavam a secar, sendo c
ada vez menos o queijo que o seu leite produzia, somente na noite seguinte Tnio a
pareceu. No denunciava ressentimento algum. Ao contrrio do que Horcio pensara, ele
at parecia mais afvel e mais falador do que tempos antes. Dir-se-ia apenas desejar
que no houvesse um momento de silncio entre eles. E, desde essa noite, Tnio voltar
a a alternar com Leandro nas suas vindas serra. No ltimo dia do ms, mal chegara, t
irou do bolso algumas moedas e disse:
Est aqui a tua soldada. O meu pai aumentou-te dez mil ris. E manda dizer que se no
quiseres descontar nada, l na dvida, no faz mal...
Horcio quedou-se a olhar para Tnio, sem pegar
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*no dinheiro que ele lhe estendia. Depois, desviou a> vista.
Quero I Quero descontar toda a soldada, menos vinte mil ris. E d l os meus agradeci
mentos aoteu pai. Mas se com medo de que eu diga alguma coisa, escusava de me au
mentar... Se eu no valia mais at agora, tambm agora no valho.
Sentia-se, subitamente, forte, ao lembrar-se de que tinha aquele segredo. Ao con
trrio, Tnio mostrou-se nervoso:
Sempre tens cada ideia! J te disse que o meu pai no tem nada com o caso e, demais
a mais, j se desistiu disso...
As ovelhas deixaram de dar leite. Uma manh, Tnio pusera sobre o burro os ute
nslios, agora inteis, para fazer queijo, e despedira-se de Horcio at a prxima semana.
E porque os alqueives, j estrumados, dispensavam a presena nocturna do gado, os
rebanhos de oitenta, noventa, cem cabeas, juntaram-se, como todos os anos, naquel
a poca, para economizar pastores, em rebanhos de mil e mais ovelhas cada uma del
as ostentando, no lombo, a marca do seu dono, letra ou nmero feito com pez e tint
a, com "pesgo". Dois pegureiros, acompanhando cada uma das multides ovelhuns, fazi
am agora o mesmo trabalho que, antes, exigia dez ou doze.
Valadares era o nico que, por birra antiga com outros proprietrios de gado, no quer
ia reunir as suas ovelhas s dos demais. E, assim, o rebanho dele, que, no comeo do
pastoreio, se apresentava o maior de todos, tornava-se, de um momento para o ou
tro, o mais pequeno de quantos andavam na serra.
De dia, as ovelhas deambulavam pelos pascigos e, depois, dormiam onde a noite as
colhia. Estavam no perodo da cobrio e os carneiros, desenfreados retaguarda das fme
as, ao recordar a Horcio o acto reprodutivo, exaltavam-lhe os nervos e punham-lhe
no
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crebro e no sangue a imagem de Idalina, como uma sede permanente. A solido tornara
-se maior, pois contavam-se pelos dedos os pastores que se divisavam, durante o
dia, atrs dos enormes rebanhos. Agora, Tnio s vinha ali aos sbados, trazer po, batata
s e toucinho. Entregava aquilo, quedava-se uns minutos a pairar e voltava logo p
ara Manteigas. Horcio pedira-Ihe, uma vez, que passasse por sua casa e dissesse me
que lhe enviasse a flauta. Mas quando, na semana seguinte, Tnio lha trouxe, ele
lembrou-se da razo por que o Chico da Levada soltava aqueles sons alegres, saltit
antes, meio loucos e no tocou. Parecia-lhe que tambm ele levava alguma coisa mort
a dentro do peito e que a flauta se tornara fnebre e lhe daria m sorte.
O seu nico prazer era encontrar-se com Manuel Peixoto. Mas este deixara de aparec
er diariamente nos limites de Manteigas. Tinha, agora, mais cabras do que ovelha
s e muitos dias pastoreava o seu gadito nas encostas prximas da Aldeia do Carvalh
o. Quando vinha ali, Horcio esperava sempre ouvir-lhe a palavra desejada; muitas
vezes, porm, Manuel Peixoto nem sequer se referia ao caso, por no ter novidade alg
uma a dar-lhe e no estar a repetir o que j lhe havia dito.
Ao morrer de Julho, a serra voltou a mostrar copiosas presenas humanas. As famlias
dos pastores e os pastores que no andavam de guarda s ovelhas, haviam subido do v
ale montanha, para ceifar as searas. Por todas as encostas e mesmo nos plainos c
imeiros viam-se, nessa poca, pequenas e isoladas manchas amarelas, contrastando,
num soberbo efeito, com o verdor da serra onde elas se exibiam. Era o centeio ma
duro aguardando a foice dos que o semearam. Homens e mulheres chegavam, com seus
burros, e lanavam-se tarefa, em vrios dias de canseiras e noites dormidas ao rele
nto. Sega, sega, quando a messe estava por terra, transportavam as gavelas para
a mais prxima rocha que brindasse lisa superfcie e ali as malhavam. Existiam pobr
es to pobres que mesmo esse fraco cho altaneiro, outrora baldio e merc de quem o qu
i-
94
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NEVE
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^sesse ocupar, tinham de toma-lo de arrendamento aos descendentes daqueles, mais
felizes, que para si o haviam chamado a tempo. Assim, colhido o gro, eles comeava
m logo a medi-lo, pondo de banda o que competia ao dono do terreno, consoante a
quantidade obtida. Depois, o que restava era, de novo, dividido, uma parte desti
nada ao po desse ano, outra seara do ano vindoiro. A semente j no saa dali. Cavada a
terra que acabava de frutificar e quedaria em descanso, a comer os seus restolh
os, homens e mulheres, em fins de Agosto, antes de volver definitivamente ao val
e, dobravam-se sobre as malhadas que haviam ficado um ano inteiro em poisio e s
emeavam-nas.
Durante essas manhs de Vero, a serra adquiria vida diferente da habitual. Daqui, d
ali, de messes e alqueives ocultos entre penedos, elevavam-se vozes, rudos do tra
balho, muitas vezes cantigas que voavam para longe, quebrando o silncio da montan
ha.
Desejoso de convvio que metesse pausa nas apoquentaes que o roam, Horcio encaminhava
o rebanho, todas as tardes, para a vizinhana dos homens e mulheres que ceifavam o
u malhavam. Era sempre perto de uma das improvisadas eiras ou de seara a abater
que as ovelhas agora dormiam. E enquanto no se punham todos de ventre para o cu, d
erreados pela labuta diurna, ele ia parolando com um e outro, tudo gente conheci
da, desde o Fataunos, com quem, em pequeno, jogava o pio, ao Serafim Caador, amigo
de seus pais.
Uma noite, noite de claridade estival, estavam j para se deitar, quando a Josefa,
a mulher do Canholas, ; descobriu que, para as bandas de Manteigas, o cu a
presentava outra cor. um fogo, no ?
Todos olharam na direco apontada e nenhum deles teve dvidas. Mas aquilo pareceu-lhe
s coisa de pouca monta, um desses fogarus que, num e noutro Vero, se ateavam ningum
sabia como e para apagar os quais os guardas da floresta bastavam. S Horcio ficar
a calado e atento. Pouco depois, o que era, de
incio, dbil fulgor, alastrara e tornara-se enorme claro, que ia aumentando mais e m
ais a cada instante.
Ena, que um grande fogo! exclamou Serafim Caador.
por riba das Caldas... No lhes parece ? perguntou Canholas, apertando o cs das c
alas, que ele j havia desabotoado para se deitar.
Deve ser... respondeu-lhe a mulher. E, com este ventinho, vai levar tudo a eit
o, at a estrada.
Isso que preciso! disse, por detrs de um dos penedos, uma voz cansada, na qual H
orcio reconheceu a do velho Jernimo Latoeiro. Deus queira que no fique uma s rvore!
De todas as searas e restolhos prximos surgiam outras figuras e os comentrios pros
seguiam. As copas da floresta que se estendia n?, frente deles no lhes permitiam
ver seno aquele imenso claro, sempre maior, a doirar a noite, a doirar o cu por cim
a do vale, do vale que mal se adivinhava ao longe. Ento, uns atrs dos outros, todo
s correram para o pncaro que se erguia direita. E l se quedaram, um momento, em si
lncio, a contemplar as cristas das chamas, cada vez mais numerosas e mais extensa
s, na vertente oposta.
No h dvida, por riba das Caldas. A mata ali no grande, mas pode pegar outra admit
algum.
Qual pode pegar! J pegou, que !
Houve novo silncio. Vieram mais homens e mulheres ofegantes. Quase todos sentiam
desejos de intervir e mediam mentalmente a distncia que os separava do incndio e o
tempo que levariam a chegar l. Alguns, de ouvido mais sensvel, captavam os sons l
ongnquos dos sinos de So Pedro e de Santa Maria, tocando, a rebate, em Manteigas.
Para esses, aquilo era como um aguilho, picando-os, impelindo-os para a outra enc
osta.
com quase toda a gente na serra, no h quem lhe acuda a valer...voltou um deles a m
urmurar.
Ningum respondeu. Mas, parte o tio Jernimo Latoeiro, todos os outros se sentiam em
puxados por esse antigo e quase instintivo sentimento de solidarie-
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Jdade que, ao surgir um incndio na terra onde no havia bombeiros, levava as classe
s populares da vila, velhos e novos, homens e mulheres, a sair de suas casas c
om panelas, cntaros, ferradas e quantos outros recipientes pudessem transportar gu
a e a dispararem para a casa que ardia fosse ela a de um inimigo. Agora, de tod
os os pendores e cumes que cercavam Manteigas, desde ali s Penhas Douradas
, ao Campo Romano, Fraga da Batalha, mais longe ainda, as famlias pobres da vil
a, que haviam subido montanha para colher o seu po, olhavam o enorme incndio e sen
tiam, antes mesmo de raciocinar, a nsia de correr a extingui-lo.
E se ns fssemos l ? props Serafim Caador, mesmo ao lado de Horcio.
O velho Jernimo bradou, indignado:
Vocs sois uns estpidos! Uns estpidos chapados ! Porque estamos aqui ? Por que que no
temos terras de centeio e pastos junto de casa ? E voltando-se para o Serafim
Caador: Anda! Responde! Como todos se mantivessem calados, acrescentou: O que vo
s falta juzo! Juzo, juzo, o que vos falta!
O silncio continuava. A voz do tio Jernimo adquirira um torn de monlogo:
No estava mal a coisa, no... Para termos um selamim de po, o que se v! E as ovelhas,
onde esto elas agora ? com tantas terras que havia mesmo ao p da vila! Agora temo
s de dormir ao relento, se queremos ter algumas ovelhas ou algum po. E ainda vocs
querem acudir! Que o diabo leve todas as florestas! Todas! Quando vocs forem velh
os e comearem a berrar com dores de reumatismo, como eu, pelas noites que tive de
passar fora de casa, j no pensam assim...
Todos pensavam como ele. Mas, ao mesmo tempo, todos se sentiam atrados pelo incndi
o. Serafim Caador volveu:
Vossemec, por um lado, tem razo; mas, por outro lado...
No concluiu a frase, no encontrou claro argu-
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mento para a completar. Mas tambm no era preciso. Todos sentiam que havia um "outr
o lado", que nunca lhes tinha sido explicado suficientemente, at os convencer, um
"outro lado" que era contra os seus interesses de pastores e de pequenos agricu
ltores das encumeadas, mas que existia, fosse em benefcio da agricultura do vale,
como os doutores diziam, fossem quais fossem as razes.
Qual por outro lado, qual carapua!gritou, de novo, o tio Jernimo Latoeiro. O que
ns todos somos uns molengos, seno h muito que as florestas tinham acabado. ver com
o os pastores antigos faziam! Sempre que podiamzspegavam-lhes fogo!
Uma outra figura apareceu. Vinha esbaforida e mal descortinou, de sobre a ptrea i
minncia, a rea incendiada, comeou a carpir-se, desesperadamente:
Ai, meu Deus, que perco tudo! O fogo est perto das minhas courelas e va
i dar cabo das videiras que tanto trabalho me custaram!
Parecia alucinado. Olhou, de novo, o incndio, que lanava, cada vez, maior claro no
cu e abalou, a correr, por entre os penhascos. Os outros no hesitaram mais e segui
ram-no, correndo tambm. S ficaram ali o tio Jernimo, o Chico da Levada, Horcio e dua
s mulheres.
Scia de burros! exclamou, com desprezo, o velho. E, depois, ruminando a sua dis
cordncia, calou-se como os demais.
Horcio continuava a contemplar o incndio e tinha um sorriso frio ao pensar no seu
patro: "Agora ele compreendia porque Valadares no viera ainda nem mandara os filho
s ceifar o seu centeio. No havia dvida, estivera espera de um dia em que o vento t
rabalhasse por conta dele".
O Chico da Levada sentara-se ao lado do tio Jernimo, pusera os cotovelos sobre os
joelhos, a cara entre as mos e parecia dormitar. As duas mulheres caminharam par
a a malhada mais prxima. Horcio afastou-se tambm e foi deitar-se junto do rebanho.
Manh nascida, ele voltou ali. Os homens no tinham
4 Vol. Ill
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ainda regressado e l longe havia, agora, em vez de labaredas, uns tnues rolitos de
fumo. Horcio calculou a parte da floresta que fora destruda e concluiu ter sido m
ais pequena do que ele julgara de noite e muito menor do que, decerto, Valadares
queria. Esta ideia deu-lhe sbito prazer. E, assobiando, abalou com as ovelhas pa
ra a sua andadura quotidiana.
No sbado, ao trazer-lhe os mantimentos, Tnio comeou a falar, sem parana, de muitas c
oisas, como sempre que no desejava falar de uma coisa determinada. Depois, sentin
do que, apesar disso, o silncio se intrometia com ele, dada a teimosa mudez de Ho
rcio, perguntou de repente:
Viste o fogo do outro dia ?
Vi.
Tu pensaste logo que fui eu ou mais algum comigo... Dize l: no pensaste?
Horcio no respondeu.
com certeza que pensaste insistiu Tnio. To certinho como eu estar aqui. Pois
enganas-te! Eu no tive nada com isso. Aquilo de que te falei, ps-se de parte, como
j uma vez te disse...Ao ver em Horcio um sorriso incrdulo, ajuntou: No acreditas,
estou mesmo a ver... Pois podes acreditar! No ia fazer assim uma coisa to mal fei
ta como aquela. No reparaste que o fogo foi s num stio, em vez de ser em dois ou trs
, como eu tinha dito ? Assim, o povo e os homens dos servios florestais s tiveram
de correr para uma banda e deram cabo daquilo.
Horcio objectou, matreiro:
Ouvi dizer que o fogo pegou logo muito forte...
Pegou. Mas c para mim no foi fogo posto, como alguns querem crer. com tanta gente
para baixo e para cima, por mor de colher o po, deitaram, sem dar por isso, algu
ma ponta de cigarro... E o vento que fez o resto. Tem acontecido muitas vezes.
Horcio olhava-o fixamente e pensava, irritado: "s esperto, mas a mini no me enganas
tu".
Parecia que Tnio adivinhara o seu pensamento:
Demais a mais, no valia a pena disse. Os servios florestais mandavam, pel
a certa, semear outras rvores...
Ento Horcio perguntou, de mau humor:
Quando que vocs vm apanhar o centeio ?
Para a semana. Temos estado a ver se o meu irmo melhora e...
O Leandro est doente ? interrompeu Horcio.
Est. H j uma porrada de dias. O doutor Couto tem andado a v-lo. Parece que ele
tem maleitas. Mas o meu pai j perdeu as esperanas de ele sarar a tempo de vir c ac
ima e vai mandar um jornaleiro comigo...
Efectivamente, na semana seguinte, Tnio apareceu, no com um, mas com dois auxiliar
es, nas searas que o pai tinha na montanha. Ceifaram, malharam, cavaram os resto
lhos e volveram a Manteigas. Em fins de Agosto, tornaram ali, para semear os alq
ueives do ano anterior. E, quando partiram definitivamente, a serra voltou ao se
u silncio. Terminara a faina agrcola nas alturas; todas as famlias haviam j regressa
do terra baixa. Agora s se viam, na montanha, os ovelheiros pastoreando os grande
s rebanhos.
A inquietao de Horcio tinha-se agravado. Ele desesperava-se diariamente. "Se Manuel
Peixoto no lhe arranjasse lugar na fbrica, que ao menos chegasse Outubro para ele
abandonar a serra, pois, l em baixo, sempre passaria alguns dias com Idalina, en
quanto no fosse levar o gado Idanha". Mas Oututro ainda estava longe e o tempo pa
recia decorrer cada vez com maior lentido. Horcio acabara por vencer a fnebre repug
nncia que lhe causava a flauta e comeara a soprar-lhe nas horas de mais intenso en
ervamento.
Em Setembro, seguindo o velho costume, o gado foi, de novo, apartado. Vieram os
donos das ovelhas que se haviam reunido em enormes rebanhos e, pelos
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"sinais pintados nos lombos, cada qual foi separando as suas, que era a poca de s
e lhes aproveitar outra vez o esterco.
Novamente a serra se cobrira de pequenas ove-, lhadas. E cada grupo, com um s pas
tor, como o rebanho de Valadares, voltava a dormir em ponto certo, para deitar a
primeira adubadela terra que, esse ano, criara centeio.
Por fim, Outubro chegou. Os cimos arrefeceram, as noites tornaram-se longas e, m
uitas vezes, durante elas, as chuvadas molhavam os pastores sob as prprias lapas
onde se abrigavam. Era o tempo de partirem, mas eles iam resistindo, porque ali
sempre o gado encontrava umas folhitas, ao passo que em Manteigas e noutros povo
ados da montanha os pastos eram raros ou custavam rios de dinheiro. O primeiro a
despedir-se de Horcio foi Manuel Peixoto: "Que ficasse tranquilo, que assim que
ele soubesse alguma coisa mandava-lhe um recado a Manteigas". Depois, foi o Canh
olas com o seu rebanho. Logo abalaram outros, que cada vez havia mais nevoeiros
e mais chuvas na serra. Um dia, Horcio no divisou, desde que sara da malhada, ao al
vorecer, at chegar, pela tarde, Nave de Santo Antnio, um nico rebanho alm do que ele
conduzia. Havia, agora, um frio perene, o sol raramente rompia o cu plmbeo e a mo
ntanha adquirira, no seu abandono, uma rude severidade, to forte, to spera, que o s
eu prprio silncio dir-se-ia agressivo. S de longe a longe se via um insecto, e as a
ves j no voavam, numerosas e lacres, como antes, por cima de sargaos e torgas. Os prp
rios lobos, sempre no rasto dos rebanhos, tinham-se ido acercando das povoaes, ond
e seria mais fcil obter carnia. A vida animal abandonava a montanha, que se prepar
ava para entrar no Inverno com uma trgica desolao, at que a neve a transfigurasse.
Horcio indignava-se porque Valadares tardava em mandar dizer que ele descesse com
o gado. "O patro no tinha nenhuma considerao por ele. Aquilo parecia mesmo de propsi
to. J no tempo da tosquia fizera
o mesmo. Mas se ele quisesse falar, j no seria assim..."
Um dia, porm, Tnio apareceu na Nave. No trazia o burro desta feita e sim um cajado
nas mos. Auxiliou Horcio a encaminhar o rebanho para Manteigas e, ao fim da tarde,
as ovelhas entravam nas suas cortes, perto das Caldas, perto da erva que Valada
res semeara entre o milho e, agora, cortado este, lhes servia por alguns dias de
pastagem.
< noite, Horcio dizia a Idalina, vencendo as lti<mas indecises que o haviam tol
hido at ali: d. O lugar que me prometeram est a demorar e eu no quero empatar-t
e mais tempo. Se eu no o tver at o fim do ano, casamo-nos mesmo assim. fc Fez um s
ilencia e, depois, perguntou: f Ficas contente ?
O que tu quiseres, est bem. O Valadares disse tua me que te aumentara a soldada.
Mas se for reciso esperar mais, eu espero...
Aumentou-me a soldada! Olha o aumento! com l[ez mil ris a mais no se remedeia nada
!
Ento...?inquiriu ela, timidamente. m Tenho de me arranjar de outra maneira...
> Ele falava em torn decidido, mas, na alma, ia-lhe rande confrangimento. Pouco
antes, caminhando para i, sentira-se vexado, ao lembrar-se de que, pela tosuia,
havia dito a Idalina que entraria em breve para toa fbrica da Covilh e no entrara.
Pusera-se, nto, a esmiuar as mais pequenas possibilidades da "a vida. Conclura que
, em Dezembro, estaria quite om \aladares e, vendendo as quatro borregas a que i
nJia direito, lhe sobrariam alguns mil ris. "Esse inneiro pensou no chegaria seq
uer para aquilo ue o senhor vigrio costumava levar por um casaento; mas eie pedir
ia um novo emprstimo ao Vakil""0''' um conto ou um conto e quinhentos, que, depoi
s, igaria quando pudesse. O Valadares no lhe ia dizer Je no. Fossem ou no fossem o
Tnio e o Leandro
crtd mando do Pai' tivessem deitado aquele fogo,
que tinham querido deitar um ainda maior
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sabia-o ele muito bem. Ele no diria nada, j se v;j
* jurara que no diria e no diria; mas o Valadares!
havia sempre de ter medo de que ele desse com ai
lngua nos dentes. E, decerto, emprestaria o dinheiro!
e esperaria o tempo que fosse preciso. Era claro que l
a vida deles, depois de casados, seria uma misria, por-i
que ele no era homem que ficasse a dever nada a nin- j
gum e muito menos ao Valadares... Seria trabalhar!
para o po de cada dia e para pagar a dvida. Mais j
nada. Mas j que tinha de ser pronto, acabara-se!" j
Agora, depois de haver resolvido assim, sentia o j
corao oprimido ao pensar que se lhe ia a casita que J
ele sonhara. J
Ao seu lado e alheia sua luta ntima, Idalina i
estava contente. Notando a alegria que havia nos olhos l
dela, Horcio enervou-se: J
O que eu fizer por ti que o fao, compreen- l ds? para que no estejas mais tempo esp
era... l Pois eu terei de continuar com o gado... J
Ela ouviu aquilo, entendeu ser aquilo natural e l continuou contente: J
No faz mal... Depois, a gente combina com o l Valadares e, em vez de serem os fil
hos dele, sou eu l que you l, todos os dias, buscar os queijos e ver-te... l E
arrendamos umas terras, para as batatas... E a l casa... Hesitou, como
se voltasse a si, aps ter-se l distrado: Ento tu desistes da casa nova ? I
Horcio quis falar com a mesma deciso de h l pouco, mas no pde. As palavras saam-lhe va
cilan- l tes e num torn de angstia: l
No... Quer dizer... depois veremos... l Ela contemplou-o um momento e, em seguida
, bai- l
xou a vista. Perdera a sua alegria e as lgrimas vinham- l -lhe aos olhos. l
Assim no quero... disse. Se tu fazes isso l s por mim, contra a tua vontade, no
quero! l
Ele sentia-se, agora, melhor sentia-se melhor desde que tambm ela sofria. E logo
lhe surgiu o desejo de consol-la!
No s por ti; tambm por mim. Mas no f|
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digas nada a ningum por ora. Se tiveres de dizer tua me, que ela guarde segredo...
No dia seguinte, Idalina comunicou-lhe:
A minha me acha bem o que tu resolveste. Ela diz que vamos acabar o que falta
para o enxoval, pois j estava quase todo pronto quando tu voltaste da vida milit
ar...
Ele __ interrompeu-a:
E melhor esperar mais um pouco... Eu ainda no perdi a esperana... O Manuel Peixot
o prometeu-me e s se o irmo dele no puder que no far...
Encontrava-se com estado de esprito diferente do da vspera, sem aquela sensao de vex
ame que sentira ao ver Idalina aps os meses que estivera ausente.
melhor esperarmos mais algum tempo... repetiu.
Passaram-se vrios dias, passaram-se semanas e Manuel Peixoto no enviara notcia algu
ma. Os dois pastores que haviam ido Idanha, como todos os anos, arrendar pastage
ns para o Inverno, tinham regressado h muito. Novembro avanava e, com ele, o frio,
cada vez mais forte. J cara neve na Torre e nas Penhas e as ervagens de Manteigas
estavam esgotadas. Era a poca em que, anualmente, se iniciava a transumncia, leva
ndo-se o gado para longnquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O
primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia
a caminhada dali at a Idanha, fora o do Canholas, com ovelhas de mais quatro past
ores. Outros partiram depois e, por fim, o de Valadares, o do velho Jernimo Latoe
iro, o do Aniceto e o da tia Luciana largaram tambm, num s grupo, para poupar cond
utores. Eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda
a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. frente e aos lados, mantinham g
uarda o "Lanzudo" e outros ces, menos o "Piloto" que fora considerado dbil para a
104
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* longa jornada. Atrs marchavam Horcio, o Tnio, ^j
Aniceto, o Libnio, filho do tio Jernimo, e um burrd
por cada homem. Os onagros transportavam bardos a
ferradas; e os seus alforges, com alimentos no f undo J
guardavam espao para recolha de cordeiros que des-l
sem em nascer, como sempre acontecia, durante o|
trnsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muitM
juntas no seu passo curto, se gritos ou pedradas ai
isso as impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e'|
cortavam esquerda e direita, cata de pasto viz*t|
nho da estrada. s vezes, os seus focinhos orienta-"!
vam-se para folhagem que tinha dono sempre pronto j
a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas i
e at de multas policiais, outras pedras e outros berros-j
caam sobre as famintas, que retomavam o caminho, J
na esperana de serem, alm, mais felizes. Por Bel-1
monte, Caria e Capinha, elas iam seguindo o seu ds- J
tino, dormindo onde a noite tombava, longe dos povoa- j
dos, que nas redondezas destes a cama era-lhes proibida, l
e levantando-se mal clareava o cu, para continuarem l
a marcha, sempre com os ces testa e nos flancos, j
sempre com os burros cauda e, atrs dos burros, os J
homens. E brancas e negras, sem outro rudo que o l
marulho dos seus passos e rebeldes somente quando J
alguma folhita verde, to humilde como elas, se debru- J
cava na estrada, a desafiar-lhes o apetite, as ovelhas i
acumulavam gratido no esprito de Horcio e de seus i
parceiros por nenhuma haver ainda parido. Ao terceiro l
dia, porm, a "Farrusca", que pertencia a Aniceto e l
exibia barriga redonda que nem pipa, deu em balir, l
J c fazia falta! exclamou Tnio. l
Aniceto no gostou de que fosse sua a causadora l
do mau humor do companheiro; mas logo, pelo andar l
dos bichos, o seu olho esperto assinalou que, mesmo l
se a "Farrusca" no existisse, algumas ovelhas de Vala- l
dares obrigariam, em breve, o rebanho a deter-se. l
E sentiu-se vingado. l
Estavam entre um desfiladeiro que se abria, quase l
a prumo, direita da estrada, e uma vasta proprie- l
dade, com muro branco, que se erguia esquerda. |
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Os quatro homens comearam, ento, a apressar o rebanho, enxota, grita e apedreja, p
ara que a forada paragem se desse ao menos em stio de algum pascigo. Mas a "Farrus
ca", j com dores, deitou-se por terra, alheia fome das demais.
Rais te parta! praguejou Aniceto. E, metendo-lhe os braos por debaixo do c
orpo, ergueu-a e ps-se a correr com ela na estrada. Mas adiante do muro branc
o havia outro prdio e outro e outro. O rebanho j ficara para trs e Aniceto continua
va a correria. Contra o seu peito a ovelha pernejava e estorcia-se. "Rais te par
ta! Podias esperar que chegssemos Idanha! Rais te parta a ti e aos donos destas
terras! Raios vos partam!" ia ele murmurando. Ao mesmo tempo sentia ternura por
ela, ao pensar nas dores que estaria sofrendo.
Por fim, ilobrigou, junto de pequena ponte, um pinhal sem vedao, com alguns sargaos
e chamias beira da estrada. Aquilo pareceu-lhe pssimo, mas no havia tempo para esc
olher. Pousou a ovelha, acendeu um cigarro e sentou-se numa pedra, junto do bich
o. A "Farrusca" contorcia-se, agora, violentamente. Aniceto ia tirando fumaas e l
anando-lhe, de quando em quando, uma olhadela. A bexiga de gua aparecera e rebenta
ra. O sexo dilatava-se e a ovelha continuava a contorcer-se.
O rebanho aproximava-se. Horcio avanou e cortou-lhe o caminho, postando-se entrada
da ponte. As ovelhas, indiferentes sorte da "Farrusca", passaram junto dela e e
spalharam-se na linde do pinhal.
Como vai isso ? perguntou Tnio.
Regular.
Silenciosa, a "Farrusca" prosseguia nas suas contores, ora de olhos fechados, ora
apresentando-os cheios de nvoa, como se fosse morrer. Logo, duas Patitas seguidas
por tenra cabecita se mostraram vista de Aniceto. O corpo veio depois, de jacto
, como se um aude de sangue se houvesse rompido. A ove*ha quedou-se ainda uns mom
entos estendida, a resPirar docemente. Tambm Aniceto sentia alvio e me-
io6
A L E A NEVE
* lhor respirao. Mas j a "Farrusca" se levantava levando as preas dependura
das do sexo, como tripaj cheias de bolitas sangrentas. Num instante, ela com t
ara, com os dentes, o cordo umbilical e, lamts lambe, pusera-se a ass
ear o filho. A sua lngua colhendo e mandando para o estmago todas as vis cosas
imundcies que ele trouxera da madre. E coe tal af o fazia, que o cordeirito, mal s
e sustendo aind; nas pernas, cambaleava frequentes vezes sob esse fre nesi mater
no. O seu olhar morno vagueva, inocente mente, no mundo onde ele acabava de entr
ar. Era d estrada, eram os pinheiros esquerda, uns sobreiros! junto da ponte, um
as alminhas no princpio do cam" nho que ali perto desembocava. Ele no fixava coisa
alguma, como se tudo isso fosse indigno da pureza de seus olhos cndidos, feito
s para contemplar uma paisagem celeste. s vezes arriscava um passo e logo a "Farr
usca" avanava tambm, sempre a lamb-lq. As outras ovelhas, dispersas ao longo das
valetas e no comeo do pinhal, iam devorando quanta folha propcia se lhes deparava
.
Entretanto, Horcio, Tnio e Libnio conversavam e riam em grupo. Fora o Tnio quem cont
ara a histria que os fizera, gargalhar e, agora, preparava-se para soltar outra.
Ouve l, que esta boa l disse ele para Aniceto, desejando obter tambm o prmio do se
u riso. entremez era longo. Todos os homens estavam atentos, risonhos, gulosos d
o desfecho. Aniceto esquecera a "Farrusca" e o seu anho. Tnio sentia-se lisonjead
o pela ateno dos companheiros e prosseguia na anedota. Antes mesmo de acabar, j tod
os os outros gargalhavam.
Libnio ria ainda quando os seus olhos divisaram aquilo. Perante o alarme que ele
deu, Aniceto voltou-se e correu, aflitivamente, para a "Farrusca". J
era, l porm, tarde. A ovelha, na nsia de enxugar a barriga l do filho, comeara a r
oer-lhe o cordo umbilical. Aquilo l parecia-lhe a mais e quanto mais o puxava, q
uanto l mais o roa, mais comprido ficava. O cordeirito deba-
A LA E A NEVE
107
tia-se, tentava escapar-se, empregando as primeiras foras da sua vida para libert
ar-se das dores que o esmero da me lhe causava. Mas a "Farrusca", obstinada no tr
abalho, continuava a prend-lo, a esvazi-lo por aquela fita quente, gomosa, sangren
ta, que ligava o seu ventre boca materna. Quando Aniceto acudiu, ainda ele estav
a de p, mas pouco depois tombava, vencido. No lugar do cordo havia, agora, tripasJ
Os trs homens juntaram-se em volta de Aniceto, comentando e lamentando o sucedido
. Ele no dizia palavra e odiava a Tnio e ovelha. "Se no fosse Tnio t-lo distrado pe
ou, com raiva aquilo no se daria. Ele j sabia que a "Farrusca" era assim, pois no
ltimo ano chegara a roer o rabo do filho. Ao Valadares, borrego a mais ou a meno
s no fazia diferena; mas a ele, que era pobre, que tinha s aquelas trinta cabeas, aq
uilo fazia-lhe muita falta".
O rebanho voltou a caminhar. Os homens iam, agora, silenciosos, a capa mui chega
da ao pescoo, o chapeiro enterrado at as orelhas, sob o sol que no conseguia anular
o frio.
Ao atravessar a ponte, a "Farrusca" comeara a balir pelo filho e Aniceto irritou
-se ainda mais.
Pouco depois, detiveram-se de novo. Mas a paragem foi curta. A ovelha do tio Jern
imo, que se deitara na valeta, s demorara um quarto de hora a aliviar-se. E o cor
deiro, logo que se vira limpo, pusera-se a seguir a me, com suas pernitas tontas,
muito abertas para fora. Do acto no ficara ali seno um POUCO de terra humedecida
de sangue, porque o "Lanzudo" voltara atrs e devorara, num instante, as preas e ma
is membranas que haviam acompanhado o nascimento.
A marcha do rebanho continuou. Antes do pr do ^ol, os homens comearam a inspeccion
ar as margens da estrada, em busca de abrigo para a noite invernal. Horcio falava
de umas lapas onde dormira uma vez, ftias no se lembrava se estavam muito perto,
se ainda longe. Por fim, encontraram-nas. Era um grupo de rchedos com algumas ca
vidades naturais, ao p de
io8
A L E A NEVE
A L E A NEVE
109
' j
um matorral e de um fio de gua. Acampados, comi
os burros a pastarem em derredor e as ovelhas fam-J
lias a no quererem entrar no bardo que lhes haviam!
armado, Aniceto acendeu, entre trs pedras, uma fo-1
gueira e sobre ela ps a sua ferrada. Depois, sacou doj
alforge o filho da "Farrusca" e principiou a esfol-lo. J
Libnio, ao passar junto dele, cuspiu para o cho:i
Vais comer isso ? l
Aquele "isso" estava cheio de repugnncia. Aniceto J
no respondeu. Levantou-se e, agarrando pelo pescoo!
o cordeiro j sem pele, foi lav-lo no regato. Ao voltar, J
viu Horcio, Tnio e Libnio ajoelhados junto de uma j
ovelha entrada do bardo. Ele aproximou-se com o J
cadver do filho da "Farrusca" na mo. Adivinhou o j
que se estava passando e soltou as suas primeiras pala- J
vras desde que a "Farrusca" havia morto o filho: j
O que h ? l
O borrego est atravessado respondeu Tnio. l Aniceto verificou que era uma ovelha
do Vaiada- l
rs e, pela primeira vez nesse dia, sentiu-se feliz. O sexo l do bicho mostrava-se
semi-aberto e sangrento, abau- l lado e de pelecas muito retesadas. Tnio e Libnio
l seguravam a ovelha, que se contorcia desesperadamente, l e Horcio tentava intr
oduzir os dedos, para encarreirar l o anho na direco normal. Mestre nesses frequen
tes l transes, Aniceto via que s a muito custo me e filho l poderiam salvar-se e
assistia, calado e contente. I
No preciso que eu ajude ? perguntou, sbendo que no era preciso. l
No respondeu Horcio, que j tinha as mos l cheias de sangue. l
A noite descia. Aniceto voltou para junto da fogueira, l
cortou em pedaos o cordeirito e p-lo dentro da fer- l
rada. Na gua fervente, os tassalhos iam e vinham, I
mostrando-se e escondendo-se. Aniceto ora seguia essa
emerso e submerso do seu prejuzo, ora olhava para
os companheiros ajoelhados em redor da ovelha. Aquilo
demorava. Ele conhecia todos os gestos necessrios na
circunstncia^ e ia acompanhando, mentalmente, o parto
tormentoso. As vezes parecia-lhe que a ovelha j estava f
perdida, mas logo compreendia que ainda existiam esperanas.
Finalmente, viu os trs pastores pegarem nos alforges e dirigirem-se ao regato, pa
ra lavar as mos. Escurecera e ele s tornou a v-los nitidamente quando se aproximara
m da fogueira. Todos eles vinham j mastigando o seu po e o seu conduto.
Que tal ?
Foi Tnio quem respondeu:
Deu-nos um trabalho dos diabos, mas salvmo-la.
Aniceto agarrou-se ltima hiptese consoladora:
E o borrego ?
Tambm l est, vivo.
Os trs sentaram-se em volta do fogo. Os ces estavam ao lado, engolindo o po que Tnio
e Libnio lhes atiravam. "Burro de sorte, o Valadares" remoeu Aniceto. E desatou
, ento, a falar, a falar de outra coisa, para que no adivinhassem o seu despeito.
Depois, afastou a ferrada do lume, escorreu-a e ofereceu o cordeiro aos demais.
Ningum queria. Aniceto principiou a mastigar. De tenra, a carne desfazia-se-lhe n
a boca. E estava insossa, que ele se esquecera de lhe pr sal. Dois anos antes ele
comera, com outros pastores, um borrego do Canholas, morto nas nesmas condies. Nin
gum ia deitar fora o bicho e todos haviam gostado. Mas, agora, tambm a ele aquilo
causava asco. Os ces, sentados em frente, olhavam-no com ateno. Ele esforava-se por
comer, mas a garganta fechava-se-lhe. Adivinhando o sorriso de Tnio e de Libnio, t
eimou ainda. A boca repelia a carne e a garganta apertava-se mais. Subitamente,
Aniceto ergueu-se e deu um pontap na ferrada. Os ces acorreram logo, enquanto ele,
levando a manta e os alforges, se dirigia, sem palavras, para um buraco dos roc
hedos.
Os outros seguiram-no, com a vista. Depois, Tnio ps-se a rir:
Como ficaria ele se, em vez do anho, tivesse morrido a ovelha?
no
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
in
" Libnio riu tambm. Repentinamente, Horcio sentiu pena de Aniceto.
A fogueira morria e a noite gelava cada vez mais. Os trs levantaram-se e foram de
itar-se na mesma cavidade onde Aniceto se estendera.
De manh, tudo branco, tudo coberto de geada, enrolaram o bardo e puseram-se, outr
a vez, a caminho. Havia um novo cordeirto, mas to inteiriado pelo frio, que foi pre
ciso met-lo num alforge. As prprias capas dos homens estavam endurecidas e o orval
ho congelado, que penetrara na terra solta, estalava sob as botifarras.
Anda agora, pra logo, torna a andar, torna a parar, por mor de novas pa
rturies, o rebanho acercava-se de Pedrgo, sempre com mais cabeas. Algumas ovelhas cam
inhavam arrastando ainda as preas, outras mostravam no sexo um globo sangrento, c
omo uma bola de sabo vermelha. Dos anhos recm-nascidos, alguns, como o de Libnio, c
ontavam logo com as pernas e marchavam atrs do todo, mui tmidos, desajeitados e mi
mosos. Outros, porm, apresentavam-se to j dbeis, que os alforges dos burros se
iam enchendo j com os seus corpitos. E, no dia seguinte, nas redondezas de
Proena-a-Nova, j s havia lugar nos alforges dos homens. Tnio resmungava:
Algum nos rogou uma praga! J vamos atrasados dois dias e estes demnios no
acabam de parir!
Ora! Ora! O ano passado pariram muitas mais! Tu que no vieste disse Aniceto, de
modo consolador. Ele, agora, estava resignado. Na vspera, trs outras ovelhas suas
haviam parido tambm, filhos e mes caminhavam sem percalo e ele habituara-se j perda
que a "Farrusca" lhe dera.
Finalmente, ao stimo dia, vencida a estrada imensa, cruzando vales, grimpando ser
ras, os condutores do rebanho transumante, todos sujos, cara negra de barba, cor
pos esgotados pela andana, viram, ao longe, as campinas da Idanha, seu ltimo objec
tivo.
Horcio levava, s costas, uma ovelha doente. Lib-
nio conduzia outra. E Tnio e Aniceto, que marchavam leveiros, em breve os revezar
iam no transporte dos animais. Dos alforges de todos eles saam cabeas de borreguin
hos. Iam oito ali, outros oito sobre os burros, que avanavam juntamente, cansados
tambm. Os ces levavam a lngua de fora. E todos os do desfile pastoril caminhavam e
sfomeados, todos menos os anhos que iam por seu p e mamavam nas mes sempre que lhe
s apetecia.
As crianas, porta das casas pobres erguidas beira da estrada, viam passar os cord
eiros em cima dos burros, com as ternas cabecitas a sair dos alforges, como se f
ossem numa janela andante, e achavam aquilo bonito.
Mais adiante, outra criana, que era rica, mimada, caprichosa, e estava, com a me,
no terrao de uma moradia nova, pediu:
Mam, d-me aquele carneirinho que tem as orelhas esticadas...
Est bem; logo to dou.
Mas ao ver que a me no fazia movimento algum e, entretanto, o cordeirito se ia afa
stando, metido no alforge, a criana comeou a chorar e a bater com as mozitas fechad
as sobre a balaustrada do terrao:
Eu quero o carneirinho! Eu /quero o carneirinho que tem as orelhas esticadas!
'
J na plancie, prestes a confiarem o rebanho aos trs pastores que ali guardariam, du
rante o Inverno inteiro, todo o gado de Manteigas, Horcio viu correr ao seu encon
tro o Chico da Levada. Desde longe fazia-Ihe grandes gestos e, ao acercar-se, di
sse-lhe:
Parece que vocs nunca mais vinham! Andei de camioneta e de comboio para chegar de
pressa e, afinal, estou aqui parado desde ontem, tua espera!
Mas o que que h ?
O Chico da Levada mal respirava:
A tua me manda dizer-te que o Manuel Peixoto te arranjou um lugar na fbrica e que
tu deves voltar j para casa. Ela quis escrever-te, mas como no tens aqui direco, tev
e medo de no receberes a
112
A L E A NEVE
mim. O recado do Peixoto foi
' S? M SE? a mm' re"d" "o Pe,xoto ,oi
SEGUNDA PARTE
L E NEVE
I
C OM o seu ba, as suas saudades de Idalina e nutrida ^"^ confiana no futuro, Horcio
acomodou-se em casa de um fiandeiro o Ricardo Soares. Nela no havia maior espao,
nem menor nmero de crianas do que nas dos outros operrios a quem Manuel Peixoto em
vo falara para lhe darem albergue; mas Ricardo e a mulher, considerando que podi
am colher daquilo algum provento, decidiram aceit-lo como hspede.
A porta exterior do casebre ligava com a escada do sobrado uma s diviso com peque
na janela aberta no granito. Ali dormia Antero, o filho mais velho de Ricardo, q
ue tambm j andava nas fbricas como apartador; e foi ao lado da sua cama que armaram
outra para Horcio.
Em baixo, junto do nascimento dos degraus, havia uma porta interior e, por ela,
se passava para os dois trreos compartimentos. O primeiro, era cozinha e quarto d
o casal e de seus filhos menores; o segundo, um cubculo escuro, ocupava-o a me de
Ricardo, octo-
ii4
A L E A NEVE
* genra de todo surda e quase cega. Quem estava era
baixo ouvia os passos de quem andava em cima q
quem estava em cima apreendia todos os rudos qua
se produziam em baixo. l
Horcio viera para ali na vspera de entrar usa
fbrica e logo nessa primeira noite o molestara a per-l
meabilidade que o soalho oferecia ao som. Fora, pri-1
meiro, a voz de Jlia, berrando aos filhos que tardavam!
a aquietar-se; fora, depois, o ressonar da velha, oral
pesado, ora estrdulo; fora, por fim, quando o silncio!
se fizera longo, aquele leve ranger de cama, aqueles!
movimentos que ele adivinhava serem cautelosos, aque-|
ls sussurros mal sufocados que o seu ouvido captava, i
trazidos pela noite, envoltos em imagens lbricas. j
Horcio percebia que Antero se encontrava tam- J
bem acordado, embora simulasse doranr, para que o i
hspede no soubesse que ele ouvia, igualmente, o j
surdo rumor materno. J
Muitas vezes, em sua prpria casa, quando era i
ainda garoto, Horcio escutara essas mesmas inconfi- j
dncias da noite. E ficava descontente com os pais. j
Agora, porm, ele sentia uma perturbao diferente, j
A mulher de Ricardo, que, de tarde, lhe parecera i
ludra e feia, apresentava-se-lhe, na escuridade, com J
fascinaes irresistveis. Ele via-a, em baixo, j esgo- i
tada nos braos do marido e via-a, simultaneamente, i
ao seu lado, a enfebrec-lo, a domin-lo completamente. J
Ele queria resistir-lhe e no podia, porque a presena l
de Jlia no seu crebro era mais forte do que a von- I
tade dele. E acabara tendo-a imaginariamente, evi- l
tando qualquer rumorejo que o denunciasse ao filho l
dela, que fingia dormir ao seu lado. l
Ao findar da noite, foi ainda a voz de Jlia a pri- j
meira que ele ouviu na casa. O marido respondia-lhe l
com torn sonolento, mal-humorado. Horcio sentia os l
passos da mulher l em baixo, o acender do lume, a J
colocao da panela na cadeia e ia acompanhando, l
mentalmente, a figura de Jlia na tarefa domstica, l
iniciada mesmo antes de o dia nascer. O soalho dei- l
xava passar uns leves fumos de carqueja e de razes |
A LA E A NEVE
115
de torga, que se lhe metiam nas narinas, incomodamente. Antero dormia agora, a t
odo o pano. Ele estava tambm com sono, porque, ainda inadaptado ao meio e com tod
a a excitao da noite, mal conseguira pregar os olhos. E j ia perder de novo o enten
dimento, quando ouviu trs fortes pancadas no soalho. Jlia devia bater com a ponta
de uma vara ou cabo de vassoura e no confiava, decerto, no primeiro aviso, porque
repetiu as pancadas.
Uma vaga claridade comeava a entrar pelas frinchas do janelico. Antero saltou da
cama, acendeu o coto de uma vela e, sem dizer palavra, vestiu-se apressadamente.
Ele levantou-se tambm. Mas ainda no havia enfiado as calas e j o outro corria escad
a abaixo.
Horcio ouviu a voz de Jlia deter o filho, com um torn de estranheza, quando ele ab
ria a porta da rua:
Ento hoje no tomas nada?
Antero resmungou uma palavra ininteligvel e fechou, atrs de si, a porta.
Agora, Horcio ouvia, tambm, os passos e a voz de Ricardo. O fiandeiro dialogava co
m a mulher e, em seguida, os dois comearahi a falar em surdina, como se temessem
ser ouvidos por ele. Pouco depois, Jlia gritou do fundo da escada:
J est pronto ? Pode vir comer o caldo. Horcio desceu e entrou no quarto-cozinha. Ri
cardo
estava sentado mesa, esperando-o. Era um homem muito magro e moreno, de quarenta
anos bem puxados e melanclica expresso. Horcio saudou-o e sentou-se tambm. Em frent
e de seus olhos ficava a cama do casal, de cobertores revolvidos, e, do outro la
do, a cama de quatro crianas, que dormiam ainda, com os braos fora da roupa. Num b
ero encontrava-se o filho mais pequeno, de cara para baixo, deixando ver apenas a
cabecita de cabelo ainda ralo. Agora, a claridade do dia nascente golfava-se pe
lo postigo que havia mama das paredes da casa.
Jlia pusera diante de Horcio uma tigela com sopa e outra junto do marido. Os dois
principiaram a comer. Horcio sentia-se constrangido, j por falta de inti-
no
A L E A NEVE
* midade com o casal, j pela participao que tiveras
nos segredos da noite. Constantemente, procurava afasia
tar os seus olhos da cama vazia e do corpo de Jliaj
que perdera, de novo, o seu efmero interesse nocturno J
A cama teimava, porm, em atrair-lhe a vista e erml
lembrar-lhe a brusca sada de Antero. "O rapaz tinhaJ
razo pensou Horci. Ele, no seu lugar, tambmJ
no ficaria satisfeito. o que tinham aquelas casas.)!
Mas a sua no seria assim". j
Ricardo engolia, apressadamente, o caldo. j
j tardp) disse. No podemos perder J
tempo! i
Era, sobretudo, Ricardo e essa espcie de secreta l
e promscua sociedade que tivera com ele, que moles- i
tavam Horcio. Mas Ricardo preocupava-se, apenas, l
com a hora de entrar na fbrica: J
Vamos! l
Os dois saram, cada qual levando num cesto o l
almoo que Jlia preparara. O sol no nascera ainda J
nessa manh de Novembro. E um vento frio e seco J
fustigava-lhes a pele. l
Na estrada, caminhavam muitos outros operrios, l
em direco Covilh: homens de faces quase ocultas l
nas golas erguidas de velhos sobretudos; mulheres l
muito embrulhadas nos xailes escuros e garotos de l
doze, catorze anos, vestidos com remendadas roupas l
e uma das mozitas metidas no bolso, enquanto a l
outra segurava o cesto da comida. Todos marchavam l
lestamente, que a entrada nas fbricas era s oito l
menos cinco e se chegassem um minuto depois poderia l
ser-lhes descontada uma hora no salrio. l
H muito tempo que os cabeos e encostas dos l
subrbios da Covilh viam, de manh, aquelas filas l
negras de cardadores, penteadores, fiandeiros, urdi- l
deiras e teceles avanarem para o trabalho, houvesse l
sol ou chuva, poeira ou lama nos caminhos. Todos os l
mestres da indstria txtil da Covilh tinham ali, a
servi-los, dinastias de operrios, os pais metendo, em l
cada gerao, os filhos nas fbricas, mal estes iniciavam B
o trnsito da infncia para a adolescncia. E os novos (
A LA E A NEVE
II7
pareciam herdar dos velhos, por via do prprio sangue, a arte de transformar em t
ecidos os velos das ls.
Companheiro de raras falas, Ricardo deixara Horcio acertar o passo pelo seu e ca
minhava em silncio. O frio, a pressa e o sono que a maioria ainda tinha, faziam c
om que os outros pouco falassem tambm. Os vultos negros, isolados ou em grupos, i
am avanando na estrada branca com uma nica preocupao chegar! chegar!
Quando atingiram o alto de onde se avista a Carpinteira, com suas fbricas ribeiri
nhas, Horcio viu, no declive oposto, outras centenas de negros vultos que desciam
da Covilh para o trabalho. Nessa altura, as sereias fabris deram o primeiro sina
l. Horcio ia apreensivo e simultaneamente curioso sobre a sua iniciao. A cada passo
, porm, brotavam-lhe, de entre as preocupaes, quentes esperanas, nessa manh que marca
va novo perodo da sua vida.
Em frente do casaro de Azevedo de Sousa pareceu-lhe que, de sbito, ficava desampar
ado. Ricardo, que trabalhava noutra fbrica, despedira-se simplesmente, como semei
e j estivesse habituado quilo:
At logo.
Horcio deteve-se junto do largo porto. Operrios vindos da Covilh passavam ao seu lad
o e entravam. No conhecia nenhum deles. E, no meio de tanta gente, sentia-se sozi
nho. Decidiu avanar atrs dos outros. O porto dava para uma calada, ao fim da qual se
erguia a fbrica. Ele procurava, ansiosamente, com os olhos, o Mateus, irmo de Man
uel Peixoto, mas no o via em parte alguma. Os operrios desapareciam, agora, por um
a das portas da fbrica e ele entrou tambm, timidamente. Mateus estava l, metido num
fato-macaco, aberto em cima, para deixar ver a camisa com gravata. Tinha o tipo
de soldado de cavalaria, forte, alto, espadado. Era muito mais novo do que o irmo
e, agora, Horcio descobria nos seus olhos uma expresso de mando que no lhe descort
inara na antevspera, quando lhe falara na companhia de Manuel Peixoto.
u8
L E A NEVE
A L E A NEVE
119
* bom dia! respondeu Mateus sua saudao. Venha comigo.
Atravessaram as instalaes trreas e subiram uma escada para o andar superior. L do fu
ndo vinham operrios, uns j sem sobretudo, outros com casacos mais velhos do que aq
ueles com que haviam entrado. E cada qual ia-se colocando ao lado de uma das mui
tas mquinas que, em vrias filas, enchiam a fbrica.
Mateus deteve-se junto das "self-actings" as carruagens de fiao:
Voc, como lhe disse anteontem, comea por aprendiz de pegador de fios. por aqui que
um bom operrio deve principiar. E chamando o encarregado da fiao, que passava ao
lado deles: Olha l, Sampaio: este o rapaz de quem te falei. Coloca-o a, em qualqu
er carro.
Sampaio olhou para Horcio, olhou, em seguida, para as oito mquinas e pareceu hes
itar. Por fim, disse:
Est bem. Eu tenho agora que fazer, mas volto j. Pode ficar aqui. E dirigindo-se a
um dos rapazes que se encontravam junto da primeira mquina:
Pedro, este aprendiz fica contigo.
O jovem pegador de fios olhou Horcio de alto a baixo e no disse nada. Entretanto,
Mateus e Sampaio, retiravam-se. No foi grato a Horcio esse rpido exame visual que o
seu novo companheiro lhe fizera, mas j a sereia soltava o ltimo apito e, instanta
neamente, as mquinas comearam a funcionar em toda a fbrica.
As carruagens de fiao eram uns maquinismos compridos e baixos, dos quais uma parte
, cheia de fusos e com rodas deslizando sobre frreos trilhos, ora se acercava,
ora se afastava da outra parte, num contnuo movimento de abrir e fechar. No espao,
que se alargava ou encolhia entre a seco fixa e a seco mvel, quando esta recuava ou
avanava, havia sempre centenas de fios muito juntos e paralelos, que a mquina ia e
stirando e torcendo. Quatro rapazes acompanhavam, correndo, esse vem-e-vai
da carruagem, olhos atentos e mos lestas sobre os fios que se par-
tiam, para lig-los de novo, sem paragem do conjunto. A correr tambm com a sua mquin
a e como que levado por ela, Pedro deixara Horcio especado na coxia que separava
as "self-actings" dos aparelhos de penteao. Assim isolado, ele sentia-se ali a mai
s, inepto, incerto no gesto a tomar, sem saber que fazer dos braos e onde pousar
os olhos. Das penteadeiras, um robusto operrio contemplava-o com sarcasmo e envia
va olhares irnicos a outro companheiro, como se lhe perguntasse: "Quem aquele gra
ndalho, que aparece, agora, aqui?" Pouco depois, Horcio verificava, tambm, que os g
arotos pegadores de fios, aprendizes como ele, que acompanhavam as correrias das
mquinas, volviam, de quando em quando, as suas cabeas, miravam-no, assim quedo e
indeciso, e sorriam entre eles. Vexado, adivinhava que esses risos tinham por ca
usa a sua idade, ali onde raros vinham aprender o ofcio aps os doze e cada vez se
sentia mais deslocado no meio estranho. O prprio Pedro, j operrio feito, era, sem
dvida, mais novo do que ele.
Por fim, Sampaio voltou. Chamou-o e levou-o para a seco fixa da mquina. No era hbito
de Sampaio gastar seu tempo a ensinar os garotos que entravam ali como aptendize
s de pegadores de fios. Confiava-os aos operrios-e eles que fossem aprendendo por
si prprios, um ms aps outro ms, um ano a seguir a outro ano. Fora assim que ele apr
endera tambm, no tempo em que ainda se trabalhava de sol-nado a sol-posto. E muit
as bofetadas apanhara, coisa que hoje j no se dava. Mas tendo em conta a idade de
Horcio e pensando que Mateus, por isso mesmo, lhe atribura um salrio maior do que o
dos outros aprendizes, decidira proceder diferentemente.
Isto simples disse, pondo-se atrs da mquina, na "bancada". Aqui, est o desengross
o, estas bobinas cheias de mecha. Estas mechas parecem fitas de l, mas no esto torc
idas. Se lhe mexssemos muito, desfaziam-se. Agora veja... Elas passam por acol e a
mquina vai desengrossando-as. Est vendo ? O carro, quando recua, estira-as, porqu
e as pontas esto amar-
120
A L E A NEVE
j, radas nos fusos que o carro tem. E assim elas vo ficando cada vez mais finas.
Olhe agora... Quando o carro chega ao fim, os fusos rodam e torcem o fio. Compre
endeu ?
Horcio no ousou responder afirmativamente. Sampaio fez um gesto de impacincia:
Venha comigo! Aproximou-se dos carros e mandou parar um. Est a ver como
? j
A voz de Horcio soou, timidamente: j
Estou... Estou... '
Bem! O principal, por agora, aprender a pegar ; fios. O resto aprende com o temp
o.
Sampaio estendeu a mo e quebrou um dos fios:
Veja. A pegadura faz-se assim: ligam-se as duas ] pontas do fio partido e torc
e-se, num instante. Depois,
a mquina acaba de torcer. No fio cardado, d-se um n, mas neste, que penteado, o n no
preciso. Basta fazer como eu fiz. E voltando-se para Pedro: Podes seguir!
O carro tornou a andar. Nas suas idas e vindas partiam-se vrios fios. Os operrios
e os aprendizes ligavam-nos rapidamente, mesmo com a mquina em movimento.
Veja agora como se faz. assim que tem de fazer. V! Ponha-se ao lado de Pedro! E
dirigindo-se a este, com um gesto de forada resignao, Sampaio concluiu: Vai-o ensi
nando. Tem pacincia...
Horcio comeou a correr, tambm, atrs do carro. Aquele "tem pacincia" quedara-se-lhe no
s ouvidos humiIhantemente.
Trs horas passadas, ele conseguia ligar o primeiro fio sem deter o carro. Pedro d
issera-lhe: "Est bem, assim mesmo. Mas preciso fazer a pegadura ainda mais depres
sa". Pouco depois, ele repetia o acto com outro fio que se partira. Pedro no fize
ra observao alguma. Ento, o seu optimismo volvera e com ele, a sua confiana no futur
o, uma confiana que brotava, espontnea, no de longo raciocnio, mas de secretas, obsc
uras foras da sua juventude.
hora do almoo, foi ainda junto de Pedro que
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ele se sentou, no refeitrio, para comer o caldo, o po e as sardinhas que Jlia havia
metido no cesto. Outros operrios mais idosos iam falando, enquanto mastigavam, d
e um companheiro que fora despedido o Paredes. Todos se lhe referiam com simpat
ia, lamentando o seu destino. Mas, pelas prprias palavras que ouvia, pareceu a Ho
rcio que eles no diziam tudo quanto pensavam, como se ali houvesse presena que os t
rasse. O mais impetuoso era o Tramagal, o penteador que o fixara sarcasticamente
quando ele ficara isolado, de manh, ao p das mquinas. No meio dos seus indignados c
omentrios, dirigia sempre a Horcio um vesgo olhar. Algum afirmava agora:
Isso de o despedirem por ele ter faltado, durante o ano, quatro dias sem justifi
cao, uma desculpa. Despediram-no porque estava velho. J no dava grande
rendimento. A mesma coisa ho-de fazer a mim...
Horcio olhou o operrio que assim falava. Era um homem de cabelo j muito ralo e embr
anquecido, olhos encovados e dois nicos/dentes rompendo de sob o lbio superior.
A mim e a todos ns, quando no pudermos dar mais repetiu.
Houve um pequeno silncio. Algumas bocas deixaram de mastigar o seu po. Mas j Tramag
al garantia:
O Paredes era, ainda, um bom operrio. Ningum conhecia uma penteadeira ou uma "
Intersecting" como ele. Nisso ningum lhe levava a palma. Ele no tez outra coisa na
sua vida seno trabalhar nas fbricas. Agora estava velho, verdade, mas tomaram mui
tos novos chegar aos ps dele. E, ao dizer isto, Tramagal volveu os o
lhos para Horcio e, depois, para um rapaz que se sentara esquerda de Pedro: Desp
ediram-no, porque queriam dar o lugar a outros! Empenhes!... Proteces!
O rapaz que Tramagal fixara, protestou:
Eu no meti nenhum empenho, ouviu ?
Bem sei! Mas passando tu a penteador, ficava um lugar vago na fiao. Pedro passava
de aprendiz
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A LA E A NEVE
123
*a pegador de fios e no seu lugar j se podia meteM
outro... ,'J
Pedro voltou-se e ia a dizer qualquer coisa, masJ
Tramagal atalhou: 7|
Tu no tiveste culpa nenhuma. \ Houve novo e incmodo silncio. Horcio olhou,,!
sombriamente, para Tramagal. E no pde dominar-se:; i
Se comigo que vossemec fala, est muito en- l ganado! No lhe admito isso, fique sabe
ndo! Eu noi l meti empenhos para que despedissem fosse quem fosse, i Se eu soubes
se que algum era despedido por minha l causa, nunca teria pensado em vir para aqu
i... com- i preende ? i
Tramagal encolheu os ombros e disse com torn i depreciativo: J
Cada um enfia a carapua que lhe serve... l Horcio levantou-se, num repente. Pedro
agarrou-o i
por um brao: J
Aqui, no! No pode haver desordens na fbrica, l Seramos todos despedidos... I
Os outros seguraram, por sua vez, a Tramagal, que i se erguera tambm e gritava:
~ l
Pois ! Isto aqui a casa da me Joana. com i
certeza h, por a, filhos de operrios que precisam de l
entrar nas fbricas e no encontram lugar. E vem um l
de fora, mete uma cunha e logo se arranja! Daqui a l
pouco, os nossos filhos andam a pedir esmola, enquanto l
os matules de outras terras enchem as fbricas daqui, l
At alfaiates e sapateiros, uns tipos j beira dos i
trinta, tm entrado na indstria, contra o regulamento, l
que diz que no se deve meter aprendizes com mais l
de dezasseis anos. Se por haver agora mais trabalho, l
por que puseram na rua o Paredes ? Sempre queria l
saber o que o Sindicato faz! I
Horcio ia ainda a replicar, quando o operrio de l cabelos brancos e dois dentes in
sulados se adiantou, l dirigindo-se a Tramagal: l
Acaba l com isso! Todos tm direito vida... l O Paredes foi despedido porque estava
velho e cheio l de achaques. J dera o que tinha a dar. O mesmo |
aconteceu com o Armando, com o Telhadais, com o Vicente, com todos. No preciso em
penhos de outros. J viste algum patro querer operrios velhos ? Antigamente, eram po
stos na rua sem mais aquelas... Agora, o Sindicato d-lhes vinte escudos por seman
a. Sempre podem comer quatro dias por ms...
Alguns riram. Horcio no desistira de esvaziar-se das suas razes, mas Pedro, apertan
do-lhe mais fortemente o brao, pedia-lhe:
Cale-se! Cale-se!
Do outro lado, alguns operrios afastavam-se, levando, com eles, a Tramagal! Ento,
o homem de cabelo branco, olhos profundos e dois nicos dentes na boca envelhecida
, acercou-se de Horcio:
No lhe leve a mal. Ele tem aquele feitio refilo, mas no m pessoa. O melhor no lhe l
ar importncia. Mas diga-me uma coisa: como que diabo voc, com essa i
dade, veio parar aqui ?
Os trs voltaram a sentar-se. Horcio desabafou. Havia simpatizado com aquele homem
desde a sua primeira interveno e contou-lhe tudo. O outro ouvia-o em silncio, sem
mesmo acabar de descascar a batata cozida que ^ifrTa entre as mos. Quando Horcio te
rminou, ele sorriu:
Est tudo muito bem. pouco mais ou menos como eu tinha imaginado. Ningum se sujeita
va a isto se no tivesse necessidade. O que me admira que voc, um homem feito, aind
a acredite que... Hesitou e o seu olhar envolveu tambm a Pedro: Enfim, vocs so ai
nda novos e o Mundo h-de dar muitas voltas. Eu logo explico tudo ao Tramagal. E
no o tome de ponta, que no vale a pena. Ficamos amigos, no verdade ? Eu chamo
-me Jos Nogueira, mas ningum me trata assim. Chame-me Marreta.
Horcio pronunciava tambm o seu nome quando a sereia da fbrica deu o sinal de recomea
r o trabalho.
Entendidos! exclamou o Marreta. E descascando e comendo, finalmente, a sua
batata, caminhou para o outro grupo.
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" Parece-me um homem s direitas! disse Horcio. com a cabea, Pedro fez um sin
al afirmativo.
As mulheres e as crianas da Covilh, que tinham vindo trazer a comida aos familiare
s, arrumavam, agora, tigelas e pratos nos cestos e os operrios transpunham, de no
vo, a porta da fbrica.
As mquinas voltaram a trabalhar. Nas "self-actings", as carruagens ia
m e vinham, vinham e iam, como se nem elas, nem os pegadores de fios que atrs del
as corriam, houvessem jamais parado. De manh, aquelas correrias dele e dos seus c
ompanheiros tinham parecido a Horcio to pitorescas como um castigo infantil ou e
xerccio desportivo. Mas, agora, aps o almoo, sentia as pernas fatigadas. De
quando em quando, ele desviava a vista, rapidamente, para o resto da fbrica, q
ue ainda no havia percorrido. Era um grande quadrilongo asfaltado e com vidros f
oscos e semiabertos altura dos beirais, para seu arejamento. A Horcio aquilo pare
cia excelente. Muito mais limpo e simptico do que o quartel; e com as casai de Ma
nteigas, a respeito de luz e de asseio, nem havia comparao. Surpreendia-o, porm
, no ver por parte alguma mais operrios a moverem-se, a correr a todo o mi
nuto, como ele e seus parceiros. As outras mquinas eram diferentes e homens e mul
heres estavam junto delas, quedos, como se fossem sentinelas. Raramente se movi
mentavam para intervir na laborao e, se o faziam, pouco tempo depois aquietavam-se
de novo. "Aqueles que tm boa vida pensou Horcio. As mquinas trabalham por eles.
No so como estas aqui". Aps o raciocnio, estranhou que os outros no mostrassem caras
alegres. Ao contrrio, sempre que, num relance, olhava para eles, via-os graves, s
ombrios, os mais diferentes rostos de homens e mulheres apresentando uma expresso
fria, uma espcie de dignidade cristalizada ao contacto com as mquinas. No pareciam
os mesmos que ele vira no refeitrio hora do almoo. Dir-se-ia que toda aquela gent
e jamais tinha rido na sua vida. "Aborrecem-se, porque estar assim parados at d so
no. Se andassem aqui, a correr, esta-
125
riam de outra maneira" tornou Horcio a pensar. Mas, pouco depois, olhando para o
s pegadores de fios, que corriam ao seu lado, para os prprios garotos que se havi
am sorrido, ironicamente, quando ele entrara de manh, viu que tambm eles tinham, a
gora, a mesma expresso dos outros uma seriedade precoce e cansada. Foi, ento, que
Horcio apreendeu que na fbrica havia mais alguma coisa do que ele enxergava, havi
a um ambiente dominador que lhe causava o mesmo desagrado sofrido nos seus prime
iros dias de quartel, quando os oficiais se encontravam presentes. Ali, porm, a v
ontade que produzia esse ar carregado de obedincia parecia estar ausente, porque,
mesmo quando o Mateus se encafuava no seu gabinete envidraado, ao fim da fbrica,
operrios e operrias continuavam de fisionomia parada, como se o trabalho fosse o ni
co acto profundo da sua vida, a obrigao que no admitia um sorriso. Alguns deles, vi
a-se-lhes nos olhos, estavam de esprito distante, mas, pela fora do hbito, a abstra
co quebrava-se logo que a mquina lhes exigia uma interveno.
Em todas as fbricas assimj^-perguntou Horcio a Pedro,
Assim o qu ?
Assim... como a guardar defuntos?
Pedro seguiu-lhe o olhar e a inteno e respondeu com piedade pela sua ignorncia:
Claro que . Voc queria um baile ? O Rodrigo, que esteve em Frana, nas fbricas de Lio,
disse que l ainda h mais disciplina.
As mquinas continuavam a laborar. E os homens e as mulheres, colocados ao seu lad
o, sombrios, ensimesmados, acompanhavam-lhes silenciosamente o trabalho, que ali
s elas tinham voz.
Horcio sentia um imenso desejo de fumar, mas j de manh Pedro lhe dissera que era pr
oibido faz-lo ali.
Se fumssemos, que mal poderia acontecer ? A l no arde...
Desta vez, Pedro respondeu bruscamente:
Ns estamos aqui para trabalhar e no para nos
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A L E A
NEVE
, divertirmos. Parece que voc nunca trabalhou... Bera
se v que vem da serra... m
Ele comeava a antipatizar com Pedro. Mas j es
se voltava e o advertia, amigavelmente: "d
Homem, voc ainda no percebeu que s se poda
falar aqui em coisas de servio ? Os patres no que|
rem que se converse enquanto se trabalha. Se voca
teima, ainda apanhamos algum raspano...Mudotl
de torn: V latrina e fume l. A latrina a nica
defesa que ns temos. E parece que no s aquij
mas em toda a parte onde se trabalha... >|
Ele no foi. Esperaria at sair decidiu. "Era pr-i
ciso ter fora de vontade, como tinha no quartel i
disse a si prprio. Se se desacostumasse dos cigar-I
ros, at faria uma economia". l
Decidiu assim, mas logo comeou a evocar Manuel J
Peixoto, quando este lhe dissera que no nascera parai
viver dentro das quatro paredes de uma fbrica. Ento, l
parecera-lhe absurdo que o Peixoto preferisse andar l
sujo por montes e vales, dormindo ao relento, apo.-*!
nhando, no Vero, o estrume do gado, passando dias l
e dias longe da mulher e dos filhos, em vez de ter um l
horrio certo numa fbrica e de se lavar e vestir de l
limpo ao domingo. Mas, agora, a ele prprio, a sua l
antiga vida de pastor, com liberdade de se sentar, de l
se levantar, de fumar quando quisesse, de assobiar, l
de cantar ou de gritar para que a sua voz ecoasse pelos l
esbarrondadeiros, de falar sozinho ou com o "Piloto" l
quando no tinha ningum com quem falar, lhe apa- l
recia com mais atractivos do que dias antes. Logo, l
porm, se lembrou de Idalina e a imagem da serra l
desvaneceu-se num negrume de ms recordaes, l
" falta de costume consolou-se. com o tempo, l
habituo-me. Aquilo tambm era muito mau. No h l
dvida que ser operrio melhor do que ser pastor". I
s cinco da tarde, houve um rpido trnsito de l
figuras na fbrica. Os que trabalhavam de dia deram l
o seu lugar junto das mquinas a outios que chega- l
ram para o turno da noite e, to apressadamente como l
haviam entrado de manh, abalaram em direitura l
A L E A NEVE
127
calada que desembocava no porto. Modo pelas incessantes correrias feitas durante as
oito horas de um trabalho a que seu corpo no estava habituado, Horcio era o nico q
ue caminhava devagar entre os outros que o iam deixando para trs, como pedra que
resiste torrente. Ao seu lado passou Tramagal e, pouco depois, o Marreta, que lh
e bateu no ombro, ao mesmo tempo que lhe lanava um amistoso "at amanh". C tora, muit
os dos operrios se separavam, uns cortando para a Covilh, outros para a Aldeia do
Carvalho. Das fbricas vizinhas saam mais bandos, que se dividiam tambm, marchando e
m direces opostas.
De cigarro finalmente aceso, Horcio quedou-se na estrada, a aguardar Ricardo. Da
fbrica continuava a vir um surdo rumor mecnico. E l em baixo, na grande bacia corta
da pelo Z'zere, manchas verdes^ contrastavam com pardas extenses de Inverno. esqu
erda, a meio da serra, como se quisesse vigiar dali toda a vida do imenso vale q
ue lhe ficava aos ps, ostentava-se a Covilh. O sol horizontal fazia rebrilhar agor
a os vidros das suas incontveis janelas, tornando-a mais espectacular do que a qu
alquer outra hora do dia. A cidade fascinava os olhos de Horcio, que passeavam, l
entamente, do velho casaredo aos edifcios novos que se exibiam nas declividades.
"Poiicas casas havia ali que se comparassem com algumas do Estoril, mas, enfim,
tomara ele ter uma daquelas pensou. Vendia-a logo, pois no queria uma moradia gr
ande, e mandava fazer uma mais pequena, como ele desejava".
Quando deu por Ricardo, j este se encontrava muito perto. Subia a estrada, a coxe
ar.
Sucedeu-lhe alguma coisa ?
No. o diabo do reumatismo, por isso venho atrasado. Este ano ainda no me tinha ata
cado, mas esta manh, assim que entrei na fbrica, comecei a ientir a perna tomada
. Quando chega o Inverno, sempre sofro mais ou menos.
Pois eu estava a ver aquelas casas grandes. Parece-me que elas ainda no ex
istiam quando passei por aqui, h anos.
128
A L E A
NEVE
* Ricardo olhou na direco que ele indicava: i
Sim, so casas feitas h pouco. So de indus triais. n
Todas elas ?
Quase todas as casas grandes da Covilh sol de industriais. Olhe: aquela cor-
de-rosa a do seul patro. Mas parece que ele no gosta de viver ali.w Passa a ma
ior parte do tempo numa quinta que terral l em baixo, beira do rio. >|
Iam os dois andando, vagarosamente, por mor da i
perna de Ricardo. O crepsculo caa e o ar comeava l
a gelar mais, a tornar-se to spero como fora de j
manh. i
A certa altura, Horcio reconheceu, ao longe, numa i
curva da estrada, a Tramagal e a Marreta, que esta- i
vam parados, a falar coru outro homem. l
Ricardo tornava a queixar-se: l
Isto do reumatismo uma grande maada. Ainda l
se eu morasse perto da fbrica... Mas, assim, os sete l
quilmetros custam muito. O ano passado, tive, alguns l
dias, de me levantar duas horas mais cedo do que de l
costume, para no chegar atrasado ao trabalho. l
Ao passarem em frente do grupo que Horcio vira l
de longe, os trs homens voltaram-se e Tramagal, l
depois de ligeira hesitao, avanou: l
Ol, camarada, peco-lhe desculpa do que lhe disse I
esta manh. Aqui, o Marreta, j me explicou tudo e l
eu sei que cada um tem de ganhar a puta da vida. l
Vai um aperto de mo ? E, ao falar, estendia os l
dedos grossos, enrugados, que Horcio apertou.
Deixe vir sexta-feira, que eu hei-de oferecer-lhe um
copo de vinho... l
Marreta sorria, com ar paternal, e, por detrs dele,
um velhote sorria tambm, mais docemente ainda. B
Horcio sentia-se comovido com a atitude do Tra- l
magal. l
Estvamos justamente a falar de voc... disse B
Marreta. Este, aqui, o tio Paredes, o que foi ds- l
pedido... B
O velhote estendeu a mo. Ele tinha uns olhos m
A LA E A NEVE
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piscos e humilde expresso; mas o que mais se destacava era o sorriso inocente que
pregueava e iluminava de candura todo o seu rosto.
Perturbado, Horcio agarrou a mo que Paredes lhe oferecia. No sabia o que dizer; s lh
e ocorriam frases que lhe pareciam imprprias do momento.
Eu no tive culpa do que lhe sucedeu... Paredes continuava a sorrir, resignadament
e:
Bem sei. Eu j h muito esperava que isso acontecesse. o fim de todos ns. Podia ser n
uma ocasio melhor, isso podia. L a patroa j no v um palmo frente do nariz. No ganh
um vintm. Velhice... Mas seja o que Deus quiser!...
Voc no quis ter filhos brincou o Tramagal. Agora auxiliavam-no.
Ainda bem que Deus no quis que eu os tivesse. Os que os tm andam por a na mesma. To
maram os filhos ganhar para os filhos deles... Paredes deixou de sorrir. A sua
expresso tornot-se melanclica: O pior que no sei como encher o tempo. Estava to acos
tumado ao trabalho, que o dia de hoje pareceu-me que nunca mais acabava. Por iss
o vim por a foia... Fica a gente como parvo. Parece que at as mos esto a mais no c
orpo... Se algum me quiser, seja l para o que for, eu you trabalhar por qualquer c
oisa... Mesmo de graa...
Tramagal riu, abrutalhado:
Voc ainda de bom tempo! O que eu gostava era de passar os dias sem fazer nada...
tendo de comer e de beber, est claro! E comeou a contar o que fizera no dia em qu
e encontrara uma nota de cem escudos junto do mercado da Covilh.
Quando este concluiu, Ricardo despediu-se:
tarde. E eu tenho de ir devagar.
Os outros separaram-se, tambm, de Paredes.
No penses mais nisso, rapaz! disse o velho a Horcio. Se no fosses tu, seria outro
...
Horcio comovia-se outra vez:
Se eu puder fazer alguma coisa por si... conte comigo!
5 Vol in
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Est bem... Est bem... Obrigado! E partitij a caminho da Covilh. ^
Os quatro homens ficaram, um momento, a v-$ afastar-se, estrada fora, a v-lo dilui
r-se na noite qu caa, ventosa e gelada. Depois, eles prprios comeai ram a caminhar t
ambm, silenciosos, em direco opost|
U J
M ms vencido, Pedro e Sampaio podiam atestai! que Horcio se encontrava apto a ser
pegador! de fios. Ele j sabia tirar a mecha, levantar a montada,! liar aos fusos
os novos fios e, quando estes se partiam,! os seus dedos hbeis faziam a pegadura
com tan t J presteza e perfeio como outros muito mais erperi"! mentados. Uma manh,
o prprio Sampaio comunicou i esse progresso a Mateus. O mestre, que estava no seu
l gabinete envidraado, l ao fundo da fbrica, ouviu l aquilo em silncio e no disse na
da. l
Porque se bacorejava ser Horcio protegido de Ma-1 teus, os outros aprendizes, ado
lescentes de catorze, l quinze anos, esperavam que ele lhes passasse frente l e
ganhasse, em breve, salrio de pegador de fios. Mas l os dias iam decorrendo e Horc
io continuava tambm l como aprendiz. l
E que o meu irmo no tem vaga para te dar l
disse-lhe, um dia, Manuel Peixoto, a quem ele pedira l
nova interveno junto de Mateus. Tens de ter p- l
cincia. com certeza no demora muito. E mesmo que I
demorasse um ano, j era uma grande sorte, pois os l
garotos andam l cinco anos e at mais, antes que os l
considerem operrios. Mas como tu s um homem feito,
o meu irmo h-de ter isso em conta. l
O que o Peixoto dizia parecia-lhe conforme razo, l
mas deixava-o desolado. No fim do ms, quando fora l
pagar Julia os cento e cinquenta escudos ajustados m
pela cama e comida, ela dissera que se havia enga- J
A LA E A NEVE
131
nado nos seus clculos e perdera dinheiro com ele. O que estava dito, estava dito
e por aquele ms no pedia mais. Mas, dali em diante, no poderia dar-lhe de comer e d
e dormir por menos de cinquenta escudos cada semana. Surpreendido, ele hesitara
em responder. Logo fora lembrando a Jlia que ele ganhava apenas nove escudos por
dia, pois este era o maior salrio que o regulamento autorizava para um aprendiz.
Assim, se lhe pagasse cinquenta escudos por semana, ficaria apenas com quatro pa
ra as outras despesas e isso no chegaria sequer para os cigarros. E com que ia v
estir-se e calar-se ?
Pois ... no digo que no... concordou Julia. Mas por menos no me paga a pena. com iss
o da guerra, as coisas cada vez esto mais caras.
Perante o silncio dele e a expresso que o seu rosto tomara, Jlia condoeu-se:
Realmente, com quatro escudos voc no faz nada. Mas eu no tenho culpa. O que pqss
o experimentar mais um ms, a quarenta e cinco por semana. Se chegar, muito bem
; se no chegar, voc tenha pacincia...
Fora, ento, que ele pedira a Manuel Peixoto para interceder junto do irmo. E, agor
a, o Manuel Peixoto dizia-lhe aquilo. Podia ter de esperar um ano ou ainda mais,
quem sabia l?
E isso do quarto ? perguntou.
Olha: falei a vrias pessoas. Mas ningum faz mais em conta do que a Jlia. Que ela no
deve enriquecer contigo, isso verdade...
Estavam os dois sob a alpendrada da capela do Esprito Santo e chovia. Peixoto adi
vinhava o mal-estar que as suas palavras haviam causado a Horcio e no encontrava o
utras para o consolar.
E tu?
Eu?...
No falaste a ningum ?
Falei. como vossemec diz. Uns no tm cmodos, outros no fazem por menos respondeu, des
alentado.
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A L E A NEVE
133
* Continuava a chover e a noite aproximava-se. Eiri
frente, na igrejita paroquial, o padre entreabrira J
porta, deitara a cabea de fora, olhara para o cuj
mas no ousara sair. JJ
bom, senhor Manuel: vou-me chegando. Estoa
como um pinto! Muito obrigado por tudo. n
Disparou sob a chuva para casa de Ricardo. Outros!
operrios atravessaram o adro, de regresso das fbriJ
cs, encharcados como ele. 'Q
No seu quarto, Horcio mudou de roupa, ouvindon
em baixo, a voz de Jlia, a querer dominar a chim!
frineira que os filhos faziam. A chuva aumentara j
batia agora, ruidosamente, no telhado. j
com o Inverno, a aldeia tornava outra fisionomia, l
At a, fosse na Primavera, fosse no Vero ou no J
Outono, os homens mal paravam em casa. Quando!
volviam das fbricas, punham-se a falacear com os l
vizinhos ou a cavar algum palmo de cho, at a hora l
do lusco-fusco. Os que laboravam no turno da noite i
e possuam um quinchoso ou leiras nas declividaojjs J
da serra, empregavam o dia a amanhar essas territas. l
Muitos deles, ao entrar nas fbricas, s cinco da tarde, l
j haviam trabucado seis e oito horas, mas tinham l
por boa sorte consumar, num mesmo dia, esse duplo l
trabalho, pois sem o acrescento das couves, das batatas l
e, s vezes, do centeio que as courelas davam, o sala- l
rio no lhes bastaria para sustentar a famlia. l
No Inverno, porm, belgas e quintais magra assis- l
tncia exigiam. Sob o cu pardo, nas ruelas cobertas I
de lama ou de neve, os casebres tornavam-se lgubres l
e, mesmo nas horas diurnas, adquiriam feies de caver- l
nas, com um lume a arder l dentro. Antigamente, os l
homens metiam-se nas vendas e emborrachavam-se l
nesses dias pluviosos. Mas, com o decorrer dos anos, l
a propaganda contra o lcool, feita pelos prprios ope- I
rrios mais conscientes, fora afastando das tabernas a l
maioria deles. Como Ricardo, quase todos os outros, l
ao volver das fbricas, ficavam em casa ou se junta- l
vam, em paleio, no casebre de Marreta. As casas eram, l
porm, de uma tristeza infinita, mais negras e ener- |
vantes do que o prprio Inverno. Nelas, as mes increpavam os filhos que saam a patin
ar nos lodaais, a correr, muito contentes, sob a chuva ou a brincar na neve, se e
sta j cara. Mas quando as crianas, detidas pelos ralhos maternos, estavam em casa,
brigavam umas com as outras, irmos contra irmos, os mais velhos com os mais pequen
os. Todos eles se sentiam prisioneiros e se os foravam quietude e mudez, esses di
as invernais pareciam-lhes eternos, como se eles vivessem numa s hora mais do que
toda a sua vida.
Ao contrrio dos filhos, Jlia e a outras mes esses sombrios dias invernais pareciam
curtssimos. Elas constituam como que o centro de cada lar, o eixo de cada famlia e
o tempo corria-lhes mais rpido do que a chuva sobre os telhados. Elas tinham de f
orar a imaginao para obter alimentos baratos, de forma a que todos comessem dentro
da exiguidade dos salrios e, no Inverno, isso era-lhes mais difcil. Elas tinham de
vestir os filhos, cortando, adaptando, remendando velhas roupas; e faina domstic
a, todos os dias igual, juntavam, muitas vezes, trabalhos para as fbricas.
Jlia disputava cada minuto de luz diurna para esbicar um corte de fazenda. O teci
do estava sobre um cavalete, a "banca", e ela, com umas pinas, ia-lhe arrancando
as impurezas, os ltimos resduos vegetais que a l conservava, teimosamente, atravs de
todas as outras operaes que sofria. Os industriais pagavam pouco por esse labor,
mas Jlia considerava que, sem esse pouco, no poderia, s com o salrio do marido e o a
bono de famlia que recebia nos ltimos tempos, dar governo capaz vida de sua casa.
Em frente de Jlia, vizinhando o lume, sentava-se a me de Ricardo a senhora Franci
sca. com seus oitenta anos, sua surdez e semicegueira, era como um traste da cas
a, uma esttua tosca, dramtica pela expresso e grotesca pelos trapos que vestia. De
cabea descada sobre o peito e o gato aninhado no regao, decorriam horas em que nela
se via apenas o movimento do rosrio passando entre as suas engelhadas mos. Se dei
xava as contas era para acariciar o gato
J34
A L E A NEVE
a sua maior ternura. Nem aos netos ela parecia
* querer tanto. Os seus olhos viam-nos de contorno!
diludos, quase esfumados, e esses corpos imprecisos!
quando ela estendia, para eles, as mos descarnadas!
fugiam-lhe aos afagos. O gato, pelo contrrio, mostras
va-se passivo, nestes dias de Inverno em que o regaol
da velha lhe oferecia grato calor. >J
A senhora Francsca trabalhara quase cinquenta!
anos na ultimao dos tecidos, quando era solteira/l
depois de casada e depois de viva. Fora "metedeiraj
de fios", cerzindo orifcios e eliminando outros defeitos!
que os teares deixam, por vezes, nos panos. E s ces-1
sara de trabalhar quando a luz dos seus olhos estava!
quase extinta. Nesse dia, Ricardo e Julia comearam l
a sentir a presena da velha como um peso morto, l
uma despesa apenas, na sua vida. Jlia passara a tra-1
balhar mais do que at a. Levantava-se ainda no l
negrume da noite e, quando o marido, o filho mais l
velho e Horcio acabavam de se vestir para ir para a l
fbrica, j ela tinha o caldo pronto e concludas outras l
lidas domsticas. Agarrava-se, ento, pea de fazenda l
e, de p, junto banca, as suas pinas nervosas iam, l
que nem bico de ave faminta, arrancando todas as
matrias estranhas l. Jlia fora, como a sogra, l
metedeira de fios, mas, por vontade do marido, ps-
sara a esbicadeira, para defender um pouco mais a l
sua vida. Ricardo obtivera, tambm, que a fbrica I
onde ele trabalhava lhe confiasse tecidos para Jlia l
os esbicar em casa, acumulando ela, assim, como outras l
mulheres locais, o labor industrial com a trafega do lar. I
O seu esforo era, porm, constantemente inter- I
rompido pelos filhos, que traquinavam no casebre, que l
berravam de quando em quando, criando conflitos e
aplicando, eles prprios, castigos entre si. Jlia ener- B
v va-se e, s vezes, praguejando, esbofeteava um deles,
deixando-o a carpir-se a um dos cantos. Logo, ela B
volvia ao seu trabalho, ciosa do tempo que perdera;
mas, pouco depois, tinha novamente de intervir, tinha l
novamente de se interromper. S a senhora Francisca, B
naqueles foscos dias de Inverno, com todas as crianas |
A L E A NEVE
135
metidas em casa, continuava impassvel, graas aos seus esclerosados ouvidos. Se os
netos, durante as suas lutas, embatiam nos joelhos dela ou, fugindo s iras matern
as, atrs do seu corpo buscavam proteco, a velha ainda abria a desdentada boca e per
guntava:
O que ? Que que vocs esto fazendo, seus marotos ?
Mas ningum lhe respondia, por serem inteis as palavras. Muitas vezes, essa atmosfe
ra domstica desagradava a Horcio e ele comeava, ento, a pensar no seu futuro, na cas
ita que sonhara e entristecia. Reagia depois, porque algo dentro dele, no sabia
o qu, algo confuso, obscuro, continuava a insinuar-lhe que a sua casa no seria ass
im. E, prendendo-se a essa esperana, desviava os olhos para o lume; desviava-os d
e Jlia, sempre, sempre atarefada, dos filhos de cara suja e, sobretudo, da velha
Francisca, para no lhe ver a cabea descada, de expresso idiota, e aqueles seus dedos
que iam deixando^ passar, incessantemente, automaticamente, as contas do rosrio,
tal como, na fbrica, as mquinas deixavam passar os fios de l.
Agora, no seu quarto, o corpo j com roupa enxuta, Horcio sentiu, em baixo, os pass
os de Ricardo, que volvia da fbrica, e, pouco depois, os de Antero, que fechava,
violentamente, a porta exterior e entrava na cozinha a vociferar contra a chuva.
Ouviu, depois, Jlia dirigir-se ao filho, com voz surda, refreada. Horcio no compre
endia as palavras, mas adivinhava que elas eram de admoestao. Antero ripostava e a
me ia-se encolerizando, subindo de torn, despreocupando-se do hspede que ela sabi
a estar em cima.
O que tu queres andar com esses valdevinos e essas perdidas da Covilh, gastando c
om elas tudo quanto ganhas. L para o tal clube de futebol e para ceares fora de c
asa tens sempre dinheiro. E ns, aqui, que nos aguentemos! Os teus irmos andam por
a rotos que uma vergonha e tu feito um janota, que neni o filho de um ricao!
Eu no tenho culpa de que vocs faam muitos filhos berrou Antero. Vocs que os fazem
e eu
136
A L E A NEVE
que tenho de me sacrificar? No! Eu tambm tenh^
* a minha vida! J
Cala-te, malvado! Cala-te, seno eu fao umd
asneira! Um filho dizer uma coisa dessas! Onde s j
viu um filho falar assim ? Jlia apostrofava e choJ
rava ao mesmo tempo. |
Horcio ouviu, ento, a voz de Ricardo, uma voa
fria, inflexvel, quase sinistra: '-]
Sai j da minha frente. J! J
Antero ainda argumentou, exaltado, mas logo Hor j
cio tornou a sentir os seus passos em direco j
porta e, de novo, a porta a abrir-se e a fechar-se comi
violncia. Horcio alegrou-se ao pensar que o outro ia i
molhar-se, sob a chuva. Ele no simpatizava com An-1
tero e a atitude de Jlia parecia-lhe justa. Aos prprios l
companheiros de trabalho ouvira censuras a Antero, l
porque, muitas vezes, ao sair da fbrica onde era apar- l
tador, metia-se na cidade, s regressando a casa para l
dormir e quase sempre embriagado. I
Agora, l em baixo, havia novamente silncio. Sen- l
tado no rebordo da cama, Horcio deixava fluir o B
tempo, pois adivinhava que a sua imediata presena l
na cozinha seria molesta para todos. Por fim, as crian- l
as voltaram aos seus rumores e a Jlia a transitar
de uma banda para outra. l
Quando Horcio desceu, Ricardo encontrava-se es- I
tendido sobre a cama e ao seu "boa noite" respondeu
de maneira vaga. Jlia cuidava da ceia, com gestos B
nervosos e carrancuda. S a senhora Francisca con- B
tinuava, como sempre, de expresso alheia ao meio, B
o rosrio entre os dedos e o gato no regao. B
Horcio debruou-se sobre o bero onde estava o
filho mais novo do casal e acariciou-lhe as tenras face- B
zitas. Desde que Jlia lhe aumentara o preo da hos- B
pedagem, ele tinha deixado de afagar a criana, como
era seu hbito. Durante os ltimos dias havia detes-
tado a Jlia e s com dificuldade conseguia disfarar
a sua contrariedade. Mas, agora, certo de que ningum, B
na aldeia, lhe daria mais econmica penso, a sua
simpatia voltava.
A LA E A NEVE
137
Jlia punha a mesa. Era seu costume servir, primeiro, os homens e, s depois disso,
ela, a sogra e as crianas comiam. Agora, como sempre, colocava trs pratos. Da sua
cama, Ricardo comeara a falar do tempo, para dizer alguma coisa. Estranhava que a
neve ainda no tivesse vindo, alm do poucochito que cair no princpio do ms. com certe
za, depois de tanta chuva, o tempo esfriaria e logo haveria neve.
Horcio concordou. E Ricardo inquiriu:
Voc vai hoje a casa do Marreta?
Se a chuva passar, you.
Passa disse Ricardo. J est a chover menos. Eu tambm irei.
Jlia protestou:
O qu ? Vais sair com uma noite destas ? Depois, queixa-te do reumatismo!
Tenho de falar com Marreta declarou Ricardo, secamente.
Jlia suspirava de vez em quando e os seus ouvidos pareciam atentos noite, chuva e
aos rudos de l de fora. Ela tinha o caldo pronto, mas hesitava em tir-lo do lume,
no fosse Ricardo ver o seu gesto e pedir logo a ceia. Ela tardou, assim, algum te
mpo, tardou mesmo depois de o marido haver estranhado a demora. S quando a chuva
cessou de todo, Jlia comeou a desprender, vagarosamente, a panela da "cadeia" que
a suspendia sobre o fogo.
Ricardo e Horcio sentaram-se. Ao lado deles, estavam o prato, a malga e a colher
destinados a Antero. Muitas noites a malga ficava ali, assim vazia, espera. Mas
nunca, como agora, ela causara a Jlia tanto pesar.
Os homens comearam a comer a sopa. De p, por detrs do marido, Jlia dirigiu-se a Horci
o:
Disseram-me que o Manuel Peixoto tem andado Ppr a a ver se arranja outra casa par
a si... Jlia disse isto e deteve-se. Mas logo voltou a sentir necessidade de derr
amar sobre algum a amargura e o mau humor com que o filho enrugara a sua alma. S
e voc acha que ns o exploramos, no se prenda.
138
A L E A NEVE
* Ricardo levantou a cabea: i
mulher! No podias deixar isso para outra ocasio ? ; J
Jlia calou-se. J
Vossemec no leve isso a peito desculpou-sJ Horcio. No que eu me sinta mal aqui ou
esteja! descontente. Nada disso! que, como ganho to poucol estive a ver se arranj
ava uma coisa mais barata. Mas est tudo muito caro, eu sei... Faa de conta que ncj
se passou nada... l
Jlia e Ricardo continuaram silenciosos. Os peque-J nos, de olhos fixos em Horcio,
escutavam atentamente! as palavras deste: M
Se eu tivesse de me ir embora, levava saudades! de vossemecs... Tm sido bons para
mim. Mas nol you, a no ser que no me queiram... >1
O casal prosseguia no seu silncio. Por fim, Ricardo! disse: l
No se fala mais nisso. Contrariado, aqui, no ol queremos, claro. Mas se voc no encon
trar melhorai a casa est s ordens. Tambm ns simpatizamos l consigo. l
L fora soaram uns passos e Jlia apurou o ouvido j*
mas logo os passos se distanciaram. m
Mal acabaram de comer, Ricardo e Horcio saram, l
Na rua, ao rentarem a porta de Tramagal, Ricardo
deteve-se: B
V andando, que eu j l you ter. Preciso de l
dizer uma coisa ao Tramagal. B
Horcio continuou a caminhar para a casa de Mar- l
reta. Quase todas as noites ele fazia esse mesmo cami- l
nho. O velho tecelo havia-se tornado o seu melhor
amigo na Aldeia do Carvalho. A princpio, quando
viera para ali, ainda Horcio buscava a convivncia
de Manuel Peixoto, mas, depois, fora-a trocando, pouco B
a pouco, pela de Marreta. Este parecia-hie diferente
dos outros operrios e com muito mais inteligncia. B
Marreta habitava, sozinho, um casinhoto perto da B
ribeira que ladeava o povoado. Era vivo e no ps- B
sua outra famlia alm de um filho na Amrica, do |
A LA E A NEVE
139
qual falava sempre com melancolia, queixando-se de que ele deixara de lhe escrev
er e o esquecera.
Vegetariano e esperantista, na defesa daquela forma de sustento e a pregar as va
ntagens de uma s lngua para a Humanidade inteira, Marreta punha tanto fervor como
se de credos religiosos se tratasse. Ele prprio cozinhava os seus vegetais e, vid
a sbria, despendia a maior parte da fria em brochuras e correspondncia com esperant
istas estrangeiros, nas semanas em que um ou outro operrio no lhe demandava a casa
, a tartamudear um pedido de emprstimo. Conhecedores do seu feitio, raros lhe pag
avam; e, se algum o fazia, era, quase sempre, para estar apto a pedir, noutra oc
asio de aperto, uma quantia maior. Marreta estimava o dinheiro em relao apenas com
o preo dos selos do correio. A sua grande volpia seria poder escrever muitas carta
s e receber muitas tambm dos esperantistas das outras terras. Como houvesse comead
o a corresponder-se com uns hngaros, tanto se apaixonara pela Hungria que acabara
estudando vrios aspectos da vida daquele pas, mesmo os que no tinham afinidade alg
uma com o esperanto. E, durante mais de um ano, ao falar, citava a Hungria por t
udo e por nada. V
Na Aldeia do Carvalho^poucos adeptos arrebanhara para a lngua internacional e par
a o vegetarianismo no conquistara um s. Debalde ele jurava que, assim, seria maior
a sade, mais longa a vida e menor a escravido do ser humano s necessidades de cada
dia. As mulheres, sobretudo, contrariavam-lhe a propaganda. Mais realistas do q
ue os homens, afirmavam, desdenhosas, que fartas de batatas estavam elas desde q
ue haviam nascido e que pena tinham de no poder comer carne todos os dias. Um bif
e! Uma perna de carneiro assada! Quem lhos dera!
Apesar dessas divergncias, a quadrazita que Marreta habitava enchia-se de operrios
quase todas as noites. Fugindo ao ambiente de suas casas, ao rudo e movimento da
filharada, os homens vinham para ali, naquele perodo de Inverno, jogar a bisca e
cavaquear.
140
A L E A NEVE
A L E A NEVE
141
l
^ \
A ausncia de mulheres, de crianas e dos problema]
domsticos dava-lhes uma efmera sensao de evasq
Alm disso, se as doutrinas vegetarianas no os sedul
ziam e se lhes produzia antecipada preguia a ideii
de estudar esperanto, eram fascinados por outras aspji
raes que Marreta juntava quelas, numa catequesi
que ele exercia h muito tempo j. Muitas vezes Hora
cio ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dial
um mundo onde no existiriam nem pobres, nem ricoj
nem grandes, nem pequenos e onde todos teriara
tudo quanto carecessem para viver sem apoquentaesj
Sempre a conversa ia para aquele ponto. Se se falava
de algum que fora despedido, de falta de luz na"
casas e de lugares no Albergue, de pai que no tinha
po para os filhos, de pessoa que andava esfarrapada!
ou pedia esmola, sempre se falava desse dia em qual
tudo isso acabaria e os homens seriam mais felizes!]
Seriam todos como irmos, uns no explorariam 09!
outros e no haveria mais guerras.
Horcio admirava-se de que, parecendo Marreta toa
inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabi&l
muito menos, no podia crer, pois ricos e pobres hou-j
vera-os sempre e se algum fosse tirar aos ricos o queri
lhes pertencia, logo viriam a guarda republicana e a-1
polcia e poriam tudo como dantes. E mais surpreen-|
dido ficava ao verificar que todos os outros, inter- j
rompendo o jogo, iam lanando as suas palavras na i
mesma direco das de Marreta. At o Ricardo, sem- i
pr to calado, to metido consigo, estava, via-se logo, j
de acordo com aquilo. Alguns dos operrios traziam l
jornais e liam coisas passadas em terras estrangeiras, j
notcias da guerra, que os outros escutavam em siln- i
cio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras j
atentas. Depois, um e outro afirmavam que o dia podia j
chegar mais depressa do que muitos esperavam. l
Durante semanas, Horcio olhava para os frequen- j
tadores da casa de Marreta como se eles tivessem um j
segredo que o seu entendimento no conseguia deso- j
brir completamente. Tudo quanto lhes ouvia o desnor- j
teava. Podia l ser que as coisas viesse.^n a ser como ]
eles diziam! Mas, ento, por que eles acreditavam naquilo, falando, s vezes, por me
ias palavras, como de um amor que estivesse no fundo dos seus coraes e do qual no q
uisessem dizer tudo?
Algumas noites, no meio das conversas, Marreta referia-se a cartas que recebera
de esperantistas de outros pases e sempre dava a entender que eles esperavam tambm
aquele dia de que todos, ali, falavam. Eram pessoas de cidades que Horcio rarame
nte ouvia nomear Charleroi, Praga, Atenas, Buenos Aires e, porque se tratava d
e terras longnquas, tudo aquilo lhe parecia fabuloso, sem ligao concreta com a vida
que eles viviam ali, na aldeia de rsticos casebres, de gentes pobres e de cabras
e ovelhas. Cada noite, porm, ficava mais perplexo entre o que escutava e o que p
ensava. Quando era pastor, ouvira, algumas vezes, falar de greves, mas sempre aq
uelas notcias chegavam, a ele e aos outros que viviam entre os rebanhos da serra,
como se fossem movimentos de homens que queriam apenas ganhar maior fria.
Marreta tinha muitos livros, quase todos sem capa, descosidos e ensebados, pois
emprestava-os frequentemente. s vezes, aparecia com um novo volume e, durante sem
anas, cada um dos operrios ia-o levando para sua casa, at todos o lerem. Pelos com
entrios escutados, Horcio acabou compreendendo que muitas daquelas obras eram proi
bidas. E, ento, sentira desejo de as ler tambm. Mas quando o dissera a Marreta, fi
zera-se um sbito silncio entre os que estavam presentes e o velho tecelo hesitara:
preciso escolher um que te possa interessar. Amanh verei isso...
Na noite seguinte, quando Horcio lhe lembrara
aquilo, ele desculpara-se:
Hoje no tive tempo nenhum. Vamos a ver
amanh.
Agora, porm, Horcio encontrava Marreta sozinho, a lavar o prato e a malga em qu
e comera.
Ainda bem que vieste cedo disse-lhe. H j trs dias que ando para falar contigo, ma
s no queria
142
A L E A NEVE
f faz-lo em frente de ningum. E como Horcio que-J
dasse em expectativa: por causa dos livros quel
me pediste. Olha, aqueles dois, que esto ali separados, J
podes lev-los. Mas antes queria dizer-te uma coisa...!
Horcio continuava a olh-lo, intrigado. Ele enxu-|
gou o prato e, depois, veio sentar-se beira do lume. l
Anda para aqui pediu-lhe. E logo que Horcio J
se sentou ao seu lado, Marreta deu-lhe uma palmada l
na perna: Eu sei que tu s bom rapaz, mas, s i
vezes, sem se querer, faz-se mal aos outros. Tu j per- l
cebeste, com certeza, que no se pode andar por a a'l
falar dos livros que ns lemos ou a mostr-los a torto l
e a direito. Eles no tm mal nenhum, mas se se sou- l
besse que ns os tnhamos... Tu compreendes? J uma l
vez fui preso por menos... i
J foi preso ? I Marreta sorriu, admirado da surpresa de Horcio: l
Quantas vezes! No tempo em que podamos fazer l
greves e eu morava na Covilh, era o po de cada dia. l
Uma vez, um guarda-republicano deu-me com a espada, l
mesmo a matar. Ainda tenho aqui, nas costas, a cica-
triz. Outra vez, prenderam-me e meteram-me num l
buraco escuro da cadeia e assim estive dois meses a
fio incomunicvel e sem ver a luz do dia. Criei umas B
barbas maiores do que as do Padre Eterno. At aqui... l
Levou a mo altura do umbigo e teve, de novo,
um sorriso infantil. B
Horcio ouvia aquilo com horror e perguntava a B si prprio porque Marreta, para evi
tar repetio do B que lhe acontecera, no mudara, desde ento, de atitude.
Pode estar sossegado disse. Da minha boca l ningum saber nada sobre isso dos
livros.
No bem por mim que te peo. Sou sozinho, B no fao falta a ningum. Mas pelos cama
das que tm famlia. E alguns, por causa disso, podem no se sentir vontade junto de t
i...
E que, s vezes, parece que no se sentem. J percebi isso...
natural justificou Marreta. H muitos |
A L E A NEVE
143
deles que tm sofrido. E como no sabem bem o que tu pensas...
O velho tecelo calou-se.
Desculpe-me, tio Marreta. Mas vossemec acredita, deveras, nessas coisas que dizem
aqui?
Marreta ergueu a cabea:
Ora essa! Sempre acreditei e cada vez acredito mais! a nossa nica esperana! Que ou
tra esperana podemos ns ter? Eu estou velho; j no ser, talvez, na minha vida, mas est
ou certo de que ser na tua...
Horcio contemplou-o, um momento. Viu os seus olhos a fulgirem, como o brasido, ma
s num rosto macilento e lavrado pelas rugas.
Pois eu no posso acreditar numa coisa dessas...
No me admira declarou Marreta, com o torn de quem o desculpava de um defeito ocu
lto. No me admira mesmo nada. No nasceste em casa de operrios e s agora comeas a
trabalhar nas fbricas. Eras pastor e isso muito diferente. Os pastores parece que
vivem no fim do mundo.
Marreta dobrou-se para o lume e acavalou mais algumas achas. Depois, demorou-se
na catequese, sempre com aquelas palavras de justia, de bem-estar comum, de igual
dade errtre os homens, que tornariam os homens mais felizes/Horcio ouvia-o atenta
mente, mas nele ficava sempre a sua dvida de montanhs, habituado a vida dura e a c
rer, excepo feita para o seu deus e almas de outro mundo, apenas naquilo que se v.
Contudo, ao escut-lo, a sua amizade por Marreta aumentava, uma amizade feita de t
ernura e de respeito, mais pelo que sentia de generoso na alma do tecelo, do que
pelas palavras que ele pronunciava. Parecia-lhe, alm disso, que Marreta o compree
ndia melhor do que os outros e que a ele podia dizer-lhe o que no poderia dizer a
mais ningum.
Comearam a chegar outros operrios. Primeiro veio o Belchior, depois o Rodrigo e o
Joo Ribeiro. Marreta arrastou para o meio da casa a mesita de pinho e sobre ela c
olocou o velho baralho de cartas.
Joga tu disse a Horcio.
144
A L E A NEVE
1
i
No, no. Jogue vossemec. q
* Marreta insistiu:
Eu tenho um jornal para ler. j Os quatro homens sentaram-se. Joo Ribeiro s oj
fez, porm, depois de haver estado a cochichar cortij
Marreta a um canto. j
Perto das onze horas, j Belchior havia declarado!
que "esta a ltima partida", Ricardo e Tramagatj
entraram. Contudo, Ricardo no avanou muito alntl
da porta. Marreta lia, beira do lume, o jornal e ele l
chamou-o. Encostados parede, os dois quedaram-se l
a falar em voz baixa. De quando em quando, Joo"
Ribeiro, levantando os olhos das cartas, contempla-1
va-os, como se soubesse o que eles diziam, ao mesmo l
tempo que Tramagal, de p por detrs de Belchior, l
seguia o jogo. I
H j semanas que Horcio dava conta daquelas l
conversaes murmuradas entre vrios operrios e Mar- l
reta, como se se tratasse de caso em evoluo, do qual l
ele no devia tomar conhecimento. Pela expresso que I
via num e noutro, Horcio adivinhava quando eles
estavam contentes ou maldispostos com o que escu- l
tavam ou diziam. Aquilo passava-se, sobretudo, nos
dias em que Ricardo ia Covilh depois do trabalho, l
Nessa noite no fora cidade, mas Horcio lembra- 8
va-se de que ele havia ido l na noite anterior e depois
do jantar no viera ali. l
Agora, Ricardo deixava Marreta e dirigia-se a ele: B
Voc ainda demora ?
No. you j respondeu Horcio, s aabar este jogo.
Pouco depois, saam, deixando ainda os outros com
Marreta. Ao chegarem a casa e logo que Ricardo abriu B
a porta, Julia correu para ele, aos gritos. Estava ds-
grenhada, o rosto cheio de lgrimas e o choro mal lhe B
permitia falar.
O Antero foi-se embora... O Antero foi-se em-
bora...
Ricardo ps-lhe as mos nos ombros e sacudiu-a,
obrigando-a a olhar para ele:
A LA E A NEVE
145
O qu ? O que dizes ?
Foi-se embora... Veio c buscar as suas coisas e disse que nunca mais voltaria...
in
lJ muito tempo j que, merc da guerra, as fbrics trabalhavam intensamente. Tudo quanto
se tecia se vendia e os industriais andavam contentes do seu destino, comprando
quintas e barras de oiro e projectando novas ampliaes fabris. Capitalistas com di
nheiro morto nos Bancos sonhavam tornar-se industriais tambm, pois nunca os lanifc
ios haviam produzido to grandes fortunas.
Milhares de operrios laboravam, durante o dia, nas fbricas e, ao fim da tarde, out
ros milhares vinham substitu-los para trabalhar noite adentro. Ordenava a lei que
no soassem sempre para os mesmos as longas horas nocturnas e, assim, em cada sem
ana eles alternavam.
Aquela segunda-feira, quando Horcio ia a entrar na fbrica, Mateus chamou-o e disse
-lhe:
V-se embora e volte s cinco. O Boca Negra adoeceu e voc vai substitu-lo no turno da
noite.
Horcio quedou-se a/olhar o mestre, desejoso de lhe fazer perguntas, rnas j Mateus
lhe voltava as costas, repetindo:
Apresente-se s cinco.
Horcio saiu, vagarosamente, por entre os ltimos operrios que entravam. Ia perturbad
o e ditoso. Boca Negra era um pegador de fios, que trabalhava na mquina ao lado d
aquela que ele andava como aprendiz. E se ele ia substitu-lo, porque Mateus o con
siderava j competente e, decerto, lhe pagaria a fria como a um operrio.
Encontrou-se na estrada sem saber como ludibriar o tempo. Guardou o cesto, com a
comida, numa taberna e entestou Covilh. Percorreu o centro da cidade,
146
A L E A NEVE
f para encher o dia livre, e, por fim, sentou-se no jardina da Praa da Repblica. S
entia cada vez maior conten-1 tamento e tinha desejo de fazer compartilhar a sua
i alegria, mas no avistava ningum conhecido. horal do almoo, voltou a descer para a
Carpinteira e pr* curou Ricardo no ptio da fbrica onde este trabalhava.! Ricardo l
estava, a comer, entre os demais. Ele deu-lhetl a notcia, aquela notcia de que des
ejaria falar longa-jj mente, mas Ricardo disse apenas: J
Nesse caso, preciso mandar-lhe a ceia. "m
No se incomodem. Eu me arranjo. <
No nos incomodamos nada. Vai l um garoto*! Ele lanou, ento, a pergunta que mais lhe
inte+jl
ressava: > B
Parece-lhe que me pagaro como a um operrio ? l
Claro! respondeu Ricardo, com o seu habitual I laconismo. l
s quatro e meia, depois de todas aquelas horas
impacientes, j ele andava em frente da fbrica de
Azevedo de Sousa, ansioso por entrar. Vinham che-
gando outros operrios e, por fim, apareceu Tramagal,
que nessa semana laborava, tambm, no turno da noite:
Ento, hoje, no trabalhaste ?
Desde o segundo dia das suas relaes, Tramagal '
tratava-o por "tu" e com aqueles modos despachados,
rudes, que tinha para toda a gente. Ele contou-lhe,
tambm, a novidade. Mas, como Ricardo, Tramagal
parecia no dar quilo valor algum, nem admitir sequer
que ele pudesse estar feliz. Limitou-se a dizer: m
Coitado do Boca Negra! Que ter ele ? l
Logo que entraram na fbrica, Sampaio apareceu B
junto da "self-acting" e assistiu s primeiras pegadu- B
rs que Horcio fez. Dir-se-ia satisfeito com o exame, I
porque se retirou pouco depois, sem lavrar qualquer
observao.
uma hora da noite, quando, finalmente, as m-
quinas pararam, Horcio continuava alegre: "Agora,
que j dera as suas provas, decerto o Mateus, assim B
que o Boca Negra voltasse, lhe arranjaria um lugar B
de operrio ou ele poderia arranj-lo noutra fbrica", jg
A LA E A NEVE
147
Saiu com Tramagal. E andando, ao seu lado, para a Aldeia do Carvalho, Horcio lame
ntava, intimamente, que os teceles nunca trabalhassem de noite, pois sentia a fal
ta da companhia de Marreta. A este poderia ele falar daquilo e ouvi-lo sobre o s
eu futuro, pois Marreta era diferente de Ricardo e de Tramagal.
A noite estava fria. O ms de Dezembro acercava-se do fim e a serra arrefecera.
No tarda, teremos neve a valer! vaticinou Tramagal.
Efectivamente, na manh seguinte, quando os operrios entravam para o trabalho diurn
o, o cu mostrava-se plmbeo, baixo, fechado. E, ao meio da tarde, a neve principiou
a cair. Mas, durante alguns dias, a neve quis outros espaos alm dos pontos mais a
ltos da montanha. De Lisboa comearam a chegar turistas. Pedro disse, na fbrica, te
r visto passar na Covilh vrios rapazes e raparigas com os seus esquis em cima dos
automveis: "Iam l duas "gajas" que eram de se lhe tirar o chapu..." E, ao evoc-las,
os olhos dele luziam de sensualidade.
O frio continuava a aumentar. Por fim, a neve estendera-se desde os topes da ser
ra at as suas faldas. Um dia, quando os operrios da Covilh e da Aldeia do Carvalho
saram de suas casas, viram todas as encostas, todas as dobras do terreno, todos o
s caminhos vestidos de branco. A cidade, num esporo da serra, parecia obra de fan
tasmagoria, com telhados e perfis inverosmeis. E, na aldeia, tudo estava tambm ass
im extravagctnte, enterrando-se na neve os ps dos homens que, pela estrada, se di
rigiam s fbricas.
s cinco da tarde, quando abandonaram o trabalho, continuava a nevar. Eles saam par
a a obscuridade da noite que descia sobre o branco da terra e outros entravam pa
ra as fbricas, enregelados.
Pisando a neve que cobria a rampa da Covilh, Pedro, atrs de outros operrios, ia pen
sando nas duas raparigas de gorro negro que ele divisara dentro de Urn automvel.
Deviam estar, quela mesma hora, Depois de voltar do esqui, a aquecer as mos junto
da
148
A L E A NEVE
i
* salamandra que ele vira, um dia, l em cima, no hotel
das Penhas. gulosa mocidade de Pedro vinha e
desejo de dormir, ao menos, com uma delas, se no
pudesse ser com as duas. Mas logo ele via outras mo$
tirando as luvas de l e estendendo-as tambm para
a salamandra as mos de todos os rapazes qua
tinham passado, nos automveis, para as Penhas d^
Sade. E entristecia como se lhe roubassem alguma!
coisa que j era dele. Depois, penseu noutra rapariga!
que ele vira passar, dois meses antes, para o novoj
sanatrio que havia l em cima. A essa hora, ela nol
devia estar a aquecer as mos e sim a tomar a suai
temperatura, pois a ele haviam-lhe dito que, no sana-^1
trio, todos os tuberculosos metiam o termmetro sob j
o brao quando findava o dia. Parecia-lhe que aquela!
podia ser mais dele do que as outras, mas aquela nol
agradava tanto sua imaginao como as que leva-1
vam gorro negro e esquis sobre os automveis. E cada l
vez o sonho gelava mais sobre o gelo existente na l
declividade que ele ia vencendo entre a Ribeira da l
Carpinteira e a Covilh. Por fim, quedaram apenas, l
ante os seus olhos, os vultos escuros de outros opera- l
rios, que, de ombros encolhidos dentro de velhas rou- l
ps, marchavam na neve, encosta acima. l
Entretanto, l em baixo, junto da ribeira, as f abri- l
cs prosseguiam no labor. Horcio e os demais pega- l
dores de fios corriam atrs das carruagens de fiao, l
Em frente, Tramagal vigiava a sua penteadeira. Mais l
alm, por todo o grande quadrilongo, os operrios se- l
guiam ou intervinham nos maquinismos. I
Durante o Inverno, como o sol desaparecia logo l
no comeo do trabalho, essas horas nocturnas torna- l
vam-se infindveis. O rumor das mquinas volvia-se l
mais ntido e, tambm, mais montono, propcio a um l
sono que no podia consumar-se. Mesmo onde a luz l
era forte, havia algo fnebre, uma claridade de viglia, l
de atmosfera doente. Dir-se-ia que as mquinas pr-
duziam porque tinham de produzir; que a mecha corria
porque tinha de correr; que as canelas se enchiam l
porque tinham de encher-se; que tudo trabalhava como J
A L E A NEVE
149
sob uma fatalidade inexorvel, alheia ao prprio objectivo da produo. Mais do que nout
ras horas, os homens pareciam autmatos, simples peas das mquinas, movimentando-se s
ob aquela mesma vontade fria que movimentava a fbrica.
uma hora da madrugada dava-se, enfim, pausa no rudo mecnico. A fbrica parava de rep
ente, como se obedecesse a um encanto igual ao que comandava o seu movimento. Ou
viam-se os passos apressados dos homens no cimento e viam-se as figuras que tran
spunham a porta, levantando a gola dos casacos. Raros falavam e se algum o fazia
era com duas ou trs palavras soltas, que dispensavam rplica. S havia neles o desejo
de chegar, rapidamente, a casa e de esquecer
aquilo.
C fora, com noite fria de transir, eles, encolhendo o pescoo, abaulando o dorso, m
etiam estrada coberta de neve. O gelo rangia sob os sapatos e as figuras iam-se
diluindo nas trevas, cada qual procurando caminhar mais depressa na noite branca
e negra.
Horcio, Tramagal e Malheiros iam tambm calados e em fila. A certa altura, porm, Tra
magal desalinhou os seus passos e dirigiu-se para a margem da estrada. A urze qu
e ele fixara de tarde, estava quase transfigurada. A mo de Tramagal comeou a afast
ar a neve e, em breve, tocava a face lisa do frasco que ele havia escondido ali.
Malheiros e Horcio j iam
longe.
Eh l Esperem a l gritou, enquanto corria para
eles.
Tramagal bebeu um trago e/suspirou de satisfao. Antigamente, ele levava a aguarden
te para a fbrica, contra os regulamentos. Depois, para fugir tentao de beber durant
e o trabalho e no ouvir as admoestaes do mestre, que chegara a amea-lo de despediment
o, nem escutar as frequentes censuras de Marreta, decidira ocultar a aguardente
na estrada, nas noites em que trabalhava. Os seus companheiros consideravam-no "
dos velhos tempos" e se uns o criticavam pelo vcio, outros riam-se do seu cuidado
em arranjar,
i5o
LA E A NEVE
jr de cada vez, um novo esconderijo, para que ningunf
lhe roubasse o frasco. ri
Agora, Tramagal oferecia a aguardente a HorciJ
e a Malheiros. Eles beberam e continuaram a marchar!
Os seus ps enterravam-se na neve e do imenso vul
da serra, branquejado sob as trevas, descia um Irj
cortante. f]
V uma noitinha de rachar, hem ? comentoiS
Malheiros. >J
Ningum lhe respondeu. E Malheiros pensou, ento/1
que se havia de dar graas a Deus por as fbricas!
fazerem dois turnos, pois isso era sinal de que os ope-. l
rrios teriam trabalho para todos os dias teis da i
semana. J
Subitamente, os trs homens viram riscos de fs- l
foros, muitos fsforos que se acendiam e se apaga- i
vam na estrada. Logo, o jacto luminoso de uma Iam- j
pada de algibeira, que avanava, revelando trechos J
de vrias figuras e se fixava, por fim, no cho. J
Horcio, Malheiros e Tramagal apressaram ainda J
mais o passo. Pouco depois, a luz da lmpada corta- l
va-lhes o rosto, num voo rpido. Os operrios que l
haviam partido frente deles estavam aglomerados i
em volta de um corpo que jazia na estrada. Era um l
homem. Um velho. Tinha as pernas muito encolhidas, l
de joelhos quase tocando o ventre, e os braos encos- l
tados ao tronco, como se se encontrasse numa caixa l
menor do que o seu corpo. l
Parece que ainda est vivo dizia um dos ope- l
rrios. l
Ravasco, que lhe apertava o pulso, desistiu do l
exame: l
No sei nada disto... l
Deixa-me ver interveio um terceiro. Ps-lhe i a mo sobre o corao e, depois, ergu
eu-se: Est l morto e bem morto. l
Mas ainda continuavam as dvidas. O homem cara l
sobre o lado direito e a neve fora crescendo em seu l
redor e criando uma cavidade para ele. Tramagal bai- l
xou-se e voltou o corpo. luz da lmpada surgiram |
A L E A NEVE
151
uns olhos frios, vtreos, que pareciam contemplar a todos e a ningum. Alguns dos op
errios recuaram, com horror. Ouviram-se ao mesmo tempo vrias vozes:
Est morto...
Logo um dos presentes pediu:
Torne a alumiar-lhe a cara. Parece-me que conheo este homem...
E eu tambm... disse um outro.
A luz volveu sobre aqueles olhos mui aberto e embaciados.
E que conheo!... Ora deixe ver... O outro adiantou-se:
um do Teixoso. Um que foi cardador, h uns dez anos.
esse mesmo. H muito tempo que eu no o via...
Nem eu. Depois que o despediram da fbrica, ele andava s esmolas e botava at longe..
.
Mas por que o mataram ? perguntou Tramagal. Houve um sbito silncio.
Se calhar... arriscou uma voz foi um salteador...
Ora!duvidou outro. A um velho que andava a pedir...
Sei l! H gente para tudo! E, s vezes, os mendigos tm dinheiro.
Joo Ribeiro, que sofria da laringe e no gostava de falar em noites assim, para que
o frio no lhe irritasse a garganta, quebrou a sua mudez e pediu a lmpada. com a l
uz foi inspeccionandc/b cadver: a camisa esfiapada e negra de sujidade, o casaco
leveiro, cheio de remendos, as calas rotas e os ps nus.
No... Aposto que ningum o matou... disse. E volveu a despejar a luz sobre o pescoo
de enrugada pele e sobre a cabea calva, cujo velho chapu estava cado ao lado. Mato
u-o a falta de roupa. Ele morreu de frio, o que ! Se no, depois veremos. Tanta l na
Covilh, tantos tecidos e, afinal...
A garganta de Joo Ribeiro exacerbara-se. Ele comeou a tossir e passou a lmpada ao s
eu dono.
152
A L E A NEVE
f Houve outro silncio. Cada qual principiou a sentid sobre o corpo, menos roupa d
o que em realidade tinh)| e mais frio. Depois, uma voz perguntou: >a
Vamos deix-lo aqui ? j Surgiram hesitaes:
l
No... Isto ... ,j
O melhor ir algum Covilh, prevenir m polcia. l l
Os homens consideraram os cinco quilmetros ,/uel os separavam da cidade, encarara
m a noite nevosa e l no responderam logo ao alvitre. J
you eu declarou Joo Ribeiro. i
Tu, no! protestou Tramagal. Tu vais j l para casa, que isto faz-te mal. Eu dou u
m salto at l. i
Ento, muitos outros se ofereceram para o acom- l panhar. l
Basta um, que a minha aguardente no d para i mais de dois... Tu, Augusto! l
Eles partiram e os outros voltaram a hesitar: l
Vamos deix-lo aqui sozinho ? J
Ora! Para que precisa de companhia, depois de l morto ? l
Discordncias foram pronunciadas. A lmpada es- l
tava apagada, porque o dono entendera ser desagra- l
dvel continuarem a ver o cadver. Na escurido mal l
se adivinhavam os circunstantes e somente pela sua l
voz se identificavam. Da noite vinham antigas supers- l
ties e uma espcie de dever para com a morte. E esse l
dever conflituava com o egosmo de muitos deles, com l
o frio que os impelia para casa. l
O outro teimou: l
Se ele tem de ficar sozinho quando for enter- l
rado, que mal h em que fique j ? Ou vocs esto l
resolvidos a ser enterrados tambm, para lhe fazer l
companhia na cova ?
Aquela voz pareceu sacrlega aos mais timoratos: l
"Era o bruto do Ravasco, pior ainda do que o Trama- l
gal. No havia que lhe fazer caso" pensaram. l
Em volta deles a noite continuava cheia de trgi- l
cs sugestes. Algumas vozes murmuravam, nas trevas: J
A L E A NEVE
153
Eu fico... Eu tambm... Ravasco tornou, sarcstico:
Uma hora para a Covilh, uma hora da Covilh para aqui, uma hora para a polcia resolv
er-se a vir... Uma hora? Qual o qu! Se fosse para prender um vivo, a polcia vinha
logo. Agora por um morto, que, demais a mais, no rico! Por um pobre de pedir
... Nem de manh! Vocs pensam que a polcia estpida ? Meus senhores, boa noite! No quer
o rebentar com uma pneumonia...
Ouviu-se, ento, a voz de Belchior, da Fbrica Nova, que at a estivera calado. Era a v
oz mais forte e decidida de quantas haviam soado na noite:
Ele foi cardador e eu sou cardador tambm. No you deix-lo aqui abandonado. Mas t
ambm no fico aqui com ele. O Ravasco tem razo: a noite no est para brincadeiras. you
lev-lo comigo!
Surgiram novos protestos:
E a polcia ? No se pode mexer nas pessoas encontradas mortas sem a polcia as ver p
rimeiro. No, isso no tem jeito nenhum!
Ora! Fui eu que o matei? Algum capaz de dizer que fui eu? Aqui ele no fica! you le
v-lo. Se ningum quer tomar a responsabilidade comigo, tomo-a eu sozinho.
Continuavam as discordncias. Mas j ningum esperava convencer Belchior, que todos sa
biam ser o mais teimoso de quantos trabalhavam nas margens da Carpinteira. \
O vozeiro de Belchior rompeu a noite:
Tramagal! Tramagal! Os gritos foram ecoando por todas as quebradas da serra, at
a vrzea. Tramagal! Tramagal!
O que que lhe queres ?
Quero que aqueles palermas no vo morrer de frio por a fora. Quando chegarmos aldei
a, faz-se abrir a Casa do Povo e telefonamos para a polcia. Deixa-se o pobre na
igreja e a polcia que venha quando lhe d na gana.
Todos se admiraram de que nenhum deles se hou-
154
A L E A NEVE
A L E A NEVE
155
i i
* vesse lembrado, at a, do telefone. Um homem saiu
a correr em direitura Covilh, gritando por Tramagai
e Augusto. l
Entretanto, Belchior pedia: fj
Acende l essa lmpada! E, mal a luz surgiu! dobrou-se sobre o cadver: pena no haver
umai padiola. Mas no faz mal... Levo-o s costas. Ele era] um cardador como eu. <
J
Algum alvitrou: j
Abre-se um sobretudo e pe-se o corpo em riba. J]
Boa ideia! exclamou Belchior. Mas logo hesiil tou: O meu no pode ser. Est to velh
o que sm rasgava com o peso e deixava cair o morto... a
O meu tem buracos, seno estava s ordens...! disse Joo Ribeiro. Outras vozes se segu
iram. TodoSj, i menos Ravasco, diziam a mesma coisa. Alguns despianil o sobretud
o, para lhe considerar a resistncia, luai da lmpada. l
Est num fio... concluam. J Ravasco pressentia que os outros pensavam no seul
sobretudo novo e justificou-se: l
O meu aguentava, l isso aguentava... Mas sei a minha mulher sabia que ele servira
de padiola parai um morto, nunca mais mo deixava vestir. E eu no l tenho dinheir
o para comprar outro... J
Houve novo silncio entre eles. Belchior estendeu J as suas rudes manpulas e, com e
las, agarrou os braos l inteiriados do cadver. Levantou-o ligeiramente e vol- J tou
a deix-lo pousar na neve. Os olhos do morto pare- J ciam seguir os gestos dele.
i
Est leve... O pobre perdeu as carnes antes de l morrer... O diabo que no sei como
hei-de ajeit-lo i nos meus ombros, assim encolhido como ele est... l
Ento, Ravasco aproximou-se. Tirou, lentamente, o j
sobretudo e ofereceu-o a Belchior. l
Pega l... l Todos sabiam que Ravasco andava, h muito, adoen- i
tado, com aquilo de no poder reter guas e que, ulti- j mamente, dera em emagrecer
e em tomar uma cor J baa. Belchior rerusou: '
No quero! J que a tua mulher assim, no vale a pena passares o Inverno ao frio... E
u levo-o
s costas!
Ravasco insistiu. E, com voz levemente humilhada,
confessou:
No era s por minha mulher... Era tambm por mim. Pode ser lavado, no h dvida... Mas, n
sei porqu, vai custar-me a vesti-lo depois... Mas acabou-se ! Agora fao questo!
Belchior continuava a recusar.
Fao questo, j te disse! exclamou Ravasco. E ele prprio estendeu o sobretudo ao lado
do cadver. Joo Ribeiro auxiliou Belchior a colocar o morto em cima. Quatro sombra
s agarraram nas extremidades do casaco e com as demais sombras puseram-se em marc
ha.
A neve continuava a cair. Aqui e alm os sapatos dos homens afundavam-se nela. O d
a lmpada ia frente e a dbil luz deixava ver as pegadas que ele prprio abandonava na
neve. Atrs das dele iam ficando as dos outros, metidas nas trevas, at que a neve
as apagasse.
De quando em quando, Ravasco detinha-se, desabotoava a braguilha e soltava uns p
ingqs na berma da estrada. Depois, numa ligeira corrida, alcanava os companheiros
.
Todos os homens caminhavam em silncio. Subitamente, porm, Belchior disse, com uma
voz mais suave do que a habitual, uma voz quase enternecida:
Eu conheci-o mal lhe deitei o olho. Mas, ao v-lo, fugiu-me a fala. Ainda um dia d
estes tinha pensado nele. Era um bom tipo. Eu at namorisquei a filha que ele tinh
a... Ele fingia que no percebia nada, mas eu estava farto de saber que ele no ia c
ontra eu ser seu genro... Nesse tempo, eles viviam na Covilh e trabalhavam no out
ro lado, na Degoldra. Quando o despediram da fbrica, por estar velho, valeu-lhe o
salrio da rapariga, que era fiandeira. Vocs no se recordam dela? Uma magrita, que
tinha sardas?
156
A L E A
NEVE
* Eu tenho uma ideia disse uma voz. Ela na
coxeava um pouco ? ;
Coxeava. Era essa mesmo. Era muito fraca -
o seu salrio no dava para os dois comerem e el
tratar da sade. Para a aliviar, ele fazia os trabalha
da casa enquanto ela estava na fbrica. Lavava j
roupa, preparava a comida, fazia tudo. Ele no vjj
seno a ela e tinha razo, porque sem aquela fill"i
ele morreria de fome... Mas, um dia, o bicho deu ne<|
pulmes da rapariga. Meteram-na na Misericrdia. Aindg
fui v-la vrias vezes e levar-lhe algumas coisas. Mas(
da ltima vez j ela no tinha olhos para me ve$
O velhote estava porta. Chorava que nem uraaj
criana. Atirou os braos a mira e chamou-me sed
filho. Depois disse-me: "Vocs iam ser muito felize^j
Eu sei que vocs iam ser muito felizes". . -T]
A voz de Belchior embargou-se-lhe. Os homens con"l
tinuavam a marchar com seu fardo e a lmpada ai
riscar na neve uma trmula vereda de luz. i l
Eu fui ao funeral e, dias depois, fui ver o vej j
lhote. Eu levava vinte mil ris para lhe dar. Quando l
cheguei, encontrei uns homens a tirar da casa dele]
todos os trastes que l havia. Ele disse-me que tinha i
vendido tudo. Que no podia continuar ali, porque!
estava sempre a ver a filha. Eu tirei, ento, do bolso/ j
os vinte mil ris, mas ele no os quis receber. Ms* i
trou-me uma nota de cinquenta, que lhe tinham dado l
pelos tarecos, e disse-me que no me preocupasse i
com ele... I
Cala-te l com isso l pediu Ravasco. Bem J basta irmos, aqui, com o corpo! Aind
a por cima esta- j rs a lembrar essas coisas! j
Belchior abreviou: J
Foi ento que ele foi para o Teixoso... J Caiu outro grande silncio entre os hom
ens. De J
quando em quando, porque as mos ao lu em breve i enregelavam, eles revezavam-se na
s pontas do sobre- l tudo onde ia o cadver e prosseguiam na marcha, l Depois do
que Belchior contara, parecia-lhes que o i morto no ia bem morto, que o sobretudo
ia cheio ]
A L E A NEVE
157
de sentimentos, que uma rapariga definhada e com muitas sardas ia tambm l d
entro, invisvel mas
sensvel.
Ao entrarem no povoado, Ravasco, como se quisesse absolver-se da sua primeira at
itude, adiantou-se para acordar o sacristo, que devia abrir a Igreja.
Pouco depois, a porta do pequeno templo, erguido no centro do lugar, descerrava-
se, rangendo. L dentro tremulava uma lmpada sonolenta e, sua luz difusa, os homens
pousaram o cadver no cho. Belchior olhou para o sobretudo de Ravasco e para a toa
lha branca, com bordados, que cobria o altar, l ao fundo. Parecia-lhe, porm, sacri
lgio privar os santos daquele ornamento. Joo Ribeiro adivinhou as hesitaes dele e av
anou para o altar. Levantou as jarras com flores de papel, depois as imagens e re
tirou a toalha. Os homens continuavam calados. Quando a toalha foi estendida no
soalho, eles depuseram, sobre ela, o cadver. Joo Ribeiro entregou o sobretudo a Ra
vasco e voltou-se para todas aquelas caras, s quais a vaga luz da lmpada dava expr
esses rudes, opacas, de esculturas feitas a podo: .
Eu no quis contrariar o Belchior, mas no h dvida que ainda p 'e haver algum sarilho c
om a polcia... Acho que ele deve dizer, quando telefonar, que fomos todos ns que r
esolvemos trazer o morto para aqui. E, amanh, se nos perguntarem, devemos dizer a
mesma coisa. Todos ns devemos tomar a responsabilidade.
Joo Ribeiro contemplou os presentes. Nenhum deles articulou uma s palavra, mas o s
eu silncio era aprovativo. Ento, Belchior pediu a Joo Ribeiro:
Telefona tu, que sabes dizer as coisas melhor do que eu.
bando comeou a dispersar-se. Joo Ribeiro e Belchior foram chamar a Rosalina, para
que viesse abrir a Casa do Povo, de que ela era empregada e onde se encontrava o
posto telefnico da aldeia. Horc|o deixou-os e dirigiu-se para o casebre de Ricard
o. ^a viela cruzou-se ainda com Tramagal, Augusto e
158
A L E
A NEVE
A L E A NEVE
* o outro homem que fora por eles. Depois de os infd
mar que o morto ficara na igreja, meteu na porta 4
Ricardo a chave que Jlia lhe dera desde que ele ai
dava no turno da noite e comeou a subir a escai
evitando fazer rudo. Havia ali grande silncio, qij
naquela semana Ricardo trabalhava de dia. J
Em cima, Horcio despiu-se com rapidez, e, sq
prando a vela que havia acendido, meteu-se na cami
Ao envolver-se nas mantas, teve uma sensao de ai
vio, uma sensao que ia aumentando, em prazer, f
medida que ele ia aquecendo. Cada vez aquela sensa
de calor lhe era mais agradvel. O corpo encolhia-9
de volpia quando ele recordava o frio que acabavl
de sofrer. Embrulhou-se ainda mais nos cobertores m
disps-se a dormir. Mas a figura do morto volveu aoi
olhos dele, agora incomodamente. E, com ela, as pall
vras de Joo Ribeiro sobre a l, quando descobrira
que o velho tombara de frio. Horcio comeou a veil
nas trevas, l por toda a parte, l a cair do corpo dam
ovelhas, na poca da tosquia, l fofa, depois l pren"
sada, montes de l nas fbricas, na lavagem, na cars!
bonizao, na escarduagem, homens a labutar semprel
com a l at ela passar s mquinas de cardar, atai
tornar-se em mecha e perder o seu aspecto original}!
Durante muito tempo a l fora, para ele, apenas uma"!
coisa que se vendia, aos quilos, que dava dinheiro ao9|
donos das ovelhas, e, depois, se comprava aos metros, l
Habituado a dormir ao relento no Vero, a cobrir-se i
com a manta quando esfriava, a abrigar-se de dia com |
os safes e o capote, nunca se detivera a relacionar l
esses elementos da sua defesa fsica com o prprio J
rebanho que ele pastoreava. Os safes eram uma pele l
de ovelha com a sua l pegada, mas quando ele criara l
entendimento j encontrara safes em seu redor, pois l
os pastores costumavam us-los, tal como usavam um l
cajado, certamente desde o princpio do Mundo. Agora, l
porm, a l aparecia-lhe com outro aspecto. E at o l
rebanho do Valadares, que ele vira, durante muito J
tempo, como simples cabeas de gado com um valor J
em dinheiro, passava, agora, nos seus olhos, de maneira |
159
diferente, como se as ovelhas tivessem perdido ossos e carne, patas e cabea, e fi
cassem s l, casulos em forma de ovelhas, que depois de transformados serviam para
aquecer os homens. Mas por entre toda aquela l surgia-lhe sempre, teimosa, a lemb
rana do velho estendido na neve e de cada vez que a figura se apresentava, com se
us olhos vtreos, mui abertos, ele sentia calafrios na quentura da cama. Voltou-se
para a direita, voltou-se para a esquerda; o sono no pegava e a volpia inicial fo
ra substituda por mal-estar. Ento, ele acendeu a vela, para matar a obsesso, para d
eixar de ver a l e o morto a l e os homens que no podiam t-la.
Na casa e l fora e parecia, at, que no Mundo inteiro, continuava a haver um grande
silncio. Horcio pegou num dos livros que Marreta lhe emprestara e comeou a l-lo. Le
u-o, a princpio, para esquecer o morto e leu-o, depois, uma hora a seguir a outra
, enquanto a vela durou, interessado pelo que o prprio livro lhe dizia. E s na ant
emanh adormeceu.
s cinco da tarde, quando entrou na fbrica, Mateus comunicou-lhe: /
O Boca Negra j est bem e vem na segunda-feira. Voc volta para o turno de dia.
Horcio hesitou, tornou a hesitar e, por fim, encorajou-se:
Volto para aprendiz ?
No tenho outro lugar respondeu Mateus, entrando no seu gabinete envidraado.
IV
\ parte aquele sbado, em que no pudera ir, por trabalhar de noite, em todos os outr
os, mal abandonava a fbrica, Horcio dirigia-se a Manteigas. A princpio, para utiliz
ar a camioneta que partia da Covilh s quatro e quarenta e cinco, ele solicitava a
i6o
A L E A NEVE
A L E A NEVE
225
* Mateus que lhe permitisse sair meia hora mais cedi
Desde, porm, que a Jlia lhe aumentara o preo d
hospedagem, comeara a minguar-lhe o dinheiro ps
o transporte. Por isso e porque era sempre de ma<
grado que o mestre lhe consentia deixar o traball|
antes dos outros, decidira ir a p. E, s cinco da tard"
em vez de caminhar para a Aldeia do Carvalho, meti)
montanha, direito a Manteigas. Eram quatro puxaf
das horas quando no havia neve, cinco e at ms$
quando ela cobria encostas e pncaros, de onde qj
prprios lobos haviam fugido. Algumas vezes, duran|
o percurso, ele irritava-se ao lembrar-se de que ia aljj
a esfalfar-se serra acima, somente pela diferena d|
um quarto de hora na fbrica e pela falta de algun
escudos. "Bem lhe bastava ter de calcorrear aquilo i|
volta, por no haver camioneta de Manteigas para
Covilh nem ao domingo, nem segunda-feira". Essf
enervamento durava, contudo, pouco tempo. Na sei
mana seguinte, novamente ele desejava que chegass
o sbado e era rindo que, ao entrar em casa, ouvidj
a me amaldioar "aqueles caminhos do demnio" quej
ele tinha de percorrer sozinho. t j
Rapazes na tua idade no tm juzo nenhum!j
Se fosse por ns, no virias, eu bem o sei! acres-J
centava a senhora Gertrudes. f
Ele continuava sorrindo e, s vezes, enternecia-se; f
ao verificar que os pais no tinham ceado, que esta-J
vam sua espera h muito tempo j, com a panela j
beira do lume, para que no esfriasse nem fervesse, j
Os trs comiam, ele contava histrias da Aldeia do i
Carvalho e, em seguida, deitava-se deitava-se com J
a nsia de que a noite acabasse, de que viesse a manh, i
porque, aos sbados, como arribava j tarde a Mantei- i
gs, pouco falava com Idalina quando passava sua j
porta. l
Assim, os domingos pareciam-lhe os dias mais fel- i
zes da sua vida, sobretudo antes de os viver. Era sem- l
pr um alvoroo a sua chegada junto de Idalina, mas, i
depois, com o decorrer das horas ao seu lado, a feli- j
cidade ia-se transformando em inquietao. Horcio |
se oporia. Mas ela no pensava consult-lo. Desde a vspera que o marido se encontrava
, de novo, tolhido na cama. Nessa semana ele trabalhara apenas segunda-feira; es
tavam na quarta e s na sexta veriam alguns escudos. Para que lhe falar naquilo, s
e Ricardo no podia solucionar a dificuldade, esses dois dias em branco que se abr
iam frente deles e em que eles e os filhos precisavam de comer?
Jlia decidiu-se. Pediria a Horcio. Tanto lhe custava pedir a ele como ao Marques e
, assim, sempre ficaria com os cobertores, pois muita gente dizia que o mau temp
o ainda voltava.
A esbicar a nova pea de tecido, Jlia estava de ouvido atento aos rudos exteriores.
Eram quase seis da tarde e, por volta dessa hora, ouviam-se, em todos os dias de
trabalho, muitos passos na aldeia. Subitamente, Jlia interrompeu o labor. Ajeito
u o avental e, rpida, transps a porta. Os operrios regressavam das fbricas e, em bre
ve, ela lobrigou a figura de Horcio, caminhando ao lado de Marreta, no lusco-fusc
o. Jlia ficou em inquieta expectativa, no fosse ele seguir para casa do outro, com
o tantas vezes fazia nos ltimos tempos, s aparecendo hora de comer. Justamente nes
sa noite no haveria ceia que bondasse, pois sem levar algum dinheiro por conta da
dvida ela no teria coragem de ir mercearia.
Jlia respirou. Horcio separara-se de Marreta e caminhava em direco a' ela. Dir-se-ia
, porm, no a divisar na obscuridade que comeava a envolver a aldeia. Jlia abordou-o
antes de ele se acercar da porta. E disse-lhe com voz mais trmula e acanhada do q
ue se lhe falasse pela primeira vez:
Voc tem de desculpar, mas eu queria pedir-Ihe um favor... Era que me adiantas
se o dinheiro da semana que vem... Se isso no lhe fizer diferena, j se v...
Ele ouviu, surpreendido, as primeiras palavras, mas as ltimas j no pde dar ateno. Fico
u mais perturbado ainda do que Jlia:
Olhe que pena! Tanto gosto eu teria... E como
! Vol. Ill
226
A L E A NEVE
tenho de pagar, tanto me fazia ser agora como n*| dia da fria... Justamente nesta
s ltimas semanas e| juntei uns vintns, mas dei-os no sbado ao alfaiatJ por conta do
feitio de um fato... Hoje s tenho quatra escudos... Que pena! Sucedeu-lhe alguma
coisa? i
Nada, no murmurou Jlia. uma preci so de momento. '3
Ele tirou os dedos do bolso: /a
Esto aqui os quatro escudos... Se lhe fazem jeito, esto ao seu dispor... ,J
Obrigada. Isso no me chega. Mas no se incota mode. Eu arranjarei por outro lado.
E abalou eim direco porta. Horcio seguiu-a e ps-se a vencera os degraus que davam pa
ra o seu quarto. Instantefflj passados, Jlia voltava a sair com um grande embrri
q lho debaixo do brao. '"
Pouco depois, Horcio ouvia, l em baixo, a voo
de Marreta, que se informava do estado de Ricardo!
e lhe pedia licena para subir. Logo, os seus passos!
soaram na escada. Intrigado com a visita, pois era a" l
primeira vez que Marreta o procurava ali, Horcio,"
caminhou para a abertura que havia ao fim do soa- l
lho. O velho tecelo trazia cara alegre. Sentou-se no l
rebordo da cama e comunicou que, depois de haver l
deixado Horcio, encontrara a tia Augusta, me de I
Ravasco. Tinham estado de conversa e ela dissera- j
-lhe que ia mandar amanhar as suas courelas. Que l
j ia mesmo atrasada, pois, com um tempo assim l
quente, h muito que as batatas deviam encontrar-se I
na terra. Mas por mor dos seus achaques e desgostos l
com a doena do filho fora-se descuidando. Ele, ento, l
lembrara-se do pedido que Horcio lhe havia feito, l
Como este andava, agora, semana sim, semana no, i
no turno da noite, podia, nos dias livres, cavar aquelas l
terras. E tambm nos outros poderia aproveitar algum l
tempo; saa da fbrica s cinco horas e, dali em diante, l
as tardes seriam cada vez maiores. Por isso, ele pedira i
tia Augusta que desse o trabalho a Horcio. Ela l
respondera que gostava mais de um homem que cavasse l
o dia inteiro, mas, depois, ficara de o mandar chamar. ]
A LA E A NEVE
227
claro que Horcio no devia esperar receber muito, desde j ele o prevenia, pois a vel
ha era somtica; mas aquilo sempre serviria de ajuda. At h pouco, fora ela e o filho
que haviam tratado das courelas; agora, porm, a tia Augusta, com quase oitenta a
nos, encontrava-se estafada e o filho estava doente, em Lisboa, como se sabia.
Horcio enterneceu-se com os cuidados de Marreta, j obtendo-lhe aquele trabalho, j v
indo ali dizer-Iho antes mesmo de fazer a sua ceia.
Muito obrigado! Vossemec uma jia! E diga-me c uma coisa: so muitas terras ?
No. L muitas no so, mas chegam para te entreter algum tempo. E, depois, veremos se s
e arranja mais alguma coisa...
Desde essa noite, ficou ansioso de que a velha lhe mandasse recado. Passaram-se,
todavia, vrios dias sem que ela o fizesse. E, entretanto, uma manh, Ravasco regre
ssou de Lisboa. Regressou antes do tempo em que o esperavam. Os mdicos do Institu
to de Oncologia, depois de o examinar e de terem mandado radiograf-lo, comunicara
m-lhe cue devia voltar dali a dois dias. E, dois dias passados^ele fora conduzido
a outra sala, onde comearam a aplicar-lhe raios X. Ele andara nesse tratamento u
mas trs semanas. Depois, levaram-no, mais uma vez, aos mdicos, que lhe meteram na
bexiga aquele aparelho de luz que o doutor Barbeito ] lhe tinha metido tambm. Fala
ram entre eles e disseram-lhe que voltasse na segunda-feira seguinte. Ele voltar
a, os mdicos tornaram a v-lo e, por fim, aconselharam-no a que regressasse Aldeia.
Ele ainda perguntara se no era caso para operao. "Que no era" responderam-lhe. Se s
entisse dores, que tomasse dois daqueles comprimidos que figuravam na receita qu
e lhe iam entregar. E se, mesmo assim, as dores no se fossem, chamasse o mdico da
Covilh para lhe
228
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* aplicar uma injeco, pois o mdico da Covilh j sabsS
que injeco devia dar-lhe. (j
Ravasco chegou Aldeia e encarou a vida. Trs
filhos, a mulher e aquelas despesas de viagem e toda
aquele tempo perdido. A mulher era urdideira, mas d
que recebia no chegava, sequer, para eles comerem!
quanto mais para eles se desempenharem. Ele tinha
de deitar mo a qualquer coisa. Se a sua me havia
de pagar a outro para lhe amanhar as courelas, pagaw
ria a ele, como nos anos anteriores, quando ele gozavsa
sade. l
Uma tarde, j depois de terem vindo juntos dai
fbrica, Marreta tornou a procurar Horcio em casa
de Ricardo. E disse-lhe que a tia Augusta pedia deslj
culpa de no lhe dar o trabalho prometido, pois (r)l
filho tomara conta dele. J
Na manh seguinte, o povo viu Ravasco dobrar-s
sobre a terra, enxada vai, enxada vem, l em riba,'I
nas ltimas j eiras da aldeia. Ele voltara de Lisboa'*
mais chupado e com uma cor ainda mais amarelenta*
do que quando partira, mas parecia senhor de uml
fora dos demnios naquele movimento contnuo. l
Todo o povo sabia que ele tinha um cancro, que l
assim o assoalhara Joo Ribeiro, depois de o haver.a
acompanhado ao consultrio do doutor Barbeito. E todos l
garantiam que um cancro tirava as foras a quem o l
tinha e era mal sem remdio, a no ser que o atalhas- l
sem logo de princpio. Ora o Ravasco andara um ror l
de tempo com aquilo, como fizera o Taborda, que l
morrera tambm com uma nascida na lngua. Como l
que ele, agora, se metia a cavar, com tanta gana, as l
courelas da me, que, ainda assim, eram uns bons l
pedaos de cho ? l
Das portas e janelas das casas vizinhas, as mulhe- i
rs lanavam, s vezes, um olhar curioso para as bei- l
gs da tia Augusta. Ravasco continuava de enxada nas l
mos, a vergar e a erguer o tronco. l
Por volta das onze horas, a sua figura desapareceu, l
Mas uma rapariga que descia os quebra-costas da aldeia m
informara que o Ravasco estava sentado debaixo de J
229
uma oliveira. Ao meio-dia, viram-no a trabalhar novamente.
Coitado! No sabe o mal que tem! Nem ele,
nem a mulher, nem a tia Augusta... o que lhes vale!
Durante a tarde, Ravasco continuou nas courelas. O povo notou, contudo, que ele,
agora, se deitava mais frequentemente sombra das oliveiras. Ao fim do dia, a mu
lher, regressando da fbrica, maralhou com ele: "Aquilo no tinha jeito nenhum! A su
a sade no estava para aquilo!" Ravasco ps o casaco sobre os ombros e caminhou para
o extremo do povoado. Bateu porta do Linguinhas e com este ajustou a dormida das
suas ovelhas, naquela noite, sobre a terra que ele cavara durante o dia. E volt
ou para casa a pensar e a antegozar a contrariedade que Manuel Peixoto teria ao
saber que, por causa do se.u irmo Mateus, que era colega do Felcio, ele no quisera,
desta feita, o seu gado.
Na manh seguinte, ao olhar a leira, considerou ser bastante o estrume deixado pel
as ovelhas e barato o preo que combinara. Ergueu a enxada e lanou o primeiro golpe
terra outro, outro e outro... Agora, porm, sentia-se mais fraco do que na vspera
. Quatro enxadadas e o corpo pedia-lhe sossego. Ravasco, ento, enervava-se: "Aque
la doena arrasava-o! Antigamente, ele era to forte que, com dois goles de aguarden
te, de manh, e uma tigela de caldo, ao meio-dia, trabucava de sol-nado a sol-post
o sem se cansar. Mas no ia, agora, deix^r-se tomar por aquilo. Tinha que fazer ha
via de^o fazer!" Mordia os lbios e voltava a enfiar a enxada na capa verde que as
ovelhas tinham rapado rapado tanto que no se via uma nica erva erguer-se acima d
a terra.
Ia cavando e remoendo os seus despeites e desesperos. Aquela velha que ele havia
encontrado na sala de espera do Instituto de Oncologia ajudara a dar cabo dele
pensou. Pois que preciso tinha ele de saber aquilo ? Desde a primeira no simpati
zara com ela. Mas que ia fazer ? A sala estava cheia de pessoas esperando vez pa
ra consultas e tratamentos e o diabo
230
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
231
* da bruxa metia-se com toda a gente. com aquele thtt
pu preto coado e um passarinho tambm preto e |
sem bico em riba do chapu, falava por todos os cotd
velos. Quando ela era assim faladeira e tinha manid
de janota naquela idade, o que seria o estafermo efl
nova ? A primeira vez que ele antipatizara com eli|
fora quando a ouvira dizer, em voz alta, na salaj
"Parece que eu tenho um cancro na ponta do seal
mas j me disseram que, aos oitenta e sete anos,o|
cancro no tem fora para se desenvolver e que fl
posso viver ainda muito tempo". Ela dizia aquilo com
satisfao e como se fosse, por isso, mais do que dj
outros. Todos ficaram calados, mas ele percebera muiwj
bem que todos ficaram aborrecidos, pois quem vina
ali sabia que no Instituto se tratavam as doenas mffl
mas ningum gostava de falar em cancros. '-fl
Naquela manh, a velha fora alm das marcara
Nunca esperara uma coisa assim. Quando ele voltav"
dos doutores, a bruxa, ao v-lo de cara alegre, logq
metera conversa. E ele, to tolo, a pr para ali tudo-aj
que os mdicos lhe tinham dito. E ela, ento, com
aquele ar de amizade, que se via mesmo que era falstd
"Ah, ainda bem! Ainda bem! No h-de ser nada, Sra
Deus quiser! Eu rezarei muito por si, para que Deti
Nosso Senhor lhe d sade!" A bruxa! Ele, agradecido",!
a voltar-lhe as costas, a procurar, nos bancos, no mei"|
daquela gente toda, o seu chapu, e ela a dizer aoSl
outros, pensando que ele j ia longe: "Coitado! Est]
perdido! Quando os mdicos falam assim, que jl
no h nada a fazer. Foi a mesma coisa que eles dis-i
seram minha irm Leonor, que tinha um cancro nol
fgado. No quiseram oper-la, por no servir de nada. l
E ela morreu pouco tempo depois..." Uma facada nos I
ouvidos ter-lhe-ia dodo menos. Ainda se voltara para j
o lado onde a velha estava sentada. Dera com os olhos l
nalguns dos homens que a escutavam e que, ao com- i
preenderem que ele tambm a tinha ouvido, ficaram l
com um sorriso parado, como se houvessem morrido i
com aquele sorriso. Ele vira logo tudo muito claro. At i
chegar rua, at ter mo em si, as suas pernas tre- ]
miam-lhe. Era certo que quando os mdicos lhe disseram que ele podia voltar para c
asa, parecera-lhe que havia alguma coisa que eles no diziam naquelas palavras. Ma
s ia l supor uma coisa assim!
Lanou, com mais fora, a enxada terra, como se a metesse no corpo da velha. Estava
perdido, mas havia de fazer das tripas corao, a ver se pagava a dvida antes de morr
er. Se no a pagasse, o miservel do Marques no largaria a Maria Antnia e era ela, a p
obre, quem teria de entrar com o dinheiro. E ainda com juros, que aquele avarent
o levava-os maiores do que as casas de prego da Covilh. com essa obrigao a pesar-lh
e, como poderia ela sustentar-se e aos pequenos com o salrio que recebia? No, ele
no queria morrer com a ideia de que os seus filhos iam passar fome logo que ele f
echasse os olhos! Felizmente, como estivera pouco tempo em Lisboa, gastara menos
de metade do dinheiro que tinha pedido emprestado ao Marques. E o que ficara po
r l, havia de o ganhar, se Deus lhe desse ainda algum tempo de vida. A sua me que
lhe podia valer, porque ele estava desconfiado de que ela tinha notas suficiente
s. Mas a velhota tambm era muito agarrada ao dinheiro e depois que ele lhe pedira
, h anos, aqueles cinquenta mil ris e no lhos pagara, nunca mais ela quisera empres
tar-lhe um tosto. Dizia sempre que os patacos que recebia da venda do centeio mal
chegavam para pagar o amanho das terras no ano seguinte e que se, um dia, adoec
esse, nem para remdios teria dinheiro. Podia ser, mas ele no acreditava. Sempre lh
e parecera que s ao outro filho, ao que estava no Teixoso, ela votava amor. Ele t
inha, pois, de contar s consigo, de pagar aquilo, se no queria que a desgraa casse s
obre os pequenos
- coitadinhos, que eram inocentes! logo que o levassem para o cemitrio. E tambm s
obre a Maria Antnia, que fora sempre trabalhadeira e honesta.
O seu prprio monlogo lhe dava novas foras, aquela fria com que ele, em certos moment
os, suado, fegante, o sexo pingando sangue, cavava a terra a grandes enxadadas. M
as logo surdia o cansao das
232
A L E A NEVE
'pernas, dos braos, do corpo todo, aquela sensao oh
frio, aquela sensao de desmaio e, em seguida, }
hemorragia. Quedavam-lhe dores e uma secura na gafl
ganta, que no havia gua que matasse por muitt
tempo. Ele emborcava a bilha, mas, pouco depois, l
estava a secura sem sede, como se a sua gargantl
fosse, agora, de cortia. E, novamente tambm, aqueM
imperiosidade de fazer a mico sangunea. >j
Todas as tardes, a me, curvada e amparando-s|
a um cajado, aparecia nas leiras. E ao v-lo assin
esfalfado, magro, de uma magreza que parecia transi
parente, dizia-lhe: D
melhor, talvez, chamar um homem para aquifl No ests com sade para tanto! Ld|
Ele rosnava uma recusa e continuava a cavar, ta
Mas, em cada novo dia que passava, a tia Augusta
via que o trabalho do filho era menor. -ij
Ao menos um homem para te ajudar... sugej ria ela, timidamente. m
Ravasco saltava de l: m
Se vossemec no fosse minha me, eu seal o que lhe havia de resp
onder. Deixe-me em paz|| ande! m
A tia Augusta partia, agarrando-se ao seu bordoij
e suspirando o desgosto de ver Ravasco assim aca-dj
bado e assim teimoso. E ele ficava, odiento, a rumi-fl
nar as suas cleras: "Ela tinha oitenta anos e j no l
fazia falta a ningum. Se ela morresse, ele venderia l
uma das courelas que lhe coubessem nas partilhas e j
pagava ao Marques. At podia descansar um bocado J
antes de ele prprio morrer. Iria, tambm, a S. Tor- j
cato de Guimares. Ele nunca pudera gozar nada. i
Andara sempre a trabalhar e sempre sem dinheiro, j
Quando era ainda vivo, o seu pai, que nascera para l
as bandas de Guimares, dissera-lhe, muitas vezes, que J
no havia, em Portugal, outra romaria como a de 1
S. Torcato. Mas ele nunca pudera l ir. Passara a vida J
com aquele desejo e nunca o pudera satisfazer. Agora, l
com certeza, tambm j no iria. A velha estava, ainda, J
muito rija. E mesmo que ela morresse j, aquilo das j
A LA E A NEVE
233
partilhas demorava sempre muito tempo; resolve e no resolve, j ele teria morrido t
ambm".
Desde que, naquela manh de Lisboa, compreendera que o seu mal no tinha cura, deixa
ra de se apiedar por quem morria. Viera-lhe mesmo um vago consolo ao saber que o
Cosme da Borralheira se finara e que o Isidoro do Sineirinho estava s portas da
morte, com uma tuberculose. Mas aqueles pensamentos que ele punha, como alcateia
danada, atrs da sua me, quando ela se retirava, acabavam sempre por o deixar de m
al consigo prprio. "A velha tinha aquele feitio, mas tambm ela no sabia que ele est
ava assim. At lhe dissera, quando ele a prevenira de que ia a Lisboa: "Agora, por
uma dor de barriga, mandam logo a gente para Lisboa, para Coimbra, para o hospi
tal... No meu tempo, ningum saa de onde estava e vivia-se muito mais". Ela no sabia
que aquilo era doena de matar e, ele, ento, tambm no sabia nada. Porque, se soubess
e, no teria sado dali e no estaria, agora, empenhado".
Numa daquelas tardes, quando a tia Augusta apareceu e se ps a olhar, em silncio, p
ara o cho cavado desde a vspera^ Ravasco julgou adivinhar o que a me pensava. E, po
usando as mos sobre o cabo da enxada, contemplou, tambm, a terra que ele revolvera
desde o dia anterior.
pouca, ... murmurou. Mas no se aflija por isso... Vossemec paga-me s metade da jorn
a... Como se eu trabalhasse s meio dia...
A tia Augusta no respondeu logo. Os seus olhos voltaram a percorrer no apenas a te
rra cavada, mas a- que faltava cavar, nas courelas vizinhas. E prolongou o silnci
o, fazendo clculos. Depois:
Quantos dias pensas que precisas para acabar ? Ele olhou a me e, em seguida, aque
las faixas de
cho, cobertas de verde felpa, que se estendiam ao seu lado.
Se eu estivesse forte, em quatro ou cinco dias dava conta de tudo isto. Assim..
. no sei... Talvez oito para cavar... Depois, para semear... no sei...
234
A L E A NEVE
A L E A NEVE
j, Oito dias... Bem! Eu pago-te, na mesma; <;
oito dias, mas vem um homem dar-te uma ajuda. Uq
rapaz de que me falou o Marreta. Um que se charm
Horcio. Tu conhece-lo... >\
Ele no disse nada. Os seus olhos volveram a fixdj
os olhos da me e, depois, humedeceram-se. A ts^
Augusta batia, agora, com o seu pau, num torr^
como se tivesse muito empenho em desprender uma
pequena pedra que ao torro se agarrava. <|
Pois isto disse ela, depois. Fica assim coflfl
binado. Por mim, no trabalhavas mais... E volto||
a arrastar a velhice em direco sua casita, que s"
erguia atrs das oliveiras. tf
Ele ficou a v-la afastar-se. "Se lhe contasse tudi
talvez ela, desta vez, lhe valesse. Pouco era... Ma||
no! Ele no ia contar-lhe aquilo. No queria quffl
ningum soubesse da sua desgraa e tivesse pena delda
Ningum! Se ele contasse velhota, a Maria Antni^l
viria a sab-lo. E ele no queria dar-lhe esse desgostoi
Bem bastava que fosse ela, agora, a sustentar sozinhgi
a casa". l
Quando, na manh seguinte, Horcio surgiu nal
courelas, j Ravasco l estava. Foi por entre denteai
que ele respondeu ao seu "bom dia!", enquanto olhava*
para a enxada que Horcio trazia ao ombro e quel
Manuel Peixoto lhe emprestara. ' i
Ento vossemec est melhor ? , i
Estou bom! Estou quase bom... disse, de mau l humor. E estendendo o dedo
, acrescentou: Pode l comear acol. l
Horcio dirigiu-se para a jeira indicada. Ravasco, l
s voltas com a terra, irritava-se mais: "Aquela mania l
que todos tinham de perguntar pela sua sade! S i
isso bastava para dar cabo de um homem! No poder l
ver ningum, sem logo a outra pessoa lhe lembrar J
aquilo. Como se no fosse bastante o que ele sofria, i
para os outros estarem ainda a remexer na sua ferida! i
E, afinal, os outros incomodavam-se tanto com ele, i
como ele com a primeira camisa que vestira. Era cos- l
tume e pronto! V de estragar a vida a um homem! J
235
Se no fosse isso, ele at gostaria de conversar. Gostaria mesmo muito, pois, quando
estava a conversar, esquecia-se, s vezes, daquilo".
com o rabo do olho perscrutou a leira vizinha. "O tipo d-lhe com gana" pensou, d
espeitado, ao ver a terra que, num instante, Horcio cavara. Comeou a invejar a juv
entude de Horcio. "Tambm ele, quando tinha vinte anos e no passava os dias a mijar
sangue, era assim. E mesmo agora, com quarenta e seis, ningum lhe levaria a palma
se no fosse aquilo. O fedelho ainda tinha muitos anos para viver enquanto ele..
. enquanto ele..."
No queria olhar, mas no se podia conter. A enxada de Horcio continuava a virar a te
rra, vigorosamente. J tinha quase um metro cavado a toda a largura. Ento, Ravasco
pensou que, a seguir assim, Horcio cavaria mais em duas horas do que ele num dia
inteiro.
Desfaa-me esses torres! gritou-lhe, com ntimo rancor. No s andar; fazer o servio
deve ser!
Sentia vontarte^ de o humilhar e de depreciar, de qualquer maneira, a quantidade
do seu trabalho. Horcio obedeceu-lhe e, com a cabea da enxada, ps-se a esboroar a
terra que havia quedado em bocados, aqui e alm. Apesar do tempo assim despendido,
Ravasco verificava pouco depois que Horcio ia de novo mais adiantado do que ele.
"No podia ser! A velha j sabia que ele no era capaz de dar muito, mas, enfim, no qu
eria comparaes. Ainda se ela soubesse como ele andava!"
Venha para c! berrou, de novo, a Horcio. ~~ E melhor trabalhar aqui, ao meu lado,
porque eu quero a terra bem esboroada.
Horcio obedeceu-lhe novamente. Ento, ele ficou tranquilo: "Assim j ningum saberia qu
al deles trabalhara mais". A princpio, Ravasco cavava em silnC1o. Depois, desatou
a falar. A falar da fbrica, do Felcio e do Mateus. Eram ambos dois tratantes disse
. Tinham sido operrios e, agora, mostravam-se
236
A L E A NEVE
j, piores do que os patres. O irmo de Mateus, o Maninj
Peixoto, esse, sim, era outra loia. Se no lhe coitt
prara as noites de esterco, fora s para lhe fazer v<|
que ele, Ravasco, tambm tinha alguma fora, embora
o houvessem mandado embora da fbrica onde o Mal
teus era mestre, como se mandassem um co. MaJ
no queria mal ao Manuel Peixoto, l isso no queria!
s quatro horas da tarde, quando Horcio largcia
a enxada, para se dirigir fbrica, Ravasco teve sbita
pena de ficar sozinho. Sentia-se, de repente, como qttH
abandonado e toda aquela terra sua inimiga. rj
No dia seguinte, quando Horcio voltou, Ravaseti
no estava l. O povo vira-o entrar, de manhzinha,!
na igreja. Homens e mulheres murmuraram comenta"
rios, porque Ravasco nunca ia ali e era, como Trama^i
gal, dos que andavam sempre a dizer mal dos padrea
Mais tarde, a empregada da Casa do Povo, que estavH
janela, ali mesmo em frente, viu-o sair da igrejaM
encostar-se a um canto, forado pela sua hematria,!
e volver a entrar. Desde ento, os habitantes da aldeia"
j no estranharam as constantes visitas que Ravascowj
cada vez mais magro, mais caquctico e de mais ama-1
relada cor, fazia ao pequeno templo, onde se demorav^a
largas horas. Um dia, porm, deixou de aparecer. E, d'J
tarde, o povo soube que ele estava na cama, contorci
cerido-se com dores e gemendo desesperadamente. > i
Entretanto, o frio voltara. O tempo continuava l
seco, mas gelado de cortar a pele. De madrugada, l
Horcio acordou com um choro de criana. E depois: l
Me! me! Eu tenho frio! l L em baixo, os outros filhos de Ricardo desper- I
taram e alguns deles gritavam como o irmo: l
Eu tambm tenho! Eu tambm tenho frio. l Jlia acendeu a luz e berrou-lhes que se cala
ssem, l
Em seguida, ergueu-se e colocou sobre os filhos quanto l trapo havia na casa. Ma
s ela via bem que aquilo no l chegava. Ela prpria tremia de frio. E os trapos que
]
A LA E A NEVE
237
davam melhor agasalho j a famlia os utilizava desde que os cobertores tinham sido
empenhados. Jlia dirigiu-se sua cama. Ultimamente, ela e o marido cobriam-se apen
as com uma manta e o sobretudo de Ricardo. Jlia tirou a manta e estendeu-a sobre
o corpo dos filhos, todos, menos o de bero, dormindo num mesmo colcho. Depois, ps-s
e a olhar para o corte de fazenda que ela comeara a esbicar na vspera. Era um teci
do vistoso e caro, que valia a fria de muitas semanas e s gente rica o poderia com
prar. Jlia hesitou. J uma vez, numa noite assim gelada, ela havia posto um corte d
e fazenda na cama das crianas e, de manh, o filho mais novo, que era mesmo um demni
o, fizera-lhe um rasgo, com um prego. Querendo ocultar aquilo, no fossem, l na fbric
a, negar-lhe, de futuro, trabalho, ela tivera de pagar metedeira de fios bom din
heiro para serzir o tecido. Jlia decidiu-se: "Agora, em cima dela e do Ricardo no
havia perigo". Meteu-se na cama e cobriu-se a si e ao marido com o corte de faze
nda. Puxou o sobretudo, para se aconchegarem melhor e apagou a luz. Os seus den
tes batiam uns nos outros, com aquelas tremuras que a percorriam violentamente.
Um dos filhos, o Ernesto, continuou a protestar, no escuro:
Isto no chega! C para mim isto no chega! Tenho frio...
Pois no tenho mais roupa! S o prncipe reclama, no querem ver ? gritou Jlia.
Foram as ltimas palavras que, naquela noite, Horcio lhe ouviu. Mas, pouco depois,
ele sentia os passos dela, l em baixo. Jlia tirara tambm o sobretudo da sua cama e
pusera-o sobre o Ernesto e os outros filhos.
Na manh seguinte, quando Horcio e Ricardo se dirigiam para as fbricas, o dia estava
soalheiro, como os anteriores, mas o frio da noite continuava. Ao acercarem-se
da Carpinteira, divisaram outros operrios lue marchavam em direco contrria deles e,
depois, deixando a estrada, cortavam para os Penedos Altos. Eram pedreiros, via-
se pelas ferramentas, e caminha-
238
A L E A NEVL
j, vam to friorentos e apressados como os operrios da
fbricas. Nem Ricardo, nem Horcio estranharam")
caso, na terra em que homens de Alcains andavaai
sempre em trabalhos de edificao para os industriai!
e outros capitalistas. Mas, ao meio-dia, uma mulhesi
que viera trazer fbrica o almoo ao marido, espa$
lhou a grande novidade. Nos Penedos Altos, havi|
comeado a construo de casas para os pobres. Tod^
a manh andara l, a trabalhar, uma turma de homenj
E a todo o momento chegavam camionetas com matei
rial. Ao ouvir aquilo, alguns dos operrios ainda duvf
davam, enquanto outros iam afirmando: "Eu bem prisj
ciso de uma casa..." "E eu tambm". "E eu tambm"!
hora da sada, os que moravam na Covilh acorari
panharam os da Aldeia do Carvalho at o ponto da
estrada de onde se viam os Penedos Altos. Afinal, e$m
verdade. J havia alguns alicerces abertos. Perto, levas*
tavam-se rimas de pedras e tijolos que no se encoaj
travam l de manh. E, ao fundo, um barraco dal
madeira e zinco, para recolha das ferramentas e dorm
mida de pedreiros e carpinteiros, fora concludo nun"
s dia. |
Horcio contemplava aquilo, extasiado. "O stio nc|J
podia ser mais airoso. Via-se o vale, via-se, ao longji
a Covilh e estava-se a dois passos da fbrica. Uma i
casita ali ficava mesmo a matar". ' j
Nos dias seguintes, quer vinda, quer ida para l
a Aldeia, ele olhava sempre o local, to ansioso pelo' 3
avano das construes como se a obra fosse sua. l
Muitos outros operrios faziam a mesma coisa. Uma" j
tarde, deixaram mesmo a estrada e caminharam at J
os Penedos Altos. Os pedreiros tambm j haviam 1
abandonado o trabalho e alguns deles estavam no bar- l
rao. Era uma casa de malta, com beliches sobre- j
postos e, por todos os lados, farrapagem, mantas sujas \
e utenslios de cozinha. Mas num outro compartimento, 1
onde o mestre-de-obras tinha uma mesa e se guardava
a ferramenta, via-se, na parede, emoldurado e dese- ;
nhado a alegres cores, o projecto das casas a edificar. ;
Horcio e os companheiros quedaram-se, largo tempo, j
A LA E A NEVE
239
a examinar aquilo em silncio. Havia umas casas que eram maiores do que outras, ma
s todas, pequenas ou grandes, prometiam ser garridas, com seus beirais recurvos
e largas janelas, semelhantes a muitas das que Horcio admirara no Estoril e na Pa
rede, quando era soldado.
So bem boas! comentou Belchior.
L isso so! respondeu um dos pedreiros de Alcains que andavam a constru-las. Tomar
a eu ter metade de uma assim para mim e para a famlia.
Horcio sentia-se cada vez mais contente. E, no domingo seguinte, em Manteigas, de
u a novidade a Idalina: "Estava resolvido a casar-se. J era operrio e pouco import
ava que a casa no fosse dele. O principal era que fosse como ele a havia desejado
. E a Cmara ia, agora, construir casas assim para os operrios".
Tinha renunciado a desflorar Idalina antecipadamente. E nesse mesmo domingo, ao
atravessar a serra, de volta Aldeia, ele ia evocando as pessoas a quem poderia p
edir dinheiro emprestado para as despesas do casamento. Pensava numa e logo a la
rgava; pensava noutra, avaliava a sua vida e imediatamente a deixava tambm. Todos
os seus conhecidos da Aldeia do Carvalho, salvo > Manuel Peixoto, no tinham mais
do que ele. E o /prprio Manuel Peixoto j vendera algumas cabeas do seu gado, por fa
lta de dinheiro. Em Manteigas, havia, era certo, pessoas de muitas posses. com e
ssas, porm, no tinha ele confiana. S ao Valadares poderia pedir aquilo. Mas a este no
queria ele pedir. Quando fora do incndio, parecia-lhe fcil chegar junto do Valada
res e dizer-lhe: "Precisava que me emprestasse um conto de ris, para eu, depois,
Pagar aos poucos". Agora, que j se passara muito tempo, custava-lhe falar em tal
coisa ao seu antigo Patro.
Eram quase onze horas da noite quando ele entrou na Aldeia do Carvalho. Ao trans
itar em frente da casa de Ravasco, viu, porta deste, um grupo de iiulheres. Horci
o adivinhou o que acontecera antes
240
A L E A NEVE
* mesmo de algum lho dizer. L dentro, a Maria Antni gritava:
Meu Deus, que vai, agora, ser de mim ? Quj vai ser de mim e das crianas ?
\
Horcio aproximou-se. Jlia estava c fora, entrj as outras mulheres, e disse-lhe com
simplicidade: ?
Morreu ontem ao fim da tarde e foi enterrado hoje. Viemos fazer um pouco de comp
anhia Mariaj Antnia, mas ela, coitada, no se resigna.
Outras mulheres vinham saindo. Horcio ainda avanou at a porta; logo pensou que no sa
bia d que havia de dizer Maria Antnia e desistiu d" entrar. l
Embrulhadas nos seus negros xales, algumas daa| mulheres iam-se separando. Na ca
sa, j sem visitasd a viva continuava a gritar: M
Meu Deus, que vai ser de mim ? il Jlia e outras vizinhas comearam a descer a en-J
costa. Horcio caminhava ao lado delas, acabrunhadoHJ
Coitada! Ela tem razo! disse Jlia. Sozi-"! nh e com a vida como est... [m
As outras mulheres, esquecidas j da Maria Ant-fl
nia, largaram a falar do preo das coisas, que era ai
sua obsesso quotidiana. Um quilo disto ou daquilo/a
que, no ano anterior, custava tanto, agora custava om
dobro. As sardinhas haviam aumentado duas e trsl
vezes mais. E as batatas, quem as no tinha, via-se"
doido para as arranjar. E se as arranjava, pagava-a B
a peso de oiro. S o que estava racionado no subira l
muito de preo, mas isso pouco valia, pois o que davam
no racionamento no chegava para nada.
Na Covilh ainda pior afirmou Jlia. l
Aqui, alguns ainda amanham as suas territas. Mas *
na Covilh tudo fora de dinheiro. Fui l a semana B
passada visitar a minha cunhada e vi que as mulhe-
rs de l no sabem o que ho-de fazer vida. O que B
os homens delas ganham no chega para comer e elas
tm tudo no prego.
As que ouviam a Jlia pensavam que se ela fora,
nos ltimos tempos, muitas vezes Covilh, no tinha f
A L E A NEVE
241
sido em visita cunhada, como dizia, mas sim para ver o filho, aquele matulo do An
tero, que justamente na ltima semana abalara para Lisboa, sem ligar nenhuma impor
tncia aos pais. Pensaram isso, um momento, mas logo esqueceram Antero, como havia
m esquecido a Maria Antnia, todas atentas ao que Jlia contava sobre a vida na cida
de.
Horcio escutava de mau humor. Ia ruminando que Jlia queria, decerto, aumentar outr
a vez o preo da comida e da dormida, pois nos ltimos tempos andava sempre a referi
r-se, na frente dele, carestia que os alimentos tinham sofrido. Pareceu-lhe, con
tudo, que naquela noite Jlia falava com um torn diferente do das outras vezes, co
mo se partisse de alguma coisa que s ela sabia.
VII
JXIiNGUM, talvez, poderia dizer como a notcia entrou, quela hora, na fbrica e passou
, murmurada, de homem para homem e de mquina para mquina sem as mquinas se deterem
. Horcio soube-a pelo Boca Negra, enquanto as "self-actings" trabalhavam:
Prenderam o\ Ricardo e o Gabriel Alcafoses e parece que mais alguns da Covilh...
Horcio olhou para o lado das penteadeiras e, pela cara de Tramagal e dos outros o
perrios, compreendeu que tambm eles j tinham conhecimento daquilo.
Por que os prenderam ?
A Boca Negra pareceu intil a pergunta:
Por que havia de ser! disse.
H muito tempo que Horcio ouvia falar de Gabriel Alcafoses como de um dos mais acti
vos operrios da Covilh. Mas ele no o conhecia. E s a priso de Ricardo lhe dava verdad
eira pena.
As mquinas continuaram a trabalhar, mas dirse-ia que por baixo do seu rumor havia
um silncio
242
A L E A NEVE
A L E A NEVE
243
l
* pesado, mais forte do que o prprio rumor, come"!
dia em que Ravasco fora despedido. -3
Quando, s cinco horas, os operrios saram J
fbrica, logo se formaram grupos na estrada, que torn
queriam saber pormenores sobre o caso. Os que cr]j|
gavam da Renovadora informaram que dois polqii
haviam entrado ali, hora do almoo, e dito simpi
mente ao Alcafoses que os acompanhasse. Ricardo!
Cristino disseram outros, que eram seus companha
ros de fbrica tinham sido presos j depois dem
trabalho haver recomeado. um
Tambm levaram o Cristino ? estranhou Ti" magal. oj
Tambm. <m
Eu you Covilh... disse, subitamente, MaJ reta. I
Tramagal olhou para ele, um momento, e declaroisj
Eu you ^contigo... <jl
No... melhor eu ir sozinho... Vocs prev" nam a Julia. E, noite, passem por minha
casa., m
Marreta partiu. Os grupos comearam a desfazer-ra|
Tramagal e Horcio, desta vez no meio de muitdB
outros operrios, que comentavam ainda o aconteciddjl
regressaram Aldeia do Carvalho. Tm
Jlia tinha o filho mais novo nos braos e ia daj
-lhe o seio quando eles chegaram sua porta e Ibfl
comunicaram aquilo. <m
Ah, prenderam o meu homem ? disse ela conn
sombria serenidade. Ento prenderam-no ? repeli
tiu. A sua voz denunciava uma clera jacente. Abrindo!
a blusa, Jlia entregou o peito ao filho. > i
Os homens ficaram a olh-la, surpreendidos e cala- l
dos perante aquela atitude. Jlia voltou a erguer os J
olhos e dirigiu-se a Horcio: 1
Se voc quiser comer agora, a ceia est pronta, j Antes mesmo de Horcio responder, Tr
amagal pro-r
testou: l
Qual comer, qual carapua! Ele ceia hoje comigo, Jlia fez um gesto de indiferena. j
Os homens no sabiam que lhe dizer, nem sabiam j
air dali sem lhe dizer mais alguma coisa. Pela primeira vez Horcio sentiu que a v
oz de Tramagal procurava tornar-se doce:
. Ele no h-de ficar l muito tempo. E eu you
dizer minha patroa para vir fazer-te um pouco de companhia...
Jlia manteve-se silenciosa e com o mesmo ar indiferente.
Quando, depois de comer, eles se acercaram, pela segunda vez, da casa de Marreta
, esta continuava fechada e s escuras. Horcio examinou o seu relgio:
Se calhar, levaram-no tambm...
Tramagal no disse nada, pois havia pensado a mesma coisa.
Os dois caminharam at a ribeira, detiveram-se l um momento e volveram. E nesse vai
e vem andaram mais duma hora. De quando em quando, surgiam outros operrios, que
tambm frequentavam a casa de Marreta, mas, como o tmpo estivesse frio, retiravam-s
e.
Era quase meia-no^te quando, finalmente, o velho tecelo apareceu, acompanhado de
Joo Ribeiro, que lhe sara ao caminho.
Marreta olhou, mais uma vez, para trs, no fosse algum hav-lo seguido. Meteu, depois,
a chave na porta, acendeu o candeeiro e, perante a cara dos outros, que o fixav
am interrogativamente, disse:
No est nada perdido. A organizao est de P. Na Covilh tinha-se trabalhado bem, nestes
mos dias... Agora vai-se andar depressa, antes que acontea mais alguma c
oisa. No so precisas novas reunies e amanh todos os operrios sero prevenidos. A greve
depois de amanh...
Marreta falava com muita naturalidade e, no mesmo torn calmo e simples, responde
u s vrias perguntas (lue Tramagal e Joo Ribeiro lhe fizeram.
Ao ouvi-lo assim tranquilo, os confusos receios que Horcio tinha de vir a ser des
pedido da fbrica, de
244
A L E A NEVE
A L E A NEVE
* perder o seu novo lugar, de ser, talvez, preso tambq
desapareceram. Ele sentia, agora, um estado de es
rito diferente do dos dias anteriores. t|
Ao entrar em casa de Ricardo, para se deitl
encontrou l um grande silncio. Isso acontecia-ffl
muitas vezes, quando entrava tarde, mas, agora/g
silncio parecia-lhe maior e com maior vcuo, ca
maiores cavidades do que nunca. Ao subir as escada
tossiu propositadamente, esperando que ao seu ru|l
Jlia correspondesse com outro, para assinalar que ej
estava l. Mas o silncio manteve-se. Horcio acenda
a vela, despiu-se, tornou a apag-la, sempre com aqudj
mudez a pesar sobre a casa. aj
De manh, Jlia acordou-o com as trs pancada
no soalho, como de costume. Mas ele percebeu qul
l em baixo, ela trafegava mais lentamente do qm
nos outros dias. As prprias crianas dir-se-iam mu
comedidas do que habitualmente. l
Quando Horcio desceu, j a malga de caldo fumJ
gava sobre a mesa. Ele sentiu logo que Jlia no tinj
vontade de falar e tentou consol-la: (m
Provavelmente soltam-no hoje... -Jj
Jlia no disse nada. Mas logo que ele saiu, eUJ
ajeitou os cabelos, ps o xale e foi pedir a uma vizm
nh que lhe tomasse conta dos filhos. Depois, met"
mesma estrada por onde Horcio e os outros opm
rrios seguiam todos os dias. fj
Jlia ia andando e pensando que talvez quelsl
hora Ricardo no tivesse ainda comido nada. E qufi
esses buracos onde, segundo se dizia, metiam os pre-1
ss, podiam aumentar-lhe o reumatismo. Contra a vonej
tade dela, visionou Ricardo a contorcer-se com doresi
entre paredes negras, onde no havia luz e a humidades!
escorria. Jlia mordeu os lbios. Ela pensou, ento, querl
Ricardo era corajoso. Lembrava-se, subitamente, dei
vrios pequenos actos da sua vida, de vrios nadas, l
aos quais, nesses momentos, no dera importncia ' l
e de novo pensou que Ricardo era forte de nimo.1 j
Tornou a visionar o seu vulto contorcendo-se entre l
hmidas sombras mas ela, agora, estava calma. J
245
Ao chegar Covilh, Jlia entrou, resoluta, na esquadra de polcia e pediu que a deixas
sem ver o marido. Veio um guarda, veio um segundo, veio, por fim, o chefe. Peran
te a negativa recebida, Jlia insistiu.' Insistiu tanto, que, pelas mastigadas pal
avras de um e de outro, ela concluiu que Ricardo j no se encontrava ali, que a polc
ia tinha-o mandado para Lisboa e o acusava de andar incitando o povo para uma re
belio.
Jlia deteve-se, um momento, a fixar os guardas com os seus grandes olhos, agora n
ublados. A sua boca ainda se entreabriu, como se fosse falar, mas logo ela volto
u as costas e saiu, muito embrulhadita no seu xale negro.
Quando chegou a casa, colocou sobre a banca o corte de fazenda que havia princip
iado a esbicar na vspera. Mas os olhos mal viam os resduos vegetais que a l prendia
; a ateno andava longe, o trabalho no avanava e a mo que sustinha as pinas detinha-se,
muitas vezes, como inerte, sobre o tecido.
A alpardinha, quando Horcio volveu da fbrica, Jlia disse-lhe:
Levaram o RicardoXpara Lisboa... J sabe? Ele fez um sinal afirmativo. Desde manh,
todos
os operrios sabiam que a polcia havia metido os presos numa camioneta, conduzi
ndo-os, primeiro, para Castelo Branco e, dali, para a capital. Jlia continuou:
Voc tem de arranjar outro quarto para si. Eu no sei quanto tempo o Ricardo andar po
r l. E eu no posso viver aqui com um homem solteiro, enquanto
0 Ricardo est na cadeia... O povo podia comear a murmurar e eu no quero.
Surpreendido, Horcio balbuciou:
Est bem... Irei embora... desde que essa a sua vontade... Mas de que vai vossemec
viver com toda esta crianada ?
Jlia no respondeu. Pela primeira vez, aps a notcia da priso do marido, duas lgrimas su
rgiram ns seus olhos. Em frente dela, a velha Francisca,
246
A L E A NEVE
surda e cega, sentada beira do lume, parecia dor com o gato no regao e o rosrio ca
indo-lhe das rn esquelticas.
VIII f!
1 *
':
A-* greve comeou, efectivamente, na quinta-feifi Quando Horcio saiu de casa,
a manh most*( va-se muito lmpida. Um milhafre planava, lentamen sobre um dos flanc
os da aldeia e dir-se-ia haver uj luz de domingo. fl
Horcio estava ansioso de ouvir os companheira nesse dia em branco que lhe parecia
a mais na si" vida. Mas em redor da casa de Ricardo no se vj ningum. Apenas alguma
s galinhas bicavam a teriaj a um canto. Tudo o mais jazia em quietude, J
Logo, porm, que dobrou a ruela, Horcio ouvi rumores de vozes e divisou grupos de op
errios qul falavam e gesticulavam muito. Ao aproximar-se, conu preendeu que eles
discutiam, exaltados. Mais alns Tramagal gritava:
So uns malandros! No h direito duma cois* destas! O que eles precisavam que ns lhes
partial semos a cara! ,;J
Mas o que que aconteceu ? perguntou Ho rcio. l
Cada vez mais excitado, Tramagal no lhe deva
ateno. Foi Belchior quem lhe explicou ter-se sabidoa
h pouco, que muitos operrios no haviam abando
nado o trabalho. Na vspera, parecia que s meia
dzia deles discordava da greve; mas, de manh, veri-j
ficara-se que o nmero dos "amarelos" era maior do J
que se imaginara. 'A
Tramagal propunha, agora: f
Vamos l! Vamos l met-los na ordem! l
Outros homens avanavam viela acima, entre os j
velhos pardieiros, e falavam tambm acaloradamente,! j
A L E A NEVE
247
por toda a parte se ouviam palavras de desdm e de
indignao ,..,...
Informado do que se passava, Horcio dirigiu-se a casa de Marreta. No caminho, cru
zou-se com outros grupos mais calmos, mas que avanavam j para a estrada da Covilh.
Malheiros, que ia num deles, disse-lhe :
Vamos ver como aquilo anda por l. No queres
vir tambm ?
Horcio desejava ouvir, primeiro, a Marreta.
J l you respondeu.
Quando chegou a casa do velho tecelo, a porta encontrava-se fechada. Mas l dentro
algum fazia discreto rudo. Horcio bateu. O rudo deteve-se, houve um silncio, como que
uma hesitao. Horcio bateu de novo. Sentiu, ento, uns passos.
Quem ?
No era a voz de Marreta.
Quem ? tornaram a perguntar. Horcio reconheceu a voz de Joo Ribeiro.
Sou eu... Eu, Horcio. A porta abriu-se.
Ah, s tu! Entra.
Joo Ribeiro no parecia- tranquilo. Fechou outra vez a porta.
O Marreta no est disse, depois, mais sereno. Foi a correr para a Covilh, por causa
desses ranhosos que esto a furar a greve.
Sobre a pequena mesa viam-se os livros de Marreta, alguns deles j embrulhados em
velhos jornais. Joo Ribeiro seguiu o olhar de Horcio e explicou:
O Marreta no teve tempo de tirar isto daqui. Pediu-me que lhos guardasse em casa
da minha irm. Como ela viva, se a polcia vier meter o nariz por ai> com certeza no i
r a casa dela...
Joo Ribeiro avanou para a mesa e acabou de embrulhar os livros.
. Tu podes ajudar-me a lev-los disse. E deP!s iremos Covilh, se quiseres... Olh
ou Horcio e acrescentou: Eu quero ir.
248
A L E A NEVE
* A irm de Joo Ribeiro morava do outro lado n aldeia. Eles deixaram l os pacotes e
meteram estr^ da Covilh.
Horcio viu que muitos operrios faziam o mesa
caminho. Alguns, dos mais jovens, tinham envergai
os seus fatos de domingo, mas marchavam apressaxi
mente, como se fosse dia de trabalho. ,'-j
Pouco depois, avistaram a Covilh. i
As primeiras fbricas estavam fechadas. Ento, 4
que iam aperaltados diminuram o seu passo e com
aram a avanar devagar, gingando, com o chapa
inclinado a uma das bandas. Eles olhavam para l
portes cerrados e, ante a quietao e abandono dl
edifcios, sentiam uma confusa volpia em passar ai
em passar assim lentamente, como se tudo aquiM
pela primeira vez, dependesse deles, como se tudo aquiM
sem eles, tivesse de estar assim parado, assim moiii
como nesse dia. J
Logo, porm, que desceram mais a estrada para i
Carpinteira, Joo Ribeiro e Horcio viram grande ajtui
tamento em frente da Fbrica Levante. '
com certeza acol disse Joo Ribeiro, -m
No me admira nada: na Levante e na Renovado"
houve sempre "amarelos". l
Entre os que se aglomeravam na estrada, em frenti
da fbrica, havia muitos operrios da Covilh, homenl
e mulheres, e com eles j se encontravam tambnl
Belchior e Tramagal. Ouvia-se zoeira de protestos m
de discusses junto do grande porto fechado e cada
vez se juntava mais gente, descida da cidade. m
Quem so eles ? perguntou Joo Ribeiro, aj chegar. l
Horcio ouviu citar nomes. E depois: J
J se foi Covilh, falar com as mulheres deles)j para elas lhes virem dizer que larg
uem o trabalho..;! Mas parece que a polcia prendeu os que foram l Covilh. Agor
a, o Marreta est l para dentro, a veil se consegue alguma coisa. Mas isso consegue
ele l Aque-1 ls foram sempre uns sem-vergonhas... s a
Chegava, de momento a momento, mais gente. J
A L E A NEVE
249
E com ela, veio a notcia de que o "comit" da greve havia sido preso tambm, depois d
e apresentar aos patres um novo pedido de aumento de salrios. Homens e mulheres ex
altaram-se mais. Em frente do porto, centenas de bocas gritavam:
Marreta l Marreta l Deixa l esses traidores \ Dir-se-ia no haver ningum na fbrica. N
enhum
vulto assomava s suas muitas janelas. No se via nada vivo. Mas quando a multido se
calava, ouvia-se, distintamente, o rudo dos teares a trabalharem l dentro. Junto d
o largo porto de ferro, espera de Marreta, o povilu impacientava-se, vozeando as s
uas discordncias. E estavam todos assim, quando apareceu, subitamente, na curva d
a estrada, vindo da Covilh, um copioso grupo de polcias, que se deteve em frente d
os grevistas.
Armados de pistolas e de carabinas, os guardas e o tenente seu comandante ordena
ram:
Daqui para fora, j! Daqui para fora! Homens, mulheres e j*arotos-aprendizes hesit
aram
um instante. Depois, algum se lembrou de perguntar:
Daqui para fora, porqu ? No fizemos mal a
ningum!
Palavras ditas, a multido largou em apupadas e assobios polcia, enquanto alguns do
s guardas continuavam a mandar:
Daqui para fora, j disse!
Ningum obedecia. E a surriada aumentava. Ento, o comandante da polcia, sentindo-se
desrespeitado na sua autoridade, tornou-se sobrecenho e ordenou que fosse preso
quem mais se destacava no escrnio e na gritaria. Vendo a deciso dos guardas ao lev
arem a carabina cara, de novo a maioria hesitou. Mas havia
05 que, no alvoroo provocado, tinham perdido receios e instintos defensivos e, de
nervos soltos, prosseguiam na assuada. A esses, alguns polcias iam prendendo, pr
otegidos pelas suas armas e pelas dos colegas.
Entretanto, o porto abria-se, o tenente e dois guardas entravam e, pouco depois,
volviam, trazendo entre eles a Marreta. E logo se viu marcharem estrada alm,
250
A L E A NEVE
* ladeados pelos seus captores, duas dezenas de hontejj
de mulheres e de adolescentes. ,^j
A multido, surpreendida e vacilante, calou-se, nfijj
pois reagiu e tudo se passou rapidamente. Operrfl
e operrias corriam pela estrada, atrs dos seus, m
iam presos. Berravam e protestavam e, chegados^!
cidade, em todos os casebres das ruelas proletra
soaram vozes de levantamento: ia
Mandam-nos para Lisboa, depois para a com
de frica e nunca mais os veremos! *
Eram, sobretudo, as mulheres que gritavam assei
e outras mulheres, tirando a panela do lume ou ddj
xando os filhos, somavam-se s primeiras e iam fazeis!
rabiar o alarme e a revolta de porta em porta. rm
Mal os presos haviam sido aferrolhados na cadefflj
instalada, como a esquadra da polcia, no rs-do-cfaia
do velho edifcio filipino que a Cmara Municipal oca
pava, j a multido surgia ali em frente, no PelourinJ
enchendo de gritos toda a praa. E cada vez engrossavj
mais, mulheres atrs de mulheres, sempre mais mm
lheres. 'fil
Queremos os presos! E queremos po para (m
nossos filhos! m
O comandante da polcia veio porta, viu aquela
massa ululante e considerou que, se se estabeleces"
luta, ele e os subordinados seriam vencidos. Num inl
tante, alinhou, de carabinas aperradas, os seus homenll
em frente da esquadra e telefonou para a Guardai
Republicana e para o Batalho de Caadores Dosfl
pedindo urgente auxlio. rtf
O vozeario continuava. As mulheres berravam sen>ffl
pr mais alto e incitavam, com palavras e gestos, o$l
homens mais tmidos. Horcio sentiu-se empurrado pelas l
costas: ''<!
Vamos l! Vamos tir-los da cadeia! "]
O Pelourinho andava em obras, para alargamento*1!
da sua rea e as pedras do calcetamento amontoa-"!
vam-se aos cantos da praa. Enfurecidas mos femini- J
nas agarravam-nas e arremessavam-nas sobre a polcia. \
De repente, desembocaram ali soldados do exr- |
A L E A NEVE
251
cito e da Guarda Republicana, luzindo metralhadoras. A praa fora cercada. A multi
do deu conta do acontecido, hesitou uns segundos e continuou a avanar para a cadei
a.
Quero o meu filho! Quero o meu homem! Queremos os nossos presos!
Queremos po! E a voz isolada logo se multiplicou e se repercutiu por t
oda a praa: Po! Po! Po!
Postados junto das metralhadoras, boca das ruas, os soldados do exrcito e da Guar
da Republicana viam, de sorriso frio e amarelo, o mulherio avanar, vociferante. M
as hesitavam em abrir fogo, que o prlio era com a polcia e s para a polcia as pedras
e as apstrofes se dirigiam furiosamente. De sbito, porm, um tiro soou. Batido por
certeira pedra, mesmo porta da esquadra, um dos polcias apontara, em desforo, a su
a carabina e um rapaz cara com uma perna traspassada pela bala. Ao seu grito suc
edeu um unssono grito de dio da multido inteira. E viu-se, ento, homens e mulheres q
ue caminhavam para o assalto cadeia, volver seus passos e correrem, encolerizado
s, sobre a esquadra de polcia. Um outro guarda, perante essas cabeas desvairadas,
que se aproximavam dele numa onda de raiva e de clamor, meteu a carabina cara e
levou o dedo ao gatilho. E foi nesse momento, em dois segundos apenas, que tudo
aquilo se metamorfoseou. O tenente que comandava a polcia, ao ver o gesto do subo
rdinado, deu um salto sobre ele. A sua mo no teve tempo de tirar-lhe a arma, mas i
mpeliu, num gesto brusco o cano para cima, desviando a pontaria. Ouviu-se um tir
o, dois, trs, que o polcia, tambm em desvario, continuava a fazer fogo. Mas as bala
s Jam altas, perdiam-se no ar.
A multido odiava o tenente. Fora ele quem, duas horas antes, mandara prender home
ns e mulheres junto do porto da fbrica. E, mesmo antes disso, corriam sobre ele hi
strias de brutezas, de impulsos do seu carcter violento. Mas, agora, perante o seu
inesperado gesto, a multido, surpreendida, amolecia de repente.
252
A L E
A NEVE
* Os que avanavam, enfunados, detiveram-se; o fulg
do dio que havia nos seus olhos esmoreceu, os se
rostos contrados duramente adquiriram outra expcj
so e um sbito, um imenso silncio, dominou toda
praa. Dir-se-ia que, aps esses poucos segundos, un
gratido colectiva substitura o rancor. Aproveitaaj
aquele amortecimento, o tenente estendeu os braoss
arengou. Que fossem para casa, que tivessem juzo, ca
aquilo s lhes podia trazer desgraas. Ele no quej
fazer mal ao povo, mas tinha de cumprir o seu devj
Ele no podia soltar os presos sob ameaas de ningui^
Ele tinha de entreg-los aos seus superiores e s d
seus superiores que poderiam mand-los em paz. >J
Falava em torn paternal e os operrios, habituada
a v-lo faanhudo e autoritrio, amoleciam ainda man
ao ouvi-lo falar assim. aj
Que pensassem bem as coisas volveu a dizer. n|
No viam que, se todas aquelas espingardas e metrJ
lhadoras disparassem, morreria muita gente ? Ele nl
quisera, at agora, dar ordem de atirar, mas seria obril
gado a faz-lo se teimassem naquela atitude. E pani
que servia, afinal, tudo isso ? Depois do que se paaj
sara, ele, como j dissera, no podia, s por sua voai
tade, libertar os presos. Contudo, ia interessar-se'pan
eles, junto dos seus superiores, para que nenhum mal
lhes acontecesse. Mas que ningum visse naquilo unffl
sinal de fraqueza e sim apenas o seu desejo de evitaaj
derramamento de sangue. .-ri
Desarmado, em frente dos polcias, cujas carabinas!
fizera baixar, no eiradozito que havia junto da esquaf-J
dra e que dominava toda a praa, o tenente deu contai
do efeito das suas palavras e, depois, abalou parai
dentro do edifcio. - i
Muitas das mulheres comoveram-se. Entretanto, j
haviam chegado mais soldados, mais metralhadoras, l
Viam-se, agora, armas em todos os lados da praa, j
Alguns operrios ainda barafustavam, mas j a mui'- j
tido se dividia em grupos, que discutiam entre si, l
e uns e outros comeavam a retirar-se, de passos vaga- j
rosos, vencidos. Das janelas que abriam sobre o Pelou- j
A L E A NEVE
253
rinho, as cabeas curiosas, que tinham retardado o seu almoo para assistir quela cen
a, principiaram tambm a desaparecer. Pouco depois, a praa volvia ao seu aspecto no
rmal, enquanto nas ruas as mes e as mulheres dos presos iam chorando a caminho de
suas casas.
A greve prosseguiu. Todos os dias se viam, no Pelourinho e no jardim, grupos de
operrios que, antes, s se reuniam ali, quelas horas, em dias dominicais. Ora falava
m entre eles, ora se calavam longamente, de olhos parados, como se assistissem p
assagem do tempo invisvel, que vinha do fundo dos tempos e ia para os horizontes
onde se abrem as auroras. Ao cabo duma semana, a populao da Covilh j se habituara a
ver aqueles grupos nos extremos dos passeios ou encostados s paredes, vestidos de
escuro e espera.
Na Aldeia do Carvalho, os homens esperavam tambm, mas os sinais exteriores de gre
ve eram menos perceptveis do que ali. Os operrios metiam-se em casa, conserta isto
, conserta aquilo, reparaes que nunca tinham encontrado tempo e disposio de nimo para
fazer, ou dobravam-se, de enxada nas mos, sobre as courelas arrendadas. Apenas a
s mulheres, que, com um embrulho debaixo do brao, iam cidade mais frequentemente
do que antes, lembravam a existncia da greve.
Como sucedera a Ricardo, a Alcafoses e a Cristino, tambm Marreta e os outros pris
ioneiros haviam sido conduzidos para Lisboa. Ao saber isto, logo no segundo dia
do movimento, Joo Ribeiro dissera a Horcio:
Uma vez que a Jlia no te quer em sua casa, e como eu tenho a chave da casa do Marr
eta, tu podes lr iormir para l.
Horcio mudara-se nessa mesma tarde. Mas os operrios haviam deixado de se reunir al
i. Reuniam-se agora, todas as noites, em casa do Tramagal. Escutavam os que tinh
am ido cidade e demoravam-se a discutir as notcias que eles traziam. Na Covilh con
s-
254
A L E A NEVE
A L E A NEVE
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* titura-se um novo "comit". Mais uma vez, porm,!
industriais haviam declarado ser-lhes impossvel ata
der as reivindicaes. Que tivessem pacincia, mas ej
no podiam elevar os salrios, porque o governo c<|
tinuava a no lhes permitir elevar o preo dos tecidg
O governo entendia que, se se cedesse, cair-se-ia mjj
crculo vicioso, pois o aumento de salrios provocar!
fatalmente, um aumento do custo de vida, prejudcj)
para todos. Assim, a nica promessa que podiam faj
era no despedir quem houvesse tomado parte 14
greve e isto se no se desse qualquer novo inciden
A casa de Tramagal estava cheia quando se comed
tou aquilo. Tramagal disse: -i
Os industriais perdem ainda mais dinheiro ajj
que ns. E, salvo esses malandros que no aderiras!
por toda a parte os camaradas esto firmes. EsperemoJ
A mulher de Tramagal olhou-o, ao ouvi-lo falJ
assim. Ele sentiu esse olhar e tomou uma expressa
mais dura. J
Esperemos! repetiu, como se respondesse J
mulher.
Quase todos pensavam da mesma maneira. E outraJ
noites e outros dias se esgotaram sempre naquela expeal
tativa. 'id!
Na Covilh, os homens continuavam a formar griMJ
ps na Praa do Pelourinho e no Jardim Pblico. E aJ
mulheres cantarolavam mais do que outrora nas suas
casinhotas. Mas era um cntico nervoso, to nervos]
e to distrado que no as fazia esquecer aquilo erni
que elas no queriam pensar. Nos caminhos enlameai!
dos encontravam-se, agora, mais pegadas femininas di
que masculinas e os proprietrios dos cafs populardsl
verificavam, preocupados, que o seu negcio minguava!
de dia para dia. J
O segundo "comit" fora preso tambm e nas ruas!
da Covilh viam-se passar, a toda a hora, patrulhas I
da Guarda Republicana. Alguns industriais tinham par" f
tido para Lisboa e Coimbra, aproveitando aquele for- l
ado descanso. E os que ficaram no davam mostras l
de querer novas negociaes. Ao fim da tarde, as ando- l
rinhas pousavam nos fios telegrficos e quedavam-se a ver de alto a cidade. Outras
, com a sua cabecita redonda, entretinham-se a coar o colo, l em cima e com o cu po
r cima delas.
Uma noite, Malheiros trouxe a notcia de que Covilh cada vez chegavam mais polcias v
indos de Lisboa. Os homens que se reuniam em casa de Tramagal ouviram aquilo e no
estranharam, pois recordavam-se de que tinha sido quase sempre assim. Mas logo
as suas caras se abriam num sorriso de vingana ao saberem, por Belchior, que na c
idade se formara um terceiro "comit". Dizia-se, tambm, que os operrios de Gouveia,
de Unhais da Serra, de Arrentela e at das longnquas margens do Vizela iam dar a su
a solidariedade aos dali. Fiassem l ou algodo, todas as fbricas txteis do pas paralis
ariam em breve.
Horcio ouviu Tramagal exclamar:
Veremos se, assim, os industriais continuam a cantar de alto! O que nos faltava
era justamente a solidariedade de todos os camaradas. Se a tivssemos tido logo d
e princpio, isto j teria acabado!
Nessa noite os homens saram com novo alento. E, de manh, as mulheres levaram de su
as casas, suspirando menos do que das outras vezes, as ltimas utilidades domsticas
.
Desde ento, todos os dias homens e mulheres se levantavam com aquela esperana. Mas
o tempo passava e a notcia to desejada no chegava nunca. Soubera-se somente que a
polcia andava azafamada em Gouveia, em Unhais da Serra e noutras terras. Perante
isso, Malheiros comeara a duvidar, contra a opinio de Tramagal, que teimava:
A polcia no pode prend-los a todos, nem as fbricas vo ficar paradas toda a vida! Eles
devem ir Para a greve, por que no ? Eles tm toda a vantagem em fazer greve ao mes
mo tempo que ns.
Joo Ribeiro chegou nesse momento. Vinha da Cvilh e informou que a polcia havia proib
ido as casas de penhores de emprestarem mais dinheiro sobre objectos pertencente
s aos grevistas.
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f O candeeiro dava uma luz difusa. Mal ilumnadg e assim imveis, as caras pareciam,
mais do que nunca talhadas em granito. A cabea de Belchior dir-se-s um busto de
pedra, corroido pelo sol e pela chuva nos beios do qual um garoto colocara uma po
nta dj cigarro apagada. Subitamente, uma voz rompeu o si lncio: *
Querem render-nos pela fome! Querem matan -nos fome! A ns e aos nossos filhos...
j
Durante alguns segundos ningum disse mais nada Depois, todos comearam a bradar, ao
mesmo tempei palavras de clera. Duas dezenas de homens estavaai ali e os seus ol
hos fulguravam e as suas bocas conl traam-se duramente. l
Sim, a ns e aos nossos filhos e ns no fazemos nada! Ns no nos defendemos! l
A mulher de Tramagal estava sentada a um canta e Horcio viu que os seus olhos se
humedeceram. 1 Os homens saram dali excitados. C fora, eles olhai ram a noite e
spessa, olharam, com dio, o caminha da Covilh e pensaram no que fariam no dia seg
uinte! No dia seguinte, porm, averiguaram que a polcia no interviera naquilo. Se al
guns penhoristas se havianl recusado a emprestar mais dinheiro, era porque
oaj derradeiros trapos que as mulheres dos operrios lhes levavam no tinham, para e
les, valor. J
Essa verificao no s apaziguara os mais exal-I tados, como deixara, no esprito de muit
os, um sbitol vcuo, ao secar aquele dio suplementar que l havia! brotado. '\
Entretanto, a greve mantinha-se. A esperada soli-ii dariedade de outras terras no
se efectivara, mas osl operrios da Covilh continuavam a formar grupos, j como a
t ali, no Pelourinho e no Jardim Pblico. ' J Nos seus casebres, as mulheres ha
viam-se tornado! to azedas como os homens, mais ainda, pois enquanto eles, somb
riamente concentrados, cada dia falavam menos, elas cada vez falavam e
protestavam mais. Empenhado tudo quanto dava algum dinheiro, esta, aquela e aq
ueloutra cobriam quilmetros sobre quil-
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metros para ir a Cortes do Meio, a Teixoso, a outras distantes aldeias, pedir, a
um parente pobre como elas, um pouco de po que as ajudasse a manter os filhos e
o marido. Mas, nos dias imediatos, a carncia surgia de novo, porque abundantes er
am apenas as necessidades e aquelas chuvas primaveris, que de quando em quando c
aam, dificultando os movimentos e enchendo os casebres, as ruas e as prprias almas
de maior enervamento. A princpio, se as crianas se tornavam pedinchonas e irritan
tes, as mes castigavam-nas colericamente e disparavam-lhes pragas, como era de se
u costume. Mas, com o decorrer dos dias, foram deixando de bater nos filhos. s ve
zes, perante as impertinncias destes, ainda elas, mal-humoradas, levantavam os br
aos; logo, porm, aquele sbito pensamento as detinha e as mos que se haviam erguido,
num gesto de ira, desciam, vencidas.
Uma tarde, a mulher de Tramagal prevenira-o:
Amanh no temos nada para comer. As crianas vo rebentar de fome...
Pois que rebentem! respondeu ele, com um torn furioso.
noite, Tramagal parecia ainda mais inflexvel do que fora at ali:
So uns ces! So uns ces! vociferou, quando soube que alguns operrios da Covilh haviam
retornado o trabalho. Parece que s eles tm preciso! E os outros ? Os outros ?
Pena tenho eu de haver vendido a minha espingarda! Porque o que eles precisava
m...
Nenhum dos presentes acreditava que Tramagal fosse capaz de fazer o que ele prpri
o sugeria. Ningum acreditava, mas as suas palavras pareciam dar maior gravidade a
o acto dos outros. Os homens sorriram primeiro e, depois, quedaram-se num longo
silnC1o. Entretanto, os olhos de Tramagal, muito incendidos, iam examinando cara
por cara e, finalmente, detinham-se detinham-se e demoravam-se sobre Palheiros
e sobre Horcio. Este suportou-os um momento e acabou por baixar a vista, maldisp
osto, pois
9 Vol. Ill
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desde h dias paiecia-lhe que Tramagal julgava qd ele era pela capitulao. l
Uns miserveis! Uns tipos sem nenhuma verga nh e que desconhecem mesmo os seus inte
resses! -J tornou Tramagal. por causa deles que os indul triais levam sempre a
melhor. >i
No vale a pena fervermos em pouca gua, pm so raros os que tm pegado no trabalho int
ervM Belchior. A grande maioria aguenta-se. ver qd das fbricas que fecharam logo
no primeiro dia, airwl nenhuma reabriu. Os que tm voltado so dos qaj trabalhavam
em fbricas onde houve sempre "ama relos". J
Tramagal pareceu ficar mais calmo. Afirmou mesral que no voltaria Covilh enquanto
aquilo durassw para no perder a cabea. VJ
Na noite seguinte, porm, ele enervou-se novamentffl ao saber que mais alguns operr
ios haviam renunciada a continuar em greve. J
porta das fbricas h, agora, muitos mam guardas-republicanos do que antes,
para garantirerJ a liberdade do trabalho...informou Malheiros. -J E parece
que o "comit" vai dar a greve por finda..!
o "comit" que vai dar a greve por finda oa s tu que o desejas ? berrou Tramagal.
l
Criara-se, subitamente, grande discusso. E Malhei! ros sara amuado. ijj
De manh, ao contrrio do que afirmara, TramagaH dirigiu-se Covilh. <1
No jardim continuavam os grupos de operrios" Mas j no apresentavam o mesmo aspecto
dos pri-1 meiros dias. Embora o tempo no houvesse aquecido!! quase todos eles est
avam sem sobretudo e, se alguifll o envergava ainda, era o abrigo to velho, to rot
oi e esfiapado que, mais do que de homem vlido, dir*_ -se-ia de coxo pedinte de e
strada. v
Tramagal comeou a andar de grupo para grupo) De todos ouvia a mesma coisa. Ningum
afirmava; mas todos diziam que "parecia que o "comit" ia da: ordem para se voltar
ao trabalho". '
E vocs ?
A pergunta criara repentinos embaraos. Alguns barafustaram, pondo-se ao lado de T
ramagal; outros mantiveram-se em silncio, sob esse cansao que se via nos seus olho
s, no seu todo, como se eles houvessem passado as ltimas semanas no em cio, mas num
permanente labor. Todos pareciam de acordo com Tramagal, mesmo os que no falavam
; todos, porm, sentiam que aquilo era j inevitvel.
Tramagal dirigiu-se ao Pelourinho. Tambm l havia, como nos dias anteriores, numero
sos ajuntamentos de grevistas. Mal ele comeou a protestar, Silvano, que era tido
como um tecelo inteligente, muito gabado por Marreta, e que pertencia ao novo "co
mit", puxou-o para um lado e disse-lhe:
Ns vamos sem querer, claro. Mas o pior para eles que, justamente, ns vamos sem que
rer ir, que ns vamos contra a nossa vontade... Compreendes?
Tramagal no compreendia. Ouviu aquilo, ouviu mais explicaes, mas no se convenceu. E,
ao fim da tarde, tendo-se reunido a outros discordantes, levantava os seus irad
os punhos e agredia, sobre a rampa da Carpinteira, alguns dos operrios que haviam
retomado o trabalho.
Era quase noite quando um grupo de guardas-republicanos atravessou o Pelourinho,
levando-o a ele e aos seus companheiros para a esquadra.
Foi numa segunda-feira. Os homens comearam a descer da Covilh, uns ao lado dos out
ros, uns atrs dos outros, em negras filas. Ningum dizia nada. A manh estava spera e
eles marchavam de cabea baixa, contra o vento cortante.
Pela estrada da Aldeia do Carvalho chegavam outros operrios homens e mulheres, e
las embrulhadas
6in esfarrapados xales, eles de golas levantadas. Tambm vinham em silncio e, medid
a que se aproximavam, iam caminhando mais lentamente, esmoendo
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* a sua humilhao de vencidos. Todas as fbricas estq
vam abertas, como nos dias normais, antes da grev<
A nica diferena que nos portes e sobre a prprj
estrada se viam numerosas foras da guarda republ
cana, umas a cavalo e outras a p. Os guardas falava]
entre eles e fingiam que no davam conta do que ei
seu redor se passava. j
As sereias soltaram o primeiro apito e os operris
foram-se acercando mais. Depois, os vultos escuros de
homens e das mulheres comearam a transpor os poi
toes, sempre calados. j
Em breve, as sereias davam o ltimo sinal e log
chegava c fora o rumor das mquinas, que haviai
recomeado a trabalhar.
Alguns guardas-republicanos, que eram tambi pobres e tambm tinham dificuldades em
suas casa; olharam-se entre si, sorriram de satisfao e acende ram os seus cigarros
. i
TERCEIRA PARTE
A CASA
I
J-NJORCADOS nas fatiotas domingueiras, barba feita, este e aquele de flor na lap
ela, convidados e padrinhos iam chegando, enquanto a senhora Gertrudes, auxiliad
a pela tia Madalena e por Arminda, andava em trafega incessante, da sua cozinha
para o forno do Belisrio e do forno para a cozinha, em preparao de cabritos e coelh
os.
s onze horas, todos os homens presentes, levando no meio deles a madrinha, o tio
Joaquim e Horcio, largaram Eir abaixo, a buscar a noiva em sua casa.
Ao alcanarem a porta, de dentro rompeu segundo grupo: vinha Idalina e os seus pad
rinhos, o tio Vicente, mais homens e mais mulheres. De xale e leno negros, saia e
blusa, faces coradas, Idalina sentia sbita vergonha ao olhar para Horcio em frent
e dos outros. ^las j os dois bandos formavam um s e, trilhando a ruela, avanavam pa
ra a igreja.
L, aos ps do abade, eles ouviram o que entendiam e o que no entendiam, responderam
"sim" quando *i preciso e encontraram-se casados. O encarregado
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* do registo civil estava tambm presente e foi o primeijj
a desejar-lhes felicidades. ^J
C fora, farejando ddiva de moedas, aglomera
vam-se garotos e umas velhas que lanaram punha
dos de flores. Idalina ia, agora, ao lado de HorcS
e sempre que avistava, a um lado e outro do cair"
nho, algum a olhar, sorridente, para ela, voltava |
sentir-se envergonhada, como se a vissem no ali J
sim noutro lugar, nua em vez de vestida dos ps ata
a cabea. l
Ao entrarem no Eir, algumas raparigas da vizjl
nhana debruaram-se nas suas janelas e atiraram!
tambm, flores. Todas, porm, contemplavam sem alvm
roo o cortejo, porque os convidados eram poucos, om
noivos pobres como elas prprias e demasiado aa
nhada, para se poder danar, a casa onde a boda sfl
efectuava. M
A senhora Gertrudes j havia conseguido assar OM
cabritos quando o filho, a nora e seu acompanhamentql
chegaram. Os homens agruparam-se a um lado, am
mulheres a outro, parolando enquanto Arminda cohJj
cava os ltimos pratos sobre a grande mesa feita (19
vrias mesas emprestadas. r dl
L fora havia um fulgurante sol de Junho, masl
vaga era a luz que entrava em casa. De janelico aberto*
para maior claridade, homens e mulheres sentaram-saj
a comer. Quando falavam pouco ou se calavam, oui
viam-se as lamrias dos mendigos que, sabendo di
festim, iam chegando e reunindo-se, l em baixo, nfflj
rua. Eram tantos e to persistentes nas solicitaes em
nos lamentos que a senhora Januria, para os ouvir!
menos, pedira licena senhora Gertrudes e fechara;!
a janela. Entretanto, com o vinho, os homens iarnti
graolando cada vez mais, menos os padrinhos, que l
entendiam ser de sua obrigao mostrar-se austeros l
enquanto estivessem junto dos noivos. l
A meio da tarde, j as mulheres se haviam reti- *
rado, para volver hora da ceia, os homens separa- '
ram as mesas e comearam a jogar as cartas, bebendo \
sempre. Foi ento que Arminda teve a ideia de levar \
Horcio e Idalina para sua casa e l, onde havia maior espao do que ali, cantarem e d
anarem. Como os convidados eram quase todos velhos, sem fervores para bailaricos,
ela bateu as redondezas em busca de rapazes e raparigas. Poucos arrebanhou, por
que a maioria labutava ainda, quela hora de sbado, nas fbricas ou nos campos; os ra
ros que vieram danaricaram at s oito da noite, em volta do Francisco Silveira, que
tocava a sua harmnica. Depois tornaram ao lugar da boda e, de novo, comeram e beb
eram.
J passava da meia-noite quando a senhora Januria disse filha:
So horas de irmos, pois amanh tens de te levantar cedo...
E, em seguida, ela e o tio Vicente partiram, levando Idalina. Arminda trocou um
olhar atrevido com Horcio e os ltimos convidados largaram novas chocarrices, "por
em noites daquelas ser caso de arreliar ir a noiva com os pais, em vez de ficar
na cama com quem de direito".
Finalmente, a senhora Gertrudes viu, na sua casa, apenas o marido e o filho, com
o antes de este casar. Moda muito embora pela faina que tivera, ela no resistiu e
ps-se a manusear o dinheiro que padrinhos e convidados haviam oferecido, como os
bons usos mandavam. Contou, ao todo, duzentos e oitenta escudos e concluiu, pesa
rosamente, que aquilo nada era em relao s despesas feitas, ali, em Manteigas, com a
boda e o senhor vigrio, e na Covilh com a casa para onde o filho ia morar. E, ento
, pensou que escolhera mal os padrinhos, pois se houvesse falado aos Fonsecas, c
omo queria o tio Joaquim, estes, decerto, dariam muito mais. com tal ideia ela s
e deitou e no pde dormir. Ouviu cantar os primeiros galos e quando ia, enfim, pega
r no sono, o despertador tocou. Sentiu Horcio mexer-se na cama, no quarto ao lado
, e, depois, levantar-se. A senhora Gertrudes ergueu-se tambm, para lhe aquecer u
ns restos de cabrito e uma pinga de caf de caf que comprara de propsito para essa
manh.
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s sete e meia, as duas famlias estavam junto a
camioneta que ia partir para Belmonte. O condula
ps no tejadilho o ba de Idalina e dois sacos de bail
tas, oferecidos, na vspera, pelos convidados que na
haviam dado dinheiro. O sol branqueava j os cuml
da serra que envolvia, como uma muralha, a vila m
Manteigas; e na igreja de Santa Maria os sinos toam
vam para a missa de domingo. j
Horcio e Idalina despediram-se dos pais e sura
ram. A camioneta arrancou, deixando a senhora Gel
trudes encostada ao tio Joaquim e com duas lgrima
nos olhos. Velha que era, sabia que levando HorcS
a Idalina, ela no tornaria a ver to cedo o filho. Qia
s por ela, que o criara, ele no voltaria tantas vezflj
como at a. '-l
Entretanto, na camioneta, muito chegado a Idsi
lina e com o brao sobre os ombros dela, Horcio sel
tia-se feliz. O veculo ia avanando e ele semicerraV
os olhos, sempre com aquela gula que o queimava!
sempre com aquela nsia de que o dia se esgotas"
depressa e viesse a noite, para ser mais feliz aindaj
Duas horas corridas na estrada e chegaram estdi
co de Belmonte. A camioneta de Manteigas s vinh"
ali uma vez por dia, quela hora, buscar o correia
que o comboio de Lisboa trazia. E o comboio descenfl
dente, que os deixaria na Covilh, s s cinco da tarcM
passaria ali. t"
o raio esta falta de transportes l lamentora
Horcio. Termos de sair to cedo de casa, paraq
afinal, perder o tempo aqui! J por causa disto, etti
e o Serafim Caador nos vimos gregos, aquela noiteff
na serra! -1
com tantas horas livres, Horcio decidiu arrecadar l
ba e sacos na estao e ir vaguear com Idalina no J
picaroto de Belmonte. Como a vila e seu velho roqueiro j
quedavam distantes do caminho de ferro, os dois diri* l
giram-se vagarosamente para l, ele com um dos bra- ij
cos na cintura dela e os olhos parecendo boiar em
seiva. Nas ladeiras do povoado, se enxergavam vulto j
humano sua frente, cortavam logo em oposta direc- ;
co, porque, nesse dia, s a eles prprios desejavam ver.' E, assim, atingiram e se pu
seram a deambular pelos solitrios meandros do castelo, mais atentos s sombras e re
cantos das antigas muralhas onde pudessem apertar-se e beijar-se, do que aos pan
oramas que de l se escortinavam em larguezas de pasmar.
Almoaram numa taberna de Belmonte e, a meio da tarde, havendo entestado a sua vag
a curiosidade at a remota Torre de Centum-Cellas, ali, no meio dos campos, ele no
se contivera mais e consumara, em poucos minutos, a sua ambio de tantos anos, de t
antas noites de insnia e de imaginao.
s cinco horas estavam, de novo, com o ba e os sacos junto do caminho-de-ferro e, u
ma hora depois, o comboio deixava-os, finalmente, na estao da Covilh.
com um carregador, Horcio discutiu o preo do transporte dos sacos de batatas para
casa, pois o ba lev-lo-ia ele prprio. Idalina interveio, afirmando que, em vista da
quilo ser to caro, ela levaria o ba e ele um dos sacos. O outro ficaria guardado n
a estao e, depois, viriam busc-lo. Horcio considerou que isso seria o melhor, j que o
carregador lhe pedia mais do que ele ganhava em meio dia de trabalho na fbrica.
No quis, porm, que Idalina andasse com carregos logo naquele dia, que era o verdad
eiro dia do seu casamento, pois na vspera cada um tinha ido para casa dos pais.
longe...disse. So quase dois quilmetros e sempre a trepar.,.
No faz mal! declarou ela, resoluta. Eu levo o ba!
Pouco depois, os dois subiam as ngremes rampas que do acesso Covilh, ele vergado so
b o saco de batatas, em cima do qual pusera, dobrada, a jaqueta nova; ela de ba c
abea, onde levava as suas roupitas de noivado e umas louas que lhe oferecera a mad
rinha.
Quando entraram na rua Azedo Gneco, negra e tortuosa como as demais da vizinhana
que eles haviam
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atravessado, iam ambos ofegantes, estafados. Idali" deteve-se e colocou o ba no c
ho: "Ufa!" Hordl pousou tambm o saco e ps-se a limpar o suor Sfl testa. __ i<m
um bom bocado, no te dizia eu ? Mas, agotS a casa est perto. Fica logo a adiante. -
;"
Um velho corcovado vinha avanando na rua. HaB rcio reconheceu nele o Manuel da Boua
, mas finai" no o ver. O velho, porm, ao acercar-se deles exclamoM
Ol, rapaz! J no h quem te ponha a visy| em cima! examinou Idalina e, depois, pergun
tou" Horcio, em voz baixa: J casaste ? esta a rapJ| riga de quem falavas ? .ji
Aquela presena maldispunha Horcio. Ele conhM cera Manuel da Boua h pouco tempo ainda
. ConhaB cera-o pouco depois de as autoridades de Lisboa tereM afinal, decidido s
oltar todos os operrios que havia" sido presos durante a greve, menos Ricardo e A
lem foses. Marreta regressara ao seu casebre e Horcio pas sara a viver na Covilh, p
ara ir preparando a casjjl que alugara para si e para Idalina. Manuel da Bou^B m
orava no sto do mesmo pardieiro onde HorciM tinha um quarto com vrios rapazes de Cor
tes do Meio" que trabalhavam tambm nas fbricas e dormiam todoij juntos, para pagar
menor aluguer. Era encarregado dal limpeza de um armazm e, s vezes, Horcio apiejl
dava-se do seu destino, vendo-o assim velho e acabados sem parente algum na Covi
lh e mal ganhando par" comer. Mas no lhe aprazia falar com ele, porque, afflj ouvi
-lo, ficava descorooado, pois Manuel da Boui no acreditava no futuro e falava sempre
mal dosj homens e da vida. Contava que tivera uma casa e | tivera terras e perd
era tudo porque quisera viver me-(-i lhor do que vivia. E que haviam sido outros
homens >; que lhe tiraram quanto era dele. Que atravessara oss mares, rolara po
r terras distantes, trabucara como um negro e nunca amealhara nada, porque em to
da a parte existiam homens que tinham mais poder do que outros e ficavam com tud
o quanto podiam. Depois, andara aos trambolhes em Portugal, de uma banda
para outra, a ver se ainda levantava cabea. Mas nunca o conseguira. Cada um s trat
ava de si e no se importava com os demais. At a sua filha e o seu genro o haviam d
esprezado, quando souberam que ele no trouxera vintm l das terras por onde andara.
Aquilo no tinha remdio algum e havia de ser sempre assim. Os homens eram como eram
e no havia jeito a dar-lhes. Quem tinha sorte, tinha; quem no a tinha, que rebent
asse! Ali mesmo, na Covilh, onde viera parar com os ossos, se no o punham no olho
da rua porque ningum faria mais barato o trabalho que ele fazia no armazm. E ainda
porque, sendo o dono podre de rico, no queria, certamente, que o criticassem por
haver despedido um pobre diabo que no tinha onde cair morto e s ganhava cento e c
inquenta mil ris por ms.
Tambm eu fui como tu afirmava, frequentemente, a Horcio, com desagrado deste.
Tambm eu pensei, como tu, fazer alguma coisa na vida e, como vs, acabei para aqui
, neste estado. E olha que trabalhei a valer!
Manuel da Boua repetia tanto as suas descrenas e amarguras, que Marreta, quando, u
m domingo, viera ali e o ^conhecera, dissera, depois de o ouvir falar:
um vencido, porque perdeu todas as esperanas. S os que no tm nenhuma esperana so
ncidos como ele.
Agora, Manuel da Boua, esfarrapado e de barba crescida, voltava-se para Idalina,
fazendo um gesto largo, a indicar a cidade:
Ento a menina gosta disto ? Idalina sorriu:
Sei l! Cheguei agora mesmo...
Ah, ento nunca tinha c vindo ? Olhe, se precisar que lhe faa algum trabalhinho l em
casa, algum recado, estou s suas ordens. O Horcio sabe onde
moro.
Porque continuava a molest-lo a presena de Manuel da Boua, Horcio pegou no saco e fe
z o movimento de partir. Mas o outro, ao ver Idalina vergar-se tambm, para erguer
o ba, interveio:
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Deixe l menina, que eu levo-lhe isso. l Idalina olhou para ele e, ante o seu corp
o decrpito!
recusou: !
No preciso, muito obrigado. Isto pesados tem louas dentro... J
Ora! Ora! Posso com ele, vai ver! D-mo cal com esse vestido novo, at no fica bem
menina levar um ba cabea... J
Horcio pensou: "O que ele quer eu bem o seil
O que ele quer ver se lhe dou alguma coisa". Ma
Horcio sentia desejos de ser gentil com a mulhel
naquele dia de npcias e disse-lhe: <J
D-lho. J que o quer levar, que o leve. E elei
prprio auxiliou Manuel da Boua a pr o ba sl
costas. r]
com o velho frente, de passos lentos e hesitantes]
sob aquele peso que lhe dobrava ainda mais o tronco!
j dobrado pela idade, os trs comearam a trilhar ai
ruela. l
A casa que Horcio alugara ficava quase em frente j
do quarto onde ele se tinha acomodado desde que sara 3
da Aldeia do Carvalho. l
aqui... j
Manuel da Boua j havia pousado o ba e, en- j
quanto Horcio metia a chave, Idalina olhava a por- j
tit humilde do rs-do-cho, olhava a parede suja e j
escalavrada, fendida no primeiro piso, toda a cair de i
velhice. Ela mirou, depois, em derredor, em busca de j
melhores habitaes. Mas toda a rua proletria, sufo- j
cada em sua estreitura, era assim negra, assim velha, |
assim pobre, pingando tristeza e imundcie. Enfezadas j
e rotas crianas, de cara mascarrada, brincavam no j
lajedo, entre ces e gatos; e, sentadas s portas trreas, j
esqulidas mulheres esbicavam cortes de fazenda e i
velhas desmelenadas pareciam beber com os olhos j j
amortecidos a ltima luz do dia, enquanto outras j
seguiam, curiosas, os movimentos do casal recm-che- j
gado. 1
Manuel da Boua ajudou Horcio a meter em casa l
o saco e o ba e despediu-se: 1
Desejo-te boa sorte, meu rapaz!
Horcio deu-lhe uma moeda e, depois, ps-se a riscar fsforos, porque, embora o sol lu
zisse ainda no cu, no interior do casebre havia uma obscuridade que mal deixava d
ivisar as coisas.
Logo que acendeu o candeeiro, Horcio fechou a porta e correu a abraar e a beijar a
mulher. Teve-a, assim, alguns momentos, contra o peito, e, quando a largou, ela
viu-se entre uma quadrazita de paredes to velhas e enegrecidas como as exteriore
s. Ao fundo, estava a cama de ferro e a mesa-de-cabeceira; ao centro, uma mesita
e duas cadeiras, tudo isso j muito usado. esquerda, havia uma arca de pinho e, d
ireita, o fogo, que semelhava tambm uma mesa, com cobertura de tijolo e, neste, do
is buracos para o brasedo. S a cantareira era nova, branquejando ainda as suas tbu
as sem pintura. Nela Horcio tinha metido as tigelas, pratos, garfos, facas e colh
eres que julgara indispensveis para eles dois. Em baixo encontravam-se uma panela
, um tacho, um alguidar e nada mais.
Idalina olhava, lentamente, a quadra. E Horcio seguia, atento, esse exame, ansios
o de obter aprovao, porque fora ele quem, nos ltimos meses, andara, de uma banda pa
ra a outra da cidade, em busca de mveis em segunda mo, dos mais baratos que pudess
e haver.
Que tal ? perguntou.
Est bem... respondeu Idalina. E acrescentou, com ternura: Tens pena de no ter a
casita nova, de que falavas, no verdade ?
Claro! E no tenho razo ? Ora dize l: no era bem melhor virmos logo para uma casinha
nova como eu queria e que depois fosse boa para os nossos filhos ?
L isso era, no h dvida. Mas deixa l... A gente h-de viver. E o principal a g
te dar-se bem...
Ela falava assim, meigamente, mas tambm ela se havia acostumado ideia dele e sent
ia, agora, uma sbita melancolia. "Aquilo ali era ainda pior do que o Eir, de onde
ela vinha" pensou.
270
A L t A N E \ L
A L E A NEVE
271
j, Tambm verdade que isto provisrio vq
vu Horcio. s at estarem prontas as casas qi
a Cmara mandou fazer... Depois mudamo-nos psa
l. o que vale! Porque l passar a vida metido acpj
isso no quero eu, isso no! "<
Horcio avanou para a mesa-de-cabeceira, qj
ele s adquirira porque o dono da cama no quiseg
vender-lhe esta sem aquela. E, pondo a mo em ciou
do traste, disse: ij
Resolvi comprar isto... Que achas? m
Ele sentia, nesse momento, vaidade pela aquisia
j que, fosse em Manteigas, fosse na Aldeia do Gaal
valho ou ali, os pobres no usavam aquele mvej
metiam o vaso de noite sob a cama. fl
Idalina repetiu: cm
Est bem... iJ
Por sbita ligao de ideias, ela voltava-se, agora
para um lado e outro, como se procurasse algo qul
faltava. A casa, diviso nica, tinha apenas uma porta
e um j anelo de dois palmos que abria sobre a ruas
Mas o olhar de Idalina insistia, como se no tivessffl
visto tudo da primeira vez, como se teimasse em de$i
cobrir, nas paredes, uma porta falsa, uma porta ocultaflj
que facultasse passagem para outro lado. fll
Horcio julgou adivinhar o que ela procurava "l
hesitou em explicar-lhe, em referir-se quilo, nesse prill
meiro dia da sua vida em comum. Muitas vezes, aol
falar com ela sobre a casa que ele desejava, lhe dissera*!
que queria uma casa com latrina pegada. Mas, agora?!
sentia um repentino pudor. Continuou hesitante, ata \
se convencer de que no podia deixar de falar daquilo. J
E foi titubeando, enchendo de reticncias as primeiras i
palavras, que disse: i
Bem... Necessria no h... l isso no... Aqui, j
nas casas dos operrios, quase tudo assim... A gente |
arranja-se como pode e, depois, vai despejar numa pi |
que est a, na porta do lado... Logo vs: tem uma 1
tampa de pau... ao p da escada que d para o .
primeiro andar, por mor de servir a todas as pessoas }
do prdio...
Tendo Idalina posto, pudicamente, os olhos no cho, como se ouvisse e no ouvisse, e
le procurou desculpar-se:
Eu bem quis alugar uma casa que no fosse assim, l isso quis, mas, para as nossas
posses, no encontrei. E ainda as desta rua so das melhores. Porque h umas, a para b
aixo, onde s existe uma pia para todo o quarteiro. Como as pias tinham de ser liga
das aos esgotos e isso era por conta dos senhorios, eles, para gastar pouco dinh
eiro, s mandaram fazer uma. As mulheres vm de longe, de uns ptios que h l para os fun
dos, fazer os seus despejos ali e, por onde passam, deixam tudo empestado. L havi
a uma casa para alugar, que era maior do que esta e pelo mesmo preo, mas eu, ests
a ver!, no a quis. Aqui, pelos menos, a pia est na porta dos vizinhos e s incomoda,
a bem dizer, aos que vivem c por cima de ns...
Como ele fizesse uma pausa, Idalina disse, com voz resignada:
you arranj ar as coisas que trouxe... Horcio olhou-a, inquieto:
Parece que no gostaste nada da casa... Tu no ests triste, no verdade?
No... Que ideia a tua! protestou ela, mas, contra sua vontade, a voz continuava
melanclica. E ia a dobrar-se, para abrir o ba, quando ele a tomou pela cintura e
a beijou de novo.
Deixa agora isso! Vamos, primeiro, comer e, quando voltarmos, arranjas a
s coisas.
Ento no comemos aqui ?
Hoje, no, pois no comprei nada para cozinhar. Vamos embora! Quero tambm mostrar-te
onde a Cniara est a fazer casas para operrios. Vers que stio bonito !
Rua em fora, Idalina ia vendo, dentro de cada Porta de escada, mesmo junto do li
miar, aquelas redondas tampas de madeira de que o marido falara. E parecia-lhe q
ue teria vergonha, muita vergonha de vir ali. Os dois dobraram para outra viela
e era sempre a niesma coisa. E sempre crianas farroupilhas, mulhe-
272
A L E A NEVE
9 res mondongas, velhas desgrenhadas, ces e gate vadios. j
Pensei que a Covilh fosse outra coisa... mui murou, agarrando-se ao brao de Horcio
. 3
A Covilh no s isto, minha tola! Tamb tem coisas bonitas, vais ver. Isto c dos po
Mas l para cima h casas que pem de cara bandi todas as de Manteigas, Depois vers. H
algumas qul so mesmo to boas como as que vi em Lisboa e ni Estoril. a
Vero andante, com duas horas adiantadas nora
mal, havia ainda poalha de sol para as bandas dd
Ferro e de Belmonte, quando eles entraram na Praa
da Repblica no Jardim. As altas tlias estavanl
carregadinhas de flores e o seu aroma enchia o vasta
terrao ajardinado que a cidade lanava, ali, sobre J
vale. Gente tarda, homens e mulheres, rapazes e rapad
rigas, sentados nos bancos ou transitando nas leasj
fruam o encanto vesperal, antes de ir jantar. il
Horcio atravessou, com Idalina, por entre eles e j
foi debruar-se nas grades que deitavam para o lado J
da Carpinteira. j
Olha, acol! disse. E apontava os Penedos i
Altos, numa suave declividade da outra margem dal
ribeira. acol que esto a construir as casas para l
os pobres. Vs ? um stio bonito, no verdade ? J
Idalina mirava as dezenas de paredes, ainda sem 1
cobertura, que se erguiam ao longe, em frente dela, l
e confirmava: l
muito bonito. l
Pois l que ficar a nossa... Vo construir por i ali acima, para os operrios da Covilh.

Idalina repetiu: J
um lugar bonito... Quando ficaro prontas? J
No sei, mas no deve demorar muito. quelas j que ests vendo, s faltam as obras de ca
rpinteiro, o J reboco e os telhados. Deve ser questo de poucos j mese
s... i
Horcio indicava, agora, um outro ponto, sua j esquerda:
A LA E A NEVE
273
Olha, ali a fbrica onde eu trabalho... Aquela grande, toda envidraada... Ests ven
do? As fbricas daqui so muito melhores do que as de Manteigas...
aquela que est assim um pouco de travs ?
No. Essa a do Alada. a outra, a que tem uma bandeira.
Ah, j sei.
Idalina demorou-se a contemplar o conjunto de construes fabris, que se exibia l em
baixo, junto da ribeira:
Horcio tornou:
para l que tu irs tambm. Quando pedi ao Mateus, que o meu mestre, para me dispensar
sexta-feira e ontem, aproveitei a ocasio e pedi tambm ao Felcio, que mestre da ult
imao, um lugar para ti... Para tu aprenderes a meter fios ou a esbicar, conforme o
que houver mais falta... E o Felcio ficou de arranjar isso, logo que possa. Horc
io sorriu, com esperteza: Pelo sim, pelo no, pedi tambm ao Marreta para falar a me
stres de outras fbricas... Assim, quando fores operria, ganharemos por dois lado
s...
J vrias vezes ele se havia referido quele projecto e ela, agora, escutava-o sem o i
nterromper. Os seus olhos passaram do grupo de fbricas para as casas do Sineiro e
do Sineirinho, postas mais acima, nas fraguentas curvas da Carpinteira.
Horcio insistiu:
E quando eu chegar a tecelo porque hei-de chegar a tecelo, custe l o que custar!
ganharemos ainda mais.
Tambm aquilo Idalina lhe tinha ouvido de outras vezes, embora com outras palavras
. Sorriu-lhe, com carinhoso assentimento, e os seus olhos voltaram s fbricas, ali
em frente, e das fbricas ao vale, grande Cova da Beira, que se estendia l em baixo
.
Gosto mais de Manteigas... disse Idalina, como se falasse consigo prpria.
que ainda no ests acostumada aqui. Isto tambm no feio. Repara no castelo de Belmont
e,
274
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* onde estivemos hoje. Agora volta-te. E indicandd
-lhe a parte mais alta da cidade: Olha as casas dj
que te falei h pouco. Vs ? Em Manteigas s h una!
que se lhes pode comparar: aquela nova, na Senhos!
dos Verdes. Estas tm tudo o que bom. Eu nund
entrei em nenhuma, est claro, mas todos garantea
que elas tm, l dentro, muitas coisas compradas en
Coimbra e Lisboa, coisas boas que no se vendem pm
aqui. Aquela, cor-de-rosa, com uma data de sacada
a do meu patro. Para mim a melhor de toda"
Ele no tem filhos, mas dizem que gosta de casal
grandes. s vezes, vm pessoas de Lisboa visit-lo i
ficam ali uns dias, antes de irem para a quinta qtm
ele tem l em baixo, no vale... li
Falando, parecia-lhe que, ao valorizar o seu patrdl
se valorizava a si prprio, perante Idalina. >j
E que tal ele ? 4 Horcio vacilou: J
Eu c no sei... S o vi duas vezes... Uns dizes! bem, outros mal. Mas que ele est por
cima de todos os outros industriais, no h dvida. H dois to fortl como ele, mas toda a
gente garante que o meu patr o mais esperto... J
Subitamente, Horcio recordou-se do olhar que Trfri magal lhe havia lanado no dia em
que Azevedo a Sousa entrara na fbrica com um suo e calou-sl maldisposto. "M
Vamos comer disse, depois, com outro torn dei voz. Vo sendo horas... l
Voltaram maranha das ruelas proletrias e abanai caram numa locanda. Terminado o j
antar e ao recebera o troco da nota que dera em pagamento, Horcio con-1 tou, vaga
rosamente, fazendo clculos, o seu dinheirofl Dos mil e duzentos escudos que pedir
a emprestado aOI Valadares, para pr a casa, restavam-lhe cinquenta em seis. com c
inquenta e seis escudos, Idalina podia faze| a comida at sexta-feira. l
Tranquilizado pelos seus raciocnios, estendeu mu* | lher a nota de Banco: l
Pega l... E como Idalina hesitasse em rece-l |
275
b-la: para fazeres, amanh, as compras, para a semana...
Regressaram a casa, descia j a noite.
Ao v-lo acender, de novo, o candeeiro, Idalina perguntou:
Ento, aqui, no h electricidade ?
O que no falta por a electricidade! Estas casas que no a tm...
Tornou a beijar Idalina, uma, duas, muitas vezes. Depois, saiu, um instante, cer
imonioso naquela primeira noite de casados; e demorou-se mais do que precisava,
para que a mulher dispusesse tambm de tempo. Voltou a entrar e beijou-a novamente
.
Ao despir-se, Horcio considerou a dificuldade. Na Aldeia do Carvalho, ele acordav
a com as trs pancadas que Julia costumava dar no soalho. E na Covilh, no quarto qu
e tivera com os rapazes de Cortes do Meio, havia um despertador, que era do Fane
ca. Ali, porm, carecia de uma e outra coisa. No que ele no tivesse pensado nisso, a
o pr a casa; mas, sempre temendo que o dinheiro viesse a faltar-lhe, no comprara o
despertador. Agora, era o diabo, porque ele no podia deixar de estar na fbrica ho
ra da entrada. Voltou-se para Idalina:
Tu costumas acordar cedo ?
Conforme...
Ento no tens a certeza ?
A certeza... a certeza, no tenho. L em casa havia um despertador e...
disso mesmo que eu preciso aqui! Tenho de estar a p s sete, sem falta, por causa d
o trabalho... E, se no me acordam, sou capaz de ficar para a ferrado no sono. No f
oi s por haver dificuldade em encontrar casa na Aldeia do Carvalho que eu vim par
a a Covilh. Foi tambm para ficar mais perto da fbrica. Assim, posso levantar-me um
bocado mais tarde... Eu gosto de dormir e no com grande vontade que de manhzinha d
eixo o quente...
Podes dormir descansado...disse Idalina. Pe o relgio a e dorme tua vontade. Eu a
cordo-te...
270
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
Tu no te importas de fazer isso ? j Tambm ela gostaria de dormir tranquila e sai
que, com aquela obrigao, no dormiria sossegai! mas respondeu prontamente: 4
No; no me importo. ?| Ele estava feliz e ansioso de se deitar, ansioso "|
apertar nos seus braos o corpo da mulher. Tudo'" mais que o preocupara at ali no ti
nha agora, pa| ele, importncia nenhuma, nenhuma importncia n rante o instinto supr
emo que o galvanizava. 4J
II
J\JA segunda semana de casados, sexta-feira, ele efl
tendeu ser prefervel dar-lhe o dinheiro de UM
s vez. Aos poucos, parecia que aquilo no rendia nadl
e Idalina estava sempre a pedir-lhe mais. Assim, tell
do-o ela todo sua guarda, talvez se enchesse de brifl|
e economizasse como era preciso. "m
Acabava de entrar, vindo da fbrica, e colocou fB
notas e as moedas sobre a mesa: j|
Pega l... Est aqui a fria. Eu fico s con|
vinte e cinco tostes, para cigarros. Doravante s t
que governas o dinheiro... Mas no deixes de pr dH
banda pelo menos vinte escudos por semana, para B
pagando a dvida ao Valadares. De trs em trs meses!
podemos entregar-lhe duzentos e cinquenta escudos n
ao fim de um ano, estamos quase quites com ele.HJ
Idalina pressentia que, por detrs das palavras a
marido, havia algo que ele no dizia, mas, ao mesmej
tempo, pareceu-lhe natural que fosse ela a administrai!
a vida domstica dos dois. Tambm em casa de seuSl
pais era a me quem punha e dispunha do dinheirqf
que l entrava para as despesas da famlia. " i
Horcio aconselhava: l
Em vez de comprares dia a dia, podes comprar j
277
de uma s vez o que for preciso para toda a semana, menos o que se estrague, est be
m de ver... Assim, poders comprar mais barato. Todos os sbados h o mercado grande,
onde se pode escolher mais vontade. por isso que as frias so pagas, aqui, sexta-fe
ira...
Farei como dizes declarou Idalina. E quedou-se lisonjeada com a autonom
ia que o marido lhe dava, pois dessa maneira j ela seria verdadeiramente mulher,
dona de sua casa, como a sua me e como as outras mulheres casadas. Esse estado de
esprito durou-Ihe, contudo, pouco tempo.
Na manh seguinte, indo ao mercado, ela obedeceu s indicaes de Horcio; mas na quarta-f
eira verificou que, sem tocar no dinheiro que reservara para o Valadares, no pode
ria comprar as sardinhas e as couves para esse dia. E, ento, arreliou-se: "Horcio
ia dizer que ela era uma desperdiadeira e ela no era desperdiadeira nenhuma, tinha
a certeza disso. O que lhe faltava, talvez, era prtica". Amofinou-se durante toda
a manh e, por fim, decidiu-se: no diria nada a Horcio e, na outra semana, puxaria
mais os cordes bolsa, para repor o que ia tirar agora.
No sbado, regateou com as vendedeiras, disputou todos os tostes e comprou menos do
que havia pensado. No domingo, ficou contente, porque Horcio jantara sem estranh
ar que ela no lhe desse, ao contrrio do que fizera no domingo anterior, um pedao de
carne de porco. Segunda-feira, porm, voltava a enervar-se. As sardinhas mudavam
todos os dias de preo e at as couves e os nabos tambm. E quase sempre era para Riai
s. Quando ela viera para ali, havia um litro de Petrleo e, agora, a garrafa estav
a vazia.
Idalina resolveu comprar menos po em cada dia: cern gramas que fossem, ao fim da
semana davam quase um quilo.
Uma noite, Horcio queixou-se:
O caldo tem pouco azeite...
que no reparei bem, ao botar... desculPou-se.
278
A L L A NtVE
De outra vez, ele notou: i J
Parece que andas sem apetite... V l norB cair doente! Comes como um passarinho... IJ
H
Ela apressou-se a justificar-se: tfl
No... Eu como bem... que enquanto esraB a arranjar a ceia, sempre you provando e
petiscancwH E, de po, nunca gostei muito... '
Ele caoou: -nM
s como os ricos, no querem ver ? $B Na terceira semana, ela tremia quando o niaraB
lhe entregou a fria. Dos quarenta escudos que t|l tara arrecadar para o Valadares
, tinha apenas dezo^M E Horcio prevenia-a:
verdade, esqueci-me de te dizer que tenjB de contar com sete mil e quinhentos p
or semana pafl a renda da casa. V l isso... /fl
Ela ficou gelada, primeiro a olhar para ele, deptfl a olhar para o cho. "Ele ia a
rrepender-se de ter casdM com ela, mas que ia ela fazer ?" Hesitou, desesperoraH
e, sem levantar os olhos, murmurou: H
O dinheiro no chega... No chega para daroH Valadares... tijH
Quando ela lhe disse, a seguir, que no consegu|H forrar, por semana, os vinte esc
udos de que ele falaiH Horcio irritou-se: txH
No percebo nada! No digo que os catdnM escudos que eu ganho por dia sejam
muito dinheiM no ; mas ns no temos filhos e os que os tm vivM com a mesma coisa. E ai
a h os que ganham meraM do que eu. Os pegadores de cardado s ganham dcaH escudos.
No percebo como gastas tanto! IB
Era a primeira vez, depois de terem casado, <]4I ele lhe falava com aquele torn
de voz. Idalina comeam a chorar: ^W
Eu no sei... Eu no sei como os outros fazen^w Tu pensas que eu no governo bem, mas e
u no possjlj fazer mais... Puxando muito, pode dar para a rendi da casa, mas, par
a o Valadares, no d de maneira nenhuma... Tu queres ver? Vai contando...
Ele sentou-se mesa e ela, limpando os olhos cofl!
A LA E A NEVE
279
as costas das mos, ps-se a rememorar: tanto disto, tanto; tanto daquilo, tanto...
J contaste ? E isto porque temos tido as batatas que trouxemos de Manteigas. Mas
esto a acabar...
com ela em p, ao lado dele, Horcio demorou-se em seu silncio. Depois disse, como se
se dirigisse a si prprio:
verdade que os pegadores de penteado, como eu, ganham mais do que os pegadores
de cardado, mas um pouco menos do que alguns outros operrios. um ofcio que se apr
ende depressa, mas tambm o salrio que se recebe mais pequeno...E voltando-se para
a mulher: bom! Vamos a ver se dou um jeito vida, que isto, assim, no pode ser!
Idalina ficou-se a olh-lo. Mas ele no disse mais nada. Voltou ao seu silncio, cabea
vergada sobre a mesa e as mos fazendo rodar, distraidamente, as moedas que ali se
encontravam.
A ideia de que tinham provindo as suas ltimas palavras desagradava-lhe fortemente
. E agora, depois de ouvir Idalina, muito mais do que at a, por aquilo se apresent
ar como uma obrigao. Desde os seus primeiros dias de fbrica, ele decidira aprender
tecelagem logo que chegasse a pegador de fios, pois os teceles ganhavam mais do q
ue os restantes operrios. Em vez de salrio fixo, recebiam conforme o nmero de passa
gens que as lanadeiras faziam nos teares e alguns havia que, ao fim da semana, ti
nham uma fria superior s dos outros obreiros melhor pagos. Alm disso, os teceles era
m, entre o pessoal fabril, os mais respeitados por mestres e industriais.
Quando, porm, chegara a pegador de fios, ele resolvera adiar a nova aprendizagem,
porque estava ansioso de casar-se e aquilo tomar-lhe-ia todo o seu tempo. Aps o
casamento, adiara mais uma vez, guloso de convvio com Idalina e daquelas horas de
sol que, nesses meses de Estio, havia ainda quando ele largava o trabalho. Agor
a, porm, no encontrava outra soluo. E marralhava consigo prprio: "Se estivessem no In
verno, com chuva ou neve, seria, por um lado, pior,
28o
A LA E A NEVE
A L E A NEVE
28l
mas ele no teria, pelo menos, saudades da vida" c de fora. Mas, com um tempo assim
bonito co estava e, ainda por cima, casado de fresco, metei na fbrica s oito da m
anh e s sair uma da mad gada, era duro de roer. Uma hora para chegar a c$ despir-s
e e deitar-se, outra para levantar-se, vesti| e chegar fbrica, s lhe restavam cinc
o horas pj dormir. E ele, nem mesmo dormindo oito, ficava sa: feito. Ento, ser ca
sado ou solteiro, era a mesma coi No disporia de tempo para viver com Idalina. l
no havia outro remdio. Aquilo tinha de ser, p tratava-se do seu futuro. E como tin
ha de ser, qual mais depressa fosse, melhor". --*
Ao levantar a cabea, encontrou os olhos de I\ lina, que, junto do fogo, onde acaba
ra de acende lume, o contemplava, sempre interrogativamente.
Que queres ? perguntou ele, ainda de r$ humor. 9
Eu c no quero nada... com timidez, aci centou: Que que tu pensas fazer ?
No sei ainda... Depois se ver... E, ergui do-se da mesa, ps-se a transitar na casa
, de um Ia para o outro, de mos nos bolsos e a assobiar eneri damente.
No dia seguinte, ao sair da fbrica, Horcio recajM cou as ltimas hesitaes e, como se a
pagasse a lufl do sol que ele, antigo pastor, gostava de encontrar iflfl fora, d
epois do trabalho, abordou Mateus. O mest"| ouviu-o, carrancudo como sempre que
lhe solicitavaM alguma coisa; e, em seguida, prometeu: '"B
Falarei ao senhor gerente, a ver se ele qtiefi escrever ao Sindicato, a pedir aut
orizao... 4
Fico-lhe muito obrigado... <4 Mateus fez um gesto de quem recusava o prernatf
turo agradecimento: >>
Ainda falta ver se h algum que queira tra
balhar s de dia, para voc poder trabalhar sempre de noite...
Horcio balbuciou:
O Boca Negra diz que no se importa... Que at lhe faz jeito...
O mestre pronunciou, ento, a frase ambgua com que costumava responder a todos os p
edidos:
Hei-de ver isso...
Horcio saiu. Boca Negra aguardava-o na estrada.
Que tal ?
Ele contou-lhe o seu dilogo com Mateus e o companheiro mostrou-se optimista:
No tarda quinze dias, tens o carto do Sindicato. Teceles desempregados no h. O que h s
os velhos, que ningum quer. Portanto, o Sindicato no se ope. E na fbrica tambm no h
empeno. Se fosses ganhar mais do que ganhas, ento seria outra coisa. Mas tu, enqu
anto aprendes, continuas a ganhar o mesmo e sempre prestas alguns servios na tece
lagem. No tarda quinze dias, vais ver! No te importes com a cara que o Mateus fez.
..
Um momento, ao subirem da Carpinteira para a Covilh, Horcio desejou que Boca Negra
estivesse enganado e o Sindicato demorasse a autorizao, que assim ele ficaria em
paz com a sua conscincia e poderia aproveitar, junto de Idalina, aqueles fins de
tarde
estivais.
Boca Negra, porm, no se enganara. Na semana imediata, o Sindicato e o Instituto do
Trabalho permitiam-lhe a aprendizagem e Mateus dizia-lhe, com simplicidade:
Pode comear amanh.
Ele balbuciou um agradecimento e sentiu-se infeliz. Quando, ao chegar a casa, de
u a notcia a Idalina, ela lamentou tambm:
A vida, assim, no tem jeito nenhum! Dezaszete horas por dia metido na fbrica de ma
is! E eu fico aqui sozinha...
Para no entristecer a mulher, ele nunca quisera confessar-lhe quanto aquilo lhe c
ustava. Mas parecia
i
282
A L E A NEVE
A L E A NEVE
283
que Idalina adivinhava o que ele sentia, pois ela cHi a mesma coisa que ele tinh
a dito, muitas vezes, ajl prprio. \
s um ano...atenuou.Ao cabo de dj ano, estou pronto. Muitos teceles fizeram-se assi
n" Ganhavam a vida de noite, para poder aprendei V
Ora! Nunca me tinhas dito que, para aprenaj rs tecelagem, era preciso isso... "
preciso, . E um favor que os patres faze" pois quem passa todo o dia na fbrica, qua
ndo chejl a trabalhar no turno da noite j est cansado e ill d o mesmo rendimento...
Foi o que o Mateus im disse e est-se a ver que verdade... li
Idalina insistia: J
Ainda se eu j tivesse, tambm, trabalho... M"B assim... Assim sozinha no meio de qu
atro paredeslj quase sem conhecer ningum daqui... 'J
Bem... Ns estaremos juntos todos os domiij gos... Temos todos os domingos
por nossa conta;B E um ano depressa se passa... Trabalho para ti, taMJ bem se h-
de arranjar. L na fbrica no sei quandl ser, mas l ou noutra parte arranja-se, com cer
tea Ainda hoje o Marreta me disse que havia tornado""" falar ao mestre da Renovad
ora... -J
Como a mulher continuasse atristada e num silndH resignado, ele passou-lhe a mo pe
las faces: m
Deixa l... um sacrifcio, claro que ! Majj vale a pena! Ganharei mais e a nossa
vida melhtM rara... Temos de pagar ao Valadares e de forrar alguma coisa, porque
, quando formos para a casa dos Penedi Altos, precisamos de mais mveis... Precisam
s de p" aquilo bonito, por dentro. Mudou o torn de voz ff Anda, vem da! Vamos
dar uma volta, para espaiM recer... .r
Tenho de tratar da ceia... Ele encolheu os ombros:
bom! Ento you eu...
Sentia necessidade de ar livre, daquele sol que havia l fora, para alm do bairro p
roletrio, e que ele ia
deixar de ter. Saiu. Venceu, primeiro, as sinuosidades da rua Azedo Gneco, depoi
s as da Rui Faleiro. E ia falando sozinho: "Tem de ser... Tem de ser..." Quando
entrou no Pelourinho, j l havia numerosos operrios, que vinham, ali, todas as tarde
s, parolar um pouco, entre a sada das fbricas e a hora do jantar, como nos dias em
que tinham estado em greve. De longe, Horcio reconheceu a muitos deles, mas no te
ve ganas de se aproximar. Sentia-se de mal com tudo e mesmo consigo prprio. Corto
u direito s Portas do Sol e 'l, no velho miradoiro, com motoristas a discutirem at
rs dele, espraiou a vista. Havia sol no vale: via-se at o Fundo, at as Donas, mas el
e no via o sol. Via apenas o interior da fbrica, ele e as mquinas da fbrica, o dia e
a noite na fbrica, onde o sol no entrava e onde ele tinha saudades do sol. Contin
uava a olhar sem ver o vale ensoalheirado. Por fim, os seus olhos fixaram a coli
na que estava em frente, com o convento de Santo Antnio em cima e, mais abaixo,
a figura da Senhora da Conceio, sobre alto plinto. Ele lembrou-se, ento, de que se
dizia e estava mesmo l gravado numa pedra que quem visse de longe aquela image
m e lhe rezasse trs Ave-Marias receberia muitos favores celestes. Encostado ao pa
rapeito, decidiu rezar. Hesitou. Tinha tantas coisas a pedir, que no sabia bem qu
al devia pedir primeiro. Operrio j ele era e j estava autorizado tambm a aprende
r para tecelo. Aquilo de passar os dias e as noites metido numa fbrica estrag
ava a vida de um homem, mas ele precisava daquilo. "Bem; podia pedir que a sua v
ida melhorasse, sem ele dizer como, pois Deus que sabia como devia ser". E ia j a
dobrar os joelhos quando se recordou de que os cardeais e bispos, cujos
nomes estavam inscritos aos ps da imagem, prometiam facilidades, mas era para a v
ida no cu e no para a da terra. Ento, ele pensou que uma coisa nada tinha a ver com
a outra. E disparou dali, cada vez mais entristecido. Tornou a atravessar o Pel
ourinho e foi batendo os sapatos pela Rua Direita. Ia andando e monologando: "No
h mal que sempre dure, nem bem que
284
A L E A NEVE
A L E A NEVE
285
*no acabe. Se eu estou mal, ainda h outros que estj
piores do que eu". Repetia as frases que Manuel P|
xoto, um dia, na serra, lhe havia dito que eram bei
para quando algum desanimava; repetia-as, mas eU
no o consolavam. Pensou nos homens que estava!
na cadeia, com a barba por fazer e todos cheios
piolhos; pensou no Ricardo, que ainda estava proa
na famlia dele e no Ravasco, que morrera. E cadj
vez ficava mais triste, mais aborrecido, ao contrail
do que Manuel Peixoto lhe dissera, quando lhe enJ
nara aquilo... J
Desembocou em frente da igreja de S. FranciS
e, dali, meteu ao jardim pblico. L ao fundo, jurnj
das grades, mirou os Penedos Altos. A construo da
casas progredia. E isso deu-lhe uma sbita satisfaa!
a primeira dessa tarde. Logo, porm, que os seus olha
encontraram a fbrica onde ele trabalhava, voltou m
enervar-se. Naquele dia a fbrica era-lhe odiosa e l
ele parecia-lhe que s se sentiria bem longe dali, nm
sabia onde, longe, num lugar indefinido. j]
Decidiu voltar para casa e ps-se a trilhar a ala
meda central do jardim. Grupos de velhos, encarqial
lhados e de fatos pudos, conversavam em volta dl
coreto. Eram os destroos humanos das fbricas, aquM
ls que as fbricas despediam assim que os seus corpcj
denunciavam fadiga e menor capacidade de trabalh|
seres to inteis para a indstria como os resduGJj
vegetais e minerais que as mquinas separavam daffl
ls para deitar fora. A um e outro, mais felizesaj
ainda um filho, que prosseguia, nas fbricas, o trabalhi
iniciado h sculos pelos prias seus maiores, prorroffl
gava-lhes, precariamente, a velhice, dividindo com elesi
o seu po. A maioria, porm, falha, por isto e porf
aquilo, do apoio da descendncia, tinha apenas a sexta1"!
-feira como alvio. Nesse dia, palmilhando negras ruelas/J
entravam no Sindicato, casaro to senil como eletf j
prprios e onde, outrora, em livres tempos, se gritara,1' l
muitas vezes, que todos os homens eram irmos e 1
riqueza social a todos pertencia. Escada acima e, depois, ,
arrastando-se na vetusta sala, velhos e velhas forma- \
escur<? cortejo, costas dobradas pelos anos, mos Emulas t>ocas entreabertas pela
respirao que a bida tr1113- opressa, caras de linhas rudes, de esculturas a pic^o. a
s Iaces enrugadas e, nas cabeas, humildemente Descobertas, desgrenhados cabelos b
rancos. Eles e ela^ ^am avanando a passos inseguros, sobre o soalho, i-t que, l ao f
im, um empregado, luzidio de juventude, entregava, em nome da Caixa Sindical, vi
nte esc-^os a ca(ia um- De novo o cortejo, com modos de prstito fnebre, se movia. V
elhos e velhas voltavam a Passar nas vielas proletrias, de sapatos rotos de rouPa
s rotas, caminhando em direco a outras escoas, noutros bairros, as escadas dos ant
igos patres t7ara quem eles haviam trabalhado toda a vida. Algi-115 industriais, e
vocando obrigatrios contributos a c"fganismos de assistncia, no davam coisa alguma;
<?utros, porm, j se sabia, davam todas as sextas-feir^s dez tostes.
Tudo gomado e depois repartido pelos sete dias a
viver eJ^a a fme- E, ento, os velhos e as velhas
passavam a ludibriar o estmago e o tempo, aguardando a n)Va sexta-feira, enquanto
iam morrendo lenta e premati?11^11161^6 Por mngua alimentar. Todos eles pensavam
no Albergue e todos o temiam, porque o Albergue era a antecmara da morte, o fim d
o fim, o fjm cor^fessado a eles e a todos. Tanto, porm, a misria o^ espremia, que,
muitos deles, no podendo resistir-lh^ niais, dominavam os seus terrores e porta
do Alber^ue iam> um ^a' t>ater. Mas tambm l no havia esp^1?0 Para e^es- Aquilo esta
va sempre cheio e, muitas v^zes> quan(io a morte levava um dos internados ia alg
uns dos candidatos ao seu lugar tinham
morrido t^ambm-
O sol ^ra nico amigo. Encafuados nas suas tocas durante o^3 invernos nevosos, na
Primavera e no Vero os que dispunham de melhores roupitas ajuntavam-se, em gfupc^
s de trs e quatro, no jardim da Praa da Republic^-' <lue' a certas horas do dia, s
e tornava um jardim de invlidos, mesmo em frente das fbricas onde eles havi^1111 t
rabalhado dezenas de anos a seguir. Ali
286
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* havia sol e havia, sobretudo, o caminho que os am
rrios vlidos trilhavam ao regressar do seu lamj
Estes constituam, para os velhos, a esperana de uj
moeda em dia de fria, de um cigarro noutros "
de uma promessa, pelo menos, quando no tinl3
tambm, nem cigarros, nem dinheiro. 3
Agora, ao divisar os vultos decrpitos em redor"
coreto, Horcio tentou passar de largo, fingindo na
ter reparado neles. Mas j de um dos grupos saa
Paredes, que, agarrando-se a uma bengala, se acercai!
chamando-o! >"
Horcio! Horcio! E quando esteve perto}JB
O Boca Negra disse-me, h pouco, que vais aprenoB
tecelagem. Fazes bem! Fiquei contente por saber isfl
Ests novo; ests na fora da vida. Fazes bem! QuiB
me dera estar na tua idade! 44JB
O Paredes, que enviuvara h pouco, nunca >|B
pedia nada, mas ele j sabia o que o velho ambicSB
nava quando lhe saa ao caminho. Meteu a mo "
bolso e deu-lhe cinco tostes. /fl
Paredes continuou a desejar-lhe felicidades e, anl
mesmo de ele se afastar, dobrou-se e apanhou a ponlB
de cigarro que tinha visto no cho enquanto falar]
Horcio entestou, novamente, s ruas proletriaiB
Aquele encontro com o Paredes, que lhe lembrava
dia em que o velho fora despedido e ele entrara itfl
fbrica pela primeira vez, deixara, no seu esprito, uM
novo rasto de enfado. Parecia-lhe ouvir ainda a vddB
de Tramagal a recrimin-lo, como se ele tivesse algumW
culpa. sal
Nas ruelas que Horcio trilhava estavam, con!
sempre, quela hora, no Vero, mulheres sentadas tfi
portas, aproveitando a ltima luz diurna para esbicamj
ou meter fios em cortes de fazenda. De passagem, elel
salvara uma e outra a Paula, a Josefa, a Guida, '&1
Procpia companheiras de operrios seus conhecidos^ i
Depois de saudar a ltima, Horcio teve, de repente/ i
aquela ideia e volveu atrs. Procpia morava a doa l
passos da sua porta e, como as outras mulheres, encon-f l
trava-se sentada na soleira, a trabalhar. Horcio lanou J
287
pedido. A Procpia, que havia deixado de esbicar ra Q ouvir, tornou a pegar nas pi
nas quando ele concluiu e disse com desenfado:
Que ela venha.
Ao entrar em casa, Horcio comunicou a Idalina:
Lembrei-me de falar Procpia, para ela te ir ensinando a esbicar. Assim vais ganha
ndo tempo e, depois, chegas mais depressa a operria. E at te entretns. A Procpia sim
ptica e parece-me boa vizinha. Achas bem? Eu lembrei-me disso por tu dizeres que
ficavas muito tempo sozinha, agora que you passar dia e noite na fbrica...
Eu acho muito bem. Tanto mais que quero ganhar, quanto antes, alguma
coisa, para ajudar as despesas da casa.
Horcio tirou o chapu e sentou-se mesa para cear satisfeito com a resposta da mulh
er.
Mateus colocara-o junto de Marreta, o mais antigo dos teceles. Ao lado, trabalhav
a o Dagoberto, de corpo seco e cabea to calva e esticada que, em vez de cabea, seme
lhava um grande ovo posto sobre os ombros. Para alm dos seus teares, outros teare
s havia, dezenas de teceles laborando continuamente.
Horcio regozijava-se por ser Marreta quem ia ensinar-lhe a tecer. Desde que sara d
a Aldeia do Carvalho, s hora do almoo, na fbrica, e num ou noutro raro domingo em q
ue o velho tecelo aparecia na Covilh, os dois conversavam. Mas no era a mesma coisa
, nem com o mesmo tempo folgado de quando se reuniam, noite, em casa de Marreta
ou caminhavam para a Aldeia, de volta do trabalho. E ele comeara, ultimamente, a
sentir falta, no sabia bem porqu, daquelas palavras sobre a vida deles que o amigo
costumava dizer, sobretudo quando os dois estavam sozinhos. Continuava a descre
r das largas vises e afirmaes de Marreta, mas a confiana que este tinha no futuro
288
A L E A
NEVE
A LA E A NEVE
* confortava-o de indefinida maneira, embora ele |
masse em opor-lhe as suas dvidas. Atribua, porej
amizade e ao feitio de Marreta, sempre pronWl
desculpar os companheiros e a interessar-se por tocH
essa sensao de alvio que, muitas vezes, dele receia
nas horas apoquentadas. Parecera-lhe, todavia, ca
Marreta no tivera contentamento igual ao dele quantj
naquela manh, o vira chegar com Mateus e pr-se i
lado do seu tear. Essa frieza., que tanto o surpreendei
durara, porm, um migalho de tempo apenas. Loj
o velho retomara o seu sorriso afectuoso e dera-sei
instru-lo sobre o funcionamento da mquina: i
Estes fios ao comprido so os da teia, que egl
montada acol, ao fundo. Os fios passam por aquelj
buraquitos que os arames das perchadas tm. As pl
chadas so aquelas coisas que parecem pentes. Mas l
que se chama pente do tear outra coisa: isto aqj
Ests vendo? Agora repara: umas perchadas sobem
outras descem ao mesmo tempo. Assim, uns fios ficai!
por baixo e outros por cima. E ento a lanadeinj
passa de travs por entre eles, metendo o fio da trama
com sucessivos rumores secos, pausados, o tear difl
-se-ia autnomo de vontades humanas, todo entregt<|
obsesso dos seus movimentos rpidos, sempre iguaij
e mal permitindo a Horcio fixar as operaes qiM
Marreta lhe ia explicando: ~m
Agora, as perchadas com os fios que estavam pffl|
cima foram para baixo e as de baixo vieram par"
cima. A lanadeira tornou a passar, cruzando o fio quil
ela leva. cruzando o fio da lanadeira com os da teian
que se fazem os tecidos... Percebeste? ;m
Ao olhar para a cara do discpulo, Marreta com?i
preendeu ter sido intil a lio. Sorriu indulgente*!
mente e volveu a repeti-la. Por fim, declarou: i'l
Isto no difcil, mas o melhor tu ires vendo, l
S com o tempo podes aprender. Porque no s o l
que o tear faz; tambm o nosso trabalho. Se hou- j
vesses nascido na Covilh, decerto terias ido Escola l
Industrial e serias j um tecelo feito. Assim, tens de J
te fazer por ti prprio... E eu sei o que isso custa! j
289
Tambm aprendi como tu e, nesse tempo, tudo era pior. Nem me quero lembrar!
Depois, Marreta informou, com outro torn de voz:
Daqui a nada acaba o fio da canela que est dentro da lanadeira e o tear pra. Temos
de ter j pronta outra lanadeira com uma canela cheia de fio. A canela mete-se assi
m... Vs? muito fcil. Chama-se embocar.
O tear deteve-se. Marreta trocou, rapidamente, as lanadeiras:
Isto tem de se fazer depressa. Ns recebemos conforme o nmero de passagens que a l
anadeira faz. Ora quanto mais demorarmos, menos ganhamos. E os patres so, tambm, p
rejudicados, pois se um tear produz pouco, menor o lucro deles. Outra coisa que
preciso fazer a toda a pressa atar os fios da teia que, s vezes, se partem. Tem d
e se parar o tear, como hs-de ver, e se o tecelo no se despacha, pior para ele e pa
ra a casa. Mas disso tu j tens a prtica l da fiao. Marreta voltou a sorrir: Aqui, o
que nos faz andar depressa a "pinta", este fiozito branco que est na margem do c
orte e que, depois, se tira, para a fazenda no ir, assim, para as lojas. nele que
ns medimos as passagens que fazemos. E ests a ver como ns desejamos que ele aument
e, pois quanto mais aumentar, mais ganhamos. Quando eu era novo, fazia mais de t
rs "ramos" por dia, mais de quinze metros de tecido...
Dir-se-ia que Marreta se tinha arrependido das suas ltimas palavras, porque rapid
amente as emendou:
Claro que eu ainda posso fazer a mesma coisa, se quiser;^ e se, s vezes, no o fao,
no porque no possa... porque, como sou sozinho e tenho poucas despesas, no preciso
de correr atrs de foguetes...
O tear continuava com aqueles rudos secos, aquelas fortes pancadas que impeliam a
s lanadeiras, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, num voo de
bala.
10 Vol. Ill
29 A L E A NEVE
in
\ s casitas estavam quase prontas, branquinhas, aaB ss, soalheiras e at em cada um
dos seus qial talejos havia j sido plantada uma rvore de fnlB Vendo-as assim, Horci
o interrogava, frequentemlM os camaradas, mas nenhum deles sabia inform-lo SQU quan
do abriria a inscrio para os candidatos a inq" linos. Duas vezes ele fora mesmo ao
Sindicato e" haviam-lhe dito: sy|
Ainda cedo. Ainda no temos ordens para tjjl Entretanto, correra que a Cmara Municip
al ffl
construiria mais vivendas econmicas. Ao ouvir is" Horcio duvidou. Como podia ser,
se tinham sido feilM apenas setenta casas e s os operrios dos lanifcM eram seis mil
? V
Dias depois, porm, ele verificava que os cabdM queiros, pedreiros e carpinteiros
haviam desaparecifM dos Penedos Altos e principiado a edificar uma noiB fbrica, p
rximo do hospital. As sobras dos material de construo tinham sido, tambm, retiradas
d|B O novo bairro apresentava-se limpinho, com ar "< stio onde no havia mais nada a
fazer. Ento, alajl mado, Horcio voltou ao Sindicato. O presidente w direco devia sa
ber mais do que os operrios, pdH dava-se com muitas pessoas importantes e at com -
fl doutor delegado do Instituto. f"l
verdade disse-lhe o presidente do Sindij cato. Para a construo do bairro,
a Cmara d&at metade do dinheiro e o Governo a outra metade. Mas(r) agora, a Cmar
a no tem mais dinheiro. E penl porque isto era uma boa obra! J
Ento no fazem mais nenhuma casa? ^
Certamente, um dia ho-de fazer... ^
Um dia... Quando? !
Isso que no se sabe... Nestes anos mais pr-' ximos, a Cmara tem muitas despesas e o
utras neces-
A L E A NEVE
2QI
"idades a atender... Foi o que me disse, h dias, o doutor Teixeira.
Horcio saiu de cabea baixa. E, durante o resto da semana, andou a moer aquilo. Com
o podia ele ter uma das casas dos Penedos Altos, se elas eram to poucas e a gente
que precisava delas era tanta?
Mete um empenho! disse-lhe, no domingo, o Boca Negra, na floresta que sobrepuja
va a Covilh, onde eles haviam ido, com as mulheres e Marreta, passar o dia. Mete
um empenho, enquanto tempo. . Eu c por mim no quero nenhuma das casas. E h outros
camaradas que tambm no querem. No que ns no precisssemos, mas porque a renda mais bai
xa de setenta escudos. No^ digo que seja cara, nestes tempos que vo correndo. at ba
rata, tendo em conta que so casas bonitas e com cinco divises. Mas a mim j me custa
, s eu o sei, pagar vinte escudos por aquela em que vivo. Agora tu, que queres mu
dar-te, deves andar de olho aberto. As casas no so apenas para os operrios dos lani
fcios; so tambm para funcionrios pblicos, empregados do comrcio, motoristas, padeiros,
para todos os sindicatos. Ests a ver... Se no te mexes, ficas sem nenhuma.
Mas como hei-de eu mexer-me ?
No sei. Isso contigo... V se arranjas um empenho, j te disse.
Estavam os dois sentados, com Marreta, na Varanda dos Carqueijais, enquanto as m
ulheres arrumavam, entre os pinheiros, o cesto em que haviam trazido o almoo para
esse dia de ripano. Horcio coou a cabea e olhou a cidade que se estendia l em baixo,
luzindo ao sol e padroando o imenso vale do Zzere.
Que raio de empenho posso eu arranjar, se no conheo ningum de peso na Covilh?
Eu digo-te isto, porque j ouvi dizer que h Pessoas que vo meter empnhos. E s se fore
m tolas que no faro isso!
Sentado ao lado deles, Marreta escutava-os em silncio. Horcio voltou-se e olhou-o,
como a pedir-lhe um conselho. Marreta continuou, porm, calado. Depois,
292
A L E A NEVE
* tirou um jornal do bolso e ps-se a l-lo tranquil mente. a
Da estrada que cortava a floresta vinha o rua de uma camioneta que subia. Horcio p
egou no gd rafo que tinha trazido e bebeu. No lhe apeteci agora, vinho, mas tornou
a beber. d
Que diz vossemec a isto ? perguntou, dir tamente, a Marreta. c
Em vez de lhe responder, o velho tecelo dobrca vagarosamente, o jornal. il
Estou cansado declarou. J no tenho idaa para estas caminhadas. Da Aldeia do Carv
alho at aqa um bom bocado e quase sempre a subir. ?j
Horcio compreendeu que Marreta no queria, <m
maneira alguma, falar das novas moradias. Lembrou-sa
ento, da noite em que ele lhe havia dito: "Tu encojl
trs uma panela com libras e mandas fazer uma casa
Tu ficas satisfeito, mas os outros continuam na mesmaj
Horcio pegou no garrafo e bebeu pela terceira vl|
Boca Negra estava tambm calado. Marreta para
cia olhar para a Serra da Gata, que se divisava "
muito ao longe, de contornos imprecisos. O rudo dfl
camioneta esmorecia, distncia. E de dentro do pinhij
saram, trazendo o cesto, Idalina e a mulher de BocjB
Negra. Ao dar por elas, Marreta levantou-se e prop^l
Vamos andando ? (
com Marreta no meio, o grupo comeou a descei!
a floresta. E, desde essa tarde, Horcio procurou queUil
pudesse interceder a seu favor. II
Falou, primeiramente, ao Marques. Mas, dias pasa"
sados, o padrinho dizia-lhe: All
Tens de esperar que se abra a inscrio. No sdm aceitam empenhes. l
Aquilo brigava com o que Boca Negra dissera e"
ele comunicou-o ao merceeiro. l
Marques repetiu: i 1
No se aceitam empenhes neste caso. Foi, pelo I menos, o que me garantiram. Se alg
um os mete, isso l no sei! A mim, o que me disseram que as casas l seriam distribud
as ou sorteadas por quem tivesse a f
A LA E A NEVE
293
idade que a lei manda e bom comportamento. Pessoas que no sejam assduas no trabalh
o, bbedos e zaragateiros, no sero aceites. Mas, felizmente, tu no s desses.
Tambm aquilo no tranquilizou Horcio. E, de esperanas j bruxuleantes, ele partiu dali
para recorrer a Pedro. Embora operrio, Pedro conhecia muita gente fora das fbricas
e havia at pessoas ricas que o cumprimentavam, talvez por saberem quem era q pai
dele. Pedro prometeu falar a um empregado da Cmara Municipal, seu conhecido; mas
, no domingo seguinte, disse-lhe o mesmo que o Marques lhe tinha dito:
No se pode fazer nada. Tens de esperar que se abra a inscrio.
Nessa mesma tarde, Horcio ouviu, no Pelourinho, que vrias pessoas haviam decidido
no se inscrever. Afirmavam, uns e outros, que o novo bairro ficava longe da cidad
e e que, no Inverno, dificilmente as crianas poderiam vir escola e as mulheres ao
mercado. E, de noite, eram caminhos que davam medo.
Os operrios escutavam os camaradas e a si prprios e cada vez sentiam maior necessi
dade de elaborar senes e exagerar inconvenientes, para se consolarem da certeza d
e que, fizessem o que fizessem, a quase totalidade deles no poderia instalar-se n
o novo bairro.
Tramagal, que viera passar o domingo Covilh, era quem mais fomentava aquela ideia
:
C para o meu pensar, ningum devia inscrever-se. Ou casas para todos ou para ningum
.
Horcio ouvia-os, sem intervir. Agradava-lhe que s outros amarrassem defeitos s casa
s e desistissem delas. "Assim ele teria mais probabilidades de ficar cora uma p
ensou. E dissessem os outros o que dissessem, as casas eram muito boas! Quedava
m afastadas da cidade, l isso era verdade, mas assim mesmo ^ que ele gostava. Qua
ndo fosse para o trabalho, as fbricas estavam ali a dois passos, e quando estives
se em casa, era uma alegria com a terra livre em volta e tudo cheio de sol. Pare
cia impossvel que os outros
294
A L E A NEVE
A L E A NEVE
295
dissessem aquilo, vivendo, como viviam, nuns burij
onde nunca entrava a luz do dia".
Tramagal marralhava: i*j
Ou casas para todos ou para ningum! g
Horcio continuava calado. Tambm aquilo Ihefj
receu absurdo. "Como que se podia fazer casas p^
todos, assim de p para a mo ? Demais a mais, hS
muitos que nem sequer podiam pagar aquelas ren|
baratas. Era ver o Boca Negra e tantos outros". <r|
A inscrio foi aberta uma semana depois. HoriH soube da notcia hora do almoo, pela mul
hersB Boca Negra, que viera trazer a comida ao mari" Logo ele saiu do refeitrio e
correu ladeira acima, pai a Covilh, levando na mo a cdea que no tiv*M tempo de mast
igar. "
Quando, arquejante, entrou no Sindicato, out" operrios saam. Reconheceu um deles,
o Alosio:.|B
Vocs vieram tambm por mor das casas ? 'fl
Viemos. IB L dentro estavam outros, sua frente. Por faB
ele pde dar o nome e a morada ao empregado ill Sindicato. H
H muita gente que quer as casas ? perg^B tou, quando o outro acabou de escrever.
W
Alguma...respondeu o empregado. :>
Alguma... Mas, ento, no muita ? interrogai de novo, ansioso pela resposta. "IB
Bem v... A inscrio comeou h pouco... B Horcio volveu fbrica. No disse nada
reta, nem Marreta lhe perguntara coisa alguma. Mafl ele sentia, no silncio do vel
ho, que este adivinhaw a razo da sua sada do refeitrio, pouco antes. tfl
As cinco da tarde, ao abandonar o trabalho, DagflW berto confessou-lhe que talve
z ele se inscrevesse tarnii bem. No tinha f acrescentou mas no perdill nada em te
ntar. '*|
Horcio dirigiu-se para a fiao. E, atrs do carroiTj
indo e vindo e pegando os fios que se partiam, procedia por fora de hbito, to autom
aticamente como a prpria mquina. "Eram sempre muitos ces a um osso! Eram sempre mui
tos ces a um osso!" monologava.
uma hora da madrugada, quando, enfim, saiu da fbrica, velhas supersties enleavam-no
. Ao vencer a rampa da Covilh, via tudo incerto, tudo precrio; e, como daquela vez
que atravessara a serra com o Serafim Caador, as casas dos Penedos Altos comeavam
a tremer, a adelgaar-se, a desvanecer-se, como se fossem deixando de existir, co
mo se, at ali, tivessem existido apenas na imaginao dele.
A noite estava quente. No labirinto proletrio da cidade, muitos dos moradores, fu
gindo ao calor que os sufocava nas baiucas onde habitavam e aos parasitas que lh
es chupavam o sangue, haviam posto as enxergas sobre o cho das vielas e, como era
seu costume, todos os anos, naquela poca, dormiam ao ar livre da madrugada. Horci
o ia andando por entre esses velhos colches cheios de figuras que ressonavam, com
o em acampamento improvisado junto de destroos feitos por uma catstrofe. E cada ve
z ele sentia maior angstia, cada vez se sentia mais desamparado na noite, nos seu
s desejos, em toda a sua vida. Tramagal dissera que as casas no chegavam a ser se
te por cada mil pessoas que precisavam delas. Assim, que esperanas podia ele ter?
Ao chegar sua porta, Horcio levantou o brao Para bater, mas, de sbito, deteve-se. D
e novo, velhas crenas o envencilhavam. E uma derradeira hiptese de proteco surgia no
silncio nocturnal da ruela.
Perto dele, a Procpia moveu-se entre o marido e s filhos, nas duas enxergas juntas
; logo, porm, aquele silncio, quente e pesado como o ar da noite, volveu. Horcio va
cilou ainda um momento e, depois, meio decidido, meio hesitante, continuou a and
ar, afastando-se, lentamente, da sua porta.
Cidade pequena, acolhedora e pacata, a Covilh dormia. O seu prprio centro dir-se-i
a abandonado.
296
A L E A NEVE
A L E A NEVE
297
Somente no Pelourinho, Horcio lobrigou uns vultj
que, falando, metiam Rua Direita. O velho edifq
filipino, onde se instalavam os Paos do Concelho, pas|
cia golfar, atravs do arco que dava entrada para^
Rua i. de Dezembro, um denso mistrio de outro|j
E, mais adiante, as casas construdas sobre as antig^
muralhas da cidade mostravam-se numa confuso
burgo pretrito, onde os camartelos renovadores ni
haviam conseguido fazer olvidar todos os sculos pai
sados com suas noites infindas. 4
O relgio de uma das igrejas bateu duas horaa
Sempre vagarosamente, Horcio comeou a subir pai
as Portas do Sol. Sentia-se cansado. O corpo, de jf
desde a manh do dia anterior, fosse junto do tei
fosse em correrias para o Sindicato ou atrs da cal
ruagem de fiao, amolengava cada vez mais. Mas, J
dentro, a surda batalha prosseguia com a incerte31
a ideia de pouca sorte, de desarrimo no Mundo. Agon
ele pensava: "Se ela d vantagens no cu, tambm ai
h-de dar na terra. Porque no ?" l
As Portas do Sol estavam solitrias, como as rua
que ele havia calcorreado. O quiosque encontrava-
fechado e os motoristas, que ali faziam praa de seui
automveis, haviam desaparecido. S o paredo di
onde se abarcava a plancie se erguia em frente dela
O vale jazia no escuro, mas, direita, sobre o seu pilaw
a Senhora da Conceio, envolta em luz directa, refuH
gia. Era uma luz verde, de profundidades submarinas!
uma luz de sonho; e a imagem dir-se-ia acabada dm
aparecer, milagrosamente, no negrume da noite, para
dominar a noite da terra e das almas e servir de guiai
aos homens que transitavam na escuridade do grandsj
vale. Horcio contemplou-a um momento e tornou ai
perguntar a si prprio: "Se ela nos protege depois de]
mortos, porque no h-de proteger-nos enquanto somos \
vivos ?"
Horcio ajoelhou e rezou as trs Av-Marias que cardeais e bispos aconselhavam para se
obter favores celestes. Depois, pediu Senhora da Conceio que o patrocinasse. Murm
urou novas Av-Marias e prometeu
que iria todos os domingos, durante um ano, rezar com a mulher aos ps da imagem,
se lhe coubesse uma das casas dos Penedos Altos.
As Portas do Sol continuavam em soledade quando ele se levantou. Apenas um gato
corria das bandas do quiosque para o lado das antigas muralhas.
Horcio ps-se a arrepiar caminho. A andar, ia imaginando o que seria a sua existncia
familiar se lhe fosse entregue uma das casas e antegozava a alegria desse mome
nto. Pagando os setenta escudos mensais da renda, ao fim de vinte anos, merc do s
eguro de vida, a casa pertencer-lhe-ia. Era como se a houvesse comprado. Nessa a
ltura, ele teria pouco mais de quarenta anos; estaria ainda novo e Idalina tambm.
Ao subir a Rua Rui Faleiro, as palavras do Marreta voltaram-lhe, de repente: "Tu
ficas com uma casa, mas os outros continuam na mesma". Ento, ele apressou o pass
o, novamente maldisposto.
Depois de lhe abrir a porta, Idalina olhou o relgio e lamentou:
Vieste, hoje, to tarde! J passa das trs horas e tens de te levantar s sete. Assim, n
em descansas...
No faz mal... Pacincia...
Mas porque demoraste tanto ? Ele cortou:
Deixa-me dormir. No estou agora para falar. Depois te conto.
s oito da manh, ao entrar na fbrica, ainda sonolento, perguntou a Dagoberto ?
Voc sempre se inscreveu ?
Inscrevi.
E que tal ? Que lhe parece ? Dagoberto encolheu os ombros:
Que me vai parecer ? Como por agora no fazem Riais casas, se no apanhamos estas, f
icamos a chuchar no dedo...
298
A LA E A NEVE
L E A NEVE
299
Marreta ouvia-os, mas fingia no os ouvir, cedi das outras vezes em que se falava
das moradias i^l Penedos Altos. Essa muda discordncia, de to re9 tida, enervou Horc
io: "Se Marreta se punha assJH no era s por as casas serem poucas pensouJM Era ta
mbm por Marreta no gostar da Cmara dl as fizera. Mas ele no tinha nada com isso". ,^
B
Colocou-se ao lado do tear e, despeitado, desde eifl manh evitou falar daquilo em
frente do velho tecel^B
Ele ia, entretanto, progredindo facilmente na s9 nova aprendizagem. Poucas seman
as depois de a hasfl iniciado, j auxiliava, durante a montagem das tei|B a enrola
r, a atar, a empeirar, sem que Marreta tivej de dizer-lhe constantemente, como ao
princpio: "^H assim... assim!" E cada vez as suas mos se m J travam mais destras e
m meter os fios nos olhais uB lios, aqueles aramezitos que constituam as perchadjM
Marreta estimulava-o, paternalmente. Jl
Este esperto dizia, dirigindo-se a DagobertM mas para que ele o ouvisse. L espe
rto, ! Ne|B precisaria de um ano para ser tecelo... >M
Horcio quedava lisonjeado. Quando, porm, corruB cavam a aproximar-se as cinco hora
s da tarde e niuB e noutro operrio se adivinhava a impacincia peB momento da sada,
ele entristecia. Os outros iam paJJB suas casas ou falacear no largo do Pelourin
ho e s efl pegava o dia com a noite, como se fizesse dois turncaB Mudava apenas d
e mquina. E, junto do tear, aindH era melhor, porque ali, ao menos, no se cansavB e
nquanto na fiao de carruagem tinha de andar sernjl pr a trote, para a frente e para
trs, sempre no mesm|| espao, sempre a fazer a mesma coisa, como um burrol puxando
nora. >9
Passara-se o ms de Setembro e cada vez o sol ial desaparecendo mais cedo. Mas iss
o, ao contrrio dql que ele imaginara no pino do Vero, no o consolava ;< agora. Era
uma tristeza diferente da de quando havia i sol, mas no deixava de ser uma triste
za, e at maior, ' aquela hora cinzenta da tarde em que os outros aba* lavam e ele
ficava. E, uma da noite, quando, enfim,
saa, estafado, maldisposto, muitas vezes caam potes de gua. Por mais que corresse l
adeira acima, para a Covilh, chegava a. casa encharcado.
Ao ouvir as pancadas violentas que ele dava, IdaUna erguia-se da cama e vinha, e
stremunhada, abrir-Ihe a porta. A princpio, Horcio falara em mandar fazer mais uma
chave, mas ela dissera-lhe que queria acordar quando ele viesse, pois, de cont
rrio, quase nunca se veriam sua vontade. De manh, ele estava sempre com pressa;
e ao meio-dia, quando ela lhe levava a comida, havia tantos operrios roda d
eles, que era como se no estivessem juntos. Horcio aceitara logo aquele desejo, qu
e tambm a ele a ideia de chegar a desoras e encontrar a mulher a dormir e tu
do morto sua volta lhe pesava desagradavelmente. Idalina guardava-lhe, no fogo, u
m caldo morno, que ele comia antes de se deitar. E, algumas noites, enquanto no a
dormeciam, os dois iam discorrendo sobre a sua vida. Para ele, esses dilogos acab
avam quase sempre em desgosto, desgosto que at lhe chupava o sono, porque Idalina
sempre dizia que estava tudo cada vez mais caro e j nem sequer se referia ao din
heiro a pr de banda, destinado ao Valadares.
Numa dessas noites, como a mulher suspirasse descontentamento ainda maior do que
o dele, Horcio encontrou-se a repetir, para a aliviar, as palavras de
Marreta:
com o fim da guerra, isto muda. E vem outra
coisa, com certeza.
Em Outubro, nova esperana medrou entre eles. O mestre da ultimao da Renovadora adm
itira, finalmente, a Idalina como aprendiza de esbicadeira. Horcio preferia que e
la fosse para a fbrica onde ele trabalhava, que ali podia t-la sob as suas vistas
e obrigar todos a dar-lhe respeito, enquanto na Renovadora no faltariam matules qu
e quisessem desinquiet-la, incluindo o Pedro, que andava sempre atrs de saias e di
sso ainda se gabava. Essa ideia anojava-o, no que lhe minguasse confiana na mulher
, mas porque, s de pensar que outro poderia cobi-la ou soprar-lhe aos
3oo
L E A NEVE
j, ouvidos palavras de seduo, punham-se-lhe os ner" em clera. O Felcio, porm, havia s
empre adiado admisso de Idalina e ele resignara-se, por isso, a q ela entrasse pa
ra a Renovadora.
Quando lhe deu a notcia, Idalina disse somen
you ter pena de no poder levar-te a comidaj fbrica, como at aqui... >S
Ele no prestou ouvidos quilo e meteu logo st obsesso: >|
Foi boa ideia isso de andares a praticar comg Procpia. Assim, adiantada como ests,
no tardaj^ s operria. E, para o ano, eu serei tecelo. Acabl remos com o raio da dvid
a ao Valadares e tratarem^ da nossa vida... "<
Horcio calou-se, de olhos distantes, como se ai
dasse a medir o seu futuro; e, no silncio que se fd
a mulher tornou: j
Tu podes aquecer a comida l na fbrica, ms
no a mesma coisa. No tens pacincia e no a aqui
cs to bem como eu ta levava... <*f
Desde esse dia, Idalina principiou a levantar-se ma
cedo do que ele. S quando tinha tudo pronto, o cald
da vspera metido nas latas e estas, com o po e >
conduto, acamadas nos dois cestos, o despertava. Ho
rcio vestia-se apressadamente e saam juntos e junto
caminhavam at o porto da Renovadora, onde el
a deixava.
1 A concesso das casas fez-se no escritrio do fiscal^
do novo bairro. Estavam o presidente da Cmara, o; representante do Governo, que v
iera propositadamente1 de Lisboa, engenheiros municipais e outras figuras.
O escritrio do fiscal era pequeno e nele no cabia mais ningum. C fora, os candidatos
a inquilinos, com suas mulheres, muito embrulhadas nos xales, tremiam de frio.
Era um domingo de Janeiro e de noite cara um nevo to forte que o presidente da Cmara
deci-
A L E A NEVE
301
Hira telefonar para Lisboa, sugerindo o adiamento da cerimnia. De l, porm, disseram
-lhe que o enviado do Governo, o Dr. Navarro, j havia partido, com os jornalistas
e fotgrafos, indo dormir, nessa noite, a Castelo Branco. Alm disso, os jornais da
capital tinham anunciado o acontecimento para aquele dia e no convinha, portanto
, adi-lo.
Agora, metidos entre outros pretendentes s casas, Horcio e Dagoberto ouviam o Dr.
Navarro discursar l dentro. Ele louvava a Cmara Municipal e o Governo, que compart
icipara largamente no dinheiro gasto em obra de to grande alcance. "Graas a esta i
niciativa, vai-se, finalmente, oferecer um lar a quem, de outra forma, no o poder
ia ter. Por isso, este domingo, apesar de invernoso, um dia de jbilo, no s para a aml
ia operria covilhanense, mas para a cidade inteira, um verdadeiro amplexo entre a
s vrias classes da sociedade, pois s assim, pela justia social, se obtm a harmonia q
ue constitui a base slida para o bem-estar das colectividades".
Os ouvintes percebiam que o Dr. Navarro, apesar de ser homem ainda novo, tambm se
ntia frio, porque, embora se esforasse por tornar a sua voz bastante forte, muita
s das palavras que dizia mal se ouviam c fora.
Alguns retardatrios iam chegando, somando-se ao grupo que estava em frente da por
ta, sobre a neve, e todos se quedavam a escutar. Havia ali gente de vrios sectore
s sociais, desde os operrios enfiados em velhos sobretudos, de gola levantada, a
funcionrios pblicos e a pequenos comerciantes com um alfinete na gravata todos ca
ndidatos s casas. O cu continuava soturno e via-se que, no alto da serra, continua
va a nevar.
Logo que o delegado do Governo terminou o seu discurso, houve, l dentro, rumor de
passos, vozes soltes, enquanto os que estavam c fora se apertavam niais, na nsia
de escortinar o que se passava. Mas s s que se encontravam frente o podiam fazer
e Horcio, por muito que distendesse o pescoo, por mais
302
A L E A NEVE
A L E A NEVE
33
que tentasse enfiar a cabea por entre os ombros " parceiros, no divisava coisa alg
uma. "
Subitamente, porm, no escritrio do fiscal -U uma voz que se dirigia para o exterior
e que doJB nou tudo: fljm
Casas do tipo Dois-A, cinco divises, setenta edl dos por ms. Concedidas a: Heliodo
ro de Sousa, meijB da fbrica Renovadora; Francisco Teles, motoristlB Cmara Municipa
l; Jos Bento, tecelo... ~"
Horcio deixara de sentir o corpo, o frio, a nlB Dir-se-ia que toda a sua vida se c
oncentrara nos otfB dos, como se no houvesse mais coisa alguma no MulfB do que os
seus ouvidos e aquela voz que soava paufll damente, l dentro: i|B
Jos Antnio da Silva, empregado do comrdH Felcio Saraiva, mestre; Roberto das Dores..
. >JI
A cada nome que ouvia, Horcio esperava, ansjl samente, que sucedesse o seu. Tudo
aquilo era rpiH mas a ele parecia-lhe que tudo aquilo se arrastava, arrastava, se
arrastava, se arrastava infinitamente, m
C fora, a multido agitava-se e comprimia-se <B quando em quando, com os movimentos
de alegria qdl alguns dos contemplados iam tendo. Uma mulher ptj testava, porque
um deles tantos saltos dera que iol fizera cair o xale. Entretanto, l dentro, a v
oz prcil seguia, impassvel:
Mrio Tavares, padeiro; Lucas Soares, emprtB gado da indstria... l
Houve uma pequena pausa e logo a voz tornofl
Casas do tipo Trs-A, seis divises, oitenta m cinco escudos por ms. Concedidas
a... "'m
De novo se fez um grande silncio c fora. VieraBfli outros nomes. Nomes a seguir a
nomes. E quando?! finalmente, a voz se calou, sem pronunciar o nomfll dele, H
orcio j no via e nem ouvia nada do que| estava em seu redor. Ao contrrio, ele via co
isas i&>\ tantes dali, a imagem da Conceio, o seu casebre d ' Rua Azedo Gneco e o Ei
r, de Manteigas, onde ele; tantas vezes, falara com Idalina da casa que haviai" d
e ter. O corao, que estivera sempre aos pulos, sem
aue ele houvesse dado por isso, sempre a pulsar mais forte naquela expectativa l
enta, parecia agora sossegado, mas deixara-lhe os lbios secos e a garganta quase
sufocada. Ao levantar os olhos, verificou que pagoberto estava com uma expresso s
ombria. Lembrou-se, ento, de que ele no fora tambm contemplado.
Em volta, a multido dividia-se e formavam-se grupos, que comentavam o sucedido. H
avia homens que riam e outros que partiam de cabea baixa. Os fotgrafos que tinham
vindo de Lisboa fotografavam vrios trechos do bairro. Um deles apontava a sua mqui
na ao Jos Bento, tecelo, e pedia-lhe:
V l! Ria! Faa uma cara alegre! para publicar no jornal...
O Jos Bento ps-se a rir e o outro fotografou-o.
As entidades oficiais comearam a sair da casa do fiscal. O Dr. Navarro deteve-se,
um momento, porta, a contemplar os fotgrafos e o bairro novo, todo coberto de ne
ve. Ele tinha um olhar melanclico, pensando que no se havia tirado todo o efeito p
oltico do acontecimento. O presidente da Cmara, julgando compreend-lo, disse:
Foi pena haver um tempo destes! Seno, tnhamos embandeirado tudo isto e posto a uma
banda de msica. Sempre dava outro aspecto.
O Dr. Navarro continuou calado e os dois partiram, seguidos pelos seus aclitos.
Nesse momento, Horcio sentiu algum bater-lhe no ombro, amigavelmente:
Tambm te havias inscrito ?
Ele voltou-se e viu o Felcio, mestre da ultimao.
Tambm.
No te deram nenhuma, v-se logo na tua cara. Tem pacincia... No pode ser para todos a
o mesmo
tempo...
As palavras de Felcio, que tinha sido um dos beneficiados, irritaram-no. Mas cont
eve-se:
Pois ... L isso ...
Dagoberto havia desaparecido. Dando costas ao
304
A L E A NEVE
9 Felcio, Horcio procurou Idalina. Ela estava ao loifH
junto de uma das casas novas, a conversar coal
Procpia. Ele acenou-lhe, uma, duas, trs vezes, JB
ela no o viu. Ento, tocado de impacincia, rutyjH
sozinho, estrada. Centenas de outros operrios ctgjl
nhavam sua frente, caminhavam devagar e em sUfH
cio na neve, devagar e em silncio como se fossem nl
enterro. 'ijM
Ao atravessar a Carpinteira, Horcio topou, medH
na curva da estrada, grande ajuntamento. Os qu$|H
nham dos Penedos Altos cercavam um homem e quffl
todos faziam perguntas ao mesmo tempo. Horcio apjH
ximou-se e reconheceu Ricardo. Plido, muito m|l
magro do que era, os ossos do rosto desenhavam-^M
-lhe, nitidamente, sob a pele. O seu fato apresentavawH
coado, lustroso, cheio de arquiplagos de ndoas,^B
rota a parte que se divisava da camisa. S o cabdB
estava cortado de fresco. Ricardo tinha, numa ^JH
mos, um embrulho e, ao ver Horcio, abriu os bradM
Como tens passado ? J sei que casaste... A Jll
mandou-me dizer... '|H
Era a primeira vez que Ricardo o tratava por ^H
como se a ausncia houvesse aumentado a intimidadiM
E ele, com uma nova emoo enxertada na que tro^H
xera dos Penedos Altos, olhava-o demoradamente. H
Quando chegou ? E o Alcafoses ? jl
Cheguei agora mesmo. O Alcafoses tambm. <{
E a sua mulher j sabe ? '?lM
No. you fazer-lhe uma surpresa... ? Ao lado, Malheiros insistia pelas confisses qu
e '$fl
chegada de Horcio interrompera: ;B
E, ento, eles teimavam ? fH Ricardo mostrou-se desejoso de continuar o seu*
1B
caminho: ^B
Depois falamos disse. *
Homem, s um instante!... J
Bem, eles teimavam, todas as vezes. Parece que M pensavam que havia outra coisa
e queriam saber quem * estava metido nela. Queriam saber tambm se no l hav
ia gente de Lisboa que nos dava ordens... Eu far- J|
X
A LA E A NEVE
305
tava-rne de dizer que no, que ns tnhamos feito aquilo porque tudo estava caro e o q
ue recebamos de fria no chegava para nada. Ento, eles julgavam que eu estava a menti
r e teimavam. Mas o que mais me custava era pensar na Jlia e nos pequenos. Quando
estava incomunicvel, sem poder receber notcias deles, isso custava-me, claro. Ago
ra mesmo, no sei como eles esto. A Jlia tem-me escrito, mas eu adivinho que ela no d
iz tudo nas cartas.
Ricardo falava com simplicidade, mas num torn que parecia ainda mais firme do qu
e antes. Voltou-se para Bernardo e perguntou-lhe.
Tu tens visto a Jlia e os pequenos ? Esto todos bem ?
Alguns dos presentes conheciam a situao da famlia de Ricardo e aquela pergunta lanav
a-os, de repente, num embarao contagiante. Bernardo, que vivia na Aldeia do Carva
lho, ps-se a gaguejar:
Sim... Sim... Tenho-os visto... Ainda ontem os vi... L vo andando...
Ricardo pressentia as palavras que ningum pronunciava.
Sucedeu-lhes alguma coisa ?
No... No...murmuravam um e outro. Depois, Bernardo disse: Vivem com dificuldade, c
laro... Tu sabes... Tu calculas... Mas l vo passando... Os camaradas, mesmo que qu
eiram, pouco podem auxiliar...
Ricardo despediu-se, bruscamente:
bom. Adeus! At outra vez! Depois falamos.
Os homens viram-no desaparecer na curva da estrada e, em seguida, comearam a subi
r para a Covilh.
Ia o grupo a meio da rampa, quando Horcio ouviu a mulher cham-lo. Ela corria atrs d
ele, tropeando no gelo.
Andei tua procura, mas tu sumiste-te disse Idalina, ao acercar-se.
Horcio levantou os ombros, mal-humorado:
Estavas a dar lngua com a Procpia... Nunca mais acabavas...
306
A L E A NEVE
* que a Procpia queria ver, outra vez, as cam Ela estava muito amachucada e at ch
orou por ijj lhe ter cabido nenhuma. Eu tambm tive muita p<jj So to bonitas! E, no s
ei porqu, tinha-me af<j| ideia de que amos para l. Eu at havia feito WB promessa...
m
Tu tambm ? -m Idalina no compreendeu a pergunta e disse ca
naturalidade: J
Sim, eu havia feito uma promessa... Mas, agoS que j sabia que nenhuma das casas s
eria para T custava-me at olhar para elas. Por isso eu no qu" acompanhar a Procpia..
. Ela l ficou. Diz que taji bem a ela aquilo lhe d tristeza, mas que, mesfl
assim, queria tornar a ver as casas por dentro. M
Horcio ouvia a mulher e a melancolia da sua vw ia somando, no esprito dele, a viso
das moradias "j Penedos Altos com a da chegada de Ricardo Aldaj do Carvalho, o en
contro com a Jlia, os filhos, a velM o rosrio e o gato e, de novo, as casas novas
e o caSB bre da Rua Azedo Gneco, tudo numa confuso m imagens e de sentimentos as
imagens ora acentuai do-se, ora desvanecendo-se e os sentimentos permanj cendo,
assentando como lia no fundo de uma vasilhaj
Tive uma grande pena! repetiu Idalina. m
Deixa l...consolou ele. Havemos de tm
uma casa nossa. E feita a nosso gosto. Aquelas sM
bonitas, no h dvida, mas tm os seus defeitos!
Ficam longe. Para se vir cidade, um castigo! E imal
gina um dia de chuva... Eu, para dizer a verdade J
no tive grande pena, no... Ns havemos de ter a|
nossa, mas num stio melhor. Havemos de t-laTm
j s esbicadeira, j ganhas alguma coisa... E eu, parai
o Vero, acabo o ano de aprendizagem. Depois, maiftl
dia, menos dia, passo a tecelo. E tambm se diz que "j
os patres vo, agora, dar um aumento de salrios.^
J vs que no deves arreliar-te... . !
A voz saa-lhe to triste como a da mulher, que ele procurava confortar.
A L E A NEVE 307
IV
HORCIO fora-se assenhoreando da arte de tecer. O tear era-lhe j familiar: conhecia
todas as suas peas, o objectivo dos seus movimentos e montava a enviadura, empei
rava e embocava com tanta rapidez como Marreta o fazia. Se um dos fios do barbim
se quebrava, em dois segundos os seus dedos o atavam; se havia nova teia, ele s
abia como proceder, desde o rgo de onde esta se desenrolava, at a sua passagem no p
ente, antes de se enrolar novamente,
j tecida.
Quando ele comeara a aprendizagem, Marreta, se tinha de ir cloaca, voltava-se par
a Dagoberto e pedia-lhe: "Olha-me por isto". Agora, partia sem dizer nada ao out
ro tecelo, certo de que Horcio daria boa conta do tear. E at o Dagoberto, quando pr
ecisava tambm de ir l fora, o encarregava de vigiar a sua
mquina.
com o tempo, Horcio pudera avaliar mesmo a capacidade profissional de cada um. A
princpio, no compreendia por que Marreta punha uns culos quando tinha de empeirar e
os tirava, escondendo-os apressadamente, se via Mateus aproximar-se. E se o mes
tre parava junto dele, Marreta procurava fazer outra coisa que no fosse introduzi
r os fios naqueles orificiozitos que os lios possuam. S quando Mateus continuava a
sua andana, ele tornava a pr os culos e a empeirar, olhando, frequentemente, para t
rs, no fosse o outro volver pela mesma coxia. Na manh em que Horcio compreendera a r
azo daquilo, no dissera nada, mas tivera muita pena de Marreta. Da em diante evitar
a perguntas que pudessem lembrar ao amigo a sua velhice. E se lobrigava, ao long
e, o vulto de Mateus, era ele prprio quem prevenia Marreta da aproximao do mestre.
O velho tecelo parecia no gostar, porm, dessa espontnea cumplicidade, que denunciava
o conhecimento dos seus receios. "Pois que venha!" dizia
308
A L E A
NEVE
, sacudidamente, com um torn que no lhe era habitil
Mas, pouco depois, os seus olhos convergiam parai
bolso do casaco onde guardava os culos. E se esl
se entremostravam, ele impelia-os, discretamente, cfl
os dedos, para baixo. h
Horcio acabou por notar que Dagoberto, ali, Tj
lado deles, produzia muito mais do que Marreta. Aqu^
ia sempre alm de trs "ramos" por dia, enquanto @
nunca os alcanava. Ao pegar no dcimo de meti
para medir, na "pinta", o trabalho feito, a mo
Marreta tremia como quando ele tentava meter, sd
culos, os fios nos olhais dos lios. De comeo, Horas
acreditava que se Marreta no tecia mais era porq
efectivamente, no queria, por no precisar de grana
fria para as suas despesas de homem sozinho; mal
depois, convencera-se de que isso no era assim. Tcxjj
a gente afirmava que, na fbrica, ningum sabia, coo
ele, do seu ofcio e que melhor tecelo no existi
tambm na Covilh inteira. Mas, medida que Cf
meses iam decorrendo, Marreta parecia conhecer o tea
e a tecelagem mais de teoria do que de prtica, poim
ao trabalhar, fazia-o cada vez com maior lentido m
cautela, como se lhe faltasse experincia. Mesmo m
substituir as lanadeiras ou a embocar, Dagoberto, tida
e havido como um remendo, andava muito mais dal
pressa. Horcio detestava essa superioridade do vizinho]
que contava menos vinte anos do que Marreta e naj
era afvel como este. Mas Horcio sabia que ele prjt
prio podia realizar aquilo com mais rapidez do que 01
velho tecelo. E, um dia, assim o fizera. Ao ver, porm^j
o olhar melanclico com que Marreta seguira os seu*j
despachados gestos ao carregar, tirar e meter as lan^l
cadeiras, renunciara a mostrar-se capaz de vencer Dago-* l
berto. ' i
Chegara a Primavera e, Abril andante, um dia Mar- l
reta entrara na fbrica com voz rouca e tempestade l
no nariz. "Estou constipado" disse, apertando em l
volta do pescoo um velho "cache-col". Na manh i
seguinte, voltara ainda com mais espirros e febre, l
Ao terceiro dia, fora o prprio Mateus quem lhe dis- j
A LA E A NEVE
309
ser que, estando ele com gripe, o melhor seria quedar uns dias em casa, pois assi
m no se curava e at podia pegar o mal aos companheiros.
Ele partira e Horcio ficara com o tear. Antes de lho confiar, Mateus repetira, ao
Dagoberto, as mesmas palavras que, ao princpio, Marreta costumava dizer-Ihe, qua
ndo tinha de ir s instalaes sanitrias:
Olha-me por isto.
Obediente a essa ordem, Dagoberto aproximava-se, de quando em quando, de Horcio e
dava-lhe indicaes. Mas Horcio fingia no o ouvir. Fingia ostensivamente. Quando, porm
, o outro estava de costas, no seu tear, ele espiava-lhe os movimentos e procura
va ultrapass-lo, trabalhando ainda com maior presteza.
S cinco da tarde, Horcio verificava, envaidecido, que tecera tanto como Dagoberto
e muito mais do que Marreta costumava tecer. Foi essa a primeira vez que ele se
sentiu feliz ao transitar da tecelagem para a fiao, enquanto os outros operrios, qu
e laboravam diurnamente, saam da fbrica.
Marreta regressou na quinta-feira seguinte, rnais magro, e de olhos mais encovad
os, mais profundos, do que habitualmente.
Inspeccionou o tear e p-lo em movimento. Mas no fizera aquilo com a naturalidade d
os outros dias. Voltava-se, de quando em quando, para Horcio, falava-Ihe e proced
ia como se o tear j no fosse s de sua conta, mas dos dois. Procedia como se, durant
e a sua ausncia, houvesse perdido a primazia que tivera ali e Horcio pudesse ter p
or inoportuno o seu regresso. Nos primeiros momentos, parecia tocar nas coisas c
om timidez, como se mexesse, vista de outrem, em objectos da casa de um parente
que acabara de morrer.
Pouco depois, Marreta disse:
J sei que fizeste boa figura. Para um aprendiz, trs ramos por dia obra! Claro que
tu j no podes ser considerado um aprendiz... Tu j sabes como um tecelo...
Depois de ver aqueles modos com que Marreta en-
3io
A L L
A NEVE
A L E A NEVE
311
l s
f trar., Horcio arrependia-se de, na nsia de igq| Dagoberto e de se valorizar a si
prprio, haver >jjj duzido mais do que Marreta ultimamente prodia
Se j sei alguma coisa, a si o devo declaq sentindo-se vexado com a ideia que Mar
reta poda fazer sobre o seu procedimento. m
Ora! Ora! Tu s esperto, o que ! Sempnj disse! Fosses outro, e veramos! <J
hora do almoo, os dois amesendaram-se no nsj
comedoiro. O dia apresentava-se friorento para eles!
sentarem ao ar livre, como era tanto de seu goij
coisa que irritava Azevedo de Sousa, o gerente, o pj
prio Mateus, sempre prontos a lamentarem ter a fab
gasto um dinheiro a construir o refeitrio que a.M
mandava e, afinal, os operrios preferirem contin"
a comer arrumados a qualquer parte, l fora, ao aj
como os bichos, sem ordem, sem jeito nenhum. Aped
do dia agreste, alguns haviam ido para as bermas m
estrada e, no extremo da terceira mesa do refeito
Marreta encontrava-se sozinho com Horcio. Ele dai
cascara as suas batatas cozidas, comera-as e bebed
em seguida, o caldo que tinha aquecido. Depois, pu9
ra-se a olhar, lentamente, para o recinto onde estavaaj
para o tecto de vidro fosco, para a porta. Jj
So mais uns trs mesitos... murmurou, corril ^ se falasse consigo prprio. " j
O qu ? perguntou Horcio. / So mais uns trs meses...
que venho fabricai
Por que diz isso ? m Horcio j tinha adivinhado a causa das palavra!
de Marreta, mas sentia necessidade de lhe desvanece" aquela ideia aquela ideia
que se fazia notar no tool da sua voz, no seu sorriso resignado, na profundidade
dos seus prprios olhos. j
Digo isto, porque daqui a trs meses entregam-te l o meu tear e est tudo acabado...
j
Ora essa! Est tudo acabado, porqu ? Primeiro,1 j eu no aceito o seu lugar; depois,
quem lhe diz que j lho vo tirar ? * ^
Marreta sorriu com cepticismo:
Quando, na semana passada, o Mateus me mandou para casa, eu percebi logo que o q
ue ele queria era experimentar-te. Queria ver o que tu davas. Farto de ter const
ipaes e gripes estou eu e nunca ele me disse que eu podia ir-me embora e s voltar q
uando estivesse bom. Algumas vezes em que me senti doente a valer e lhe pedi par
a me dispensar do trabalho, ele mostrou-me sempre m cara... Mas j h muito tempo que
eu esperava isto: desde que' tu vieste aprender e ele te ps no meu tear... Lembr
as-te que te perguntei se lhe havias pedido para aprenderes comigo? Tu disseste-
me que no; que no era por falta de vontade, mas que tiveras vergonha de andar semp
re com pedidos ao Mateus... E disseste, tambm, que se ele fizera aquilo f ora, d
ecerto, por saber que ns ramos amigos. Ento, eu no quis desgostar-te, mas eu tinha a
certeza de que no era assim. Demais a mais, ele nunca quis que ningum apr
endesse comigo, porque dizia que eu tinha umas ideias que estragavam os
rapazes. Compreendes agora?
Horcio deixara de mastigar o seu po. Ele desejava falar olhando direito, mas, ao m
esmo tempo, os seus olhos acovardavam-se ao encontrar os de Marreta.
Por mim, no lhe tiram o seu lugar, pode vossemec estar descansado. Antes queria qu
e me quebrassem os braos do que tomar-lho.
No mo tomas; do-to disse Marreta, lentamente. No tens razo para falar assim. Se no
to derem a ti, do-no a outro e a mesma coisa. E, ento, eu prefiro que o dem a ti, q
ue s meu amigo.
Eu no aceitarei, j disse!
Pois eu acho que deves aceitar. Tu no tens nenhuma culpa. Se pensas que te dei
tarei alguma responsabilidade, ests enganado. Eles no te do o lugar para te ser agr
advel. Nem a ti, nem a qualquer outro. Do-to porque eu j produzo pouco. E eles no qu
erem ter empatado um tear com um velho que no chega a tecer trs ramos por dia...
Comovido, Horcio sentia a garganta apertar-se-Ihe e vontade de abraar Marreta.
312
A L E A NEVE
A L E A NEVE
313
* Eu c por mim no aceito... teimou. SeJ|
preciso, esperarei at arranjar noutra fbrica... m
Marreta voltou a sorrir, piedosamente, comajB
falasse a uma criana: "
Mas a mesma coisa! A no ser que ponSfjI
teares novos, tem de sair algum para tu entrlB
Pode ser que o que saia mude apenas de fbrica, iSB
no fim, algum h-de sair para no voltar. Podei
tambm que uni arranje trabalho melhor pago. M|
isso rarssimo. As mais das vezes, quem sai s<"
velhos como eu... claro que no me queixo do 7f/M
teus. Ele ruim, mas est na sua obrigao. Eu w
fazer sessenta e cinco anos e eu mesmo vejo que"
no trabalho como um homem novo... 3B
Marreta calara-se. Horcio buscava, em vo/lB
palavras de consolo que queria dizer. Nas mesas vifl
nhs, vrios operrios comiam e pairavam. E algulB
que tinham ido l para fora, voltavam esfregando V
mos. v
Tu no deves incomodar-te com isto, j te did
volveu Marreta. Antes de comeares a aprendei
j o Mateus andava com o olho em cima de mim. lB
trabalho aqui vai em cinquenta anos. Sou ainda dfl
tempo do primeiro dono da fbrica. Ests a ver se nB
sei quando os patres ou os mestres comeam a pensi
na idade do operrio e a reparar na maneira como e"l
trabalha... Se os mestres so boas pessoas, que tambna
os h, podem fingir, por algum tempo, que no dw
por nada; mas l est a fria a mostrar ao patro Owj
ao gerente o trabalho que cada tecelo faz. Como nwj
trabalhamos passagem, fcil ver... O ano passado,!
por esta poca, o Mateus achegou-se a mim, olhou!
para a teia que eu estava a tecer e disse-me de maurf
modos: "Voc ainda no acabou isso?" Ele sabia perf|
feitamente que eu ainda estava com aquele corte, ma^l
queria mostrar-me que eu j dava pouco rendimento..- 1
O meu interesse era tecer o mais possvel, est claro \ l
se no tecia mais porque no podia. A no ser que
eu no me importasse de deixar defeitos na fazenda.,
mas isso tambm me desacreditaria e ainda era pior...
Mas no foi s aquilo que o Mateus me disse. Por meias palavras, tem-me dito muitas
outras coisas, para eu rne ir convencendo de que estou velho e que j no sirvo para
isto. Tu no vs a maneira como ele olha para o que estou a fazer, quando passa pel
os teares? Desde o ano passado que ele pensa pr-me na rua, tenho a certeza disso.
De forma que no vale a pena tu ralares-te comigo. Se ainda me deixam estar aqui,
justamente por tua causa. Como o irmo dele se interessa por ti, o Mateus est espe
ra de que completes o ano, para te dar o meu lugar. Seno, j me tinham despedido e
metido outro. To certo como estarmos os dois aqui a falar...
Marreta calou-se um momento e, depois, acrescentou, com um torn mais melanclico:
uma tristeza a gente ser velho, l isso ! At temos vergonha de j no prestar para nada.
.. Mas que podes tu fazer?
Horcio continuava a no encontrar as palavras que desejava. E, no seu silncio, ia vi
sionando esses velhos invlidos que se juntavam, em dias de sol, no jardim pblico,
mal vestidos, mal alimentados, teceles, fiaiideiros, cardadores, outros profissio
nais que as fbricas despediam quando as energias deles se esgotavam. Via-os ali,
no jardim, com o Paredes a dobrar-se e a apanhar pontas de cigarros e os outros
aguardando a passagem dos camaradas que trabalhavam, na esperana de que estes lhe
s dessem uns vintns. Via-os, depois, pelas escadas dos antigos patres, de mo estend
ida esmola, e trilhando a rua onde ele prprio morava, velhos e velhas a caminho d
o Sindicato, onde recebiam os vinte escudos que mal chegavam para comer dois dia
s entre os sete que a semana tinha. E, no meio deles, via sempre a Marreta.
E vossemec de que vai viver ? perguntou,
timidamente.
O velho tecelo fez um gesto largo:
Isso depois se ver... No te preocupes com isso! Logo, com um torn mais ligeiro, co
mo se mudasse
de assunto, sem, no fundo, mudar:
314
A L E A NEVE
A L E A NEVE
315
* Ento a guerra parece que vai para o fim
A Itlia comeou a levar bordoada rija. Tens lidofiB
Horcio abanou a cabea: r*
No, no tenho lido. Mas tenho ouvido M
Pois tem levado porrada de criar bicho! B Marreta desatou a falar da guerra.
Noutras mefl
outros operrios falavam da mesma coisa. E nos M
e semanas que se seguiram, a evoluo da guerra'iB
perou sobre a ateno de todos eles. O desembariB
dos anglo-americanos na Siclia e as primeiras vitfB
dos russos haviam acendido nova f no planeta intlB
e incinerado o desnimo dos anos iniciais. E, assB
nas fbricas e nos humildes casebres da cidade qu"
ignorada do Mundo, a meia encosta da brava serra'Jj
lobos, os homens das ls iam vivendo tambm JB
angstias e as esperanas universais. Este, aquetll
aqueloutro compravam gazetas de Lisboa ou do Portj|
liam-nas e os demais quedavam a comentar os avand|
e os recuos dos exrcitos em luta. Dagoberto recW
tara, do "Primeiro de Janeiro", dois mapas coloridoOTB
hora do almoo, desdobrando-os sobre uma das mesH
do refeitrio, buscava, de indicador estendido, as cidHJ
ds onde os aliados combatiam: "Hoje, esto aqural
Amanh ou depois, com certeza chegam ali..." s vezfijB
explodiam discusses, porque uns haviam profetizad*
triunfos ou derrotas no consumados e outros, tidl
por mais espertos, a seu bel-prazer talhavam, para
tropas, caminhos de que os parceiros discordavam. MasH
acima dos seus fragores verbais e do longnquo fragor dal
batalhas, importava-lhes, sobretudo, o resultado do pr*|
lio, o mundo novo que, todos diziam, viria depois dal
guerra. n
Marreta e Joo Ribeiro eram dos que mais apre*>*
goavam, ali, essa crena. Quando eles afirmavam aquilo,
logo as discusses se interrompiam e todos emudecianl
a ouvi-los. Joo Ribeiro trazia os bolsos sempre cheios
de jornais e revistas, alguns j pudos nas dobras; e,
em abono das suas palavras, puxava por eles e lia
telegramas ou trechos de discursos oficiais onde se afir-
mava, igualmente, que, finda a grande luta, viria um mundo melhor para todos os
homens.
]VIas vir mesmo ? duvidou, um dia, Horcio.
Se at chefes de governos que so conservado-
res o dizem! respondeu Joo Ribeiro. E se eles o dizem, porque vem mesmo; porque
ningum o
pode evitar...
Na imaginao dos operrios, a era nova que se lhes prometia, se a Alemanha e a Itlia f
ossem derrotadas que se lhes prometia na imprensa, na rdio, nos parlamentos, por
toda a parte apresentava-se de forma ainda mal definida, mas em todos eles exi
stia a funda esperana de que essa era efectivamente viria. Horcio acabara, tambm, p
or se contagiar da mesma f e ela ia vinculando, dia a dia, por lenta metamorfose,
de que ele prprio no dava conta, alguns dos anseios da sua vida.
Uma madrugada de Julho, quando regressava a casa, no meio de outros homens que t
rabalhavam, como ele, no turno da noite, avistou, ao entrar na Praa da Repblica, u
m grupo de operrios que, por gestos e palavras, anunciava, a distncia, o seu jbilo.
Que seria, que no seria, mal os que estavam viram os que se aproximavam, correram
para eles, aos gritos:
O Mussolini caiu! O Mussolini caiu!
Os que chegavam das fbricas, cansados do trabalho, tardaram a acreditar.
Quem vos disse isso ?
Vrias pessoas ouviram na telefonia. Eu estava j a dormir quando aqui o Ildefonso,
que soube do caso, me foi acordar. Ento ns dois chammos os outros para lhes dar
a novidade...
Mas como caiu o Mussolini ? perguntou o Boca
Negra.
O Ildefonso adiantou-se:
L isso ainda no se sabe. Mas que ele foi tirado do governo, verdade. A B. B. C. di
sse-o e repetiu-o
muitas vezes...
Os homens abriram os braos e comearam a abraar-se. Havia sobre a cidade dos lan
ifcios um cu
3i6
A L E A NEVE
9 estrelado de Vero e os homens continuaram a gj
ar-se. i/3
Agora est por pouco! Agora falta poucofl
profetizavam um e outro. E abraavam-se de ncJ
A alegria que aquela notcia criara prolongou-se j
vrios dias. E as velhas ansiedades de redeno m
taram a florir mais fortemente, estimuladas, cadajj
mais, por essa propaganda que, emitida em todafl
lnguas e alimentada pela boca dos estadistas, and3
no prprio ar que se respirava, a garantir, sem q
canso, um mundo melhor para os que trabalhavaiM
assim que o inimigo estivesse feito em cinzas. Ml
Uma manh, Horcio perguntou a Marreta: '"
Vossemec capaz de tornar a emprestar" aqueles dois livros que me emprestou l
ogo no pifl cpo de eu o conhecer? Eu queria l-los outra veiM
No olhar do velho houve um lume de satisfa^B
Ora essa! Esto s tuas ordens! Logo, por" que concluiu a mudana das lanadeiras, Marre
ta acr"B centou: Mas, agora, tu no tens tempo para leni Ests sempre aqui metido..
. .ill
A sua voz tomara, de sbito, um torn melancMB e do seu olhar desaparecera o fulgor
de h momenaB antes. fl
para ler aos domingos explicou Horcio.
Bem. Amanh j tos trago... Marreta ia a dizer aquilo e ele a adivinhar o qdfl
Marreta pensava. Ele pensara, de repente, a mesiniB coisa: "Em breve, chegaria a
tecelo e teria tempB para ler. Marreta seria despedido..." Esta ideia surgfl agora
, constantemente, entre os dois. No carecia mesrawl de palavras ou de gestos para
nascer; apresentava-sflM por tudo e por nada, infiltrava-se nos silncios deles]!
ou ela prpria, depois de estar presente, criava siln'1! cios. f
Numa das semanas anteriores, Marreta dissera: "Qualquer destas sextas-feiras, de
pois de me pagarem a fria, pem-me na rua". Marreta nunca mais se referira quilo, co
mo se lhe fosse penoso falar do caso. Mas Horcio sentia que era verdade o que lhe
ouvira.
A LA E A NEVE
317
Mateus, que se dirigia secamente a todos, nos ltimos dias comeara a tratar Marreta
com afabilidade, como se quisesse tornar-se menos antiptico durante o acto que s
e aproximava. Se se detinha junto do tear, os seus olhos j no fixavam o trabalho d
e Marreta com a expresso fria de outrora; ao contrrio, pareciam encher-se de indul
gncia. E era, ento, Dagoberto quem lanava odientos olhares sobre Mateus. S Marreta c
ontinuava com o seu sorriso paternal, ali e hora dp almoo, quando falava da guerr
a e do mundo novo que lhe sucederia. Agora, ele afirmava:
Fico muito contente por quereres reler esses livros. No imaginas, o maior p
razer que tenho hoje...
Na manh seguinte, trouxera os dois volumes:
Todos os outros ficam tua disposio... ofereceu. Ao ouvi-lo, Horcio pensou que, viv
endo Marreta na Aldeia do Carvalho, ele deixaria de o ver frequentemente, desde
que o despedissem. Mas j o velho tecelo dizia:
Mesmo depois, se quiseres, posso mandar-tos por um camarada...
Aquele "depois" comoveu Horcio. Ele afastou-se de Marreta e andou em volta da mqui
na, at junto do rgo; volveu, em seguida, e louvou intimamente o fio que se partira
e lhe permitia estender os braos para at-lo, para fazer qualquer coisa...
Desde essa manh os dias foram decorrendo, para eles dois, cada vez mais penosamen
te. Marreta parecia resignado, mas Horcio adivinhava que ele, embora no o exterior
izasse, estava atento a todos os pormenores que podiam relacionar-se com a sua s
ituao. Uma tarde, perguntou:
J fez um ano que comeaste a aprender, no verdade ?
Fez anteontem...
Sim, deve andar por a... J estou admirado como tarda...
Arremessadas por metdicas pancadas secas, as lanadeiras passavam vertiginosamente
de um lado para o outro, como se passassem no atravs da teia, mas
i
3i8
LA E A NEVE
atravs dos olhos de Horco; e depois iam-se li<j
* fazendo, porque nos olhos haviam rebentado lgriu
No quero! gritou Horcio, torturado...Ji fico aqui! 3
No sejas tolo... Viria outro, j te disse.M Marreta tornou mais doce a sua voz:
Desculpa-mj Eu que sou o culpado, pois no devia estar a faj disto. Mas, s vezes,
esqueo-me e fao-te mal, s" querer... /l
4
>l Efectivamente, naquela sexta-feira, depois do a
moo, Mateus parou, um momento, junto do tear, d|
amveis "Boas tardes" e continuou andando at o S
da coxia. Voltou pelo mesmo lado, sempre em pass
vagaroso e no olhando para as mquinas, como -em
seu costume, mas para o cho. Deteve-se, outra v
junto de Marreta e disse-lhe rapidamente, como ij
tivesse p_ena de descarregar-se da obrigao: J
Voc est cansado, est quase no limite da idadi
e o melhor reformar-se. Eu c por mim custa-BM
dizer-lhe isto, mas so ordens. Voc deve ir ao mdii
da Caixa Sindical, para que lhe passe o atestado a
invalidez e voc poder receber o subsdio... No >]
muito: so apenas vinte escudos por semana, mas
melhor do que nada...

;j
f MBORA tecelo feito e com a sua fria acrescen-;
"^ tada, todas as semanas, pela da mulher, ao fim ] de um ano Horcio no se remira
ainda, integralmente, da dvida ao Valadares. Os industriais haviam aumentado, fin
almente, os salrios, mas o custo da vida subia sem parana, agravando-se sempre a d
esigualdade entre o que se recebia e o que se era forado a pagar.
Horcio barafustava e desconsolava-se tanto quando
A LA E A NEVE
319
falava daquilo, que Idalina, reprimindo os seus prprios enervamentos, procurava
conform-lo:
Ns ainda temos muita sorte. Somos s dois e, melhor ou pior, l vamos passando. No for
ramos duzentos escudos por ms, como tu queres, mas forramos sessenta ou oitenta..
. O ms passado, forrmos cem. Agora, essas famlias que h para a...
Ele interrompia, sarcstico:
Forrmos cem! Tirmo-los ao corpo, que ! No gastamos um vintm que no seja preciso. No
os a divertimentos, no comemos o que queremos, no fazemos nenhuma extravagncia nad
a!
Idalina, mesmo quando pensava como ele, insistia em apazigu-lo:
Est bem, homem! Mas os outros passam pior ainda do que ns. Tu s tecelo e no temos fil
hos. Quase todos os outros ganham ainda menos do que tu e esto carregados de famli
a. Carregados de famlia e com tudo no prego. Ao passo que ns no temos nada empenha
do. E se no fora o dinheiro que deste ao Marreta e aquele tempo em que houve s qua
tro dias de trabalho por semana, j tinhas acabado de pagar ao Valadares...
O dinheiro que dei ao Marreta! Vinte e cinco escudos, a grande fortuna! E isso
de quatro dias por semana, pode acontecer muitas vezes... Todos dizem que antiga
mente era o po de cada dia.
No digo que no... No sei... Mas os outros tambm trabalharo ento s quatro dias e tm
tas bocas a comer...
Ele calava-se, admitindo, de mau humor, que a mulher tinha razo. "Sim, l filhos a
sustentar no tinham eles, graas a Deus".
Essa situao durou, contudo, pouco tempo. Uma manh, quando ele ia a levantar-se da c
ama, Idalina disse-lhe:
Ando desconfiada... J h dias que ando desconfiada...
Desconfiada de qu ? perguntou, alarmado. Ela no respondeu e ele no insistiu.
320
A L E A
NEVE
Era o que faltava agora...murmurou, GR
* dentes. ,j
Mas tu dizias que gostavas muito de cria as... -g
Gostava e gosto! Mas no assim... jj. A semana decorrera-lhe inquietamente e, por j
j
ele tivera de aceitar aquela ideia, que tanto o etif
dava. . j
No domingo de manh, sentara-se mesita de pinj
e lanara-se a fazer contas. De quando em quanffl
detinha-se, com a ponta do lpis metida na boca &J
olhos fixos na parede; depois voltava a riscar o papi
Idalina preparava o almoo, de costas para ele. A cej
altura, ouviu-o dizer: dl
O dinheiro que falta pagar ao Valadares ainal devemos arranj-lo... Mas mais nada.
!
Idalina voltou-se: m
O que dizes? No entendo... M
Digo que no podemos pensar mais na casa Agora, com um filho, vai-se tudo. T
u j no podj" trabalhar tanto e sempre h mais despesas... m
Ora essa! E os que tm cinco e seis ? ::
Tm cinco e seis, mas no tm casa sua... Estiw
a ver... Est aqui, no papel. Mesmo que as coisas dfl
comer e de vestir no subam mais, mesmo que nijB
haja nenhuma doena, depois de termos um filho, sjm
economizarmos dez ou vinte escudos por ms j/M
uma sorte. E com o preo que tm hoje os terreno"
e os materiais de construo, nem no fim de vidjB
tnhamos juntado o suficiente para fazer a casa. HB
muitos dias que ando a pensar nisto. Desde que tu"
me disseste aquilo...
Era a primeira vez que ele lhe expunha, assim B
concretamente, as suas desesperanas sobre a casa; a
primeira vez em que no procurava ocultar-lhe o seu
desgosto e em que sentia at uma vaga, uma inde- l
finida volpia de faz-la sofrer tambm. I
O instinto de Idalina captava esse estado de esp- l
rito dele, pressentindo, no fundo das suas palavras, l
algo que era contra ela ou contra o filho que ela levava J|
A LA E A NEVE
321
no ventre. E vinha-lhe, ento, o desejo de reagir, de convencer do contrrio o marid
o, de se defender:
Ora! Ora! A vida d muitas voltas! Quem sabe l o que vai acontecer? Antes da guer
ra as coisas eram mais baratas e podem voltar mesma, assim que a guerra acabar.
Tambm j estive a ver isso objectou ele, soturnamente. A ver quanto se ganh
ava antes da guerra e quanto as coisas custavam ento. As contas esto aqui... Est t
udo na proporo. Um operrio ganhava roda de dez escudos. S alguns teceles de primeira
categoria iam at dezasseis. vida era mais barata, no h dvida, mas tambm os salrios
am mais pequenos. A prova que os operrios no faziam casas para eles. Viviam nas m
esmas em que vivem agora... Eu, s vezes, pensava nisto, mas como o que eu queria
era chegar a operrio, no dava grande ateno. Eu pensava que os outros no eram econmicos
, que gastavam dinheiro em vinho, em cafs e noutras coisas que no eram precisas. O
Manuel Peixoto, quando andvamos na serra, todos os dias me dizia que os operrios
eram uns relaxados. E, alguns que eu conhecia, eram relaxados, no h dvida. Por essa
s coisas todas, eu julgava que se um homem fosse econmico, podia, s com o seu trab
alho, levantar cabea. Mas, agora, vejo que no. S com o salrio no se pode fazer nada.
Tu at deixaste de comprar vinho e eu, hoje, fumo menos cigarros do que quando er
a pastor. E, afinal, o que se v...
A culpa no minha justificou-se Idalina. Eu fao o que posso...
Ele exaltou-se:
- Quem te est a deitar a culpa ? Nunca sabes ficar calada!
Levantou-se e rasgou, nervosamente, o papel em que rabiscara algarismos.
Desde esse dia sentiu que algo alura dentro dele, algo que vinha fraquejando h alg
um tempo j e desmoralizando-o nas ambies, na sua prpria fora de vontade. A ideia de p
erseverana, de vida regrada e
11 Vol. Ill
322
A L E A NEVE
dirigida para um s objectivo, deixava-lhe, muitas v|
* uma sensao de inutilidade. n
Comeara a no contar os cigarros um de mail
dois tarde e dois noite como fazia at a. Sei
menos desejo de estar em casa, sentia-se saturada
casa e mesmo da companhia da mulher. Parecia!
que tinha a vida inteira para estar ali, sempre!
mesmo casebre obscuro e sempre ao lado de Id|
e isso impelia-o para fora e para outras cell
vencias. li
Muitos dias, ao volver da fbrica, dirigia-se dm
tamente ao Pelourinho e s noite aparecia em cm
hora de comer. Tornava a sair e, como se dec$j
a mandar fazer duas chaves da porta, s vezes IdaJI
j dormia quando ele regressava. Um dia, ela ($
xara-se: fw
Nunca ests comigo... Parece que j no goa de mini... r 4
No nada disso. Tenho outras coisas... 4| um homem precisa de saber o que vai pelo
MurreB E no aqui, metido em casa, que eu sei... :'ji
Ele dissera aquilo apenas para se desculpar, mi|
depois, pensara que, alm de tudo o mais, tamWB
aquilo era verdade, que era tambm por aquilo <$V
ele passava muito tempo fora de casa. E que, se dfflj
xasse de o fazer, seria mais infeliz, pois custava-lHB
agora, viver sem ouvir falar de guerra. Tinham-se dadll
h pouco, a invaso da Normandia e grandes avani|
a leste e isso galvanizara, de novo, os operriol|
Quase todos eles se haviam tornado combatentes meil
tais e, cada vez com maior paixo, comentavam >j
luta sempre que estavam juntos, j no s hora dol
almoo e da sada das fbricas, mas tambm tardel
no Pelourinho, e noite nas esquinas e nos Cafs!
proletrios da cidade. J
Era no "Joo Leito" que Horcio, depois de jarP j
tar, se reunia com o Dagoberto, o Ildefonso, o Boca l
Negra e outros mais. Algumas vezes Pedro ia tambm l
ali. Dagoberto trazia, quase sempre, um novo mapa J
o ltimo publicado pelo "Primeiro de Janeiro". E, en- j
A LA E A NEVE
323
to todos se vergavam sobre os nomes de cidades e regies que haviam sido conquistad
as ou onde se peleiava, nomes que eles no sabiam mesmo pronunciar, e iam acompanh
ando, pelas notcias de cada dia, a marcha dos exrcitos conjugados, como se acompan
hassem a marcha das suas prprias esperanas.
Pedro era o nico que levantava grandes disputas, sobretudo com o Ildefonso. Ele i
nteressava-se pelos acontecimentos a que os jornais se referiam, mas mostrava-se
cptico sobre os resultados que os companheiros aguardavam. E, algumas noites, re
tirava-se antes dos demais, melindrado com o que Ildefonso lhe havia dito enquan
to discutiam. Ento, os outros tambm maldiziam de Pedro, afirmando que ele manifest
ara sempre tendncias burguesas, talvez por julgar que o pai lhe deixaria uma hera
na. E logo voltavam ao mapa ao mundo que eles esperavam ver desenhar-se, um dia,
sobre o mapa.
Alguns domingos, em vez de ir passar a tarde ali ou no Pelourinho, Horcio caminha
va at a Aldeia do Carvalho, a visitar Marreta. Mais do que a amizade, impelia-o o
desejo de ouvir o antigo tecelo dizer as suas palavras de crena no futuro, aquela
s palavras de que ele, agora, carecia como de um alento para a vida. Continuava
a considerar Marreta mais inteligente e sabedor do que os outros e aquilo, dito
por ele, parecia-lhe mais digno de f do que escutado aos operrios da Covilh.
Contudo, dessas visitas trazia sempre um amargor mesclado confiana nos dias vindo
iros que o velho lhe insuflava. Marreta nunca falava de si prprio e, se algum se r
eferia sua situao, ele afirmava que no tinha dificuldades que os vinte escudos sem
anais lhe chegavam para a renda da casa e para as batatas. Ningum o acreditava e
toda a vizinhana sabia que ele passara a comer uma s vez por dia e que, em alguns
dias, no acendia sequer o lume, alimentando-se com duas ou trs batatas cozidas na
vspera. Joo Ribeiro, Tramagal, Belchior e um ou outro camarada mais dedicado procu
ravam auxili-lo, mas ele teimava
324
A L E
A NEVE
* em recusar aquilo que eles teimavam em faz-lo ace
Que no, que no precisava; os outros tinham faia
e mais preciso do que ele. No domingo em que Ru
cio lhe levara cinquenta escudos, ele no quisera i|
b-los. Horcio, ao partir, deixara-os, escondidos, >\
um prato; mas, no domingo seguinte, ele devolvi
-lhos e s depois de muito instado aceitara ficar q
metade. i|
Emagrecera mais do que j era e os seus dois cH
tes isolados dir-se-ia terem crescido na boca chupai
Nunca mais falara da sua correspondncia com esl
rantistas estrangeiros e, uma vez que Horcio aludi
ao caso, ele soltara um rpido "deixei-me disso" e m
ter logo a outro assunto. Jl
Um domingo, ao chegar ali, Horcio encontrou!
casa fechada. Bateu uma, duas, trs vezes e rjj
gum veio abrir. Era, de novo, Inverno, as ruas eSB
vam cheias de lama e desertas, porque comeaval
cair uma molinha incmoda. Horcio bateu de now
S a ribeira, l ao fundo, lhe respondeu com sal
regougos nos penedais por onde se despenhava. Dep
Horcio ouviu ranger uma porta. Voltou-se e deu COT
a caratula da tia Lucrcia, vizinha de Marreta. *>J
Ele j deixou a casa informou a velha. MJ para o Albergue. m
Foi para o Albergue ? repetiu Horcio, sum preendido. '-m
Foi; foi ontem. E a velha, a tremer com m frio, tornou a fechar a sua porta. l
Sob a chuva, Horcio pensou em refugiar-se riSI
casa de Ricardo e l colher pormenores da partidll
de Marreta. Mas logo desistiu, perante a ideia de qUil
ficaria ainda mais triste se visse a misria em qoSR
Ricardo e a sua famlia ultimamente viviam. Ps-s j
a correr para casa de Tramagal. A chuva aumentara i
e, aqui e ali, por detrs dos janelicos da aldeia, lobrP ,
gavam-se rostos de crianas colados aos vidros, na j
monotonia do domingo invernoso.
Tramagal estava de serrote metido a uma tbua quando Horcio entrou:
A L E A NEVE
325
Ol! Vens de casa do Marreta ? Horcio queixou-se:
Venho... Voc no me tinha dito nada... Nem voc, nem ningum...
Ao contrrio do seu feitio, Tramagal mostrava-se sbrio de gestos e de palavras:
Tambm eu no sabia. S ontem, depois de voltar do trabalho, mo disseram. Pelo visto,
o Marreta no queria que ningum soubesse do caso antes de ele sair daqui. Parece qu
e ele pediu para entrar no Albergue logo que o despediram da fbrica, mas esteve t
odo este tempo espera de vaga... Anda, senta-te!
Horcio sentou-se. Os dois homens ficaram, um momento, silenciosos. L fora a chuva
prosseguia.
Mas ele andava sempre a dizer mal do Albergue: que aquilo no prestava para nada e
que at eram mal empregados os cinco tostes que ns dvamos, por semana, para l...
Pois ...murmurou Tramagal. isso que me custa... Ele no foi para l porque gostasse
daquilo... Ele no podia at ouvir falar do Albergue... por isso que eu, hoje, no ti
ve coragem de ir l v-lo...
Horcio examinou o seu relgio.
Eu gostava de dar l uma saltada... Mas j tarde. Chega e no chega, faz-se noite...
Vamos os dois no domingo que vem. Quando penso no caso, at parece que sinto uma
coisa a arranhar-me c por dentro! disse Tramagal, levantando-se. E, caminhando p
ara a porta, abriu-a totalmente e ps-se a respirar o ar hmido de l de fora, enqua-n
to a. chuva caa diante dos seus olhos.
Vetusto casaro, com uma esplanadazita em frente,
0 Albergue dos Invlidos do Trabalho erguia-se no rneio de outras casas velhas da
cidade. Horcio conhecia-o exteriormente, por haver passado algumas vezes ali, mas
nunca se detivera no seu limiar. Agora, ao
326
A L E
A NEVE
f premir a campainha, a mo tremia-lhe. A prnd
ele no ouviu coisa alguma. Depois, soaram uns pj|
que vinham de longe, aproximando-se vagarosanai
e a porta abriu-se. $
Horcio viu, ento, na sua frente, uma freira "jj
rentona, de alto chapu engomado e faces nil
brancas: 4
Boa tarde... saudou com uma voz ao me^ tempo pastosa e doce. Que deseja ? l
Eu queria falar ao Jos Nogueira... A um a chamam Marreta... |
A freira hesitou e, puxando do seu hbito um O do, examinou o relgio que na extremida
de destfej amarrava: M
Ainda no hora de visitas... disse.l
tam dez minutos... Tornou a hesitar e decidiu-segi
Bem, j que est aqui, entre! ia
Horcio encontrou-se numa espcie de velho p
ao fundo do qual uma escada subia para o primdl
andar. m
Espere aqui, que eu you cham-lo. t
Mal a freira desapareceu, Horcio ouviu uma nj
que rompia, de sbito, o silncio do edifcio, cantand
nervosamente, uma cantiga que nunca se conclua, qw|
ficava sempre nos primeiros versos nos primeiros ve
ss sempre repetidos. A voz ora se calava, ora vohnj
a cantar, s vezes, com frenesi, com um torn raivosa
de quem houvesse fincado o p sobre o cadver de um
inimigo vencido. Os desvairados estrdulos cada vai
soavam mais perto, mais perto cada vez, e, somaflH
do-se emoo que Horcio trazia, produziam-lhe crSM
cente mal-estar. Por fim, a voz emudecera. Mas unI
outro rudo atraiu os olhos de Horcio para o cirnol
da escada. Desgrenhada rapariga surgira ali e contem-1
plava-o com alucinada expresso. Quedara-se um mo-1
mento parada e, em seguida, fugira, soltando um grito, j
De longe, chegou at Horcio outra voz de mulherg" l
que admoestava: .
Eu no lhe disse j, menina, que no sasse do J corredor ?
A LA E A NEVE
327
Houve novo silncio e, depois, a freira voltou a aparecer. Na penumbra do ptio, a b
rancura dos seus hbitos quase anulava a outra figura que ao lado dela vinha. Era
um homem metido numa fardeta coada, que sorria a Horcio, ternamente. O velho dlman
e a cala remendada, mui cingidos ao corpo, ainda amesquinhavam mais o vulto. Horci
o identificou-o pelo sorriso.
Tio Marreta... Ento? Queria dizer mais, mas no podia. As palavras ficavam-lhe na
garganta, como pedras que a obstrussem.
Marreta abraara-se a ele:
Ento, meu rapaz? Ento... como vais? Tinha lgrimas nos olhos e tambm dificuldade em
falar.
Estiveram assim alguns momentos e, depois, Marreta disse:
Folgo muito em ver-te...
Mas no era nada daquilo que ele desejava dizer. Ambos sentiam que a presena da fre
ira os perturbava. Marreta passou as costas das mos nos olhos, voltou-se e pediu:
A irm d licena que v com este amigo l para dentro?
A freira inclinou a cabea.
Alguns passos feitos e os dois encontraram-se num obscuro corredor, logo numa ga
leria que neste entroncava. Agora, para onde quer que ele volvesse os olhos, Horc
io via figuras de velhos velhos por toda a parte. Uns coxeavam sua frente, outr
os arrastavam-se sobre o lajedo, apoiando-se a bengalas. Aqui estava um grupo se
ntado e emudecido; alm, um homem solitrio, que roa as unhas e olhava para ele. Algu
ns, mais audaciosos, saam-lhe ao caminho e pediam:
Tem um cigarrinho c para o velhote ?
Da banda de trs, o Albergue dos Invlidos do Trabalho lanava duas alas sobre umas te
rritas cultivadas. Nestas andava, de um lado para o outro, semPre no mesmo trilh
o, como animal nocturno, e sempre de olhos no cho, outro velho que falava sozinho
e
328
A L E
A NEVE
* gesticulava incessantemente para um interlocutor ift
svel. De quando em quando, detinha-se, escarr^
fazia gestos mais bruscos e depois tornava a ir eijf
nava a vir, todo entregue quela intrmina discu$
com o seu fantasma, quele infindo monlogo con$|
prprio. .jjj
Do lado de l da horta havia outras galerias^
trrea e a do primeiro piso, lembrando um trecho^
pobre claustro. Tambm nelas Horcio divisava num
rosos invlidos, uns esqulidos, vergados e complejj
mente calvos, outros com umas farripas brancas pj
cima das orelhas. Num deles Horcio reconheceu!
Paredes, que se mostrava de perfil, falando com own
velho. J
Podemos ficar aqui disse Marreta. l
Encontravam-se no extremo da galeria e, em frerB
erguiam-se, nico osis para os olhos, duas laranjefl
com o seu verde picado pelo oiro dos frutos. >m
Horcio sentou-se num pequeno banco, ao lado m
Marreta: J
Que ideia a sua de vir para c! E sem pr"
nir ningum! Quando soube, no domingo passado, till
um grande desgosto... m
Marreta no respondeu logo. Colocou as rrjos sobjjl
os joelhos e ficou-se, um momento, a olhar para ela"
Que ia eu fazer ? murmurou, depois. Os cm maradas vivem com dificuldades e est
avam a sacriM car-se por minha causa...
Ora! Ora! Vossemec no queria aceitar nadaj E um pouco a cada um no custava. J
Eu no queria aceitar, mas ia aceitando. E, urj dia, os camaradas acabavam por se
cansar. Coitadosjj Tomaram eles ganhar para a famlia que tm... J
A voz da louca voltou a descer do primeiro andar"!
Era a mesma cantiga de h pouco os mesmos versos I
sempre iguais. Logo, porm, se calou. l
Marreta deu uma leve palmada na perna de Ho- f
rcio: J
Agradeo-te, mas no te aflijas comigo! Aqui i
no se est to mal como eu pensava... No se pode |
A L E A NEVE
329
dizer que seja um paraso, mas vai-se vivendo. A princpio, pode custar... Depois, a
gente acostuma-se. Eu, daqui a pouco, estou acostumado, tenho a certeza... A de
svairada cantiga tornou a reboar do piso superior. E parecia meter-se por todas
as frinchas, cobrir os dilogos de todos os velhos, traspassar e estarrecer o edifc
io inteiro.
isto que mais me custa confessou Marreta. Mas tambm eu me hei-de habituar...
Ento aqui h loucos ?
H alguns... No tm onde os meter e esto para a... No digo que estejam doidos de todo,
mas faz impresso olhar para eles. A alguns conheci-os eu quando ainda trabalhavam
nas fbricas e, agora, custa-me v-los assim, com o juzo perdido. Essa rapariga a qu
e est pior. D pena, porque no tem ainda vinte anos...
Marreta calou-se e, l em cima, a louca calara-se tambm. Horcio disse:
Eu queria trazer alguma coisa para si, mas no sabia bem o que havia de ser... Com
o vossemec no fuma e, alm disso, vegetariano... Mas diga-me o que que mais falta lh
e faz, que eu, no domingo que vem, trago-lhe.
No preciso de nada. No te incomodes. Marreta vacilou um instante e acrescentou:
O que eu desejo que o frio passe. Estas terras do Albergue so tratadas por ns e eu
gosto muito de tratar de terras. Logo que o frio abrande, eu irei cuidar
da horta e j me entretenho.
Horcio voltou a insistir. De alguma coisa ele devia precisar, tinha a certeza. To
da a gente garantia que a vida do Albergue era m e ele prprio, Marreta, lhe tinha
dito, muitas vezes, a mesma coisa, quando falava dos invlidos. E se agora dizia o
contrrio, era com a ]deia de no o incomodar, mas estivesse certo de que no o incom
odava nada.
Marreta baixou os olhos:
Bem, j que teimas, quando voltares c traz-me dois selos para o estrangeiro. E umas
folhas de papel
330
A L E A NEVE
de carta... Devo resposta a uns esperantistas da AM
tir e no tenho podido escrever-lhes...A vo2
Marreta comeara a enternecer-se, mas ele levantai
e perguntou, com outro torn: J viste istojy
qui ? J
Do extremo da galeria abrangia-se, para baixttf
terras do Albergue, as vertentes da ribeira DegdH
e as vrias fbricas de lanifcios que, nas suas nal
gens, se erguiam. Mais alm, na encosta da serra, ju
travam-se longos aglomerados de pinheiros e urna^f
outra ferida branca de pedreira. Marreta estendeis
brao e indicou ao longe: ,j|
Acol, uma vez, encontrei um lobo. Eu airj
era pequeno e vinha de Cortes do Meio. Foi h mui3
anos... Quase todas aquelas casas que se vem daql
ainda no existiam... M
A sua voz tornava a comover-se. Ele queria reagi
mas a voz humedecia-se sempre daquela comoo: J
Nasci cedo de mais... Tu que ests em n|
idade. Tens muitas mudanas para ver, quando J
guerra acabar... "m
No comeo da galeria surgira o velho Paredes, agal
rado sua bengala: >9
Olha o Horcio! Olha o Horcio! ;m Tinha um sorriso pateta, desdentado. Horcio dei"
-lhe os dois cigarros que lhe restavam: 3]
No sabia que vossemec tinha vindo, tambH| para c... ;M
Pois vim... Desde que me morreu a mulher.>m Que ia eu fazer? Mas de quem tenho p
ena aqui doa nosso Marreta. Eu sou um pobre-diabo; no valhqj nada... Mas e
le... Custa-me l L isso custa-me! f l
Marreta interveio: -, J
Cale-se, homem I Deixe-se de tolices! r l
Ouviram-se novos passos no lajedo. E uma voz l
grossa, que Horcio conhecia. Tramagal e Joo Ribeiro i
avanavam na galeria. A freira que os guiava rei- i
rou-se e Tramagal abriu os braos: J
D c esses ossos, meu velho! No h direito l
de sair assim calado, que nem um rato! Por tua causa, f
A L E A NEVE 33!
u at ia serrando um dedo... Olha! E mostrava o indicador envolto num trapo branc
o.
Pouco depois, Tramagal e Joo Ribeiro faziam as mesmas perguntas e ofertas que Horc
io fizera e Marreta repetia as mesmas escusas e explicaes que havia dado momentos
antes. Paredes interrompeu-o:
O que ele precisa de um cobertor...
O qu ?! exclamou Tramagal. Ento ele no tem cobertores ?
Tenho... Tenho... declarou Marreta.
Tem dois, mas no chegam. Eu tenho trs e, mesmo assim, com este tempo, sinto frio.
Quanto mais ele! Ainda a noite passada eu vi-o a tremer na cama, l no nosso dorm
itrio.
Marreta ia a falar, mas j Tramagal enchia tudo com a sua indignao:
Parece impossvel! Um homem que trabalhou toda a vida com ls, para os outros, no
ter um cobertor quando chega a velho! Onde est essa superiora, que eu you cantar-
lhe das boas! No faltava mais nada!
Os outros invlidos, que se encontravam sentados nas galerias, voltaram-se todos p
erante o vozeiro de Tramagal. Marreta conseguiu, por fim, interromp-lo:
A superiora no tem culpa. Ela at mostra boa vontade... Mas o Albergue tem
poucos rendimentos. Os operrios pagam cinco tostes por semana e, com os salrios
que tm, no podero pagar muito mais. De vez em quando, as freiras fazem um peditrio
, mas, mesmo assim, no arranjam dinheiro que chegue, pois se alguns ricos do qualq
uer coisa, outros no do coisa nenhuma... De maneira que no vale a pena dizeres nad
a superiora... Ainda se fosse s eu! Mas h muitos mais assim...
Todos ficaram, um momento, calados e, depois, Joo Ribeiro perguntou:
E os cobertores que tu tinhas... l em casa?
Bem... Muitas vezes tenho pensado nisso... Mas eu tinha feito umas dividazitas e
, antes de vir para c, vendi-os, para pagar... Vendi tudo...
Tramagal afirmou, sombriamente:
332
A L E A
NEVE
1
Amanh j ters um cobertor. E j podias U
* mandado dizer que te faltava... !>1
No quero! Onde tens tu dinheiro para fazeil assim, de p para a mo, uma despesa dess
as ? J
No h-de ser s o Tramagal a pag-lo...jJ disse Joo Ribeiro. -,jj
Amanh ters um cobertor repetiu Tramagl E vamos c a saber: a paparoca ? -J
Paredes ia a responder por Marreta, quando esi
o deteve com um olhar um olhar que fez surdir, im
boca do outro velho, um sorriso resignado, em vez dm
palavras que ele se propusera dizer. m
Tramagal comentou: >|B
No presta para nada, est visto! M
A comida boa...corrigiu Marreta. DepoM
perante o admirado olhar de Paredes, acrescentou, hesB
tante:A comida no mal feita... Nos quartel"
fazem-na muito pior... Talvez os velhotes comesseoM
mais, se lha dessem... Alguns tm bom apetite, coit^M
dos!... Aqui o tio Paredes, por exemplo... Mas quei^l
vem para aqui j sabe o que estas coisas so... AgorajJ
c por mim, vocs no estejam a preocupar-se, que eaB
no passo necessidades. Como sou vegetariano, corfH
pouco me arranjo. Nos primeiros dias ainda tive ajB
umas dificuldades. Mas, depois, falei superiora e agorafH
fazem, para mim, uma panela parte, com batatas-H
e couves. Ontem, deram-me cenouras, coisa que eu jjB
no comia h tempos. Souberam-me muito bem. V
Mais uma vez a louca desatara a cantar. Alguns B
dos velhos olharam para cima, como se lhes fosse ps--H
svel ver a figura dela atravs do tecto. Logo voltaram 8
aos seus lentos dilogos ou quela modorra a que se m
entregavam, de cabea vergada, as plpebras cerradas,
as mos postas sobre o ventre.
Tramagal olhou em seu redor:
Ainda assim, h, aqui, muita velhada... disse.
E voltando-se para Horcio: O que me d raiva B
pensar que nenhum destes gajos fez o que quis na vida.' fl
Horcio tornou a entristecer de repente. Fechou B
os olhos para no ver os velhos, mas continuava a ver f
A L E A NEVE
333
velhos dentro dos seus olhos, os velhos e a casita
ele sonhara a desenhar-se agora sobre os velhos
0S VelUU" UC11LU V_l.<_>0 OV-UO V.LUVSO, x,o ,^.1+j
L^ ~ ~
que ele sonhara a desenhar-se agora sobre os velhos e ele velho tambm, ali, no Al
bergue, entre os outros velhos. Sentiu, de sbito, uma nsia enorme de sair dali, de
deixar Marreta, de ir l para fora, para o Pelourinho, para algures, onde no visse
nem os velhos nem o Albergue. Mas j Tramagal chalaceava e ria forte, procurando
espairecer a Marreta, nos olhos do qual ele adivinhava, tambm, uma nuvem de trist
eza.
Quedaram-se ali at as quatro da tarde. Quando se despediam, Marreta puxou Horcio p
ara uma banda e murmurou-lhe:
Estive a pensar nisso das cartas e como, agora, com a guerra, elas demoram muito
a chegar e, s vezes, vo mesmo para o fundo do mar, o melhor eu deix-las para mais
tarde... Assim, em vez de trazeres os selos que eu te tinha pedido, traz um boca
do de queijo para o Paredes comer. Eu sei que ele gosta muito de queijo, pois ai
nda anteontem mo disse.
VI
(j filho de Horcio nasceu com bom tempo. Nas encostas vizinhas da cidade, os cast
anheiros sobreviventes dos grandes soutos pretritos mostravam, de novo, as suas c
opas lustrosas de um verde mui vivo de Primavera. No jardim pblico, as tlias apres
entavam-se, tambm, exuberantes de folhagem, enquanto as roseiras de trepar haviam
j florido sob as varandas das casas ricas. Das povoaes serranas, os rebanhos comeav
am a subir para os cumes, ento como h cem, h duzentos, h mil anos, e iam devorando a
s flores silvestres que rompiam de todas as bandas, pulcras e humildes. Nas Penh
as da Sade e na Nave de Santo Antnio, os amadores de esqui tinham dado o seu lugar
aos pastores. E no mesmo stio onde, no Inverno, soavam gargalhadas de moos e moas
ele-
334
A L E A NEVE
I
gantes, nas suas quedas, corridas e volteios sobid
* neve, o silncio das alturas s era quebrado agora ,a
melancolia humana de alguma cano de pegurj
Na Covilh, quando, a horas matinais, os opera
saam de casa para as fbricas, j encontravam,?!
caminho, um sol lmpido que cobria a cidade e a $m
e parecia encher a serra e o Mundo todo de paaa
a paz doce, luminosa, perfumada, cromtica, com <n
nesses dias primaveris, a natureza realizava, em sila
cio, a sua obra de criao. Era uma paz que dir-sel
segregada pelas prprias ervas, plantas e arbusj
pelas prprias fragas hirsutas e s por esforo do cem
bro se concebia que no fosse universal o domnio qji
ela exercia ali, nos pendores da montanha agora revm
decides. m
Contudo, l longe, a guerra, acercando-se mu|
embora do seu bito, no morrera ainda. E ali mesMB
a harmonia s tinha existncia entre os vegetaisB
minerais da serra e no na alma dos homens. Os opfl
rrios entravam nas fbricas j excitados e trabaluB
vam ansiosos pela hora da sada, que lhes permitJI
conhecer as ltimas novas da peleja. Berlim agonizava]
Sitiada e fuzilada de todas as bandas, ferida a todoB
os instantes por bombas e granadas, a cidadela arrdiB
gante ia cedendo hoje um passo, amanh dois, cada
vez mais vermelha de sangue, mais dbil e encolhidffl
sob o retumbar incessante do ferro e do fogo. M
A irm de Dagoberto, quando vinha trazer-lhe <|I
almoo fbrica, trazia-lhe, tambm, o ltimo jorna
chegado de Lisboa ou do Porto. Em volta da gazet"l
formava-se copioso grupo e as bocas iam mastigandcM
o seu po enquanto os ouvidos escutavam, atentos, xm
leitura que Dagoberto fazia, tambm de boca cheia.1
Mas era tarde e noite, no Pelourinho e nos encon-*
tros de rua, que eles se apossavam das mais recentes
notcias, propaladas por um ou outro habitante da
cidade, que as colhera nos aparelhos de radiofonia. m
Hitler morrera. Os russos haviam chegado beira da -l
Chancelaria do Reich. O almirante Doenitz formara m
novo governo, longe da capital. E j ningum fixava f|
A LA E A NEVE
335
os nomes das cidades que americanos, ingleses, russos e franceses ocupavam nesse
s derradeiros dias de batalha.
O ms de Maio comeara e nos castanheiros da colina de Santo Antnio surgiam os primei
ros laivos amarelos da sua prxima florao. Na Praa da Repblica, as tlias preparavam-se
igualmente para florir e encher o jardim com o seu gordo aroma.
H j semanas se aguardavam, ansiosamente, pa,lavras anunciadoras de que a guerra te
rminara e a paz volvera tambm s terras da Alemanha. Por fim, essas palavras vieram
e, ento, nas aldeias os sinos repicaram e cortejos festivos percorreram vilas e
cidades.
A guerra terminara, mas a coincidncia que se havia previsto para o seu fim no se d
era e um vcuo se abrira, mais uma vez, nas esperanas dos homens que trabalhavam na
s fbricas. Era como se mos invisveis houvessem cavado, repentinamente, um fosso na
estrada que eles trilhavam. Os aparelhos de rdio e os jornais j no se referiam a um
mundo novo para todos os homens. Agora, os estadistas tratavam de outros proble
mas.
Uma noite, no "Caf Leito", Ildefonso procurou justificar-se perante os companheiro
s e perante ele prprio da f que andara espalhando durante tanto tempo:
Ainda cedo para se deixar de acreditar... disse. Ainda est tudo muito embrulhado
...
Pedro sorria, sarcstico. Os outros operrios viam aquele sorriso e irritavam-se. Ta
mbm eles, agora, acreditavam menos nas palavras de Ildefonso do que meses antes.
Mas o sorriso escarninho de Pedro parecia-lhes uma ofensa a todos eles, a algo q
ue possua mesmo mais fora do que eles.
Pedro vangloriava-se:
Um mundo melhor l... Quem tinha razo ? Eu no dizia que o tal mundo no viria
? Eram tudo lerias! E vocs, uns palermas, que acreditavam nisso!
Ildefonso levantou-se bruscamente e fez o movimento de retirar-se. Mal deu, porm,
dois passos entre as mesas, no pde conter-se e voltou-se:
336
A L E A NEVE
f Palerma s tu, compreendes ?
Pedro olhou-o, surpreendido por aquela reacj
Depois respondeu com voz cortante: JJ
Aprendi contigo... s
Palavra atrs de palavra, o nada tornara-se, l
repente, muito. Boca Negra agarrou-se a Ildefonso, <1
momento em que ele ia levantar os braos. Os oura
operrios cercaram Pedro, que se havia erguido, taa
bem, da mesa: j
Vai-te embora... melhor que te vs embora*
disseram-lhe, rudemente. E as vozes de todos paflj ciam solidarizar-se numa ameaa
contra ele. <3J
Boca Negra e Horcio saram, levando Ildefonsi
E, desde essa noite, os homens evitavam falar daquili
Mas os dilogos acabavam sempre por se aproxima
daquilo. Ento, um ou outro, tinha um sorriso seal
e triste. J
No domingo, Horcio foi visitar Marreta, que havil
adoecido. O antigo tecelo encontrava-se numa dal
camas de ferro, cobertas de branco, que, em duas filas]
constituam o dormitrio do Albergue. O seu coraw
enfraquecera, em Maro tivera duas sncopes e o mel
dico diagnosticara tambm uma nefrite. l
Era a primeira vez que Horcio vinha ali depoiil
de finda a guerra. E no queria desgostar a Marretai
falando-lhe do caso, pois isso lembrar-lhe-ia, decerto^l
as previses que ele, como o Ildefonso e muitos outrosj J
fizera e no se haviam consumado. Mas fora o prprioi
Marreta quem, depois de ter respondido s perguntas!
de Horcio sobre a sua sade, dissera de repente: l
Ento, mais uma vez, tudo ficou na mesma ? l Horcio no respondeu. As mos de Marreta
, ds- 1
camadas e da cor do marfim velho, dir-se-iam faleci- i
das sobre a puda colcha branca. l
Mas isto no fica assim... tornou. Mais ano, i
menos ano, isto modifica-se. Vocs, os novos, ho-de l
ver muitas coisas... i
Horcio continuou calado. Tambm ele, depois de J
finda a guerra, voltara a ter dvidas. Os projectos i
que fizera, relacionando-os com uma melhoria colec- J
A LA E A NEVE
337
tiva, haviam comeado a parecer-lhe, nos momentos de desnimo, to inexequveis como os
que tinha imaginado base do seu salrio. Pedro dissera-lhe, vrias vezes, que Marret
a "era um homem que andava nas nuvens" e ele, agora, escutava-o quase com as mes
mas reservas de quando o conhecera na Aldeia do Carvalho. Havia algo, porm, que p
ermanecia, apesar de tudo, no seu esprito uma admisso, uma hiptese, uma semente qu
e no germinara e que no estava, l antes de ele vir para as fbricas. E essa imponderv
el presena criava-lhe frequentes contradies. Quando ele, resmungando, maldizendo de
tudo e de todos, pensava em resignar-se, em aceitar as circunstncias, acomodando
-se a elas, submetendo-se a elas, como tinham feito muitos outros, como faziam m
uitos outros, logo aquela esperana que parecia morta ressurgia, nublada como semp
re se lhe apresentara, mas viva e dando-Ihe o nico consolo que ele encontrava nas
suas horas de desespero.
Agora, escutando Marreta e lembrando-se de tudo quanto parecia confirmar as pala
vras de Pedro, a esperana e a dvida voltavam a degladiar-se.
Marreta acabara por notar o seu silncio:
Hoje no ests nos teus dias... Ele fez um gesto vago:
Queria que vossemec ficasse bom...
Marreta teve um sorriso resignado e triste. Depois, disse:
Hei-de ficar bom, ento no hei-de! Passo as noites mal e incomodo para a a velhada
e as irms, coitadas! Mas isto cura-se.
Horcio olhou para ele. E quando, s quatro horas, saiu, vinha mais triste do que o
sorriso triste que Marreta tivera.
Os dias iam-se tornando cada vez mais longos. E das Portas do Sol viam-se j os ca
stanheiros da colina de Santo Antnio todos amarelados, todos floridos. Eram pouco
s e dispersos, como os das encostas sobranceiras ao Sineirinho, mas lembravam a
Horcio, numa tnue saudade, os grandes soutos das proximi-
338
A L E A NEVE
f dades de Manteigas. Ele parou, um instante, a pj
os castanheiros e a pensar no que lhe dava sauefej
Desenterrou da memria dias e anos da sua inffl
e da sua adolescncia e concluiu que nunca tivera m
de to bom que merecesse a pena ser recordado. C|
tinuava, porm, a sentir saudades, uma saudade |
coisas indefinidas, que no sabia explicar a si prpi
Pensou que seria pelos pais, a quem no via hl
bastante tempo; que seria dos primeiros dias de nama
com a Idalina, mas, depois, convenceu-se de que m
era por isso tambm. J
Quando, finalmente, Horcio atravessou o Peia
rinho, havia l, como todas as tardes, grupos de am
rrios e de empregados comerciais a pairarem. Mas a
no se deteve. Desde que terminara a guerra, voltai
a passar quase tantas horas em casa como nas p|
meiras semanas de casado. S saa depois de janta
quando o Joanico dormia. E era a prpria Idalina qm
lhe pedia, agora, para ele sair: "Vai dar uma voltl
seno, assim, sempre a falar, acordas o menino". i
Ele sentia-se cada vez mais preso ao JoanicojJj
contente porque a cara do filho se assemelhava deli
Todos diziam que raras crianas, nos primeiros meseJI
se pareciam com os pais, mas o Joanico, desde qui
nascera, parecia-se com ele; eram os seus olhos, o sei
nariz e at o seu queixo aguado. .1
Na fbrica, Horcio estava sempre desejoso de vm
tar a casa e, muitas vezes, imaginava que podia acoBM
tecer, na ausncia dele e da mulher, algum acidenta|
ao menino. Depois do parto e antes de retomar o seM
trabalho de esbicadeira, Idalina tentara deixar o nlhdj
no Lactrio, onde a Josefa tambm deixava o seu.*
Mas l disseram-lhe que no podiam receb-lo, quell
no tinham lugar para mais de doze crianas, nem l
leite para mais de vinte e quatro, nem dinheiro parai
comprar mais leite e mais beros. Escusava ela d l
falar alto, de reclamar, pois aquilo era uma obra de l
particulares, de senhoras que possuam bom corao, J
mas no dispunham de meios para recolher as mil ou l
mais crianas pobres que havia sempre na Covilh, l
A LA E A NEVE
339
Idalina decidira, ento, pedir Procpia que lhe tomasse conta do Joanico, enquanto e
la estava na fbrica. A Procpia no quisera fazer-lhe preo, mas calara-se quando a ouv
ira dizer que, depois, lhe daria alguma coisa.
Todos os dias, durante a hora do almoo, Idalina saa, a correr, da fbrica, disparava
rampa acima e vinha entregar o seio ao filho. Recomendava sempre Procpia que no s
e esquecesse do bibero das quatro e, s depois disso, regressando ao trabalho, comea
va a tasquinhar, ladeira abaixo, a sua cdea e a sua ardmha. As outras mulheres, qu
e a viam chegar e partir, sorriam, cpticas e experientes, daquela azfama e garant
iam, mesmo em frente dela, que tantos cuidados s se tinham com o primeiro filho.
Mas Idalina pensava que ela seria sempre assim, por muitos filhos que tivesse.
A Horcio, a Procpia parecia-lhe mondonga, pouco cuidadosa e cada dia ele tinha mai
or receio de que ela no tratasse bem o Joanico.
Ainda o melhor seria tu deixares de ir fbrica e comeares a esbicar em casa disse
ele, uma noite, mulher.
Tambm tenho pensado nisso. Mas, se fico em casa, ganho menos, j se sabe... Por mu
ito que no queira, mete-se uma coisa e outra e o trabalho rende pouco.
Horcio considerou um momento, em silncio, e, depois, concordou:
Pois ... Isso ...
Outra noite, ao pegar no Joanico ao colo, ele viu nas pernitas do filho uns crcul
os avermelhados, que nem de brotoeja.
Que isto ? gritou.
Idalina aproximou-se, mas, antes mesmo de examinar a tenra pelezita, j ele berrav
a de novo:
So mordeduias de percevejos, no h que ver! Essa Procpia uma porca, eu sempre o disse
!
Idalina interveio, inquieta:
Cala-te, homem, cala-te! Fala baixo... Ela pode estar a na rua e ouvir-te...
340
A L E
A NEVE
Pois que oua! uma porcalhona, no h dvj
* Deixa fazer isto ao menino! j,
Idalina sabia que no tinha na vizinhana o
mulher que pudesse, como a Procpia, tomar-lhe ce^
do filho enquanto ela estava na fbrica. E, aflita, p
curava serenar Horcio: "
Deixa l, que no por isso que a criana mor|
Eu hei-de falar Procpia, mas percevejos h-os $
toda a parte, agora com o calor. Aqui mesmo os terj
a dar com um pau. Ainda ontem encontrei dois. E,|
no s, todas as noites, ferrado por eles ? j
Ns somos crescidos! Uma coisa somos n^j
outra coisa o inocente, que no se pode defendi
Compreendes ? d
Depois destas ltimas palavras de enervamento, a
pareceu ter reconsiderado e calou-se. Mas, logoa
seguir, pousou o filho na cama e comeou a tirar, lei
tamente, a traparia do bero e a escabich-la de im
lado e de outro. |
C est um! exclamou. E logo: C esq
outro! Assim, como que a criana no h-de esta
mordida ? J
Novamente Idalina interveio, conciliadora: J
Pode ser que sejam mesmo da nossa casa. NesiM tempo, as madeiras esto cheias dele
s... a
Pois ento, no domingo, vai-se fazer, aqui, umJ limpeza geral. Tem de se acabar co
m isto! l
Efectivamente, no domingo seguinte, mal regres!
sara do Albergue, com a alma mais aliviada porque!
Marreta parecia haver melhorado, metera mos tarefa,!
Havia comprado petrleo e ps insecticidas e, numl
instante, com Idalina, desarmara a cama. i|
O colcho para a rua, para arejar! l
E enquanto Idalina lhe obedecia, ele buscava os l
parasitas entre os ferros. Surgira um, surgiram dois; l
surgiram dezenas, que ele ia esmagando com raiva, j
Posto a um canto, no seu bero, o Joanico largara a \
chorar.
Cala a criana e vem c! ordenou Horcio mulher.
A L E A NEVE
341
Ele acabara de descobrir que, nas j unturas do soalho por baixo da cama, tambm se
acoitavam perceveis. Pusera, ento, Idalina a esfregar aquelas tbuas velhas, enquan
to ele esquadrinhava, com uma lascazita cie pinho na mo, a mesa-de-cabeceira. Mas
o Toanico voltara a chorar, a complicar aquilo, a irrit-lo mais. Idalina caminha
va do alguidar de gua suja para o bero e do bero para o alguidar.
Tambm a mesa-de-cabeceira se encontrava habitada. Ele comeara a escarafunch-la e a
polvilhar-lhe o interior, quando a figura de Manuel da Boua se esboou porta, com a
queles retrados modos de quem se tem sempre por inoportuno:
Boa tarde...
Horcio mal lhe respondeu e continuou a sua faina.
H muitos meses j que Manuel da Boua lhe frequentava o casebre. O proprietrio do arma
zm onde o velho trabalhava, considerando quase inteis os seus servios, nunca lhe au
mentara o ordenado. E, com a carestia dos alimentos, pela guerra provocada, dias
havia em que ele passava fome. Dera-se, ento, a buscar um e outro conhecido, a a
parecer-lhes hora do jantar, a oferecer-se para recados, a precipitar-se se via
ensejo de poder auxiliar a dona da casa. Estava cada vez mais decrpito e, com a b
arba quase sempre por fazer e o dorso abaulado, os seus pesados movimentos lembr
avam os de um velho gorila. Percebera que a Horcio no eram gratas as suas descrenas
sobre os homens e sobre o seu amanh e cessara de falar delas. E se, por alguma i
rreprimida palavra, as deixava entender, logo as corrigia ou se calava. Humilde,
servial, de suja andaina remendada por ele prprio, a fome adivinhava-se-lhe nos o
lhos e na tremura dos lbios quando algum comia na sua frente. Horcio compadecia-se
dele, mas continuava a no lhe dar espontnea simPatia. Algumas vezes surpreendia-o
de olhar fixo, muito fixo, no Joanico, como se estivesse a recordar-se de alguma
coisa que s ele sabia ou a ver a cabea do rnenino por dentro. Nesses momentos, pa
recia a HorC1o que aquela mirada podia fazer mal criana, pr-
342
A L E A NEVE
judicar-lhe o seu futuro, pois dir-se-ia que os oll|
Manuel da Boua estavam a ver coisas que maisf j
gum via. E, ento, maldisposto, Horcio solj
bruscas palavras, que faziam o velho quebrar a Sa
do seu olhar e estremecer, como se voltasse a m
algures, de muito longe ou de dentro da cabeal
prprio menino. J
Ao contrrio do marido, Idalina simpatizava *m
Manuel da Boua. li
um pobre homem! E honrado! Nunca meai
com um tosto! dizia, quando Horcio o criticsa
um pobre homem e no tem ningum por "m Quando penso que teve uma filha e se v agora
as" abandonado, sinto pena... i
Como Idalina, desde que trabalhava na fbricaJj
aos domingos podia ir ao mercado, era Manuel j
Boua quem, um e outro dia, de manh cedo, aim
de entrar no emprego, lhe fazia algumas compJ
E tambm ao comeo da noite, depois de sair do anal
zm, estava sempre pronto a obedecer-lhe, a ajuda
nisto e naquilo, a ir ali e acol, consoante ela prwj
sava. Depois, quando a via a levantar do lume a cQB
fingia que se retirava: m
bom... Ento at amanh... Deus lhes d bfl noites... m
Espere a, homem! E Idalina metia-lhe iB mos uma tigela de caldo. (m
Posteriormente, como Horcio afirmasse que o mm lestava ver Manuel da Boua a olhar
para eles enquanwj ceavam, tanto mais que no podiam oferecer-lhe <MJ tudo, Idalin
a, logo que ele simulava despedir-se, dm zia-lhe: '
Volte daqui a um bocado... Preciso de si... <^ Naquela tarde, ao encontrar a
casa desarrumada 'm
Horcio a limpar a mesa-de-cabeceira, Manuel da Bou>| sorriu, desde a porta: r -if
Ests a dar-lhes, hem? o tempo deles... N<8| meu quarto tambm os h aos cardumes. Olh
a lcl queres uma ajuda ? 1J
Horcio no lhe respondeu, mas ele tomou o sei" l
A LA E A NEVE
343
ilncio por aceitao. E, com um gancho de cabelo nue Idalina lhe dera, ps-se cata dos
ninhos ocultos em quantos cortes e gretas tinham as paredes e as madeiras. Proce
dia lentamente, mas com mestria, como se houvesse passado a vida naquela funo. Par
a ver melhor, pedira a Idalina que acendesse o candeeiro e, de quando em quando,
JHorcio ouvia-lhe um riso voluptuoso e surdo: " ". Era sempre no momento em que ext
raa do seu aprisco um dos percevejos e o fazia estalar sobre a chama do candeeiro
. Havia-os por toda a parte. Da casa j tresandava para a rua o cheiro do petrleo e
muitas das frinchas estavam j tapadas com o p insecticida; apesar disso, Horcio e
Manuel da Boua continuavam a encontrar parasitas. O Joanico voltara a chorar.
Horcio ouvia o filho, via a mulher agarrada ao esfrego, Manuel da Boua puxando semp
re o candeeiro para junto dos seus olhos cansados, ele prprio a pesquisar os inte
rstcios da cantareira e rosnava: "Porcaria de casas! Grande porcaria!" De repent
e, ele viu o Joanico, j mais crescido, j a andar por seu p, num quintal que havia j
unto de uma casa pequena, mas que era muito branca por fora e muito limpa por de
ntro e de telha francesa, como as dos Penedos Altos. Depois, viu muitas crianas a
brincarem em jardins, onde havia palmeiras e relvas e grandes casas ao fundo, n
o Estoril, na Parede e ali mesmo, no cimo da Covilh, onde estavam as casas dos pa
tres. Pela primeira vez, ele no evocava aquilo com a simpatia admirativa de quando
regressara de Lisboa a Manteigas, nem com a tristeza de quando vira que no lhe c
oubera nenhuma das casitas dos Penedos Altos. Pela primeira vez ele evocava aqui
lo com estado de esprito odiento, numa surda revolta que o fazia resmungar enquan
to buscava os percevejos.
Na tarde domingueira, a Traquitanas, a Josefa e a Procpia, vendo expostos ao sol
a enxerga e as mantas, vieram trazendo a curiosidade at a porta aberta.
Boa vai ela! exclamou a velha Traquitanas, com seu caro escuro e enrugado, quand
o deu pelo
344
A L E
A NEVE
f que se fazia l dentro. um trabalho que no p a pena! Vocs limpam hoje, mas, amanh,
est tu outra vez, cheio deles...
E as trs mulheres comearam a rir-se, umas pi as outras, daquela falta de experincia
da vida. f
,
* ^

Os percevejos prosperavam no Vero toda a gel


o sabia e os habitantes do bairro tinham-se acosf
mado a eles. O Vero ia em meio e os homens ra|
mente pensavam nos percevejos, que eram um simpf
incidente da noite, que o Inverno eliminaria. Out
preocupaes eles moam. Naqueles meses de Estio, d
jornais comeavam a falar das consequncias da guerifl
Em vez do po para todos, que se anunciara paj
depois da luta, haveria, no Mundo em runas, falta l
po at para muitos dos que, antes da guerra, o tinhai
abundantemente nas suas arcas. Quando o Inverti
imobilizasse os percevejos, milhes de homens na El
ropa, que guerra haviam sobrevivido, morreriam m
fome e de frio. m
Um dia soubera-se que, por isso, os americana
tinham feito, tambm em Portugal, gordas encomei
das de cobertores destinados queles que, nas aldeia!
e cidades destrudas, se encontrariam sem abrigo quandi
a neve comeasse a cair na Europa. E, assim, nai
fbricas da serra no haveria falta de trabalho, comaj
era to frequente nos anos em que o Mundo viviaj
em paz. j
Estamos com sorte! regozijou-se Pedro, umi
noite, no Caf Leito. No iremos para os quatro j
dias... l
Fio cardado, panos grosseiros, constituam a prc-"i
duo de Manteigas e a Manteigas foi entregue i
grande parte da encomenda. Azevedo de Sousa que, i
h anos, vinha sendo instado para associar-se a uma l
velha fbrica daquela vila, cujo dono pretendia moder- i
niz-la, decidiu-se, ento, a entrar para ela com o seu j
nome e o seu dinheiro. Na Covilh, os industriais tam- ]
A LA E A NEVE
345
bem se mostravam contentes, porque, afinal, o Mundo no se subvertera, como alguns
deles haviam chegado a temer. Os seus remotos caboucos tinham resistido ao gran
de ciclone; o capital e a propriedade subsistiam. E como a Inglaterra e outros p
ases concorrentes, ainda feridos pela briga, no podiam, por enquanto, voltar aos m
ercados com os seus tecidos, os teares da Covilh continuariam a laborar intensame
nte.
Viera o Outono e os castanheiros comeararn a adquirir um torn acobreado e, depois
, a deixar cair a folha. No Lactrio, o filho da Josefa chegara idade de comer far
inhas e fora, por isso, entregue me, para o seu bero ser por outro ocupado. Quando
Idalina viu o filho da Josefa sentiu a inveja esmorda-la. Ele estava gordinho, ro
sado de faces e muito limpo; parecia mesmo o menino que se sentava no livro de S
anto Antnio, numa das igrejas de Manteigas, ao passo que o seu Joanico andava mag
rito, sempre mal da barriga e sempre com a cara suja.
Os jornais continuavam a falar de fome e de frio na Europa. Havia cento e quaren
ta milhes de bocas famintas. Milhares de crianas morriam por falta de alimento"',
milhes de homens erravam de terra para terra, assaltando e matando nas encruzilha
das da noite outros homeas, por um simples naco de po. A misria instalara-se na Eu
ropa, mais negra e mais densa ainda do que fora sempre e s ela parecia dominar tu
do, inexoravelmente.
Os operrios liam ou ouviam falar daquilo e um ou outro soprava, cansado: "Nunca m
ais samos disto!" Tambm a vida deles piorara e se enchera de mais restries, de mais
renncias, que cada vez era maior a desigualdade entre o que recebiam e o que paga
vam para viver. Mas, no mago da alma, quase todos eles tinham como que o pressent
imento de que, um dia, sairiam daquilo. E falavam assim no s pela acre volpia de se
contrariar a eles prprios, mas para no parecerem, perante eles prprios e perante o
s outros, to ingnuos como Pedro dizia que eles eram.
Nos princpios de Dezembro cara a primeira ca-
346
A L E A NEVE
f mada de neve. De manh, ao ver a serra toda embl
quecida para os lados do Sanatrio, Horcio, enqti^
marchava para a fbrica, ia pensando nos homens/1
mulheres e nas crianas que, nos pases da Europa dl
houvera guerra, no tinham cobertores. E apieda^l
deles. Via-os esfarrapados, os pais abraados aos iffl
e todos a tremerem com frio debaixo daquelas rul
cobertas de neve de que os jornais publicavam as ftn
grafias. E cada vez sentia mais piedade. Mas, depa
comeou a pensar no Albergue, no Marreta, na Jta
quando empenhara as suas mantas, naquele hotl
que ele havia encontrado morto, uma noite, na estraj
da Aldeia do Carvalho e o seu estado de espia
modificou-se. ai
A neve continuou. Dos beirais dependuravam*
nveos berloques, nveas estavam as ruelas habitw
mente escuras, tudo branco, tudo branco, menos ti
portas dos casebres, que pareciam entradas para negJ
covas. Os fios telegrficos e telefnicos tinham engra|
sado com o gelo, grossos como cajados de pastor, grossl
como sogas, e j nem pardais, nem piscos, nem outB
asas neles pousavam. Os velhos invlidos haviam desji
parecido tambm do jardim pblico, expulsos pela nem
que cobria toda a terra e dava s rvores da prafl|
fantsticas expresses. Era a tremer de frio, denwl
batendo nos dentes, que Horcio e Idalina se leva"
tavam logo que cada dia apontava e se vestiam m
abalavam estrada abaixo, cheia de vultos negros com
trastando com a brancura que pisavam e dirigindo-sesl
como eles, para as fbricas. 'm
Nos planaltos da serra a neve subira j muitl!
palmos e, ento, como todos os anos, comearam "j
passar pela Covilh rapazes e raparigas, filhos de genti
endinheirada, que vinham de Lisboa fazer esqui. Trafi
ziam, por mor do tempo, muitos abafos, grossas blusaSl
luvas e gorros de l tudo ainda mais bonito do qu l
os abrigos que se fabricavam ali. Quedavam-se, algun* l
momentos, no Pelourinho, enquanto se organizavam o? J
transportes. Os motoristas olhavam-nos com contenta* l
mento, esperando que eles fossem seus clientes. Os J
A LA E A NEVE
347
ndustriais, o presidente da Cmara, outras figuras gradas da cidade ficavam conten
tes tambm, porque aquelas presenas contribuam para o prestgio turstico da Covilh. Por
fim, os rapazes e as raparigas partiam para o alto da serra, para o Hotel das Pe
nhas da Sade. E l, durante as manhs e as tardes, eles corriam, com seus esquis, sob
re as longas superfcies nevadas, sobre os longos declives brancos, volteia aqui,
tomba ali, ergue acol, e os seus alegres risos iam quebrando o gelado silncio da m
ontanha.
Quando, fatigados, volviam ao hotel, longa varanda envidraada e aquecida, onde co
meavam ou prosseguiam os derrios e se discutiam as corridas feitas, alguns deles,
que haviam andado pela Sua e Pirenus, olhavam as brancas solides que rodeavam o edifc
io, a neve que cobria tudo, desde a montanha cidade que lhes ficava aos ps e lam
entavam que ela no fosse ainda mais espessa, no fosse ainda suficiente para se pra
ticar o verdadeiro esqui. As raparigas que nunca tinham ido ao estrangeiro, acen
diam os seus cigarros e ficavam-se a escut-los, com admirao pelo que eles contavam
de Super-Bagnres e Chamonix.
noite, visto de longe, o hotel, com suas luzes, dir-se-ia um enigmtico navio enca
lhado nos ermos polares. Parecia dar montanha um silncio diferente do seu silncio
habitual, como se houvesse l um apelo sufocado e, ao mesmo tempo, uma vida autnoma
de tudo o mais. Mas, visto de perto, tudo se modificava. O hotel integrava-se n
o todo, fazendo a luz das suas janelas brilhar, c fora, rectngulos de neve e as fa
ntasiosas cristalizaes que se dependuravam do telhado. L dentro, os rapazes e as ra
parigas danavam.
Um e outro dia chegavam novos grupos. Se atravessavam a Covilh depois de encerrad
as as fbricas, Pedro, ao v-los passar, sentia sempre desejos de partir com eles. U
ma tarde, decidiu ir, no sbado seguinte, dormir na casa do Trigo que era o guia
das Penhas da Sade e l passar o domingo, como fizera algumas vezes, nos anos ante
riores. Encontrando Horcio, instou para que o acompanhasse. Que valia a pena ver
348
A L E A NEVE
* aquilo, que seria um dia bem gozado, e que o T
por uns patacos, lhes daria cama e comida. lij
Na! escusou-se Horcio. Ir romper as dj
por a acima e ainda gastar dinheiro, para Ver os o
divertirem-se, que graa tem ? J
Pedro voltou a insistir. Que tambm ele podia apa
der esqui, se quisesse. No era coisa do outro mui
e o Trigo arranjar-lhe-ia o necessrio. T
Horcio riu-se dele: >
Eu sei... Tu queres ir por causa das rapar"
Mas olha l: tu pensas que elas te ligam algurM
Ricas como so, esto tua espera... '
Pedro tardou a responder. m
No fosse o raio do trabalho, que me tira"
tempo disse, depois e tu ias ver! Pudesse eu pm
sar l os dias como os que vm de Lisboa ou cojl
os filhos dos industriais! No sou um homem igual "
outros ? O mal que s posso l ir aos domingos. Eifl
outros ficam com toda a semana livre. Ainda o ano plfl
sado uma me deu sorte. Era de se lhe tirar o chapM
Bonita, o que se chama bonita, no digo que fos"|
mas tinha uns olhos que faziam perder a cabea a "l
homem e uma boca que apetecia morder mais do qn
a uma cereja espanhola. Aquilo s no foi adiante p"
que eu no pude passar l a semana. E quando voltlH
no outro domingo, j ela tinha partido... ;fl
Horcio continuava a rir-se. aB
Vem comigo! repetiu Pedro. A gente at M
esquece das tristezas que temos aqui. Pensa at sbadS
e decide-te! 41
Passaram os dias e, no sbado tarde, HorcioB
soubera que Marreta piorara. Ele fora logo ao AlberfS
gue e Marreta mal podia falar. Pedro abalara sozi-*
No domingo, Marreta parecia haver melhorado m
sorria-se do "susto que dizia tinha visto na cara M
dos camaradas". ' >
Uma das irms de caridade havia pedido a Hora* M
cio que no demorasse muito ali e dito a Marreta que m
falasse pouco. Mas este desobedecia-lhe e quanto mai -l
A L E A NEVE
349
Horcio se calava, mais ele ia tagarelando. Como em todos os outros domingos, volt
ava sua obsesso:
_ E, ento, l por fora, o que se diz ? Agora nem me deixam ler jornais...
Parece que cada vez tudo est pior...
Pior? Qual o qu! Deixa-os l falar... Pode estar pior agora, mas tenho a certeza de
que h-de melhorar... Tu no vs que todo o Mundo est tremido e que isto no pode manter
-se assim?... Eu estou aqui encafuado, mas vejo as coisas perfeitamente... Um di
a, todos os homens ho-de vir a ser como irmos e no haver mais uns que tm tudo e outro
s que no tm coisa alguma. Haver fartura para todos. Podes estar certo disso, digo-t
o eu! E tambm ho-de acabar as guerras, assim que os homens acabarem com as frontei
ras. A Humanidade ficar unida. Ningum me acredita, eu bem sei, mas, um dia,
as guerras ho-de acabar...
Ao v-lo agitado, ofegante, Horcio pediu-lhe:
No fale tanto, que pode fazer-lhe mal... Marreta teve um gesto de indiferena. E co
ntinuou
a vaticinar o futuro, com ardor crescente, como se tudo dependesse das suas pala
vras, da sua crena, at que a freira tornou porta:
Esto aqui mais dois amigos seus...
Marreta, ento, calou-se e ficou espera, mas a freira no deixou Tramagal e Dagobert
o entrarem enquanto Horcio no saiu.
A horta do Albergue estava coberta de neve, vergando-se as folhas das couves sob
o peso branco que suportavam. Nos corredores, os invlidos aquietavam-se nos banc
os, muito encolhidos, muito embrulhados em trapos, em velhos casacos e sobretudo
s rotos, quase to velhos como eles.
Ao chegar a casa, Horcio encontrou a mulher sentada, com a Josefa, beira do lume.
Que tal vai ele ? perguntou-lhe Idalina.
Parece que est melhor...
A Josefa no conhecia Marreta e voltara conVersa que a chegada de Horcio interrompe
ra. En-
350
A L E A NEVE
f quanto a ouvia, Idalina olhava, com ateno difei
da dos outros dias, para o filho que ela tinha a
mecido nos braos. Dir-se-ia no ser o mesmo
viera do Lactrio, meses antes. Perdera a cor das f
e estava agora magrito, muito plido e sempre lu
S a barriga lhe crescera. Mas a Josefa parecia -
estranhar aquilo. O seu filho era como os outros
bairro e j se sabia que quando as crianas, que hay]
estado no Lactrio, voltavam para a misria dos p
ficavam quase todas assim. 5
Logo que a Josefa saiu, Idalina pensou revela)
Horcio as suas dvidas. Mas conteve-se. E s 113
tarde, hora de se deitarem e depois de ter arrasta
para junto da cama o bero do Joanico, ela dissef-
marido: a
Ando desconfiada de que estou outra vez... u
Marreta faleceu na tera-feira. Horcio soube a im
tida. quando atravessava a Praa da Repblica, vima
da fbrica, e caminhou direito ao Albergue. L, p
cia que se no havia passado coisa alguma. S a irjm
de caridade, que veio abrir-lhe a porta e o acompanho!
no corredor, falava mais baixo do que habitualmente
Os velhos continuavam sentados nas galerias, mui
encolhidos nos seus farrapos, como se no se tivesse"
movido desde a ltima vez que Horcio viera ali. J
A freira parou entrada da capela morturia dm
Albergue. Marreta estava estendido l ao fundo, sosj
um lenol branco. Algumas velas ardiam em volta delgi
e de um crucifixo. Horcio ia a entrar, mas, subitad
mente, deteve-se. Tornou a ensaiar um passo e tornoil
a deter-se. A irm de caridade murmurava uma ora- i
co. Horcio quedou-se alguns segundos a olhar, depoif J
voltou a cabea e tossiu com receio de que as palavras i
no lhe passassem da garganta. i
Venho amanh ao enterro... disse, para dizer | alguma coisa.
A LA E A NEVE
351
A freira tornou a acompanh-lo. Ia, de novo, no corredor, quando o Paredes surgiu
ao seu lado:
Ento o nosso Marreta l se foi ?... Horcio continuava a ter dificuldade em falar: ve
rdade...
Para ele foi melhor assim. Em vez de estar para a a padecer...
Nenhum deles disse mais nada.
O funeral fez-se no dia seguinte, ao fim da tarde, como era costume ali, para qu
e o pessoal das fbricas pudesse acompanhar os mortos ao cemitrio.
Vieram operrios da Aldeia do Carvalho e muitos da Covilh juntaram-se, tambm, porta
do Albergue. Marreta no pertencia a irmandade alguma, mas duas das existentes, po
r simpatia para com ele, haviam decidido tomar parte no seu enterro. Apareceram,
porm, Ildefonso e outros mais a afirmar que, no sendo Marreta religioso, no devia
ter acompanhamento de confrarias. Discusses desatadas, teima este, teima aquele,
Boca Negra mostrava-se, entre todos, o mais ferrenho:
No era religioso ? Ora essa l E, ento, no Albergue ? Aquilo no est cheio de freiras
e de rezas ?
Ildefonso encolheu os ombros:
Que ia ele fazer ?
Embora a maioria fosse crente, acabou por se deixar vencer: o funeral no levaria
irmandades. Mas, horas depois, o Boca Negra arrependia-se de ter transigido. Sen
tia-se em luta com a sua conscincia e parecia-lhe que ele prprio nunca mais teria
repouso se deixasse ir Marreta, esse amigo que ele estimava tanto, assim abandon
ado para a sepultura. Fala a um, fala a outro, convence este e aquele, conseguiu
pr, hora do funeral, a Irmandade das Almas em frente do Albergue.
Caa a noite quando o esquife transps o porto, conduzido por quatro velhos. E, atrs d
estes, outros surdiram, com a sua fardeta e o seu bon de albergados um exrcito de
invlidos que acompanharia, conforme era da regra, o morto at a beira da cova.
Metido na carreta o caixo, o cortejo formou-se
352
A L E A NEVE
" rapidamente. frente, marchava a Irmandade^
Almas, os Irmos levando opas vermelhas e velasjj
ss, enquanto outros transportavam as bandeiras
confraria pobres oleografias religiosas emoldurada
extremidade de varas. Junto do esquife caminha"
padre e o aclito e, atrs, numa mancha negraj
homens das fbricas. 1
porta do Albergue, aqueles invlidos que, ta
dos de reumatismo ou de velhice, j no tinham fcji
para caminhar, viam partir, em silncio, pelo mi
caminho por onde os levariam um dia, com roa
acompanhamento, o companheiro que no voltaria itj
O cemitrio ficava num alto e o prstito coma
a serpejar pelas ruelas da Covilh, enquanto 3
retaguarda se cerrava, vagarosamente, o porto!
Albergue. ql
Funeral igual a tantos, o habitante da cidadeS
assomava porta ou janela ou o topava na m
avaliava logo da sua falta de importncia, pois levaM
embora, muito povo, tinha uma s Irmandade e M
nhum automvel. Era certo que, de quando em quaoi
apareciam, na boca das ruas transversais, alguns <m
ros. Mas nenhum deles vinha para acompanhar o HIQOT
Todos paravam, aguardando que o trnsito ficasse h'\OT
e, depois, prosseguiam o seu caminho. A certa alt
o automvel de Azevedo de Sousa surgiu, tambm,-"m
flanco do cortejo. Entre os que o reconheceram, nfl
gum estranhou v-lo ali, pois antigamente, qual"
algum operrio falecia, o patro acompanhava-o atea
cemitrio e, ainda hoje, havia industriais que fazia*
isso. m
com suas escuras vestes domingueiras, algumas lua
trosas de to velhas, outras muito apertadas sobre <M
corpos que tinham alargado depois de elas havered
sido feitas, os homens que iam no cortejo continuavam!
a passar em frente do automvel. Entretanto, l deM
tro, Azevedo de Sousa impacientava-se. H meia hoiiw
ainda estava ele mui tranquilo em casa, quando o sem
scio de Manteigas lhe telefonara sobre vultosa encofl
menda que recebera pouco antes. Era fabrico de cen-J
A LA E A NEVE
353
tenas de contos e bastos lucros, mas havia dificuldades m Obter ls com a urgncia r
equerida. Ele quisera adiar a conferncia que o scio lhe pedia. Mas, depois, record
ara-se de que, se no fosse a Manteigas nesse dia, at sbado seguinte o automvel no pod
eria circular, dado que as restries na gasolina, durante a
i t t i t _ 1 _ TO _1 _ _ 1
guerra
estabelecidas, se mantinham ainda. E decidi-
ra-se, ento, a ir e a volver nessa mesma noite. Agora, porm, vedavam-lhe o trnsito.
Alm da pressa que tinha, era sempre penoso a Azevedo de Sousa ver funerais, que
lhe faziam lembrar a fragilidade da sua vida e a sua prpria morte.
Toca o "klaxon" e v se passas... ordenou ao motorista.
Mas o motorista, que era supersticioso, temia cortar procisses fnebres com o carro
e no obedeceu.
Est quase no fim disse, olhando para a cauda do prstito, que, do seu posto, ele v
ia aproximar-se.
Azevedo de Sousa resignou-se. E, para melhor encher o tempo desagradvel, pergunto
u de c de trs, do assento onde ia:
De quem ser o enterro ?
do Marreta respondeu o motorista sem se voltar e com o torn de quem dizia palav
ras inteis, pois toda a gente devia saber aquilo.
Do Marreta... Do Marreta...
Ele trabalhou, muito tempo, l na fbrica... Era tecelo...
Ah, j sei!lembrou-se Azevedo de Sousa... Era um que tinha dois dentes que saam
da boca e que foi da antiga Casa do Povo... No sabia que tinha Corrido... Coitad
o! H muito tempo que o no via...
Ele estava, h mais de um ano, no Albergue...
Ento foi por isso... Coitado!
Azevedo de Sousa recordava-se, agora, nitidamente, das discusses e enervamentos q
ue tivera com Marrsta, quando este e outros delegados da Casa do Povo Dirigiam a
s greves e reivindicaes, nos primeiros anos da Repblica. Muitas vezes sentira mesmo
mpetos de
12 Vol. Ill
354
A L E A NEVE
f
lhe partir aqueles dois dentes e s para evitar itm
9 conflitos com os operrios que ele se mostrarei"
pr calmo, roendo em silncio as cleras que a.Jj
mesciam por dentro. Mas, agora, vinte e cinccw
passados, tudo isso lhe aparecia sem ressentimflra
ele sentia pena de Marreta, verdadeira pena, conjH
com a morte deste, morresse tambm alguma*
da vida dele, de quando ele era mais novo e"
saudvel do que actualmente. Pensou que, estand
devia incorporar-se no prstito. ,m
Quando a cauda do cortejo passou em freniM
automvel, Azevedo de Sousa ordenou ao moto
Segue o funeral. -3 O motorista, que estava com a ideia de vaOB
para Manteigas, julgou no ter compreendido beil
O que diz ? Para seguir o funeral ? '{*
Sim. Segue o funeral. -M O carro principiou a roncar ladeira acima, an|
dos ltimos homens que fechavam o fnebre agr^B
mento. Estes voltaram-se, reconheceram o industrH
continuaram a sua marcha. 1"
O cemitrio quedava-se prximo do centro daem
dade, mas to ngreme se apresentava o seu acesB
que o andamento do funeral se fazia lentamentejlS
cabo de cinco minutos, Azevedo de Sousa olhou o dl
relgio. Eram quase seis horas. Por muito que cfl
resse, s chegaria a Manteigas hora do jantar. DepsB
janta e no janta, conversa e no conversa, seriam 41
horas. Dez horas, no, porque aquilo era complica
e no se resolveria assim de p para a mo. Se e$B
vesse despachado s onze, j seria muita sorte. E nfl
estaria, de novo, na Covilh, seno muito tarde... 4fl
O cortejo continuava a subir vagarosamente. Aam
vedo de Sousa sentia-se, agora, menos comovido cdfl|
a morte de Marreta do que quando, momentos anteM
tivera notcia dela. Mas custava-lhe, apesar disso, abai"
donar o funeral. J agora acompanh-lo-ia at a poi^l
do cemitrio. No sairia do carro, porque a ele semp"w
custara ver enterrar algum. Ao prprio jazigo <fl*m
mandara construir para si e para a famlia, s fodt|
A LA E A NEVE
355
dia em que o mestre-de-obras o dera por concludo.
no aid Depois,
nunca mais voltara l.
Azevedo de Sousa pensou que no tinha vontade alguma de ir, naquela noite, a Mante
igas. Estava frio, o sol dos dois ltimos dias no havia ainda derretido toda a neve
. O que lhe apetecia era meter-se em casa, que se encontrava aquecida, ler os jo
rnais de Lisboa, que durante o dia no tivera tempo para o fazer, jogar, depois do
jantar, s cartas com os cunhados seus vizinhos e, s onze horas, ir para a cama, c
omo de costume. Isso, sim, seria bom e ele poderia seguir, tranquilo, at a porta
do cemitrio, pois a ideia, recm-nascida, de abandonar discretamente o funeral, dob
rando para uma das ruas transversais e retomando o seu caminho, no o deixava bem
com a conscincia.
Azevedo de Sousa ps-se a imaginar o que sucederia se ele no fosse, nesse dia, a Ma
nteigas. O scio, s por si, no era homem para resolver aquilo capazmente. Era um ata
do e pouco esperto; por isso nunca passara da cepa torta. Falava muito, mas no tin
ha expediente. E aquilo metia grmios, o diabo! O mal era terem de dar uma respost
a com urgncia. Isso e aquelas malditas restries na gasolina, que s permitiam a circu
lao de automveis s quartas e aos sbados. Seno, ele iria l no dia seguinte e tudo se r
olveria. Mas, assim, se deixasse o caso para sbado, a encomenda podia ser dada a
outra fbrica. E l se iam, por gua abaixo, muitos contos de ris que ele deixaria de g
anhar. Pelo menos, uns cinquenta.
Azevedo de Sousa voltou a pensar no calor da sua casa e no frio e na escurido que
ele iria encontrar na estrada de Manteigas. E considerou que a tranquilidade e
o conforto dessa noite seriam caros por cinquenta contos.
O funeral deteve-se um momento e o automvel tambm. Azevedo de Sousa tornou a lembr
ar-se de Marreta e da sua morte e de que ele prprio j estava velho para andanas por
estradas desertas, numa noite fria de inverno como aquela. Ele era, felizmente,
rico e no tinha filhos pensou; ele fora, alm disso, dos
358
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* Cala-te! J
Calo-me, porqu ? Ora essa ^
Cala-te, peo-te! (! Pedro quedou-se a olh-lo. Mas j Horcio Ih^i
tava as costas, abandonando-o: i*J
Boa noite... Passa bem! >$ Agastado, Pedro hesitou um instante. DepoM
com os ombros, um movimento de indiferena ^
mou-se aos grupos que desciam. "d
Horcio encostara-se a um dos prdios da im
enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Man
da Boua arrastar-se calada acima, por entre aim
tido que vinha do cemitrio. Tambm aquela irral
do velho cptico o molestou. E, ento, ps-se a 01
para os outros homens, vestidos de negro, que g
savam na sua frente, caras que lhe eram familial
operrios da Aldeia do Carvalho, e da Covilh, qual
conhecia da hora da sada das fbricas, dos dia
no Pelourinho, das prprias ruas onde habitavam. fl
dida que iam passando, ele evocava as ideias, as emmj
nrias ansiedades que tinha ouvido a cada um dffll
desde que deixara o cajado de pastor e viera trabaH
para as fbricas. E cada vez se apagavam mais;l
seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Btm
e cada vez ele se sentia mais confortado, mais coira
tado cada vez, por verificar que quase todos os dl
passavam na sua frente pensavam como Marretai
como ele prprio pensava agora. iM
Viu Tramagal, Ricardo e Joo Ribeiro a desceiwj
a calada e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe; >.rM
No sbado noite, vamos fazer uma reuni aqui, na Covilh, em casa do Ildefonso. Precis
amosatl continuar... Compreendes ? Precisamos de continuaria No faltes! &
L irei respondeu. E voltou a sentir-se meriM abandonado do que quando vira, mome
ntos antes, eira terrar Marreta e muito menos do que quando, h anewf entrara para
a fbrica. Parecia-lhe que uma secret* fora, que ele desconhecia quando viera par
a ali, parKa&l dos outros para ele e dele para os outros ligando-o*|
359
a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperana.
Ao chegarem ao comeo da Rua Azedo Gneco, onde ele vivia, Horcio despediu-se. Mesmo
ao andar sozinho na viela solitria, parecia-lhe que no ia sozinho.
Quando chegou a casa, Idalina entoava uma cantiga montona, para adormecer o filho
. Mas o Joanico, ao ouvir ranger a porta e ao v-lo entrar, abrira muito os olhos
e sorrira-lhe.
Idalina estava com uma expresso triste e perguntou-lhe :
Ento ? Tinha muita gente ?
Tinha.
O Joanico continuava a sorrir-lhe. Ele sentiu um sbito desejo de pegar no filho e
de o acariciar. Vencendo os protestos de Idalina, agarrou no Joanico, levantou-
o do bero at a altura dos seus olhos e beijou-o:
Seu maroto, que no quer dormir! E voltando-se para a mulher: Vamos a ver se, na
Pscoa, podemos ir a Manteigas, mostrar o pequeno aos avs...
OPINIES CRTICAS
UM ARTISTA DO ROMANCE
por Ren Lalou (*)
Imaginem, no quadro que melhor lhes aprouver, uma conversa entre leitores cultos
, impermeveis s sedues da publicidade ou do snobismo, sobre os autores que lhes pare
cem possuir realmente classe internacional. Logo que chegassem literatura portug
uesa, um nome viria impor-se sua considerao: Ferreira de Castro. Apresso-me a acre
scentar que todos aqueles que tiveram o prazer de passar algumas horas na compan
hia amigvel de Castro agradecero a Henri Poulaille o ter-lhe prestado, no prefcio a
Ls Brebis du Seigneur, uma homenagem to cordial: porque aqui, as qualidades do es
critor continuam " ser as do prprio homem, e nenhum sucesso pde quebrar essa aliana
<fe intransigncia e de generosidade que tanto admiramos em Ferreira e Castro.
Em Frana, foi revelado atravs dos seus grandes frescos brasileiros: Emigrantes, e
essa Selva que Blaise Cendrars fez ponto de honra em traduzir.
Por altura e uma recente recepo a Ferreira de Castro, Jean SMumberger evocou justam
ente o poderio das pinturas em que Castro descobriu para ns uma franja extrema da
civilizao. Mas sublinhou Vitalmente a importncia da obra que o escritor dedicou a
Portugal e que enriqueceu singularmente a viso que um viajante se fizera deste Pa
is, aps uma estada em Lisboa e Coimbra. Se na realidade possuem es"e acento de in
dubitvel autenticidade louvado por Henri Poulaille, e Porque cada uma delas resum
e uma longa experincia pessoal.
Desde o primeiro capitulo cie A La e a Neve reconhecemos o
(*) Crtico, ensasta e professor universitrio francs.
302
L E A NEVE
4
artista capaz de criar uma atmosfera em poucas pginas: eis-notf
f matados ao pequeno burgo de Manteigas, onde Horcio acalm
regressar depois de cumprido o servio militar. Temos, todaaM
impresso (logo a seguir confirmada) de que, desta vez, CasWjl
ps-se romancear de preferncia a narrativa, embora sem nadm
tirar do seu valor documental. F-lo de uma maneira to simplest!
eficaz. Ao voltar paia Mantetgas, ff orado contava ganhar rapidam
dinheiro suficiente para casar com Idalina, a noiva. Esperava, .H
isso, arranjar emprego numa fbi ia. Mas a me conta-lhe que sem
forada a solicitar ao proprietrio Valadares um emprstimo de M
nhentos escudos, a deduzir do futuro salrio do Horcio como pm
do proprietrio. Deste modo, o nosso homem tem que servir VnlniSm
Durante a primeira parte do livro, por via deste facto, serem
associados existncia quotidiana dos pastores na montanha, s U
taces que os assaltam de incendiar a floresta para alargar o terU
das pastagens, emigrao dos rebanhos para paragens onde o InvU
no ser to duro. No final desta viagem, Horcio v o seu dejM
satisfeito: um amigo arranja-lhe emprego numa fbrica da CVwnB
Espera-o, porm, uma nova decepo: na fbrica de fiao, os mdl
arrastam-se montonos antes que o aprendiz se transforme em oper^
Receando que Idalina o abandone, Horcio forar o casamento, jfl
bora chegue a ganhar o salrio de um tecelo qualificado, a vidqU
casal continuar precria, e Horcio desesperaria se o velho ideaM
Marreta no lhe tivesse incutido a f num mundo mais justo. \
Assim analisado, este romance parece justapor dois inquqU
sobre a sorte dos proletrios em Portugal. Na realidade, porm, ma&^t
uma rigorosa unidade porque nunca deixamos de lhe seguir <>s<?ujl
pcias, atravs dos olhos de Horcio, testemunha tanto mais qniilifie^mt
quanta certo nada ter de um terico. At nas pginas em que a W/ToaM
adquire a amplido de uma epopeia a viagem dos rebanhos, a A|B
nocturna sob uma tempestade de neve, a greve e o combate ATotf^B
sempre o mesmo homem humilde e ingnuo. A intensa e dramjj^t
comunho entre o leitor e este heri sem prestgio provocada .ilH
Ferreira de Castro, com todo o seu talento e todo o seu corao. jl
(In Ls Nouvelles Litlraires, Paris.) ,{'tijmt
UM GRANDE ROMANCISTA
por Henri Liebrecht (*)
H ] muito tempo que considero Ferreira de Castro como um dos maiores entre os roma
ncistas da nossa poca, um dos que soube mais pateticamente revelar no homem o con
flito dos sentimentos, as causas da sua desordem e das suas inquietaes e marcar os
motivos dos seus malogros sucessivos numa sociedade que s raramente lhe d os meio
s <ie realizar as suas esperanas e de viver segundo a sua vontade. A Selva conqui
stou para ele um largo pblico. Vieram depois Emigrantes e Terra Fria, dos quais j
aqui mesmo falei para insistir na ressonncia to profunda das duas obras, na emoo que
delas se desprende, no fervor humano e na piedade pelo homem presa das fatalida
des do seu destino que elas exprimem sem procurar qualquer efeito. Os assuntos q
ue trata, as personagens de que se faz o companheiro apiedado, as terras trgicas
de que nos impe a obsesso, levariam facilmente um autor menos sincero a adoptar um
torn declamatrio Para nos fazer apiedar da sorte esmagadora dos seringueiros no m
ago rf<zs florestas do Brasil, Embora permanea na terra dos antepassados, o- sort
e do campnio portugus, habituado a uma dura labuta nesta terra fria, no menos opres
siva. Quantas decepes para chegar a essa resignao, que a nica forma de felicidade a q
ue pode aspirar.
Cada um destes livros esclarece um destino, constrange-nos a medir Por eles o trg
ico, a participar no seu infortnio e tambm na responstlbilidade humana de que todo
s temos a nossa parte. Porque suporria o pobre emigrante Manuel tantas infelicid
ades, se no tivesse Sldo enganado, despojado, lanado nesta aventura por outros hom
ens ?('e dele abusaram? Qual , portanto, aquela ilusria fraternidade que n5 prega u
ma moral sem fundamentos e que aceita tirar proveito das sw"s prprias mentiras?
(*) Crtico e ensasta belga, membro da Academia Real da Blgica.
364
A L E
A NEVE
Em A L e a Neve (Ls Brebis du Seigneur), cuja trgi
acaba de aparecer, toda a questo social que se pe, aquela n
* de que vemos multiplicar os conflitos, em todos os pases, sob,a
aspectos mas pelas mesmas causas. (
Horcio, o pastor, conheceria talvez um destino tranquilo se "
ficado em Manteigas, a aldeia portuguesa perdida na montanha, i
veio ao mundo, mas terminado o seu servio militar, apressou-se^
o seu regresso, a apresentar a Idahna, com quem desejava casarj
descrio deslumbrada de tudo quanto viu, das belezas da cidade, f
tudo das casas ao p das quais as dos industriais daqui no so n
O seu sonho ser muito tempo o de possuir assim uma casa bem )
para l instalar a sua pequena famlia. Como proceder, porm^
escapar servido que pesa sobre si, para pagar a dvida que o pi
ao senhor numa semi-servido? A miragem da cidade sempi
miragem! toma-se uma obsesso. ;
Horcio, persuadido de que o que no tem vale mais do que j
tem, vai para a cidade e ajusta-se como operrio. A oficina devoq
no passa ento de um homem merc dessas foras obscuras, qvjl
chamam capital e trabalho, salrios demasiadamente baixos e custm
vida a subir sem cessar, encargos crescentes a que o labor no consta
fazer face. a vida pesada da fbrica, as longas horas to fatiam
em frente da mquina de fiar ou de tecer e tambm a existneUM
comum com os outros operrios, esperana sem cessar desiludida lift
sorte melhor. >"1
Estala ento a greve, a fora pblica protege as fbricas, a miM
instala-se em todos aqueles pobres lares. Pode a luta prolongar-ssyjl
muito tempo? A caixa do sindicato est vazia e preciso retomvn
trabalho, com o dio no corao. Quando conseguem, enfim, um ?&M
aumento dos salrios, tarde de mais, o custo da vida subiu aiRM
E a guerra ruinosa estende ao mundo inteiro essa misria e esse djM
pro. No devem, contudo, desesperar: um dia, a solidariedade humfM
acabar por triunfar dessa fatalidade. Parece a Horeio que uifl
fora secreta, que no conhecia quando chegara fbrica, lhe vnB
dos outros, como a sua ia para eles, ligando-os entre si e dando-iM
com novas energias, uma esperana nova. >'"
Assim se exprimem, em A L e a Neve, infinitamente, a bondaM
a caridade humana, o amor pelos que sofrem. H pginas picas. ' l
A CURVA DA ESTRADA
(ROMANCE)
(In L Sair, Bruxelas.)
PRTICO
ri
r 01 numa pea de teatro, pobre massa embrionria, que colocmos pela primeira vez, tnh
amos ns vinte e dois anos, a interrogao que constitui a trave mestra deste livro. E
m Frana, em 1848, um homem, que havia sido republicano durante a Monarquia, torna
ra-se monrquico logo que a Segunda Repblica alvorecera e disparara a combater esta
e a defender aquela com os mesmos ardorosos modos com que antes fazia o inverso
.
No chegmos a rematar o ltimo acto, porque outra pea, escrita anteriormente, nossa frg
il asa de esperana, classificada muito embora num concurso, no conseguira cu aberto
para voar. A juventude que ento arvorvamos no convencia ningum e uma timidez despro
tegida impedia-nos todos os passos em direco aos empresrios.
O papel escrito desceu para a gaveta e o tempo continuou a sua rota.
Em 1931, quando a Repblica ocupou o trono de Espanha, vrias artes e mutaes ali opera
das fizeram-nos pensar de novo na velha pea inacabada. Mas nessa poca j se havia de
svanecido o nosso interesse juvenil pelas fulgurncias dos tablados.
Um dia, porm, o correio trouxe-nos uma carta. Amlia Rey Colao e Robles Monteiro ped
iam-nos uma pea para o Teatro Nacional, que eles, ento, dirigiam. Sem
0 saber, reparavam um velho sonho perdido, uma melan-
368 A CURVA DA ESTRADA
elia longnqua, pois fora justamente a um conca
* aberto por aquele teatro, quando era outra a sua direct
que tnhamos enviado uma pea no amanhecer da na
vida literria uma pea que no fora representada,'^
Agradecemos o convite, mas no o aceitmos. Aqtu
notveis artistas insistiram, contudo, no seu desejo^
por mor deles, tornmos a debruar-nos sobre os atnm
lecidos papis. Foi um momento apenas, pois logo a
vemos a fech-los na gaveta e desta vez para semm
Vistos muitos anos depois, a outra luz literria, J
nhum desses balbuceios teatrais nos agradara. Mas p<m
ceu-nos que com a segunda pea se conseguiria pr J
movimento um romance e isso dar-nos-ia mais largum
do que um palco, pois o romance uma carroa mgim
onde se pode carregar livremente, ligadas apenas por MJ
fio, iodas as lguas do Infinito, todos os minutos da f&m
nidade, o visvel e o invisvel, o palpvel e o itnpalpiM
as coisas mais dspares, de todas as formas, de toda&llL
cores, de todas as dimenses e de todas as profundidiNH
Escrevemos ainda trs ou quatro captulos, trs ou qu(d
feixes de sondas e de alicerces; depois, outros trabalml
nos reclamaram e os caboucos ficaram ali. "iB
Desde ento, porm, raro ano se esgotou sem ?"#<
pergunta inicial no encontrasse razo para se formutM
de novo. Homens de vrias raas, cujas responsabilidaf^
chegavam a confundir-se, ao sol largo e confiante de outmM
homens, com as prprias ideias que eles diziam defend^M
entregavam-se, dum momento para o outro, a surpreij^
dentes metamorfoses. E das novas e inseguras tribunal
que desatavam a utilizar, dos jornais onde passavam B
escrever e at dos livros que alguns deles publicavaHljjk
vinha o rudo que essas crislidas, ansiosas de que oM
Mundo se habituasse a v-las num outro estado, prod&m
ziam na sua transfigurao. *
De cada vez que isso acontecia, a nossa velha />#*"
gunta voltava a estremecer dentro da escura gaveta ondfy.
a havamos deixado. Um Vero, porm, estando ns em m
Pont-Aven, em cujos sortlegos caminhos deambula ainda "m
a lembrana de Gauguin, pensmos que os cus da Brfc, l
tanha, to famosos pela sua instabilidade, talvez pudes-1 \
A CURVA DA ESTRADA
369
sefH auxiliar-nos a encontrar uma resposta para essa mutabilidade mais grave que
a de certos homens de certos homens que, metendo a nvios atalhos negras calamid
ades psquicas, acabam repudiando a si prprios. conclumos, ento, este pequeno livro.
F. DE C.
A CURVA DA ESTRADA
r- NCONTRAVAM-SE os trs mesa de jantar e o velho relgio de pndulo marcava onze h
oras menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente.
Ramona! gritou. Ento o caf ? E dirigindo-se ao irmo e ao sobrinho: Esta mulhe
r est cada vez pior!
Ouviam-se j os passos da criada no corredor e, logo que ela entrou na sala, Merce
des censurou-a:
Por mais que eu repita, h-de ser sempre isto! A comida nunca est pronta a horas! J
antamos sempre tarde.
Ramona no se justificou, mas, pelos seus modos, Soriano compreendeu que ela resmu
ngava por dentro. E parecia que o silncio e a imobilidade de Pao apoiavam e aument
avam a razo de Mercedes.
Em Espanha janta-se sempre tarde de mais disse Soriano, em torn conciliador, ass
im^ que a criada saiu, depois de ter servido o caf. um horrio absurdo o nosso. Q
uando estive emigrado em Frana e na Blgica, que dei conta disso. Ns desalinhamos a
digesto da Europa, pois no momento em que os espanhis comeam a encher o estmago j os
outros
372
A CURVA DA ESTRADA
rf
povos esto a esvaziar o deles... Em Espanha no.J
* se come tarde, mas tambm se come demasiado. "
vavelmente, o nosso carcter violento deve-se, em graiffl
parte, ao excessivo trabalho que damos ao fgadca
E ver as nossas mulheres... To bonitas, to seql
toras antes dos trinta anos! Mas, depois dos trinta, p3
que jantam tarde e se deitam, quase todas, em segu
ao jantar, comeam a exibir umas ancas to prspeajj
como se fossem mes de toda a Humanidade... 1
Ao ver a expresso da irm, Soriano julgou adiw
nhar nela uma discordncia que se continha por fali
de tempo para discutir. 9
H muitas excepes, claro, e tu s uma delasj acrescentou ele, a sorrir. M
No isso o que me importa interrompeu Mafl cedes, pousando a chvena. O que me im
porta irrita essa mania que tu tens de achar bom tujH quanto estrangeiro e mau tu
do quanto espanlwB Mas no me admira nada; mesmo nada; todos os tpj correligionrios
so assim... J
Soriano contemplava-a com esse sorriso compwH
cente e irnico de quem no est disposto a meliM
drar-se. Ela levantou-se da mesa e caminhou aprsB
sadamente para o seu quarto. xiB
Soriano e o filho ergueram-se tambm. O taqu^jM
-taque do relgio parecia mais ntido, mais corajo!|<H
medida que o iam deixando sozinho. Os dois detjB
veram-se no corredor. Pao comentava os numerosa"
palacetes que estavam a ser construdos em San RafaewB
para elementos do Partido Radical. J|
Soriano ouvia, com interesse, o filho, enquanto til"
lizava a lngua como um palito, ora empolando a fadH
direita, ora a esquerda. Mas j Mercedes saa do quartof*
sempre com movimentos apressados. Tinha avivado o"
p-de-arroz e dado um jeito mais gracioso ao seu cabelo? jf
no brao trazia, uma pele de raposa. 8 p
Vamos ? disse, dirigindo-se a Pao. E, aprow ximando-se mais, beijou Soriano na t
esta. '
Nos ltimos tempos esta cena tornara-se quotidiana; pois Mercedes e o sobrinho saam
juntos todas as noites, j
A CURVA DA ESTRADA
373
para o teatro, para o cinema, para casa de um e de outro amigo.
- Aonde que vocs vo hoje ? perguntou ele, sem curiosidade.
Vamos a casa de Ballesteros... respondeu Mercedes.
Ah, est bem.
Queres alguma coisa para ele ?
No. Nada. Que se divirtam...
De p, no meio do corredor, Soriano viu Mercedes e Pao transporem a porta. Os dois
tinham a mesma altura e, pela idade, mais pareciam irmos do que tia e sobrinho.
Mercedes voltou atrs:
No queres, realmente, que eu lhe diga nada ?
No, mulher! Que hs-de tu dizer-lhe ? Mercedes teve um quase imperceptvel encolher d
e
ombros e partiu. Soriano entrou vagarosamente no escritrio. Era um espaoso quadril
ongo, onde ele, muitas vezes, recebia e reunia os seus correligionrios socialista
s. Antigamente, antes de ele ter enviuvado, a sala lembrava o ambiente proletrio
do comeo da sua carreira, com fotografias de comcios emolduradas nas paredes e, so
bre uma das velhas prateleiras cheias de livros, um busto de Pablo Iglsias, reali
zado por mos de artista popular. Logo, porm, que a mulher falecera e Soriano convi
dara a irm a vir para Madrid, viver com ele e governar-lhe a vida domstica, a casa
passara por completa transformao. Mercedes substitura os velhos trastes por mveis m
odernos, comprara reposteiros e novas cortinas, mandara pintar, forrar e guarnec
er todas as divises. Sempre de nariz no ar e olhos investigadores ao lado dos ope
rrios, que a detestavam porque ela intervinha em todos os pormenores olhe isto,
olhe aquilo, assim no est bem, faa assim, faa assado de tal forma se portara que, d
urante semanas e mais semanas, a vida tivera um incmodo sentido provisrio no meio
do movimento e da desordem em que tudo aquilo andava.
Soriano havia concordado em que a sua casa pr-
374
A CURVA DA ESTRADA
cisava de melhorias; ele prprio, h j algum te
* sentia necessidade de maior conforto; mas comej
a queixar-se do muito dinheiro que a irm despeM
mos largas, tendncia para o luxo, gua numa pendi
Mercedes contestava: -m
Parece impossvel que no vejas as coisasizjl
advogado, um chefe poltico como tu, viver numa--"
como vivias! Eu, no teu lugar, at teria vergo"!
Para se ser revolucionrio no preciso morar aal
pocilga. Ou l vocs, os socialistas, querem levaffjj
a todos para a poca das cavernas ? j?fl
Pao, que se separara h pouco da mulher e via
tambm viver com ele, apoiava, com outros argumetlj
as palavras da tia. |
Uma voz longnqua, dbil, como se sasse do c
duma montanha, e chegasse at Soriano filtrada pw
terra, discordava, vagamente, do que a irm e o M
lhe diziam. Mas ele transigia, em obedincia a uma <$m
guia espiritual que, outrora, no tinha. E a sua ($
cordncia parecia vir mais dum "eu" antigo, que ja|
dentro dele, apagado como um resduo de carvo^J|
que do seu "eu" presente, daquele que nesse momeB
vivia. >tjl
S reagira verdadeiramente no dia em que, ter"
a irm dado por concluda a renovao da casa,
no vira no escritrio o busto de Pablo Iglsias. M
Ora! justificara-se Mercedes.J no se tMB
isso. E, demais a mais, feito de barro, que at pacedB
comprado numa feira! Cheira a coisa ordinria <J*i|
tresanda e at torna ridculo l... l o teu mestre, All
Ele admitiu que ela tinha alguma razo, mas P6^!
sou que os seus correligionrios, que costumavam visai
t-lo, estranhariam a ausncia do busto de IglsiaflM
E carregou sobre a sua vontade. Mas a irm era, tant|
bem, teimosa: 41
Se ainda fosse de mrmore ou de bronze! Massa
assim, at quebra a harmonia do conjunto! Foi, p*fl
isso, que o tirei... ill
Ele sabia que Mercedes detestava a memria dp l
Iglsias. Sabia que ela odiava todas as ideias socialistas" Jj
A CURVA DA ESTRADA
375
Seja como for disse-lhe, com energia quero
j o busto. E possvel que, mais tarde, mande fazer um de bronze, para no quebrar o c
onjunto, como tu dizes; entretanto, quero l o que l estava.
Mercedes obedecera-lhe, ento. Mas, salvo aquele pormenor, o escritrio e as outras
divises deixaram de ter qualquer semelhana com os do passado. Era como se ele subi
sse umas escadas que lhe eram familiares, transpusesse uma porta que era a sua e
subitamente encontrasse, por detrs da porta, uma casa que no era a dele. A princpi
o, esse novo cenrio, todo fofo e confortvel, perturbava-o; em breve, porm, Soriano
se adaptara, que nem por mudar de leito os rios deixam de correr. Dir-se-ia mesm
o que, contra os antigos hbitos, os seus msculos, os seus prprios ossos considerava
m prefervel aquilo ao que existia antes.
Todas as noites, ao entrar no escritrio, Soriano fazia os mesmos gestos. Comeava p
or acender um charuto, a sua velha volpia, o seu vcio desde os tempos de penria e q
ue tantas ironias merecera aos adversrios. Em seguida, sentava-se no novo "maple"
, sob um verde quebra-luz. Logo estendia a mo para a mesita onde a criada, conhec
endo os seus costumes, deixava os jornais da noite. Ele amava essa hora. Gostava
de se meter no escritrio, depois do jantar, gostava de ficar ali sozinho e de le
r tranquilamente no silncio da casa. Quando a mulher vivia ainda, esse silncio man
tinha-se sempre. Modesta, carinhosa, no existindo seno para ele, se era obrigada a
aproximar-se do escritrio, fazia-o nas pontas dos ps, to leve e incorprea que nem f
antasma. Dir-se-ia que dava s prprias coisas a mesma prudente mudez dos seus cuida
dos. Mercedes causava mais rudo e obedecia-lhe menos; mas como saa, ultimamente, t
odas as noites, ele continuava a ter silncio quela hora.
Bem sentado e de pernas cruzadas, Soriano desdobrou o "Heraldo de Madrid". Era o
jornal que ele lia sempre primeiro. No porque lhe votasse considerao singular, mas
porque inseria mais noticirio poltico do que os outros e se ocupava, frequentemen
te, dele.
376
A CURVA DA ESTRADA
* Soriano havia levado o charuto boca apenas <$ vezes, quando aquilo lhe surgiu
no meio dumatJ| colunas do peridico: ,'/<
MUDANA DE SECTOR f<l
Constava, esta tarde, que Don lvaro SoJM riano abandonar, em breve, o Partido Socia
-Tj lista, de que foi, durante muitos anos, como spvj sabe, um dos chefes, e dar,
publicamente, a jB sua adeso ao Partido Nacional. ,fjl
Soriano leu trs vezes essas poucas linhas, que fecbfl
vam a seco poltica do jornal. O ar secara. As pare<jM
o tecto, alguma coisa oculta comera o ar. Um Itjfl
zumbido escoou-se algures. Soriano sentiu primeiro"qB
calafrio e, depois, um mais prolongado mal-estarjiSH
seu crebro perpassaram as caras dos reprteresuH
"Heraldo de Madrid", que ele conhecia. E, depois, outB
figuras, membros do Partido Socialista, ultimameijH
em desacordo com ele, membros do Partido NacioiliM
que o lisonjeavam h algum tempo j. "Aquilo fl|H
prematuro e havia ali, sem dvida alguma, um desoH
velhaco de o comprometer imediatamente" penwl^B
O zumbido voltara a sair do seu cortio e a golpeadH
atmosfera rarefeita. Por muito que evocasse o carcrfH
e os interesses deste e daquele adversrio, Soriano r4H
conseguia identificar quem dera a notcia, a taniwH
polticos atribua esprito de intriga suficiente paraoM
fazer. "Era uma corja, uma canalha!" SubitamenWiH
sobressaltou-se: "Aquilo era uma canalhada que Iftjfll
faziam, para o entregar a Ballesteros, sem condieil
com aquilo pretendiam tirar-lhe a possibilidade de etfjl
se fazer valer. Ballesteros estava, sem dvida, pdB l
detrs dessa manobra. Mas enganava-se muito se pen- *
s v que ele se deixaria levar como um idiota!" '# ^
Soriano largou o "Heraldo" e pegou em "La Voz" e? depois, em "Informaciones". Ma
s nenhum dos outra(r) jornais se referia a ele.
A CURVA DA ESTRADA
377

Recostou-se mais na poltrona e cerrou as plpeoras. A imagem de Zornoza movia-se l


enta e incomodamente dentro dos seus olhos, como um polvo dentro dum aqurio. Ele
queria expuls-la, mas ela persistia. De longe ou de perto que o seu pensamento pa
rtisse, encontrava-a sempre. Era em volta dela que ele travava a sua batalha, es
quecido do charuto e do tempo.
No silncio da casa, Soriano ouviu, por fim, retinir o telefone e logo os passos d
a velha criada caminhando para o escritrio.
don Angel Hernandez preveniu Ramona. Soriano hesitou um momento. Angel Herna
ndez era,
tambm, deputado, mas do Partido Nacional, e, no comeo da Repblica, devido eleio de Ra
mn Franco na Andaluzia, os dois quase se haviam insultado no Parlamento. S a inter
veno de Miguel Maura, ento ministro do Interior, evitara que houvessem pronunciado,
um contra o outro, palavras irremediveis.
Pode ligar decidiu Soriano. E agarrou no auscultador do aparelho, que estava
na mesma mesita onde se encontravam os jornais.
Angel Hernandez, com a sua voz forte, autoritria, felicitava-o:
"Enhorabuena!" Vi a notcia do "Heraldo" e quero dar-lhe parabns pela sua atitude.
J era tempo de um homem com o seu valor abandonar esse partido...
Situao indita para ele, Soriano no encontrava facilmente o que lhe conviria dizer. H
esitante, limitava-se a pronunciar "muchas gracias", "muchas gracias", sem arris
car mais palavras. E s se sentiu senhor de si quando o outro abandonou o telefone
. Logo se voltou contra ele prprio: "Fui um imbecil! Devia ter dito que aquilo er
a prematuro".
O charuto estava ainda no meio. O fumo subia, enrodava-se, formando um lao. Soria
no levantou-se e comeou a andar, vagarosamente, da janela at a porta, da porta at a
janela. Desgostoso, considerou que principiavam a faltar-lhe qualidades de impr
ovisao. Antigamente, teria encontrado logo o que lhe seria til dizer a Angel Hernan
dez.
378
A CURVA DA ESTRADA
* Soriano continuou o seu vaivm, alheio ao jjt mento que as pernas faziam.
De Angel Hernndsa tornejara para Ballesteros, e, deste, para o Pai Socialist
a. Por fim, tornou a sentar-se. Na vs$ tinha deixado, sobre a mesita, "La vid
a dei bua^ que principiara a ler h dias. T?
Durante muito tempo, Soriano havia meneai zado os clssicos. Do seu forado c
onvvio coni^ nos bancos escolares ficara-lhe uma sensao de mijj velho, montono, que
servia apenas para enfastiai vida da mocidade. Ao prprio "Don Quixote" ele lanava
, desdenhoso: "Era um matorral espesso, >dj| andavam dois animais que no valia a
pena se|fa porque um era louco e o outro era bruto". Por cam desta frase, que, n
esse tempo j longnquo, ele sen volpia em repetir, tivera at um pugilato com oiafB es
tudante, um navarro carlista, muito reaccionrio, cf| lhe tinha respondido com uma
expresso de desanl "Animal s tu e, se a natureza for justa, ainda hei-$ ver-te com
quatro patas". Depois desse episdio havilj decorrido muitos anos e Soriano, quan
do passara M cinquenta, descobrira um sbito encanto nos classic" O que, outrora, l
he parecia enfadonha velhice na aaflj de dizer, ingenuidade na maneira de transm
itir racS cnios e observaes, surgia-lhe, agora, com um sat" novo, com a frescura dum
a hora matinal, a luz durinj aurora precursora. Era toda uma experincia humaf que
falava, com profunda sagacidade, de dentro * remotos tmulos. tm
Apesar disso, Soriano lavrava, ainda, dvidas. Cofll aquela antiga tendncia para es
quadrinhar os sinuosa! movimentos do seu esprito, perguntava, muitas vezeBjl a si
prprio, se os clssicos possuam efectivamen^ esse interesse, sempre novo, que ele
lhes encontrav^ agora, ou se, pelo contrrio, era ele que estava velho"1' Nunca o
btivera, porm, resposta tranquilizadora. E poW que, ao repetir a pergunta,
se sentia maldispost) acabara concluindo que havia uma idade em que se amava
os clssicos, como havia uma idade em que se os detestava e que a isso era alhe
ia a vontade
A CURVA DA ESTRADA
379
humana. Pepe Martinez tinha a mesma opinio: "Os clssicos caracterizam-se pela part
icularidade de andar sempr6 ao contrrio das mulheres dissera-lhe um dia. Quando
se novo, eles so para os outros e elas so para ns; quando envelhecemos, eles vm para
ns e elas vo para os outros". Soriano pensara em Anita Calonge e s com esforo sorri
ra.
Agora, ele abria o livro e procurava a pgina em que havia interrompido, na vspera,
a leitura. Comeou a ler:
"Pensar vuesa merced que siempre estuvimos en paz; pues quien ignora que dos amig
os, como sean codiciosos, si estn juntos se han de procurar enganar el uno ai otr
o ? Sucedi que el ama criaba gallinas en el corral; yo tenia gana de comer una; t
enia doce o trece polios grandecitos..."
O telefone voltou a tocar e os passos da criada a soarem na casa. Desta vez era
um velho, modesto socialista, que ele conhecia de h muito, mas a quem no via h bast
ante tempo j.
Sim, sou eu, Soriano. Diga l, Juan... Como tem passado ?
O outro falava com voz humilde. Tratava-o por "camarada", mas fazia-o com um tor
n respeitoso, como se o tratasse por "vossa excelncia".
Vi a infmia do "Heraldo" declarou. Aquela calnia no pode passar assim! Venho dize
r-lhe que estou ao seu dispor para o que for preciso. Apesar de eu ter s um brao,
amanh you redaco e ao primeiro "granuja" que l encontrar parto-lhe a cara. Fazer uma
coisa daquelas ao camarada!
Como lhe sucedera h pouco, com Angel Hernandez, tambm agora Soriano no sabia que re
sponder.
No vale a pena... balbuciou.
Hem ? Que diz "usted" ?
Digo que no vale a pena o Juan incomodar-se. Aquilo no tem importncia...
No tem importncia ? Para mim tem e muita! ^To consinto que ningum o calunie...
Soriano no ignorava que Juan Cabanillas lhe era
38o
A CURVA DA ESTRADA
* devotado desde a adolescncia, por princpios idgjj gicos, e grato desde que ele,
quando viera a Reputa lhe obtivera um lugar de contnuo, no Ministrios Comunicaes. Ma
s, agora, essa gratido molesta"" Eu sei que o Juan meu amigo. E sei que pi contar
consigo. Mas que seja para uma coisa ti importante... Para isto no vale a pena..
. na
Sentiu um grande alvio quando conseguiu aj&J guar o outro e desligar o telefone.
Voltou a pegar! livro, mas a ateno no se lhe prendia. Em veza prosa de Quevedo, que
estava em frente de seus olM ele via Juan Cabanillas, que no estava ali. Viar<j
porta da repartio onde era empregado, a agarrar ca a mo esquerda os cartes-d
e-visita, enquanto'Jj ombro direito lhe descia uma manga vazia. Via-o, m pois,
na mocidade, quando tinha ainda os dois bra$| Era uma tarde de domingo, nos arr
edores de Madri Densa multido cobria o campo, ao fim do qual, cei algumas estacas
e algumas tbuas, se havia improql sado uma tribuna. Pablo Iglsias galvanizava
nenj tempo, madrugada do sculo xx, as massas operria e camponesas, prometendo-lhes
um mundo mais feJaj Havia-se anunciado que ele falaria naquele comcio m para o o
uvir, viera gente de todos os bairros madsj lenos. To forte era o entusiasmo que
a prpria pra^S de touros ficara quase deserta nesse domingo. Mas l tempo decorria
e Iglsias no chegava. Em frente ill estrado onde ele devia discursar, a ^grande m
ole humall comeara a mover impacincias. s seis da tarde soffli be-se, porm, que Pablo
Iglsias tinha sido preso quand ia a sair de sua casa, a caminho dali. Fora ento qt
tol ele, Soriano, decidira substituir o seu velho mestre. Dum salto alcanara a
tribuna. Jovem, simptico, ve e gestos ardentes, a mo alisando nervosamente, de q
uando em quando, a longa cabeleira romntica, em poucos minutos arrebatara a multi
do inteira. As ovaes raramente lhe permitiam terminar os seus pertf* dos. O auditrio
compreendia o que ele desejava dizer, antes mesmo de ele o ter dito compl
etamente. O constantes aplausos incitavam-no cada vez mais. Ele
A CURVA DA ESTRADA
381
,jesconhecia-se, nesses instantes, a si prprio, descohria-se a si prprio ao escu
tar a torrente de palavras
ul * . i j _i . _i . ; _i _ _ i J _ _
que
lhe brotava, iracunda, mas tocada de ideal, dos
seus lbios rebeldes. Esse idealismo de que ele era, ocasionalmente, o intrprete, i
nstalara-se, merc da aco de Pablo Iglsias, na alma de muitos dos deserdados de Espan
ha e repercutia-se ali com crescente veemncia.
Perto da tribuna, alguns guardas-civis escutavam Soriano, impassveis. Dir-se-iam
sonolentos. Quando a multido ululava, eles levantavam lentamente os olhos, com ex
presso de indolncia, e logo tornavam a baix-los, mais indolentemente ainda. A certa
altura, porm, as ltimas filas da assistncia, l na extrema do campo, comearam a volta
r-se. Fora um movimento contagiante. Pouco a pouco, todos aqueles milhares de ca
beas principiaram a olhar para trs, como impelidos por uma vaga em recuo.
Sem interromper as suas palavras de combate, Soriano estendera a vista, em busca
do motivo que distraa a ateno dos ouvintes. E vira, ento, ao fim do campo, um grupo
de guardas-civis a cavalo, que avanava, correndo, de espada ao alto, reluzindo a
o sol. De comeo, alguns deles ladearam o povo e pareciam cavalgar para longe, mui
garbosos, com a durindarta assim desembainhada, como se custodiassem um velho c
oche rgio. Mas logo dois gritos de protesto cortaram o discurso de Soriano. E, de
pois, outros gritos, outros protestos. Os guardas-civis ordenavam: "Dispersar !
Dispersar! Fora daqui!" e a multido no obedecia. Os cavalos, esporeados muito emb
ora, principiaram a hesitar no avano e erguiam a cabea, como se fossem empinar-se.
"Dispersar! Dispersar!" e, ao ^lesmo tempo, as espadas embravecidas iam golpea
ndo esquerda e direita, brutalmente. Ento, os guardas que se encontravam perto da
tribuna, rapidamente abandonaram a sua aparente indiferena e desataram tambm a sa
brear com fria, em apoio dos colegas. O sol horizontal enchia de mil fulgores ves
pertinos o campo em agitao, sob um cu tranquilamente azul.
3"2
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
* Os cavalos meteram, decididos, enorme manchaJB
mana e viu-se corpos tombarem e braos e pernajB
homens agitarem-se entre as patas dos cavalos. ; Jfl
Soriano no se arredara da tribuna. Encarava^ ai
luto, os guardas-civis e incitava a multido a reajB
-lhes. A ideia da morte, que, ento, lhe surgira, <fH
cera-lhe uma ideia bela. Que importava a ele raH
se morresse por uma causa nobre ? :r^H
Nem os cavalos que pisavam os homens, nejH
espadas que abriam fontes de sangue, conseguianuM
mar clareira. Mas aqueles passavam, a multido fejfl
va-se de todos os lados, apostrofando. O campo estfl
cheio de gritos, de antemas e de gestos colricGsJM
cavalos dirigiam-se para a tribuna como se atraiH
sassem ondas revoltas e da alma dos homens, da teal
das prprias coisas inermes, parecia exalar-se um i^B
mais forte do que tudo o mais um ideal para g|J
consumao todos os presentes dariam o sangue e medi
Aos ps da tribuna encontravam-se Rafael CajjJ
nillas e seu filho Juan. Cabanillas era um velho operlH
que, como muitos outros, perdera grande parte da $JH
existncia nas masmorras do Estado, sacrificando-sM
si e famlia, pelas ideias socialistas. "fH
Quando os guardas-civis a cavalo se aproxima\"M
do lugar onde ele estava, Cabanillas contemplara^M
duramente e gritara-lhes, com desprezo: "AssassiifjM
Assassinos! Podeis matar-nos, que o socialismo hdfl
ser implantado em Espanha!" Os guardas iam de esp^J
erguida, no para ele, mas para Soriano, que, de soblM
a tribuna, cabelo ao vento e braos estendidos, cofH
tinuava a excitar a multido. A atitude de Cabanill<B
detivera-os, porm, um momento. O velho teimava fl
increp-los e, dobrando-se, agarrara uma pedra, <fNM|
arrojara sobre eles. Juan, seu filho, imitara-o. Os homeflif
fardados esqueceram-se, ento, de Soriano e, baixandph"
as espadas, talharam, com frenesi. Houve um instanf*i'
de surdos rumores, de gritos abafados que parect'
sarem do prprio sangue, da prpria carne rachada)
e, depois, de toda a parte subiram gritos agudos. Cabas
383
nillas tombara logo, de crnio aberto. Ele abria e cerrava lentamente as plpebras,
de olhos voltados para
0 cu e com um pouco de terra na boca, quando um dos cavalos ps uma pata em cima da
sua cara e da sua gravata em forma de borboleta. A Juan, seu filho, amputaram-l
he, mais tarde, no hospital, um brao e pensaram-lhe outros ferimentos. E at alta n
oite, muitos homens, uns emudecidos para sempre, outros gemendo dos golpes receb
idos, haviam sido transportadas, pelas estradas dos arredores, para Madrid. As m
ulheres choravam porta do hospital, enxugando as lgrimas com as costas das mos, e
muitas clamavam, desesperadamente, que nunca mais teriam quem sustentasse a elas
e aos filhos.
Fora nessa tarde de sangue que alvorecera a popularidade dele, Soriano; fora des
de ento que o seu nome principiara a ligar-se ao de Pablo Iglsias, como uma liana
que se abraa a uma rvore robusta. Preso, todos os dias recebia cartas e ofertas de
outros socialistas que o louvavam pela coragem com que se portara e pelo vigor
que dera a esse comcio de que, durante muitos dias, a Espanha inteira falara. A t
erra havia engolido vrios mortos e centenas de feridos as enfermarias; ele vira,
mais tarde, muitos outros homens morrerem levados pelas suas palavras de luta; m
as nenhuma dessas mortes o impressionara tanto como a de Cabanillas, graas ao qua
l ele no recebera o golpe que a guarda-civil lhe disparara. Durante aqueles dias
de cativeiro, evocara, frequentemente, com agradecida ternura, o velho operrio de
saparecido e decidira interessar-se pela famlia dele logo que sasse dali. Juan, Po
rm, antecipara-se e, uma tarde, aparecera-lhe em frente da cela, j com os modos re
speitosos que havia de conservar sempre perante ele, no futuro. Fora essa a prim
eira vez que Soriano o vira com a manga intil aquela manga oca a adejar onde, sem
anas antes, havia um brao.
Soriano ficara comovido:
Ainda hoje estive a pensar em si. Quando me lembro do que aconteceu e do seu pob
re pai...
il
3"4
CURVA DA ESTRADA
j> O camarada no deve preocupar-se com 13
dissera Juan. - Todos ns temos de lutar pelai
f... Morre um, nascem muitos. Calara-se unt
mento, porque se lhe velara a voz e, depois, acroq
tara, indicando o brao mutilado: Eu vinha TB
mente dizer-lhe que o camarada pode contar cm
para a vida e para a morte. J disse o mesnj
camarada Iglsias. Agora, assim maneta, pouco vi
claro, mas, para tudo o que eu puder fazer, jaj
s ordens. 3
E, efectivamente, essa dedicao por ele ting
mantido sempre, durante a Monarquia, durante a a
dura de Primo de Rivera e mesmo durante a RepuM
quando os socialistas atingiram o poder e algunsa
seus prprios correligionrios comearam a detail
Ansioso de libertar-se da imagem de Cabana
Soriano tentou, novamente, fixar a leitura de "La1"
dei buscn"; tm
"Con esto el Corrigidor di un salto arriba y :Q|
A donde entn? "Senor... no me detenga vuesa merJ
que Ias animas de mi madre y hermanos se Io pagjj
en oraciones, y el Rey ac..." ta
As palavras fugiam-lhe, perdiam-se entre a multiB
das palavras dele prprio, que transitavam tumuli!
riamente no seu crebro. Repetiu: "Senor... no-m
detenga vuesa merced, que Ias animas..." Repetiu Ia
tilmente, pois continuava a divagar sobre outra cSJ
Era, agora, um sopro da sua infncia, uma remia!
cncia j longnqua, quase to esfumada como a strpl
fcie do lago sob a neblina naquela manh em que
o vira, depois de lhe terem dito o que acontecera^
h dois sculos. Soriano divagava contra o seu desejjl
"Um lago abre-se quando um corpo cai sobre eled|
gua ondula um instante e volta a fechar-se voM
sua paz. Parece que tudo findou. Parece que o lad
esteve sempre assim e que nele no ocorreu coisa algunl
As aves que passarem nesse momento vero a supfl|
fcie sem uma ruga, adormecida sob a proteco Q*
redoma celeste. Mas o cadver que se encontra l efflj
baixo comea a corromper-se pouco depois de a paf
A CURVA DA ESTRADA
385
ter voltado flor da gua. E, de quando em quando, enviar para cima as bolhas dos se
us gases, que perturbaro a tranquilidade da superfcie. O cadver corrompe-se no fund
o do lago como um produto sdico que se dissolve no fundo de um copo; e as suas em
anaes gasosas rompem verticalmente atravs da gua, como o fumo rompe das chamins dos n
avios para o cu. Um morto s est definitivamente morto quando se corrompeu de todo.
E enquanto dura a corrupo, a calma do lago apenas aparente". Soriano lembrou-se de
ter j empregado estas palavras no tribunal, em defesa dum tarado, que assaltara
uma estao dos correios da Andaluzia. Fora muito antes da Repblica; nesse tempo ele
no havia notado ainda mudana alguma no seu esprito.
Soriano voltara a preocupar-se com a notcia do "Heraldo" quando a campainha soou,
no fim do corredor. Quem tocava fazia-o com a deciso que tm as pessoas familiares
e os credores enfurecidos. Ele pensou que poderia ser Pepe Martinez. s vezes, su
rgia quela hora, sem telefonar, sem prevenir. Teria lido aquilo e viria discutir
com ele.
Soriano quedou-se a escutar, desejoso de que fosse, realmente, Pepe Martinez. Er
a um velho amigo. Nos derradeiros tempos discordava tambm dele, mas Sonano no conh
ecia ningum mais compreensivo, mais apto a julgar, com clareza e tolerncia, os act
os de ca.da qual. Ele chamava-lhe, por isso, o "Ama da alma".
Soriano sentiu a porta da escada abrir-se e voltar a fechar-se depois de algumas
breves palavras que a distncia tornava ininteligveis. "No ele" pensou, com desgos
to, ao ouvir os passos isolados da criada.
Ramona entregou-lhe quatro telegramas. Soriano ^briu-os lentamente. Trs eram de p
olticos do Partido Nacional, que o felicitavam, como o fizera Angel Herlandez, po
uco antes, pelo telefone. O outro dizia:
"A mim nunca Ud. me enganou, porque h muito tempo eu no tinha confiana em si. Mas s
empre quero declarar-lhe que Ud. um traidor, a vergonha do
13 Vol. Ill
386
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
387
" nosso partido e s merece o meu desprezo Aleys de Hoyos Moreria 19". rm
'>< Soriano tornou a ler. No encontrava na susti
mria aquele nome. Ele preferiria que fosse urnaj
grama annimo. Mas quem o enviava parecia cm
marcar bem que tomava a responsabilidade do)|
dizia. Soriano tentou ainda diminuir aquilo: "PocH
escrever o nome duma rua e o nmero duma"
sem se habitar l". ia
Levantou-se, rasgou o telegrama e lanou os pw
cos ao cesto dos papis. Hesitou um instante e raal
tambm os outros trs. Mas a atitude de indifer
que pretendera tomar no se mantivera. Embonn
casa o silncio fosse absoluto, ele tinha um surdo rttj
no crebro, como se um enxame voasse dentro da
cabea. ;
Soriano pensou na irm e consultou o relgio. fall
mente a notcia do "Heraldo" tinha sido comentji
em casa de Ramn Ballesteros. E, sem dvida, M
lesteros, como chefe que era do Partido Nacional, t"
dito Mercedes alguma coisa sobre aquilo. Mas m
cedo ainda para a irm voltar. J
Soriano acendeu um novo charuto. Nas outras im
tes, s queimava um; nesta, porm, sentia necessids
de continuar a fumar.
QUANDO Mercedes e Pao entraram em casa dl
Ramn Ballesteros j l se encontravam muitii
outras visitas. Era quarta-feira e Milagros, mulhi
do chefe do Partido Nacional, recebia nesse dia a4
suas amigas e os correligionrios do marido. " l
Nesse tempo, em que desfraldavam seus balses a \
Terceira Repblica Francesa e a Segunda Espanholai j
uma reunio, em Paris, de famlias que se prezasseife j
quisessem causar inveja a outras, quando lessem o ^ngaro", exigia sempre a prese
na de um acadmico, mesmo que fosse surdo, a de um ministro que soubesse discutir s
obre as ideias de Anatole France e, ainda, a je um aristocrata veladamente arrui
nado, desses a quem os criados dos cafs teimavam em chamar apenas "Monsieur", por
muito que ele, com um modesto ar de indiferena, expusesse, sobre o mrmore da mesa
, a sua mo brasonada. Em Madrid, o acadmico era substitudo por um general no activo
e em vez de um te fidalgo devia haver quatro ou cinco e outros tantos padres.
Nas reunies de Milagros, esses nmeros eram, porm, sempre ultrapassados, como se pod
ia facilmente verificar nas notas de sociedade que o "A. B. C." publicava.
A Repblica e a Monarquia em Espanha representavam para os eclesisticos o que o Vero
e o Inverno representam para as formigas. Durante os perodos republicanos eles p
regavam menos sermes e diziam menos missas, mas, por outras bandas, trabalhavam s
em descanso, estavam discretamente em toda a parte e s quando a Monarquia voltava
repousavam de suas canseiras e engordavam em boa paz. No mundo dos aristocratas
sucedia quase a mesma coisa, com a diferena de que estes gostavam de falar alto
de poltica, de protestar em bom som contra a reforma agrria, misturando-a com a re
cordao de "tientas" e de "juergas" nas ganadarias da Andaluzia.
Milagros, apesar das declaraes que o marido fazia incessantemente, minguava tambm d
e amor pela Repblica, que lhe parecia mal educada, demasiado livre e primria em co
mparao com os modos e esplendores da Monarquia. Mas considerava que Deus escrevia
direito por linhas tortas e havia males que acabavam em bem, tanto assim que no
tempo do rei, quando Ballesteros no era ainda chefe de partido, na sua casa io se
via nenhuma alta patente do exrcito nem ttulo Nobilirquico algum. Agora, pelo contrr
io, se, durante as suas recepes, ela se acercava duma das janelas, Podia sentir-se
orgulhosa, pois nessas noites de quartas-
388
A CUEVA DA ESTRADA
f -feiras nenhum outro palacete de Resales j untava -wL
automveis sua porta. j3
Dentro, o salo fulgurava com jias e condlslB
coes dos grandes de Espanha, cuja fidalguia remoal
ao tempo de Isabel a Catlica, dos Cruzados ouijB
longe ainda; de fardas reluzentes e de lindas mulM
dessas que importavam vestidos de Paris e q<4M
numa tarde tauromquica, se dignavam lanarj
flor ao toureiro, tornavam para este a prpria irnB
nos chifres do touro, coisa digna de ser sofrida. JM
Naquela noite, o salo apresentava-se ainda>3JB
esplendente e povoado do que nas quartas-feiras-^B
riores; e, ao entrar, Mercedes notou que quase jB
os presentes olhavam para ela e para. o sobrinhj|B
maneira diferente do que costumavam faz-lo, t$
mesmo alguns deles ido ao seu encontro com ME
pressa que no mostravam de outras vezes. A prfl
Milagres, ao apertar-lhe a mo, em lugar de lhe:>|B
guntar pela sade, dissera-lhe, com entusiasmo: !ttl
Parabns! Parabns! .'M
Em breve, Mercedes e Pao viram-se rodeados,
solenes figuras do Partido Nacional. Logo se aprJM
maram tambm alguns brilhantes uniformes, vfl
casacas de bom garbo e uma modesta batina, ambiaB
que cortejavam, nesses inquietos dias, o chefe do aflj
pamento poltico que, embora se proclamasse reprlM
cano, lhes parecia mais apto a garantir-lhes a exisiM
cia e o futuro enquanto no voltava a MonarqtM
Todos eles se referiam notcia do "Heraldo", comeM
tando-a, interessados como andavam nos xitos do ^jfl
tido Nacional, sobretudo desde que este se lanara ill
veemente campanha contra os socialistas, acusanddfjB
de arruinarem a Espanha. aB
sempre tempo de arrepiarmos caminho! se^B
tenciou o governador civil de Cordova, que era cflJB
religionrio de Ballesteros e estava de passagem 3B1
Madrid. sempre tempo de emendarmos os nossfilB
erros! JS
E quando que ele adere definitivamente ? ~4$4
perguntou o marqus de Cerro Pardo, um homem alt<8f|j
A CURVA DA ESTRADA
389
nquento, com grandes olhos raiados de sangue e Migos bigodes retorcidos para cima
, como pontas de ferro forjado.
Mercedes fez um gesto vago.
O maiqus, que amava as atitudes decididas e por isso mesmo admirara Guilherme II
da Alemanha, em homenagem ao qual lhe copiara o ornato labial, insistiu, com um
torn que parecia repreend-la:
Ah, no sabe ainda ? , Mercedes no respondeu. Mas o padre Balmes, seu
confessor na igreja de Cristo de Ia Salud, pareceu querer defend-la:
Nenhum de ns ignora, minha filha, quanto devemos sua devoo pelos bons princpios dis
se, com voz doce.
Ela ensaiou, ento, uma expresso de modstia e o padre prosseguiu:
realmente para nos congratularmos e agradecermos ao Senhor ver trilhar o bom cam
inho uma inteligncia como a de seu irmo, que to til pode ser ainda grandeza da nossa
Espanha.
Pela primeira vez todos aqueles homens e mulheres ouviam falar da inteligncia de
Soriano sem a contestar imediatamente. E o silncio que fizeram mais parecia de ac
eitao forada pelas circunstncias do que de aprovao s palavras do padre Balmes. Este d
ia ter compreendido isso, porque acrescentou:
Deus quer a verdade acima de tudo! E no ganhamos nada em negar a inteligncia
dos que so u foram nossos inimigos. Bem ao contrrio, pois se no acreditarmos na
sua inteligncia, no faremos ftenhum esforo para nos defendermos do mal
que "a pode causar.
Enquanto o ouvia, Mercedes ia seguindo, discretamente, os movimentos de Ramn Ball
esteros. Era o unico que parecia indiferente ao que o "Heraldo" disSera sobre So
riano. Quando ela entrara, ele encontrava-se perto duma das janelas, a palavrear
com dois correligionrios; e, ao v-la, viera cumpriment-la, afectuosamente, como se
mpre. Mas, ao contrrio do que
390
A CURVA DA ESTRADA
^ Mercedes esperava, no fizera nenhuma aluso ao
e voltara, em seguida, para junto dos seus asm
Agora, ele ia de um lado para outro, ora aperta}"
mo dos que chegavam tarde, ora demorando-se, a>tt|
minutos, em galantaria com esta ou aquela visita
ao p dela nunca se detivera e dir-se-ia mesrnwj
procurava evit-la naquela noite. Observando-o, 'ji
cedes sentia-se despeitada. Nunca estava, porm,-"
nh: deixavam-na uns e logo vinham outros, sei
a celebrar ou a informar-se sobre a atitude de Soiijl
A certa altura, ela viu que Ramn Ballesteros seJ
tava, com outras figuras, a uma mesa, ao fund$H
salo, e comeava a jogar. Mercedes enervava-se na
As horas iam passando e o chefe do Partido Naci<"
no se levantava dali. jm
Pao, adivinhando o estado de esprito da tfira
ele prprio surpreendido com aquilo, aproximou-il
mesa de jogo. Ao dar por ele, Ballesteros passoilW
dedos sobre as suas cartas, como se quisesse limp&J
duma sombra invisvel, e sorriu-lhe: lm
Estou, hoje, sem sorte disse. Parece-me;"
cada vez jogo pior o "bridge". , pll
Homem forte nos seus sessenta bem contados, H
mn Ballesteros quando caminhava dir-se-ia mais bdjfl
do que realmente era, graas ao volumoso dimetri^l|
corpo; e, assim, a sua verdadeira estatura s se a"
liava quando ele estava sentado, como agora. A !$1
cabea dominava a de todos os companheiros de jdH
e quase atingia o ombro de Pao, que se encontraHl
de p, atrs dele. Era uma cabea grande, j calva a|
alto, mas com um tufo de cabelos isolados sobreM
testa, em forma de ilha entrada duma angra. >iH
suas faces balofas, to balofas que, de manh, comsM
barba por fazer, deveriam parecer esponjas, caam sobWJ
uns lbios grossos, secos, secas cortinas de dois dentij
de oiro. Htjll
Pao quedou-se ali alguns minutos, a fingir QtiM
acompanhava a partida. Mas Ballesteros mostrava t-JW
esquecido. Da mesa subia o aroma e o fumo de chaM
rutos caros e da outra parte do salo chegava um rumatf,|
A CURVA DA ESTRADA
391
Ae vozes indistintas, que parecia vir de muito longe, pao foi rodeando a mesa at f
icar de frente para gallesteros, como se se interessasse tambm pelo jogo dos outr
os. O chefe do Partido Nacional no levantava, porm, a vista. Pao no desistiu. Discre
tamente, voltou para trs da cadeira dele e quando o viu decidir-se, depois de lon
ga hesitao, a jogar uma das cartas, apoiou num sussurro: "Essa mesmo..." Desta vez
, porque havia ganho, Ramn Ballesteros volveu-se e tornou a sorrir-lhe ligeiramen
te. Mas no disse coisa alguma. Dali em diante, era como se ele no estivesse ali. P
ao ainda ficou mais algum tempo e, por fim, veio sentar-se, de novo, ao lado da t
ia.
O despeito de Mercedes transformara-se em indignao. Nas outras noites, mal a via c
hegar, Ramn Ballesteros abandonava as demais visitas para vir confabular com ela,
para alici-la, para informar-se sobre a evoluo do irmo e das suas vrias reaces. E, a
ra, que aquilo estava pronto, que a notcia fora publicada, ele fugia-lhe, porque
era evidente que lhe fugia, justamente numa noite em que ela precisava tanto de
o ouvir.
As duas horas da madrugada, as visitas comearam a abalar. Ramn Ballesteros acompan
hava-as at a porta, mas, ao volver, era sempre a outros e no a ela que ele se junt
ava. Duma das vezes, Mercedes deslocara-se de maneira a que ele a encontrasse, i
solada, no meio do salo. No podendo evit-la, Ballesteros declarara, lisonjeiro:
Que brilho tm hoje os seus olhos! Estupendos! Ah, se eu fosse mais novo! E, cham
ando o governador civil de Cordova, que, perto deles, pairava com
0 general Arellano, pediu-lhe confirmao:
V isto, Antnio... No verdade que a senhorita Mercedes tem hoje um fulgor nos olhos
capaz de tornar louco um homem ?
O governador e o general, crentes de que Ballesteros relacionava aquilo com o ca
so de Soriano, sorriram e aprovaram.
Mercedes mordeu os lbios, enfurecida. E, pouco
392
A CURVA DA ESTRADA
, depois, saa. com o sobrinho. Desceu as escadj silncio, sentindo, pela primeira vez
, desde que o^d cia, uma m vontade de bicho acuado contrSM lesteros. gj
Na rua, o ar fresco da noite acalmou-a ligeiraa
No percebo nada disse. Parece que t* a rir-se de ns. Procedeu como um grosseiro!^
]
Pao no respondeu. Havia lobrigado um ft avanara, no passeio, a cham-lo. ^H
J dentro do carro, Mercedes teimou: ,|
Que dizes a isto ? > J
No digo nada. No sei. Que queres que eu Mercedes estranhou tambm o sobrinho. DIM
a noite, ele tinha estado to sbrio de palavras a
agora, ao contrrio do que era seu costume. Apfl
mara-se apenas uma vez de Ramn Ballesteros eil
mais fizera para esclarecer o procedimento dOf,JH
do Partido Nacional. Parecera-lhe at que evitara,1^
o outro, tomar parte nos dilogos dos que comentai!
a notcia do "Heraldo". Seria que o sobrinho se vod
tambm contra ela ? Mercedes instou ainda: *M
Mas no te parece que ele tem uma ideia rfl
vada ? jm
Talvez. Que ele no queria falar contigo, nH dvida. Mas no te preocupes com isso. ti
A voz de Pao tornara-se suave e dir-se-ia no importncia alguma quilo. M
Est uma noite um bocado fresca, mas delicidl O cu cheio de estrelas, no sei se repa
raste... ael centou. m
O txi rodava ainda no passeio de Resales. Oil
que deslocava rescendia a plantas aromticas. 'M
Uma bela noite para no pensarmos no BalW
teros... insistiu Pao, com uma voz que parecia in
pregnada de indolncia, de ternura e do mesmo perfuUB
que errava no ar. T*
Mercedes sentiu que o sobrinho se encostara muiw|
a ela e que, ao falar, a perna direita dele vibrava contw
a sua perna esquerda. Uma imagem matinal se sobflti
ps s que ela trazia da casa de Ramn Ballestero^
A CURVA DA ESTRADA
393
p- subitamente, o seu estado de esprito modificou-se o'mo se as palavras de Pao e
o silncio que se seguira houvessem aberto na memria dela uma porta que durante as l
timas horas estivera fechada. De repente, as preocupaes do dia mesclaram-se e venc
eram as preocupaes da noite.
Mercedes calou-se tambm. Toda a tarde ela sofrera cora aquilo e no queria, agora,
pensar mais no caso. Preferia enervar-se com a atitude que Ramn Ballesteros tomar
a do que evocar a cena matinal. Mas aquilo era mais forte do que a sua vontade e
, ao mesmo tempo que a torturava, afagava-a. A referncia que o sobrinho fizera ao
cu estrelado no s alterara o seu estado de alma como despertara no sabia que secret
as clulas do seu corpo. Aquela ideia perturbava-a toda. Mercedes desejava afast-la
, mas a ideia persistia e dir-se-ia que dentro dela algo se contraa e vibrava tam
bm, dificultando-lhe a respirao. De olhos semicerrados, parecia-lhe que o cu cheio d
e estrelas se metera dentro do txi, que a capota do txi estava cheia de estrelas,
pequeninas como as que se viam l longe.
Era a primeira vez que Mercedes ouvia Pao falar das coisas belas do Mundo. Ainda
nisso ele se distinguia do seu irmo Enrique. Este amava a natureza, a vida no cam
po e, quando estudante, at fizera versos, que a indignavam, porque tiniam ideias
revolucionrias e transpiravam blasfmias. Pao, ao contrrio, s gostava da cidade e s se
pieocupava com o que os homens faziam. Ele acreditava no cu, porque acreditava em
Deus, mas nunca lhe ouvira uma s palavra para as coisas bonitas que o cu tinha e
que ela prpria tanto admirava: as noites de luar e de estrelas, o nascer dos dias
na Primavera e os crepsculos que cobriam a terra de cores deslumbrantes. Era, en
to, justamente, ue ela pensava mais no poder de Deus, ao passo que, Para o sobrinh
o, parecia nada haver de permeio entre Deus e ele, nem as flores, nem as fontes,
nem as rvores, nern os pssaros lindos, nada seno Deus e ele, ele e s homens que no a
creditavam em Deus e que era Preciso combater. Era como se Deus fosse apenas um
394
CURVA DA ESTRADA
^ general sentado num trono e ele um soldado qit|
obedecia. Mas, agora, de repente, Pao falava dasieS
Ias. E as suas palavras traziam-lhe, de novo, ess&Jj
tura de tormento e de volpia que ela sofrera dujjl
o dia, depois que o sobrinho abrira a porta dco3
quarto e a vira completamente nua. , J
Est bastante fresco, no verdade ? ,nB
murou Pao. E Mercedes sentiu que ele se achegl
ainda mais a ela e, estendendo o brao por detr"lj
suas costas, lhe punha levemente a mo sobre o oral
direito. fj3
Est...respondeu, pelo desejo de respoaj
alguma coisa. Mas, ao contrrio do que afirmava,m
sentia o seu corpo enlanguescer sob uma onda de cB
que lhe parecia vir do corpo do sobrinho, do int@B
do carro, da noite estrelada, da terra inteira. ,:'M
Eles eram quase da mesma idade. Rebento
segundas npcias paternas, Mercedes ia fazer trinai
seis anos; Pao fizera trinta h pouco tempo. Ela S9M
pr tivera maior apego a este sobrinho do quj
outro. Fora ela quem ensinara os dois a rezar, naqqj
Vero em que Soriano havia ido, com a famlia, atai
lengar-se durante algumas semanas em casa do pai, m
provncia. Fora ela quem tentara ensinar-lhes, tambaj
as letras do alfabeto. Soriano e a mulher opunham"
a tudo isso, porque, afirmavam, no se devia come^jB
a fatigar to cedo o crebro das crianas e, quantl*
rezas, se os filhos quisessem ter religio, que a tivessei|
era l com eles mas quando fossem maioresa"
conscientes do que queriam. Ela, porm, desobedeci"
-lhes. com os seus onze anitos laboriosos, sentia-j|i
envaidecida por saber mais do que os sobrinhos &
ocultamente, continuava a tarefa, colhendo grata sea||
saco de superioridade ao ver as duas crianas ireM
identificando, pouco a pouco, os sinais ortogrficos ifj
decorando as oraes que ela lhes repetia. m
Desde esse Vero, Soriano no voltara ali. Ma$|
todos os Invernos, ele convidava-a a ir passar um oifli
dois meses na sua casa de Madrid. Os sobrinhos tinham*!
chegado adolescncia e ela mocidade. A frequnciaMj
A CURVA DA ESTRADA
395
Ho liceu parecia haver acentuado a diferena que, h muito, Mercedes notara nos dois
rapazes. Enquanto Pao trazia um crucifixo sob a camisa, Enrique gritava, de quan
do em quando, que era preciso acabar com os padres. Enrique estava sempre de aco
rdo com as teorias socialistas e acratas do pai; Pao, pelo contrrio, fechava-se em
frente de Soriano, mas, na sua ausncia, discordava dele, exactamente como ela di
scordava tambm. Nisso, ela e o sobrinho haviam-se tornado iguais. Tanto que, quan
do ela vinha, em Fevereiro, para Madrid, sentia, desde o primeiro instante, a ru
idosa alegria de Pao e a surda hostilidade de Enrique. Um abria os braos e enchia
a casa de exclamaes: "Chegou a tia! Viva, pim, pam, pum!"; o outro abraava-a tambm,
em cascavel, com um sorriso seco, que mostrava os dentes e mais parecia um arreg
anho.
Um Inverno, Mercedes no sara da provncia, porque o seu noivo lho pedira. Isso no con
stitura sacrifcio algum; estar ao lado de Lus era, nesses dias, maior prazer para e
la do que pulir-se na cidade. Mas, alguns meses depois, aquela lareira quente de
manhs sem frio e sem neve, apagara-se; tudo terminara. O noivo trocara-a por uma
outra que, no sendo mais bonita, tilintava muito dinheiro, enquanto ela no tilint
ava nada. Alm do abandono, vrias histrias haviam corrido sobre a sua reputao. Ela sof
rera muito e largara direita a Deus, com maior fervor do que at ali. Comeara a ir
todos os dias missa e comungava todas as semanas. Soriano, conhecendo o seu esta
do de esprito e desejando distra-la, convidara-a a vir para Madrid antes da poca ha
bitual. Passara, ento, longos meses na capital. Elegera a igreja do Cristo de Ia
Salud e o padre Balmes como seus lenitivos e cada vez se apegava mais religio e m
ais descria das qualidades dos homens. Havia-se tornado inflexvel para com os out
ros e mais exigente do que nunca para consigo prpria.
De toda a famlia, a nica pessoa que ela estimava era Pao. Ele e Enrique haviam term
inado os seus cursos. Enrique fora para Huesca, como engenheiro-
396
A CURVA DA ESTRADA
* -agrnomo; Pao pusera banca de advogado em Mal
um "bufete" todo bonito, com mobilirio lustrjB
janelas sobre Alcal; mas porque lhe faltava cleaj
continuava a viver em casa do pai. J nesse ME
Pao se proclamava monrquico. A princpio, Mtl
ds supusera que aquilo nascera apenas do dese|B
contrariar o irmo; mas quando Enrique se afaiflB
de Madrid, ele continuara a estender as mesmas ictjB
Algumas vezes, mesa de jantar, ela vira Soriano afl
tar-se, porque Pao saa a defender o rei e PrimiB
Rivera quando ele os atacava. ,11
Mercedes sentia que o sobrinho se ligava a elsB
mesma masseira no s por identidade de opina|
mas tambm por uma simpatia velha que ele no djfl
aos outros membros da famlia. Pao sussurravaiB
confidncias, abria-lhe os seus desgostos e alegrias, f"
va-lhe das relaes que ia atando nas altas classes JnB
drilenas e, ao mesmo tempo, nas dificuldades que topljl
merc da posio ideolgica do pai. "Que culpa telB
eu das suas manias ?" exclamava. Por uma e out"
palavra, ela adivinhara que ele buscava noiva e qj
s vezes, parecia hav-la encontrado. Mas, pouco teraB
depois, compreendia que o namoro se desfizera e sn
outra rapariga o interessava, nesse momento. Um CH
porm, ele dissera-lhe claramente que se ia casar com
a filha dum grande industrial de Bilbau. E com luzidiB
adjectivos reproduzira a noiva desde a cabea aos pfl
Quando, semanas decorridas, Pao lha apresentaM
Mercedes verificara que Carmen era ainda mais borl
do que ele lhe havia dito e, ento, pela primeira ve9B
ela sentira um tnue mal-estar. U
O casamento fora muito comentado, por se bicha"
nar que os pais de Carmen detestavam Pao, vend"
nele apenas um arpo que, depois de se ter arremeSSJ
sado, sem xito, em vrios mares hostis, se cravava"
enfim, sobre o dote da filha. Dir-se-ia que o prprio!
Soriano e Isabel se sentiam humilhados com aquilo^
pois nesses dias passeavam pela casa um mau-humor"-*
contagiante. r *
Por sugesto do industrial bilbano, o casamento
CURVA DA ESTRADA
397
fizera-se com separao de bens. E quando, uma tarde, Mercedes fora estao despedir-se
do sobrinho e da mulher, que iam passar a lua-de-mel em Itlia, uma sbita tristeza
da sua carne deserta a pregara, durante alguns momentos, ao cais, mesmo quando o
comboio j rodava longe. Ela pensava no seu prprio casamento, que falhara, e um al
uvio de outros sentimentos se imitara quele de modo indefinido. noite, no seu leit
o, lutava por afastar do crebro a imagem do sobrinho e de Carmen no acto nupcial;
lutava sem o conseguir, porque essa imagem era mais forte e to doida, to doida, q
ue a levava at a ver Pao buscando, na estreita cama do comboio, a comodidade que a
ela parecia necessria.
Pouco tempo depois, voltara para a provncia, para a casa da irm e do cunhado, onde
vivia desde que os seus pais haviam morrido. L lhe constara que Pao no tinha sido
feliz e se dava muito mal com a mulher. Embora fosse grande a sua amizade pelo s
obrinho, no moera desgosto algum ao saber aquilo. Pelo contrrio, pegara numa folha
de figueira, pusera-lhe em cima algumas pedras de sal e ia j traar o gesto malfic
o quando se lembrara que Deus podia castig-la por aquele bruxedo. Detivera a mo, g
arantira a si prpria que procedia assim no por mal, mas por curiosidade, para ver
se dava resultado; apesar disso, comeara a chorar.
Nos anos seguintes, quando vinha para Madrid, captava sempre ms novas. Murmurava-
se at que a mulher de Pao o enganava e que ele o sabia e fechava os olhos, por amo
r ao dinheiro que ela possua. Ento, Mercedes indignava-se com essa maledicncia, poi
s h muito se armara da banda do sobrinho, contra a mulher dele; e, alm de tudo o m
ais, temia que, mesmo sem haver terminado o seu feitio, houvesse concorrido para
aquilo.
Um dia estava ela, de novo, na provncia soubera que eles se haviam separado. Er
a no fim do Inverno e, ao receber a notcia, sentira um rbido prazer. Sabia Perfeit
amente que isso acontecera no fim do Inverno,
39"
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
399
" sr^s/issae2rr-de *4
xoeira carregada de flores ' ^ Uma"si
n-^iKSrtr ficaraMvive -1
trar Paco novaSe jfn.t.l CaSaUMercedes e J
drid contente como nVnca T? h Ek Chegara ai
anos e perdera a esperana ' ^^ trnta el
j pela sua histria SS Sis V" "^ na pr^i
cia-lhe que em Madrid a sort',3 ^ ^ Pbre' *1
benigna pois nas landes S* e~1&' talvez''"i
vezes, pesLs que K^S^8 encontravam-sJ
qual fizera ou no fizera ro . Pav^,.com que-cl
nas suas arcas. MuE a,Th qUe "^ U no 4
com vrios amantl a7ran?aVam'r *$"^ n Mu|
e o prprio Paco sem E '^ , dla> Um ma*l
rico; se no se deS be muS fortUna' Casa*l
davam-se bem toda a^ ^ meSmaS Cndi<l
ummSTe praSrSrda ^ *" ^ ela "3
antes de casar^ntarf oeS ^^ j PHI
intermdio da mulfe e da sua fLT 6 ?eram
gente e, de quando em nuandnT Conhecia m"
ou daquele. ChegaraTiEm, T^ * CaSa d"l
para atrair outri mulheres cl ^ ^ S6rVa d3
sua volta, onde ele podk b'rih f -f grupos
era bom conversado^ Mas d noT faalmelte' P^l
ra-lhe injusta, porque o sobrfnK ^ ^ parecl
ao teatro e ao cinema blmh a Ievava igualmentJ
pac?rhTerostaar: s*^^ M^ H
voltas, fazia os corpos Juntar^ <= Carr' nas Sua1 perturbara como agora '
' maS nunca SSH
port! ^"a^/01^- E Sempre -quelal
^^^iSs'srpZk ForeKdor-da casa di
tado cedo como de costumeTafra P aVla'Se Ievan' camisas. Comprara a""^
^- comprara as duas !
por outrasTosn Sar'Sa0 ^ trCa-laS ine agradasse^ tanto co^ quno epoTtl S^ |
equins. Ao regressar a casa fora experiment-las. No eu quarto se despira e enfiar
a a primeira camisa. No se havia enganado: no carecia de emenda alguma. Contente,
tirara aquela e ia pegar na segunda, que estava sobre a cama, quando sentiu os p
assos do sobrinho no corredor. Isso acontecia muitas vezes, durante o dia. Mas,
subitamente, os passos detiveram-se e ela ouviu os dedos que batiam na porta e,
em seguida, a porta abrir-se. Fora tudo um espanto de alguns segundos. O sobrinh
o, com um "oh, desculpa!" nieio srio, meio irnico, recuara, fechando a porta; mas
logo voltara a abri-la e ficara ali durante uns momentos, antes de se retirar de
finitivamente.
Ela percebera que, da primeira vez, aquilo fora involuntrio, que Paco no esperava
encontr-la nua quela hora. Mas no compreendia porque tornara a abrir a porta, como
se houvesse decidido dizer-lhe o que vinha dizer-lhe sem se importar da nudez em
que ela estava e que, apesar disso, tivesse, por fim, sado sem lhe haver dito co
isa alguma.
Colhera-a, ento, um repentino pudor, to violento que a contrara toda. E hora do alm
oo, com Soriano na cabeceira da mesa, os olhos dela no podiam encontrar os de Paco
, que se sentara na sua frente. Ele parecia, porm, muito calmo e falava com o tor
n habitual; mas se ela tinha de lhe responder ou de o encarar, de novo um calor
molesto lhe ardia nas faces.
Depois do almoo, quando se deitara para o repouso que costumava fazer, sentira os
membros lassos como nunca, um desejo de cerrar os olhos, de deslizar suavemente
, inconscientemente, para algures onde no houvesse luz, nem cor, onde tudo fosse
mole, tudo fosse sumama. Mas, uma vez estendida na cama e com o quarto em penumbr
a, dir-se-ia que a prpria quietude, aquela indolncia do corpo no silncio da casa, l
he modificava os sentimentos de pouco antes, dando-lhe uma reaco diferente. Comeara
a pensar que, se no era bonita de cara, em compensao o seu corpo era belo, muito m
ais belo mesmo, s ela o sabia, do que julgavam os homens que, s vezes, quando ela
passava
4oo
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA UA ESTRADA
401
nas ruas, lho haviam gulosamente gabado. Pou^l
pouco, principiara a ver-se a si prpria, nua, cor^^H
o seu crebro estivesse forrado de espelhos; e aoKJ^H
do corpo nu havia um rapaz, alto e moreno, que^^l
tinha fixado, dias antes, num intervalo do teatro.^^H
breve, porm, aquele desvanecia-se e surgia-lhe o sffl^^l
nho. Ela sentia uma leve repulso por esta nova.i^H
gem; e, ao seu apelo, a primeira volvia, mas, ca^H
anteriormente, acabava por transformar-se na figuta^H
Pao. Ela continuava nua e o sobrinho comeaia^^B
despir-se. Ento, algo dela procurava maior veron^H
lhana, realidade mais admissvel. E desatara a ^H
ginar que era noite, que a casa estava em escurida^M
Soriano adormecido. O sobrinho saa do quarto M^|
e, p ante p no corredor, abria cautelosamente a pq^l
do quarto dela e deitava-se ao seu lado. De nof^l
porm, a vaga repugnncia de h pouco lhe dimina^B
a volpia que essa viso lhe dava. Lembrara-se, entjj^H
de que tambm ela tinha visto o sobrinho nu, muit^l
vezes, quando ele era criana. A lembrana dessa mu^H
infantil pareceu-lhe anular, com a sua inocncia Q^H
trai, a fascinao que o mesmo corpo, tornado adulj^H
nela exercia. Pao esfumara-se, mas fora substituw^B
pelo rapaz enxergado no teatro. Ela tentava reafl^B
libertar-se da obsesso, simultaneamente afagante^^B
repulsiva, mas sempre aquilo volvia, como se houvqj^B
duas mulheres lutando dentro dela prpria. Uma peflH
sava que teria imensa vergonha em confessar essas de^B
vairadas vises ao padre Balmes; a outra comearatlB
chorar, a morder as mos, a arranhar os seios *JI
chorar e a debater-se histericamente sobre a cama. :"|
Agora, o sobrinho dizia ao motorista: njjm
"Oiga!" No v directamente Plaza Mayor. DffiM primeiro, uma volta pela Castellana.
E voltando-9f|B para ela: pena metermo-nos j em casa, com unjfl|sM noite assim.
.. i ft
Mercedes no fez comentrio algum. tf |f
com uma noite como esta volveu Pao gos*" *j tava de ter uma vivenda fora de Mad
rid. Uma vivenda { sem vizinhos e com um jardim muito maior do quef i*
e qUe o pai tem. Provavelmente, venho a comprar
Depois de dizer aquilo, Pao calara-se. Mas a Mercedes parecia que o sobrinho liga
va a sua ideia a ela prpria e comeou a ver uma casa cercada de rvores e de flores
e com estrelas por cima, como nessa noite. Esquecera-se do txi, das ruas por onde
iam passando e via-se no jardim da casa, via-se dentro da casa, de janelas aber
tas para o jardim, na companhia dum homem indefinido, que devia sair do futuro,
como uma estrela sai das trevas do cu, como uma vela sai da linha azul e indecisa
do horizonte; um homem que, s vezes, contra a vontade dela, tomava a figura de P
ao, para, em seguida, tornar-se novamente indefinido. Mercedes pensou, depois, co
m sbita melancolia: "Ele dizia aquilo, mas no podia comprar a casa, pois no tinha d
inheiro. Alm disso era ainda casado".
Sentiu a mo de Pao descer-lhe do ombro, escorregar de forma muito suave e tocar-lh
e o seio direito, justamente aquele que ela martirizara mais durante a crise que
sofrera de tarde. Mercedes furtou o tronco a essa carcia; o sobrinho no teimou e
a sua mo volveu ao ponto de onde partira.
O carro havia retrocedido e descia de Clon para Cibeles. Pao continuava muito ache
gado a ela. E a sua mo voltava a deslocar-se, num leve andamento que Mercedes j co
nhecia, pois Lus fizera-o muitas vezes.
A mo do sobrinho acariciava-lhe, agora, a face; acariciava e, ao mesmo tempo, ia-
lhe voltando o rosto na direco do dele. Ela sentia um grato torpor na vontade e um
a estranha sede da sua carne, uma sede que parecia recm-chegada das obscuras prof
undidades do seu ser. A boca de Pao j estava junto sua quando ela conseguiu evit-la
, com um movimento natural, como se no houvesse dado por aquilo. Ao contrrio do qu
e Lus fizera da primeira vez, Pao no insistira. Retirara a mo de cima do ombro dela
e olhava, em silncio, atravs dos vidros do txi, para a Castellana, que o carro ia d
escendo. Depois, murmurou:
402
CURVA DA ESTRADA
# Tenho tantas coisas a dizer, mas, com uma i$f
assim, nem tenho vontade de falar. E tu ? J
Ela no respondeu. Mas aquela voz doce, levenl
trmula, como nunca lhe ouvira, parecia expressai!
o que ela prpria sentia. -'J
Pao metera entre as suas mos a mo dela em
a afagava, ora a apertava. s vezes, deinha-se e m
voltava a apert-la, mais fortemente. Pouco a peai
fora-a puxando, de novo, para ele. Mercedes afastoJ
bruscamente. l
Vamos para casa! disse, num torn nerval
Estou fatigada. m Pao dominou-se e repetiu o desejo dela ao md|
rista. O carro deu volta Cibeles, meteu a Alcali rodou para a Plaza Mayor. M
Em casa, foram encontrar Soriano a passear -m corredor. Estranharam aquilo, pois
, nas outras noiaj quando regressavam, j ele estava na cama. -''l
Ainda a p ?! exclamou Mercedes. ,;
No tenho, hoje, sono declarou o irmo. E qij dou-se a olhar para eles, como se espe
rasse que M dissessem mais alguma coisa. Mas eles no encontiJ vam nada para lhe d
izer. M
Soriano perguntou, finalmente: m
Que tal a noite, l em casa do Ballesteroi Muita gente ? <"
Sim, muita respondeu Mercedes. m
Bem... Bem...murmurou ele, como se maa tigasse as palavras. i
Continuava a parecer a Mercedes que o irmo, assial parado na sua frente, a olh-la,
aguardava que ekj falasse mais. Mercedes pensou, ento, ter ela prpria julgado que
traria, nessa noite, muitas coisas para Ib transmitir e que, afinal, vinha mais
vazia do que quando! sara. 'M
E o Ballesteros... como est? '3j Soriano fizera esta pergunta com um torn irreso&
l
luto, como se violentasse algo que o humilhava.
Est bem e mandou muitos cumprimentos parae J ti, como de costume.
A CURVA DA ESTRADA
403
Mercedes comeara a sentir-se mal junto do irmo.
bom; at amanh! V l se dormes, que j
tarde! disse. E avanou no corredor, atrs de Pao. Soriano deteve-a, com uma voz sub
itamente dura:
Olhem l! Foram vocs que deram a notcia que o "Heraldo" publicou ?
Pao voltou-se:
-Eu?
Soriano encarou a irm: ,
Foste tu ?
Mercedes suportou, tranquilamente, a severidade do olhar.
Que ideia! S ouvi falar disso em casa do Ballesteros. Nem peguei hoje no jornal..
.
Soriano hesitou um momento. Tornou a hesitar e, por fim, decidiu-se, com uma voz
que pretendia ser depreciativa, mas que novamente se mostrava tocada de humilhao:
E que diziam l os amigos do senhor Ballesteros ?...
Ora! Que haviam de dizer ? Que tu tinhas feito muito bem! Que era esse o bom cam
inho.
Mas eu no fiz ainda nada! protestou Soriano. No fiz, nem autorizei ningum a dizer
que o farei!
Pois h muito que devias t-lo feito! afirmou Pao, mal-humorado, do fundo do
corredor. - Boa noite! E desapareceu pela porta do seu quarto.
Todos eles elogiaram muito a tua atitude insistiu Mercedes, conciliadoramente.
Soriano fixou, um instante, a irm. Depois, sem mais palavra, dirigiu-se para o es
critrio, deixando-a, sozinha, no corredor.
Mercedes entrou no seu quarto e fechou a porta por dentro, contra o costume. Mal
largou a carteira, ajoelhou-se aos ps do oratrio, rpida, resoluta, como se j trouxe
sse aquela ideia de l de fora, do corao inquieto da noite. "Perdoai-me, Senhor! Eu
sou a ltima das mulheres e mereo o teu castigo. Dai-me foras Para que no tenha novas
tentaes. E fazei tambm, Senhor, que meu irmo siga o bom caminho!"
404
A CURVA DA ESTRADA
* Pareceu a Mercedes que a implorao no erafj
cientemente humilde e fervorosa e repetiu-a. Ri
tiu-a cada vez mais vergada em frente do seu peqn
oratrio e cada vez com maior humildade na suai
Entretanto, no quarto ao lado, Pao despia-se,-!
tia o pijama e mergulhava demoradamente as nl
em gua fria. Um momento, ele esqueceu-se da Tm
por que deixava tanto tempo as mos dentro da ]
e voltou a pensar que Ramn Ballesteros procea
incorrectamente naquela noite. No s evitara pris
ciar-se acerca de Soriano, como nada lhe dissera sdi
o caso do Banco do Norte. E, contudo, o caso do Bai
do Norte seria uma soluo decisiva para ele. j
Pao sentiu que, finalmente, as suas mos havm
esfriado. Quando as retirou da gua viu que elal
tinham a pele engelhada; enxugou-as calmamente!
depois, meteu-se na cama. Parecia-lhe que, pelo mea
uma parte do seu corpo estava muito fatigada e i]
ele dormiria com facilidade. De luz apagada e plpebi
cerradas tentou adormecer. Nos seus olhos vaguea^j
ainda, lentas e nubladas, as imagens de Ramn Bj
lesteros, das suas visitas, do seu salo, dos homd
que jogavam o "bridge" enquanto ele esperava ql
Ballesteros lhe dissesse uma palavra, uma palavra qi
no lhe dissera. Logo, viu-se a sair com Mercedes i
em seguida, Mercedes e ele no txi. J
Essa sensao de cansao que Pao sentira, ao d
tar-se, no se manteve. Pouco depois de haver extint
a luz, dir-se-ia que o seu corpo nunca conhecera a
fadiga. Quis tornar a pensar no caso do pai, na atitudl
do chefe do Partido Nacional e no Banco do Nortfl
mas, contra o seu desejo, a memria regressava, tel
mosa, regressava sempre, hora em que, na vspera
Mercedes voltara da rua. Ele tinha aberto a porta dl
quarto para lhe perguntar se, como haviam combl
nado, ela aproveitara encontrar-se fora de casa pari
telefonar ao Gonzalez, do "Heraldo". Fora, ento, qui
a vira toda nua, de frente. Mercedes soltara um gritdf
flectira-se e cobrira, instintivamente, a sua natureza
com ambas as mos. Ele recuara e fechara a portaq
A CURVA DA ESTRADA
405
Mas lg a segurr> sentira o impulso de voltar a v-la, um impulso to forte, to instantne
o, que, sem nenhum raciocnio definido, o levara a abrir, novamente, a porta. Merc
edes estava j de costas e, agora, vergada sobre a cama, onde as mos buscavam a cam
isa. Parecera-lhe que, assim de costas, o corpo era to belo como visto de frente,
mas j Mercedes gritava, enfurecida: "Fecha a porta! Vai-te embora!" Ele obedecer
a: Tudo se havia passado em menos, talvez, de um minuto.
Era certo que, ento, aquilo no descera dentro dele. Momentos depois, ele sorria, m
esmo, do episdio. Tinha visto nu o corpo da tia e, porque da tia se tratava, esta
ideia dava-lhe um estado de esprito zombeteiro. Parecia-lhe que, ao abrir a port
a pela segunda vez, o fizera apenas pelo desejo humorstico de assarapantar Merced
es. E s porque a vira to perturbada hora do almoo que no gracejara, depois, com o in
cidente.
Fora precisamente essa perturbao que ela mostrava e esse pudor do acontecido que c
riaram nele ideias secretas que, at a, no havia tido. Mas somente noite, quando os
dois iam para casa de Ramn Ballesteros e ele sentira, dentro do txi, o calor do co
rpo de Mercedes pegar-se ao seu, que aquilo adquirira nele uma expresso forte e nt
ida. Dir-se-ia que, de repente, esses momentos se ligavam, de modo confuso, a ce
na matinal e a muitos outros momentos, quando os dois estavam sentados, como ali
, nos cinemas, nos teatros, noutros txis e ele sentia igualmente, mas sem nenhuma
ideia voluptuosa, a quentura do corpo dela.
Tinha esperado encontrar em casa de Ramn Ballesteros a Rosarito, jovem mulher dum
general seu arrgo, qual ele vinha cortejando h meses, faminto das suas formas sen
suais. Nessa noite, porm, Rosarito tto aparecera e sempre que, na grande sala, os
olhos dele se espraiavam pelas amigas de Milagres, o corpo de Mercedes surgia-lh
e com desconhecidas atraces. Isso no lhe dava, contudo, nenhuma sensao agradvel. Como
o vento levanta detritos innimes e invisVeis corpsculos, aquilo movimentava, incomo
damente,
4o
A CURVA DA ESTRADA
'sentimentos que, at a, haviam estado sempre imji
Ele no sentia desejos de falar e, nessa noite, o cons"
em casa de Ballesteros fora-lhe penoso. m
Agora, o seu lume oculto continuava, cada veztaj
flamejante. Se, na escurido do quarto, ele fosse im
nando, com uma lmpada, as vrias zonas do am
de Mercedes e, depois, um projector o iluminasse aj
ramente, o corpo no se encontraria mais visvel."
seus pormenores, mais perturbante no seu toda>l|
que se encontrava dentro do crebro dele. Pao oH
repelia, ora o aceitava. Mas quando admitia a atfl
taco, tambm essa ideia no lhe carreava um pii
completo. Parecia-lhe saber antecipadamente qual
vasilha continha, no fundo, limos repugnantes, qO
nauseariam depois de matar a sua sede. E tornayjB
repelir a hiptese. Esta, porm, volvia sempre. A*4B
teza de que Mercedes estava deitada no quarto"
lado e que talvez quela hora pensasse na mesma OBI
que ele pensava, estimulava-o mais, como por' m
secreto processo de osmose. Avaliava, ento, a voliM
que lhe daria. Pao sabia que s no amor o home"
completamente generoso, que s no amor o prazerim
homem tanto maior quanto maior prazer ele "
Mas continuava a pressentir que, por muita voldl
que ocasionasse a Mercedes, a exaltao dela nai|
tornaria integralmente feliz. Era como se a sua can|
no tivesse o quente mistrio da das outras mulher"
Como se as suas vibraes, embora iguais s das outrsi
fossem para ele diferentes. Como se estivesse desvali
rizada de antemo. "m
Pao acendeu a luz, deixou-a acesa algum tempi
e, depois, tornou a apag-la. Mas ainda desta vez nsl
conseguiu dormir. Lembrou-se de que, at ali, deba|
tera-se apenas consigo prprio, como se Mercedes estS
vesse de acordo com o que ele decidisse. Viu-se a entr
no quarto dela, a apalp-la no escuro, a pedir-lhe qull
no fizesse rudo, para no despertar o pai e a criadaB
Mercedes resistia, tentava expuls-lo. Ele teimava, rosam
ela resistia sempre. Pao sentiu, ento, maior desej&f
de ir ter com ela. com essa imaginada resistncia, a tiS|
A CURVA DA ESTRADA
407
ja perdendo lentamente, no esprito dele, os vetos que at a tivera.
A porta continuava a abrir-se no crebro de Pao. E, em frente da porta, o corpo, to
do nu, de Mercedes. Ele pensou que todos os seus escrpulos provinham duma ideia f
eita, dum preconceito social. Se no soubesse que Mercedes era sua tia, embora ela
o fosse, e a encontrasse assim nua, o seu desejo no se deteria voluntariamente.
A natureza nada tinha, portanto, cora tudo quanto o fazia hesitar.
Pao levantou-se no escuro e, sobre a ponta dos ps descalos, caminhou at a porta do s
eu quarto. Ali se deteve, escuta. O pai deitara-se h mais de uma hora e toda a ca
sa estava em silncio. Ele continuou, porm, junto porta, sem se decidir a abri-la.
Voltava a sentir aquela espcie de repugnncia futura, que esmorecia sempre os seus
pensamentos mais ousados. Uma nova ideia fazia-o vacilar perante a escolha uma e
scolha que de nenhuma maneira lhe aprazia completamente. Por fim, num movimento
resoluto, estendeu o brao e deu volta ao comutador elctrico.
com o quarto j iluminado, comeou a vestir-se. A princpio, lentamente, como se hesit
asse ainda. Logo, com gestos rpidos, ps o casaco e saiu
S na Puerta dei Sol atentou no tempo. O relgio do Palcio de Gobernacin marcava quatr
o horas e dez. Mas na cidade onde muita gente se deita tarde, havia ainda grupos
na praa e clientes nos Cafs Colonial e Universal.
Pao enfiou pela Calle Montera, atravessou a Gran Via e ps-se a palmilhar, mais vag
arosamente, a Hortaleza. Ali eram j muito raros os noctmbulos. Pao cortou direita,
com duas portas no pensamento. Optou por uma delas e ps-se a subir, de mau-humor,
as escadas estreitas, onde uma luz rsea iluminava desgastada Passadeira vermelha
.
4o8
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
409
i DURANTE a noite, as consequncias da notcftJB
"Heraldo" pareceram a Soriano ainda mais^H
ves do que na vspera. Dormira mal, acordara v&fl
vezes e sempre que despertara enchera-se de itlifl
soes e de receios. Aquilo levantava numerosos @'^fl
traditrios problemas, como um rumor imprevisto qjB
margens de velho rio pode levantar assustado biijl
de aves em rumos diferentes. Entre todos, um haJH
que, de momento, se sobrepunha aos demais: e&vl
seu saldo entre ganhos e perdas, a sua dvida elH
aproveitar o rudo para desferir o voo ou conservafiM
asas fechadas e deixar o rudo extinguir-se. '''^fl
Moda e remoda, de manh a inquietao per^M
tia e a soma apresentava sempre o mesmo resultadlB
"Se ele no tivesse assegurada antecipadamente UfrJ
situao valiosa no Partido Nacional, nada ganhljM
com o escndalo que a sua atitude iria causar. $
ria apenas servir o Ballesteros e ele no estava fMH
isso". ''fl
Soriano levantou-se com mau-humor e o seu P*iH
meiro desejo foi interrogar imediatamente a irm; majH
conteve-se para evitar que a criada ouvisse a discu|M
so que, decerto, se daria. Logo, porm, que se barbe"H
e lavou, meteu-se no seu escritrio e premiu a cafiJjM
Mercedes estava ainda penteando-se quando Ra^B mona lhe veio dizer que Soriano q
ueria falar com elajH No era a primeira vez que o irmo, para no slB do escritrio quand
o trabalhava, mandava cham-WH por intermdio da criada, se tinha alguma coisa lMB co
municar-lhe. Contudo, nessa manh aquilo adquiria" para Mercedes uma sbita importnci
a, pois ela julgavaf" f adivinhar o que Soriano pretendia. C
J l you disse. E apressou a "toilette". Mas a sua pressa durou pouco. Momentos de
pois, voltava a proceder vagarosamente vagarosamente enquanto
imaginava os anzis que o irmo lhe lanaria e as respostas com que ela devia defender
-se.
Por fim, dirigiu-se para o escritrio. Soriano tomou uma expresso severa mal a viu
entrar; e, antes mesmo de ela o beijar na testa, como era seu costume, exclamou:
. Parece que vocs andam a brincar comigo! Foram vocs, sem dvida, que deram aquela n
otcia...
Mercedes voltou a negar, como na noite anterior. Ele, porm, insistiu, referindo-s
e, com uma voz cada vez mais spera, s dedues que fizera. Ela negou novamente:
Tu que parece que queres brincar comigo!
Os dois comearam a discutir. Mas, apesar da atitude do irmo, Mercedes sentia-se fi
rme e satisfeita consigo mesma, dado que o dilogo ia decorrendo em seu benefcio.
Veio, porm, um momento inquietante. Soriano pegara na lista telefnica, como se peg
asse no prprio destino dela, e dissera:
Acaba-se j com isto! No queria meter os outros nas nossas desavenas ntimas, mas vocs
obrigam-me a faz-lo. you perguntar ao "Heraldo". O Gonzalez sabe, com cert
eza, quem deu a notcia.
Enquanto falava, Soriano fixava-a duramente, como na vspera. Mercedes resistia a
essa prospeco que ele realizava nos seus olhos, mas sentia que as faces e o crebro
se lhe aqueciam de repente e que lhe faltaria, dali a alguns segundos, uma frase
suficientemente boa para justificar-se. Nos dias anteriores aquilo parecera-Ihe
fcil. As ambies que o irmo no conseguia dissimular totalmente, na intimidade do convv
io familiar, haviam destrudo nela um certo gnero de respeito que, contra a. sua prp
ria vontade, durante muito tempo sentira por ele. Depois, tudo quanto se tinha p
assado entre Soriano e o Partido Socialista e ainda os constantes comentrios pejo
rativos que ele mesmo fazia aos correligionrios e os projectos que revelara ultim
amente, haviam-na convencido que chegara o momento de o auxiliar a resolver as s
uas indecises. O prprio Pao fora de opinio que a notcia precipitaria a deciso do
4io
A CURVA DA ESTRADA
f
, pai. Agora, porm, Mercedes verificava que ota
tomava um aspecto mui diferente do previsto, Mj
ponta da linha voltava a enrolar-se no novelo, oil
Soriano pusera o auscultador do telefone ao o"<j
Os olhos de Mercedes seguiam, ansiosos, o dedt
ele estendera para marcar o nmero. Ela continsj
a procurar, desesperadamente, as palavras de que^ll
cia e que teimavam em no lhe surgir com o W
convincente desejado. " J
De repente, Soriano pareceu hesitar. Quando &l
indicador estava j sobre o primeiro algarismfli
pensou que se telefonasse a Gonzalez teria de torn
imediatamente uma atitude, teria de desmentir oj
confirmar a notcia. m
Mercedes ia pedir-lhe: "No ligues! Eu expBe
tudo..." quando ele pousou, lentamente, o aus||
tador. < fm
Depois verei issodisse, numa ameaa distM Mercedes sentiu um sbito alvio. Refez-se, te
tim
dar naturalidade aos seus gestos e olhou o irmo* frente: V
Foi s para isto que mandaste chamar-me ? ^m Ele no respondeu, mas continuava com o
seu r#li
'/ vincado pela sombra que lhe vinha de dentro. Em f ento, voltou-lhe as cost
as: m
bom. At logo. you missa: ' Quando chegou ao corredor, Mercedes entendeu q"
devia retroceder: 'M
No percebo porque ests assim! No pensa^^M aderir ao Partido Nacional ? Por qu ento ta
nto balttl lho? Ainda h dias estivemos a falar disso... E tu 3MJ disseste... fj$t
Ele cortou, bruscamente: '$^
Deixa-me! Anda! Deixa-me! Tu pensas que ii| faz poltica como se faz costura ? T&
Mercedes tornou a olhar o irmo, desta vez altivt#" mente, e abandonou-o com uma e
xpresso de melif* dre. No seu quarto, ainda perturbada, hesitou ui" momen
to; mas logo pegou na mantilha e saiu. J! A Plaza Mayor estava toda cobe
rta por um sol
A CURVA DA ESTRADA
411
vernio. As gentes desprezavam as arcadas, para tran-
1 tar da parte de fora, em busca daquele dbil calor.
5 Mercedes caminhou at a Calle Arenal at a sapataria de onde era cliente. Os empre
gados sabiam que, se ela entrava ali, uma vez, para comprar sapatos, entrava cem
ou duzentas para telefonar da cabina que havia ao fundo do estabelecimento. Sup
unham que ela tinha um amante e no queria falar com ele da sua prpria casa. E havi
am-se habituado a essa ideia. Preferiam mesmo v-la quando ia telefonar do que qua
ndo ia comprar, pois causava-lhes assim menos trabalho. Dentro da cabina, Merced
es ligou o aparelho para o "Heraldo de Madrid" e pediu a Gonzalez:
Se algum lhe perguntar quem lhe deu a notcia sobre a possvel sada do meu irmo do Part
ido Socialista, no o diga. Seja l quem for que lho pergunte. Promete ? Eu, depois,
lhe explico porque lhe peo isto.
Gonzalez, que a conhecia justamente por intermdio de Soriano, acedeu, com facilid
ade. Ela, ento, desligou o aparelho e ligou-o de novo, mas desta vez para casa de
Ramn Ballesteros. Ali, porm, demoraram mais a atend-la. E s depois de haver insisti
do conseguiu que Ballesteros viesse ao telefone.
Desejava falar-lhe com muita urgncia disse-Ihe ela.
O chefe do Partido Nacional ouviu aquilo e escusou-se logo, por ter, afirmava el
e, o dia muito ocupado.
Se pudesse ficar para amanh... eu preferia.
Mas um caso de muita urgncia! repetiu Mercedes. Se no fosse urgente, no o in
comodaria.
Ressentida ainda pela atitude que Ballesteros tomara na vspera, ela falava-lhe co
m um torn nervoso, quase autoritrio e, do fundo do seu esprito, queria-lhe mal nes
se momento.
bom; pode vir agora transigiu o outro.
Agora no, pois tenho de ir missa... Mas daqui a uma hora, se pode ser...
Venha ento daqui a uma hora condescendeu Ballesteros, novamente.
Satisfeita por haver imposto a sua vontade, Mer-
L
412
A CURVA DA ESTRADA
^ cedes saiu, taque, taque, muito senhora de si.nj
aquele andar bem compassado que lhe davam'^jj
corpo esguio e as suas pernas francesa, delgaaj
de bom contorno. '73
A missa do padre Balmes no havia ainda em
ado, mas o templo j estava cheio de fiis qual
ela chegou. Mercedes ajoelhou-se, benzeu-se e o&m
olhos bisbilhotaram, esquerda e direita, COHIM
todos os outros dias. Eram sempre as mesmas (M
conhecidas, que se inspeccionavam umas s ottjl
Enquanto aguardava que o padre Balmes passas(r)"
sacristia para o altar, Mercedes ps-se a rezardl
mesmo tempo ia pensando que preferia entrar;joj
igrejas durante a tarde do que de manh. De ma"
havia, quase sempre, muita gente, tudo parecia"
e as pessoas juntavam-se ali como na sala de tf M
mentos dum hospital, espera de ser despachadas!*
tarde, pelo contrrio, raros vultos se viam nas na"
s vezes no havia mesmo nenhum; a luz dos vitfl
adquiria um encanto que no possua s horas mal
tinas; a atmosfera enchia-se de fulgores e de pe<fi|
ninas partculas irisadas e volantes; as prprias pedal
dir-se-iam aveludadas e, ento, ela podia rezar melffl|
e sentir-se mais a ss com o seu deus. Nesses momenta
havia em toda ela uma espcie de febre deleitosa, coal
se a sua pele passasse a ter tambm a mesma brandi
temperatura das suas vsceras; um xtase voluptud^l
uma evaso para alm da igreja e dos vitrais, uma fugji
para um mundo de sensaes indefinidas, onde as fnm
secretas hipteses vinham tocadas das inefveis p"SI
sibilidades da taumaturgia divina. m
A missa era, porm, um acto sagrado a que eM
no podia faltar, mesmo que tivesse de sacrificar-se"
mesmo que, no Inverno, tivesse de sair da cama aindli|
no escuro, para estar na igreja s seis da manh, a |
tremer com frio, como muitas vezes lhe sucedera na ,s
provncia. *" '
Justamente agora o padre Balmes acabava de chegar ao altar e de fazer o primeiro
gesto ritual. Mef* cedes vergou-se mais e ps-se a seguir a missa humilde-
A CURVA DA ESTRADA
413
nte De quando em quando, desgostava-se consigo "rpria, porque ora se distraa com a
ideia da sua \nediata visita a Ramn Ballesteros, ora se lembrava de Que> ern vrr
tude do ocorrido com o sobrinho, a sua confisso, na sexta-feira seguinte, teria d
e ser mais longa e mais dolorosa do que nunca.
O padre Balmes continuava a dizer a missa e ela tornara a pensar no irmo. Soriano
dera-lhe a entender que aquela notcia o prejudicava; ela, porm, no o acreditava. U
m momento, julgou ver Soriano a admoest-la, como o vira pouco antes, mas agora de
ntro da alva e da casula do padre Balmes, que, de braos abertos, se voltara para
os fiis. Ela, ento, cerrou as plpebras e continuou a rezar, pensando apenas na salv
ao de Soriano.
Eram quase onze horas quando a missa terminou. Mercedes persignou-se, ergueu-se
e saiu rapidamente. Vinte minutos depois, descendo do carro elctrico em Resales,
entrava, afadigada, em casa de Ramn Ballesteros. Ao subir as escadas, ia consider
ando que o chefe do Partido Nacional, dada a forma como se portava, no merecia os
sacrifcios que ela e o prprio sobrinho faziam. Antes, porm, de bater porta, confor
tou-se com a ideia de que no era por Ballesteros, e sim pelos bons princpios morai
s, que ela pretendia ver o irmo abandonar o Partido Socialista um partido imoral
, sem Deus e sem Religio.
Ramn Ballesteros f-la esperar algum tempo na antecmara do seu escritrio. Ele trabalh
ava com um secretrio quando, por fim, a mandou entrar. Como sempre, mostrou-se mu
ito afectuoso, enquanto a saudava.
em particular que me quer falar ? perguntou, depois, perante a reticente pertur
bao que ela mostrava.
Vendo-a gaguejar a resposta, o secretrio levantou-se e saiu.
Mercedes continuava ressentida. E logo que se encontrou sozinha com Ballesteros,
disse-lhe, num torn de mal disfarada aspereza, como se o culpasse daquilo mesmo
que ela lhe vinha comunicar:
414
A CURVA DA ESTRADA
O meu irmo est muito indeciso. Eu rece"
* ele desminta a notcia e que continue no Partido
lista... ,|
Ramn Ballesteros contemplava-a com olhosq
nos e simultaneamente perscrutadores, uns olhjd
perito observando, em atitude profissional, impred
reaces de matria sua conhecida. Os lbios cera
esmagavam-lhe o sorriso irnico que ele sentia dejj
de ter. ,,i
Como Mercedes se calasse depois de haverf|
aquilo, Ballesteros perguntou-lhe com um vago sa
indiferena: 7|
E, ento, que pensa uste ? > l
Parece-me que Don Ramn devia ir falar >fl ele. Devia procur-lo, para o animar e pa
ra o deal definitivamente... Ele est furioso...
Ballesteros deixou ampliar-se o silncio que >m
cedes fizera. Velho poltico, da escola de RomanM
como todos afirmavam, ele tinha pensado que, dew
das lutas havidas com Soriano dentro do Partido Sc"
lista e da notcia do "Heraldo", o melhor seria apareM
que se desinteressava do caso. O que Mercedesa
comunicava no o surpreendia, nem lhe causava aprd
so alguma. J esperava essa reaco da parta m
Soriano e considerava-a desquitada de importai
O que importava era que, antes de qualquer negoc
co, ele se sentisse desvalorizado perante si prpw
Era isso, sem dvida, o que ele sentia agora. Cal
certeza compreendia que dificilmente poderia reca
"Joguei bem" pensou Ballesteros. Se Soriano rajl
gasse o Socialismo e aderisse s doutrinas dos nacionaw
estes celebrariam o facto como uma vitria do sm
chefe. Mas no aceitariam, certamente, de bom grada
que o antigo agitador, at h pouco inimigo da religif||
das tradies, da aristocracia, da propriedade e dd
capital, viesse a ter, entre eles, uma cadeira alta. Tornfi
riam isso por um erro de quem ia ao leme do Partidd
Nacional, tanto mais que consideravam Soriano coaiw
um dos responsveis da situao poltica em que "j
Espanha se encontrava. Mercedes dizia: "Ele pegou irt|
A CURVA DA ESTRADA
415
telefone para perguntar ao "Heraldo" quem deu a notmas, depois, parece ter decidi
do informar-se mais tarde, provavelmente quando eu no estivesse presente, por iss
o, eu receio..." Mercedes falava com um ligeiro nervosismo nos lbios e os seus ol
hos pareciam tambm nervosos. "Joguei bem tornou a pensar Ballesteros. _Ele debat
e-se. Deve perceber que se as negociaes tivessem sido feitas em intimidade, podia
ser exigente; mas, depois da notcia, a sua situao outra. Ou ns ou o Partido Socialis
ta; mas no Partido Socialista o seu futuro est comprometido, dado que h muito ele
perdeu o prestgio que l gozou outrora".
Tenho a certeza voltou Mercedes que, ontem, o meu irmo esperava que eu lhe leva
sse algumas palavras suas, pois ainda estava a p quando cheguei a casa, o que no s
eu costume. Mas eu, claro, no lhe pude dizer nada...
Ramn Ballesteros compreendeu a aluso que ela fazia e sentiu perfeitamente o torn d
e censura que havia, para ele, nas suas ltimas palavras.
com efeito... Mas havia aqui tantas pessoas... disse, com um sbito ar de desolao.
E logo acrescentou : Evidentemente, eu no posso ir dizer-lhe que abandone o seu
partido e que venha para o meu. No lhe parece? um caso muito delicado... Um caso
de conscincia... Mas se alguma coisa eu puder fazer para tranquiliz-la, f-lo-ei de
boa vontade...
Mercedes ergueu-se bruscamente. Depois de tudo quanto se havia passado entre ela
e ele, aquilo revoltava-a :
Para tranquilizar-me ? exclamou, colrica. Para tranquilizar-me, a mim ? Cad
a vez mais irritada , avanou para a porta: Haga usted Io que l parezca.
Ballesteros levantou-se tambm:
No se exalte, senhorita. No percebo porque sc exalta dessa maneira. Se deseja que
eu v falar com
0 seu irmo, eu irei... No quero contrari-la; o que luero conhecer bem a sua opinio.
H alguns velhos que no tm em considerao o critrio da gente moa;
4i6
A CURVA DA ESTRADA
4
mas eu, pelo contrrio, entendo que devemos >p
* a maior ateno ao que pensam as novas geracSn
Mercedes havia-se detido j quase junto da rij
Ballesteros colocara-se em frente dela, com luzI
riso afvel e um torn paternal: -m
Vejamos: a senhorita veio pedir-me para1"
falar com o seu irmo. No isso ? Ora, se depdjl
que lhe disse, continua a pedir-me a mesma coifl"
no terei dvida alguma em ser-lhe agradavel.j^j
de tudo o mais, d-me sempre rnuio prazer ein
trar-me com Don lvaro. um esprito muitNJ
lhante. E se eu no posso obrig-lo a vir para o>m
partido, isso no quer dizer que no o recebamos-3
satisfao, se ele vier espontaneamente... < <m
Mercedes ouvia-o e odiava-o. Ao mesmo tempa*||
sava que, apesar de tudo, ela precisava de Ballesdl
Sem ele, talvez o irmo no se decidisse a torr^H
bom caminho. Ela tinha, portanto, de humilha
O prprio padre Balmes lhe havia dito, uma vez,"
ela era orgulhosa e que Deus condenava o orguSB
para servir a Deus, para trazer o irmo ao seio de Dw
ela teria de emendar-se. Teria de emendar-se. fJU
Deseja que eu v ? perguntou-lhe BallestBM
vendo a sua mudez carrancuda. i3B
Mercedes tornou a pensar que era orgulhosa e l
tinha de deixar de o ser, embora isso lhe custasse;?M
Eu julgo que seria, realmente, melhor usteU v-lo...murmurou, humilhada. 41
Est dito! exclamou Ballesteros, estendendM -lhe a mo. you j telefonar-lhe. E no se
zangueaB No fique assim com essa cara... Sabe como a Mil"| gros e eu somos seus
amigos... fW
Logo que Mercedes saiu, Balleseros ligou o tdw|
fone. O secretrio surgiu porta que havia do latlH
esquerdo e ele, sem tirar o auscultador do ouvido, fe2*|
-lhe um sinal para que entrasse. l
Sim, com Don lvaro... Aqui, Ballesteros... Ra"
mn Ballesteros. *1
O secretrio sentara-se. Havia um silncio de esperai I
O sol entrava pela sacada e branqueava uma par]9J|
A CURVA DA ESTRADA
417
, tapete. Ballesteros tinha os olhos muito abertos e arados, como se pensasse no
utra coisa enquanto aguardava. Depois, o secretrio notou que ele saudava com prec
avida cordialidade a Soriano. ^ . Desculpe-me incomod-lo to cedo... Mas eu gostar
ia de o ver esta manh, se fosse possvel...
Ballesteros sentiu a hesitao de Soriano e uma resistncia que no era espontnea.
Compreendo, compreendo perfeitamente. Mas, ento, deixamos para amanh... Tambm
eu, tambm eu tenho pena...
Para entreter as mos, enquanto sorria interiormente, o secretrio pusera-se a afiar
os lpis que estavam ao seu lado.
Esta tarde, no posso, infelizmente. No... No... No era por muito tempo...
Ballesteros interrompeu-se, para escutar, enquanto os seus dedos tamborilavam, l
evemente, sobre a mesa. Depois, o secretrio ouviu-o declarar:
Bem. Nesse caso, irei imediatamente. At j. Ballesteros sentia-se, por sua ve
z, humilhado, mas
voltou-se com um ar muito calmo e digno:
Guevara: mande dizer ao Gil que traga o carro.
IV
,/A regressar a casa, Mercedes encontrou um grupo de jornalistas e fotgrafos que,
no patamar, falava com a criada.
Ah, ainda bem que usied chega! regozijou-se urn deles. Queramos falar com o seu
irmo...
Don lvaro est com uma visita e disse-me para no o interromper objectou Ramona.
Veja usted isso, senhorita insistiu um dos outros Jornalistas. Queramos entrevi
st-lo sobre a adeso dele ao Partido Nacional. E no podemos esperar muito tempo, por
que para os jornais da tarde...
14-Vol. Ill
4i8
CURVA DA ESTRADA
you ver... prometeu Mercedes. E entrott
* mesmo tirar a mantilha, avanou at a porta d&S
trio de Soriano e nela bateu, suavemente, ca
costas dos dedos. r m
Sou eu, lvaro... s um instante... -3
Soriano tinha dito criada que no queria!
interrompido, mas, desde que Ramn Ballesterajl
havia telefonado, mudara de desejo. ^l
Entra disse. E quando ela abriu a porS
O que ? oi
Soriano estava com outro homem que Mera
nunca tinha visto. Ao visitante, o torn das pal
devia parecer natural, mas ela, que conhecia bem
irmo, sentia que na sua voz havia ainda ressflj
mento. ji
Esto ali uns jornalistas que queriam entrf|
tar-te... E como para os jornais da tarde... qjl
Soriano hesitou um momento. Do seu olhar esl
regava uma reflexo sombria. "
No posso atend-los...declarou, depoislj
No tenho nada a dizer-lhes... IM
Mercedes no se moveu, como se esperasse aill
que ele decidisse o contrrio. Mas os olhos de Serial
fixaram-na com severidade: fl|
No dou entrevistas! M
Bem... Bem... L lhes direi... B Ligeiramente vexada, saiu e tornou a ce
rrar
porta. Soriano voltou-se para o homem que estafl
com ele: ym
Continue, faa favor. fm
Advogado que era, Soriano tinha o seu escritolB
profissional na Calle Barqullos, com outros colegJj
Mas havia decidido no ir l nessa manh. Sentia^
alquebrado pela noite mal dormida e desejoso de essl
minar, em sossego, a sua nova posio. Pouco depois|
porm, das dez horas, a empregada do escritrio tefl
fonara-lhe, a comunicar-lhe que Palcios Mesonero eSj|
tava l e tinha urgncia em falar-lhe. Mesonero eira
um dos seus melhores clientes e ele, no querend^!
desagradar-lhe, pedira-lhe para vir a sua casa. -NI
A CURVA DA ESTRADA
419
Agora, Soriano esforava-se por fixar o que o outro lhe dizia. Mas a sua ateno distr
aa-se frequentemente, pois estava ansioso de que Ramn Ballesteros chegasse.
Enquanto Mesonero ia falando, Soriano procurava no olhar para as numerosas cartas
que o correio lhe trouxera de manh e se encontravam sobre a secretria. Mas elas p
areciam estar imanizadas e com uma fora de atraco irresistvel. Contra a prpria vonta
de dele, os seus olhos procuravam-nas constantemente.
Soriano havia j aberto mais de metade dessas cartas quando Mesonero entrara. E to
das as que tinha aberto eram a insult-lo. Desde que lera as primeiras, pensara de
it-las todas ao cesto dos papis. Mas continuara a abri-las, na esperana de encontra
r alguma que fosse diferente, alguma que anulasse, no esprito dele, o efeito das
outras.
A voz de Mercedes voltou a interromper, do outro lado da porta, a exposio de Meson
ero:
Ds-me licena ?
Soriano tinha ouvido, momentos antes, o rudo da campainha e julgou adivinhar o qu
e, desta vez, a irm queria. Efectivamente, logo que a mandou entrar, Mercedes dis
se-lhe:
Don Ramn Ballesteros.
Que espere um momento, que j o recebo... Mesonero verificou que o rosto de Sorian
o havia
adquirido uma satisfao que no tinha at ali.
Eu no demoro... desculpou-se.
Continue! Continue! pediu Soriano, fazendo um gesto tranquilizador.
Mesonero ps-se a resumir os novos aspectos do seu caso, mas fazia-o cada vez mais
descontente, por lhe parecer que o seu advogado no estava bastante atento ao que
ele dizia.
Eu verei isso prometeu Soriano, quando Mesolero terminou. Eu verei isso e,
depois, dir-lhe-ei Qualquer coisa. De todas as maneiras, julgo que um Proces
so ganho.
Soriano levantou-se e, para Mesonero no atravs-
420
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
421
* sar a sala de visitas, descerrou a porta do gabai
que dava directamente sobre a escada: a
At breve! E esteja sossegado. I
Fechou a porta, voltou secretria e meteu, ruA
gaveta, as cartas que havia recebido. Sentia um nfl
de receio e de volpia em bater-se com Ballestj
" uma velha raposa pensou mas a mini noS
come ele". Tornou a sentir confiana em si e um maj
voluptuoso para a luta. M
Soriano abriu a porta interior do escritrio e an
ou de mo estendida e sorriso exuberante para 9
lesteros. JI
Desculpe-me t-lo feito esperar, mas tratava
dum cliente a quem no podia mandar embora. pfl
mim muito honroso ver a usted nesta sua casa... m
O chefe do Partido Nacional levantava-se da cade"
mas Soriano, ao mesmo tempo que lhe apertava a inm
impelia-o a continuar sentado: J
Deixe-se estar! Deixe-se estar! >
No esperei nada disse, com ar amvel, Ba lesteros. Cheguei agora mesmo. E estava
muito entfl tido a ouvir aqui a senhorita Mercedes. Usted em sentir-se orgulhos
o de ter uma irm assim inteligente"
Mercedes fez um gesto de modstia. 'm
No estpida, no concordou Soriano, co" um torn que a Ballesteros no pareceu bastante
decidida
Depois de aproximar uma cadeira daquela onde SB
encontrava o chefe do Partido Nacional, Soriano ul
ao escritrio e trouxe a caixa de charutos. l
No, muito obrigado recusou Ballesteros. -m
No costumo fumar antes do almoo. m
Soriano sentou-se em frente dele. Mercedes sara
discretamente, cerrando a porta que dava para o com
redor. Ballesteros cortou o pequeno silncio que dm
deixara: m
No quero roubar-lhe muito tempo, pois sei, porj
experincia prpria, quanto trabalhosa a vida duiHffl
advogado. Quando fazia advocacia, raramente tinhafl
um momento de meu. Sorriu: E mal de ns quando l
no temos que fazer...
Calou-se um instante e logo enfiou pelo seu caminho
estreito: , .
Eu no queria incomoda-lo, mas como fui sur-
nreendido com aquela notcia que o "Heraldo" publicou
pr
e como alguns amigos
Tambm eu! apressou-se Soriano a interromper cora um torn propositadamente seco.
Ballesteros recuou:
Eu logo vi... Eu logo vi... E foi por isso mesmo
que resolvi vir falar consigo...
No autorizei ningum a publicar tal notcia e duvido que ela represente um acto de bo
a-f...
Talvez...disse Ballesteros, duma maneira incolor. Usted tem inimigos dentro do
seu prprio partido e, por outro lado, os jornalistas andam sempre a farejar estas
pequenas coisas. E quando no as encontram, inventam-nas...
Ballesteros julgou adivinhar a oposio que as suas palavras provocavam, mas logo co
ncluiu que isso carecia de valor. Pelas cumplicidades de Mercedes e de Pao, pelas
tendncias que ele prprio verificara em Soriano, sempre que, nos derradeiros tempo
s, se haviam encontrado e falado, Ramn Ballesteros estava convencido de que este
j fizera a sua escolha embora nunca lho tivesse dito claramente. Os prprios meios
polticos de Madrid pressentiam isso antes da notcia do "Heraldo" e, agora, aquilo
estendera-se ao pas inteiro.
Desde ontem declarou Ballesteros, com voz macia vrios amigos me tm interroga
do a proposto da sua possvel adeso ao nosso partido. E, francamente, eu no sabia o
que havia de lhes responder... " ltima conversao que ns dois tivemos deixou-me entre
ver, certo, perspectivas muito agradveis, mas nada de concreto...
Nada! confirmou Soriano, com o mesmo torn ^e h pouco. Embora eu discorde de cer
tos aspectos
4ue o socialismo tomou em Espanha depois da Repblica e embora eu concorde, ao mes
mo tempo, com uma Parte do programa do Partido Nacional, a verdade ^ue no tomei a
inda nenhuma resoluo...
422
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
423

* Eu pensava isso mesmo disse BallesterosjJ


pr com uma voz meiga. Eu pensei isso BM
quando li aquele "consta" do "Heraldo"... |
Soriano volveu: i J
Trabalhei muitos anos no Partido Socialista"
o abandonar assim facilmente. Sempre o meu paa
Tenho l uma situao... Apesar dos inimigos dei
usted fala, tenho l uma situao, que no de^
pois bastante me esforcei pelo socialismo... J
Cara o momento. "Tiveste, tiveste pensoujj
lesteros, com satisfao. Tiveste, mas j no J
Agora s considerado pelos teus como um indesejl
Ballesteros deteve, subitamente, a sua divagao, J
Tenho adversrios, mas isso no importa..
todos os partidos do-se discordncias internas el
pblicas. Um partido no um relgio, que s funea
quando todas as peas esto de absoluto acordo. Tm
visto, muitas vezes, ruidosas cisses. Ora eu posso ai
uma cisso durante um congresso e passar a chefiai
faco que pense como eu... >|
Ballesteros no esperava aquela hiptese e, durs
uns segundos, considerou a sua gravidade. Logo, pedi
se tranquilizou: "Seria uma pequena faco, que JB
bastaria para o fazer ministro e ele sabe isso pi
feitamente. Se no o soubesse, no andaria com v"
tade de se passar para ns. Mas no h duvidai
que previu tudo e se prepara para um alto preo*!
Claro! Claro! apoiou Ballesteros, com mu| naturalidade. At podia provocar, co
m o seu cai um congresso extraordinrio... J
Soriano teve um gesto vago: .11
No digo que seja preciso tanto, mas, enfim;J uma coisa a ver... ti
Durante o silncio que ele prprio fizera, Bailei teros pensou, com uma repentina se
nsao de mal -estar: " o momento do preo. Enganei-me; ele a ainda mais tortuoso do qu
e eu supunha". De now pesou as vantagens da entrada de Soriano nas sur hostes e ma
is uma vez se convenceu de que eraill apreciveis, sobretudo nesses dias em que o
Partic^J
Kacional desencadeava a sua grande guerra parlamentar contra o socialismo. A ade
so de Soriano constituiria um escndalo e um golpe fundo no Partido Socialista. "Te
mos de pagar mais do que eu havia imaginado e, portanto, o melhor no prolongar is
to. Uma vez ele l dentro, sempre h-de haver ocasio de lhe cortarmos as asas". Balle
steros puxou:
Vejo, pelo que me diz, que a notcia do "Heraldo" no tinha fundamento algum...
Soriano olhou para ele um instante e logo baixou a vista, numa recolhida clera co
ntra o homem que o obrigava a definir-se rapidamente. Da mesma maneira que Balle
steros se havia convencido de que ele pretendia ingressar no Partido Nacional, S
oriano compreendera, h j muito tempo, o desejo de Ballesteros em capt-lo e lev-lo pa
ra l. Sentira isso durante as vrias conversaes casuais que os dois tinham tido, sobr
etudo depois de ele se haver negado a obedecer ao directrio socialista, quando es
te lhe ordenara que abandonasse o Ministrio do Comrcio e Indstria. Sentia-o, ainda,
atravs do que Pao e Mercedes lhe diziam, quando visitavam Ramn Ballesteros.
Soriano tentou demorar, mais uma vez, a rendio :
Efectivamente, essa notcia no tem fundamento ou, pelo menos, prematura. Eu prepara
va-me, justamente, para a desmentir, quando usted me telefonou...
Ballesteros tinha duas bolsas sob os olhos e, por cirna das bolsas, os olhos mos
travam um sorriso mido, apenas entreaberto, um sorriso que dir-se-ia rendado Pela
s gelhas das plpebras. Ele resolveu tornar-se bonacheiro :
Se no tem fundamento, de lamentar; mas se *i apenas prematura, ento outra coisa...
Eu julgo
9ue foi apenas prematura... E oxal no me engane! Eu no posso falar em nome de todos
os meus colegas, "ias estou certo de que eles teriam, como eu, um grande Prazer
em v-lo ao nosso lado...
Soriano no disse nada. A pedra rolara com mais
424
A CURVA DA ESTRADA
* facilidade e maior rapidez do que ele havia imagio
estava satisfeito, mas esforava-se por no revelar^
co alguma. a
Ramn Ballesteros contemplava-o, aguardanda
ele falasse; Soriano persistia, porm, no seu sila
como se esperasse tambm que o outro dissesse l
alguma coisa. >a|
O chefe do Partido Nacional procurou domiaJ
agitao do lbio inferior, que constitua sempre *M
primeiro sintoma de contrariedade. " mais mana
do que um campons e vai-nos custar muito trabi
para o mantermos de rdea curta" pensou, enfac
Logo considerou ser intil qualquer disfarce, pois ej
vam j moralmente nus um em frente do outi
nenhuma palavra, nenhum rodeio conseguiria vestal
nenhum vu impediria que eles se vissem nitidam
por dentro. ,'i
. Todos ns teramos muito prazer nisso reP
Ballesteros, novamente com um pequeno sorriso!
E no creio que no seu partido tenha maiores possiM
dades do que no nosso... .si
Mais uma vez Soriano no replicou logo. T B
-Isso depende... disse, depois, sem entusian
Isso depende... ~m
No tenha dvida alguma! Ns chegaremos b|
vemente ao poder... Isto fatal, pois as actuais coJ
binaes polticas das esquerdas no tm consistent
suficiente. Usted sabe perfeitamente que assim, m
esquerdas adquirem grande fora quando se encontrai
na oposio e defendem a liberdade; mas, desde ql
chega o momento de governarem, fazem da niesflj
liberdade pela qual se bateram um elemento de desl
gregao. ver o que se passa, por exemplo, comtl
Partido Radical e o Partido Socialista. Ambos lutaraa
contra a Monarquia e parece que devia haver ma"
afinidades entre eles do que com o meu partido. Qm
a verdade outra, como usted sabe. No digo com "fl
socialistas, mas entre os radicais e os nacionais no
impossvel uma aliana parlamentar... Ramn BaW
lesteros deixou correr um sorriso de mistrio: J"|
"
A CURVA DA ESTRADA
425
ao se pode ter dvidas de que chegaremos brevemente ao poder...
O chefe do Partido Nacional ia para acrescentar: "E usted deu boa conta de si qu
ando esteve no Ministrio do Comrcio e Indstria"; ia para acrescentar isto, mas cont
eve-se, pensando que no seria necessrio, porventura, lanar-se imediatamente to longe
.
possvel... possvel... No digo que no... murmurou Soriano com alheamento, como se aqu
ela possibilidade no lhe interessasse directamente.
O lbio inferior de Ballesteros voltou a tremer. O chefe dos nacionais considerou,
mais uma vez, que em nenhum momento como aquele a adeso de Soriano serviria melh
or os seus interesses. No era s um grande golpe na nau socialista, j por tantos lad
os bombardeada; era, tambm, um acto de supremacia sobre o Partido Radical, pois s
eria mais lgico que o trnsfuga fizesse transbordo para este, que era um partido re
publicano histrico, do que para o Partido Nacional. Depois disso, a minoria purit
ana do radicalismo, que discordava da aliana prevista, teria menos fora moral.
Ramn Ballesteros decidiu-se:
No s possvel; certo. certo e, por outro lado, ningum se esqueceu ainda de que uste
deu boa conta de si quando esteve no Ministrio do Comrcio e Indstria...
Soriano baixara novamente os olhos e parecia reflectir. De testa enrugada e expr
esso soturna, dir-se-ia que a prpria presena de Ballesteros lhe era indiferente.
Dar-lhe-ei uma resposta amanh declarou, dePOS, com torn firme.
Logo o seu rosto se tornou sorridente:
Resolva o que resolver, sabe usted, de antemo, quanto o estimo...
Continuava a sorrir, de olhos gordos, lustrosos, ao mesmo.tempo que voltava a se
ntir repugnncia por Ballesteros e um ligeiro descontentamento consigo prprio, uma
ligeira insatisfao com a sua vitria. Bal-
420
CURVA DA ESTRADA
%~ r" st*utif ^ ^
perdoando a S1 mesmo: ^foTe.^ qT"
a V
'
P.<t ouo depois de Ballesteros haver partido, Rama veio prevenir: >J
Esto ali Don Pepe Olmedilla e o doutor Riendai Soriano lia as ltimas cartas que o
insultava! lia-as em obedincia a uma parte apenas do seu eaj rito, a uma tortura
mrbida que esta lhe impura enquanto a outra parte as repudiava mesmo antesa ele a
s abrir. U(
Manda-os entrar para a saleta disse, num ajj breve, mas ligeiramente nervoso. >m
Faltava-lhe ler apenas duas cartas. DesdobroUfl passou-lhes rapidamente a vista,
pois o seu pensamei furava j para o compartimento contguo, de oiHl vinha o rumo
r abafado do dilogo que, a meia voa Olmedilla e Rienda l mantinham. Uma das c
art J era longa: os olhos de Soriano foram passando im perodo a perodo, desc
endo da alta rvore caligrfkdj saltando de ramo para ramo, sem se deter em nenhu Perc
ebeu que ali se recordava, com uma letra midal mui cerrada e mui regular, vrios ep
isdios da sua victl poltica, alguns dos quais ele prprio j havia esquecide" Soriano r
asgou a carta e arremessou-a para o cestflj dos papis, como fizera s demais. Logo,
tentou disci* plinar as suas ideias e sensaes e estabelecer um plaJMffl de conver
sao com os dois socialistas que estavaial separados dele apenas por uma porta. Sor
iano julgavapl adivinhar o que eles lhe vinham dizer. Em breve* porm, se c
onvenceu de que no lhe era possvel pre*l parar antecipadamente a sua defesa. Bem o
u mal, terisPi de a improvisar, conforme a entrevista decorressefjl Po
uco antes, com Ballesteros, ele sentia-se calmo, muitCf*|
A CURVA DA ESTRADA
427
senhor de si; fora ao encontro do chefe do Partido Nacional com o mesmo estado d
e esprito com que se dirigia certas tardes para o tribunal certo de vencer. Agor
a, no era assim. E arrependia-se de ter lido as cartas, pois atribua-lhes essa exc
itao interior, essa desordem ntima que sentia.
Ergueu-se lentamente da secretria, ao mesmo tempo que monologava: "Tem de ser! Te
m de ser!" Parecia-Ihe que esta ideia, com tudo quanto encerrava, de inevitvel, o
colocava subitamente borda dum despenhadeiro, cujas negras profundidades ele no
via. E f-lo sentir um repentino desamparo.
Ao abrir a porta, Soriano comps uma expresso amvel:
Entrem. Entrem para aqui.
De todos os membros do directrio socialista, Pepe Olmedilla e Valero Rienda eram
justamente aqueles com quem ele tivera maior intimidade e maiores afinidades nos
ltimos tempos. Ambos pertenciam ala moderada. Olmedilla, homem gordo, levemente
bonacheiro, fora, durante bastantes anos, pequeno comerciante em Sevilha. Dessa po
ca tinha-lhe ficado o hbito de bater afavelmente, com as suas mos felpudas e dedos
curtos, no ombro do interlocutor. "Ento, por que no se h-de resolver isso ?" como
se dissesse: "Ento, por que no h-de comprar esta mercadoria?" Distinguia-se pela b
ondade dos seus olhos como as esttuas assrias se distinguem pelo frisado das suas
barbas.
Ao contrrio de Olmedilla, Valero Rienda era uma niagreza crescida, com longos cab
elos negros e uns culos muito grossos a aumentar-lhe a vista cansada, "ela estatu
ra, cor do pigmento e mais pormenores do seu tipo, chamavam-lhe "De Valera", sab
endo que isso o irritava, dado que o poltico irlands pregava o catoucismo e ele o
anticlericalismo desde a adolescncia, linha o retraimento e a audcia dos tmidos; a
pacatez e as frias dos vulces; normalmente, porm, dir-se-ia que as vidraas dos seus
olhos iam a sorrir frente ^ele, mesmo quando a boca se conservava fechada.
428
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
429
* Fora mdico rural e, na juventude, escreveraJ
monografia sobre Oropesa; depois casara-se com njJ
de alguns teres e haveres e, quando chegara a JM
blica, ascendera facilmente no Partido. l
Sentem-se disse Soriano, depois de os ter"
primentado. Ele sentia-se agora mais calmo. ^-m
Olmedilla e Rienda sentaram-se nas poltronas"
ficou na cadeira da sua secretria, mais alto do qjm
outros. Pareceu-lhe que esta posio o favorecia e ||
a facilitar as suas prprias palavras. rm
Quando, ao saud-lo, Soriano lhe perguntara;"
famlia, Valero Rienda havia dito que a mulher esfl
enferma. Ele conhecia muito bem a Amalita e dam
rou-se a informar-se sobre a sua doena e a desejajj
melhoras. "
Rienda agradeceu e com o seu agradecimento fedl
o primeiro mundo; naquele que se abria agora freal
os trs homens entravam com o silncio e a expedi
ti v prudente que as terras virgens impem. >M
Era um silncio contra a vontade deles. ApesaB
sua longa convivncia, os dois socialistas pareciam M
trafeitos ante Soriano, como se sentissem esse i&fel
de curiosidade e de perturbao que se tem peraflB
um homem clebre que se v pela primeira vez. ^tsm
Foi Olmedilla quem rompeu o constrangimefli|
Bem! No vale a pena estarmos com rodeieM Tu calculas, decerto, porque viemos, hoj
e, aqui... rtfl
Soriano fez um gesto vago. >m
O directrio, isto , todos ns ficmos desoriwj tados com a notcia de que nos ias deixar
... Noa| espervamos e ainda nos custa a acreditar que sem verdadeira. Demais a m
ais, na vspera da homei" gem a Pablo Iglsias, de quem tu foste um dos diejl pulos
preferidos... ffli
Essa notcia era de esperar...disse, lenta* mente, Soriano. No fui eu quem a deu,
mas, depofli do que se tem passado, era de esperar... '*|
Olmedilla quedou-se a observ-lo, com um olhaM inquieto. Pi
Como no tinhas prevenido o directrio... Com^j
no nos disseste nada... Enfim, admitimos que fosse um desses bales-de-ensaio que o
s jornalistas lanam por palpite, por dedues que, muitas vezes, no tm razo de ser... Ou
mal informados por quem tenha interesse em dividir-nos... Soriano repetiu:
No fui eu quem deu a notcia.
Sim... foi justamente por julgarmos isso que ns viemos falar contigo...
Olmedilla tornou a olhar para ele, esperando- ser esclarecido. Mas Soriano conse
rvara-se calado.
Foi por isso que viemos... insistiu Olmedilla.
Valero Rienda esperava tambm e ia acavalando os seus dedos da mo esquerda uns sobr
e os outros. Entretanto, Soriano pensava que se o directrio havia escolhido, entr
e todos os seus membros, os dois que tinham maiores probabilidades de o fazer re
cuar, era porque se interessava, efectivamente, em mante-lo no Partido. Esta hipt
ese deu-lhe, por momentos, a grata sensao de que ainda o temiam, de que ele ainda
dispunha de fora entre os socialistas. Logo, porm, considerou que Rienda e Olmedil
la, moderados embora, costumavam vergar-se ala esquerda, sobretudo a Zornoza Lar
a, que era o seu principal inimigo.
Como o silncio se prolongasse, Valero Rienda, que at a no soltara palavra, interveio
, com um torn cndido:
Tudo poderia ficar sanado se a notcia fosse desmentida...
Soriano olhou-o um instante e evitou o caminho que ele lhe abria.
Salvo vocs disse o directrio constitudo por arrivistas ambiciosos, que no querem o
utra coisa seno trepar custa dos velhos militantes. No cessam de prometer s massas
aquilo que eles sabem muito bem que no lhes podem dar e no hesitam em caluniar aqu
eles que lhes podem fazer sombra... Para eles, s eles prprios so socialistas verdad
eiros; os outros so todos uns reaccionrios... Esse Zornoza h-de dar cabo
430
A CURVA DA ESTRADA
|
do Partido... Calou-se um momento e acresceria
* H-de dar cabo, no tenham nenhuma dvida.ij
Dissera as ltimas palavras com um torn longnqi
vagaroso, como se, enquanto as pronunciava, esti"
a ver materializar-se, no futuro, o que elas significa1
E depois baixara a cabea, ficando de olhar pol
no cho. -J
No quero contrariar-te objectou Olmedillql
mas penso que tambm tu no beneficiars o Parta
se levares a tua avante... >3
Soriano levantou lentamente os olhos. Dir-se-ia.fil
vinha de longe. Dir-se-ia carecer de tempo para qi
algo dele se adaptasse ao momento que vivia. <;m
No fui eu quem comeou a questo... Vd|
sabem que no fui eu... Mas no vale a pena f alarm*
agora, disso. A verdade que desde h muito silaj
que sou no Partido um simples tolerado. At no ltiM
congresso chegaram a atacar-me. Ergueu subi
mente a voz: E quem ? O Zornoza, o Zornoza qfl
s aderiu ao socialismo quando a monarquia estaJJ
prestes a cair, ao passo que eu comecei a ser socialisjl
aos dezasseis anos! ']&
Do seu canto, Valero Rienda corrigiu, timidament
Mas o Zornoza no o Partido... -(M
Claro! apoiou Pepe Olmedilla. Nisso qu" u ests errado... *1
O Zornoza no o Partido, mas h muitos rtm Partido que s fazem o que ele diz, o que e
le quea mesmo que seja um disparate. Viu-se no congressoJj ele quem mareja tudo.
.. Os prprios moderados tenra medo dele. Para que havemos de fechar os olhos ?
J
Olmedilla voltou o rosto sobre o ombro esquerd^S
e ps-se a coar o occpcio, como sempre que tinhaj
uma dificuldade a vencer. Depois ergueu-se da poltrona^I
Parecia-lhe que no poderia dizer o que tinha a dizecj
sem dar uma palmada afvel nas espduas de ScnJ
riano. l
Homem, tu sabes como eu sou teu amigo! J
exclamou, dando a palmada. Tu sabes como eu sou j
teu amigo. Mas tu no ters, tambm, contribudo para J
A CURVA DA ESTRADA
431
desinteligncias que existem entre ti, o Zornoza e
outros? Quando foste ministro do Comrcio...
Soriano gritou:
. No me venhas, agora, com essa histria!...
Estou cansado de repetir que no tenho culpa de que o directrio no visse ou no quises
se ver as coisas! Fartei-me de lhes explicar! Tudo foi intil, pois eles julgavam-
se infalveis...
Olmedilla ia ainda teimar, mas conteve-se:
claro que no vim aqui para te censurar. Cada um c livre de fazer o que entende. S
e te digo isto, porque penso que se tu admitisses alguma responsabilidade tambm d
a tua parte, ser-te-ia menos desagradvel tomar uma atitude de conciliao... Compreen
des?
Um novo silncio desceu sobre os trs. Depois, Valero Rienda tornou a sugerir:
O simples desmentido da notcia acabaria com tudo isto... com todos os mal-entendi
dos...
Rienda lamentou logo, intimamente, o torn modesto com que as palavras lhe tinham
sado. Soriano no respondeu. Olmedilla fixou-o e, como a mudez dele se prolongasse
, avanou at a janela do gabinete, olhou para a praa sem ver a praa e volveu:
Se as coisas no se concertassem depois e se, de todo em todo, decidisses deixar-n
os, poderias faz-lo mais tarde. O que me parece grave abandonares um partido onde
serviste tantos anos, e que , sem dvida, o mais generoso dos que existem em Espan
ha, num momento em que todos os "carcas" o atacam furiosamente e lhe atribuem a
culpa de todos os males que acontecem no pas...
Eu sei... disse, enfim, Soriano, com modos depreciativos. justamente porque es
to a pr a nu
08 erros do Partido, que Zornoza e os do seu grupo vos Pediram para vir aqui. No
assim ? Digam l: no assim ? Se no fosse isso, o Zornoza at ficaria contente Por eu s
air. Era mais um que no lhe faria sombra... ~~ Soriano encarou os dois emissrios,
levantou-se da sua cadeira de braos e declarou com voz forte: Eu reservo a minha
atitude!
432
A CURVA DA ESTRADA
* Olmedilla encolheu os ombros. Depois, conrl
expresso de pacincia, insistiu: j
Tu sabes, decerto, que os agrrios, os nacia
e os radicais esto em negociaes para formail
bloco contra ns. E essas negociaes devem ficaifl
cludas brevemente. Assim, no Parlamento, ser
atacados no s por monrquicos, mas at porjl
mentos republicanos. Ora o escndalo que, neste a
mento, provocaria a tua sada do partido s lhes pi
ser til. Compreendes ? Tu compreendes muito bem
claro! l
Valero Rienda cada vez se arrependia mais da"
neira quase humilde como havia falado at ali e cem
cara a enervar-se com o torn sobranceiro que Sorfl
empregava quando respondia s observaes de Olffl
dilla. "Quem o ouvisse, havia de pensar que era J
quem tinha razo. Ora esta! Ora esta!" j
Olmedilla dizia agora: >
O que eles querem servir-se de ti. Servirem!
de ti como duma arma contra ns! Tu, que s m
inteligente, no percebes isto? iM
Soriano no respondeu logo, mas pareceu a Valoj
Rienda que ele alara ligeiramente os ombros. Rienl
duvidou um momento, puxou um leno do bolso, liij
pou nervosamente os seus culos e fixou o rosto B
Soriano. Depois, no pde conter-se mais e levai!
tou-se tambm. Os seus culos tinham deixado 41
sorrir: l
O procedimento de usted muito estranho. Muifflj
estranho. Nem o Olmedilla, nem eu, nem muitos outroj
socialistas esto de acordo com o Zornoza; mas ningufli
pensou ainda passar-se, por causa disso, para um pari
tido que injuria e calunia todos os dias o que existffl
de mais sagrado nas nossas ideias e na nossa prpriai
vida. Se h, no que usted diz, uma parte que eu comfl
preendo, h outra que no consigo compreender dei
maneira alguma... Usted sabe como eu tenho sido sein
amigo; mas, neste momento, o menos que posso dizer l
da sua atitude que ela me parece bastante conde- j
nvel...
A CURVA DA ESTRADA
433
medida que ia vendo a excitao com que Rienda falava, Soriano ia ficando friamente
calmo. A si prprio perguntou o que mais lhe convinha: se protestar contra o que o
uvira e justificar-se ou fingir que no atribua importncia alguma quilo. Esta ltima po
rta pareceu-lhe a melhor.
Se usted no compreende, a culpa no minha... disse. E no vale a pena estarmos com m
ais discusses. .
De novo aquele torn enervou Valero Rienda. Ele ia a replicar, mas j Olmedilla int
ervinha com uma voz ainda mais conciliadora do que antes:
Disseste, h pouco, que no foste tu quem deu a notcia que o "Heraldo" publicou, e eu
acredito. No preciso ser muito esperto para adivinhar quem tinha interesse em v-l
a publicada neste momento...
No fui eu quem deu a notcia interrompeu Soriano , mas ela corresponde ao meu esta
do de esprito. Esta que a verdade!
Novamente veio aquele silncio que os molestava mais ainda do que as palavras. Olm
edilla fez um gesto contristado, um ltimo apelo:
Mas eles, lvaro, no atacam s o Partido... Atacam, tambm, o Socialismo. , sobretudo
, a ideia socialista que eles pretendem destruir...
Eu reservo a minha atitude! repetiu Soriano, com o torn de quem dava por finda
a controvrsia.
Olmedilla pensou, com uma tristeza cada vez maior: "J no lhe importa que ataquem o
Partido, nem mesmo o Socialismo. Est tudo terminado". Esta ideia deu-lhe uma sbit
a ternura pelo socialismo, como se se tratasse de um ser vivo, uma pessoa de faml
ia vtima de acidente ou de enfermidade. Pesaroso, estendeu a mo a Soriano:
bom, adeus! Espero que continuemos a ser amigos... Olmedilla murmurou isto, mas
ficou a olhar para Soriano, com os olhos quase implorativos, na esperana de ouvir
-lhe, ainda, uma palavra que permitisse encadear uma soluo.
Pois claro! Uma coisa no tem nada a ver com
434
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
435
* a outra afirmou Soriano, tomando de novo j|
afvel que tinha para eles outrora. e3
Depois de apertar aquela mo, Valero Rienda fJ
nhou a si prprio: " curioso como o nosso coa|
pode deixar de ser amigo de algum to depressa m
se produz uma sncope cardaca". >"
Soriano abriu a porta que dava para a escadaj
Oxal a Amalita fique rapidamente boa. u|
j consultou o Maranon ? "
Valero Rienda respondeu afirmativamente, enqid|
reprimia o seu desejo de insult-lo, de lhe atirar aq"
grave palavra que andava entre a sua garganta, l
crebro, subindo e descendo, descendo e subindo!
queim-lo como uma brasa. Ao mesmo tempo ele)(9
tia-se menos adversrio de Zornoza do que fora atm
J no patamar, Olmedilla tentou estender, tM
uma vez, um elo entre eles e Soriano: -l
Ento, amanh, no vais homenagem a Injj sias ? m
S se eu no tivesse vergonha! _jl Os dois homens comearam a descer as escatH
Soriano fechou a porta e veio sentar-se na me"
poltrona onde estivera Olmedilla. Ouviu ainda os pasw
dos dois velhos socialistas descendo, vagarosamente"
degraus. Logo o silncio voltou casa. 'M
Soriano examinou o relgio. Era uma hora e m
da tarde e o "Heraldo" s saa ao comeo da noite. EB
pensou que tinha ainda tempo, portanto, para deci<a
definitivamente se devia ou no telefonar ao GonzattB
a pedir-lhe que desmentisse a notcia. J*
Durante alguns momentos, Soriano imaginou o qwj
viria a ser a sua vida no Partido daquele dia em dianjl
Se, at ali, se sentira muitas vezes isolado e com ddl
confianas sua roda, dali para o futuro seria aindl
pior. No tinha, sobre isso, dvida alguma. Se o Pa^i
lamento estivesse fechado, poderia evitar, durante alguM
tempo, contactos com Zornoza e demais socialistas dlj
extrema-esquerda que o combatiam. Mas o Parlamentai
estava a funcionar e ele teria de encontrar-se e dei
reunir-se, fatalmente, com os outros. E isso ser-lhe-ia|
uito desagradvel. Fora-o nos ltimos tempos e sTo-ia cada vez mais. No era s porque an
tipatizava " Zornoza e os do seu grupo; era, sobretudo, sentia-o nitidamente, po
rque comeara a discordar deles de modo profundo. Pertenciam a outra gerao, tinham o
utra mentalidade e outros processos na maneira de defender as ideias. Tinham pas
sado sua frente e, como as tempestades violentas, haviam feito tombar, entre ele
s e ele, no caminho at ali comum, velhos troncos que lhe dificultavam a marcha e
que, por vezes, a impediam mesmo. Lembrava-se de que at junto de polticos de outro
s partidos, dos quais ele discordava tambm, se sentia menos constrangido do que q
uando se encontrava com os extremistas do socialismo.
Aquilo vinha j de longe, vinha desde que Soriano se aproximara dos quarenta anos.
Ele prprio dera pelo incio da metamorfose, pois fora no sexo que verificara o pri
meiro sintoma. O seu sexo tornava-se, pouco a pouco, menos exigente. E esse reba
te das torres do Outono, embora soasse ainda distante, trouxera-lhe a ideia de q
ue ele comeava a envelhecer. O fenmeno era seu conhecido, mas apenas por leituras
feitas casualmente, j que todos os seus amigos, j que todos os homens, mesmo os ma
is loquazes, se mostravam sobre aquilo imensamente discretos. Ele pensara: "Rest
am-me uns cinco ou seis anos de vitalidade e uns dez de lento crepsculo. Depois a
noite". Logo aquela ideia fizera emergir outra do fundo do seu esprito, como as n
coras trazem, s vezes, com elas, algas do fundo do mar: "Disponho, portanto, apen
as de quinze anos para viver coino um homem completo; quase no tenho vivido e.qui
nze anos no so nada; ainda h pouco eu tinha ^inte e cinco e foi como se a vida sopr
asse no p com
1ue eu houvesse enchido as conchas das minhas mos".
Esta certeza comeara a amargurar muitas das suas hras e quando a imaginao o instalav
a no futuro ele Sentia-a sempre ao seu lado, como uma doena sem remdio, a destro-lo
mais. Dera-se, ento, quilo que,
436
A CURVA DA ESTRADA
nesse tempo, lhe parecia ser viver. Viver, viver, a
viver a sua carne, o seu esprito, as ambies sec!
os apetites reprimidos, sorver as noites e os dias,Xi
sem limites dentro do limite que lhe era im|
Abandonara a existncia regrada que levara ai
entre as actividades do Partido e as da sua pr"J
de advogado. Isabel existia ainda e ele passara ai
tir-lhe, a criar pretextos e justificaes para a vidJ
vivia fora de casa com outras mulheres. Sofrera U
Ihaes, gastara mais dinheiro do que devia; sentia
muitas vezes, explorado e esforava-se por fazer a
ditar que no dava por isso. Muitas vezes vexai
tambm o desacordo que havia entre os seus J
ntimos e a sua idade, o seu prestgio e o respeito!
os outros lhe votavam. Agarrava-se, ento, espera
de que os outros no o saberiam. Essa hiptese!
se mantinha, porm, j que Olmedilla, sempre foi
cheiro, lhe fazia, de quando em quando, sorride"
aluses s suas aventuras. Mas aquela nsia de vi
em pouco tempo todo o tempo que lhe parecia ter a
perdido anteriormente dilua-lhe os escrpulos. E r
trava-se mais forte mesmo do que o crescente cansa
pois medida que a sua varonilidade se tornava mm
imperiosa, ele tornava-se mais imperioso com a '
varonilidade. ,a
Nada disso, porm, se processara isoladamente. 9
toda uma rede onde se rompiam malhas e teciam oua
e das quais ele s tomava conhecimento depois l
operao realizada. Assim, uma manh, ele prpria!
surpreendera ao notar que, h alguns meses j, se 'm
centrava invariavelmente acordado e sem sono quanw
s nove horas, Ramona entrava no quarto comi
"desayuno", ao passo que, outrora, no estava acordai
ou acordava com muito sacrifcio e o seu desejo 3J
continuar a dormir. Haviam sido precisos dezenas M
anos e uma luta quotidiana para que a sua determinj
co de despertar quela hora conseguisse, finalmenBJ
impor-se; e s o conseguira quando o crebro dispea
sara voluntariamente uma parte do seu repouso, l
Ao mesmo tempo, verificara que a idade no pr<^
A CURVA DA ESTRADA
437
dzia nele apenas uma harmoniosa consolidao dos hbitos; ao contrrio, criava uma desarm
onia, uma cisso, como se aqueles passassem a formar duas hordas opostas: a dos fo
rtes, que lisonjeavam, que afagavam o seu corpo, e a dos fracos, que ao corpo, s
obretudo ao crebro, exigiam esforo; a dos que morriam lentamente e a dos que, pera
nte a agonia destes, se tornavam mais poderosos. Deixara mesmo de trabalhar noit
e, enquanto que antigamente costumava escudar os seus processos at alta madrugada
, de janela aberta sobre a Plaza Mayor, onde, quelas horas tardias, os passos dos
raros transeuntes soavam como em cidade abandonada.
A morte da mulher agravara ainda mais essa transformao. Ele tivera um intenso desg
osto, no porque amasse ainda a Isabel, mas pelo vcuo que sentira em seu redor, pel
a perda daquele hbito carinhoso e fundamental, de onde brotavam hbitos complementa
res, como dum tronco brotam ramos, folhas e flores e que repentinamente se afund
ava na terra com toda a sua florao de ternura e de dedicaes. E no era s o que desapare
cia com ela; era, sobretudo, o que ela deixava em seu lugar. Era o exemplo, dent
ro da casa, dentro dele prprio, da fragilidade da sua existncia e a ideia de que,
mesmo se ele vivesse ainda muitos anos, a sua vida estaria cada vez mais desvalo
rizada pela velhice.
Fora nesse perodo que Zornoza ingressara no Partido. Novo, activo, resoluto, rapi
damente se salientara. Soriano tinha visto chegar outros com o mesmo ar decidido
. Uns dir-se-iam capazes de pr o Mundo sobre os seus ombros, tingi-lo de outras c
ores e mudar-lhe as suas rotaes. O tempo, porm, ao mostrar-lhes que s ideais revoluc
ionrios no se regem pelo calendrio comum, que a sua implantao no tem data fixa, que a
ica certeza que oferecem a que se leva na alma, desdenhando os anos e os sculos,
em breve os amolecia. Outros, de to impacientes, acabavam mesmo Por se desacredit
ar dentro da moral do Partido. No acontecera, porm, assim, com Zornoza. Nos ltimos
438
A CURVA DA ESTRADA
* anos da vida de Pablo Iglcsias parecia que as mu|
does socialistas estavam de acordo com os seus df
gentes em que se havia atingido o ponto de on
melhor se divisava o horizonte longnquo. Mas tal "
dade de vistas era apenas aparente. Milhentos espirai
insatisfeitos aguardavam somente uma voz que os iiii
tasse a ir mais longe e Zornoza fora uma desJ
vozes, a mais firme que aparecera. Alguns velhos soei
listas quedaram desorientados perante essa inesperal
fome de absoluto duma parte da massa partidria, <m
at ali dir-se-ia suficientemente abastecida com as prl
messas clssicas. Soriano ficara despeitado. Ele p
sara a tratar Zornoza mais afectuosamente, mas fazia"
para ocultar o desagrado que o outro lhe causava, l
Soriano debitara, por essa poca, aos seus prpria
excessos sexuais aquela diminuio de energia cerebli
que principiara a sentir. Procurara dominar, ento, m
desvairos da carne, que j no eram consequncia ta
seu sexo e sim da sua imaginao; apesar disso, cal
dia trabalhava com menos mpeto e, por vezes, una
incmoda sensao de inutilidade se mesclava no sei
labor. Mas, justamente nesse perodo, comeara a tel
causas mais importantes e mais rendosas. At ali, poJ
que era novo e porque era socialista, os grandes intei
resses em disputa, sempre precavidos e sempre desconl
fiados, desconfiavam tambm dele. A idade trouxera!
porm, essa compensao. A idade e a tendncia qua
uma parte da burguesia espanhola comeara a demons!
trar para as ideias democrticas durante a ditadura dm
Primo de Rivera. l
Ele ganhava muito mais dinheiro do que outror
e, sossegada a inquietao gensica, desatara a saciaia
outros caprichos e desejos que outrora lhe eram veda^l
dos. Prazeres que, na juventude, desdenhava e com-"|
batia, quando via os outros muito interessados errtl
fru-los, passaram a tent-lo tambm. Dir-se-ia que;!
precisamente no momento em que os repudiara, eles!
haviam cavado no seu esprito o lugar que viriam 1
ocupar mais tarde. Eram como essas cavernas que algu- J
mas montanhas tm, mas no se vem de longe, s se *
A CURVA DA ESTRADA
439
mostrando quando nos aproximamos delas. Era como se houvesse nele uma fome pretri
ta que adormecera espontaneamente para s acordar muitos anos depois. AO satisfaz-l
a, j no sentia alegria; parecia-lhe que aquilo se consumava demasiado tarde e que
a prpria vida o tinha roubado quando era novo.
Tambm este sentimento no lhe aparecera autonomamente. Viera ligado a muitos outros
, como na mesma vaga vm diferentes escrias do mar; e >no conjunto no representava m
ais do que representa num areal o fragmento duma concha.
Pepe Martinez, um dia em que o ouvira aludir quilo, mostrara-se em desacordo: "Vi
veste para um nobre ideal, que mais queres ? dissera-lhe, com um torn de censur
a. A intensidade e o prazer da vida esto menos na variedade dispersiva do que na
concentrao para um s objectivo. A vida de Rafael Sanzio, que morreu to novo e nos d
eixou, apesar disso, uma enorme obra, ou a vida de Pasteur, absorvida muito temp
o por uma simples hiptese, no foram, sem dvida, to variadas como a de Casanova, mas
isso no quer dizer que tenham sido menos interessantes para eles prprios. Era a su
a vida. Tu no desfalcaste, pois, a tua juventude; ao contrrio, conhecendo as dores
dos homens e as injustias que pesam sobre eles, tu fizeste uma preciosa aquisio. S
os ambiciosos vulgares e os que no conhecem a felicidade de pugnar com sinceridad
e e ardor por uma causa justa que no compreendero que isso basta para dar plenitud
e a uma vida. Ora tu no s um ambicioso e, por outro lado, se tivesses vivido a vid
a de outra maneira, tambm ela no te pareceria agora mais feliz".
Costumava ser sincero com Pepe Martinez, mas dessa vez no o fora. Declarara-lhe q
ue concordava inteiramente com o que lhe ouvira, mas, em realidade, s parcialment
e estava de acordo. Considerara que esse velho publicista, seu amigo, que se for
mara com as teorias do sculo xix e era ditoso com a simples hiptese da felicidade
alheia, simplificara e limitara dema-
440
A CURVA DA ESTRADA
j, siadamente a questo, apesar da sua lucidez habit
Sondando-se a si prprio, parecera-lhe que aquilo ti
nele vrios anexos, diversos apndices, longas rj
ficaes subterrneas e que Pepe Martinez, ao geia
lizar, tecia concluses apressadas e pouco slidas, dl
se construsse uma cpula antes de todas as parJ
que deviam sustent-la. li
Nesse tempo, vrios intelectuais haviam aderidd
Partido Socialista. Alguns eram professores universi
rios, outros pertenciam a instituies acadmicas e ca
boravam em "El Sol" e na "Revista dei Ocidente", m
nesses dias, davam lustre a quem em suas pginas!
mostrava. Partido recebera-os festivamente, com nu
tos bombos por toda a parte, que a conquista eraJ
alegrar e lanaria ecos amofinantes nos arraiais inia
gos; Soriano adivinhara, porm, em alguns dos vefflj
militantes a mesma apreenso que ele sentira. A pB
pria massa dir-se-ia retrada e em expectativa, emba|
nas discusses de fbricas e de cafs, muitos opernj
socialistas sentissem prazer em citar aquela benej
do destino perante os camaradas que outras idB
defendiam. m
Conhecedor dessas desconfianas, Zornoza tentai
a soldagem. Proclamando, numa reunio, que o pnjl
tgio do Partido tinha aumentado com aquelas adesl
declarara-se pela massa proletria e, ao mesmo temwl
pelos intelectuais, desde que estes fossem revolucioaiB
rios, "pois quem no pensava para a frente, quem mo*
o j modo, no acrescentava nada ao patrimnl|
comum, no era sequer um verdadeiro intelectual'4|
era um eco e no uma voz". s*
Soriano fingira aceitar esse princpio. Intimamente
porm, desdenhava os novos aderentes, argumentand)M|
consigo prprio, que ele vinha das camadas popularesl
da vida vivida, da fome, do sangue, das prises e (M
morte, enquanto os outros eram apenas uns teric<ss|
do Ateneu, que tinham convergido para o socialism*!
pela mesma razo que os iates de luxo convergem par* ,<
as praias que esto de moda. **
Mas, apesar dessas secretas objeces, ele comear |
A CURVA DA ESTRADA
441
a temer pela sua situao dentro do Partido. At ali, os chefes eram sempre os mesmos
e Soriano julgava-se em igualdade com eles. Velhos militantes, tinham-se tornad
o a cabea do Partido e habituado no s uns aos outros, mas tambm semelhana dos seus di
reitos presentes e futuros, como os passageiros dum comboio se habituam presena e
aos direitos dos seus companheiros de compartimento. Subitamente, porm, subiam n
ovos viajantes; os que j estavam retraam-se, davam-se, mutuamente, um instante de
solidariedade contra os que chegavam, mas logo alguns deles se iam conformando e
, perante o inevitvel, comeavam a conversar e at a lisonjear os intrusos. Pareceu a
Soriano que a sua influncia diminura, que o lugar que ocupava j no era to vasto como
anteriormente e que ele no podia fazer nada para esvaziar o compartimento.
Passara, ento, a dedicar-se mais sua vida de advogado. A princpio, a nova clientel
a causava-lhe ainda repugnncia. Muitos desses burgueses ricos, que punham no trib
unal complicadas demandas, quase sempre por questes de dinheiro, e desciam dum au
tomvel porta do seu escritrio, depois de ter marcado pelo telefone a hora a que se
riam recebidos, para no perderem tempo espera na antessala, eram, interiormente,
mais indignos ainda do que os ladres, os desordeiros e os homicidas que ele tiver
a por clientes at ali. Estes apresentavam-se como foras brutas da vida, com essa s
inceridade e esse sentido de fatalidade que tm as foras da natureza e obedeciam a
instintos, a taras ou a necessidades imperiosas de cuja satisfao os haviam privado
; e entregavam-lhe o seu destino como se o confiassem a um deus, como se ele, si
mples advogado, pudesse corrigir a falta de misericrdia que a divindade tivera pa
ra eles. Os outros, ao contrrio, pretendiam ocultar as suas expresses primrias e fi
ngiam mesmo superar a natureza; procuravam, desde o princpio, fazer valer o seu c
rdito material e, ao mesmo tempo, serviam-se da inteligncia como os felinos se ser
vem da sua agilidade para saltar; com muitos
442
A CURVA DA ESTRADA
> clculos e restries iam-no tornando seu confessai!
com muita facilidade passavam a consider-lo seu cn
plice. E acabavam por desvelar as mais indefenss
ambies e os sentimentos mais ignbeis. m
Ele sabia que a prpria profisso exercia influjM
no seu esprito. Muitas vezes pensara que seria iql
fcil a um mdico almoar e jantar sem se lemtB
das asquerosas misrias fsicas que vira durante o .<
do que a um advogado honesto no sentir repugdB
cia perante a matria psicolgica de certos clieniH
"As culpas so mais da organizao social em 'cfl
vivemos do que dos homens afirmara ele prpJB
h anos, numa conferncia que havia feito na AH
ciao dos Advogados de Barcelona. com uma sodB
dade honestamente organizada, a maioria das baixei
humanas que conhecemos desaparecero, por j nfl
terem motivo para se manifestar. Entretanto, a pnl
fisso exige que o advogado trabalhe precisamente
cano de esgoto da sociedade actual. Debalde ele ajjB
rentar exercer uma misso de purificador; debalqM
porque no nas consequncias e sim nas causas qflj
a purificao se deve dar". -m
Soriano pensara isso e preocupara-se muito COH
isso durante a primeira parte da sua estrada, quariaM
esta era ainda recta e ele esperava estar sentado sol"
o sol no momento de o sol nascer ao fim da estradai
mas, depois, comeara a curva, a paisagem variara, 'M
cores da terra mudaram e ele deixara de preocupar*"!
com aquilo. Habituara-se no s comodidade cn|
corpo, mas tambm comodidade do esprito, a essiH
lassido que ia definhando, pouco a pouco, os conflitoI
que a sua inteligncia tivera at ali com os donos d&U
homens e do Mundo. No seu escritrio, os clientes nqn
lhe causavam j surpresa alguma. Havia os que erans$
encobertamente cnicos e, ao escut-los, ao perceber ($%
seu cinismo, sentia-se cnico tambm. Parecia-lhe quft
passara a ter maior experincia da vida. Que aumenti
tara as suas armas de defesa. Que podia prever, coro
mais facilidade do que outrora, as reaces dos seus
semelhantes. Como advogado, isso carreara-lhe bene-
A CURVA DA ESTRADA
443
fcios. Ficara at a dever a essa evoluo alguns xitos nos tribunais.
A sua prosperidade profissional comeara, porm, a provocar actos e murmuraes de despe
ito. Ele j os esperava, mas no em Rianzuela e em Pujol. companheiros desde a Unive
rsidade, confidentes de muitos anos, julgava conhec-los bem e indignara-se com a
ideia de que, apesar de tudo, ainda havia, dentro dele, ingnuas admisses. "So tambm
advogados e, portanto, devia t-lo previsto". Depois, tentara ainda justific-los. P
ensando nele prprio, conclura que a inveja, como todas as expresses inferiores da a
lma humana, era um sentimento domstico, que no se desenvolvia nem no tempo nem no
espao, ao contrrio da admirao, que vencia todas as fronteiras e todas as pocas. Rianz
uela e Pujol no iam, evidentemente, invejar o imperador do Japo, que era poderoso
e rico, mas estava longe; como no se invejava a oratria de Castelar, que estava mo
rto, e sim a de Indalecio Prieto ou a de Alcal Zamora, embora fosse menos brilhan
te do que a daquele.
Todas estas consideraes no haviam tido, porm, outro valor do que o de um solilquio di
vagativo em horas solitrias. "Talvez eu sentisse a mesma coisa se fosse como eles
e estivesse na situao deles" admitiu, transferindo-se momentaneamente para as al
mas de Rianzuela e de Pujol. Mas enquanto essa hiptese no derramava nenhum amargor
sobre o seu esprito, a atitude dos outros deixara-lhe um azedume duradoiro.
Entretanto, na sede socialista, Zornoza progredia. Sempre laborioso, ele gastava
ali os seus dias e grande parte das noites; quando Soriano l ia, no s o encontrava
, mas encontrava tambm a sua aco, a sua interferncia nos vrios pormenores da vida par
tidria. Os prprios contnuos se lhe referiam com um torn mais respeitoso do que ao s
ecretrio-geral, bom homem, velho socialista, mas um pouco indolente e passa-culpa
s. Soriano havia pensado que as papoilas tm uma vida efmera nos trigais onde, pela
sua cor, se destacam
l
444
A CURVA DA ESTRADA
* facilmente; que no valia, pois, a pena tentar se"
as papoilas, porque elas so quase to frgeis como"
asas das borboletas e morrem, por si prprias, uM
mesmo de o trigo ser colhido." Verificara, porm, KJ|
se enganara. A popularidade de Zornoza consolidava*
e mesmo na direco do Partido, entre os chefes IUB
velhos, parecia no existirem j as subtis discordn"|l
que Soriano julgara ter observado a princpio. Dir-sJ
que um novo vigor entrara ali. O Partido recupeul
o seu idealismo de outrora, a fora combativa e exr)J|
siva que nos ltimos anos havia diminudo. Nas rn
nies empregava-se uma linguagem mais decidida; ham
mesmo expresses que nunca tinham feito parte 4a
vocabulrio habitual; os intelectuais ouviam, limpavSm
vagarosamente as lunetas e concordavam. Soriano t^jB
tara adaptar-se, pensando nos seus interesses; mas, affl
sar das precaues que tomava, mantinha, de quanjl
em quando, silncios de que, depois, se arrependia -0
dava demasiado tarde o seu aplauso. Zornoza traiH
va-o cordialmente, mas ele sentia que Zornoza adiw
nhava o seu estado de esprito e no contava com eW
que nos modos com que se lhe dirigia ou o escutava
havia, alm dum respeito convencional, uma parte dH
indulgncia que se tem para os veteranos. E isso irnl
tava-o mais. 'im
Fora nesse perodo que adquirira a sua casa edH
So Rafael. Os transportes para l eram, ento, defflj
cientes e, depois de comprar a vivenda, decidira cofflfl
prar tambm um automvel. O acto levantara, porerffljfjj
crticas humorsticas e at caricaturas nos jornais dia
Primo de Rivera. Mas de onde lhe provinham notcia^j
de maiores comentrios era, justamente, dos meios socia^fj
listas. Pepe Martinez, a quem, nesse tempo, ele passawfl
a chamar "Ama da alma", tentara defend-lo, discreta i
e indirectamente, num artigo que publicara em "La l
Libertad" sobre a Hungria: "O que este ou aquele tem,1 si
sobretudo se foi conseguido com trabalho honesto, no i
interessa; o que interessa o que a grande maioria no :
tem. No bom socialista aquele que deseja apenas,
por uma espcie de sentimento de inveja e de vingana,
A CURVA DA ESTRADA
445
baixar o nvel de vida de alguns, mas sim aquele que luta para levantar o nvel de v
ida de todos. So mais de admirar os que, tendo alguma coisa a perder, trabalham,
apesar disso, pelo socialismo, do que aqueles que, sendo deserdados de bens, com
o socialismo s tero a ganhar". No obstante aquelas afirmaes de pepe Martinez, as crti
cas sua situao material continuaram. Ele tinha-as previsto e, por isso mesmo, comp
rara, prudentemente, um carro usado, que levantasse menos despeites. Mas essa pr
ecauo nada evitara. Raro dia se passava sem que amigo ou conhecido lhe viesse suss
urrar que Fulano ou Beltrano havia dito que ele "j estava feito um burgus", que "e
stava rico". A princpio, essas ironias pareciam-lhe sem valor algum; ele prprio as
fizera, muitas vezes, em relao a outros polticos, mesmo a outros socialistas. Pouc
o a pouco, porm, comeara a enfurecer-se com aquilo, a sentir um rancor desdenhoso,
que procurava esconder, mas que brotava, como um jacto cido, da eminncia em que e
le prprio se julgava situado. Recordava-se, nessas horas, da sua importncia e indi
gnava-se mais.
Para no arruinar a autoridade moral que pretendia ter, vendera o automvel. Vendera
-o mas, ao faz-lo, sentira que procedia sob uma presso estranha, que coarctava a s
ua liberdade e o humilhava. Outrora, em homenagem s suas ideias, recusara, muitas
vezes, a defesa de causas que lhe pareciam indignas e que outros advogados acei
tavam com entusiasmo, pelos gordos proventos que elas lhes traziam. Ento, nenhuma
dessas renncias lhe dera uma sensao de sacrifcio; produziam-lhe, ao contrrio, orgulh
o pessoal, a volpia de se haver sacrificado pelo seu ideal. com o automvel fora di
ferente e quedara ressentido. Por exsudao de inveja e coleios de m-f julgara quantos
comentrios faceciosos aos seus ouvidos tinham arribado. E, com isso, pusera-se a
justificar-se e a absolver-se do divrcio que entre ele e os outros no seu esprito
se vinha operando.
Para ele, anteriormente, um caluniador, um invejoso, um ingrato, esta torpe ambio,
aquela alma vil,
446
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
447
* constituam casos isolados em si prprios, sem refejj
directa com a grande massa annima de seres huina
que ele defendia, de seres que no tinham, pw
circunstncia, nomes individuais e eram apena^a
seu vasto conjunto, uma causa clamando justia, l
sabia que os homens que convivem connosco, os hoflj
cujos defeitos e qualidades, dores e alegrias, nosl
familiares, se diminuem e perdem a sua aurola poffl
s pelo facto de os conhecermos de perto. Os hoif
que conviviam com ele, sujeitos a todos os condiciM
lismos da sua natureza, como os sismgrafos o ei
a todas as vibraes de que no so responsveis, ewj
uma coisa; a Humanidade era outra. Esta apresei"
va-se-lhe com um aspecto romntico, um romantilj
que ressumava das prprias injustias, das prpM
violncias, das espoliaes e das tiranias que ela SW
h milnios. Ele no podia evoc-la sem sentir a me"
fogosa simpatia que se tem por todo o mrtir e a revcB
que provoca todo o martrio. II
Isso, porm, passara. Pertencia a tempos que fll
haviam amadurecido e dos quais se, por um lado, ."M
tinha saudades, por outro tinha arrependimento. T<
nara-se calculista, prudente, reservado e o seu esprJM
comeara a fundir o homem na Humanidade; com.^1
integrasse a sombra no objecto que a produz. Pnid|
piara, depois, a dividir a Humanidade em homens, */
como se divide em gomos um fruto. E cada homl||
lhe surgira, ento, como tendo, em potncia, a capU
cidade de fazer os mesmos actos daqueles que ele reprW
vava. O seu cepticismo sobre alguns fora generaliza"
do-se e ele j no tentava conciliar, como fizera 9m
princpio, a f e o entusiasmo de outrora com es9"
espcie de nova perspiccia que nele havia nascido!
Muitas vezes perguntara a si mesmo se o fenmeno Sm
produzira merc da atitude de Rianzuela e de PujoM
do desprezo moral que lhe haviam despertado os setsj
novos clientes ou do caso do automvel. Mas logo IbW
parecera que aquilo fora um gotejar de muitos anosfl
nas cavernas do seu esprito, um lento trabalho dei
cristalizao. Tudo isso se apresentava de forma corai \
plexa e no cabia na sntese duma resposta. Ele habituara-se, por fim, ao seu novo e
stado psicolgico. Este mostrava-se j com a irremediabilidade do que passou a ser n
ormal e a ele parecia absurdo que algum bombardeasse uma muralha de granito saben
do que as suas bombardas eram de borracha.
medida, porm, que se ia desinteressando dos homens em geral, interessava-se, cada
vez mais, por alguns homens em particular por aqueles que ocupavam altos lugar
es no Partido. Zornoza, que inicialmente havia aglutinado e impelido para novas
marchas todas as boas vontades, comeara a topar algumas caladas resistncias. As su
as ideias e sugestes j no encontravam, entre todos os chefes, os silncios condescend
entes ou a aprovao verbal que recebiam, quase sempre, ao princpio. Lentamente, a em
ulso que ele provocara ia-se desfazendo e cada vez se tornavam mais ntidas duas co
ortes dentro do Partido: a que, depois de ter avanado at a cancela, na cancela se
quedara espera de que o dia nascesse e a outra, que se metia resolutamente s trev
as do caminho, para ir acordar o sol por detrs das montanhas. Olmedilla, Rienda,
Acvalo, San Martin, Soriano e alguns mais, haviam-se sentido, pouco a pouco, liga
dos pelo mesmo cinturo. Entretanto, o Partido continuava prspero como nunca, com a
s suas esperanas cada vez mais justificadas e reverdecidas e o nmero dos seus adep
tos aumentando sempre. Vendo-se discretamente apoiado pelo grupo dos moderados,
Soriano perdera a sensao de isolamento que o havia detido at ali; e, nas vrias discu
sses partidrias, era dos que mais combatia Zornoza e a quantos o acompanhavam. A s
uprema direco do Partido procurava nianter-se neutral e conciliadora perante as lu
tas dessas duas correntes e esforava-se para que elas no se tornassem pblicas. J nes
se tempo Soriano invejava uns e descria dos outros, mas dir-se-ia que o seu prpri
o cepticismo, para se ocultar, necessitava daquelas controvrsias. Nesses momentos
parecia-lhe que, procedendo assim, se fazia valer, reavia a sua importncia
448
A CURVA DA ESTRADA
f anterior e alargava o seu lugar restringido. M|
vezes, Olmedilla intervinha, propondo o meio-t
Ele, ento, verificando que os outros nem semprj
davam um apoio decidido e frequentemente tarnf
discordavam dele, considerava que talvez estivesse afi
judicar o seu futuro e durante uns dias retraa-sej
dentemente. Mas logo que saa da central socialista^
tava a esmoer o seu cepticismo e os seus receiosj
receio de confessar os seus receios e o seu cepticin
S noite, ao jantar, com a irm e com o filho d
se sentia mais a seu aprazimento. Mercedes e E
adivinhando que se tornara mole a spera terral
outrora, por tudo e por nada faziam aluses deprdl
tivas aos socialistas. E ele que, at ento, no con
tira aquilo, ouvia, em silncio, essas palavras, conti
tomasse um medicamento. -I
Nessa poca, passara a dedicar-se, cada vez na
sua casa de So Rafael. Ia para l todos os sbal
e, de serrote ou de martelo na mo, entretinha"
durante os domingos, a aumentar as comodidades J
vivenda, prega aqui, serra acol, aperfeioa alm, ca
semana preocupado com um novo pormenor, um njsj
mvel a comprar, um estofo a substituir. Alguni
vezes, ele mesmo dava conta do significado dos sm
actuais prazeres e preferncias, que eram diferentes m
anteriores. "Estou velho" dizia a si prprio. Mas eii
ideia no se apresentava como um apaziguamentdl
sim como um conflito; no tinha o carcter dum
resignao e sim duma ansiedade. S num desejo aj
parecia integrar-se completamente: aproveitar a via
de todas as maneiras. Aplicar, entre os mais nova
todos os expedientes para aproveitar o que lhe restai!
de vida, como na infncia e na adolescncia se aplica"
todas as astcias para fruir a vida entre as difici
dades criadas pelos mais velhos. Mas essa prpria aia
bico estava cheia de contradies, pois ele verificai
que, apesar dos esforos que fazia e dos escrpulos qUl
ia abatendo, cada vez sentia menos entusiasmo, menOi
curiosidade do que no passado. Isso dava-se em nume!
rosos pormenores. At quando fora da ltima comdia
A CURVA DA ESTRADA
449
,je pirandelo representada em Madrid, que todos discutiam, ele no tivera pressa a
lguma em ir v-la. E, de outra vez, deixara sair do seu gabinete a Anita Calonge,
sem lhe dizer que a desejava. Vira-lhe nos olhos em fogo, na boca hmida, nos seus
lnguidos silncios, que ela esperava que ele lhe dissesse aquilo e ele no lho disse
ra. No lho dissera porque o seu temor de futuras complicaes e o seu comodismo foram
maiores do que o seu desejo. Anita Calonge, loira, delgada, coleante, seios peq
uenitos que nem duas metades de limes, era, justamente, o seu tipo de mulher; e,
logo que ela sara do gabinete, ele sofrera um novo desnimo, ao pensar que h cinco a
nos ainda, no perodo da sua fome outonal, no teria procedido assim.
Um dia, porm, um grande fulgor estendera-se, de repente, sobre a estrada de Soria
no. Ele voltara-se e vira que todos os espanhis estavam admirados perante aquele
novo sol que nascia, pacificamente, ao fim da recta. Mesmo os que mais haviam ac
reditado na vinda daquela manh, mesmo os que mais tinham lutado por ela, estavam
admirados de como esse dia desabrochava assim. No era ainda o sol com que muitos
sonhavam, mas julgava-se que essa luz precursora facilitaria a alvorada de outro
s. E surpresa sucedera o entusiasmo.
Soriano detivera-se no seu plano inclinado. O fervor com que a Repblica galvaniza
ra a Espanha e as possibilidades que abrira ao Partido Socialista e a ele prprio
tinham-no contagiado durante algum tempo. Essas densas massas populares que, lon
gos sculos oprimidas e espoliadas, cantavam delirantemente, nas ruas de Madrid, o
novo regime, no qual viam uma promessa de maior liberdade e de progresso social
, e at as felicitaes que ele recebia, haviam impressionado algumas das suas velhas
clulas esquecidas e parecia terem-lhe ressuscitado o estado de alma da juventude.
Assim, quando, numa das sesses das Constituintes, ele defendera a reforma agrria
e o ttulo de "Repblica dos Trabalhadores", as suas palavras eram sinceras. Mas, de
pois disso, dera-se nele uma nova mudana. Outros
15 Vol. Ill
45o
A CURVA DA ESTRADA
chefes socialistas haviam sido feitos ministros, erKjl
* ele no passara de deputado. O directrio dewj
justificara essa escolha com o argumento de - $
Partido devia exibir primeiro os seus valores tjfi
tuais ou aqueles militantes que eram mais confiei
no estrangeiro, pelo prestgio que uns e outr
trariam dentro e fora de Espanha. Isso parecei!
que, alm de o no considerarem intelectual, o tffl
por um elemento secundrio, preferindo ao realr1
tgio dele junto das classes populares, um hiptl
prestgio a obter junto das classes burguesas. Ew
lhe disseram que tambm Zornoza se sacrificavif
fazia voluntariamente; em vo lhe afirmaram qul
Zornoza e outros mais quedariam como uma pre
reserva do Partido; em vo lhe garantiram isso,1-^
no evitaram que ele ficasse despeitado. >-n
Era deste ltimo perodo que Soriano se lembffl
com frequncia, como se lembra o acidente qu6>rjB
duziu uma mutilao irremedivel. E, agora, ao reij
d-lo mais uma vez, a sua clera pretrita ressitfjj
"No tinham tido nenhuma considerao por ele,lj
nhuma! Pois ele no podia ser colocado no rnSl
plano de Zornoza. Mas aquilo, apesar de tudo, 'm
fora nada; aquilo tinha pouca importncia compari
com o que acontecera depois. E ainda o Olmedjjl
queria que ele recuasse!..." -^J
Soriano olhou mais uma vez para o telefone e sdn
o telefone os seus olhos ficaram, algum tempo, paradll
Depois, tirou lentamente o relgio do bolso e lefaw
mente tambm voltou a guard-lo. Durante uns segtiB
dos visionou a imagem de Gonzalez e, em seguida, a V
Zornoza. Logo se sobreps a de Ballesteros. ParM
a Soriano que tornava a ouvir os passos de Pepe Ol^B
dilla e de Valero Rienda a descerem as escadas. B|J
como se Zornoza fosse entre eles. E ele no poSJ
evocar Zornoza sem se sentir humilhado. "J bast-J
monologou. Levantou-se e monologou de novo: "JJJ[
basta!"
A CURVA DA ESTRADA
451
Soriano atravessou a sala de visitas, e no princpio j0 corredor, chamou:
Ramona! Pareceu-lhe que a sua voz era demasiado baixa e gritou: Ramona! O almoo
?
A criada entreabriu a porta da cozinha:
Est quase pronto. um momento.
Ramona ia a fechar a porta quando Mercedes rompeu no corredor, vinda do seu quar
to, e a admoestou: '
Ento ainda no est pronto ? A uma hora destas e o senhor ainda tem de esperar? Que
esteve voc a fazer ?
A culpa no minha! Eu bem disse senhorita que no tinha tempo de limpar os metais es
ta manh. Mas a senhorita teimou!...
Aquelas velhas querelas entre Mercedes e a criada tinham aumentado nos ltimos tem
pos. Mas nunca haviam parecido a Soriano to inoportunas e nunca lhe desagradaram
tanto como nesse momento. Ele entrou na casa de banho e ps-se a lavar as mos. Da c
ozinha continuava a chegar a voz irritada de Mercedes a repreender a criada.
Enervado, Soriano dirigiu-se para a sala de jantar e sentou-se. Mercedes chegou
pouco depois, ainda excitada:
insuportvel!exclamou.No tem emenda! No presta nenhuma ateno ao que lhe digo e at par
e que o faz de propsito.
preciso tambm ver que ela comea a estar velha e o trabalho da casa muito para uma
pessoa s desculpou Soriano.
Qual muito! Se ela o fizesse com ordem, o tempo chegava-lhe perfeitamente. Mas
ela procede como se fosse a dona da casa.
O episdio continuava a desagradar a Soriano e ele tentou fech-lo:
O Pao ?
Hoje, de manh, disse-me que no viria almoar. Soriano no perguntou mais nada. Mercede
s pensou, novamente, que o sobrinho parecia zangado com
452
A CURVA DA ESTRADA
* i
ela quando lhe dissera aquilo, antes de sair de S
E essa ideia apoquentou-a. >1
De esprito errando longe dali, os dedos de Sorj
tamborilavam distraidamente na mesa quando a cri
entrou com a travessa do peixe. Ramona servi
Mercedes, servira-o a ele e retirara-se. J
Soriano comia lentamente e em silncio. Mer4i|
olhou-o e viu que a sua expresso era a desses q
em que se lhe no arrancava palavra hora das rjj
coes. Contudo, ela sentia-se ansiosa de que ele faial
Pouco antes, tinha-se posto a escutar porta do esl
trio quando Olmedilla e Rienda l se encontrava
Mas s ouvira palavras soltas, porque eles, nesse J
mento, falavam baixo e afastados da porta. A c
altura, percebera que um deles se levantava e, enfl
receando que a surpreendessem ali, partira rapidamj
Agora, Mercedes lamentava a ausncia do sobriiffl
Nunca lhe parecera que Pao lhe fazia tanta fai
como nesse dia. Se estivesse ali, tudo seria mais f|
Mercedes voltou a mirar Soriano. O irmo tinha
cabea vergada e dir-se-ia mais distante de espirj
do que Pao o estava de corpo. -a
E ento ? Que se passou ? arriscou ela, qua a ocasio lhe pareceu propcia. "f
Soriano ergueu os olhos: 9
Ento, o qu ? *J
Que te disseram, o Olmedilla e o Rienda ? -l
Nada respondeu ele, com uma voz de detrij da muralha que no deixava abertura par
a mais p guntas. .... J
Soriano havia decidido no ir, tambm nessa tara ao seu escritrio de advogado. Mas, a
gora, sentia necei sidade de espairecer, de sair de casa, de sair de "! prprio. d
,
4! t
!
8
A CURVA DA ESTRADA
VI
453
SORIANO era popular em Madrid. Durante os ltimos anos da Monarquia e os primeiros
da Repblica, muitos outros prestgios polticos se haviam criado em Espanha, cavalei
ros combativos que tinham rompido da luz agonizante dum poente para o do,rso dum
a montanha em aurora. Nenhum deles, porm, havia diminudo a popularidade de Soriano
. A sua aura vinha do tempo das lutas de Pablo Iglsias e adensara-se com as vrias
prises que ele sofrera e as bravas e romnticas atitudes que, por vezes, tomara. A
populao conhecia-o no s pelo seu nome, mas, tambm, pelo seu fsico. E Soriano sabia-o.
Adivinhava-o nos olhos dos transeuntes que se cruzavam com ele e no movimento d
as cabeas que se voltavam quando passava nas ruas. Uns apontavam-no aos outros co
mo se costumava apontar os toureiros famosos e o velho dramaturgo Jacinto Benave
nte. Muitas vezes, Soriano tinha de corresponder a saudaes de pessoas que no conhec
ia ou de quem no se recordava. Frequentemente, tambm, o seu caminho era cortado po
r figuras que lhe apertavam a mo e lhe falavam como se tivessem com ele longa int
imidade. Faziam-no, quase sempre, para o felicitar pelas suas intervenes no Parlam
ento ou mesmo por actos de que ele j se esquecera; e, s vezes, alguns detinham-se
a tecer comentrios polticos, enquanto ele Perguntava a si prprio como se chamariam
esses interlocutores ocasionais. No era, porm, s nas ruas que topava annimas simpati
as. Se entrava num estabelecimento comercial, havia sempre um empregado que cprr
ia ao seu encontro com uma afabilidade que no tjnha para os demais clientes: "Que
deseja usted, Don lvaro ?" To certo estava Soriano de que o identificariam, mesmo
em caso de morte por acidente, que deixara, h muito tempo, de ocupar espao na sua
carteira com a cdula pessoal.
.
454
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
* Essa popularidade j no o envaidecia, porqqjj
habituara aos seus efeitos, como as mulheres bei"
habituam s homenagens e ao erotismo que a~m
beleza provoca; era-lhe, contudo, grato saber que"
existia e perdoava facilmente, mesmo quando ia a$9
sado, queles que lhe barravam o passo, para o sai"
para lhe dizer isto ou aquilo, embora se tratasse, qj
sempre, de palavras que ele tinha por convenciijM
e inteis. <
Agora, porm, descendo a Calle de Alcal, a &a
nho do seu escritrio, notara que Emlio CasamjjM
membro do partido de A/afia, passara por ele se|fl
cumprimentar. Soriano admitiu que o outro njfl
tivesse visto. "Que pode interessar aos correligion|M
de Azana que eu abandone ou no o Partido S"l
lista ?" perguntou a si prprio. dfj
Mais adiante, saa do Caf Fornos outra figura corijM
cida. Era Jlio Cuartero, velho funcionrio pbdH
que ingressara, h anos, no socialismo. Cuartero viiajB
no havia dvida, tanto que hesitara no andame|M
e os seus olhos careciam de naturalidade quando |M
baixaram subitamente. ^1
Soriano lembrou-se das cartas que recebera de maaH
e, depois, tentou preocupar-se com o sol que cobrwM
rua. "Est um dia bonito. Nem parece de Inverno)"!
pensou, desejando criar um estado de esprito desdjj
dado. Ocorreu-lhe dar um passeio no Retiro, sobJjM
rvores, longe dos homens. Logo, porm, sentiu queslH
lhe era desagradvel andar ali, entre a multido qll
enchia os passeios de Alcal, mais desprazvel lhe sesfiB
ainda encontrar-se sozinho consigo prprio, com aqpOJB
nevoeiro que rolava, em ondas, dentro dele, e sriB
nada que fazer, sem nada que o distrasse. "Que'"B
lixem!" monologou. iflB
Junto da confluncia com a Gran Via, algum 1MB
estendeu, enfim, a mo:
Como tem passado uste, Don lvaro ? AindJ| ontem tive ^uma discusso com um amigo meu
pc^f sua causa. verdade que uste vai abandonar o s" Partido ? No verdade, pois no ?
O outro olhara-ffl" |
455
ein sondagem, fizera uma pausa e acrescentara: Se Q abandonasse, porque l teria
as suas razes; mas no o creio.
Era uma das muitas pessoas de quem Soriano ignorava o nome. Ele respondeu-lhe ev
asivamente, voltou a apertar-lhe a mo e alargou o passo, contrafeito. Havia tido,
pouco antes, vontade de sair de casa, de furtar-se s suas preocupaes, de espairece
r a sua ignio; agora, era o contrrio, agora sentia o desejo de abandonar imediatame
nte as ruas, de evitar novos encontros, de tentar absorver-se no trabalho. Meteu
Calle Barquillo e entrou no seu escritrio. Antes mesmo de ter aberto completamen
te a porta da antecmara, ouviu a voz da empregada dizer:
No desligue, senhorita. Espere um momento, que Don lvaro acaba de chegar... E,
para ele: E a senhorita Mercedes.
Soriano no se mostrou apressado, pois a irm telefonava-lhe muitas vezes por motivo
s insignificantes.
Ligue l para dentro disse empregada. Entrou no seu gabinete, tirou o chapu, tirou
o
sobretudo e sentou-se secretria. S depois disso pegou no auscultador. Mercedes, co
m um torn levemente excitado, comunicou-lhe:
O Zornoza telefonou para aqui h um bocadinho. Queria falar contigo. Foi a Ramona
quem o atendeu. Ela disse-lhe que tu tinhas ido para o escritrio. Provavelmente e
le ir a. Previno-te, para teres tempo de sares, no caso de no quereres receb-lo...
O estado de esprito de Soriano voltou a modificar-se. Sentiu-se subitamente lison
jeado, quase feliz, com aquela notcia. Ao mesmo tempo, contrariava-o a sugesto que
a irm lhe dera. "Para que diabo estava ela sempre a meter-se nas suas coisas?"
Soriano tentou interessar-se pelos papis que tinha sobie a secretria. Tentou vrias
vezes. Mas a sua ateno no se prendia, volvida como estava para os rudos da antecmara
e para o tumulto que lhe ia no crebro. De quando em quando, duvidava que Zornoza
viesse. Outras vezes, procurava adivinhar o que
456
A CURVA DA ESTRADA
^ ele lhe quereria. "Talvez no viesse, talvez lhe>aj
fonasse somente, como fizera para sua casa. Mal
viesse, havia de receb-lo como ele merecia". E.raj
gozando a atitude que iria tomar, estava cadaJ
mais ansioso de que o outro aparecesse. , J
Mercedes no se havia enganado: Zornoza chej
efectivamente, pouco depois. Soriano mandou-o eij
logo que a empregada lho anunciou. $1
Era um homem de estatura me e feies pa
lares, que marcavam nitidamente a sua imediata asa
dncia campesina. A dureza da boca contrastava, ponl
com uns olhos claros, quase lquidos, quase doca
idealistas. Ao entrar, estendeu resolutamente a mj
Soriano, como se estivesse certo de que este rti"
recusaria e ele tivesse grande pressa de chegar a um m
Como est ustedP m
E usted? m Nunca esta conveno havia parecido a SorijH
to convencional como agora. Durante um segujl sentiu, com desprazer, a mo do outro
entre a sugjj mo bem musculada, forte, voluntariosa, mo que p3m cia ser transmiss
ora de toda a personalidade de Zorno
Sente-se. ,m Zornoza sentou-se. E, com a mesma deciso dei
pouco, comeou: l
Desculpe-me vir tomar-lhe tempo. Mas o 01 dilla disse-me que no foi usted quem de
u a not" que o "Heraldo" publicou. Decerto usted j a desment mas... M
Aqueles despachados modos, to diferentes dos qil ele havia, momentos antes, imagi
nado, para a circudl tncia, e aquele torn onde se sentia urna autoridad| jacente,
j muito sua conhecida, enervaram Soriaij" que interrompeu, friamente: l*
No, senhor; no desmenti. J Zornoza cerrou os lbios, um momento; e Ioga
como se j esperasse aquilo, volveu, com um toiM profundo: 'Ta
Tem havido desinteligncias entre ns, mas, para mim, o que tem valor no somos ns e si
m as ideiasf
A CURVA DA ESTRADA
457
aue o nosso Partido defende. Por isso vim aqui estender-lhe a mo. No sei se usted,
no meu caso, faria o mesmo, mas isso no importa. Parece que a sua atitude deve-s
e, sobretudo, a usted julgar que tem agravos de mim; se, com efeito, assim , aqui
estou a prestar-lhe homenagem. Sem dvida, ns divergimos em muitos pontos, mas eu
sei que mesmo num partido, especialmente quando grande como o nosso, nem todos p
odem estar sempre de acordo. O essencial que todos se mantenham dentro das linha
s gerais da doutrina.
Zornoza deteve-se, espera de que Soriano respondesse; este, porm, continuou calad
o.
Venho convid-lo a discursar na sesso dedicada a Iglsias. Se quiser, pode-se publica
r, amanh, uma nota, dizendo que usted, por falta de sade ou por excesso de trabalh
o, no havia aceitado antes o convite, mas que, para responder a certos boatos
que correm sobre si, decidiu agora aceit-lo. E fica, assim, explicado o caso...
Voltou a deter-se. E no silncio que se fez um silncio que ele sentia ser proposit
ado e agressivo os seus olhos ergueram-se, perscrutadores, para os de Soriano. F
ixou-os um momento e, depois, prosseguiu:
Certamente est pensando que eu sou um cnico, porque no o tendo ns convidado logo de
princpio para a sesso, o fazemos agora, perante a sua ameaa de sair do Partido. No s
e trata de ser ou no ser cnico; pois usted, decerto, no acredita que fao tudo isto p
or prazer. O que se trata de servir um ideal e eu estou decidido no s a servi-lo,
mas at a sacrificar-me por ele, mesmo que se pense mal de mim. No o convidmos antes
, porque pretendamos e pretendemos ainda dar sesso um aspecto francamente revoluci
onrio, pois, se continuamos como at aqui, arriscamo-nos a ver as juventudes social
istas passarem-se, e com razo, para organizaes mais avanadas. Ora, usted no gostari
a, provavelmente, de tomar parte numa manifestao desse gnero, dada a orientao
que tem seguido nos ltimos tempos. Mas, agora, a
458
A CURVA DA ESTRADA
, situao outra. O directrio verificou esta IQJ
que, para evitar os prejuzos da especulao qi|
nossos adversrios fariam, neste momento, com -a|
sada do Partido, s havia duas solues. Umj
ns exautor-lo a si, na sesso de amanh, coisak
no desejaramos fazer, pois seria bastante desj
dvel para todos ns, que nos lembramos do impi
que usted deu, outrora, ao socialismo. A outra 'M
usted falar amanh sobre Iglsias e eu dizer, antes djj
algumas palavras a seu respeito, a recordar justanJ
os seus servios nossa causa. esta soluoi
venho propor-lhe. Ela seria como que a nossa rfl
ciliao em pblico e o Partido sairia dela mais fa
e usted com o seu prestgio intacto. -I
Zornoza acendeu um cigarro. E esperou. Ma;Jj
riano manteve-se calado. Zornoza esperou ainda"!
depois,Adisse, com outro torn: ^m
um pedido que lhe fao... Ji
you pensar respondeu Soriano. ri
Talvez usted tenha ainda tempo de desmeijfflj hoje mesmo, a notcia do "Heraldo"..
. r J
you tambm pensar nisso repetiu Sorianoll Mas no me parece que possa ser ainda hoje
... J
Zornoza insistiu: ta
Convinha que fosse. J se estranhou que os JOT nais da manh no trouxessem o seu desm
entido. nj como foi o "Heraldo" que publicou a notcia, compree" de-se que seja ele
o primeiro a rectific-la... AgorS se se passa mais um dia... tM
Hei-de ver isso... II Zornoza levantou-se:
tm
O directrio volta a reunir-se s cinco hortl antes de irmos para o Parlamento. Agrad
ecia-lhe qu" nos dissesse, at l, se aceita ou no o nosso coifefl vite. ,rfl
Soriano inclinou ligeiramente a cabea. Zornozfl tinha pressa de sair; mas a ele prp
rio tudo aquilo"! pareceu demasiado rpido e demasiado seco. Vol^ou-sl novamente pa
ra Soriano, vacilou um instante e lanou/ J em torn amvel:
A CURVA DA ESTRADA
459
No sei se usted deseja dizer ainda mais alguma
coisa.
Soriano levantou-se tambm:
No tenho mais nada a dizer.
Desta vez, perante essa frieza de Soriano, Zornoza hesitou em apertar-lhe a mo; m
as apertou-lha e saiu com o mesmo passo decidido com que havia entrado.
Soriano acompanhou-o at a porta da antecmara. E, quando ele desapareceu, preveniu
a empregada:
No estou hoje para mais ningum. Nem mesmo pelo telefone.
Fechou atrs de si a porta e comeou a transitar no seu gabinete, dum lado para o ou
tro. Estava contente consigo prprio, depois das horas inquietas que havia passado
. Acendeu um charuto, como sempre que estava contente, e considerou que havia si
do digno e sbrio perante Zornoza. Este devia ter ficado humilhado com a maneira c
omo ele o recebera e com as poucas palavras que lhe dissera; mas Zornoza precisa
va dessa lio.
Soriano pensou, em seguida, que tinha agora ainda mais fora do que quando, de man
h, fora procurado por Olmedilla e Rienda. Todos os que lhe haviam escrito, a insu
lt-lo, todos os que haviam deixado de o cumprimentar, o tal Hoyos que lhe telegra
fara, todos os outros que j o apregoavam, decerto, como um traidor, viriam a sent
ir-se castigados pela sua prpria conduta, se ele o quisesse. Tudo, agora, dependi
a dele. O prprio Zornoza se vergara e era bem possvel que, aps aquela experincia, cu
idasse, no futuro, de proceder para com ele de maneira diferente do que at ali fi
zera.
Soriano viu-se, a si mesmo, a falar na homenagem a Iglsias. E admitiu que teria xi
to, como sempre. Ele era bom orador; dentro do Partido, somente Prieto e o prprio
Zornoza o poderiam igualar. Mas Zornoza falava como iim energmeno e s ao facto de
saber desencadear fceis paixes devia os seus triunfos oratrios. Ele tambm fora assi
m na juventude; depois, corrigira-se, empregando um estilo cada vez mais ele-
46o
A CURVA DA ESTRADA
f vado, enquanto Zornoza continuara a ser semra
mesmo desde o primeiro dia em que o ouvira arei
Mos atrs das costas, charuto na boca, caminha
ora da porta para a sacada, ora da sacada para a p
Soriano principiou a imaginar o discurso que poq
fazer no dia seguinte. Era como se a sua deforma
profissional o impelisse para aquilo. Mas, ao conta
do que costumava suceder-lhe, logo nas primeiras fm
encontrou dificuldades. Lembrou-se de que teria|
comear por agradecer as palavras que Zornoza m
vesse dito a seu favor. Teria de voltar a fazer, ca
quando tinha dezasseis anos, uma profisso de f. W
de desmentir tudo quanto os outros haviam afirmj
ou insinuado contra ele. it
Soriano pensou que seria prefervel deixar para mj
tarde a composio da abertura do discurso. Penm
que poderia mesmo escrev-la, para melhor ponde!
e limitar todas as palavras a dizer. >J
A sua imaginao verbal voltou-se para o carcj
de Iglsias. A tudo lhe surgia facilmente. As fraj
formavam-se com rapidez e sentido empolgante. gil
dava-lhe mesmo repeti-las, mentalmente, duas e ta
vezes, certo de que, com elas, arrebataria o auditora!
Logo, porm, que pretendeu evocar as massas huaji
nas que Iglsias fascinava e as consequncias dea|
grande movimento popular, as dificuldades voltaram <i
novo. Maldispunha-o a ideia de falar daquilo. SeJ
como se fosse falar contra ele mesmo. Louvar Iglsiii
e a sua poca era, tambm, louvar o passado em
prprio; era negar o seu presente. rjj
Soriano abandonou a composio do discurso: "S
me decidir a faz-lo, escrev-lo-ei logo noite". E seiUJ
tou-se, indeciso. As vagas do seu mar cobriam, da
quando em quando, os recifes mais perigosos, mas nl
os destruam. Os recifes voltavam a ficar descobertos!
Ele sentia necessidade de tomar uma rota definitivas
de talhar direito a algures; mas, apesar disso, vacilava
sempre. O Partido Nacional era um porto seguro, mas^ <
para o atingir, teria de afrontar numerosos escolhos |
que ele via de longe; alm disso, o capito do porto j
A CURVA DA ESTRADA
461
havia-lhe dado, pouco antes, justamente no momento em <lue me ferecia ancoradoiro
, uma inesperada sensao de repugnncia, como se as suas guas se encontrassem infectad
as. Na outra margem estavam Zornoza e os seus e os obstculos no eram menores.
Soriano recordava-se de haver antipatizado com Zornoza logo que este lhe dissera
ser preciso dar ao Partido Socialista uma aco mais revolucionria do que at ali e el
e, temendo comprometer-se, no ousara afirmar imediatamente a sua discordncia com a
quilo. Nesse tempo, Zornoza ainda o tinha pelo mesmo homem de outrora e ele j no e
ra o mesmo. No o era, mas receava declar-lo. Pouco a pouco, porm, fora-se sentindo
com o direito de discordar. Parecia-lhe que a sua idade e a sua prpria categoria
lhe davam esse direito, por uma vontade subterrnea reclamado. E a sua oposio a Zorn
oza aumentara medida que este ampliava a sua popularidade, clamando, por toda a
parte, que os socialistas, se queriam ser, realmente, dignos desse nome, deviam
pr de banda todas as transigncias com a poltica burguesa e entestar directamente ca
usa proletria.
Quando, por fim, num dos vrios governos da Repblica, tinham dado a Soriano a pasta
do Comrcio e Indstria, a sua m vontade contra Zornoza diminura. Zornoza fazia parte
, ento, do directrio e no se opusera escolha do nome dele para ministro. Essa trgua
fora, porm, efmera. O prprio lugar, a aprovao dos funcionrios aos seus actos, as subse
rvincias de uns, as solicitaes de outros, a corte de muitos, davam a Soriano uma se
nsao de importncia que no se harmonizava com a ntima humilhao de ter de ocultar ou de
imitar as suas verdadeiras opinies. Parecia-lhe, s vezes, que os prprios braos do se
u cadeiro ministerial, quando neles pousava as mos, lhe impregnavam as mos e todo e
le duma nova energia. Tudo isso se produzia to involuntariamente como se produz o
ritmo do corao e, s vezes, apresentava-se mais forte do que os seus interesses polt
icos de momento, mais forte do que a sua prpria inteligncia.
462
A CURVA DA ESTRADA
Fora nesse perodo que os anarco-sindicalistas, ali$
* aos comunistas, haviam declarado nova greve. Err*
das muitas de que o Partido Nacional, sempre desj
de tais pretextos, se servia para atacar a Rep^j
Soriano pedira aos directores-gerais do ministrio iid
maes sobre as consequncias da suspenso do'3
balho na economia geral do pas. E os relatrios quel
trouxeram pintavam-lhe tudo a negras cores sob M
rs de algarismos. A greve afectava muitas indstil
no ressarcidas ainda das paragens anteriores. "
Pepe Martinez, que jantara com ele nesse dia, "ff
mara-lhe que as suas preocupaes eram exagerad^
os prejuzos da greve muito relativos. y
No essa, decerto, a opinio do Partido Nal
nal contestara Soriano. Eles dizem que ns dai"
cabo da Espanha e desta vez no lhes faltaro arfl
mentos. a
Pepe Martinez fixara-o demoradamente, com ufl
olhitos maliciosos: m
Tens a certeza de que pensas assim s poj
desejo de evitar as crticas que o Partido Nacioni
possa fazer aos socialistas ? > J
Ele encolhera os ombros. Parecera-lhe intil discuti
aquilo com Martinez, que no sabia nada de economia
No dia seguinte, o governo reunira-se. Era miri||
tro do Interior um militar, homem faanhudo, qu"
por hbito profissional e ainda por ter sido batido rm
guerra de Marrocos, s na fora acreditava. Tanta
dissera, tanto pelejara na sua poltrona, que o gabine
aprovara, por maioria, uma atitude de intransigncfli
perante os grevistas. E pouco depois mandara os guarwj
das-civis e de assalto tomarem as fbricas. Toda wj
Espanha se lembrava ainda do morticnio de campoi*!
neses em Casas Viejas, pela guarda-civil, e Zornozstl
Lara declarara imediatamente que os socialistas no" l
deviam actuar contra operrios seus irmos, fossen j
eles comunistas ou anarco-sindicalistas. Os outros mem* j
bros do directrio aceitaram esse critrio e, assim, orde- |
nara-se aos ministros socialistas que abandonassem o f
governo.
A CURVA DA ESTRADA
463
Soriano, ento, recusara-se a obedecer. Visto de dentro, o Ministrio do Comrcio e In
dstria parecia-Ihe muito diferente de quando ele o via de fora e os seus problema
s muito mais difceis. Ele desejava resolver a situao que os nmeros postos sobre a su
a secretaria lhe apresentavam e, para isso, carecia dos braos humanos que estavam
parados. Os nmeros haviam adquirido uma fora convincente de que ele, at a, desconhe
cia a influncia. Mas na reunio do directrio com os ministros, Zornoza pusera-se a d
efender os braos contra os nmeros. Para Soriano, o que Zornoza afirmava no constitua
novidade alguma. Ele mesmo proclamara aquilo muitas vezes, no s na sua juventude,
mas h poucos anos ainda. Naquele momento verificara, porm, que discordava do que
ele prprio ento dissera. Considerou que Zornoza. era novo de mais e que tinha pouc
a experincia da vida. Se conhecesse, como ele, o Ministrio do Comrcio e Indstria, de
certo falaria de outra maneira.
Para evitar maior escndalo, o directrio transigira em que Soriano se declarasse mi
nistro independente, sem representao do Partido. Mas todo o pas soubera, que os jor
nais o haviam gritado, das desinteligncias havidas.
Dois dias depois o governo caa no Parlamento. O Partido Socialista votara contra
ele e o Partido Nacional tambm, dado que a resistncia governamental greve tirava a
este o seu principal pretexto de combate a razo que dizia ter.
Soriano voltara, nessa noite, para sua casa, mais furioso e despeitado do que nu
nca. Tambm ele no sabia nada do Ministrio do Comrcio e Indstria quando fora para l, ma
s isso constitua regra tradicional entre os ministros. Em breve, porm, se apaixona
ra pelo cargo, apesar dos trabalhos que este dava normalmente e dos muitos outro
s que ele prprio criara. Interrompida a sua vida de advogado, dedicara-se inteira
mente quilo. Quando os funcionrios saam, ele ficava ainda no Ministrio com os seus s
ecretrios, continuava ali at alta madrugada e, muitas vezes,
464
CURVA DA ESTRADA
, volvia antes de os funcionrios entrarem. Aquilif
gava-o; ele lamentava, ao mesmo tempo, que gai
mais como advogado do que como ministro; im
porm, trabalhara com to plena satisfao, numi
sentira to contente depois de ter deixado de ser jol
Dir-se-ia ser aquilo que lhe faltava para a idad$i
tinha agora; dr-se-ia ser aquilo que ele procul
desde h muito, sem o saber; dir-se-ia ser naquilo"
ele se realizava integralmente. E no podia esqaJ
que fora Zornoza o principal responsvel do qu81
havia acontecido depois. >l
Soriano compreendera que o prestgio que lhefi
tava entre os seus correligionrios de tantos anos tm
diminudo. O prprio "El Socialista", jornal do Par"
deixara de se lhe referir. E "La Lucha", que se djj
independente, mas, na realidade, defendia sempfll
ala esquerda, havia-lhe feito duas aluses que na* l
permitiam dvida alguma sobre o que se pensava 4n|
Entretanto, o rgo do Partido Nacional colhia torn
as mars para lhe consignar discretas remessas dela
gios. A princpio, isso no o lisonjeava; ele sabia>4J
cicios louvaminheiros trazidos por tal vento o comMJ
metiam ainda mais. Acabara, contudo, por se habitOT
a essa nova posio. '*
Quando se encontrava com Ramn Ballesteros a
outros "nacionais", que haviam sido tambm ministr"
e discutiam os problemas da Espanha, muitas verijl
as suas opinies coincidiam, embora ele sentisse ailOT
pudor em o confessar. Logo comprovara que essa com
cidncia se produzia, afinal, com quase todos os ex-nB|
nistros dos vrios partidos, mesmo do Socialista. DepaM
de passarem pelos ministrios, algo que os irmanawl
se pegava sua mentalidade, como as asas dos insect<$|
se pegam s composies aucaradas. Compreendiam-W
melhor uns aos outros e entre eles falavam, mesnMB
sem o desejar, como se estivessem parte dos demais?
homens ou pertencessem a um grupo de iniciados. !*';
Uma tarde, na sua campanha contra os socialistas?
Ramn Ballesteros gritara no Parlamento: "De todo ,,
os ministros que esse funesto partido nos tem dado,' :
A CURVA DA ESTRADA
465
nico que, at hoje, se ops desordem em que o Socialismo lanou a Espanha, foi o senhor
Soriano e todos sabem o preo por que ele pagou isso". Na sua resposta, Zornoza no
o defendera. No pronunciara o nome dele, mas no ataque que fizera ao Partido Nac
ional sentia-se que o nome dele estava presente e condenada a sua atitude. A mai
oria dos deputados socialistas aplaudira Zornoza e os jornais polticos haviam esp
eculado largamente com o caso. >
Dois dias depois, Olmedilla procurara-o. Batera-lhe no ombro e dissera-lhe:
A embaixada no Mxico vai ficar vaga. No vejo que tenhamos, neste momento, pe
ssoa mais categorizada do que tu para esse lugar... E eu creio que o governo te
nomearia se o Partido te indicasse...
Ele reagira colericamente:
No aceito! O que vocs pretendem ver-se livres de mim, deportarem-me! Mas
eu no nasci ontem!
Olmedilla pusera-se a balbuciar:
Eu, lvaro... Tu sabes...
No digo que sejas tu. Digo os outros!
A bondade dos olhos de Olmedilla conseguira refazer-se, conseguira voltar daquel
e sbito voo de pnico a que as palavras de Soriano a tinham forado.
Parece-me que no tens razo. Tu sabes perfeitamente o que se diz. No quero acusar-te
; mas, enfim, tu sabes como procedeste... Ora, se estivesses ausenie uma tempora
da, isto passava. No Mxico h um governo revolucionrio e tu podes fazer um bom lugar
... E, quando regressasses, o ambiente seria outro. Alm de tudo o mais, embaixado
r um cargo importante...
Ele perguntara, sarcstico:
essa tambm a opinio de Zornoza ? Olmedilla contemplara-o um momento, com um ar
de pena por v-lo reagir assim:
. a dele e a de todos ns. E fazemo-lo com
0 desejo de te sermos teis.
No aceito! Ofeream esse presente ao Picon, pois eu sei que ele era o primitivo can
didato do Zornoza.
de
466
A CURVA DA ESTRADA
Olmedilla insistira ainda, mas inutilmente. >jjH
- No aceito! '*!
Tudo isso se tinha passado havia apenas algajH semanas. Depois, comeara a propaga
nda da sessdH homenagem memria de Pablo Iglsias e da v"H no mesmo dia, aos tmulos do
s socialistas morto&a^B sua causa. Soriano indignara-se novamente. TodxM^H biam
que ele fora um dos discpulos predilectoi^H Iglsias e um dos que mais contriburam p
ara difujH as suas teorias entre os espoliados e os oprimidti^B Espanha. Se algum
devia falar nessa pstuma nnH festao a Pablo Iglsias era ele e, contudo, nqH tinham c
onvidado. Entre os oradores escolhidos, c*l nomes ele vira nos jornais, figurava
, em primeiro li^H Zornoza Lara. Dos socialistas do tempo de Iglsiai|M falaria Ay
ala Sierra, mas esse mesmo inclua-se ijH aqueles que Zornoza dominava. -JH
Soriano olhou para o relgio. E pensou que tiljB de se decidir. Voltou ao discurso
que deveria profliH ciar na homenagem a Iglsias, se aceitasse a sugeS^B de Zorno
za. As frases comearam a vir-lhe de acjpB com a orientao do Partido. Mas, como h poti
lBJ cada uma que se constitua da v-lhe contrariedade JM vez de prazer. Ele procura
va, ento, outra frrfl$H mais evasiva, menos afirmativa; logo, porm, venM cava que s
e havia afastado do que o directrio prelsejB dia, do que ele prprio compreendia se
r necesslB dizer, se decidisse continuar no Partido. JlB
Pensou em Zornoza e concluiu que sentia meM" antipatia por ele, desde que se hu
milhara a vir ia"| ao seu gabinete. A questo no era, pois, com Zorn0"i| ao contrrio
do que havia julgado vrias vezes e mesial na manh desse dia, quando falara com Ol
medilla m Rienda. A questo era com o prprio socialismo e eifr com ele prprio. Sem dv
ida, Ramn Ballesteros estav* longe de lhe parecer um chefe consciencioso. Mas 19
Partido Nacional havia poucos elementos inteligentes, como acontecia, quase semp
re, nos partidos das "dire*9
A CURVA DA ESTRADA
467
tas", ele P0(iia. portanto, fazer carreira rapidamente. AO contrrio, no Partido S
ocialista, alm dos intelectuais, que se julgavam senhores da suprema sabedoria jo
Mundo, havia os chefes dos extremistas e dos morigerados e dos centristas e seu
s adeptos; havia ainda outros que tambm tinham passado frente dele; todos estavam
ansiosos de lugares de destaque e, depois do que acontecera, dificilmente lhe p
ermitiriam avanar entre eles. "J menti demasiado!" monologou, tentando legalizar-
se perante si prprio e reconciliar o que nele continuava em conflito.
Soriano volveu a examinar o relgio e pensou que lhe seria menos desagradvel transm
itir a sua deciso por intermdio de Olmedilla do que faz-lo directamente a Zornoza..
com essa ideia, ligou o telefone. De casa de Olmedilla disseram-lhe que este no
se encontrava l. Soriano ligou, ento, para a sede do Partido. E quando, finalmente
, ouviu a voz de Olmedilla, disse-lhe:
Peo-te que comuniques ao directrio que eu resolvi no aceitar o convite para a sesso
de amanh.
Ao largar o auscultador, lembrou-se de que o Parlamento j devia estar, quela hora,
a funcionar. Um momento, ele considerou a hiptese de ir ocupar a sua cadeira de
deputado, como de costume. Mas logo desistiu dessa ideia.
VII
_A porta da sua casa, Soriano hesitou. Faltava pouco para os jornais da noite
sarem. Mas esse pouco Parecia-lhe a mais na sua vida, um rabo do tempo ue ele no sa
bia como cortar.
Pensou em ir ver a Anita Calonge. Mulher de esprito e com aquele vago libido pair
ando entre eles dois, talvez o distrasse. Ela era tambm contra os socialistas, mas
as suas crticas tomavam sempre uma expres-
J
468
A CURVA DA ESTRADA
* so humorstica. Mesmo quando o criticava ajl
fazia-o com tanto encanto pessoal, com to sedq"
malcia, que, em vez de o magoar, o levava a ,jfl
um sorriso e o incitava a agradveis justas venB
quela hora, porm, Anita Calonge no de via.
em casa. Estaria, por certo, num dos bares eleg"S
de Madrid, de pernas cruzadas, um cigarro na -JB
estudadamente negligente, cercada de homens im
novos do que ele e do que ela, como era seu h"
Soriano voltou a considerar que os jornais no
dariam e decidiu-se a transpor a porta do prdio x"
morava. Na sua casa havia um grande silncio qu|l
ele entrou. Aquilo acontecia frequentemente, p&tm
Mercedes e Pao, tal como a gentil Calonge, passa
muitas tardes fora, nas pastelarias mundanas da qfl
tal. Mas, agora, esse silncio agravava-lhe o est"
de alma. -o"
Ramona! Ramona! rfl A velha criada apareceu ao fundo do longo Gm
redor, vinda da cozinha. -M
Traz-me os jornais, logo que chegarem. 'ol Ramona no estranhou a ordem. Al
gumas vfia|
nos dias de maior actividade poltica, tambm ele pel
os dirios antes de jantar. tB
Soriano tirou o chapu e dirigiu-se ao seu esfl
trio. Pareceu-lhe que, ali, a atmosfera estava pesaja
uma atmosfera de celeiro onde se deram fermentacB
pareceu-lhe que respirava mal, que carecia do ar fresa
de l de fora e abriu a janela. De baixo, chegouj
rumor das gentes que transitavam na Plaza Mayol
Noutros dias, Soriano conseguia trabalhar sem Qm
aquilo o perturbasse, to acostumado o seu ouvuj
se encontrava s vozes colectivas, que se fundem nifl
s sussurro, como de noite as luzes das cidades se fUJ
dem num s claro, que se v de longe. Agora, por
esse rudo ligava-se, no esprito dele, ideia de niuM
tdes e a ideia de multides causava-lhe um mal-estal
ainda maior do que o silncio da casa. Soriano fechdl
a janela. J*j
Ele havia trazido do seu escritrio de advogado op
A CURVA DA ESTRADA
469
papis
referentes ao caso de Mesonero. Tirou-os da
papeis iciv-i-"-.^ ~- --
casta, sentou-se secretria e tentou estudar a nova fase do processo. Mas a sua at
eno despegava-se constantemente das palavras ali escritas. Era uma abelha indiscip
linada, distrada, meio tonta, que se levantava do estame sem haver sugado o mel.
A sua ateno voava sempre para outras bandas.
Soriano ouviu, finalmente, passos no corredor. E foi com uma sensao de alvio que re
conheceu serem os de Mercedes. A irm aproximava-se com um andar discreto, como se
mpre que pretendia interromp-lo no seu trabalho sem lhe provocar mau-humor.
Pensei que no estivesses em casa disse ele,
ao v-la.
Estava no meu quarto. Estava deitada. Tive, esta tarde, dores de cabea, mas j e
stou melhor. E com outro torn: Viste o Pao ?
No. Porqu ?
Ele telefonou e disse Ramona que tambm no vinha jantar...
Dada a voz com que ela falava, Soriano contemplou a irm:
bom... E que queres tu dizer com isso ? Que tem
isso de extraordinrio ?
Como ele tambm no veio almoar... pensei que talvez tivesse havido alguma coi
sa entre vocs dois...
Entre mini e o Pao? No... Nem sequer o vi desde ontem... Aquilo teve algum convi
te que no esperava. Desde que ele telefonou, no caso para nos preocuparmos.
Mercedes fingiu concordar com as dedues do irmo. E, vendo-o com to absortos modos, r
esolveu lanar a outra pergunta que a trouxera ali:
Ento o Zornoza sempre foi falar contigo ?
Foi.
Mercedes estava de p, encostada ombreira da porta que ligava a saleta ao escritrio
. Soriano sentava-se na cadeira da secretria, em frente. Ela notou que a fisionom
ia dele no s se apresentava soturna,
k
470
A CURVA DA ESTRADA
* mas, tambm, cansada. Parecia, nesse princpio de ai ainda mais velho do que
realmente era. A
E ento ? 'i
Ia convidar-me para eu falar na sesso dei^j nh, em homenagem a Pablo Iglsias... >!
Mercedes esperou que o irmo acrescentasse d| alguma coisa, mas ele no prosseguiu.
;i
E tu aceitaste ? arriscou ela, cautelosam| Soriano encolheu os ombros: r \
No. No aceitei. you escrever, esta noite,!^ carta a desligar-me do Partido e you r
enunciar tars ao meu mandato de deputado. No quero mais m com aquela gente. -4
Sempre encostada ombreira, os seios destacw os braos caindo-lhe ao longo do corpo,
Mercedes p| cu ficar, alguns momentos, pensativa.
Mas tu no podes continuar a ser deputado 4 pertenceres ao Partido ? perguntou, d
epois. -]
Posso, claro que posso, mas no quero. %
Acho que fazes mal. Sempre d algum dinhaj e uma posio com muitas regalias. * '
Impregnado de mau-humor, faltava a Soriano o
cincia para ouvir a irm. Pouco antes, ao transm
a sua deciso a Olmedilla, tinha julgado que ass
terminaria de vez o monlogo que o molestava, 1
porm, no se dera e a sua desavena ntima co
nuara. At aquele momento ele censurava os outr
sobretudo a Zornoza, e sentia-se forrado de razo; mi
desde que decidira voltar costas ao Partido Socialist
para colar-se ao Partido Nacional, admitira que Z
noza e os outros tambm a ele poderiam censura
A sua prpria razo parecia-lhe diminuda, a despfll
poro invertida, o peso moral alterado; "e os canalha
iam, ainda por cima, aproveitar-se daquilo contra ele
Entrevira-se no Parlamento, ao lado dos companheirj
da vspera, e isso parecera-lhe, antecipadamente, insti
portvel; uma vaga ideia de culpa, que ele tentavS
repelir com as suas bravosas hostes de argumentei
infiltrava-se apesar da resistncia oposta e obriga?
va-o a discutir consigo prprio a estratgia a empregafj
A CURVA DA ESTRADA
471
gle sempre amara os grandes lances espectaculares e jeles lhe tinham vindo algum
prestgio romntico e muita simpatia popular quando, na juventude, pregava Q social
ismo contra a guarda civil, contra o governo, contra a Monarquia e outras podero
sas cidadelas, sobre cujos basties no lamentaria, nessa poca, que lhe decepassem e
expusessem a sua cabea de rebelde. Um dia, dirigira-se Polcia e dissera: "Solidari
zo-me inteiramente com Don Pablo Iglsias e venho, portanto, entregar-me priso". O
oficial que o ouvira sabia que a polcia s tem gosto em prender quem no deseja ser p
reso e aconselhara-o a ir-se embora. Ele, porm, teimara: "No sairei enquanto Don P
ablo no sair tambm. No justo que ele esteja na priso e eu em liberdade, quando certo
que penso da Monarquia e do rei a mesma coisa que ele pensa e sou capaz de diz-l
o duma maneira ainda pior do que ele o disse". O oficial ordenara que o metessem
num calabouo sem luz e se esquecessem de lhe dar comida durante trs dias. Agora,
a ideia de renunciar ao mandato de deputado parecia-lhe um gesto digno, uma rest
ituio moral que fazia a si prprio, que lavaria uma parte da sua atitude e lhe evita
ria, ao mesmo tempo, a penosa vizinhana dos socialistas nas bancadas parlamentare
s. Ora a irm acabava precisamente de apor um custico sobre a chaga que pedia apena
s um unguento.
Tens a mania do dinheiro! exclamou Soriano, de mau modo. Vs sempre tudo pelo
lado material!
Mercedes sentiu um mpeto de lhe responder no mesmo torn, mas conseguiu dominar-se
:
Ests enganado! No vejo tudo pelo lado material, no, senhor! Mas sem dinheiro
no se pode fazer nada, tu bem o sabes! Alm disso, ser deputado dispor duma fora
que toda a gente deseja ter, e tu, que a tens, queres perd-la!
Soriano cortou, bruscamente:
Seja como for, estou decidido! No posso continuar com um mandato que me foi dado
por elei-
472
A CURVA DA ESTEADA
* tores cuja ideologia j no defendo. No serijdj
centel m
Os preges dos "golfillos", que haviam comeM
anunciar, l em baixo, na praa, os jornais da "
traspassavam a janela: "La Voz", "El Heraldo", "IJB
maciones"... fl
Mercedes deu conta do movimento de ateno;
de impacincia, que Soriano fizera ao ouvir a<n|
E adivinhando o estado de esprito dele, desencosft^l
da ombreira, no gesto de retirar-se. 4B
Est bem. Isso l contigo. Tu l sabes o^B
queres e o que melhor te convm disse, conr'M
conciliadora, quase terna. E deixou-o novamente^
zinho. -m
Mercedes meteu ao corredor, em direco Cm
nh. Tambm ela estava ansiosa de saber o qu$j|
jornais da noite diriam sobre o irmo e foi pesll
mente porta da escada de servio quando o W
tribuidor l bateu para deixar os exemplares do cfl
tume. j
Os olhos de Mercedes demoraram-se nas colunas*!!
"Heraldo" e, depois, percorreram as seces poltiil
das outras gazetas. "No havia dvida; ela tinha rj"
pensou. Devia prevenir imediatamente a BalJB
teros". -m
Ao levantar a vista, deu com o olhar de RamdM
que seguia os seus gestos. A velha criada estava aifiB
carrancuda pelo que se passara hora do almo$|
Mercedes notou essa expresso e, com atitude de indB
ferena, entregou-lhe os jornais, para que os levalB
ao escritrio. j
De to atentos que estavam, os ouvidos de SoriatlB
puderam acompanhar o avano da criada no corredora
desde que ela sara da cozinha. Esperando-a, j ele s|
havia sentado na poltrona, como nas noites em cpM
lia os jornais com esprito tranquilo. E quando, finaPl
mente, Ramona lhos deu, Soriano principiou por abrtq
"El Heraldo", tal como o fizera a irm. Nesse dia, j
o seu nome vinha na primeira pgina e em grandes,:
letras: '^
A CURVA DA ESTRADA 473
O CASO DE DON LVARO SORIANO
O directrio socialista reuniu-se esta manh e enviou dois emissrios a Don lvaro Este
recusou-se a receber os jornalistas Zornoza Lara foi pessoalmente tentar conve
ncer o chefe dissidente.
Soriano passou dos ttulos ao noticirio. O joriial tratava-o em termos respeitosos
e num torn de imparcialidade. Narrava o que ele prprio j sabia. Mas, no final da r
eportagem, havia uma nota: "Ler as ltimas notcias".
Era na derradeira pgina e em muito poucas linhas:
DON LVARO FOI IRRADIADO
Para tratar do caso de Don lvaro Soriano, o directrio socialista voltou a reunir-s
e esta tarde, pouco antes de o nosso jornal entrar na mquina. O directrio decidiu
irradiar imediatamente do Partido a Don lvaro e apresentar esta questo ao prximo co
ngresso socialista.
Soriano ficou sereno. Ele j estava habituado a esses seus repentinos estados de s
erenidade. Todos os acontecimentos importantes da sua vida tinham-no deixado, de
comeo, impassvel. As grandes, tormentosas reaces s vinham mais tarde.
com um gesto displicente, Soriano pegou nos outros jornais. Somente "La Lucha" a
ntecedia a notcia por um comentrio. Via-se que fora escrito antes de ser conhecida
a deciso do directrio, pois aconselhava este a expuls-lo do Partido. E criticava-o
com rudeza.
Soriano leu aquilo duas vezes e, depois, pousou lentamente "La Lucha" sobre a me
sa. Ele sabia que Zornoza e os seus adeptos tambm exerciam influncia naquele jorna
l. E a imagem de Zornoza volveu ao seu
474
A CURVA DA ESTRADA
crebro. Veio, depois, a de Olmedilla, a de Rien<j
* dos outros membros do directrio. Estavam rtiri
em volta da grande mesa, na sala que ele confi
muito bem. Olmedilla devia ter hesitado, devia nm
ter contrariado aquela proposta. Mas Zornoza ia"
ra-a. Fora ele, com certeza, que a impusera coaS
vontade de Olmedilla. , U
Dir-se-ia que a imagem de Zornoza se maUl
zava, adquirindo volume e voz dentro do crebrJ
Soriano: "S temos duas solues: uma, seria oa
tor-lo a si..." //J
A imagem parecia incidir sobre os rgos da
dar: sabia-lhe, agora, a amargo. A serenidade intejl
que ele tinha pouco antes, evolara-se; voltava a SOT
dio a Zornoza. e, com o dio, uma sensao de 4
dono, de solido moral, uma inquietao to gr"
como quando a sua mulher falecera. Vinha-lhe o dem
de falar com algum, de discutir, de esvaziar o fl
rancor e os seus despeites, de se contrariar a si prjB
e a outrem, de se libertar de tudo quanto, acercaii
aquilo, se havia acumulado no seu esprito duranej
ltimos tempos e, sobretudo, durante as ltimas vu|
e quatro horas. Mas com algum que fosse verdadefa
mente seu amigo. S
Soriano vacilou um momento. J por mais de um
vez ele havia estranhado o silncio de Pepe Marti
depois que o "Heraldo" publicara a primeira notc"
Nem o tinha procurado, nem, sequer, lhe telefona"!
Custava-lhe, porm, a aceitar que, amigos como eral
Martinez fizesse aquilo deliberadamente. Muitas ve-wl
Martinez discordara dele e sempre lho dissera, cflB
essa franqueza soalheira que a intimidade deles autoi
rizava. No lhe parecia, portanto, que houvesse agofl
razo para Martinez temer mago-lo. ft*
Afrontando a suspeita, Soriano decidiu-se e lg^m
o telefone para casa de Pepe Martinez. Foi o prpriS
amigo quem o atendeu do lado de l. ,
Ah, s tu! Como tens passado ? 3;
Pareceu-lhe que o torn de Martinez era conveii* cional, muito diferente do de ou
tras vezes. r
A CURVA DA ESTRADA
475
Gostava de falar contigo disse Soriano. Que-
res vir c jantar? Davas-me um grande prazer...
Martinez interrompeu:
. Esta noite? Mas no me possvel... Lamento, mas no me possvel... Eu te explico... Te
nho um compromisso para jantar fora... Ia justamente sair...
De novo pareceu a Soriano que Martinez no lhe falava com o -vontade habitual.
Ento, talvez possas vir depois do jantar... Eu gostava muito de falar contigo ain
da esta noite...
A voz de Martinez pontuara-se de hesitaes:
Esta noite... Esta noite, com certeza, no pode ser... Aquilo deve acabar tarde...
o costume... E eu no tenho confiana bastante com os donos da casa para me retirar
logo depois de comer...
Soriano pensou que Pepe Martinez no sabia sequer mentir. Durante um momento, espe
rou ainda que o amigo fizesse alguma referncia ao seu caso. Mas Martinez consegui
ra terminar o dilogo sem fazer aluso alguma.
Mercedes, que vinha no corredor, ouviu Soriano pousar o telefone com inslita brus
quido. De ouvido atento, ela parou, um instante, junto da porta da escada. Ao con
trrio de outras vezes, sentira, subitamente, necessidade de justificar a sua sada q
uela hora.
Mercedes caminhou para o escritrio. Soriano continuava sentado na poltrona e abri
a "La vida dei buscn". Pareceu-lhe que as mos do irmo tremiam.
Precisas de alguma coisa da rua ? you comprar aspirina, pois tenho, outra vez, d
ores de cabea. Como a Ramona est a fazer o jantar, you eu prpria.
Soriano deixou-se ficar de olhos baixos.
No, no preciso de nada disse com uma voz profunda e comovida, como se houvesse pe
rdido algum e aquela oferta lhe fosse feita numa viglia fnebre.
Mercedes contemplou-o um instante, assim recortado pela luz do candeeiro, que lh
e iluminava a cabea embranquecida; pensou que dentro desta o demnio cabriolava ain
da e saiu.
quela hora, a sapataria de que ela costumava
476
A CURVA DA ESTRADA
j, utilizar-se j se encontrava fechada. Mercedes bfi
na memria um outro lugar de onde pudesse fa|
Ramn Ballesteros sem nenhum estranho a ouvir.'i|
brou-se duma confeitaria da Carrera de S. Jerii
cujo telefone estava, tambm, metido numa cabfiHj
e dirigiu-se para l. ,a
Gentes sadas dos escritrios, dos estabelecim"
comerciais, das sesses vespertinas dos cinemas rj
teatros enchiam as ruas por onde ela passava. ESj
hora vermelha dos sentidos; a hora de todas as adi
soes, em que Madrid expunha uma sensualidade erra
esbraseada, contagiosa, como no se via em nenhn
outra capital do Mundo. Bandos de habitantes dea
bulavam no centro da cidade, antes de recolher a a
para jantar, todos entregues quele vcio quotidij
das suas pupilas; dir-se-ia que s a ideia do pri
queimava a noite nascida, que somente a carne in
r v ali. Rapazes caminhavam enlaados a raparia
eles de expresso gulosa, elas de olhos lnguidos, voai
tuosos, a boca fremente e rubra. Outras, de oHI
perturbante, retorquiam com frases equvocas s eql
vocas frases, ressumando desejo, que os homens, m
passar por elas, lhes lanavam. E Calle de Alcal m
fora, at a igreja da Calatrava, a capital do pas ofm
o Amor topava tantos vetos tradicionais, entregavam
por desforra, a uma luxria mental que se espraiai!
no rosto e nas palavras dos homens e nos grandeslj
belos olhos das mulheres, sempre prontos a todas m
promessas que s em raros casos cumpriam. l
Muitas vezes Mercedes condenara, desdenhosa, esffl
atmosfera de lascvia com que as costureiras, os empfl
gados do comrcio, estudantes e outros famintos dl
prazer impregnavam o centro de Madrid, quando l
noite, com seu mistrio e suas lbricas hipteses, descM
sobre a cidade. Agora, porm, ela deixava-se levai
pelas correntes do trnsito, com uma grata sensao]
de alforria, de respirao livre, deixava-se levar nfflj
jeito de planta aqutica que se desprendeu e, de folha"!
abertas luz, vai flutuando, leveira, dengosa, tocadra
de curiosidade, perante as margens por onde passa."
A CURVA DA ESTRADA
477
t-jfl vez de cortar direita Carrera de S. Jernimo, decidira subir Alcal e alcanar a
confeitaria pela Calle de Sevilha e Plaza Canalejas. Andando, sempre com essa s
atisfao visual de quem sai dum tnel, durante um momento julgou ver, entre os transe
untes, a cara de Pao. Enchera-se, subitamente, de emoo, como se no o tivesse visto h
muito tempo j. Logo verificara que no era o sobrinho; mas, desde ento, marchou de o
lhos pesquisando entre os que caminhavam em sentido oposto ao dela. Sabia que s p
or acaso podia encontrar Pao, mas a simples ideia de o encontrar a enternecia, pr
oduzindo-lhe uma languidez que a dominava toda.
Vendo-a assim de olhos altos, no muito tenra mas ainda a semear apetite, uma boca
soprou-lhe obscena sugesto. Isso havia-lhe acontecido em outros dias, pois numer
osos espanhis eram prdigos e sinceros, sobretudo quela hora, nesse gnero de rbidas ho
menagens. Das outras vezes, ela indignava-se intimamente, por "a julgarem igual
a uma modistilla"; agora, reagia por um suave desmaio da vontade. Ia caminhando
e considerando que, apesar de tudo, ainda despertava interesse, como as que eram
mais novas e mais bonitas do que ela. Isso lisonjeava-a e transportava-a para a
lgures, onde tudo se tornava ao mesmo tempo ardente e brando. Dir-se-ia que se i
ntegrava nos outros, dir-se-ia que a nsia de volpia que via nos outros criava tambm
nela uma sede de voluptuosidade infinita. E a hiptese de encontrar Pao volvia, nu
ma desordem de ideias e de sensaes mal definidas.
Mercedes sabia que dificilmente encontraria Pao. Ela no sustinha, agora, nenhuma l
uta consigo prpria; aquilo era apenas uma tnue esperana, um desejo secreto; apesar
disso, parecia haver sempre, dentro dela, algo pronto a defend-la, algo pronto a
apresentar uma razo para justific-la: "Se pudesse ouvir a opinio de Pao antes de tel
efonar a Ballesteros seria melhor. Muito melhor. Toda a gente dizia que quem se
encontrasse, durante a tarde, a uma porta de Alcal, veria Passar, na sua frente,
toda a populao de Madrid.
478
A CURVA DA ESTRADA
" Mas isso dizia-se... Quando precisamos de eneqjj
uma pessoa, nunca a encontramos..." Esta conmj
trouxe-lhe um sbito desconsolo. M
Novamente uma voz sussurrou-lhe indizveis am
Desta feita, era um velho, que os velhos em to|
parte, e em Espanha sobretudo, gostam tambli
viver, pela palavra e pela inteno, j que no po
de outra maneira, a grande festa dos sentidos. Mer"
viu-o apenas de relance, mas logo sentiu nojo po
e, depois, um dio brusco, dio e nojo, nojo 6J"
como se ele a tivesse maculado e desvalorizado nas m
ntimas zonas do seu ser. i,U
Molestada, apressou o andamento, entestou rrn
de Sevilha e entrou, finalmente, na Confeitaria l|
A casa estava cheia de clientes, mas ela dirigai
resoluta, cabina telefnica e marcou o numeral
Ramn Ballesteros. ' fl
O chefe do Partido Nacional surpreendeu-se JM
a notcia: 13"
O qu ? Ele quer abandonar o Parlamento m
perguntou, como se dissesse: "Esse idiota no tem rfl
nada que fazer?" 'iam
Mercedes deu pormenores. Ballesteros escutava"
ia pensando na forma como devia agir. , > m
Bem... Bem... Muito obrigado por ter telw|
nado... Sim... Talvez... Eu you ver isso. O seu sobiiriB
esteve esta tarde comigo, mas ainda no sabia ?m
nada... 'fm
Ramn Ballesteros pousou, mal-humorado, o aOT
cultador. Aquilo alterava tudo quanto ele decidira sjl
ali. Ainda momentos antes, ao ler os jornais, hav"
ficado contente e sorrido, repetidas vezes, enquawl
ia passando a mo no queixo, como se verificasse sefll
barba estava escanhoada. Parecera-lhe, ento, que tu*|
corria bem, que tudo marchava conforme os seus deiwf
j os. Expulso do socialismo, Soriano devia querer dess*
frontar-se, falar alto gritar. Devia estar despeitdj
e ansioso por investir contra os seus antigos correligid*
nrios. Era, sem dvida, um homem liquidado, rf&(r)
podia ser ainda muito til, pelo escndalo que prov<9
A CURVA DA ESTRADA
479
ria, quando comeasse a bater nos socialistas, ele nue fora um dos mais prestigios
os socialistas de Espanha. Para se defender teria de fazer revelaes e de procurar
desacreditar os outros chefes do socialismo. Agora, Ramn Ballesteros estranhava h
aver-se equivocado. A ideia de Soriano renunciar ao seu mandato parecia-lhe absu
rda e contrria no s aos interesses dele, mas aos prprios interesses do Partido Nacio
nal. Era no Parlamento que ele podia prestar servios, pelo menos durante alguns d
ias. Era de l que devia atacar os socialistas, para que todo o pas o ouvisse. Como
queria, pois, abandonar tal arma? "Estes tipos, mesmo quando so espertos, no sabe
m o que fazem ou fazem mal o que sabem... Por isso, as suas ideias so o que so" -
escarneceu Ramn Ballesteros, passando, de novo, a mo sobre o queixo. Logo ponderou
que devia intervir antes de Soriano enviar a carta de que havia falado a Merced
es.
Ballesteros hesitou. Ao contrrio de Soriano, cuja tendncia era partir da certe
za para a dvida, ele partia sempre e lentamente da dvida para a certeza. Isso
parecia-lhe mais cientfico, mais slido. O seu primeiro pensamento nunca era crdulo.
Comeava por desconfiar, pacientemente, da honestidade e do desintere^se de que
m lhe falava e mesmo quando actos posteriores demonstravam que se enganara, ma
ntinha-se ainda duvidoso, sempre admitindo que, um dia, os seus receios se
confirmassem. Aquilo constitua um jeito do seu esprito. Ele trazia a desconfiana c
onsigo como quem traz a chave da sua casa a chave que a desconfiana legal sobre
os nossos semelhantes, feita de metal para ser mais forte. Ramn Ballesteros cont
inuava a estranhar que Soriano quisesse abandonar o ^eu lugar no Parlamento. Sem
pre o tivera por inteligente e aquilo, se fosse verdadeiro, seria uma ingenuidad
e. Mas no; no devia ser. "...Condies mais concretas, mais precisas para a sua entrad
a no Partido Nacional". Esta ideia veio-lhe lentamente. "Deve ser isso" pensou
Ballesteros, semicerrando os olhos. Devia ser isso ou uma tentativa de revalo
rizao pessoal,
M
48o
A CURVA DA ESTRADA
t depois do escndalo da sua expulso do PartidoJj
lista. Provavelmente, Mercedes fazia um jogoijj
A indeciso na atitude a tomar carregava cRfl
-humor a Ramn Ballesteros. De manh, na suaaa
a Soriano, j ele fora mais longe do que enteiwB
prudente ir. Chegara a insinuar que lhe dariall
prximo ministrio, a pasta do Comrcio e IndJ
Que mais queria ? Ainda por cima lhe aturara <oj
nessa tarde! ,{
Ballesteros sentia-se fatigado com os trabaal
as preocupaes que tivera durante o dia e, -3
s desejava repouso. Mas logo uma outra ideia o sen
saltou: "E se esse renegado houvesse decidido afeai
nar a vida poltica ? No o devia fazer, naquele mon
em que o enxovalhavam, mas podia ser. Podia tJj
ficado a inclinao desses figures das esquerdasJI
gostam, s vezes, de mostrar-se puritanos. E, eai
o Partido Nacional perderia uma excelente opojfji
dade de desacreditar os outros e de ganhar H
prestgio. Porque, apesar de tudo, a adeso de Sojfflj
ainda representava um triunfo e uma boa arma
combate". m
Ramn Ballesteros ligou o telefone. E quando, fim
mente, ouviu a voz de Soriano, declarou com ura>dl
solene: . - J
Acabo de ler nos jornais o acto indigno de"
usted foi vtima e quero dar-lhe a minha solidarieda
Foi um procedimento ignbil, que merece a repa
de todos os homens de bem. Nisto devemos ser toe
solidrios, pois ningum nos garante que amanh m
se possa fazer a mesma coisa a qualquer outro de ai
E nestes momentos que apreciamos melhor a Sfl
dariedade dos amigos, pois eu avalio por mim prpl
como usted deve sentir-se magoado... a
Quando Ramona o prevenira de que Balleste
estava ao telefone, Soriano pegara no auscultador cffll
um sbito alvoroo, um misto de receio e de prazdj
Agora, s o prazer ficava em campo e Soriano agW
decia as palavras do chefe do Partido Nacional. H
outro lado do fio, Ballesteros continuava: s<
A CURVA DA ESTRADA
481
J
, realmente, para se ficar indignado! Passa-se
vida a trabalhar por uma causa e, por fim, quando
' no precisam de ns, do-nos este pagamento. Eu
sempre fui seu adversrio, mas no posso deixar de
reconhecer que usted prestou s suas ideias grandes
servios e serviu com devoo a sua causa...
Sentado mesita que tinha o quebra-luz, Soriano entendeu que algumas daquelas pal
avras o diminuam e tentou logo corrigi-las:
No; no foi por j no precisarem de mim. Ao contrrio! Ainda hoje eles fizeram tudo para
eu continuar no Partido. Eu que no transigi...
Bem sei, bem sei apressou-se Ballesteros a concordar. Vi nos jornais...
A voz de Soriano tornou-se mais grave:
Era um caso de conscincia. Eu j no acredito na eficcia do socialismo e, sobretudo, n
os homens que servem o socialismo, como acreditava antigamente. Se continuasse n
o Partido no seria, portanto, sincero.
Um sorriso de ironia aumentara as gelhas dos lbios e das plpebras de Ballesteros:
Mais uma razo para eles procederem consigo duma maneira diferente do que fizeram.
Mas v-se bem que no queriam que fosse usted a deixar voluntariamente o Partido, p
orque assim ficaria com prestgio. E trataram de o inutilizar, tomando eles prprios
a iniciativa de expuls-lo... isso, sobretudo, que a mim Me repugna! No se procede
assim com um homem que, durante tantos anos, deu ao seu Partido o esforo que ust
ed deu. Tinham muitas outras maneiras de arranjar as coisas.
A palavra "expuls-lo" desagradara a Soriano. Pensou que fora empregada com propri
edade, mas humilhava-o mais do que qualquer outra. Desprazia-lhe, tambm, aquela t
endncia, que Ramn Ballesteros parecia ter, de o julgar, agora, com menos prestgio e
mesmo ^utilizado. Considerou, porm, que o chefe do Partido Nacional tom-lo-ia por
vaidoso se ele tentasse contradiz-lo, se o contradissesse imediatamente, como er
a seu desejo e conteve-se. Mas enquanto Ballesteros
16 Vol. Ill
482
A CURVA DA ESTRADA
se sentia contente com o que havia inoculado, eIe-|M zira o rosto e o seu prazer
desaparecera. :>^fl
No h dvida de que fui eu quem mujjB no eles... disse. Mas eu estava de boa-f. .dl h
uco, isto , antes de ler os jornais, eu tinhalnH vido sair discretamente do Parti
do e renunciar n$^H ao meu lugar de deputado... !^H
Era um erro que praticava interrompetfiH mn Ballesteros com um torn distrado
. ComoiiJ recebesse imediata rplica, ele julgou que SorianMH teria ouvido bem e
insistiu: Est l? Est l-JjB dizia que era um erro que usted praticava... '"9
Pode ser, mas era honesto. Contudo, deposlB ver nos jornais a atitude que o direc
trio tomou, nilfl de opinio. Custa-me ter de atacar os socialista^" prprio lugar pa
ra onde eles me elegeram, mas teq| de me defender... .t*B
Ballesteros deixara de se sentir fatigado, conwB o calor que o seu contentamento
produzia lhe hotrval restitudo as energias. Cerrou inteiramente o olhei J querdo.
"Pode ser, mas era honesto... Que cnico Mi pensou. B
O contrrio seria, realmente, absurdo disfl afavelmente. Eles ainda iam rir-
se de si. De qtJB quer maneira, seria pouco aconselhvel renunciar<j| mandato. sem
pre um voto, esteja em que partW estiver. Ento, depois do que se passou, seria de
ix4| em completo -vontade... Porque eles, com certei! no ho-de querer ficar por a
qui. J hoje "La LucOT o ataca... Ho-de querer liquid-lo... <fl
Soriano tornava a ouvir, dentro dele prprio, a vJ de Zornoza: "S temos duas solues:
uma seria exalj tor-lo a si..." |
Vamos a ver quem leva a melhor... Eu tamba tenho muitas coisas a dizer... fl
Ballesteros riu, gozoso: '"
Calculo! Calculo! "f* O riso terminara em tosse. Quando esta acabowj
Ballesteros volveu: '*
Est l ? Est ? Amanh, s trs e meia da tard$
A CURVA DA ESTRADA
483
vm aqui alguns meus colegas do directrio. Convm-Ihe dar-nos a sua deciso a essa hora
?
Soriano respondeu afirmativamente.
Ballesteros tomou, outra vez, um torn muito afectuoso :
Claro, no quero que usted venha para o nosso
lado por qualquer influncia minha. Se vier, que o faa sinceramente, por entender q
ue a causa nacional a melhor. Mas, como amigo, julgo que, seja no nosso partido
, seja noutro qualquer, deve tomar imediata-" mente uma posio definida. Quando fiz
er o seu ataque no Parlamento j deve encontrar-se num reduto... J deve ter atrs de
si uma fora que o apoie... O pas j conhece a sua evoluo e, para aqueles que o estranh
arem, prefervel que a estranhem duma s vez... Ao ouvir Ballesteros, Soriano voltav
a a sofrer, como de manh, um vago mal-estar. Ao mesmo tempo, as palavras do chefe
do Partido Nacional pareciam-lhe
sensatas.
Ballesteros despedia-se: Ento, at amanh.
VIII
MELA primeira vez, desde a vspera, Mercedes via o irmo com modos afveis para ela
. Sentado na sua frente, ele falava enquanto jantavam. A sua voz, embora acusass
e fadiga, soava com a. mesma afeio das noites que haviam precedido a notcia publica
da no "Heraldo". s vezes, era certo, o torn tornava-se, de repente, arrastado, ma
s logo volvia normalidade. Soriano referira-se ausncia de Pao e fizera-o de form
a carinhosa, parecendo que tambm ele lamentava no estar o filho presente nessa noi
te. "Provavelmente trocou-nos por uma mulher bonita, como seu costume" disse, s
orrindo. Servira-se da sopa e comeara a discorrer, lentamente, sobre a sua irradi
ao e
4"4
A CURVA DA ESTRADA
f sobre a visita que Ramn Ballesteros lhe tinha" l
e o telefonema que lhe dera mais tarde. f>!
Mercedes estava ansiosa por saber pormenoi^l
que se havia passado entre os dois, mas no cm
ainda lanar pergunta alguma. Nesse momento, m
dia o seu melhor regozijo, porque o irmo satisfazia
espontaneamente, a curiosidade. At ali, quando ell
Pao aludiam ao chefe do Partido Nacional e o elaj
vam preconcebidamente, Soriano urdia, quase seu
uma frase irnica sobre ele. Agora, porm, falava m
naturalidade de Ramn Ballesteros e do que ac<MJ
cera. Parecia muito calmo. Qualificou de "canaltd
Zornoza e de "lacaios" a Olmedilla e Rienda e tama
aos outros membros do directrio socialista; mas 'fm
com voz tranquila, purgada de dio, como se se
tasse de classificaes definitivas, to indispensal
como as etiquetas que especificam os objectos nos ai
seus. "A atitude que haviam tomado talvez tivesse sl
at, um bem para ele disse. Aquilo acabava?"
uma vez para sempre, com os escrpulos que arl
tinha". l
Mercedes arriscou, enfim, a sua pergunta: J
Ento, que decidiste fazer ? n
Soriano pegou no guardanapo, limpou a boca c
ele e tornou a coloc-lo, vagarosamente, sobre as pernJJ
you ingressar amanh no Partido Nacional... J
Ao ver a expresso da irm, acrescentou: O BalM|
teros convidou-me e insistiu tanto, tanto... ^B
Mercedes sentiu-se embebida duma sbita felicidacM
Soriano justificava, ainda, a sua deciso, mas ela <jj
no o ouvia. Aquela sensao de felicidade dominl|
va-a toda. ^|
Deus ouviu as minhas preces! exclamou, seBB
poder reprimir-se. Vais, finalmente, separar-te dessall
homens sem moral, que tanto mal fazem ao Mundo fl
A transfigurao que a irm sofrera repentinamente!
e aquele inesperado torn da sua voz fizeram Sorian#|
sorrir: >[J
V l... No devemos exagerar... No que dia J
respeito moral, eles no so piores do que os outros..^ |
A CURVA DA ESTRADA
485
Mercedes, que havia erguido para o tecto os seus olhos agradecidos, baixou-os e
encarou o irmo:
__ No so piores ? Temo-lo visto! Muitos deles pregam o amor livre e tm filhos de vri
as mulheres, sem nenhum respeito pela decncia. O prprio Olmedilla, apesar de ser c
asado e daqueles seus ares de boa pessoa, tem uma amante, toda a gente o sabe, u
ma antiga mulher da rua, sem moral alguma... Eles passam a vida a ofender a Deus
com os seus costumes!
Soriano compreendeu que aquilo era tambm com ele e voltou a sorrir. Mercedes viu
esse irnico movimento dos seus lbios, mas no se melindrou, como de outras vezes, qu
ando ela falava da sua crena e ele, velho anticlerical, lhe respondia com palavra
s satricas. Mercedes sabia que o irmo continuava cptico. Agora, porm, isso parecia-l
he ter menos importncia do que tivera at ali. Parecia-lhe que ao primeiro triunfo,
que acabava de obter, um outro sucederia, tanto mais que, nos derradeiros anos,
Soriano mostrava-se menos blasfemo do que quando era novo. "Tambm naquilo penso
u havia de o trazer ao bom caminho, pois ele no era m pessoa. Tinha aquelas ideia
s, mas no era m pessoa". com uma grata sensao de vitria, de misso realizada, Mercedes
ps-se a antegozar as palavras de louvor que o padre Balmes certamente lhe diria n
a prxima sexta-feira.
A criada entrara com a travessa da carne, servira-os e voltara para a cozinha. S
oriano comia, agora, lentamente e em silncio. Mercedes interrogara-o, por fim, so
bre os pormenores da sua entrevista com Ballesteros; ele respondera e voltara a
ficar silencioso. Dir-se-ia que, depois do desabafo, havia quedado mais fatigado
. Ela conhecia essas transies do seu carcter e no msistira. Verificara, tambm, que el
e comera muito POUCO, mas no quisera falar-lhe disso.
Findo o jantar, Mercedes dirigiu-se cozinha, para anotar as despesas do dia. Sem
pre carrancuda, Ramona >a dizendo "tanto disto", "tanto daquilo"; ela ia escreve
ndo e pensando, com amargura, que, nos outros dias, enquanto fazia as contas e d
iscutia com a criada
486
CURVA DA ESTRADA
as quantias pagas pelos alimentos, Pao estava^
espera, para sarem juntos. E justamente nessa, j
em que ela tanto gostaria de falar com ele, <2fu
partilhar com ele a alegria do xito dos dois, j|
Pao no viera jantar e no a acompanharia iart
alguma. , ^
Quando Mercedes voltou ao corredor, Soriansfc
j em pijama, da casa de banho. Ela estranho^
J te vais deitar ? ^
J, Estou, hoje, muito cansado. Dize a Rau| que eu no atendo o telefone, seja l para
quemj Boa noite! >>|
Mercedes entrou, tambm, no seu quarto. Eratf
do pequeno oratrio, ajoelhou-se e agradeceu a/|
tudo quanto havia feito por Soriano. Cabea bj
mos juntas, rezou demoradamente, em atitude huaa
Depois, levantou-se, de alma aliviada pelo devenig
prido. Sentia-se simultaneamente feliz e pesarosa^B
se existissem dentro do seu peito duas reas emo|
distintas, que ora se fundiam, ora se separavam,
gnicas. Continuava a parecer-lhe que no poderia!
completamente ditosa enquanto no desabafasse mt
alegria com Pao. d
Era muito cedo ainda. E a ideia de se meter jM
cama, como fizera, o irmo, desagradou-lhe. Pegj
ento, no velho romance que comeara a ler dias 3(
e foi sentar-se na sala, sob o quebra-luz, sempre c<ft|
esperana de que o sobrinho chegasse antes de elaS
deitar. TJ
Mercedes ouviu o relgio bater dez horas e mfljj
onze horas, onze e meia e meia-noite. No era taij
para Pao voltar, mas ela sentia os olhos fatigados p
leitura. A criada j se deitara e na casa havia
grande silncio. Desgostosa, Mercedes decidiu deitai*
tambm. st
No quarto, enquanto se despia, tornou a admit
que a ausncia de Pao seria por sua causa. Essa hip<
tese saltara-lhe no crebro, vrias vezes, durante o di
e, agora., adquiria maior verosimilhana. De manbl
antes de sair, ele falara-lhe com uma frieza que no lli
A CURVA DA ESTRADA
487
ra habitual, mostrando-se muito diferente dos outros dias. At lhe parecera que os
seus olhos a evitavam. Tudo isso era devido, certamente, maneira como ela proce
dera, na vspera, dentro do txi. Mas que queria L ela fizesse? Deixar vaguear as mos
dele, assim como as dum cego que tacteasse tesouros na sua noite ? Aquilo, alm de
imoral, no tinha jeito algum. Ela no podia fazer o mesmo que censurava nos outros
. Era sua tia; e ele, um homem casado, embora no vivesse com a mulher; ela no ia,
portanto, deixar-se beijar assim, como se ele fosse livre e no fosse do mesmo san
gue.
Mercedes meteu-se na cama e apagou a luz. A ideia de que o sobrinho estava enfad
ado com ela continuava a amofin-la. "Logo naquele dia, que era de tanta alegria!"
Pensou que Pao poderia ter encontrado uma mulher. Soriano soltara aquilo a brinc
ar, mas podia muito bem ser. Ele era novo, inteligente, falava bem e no era feio.
E havia muitas mulheres sem juzo.
Subitamente, Mercedes lembrou-se de Rosarito, a esposa do general que costumava
frequentar as reunies de Milagres. Ela sabia, h muito tempo j, que Pao a cortejava;
e isso, que a fizera sorrir de outras vezes, maldispunha-a agora. Um momento, vi
sionou o sobrinho deitado com Rosarito, num leito igual quele em que ela se encon
trava. Dir-se-ia que os dois corpos distantes lhe enviavam, contagiando-a, as su
as prprias sensaes. Dir-se-ia que tambm ela participava daquilo.
Dominou-se e tentou afastar essa viso de posse. Mas, logo em seguida, voltava a i
maginar a cena e a prolong-la. Pouco a pouco, Rosarito ia-se metamorfoseando, at s
e transformar nela prpria. O sobrinho estava, agora, deitado ao lado dela. E toda
uma quente volpia a invadia devagar, cada vez mais quente, nas trevas do quarto.
Era contra a sua prpria vontade. Como se a sua vontade estivesse do avesso. Conse
guia libertar-se um 'nstante, recriminando-se a si mesma, mas aquilo voltava. To
rnava a recriminar-se e aquilo tornava a voltar com a mesma persistncia com que a
s trevas se fecham
488
A CURVA DA ESTRADA
, atrs das luzes que passam na noite. De quarid|
quando, a prpria admisso levantava ideias \h
lhantes: "Ele ficaria sabendo... Ele ficaria sabeni
Isto parecia-lhe, porm, um receio longnquo
motivo, pois ela no pensava render-se a Pacoiaj
batalha da imaginao continuava entre tudo qm
ela repelia e tudo quanto a atraa. >>f|
A imagem de Lus brotava do seu passado^!
todo esse poder de fascinao com que costumavarjy
sentar-se naquelas horas. J
Ela havia protestado, havia garantido mil,M
ser calnia tudo quanto correra sobre a sua intinrijl
com Lus. Protestara sempre com altivos mm
E quando, enfim, se calava, o seu rosto adquiria*
expresso de dignidade ofendida, enquanto as lgM
desciam, mui grossas e vagarosas, como a auteaEJ
a veracidade das palavras ditas. Fora um coroSj
difcil. Mas Lus partira, entretanto, com a mulheriS
quem se casara, para a Argentina, onde os soa
tinham propriedades; e na pequena cidade de provflB
ficara apenas, de tudo quanto se havia murmuBji
sobre Mercedes, uma vaga dvida, a suspeita cfl
pouco de coto num recanto escuro, que ningum pcm
iluminar confirmativamente. >m
Em realidade, porm, ela tinha pertencido a Lm
Ento, tudo lhe parecera justificado ou tudo se ju3
ficara por si mesmo. Os dois estavam para casar-M
j de outras vezes, depois de Lus a beijar daqJj
maneira, ela havia sentido que o juzo se lhe evadjl
que a razo se transformava, como se tudo nela pM
sasse a ser diferente. Mais tarde, ela prpria se admit"
de como pudera dar aquele passo, sobretudo comi"
pudera dar a primeira vez, tanto mais que, j ne"
tempo, havia observado vrios pormenores do rrial
carcter de Lus. Mas s associara esses sintomas e "j
vira a sua gravidade depois de aquilo ter acontecida
como se o diabo a houvesse cegado para a perder. BfiJ
isso mesmo se considerara, durante muitos anos, desfi
protegida de Deus e se entregara a duras e sucessiva|j
penitncias.
A CURVA DA ESTRADA
489
Soriano, quando a convidara a vir distrair-se para Madrid, interrogara-a amigave
lmente. Durante alguns instantes, ela julgou que ele pressentia a verdade; mas,
se era assim, parecia no dar grande importncia ao caso, como se o tivesse por natu
ral. Ela negara. Ficara comovida por o irmo ser a primeira pessoa que se mostrava
compreensivo mas, apesar disso, continuara a negar. Nesse dia, julgara Soriano
mais generoso do que o prprio padre a quem, de mo no peito arrependido, ela se ha
via confessado. Mas, tempos depois, mudara de parecer, ao adivinhar que a atitud
e de compreenso de Soriano fazia parte das doutrinas que ele pregava nessa poca e
pelo conjunto das quais ela sentia uma repugnncia integral.
Posteriormente, graas ao tempo e distncia, dir-se-ia que Lus se havia dividido em d
ois homens diferentes. Um, o que a abandonara e do qual no podia lembrar-se sem l
he voltar de novo o antigo travor de dio e de desprezo; o outro, o que lhe revela
ra o amor e lhe surgia, leviano e rubro Satans, como uma recordao escaldante, nas h
oras de soledade em que os iastintos se insurreccionavam. Nesses momentos, o seu
corpo passava a ter uma memria mais poderosa do que o seu crebro, pois o crebro es
quecia facilmente os agravos e o corpo no esquecia as lisonjas.
Ela entregara-se numerosas vezes, mas era sempre a recordao da quarta vez que mais
a instigava, criando-lhe como que uma febre cerebral. Essa imagem reconstitua-se
quando ela menos a esperava, quando no podia defender-se; e assaltava-a nas noit
es de insnia, nas horas de indolncia, em face do amor entre s animais ou em face de
um ou outro homem visto na. rua, nos comboios, nos teatros, nos prprios "tranvia
s" de Madrid. Ento, caa num misto de exaltao e de desespero, como se nela coabitasse
m, desde os piais profundos rinces at a pele, uma amizade e uma inimizade que se e
ngalfinhavam, produzindo-lhe, ao mesmo tempo, tortura e volpia e, finalmente, noj
o por ela prpria.
490
A CURVA DA ESTRADA
, Agora, nessa paisagem alucinada que a pertni
sempre, Lus fora substitudo por Pao. />i
Mercedes j sabia o curso que a sua imagi^
seguia quando chegava quele ponto e procurou
gir, acendendo a luz. A luz destri as imagens j
Ihidas nas chapas fotogrficas antes de estas $
reveladas. A luz incitava-a menos do que as tq
Ela decidiu, mais uma vez, que, custasse o que cu^|
confessaria tudo ao padre Balmes na prxima sj
-feira. Ia custar-lhe, sim, ia custar-lhe muito, pc$
se tratava dum sobrinho, mas tinha de o fazer. Ca
as mos sobre o peito e imaginou-se morta. id
Sentia-se, agora, mais serena. O seu pensantj
desviara-se mesmo para o caso do irmo e paij
prxima reunio de Milagres, onde talvez Soriai
comparecesse. Ela no sabia o que se passara e$
Pao e Ramn Ballesteros durante a tarde, raai
atitude de Ballesteros, na prxima reunio, sM
com certeza, muito diferente do que havia sidai
ltima. ijj
Mercedes ponderou que ainda tinha uma guS
tarefa a realizar a converso do irmo. E crnea
a reflectir sobre o que mais devia fazer para isso, quaj)
ouviu, no silncio da casa, uma chave rodar na feel
dura da porta da escada. A porta abria-se. Mercei
reconheceu os habituais rudos do sobrinho e, com ai
sbita alegria, saltou da cama, vestiu a bata e caj|
nhou apressadamente para o corredor. ti
Pao tirava as luvas e o sobretudo, junto do bdf
galeiro, quando ela se aproximou. ^
Estava ansiosa de te ver! Por que no viej jantar ? J sabes o que aconteceu ? <j
O sobrinho sorria perante a excitao com que ai despejava as perguntas. (
O que foi ? til As palavras saram-lhe atropeladamente: l
O teu pai aderiu, sabes ? O teu pai sempre ( decidiu a aderir ao Partido Nacion
al! O BallesterdJ veio c falar com ele e ele vai aderir amanh. NiHl imaginas a ale
gria que eu tive! No podes imaginari
A CURVA DA ESTRADA
491
_. Mudou de torn: Mas tu estiveste em casa do Baliesteros esta tarde... Ele dis
se-mo...
Pao caminhou para a sala e sentou-se com ar fatigado.
Sim; eu j calculava que ele aderiria hoje ou amanh...
Mercedes sentara-se tambm:
Mas que disseste tu ao Ballesteros ? Que combinaste com ele ? Quando ele me dis
se, pelo telefone, que tu havias estado l, eu fiquei ansiosa de saber o que se pa
ssava...
Pao continuava a sorrir, com um ligeiro ar superior, da exaltao da tia. Recostou-se
, cruzou as pernas e falou da sua entrevista com o chefe do Partido Nacional; ma
s pareceu a Mercedes que ele no lhe revelava tudo, que lhe ocultava, deliberadame
nte, alguma coisa.
E depois ? E depois ? insistiu ela.
Depois... Mais nada. Aconteceu o que eu tinha previsto.
Mercedes pegou-lhe nas mos e apertou-lhas com fora:
Que alegria, Pao! Que alegria! Eu j rezei ao Cristo de Ia Salud e hei-de cumprir a
promessa que lhe fiz. Eu tambm falei com o Ballesteros. Fui a casa dele e, mais
tarde, ainda lhe telefonei... Ele no to disse ?
Perante o gesto vagamente afirmativo do sobrinho, Mercedes ps-se a contar, com mu
itos pormenores, a aco que tivera durante o dia.
Enquanto a ouvia, Pao verificava que tinha desaparecido nele a repugnncia que sent
ira por ela na manh anterior. Tanto a havia mesclado, imaginariamente, mundanria q
ue o saciara de madrugada, que na sua sensibilidade ficara um lastro de asco, co
mo se, com efeito, um incesto se houvesse produzido. Mas, agora, essa desagradvel
sensao matinal era j apenas uma lembrana. Mercedes estava sentada na sua frente, so
mente com a bata sobre a camisa. Ele via-lhe urna parte do colo, o nascimento do
s seios e o prprio volume dos seios, ondulando, soltos, sob a seda da
492
A CURVA DA ESTRADA
bata. Entregue narrativa, ela descuidava-se dos 4
mentos que fazia e ele adivinhava todas as linha
seu corpo. E, se cerrava as plpebras, para se donj
via-a nua, como quando a vira, efectivamente, rim
antevspera. A tentao dos dois ltimos dias voljj
Pouco a pouco, a boca de Mercedes fora parecendj
mais atraente, mais capitosa do que nunca. |
Ela continuava a falar. Pao, entretanto, ia GQ
derando que se, vinte e duas horas depois de a h$
detestado, estava, de novo, a desej-la, a devuJi
com as meninas dos seus olhos, no valeria, talvej
pena lutar mais; por muito que procurasse evitar aq1|
aquilo acabaria por acontecer um dia ou outro, dj
que essa ideia se lhe alojara na cabea e os dois vivjj
tu c, tu l, na mesma casa. jj
Cada vez que Pao olhava para Mercedes sea
menores escrpulos, como se, pouco a pouco, tudonj
fosse tornando natural, depurando de seus limos, <|
ficarem s eles na gua transparente; como se o p
prio crebro cedesse a uma s exigncia, perante a <p
transigia e perdia fora convincente tudo quanto d
contra.
Pao estendeu as mos e tomou as de Mercedi
Fizera-o to maciamente, to diferentemente da na
neira como ela tomara as mos dele h pouco, <m
Mercedes hesitara, um segundo, no que estava dizei"
e os seus olhos mudaram de expresso. Pao conlj
nuava a apertar-lhe as mos, num lento afago. Sm
tentava dar sua voz a mesma naturalidade de n$j
mentos antes, mas parecia-lhe que a sua voz j nl
tinha a mesma naturalidade e que o sobrinho percebi
que ela estava a pensar nas mos dele e isso caa
sava-lhe um ligeiro pudor. /l
Imprevistamente, Pao disse, num rouquejo: '
O Ballesteros no boa pessoa... No falemos
agora, desse homem... &
Mercedes ia retirar as suas mos quentes, mas j
o prprio sobrinho as abandonava. No mesmo instante^
sentiu uns braos fecharem-se sobre ela e a boca dea
Pao colar-se sua, fortemente. Mercedes tentou rea/1
A CURVA DA ESTRADA
493
sir mas o brao direito de Pao passava-lhe em volta j|0' pescoo e a mo fixava-se, com
rijeza, no ombro esquerdo. Entretanto, ele acariciava-lhe os seios com a outra
mo. Ela reagia ainda, mas parecia-lhe que os seus olhos se toldavam, que o seu cre
bro se nublava tambm e ia amortecendo rapidamente. No sabia se pao a beijava h um mi
nuto ou h uma eternidade e cada vez o crebro perdia mais a noo do tempo. Dir-se-ia q
ue a vida inteira, a vida toda, se derramava dentro dela por essa boca que se de
bruava sobre os seus abismos internos. A mo do sobrinho descera-lhe dos seios, des
cera mais, sempre a acarici-la. Ela tentou ainda uma nova reaco, mas s a sua pele se
crispou levemente. E deixou de debater-se.
Bruscamente, porm, Pao largou-a e levantou-se. Ele tinha, tambm, os olhos nublados,
como numa agonia, e uma voz trmula, ofegante:
Deixa encostada a porta do teu quarto... Eu you l ter daqui a pouco...
Ela no respondeu. Parecia-lhe, mesmo, que lhe faltava voz para responder. Pao insi
stiu:
Deixa a porta encostada... Ouviste? Mercedes entreviu, tremulamente, o oratrio
que
no seu quarto se encontrava e pareceu-lhe, tambm, de maneira confusa, que o oratri
o a inibiria.
No meu quarto, no...murmurou.
Ento no meu. Espero-te no meu. A porta fica encostada, para no fazer barulho...
Pao falava num torn baixo e apressado. Flectira-se, pegara-a pelos braos, pusera-a
de p e beijara-a de novo, longamente, apertando muito os seios dela contra o seu
tronco. Quando a deixara, a voz dele parecia sufocada:
Fico tua espera... dissera. E caminhara logo para o corredor.
De p e sozinha, Mercedes sentia o crebro esvair-se-lhe e as pernas tremerem-lhe so
bre instveis pedras flor duma torrente. Tinha, sobretudo, a sensao de que estava mu
ito desgrenhada. E comeou a passar as mos pelos cabelos. No se encontravam em desal
inho,
494
A CURVA DA ESTRADA
mas continuou a alis-los, como se o estivessem. D"
* apagando a luz da sala, dirigiu-se, vagarosamente,"!
o seu quarto. ^
Ao entrar, a primeira imagem que se lhe colot|
olhos, acompanhada duma ideia obscura, foi a &
cama, que era exactamente igual cama de Pa$t
lhe produzia tremulinas vermelhas, moles vertigens!
escorriam por ela at a ponta dos ps. 'ia
Ao ver o oratrio, deteve-se. Pela primeira vez/5j
o sentia como um refgio e como um conforto.-'Jj
primeira vez, sentia-o como uma oposio muda, titl
acusao, algo importuno que a contrariava proa
damente. .lm
Mercedes hesitou em ajoelhar-se e em rezar, c&
derando que, se o fizesse, o pecado seria, talvez, mil
pois ela estava com o esprito sujo para dirigir-sdj
Deus. Logo pensou que era justamente nesses mortiw
tos que as almas deviam vencer o demnio e que Ded
em sua imensa generosidade, tudo compreendia. im
Mercedes ajoelhou-se e principiou a rezar. De quanjj
em quando, dava conta de que ia murmurando as paiS
vras sem atentar no seu sentido e recomeava, ca
trita. Mas, pouco depois, verificava que estava de now
a pensar nela e no sobrinho e, s vezes, no castigo qm
Deus lhes daria, mas sem pensar nas palavras qaj
dirigia a Deus e que ia dizendo de cor. Desesperava-a|
mais, ento, consigo prpria, por aquelas constante!
evases do seu pensamento, que ela no podia retesa
Um instante, as lgrimas rebentaram nos seus olhosj
"Guiai-me, Senhor... Guiai-me, Senhor!" Sentia o peiti
sufocado, as lgrimas a molharem-lhe as faces, os hum0||
rs nasais que as acompanhavam a descerem-lhe atm
os lbios, mas no baixava as mos que erguera parai
o oratrio. Acabou por conseguir pensar apenas no i
significado das palavras que murmurava. E rezou lon^l
gamente, com fervor. Mas sentia que sob o seu pensa- i
mento estava, desperto, o outro pensamento que a? l
brasa continuava sob a cinza. l
Pareceu-lhe que se encontrava, finalmente, serena.1 i
O velho relgio de pndulo dera, na sala, trs horas |
A CURVA DA ESTRADA
495
da madrugada. Dir-se-ia que, depois desse rudo solitrio, a casa se enchera dum siln
cio mais profundo.
Mercedes comeou a sentir frio. Persignou-se e meteu-se na cama, apagando a luz. P
ouco depois, porm, lanterna mgica ao fim do subsolo, a paisagem proibida reacendia
-se na escurido. Reacendia-se com o prprio calor que as roupas da cama davam ao co
rpo. Quanto mais quente este se sentia sob os cobertores, mais a presena daquela
ideia se fazia sentir tambm. Novamente Mercedes tentou afast-la, pensando noutra c
oisa. O crebro, porm, no lhe obedecia. O crebro dir-se-ia fatigado de pensar que no d
evia pensar naquilo. Era como se as imagens e os pensamentos at ali repudiados ho
uvessem traspassado uma muralha com esse mesmo poder de penetrao e falta de volume
que tem a humidade e de l sassem ansiosos de se desenvolver livremente. Ela, agor
a, justificava-se: "H tios que casam com as sobrinhas. Pedem uma dispensa, so auto
rizados e casam-se". Logo admitiu que aquela faculdade, embora aliviadora, no lhe
era aplicvel. "Pao no ia casar com ela. Pao era casado e, se conseguisse divorciar-
se, havia de querer uma outra mulher rica. Alm disso, ele ficaria sabendo... Ele
ficaria sabendo que ela j tinha sido de outro..." Esta ideia fundiu-se rapidament
e numa imagem. E, de novo, Mercedes se encontrou com a viso do corpo de Lus e do s
eu prprio corpo, nos momentos em que se entregara. No queria evocar essas perturba
doras cenas; apesar da sua vontade, tornava-se-lhe grato evoc-las e desesperava-s
e e indignava-se contra ela prpria. Como de outras vezes, todas lhe causavam uma
ansiedade crescente; mas algurnas pareciam exercer maior fascinao naquela noite. O
seu crebro fora-as seleccionando pouco a pouco e detinha-se, agora, especialment
e sobre uma sobre a da quarta vez em que ela se entregara.
De novo reagiu. De novo se ps a chorar. "Meu Deus, dai-me foras para resistir e pe
rdoai-me, que eu sou indigna de ti!" Pensou que, revelando tudo ao padre Balmes
e cumprindo a penitncia que este lhe ordenasse, diminuiria a sua falta. E ela con
fessaria tudo,
496
A CURVA DA ESTRADA
pois ficava, quase sempre, com a alma limpa, va$
* de trevas, depois de confessar-se. Era como se os p
dos s tivessem fora torturadora enquanto nin|flj
compartilhava do segredo da sua existncia, enqmjj
jaziam ignorados na alma de quem os praticava.1,'^
por muito que se esforasse, j no poderia contai
culpas que se tinham tornado brancas, as culpalfl
que se isentara, de que se esquecera mesmo, ddf
de as haver murmurado na confisso. Esta ideia m
ziguou-lhe, por momentos, a conscincia e, ao md
tempo, duma forma inconsciente, impregnou o seurl
rito duma maior liberdade. Pouco depois o seu cpi
voltava a exaltar-se. Dir-se-ia que uma transferem
de responsabilidades se produzia secretamente. Proa
zia-se como se ela soubesse que se ia despojar, m
intermdio do confessor, duma couraa que a magOM
e lhe dificultava os movimentos na noite implacJ
dos instintos. 't
Tudo isso se operava de modo lento e obscuro, m
meio de reflexos que ela no podia definir. Mas Sm
xava sempre, nos seus resduos, exemplos mitigado"!!
Mercedes lembrava-se de vrias pecadoras que se ha visai
redimido pela contrio, que se haviam alado at*
santidade sob a copa generosa da rvore da penitnd
E confortava-se ao pensar que os seus prprios pecada
no eram ainda to graves, nem to voluntrios, conlj
tinham sido os de algumas daquelas. f"|
Tentou, mais uma vez, dormir, vencer o crebrca
domar a pele, esquecer. Mas os sentimentos, os racio*!
cnios e as imagens voltavam em torvelinho, cada veil
mais imagens e menos sentimentos e menos raciocniosfj
cada vez mais imagens e mais ante-sensao de sensa*!
coes. A viso da quarta vez em que ela se entregar!
enchia tudo: o seu crebro, os olhos, as trevas do quartoj l
a noite inteira. Via-se a si prpria, j no com Lus? i
mas com Pao. Pao estendia os braos. Ela chegava i
ao quarto de Pao, na escurido e no silncio da casa, l
Pao estendia os braos. E esse instante parecia sua J
febre de agora um instante supremo, que englobava l
todos os instantes do Mundo.
A CURVA DA ESTRADA
497
Mercedes afastou os lenis, ergueu-se, procurou, no escuro, a sua bata e caminhou n
a ponta dos ps, evitando fazer rudo, para o quarto do sobrinho.
, _ - i t
itando fazer rudo, para o quarto do sobrinho.
Sob o torpor que, depois, invadira os seus nervos, acoitava-se uma ideia de a
rrependimento. Mas essa ideia estava dormente como os prprios nervos. Era uma s
ensao estranha ter o brao estendido sobre o corpo dum homem deitado sua banda. Era
como se ela tivesse, desde tempos perdidos, uma velha fome de carinho, j no da sua
carne, mas da sua alma tantos anos solitria. Ela pensava que no podia ficar ali m
uito tempo, que devia retirar-se para o seu quarto, e logo tiaha maior desejo de
ficar, entregue modorra, quela paz do seu corpo, quele contacto blandicioso com o
corpo de Pao. Ela sentia pelo sobrinho uma ternura cada vez mais densa, uma nsia
de se achegar muito a ele, de o acariciar com muita suavidade, de o proteger e d
e se sentir protegida, como se ela fosse, simultaneamente, me e amante, como se e
le fosse, simultaneamente, seu amante e seu filho. Pao detivera, porm, a mo com que
ela lhe afagava o tronco e as faces. E deixara-se ficar de costas, muito quieto
e indiferente.
Ao contrrio do que sucedera a Mercedes, a ele sobreviera-lhe repugnncia pelo corpo
da mulher que se encontrava ao seu lado, por tudo quanto havia decorrido desde
que ela entrara no quarto. Consentia que Mercedes abandonasse um dos braos sobre
o tronco dele, mas o seu desejo era que esse brao se recolhesse, que partisse, qu
e o deixasse sozinho sozinho com aquela sua repentina vontade de tomar banho, d
e lavar-se, de fazer desaparecer o cheiro a carne nua de ^ulher que havia no seu
corpo e em todas as roupas que o envolviam. Pao gostava desse olor feminino, toa
s o da tia produzia-lhe, agora, asco. Sempre espera de que Mercedes o largasse v
oluntariamente, ele ia dominando a sua impacincia. Por fim, no pde mais e murmurejo
u, de mau-humor:
498
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
tarde... Podemos adormecer e seria o dtt melhor ires-te embora... n
Pareceu a Mercedes que Pao tinha razo, mai tinuava a custar-lhe sair dali. Moveu-s
e com es suspirou e tentou, de novo, uma branda carcia, l a ideia de que ia libert
ar-se dela, Pao decidiu nitf maior condescendncia. l
Subitamente, porm, eles ouviram trs toqa^ campainha ao fim do corredor. Quem era
devia 4 com pressa e muito senhor de si, porque tocavad longadamente. Alarmado
s, semiergueram-se na mos nas mos. O prprio silncio da casa dir-se4 ficado em expect
ativa tambm. Parecia que o sill tinha criado ouvidos por toda a parte, que escuta
* que esperavam. A campainha retiniu de novo. i cedes levantou-se rapidamente e
correu, na escufc para o seu quarto. Pao acompanhou, ansioso, C vago rumor e, por f
im, respirou. A
Pouco depois, a campainha voltava a tocar. ouviu Mercedes abrir, com naturalidad
e, a ports quarto dela e caminhar no corredor, a chamar a aim Pareceu-lhe que a
tia estava procedendo com infj gncia e louvou-a do fundo do seu crebro maldispM A
gora, Mercedes dizia a Ramona: m
Veja l quem . capaz de ser algum bebi Os passos da criada distanciaram-se. Pao oM
vozes confusas, ao longe, e a porta da escada a>t| cerrar-se. Depois, a voz, mai
s clara, de Ramona,"m se dirigia, certamente, a Mercedes. \m
o senhorito Enrique! m Pelo rudo feito, Pao acabava justamente de nj
sar que seria o irmo. E as palavras da criada, ao <m
firmar aquilo, contrariaram-no. Ele identificou os pa*l
de Enrique, que, em seguida, se detiveram. O in
devia estar porta do quarto de Mercedes, ali pertiiwj
porque Pao ouvia-o nitidamente: m
Desculpa-me ter-vos incomodado a esta ho
Mas que vim de automvel e j era tarde quanj
sa, ontem, de Huesca. Como vo vocs ? O pai ? '|
e o Pao ?
499
Mercedes respondia amavelmente. Enrique continuava :
Eu nem tive tempo de prevenir-vos e, com certeza, o meu quarto no est preparado. M
as no faz mal. Durmo na sala. s estender-me um bocado, at de manh.
A Ramona faz-te o quarto, num instante.
No vale a pena incomodarem-se por to poucas horas, pois na noite que vem j no estare
i c.
Qual no vale a pena!
Pao ouviu-os caminharem para o antigo quarto de Enrique, no extremo da casa. Subi
tamente, ele pressentiu as razes que teriam levado o irmo a vir a Madrid e ficou a
inda mais contrariado.
IX
W ERGADA sobre a cama, Ramona estendera os lenis e colocava, agora, os cobertores.
Pelos bruscos movimentos dos seus braos e pelo seu silncio teimoso pareceu a Enri
que que ela fazia aquilo de mau-humor. De outras vezes, quando ele vinha casa pa
terna, Ramona acolhia-o festivamente, sempre menino para aqui, sempre menino par
a acol, to carinhosa em tudo quanto se lhe referia que at chegava a comov-lo. Ela co
nhecera a me dele mesmo antes de esta se haver casado, que ambas eram mulheres do
povo e viviam no mesmo bairro pobre. Depois, viera para ali como criada; os ano
s tinham-se passado, Ramona resistira a trs ou quatro namoros, engordara e fora f
icando sempre. Ciosa da posio que ocupava na famla, opusera-se vontade de Soriano t
odas as vezes que ^e pensara meter outra servial para a auxiliar. Ela jazia todos
os trabalhos domsticos, ajudando mesmo ^abel a criar os filhos. E, quando Pao e E
nrique Se tornaram homens, continuara a mostrar sentimentos Maternais por eles.
Estimava igualmente os dois e no
5oo
CURVA DA ESTRADA
era sem orgulho que, s vezes, evocava a pg|
* meninice em que eles buscavam a sua proteco;^
rando-se-lhe s saias, se a me pretendia castjgj
Nos ltimos anos, porm, os sentimentos de R^j
pareciam ter-se alterado. Embora ela nunca llj
vesse dito nada, Enrique pressentia que a velha d
lavrava mais afecto por ele do que por Pao
lisonjeava-o. J
Agora, enquanto esperava que Ramona lhe pi
rasse a cama, Enrique considerava que aquelesJ
imprevistos modos seriam devidos, talvez, a ele M
-lhe interrompido o sono e tentou desculpar-sea
Vim dar-te uma grande maada, Monita... m vs a dormir e... -m
Ela no o deixou terminar: l
No deu maada nenhuma! Bem gostaria eu! todas as maadas fossem assim! j
Contrariamente ao que dizia, a sua voz e a maiH como batia com as mos nos coberto
res pareciam acj ntimo ressentimento. >|
Eu no estava a dormir; eu no pude doa esta noite... m
Em todo o caso disse Enrique, por amajl dade eu sei muito bem que no nada agrad
ai sair do calor da cama a uma hora destas... Por mil vontade no te teria incomod
ado... ;m
Ramona no contestou logo. Desdobrava a com e, s depois de a estender, exclamou: t
m
Ainda bem que o senhor veio! Ainda bem M veio! No h ainda uma hora que eu tinha es
tad^l pensar em si... m
voz parecia trmula, comovida. Ramona erguJ o busto e o seu rosto dir-se-ia mais e
ngelhado e eajfl lhecido. Enrique notou que os olhos se encontrav" hmidos. Era um
a humilde resina do velho tronco. M
Que tens ? m
No tenho nada. >m De repente, Ramona voltara-se para a parede"
comeara a chorar. '
Surpreendido, Enrique insistiu: R*
A CURVA DA ESTRADA
501
_ Anda! Dize! Que diabo tens tu ?
Ela no respondeu. Dobrou-se, de novo, sobre a cama, sempre a choramingar. Enrique
via-a de costas, abaulada e com as mos dos lados, como as tartarugas, a alisar a
colcha. Cada vez mais intrigado, ele no sabia como intervir:
Por que choras? Anda... deixa isso... Vais acordar toda a gente, a esta hora...
Ramona voltou-se, finalmente, para ele: ,
Eu no quero ficar mais nesta casa. Eu tinha pensado que podia ir viver com o senh
orito. Sempre tratava das suas coisas. Se havia de ter outra...
Ele mirou-a, remirou-a, como se aquilo lhe parecesse loucura:
Mas no, mulher! Como te veio uma coisa dessas cabea ? Eu vivo numa penso; no preciso
de ningum...
Bem sei... Mas podia alugar uma casa. Sempre estava mais vontade na sua casa
do que numa penso...
Enrique encolheu os ombros:
No percebo nada! Por que queres tu sair daqui ? Assim, dum momento para o outro ?
De novo as lgrimas romperam dos olhos de Ramona:
No posso mais! No posso mais ficar nesta casa! A sua mezinha pediu-me, ante
s de morrer, que eu nunca deixasse de tratar de Don lvaro. E eu prometi que lhe f
aria a vontade. Mas agora... Mas agora... Deus h-de perdoar-me, porque sabe que e
u no posso mais.
Enrique protestou. No compreendia nada, mesmo nada repetiu. H mais de trinta anos
que ela estava ah e s agora lhe tinha mordido aquele bicho. Que se havia passado
?
Ramona ficou calada.
Vamos! Fala! Que que te aconteceu ?
Como ela continuasse muda, fechada, um sbito receio mordeu no esprito de Enrique.
Aquilo pareceu-lhe absurdo, mas ele no topava outra explicao:
502
A CURVA DA ESTRADA
* Tiveste alguma desavena com o meu pai fl
No. No tive. Don lvaro tem-me tratadol pr bem... ,-S
Ento ? tjj Ainda desta vez Ramona no respondeu logOi m
que contemplava-a fixamente. Por fim, ela baixdl olhos e decidiu-se, com um susp
iro: 4J
a senhorita Mercedes que no me podJj Desde que a mezinha morreu e ela veio para 41
no me pode ver. O menino talvez no tenha repaa nisso, porque vem c raras vezes. Mas
, se vivesse" veria. ^Parece que ela no gosta que eu trate lys Don lvaro. Parece qu
e quer que Don lvaro pi que s ela o trata bem... **!
Isso um disparate! Isso so, com certeza, idNj tuas... E fala mais baixo, que pode
m ouvir-te..Sm
Ramona fez um gesto de indiferena: 'l
No so ideias minhas, no, senhorito! 4|
ralha-me por tudo e por nada. Ainda ontem, harm
almoo... Tudo o que eu fao nunca est a seu'ei
tento. Est sempre a implicar comigo. At as oH
criadas do prdio tm dado conta disso e todas-l
dizem que, no meu lugar, no aguentariam. Eu tejl
aguentado, porque fiz aquela promessa mezinflll
Tenho chorado, por isso, muita lgrima, mas es*
resolvida a aguentar at o fim da minha vida, custai
o que custasse. Mas, agora, no posso viver maiaW
mesma casa em que viva a senhorita Mercedes, Pfj
que ela uma imoral... Anda sempre a falar em DJ]
e no tem nenhum respeito por ele... "l
Enrique ps-se a rir: im
Tu deves estar com sono, Monita! A senhora Mercedes no ter respeito por Deus era
s o que 4 faltava ouvir... m
No tem! Se tivesse, no faria o que faz... ^1 Perante o torn de voz com que Ramon
a disseffl
aquilo, Enrique voltou a fix-la, agora de olhar cal regado: i
Anda l. Ento que faz ela ? * j Ramona no respondeu. *
A CURVA DA ESTRADA
503
__ pela maneira como te trata, que falas assim ?
No, no por isso. Se fosse s por isso, eu no me iria embora...
Ramona hesitou. Por duas vezes, Enrique viu os seus enrugados lbios voltarem a en
treabrir-se para falar e de novo se fecharem. Finalmente, murmurou:
. No quero ofender o senhorito. Sempre sua tia... Eu vou-me embora amanh.
A est como tu vs as coisas. No pensas no desgosto que dars a meu pai. Tu bem sabes qu
e ele tem-te como a uma pessoa de famlia...
De sbito, Ramona exaltou-se:
Eu no posso fazer mais a cama do senhorito Pao! No quero fazer mais aquela cama! Pa
ra mim, como se estivesse cheia de porcaria! disse e lanou em direco ao quarto de
Pao um olhar de lado, em seta, como as personagens dos pintores florentinos primi
tivos.
Enrique quedou-se a observ-la, num silncio impregnado de admisses.
Que tem a cama de meu irmo ? perguntou, depois, lentamente.
J estou velha para isto! exclamou Ramona, como se no tivesse ouvido a pergunta.
Isto, aqui, era uma casa sria e, pela memria da mezinha, eu ia suportando o mau
gnio da senhorita Mercedes. Mas, agora, que ela faz o que faz, no quero ficar
roais aqui. Eu, tambm, quando era nova, tive muitos homens atrs de mim. Mas, logo
que eu percebia as suas intenes, mandava-os procurar outra jumenta. E nenhum dele
s era casado e muito menos meu sobrinho...
Perturbado, Enrique hesitou, mais uma vez:
Como podes afirmar uma coisa dessas ? Ramona encarou-o com um olhar de dig
nidade
ofendida:
O senhorito julga-me capaz de levantar uma calnia a algum ?
No digo isso, mas todos ns podemos engatar-nos... E isso seria grave, entendes
?
504
A CURVA DA ESTRADA
' Pois eu no me enganei! Eles pensam qt|
durmo como uma pedra e, demais a mais, con
meu quarto est longe do dele... Mas eu tenhof'3
ouvidos, graas a Deus! E j h dias andava dei
fiada... >1
Ramona calou-se um instante, afastou os seus" J
dos de Enrique e volveu: -l
Cada um livre de fazer o que lhe d na gad
Eu que no^ fico mais aqui. you ter muita peai
deixar Don lvaro, l isso you! Mas ele no '^
sentir muito a minha falta, pois todos os viza
dizem que ele, agora, s faz o que a senhorita 'm
cedes quer... "l
De novo o silncio voltou. '(
No digas nada por enquanto pediu, enM guida, Enrique, com um torn vexado. Eu, d f
alo contigo.
Ramona olhou-o, interrogativamente. Os seus oq brilhavam, numa suspenso. ~w
Depois falo contigo, mulher!.-E, agora, vj deitar! -l
Ficar, no fico! Se o senhorito me quiser lei consigo, est bem. Seno... *|
Enrique fez um gesto de impacincia: (n
Espera, j te disse! i Ramona ia ainda falar, mas conteve-se. Hesitoij
tornou a conter-se. Suspirou mais uma vez e, j r" nada a esperar, os seus olhos pe
rcorreram, num vil profissional, todo o quarto. Pareceu-lhe que o travj seiro no
estava integralmente bem. Vergou-se, deu-** umas leves palmadas e ajeitou melhor
a almofafl Depois, voltou-se para Enrique: "l
senhorito precisa de mais alguma coisa ? |
No. At amanh. Isto : at logo. f Ramona saiu vagarosamente. No corredor, olha
para o lado dos quartos de Pao e de Mercedes. Nl pelas frinchas, nem pelas bandeir
as das portas se vi sinal algum de luz. 4
A velha criada caminhou at o seu prprio quarfl e deitou-se. Mas continuou a no pode
r dormir. ^
A CURVA DA ESTRADA
X
505
OONOLENTA muito embora, Ramona entrou no quarto ^ de Soriano, conforme o hbito, s
nove horas em ponto. Pousou a bandeja com o pequeno-almoo e os jornais, correu as
cortinas, levantou as persianas e, dados os "buenos dias" da praxe, preveniu:
O senhorito Enrique est c.
Soriano encontrava-se acordado h j algum tempo, mas sentia-se ainda pouco lcido.
Est c ? Que entre! Quando chegou ?
Ele chegou eram quase cinco horas da madrugada e ainda est deitado...
Bem; ento assim que se levantar, dize-lhe que venha.
Ramona saiu. Soriano ficou contente com a notcia da chegada de Enrique. Logo, porm
, a sua alegria se deteve. "Ele vem, decerto, por causa dessa histria" pensou e e
ncheu-se de contrariedade.
Um tmido raio de sol entrava pela vidraa e pousava sobre os cobertores, criando um
a ponte de luz entre a cama e a janela. Soriano bocejou, soergueu-se e puxou a b
andeja para si. Era seu costume tomar o caf com leite, o po e a manteiga e, depois
, continuar na cama at ler os jornais matutinos. Era um costume de h mais de trint
a anos. Agora, porm, ele alterava esse velho hbito. Em vez de pegar na chvena, pego
u no "El Socialista", rgo do Partido, e desdobrou-o com rapidez.
A frente do jornal apresentava-se inteiramente ocuPada pelo programa da homenage
m memria de glsias, que nesse dia se realizava. Ilustravam-na os retratos dos que d
iscursariam na sesso e um subttulo informava que esta seria radiodifundida, para q
ue toda a Espanha a ouvisse. Soriano percorreu os ttulos; Parou, um instante, nos
nomes dos oradores, impressos em letras fortes, e continuou procura do seu caso
. Este vinha na segunda pgina. Ao encontr-lo, Soriano
5o6
A CURVA DA ESTRADA
j, vacilou um momento, como se se desse nele uma d
ausncia de curiosidade, uma sbita preguia pm
o enfado que, certamente, iria ter. Puxou a alral
para trs das costas, recostou-se, procurou aa
dar-se bem. >>m
"Deu-se, ontem, um acontecimento que, sem dn
vai ser deplorado por todos os verdadeiros social
de Espanha, no pelo prprio facto em si, masf,]
causas que o originaram". >hj
Ao contrrio do que Soriano esperava, o' jm
referia-se-lhe muito serenamente. E atribua-lhe rcm
qualidades. Depois de evocar tudo quanto oco
desde a notcia publicada pelo "Heraldo" at dM
haver recusado a desmenti-la, acrescentava: -J
"O directrio socialista^ viu-se, ento, forado a. M
diar do Partido a Don lvaro Soriano. Esta atii
no foi tomada sem sincero desgosto, pois todoscnfl
nhecem que Don lvaro dedicou causa socifflj
durante muitos anos, os seus melhores esforos. Maa
directrio no tinha, infelizmente, outro camraW
seguir, dado o caso de ontem ser apenas consequ&l
de muitos outros acontecimentos anteriores. Como &
domnio pblico, as divergncias de Don lvaro SOIM
com as nossas ideias vinham j de h longo teuaj
Don lvaro no , certamente, o primeiro homemu
muda de opinio, mas confessamos que essa mudai
constituiu, para ns, um rude choque. Quando >m
legtimo esperar ainda dele novos servios nossa graM
causa, verificmos, doloridos, que ele se ia afastai"
pouco a pouco, dos princpios que nos regem". ifj
O entorpecimento que o sono havia deixado^
crebro de Soriano desaparecera completamente.
estava, agora, muito lcido e comeara a indigna"**
com aquele torn pacfico do artigo, que mais pareijj
lamentar do que acusar. "Aquilo era refinada hipocriM
sem dvida inspirada por Zornoza uma hipocriOT
como s os jesutas sabiam ter. Ele conhecia rniiifl
bem esses processos! Os canalhas fingiam-se imparciJi
somente para que o pblico acreditasse que a razj
estava do lado deles".
A CURVA DA ESTRADA
507
Subitamente, a respirao de Soriano reteve-se. E os eus olhos passaram a ler com ma
ior sofreguido:
"O primeiro grande desencontro deu-se quando Don ^Ivaro era ministro. A Empresa
Hidro-Elctrica de San Juan de Torrelaguna pretendia obter aprovao ministerial a um
projecto que lhe interessava. Os tcnicos oficiais tinham-se dividido: uns eram a
favor da pretenso, outros consideravam-na lesiva aos interesses do pas. Nessa altu
ra interveio, porm, um dos filhos do ministro Francisco Soriano mais conhecido
nos meios elegantes de Madrid por "Pao, el Hermoso". Tal como o filho dum clebre e
scritor valenciano que, graas ao nome do pai, conseguiu ser deputado e, graas a se
r deputado, pde realizar diversas traficncias que, h pouco tempo ainda, foram desma
scaradas no Parlamento, assim Pao Soriano se comprometeu a obter a aprovao paterna
ao projecto da Hidro-Elctrica de San Juan de Torrelaguna, desde que esta lhe dess
e cem mil pesetas, metade das quais paga antecipadamente. A soma pedida foi-lhe
entregue e Pao cmeou a operar. Entretanto, o governo, de que Don lvaro era um dos mi
nistros, resolveu, por maioria, perseguir os operrios que, nesses dias, se haviam
declarado em greve. Perante isso e porque a greve era justa, o Partido Socialis
ta ordenou queles dos seus membros que faziam parte do ministrio que abandonassem
este imediatamente. Como se sabe, todos obedeceram, menos Don lvaro Soriano. Natu
ralmente surpreendido, o directrio chamou-o sua presena e, com no pequeno espanto,
ouviu-o declarar que procedera assim por ter verificado que as greves arruinavam
a economia de Espanha. Amigavelmente, o directrio tentou demonstrar-lhe que ele
estava em erro, pois se era certo que as greves produziam algumas passageiras pe
rturbaes, era verdade tambm nunca se ter visto uma simples greve ou mesmo uma srie d
e greves arruinar, s por
81, a economia dum pas, por muito dbil que esta Seja, o que no , felizmente, o caso
de Espanha. Nada, Porm, demoveu a Don lvaro Soriano da sua atitude. nossa estranhe
za foi grande, pois estvamos certos
5o8
A CURVA DA ESTRADA
* de que, anos antes, ele pensava exactamente con"
Don lvaro ficou, portanto, como ministro inJM
dente, no governo que decidira opor-se aos ope"
Poucos dias antes, os tcnicos do seu ministrio}!
eram favorveis pretenso da Hidro-Elctrica d$l
relaguna, haviam sido encarregados de apresentai]
relatrio. Este foi, naturalmente, afirmativo e l
tenso aprovada na vspera de o ministrio d"||
Don lvaro fazia parte cair no Parlamento. -m
"At essa poca, o directrio ignorava, ainda,B
quanto se referia aco de Pao Soriano neste ?
E s veio a sab-lo, porque o director da Hidro-M
trica, que um famoso reaccionrio, decidiu tirar "
as vantagens possveis das cem mil pesetas que m
pagar. com este propsito, ocultou dois amigos <4
na sala contgua quela em que fez o ltimo plB
mento ao filho de Don lvaro Soriano, para que visjB
e ouvissem como se podia comprar um ministro soj
lista. Ora, admitindo mesmo que o director da H4B
-Elctrica quisesse que o segredo da sua vitria fiodB
apenas no crculo dos seus amigos, sabe-se quanw
difcil manter um segredo desta natureza e, ass||
aqueles que o possuam em breve o propalaram. ~$
"Pode-se imaginar, facilmente, o desgosto do difjjB
trio socialista ao ter conhecimento deste facto. (KB
tudo, porque no tinha provas de que Don lial
soubesse o que seu filho preparava na sombra e potn|
lhe custava a acreditar, como, apesar de tudo, J
custa ainda, que, sabendo-o, tivesse aprovado a ]M|
tenso da Hidro-Elctrica, o directrio decidiu adM
at colher novos elementos, qualquer procedimertH
punitivo. Se, hoje, nos referimos a este lamentSB
episdio, apenas para demonstrar como Don lvaM
Soriano, voluntariamente ou no, sofria, desde h tei*l
ps, influncias contrrias doutrina e at ao prest^B
do socialismo, que o directrio tem a obrigao tij
defender por todas as formas ao seu alcance. Os coJfl|
tactos de Don lvaro com os inimigos do nosso ideatl
e at a sua frequente concordncia com eles eram cacMJi
vez mais evidentes e conhecidos de todos os meo"|
A CURVA DA ESTRADA
509
olticos espanhis. A notcia da sua irradiao do partido Socialista s pode, portanto, cau
sar surpresa queles que o viam ainda atravs do seu remoto passado".
Soriano largou o jornal e encheu, finalmente, de
caf e de leite a sua chvena. Notou que a mo lhe tremia quando tirava do aucareiro a
colher; logo, porm, o seu pensamento volveu ao ponto onde estava e esqueceu aquil
o. Pela fora do hbito, ainda pegou na faca da manteiga e no po; mas desistiu de com
er e esvaziou a chvena em poucos goles.
Soriano tocou a campainha. E quando a criada surgiu porta, pediu-lhe:
Diz ao senhorito Pao que eu preciso de lhe falar.
O senhorito ainda est a dormir...
Ento, logo que ele acordar, que venha falar comigo.
Lembrando-se do seu anterior dilogo sobre a chegada de Enrique, a criada admitiu
que no teria ouvido bem ou que Soriano se houvesse enganado.
o senhorito Pao ou o senhorito Enrique ?
O senhorito Pao repetiu Soriano com voz metlica.
Est bem; eu digo-lhe.
Logo que Ramona saiu, Soriano comeou a desdobrar os outros jornais. De novo notou
que as mos lhe tremiam ligeiramente, como se ele estivesse a ler sob a vibrao dum
comboio. Quase todos os dirios publicavam a notcia da sua irradiao, mas sem comentrio
s. Apenas "El Debate" acrescentava algumas palavras da redaco: "Esta nota, que o d
irectrio socialista enviou, ontem, Imprensa, demonstra, mais uma vez e bem claram
ente, os processos que aquele Partido usa na poltica nacional. Toda a gente sabia
e at um nosso colega vespertino o tornara pblico anteontem ~ que Don lvaro Sorian
o estava resolvido a abandonar o socialismo. Como , tambm, do conhecimento Pblico,
o directrio fez, ontem, todos os esforos para evitar aquele acto e, como no o conse
guisse, decidiu
5io
A CURVA DA ESTRADA
""f-
^
, antecipar-se a Don lvaro, expulsando-o do JM
Todos ns compreendemos muito bem o que <3
tende significar com isto. Todavia, curioso frs^
um homem que, durante a tarde de ontem, ain
tido como digno de continuar a pertencer ao M
Socialista e nesse sentido solicitado insistente
fosse considerado indigno uma hora depois e, a
tal, irradiado. Por isto, o pas pode avaliar cofl
"trabalha" na central do socialismo espanhol. i
afirmar que Don lvaro Soriano est muito lonj
ns, que somos catlicos, enquanto ele um iim
declarado da religio de Cristo. Mas, apesar do am
que nos separa, no nos custa nada dizer, em hotl
gem verdade e justia, que se trata dum hoi
sincero que tudo sacrificou s suas ideias; e se, uml
as abandonou, porque fortes razes de conscind
isso o impeliram, depois de ter visto, como tantos out
que seguia caminho errado. A sua irradiao atij
pois, mais do que a ele, ao prprio Partido Sociall
Soriano folheou, por fim, o "A. B. C.". As suas-ia
haviam deixado de tremer. O jornal monrquico |
se referia directamente a ele, mas publicava lei)
artigo de um seu colaborador habitual sobre os homj
clebres que haviam mudado de ideias: "Muitas vi
a mudana corresponde apenas a interesses individual
sem ter, em contrapartida, nenhum objectivo mdil
de a, a repulsa, quase instintiva, que certas coma
soes polticas despertam na maioria dos outros homei
Mas quando a metamorfose sincera, esta filia-se a|
complexas razes psico-fisiolgicas, quase imposstl
de evitar em determinadas constituies humanas. RJ
de-se, assim, dizer que, na generalidade, aqueles cffl
passam das direitas para as esquerdas, o fazem p
convenincias oportunistas, violentando ntimas imjM
sies da sua prpria evoluo fsica, que tanta influl
cia exerce no esprito. Ao contrrio, os que passam cN
esquerdas para as direitas obedecem a essa naturd
evoluo, pois, como se sabe, enquanto a juventude
revolucionria por efeito da sua prpria vitalidade, ^
velhice, empobrecida de energias fsicas e cheia de hbi*
A CURVA DA ESTRADA
5"
s acuniulados pelo simples acto de viver, naturalmente reaccionria." Depois de ev
ocar alguns nomes de polticos que se perderam no conceito geral por aderirem a id
eias diferentes das que anteriormente defendiam, o articulista citava o daqueles
"que s haviam obtido um lugar na Histria e sido verdadeiramente teis aos seus povo
s quando abraaram um novo credo. Nos nossos dias, o caso de Benito Mussolini bem
eloquente. Antigo socialista, somente depois de haver repudiado as suas anterior
es convices ele conseguiu, para si prprio, todo esse imenso prestgio de que hoje des
fruta no Mundo inteiro e para a Itlia toda essa prosperidade e toda essa fora que
ns lhe reconhecemos e que fazem com que esta nao, ainda ontem desdenhada pela maior
ia das outras, seja actualmente uma das mais respeitadas e temidas potncias do gl
obo terrestre e tenha o seu futuro inteiramente assegurado".
Soriano pousou o jornal sobre a bandeja, com a ideia de recortar e guardar aquel
e artigo. Pensou que tudo correria bem se no tivesse sido a nefasta aco de Pao. com
o artigo do "A. B. C." e a nota de "El Debate", as "direitas" fortificavam e flo
riam a ponte que ele devia atravessar, preparando-lhe do outro lado um bom acolh
imento; e isso reflectir-se-ia at na sua imediata situao dentro do Partido Nacional
. O filho prejudicara, porm, tudo. Depois daquilo, Ballesteros devia consider-lo d
uma maneira diferente; a sua fora moral estava diminuda e ele tinha, portanto, de
limpar-se dessa ndoa, de aplainar essa protuberncia, que escondia um tumor.
Toda a amizade que Soriano votava a Pao desaparecera. De repente, os defeitos des
te, que at ali ele desculpava facilmente, ressurgiam como faltas que jamais devia
ter perdoado. "At na famlia!" sussurrou-lhe, vingativo, o seu cepticismo. Queria
, agora, mal ao filho mais velho e sentia o desejo de ser inexorvel para com ele
.
Soriano voltou a encher, vagarosamente, a sua chvena. E ps-se a tomar o caf com lei
te a pequenos goles ao contrrio do que fizera pouco antes. Bebia
512
A CURVA DA ESTRADA
1|
i
* distraidamente, enquanto procurava meter em 'oj
o rebanho de sentimentos que se tresmalhara ai
refegos e pendentes do seu esprito. Os olhos enoM
ram, sobre a bandeja, o exemplar do "A. B. C."5|
sentiu como que uma consolao futura: "Apes|
tudo, havia tambm quem compreendesse. Masii
no houvesse, pouco importava! Compreendia lm
isso era suficiente". Contra a prpria vontade, Soa
deteve-se. Ao longe, um dos seus chibos tresmaflfl
olhava, com dvidas, e interrogava inquietamerfaj
sobre uma penha que ele sentia ser resvaladigl
abismo que lhe ficava por baixo: "Isso , realn"
suficiente ? Posso saltar com confiana ?" Sorianon
tou vencer aquele implacvel contraditor que d|
dentro dos homens como uma doena sem curada
se s'ervia do silncio como duma trombeta, lhe faM
quando ele menos desejava ouvi-lo e lhe dizia agi
"No!" Soriano tentou convenc-lo de novo, apres
tando-lhe argumentos alheios, indicando-lhe o aS|
do "A. B. C.", mas o contraditor testarudo, falando*
profundidades que o chibo examinava de alto, 'H
nunca as ter explorado completamente, parecia del
nhar o artigo e todos os argumentos que contirJ
"Tu bem sabes que no suficiente..." l
Soriano quis interromper a controvrsia, mas m
o conseguiu; levantou-se e, levando-a com ele, dirigi"
casa de banho. No tinha pressa nessa manh; n
fazia a barba como se estivesse apressado e sem pena
que estava a fazer a barba. Foi sempre s voltas cf|
o seu dilogo que se lavou e volveu ao quarto p$|
se vestir. Ia tirar o pijama quando a porta se abt|
e Pao entrou. iJjj
bom dia, pap. J Soriano no respondeu. Aproximou-se da cama, onfl
se encontravam os jornais, pegou em "El Socialista"^ estendeu-o ao filho: *]
Leia isto. ^ Aquela mudana de tratamento surpreendeu Pao
O pai falava-lhe com uma voz imperiosa, muito dif^ rente da dos outros dias. Pao
olhou-o e viu que k
A CURVA DA ESTRADA
513
tinha o rosto contrado, duro, e algo de invencvel nos
seus olhos.
Pao comeou a ler. Na sua frente, mirando-o fixamente, Soriano percebeu quando o fi
lho chegou parte do artigo onde o acusavam. Pareceu-lhe que Pao demorava demasiad
amente a leitura, enquanto ele se reprimia a custo, aguardando o momento de solt
ar a clera. O seu desejo fora explodir logo e, agora, cada segundo lhe parecia im
enso.
Isso verdade ? rugiu, finalmente.
Sem levantar os olhos, Pao hesitou, ao mesmo tempo que as suas mos iam dobrando, d
istraidamente, o jornal...
Eu... Eu te explico...
Isso verdade e eles, com certeza, podem prov-lo, seno, no teriam coragem de o afirm
ar. Tu s um pulha e vais sair imediatamente da minha casa!
Pao continuou a tartamudear:
Mas, meu pai, eu nunca te pedi nada para a Hidro-Elctrica... Nunca te pedi que ap
rovasses...
O olhar de Soriano enchera-se de furor:
Lembro-me perfeitamente de que me falaste vrias vezes dessa empresa com
elogios... Lembro-me tambm de que os engenheiros teus amigos a defendiam igualme
nte. Sais esta manh mesmo! No quero ver-te mais aqui, ouviste ?
Nunca te pedi que aprovasses fosse o que fosse... -7 repetiu Pao. Gaguejando, ele
tentava ainda improvisar uma justificao, mas a voz de Soriano, cada vez mais fort
e, no o deixava prosseguir:
Sai! Sai imediatamente! Canalha!
Tu no ests em ti... Mas eu quero explicar-te tudo...
Enfurecido, as palavras de Soriano cobriam sempre as do filho. As prprias hesitaes
de Pao lhe confirftiavam a certeza que ele havia adquirido e cada vez Se exaltava
mais:
Fora! Fora daqui!
Pao ergueu a cabea e olhou-o sobranceiramente:
Eu no te permito que me trates assim, com-
17 Vol. Ill
5i4
A CURVA DA ESTRADA
preendes ? Eu no sou uma criada! Eu sou um hm
como tu! L porque s meu pai... {3
Soriano avanou para ele, de punhos erguiddj
Tu ousas... J]
No chegou a acabar. Pao tornou a olh!^B
vmente. Depois, voltando-lhe as costas, saiu hyl
a porta com fora. 3
Soriano ficou parado no meio do quarto. Padj
-lhe que se havia feito um grande silncio em seu3
na casa toda, um silncio que dir-se-ia nascer-Il3
os ps e subir-lhe ao crebro, como uma exalaJB
vapor da terra. Ele estava ainda excitado, os pra
fechados, as unhas cravadas nas palmas das ma
lbios trmulos. Deu alguns passos e, depois, alhe
que fazia, tentou desabotoar o pijama, para vesl
camisa e o fato, como de costume, acto esse q"
entrada de Pao interrompera. Logo, porm, renuia
e deixou-se cair na cama. Parecia-lhe que o silfi
se adensava. Um silncio frio, um silncio de ral
forrada de gelo, com uivos de lobos, que lhe ia-^MJ
dindo o corpo, pouco a pouco. S o crebro resfii
de vez em quando, dava conta do silncio e contimi
em tumulto. il
Havia decorrido bastante tempo, quando a pi
do quarto voltou a abrir-se: .;i|
Posso entrar ? -,1 Soriano reconheceu a voz do outro filho e sffl
gueu-se, lentamente: "ti
Entra... a Enrique avanava para ele, de braos abertos: a
Ento, como tens passado ? j Soriano levantou-se e abraou-o, com lassido:
No te esperava... Foi, para mim, uma surpI quando, h pouco, a Ramona me disse
que tin^j chegado...
Pronunciara isto duma forma arrastada e os sej olhos dir-se-iam maiores do que h
abitualmente, HK amolecidos, quase lquidos, sem nenhum vigor.
Tambm eu, ainda ontem de manh, no pej s v vir a Madrid. S de tarde que resolvi...
A CURVA DA ESTRADA
515
Enrique deteve-se, um momento, ao atentar no rosto de Soriano.
Pareces muito fatigado... disse-lhe, depois.
No tens passado bem ?
Soriano sacudiu aquelas palavras:
Tenho... Tenho...
Ele sentia, agora, por este filho, maior ternura do que tivera at ali. Mas era um
a ternura melanclica, cptica, quase dolorosa, quase dio a si prprio por ainda poder
gostar de algum.
E tu ? Como vo as as tuas coisas por l ? perguntou, com esforo.
Bem. Muito bem.
Ouviram-se uns passos no corredor, nos quais Enrique reconheceu os do irmo. Ele i
a voltar-se, mas os passos distanciaram-se. A fisionomia de Soriano alterara-se
subitamente. Agora, Enrique identificava os passos de Mercedes, que se haviam ju
ntado aos de Pao. E at ali chegava um dbil rumor de vozes distantes. Por fim, uma p
orta abrira-se e fechara-se.
Eu vim a Madrid, porque preciso muito de falar contigo disse Enrique, como se l
igasse, sem mesmo o desejar, as suas palavras aos rudos que se haviam produzido n
o corredor. Pareceu-lhe, contudo, que o pai no o ouvira imediatamente e que o seu
esprito voltava de longe ao repetir as palavras que ele dissera:
Precisas de falar comigo ?
Sim, preciso respondeu Enrique, dando sua ^oz um torn de forada ligeireza. Mas,
antes disso, quero tomar o "desayuno", pois estou com um apetite dos demnios...
Eu...
Enrique interrompeu-se e voltou-se ao sentir que a porta do quarto se abria de r
epente. Mercedes entrava com modos agitados.
Ah, ests aqui ?! exclamou, ao v-lo, como se d presena dele a contrariasse. Mas log
o se dirigiu a Soriano: O que houve com o Pao ? Ele pediu-me Para arrumar as sua
s coisas e disse-me que mandaria busc-las esta tarde...
Enrique olhou, surpreendido, para Soriano. O pai
5i6
A CURVA DA ESTRADA
-1
1
tinha, agora, um rosto muito severo e tardou!1! ponder.
Faz o que ele te pediu. Esse homem no | de viver connosco. i|
Mas que foi ? Que foi ? insistiu MercedeajJ Sonano ficou calado. Em seguida,
voltou-sel
Enrique: m
Vai tomar o teu "desayuno", anda, enquani you vestir-me. Depois falamos. M
voz de Soriano tinha um som que o filho n| lhe ouvira.
& XI "
d
n
t STAVAM os dois sentados, um em frente do &
no escritrio. Soriano recostara-se pesadaiUi
na cadeira da sua secretria e Enrique afundava-ai
poltrona, com "El Socialista" sobre as pernas. ^
Enquanto ouvia o pai, Emique pensava que am
devia ser decidido nesse mesmo dia e a deciso jM
depender do que ele prprio dissesse. Enrique sidj
acercar-se o momento em que tudo se tornaria irai
grave; e parecia-lhe que, de instante a instante, sJ
condensando, dentro deles e em volta deles, essa fl
vidade que, em breve, seria total e decisiva. Ele ol
siderava-se cheio de razo, mas pouco sereno, comol
o excitasse o facto de saber que tinha razo. aj
Parecia-lhe que havia perdido o pai. O pai estai
ali, na sua frente, de pernas cruzadas, de tronco end
tado ao espaldar da cadeira e falando calmamenjj
mas a ele parecia-lhe que havia perdido o pai; "w
aquele que estava ali s aparentemente o era; qual
seu pai pertencia ao passado e no ao presente. Sorian
continuava a falar e Enrique continuava com aqufi
desagradvel sensao. Ele havia perdido o pai e tiidl
de se bater com aquela aparncia do seu pai, que falal
pausadamente em frente dele, de pernas cruzadas'"
tronco recostado na cadeira de braos da secretria|
A CURVA DA ESTRADA
517
gle verificava que, apesar de tudo, ainda tinha um confuso sentimento de carinho
e de pena por esse homem, como se amasse um objecto deixado por algum que morreu
.
Soriano calara-se, por fim. Enrique levantou a vista e fixou lentamente o rosto
paterno, de linhas fortes, Dem talhadas no seu ligeiro ovalado, e olhos grandes,
onde fulgurava ainda, de quando em quando, a energia do seu perodo de luta. "Dev
o mostrar-me calmo, para lhe falar, sobretudo, inteligncia" pensou Enrique. Ao m
esmo tempo parecia-lhe que, em seu redor, o silncio se tornara vibrtil.
Tu no podes tomar essa atitude. Tu dizes que j decidiste aderir ao Partido Naciona
l, mas tu no deves manter essa deciso. No deves mante-la de maneira alguma.
Voltou a olhar o pai. Soriano tinha um ar impassvel.
Tu podes dar, perfeitamente, uma desculpa aceitvel ao Ballesteros, quando fores,
esta tarde, a casa dele. Dizes-lhe que estiveste a pensar e que resolveste aband
onar a poltica... No creio que te custe dizer-Iho, pois, com certeza, o Ballestero
s no te merece grande considerao. Vocs, os polticos, e os mdicos e os galos no tm ne
a considerao uns pelos outros...
Pareceu a Enrique que havia falado serenamente e sem irritaes inteis, mas j Soriano
afirmava, peremptrio:
Eu no posso dizer-lhe isso! Enrique mordeu os lbios.
Porqu ? Por ti ou por ele ?
O pai perscrutou-o um momento, com uma chaftiazita de curiosidade nos olhos e no
disse nada.
Se por ele, fica descansado, pois se o Ballesteros tivesse vantagem em fazer uma
coisa semelhante, no hesitaria um s momento, tenho a certeza disso.
Sim, tambm por mim respondeu, enfim, Soriano, acentuando muito as palavras.
Eu no pretendo abandonar a poltica.
5i8
A CURVA DA ESTRADA
"T
1
Enrique conteve-se, como se carecesse de teal
de silncio para se conformar com aquilo. Logo psaj
desinteressar-se da declarao do pai. iti
Eu sempre pensei que as ambies der|
podiam lev-lo, mais cedo ou mais tarde, porfn|
caminhos disse, apontando o jornal que tinha'isj
as pernas. J quando foi do seu casamento eu i
muito mal impressionado... Ora tu afirmaste, h p$
que ele no exerceu nenhuma influncia sobreal
possvel... Tu o dizes e eu no quero desmentiroi
No exerceu, te asseguro! Se ele prprio w que exerceu, engana-se redondamente! >a
Pode ser... Mas a verdade que, desde h ma
tempo, as ideias dele, o que ele dizia e fazia por n
a parte, tinham criado uma certa confuso em rdj
do teu nome... Sobretudo, desde que ele voltou a vm
contigo... Era raro o dia em que algum no me m
guntava: "Voc d-se com seu irmo?" Ou eni
"O seu irmo d-se consigo ? Mas ele um reacciond]
E o seu pai o que diz a isso ?" -m
O Pao acabou para mim, mas h muitos irm"
que tm ideias diferentes objectou Soriano.-ij
deves ligar importncia a isso. As pessoas que te fajal
assim fazem-no com m-f. sm
Pois disse Enrique, com um torn de trani
gncia. E quedou-se, um momento, silencioso. Pe|Si|
no jornal, dobrou-o ainda mais do que j estava*
comeou a bater levemente com ele sobre os joelho
Pois ; mas agora tu dizes-me que vais parati
Partido Nacional, que o partido do Pao... ij
O Pao no pertence a esse partido! protestd Soriano. m
Bem sei... Eu quero dizer que o partido m seu corao. Mas certamente ele no est inscri
to. AntaB de se decidir, quer ver qual , de todos os partido que existem em Espan
ha, aquele que lhe d maioral vantagens... 'aj
Enrique ergueu-se bruscamente da poltrona: J
Eu vim a Madrid, meu pai, unicamente parjl
tentar evitar que tu pratiques um erro desses! Nd||
A CURVA DA ESTRADA
519
niaginas como fiquei quando, ontem tarde, um outro engenheiro, meu colega, me mo
strou "El Heraldo de Madrid", com a notcia de que tu pensavas sair do Partido Soc
ialista e aderir ao Partido Nacional. A princpio, no quis acreditar, pois aquilo p
arecia-me absurdo. Mas, ao recordar-me de certas palavras tuas, da atmosfera que
havia nesta casa e de certas mudanas que notava em ti, de cada vez que eu vinha
a Madrid, receei que aquilo fosse verdade. E, ento, decidi vir imediatamente por
a fora, para falar contigo. Foi s o tempo de arranjar um carro...
Eu j tinha pensado que a tua vinda devia estar relacionada com isso... Ma
s, como viste, no foi preciso eu sair; expulsaram-me...
As ltimas palavras de Soriano tinham um torn desdenhoso, cortante. Repetiu: "Expu
lsaram-me..." como se dissesse: "V o que esses canalhas fizeram a um homem como e
u!"
Eu soube essa notcia ontem mesmo declarou Enrique. Soube-a no caminho, quando e
ntrei num restaurante para jantar. muito desagradvel, sem dvida alguma, que isso
tenha acontecido. Mas, agora, no se trata da tua irradiao; agora trata-se da tua ad
eso ao Partido Nacional... Pelo facto de te atropelarem e de perderes, por isso,
uma perna, tu no vais, tu prprio, cortar a outra.
Vou!respondeu Soriano com energia.Quando se arranca uma rvore, temos duas solues: d
eix-la morrer ou replant-la algures. Eu no quero deix-la morrer.
Enrique fez um gesto de contrariedade:
Era justamente isso que eu temia. E foi por 'sso que, ontem, no voltei para trs,
quando soube que j no podia evitar a tua sada do Partido Socialista.
Pois para me dizeres o que tens estado a dizer, teria sido prefervel voltares...
Pelo sbito silncio do filho, Soriano compreendeu que o tinha magoado e levantou-se
tambm. Caminhou at a porta do gabinete que dava para a escada;
520
A CURVA DA ESTRADA
"!
1
\
voltou, tornou a ir, tornou a vir. Deteve-se, dji
* em frente de Enrique, semiabru os braos, ami
mos e, agitando-as, num gesto que lhe era han
quando discursava no Parlamento ou nos trSm
Ento expulsam-me do Partido ao qual dei J
a minha vida e tu no queres que eu me deM
Enchem-me de insultos e de calnias e eu no"
defender-me ? im
Enrique sentia-se cada vez mais excitado. ><
insultaram porque ele deu azo a isso. No foraS
outros que mudaram, foi ele; no foram os outros
comearam com tudo isto e sim ele; ele prprio
convencido de que Pao recebeu o dinheiro da
-Elctrica, pois ainda h pouco me disse que,<al
vrios pequenos pormenores de que acabava de tal
dar-se, aquilo devia ser verdade. No foram elesJB
tanto, que o caluniaram". A excitao aumentava, dl
que queria poder mandar no torn da sua voz, im
sentia que o torn da sua voz estava pronto a ell
der-se, pronto a desobedecer-lhe. "Preciso de dJ
nar-me, pelo menos por enquanto". E cerrou fortemaB
as mos. J9
Certamente que te deves defender dissesM
Quando se tratar de calnias, certamente que te dfflB
defender. Mas no vejo que, para isso, seja predsojB
aderires a esses reaccionrios. So duas coisas comB
tamente diferentes... :M
Soriano encostou-se secretria e mostrava urKfM
de piedade pelo filho: ofl
No sabes nada de poltica. Podes saber niu|H
de agronomia, mas vejo que de poltica no percetiM
coisa alguma. Se eu fizesse o que tu dizes, ficaria i$fl
lado, sem nenhuma espcie de apoio... E os outraM
ainda se riam de mim! ~fl
Enrique ia contradiz-lo; ele, porm, no lho p(r)M
Tu queres que eu termine a minha carreira. J Mas porque devo eu termin-la ? Porqu,
se ainda fljM sinto cheio de energias e com uma experincia cofl^H
A CURA DA. E STRADJi
521
tive ? E em pojica :a. e:xperinca tudo. E o tesouro. , talv,, sema o sabermos, a c
ompende todos os de;osto:s, de todas as derrotas e
ina l puaca :a. e_x.peiieiiua. c LUU.U. -i^ u
a SSO tesouro. , talv,, sema o sabermos, a compen"ao de todos os de;osto:s, de toda
s as derrotas e Lesmo de todas as tdess que sofremos...
oni a mo em for" de asai, Soriano fez um movimento de onda que sesprada, como se l
he fosse indiferente e afastasse de tud"o> q uanto o filho e ele prprio ha^'ia-ni
dito. E tonou a sentar-se.
Os dois homens ficram catados. Enrique encostara-se ombreira da melaa e acendera
um cigarro. Pusera-se a fumar e aolha r p-ara a Plaza Mayor, de costas para o p
ai.
podes plantar arvore no teu jardim disse,
depois, voltando-se. Para ela. viver no absolutamente indispensvel qie diispOTiha
dura terreno igual ao que tinha anterionente. E, demais a mais, um terreno como
esse qui esco>llieste! Se eu te digo que deves abandonar a jltica., digo-o em teu
prprio benefcio, pois as ideis quie efendias nada sofrero com a tua sada. Toks ass i
deias tiveram, um dia, adeptos que, por decaincisa mental, por ambio ou rivalidades
pessoais, a<abandonaram, como tu fizeste, ou mesmo que as traim. E ruem por isso
elas deixaram de persistir come at ali, s vezes mesmo mais fortes do que at ali.
Soria.no olhava o filo earn olhos sombrios de poo, num niisto de expectnva e s ev
eridade.
As ideias esto icimat de ti, de tudo quanto tu possas fazer. Falo, p, pelo teu pas
sado. O passado dum homem como tu-.ao para os outros uma coisa morta, como pode
seriara ti prprio. O passado dum homem pblico um temem.!o vivo, que aumenta dia a
dia, como a casca dairvore: d-e que falmos h pouco. H, apenas, uma diferia: a- casc
a morre com a rvore e o passado dum horr-m piibldco no morre com ele: bom ou mau,
sobrevivlhe, po-demos mesmo dizer que o seu futuro, a sua losterridade. Enrique
aqueceu a-s palavras: Ora qnndo urn homem como tu renega o seu passado, esse h
cnem mutila-se, demite-se duma Parte essencial dele rprlo e confessa, com o seu
522
A CURVA DA ESTRADA
gesto, que enganou aqueles que nele acreditaria!
vai enganar aqueles que nele venham a acreditai
isso a sua personalidade moral deixa de mereS
peito aos outros. Um passado nestas circunstnM
como uma cauda. Como um rabo! Mas se um ma
com a ambio de se assemelhar mais ao how
para se valorizar, cortasse o seu rabo, tornar-se-il
vel e no seria uma coisa nem outra. CompreraM
Soriano mantinha um silncio ostensivo, o All
fechado, os lbios fechados, a mo fechada sol"
secretria. ifm
No Partido Socialista volveu Enriqueci
freando o primeiro toque de desespero h exfrl
tas e modelados; e tu, como tem acontecidoH
alguns outros militantes, evolucionaste para os ltm
J isso no bonito, bem o sabes. sempre desta
dvel ver recuar, seja um homem, seja um exB
ou mesmo um animal; os prprios cavalos recuam tB
jeitadamente e s so elegantes quando avanam, fflj
enfim, tem-se visto muitos homens fazerem, espoji
neamente, aquilo que os cavalos s fazem quandOfjl
ados por quem os monta... Portanto, se depoiflj
que se passou tu desses uma explicao e te retinal
em seguida, a tua atitude seria ainda respeitvel. HaS
ria muitas pessoas que te compreenderiam e at mo
dos socialistas moderados estariam, talvez, contigo/^l
despeito contra Zornoza. Tu dizes que ficarias isol"
e que os outros ainda se riam de ti; mas se tu adeij
ao Partido Nacional, no se riem, ds... l
Enrique interrompeu-se de sbito. >*"
O que fazem ? perguntou Soriano, rudemeia
No vale a pena. No quero magoar-te. O ca eu quero defender-te de ti prprio. 9
Anda, dize! 3J
No vale a pena! ->j
Desprezam-me ? No o que querias dizer ? Ni desprezam, no, est descansado! Eu tambm t
ent muita coisa para lhes cantar. Muita coisa! E quandj me decidir a faz-lo, garan
to-te que no me desprj zaro!
A CURVA DA ESTRADA
523
Soriano dissera isto com veemncia, mas logo baixara a cabea, como se se houvesse f
atigado. Da ombreira da janela, Enrique via-o de perfil, um brao apoiado sobre a
secretria, outro pendendo-lhe ao longo do corpo. As veias azuis das suas mos mostr
avam-se tumefactas. No ligeiro silncio que se fez, a voz de Soriano tornou a soar
, mas pausadamente. Dir-se-ia falar mais para ele prprio do que para o filho:
neste nosso poder de argumentao que est o mal. A grande infelicidade de Espanha e d
e todos ns que os espanhis so o povo que mais discute no Mundo. com palavras que p
arecem definitivas e raramente o so, desencadeiam os maiores equvocos, as maiores
paixes e, s vezes, at os maiores dramas. Eles fazem um barulho verbal por tudo e po
r nada. E como possuem uma facilidade espantosa para encontrar argumentos, so c
omo uma trovoada cheia de relmpagos. E nisso, justamente, que est o nosso mal..
. Tomam cada argumento por uma verdade e defendem como verdades incontestveis
o que no passa, muitas vezes, de meras aparncias, de felizes e oportunas assoc
iaes de palavras. E no h ningum capaz de convenc-los do contrrio, pois at pela manei
omo gesticulam, parece que todos os espanhis nasceram para advogados. Mas esta qu
alidade que o nosso grande defeito.
Soriano voltou-se, enfim, para o filho:
Tu falas bem, l isso falas. Tu fizeste versos e, alm disso, s espanhol!... Tu falas
bem, mas esqueces que h coisas que no se abandonam facilmente. No se deixa de ser
actor l porque, s vezes, as crticas so desfavorveis e o pblico pateia... No se abando
um grande amor porque ele no d s prazer, mas, tambm, sofrimento. Eu prprio s h pouc
horas sei isto na prtica... Um homem pblico, por muito honesto e inteligente q
ue seja, s parcialmente age por conceitos morais ou ideolgicos. Mesmo quando since
ro, mesmo quando est convencido de que procede apenas em benefcio das suas ideias,
ele procede, em grande parte, por amor a si prprio, pois as
524
A CURVA DA ESTRADA
suas ideias, se criam adeptos, valorizam-no .mjj
* mente. Ele habitua-se a ser admirado, a ser lisorcaa
a receber gentilezas e subservincias que doutras!
neira no teria. Se se sacrifica, os prprios sadiM
lhe do uma sensao de engrandecimento pessoajB
habitua-se aco, aos altos que sucedem aos |9
e por isso todas as intrigas, todas as decepes e nul
todas as calnias podem menos do que aquele h$B
No se renuncia, pois, assim facilmente como tu-m
ginas. E eu no quero renunciar. Soriano tracea
gesto largo, como se interrogasse a Espanha inteiaS
Renunciar porqu ? Eu quero continuar a minh*
reira. No quero ser morto-vivo. Tu no compreeiB
isto, porque s novo e te falta experincia... ^
Mais uma vez Enrique tentou mandar na sua |l
naquele torn agressivo que, de quando em quando"
mordia a garganta e a obstrua como um cartuchdH
explosivo. Desta vez, porm, no o conseguiu: ill
Antes no compreendesse... rouquejou. H
tes no te compreendesse! gritou violentamente"
Desde que comeou esta histria, eu tenho feito graniB
esforos para no querer compreender. Mas escusa
pois tu prprio acabas de confessar-te. Eu ainda tiqjH
admitido que se houvesse dado em ti uma prematJB
decadncia. Mas vejo que tu ests a proceder apeai
como um vulgar ambicioso. E se tu j no te preocup|B
com o que se pensa sobre ti prprio, no de admil|M
que no te preocupes nada com os outros, nem coa|
as ideias que defendias, nem com a f que renegaS
Tu s meu pai e eu no quero ofender-te; mas just"
mente porque s meu pai, tenho o dever de dizer-JM
isto com toda a clareza. !
Soriano exaltou-se tambm. Eram precisamente u9
outros que mais o tinham preocupado at ali, no 1MB
sentido a que o filho aludia, mas no interesse da repurf"
taco dele prprio. Era precisamente essa massa indejjffl
terminada e discordante dos outros, da qual ele s4S
havia captado ainda algumas reaces individuais, <Iu^t"
o fazia hesitar e lhe levantava constantes objece&jl
Os olhos de Soriano luziam uma clera reprimida) lj,
A CURVA DA ESTRADA
525
^-Eu no sou o ambicioso que tu julgas! Mas j no aciedito no socialismo! Que queres
tu? O homem tern necessidade de ser contra alguma coisa e muitos deles tm mesmo m
ais necessidade de ser contra alguma coisa do que de amar alguma coisa. Por isso
, as massas unem-se psicologicamente e obedecem com facilidade quando o fazem co
ntra algum ou contra alguma coisa, mas, depois, no tm sentido algum de responsabili
dade colectiva. De a o no se terem emancipado ainda. No digo que o socialismo no sej
a possvel noutros pases, mas em Espanha, com o feitio dos espanhis, no o ... Levei mu
ito tempo a chegar a esta concluso, mas hoje estou completamente cptico...
Mais uma razo para te retirares disse friamente Enrique. Se j mudaste inteiramen
te de ideias, isso mais uma razo para te retirares e no te contradizeres...
Veio, de novo, o silncio, aquela terceira presena que, de vez em quando, surgia en
tre eles e obrigava a fonte a voltar ao seio da montanha, em cujas grutas escura
s todos os cursos sinuosos eram permitidos.
Efectivamente, mudaste muito... acentuou, depois, Enrique com um torn melancl
ico. Quando eu tinha uns catorze ou quinze anos, levaste-me, um dia, contigo, a
Gibraltar, onde foste fazer uma conferncia... Depois de teres acabado de fal
ar, a polcia inglesa ps-nos na fronteira... Tu havias dito que a servido das mass
as era devida, sobretudo, a sua falta de instruo e aos interesses criados, que as
dividiam entre das prprias e aniquilavam as mais conscientes, sempre que estas te
ntavam a emancipao geral. Mesmo em frente dos agentes do poderoso imprio britnico, t
u ergueste-te contra todos os governos e contra todos os imperialismos, acusando
-os de manterem, atravs de tudo, a ignorncia e a escravido dos seus povos. Como tu
eras belo ento! Nesse tempo tu no duvidavas tanto dos espanhis, nem atribuas a uma
causa especiosa, a uma espcie de fatalidade biolgica sem remdio possvel, a falta de
responsabilidade colectiva das Cassas...
526
A CURVA DA ESTRADA
Ouviu-se um sbito rudo junto da porta fc|
* Antes mesmo de os dois se voltarem, a mai
rodou, a porta abriu-se com brusquido e Men
apareceu, enfurecida. Surpreendidos, eles mal tii|
tempo de a fixar, porque ela gritou logo a S<feJ
inacreditvel que um homem com a tua^i
j com a cabea branca, consinta que um fillfej
diga o que este tem estado a dizer-te! No por*
de ti que ele fala assim, no! Bem se importa ele^
tigo! Tu no o percebeste ainda ? O que ele querei
tu no ds razo aos que desejam salvar a Espai
E ningum me diz que ele no vem mandados
outros... .' ^
Soriano olhava calmamente a irm. Ela, pelo-
trrio, estava to irritada que as palavras lhe s4
atropeladamente. j
Enrique sorriu: ti
No sabia que para salvar a Espanha, tamq agora escutavas s portas... J
No preciso escutar s portas! Estava na'J e ouvi perfeitamente disse Mercedes, com
umsj presso colrica. -m
Na sala ? estranhou Enrique. cw
Na saleta ao lado, sim! Tu falas que se <m na rua... Mas intil estares a desviar
a questMJ Podes enganar o teu pai, mas a mini no me enganas"
Enrique continuava a sorrir, incrdulo e ironical
esse sorriso exasperava-a mais. Ela voltou-se pd
Soriano: m
Ele teu filho, mas no se importa nada qfl
o teu nome fique enlameado. Que te cubram de laiBi
isso no o preocupa! O que ele quer que tu no digi
a verdade, porque a verdade pode fazer mal aos q*
so como ele. Ele veio mandado por outros, no dum
ds! Vai janela e v a qualidade do automvel qm
o trouxe. Quando estiveste doente, ele demorou quinf|
dias para vir ver-te. E quando se decidiu a vir, ve|
de comboio. Agora, no demorou nada e encontrol
logo um automvel que nem o de um prncipe. E td|
to tolo, a ouvi-lo! Esses indivduos que o manejafll
A CURVA DA ESTRADA
527
no hesitam perante coisa alguma, pois so uns imorais-
Enrique engolira o sorriso. Os seus olhos agrediram
antes mesmo das palavras:
Quem fala de moral ? Tu ? s tu que falas de
moral ?
O torn sarcstico ficou no ar. E a acusao que ele parecia fazer expandia-se por todo
o gabinete, como um olor. Mercedes vacilou um momento.
Soriano, que se tinha mantido em silncio, voltou a fixar a irm.
melhor calares-te acrescentou Enrique.
Que queres dizer com isso ?
Digo que melhor calares-te, ouviste ? Mercedes protestou:
No tenho nada que me calar! E voltando-se para Soriano: Ele quer ver se te
convence, o que !
Enrique fez um gesto de impacincia e ia responder quando Soriano se decidiu, fina
lmente, a intervir, dirigindo-se irm:
Acaba l com isso! Querias dizer-me mais alguma coisa ?
Ela titubeou:
Eu... Eu...
Bem; j sei o que pensas a este respeito. E escusado estarmos a fazer mais cenas..
.
Mercedes tomou, subitamente, uma atitude de altivez:
Faz o que entenderes, que isso l contigo! Mas que te arrependes, arrependes, di
sso tenho eu a certeza! E bruscamente, como entrara, saiu, deixando a porta abe
rta.
Os dois homens ouviram os seus passos afastar-se, ao longo do corredor. Enrique
estendeu o brao, cerrou a porta e, depois, sentou-se. No ar ficara ainda muita co
isa. Muitas penas no tinham ainda pousado.
Eu penso ser intil afirmar-te que se no vim ver-te mais cedo, quando estiveste doe
nte, foi justamente porque ela e o Pao, sempre que eu telefonava
528
A CURVA DA ESTRADA
, a saber do teu estado, me diziam que no eranj
de importncia. E quando eu vim e estranhei qy
tivessem ocultado a verdade, disseram-me que o hm
feito para no me afligir. Hoje compreendo as <vfl
deiras razes... Quanto ao automvel, ele pertenci
meu colega Benito^ Rodriguez, que, por sinal,
sequer socialista. republicano.
Soriano pegara num lpis e comeara a fazer tta
sobre um papel, como se no ouvisse o filho. icfl
Tudo isto muito desagradvel... murnBM depois.Muito desagradvel... "$1
Se quiseres, deixamos para mais tarde... Eu sM no te disse o principal, mas, se e
sts fatigado, deij ms isso para logo. JJ
Ainda desta vez Soriano no respondeu. Largw
lpis, pousou o olhar no tapete e quedou-se como-J
alheio a ele prprio. Mais do que todas as ouragdj
palavras "prematura decadncia" haviam-se-lhe pega
aos ouvidos e adquiriam multplices ressonncias. Aqii
que o filho lhe negara dava-lhe um mal-estar mal
do que aquilo que o filho lhe atribura. Parecia-lhejffl
Enrique invertera as causas, ao julg-lo mais ambicid]
do que decrpito. Pareceu-lhe, depois, que nenhiBJJ
das duas causas era verdadeira ou, pelo menos, nenhBwl
era inteiramente verdadeira. Sem dvida, ele no tiiaj
a mesma resistncia de outrora, mas nisso no exisli
nada de prematuro, pois era um fenmeno natural'*
evoluo fsica do homem. Sem dvida, o seu crebi
fatigava-se hoje mais facilmente, quando ele lhe exij
um grande esforo. Mas as suas faculdades intelectual
continuavam intactas, com uma capacidade de raci
cnio e um poder de exame em profundidade e eal
conjunto que no possuam quando ele era novo. Efll
certo que se dera uma transformao no seu cerebrdl
como se se abrissem janelas num compartimento qofl
se encontrava s escuras e se fechassem outras nulm
compartimento que se encontrava iluminado. Tambn^
era evidente que o seu crebro no funcionava com<*'1
outrora; tirava agora dos acontecimentos concluses^
diferentes das que tirava antigamente e destilava razes ]
A CURVA DA ESTRADA
529
diferentes daquelas que estava habituado a destilar. Mas nada disso significava
que ele sofresse duma decadncia precoce ou que fosse um ambicioso vulgar. "Eu no s
ou um ambicioso como ele diz pensou. O que eu tenho uma experincia vivida e legt
imo, portanto, que deseje utiliz-la".
Soriano repeliu novamente as duas causas que, segundo o filho, poderiam explicar
a sua atitude. A primeira, porm, insistia. Ele sentia-se mesmo melhor no campo d
a primeira, se lhe tirasse o carcter acidental de prematuridade, do que no campo
da segunda, onde o terreno se mostrava nublado e os difceis caminhos se perdiam c
onfusamente na nvoa que ocultava nunca se sabia bem o qu.
J no me lembra do que estavas a dizer quando ela entrou murmurou Soriano, sem se
voltar para o filho.
Eu dizia-te que, se j mudaste completamente de ideias, isso era mais um motivo pa
ra abandonares a vida pblica e no te contradizeres...
Soriano voltou sua mudez. Ele continuava a repudiar as duas possveis causas. Mas
justamente a que o filho exclura era a que o humilhava menos, por lhe parecer mai
s justificvel na sua idade encontrar-se em decadncia do que ter ambies vulgares. Sor
iano tornou a deter-se sobre a ideia de renunciar. Mas logo milhentas reaces obscu
ras se ergueram nele, como se todas as suas clulas protestassem. "Naturalmente, e
u tenho ambies admitiu. E por que no hei-de t-las ?"
O corpo de Soriano estava numa atitude mole, de abandono. Os olhos continuavam r
igidamente fixos no tapete. Em frente dele, Enrique esperava, respeitandoIhe o s
ilncio. Entretanto, a sua vista percorria, distraidamente, o gabinete. Do outro l
ado, sobre a longa prateleira cheia de livros a que o tempo tostara as lombadas,
via-se o busto de Pablo Iglsias. A luz que entrava pela janela envolvia-o num fl
uido branco, como se brancos corpsculos pairassem em redor dele. Enrique demorou-
se alguns instantes a contemplar a figura
530
A CURVA DA ESTRADA
* do velho propagandista do socialismo e, depois^!
os olhos. Dir-se-ia que Soriano havia captado esse
imperceptvel movimento dele, pois quebrara!;;!
mente, o seu silncio. Voltou a cabea no pararfll
da poltrona onde o filho estava, mas para o da$
e disse em voz baixa: "No..." Tornou a endirej
cabea e repetiu ainda mais surdamente: "No.'."|
fim, encarou Enrique: k
Quero continuar a minha carreira. No 4
deixar-me vencer. Isto tem uma grande import
sobretudo quando a vida comea a ser curta. Ist|
um grande valor, compreendes ? A experincia defl
trou-me que eu estava em erro, que as ideias f|
tinha no correspondiam s realidades efectit^j
sobretudo, que os homens no correspondiam s^
prprias ideias. Ora o que tu desejas, pelo vtl
que eu no declare as concluses a que cheguefi
confesse que errei. E, para isso, devo retirar-ral
vida pblica. No o que pretendes dizer ? &
Enrique pensou: " o momento". O seu c^
estava ainda no princpio, mas ele esmagou-o rajs
mente no cinzeiro, com um gesto nervoso.
isso mesmo disse. isso mesmo l A
justamente a este ponto que eu desejava chegarK
vim a Madrid sobretudo para te fazer uma pergll
Uma pergunta que considero duma importncia capi
pois base dela que os homens nas tuas cifcd
tncias devem decidir a sua orientao futura. Eu 4
para te perguntar se te parece legtimo que um hold
que mudou de ideias polticas ou sociais passe a CS
bater as ideias que at a defendia e a fazer disso i
novo apostolado da sua vida. '*
Se o faz com sinceridade, claro que legti Isso nem se discute! respondeu Soriano
sem he taco. J
Pois eu digo-te que, nas tuas circunstncias, l* legtimo. Nem nas tuas circunstncias
, nem nas c cunstncias de muitos outros como tu.
Ora essa! Ento se um homem verifica, a cerl altura, que estava em erro, que as su
as ideias eras
A CURVA DA ESTRADA
531
rejudiciais, ele no tem o dever moral de o procla-
mi.r ?
__ No! Em circunstncias semelhantes s tuas, no,
00is ele no sabe quando est em erro. Soriano olhou para o filho com espanto.
S se no for honesto! gritou, depois. S se no for honesto! Por essa teoria, os home
ns de cincia no rectificavam as suas experincias anteriores perante as suas prprias
novas descobertas, nem S. Paulo teria tido a sua estrada de Damasco... E, ainda
hoje,' o "A. B. C." dizia...
Enrique interrompeu-o:
Os homens de cincia trabalham com hipteses, com dedues e dvidas at chegar a sucessivas
certezas e nada disso inclui a f, pois a f, como tu sabes muito bem, no cientfica.
Ao contrrio, S. Paulo e os outros conversos foram levados pela f. Ningum pode afirm
ar, portanto, se foi antes ou se foi depois da estrada de Damasco que S. Paulo t
eve razo ou mesmo se algum dia a teve. Ora os homens como tu lutam por ideias de
que no est excludo tambm um certo gnero de f. E tu, melhor do que eu, conheces isto. O
ntem, acreditavas no socialismo; hoje no acreditas e, ao que parece, defendes ou
queres defender uma doutrina oposta. Sendo assim, tu no podes afirmar que hoje qu
e tens razo, pois as tuas ideias de ontem desenvolviam-se em ti com a mesma certe
za moral com que hoje se desenvolvem aquelas que lhe so contrrias. Nem a ti prprio
podes garantir que ho]e que ests com a verdade, quando durante muitos anos estive
ste convencido de que a verdade era outra. Como queres declarar que erraste e qu
e os outros devem seguir o teu novo caminho, quando tu mesmo no sabes quando es
ts em erro ? Podes, portanto, sossegar a tua conscincia, porque se trata apenas du
m fenmeno de convico...
Soriano tornou a erguer-se e deu lentamente alguns Passos no gabinete. Deteve-se
em frente das prateleiras e ficou de costas, como se lesse os ttulos dos livros.
O filho seguia-o com o olhar, no silncio hiante que
532
A CURVA DA ESTRADA
"1
^~
!
jt se fizera. Ele, agora, ia tamborilando com osjtjj sobre as lombadas, como sob
re o teclado dum M Finalmente, voltou-se com uma beatitude desdenl
Tudo isso abstracto e nada tem que vw a. realidade humana, com os impulsos de con
sedj a que o homem obedece. Alm do mais, a con\9| que tem feito tudo ou quase tud
o no Mundo... ,n
Sem dvida. Mas isso no quer dizer que m
as convices sejam teis Humanidade. Tu bem ai
que a maioria delas tem-lhe sido funesta. Por oj
lado, evidente que, por cima da convico deim
qual, a inteligncia mostra-nos que h ideias qu
mais nobres, mais generosas do que outras, pois VM
a acabar com a injustia social de que vtinji
maior parte da colectividade. O prprio S. Paulo dl
ter tido a noo disto, dado que optou pela doum
que, no seu tempo, era a mais generosa e nobrei
todas... J
A ateno de Soriano evadiu-se absurdamente, "l
giu para uma velha estampa: campos de trigo eg
centeio ainda verdes, ao fundo umas oliveiras e fia
casebres negros ao longe. Para ele, a Palestina m
Sria eram isso. S. Paulo caminhava no meio da a
tampa. "A mais generosa de todas..." S. Paulo codj
nuava a caminhar. Ia lentamente, absorto, de o}U
sobre o p do caminho. "O trigo e o centeio so UB
generosidade da natureza". ||
Enrique dizia: >
Eu falo-te com a maior independncia. Eu ai
perteno, como sabes, a nenhum partido. E, no q'
diz respeito ao Socialismo, as conquistas que este p
tende realizar parecem-me bastante limitadas em reli
co s que a Humanidade necessita para construir UM
sociedade verdadeiramente justa. Mas no h dvid
alguma de que, apesar de todos os seus limites e quaia
quer que sejam os erros dos que as defendem, as ideia|
socialistas so mais nobres, mais generosas, mesmo mail
crists, do que as de Ramn Ballesteros. O socialismq
baseia-se sobre uma causa justa, que a do direit^
que todos os homens tm vida, enquanto a ideologia)
A CURVA DA ESTRADA
533
, partido Nacional se funda sobre uma causa injusta, is deseja manter os privilg
ios duma minoria parasitria.
Soriano ps-se a observar, discretamente, o rosto do filho, como se quisesse avali
ar a sua energia. Era urna cara morena e ovalada como a dele prprio e C0roada por
densa cabeleira negra. Os lbios grossos jiiostravam grande vigor quando falavam
e os olhos pareciam incendiar-se com as palavras mais violentas; mas tombavam, l
ogo em seguida, numa espcie de tristeza lquida, que era a sua permanente caracterst
ica. " muito natural que ele pense assim. As teorias socializantes fascinam mais
a juventude do que as do Ballesteros" considerou Soriano. Subitamente, porm, sen
tiu um vago despeito pela mocidade do filho. Enrique continuava:
Ora tu queres proceder justamente ao contrrio de S. Paulo. Tu dizes que discordas
dos actuais processos do Partido Socialista. Admito que tenhas razo. Mas os proc
essos do Partido de Ramn Ballesteros ? Tu pensas que o Partido Nacional mais puro
? No; com certeza tu no pensas isso. Ora, convico por convico, parece-me que a pri
meira que tinhas era a mais digna e a mais elevada...
Soriano comeou a sentir-se enervado:
Seria, seria, no digo que no, se o homem fosse diferente do que ! Mas tu ainda no
conheces os homens e, por isso, no me admira nada do que ests Para a a dizer. Tu s
um extremista e, como s novo, tens ainda iluses. natural. Tambm eu, na tua Ki
ade, as tive... Mas, em suma, o que tu queres que eu no seja sincero...
Soriano ergueu, de sbito, a voz, como se tivesse encontrado a razo que buscava e s
e sentisse de repente com maior fora moral:
No queres que eu seja sincero ? No isso ? ^o isso que vens pedir-me ?
Enrique teve um sorriso seco:
Quando um homem se tornou cptico sobre os seus semelhantes, como tu afirmas que
te tornaste,
534
A CURVA DA ESTRADA
esse homem j no poder lutar com sinceridd nenhuma doutrina que interesse verdadeiram
en| outros homens. Ele s poder defender uma do| que o interesse a ele prprio sua v
alorizao) vidual, como tu confessavas h pouco, e impS) da sua personalidade, perant
e a qual os outros "A constituir apenas uma submissa matria plstida| s ser sincero c
onsigo prprio, com as suas araU secretas e com as suas vaidades pessoais...
j Enrique cruzou as pernas, mas logo voltou'^ cruz-las. Assim excitado como se
encontrava, pj| -lhe que a prpria poltrona, ao deixar o corpo^ afundar-se, o opri
mia. O pai estava novamente d tas, tirando da prateleira at metade e, depois?) nan
do a met-los, um e outro livro. t
Enrirm" IOTT^t-
--- ~ invLc-ius, um e Enrique levantou-se:
Poro cie, ~~_
_-j -.^ v O,L LU u-se: !M
Para se ser sincero com uma doutrina social poltica preciso acreditar na utilidad
e dela em i co aos homens e ter, portanto, um mnimo de jm e de confiana nos homens
a quem ela deve sei Ora no este o teu caso. Tu j te desinteressast^j homens naquil
o em que podias ser til a eles. Tj no te desinteressaste deles naquilo em que eles
po ser teis a ti. A tua adeso ao Partido Nacional em prova disto. Tu s demasiado int
eligente para po^m acreditar no desinteresse de Ramn Ballesteros M sinceridade da
s suas manobras polticas. Tu nos| portanto, sincero ao aliares-te com ele. Tu no d
tendes, portanto, ser sincero; o que tu pretendei satisfazer as tuas ambies. '
4
Soriano encostara-se a uma das prateleiras e olhai o filho com olhar paternal. P
arecia-lhe que o nlholj longe de mais, que o julgava, muitas vezes, dui^
maneira injusta, quase ofensiva, mas que aquilo, T famlia, tinha pouca importncia e
era feito, em graiH parte, tambm por amor dele. De quando em quandj sentia mpetos
de intervir, de repelir esta e aquffl frase mais dura, de gritar como o filho
gritava, mi logo se dominava e continuava a olhar o filho com ul ar de condescen
dncia paternal. "Eu j fui como ei
A CURVA DA ESTRADA
535
concedia, para se justificar mais a si prprio do
que
ao filho. Parecia-lhe que Enrique era, s vezes,
um pouco retrico, como ele tambm o fora na juventude; e viera-lhe uma repentina cu
riosidade de conhecer o verdadeiro juzo que o filho fazia sobre ele: "Vamos a ver
como ele me v..." A prpria exuberncia verbal de Enrique produzia-lhe, de quando em
quando, como que uma saturao auditiva, mas ele continuava a sentir-se seguro de s
i, a sentir-se seguro de que venceria o filho.
Enrique afirmava agora:
A est! Actualmente, as tuas reaces do-se sempre no sentido da negao. Ora toda a act
idade social ou poltica feita, sobretudo, de afirmao. Nega-se para melhor se poder
afirmar. Destri-se quando se deseja obter espao para uma construo diferente. Tu no po
des ser, portanto, um elemento sinceramente construtivo. S na negao tu sers verdadei
ramente sincero. Sers sincero at pelos silncios que fars quando se fale de outras id
eias na tua frente e tu, por cortesia ou por interesse, evites discuti-las. Ness
es momentos tu hs-de ser sincero mesmo contra a tua vontade. No disso, pois, que s
e trata. Trata-se de no utilizares a tua nova posio mental como uma bandeira poltica
. Isso que no seria sincero, nem honesto. E aqui que est o problema. aqui que est
o problemarepetiu Enrique.Com a sua atitude, S. Paulo preparou-se para todos os
sacrifcios, ao passo que tu preparas-te apenas para os benefcios...
J basta!gritou irritadamente Soriano, cujo amor-prprio se tornara, de sbito, mais f
orte do que a sua curiosidade. No te permito que voltes a dizer-me isso!
Percebeste ? Tens estado a abusar da minha tolerncia. S me falta ouvir-te
chamar-me traidor...
"Outros te chamaro" pensou Enrique, de novo com aquela desesperada sensao de que p
erdia no s o pai, mas algo mais que nele admirara durante muito tempo e se consubs
tanciava para alm da paternidade fsica.
536
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
537
f, Soriano mudou de torn: >1$
Se se tratasse apenas de benefcios, bastadl
continuar onde estava; no precisava de ir pi
Partido Nacional. Tu sabes bem que o directorial
queria que eu sasse. Ora, se eu me arrisco a t"
gnero de incompreenses, se eu me sujeito a serij
tado e caluniado, por alguma coisa mais d<J
pelas vantagens... > q
Enrique ficou calado. Dir-se-ia que o silnd
apresentava com a mesma severidade autoritria*!
Soriano mostrava no seu rosto; dir-se-ia que o silj
estava todo naquela mscara. M
Estranho muito que tu vejas ofensas nas mMjjj
palavras, pois, decerto, compreendes que elas ob|
cem a boas intenes declarou, depois, Enrique,"
tamente. Ofender-te para qu, se isso no resai
nada? Agora que tenho a obrigao de te falaria
toda a franqueza, isso tenho, uma vez que sou'J
filho e tu ests numa encruzilhada muito perigS
Perigosa para ti prprio... '41
Soriano fez um gesto de indiferena. j J
Se pronunciei alguma palavra que te magdj
peo-te desculpa, pois no era meu desejo magoal
acrescentou Enrique, com voz afectuosa. dl
Soriano no se movera. Mas pensava, agora, *a
no devia deixar a sua clera explodir; que tinha iril
resse em ouvir o filho; que no era curiosidade e sfl
interesse o que sentira momentos antes e que n
interesse dos seus interesses j vinha no seu espirai
sem ele dar por isso, quando entrara com o filho n
escritrio. nm
Perante o silncio do pai, Enrique abrira, em lequl
a mo esquerda e pusera-se a olhar para os dedffll
como se verificasse se as unhas estavam cuidadas. 33*1
pois, sem fechar a mo, ergueu a vista. Soriano com
tinuava imvel, mas a sua expresso parecia mail
resignada. 'M
verdade disse Enrique, voltando a olha"
para os dedos , verdade que tu abandonaste voluffll
tariamente os benefcios que tinhas e podias continuai!
a
ter no Partido Socialista; mas nesse gesto no h nada de elevado, uma vez que tu pr
ocuras obter imediatamente benefcios semelhantes ou superiores no partido Naciona
l. No , pois, um sacrifcio que fazes; uma troca. Concordo que, a princpio, essa muda
na de sector, como dizia o "Heraldo", dar-te- algumas sensaborias; mas tu julgas,
sem dvida, que, com o tempo, tudo passar e as pessoas acabaro por se habituar tua n
ova situao. Tu tens algumas vantagens, bem o sabes. No Partido Socialista, havia s
uspeitas em teu redor, sobretudo da gente nova; para continuares, tinhas, portan
to, de subordinar os teus actos e as tuas palavras a uma coerncia e a uma aparent
e sinceridade que j no sentias e que, certamente, constituam para ti como coletes d
e foras. Ao contrrio, no Partido Nacional no sentirs esse mal-estar, porque podes se
r ali o que hoje realmente s. Eles no acreditam em ti e tu no acreditas neles. Para
se arrumar tudo, basta que declares que mudaste de ideias e que te prestes a at
irar, por tua vez, dois ou trs insultos aos socialistas. s aceite como o ex-empreg
ado dum concorrente, que se utiliza para desacreditar o antigo patro... Por outro
lado, no tens ainda despeites dos nacionais, como me parece que tens de Zornoza,
pois os despeites s viro mais tarde, quando te sentires com alguns direitos l dent
ro...
Soriano esperava que o filho lhe dissesse: "No Partido Socialista tu estavas sem
futuro" e sentiu um alvio por o filho no lho haver dito.
Eu no tenho despeites desse idiota! berrou, contra o seu desejo. Se saio, justa
mente para ser sincero comigo prprio!
Tens a certeza disso ?
Soriano encarou o filho com um olhar de protesto.
Tens a certeza disso ? repetiu Enrique. Consulta bem a ti prprio.
Ramona batia porta.
O que ? gritou Soriano, mais enervado ainda Por aquela nova interrupo.
Don Ramon Ballesteros est ao telefone...
538
A CURVA DA ESTRADA
* Soriano hesitou um momento. , i
Liga autorizou, depois. 'KJ J com o auscultador no ouvido, ele continjajl
olhar o filho, como se os seus olhos retivessem aJfl
vras que a boca no chegara a pronunciar. qm
Ballesteros cumprimentava-o e dizia-lhe: jsl
Surgiu-me um caso imprevisto, que me (fm uma parte da tarde. Se usted no se inco
moda,'"MJ ramos a nossa reunio para depois do jantar. ASM da noite, acha bem ? >lm
Soriano concordou. Mas pareceu-lhe que Balleai lhe falava com uma voz de obrigao
mais detja gao do que de interesse. Soriano notou que elqj fizera aluso alguma ao a
rtigo de "El Socialista" ej ciou as duas coisas. >m
Ballesteros ia a desligar o telefone, quando Soa disse de repente: -j
Usted viu o ataque de "El Socialista" ? M
Sim, vi respondeu Ballesteros, com a mcfl voz branca, desinteressada. E acresce
ntou: Notffl grande importncia... ll
Tem, isso tem! protestou Soriano, compMJ dendo que era justamente aquilo que co
meava am importncia entre os dois. Mas, esta tarde meq|i you demonstrar que se tr
ata duma infmia e qus minhas mos esto bem limpas. ;J
Boa ideia! Boa ideia! Faz muito bem! aPM Ballesteros. A sua voz modificara-se; p
erdera a nd| gncia de h pouco e parecia, agora, calorosa. /j
JOS Dionsio Martinez y Conde, que os leitores .d"i
"La Libertad" e de outros jornais conheciam pelw|
nome de Dionsio Marconde e os amigos por Pep"
Martinez, no ficou satisfeito com a primeira sensaS^H:
que aquilo lhe produziu. E desdobrando, de novo^l
A CURVA DA ESTRADA
539
1 Socialista", releu, vagarosamente, o artigo. Ao che-
* r a0 fim, verificou que o sentimento inicial se mantinha.
pepe Martinez acabava de tomar o pequeno-almoo
e ele prprio havia pensado escrever em seguida, como era seu hbito, a crnica que en
viava semanalmente a um peridico de Sevilha. Mas vista de "El Socialista", dobrad
o sobre a mesa, junto dumas migalhas de po, que, por sua vez, vizinhavam com umas
migalhas de sol, entradas atravs das cortinas, Pepe Martinez resolveu levantar-s
e e sair. Ps o chapu e comeou a descer lentamente os degraus do terceiro andar onde
vivia.
C fora, estava uma manh de azul quase roxo no cu e um sol muito branco sobre a Call
e Almagro uma manh de lrios de Pscoa. Um momento, pareceu a Pepe Martinez que, dos
confins da sua infncia e ao longo dos tempos vividos, lhe chegava o aroma envelhe
cido desses lrios brancos e roxos que ele vira sobre um combro da provncia, num di
a como aquele.
J a andar no largo passeio de Almagro, Martinez considerou que a frescura da manh,
embora desagradvel ao primeiro contacto, representava um estimulante para quem d
esejasse caminhar. Ele no duvidava de que, apesar do seu carrego de anos, poderia
fazer todo o trajecto a p, pois no tinham conta as vezes que ia dali Gran Via ou
a Alcal sem tomar o carro elctrico. Estava mesmo certo de que se no sofria de niais
achaques, isso devia-se, em parte, aos passeios que costumava realizar todos os
dias.
Nessa manh, porm, a sorte fugia-lhe. Pepe Martinez no havia coberto ainda trezentos
metros quando
0 p esquerdo deu o primeiro alarme. Era o calo do dedo mnimo, que j se tinha feito
lembrar na vspera, mas que ele se esquecera de cortar assim que chegara
a casa.
Perante o fulgor matinal, a hiptese de subir para um "tranvia" desagradou a Pepe
Martinez e ele continuou a caminhar, esperando que o p se esquecesse, Por sua vez
, de que tinha sobre o dedo mais pequeno
540
A CURVA DA ESTRADA
i
um hspede impertinente. Tal, porm, no acoajj
' * e foi com dificuldade que Pepe Martinez salvij
ltimos metros que o separavam da paragem dos m
elctricos, em Santa Brbara. t}3
Uma vez ali, ele ainda pensou que, interrompi
a sua caminhada, no poderia comprar em Fuend
o pau de chocolate que costumava sempre levairS
isso pareceu-lhe carecido de importncia, pois am
riria "La maravilla de San Fernando" na Puerta defl
O "tranvia" chegou e Pepe Martinez subiu. L!w
tro, sentou-se, baixou a gola do sobretudo e corflH
de novo a pensar no artigo de "El Socialista" e nas
consequncias. .sm
Ao descer na Puerta dei Sol, o calo, repouM
no se fazia lembrar ao p e Martinez entrou na"j|
meira pastelaria que viu. 'm
Um chocolate "Maravilla de San Fernando"/"
favor pediu. >"
"Maravilla de San Fernando"... repetiu O'fjl
pregado, pronunciando lentamente as slabas, com
procurasse recordar-se dum acontecimento longn&i
Depois, voltou-se para um colega, que se encontjajB
mais alm, ao balco, e perguntou-lhe: Olha lw
conheces o chocolate "Maravilla de San Fernando" ?"
O outro ergueu os olhos para a parede, como qm
a reflectir, e, por fim, abanou a cabea. "9
No temos disse o primeiro empregado, cfij
um ar de quem lamenta. '"
Pepe Martinez dirigiu-se "Arco ris", na AlcaM
Mas tambm ali no encontrou o que buscava. Bl|
ciente, caminhou para uma terceira pastelaria, na CaM
Montera. nl|
Desta feita, em lugar de pedir "La Maravilla dm
San Fernando", perguntou, circunspecto, se tinhaflij
aquele chocolate. ! flfl
No; esse no temos; mas temos muitos outros ~-
respondeu o empregado, amavelmente. Temos toda'1
as boas marcas. E estendendo o brao para a grande^
vitrina que forrava a parede do fundo: Pode uste f
ver... Todas as boas marcas... 's
A CURVA DA ESTRADA
541
Mas, ento, "La Maravilla de San Fernando" no uma boa marca ?
O empregado teve um sorriso respeitoso: _ No digo que no... Usted compreende... um
a marca popular... No sei bem, mas parece-me que duma pequena fbrica de Alicante..
. Usted j comprou alguma vez esse chocolate ?
Muitas vezes afirmou Pepe Martinez com ar de dignidade. Numa pastelaria de F
uencarral e... Lembrou-se subitamente de que s ali tinha comprado e acrescentou:
Bem, em Fuencarral tenho comprado muitas vezes.
O empregado continuou com os seus modos respeitosos :
E qual o preo que l custa ?
Eu costumo comprar o tamanho mdio, que custa duas pesetas e meia.
Por esse dinheiro e at por menos, eu posso vender-lhe um chocolate de boa marca..
. s usted querer ter o incmodo de escolher...disse o empregado, abrindo a gran
de vitrina.
Pepe Martinez considerou que, com o calo a doer-Ihe novamente e dada a dificulda
de de encontrar o chocolate que procurava, seria prefervel levar um outro. Mas lo
go pensou que Ramona no ficaria to contente como se fosse "La Maravilla de San Fer
nando", que ela gabava muito. Ramona agradecia sempre com as mesmas palavras: "Pr
o, Don Pepe! Para que se molesta usted conmigo?... Muchas grcias!" Mas s de a ver
de olhos alegres ele se sentia feliz.
No se trata do preo disse Pepe Martinez. uma questo de preferncia... A pessoa a
quem desejo oferec-lo prefere esse a todos os outros. Uma vez, que lhe levei um d
iferente, pensando que ela gostava de variar, vi que no mostrou grande
entusiasmo...
O empregado perguntou de repente, como se houvesse encontrado uma soluo:
uma criana ? Pepe Martinez sorriu:
542
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
543
j
^ Sim... com uns cinquenta e tal anos. ,4J
Voltou o empregado ao balco, com gesto dj
no podia resolver aquilo. aJ
Sabe dizer-me onde eu poderia encontrar
aqui perto, esse chocolate ? perguntou timidaij
Pepe Martinez. r!3
O patro estava ao lado e o empregado hai
em responder. Mas logo adivinhou, mais do qual
um quase imperceptvel movimento de cabea do pu
que queria dizer: "Despache esse "pesado" de qua"
maneira". of
Talvez a em Preciados murmurou o eun gado, com o torn constrangido de quem com
etei acto que no se deve praticar. Uma pastelaria" quena, "La Delicia". -J
Em que altura de Preciados ? J
Quase ao fim, esquerda. a Martinez voltou a pensar no seu calo, agradei
e saiu. 'fJ
Preciados no muito longa, mas um p que sell
a cada passo, o sapato espetar-lhe um dardo no xiji
mnimo, julgar que aquela rua conta lguas de dei
primento. Pepe Martinez fora sempre um homem m
ambies e no lhe sobejava o dinheiro para utiM
transportes caros; apesar disso, os seus olhitos majl
buscavam, constantemente, o vulto dum txi. NunI
porm, o descobriu. E foi arrastando a sua pesi
esquerda que ele pde, cada vez com mais dores, atia
a pastelaria que lhe haviam indicado. Era s um
porta e uma s vitrina; l dentro, o prprio patrl
atendia a rara clientela. l
Usted tem o chocolate "Maravilla de San Fel nando" ? j
Tenho. Do maior ou do mais pequeno ? .3| Os ouvidos de Pepe Martinez esp
alharam logo m
novidade por todas as partes do seu corpo que podiali
ficar contentes. "
Do mdio disse. ^
O homem trouxe o chocolate. Os dedos engelhado
e um pouco trmulos de Martinez tiraram do bolso di
Ojete algumas moedas e contaram sobre o balco duas pesetas e meia.
v So trs pesetas corrigiu o patro.
pepe Martinez olhou-o, surpreendido.
Tenho-o sempre comprado por duas pesetas e
meia---
Aonde ?
Em Fuencarral...
Ah, em Fuencarral!... exclamou o outro com um torn de desprezo, como se Fuencar
ral fosse o ltimo lugar do Mundo. Mas se usted deseja um chocolate mais barato,
eu tambm tenho...
No, no; muito obrigado recusou Martinez, ao mesmo tempo que punha sobre o balco a
meia peseta que faltava.
Desta vez o calo no tomara em considerao o breve repouso que tivera; e, mal o p avana
ra para o limiar da pastelaria, Martinez compreendeu que no poderia alcanar, pelos
seus meios prprios, a Plaza Mayor. A sorte , porm, como as aves, assim que chega a
Primavera: uma acasala-se com outra e reproduzem-se a seguir. Depois de haver e
ncontrado o chocolate, Pepe Martinez pde encontrar tambm um txi.
Quando, por fim, bateu porta de Soriano e Ramona veio abrir, tudo aquilo decorre
u muito simplesmente, como de costume:
Ento como vais ? perguntou Martinez. Ramona no gostava de dizer que frua boa sade
e fez o seu gesto ambguo de sempre.
E usted?
C vamos andando. C vamos andando. Pega l...
Pro, Don Pepe! Para que se molesta usted connigo?... Muchas gradas!
Martinez quedou-se a olh-la. Pareceu-lhe que, apesar de todos os trabalhos que ti
vera para obter o chocolate por ela preferido, a velha criada no o compensava, na
quele dia, com a mesma satisfao que exibia das outras vezes que ele vinha ali. Uma
sbita e desagradvel ideia levou-lhe os olhos para a mo com que Ramona segurava o c
hocolate. "Ter-lhe-iam vendido
544
CURVA DA ESTRADA
1
uma marca diferente, sem ele dar por isso ?" Mum
* se tranquilizou por essa banda. O chocolate stm
ainda embrulhado; Ramona no podia saber seaj
tava ou no de "La Mara villa de San Fernando". M
sua tristeza brotava, portanto, de outra fonte. \2|
Que tens ? perguntou Pepe Martinez, con
ar subitamente desolado. . <9
Ramona suspirou e fez, depois, um dos seuS g"
vagos: Jl
Nada. Nada. E, de repente, a voz tremej
Que tens ? insistiu Martinez. V Ramona no respondeu. __
' m
Usted quer falar com Don lvaro, no ~f| dade ? M
Sim, mas que tens tu ? Sm Ramona era teimosa e baixou apressadamenfH
olhos. A voz tremia-lhe mais: 'VJ|
Ele est com o senhorito Enrique, mas eafl l you... 3M
Pepe Martinez ia ainda a falar, mas Ramona H
xara-o e caminhava em direco porta do escrital
Ele acompanhou-a um momento com a vista e, dera|
ao pousar o chapu no bengaleiro, suspirou tamt|B
Ramona dizia, atravs da porta: *3
Don Pepe... Don Pepe! -3
L dentro, ao ouvir aquilo, Soriano mudou rw|
damente de expresso. O seu rosto desanuviara-sl
ele prprio foi abrir a porta. Enrique ouviu-o diaiB
com alvoroo: >lji
Que pase! Que pase! ij|
Ao contrrio do que acontecia a Soriano, a cfl"
gada de Martinez maldispunha a Enrique. Ele conhea
a velha amizade que havia entre os dois e, desqjl
pequeno, habituara-se a estimar tambm a Pepe Maife
tinez, admirando-lhe a inteligncia e aquele sorriso "
bondade que lhe envolvia a boca com uma luminosf1
simpatia. Nesse momento, porm, a sua presena desa^
gradava-lhe, pela interrupo a que o obrigava e pt
vir tirar o carcter familiar da luta que estava tra*
vando com o pai. *
A CURVA DA ESTRADA
545
Soriano avanara para a saleta, ao encontro de Martinez. Enrique ouviu-o novamente
falar:
__ Como tens passado ? Entra! Entra!
O prazer de Soriano era evidente. A sua voz o atestava. Enrique no via Pepe Marti
nez h j muitos anos e tambm h muito tempo no lia os jornais onde ele colaborava. Um m
omento, admitiu que Pepe Martinez estivesse de acordo com a atitude de Soriano;
aquele sempre lhe parecera muito firme nas suas convices, mas tambm Soriano parecia
firme e, apesar disso, mudara; mudara e acolhia agora o amigo com a satisfao de q
uem recebe um apoio inesperado.
Os dois entraram no escritrio. Pepe Martinez cumprimentou Enrique e passou-lhe a
mo sobre o cabelo, num gesto terno que lhe ficara de quando o conhecera em criana.
Depois, sentou-se em frente dele. Era um velhito anguloso, magro, j ligeiramente
corcovado e de rosto muito esguio, terminando numa barbicha branca. Parecia que
se havia retirado da sua poca e que acabava de sair, no dum terceiro andar da Cal
le de Almagro, mas do "atelier" de Gr eco, onde servira de modelo. Os seus olhos
mopes demoravam-se a fixar as coisas, enquanto a cabea se ia voltando da esquerda
para a direita e da direita para a esquerda, num movimento vagaroso e sempre ig
ual.
No pude vir ontem, como tu querias disse, dirigindo-se a Soriano. Mas c estou...
Soriano no respondeu. A sensibilidade de Martinez captava o que havia no silncio d
o ar; os seus olhitos piscos pousaram sobre Enrique e nele tardaram; depois ergu
eram-se, de novo, para Soriano, cuja expresso se tinha, mais uma vez, transformad
o. Dir-se-ia lue as pupilas do velho, em lugar de ver, farejavam.
Parece-me que no vim em bom momento... aventou. Vocs no esto alegres. Eu j
calculava isso... Discusses?...
Pepe Martinez falara com um acento ligeiro, como se pretendesse tirar importncia q
uilo. Soriano tardou a responder.
Sim, uma discusso...disse, depois, forando,
18 Vol. Ill
i J^
54^
CURVA DA ESTRADA
* ele prprio, um sorriso. Uma discusso verdaaiB
mente acadmica... Tu chegas muito a propsito. <&m
rique entende que um homem que muda de ideiaj
tem o direito de combater as ideias que at a defenffl
Pareceu a Enrique que Pepe Martinez sorria CM
forma neutral, como se no quisesse envolver-sdfl
quilo ou adiasse a sua opinio e isso tornou a (
v-lo. 'M
Ele estabelece mesmo vrios graus para a sia
ridade continuou Soriano. Parece que, para'"*
s se sincero quando se desinteressado, o que"
rigor, no verdade. A converso de S. Paulo dl
tvel, porque S. Paulo foi um esquerdista desse terH
mas se S. Paulo tivesse feito o contrrio, a sua atita
seria condenvel. O <'A. B. C.", jornal ultramontanoM
esta manh, mais imparcial do que o meu filho... Jj
Enrique protestou: fl
No foi isso precisamente o que eu disse! E paj ce-me que o que eu disse
no merece ser trata nesse torn... "
Pepe Martinez continuava calado. Antes de resj&l der, Soriano contemplou-o, como
se tambm estranhai o seu silncio. -li
mais ou menos o que tu disseste. a essencial A presena de Martinez apressara
em Soriancij
desejo de derrotar o filho. Da mesma maneira <m
lhe sucedia frequentemente nos tribunais, agora toai
os seus raciocnios lhe surgiam de forma sarcastic!
como se pretendesse diminuir o efeito cias palavras ^9
adversrio perante um novo juiz. |
Ele quer que eu seja uma excepo, um fera
meno continuou, dirigindo-se apenas a Martinez, "i
Os outros podem mudar de ideias quantas vezes qflj
serem e fazer a vida que lhes apetecer, como
tem visto. Mas esses exemplos no me servem. Elfl
so-me vedados. Eu devo ser o precursor dum novl
processo de resolver estes problemas... Devo resgatafl
todos os homens que mudaram de ideias e no cuffl
priram o dever que ele lhes atribui, como Cristo reS'
gatou as culpas de todos os que pecaram antes dele..-
A CURVA DA ESTRADA
547
pevo calar-me perante todas as afrontas, porque elas so o rneu justo castigo; e,
como isso no seja bastante, devo afastar-me de todas as actividades polticas. S no d
evo entrar num convento apenas porque
ele ateu...
No posso acompanhar-te nesse torn disse Enrique, formalizado. Assim no pod
emos entender-nos. E se isso que tu pretendes, podes diz-lo duma maneira mais s
imples. Eu sustento que no legtimo que um homem nas tuas condies, se muda de ideias,
passe a combater as ideias de que havia feito, at a, um sacerdcio da sua vida. En
rique pensou, subitamente, que se Pepe Martinez conhecesse os pontos j Discutidos
, talvez se colocasse ao lado dele e ps-se a resumi-los:No legtimo! Primeiro, porqu
e, sob o aspecto filosfico, tu no podes afirmar, como j te demonstrei, que hoje que
ests com a verdade e no ontem, quando pensavas duma forma, inteiramente
oposta. Segundo, porque o teu cepticismo sobre os homens e os prprios de
feitos dos homens no so elementos suficientes para negar a justia da sua causa. E a
qui est uma questo fundamental. A tua mudana de ideias no significa que a causa que
renegas no seja justa. Significa apenas um processo de transformao individual.
O velhito de barbicha branca continuava com o seu ar de neutralidade. Tinha post
o os braos sobie os braos da poltrona e os trs dedos centrais da sua mo direita ora
se erguiam ora baixavam, ora baixavam ora se erguiam, com esse cadenciado movime
nto que a respirao d ao ventre dum animal adormecido. Enrique sentiu desprezo por e
le e, elevando a voz, voltou-se, de novo, para o pai:
Eu compreendo perfeitamente que o Ramn Bal-e^teros grite contra os socialistas e
contra todos aqueles ll'ie pretendem tornar o Mundo mais justo do que . t-le foi
sempre um reaccionrio, rico e encontra-se J servio dos interesses criados. Est, port
anto, no S<-M papel. Tu, no! Tu ainda h pouco eras socialista e passavas a vida a
atacar aqueles que pensam como
54"
A CURVA DA ESTRADA
-1
4
Ballesteros. Por tua causa, nos comcios, nas gf
nas manifestaes contra a guarda-civil, morrerantl
tos homens e outros ficaram feridos ou mutilados, J
esse pobre Juan Cabanillas, de quem tanto iam
Houve mesmo um que foi fuzilado em Barcelona
no me recorda o seu nome, mas tu, com cem
deves record-lo. At uma vez me disseste qu
em certas expresses, se parecia comigo. Por tua ca
entendes ? muitos homens passaram anos e 'j
nas prises e alguns s de l saram para o cemitl
Tu provocaste dores e sacrifcios de toda a espa
uns que tu conheces, outros que no conhecers jan"
pois ningum pode saber, com exactido, a influji
que uma ideia perseguida exercer no destino [d
homens que nela acreditam. m
Enrique pusera-se a gesticular, exaltado: <i|
Agora, tu mudaste de opinio. E queres ir da
queles a quem tinhas prometido um mundo mais jiu
que as ideias que lhes pregaste estavam erradas, -m
so mesmo nefastas, que aqueles que morreram jl
elas morreram inutilmente, que todas as suas doiM
que todos os seus sacrifcios foram inteis e at pnd
diciais aos outros. Mais: tu no queres s desiludi4||
mas tambm combat-los e tirares-lhes a razo (m
eles aprenderam a ter contigo prprio. Ora isto em
no legtimo! Se seguisses por tal caminho, amanSH
esses jovens que so filhos de famlias ricas, que p|
tencem ao Partido Nacional e andam por a de puidiM
cinta, a imitar os fascistas italianos e em luta comijj
operrios, iriam, incitados tambm por ti, lanar-"|
com mais violncia ainda sobre os outros que tu havifflj
incitado antes. E tudo isso, para qu ? Para que tfl
possas continuar a tua carreira poltica, para continuaf|
rs a ser lisonjeado, a receber gentilezas e subserviBw
cias, para que no sejas um morto-vivo, como tu prwj
prio dizes. Tu s meu pai e eu sempre admirei as tuaj^
qualidades; mas tu valers mais, efectivamente, drf
que todos os outros ? *
Basta ouvir-te para ver que no... disse S** riano com sarcasmo.
A CURVA DA ESTRADA
549
Enrique fez um movimento com a cabea, como i lamentasse a maneira como o pai lhe
respondia.
Os dois voltaram a ficar calados. Tambm Soriano havia julgado que a presena de Mar
tinez interromperia e o libertaria da atmosfera desagradvel que a disputa com o f
ilho havia criado no seu esprito; verificava, porm, agora, que esse mal-estar pros
seguia, como antes de Pepe Martinez chegar. Meia dzia de palavras e a ponte levad
ia baixara, fazendo a unio. Tudo volvera ao princpio. Soriano pensou: "Os escrpulos
so consequncias de ideias feitas, de aceitaes psquicas generalizadas, de dogmas morai
s muitas vezes errados ou convencionais. Mas no suficiente no termos certos escrpul
os, pois para mostrarmos que no os temos necessrio tambm um certo gnero de coragem o
u um forte desprezo por ns prprios". Soriano pensou, suplementarmente, que lhe fal
tavam essas duas condies.
Soriano voltara a contemplar o filho, mas j no via o filho via a Raurell. Eles er
am da mesma estatura e, na poca em que aquilo acontecera, Raurell devia ter quase
a mesma idade que Enrique tinha hoje. Mas era, sobretudo, quando falava, de mo f
echada e indicador estendido para os outros operrios, que Raurell, com o rosto di
latado e olhos fulgurantes, fazia um trejeito labial que o assemelhava a Enrique
. "Por tua causa entendes ? muitos homens passaram anos e anos nas prises e alg
uns s de l saram para o cemitrio" dissera o filho, com o indicador apontado para le.
Soriano lembrava-se daquela reunio, justamente na vspera da greve, em que Raurell
apontava o indicador massa proletria que os ouvia: "Ainda h POUCO, o nosso camara
da Soriano aqui afirmou que Por vossa causa, por causa da vossa falta de unidade
e. sobretudo, da falta de conscincia que os trabalhadores tm dos seus prprios dire
itos de homens, que a Espanha continua a ser como . O camarada Soriano tem razo".
Ele via Raurell dentro dos seus olhos e admitia Hue contribura decisivamente para
aquela greve, du-
550
A CURVA DA ESTRADA
-1
\
rante as reunies secretas que se haviam realizai
* Barcelona. Os jornais, que o haviam acusado (t
a polcia, que o prendera, tinham razo. Ele ncyi
cera, era certo, influncia directa sobre o aqtpj
perdera a Raurell; mas esse acto desesperado OM
sequncia da greve para a qual ele contribura. IM
fuzilado, anos antes, a Francisco Ferrer e estai
lamento, ordenado pelo poder supremo, tinha a|
uma profunda marca no seu esprito, como abrenw
cavidade na terra mole as grandes pedras que sei
penham de muito alto. Isso produzira-lhe ura^l
mais sentidas, angustiosas e frementes revoltas da
juventude e concorrera para que ele se indignasse ai
mais quando fuzilaram a Raurell. Soubera-se m
fora. Os prprios regulamentos das execues haul
sido desprezados. Soubera-se que o haviam postapi
sarcasmos de fariseus, em frente duma carabina, d^j
em frente de duas, depois em frente de trs, de qua
de cinco e de seis, para prolongar o terror; que o tinH
chicoteado e que s quando ele estava cobert"
golpes e de sangue o haviam morto. Haviam-se ji
sado j muitos anos sobre esse episdio; ningu
se lembrava de Raurell e at o prprio Enrique,-"
conhecia a histria sangrenta, se esquecera do seu IUMJ
Nele, porm, aquilo jazia; jazia como esses res
que os arquelogos encontram, s vezes, dentro f
velhos sarcfagos. Fora por isso que, durante as ltid|
Constituintes, enquanto alguns socialistas votavam M
manuteno da pena capital no regime republica"
ele, que j nessa poca no se sentia um verdade
socialista, votara contra. Votara contra, como se cjj
masse: "Francisco Ferrer de Ia Guardi e Josep Rautffl|
a vossa morte no foi inteiramente intil!" Mas aiiw|
dessa vez a morte deles parecia ter sido nteirameflfl
intil. Raurell era um jovem catalo, cujo idealista!
dir-se-ia vogar nos seus grandes olhos azulados. f$j
dizia frequentemente: "O dia da nossa emancipa^H
h-de chegar, tenho a certeza disso!" E, ao contra^
dos outros, que tambm acreditavam na mesma coiste
mas num futuro ainda distante, talvez quando j tive^|
A CURVA DA ESTRADA
551
i-efl1
esse
morrido, Raurell afirmava: "E eu hei-de ver
dia!"
esse aia:"
Soriano voltou-se para Pepe Martinez, como se procurasse nele um refgio. Contando
com outra atitude do amigo, sentira-se confortado quando o vira chegar; e afina
l, Martinez isolava-se numa obstinada iseno. Soriano no esperava a sua concordncia,
mas apenas que o compreendesse, que o compreendesse perante o filho e perante el
e prprio, pois isso seria j uma maneira de o acalmar. Pepe Martinez continuava, po
rm, de olhos baixos e muito quieto na sua poltrona, como se assistisse, contraria
damente, a uma cena de famlia com a qual nada tinha. Dir-se-ia que era ele quem e
xalava e comandava o silncio que se fizera.
Tu pensas que eu mudei de ideias porque quis ? perguntou Soriano, bruscamente.
No. Isso, no respondeu Enrique. Mas lembro-te de que se eu prprio penso da manei
ra que penso, a ti o devo. Foi contigo que aprendi a ver os defeitos da organizao
social em que vivemos. Foste tu que me ensinaste a ver as injustias que pesam so
bre a maioria dos homens. Foi contigo que comecei a acreditar que o Mundo futuro
seria melhor. E se fui mais longe do que tu, porque perteno a outra gerao e o prpri
o Mundo, entretanto, evoluiu.
Enrique aproximou-se novamente da janela e tomou ura torn mais pausado e rememor
ativo:
Decerto ainda te recordas do tempo em que gost?vas mais de mini do que do Pao, po
rque eu estava sempre de acordo contigo. Eu contava-te a catequese que ia fazend
o entre os meus companheiros de escola, enquanto Pao te contrariava, repetindo e
defendendo ^ ideias contrrias que ouvia a outros estudantes. Tu no sabes quanto a
minha atitude me custava... A principio chamavam-me "El hijo dei rojo", como se
dissessem "El hijo dei bandido" ou "El hijo dei trapero"; depois, designaram-me
por "El rojito". Como isto no o^se considerado suficientemente depreciativo, os o
utros a'iinos passaram a chamar-me, por identidade de cores, "El pimiento morrn"
e, por fim, s "El morrn". Isto
554
A CURVA DA ESTRADA
_ _,*-. *j n.
porque algo dele, que dir-se-ia mais forte do OH
* pronunciou outras palavras: ^j
Eu no mudei de ideias porque quis J O ;m
deu comigo, tem-se dado com muita gente. E
que tu no queres perceber. com muita gent,
preendes ? Em princpio, s os reaccionrios nd>ijj
ro com a idade e com a experincia da vida neijj
modificao ideolgica, pois pode-se dizer que eles
ceram velhos. Mas os outros vo-se modificando p|
a pouco. Eles no so, na idade madura, exactaia|
o que eram na juventude. Se no o declaram, .{j
interesse ou por pudor. Mas no tenhas dvida algtf
a experincia da vida acaba por transformar nurtd
svel pessimismo o optimismo absoluto que durara
juventude temos sobre os homens. 'rra
Pepe Martinez moveu-se, enfim, na sua poltl
Perdo l Perdo l disse de repente, com.cSa
voz fina, ao mesmo tempo que levantava um bm
no gesto de quem manda deter um veculo. '<>M
Os dois homens voltaram-se para ele. Os oHii
mopes de Pepe Martinez pestanejaram de novo."
tossiu, um momento, como se quisesse desimpedi!
garganta dos restos de silncio que ela albergara*
ali. Depois, encarou Soriano. 'n|
Ontem, quando me telefonaste, deves ter J"
sado que eu no queria vir a tua casa. verdade?"
no queria vir. Ao ver nos jornais a atitude que hasj
tomado depois das longas discusses que tivemos io
ltimos anos, sobre certos conceitos teus que me sm
preendiam, eu decidira desinteressar-me do teu Prt^l
dimento. Mas esta manh mudei de resoluo. Mfll
porque, ao ler as acusaes que "El Socialista" te
pensei que eu podia ainda ser-te til... ||
Martinez voltou a tossir, enquanto levava a nJ^B
ao pescoo, como para estrangular a sua velha brctm
quite. -(M
Sim; pensei que podia ser-te til, pois no acflMJ
dito que haja qualquer cumplicidade da tua parte no tlflj
caso da empresa hidroelctrica. Em certas inteh'gnc$j|
superiores, muitas vezes a honestidade no mais U
A CURVA DA ESTRADA
555
ue uma forma cautelosa do egosmo. Um homem verdadeiramente inteligente no faz isso
que "El Socialista" ,nsinua e tu s um homem inteligente. Por isso vim. Vim para
te ajudar a defender, se precisares...
Soriano tentou resistir quela emoo que, subitamente, se apoderara dele.
Muito obrigado... murmurou, com um repentino pudor, um pudor que a ele prprio par
ecia infantil e incompreensvel.
Dir-se-ia que Pepe Martinez no o ouvira:
Tenho estado espera que vocs acabassem de discutir... Eu no podia dizer-te nada d
e melhor do que o teu filho te tem dito, nem podia diz-lo com esse ardor da mocid
ade com que ele o faz. Mas h uma coisa que eu sei melhor do que ele: a que se re
fere aos velhos aos velhos como eu.
com movimentos lentos, difceis, apoiando-se muito nos braos da poltrona, Pepe Mart
inez levantou-se. J em p e com a cabea metida entre os ombros, que, pelo abaulado d
o dorso, convergiam para a frente como as articulaes dumas asas, as suas mos esguia
s e descarnadas tremiam ligeiramente e todo ele dir-se-ia oscilar sobre o tapete
oscilar sobre a prpria vida. Mas urn sorriso docemente malicioso escorria-lhe d
a boca para a barbicha:
Tu dizes que os homens se vo modificando POUCO a pouco e que no so na idade
madura exactamente o que eram na juventude. Basta olhar para num, para se ve
r que tu tens inteira razo. Pepe Martinez fez um movimento com as mos, como se co
nvidasse os olhos de Soriano a entrarem no seu corpo. Mas tu dizes tambm
que, com essa lenta Codificao fsica, se do igualmente modificaes de ordem ideolgic
e que se os homens no as confessam e por interesse ou por pudor. E tu afirmas ist
o como Se se tratasse duma regra. Ora tambm neste caso basta olhar para mim, p
ara se ver que tu no tens raz_o alguma... Pepe Martinez ps-se a rir e a tossir. ~-
claro que j no subo para o "tranvia" da minha rua quando ele vai a correr, como f
azia antigamente.
556
A CURVA DA ESTRADA
-1 <
claro que j no posso dar por dia doze ou$
horas de lies de alemo e subir dez a doze ei
como fazia quando era novo e tu prprio fizestj
bem quando eras estudante e davas explicae
te manteres... ti
Enquanto falava, Pepe Martinez ia passara
mos uma sobre a outra, como se elas se acaril
mutuamente, e o seu rosto adquiria uma expl
picaresca: J
claro que j no posso fazer outras n
que eu fazia nesse tempo... E tanta pena tenE
gostava das loiras, das morenas, de todas... Pacilj
Pacincia! repetiu. E a sua voz fina tornou-se^
viva: E tu, que admirveis esforos tu fazias?!!
poca, para conseguires estudar e formar-te! Ay I
de vontade que tiveste! Os teus pais tambm se 9jj
ficavam, mas eram to pobres que pouco auxlio pod
dar-te. A tua me chegou a enviar-te os seus brfij
para que tu os vendesses ou empenhasses. E, dfflj
vez, eu emprestei-te o "So Salvador", como tal
chamavas... <m
Pepe Martinez tirou do bolso um velho relgio!
tamanho j desusado, que lhe cobria quase inteiraruw
a palma da mo. Fez saltar a tampa e ps-se a olha
com ternura: 4|
Foi este mesmo... Coitado! s vezes comove-1
ao pensar que ele ainda regulou algumas horasJH
eternidade como prisioneiro numa casa de penhordi
Como tu nunca arranjavas dinheiro suficiente, fuj
mesmo libert-lo... Lembras-te ? O pobre estava par9^}
O penhorista era um homem muito econmico e dl
quisera que o relgio estivesse a marcar mais tenpjj
sem proveito para ningum... Foi uma poca de muiil
dificuldades, isso foi, mas foi tambm de grande pai^jjl
ideolgica. Eu, s vezes, sinto saudades dela. Tu an(|l
vs sempre a pregar contra a injustia social, porqui
na Universidade, quase todos os estudantes eram filhjl
de pais ricos e dispunham, por isso, de tudo quanti
queriam, enquanto tu, em certos dias, at fome pa|
savas... Eu tinha mais oito anos do que tu, mas nessz|
A CURVA DA ESTRADA
557
dade isso contava pouco... Tu tratavas me como se eu fosse teu irmo e entravas em
minha casa sempre a barafustar...
O velhito de barbicha branca, nariz afiado e mos esguias, deixou de sorrir:
J no tomo os "tranvias" a correr e, como tu,
tambm eu passei, h muito, do perodo da paixo para o perodo da anlise. E at possvel
s artigos que publico nos jornais no tenham o mesmo vigor de outrora. Que posso e
u fazer? Para as mernrias enfraquecidas, as melhores palavras so como os animais s
elvagens nas florestas: ns sabemos que eles existem mas raramente os encontramos
e eles fogem-nos quando pretendemos agarr-los. Mas, apesar de tudo isso, no sinto
nenhuma mudana nas minhas ideias, embora eu seja mais velho do que tu e esteja mu
ito acabado. Pelo contrrio, a minha longa vida permitiu-me confirmar, com uma dem
orada observao, que eu no estava em erro quando, na juventude, pensava que a socied
ade humana se encontra mal organizada e que o homem pode ser menos infeliz do qu
e .
Enrique olhou para Martinez com gratido e teve desejos de o abraar. O velhito volt
ara a sorrir e os seus olhos piscavam sem descanso.
Tu ests sempre a falar em experincia interveio Enrique, voltando-se para o pai.
Mas quem te diz que a prpria experincia da vida no , para certos homens, uma muti
lao, um desgaste dos seus mais genunos valores ? Um fato usado que perdeu o plo, a p
onta dum cigarro que se queimou e onde se foi acumulando a nicotina... Para cert
os homens apeftas, claro, pois eu podia citar-te muitos grandes espritos q
ue foram sempre coerentes.
Enrique elevou os olhos para o busto de Pablo Iglsias. Ele fez aquilo sem querer
faz-lo, f-lo como se fosse atrado e, quando quis evit-lo, j tinha elevado os olhos. S
oriano surpreendeu esse olhar e tomou uma expresso mais austera.
Naturalmente disse, com o torn lento, condescendente, de quem pede uma prorrogao
sua pacin-
55^
A CUKVA DA ESTRADA
)
s
f cia , naturalmente, horn e alguns grandes esm
que no sofreram totalmente essa metamorfosO
ainda nesses ca^os raros no foi por um slid<j|
mismo que eles resistiram e sim por compreenso*
indulgncia para com o semelhante, por piedajl
nossa misria comum... Por uma espcie de anal
lidade fisiolgica. Eles no viam como os outros ii
nem sentiam como a maioria sente... A voz dal
riano ia acusando, pouco a pouco, urna ntima irrtaj
Tu tens estado a atirar-me com Iglsias cara
exclamou, olhando para o busto que se enconta
sobre a prateleira. No digas que no, pois ten
adivinhado nos teus olhos. Eu no sei se IglsiasJj
efectivamente, um grande esprito, embora a mimJ
parecesse que era, quando o conheci. que eu es"
tomado do mesmo entusiasmo que ele e no sm
ainda o que era a vida. De qualquer maneira, elef"
um homem bom. Eu admirava-o muito e ainda -lm
o admiro, pela sua capacidade de aco e, simultaiaj
mente, pelo seu poder de sonho. Mas quem me pii
garantir que ele no tinha ficado cptico tambm!
ocultava o seu cepticismo ou que no se tornaria tu
tico se continuasse a viver ? H, contudo, uma cdi
de que eu estou certo: de que Iglsias se engaiw
nas suas previses. E estou certo tambm de que, l
ele vivesse ou ressuscitasse, estaria em desacordo, COOT
eu, com o que se tem passado; estaria em desacordl
mesmo por amor s suas ideias. Como Cristo, cofljl
Buda, como os homens da revoluo francesa, coiii
tantos outros. A maior sorte que podem ter os real
zadores duma teoria que j estejam mortos aquela
que a criaram. 4|
Enrique protestou: :4|
Vs ? A admisso que tu fazes uma injria m memria dum homem que foi teu mestre e que
ta dizes que ainda respeitas. Nenhum dos gestos de Igl*| sias nos autoriza a adm
itir que ele ficou cptico ou qual tinha tendncia para ficar... |
Enrique disse isto de mo fechada e de indicador j estendido para o busto de Iglsia
s. ""
A CURVA DA ESTRADA
559
__ Nada te autoriza! repetiu.
A imagem de Raurell volveu aos olhos de Soriano. Soriano pensou: "Ele tem razo. F
oi um disparate meu. \"o eia. um argumento srio". A imagem de Raurell nantinlia-se.
Soriano evocou um momento a Iglsias e no ? e lembrou de nenhum pormenor que indic
asse unia falncia da sua f. "Foi um disparate. com esta excitao em que estou, digo d
isparates" tornou a pensar. Sentia zumbidos nos ouvidos. E a imagem de Raurell
ora se dilua, ora voltava. E trazia, agora, com ela, a de Cabanillas e muitas out
ras.
Pepe Martinez pusera-se a fazer rodar de novo, sobre o dedo, a sua aliana de casa
mento.
No, lvaro, no tens razo...disse, afectuosamente. Tu transformas as excepes em regra e
vice-versa. H, certo, alguns homens que, por velhice, por fadiga cerebral ou, si
mplesmente, porque so uns oportunistas ansiosos de realizar as suas a
mbies, mudam de opinio com o tempo. H ainda outros que, por uma inata versatilidade
da sua constituio mental, se iludem e desiludem facilmente, crem e descrem ao sabor
da actualidade que vivem, o que prova que nenhuma das suas vrias ideias era base
ada numa convico profunda e, sobretudo, sobre um estudo srio. Mas esses, ao contrrio
do que tu dizes, representam as excepes, pois a regra os homens viverem com o ach
o que acenderam na sua mocidade. ver esses velhos que mantiveram o esprito da rev
oluo francesa muitos anos depois de a revoluo ter degenerado e sobre cujas barbas br
ancas havia urn terno sorriso de confiana, que era como uma luz branca, uma f bran
ca que ardia ali. ver esses velhos republicanos no: pases onde, no obstante
os esforos deles, a monarquia nunca tombou ou tombou efemeramente e torn
ou a erguer-se, como sucedeu em Espanha. Apesar de todos os adiamentos das suas
esperanas, de todas as desiluses e perseguies que sofreram, esses homens Acreditaram
, desde a adolescncia at a velhice, que a repblica havia de se implantar, mesmo qu
e eles j r"ada aproveitassem com isso. E no campo social
56o
A CURVA DA ESTRADA
entre os socialistas, os comunistas ou os anargji
* tu sabes melhor do que eu, porque lutaste aol
deles, que, por um que deserta, h milhares que-J
ficam a vida inteira s suas ideias. i l
Pepe Martinez voltou a sentar-se com a mesma
tido com que se tinha levantado e, agora, olim
muito para o espaldar da poltrona, como se rec
que este estivesse demasiado longe do seu corpo. I
Tu falas muito de cepticismo... prosseguia
Tu crs que esses homens no tiveram tambm raj
para ficar cpticos ? Tu crs que muitos deles-)!
ficaram mesmo cpticos sobre outros homens com qi
conviveram ? Seria ingenuidade pensar o contrrio. I
eles no confundiam os defeitos dos homens COIBI
direitos que os homens devem ter. Muitos desses d"J
tos so, como tu sabes muito bem, consequncial
meio em que vivemos e desaparecero assim qua
meio se modificar. Quanto aos outros, a responsa"
dade no , em geral, do homem; da sua ori^J
que ns ignoramos qual seja; o mesmo, porm, nj
acontece com os direitos humanos, pois estes dependa
inteiramente de outros homens. J
A cabea de Martinez continuava a voltar-se, na
movimento regular, para a esquerda e para a dire"
enquanto os seus olhos piscos e mopes dir-se-iam pm
curar agora Soriano. Depois, a cabea deteve-se UB
momento: w|
Tu queixas-te dos teus semelhantes, pelo cep|
cismo que eles te causaram. Ao mesmo tempo que^M
queixas disso, preparas tudo para que os outros tambaj
possam ficar cpticos sobre ti. Isto sendo tu mais real
ponsvel do que a maioria dos outros, porque s mUB
inteligente e mais culto. Martinez teve um sorriso cM
bondade: Como j te disse, eu estava, ontem, decai
dido a desinteressar-me do teu procedimento futuroB
Ora eu tinha decidido isso justamente porque me havia!!
dado uma forte dose de cepticismo. Eu mesmo fiquei!
cptico sobre ti... j
Soriano olhou demoradamente para Martinez; depotes
fez um gesto de resignao, como se lastimasse a exis-*!
A CURVA DA ESTRADA
561
tncia do irremedivel. Os olhitos pestanejantes do migo observavam-no e espe
ravam; mas ele deixou cair o brao sem dizer nada.
Soriano tornara a pensar que no se desprezava a si prprio e que, pelo contrrio, ama
va a si prprio; que lhe era difcil, portanto, desprezar a opinio que os outros fize
ssem sobre ele. H j muitos meses que, nos seus solilquios, ladeava essa questo, lade
ava-a por uma espcie de covardia de ouvir a si mesma e tambm por piedade de si mes
mo. Agora, porm, Pepe Martinez lanava aquilo directamente. Como o fizera, pouco an
tes, Enrique e como o haviam feito os que lhe tinham escrito a insult-lo. Apesar
de tudo quanto o diferenciava dos outros, Pepe Martinez tornava-se, subitamente,
como uma clula dos outros, pois quando dizia "eu mesmo", aceitava como inevitvel
a mesma reaco dos outros. Soriano voltou a pr a questo a si prprio, desta vez sem pie
dade por si, antes com a deciso de quem pretende arrancar, com um s esforo, a raiz
que teima em agarrar-se terra. A raiz no cedia, porm, aos desejos apressados; ela
alargava-se em vrias ramificaes e os seus numerosos tentculos cruzavam-se e emaranha
vam-se, confundiam-se mesmo uns com os outros. Soriano tinha pressa; a confisso d
e Martinez havia-lhe dado aquela nsia de obter dele prprio um rpido esclarecimento.
Ele sabia que as razes que mergulhavam fundo na terra no obedecem aos bruscos mo
vimentos de extraco ou, se so foradas a obedecer, nunca se entregam completas; mas,
apesar disso, insistiu. Pareceu-lhe, ento, que, efectivamente, lhe interessavam,
alm de tudo, a ideia que tinha formado sobre os defeitos dos outros e a ideia ^ue
os outros podiam formar sobre ele e no uma
1(leia para defender os outros, embora diferente da que eje havia tido at ali. E
pensou com severidade para Sl mesmo: "Se fosse s isto, seria, realmente, ignbil".
^Igo, porm, reagiu imediatamente nele contra esta pncluso que o vexava e diminua.
Soriano deu-se a )ustificar-se e a perdoar-se da censura que fizera a si Prprio.
E admitiu que a raiz sara mutilada, como
562
\ CURVA DA ESTRADA
-1
i
jtodas as fortes razes que so extradas da terRj
um s puxo. ,
Soriano comeou a passear naquele silncio de>|
Nem Enrique nem Martinez olhavam para Q$"
passos, mas adivinhavam que eles eram hesitj
como se no confiassem na segurana do tapet^
Enrique aplaudira intimamente a Pepe Mall
quando este dissera aquilo a Soriano, assim claraij
como o havia dito, mas, agora, tinha pena dj
Parecia-lhe que, na boca de Martinez, as palavftj
tornavam mais humilhantes do que se fossem prc$
ciadas por ele. ,|
Soriano prosseguia na sua andana da por$
escada para a poltrona de Martinez, da poltroijl
Martinez para a porta da escada e desatara a bj
consigo prprio: "Eu podia ter razo e, ao m^j
tempo, ter medo dos outros, embora os outro*!
tivessem razo alguma. E, nesse caso, eu procaq
mal e at faria mal aos outros se tivesse medo d&
clamar a minha razo". Ele demorava-se a estl
fundo, para descobrir os alicerces da sua hiptese,j|
no os encontrava. /:
Soriano concluiu, mais uma vez, que a sua J
estava na dificuldade da escolha, pois devia escfw
entre os seus desejos e o receio dos outros. Devia tffl
por aquilo que mais correspondesse ao amor que t|
por si prprio. Era por esse amor que ele receava^
outros. E se receava os outros porque lhes fejl
nhecia alguma fora. No a fora dum mentiroso!
dum caluniador, que uma fora efmera. Ele prf
tinha a experincia disso. Ora se era efmera a f|
dos caluniadores e, ao mesmo tempo, ele receava!
outros, porque admitia que os outros tinham UJ
fora duradoira; e para se ter uma fora duradoira 9|
preciso ter uma razo em que se acreditasse e fo$j
geralmente aceite. Ele tinha ouvido da boca do fit
e de Pepe Martinez a razo dos outros e esta soara^
como uma srie de lugares-comuns, uma srie de a
maes que lhe eram familiares. Desejara ouvi-la il
o fim, esperando um raciocnio indito e, afinal, part
A CURVA DA ESTRADA
5^3
era-lhe qUp estava a escutar a si prprio, quando ele ia novo e andava na propagan
da do socialismo.
Soriano deteve-se em frente da porta que dava para escada, de mos nos bolsos e de
costas voltadas para Enrique e Pepe Martinez. Novamente considerou a [alta de e
stranheza com que ouvira a maioria das palavras d'i filho e do amigo, a sua falt
a de reaco perante muitas delas e a sua brusca reaco perante outras que no a mereciam
. Soriano hesitou em concluir. Durante um momento, admitiu que no estava inteiram
ente isento da sua antiga moral. Tornou a hesitar e tornou a admitir que no se ha
via libertado completamente da razo dos outros, que era a sua razo de outrora. Que
a passividade com que aceitava muitos dos arguraentoc de Enrique e de Pepe Mart
inez indicava que nele persistia ainda alguma conexo com aquilo que, ao me^mo tem
po, ele repelia. "Nunca se deixa de ser completamente o que durante muitos anos
se foi. Fica sempre alguma coisa pensou. como a deformaro profissional". Ele co
nvencia-se, agora, de que havia ficado alguma coisa e sentia que, algures, no se
u esprito, havia menos desgosto do que at ali, menos daquele desgosto que se tinha
ido acumulando nele sem ele dar por i^so, enquanto noutro territrio se produzia
um nebuloso conflito, um engalfinhamento de salamandras que resistiam ao fogo.
Soriano voltara a transitar lentamente no gabinete. Atravs do pano do bolso, a su
a mo agarrara na Pnta do sexo e apertava-a, de todo alheio ao que fazia.
Entretanto, o velhito que parecia ter descido penoSamente dos quadros que se vem
nas paredes da igreja "e S. Tom e da catedral de Toledo, retomara o seu &orriso,
como se se houvesse fatigado daquele silncio:
Ests no momento em que certos homens mudam ^e pieferncias zoolgicas... Compreende-s
e... O co Urn animal muito interessante! Devora as toxinas deiXa<las por aqueles
que nos desiludiram e transforma-as Sas qualidades que podem interessar ao seu d
ono.
* subserviente e nisso satisfaz inteiramente aos auto-
564
A CURVA DA ESTRADA
* ritrios; resignado e com isso alivia de preoct
aqueles que no gostam de se preocupar com os "
fiel sem exigir reciprocidade; dedicado e rlj
todos os cepticismos que lhe pode dar o objecto^
dedicao... m
Soriano sentia-se saturado de discutir consigo na
Sempre que os seus raciocnios iam dar a umanl
ele encontrava-se a si prprio em frente da pai
vedar-lhes a sada. "Nenhum de ns um s hei
pensou. Era mais um dos argumentos de qi
servira, uma tarde, no tribunal. "Cada um de |
constitudo por vrios homens ou por um horai
vrios sub-homens adicionais. O homem que m
nossos trabalhos menores no o mesmo que A
nosso trabalho de esprito, embora este se enol
s vezes, presente; tambm o homem que tem CJ
dade para matar outro parece no ser igual quelej
sem saber nadar, capaz de correr para as ona
salvar uma criana em perigo. Mas em todo o hoi
h um vice-homem capaz de matar algum quo
conhece e outro capaz de se arrisear a morrer porl
vida que ele desconhece. Cada um deles tem caia
rsticas prprias, embora se dem interferncias!
estabelecem a confuso e nos levam a admitir ii
unidade que no existe, pois, para existir, teramd
aceitar que no h nada no Mundo to mutvelij
contagioso, to desunido como essa prpria unida
Soriano deu conta de que Martinez continuava a s
aos quatro ventos e a falar: "Realmente, o co |
bicho muito curioso... Mas no julgues que te pji
reconciliar inteiramente com o reino animal atravi
co que^ os homens no teu estado acabam por <
prar... certo que o nosso co nos devolve em af
os pontaps que lhe damos... Mas os ces tambm I
os seus defeitos originrios. O teu co no te morda
mas todos os outros ces podero morder-te. E h CS
que so to rebeldes como os homens... Portanto, telf
de aceitar os defeitos das espcies..." Pareceu a SoriJ
que a ironia do "Ama da alma" no lhe interessai
Cada vez os seus ouvidos pareciam mais saturac
A CURVA DA ESTRADA
565
Tornou a evocar, vagamente: "H, sem dvida, um homem central, que controla o trab
alho dos seus vice.Jiornens, como outrora o amo controlava o trabalho dos seus e
scravos. Ele a unio da desunio, o corpo que comanda as pernas da aranha. uma figur
a ao mesmo tempo torturada e sinistra, autoritria e exigente, porque jamais e
st satisfeita com o que os seus vice-homens fazem ou lhe trazem do mundo que
o cerca. Ele tem preferncias por alguns destes; geralmente, por um ou por dois, p
or aquele ou por aqueles cujo trabalho o envaidece e lhe permite corresponder su
a permanente nsia de se elevar cada vez mais. Muitas vezes, chega mesmo a sacrifi
car, em prol do favorito, todos os seus outros homens complementares e deixa aqu
ele erguer-se at a sua prpria altura; depois oculta-se atrs dele e com ele se confu
nde". A tosse de Pepe Martinez ecoava no crebro de Soriano como numa galeria e pa
recia picar-lhe o crebro como esses pices que vo tirando a pele das casas para sere
m novamente rebocadas e caiadas. Martinez dizia do fundo da sua tosse: "Ns temos
sobre os ces uma vantagem imediata: que reconhecemos os nossos defeitos enquanto
eles no reconhecem os seus. Essa a nossa primeira virtude. A segunda que ns podemo
s lutar, at certo ponto, contra os nossos defeitos e os ces no podem faz-lo. No h nenh
uma postura municipal capaz de convencer os ces a no se servirem das ruas como du
m gabinete privado. A terceira que ns superamos constantemente os nossos
defeitos para realizar obras e actos maravilhosos. Ns transformamos
0 Mundo. A nossa pequenez ^tem dado frutos duma grandeza quase inverosmil. Por ou
tro lado, tu no vais Abandonar um cego numa encruzilhada, pelo facto de ek ter o
defeito de no ver. A ti incomoda-te que ele
5eja cego, porque o teu subconsciente te segreda que tu tambm podias s-lo. Se, dep
ois de lhe teres ensiftado o bom caminho, algum te dissesse que se descobrira a f
orma de se acabar com a cegueira, tu ficarias satisfeito, embora isso no te in
teressasse imediataftente. Ns devemos, portanto, obter a virtude atravs
56ft
C U K V 'V DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
* dos nossos defeitos, da mesma maneira que se d
as vacinas atravs das doenas que elas devem g
Soriano considerou que aquilo era justo. Mas estrj
que houvesse silncio no seu crebro, que os seusij
cnios pudessem desenvolver-se em silncio. Olhoui
lentemene para Martinez, como se necessitasse
para acreditar na sua realidade e ter a certeza. d<i
ele se calara. Martinez tinha baixado a cabea e
barbicha ocultava-lhe a gravata e vergava-se um p
para a frente, como a dum bode. Pareceu a Si
que Enrique estava calado tambm e que as suas1^
tremiam enquanto iam acendendo um cigarro nej
cigarro. Soriano voltou a pensar: "No h dvidj
que de todos os meus vice-homens o favorito o
tico. Eu prprio no o sabia at ser ministro, 'i
nesse perodo, soube-o duma forma segura. Ora, $
me desprendesse dele, sentir-me-ia sem razo de^i
Eu no conseguiria mat-lo, nem ape-lo da sua si
co privilegiada; ele continuaria a ser o favorito |
torturar-me constantemente". Soriano viu o contrai
como por detrs dum vidro embaciado. Ele tinha u
grandes tesouras nas mos e havia plantas floridas"!
sua volta. Ele tinha uma enxada nas mos. Era ia
enxada pequena, de acordo com as suas foras, e hai
plantas e flores em seu redor. Quando vinha a marfl
esvoaavam pssaros sobre as plantas, a capturar ins
tos, e outros pousavam nas prprias flores, para cofl|
as sementes. Havia tambm rvores. Ele estava |
tado sombra das rvores e tinha muitos livros pd
ler. Soriano sentiu, de repente, a solido. "Martinj
pelo menos, viria. Viriam, sem dvida, ainda outifl
admitiu. Mas a sensao de soledade volveu. "Coffl
uma actriz que se casou". Ele viu-se no Parlamenfl
Viu-se, depois, no seu antigo gabinete do Ministq
do Comrcio e Indstria. Muitos homens, muitas coisa!
dependiam dum gesto seu, duma palavra sua. Voltara!
a picar-lhe o crebro: "No digo que no compres ul
co... No digo que no o ames... Devemos amar tocfij
os animais, pois nenhum deles tem culpa dos self
defeitos. Por que fazemos uma excepo para o homeia|
567
ue , sem dvida, o mais infeliz de todos ?" Pareceulhe que Martinez falava de muito
longe, mas que, apesar disso, a sua insistncia era abusiva. "Tambm as plantas pod
iam depender dos seus gestos" pensou, seni convico. O filho dizia agora: "H uma pe
ssoa com quem deves ser sincero: contigo prprio. Ora interroga a ti prprio sobre o
que temos dito e escuta a resposta..." No crebro de Soriano o seu vice-homem fav
orito escarneceu: " uma ingenuidade, pois h muito tempo no fao outra coisa. Mas h est
ados da conscincia que nem mesmo um espanhol capaz de definir com palavras. Desde
o princpio eu sei perfeitamente que a minha razo no absoluta. Se eu soubesse que o
s outros no tinham nenhuma razo, eu no teria medo deles. Se eu me encontrasse na si
tuao do mdico de Ibsen, em vez de ter medo, eu teria orgulho em me lanar contra a op
inio dos outros".
De repente, Soriano deu conta de que se havia adensado sua volta um silncio d
ramtico.
Mas tu j no compreendes ? perguntou ele precipitadamente, com um ar ao mesmo t
empo surpreendido e desolado, ao velhito que tinha deixado de pestanejar e de mo
ver a cabea. Tambm tu j perdeste o teu poder de compreenso ?
No... disse com muita calma Pepe Martinez, olhando distraidamente para o seu anel
de casamento, que ele acabava de tirar do dedo e que era o vcio dos seus dedos.
Continuo a compreender tudo e continuo tambm convencido de que numa sociedade me
lhor organizada do que a nossa, a compreenso h-de trazer aos homens urn suplemento
de amor entre eles, que a natureza, em muitos casos, parece ter-lhes negado. iv
las o facto de eu compreender tudo, no significa que aceite como bom ou como j
usto tudo quanto comPreendo. Tu dizes que Buda, Cristo e o prprio Iglsias, se r
essuscitassem, estariam em desacordo com o que se Passou depois deles, mesmo por
amor s suas ideias. E uma hiptese perfeitamente admissvel. Mas, nesse caso, o que
seria legtimo que eles fizessem ? Que passassem a combater as suas doutrinas, por
que elas haviam
568
A CURVA DA ESTRADA
-1
]
sido adulteradas por outros ou que se mantivjB
fiis a elas e combatessem os que as adulterajiM
Que a sociedade em que vivemos est absurdadH
constituda, pois beneficia apenas uma minoria ei^H
juzo da maioria, hoje uma verdade to irrefoM
como a mais irrefutvel das verdades cientficas, (xfl
blema no est, pois, em negar essa realidade, maJB
na maneira de resolv-la de acordo com o comiiM
espiritual e material do ser humano. rjjB
Pepe Martinez voltou-se na poltrona e enjfl
Soriano: ill
Ora, se tu abandonasses o socialismo paiol
propagar uma nova doutrina, uma doutrina maisiM
feita, mais avanada, que evitasse os erros e as JH
taces das outras e correspondesse melhor a essa fl
de po, de liberdade e de justia que inerente J
homens, eu no s compreenderia o teu acto, confl
aplaudiria, pois para a frente que devemos camiJB
Eu prprio, apesar de velho, penso nisso muitas vaB
Se a natureza nos deu mais qualidades de inteligflB
do que maioria dos outros homens, nosso deM
p-las ao servio dos que foram menos dotados. 3fl
devemos amar o homem por sabermos que ele na"
responsvel da sua constituio biolgica e que >"
prpria constituio o torna infeliz. E se contra &l
drama pouco podemos fazer, devemos lutar para'SJB
aumentar a infelicidade biolgica com outra infeflM
dade proveniente da nossa organizao social. Ora fll
isso o que tu desejas. O que tu desejas situar-te/M
lado daqueles que, por interesse ou por doutrinas reiaB
tas, que eu compreendo, mas que so inumanas, pfl
tendem que a organizao social no evolua, quaisq
que sejam as injustias que dela resultem. O teu fiflB
tem, portanto, razo quando afirma no ser legtiflH
que, nas tuas circunstncias, um homem que mude w
ideias passe a combater as ideias que anteriormen$|
defendia! 4J
Soriano tinha uma sensao de avassalamento, con"
se estivesse isolado sobre um escolho e vagas sucew
sivas lhe passassem por cima. Ele continuava tamb^f
CURVA DA ESTRADA
569
Om uma saturao auditiva, mas sentia-se lcido, apesar do longo monlogo que, h dois dia
s, mal o deixava repousar; ele resistia fadiga como a terra muito batida resiste
ao vento.
Sem dvida, h vrios aspectos em que vocs
tm razo admitiu. Nos ltimos tempos eu no tenho feito mais do que p-los a mim prprio.
Mas eu tambm tenho as minhas razes...
Todos os homens tm sempre as suas razes e tu, como advogado, bem sabes que h sempre
uma razo para todos os actos sentenciou Pepe Martinez. O que se precisa saber q
ual a melhor razo, a razo mais justa.
Soriano olhou demoradamente o filho e olhou, depois, rapidamente, para o busto d
e Iglsias. Dir-se-ia que havia encontrado um novo argumento; os seus lbios ainda s
e entreabriram, mas logo ele fez um gesto brusco, como se afastasse de si o seu
prprio raciocnio.
intil discutirmos mais...disse.
Pepe Martinez enfiou no dedo a sua velha aliana
e contestou:
No intil discutirmos, isso no! Ao contrrio, eu julgo que ser muito til. Eu descobri
ta manh que era muito mais teu amigo do que supunha. Senta-te...
Soriano no se moveu. Em frente dele, Enrique estava tambm muito quieto e sem fixar
o pai, mas no seu esprito havia uma ansiosa expectativa. Pepe Martinez tirou do
bolso o seu velho relgio e, tremu-
1'imente, aproximou-o dos seus olhitos mopes:
cedo ainda. Temos tempo. E eu penso que devemos examinar o teu caso at as suas lt
imas consequncias. Tu, depois, meditars e proceders como Atenderes... Mas, antes, d
evemos examin-lo. Anda, senta-te! Peo-te...
Soriano resistiu ainda. Voltou a olhar para o filho, Para o silncio do filho e a
boca do filho voltou a lembrar-lhe aquele trejeito labial que Raurell fazia. Sor
iano transigiu e sentou-se.
570 A CURVA DA ESTRADA i
XIII QJ
/SORIANO desdobrou o guardanapo em forma dejffl
encheu de vinho o seu copo, mas mal pm
o peixe. A irm, contente por saber que Enriqu
almoava com eles, tentou conversar. Ele, porrpl
pondia-lhe sempre com monosslabos e fazia-o t&m
mente, que Mercedes desistiu. rm
Da carne, Soriano no quis mesmo servir-se, 01
do-o assim to biqueiro e de cara amofinada, Ran
teimou: "S este bocadinho... Veja l..." Ele reol
novamente, mas sentia que a voz carinhosa, matS!
da velha criada lhe fazia bem. Im
Soriano dir-se-ia apressado e, sorvido o caf, vdj
imediatamente para o seu gabinete. <;m
O cinzeiro estava ainda cheio das pontas de cig
que Enrique l deixara. E sobre uma das poltnl
brilhava, em contraste com o cabedal escuro, urtl
zito branco da barbicha de Pepe Martinez. m
No ar havia a acidez do fumo enclausurado. Sorif
abriu a janela e, com uma sensao de alvio, pcM
encontrar sozinho, ps-se a transitar duma parede pi
a outra. I
Depois de Pepe Martinez e de Enrique terem sa
j Soriano tomara algumas graves decises, sobretM
a que se referia ferida aberta por Pao e que i
pretendia desinfectar nessa mesma tarde; faltava, j
rm, a principal, a grande raiz que penetrava na lj
vida inteira como as veias penetravam na sua car
Mas ele sentia que, ficasse ou no contente depCj
tambm essa questo ia ser rapidamente decidijj
A dificuldade mais penosa brotava justamente daquil
do maior ou do menor descontentamento que lhe sob
viria. Ele queria que fosse o menor possvel e era
que o resultado da batalha se mostrava indeciso. Des"
o princpio, ele sabia que a razo dos outros era mal
forte do que a sua, embora algumas vezes se tivesS
convencido de que venceria os outros, seno com arma
A CURVA DA ESTRADA
571
xteriores, pelo menos com a da indiferena, dentro Jele piprio. Mas, depois, ver
ificara que essa vitria mterna era muito mais difcil de obter do que lhe p
arecera. Os outros ocupavam no seu esprito um terreno muito grande. Mesmo que ven
cesse, haviam de envenenar-lhe o xito ou ele envenenar-se-ia a si prprio com a pre
ocupao dos outros. "E j no tinha pacincia para isso pensou. Estava gasto; j no tinha
acincia". Imediatamente, porm, pareceu-lhe que o seu caso podia abrir-se e e
voluir, como as lagartas que, findo o receio que as leva a fechar-se sobre si prp
rias, se distendem e recomeam a sua marcha. "com o tempo tudo se esquecia,
os outros levantariam as suas tendas e todos acabariam por se habituar nova situ
ao dele. O prprio Enrique lhe atribura essa esperana. Aquilo no exigiria, portanto, ao
s seus nervos, uma pacincia ilimitada, mas sim uma resistncia a prazo quase fixo e
que ele poderia suportar perfeitamente". Soriano resolveu deixar essa q
uesto para mais tarde, dado que ela havia passado, rapidamente, de causa para
efeito.
Ele tinha, pois, de talhar a sua deciso sobre outra base. Ele queria e no queria.
Queria os dois extremos e tambm o centro queria o todo. Os seus desejos e a hono
rabilidade; as suas ambies sem problemas; ganhar sem perder coisa alguma. Ele sabi
a, porm, que nem a si prprio podia confessar essa secreta nsia dos seus interesses;
ele sabia que ela era impossvel. Para ganhar dum lado, teria de perder do outro.
A ideia da carta a escrever ressurgiu. Pesando-a, Soriano tornou a moer as ltimas
palavras que Pepe Martinez, apoiado por Enrique, dissera antes de sair dali. E
considerou que, efectivamente, quer quando eie pensava bem dos homens e neles ac
reditava, quer hoje, que pensava mal e deles descria, os homens eram s mesmos. No
tinham sido, portanto, os homens que haviam mudado e sim ele. Se algum se enganar
a uma das vezes, fora ele prprio. E, de facto, ele no podia Afirmar quando tivera
razo, porque de ambas as vezes fee parecera que a tinha. Nisso estava de acordo c
om
572
A CURVA DA ESTRADA
-t
i

Enrique. Esta questo arrumava-se, pois, por si n>j


* Havia, porm, as outras. ol
Tantas vozes! No gabinete no haviam ficada
mente as pontas dos cigarros de Enrique e o fio baj
da barbicha do "Ama da alma". Tinham ficado tamj
os ecos de todas aquelas vozes, que ora se cruzas!
se sobrepunham e confundiam num tumulto, QE|
tornavam muito ntidas, cada frase destacando-scS
o seu valor bem marcado. Soriano transitava no w
trio entre todas essas ressonncias, essas sobrev"
cias verbais que se lhe repercutiam no crebro, qud
lhe agarravam ao crebro, que o picavam, que oi,m
seguiam; em alguns momentos, ele discutia mais fq9
mente, falava alto, sozinho; noutros, porm, sent
calmo, frio e o seu esprito agia como numa oper"
de aritmtica. "O teu cepticismo sobre os homen&-j|
prprios defeitos dos homens no so razes suficiei
para se negar a justia da sua causa. A tua mudaJB
de ideias no significa que a causa que renegas ;3H
injusta. Significa apenas um processo de transfofl
co individual". ,?m
" aceitvel" pensou Soriano, detendo-se no riM
do escritrio. Os seus olhos encontraram o bustojB
Iglsias. Um momento, aquilo pareceu-lhe vagamsm
longnquo uma velha cabea num museu. DepaB
tornara-se presente, viva, de carne e osso a soaB
-lhe. Soriano baixou os olhos. A voz de Enrique VJ
tava: "Tu provocaste dores e sacrifcios de todaH
espcie, uns que tu conheces, outros que no criflB
cers jamais, pois ningum pode saber com exacticw
a influncia que uma ideia perseguida exercer no d"B
tino dos homens que nela acreditam". Soriano r&fB
meou o seu andamento. Era, agora, a voz de RaurefjH
"E eu hei-de ver esse dia! Hei-de ver esse dia!" SoriaJH
avanou at a janela, avanou at uma sensao
azul, sem forma, sem ateno, sem nada. S ^w
que lhe entrava pelos olhos. Numa outra janela, dB
lado de l da praa, uma mulher fazia renda, JUQW
do seu gato sentado no peitoril. Mas era como se ir",
existisse. "E eu hei-de ver esse dia!" '*
A CURVA DA ESTRADA
573
Soriano sentiu um repentino desejo de fumar, um desejo que logo esmoreceu, logo
se avivou, logo tornou
esmorecer. Recuando, ele estendeu o brao para a caixa, de charutos, com essa lent
ido e essa hesitao primria com que os braos dos macacos amestrados $ arqueiam e pegam
nos objectos. "A inteligncia mostra-nos que h ideias que so mais nobres do que out
ras, pois visam a acabar com a injustia social de que vtima a maior parte da colec
tividade. O prprio S. Paulo deve ter tido a noo disto, pois optou pela doutrina que
, no seu tempo, era a mais generosa de todas".
Soriano transigiu em que tambm isso era aceitvel. Tudo dependia do valor ou do des
prezo que se lhe desse. Outrora, ele dava-lhe um valor enorme. Ele e aquilo eram
a mesma coisa, marchavam juntos, aquilo impelia-o a ele. Agora, se quisesse viv
er, tinha de se separar daquilo. Sem dvida, julgados em conjunto, os outros valia
m mais do que ele; ele passaria e os outros prosseguiriam; o fruto tinha um pode
r de recomposio diferente de todos os demais: os gomos que apodreciam eram logo su
bstitudos, eram substitudos, mesmo antecipadamente, por novos gomos.
Desde a sua disputa com o filho e com Pepe Martinez, Soriano comeara a sentir a n
ecessidade de ter maior considerao por si prprio de se revalorizar, no s no que ele
desejaria at ali, mas tambm em algo que parecia ter ficado aberto e vazio, como co
nsequncia justamente daquele desejo partido. A ideia e escrever a carta volveu, ma
s ele hesitou de novo.
Talvez a sua razo fosse discutvel consentiu. ~~ Talvez, em princpio, no tivesse mes
mo razo. Talvez fosse s uma razo dele prprio dele que queria viver e realizar-se em
importncia social, dele que no Queria renunciar, porque sabia que j no viveria muit
o tempo.
fumo do charuto avanava lentamente, prudente^ente, desdobrando-se ao longo do tec
to; logo, porm, lue chegava janela, fugia num instante, como se aProveitasse um d
escuido para se tornar livre.
k
574
A CURVA DA ESTRADA
Soriano sentou-se sua secretria, tirou da i| central uma folha de papel e escrev
eu, sem >n(
Senhor Don Ramon Ballesteros. BC|
Desenhou aquele nome sem saber se contiiji
f-lo como se esperasse que do prprio acto Ihe^S
a resoluo. r$
Os seus dedos pousaram a caneta e afastaram,d
rosamente, o papel. i
As vozes continuavam: "Todos os homens tf|
suas razes; o que precisamos de saber qua
melhor razo, a razo mais justa". "Ns devemos*
a virtude atravs dos nossos defeitos, da mesmfj
neira que se obtm as vacinas atravs das doena"
elas devem curar". Soriano desejou pr-se em des"
com aquilo. Algo dele, porm, reagia, algo lamal
no poder fazer-lhe a vontade. Um desacordo'
seria um alvio. Mas o velho salgueiro que pS
namorar, que parecia, assim debruado, beijar a l
lanava sempre uma sombra sobre o regato. >!
Soriano comeou a sentir saudades do que ele 'ill
ainda ser. O Mundo ficava e ele passaria. Se rfi
ciasse, veria da sua porta a vida passar e deixSB
ele, como ficam os paralticos, porta do jardi
ver passar os outros, nas tardes dominicais. i^l
Sentia-se apressado, cada vez mais ansioso de
bar com aquilo, fatigado dos dias de nvoa, das tunj
que dava em si prprio. Sentia que o seu verdadw
alvio estava na deciso. Desde esse momento seria
inteis as discusses; no teria de lutar de ambosl
lados s teria a lamentar do lado em que perdj
Muitos outros o haviam feito repisou. Mu"
outros tinham passado duma bandeira para outra bm
dera, duma tribuna para outra tribuna; muitos outa
tinham dito no onde haviam dito sim e sim oim
tinham dito no e continuado a viver. l
A preocupao abandonada pouco antes reapaljl
cu. "Aquilo dependia da maneira de ser de cada qoM
do temperamento de cada qual explicou Soriano'^j
A CURVA DA ESTRADA
575
preocupao, para se justificar da progressiva fraqueza iic ia sentindo. Havia indi
vduos inteiramente cni-
1^ inteiramente impermeveis e outros to capazes de examinar um poliedro, de observ
ar as vrias faces dum problema, que a sua ltima verdade parecia-lhes sempre a verd
ade definitiva, irrevogvel. Ele, porm, no era assim. Ele no tinha suficientemente de
senvolvida nenhuma daquelas caractersticas". Ao pensar isto, Soriano sentiu o seu
primeiro prazer nesse dia. "Para algum se manter sem razo ou apenas com uma razo ?
pa"en1e em face da reaco dos outros, era preciso, alm de tudo o mais, muita energia
e ele j estava i.elho".
O charuto apagara-se na borda do cinzeiro. Soriano rearendeu-o, ergueu a cabea e
soprou vagarosamente o fumo. Dir-se-ia que os seus olhos seguiam o avano do fumo
para a janela. Depois, tornou a pegar na caneta e ps na sua frente a carta que ha
via iniciado. Lembrou-se do torn de voz com que Ballesteros lhe falara, ao telef
one, pouco antes; dessa sua falta de calor, onde ele julgara reconhecer a influnc
ia das acusa?s que "El Socialista" lhe fizera. "Considerou-me com menos valor" pe
nsou. E sentiu o seu segundo prazer nesse dia, ao olhar para a folha de papel qu
e estava sobre a secretria. A ideia de desagradar a Ballesteros agradava-lhe, ago
ra, enormemente. A sua mo cletr-vo-se, porm, mais uma vez.
Sempre com o temor de se arrepender quando fosse Amasiado tarde, voltara sua rol
eta. E demorou-se a examinar de novo o resultado dos ganhos e das perrta^ que te
ria simultaneamente. Pareceu-lhe que, apesar fle tudo, lhe ficaria um grande sal
do se no escrevesse '' carta a Ballesteros. Imaginou-se no Partido Nacional, rr|m
as possibilidades polticas que isso lhe traria, mas Arribam com os sedimentos ci
o seu passado. "Depois fk as termos, todas as coisas se tornam menos inter7santes
do que nos pareciam antes" monologou e |go se surpreendeu com o efeito que aque
la velha 'cKa, to simples, to vulgar, produzia nele. Ao longo (;3- vida, essa cert
eza s lhe tinha, dado melancolia;
576
A CURVA DA ESTRADA
* agora causava-lhe, de repente, um imprevisto c
Parecia-lhe que perdia muito menos do que hav
sado. "No fim, talvez eu verificasse que no tinha
a pena" monologou de novo, para fascinar j
concordncia que batia, timidamente ainda, sua
Voltou a sentir a necessidade de ter considerai
si e, sobretudo, que os outros tivessem consid
por ele. Pensou em Pao, como numa dor esquec
e aquele desejo de considerao alheia, da sua t
rizao do conceito alheio e no dele prprio sobre
ao filho. i
Foi com uma letra serena, bem desenhada, <y
concluiu a sua carta para Ballesteros.
XIV |
41
n l{
SORIANO deteve-se, um instante, a olhar pan
dois lees de bronze que ladeavam as escad
do Parlamento. Via-se a si prprio encostado (r)
deles, no dia em que tinham sido inauguradas as C
tituintes do novo regime. L dentro, Alcal Zaffl
presidente do governo provisrio, havia dito: "O t
cito est, finalmente, com a Repblica. Proponho!
a Repblica sade o exrcito".
Fora um delrio. Fora como se Alcal Zamora,^
era catlico, dissesse: "A Repblica , agora, imffl
como Deus e as suas leis e os seus territrios e"
defendidos to eternamente como os territrios t
leis celestes". Os deputados haviam-se levantado e ap
dido freneticamente; depois, seguindo os membros
ministrio, tinham vindo para ali, para as escadad
que os dois lees guardavam. Na praa fronteira, com
cara o desfile militar. Sobre um cavalo branco e \
espada ao alto, reluzindo ao sol da tarde madrile^
Queipo de Llano abria a marcha. Andavam, no i
sons de clarins, toques de tambores e de fanfarra"
um jbilo to grande que parecia traspassar no 4
A CURVA DA ESTRADA
577
almas comovidas, mas o prprio mrmore frio das
25 das. m frente do Parlamento, Queipo de Llano baixara a espada e as palmas ao e
xrcito e as aclamaes Repblica haviam coberto o tropear dos cavalos.
Desde a sua adolescncia, Soriano odiava o militarismo. E as lutas que travara com
a guarda-civil, durante greves e comcios de propaganda, tinham aumentado o seu di
o. Naquela tarde, porm, o simblico gesto de adeso Repblica, que Queipo de Llano fazi
a em nome do exrcito espanhol, sensibilizara-o repentinamente. A Repblica era, em
parte, obra dos socialistas; era em parte, portanto, obra dele prprio. E fora nes
se ambiente perturbante, que ele se sentira, pela ltima vez, entusiasmado pelas i
deias que at a havia defendido. Tanto que, durante a sesso parlamentar que se segui
ra quilo, pedira a palavra e dissera:
"O sculo xix conseguiu dividir a Eternidade em duas partes diferentes. Na primeir
a, a luz avanava com a mesma lentido com que as trevas se movem; segunda ela chega
com essa assombrosa velocidade que a prpria luz sideral tem. Ora a Espanha viveu
at hoje como se o sculo xix no houvesse existido; preciso, portanto, restituir Esp
anha esse tempo que os seus governantes suprimiram; preciso que esta nobre e gen
erosa nao passe a habitar no presente e no no passado e isso s se pode conseguir co
m uma repblica social, que d ao povo a cultura, o bem-estar e a liberdade de que e
le necessita".
Agora, ao recordar esse momento, vinha-lhe uma sbita depresso moral, como se aquel
e dia marcasse a fronteira dum pas enevoado, no qual as suas antigas convices havia
m desatado a bruxulear cada vez mais, cada vez mais cinzento, dbio pas que ele ac
abava de percorrer e onde um velho monstro, distendendo ^ntamente o pescoo, comer
a as estrelas do cu.
Os olhos de Soriano esbarraram com o vasto edifrcio do Palace Hotel, que se ergu
ia perto do Parlaftiento. Demoraram-se um momento a contempl-lo e, ^epois, baixar
am-se vagarosamente. Quer como deputa-do, quer como ministro, ele tomara parte a
li em
19 Vol. Ill
578
A CURVA DA ESTRADA
* numerosos banquetes oficiais. Ali ele sentira.a^j
vezes, a sua importncia poltica. E, agora, o <
hotel lhe punha de novo a questo que ele j dal
como se quisesse det-lo no ltimo passo que Iti
tava dar. >3i
Soriano reagiu. E, com um velado olhar d& |
dida para os dois velhos lees de bronze, entt|
Parlamento. J
Nos "pasillos" viam-se numerosos deputada*
rando em grupos, deputados que iam e vinham e ||
listas que falavam com deputados. 3J
Antes mesmo de sair de casa, Soriano consiel
aquele momento como o mais desagradvel dosl
viriam a decorrer, para ele, nessa tarde; e estu<|
expresso que devia ter ao atravessar a comprida ai
sala. Em obedincia a isso, entrou de cabea erga
mas sem fixar nenhum dos deputados presenS
caminhou a passos largos, como se o puxasse iijrJ
tarefa a realizar. Procurava mostrar-se natural/1
parecia-lhe que, apesar do seu desejo, no prcw
com naturalidade, que os "pasillos" eram mais lfl|
do que habitualmente e neles se encontravam/
pessoas do que nos outros dias. Tinha-se prepsij
para a hiptese de algum se lhe dirigir e ele ser'm
gado a deter-se. Mas ningum lhe cortara o andam"
Parecera-lhe, apenas, que, sua passagem, alguns!
grupos que conversavam se haviam calado svM
mente. ! l
Faltavam apenas dois minutos para a abertura!
sesso quando ele entrou no hemiciclo e se senttil
sua carteira. Ficou satisfeito por ter calculado beal
tempo. Na sala havia ainda poucos deputados &n
verificou que Bejarano e Mendizbal, seus habitii
vizinhos socialistas, no tinham chegado tambm. ff|
deu-lhe novo alvio, pois ser-lhe-ia penosa a presei
deles, ali, ao seu lado, antes de a sesso comear. > J
A campainha tocava. O presidente e os secretil
da Cmara j estavam sentados s suas mesas, no ffl
estrado, entre as duas portas que davam para os "pag
los". Mas ele no queria olhar, nesse momento, pa^J
A CURVA DA ESTRADA
579
ngum. E principiou a fingir-se interessado pelo exame , papis que tirara da sua
carteira.
Sentiu passos que se aproximavam. Sups que fosse \Iendizabal ou Bejarano e no ergu
eu a vista. Mas quem era debruava-se sobre a carteira dele. Reconheceu a voz de R
amn Ballesteros, que, depois de o cumprimentar, o interrogava:
Que se passou ? Recebi a sua carta pouco antes de vir para aqui e fiquei muito s
urpreendido... Por que reconsiderou ?
Por que reconsiderei ?
A campainha deixara de tocar e o presidente abria a sesso. Vrios deputados entrava
m na sala. Soriano levantou-se, rapidamente:
Peo a palavra.
Havia um deputado com a palavra reservada desde a vspera e foi esse quem comeou a
falar. Soriano voltou-se para Ramn Ballesteros:
Em outra ocasio lhe direi. Mas nem preciso explicar-lhe... E estendeu a mo ao che
fe do Partido Nacional, que o olhava fixamente, com um olhar estranho.
Ballesteros retirou-se para o seu sector. O hemiciclo ia-se enchendo pouco a pou
co e um confuso murmrio de enxame pairava na sala.
Quem discursava era um membro do Partido Radical. Soriano mal o ouvia e estava a
nsioso que o outro acabasse de falar antes que chegassem Bejarano e Mendizbal.
Atrs e frente dele as bancadas socialistas j se Reentravam quase todas ocupadas. S
empre de olhos sobre os papis, Soriano captava, s vezes, algumas das Palavras que
os deputados seus antigos correligionrios trocavam entre eles e pressentia que os
outros pensavaru nele. Admitiu que fosse tambm pelo desejo de ev'itar o seu cont
acto que Bejarano e Mendizbal no gessem entrado ainda. Tentou dominar a emoo, mas na
o o conseguiu. Cada vez se sentia mais excitado, ITluito mais ainda do que no pr
imeiro dia em que discursara ali.
58o
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
581
O deputado radical terminara, finalmente. Q
dente da Cmara anunciou: rp
Tem a palavra Don lvaro Soriano! ia
s f-
i
Depois de haver telefonado a Mercedes do u|
que ele alugara, de manh, no Hotel Gran Via,-i
desceu para o Caf que existia em baixo. No asai
examinou, mais uma vez, o seu relgio. Faltava||
minutos para as seis da tarde e a essa hora o seer*
de Ramn Balleseros ficara de ir falar com ele. H|
No Caf havia muita gente e, como sempre^
atmosfera impregnada de fumo de cigarros. Pacoaj
necessidade de ar livre e caminhou at a portai
a noite madrilena e densa multido transitava!
passeios. A Gran Via acendera as suas luzes pflfl
tras e fulgurava por toda a parte. Pao encost|
a uma das ombreiras, do lado de fora do guarda-vlj
e, enquanto esperava, tentou distrair-se a contenij
as mulheres que passavam na rua, a copul-las meu
mente, como era seu costume, quando elas lhe'|
davam. Desta vez, porm, a sua imaginao nl
prendia aos corpos de movimentos sensuais e H
para outra parte. 't|
Pao decidiu, por fim, reentrar no Caf. Prot^l
uma mesa em frente da porta e sentou-se. Ao f")
havia um grande relgio de parede. Marcava exdjl
mente seis horas. "(
Pao sentia-se cada vez mais ansioso de conKfll
a resposta de Ballesteros. O chefe do Partido Nackri
prometera-lhe, h j algumas semanas, obter para-'4
a direco do contencioso no Banco do Norte, w
um lugar de fortes honorrios e, por isso, grandem^l
ambicionado por todos os advogados sem clientd
Pao estava convencido de que, uma vez l, podefl
fazer uma grande vida. Ramn Ballesteros ficara _<
lhe dar uma deciso definitiva justamente nesse <Sj
Ainda na vspera, quando Pao o procurara em <l
casa, ele lho tinha prometido. Durante todo o <w
rai, Pao no conseguira v-lo. Debalde lhe tele\ nara vrias vezes, desde que o pai o ha
via expulsado. Debalde, pois fora sempre o secretrio que o atendera: n0n Ramn saiu
". "Don Ramn ainda no voltou".
4 meio da tarde, contudo, o secretrio falara-lhe menos
sobriamente:
Don Ramn foi, agora mesmo, para o Parlamento. Mas eu disse-lhe que usted havia
telefonado e ele encarregou-me dum recado para si. Onde o posso ver s seis horas
?
Eu you a...
No, no, no se incomode!
No me incomoda nada; eu you...
que eu tambm tenho de sair...
Pao indicara, ento, o Caf do Hotel Gran Via.
Bem; l estarei s seis horas disse o secretrio. O grande relgio do Caf marcava, agora
, seis horas
e dez minutos.
Um "golfillo" acabava de entrar, oferecendo os jornais da noite. Pao no tirava os
olhos da porta. O criado trouxera-lhe, entretanto, o vermute que ele havia pedid
o. Quando Pao acabou de beber, o nome de Soriano e o seu prprio saltaram-lhe aos o
lhos, de entre os grandes ttulos do jornal que, na mesa do lado, algum lia. Era o
"Heraldo de Madrid". Pao fixou melhor e, depois, voltou-se para o fundo do salo, p
rocura do "golfillo". Vende aqui, vende ali, ele l andava de mesa em mesa. O prim
eiro desejo de Pao-foi o de ir ao seu encontro. Mas conteve-se, temendo que algum
o reconhecesse no Caf. E s quando o pequeno vendedor voltou a passar junto da sua
mesa ele comprou o jornal. com a ideia de o ler no quarto, onde ningum o visse, o
jhou o relgio. Eram seis horas e dezassete minutos. fao considerou que no podia aus
entar-se dali e, sem conseguir dominar-se mais, abriu o peridico e leu:
"O caso de Don lvaro Soriano, que o nosso jornal *i o primeiro a noticiar, teve es
ta tarde, no Parla^ento, o seu desfecho e, por sinal, um desfecho dramtico. Don l
varo foi um dos primeiros deputados a entrar no hemiciclo. Logo que o presidente
do Congresso
582
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A CURVA DA ESTRADA
583
-1
1
* lhe deu a palavra, ele declarou que aquela seria,||
mente, a ltima vez que falava ali. E, perante 3
presa de todos, acrescentou que tinha no bolso
renncia ao mandato de deputado. / l
"Nas galerias fez-se um grande silncio. E "j
aqueles parlamentares que tm o costume defiSj
jornais ou de falar com os colegas vizinhos, en|3
os outros discursam, calaram-se e olharam paraaj
lvaro. Este, dirigindo-se ao presidente, disse: -ym
Ainda h poucas horas eu pensava enviai
esta mesma tarde, a carta que tenho aqui. Ma,8
um jornal acusou um dos meus filhos de ter vem
a minha assinatura, como ministro que eu era -M
tempo, para um negcio prejudicial ao Estado...m
DON PEREZ LOSADA (socialista da exirema-esqum
E vendeu! ~M
DON LVARO SORIANO (sem se voltar e com gm
emoo na voz) Antes de vir para aqui, fui pfiB
apresentar uma queixa contra esse meu filho, parai
o seu caso seja investigado e ele punido se, efed
mente, prevaricou. Mas o jornal em questo inaj
tambm a possibilidade de eu ser cmplice de .d
filho, de eu conhecer o seu procedimento e, atm
no ter desejado sair do ministrio sem assinar aj
jecto que interessava aos que o haviam subomaflW
DON PEREZ LOSADA E s depois disso saidj
DON LVARO SORIANO (passando a mo direita fl
a testa, como se limpasse o suor, e voltando a fix-fam
sua carteira) Estou absolutamente certo de que"
eu quisesse, poderia continuar a minha carreira polt
apesar de todas as calnias que, de quando em quartil
so lanadas sobre os homens pblicos muitas vefll
o que mais triste, por outros homens igualmeJJ
pblicos. Mas no quero. A minha carreira poltica twj
mina hoje. (Sensao na sala). Parece-me, porm, !"(
timo eu desejar que o pas saiba que termino volwl
tariamente e no por fora da acusao que me fizerailj
"Don lvaro calou-se um momento e, depois, novs|
mente no meio dum grande silncio, pediu ao president!
que mandasse realizar um inqurito parlamentar sobJ|
sua aco no caso da Hidro-Elctrica de Torrela-
Desejo que se averigue se eu tive alguma interferncia na escolha dos tcnicos que m
e recomendaram a aprovao do projecto, se eu tive, enfim, qualquer cumplicidade com
o meu filho. (Murmrios nas galerias). Peo-lhe, tambm, senhor presidente, que se pr
oceda a esse inqurito com brevidade, pois quero enviar-lhe a minha carta de rennci
a e no poderei faz-lo sem flcar definitivamente esclarecido que no abandono esta ca
sa para fugir a quaisquer responsabilidades.
"Quando Don lvaro terminou, nas bancadas do Partido Nacional ouviram-se alguns ap
lausos. Foi, porm, um movimento isolado, a que se veio juntar um novo murmrio das
galerias. Don lvaro abriu as gavetas da sua carteira, retirou os papis que nela gu
ardava e saiu apressadamente.
"Don Jos Zornoza Lara pediu, ento, a palavra.
DON JOS ZORNOZA A bancada socialista vota pela urgncia do inqurito pedido, no pelo
desejo de ver condenar o requerente, mas pela esperana que tem de que ele seja il
ibado. O Partido Socialista nunca pretendeu acusar de corrupo a Don lvaro Soriano;
proclamou e proclama, isso sim, que ele sofreu nefastas influncias dum filho corr
upto e ainda dum partido que no s inimigo daquele a que Don lvaro pertencia, mas at
da prpria Repblica, um partido que defende o regresso ao regime feudal do chicote
e que s por escrnio se chama nacional...
(Violentos protestos dos deputados nacionais): Fora! Fora aos coveiros de Espanh
a!
DON RAMON BALLESTEROS ... Peo a palavra!
"Constantemente interrompido, Don Jos Zornoza Lara continua a falar hora de o nos
so jornal entrar nas mquinas".
Pao dobrou o "Heraldo", chamou o criado e pediu um segundo vermute. Arrependeu-se
e encomendou uma bebida mais forte:
No; no traga vermute. Traga um clice de conhaque.
5"4
A CURVA DA ESTRADA
"1
i
O relgio do Caf marcava seis horas e ,
* oito minutos. Ao olhar os grandes ponteiros, Pajs
a si prprio que era certamente verdade o |
julgava ter adivinhado desde que telefonara pela "
vez para casa de Ramn Ballesteros. j
Bebeu o conhaque em dois goles apenas e Mj
depois, que lhe seria desagradvel se o home"
ele esperava o visse ali com aquele jornal. De3
mais dobras ao "Heraldo" e meteu-o na algibeira
Eram seis horas e quarenta quando da cabiflS
fnica o chamaram. Ele correu para l e ouviuqj
de Guevara, o secretrio de Ramn Ballesteros, diaaj
Eu estou atrasado, desculpe-me. Tive vrjJ
balhos a fazer que demoraram mais do que eu sujm
you agora mesmo ter consigo. Mas estive a ;|M
que seria melhor encontrarmo-nos num lugar rol
como direi ?... mais discreto do que num Cafdj
lhe parece ? ,(H
Pao julgou, novamente, compreender aquiloj
dominou-se: 'jm
Como quiser... Eu tenho um quarto, aquij Gran Via. o setenta e oito, no terceir
o andar. JM esper-lo l... tfl
Bem...acedeu o outro. Est muito::H Dentro de dez minutos estarei a... "
Pao deixou o telefone. Veio ao Caf pagaM
criado e dirigiu-se, lentamente, para o ascensor, im
O secretrio de Ramn Ballesteros chegou, "
efeito, pouco depois. Era um homem baixo, de <<m
redonda, levemente avermelhada, um bigode cur$H
olhitos luzidios por detrs dumas lunetas de aros"
rados. Quando o anunciaram e Pao o mandou enOT
ele apareceu com uma pasta sob o brao e modos M
procurador de famlia abastada: w
Desculpe-me, mais uma vez, t-lo feito espeflB
Mas, como lhe disse, Don Ramn tinha-me encdl
gado de vrias misses urgentes e a ltima tardou mflB
contra a minha vontade... '
Sentou-se, agradeceu, sem aceitar, o cigarro <$
Pao lhe oferecia e deitou uma vista ao quarto: f4j
A CURVA DA ESTRADA
585
^-No sabia que morava, agora, aqui...
pao sentiu-se vexado com a ideia de lhe explicar razo da sua estada no hotel.
__ No, no moro aqui. Mas, compreende, um (iomem> na mmna idade, tem sempre necessi
dade dum quarto onde possa receber certas visitas...
O outro sorriu, bonacheiro:
Compreendo... Compreendo perfeitamente... E agora que aproveitar! No na minha
idade! Que eu, quando era novo, tambm no perdi o meu
tempo...
Sempre de untuoso sorriso, Guevara demorou a refenr-se ao motivo que o trouxera
ali. Taramelando por outros distantes caminhos, s ao cabo de bons minutos disse,
como por acaso:
Quanto quilo do seu pedido, Don Ramn est verdadeiramente desolado... O Banco do Nor
te havia-Ihe dado as melhores esperanas e ainda ontem ele estava convencido de qu
e o lugar seria para si. Mas, hoje de manh, quando ele prprio foi saber a resposta
definitiva, no Banco disseram-lhe que havia um grupo de fortes accionistas que
impunha um outro advogado para o contencioso. A prpria direco do Banco estava desco
ntente com o caso, mas trata-se de elementos preponderantes, aos quais os direct
ores no podem dizer que no. Don Ramn ficou extremamente aborrecido, como usted pode
calcular, e encarregou-me de lhe apresentar as suas desculpas...
Pao no fez comentrio algum.
Uma grande sensaboria! acrescentou o secretrio de Ballesteros, para quebrar o si
lncio incmodo. ~~ Quem perde, afinal, so eles, porque dificilmente Reentraro al
gum to competente como usted.
Eu j esperava isso mesmo disse, por fim, Pao, com um torn desdenhoso.
O outro fingiu no compreender:
Inteligente como usted , no ho-de faltar-lhe lugares!
Uma palavra obscena subiu, de repente, aos lbios ^e Pao, mas ele conseguiu det-la.
586
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
587
"1
j
^ Oh! J estou, de novo, atrasado! ej^
o secretrio de Ballesteros, examinando o seir
e levantando-se. s oito horas tenho de esf
Rosales. ff
Pao ergueu-se tambm e apertou friamente
que Guevara, sempre com amveis palavras, lhe j
dia. Depois, sozinho no meio do quarto, os olhf$
na porta por onde o outro desaparecera, soltou s&i
nidade que tinha na boca. Logo, voltando-se, A
no telefone; hesitou um momento, decidiu-se, ^j
a hesitar e, por fim, telefonou novamente a MerJ
' -i XV ,1
J
E1>J L vai ganhar muito dinheiro pensou S<w ao subir as escadas. a sorte que l
he & em casa". Logo quela ideia se sobreps a figwpjaj Ramn Ballesteros, quando se a
proximara dele -AJ perguntara: "Por que reconsiderou ?" como se IhcJ sesse: "Por
que fez essa imbecilidade ?" >
Ao entrar na sala de espera, Soriano perguntai empregada se Alvarez Calleja, um
dos outros advogjl que compartilhavam o escritrio, estava sozinho./ i
No. Est com um cliente. jsi
Bem. Ento, assim que o cliente sair, digfc que eu desejo falar com ele. n
Soriano dirigiu-se ao seu gabinete e sentou-se ia
diatamente mesa de trabalho. Numa das gavci
guardou os papis que trouxera do Parlamento e <if"J
trs tirou cpias de vrios processos. Levantou-se, \j^
estante e trouxe mais pastas. Depois, comeou ^
escrever. Escrevia nervosamente, como quem j eS|
de chapu na cabea e tem um carro a esper-lo. A
vezes, porm, detinha-se a fazer clculos sobre quanfj
deixaria de ganhar renunciando queles processos, sobi$
tudo ao de Mesonero. Detinha-se um momento e log"f
com uma ideia de futuro alvio, continuava.
Quando Alvarez Calleja abriu a porta do gabinete, ele escrevia ainda.
_ Queria falar comigo ?
Sim, queria. Queria pedir-lhe uma coisa. Usted tem, presentemente, muito trabal
ho ?
Algum, felizmente... disse Calleja, com um torn provisrio. Porqu ?
que eu preciso de descansar e havia pensado substabelecer em si as aces que tenho
pendentes...
Calleja, homem novo, alto, de cabelo empomadado e um bigodito negro contrastando
com a pele muito branca, encontrava-se, de p, em frente da secretria dele e quedo
u-se a olh-lo, surpreendido.
Eu estava, justamente, a rascunhar os substabelecimentos. H algumas aces importante
s... Esta, por exemplo, de Palcios Mesonero... Alm de tudo o mais, um favor que me
faz...
Mas usted sente-se doente? ... perguntou Calleja.
No, no estou doente, mas sinto necessidade dum longo repouso. Penso ir amanh para a
minha casa de San Rafael e passar l uma larga temporada...
Soriano continuou a dar justificaes. Dava-as de forma to convencional que, ouvindo-
o, Calleja comeara a associar a atitude dele com o que, sobre ele, havia lido nos
jornais. Agora, Soriano perguntava-lhe:
Aceita ?
Bem... Eu estou s suas ordens...disse Calleja, procurando dominar e esconder a sa
tisfao que a oferta lhe produzia.
Soriano agradeceu, enquanto voltava a pensar, com ntimo desprazimento, que Alvare
z Calleja ganharia, somente com o caso de Mesonero, pelo menos vinte
mil pesetas.
Ento, se quer, podemos ver isto... Sente-se aqui,
faa favor...
Calleja sentou-se. Soriano abriu as pastas. E eram quase oito horas da noite qua
ndo ele, tendo explicado ao colega tudo quanto poderia interessar-lhe, lhe entre
gou, por fim, os substabelecimentos e as cpias dos processos.
588
A CURVA DA ESTRADA
p Deixo-lhe dinheiro para a minha parte ngri
da casa, para a empregada e qualquer outra tjt
que aparea. l
No, no vale a pena. Eu pago e depois f$
contas. <i
Alvarez Calleja acompanhou-o at a escada. Aq
Soriano verificou que j no havia luz nos gail
dos outros advogados e isso tranquilizou-o, pois "ijj
tava-o a ideia de ter de dar mais justificaes, 'd
Cumprimentos aos colegas... Jj(
Sero entregues. l Sentiu um sbito vcuo. Era como- se o tiras
moribundo, do navio de seu comando e o imediato
dissesse: "V descansado, que eu tomo conta do faa(
E o navio continuava a sua rota, como sempre/^
sem ele. qs
Em baixo, no passeio, Soriano aguardou quert
sasse um txi. Mas todos os que divisava iam ocupaj
Pensou descer at Alcal, onde teria mais probas)
dades de encontrar um livre. A lembrana, porinfl
que lhe sucedera na vspera, com as pessoas conhea
a voltarem a cara, reteve-o. A noite estava tpida.^
uma noite sem cu, que comeava nos beirais da<<2|
Barquillo e subia, negra e compacta, para a noite Jj
noites. Nunca a rua parecera a Soriano to estiei
E dir-se-ia cheia de vibraes vindas de toda a cidat
de toda a terra, atravs das outras ruas, como vi
o vento; vibraes que se elevavam e, chegada^
acima, volviam, repelidas pela impermeabilidade^
noite, pela noite intransponvel; volviam, mais coteal
tes, mais nervosas, mais elctricas. Soriano sentia <fl
apesar de tudo, havia uma regio do seu esprito egl
lhes escapava. Era uma rea de inteira paz, uma $
lisa de imenso prado verde, repousante, sem nenhum
rvore, sem nenhum arbusto cujas folhas o veqK
pudesse agitar. Essa zona rasa lindava com outra, ter
tambm satisfeita, mas de altivos rochedos, sobra^
ceiros ao prado. Estes tinham uma sensao vaidort
de renncia voluntria, de sacrifcio voluntrio; el$
evocavam o Parlamento, os Ministrios, o dinheiro q
A CURVA DA ESTRADA
589
ugsonero e desdenhavam-nos. Eles estavam orgulhosos de pensar que, depois de tu
do quanto ocorrera, haviam optado pelo que lhes parecera mais nobre. Logo, porm,
a terra se acidentava. Terra de ravinas, de esbarrondadeiros, com guas murmurante
s, terra sempre inquieta, sempre insatisfeita, por ela corriam todas as vibraes co
mo vendavais. Era l que a lembrana de Pao lhe causava dor e que a lembrana dele prpri
o o fazia sofrer.
Os olhos de Soriano voltavam-se, de momento 'a momento, para um e outro lado da
Calle Barquillo, mas esqueciam-se frequentemente da razo por que olhavam. Finalme
nte, ele pde subir para um carro desocupado e dar o endereo da sua casa.
A multido enchia ainda as ruas. Mas Soriano no atentava nela. Ele pensava no seu j
ardim de San Rafael e no seu isolamento futuro. Vinha-lhe nostalgia, sobretudo,
daquelas tardes em que, toga aos ombros, comeava por dizer: "Senhor Juiz..." quas
e com a certeza de vencer a causa difcil.
O txi atravessou a Plaza Mayor e deteve-se em frente do nmero indicado. Enquanto e
sperava o troco da nota que dera ao motorista, Soriano lobrigou, encostada ombre
ira da sua porta, sob a arcada, a figura de Juan Cabanillas. A nica mo dele segura
va um jornal e o seu rosto tinha um ar severo.
A primeira ideia de Soriano foi a de continuar dentro do carro e dizer ao motori
sta que seguisse para outra parte. Mas logo considerou que Cabanillas poderia fi
car ali sua espera todo o tempo que entendesse e que ele precisava de entrar em
casa. Mastigou, de mau-humor: "J no posso dar um passo em Madrid. Nem mesmo aqui m
e deixam descansado". A antiga simpatia desaparecera e, pela primeira vez, ele m
alqueria quela figura.
Soriano hesitava ainda quando os olhos de Cabanillas se ergueram e se cruzaram c
om os seus. Ento, ele abriu a porta do txi e desceu resolutamente.
Juan Cabanillas no mudou de expresso ao v-lo aproximar-se com um sorriso ligeiro. S
oriano avanou
590
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
591
* mais ainda. Os dois costumavam apertar-se aftl
com fervor sempre que se encontravam; mas/jl
Soriano, de olhar atento e desconfiado verificaiH
Cabanillas no fazia movimento algum para lqt|
o seu nico brao. 'Iqm
Ol, Juan! Por aqui ? disse, por necesS
de dizer alguma coisa. Mas a ele prprio as suas"
vras lhe soavam de modo falso. sm
Estavam a um metro um do outro. Cabanillas
va-o, de olhos nublados e, finalmente, a sua expai
modificava-se, mas para se nublar tambm. <3
Soriano deteve-se. O outro tornou a baixar os-M
tornou a ergu-los. Os seus lbios entreabriram"
dir-se-ia que iam falar; mas voltaram a fechar-se,"
tremura. M
Foram uns segundos apenas; Soriano tinha, pflfcj
a sensao de que aquilo no acabava mais. PcNj
Cabanilas murmurou: m
Parece impossvel que o camarada tenha >4 uma coisa dessas... :nj|
Cabanilas voltara a pr os olhos no cho e 3t voz tremia. <iJ
Eu continuo seu amigo, como dantes, Juan*ldi
No se trata disso. O camarada bem podia VM Sentia-se que Cabanilas fazia grande es
foro |H
se libertar da emoo que lhe fechava as pala*w
Eu continuo seu amigo... repetiu SorianoA'i
Eu, por mim, no tenho importncia... EuBI valho nada...Ao dizer isto ergueu timidame
nt) seu olhar: Mas os outros ?... Os outros ?... ra|
Cabanilas quis ocultar a repentina fraqueza e lewij
ao rosto o seu brao, para enxugar os olhos na maui
do casaco. Mas as suas prprias palavras o comovia"
Nunca pensei que o camarada... <"$"
No conseguiu dizer mais coisa alguma. Sorialfl
percebeu que ele ainda tentava falar, mas que lo|p
renunciava sob um forte ataque de soluos. Sorin|
viu-o, depois, afastar-se ao longo da arcada, sempai
a soluar, sempre com a manga do casaco a tapar-lN
os olhos. 'M
A arcada da Plaza Mayor dilura-se, sofrera sbita metamorfose. A multido cobria comp
letamente o carap0 Aos ps da tribuna onde ele falava estavam Cabanilas e o pai. A
guarda-civil avanava, a cavalo, acutilando o povo. Agora, as espadas dirigiam-se
para ele. Rafael Cabanilas intervinha. Quando ele voltara a v-lo, o velho encontr
ava-se estendido no cho, com a cabea envolta em sangue.
Soriano olhou para a arcada, desejoso de dizer no sabia o qu. Mas Juan Cabanilas ti
nha j desaparecido sob um dos arcos.
Soriano vacilou um momento. Cabanilas havia deixado uma inquietao pairante, como os
navios, mesmo depois de se sumirem na linha do horizonte, deixam no ar um rasto
de fumo. A sombra de Soriano projectava-se, impassvel, sobre o lajedo da arcada.
Em seguida, moveu-se, alongou-se e avanou lentamente para a porta da casa.
Ao subir as escadas, sentia necessidade de se justificar, de se conciliar consig
o prprio: "Eu desisti de entrar no Partido Nacional e podia no ter desistido. Eu r
enunciei ao meu futuro e podia no ter renunciado". Mas, apesar desses argumentos
que uma parte do seu esprito segregava sobre a outra parte descontente, a arcada
da Plaza Mayor, por onde Cabanilas havia desaparecido, continuava a distender-se
dentro dos seus olhos, a distender-se sempre, como uma galeria sem fim e sempre
deserta.
Quando Soriano entrou em casa, Ramona, ouvindo-lhe os passos, saiu ao corredor:
Telefonou Don Pepe Martinez. Disse que voltava a telefonar. Telefonou mais ge
nte...
Quem ?
No quiseram dizer os nomes... Alguns eram u^s grandes malcriados... Tam
bm veio procur-lo aquele homem que maneta...
Sempre vagarosamente, Soriano caminhou para o Seu gabinete. Na antessala, encont
rou Mercedes, sentada, a ler os jornais da noite. Quando ele passou, ela levanto
u-se e deu-lhos, friamente:
592
CURVA DA ESTRADA
-1
j
* Pega l... Jj
Dir-se-ia que a sua voz lhe lanava um de
lhe cuspia desdm. Mas ele no se deteve sequerJ
rou nos jornais e continuou a andar para o estio}
Ento, ^despeitada, furiosa, Mercedes gritou: jj
s um idiota! Compreendes ? s completai
idiota! Que homem, com as tuas possibilidades"
o que tu fizeste ? J
Ainda desta vez ele no ripostou, sentindo-sed
e sem vontade de discutir. J
Logo que entrou no gabinete, viu, sobre a secret
dezenas de cartas e de postais. Era um correi<||
copioso como ele s costumava receber em period!
eleies. y
Desconfiado, pousou os jornais e principiou ai|
minar cada um dos sobrescritos. No reconhecia &,M
de nenhum deles. Levantou um dos postais e, antl
o ler, buscou a assinatura. Era annimo. m
Soriano no pde conter-se mais. Rasgou, viokl
mente, tudo aquilo, lanou os fragmentos no cestos!
papis e saiu procura da irm. ,ra
Mercedes estava na sala, junto do aparelho de/t|
fonia, tentando captar msica de seu agrado; e, VJ
tiva, no ergueu os olhos quando ele se aproxi
Dize Ramona que apresse o jantar e tu>^| arrumando as maletas, porque, depois de
jantamil vamos para San Rafael. ofl
Ela encarou-o, finalmente: f
Esta noite ? <
Esta noite mesmo disse Soriano com decisS
E... por quantos dias? e Decidi ir viver para l.
ia
Decidiste ir viver para San Rafael ?! A v de Mercedes era sacudida e cheia de su
rpresa. Ele ni respondeu e voltou para o seu escritrio. .fj
Soriano havia posto os jornais sobre a mesita onA Ramona costumava deix-los nas o
utras noites. A<i entrar, os seus olhos encontraram-nos. Mas, pela pW nieira vez
na sua vida, no sentia desejo algum de l& o que os jornais diriam sobre ele. '^
A CURVA DA ESTRADA
593
p p, no meio do gabinete, olhando para um lado
outro, procurava lembrar-se de algo que ele desejava
l var para San Rafael. Procurava lembrar-se, mas no
conseguia. Dir-se-ia que o obscuro fundo da sua memria se havia fechado sobre aqu
ilo, como um molusco. Ele continuava a olhar em seu redor e, ao mesmo tempo, pen
sava noutra coisa.
Mercedes surgiu porta do gabinete:
J disse criada que tens pressa de jantar. E you arrumar as tuas maletas. Mas eu
no you contigo!
Eu fico!
Soriano voltou-se. Ela, porm, no o deixara falar.
Se no quiseres que eu fique em tua casa, l por isso no hei-de dormir na rua! Mas eu
no saio de Madrid, percebes?
Soriano viu-a desaparecer da porta com os mesmos excitados movimentos com que ch
egara. "Est insuportvel pensou vagamente. J de manh fez a mesma cena". No se demoro
u, porm, a pensar naquilo, pois tudo aquilo lhe parecia vago, muito vago, com pou
ca importncia em relao a tudo o mais.
Outra vez sozinho e com uma fadiga cada vez maior, deixou-se cair na poltrona. C
ontinuava com a difusa ideia de que devia olhar para as estantes, para a secretri
a, no sabia bem para onde, nem para qu.
O telefone soou, ao longe. Desde que entrara em casa e Ramona lhe dissera que ha
viam telefonado "uns malcriados", ele compreendera e odiava o telefone. Agora, o
uvindo-o tocar, os seus olhos dirigiram-se para
0 cesto dos papis, como se outra fora, que no a vontade dele, os impelisse.
Ramona caminhava, apressadamente, no corredor. E, da saleta, preveniu-o, tambm co
m um torn de Pressa:^
Don Pepe Martinez.
Liga disse Soriano. E pegou no auscultador uo aparelho que estava sobre a mesi
ta.
Pepe Martinez felicitava-o: "Cumpriste o teu dever. u irei passar alguns dias con
tigo".
Sobre a mesa, debaixo do quebra-luz, ao lado dos
594
CURVA DA ESTRADA
f jornais, estava "La Vida dei Buscn" e a cap
charutos. Soriano fixou, um momento, o livro d
vedo. Era isso. Era isso de que ele no se lea^
Receando esquecer-se de novo, levantou-se, foi^
das estantes e dela retirou a sua coleco de cl
que mandara encadernar recentemente. P-la erfj
da mesita; sobre ela colocou "La Vida dei Bus^
sobre "La Vida dei Buscn" a caixa de charutos, $
s prateleiras e, depois, deu-se a abrir as gavfa
secretria. Mas no encontrou mais nada que lhei
cesse necessrio em San Rafael. oj
Ramona voltou antessala: -H
Esto a cham-lo do Hotel Gran Via. "
Quem ? perguntou Soriano, com um nua mor receoso. B]
No disseram. Disseram apenas que era do h
Dize que no estou. E tira o auscultador dsK relho, pois hoje no atendo mais ningum.
i/i
Ramona afastou-se, mas, instantes depois, elei
nava a ouvir os seus passos em direco ao escrW
Desta vez a criada avanou at a porta e a stuM
tinha um torn diferente do anterior: u S
Do Hotel Gran Via disseram que a polcil^
agora l e levou o senhorito Pao... sij
Ramona ficou, um momento, a olhar para Soril
como se esperasse que ele lhe dissesse alguma cS
Ele, porm, no disse nada. Estava de perfil e<
perfil ficara. O seu rosto no se contrara e Ramfll
do lugar em que se encontrava, no via os olhos fik
Desliga o telefone! ... gritou repentinament&'l
riano, com uma voz excitada. Desliga o telefo
Ramona saiu lentamente. '
A noite descera dos beirais. Ele forrara-se dafi
negra austeridade. Dir-se-ia que todos os seus rgSH
que todas as paredes internas do seu corpo se havia
tornado austeras. Os rochedos orgulhosos mantinhal
essa dignidade interior; mas a noite parecia feita de|
negro em suspenso, um p que o sufocava. Era como
a noite se cristalizasse pouco a pouco; como se "i
transformasse em lava e o fosse envolvendo, criandi
A CURVA DA ESTRADA
595
obre o seu corpo um invlucro mumiforme, que no deixava respirar. "A polcia h-de quer
er acarear-me com
l H-de querer acarear-me com ele... com ele..." Esta ideia tornava mais espessa a
lava. "Ho-de ir a San Rafael ou obrigar-me a vir a Madrid..." Viu-se em frente do
filho, sem poder encarar o filho. Ele desejou saltar sobre o tempo, estar para
l das acareaes e do rudo que o seu caso produzia; ele desejou atirar fora o tempo qu
e o separava da libertao, como atirara fora as cartas que o insultavam; esse tempo
que se encontrava a mais na sua vida, na idade em que todo o tempo era pouco e
que o queimava, o envolvia de lava e estendia a noite por novos desfiladeiros.
Soriano desfazia e refazia a pilha de livros sem dar por isso. Ora punha a caixa
de charutos por baixo dos livros, ora a punha em cima dos livros e tornava a fa
zer o contrrio sem dar por isso. Subitamente, Enrique chegou ao seu esprito antes
mesmo de chegar ao corredor. Soriano reconheceu-o pelo toque da campainha e tev
e momentnea satisfao. Desde esse momento os seus ouvidos acampanharam ansiosamente
todos os passos do filho.
Tu foste digno disse Enrique, logo que entrou no gabinete. E, afinal, o Zornoz
a tratou-te bem acrescentou, apontando os jornais.
Ele gostou de ouvir essas palavras. Gostou de ouvidas da boca do filho.
No li.
Na situao em que vocs dois se encontram, gle no podia dizer melhor do que disse.
No li.
Soriano pousou os olhos nos jornais; logo os retirou sem curiosidade. Enrique ia
a insistir, mas dir-se-ia lue o silncio que o pai fizera lhe queimava as palavra
s antes mesmo de elas germinarem.
Por fim, Soriano perguntou com voz dolente: -Sempre queres partir depois do jant
ar?
Sim, sim, quero! Tenho l muito que fazer. E de ftoite anda-se mais.
A voz arrastada de Soriano volveu:
596
A CURVA DA ESTRADA
f -Eu tinha pensado que talvez pudesses <
-nos em San Rafael... A mim e Ramona... EuS
alugar um carro... Mas assim seria mais prtico. El
tu terias de dar uma volta... >"
Ele dissera que "assim seria mais prtico" sejt
que isso era inexacto, pelo menos para Enriqued
queria, porm, confessar ao filho que se desgos
menos se sasse de Madrid na companhia dele. i
Eu levo-te com muito prazer disse Ema com ar confuso de quem no compreendeu tudj
Mas... hoje ? r|
Sim. .'iJ Tambm o filho se mostrou admirado: m
Ah, tu pensas ir, ainda hoje, para San Rail Soriano no respondeu logo. n
No posso mais com isto! exclamou, dejl
No posso mais! Esse maldito telefone, as cara os jornais, as pessoas tudo! Parec
e-me que at oil esta casa. Preciso sair daqui imediatamente! J
Acho que fazes muito bem aprovou Enria
Eu levo-te e no te preocupes com a volta n tenho de dar. Mais meia hora, menos m
eia hora, dl no tem importncia... J
Soriano examinou o seu relgio: ^1
So quase nove e meia. Eu tinha pedido n jantar mais cedo, mas a Ramona est a demor
ar i
Repentinamente inquieto, Enrique interrompet|
Tu disseste Ramona que ela ia contigo ? "j
Disse-lho a Mercedes. Porqu ? J
Por nada... Como est a tardar... Enrique m um movimento, como se pretendesse sai
r.
A Mercedes que se recusou a ir... J
Recusou-se ? Ah, ento, ela recusou-se ? m Soriano narrou a cena. -flj
Era de esperar... No me admira nada...*j comentou Enrique, caminhando para
a porta. UM momento... Eu you ver como est o jantar. j
Enrique voltou pouco depois. Soriano compreende" pela expresso que ele trazia., q
ue a criada lhe havii dado a notcia da priso de Pao. *
A CURVA DA ESTRADA
597
O jantar est quase pronto. Enquanto lavamos
as rnos, a Ramona termina-o.
No corredor, ao dirigirem-se casa de banho, ouviram os passos de Mercedes, dum l
ado para o outro, no quarto de Soriano. E quando, finalmente, os dois se sentara
m mesa, Ramona, ao trazer-lhes a sopa, preveniu-os:
A senhorita manda dizer que no esperem por ela, que ela no quer jantar.
Os dois esforaram-se por comer. Mas ambos compreendiam que nenhum deles tinha ape
tite. Soriano pensou que quase no havia almoado, mas isso pareceu-lhe coisa de ins
ignificante importncia.
Decerto ele afiana-se e sai em liberdade... disse subitamente Enrique, num torn d
e consolo, ao adivinhar o estado de esprito do pai.
Soriano continuou calado.
Caprichando em deixar tudo bem limpo e bem arrumado, s onze horas Ramona no havia
concludo ainda a sua faina na cozinha. Soriano metera-se no quarto. Ele prprio aca
bava de preparar as maletas, pois verificara que Mercedes, voluntariamente ou po
r descuido, nelas no colocara tudo quanto um longo estgio em San Rafael exigia.
Enquanto esperava por eles, Enrique fumava e passeava dum extremo a outro da sal
a. De quando em quand(r) detinha-se, mirava o relgio, pensava que se !a fazendo t
arde e volvia ao seu passeio. De repente, Porm, lembrou-se daquilo. E, sentando-
se em frente do aparelho de telefonia, procurou a emisso da homenagem a Pablo Igls
ias.
Era uma voz montona que falava nesse momento. Falava perante um grande silncio, co
mo se estivesse sozinha. Um silncio passivo, s de longe a longe interrompido por a
lgum que tossia discretamente, que tossia contra a sua prpria vontade. Enrique rec
onhe-
59"
A CURVA DA ESTRADA
* cu o torn moderado de Valero Rienda, que proniji
frequentemente, o nome de Pablo Iglsias. -3
Por fim, Rienda terminou o seu discurso. Ouvia
palmas condescendentes e, depois, um rumor cal
como que uma surda respirao colectiva. Logia
passos que se afastavam, outros que se aproxiiM
e, em seguida, desvairados aplausos, como s
paixo explodisse. A pessoa que os recebia ndl
ser ainda coisa alguma; sentia-se, porm, queni
passado era familiar a quem a via, pois preir"
antecipadamente o que ela ia dizer. Algumas plj
soaram, mas mal se ouviam entre os aplausos quem
seguiam e os "vivas" que os intervalavam. Outras m
vieram sem que Enrique as pudesse entender no "i
tante estrondear das aclamaes. - l
Finalmente, a nova voz ergueu-se, dominadora/li
o murmrio quente da multido. Enrique verificaal
se haver enganado quando pensara que se tratava
Zornoza. Ele falava com esse torn forte e combai
que o distinguia: l
"Pablo Iglsias abriu um sulco profundo no cora
de Espanha, um sulco que os inimigos do povo jaif
conseguiro apagar. Este homem, que nunca teve>j
falecimentos, lutou, at a morte, pelo nosso ideal. S
exemplo que todos ns devemos seguir. A homena|j
que hoje lhe prestamos pouco representa em rela|
ao muito que ele fez pela causa de todos os priajS)
Zornoza teve de interromper-se sob novos aplauj
" quase inconcebvel que uma causa to jtsj
como a do direito que todos os seres humanos dev|
ter vida, haja exigido e exija ainda tanta luta, taM
sangue, tanto sacrifcio. Milhares de homens tm tdB
bado por uma migalha a mais de po; e, depois deW
milhes de homens esperam ainda e tm de lutar ain^
por essa migalha que no lhes foi dada. Como poss^
que esses poucos potentados que tm tudo no Mundl
no se sintam confrangidos, no se sintam mesmo vesj
dos, perante o contraste da sua vida opulenta com$
misria da grande maioria dos outros homens ? Serf
horrvel termos de admitir que, para uma minoria s
A CURVA DA ESTRADA
599
feliz, a maioria tivesse de ser desgraada; mas isso, pesar de tudo, seria ainda u
ma justificao. Eles, porm, no so felizes! O imenso tributo que a Humanidade lhes paga
no lhes d felicidade. O prprio hbito da posse lhes limita inexoravelmente o prazer.
Muitas das facilidades de que eles dispem em excesso e que tornariam melhor a vi
da dos outros homens, a eles s produzem tdio! Como se pode, portanto, estar de aco
rdo com uma sociedade que ofende, de forma to evidente, no s o nosso esprito de just
ia, mas a nossa prpria inteligncia? Ns no queremos, porm, inverter os papis; ns no
os que o direito vida passe a ser apenas para ns; o que ns queremos que esse direi
to seja igual para todos. Porque no acreditarmos que a Humanidade poder vir a real
izar uma sociedade de mtua colaborao e de mtua compreenso, uma sociedade de amor?"
Novamente os aplausos, os gritos, os "vivas" duma multido em frenesi interrompera
m Zornoza. Enrique baixou a audio e, como aquilo se prolongasse, recostou-se na ca
deira, para acender outro cigarro. Nesse momento, ele viu Soriano, de p, ao seu l
ado. Surpreendido, Enrique desligou, rapidamente, o aparelho.
Estavas aqui ?
Soriano tinha um aspecto solene, que no lhe era
habitual.
Vinha dizer-te que podemos partir... Est tudo
pronto...
Enrique levantou-se. Esperava que o pai comentasse o que acabava de ouvir. Mas S
oriano no disse mais coisa alguma. E, sempre com um ar carregado, caminhou vagaro
samente para o escritrio. Ali, abriu a carteira, tirou algumas notas de Banco e p-
las em cima da secretria. Ao apagar a luz, de novo aquela imagem incmoda se precis
ou. Ele viu umas grades, Uma cabea por detrs das grades e um polcia em frente das g
rades. Soriano tornou a abrir a carteira e colocou mais algumas notas sobre as p
rimeiras.
Ramona transportava j a bagagem. Enrique ajudou-a a descer algumas maletas e volt
ou acima, para
6oo
A CURVA DA ESTRADA
se despedir de Mercedes. Esta fechara-se no seu cfM^H Enrique bateu, levemente,
na porta: 'i^H
Mercedes no respondeu. Ele insistiu, mas j^H o mesmo silncio. ^^H
Soriano saa do escritrio, j com o chap4|^H cabea; e, aproximando-se tambm da porta do
q^^l disse para dentro: ;'^^H
- Deixei-te dinheiro em cima da secretn^H Quando precisares de mais, escreve-me.
Ouviste M^l
Enrique sorriu, esperando que, desta vez, Merj^H dissesse alguma coisa. Mas ela,
orgulhosa, contfij^l calada. Soriano encolheu os ombros e, dirigindo-se],1"^B En
rique, para a escada, deu volta ao comutadfl^H fechou a porta atrs de si. No corr
edor, agorN^M silncio e s escuras, via-se apenas a laminazital^M luz que saa por bai
xo da porta do quarto de ftj^B
O motorista havia j acomodado as maletas <}U^N^I Soriano e o filho chegaram rua.
Eles entraram '^^H o automvel, Ramona sentou-se frente e o c*|H
S se ouvia o rudo do carro. Soriano sentia-se ^^^H vez mais lasso, como se no tives
se ossos, comtrflM no tivesse articulaes e se afundasse na sua prJp^B carne. Parecia
-lhe que ia para muito longe e que, "u|8 ruas que o automvel atravessava, as luze
s da cidadIM se diluam numa neblina. A sua mudez era feita d^^^B lassido imensa e
do tumulto que sobre esta o crebfwM
Ao lado, Enrique desejava falar, pensava nas fr^^jM ss que devia dizer, mas nenhu
ma delas lhe paredflM propcia para afastar aquele silncio cheio de mil conrB tradies q
ue ele sentia na alma do pai.
O automvel continuava a rodar. Tinha j deixa^W Madrid quando, enfim, Soriano
murmurou isolada1* |" mente, como se necessitasse de ouvir a si prprio, com<$
-* se do monlogo que ele mantinha no fundo do lagtf* subisse uma bolha que vinha
rebentar superfcie: Sim, com certeza, afianam-no... E ele sair..-1
A CURVA DA ESTRADA
601
Enrique precipitou-se sobre aquele pretexto e comeou 3- reforar a esperana do pai.
_ Sem dvida nenhuma! E tu, como advogado, kem o sabes. Tu bem o sabes...
Soriano dir-se-ia indiferente s palavras de conforto.
O Pao tem muitos defeitos, certo, mas nisto
ele foi uma vtima da corrupo socialinsistiu Enrique.
Ao canto do automvel, de mos abandonadas sobre os joelhos, Soriano ficou calado.
O carro rodava agora na noite, na estrada que os faris iam extraindo da enorme ba
inha da noite. Soriano baixara o vidro da janela, para respirar melhor. Ele volt
ava a ver-se com as suas grandes tesouras, com a sua pequena enxada e plantas fl
oridas em seu
redor.
Subitamente, sentiu necessidade de falar. De dizer fosse o que fosse, de se evad
ir, de sair de dentro dele como de dentro dum saco.
Ento tu tens, agora, muito que fazer por l ? perguntou com o torn de quem no d nenhu
ma importncia ao que pergunta.
Ao longe, viam-se as primeiras luzes do Guadarrama. Luzes humildes, de casebres
humildes, na escurido da serra.
Muito! disse Enrique, intimamente satisfeito por poder romper a atmosfera de dr
ama que havia dentro do automvel. Amanh mesmo devo fazer uma palestra e, por
isso, tenho pressa de chegar. numa aldeia, a alguns quilmetros de Huesca. Os camp
oneses de ali esto ainda muito atrasados e fazem as culturas duma maneira primiti
va. Tu sabes como so os camponeses. Temos de explicar-lhes tudo. Amanh, por exempl
o, eu you falar sobre adubos. E claro acrescentou Enrique, com um novo sorriso
de satisfao que, a propsito de adubos, se podem dizer, de passagem, outras cois
as... Amanh, eu espero aludir s relaes entre o trabalho, o capital e a propriedade..
. Eu no me tenho metido nestas questes, mas, desta vez, you referir-me a elas...
"
002
A CUKVA DA ESTKADA
Enrique dissera aquilo com espontaneidade;yl
pensou que talvez estivesse sendo, nesse momento!
com o pai e calou-se de repente. Mas contig
ver-se, a ele prprio, a falar, no dia seguinte, ema
dos camponeses, como outrora, quando era adoles|j
vira muitas vezes a Soriano. ^
Os faris iam arrancando, agora, noite, vulto
rvores perplexas, estremunhadas, meio dissolvi"
como que desejosas de fugir; e tambm dispersosjj
bres fechados e apagados na treva e sempre am
estrada que dir-se-ia aberta pelos prprios farisy
para eles prprios pois era engolida pela escuridoul
que eles passavam. o|
O meu jardineiro no sabe nada do ofcjl
disse Soriano, com voz trmula. E eu tambm m
sei. Tem morrido muita coisa l no jardim. Mas, agig
eu you estudar isso. Hei-de mandar-te uma listaca
plantas que l tenho, para que tu me ensines a in
b-las e a trat-las convenientemente. OM
O automvel continuava a avanar. Via-se j, Jj
frente, o grupo de luzes de San Rafael. .f|J
XVI J
/\ s oito horas sadas do relgio da igreja, aqueH
oito gotas de som que iam rodando no espal
para longe, acabavam de passar ali. Soriano abotoo"*
casaco, encostou-se sacada e ficou, um momento,'d|
olhar o jardim. '-M
A manh tinha uma frescura primaveril. Um sai
virgem, de cara lavada, fazia luzir a humidade da noio
nas folhas das plantas e, sobre as flores que comefl
cavam a abrir-se e nas dbeis teias de aranha que flJH
estendiam entre roseiras, irisadas bolitas de orvalllOi
estremeciam ainda. 'm
Nos chals vizinhos havia uma paz dormente, verd*d
e branca, que s despertara no passo solitrio de algum i
A CURVA DA ESTRADA
603
ervial, aparecendo e desaparecendo entre o arvoredo. para cima, estendia-se o Gua
darrama e o sol que o cobria transportava velhas sugestes de neve, de reban[)0s e
de pastores.
Soriano recuou e veio sentar-se mesa. H j duas semanas que ele passava todas as ma
nhs e todas as tardes entregue quele trabalho que no havia previsto e h j muitos ano
s que no trabalhava com tanto interesse.
Soriano releu a ltima folha que tinha escrito na vspera e, depois, agarrando a pen
a, encadeou com facilidade:
"Nesse tempo no era necessrio passaporte para se entrar ou sair de Gibraltar. (E a
qui o lugar de prestarmos homenagem a certa boa-f que os ingleses tm sobre os seus
semelhantes, uma boa-f que feita, sobretudo, de confiana neles prprios.) Graas a is
so, enquanto me conduziam esquadra de polcia, algum correra a La Linea e soprara a
notcia da minha priso. Assim, quando chegmos fronteira, muito povo curioso e entus
iasta nos aguardava do outro lado.
Abaixo o imperialismo ingls! Viva lvaro Soriano ! gritaram todos aqueles homens e
mulheres, agitando os braos, logo que nos viram.
Os dois polcias britnicos que custodiavam a mim e a Enrique no perderam a sua calma
. Continuaram a avanar, indiferentes aos gritos, e s se detiveram na linha frontei
ria. O que ia ao meu lado notou, porm, que uma das suas botas havia entrado coisa
de um Palmo na terra que j no era de Sua Majestade Britnica ; surpreendido com a ne
gligncia, num pice tirou de l a perna invasora e s depois disso me soltou o brao e me
mandou atravessar a terra-de-ningum.
Eu ia orgulhoso da violncia que sofrera e as aclamaes com que me recebiam davam-me
ainda maior orgulho. Era uma tarde de sol tauromquico, dessas que os "aficionados
" amam para as corridas e eu sentia a mesma glria que pode ter um toureiro vitori
oso numa tarde como aquela.
604
A CURVA DA ESTRADA
- - *vxi J fi
Ao atingir, finalmente, o solo de Espanha, k
* entre a multido que me saudava, havia at >vq
crianas e mesmo alguns carabineiros. (Estes es|
muito quietos e calados e ora olhavam para itn
um olhar estranho, ora baixavam lentamente osf<
Eu tinha de dizer alguma coisa a toda aquela;*
que interrompera os seus trabalhos para vir pr|
contra a minha expulso de Gibraltar. Era meu^
faz-lo. E, mais do que um dever, era uma satis!
da minha parte, 'ia
As pessoas abriram roda e eu comecei a zua
Inglaterra, ressalvando, claro est, os socialistas injp
Aproveitei a mono e, sempre entre aplausos, sell
a mos fartas, a nossa propaganda. 'ii
Quando conclu, dois carabineiros aproximaitfi
de mim. Para eles, eu no regressava ptria, dM
duma inqua expulso; para eles eu tinha sido'fjj
do outro lado e por alguma coisa isso acontecera. n|
sabem a fascinao que exerce sobre aqueles quel
funes policiais um homem que foi preso algures nflSl
que ele seja um compatriota e estrangeiros ossw
captores. A um homem que carrega uma suspeitai
nacionalidade s lhe serve para castigo. -j
Assim, duas horas rnais tarde, eu entrava na caw
de Algeciras, depois de ter passado pela autorid"
dum sargento dos carabineiros e dum tenente da gual
-civil, que foi a primeira pessoa a quem ouvi faM
com um ar grave, retorcendo o bigode, em complM
coes internacionais. 'm
A mim parecia-me absurdo que a priso se mal
tivesse, mas os dias iam decorrendo e eu continuai!
ali. No sbado, atravs das grades, atirei mais dinhei
a Enrique e impus-lhe que regressasse a Madrid, paw
tranquilizar Isabel. Vi-o afastar-se, chorando, por entj
uns homens que arrastavam uma rede de pesca, Hl
qual ele, sempre a olhar para trs, envolveu os ps-fl
esteve prestes a cair. *j
Pelas gazetas governamentais e outras notcias qnw
chegavam da capital comecei a compreender. O govern^
decidia pelo crebro do tenente da guarda-civil. NWS
A CURVA DA ESTRADA
605
e acusavam de propaganda do meu credo, que era, u bem o sabia, o que lhes intere
ssava; acusavam-me de "injrias a uma nao amiga, que podiam ter desa"adveis consequnci
as nas boas relaes que existiam entre os dois pases. Ia-se formar um processo e efe
ctuava-se, entretanto, um rigoroso inqurito".
Havia em Espanha, nesse tempo, muitos velhos patriotas que no se tinham acostumad
o ainda perda de "El Penon" e, por tudo e por nada, elogiavam a Alemanha, uma sa
ntinha cientfica e filsofa, enquanto maldiziam a Inglaterra, antiga pirata; espere
i que, aproveitando o meu caso, eles protestassem mais uma vez. Isso, porm, no se
dera e eu continuava na cadeia.
Escrevi, ento, ao ministro da Justia e ao do Interior tambm, a solicitar-lhes a min
ha transferncia para uma priso de Madrid, que, l, sempre ficaria mais mo da famlia. P
osteriormente, soube que, na capital, alguns meus amigos haviam tido a mesma ini
ciativa; trabalho ao vento fora, pois nem eles nem eu recebemos jamais qualquer
satisfao.
Nessa poca, a massa partidria aumentava constantemente, mas ns, os seus condutores,
ramos muito poucos. Tnhamos de multiplicar os nossos esforos, de andar duma banda
para outra, de estar, ao mesmo tempo, onde quase no era humanamente possvel estar.
Eu sabia isso e enchia-me de raiva por me ver inibido de prosseguir no apostola
do. O governo sabia isso tambm e tinha agora uma desculpa para me manter a ferros
longe da capital, onde a minha presena, mesmo encarcerado, podia provocar excitao.
Passaram-se semanas e (salvo minha mulher e meu filho) dir-se-ia que o mundo int
eiro me havia esquecido. Os prprios camaradas de La Linea e de Algeciras que, nos
dois primeiros dias, se tinham ajuntado em frente da priso, aos berros, haviam s
ido espadeirados e deixado de aparecer. O nico consolo era o^ mar, lue eu via, at
ravs das grades, at a costa de frica, Para as bandas de Ceuta; um mar azul de manh,
Policromo tarde, que me fazia sonhar e desejar ainda ttiais a liberdade.
6o6
A CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
607
* Um dia, porm, algum chegou de Madrid. Em
homem humilde, com um brao a menos. >^H
A primeira vez que o vi passar em frente da .|Jj
com modos prudentes e mal ousando olhar pfjl
grades, senti-me comovido e o meu desejo foi ch"
gritar o seu nome, beber daquela ternura que -M
de longe. Uma sbita admisso fez, porm, det
no ltimo momento. Parecera-me que, em algjH
havia uma reserva, que ele conduzia um niiyB
No tardei a convencer-me de que tinha raznjl
ver passar tambm Pablo Montilla, que em Mn
me auxiliara, vrias vezes, em trabalhos dorfJI
Dias depois, por engenhosos meios, comecarajjl
chegar-me palavras ilegais, instrues, alentos e;ij|
alguma discreta ferramenta. Ns ramos trs na(]H
cela, estando os meus dois parceiros condenados
vinho e varapau numa festa. Eu no simpatizavalB
o mais velho, que me parecia de magra confiana /"
em to pequeno espao era impossvel deix-lo de bali
e muito menos ocultar-lhe aquilo; assim, pusera"!
os trs a trabalhar. No fcil dizer a ansiedade>ji|
ri em tais transes quem a eles no est habitua
a ideia de que podiam descobrir e fechar o remw
antes da nossa cura, pesava mais sobre mini do FM
toda a pedra do velho casaro. Um dia mandBB
para fora o sinal de que a abertura estava pre"
Mas parece que l fora tambm havia dificuldadjB
porque nos mandaram esperar mais alguns dias. BE
fim, ante o meu insistente receio de que a parede cfflB
fessasse o seu segredo, recebi autorizao. "AmanMl
trs horas. Ainda algum perigo. Resolva. Acordo: bJl
cos cruzados, meio-dia, nas grades". All
Pensei nos meus filhos e na minha mulher; nM
quero gabar-me, mas a verdade que no pensei ew|
mim. Ns ramos poucos na expanso da nossa causB
e devamos espalh-la como se fssemos milhes. Bfljj
antegozava o prazer que teria se escapasse e pudess^f
continuar a batalha. f j
Ao meio-dia, cruzei os braos junto das gradesr|
Fm frente da priso no havia ningum, mas eu no tinha dvida de que algum me via.
A pobre cadeia comarca, nos antigos paos do (layuntamiento", tinha apenas o carce
reiro, um velhote que dormia com as grossas chaves e um revlver debaixo do colcho.
(O posto da guarda-civil ficava a menos de trezentos metros.)
A noite no estava muito clara, nem muito escura, quando enfimos pelo buraco, escor
regmos pela parede e nos encontrmos ao ar livre. Conforme o combinado; cada qual t
omaria rumo diferente.
Segui, de olhos e ouvidos alerta, todas as indicaes recebidas e, em breve, dei com
o vulto que me esperava. ( difcil no dizer ao menos "Buenas" a quem nos aguarda, n
os d a sua solidariedade e talvez a sua vida, juntando o seu destino ao nosso, no
perigo comum. Mas eu no disse.)
No me detive sequer. Apenas uma hesitao e o outro colocou-se ao meu lado. No tnhamos,
porm, alcanado ainda os arredores de Algeciras quando sentimos o alarme. (As pata
s dos cavalos pareciam romper as pedras, ao longe.) Aquilo disparava um eco sini
stro e prolongado no silncio da madrugada. Depois, ouvi uns tiros. Mas eram para
uma banda diferente daquela para onde ns corramos e eu mal tinha flego para lastim
ar os outros dois evadidos. Ns corramos, corramos sempre atravs da noite. Por fim, j
afastados do ponto de partida, o camarada de Algeciras deteve-se e sussurrou-me
que o carro estava perto. O mar tambm no devia estar muito longe, pois eu sentia a
sua aragem uma carcia; e ouvia o seu arfar, uma promessa que no se realizaria. E
u desejava comemorar o xito fumando um cigarro, mas continha-me, por temer denunc
iar-nos. A sombra que se erguia ao meu lado murmurou ainda que Cabanillas e Mont
illa me esperavam na casa onde eu ficaria escondido algum tempo. E, depois de di
zer isso, recomeou a marcha, sempre comigo sua direita, amos, agora, mais sossegad
os.
O carro estava, efectivamente, perto. O camarada
6o8
A CURVA DA ESTRADA
eft Algeciras apertou-me a mo, em despedi<M^B
sozinho, alguns passos para aquele grande voMJ^B
formas mal definidas e subi. O carro partj^^H
ligeireza de morcego e eu acendi, finalmente, "Sj^B
delicioso cigarro. Sabia-me bem viver. Ao longe oU^H
tavam os primeiros livores matinais e o ar quf^l
locvamos estava impregnado de liberdade, d$j^l
mismo, duma fora telrica saudvel. |^l
De repente, porm, notei que o meu compaio^B
puxava vagarosamente as rdeas. Tnhamos acaba^H
sair duma curva e, estendendo os olhos, divisei>jJ^B
duzentos metros de ns dois cavaleiros parados ehfH
doutro lado da estrada. Vi, depois, sempre em siMif^B
contra o fundo violceo do cu, que os cavalos cljfl
cavam a mover-se lentamente e se atravessavapi^B
estrada, cabea junto de cabea, a cortar-nos o camaH
Parecia, assim no bero da alvorada, um amai$hj|H
de bronze, como se os cavalos estivessem sobrflM
arco triunfal. O meu companheiro diminura aindaaHJM
o andamento e eu, reconhecendo a qualidade doscajjM
leiros pelo recorte do seu chapu, tive uma deei^B
brusca, mal pensada, de que muito me havia de a|M
pender e lancei-me a terra. Ouvi logo as patasJB
cavalos dos outros e trs ou quatro tiros, mas eu'cljj
fiava num grupo de arbustos e de penedos que se esMH
lhavam entre a estrada e a linha sombria dum mat^B
mais profundo, que existia ou parecia existir ao lo^jM
Continuei a correr. Um berro. (Dir-se-ia que grjjM
vam dentro do meu prprio crebro, que os cava5H
tropeavam dentro da minha prpria cabea.) Os ouvidi^B
desnortearam-se. Os olhos tambm. Para a esquerdB
Para a direita ? Novos tiros. Senti-me traspassado 13^^
sabia onde. Julguei-me morto. A primeira reacjj
assim, abrigarmos da pontaria o que reste vivo ^fw
ns. Comea uma luta vertiginosa, doida, entre a ideiral
de nos deixarmos cair e a ideia de fugir a toda a fr^S
Isso dura o segundo dum segundo e parece que se d*f|
tambm por exploses. Obedeci primeira reaco*'"
Estendido sobre a terra, senti que a mo esquerda 9*.';
tornara quente e hmida. Levei-lhe a mo direita coi i
A CURVA DA ESTRADA
609
a pergunta e percebi imediatamente. Levantei-me, u ra despedir de novo. Era tard
e. O cavalo, o homem a sua carabina estavam junto de mim.
Que procuras por aqui, assim perdido ? perguntou o homem, com um sarcasmo conte
nte. (compreendi que a minha satisfao de h pouco se havia transferido para ele.)
A liberdade a que tenho direito respondi com
arrogncia.
O meu brao pingava.
"Bueno! Bueno!" voltou o guarda-civil com uma mansido afectada. Varnos l...
Mal eu imaginava, ento, que, um dia, o meu filho Enrique havia de considerar isto
belo. Mal eu imaginava, ento, que um dia chegaria em que eu prprio consideraria b
elo este perodo da minha vida e teria saudades dele.
Mas voltemos ao passo em vo. Quer o camarada que conduzia o carro, quer eu, fomos
conduzidos de novo para Algeciras. Do que ali ouvi, pude depreender que, aps a n
ossa fuga, haviam telefonado para os postos da guarda-civil de todas as povoaes vi
zinhas e ordenado que as estradas fossem vigiadas. Embora faltasse capturar aind
a um dos evadidos, o tenente de Algeciras parecia satisfeito com as providncias q
ue tomara e ele prprio assistiu colocao dum penso no meu brao. Depois disso, senti q
ue havia no ar Alguma hesitao, dado que, em vez de me levarem Para a cadeia, conse
rvaram-me no posto da guarda-civil. Deviam ser onze horas da manh quando ouvi a c
ampainha do telefone e percebi que era o tenente quem atendia. Dez minutos depoi
s, metiam-me num carro e transportavam-me para a cadeira de Jerez de Ia Frontera
, por ser mais slida do que a de Algeciras. Ali fiquei sozinho, numa cela, e no ti
nha sequer aquela suave marinha que era azul de manh e policroma tarde, desde a b
aa de Gibraltar at as costas difusas de Ceuta... Foi ali que, mais tarde, decidi f
azer a greve da fome, que mantive durante dezassete dias e da qual tanto se falo
u em Espanha..."
20 Vol. Ill
6io
A CURVA DA ESTRADA
"1
i|
V::
:X
i
* Soriano interrompeu-se ao ouvir os passosMJ mona na escada. Desde que ele esta
va em San'w era-lhe grata a hora do correio, mas pouca gel escrevia e a poucos e
le ousava escrever. RamonS s uma carta. M
Soriano reconheceu a letra de Pepe MartineztS rapidamente o sobrescrito. 91
Ramona! chamou, quando a criada jj descer as escadas. No faas mais compras ffj a
lmoo de amanh, pois Don Pepe no vir. B| um ataque de reumatismo. H
Ficmos desolados com a notcia de que no ptiU
vir amanh: eu, porque estou ansioso de falar otfU
de desabafar e de pr em movimento certas ideimjji
emperraram em estaes intermedirias do seu camU
a Ramona, porque j havia encomendado uma pefiU
carneiro para assar, com muitas azeitonas e rad&
limo, em tua homenagem. m
Junta a tudo isto a nossa amizade e avaliars tji
que votamos a esse inimigo acessrio que te rem
Madrid. No culpes, contudo, demasiadamente H
idade, pois se certo que o reumatismo se dediaijE
preferncia, s pessoas de juzo j crescido, com
lquenes preferem os troncos que j tiveram iemfiM
meditar sobre a sua posio entre os outros que os c<?MM
a verdade que se encontram, por vezes, lquenes ^flj
r ados a troncos muito novos. (Ainda anteontem me 'M
brei de que eu contava apenas vinte e oito anos ^*AJ
tive de fugir, com terrveis dores reumticas, duma 'm
de Tarragona onde me havia escondido e a polcidf^
ia cercar.) Portanto, o que me dizes muito relativm
e ser melhor uma oportuna dose de salicilato do f|
descorooares da velhice. 4
./Vo que se refere a mim, quase me envergonho^
dizer, em frente da tua carta justamente dolorida, que l
sinto bem de sade. Desde que estou aqui, alterei alg&,
velhos hbitos e j ao uma vida bastante regrada. Deito-%
A CURVA DA ESTRADA
6ll
. onze da noite e, em vez de tomar o pequeno-almoo . novg e ler os jornais deitad
o, como fazia em Madrid, Mio da cama s sete da manh. s oito comeo a trabalhar. (Ests-
me a ver, sem dvida, de enxada na mo, revolvendo terras e cuidando do futuro das p
lantas; mas enganas-te! Desde que cheguei tenho-me limitado a olhar de alto para
o jardim, com o mesmo olho distante e neutro fos astros indiferentes.) Depois d
o almoo, chega um vizinho, bom homem, velho republicano reformado, que mia imenso
de jogar as cartas. Fico sempre desejoso de que ele parta, para eu recomear o tr
abalho, pois, nestes Mas, o trabalho que estou a fazer d-me menos sensao ie soledad
e e mais entusiasmo do que as pessoas. Oculto, porm, circunspectamente, a minha i
mpacincia, ao pensar que, um dia, talvez a companhia do velhote possa ser-me til;
a sua companhia, o jardim, a horta e mesmo alguns convites de outros vizinhos, q
ue tenho at hoje recusado. (Eu adivinho que estes esto ansiosos de coscumlhar nos
meus desvos ntimos, depois do que leram, sobre mim, nos jornais.) s seis da tarde,
o velho republicano abala, tambm com um pouco de tolhimento nos msculos; eu dirijo
-me imediatamente para o primeiro piso do chal, sento-me mesa de trabalho at a hor
a ao jantar.
Quanto ao meu estado de esprito, sinto, naturalmente, maior dificuldade em respon
der-te. Tu pertences ao nmero dos homens mais desinteressados que conheo mas sabes
perfeitamente o que uma ambio. Tu sabes que uma ambio germina, cresce e floresce se
gundo as possibiliwdes com que se alimenta, pois no se ambiciona o impossvel seno d
e maneira abstracta. (As ambies so Acomodas justamente porque carecem de possibilid
ades sempre renovadas. Pode haver um grande amor sem esperana, mas sem esperanas n
enhuma ambio resiste.)
Na noite em que cheguei aqui, j eu me tinha convncido de que a minha ambio, humana e
mbora, possivel embora, com muitos precedentes embora, nem por l$so era inteiram
ente legtima. Fiz, portanto, um esforo violento e deitei-lhe uma laje em cima. Tir
ei-lhe amanh, hrei-lhe futuro, tirei-lhe todas as hipteses. Para sempre?
k.
6l2
CURVA DA ESTRADA
A CURVA DA ESTRADA
6l3
* Eis o que no posso afirmar, nem mesmo a mim a
At h pouco, parecia-me que eu no podia viver^E
E, contudo, parece-me que posso. Tambm aqum
perdem uma pessoa amada lhes parece que no fm
viver sem a sua companhia e podem. A vida atem
em sucessivas /agueiras, sem exigir necessariamenjk
o calor seja sempre da mesma qualidade. Por outy
iodos ns levamos connosco esquecidos resduos d$m
coes que no puderam consumar-se; se as recatam
at nos surpreende que tenhamos tido algumas deljm
uma deciso oportuna pode estrangular uma arm
infeliz e trazer a paz; ns habituamo-nos a viver som
e mesmo como se ela no tivesse existido. Ceriamet&
fica sempre, ou quase sempre, durante algum tempIJ
vcuo que deseja ser preenchido. Conseguirei eu jM
ch-lo? verdade que me resta a vida de advogadffm^
Por agora, estou a escrever as minhas memriaim
ciai isso pouco depois de ter chegado a San Rafai$Sm
sentia uma enorme nsia de confessar-me, de revM
zar-me, de recuperar certa ideia que fazia de mim pn
e que todos ns, os amigos, os inimigos e eu mm
havamos metido sob cinzas e substitudo por outra, fm
dentemente que a ltima era-me desfavorvel e, por m
eu reagi assim.) *>
Desde esse dia entrego-me, com alvoroo, a este *ffl|
gr e que viver a vida duas vezes. S agora sei que rec&nk
arbitrariamente alguns trechos da nossa existncia^
sabor de sugestes ocasionais, no a mesma coistPM
descrever a nossa vida episdio a episdio, com m
ordem e sequncia de quem desmancha, pea por ^fl
uma casa arruinada e volta a reconstitu-la, pedra J
pedra. Mais do que melancolia, das recordaes transplR
ento, todo um fervor pelo trabalho, dado que as vm
runas fornecem material de construo to eficaz cCm^
se fosse novo e, s vezes, mais eficaz ainda. jj
Assim, medida que avano no meu passado, sPm
que vo subindo da terra para a rvore vetusta as foffl
que o Outono havia feito cair. Esta inverso das jl
naturais prodiiz como que uma reintegrao, um r&i
contro, o levante da alma que havia adormecido entre"
combros. J no sou o mesmo e estou velho, bem o sei;
as tudo isto permite-me julgar melhor (como se estivesse de cima, como uma ave s
obre um fio comunicante) razes gerais e individuais do meu procedimento de outror
a. Sou, nestes dias, espectador de mim prprio; veio-me a trilhar, desde a adolescn
cia, o meu caminho
J J J 7rt 77 '*** A Hnrrtnlnnlr. V
longo e acidentado. E, assim, pergunto, muitas vezes, n mim mesmo, se, no caso d
e que fossem reprovveis as lutas que mantive quando era novo e injusta a causa hu
mana pela qual me bati, eu sentiria este consolo, esta quase orgulhosa satisfao qu
e sinto ao descrev-las muitos anos depois. Eis um dos problemas que eu desejava d
ebater contigo. Parece-me que, se j no existisse identidade alguma entre o que fui
no passado e o que sinto agora ao reviver esse tempo nas minhas memrias, estas,
em vez de me dar prazer, vexar-me-iam e eu no as escreveria. (Admiro muito o ges
to de Rousseau, fazendo da pena uma espingarda contra ele prprio; mas Rousseau, a
o diminuir-se como homem, pretendia engrandecer-se como escritor; e, dada a dife
rena dos nossos destinos, eu no seria capaz de o imitar disparando contra mim mesm
o.)
Agora, que a minha crise se foi, eu posso examinar tudo mais serenamente. E esto
u-vos muito grato, a ti e no Enrique, por vocs jamais terem pronunciado, no ardor
das nossas discusses, uma palavra que eu julguei, vrias vezes, ir romper da vossa
boca e que me deixaria Hm inevitvel ressentimento. (Refiro-me palavra "traio".) Es
tou-vos muito grato por nunca a terem dito, tanto mais que eu andei muito prximo
de vos dar razo para me a dizerem.
Novamente os passos de Ramona soaram na escada, interrompendo Soriano e aquele s
ilncio de sol que havia na sala, no jardim e em volta de toda a casa.
O almoo est pronto disse a velha criada.
614
-i
i
CURVA DA ESTRADA
Pepe Martinez encontrava-se na cama, recos"
duas almofadas. Quando fazia algum movimemj
msculos doam-lhe, mas ele j tinha experincia"
e movia-se o menos possvel. Quieto, conseguia 3B
cer-se do mal e, nessa manh, sentia-se mesm<U
tente. Ao seu lado, numa cadeira, a neta escreviaJS
ele ditava: JB
No sei ainda quando poderei ir ver-te, pois o ?r#0
tismo continua. Deu-me, porm, uma grande satijf
saber que voltaste a encontrar o equilbrio moral. UM
quer coisa sempre me disse que no levarias at fl&jl
a atitude que, em certo momento, tomaste, pois parec^
quase inverosmil no veres que o essencial o^MB
cada vez mais o horizonte humano e no fech-loifjljL
os que conhecemos o drama da nossa espcie, devijm
amar os homens pelas suas prprias dores e esJorjlM
-nos para a criao dum mundo onde, suprimidawm
injustias que os separam, todos os homens se pQSmjk
amar uns aos outros. Para isso preciso ir cadQtJJL
mais longe... oija
A sombra fugidia dumas asas passou sobre a canfl Martinez interrompeu-se e olhou
para fora. Outras tpfl passavam. Os parciais tinham-se posto a chilrear soiM o b
eiral e desciam, de quando em quando, at a jangw "El pan para los gorriones" dis
se Martinez, <3f)ffl| pena de ele prprio no poder ir fazer aquilo, C^|B era seu hbi
to. f|l
A neta levantou-se, foi casa de jantar e volvetim Abriu a janela e esmigalhou so
bre o peitoril o pedafSp de po que trouxera. As grandes rvores da Cafljf*
Almagro chegavam quase at ali e nos seus ramo() comeavam a brotar tmidas folhi
tas de Primavera-". No quarto entrava um olor de Abril, com todas aS-, suas pro
messas. Os pardais desceram rapidamente e? pousaram na janela. Pepe Martinez c
ontemplou-os uiD;4
A CURVA DA ESTRADA
615
ornento, com uma ternura agradecida pela felicidade 'nue eles lhe davam, vindo a
li todos os dias. Depois \oltou-se para a neta e continuou o seu ditado:
Ns devemos amar os homens, porque...
J escrevi isso preveniu a neta.
No faz mal. Repete:
Ns devemos amar os homens.
OPINIES CRTICAS
UM LIVRO DE GRANDE CLASSE-
por Henri Poulaille (*)
O ultimo livro publicado de Ferreira de Castro, A Curva da Estrada, um romance d
e psicologia social. Sob o caso de carcter que estuda o drama de conscincia de um
militante poltico nas vsperas de trair o seu passado a psicologia do renegado qu
e o escritor concretiza. O livro situa-se em Espanha, mas isso no passa duma ques
to
* enquadramento para comodidade de exposio e um problema wtual e universal. Vinte
nomes vm ideia de todos ns logo que v lvaro se nos mostra conversando intimamente c
onsigo prprio. e-in entendido, nem em todos a sinceridade to perfeita como no ""Wi
do livro de Ferreira. Mas as formulas no seriam, sem dvida, *" ia! modo diferentes
se nos explicassem as razes da sua converso wpois de ter virado a casaca.
D lvaro Soriano, grande advogado madrileno, um dos chefes do "artio Socialista, en
velheceu na luta poltica e viu evolucionar as !"Was e os factos de um modo divers
o daquele que tinha previsto. .sua ltta adivinha-se a insatisfao. Uns esto inquietos,
outros tentam war -proveito da incerteza em que se sentem. A crise encontra-se
em glorio latente e bastar uma noticia a anunciar o desejo de Soriano f itxuidona
r o seu partido, para que ela rebente. Esta informao 'inWila em balo-de-ensaio leva
Soriano a mudar de rota. A realidade e lridesmentwel, Soriano j no o chefe ouvido
. Tinha sido levado <L aflinitir junto de si homens de valor e alguns haviam tom
ado iniciailas que os faziam dar nas vistas. Um at, Zornoza, suplantara-o "lo chefe
da ala esquerda do movimento e o lugar que Soriano julgava
Romancista e crtico francs.
6i8
A CURVA DA ESTRADA
ser-lhe devido fora ocupado pelo rival. A questo em breve J^H do domnio da aco socia
l e das ideias, e torna-se ento estrj^f pessoal. Deve ficar ou partir? Porque se
deixara ultrapassar, 4^1 de criticas e acusado de indolncia. J no o seguem. Por sej
j^ reprova certos mtodos e v neles uma violao da doutrina.]^M encontra, porm, fatigado
e no quer abandonar a aco. ^H
Os adversrios deram-lhe, por vezes, razo contra os setu.j^f migo de ontem estender
-lhe-ia a mo e ele poderia refazer uma W^m brilhante se se lhe juntasse. O recort
e da imprensa desencadeou 4^1 e Ferreira faz-nos viv-lo em fases rpidas maneira du
rmjf quase de estrutura clssica. Logo que a noticia conhecida,af pas fica alerta;
Soriano colocado entre a espada e a pareci desmentir-se? Ou, admitindo a indiscr
eta insinuao, aderir ao JH Nacional? Junto dele, a irm e um filho fazem o jogo dos
wacioiM desejam que abandone as ideias revolucionrias que os dois a&OflH O sociali
smo, porm, todo o passado de D. lvaro; surgem ajjf daes da sua vida militante, que no
pode afastar como dfll Sero, contudo, estas imagens bastante fortes para contraba
Uif atraco que exerce sobre o homem desiludido a tentao de |B uma situao de primeiro p
lano? Soriano tem, todavia, o recU no ser aceite seno como estranho, como intruso,
no Partido se juntaria. "
Que fazer? O tempo passa e Soriano, no se decidindo a desjM a informao, acha-se obj
ecto de presses de todos os lados. .NQflH socialista, comea a mostrar-se um certo
enei-vamento. Chegam o&U ao futuro desertor. O filho e a irm tentaro apressar a su
a uB Um velho militante, Pepe Martinez, vem para o dissuadir de "B o que qualific
a como um erro. E o seu outro filho, que soube da mt na extremidade oposta do pa
is, no v as coisas com benigiiit ", reprova ele ao pai, uma traio". Soriano ouve, dis
cute, WB se rende s razes dos seus antagonistas. , ;|B
Entretanto, chegam mensagens do chefe do Partido Nacwnejj Soriano mantm a serenida
de e no se decide adeso. As distM tornam-se veementes entre o filho, o pai e o ami
go. Estas 'pgiim duma densidade to poderosa, conduzida num tal movimenta, m leitor
parece participar, com os trs actores, na prpria pulsam drama. E Ferreira mantm-no a
ngustiado at ao fim, onde, apljJL escndalo em que est envolvido o filho que Soriano
renega, o M socialista, que no se resolve a optar pelo Partido Nacional, "1 marge
m, renunciando a um tempo advocacia e ao seu lugM deputado. Livro de combate, li
vro de grande classe. ,J
A MISSO
(NOVELA)
(In Ls Nouvelles Littraires, Pa
A MISSO

f j edifcio, velho e longo, muito longo e de um s piso, parecia querer mostrar que
a sua misso, justamente por ser celeste, devia agarrar-se terra, estender-se bem
na terra, para extrair a alma dos homens que nela viviam. No telhado antigo, co
m o p dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar,
os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas
que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lrios, roseiras t
repadoras e tenros ps de salsa que o irmo hortelo no se dispensava de cultivar. Ao f
undo, com uma rvore em frente, to ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a cape
la, que, ligada embora ao edifcio, avanava sobre o jardim, dando ao todo a forma d
um grande L.
Ao entrar na cerca, Georges Mounier viu uma escada posta ao beiral. Junto dela,
o "Bagatelle", homem de sete ofcios, pedreiro, pintor, at carpinteiro se fosse pre
ciso, uma vez por outra trabalhando na Misso, 'a remexendo com o pincel a tinta b
ranca coalhada no fundo duma lata.
Mounier parou:
bom dia! Ento qual hoje o trabalho?
Ele vinha a rememorar a influncia malfica que uns quadris femininos podem ter, pel
o facto de pare-
022
A MISSO
"1
I
cer"m maiores do que efectivamente so quanf corpo est sentado, e perguntara aquilo
distraidamj muito mais por hbito de cortesia do que por l de curiosidade. ,|
O "Bagatelle" deixou a lata, pousou uma das i sujas sobre a escada e olhou para
o beiral: l
you pintar a palavra "Misso" no telhadoj causa dos bombardeamentos... l
Muito bem. preciso apoiou Mounier, sea com um torn descuidado e j a afastar-se.
J
A mulher volvera sua lembrana. Continuai
v-la sentada ao sol, os ps sem tocar o cho, as pl
a badalar, a irem e virem sob o banco, como se i
vessem num trapzio. Dir-se-ia que as suas pel
tinham, nessa hora, uma felicidade independent*
tronco, todo um desejo de folgar que comeava!
joelhos para baixo. Ele levantara os olhos devai
num esforo, e fora ento que as ancas da m
assim sentada, lhe pareceram mais amplas do'i
quando ela estava em p. Os seus olhos rugiram il
diatamente do diabo que se escondia ali, sob as sai
redondo que nem uma abbora; mas logo se eniw
ram no sorriso que a mulher luzia um sorriso brsfflj
e hmido. Havia um sabor no ar. Um mpeto sel
a garganta. Ele tentara pensar na razo das suas J$
tas, pensar no homem que estava doente para ali
da porta que se abria ao lado do banco e que UM
trepadeira popular engrinaldava. No conseguira, porta
reprimir a ideia solta e tivera medo de si prpw
medo dessa flor proibida e fanada que as suas vindj
ali iam fazendo reverdecer, medo do sol tmido q$
sobe pelos muros invernais, musgosos e tristes. ConM
cendo os hbitos da famlia, decidira s voltar quanq
estivesse certo de que a tentao, sentada ou de p^
no se encontrava em casa. E agora, ao record-W
crescia-lhe uma saudade da luz que existia nessa manw
uma luz quente a que ele soprara tantas vezes, extin
guindo-a, mas que volvia a acender-se quando menos t
esperava, com a vitalidade e a teimosia dos incendiai
no Vero.
A MISSO
623
Mounier deteve-se, como se uma fractura nos seus estratos cristalizados o alerta
sse de repente. Hesitou um momento, pensativo, deu mais alguns passos e tornou a
parar, ainda indeciso. Pouco depois, as sucessivas portas do corredor viram-no
voltar atrs e sair.
J o pintor, levando a lata de tinta, ia perto do beiral quando ele lhe perguntou,
c de baixo:
Quem o mandou fazer isso ?
Estranhou o "Bagatelle" a pergunta, mais pelo torn do que pelas palavras em si p
rprias. L de cima, ele no divisava a cara de Mounier, que vergara a cabea; a voz, le
vemente trmula, subira e apresentara-se isolada de todo o gesto ou expresso que aj
udasse a explicar o seu cerne nervoso. "Bagatelle" via apenas aquela roda branca
da calvcie que prolongara a tonsura e contrastava com o negrume do longo hbito; M
ounier parecia orar sobre uma tumba.
Foi o senhor Padre Superior respondeu, com um modo que significava: "Pois quem
havia de ser?"
O missionrio manteve-se de cabea baixa. De sobre a escada, o pintor continuava a v
er apenas a brancura da sua calva e, ao fim das mangas negras, as mos que se fech
avam e abriam constantemente. O "Bagatelle" havia compreendido que aquela pergun
ta se alargava para fora da curiosidade corrente, pois alguma coisa a mais viera
embrulhada com as palavras; e, pousando a lata sobre o telhado, aguardou, respe
itoso.
Mounier ergueu, finalmente, a cabea:
No faa isso, por enquanto. you falar com o nosso Superior e, mais tarde, lhe direm
os se deve ou no pintar as letras.
Mounier perdera as suas hesitaes. L de cima, o "Bagatelle" viu-o desaparecer, a pas
sos largos, na porta da Misso, deixando c fora todo um silncio suspenso e perturbad
o.
sua mesa negra, de torcidos e tremidos, o Superior examinava, com o ecnomo, as de
spesas do ms,
624
A MISSO
Aquando ele entrou. Depois de o saudar, MounielM e encostara-se ombreira, numa at
itude coBwH
Quer falar comigo ? lj^M
Sim, queria...A sua voz parecia esfB por um precipcio, ao mesmo tempo urgente e^
fM
Um momento disse o Superior, sentindc^B tudo, a urgncia que o torn projectava al
i. irB
O ecnomo continuou a mostrar-lhe os algaH
Mas alguns desfaziam-se, furtavam-se ao examSH
que aquela presena, calada e soturna, pusera,". IB
seu retrado silncio e modos que no lhe erartnH
tuais, um mistrio e uma gravidade junto da^jM
"Uma intriga presumiu, vagamente, o SuperaH
Uma intriga ou uma disputa. J no a. pnme^B
que isso acontece, sobretudo com o Brissac e ^1
chaux". Ao lembrar-se do temperamento de MoflH
to oposto ao dos outros, o Superior deixou PJH
a sua hiptese. "No deve ser isso concluiu. AjB
nunca se queixava de ningum, era um passa-nH
e estava sempre pronto a desculpar tudo e todJpB
O ecnomo levantou-se, por fim, levando ojH
Ento o que h ? Tirando os culos, o NH rior voltava-se, arredando um pouco a cadeira
on$M ecnomo estivera. 4B
Georges Mounier sentou-se: -^H
Vossa Reverncia mandou pintar a palavra #J|H so" no telhado, no verdade ? '^jH
Sim...respondeu hesitantemente o SupefraH pondo a vaguear a sua expectativa se
m compreenijjM Sim... Mandei... Porqu? ,fl|
Mounier baixou os olhos: ' J
Desculpe-me, mas eu disse ao "Bagatelle" cffip no fizesse aquilo sem receber no
va ordem... ^K
Mounier sentiu que havia comeado mal. Em wm de esvaziar pouco a pouco o saco, vol
tara-o de boc para baixo, mostrando logo o que trazia, no fundo. Parecia-lhe que
a sua timidez de agora se ligava, atra-,, vs do tempo, timidez sofrida ante as p
ernas quL se balouavam, como um pndulo a marcar horas ct*
A MISSO
625
'hilo numa longnqua manh de sol. Ergueu a vista encontrou os olhos surpreend
idos e inquietos do
Superior.
_- Ora essa! Porque ?
Mounier tossiu. Queria falar com firmeza, queria aue aquela inexplicvel dificulda
de lhe desaparecesse da garganta. Ao avanar para ali, convencera-se de que expori
a a sua opinio com voz clara, mesmo vibrante, como quando se discorda duma injust
ia; agora, porm, no encontrava o torn desejado, nem a porta que desse directamente
sobre o caso. Ele estava certo de que essa porta se abria algures e que somente
o seu imprevisto desgoverno o impedia de a descobrir.
H apenas um motivo disse que pode levar os alemes a gastarem as suas bombas com
uma aldeia to humilde como esta em que vivemos: a fbrica que existe aqui. Como Vos
sa Reverncia veio h pouco para c, talvez no a tenha visto ainda e no saiba, portanto,
que o edifcio por ela ocupado igual ao da Misso. Os dois foram construdos na mesma
poca: um para convento de frades, outro para freiras. E se este ltimo nunca chego
u a ter religiosas e foi, mais tarde, adaptado para a fbrica, no perdeu, contudo,
as suas antigas caractersticas. At a capela existe ainda...
Mounier encarou o Superior. Gordo, espadado, de mos estendidas sobre as pernas, co
mo nas velhas esttuas dos faras sentados, o seu corpo transbordava da Poltrona. Ju
lgar-se-ia que somente os olhos estavam vivos, cheios dum brilho novo, estremece
nte. Mounier esperava ouvi-lo declarar que nunca vira o outro edifcio, mas ele fi
cou calado, a grande cabea recostada a espaldar, o largo rosto imvel.
Portanto, se mandarmos pintar sobre o nosso telhado a palavra "Misso", tiramos t
oda e qualquer dvida a quem venha eventualmente bombardear a fbrica. A denncia s
er, nesse caso, feita por ns Prprios. As mesmas letras que nos protegerem, podem
representar uma sentena de morte para os homens que ali trabalham...
M
026
A MISSO
A MISSO
627
* As plpebras do Superior baixaram lentamejjM estiveram um momento cerradas. Quand
o volta^H abrir-se, Mounier notou que os olhos se havianwM
Aqui, incluindo o irmo cozinheiro e o joB hortelo, ns somos actualmente apenas trez
e hoial ao passo que, na fbrica, trabalham cerca de qual
O Superior moveu, enfim, o corpo, inclnarJM
novamente para o lado de Mounier. Ele acabay3B
pensar que, de todas as palavras ouvidas, aquelas ifB
as mais graves e que sobre elas tinha, inevitaM
mente, de pronunciar-se. A sua mo direita seraB
gueu-se, como para fazer um gesto, mas tornoB
descair sobre as pernas, vagarosa e arrependida. SeM
dos antes, ele vira tudo muito claro: a Misso isjfll
a fbrica atacada, talvez muitos homens mortos QfJB
as runas; segundos antes, os dois quadros haviaiqj
iluminado por inteiro e parecera-lhe que tudo aq|fl
merecia longa ponderao; de repente, porm, SfjfflB
ra-se desnorteado. A luz toldara-se e no bosque oi"l
ele se extraviava no havia apenas uma sombra, BB
diversas sombras, no havia uma s vereda, mas muMl
veredas cruzadas. Tentou explorar a primeira e hesit<w
hesitou de novo na segunda e cada vez sentia majffl
confuso no seu esprito. Tinha de olhar, ao meSiiB
tempo, para diferentes lados e nisso estava o graqsB
embarao. Um momento, como se abraasse o trofliB
mais robusto, apegou-se ideia de que, verdadeifiW
na sua realidade fsica, as palavras de Mounier d^S
xavam de o ser quando transpostas para a realidaiJjB
espiritual. ifli
Confesso que no havia pensado nisso prof$ji
riu, finalmente. De facto, ainda no tive ocasio dei
ver a fbrica. Mas compreendo muito bem os selS-j
escrpulos. Conheo, alis, os bons sentimentos qP \
tem demonstrado em vrias circunstncias, pelo qUft
s merece louvores. Neste caso, porm, creio que n^
h motivo para que torture a conscincia, pois partQ
dum receio que me parece completamente hipottico"
gm todas as manifestaes da vida se encontra, claro, a possibilidade de um perigo
e s Deus sabe porque criou a vida como ela .
O silncio de Mounier f-lo vacilar de novo, insatisfeito com o valor do que dissera
. O seu temperamento inclinava-se sempre para a conciliao, produtora do sossego da
alma e do repouso do corpo que ele tanto amava ter; mas, desta vez, parecia-lhe
que um forte embargo o impedia de reconciliar-se inteiramente consigo prprio.
No procedo por uma ideia minha acrescentou. Ao mandar pintar as letras, obedeo a
um uso internacional, como sabe. Isso indica que esta casa neutra e deve ser
respeitada por todos os combatentes.
A voz desceu, num desnimo:
Infelizmente, nem sempre nos do a considerao que nos devida. A poca em que vivemos e
st cheia de lutas e de injustias e perdeu o respeito que tinha outrora pela nossa
comunidade, quando dispnhamos de fora at nas grandes cortes da Europa. Actualmente,
a nossa aco torna-se cada dia mais difcil e mais incompreendida. Mas, por isso me
smo, penso que no devemos imiscuir-nos nas desavenas dos homens, que so efmeras com
o tudo quanto humano. O nosso papel deve limitar-se a procurar cham-los para a bo
a causa...
O Superior calou-se. Pareceu a Mounier que ele desejava conceder-lhe tempo sufic
iente para reflectir. Mas logo, suspirando, ajuntou ainda:
Temos, tambm, de pensar que os homens no valem apenas pelo seu nmero e sim pela sua
qualidade... Jesus, sozinho, fez mais do que os milhes e milhes de seres que, ant
es e depois dele, passaram sobre este triste vale de lgrimas. A nossa Misso no vale
, portanto, somente pelos homens que alberga. Aqui, ns somos poucos, certo, e na
fbrica os operrios so muitos; mas a Misso um centro de luz, um lar de onde irradia a
doutrina divina...
Georges Mounier, de olhos no cho, parecia no
L
628
A MISSO

j> ouvir. Subitamente, porm, como se se despdj


dele prprio, interrompeu: j
Mandando pintar essas letras no telhado^J
tramos duvidar do nosso estado de graa perante B
Mostramos no confiar nele e preferirmos antepd!
uma soluo humana j consumada. Tiramos-JI
direito de escolha e escolhemos a ns prprios a
sendo os melhores. Ora, eu no estou convencia"
que, pelo facto de ser um profissional da F, seja*
tivamente melhor do que todos esses quatrocal
homens que trabalham na fbrica e cujas quali
desconhecemos. J
A timidez de Mounier havia desaparecido. AiJ
lher sentada luz do sol dilura-se com a tenta
que provocara. Um novo silncio isolou os dois hon"
O Superior compreendeu que aquelas palavras m
mais terrveis ainda do que as anteriores e, se fosl
conhecidas fora de ali, podiam lanar entre os ouj
missionrios as mesmas perniciosas ressonncias M
levantavam nele. No devia, pois, abandon-las, ai
intactas, beira da estrada difcil; tinha de pesij
de abri-las, de neutralizar-lhes a polpa venenosa aia
de prosseguir a sua jornada. Durante um morneja
pensou que o mal residia no facto de os ministros!
religio serem obrigados, pela prpria distncia e M
metismo que havia entre Deus e eles, a trabalhar cd
uma autonomia que, no fundo, no estimavam. A exa
rincia provava-lhe que, no espesso muro que cercal
o edifcio, era essa a grande brecha, a fenda por OM
saam, de capa traada e espada em riste, as ml
negras dvidas. A funo deles teria outra comedida^
e uma eficcia muito maior se comunicassem direcil
mente com a autoridade suprema, se fossem directi|
mente orientados por ela, como eram, outrora, os op<(
rrios pelos seus patres. O prprio caso que Mounilj
lhe expunha e que imprevistamente se revelava men
simples do que a princpio lhe parecera, no oferecerij
ento, dificuldade alguma. O caso de Mounier e tant<Sj
outros milhes e milhes de outros. j
O Superior voltou a suspirar: felizes aqueles qu^
A MISSO
629
ulgavam receber, em certos momentos, a sugesto jjyina! Essa inspirao constitua uma o
rdem e, naturalmente, como todas as ordens, coagia; mas era uma coaco tranquilizad
ora, pois libertava de toda a responsabilidade os atingidos, varria todas as hes
itaes, valoiizava quem a recebia e indicava o caminho a trilhar, como esses mapas
em relevo, onde, carregando um boto, se iluminam os rios e as estradas que correm
entre vales, precipcios e montanhas.
Georges Mounier afirmava, sombriamente:
No quero sentir remorsos por no haver feito tudo quanto possvel...
Os olhos do Superior tornaram a erguer-se, desconsolados. Ele j tinha visto muita
coisa no pobre e torturado mundo de Cristo, pensou; tinha quase sessenta e cinc
o anos e havia amealhado grande prtica da vida. Mounier, ao contrrio, s h pouco cheg
ara aos cinquenta, uma estao que era, sem dvida, melanclica, mas, apesar disso, nela
ainda se embarcavam muitas e inteis iluses.
O olhar demorou-se sobre Mounier, alto, chupado, quase transparente, com essa co
r de cera que lhe dera a Indochina e que, assim vestido de negro, ficava mais de
igreja, de penumbra, de cilcios antigos, de vcios secretos que no praticava, mas q
ue o seu tipo doentio sugeria.
No digo que no devemos pensar nesses homens... murmurou o Superior, descolando-se
do espaldar da poltrona e vergando-se para a frente. Mas tambm no podemos esquec
er os nossos... Se s Misses foram concedidas certas regalias, a alguma forte razo i
sso se deve...
Ele julgara haver dominado, enfim, a sua tendncia para a indeciso, aquela cinzenta
molstia que o amargurava sempre que tinha de timonar responsabilidades e um prob
lema exibia, como os poliedros, rnuitas faces. Parecia-lhe que o seu ltimo raciocn
io lhe havia dado um rijo apoio dentro dele prprio. E, distendendo mais o busto s
obre a mesa, aproximou a sua cabea da de Mounier e ps-se a argumentar,
630
-1
I
A MISSO
com veemncia e sucessivos gestos, sobre os dil
da Misso. Ora tornejando o bloco facetado, 4$|
evocar as recompensas do cu, para logo voMH
terra, aos sentimentos e s obrigaes, falou bafl
tempo. Mounier ouvia-o, mas resistia e contrar^H
obstinado como os tapetes que, mesmo depois de^M
batidos, largam sempre algum p. 'II
"No vale a pena continuar; um novo e peiH
Don Quixote" pensou, por fim, o Superior, olhai
descorooado, aquela magreza austera que se semi
sua beira. *^
Parece-me, Padre Georges, que o vosso amdl
nossa causa toma, talvez pelo prprio calor que 'JM
a defesa d, certas expresses herticas... (*
Estranhou que Mounier no contestasse aquilo, dnl
silncio, a sua expresso, todos os seus modos, '41
-se-iam cheios de alheamento. nl
A vista do Superior velou-se. Ele esteve assim algjl
tempo, esttico, com aquelas nvoas sobre as pupal
Depois, uma ideia irresoluta, provisria, comea"!
retirar-se dos seus olhos. Retirava-se preguiosamenB
como se os olhos, ainda meio nublados, se furtaswB
ao desejo duma sesta. Subitamente, ele sentiu um ali1?!!
No quero resolver s por mm o caso de corB
cincia que me apresentais. you mandar dizer ao p|B
tor que adie o trabalho e esta tarde reunirei todosll
missionrios. Desejo ouvir a opinio deles antes 9
decidir definitivamente. '*
A mo do Superior agarrou o sinete que estava ill
sua frente e comeou a bater com ele, de leve, sob"!
a folha de mata-borro. Quase no fazia rudo; elm
como se batesse na cabea de cogumelos; como M|
esmagasse a cabea dos argumentos contraditrios qtwi
saam dele, em silncio, atravessavam a mesa e s^j
metiam debaixo do sinete. Por fim, abriu o rosto?*;
tomou um ar paternal, luziu um sorriso condescend:
dente: 'J
Fica, assim, satisfeito ? '
A MISSO
631
Porque a regra no autorizava a presena dos irmos,
apenas
onze homens se sentavam em volta da mesa
de pedra, na sala do captulo; e somente o crucifixo, anmico corpo de marfim sobre
tbuas negras, que se via na parede do fundo, atenuava a pesada mudez do recinto e
das suas abbadas muito baixas e frias.
O Superior, de mos sobrepostas junto do peito, disse:
Como sabem, a situao do nosso pobre pas agrava-se de dia para dia. Depois que os al
emes venceram a Blgica e os ingleses foram obrigados a reembarcar em Dunquerque, t
oda a Frana est ameaada de grandes bombardeamentos...
Calou-se um instante, como se absorvesse a gravidade que as suas prprias palavras
criavam, e logo prosseguiu com o mesmo torn pesaroso:
Embora no tenha uma grande importncia a fbrica que existe nesta aldeia, possvel que
aos alemes interesse destru-la. Ns encontramo-nos ainda bastante longe do campo de
batalha, verdade, mas a distncia que antigamente seria considervel, com os progre
ssos da aviao deixou de o ser. Por isso, decidi mandar pintar, sobre o nosso telh
ado, a palavra "Misso". Estava e ainda estou convencido de que prestaramos um bom
servio Frana se contribussemos para diminuir as suas runas, tanto fsicas como morais.
Mas, esta manh, fui procurado pelo Padre Georges, que me ps um probl
ema de conscincia...
O Superior reproduziu, com deliberada meticulosidade, as razes de Mounier e, circ
ulando o seu olhar moroso pela mesa, em inspeco ao rosto de cada qual, acrescentou
:
Perante isso, entendi que era meu dever reunir e ouvir a nossa comunidade...
Um silncio hesitante, cheio de secretos frmitos, boiou na sala. A gua caa, muito audv
el, na grande
k
632
A MISSO
A MISSO
633
taa dfe mrmore que havia l fora, no jardinirl mos juntas sobre a mesa e de cabea incl
inadas homens fixaram Mounier como quem olha por IS duns culos. E, durante um mom
ento, ficaram sM uns dos outros. ^m
Nenhum estranhou que fosse Brissac o prmH falar. Todos sabiam ser ele o mais atrev
ido, sen pronto a meter-se em pugnas verbais e com uns mm despachados muito seme
lhantes aos dos profanosJil No compreendo os escrpulos do Padre dH gs disse. Uma b
oa semente guarda-se, pois)<| no representa apenas a hora que passa e sim o am^i
de amanh, a segurana do futuro. Ningum vai," tanto, comer as boas sementes, a menos
que no taj juzo; nem vai exp-las inclemncia dum tempo MJ possa inutiliz-las. O que
justamente, nos distingi dos outros homens que no representamos a neei sidade de
um momento e sim a eternidade... m
O Superior no simpatizava com o carcter de BiSi sac, que sempre lhe parecera tortu
oso que nem TaM e to falho de vergonha como um corvo domesticai mas Brissac acaba
va de repetir, por outras palavras" no -vontade que lhe era habitual, o que ele p
rpd dissera de manh e, ao ouvi-lo, a sua incerteza recoiif fortava-se. 'i
Os missionrios voltaram a fixar Mounier. Ele tinhfi os olhos semicerrados, ilegvei
s. E a boca parada, comer morta. Somente os seus dedos se moviam em cirnC da mes
a, devagar, um pouco como certos moluscos junto das rochas, vistos transparncia d
a gua soi# um raio de sol. >'
Mounier sentia a fora daqueles olhares e sabia que" os outros estavam espera que
ele falasse. Mas o seu crivo demorava-se a separar o trigo aproveitvel dos resduos
adjacentes e inteis. Ele continuava perguntando a si mesmo se o fraco poder conv
incente das palavras que ouvira era consequncia das ideias que elas exprimiam ou
por serem de Brissac, que dava a tudo quanto dizia um ar de superficiali
dade e de cinismo. Logo pensou que j tinha joeirado o caso, de
manh, com o Superior e, portanto, o defeito pertencia ideia e no ao torn em que fo
ra veiculada.
Os outros ouviram-no murmurar palavras soltas, ininteligveis, e, depois, ergu
er a voz:
Ningum sabe onde se encontra a melhor semente... Ningum... Digo-o por mim prprio.
.. No foi por tradies de famlia ou porque em minha casa houvesse muita f, que vi
m para aqui; o meu pai no era praticante e, s vezes, at ridicularizava os noss
os princpios. Dei-lhe um grande desgosto quando escolhi este caminho. Mas eu no p
odia fazer outra coisa. A minha vocao parecia-me mais forte do que tudo. Eu era u
m adolescente e, como tantos outros na mesma idade, pensava que conseguiria vi
r a ser perfeito e que tudo se harmonizaria com a minha vontade de o ser. Os ano
s ensinaram-me o contrrio. Quanta incoerncia sinto no meu esprito, quantos abismos
no consigo vencer seno resignando-me relatividade do meu condicionalismo humano! C
omo posso aceitar, portanto, que ns sejamos, duma maneira absoluta, a boa semente
e que, assim, devemos ter privilgios em relao aos outros homens ?
Michaux pressentiu os inconvenientes da direco tomada; no metessem eles a um outro
atalho e iriam de escarpa em escarpa, de aresta em aresta, at o alcantil onde ser
iam obrigados a lanar-se ao mar.
Nenhum de ns, certamente, tem a pretenso de ser perfeito disse. Brissac falou ap
enas em teoria e duma maneira geral. Creio, porm, que estamos a afastar-nos do es
sencial. O essencial, se eu bem compreendo, se devemos participar do destino dos
homens que trabalham na fbrica, no mandando pintar a palavra "Misso", ou se, ao co
ntrrio, devemos mandar pintar essa palavra, tentando criar um destino parte para
ns. Ora eu julgo que esta reunio no se teria dado, nem este dilema haveria sido pos
to, se o Padre Georges, ao sentir o seu caso de conscincia, houvesse tido o cuida
do de olhar para a fbrica...
Todos se volveram para Michaux. Ele arvorava uma expresso vitoriosa:
634
A MISSO
"1
i
* A fbrica est camuflada h j trs se^l pelo menos... ^^^1
O Superior levantou a cabea. A cheia descosi alma dos homens. Campos submersos to
rnavaiafl^M a luz e uma ponte emergia. Para a maior par"^l missionrios era como s
e a sala se encontrasseSJ^H recida e Michaux houvesse acendido, de repente '1^1
se mover, um lustre sobre a mesa. O Superior en^^l Mounier e todos julgaram que
ia dirigir-se-llred^M logo viram que, aps aquele ligeiro movimento, 3^I olhos se i
mobilizavam de novo. !^^l
O caso est, portanto, resolvido disse*"I^B Dumesnil, atravs da sua barba muit
o negra, M^l extremo da mesa. '1^1
claro! apoiaram mais dois ou trs. "if^l As palavras caram, porm, como frutos se
m ^I
Nenhum deles poderia explicar rapidamente p4^l sentia assim, mas, salvo Michaux
e Brissac, -3)^1 sentiam, mesmo Dumesnil, que o caso no @4^l inteiramente resolvi
do, que dentro dos frutos s"j^B tavam bichos, que da fogueira onde tinham derrSj^B g
ua se levantava ainda um fumo cido e desa|^B
Eu conheo perfeitamente o estado em 3*4^1 encontra a fbrica declarou, sem pressa
, Motfii|H Algumas tardes fui mesmo assistir aos trabalhosM camuflagem... ' j^
Calou-se um momento e fixou a mesa, como*(U falasse para a grande pedra lami
nada: jl
Se vierem bombardear a aldeia, porque sailH que nela existe uma fbrica. Ora
estando a ndJU Misso assinalada, a identificao da fbrica rnwM fcil. Basta-lhes
voarem um pouco mais baixo &jm camuflagem perder o seu efeito... ' a^m
Brissac, de rosto longo e queixo muito pronunciatdEf voltou lentamente a cabea, n
esse movimento de cavW'* que, ao comer, olha com moleza para trs. Subitr mente,
porm, enervou-se: >f
E no estando a Misso assinalada, tom-la-o pela fbrica, dado que os dois edifcios so i
ais, *
A MISSO
635
ncaro as bombas sobre ns. isso que o Padre Georges deseja?
Alguns dos missionrios sorriram.
O Superior ia a apoiar as palavras de Brissac, mas renunciou mais uma vez. De no
vo o seu esprito amolecia perante aquela secreta incompatibilidade que vinha nota
ndo entre ele e os outros, nos ltimos tempos. H quarenta anos, quando se ordenara,
ainda os missionrios falavam com o recato e a uno prprios da dignidade eclesistica,
ao passo que, actualmente, as suas palavras tinham o desembarao polmico, a secura
cortante e directa dos polticos. Ele sentia-se ultrapassado por essa evoluo dos cos
tumes, que lhe dava saudades da poca da sua juventude e o divorciava do presente.
Brissac repetia:
isso que deseja ?
Se essa for a vontade de Deus! ouviram Georges Mounier dizer, com uma voz mais
grave ainda do que antes.
O Superior viu o foguete verbal de Brissac subir e cair. Cair junto da flecha qu
e Mounier tinha lanado por entre as rvores perturbadas e em expectativa. Ele no ign
orava que uma flecha, mesmo tombada, muito diferente da cana dum foguete, embora
as duas venham pelo ar e mostrem aparentemente algumas semelhanas fsicas. Depois
de haver distrado o silncio do cu e arrebatado a ateno da terra, a cana desce desgove
rnada, ora em horizontal, ora em vertical e um pouco ao sabor do vento, se o h; d
esce morta, como se, efectivamente, se tivesse suicidado l fto alto com um ou mai
s tiros na cabea; e cai com um ar de pobre coisa intil, que cumpriu a sua misso e j
no reviver. A flecha, ao contrrio, mesmo se io acertou no vosso corpo, continua viva
, a fabricar piedo para quem a v entre as rvores da floresta onde ]az; a sua inteno
continua intacta, o perigo que ela trazia persiste sob a fora de quem a disparou:
uma v_ontade activa concentrada na haste imvel e o Superior sabia que no se podia
lev-la para casa, atra-
L
636
A MISSO
* vessando a floresta com ela debaixo do brao, a asifl
despreocupadamente, como os garotos levam as >jfl
dos foguetes. pB
Ns estamos, efectivamente, perante um dffl
dizia Mounier. Ou denunciamos a fbric^M os seus quatrocentos homens, ou entregam
o-nos fl tade de Deus, ns que somos apenas treze. Talv|B seja demasiado cptico acer
ca de mim prprio tfl deva dar grande ateno a uma confusa dvida maior-valia que sinto
no meu esprito... '>B
Mounier deteve-se. Os seus dentes superiores! |B
ram-se, um instante, sobre o lbio inferior, quJB
recolhera. A sua mo direita fechou-se e volt<H
abrir-se. <<fl
Realmente acrescentou, com um torn de f|B
s Deus pode saber quem , nestes dias, mais 41
se os operrios, se ns. Ele que decida, portantoB
nossa funo obedecer-lhe. -B
No era a primeira vez que os missionrios senlflB
o imenso conflito do argumento verbal com o arjM
mento vital. Das profundidades subiam discordncH
que no podiam formular-se sem renegarem, ao me^H
tempo, o objectivo e a disciplina das suas vidas.
concluses que a lgica das palavras parecia impor-lSB
dum modo definitivo, irrefragvel, a lgica da carilM
do sangue replicava sempre com novas, secretas e op"
tas razes. Esse desencontro amedrontava-os. E quB
todos eles comearam a recear uns aos outros. A rec"B
que os outros captassem os seus pensamentos evadid"
as suas reaces contidas, o seu amor visceral comw
didade e vida, que eles prprios temiam conhecei
Quase todos se maldispunham perante o estado qiB
Mounier lhes criara, manipulando no esprito deles ua
terceiro produto, constitudo pela associao da lgic
e do absurdo, um produto que, em vez de os cura
os envenenava. l|
S Brissac ousou investir contra aouele silncio dia
muralha fincada na noite: r-l
A princpio, julguei que o Padre Georges desefl java apenas que, na hiptese dum bom
bardeamento,*!
A MISSO
637
operrios ficassem numa situao igual e no inferior nossa; vejo, agora, que ele preten
de precisamente o contirio: pretende que fiquemos numa situao inferior dos operrios.
..
A mudez geral parecia aceitar a discordncia de Brissac. Ningum se movia dum extrem
o a outro da mesa. Ningum levantava os olhos.
E se fosse assim ? perguntou Mounier. No foi assim que eu pus a questo, mas se f
osse assim? O nosso papel sacrificarmo-nos pelos outros. E esse o nosso lema, a
essncia da nossa misso. E creio bem que cada um de ns capaz de arriscar a sua vida,
de dar mesmo a sua vida, para salvar a dum nosso semelhante. Ora, neste caso,
a vida de cada um de ns corresponde no apenas a uma, mas, pelo menos, a trinta vid
as humanas...
A que o Padre Georges se engana! retrucou Brissac. O nosso dever no salvar as vi
das; salvar as almas. Parece que o Padre Georges se esquece dos nossos m
elhores textos, onde este princpio est bem visvel. Nem se compreenderia que fosse d
e outra maneira, uma vez que a nossa pobre vida efmera e s a alma eterna. Ora, par
a a eternidade duma alma pouco interessa que a sua vida na terra haja sido curt
a ou longa; ao contrrio, as vidas curtas beneficiam de no dispor de muito tempo pa
ra pecar...
O Superior julgou compreender, por si prprio, que a objeco de Brissac no produzira e
feito algum; a gua cara fora do vaso onde o ferro estava em fuso ou era insuficient
e para esfri-lo. Lembrou-se, ento, de que a maioria no se havia pronunciado ainda e
, de novo, o seu olhar convergiu para os missionrios. Mas, perante tantos rostos
voluntariamente fechados, tantos olhos entretidos com o jogo dos dedos sobre a r
nesa, a sua inspeco regressou com a mesma dvida com que partira.
Lafargue, que se encontrava em frente de Mounier e sempre mostrara forte exaltao p
ela histria militar da Frana, voltou-se para o Superior:
638
A MISSO
A MISSO
639
* De facto, a existncia desses quatrocenta
mens... j|
No so apenas quatrocentos homens! -m
rompeu Mounier, pela primeira vez excitado, ao JB
tir que at Lafargue menosprezava a importante
caso. So tambm os velhos pais de muitos m
as mulheres e os filhos. No tenho querido fazer m
drama, mas a verdade que se trata de mais d"
e quinhentas vidas. E como essas famlias, nafl
maioria, habitam em redor da fbrica, tm toda"
probabilidades de serem tambm atingidas, se a$i
for bombardeada. Ora ns no s no temos $m
como... ,;
Mounier deu conta da gravidade do que ia d
e calou-se de repente. Os outros missionrios sentB
esse bice moral e, erguendo os olhos, ficaraMJI
expectativa. -M
Enfim murmurou ele, perturbadamente
no s no temos filhos, como a nossa Misso <JB
isolada da aldeia. As primeiras casas que se encontujl
para l da nossa cerca, esto a mais de um quilroefl
de distncia... i"l
O Superior tornou a compreender que aquelas pM
vras eram to ineficazes, no esprito dos outros, coil
haviam sido as de Brissac, pouco antes. M
Michaux teve um esgar satrico: il
V-se agora, claramente, qual a inteno m
Padre Georges. Ele pretende apenas condenar-nosj|
morte... Andou a acompanhar os trabalhos de canflj
flagem da fbrica e nunca pensou que ns devarajj
tambm defender-nos. Ao contrrio, ope-se a isffl
como se est vendo. At descobriu que a nossa situ"
co, fora da aldeia, nos d a grande vantagem <J|
sermos aniquilados em lugar dos outros... ,;|1
Ao longo da mesa algumas bocas sorriram soturnwl
mente, enquanto Lafargue intervinha de novo: m
No h dvida que o Padre Georges exagera^
Mas, por outro lado, a existncia desses quatrocentoSj
homens pe-nos, como eu ia a dizer h pouco, quandq||
ele me interrompeu, no s um problema de ordeBP*
moral, mas tambm um dever patritico. Em boa verdade, eles trabalham para a defesa
do pas e, se nos arriscarmos por eles, podemos prestar um servio
Frana...
Desculpe-me disse isoladamente Mounier.
De novo a muralha se levantava da terra, barrando o caminho. Alguns dos missionri
os mediam o temvel esforo que teriam de fazer para escal-la e detinham-se. Todos es
peravam ouvir primeiro, da voz audaciosa de Brissac ou da de Michaux, o sinal de
avanar; todos esperavam que os outros abrissem passagem sinceridade que eles ret
raam.
Efectivamente, Brissac saltou:
Nos dias trgicos como estes em que vivemos, onze capeles podem suavizar as dores,
fornecer conforto espiritual, f e esperana no futuro, no s a quatrocentos soldados,
mas a quatrocentos mil. Podem mesmo erguer o moral de todo um exrcito prestes a
render-se e lev-lo a lutar de novo pela boa causa...
A sensao de alvio volvia terra alagada. O Superior percebeu, por ele prprio, que a e
nchente baixava mais uma vez. Mas logo Mounier proferiu:
Ns no fomos mobilizados, ns no estamos no exrcito; ns estamos simplesmente aqui, repou
sados, ao lado duma fbrica que trabalha para os que se batem... Mounier fixou o
Superior e repetiu o seu teimoso argumento: A escolha de Deus no se fez ainda,
portanto.
Est bem, est bem. Seja o que quiser disse Brissac, com um torn de impacincia. Eu
no tenho desejado, at agora, influenciar a nossa deciso com o exemplo das outra
s Misses. Primeiro, para no parecer que censurava o nosso amado Padre Superi
or; segundo, por pensar que devamos decidir este caso em plena liberdade de consc
incia. Mas, agora, que se estabeleceram aqui duas correntes opostas, eu devo decl
arar que, se de alguma coisa podemos ser justamente acusados, de termos tardado
tanto a salvaguardar a nossa Misso. Estive, h quinze dias, no Norte e todas as Mi
sses por onde passei tinham, bem visveis,
wji
*
640
A MISSO
"1
1
* em grandes letras brancas sobre os seus telhai)
nossa palavra de neutralidade e de paz... j
Eu sei... disse Mounier, com uma voz d|
do. Eu sei, mas a minha conscincia no pO(M|
tar esse rompimento de solidariedade com a sorfl
outros. Compreende-se que se salvaguarde um hoa
Que se salvaguarde uma igreja. E at uma caM
Mas uma Misso, porqu ? Mesmo que no hajrfj
fbrica, porqu ? Por que nos desligamos dos Quj
aos quais passamos a vida a chamar irmos, &|
ms para ns uma situao de superioridade, pnf
mente quando eles esto ameaados dum t@i|
perigo ? Mounier ergueu a voz: Eu no acei%f|
privilgio! 3
Brissac ps-se a olhar ostensivamente para asa
badas, para as manchas de humidade que ali se M
travam, as grandes cercadas de pequenas, como af|
plagos. Ouvia-se novamente a gua cair l forto
larga taa de mrmore. [J
Os missionrios haviam tomado uma expresso W
bria perante a responsabilidade que voava pesadamei
ainda sem destino certo, na atmosfera. Da cabeai
da mesa, o Superior tornava a observar, com u
oculta ansiedade, os que se tinham conservado ser
calados; ia-os perscrutando nos olhos, como se f<l
batendo em graves paredes antigas, at descobrir, m
som oco, o segredo que buscava. Mas as galerias njj
tinham-se cheias de sombras. Era tentar ler, sem m
pada, uma inscrio gravada no fundo da velha cal
cumba. r;
O Superior admitiu que a maior parte dos mis?
nrios estaria de acordo com Brissac. Mas a sua in<
ciso prosseguia, inquieta e complexa, como de man)
Vejo disse que as vossas opinies se enc^l
tram divididas e que, portanto, Deus Nosso Senil
no se dignou inspirar-nos sobre o caminho que de^
ms seguir. Julgo, por isso, que a nossa conscin<8
Acar, apaziguada se, em vez de sermos ns prpri{j
a tomarmos uma resoluo, apelarmos para quem m<j
rea mais da misericrdia divina. Proponho-vos escrev^
A MISSO
641
a0 Superior Nacional e submeter sua sabedoria a deciso do nosso caso...
Um derradeiro silncio estendeu-se sobre a mesa, como o pano que cobre a banca ond
e se deixou de icgar. Pelo sbrio movimento das cabeas, o Superior compreendeu que
todos haviam aprovado. S Brissac acrescentou:
melhor. Mas hoje mesmo...
Escreverei hoje mesmo.
O Superior viera para ali h cinco meses apenas, num dia cinzento e frgido. Era uma
tera-feira. Na quinta, apresentara-se a cumpriment-lo o velho Roussin, descendent
e, dizia ele, com olhos baixos, de sete nobres cruzados que, na nsia de espalhar
a f, haviam andado heroicamente a combater, a incendiar, a degolar, por S. Joo de
Acre, Rodes e Chipre.
De bigode e mosca, ambos j esbranquiados, e dorso levemente curvado, a perna direi
ta coxeando e a mo sobre uma bengala, Roussin tinha-se pela figura mais grada da
aldeia e s recebia no seu "manoir" quem lhe parecia ser quase to importante como e
le. Sempre que um Superior da Misso era transferido ou morria, ele vinha apertar
a mo do sucessor e oferecer-lhe, com essa dignidade solene que j se via apenas nas
personagens de teatro e com as mesmas palavras que havia dito aos anteriores, a
sua casa e a sua estima. Assim, no s cortava o isolamento imposto pelo orgulho do
s pergaminhos perante os modestos habitantes da aldeia, como admitia que uma pre
sena sacerdotal, embora estivesse provado que no aumentava a eficcia do pra-raios er
guido sobre o telhado, podia, em todo o caso, carrear-lhe vantagens no outro mun
do.
O Superior vestira o hbito mais novo, mandara engraxar os sapatos e fora retribui
r a cortesia no dia seguinte. Roussin mostrara-lhe a sua coleco de relgios antigos,
que cobria inteiramente dez consolas e
21 Vol in
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643
encla as salas de msicas pretritas cada seam
minutos; abrira escrnios para lhe revelar, com OH
terno e cuidadoso de quem destapa um bero, re${9
de famlia; e, ao cair da noite, depois de tomado 03
ritivo, acompanhara-o at a porta do jardim. .'m
Desde esse dia, rara tarde se passava sem qfl
Superior largasse da Misso, para ir jogar o "craJB
com o velho Roussin, na grande quadra forraJB
retratos de antepassados, entre os quais o da<M
famoso cruzado que, tomando por ardil ou obrjl
demnio o talher que lhe haviam posto na mes|H
imperador de Bizncio, cuspira de lado, benzera-sfe>
vezes e metera directamente os dentes vitela assji
como era ainda de nobre uso na Europa. (jm
O "manoir" de Roussin exibia-se no extremdH
aldeia e o Superior ia e vinha luz do dia, corjSH
antas vo e vm na solido da noite, sempre) JB
mesmo trilho, o mais curto e o mais fcil. olB
Algumas vezes ouvira aluses fbrica que ill
rava no povoado, mas jamais desviara o seu canH
com a ideia de a ver. Para ele, a fbrica fora atj
um simples pormenor da aldeia, uma simples peS|H
todo, como o hotel para caixeiros-viajantes, coraM
Caf, onde nunca entrara, como as runas do sA
dos Rougemonts, antigos adversrios dos RoussinS,M
onde agora subiam rvores selvagens e branquejava!
entre silvas, tristes colunas prostradas. Desde, poofB
que Mounier pusera o seu caso de conscincia, ulj
envenenada curiosidade pela fbrica irrompera do eSM
rito do Superior, como se velha serpente erguesse, -1|
sbito, a cabea triangular sobre um saral at ali fl
paz consigo prprio e se pusesse a olhar, inquieta, 4B
seu redor. Jl
Assim, naquela tarde, depois do conselho, os neglfl|
sapatos de verniz abandonaram a sua rota habitual!!
aventuraram-se por sombria travessa, que jamais havia"!
percorrido. Ora marchavam devagar, um pouco dijp
trados, abstractos, como se participassem da medipl.
co que se efectuava l em cima, na outra extremida$|t"
do corpo, ora se tornavam subitamente apressad<**
a
ege-rege, rege-rege, sobre as remotas pedras desgastadas.
Pouco depois, o Superior viu a fbrica na sua frente. E logo, contra a prpria vonta
de, lhe pareceu que Jounier tinha alguma razo: todas as adaptaes que, ao longo dos a
nos mortos, o edifcio sofrera, no haviam alterado as linhas do seu perfil. A Fbrica
continuava a ser igual Misso.
Parado na estrada, de olhos descontentes fixados na sobrevivncia arquitectnica, el
e divagou um instante, sobre os paradoxos do tempo: aquela casa, construda para s
ervir a Deus, tornara-se, contra todas as intenes de outrora, um perigo para os qu
e a Deus serviam. E, agora, era assim. Agora, ele estava ali e os homens que l de
ntro trabalhavam constituam uma ameaa para ele prprio.
Os olhos do Superior desceram. O edifcio era igual ao outro, mas, enquanto as par
edes da Misso, tratadas, caiadinhas e com plantas floridas em redor, com vergnteas
frescas no p de velho tronco, lembravam vista as alegrias claras da terra, os pa
redes da fbrica, ao contrrio, ressumavam uma densa tristeza, com sua escuridade de
sculos cados e suas janelas de vidros sujos e frondosas teias de aranha. Dir-se-ia
existir uma desconsiderao da prpria natureza pela fbrica.
O Superior desconhecia os verdadeiros motivos porque as freiras no se haviam inst
alado ali. Parecia-lhe, porm, que o ludroso casaro devia ter tido sempre aquele ar
de excomungado, como se debaixo da sua primeira pedra houvessem posto, no uma me
mria destinada posteridade, mas uma secreta maldio.
Lentamente, ele voltou a examinar a metamorfose que, apesar de tudo, se dera, mo
mentos antes, nos valores enraizados no seu esprito. De repente, a pedra esquecid
a, sepultada nas profundidades dos alicerces, vinha superfcie, crescia, levitava-
se e pairava sobre ele, adquirindo uma importncia inesperada. O Superior tentou,
ento, reagir contra o sacrifcio que lhe pediam.
644
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Recomeara o andamento e ia caminhando sedfl
com aquela cor nos olhos. As pequenas casas proM
rias que circundavam o grande edifcio, casinholas^lM
s piso, ligadas umas s outras, estavam revestidaiM
mesma escuridade e da mesma melancolia da fbll
uma melancolia que se agarrava escuridade c^l
uma segunda camada de tinta, uma melancolia fl
parecia localizada, ter fronteiras na aldeia, limiteslH
ntidos como os duma ilha. Crianas enquadradaslB
portas, viam-no passar; algumas baixavam os oral
envergonhadas, outras sorriam-lhe com reservas quaij
ele lhes remetia, de longe, um aceno carinhoso e amfl
lante. Por detrs dum e doutro janelico, rostos"
mulheres olhavam-no tambm com curiosidade, A
O Superior atingiu, assim, o "manoir" de Rou^H
Ia deprimido, maldisposto, com uma insatisfadB
moer antigas e rijas ideias e nessa tarde falou poi"
O velho Roussin, vendo o seu ar concentrado, debi"
aquilo s ltimas notcias recebidas, que davamljB
alemes a avanar triunfalmente sobre a terra fc<B
cesa. Ele prprio estava mais preocupado do que w
qualquer outro dia. c"
Ao terminar o "crapaud", o Superior hesitou peraflB
aquele desejo embrionrio que subia, desenvolvendo^
cada vez mais; hesitou vrias vezes e, por fim, dejjB
diu-se a voltar pelo caminho da fbrica. Queria repeM
a ameaa, avaliar de novo a fora dos dois plos opostq|
o eixo moral que deixara repentinamente de ser direifl
e slido, depois de o ter sido durante tanto tempw
Morria o dia e farruscas crianas brincavam &m
bandos, a essa hora, na estrada. Ao verem-no aproXH
mar-se, interrompiam os folguedos, os gritos, as coifl
rerias e, de braos cados, olvidados, quedavam-se res^
peitosas enquanto ele passava. De longe, uma d^jj
mulheres que costuravam, sentadas s portas das casi|i
tas, chamou o filho. A sua voz solitria, o torn qu&
indicava uma resoluo sbita, atraiu os olhos ct
Superior. O menino foi e voltou timidamente, trazendo
o cravo que a me colhera num dos velhos caixotes
cheios de plantas que ladeavam a porta. E, agora
l arava junto dele, em biquitos de ps e flor ao alto,
l oferecer-lha na ponta dos dedos trmulos. Lembra-
I va-lhe um quadro que vira algures, numa igreja, no
l sabia em que terra; mas l a oferenda era para a Vir-
I gem e no para um pecador como ele pensou, subi-
I tamente enleado. com um gesto, agradeceu mulher
l e deteve-se, um momento, a acariciar suavemente o
l cabelo da criana.
l Ao acercar-se da fbrica, um rumor, que j no
l era de mquinas, mas de homens, veio at os seus
l ouvidos. Os operrios saam do trabalho. Uns marcha-
I vam apressados e s diminuam o passo quando, ao
l cruzar-se com ele, o saudavam. Outros caminhavam
l vagarosamente: dois a dois, trs a trs, com esse porte
l dos cavadores que, de enxada ao ombro, se vo dis-
tanciando e diluindo nas estradas campestres, hora
abafada do lusco-fusco. Mais do que homens, parecia
que uma fadiga negra tinha sado da fbrica e esvoa-
cava na noite. Era uma saturao que se distendia
como um fumo acompanhando os passos, metendo-se
na atmosfera e nos silncios. Dir-se-ia que o ar da
oficina agora muda, o seu ar viciado e exausto se
expandia e intoxicava, c fora, todas as energias.
Aquilo s findou nas runas do solar dos Rouge-
monts, que tinham sido os primeiros proprietrios da
fbrica. Dali em diante, at as lmpadas j acesas
nas casas abastadas, rente s quais o Superior ia tran-
sitando, pareciam dar uma luz diferente. S ento ele
sentiu a tristeza inteira que trouxera do bairro aca-
bado de atravessar. No seu esprito, o velho rio do
pecado e da equidade ora gelava, ora se fundia; e
guando cristalizava de novo, sobre o gelo surgiam
' outras sombras, que a gua recolhera durante o curso
sinuoso e longo.
No dia seguinte, voltou a passar por ali. J no m era a curiosidade que fazia avanar
os seus sapatos JB Bacios, de verniz e saltos baixos; era o desencontro ^timo,
o desejo de pr-se em boa harmonia com uma t ^as partes: com a sua ou com a de Mou
nier. Mas ele l compreendia perfeitamente que era a sua que o im-
L
646 A MISSO
pelia, era a sua que buscava um apoio, tentando-j
damentar-se, justificar-se e vencer. ,,,j
As crianas estavam l. As mulheres tambm, m
nheceu, ao longe, a que tinha mandado o filho m
gar-lhe uma flor. Ela sorria-lhe e acenava-lhe com
a flor os houvesse tornado amigos para sempre. J|
Ele ia, agora, mais vontade do que na vfl
Na vspera, levava uma sensao de intruso, de3|
de polcia, que o constrangia. Era como se o J|
os seus passos erguiam carregasse e denunciasse af
que o trouxera ali. M
Agora, demorava-se a passar a mo sobre a cm
das crianas que ia encontrando ao longo do caiai
E olhava mais direito para as casas. O seu olhar e
pelas portas e apreendia o que l dentro haiS
sumrio, de pobre, dois ou trs tarecos, duas o]9
estampas nas vidas nuas. As crianas andavaflM
vestidas, mal caladas, mostrando a aplicao nfl
nal aos sucessivos remendos. Ele descobria, em sfl
prio, uma remota intimidade com aquilo. VelhasjB
gens dele e da famlia voltavam a mover-se aoJB
de tanto tempo. Eles eram pobres tambm e da
infncia fora cheia de restries, a sua educaiB
constante sacrifcio para os pais. Mas essa poca ;JB
l to longe, que poucas vezes ele a recordava e, qujB
a recordava, o seu desejo era esquec-la. Criara n
hbitos, acostumara-se a outro nvel, ao ar lav"
ao aconchego das altitudes sociais e o seu conjH
mento do pretrito acabara por alhear-se da sua pn$I
experincia. Agora, porm, tudo se tornava de m
vivo e presente, vivo e palpitante, como numa V<a|
dei r ressurreio. >m
O velho Roussin dizia, enquanto os seus olhos fl cavam onde as mos deviam pr as ca
rtas: /a
Foram sempre assim! Uns desmazelades! A| gamente s queriam vinho; agora querem vin
ho, fO boi e frias pagas. Trabalham porque no podem dqij
A MISSO
647
je o fazer. Vo para a guerra porque so obrigados
a isso-
Roussin falava pausadamente, com a nostalgia dum
bem perdido e a gravidade do irremedivel; e, ao abrirem-se, os seus lbios descorad
os deixavam entrever a lngua coberta de sarro.
Coragem verdadeira, coragem voluntria, s outrora! Os olhos largavam as cartas e l
evantavam-se, enternecidos, para os retratos que, nas paredes, assistiam ao "cra
paud". E note que os nobres tinham que perder! Muito que perder! Apesar disso,
abandonavam os seus castelos, o seu conforto, muitas vezes os seus amores, para
irem dizimar o infiel onde quer que ele se encontrasse.
O Superior no ousava ainda confessar a razo por que, nos ltimos dias, atravessara j
trs vezes a rea fabril da aldeia. Ao ouvir Roussin, humilhaes curtidas na adolescncia
e na juventude estremeciam e despertavam. Elas haviam partido sempre dos qu
e, como Roussin, se julgavam mais alto e mais fortes. "No vale a pena" decidiu
o Superior, pensando no seu pai a sair, todos os dias, de manh cedo, para o empre
go, ainda sonolento e com um velho fato coado; e na me, sempre numa trafega doms
tica, sempre preocupada com as dificuldades que os magros recursos materiais lh
e criavam. "No vale a pena" repetiu, Para esganar definitivamente aquele sbito de
sejo de Sfir desagradvel a Roussin.
Nessa tarde, ao regressar Misso, e nos dias seguintes, ele voltou a fazer o seu n
ovo trilho. S vezes, olhando as crianas que brincavam na estrada, as mulheres s sua
s portas, os operrios que passavam ao ^eu lado, somava tudo aquilo na fbrica, lemb
rava-se aa Misso, dos missionrios, de si prprio e sentia um calafrio: "Efectivament
e, um perigo, mesmo para mim". As notcias que, nesses alarmados dias, ele ouvia P
ela rdio, as que lia nos jornais, as que transitavam Pr toda a parte, eram cada v
ez piores. A Frana ^dia, vinha a terra, como os velhos soalhos que j a suportam gr
andes pesos. Os alemes progrediam
648
A MISSO
A MISSO
649
Sempre, a invaso alastrava, os bombardeamentos
mentavam e comeava-se a recear que a prpria capa
facho de todos os esplendores, empunhado porj
brao de dois milnios de trabalho e de bom ,go|
fosse tragada tambm pela bocarra negra que se at
sob os ps dos seus ltimos habitantes. J
Na Misso, Brissac e Michaux perguntavam, defl
do correio chegar: jn
Nada ? Ta
Era uma s palavra, mas parecia sintetizar a Ti
Ele respondia com um movimento de cabea. Cm
preendia que o caso deles se apresentasse como sej
dro a quem o visse de Paris e que, naqueles diB
dor e de sangue, o Superior Nacional devia andai^Jj
atarefado como se Jesus houvesse morrido segunda J|
Os outros missionrios no faziam jamais peraS
tas; mas na sua prpria discrio, nos seus lofljB
silncios, nos isolados passeios que faziam no jarcfl
com as mos fechadas atrs das costas, o SupqB
percebia nitidamente que a mesma preocupao os iB
tambm. Cada novo dia, depois das onze horas, p^l
ds, corredores, janelas, a mudez dos homens e |H
coisas, at o ar, at a luz, pareciam escuta, ag|M
dando o toque de sineta que o carteiro costuma v H
na porta da cerca. JH
Brissac passara a expedir e a receber muitas catB
Tardes inteiras metido na cela, ele escrevinhava sjH
descanso, enquanto pela porta entreaberta saa P"H
o corredor, como duma fornalha, o fumo dos sfl
cigarros. Uma manh, aps a chegada do correioaH
Superior viu-o acercar-se com modos solenes e irtj
tristeza pregada na cara. fl
A minha velha me est gravemente doente ejB
Font Romeu e eu desejava ir v-la... |H
O Superior fez um gesto de assentimento. MalM
depois, lembrou-se de que Font Romeu ficava perfflM
da fronteira espanhola e estranhou: |B
A sua famlia no vivia em Dijon ? ;3"
Sim, vivia respondeu Brissac, com o ar desoj
jado de quem lamenta e, ao mesmo tempo, perdoa uffl erro. Vivia em Dijon, mas,
devido guerra, decidiu mudar-se. Deve ter sido isso, justamente, que agravou o e
stado de minha me...
Calou-se um momento e logo acrescentou, sempre com uma expresso melanclica:
. Para ficar mais prximo dela, eu havia pensado solicitar a minha transferncia par
a a Misso no Arige...
O Superior olhou-o nos olhos. Olhou-o demoradamente, como se o esvaziasse pelos
olhos. Depois baixou a cabea. Ele podia ler as cartas que os missionrios escreviam
ou recebiam. Era da regra, embora um pouco em desuso. Ele nunca o quisera Fazer
. Mas, agora, julgava-se to informado como se as tivesse lido.
Brissac sentia que o silncio do Superior o despojava moralmente. Logo, porm, delib
erou que aquilo carecia de importncia, pois num corpo sabiamente defendido, com a
pele bem oleada, a gua, mesmo se suja, pode formar gotas, mas no molha. O resto e
ram histrias pensou e no havia tempo a perder. At o comrcio j tinha deixado de anun
ciar na
rdio!
you estudar o seu desejo... disse friamente o Superior, sem tornar a erguer os o
lhos.
A partida de Brissac deixara um vcuo maior do que o seu corpo, a sua sombra e os
seus movimentos enchiam. E outras alteraes se tinham produzido na Misso. Os homens
j no eram os mesmos nas suas mtuas relaes. Se conversavam, o que diziam adquiria o to
rn imbudo de passado e de silncio subjacente que se emprega junto dos mortos e, ne
sse comrcio da feia, os dilogos caam sem vibrao, moedas envoltas em camura, que no ti
am. As preferncias individuais haviam-se transformado em preferncias por grupos o
dos indecisos e o dos resolutos e de uns Para outros estabeleciam-se ms vontade
s e intrigas. Todos tratavam Mounier com maior afabilidade do
650
A MISSO
gue outrora, mas faziam-no com um desejo invdJuj!
rio de se desculparem dentro deles prprios. Mtau
passava horas seguidas na capela e, mesmo qug|
no se encontrava l, parecia mais isolado e alheKH
que nunca; olhava muito para os olhos e para S
de quem lhe falava, como se visse, mas no ouvi
as palavras, como se as palavras fossem pronund"
atrs duma parede de vidro, dum filtro que r
os sedimentos morais. Dir-se-ia que ele prprio aui
tava, sem querer, essa sensao externa de isolaraj
com os longes difusos que se reflectiam nos seus om
e aquela sombra morta que tornava o seu rosto/m
grave do que antigamente. Para os outros, ele pejfl
o carcter humano; viam-no passar nos corredores el
a uma lgubre responsabilidade, um erro negro;M
se concentrava e singularizava cada vez mais. fM
Uma manh chegara a notcia de que o Goioal
havia abandonado Paris e viera erguer em TouiaB
suas tendas perseguidas. O tempo e o espao tombiB
sobre a imaginao dos homens. O Superior admJB
que j no teria resposta alguma. S Lafargue se nJB
trava ainda optimista. Medira o espao e calculajJM
tempo prodigamente, entre essa bruma doirada a9
que o patriotismo ama cobrir a realidade. "Na ultfflB
guerra, Paris salvou-se no derradeiro momento, gralB
batalha do Marne". Repetiu em voz alta: "No d"
radeiro momento!" Mas nem os outros missionrilM
nem ele prprio, conseguiam evitar o eco das palavl|M
um eco que volvia de longe, para acentuar a sua intaB
lidade entre a luta que se aproximava rapidameflM
Nenhum deles conseguira esquecer que de ToursIM
Misso havia apenas uma distncia de cem quilmetfl|M
O Superior passara a desejar o momento em '<pU
ia jogar o "crapaud". Era certo que Roussin tambjM
comentava a guerra, sempre a maldizer o preseirwM
sempre exaltando os arrojos e as glrias do passadWJB
como se mantivesse, em todas as horas, a mesfflfll
posio dos que vo de costas nos comboios e s veal|
a paisagem que para os outros j desapareceu; niafflj
logo que os dois se sentavam a jogar, o velho calMJj
A MISSO
651
va_se e um silncio benfico os envolvia. Geralmente, o Superior juntava leveza das
cartas o grande carrego das suas preocupaes; algumas vezes, porm, dvidas e inquietud
es amorteciam, s ficando o jogo e isso distraa-o. Alm de tudo o mais, havia o camin
ho. Ele tinha-se tornado popular no bairro da fbrica: muitas crianas, j familiariza
das com a sua figura, vinham-lhe ao encontro, algumas ousavam mesmo lanar-lhe per
guntas, outras seguiam atentamente os movimentos das suas mos papudas, na esperana
de v-las tirar caramelos dos bolsos, gesto que comeara a praticar nos ltimos dias.
Ele pressentia que a prpria gordura do seu corpo baixo e arredondado, a sua cara
larga e aquelas plpebras entumecidas sobre os olhos luzidios, o tornavam mais atr
aente s crianas. E, pela primeira vez, no lhe despraziam os excessos que a natureza
lhe dera, como se houvesse colado sobre ele, camada a camada, o que economizara
nos corpos de outros missionrios.
Essa simpatia infantil que o cercava, risonha, buliosa, to diferente das vidas fan
adas e das palavras de portas duplas que havia na Misso, passara a ser, para ele,
uma alegria quotidiana. Ao entrar nas ruas proletrias, as obscuridades do se
u esprito espraiavam-se longinquamente, transformavam-se, deixavam-se traspassar
por uma luz suave que o tornava, de sbito, mais brando e mais doce. Quando esten
dia a mo sobre urna daquelas cabecitas, era como se afagasse, enfim, uma outra qu
e existira trinta anos antes e que ele ]a.rnais acariciara. Era como se pagasse,
postumamente, urna dvida que viera de melanclicas distncias. O credor adormecido n
um dos pores da memria despertava, movia os bracitos tenros e redondos, abria os lh
itos surpreendidos e quedava-se a fit-lo, enquanto
0 seu barco ia descarregando fardos de paisagens africanas, esmaecidas paisagens
de outrora.
Nessa poca, as colnias representavam para os missionrios o mesmo que as cmaras de ex
perimentao para certos metais: punham prova a sua resis-
652
A MISSO
A MISSO
653
*tncia. Todos sabiam que o pecado andava l,^|
nu, entre os coqueiros e que entre o pecado e a 'mjji
havia apenas os dois ou trs milmetros de esj^mj
duma tanga. Os vetos, frgeis como os fios dli
aranhas estendiam de tronco a tronco, no impa"
o caminho de ningum. O isolamento obrigava Fa
e os insectos a cantarem e os homens a enchera
abismos que a sua prpria imaginao cavava. \{M
Ela era mestia e trazia na pele o ardor do satli
ajuda a criar as espcies. Ele era a fome negra, rfl
mida, claustral, uma sombra prudente, astuta, erraM
no meio dos coqueirais. A imagem da gazela entril
-lhe pela menina-dos-olhos, desaparecia e tornara!
aparecer na mata cerrada dos seus apetites comrfflB
mesma desenvoltura e alegria de viver que ttnS
patos bravos mergulhando e emergindo, emerginfl
mergulhando, em mares ou lagos. ,f)'^
Ele vira depois, algumas vezes, a herana datB
queza, aquela miniatura da sua cabea, aqueles oBal
redondos, to parecidos com os seus, que o olha^H
inocentemente, da ponta dum mundo recomeado;B
uma dificuldade que o encarava, uma preocupac,iH
o bero embalava, uma perigosa mancha no seu fattfflB
Nesse tempo, ele ainda erguia ambies dentro'^B
Ordem e no quisera demoli-las. Moera e reradB
aquilo; depois, o primeiro navio que partira levaranB
pedido de transferncia. Tambm l a Misso ospMl
tava, em grandes letras, a palavra que a distingfflH
dos outros abrigos humanos. No, como agora, P^B
receio de bombardeamentos, mas para se impor jiH
indgenas, para lhes lembrar memria descuidfXBB
"Aqui vivem os civilizados, a dedicao desinteressaugB
a vossa salvao se acreditardes neles. Aqui estto^
doutrina de Deus". -, 'Jw
A sua solicitao fora atendida. Antes) de embawil
car, forara a abrirem-se e a receber dinheiro a(!uej||
mos maternais que o choro agitava. Essas mos e?cfflfl
rs, de dedos muito longos, desesperados, estendidas -l
numa splica perante um dolo sem piedade, haviaint i
ficado, durante alguns meses, nos olhos dele. COTOOI |
num espelho, a tremerem. Como num espelho em que se reflectissem s as mos.
Anos depois, soubera que nunca mais poderia tornar a ver sobre a terra os pequen
inos olhos que o haviam contemplado do seu bero rstico, ingnuos e meigos como os du
m veadito nas verdes florestas. Mas j ento ele prprio se sentia diferente do que fo
ra e conclura que s almas com tendncia para se aperleioarem o pecado ensina mais do
que a virtude. A essa ideia se adaptara e com ela vivera muito tempo.
Ultimamente, porm, as mos dele haviam tomado aquele vezo das carcias nas cabecitas
infantis. Iam e vinham, muito macias, sobre os cabelos; demoravam-se, tornavam a
vir, tornavam a ir, sempre com uma suavidade que parecia descer por dentro dele
prprio, alivi-lo dum negrume, reconcili-lo com uma inimizade acoitada, de h muito,
num covil do esprito. As crianas, respeitosas perante a sua idade e a sua categori
a, no protestavam, mas, s vezes, fatigavam-se da insistncia e, discretamente, iam a
fastando as cabeas, fada dia, porm, ele sentia maior prazer naquilo.
A resposta chegou, finalmente. Era uma esplendorosa manh de Junho. As roseiras de
trepar enredavam-se sobre o porto onde se via, quase oculta por elas, a sineta q
ue o carteiro tocava e subiam a branca parede da Misso, estrelando-a com suas flo
res abertas s fulgurancis da terra^em primavera e ao azul que descia tepidamente d
o cu. ,
O sobrescrito no indicava o remetente. S depois de o abrir o Superior reconheceu a
origem da carta. Ele pensou que o papel com timbre se esgotara e certamente no h
aviam tido possibilidade de mandar imprimir outro nesses dias confusos e apreens
ivos^ Um momento, admirou-se de estar a pensar naquilo, ninharia sem importncia a
lguma, agora que tinha na sua frente a grave deciso to esperada. Sempre imaginara
que, mal a recebesse, leria a carta sofregamente e,
654
A MISSO
A MISSO
655
Afinal, demox-ava-se em hesitaes sem bem saber ft qu. Os seus lbios tinham secado, a
s mos tred de leve. Por fim, ajeitou os culos e leu: jC
'
Os tristes acontecimentos a que assistimos n&^
permitiram escrever-vos mais cedo. Mas o caso de cy^
cincia do Padre Georges Mounier mereceu a mity
melhor ateno. Sem dvida, os seus escrpulos honftt
a nossa Ordem. ^
No devemos, porm, esquecer que somos com?M
exrcito e o mais nobre de todos os exrcitos; , <^^
minha obrigao, como seu chefe ocasional, defendem^
nossos soldados, para que a boa causa persista. De)ij(
Portanto, salvaguardar a Misso. Este direito fow-Vf
reconhecido de Ji muito. i,M
Eu gostaria, de transi litir a vossa carta alta som
doria do nosso amado Superior Geral, mas as acttam
circunstncias fornam impossvel qualquer contacto c(A
Roma. Estou, porm, convencido de que ele no podetm
tomar uma deciso diferente da minha. M
As mos que seguravam a carta aquietaram-se sob
a mesa. E estiveram assim paradas, inertes, larga
tempo. Os olhos ficaram imveis tambm. A ideM
levantada no fioal da leitura e que, mais do que um
raciocnio claro, era um obscuro sopro da vontadf|"
engrossava, vertebrava-se, distendia-se lentamente. M31
logo, tocada por vento oposto, se encolhia, se doba*"!
numa meada indecisa e doente. Ele decompunha'al
agora, medida que a ia desenrolando de novo. Tee3|
nicamente, a sua conscincia devia estar tranquilas!
Recebera uma ordem, o seu dever era execut-la. Podia
lavar as mos. Existira outrora um homem que ficar"*
clebre s por esse gesto. Quem ousaria acus-lo ? Den- j
tro dele, porm, uma insubmisso persistiia e o sos-f-J
sego foragido no regressava. Ele nunca concordara, J
com aquele homem. f
Voltou a ler a carta. E verificou que havia sido . |
escrita h mais dnma semana. O prprio atraso com
que chegara ali lembrava-lhe o drama que a Frana
vivia. "Ele diz que deu a sua melhor ateno ao caso, mas o caso no assim to simples c
omo ele diz. Tambm, h dias, eu pensava a mesma coisa e, contudo, vejo, agora, que
h muitos outros aspectos. O que ele no quis foi entrar em explanaes".
A mo esquerda erguia-se, o polegar e o indicador fechavam-se em volta do queixo.
Os olhos continuavam fixos sobre a mesa. O Superior sentia, cada vez mais, o per
igo que a serpente encerrava nas suas voltas. Obedecendo, ele no teria responsabi
lidade alguma. O sol pulverizara sobre a terra o sangue de muitos crimes, que no
teriam sido consumados se todos os homens honestos se houvessem sublevado, mas o
s homens honestos, em vez de se sublevar, continuaram a viver passivamente. Deso
bedecendo, a sua responsabilidade seria imensa. Teria, alm de tudo o mais, de men
tir, de ficar sozinho e tapado com aquele peso. Ele gostaria de ouvir o Padre Ge
orges, que o apoiaria, sem dvida, mas nem ao Padre Georges podia confessar aquilo
. Se do seu acto adviesse um remorso, no poderia dividi-lo com ningum.
Tornou ao presente, quela porta que o separava da galeria. A primeira dificuldade
passeava ali, como as sentinelas s portas das masmorras. Logo que sasse, encontra
ria os missionrios de olhos postos nos seus olhos, como nos dias anteriores, espe
ra de saberem se chegara ou no a resposta de saberem antes mesmo de ele falar. S
eria obrigado a fingir, a principiar logo ali a comdia. E, provavelmente, os outr
os leriam na sua cara que ele suprimia a verdade.
Pegou no sobrescrito, p-lo verticalmente e comeou a bater com ele, de leve, sobre
a mesa. O seu filho, que morrera, sorria-lhe do bero longnquo. As crianas vinham ao
seu encontro e ele afagava-lhes a cabea. As mes estavam sentadas s portas dos seus
casinhotos ou cuidavam, l dentro, do magro jantar dos maridos. Nos velhos caixot
es, as plantas continuavam floridas. Depois, a terra saltava, as paredes saltava
m, o prprio cu no podia ouvir os gritos das crianas, porque as exploses os cobriam. O
que se via luz
656
A MISSO
das labaredas era muito diferente do que existia; j
* momentos antes. Ele reconheceria, talvez, na HIM
sangunea, a cabecita que afagara no dia anterionl
e talvez mesmo no a reconhecesse. oft
A mo continuava a bater levemente na mesa otd
o sobrescrito. O Superior pensou que podia adiai"
resoluo. Tudo aquilo era demasiado grave para Ia
decidido assim de repente. Podia anunciar a respoaj
na manh seguinte, depois do correio chegar. Tinha
esperado at ali, esperariam mais um dia. <dl
O sobrescrito deteve-se, finalmente. A mo abri
a gaveta central da mesa e, com dedos indecisos aja
o derradeiro instante, meteu a carta entre muitos outra}
papis; depois, fechou a gaveta e guardou a chatol
o que nunca fizera.. rm
Como ele tinha previsto, os missionrios enconttj
vam-se na galeria. Mas no silenciosos e em expect"
tiva, como nos outros dias. Formavam roda e falavaB
com uma exaltao ntima que o torn moderado da voH
no conseguia ocultar. S Michaux lhe perguntou: 'fl
Nada ? m
Ele abanou a cabea e quedou satisfeito consig|"
mesmo. Os homens atentavam mais nos comentriSH
que iam tecendo s notcias ouvidas pela rdio, dal
que nele prprio. E ele mentira com uma naturalaM
dade que o surpreendia. uj
Paris fora ocupada pelo inimigo. Os xodos da hisl
tria antiga haviam renascido: as populaes fugiarB
frente do invasor, homens, mulheres e crianas arras*H
tavam-se, catica e desvairadamente, por todos oslB
caminhos do Sul. Os alemes avanavam j para as
margens do Loire, onde se encontrava o Governo, em
os seus avies precediam-nos sempre, bombardeando
os exrcitos franceses, que recuavam, destroados, ven- ;
eidos. O presidente do Ministrio enviara um apelo JB
urgente aos Estados Unidos, pedindo o seu auxlio B
e nessa resposta que o ar em fogo devia transmitir 'm
residia a ltima esperana, uma esperana em que
ningum ousava j acreditar. ) l
O Superior dirigiu-se capela e ajoelhourse. E, du- 'l
A MISSO
657
ante longo tempo, fez tambm um apelo, to urgente Coffl0 o outro, para que o seu de
us o inspirasse. Rezava, lfflplorava, humilhava-se, mas, sobre o esprito de rojos
como o corpo, a luz pedida no se acendia, no descia a aprovao que ele buscava. A re
sponsabilidade continuaria a ser s dele. Teria de resolver pr ou contra dentro dos
limites humanos apenas e sem nenhuma ajuda; teria de resolver sozinho com aquel
e imenso desamparo que sentia na sua alma.
Ao erguer-se, deu conta de que uma outra figura se prostrava na capela, no recan
to mais obscuro, quase anulada pela sombra. Reconhecendo Mounier, ele hesitou; m
as logo saiu sem voltar a cabea, de olhos no cho, passos sumidos e como que furtiv
amente.
Os missionrios estavam, de novo, em volta do aparelho de rdio. H dois dias no recebi
am correio e viviam apenas para aquelas vozes que saam do caos, impregnadas de run
as, de derrotas e desesperos. O Superior no dormira nas ltimas noites e tinha os o
lhos fatigados, mornos, no rosto que parecia mais largo e mais flcido do que nunc
a. Villiers, que h trs meses decidira sepultar o vcio, voltara a queimar cigarros.
Acendia-os uns nos outros, tossia forte e continuava a fumar. S Mounier no se enco
ntrava ali. E somente o irmo cozinheiro, sabendo que, na Ordem, sucedesse o que s
ucedesse, a hora da comida era benta como a gua, se levantava de quando em quando
, Partia e tornava a voltar. J ningum reparava nas suas idas e vindas. Uma larga d
esintegrao produzira-se entre os homens e tudo quanto os cercava. As Pagens vizinh
as haviam perdido o seu valor habitual. Os olhos de Dumesnil encontravam as rose
iras floridas que subiam do lado de fora da janela e as rosas Pareciam-lhe situa
das no passado, mortas, frias, como "gadas recordao do falecimento de algum. As abe
lhas que sugavam as flores surgiam-lhe em absurdas formas de pesadelo: vermes de
cadveres que
658
A MISSO
*1 i
* haviam criado asas e andavam por ali numa! j necrfaga. Tudo se separava deles.
Eles s sew nitidamente as vozes, s viam as imagens longfr" que vozes traziam at ali
. > c
O Governo transferira-se de Tours para Baa Os missionrios olharam uns para os outr
os erniaj cio. Todos compreenderam que a mesma ideia>Sf instantnea e colectiva
e se apresentava com o csj duma novidade, como se eles soubessem, pela prin vez,
que a Misso ficava no caminho de Bord! como se at a a posio geogrfica da Miss
flsj tivesse outra importncia alm da dos quilmetros! a afastavam da estrada princip
al e do apeadeiwf caminho-de-ferro. ^
A rdio dizia: "O presidente dos Estados Un respondeu negativamente ao apelo que l
he foi envi pelo Governo francs. O presidente americano no poderes suficientes par
a declarar guerra, por sua e| si v iniciativa, a qualquer pas. O Governo ffa! demi
tiu-se e formou-se outro Governo, que tem1 d chefe o marechal Ptain". ,
As vozes continuavam a chegar. Os missioij!$ continuavam de cabea baixa. Megret m
ovia os l como se falasse sozinho. <!
Um rumor surdo, clido, difuso, entrou na Dumesnil olhou para as roseiras, pens
ando na s presena dum enxame, mas s havia nesse mora* duas abelhas sobre as flores.
Dir-se-ia que as OH se tinham reunido dentro do aparelho e de l sai* invisivelme
nte, a zumbir. Pouco a pouco, aquiloa aumentando. Pouco a pouco, foi-se identif
icando. B( xar de ser o quente rumorejo de insectos e adquffB a regularidade e a
frieza dos rudos mecnicos. O'"l e a terra comearam a fremir com esse voo quesl anun
ciava a distncia e se aproximava rapidamenfl O Superior no se moveu. Admitiu que c
hegara^ castigo de Deus e que ele merecia, talvez, esse castigS Michaux e os out
ros missionrios caminharam atg cerca e puseram-se a olhar o cu. Era uma limpid" azu
l de Junho; sem outra mcula alm daquela: alfl
A MISSO
659
daqueles trs pequenos pontos que iam engordando de instante a instante e formando
uma linha de reticncias no espao sidrio, um espao to vazio de perdo como de vingana.
Lafargue limpara os culos para ver melhor e nas suas tmporas o dio batia forte for
te como na porta duma velha casa onde tardam a responder. Villiers, sem descerra
r os lbios, engolia uma prece.
Os avies estavam cada vez mais perto. Distinguia-se agora, com nitidez, o desenho
dos seus corpos, as suas cabeas e asas de cetceos, visto do fundo dum mar transpa
rente. J no era pelos ouvidos, mas pelos olhos, que eles derramavam dentro dos mis
sionrios toda aquela expectativa angustiosa. A ideia de que se trataria de france
ses ou de ingleses desaparecera: divisava-se l em cima, sob o azul do cu, a cruz g
amada das suas caudas. Dumesnil pusera-se tambm a rezar. S Lafargue sentia a nsia l
ouca de distender o punho, um punho elstico, um punho de quilmetros, que os abates
se em nome da Frana de
sempre.
Os tmpanos dos missionrios contraam-se, como se j tivessem visto ao longe o fumo da
exploso e no quisessem abalar os ouvidos com o estrondo que ia chegar. Mas esse re
ceio durou segundos apenas. Quando ergueram, de novo, os olhos, os avies tinham u
ltrapassado a Misso e afastavam-se da aldeia, serenos, refulgindo ao sol os seus
metais brilhantes e a sua 'mpunidade, na mesma linha direita e na mesma altitude
em que se haviam aproximado.
L dentro, no isolamento da cela, o Superior considerava que o castigo fora adiado
ou que talvez Deus houvesse, por fim, aprovado o que ele fizera.
hora do almoo, os missionrios continuavam CKI ar soturno. Mounier no comparecera. De
sde a ttussa, ao romper da manh, no voltara a sair da Capela. A sua ausncia, nesse
dia, molestava mais do 'l116 a sua presena, pois o lugar vago lembrava, com redob
rada fora, as razes por que ele no se encontrava ali.
66o
A MISSO
A MISSO
661
* s trs da tarde, um grupo, levando Miclifa|
frente, pediu ao Superior que reunisse urgenteM
o conselho. Ele hesitava, nesse momento, em ir cm
ir a casa de Roussin; em suportar solitariantWH
desassossego que sentia ou em tentar alivi-lo tn
cartas de jogar. Ante as palavras de Michaux, qtiil
vestiam uma imposio, encarou os outros rnisdj
rios: todos traziam no olhar uma flama resoluta, 10
se possussem agora a autoridade que normalmefi
a ele pertencia. O Superior baixou, ento, a caS
Pouco depois, o Cristo isolado nas paredes nua"
os homens cobertos de negro sentarem-se em recfol
longa mesa. m
Desde o primeiro instante, o Superior compreeffl
que o presente derrotara o futuro, se entrinchaffl
nos seus limites, entronizara o Momento Que Se \M
escorraando o eterno com o seu tempo indefinJjjB
sem dias contados; desde o primeiro instante jl
preendeu que esta reunio seria muito diferentfll
ltima que haviam efectuado ali diferente e dec
Michaux parecia ter pressa de chegar ao fimgl
Devido aos acontecimentos, deixou de haveruB
reio de Paris e ningum sabe quando voltar aen
restabelecido... , > l
Sbita angstia, ardente como uma exalaira|
lcool, nublou o crebro do Superior; e receosamfjl
os seus olhos convergiram para Michaux, admitH
que ele lhe conhecesse o segredo e fosse denuncia"
intil, portanto, estarmos espera duma dlB
so que no vir ou que vir demasiado tarde. Te"
de decidir por ns prprios afirmava Michaux. j
Pareceu ao Superior que a curta pausa se esteflffl
enormemente, mas sem lhe dar tempo de\ pensaffl
que era toda uma palpitao desordenada numa rioS
escura, uma noite muito escura mas com mil oIMB
vigilantes, que se iluminavam ou apagavam seguS
as suas convenincias e ardis, como os dos felilffll
quando se entregam caa. Ele sentia cada vez nrtB
que perdera a sua autoridade no s perante os outrM
mas perante si prprio; sentia-se sem fora moral, flij
p sobre uma rede de fio dbil, que o fazia oscilar e ameaava romper-se a todo o mome
nto; a sua autoridade passara para os outros numa transfuso que j no poderia ser de
tida e parecia-lhe que a sua fraqueza andava no ar e que os outros, mesmo sem o
saber, captavam a sua fraqueza e ficavam mais fortes do
que ele.
Michaux fitou-o:
Antes de virmos para aqui, trocmos impresses e pudemos verificar que estamos em ma
ioria...
O Superior tinha uma expresso aberta, expectante, nscia, de pastor ouvindo narrati
va que aumenta os seus receios de solitrio; toda a indeciso dele marrava ali; afas
tava-se, volvia e tornava a marrar ali, como destroo de rvore junto dum aude que no
o
deixa passar.
Conclumos que a atitude que mantivemos at aqui, embora seja, moralmente, muito lou
vvel, , na prtica, inteiramente pueril continuava Michaux. Ns tnhamos comeado por adm
itir a hiptese de oferecer dois alvos aos aviadores, para ficarmos numa situao
de igualdade com a dos operrios; depois, como a fbrica j estava camuflada, acei
tmos, pelo menos enquanto no viesse a deciso de Paris, a ideia de oferecer um alvo n
ico, isto , ns prprios. Os papis invertiam-se e a desigualdade mantinha-se, mas de
sta vez contra ns. Daramos a nossa vida, para salvarmos a dos homens da fbrica...
Michaux ergueu mais a cabea:
Ora aqui que est o erro, que nesse momento ningum viu, nem admira que no visse, poi
s, em vez de nos pormos a raciocinar friamente, entregmo-nos a- paixes antagnicas.
Assim, ns tnhamos partido do princpio de que se a Misso fosse bombardeada, s alemes d
ariam, depois disso, tudo por findo e a fbrica salvar-se-ia. Esta era a ideia que
havia, confusamente, em todos ns. Mas a verdade outra. Se formos atacados, as fo
tografias dos bombardeamentos sero examinadas pelos peritos respectivos. Os aviad
ores faro o seu relatrio. E seria preciso que os ale-
662
A MISSO
*
I
j, mes, os seus peritos, os seus laboratrios fossem |
estpidos para confundir os destroos duma AJ1
com os duma fbrica. Portanto, os avies voltai
Acabariam por identificar a fbrica e destru-M
tambm. O nosso sacrifcio teria sido inteiramente Ml
O silncio que se levantou ia colando adesSH
palavras que ficaram flutuantes. Dir-se-ia que o-fsfl
cio se estendera ao Mundo inteiro e que as patl
estavam ali h muito tempo j, sem pressa de 4
paradas, suspensas, mas vivas. i"l
Ao Superior voltara a desprazer a maneira $
Michaux se exprimia: "Fala como um civil. Tal"J
um civil. igual ao Brissac. No sei o que os
andaram a fazer no seminrio. Em vez de "estpidlj
poderia ter dito: "era preciso que fossem muito infj
petentes"..." Subitamente, o Superior admitiu qu&a
era s por isso que lhe desagradavam as palavrasHi
Michaux. Ele havia conhecido outros missionrios tm
ao falar, mais pareciam deputados do que servoajj
Deus. "E eu simpatizava com eles. Eu era at arti
deles". ^i
Pelo silncio fechado irrompeu uma voz de drsUi
subterrneo, profunda e quente de febre: 'Ai
No seria intil, no, Padre Michaux, se $8j
fosse a vontade de Deus. 'y)J
Michaux fixou Mounier. Fixou-o lentamente, C&J
se o seu olhar tivesse de ir devagar, sob o peso'"j
censura que transportava. Mounier estava mais p&"|
olheirento e magro do que fora at ali. Michaux baixel
os olhos com o enfado que produzem as afirmaes "
que se discorda, mas que no se tem pacincia pafll
contestar. Logo, porm, retorquiu: ^
O Padre Georges concebe duma estranha fl|ajj
neira os eleitos de Deus. Por que h-de Deus faljl
sempre pela boca do Padre Georges e no pela nossall
Por que as nossas palavras no ho-de ter sido insj"!
radas tambm por Deus ou mesmo as nicas inspiradtl
por Ele, uma vez que estamos em maioria e o 3(r)^
pretendemos agora continuar a ser teis ao nossa**
semelhante ?
A MISSO
663
Michaux hesitou perante uma ltima resistncia ntima, mas no se conteve e afastou-a:
Todos ns estimamos o Padre Georges, mas a verdade que, nestes ltimos anos, ele par
ece empenhado no s em esquecer mas, at, em combater o esprito da nossa Ordem. Quando
no encontra questes novas, vai s antigas e ressuscita-as. Todos se lembram, por ex
emplo, de que, h tempos, ele comeou a defender a liberdade do casamento para os pa
dres. Porque ns ramos homens iguais aos outros, dizia ele, e assim poderamos ser si
nceros e no teramos necessidade de ocultar uma parte da nossa vida, abandonando ou
renegando depois os nossos filhos. Os seus argumentos eram de tal maneira hertic
os que eu me escuso de repeti-los. Basta dizer que ele afirmava ser uma violncia
obrigarem-nos a vencer as leis invencveis da natureza com uma frgil hipocrisia ves
tida de luto. Ora todos ns sabemos, por experincia prpria, que taisleis no so de mane
ira alguma invencveis e que~alar de hipocrisia desconhecer a aceitao profunda que fi
zemos dos princpios morais que nos regem. Que os nossos inimigos o dissessem, ser
ia uma injustia, mas compreendia-se; agora ele!
O Superior voltou a fixar Michaux, procura da direco que a ponta do seu arado segu
ia na terra alheia que lavrava. Mas logo tapou aquela cova que, de repente, se t
inha aberto, cheia de problemas e de escrpulos do seu prprio passado. "Era, sem dvi
da, uma generalizao; nesse tempo ainda ele no estava ali" pensou.
Michaux voltava a cabea, com uma expresso contristada, que parecia significar ser
necessrio, mais do que nunca, ter pacincia e tolerncia com Mounier: Creio bem que f
oi influenciado pelos pastores ^gleses e americanos, que conheceu no Oriente, qu
e P Padre Georges se transformou. E se no foi por 'sso, se foi por outra coisa, o
resultado o mesmo.
T"1 Jr '
lenho pena. Tenho pena, pois sou o primeiro a admirar a sua inteligncia. Mas a ve
rdade que ele no s investe contra alguns dos princpios fundamentais
664
A MISSO
A MISSO
665
-1 i
* da nossa comunidade, que foram h muito estudJ
e esclarecidos pelas maiores autoridades da IgM
como toma atitudes profanas que nos so inteirar3
defesas. Ainda o ano passado, quebrando a nossaaB
tralidade e a discrio que nos imposta, ele nnsila
uma situao embaraosa com a sua campanha'"J
colonialista, numa revista laica, onde no devia"
maneira alguma colaborar. S a grande bondad8<j|
clarividncia do nosso amado Superior de ento etal
ram que o seu acto tivesse consequncias ainda>jpl
desagradveis do que as que teve para todos nstl
Os missionrios escutavam Michaux sem o ifa"
romper, mas com uma sensao de constrangimjB
Mounier disse: "u9
Faz-me bem ouvir repetir, pela boca de ouiajiB o que eu penso. Se Deus justo, el
e estar corral
Se Deus justo ? Vossa Reverncia duvidaa* que Deus seja justo ? perguntou Michaux
com:M grande ar de escandalizado. ,"
Se Deus justo, ele estar comigo msisjH Mounier. <s|9
Megret interveio, ento, num gesto largo que repjj| v v e^conciliava ao mesmo tempo:
* .nol
extempornea e intil uma discusso destSil A gua do repuxo caa l fora. Caa nitidamea
Villiers partira um fsforo em trs pedaos e com.^H
compunha letras sobre a mesa. J havia feito e d|9
feito um A, um H, um T e um N. O Superior olhou"!
um momento, abstractamente. Depois, sentiu agffl
var-se-lhe o mal-estar manifestado pelos seus ps desflB
que calara, de manh, os sapatos novos. ;J|
Se pensarmos bem tornou Michaux, no*^
mente com uma voz de condescendncia a nos$"
iseno neste caso seria prejudicial, em vez de fren|
fica. Se a Misso se salva e a fbrica atacada, a<|*^
estaremos ns para confortar os sobreviventes, pa^p
mitigar as suas dores. O contrrio seria deixarmo-n0(r)|
aniquilar voluntariamente, sem vantagem para ningunff
Michaux voltou a fixar o Superior: r
Como j disse a Vossa Reverncia, ns trocmos
^presses h pouco. Ns todos acentuou salvo o Padre Georges, claro... E pudemos ver
ificar que as nossas opinies coincidiam... H dois que nos do o seu apoio de forma c
ondicional, isto , apoiaro se todos os outros estiverem de acordo: e h oito que, de
pois de terem meditado longamente, depois de terem pesado todos os prs e todos os
contras, entendem que se deve mandar pintar sobre o nosso telhado a
palavra "Misso".
"H dois que nos do... repetiu intimamente, em eco, o Superior, com um suplemento d
e m vontade para Michaux. Ele no hesita em confessar que foi um dos que tomou a i
niciativa. Provavelmente, at foi
ele s".
Michaux carregava ainda:
Estamos certos de que a deciso de Paris no
poderia ser outra...
O Superior sentiu a existncia das suas faces, um ardor que parecia ter subido
dos ps comprimidos. De novo a resposta que estava dentro dele se agitava, activ
a, inquieta, como um homem que voltara a si dentro dum tmulo fechado. De novo aq
uele sabor de crime batia contra a cobertura do tmulo. Ele j quase no via as razes p
orque o cerrara. As razes diluam-se, distanciavam-se, perdiam a sua importncia de d
ias antes, para dar apenas valor queles homens que estavam inclinados em redor do
tmulo, sem saber o que ele continha, mas falando como se adivinhassem o seu cont
edo. A^ duas responsabilidades adversas continuavam a luta; o Superior via
uma a brigar mesmo em frente dos seus olhos, outra ao longe; mas sempre acont
ecia influenci-lo mais e ser mais forte aquela que, no decorrer da contenda, se p
ostava em frente dos olhos dele.
-Falta apenas a aprovao de Vossa Reverncia... conclua Michaux, num torn solene.
Desde o princpio do conselho, o Superior pressentira que os outros haviam de util
izar uma chave daquele feitio para abrir o tmulo - e receara esse momento decisiv
o. Mas, agora, pensava que, no obstante a sua
666
A MISSO
^fraqueza, alguma coisa dependia ainda dele. El^ft
apesar de tudo, o Superior. Tinha direito a resSjj
para si um pouco de silncio antes de responder. Q|
para Mounier e viu-o de braos estendidos sofom
mesa, a cabea levemente inclinada, o rosto irai|a|
austero. Via-o de perfil e essa austeridade, nuujjj
pela fixidez dos lbios, parecia mais forte do que n
fria e definitiva como se estivesse esculpida. OtfiS
rior arredou a vista. Os hbitos negros dos missionai
iam-se dissolvendo, mudando de cor e de formaJl
corpos diminuam, as cabeas tambm. A idade rectyl
e os padres tornavam-se mais novos. Nas faces M
bras, sempre a empequenecer, surgiam-lhes rseasjS
de infncia. As figuras e as expresses metamorfose
vam-se integralmente, a imobilidade estremecia;/'*
"chia-se de gestos, de movimentos; o silncio enchida
de risos e de vozes ainda tenras. A mesa, as abotoa*
as paredes deliam-se e em seu lugar aparecia a rualj
bairro todo, com bandos de crianas descuidadas, $M
ps de cabecitas que as mos dele afagavam tadjSi
mente. r ,fiM
difcil...murmurou o Superior, comOt||
falasse sozinho. Os missionrios olharam-no e ouw
ram-no repetir: muito difcil... $m
Ele pensou que talvez dez homens interpretasl
melhor o desejo divino do que dois apenas. Mas,>W
outro lado, todas as grandes revelaes que a Igri|
apregoava tinham sido feitas, dizia-se, individualmenfll
Na religio como nas ideias novas fora sempre i**||
minoria que iluminara os passos da maioria. *n^a
Tornou a contemplar Mounier, que voltara ligeisal
mente a cabea como se esperasse aquele olhar. (3M
olhos dos dois homens encontraram-se. Os de Mouni^H
continuavam febris, num corpo que parecia haver p6*C|
mitido que todas as suas carnes fossem devoradas pofl
um jejum teimoso. Os olhos ardiam no fundo de do$1f
buracos macilentos e enrugados, como as velas qu$!
persistem acesas entre as paredes de cera que ela*
prprias criaram ao consumir-se. ^
O Superior observou os outros, numa ltima obt*
A MISSO
667
dincia sua indeciso. Mas o silncio e a quietude deles j no ofereciam esperana alguma
Mais uma vez lhe sobreveio aquela velha frouxidade do seu carcter, que lhe envinc
ilhava os problemas e lhe dificultava as decises; aquela tibieza feita de piudncia
e de propenso para exagerar as consequncias dos seus actos, mesmo os mais desejad
os, desde que no fossem secretos e pudessem levantar discordncias. Durante um mome
nto, porm, ele sentiu-se estimulado, ao ouvir Lafargue dizer:
H um aspecto que sempre esquecemos e que me parece, neste caso, de extraordinria i
mportncia. o que se refere ao papel dos operrios na defesa nacional... H quinhentos
anos, Mahomet II conseguiu chegar, com os seus turcos, at as portas de Constanti
nopla e, empregando uma nova estratgia, ps entre dois fogos a cidade que ele prete
ndia conquistar. Entretanto, os monges de Bizncio, em vez de defender o burgo ass
ediado, ficaram a discutir questes de lana caprina... Todos sabem isto...
Michaux ia a responder, mas, desta vez, Villiers adiantou-se-lhe, de mau humor:
A questo que nos rene aqui est muito longe de ser ftil e, demais a mais, ela engloba
o papel dos operrios.
No esprito do Superior, a balana oscilava sempre; o prato que subira pouco antes v
oltara a descer; o prato onde ele pusera a carta do Superior Nacional descia ou
subia conforme as palavras do ltimo missionrio que falava, como se as palavras aum
entassem ou diminussem o peso da carta. Ele queria que o seu prato pesasse mais-,
inas que, ao mesmo tempo, o fiel desse a impresso de no estar inclinado; desse a
iluso de se encontrar ao meio, muito acima dos pratos, imparcial, neutro, como qu
ando ningum utiliza a balana. liso j lhe parecia uma concesso, porque o seu dever se
ria levantar a carta e coloc-la no prato oposto. Durante um momento, tentou agarr
ar-se a si prprio: <(A carta no explica nada. uma soluo moral burocrtica". Pensou iss
o, mas no conseguiu fixar-se, como
668
A MISSO
A MISSO
669
*se dentro dele duas veias se esvassem incesMf
mente. \3
Mounier levantara-se, com uma grande sevenaj
a contrair-lhe o rosto. Parecia mais alto do que 13
O seu hbito mais negro. O olhar mais grave e>m
firme. Dir-se-ia que tudo se sumira sua voltajCjp
ele se erguera num deserto e que a cor dos desej|
estava nas suas faces. O Superior ouviu-o dizeriy
Depois do que tenho visto ao longo da mif
vida, no sei se h, realmente, uma vontade di*;
que se interesse pelo que fazemos, que se preocia
com as nossas pobres ?preenses, com o nosso b
ou com o nosso mal. Mas se h, no creio que puja
estar de acordo com os vossos desejos, com o egosj"
que se tem demonstrado aqui. Portanto, o que fiqj
resolvido pertencer somente vossa conscincia"^
vossa responsabilidade... a
Bertaut, que, depois do Cristo fixado na pareqi
era a presena mais silenciosa e imvel, sempre m
cotovelos sobre a mesa e as mos coladas Ca
moveu-se e persignou-se rapidamente: * J
uma heresia! 'J|
Heresia! Grande heresia! repetiram alguns d" outros. l
No por egosmo! protestou Megret. B^j rece-me que o Padre Michaux j explicou sufic
iehtfj mente... Ti
De p, Mounier vagueou os olhos sobre todos KM homens. Salvo Lafargue e Michaux, o
s outros estavala de cabea baixa. Ele dernorou-se um instante a col| templjos e, de
pois, voltou-se para o Superior, cot& uma voz sbria: __ tf
Peo licena para me retirar. j intil a minhl presena aqui. ^
Os missionrios viram-no sair lentamente, com <| sua magreza angulosa e lividez de
ressuscitado. Ut momento, os passos vagarosos alteraram o rumor da? gua que caa l fo
ra; mas logo esse murmrio fresco e harmonioso tornava sua integridade, perante o
mutismo dos homens. '
O Superior compreendeu que o novo silncio era com ele. Que a deciso fora tomada, e
stava fixa no silncio e a aprovao que lhe pediam era apenas convencional. Aquela mu
dez colectiva aguardava as palavras dele como a grande taa de mrmore, no jardim, p
arecia esperar, quando se abria o repuxo, a gua que ia cair, inevitavelmente, sob
re ela.
Est bem... declarou. you mandar chamar o pintor... De repente, pareceu-lhe que a
s palavras que proferira eram demasiado simples, no o aliviando do seu mal-estar,
nem traduzindo a solenidade que ele sentia Seja feita a vossa vontade acresce
ntou.
A balana havia parado. Mas o fiel no se encontrava no meio, como nas balanas que de
scansam normalmente. Um dos pratos erguia-se mais alto do que o outro e o fiel i
nclinava-se para uma das bandas. O Superior lamentava essa anomalia, tanto mais
que a inclinao se dava para o lado que no era o seu. Ele sabia, porm, que, mesmo se
voltasse atrs, no teria coragem de reparar publicamente o desacerto.
Ao entrar na galeria, ainda de esprito em balbrdia, viu o irmo hortelo aproximar-se
com os modos tmidos que tinha sempre:
Monsieur Roussin est ali e pede a graa de ser recebido por Vossa Reverncia...
O irmo estendera o brao, apontando o antigo locutrio dos frades, que os missionrios
haviam transformado em saleta.
Chegou h muito ? perguntou o Superior, sentindo toda a amargura dos seus jps comp
rimidos.
H bastante tempo. Poucos minutos depois de
0 conselho principiar...
Considerando que no devia fazer esperar mais quem em sua casa to prestimoso e deli
cado se mostrava, o Superior venceu o enfado e tomou a direco contrria que seguia.
Ao v-lo aparecer na saleta, Roussin apoiou-se muito
670
A MISSO
f na bengala e levantou-se do velho sof de paiUl
que uma gravura encimava, com os retratos dS
os Papas, em redondos e em filas, como um ms"!
de numismtica cravado na parede. n(J|
Rogo-lhe que me perdoe se sou importuttSj
como no tive a honra de o ver hoje em minhai
decidi vir por a fora... disse, com um ar turfS
ele que se mostrava sempre muito senhor d -1|
No est doente, pois no ? , -rfJJ
Embora nada lhe sugerisse aquilo, o SuperiomMJ
tiu, um instante, que Roussin, inquieto pela sua afim
cia., houvesse percorrido a distncia que separlB
"manoir" da Misso, apenas para se informar da sal
No, muito obrigado. Estou perfeitamentejiM
ms um conselho e foi isso que no me permitnraB
Mas sente-se! Sente-se! pediu-lhe, com umqjM
amistoso. tiU
Roussin sentou-se. O Superior ficou em frente B
numa daquelas cadeiras da famlia do sof, connefljB
dar e fundo de palhinha amarela que o tempo tornB
cor de mel... -$|
Foi s por isso... volveu o Superior, ao {MH
cer-lhe que o seu companheiro de "crapaud" seoiwB
tinha contrafeito. Mas essa espcie de humildacfeoH
ele lhe via e o intrigava, desfez-se rapidamente, ifcij
Ainda bem! D-me com isso grande alegriaHj
afirmou Roussin, j no torn que lhe era habitual.'i^B
recostando-se no sof, largou a conversar, muitoiwM
vel, muito gentil-homem, nos lbios um sorriso de^ajjM
biantes sucessivas, enquanto a mo se levantatsjj
ia prestando um auxlio discreto s palavras. Foi, asgiB
recolhendo o tempo que a sua educao mandava ^"jjB
antes de pr luz o motivo que o trouxera ali e, p"B
fim, encadeou: *
Justamente as notcias de hoje so bastante d^H
nimadoras... E esta fbrica que existe aqui! Esta B"*H
dita fbrica! ^l
Demorou-se numa pausa larga, enegrecida de rne*38*!
elia e de suspiros, e ajuntou: '
A MISSO
671
_ No quero ser profeta de desgraas, mas s um milagre pode evitar que os alemes chegu
em at ns. S um milagre!
Calou-se novamente, por pouco tempo, como se precisasse de silncio apenas para en
costar melhor perna a bengala de casto de oiro ou para inscrever mais fundo na al
ma conturbada os seus prprios augrios. Dizem que os velhos tm maior receio da morte
do que os jovens. possvel... Eu, por mim, no tenho! Desde a primeira cruzada, nin
gum, na minha famlia, teve medo de morrer. E note-se que, do sculo xi at hoje, a min
ha famlia foi constituda por dois mil setecentos e quarenta e trs membros, dos quai
s mil e duzentos e vinte e um eram vares. Todos deixaram boa memria. As prprias mul
heres, mesmo as que morreram na cama, souberam faz-lo com dignidade.
O Superior ouvia com ar atento, sorria intimamente, contra a vontade, e, entreta
nto, perguntava a si mesmo para qual moinho pretendia Roussin levar aqueles gros
dos sculos hericos.
Medo, no tenho. Nunca tive! Sinto-me muito sozinho. A criada nova, essa s pensa no
namoro, um desses operrios que trabalham l na fbrica. Se amanh cassem bombas ou os a
lemes aparecessem por a, a primeira coisa que ela faria era abandonar-me e correr
para o lado dele. A outra, est quase to velha como eu. -me dedicada, eu sei, mas ve
io das camadas baixas e no pode eximir-se origem do seu sangue: e medrosa como um
a galinha...
O Superior visionou, de sbito, a sua famlia, todos s seus modestos parentes reunido
s em volta da mesa de jantar, no dia do aniversrio do pai. E fosse porque s sapato
s lhe apertavam os ps, fosse porque passara s ltimos dias a comprimir-se a si prprio
, a teener as Palavras que os raciocnios impunham, a jugular toda a espontaneidad
e dos sentimentos, sentiu, repentinatttrue, uma nsia de desforra, o mpeto de ser de
sapadvel a Roussin, de ser sincero, de sacudir, enfim, toclas as hesitaes:
672
A MISSO
n
l
* H muita gente vinda das camadas baixai
sieur Roussin, que to corajosa como qualquec"
Tambm Jesus nasceu na maior humildade e ;HJ
coragem ainda no houve, que eu saiba... .fjl
O velho surpreendeu-se com a vivacidade <Am
com aquele "que eu saiba", apendicular e sublinj"
apesar de quase hertico; e o seu instinto diswj
que, pondo Jesus de parte, a defesa que acabaVfM
ouvir no saa, por certo, dum sangue puro. t/1"
brou-se de que nada sabia sobre os antepassada!
Superior, censurou-se por essa negligncia e coam|
que talvez se tratasse dum bastardo ou simplesl|
dum plebeu, como tantos outros. Pensou, porinS
era contra os seus interesses deter-se agora soral
questo e, erguendo os olhos brilhantes de cortai
apoiou: ifjB
Claro! Claro! Eu falo apenas na generalidfB
Demais a mais, a Blanche no m pessoa e, ciffl
disse h pouco, -me bastante dedicada. Mas aJ^H
dade que se os alemes vierem por a, no serliB
quem poder ajudar-me a resolver as dinculdadeS'OTJ
surgirem... -11
Roussin deteve-se. O Superior viu que ele co*fB
cara a deslizar uma das mos sobre a outra, z$j
ao que fazia. Pareceu-lhe de novo constrangido, '6M
aquela mesma quebra de naturalidade que mostracaB
princpio. Depois, ouviu-o dizer, numa voz hesitaaM
quase humilde: -rM
Por isso me lembrei de lhe vir pedir asilorij
isto passar... Sei que meu amigo. Um amigo cfliM
hoje no h muitos. Aqui, eu sentiria, pelo men^JJ
prazer e a honra da sua companhia. Por outro &09
a unio faz a fora... * i"
Roussin estranhou que o Superior ficasse caladricll.
de olhos ausentes, como se ele no se encontrasse aHt'
Evidentemente, qualquer canto me serve... Nw
tem necessidade de alterar coisa alguma por rnint"
causa. J lhe disse uma vez que, na minha fam^*$
quando era preciso no se olhava a conforto. Deixai
vam-se os castelos e ia-se lutar... *
A MISSO
673
k
O olhar do Superior continuava nublado e com uns toques pensativos de boi remoen
do sob a canga, sem pressa alguma. Roussin sentiu toda a humilhao que Daquelas nuv
ens concentradas caa sobre ele. E considerou que jamais um homem da sua raiz proc
ederia de modo to incorrecto. A neblina comeara, porm, a esgarar-se:
Est bem... concordava o Superior.-Enquanto nos consentirem, esta casa de D
eus ficar ao seu dispor... Como se fosse um peregrino que viesse de longe...
Roussin no gostou da comparao. Mas logo aquilo lhe pareceu to insignificante como um
a pequena ave negra voando solitariamente no novo amanhecer da sua tranquilidade
; e, j satisfeito, duas vezes se curvou, prdigo de reverncias e quente de palavras,
a agradecer a concesso.
you mandar preparar uma cela tornou o Superior. No estar to bem como em sua casa,
mas faremos tudo quanto pudermos. Quando pensa vir?
Hoje mesmo respondeu Roussin, com uma rapidez de que logo se arrependeu. Hoje
mesmo, se isso no lhe causar, claro, grande transtorno...
No... Nenhum... A voz do Superior era lenta e adquirira uma perfeita maciez sace
rdotal.
Roussin voltou a agradecer e, de novo, se apoiou sua bengala, para levantar-se.
No queria roubar mais tempo, disse. Ia arrumar as suas coisas, duas simples malet
as, apenas com o essencial. Nesse dia ainda jantaria em casa e depois do jantar
viria, ento, dormir ali.
J de p, rodou o olhar pela saleta e evadiu-o, em seguida, para o jardim, atravs da
janela que substitura as grades do antigo parlatrio:
H meses que eu no vinha para estes lados. Ainda no tinha visto a Misso depois da ltim
a vez ua a caiaram. Est muito bonita, assim branquinha e toda florida. Muito bonit
a! O que notei que, sobre
0 telhado, no h nenhuma indicao... Provavelftiente, um esquecimento... Na o
utra guerra havia umas
22 Vol. Ill
674
A MISSO
letras muito grandes. E nesse tempo, graas a. Jju os avies no tinham a importncia qu
e tm haS
O Superior no quis encontrar os olhos de Roqyj E ps-se a olhar tambm para o jardim.
i^
No, no foi um esquecimento disse, dejj vagarosamente. Temos estado a pensar niss
o.-;^
iliS
h>, Mounier encontrava-se porta da cela, im$
quase espectral entre a sombra que se carregaSj sua volta, quando ele chegou, an
sioso de descalai sapatos. O Superior compreendeu imediatamente^ as cinzas da reu
nio iam ser sopradas e pensou:^ a brasa sob elas oculta podia ainda queim-lo, ih
Desejava falar-lhe disse Mounier, num i| muito simples. O Superior, que esp
erava uma voz "j mtica, sentiu-se menos inquieto. >i
Entre. 19 Mounier seguiu-o. L dentro, encostou-se a 4li
das paredes da cela e ficou a olhar para as mos 3 Superior, que, sentado na borda
da cama, alarg os cordes dos sapatos, em silncio. -fi
Sinto-me bastante fatigado e receio adoeces declarou Mounier. Esta vida de miss
ionrio ,>lf% dvida, muito bela, mas precisa de homens rijos, cjj zes de afrontar to
dos os climas... Ora j no es meu caso. J no tenho sade para isso... Decidi, pi tant
egressar vida civil... 'n
O Superior acabava de tirar um dos sapatos. 0^ direito manifestava a sua gratido
pela liberdade t'_q lhe fora concedida. E um tpido bem-estar subiarg p para o rest
o do corpo, um bem-estar logo pertt bado por aquela surpresa.
Decidi partir... Custa-me, naturalmente... All sar de tudo, uma revoluo nos meus hb
itos, J meu esprito, em toda a minha vida... (1
Georges Mounier calara-se de repente. A sua V< parecia ter-se comovido. Depois v
oltara, num esfor
A MISSO
675
Agradecia-lhe que me ajudasse a tornar menos penoso este acto...
O Superior levantou um olhar austero. Depois, baixou-o, indolentemente. As suas
mos demoravam-se a dobrar os contrafortes do sapato que mais o magoara, como se l
he avaliassem a resistncia.
. No se poder dizer que por medo que procedo assim, pois, de agora em diante, a Mi
sso vai ficar salvaguardada... acrescentou Mounier.
Julgar-se-ia que o Superior se distrara. Metera a mo dentro do sapato, aproximara-
o do rosto e comeara a soprar-lhe o p.
Compreendo o seu estado de esprito disse, por fim, erguendo novamente os ol
hos. Compreendo o seu estado de esprito, mas no compreendo a sua resoluo... Parece
um gesto de despeito, uma vingana, que Deus condena. Pela nossa prpria doutrina, d
evemos afastar esses sentimentos...
No desejo vingar-me de ningum. No sinto despeito por pessoa alguma interromp
eu Mounier, ligeiramente trmulo.
O Superior franziu uma dvida:
um acto grave e absurdo... Deve meditar primeiro... No h nada que nos parea to intil
como as nossas cleras, quando as evocamos tempos depois.
O largo dorso do Superior dobrou-se, mais uma vez, com esforo, beira da cama, par
a tirar o segundo sapato.
S Deus sabe quanto tenho meditado. Nos ltimos tempos no tenho feito outra coisa...
No deve ter meditado suficientemente... A voz parecia vir do cho. No crei
o que tenha meditado suficientemente. O que se passou compreensvel...
O dique, dificilmente mantido, ameaava esbarrondar-se. Mounier conteve-se. O seu
pomo de Ado, muito saliente e agudo, moveu-se, parou, tornou a mover-se, como se
engolisse foradamente alguma coisa.
No foi s por isso disse, por fim, com um 'rn calmo. No foi s por isso. Isso foi ape
nas uma
676
A MISSO
1
J
j, consequncia... E eu no seria sincero, nem CM
nem com os outros, se ficasse... "
O Superior continuava alheio ao que fazia. Q
manga do brao direito ia limpando o sapatr
enfiara na mo do brao esquerdo; de quandf
quando, bafejava-o, como aos vidros duns cu^
e prosseguia na limpeza. De sbito, deu conta dos-
gestos e, com um ar vexado, pousou rapidamert
sapato no cho. Mounier afirmava: s
Quando comeamos a interessar-nos profii
mente pelo destino dos homens sobre a terra e a u
cuparmo-nos com as injustias que eles sofrem st
que j se abalou em ns a certeza de que o s^
mento neste mundo o preo da felicidade no toj
Ora, h muito tempo que eu passei a ver os hcaq
duma maneira diferente daquela como os via at;
E desse novo interesse nasceram certas dvidaiy
certas dvidas, que eu trazia em mini, sem o sajj
criaram esse interesse...
O Superior havia calado os chinelos. Sentia, agp
bem-estar em ambos os ps. Ao mesmo tempo, noa
esprito, um sentimento culposo bulhava com umaj|
lanclica ternura pelo homem que estava encostg
parede. Uma ternura indizvel, como se ele houvtf|
encontrado em velha casa abandonada, cheia deij
e de silncio, uma boneca esquecida no seu betf$||
de olhos abertos na solido. t|
Ultimamente, no tenho feito mais do que 3fj
piorar a certeza antiga, mas todos os meus esfola
tm sido inteis... Desde que principiamos a duvidai
sentimos maior pena pelos homens que vivem neS|
mundo e maior solidariedade com eles, talvez por/
fundo, termos maior pena de ns prprios... i^j
Pareceu ao Superior que, em certos instantesrf|
seu esprito seguia na esteira das palavras de Mouniel
no apenas por necessidade de contest-las, mas cottQ
as gaivotas seguem na esteira dos navios para ^
alimentarem dos seus restos. Desejoso de pr em orde"
emoes e raciocnios contraditrios, de suprimir aqueM
incmoda ternura, aquela ternura condenvel qH*l
A MISSO
677
mesmo contra a vontade dele, se evaporava do seu caos ntimo, o Superior levantou-
se e comeou a andar na cela. Ele queria dizer no sabia o qu; queria reagir no sabia
como. Sentia que nele prprio existia alguma coisa por dizer, por definir, alguma
coisa que no encontrava expresso imediata, nem a total harmonia interior de que pr
ecisava para ser dita.
De facto, h aspiraes que so to sacrificadas como as pobres unhas dos nossos ps...--mur
murou involuntariamente, ainda sob a influncia dos sapatos.
Um remorso crescia e ferrava as presas na ternura que ele dava a Mounier; ferrav
a-as e demorava-se sobre ela, mas no conseguia domin-la inteiramente.
Aqui, eu j no podia lutar com convico... O meu campo tem de ser outro, portanto...
Os dois sapatos estavam debaixo da cama, um ao lado do outro, muito juntos, com
o seu qu de aves em repouso. Dentro da maranha, a ternura continuava a furtar-se
ao remorso. Mounier, imvel, parecia mais de cera do que habitualmente, uma figura
de cera arrumada, de modo provisrio, contra a parede.
Como ? exclamou de repente o Superior, detendo os seus passos em frente dele, c
om o ar meio surpreendido, meio desgostoso, de^quem julga ter, enfim, compreendi
do tudo. Como ? a secularizao que deseja?
Mounier no respondeu. Os seus olhos continuaram baixos.
O Superior ajuntou:
Mesmo secularizado, ficaria pertencendo nossa religio. Ora as suas dvidas... Essas
dvidas...
A reaco esperada no veio. O silncio de Moun'er prosseguia, intacto, macio. A voz do S
uperior a%iu-se:
No isso que quer? No isso? Diga!
O Superior sentiu o mpeto de apertar nas suas ^os, de sacudir fortemente, aquele s
ilncio que resPndia "No!"
Uma atitude dessas no deve ser tomada de
6;8
A MISSO
* nimo leve disse. No se quebram todos ^fl
culos por uma dvida que o prprio tempo podifl
desaparecer. A mo do Superior levantou-se er||B
a friccionar nervosamente a orelha direita, que $B
muito vermelha. Nem se quebra tudo e se fjj
por uma simples discordncia... Portanto, a sfjfl
zao! Eu me encarrego de facilitar o processoQMB
A imagem da mulher sentada num banco, jurrt^B
trepadeira florida que se agarrava parede, volv&ul
olhos de Mounier. ;"jfl
Eu desejo inteira liberdade! declarou e&tll fim. Gostaria de encontrar uma pla
taforma que4jH fizesse a todos ns, mas entendo que quem se '&$ a dar um passo com
o este, deve d-lo completameSM
Quer dizer: vai ainda mais longe do que a^fH de que o Padre Michaux o acusou...
isto, iftMB
De novo Mounier ficou calado. Mas era um 'SJH cio to afirmativo, que o Superior vo
ltou a passljM cela, com as mos a apertarem-se duramente atrffllB costas e no rosto
uma contraco de desespero, ^fl nier tornara a baixar a cabea, enquanto a bkfSR^B do
seu sapato ia dobrando, de modo distrado, a p*^^l do pequeno tapete, como ao ngul
o dum cartMM
Sempre a andar dum lado a outro, o SupBwH monologava: / jH
A vida uma permanente srie de limitaffiU Nunca fazemos tudo quanto desejamos, mes
mo qu^(r)lB os nossos desejos so justos. Deus Nosso Senhor aJJH o quis. Toda a gen
te sabe isto. Se algum pudesse r^aJM zar todos os seus desejos, cairia numa confu
so iro^M pois dum desejo nascem outros e outros e oUtraM que se entrecr
uzam e se emaranham antes mesmo^K os primeiros estarem realizados. Justamente uma
&-F grandes virtudes da Igreja ensinar-nos a vencer wfr nossos impulsos. Isso a
que os nossos inimigos cHjP* mam "hipocrisia" no coisa to fcil como
f& rece... '~"
O Superior aproximou-se de Mounier e ps-lhe "
A MISSO
679
mos sobre os ombros. No seu olhar ardia uma emoo
paternal:
. Peco-lhe que medite novamente. No se deve
precipitar num gesto assim to grave. Eu you pensar tambm. E logo voltaremos a fala
r.
Mounier no se moveu. Continuou encostado parede e parecia que tinha ainda alguma
coisa a dizer. O Superior, porm, teimou:
V! V! Medite mais uma vez. E logo falamos.
Ao morrer da tarde, a B. B. C., de Londres, poVoara a atmosfera com novos sobres
saltos. Um bando de espectros, de bordo nas mos, mantos brancos e pretos ao vento,
caminheiros de noites de pesadelo, apossara-se do cu, marchava no ar, rompia atr
avs das nuvens, como os deuses das oleografias, e esbordoava, esquerda e direita,
as esperanas mais resistentes. Bordus fora bombardeada pelos alemes. As tropas inv
asoras continuavam a progredir, de balso desfraldado sobre vitrias sem conta. O ma
rechal Ptain, novo chefe do Governo, tinha a guerra por inteiramente perdida: a h
ora da submisso e do silncio ainda espantado tardaria apenas alguns dias, pois s fa
ltava quebrar a casca do ovo vazio. Em face do pas em transe, o nico remdio seria a
s mos francesas, tornadas imprevistamente dbeis, resolverem-se a apertar, com forad
a cordialidade, as mos de ao do inimigo.
Em volta do aparelho, quase todos os missionrios escutavam o avano da catstrofe. A
catstrofe surgiaIhes sempre com o feitio de tanques. Uma fila interminvel de tanqu
es monstruosos, que rolava com a Deciso pesada e fria das coisas inexorveis, esmag
ando tudo, as rvores novas, cheias de primavera e de futuro, as velhas rvores ansi
osas de sol e de paz, os lares de guitas geraes, at os insectos ledos de Junho, as
formigas nos seus carreiros, os saltes rias suas hastes. AS borboletas levantavam
-se, fugiam, voltejavam como
68o
A MISSO
A MISSO
681
flores errantes, entonteciam e vinham meter-se/ <m
fim, debaixo da muralha de ferro que progredia seiiaj
O Governo britnico afirmava, porm, que, erniB
sozinho e fossem quais fossem as misrias e sofrirniB
que da adviessem, continuaria o combate. No ai9
espectros vacilaram um momento, detiveram-se' -ptl
ouvir melhor e logo, cepticamente, recomeara"
sua marcha. A B. B. C. repetia a proclamao qiml
general De Gaulle fizera na vspera, convidando*
franceses a juntarem-se a ele e a prosseguir a luta l
terra estrangeira, onde as esperanas emigradas e exB
tas poderiam, porventura, reflorescer. 'l
Os missionrios escutavam de rosto cerrado, iB
tvel'. O seu silncio e a sua quietude aumentavarfB
gravidade das palavras que chegavam de longe e'^j
mo de alguns deles, os cigarros esquecidos ardiarri*l|
a pele dos dedos. A ideia de que a Misso se enc3
trava entre Tours e Bordus voltara e jazia ali, 4
fixa como o aparelho que falava. Pelas ltimas not<a|
ouvidas, os alemes deviam estar a noventa quilo
tros apenas. til
Londres enviava, agora, "A Marselhesa". Um -io|
tante, o ar gelado fendeu-se, carapaas de neve tSjl
baram sobre as guas fundas, algumas montanhas vU
naram a expor ao sol o verde das suas encostas. Depd|
o silncio volveu. ij
Lafargue levantou-se de repente: fill
preciso fazer alguma coisa! ^n
O qu ? perguntou Michaux, com o enerTal mento de quem surpreendido por uma nov
a dwj culdade. jj
Os outros no gostaram daquele torn. Jfl
O qu ? interrogou, por sua vez, DumesaH numa voz hmida de desnimo. "l
Todos ficaram a olhar para Lafargue. Ele era aMji e de tez bronzeada; e o rosto
iluminara-se-lhe com o*f fulgor juvenil que contrastava com a frieza negra fj seu
hbito. '<*
O qu ? insistiu Dumesnil. <J Dir-se-ia que Lafargue, parado e de olhos brilhas^
tes postos ao longe, fazia a si prprio a mesma pergunta :
. Alguma coisa, pela Frana! repetiu.
Todos sabiam que Lafargue era assim, que aquilo havia de influir nele, que se ex
altava facilmente e, nos seus frenesis patriticos, jamais abria a porta ao bom-se
nso. Esse conhecimento da sua personalidade destrua rapidamente o efeito das suas
atitudes. Alguns dos outros missionrios tinham sentido tambm as notas alvoroantes
entrar-lhes nas veias e pr-lhes o sangue a correr, desaustinado, frente delas; ne
nhum, porm, ignorava que quando um tambor deixa de rufar, as pernas de quem no sol
dado deixam, igualmente, de marcar passo.
Lafargue esteve ainda um momento parado, de p, como se aguardasse uma sugesto que
tardava. Os seus olhos estavam cheios de mar. As ondas verdes da Mancha entravam
-lhe pelos olhos e derramavam-se dentro dele, sem descanso. Era um mar quente, c
ada vez mais quente e mais verde, que os seus olhos bebiam.
Se "isso" se der, eu, por mim, com a ajuda de Deus, sei o que hei-de fazer! ...
disse, finalmente. E saiu a passos largos e com as gotas salgadas do seu mar a c
arem-lhe dos olhos.
O silncio estendera-se a toda a Misso. Criara-se um vazio mesmo onde nada existia
nos dias anteriores. O Superior havia-se metido na cela e dir-se-ia que a sua po
rta fechada aumentava ainda mais o vcuo que se sentia por toda a parte. Entre dua
s roseiras, uma grande aranha fabricava a sua teia, indiferente a tudo; e pareci
a ser, nesse trabalho obstinado, a nica expresso da vida para a qual as leis etern
as no haviam sofrido alterao alguma.
S hora do jantar os missionrios tornaram a ver o Superior. Fora o ltimo a chegar ao
refeitrio e os seus olhos dirigiram-se imediatamente para o lugar onde Mounier c
ostumava sentar-se. Ele sabia que Mouftier no estaria l; mas os seus olhos eram at
rados Para o espao vazio entre Megret e Villiers, para essa fenda que descia pelo
Mundo adentro, como as que
682
A MISSO
os terramotos abrem; eram atrados como se pral
* sem de a contemplar para se convencer da sua pai
certeza. Os outros missionrios sofriam tambm -QJm
dessa ausncia fsica, substituda por uma pro|
invisvel, que molestava a todos eles; e o jantarj|
os mais ligeiros toques dos talheres nos pratos a SOM
aguda e exageradamente no silncio do refeitriffij
nara-se penoso como se algum houvesse morritdl
Depois das graas, o Superior, de p, cabaj
da mesa, disse: c3|
O irmo hortelo foi falar com o pintor.^M
vir amanh. Tinha j o dia comprometido, mas,/jcJ|
se tratava de ns, conseguiu que o dispensassem,j
vir pintar as letras... .,-3
Ningum fez comentrio algum. Pouco depojffl
pronunciadas, as palavras adquiriram, no esprito n
uma complexidade que no possuam, aparentem")]
no momento de serem ditas. O Superior encaro*"
todos de negro, silenciosos e de p na sua frente; dtfl
rou-se um instante ainda a olh-los e, em seginjl
acrescentou: -J
- Parece que a nossa pobre Frana vai pedFjaj|
armistcio... Parece que os seus grandes sofrimeataB
obrigam a isso... No seria melhor, portanto, eal
rarmos um pouco mais, antes de pintarmos as etifS
Enfim, no sujaramos o nosso telhado e no teraqH
depois de terminada a guerra, de mandar limpaill
telhas... sm
Michaux quebrou a sua inquietao e voltou-se PQM
os olhos dos outros. O Superior acompanhou esse oihsjj
deixou passar alguns segundos e murmurou: fitfj
Agradeo a todos vs. oSl Os missionrios moveram-se para sair, mas ele iM|
um novo gesto: ~M
Um membro da nossa comunidade, que ns to(^| muito amamos, decidiu tomar um caminho
diferefflMH daquele que seguimos. No consegui impedi-lo. P^IH -vos que no o esquea
is nas vossas oraes, rogandSH a Deus que o proteja. ^<im.
A MISSO
683
O armistcio fora assinado. Dois dias depois, um capito e quatro soldados alemes bat
iam porta da cerca. O irmo hortelo abriu e eles disseram-lhe que desejavam entrar.
Os seus modos eram correctos, as suas palavras corteses, mas havia nelas uma so
briedade que pesava como uma ordem.
L de cima, o sol viu-os passar, em fila indiana, na terra que ele iluminava, a ca
minho da Misso.
Em frente do Superior, o oficial declarou que precisava de examinar o edifcio. Er
a um homem ainda novo, de mento saliente e olhos voluntariosos. Exprimia-se, com
dificuldade, em francs e o Superior no falava alemo. Villiers, que vivera na Alscia
, foi encarregado de o acompanhar.
Sempre seguido pelos quatro soldados, o capito varou todas as celas, percorreu to
dos os corredores e considerou o refeitrio, a cozinha, a dispensa, todas as outra
s divises. A princpio ainda fazia perguntas; depois, como se tudo se explicasse po
r si mesmo, limitava-se a olhar, de corpo firme, em posio de sentido, rodando apen
as ligeiramente a cabea. Meia hora mais tarde, de novo junto do Superior, disse:
A Misso tem oitenta celas e apenas doze so utilizadas. Melhor dito, apenas onze, p
ois h algum que est aqui sem nenhum direito a isso. Ns precisamos de instalaes para as
nossas foras e, portanto, verno-nos obrigados a requisitar as celas vazias. Vire
mos instalar-nos amanh. Como de desejar uma mtua independncia, seria conveniente qu
e todos se niudassem para o extremo da ala norte. Ns ficaremos com o princpio dest
a e com a ala sul.
O Superior pensou que o seu reumatismo e demais achaques se agravariam com o fri
o e a humidade das celas que lhe eram atribudas e onde jamais o sol etttrava. Pen
sou, depois, que a sade dos outros missionrios se ressentiria tambm com aquilo; mas
verSu a cabea, sem ousar dizer nada.
684
A MISSO
, O oficial alemo avanou at a porta, senjSi
olhar direita e esquerda, para cima e para m
sempre em inspeco. Na soleira, deteve-se unj|
tante e, em seguida, deu dois passos para foral!
ps-se a contemplar o terreno em volta, a capls
velha rvore vizinha, a grande taa de mrmorejl
faceira com o seu repuxo aberto, que o sol iriscM
demorou-se alguns momentos a acompanhar, comia
co especial, os movimentos das boas galinhas ecl^j
ticas que o irmo cozinheiro criava ao fundo da &&
Por fim, os seus olhos regressaram daquele instllll
e variado passeio e comearam a subir as pared^
Misso. Para as ver bem, do stio onde se encontlSJ
ele tinha de dobrar demasiadamente a cabea S
as costas; foi, por isso, recuando devagar, sempfM
olhos levantados, at abranger, sem incmodo, &*m
fcio inteiro. Olhou as roseiras trepadoras em fefflj
algeroz, o beiral, a cumeeira; uma nvoa de pjl
rao transitou sobre as suas pupilas; ele esteve lB
alguns segundos e, depois, dirigiu-se, em gesto def^l
pedida, para o Superior, que ficara porta: -^
Viremos amanh, como j disse. EntretSj
mande pintar sobre o telhado a palavra "Misso", fj
sem dvida, os ingleses ho-de querer bombardeai!
Frana... f>
m
->
"
-*;'' .tf, ti
!< '"
OPINIES CRTICAS
A UNIDADE DUMA OBRA
por Adonias Filho (*)
Na moderna fico de Portugal, to significativa em uma novelstica e um teatro que mantm
as constantes literrias herdadas de um Jomance e uma dramaturgia de projeco clssica
, h-de sobressair um escritor neste perodo portugus de grandes escritores. Reflro-m
e a Ferreira de Castro que, com a obra novelstica agora reeditada por Aguilar, po
de ilustrar o que em literatura se faz cada vez mais raro: uma presena. Entre os
modernos ficcionistas do seu pais Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Joaquim Pao d'
Arcos, Fernando Namora, Maria da Graa Freire, Urbano Tavares Rodrigues, Fernanda
Rotelho , e todos (m seus crculos prprios na enorme variao estilstica, Ferreira de Ca
stro deles no se desvincula porque sustenta as linhas chaves do romance portugus c
ontemporneo. Este, a meu ver, um detalhe importante.
Consequncia provvel da estrutura clssica, to evidente no processo narrativo em sua d
urao histrica, o romance no tinha como violentar as constantes literrias que caracter
izam a fico portuguesa. Resultantes da prpria inteligncia portuguesa em sua vocao cria
dora, e Por isso mesmo inundando a fico em seu percurso histrico no "fio vicentino
, no romance eciano, na novelstica moderna , aquelas constantes permanecem e inte
gram o romance contemporneo em tradio que o valoriza. Esse romance de tradio clssica,
mesmo que a experincia linguistica se /aa revolucionria como em Aquilino Ribeiro, f
ew nas constantes literrias a percepo realista, a movimentao
(*) Romancista e crtico brasileiro.
AL
686
A MISSO
OPINIES CRTICAS
687
9 lrica, a faculdade imaginativa a base convergente que esw^l
homogeneidade simplesmente extraordinria. 1^1
Mas, se essas constantes literrias so responsveis pela tfl^l
co do romance portugus, contemporneo na tradio ftccional cfif^H
tambm o so pelas aproximaes e relaes entre os romancistas Jj^l
nos. Fcil ser encontr-las, no fundo mesmo da diversidade estj^R
ou temtica, em Fernanda Botelho como em Maria da Graa J^l
em Joaquim Pao d'Arcos como em Ferreira de Castro. Em |B
delas que se identificam com a prpria personalidade iMnorajj^E
ftccionistas portugueses , adquirindo aquela singularidade quetjjU
a obra de fico em seu prprio universo que o moderno rojtt^l
portugus se realiza na apreenso de problemtica que tanto inOjj^
ao mundo quanto ao homem. Mantendo-se em sua obra novelfj^M
agora nesses dois volumes da edio Aguilar que incorporam #*l
romances publicados (A Selva, A L e a Neve, Terra Fria, A (jwH
da Estrada, Eternidade, Emigrantes, A Tempestade e A Mist^l
Ferreira de Castro comea por demonstrar que, como qualquer '1^1
ficcionista do seu tempo e do seu pais, um romancista que n&n^l
a tradio clssica portuguesa. E nos seus romances, linhas C(^^H
da fico de um povo, esto as constantes literrias: percepo realjj^t
movimentao lrica, poder imaginativo. J^l
A partir de A Selva, e at esse admirvel romance de guerraj|B
A Misso, as constantes literrias que configuram sua P(r)"80"^^
dade portuguesa de romancista permitem a Ferreira de Castro, *^H
encontro com sua prpria vocao, penetrao lenta e vertietttjj^M
universo que reanima como a buscar um sentido de humanidade^^t
interesse de compreenso para a vida. J no livro de estreia^it^^
romance A Selva que a percepo realista valoriza como documen^^U
as possibilidades ultrapassam a experincia. 't*^B
O romancista, na posse de todos os recursos, surgia completo, ftWHj
se estivesse a concluir e no a iniciar uma obra. Incontestvel a l<PBl
que irrompia em ordem, compondo a tessitura paisagstica, CTWJtjlB
os episdios em firme representao e, sobretudo, caracterizanoaiSm
personagens nos limites do reconhecimento psicolgico. Estavam aiiJU
elementos que se concentrariam nos romances posteriores para constiffij^m
um dos espaos mais poderosos do romance portugus contemporM/U
Outros ftccionistas, e digamos o Miguel Torga dos contos '^Sm
montanhas, podero ilustrar na fico moderna a aplicao' d"jffl|
constantes literrias portuguesas. Em Ferreira de Castro, porm, ^JwB
que as constantes se convertem em matrizes de seu processo: a P^'^^SB
realista engendrando o documentrio de livros como A Selva e mig^fl^l
tes; a movimentao lrica provocando o fluxo potico que universaMpAjjiE
A L e a Neve; o poder imaginativo gerando na variao dos tetMmjjji
as situaes especulativas e as inquiries dialcticas de Eternidad"uff|w
A Misso. Em tantos romances, que colocam em tantas dimensSes-^\,fi
condio humana, o romancista o mesmo. No altera a arquitectai^ t
que, abrigando a matria ftccional, configura-a em romances, Mb'-"-
renova a linguagem que, em sua inflexo rtmica, corre como grosso
leo a representar cenas e episdios, quadros e situaes. E, o que *
realmente surpreendente, no deforma a nossa aventura coiidana
seu sofrimento e sua resignao ao executar a transposio litearia A sua obra novelstic
a, neste particular, se caracteriza em unidade io /iaffrane que se dir um corpo em
pleno funcionamento orgnico. Mas, e como se a vivncia exterior correspondesse a um
palco, h jfl Ferrara de Castro a extrema preocupao por essa criatura que __ feita p
ersonagem no perde o sangue, o corao e o destino. Ler MJJ os seus romances, principal
mente A L e a Neve, de tal modo conviver com a condio humana que fatal ser o reencon
tro com os prprios problemas da existncia. A grande imerso, sempre dolorosa na aboi
dagem das razes, e que tem como atraco a criatura, jamais a reflectiria se no houves
se um romancista autntico a auscult-la. Tomando-a nas sombras, fixando-a entre a a
ngstia e a solido, cqlocando-a diante de ns sem outra perspectiva que a de uma figu
ra vivendo, Ferreira de Castro de mais no necessitar para impor-se como um romanci
sta.
Esse um dos romancistas que revelam do lado portugus e na lngua comum a nossa cont
ribuio fico moderna. E que a contribuio decisiva, mesmo que outros ftccionistas n
tissem, asseguram os romances agora reeditados por Aguilar.
(In Jornal do Comrcio, do Rio de Janeiro.)
OPINIES CRTICAS
689
1 *
41
NARRAO SBRIA E PODEROSA s^j
por Albert Ayguesparse ("1^8
Ferreira de Castro tornou-se conhecido na Frana e na Blgt pouco antes da ltima guerra
, pelo romance A Selva, traduzido oB Blaise Cendrars. ^m
A Misso obra muito diferente. um conflito de consci&mx em toda a sua realidade, qu
e o grande escritor -portugus apresen com emoo e fora assustadoras. Esse livro no , d
tro da sua OJOT um episdio; nem , simplesmente, um romance bem escrito. RepreseSjj
l uma fase. A evoluo coerente de Ferreira de Castro levou-o ao romanjt de anlise ps
icolgica, da qual A Renncia de Dom lvaro j pjj mitiu prever a profundidade e a origin
alidade. Realmente, A Missffllj de extrema densidade e forte simplicidade, uma o
bra que pretelwji descrever o que h de mais secreto e de mais nobre na alma human
is Estamos em Junho de 1940, numa aldeia francesa, situada ""$8 Tours e Bordeaux
. A aviao alem estende diariamente, cada wjj mais, seu raio de aco, bombardeando as es
tradas, as fbricas, M ltimos centros vitais da Frana. Para salvar a comunidade pela
<pM jj responsvel, o superior de um mosteiro manda pintar em grande, letras bran
cas, sobre o tecto do prdio, a palavra "Misso". Quando j ?j pintor inicia o trabal
ho, um dos missionrios, o Padre Jorge, obserty ao superior que o mosteiro foi con
strudo na mesma poca e no mesmo estilo como, na vizinhana imediata, a fbrica. Aquela
palavra "MissOI poder, portanto, servir para excluir qualquer erro: a aviao inimigQ
descobriria com facilidade maior a fbrica, para bombarde-la; e nela trabalham qua
trocentos operrios.
Percebe-se o terrvel dilema em que a observao do Padre Jorge coloca o superior. Tem
ele o direito de sacrificar os quatrocentos operrios
(*) Romancista, poeta e crtico literrio belga.
ara salvar os treze religiosos ? A dificuldade cruel da deciso atormenta ^ rotund
amente o superior. Para apaziguar seus escrpulos, resolve P njr os membros da com
unidade, submetendo-lhes o caso de conscincia. Logo, surgem opinies totalmente opo
stas. O debate que s parecia girar em torno de um conflito de ordem moral, transf
orma-se em discusso religiosa. Lm problema da vida comum virou problema da f- Dent
ro do terreno limitado de uma pequena comunidade analisa peneira de Castro todo
o problema da Igreja em face da sociedade, e da f em oposio s necessidades e exigncia
s ordinrias da vida. Brissac, o adversrio principal do Padre Jorge, observa que o
dever ila comunidade mo o de salvar vidas, mas o de salvar almas".
Esse debate ponto alto do livro. Cada um dos argumentos que surgem na discusso, r
evela a complexidade do problema, as consequncias, a fatalidade perante a qual es
t colocado o superior. O que divide os treze homens refere-se menos salvao da comun
idade do que a rivalidade pessoal, a segundos pensamentos vagos, nunca manifesta
dos mas agora trazidos luz, de repente, pelos acontecimentos. Cada um dos missio
nrios tem conceito pessoal de sua funo e de f que lhe informam a opinio. O Padre Jorg
e continua impenetrvel fora dos argumentos dos outros missionrios que se lhe opem. A
dmite que se deve salvar um hospital, uma igreja, at uma priso; mas no admite privi
lgio desses de uma misso. O superior est entre os dois grupos. Preferiria a soluo def
endida pelo Padre Jorge. Conhece a pureza e a coragem desse homem. Sabe que "na
religio, assim como a respeito de ideias novas, sempre a minoria que ilumina o ca
minho para a maioria". Antes de tomar sua resoluo, pretende visitar os arredores d
a fbrica, o bairro dos operrios na vizinhana; e sua angustia no pode deixar de aprof
undar-se quando percebe que o bombardeio da fbrica teria como consequncia a destru
io daquela populao inteira.
O armistcio acaba com as hesitaes do superior. Quando se julga, enfim, livre dos se
us tormentos, os alemes ocupam parte do mosteiro: e, para evitar que a aviao ingles
a os bombardeie, mandam-lhe fazer fintar a palavra "Misso" no tecto do convento.
Ferreira de Castro colocou o superior, como personagem principal, no centro da o
bra: o ponto em que se desenrola seu drama interior e em que se concentra o conf
lito entre os membros da comunidade. Em lorno do superior construda essa narrao sbri
a, poderosa e de raro Pudor. Nunca talvez urna obra fosse mais purificada de tod
os os possveis elementos anedticos. A descrio do ambiente no tem importncia. Tudo re
zido ao essencial. A composio e o estilo, directo e fico em imagens, fortalecem si
ngularmente a impresso pattica desse arama humano.
(In L Soir, Bruxelas.)
OPINIES CRTICAS
691
QUALIDADE ESPIRITUAL
por Ren Maw"^
m*
Ferreira de Castro um grande escritor portugus de renome^ nacional. A sua obra-pr
ima, A Selva, foi traduzida, muito attt guerra, pelo grande escritor Blaise Cendr
ars. O seu ltimo torn" A Misso, apareceu muito recentemente nas Editions Bernard O
f traduzido do portugus por Louise Delapierre e Rene Gahisto. * 3
Tal como A Selva, esta longa novela uma obra-primai^ obra-prima inspirada, no se
u conjunto, pela ltima guerra,^ termina com uma frase de humor negro, de ironia n
egra. -'^
A Misso expe com sobriedade e discrio, com toda a otyei dade, um destes casos de con
scincia-armadilha. Ei-lo resumia^ gumas palavras. A guerra rebentou. Uma manh de M
aio de . o Reverendo Padre Georges Mounier, regressando ao Mosteiro Vf recolhe na
altura, encontra o chamado Bagatelle, o faz-tudo (W comunidade as duas tradutor
as preferiram mos para tudo ' expresso todavia corrente ocupado em pintar a palavr
a Mias* telhado. Assim os aviadores alemes, se sobrevoarem a localidade, i ro que
devem abster-se de bombardear uma habitao que recorda todos os pontos o aspecto da
fbrica prxima, onde quatrocentos^ rrios trabalham para manter as suas famlias. '"l
Esta precauo espanta o Padre Georges Mounier, que CrtSj na alma, cristo no sentido
religioso e etimolgico da palavra. .Mj por consequncia, a Bagatelle, que suspenda
o cumprimento da <**| que lhe foi dada pelo Superior da Misso, solicita a este ltim
o w( entrevista particular e procura provar-lhe que a f da religio U*j anima probe -
os missionrios, sobretudo na hora do perigo, de se M tinguirem ou, antes, de tent
arem distinguir-se do comum. "*
Perturbado pelo ardor do Padre Georges Mounier e pela lgica mn que ele demonstra
que no por os Missionrios serem profsonais da F, que so melhores do que os quatrocent
os operrios que trabalham na fbrica da localidade, o Superior da Misso acaba por re
sponder ao seu interlocutor que se recusa a resolver por seu alvedrio o caso de
conscincia que lhe acaba de apresentar, desejoso como est He conhecer, antes de to
mar uma deciso definitiva, a opinio dos outros nove missionrios cuja direco assume.
Deve ler-se este debate preciso na sua severa lgica. da mais elevada qualidade es
piritual, mais humana porm do que crist. O Padre Georges Mounier defende a sua pos
io. O seu idealismo, o seu altrusmo, as suas reaces estritamente crists so desaprovad
pelos Padres Brissac e Miehaux que chegam a acus-lo de heresia. Ambos traduzem o
pensamento ntimo da sua pequena comunidade. Pensando como homens, falam como hom
ens e s se preocupam com as suas dificuldades. A religio, para eles, no passa de um
alibi. A vida terrestre boa. Tm o meio de salvaguardar a sua, fazendo pintar a p
alavra Misso no telhado do seu Mosteiro? Que isso se faa sem tardar. Pacincia se o
aviador alemo bombardear o edifcio construdo segundo o mesmo modelo deste que os ab
riga, mas que tem a infelicidade de ser uma fbrica que trabalha para a Frana em gu
erra e no uma casa de recolhimento e de orao.
Ficaria de mal comigo prprio se resumisse mais para diante a belssima novela. Ela
merece ser meditada e aconselhada aos leitores gue tm o gosto das ideias nobres e
altas.
(Texto lido na Radioteleviso francesa e publicado em vrios jornais.)
(*) Romancista francs, Prmio Goncourt.
ML
A EXPERINCIA
(NOVELA)
ELE
A ENTRADA
/\ furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, dum escuro brilhante, quase negro. A
banda esquerda dir-se-ia feita duma s placa, inteiramente lisa; na outra havia u
m ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as ms tentaes, como os crivos
, no fundo dos lavatrios, libertam a gua suja de todos os elementos obstrutores.
O polcia, que vinha sentado junto do motorista, chupou, quatro vezes seguidas, a
ponta mungida do cigarro, atirou-a fora e desceu. Sentindo os olhares Despejado
s l de cima, que davam maior vaidade aos seus gestos, ladeou a furgoneta e, atrs,
abriu a porta, que era chapeada e slida como a dum cofre. luz, ao entrar, varreu
os pontos que o ralo projectava ali, ufts pontos brancos, aglomerados no jeito d
as cavidades dos favos e que constituam a nica luminosidade existente l dentro quan
do a porta se encontrava fechada.
Dois bancos laterais corriam dum extremo a outro, n interior da furgoneta. Um hom
em levantou-se e
6g6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
697
'comeou a avanar em direco porta. Avanai
cautelosamente, inclinando a cabea para no torn
no tecto. medida que se acercava da claridade CM
rior, via-se que se tratava dum homem novo. O poli*
sabia a sua idade exacta. Mas no era necessrio\m
o papel que o polcia trazia no bolso: Janurio
Sousa, filho de Ana Maria e de pai incgnito, et||
bastava deitar o rabo do olho sua pele morena, lal
e macia que nem a gua passada a ferro na popa da
barcos, para se ver que ele no tinha mais de vinte anJj
apesar de os seus olhos parecerem exaustos por nlj
se sabia quantas madrugadas do princpio do Munfl
Trazia, o cabelo sujo e desgrenhado; alguns fios partia
da densidade do todo e enroscavam-se-lhe na testfl
como as gavinhas que saem de sob as folhas das vida|
rs procura dum corpo para se abraarem. Jl
Ao atingir a porta, baixou o olhar sobre os dcjB
degraus que tinha de descer e hesitou; o polcia com
preendeu que, de mos algemadas atrs das costal
ele no podia valer-se delas se um dos ps falhaaB
e ficou-se a observ-lo, um momento. Logo, meteraM
a direita no bolso onde guardava o revlver, estenoeH
a esquerda e ajudou-o. ""^
L de cima, alguns dos presos, lavrados de ctiM
sidade e de comentrios sarcsticos, viram-nos PK-I|
piar a andar um atrs do outro. Marchavam eOTi
naturalidade, nem depressa, nem devagar, no ritiail
de funcionrios que chegam a horas ao seu emprego"
Subitamente, porm, Janurio deteve-se e ergueu""
vista para o edifcio que se levantava na sua freflffi
Os presos estavam l, as mos fechadas sobre as barra"!
de ferro, mas ele mal os fixou. Os seus olhos perc*^*';
reram a fachada clara, de janelas e portas emoldurac*?
em cantaria branca, fresca, tudo lembrando constntS*
recente, como se procurassem alguma coisa que se no
via com facilidade, alguma coisa que no se encontraV*
na frontaria do edifcio, iluminada pelo sol, mas rt#*
negras profundezas da memria. Ele olhava e cada v"
parecia mais perplexo. Por fim, voltou-se, como para
se convencer de que no havia errado no caminho. I*
estava a praa larga e deserta, com um pequeno jardim na extremidade e o posto do
correio, esquerda. L estava a velha igreja que padroava o vale sobre o planalto
l estava.
O olhar de Janurio subiu e desceu da torre, enquanto o polcia, parado a um metro d
e distncia, o observava de novo, sempre de mo no bolso.
curioso... No era aqui o Asilo? O polcia ordenou-lhe, surdamente:
Marcha!
Ele recomeou o andamento, mas os seus olhos volviam, teimosos, ilegais, fachada e
praa, como ao horizonte onde se espera que uma terra se defina sob o nevoeiro do
litoral.
No era aqui o Asilo Infantil ? insistiu. C de trs, o polcia chasqueou:
Est descansado, que asilo no te faltar.
A porta abria-se em arco para uma galeria que varava o edifcio dum lado a outro.
Ao fundo, verdejavam plantas de horta, rvores de pomar, e luziam sardinheiras flo
ridas, tudo envolto nessa claridade viva e colorida das paisagens que se enquadr
am ao fim da negrura dos tneis. Janurio parara novamente:
O senhor d-me licena de ir ver aquilo ?
O torn, assim ingnuo, enervou o polcia: "o tipo est a mangar comigo; o tipo julga q
ue sou estpido".
Marcha, j te disse! Era uma voz dura, ameaadora. Mas logo abrandou, num sarcasmo:
Perdes o tempo. Tenho visto muitos melros de bico amarelo... Enquanto
eu estiver aqui, tu no foges, te garanto... Nem mais tarde, que o palcio
est bem guardado...
No era por isso... volveu Janurio, humildemente. No era por isso... Criei-me aqui
dentro e brinquei na quinta. Fizeram tantas obras depois desse tempo, que eu
gostava de ver como ela est hoje. O senhor encoste a sua pistola minha cabea e dis
Pare se eu me mexer; mas deixe-me ver a quinta...
Estavam os dois junto da escada que partia do
y^
698
EXPERINCIA
*lado esquerdo da galeria para o primeiro andar silncio em expectativa vinha l de c
ima. '**
Vamos! disse o polcia, com secura. A Janurio compreendeu ser intil teimar. Ol
hou^j uma vez, a velha macieira que se erguia l fora e imagem pretrita esbateu-se n
os seus olhos; dfei comeou a subir lentamente os degraus. i
O carcereiro aguardava-os no topo da escada. H ali um corredor e, ao fundo, uma
em frente da c duas portas gradeadas. Janurio continuava a o para todos os lados:
as paredes, o tecto, o soali janela que se abria entre as duas celas, deixandttf
a torre da igreja, como no ltimo plano dum qua Um ranger de chaves e de dobradias
preguiosas " xe-o a si; logo sentiu a mo do polcia que o emj) r v. A grade abriu-se,
ele passou e a grade tonj a fechar-se. ' *
Volta as costas! l
Janurio encostou-se s barras de ferro. O polm enfiou, por elas, as suas mos em conc
ha, tirando*" num gesto suave de parteira, as algemas. E abai levando-as dependu
radas num dos dedos, assim ow quem leva caa morta, enquanto ia falando, em '" baix
a, com o carcereiro.
costume saudar a boa sociedade, quandoJS entra...disse algum em frente de Janurio,
JB viu um homem de p, junto das grades que davli sobre a praa, e mais dois sentad
os em caixotes, a pernas abertas, os braos apoiados nos joelhos e WJ sorriso choc
arreiro nos olhos. j
Boa tarde, meus senhores... Desculpem-me... *
rrf l rf O
A EXPERINCIA 699
II
i." DIA
f) homem deu duas voltas na cela sem responder ^^ pergunta que ele lhe fizera. D
uas voltas da sua grandeza pesada e barbuda, que marchava com andar oscilante e
os braos cados, como um orangotango na pista dum circo. Dir-se-ia que, antes de fa
lar, desejava fruir, a todo o comprimento, aquele sorriso de superioridade que d
e repente lhe abrira os lbios. Os outros dois presos esquivavam-se a atender o ol
har de Janurio, certos de que o companheiro no lhes perdoaria se, aproveitando o s
eu silncio, eles lhe tomassem a dianteira.
Por fim, o homem que gingava deteve-se com um
riso surdo:
Ora como foi! Como havia de ser! A cadeia estava prantada no centro da vila
, numa parte da Cmara, l na praa principal. As autoridades diziam que aquilo era
uma vergonha. Vinham os automobilistas para o Norte, iam os automobilistas para
o Sul, vinham os turistas para ver a Senhora da Piedade, os ingleses que iam par
a a mina de arsnico, os franceses que iam para a da Borralha, os alemes que andava
m a- hxar os ingleses na venda de mquinas e que viam ? Sentavam-se, para re
frescar, nas mesas que os cafs tinham nos passeios ou nas dos restaurantes, para
comer sossegados e que viam ? Viam as moscas carem no prato e a ns, no topo da pr
aa, por detrs das grades, com as latas dependuradas dum fio, altura dos olh
os de quem passava. Ns pedamos v l! eu nunca me rebaixei a pedir menos de cinco toste
s, pois no queria baratear a dor das almas no Purgatrio, mas havia at quem pedisse
um tostozi^ho apenas e quem queria dava, quem no queria seguia o seu caminho, qu
e ningum era obrigado a
L
7oo
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
701
*abrir os cordes da bolsa. Est claro, aquilo faziaB
jeito: chegava para o tabaco e para um copo s esl
didas, de quando em quando. Alm do mais, eralB
rica distraco. fl
O homem continuava a sorrir, um sorriso nu
vindo do passado e do futuro, do que ele j havia
e do que se preparava para dizer. V
Era tal-qual estar pesca. s vezes, deitavajM
amarrava a ponta do fio ao dedo grande do p e cB
cava a dormir ou a pensar noutra coisa. Mas se algiB
punha uma moeda na lata, eu sentia imediatanjlM
assim como pelo telgrafo, e sabia se a moedalB
grande ou pequena, como o pescador sabe o tamjJM
do peixe que morde. bom tempo! Eu no fuiQfl
estes mata-ratos; era cachimbo para a frente, Jl
tabaco holands! PJ
Cuspiu de lado, com desprezo, meteu entre IdH
dentes a unha do dedo mnimo e examinou, em sinj
cio, o detrito que de l tirou. Soprou-lhe, depois, c<n
a um insecto, e volveu: jm
Mas quando os pobres arranjam um direito, 1(9
vem algum para lho tirar. Todos os importantes"
da terra desataram a dizer, como as autoridades, qB
aquilo no podia continuar numa vila civilizada COJM
esta. Antigamente, no tempo das diligncias, v e >in|
v, ainda se desculpava: s vinha gente de fora MB
dias de feira e, uma vez por ano, no dia da Saa||H
e tudo, mais ou menos, gente labrega; agora, cora"
desenvolvimento da indstria e dos automveis, erjl
ver quem passava ou quem parava ali! Tu compreewi
ds, no verdade ? O presidente da Cmara no estM
com meias medidas: proibiu, dum dia para o outropl
as nossas lamrias e as nossas latas. O carcereiro, con"t|
se nos mandasse levantar as ncoras, disse: "Nem mail*!
uma! Vai para o segredo quem desobedecer!" Mas aquifei
no foi considerado suficiente. com o ferro levantadw
o navio tinha de partir dali, era fatal. Eu, c por min
penso que se um regalo estar numa cama quent
quando l fora chove ou faz frio, deve ser bom tambffl
um homem sentir-se em liberdade quando v os outros
resos. Mas parece que no bem o caso. Parece que, LI vez de prazer, se sente qualq
uer coisa assim como quando se v um enterro. certo que quando se v um enterro ning
um fica contente por estar vivo; o que fica desgostoso por ter tambm de morrer. Or
a ningum est disposto a curtir desgostos que possa evitar e, demais a mais, por un
s indivduos que esto metidos na doca, precisamente para no darem desgostos a ningum.
..
Agora ele batia com as costas da mo na parede, como se lhe avaliasse a espessura,
enquanto os seus olhos subiam at o tecto, sempre com um fulgor desdenhoso :
Isto aqui estava mesmo a cair de podre. Era um casco enferrujado, j sem rebites,
que no valia dez-ris de mel coado. Ento, as autoridades pegaram nisto e adaptaram o
asilo a cadeia. No se pode dizer mal; felizes de ns que viemos enquanto o autocli
smo funciona! Os rapazes do futuro tero menos sorte...
Calou-se. Era o homem que Janurio tinha visto encostado s grades que davam sobre a
praa, quando entrara. Pouco antes, ele havia-lhe dito: "Chamo-me Antnio Joaquim d
a Costa, mas todos me tratam por "O Sbio". Podes tratar-me tambm assim, que no me o
fendes". Alto e forte, tinha uma cabea grande e umas longas barbas, de fios gross
os e muito negros, que aumentavam, pelo contraste, a brancura da sua
pele.
Por isso no posso ver os automveis tornou. Se no fossem os automveis, que puseram o
s lordes a navegar dum lado para o outro, por todos os canais, ainda hoje a cade
ia estaria l...
Janurio seguiu o gesto daquelas mos possantes, de dedos grossos, temveis, cheios de
rugas sobre as falanges, que apontavam para o centro da vila, e
lamentou:
pena que as celas dem para esta banda e
no se veja a quinta...
"O Sbio" olhou-o com desprezo:
Deixa-te de tolices! Justamente o que isto tem
702
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
73
* de bom as celas darem para este lado. SenPiB
morreramos de aborrecimento. E eu j teria mfNB
um protesto ao ministro da Justia... Pois nblB
da cadeia velha, via-se sempre gente em bardij
praa; mesmo se no pingava cheta, era um eritiH
nimento para a vista. Aqui, estamos no stio "iql
Vem Um. Mas, ao menos, h as mulheres quBjfH
domingo, passam para a missa... Sempre uittbfll
solo... C por mim, j escolhi duas e escuso de pre"JM
que no consentirei a ningum que as olhe c<$M
mesmos pensamentos com que eu as olho... Se algjj
o fizer, arrebento-lhe os queixos ol se lhos rebctB
Uma delas deixou de aparecer dois domingos segtful
e eu j andava arreliado. Julguei que a madama-esrtiH
doente, que teria mudado de capitania ou deseridwM
religio; cheguei a perder o apetite, pois das dusdH
precisamente ela em que eu gostava mais de P&NH
quando estava deitado. Assim que tu tiveres tpB
tempo de cadeia como eu j no ters esse sorrisH
Voltou a calar-se. O Palhetas e o Malafaia estilM
calados tambm. Duas arvloas, que haviam pou&H
no telhado da igreja, caminhavam sobre a eifi|)dM
agitando a cauda e recortando-se, muito ntidaS',-<fflM
tra o fundo azul do planalto. ^ iH
"O Sbio" perguntou com naturalidade: 'jH
Morte de homem ? :ttfH
Janurio no respondeu. i*|M
Recuara, tinha seis anos, tinha sete, tinha (r)*>J
Aquilo fora sempre, afinal, uma priso; nesse teirijSM
ele passava os dias espera da hora do recreio^ SJB
quinta; a quinta era a liberdade, as flores, aqi^JlH
grandes girassis, de sementes boas para comer, <^H
o Manecas, de sementes venenosas como trovisco, 9$jjm
mava o Chico, a olhar de baixo para cima, en1uaij81
ia coando a barriga da perna. Havia ramadas n^B
na Primavera, os pintassilgos e os serzinos faziaiti&W^
ninhos tem ovos ? tem criao ? e o Jalecas desCMiJ
e ele subia para ver tambm. De olhos ainda fechadww'f,
os passarinhos abriam muito a boca, umas tenaz* j'
vermelhas, abriam-na at os gorgomilos, os tontos, coit* |,
se ele fosse a me e lhes viesse trazer o cibo. No Vero, eram os buracos dos grilos
: ele e os outros a ench-los <je gua "grilinho sai, sai, que a vem o teu pai; gril
inho sai, sai, que a vem o teu pai" e a sineta a tocar, antes do grilo sair, o re
creio terminado, a liberdade para o dia seguinte, para sessenta minutos do dia s
eguinte, que as freiras no gostavam de folganas, preferiam os meninos a rezar, a e
sfregar o asilo, a limpar os metais ou de livro na mo: "B-A-B B-E-B trs vezes nove
vinte e sete, quem foi o primeiro rei de Portugal? Vamos, agora, ao ditado". J el
e tinha oito anos.
Avanou como os ponteiros dos relgios, que, mesmo depois de puxados para trs, teimam
e tornam a andar para a frente. Tinha dez anos, tinha nove e meio ou dez anos,
da idade certa j no se lembrava, mas a verdade que aquilo fora bom. Quando as frei
ras lhe disseram que ele iria, no dia seguinte, trabalhar na quinta, com os outr
os mais cresciditos, que iria cavar a terra, ficara doido de contente. To content
e como ao domingo, quando atravessavam, em bando, a praa e iam missa, to alegre co
mo aquela vez que tinham dado um passeio ao Cruzeiro de Rojante, um stio bonito,
santificado, onde, dizia o povo, a Virgem aparecera uma tarde, h um ror de anos,
em cima duma nuvem cor-de-rosa, e um co atrevido, ao ladrar-lhe, ficara com o fei
tio de lobo e transformado em pedra.
Nesse tempo, uma rede de arame cortava a quinta de ponta a ponta, metade da terr
a para as meninas do Asilo, outra metade para os meninos e s atravs da rede os men
inos podiam ver as meninas, como, agora, s atravs das grades da cadeia ele podia c
ontemplar as crianas livres que, s vezes, brincavam na Praa. A macieira ficava na t
erra das meninas e os Pessegueiros e as ameixoeiras tambm. Era ali que apareciam
as primeiras flores ao derreterem-se as neves do Inverno, tantas flores, tantas
flores, brancas, cor"de-rosa como a nuvem que trouxera a Virgem, cor"de-rosa, br
ancas, vermelhas e azuladas e as meninas a pisarem as flores e Clarinda a esmag-l
as na mo,
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A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
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a fazer bolas e a atir-las por cima da rede parjj se acertava na cabea dele e as f
lores a desligara no ar e a descer como se cassem sobre os noivos qfj saem da igr
eja. Fora depois desse dia que ele coi^ a erguer muito alto a enxada e a met-la co
m dj na terra, cava, cava, para que a Clarinda vissel ele j tinha fora de adulto, q
ue ele j podia gl dinheiro e at defend-la e sustent-la se fosse prsl Morte de homem ?
insistiu "O Sbio", ftj do-o demoradamente, na extremidade daquele sils Os outros
voltaram tambm os olhos para Jamll Mas ele continuou calado. B
in
2. DIA dM
JANURIO olhava atravs das grades que davam sOBJ o corredor e via, por detrs das bar
ras da 0*MB cela, a figura solitria a passear dum lado pat^H outro, de saia e blus
a negras, como se aguarda"! a sada dum funeral atrasado. s vezes desapareewj! uma
hora, duas horas, e depois tornava a rcp38*^ atrs das grades, a ir e a vir sem ja
mais volver H olhos para eles. Desde a vspera, Janurio s a <i^ sava de perfil, uma fa
ce larga, rstica, com a oreM| quase escondida pelo cabelo desgrenhado e aquele na
^s longo e agudo, que se salientava como o duma silhuSlp contra a luz que vinha d
e fora. Td*1
E que tal o Limoeiro ? perguntava "O Sb$H i bom hotel ? Hspedes importantes ? *F
Os olhos de Janurio regressaram, lentamente, Q" outra cela:
Alguns... H de tudo... .'" "O Sbio" fez um movimento com o queixo, a ndl*
car que se referia a ele: s
J"
. Longa permanncia ?
Desta vez, dois meses, at me irem buscar para ser julgado na comarca daqui...
Ah, ento j te havias hospedado l outras
vezes...
Janurio no respondeu.
com um sorriso a rabiar-lhe na abertura das barbas, "O Sbio" esperou um momento e
, reconhecendo a inutilidade da expectativa, virou-se para os outros:
curioro: tenho saudades da capital. Antigamente, preferia chegar a Hamburgo
ou ao Havre. Havia l mais variedade... Mas, desde que estou aqui, de Lisboa qu
e me lembro. Parece-me, hoje, muito mais bonita do que me parecia. Os cais, cert
o, ficam distantes; mas, enfim, noite um passeio. E as raparigas no so de todo ms.
Hei-de l voltar. Hei-de, um dia, l voltar... Olha l: quantas horas gastaste na viag
em ?
Umas sete, talvez...
Umas sete a correr bem, com certeza, porque aquela carruagem que te trouxe tem c
ara de andar
muito.
"O Sbio" interrompeu-se, meditativo; pareceu, depois, amassar uma concluso tardia:
Mas se vens para ser julgado na comarca daqui, ento porque fizeste o trabalhinho
por estas bandas.
Aonde foi?
Perante a mudez de Janurio, ps-se a vasculhar s fundes da memria, a bater, freguesia
por freguesia, aldeia por aldeia, toda a rea do concelho, como o caador que busca
nos cerrados o bicho que julga haver atingido mortalmente.
O tabelio ? perguntou, de sbito, com um brilho nos olhos.
Janurio prosseguiu no seu silncio.
Deve ser o caso do tabelio de Castelonge, sim. Deve ser. Nesse tempo, ainda estv
amos na cadeia velha; ainda as latas rendiam alguma coisa e eu podia comprar, de
vez em quando, um jornal. Aqui, nem um chavo; no sei o que vai pelo Mundo...
23 Vol. Ill
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A EXPERINCIA
EXPERINCIA
707
Arregaou as mangas da camisa, como semp^^H jogava; e Janurio viu, ento, que ele tin
ha os ro^B completamente tatuados. -ii^^l
Meu santinho volveu com uma voz diM^I isto de mistrios connosco no vale. Aqui J^H
todos irmos... Ou que tu guardas todas asS^B quezas s para a polcia ? (^^l
Os outros escorreram um sorriso. Estavam <&<lj^l tro sentados no cho, em volta du
m caixote cttif^l baralho de cartas em cima. Na frente de Ja^^H erguia-se a pared
e que dava para o lado da qiii^H Sobre a brancura da cal recente, viam-se, desei
sH^B a lpis, um punhal e uma cruz, como se algumas ta^H gens dos grossos braos pou
co antes desvelados s^I vessem transferido para ali. ll^l
O Palhetas ia pegar nas cartas, para as dar.aa^B "O Sbio" adiantou a mo com o ar d
e quem imrJH um abuso; agarrou-as e comeou a assobiar e a ttf^l ralh-las calmamente
. O velho Palhetas no se mdiB drou. O jogo era proibido e parecia-lhe, puerilmeli
jM que quanto menor fosse a sua cooperao, menor aaj a sua responsabilidade, se o c
arcereiro viesse sertHl^B ouvirem os passos e os apanhasse no acto clandMlH
Que h a por detrs ? perguntou Jam^lH "O Sbio" lanou um olhar lento ao punhaWJ
cruz; e demorou-se a olhar a cruz, com um sorrisWH prazer e orgulho. ''^Si
Uma cela futura, espera que aumente a f^ffis
Trs a trs, as cartas foram-se acumuland^H frente de cada um deles. "Ali era o
refeitrio das n^H nas" lembrou-se Janurio. E ele via as meninasrPR rem para o rec
reio, aps o almoo, Clarinda mais esRT' gada do que as outras, como o ltimo girassol
, afqPi do muro, era mais alto do que os outros girassis. E" tinha, nesse tempo, t
reze anos e ele doze. s vez" Clarinda punha uma flor sobre a bata, encostava-se*
macieira e ficava parada, a olhar para longe, por cis" do muro. Ento, as out
ras meninas, vendo-a ass~r distrada, assim cismtica, aproximavam-se, faziarfl-J
"*
caretas e riam-se dela. Um dia, ele sentira, de repente, maior coragem e escreve
ra: "Gosto de ti". Amarrotara o papel, fizera uma pequena bola, olhara para todo
s os lados, receoso de que algum o surpreendesse, e chamara em voz baixa e
trmula: "Clarinda... Clarinda..." Dir-se-ia que o seu murmrio a assustara,
que ela adivinhava o que ele ia fazer, pois tambm olhara timidamente para uma b
anda e outra e s depois viera, mas sem olhar para ele. Atravs da rede, dera-lh
e a bolita de papel. Ela corara um pouco, guardara-a na mo fechada e abandonara d
isfaradamente o recreio. O corao dele pusera-se aos pulos tac-tac, cada vez mais
tac-tac enquanto a alma queria estar sozinha, a pensar muito em Clarinda, nas s
uas mos a desamarrotarem o papel, nos seus olhos a lerem o que ele havia escrito.
E ora se sentia feliz, ora lhe vinha o desejo de chorar, ao admitir que Clarind
a o repeliria, por ele ser mais criana do que ela e porque, certos domingos, quan
do os asilados iam, em bando, missa, alguns dos homens que estavam no adro j a mi
ravam e remiravam com os modos de quem mira, remira e cobia uma mulher.
O Malafaia foi o primeiro a levantar as cartas. Ordenou-as vagarosamente e envio
u a Janurio, seu parceiro, uma mensagem visual que significava: "Tenho bom jogo".
O Palhetas encarou tambm "O Sbio", mas os olhos deste mantiveram-se austeros.
Malafaia jogou. Era um rei de espadas o rei do
trunfo.
Sorte a abarrotar... comentou Palhetas, jogando branco e de ouvidos sempre
atentos ao corredor.
Janurio encheu com um s de paus esqueceu aquilo e voltou quinta. No dia seguinte,
Clarinda lhava, de quando em quando, para ele, mas sempre lue cie encontrava os
seus olhos, ela baixava-os lentamente com um sorriso perturbado e doce. Os dois
haviam deixado de brincar. Erravam por ali, um de Cada lado da rede, como se hou
vessem ido de visita e ^tivessem aguardando que as mams acabassem uma conversa. D
epois, Clarinda encostara-se ao arame, pusera
Jk
7o8
EXPERINCIA
* as mos atrs das costas e fizera passar, por suai
uma bolita de papel. Ele esperara que ela se afa^H
Quase havia perdido o flego e os seus olhos tlfl
olhar para o cho. L em cima, a sineta tocara.'ijj^B
dera o alvoroto de sempre, como quando a cria^B
assusta, cacareja e quer voar mais do que lhe pi^l
tem as suas asas. As crianas corriam para o asifflH
grande algazarra. Ele abaixara-se, pegara no p^^l
correra igualmente. Metera-se na casa de banho jl
"Eu tambm". ''Hl
Ento no h trunfo por a ? perguntotM
Janurio olhou as cartas. ' Jl
No, no tenho disse. Sempre austero K s|H
cioso, "O Sbio" carregara com um s o encartM
Palhetas. ':>^l
Era bom aquele castanheiro que se cercara de(J^l
tos rebentos como as pernas de certas galinhawM
enfeitam de plumas; tantos e to verdes que nwH
lhe divisava o tronco antigo e escuro. Ela e ekMttB
a dissimular at o meio da quinta, pra aquij 'jj^
acol, arrumando pedritas com as biqueiras dos>S|H
tos, afastando do trilho gravetos e palhas seca|H
ento a andar, olhando as ervas, com modos e'dj|H
does de quem segue um carreiro de formigas; dejSJ^B
guinavam para a rede, escondiam-se atrs dos i fi|iH
do castanheiro e comeavam a falar. Palavras que' tolH
a gente podia ouvir, traziam, pegadas a elas, (r)'^nH
de todos os cortios; no havia outras que soubeaJH
melhor. Ele ficava todo trmulo. Calava-se frequea
mente e, quando erguia os olhos, via que ela tinhas"
faces coradas e esmagava entre os dedos uma ^^^H
do castanheiro, devagar, devagarinho, como se 'fljjjj:
desse conta do que fazia ou como se os poros da-5^w
pele pretendessem sorver aquela humidade verde. fiK|
sair dali, sentia-se orgulhoso, por ela ser mais velhfffr
apesar disso, gostar dele, pois gostava dele, j ^i;J
tinha dvida alguma. -^W"
Malafaia contava, em voz baixa: "^
Trinta e cinco, quarenta e trs, quarenta e nof^jt
A EXPERINCIA
709
cinquenta e dois, cinquenta e oito... sessenta... Ganhmos !
Ele ficou surpreendido de terem ganho. Malafaia embaralhou, ps o baralho em frent
e do Palhetas, para ser cortado, humedeceu na boca a polpa do seu dedo polegar e
deu as cartas.
"Jogo mau" pensou Janurio. Olhou para Malafaia e percebeu que no era bom tambm o j
ogo do parceiro. Quando o Palhetas lanou um seis de copas, ele ainda estava atent
o e cobriu com o valete do mesmo naipe. Depois deixou-se ir.
O que ele queria, ento, era ser homem. Ter bigode, gestos de homem, andar pesadam
ente como um homem, mostrar-se sbrio de gestos e de falas, deixar correr um sorri
so levemente desdenhoso quando as outras crianas brincassem. Afinal, ser homem, p
ara qu? Bem vira, depois, o que era ser homem. Mas, nesse tempo, ele no sabia. No s
abia nada. Quando Clarinda olhara, daquela forma, para a macieira, para os seus
frutos maduros, ele adivinhara logo o que ela pensava. Junho havia disparado trs
cargas de chuva e muitas mas tinham tombado, ainda verdes. De manh, uma freira e du
as meninas apareciam no cimo da escada exterior; a freira ficava no patamar, as
meninas desciam e apanhavam, sobre a terra molhada, as mas cadas para lev-las aos po
rcos. A freira, de rosrio nas mos, rezava enquanto lhes seguia todos os movimentos
, pois sabia que, se arredasse p dali, as meninas comeriam os frutos verdes e pod
eriam vir a adoecer. Poucas mas haviam escapado m vontade do tempo; mas, as que res
istiram, tinham ficado enormes, coloridas como as faces de Clarinda quando falav
a com ele e comeavam a soltar o seu aroma. Mesmo ftos anos de abundncia, aquilo f
ora sempre um tormento. Se no se refreava o desejo e se lanava uma pedra a pedra
valia um castigo. Um tormento enquanto luziam na rvore, um tormento depois de col
hidas. As freiras gostavam de guard-las pelo Inverno alm, quando a natureza j no tin
ha cheiro, a terra esriava, a neve caa, os melros piavam em vez de
7io
A EXPERINCIA
* cantar e s as mas se mantinham perfuma^^B
dia da colheita, distribuam uma a cada meninjt^M
a cada menina e as demais enfileiravam-se ritM^I
trio, junto ao forro, onde desatavam a cheiftn^B
a amargurar os olhos dos asilados e a cheirar m^
amargurar os olhos, a humedecer a boca e a O^l
bem. Era tudo quanto restava do Vero, aque^^B
de mas e aquelas tijelas de marmelada dipMB
casa e as grandes abboras amarelas sobre o p&JiH
Corte! ordenou "O Sbio", com o ar dfefjlH
rador medieval que lhe davam os seus modpSgdH
barbas negras cerradas. Mas Palhetas no PQt^lfB
decer e deixou passar. b gqB
Janurio sentiu os olhos frios do Malafai^e'JM
as suas mos. Sentiu essa falta de confiana quesgJM
do outro para ele, quase desde o princpio d<j^||B
Tinha uma bisca e pousou-a; pousou-a apressadiaq^B
com uma repentina sensao de se haver valorja^B
"Agora o Malafaia no poderia dizer que ele no eSfJH
to atento como qualquer outro". '^ II
Clarinda olhara a macieira, piscara os olhogaJiH
ironia e depois estendera as mos, no gesto de S&M|H
o tronco. A rvore ficara, porm, to firme, to Sdjll
svel, como se Clarinda houvesse tentado abalar ,aajj|M
Ele excitara-se imediatamente com a nsia dg^U
demonstrar que podia, como um homem, saisfsIlH
-lhe os caprichos, que podia fazer, por ela, o Qtt^MJljM
quisesse fosse o que fosse! Aquilo produzira-fl&MB
no crebro ao mesmo tempo que uma nuvem e/--9<B
vertigem: ele entrevira somente o velho castaifelwM
que estava junto da rede e do qual saltaria pHH
lado de l e a alta cerejeira, que lhe permitiria M|
xar-se escorregar para a banda de c; entrevira a^1*WI
de repente, como se fosse de noite e uma fasca ]}flM|
vesse tombado por detrs das duas rvores, iluminajai^J.
durante um segundo apenas, os seus troncos. J^
Os meninos ficaram admirados quando ele saltOTf,
vista de toda a gente e se pusera a correr pargflf
macieira, de braos a dar a dar, a boca semiabefft^,
A EXPERINCIA
711
orno se viesse, cansado, de muito longe, os olhos com urna deciso alagada de quem
havia perdido o juzo. "you apanhar uma ma para ti". "No vs! No vs! No quero!" prote
a Clarinda. Ele sentia uma fora como nunca sentira, um mpeto indomvel que Uie vinha
da nuvem que rolava dentro da sua cabea, parecia-lhe que nada mais tinha importnc
ia, que seria capaz de tudo naquele momento s para dar a Clarinda a mais bonita m
a que a macieira ostentasse. Ao verem-no agarrar-se ao tronco e trepar com a resol
uo nervosa de felino levado frente de co, as outras meninas haviam-se juntado sob a
rvore, comeado a bater palmas e a gritar: "Tambm quero uma! Tambm quero uma! Tambm q
uero uma!"
Que que voc est a jogar ? repreendeu Malafaia, vendo o disparate. com um parceir
o assim, como se h-de ganhar?
Era tarde. Palhetas sorria, contente e ingnuo. "O Sbio" recolhia a vaza, em silncio
e com muita
dignidade.
Enganei-me... Desculpe-memurmurou Janurio.
Ele no queria, mas a parede em frente, que dava para o lado da quinta, rasgava-se
, alheia sua vontade, e ele l ia, que nem velho papel amachucado, na corrente de
ar criada por uma porta que se abrira.
"V a gente confiar! Justamente o mais velho, o que devia ter mais juzo!" dissera
a Superiora, trasladando da cara da freira que o acusara para o rosto dele os se
us olhos cheios de desiluso e de censura. O dia inteiro sem comer, a tarde toda a
o alto, num carito, de costas para a sala, aquele fogo nos ps, como se os tivesse
dentro duma braseira, as pernas que pareciam quebrar-se pelos joelhos, os esvado
s que dir-se-ia suprimirem o soalho, metendo-o por um alapo abaixo, tudo isso o am
argurava menos do que as palavras que a Superiora dissera. Ela tinha razo; um hom
em no fona aquilo. Um homem no andava assim aos saltos, assim a correr, assim a tr
epar s rvores, como um ato. Um homem tinha outros modos. Demais a mais, Parecia-lhe
, agora, que Clarinda, quando agarrara o
A,
712
A EXPERINCIA
" tronco da macieira, no queria verdadeiramer^dH
di-lo; parecia-lhe que ela fizera aquilo por fingaM
apenas para se divertir e para que as outras ^H
se rissem tambm, por aquilo ser proibido. OsijjSB
tinuavam a arder-lhe e doa-lhe o pescoo; o seeSB
desejo seria deixar-se cair e ficar estendido, aliijjjH
sobre o soalho, a dormir, a esquecer, a repoJH
castigo. Mas isso no era nada. Nada comparSB
a ideia de que Clarinda no houvesse compreQjjH
pensasse, como a Superiora, que ele no era urajJM
e sim um garoto, com menos juzo ainda do<fnl
outros garotos. No Asilo, os meninos viviam sepraM
das meninas; sabia-se, porm, tudo quanto s ,gaJI
dum lado e outro. Clarinda saberia que o tinhaiwB
tigado como a uma criana e, no dia seguin^B
sentiria vergonha ao olhar para ela e, provavelfllH
ela nunca mais quereria saber dele. ";'*|B
O sol, a descair sobre o poente, entrara na;-t|H
estendera l dentro a sombra das grades, met&"B
soalho, metade na parede, como se as grades hoitfswH
sido dobradas pelo meio e formassem um ngulo .&gfl
"O Sbio" mudou uma das suas cartas da es<PiS
para a direita e, sem levantar os olhos, disse de repjj
dirigindo-se a Malafaia: > fall
Tu lembras-te da primeira viagem no "AngsJ
Daquele tipo que tinha a pele, o cabelo, tudo, ^WH
da batata nova ? Tambm jogava distrado. Blfc*iH
mava-lhe a real ateno, mas qual! Sua ExcefoSM
procedia assim de propsito, para ser superiorJaIM
outros. Foi por isso que tive de passar das paiWB
aos factos... /V:t$PB
Palhetas no gostou de ouvir aquilo e ergueu fflj
rosamente a vista. Os seus olhos no foram, P*^U
mais acima das duas mos fortes, robustas, queifiijB
ravam as cartas. f i5
Parece que ele queria fazer pouco de ns..n$w Janurio desculpou-se: ^^JL~
Eu no quero fazer pouco de ningum! Por rip* havia de fazer pouco da companhia ? Ma
s, s vsWp ns somos puxados por outra ideia... j^l
A EXPERINCIA
713
Palhetas sossegou. Janurio parecia muito tranquilo.
,,0 Sbio" dizia:
Quero crer. Quero crer.
A sombra das grades ia-se deslocando lentamente. Deixara de se dobrar pelo meio
e a parte que se projectava na parede era j maior do que a parte que se via no cho
.
Janurio continuava a entestar aos caminhos desfeitos. No queria desprazer aos comp
anheiros, mas os caminhos apagados e enterrados pelo tempo vinham de novo flor d
a terra, mesmo contra a sua vontade, e ali ficavam como longas cicatrizes. hora
do recreio, fora sentar-se ao fundo da quinta, junto do muro onde se abriam os g
irassis. Voltara as costas para as crianas que brincavam ao longe e, de cabea baixa
, quebrava entre os dedos o ramozito seco que encontrara no cho, com uma formiga
a andar, inquieta, duma extremidade para outra. Ele queria resistir tentao, mas no
podia e, de quando em quando, mirava, dissimuladamente, a parte da quinta que a
rede delimitava. Via Clarinda e parecia-lhe que, s vezes, tambm os olhos dela se d
irigiam para o lugar onde ele se encontrava. Parecia-lhe que ela trazia um ar di
ferente do dos outros dias, meio triste, preocupado, no o ar duma criana, mas o du
ma mulherzita. Depois, comeara a caminhar para o lado norte, como se quisesse pas
sar mais prximo da grande fila de girassis, mais prximo dele. A incerteza da vspera
desaparecera; ele sentira-se inteiramente feliz.
A sombra das barras subia sempre e j metera num dos rectngulos brancos o punhal e
a cruz que "O Sbio" desenhara na parede.
Jogaram at o anoitecer. Ao findar, "O Sbio" disse:
A bisca de trs no tem graa nenhuma. Assim ^e quatro que est bem. Oxal demorem muito t
empo a julgar-te...
714
A EXPERINCIA
IV
( .OMO o vulto negro que passava e repassa'KftjI^^B
damente, atrs das grades da outra cela^Jj^B
tas tambm parecia estar espera. Parecia^ftil^B
espera quando se encontrava sentado na poojji^l
caixote, quando os seus olhos examinavam iM^I
quando ouvia as horas dadas pelo relgio da igOJjl^I
xima. A maneira como falava, a luz comedid.H^l|^B
nua do seu rosto, o sorriso condescendente daklpl
dir-se-iam provisrios, sem tempo para se ligageHjfl
ambiente, porque a porta ia abrir-se ou o comj&uH
chegar. Ao contrrio, "O Sbio" parecia esl"f"rd|H
nos movimentos ou na quietao, na voz ou no^^B
tade, havia nele um sentido de permanncia e tft&M^I
enraizada nas circunstncias. No s parecia esfaf'gjj^E
reinar. Sentia-se em tudo o andamento da sua $BI^I
nia, a conscincia da sua fora. Ao lado dele, MaJMlH
falava pouco e jamais algum o vira acompairfljiH
palavras com um gesto. Passava horas e horas ^4^1
enxerga, imvel e em silncio, numa indolndilItJM
tigre estendido ao fundo da jaula, a cabea ettfrrilP|
patas, os olhos semiabertos, a olhar n egligentariflij
os outros tigres exporem-se de encontro s ggUnMH
Entendia-se que ele aceitava a vassalagem e se JiffljB
ao "Sbio" na noo do tempo infindvel e nas milhgflIU
ninharias das existncias em comum, mas semprj^jB|
essa possibilidade de sbita reviravolta, com essa 3fl6ffij|||
reserva que existe entre o tigre domado e o domwPff
Desde o primeiro dia, Janurio inclinara-se fjP^fl-
os modos desintegrados e a cara aberta aos ares hHpOTf
ds e papalvos que o Palhetas exibia: "Est-me a caw's
sar um transtorno dos demnios, j se v. Daqui!'*
nada a poca de semear e quem me vai fazer todoe*
trabalho ? Os rapazes no bastam e minha patroa^
A EXPERINCIA
715
coitada, mal chega o tempo para tratar da casa. E tudo Oor um copo de vinho a ma
is e por aquele malandro, aue me comeou a espicaar. Mesmo sem vinho, um homem asse
nta duas cacetadas se ouve algum chamar-lhe filho daquela e sabe que a sua me foi
sria toda a vida e est ceguinha em casa, com um rosrio nas mos, sempre a rezar. No lh
e parece ? Dizem que seis meses passam depressa, mas decerto quem diz isso nunca
esteve seis meses na cadeia. Seno, falava de
outra maneira".
Sempre a baixar a vista quando Janurio erguia a dele at a cela vizinha, Palhetas s
uspirou a longura dos dias e removeu a conversa para o antigo asilo. Ento, "O Sbio
" largou a sua indiferena e aproximou-se :
O qu ? Foi um homem rico ? estranhou, ao ouvir o que Janurio dizia. Pensei que t
ivesse sido
a Cmara...
No, no foi a Cmara; foi um homem rico. Rico a valer: o pai havia-lhe deixado
uma grande roa em So Tom. Mas ele soube que, no tempo do seu pai, muitos pretos tin
ham morrido l na roa com uma epidemia e ficado muitas crianas rfs. O pai dele, que s
queria dinheiro e mais dinheiro, no ligara nenhuma importncia s crianas e quase toda
s morreram ao abandono. O homem, claro, estava contente com a massa que recebia
de So Tom pudera! e garantia a toda a gente que aquilo das crianas fora uma mentha
inventada pelos inimigos do seu pai. Mas, um dia, teve um sonho e, durante o so
nho, a alma do pai disse-lhe que mandasse fazer um asilo, pois no podia sossegar
no outro mundo por causa das crianas ^ue deixara morrer na misria. "Sei que ests a
pensar ~ dizia-lhe a alma do pai que isto foi h muito tempo e muito longe daqui
, e que nem em volta da tua casa, nem em todo o concelho, h pretos. Mas Peo-te qu
e, amanh de manh, abras bem os olhos e vejas". Ele assim fez. E logo viu o que a a
lma do Pai queria dizer. Na comarca havia muitas crianas desamparadas, na misria e
quase todas rfs; eram
JL
7i6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
717
* brancas, certo, mas nem por isso mereciam i4|
do que as pretas... O homem ficou impressiona^
ao fazer o seu testamento, deixou dinheiro p"!
asilo da infncia desvalida... .79,
Palhetas escutava com os olhos muito ab&jj^
vogar no maravilhoso. Parecia-lhe uma dessas ijhj
rias antigas, que os velhos da sua aldeia tinham/fima
a outros velhos e narravam lareira, nas noft
Inverno. Uma dessas histrias que lhe davam calai
e a sensao de o Mundo ser muito grande, cheii
coisas extraordinrias e de mistrios, e ele mutS
queno e muito ignorante. "O Sbio", ao contrrioj,J!j
que se diminuiria se aceitasse, sem protesto, aquiltf-i
lhe cheirava a absurdo: ,oj
Ora! Ora! Vai impingir essa l em So 3?4l C para mim no pega. Almas do outro mundcMU
demais a mais, almas de brancos com pena dos prij coisa em que no acredito... njfj
Eu estou a dizer o que corria justificotf Janurio. Se no foi assim, no fui
eu que inven Contavam-se muitas coisas e algumas delas no batlj certo umas com as o
utras, l isso verdade; mas tyHt bem no admira, pois j havia muitos anos que aq" tin
ha acontecido. As freiras diziam que o Asilo f maldito desde o princpio e falavam
do homem effll se ele tivesse andado de gorra com o diabo. PaiHl que era, realmen
te, um tipo esquisito. Queria qual Asilo no fosse igual aos outros e que s criana*^
desse uma educao diferente das outras criancsS
Muito intrigado e na alma um ligeiro temor supeS ticioso, Palhetas interrompeu:
Que educao ? s
No sei. No meu tempo j no existia nenhuflj educao diferente. Ouvi contar que ele jura
va qt* havia de fazer os homens melhores do que eram, nM que, para isso, precis
ava de colocar Jesus Cristos Satans na mesma casa... >&
Que ideia! tornou Palhetas, com uma careta reprovativa. '$
Do seu lado, "O Sbio" sorria, altaneiro e cptico^
. Foram as freiras que te meteram essas caraminliolas na cabea, com certeza. Ora
dize que no... gs olha l: por que que o Asilo acabou ?
Bem... acabou por falta de meios... O homem deixou o suficiente, mas, um dia, de
pois de o Asilo existir h j muito tempo, o dinheiro, que era forte, tornou-se frac
o. Os rendimentos no chegavam para as despesas. As freiras queixavam-se sempre do
s que tinham posto o dinheiro a render nos Bancos, em vez de comprarem proprieda
des. Elas diziam que o Asilo estava crivado de dvidas e era preciso entrar
no capital. Ento, claro, passmos a comer pior. As nossas batas andavam to passajad
as que at pareciam cascas de rvores. s quintas-feiras, saam duas freiras a pedir esm
ola, de porta em porta. Mas a maior parte das pessoas, est claro, dava uma descul
pa ou dava uma misria, que no resolvia nada. A Superiora ainda quis ver se consegu
ia alguma coisa por outro lado e escreveu uma carta ao jornal da vila. O jornal
disse que era uma vergonha, numa terra onde existia tanta gente rica, deixar aca
bar o Asilo. E abriu logo uma subscrio. Mas, ao cabo de dois meses, as freiras diz
iam que j no havia nenhuma esperana, pois o resultado da subscrio no chegava para um a
lmoo de todos ns. Pouco depois, o Asilo fechou. Eu tinha comeado a aprender para s
apateiro, mas, com os trabalhos da quinta, no sabia ainda sequer pegar na sove
la...
Palhetas viu passar um sorriso nos lbios de Janurio, mas era um sorriso negro e rpi
do, como um destroo meio submergido levado por uma torrente. Antes de o Asilo fec
har, a Superiora pediu ao jornal que fizesse um apelo s famlias ricas, para tornar
em conta das crianas. Eram dezoito meninas e dezasseis meninos. Um em cada casa no
pesaria muito e podia ajudar nos trabalhos, pois todos sabiam varrer, esfregar,
arear e fazer outras coisas. Mas s apareceu o doutor Carrazedas, o tabelio, e, ma
is tarde, a D. Ludovina de Urujes. Pela primeira vez, as freiras reuniram na mesm
a sala os meninos e as meninas. O tabelio entrou acompanhado pela Superiora e fic
ou
7i8
A EXPERINCIA
EXPERINCIA
719
*&. olhar para ns, assim como por cima dos oiid||H
vi que ele olhava muito para mim e para uma peM^I
que havia l, chamada Clarinda, que ramos c^^l
velhos. Depois, ps-se a falar, em voz baixa, cq^l
Superiora. Ns no ouvamos nada do que eleugiH
mas a Superiora inclinava muitas vezes a cabea|M^B
que a responder: "Sim, senhor doutor". "Sim, SM!
doutor". Eu nunca tinha visto a Superiora assit^^H
amvel. Parecia que o tabelio, que estava muit^jSH
e que, mesmo quando falava, quase no mesi^H
lbios, que era o director do Asilo e ela uma eftffl
gada. Depois, ele voltou a olhar para os meus b^JlH
para o meu corpo, desde a cabea at os ps. Eu $4H
envergonhado e sentia aqueles olhos andarem '3C|9
mim como um tio que fosse passando devaga#4wH
a pele. Ele tornou a falar com a Superiora e, tvtfll
ela chamou-me e disse-me assim: "O senhor dffl|i||B
arrazedas faz a esmola de te recolher em casa'ilJM
uma casa abastada e o senhor doutor uma das" MH
soas mais respeitadas de todo o concelho. Esper&'^^H
procedas sempre de forma a merecer este actOsfliH
grande generosidade. Ns no nos poupmos a''S3|H
fcios para te educar bem e no deves deixar-nos/fiU
No deves ser respondo e deves obedecer sempre>jaMH
fores mandado. Deves trabalhar com boa vontade,'-yfljH
sem trabalho no se pode viver honradamente". DefwM
disto, a Superiora saiu com ele... <!iU(B
A voz de Janurio toldou-se. A recordao cobrifa-gB
novamente de realidade. Os vermes do tempo devolvasHB
aos ossos a carne que lhe haviam comido, o cc*q||M
refazia-se, aquecia, voltava a ser sensvel. Palhetas n<^iH
compreendera aquela pausa. '1T^B
E voc foi, j se v... disse, olhando Pa^*li sinal, em forma de pio, que Janurio tinha
nas cotawB da mo direita.
Fui. A criada dele veio buscar-me no dia W^W guinte. Para dizer que ia contente,
o que se chaUI* Ti contente, no ia. Antes do doutor arrazedas ter ajte ' recido,
eu no sabia qual era o meu futuro; s sabfifque o Asilo ia acabar. Mas pensava que,
depois de v<-\
A silo acabar, eu poderia dormir vontade; deitar-me s horas que muito bem entende
sse e levantar-me tarde. Toda a minha vida desejei ser livre para fazer isto. As
freiras obrigavam-nos a sair da cama s seis da manh, ainda estremunhados, e punha
m-nos a rezar em jejum, mesmo no Inverno. Nas cadeias, onde no temos nada que faz
er, o que se sabe: andam sempre com o regulamento na boca. No lhes importa que d
urmamos durante o dia, mas parece que tm um prazer dos diabos em fazer-nos levant
ar quando o sono melhor. Alm do mais, eu ficara com rnedo da cara sisuda do tabel
io. Mas, logo pensei que todas as pessoas importantes so sisudas, pois se no fossem
sisudas no seriam importantes. O Asilo estava cheio de letreiros que as freiras
haviam colado nas paredes. Naquela acol, ao lado da outra cela est vendo ? ali,
antigamente, era a sala da aula havia um que dizia: "S humilde, que Deus te prot
eger".
Palhetas quedara-se um momento abstracto, como se seguisse mentalmente a marcha
das palavras; depois, inquiriu de sbito:
E as outras crianas ?
Umas duas ou trs foram levadas para um orfanato do Porto e as outras ficaram anda
ndo por a... Janurio estendia o brao para o lado do vale. Assim como os cordeiros s
em me...
Palhetas voltara a ter um ar distrado. A sua ovelha "Lambareira", que morrera
de parto h muitos anos, viera-lhe de repente para os olhos. O anho escapara, m
as no fazia seno balir, com fome, erguendo o focinho branco, de olhos inocentes,
como se chamasse, de longe, a me morta. A mulher dissera: " melhor mat-
lo, do que v-lo a a penar. No temos outra ovelha aleitada, que vamos fazer?" Ele ol
hara o cordeirito e pensara que a sua carne era mole, ainda sern gosto e que, po
rtanto, no valia a pena com-lo. Pegara nele e estendera-o sobre os ombros, por det
rs do seu pescoo; com a mo direita agarrara-lhe duas patas, com a esquerda as outr
as duas e botara at Lafontes, a uma lgua da sua aldeia, a pedir ao Manuel
720
EXPERINCIA
Tanoeiro, que tinha ovelhas com crias, que umsi^B
o aleitasse. ,:|H
E, afinal, como se deu voc em casa do 4dl
Carrazedas ? perguntou, ainda com a sensaH
que regressava de Lafontes. .IJB
Os olhos do "Sbio" e do Malafaia convergiraoW|M
cretamente para Janurio. Mas ele ficou de rosto feiaH
e de olhar sombrio posto no cho. ""
No vale a pena falar disso murmunWlM
"O Sbio" pusera-se a assobiar iromcamenteddl
vinha, como a rapariga da outra cela, com a difeiH
de que o seu corpo ora se inclinava esquerdgoM
direita, no jeito de acompanhar o balano dum n^M
Trazia despido o tronco largo e forte, como semprepoB
se lavava, a cantarolar, uma vez por semana. BjjB
doso drago tatuado cobria-lhe inteiramente as cc%pB
e nos braos, junto dos ombros, em posio de ojpB
tides, viam-se duas mulheres nuas, de seios exageiraB
e em disco, como os das apsars dos quemeres. d?U
Janurio aproximara-se das grades. Um gatailiB
p v a boca com as patas, junto da esquina da igfdB
enquanto o vento ia afastando as penas ensangtieSj"
das duma arvloa. Do beiral descia, ao longo de t9|
o cunhal, uma barra azul que emoldurava a pail^ffl
branca de cal. Fora justamente dali que ele se voMajiH
a ltima vez para o Asilo, na esperana de di1sS|
Clarinda. Ela l estava, por detrs dos vidros da Jnera||
a v-lo afastar-se, como ele, agora, por detrs, dsfl
barras da priso, via as penas da arvloa serem dXfjji
persas pelo vento. Clarinda levantara os dedos, a dizeis!
-lhe adeus, uns dedos imprecisos, mal contornados"!
como vistos atravs de gua trmula. Ele j havw
dobrado o cunhal quando arremetera contra a sblSf^l
timidez que o impedira de acenar tambm. Certamente? |
ela ia pensar que ele no sofria com a separao; S*,,
pensar aquilo e aquilo no era verdade. A senhorJj
Germana dizia: "Vamos depressa, que estou a fazef^
falta l em casa". <!
"O Sbio" deteve-se e deixou de assobiar. -^
A EXPERINCIA
721
Quantos so hoje?perguntou, sem se dirigir
especialmente a ningum.
Parece-me que so catorze disse Palhetas.
. No; hoje devem ser quinze...
Da sua enxerga, Malafaia fez um gesto com a cabea, a aprovar.
_ So quinze, so! confirmou Palhetas. Pois se a Feira dos Onze foi h quatro dias!
Estou a perder a memria...
"O Sbio" procurou um lpis entre as suas roupas velhas, na prateleira; e ps-se a des
enhar, sob a ponta do punhal, uma enorme gota de sangue.
Quinze! Quinze! A voz transformara-se-lhe, tornando-se surda e imprecativ
a; e a mo carregava o lpis como se empunhasse um estilete e ferisse a parede e o s
eu mistrio, que s ele via. Quinze! repetiu com um torn cavernoso de exorcismo.
Deitado de ventre para baixo, o queixo fixo sobre os braos cruzados, Malafaia seg
uia, de olhos frios, os movimentos da mo do seu amigo.
Janurio voltou a sentar-se ao lado do Palhetas:
Ele vivia s com a governanta, longe da vila, mas beira da estrada. Voc nunca passo
u por l? Era uma casa grande, com um jardim frente e uma varanda com trepadeira
s. No se lembra? Parecia mesmo o passal dum abade. A governanta, que se ch
amava senhora Germana, tinha quase a idade dele. Quando chegmos, ela pegou
num pano e disse-me: "Estou velha e j no posso com toda esta labuta. Bem me basta
a cozinha. Tens de me auxiliar. Vais agora limpar o p. Essa serigaita que esteve
a era uma relaxadona. As anteriores eram o mesmo. So todas assim. Tem cuidado
com as jarras e os outros bjectos que esto em cima dos mveis. Valem muito dinheiro
e o senhor doutor matava-te se os partisses".
Ele nunca vira uma casa to rica e to atestada ^e coisas bonitas. Ia limpando e adm
irando as coisas nitas, como aquelas danarinas que mal se apoiavarn sobre as pontas
dos ps, to frgeis, to delicadas,
1ue a mo dele receava tocar-lhes com o pano. Come-
^
722
A EXPERINCIA
* cara pela sala de visitas, para levar tudo a eitoOM
p por toda a parte. Ele dava razo senhaUB
mana e sentia pena por ela, pois via-se mesm<jj|H
casa era muito grande para ser tratada por-,i|gB
pessoa e, demais a mais, assim j entrada nos.sesj^B
O piano da defunta estava tambm cheiiSH
p, tanto, tanto, que at tirava o brilho negi^iH
madeira polida. Ele olhara o quadro que se eatajjB
na parede, aquela rapariga muito fresca, todas'o^^H
-rosa e azul, um largo chapu de palha enfiq|M
espigas de trigo e malmequeres, um vestido que MB
mesmo ser de seda e nos braos um grande rMH
cravos. Ento, estendera o dedo sobre o piano* *)<JiMj
cara a desenhar no p o retrato de Clarinda, >faH
to bonita, to fina, como a cara que sorria notpttH
Mas nunca tivera jeito para o desenho, nunca "
as freiras diziam sempre que era um desajeitad^H
aquilo e era a pura verdade, nisso elas falavafliMB
um livro aberto. O retrato no sara a seu gs*f^H
ser ainda fazer outro mais parecido, s os traos/raH
num vidro embaciado, mas, de repente, lemb*8l|M
que estava a perder tempo e limpara rapidatfeftU
p. Limpara-o com desgosto, como se ClarindH
vesse l e ele a suprimisse com o pano, com dawjlB
como se um santo lhe houvesse beijado as mow|H
fosse, em seguida, obrigado a lav-las. Dali P^|H
para o quarto do doutor Carrazedas e ia acatjB
cmoda quando a senhora Germana o chamara fl(r)|H
dissera: "No tenho uma pinga de gua. A tfflSJB
est acol. Vai l num instante". ft >3"
A bomba ficava no jardim e era muito *MIB
para as minhas foras: parecia que estava enfercujjH
por dentro. Eu queria que a senhora Germana 4"B
sasse bem de mim e dei-lhe a valer. s vezes, e>ii|l|
o cansao era tanto que eu no podia mais e pstuM"
Mas por pouco tempo, pois a senhora Germana, qi^MI
no ouvia a gua a cair no depsito, gritava log^*!
cozinha: "Ento? Que ests a fazer?" Eu continha**
e sempre de boa vontade. rr^*
Janurio interrompeu-se e mirou, desconfiado, "O ***
A EXPERINCIA
723
hio". Mas, como o Palhetas, ele estava com um ar srio e atento.
.A porta do jardim tinha uma sineta continuou que prevenia quando algum entrava
. Ouvi a sineta e vi chegar um homem, com modos de trabalhador do campo. Assim q
ue deu comigo, parou e ficou a olhar-me sem dizer nada, mas parecia que no estava
satisfeito de me ver. A senhora Germana, que tambm ouvira a sineta, veio ao pata
mar da cozinha e disse ao homem: "Agora j no precisamos de si, senhor Joaquim. Tem
os a esse rapaz. Tambm se estivesse sua espera, estava arranjada. H mais de uma hor
a que no tenho gua. Quanto lhe devo ?" O homem tornou a olhar para mini, que ergui
a e baixava, todo suado, a asa da bomba, e respondeu: "Quanto vossemec quiser dar
". A senhora Germana entrou na cozinha e tornou a sair: "Tome l". O homem subiu d
evagar os degraus, at o patamar, e disse, numa voz desconsolada: "S trs escudos!" "
Acha pouco? perguntou a senhora Germana, um bocado abespinhada. Vamos l a ver...
Eu pus na rua a outra criada ainda no h uma semana. Foi na quarta... sim... na qu
arta. Portanto, h seis dias. Ora tenha juzo! Poucas vezes lhe h-de aparecer um trab
alho bem pago como este!" O homem pegou no dinheiro e desceu as escadas sem dize
r mais nada. Eu continuei a dar bomba. De quando em quando, ouvia a senhora Germ
ana resmungar e bater com as panelas na cozinha e eu pensava que ela ficara abor
recida por o homem no ter agradecido, nem dito nada. J passava do meio-dia quando
ela tornou a chamar-me. "Hoje, no preciso mais gua. Mas, ficas sabendo, todas as m
anhs, s nze horas, enches o depsito. E v se aprendes a despachar-te. O Joaquim Chambu
ta, esse homem que Veio a, fazia tudo num quarto de hora. Olha l: limPaste o p da s
ala de jantar?" Eu s tinha tido tempo de limpar a sala de visitas e o quarto do d
outor Carra-
2edas. A senhora Germana desatou a gritar: "Que estiveste a fazer todas estas ho
ras ? Que vida levavas tu ^ no Asilo ? O senhor doutor est a a chegar, para o
k
724
A EXPERINCIA
* almoo, e encontra tudo numa porcaria. Vai j w
J!" Eu calei-me, que remdio! Pensei que a s||
Germana era quem mais mandava ali, depois dota
Carrazedas, e no queria p-la contra mim. Gl
acabei a limpeza da sala, ela apareceu, tirou do ara
a toalha e os pratos e ensinou-me a pr a mesa.'l
ouvi uma porta abrir-se e fechar-se e uns pajl
casa. A senhora Germana ficara mais nervosa e dim
em voz baixa, com muito respeito: " o senhor dq
Vamos depressa!" Deu um jeito ao talher e l V
para a cozinha. L, perguntou-me se eu sabia"
mesa. Eu pensava que sabia, mas estava chil
medo. "As freiras ensinaram-me respondi m|
sei se o suficiente". A senhora Germana ten[
gesto contrariado, assim como quem no cortai
coisa alguma e depois suspirou: "O que vale *
senhor doutor um santo! Lava essas mos! Ntw
um pente ?" Fui gua-furtada, onde ela me havifl
que eu dormiria, e tirei o pente do embrulho quS
xera do Asilo. Ela prpria me arranjou o caiffl
ajeitou a gola do casaco. Fiquei gelado quandoJI
o doutor Carrazedas chamar pelo nome dela, coinll
voz que enchia a casa toda. "J l vai! J l vaf
respondeu a senhora Germana. E ps numa trai"
o peixe que havia frito. Cada vez eu tinha maior f "
Queria lembrar-me do que as freiras me havianl)l|
nado e parecia-me que ia esquecer tudo. JiT
"O Sbio" tirara, duma pequena lata enfemglj
algumas pontas de cigarros, descascara-as, metei"
tabaco numa mortalha e riscara um fsforo. Comffl
portncia, pusera-se a soprar, para cima, as funal
depois puxara um caixote e sentara-se ao ladcKi
Palhetas. j&
O doutor Carrazedas estava cabeceira da mj*
com um jornal dobrado junto do prato e no levanS
os olhos quando cheguei. "bom dia a Vossa Excifl
cia", disse eu, tal-qual me haviam ensinado as frea
Respondeu-me por entre dentes, como quem no fj
dar confiana. A travessa tremia-me nas mos quai*
a coloquei na mesa. Ele serviu-se, abriu o jornal J
A EXPERINCIA
725
nrincipiou a comer e a ler. Comia muito devagar. Quando pegava no copo
fazia-o tambm como todas as pessoas que so de alta categoria. Depois, trouxe -lhe
a carne. Eu ouvia o tac-tac do relgio de pndulo que havia no corredor; ouvia, s ve
zes, o rudo do jornal, quando o doutor Carrazedas voltava a pgina; depois ouvia de
novo o tac-tac do relgio e aquilo parecia-me que nunca mais acabava. Estava sem
pre com medo de fazer uma asneira e s comecei a sentir-me mais tranquilo quando f
ui buscar o caf. A senhora Germana deu-mo e veio atrs de mim. Ao chegar sala, diss
e: "Sabe, senhor doutor, paguei trs escudos quele mariola do Joaquim Chambuta, por
seis dias que ele veio a puxar um bocado bomba. Pois no quer ver que nem me dis
se muito obrigado e partiu com umas trombas como se o houvssemos explorado! Ns, aq
ui, a arranjarmos-lhe trabalho e ele a proceder assim!" O doutor Carrazedas fico
u calado, mas, pela sua cara, via-se que dava razo governanta. Quando voltmos para
a cozinha, a senhora Germana chegou um banco para a mesa de pinho e encheu-me o
prato de feijo e um pedao de bacalhau. Vi que tinha feito para ela e para mim uma
comida diferente da do tabelio. Eu estava cheio de apetite e, alm disso, p
areceu-me justo que uma pessoa como o doutor Carrazedas comesse coisas melhores
do que ns. "Ai, a minha cabea! disse, de repente, a senhora Germana. com tudo ist
o, at me esqueci de dar comida aos coelhos. Hoje de manh, para te ir buscar, s ti
ve tempo de lhes deitar uma mancheia de couves. Anda, come depressa e vai apanha
r um braado de erva". Comecei a comer depressa, mas ela tornou: "Parece Hnpossvel
que no te doa a conscincia de estares a a comer, sabendo que os bichinhos esto a mor
rer de fome". Levantei a vista, sem compreender bem o que fila queria. Ento ela d
isse: "Vai l num pulo e, quando voltares, acabas. Olha: aquele campo de erva, adi
ante dp couval. A foicinha est dependurada no alpendre, Ca em baixo. Logo a vs". A
ssim que voltei, ela preveiu-me, antes que eu tornasse a sentar-me: " a
726
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
727
primeira coisa que tens de fazer, todas as rim
O despertador fica para as seis horas. Levaffl
vais ao campo e cortas erva para o dia inteiro. fiS
avia-te, para lavarmos a loua". Acabei num ia"
o feijo e o bacalhau. Ainda comia mais, se h06M
e deitei o rabo do olho at o fogo; mas a;se|
Germana no viu e derramou uma panela deli
quente no alguidar. Comecei a lavar a loua. Ela-SM
o meu trabalho, com as mos na cintura, e reel
dou-me que pusesse os restos num balde, para otj"
depois desatou a queixar-se: "you ter muita catl
antes que aprendas o servio. E logo ha via ^0$
hoje, que vm c jantar o doutor Pinto, of ctJ
Macieira e o filho do senhor doutor!" Tornou a sUfe
e disse-me: "Anda, vai deitar a lavadura na"$81
do porco. ao lado do alpendre, com certeza }3
Depois, pega na enxada e trata um pouco do jjtirl
Tira todas as ervas, mas, v l, no cortes neiM
planta. O senhor doutor gosta que aquilo estejaelf
pr bem cuidado e bonito. Chegou a contrata^
homem para isso, mas era um explorador, nunca '$H
satisfeito com o que lhe pagvamos. At que o f M
damos embora. As criadas no faziam nada, mas dial
sempre que no tinham tempo. Vamos l a verSw
tu te portas. A Superiora do Asilo disse ao s!S|
doutor que tu sabias de horta e de jardim, fil
l a ver!" flfiS
E ela sabia nadar ? perguntou "O Sbio*5<PI um torn de escrnio. E voltando-se
para Malafil como se este fosse o nico que o podia compreendi Se no sabia nadar
, em Alcatraz que estaria beitf
O outro abriu um sorriso lento e turvo. "/f"
Que isso de Alcatraz ? perguntou Janii&J de novo maldisposto com o ar irnico do
"Sbio".^
No nada, continua! w
com voc a meter-se comigo no conto SM nada... **
No a meter-me contigo; a meter-me C$ ela... V l, no sejas parvo! *>;
Janurio tardou a recomear. No corredor B!
"T%
L
gira uma velha corcovada, de olhos pequeninos e a cabea ora a inclinar-se direita
e esquerda, ora balouando-se para a frente, como os bonecos dos ventrloquos. Traz
ia um pequeno saco deteve-se junto da outra cela. No se divisava o carcereiro, ma
s sentia-se, por isolados rudos dos seus sapatos, a presena dele no extremo do cor
redor. A velha tirava do saco e passava atravs das grades alguns novelos de l, rec
ebendo, em troca, umas blusas de malha, negras e grossas. Devia ser espectculo co
nhecido, pois Janurio notou que os outros presos no lhe davam ateno alguma. Ele tent
ava ver de frente a rapariga, no momento de pegar nos novelos, mas dir-se-ia que
ali, atrs das grades, ela tinha uma cruz de ferro incrustada no rosto, que o sec
cionava em quatro partes.
Ento ? insistiu "O Sbio".
A velha retirava-se, sempre a abanar a cabea, e Janurio desviou, enfim, a vista:
Quando cheguei noite, j no podia mais: tinha as mos inchadas e o corpo estafado, ma
s pensei que todo aquele trabalho seria apenas no primeiro dia, para a senhora G
ermana avaliar as minhas foras e ver se lhes convinha ou no ficarem comigo. No me q
ueixei. Ela andava muito atarefada entre as panelas e a mesa da cozinha e tant
as voltas dava que mal deixava espao para mim e para uma sua prima, que vie
ra auxili-la naquela noite em que havia convidados. A certa altura, par
ou, olhou-me com uma cara de quem se esqueceu de qualquer coisa muito importa
nte e disse-me: "A minha memria! Vai! Vai pr a mesa. Pe cinco pratos". Eu assim fiz
. Pouco depois, ouvi chegar um automvel e a senhora Germana gritou-me que fosse a
brir a porta. Passado algum tempo, chegaram mais dois carros. O filho do doutor
Carrazedas, que vinha com a mulher, era muito parecido com o pai. Reconheci-o l
ogo. Ao doutor Macieira j eu o tinha visto, uma vez que ele viera aqui, ao As
ilo, por pausa dum mido que cara doente. Do outro, do doutor juiz Pinto, que eu nu
nca ouvira falar, pois ele estava h pouco tempo em Mangudas. Mas, de todos, o nico
728
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
729
c<*n quem simpatizei logo foi o doutor Macieira. 9|flB cara de boa pessoa e uns c
ulos grandes que parej^H rir para a gente... '^^1
Eu tambm o conheo interrompeu o Pjj^l tas. S de vista, claro, porque, graas a l9^l
nunca precisei de mdicos. Mas ele vai, algumas vw^l minha aldeia. E, quando as p
essoas so muito P#b^I no leva nada. ^$^1
Aquilo criou um silncio. Ningum sabia pom^l o elogio do mdico abrira um silncio e Pa
lheta^M Janurio sentiram uma maciez na alma que nensM^B deles saberia explicar. 'n^
j^l
s oito, fui sala de visitas prevenir qtlj^B jantar estava pronto. Eles vieram
e, quando se $|^B taram, a senhora Germana apareceu porta e di||^B "Ho-de desculp
ar, mas o rapaz ainda no tem Pi^H tica. Dizem que o Asilo vai acabar e, a meu ver
,<i^^B faz c falta nenhuma. No sei o que l ensinaiti"4J^H garotos!" O mdico olhou pa
ra mim e sorriu-se, co>j^BJ se me conhecesse de h muito. Depois, assim cott^B ar d
e quem me dava um consolo, disse: "DeixeQ^H| senhora Germana, que ele tem boa p
inta e vai vefiql^H se pe a um homem activo". "Deus o oua! Detii^^B oua, senhor dout
or, porque gente mandriona tem P^f^B sado por esta casa a mais no poder" resp
oid|^H ela e, ao mesmo tempo, fazia-me um sinal com a pOl^j^^B do dedo para que a
seguisse. Quando voltei coffl^SJH primeiro prato, o filho do doutor Carraz
edas diais*" "Afinal, no podemos ficar com a tal pequena do AsjpflH fraquita de
mais para o trabalho. Mas parece ^IflB l a nossa vizinha, a Ludovina, ir busc-la".
Eu est^HBJ nervoso ao ouvir aquilo, pois era amigo dessa pcquenffiiB e mais nerv
oso fiquei quando o doutor CarrazecJflB comeou a dar a sua opinio: "Realmente,
para o t1**^" balho no deve valer um caracol dizia ele. (r)^S poderia ser
vir para criada de sala, pois tem um ar educadinha". Assim que vim buscar o outr
o prato, per" r" gunte senhora Germana onde morava o filho <4#?t% doutor Carraze
das. No quis perguntar-lhe a mora<M * da Dona Ludovina, para no levantar suspei
tas. Ma#-' f
pareceu-me que sendo os dois vizinhos, bastava-me saber a morada de um. A senhor
a Germana principiou a soprar no dedo em que se queimara e disse-me que o doutor
Agnelo era director duma fbrica, a mais de uma lgua dali. Fiquei muito triste: as
sim no seria fcil eu ir ver a pequena. Agarrei na travessa da carne e corri para a
sala de jantar, mas, quando cheguei, j eles falavam de outra coisa...
Palhetas dir-se-ia sempre atrasado nas reflexes que fazia; as suas perguntas surg
iam isoladas e com um torn repentino, como se ele pretendesse recuperar o tempo
perdido:
E a tal Germana ganhava bem ?
Nem por isso. Pouco mais do que uma criada
qualquer.
Decerto esperava que ele, quando morresse, lhe
deixasse alguma coisa...
No sei, talvez. Pelos modos como falava, parecia que no era isso o que mais lhe im
portava. Ela sabia que havia o doutor Agnelo, o filho. Mas tinha muita vaidade e
m dizer que o doutor Carrazedas nunca havia encontrado outra governanta melhor d
o que ela. E como gostava de mandar e ele deixava-a mandar vontade, estava conte
nte...
Ele h pessoas assim inconscientes, isso h ciisse Palhetas, depois dum curto silncio
. Eu tenho conhecido algumas...
Uns passos familiares aos ouvidos avanavam no corredor. E logo o carcereiro apare
ceu em frente das grades. Era um homem de cinquenta anos robustos, o nariz e as
faces muito vermelhos e os olhos moles e piscos. Trazia na mo um grosso sobrescri
to de telagara, que ele prprio havia aberto, conforme o regulamento. Fez um gesto
a Janurio e disse:
Para si. proibido entregar mais de vinte escudos, mas v l por esta vez...
Partiu sem outras palavras. Janurio reconheceu a letra de Clarinda e as suas mos c
omearam a tremer. Os outros fingiam-se distrados, mas os seus olhos viam tudo. E v
iram os dedos de Janurio tirarem, com a
730
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
731
1 *1
SSuTCot^^?^ E""".
~r&"f\gwsa!**
lhe agradecer..' Pr Clma' meu ^nino, *,
'' &
V
5- DIA
-nil
f .AA uma chuva miudinha. Caa sobre a tt$Ml
que se agarrava, ao cho, babujando ~tpH
como fumaa de fogueira que uma atmosfera ^'f$H
no deixasse subir. A praa dir-se-ia coberta de lgeM
movedio e das mulheres que a atravessavam-ilplH
via apenas a cabea, ora somente um vago negljH
agitando-se no meio da brancura ondulante. $MH
O sino acabava de chamar, pela terceira vez/sjM
a missa das sete. "O Sbio", de olhos indolenteSJ9flH
a praa, ia bocejando alto e pensando que JaintftU
apesar de todos os disparates que dizia, naquiloHfcdiM
razo: para que haviam de levantar-se to cedo,("M
dia assim triste e hmido, demais a mais dornJfljjH
se no iam sequer missa e se no tinham nad^^B
Na cela vizinha, o vulto da rapai iga continaaMB repassar atrs das grades, agora c
om um xaile ;$wH[ os ombros um xaile negro, de franjas retorcdtfraB empastadas d
e sujidade como badalhocas de ove^JH Caminhava no a direito, mas em redondo, no f*H
| de animal nora, e com uns velhos sapatos camba^W
Janurio e Palhetas haviam interrompido a *HI* conversa em surdina. Mas logo Januri
o, sempre "*;* olhos no outro lado, volveu: r^*'
Como conseguiu ela esconder aquilo tanto telHP~f
Isso no sei. No a primeira que consegit-W*
mesmo. A mim, mete-me nojo! declarou o velho, coin "m esgar. _ _
Janurio retirou a vista. Agora, tambm a ele parecia que a rapariga no era como as d
emais. Parecia-lhe que, em poucos minutos, graas ao que Palhetas dissera, ela se
havia tornado inferior s outras mulheres.
Voltaram a calar-se. Estavam sobre os caixotes, com os cotovelos fixos nos joelh
os e as faces entre as mos, humildes, apagados, maneira de emigrantes esperando n
o cais, resignadamente, o momento de embarque; e, por detrs deles, a cela apresen
tava uma obscuridade de poro que tivesse apenas meia escotilha aberta.
com a chuva, a neblina ia-se rasgando, descendo, separando-se em farrapos e deix
ando a descoberto trechos de terra, como se dum mar de espuma surgisse um arquipl
ago. Sobre as pedras lavadas apareciam as mulheres retardatrias, que caminhavam,
apressadamente, em direco igreja, uma das mos no guarda-chuva, a outra a levantar u
m pouco as saias, para que a gua no as esparrinhasse. No se via o rosto de nenhuma
delas, mas "O Sbio", quando Janurio se levantou do caixote e veio pr-se tambm s grade
s, disse-lhe:
Isto gado que no presta. Tudo velhas ou criadas de servir, que as patroas mandam
cedo, enquanto elas ficam refasteladas na cama. As boas s vm missa das onze...
Janurio pensou que talvez fosse por aquele seu gosto de falar apenas de mulheres
bonitas e no pelas lesmas razes do Palhetas, que "O Sbio" nem sequer olhava para a
outra cela. E que seria para no se desmerecer perante ele que o Malafaia, quando
mirava a rapariga, o fazia interessado, mas disfaradamente e sem a persistncia do
gato, l em baixo, antes de saltar sobre a arvloa.
Tornou "O Sbio" a bocejar s horas que lhe corriam longas. Depois deu costas vida d
e fora e comeou a gingar l dentro. Andou assim alguns minutos, um *or de tempo par
a os seus nervos, um tempo morto
732
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
733
*como o dos relgios de navios naufragados, coagi
ponteiros imveis no fundo do mar, a indicarem, JM|
detrs dum olho de vidro frio e impassvel e per
uma eternidade imutvel, o momento em que para^J
"O Sbio" fixou Palhetas, sempre sentado no (9
xote, sempre com o rosto metido entre as moj
irritou-o aquela quietude. /TI
Um leo de loua em cima dum porto vm
mungou, com vontade de lhe disparar um pontajB
Da terceira cela, na esquina norte do edifcio,i^w
vida por diferente corredor, vinha uma cantoria:"
creta e montona como a chuva. O relgio da igfS
deu oito horas, deu nove horas e a cano dos ouml
presos continuava. "O Sbio" pegou no baralho, cn
se no pensasse no que fazia; olhou, depois, MalafaiB
sentado no cho, junto parede, com os braos4<$M
volta dos joelhos, e atirou as cartas para cima fl|
enxerga, num gesto soberbo do seu mau humor. > ,
A chuva parara, mas o cu mantinha-se opaCjB
O velho Palhetas, de olhos fixos no soalho, pen$SB
que jamais poderia estimar deveras uma pessoa coflW
"O Sbio". Da outra cela chegava nova cantata, co|B
o mesmo tdio da primeira. "Tanto tempo perdidfflM
tornou a pensar o Palhetas, enquanto visiona v* !
seus campitos muito verdes, os bons lameiros das suj
duas vacas. '^M
"O Sbio" sentiu-se menos enervado ao ouvir o reiwl
gio dar dez horas e, pouco depois, o sino tocar a P$jm
meira vez para a missa das onze. A chuva tornaraJB
Ele havia-se encostado de novo s grades e via-a cai$B
Olha l disse, voltando-se para Janurio. *f!jB
Estive esta noite a pensar. Tu andaste em Lisboa, ffl|
hospedaste-te vrias vezes no Limoeiro, antes de fazfefl
o que fizeste. Ento quanto tempo serviste em castffl
do tabelio ? 9 l
Antes mesmo de obter resposta, "O Sbio" incoc? I
porou outra ideia: f
J foste s sortes ? -T < Janurio abanou a cabea. ^ \
No, claro. Logo vi! '
Ainda assim estive l quase trs anos...
Quase trs anos ?
Eu no sabia para onde havia de ir... Janurio ficou a olhar tambm para a chuva. S
se ouvia o seu sussurro frio e uniforme.
Eu no sabia para onde havia de ir. As vendedeiras, no mercado, riam-se de mim e p
erguntavam-me: "Dize-me c: ele j te paga alguma coisa?" Ele no pagava nada. A senho
ra Germana dizia que, quando se contratava algum, porque se precisava do seu trab
alho e ento, estava certo, pagava-se. Mas quando se tratava dum asilado, sem pai,
nem me, era muito diferente; era j uma grande esmola tomar conta dele; era apenas
por se gostar de fazer o bem e, nesse caso, no havia obrigao de se lhe pagar. A pr
incpio, pareceu-me que a senhora Germana tinha razo. A Superiora do Asilo tambm me
havia dito que aquilo era uma grande esmola. Mas, uma vez, o homem da mercearia,
enquanto pesava as coisas, perguntou-me quanto eu ganhava. Respondi, claro, que
no ganhava nada. "Ento com todo esse corpo ainda no ganhas nada? disse o homem, em
voz alta, como se quisesse que o seu empregadito o ouvisse. Ento no ganhas nada
e trabalhas bruta, que eu bem vejo como andas sempre a correr! certo que a um g
arotote no se pode pagar muito, mas alguma coisa devias receber. Aquele ali j ganh
a trinta escudos por ms". Eu perguntei, ento, ao homem se ele me queria para seu e
mpregado. "No... Isso no respondeu-me, Se aquele tiver juzo e for cumpridor
, no preciso, E se vier a precisar, no te posso tomar a ti, pois no quero questes co
m o senhor doutor". Parecia que me mandavam caminhar e, ao mesmo tempo, me atava
m as
pernas...
Janurio deixara de ver a praa. Suspensa sobre ela, um esquio no meio da chuva ou no
s seus olhos, surgia a mesa da cozinha e sobre a mesa aquelas mos grossas, descon
fiadas, a contar e a recontar, entre pequenos silncios, as moedas.
Quando voltava para casa, a senhora Germana
734
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
735
* tomava-me as contas do mercado. Obriga va-rne/u[|^H|
os preos duas e trs vezes e s depois de sora^B
mais somas guardava o troco. E, ainda assinrjM^^B
se duvidasse de que eu tinha dito a verdad"c2j^M
aborrecia-me, mas, por outro lado, havia uma!f5|^H
de que gostava: era a bicicleta... ^''MJ^I
"O Sbio", um pouco distrado do que ouvia, .eo^H
cara a sentir um apetite danado pelos presuntosBaS^H
atum em latas que se vendiam nas merceariasw^H
palavras de Janurio lhe haviam lembrado; e essapl^H
talgia do seu paladar tornava-o, subitamente, f$4H[
Quando voltou a prestar ateno, Janurio comf^H
O doutor Carrazedas tinha uma propriedaiiiS^M
serra e, um dia, a senhora Germana disse-lhe, q^lj^B
ele estava a almoar: "Como o caseiro da Fonia^H
anda sempre com desculpas para no pagar 'Ofl<jj^m
deve, eu c, se fosse ao senhor doutor, ficava <ao8^R
bicicleta que ele tem. O senhor doutor no Pre9||^H
de se incomodar; dava-me licena e eu prpria traiJJJ^K
disso. A bicicleta deve valer um pouco mais, ma^fi^K
tambm que ter em conta o tempo que estantt^B
espera do dinheiro. Ela fazia-nos jeito, pois a'?lJS^H
Janurio, para ir e voltar do mercado, gasta 4I^^B
duas horas e, entretanto, o trabalho est espefi^B
claro que quando sou eu que you, gasto pouco '<94^B
duma hora, mas ele, por muito que eu lhe ralhe,'JMBH
se emenda. com a bicicleta, j no tinha descuMH
Custava a Palhetas aceitar aquilo: '!<InaK'
Que que ele resolveu ? perguntou, pon^Mfl^B ao lado de Janurio. j|B
O doutor Carrazedas acabou de tomar o cafJjlR limpou a boca ao guardanapo, devagar
como sempSiB fazia. Depois, levantou-se e disse assim como 9aaalB no dava impo
rtncia ao caso: "Ento veja l i$so"$" A senhora Germana mandou um recado ao caseiro
es^* caseiro veio. Quando ouviu aquilo, ps-se a dizer* <JiWlp a bicicleta fazia m
uita falta sua vida, pois se n$l| precisasse tanto dela no teria feito um sacrifcio
partf ,| a comprar. A senhora Germana estava renitente e OU-^
homem at chorou. " como quem me corta as pernas" Adisse. "Ora! Ora! atalhou logo
a senhora Germana. Antigamente no havia bicicletas e os aleijados eram at menos d
o que hoje".
No est mau! riu "O Sbio". Bela lngua para comer, defumada, com feijo preto e carne
seca... Afinal, a bicicleta sempre veio ?
Veio. Eu fiquei muito contente. Foi a nica alegria que tive naquela casa.
S tive duas alegrias assim na minha vida: a outra foi quando, j homem, arranjei
uma pistola. Desde pequeno, ao ver daqui, do Asilo, as crianas ricas andarem de
bicicleta ali na praa, eu desejava andar tambm. Eu queria ser homem
e ganhar dinheiro para comprar uma bicicleta e uma espingarda. Gostava de ver se
acertava no alvo e ir depois caa, como fazem os homens. Eu queria azer tudo aquil
o que no se deixa fazer s crianas. Queria tambm deitar foguetes, como se deitam aqui
, no dia da festa da igreja...
Os olhos de Janurio quedaram-se nublados e fixos na chuva que continuava a cair.
Depois, ele perguntou, com uma voz disparatada:
Por que diabo se fabricam pistolas, sabendo-se que elas s servem para matar homen
s ? E por que depois, se algum mata, condenado por toda a vida ?
"O Sbio" voltara a ter o seu sorriso importante, uma mescla de desprezo e de pied
ade:
Sempre queria ver o que pensavas se um tipo te apontasse uma pistola e tu estive
sses desarmado...
Mas se no houvesse pistolas, ele no podia
apontar...
Bem se v que ainda no fizeste o servio militar desdenhou "O Sbio", num torn impacie
nte. ^las vamos l histria da bicicleta. Ento tu aprendeste a montar ?
Janurio tardou a responder.
Sim disse, depois, lentamente. Aprendi em POUCO tempo... At a senhora Germana
se mostrou Admirada e logo desmereceu: "Se fosse para trabalhar fto aprendias to d
epressa".
736
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
737
* A voz de Janurio parecia ter pena do jfl
prpria ia dizendo. Tinham sido os dias masaM
da sua vida. Uma adolescncia escorraada <j|H
bicicleta em boa forma tornam-se rapidamente rqj
e entusiasmam-se mutuamente. As pernas do afiaj
sucessivas novidades. Deslocam os panoramas BB
fazem correr as casas marginais, sobrepem cjjjj
sua natureza separadas, adelgaam e tornam MM
elsticas, que nem franas impelidas pelo vedlj
formas mais slidas e mais firmes. tudo um foU
uma louania. A bicicleta vai alegre com aquel|rH
tenra que a conduz; vai alegre com os seus zigumU
imprevistos, as suas voltas desnecessrias, suas arai
tidas pelos caminhos difceis, aos saltos e balcfM
mar bravo; e orgulhosa, v-se mesmo, quando "B
passa outras bicicletas menos decididas. Ela aufflM
quando ele, como se fosse distrado, olha, de foijH
para divisar quem passa ou quem est; ela tem nnflSB
de sobra para o fazer cair mal o vaidoso ensaia pBJjgl
sem as mos no guiador; mas ainda ento o af|M
porque compreende que ele goste de correr, ''aJjB
direito e soberbo, ao lado dos outros garotos cra*$jM
a p ou de chegar assim erecto a casa da Dona fei|[
vina. Logo na segunda semana ele se detivera l^o^B
vezes: a primeira com uma galinha num cesto, a *ffijH
com uns papis, enviados pelo doutor CarrazedSyH
filho, que morava um pouco alm. Toda a terra^W
se via da estrada parecia diferente dos outros *"M
os trigais com mais papoilas e os velhos muros ?6fflH
mais sardinheiras e mais lrios. O corao ora se oH
tava de alegria, ora se abria com vontade de cittJH
Ele obrigava-a a correr sempre. Fosse a subir, fos$^l|
baixar, corria sempre. S lhe metia freios ao at*n|Sj|
aquela porta to sonhada, que o tornava surjitamei^
tmido. A bicicleta descansava ento, enquanto o *^H^
rava, um pouco inclinada contra a parede da casa, "p?
ptio que larga ramada verde cobria. '''
Como estava ali a Clarinda, a tal pequena '<wl conheci no Asilo, eu sentia uma g
rande satisfao sen** pr que l ia.
. Comeaste cedo em tudo, no h dvida! chasqueou "O Sbio" com o seu ar protector.
- Era uma coisa inocente.
j parecia que a humidade amolentava as palavras, parecia que da humidade se solt
ava uma pele gelatinosa, que aderia, invisivelmente, pele do corpo.
No havia maldade nenhuma. A Feira dos Onze, voc sabe, vem muita quinquilharia. Uma
vez, quando fui fazer as compras, vi l uma rapariga que levantava o brao, onde ti
nha uma argola de madeira brilhante, e dizia a quem passava: "Vejam que bonito!
uma escrava-novidade e custa s cinco escudos! Cinco escudos! S cinco escudo
s!" A rapariga devia ter a mesma idade de Clarinda e, s vezes, fazia tanto movime
nto com o brao que a argola punha-se a girar em volta do pulso to depressa que at s
e deixava de ver de que forma ela era. Pensei que Clarinda gostaria duma escrava
daquelas e, se eu tivesse dinheiro meu, teria comprado logo uma. Mas, claro,
eu no tinha nada. No mercado, quando ia l, as vendedeiras continuavam com a mesma
troa. Uma voltava-se para as outras e dizia: "Coitadinho, pagam-lhe bem. Daqui a
pouco est rico com a soldada que ganha". Eu sabia que aquelas palavras eram mais
para a senhora Germana e para o doutor Carrazedas do que para mim, mas custava-
me ouvir aquilo. Parecia-me que todos se riam da minha situao...
Janurio voltou a interromper-se. Baixara as plpebras e ficara assim um momento.
Uma tarde, quando eu subia de cavar a horta, a senhora Germana perguntou-me, mex
endo muito a boca, que era escura e mole e com uns plos mungidos nos cantos, que
at lembrava, salvo seja, a natureza das vacas: "Dize-me c: de onde tiraste os cinc
o escudos que tinhas escondidos no teu quarto ?" Fiquei sem Pmga de sangu
e, mas refiz-me e respondi-lhe: "Achei-os na estrada". Ela olhou-me, como se eu
estivesse a fazer POUCO dela: "Assim j trocadinhos, tudo em moedas de cinco tostes
?" Ento, veio-me, de repente, aquela ideia, lue me pareceu muito boa e disse-lhe
: "Talvez fosse o
24 Vol in
738
A EXPERINCIA
saco dum pobre que se tivesse rompido". A gji
Germana ps-se a fingir que tossia: "Um pobre'd.il
todos davam cinco tostes? No est mau... NuB
mau... At eu ia pedir!" Depois arregalou oaa|
como sempre que se zangava, e comeou a iJJ
"Ladro! s um ladro! To novo e j s um JB|
O que tu precisavas que eu dissesse tudo a.cx'^9
doutor, para ele mandar meter-te na cadeialJaj
est descansado, que isto no fica assim se toraH
fazer outra..." Pensei que, daquela vez, ela nq9
nada, mas, com certeza, disse, porque, hora do JH
o doutor Carrazedas tinha uma cara como eu-'SB
lhe vira. No dia seguinte, a senhora Germana foi C9
ao mercado e l, mesmo em frente de mim, wjfH
vendedeiras que, dali em diante, tudo quanto ^
comprasse s seria pago no fim de cada semana. I^^B
entregar-me, no sbado, um papel com as conta^M
domingo eu traria o dinheiro. " c por uma colU
resmungou ela. Vi logo que as vendedeiras no/jB
taram daquilo, porque lhes dava mais trabalho 6,-ifl
mas no sabiam escrever. Mas, como no qtfffiB
perder o fregus, prometeram fazer-lhe a vontacf,pffl
olhavam-me de lado, como se tivessem adivinhad&f|M
e no quisessem que eu as visse a olhar para;>"M
Ento, pareceu-me que havia rebentado alguma'- (JM
c dentro, no peito. Que me tinham tirado agoM
coisa que me fazia bem c dentro e tinham PS*|B
seu lugar uma outra que me fazia mal. Paretf^M
que eu tinha mudado: j no era o mesmo dos <^9
dias, j estava sem valor e todas aquelas mulhfiB
pensavam que eu era um ladro. Desatei tamb^B
pensar que eu tinha sido um ladro. O que a senffilM
Germana me havia dito comeou a parecer-me I^fl
verdadeiro do que na vspera. Sa dali com essa iM
e aquilo durou muitos dias. Mesmo sem falar, a senh||P
Germana lembrava-me, a propsito de tudo, Qu^fl|
tinha roubado. Principiou a fechar as gavetas onw"
estavam os talheres de prata e a meter no bolsoi'^f*
trocos que at a guardava dentro dum pcaro, '4f
cozinha. Quando eu servia mesa, adivinhava qu"P
A EXPERINCIA
739
doutor Carrazedas tambm no se esquecia daquilo. Cada vez me sentia mais desvaloriz
ado. Cada vez me sentia mais ladro do que um ladro metido na cadeia. gra como se t
ivesse uma grande mossa na minha alma para toda a vida. Eu era um ladro; agora j no
valia nada. Voc compreende ?
Nunca roubei coisa alguma disse "O Sbio", serenamente. Depois de sair daqui, ve
remos...
Aquela histria fez-me muito mal. Foi, ento, que pensei em deixar a casa do doutor
Carrazedas e ir para onde ningum me conhecesse. Mais tarde, por umas coisas que a
senhora Germana estava a dizer contra as criadas que havia tido, percebi que ta
mbm elas compravam por um preo e diziam que tinham comprado por outro; e isso, dur
ante algum tempo, serviu-me de consolo. Mas, um dia, em que fui levar um embrulh
o ao doutor Agnelo, parei em casa da Dona Ludovina, como de costume, e vi que Cl
arinda no me falava com os modos das outras vezes. Parecia estar com pressa de se
ver livre de mim e punha os olhos no cho, enquanto amarrotava e desamarrotava o
avental com as mos, tal-qual as raparigas envergonhadas junto das pessoas importa
ntes. Como j se haviam passado mais de dois meses sobre o caso e, depois disso, e
u j a tinha visto e no notara nenhuma mudana, quis experiment-la. Mas quando meti co
nversa sobre o mercado e sobre as compras, ela no se deu por achada e eu fiquei s
em saber se era por aquilo ou se no era, mas pensei, est claro, que no podia ser po
r outra coisa. Voltei muito arreliado para casa do doutor Carrazedas e, se acord
ava de noite, j no Podia mais dormir; se no acordava, quando me levantava de manh er
a uma tristeza muito maior, que at lie parecia que nada no mundo valia nada. Anda
va ansioso de tornar a casa da Dona Ludovina, para ver Se o que dera na Clarinda
j tinha passado ou se ela continuava na mesma. Mas ela continuava na mesma. Mais
duas vezes que l fui e antes no tivesse ido ~~ convenceram-me que ela j no se impo
rtava nada comigo. Da ltima vez, nem me apareceu. A cozi-
.
740
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
741
nheira foi dizer-lhe que eu chegara e voltou m recado: "Que desculpasse, ela est
ava naquele niym muito ocupada, mas mandava cumprimentos". rj|
Namoro de garotos termina sempre assimoJl tenciou Palhetas. cri
No, senhor, s vezes no termina... 't*m
Sim... Algumas vezes no termina...4-3 "O Sbio", com um torn sombrio e longn
quo em E, ento, o que fizeste ? fr,-2|
A fugir da chuva, um co, vindo do lado ck|j
dim, corria atravs da praa, com o rabo aba
entre as pernas. Os olhos de Janurio acomjja
vam-no, distraidamente. Quando se sumiu por tm
da igreja, dir-se-a ter-se dissipado a ltima vitlfa
do mundo consciente, a ltima resistncia quele"
lecimento hmido que impregnava tudo. wH
Um dia, ao voltar do mercado, entrei atat
sultrio do doutor Macieira. Ele, quando ia jantai
a casa, tratava-me bem e eu simpatizava cad)S
mais com ele. Era mesmo a nica pessoa com<|<||
eu simpatizava. Contei-lhe que no me pagavaianjl
cinco-ris, que me faziam trabalhar como um'OTJ
e que andava muito infeliz da minha vida, tantoolj
s vezes, metia-me na retrete para chorar sozinho#fl
nem ao menos podia chorar em frente da seida
Germana, que ela comeava logo aos berros cSfflj
mim. Claro que no lhe falei assim como estou a^Bg
agora; eu tinha-lhe muito respeito e sentia-me; i
bocado envergonhado ao p dele; contei-lhe as "fridi
por meias palavras e percebi que me compreendo!
porque, de quando em quando, dizia: "Eu sei.. J "i
calculo..." Pedi-lhe para ver se me arranjava umrc|
prego em qualquer parte, pois qualquer trabalhooll
servia; eu, dali a pouco, estava um homem e no tiiw
nenhum futuro em casa do doutor Carrazedas, ao p2B
que, noutras casas, havia rapazes mais novos que l
iam governando a vida. O doutor Macieira, ao oU*|
aquilo, olhou-me com ar de pena e de amizade; def**?
levantou-se da cadeira, ps a mo no meu om^r^l
disse-me assim: "No imaginas como sinto no pod(r)
ser_te agradvel. Mas que posso eu fazer? Todos os jias vm aqui pessoas com o mesmo
pedido. Vem at gente de longe, das aldeias, ver se lhe arranjo trabalho. Mas no h
trabalho, no h empregos. Se aparece um, so logo cinquenta mil empenhes. Parece que
o direito vida devia ser para todos. Mas no ! Quem no tiver um pai rico, no tem dire
ito vida. Lembra-te do que se passou com o Asilo. Falei a um e a outro e foi o d
iabo antes de conseguir que a Cmara desse ao menos sopa, que, afinal, de pouco va
leu. E para que um orfanato do Porto recolhesse algumas crianas daqui, foi precis
o que outras tantas de l ficassem de fora". Vi que as mos do doutor Macieira tremi
am e que os seus olhos estavam muito brilhantes, como se ele tivesse vontade de
falar alto e de fazer muitos gestos. Depois, disse-me: "Se souber de algum empre
go, no me esquecerei de ti. Mas no contes com isso. No quero dar-te esperanas vs. S po
r acaso... Ora o acaso no soluo; os nicos que vivem dos que acreditam no acaso so os
banqueiros de jogo". Fiquei muito desanimado, est claro. Quando uma pessoa como o
doutor Macieira, que conhecia toda a gente, falava assim, que podia eu, a quem
ningum ligava importncia, fazer? Mas, um dia, tornei a pensar: "Pois se ests quase
um homem e te vs sem futuro, pois se aqui no podes arranjar nada, por que no te arr
iscas e no vais por a fora? Outros mais novos do que tu tm ido para Lisboa, para o
Brasil e mais longe ainda". Comecei a empreender naquilo e cada vez sentia mais
vontade de partir. Tinha medo, mas parecia-me que tudo seria melhor do que estar
em casa do doutor Carrazedas...
Palhetas decidiu-se e levou a mo ao bolso. H j Bastante tempo ele jugulava o desejo
de fumar, para flo ter de oferecer, mais uma vez, cigarros ao "Sbio", Uln tipo qu
e andava dependura, sem cheta, mas semPfe como se trouxesse o rei na barriga. Ag
ora, porm,
0 velho Palhetas no conseguia resistir mais. Tirou o ^ao de cigarros e "O Sbio", ta
l-qual ele esperava, ^erviu-se tambm, num gesto de indiferena, deixando
J
742
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
743
cair das suas barbas apenas um "obrigado" neglig
assim como quem interrompe, para caso de sofl
a conversao em que se encontra fortementia |
ressado. <^aj.
Uma noite, em que me pareceu que a sjjj
Germana estava de melhor gnio, eu disse-lhe a"|
inteno e pedi-lhe para ela ver se o doutor Cancaa
me pagava a passagem no comboio. Ela abriu-jiq
os olhos, como se ficasse assombrada com o meft i
vimento, mas, depois, comeou a rir-se de mim^i
satisfeita: "Ento at Lisboa? No tens mau'^E
no, senhor! At eu gostava de ir! Mas esquece"
s rfo e que o senhor doutor responsvel/pl
No, meu anjinho, at maioridade no podeiN
daqui!" "vi|
No lhe quebraste os costados ? pergtffl "O Sbio", no mesmo torn sinistro
com que, na i pra, havia pronunciado o nmero quinze. Euffcj -lhos rebentado logo! "6
Foi essa a primeira vez que me veio a ide$| fugir dali. Nessa noite quase no
dormi, serapB pensar naquilo. No dia seguinte, enchi-me de cotslff pois tinha
vergonha de tornar a incomod-lo, "el ver o doutor Macieira. Ele estava para o Po
rto "faj seram-me que s voltava no princpio da senra Custaram-me muito a p
assar todos os dias que M vam e, s vezes, parecia-me que andava como <s tivesse fug
ido ou que a senhora Germana e o dtt Carrazedas adivinhavam que eu ia fugir. >>**
Palhetas ps-se a levantar e a pousar no eti alternadamente, o p direito e o p esque
rdo, cd se tivesse frio. Depois, esfregou as mos: "Sim, senh ele h cada uma!" Os ol
hos do "Sbio" pareciam sgi abstractamente a fumarada do seu cigarro, que afi vessa
va as grades e era logo desfeita, l fora, 'p* chuva. /
Na tera-feira, voltei casa do doutor Maciei Ele j estava. Contei-lhe tudo e pedi-l
he que me f& a esmola do dinheiro para a passagem, seno, ga*8 ti-lhe, eu iria mesm
o a p. Ouviu-me com o ar^
auein no se admirava nada e, depois, disse-me: "Sou das relaes do doutor Carrazedas
e ele, mais cedo ou mais tarde, acaba por saber isto. Pacincia! Tens aqui cem es
cudos. O comboio deve custar uns cinquenta; mas, como vais aventura, ficas com o
s outros cinquenta para comeres alguma coisa nos primeiros dias. Quanto maiorida
de, no te aflijas: o Asilo era particular e o doutor Carrazedas no se comprometeu
a coisa alguma. No tem, portanto, nenhum poder sobre ti" O doutor Macieira levant
ou-se e ps-se a dar-me conselhos: "Nunca percas a coragem! com certeza hs-de passa
r maus bocados, mas, por isso mesmo, mereces a minha simpatia. Eu gosto das pess
oas corajosas, que no se deixam vergar toda a vida. E quem sabe se no virs a ser fe
liz?" Comecei a chorar e a sentir vontade de abraar aquele homem, mas tive vergon
ha de o fazer. "No chores... Deixa l..." disse ele e pareceu-me que a sua voz tam
bm estava triste. Na manh seguinte, corri a mais no poder na bicicleta, para me des
pachar cedo no mercado...
A missa das onze aproximava-se. O sino tocava pela segunda vez, alarmando o vale
at o monte do Crasto, que o cerrava ao fundo, com o seu alto cone vestido de pin
heiros. "O Sbio" movera-se no desejo de esquadrinhar melhor o fim da praa. Mas no s
e via ningum.
No dia de finados, as freiras costumavam levar ao cemitrio os meninos que l tinham
parentes, para acender uma vela e deitar flores nas sepulturas. Da ltima vez, ti
nham-me dito que, como j fazia cinco anos que a minha me estava ali, decerto tirar
iam os ssos e poriam outro morto na mesma cova. Quando Sa- do mercado, no sabia se
ela ainda estava l ou no, mas eu tinha uma grande vontade de que estivesse. E esta
va. Eu arranquei todas as ervas bravas que havia em cima da sua campa; depois, a
joelhei-me e rezei. Depois disse-lhe adeus. Disse-lhe adeus como e nunca mais a e
ncontrasse ali e s pudesse voltar a ver aquela sepultura no outro mundo.
Surgiam na praa as primeiras mulheres que vinham
744
EXPERINCIA
* para a missa. "O Sbio" lanava-lhes um olharied
ficava desinteressado e impassvel. Dir-se-ia que a&l
tificava ao longe, pelo seu traje, como pela $
chamin dos navios ele conhecia, a distncia/gl
eram os armadores. ,3 J
noite escrevi um pedao de papel: "NoM
mais com estes tormentos". Deixei o papel entrai
da cama, bem vista, peguei no embrulho ajffl
minha roupa e fugi. ^'H
Dois automveis tinham parado junto da igffl
"O Sbio" olhou para os homens e mulheres quai
saam. Depois, como se retomasse uma ideia abara
nada, perguntou: MJ
E o teu pai tambm estava no cemtriol1! Janurio no respondeu logo. "O Sbio" julgo i
vinhar o embarao e entendeu que no devia insil
No. O meu pai era mineiro e trabalhava^ Gonfredo. Morreu num acidente e ficou l m
esmo sdj tado. Os seus ossos devem ter-se perdido h rfi tempo... ' $
Acaba l com isso tornou a dizer, incofi temente, "O Sbio", sem voltar o rosto. S
A chuva prosseguia. De quando em quando;!"
gavam novos automveis e os seus ocupantes par
a correr, para a igreja, de braos em arco, segusal
capas sobre as cabeas. Aumentara, tambm, o nB"
dos que atravessavam a praa, a p, de dorso vefCT
debaixo dos guarda-chuvas. O sino tocou pela tece
vez. s grades, s os olhos do "Sbio" se moviam,i/l
ele comeava a descorooar. Depois de todo aqitt
movimento, a praa tornara a ficar deserta. A rara
devia ter j comeado. Ele demorou-se ainda urtvdS
mento ali e, em seguida, virou-se para os outros, c'i
um sorriso frio nos lbios: <*s
No vieram. Tiveram medo da chuva. b*|
feito! Um homem como eu, que tem tido tanta muBd
importante, no devia olhar para umas bzias coin
as daqui... ^
iff
ELA
i." TARDE
|)ONA Fortunata havia-a olhado de alto a baixo e a sua estatura parecera-lhe bem
. Depois, examinara-a parcelarmente, a cara, os seios, a cintura e as pernas, av
aliando-a em relao s preferncias da maioria dos clientes. O rosto, ligeiramente magr
o, e os braos, demasiado finos, davam, talvez, uma ideia de fraca sade; mas os sei
os estavam bem penteados, com o seu volumezito de limo, e as pernas eram perfeita
s. Mestra de longa experincia, Dona Fortunata vencia facilmente o tempo, realizan
do a inspeco ein alguns segundos apenas, fazendo passar e repassar s olhos quase se
m Clarinda dar por isso. Logo dissera: Sim, a Cesria falou-me. Garantiu-me que vo
c
61 a sossegada, pois no quero aqui mulheres escandalosas. Sobretudo, no quero bbeda
s. As condies so: nietade para si e metade para a casa. As gorgetas Para si, claro.
Roupa de quarto, sabo e permanganate, por minha conta; perfumaria e doenas, se as
houver, a seu cargo.
ai
746
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
747
' 4
Calara-se, espera de assentimento, e, em sefl|
acrescentara: I^H
Assim, pode vir amanh. j^B
E ela, agora, subia as escadas. Trazia aincfflM
olhos cheios da luz que deixara na rua larga, ju^l
de meter travessa, e procurava habituar-se oi|H
ridade. At o primeiro andar, os degraus mostravaffl^B
nus, sujos e desgastos. Dali para cima cobria-os ||H
passadeira vermelha, j desbotada e poda tam^^l
No segundo piso, Clarinda deteve-se e preinl|M
boto da campainha. Ouviu uns passos vagarosoJBK
sentiu-se alvejada por aquele buraco que existia a|H
dos lados da porta, como uma boca de espingardalH
fundo da qual a mirava um olho inquiridor. A pdBj
abriu-se e um perfume ordinrio, quente, oleoso, Bj
at o patamar. A criada disse: ^H
you cham-la. 'jU
Clarinda esperou no corredor, de p, a maleta $d^H
o soalho, encostada s pernas, como no cais dijaB
estao. Dir-se-ia que Dona Fortunata no tinha Pd^H
alguma; o tempo passava, fazia-se lembrar, e ela 1^1
aparecia. Da direita vinha uma conversa surdayB
mulheres; da esquerda um grande silncio, que C&JH
rava quele perfume gordo. E, de quando em CUAOffj^l
subia da travessa um rudo de automvel. Por Z|jH
corpo de Dona Fortunata, amplo, flcido, aposeotjiBH
h muito de suas lides venais, surgiu no extremqwjH
corredor, metido numa bata negra e brilhante, costruMB
do tempo em que ela estivera no Brasil, em confljH
rncia com as polacas. ''^fli
Venha para aqui, menina. '(Hl
O quarto tinha reposteiros carmesins, guarda"v<jjM|
tidos desafogado, biombo num dos ngulos e a dan^K
com longo espelho ao lado, fixo na parede fn$[jj[
de papel, para reflectir as nudezas de quem nelaj^Hi
Cesria apareceu pouco depois, ainda desgrenhadil|
a cara lvida e os olhos turvos de dormir: '.G(|%f,
Anda para o meu quarto, enquanto me arranjS1/^
Foi. O cenrio era o mesmo, como num sanatoiSW'V^
Ou num hotel. O sabonete era tambm o mesmo, parecia que todas compravam a mesma m
arca; Clarinda trazia no nariz, desde os primeiros dias da profisso, aquele cheir
o que deflagrava em todos os quartos.
Cesria enxugara o rosto junto do lavatrio, sacudira, com a mo, trs ou quatro gotas d
e gua que lhe ficaram nos cabelos e, em frente do espelho do guarda-vestidos, cob
rira as faces com p-de-arroz. Depois, sempre em camisa, sentara-se no rebordo da
cama, cruzara as pernas e comeara a pintar-se.
A patroa diz que s acredita assim que vir como te portas. Diz que as mulheres qu
e andam na rua tomam piores costumes do que as que trabalham em casa. Cesria so
rriu depreciativamente, como duma opinio que se repudia por experincia prpria. Mas
eu garanti-lhe que tu no eras dessas.
Clarinda ficou calada, Cesria continuava a mirar-se no pequeno espelho e a pr mais
vermelho nos lbios.
As outras j devem estar na sala disse, com um breve olhar para o relgio de pulso.
Levantei-me, hoje, mais tarde, porque tive um fregus que ficou at de manh. J l yo
u apresentar-te.
Atrs de Cesria, Clarinda voltou a percorrer o corredor. A sala exibia um largo div,
vermelho e fatigado, a cor to esmorecida como a da passadeira da escada; na part
e oposta, algumas cadeiras de braos e, ao centro, uma mesa. Nas paredes, viam-se
uma cantadeira de fados, sentada, as mos sobre a guitarra, ao lado uma garrafa e
um copo; uma oleografia americana, sorridente cabea loira, mostrando os dentes mu
ito brancos, no jeito de reclamo de pasta dentfrica; e, em frente, ainda outro cr
omo, dois jovens do sculo xix namorando-se por cima de florida sebe, ela de cintu
ra apertada, ele de chapu alto e claro, como se fosse ou viesse das corridas de c
avalos.
Magra, rosto afiado, seu qu de raposa atrevida, urna rapariga estava, de p, junto
da mesa. De cigarro dependurado do lbio inferior, examinava verticalmente a pele,
mergulhando o olhar at o umbigo, enquanto as mos afastavam o vestido.
748
EXPERINCIA
Esta a Natalia. mjlfl
A cabea voltou-se um momento. Um estreitaM
riso abriu-se por detrs do cigarro e logo os olhojfl
veram a afundar-se entre a roupa e o corpo. P3H
a Clarinda que era um sorriso deslavado, dum cinH
indiferente, que lhe havia tocado a epiderme, conl
pulga que a outra buscava. ;;3^H
Esta a Pilu. ";$|B
A mulher encontrava-se no div, em frented^H
baralho de cartas e sentada sobre as pernas, qofe'ij^l
pareciam inteiramente debaixo das ondas do stf*j^B
tido de flores estampadas. Haviam sido justamilM
olhos dela, curiosos e concorrentes, os primeircs||jM
Clarinda topara ao entrar na sala. '^l
So boas compinchas ajuntara CesriajllM
Pilu era muito mais velha do que Natalia. Cd^pH
de rugas habitavam-lhe j as extremidades dasf^^B
pebras e a cara mostrava-se irremediavelmente vene^H
sob o cabelo pintado da cor do fogo. com trs <^H^I
na mo, levantadas altura dos seios, somrajiHJj^B
mente a Clarinda, olhando-a dum modo discreto e<*!^H
enquanto ia comparando o seu rosto com o dela, >p ^H
Ah, ladra, que j te arranjo! NatliajliM
brava a sua vitria rolando o ndice sobre o P^^^H
com uma volpia vingativa. Depois, colocou em *|^H
da unha a pulga j inerte e estoirou-a. '^l^B
Cesria sentara-se, com Clarinda, em frente doM^M
Lusa! Lusa! 'AJaB
Ningum lhe respondeu l de dentro. As <*I1""^H tambm no disseram coisa alguma. Natali
a voltara MM div e recomeara o seu jogo com Pilu, como se '^fBSjj no estivessem ali
. S se ouvia o comentrio que ZJJJ. duas^iam fazendo s cartas.
" quase sempre assim pensou Cesria, enerva"^" J a mim prpria me fizeram, uma vez, a
rnesnwPT coisa. Como se elas pudessem dar conta de todos "W^ homens!" j
Cesria pretendia distrair Clarinda, tirar-lhe d ^ olhos a cara de Pilu e o s
orriso de Natalia, sopr*^ |
A EXPERINCIA
749
olhos
i
auela hostilidade pairante, mas no encontrava faciljnente o que devia dizer.
Trouxeste todas as tuas coisas ?
Clarinda baixou a cabea e o silncio prosseguiu. Cesria desesperava-se cada vez mais
por adivinhar perfeitamente o que ela pensava.
No me arrependo de te ter aconselhado a vires para aqui. A rua tem algumas vantag
ens, no digo que no; mas tambm um horror. Se obedeces s ordens da polcia, no fazes n
a; se no obedeces, vais parar esquadra, direitinha que nem um fuso. E que que se
pode ganhar, comeando s uma da madrugada ?
Pois , tu tens razo disse, finalmente, Clarmda. Mas, pelo torn esmagado da sua v
oz, Cesria percebeu que tudo voltara ao princpio, como se ela no se houvesse justif
icado.
A Dona Fortunata no m pessoa, vais ver... Cesria falava baixo, mas Natalia e Pilu d
eviam
t-la ouvido, porque, sem se voltarem, ergueram os olhos uma para a outra e sorr
iram ironicamente.
Delgadita, jovem, muito loira e fresca, no olhar um lume brando de ingnuas clarid
ades, Lusa entrava na sala e, avanando, parecia arrastar com ela uma luminosidade
que manasse do brilho dos seus cabelos. Clarinda viu logo que era a mais nova e
a mais bonita de todas elas e, tambm, a mais cordial. Mal Cesria a apresentara, s
entara-se ao seu lado e comeara imediatamente :
s de Lisboa ? Ah, no ? Pois no tens aspecto <je ser da provncia. No desmentes o que C
esria nos disse de ti. s bem bonitinha!
Ia falando e olhando Clarinda com o sorriso amigvel e generoso das simpatias espo
ntneas e parecia 'senta de toda a ideia de rivalidade. No se calava. ^ um transbor
damento verbal ligava outro, como se Se esvaziasse, enfim, de longa mudez. Clari
nda ouvia-a, Partilhava, por vezes, do que ela dizia, mas, qxiando s seus olhos e
ncontraram o perfil de Pilu e o ar traado de Natalia, volvia a sentir-se estranh
a ali, isolada,
M^
75o
A EXPERINCIA
provisria e oscilante entre as misrias da rua, o trot
* sobre os passeios, to seu conhecido, e as misrias ri clausura, que principia
vam a revelar-se naquela m0r nido de serralho.
Era cedo ainda, a tarde ia apenas em meio; a campainha, porm, tocara. Um homem al
to e calvo entrou na sala, saudou de longe, colectivamente, a todas elas e detev
e-se junto porta. As cinco mulheres moveram-se nas cadeiras e no div e voltaram-s
e para ele. Pilu foi estendendo disfaradamente, de sob o vestido, as suas pernas,
longas e bem torneadas, que se viam at a altura das ligas vermelhas. O homem dev
ia ter mais de cinquenta anos e parecia vexado da sua idade. Olhava sem segurana,
como se, de p e desde a porta, procurasse identificar no recanto obscuro dum sto
algum que no se via logo. Ele sabia que os domnios do sexo comeam na cara, que a sua
bandeira, o seu braso, e abrangem toda a rea do corpo; e foi errando os olhos sob
re elas, enquanto na boca um sorriso se esboava; foi errando a vista mais lentame
nte e, por fim, erguendo a mo, fez a Lusa um gesto discreto. Pouco depois, o sol e
ntrava tambm na sala. Vinha todas as tardes antes de desaparecer por detrs dos tel
hados vizinhos. Entrava com esse silncio e esse mesmo vagar com que se dis
tendem as ilhas de gua derramada nos soalhos; subia mesa que estava no centro e i
luminava, desbotando-as mais, as velhas flores de papel na sua jarra; ia at a par
ede do fundo e l dava a iluso de se fixar por algum tempo; depois, indiferente vid
a da sala, comeava a recuar, a encolher-se, sempre vagarosamente. Nos primeiros d
ias de cada ms, ningum atentava nessa invaso vespertina; a clientela multiplicava-s
e, a Augusta andava numa faina a atender a campainha. Ora se ouvia a porta fec
har-se atrs de quem saa, ora a abrir-se frente de quem entrava. Muitas vezes, qu
ando os homens que viviam de ordenados mensais chegavam ali, na sala havia ap
enas outros homens que esperavam, como num consultrio mdico. Eles sentavam-se,
acendiam uj71 cigarro e esperavam tambm. O sol roava-lhes, s
A EXPERINCIA
751
e/es . , joelhos, os sapatos ou o relevo das veias nas o-.ta^ <IS mos. Alguns dele
s levavam uma imagem
Icita ^olido; mas, para no perderem mais tempo, u'liuii ivam a ela e aceitavam ou
tra a primeira que ICilp;n ia ali. Nessas tardes e nessas noites, Pilu mudava
estado psicolgico; resmungava, por nada e ,)()r t .o, como sempre, mas nessas tar
des e nessas noit< no pensava na sua idade, a inveja no a acidula1 e ela sentia-se
contente.
l i- us do dia seis, a seleco tornava-se mais rigo-
iosa homens mais exigentes. s vezes, a campainha
toca e a porta abria-se, mas no entrava ningum
na s i- Apenas a voz da Augusta dizia do corredor:
- Para o quarto, meninas!
cinco levantavam-se e a sala quedava vazia; logc porm, regressavam quatro e entr
e as quatro vin' sempre Pilu.
i Assado o dia dez, as horas ficavam cada vez mais IOIK - e as mulheres tinham d
emasiado tempo para cor, r-,ar, para repetir o que j haviam dito e esquecid< que
haviam dito tinham tempo a mais, como na^ srises.
II
I
3." TARDE
IADA, h pouco, no ofcio, Lusa amava as conlidncias, os passos clandestinos que as ou
tras Mm dado, a viso das alcovas ilegais, o discreto T da chave na porta ou esse
suave bater dos dedos
aumenta as pulsaes do corao. Os seus vinte -> andavam estonteados ainda pela multifo
rmidade > ida, que todos os dias lhe descarregava surpresas
rosmeis; e os segredos das companheiras, os deslos dos instintos e dos sentimento
s mal sucedidos,
752
A EXPERINCIA

* continuavam a parecer-lhe uma aventura extraoi^j


ria. Desde que Clarinda viera para ali, as duas "
chavam pelos cantos, sentadas muito juntas, lonBI
div onde se reuniam as outras; e Lusa, de olho>$
lentes, sonhadores, tinha sempre novas curiosiflM
Ento tu no gostavas dela ? No era simpm
Desta vez, Clarinda tardou a responder-lhe. '51
exalava o seu novo perfume, de que se enchdM
antes de sair do quarto e ficou a olh-la, im
quieta. >ffl
O encadeamento ia-se fazendo ao longe, ni
manh de sol. Dona Ludovina apresentara-se $m
vestida de negro, de rosrio no pulso e a sua dH
na mo e coxeando um pouco, como se fosse trfm
prir uma promessa. Tinha a cara magra, duma pasfl
anmica, a pele hmida e os olhos fatigados, tudo dSl
contrastando com as cores alegres, cheias de viday^jl
existiam na horta do Asilo e se divisavam atravs^
janela aberta. ' JjHa
Quando a vi, pareceu-me boa pessoa. Devia alffl
roda dos sessenta e as freiras j me haviam pr"
nido de que era muito religiosa. A Superiora disse-lMJ
" uma grande esmola que lhe faz, minha senhora
pois esta pequena encontra-se numa idade de terryH
perigo moral. Deus h-de recompens-la pela sua boj"
dade. Espero que no se arrepender. No quero ton
vaidosa a Clarinda, mas ela foi uma das crianas ma"
aplicadas que tivemos aqui. Sempre mostrou boa m
posio para o estudo e fazia os trabalhos domstica
com boa vontade e asseio". A Dona Ludovina responS
deu: "com certeza no nos havemos de dar mal". Efti
tornei a gostar do olhar que ela me deitou e do sorriSJJN
que teve para mim. Ele estava c em baixo, esperai
com o automvel. Foi essa a primeira vez que o ^
mas mal reparei nele; eu sentia-me pouco vontao^
e toda nervosa com aquela mudana de vida. A pri*
cpio, at supus que fosse filho dela; s no dia seguinte*
que soube, pela cozinheira, que a Dona Ludovina
nunca se casara e que ele era um simples afilhado, d#
que ela havia tomado conta, desde criana. Aquilo
A EXPLRIENCIA
753
fez-me simpatizar ainda mais com ela, pois raramente se encontra uma madrinha as
sim, no te parece ?
Natalia chegava da rua. Todos os dias, findo o almoo, saa para tomar caf numa das l
eitarias da vizinhana, movendo exageradamente os quadris, difundindo a tentao sobre
os passeios, na esperana de vir a ganhar mais do que ia gastar. Regressava com u
m cigarro quase inteiro na boca, pois naquilo era discreta e s o acendia nas esca
das. s quintas-feiras, trazia o semanrio humorstico que Pilu lhe encomendava e que,
a princpio, comprava de m vontade, por ser analfabeta e se sentir inferiorizada; s
vezes, em tardes de maior sorte, trazia tambm um homem atrs dela. Agora, vinha so
zinha. Sentara-se no div, ao lado de Cesria, abrira a carteira e, para tranquiliza
r uma dvida, pusera-se a recontar o troco que lhe tinham dado na leitaria.
Fiquei para o servio de fora prosseguiu Clannda, desviando os olhos de Natalia.
Tratava dos quartos e das salas e servia mesa. Parecia que a Dona Ludovina me j
ulgava inteligente, pois, quando havia alguma coisa mais complicada, costumava d
izer cozinheira: "Bem; a Clarinda ver isso". com certeza dizia aquilo por causa d
o que^ tinha ouvido a meu respeito Superiora do Asilo. claro que ela no se incomo
dava muito com a casa. A cozinheira garantia que era por ser rica e que as mulhe
res ricas, demais a mais nascidas na cidade, no estavam para se ralar. Ela passav
a a maior parte do tempo a ler livros de raes e de santos e andava sempre a queixar
-se de que a sua perna no lhe deixava fazer muitos movimentos. Era o afilhado que
m tratava de tudo que tinha importncia e, algumas vezes, ao jantar, falavaIhe das
propriedades no como se desse contas do ^ue fazia, mas assim com uma voz de mari
do a dizer a mulher como vo as suas coisas. A cozinheira, que estava l h muitos ano
s, chamava-lhe o "menino Armando" e dizia que a Dona Ludovina no podia encontrar
quem a servisse melhor, nem com mais carinho; mas que ele, ao cabo e ao fim, tra
balhava para si
M
754
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
755
* prprio, pois, pela certa, seria a ele e ao padJfl
ela deixaria tudo quanto tinha. verdade que^SB
um padre sempre l metido e, s vezes, atjjSB
dizer missa numa capelita que havia pegada faaU
quando a perna da Dona Ludovina estava piojjiflH
a deixava subir para o automvel e ir vila. Ao $|B
chegavam vinte pobres que ela protegia, senwJjH
mesmos, pois dizia que os outros eram uns bjHMH
e s queriam o dinheiro para a taberna. Manc&jSI
dar cinco tostes a cada um, o que lhe criava ^B
fama de bondade, tanto mais que os outros praH
trios no davam nada ou, quando davam, ngaSB
alm de dois tostes. Ela dizia que pedia siBaH
Deus para tratar bem os pobres no outro jjgijjU
O padre, quando jantava ou almoava l, pasalfl
tempo a elogiar-lhe as boas aces e eu pensaS^B
ele tinha razo. O padre elogiava tambm o ljj^l
e at chegou a dizer que o Armando, um diaj *j|B
com certeza, deputado, pois tinha condies parJM
s vezes, era ela quem puxava aquelas convergi^H
bondade e comeava a criticar vrias pessoas 'iigU
tantes, sobretudo o filho dum tabelio da vilajelM
morava ali perto e que, dizia ela, era to sovinattQ^M
o pai. Quando falava, voltava-se para o padre" '3jH
se ele confirmava, mas o padre respondia semprt"U
meias palavras, como se no quisesse comprometasM
Eu admirava-me de como ela sabia tantas hisj^JgJ
tantas intrigas, sem quase sair dali, a no ser quslaM
dissessem quando ia missa ou que fosse o afi$h"H
quem lhas contasse. certo que a cozinheira lhefl|J
algumas coisas, mas poucas, porque cozinheira eWB
fazia perguntas e, para no lhe dar confiana, ulj"
assim como se no se interessasse. Quando a tiB
que vivia na Foz, vinha passar ali algumas semaliMjl
ento as duas quase no falavam seno daquela ME
trias, sobre uns indivduos do Porto que eu no ctoalgf
cia, mas que, pelo que elas diziam, eram todos/lS"
desavergonhados, as mulheres a enganarem os maridi"
os cunhados a deitarem-se com as cunhadas, outrol"!
roubarem encapotadamente. Estavam sempre a faJf <
uma cara de nojo ou a suspirar quando contavam essas coisas e, s vezes, at se benz
iam.
E ela continuava a tratar-te bem ?
L isso continuava. S duas vezes me ralhou e nunca foi aos berros. certo que no me p
agava ordenado. Mas, de quando em quando, mandava fazer um vestido novo para mim
e, uma vez, que me deixou ir ao So Joo de Braga com outras raparigas dali, at me d
eu vinte escudos para as despesas. Quase sempre me tratava por "minha filha", mi
nha filha isto, minha filha aquilo, e parecia que simpatizava comigo.
Pilu entrava na sala, senhoril, olhar cimeiro, fria e altiva como se trouxesse u
m vestido de cauda. Ao ver Clarinda e Lusa, virou ostensivamente o rosto e foi se
ntar-se no div, sempre muito hirta e solene. Depois, no pde refrear-se mais e, fixa
ndo Clarinda, gritou-lhe bruscamente, com espanto de todas as outras mulheres:
Se voltas a tirar-me um homem, parto-te o focinho! Ouviste?
Mas eu no lhe tirei homem nenhum...
Sim, senhor, tiraste-mo! Ele olhou, primeiro, para mim, eu bem vi. Mas
tu cruzaste logo as pernas e, depois, voltaste-te de lado, para lhe chamar a ate
no.
Era uma conta moral da ltima madrugada, quando a cidade j dormia h muito e s as duas
haviam ficado desocupadas na sala.
Voc est enganada, juro-lhe! disse Clarinda, sempre com aquele torn de surpresa.
Se me mexi, assim como voc diz, foi sem nenhuma inteno. Nem Me lembro disso!
Pilu continuava a vociferar, a repelir toda a cunha que tentasse abrir fenda na
sua razo.
escusado pores essa cara, que a mim no me lntrujas tu! Tem muita pressa, a cavalh
eira! Mal chegou e j quer passar frente de todas ns...
Clarinda voltou-se para Lusa:
Tu acreditas... ?
Essa tambm fresca! exclamou Pilu, antes ^e ela terminar.
756
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
757
* Cesria, com a sua tendncia para a ordem, dagj|
Acabem l com isso! A Dona Fortunat 1H|
ouvir-vos... j -211
Cesria mostrava-se sempre a mais sensata dd wj
de um bom senso campesino, prudente e econmj
que se harmonizava bem com os seus trinta e (pral
anos de formas curvilneas, cara larga e testa |U
curta. Algumas vezes, as outras admiravam-na jn|M
vantagens que o seu temperamento lhe carreavax)HB
logo lhes vinha um desprezo secreto, o sentimenncj
incompatibilidade que existia entre a maneira ><3i9
de Cesria e o esprito da profisso; e at certos horaB
experimentados, vendo-a assim, pensavam que asilai
balhos da terra haviam perdido uns braos fecuffM
sem que as noites de Corinto houvessem ganho ga|B
Faltava-lhe uma falha de estouvamento, uma;J^B
reza desprendida, que d alguma iluso aos mitt^H
pagos. Tinha, por tal defeito, pequena clientela, -Jim
sabia-se que conseguia meter a sete trancas muito pH
dinheiro do que as outras, mesmo Lusa, sempre projB
a esbanjar numa hora o que numa semana recelH
E se a esta a patroa outorgava mimos de excepatK
por ser o corpo de onde lhe provinham maiores ? tjm
butos, adivinhava-se, contudo, que, se a Dona FdrfjB
nata tivesse de se ausentar, seria a Cesria e nq2R
Lusa que entregaria, confiante, as rdeas da casal?dH|
outras pressentiam que ela chegaria, obstinada e stgwl
a rvore velha, cercada de pupilas rendosas, no HiepjBl
terreno onde as magnolias da sua gerao teriam ss^m
implacavelmente ceifadas. Quase sempre as suas dtMB
venes conciliadoras, de voz afvel mas pertinaz, &M!
tificavam, como se houvesse nas companheiras u8"
submisso inconsciente, despeitada embora, a um p$fej
tronato embrionrio, com direitos jacentes para se ex$|fi
cerem no futuro, ali ou em qualquer parte. '-(y
Vejam l se tm juzo... No faam tanto banj|
lho por uma coisa de nada repetia Cesria. Mas Pil%
toda encrespada, velha galinha enraivecida, no a ate%
dia desta vez: $
_- Ests para a com isso, porque foste tu que a trouxeste para c. Podes limpar as mos
parede! \ mim, ningum me pe a pata em cima, fiquem sabendo!
A voz de Pilu, cada vez mais exaltada, soava em toda a casa. Quem passasse na tr
avessa ouvi-la-ia decerto. Dona Fortunata, que escutava no corredor, assim o adm
itiu e no s por essa razo, mas por outra de maior valia, surgiu porta da sala:
J lhe disse, muitas vezes, que no quero escndalos aqui. Se no est contente, v-se embor
a... Estou farta de a aturar. Percebeu?
Era um torn extremamente duro. Dona Fortunata saiu, mas, no silncio macio que sobr
eveio, ficou aquela dureza cheia de pressgios.
Ento Clarinda desatou a chorar. As outras mulheres viram-na erguer-se da cadeira
e ir isolar-se ao p da janela que dava sobre a travessa sombria sombria como um
saguo.
Pilu ficara muito quieta no div, sobre as pernas as mos abertas, imobilizadas, e,
no rosto, os olhos parados, de vidro. Esteve assim uns momentos e, depois, levan
tou-se tambm, abandonando a sala. Ouviram-na murmurar, quando j atravessava a port
a:
Queria ver se quando eu era mais nova ela me tratava assim:
Logo que Pilu desapareceu, Cesria aproximou-se de Clarinda:
No lhe leves a mal. Ela no m pessoa, mas tem aquele feitio. Tambm a princpio embirrou
com a Lusa...
Atravs da vidraa corrida, Clarinda via a roupa ^ue secava, dependurada de cordas, s
janelas do outro tado da travessa. Era uma roupa encardida, remendada, embandei
rando a misria do bairro que ela prPria representava, uma roupa gasta, pobre e tri
ste como se houvesse sido lavada depois de terem morrido s corpos que a usaram.
Ela assim com toda a gente dizia Cesria. ~~ Conheo-a h muito tempo: foi ela quem m
e trouxe
JL
758
A EXPERINCIA
f para aqui. Devia andar, ento, pelos trinta e jftfl
ainda era uma bonita mulher. Tinha muitos fretei
certos e tambm muitos avulsos. Batia todas as^oifl
Nesse tempo, no era azeda como hoje, nemlaM
cava com ningum. S com a Dona Fortunata -dial
s vezes. Mas a Dona Fortunata calava-se quasviH
pr, com medo de que ela fosse para outra casa. jjtyiH
com os anos, foi mudando, claro. Alm disso, amai
um poeta, que lhe deu um grande desgosto. <i|MB
tinha dinheiro, mas era orgulhoso e no gost|vSB
fazer sala aqui, como os outros. Muitas norEefeajj
saa para ir ter com ele e a Dona FortunatafiSB
danada, pois a Pilu no se importava de sair IttuB
que fosse no princpio do ms ou aos sbados. AqftH
ainda assim, durou bastante tempo... aaJB
Clarinda ouvia sem afastar os olhos da roupaSB
secava, as velhas toalhas, lavradas de cicatrizfflB
tanto recosidas, as pegas juntas e cheias de r^|
nas pontas, em forma de ninhos de japins e coiml
j tivessem l dentro o ovo de madeira parai'JswM
passajadas; e as duas camisas muito abertas e de.flM
gs cadas, com seu qu de espantalho nos caraM
voltado ao contrrio. y4H
Mas, um dia, a Pilu zangou-se com ele poin^lM
coisa de nada. O poeta disse-lhe que estava deSiH
dido, porque sempre julgara que existiam entre nsfitM
s mulheres infelizes mas, tambm, inteligentes (r)^B
eram essas que ele procurava. Afinal, vira que s WB
mulheres infelizes e, tendo pensado bem, j n&tiRJB
admirava disso, pois uma mulher, se era inteligeMJB
no vinha para esta vida. A Pilu, que, depois >*![
ter conhecido, passava os dias a ler, para lhe ser ^m
dvel, foi aos arames e respondeu-lhe que ele estJ^
muito enganado se julgava que ela era infeliz. Dflfrg
-lhe que era to feliz ou mais do que as outras, as "*(*
inteligentes, e que homens melhores do que ele tinha"!
ela s dzias, era s querer. Nunca a vi to furic**
como dessa vez. Insultou, no sei porqu, a Dona Bi**
tunata, insultou tambm a criada e agarrou nos livros
que ele lhe tinha oferecido e rasgou-os todos... "*
A EXPERINCIA
759
As camisas inchavam com a nortada e as toalhas a(jquiriam a vivacidade tremulant
e da bandeira da popa quando o navio marcha veloz e o vento sopra rijo; parecia
que se iam desprender das molas, abandonar as cordas, emergir da travessa escura
, voando, por cima dos telhados, para a barra, l onde o cu se mostrava livre e azu
l; mas era tudo ilusrio, tudo intil; era como um pssaro batendo as asas sobre a mo q
ue se fecha duramente em volta das suas pernas frgeis. Logo que o vento esmorecia
, a roupa prisioneira tombava, vencida, na sua humildade.
Tive pena, porque havia um livro muito bonito: era uma mulher como ns, mas inteli
gente, que despertou uma grande paixo em Frana e morreu muito nova, tuberculosa. A
t sentamos vontade de chorar quando ouvamos ler aquilo e...
Cesria calou-se subitamente. A campainha ora lhe dava para tmida, ora para autoritr
ia; s vezes um pouco bbeda, desgovernada; agora, porm, soava cortesmente, deixando
perceber uma correco diplomtica. Todas as mulheres j sabiam que a esquadra americana
chegara na vspera e Cesria julgou mesmo reconhecer a maneira de tocar do intrprete
. A Dona Fortunata devia t-la reconhecido tambm, porque viera logo atrs da Augusta.
Da escada chegava um rumor de homens e de passos que se detinham. As mulheres o
uviram Dona Fortunata cumprimentar algum com voz discreta e, depois, dizer em tor
n mais alto: "Podem entrar".
Cesria e Clarinda voltaram a sentar-se. O intrprete vinha frente. Era pequeno, fra
nzino, nos seus trinta anos de cabelo muito negro. "Ol, raparigas!" disse. Ele co
nhecia todas elas. Saudou uma por uma, Passou as mos nas faces de Lusa e, depois,
virou-se, sempre sorridente, para os marinheiros que iam entrando. Cesria contou
vinte e fez, mentalmente, as suas contas.
Da porta, Dona Fortunata notou aquela ausncia e logo se lhe anichou uma suspeita:
A Pilu?
j
76o
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
761
* Natalia, que havia ido, voluntariamente, prgj|
voltou sala: q
Ela diz que no vem... tiM
Dona Fortunata mordeu os lbios. Uma trai
j ningum queria, perder uma oportunidade da|f|
O seu desejo imediato foi estoirar em quatr0fi|
amea-la, fazer-lhe sentir a sua fora, de longelj
os troves, antes mesmo de a ver. Mas considerai
nesse momento, devia conter-se e era isso qiwl
lhe custava. com um 'semblante de pacincia,,"
a deslizar atravs da sala, por entre os honrenl
direco ao quarto de Pilu. >Tj
O intrprete tornou a falar em ingls. Quasefl
os marinheiros eram muito altos; vendo-os, pai
a Clarinda que o tecto da sala se tornara ma,j|
e que tudo ali se modificara. Alguns mostra/raj
tmidos e lanavam sua volta, sem razo apaw
um sorriso vago, sempre igual. No havia afjsa
para todos, mas o intrprete continuava a feHui|
para os pr vontade. Cesria estendera a m^ol
um lhe pedira e ele comeara a ver as linhas daBaj
e a exclamar: "Oh! Oh!" No dizia maisJM
mas o torn que empregava e a maneira como pJI
gava os lbios, em forma de tubo, faziam rir os .oito
Uma indeciso andava no ar. A ideia de prffli
rolava, vacilante, entre eles. Os mais timoratos tinhfl
reunido ao lado da janela e iam trocando pa^||
inteis, suplementares, como as que se dizem nas
coes, depois de feitas as despedidas e enquan^fl
espera que o comboio parta. As mulheres, sempre ".M
tadas e olhando-os de baixo para cima, sorran"^
que estavam mais prximos. ' ^1
Pilu voltava sala. Trazia os olhos magoados,'^!
procurava manter, por detrs da derrota, o portfji
dama, alta e cheia de dignidade sob o seu cabelOTl
actriz aposentada. nfji
Alguns dos marinheiros deitaram-lhe um olhar ^
cunstancial, que no aceitava, nem repelia, an*^t
deixava para os outros; depois, desviaram o rosto V3S3
rosamente.
Dona Fortunata veio, de novo, porta do corredor, deu uma vista pela sala e, dest
a vez, quedou atisfeita. O que trazia o braal e o "casse-tte" estava seiitado numa
das cadeiras de braos, com a cara muito sria, representando a Ordem e a Justia. Ex
aminou o seu relgio de pulso e disse:
Quinze minutos para cada turno. Depois acendeu um cigarro e baforou algumas fum
aas sucessivas.
Eram cinco e meia quando a Augusta abriu a porta. O intrprete encostara-se parede
do corredor, para que os marinheiros sassem primeiro.
Dona Fortunata assistia tambm, com a expresso parada e austera de proprietrio vendo
, junto das cortes, o seu rebanho partir frente do pastor. Quando o ltimo saiu, e
la aproximou-se do intrprete e meteu-Ihe nas mos duas notas de banco a comisso. A
primeira vez que aquilo acontecera, o intrprete sentira-se humilhado ao receber o
dinheiro; mas, depois, pensara que tinha famlia, que ganhava pouco, que a vida,
tal como estava, era uma coisa suja e no lhe permitia escolher um caminho a seu g
osto. E, de a em diante, fora-se habituando ao lugar vazio que o escrpulo arrancad
o deixara fora-se habituando at o esquecer. Ele e a Dona Fortunata sabiam, demai
s a mais, que no eram os nicos a participar dos lucros daquele comrcio. Pouco depoi
s de os marinheiros sarem, a campainha tornara a soar e Lusa volvera imediatamente
a cabea para o lado da porta. Ela conhecia a Janeira branda, de quem esperar se f
or preciso, com que o seu Carlos se anunciava. Conhecia os passos dele e at esse
torn especial que a Augusta usava ao dar"Ihe "boa-tarde".
Novo e com um bigodinho curto e negro sobre os lbios vermelhos, todo bem apessoad
o, bem posto, Car^s entrou luzindo um sorriso fcil. Tambm Lusa sabia que as mulhere
s que se vendem a todos os homens tm, por sua vez, necessidade de comprar um home
m a hiptese dum sentimento, uma propriedade de carne e osso onde possam semear a
iluso e o afecto de que
M
702
EXPERINCIA
f os humanos carecem para viver. E, de olhar enUB
ela seguia os gestos de Carlos, cumprimentano^l
querda e direita, afvel, mas sem calor e secaiJB
sidade, como pessoas que se encontram diaridil
no mesmo emprego. -'SB
Era quase sempre o primeiro a chegar. SJH
das seis da tarde surgia o da Natalia, com uj3B
despeito por ele, o venturoso que dispunha 'dtfll
mais bonita e mais frutuosa da casa. A sala ia-U
chendo de outros homens, que se sentavam nas clM
de braos, cruzavam as pernas e, tranquilos, adapoB
como velhos scios dum clube, fumavam e coHwjjB
vam em voz pausada. Eram os "fregueses certos*j|M
muitas vezes, vinham apenas para estar ali, a vaJH
de quando em quando, um olhar macio pelas nralIB
a fechar lentamente as plpebras, depois de soffll
as fumaas dos seus cigarros, e desnovelar anecfrgB
outras maravalhas da vida, celibatrios carecidos|M
convvio feminino, fosse onde fosse, mesmo nofflM
das lagoas de onde a gua transparente se evaftJB
deixando apenas limos enegrecidos e tristes. |"jB|
sabiam que a Dona Fortunata, todas as Donas I^H
natas do vasto Mundo no lhes suportavam de"JH
mente a presena, pois se a eles sobejavam hbmB
-vontade, outros clientes havia que, sentindoLf|SjM
no entravam na sala, por timidez ou medo de 'SJB
reconhecidos. Apesar de tudo, eles voltavam se$B
continuando a conversar quando a Augusta abi^H
porta da escada e as mulheres eram chamadas fijjMB
tinuando a conversar quando as que no haviam^jil
escolhidas regressavam sala, com um sorriso a esoiH
der a rejeio sofrida. S se retiravam hora do jajHiB
para volver no dia seguinte, enquanto noite otrilB
srie da mesma constituio psquica, amadorajS|
mesmo ar, ocupava o lugar deles. E quem no iwP
assim formado sentia uma secreta humilhao na Sflf
prpria espcie e interrogava-se sobre as razes 'Wte
que os no preferidos de nenhuma delas amavam taiSj
bem as cadeiras de braos, amavam tambm fuma"^
conversar na sala de Dona Fortunata; interrogavas*
A EXPERINCIA
763
tardava a dar conta, ou no dava mesmo jamais, daquela outra necessidade de iluso q
ue vinha florescer ali por no poder faz-lo noutra parte.
in
4.' TARDE
MO, isso no retrucou Clarinda. A princpio, sentia que os seus olhos me segui
am quando eu saa da casa de jantar, depois de o servir, mas no passava daquilo. El
e tomava sempre o pequeno-almoo sozinho. Tomava-o antes de mais ningum, para abala
r cedo, pois a Dona Ludovina, alm das propriedades, tinha, tambm, sociedade numa fb
rica de curtumes e era ele quem lhe dirigia tudo. Olhava-me, mas nunca me dizia
coisa alguma. Mesmo quando a Dona Ludovina no estava presente, tratava-me por men
ina " menina d-me isto, faa aquilo" e mais nada. Mas, com o tempo, foi mudan
do e comeou a fazer-me perguntas sobre a minha vida, sobre o Asilo e sobre os meu
s parentes. No dia em que lhe respondi que s me restava uma tia, uma velha que vi
via na maior misria, ele ficou, um instante, calado e, depois, disse-me, como se
sentisse pena: "H muita gente sem a sorte que merece. Mas, ainda assim, no tens mu
ita razo de queixa: sabes ler e escrever e falas melhor do que algumas pessoas da
qui com mais idade do que tu. V-se que
0 Asilo no era assim to mau como se dizia". Naqueles Comentos, ele tratava-me como
se eu no fosse uma criada. Depois, parece que se arrependia e passava dias e dia
s sem me dizer nada.
O gato entrara na sala, de rabo erguido em ponto ue interrogao, todo lento e flama
nte. Pilu abando^ou o jornal e chamou-o. Antigamente, mal ele se acercava, ela r
epelia-o, queixando-se dos plos que lhe
J
764
EXPERINCIA
1 *
* deixava no vestido; nos ltimos tempos, pori
cara a disput-lo, aninhando-o no regao, as tn|
lizando em carcias, sempre que o bicho o COT
Eu tinha-lhe respeito; ele era muito mail
Eu fizera, h pouco dezasseis anos e ele j ia no$
e seis. Mas comecei a gostar da hora do pequeno-d
mesmo que no falasse comigo. E a gostar, t
de quando passvamos um pelo outro, no c!
Nos primeiros tempos, aquilo mostrava-me que'^
delicado, mas no me fazia nenhuma impresso. |j
parece que tambm eu mudei: quando ele se e3
um pouco contra a parede, para me deixar <p
sentia-me, de repente, nervosa e como que eij
nhada... -M
Lusa sorria: > &i
Estou mesmo a ver-vos...disse. E pnj olhar Clarinda, com o desejo de adivinhar c
omol exactamente o seu rosto nessa idade. q_,
Quando chegou o ms de Julho, a Dona Q
vina foi para a Foz do Douro, passar o Vero e&l
da irm, como fazia todos os anos. Ele ia visita*!
sbado e voltava no domingo noite. Os outras j
da semana andava atarefado com a fbrica e Cffla
propriedades. Mas, hora do almoo e do jantai^
centrava sempre alguma coisa agradvel para mftOT
Eu acostumara-me a v-lo e j no me pareci"
velho como nos primeiros tempos. Depois, atff*
esqueci que ele tinha mais do dobro da minha'di
Parecia-me muito superior aos rapazes novos e)|
quele com quem eu havia tido um namorico qat$
estava no Asilo. Bastava ouvir falar um e outro-W
se sentir a diferena. certo que ele falava ba"
como se no quisesse que a cozinheira ouvisse;^
tambm preferia que ela no percebesse nada, emlwi
ele, falando comigo, me desse importncia. Ele PUJSffi
a conversa sempre para o mesmo lado. Dizia as cota
duma maneira indirecta, mas ia-me dando a entJldj
que gostava de mini. Uma W7, 0*0 ~- J--
A EXPERINCIA
765
que gostava de mSu,^^ da?do a entrf que, mais tarde noderi? ' ate me d
eixou percebf da Dona LudovnaT? ^ Cmi^- Estava a f$ uaovma e das doenas dela e, de
pois, disse
i"^-, mais larae da Dona Ludovi
e se ele no se casara ainda, era para lhe poder Le'r mais companhia, mas tinha de
pensar nisso, pois, -e ela morresse, ficaria muito sozinho...
Ento ? disse Lusa, perante o silncio que Clarinda abrira, um silncio inesperado, um
bloco cado da ribanceira sobre o caminho, cortando o passo quando o esprito ia a
pensar noutra coisa. Lusa incitava, mas tambm ela sentia uma melancolia progressiv
a e a sua voz tornara-se indolente, como se houvesse perdido a curiosidade de h
pouco. Como se aquilo lhe fosse mais familiar do que as suas prprias costas,
do que a pequena verruga aflorada a uma das espduas e que s com um espelho podia s
er vista.
Um dia, quando se levantou da mesa, passou-me as mos nas faces e disse, como se f
alasse a uma criana: "s muito bonita..." Parecia um tio, que no dava mal ao que faz
ia. Eu no esperava nada daquilo e quedei-me atarantada. Ele no se foi logo embora
. Ficou ali, na minha frente, a olhar-me muito, e voltou a acariciar-me o rost
o e a dizer-me: "com facilidade, pode-se fazer de ti uma senhora. Podes ter
um grande futuro".
E sempre assim murmurou Lusa, dirigindo-se mais sua melancolia do que a Clarinda
. Eles dizem sempre a mesma coisa...
A mim nunca nenhum mo tinha dito...
Pois ... Isso ... O torn arrastado de Lusa Parecia alheio ao que ela prpria pedia:
Conta l...
Ele ainda esteve alguns momentos e, depois, saiu, como se levasse muita pr
essa. noite, quando Uie servi o jantar, no falou comigo. Nos dias seguintes, tambm
no. Eu dava voltas e voltas cabea, Sem compreender por que ele mudara. No sbado, p
erSuntou-me, de repente: "Gostas de praia?" Respondi lue no sabia, pois nunca tin
ha estado numa praia. Bostas, com certeza disse ele. mais divertido ^ que aqui
e, ento, na tua idade, gosta-se muito. "u falar, hoje, com a minha madrinha, a ver
se ela ^ quer l na Foz. Aqui, a cozinheira basta para mim". u ouvi aquilo, mas, p
ara falar a verdade, no tive
mJ
766
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
767
, nenhuma satisfao... Eu no queria sair de"
A voz ensombrecia-se novamente: rgj
Afinal, no domingo, disse-me que a DoncjnB
vina no precisava l de mim. Que a irm dela a
criadas a mais e no havia quarto disponiveijjB
disso, que eu fazia falta ali para manter lirnpatfajB
Parecia que ele sentia desgosto de eu no ir.rdH
fiquei ainda mais ralada, ao pensar que elerrajjH
importava nada de me ver ou no ver... j||
Clarnda voltou a interromper-se. A campainfiB
cara, a Augusta abrira a porta e na sala, toda da"
levantados, um homem apareceu. Tinha uma faonJI
e esponjosa. Uma esponja que vinha da orelha Jl
queixo e dir-se-ia, vista a distncia, uma pasal
sangue coagulado. Era magro e alto seria se astifliB
no se lhe amochilassem na raiz do pescoo, taodl
as mos balanavam-se rentes aos joelhos, compB
ossudas e desmaiadas, brotando das mangas do cJB
Mas s o grande nevo o marcava ao longe, dorijijSI
do-lhe a figura, tornando secundrio tudo o maEM
aquela enorme mancha saltava s pupilas, descai
estmago, revolvendo-o em nuseas, como uma-"H
fatia de pulmo cru; e, ao v-lo assim, as mufipM
sem pinga de crueldade, baixavam discretamenMM
olhos, cortando horizonte sua imensa repugtoajl
O homem saudou e avanou at junto da. &w|
com um sorriso incerto, como faziam quase tad(MM
que vinham solitariamente. Devia conhecer o ejji
da sua presena, porque no tardou a olhar da esqurtH
direita, em semicrculo, e a decidir-se pela exsgiB
dade do seu leque visual, ao fundo da sala. Era Natpfp
quem estava l. Ele foi caminhando at junto "dfiji||
sentou-se ao lado. As outras mulheres viram, eJ^~J
com alvio, que os dois tinham principiado a conversg
Pilu retomou o jornal e a vida da sala restabelece"""*
como se o homem no estivesse ali ou a sua P1"6*6?(r)*!?
j solucionada, deixasse de anojar. Ao movimento/*"
cabea que Lusa fizera, Clarinda prosseguiu: r~J?
Depois daquilo, passou vrios dias sem me dff
javra. At deixou de me seguir com a vista, como Lia antes. No podes imaginar como
eu andava amaj,ucada. Foi, ento, que comecei a gostar verdadeiramente dele. Tu pe
rcebes?
Lusa olhava, de quando em quando, para os gesjOS que o homem e Natalia faziam e d
istraa-se contra sua vontade. Havia esperado ouvir de Clarinda no sabia bem o qu, m
as no era aquilo que gostaria de ouvir. Sempre sonhara com ramos de flores, frasc
os de perfumes, caixas de bombons e com os grandes lances do amor, os vestidos d
e seda ora caminhando no rebordo dos abismos, ora dependurados em frente das volp
ias nuas que transfiguram a vida. Sempre sonhara com o imprevisto, com os cus abe
rtos, atrs de nuvens de muitas cores, dessas que o sol poente atravessa e irisa n
os dias largos e quentes; e, afinal, o que Clarinda lhe contava estava-se mesmo
a ver como ia acabar, era uma histria conhecida, sem nada de novo, uma histria sem
elhante de todas as raparigas que andavam na vida como elas.
De sbito, ao ver os movimentos abstractos dos dedos de Clarinda, cerrando-se e de
scerrando-se continuamente sobre as palmas das mos, Lusa enterneceu-se: "que outra
coisa podia contar uma pequena sada dum asilo ?"
Ele era alto, forte, com uns modos decididos e uns olhos escuros e muito vivos.
A cozinheira dizia que, a ele, ningum fazia o ninho atrs da orelha. Se em vez do o
utro, que era quase uma criana, o meu primeiro namorado tivesse sido um rapaz mai
s velho do Cue eu, provavelmente no gostaria tanto do Armando como gostei. Mas el
e foi o primeiro homem feito que lhou para mim; e a maneira como falava aos outro
s e como as pessoas lhe faziam a vontade, mesmo o Padre, tudo isso, tu compreend
es, me trazia maluca. EU estava ainda bastante inocente. Havia ido para o Asilo
com cinco anos e, nesses assuntos, as freiras eram muito rigorosas. Eu adivinhav
a alguma coisa, claro, ^as, ao certo, s sabia que tinha simpatizado com o
tal
rapaz...
jjj^l
768
EXPERINCIA
f Clarinda falava com pormenores excessivos.j^J para quem ouve, como no desabafa
r duma dor rdB e, ao escut-la, Lusa no conseguia livrar-se cfcfl sensao de ccisa sabi
da e ressabida, de trlhotJ conhecido e lamacento, cheio de pegadas sobEMJH das qu
e o percorreram anteriormente. 'Wm
Foi, ento, num campo de centeio ? perginHj com desejo de abreviar. f jjl
No; foi num alpendre. iS
Parece que tinhas dito... J8|
O que eu te disse foi que ele vinha a casal
junto do campo de centeio, quando me viu. ElefBl
automvel e tinha tambm um cavalo, para ir y*H
priedades da Dona Ludovina que ficavam por dxni
da serra, num lugar onde no havia estradas, j&jt
de meter o cavalo na cocheira, pediu-me que fossai
alpendre buscar um bocado de palha. Eu fui. O alga
dre estava mesmo ao lado. Mas ele veio logo atrSI
mim, com o cavalo pela arreata. At me d nojo quais
me lembro que o animal ficou em frente de ns 0>|B
tudo. 'Tj
Clarinda passou a mo sobre o rosto, carrega"
muito, como se quisesse fazer escorregar da peMl
mau aspecto que devia ter; e Lusa, olhando-a 6OT
passivamente, tentou afastar os sedimentos que se ai
vinhavam no seu novo silncio. ,-j
Hs-de contar-me o resto, mas noutro di|S
disse. Hoje no deves pensar mais nisso. fj
O torn era fraternal, as palavras meigas. Dir-s"S
que Lusa se tornara mais velha medida que a tnl
fortava. Como se a ternura, para maior eficcia, aurOOT
tasse episodicamente a idade dos que a oferecem'"!
outros. i"l
Andava to doida, que se, em vez daquilo, M
me tivesse dito para eu me atirar a um poo que h3^!
ali perto, eu atirava-me, podes crer... __
Lusa baixou a cabea, no jeito de quem acreditai
Da cozinha expandia-se um cheiro de peixe frito. I"
fora continuava o vento que, h trs dias, enchia <"
sussurros a travessa; e, ao fundo da sala, o honiest
A EXPERINCIA
769
JQ grande nevo, sempre de gestos dceis, prosseguia o sell dilogo com Natalia. De v
ez em quando, estoiravam os risos desdenhosos que ela comeara a disparar-lhe. Mas
o homem parecia desentendido e suportava tudo com ar resignado, sem alterar jam
ais a suavidade dos seus modos.
Lusa sentia repugnncia e, ao mesmo tempo, piedade por ele. Pensava que o homem no t
inha sorte, pois alm de trazer aquilo chapado na cara, fora sentar-se ao p de Nata
lia, que at a patroa dizia ser a mulher mais atrevida e ordinria que j vivera ali.
O homem continuava a falar e Lusa ia notando o orte contraste da sua boca com os s
eus olhos. A boca entreabria-se num sorriso passivo, humilde, como se pedisse de
sculpa de ele ser assim; os olhos, ao contrrio, luziam um brilho hmido, tremente,
de pele de cavalo molhado pela chuva e mostravam-se cheios de fora obstinada. Ao
seu lado, Natalia retirava a mo que ele tentava acariciar, mas o homem voltava a
insistir momentos depois.
No, meu santinho, vai pregar a outra freguesia. Eu estou doente! ouviram-na, por
fim, dizer.
Ningum falava na sala e aquelas palavras, rolando um momento no ar, caram com todo
o seu desprezo.
Tenho mais que fazer! Passa bem...
Natalia levantara-se e sara, a gingar e a cantar um fado, como era seu hbito quand
o reprimia uma discordncia.
O homem ficou sozinho, na cadeira de braos, l ao fundo. Natalia havia4he parecido,
pelas suas maneiras acanalhadas, a mais acessvel de todas quando ele entrara. Po
r isso a escolhera. Mas o seu maior prazer teria sido chamar imediatamente Lusa e
ir-se da sala com aquele rosto fresco e bonito que todo ele solicitava; no ousar
a, porm, faz-lo, temendo que ela, pela sua prpria beleza, se recusasse. Ele nunca b
eijara uma boca assim. Nunca beijara nenhuma boca; ttiesmo as mulheres que compr
ava afastavam sempre a cara. E, contudo, aquele desejo parecia ser nele to congnit
o como a sua timidez nesses momentos e a
25 Vol. Ill
"
770
EXPERINCIA
constante deformidade da sua face. Mas, agg
obrigado a ser novamente forte e a recomear."!
Havia um grande silncio. As mulheres.e
aqueles olhos que lhes percorriam o corpo/ilj
hesitaes que vinham, em ondas, pelo ar, tdNJ
como se falassem; mas nem a prpria Pilu vai
cabea para o fundo da sala. sj
O homem continuava a sorrir, cada vez maaS
demente, e a estudar as mulheres, uma por uni
bora desse conta de que elas no queriam oilwi
ele. O rosto fatigado de Pilu no o satisfez;t<|
entroncada e de linhas arredondadas, situava-srfj
longe do seu tipo. Um momento, ele tornornSll
derar a loira juventude de Lusa; mas a coragd|
subia, mantinha-se inerte sob aquela sensao p"(
de inferioridade. Por fim, os olhos do homem 4
ram-se e a sua ambio aceitou o meio-termo. -9i
pareceu-lhe, depois de Lusa, a mais bonita .<0|
elas. < t'M
As mulheres sentiram que ele se levantavatdfl
solido e se aproximava lentamente. Nenhuma-"
erguera a cabea. Viam-lhe apenas as extreuJ
das calas cinzentas e os seus sapatos escufffp
avanavam sobre o tapete. stM
O homem deteve-se junto de Clarinda, estU
brao como se fosse acariciar-lhe as faces, ms?!
hesitou; somente a sua mo trmula pousou aM
ombro dela, enquanto da boca lhe descia um-sai
de incerteza e de splica. '( ^
Quando Clarinda levantou os olhos, a caia*
homem, agora inclinada, muito perto da sua, eot$
bafo quente e cido, suscitou-lhe ainda maior sflsrt
do que h pouco. Era como se ele trouxesse iWj
mente aderido pele. nhnnan^ - -
A EXPERINCIA
^-j.^. ua. POUCO Fra ~, , '"cuui "u*w|w
mente aderido nele S ^ de trou*esse r* curvar a cabea ao ,' CluPand-a e obrigan*^
, encortSo ^2^' "m bi<* do mar,*!**
curvaraQeCabeaaaoPseu' ^^ e oWgarfSI
foso, encortiada0)ache7o PdeeSmr ^ d *"** lentas. A face direita ac ^ Porosidades sai
^D^* do que a esquerda toT^*' avlumava-setff houvesse tubercu^ado rS C emagrecida c
omorS
produzia da outra^ band, n T^a de vida **** outra banda. Os lbios delgados huri"
*"
771
affl-se de baba, abriam-se e logo se pegavam um ao Outro; s os olhos, l em cima, c
ontinuavam inquietos e ardentes. Era um rosto de pesadelo, murmurando, timidamen
te, palavras que ela j no ouvia.
Tambm estou doente escusou-se Clarinda, numa voz sumida.
As outras mulheres, que tinham, finalmente, erguido a vista, voltaram a baix-la.
Somente Cesria, depois de haver marralhado consigo prpria, encarava o homem. Ele f
icara no meio delas, ora a olhar para uma, ora para outra, sem ousar dizer nada
e sempre com aquele sorriso clido que ia minguando pouco a pouco.
Cesria voltou a considerar que os ltimos dias tinham sido de fracos resultados e q
ue ela poderia, entretanto", fechar os olhos e pensar noutra coisa, como quando
tentava iludir os desgostos que lhe produziam insnias.
Viram-na levantar-se e dizer com ar decidido:
Vamos l!
Um apaziguamento descia. Clarinda sentiu-se grata a Cesria, por ela prpria e pelo
homem; mas esse sentimento to rpido veio como rpido se foi. Dirse-ia ser Pilu quem
tinha razo ao franzir os lbios depreciativamente.
Iam j os dois no corredor quando as mulheres ouviram Cesria prevenir:
So duzentos escudos... Os passos detiveram-se:
Tinham-me dito que eram vinte...
Eram, eram; mas...
Eu compreendo... disse o homem com uma vz quebrantada. Sim, compreendo... Cada
vez as palavras eram mais lastimosas: O pior que s trago setenta ou oite
nta, no sei bem...
Difundiu-se um silncio hesitante. As mulheres adiVlnharam o gesto de transigncia e
logo os passos recomearam.
Clarinda cerrara as plpebras. Uma casita viera de longe e erguera-se nos seus olh
os fechados. "Oxal ele no v, de novo, para a cadeia. Oxal tenha sorte e
J^
772
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
773
^^^A*zza~ res;aerr a ramada *<*> * "*"*
IV
5-a TARDE
A
i>m im
5." TARDE ,.
..-
T-i
f RA sempre aps o almoo, at as quatro, li
cinco, enquanto estavam sozinhas, espira
primeiros clientes. Desde que os homens vvfjjje
passos que flanavam por vales e cerros antigos/ll
savam-se e volviam ao presente; e, ento, as coifiw
generalizavam-se, o ar enchia-se de outras vitibi
os olhos de outros intentos. Ali, como nas outraOT
de igual tmpera, era a campainha quem coiKrt
aquelas horas, alargando, encolhendo ou svptim
discusses, queixas, lembranas e confidncias. <f^
No compreendo como foi isso...mlfl^l Lusa. n*"
No compreendes, porque eu no te di^*3
um dia, tambm a Dona Ludovina comeou a OT
Foi pouco depois de ter voltado da praia. A pttw|
julguei que era s nos dias em que ela estava jBiot
reumatismo, mas no era. Quando me chamava), |*i
cia que se punha a pensar noutra coisa antes'-dr"
dizer o que tinha a dizer e que no encontrvetp
todas as palavras. A sua voz j no era como at$
Parecia que me queria falar duma maneira suav"/r
que a sua voz no lhe fazia a vontade. com O tj"
foi mudando mais. J no me tratava por "minha ffl
e se, uma vez ou outra, ainda me tratava assii"^j
como se fosse por hbito. As mais das vezes ""
simplesmente " menina", como ele. Quando me S"
ordens, baixava os olhos, mas, depois, eu sentia *j
me observava de lado. Comecei a andar muito preocupada, como podes calcular, poi
s via perfeitamente /me, cada dia, ela antipatizava mais comigo... !_ E que dizi
a ele a isso ?
Ele no sabia nada. Na sua frente, ela no mostrava aquela frieza com que me tratava
quando ele estava fora. Eu tambm no tinha coragem de o prevenir, com receio de qu
e no quisesse saber mais de num. Pouco depois de eu ter ido para l, a cozinheira h
avia-me dito que ela era muito ciumenta, tanto como se ele fosse seu marido e qu
e, uma vez, at o obrigara a desmanchar um casamento, com as intrigas que fizera.
Constara, ento, que quando era mais nova, tinha andado metida com ele, mas
muita gente no queria acreditar que fosse verdade. Quando eu soube isso, ainda
no havia nada entre mim e ele; mas, assim que via a Dona Ludovina a tratar-me co
m aqueles modos, pensei logo que ela adivinhava alguma coisa. Parecia-me impossv
el que soubesse. O meu quarto ficava muito longe do seu e do da cozinheira, que,
demais a mais, no ouvia bem; mesmo assim, ele s fora l quatro ou cinco vezes e sem
pre a horas mortas. Justamente por causa dos cuidados que ele tinha, era um infe
rno para nos encontrarmos. Ele at dizia que ramos como os gros nas vagens; estvamos
ao lado um do outro, mas ao mesmo tempo separados, sem nos podermos tocar. claro
que ele aproveitava todas as ocasies, sobretudo quando o reumatismo no a deixava
sair da cama e a cozinheira ia horta ou ia Atender a roupa, mas era sempre uma
coisa sem graa Anhuma, para ele no sei, para mim no tinha graa, Pis era sempre a cor
rer e com o ouvido escuta.
Lusa pusera-se a rir:
Olha l: mas ele gostava verdadeiramente de ti u queria s...
s vezes, parecia-me que gostava. Uma noite, tiisse-me: "Os chineses que tm razo: s a
preciam s mulheres novitas como tu". Ele continuava a falar ^ futuro e a dar-me a
entender que, um dia, poderiamos casar. Falava sempre por meias palavras, mas
774
EXPERINCIA
t eu compreendia que isso seria quando a DoatfjEB
vina morresse. Eu nunca lhe fazia pergimt$2H
respeito. com o amor que lhe tinha, quase Snll
sava naquilo e, se pensava, parecia-me que ;e]$f|B
de arranjar as coisas para que tudo corresses bd^jO
depois, veio aquela histria... P*H
No div, Natalia e Cesria estavam tambjH
conversa, enquanto Pilu lia, muito recostadajoajjH
que lhe tapava o tronco e o rosto, s deixaxsGJj
seu cabelo espampanante, a lembrar ramo flori^jfl
mimosa erguendo-se por detrs dum muro. JO|M|
Natalia, sempre a braos com supersticoes'iaflijH
res de bruxedos, contraa o rosto e queixava-s,as:rlaB
Para no receber aquele monstro que VJ
ontem, eu disse-lhe que estava doente, e qu3KJB
que estou mesmo ? Se calhar, o tipo rogou-mejjB$(iB
praga... 5^1B
Nenhuma das mulheres estranhou ouvir aquiloSI
no levantara sequer os olhos. Natalia descogia! JSSB
nores e Cesria ia-lhe dando conselhos, nuriuraM
pachorrenta e sem convico. Eram palavras v$iMH
o sabiam. Natalia, que rolara, desde criana,g|H
noites sem varrer, trazia escrita na cara umaffiH
rincia maior do que a de qualquer delas. ^^H
L fora havia sol. Mas a janela que davapalM
travessa estava obrigatoriamente de vidraa sMBl
As janelas de em frente encontravam-se fechadasrajH|
bem. Pobre embora, a famlia que ali habitava "'SflB
evitar s filhas o mau exemplo do outro lado. AlH
cauo mostrava-se, porm, to intil como os conyiU
de Cesria a Natalia; justamente porque lhes Pr*J3H
aquilo, as raparigas no desleixavam ocasio deiaftU
os vetos e de espreitar pelas extremidades das coct^B
na esperana de amainarem a curiosidade. "**S
Sempre num torn baixo, Clarinda dizia: J?3
Naquela tarde, a Dona Ludovina estava a *&S
na capela e a cozinheira tinha ido vila, fazer mPg
compras, quando ele chegou. Ao ver-me sozinha^?
casa, agarrou-se logo a mim. Mas, depois, reparowW*
meus modos e perguntou-me o que tinha. Conte>ap*
A EXPERINCIA
775
'clar> e percebi que ficou tambm aborrecido. Encos(ou_se janela e esteve muito tem
po calado, a olhar
para
fora, sem se mexer. Ento, pensei que o caso
era ainda mais srio do que eu julgava. Depois, ele jjsse-me, como se a culpa foss
e minha: "com essa idade, s uma coelha". At me d raiva lembrar-me! Tu ests a ver, eu
acabava de fazer dezassete anos. Perguntou-me se estava certa de que a cozinhei
ra no tinha compreendido. Respondi-lhe que sim, que estava certa, pois eu havia p
uxado uma conversa quando tive aquele palpite, mas como se no fosse nada comigo.
Realmente, eu tinha feito assim. que as freiras haviam-me dito que aquilo era na
tural nas raparigas, ao chegarem a certa idade, mas no me tinham prevenido de mai
s coisa alguma. Pareceu-me que, depois de eu lhe repetir a minha conversa com a
cozinheira, ele ficou mais tranquilo. Disse-me que ia falar com o doutor Macieir
a e que eu no comeasse j com medo, pois no me aconteceria nada de mal. doutor Maciei
ra era um mdico da vila, de quem a Dona Ludovina no gostava. Ela garantia que era
um herege. Mas ele pensava que, justamente por o doutor Macieira ser um herege,
no ia ter escrpulos de me fazer aquilo. Eu fiquei espera...
Clarinda interrompera-se perante a voz de Pilu, que principiara a ler o jornal e
m voz alta. Quando Pilu desatava a ler assim, para ser ouvida por todas, eram se
mpre crimes que assoalhava e, sobretudo, crimes de corao. As mulheres que se encon
travam na Sata, as que viviam nas casas irms daquela e as que Passeavam na noite
livre promessas de volpia amavam escutar as narrativas do sangue perdido. Elas nu
nca haviam dado a morte a ningum, nem mesmo a Pilu, que, um dia, jurara e rejurar
a no ter morto o ingrato s por no dispor duma pistola naquele momento; mas artlavam
conhecer o que os outros faziam, o mistrio ^e fica escondido, algum tempo, atrs d
as balas e da Pnta dos punhais; amavam conhec-lo como se ele rdasse de inexprimveis v
inganas as veredas do seu aestino, como se as lanternas vermelhas que outrora
k
776
A EXPERINCIA
f ardiam porta das casas continuassem a serwalj
sangue suspensas na noite. ,| i^jl
Eu sempre disse que tinha sido este queJlB
proferiu Pilu, de voz envaidecida, ao ten9 leitura. E ps-se a divagar, com Na
talia < e^attj sobre as razes do crime, enquanto a mo ttdl acariciar, distraidament
e, o gato que se enowtflB seu regao. /o&flB
Clarinda pde, enfim, recomear: >nMI
S ao fim de quatro dias conseguimQeafB
trarmo-nos sozinhos. Ento, ele disse-me que njojMJ
ms contar com o doutor Macieira. Que IherriiB
que o mdico lhe respondera que no fazia isso*OEM
eu tinha de ir a uma parteira, mas no a-lV'BJjH
uma terra pequena, onde tudo se sabia. TinhajSM
a Lisboa. Calculas como fiquei. Lisboa parecMfl
fim do Mundo e eu no conhecia ningum aqaU
pediu-me que no me afligisse, pois viria recojraH
a pessoas que me tratariam bem. O mais difi"M
era isso, era arranjar uma desculpa para sainflgUJJ
disse-me ele. Mas tinha estado a pensar e, tamfei$|H
esse lado, o caso havia de resolver-se. Eu devjaajj
cipiar a relaxar-me no trabalho e a fazer as coisajjlB
feitas, para desagradar sua madrinha. Que <r9^ll
nasse respondona quando ela me repreendessq?&gg|
mesmo com ele, se tambm me ralhasse. No diasgpBB
ao limpar a sala, devia partir um daqueles casttfeiljP
vidro, que ela tinha em muita estimao... jal4IH|
Lusa no queria rir-se, mas o riso vinha corf^p
sua vontade, brotava como um afloramento <faM"H
por entre os dedos que tentavam ved-lo. '&MJ&
Tem piada! Tem muita piada! exdaWp olhando para o lado de Pilu. Eu sei
quem dewllp por fazer uma coisa dessas... claro, tu desatas*iP partir tudo... "X
**
No... Eu disse-lhe que no sabia se era *^JP^ de fazer aquilo. Demais a mais, se el
a me despeQWj como poderia eu tornar para ali? "Tambm j P^5 nisso"respondeu-me. "P
assado algum tempo, (f^Z tudo estiver arranjado, escreves uma carta a BB"*"W
A EXPERINCIA
777
tra a ela, dizendo que ests arrependida do que Leste e pedindo para voltares. Eu
conveno-a a aceitar-te de novo. Deixa isso por minha conta". Ele percebeu que eu
no estava nada sossegada e disse-me com uma v,oz 1ue am(ia me afligiu mais: "Tens
de fazer isso. a tua salvao". Eu tinha a certeza de que, se fizesse o que ele me
aconselhava, a Dona Ludovina nunca mais me quereria. Foi, ento, que me decidi a c
ontar-lhe a maneira como ela me tratava nos ltimos tempos...
Ah, sempre lhe contaste ?
Contei e ele ficou muito atrapalhado. Comeou com perguntas e mais perguntas e ia
dizendo, medida que eu lhe respondia: " o diabo... o diabo..." Depois, pediu-me q
ue no fizesse nada de que ela pudesse desconfiar, que andasse com a cara do costu
me, que ele ia pensar mais no caso e que havia de encontrar um meio para o resol
ver. Mas enquanto dizia isso, eu vi que ele tambm tinha uma cara de enterro...
Os olhos de Clarinda voltaram ao regao de Pilu, onde o gato se aninhava, formando
uma bola de plos; e logo, sada duma das suas noites clandestinas, uma bolita de r
esduos veio rolando e branquejando na memria, como uma gota de luz a errar na escu
rido dum quarto fechado. Naquela noite, ela tentara levantar, com a ponta do dedo
, o coto que, no umbigo dele, juntara essa vassoura invisvel que lhe varria a ^ Pe
le e atirava o lixo para a fossa deixada pelo cordo da vida. Ela brincava e ele c
ensurava-a: "Est quieta! No sejas criana! Anda, no sejas criana! Uma verdadeira mulhe
r no se pe a brincar com isso".
- Afinal, no foi preciso. Ela descobriu tudo. Havia j^a lngua danada: a costureira
: sabes ? que ia 'a trabalhar duas vezes por semana. Era unha e carne C0tn a c
ozinheira. Parece que muita gente j murmu^va, mas ns no sabamos. Ele tambm foi o culpa
do. Urna vez, como eu tinha de ir buscar umas coisas Vlta, levou-me no automvel,
dizendo Dona Ludoj'lna que, de caminho para a fbrica, podia deixar-me a e, assim,
eu voltaria mais depressa. Certamente ela
jy
778
EXPERINCIA
_, no desconfiou de nada nesse dia, pois foi -fatia
princpio e ele, s vezes, tambm levava a cpzral
Mas, antes da vila, meteu por outra estradai le^ES
no viu ningum, parou o carro junto dunrppjl
Realmente parecia que no havia ningum. MasiSifl
nos viu e aquilo comeou a constar... > 'aajjj
Clarinda calou-se de novo, uma vez maiattaSj
com aquela hora que se desprendia, ajoujada eaijM
tia, duma primavera distante. Uma primaveraBB
como no existia outra na sua memria e quefgiijSj
cheia de arrepios, na sala da Dona LudovinaitSl
da janela onde, de maneira contraditria, se>3dB3
lado de fora, um em cada salincia, dois vasegriali
rantemente floridos. '^49
Uma tarde, ouvi a Dona Ludovina chafnaitB
Ela estava na sala e, quando cheguei, ntou^gJB
se quisesse matar-me com os olhos. Depois, diainH
quase sem mexer os lbios, como quem d uin&44M
por baixo, sem olhar para o lugar onde a d: "A HJJJH
tem aqui duzentos escudos. Eu no era obtigM
pagar-lhe nada, mas no quero que ningum raWJjj
para mim de graa. Pode ir para casa da sua t&jA
para onde entender, que eu no preciso mais doanJjl
servios". Compreendi logo, por aquela voz e po3a^*j|B
modos, que ela sabia tudo e fiquei para ali, TKJjtjf^
frente, sem pegar no dinheiro e como que toirtpJwl
tremia toda e, ao mesmo tempo, sentia que ela'JfflPJj
a ter mo em si. De repente, principiei a choitar3^M|
mal fiz eu ?" perguntei, sem pensar o que diztzi$jjjf
ento, ficou mais furiosa e gritou-me: "Saia injeij|^
mente da minha casa!" Atirou-me com o dinhMdjjB
disse-me entre dentes: "Ainda em cueiros e j&-*gj||
cadela!" Eu no sabia que fazer, nem sabia cpa&J&ji
ponder. Sentia a voz dela como se fosse uma|.jp"^g;
empurrar-me, por detrs das costas, para a portai***;
sala. Eu tinha-lhe um grande respeito e PareE*f*2f
que j no podia dizer-lhe nada que valesse a P(r)2
Fui caminhando para a porta, sempre a chorar. Bfif*j5"
ouvi a porta fechar-se, com fora, atrs de mil"-8*?
chegar ao quarto, atirei-me para cima da cama e es"*"^
A EXPERINCIA
779
J5SH1 no sei quanto tempo. Sempre que olhava para aS minhas roupas, que estavam de
penduradas, era como e me visse a mim prpria enforcada e vinha-me, de novo, o cho
ro. A certa altura, a cozinheira entrou devagar e calada, como no quarto dum mor
to, e ps aos ps da cama os duzentos escudos que a Dona Ludovina me tinha atirado e
que eu no apanhara. A cozinheira no levantou os olhos para mim e foi-se embora se
m uma palavra. Parecia que havia um grande sossego na casa, como se l no estivesse
ningum. Mas no sei se havia, de verdade, aquele sossego, ou se era o zunzum que e
u tinha na cabea que no me deixava ouvir nada. Ento, levantei-me, embrulhei as minh
as coisas e sa...
Ele acontece cada coisa... suspirou Lusa. E os seus olhos subiram, lentamente, p
ela parede, como o fazia o sol, s se detendo sobre o cromo americano. Mas no era p
ara a cabea jovem e loira como a sua e de dentes muito brancos que ela levantava
um pensamento humilde, submisso, e um pedido de proteco que tardava tanto; era par
a outra estampa, tambm metida num caixilho, tambm uma mulher de cabea suavemente in
clinada, emergindo dum manto azul, e as mos cruzadas sobre o peito, que se dizia
haver sofrido todas as dores do Mundo; uma estampa que ela, supersticiosa como N
atalia, como todas as outras, ocultava no guarda-vestidos para no a ofender e s no
ite alta, liando o ltimo cliente partia, de l a retirava e dependurava por cima
da cabeceira da sua cama.
E para onde foste tu ? tornou Lusa, sempre cm aquele rosto doce e pulcro nos seus
olhos e medo ue pensar, como s vezes lhe sucedia e certamente era Pecado, que, s
e ela tivesse o poder que se atribua imagem, acabaria com tantas desgraas que acon
teciam as mulheres e no seria mesmo preciso rogar-lhe para eta acabar com todas a
s desditas.
Clarinda no respondeu logo. As palavras continuavam a repercutir-se: "E para onde
foste tu? E para nde foste tu?" Repercutiam-se e aproximavam toda a<luela distnci
a, aquele tempo desenterrado, que se
JH
7o
A EXPERINCIA
EXPERINCIA
781
* enchia novamente de sentimentos, de cores eMJ9
Comecei a andar na estrada. Era quase\(H
parecia-me que as pernas se me quebravam, "$
porqu, tambm me pareceu que a estrada, ."MJ
dia, estava triste, como se fosse uma pessoa. $
mais a olhava, mais vontade tinha de choran/3B
uns dois quilmetros e, assim que encontrei uni/33
sentei-me. ;t; sfll
Ela ficara bastante tempo sentada; os dois<^pjl
carvalhos que se erguiam em frente viram belMJ
ela ficara bastante tempo sentada sobre aquele pa$M
marco, cuja brancura principiava a contrastarQ|fl
obscuridade da noite que caa. No existiam cassijH
s havia um muro detrs das costas dela e, dtinljH
muro, uns ltimos restos de claridade que se es-ttmiM
at a linha do horizonte. Ela estava certa da pafaJM
passagem dele, pois era o seu caminho; e queriawH
lhe dissesse o que ela devia fazer. A luz iaiSSfl^H
cendo no cimo das lombas distantes e cada veziWlB
ridade descia mais pesada e densa; mas ela sabfeilB
ainda no era tarde para ele. Na estrada passas""l
de quando em quando, homens do campo que'tiiriEB
acabado o seu trabalho e recolhiam a casa. -AfagM
vivendo nas redondezas, conheciam-na, davam-lhseaMH
-noite", que noitinha era j, e perguntavam-lhe, ftof^jH
vras confiadas no hbito, se a Dona LudovBaW|H
senhor Armando estavam bem. Outro, ao v~lwtojt
sentada, com aquele embrulho no regao, pensosBlBBj
ela regressava da vila e disse-lhe: "Cansada,-1^H
Agora falta pouco. A casa da Dona Ludovigas*fjSI
perto". Ao ouvir aquilo, sentia-se mais humilhada^Pjfl?
todo o peso da vida que os outros ainda lhe atrtjJJ
e que j no era a sua vida. s vezes, passavam tani&J
automveis, mas a luz do dia tinha desaparecidtWB**'
no podia identific-los ao longe. Quando, finalffl**f
reconheceu o dele, j o carro estava muito P6***]!?,
rolava com grande velocidade na noite ain^a''*^T
quente do dia. Ela deixara cair o embrulho e C*~~*L
correra para o meio da estrada e abrira os seus b&&r*
m cruz que lhe importava morrer ?, que lhe importava morrer ? abrira os seus b
raos em cruz, decidida a det-lo, viva ou morta. A luz dos faris batera-lhe em cheio
no rosto. Ainda vira aquela luz avanar velozmente sobre ela, enfiando-se pelos s
eus olhos, atravessando-lhe a cabea, o corpo inteiro, como s figuras dos vitrais q
uando, noite, em frente do Asilo, a igreja se iluminava para as novenas. Pareci
a-lhe que toda ela era luz, uma luz cada vez mais activa, mais violenta, que a
dissolvia, levando-a sua frente como um pedao solto e intil de terra impelido por
um jacto forte de mangueira; depois ficara cega, com um vermelho-vivo, inverosmil
, dentro dos olhos que se haviam fechado e tudo se anulara numa vertigem,
numa sensao de mergulho profundo. Logo, porm, a arrepiara o rudo enervante do automv
el ao ser travado bruscamente. Quando voltara a abrir os olhos, havia silncio, um
silncio todo admirado, como ela prpria, naquele ar de sobrevivncia; ele tinha sado
do carro, que estava meio atravessado na estrada, e perguntava-lhe de maus modos
: "Que fazes aqui?" Ele nunca lhe tinha falado com tal voz. Ela quedara-se a olh-
lo, com uma surpresa humilde e sentindo aquela voz a tapar-lhe a boca e a tresma
lhar todas as palavras que havia pensado dizer-lhe. "Podias ter ficado esborrach
ada, no compreendes ?" Enfim, ela comeara. Mas ele, como se tivesse adivinhado log
o que aquilo demoraria, tornara a entrar no carro, para tir-lo do meio da estrada
e p-lo junto da valeta. No voltara a sair. Mantivera-se sentado em frente do vola
nte e !nclinara-se ligeiramente para fora, com o brao sobre a, janela da portinh
ola, como se perguntasse a um viandante qual o caminho que devia seguir. Ela
estava ^ p, junto do guarda-lamas. Os faris encontravam-se Semiapagados e uma bri
sa em crescimento dava folhagem dos dois carvalhos um murmrio de fonte longnqua. E
le ouvia sem me olhar. E, quando acabei, peruntou-me se a Dona Ludovina no havia f
alado dele.
epois, disse-me: " o diabo. J h dias ela no era a mesma tambm para mim. Vo ser as boas
e as
JL
782
EXPERINCIA
' <4
bonitas! Eu tinha uma ideia a teu respeito, j|w|
f precipitou tudo. Agora, no h remdio; tens d"fu|
imediatamente para Lisboa". Ele falava sem'M"
carinho e com um ar muito contrariado. Faiaria
que falava sem se importar comigo, s pensanaftflj
Mas, em seguida, disse-me: "Podes ter a cerjalj
que nunca desejei o teu mal. Fiz tudo para <p|9
Aconteceu contra a minha vontade. So coisSflfjjjE
fortes do que ns. Lembras-te de que eu at ^jm
mandar-te para a Foz? Foi pena que ela naQ'tSj
querido que tu fosses para l". Tirou umas nb$|$J
carteira e comeou a mexer nuns papis, coi*i,JjH
encontrar outras. "Pega disse-me. So centdtB
quenta escudos. Agora no tenho aqui mais diffigMJ
mas, amanh, mando-te mais. Para onde to poss^-fll
dar ? Para onde pensas ir agora ?" Fiquei esfKgJIJfM
com aquelas perguntas. Eu estava justamente :e$jH
que ele resolvesse para onde eu devia ir e o que 4NMJ
fazer. Ela tinha-me dito que fosse para casa da I"B
tia ou para onde eu quisesse, mas eu no lhe CiSSM
isso, pois no queria ir para casa da minha tia'e^j|H
sava que ele podia arranjar outra coisa. "IvIa0>a|H
O que voc decidir..." respondi. Eu nunca "!wM
tratado por tu. Ele, ento, disse-me: "Compreeij^^B
Eu no esperava isto, assim de repente... Tu np,4^|
uma tia, a para a serra ? Tenho uma ideia ^'WJI
haveres dito..." A minha tia era uma pobre defljM
s portas, que no quis saber de mim quando a mJjJIJ
me morreu. Eu respondi que sim, que tinha, nafwB
no me deixou acabar. "Pois vai dormir esta noite^wH
ela. Amanh, mando-te mais dinheiro e podes^SgSHJ
logo para Lisboa". "Para casa de quem ?" Per&UM^H
toda aflita. Ele ficou um bocado atrapalhado e, wpQME
disse-me, sem me olhar: "Bem, em Lisboa no $HPV
casas. Podes ir para uma penso, at ver". Eu perediH
que ele estava cada vez mais aborrecido. "No HMIf
tinha dito que me recomendaria ?" tornei a pergunte
tar-lhe. "Sim respondeu-me, como se no estivesSwfc
vontade. Tinha-te dito isso, mas era para o cas0}<w
tu voltares. Agora, que vais para ficar e levas dinlne"**
A EXPERINCIA
783
que
basta, no vejo que precises de recomendaes".
V ~ ' _ l" - . -
parecia que no dizia coisa com coisa e no sabia o que havia de resolver, pois logo
recomendou: "Enfim, se vires que preciso, escreve-me. Mas deixa passar uns dias
, para eu pensar. V se te empregas por l. Em Lisboa, h sempre muitas famlias que que
rem raparigas da provncia. E est descansada que, um dia, you l ver-te". Depois de m
e prometer isto, fez assim como se fosse pr o automvel a andar. Eu estava a tremer
, eu queria falar e no podia...
O que tu devias era ter pegado numa pedra e rebentado a cabea dele interrompeu L
usa. Ento foi-se embora?
No, no foi logo. Quando j ia pr o carro em andamento, tornou a virar-se para mim e d
isse-me, sempre com uma voz contrariada: "Em vez de mandar o dinheiro a casa da
tua tia, ser melhor deixar-to em qualquer stio. Escusamos de meter os outros na no
ssa vida". Vi que ele olhava para o muro que havia do outro lado da estrada. Com
o a luz dos faris estava baixa, no se enxergava muito bem; mas, quando a gente se
demorava a olhar, dava-se por uns rombos que o muro tinha. "Deixo-to acol, naqu
ele buraco. Amanh, por esta hora. Ponho umas pedritas, para disfarar. No te dig
o que venhas esperar-me, pois algum pode ver-nos e complicar mais o caso. Quand
o fiu for a Lisboa, ento estaremos vontade". Hoje, no me importaria nada que algum
nos visse. Que o levasse
0 diabo! Mas, nesse momento, achei aquilo natural, porque ainda lhe tinha respei
to e amor. Como eu estava com os olhos cheios de lgrimas, ele disse-me, para me c
onsolar, que podia escrever-lhe de Lisboa para a fbrica, se precisasse d
e alguma coisa, e que lhe mandasse a minha direco. Depois, como se no quisesse ver-
me chorar, abalou. Fiquei sozinha no meio da estrada, no escuro, com os cento e
cinquenta escudos que ele me dera. Foi a primeira vez que um homem ^e pagou...
Cala-te! pediu Lusa, com uma voz excitada. ~~~ No posso ouvir mais isso.
784
EXPERINCIA
1 *
" Levantou-se, caminhou at a janela, afastoteU)
tinados e ps-se a olhar a travessa, a olh-la; it|
a olh-la como num dia de chuva. ;4|
No sei...volveu Clarinda. Mas eu^
tava dele, muito antes de ele me ter passado atffl
nas faces, naquele dia. Parecia que eu tambfMI
java tudo quanto aconteceu. Parecia-me que egH
bem tivera culpa, mesmo contra a minha Vo|
Nos dias em que ele deixou de falar comigo, e"H
tudo para lhe chamar a ateno, a ver se torii((
interessar-se por mim. certo que me arrependia,*!
depois, voltava a fazer a mesma coisa. Eu sentl
sem ele, no podia ser feliz... ^ TH
Lusa escutava e dispersava-se. Escutava e ia tM
desenharem-se, nos vidros da janela, os braos qtt
tinham aberto, pela primeira vez, sobre o seu '$|
dois braos famintos, possantes, nus e peluds/f!
dir-se-ia virem do fundo das trevas da espcfe^fll
dominarem no s a ela, mas ao prprio Mundw
que ela vivia. wfl
No silncio que Clarinda fizera., ouviu-se o rudH
campainha, uns tons vivos, prolongados, que encH)
toda a casa. )l?'
>itH
>dl
V td|
,'f
A EXPERINCIA
785
6." TARDE
ft Ri .,*
A hora do almoo, ainda desmelenada e com a<jaS|
-^^.^^.S^rS
eu espero' * ^ amanha dia de vir o md"| o seu'vSo de Mh^ AT^do' toda pintada e d*
^c&j^%Z^%5x
uannda olhou-a, baixou a vista, tornou a olh&K
sempre a duvidar da ideia incmoda que tivera. Pareceu-lhe que Lusa hesitava na mes
ma concluso, que esmoa, muito calada, a mesma incerteza.
Somente Cesria, ou porque estivesse de acordo ou por no haver sequer admitido aqui
lo, falava a Natalia com naturalidade, com todos os sorrisos e gestos das horas
boas, sem nenhuma reserva que se visse. Clarinda retirou os olhos.
Fui. Que ia eu fazer ? disse, voltando-se para Lusa e respondendo pergunta que,
com a entrada de Natalia, ficara no ar. Repetiu: Que ia eu fazer ? Que que tu f
arias no meu lugar? Andei mais duma lgua, sempre a subir pela serra. De vez em qu
ando, pensava que devia ter medo naquela escurido, mas, nessa noite, eu no tinha m
edo de nada e deixava logo de pensar naquilo. Quando cheguei, a minha tia tardou
a abrir a porta. Disse-lhe, c de fora, o meu nome, mas parecia que ela nunca tin
ha ouvido falar de mim; depois, no queria acreditar que fosse eu. A casa pouco me
lhor era do que um curral de cabras. Estava a cair de velha e ficava afastada da
estrada, num altito, como essas que o povo diz que so de bruxas. Tive de ralar-m
e antes de convencer a minha tia a deixar-me entrar. Por fim, l abriu. O lume est
ava aceso e sentmo-nos as duas ao p da lareira. Principiei a contar-lhe o que me a
contecera, mas ela, ao saber que me tinham posto na rua, no mostrou nenhuma pena
por mim. S pensou nela prpria: "Agora, nunca mais me daro l uma esmolinha" disse, c
omo se eu fosse a culpada. Ela estava quase cega, mas, quando acabei de lhe cont
ar tudo, percebi que era muito mais esperta do que eu julgara: "Ah, ele isso!
- desatou logo a gritar. Pois tem de te pagar e caro! Desonrou-te, tem de te pa
gar. No faltava niais nada!" Parecia que ficara muito contente com aquilo. Deitou
mais umas razes no lume e disse-me: "Primeiro, vai-se buscar o dinheirinho que e
le prometeu deixar-te no muro. No dia seguinte, vamos tratar-lhe da sade. Uma coi
sa assim, com uma criana! Como ele nunca pensou em casar contigo, e agora
786
A EXPERINCIA
* muito menos, pois no quer ser deserdado peladH
da madrinha, tem de pagar ou de ir para a
Claro que paga! Depois de amanh, j iremos.j^w
autoridades". Cada vez ela parecia mais feliz: "Qjjfed
tu deves estar com fome e cansada da camjSB
Pobrezinha como sou, no tenho nada que pres^JS
sempre se h-de arranjar alguma coisa para tufcaB
rs". Eu disse-lhe que no queria nada, que ncr-tjflj
apetite, mas ela insistiu muito. Depois... <i ~4jm
Clarinda calara-se subitamente. Vendo o se& ij
Lusa pusera-se a afagar-lhe as mos, como PilftjHjjB
ao dorso do gato. Pontual e silencioso, o sol oh&gjtfH
novamente sala, pela janela aberta das trasMB
como em todos os dias de cu limpo. Branquear#a|H
peitoril e comeara a descer para o tapete, nesse hfMJH
escorregar da seiva que as rvores ultrajadas oboB
Dir-se-ia que vinha porque tinha de vir, para $0pfB|
nar todos os espectculos do Mundo, tanto a bjwH
como a fealdade, tanto as verdes relvas comer fliiH
silvestres incrustadas, sobre as quais erram borfeahjj
na luz fresca da manh, como as imundcies QHIII
moscas azuis cercam e devoram. Era a curosiU
mais obstinada do cu e da terra. Andava com</30lB
fleuma pelas montanhas de onde as grandes asas <fc&4||
tam voos e pelos abismos onde s vivem rpteis^MH
cosos. Uma frincha e ele laminava-se e penetrallB
lanando uma promessa de luz onde existia apMNl
trevas. Um buraco e esgueirava-se por ali adftBiBH
como um arroio sado do seu leito ou um gro de>&MJB
levado pelo vento, com a diferena apenas que '&Wj|i
num avano lento de espelelogo, enquanto os <0"ttJM|
se precipitavam como para um suicdio. Rompiftjipgj
toda a parte com uma audcia medida, mas sfeSlHj
rvel, e retirava-se com a mesma liberdade comrfp*J|
entrara, levando do Mundo uma viso to vasWjjJ||
contraditria, que nenhuma das mulheres que Q;Jf*f
partir conseguia imaginar totalmente a carga de &&$
e de alegrias, de desesperos e de esperanas, de vlH^
e de morte, que ele transportava quando desapaefcljl
na linha do horizonte, aureolado de melancolia ><wl
A EXPERINCIA
787
sangue- Ele iluminava agora, junto do tapete, os sapatos n0vos que Pilu to difici
lmente adquirira e ia-lhe subindo ,ndolentemente pelas pernas cruzadas e esqueci
das.
Clarinda voltara a guardar na manga do vestido o seu lencito de cores:
Fomos buscar o dinheiro e, ao voltarmos, a minha tia teimou: "Tu no deves deixar
o caso para mais tarde. Ele, agora, nunca mais quer saber de ti, podes crer. Iss
o de ir ter contigo a Lisboa uma grande histria. O que ele quer ver-te longe daqu
i, por causa dela e para evitar murmuraes. s ainda muito ingnua, no h dvida. Se deixa
passar o tempo, j no consegues nada. Tu pensas que ele ia dar-te logo cinco contos
se pensasse continuar a proteger-te ? Dava-te uns centos de mil-ris e, depois,
ia mandando mais. Mas o que ele quis foi arrumar a questo". Eu contei minha tia
que ele me pedira para lhe escrever se precisasse de alguma coisa, mas ela ps-se
a dizer: "Pois sim! Fia-te nisso! Se ele te ligasse alguma importncia, tinha-te
recomendado a algum; esta gente tem sempre pessoas conhecidas em toda a parte. O
que ele pensou foi que tu ficavas toda satisfeita ao ver cinco contos e que, as
sim, te despachava. Ora com cinco contos, no tempo do dinheiro forte, ainda se
podia governar uma vida. Hoje, o que se sabe! No digo lue, para uma pobre de ped
ir, beira da morte como eu, no seja ainda alguma coisa; mas para ti, a quem ele d
esgraou e que tens um filho na barriga e toda a vida tua frente... para que chega
isso?"
Clarinda via ainda o lume a arder ao longe, escondido naquela noite parada na se
rra; via as razes de urzes em fogo e a sua vida a arder no lume, em frente da car
atula iluminada da velha, que parecia falar em nome da experincia deixada por tod
os os desenganos d Mundo.
Eu pensava que a minha tia tinha razo; ao ftiesmo tempo, aquilo custava-me. s veze
s, julgava ^ue talvez no fosse tanto assim como ela dizia, mas, guando voltava a
ouvi-la, tornava a pensar que ela ^nha razo...
l
788 A EXPERINCIA i
Natalia corrigia a pintura da sua cara. {Qb|
* teira aberta sobre os joelhos, curvava-se para/|j3
lho, empoava novamente as faces e carregava^J
melho dos lbios. Cesria continuava a palavreia
ela, a rir-se, de quando em quando, muito VOJMJ
com aquele seu vestido de grandes ramagen^3
fundo negro, umas ramagens que lhe subiam p^jj
ombros, como num quimono de biombo japon<sfe.|S
raiva ia afogueando Lusa. Uma raiva contra Haa
e contra Cesria tambm, que, em vez de dizer .jSj
ser aquilo indecente, em vez de se mostrar fqiaSj
ela, estava para ali a falar-lhe e a sorrir-lhe, cgbi
modos como se se tratasse da coisa mais natupUJ
Fiz-lhe a vontade...dizia Clarinda. *>"
s autoridades. A minha tia queria, viva i&HM
pela estrada que passava em frente da casa deiJH
Ludovina. Garantia que era preciso comear 3d|
g-los e que seria bom se eles vissem ou soubgHB
que ns amos ali, pela estrada fora, para a JUBM
Mas eu no quis e, ento, metemos a um atalh(r)|0|
tinha uns sessenta anos, mas, assim suja e mal vfi$j|I
como andava e ainda por cima vendo mal, pafH
muito mais velha. Levava um bordo, como qa$B
ia pedir esmola e, no caminho, sempre que enconBB
algum conhecido, parava e comeava a repetir aqUjl
"Vamos ao administrador do concelho apresentarjsfiH
queixa contra o Armando, o afilhado da Dona ^N
vina, que um maroto. Imagine que desonrou.laM
pobre criancinha!" As pessoas olhavam-me e ficillj
cheias de curiosidade, a fazer perguntas e mais JJB
guntas e a minha tia despejava tudo. "Coitadi^l^|
diziam os outros. Mas eu percebia muito beni^ilMg
diziam aquilo por dizer, que s se importavam *fjjlt
o escndalo em que estava metido o Armando eiwKP
com a desgraa que me acontecera. Eu sentia-me "w"
vergonhada e pedi minha tia que no falasse ,mflP
no caso. Mas ela respondeu-me que era preciso <fHP
todo o mundo soubesse. E, assim, l fomos andancfaWP
Quando elas chegaram, um guarda-republicano &P
A EXPERINCIA
789
C011trava-se porta, com o revlver cintura, a seguir Os movimentos das pombas que
bicavam o cho sob Os eucaliptos onde, em dias de feira, se vendia e comprava gado
. Era nas traseiras da Cmara Municipal e o guarda-republicano, ao ver entrar a ve
lha, assim ludra, desmelenada e com um bordo de pobre, olhou-a de sobrecenho: "Pa
ra onde vai voc?" A velha no teve medo e ripostou no com o torn dos pobres quando p
edem, mas com a voz de quem est seguro dos seus direitos: "Vamos apresentar uma q
ueixa". O guarda no objectou mais nada e tornou a olhar, carrancudo, para as pomb
as, mas assim que as duas chegaram l dentro, a velha voltou-se e perguntou-lhe, s
empre com aquela voz sacudida: "Onde se apresentam as queixas?" Ele, ento, fez um
movimento com a cabea e elas compreenderam que era no princpio do corredor.
Havia ali umas grades de madeira, altura do umbigo da velha, como essas que, nas
igrejas, separam o altar-mor do corpo da nave; e, junto delas, duas mesas. Mas
s um homem estava l a escrevinhar. A velha encostou-se s grades e, pondo em frente
do homem o seu olhar quedo, meio branco, encortinado de cataratas, disse-lhe ao
que vinha; ele, porm, continuou a escrever sem lhe dar ateno alguma. S ao fim dum ro
r de tempo olhou as ltimas palavras que traara, corrigiu algumas delas, pousou a p
ena e levantou a cabea: "Que quer?" A velha comeou logo a contar o caso e parecia
que o homem estava desinteressado, que pensava noutra coisa, pois no olhava para
ela, s olhava para o cigarro que ardia entre os seus dedos, em cima da mesa.
Quando ouviu o nome do Armando e o da Dona Ludovina, ento ergueu a vista e ficou,
um momento, a olhar para ns. Depois, baixou outra vez a cabea, ftias eu sentia qu
e me observava pelo rabo do olho. Assim que a minha tia acabou, ele levantou-se,
pediu~flos que esperssemos e desapareceu por uma porta <lue havia ao fundo da sa
la. Voltou passado algum tempo. Atrs dele vinha outro homem, que, ao chegar a por
ta, no ps todo o corpo de fora; ps s a cara
A.
790
A EXPERINCIA
I
f e ficou a olhar-nos de longe. Esteve ali um inst||ll| depois, sumiu-se. Ento, o
homem que nos atQflBj comeou a escrever a queixa e, no fim, disse-n8jS|jS dia dest
es ho-de receber uma contra-f, paraj^E fazer declaraes". A minha tia agradeceu-lfa>
para casa... -k taj||
Pareceu a Clarinda que tambm Lusa davat^ttj ateno ao que ela dizia e desviava o seu ol
hairr23 o div. Era sempre o mesmo alvo. Natalia li & com as pernas cruzadas altura
dos artelhos e &<]jui dum dos sapatos voltada para o tecto; l estaflt^B tada com a
sua esperana, com a sua armadilharfiwB rinda aquilo apresentara-se, pouco antes, c
omofti(iH| indigno; agora, porm, surgia-lhe como uma desMB Que Natalia estragasse o
primeiro que viesse, era MB bem feito! Fosse quem fosse, os homens no rnejJB mais! "
Fosse quem fosse?" A pergunta, a balnlp um momento tona, afundou-se rapidamente <3$t
fpp ondas colricas que a memria rolava de longe psSJjg Imagina, passaram-se dias e
dias e a contiJJjJI no veio. Fomos novamente administrao dfijjl celho e l disseram-
que no tinham a.mdid&ijg, tempo, mas que o caso no estava esquecido. Fiii^ mais uma
semana espera. A minha tia contitfJJljg a falar daquilo com um e com outro e alg
uns aoAflPt lhavam-na a meter um advogado na questo,^fp| garantiam que, se
as coisas fossem bem conduzidal^jg Armando seria obrigado a casar-se comigo. Mas
parfgy que nada disso agradava minha tia ou que efeaJPjj'' acreditava que o cas
amento se fizesse. "Ns norteiSit dinheiro para comer, quanto mais para pagar ' WJP
advogado" dizia ela. Os outros, ento, explicav^ff -lhe que o advogado podia tira
r a sua parte do cHnfaffi*^1 que o Armando viesse a pagar. Que havia questesjiSP er
am tratadas assim. E se o Armando fosse condenwjr a casar-se, viria a pagar na me
sma. Parece que flg" convenceu mais a minha tia, mas ela s se dpcS"** quando nos
constou que a Dona Ludovina tinha dwr que, enquanto vivesse, mais depressa o mu
ndo $#*f baria do que o seu afilhado se casaria comigo... 4"
A EXPERINCIA
791
Ah, ela disse isso ? exclamou Lusa, com um olhar todo luzente de curiosidade. E
nto, era capaz daquilo ser verdade...
No sei se era; mas que ela no podia ouvir falar em mim, isso no podia.
E que fez o advogado ?
Clarinda voltara a encolher os ombros:
O primeiro a que fomos no fez nada. Ouviu-nos, mas parecia estar com pressa de qu
e acabssemos, como se j soubesse o que amos contar. E, antes mesmo de se falar
em dinheiro, disse-nos: "Tenho pena; um caso interessante, mas no posso ocupar-me
dele. Estou cheio de trabalho e no sei para onde hei-de voltar-me. Talvez um out
ro colega aceite". Havia quatro advogados na vila, mas um estava fora e s vinha d
ali a um ms. Fomos a outro, que nos disse quase a mesma coisa que o primeiro. Qua
ndo voltmos rua, a minha tia resolveu: "Vamos falar com o doutor Belarmino. Seria
melhor um mais velho; sempre metia maior respeito; mas, como no h outro, pacincia!
" Pedi-lhe que no fssemos a esse, que era amigo da Dona Ludovina. Eu vira-o l vrias
vezes e, um dia, ele at levara a mulher. "Isso que tem. ? respondeu-me a minha t
ia. Quando se trata de dinheiro, no h amigos!" Demos alguns passos, mas eu
sentia uma grande vergonha de ir contar aquilo ao doutor Belarmino, que me conhe
cera l em casa. "Parece que ele e o Armando at andaram a estudar juntos" ... disse
eu minha tia. Ao ouvir isto, ela zangou-se e ps-se a gritar: "Que queres que faa
? Queres que fiquemos de braos cruzados?" Eu teimei que o outro que estava bem, p
ois a Dona Ludovina falava mal dele e dizia que era da mesma fora do doutor
Macieira. A minha tia achou que eu tinha razo, mas no desejava perder mais tempo,
espera que ele voltasse. Ela havia parado na rua, a olhar para mim e a meter s d
edos no cabelo, como se no soubesse o que devia fazer; e, depois, decidiu. "J que
estamos aqui porta do doutor Belarmino, no custa nada experimentar. Anda da!"
^
792
EXPERIENCE
o mal das terras pequenas...COMI
* Lusa, com uma voz ligeiramente alheada e'<H
voltado de novo para Natalia. Ele sempre wH
Sim, recebeu, mas pareceu-me que no qnjra
nhecer-me. Quando subamos as escadas, eiSflj
pedido minha tia que falasse ela, porque.U3
tinha coragem, e ele, enquanto a ouvia, no fez niM
pergunta, como se tambm j soubesse tudo, ttel|
disse: "No posso dar a certeza de que teretefpl
para tratar disso. Mas you ver. Aparea a>jN
semana". Depois do que se passara com os 'fl
advogados, a minha tia ficou contente e pevgfiM
em que dia poderamos ir. Ele respondeu, olhandfl^B
o ar, como se estivesse a fazer clculos: "Bemr/JjjB
quinta... Quinta... Pode vir na tera-feira". @UI
samos, a minha tia continuava satisfeita. MajeaB
chegarmos ao fim da vila, j ia esmorecida e cotfiflH
a queixar-se: "Afinal, ele no se comprometeu jt"fl
nenhuma. Quem sabe se no adiou a respostaifj
no parecer que nos mandava logo embora, pti^UJ
amigo desse malandro ?" amos sempre a canainWH
a minha tia passava muito tempo calada. Eu &yj
que ela continuava a pensar naquilo. Quando j^sifcjM
ms para a serra, ela voltou a repisar no caso :'1wH
sei se reparaste que ele disse "aparea a" e, dJffM
"pode vir na tera-feira". Parece que no quer qPJjB
vs tambm. Talvez julgue que, no indo tu, st<Jfi|
carta de mim^com mais facilidade)). A minha tiaipdMMj
a suspirar: " pena que o outro esteja fora. Mascf^f
de todo em todo, for preciso, esperaremos Poir<^7l|
Assim que as coisas no podem ficar!" {7j?~St
No h direito! interrompeu Lusa, bntfe
mente. Clarinda compreendeu, pelo torn e antes meswjj'
de se voltar, que aquilo no era com ela. Os oUjoswJ'
Lusa no largavam o div. Dir-se-ia que, nessa tasflf
Natalia tinha menos confiana em si do que nos oi^J
dias. Novamente de carteira aberta, repintava, ra"P
uma vez, os lbios. Clarinda via-a, ora de perfil,1*3**
virando-se sobre a direita, a participar na conv&sef^
A EXPERINCIA
793
co
de Pilu e de Cesria, com o brao levantado e o
,bton" a irromper da ponta dos dedos.
No h direito repetiu Lusa. No te parece?
Clarinda no respondeu logo. "Fosse quem fosse?" Uma excepo saltava. Vinha no vendav
al que varria tudo; era um cisco da terra, desamparado como ela prpria. Clarinda
ouvia, de novo, os passos, escada acima, quando estivera doente e ele chegava, to
carinhoso que parecia dar-lhe, s com a sua presena, mais sade do que o mdico.
Realmente no est certo apoiou, sentindo a discordncia inicial renascer com o vigor
das rvores que foram podadas.
Estimulada por aquela adeso, Lusa levantou-se e avanou para Natalia, decidida a inc
rep-la. Mas, ao aproximar-se, acobardou-se e recolheu o assomo, todas as censuras
impetuosas que gostaria de proferir.
Ento tu, mesmo assim...?
A voz saiu-lhe ligeira, como se fosse mais de curiosidade e de ironia do que rep
reensiva; Natalia, porm, captou imediatamente a condenao que vinha em lastro e ergu
eu os olhos, surpresos e enfurecidos.
Que tens tu com isso ? Ora esta! No querem l ver! s tu que me sustentas, se eu no t
iver dinheiro ? s tu que me vais dar de comer? Que tal a lambisgia!
Lusa tentava argumentar, justificar-se. Era intil. Natalia, cada vez mais assanhad
a, no lho consentia:
Primeiro, no sei se estou doente. Mas se estiver ? Sim, se estiver ? Se estiver,
porque algum mo pegou. No fao seno a mesma coisa que me fizeram...
Clarinda acercara-se tambm. As outras mulheres no intervinham; s Cesria, de brao ergu
ido, como Para um adeus, abanava a mo, pedindo a Natalia que falasse mais baixo.
Lusa conseguiu dizer:
Mas que culpa tem...
E que culpa tenho eu ?
M
794
EXPERINCIA
De lbios num arreganho, Natalia deiii^
*estrondejar obscenidades. Depois, fixou Clarisd*
compreender que tambm ela a reprovava, bej^a
E tu, que vens c cheirar ? Sai j da "i
vista se no queres que te parta a porca da'"^(^i
Meneando a cabea com o ar paciente d^j
absolve crianas, Cesria deixou o div e pst^f
ciliadora, entre as trs: ,$jj
Ela, com certeza, no est doente dfJS6$
vendo-se para Lusa e Clarinda. No valepasqj
zangarem-se por uma coisa assim. V, faam spi
Era pedir a uma fogueira larga e alta, gfcli
lenha, que se apagasse com um sopro, como se^fg
uma vela. Natalia virou-se para o outro ladj||
uma recusa desdenhosa em todo o rosto. Ento "(Osjj
afastou dali a Clarinda e a Lusa, impelindo-aa^
a janela que dava sobre a travessa e constitua"4jS
gio da sala, uma penitenciria que se busca v 'HM
tariamente, quase instintivamente, para l se pulrg8
dores, penas sbitas, amuos imprevistos, longe dat
os tinham provocado. > ';W|
O sol fugia cedo dali. A travessa mergulhasj
obscuridade da sua estreitura e das paredes es*p
cidas pelo tempo. Em baixo, porta da carve"
um homem mal vestido encostava-se ombreir/lB
pava a boca s costas da mo e, em seguida, distMJ
o lbio inferior, a expelir os calores da aguaixWI
que bebera. . JM
Cesria ia dizendo, em voz surda, enquanto XlM
toda melindrada e como se no a ouvisse, olhava jpj
mente para as casas do outro lado: ~ " *3
Tu j tinhas obrigao de a conhecer. No fds3*j
provoc-la, pois sabes que ela arma um escndalo rpw
d c aquela palha... * n
Lusa teimava no seu silncio, o corpo contrftlK
peitoril da janela, os olhos contra as cortinas. *W
Do div chegava o dilogo de Natalia e Pilu, iE*S>
conversao despegada do acontecido, mas que 't#*
sandava, ao longe, a solidariedade entre as duas. Taffla
bem despeitada, Clarinda voltou-se para Cesria: f
A EXPERINCIA
795
Falas bem, mas eu no a provoquei e ela, sem nenhuma razo, insultou-me...
Tu no lhe disseste nada, isso verdade interrompeu Cesria mas estavas co
m um ar, que S5 vendo!
Clarinda fez um movimento de indiferena. Logo, porm, choramingou:
Ningum gosta aqui de mim... Olha a Pilu: nunca mais me quis falar. Que ma
l lhe fiz eu ? No fiz mal a ningum, mas, salvo tu e a Lusa, ningum gosta de mim...
Ests enganada. Ests muito enganada. Todas ns, no fundo, gostamos umas das ou
tras, porque temos a mesma sorte. Mas quando se mete o interesse, as coisas m
udam, claro. Se no fosse o interesse, tudo seria muito diferente...
Ento tu achas bem ela estar como est e, mesmo assim, querer receber homens ?
No, no acho disse Cesria, sempre com um torn de murmrio, para que as outr
as no a ouvissem. Mas tu pensas que ela tem algum prazer nisso ?
Sabe-se l! Parece que sim...
Perante aquele ressentimento teimoso, Cesria abriu um gesto de resignao. L em baixo,
o homem continuava encostado ombreira da carvoaria, a torcer o bigode, com um a
r de esquecido de si prprio. Em frente, as janelas encontravam-se fechadas, como
sempre. E, de longe, vinham os confusos rumores da cidade, na tarde que ia morre
ndo.
Tu disseste-me outro dia volveu Cesria que ainda tiveste me at os cinco ano
s. Pois ela nunca a teve. No que a me dela morresse como a tua; no. Foi outra coisa
. H mulheres que deitam ao mundo muitos filhos, mas no podem ser mes, mesmo que que
iram. No s parir... Elas, decerto, querem, mas no podem. Vivem como ces vadios, como
o lixo das ruas e no podem. A me de Natalia vivia assim...
Isso no tem nada que ver.
Tem. A Natalia criou-se no lixo... E precisa de
796
A EXPERINCIA

comer, de viver, como tu e como qualquer t^j


mesmo o disse... coq
Falava ainda Cesria quando a campainhn
Ouviram-se, depois, no corredor, os passos da 'Aqj
que pareciam, nessa tarde, no se sabia porquf>|
e pesados como os da Dona Fortunata. Clarind"i"|
de lado, para Natalia. Ela distendia as peraasvlp
rigia a posio do seu corpo no div. ' "4 ~4j
Vamos l disse Cesria. E como Lusi bil
voltasse: Ento ? sip
No se podia desobedecer campainha. Eti?"
se entrasse o professor: terminavam os folguedos,!f"j
vam-se os risos, adiavam-se as disputas; todos V401I
num instante, s carteiras. Como se chegasse o pi
os empregados deviam estar nos seus lugares e de4ij
modos, que no era para os ver maldispostoS 41
conversar pelos cantos que se lhes pagava. * ~m
As trs mulheres foram sentar-se. A mo gorddj
da Augusta puxou a maaneta da porta que lig**
corredor sala e elas, das suas cadeiras e d^ij
como duma vitrina, viram-no entrar. .M
Era um adolescente, bem lavado, bem polido^^p
ramente loiro, em luta com uma naturalidade qa<|
lhe escapava, perturbando-o, como esses que atfM
sam casas de jantar de hotis ou sales em festa t$o|
a sensao de que todos os outros os esto a tt"jl
Trazia, os braos dependurados quando surgira pQtfM
depois, para se libertar deles, que subitamente setM
navam a mais, enfiou as mos nos bolsos. -*|
Boa tarde disse, esforando-se por olhar HtM zontalmente, contra a tendncia q
ue os seus ohm tinham para a linha vertical. < stfl
Boa tarde disseram tambm as mulheres, e$
um sorriso levemente parado, em expectativa, cofflW
era hbito na circunstncia. Apenas Natalia, pefflflji
cruzadas, joelhos vela, um cigarro entre os dedc**^!
baforando lentamente, luzia o descaro de sempre. A<$l|
pareceu-lhe, ento, que um sorriso libertino, talhadwl
por aquele modelo, seria uma defesa oportuna: estarWf
assim mais vontade e evidenciaria que, no obstanteg
A EXPERINCIA
797
,sua juventude, o meio lhe era familiar. Mas logo que os seus lbios se entreabrir
am, o movimento esboado coalhou numa frieza.
Ao v-lo to moo e com aquela perturbao de rola recm-metida em gaiola, as mulheres compr
eendiam-no inteiramente e iam sentindo uma doura irnica, maternal, ganas de lhe di
zer que, por elas, no valia c. pena to desatada vergonha; nenhuma, contudo, se ave
nturava para no o vexar ainda mais.
Ele havia-se aproximado do div e hesitava entre sentar-se e conversar um pouco, c
omo lhe seria aprazvel se no fosse a timidez, ou escolher a presa e levantar, rapi
damente, voo dali.
Os seus olhos excluram logo Pilu e Cesria; depois, Natalia baixou, devagar, os del
a, uo sentir-se fixada. No haviam passado dois minutos desde que entrara, mas o t
empo, vivido assim, era, para ele, mais inverosmil do que nunca. As mos saram dos b
olsos e, arrependidas, meteram-se l de novo, que nem bicho que chegou boca da toc
a, farejou o horizonte e voltou para trs, prudentemente.
O olhar indeciso, desorientado, desviou-se para Lusa e Clarinda e, depois, mirou
Natalia mais uma vez. As mulheres aguardavam a palavra ou o gesto electivo com u
ma ansiedade que se contraa para alm do egosmo dos outros dias. Elas sabiam que o a
r ordinrio de Natalia, os seus movimentos impudicos, as promessas dissolutas dos
seus olhos, submetiam muitos homens; mas estranhavam a influncia que o adolescent
e, todo de modos delicados, todo ele um suave contraste, parecia sofrer tambm, me
smo estando ela, como agora, de plpebras descidas e corpo imvel. At ^ Pilu, armazen
ado o despeito inicial, a que a idade a habituara, sentia impulsos de lhe gritar
: "Essa no; fto sejas parvo!"
Naquele grande silncio, que punha marulhos nos uvidos, Natalia puxou um pouco a sa
ia para baixo e, orn a mo aberta, comeou a alisar o tecido sobre os joelhos, de lev
e, muito de leve, num movimento de lue ela prpria parecia inconsciente.
798
A EXPERINCIA
Voltaram os olhos do rapaz ao rosto de froj
seguida ao rosto dela; mas, desta vez, foi apes
roamento fugidio, um voo de abelha que vai c
de passagem, as corolas que precedem a jj
Ihida. ),-)jj
O adolescente inclinou-se para a esquerdas
murmrio saiu-lhe dos lbios, apressado e inintcij
no era, contudo, preciso mais, no era mesmo ,p
tanto. Lusa, tambm perturbada, levantou-se" eat
frente dele. aJ
z-1 ""
art
->;? i
Ao volver, as mulheres viram que Lusa .p
Natalia por um brao, insistia com ela, coimd
cara meio trombuda, meio desconfiada, e condiu
finalmente, para um recanto da sala. As mulhefa
ouviam o que Lusa dizia; viam apenas que, enqtt
falava, a sua mo fechada tentava abrir-se dentil
mo de Natalia, cerrada tambm. As mos ora ser
cavam, ora se distanciavam, uma a perseguir a s%
s vezes, a de Lusa, em rolo, batia de encontrd
Natalia, como se a chamasse ao bom senso; e ial
aqueles movimentos na parte inferior do corpo/ JB
das pernas, como se quisessem esconder-se. <ttl
Depois, soou, alto, a voz de Natalia, uma voz e
dida, que parecia ressumar, ao mesmo tempo, >1
e lgrimas: ^&
No quero J No quero, j te disse! Gu^sit
para ti. teu. Mesmo que ele tivesse escolhido a.irii
eu no iria, podes crer.
A EXPERINCIA 799
VI
7." TARDE
PRA s quartas-feiras, ao cair das onze em So Roque, ^ que o mdico do Governo Civil,
onde se matriculavam as mulheres, chegava e procedia inspeco. Para no perder seu t
empo, nem se esfalfar subindo a dezenas de casas, algumas to velhas e sujas como
o ofcio que nelas se exercia, ele mandava reunir em cinco ou seis apenas, nessas
que luziam maiores salas e ofereciam aos olhos menor misria, todas as profissiona
is do bairro.
Dona Fortunata, certo, nunca aceitara de boamente ter o mdico includo a sua entre
as preferidas, mas, resmungando muito embora, submetera-se s consequncias da eleio,
pois sempre receara mais a m vontade das autoridades neste mundo do que a ideia d
uns anos de purgatrio no outro. Todas as quartas-feiras, porm, ela se irritava: ne
sse dia era uma desordem na casa, um permanente vaivm de feira, sem contar os est
ragos que as mulheres de outras patroas s vezes produziam, como a jarra das flore
s de papel, que, com tantos movimentos e apertulhos, elas haviam feito cair, par
tindo-a e obrigando-a a comprar uma nova. E, desde ento, aquele cuidado hebdomadri
o, aqueles gritos Augusta, que tinha fraca memria, para retirar a jarra da mesa e
recolh-la em lugar seguro, quando chegava outra quarta-feira.
Agora, a sala regurgitava de vultos e de palavras. As mulheres das casas vizinha
s juntavam-se s da Dona Fortunata e enchiam tudo. Iam da adolescncia at o Outono: c
aritas e olhos tenros, que se tinham apossado precocemente de lbregas paisagens d
o Mundo e peles j estafadas que em vo buscavam uma reforma. Empilhavam-se no div, c
omprimiam-se ao p das janelas e em volta da mesa central; algumas, cujos
8oo
EXPERIENCE,
' * ,j
,t
clientes tinham ficado com elas at de manh, A
* tavam sobre as cadeiras, de cabea voltada paiaj
o pescoo ao lu, numa atitude de aves mortas. Qa
haviam-se levantado mal soara o despertador, vaj
pressa e corrido para ali, sem mesmo se pint3
suas faces estavam lvidas, a boca exausta e, enyi
dos olhos, exibiam esse arroxeado que a noite1"
ao dia, como uma dor, antes de o deixar nasceai,Js
O mdico era, quase sempre, pontual, masijijjj
gio de So Roque dera j onze e meia, dera j m"qj
e ele no aparecera. Na sala ouviam-se longos hot
e as prprias palavras saam traadas de cansao^jal
fadiga matinal que a mais bronca de todas as ljH
Lusa havia puxado Clarinda para o seu qun
onde as duas se quedaram a afogar o tempo, soziajjj
uma sentada aos ps da cama, a outra recosta$jj
almofadas, conversando enquanto esperavam tarM
o mdico. j"
A minha tia sentiu-se to desanimada, quEjjS
tou a pedir esmola de porta em porta, coisa qolM
fazia desde que eu fora viver com ela... , ;>/|Jj
Era uma conversa baixa, estirada e fria, como 3Jjm
dia de chuva. -^Pm
Aquela manh passou rente casa urn hofUJ
que ia para a serra, fazer carvo. A minha tia GQ|B|
cia-o e, como no se podia calar quando se lemhsH
do que acontecera, principiou logo a murmurar COM
as pessoas da vila. O homem, que tambm vinhadJlH
vestido e sujo, disse-lhe: "Voc tem razo, claroi,t|j
tem. Mas tome cuidado, porque a Dona Ludovinai'f(H
muito c na terra e pode arranjar algum sarilhojjgjH
deixe a voc em maus lenis. Ela conhece todasgi
pessoas importantes da vila e, se se empenha em sJvat!
o Armando, no vai recuar com medo de si. Agodf
tem a casa da vila fechada, mas, quando moravard^
at o bispo foi, um dia, almoar com ela. Foi daqui"
vez em que veio inaugurar as imagens novas queifip
ofereceu igreja. O cunhado, que juiz em Louig*
monte, pesa muito tambm, j foi deputado e ainf
mais rico do que ela". A minha tia no gostou &l
A EXPERINCIA
801

ouvir aquilo e respondeu-lhe logo: "A mim tanto se me d, como se me deu! Que pode
m eles fazer contra jnirn, que estou velha e no tenho aonde cair morta?" "Podem f
azer muito! disse o homem. Podem acusar a si ou sua sobrinha duma coisa que no
fizeram, mas que, para o caso, como se tivessem feito. Imagine que eles acusam a
sua sobrinha de ter roubado alguma coisa antes de sair l da casa... Ou que conse
guem provar que no foi o Armando que a desonrou". "Isso conseguem eles!" gritou
a minha tia. O homem ficou um momento calado e, depois, disse com o ar de quem t
inha pensado melhor: "Admira-me o que voc me conta da Dona Ludovina, pois toda a
gente diz que boa pessoa e que est sempre pronta a atender pedidos. No h dvida que t
em valido a muitos e at eu conheo alguns a quem emprestou dinheiro sem juros. Mas,
enfim, voc l sabe. Eu, por mim, sei que uma rvore grande d muito trabalho a deitar
abaixo. Mesmo depois de termos conseguido cort-la, somos obrigados a fugir, po
rque at quando ela cai pode matar-nos".
Da sala, que as mulheres perdidas entulhavam, filtrava-se para o quarto um vozea
r surdo, confuso, um rumorejo de impacincia, quente como o das chamas. A minha ti
a no se deu por convencida, mas, depois de o homem ir-se embora, eu senti que ela
ficou ainda mais desanimada. No s pelo que lhe ouvira, mas porque j comeavam a cons
tar muitas falsidades a meu respeito. Tudo por causa do tal rapaz que tinha esta
do tambm no Asilo e que, s vezes, parava ali, quando o patro dele o mandava levar a
lgum recado a casa do filho. Dizia-se que ele, quando l ia, ficava muito tempo a
falar comigo. verdade que, a princpio, ficava e no havia nisso nenhum mal. Mas, as
sim que comecei a gostar do outro, eu nem sequer lhe aparecia, pois no me sentia
vontade na sua frente... O rumor que vinha da sala aumentava cada vez mais. Alg
umas das mulheres saam ao corredor, abriam a porta, espreitavam as escadas e punh
am-se a suspirar contra aquele grande atraso: "Ora a minha vida!"
26 Vol. Ill
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EXPERINCIA
A EXPERINCIA
f O mdico chegou, por fim. Era um homem ^j
espadado, de culos e cara redonda, ainda novJI zia uns modos decididos e, na mo, o
estojo ondel dava o especulo. Atrs dele, marchava o ageifcj polcia, tambm alto, mas
seco de carnes e triga trajava de civil e, sob o brao, negrejava-lh)! pasta. > \
Aborrecidas, hem ? -ti Oh, senhor doutor, tanto tempo l t >4
No pude vir mais cedo. Pacincia... S Ele no amava o emprego, mal pago e desi|
dvel, uma provao para quem sonhava com as |
ds posies na medic1'na; mas era preciso viverp
quanto no se obtinha fama e clientela. Por outro-i
gostaria de se quedar, de vez em quando, em^I
dedos de conversa com uma ou outra que expunha
rosto a suavidade dum mundo imaginado e nos oil
uma vida de cepa profunda e estranha; coibia-se, pofll
temendo que essa fraqueza anulasse o respeito qfifi
sua funo devia impor a todas elas. /l
Fui eu que cheguei primeiro l disse uma til
Chegmos as duas ao mesmo tempo! prw tou outra. YJ
O mdico dirigia-se para o quarto de Pilu, que rt em toda a casa, o mais beneficiad
o de luz.
O polcia sentara-se mesa, no meio da sala. Abm
rj|
a pasta e tirara de l um carimbo, mas no tirara"
cabea o chapu, pois sempre lhe parecera que ofil
casa assim e mulheres daquelas no mereciam que til
homem se descobrisse. ^
Elas iam-se acercando, com um papel a sair ii
entre as folhas dos seus livretes. Junto da mesa piudl
vam-no e estendiam-no ao polcia, que lhe passava p"
cima os olhos certificadores. Era o recibo mensal OT
taxa sanitria, a garantia de que fora pago o bfflto
dinheiro da lei. f"
Outra... Outra..ia dizendo o agente.
Dali as mulheres partiam a enfileirar-se porta d&
quarto onde se encontrava o mdico e, sempre de
livrete na mo, aguardavam a sua vez. Saa uma-f
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[Og0 entrava outra. Para a maioria delas aquilo era rpido, quase to breve como o g
esto do clnico que, baixando a plpebra inferior do seu doente, busca na parede int
erna expresses de anemia ou conjuntivite. O espectculo penetrava, abrindo caminho
luz, o olhar experiente avanava tambm, o especulo retirava-se e a mulher erguia-se
, dando lugar a outra. Ao volver sala, aproximava-se novamente do polcia e recebi
a na caderneta, sobre a assinatura do mdico, a chancela da inspeco um carimbo verm
elho, que a cor ntima do ofcio que elas tm.
Natalia entrou no quarto a coxear levemente. E mal se estendeu, de travs, na cama
, as pernas dobradas em ngulo, conforme a praxe, e uma pequena nota de banco a ve
r-se sob a meia, seu cofre, como um rtulo colado na pele, disse:
Desde anteontem, sinto no sei o qu...
De busto inclinado para a frente, o mdico introduziu o especulo e logo o retirou,
convencido. Dir-se-ia, porm, que se arrependera, pois voltou a examinar mais dem
oradamente.
Tem de entrar no hospital afirmou, depois. Hoje mesmo! Quem sabe l quantos j c
ontagiou!
Mas, ontem, eu no recebi ningum...
Pois sim... Pois sim... mastigou o mdico sem olhar para ela. Isso deve andar a h,
pelo menos, quinze dias.
A expresso habitual de Natalia desaparecera. As suas recordaes dos hospitais tombav
am ali de repente: era um corrosivo que dissolvia o soalho onde ela acabava de f
incar os ps e apagava, em seguida, a luz dos dias. Virou-se para o mdico com uns o
lhos suplicantes. Mas ela prpria ignorava o qu e a quem devia suplicar.
Ele tirara do bolso esquerdo uma mancheia de papis, separara uns, que eram todos
iguais entre si e estavam dobrados pelo meio, e, sentando-se na cama, pusera-se
a escrever sobre a mesa-de-cabeceira, copiando nomes e datas do livrete de Natal
ia. Depois, levantou-se, dobrou, de novo, o impresso que havia preenchido e
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A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
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* foi ento, ao entregar-lho, que os seus olhos 'ttm traram os olhos dela. ofifl
Tens aqui a guia de internamento drapM Deves ir hoje mesmo; para teu bem... a^B
Era a primeira vez que ele a tratava por tu;flfi3 aquele torn de voz e ela ficou
a olh-lo, em silaJB antes de estender a rno para agarrar o papel. ;''-/$!
Foi logo a seguir ao almoo. Aps o bulci",|j
manh, a sala havia retomado a sua largueza, a-"
desimpedida duma parede a outra, o relevo das KM
rs vagas, espera de clientes, espera como i^ra
Cegaria, que se sentavam no div, ou como Lusal
Clarinda, que acabava de dizer: "Depois de andaratH
esmorecida, a minha tia..." "UM
A porta abriu-se e Natalia entrou com a pe^pd
maleta de carto que Cesria lhe emprestara. M^M
havia pintado. Parecia, assim, mais magra, o 'rija
mais transparente e muito delgados os lbios. -i'lfim
Sempre gostava de saber quem foi o tipo...51 a| Desde manh, Natalia repetia aquel
as palavral|
Se calhar, ele sabia tanto como tu disse CH ria, maneira de consolo. - 11
Natalia apertou a mo de cada uma das muUn^H e, em frente de Ciar ida, vacilou um
momento, ^Mfli diu-se e estendeu-lhe a mo tambm. Do div, enquftffl acariciava o lomb
o do gaio, Pilu dava-lhe conselfji Depois, ouviu-se a porta da escada fechar-se e
vaHj aquela rabanada de silncio, mas por instantes apensflp como se fosse o ar q
ue a prpiia porta deslocara.
Pilu e Cesria, que tinham visto muitas partiBfSc! assim e elas prprias haviam, Um
dia, partido igsfifr mente, prosseguiram na sua conversao, embora a^ui^ ficasse alg
um tempo a rondar o que diziam, or^f afastar-se, ora a achegar-se, teimoso que ne
m fragmeirt* de rolha flutuando no vinho que se bebe. W8
Para Clarinda e Lusa era outra coisa. A male*? de carto, j esbranquiada e a esfarela
r-se nas extWP
Cidades, de velha e usada, e o bater da porta, o seu rudo solitrio, a propagar-se
por toda a casa, semearam nelas um desassossego. Lusa queria mergulhar imediatame
nte noutra ideia, interessar-se fosse pelo que fosse, conquanto a fizesse esquec
er aquilo.
Anda, continua... pediu.
Clarinda no lhe obedeceu. Os seus olhos no se moveram. A maleta fora a ltima a desa
parecer na porta do corredor e ela olhava fixamente a porta, como se a maleta pe
rsistisse l.
Lusa insistia, com uma voz cada vez mais pressurosa :
Ento ? Ento ?
Ainda desta vez no obteve conformidade. S mais tarde Clarinda volveu:
A minha tia principiou a dizer que, se o advogado no tomasse conta do caso, ela a
proveitaria a Feira dos Onze para ir ver, de novo, as autoridades. E se continua
ssem a empatar, faria um escndalo diante de todo o povo que, nesse dia, estivesse
na feira... Ela garantia que no lhe importava nada que a metessem na cadeia ou m
esmo que a matassem. Mas se no lhe dessem ouvidos, por ser pobre, ento iramos apres
entar queixa em Braga ou no Porto, que l eram terras grandes e, com certeza, havi
a justia. Demais a mais, nas cidades dizia ela a Dona Ludovina no tmha a mesma f
ora que tinha ali... Ela dizia isto por toda a parte, a quem a queria ouvir. Mas,
dum dia para o outro, deixou de falar assim. Na segunda-feira, que era a vspera
de irmos ao advogado, j trazia uns modos diferentes, quando voltou de pedir esmol
a...
Natalia e a maleta de carto, aquela grande paz da sala, as cadeiras vazias, os cr
omos estticos, Pilu de mo parada sobre o gato, a ouvir Cesria, que falava calmament
e, enquanto ia desbastando, com um alicate, as peles em volta das unhas, tudo, t
udo se fundiu de sbito na cara da velha. Ela entrara, pousara o saco, remendado e
sujo como as suas vestes, e, Danando para o cntaro, mergulhara fundo o caneco p b
ebera, de p, sofregamente. Depois, soltara um
JjJ
8o6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
807
' "1
." grande suspiro. "Estou arrasada de tanto andul
esses caminhos. Tambm no me admira; j-'j$JB
faltando as foras. Muito rija tenho sido eif'X^SB
vida que levo". Olhara para a lareira e derajiH
acordo: "Acendeste o lume, fizeste bem. O ft&ajBj
ano no acaba mais". Vira-a a aproximar-se e\wfl3
tar-se ao seu lado, com a grossa saia de roda,rfi^B
e esfiapada, os ps descalos e gretados, que nnxadB
tinham abrigado em sapatos. Estendera as ms^n
o fogo e quedara-se um momento calada, dendl
abertos, como se estivesse espera que o calor jpfHJ
trasse at os ossos. "Sabes? dissera, depois.;r*^H
contrei, na vila, o doutor Belarmino. Ele viuimieffll
longe e veio do outro passeio ter comigo, para ir&|H
dez tostes. Foi uma boa esmolinha". Tornara a c!fl|
enquanto mexia nas razes que estavam no lut^9|
tendo uma sobre outra, para acabar com o fumtnH
que duma delas se elevava. "Ento ele no lhe 41
nada ?" A velha ouvira, mas parecia no querer teJU
tar o rosto; e continuara vergada sobre o fogo, *^B
em nova ordem as razes que ardiam. "Sim, ele deu-jMj
dez tostes e disse-me que passasse dali a bocadffi"M
seu escritrio, que precisava de me falar". Ela sflJH
decerto, aquela expectativa que a mirava nos ottlH
to inquieta como as labaredas na lareira e acreaaaH
tara: " claro que fui. Tive pena que no estiv("8M
l, mas que ia eu fazer ?" A sua voz parecia magoajlj
Virou-se para o lado do cntaro e pediu: "Podes ^|H
gar-me um pouco mais de gua ? No sei de onde^|B
vem esta sede. Deve ser do que ele me fez sofrer, P**H
de comida, s engoli uma cdea em todo o santo dJ|B|
Tremiam-lhe as mos quando pegara no caneco. -Pffil
volvera-lho "muito obrigada, minha filha" e n^jlH
um momento, pensativa. Dir-se-ia no ter pressa algtifliB
de prosseguir. Ora estendia um p, ora outro, Pfl|
aquec-los ao lume e continuava a suspirar. DePjjj
parecia falar sozinha: "com histrias assim, nem tufljf
pessoa sabe como h-de haver-se". O lume crepita*^
mas existia um silncio secreto que dominava o tSW
pitar do lume e criava todo aquele mal-estar. "$ ^
j,sse-me mais ou menos o mesmo que o homem do carvo: que no valiam a pena estas qu
estes, que, no fim de contas, ningum ganhava nada com elas, que havia exemplos s mos
-cheias por toda a parte. Pareciam coisas tecidas pelo demnio. O melhor, nestes c
asos, era chegar-se a um acordo e dar tudo por findo". Novamente a ansiedade dos
olhos fixos nela devia t-la incomodado, pois ajuntara: "No te aflijas; no v
i nenhum mal no que ele me disse. Ele disse apenas que era muito difcil ganharmos
a questo e eu estou a ver que . Disse, tambm, que, se tu recebesses alguma coisa d
e jeito, podias tratar do teu futuro e acabar de vez com estas complicaes". "Mas r
eceber de quem ?" "Ora de quem h-de ser! Eu no tomei nenhum compromisso, j se v, mas
fiquei de falar contigo... Temos tempo para pensar". A velha firmara a mo no seu
ombro, buscando um apoio, e levantara-se. O saco jazia, de boca fechada
e cado de lado, sobre a mesa enegrecida que havia ao fundo; estava meio vazio
, mas o seu tecido modelava os volumes que se encontravam dentro dele, uns volum
es agudos e irregulares como miniaturas de serras e de colinas. A velha abrira-o
, metera-lhe os dedos e tirara os nacos de po seco que lhe haviam dado e um pedac
ito de chourio, envolto num papel com manchas de gordura. "Este comprei-o. Imagin
a, trs mil-ris por isto!" Dividira tudo com ela e principiara a comer. Eram j rar
os os seus dentes e mastigava devagar, metendo muito os lbios para dentro e sempr
e a olhar para ela, sempre a olhar com aqueles olhos parados, meio-mortos, que m
ais adivinhavam do que viam. "Anda, minha filha, come! No te arrelies; ainda s mui
to nova e tens toda a vida Para viveres. E quem te diz que ainda no hs-de ser niui
to feliz? com certeza que hs-de ser, porque Deus Nosso Senhor justo e escreve dir
eito por linhas tortas. O que me d nojo so as calnias! Imagina que o doutor Belarm
ino disse-me que pensavam prender o tal rapaz que esteve no Asilo, pois parecia
que tinha sido ele quem te desonrou. Ests a ver que eu jurei lgo que era mentira,
que era uma pouca-vergonha.
8o8
EXPERINCIA
Mas, quando se pobre, quem acredita em ny
* o po numa das mos e o resto do chourio,j|
polegar e o ndice da outra, a velha tornaria J
sua beira e suspirara, mais uma vez, depois>vj
tar-se. me
No dia seguinte, logo de manhzinha, jfga
falar-lhe daquilo: "Estive a pensar nessa idez
ires para Lisboa e olha que no me parece mS
que ele nunca teve teno de ir l ver-te e, dfflw
que se tem passado, muito menos. Mas que t#oa
isso ? Se tiveres dinheiro para os primeiros temo"
te importa ? Pes fora o que trazes na barsjgj
adiante! Lisboa uma cidade grande, poder
podes at arranjar outro trabalho melhor; coram
ler, podes escolher tua vontade. Ficar aqiau
qu ? Isto so terras miserveis, no h traj^p
mesmo que se trabalhe at morrer, nunca se fQ
cabea". "Mas como you eu para Lisboa, se no^on
l ningum?" perguntai a, a sentir-se j prdO|
cidade e com aquela imensa confuso que se estjjj
sobre todos os seus sentidos. "Ora! Ora! O qw!
faltam so pessoas conhecidas. H muita genei,
que tem l parentes. Ainda esta manh peiBj
Lucrcia, uma prima da Severina da Frgua, at$|
tu podias procurar. E h outras pessoas. No, pfjg
no!" A sensao de desamparo crescia e, com eiq^
grande desejo de morrer. No tinha mais niS
seno a sua tia e tambm a sua tia a empurrava^
fora dali. "M
Clarnda voltou-se, de novo, para Lusa: '^j
Nem me lembro do que lhe respondi. Pareei^|
ela falava por mim e dizia: "Ests de acordo, j s^J
pois seria uma tolice no aceitar..." |
Um silncio breve, cheio de rugas, de fadigayjflf
trado como a cara da velha quando se calava, desjjjj
Lusa no afastava o seu olhar de Clarinda: a<1Hl
interrogao muda sobre as razes do amargurado ifffl
sito de tantas mulheres continuava a incitar-lhe a coifi
sidade. Ela pressentia uma definio, mas no s8||
conclu-la. Para alm do que as palavras revela^^
A EXPERINCIA
o\o para alm dum alto muro, tudo lhe parecia ecreto, fechado, misterioso. Via o cav
alo a remoer entrada do alpendre, como se houvesse estado em frente d^ eram, dep
ois, dois cavalos a trotar frente dum carro, na encosta de Sintra e ela prpria d
entro do carro. Ao menos, ela tivera uma cama.
A minha tia saiu pouco depois e s voltou noitinha, com um ar de mais cansada aind
a do que na vspera. Mal se sentou, queixou-se de que as esmolas andavam to raras,
que ela nem queria pensar em como ia ser o fim da sua vida. "No, minha filh
a, por estas terras no fiques disse-me. Eles no foram mos-largas, isso no. Teria
gostado que tu estivesses l, para ouvires como discuti at ltima. Mas o dou
tor Belarmino havia-me dito que mais valia eu ir sozinha. Tive de aceitar o q
ue me ofereceram, no tinha outro remdio. Mas acho que, do mal, o menos". A minha
tia falava-me com uma voz muito doce e...
Lusa semicerrara os olhos e entrevia Clarinda atra^s das pestanas, como se a visse
atrs duma dessas cortinas formadas por fios verticais de missanga. Ele tinha, ta
mbm, uma voz muito doce, naquele dia. To doce que, se o cocheiro chicoteava os cav
alos, ela crispava-se toda, pois dir-se-ia que a doura da voz dele tornava mais b
rutal o rudo do chicote. J se via o Castelo da Pena, por entre as rvores, quando el
e deixara de olhar para o brao do cocheiro, que se agitava n ar, e dissera: "Manda
s fava os teus patres e iremos ^iver juntos, enquanto no casamos. No sabes quanto t
e amo' Se os meus pais no quiserem, pacincia! Vais Ver que havemos de ser muito fe
lizes". Depois, tornara a beij-la. Ele parecia sincero. Ainda hoje lhe parecia lu
e ele era sincero nesse tempo.
S ento vi que a minha tia trazia o dinheiro lechado na mo. "Tens aqui trs contos di
sse-me.
7~ No uma riqueza, l isso no ; mas, enfim, tu ^ sozinha, s nova e tens sade; podes p
sar uma Jr^porada sem ralaes, at arranjares a tua vida.
niara eu estar na tua situao e no feita um caco, assirri velha como estou". A minha
tia tornou a sus-
Sio
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
8ll
1 4
^
,-" ft
>y
, pirar, como era seu costume, sempre que faq
coisas tristes, e ficou um momento de cabeia?
Depois, foi-me dizendo: "Tens ainda os outrci
contos. Dos trezentos e cinquenta escudos "of
deste no primeiro dia, no se fala, pois gasteiw
bem de ver, em manter-te e no chegaram. Bjpl
temos, ao todo, oito contos. Esse dinheiro M
claro, mas tu sabes como eu vivo aqui na ,m
No tenho um trapinho para vestir e, no pinem!
verno, tremo na enxerga como se tivesse roa
porque as mantas no chegam. E a fominhajl
tenho passado, nem te quero dizer!" A minha tira
ou a chorar. "Para viver assim, antes npt^i
nascido..." J,M
Nos ouvidos de Lusa, as palavras de Clariti
se apagavam, ora se confundiam com o rudo longa
do carro de cavalos, a subir, entre rvores; niSjt
entre rvores, a caminho da Pena. Ele levava dJ|
por detrs dos ombros dela e quando, nas volfjl
estrada, os seus corpos se juntavam mais, aperpl
muito e beijava-a novamente. ssM
...enxugou os olhos com as costas da nl^S
que tinha o dinheiro e disse-me: "Penso que, cc^y
contos, te podes governar vontade. Tens passi
bom par de meses. E fazias-me um grande jcffil
deixasses o outro conto para mim. Era uma esiHffl|
que me fazias, tanto mais que eu you ofereceEOT
os anos uma dzia de velas Nossa Senhora da PifpJ
para que te d boa sorte. No imaginas os desgofl
que tenho tido por tua causa, com todos esses nflM
dros a no quererem saber de ns. Nunca ma?>j|
daro esmola, est bem de ver. Tenho passa4fsl
noites a rezar por ti, no sei se tens dado porfi$|
A minha tia abriu a mo, entregou-me duas notasjjS
l trazia e ficou com uma. "Muito obrigada, aj||
filha, seja pela tua felicidade disse-me, com um^
que parecia chorar. Deus Nosso Senhor te Te<*m
pensar. Eu bem queria no precisar da tua ajuda. Jpjz
assim, j posso comprar uma manta e alguma jfiw
para vestir. Hei-de continuar a rezar muito pan"*
agora, vamo-nos deitar, que j tarde. Amanh, iremos perguntar Severina onde mora a
prima dela, a Lucrcia. s duas ou s trs da tarde, h uma camioneta que liga com o combo
io. Havemos de saber a hora certa. No dia seguinte, de manh, estars em Lisboa. A L
ucrcia vai tratar-te bem, no tenhas dvida; boa mulher, mas tu, em todo o caso, abre
os olhos, porque ela, em lhe cheirando a dinheiro, um bocado exploradora..." Qu
ando se levantou da lareira, a minha tia continuava com a nota de conto fechada
na mo. Mas, com o movimento que ela fez, eu vi as pontas de mais duas notas sarem
um pouco do bolso que h nas saias de roda das mulheres da aldeia...
Clarinda calara-se. Lusa tornara a ver o carro, naquele dia em que voltara, anos
depois, a Sintra, com Cesria. Estava, ento, parado. Os cavalos tinham as cabeas met
idas dentro de seiras e comiam pacificamente. O banco onde fora sentada com ele
encontrava-se vazio. Mas, agora, parecia-lhe vislumbrar, sobre o banco vazio, os
dedos de Clarinda a moverem-se, como quando Clarinda os movia sobre o regao, aco
mpanhando a conversao; estavam isolados, sem braos, maneira de peas de cermica sobre
um fundo de veludo, com a diferena apenas de que se moviam...
Pilu, que se levantara para ir ao quarto, volvia sala, de passos vagarosos, grav
es. Fosse por interveno de Cesria, fosse por seu prprio alvedrio, ao passar junto de
Clarinda e Lusa detivera-se, um momento, a falar ainda sobre Natalia. Ora estend
ia as suas palavras a uma, ora a outra. E, embora nessa primeira transigncia o to
rn no se mostrasse inteiramente desembaraado de traves quando a Clarinda se dirigia
, as duas compreenderam que Pilu aterrava o fosso e assinava as pazes.
Logo que ela voltou para o div, Lusa disse, como se no a tivesse ouvido:
Oxal eu no v sonhar, logo noite, com o que me estiveste a contar!
812
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
8l3
VII
54." TARDE 'Jj
>:>m
UK% M aps outro, os dias vo-se em branco eu"
anda cada vez mais enervada e triste. Maffll
vergonha da sua tristeza, sente-se humilhada pea*
amargura que lhe circula no prprio sangue.*, jQui
olha a sua cara, sempre pronta a contrair-saplnj
orgulho, no v aquela tristeza, como quem olhaau
rvore rugosa no v a seiva que lhe corre por tknt
Pilu adivinha que a sua partida est prximas^
Dona Fortunata s aguarda um pretexto. A>jft
maciez desses dias encontra-se no plo do gato^g
passa constantemente a mo sobre o bicho aninl|
no seu regao. uma carcia sem fim, que parece^
trada e automtica. Ela viu outras partirem qwt
comearam a envelhecer e os seus corpos a das^
menos proventos casa. Dona Fortunata na^
espao para albergar mulheres que s raros hjMJjfl
escolhem. H j meses que Pilu, aproveitando aslaffl
sadas, procura que a aceitem em outras casjy
mesmo preo. Mas, em toda a parte, lhe dizem ,-f
no h espao, depois de olharem para ela; em tsj|
parte lhe dizem que a lotao est completa. Nas oj|
onde as mulheres no dormem, onde vo apeng
tarde e noite, tantas casas, tantas! recusam-na taj
bem. verdade, ela sabe; h mulheres a mais, hcapl
sempre mulheres a mais; mas parece que com >e$
crise o seu nmero aumentou. A alma de Pilu "fl
cheia de imprecaes, que so como preces falhadji
j que entre certas imprecaes e certas preces ejgl
a mesma ligao fraternal que se d entre o diafl!
amor. H outras casas evidentemente, aquelas oO<j
se vendem os restos das mais categorizadas, os dej
pojos que s os pobres compram; mas Pilu luta ainw
lutar enquanto puder, para no baixar o degrau. BI*
sabe que, em seguida, no haver mais nada. Numa pele enrugada ningum atenta, pois en
tre as gelhas parece que se concentram todas as doenas e todos os negrumes das no
ites sem remisso. E at uma cama no hospital ser difcil conquista, porque tambm nos ho
spitais a lotao est sempre esgotada: Natalia fora, uma tarde, com a maleta de carto,
e voltara, noite, cairegada de desenganos, depois de saber que nem nesse dia, n
em nos prximos, havia lugar para ela; e prenderam-na depois, por se querer tratar
ao deus-dar. Pilu olha Clarinda e olha Natalia, lembra-se de quando tambm era nov
a e sente uma inveja funda e spera. Olha Lusa, recorda-se do tempo em que os homen
s preferiam a ela entre todas as outras e sente uma inveja mais dolorosa ainda.
Os seus dedos deixam as carcias lentas e comeam a passar sobre o plo do gato com r
apidez e nervosismo. O gato estranha, mexe-se no regao e levanta-se, sonolento, a
estirar-se, prestes a saltar e a ir-se embora. Ela faz um gesto para o reter e
do seu gesto, mesmo quando a mo j se recolheu, fica demorando no ar uma tristeza d
esampaiada.
Pilu agarra, finalmente, no jornal e abre aquela ponta por onde costuma evadir-s
e. O jornal arremessa para longe a ateno e traz de casas da cidade e de terras dis
tantes vidas desconhecidas; afaga a curiosidade de ptio que habita, dormente, a a
lma de cada qual, fazendo, ao mesmo tempo, sonhar com o inverosmil, que vai da vo
lpia tragdia e uma das marcas da existncia humana; e narra tambm as desgraas alheia
que confortam os que sofrem, levando-os a. sentirem-se menos singulares no Mundo
.
Pilu l em silncio, com um ligeiro movimento dos fbios; mas, depois, lembra-se de pa
lavras que ouvira e principia a ler em voz alta. Todos os olhares se volyem ora
para ela, ora para Clarinda. Pilu interrompe-se, tosse, baixa o jornal para toss
ir mais forte, torna a aproxim-lo dos olhos e continua:
"Desta vez, a pista deu resultado. Depois de longos esforos, a polcia conseguiu, e
nfim, deitar a mo ao
8i4
A EXPERINCIA
autor do crime. o cadastrado Janurio de Sousjl
'vivia ultimamente em Lisboa, Rua do CastanheMJ
lho, 320, 4.. O que, de comeo, dificultou as:iin3
gaes, foi o facto de tudo parecer indicar queiaM
minoso devia habitar a regio e no a capital, qttM
a mais de quatrocentos quilmetros de distnc||
Pilu ergue a vista: aja
... A voz de Clarinda sussurra apenas/!
treme-lhe quando se estende e recebe o jornal,3|
ouvido ler toda a notcia, mas quer l-la, ela prol
do princpio at o fim, como se precisasse dessa u^H
prova para acreditar. l3<H
As mulheres aguardam, impacientes. Lusa vaiaWJB
sando pergunta atrs de pergunta para no ijjl
romper. No lhe v o rosto, v apenas a largal^jH
impressa e os dedos do lado de fora, a segurarsnM
e a faz-la vibrar. So apenas duas dzias de hniB
mas ela tarda imenso. As mulheres continuam ateM
no mesmo silncio de curiosidade que as liga a tn[
elas. Finalmente, o jornal tomba, um curto rudsaJB
papel amarfanhado agride o ar. 'JJHB
Clarinda diz: 'B^B
Eu andava na rua quando ele parou na nto^^gi frente e me chamou pelo meu nome. A
princpio qftj| no o reconheci. J no era um rapazote; estava &JB um homem. Fiquei
com o corao aos saltos, T^jM gosto de o ver e porque pensava que ele tinha ragi
j para no me querer bem, pois eu nem sequer lhe aPjjS| recera das ltimas vezes que
perguntara por Hiini^*S| casa da Dona Ludovina. Parecia que ele tambm esta0"ji|
comovido por me haver encontrado. Tinha um sorf$*|j* doce, mas assim como se tre
messe, e repetiu o B*rt|| nome em voz baixa e muito meiga. Eu percebia *-? ele de
sejava dizer mais alguma coisa, mas no safof*^ por onde principiar. Comigo passav
a-se o mesmo, coiDQ se ele fosse muito importante e eu sentisse vergonw*
A EXPERINCIA
815
(je repente. Eu disse apenas: "H muito tempo que no te via". " verdade" respondeu
ele. E tornou a ficar calado. Umas vezes olhava para mim, outras baixava os olho
s. Estvamos parados no meio do passeio e as pessoas que iam andando roavam por ns.
Ento cheguei-me para o lado da parede, para ficarmos mais vontade. Cada vez senti
a maior desejo de falar com ele, mas parecia que a voz me faltava. Ele disse-me:
"Quando, h pouco, te vi, ali em baixo, duvidei que fosses tu. Depois fui-te seg
uindo pelo outro passeio at me convencer". No me perguntou o que me trazia por al
i, com a carteira sempre enfiada no brao. "Tenho muita alegria em ver-te!" torno
u a dizer. "Tambm eu" respondi. E era verdade. H muito tempo no tinha uma alegria
asdm. Conversmos um momento, mas sempre como se dissssemos coisas diferentes daque
las em que estvamos a pensar. Ele falava e ia olhando para a biqueira do sapato,
que se havia levantado um pouco e se movia dum lado para o outro. Depois, pergun
tou-me se eu queria tomar alguma coisa. Eu disse logo que sim, est claro. Por m so
rte, ele levou-me a uma das leitarias onde no nos deixam entrar. No lhe expliquei
a razo por que, ao chegarmos porta, lhe pedi para no irmos ali, mas julgo que ele
achou isso natural, pois no perguntou nada e foi andando comigo para outra leitar
ia. Quando nos sentmos, pareceu-me que ele estava mais senhor de si do que h pouco
. Eu tambm me sentia mais vontade. "Tens vivido sempre em Lisboa?" perguntei-lhe
. Ele disse-me que sim, que tinha vivido sempre em Lisboa desde que viera da te
rra. Depois, principimos a falar do Asilo e das freiras, mas sem nos referirmos a
o nosso namorico. A certa altura, creio que aquilo lhe desagradou, pois mudou de
conversa. "E tu disse-me gostas de Lisboa?" Eu encolhi os ombros. Ficmos ou
tra vez calados. Ele comeou, ento, a olhar para as minhas unhas envernizadas. Havi
a mais raparigas n.a leitaria, s havia mesmo raparigas como ns, porque as outras m
ulheres, j se sabe, no entravam ali. Ele passou a vista por elas e, depois, pergun
tou-me, com
At
8x6
EXPERINCIA
uns olhos cheios de amizade: "Andas na vidaagjl|
* verdade ?" Parecia que tinha pena, mas que, ao ttaSm
tempo, no estranhava aquilo. E como no 1M"
pondi, ps-se a bater de leve, com as pontas dos "iffjB
sobre a mesa. "Tu sabes ?" disse eu. Ele bautj|3
cabea e continuou a bater com a ponta dos^JjBBI
Pilu aprendia a fazer "tricot". Havia comeadeSil
blusa e o novelo da l verde-clara estava no seu J*ffJ
sobre a barriga do gato adormecido. A cor d^fpjH
confundia-se com a saia de Pilu e, se se olhavajliSjM
mente, s se via o novelo, aquela bola verde, qiptS
subia, ora descia, no regao, ao sabor da respg^Jj
do gato. Cesria sorria, maternalmente, enquanto/aSS
nava Pilu. Sorria dos seus dedos inexperiente^-dJB
pontos que eles faziam e desfariam, e daquele bfBB
decotado que, ao puxar o fio, se erguia de manmB
absurda, com esse ondular de serpente que tem oijajE
coo dos cisnes. "Nunca dispus de tempo para apreifflH
dizia Pilu. Em pequena, porque tinha derxoH
balhar; depois... depois, tu sabes, mesmo quando yjj
samos dias e dias sem fazer nada, parece que j$jil
temos tempo... Uma vez, ainda tentei, mas aborreci*""
logo. Isso bom para as outras mulheres". CesajB
tirou-lhe o pedao de "ricot", pegou nas agulhas?JBJ
ensinou-lhe a fazer o novo ponto. "Devias comear pfll
um "cache-col" e no por uma blusa, que tem (lue'|8|
lhe diga". "Ora! desdenhou Pilu, novamente. "irfflM|
no aprender, acabou-se!" Parecia que a sua indjMJ^
rena no se ligava com a sua idad^,, mas que ela ^ffiH
tava de se mostrar indiferente, como se fosse UBB
rapariga nova e estouvada. ' '41
Pilu voltou-se para Clarinda: ' piB
Desculpa ter-te interrompido. Ento como acMl
Os olhos de Clarinda ergueram-se e viram quer'4t" luz forte da janela que o ilumi
nava, o rosto de PWjgj" mantinha ainda, sob as rugas e as pinturas exager*Stf> da
s, uns restos da sua beleza na mocidade, como Jtffa", cinza dum bom cigarro se m
antm, por algum templo a marca impressa no papel que se queimou. lj<i
A EXPERINCIA
817
_ Ento ? insistiu Pilu.
_ Bem, ns passmos a ver-nos quase todos os dias- Ele falava comigo como se eu foss
e mulher s "ara s outros, como se ele fosse s meu amigo e jnais nada. Um dia, perg
untou-me como eu cara nisto. Contei-lhe, ento, o que me sucedera em casa da Lucrcu,
enquanto tive dinheiro, e como, depois, ela me Desprezou. No lhe disse de onde m
e tinha vindo o dinheiro, mas pareceu-me que ele adivinhara logo. Tambm no me refe
ri ao motivo por que eu tivera uma infeco e estivera tanto tempo doente. E no me re
feri porque ele parecia arrependido de ter puxado aquela conversa e ouvia-me com
um ar distrado, que eu via mesmo que era falso. Quando acabei, ele acendeu um ci
garro, ps-se a tirar muitas fumaas e depois asse: "A vida assim..." Eu andava, h mu
itos dias, cheia de curiosidade e perguntei-lhe, por meu lado, como se tinha dad
o ele em Lisboa e o que fazia.
Estava justamente a pensar nisso murmurou Lusa. De que vivia ele ?
Ora, de que vivia! Quando lhe perguntei aquilo, respondeu-me que estivera empreg
ado algum tempo e, agora, trabalhava por sua conta. certo que, alguns dias, ele
no aparecia e, depois, dizia que tinha andado a tratar dos seus negcios. Era ele q
uem pagava as despesas na leitaria e, uma vez, que eu quis pagar, no deixou. Mas
eu via-o sempre com o mesmo fato coado, sempre com o ar de quem no nadava em dinhe
iro. Havia nele no sei o qu que me dava pena. E claro, eu voltara a gostar dele. A
lgumas vezes pareCla-me que, depois do Asilo, no se tinha passado mais nada na mi
nha vida, que eu no havia gostado de mais ^ngum.
Lusa, de costas vergadas, retesava a meia da perna esquerda e a sua voz, como que
vinda do soalho, dir"Se-ia despropositada:
Compreendo...
Eu sabia que tambm ele gostava de mim. Basava ver como, s vezes, me fitava com u
ns olhos
^uito parados e tristes. Mas nunca ia alm daquilo.
8i8
EXPERINCIA
1 "1
Eu pensava que, se ele no me queria, erajj
eu tinha feito e pela vida que levava. E, endSj
desgostosa. Uma noite, reparei que, de quS
quando, dois homens passavam em frente' dif"
onde estvamos a conversar e olhavam deiWHJ
o nosso lado. A certa altura, ele viu tambwMJ
homens e pareceu-me que um deles lhe fazi^it3
com os olhos. Pouco depois, levantou-se e desjS
Era mais cedo do que de costume. Passei qifi
cinco dias sem lhe pr a vista em cima, mB
noite, ele tornou a aparecer. Trazia um fato^
camisa e gravata tambm novas. Estvamos nuriilj
e perguntou-me se, no dia seguinte, eu queriawI
passeio pelo campo... 'iaJ
O domingo distante volveu. As mulheres ti"
vindo Clarinda e o domingo distante ia-se abltf
novo, com o seu regato bordado de choupos e a"lM
verde, de largas comas e pasmados rochedos, <}u*l
giam da vegetao, numa expectativa de prJtH
mundo. O restolho, ardente de sol, havia fia<J8
trs; s a colina se via agora, mas a terra conflSlj
a cantar, como se algum houvesse passado feaj
deles, metendo a mo no saco e semeando poKfl
parte cigarras. Os dois iam ladeando o ribeiro, ,<&fl|
sombra dos choupos e ele com o brao nain|
dela; era assim que ela havia sonhado aos catoSg
era assim que havia sonhado. Quando, l eui.H|
perto da gua, se apresentou uma relva toda-Jow|
sua frescura, ele quisera ajud-la a descer,* JlVM
trazia sapatos de taces altos e, ento, ele pe$fij|
ao colo e, pela primeira vez, ela sentira aper^aei|
em volta do seu corpo os braos fortes dele. ^jj
cantava nas pedras, como as cigarras cantavan"Sjl
cima. As pedras impediam a marcha livre da^l
mas a gua ardilosa subia um pouco, movia-se^aMI
va-as e, sempre cantando, passava. Ela tirara os tpi
e ficara com os ps sobre a relva, a fruir nos pS5**|
aquela humidade fresca que a erva concentrar^
olhara para um dos choupos e, pensando nuTn<^5
castanheiro, perguntara: "Ainda te lembras do bJwi
A EXPERINCIA
819
que
te mandei quando estvamos no Asilo?" "Leni-
AL
bro-me perfeitamente" dissera ela, sem deixar de olhar a gua. Dissera aquilo e,
de repente, os seus vinte jjjos incompletos haviam-lhe parecido muito longos e m
uito congestionados. Mas a gua cantante recordara-Ihe que tambm aos humildes ribei
ros os temporais engrossam rapidamente, povoando-os com os destroos que as enxurr
adas transportam. "Parece-me que, naquele tempo, ramos felizes" tornara ele. Ao
ouvi-lo, ela tivera a sensao de que a sua vida anterior se encurtara instantaneame
nte, que o ribeiro se encolhera, que ela tinha de novo catorze anos, que tudo de
a em diante se apagara, que tudo o mais deixara de existir e que fora assim que
ela sonhara, que fora assim mesmo que sonhara. "Tambm agora me sinto feliz". Ele
no dissera nada. De sbito, porm, estendera o brao, inclinara-se e beijara-a longame
nte, como se quisesse englobar nessa hora todos os tempos perdidos no Tempo.
Mais tarde, confessou-me que escolhera aquele stio porque pensara que eu recebia
fregueses no meu quarto e no queria deitar-se na mesma cama... Eu jurei-lhe que no
e no mentia.
Clarinda fala e sobre as suas palavras a grande abbada volta a encher-se de astro
s. A terra quente continuava cheia de vibraes musicais. Asas invisveis, que haviam
substitudo as das cigarras, cantavam ainda no mistrio da noite estival; e de toda
a parte, do cho e do cu, do que se divisava e do que se pressentia apenas, dir-se-
ia exalar-se um repetido apelo Para secretas npcias da natureza. Eles regressavam
^vagar, brao no brao. Ela havia pensado, muitas vezes, que um dia assim j no seria
possvel na sua Vlda e, afinal, era possvel e, mesmo quando vinha a nite, cada palav
ra que ele pronunciava parecia acender uma nova estrela l no alto.
. Acreditou na jura que eu tinha feito e, nessa ttoite, dormiu no meu quarto. N
a segunda e na tera~*eira veio tambm e trouxe-me uma pequena pulseira fle ouro. Eu
no queria receb-la, mas ele garantiu-me
820
A EXPERINCIA
f que a havia comprado para mim. "Est bem; nijf
desejo que faas despesas por minha causa"*^-^
-lhe eu. "Ora que despesas! Se fosse rico, era-jM^
comprar o Mundo inteiro para ti" responderia
quarta-feira no veio. Na quinta tambm nStfl
manh, muito cedo, bateram porta e eu fnyp
ainda estremunhada. Dois homens entrramos
taram-me com o brao e comearam a melfil
tudo... Hjtj
Bem me parecia...interrompeu Lusa^] sbito mal-estar, como se ela prpria se encrt no
quarto, em frente dos dois homens. "psj
Um pegou nos meus brincos e disse: "Qilai deu isto ?" Depois pegou na pulseira e
tornou a tH "E isto ?" 11 < iM
O gato despertou no regao de Pilu e, qasOm
ergueu, todo a distender-se, o novelo de l verdedW
para o tapete. Foi nesse momento que o gaios-M
Espreguiou-se novamente e, depois, saltou. iRil
as outras mulheres julgaram que ele ia brincai 'dal
novelo, desmanch-lo, deixando um fio atravs d^H
como fazem os gatos novos assim que apanhafflrtS
novelo. Mas o gato, fatigado pela velhice, deu-llu4
nas uma sapatada e, quando Pilu ia intervir, $P
atravessava a sala, a caminho do corredor, indifB
bola de l verde. ! "lH
Um dia, recebi uma carta, onde me dizia Ji
tinha muitas saudades minhas e me pedia que jffl
visit-lo cadeia. Fui, est claro. Quando me *fj
ficou com os olhos cheios de lgrimas. Passei aifijj
todos os domingos. A princpio, no queria acSj
os cigarros e as outras coisas que eu lhe levav;^!
sabia porque era. Os outros presos parece que taiuHj
sabiam e punham-se a troar: "J que ele no qo|
d c. E, para a outra vez, no te esqueas de tffll
mais. Se puder ser dos americanos, dos caros, meli"
Ele, por fim, acostumou-se. Um dia, at me pediu-~<fl
lhe comprasse uma camisola... "Jjjj
Eram quatro da tarde. Pilu parecia mais farQWJ
rizada com as agulhas. A seu lado, Natalia recostara**
A EXPERINCIA
821
no div e cerrara os olhos, mas todas percebiam que e[a continuava atenta.
Esteve l uns seis meses. No dia em que saiu, tto veio logo ter comigo. S veio dois
dias depois. Eu sabia que ele no tinha vintm e perguntei-lhe onde dormia. Disse-me
que em casa duns amigos. "Por que no vieste para aqui?" tornei a perguntar-lhe.
No me respondeu e comeou a falar doutra coisa. Ento teimei: "V l se agora tens juzo".
"Pois claro que hei-de ter disse-me ele. Uns amigos ficaram de me arranjar tr
abalho". No acreditei naquilo e, de madrugada, quando o apanhei a dormir, meti-lh
e uma nota de cem escudos no bolso do casaco. Nos dias seguintes, ele no se refer
iu ao dinheiro, mas contou-me toda a sua vida em Lisboa. Ento eu soube que nunca
tinha estado empregado a valer. Nunca havia arranjado trabalho seguido. Se traba
lhava dois ou trs dias, era por acaso e isso mesmo s lhe acontecera raras vezes. D
isse-me que, como ningum o protegia, nem o recomendava, ningum queria saber dele e
que chegara a ter saudades da casa do patro que tivera na provncia, porque l, ao m
enos, comia, enquanto em Lisboa andava cheio de fome. Mais tarde, conhecera outr
os que tinham a mesma vida. Fora, ento, que o prenderam a primeira vez. Ao ouvir
aquilo, eu no estava tranquila e perguntei-lhe o que ia, agora, fazer. Respondeu-
me que tinha muitas esperanas e que eu ficasse sossegada. Mas eu no fiquei sossega
da, qual o qu! Quando ele se punha a falar, falava mal de tudo e de todos, como s
e j no acreditasse em coisa alguma e ningum fosse bom neste Mundo. Era isso que me
afligia, pois se ele pensava assim de toda a gente, como que, ao mesmo tempo, ac
reditava que lhe iam an"anjar emprego? De quando em quando, eu continuava a mete
r-lhe dinheiro na algibeira. Uma vez, ele deu-se por achado e disse-me: "Custa-m
e que estejas a incomodar-te por minha causa. Nem tu imaginas Quanto me custa! M
as, um dia, hei-de pagar-te tudo. A maior alegria que eu posso ter ser no dia em
que "-e tire dessa vida que levas".
822
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
823
Dona Fortunata entrara pela mesma porta pej
o gato sara pouco antes e atravessara a salatqj
seu andar pesado e lento de patroa. Ao renta|)|
os olhos desceram-lhe, um momento, sobre asa*
que faziam "tricot" e logo se ergueram, carregado!
sombra, em direco outra porta, onde, enfiai
desapareceu. **>ivs
Quando tive aquela nova doena, ele (jpan
quase todo o tempo a meu lado. Dava-me n"i
mdios, cuidava de mim, fazia tudo quanto ,ei"
cisava. Eu tinha cada vez menos dinheiro, ujlji
Antes de haver adoecido, ganhava pouco, porqup h<
raparigas de mais nas ruas, muito mais do quea
gueses. - ai
Clarinda voltou a ver os medicamentos e orvc
com uma colher sobre o "napperon" que havia naa
-de-cabeceira; os postais e a imagem do Sagrado Con
de Jesus, muito vermelho, na parede; ao canto, onto
trio e o jarro e, em frente da cama, a janela do <Jw
andar, de onde, por cima dos telhados, se enxeg
o Tejo, marchando vagarosamente para a morefi
mar que o esperava ali prximo. QI
Ele queria que o mdico viesse mais vezes
que vinha e, um dia, disse-me: "Se por causU
dinheiro, no te rales, que eu arranjo-o". "Comi
arranjas tu ?" perguntei. "Bem respondeu-np
os meus amigos j me emprestaram algum e estou"<8
que podem emprestar-me mais. So eles que vo aEB
jar-me o emprego e sabem que, depois, eu pago. ON
preciso tu ficares boa". Eu no acreditava nada a
tais amigos e dava-lhe sempre conselhos. Ele rep"
que eu ficasse descansada e que em vez de estar "9
aquilo, pensasse no nosso futuro, pois agora era o>
coisa sria. Quando me curei, disse-me: "AmanM
depois no venho c, mas no te aflijas, que na*
por nada de mau". Perguntei-lhe porque, se no^l
nada de mau, ele no dizia o que era e ele respH
deu-me: "Depois vers"; e, ao dizer aquilo, sorria, as*
como ns sorrimos para as crianas quando vari
fazer-lhes uma surpresa... -^
aia
Dona Fortunata voltava do outro lado da casa e, em frente de Pilu, no se conteve
e berrou:
So horas dos clientes comearem a chegar. Se quer fazer "tricot" v para o seu quarto
. Isto, aqui, no uma casa de famlia! At os homens perdiam o entusiasmo se chegassem
e vissem as mulheres a fazer "tricot". Ouviu?
Dona Fortunata atravessou a sala com um andar nervoso. As cinco mulheres viram-n
a sair e todas ficaram com vontade de lhe bater.
VIII
78." TARDE
J todas sabiam que Pilu descia porque tinha de descer, j todas o sabiam; um dia, e
las desceriam tambm, porque fora sempre assim e no se conhecia uma s pessoa, um s bi
cho, um s vegetal, que conservasse sempre a juventude. Unicamente o sol que visit
ava a sala parecia no envelhecer. Unicamente o sol subia nas paredes enquanto ia
descendo para a linha do horizonte e descia pelos troncos das rvores enquanto ia
subindo na abbada celeste, orgulhoso de caminhar ao contrrio dos homens.
Dona Fortunata tinha os braos arqueados e as mos sobre a cintura, mas as suas pala
vras soavam to violentamente como se as mos estivessem a gesticular e a emprestar-
lhes maior fora:
Ainda por cima respondona! Saia! Saia j de minha casa! Muita pacincia tenho tido e
u! Outras, no meu lugar, j a haviam posto no olho da rua!
Era tambm assim que ela despedia as criadas. As outras mulheres estranharam o siln
cio de Pilu e olharam-na discretamente, sempre espera de a ouvir reagir, como de
costume. Mas, pela primeira vez, ela
824
EXPERINCIA
1 4
* tomou expresso humilde, baixou lentamente osdl
e no disse nada. O gato despertou com aaJH
dedos que tremiam sobre o seu ventre. Dona Fanl
nata parecia aguardar tambm que Pilu a insutSB
Sempre de mos nas ilhargas, demorou-se em ffj
dela alguns segundos e, depois, como o silncio nfMJ
seguisse, gritou ainda: "Hoje mesmo!" E partiu. ctMB
As outras mulheres viram que os olhos de KSH
humedeciam, que a sua cabea se vergava e comSjM
a chorar forte. ''31
Elas queriam consol-la e no sabiam como fazH
O sol subia devagar e indiferente para a jarra tl
tinha as flores de papel. * W
Deixa l disse Lusa. Eu you falar com aB Lusa saiu da sala e, ento, as outras mulhe
res,*B|
sem receio que Dona Fortunata as ouvisse, princfgH ram a censur-la: *j|
Ela teve a sorte de tornar-se patroa, mas/^H no fosse isso, eu queria ver! Teria
de andar, naqdH idade, a pedir esmola por a, como as outras. DedB que teve sorte,
esqueceu-se de que foi como ns..,'< **
No chores, a Lusa h-de convenc-la... ' mflB L dentro, Dona Fortunata dizia: 41 No, n
e no! No me peas isso. Goste^H
te fazer a vontade, bem o sabes, mas isso no IJJU peas tu. Estou farta de a a
turar! Demais a niawH era preciso que eu fosse rica para deixar estar aapH uma m
ulher assim. Sabes quantos clientes ela tevejlgB ltimos dois meses ? Pois eu te di
go: no ms passad^B cinco; no outro, oito, mas isso mesmo foi por catujU daquela e
squadra que esteve em Lisboa. Se ela ntlf tem dinheiro, a culpa no minha. Que o
guarda^K enquanto o ganhava! 13~M
Na sala, as mulheres calaram-se quando ouvira(r)^ os passos que voltavam. Pilu e
rgueu os olhos e souWjjiJo que Lusa tinha para lhe dizer, antes mesmo diP* Lusa
falar. jJJ
rj* il*
TODOS ELES
6. DIA
/NEGUNDA-FEIRA um dia despovoado depois do movimento que as missas provocam ao d
omingo. Raramente passa algum na praa. Na cela, segunda-feira parece um dia de des
canso, imensamente longo e bocejante. A prpria arvola viva, quando pra os movimentos
da sua cauda e fica muito tempo quieta sobre o telhado da igreja, dir-se- tambm c
ontagiada pelo tdio das horas que no terminam mais.
De repente, porm, o vazio do dia enche-se e todos os presos ficam atentos. Era co
mo se Janurio houvesse comeado a puxar o corpo de segunda-feira, cinzento e chato,
de baixo do grande peso morto de domingo. At o Malafaia, que amava a mudez e a q
uietao, se acercara. E os seus olhos ora vinham, ra se afastavam, como se seguissem
atrs das pala^ias, a v-las transformarem-se em pessoas e em actos.
Eu conhecia todos os cantos da casa e sabia nde ele guardava as jias da falecida m
ulher e tambm onde metia o dinheiro; por esse lado no havia enipeno. Como eu tinha
sado h muito c da terra,
J
826
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
1 4
* pensei que ningum se ia lembrar de mim. Pensei
bem que no devia dizer nada aos outros, pois, q\
so muitos, descobre-se tudo com mais facilidad
noite em que resolvi definitivamente, havia luar. '
as noites seguintes, eu chegava janela do qua
Clarinda e olhava para o cu. Em Lisboa pass
anos sem vermos a Lua, mas dali, que era um i
alto, eu via-a perfeitamente. Algumas noites, ela,<
em cheio no Tejo e, ento, parecia que o rio ff
muito devagar, e era todo de oiro. s vezes, eu S
ansioso de que voltassem as noites escuras, mas oi
vezes no tinha pressa de que elas voltassem, pois
lembrar-me do negrume da estrada que passava
frente da casa do doutor Carrazedas, via-me a ai
por l e a saltar o muro, naquelas trevas e naq
silncio, e sentia medo...
"O Sbio" deixou cair o seu riso mais grosso...^
A fabricar ovos moles de Aveiro que tu e vs bem...
Eu tinha medo, que quer ? Mas, depois, sava na pistola que levava e isso dav
a-me coUg O pior era o dinheiro. Se quisesse contar aos cora nheiros a minha idei
a, eles emprestavam-me certastM o suficiente para o comboio. Mas como no qpM di
zer nada, vi-me em apuros, tanto mais que ' devia a quase todos eles. Tive de empe
nhar as OT coisas e ainda de pedir dez escudos a este e vinte <jQ para completar.
Eu queria poder voltar imediatafnj para Lisboa, tivesse ou no tivesse sorte... '
A emoo secara a garganta do Palhetas e ele^ brou-se das mas que a mulher lhe trouxer
a na''81 pra. Abriu o saco e iniciou uma segunda ddiva $ outros. Fazia aquilo em s
ilncio e muito pachorrefl mente, para no interromper Janurio. 'J!
Parti de Lisboa quando o luar acabou. Mas i. vim direito estao daqui, no, no vim, pa
ra evj que me reconhecessem. Desembarquei em Calhoucei fiz a p, de noite, o resto
do caminho. Ao amanheb escondi-me na serra e passei ali o dia inteiro. D(r) eu v
ia, ao longe, a casa do doutor Carrazedas, bp
827
(ja estrada. Quando pensava no que tinha sofrido naquela casa, desapareciam-me o
s remorsos que, s vezes, sentia, antes mesmo de fazer o que ia fazer... Eram umas
mas grandes e bonitas as que Palhetas distribura, todas coloridas, como essas que
as vendedeiras expem flor dos cestos, para atrair os compradores. Malafaia pegou,
sem pressa, na que lhe fora dada e meteu-a no bolso. "O Sbio" ferrou logo os den
tes na sua, tirou quase metade e desatou a comer com fora.
Calculei bem o tempo e s por volta das onze da noite comecei a descer. C, a vila,
ainda se encontrava toda iluminada, mas, l para as bandas onde vivia o doutor Car
razedas, j s havia duas luzes acesas e eu sabia que, antes da meia-noite, tudo fic
aria no escuro. Eu vinha devagar, pois se me custava estar mais tempo parado na
serra, no queria tambm entrar na casa antes das trs da madrugada. Quanto mais desc
ia para o vale, melhor ouvia as horas que dava aqui o relgio da igreja. E, cada
vez, as horas me faziam bater com mais fora o corao...
Janurio olhou para a boca cheia do "Sbio" e uma lembrana veio-lhe da noite:
Naquele momento, o que eu gostaria no era de ir roubar, mas sim comer, pois dura
nte o dia s engolira uma bucha que trouxera de Lisboa...
Calou-se um instante e ajuntou:
Finalmente, cheguei estrada...
Palhetas mastigava lentamente, como se no atentasse no que fazia ou quisesse derr
eter a ma na boca, Para suavizar a sua garganta seca, onde dir-se-ia que a estrada
se enfiava.
Antigamente ela era branca e enchia de p o ar quando passavam carros de cavalos o
u os primeiros automveis, que os homens, as mulheres e as crianas vinham ver s port
as, muito admirados daquelas novas Mquinas que corriam por si prprias. Nuvens de P
oeira rolavam, sopradas, tapando a viso e apagando, Pr momentos, quem ia a p; mas a
estrada era branca e> noite, luzia como uma promessa de bom destino.
828
A EXPERINCIA
Agora, a estrada encontra-se revestida de alcat j no h desvairados rolos de poeira q
uando o&( mveis transitam; mas, noite, tudo escuro, a^jy funde-se com a noite e t
udo misterioso e escuS a grande casa continua a branquejar no negrume^! mecido;
a sua brancura, porm, amedronta ddtS amedronta mais do que a prpria escuridade, a sf
l que avana e comea a agir prudentemente. > ,ffi
Depois daquilo, a porta cedeu. i j
No compreendo disse "O Sbio", com rafe i de surpresa. Se tinhas a tal janela de
guilh por que te empenhaste com a porta ? KI
Foi porque a escada das vindimas, quef cot
mava arrecadar no alpendre, no estava l nessatfl
Mas isso no me fez mossa, porque eu tinha-me$f
venido e a ferramenta que trazia, no era m. Dean
a mais, foi um rudo de nada. claro que, antes
entrar, estive muito tempo escuta e, logo que <o$
l dentro, parei de novo. Convenci-me de quests
estava a dormir. Havia mais silncio do que num> p8
Qualquer outro, no meu lugar, teria feito a mH
coisa... "VW
Hum... duvidou "O Sbio". Parece-meJffl tens mais vaidade do que arte... -^l
Se eu lhe digo que foi um rudo de nada! Al "O Sbio" no contestou, mas manteve o
seu dnl
dvida: 'f
E depois ? *rj
Depois, acendi a lmpada de algibeira. A lm
meira coisa de jeito que vi foi a jarra que estava^
cima do piano. Mas pensei que me ocuparia as m$|
e que at podia partir-se e desisti. O quarto onde m
guardava as jias ficava a meio do corredor. O 'EM
desejo era levar a lmpada numa das mos e na o^H
a pistola, mas as pontas soltas do leno, com qu"|
tinha coberto a caia, roavam-me o queixo e faziam*!
nervos. Tive, ento, de segur-las com a mo esquepaf
para ir mais vontade... ^np
Janurio interrompeu-se ao ver o sorriso piedfiwl das barbas do "Sbio".
A EXPERINCIA
829
Por que que voc est a rir ? No digo mais nada, acabou-se! Mas se voc sabe fazer tudo
melhor do qUe os outros, por que se deixou apanhar e est aqui ?
"O Sbio" continuava a sorrir. Palhetas olhou para um e para outro e aquela atitud
e deles pareceu-lhe absurda, justamente no momento em que ele estava mais intere
ssado.
Ande, diga o resto pediu. Diga o resto.
Janurio continuou calado. "O Sbio" tinha a certeza de que sem a sua interveno ele no
voltaria a falar.
Ainda ests muito peludo! disse. Amuas como uma criana. No h dvida, o que te falta u
m bibero... Conta l, deixa-te de tolices!
Se voc torna a fazer pouco de mim, no digo mais nada...
Est bem... Est bem... Ento tu foste pelo corredor adiante...
Embezerrado, Janurio no atendeu logo. Palhetas olhava-o, tambm contrafeito. Para a
sua dbil imaginao a cena interrompera-se logo que viera aquele silncio. Ele no via ma
is alm. Era como se se houvesse erguido um muro e a cena se fixasse no muro, perd
endo, pouco a pouco, as suas formas e desbotando como um velho fresco. "O Sbio",
ao contrrio, visionava Janurio a hesitar no princpio do corredor, com um fio de luz
volante a sair-lhe da mo, as pontas cmicas do leno sobre o queixo e, em todos os g
estos, uma grande falta de habilidade. E sentia novamente desejo de rir.
Janurio recomeou:
As jias costumavam estar no fundo do armado, numa caixa de metal, pois, uma vez
, eu tinha visto o doutor Carrazedas ir busc-las ali, para mostr-las ao doutor Ma
cieira. O armrio andava sempre fechado, mas eu contava com a ferramenta. Fique
i contente ao ver que no quarto tudo estava como antes e comecei, ento, o trabalh
o. Pode estar certo de que trabalhava com muita ateno. Mais cuidado ningum teria. M
as, de repente, pareceu-me ouvir um rudo de
83o
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
831
* passos. claro, apaguei logo a lmpada e tirltJB
tola do bolso. Que que voc faria no meu>4j|H
A luz do corredor acendera-se. Eram uns |3M
firmes, pesados, de quem no tem receio. PatSfl
encher de segurana e, ao mesmo tempo, de jaquB
todo o silncio da casa. Ele conhecia muito benj tf^l
passos. De quando em quando, sentia que eles sayH
nham e ouvia dar a volta aos comutadores. '' ~^
Percebi logo que o doutor Carrazedas iaaljH
nando os quartos, para ver se estava l alguminHaM
virei-me para a janela. Eu sabia que o andar enfiM
e que podia partir as pernas se saltasse, mas, 'nlmB
assim, tinha resolvido saltar. Num instante, aJbmH
portadas; o diabo foi a janela de guilhotina estar! |tiH
Eu fazia fora para erguer a parte de baixo; ela-sjjB
um pouco dum lado, mas no subia do outr<fc"M
batalhava com aquilo, sempre a ouvir os passos, qttflfil
a luz do quarto se acendeu. S tive tempo de voltlB
Ao ver o doutor Carrazedas na minha frente} '"pH
num instante, todas as foras... ''"^H
Ele no conhecia s os passos; conhecia taajijB
aquela espingarda, aquela espingarda bonita, deofllM
canos brunidos e bela correia castanha, com a 3B
o doutor Carrazedas se distraa por montes ehSM
em dias santos ou feriados. Muitas vezes, ele mffllij
ao fazer a limpeza da casa, a tirara do seu lujpriH
a apontara, num simulacro, para os serzinos quo ag|
tavam nas videiras, ou para os frutos da laranj*H|
que se patenteava ao fundo do quintal; e teria |M
feliz se pudesse experimentar, duma forma realistfljBj
sua pontaria. Mas esse tempo j passara h muitH|
agora, era para ele prprio que a espingarda se apJM
tava. Ele via aqueles dois canos que iam subindo jj
a altura dos olhos do doutor Carrazedas e umviali
olhos a fechar-se por detrs dos canos; uns olhos f**5
sem medo, como se fossem atirar a um troncoCT^
rvore. Ento, as suas foras esvadas tinham voMWr
^fgA
subitamente e dispararam a pistola contra aqueles Ww* cos que seguravam os canos
, contra aqueles ol"w contra tudo. 'ul3^
No sei bem o que se passou. Eu tinha perdido
cabea. Ele ainda me deu um tiro, mas parece que de lado, assim como se j no pudesse
com a espingarda; depois a espingarda caiu e ele afastou-se do meio da porta, p
ara se encostar parede. Desatei a correr, passei mesmo junto dele e continuei a
correr
6j quando cheguei estrada ainda ouvi os gritos que dava a senhora Germana, uns g
ritos to grandes que eu julguei que o havia matado.
Janurio interrompeu-se e todos os outros ficaram calados: o Palhetas olhava para
o cho e o Malafaia fechara os olhos com indolncia.
S em Lisboa soube, por um jornal, que ele no tinha morrido...
"O Sbio" levantou-se e disse:
o negcio mais arriscado que h. Tanto trabalho, tantos perigos, agora vais apanha
r uns bons pares de anos de cadeia, ol se vais!, e, afinal, voltaste para Lisboa
sem cheta. Mesmo com sorte, um negcio pouco rendoso. No me consta que algum tivess
e feito fortuna com ele...
Os olhos do "Sbio" pousaram sobre o saco das mas e, depois, rolaram para a cara do
Palhetas.
Pode ser mais uma ?
Palhetas abriu o saco e deu-lhe outra ma.
II
21.0 DIA
\_jIR-SE-IA que, tendo o fio terminado, ela se esquecera de pousar o trabalho, s
e esquecera das suas mos e do que as suas mos estavam a fazer, e come?ara a andar
na cela com o pedao de l entretecida, aRuele "tricot" que se via entre as agulhas,
to verme"to e to achegado ao peito como entre as pernas dos Camares os germes da s
ua descendncia.
M
832
A EXPERINCIA
i
j Pela primeira vez, Janurio divisava-lh|i|^
rosto, quando ela cortava o raio de sol horizcafiM
entrara na cela. As grades ora lhe enqnadrjjflB
cabea, num caixilho de ferro, ora lhe divdifflB
corpo em pedaos, maneira das esttuas fcfeMfl
vrios blocos. 'l^fil
Era uma cara de linhas speras, mas suava^fijj
no se sabia qu, alguma coisa que descia dos3|
uma amargura ou um retraimento. Pareceu wteB rio mais nova do que a julgara at ali
, ao v-IarJS(H com o cabelo desgrenhado, os sapatos tortos e a 4w8 negro a esfarr
apar-se. < JS^Jj^
Desde a sua enxerga, os olhos de Malafaia segta|| igualmente, no benefcio imprevisto
que o sol ItePMB seguiam de pupilas brilhantes, famintas, as suasajp bem redonda
s, os seios bem salientes, os lbioeli(| dos seguiam-na como se ela fosse a nica pasS
j^M dum cargueiro que no escalasse porto algum'." '^ Pela expresso do velho Palhetas,
subitamen$^P ter e depreciativa, Janurio compreendeu queslHp bem o campons dera co
nta do milagre quewbgif realizara do outro lado. S "O Sbio" parecia BlM| a tudo,
contemplando a praa desde as grades. swjP Aquilo viu que no tinha com que o siStwH e
pumba! disse Janurio, isoladamente. '[?&*$ Parecia que todos os presos ev
itavam referi^WI ela. Quando Palhetas lhe contara o caso, fizera-tf5** m vontade
e apenas porque ele o instara. I)*?fJ disso, mostrara-se sempre severo.
E, agora, saW* campo com o mesmo torn: l> *
Ora! Ora! H muitas em iguais condies e nfr vo, por isso, matar os filhos. Js
No digo o contrrio, mas se voc fosse patll sempre queria ver se aceitava uma criada
com Wf filho de mama nos braos. Demais a mais, no te*~? famlia a quem o deixar... >
*(r)
Se ela fosse boa rs, pedia esmola, roubava, a*W tudo, menos isso. ^9f.
Palhetas abriu um gesto de repulsa, a estabelea*" definitivamente, que tinha nojo
de falar daquilo. &*&
A EXPERINCIA
833
iesejo forte de o contradizer tornava a subir no espnto de Janurio. Ele no sabia po
rque sentia aquele desejo intil, pois estava de acordo com o Palhetas. j(as era c
omo se tivesse necessidade de opor-se a si prprio. ^
H ainda a vergonha de ter um filho sem pai legtimo... Quem sabe se o tipo que lho
fez no a abandonou em seguida?...
Deixe-se l disso! volveu Palhetas, sem poder manter a sua resoluo de no se ocupar m
ais daquilo. Quantas mulheres tm tido filhos assim, e aguentam-nos! Vergonha, por
qu? No h nenhum animal que tenha vergonha de ter um filho, de o ter e, at, de o faze
r vista de toda a gente, se for preciso.
Ento voc compara um ser humano com um animal ? No querem l ver!
Palhetas virou-lhe as costas e comeou a mover as suas faces chupadas, a mov-las se
m descanso, como se mascasse alguma coisa.
Na terceira cela, haviam principiado a cantar ilegalmente, confiantes na tolernci
a que o carcereiro manifestara de outras vezes. Embora num torn discreto, era um
a cantarola alegre e fresca, decidida a estrangular as tristezas que moravam den
tro das grades.
Aqueles levam-na boa...comentou Janurio, perante a indiferena dos companheiros. No
fazem mais do que abrir as goelas...
"O Sbio" largara a passear. Passeava com sobranaria, muito silencioso, de mos atrs d
as costas. Se s da terceira cela estivessem na segunda, se ele pudesse v-los dali,
como via a rapariga atrs das grades viziihas, ter-lhes-ia enviado um berro para
que se calasSem. Mas com os outros no havia mais comunicao alrn do ar, aquele maldit
o ar que transportava a cantoria e o obrigava a reprimir-se e a suport-los.
A carta jazia sobre o caixote para onde ele a atirara, quando o carcereiro lha t
rouxera. A alvura do sobrescrito contrastava com o amarelo velho da madeira. Ele
lanara-a para ali, porque lhe parecera uma ^ferioridade evidenciar qualquer pres
sa em l-la. E ia
27 Vol. Ill
JM
"34
A EXPERINCIA
- e vinha, duma parede a outra, sem jamais >M
O prprio Palhetas, mesmo assim tapado dota
pressentia naquilo uma vaidade pegada e, fm
Janurio e Malafaia, desinteressara-se da stj|
tude. M
"O Sbio" prosseguia no andamento, semprei^
alta, mas ia pensando sobre quem podia serjf^j
sando que s uma vez sara da freguesia e qu$i$
tambm uma vez s, vinte e quatro anos depS*
fora sequer sua aldeia, fora directamente '. 9(8
da Piedade. aldeia, para qu ? Os pais havlsHi
rido h muito; irmos ou parentes mais chegaSjMj
tinha. Dos vizinhos, no guardava de nettttHf
recordao, nenhuma boa recordao da sua sfe
a apanhar bofetadas, pontaps e bosta nas ttfi
Apenas um garoto e uma garota, companheiros
guedos e de castigos, se mantiveram, durantffl
anos, na sua memria, com toda a simpatia de #|
Mas, quando subira de moo para marinheif&t"sW
mandara a novidade, no lhe haviam dado Treji
Ele no estranhara e nem de leve pensara que twl
morrido, pois nessa altura j sabia que as pessoa"
vivem em terra esquecem facilmente as que ipOt
a vida dum lado para o outro no mar. R ^
"O Sbio" bocejou duas vezes, alto e prolong)
mente, para resguardar, com uma expresso de'<W
cncia, o gesto que ia fazer; depois, ao passar em
do caixote, estendeu o brao e agarrou o sobre2l
Abriu-o e ps-se a decifrar a carta muito pertcw
olhos, como quem mope e vai lendo na ru/>l
nunca se deter: *
"H quatro meses que tenho estado beirA*
morte, com uma grande doena, e por isso s "
lhe escrevo. Disseram-me que voc pensa mataf*
quando sair da cadeia. Eu no tenho medo de si, j
ter a certeza, pois no qualquer lobisomem que
faz arredar p do meu caminho. Mas, porque a.$j
dade a verdade, sempre quero dizer-lhe que0 *w|
anda muito enganado se julga que fui eu que o drfjjj
ciei. you provar-lhe que numa porta se pe o railw
A EXPERINCIA
835
noutra se vende o vinho. Se quiser lembrar-se de como as coisas aconteceram, log
o ver que no poderia ter sido eu e que isso so calnias de algum que me quer mal. Ora
veja bem se se lembra de que quando o seu companheiro, depois de furar a barriga
do outro, deu s de vila-diogo e voc para que ele tivesse tempo de fugir, puxou ta
mbm da navalha..."
" Sbio" deteve-se, enfim; encostou-se s grades e continuou a ler, cada vez mais apr
essadamente. Leu uma vez, leu duas vezes; depois, cismtico, com a carta aberta en
tre os dedos, quedou-se, um momento, de olhos na praa deserta e neutra. Atrs dele,
Malafaia encontrava-se estendido de abdome para baixo, os cotovelos apoiados so
bre a enxerga e as faces metidas entre as mos, como era de seu hbito. "O Sbio" entr
egou-Ihe a carta e tornou a passear atravs da cela, de plpebras semicerradas e ass
obiando baixinho, sem dar conta de que assobiava. Palhetas mirou Janurio, em silnc
io, e o seu olhar imobilizou-se com essa expectativa do co que ouviu um rudo ao lo
nge e olha antes de ladrar.
Malafaia lia vagarosamente, extraindo de cada palavra todo o sumo que pudesse te
r. A sua posio na cama acabou por lhe ser incmoda e voltou-se de ventre para o ar.
Encolheu as pernas e ficou de joelhos em ngulo, mais altos do que a cabea, no jeit
o dos dentes de cimento-armado sobre a terra defendida contra tanques.
Malafaia leu, tambm, duas vezes. "O Sbio" parava e divagava o olhar pelo punhal e
pela cruz que ele Prprio havia desenhado na parede. Ento, Malafaia dobrou lentamen
te a carta e, num esgar irnico, devolveu-lha. Ao "Sbio" no contentou aquele sorriso
.
Que dizes ? perguntou, num torn que parecia repreender.
Malafaia fez um gesto vago:
Que queres que eu diga? Parece que no foi ele... Janurio e Palhetas viram "O Sbio"
hesitar, meter
a carta no bolso e olhar, de novo, para a parede onde estavam desenhados o punha
l e a cruz, olhar de relance,
836
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
837
' 4
.1
como se desejasse que ningum o visse. Depe&g
tou-se para o lado das grades. >sa
A praa continuava vazia. Um vazio, ca2
mais agradvel, criara-se tambm no esprito do <jKH
um vo iluminado num bosque onde, magidaS
sem ningum lhe tocar, uma rvore venenosa se'sna
num instante, pela terra adentro, deixando todaqH
clareira. , 'rtjj,
Ele olhava a praa e no via a praa; viacup
o homem no cais, l longe, no tempo e no\^m
com o p esmagado e, em volta, as pessoas quejhjpi
acorrido e se vergavam ligeiramente para obs^MJ
sapato a pingar sangue. De vez em quando, o:,faaa
mordia os lbios, como se mordesse a sua t-s
dizendo: "Percebi logo que o camio vinha deal
rado ao ver aquele brao a agitar-se fora da xm
e eu sabia que ele era surdo. Eu andava zangada
ele, pois, um dia, ofendeu-me e fez-me perder a aj(
O homem tinha um s p no cho; o outro esteta
ar, a um palmo da terra, meio encolhido e senffl
pingar sangue da ponta do sapato, que se vifj
esborrachado pelo camio. Queriam lev-lo dafiy|
ele teimava: "No, no se incomodem; j telefoiMg
vale mais esperar a ambulncia". Firmava Oslsj
sobre o ombro de outro homem e estava muito p|
sempre a morder os lbios por cima dum sorrispow
nado. "Eu andava de mal com ele e tinha muita ^
para isso. Mas, ao ver o camio, pensei que >aoj|
diabo era um homem como eu, pensei que antdff
estarmos zangados, sempre me parecera um hoJ^
como eu e que no era l por causa duma zangaKj
ele deixava de ser um homem igual a mim, tanto iff
que os que no estavam de mal com ele julgavas^
um homem como qualquer outro. Foi, ento, que <?<
e o tirei ainda a tempo daquele perigo e no haSjj
novidade se o camio no tivesse dado, de rep
meia volta, apanhando-me o p com a roda". l
"O Sbio" voltou-se: \f
Um cigarro... Ainda tens? 4
Janurio abanou a cabea. De cara desolada/J
lhetas tirou do bolso um invlucro j intil e amarrotou-o entre os dedos:
Agora, s no domingo, quando vier a minha
patroa...
Um automvel passou, levando, enfim, o silncio que havia na praa. "O Sbio" endireitar
a o tronco e parecia alargar toda a orelha direita quele rudo, como se quisesse so
rv-lo enquanto no se extinguia no declive do planalto. Depois, sempre com o sapato
longnquo a verter-lhe sangue nos olhos, avanou at a parede do fundo e, puxando o s
eu leno velho e sujo, ps-se a apagar o punhal e a cruz. De quando em quando, cuspi
a no leno e voltava a friccionar a parede. O negro do lpis ia-se distendendo como
uma pincelada larga com pouca tinta; mas, sob o borro, continuavam a distinguir-s
e as linhas dos dois instrumentos de morte. Janurio via aquilo e ouvia a voz da i
rm Sacramento, que ressuscitava na sala do Asilo: "Limpa esses vidros do armrio, p
orque amanh dia de Pscoa e vem c o senhor abade". Pareceu a Janurio que ele prprio ia
rolando no tempo falecido e que tudo se esfumava sua frente.
"O Sbio" tornou a investir contra os desenhos, com fora, quase com raiva, como se
esfregasse a parede. Quando, por fim, guardou o leno, tudo se ligava dentro e for
a dele. Ele no gostava de estar sentado.-Contra as grades ou andando, era de p que
moa os dias. Mas, depois daquilo, cobrira com as suas grandes ndegas todo o caixo
te. Tudo se ligava, sem ele saber Porqu: a curiosidade de Janurio, que ele at ali r
epelira, vingando-se das reservas que Janurio, a princpio, mantivera; o asseio que
sentira no esprito, logo lue metera o leno sujo no bolso e, ainda, aquele alvio lu
e parecia forar uma porta e romper para a claridade, expor-se, comungar com os ou
tros, fechar o primeiro abismo.
. Janurio ouvia-o falar com uma voz repousada,
1Jidicando Malafaia:
Se eu no o houvesse desafiado, ele no desa^arrava de l. Conheo-o muito bem. Preferia
ficar
838
A EXPERINCIA
" .i
tleitado com uma fmea, no Porto, ou esteuJM
beliche, com uma garrafa de aguardente debajB
travesseiro. No assim ? '^U
Da sua enxerga, Malafaia sorriu uma apjjiB
nublada e indolente: lll>itt
Cada um para o que nasceu... r/$"
-1- Em vinte e quatro anos, eu s fundeargBjeHJ
xes uma vez. Andava sempre de proa feits az<m
portos e vir ali era quase uma novidade p^M
Pareceu-me que devia aproveitar a monct^/Jail
barco ia demorar, para substituir umas peas, epfw|
o comandante no nos diria que no. Mas &4ltt
no mostrava nenhum entusiasmo em vir. JTtyalj
sarmos em frente da costa, eu tinha-lhe difto$l]
acol, no cimo da ltima serra. Se pegares nu^w
culo, logo vers uma capelinha branca". LeJ$fel{|l
Malafaia fez, de novo, um movimento cpiS
Em Leixes, insisti com ele, disse-lhe qw uma romaria bonita e, j que calhava estar
iafSl no seu dia, no devamos perd-la. Apanhando a" neta, em menos de duas horas cheg
aramos'l&l ento, concordou, mas eu bem percebi que *3M| para me fazer a vontade do
que por seu desejo;'P3 que adivinhava... 4>S|
"O Sbio" ergueu-se e aproximou-se das gtfKBJ corredor, depois das que davam sobre a
praa wsjM pr sentir aquela ausncia. Caminhou ale fcjj enxerga, suspendeu o coberto
r pelo meio, criodlq uma forma de pirmide, e logo o deixou cair s& com aquela ausnc
ia de tabaco na garganta, "U|j insatisfeito vcio em todo ele. <3J
Quando o ouviram dizer: "Antigamente", os <&& compreenderam, pelo torn, que ele
saltava dos ipi gais do seu passado para o presente, um presente Jlf sem, ao men
os, duas ou trs pontas chupadas col9l quais pudesse fazer um novo cigarro. s L
Antigamente, depois de terem proibido as 4" ainda havia quem nos mandasse alguns
tostes, -f intermdio do jornal c da terra. Mas, agora, paBl
A EXPERINCIA
839
flue toda a gente modesta e j no tem gosto em yer o nome publicado...
Os outros ficaram calados. A luz, que vinha de fora, batia na cara emagrecida do
Palhetas, mas ele, de cabea baixa, dir-se-ia ainda mais silencioso do que os out
ros e de todo indiferente ao que ouvia. "O Sbio" recordou-se das cartas que escre
vera em vo e dirigm-se a Janurio:
Eu no quero dar confiana a essa gente, mas tu, que s novo, que podias mandar duas l
inhas ao
jornal...
Palhetas sabia ser aquilo o serpentear disfarado duma ideia que visava apenas o d
inheiro que ele tinha ferrado no bolso. "Assim de um homem estoirar" dizia "O Sbi
o", ao mesmo tempo que se sentia aquecer por uma humilhao.
O campons continuava imvel. Captava os secretos apelos que ressumavam do silncio, c
aptava aquela ambio incmoda que vinha dos outros e prosseguia na sua imobilidade.
Ele dava, sem grande sacrifcio, alguns dos cigarros que a mulher lhe trazia ao do
mingo, pois, desde que se convertia em tabaco, o dinheiro deixava de lhe parecer
valioso. Tudo era fumo. Mas quando pensava em abrir a ponta do seu leno vermelho
e pr luz as moedas, o dinheiro voltava a readquirir, subitamente, todo o valor e
squecido.
No faz mal disse "O Sbio", como se falasse sozinho e sem nexo. O que importa t-lo
s no seu lugar. E retomou, imediatamente, os ares andarilhos e importantes.
Janurio estava espera. Palhetas j tinha ouvido a histria, tempos antes, mas para Ja
nurio tudo era novo o grande fardo saa do poro e descosia-se pela Pnmeira vez. "O
Sbio" parara, enfim, em frente dele:
Se a rapariga danara quase toda a noite com
0 Malafaia e andara com aqueles requebros de gata em Janeiro, a culpa era dela e
era com ela que o outro jinha de ajustar contas. Mas o outro estava me
io "ebedo. Quando o vi sair-nos ao caminho com a faca n^ mo, percebi logo que ele
j no regulava bem. Se
840
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
841
' 4
a coisa fosse comigo, eu no teria feito comc^ffiS faia; aplicava-lhe meia dzia de
socos nos <|I*M depois, passava-lhe o pezinho por baixo, ipul ficasse a cur
ar a bebedeira no cho. Mas Gadlll como . Claro, quando dei conta de que o inpii ti
rara a beata do beio e se pusera a navegar! do Malafaia, tive de lhe fazer frente
, pois, se tm eu, o Malafaia no teria ido romaria... jTl "O Sbio" deu algun
s passos a pensar na3l na ponta do cigarro do outro. Depois, detesl ps-se a des
prender, com a unha do dedo mura escamas de tinta estalada sobre as barras di| Pr
ocedia distraidamente enquanto ia dizendob,
Parece-me que foi asneira grossa termafe lado. Mas, agora, que as frias acabaram,
-isA resolver-se. Se havemos de ir tripular a Penitfill quanto mais depressa for
mos, melhor. No ser paquete de luxo, mas, depois que proibiram JSijj e nos desemb
arcaram da cadeia velha, estar aqjM bem no tem graa nenhuma. Nem sequer urnae"
Riu forte, como se quisesse expelir a exigncflj havia na sua garganta. Extraiu, e
m seguida, o p de tinta seca que se encravara entre a unha e >| e olhou Janurio: /s
E quem sabe se no te despacharo a ,t| de ires connosco! No seria nada mau, amigofl s
omos... No poderamos falar nos primeiros ano% enfim, ficaramos com camarotes no mes
mo barcode
in
54- DIA
l FECTIVAMENTE, as frias tinham terminado, a{g
processos haviam sido sacudidos da poeirtf
Vero e, h mais dum ms, os juizes trabalha^
como era seu dever. Quando se reuniam em vol*
tf
grande mesa, pacatas discusses, modos diferentes de interpretar as leis subiam, p
or vezes, at os ouvidos dos velhos retratos que, das paredes, comandavam a. auste
ridade da sala; mas, perante aqueles cadernos cosidos linha, altos de cinco dedo
s grossos, nenhuma divergncia se franqueou entre os magistrados. A deciso estabele
cera-se por unanimidade e o presidente, depois de meter a caneta no bolso, olhar
a o relgio e gozara a satisfao de verificar que, nesse dia, o trabalho havia findad
o mais cedojustamente a horas de ele poder ir tomar o seu ch.
"O Sbio", quando lhe disseram que o recurso fora negado, encolhera, com desdm, os
seus ombros possantes: "Tanto se me d! C por mim, nunca acreditei..." Pareceu a Pa
lhetas e a Janurio que to aparatoso desprezo no vinha de dentro, estava s no rosto,
como uma pomada sobre uma ferida; mas, nos dias seguintes, compreenderam que, pa
ssadas as guas vivificantes, o tronco da terra seca, um momento humedecido, se re
signara, de novo, aridez do seu deserto.
"O Sbio" via, agora, o carcereiro entregar a Janurio um sobrescrito e esse gesto
sobrepunha-se, nele, a tudo o mais. Era a terceira carta registada que Janurio re
cebia desde que se encontrava ali e, perante aquele papel blindado de telagara e
os lacres vermelhos do seu verso, no jeito de marcas de beijos dados por uma boc
a pintada de mulher, "O Sbio" adivinhara, num pice, o que l vinha. E, ento, a sua ga
rganta encheu-se novamente de esperanas.
Os sinos continuavam a dobrar. Desde manh, eles enviavam, de quando em quando, do
planalto para o vale, as suas mensagens. Era uma dolncia pontilhada, que fazia,
nos quintais, os galos erguerem a cabea e ficarem de olhos parados, escuta.
- Quem foi ? perguntou "O Sbio" ao carcereiro, Bicando, com um movimento de quei
xo, a igreja
Azinha.
Ele sabia que quando os sinos dobram assim, circunspectos, solenes, por pessoas
ricas, pois os sinos
842
EXPERINCIA
f gostam de guardar os seus tons mais nobresrm| almas que deixam muitos bens no
Mundo. t}H O carcereiro, que ia a despegar-se das gradesjj Quem ? insistiu
"O Sbio". fjfifil
O homem vacilou ainda e os seus olhos Hafej taram a entrar na cela, de mau humor,
rastejanl os ps de Janurio; depois, venceram aquelefjj mento instintivo e recuara
m. ilSHi
> O tabelio... O doutor Carrazedas... srjj deu, bom uma voz que parecia tornar ai
nda maio a novidade. oq}1!
Viram-no afastar-se, deixando no seu lu^t11! presena. Os sinos prosseguiam. Umas v
ezes, ,|n -se-ia que tocavam dentro da prpria cela, enerw tudo, outras muito ao l
onge, para serem ouviddstp por aquele silncio que se fechara ali. "t> fc
Janurio sentara-se na extremidade do colct, Malafaia se estendia; segurava a carta
com fgg mos, em cima das pernas, e tinha os olhos fbaasa ela. "O Sbio" percebeu, nu
m relance, que l$ estava a ler o endereo, nem a pensar no que a1 trazia. < >J
Sobre o caixote, Palhetas mostrava-se maisrr" Ihido ainda do que habitualmente.
A sua mudezofl em redor dele uma zona densa de austeridadaB separao, de onde pareci
a emitirem-se indefinidal cordncias...
Deixa l...disse "O Sbio", com voz dert
forto. certo que, se atribuem isso ao tiro qlti
deste, as coisas podem complicar-se um bocadcuf
tambm verdade que, se ele vivesse, havia deO
tar-te bem da sade, no tenhas dvidas1 Havias
fazer tudo para que ficasses mais pregado Penjl
ciaria do que a quilha ao casco dum barco. De man0
que no se pode saber se foi pior ou melhor qtBH
tivesse morrido... - .
Janurio levantou a cabea. "O Sbio" viiio
dos olhos dele escorria uma humidade de vitnl
quando chove e que o lbio inferior lhe tremiiij
pouco.
A EXPERINCIA
843
__ Mas se a bala s lhe tocou no brao, como podia ele morrer daquilo tantos meses d
epois ?
Era uma voz doente. A amargura irradiava-se como uffl fluido. O futuro metera-se
, de repente, na cela, num mergulho de ave morta, tombada do cu.
Isso no sei. Mas, est descansado, que, um dia, sabers...
No gostou "O Sbio" de ver Janurio passar a manga do casaco no sobrescrito, para abs
orver as gotas que haviam cado, desfazendo as letras:
Ali, na igreja, a ajudar o sacristo, que te quadrava bem. Tu no s mau rapaz, mas s
um molengo, sem carcter. At parece que no tens tomates!
"O Sbio" voltou-lhe as costas. Os sinos haviam parado. Andava, l fora, um sol de V
ero de S. Martinho e, mrito das chuvas recentes, as plantas bravas exibiam-se muit
o reverdecidas sobre o telhado do templo.
Janurio retirou vagarosamente a carta de dentro do sobrescrito que o carcereiro,
mantendo o regulamento, tinha aberto. Dir-se-ia que, com o dinheiro, s>aa de l uma
maciez carinhosa e um odor que se prendia ao seu olfacto, odor de lenis que abrig
aram um corpo de mulher.
No h nada como ser um rapaz bonito... disse "O Sbio", j alegre e irnico, quando se vo
ltou e o viu com os cem escudos na mo.
Janurio levou o sobrescrito ao nariz. Iludira-se, no exalava cheiro algum. Aquilo,
porm, continuava. Como se ele estivesse vendo uma cama, uma cama targa, sem pare
des conhecidas, s a cama e um homem traando Clarinda e ele com a cama metida na mo
fechada.
"O Sbio" ora observava, pelos cantos dos olhos, s seus movimentos, ora a praa, onde
passavam, de luando em quando, figuras vestidas de negro, como j*p dia de Todos
os Santos. "Grande enterro vai ter o bicho" pensou. Ele j se arrependera de hav
er interrgado o carcereiro. Que lhe importava saber que mor-. rera o tabelio ou ou
tro tipo assim grado, desses que
844
A EXPERINCIA
O
A EXPERINCIA
845
no ligavam importncia alguma a um hometj
ele ? Se no fosse essa curiosidade intil, j^aM
ali a fumar, satisfeitos, de garganta reconciliada!!
acontecia sempre que chegava uma carta xiiufi
Finalmente, "O Sbio" repousou. Janurio ^K
ra-se das grades, introduzira os braos e batias
palmas. O velho Palhetas levantou a vista, poll
cera-lhe que eram umas palmas incertas e dbdu
O rudo deixara, no corredor, um silncio paw
como o p atrs duma vassoura. Eles estavam1 3
de ouvir os passos conhecidos e os passos no '^H|
E cada vez o silncio parecia mais propositado.^"
No seu cubculo, o carcereiro lembrava-se p
mente de que, das outras vezes, Janurio tamaj
chamara assim e, afinal, era apenas para Ihroflf
que comprasse doze maos de "Almirantes" e uma oj
de queijos de cabra. Enquanto ia afiando a naw
de barba e experimentando o seu gume nas unlijl
carcereiro, sentado junto de pequena mesa, em M
da janela, pensava que no havia razo algurool
se dar pressa. Janurio, certamente, tambm no COT
apressado, pois desta vez tardara mais a bater a$j
mas do que das outras. ib.1
Quando, enfim, se aproximou da cela, com GQ
vagaroso e olhando por baixo, verificou que se hi
enganado em parte. 9
Vinte maos de "Almirantes", faa favor {K Janurio. .t
Estranhou o carcereiro o torn hmido da v pensou no queijo de cabra que recebia, gr
atuitameJ do taberneiro, sempre que comprava uma dzia-"!
Mais nada ? >M
Mais nada, muito obrigado. Q] S duas horas depois o carcereiro voltou. Ao "v4|
"O Sbio" manteve-se muito calado, porque o dinhw no era seu, mas teve de morder os
lbios para n% insultar. tf
Janurio entregou ao Palhetas o mao de cigaai que lhe devia; meteu quatro no seu bo
lso, agaE nos outros e estendeu-os ao "Sbio".
Pegue l, para vocs dois. De boca apagada, a viagem seria mais aborrecida...
"O Sbio" no agradeceu, mas todos compreenderam o seu silncio. Malafaia no disse tambm
uma s palavra.
Janurio levantava o troco de sobre o caixote e contava-o na palma da mo. Era tudo
metal, menos uma nota de vinte escudos. Ele dobrou-a uma vez, dobrou-a duas veze
s, como a uma carta e meteu-a, isoladamente, no bolso superior do casaco. Palhe
tas julgou adivinhar a razo porque a nota fora separada e posta ali. Sentiu-se mo
lestado por um dever, viu-se a desmanchar o n do seu leno e logo se encheu de ind
eciso. Por fim, concluiu que seria melhor resolver no momento dos dois partirem.
Ouvia-se, com uma nitidez diferente da dos outros dias, os passos da rapariga na
cela prxima, enquanto "O Sbio" olhava todos aqueles maos de cigarros, ainda empilh
ados sobre o caixote, espera das suas mos, e se admirava de no sentir agora desejo
de fumar, ao contrrio do que lhe sucedia momentos antes.
Janurio admitiu que ele quereria levar os pacotes assim fechados e ofereceu-lhe u
m dos cigarros com que ficara. Ento, "O Sbio" deu vida aos seus grandes olhos, fez
um movimento com o brao, como se cortasse o ar. "No; mais, no"; depois dobrou-se
sobre o caixote e, abrindo, enfim, um dos maos, serviu-se e passou-o a Malafaia.
A cela encheu-se de espirais, em silncio; sempre com esse silncio que nenhum deles
havia previsto quando, duas horas antes, o carcereiro viera ali trazer
a carta.
"O Sbio" voltava a ver uns homens vestidos de luto, que atravessavam a praa. Um ia
frente, sozinho, e dois mais atrs, lado a lado, a conversarem. Da banda do corre
io acabava de aparecer outro, tambm com um fato negro. "O Sbio" seguia-os com a vi
sta, quando sentiu que Janurio se aproximava. Ento deixou de olhar para os homens,
voltou-se e encostou o seu corpanzil s grades. Parecera-lhe que fizera aquilo
846
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
847
'com naturalidade. Parecera-lhe que ningum pie^ o seu intento, mas, depois, compre
endeu que ora diente no era de todo eficaz. Se Janurio enfias olhos pela direita o
u pela esquerda do corpojj poderia ver perfeitamente quem passava l fora.ij^ bio"
hesitou um instante e logo resolveu det4a| outro meio: /s,
E se fssemos jogar um bocado? Que te pari
IV
55- DIA
'OTdfl
"&
M^|
"nJ
C~J rudo da furgoneta chegou de longe, a aums^w
sempre. Na cela calada, os ouvidos enrqjj
ram-se a uma ltima incerteza. Mas, assim que etejjl
extinguiu em frente da cadeia, "O Sbio" no tejl
mais dvidas e ps-se a apagar calmamente o( s"
cigarro e a guardar a ponta no bolso. Depois, olhai
atravs^ das grades e disse: )Ujm
um velho palhabote, mas de grande tona"
gem. No sei para qu, se a carga to pouca. A <$MJ
te trouxe era mais jeitosa e muito mais bonita. Tivestaj
sorte... (\ si
A cela escutou aquilo, impassvel. Somente "O Sbioi
rematou com um sorriso as suas prprias palavraj
Dir-se-ia que os rectngulos formados pelas barras oro
ferro haviam criado olhos, todos aqueles olhos qu^l
drados a olharem para dentro. Malafaia levantou-se|
vagarosamente, a espreguiar-se. "Um navio tambny
uma priso pensou. com a nica diferena dfli
que h uma pequena liberdade condicional ao fim aj
cada viagem. Os marinheiros desbaratam a vida comai
se fossem condenados a sucessivas penas correccionaisfjj
Uma voz sussurrou-lhe: "Mas voluntariamente". Eli
no gostou daquilo e tornou a bocejar: "A liberdade#|
a liberdade, mesmo que seja para ir, vestido de negro, a um enterro", insistiu a
voz que teimava em desfazer a frmula de paz.
"O Sbio" comeou a reunir os seus trapos ao fundo da cela. Janurio viu-o dobrar-se e
as suas largas ancas ficarem para cima, muito salientes e arredondadas, enquant
o a cabea se movia prxima do cho, como os pintainhos quando aprendem a comer. Volto
u para o meio da cela trazendo embrulhado num jornal velho tudo quanto possua. Du
rante um momento, fingiu-se hesitante e vexado perante a nota de vinte escudos q
ue Janurio lhe dava; mas logo descobriu uma soluo que o satisfez:
Podes estar certo de que, um dia, te pagarei... Do fundo do corredor chegavam as
vozes de dois
homens, que falavam com o carcereiro e riam.
Estou-me nas tintas! volveu "O Sbio", na cela que no dizia nada. O que me d ra
iva foi o tempo perdido com o tal recurso em que nunca tive f.
Malafaia acabava tambm de envolver as suas coisas numa camisa suja, que amarrara
com um cordel, "O Sbio" sorria, mas Palhetas e Janurio viam nitidamente que era um
sorriso constrangido.
Para este vai ser uma delcia! pronunciou, estendendo o lbio inferior na dire
co de Malafaia.
Se o condenassem a falar, isso, sim, que seria um castigo a valer...
Malafaia continuava de olhos lquidos e luminosos. Apenas aquele brilho de ao que r
ompia l do fundo, como por uma fresta, parecia mais forte e mais frio do que habi
tualmente.
As vozes desconhecidas aproximavam-se, iam aumentando de som e de sentido, como
se as palavras fossem pronunciadas numa volta de estrada, antes de se ver quem a
s dizia. Palhetas voltou a apalpar, dentro do bolso, a ponta do seu leno.
Os que vinham de fora detiveram-se atrs do carcereiro, que se ps a abrir as grades
. Um polcia avanou, saudando cordialmente, enquanto o outro ficava no corredor, co
m a mo na algibeira, sobre a pistola.
848
A EXPERINCIA
f Aquele que entrara procedia de modo vagar$fe
se no quisesse magoar os pulsos do "Sbio" >^
faia; s vezes, parecia um alfaiate tirandJo^ffi
nas costas do seu cliente. ((^cg
Palhetas s se decidiu no ltimo momelp5|
do leno duas moedas de cinco escudos 6/lpaf
grande d de alma por elas, deixou-as cair $&
do "Sbio". 'riat
Encostado parede, Janurio ora erguia, faflj
xava os olhos. No corredor, o outro polC&rl
com o carcereiro. Mas era como se no falaiSj
como se as palavras fossem laterais, baleeiras 'Htif
do convs, suspensas sobre o mar, ligadas awj
apenas pelos turcos; era como se tudo fosse'>li
Muita sade por c murmurou Malat^ um sorriso vago, ao passar em frente de JantiS! de
Palhetas. '3 -
Muita sade e muita sorte disse, pot sUJt "O Sbio", com ar exuberante. Ainda havetg
nos encontrar! E, j sabem, se, um dia, eu pu" til em alguma coisa, contem comigo!
tffl
Janurio viu aquelas duas mos ligadas pl$*
ss, mas abertas, que se iam afastando e agSj
atrs das costas, uma para cada lado, com um ffl
mento de barbatanas e um sentido irnico de''OT
dida. ' \jL
Que eles no te carreguem muito na balM
foram as ltimas palavras do "Sbio", voltaMl
j no corredor. fi<l
O carcereiro fechara as grades. Soaram, ow'fl
mento, os passos mltiplos; depois houve um silwj
depois o rudo do motor da furgoneta e novamai
silncio muito prolongado. -^
O'
A EXPERINCIA 849
V
79. DIA
(joM os olhos cheios duma fadiga que se notava ^ mesmo por detrs dos culos, como a
escorrer sobre a expresso afectuosa do rosto, o doutor Macieira, moreno e desemp
enado, estava ali, na sua frente, e dizia-lhe:
Recebi a tua carta. No vim mais cedo, porque tenho tido muito trabalho. Mas est de
scansado, que serei tua testemunha.
Uma mescla de alegria e de humildade prendia a voz de Janurio, baralhando-lhe as
palavras de agradecimento. Era tudo um redemoinho. Ele sentia-se comovido e repe
ntinamente valorizado, perante o carcereiro e o Palhetas, com aquela visita.
O doutor Macieira ia-o confortando e examinando, atravs das grades, o fundo da ce
la, as duas enxergas e a farraparia desordenada sobre a tbua cravada na parede.
Janurio escutava-o e um enternecimento por si prprio, uma sensao de fragilidade, que
avivava as suas dvidas e os seus receios, desenvolvia-se rapidamente, como se o
amparo que lhe vinha daquela presena o tornasse mais sensvel.
Acha que me condenaro a uma grande pena ? murmurou num torn infantil, choroso.
O mdico olhou para ele. Era uma pergunta intil e incmoda, uma dessas lajes desmesur
adas sobre as quais assentam os grandes penedos do Mundo e que Briguem podia lev
antar para ver o que jazia por oaixo.
com certeza, no... respondeu, numa voz nublada. preciso no desanimar. Hei-de faze
r tudo Quanto puder...
85o
A EXPERINCIA
1 4
.\
Como se no quisesse deter-se mais sobre -&i
* o doutor Macieira voltou-se para o lado do P$fg
E o senhor, por que est aqui ? ' ^B
O velho acercou-se das grades e explicou-lal
sentia-se tambm humilde e enleado pela timideS
sempre tinha quando falava com as pessoas $3
da vila. a3|
Enquanto o ouvia, o mdico ia baixando e Itm
tando a cabea, com esse ar de quem acompa^fl
relato e pensa, ao mesmo tempo, noutra coisa^fi^i
Daqui a dias est l fora. o que se quenfc$a|
Pareceu a Janurio que, no fundo, ele diziai~j3|
crime no tem importncia; o deste, sim, lttS
grave". ->cl"''$J
A filarmnica da vila rompia do lado do GoMl
atravessava a praa, tocando os seus metais, iil
nho do monte do Crasto, onde, nessa tarde dpnafiti
havia festa. 'ftftfl
O doutor Macieira demorou-se ainda alguttkrlB
a conversar com Janurio e Palhetas, mas a lembfllB
sempre, e sempre com uma fora nova, do teatafiil
que criara o Asilo e cuja cpia ele prometera fcMNB
ao advogado no dia seguinte. Por fim, despediwrStiH
Coragem! Nada de desanimes! repetiujjjB
gindo"se a Janurio, quando j se afastava da|jB
De longe, chegavam ainda os sons da chadjlll
O doutor Macieira caminhava devagar e de raH|
baixa ao longo do corredor e quase no deu pe^Jjl
cereiro, que, no topo da escada, se vergou, respeiwB
sua passagem. ' {*
Ao chegar praa, deteve-se e ficou a oibfBtm
fachada da cadeia, como Janurio no dia em 0(r)^R
haviam trazido para ali, com a diferena apenS/wE
o fazia ponderativamente, sem surpresa algumadJ^g
seus olhos lassos. Ele olhava e via ressurgir, d-JwS
das paredes restauradas, como o esqueleto dentrosflP
corpo, a carcaa do velho Asilo. E um vnculo voltaj*
a formar-se-lhe no esprito. Um vnculo que se,i^P"
belecia, inevitavelmente, quando ele pensava eiUs-Sw
A EXPERINCIA
851
^ urio e semPre com desagrado que produz a lemf- brana dum compromisso que no se po
de ainda te cumPrir-
\ Baixou, enfim, a vista e retomou o seu caminho. l ,4 meio da praa,
admitiu que poderia desistir do p repouso clue projectara para essa tard
e, no s por j> ser domingo, mas, tambm, por haver perdido a noite ! .unto du
ma parturiente. Sentia-se cansado, pois, de F manh, tivera ainda de visitar
vrios doentes; pensou, porm, que se no aproveitasse os momentos como
1 aqueles, mesmo impregnados de fadiga, jamais se liber-
1 taria da obrigao tomada com a Cmara Municipal,
1 que o havia encarregado de redigir os "Anais de angudas". Ess
e trabalho encontrava-se em grande atraso. O primeiro volume sara ia j para qu
atro anos e, embora tratasse da obscura origem da vila, com seus presumveis heris
godos e aquele fantstico rei Ordonho, que teria ganho rija batalha no lugar onde
, actualmente, a quinta do farmacutico produzia vinho verde, um verde rascante, d
e muitos graus, como se andasse adubado de herosmo, dera-lhe menos canseiras do q
ue a histria contempornea. certo que, nessa poca, ele disfrutava menor clientela, s
obretudo no o chamavam tanto das aldeias "senhor doutor venha", senhor doutor pe
co-lhe pelas almas", "senhor doutor icuda, coitadinha, est mesmo a morrer" como
lhe sucedia hoje; nem tinha, ao fim da tarde, todos aqueles clientes no seu cons
ultrio, todos aqueles pobres que "ao mostravam pressa alguma, mas que ele sabia e
starem to apressados como os que pagavam. Fora, justemente, por isso e pela incli
nao sempre manifestada Para as letras, amador que era desde os tempos dos *us estu
dos em Coimbra, que aceitara o convite da Cmara Municipal. Agora, com a vida ca
mbiada, o lue, a princpio, constitura volpia, esquecimento do tabor profissional,
tornara-se um incmodo dever. O se?Undo volume j devia estar publicado e, contudo,
a Maioria dos documentos encontrava-se ainda na escur'do das suas gavetas.
O doutor Macieira consultou o relgio e decidiu-se:
852
A EXPERINCIA
' 4
j que tinha de procurar a cpia do testamenteyl
veitaria para continuar o trabalho. Eram trs ela
se ningum o chamasse, at a noite poderia eira
precisamente, a histria do Asilo, j que da ltiSi
se ocupara da fundao do Hospital. olffl
Ao entrar em casa, hesitou de novo perantelfi
cansao, que parecia aumentar medida queif
lembrava da proximidade da cama, mas reagifr n
teu-se no escritrio, com a chvena de caf quejjfi
lhe trouxe. ,S|
Sentado secretria, tirou das gavetas opalSj
mentos e empilhou-os junto dos dicionrios, lni
pequeno calendrio rotativo, reclamo dum produ"|]
macutico, o cinzeiro e as amostras de novos tarai
mentos, ainda por abrir. S ento perguntou a sai
prio se a pressa que sentira, h pouco, em comfnl
nessa mesma tarde, os "Anais de Mangudas", aqj
forte deciso, ao mesmo tempo dolorida e apranl
era apenas para se desobrigar junto da Cmara Ml
cipal ou, ao contrrio, porque ia escrever sobre o.jl
e o Asilo se transformara em cadeia, onde se encoras
uma solidariedade que ele dera um dia e que cinS
tncias, prximas e distantes, haviam transforrna(S
certa maneira, em cumplicidade. Sobre essa <3lW
acendeu vagarosamente um cigarro, sem afastar cwi
olhos dos documentos. Depois, comeou a reler om
ms perodos que traara semanas antes. Parecera"!
duros, com uma vulgaridade de escrivo e, por riH
mal cingidos ao corpo das ideias, como se houvesl
sido influenciados pelos editais da Cmara; mas pti
que, nos derradeiros tempos, no andava bem-disf*!
e sossegou-se com a promessa de que os afeioaria f*
teriormente. &
As suas mos desdobraram, ento, a cpia do.vw
testamento e os seus olhos voltaram a l-la. Um $1
mento, o doutor Macieira ficara imvel perante!"
voz do passado que rompia atravs dele prprio pWl
ajeitando-se sobre a poltrona, experimentou o bieoil
pena na extremidade do papel em branco e come$
a escrever: '"*
A EXPERINCIA
O ASILO
853
"Como j dissemos mais acima, ao falarmos do Hospital, a nossa vila teve, tambm, um
asilo infantil, durante algumas dezenas de anos. Apesar da populao da comarca ser
numerosa e muita dela abastada, essa obra s se tornou possvel graas a um legado de
Henrique Sampaio Mendo, homem celibatrio, bastante viajado e culto, que, embora
nascido no Porto, passou a maior parte da sua vida entre ns. Era um apaixonado pe
las belezas naturais de Mangudas, pelas suas encostas cobertas de pmpanos, os seu
s combros enfeitados de sardinheiras, os seus moinhos ronronando nas margens do
rio, entre a folhagem dos amieiros. Era, tambm, um amigo secreto do seu povo, des
tes camponeses encardidos de sol, de terra e de trabalho, bisonhos, ossu
dos, .como se penassem duma fome milenria e irredimvel; e destas mulheres corajosa
s, sbias em tornar elsticos os dias, sempre numa faina pegada, agora cuidando dos
filhos, logo vergadas no amanho dos campos, a toda a hora absorvidas pelos mil l
abores que a, vida rural exige incessantemente; estas mulheres dum herosmo sem glr
ia que, aos olhos de quem passa, s se destacam da sombra que as apaga quando cami
nham nas estradas, de vara ao ombro, frente de gemebundos carros de bois, mal
nutridas, mal vestidas, os ps nus e endurecidos como os dos animais que elas cond
uzem, o que faz com que a nossa bonita regio, toda donairosa e espairecida, seja,
do lado feminino, mesmo que a velha sia uma sia sem "sari" e sem outro amparo alm
daquele que s atribulaes de cada qual permitido visionar nos territrios ilimitados
do futuro.
"Porque se trata dum testamento muito curioso, lue at no estilo, duma ironia toca
da de piedade humana, se isola dos moldes comuns, queremos arquivar nos "Anais"
a parte que se refere criao do Asilo. Fazemo-lo, tambm, para reencarnar a verdade n
o seu antigo corpo, j que, de andana em andana atravs do tempo, ela se encheu de def
ormaes e se cobriu
"54
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
855
,'
- de escrias, erguendo a imaginao popular, sua*" toda uma lenda absurda. Eis os ver
dadeiros '%< desse documento, escrito pelo prprio punhpod||| paio Mendo e onde no
difcil descortinar ceurtil e inconformismos da segunda metade do ^&id" em que ele
viveu e que, como as chuvas daiiPrill fez florir tantas e to fortes aspiraes, gui^j d
elas conservam, ainda hoje, um vio sempre'rti^jji
Deixo o remanescente da minha fortuna pontais
dao e manuteno dum asilo destinado ,l-^j
desprotegida de Mangudas. Este acto no incitei atftjl
sentimento de caridade, nem to-pouco de opitmisSiiSt
gerado. Sei perfeitamente que as crianas de Jiojii
como me disse, uma vez, o padre Matos -"-"ofdH
pecadores de amanh: sei que os homens qwffi mi$
tm injuriado e feito sofrer tambm foram, um dia^A
as. Em muitos dos olhos ainda inocentes, que se /im
para a beira dos caminhos e me coniemplamcstiM
mente, quando passo, se enxertaro futuras madadoA
que os homens parecem andar ao contrrio dos-/s(mj
meu pomar, que so cidos enquanto verdes e tioejjm
que o sol os amadurece. Mas quando vejo os gatosmL
ninos a brincarem, com toda a sua graciosidadvbesi
ternura redonda que a natureza parece ter neles rcdM
trado, no you pensar que, ao chegarem a autfSJi
podem arranhar ou morder; alm de tudo, sei que<o$i
instintos dos gaios dependem muito do meio em f"tJ"j
e da forma como foram educados. Sei, tambmf>qttm
homem o mais temvel e complexo de todos os otttt4
como prevenia, h dias, sabiamente, a "EnciefafiiE
Moral das Famlias" isso se deve ao facto de a2sP|
nico que participa dos instintos, das qualidades QJ
de/eitos de todos os outros. Assim, quero crer "^3
medonho bicho s poder modificar-se depois de m&if&
o seu meio ambiente no com doces falas natittjf
para que ele propenso, mas investindo resoluttM**^
contra ela. :^M
Claro est que anda muito longe de mim a idff$(r)m
resolver todos os problemas do Mundo com um ast *m
tangudas, apesar do comovido respeito que nutro por ista terra, to clebre pelo seu
vinho verde. No creio Mesmo que isto seja uma das solues mais recomendveis. Simplesm
ente e em primeiro lugar (o resto ver-se- Diante) pretendo restituir o dinheiro q
ue meu pai ganhou (ffi S. Tom, explorando o trabalho alheio. No que eu pense ter s
ido isso devido a uma degenerescncia especial Io seu carcter, no, pois jamais lhe n
otei anormalidade dguma. Era um homem como os outros e at com apreciveis qualidade
s, nada vaidoso e mesmo caritativo em certas ocasies. Julgo que o seu caso se dev
e, mais do que a ele, aos usos da poca em que viveu e que, afinal, continuam a se
r os usos dos nossos dias, apesar do padre Matos garantir que tudo se encontra m
udado e perdidos os bons e severos exemplos de ouirora. (Que to estimado amigo , t
alvez, demasiado pessimista, prova-o o facto de ainda nesta manh de u de Novembro
de i88j, cheia ie sol e de cu azul, eu haver lido, nos jornais, que em Chicago q
uatro homens foram, ontem, enforcados, em consequncia dum congresso que, a i de M
aio do ano passado, se reuniu naquela cidade, para obter que os operrios trabalhe
m apenas oito horas por dia. No sei se " posteridade compreender o meu acto, mas,
confesso, foi depois de ler esta notcia que me decidi definitivamente a restituir
o produto do trabalho dos negros de S. Tom).
Que o dinheiro acumulado por meu pai sirva, pois, para dar um tecto s crianas de M
angudas que no tm pais e ainda quelas que os tm, mas nas cadeias, nos degredos ou pe
rdidos em certos labirintos para onde tantos homens so empurrados sem eles prprios
saberem exactamente como e porqu. Um tecto sob o qual no exista uma atmosfera de
priso e sim de casa comum, com uma grande quinta aberta ao sol, tudo alegre, acol
hed&rt nde a vida no parea to feia como, muitas vezes, da .
No desejo que, por tal gesto, o povo de Mangudas venha a manifestar qualquer espci
e de gratido pela ninho, memria. No quero, tambm, que o Asilo ostente
0 meu nome na fachada. E oponho-me a que se grave sbre a minha sepultura a palavr
a "benemrito", que, por
856
EXPERINCIA
f em vida me ter feito sempre mal aos nervos,?.^
mente no me deixaria dormir em paz na. "S
compensao, determino que neste asilo, que se\^
"Experimental", se ministre uma educao dtfotft
que se d em todos os outros. Que, com as lety
ofcio, se cultive e desenvolva nas crianas assai"
lhosa e to inexplorada faculdade de compreenM
todos, mesmo os mais primrios, trazemos em n&^
na quase-toialidade dos casos, em estado embfiof
semente que ainda no germinou. Que, em vez <de%$\
ouvir s crianas os tambores picos da histrias
mtico acabou por transcender a realidade, etn^M
extravasar nos seus espritos desprevenidos o<<,ii
raas, a ideia de rivalidades entre povos, de supjjl
duns em relao aos outros, o que me parece bef
cioso e desatinado, pois todos so susceptveis <&ts,fc$
baixezas e das mesmas grandezas, se lhes v etm^(
mais modestamente e desde os mais verdes anos,%M
preenderem-se entre elas. E que se lhes inlensifiq
ensino medida que forem crescendo, para que "aft
a compreender todos os seres humanos, os seus'^a
e as suas virtudes, as razes por que ora se vasta
luz, ora submergem em trevas, de forma que, 00$
rem-se homens, se possam amar uns aos outros,.^
de se odiarem mutuamente. Que se lhes ensine, atVl
rem conscincia do que aprendem, que compreeA
ceder em benefcio do nosso semelhante, sem nenhu^
juzo pessoal, uma parte do que de melhor h em "
simultaneamente, despojar-nos do pior; e que ttM
Bem, que, por partir, quase sempre, dum movm
simples do esprito, se esclarece facilmente por si j*"wl
e sim o Mal, com todas as suas complexidades e seswl
que mais precisa de compreenso. Que se estimul&y9
mente na alma das crianas o sentimento de justia, "*
sendo tambm inato, se encontra atrofiado, s vezes #W
suprimido por velhas ideias feitas, por princpios ivlm
que emprestam s maiores iniquidades a legitimidam
actos normais e, pela lei de precedncia e fora do ha*
tranquilizam as conscincias se, apesar de tudo, em afyjt
delas se produz um rebate.
EXPERINCIA
857
Mais determino que esta obra de compreenso seja y/ientada num sentido activo e no
passivo: compreender i amar os homens para melhor aclarar e melhor combater us r
azes das injustias, da misria e da servido que anulam tantas vidas e que levam muita
s outras ao desespero e at ao crime, transformando em noite negra a alvorada que
cada qual traz consigo quando nasce. Embora o nosso bom padre Matos, com o cepti
cismo que os anos e os segredos ouvidos durante as confisses lhe deram, seja muit
o capaz de me recomendar no cu, no pela argcia que manifestei na terra, mas pela ca
ndidez anglica que, certamente, me debita, eu quero crer que, ao sarem do Asilo, a
o defrontarem a aspereza da vida que os aguarda l fora, os homens assim formados
podero ser uma conscincia em aco e um exemplo de possibilidades humanas at hoje ainda
no aproveitadas, nem desenvolvidas.
Estabeleo ainda que o dito ensino se aplique a todo o pessoal do Asilo e que para
o ministrar seja convidado o meu amigo Dr. Navarro de Sousa, ex-professor em Co
imbra, actualmente vivendo no Porto.
Mesmo alegre como pretendo que o de Mangudas seja, wn asilo sempre uma bem trist
e instituio, e j que no o tenho por meio definitivo, nem satisfatrio, que sirva, ao m
enos, para nele se fazer uma experincia.
O doutor Macieira recostou-se na cadeira e acendeu novo cigarro. A fadiga ressur
gia. Era um torpor, lento e morno, que relaxava os nervos como um hipntico. Mas e
le dominou-o e, retomando a pena prosseguiu :
"Henrique Sampaio Mendo faleceu nove anos depois de haver redigido o seu testame
nto. Na Europa de ento, falava-se muito da necessidade de criar novos mtodos de en
sino e a essncia do documento foi tornada, a princpio, por uma consequncia desse am
biente, embora um tanto confusa e talvez pouco frutuosa. certo que, sobre a part
e referente histria, houve logo quem proclamasse que os povos precisavam tanto do
pico, como as crianas do maravilhoso; mas
858
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
859
'4
"verdadeiras discusses s se levantaram em redifl
forma do testamento, que a maioria das pessoa.Alya
tantes da vila acoimava de hertica e inteiramenosSI
propositada para um caso daqueles. Os amigos .atnl
do testador justificavam-no, porm, com o hbitoS!
Sampaio Mendo tinha, de se mostrar irreverensteoj
rante as coisas mais vultosas e srias da vida, pOM"
diziam eles, pudoroso da sua bondade, pretendiaiJaaS
ocult-la; e garantiam ser essa ironia mais inofensil
ainda do que os insectos de grandes pernas que (r)D2|3
sobre ribeiros e lagoas como sobre uma vidraa^q8
sem ferir o lume da gua em que tocam e sem -yjjjn
morder ningum. s"*3
Para atabafar estas primeiras discordncias, ^nmjl
contribuiu o padre Matos, honra lhe seja, que estaB
velho e amolecido, tendo mesmo renunciado &
declarou no ver ofensa nas aluses que Sampaio Mep)8
lhe fizera e, se ofensa havia, ele, j de ps p&||B
cova, lhe perdoava. '^Hl
Assim, com uma parte do dinheiro legado se *ml
prou a antiga propriedade da Carreira e se adaptai
asilo a casa ali existente. Em poucos dias, aqueJB
encheu de risos infantis, pois na comarca de Mangual
eram tantas as crianas rfs como os velhos que anaH
vam, de pernas trpegas e bomal ao ombro, a p<pH
esmola. Ainda em conformidade com a ltima vontafll
de Sampaio Mendo, o ex-professor de filosofia DrONH
varro de Sousa foi convidado a exercer o seu magpB
trio no Asilo Experimental. Homem j idoso, de barfca|
patriarcais, ningum ousou, nos primeiros tempos, 3-ttjm
messar-lhe, publicamente, a sombra sequer duma peMH
As crianas amavam-no e, entre elas, chamavan-ljffl
"O Pai Natal"; nas ruas, o povo, quando o encontMj
descobria-se e saudava-o com respeito. Tudo, no Asiat
parecia decorrer normalmente..." jfljjl
O doutor Macieira ia iniciar outra frase, quando"*'
sua mulher surgiu porta do escritrio, com modsf
suaves, como sempre que tinha de o interromper. >%
Est ali um homem de Albelhe, a pedir para 'Ih!
ires ver um irmo disse-lhe, com uma voz cheia 9&
lbtima por ele prprio. Parece que urgente. A esta hora, quase a hora de jantar!
A filha do doutor Macieira viera tambm e olhava-o com o queixo apoiado num dos om
bros da me e o brao sobre o outro.
V l, v l, no h muita razo de queixa: Albelhe perto comentou ele, pousando a caneta
te arrelies: num instante estou de volta. E vocs ? Sempre foram a Rojante ?
No, no fomos. Mas isso no tem importncia. Iremos num outro domingo, em que estejas l
ivre...
A expresso dele contristou-se:
Aqui metido, nem dei por vocs... Tenho pena de vos ver sacrificadas por minha cau
sa. No um ofcio invejvel ser mulher ou filha dum mdico... Tornou a inclinar-se
para a secretria: Dize ao homem que j l you. E se eu no voltar at as oito, no
esperem por mim e jantem...
A mulher e a filha retiraram-se e ele comeou a pr na gaveta os documentos que util
izara e o caderno que acabava de escrever. Depois, ao levantar-se, pensou : "Qua
ndo virem impressa toda a histria, os homens da Cmara Municipal vo arrepender-se de
me terem convidado para redigir os "Anais"". O doutor Macieira saiu do escritrio
com essa ideia. Mas, ao passar no corredor, falou sozinho, como s vezes lhe acon
tecia: "No faz mal, desde que verdade".
VI
707." DIA
J\ manh apresentava-se enevoada, mas Palhetas tinha na alma todo o sol do Mundo.
Tinha o verde dos seus lameiros, a brancura do leite das suas vacas, o andar len
to das suas ovelhas pastando nas encostas da aldeia. E toda a alegria de colar o
futuro
86o
A EXPERINCIA
EXPERINCIA
861
' 4
f ao passado, cicatrizando o golpe que os separaagm
ls negros meses que estivera ali. ;p^
S no ltimo momento ele emudeceu comlil
de que Janurio ia ficar sozinho. Os seus olhos*]
correram a cela, como se a medissem ou procurai
algum que no se encontrava l; e, durante uma(r)
dos, breves como o trnsito duma ave visto do"ffi
dum poo, a cela pareceu-lhe muito maior do qoil
Vo uns e vm outros...disse, lanandl
vento a semente duma esperana. - E, mesrf<j2|
no venha ningum, um ms passa-se depressa.JSi
puder, irei ao seu julgamento. ill
A mulher e dois filhos esperavam-no em frehtl
grades. Ao lado do carcereiro estava tambm um seal
da Justia, muito srio e com um papel na mo/ <|S
Palhetas despediu-se e, ao chegar praca/'dSl
se voltou e fez um aceno de adeus para cima. >IOT
Atravs das grades, Janurio viu-o afastar-s% Em
os familiares, em direco ao cunhal da igreja. laM
pegando um pouco, mas adivinhava-se que ia feui
gesticular constantemente, a olhar para todos os la
como se quisesse reapossar-se, num s momento^
vida que o cercava e lhe sorria. Cy
Por fim, o grupo sumiu-se. S ento a cela paren
a Janurio verdadeiramente vazia. Como se ele fivl
ficado no passado, num tempo morto, e o prS"|
houvesse partido com o velho Palhetas. Contra tf>"
costume, principiou a andar dum lado para o out|
a andar com uma sensao de dia feriado, vago, m
rente dos demais. *
Na cela vizinha no se via ningum. Mas, po<|l
depois, a rapariga passava atrs das suas grades, vai
tava a passar, com o xaile nos ombros e as mos era
zadas em cima do peito. Dir-se-ia que, ao control
dos outros dias, os seus olhos se volviam, de quaoug
em quando, para o lado dele. Era um estmulo ou uwj
iluso ? Ele duvidou vrias vezes. Finalmente, deC|
diu-se e encostou-se s barras que davam sobre o COK
redor. Via-a dali como duma jaula para outra ja^^l
duas jaulas separadas somente pela passagem de acesg
ao circo. Ficou ostensivamente parado, a oferecer-se ateno dela, a oferecer-lhe um
a unio contra o isolamento, enquanto os olhos evitavam aquelas mos cruzadas que ha
viam feito o que se sabia. A rapariga continuou, porm, no seu giro, sem tornar a
erguer a vista para ele.
Janurio acabou por se afastar. E s ao meio-dia, quando o carcereiro lhes trouxe as
duas marmitas, voltou a v-la. Ela viera s grades entreabertas receber a sua, mas
sempre de olhar baixo, como se se sentisse acanhada. Fora um instante apenas. Lo
go se retirara para o fundo da cela, deixando novamente aquela solido que esvazia
va o Mundo inteiro. A colher dele descia e subia, descorooada e lenta, da marmita
posta sobre os joelhos. Pouco a pouco, porm, o prprio mal-estar ia estabelecendo
um elo entre ele e a rapariga, uma corrente criada por tudo quanto neles era igu
al e simultneo: a mesma comida, a mesma situao, talvez os mesmos pensamentos, nesse
momento. A sua dvida reagiu mais uma vez. "Aquilo no significava nada. Quem lhe g
arantia que ela sentia a mesma coisa?"
tarde, comeara a ter saudades do "Sbio" e do Palhetas. As horas haviam perdido tod
os os seus limites, o tempo adormecera no relgio da igreja, o sol demorava muito
mais do que nos outros dias a fazer no cu a sua curva radiosa. Ele nunca fora loq
uaz, Mas, desde que no tinha com quem falar, roa-o o desejo de falar fosse com que
m fosse mesmo com a ponta do sapato, com um co, se o co ao menos o olhasse. A som
bra que voltejava na cela vizinha surgia-lhe, de novo, como a nica mitigao. Ele elh
ava as nuvens brancas que se acumulavam ao longe, no cimo da montanha, por detrs
da ermida, e imaginava o dilogo, o que ele e ela diriam duma grade para a outra.
As nuvens ampliavam-se, a brancura da capela, que se via a sete lguas de distncia,
j se confundia com a brancura das nuvens e a ele continuava a vex-lo a ideia de s
er o primeiro a lanar a ponte, o apelo que talvez no colhesse resposta alguma.
862
A EXPERINCIA
1 4
t Finalmente, a solido esbarrondava o fara
ele havia erguido dentro de si prprio desdebql
bera a razo por que ela estava presa, um marM
os que bordam os pntanos e os despenhad^n
agora, os seus olhos j podiam encontrar aquelas!
grosseiras sem se lembrarem do que haviam ifoi
podiam v-las como um simples pormenor dtcj
inteiramente desligadas da outra imagem. - ofe
Tornara a parecer-lhe que ela passeava mdi
cela do que habitualmente e que o fazia, sofert
quando ele passeava tambm. Numa das vindadj
ra-lhe, perto das grades, a agulha do "tricot"; ia/
abaixara e, ao endireitar-se, ele julgou que uma
sorriso voara na sua direco. ,^Aj
Rompeu, de vez, contra a dvida, contra ele-iad
Ento no se aborrece de estar sozinha &nM
Falava-lhe encostado s barras, atravs do cogi
com uma voz cheia de expectativa, de receiosiM
ser ouvida, como se lhe falasse de borda parati
dum abismo. No era assim que havia imaginado."
ar, mas a excitao s permitira vir superficial
tamente aquilo que mais lhe pesava no esprito. J&f
tudo, o seu torn incerto deixara-o humilhado. E, ia"
tudo fora muito simples. O vulto negro detiviM
passos, como se no esperasse a interveno olfj
houvesse compreendido bem; depois, aproximara+sii
grades: -fa
Que diz ? ) M Ele ficou, de sbito, contente. Jamais teriaofl
ditado que a portadora daquelas mos lhe pudesaoj tanta alegria s porque dispunha d
o condo de^J!
Eu perguntava se no se sente aborrecida?! estar, h tanto tempo, sozinha... .'"MJ
Ela encolheu os ombros, resignada. Mas nailj uma resignao seca, masculina, como o s
eu corpo, permitia esperar. O movimento mostrara-se chei"! curvas e duma feminil
idade oleosa e quente. 'iv^
Que you fazer ? respondeu. E voc ? i<
Estou muito aborrecido, claro... W* A corda ligara os dois declives. A pouco e p
oa"i
A EXPERINCIA
863
foram diminuindo a intensidade da voz, medindo o torn, harmonizando-o com a distn
cia que os separava. A vida retalhava-se em bagatelas verbais. Era s o prazer de
falar, de restiturem a eles prprios o que neles havia de humano atravs das rioites
e dos plagos. De quando em quando calavam-se, o pensamento em busca de terra neut
ra, pois sentiam perfeitamente que, naqueles primeiros contactos, nem tudo quant
o emergia devia ser utilizado. Foi depois dum desses curtos silncios, cheio de pa
lavras recalcadas, que ela
disse:
Ainda me lembro do dia em que voc trepou macieira e o castigaram por isso...
Ela dissera aquilo com naturalidade e os seus olhos redondos, dum brilho negro,
anormal, pareciam suavizar-se sob a influncia da recordao:
Janurio ficara calado, a fix-la, sem a ver. Tudo era febril e surpreendente. Tudo
lhe parecia, ao mesmo tempo, absurdo.
Como ? perguntou com brusquido, sob a fora do nexo que acabava de formar-se.
Lembro-me muito bem...volveu ela, numa voz ainda mais doce. Voc fez aquilo p
or causa da Clarinda... Eu era pequena, mas percebi logo que foi por causa da Cl
arinda que voc trepou macieira...
Viu-a sorrir com ternura e uma indulgncia maternal que, subitamente, iluminava de
simpatia a sua cara rude. Nele, porm, alguma coisa se opunha a <}ue ela pudesse
sorrir assim depois do acto que praticara.
Ento voc tambm estava no Asilo ? perguntou de mau humor, como se essa igualdade pr
etrita o Desgostasse.
Pois! Eu j tinha compreendido que no se lembrava de mim. No me admira: andvamos sem
pre Separados, s nos vamos atravs da rede e eu era niuito mais pequena do que vocs.
Alm disso, mudei "iuito...
Ele voltara a contempl-la, despojando-a dos anos ^Ue ela vivera depois da infncia
e tentando a sua
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EXPERINCIA
A EXPERINCIA
865
I
* identificao entre as batas cor-de-rosa quethJ do recreio, traquinavam do outro lad
o da xitgm arame. A memria dos olhos recusava-se, pqnB estabelecer qualquer liame
entre a mulher qut> ttijjl agora, na sua frente e a criana que ele procwMB passad
o. 'ffll
Era interessante disse ela, isoladarntaiffli
O qu? stTm
q Asilo. tfa
Aquilo tornou a indisp-lo. *:i*^|
Parece-lhe ? Pois no me deixou saudades'.^! Dir-se-ia que ela ficara perplexa, pe
rdida rfi^B
tncia dos anos vividos, a perguntar a si prpjf|j era ela ou ele quem tinha razo. fiB
A mim deixou-me muitas afirmou, dep0JbB um torn longnquo. Nunca mais esse tempo V
4JM
Ele sentia, agora, o desejo de abandonar as $s"l de tornar solido que pouco antes
o oprimia. '(fJM
Calaram-se novamente. Era uma escolha ffiM como se procurassem, entre restos de
pedra briM um fragmento que no fosse cortante, uma dessas pgjjjl lisas, arredondad
as, que s se encontram abufidM mente nos rios e nos regatos onde correu a gtrfH sculo
s incontveis. Foi ela quem julgou t-la' fKiB
Quando o seu julgamento ? '*%5
no ms que vem respondeu ele, nuir$ MJ
Ela quedara-se a olh-lo com humildade e P^H no encontrar mais nada para dizer. '^I
fS
E o seu ? perguntou Janurio. - : J Perguntara aquilo apenas por perguntar, poiSi
<^H
tinuava desinteressado pelo destino dela. '^^JB
E o seu ? repetiu. - ^E Esteve ainda um momento espera, mas no/flP
veio resposta alguma. < i<Pl.
Tudo fora aparentemente muito simples, tuftojtf reduzira quela meia dzia de palavra
s, reciptiflw" dade que a primeira pergunta comportava; ma&$ compreendeu logo que
se haviam enganado, qne,vf
volver, a pedra redonda adquirira um gume e se enterrara na carne deles.
Janurio viu os olhos negros afastarem-se das grades e perderem o seu brilho; viu
a figura distanciar-se no silncio oco que cara nas duas celas; viu-a desaparecer e
ficar s o silncio e as grades; e depois ouviu, vindo do fundo do silncio e da cela
, aquela voz sufocada, que dizia sem convico:
Desculpe... Tenho de trabalhar.
VII
no." DIA
- J-JENSA-SE que no se descobrir, que ningum saber. Mas o pior que ns prprias ficamo
sabendo... Isso que o pior! Claro, a no ser que se esteja doida, ningum faz aquilo
por prazer... Voc compreende ?
VIII
A EXPERINCIA
D
_LJE novo o doutor Macieira se encontrava sua secretria, continuando os "Anais de
Mangudas". Na noite dum silncio morno, a luz do gabinete, ao Projectar-se no pom
ar atravs da janela aberta, enquajhava a copa duma laranjeira e o ramo prateado d
o jjttioeiro que pendia sobre ela, como se a quisesse beijar. Estendido no tapet
e, o co abria, de quando em quando, s olhos sonolentos, em direco ao amo, e voltava
a Dormir.
28 Vol. Ill
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A EXPERINCIA
867
' 4
* O doutor Macieira j relera as folhas Q)le,<|
escrito da ltima vez, retocara, de passagenjfiJM
outro perodo e lixava agora a frase ondeifljM
rompera: fn9dra|
"Tudo, no Asilo, parecia decorrer normaltaSH
Ardia o cigarro na borda do cinzeiro emspfJI
pena hesitava procura duma ligao rtmica.oMS
confusos, mal ordenados, infiltrando-se por"i^^3
recordao de cenas e emoes recentes, os vtfi-tt
que acudiam chamada; e ora apareciam, o$j
sumiam, como os peixes que andam entre limos, l
que so tambm a recordao de guas passadasJ
A pena ordenou, enfim, as palavras: ,y|
"Um dia, porm, comeou a murmurar-se 'cm
doutor Navarro de Sousa ministrava s crianaS
ensino nefasto. Um e outro afirmava que, com oj
texto de explicar "as razes das injustias, da mu
e da servido que anulavam tantas vidas e levjB
muitas outras ao desespero e at ao crime", cOnji
dizia no testamento, ele inoculava nos asilados '.m
perniciosas, fazendo deles, em vez de cidado&CJH
Ptria, uma horda de rebeldes, de futurosr$e8|
tentes, que viria aumentar o grande nmero i$m
tente c fora. (,3
Defendendo-se do que se propalava, o doutor |
varro de Sousa declarou que, no Asilo, obedecia apfl|
s determinaes deixadas pelo seu amigo Samj
Mendo e nestas nada havia que fosse malfico ou mel
novo, pois eram, ainda, o eco duma voz que soaria
dois mil anos nas plancies da Galileia, uma voz da
ento adorada por tanta gente que a consideravaj
origem divina. jl
As explicaes do professor no tranquilizara!
contudo, as pessoas mais responsveis de MangWoS
que no desejo expresso por Sampaio Mendo tiM^
visto apenas, at a, essa parcela de ideal com tfwt
hbito chancelar as iniciativas louvveis e que nenhOi
ligao manter depois com as realidades sequSffl
Ningum havia imaginado a srio que as ideias&J
critas no testamento fossem, um dia, postas em pr*H
Elas pertenciam ao nmero dos bons princpios morais
TT--_ .',3^,3^ -.Trt arr-^c^i-tT-anrlr* rnmn f"n mainr
que
jyas V^L -
ue a Humanidade vai entesourando, como seu maior bem, ao longo dos sculos, sem os
gastar jamais na vida quotidiana, pois um tesouro, pela sua prpria natureza, des
tina-se a ser guardado e no convertido em moeda corrente.
Mais do que meditadas, estas reaces eram sentidas de forma obscura, inconsciente,
tanto que se assinalava uma tendncia para se desculpar a memria de Sampaio Mendo p
elo que acontecia no Asilo e responsabilizar, em vez dele, o doutor Navarro de S
ousa. E isto no s pela condescendncia e respeito que costume dar a um morto, mas, s
obretudo, porque a essncia do seu testamento se evolava para um cu abstracto, onde
no se enxergava inconvenincia alguma, ao passo que o velho professor se empenhara
em dar-Ihe realidade directa e fazia-o com uma perseverana e uma f que ningum esp
erava, por serem de todo desusadas.
Inicialmente, estas discordncias e comentrios eram elaborados apenas pelas classes
abastadas e alguns mdicos, advogados e polticos. O povo, a braos com as suas prpria
s dificuldades, ouvia aquilo e logo se desinteressava, apesar de um e de outro s
e mostrar surpreendido de que o velho professor, com seus ares de boa pessoa, mu
ito simples, falando a toda a gente, que nem parecia um doutor, fosse assim to pe
rigoso como se dizia. com o tempo, porm, o prprio povo, quase todo analfabeto, dei
xou-se influenciar pelas pessoas importantes da vila e mudou de atitude. Constar
a que o doutor Navarro de Sousa havia ensinado aos asilados que a propriedade no
era sagrada e o facto de uns possurem tudo e outros no possurem nada 'arnbm concorri
a para abrir ressentimentos entre os homens e levantar os seus maus instintos, d
o mesmo ftiodo que quem est nu e com frio, se v uma ovelha, Pensa logo em liquid-la
e arrancar-lhe a pele, ao passo que se estivesse vestido, talvez lhe acariciass
e demoradamente o lombo e, com certeza, deix-la-ia viver er>i paz.
868
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
' "
* Se bem que uma parte da comarca de -Mn
se encontrasse muito fragmentada em pequei]
priedades, como ainda hoje acontece, a mifl
habitantes no tinha um s palmo de terrap<afc
que, naturalmente, lhe estavam reservados ne
trio, por higiene pblica. Mas esses mesmos<;ltt
os pequenos proprietrios dizerem: "Assim no M
estmulo para o trabalho, assim nunca chegady
coisa alguma, assim ficaro uns vadios", entB
que, efectivamente, e embora isso parecesse nqi
a quem olhasse para ele, o doutor Navarro det
andava a meter ms ideias nas cabeas das-oa
pobres de Mangudas. v.
Foi por essa altura que, no conselho nuri
um dos vereadores se levantou e, aps declafti
o professor devia ser tido como um inimigo &
da Ptria e do Rei, props que o demitissem B
mente, para se acabar com aquilo a que o p
chamava "o escndalo do Asilo". "Quando, hb
vinte anos disse ele o governo de entnal
da Universidade de Coimbra esse homem, os -Mi
rios do nosso glorioso partido apresentaram aqfilf
apenas como uma perseguio poltica e quiseralH
formar o doutor Navarro de Sousa num heri f a
mrtir. Agora, porm, v-se, claramente, ter o T$W
procedido em virtude duma razo muite mais prtlj
do que aquela que os seus inimigos apregoaram *
razo que interessa aos prprios fundamentos ct'1
sociedade. Nunca fui reaccionrio; ao contrarie J
a minha vida prova que tenho sido sempre untfl
svel defensor do progresso. Mas progresso umaO
e subverso dos espritos outra muito diferente^
O doutor Navarro de Sousa foi demitido dias *
E, durante alguns anos, o Asilo ficou apenas coltf
professores primrios. ^
Mas, com o rodar do tempo, o semanrio <Jo<>
tido Regenerador, uma vez mais gritando na opo
comeou a afirmar que o facto de o doutor Na*1
de Sousa haver exagerado nas suas funes nofe
titua motivo suficiente para se deixar de cumpl
869
testamento de Henrique Sampaio Mendo. Este, bem vistas e ponderadas as coisas, s
desejara que os homens se compreendessem e amassem mutuamente e se mostrassem ju
stos uns com os outros, o que era, no fundo, a prpria doutrina de Cristo.
Como o jornal argumentasse com a "sagrada vontade do morto, que no fora acatada,
apesar da grandeza de alma que ele revelara", criou-se, mesmo entre os que apoia
vam as autoridades, um estado de esprito em que a superstio tinha, talvez, maior pa
pel do que o respeito s ideias de Sampaio Mendo ou o prprio destino das crianas rfs d
e Mangudas.
Quando, aps novas eleies, o Partido Regenerador voltou ao poder, de estandarte lava
do de todas as ndoas antigas, decidiu-se contratar um outro pedagogo, tambm profes
sor de filosofia, que reacendesse no Asilo a chama apagada. Era um homem jovem,
o doutor Ribeiro de Vasconcelos, que obtivera alta classificao e laudatcias palavra
s em todos os exames. Mas a sua magistratura foi, igualmente, efmera. Ao fim de a
lguns meses, principiaram a tombar sobre ele acusaes semelhantes s que haviam sido
atiradas ao seu predecessor, como se uma draga lhe despejasse em cima a lama e a
s pedras trazidas do fundo dum mesmo rio, velho e sempre sujo. E o jornal que, a
nteriormente, protestava por no se respeitar a vontade de Henrique Sampaio Mendo,
mantinha agora, sobre o caso, um Prolongado silncio.
Foi nesses operosos dias em que o "Eco de Mangudas" louvava, sem nenhuma tempera
na, os sucesSlvos empreendimentos do governo regenerador, que
0 presidente da comisso directiva do Asilo escreveu a doutor Ribeiro de Vasconcelo
s, advertindo-o de que e^e estava a ir muito alm da funo que lhe comPetia. Ningum sa
be o que se passou na alma do novo Prfessor, assim posta, de asas coladas, sobre
um fio; nias respondeu, como o doutor Navarro de Sousa, que Se Hmitava a cumprir
o que o testamento estabelecia, P,0ls era esse o seu dever. E ajuntava que se,
a prinClPio, ele prprio no concedia um acordo macio s
870
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
87I
ideias do testador, depois de as haver experftiid
nas crianas acabara por concordar com elasf 31
O presidente desfechou-lhe imediata rptseSl
rante vrios dias, uma polmica epistolar rr^j
entre ele e o professor, com ressonncias na'fa
nos sales das pessoas importantes da vila e.nwfj
valos dos espectculos que uma companhia de<4
estava a dar em Mangudas. Tudo andava &M&I
forma como se devia interpretar as palawepl
preenso activa e no passiva", que SampaiU*!!
havia escrito no seu testamento e o presidente^
dera v subversivas. 1> i
Como acontecera ao doutor Navarro deS<"j
segundo professor foi demitido tambm e parsiH
manh de Maio, em que a quinta do Asilo seofl
trava cheia de flores, que as crianas colhiafift '
ofereceram em dois grandes ramos. oM
Depois disso, muitos mais anos se passatffli
se executar o testamento. Talvez uma ou outraopd
ao lembrar-se de Sampaio Mendo metido naquebyl
tura rasa que havia num canto do cemitrios, Sj
oculta pelas plantas bravas sobre ela nascida",^
sentisse satisfeita com essa desobedincia suduaol
vontade, mas ningum ousava dizer palavra quj
tasse adormecidas antipatias. Veio, por fim, alft
lorizao da moeda e se, para muitos mangled"
isso constituiu a runa, para o caso moral do As
uma soluo providencial. Desde que o rendimp*
dinheiro legado por Sampaio Mendo j no b
para sustentar as crianas, cessava, com grande1'^
dos mais tementes, o dever de cumprir o testaaht
Quase todos estavam de acordo em que, pOffli
parte as ideias extravagantes de Sampaio Menl
Asilo seria uma instituio til; s dois ou tt
quem os outros chamavam desdenhosamente "os flj
tas", homens nem sempre de maneiras correctas^
a polcia vigiava de quando em quando, garant
que o futuro havia de resolver o problema derffl
forma muito melhor. Mas ningum lhes dava ouv
O prprio vereador que se tinha erguido contra o dQ
Navarro de Sousa declarou que seria louvvel manter
0 Asilo, desde que as crianas fossem educadas com necessria disciplina e nos boris
princpios usados pelas famlias honestas, que ainda as havia, felizmente, para hon
ra de Deus e da Ptria, em Mangudas.
Perante esse sentimento colectivo, decidiu-se substituir o pessoal laico por fre
iras, na esperana de que as pessoas ricas da vila, sobretudo as que eram muito de
votas, contribussem, com os seus donativos, para a manuteno dos asilados. Isso, porm
, no aconteceu e, assim que se esgotou o capital deixado por Sampaio Mendo, a por
ta de carvalho do Asilo, slida e escura, com uma bela cruz de madeira doirada que
a Superiora mandara embutir ao centro, fechou-se definitivamente sobre a ltima c
riana que sara, sem que a experincia estabelecida no testamento tenha sido jamais r
ealizada".
IX
132." TARDE
JjiA Cesria em voz alta e as outras estavam sentadas ao lado, [muito quietas e at
entas, quando Qarinda entrou na sala. Fosse porque o nome do doutor Carrazedas v
iera, pelo ar, ao seu encontro, fosse Pr aquela pausa que Cesria fizera ao v-la apa
recer, eta pressentiu logo o que o jornal propagava.
As mulheres volveram os olhos, carregados de lstlrna e de esperana, como se lhe di
ssessem: "no te arrelies, que ainda no est nada perdido"; e a Isaura, jttorenaa, jov
em, bonita, que substitura Pilu, afasj-Va-se ligeiramente de Natalia, criando-lhe
lugar no div.
^ -No nos tinhas dito nada... observou Cesria. k ficou a olhar para ela, para a e
xpresso vacilante
872
A EXPERINCIA
' 4
., do seu rosto, para a dvida inquieta que 6o*
suas pupilas: No sabias ? Ele no te mandoj
Toda a curiosidade lhe parecia despropsito
a resposta to absurda como nascer para motei;
Agarrou, bruscamente, no jornal e foi meteu"
dos cortinados da janela. As outras viram-nau
mo testa e impelir os cabelos para cima, ^r
tro, cinco vezes, como se os cabelos no lhe ai
sem ou ela no pensasse no que fazia. Por finj,
olhos correram sobre as palavras que parecjp)
e dissolverem-se. >
"...apesar de vasta, a sala estava cheia, .fr
processo despertou grande interesse na regia/q
categoria da vtima". IBM
Aquilo no a quis afligir e, por isso, n^a,
veniu... aventurou Lusa. Essa histria d-l
da cabea... ,D.
"O ru apresentou-se com modos tmidos e, i
quando o juiz o interrogava, para identificaca'j
pondia sem jamais levantar a vista".
Da cabea e da algibeira...Natalia l
ainda mais a voz: A Dona Fortunata disse-me, q
que no lhe emprestava nem mais um vintm...
"A leitura da acusao e a da defesa, que o
gado ditou, ocuparam toda a manh, dado que o Jj
rio tem maus antecedentes". f
Lusa sussurrou: >,i
Eu emprestei-lhe um conto de ris. E, se^
mais, mais lhe emprestava. A patroa no fazi
nenhum... h'
"...reabriu s 14 horas, com o interrogat^H
testemunhas. impossvel darmos todos os depfil
tos feitos, que se arrastaram durante a tarde, lBf
-nos-emos ao mais importante, o da senhora Gerf
Ribeiro, governanta do tabelio ao tempo do ci
S o advogado uma conta calada con
rou Cesria. Se ela no toma juzo, nunca mais<
reita a vida...
"A testemunha, vestida de negro e uma blusa toada at junto do queixo, entrou na s
ala com n}
A EXPERINCIA
873
HrJBBfifc deciso- De todas as pessoas j ouvidas, era ela quem
Jy^Br parecia estar mais vontade. Contudo, um momento
l*Nlp jjouve em que a sua voz dir-se-ia comovida por ser
gHj^B obrigada a recordar aquilo: "Quando cheguei ao cor-
^SJB redor, ele estava a esvair-se em sangue e disse-me:
rSaR "O malandro matou-me". Pensei, ento, que nunca mais
flgpBp veria vivo um homem to bom e to srio como era
qjSii> Q senhor doutor Carrazedas". A voz da senhora Ger-
M^jgK mana perdeu a sua dolncia e comeou a depor com
rmj^H muito desembarao. Contou, pormenorizadamente, a
XjjSB "da ^ r^u< 1uan<io era criado em casa do notrio,
j^^B " No tinha nenhum amor ao trabalho. At fomos
j ill obrigados a comprar uma bicicleta, para ele no perder
[Kgj^B duas horas por dia, que quanto gastava para ir ao
^j^Mj mercado. E quando o mandvamos a casa do doutor
n^B Agnelo, era uma tarde inteira, j se sabia. Muitas
oj^B vezes e cnamei vadio, pois parece que eu adivinhava
^M| cmo ele ia acabar".
h1|^K As mulheres j no falavam to baixo como h
gjrf^B pouco e as suas palavras infiltravam-se, confusamente,
^B nos ouvidos de Clarinda:
' 'H^B ^ (lue you ao Estoril no domingo, isso you
jg^B dizia Lusa. No gosto muito de regatas, mas pro-
"^B meti ao meu rapaz... Se a Dona Fortunata no ficar
"j^m contente, por ser domingo, pacincia!
i"BB "...o advogado perguntou-lhe:
^fi^m * E voc o que fazia l em casa ?
>'^B * -^u fa:ia a cozinha, senhor doutor, e era a gover-
a^ <(~~ Muito bem. So dois ofcios perfeitamente res-
o||jH Peitveis. E quantas divises tinha a casa ?
rngjjH <(Assim de repente, senhor doutor... A teste-
tjjj^B munha baixou os olhos, como a interrogar-se a si pr-
n^B Pfia. - Umas catorze...
H: ^ * E uma adega, a horta, o jardim e os animais,
ji^B io verdade ?
-Ojj^B Enquanto conversava, os olhos de Cesria foram
^d a* a janela, voltaram, tornaram a ir. Clarinda estava
"74
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
875
pif
' 4
m
de perfil, a cabea inclinada sobre o jornal^ dB
vibrava ligeiramente nas mos; e o seu GOTp^f
atravs do cortinado de renda, dir-se-ia pcn
feito de milhares de partculas, como um mpajjjfi
No te rales, rapariga! Largos dias tfe 1
anos! gritou-lhe Cesria. , jxaJlJj
As outras mulheres contemplaram-na tambxtej
ram um momento caladas. ' -ffyj
" Era uma casa grande, como comp&tBtfIfa
homem com a riqueza do doutor CarrazedasfLdj
casa com muita labuta, est claro... E quanti
dos tinha ? aofm
"Pois tinha a ele, senhor doutor... E/41^
bem! Antes de ele ir para l, tambm s iaftajj
criada. __ io/f)
" verdade que, na vspera de o ir byga
Asilo, voc despediu um homem que ia l a Cf
vez em quando, tratar da horta e do jardimitf|
outro, o Joaquim Chambuta, que ia tirar a gfs
" A gua, senhor doutor, foi sempre tirada a
criadas. O homem era provisrio. > l
" E o que cuidava da horta e do jardim? /y$
"- Antigamente era a criada que fazia tud&
o senhor doutor sabe o que so hoje as criadas^fS
nasala), >BII
" Ento foi ele quem passou a tratar tamM8
horta e do jardim? <>,,J|
"Pois! E olhe, senhor doutor, que no fM
balho de rebentar". -l
Eu tambm no acho graa nenhuma s g
tas dizia Natalia. uma pasmaceira. Ainta-i
gente estivesse perto! De touradas, sim, gosto. ,'>vi
" ...quando havia pessoas de fora a jantgrrJ
chamava, para a auxiliar, uma sua prima... A,|
" J v, senhor doutor! Para no o sobrecarr
" Mas antes de ele ir para l, voc chamas
sua prima trs dias por semana, mesmo que nogl
vesse visitas a jantar... i -|
"A testemunha olhou para o tecto, como a HHJ
dar-se: 6'
" No digo que no, senhor doutor. No que o trabalho fosse muito; as criadas que no pr
estavam-. (Novos risos).
" Quantas teve voc no ano anterior ida dele
para l?
" Oh, senhor doutor, disso que no me lembro nada. J foi h tanto tempo!
"Bem, nesse caso you ajudar-lhe a memria...
"O advogado leu, ento, os nomes duma dezena de raparigas, das quais apenas uma es
teve mais de dois meses em casa do doutor Carrazedas.
"A testemunha interrompeu: J v, senhor doutor, que no prestavam...Mas o juiz orden
ou-lhe que se calasse".
Pareceu a Clarinda que a campainha soava no na porta, mas dentro da sua prpria cab
ea, com o torn repentino e agudo dum alarme, que, depois de se prolongar, ficava
em expectativa, a aumentar a confuso que ela sentia.
"E, agora, diga-me uma coisa: quanto que ele ganhava ?
"Oh, senhor doutor! Se era um asilado!
"-O seu patro nunca lhe disse que lhe pagasse alguma coisa?
" No, nem tinha que dizer, pois se lhe fazamos toda aquela esmola!"
Os passos da Augusta expandiam-se no corredor, mas chegavam-lhe duma maneira vag
a, apagada. Parecia-lhe que, em vez de se aproximarem, se iam distanciando, ensu
rdecendo, morrendo sobre tapetes.
" Nem lhe disse depois de saber que ele tinha mentido sobre o verdadeiro preo dos
produtos e ficara com cinco escudos que no lhe pertenciam?
" No.
"O advogado voltou-se, ento, para o juiz:
" No preciso mais nada da testemunha",
A Augusta chegou porta da sala e, de modos despachados, vozeou:
Meninas, para o quarto!
As mulheres tardaram a obedecer. Viraram-se para
8;6
A EXPERINCIA
f Clarinda e ficaram, um momento, indecisas* ~(r)s~eH
dela no se erguiam do jornal. , jM
"Foi ouvido a seguir, como declarante, o dam
Agnelo Carrazedas, filho da vtima. No tribuna}-^*
de novo, um grande silncio. O doutor Agnelo m"
que o seu pai fora, toda a vida, um carcter aaste
E acrescentou: "De rija tmpera, como o desse n^
gueses antigos, que descobriram meio Mundo -ene]
ram Portugal de glria; desses portugueses dmn
cara e duma s palavra, que se, aparentemeqhj
mostravam duros, porque detrs dos seus actosrmj
sempre um objectivo nobre a atingir. Se o rae"j
recolheu um asilado, porque tinha, tamba$ ,J
plano sobre o futuro deste. Ao colocar o rapaz ae
servio, no pretendia mais do que fazer detTJ|
homem cumpridor dos seus deveres, experimentastes!
disciplina e no trabalho, pois certamente pensa v arS
jar-lhe uma situao superior de criado logocS
ele atingisse a maioridade". aMI
"O advogado de defesa: Pode o declarante inja
mar-me se o doutor Carrazedas lhe confessou, ajgfflj
dia, esse projecto e em que termos o fez? -" i
" No. O meu pai, pela sua educao, perteWl
a esse nmero de homens que se sentem dimittmB
se tm de falar de assuntos domsticos, mesma wB
seja com um filho". |||
Era como um disco avariado, sempre a rej&nl
"Meninas para o quarto! Meninas para o quarto! ||
ninas para o quarto!" Um disco dentro da sua cabefil
Finalmente, as mulheres levantaram-se e, ao pasfl|
em frente dela, olharam-na como se lhe dissesse"
"E tu no vens ?" Mas ela continuou de olhos fixdsiH
" Ento em que se baseia a sua hiptese ? jl
" No conhecimento do carcter de meu pai e fm
mil pormenores. Porque ele, apesar do seu aspecto frfl
tinha, no fundo, um corao de oiro. jl
"O advogado, irnico: Muito bem. Estou Perjl
tamente informado. E felicito-o pelos seus bons senifj
mentos filiais... No h muitos filhos assim... Jl
A EXPERINCIA
877
"Foi ouvido, ainda, um antigo caseiro do doutor Carrazedas, a quem pertenceu, in
icialmente, a bicicleta que o ru usava quando ia ao mercado. s dezoito horas, o ju
iz marcou nova audincia para tera-feira
prxima".
X
151. DIA
f) Francelim, raiando os quarenta, de cabelo luzidio, cara ovalada e cinco centa
vos de bigode sob o nariz, havia mostrado logo ser homem previdente, farto de sa
ber que s se conhece o verdadeiro valor dos objectos da nossa vida quando, fora d
e casa, precisamos deles e verificamos termo-nos esquecido de os trazer. Entrara
de maleta cheiinha de coisas vistosas: um frasco azul de brilhantina, uma escov
a assente em prata, gravatas de muitas cores, reluzente mquina de barbear, outra
quinquilharia; e clandestinamente, iluminando as trevas da algibeira, uma harmnic
a de boca, capaz de pr a danar os insectos mumificados nos museus.
Mas, naqueles primeiros dias, ignorando ainda a pinta do carcereiro, Francelim no
a soprara; falava de manh noite, mais verboso e opulento de tons que o ramalhar
de floresta sob vento desabrido. A princpio, ainda tratara por "voc" a Janurio; dep
ois, era tu c, tu l no ests a ver, ora essa! mas sem
0 ar de superioridade com que "O Sbio" prestigiava as suas barbas longas e negras
.
Andaste com sorte, pois alguns tm de esperar anos para serem julgados...
Francelim passeava dum lado a outro da cela, de tal modo que ningum veria nele um
cativo a pulverizar, entre os ps e o soalho, as horas preguiosas; Passeava em fre
nte de Janurio, conversando, as mos
878
A EXPERINCIA
f nos bolsos e o busto bem erecto, no jeitarddd|
discreteia, em sua casa, com um velho amigtfoji
que o escuta comodamente sentado. De quraS
quando, aproximava-se das grades e derran^K
fora um olhar distrado, de todo alheio gros^H
barras de ferro e importncia do seu sigf|
olhava a praa como um proprietrio, vendo,- Hg!
janela, as terras que lhe so familiares. t*ftc|
Tambm nisso tiveste sorte. No h dtHilti
ela gosta de ti e viu a coisa como deve ser^t^g
um defensor oficioso como um almocreVe'Ha3
cigano: mesmo que diga a verdade, ninguem'^ljj
dita. Mas, ento, ela rica ? ~'"s" J
Janurio tardou a vencer a sbita hesitaif
porm, abonou, descendo a vista: .57'"
Rica, rica, no sei se , mas os paiVftfeM
tante... 9^1|
Voltou Francelim a olh-lo de alto a baie^aM
joso de esquadrinhar-lhe corpo e alma, em'foaaoH
qualidade que justificasse to avantajado .pfrij
homem to vulgar. Depois comentou, numa'-^IIB
derrota interior: 3 .JgjJ
No caso de todos os dias uma raparigawH de boas famlias interessar-se por um tipo
comiM mesmo um caso raro... Disseste que ela se*l|H Florinda ? lfl*SS
No; Clarinda. '^ffl Francelim tirou o pente, que se via no bola(r) JH
rior do casaco, como o dos barbeiros, emergJJldlH detrs do pequeno leno, e aprimoro
u o cabelo: rO^H
O nome no nada feio e v-se que a pe<wH tem bons sentimentos. Tiveste sorte! <^JB
O doutor Macieira disse-me que pedira a^>a^B gado para no receber mais nada dela.
.. -J-s^8j
Ento ele quem paga ? ' "jH
Na outra cela, a figura negra continuava *"^J roda do seu poo invisvel agora mais
distairfjiB das grades do que quando Janurio se enconlsjB sozinho. No tornara a fa
lar com ele desde que hsawfl
A EXPERINCIA
879
trazido Francelim para ali. Como nos primeiros tempos, volteava somente na parte
menos iluminada da cela ti mesmo quando o rosto surgia, por momentos, na clarid
ade, dir-se-ia ainda pegado s sombras, maneira dos velhos retratos pintados sobre
fundo escuro. Algumas vezes, Janurio encostava-se s grades, olhando-a muito, na e
sperana de recomear os dilogos interrompidos; mas sempre o olhar dela passava sem s
e volver, como se ele no estivesse ali, como se entre os dois o ar se houvesse to
rnado opaco. Uma manh de maior audcia, ele enviara-lhe, em voz alta, um "bom dia"
cordial; ela baixara apenas a cabea e prosseguira no andamento de animal puxando,
de olhos vendados, os seus alcatruzes.
Tambm Francelim, a toda a hora loquaz e bemdisposto, tentara ligar um fio verbal q
uele silncio rotativo; viram-na, porm, acolher-se ao fundo da cela, s voltando a tr
ansitar mais tarde, teimosamente indiferente ao que decorria na cela vizinha. Ja
nurio ficara-lhe, de sbito, agradecido. Ele no simpatizava com os modos decididos e
galanteadores do seu novo companheiro e a atitude dela parecera-lhe um saboroso
castigo.
Naquela segunda-feira, Francelim dissera, mal se levantara:
Provavelmente, finda amanh. Deves ter coragem.
Depois, foi insistindo naquilo:
Um caso assim no d mais, com certeza, do que duas audincias...
Francelim parecia, por vezes, to preocupado como se fosse o prprio destino dele qu
e a Justia ia pr sobre a balana:
uma espiga se tenho de ficar para aqui sozinho ~ disse.
Ento Janurio lembrou-se de como ele era falaCeiro e largou a rir:
Deixe l... Tambm eu pensei ficar muito tempo sem ningum e, afinal, veio voc...
Pela primeira vez desde que estava ali, Francelim
88o
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
881
1 4
,j
pegara na harmnica. Sentia-se vaidoso de a. ktf
trado ao exame regulamentar com a mesma &H
com que subtraa carteiras; mas, depois de *ti^|
boca, renunciou a toc-la e afundou-a novaml
bolso. iilMl
Ao comeo da tarde, dormitava Francelim, USEI?
ss soaram ao fundo do corredor; os do carcereira^
Janurio reconheceu logo, e uns outros, suaves, l^q|
que lhe despertavam uma lembrana, um vagfl^Mj
sentimento, o desejo de no estar a enganar-spl
prprio. ' JBt
Era a hora em que se permitia visitas. Osi^pjl
aproximavam-se, alargando a expectativa. fiiifi
De sbito, Clarnda pareceu-lhe ainda mais bet
mais delicada de expresso e de gestos do qus";!
gem que ele trazia na memria. O carcereiro deitt
ali e voltara para o seu cubculo. Ela ficara ertl
duas celas, a olhar para o lado dele, mas dumftl
incerta, como se o no visse nitidamente na obSB
dade interior. $ti
Janurio correu para as grades. "No te esp^
- disse e no pde dizer mais nada. Os lbi-j
miam-lhe, mas como se fosse do lado de dentro, $
os dentes. Ela tambm queria falar e tamblfl^l
podia; sentia-se mais envencilhada do que a prMJ
vez que se tinham encontrado em Lisboa e ele, -SM
o passeio, a chamara, tmida e docemente, quando
andava por ali a ganhar a sua vida. '*"!
Foi a figura adormecida, em mangas de caiai
sobre a enxerga, aquela presena indesejvel, ab"
dante de realidade, que a reconduziu a si prpriaM
Ento como ests ? A sua voz era aind"^| mida. Ela olhava-o muito, mas no o via a se
u gflW Dir-se-ia que a barra de ferro cortava a cabea tfe em duas partes; em cima
, s a testa e o cabeto jf baixo, o rosto mais magro do que quando ela o W da ltima v
ez e com os olhos a evitarem fix-la, c<&& se estivessem envergonhados. 'a
Por que no me mandaste dizer o dia ? "* Ele no respondeu. Mas ela j adivinhar
a tat"
j sabia tudo e se perguntava no era para confirmar, j^s para o repreender maternal
mente:
Eu teria gostado mais se mo houvesses dito...
Francelim despertara e, sentado no colcho, os braos estendidos sobre os joelhos, o
lhava com uns olhos pestanej antes, cheios de sono e de surpresa.
Quando chegaste ?
H pouco... Ainda no h uma hora... Janurio estava certo de que o embrulho que ela
trazia era para ele. Estava certo disso, mas no sentia pressa de saber o que vinh
a naquele embrulho to bonito, o papel novo cuidadosamente dobrado e preso com um
fio azul, tudo ainda como sado da loja, apesar do carcereiro haver metido os dedo
s para verificar se no se tratava de ferramenta de evaso.
Deves estar cansada, pois longe...
No, enganas-te, no estou. A noite passou-se depressa e, mesmo sentada, dormi...
Tantas coisas para lhe dizer, tantas!, a arca cheiinha at acima, o rio a transbor
dar, e sempre aquele empecilho na garganta, aquele empecilho em todo ele, como s
e s lhe fosse possvel falar longe dali, sem as grades, sem o Francelim atrs das sua
s costas, longe dali, longe dali, onde pudesse abra-la, beij-la, onde pudesse chora
r se tivesse vontade de o fazer.
E, agora, onde vais ficar ?
Bem... Eu deixei a maleta na Penso Moderna... respondeu e abriu um sorriso irnico
e, simultaneamente, resignado: Parece que tm faro... No me disseram nada, mas pe
rcebi que no me aceitavam de boa vontade...
Ele tambm no disse nada. Mas um ressentimento enovelou-se contra aquela gente, con
tra a sua casa de Achada branca, com grandes letras vermelhas "Penso Moderna Pr
eos mdicos" aquelas letras que ete sempre vira de longe, por entre os grossos tro
ncos ^os eucaliptos, com uma ideia de bem-estar, e que lhe Pareciam odiosas agor
a.
Clarinda arqueara o embrulho e introduzira-o atras das grades.
882
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
883
uma camisa e uma gravata... Logftiii centara, num torn mais arrastado: Para 3JU
M
Ele ia a agradecer-lhe, mas ela, de repen(^^ se no quisesse nem ouvi-lo, nem v-lo,
pusaali olhar para o corredor e para a outra cela()najg(
Est tudo muito mudado... Muito difejfa^ nosso tempo... f y|3
O Francelim levantara-se, vestira o casaciM""f tara discretamente a gravata, que
em frenlan mulher ele sentia sempre a necessidade de esnoilj O seu desejo seria
aspirar aquela pele joveifl} fe| participar daquela sorte de que Janurio no htojl c
ia, nem de longe, merecedor; mas, com unjftfS provisria, que no sabia ainda onde l
anar asa^n foi encostar-se s grades que davam sobre are| razoar sobre a forma de int
ervir. f>(3fs^
Clarinda tornara a olhar para a outra Gai* olhava e a sua dvida prosseguia, ela re
tirava jofe e a dvida mantinha-se l, mantinha-se como,S| que se vislumbra de noite,
sobre o caminho, eUflji se' acende um cigarro e volve escurido logod^Ji afastamos
. O vulto negro continuava a passispj repassar, as mos cruzadas sobre o peito
e sem ym voltar a cabea, na atitude dum cura atravessas! sua igreja. oM
ela, no verdade ? perguntou, enfirjj,^ se estivesse certa de que ele sabia. aqu
ela p<?fii que esteve no Asilo connosco, no ? > ,q|
Janurio baixou a cabea. ,OT
Tambm est muito diferente... Por que nJM escreveste nada ? iov J
Ele encolheu os ombros: a3!
Para tristezas j tens que baste... ,nt{9< As plpebras de Clarinda desceram.
Tantos-fei
tantas corridas de meninas, tantas brincadeira^ M* hora; e o castanheiro com seu
s rebentos, a naai* com os seus frutos e, do outro lado, os girassf*) tantas menin
as a correrem quando tocava a S19 findava o recreio, tantos bibes cor-de-rosa a sut$
P esvoaantes e apressados, as escadas. ,-f
Por que est presa ?
Ele disse-lho e, depois, ficou sombriamente calado. gla ficou tambm sombriamente
calada, sem saber como proceder, perdida dentro de si prpria, perdida e a pensar
que fora tudo uma questo de tempo: a outra esperara mais e ela no quisera esperar,
o tempo que criara a crueldade, tudo fora uma questo de tempo e tudo tivera o me
smo fim.
Um momento, pareceu-lhe que j sabia o que havia de fazer; mas ficou ainda parada,
a derrotar, de novo, aquela repugnncia seca, que ora morria, ora ressuscitava, m
uito forte.
Por fim, atravessou o corredor e encostou-se s outras grades:
Boa tarde...
Teve de repetir com voz menos trmula: "Boa tarde...", "Boa tarde"; teve de repeti
r at o vulto se imobilizar e aqueles olhos virem para ela, redondos e frios como
os das aves nocturnas, quando se aborda o seu cativeiro.
No te lembras de mim ?
Nos olhos, a fixidez parecia aumentar de instante a instante e debalde Clarinda
procurava relacion-los com o olhar que conhecera outrora.
No te lembras? Eu sou a Clarinda...
Lembro-me...
Os lbios ainda tiveram um outro movimento, como se fossem dizer mais alguma coisa
; logo, porm, aquela imobilidade dos olhos se dissolveu e o corpo deu meia volta,
agitando as franjas do velho xaile.
Pega l. Guarda para ti...
Clarinda falava apressadamente, para a reter, enquanto as suas mos abriam a carte
ira; mas, atravs das grades, s se via j a parede do outro lado e, esquerda, abandon
ados sobre o velho caixote, as agu'has e um novelo de l vermelha.
Vem c, ento...
Do canto que no se via dali, chegava um murmrio quente, de quando em quando sacudi
do, e, depois, tudo ficou em silncio.
884
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
885
1 4
* Clarinda volveu para o lado de Janurio. !| ^g
J outro dia ela me fez a mesma coisa - dist Francelim julgou propcio o momento para
<swS||
ximar e meter o seu enxerto na conversa: v -fijjn
No deve regular muito bem... declani(Wj o ar todo iluminado de cortesia. E ps-se a
distw os comentrios, s para continuar em frente dej rinda, da tentao que cara do
cu, enqusn<"| estava a dormir. mj
O carcereiro veio busc-la logo que o relop igreja deu trs horas. Ela despediu-se: g
feA
At amanh... No te aflijas... ,ky E partiu ante o sorriso comovido de Januiij
gula hmida de Francelim e uns olhos imveis ap|
fixavam do fundo escuro da outra cela. i j
C em baixo, na galeria que atravessava o edui
Clarinda deteve-se: "jd
D-me licena de olhar a quinta ? i c|
proibido disse o carcereiro. m
S para a ver, de acol, um momento...-iA mal faz ? Estive aqui, muitos anos, no tem
po do All| e gostava de ver como ela est agora. > j
O carcereiro mirou-a de lado. E lembrou-se dej todos os asilados que ele conhece
ra, depois de o Am terminar, tinham a mania de querer olhar a quisj se vinham po
rventura ali; nunca, porm, havia apflf eido um assim to bem vestido. "^
Clarinda tomara aquele silncio por uma conceal
e o carcereiro viu os seus pezitos ligeiros avanai)
para o extremo da galeria, metidos em sapatos noil
e elegantes, iguais aos das mulheres que so ric|
"Esta teve sorte" considerou. ' {
Haviam tirado a antiga rede de arame. O ara^l
engordara, transformara-se em barras de ferro e mflJi
ra-se dentro da casa. Nada, agora, dividia a quirt
mas no se encontrava l ningum. Tinham tamfai
cortado os filhos do castanheiro e o velho pai estaf!
ainda quase nu, deixando entrever a montanha cKI
tante atravs dos seus mltiplos braos abertos. S<|
grande macieira se apresentava j coberta de floral
na Primavera nascente. O olhar de Clarinda vagueou para o lado da casita que se
erguia l fora, a meia encosta, e onde uma mulher, em p, junto da porta, atirava de
comer s galinhas. E, ento, a enorme copa florida da macieira, que dominava toda a
quinta solitria, provocando os verdes ainda tmidos e os botes ainda hesitantes, av
anou para os seus olhos, a ench-los de brancura, a ench-los completamente, como se
as flores houvessem sido esmagadas e derramassem neles o seu sumo.
O carcereiro estranhou que ela demorasse to pouco. "Muito obrigado" ouviu-a dize
r, com voz apagada, quando passava na frente dele. E viu-a sair depressa, como s
e lhe tivesse ocorrido alguma coisa.
XI
O JANTAR
p^RAM oito da noite, uma noite de lousa, pesada e
opaca, que acabava de cair, escorregando dos
montes, sobre o vale; e a essa hora, em todo o concelho,
quem podia ter panela ao lume encontrava-se a jantar.
Palhetas sentava-se na cozinha, velha mesa roda pelo caruncho, negra de ndoas e de
fumo como o escabelo e as paredes e sem nenhuma toalha. Findara tarde o julgam
ento, beira das sete, e ele sentia-se ^nda fatigado da caminhada, que os quatro
quilmefros de Mangudas sua aldeia, sempre a subir, custavarn-lhe mais do que duas
lguas quando era novo.
com os dois filhos homens a seu lado, um a cada cabeceira, e a mulher de p, em fr
ente, que ela jantava sempre por ltimo, depois de os servir, Palhetas esfarelara
sobre a malga de caldo um naco de broa, derramara-lhe em cima um dedal de vinho,
mas pareC1a no ter, nessa noite, pressa alguma. Ao contrrio
886
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
'4
da sua maneira habitual de engolir a sopa^aafe
com uns rumores que exigiam dos ouviddsjfajBj
cado trabalho de seleco para estabelecer"a. . Hi^
que existia, apesar de tudo, entre as manifestaot
gamela e as da tigela, comia lentamente destS
interrompia-se, para falar, a cada duas ou r^e
radas que levava boca. -"-9*4 4
Pois foi... Tive pena do rapaz. A pri<4c4
doutor Macieira portou-se bem. O delegadb adno
a espica-lo, mas ele no se arreceou e dissa.4hto<
senhor, fui eu que lhe dei os cem escudos panaiete
da casa do doutor Carrazedas e ir para Listtoaal
o caso se repetisse hoje, faria o mesmo". Q<d"U||
claro, no gostou de ouvir aquilo e CQntHH|
meter-se com ele. Parece que queria dar a en"
que o rapaz era culpado do Carrazedas ter nJilf
Mas o doutor respondeu logo que isso no era venj
Disse que o outro tinha morrido duma molsti
que padecia h muito, uma coisa dos rins, ele di!
nome, mas um nome arrevesado, e garantiu (J
tiro no havia tirado nem posto para aquilo, p$
bala s lhe tinha tocado num brao. Ento, o delej
perguntou-lhe se o Carrazedas^stivera sempre $
feito com ele e se era verdade ou no que, Mff
altura da doena, mandou vir outro mdico. Q $(r)
disse que no tinha sido o Carrazedas, que tinhjril
ele prprio que tinha chamado um especialista d" B|
quando achou que era preciso. "Muito bem tii
delegado. Mas como explica as suas relacesrcbM
zade com o doutor Carrazedas, pensando to ntolfi
como se est mesmo a ver que pensava?" fiM
Palhetas mergulhou, de novo, a colher na.tigd ps-se a revolver a sopa, a trazer s
uperfcie os $$ esses afogados incorruptveis, que preferem retfl pela cintura a entra
r em decomposio e que, uaM? luz, tornavam a sumir-se sob as couves, engirt ele reme
xia em silncio. "
- E depois ? perguntou o filho mais velho^-ll tando de sob o queixo a sua malga
j vazia. *'<&
Bem... Eu estava a lembrar-me e a ver serU
887
seguia perceber o que o doutor queria l na sua. Ele (jisse que era por ser a nica
pessoa que podia contrariar as ideias do outro. Que no tinha a certeza de que o s
eu desejo desse resultado, mas que julgava que assim seria melhor para o Carraze
das e para o seu pessoal do que dizer amm a tudo. O delegado parece que no acredit
ou naquilo e tornou a pic-lo. "De forma que Vossa Excelncia disse ele mostrava-s
e amigo da vtima, mas, no fundo, no o era, e at dava dinheiro aos seus serviais para
que lhe fugissem de casa". O doutor ps-se encarnado ao ouvir aquelas palavras e
via-se mesmo que ficara muito aborrecido, tanto mais que o delegado tinha um sor
risinho que parecia de desprezo. "Est Vossa Excelncia muito enganado se pensa que
as minhas relaes com o doutor Carrazedas eram por interesse pessoal respondeu ele
. Eu no tinha nenhum interesse nisso. Nem mesmo como mdico, pois nunca lhe levei u
m vintm. O que eu queria era ver se o tornava uma pessoa como devia ser". Ele no d
isse assim, claro, mas foi mais ou menos isto o que ele disse.
Palhetas voltou ao seu caldo: duas colheres, outras duas, com a mulher sempre de
p na sua frente, de braos cruzados sobre o peito e olhos parados sobre ele.
O delegado era mesmo antiptico! Depois de falar muito tempo, disse que o doutor
queria convenc-lo de que o Carrazedas fora o responsvel do que acontecera, mas iss
o no era verdade. Que o responsvel fora o prprio doutor, pois, em vez de persuadir
o rapaz a ter juzo, dera-lhe dinheiro para fugir duma casa onde no lhe faltava nad
a e ir para Lisboa, onde fto conhecia ningum e onde acabara por se tornar um ladro,
j se v.
Palhetas pegou na fatia de broa, arrancou-lhe uma Ponta, meteu-a na boca e sobre
a broa despejou mais duas colheres de sopa.
E que respondeu o doutor ? perguntou a mulher, agora debruada na lareira, a cara
entre o vapor lue subia da panela das batatas, que ela acabava de destapar.
A EXPERINCIA
O rosto de Palhetas contraiu-se numa exnjMJ de lstima! rP^H
Aqui que ele comeou a descambar. Elj de se defender, disse que a responsabilidade lj
Pl s do Carrazedas; disse que era de uma outratf Toda a gente ficou muito admirad
a de ouviir fojjn pois parece que, por causa do Carrazedas e dafloi nanta que ele
tinha, o rapaz levava l em eastern vida de co. Houve at algum que tossiu no mas o dou
tor Macieira no se importou conv^dE continuou sempre naquele sentido, a dizer uml
&fl que eu no conseguia perceber... "^^m
Os dois filhos do Palhetas, de braos esteiilH sobre a mesa e olhos intrigados, pe
rguntaram*?! ao mesmo tempo: H
Mas que diabo dizia ele ? Que dizia ? 1>s-jjH
Pois se no percebi, como vos posso dizer ? Aqq| pelo visto, era s l para os doutore
s. Ele diziaiw era preciso saber compreender os outros, masiediH para mim, no com
preendia patavina... Parecia-fteJI ele embrulhava tudo. At trouxe baila a fapfiH El
a, quando o ouviu falar daquela maneira, nenrfslfl aonde se meter... .ai
- Mas qual rapariga ? Palhetas no satisfeifljM a curiosidade do filho mais velho
. Dobrou-se, primai sobre a tigela e engoliu trs novas colheradas. ' Sj|
A tal que mandava dinheiro l para a caddBl A que o afilhado da Dona Ludovina de U
ruje^j sonrou... k**!
A mulher estranhava: (>cBa
Ah, ela tambm estava l? M.
Estava, estava. Por sinal, ningum quis 9 tar-se nos dois lugares ao lado dela
e olha que ^#^S no cabia uma agulha; at se via gente de p.-'^.
Mas que tinha ela a ver com o caso ? "tfa
Isso perguntava eu. Parece que foi por ter esii tambm no Asilo, mas no sei. O douto
r disse qu""j| era outro exemplo e que tambm era uma vtima. Mf depois, a modos que
disse o contrrio. Parece ^*j mal era outro. Parece que ela era uma vtima,'J*"
A EXPERINCIA
889
no daquilo que ns pensvamos. No cheguei a perceber bem. Ele esteve a falar da Nature
za e a dizer que a Natureza tinha uma fora danada nos homens e nas mulheres e que
era assim mesmo. At algumas pessoas desataram a rir. Depois, disse que, quando a
quilo lhe acontecera com o Armando, a rapariga j era mulher e que, provavelmente,
por causa da Natureza, ela tambm ajudara... Que talvez nenhum deles fosse respon
svel por aquilo...
Que raio de conversa! interrompeu a mulher, enquanto os dois filhos olhavam um
para o outro e sorriam, maliciosos mas discretos, que o pai no lhes consentia fal
tas de respeito na sua frente. Palhetas captou, porm, essa atitude e respondeu c
om dureza:
j lhes disse que no era assim que ele falava! O velho dir-se-ia melindrado. E os f
ilhos, apesar de
maiores, livres j das sortes, no ousavam incit-lo a continuar. Foi a mulher quem so
ltou o desabafo partido:
E afinal ? Para que estava ele com isso ?
Palhetas tinha necessidade de varrer toda a sombra que o tribunal pusera dentro
dele. Mas, ao recomear, veio-lhe uma voz pautada e uma cara fria de quem fala por
favor:
Ele disse que, naquele caso, o mal no era da Natureza, nem dos homens, nem das mu
lheres, que era da tal coisa, pois se o mundo estivesse de outra maneira, a rapa
riga no teria ido cair na vida, l porque lhe acontecera aquilo...
Palhetas j se esquecera do fulgorzito de irreverncia que os filhos haviam acendido
e voltava ao torn deixado pouco antes:
Ele ps-se para ali, com tais palavras, que at a rapariga se levantou, como uma do
ida, e gritou: "No! No!" e, depois, caiu no banco a chorar. Ento
0 juiz chamou-o ordem, com bons modos, claro, Ppis parece que se d com ele. Mas
sempre lhe foi dizendo que aquilo no tinha nada que ver com o processo e, se tive
sse que ver, era para ser tratado iurna sesso secreta e no frente de toda a gente..
.
8go
A EXPERINCIA
(&
li '<
* A mulher no deixou Palhetas concluir" tup"k
Nunca imaginei que um homem assim fcsgjni de andar a dizer indecncias comentou e
la/ara cara de nojo. 'i/rcr*"
Palhetas olhou-a, surpreendido: '5 "
Mas ele no disse nenhuma indecncia! ^QbJ| para a a falar ? ''"'8
- Julguei... murmurou, indecisamente; adiara Da maneira como tu contas... ^J*^
No! Ele esteve a dizer muitas coisafdwp tas, mas no eram indecentes. L isso no! otolg
Ento no fizeram uma sesso secreta P.ftrfl
No fizeram, porque ele, assim qu &-$ censurou, ergueu o brao, como a pedir-lhe
qty6,Jl| pacincia e disse-lhe: "Eu queria apenas acrf|sej| que a nossa grande res
ponsabilidade, talvez' s/ ffl responsabilidade dos homens, no terem orgaMjl ainda
um mundo menos injusto e menos..." ^pl ps-se a tartamudear: Deixa ver se me le
miS Menos injusto... Menos injusto... Tenho mesmafrjl vra debaixo da lngua... Men
os injusto... Ah1,:fff| Absurdo! Ele disse: "Um mundo menos injusto &IH absurdo
do que este em que vivemos". Assim qttfl Depois disto, no disse mais nada. 'r (m
A mulher e os filhos ficaram um momento-|l ticos, sem nenhum dos olhos pestaneja
r, sem umilBJ mnimo a bulir e sem saberem o que pensar "deWJ aquilo. Palhetas tor
nara a meter a colher na "Iffl e o rudo do metal, tocando o rebordo, fez a flM vo
ltar a si e dizer, com um suspiro: > '^ _}
Deixaste esfriar a sopa. D-ma c, que "flui aquec-la. '^SX
Clarinda jantava na Penso Moderna. Era um"i|f| quadrilonga, enxovalhada nas pared
es e um colgi-ni cs dependurado do tecto, cor de mel e retorcido' 'Qf uma alga sec
a. J?"
Ela sentava-se junto porta; ao fundo, doifjj
A EXPERINCIA
891
jros-viajantes jantavam tambm e iam conversando C0ni um negociante de gados, que
comia na mesa prxima, to descuidado que lhe ficavam migalhas presas no bigode. No h
avia mais ningum. A criada, novita, magra, na cinta um avental enodoado, servira
os trs homens e, ao passar em frente dela, de travessa vazia na mo, sorrira-lhe e
dissera-lhe que no tardaria a voltar. Mas haviam j fugido mais de dez minutos e ai
nda no viera. S se ouvia a voz dos homens, uma surda, baixa, gorda como o seu dono
, as outras despachadas, cheirando a cidade e a cinismo. O caixeiro que ficava d
e frente ia-lhe deitando, enquanto falava, uns olhos ao mesmo tempo de oferta e
compra, mas ela no os via. Ela via apenas o doutor Macieira, alto e de culos, ora
a virar-se para o juiz, ora para o delegado e a afirmar:
O prprio doutor Carrazedas era uma consequncia. E as dificuldades que este r
apaz passou em Lisboa foram e so igualmente uma consequncia.
Janurio mexia-se, enfim. Ela vira-o, at ali, sempre de costas e cabea baixa, muito
imvel no seu banco, com a camisa nova que lhe oferecera na vspera a alvejar entre
a gola do casaco e a nuca. Agora, porm, lento como um eixo de nora quando comea a
girar, ele rodava o pescoo para o lado do doutor Macieira, que dizia:
Mas h-de vir um dia em que ningum ter necessidade de roubar ou de se prostituir.
..
A face de Janurio estava muito plida e ela, toda num calor inquieto, sentiu aquele
frio, que se expandia da face como da neve sombra, transi-la bruscamente. Ele v
oltara a endireitar a cabea e, agora, era o delegado que agitava as suas mos, fina
s e de unhas polidas,
110 fundo da memria dos olhos dela; agitava as mos
2angadas e abria e fechava os braos, riscando no ar as breves mas repetidas cinti
laes de pedras preciosas, ^ue manavam, com o nervosismo dum relmpago e clricas como u
m raio, dos anis que guarneciam os Seus bonitos dedos.
"-Homicdio voluntrio frustrado! Legtima de-
892
A EXPERINCIA
'"<
i !
4tl
_, fesa, como? Quando se vai roubar, levando-s
pistola, leva-se, implicitamente, a ideia de ,s
da pistola e cometer, portanto, um duplo j|j
algumas declaraes do ru esto, como lhe R(
cheias de trevas, as que fez o doutor Carrazedas ei
pelo contrrio, o nosso esprito de luz. Ele ng
que foi o primeiro a erguer a espingarda e a af
Ele declarou, com toda a preciso, que, ao si$8
porta do quarto, trazendo a espingarda, o "j
apontou uma pistola e disparou imediatamenji
o doutor Carrazedas, que, alm de tudo o mijg
formado em Direito, no podia ignorar o va|@
este pormenor teria para a justia. Se ele n&jj
referncia alguma, porque tal atenuante no<^
Todo o passado do doutor Carrazedas e tudo ig
se tem dito sobre ele neste tribunal provam a 4
ridade do seu carcter; no , portanto, de '$d
que haja feito voluntariamente aquela omisso. J$
duma rgida dignidade, que o era, como afirmo^;
o seu filho, ele pertencia linhagem daquela
para terem autoridade sobre os outros, se mqgj
inflexveis consigo prprios". $
Ela via o doutor delegado descer um brao ($
tender o outro, de dedo erguido para o tecto: (
"Reincidente! Reincidente perigoso! Comece
roubar quando no tinha necessidade alguma, qi
se encontrava numa casa abastada onde no lhe.
tava nada. Continuou a roubar em Lisboa, segi|J
a evoluo clssica dos criminosos do seu tipo. K
pequenos roubos iniciais sucederam-se os assalto?;
pistola em punho e, amanh, se o tribunal nj$
mostrar justamente severo, teremos de lamentar/1
homicdios frustrados, mas homicdios consumados]
ento, a responsabilidade ser nossa. Ento, a resp*
sabilidade ser unicamente nossa". <
A criada chegava, enfim: <
Desculpe. Estavam ainda a fritar. So mi^
fresquinhos. M
Clarinda pegou no talher. Mas no se pode t as espinhas aos carapaus e cismar, ao me
smo tenjjp
A EXPERINCIA
893
noutra coisa. De quando em quando, o garfo e a faca modorravam, apoiados, um de
cada lado, na borda do prato.
Era um homem de sessenta anos, o advogado; baixo e de cabelo ainda grosso e abun
dante, mas j de todo embranquecido. Ela continuava a v-lo atrs da mesa, de ombros l
argos e braos curtos; e, assim redondo, com um ar paciente, bonacheiro e uns fios
de bigode a deslocarem-se-lhe do rosto, sugeria-lhe uma foca.
" A legtima defesa evidente. Admitindo mesmo que o doutor Carrazedas no apontou pr
imeiro, o facto de trazer uma espingarda indicava, sem sombra de dvida, que apont
aria e dispararia imediatamente. Qualquer de ns, no seu lugar, faria a mesma cois
a. Portanto, o instinto de defesa manifestar-se-ia, de sbito, no ru. Apesar disso,
no foi assim que os factos se passaram. As declaraes de Janurio de Sousa so extraord
inariamente claras, ao contrrio do que diz a acusao pblica. Ao sentir passos no corr
edor, a sua primeira reaco no foi matar o doutor Carrazedas e concluir o roubo, mas
sim fugir rapidamente. O exame pericial feito ao quarto provou que, como ele ha
via dito, a janela de guilhotina estava perra, no sendo fcil abri-la num momento d
e confuso como aquele".
O advogado interrompia-se, tossia, passava um leno sobre a boca e, depois, aponta
va Janurio:
" Vejamos, agora, o estado de esprito deste homem para quem a vida foi sempre cru
el. Em primeiro lugar, no esqueamos que, quando entrou ao servio do doutor Carrazed
as, era ainda um adolescente e que os adolescentes, sobretudo entre o povo, tm a
tendncia Para ver nos adultos das classes privilegiadas uns seres superiores, for
a da escala humana a que esto habituados. Por outro lado, o doutor Carrazedas, da
do o seu carcter, mantinha entre si e os que o serviam uma distncia intransponvel.
No se humanizava jamais, como, embora com outras palavras, o seu prprio filho aqui
no-lo declarou. Assim, a posio do meu constituinte era a duma humildade rasteira
perante uma divindade inacessvel.. "
894
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
895
I'. <4
* Janurio deixara de olhar para o advogado"e Jgi
as mos aos olhos. Ela sentira, de sbito, o des{9
passar as suas mos sobre os cabelos negros odhS|
afagar-lhe muito, muito, os cabelos e as faces/j3|
se ele fosse uma criana. . 'mSm
" Portanto, quando declarara que ficou pacam
ao ver o doutor Carrazedas porta do quartafS
verdade. O respeito que o seu antigo amo Iherojij
r v, o facto de se encontrar na casa onde esse ie%n
se criara e at o medo que ele confessa ter tdo*el
perfeitamente compreensvel, dado ser a primini j
que cometia um assalto como aquele, tudo isso/
prova ser veidadeira a sua afirmao de que nsm
um s movimento ao ver chegar o doutor Cojjl
das. O seu velho complexo de inferioridade p"
aquele homem agravara-se de sbito..." fra
Os braos curtos voltavam-se, muito aberosd|
o juiz, logo para os jurados: ''7lMl
" Se, nesse instante, em vez de lhe apn(
espingarda, o doutor Carrazedas o tem agarrado"!
um brao, muito provvel que ele se deixasseiH
sem resistncia, para a cadeia... O seu hbito dei
dincia quele homem, o respeito que lhe tributa1"
sua total perturbao e, ainda, a fora do sdbcji
ciente perante o seu acto condenvel, f-lo-iam,"
vez, aceitar, naquele momento, a ideia da P&M
no s como uma ideia lgica, mas tambm leglM
justa". J|
O advogado voltava a tossir, com a mo em fral
da boca. E via-se que o enervava aquela inopoi!tw|
rebelio dos brnquios, pelas imprevistas modulaM
que lhe trazia voz, obrigando-o a interromper-se"
repetir vrias frases. < tst
" No pretendo, porm, utilizar-me deste g*M|
de argumentos. Para tudo compreendermos, basta-lj
imaginar a situao do doutor Carrazedas perant>ll|
homem mascarado, que, demais a mais, tinha i AM
pistola na mo. Ele apontou imediatamente a sua eapji
garda, claro... E, em face disto, ao meu constituiril
no restava outra soluo seno a de defender-sen*!
a de deixar-se matar. Estamos, pois, sem sombra de dvida, perante um caso de legti
ma defesa..."
A faca e o garfo levantam-se, um pouco trmulos, e procuram, ainda uma vez, o peix
e humilde. Um peixe que no sabe libertar-se do incognoscvel, separar-se das sombra
s que habitam em cardume, por baixo dele, os mares profundos.
A certa altura, o juiz impacientou-se e j no queria ouvir mais nada. E muita tolern
cia teve, vamos l i dizia o doutor Agnelo Carrazedas, olhando a porta por onde a
criada devia entrar.
Ele jantava sozinho com a mulher, um em frente do outro, separados apenas pelas
flores que emergiam do centro da mesa e se reflectiam na garrafa de cristal, che
ia de vinho branco, a lembrar ramificaes de coral dentro dum pesa-papis de vidro.
Instalados h pouco na casa onde o pai vivera e morrera, Agnelo mandara construir
uma garagem, renovara o quarto de banho e adquirira um motor para a gua encanada.
E, desejando comprazer a mulher, que "no queria ali quem mandasse mais do que el
a", despachara a senhora Germana para a Fontebela, em substituio do antigo caseiro
, que, depois daquela histria da bicicleta, tanto buscara e rebuscara que descobr
iu outro senhorio.
Era muito magra e branca a mulher de Agnelo, com os seus trinta e dois anos mela
nclicos, um rosto esguio e olhos largos, indolentes, uns olhos atrasados de adole
scente, que o marido dizia serem de cordeiro depois de haver mamado. Nunca simpa
tizara tambm com o velho Carrazedas. E, nos primeiros dias da sua lristalao naquela
casa, sentia um brusco mal-estar guando, ao erguer a vista, encontrava o retrat
o dele ^a. parede. Um mal-estar que lhe parecia preceder, por ujna tenso gelada d
a pele e dbeis, subterrneas, vibraes dos nervos, uma apario sobrenatural, que se
8g6
A EXPERINCIA
.1
* iria produzir, viva, palpvel, por detrs das facA
das e do olhar frio que a moldura enquadrada,*!
Ela compreendia que o marido se aproxit^
fim do seu relato e ouvia-o cada vez mais.ia||
com uma poeirazita de alegria, como essa qm$
v quando baila nos raios de sol; uma alegriai|||
depois de perceber que o doutor Macieira hawia
firmado no tribunal o que ela prpria pensara, |
vezes, do tabelio: , v
Agnelo Carrazedas contava: ( ~
Quando o juiz lhe fez aquela pergunta, ejf
pondeu que o prprio juiz sabia, e at melhor')f
ele, que o nico meio encontrado pelo homen^ij
o princpio, para viver em sociedade, fora o^7
ciao da fora com a moral, mas que, desftfe
elementos, a fora era, apesar de tudo, o majsal
E que, portanto, a principal arma do homemiKM
os incitamentos da sua prpria natureza ter,-fite
sobretudo, de ordem moral, como toda a gente tflj
sabe. Depois disse que na constituio dessa m)j
que se encontrava todo o problema, pois se nfl
verdade que cada povo tinha o regime que uaS3
verdade que cada regime tem a moral que W&
e vice-versa... n<j \
A criada voltava sala, com um andar dlfCJ
para no lhes perturbar a conversao; e a mi*|
de to presa s palavras do marido, no deu pe$3n
presena. Sentiu-a apenas quando as suas mos>aj
aram sobre a mesa, apresentando-lhe a tra/vil
E, ento, fugazmente, as mos da criada tornara!
mais morenas, os dedos engrossaram, perderam iQt
pecto feminino e ela via, com o mesmo mal-estaDi
lhe dava o retrato, as mos do rapaz a servi-la qtia!
vinha jantar ou almoar ali, no tempo em que o MJ
vivia ainda. t
O delegado interrompeu-o e disse-lhe quew
justamente para defesa da moral social que o tH
nal estava reunido. O Macieira, claro, no contef
directamente aquilo, mas fez um rodeio habilidosa
declarou que uma moral, qualquer que seja, se, 4
A EXPERINCIA
897
UIn lado, se renova, por outro envelhece, e que h normas de moralidade colectiva
que, com o tempo, revelam toda a sua desumanidade e tornam-se, portanto, imorais
. Foi ento que toda a gente percebeu que o juiz se havia enervado e s no comeara a d
iscutir com o Macieira por no lhe ficar bem faz-lo ali.
Estou arrependida de no haver ido contigo. Gostava de ter tambm assistido...p
roferiu a mulher. E em que ficaram ?
De colher na mo, Agnelo Carrazedas ia regando com o molho, duma ponta a outra, a
fatia de vitela que pusera no seu prato.
Bem; o Macieira ainda comeou a dizer que a moral, mesmo quando se renova, anda ma
is atrasada em relao melhor inteligncia de cada poca do que os comboios em relao aos
eus horrios, quando os neves obstroem as linhas. Mas o delegado quase no o deixou a
cabar e disse-lhe que as suas consideraes no o interessavam e que ali no era uma aul
a de moral, nem to-pouco um seminrio...
A mulher parecia lamentar:
Ele deve ter-se sentido vexado, claro...
No creio... O advogado de defesa principiou logo a inst-lo e at me pareceu que fi
cou mais vontade.
A voz de Agnelo Carrazedas tornara-se grave. Ele mterrompeu-se como para se libe
rtar dessa sombra que lhe escurecia a voz e, inclinando-se sobre o prato, princi
piou a comer a vitela, um pouco excitado. Depois comentou:
O meu pai teve sempre um fraco pelo Macieira, fto sei porqu, pois nunca vi criatur
as mais diferentes, ialvez fosse pela lei dos contrastes, por o Macieira ter Aqu
ilo que faltava a ele e ele aquilo que faltava ao Macieira; talvez, Deus me perd
oe, porque o Macieira nunca lhe levava dinheiro... Eu, por mim, considero-o Uln
tipo perigoso. Inteligente, sem dvida, mas com a cabea bastante desarrumada. E no h
nada como as coisas sem nexo para sugestionar as pessoas. J h Ulas sujeitos para a
que lem pela mesma cartilha...
29 Vol. Ill
898 A EXPERINCIA
Durante um momento, Agnelo Carrazed^
em silncio; logo tornou: l>
Provavelmente, um despeitado encobrt
que se formou sua custa, com os maiores safi
e que, por isso, ao lembrar-se do que passcra
preendia melhor os outros e as injustias denarii
vtimas. O ressentimento deve vir desse tempaji
sem ele o saber. flj
" por no me ter habituado ainda .jbem
mulher. com certeza, por isso... Mas haver
melhor se continussemos na casa onde viviam!!
sempre os mdicos me disseram que os meusil
eram demasiado sensveis". Ela voltara a resffil
do sogro, a v-lo sentado ali, a discutir com o *d!
Macieira, e o rapaz a servi-los, a fazer avana*!
mo direita, que tinha nas costas um pequencra
em forma de pio, um sinal que ela nunca ~tjjj
quecera. , > tf
E depois ? i r | Agnelo Carrazedas, de boca cheia, uma daj
mais saliente do que a outra, tardou a responda
Claro, ele aproveitou a mono para veiicief; o seu peixe. Depois de falar da moral,
falou dos fll dos homens, das injustias que existem, enfira,; estendal de pal
avras e de utopias que s servem! desorientar as pessoas. r t,
A mulher estava de olhos baixos; mas/ dS ergueu pensativamente a cabea e, com uma
gw doura na voz, perguntou: j/
Mas tu no achas, Nelo, que h, de facto, nt injustias ? ' -
Ele encolheu os ombros: >?"!
Sim, sem dvida. Mas o que a NatureoSw que tanto fala o Macieira, seno uma perpetua
i ao tia ? S um cego de nascena no ter sofridoi melancolia sem remdio, este grande de
mparo fl| que nos vem dos maus exemplos da Natureza. Aoiy e ao fim, justia e inju
stia so definies exclit mente humanas dum sentimento que a Natureza ig" por completo.
(r)
A EXPERINCIA
899
" Mas tu no achas, Nelo..." Era nestas pala-
^s, com que iniciava os perodos, que a mulher punha toda a sua ternura, macia com
o um pedao de camura para se agarrar um ferro aquecido, uma ternura que, (jesde es
se ponto de partida, impregnava tudo quanto ela ia dizendo.
Mas tu no achas, Nelo, que esse sentimento admirvel justamente por ser exclusivo d
os humanos ? No achas que devemos lutar contra todas as injustias, inclusive as da
Natureza?
Ele olhou-a com um sorriso de condescendncia.
Hs-de ser sempre a mesma disse. De repente, porm, lembrou-se de que as palavras d
ela se assemelhavam extraordinariamente s que uma noite o doutor Macieira pronunc
iara ali, quela mesma mesa, tambm durante um jantar, e tornou a fix-la, mas desta v
ez com um olhar fino, perscrutador e muito srio.
A princpio, devo diz-lo, ele foi mais hbil do (jue o prprio advogado. As suas palavr
as sobre a primazia da responsabilidade biolgica, como ele lhe chamou, em relao res
ponsabilidade do indivduo, tinham um certo interesse especulativo. Por isso, o de
ixei falar mais do que seria admissvel para um depoimento quase todo abstracto. M
as, depois, ele caiu numa srie de lugares-comuns e at em algumas infantilidades. C
hegou a afirmar que, numa sociedade de ttioral diferente, o prprio Carrazedas no h
averia sido, em relao aos outros, como foi, o que uma ingenuidade...
Alm da mulher, o juiz tinha mesa o genro e a filha, que todas as semanas vinham j
antar ali naquele dia. A criada j havia levantado os pratos, menos o ^le, sempre
retardatrio, no que comesse muito, mas Porque gostava de conversar enquanto comia.
Final"fiente, o genro viu-o cruzar o talher, moda antiga, esvaziar o copo a peq
uenos goles e, passando o guar^anapo sobre os lbios, volver:
coo
A EXPERINCIA
F
i *
w *
' E o que ele disse sobre a interdependfij
estrutura social e da moral e da influncia LdH
doutra sobre os homens, mais velho do qiie|
de Braga... /ajl
O genro ia enfeixando perguntas e duvidas^pj
ousava desamarrar, pois sabia que o juiz, taljj^
que pertencia ao seu ofcio interromper os.;lsj|j
aborrecia-se se algum o interrompia quandovj
A criada punha os pratos da sobremesa. tfaaj
H, sem dvida, uma interdependncia >j&f
estrutura social e a moral dizia ele, agora, eon^S
voz lenta de exame ntimo. sabido. cef"j
haltere. Uma extremidade comanda a outra. Qfei
cieira no mau homem e eu at simpatizo oodHJ
mas no se pode permitir que uma testemunha
um comcio no tribunal... -tlm
Ento ele fez um comcio ? perguntou/iaM o genro, com um interesse mal disfarado, ao
veq o juiz se calava. l
Um comcio um exagero, evidentemente, a as suas palavras iam para l... AefcJ
Pareceu ao genro que o sogro, habitualmente 0a claro nos raciocnios, lgico nas ded
ues e na sua" sio, se tornara, nessa noite, obscuro e inconseqa" Era como se lhe des
agradasse dizer tudo quaiOT passara e de tal maneira discorria que as suas palal
pareciam, s vezes, no destinadas famlia, >(Btf ele prprio, um monlogo sincopado par
essas p*l nagens secretas que cada qual leva dentro d&m gostam de ouvir os homen
s falar sozinhos, em <vM cantar, quando se vestem ou fazem a barba. 9iJ
Ns julgamos sobre factos, perante as coisasrtBJI elas so e no como deviam ou poderi
am ser'^*Eg tinuava o juiz, de olhos baixos, enquanto ia robi| entre os dedos a
bolita que fizera com uma m%3B de po. " w
A criada servia o doce, um pudim doirado^*" rescendia em toda a sala. 'J"!
O juiz mudara de voz. Dir-se-ia querer coiaoM aquilo, desenvencilhando-se das su
gestes que as'S^
A EXPERINCIA
901
prprias palavras lhe davam, antes de se dedicar sobremesa:
Enfim, um trabalho para um caso trivial, um caso de folheto de cordel, que poderam
os ter resolvido muito mais cedo se no fosse o depoimento do Macieira. Mas ele in
sistia em que se tratava de dois casos tpicos e que a sua prpria frequncia lhe aume
ntava o significado... verdade que o delegado tambm teve culpa, pois gastou muit
o tempo com perguntas que no tinham vantagem alguma para o julgamento.
Dois casos ? Como dois casos ? estranhou a filha, no torn de quem volta a
trs por no haver compreendido bem.
O juiz encolheu os ombros, como se descarregasse, finalmente, a pacincia que fora
obrigado a ter no tribunal:
Um outro folheto para vender nas feiras: "A rf que foi desonrada pelo patro". que e
le referiu-se, tambm, rapariga do Asilo que esteve em casa da Ludovina de Urujes..
.
Novamente o genro se surpreendia com as constantes mudanas que se davam na maneir
a de falar do juiz, aquela diversidade de reaces, como se ele fosse procurando, in
conscientemente, a que mais poderia concorrer para a sua harmonia ntima, sobretud
o o torn sarcstico das ltimas palavras, um torn desusado nele nele que propendia
sempre para a solenidade.
No fim de contas, em nada influiu na sentena e estou mesmo convencido de que a ma
ioria dos jurados no compreendeu nem metade do que ele disse...
Que pena deste, ento, ao rapaz ? tornou a filha.
Ainda a pensar no doutor Macieira, o juiz respondeu com naturalidade, com essa e
spcie de inocncia e iseno que, nos ofcios graves, que implicam vidas humanas, separam
dos actos praticados por dever profissional a responsabilidade e o esprito de qu
em s Pratica:
Seis anos de priso maior...
902
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
93
'I
-~ Seis anos ? Era, agora, a mulher que $$9 gia a ele. Aparentemente, a sua voz no
acuSH^ louvava. Mas pareceu ao juiz que havia ali spS luso, pedao de neve que tombav
a dum rldM de longe, se julgara ter visto uma grande flo^rfoil
Vamos l, que no foi muito para umbral dente justificou-se. As respostas dos jur
adas! quesitos eram terminantes... ifiijrg
''l .JK
lnF
* (PIS
No comeu nada disse a criada, levatfl| prato e passando um pano sobre as migalhas q
u^fl vam em volta. - No gostou do jantar ? * '^ffi
Gostei, mas ando com falta de apetite. TrfgiM um caf. '^ -7
A criada, que sabia a razo daquilo e falava SJ61 por cortesia, pegou no tabuleiro
e saiu. O rhd gordo e os dois caixeiros-viajantes j haviam ^3P tambm, o mais alto ren
tando a sua mesa, cosW sorriso devasso e um olhar ainda mais convidatiw que quan
do a desafiava de longe. Ela ficara St^ na sala, sozinha com as mesas vazias, como
iSI'il aluno a quem se proibiu o recreio. f"?
O silncio volvia sua faina absurda, baraltl os naipes dos tempos, de todo alheio s
regras f lgicas; e, de quando em quando, sempre incoei^B voltava a arrastar para os
olhos dela a casita brat que se via da quinta do Asilo, com uma ranaffll porta e
longa fila de craveiros, lrios e malmeqUej junto da parede. Era o fim da tarde e
Janurio fegf sava do trabalho. E um filho, por que no ? Gosta de ter um filho, no,
um s no; gostaria de ter"-'ac uma menina e um menino, com os quais ela e Jafi"a f
ossem passear, aos domingos, para o campo, ond(r)3 crianas se divertissem a colhe
r flores silvestres^ encontrassem uma casita como aquela, com dois'fffl ms de ter
ra, havia de fazer um jardim para os ffll e, no centro, plantaria uma macieira.
Era, de novo, o rei do naipe, o juiz, numa voz paternal e com a sentena ainda nas
mos, a dirigir-se a ele: "O tribunal foi generoso, tendo em considerao a sua juven
tude. E espera que, quando retome a liberdade, esteja regenerado e se transforme
num homem de bem. muito jovem e tem toda a vida sua frente. Nunca pude compreen
der que haja algum que prefira o roubo, com todos os seus perigos e desonras, ao
trabalho honesto, que dignifica a vida".
Ela via-se, a si prpria, a abrir caminho entre as gentes que debandavam, ansiosa
de alcanar a porta lateral por onde ele devia sair. Era uma porta estreita, baixa
e nica na parede, como a das sacristias; de longe salientava-se, porque o seu ca
ixilho de pedra enegrecida contrastava com a brancura do todo onde fora aberta.
J se haviam formado ali vrios grupos e num deles conversava o doutor Macieira, que
a olhou um momento, quando a viu chegar. Acima dos eucaliptos, mesmo em frente
da Penso Moderna, as pombas de no se sabia quem, voavam em crculo, de asas inclinad
as para dentro, como se traassem no ar a parede dum funil, por onde se esvaziava
o azul do cu.
Janurio saa entre os dois guardas, muito plido. Ela no se surpreendera de que ele ch
orasse quando a divisou; parecera-lhe, por si prpria, que aquilo era assim mesmo,
que devia ser assim mesmo; mas, perante o estado dele, logo reagira, os olhos s
ecaram-se-lhe e viera-lhe, subitamente, uma fora de nimo que jamais sentira at ali:
"No te aflijas! Estamos novos e temos toda a vida nossa frente... No ouviste o qu
e disse o juiz? Temos toda a vida nossa frente!"
Os guardas haviam parado um instante, de m vontade. Ela olhava-o com a nsia de abr
aar-se a ele, de o beijar nos olhos e de no o largar mais: <(Enquanto no te transfe
rirem, ficarei aqui e irei ver-te todos os dias. E, depois, ficarei todos os dia
s tua espera, at tu sares. Podes ter a certeza disso!"
E ficara a v-lo desaparecer, entre os dois guardas, fla. esquina da rua prxima, fi
cara at mesmo depois de ele haver desaparecido ficara at sentir aquela
904
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
905
mo pousar sobre o seu ombro, lenta e caril mente.
Tnio, pastor de dezoito anos, desempregado "'*&
mista, que na serra, dizia ele, era capaz de acertar>|3|
pedrada a mais de duzentos metros de distanciaria!!
em bicho grandalho como um lobo, fosse pequewijii
como um chasco, entrou em Urujes com andaifea
apressado e, ao mesmo tempo, sem pressa moral algUlM
de chegar a casa. Ia caminhando e visionando os ff"
sua espera, preocupados, decerto, com tanta deaal
e sem terem jantado, quela hora em que toda a g&jm
que dispunha de alguma coisa para comer estav^H
fim do repasto ou j mesmo acabara. E era justameflij
essa imagem, que, s vezes, parecia correr sua fittMQ|
como levada, na noite, retaguarda dum carro,1 ffiflj
criava aquela desagradvel incongruncia que ele seropp
no marchar. Tudo estava escuro, dum escuro que'oB
ise-ia granulado, feito de pairantes areias negras, ^^Hlfi
se divisavam os vultos das encostas, nem se adivinfcMl
a existncia do vale; a treva cobria-os, igualava-o& &m
o cu, como as guas dos rios nivelam mesma ali^H
os pegos sombrios, que parecem sem fundo, e os^lmj
chos baixos, que se atingem com um brao. S6|M
janelas iluminadas de Dona Ludovina e, mais adiafiMp
umas laminazitas de luz, rompendo pelas frinchlSSpP
portas humildes, beira da estrada, assinalavam "wfi
sena humana na noite. Ele j passara a casa onwSI
doutor Agnelo Carrazedas habitava antes de o^'Mr
morrer e agora, junto das alminhas que patrocinvaj|i|
a velha encruzilhada, saa-lhe, laia de diabo, o d^S""
de se meter serra, de se estender sob a asa duS"
fraga e, como faziam os pastores mais idosos, dQtfflp
corajosamente, esquecido de si e do Mundo, at o'^gl'
seguinte. Mas essa ideia logo lhe pareceu desatiitp**
porque daria, ento, ainda maior desgosto aos >*ft'd
Tnio atravessou a ponte e, de a para cima, *yt
suas pernas abandonaram a regularidade que trazia"*!;
e ora caminhavam resolutas, ora com a lentido das grandes indecises. O casebre erg
uia-se ali perto. Ele conhecia-o, mesmo sem o ver, pelo murmrio do arroio que lhe
deslizava num dos flancos, um murmrio que, nas noites silenciosas e negras como
aquela, partia ao encontro de quem se aproximava, como uma garantia de paz e ofe
rta duma meiguice desprezada.
Tnio levou a mo porta e a porta abriu-se vagarosamente. Joaquim Chambuta e sua mul
her estavam tal-qual ele os tinha imaginado, sentados ao p da lareira, de mos sobr
e os joelhos e, na cara, um ar calado de resignao e de derrota. Era a primeira vez
que uma coisa por ele visionada saa assim absolutamente certa e, perante essa mu
da confirmao de que eles, pelo seu lado, nada tambm haviam obtido, sentiu-se mais i
nquieto e mais acabrunhado ainda do que antes.
Boa noite, senhor pai...-disse. Boa noite, senhora me...
No sabia por qual das duas notcias comear. Desde a ponte, hesitava na primazia a co
nceder a uma delas e continuava indeciso, pois ambas eram ms. Tirou o seu chapu de
abas largas e acercou-se da lareira. Havia apenas um brasido a morrer sob as ci
nzas. E a candeia, dependurada na extremidade dum arame que descia da trave da c
ozinha e oscilando aragem vinda da porta que ele no encostara bem, ora lhe prolon
gava a sombra parede acima, ora a encolhia, tremulamente, at junto dos seus ps.
Joaquim Chambuta e a mulher, que haviam olhado para as mos dele, quando entrara,
pareciam no ter tambm curiosidade nem pressa alguma. No lhe perguntaram mesmo porqu
e se demorara tanto. A pequena e negra cadeira de pinho, baixa, prpria para a lar
eira, um traste familiar to velho como a casa, encontrava-se em frente deles. Tnio
considerou-a um momento e decidiu-se pela ponta do mesmo banco onde os pais se
sentavam, que assim no teria o desgosto de continuar a ver-lhes a cara. Ento a me,
com ele ao seu lado, vergou-se a revolver as cinzas, tentando pr a
go6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
907
'<<
f jt
descoberto algumas brasas, para lhes extrair "m^Hk radeiro hlito de calor. - jb"
A "tia" Landueira disse-me que tinha pena?i|S que no podia... murmurou Tnio. Dis
se q Ml vez pensssemos que era por no lhe termos pagoaij^ o que ela nos emprestou h te
mpos, mas que'tiaaogS por nada disso. Que se tivesse, da melhor vont4dtj|j|t Ento
, decidi ir loja, a ver se, por acaso... .nTosfc
Tnio calou-se de repente. O pai continuowrttit bem calado. A me havia conseguido tra
zer umap^^ quena brasa ao de cima, mas, depois, pusera^SS , faz-la rolar distraidam
ente sobre a cinza, como sbJSj > vez de querer reaviv-la, se empenhasse em a atafe
gi| r
Tenho amanh um biscato disse, por fift^l f pai, ao cabo dum largo silncio, num torn
de prejiyllt: e de consolo. E o Veloso ? i <J*B '
Venho agora mesmo de casa dele respcasi" Tnio. De tarde, quando l cheguei, ele no'
esfeflW"* e o criado disse-me que s voltaria hora do jaip Fui ver o julgamento do t
al rapaz, para fazer teHiwfr e, mesmo assim, ainda tive de esperar... bwp
A me, que acabava de pousar a tenaz, voltcuafc para o novo silncio do filho, com um
ligeiro ffdnP^ nos olhos, como se fosse esse verdadeiramente o ttoMP1 reflexo da
pequena brasa. < xtt&" *
E ento? its"*
No cheguei a falar com ele prprio. O criptffc disse-me que j era muito tarde e que
ele vinha caflfc sado e ainda no jantara. Pediu-me que lhe contact* o que queria.
Eu contei-lhe e o criado foi l de$tr<$* Mas ele mandou dizer que j tinha pastor..
. srjs$
Tnio preferiria que os pais falassem. Eles havotf regressado, porm, sua mudez e s o
murmrio hatof? ual do arroio, de que j ningum dava conta, pifflS*1 seguia na sua humi
ldade teimosa. tlf
Ainda estive para ir tambm ao julgamento-^ disse, enfim, o pai, com a voz solta d
e quem fala pWb no pensar noutra coisa. Mas lembrei-me de que^ Germana devia est
ar l e eu no posso ver essa fflW^ lher... Condenaram-no ? J->*^
A seis anos respondeu Tnio. At me vieram as lgrimas aos olhos ao reparar na cara
dele. O doutor Macieira e o advogado tinham dito tantas coisas bonitas, que eu j
ulguei que o iam pr em liberdade.
Ento a me, ao ouvir aquilo, perguntou e reperguntou e cada uma das suas perguntas
ressumava brandura e piedade. Depois de ela se calar, Joaquim Chambuta, sempre d
e rosto fechado e frio, volveu:
Foi por o ter a ele, que a Germana, logo no primeiro dia, me disse que no precisa
va mais que eu lhe tirasse a gua e me despediu. Mas eu, a ele, no fiquei a querer
mal. Era ainda um garoto e at me deu pena quando o vi, assim novito, a puxar a um
a bomba daquelas.
A me levantara-se para meter a mo sob o pano amarrotado que cobria o aafate e volta
va trazendo uma pequena cdea de broa. Era dum branco sarapintado de pontos escuro
s e enegrecida da banda oposta, lembrando fragmento de cantaria recm-partida, dep
ois de ter envelhecido, ao sol e ao frio, numa ombreira; uma cdea seca e quase to
dura como o granito a que se assemelhava estranhamente.
Pega l...
Tnio olhou o po que os dedos engelhados e trmulos lhe ofereciam e recusou:
-Comam-no vossemecs, que precisam mais...
Pega l, anda!
No tenho fome. J comi.
Onde comeste tu ?
Na vila.
Na vila...?A me olhava para ele, sempre com um ar de amor e de dvida, e ele no podi
a supor ^ tar aqueles olhos. Quem te deu de comer ?
Bem... Foi o criado do senhor Veloso...
O criado do senhor Veloso ?.
A me percebia que eram palavras sem raiz, ramos cortados pressa para lhe tapar os
olhos; o pai via tambm que era mentira e, ento, voltando-se para ele, gritou-lhe,
autoritrio:
go8
A EXPERINCIA
' *
-^-Come! / .
Para qu, se no tenho vontade ? j; flHK
Ele sabia que o pai se exaltava quando hfeBjjr obedeciam e, com o gesto de quem p
ratica um.ajHP intil, estendeu o brao e pegou na cdea; lasrjjlf encontrar, de novo,
os olhos da me, baixou a wag e ps-se a chorar. O pai deixou correr aquilo,oaqi se no
sse por nada. Depois, repetiu: ^siiu*'
J te disse que tenho amanh um biscaiforW ""T* Ele no conseguia engolir A boca movia
-se, parily
tornava a mover-se, tornava a parar; as cG&tafc aE mo passavam sobre as plpebras e
sobre os lbiolmjP boca retomava o seu movimento, mas sempre eprtSjl:
mesmo migalho.
"f mi)
Que diziam, ento, o doutor Macieira e o atvSi* gado ? perguntou o pai, com uma voz
soturnajimjjD
Tnio deglutiu, finalmente. Uma ideia alargavafSEi destrua outra e deixava um rasto
de luz. EnqumlL*, ele ia falando, a me levantara-se e retirara dedralfc do antepa
ro de velhas tbuas casqueiras, onde elate4fi| marido dormiam, a enxerga enrolada
do filho. Desdn|| brou-a junto da lareira, ao lado do banco, e ps4|K' uma manta em
cima. Depois, sempre com lentM^Sj caminhou at a porta e fechou-a por dentro. IB
iu^ii continuava a falar, repetindo as passagens qu&afcf^ pudera compreender
e mais o haviam impressiona^^ no tribunal. s vezes, o pai interrompia-o com unKK
pergunta, mas logo voltava a inclinar a cabea e^Jj^, ficar calado e imvel, de olho
s semicerrados, como s^ ele prprio estivesse vendo o que as palavras sugeriam,^;
E a me, terminados os seus ltimos arranjos donis^, ticos, viera novamente sentar-se
ao lado do filho, pW^ ouvir, antes de se ir deitar, o resto do que ele contava^
Na noite cheia de silncio e de negrume, o arroio prosseguia no seu murmrio, duma
fora humilde, mas viva.j, que se mantinha e se libertava atravs das trevas?a quand
o Tnio chegou ao fim: "033
E ele disse que h-de vir um dia em que havei4ir po para todos. J'JB
O SENHOR DOS NAVEGANTES
(NOVELA)
*k^
O SENHOR DOS NAVEGANTES
'<t
llji
KRANCA, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor
dos Navegantes divisava-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma l
uz que brilhasse na noite atlntica, os pescadores enviavam esperanas e desesperos
quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque ficava alta, a
o fim de ngreme, pedregoso carreiro, raras gentes l iam, salvo em dia de festa, co
m morteiros e filarmnica, uma vez cada ano. Fascinado pela sua solido e largueza p
anormica, eu encontrara, porm, maneira de a atingir, naquelas tardes de Estio, sem
me fatigar. Para subir as montanhas, um livro vale mais do que um bordo e, com
um livro sob o brao, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-
me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas rvores da encosta. Sem o liv
ro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascenso antes de refeito, que a t
endncia de quem anda, leve rodas, leve hlices ou apenas, modestamente, os ps com qu
e nasceu, , j se sabe, chegar com brevidade ao ponto de destino mesmo que nada te
nha l que fazer. com um livro, outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do q
ue os braos duma mulher e s desejamos interromper a sua leitura no final dum captul
o ou em pargrafo onde possamos retom-la facilmente. Entretanto, as pernas recobram
foras.
gi2
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
913
i '<
Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do &. nhor dos Navegantes, demorei-me
a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, ento muito sereST com suas vel
as graciosas e fugidias. Em baixo, estaJ dia-se a grande praia semi-selvagem. di
reita, njn^, pendo de entre um pinhal e com seu verde contrastando, espaireciam
casitas modernas, todas faceiras e colorida* ao passo que, da banda oposta, aglo
meravam-se $f barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre " areia e to velhas
, negras e rodas pelos anos como a fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros
Qab" tantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lacte onde se trabalhava
rudemente ao sol, muitas vezes <$K' colaborao com a morte, para se activar apenas
afe quele onde se descansava sombra tranquite^a^fe, pinheiros. >F> ^|
Aps esse longo olhar de amor com que totto&lj|| dias eu envolvia o oceano, a terr
a e o cu, sntefrifp e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porliai^aB abri o livr
o, um rumor veio de dentro da capelafi$R preendido, voltei-me e notei que a porta
estavai^KH" aberta. Era a primeira vez que isto me acontedi At ento, eu encont
rara sempre ali o rraior sillSSMg um abandono total, com esse sabor potico, fino *Wf
jante, que parece destilado pelo ar e prprfldMi ermidas que padroam as montanhas.
Agora, os fttOttijc continuavam. Senti passos e vi um homem transpdfe$| porta. Tr
azia os braos fechados sobre numerosos eW^w tos barcos de cera e pequenos quadro
s, ingnuas^llK turas feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estai** contrariado; te
ve, em seguida, uma expresso in^f*" logo um movimento de indiferena, por fim dirig
ftWH para o extremo do adro. Desse lado, o flanco da ctt descia quase a pique, at um
matorral que se esteflffl* l em baixo. Era um temvel despenhadeiro e.'xpa** defes
a de quem vinha ao Senhor dos Navegltw haviam construdo um murozito, que,
da banda'-* dentro, formava bancada, em semicrculo. Ali o hofe"* se sentou, a un
s quatro metros de mim. ;'l!f?
Descontente com a sua presena inoportuna, eiP*
baixar, de novo, os olhos sobre o livro, quando ele me disse:
Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladro... No verdade?
certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas
foras em relao s minhas e concludo que talvez ele me vencesse, em caso de luta. No que
fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu no chegar
a ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braos muito mais possan
tes do que estes, to franzinos, de que eu me servia para pegar no livro. Os seus
olhos claros no precisavam de culos, ao passo que os meus, sem auxlio de vidros, no
me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas fsic
as dele no se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e no sei mais
o qu do seu todo, sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do M
undo, de varapau na mo, ao assalto da vida.
Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir,
acrescentou:
No, no sou um ladro. Isto e apontava os ex-votos pertence-me. Eu que no os mereo..
.
Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, no me recordo o qu, u
ma necedade por certo, e ele voltou:
O senhor no de c, pois no ? Est a veranear na praia?
Estou.
Logo vi. A gente da terra no tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o
trabalho.
No entendi logo se ele falava assim para me ser desagradvel ou simplesmente para d
emonstrar a sua
perspiccia.
Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas
senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer:
O senhor esteja sua vontade. Eu no me demoro. E no tenha medo de mim. No fao mal a
^
914
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
915
'4
'ningum. Todos ns, certo, j algum dia fizenyflgjlL
e eu fiz um grande mal, mas isso foi h muitenE
A sua voz repetiu, de modo profundo: Hfii3B
claro que no tenho medo declarei, ^H torn frio. Na verdade, porm, eu enervara-me J
ItaB a abrir o livro e fingi ler. , "jJB
O homem calou-se. Vergado sobre os ex-voto3,| suas mos iam desfazendo os barcos de
cera^aiaiiB messando-os para o abismo, para o saral quaid"" l no fundo. Deles rete
ve apenas a extremidade "CMB mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejdart
jB ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice. >pi3| tem para as coisas frgeis, e
logo enfiou .na k8oflH| do casaco. Depois, estendeu o brao, agarrourrnjHj pedra e d
eu-se a partir os quadros onde se viafaid|B barcaes de pesca em luta com o mar emb
ravajM e o Senhor dos Navegantes de p sobre nuvens.oTriH eles tinham datas, algumas
seculares, e legendetjffcH reconhecimento, com muitos erros ortogrficos'"^p desen
hadas letras. O homem lia-as antes de de&peiiijjm as pequenas tbuas onde elas est
avam inscritasjepdjBj seguida, lanava os destroos l para baixo, 'paft mesmo lugar dos
barquitos de cera. Entretanto^cplH cia falar sozinho: -iCUaS
-Nunca salvei ningum... Ningum! Eu bei"8j|| desejaria fazer, mas j no tinha fora para
iss,<KW|| estes se livraram da morte, foi apenas por cFe$BP| tncias favorveis... <r
f***?*
Levantou-se e voltou a entrar na capela.' Peof! ser o momento de me retirar. Ele
ia julgar que eatD|- cobarde, mas isso no me importava. "VerdadeirapWfflif disse a
mim prprio o que busco nesta colite*5 sossego, e sossego, hoje, no existe aqui".
'4fiP
Antes, porm, de eu haver tomado uma dsfllf definitiva, o homem surgiu, novamente,
no a.dro,CttP outra braada de ex-votos. Eram, agora, mos, seli* cabeas e ps de cera.
Ou por falta de pacincia!'p** os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso part" aq
ueles smiles de membros humanos, que lhe aora"*
riam, porventura, remotas supersties, ele acercou-se do murozito e lanou os ex-voto
s, duma s vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se um moment
o, como eu fizera antes, a contemplar o oceano.
O senhor gosta disto ? perguntou, voltando-se ligeiramente para mim.
Isto bonito respondi-lhe. um magnfico
panorama...
Tornou a olhar o mar e a terra, lentamente.
Sim, no feio...murmurou. Podia ter sado muito melhor, mas, enfim... J os r
omanos gostavam deste stio. Ningum o sabe ainda, seno eu, mas a verdade que houve a
qui um crasto. Olhe, acol, esquerda, antes de se entrar no adro, se algum escavar
, encontrar restos de sepulturas... E praia, l em baixo, chegaram a vir muitas gal
eras... Existia, ento, um pequeno porto, que o tempo assoreou...
Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. Tentei exa
min-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fix
os ao longe.
Efectivamente disse-me, depois se olharmos bem para a terra, para o mar e para
o cu e se pensarmos na grande variedade de seres que h no Mundo e em todo este ad
mirvel equilbrio planetrio, parece-nos que estamos perante um milagre. No assim? A s
i tambm no lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas?
Sem dvida, o Mundo muito variado e... Ele interrompeu-me:
Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples
insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o p, se
ele no fugir, capaz de levar-nos a meditar sobre o mistrio da criao, capaz de arrast
ar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, no tnhamos
sequer admitido percorrer...
O homem interrogou-me bruscamente:
O senhor o que ? Qual a sua profisso ?
gi
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
917
'"t
'""M
* Eu disse-lha e ele pareceu contente: t*nri
Ah, muito bem! Ento pode compreender.;frittfe verdade que o Mundo parece feito po
r uma agMfe nao portentosa? Por uma inteligncia que nejDSS homem pode igualar ? nttt|
Algumas vezes tenho reflectido sobre isscm3| confessei, modestamente. ' - &
A est! exclamou ele. A est! Mas O:SRHhaB engana-se! Pelo menos, engana-se em metad
e...\>,f>nM
Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado} wjff de p; eu tinha de olh-lo de baixo
para cima e^sentjfcflll com receio de que estendesse as mos e me dominasS
Ora diga-me uma coisa... Nunca lhe pareceu^M| essa inteligncia havia ficado a meio
do seu li il HiJM Que no tinha ido at onde parece que pretendiauiM
No sei. A nossa razo tem limites. Para 'a&HB da nossa razo podem existir outras raze
s, qu&dMB so explicveis... ^^B
Era a, justamente, onde eu queria chegar l j3faM| Ao dizer isto, o homem sentou-s
e ao meu \aaJm
dobrando-se levemente para a frente, com os brataili
apoiados nas pernas e as mos juntas. A sua vafl|
adquiriu, ento, um murmurejar de confidncia e-rd|B
quem no sente pressa alguma: '"'1J"B
Tudo correu muito bem, a princpio declaronB
como se continuasse uma narrativa interrompida-^wB
Eu tinha um poder infinito. E uma imaginao paB
alm de todos os prodgios. At eu me admiro, hoMH
disso. Bastava pensar uma coisa e o meu pensamentij}
materializava-se rapidamente, adquirindo forma e vidwH
A minha fantasia no encontrava limite algum e 4B
habitantes das profundidades deste mar que estamfliB
vendo o atestam. um prazer que o senhor no conheodM
tornar realidade o prprio absurdo. Mas, nesse temp>q|B
tambm eu no sentia esse prazer; eu no fazia ideiij
alguma do que era absurdo e do que era lgico, d*H
que era belo e do que era feio, do que era bom e d&jm
que era mau. Estas definies s se estabeleceram maiwH
tarde, justamente quando surgiram os limites... EtiB
criava, criava, como num delrio. E no h dvida de-*J
ue a minha principal obra foi isso a que os homens chamam o Universo, a mecnica c
eleste, o Infinito... Os senhores andam, com a vossa cincia, a colocar l algumas b
alizas, mas trabalho mais difcil do que se quisessem remover com uma colher de ch
a terra duma montanha...
Enquanto ia falando, o homem olhava para o cho, como se no desejasse ver nos meus
olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o torn de voz:
Um dia, porm, senti-me decadente. As aves, por exemplo, so um indcio do meu declnio.
No sei se o senhor viajado, se conhece a sia e a Amrica, as grandes florestas trop
icais onde h aves maravilhosas. Mas se no conhece, no importa; tem visto isso, pelo
menos, nos livros com estampas multicolores. Parece-lhe no verdade ? que h uma
diversidade deslumbrante, uma fantasia inesgotvel no mundo das aves. Pois no assim
! Se observar bem, ver que no assim. A minha imaginao havia j comeado a diminuir, co
va j a aproximar-se do que \iria a ser a imaginao dos homens. Criei um pssaro e os o
utros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os tam
anhos, desde a avestruz, to grande que pode ser cavalgada, at o colibri, que, de m
insculo, se confunde com um insecto. A seguir, fi-lo de todas as cores e com toda
s as combinaes de cores. Depois, em vez de criar, pus-me a exagerar determinadas p
arcelas do que j havia feito. E cheguei, assim, at a caricatura da minha prpria bra.
A algumas das aves limitei-me a esticar-lhe as Pernas, as caudas ou os bicos, d
e tal forma que estes ficaram grotescos e muito maiores do que o corpo. A outras
dei-lhes uma amplitude de asas de que no careciam ou deixei-lhes apenas uns simp
les cotos. Variei-lhes, tambm, o fulgor dos olhos e a composio dos seus gorjeios, d
eixando umas eternamente mudas e obrigando outras a cantarem at na hora da morte.
Mas tudo isso eram simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia fundame
ntal, era a mesma. Eu Parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma
gi8
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
919
descobeita feliz e passou, depois, o restoisawi lutar desesperadamente para dar a
iluso1 de mj se repetia, quando, em realidade, no fazia'"fUjifC seno plagiar-se a si
prprio... ," ^3
O homem calou-se subitamente e, soergua* cabea, olhou-me pela primeira vez, desde
(Jwafg sentado. > ei/pn]
O senhor est a pensar que sou um^looeiOS verdade ? fsisq
Foi, ento, que, por meu turno, baixei r"tfe[ ^ admitindo de novo que ele poderia,
em quajiqm" mento, lanar-me por cima do murozito de'T^^Jl como fizera aos ex-Vot
os. -omaj
No, senhor. Estou a ouvi-lo com m{t$gjj resse. O que acontece que se vai fazendoQf
rSI
Ele examinou atentamente o cu, como selialjj o Tempo: '^k
No, tarde no ... So apenas cinco hoiacwfc c um cigarro. op|
Passei-lhe o mao, meteu-lhe os dedos, risabUifjl gar, um fsforo, soltou o fumo e t
ornou: - $$
com o mundo vegetal aconteceu a mesaa^j O que uma rvore ? O que uma planta ? lfcn|
J metida na terra. Para evitar a monotonia, tiveudU variedade s folhas, s flores,
aos frutos e aospaK Mesmo aos troncos. Mas, apesar de tudo, tff^j uma raiz metid
a na terra. Ora no era isso-'Spl queria. Eu no queria o Mundo submetido a uHB$l tio
perptua. Eu desejava que ele se rn0<$pB constantemente. O senhor j pensou que
poderiltM feitamente existir bosques areos e que o homem <fe| andar no fundo dos m
ares ou no espao celeste^ tanta facilidade como anda aqui na terra ? 0R"$Bi no v qu
e os homens esto todos os dias a pu^l corrigir os defeitos do meu trabalho ? O que
uH#lH ou um escafandro seno um remendo minhwJ Mesmo os que me adoram, passam a vi
da a digiI de mim e a tentarem emendar o que eu fiz. Q&l imploram as minhas graas
para as suas infelicita no fazem, no fundo, outra coisa do que censuEBK
pois o que uma splica seno tuna revolta que no
5g pode exteriorizar? Sorriu vagamente e ajuntou: __S no me amaldioam porque ainda
me julgam mais forte do que eles...
Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um torn
doce, melanclico, confessou :
Eles tm razo, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha obra. O
que devia ser mutvel tornou-se imutvel e as leis que ficaram a reger o Mundo so imp
iedosas. Eu s me lembrei de criar o homem muito tarde. J havia feito os outros ani
mais, j havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos pormenores, quando me
ocorreu uma outra vanante. A minha tendncia fora, at a, dar aos bichos quatro apoi
os sobre a terra ou sobre as rvores. Pois bem! Aos novos seres eu daria, como s av
es, apenas duas patas. Mas o senhor no pode imaginar o que senti ao ver de p, entr
e os outros, o novo casal. Eu estava a criar o canguru e to impressionado fiquei
que lhe pus logo mais dois embries de pernas e deixei-o incompleto para todo o se
mpre. No meio dos outros bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos rudos
na manh da sua vida, o homem e a mulher, nicos que eram verticais, dir-se-iam dois
pinguins entre um bando de pssaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber c
omo orientar-se. Mostrava-se to triste, to incerto no seu destino, que tive de rep
ente pena dele. Porque fora talhado ao alto, o seu prprio sexo se apresentava men
os oculto do que o dos outros animais e parecia vex-lo. No ocaso do meu poder, eu
comeava a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funes a um mesmo rgo. Para
as aves bastara-me um tubo de vazo; para os outros viventes criei, inutilmente, d
ois - e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o erro, era dema
siado tarde; dali em diante, a prpria vida humana brotaria dum cano de esgoto. As
sim, a piedade que eu sentia pelo homem ia-se tornando cada vez maior. Hesite
i um Comento e decidi: " a este que eu me darei. a este
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O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
921
'"<
que eu darei o que ainda resta de grande eijl m E fundi a minha decadncia, o creps
culo da" potestade, naquele melanclico animal. Foi ou1| o meu maior erro. O homem f
icara com todas gwj raes dum deus e no era completamente dei(r)! giram, devido a is
so, inmeros conflitos. QnQJ queria ser eterno como o deus que ele guardava w de si
e era, pelo contrrio, to efmero como dSral animais. Queria ser feliz, impelido por
aquelateb reminiscncia de quando uma parte dele me' pf&tl a mini, sua divindade, e
havia de passar milMo j milnios a lutar para ser feliz, sem nunca o >p!oi| por muito
tempo. S o era integralmente Rorgia minutos e justamente quando fecundava notasil
humanas. Eu havia-o deixado to desamparadara tantos problemas a resolver, que a p
rpria (catnj em vez de ser apenas um ponto de partidar</fo| contrrio, um ponto de
chegada a sua prinffiilffj quista. O Mundo ficara imperfeito e o homem'com S nsi
a de perfeio impossvel. O Mundo ficara im pleto, injusto e sem finalidade visivel e
o homin>iM a lutar para que o Mundo tivesse para ele tudor que o Mundo no tinha. Qu
ando no pode u^l outra maneira, recorre s hipteses. So as hrpol que o tm amparado desd
e que ele vive. EiaSI remorsos, creia, por tudo quanto fiz... Sinto espS mente rem
orsos por tudo quanto no cheguefelffi zer... o W
O meu interlocutor levantou-se, meteu as mmro bolsos e caminhou, como opresso, at
a extreMM do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhffl para baixo, para os de
stroos dos ex-votos, vi-o, jdef estender a vista at o mar e, em seguida, vol" para
mim: ri
Ento, eu prprio comecei a lutar tambinol tra a minha obra. claro que, ao fundir-me
no prinS homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao cottfri dos outros, o privi
lgio de guardar memria das jntt vidas que tenho vivido. Lembro-me de tudo des comeo
do Tempo, desde que fiz o Mundo. E >"
est o meu principal sofrimento, porque a memria, para quem praticou o mal, , como s
e sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, s vezes,
milhares de anos para acreditar no que evidente. Quando lhes digo a verdade, ele
s maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo, "O Mundo est mal feito e preciso,
dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo" - os mais fracos, o
s mais ingnuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda sobre se ou no verdade o q
ue lhes digo, enquanto os mais fortes mandam imediatamente perseguir-me. Se, par
a me defender, declaro: "Tenho a certeza de que est mal feito, pois fui eu prprio
quem o fez"
ento consideram-me louco, bruxo, hereje, visionrio, e perseguem-me da mesma maneir
a. Poucas vezes tenho morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos o
utros homens. Ao contrrio, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado
, enforcado, fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das mi
nhas vidas foi sempre aplicada a moda a que cada poca e cada povo obedecem para m
atar os seus inimigos. Disso no tenho que me queixar...
acrescentou, com um sorriso. H pouco, contei-Ihe que, ali, entrada do adro, se e
ncontra um velho cemitrio romano. Decerto, o senhor no acreditou. Compreendo
perfeitamente: no seu lugar, eu tambm duvidaria. Mas pode ter a certeza de que es
tou l... Ou, se j no existe resduo algum do meu corpo de ento, deve estar l, pelo rnen
os, uma fibula que eu usava nesse perodo. Enterraram-me ali depois de me terem su
pliciado brutalmente, s por eu haver dito |.u.e, como criador que fora do Mundo,
vivia a penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que eu pretendia, com
isso, ser mais importante do que o 'rnperador de Roma e liquidaram-me...
Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia dim
inuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao prPrio
adro, onde a voz do homem prosseguia:
Se eu lhe contasse o que observei e sofri atra-
922
O SENHOR DOS NAVEGANTES
'"t
" vs dos Tempos! Mas nunca mais acabaria!"imeg
o senhor est com pressa... O que me valeu noa/AS
sculos foi a inveno da tipografia. Sem 'qs^S
sofrido ainda mais, dado que as minhas ltintg^S
passei-as, quase inteiramente, nas prises. Ass^dj
pr arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido}"|
muito; desde h quatrocentos anos quase! ftf^yj
outra coisa. Por um lado, a leitura distrai-me^Jejil
a esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, poisou
livros dos homens que eu vejo, sobretudo, o dbaai]jjj|
criei... Ultimamente, l no manicmio, so(|Sj
dar-me livros optimistas, livros em prol. Os ,fMM
afirmavam que essas obras no me despertarianfcjj
sombrias... Mas eu protestei imediatamente.j. oi2|
Ah, o senhor esteve no manicmio ? peafgllj de modo tmido. Wi<i3|
Estive respondeu-me ele, com naturlidj"fj|
No tenha medo de me ofender, pois desde orp*M
adivinhei que o senhor pensa que eu sou urabjfl
No me ofende nada... Todos tm pensado d&JI
a mesma coisa, j lhe disse. Estive e l estaiatafl
se, ontem, no tenho conseguido fugir. Estav^ai
j para oito anos. E sabe porqu? Porque, QflfiM
entrei numa igreja e gritei aos crentes que seirWI
travam ajoelhados: "No vos resigneis, pois & >$M(|
que eu fiz muito imperfeito e, portanto, preeds"$l
do vosso esforo do que da vossa resignao, i SSHj
feito h-de ele ser sempre e vs tambm; contu0J|
muita coisa podeis aperfeioar o Mundo e a v^@|
prios. Mas no de joelhos que o fareis; de 9&M
lutar! Quem vos fala j foi Deus e sabe por qu%|I
assim..." u M
O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe>i|M ressasse conhecer a minha reaco. Ven
do que Ettcffl tinuava calado, teve um sorriso melanclico f" tinuou: I'-Jgl
O que fui dizer! S as imagens dos santos?1*! ram impassveis... Mas o Cristo, no al
tar-mor, pflij contemplar-me meigamente, com um ar secrelQtii cumplicidade. Dos fii
s, uns olhavam para mira, esfipl
o SENHOR DOS NAVEGANTES
923
dalizados, outros faziam esforos para no se rir... junto do altar da Senho
ra dos Aflitos encontrava-se, ajoelhada, urna pobre mulher, a nica que, naquela
manh, estava ali com verdadeira uno. Ela tinha um filho morte e no tinha recurso alg
um, nem para o mdico, nem para os medicamentos para nada. Viera ah pedir ao cu qu
e lhe salvasse o filho, pois era o cu a ltima esperana que lhe restava. Senti tanta
pena por essa me infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braos para a imag
em da Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoo um dos muitos cordes de oiro que
os devotos lhe haviam oferecido. Quis entreg-lo mulher, dizendo-lhe: "Vende
-o e vai a correr chamar o mdico1" Mas a mulher, depois de limpar as suas lgrimas
, encarou-me com repugnncia, como se eu fosse o prprio diabo e recusou o
cordo. Teimei: "Despacha-te, seno o teu filho pode morrer!" Ela continuou a recusa
r e a olhar-me com desprezo. Ento, sempre com piedade por ela e pelo filho, resol
vi mentir: "Anda' Pega l! No tenhas escrpulos! Eu sou o instrumento de que Nossa Se
nhora dos Aflitos se serviu para te ajudar". Ela hesitou um momento. Olhou a i
magem, olhou para mim, mas no cheguei a saber se se havia decidido a aceitar aqui
lo. A igreja enchera-se de gritos. " louco! louco! ladro! ladro! Quer roubar a Noss
a Senhora dos Aflitos'" Um polcia, que esta\a tambm ajoelhado, levantou-se, avanou
para ttiim, tirou-me o cordo e p-lo, de novo, ao pescoo da imagem. Depois, ordenou-
me que sasse na sua companhia... O senhor est a ver o que aconteceu... Se, ntem, no
apanho um guarda distrado e no salto o ^uro, no estaria agora aqui a falar consigo.
..
Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou com um gesto.
So horas de nos irmos embora disse, empregando o plural, como se estivesse certo
de que eu pariria, com ele, do Senhor dos Navegantes. Realmente, eu deixara de
o temer.
Atravessmos o adro. Ao passarmos junto do local lue ele me dissera havei sido um
cemitrio romano,
'I
924
O SENHOR DOS NAVEGANTES
vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar^djj plantas silvestres, um determin
ado stio. EncdlB decerto, porque, vergando a cabea, gritou pafB da terra: ^s,a
C estou! Ouves ? C estou e you coltiM lutar! n fel
.iftH Jfeft!
t*"
O INSTINTO SUPREMO
(ROMANCE1"
'4
memria de Cndido Rondon, grande figura moral do nosso tempo, e de todos aqueles qu
e lealizaram nas profundidades dos sertes brasileiros, luz das suas ideias, uma e
popeia de humanitarismo.
PRTICO
<*
L
Meu amigo:
l J M dia, j no sei h quantos anos desaparecido, mas certamente h mais de vinte, che
gou, enfim, a mancheia de terra do longnquo seringai onde vivi; chegou numa caixi
ta de papelo, que a viagem maltratou e eu conservo ainda, um pouco a modo de relqu
ia.
Havia-a pedido a outrem, mas foi-me remetida por si, depois de encontrar a minha
carta solicitante olvidada entre as folhas de velho dicionrio, amarelecida pela
luz a extremidade deixada vista,' por si, que j nesse tempo entregava, perdulria e
amorosamente, a sua vida e a sua paixo de bilogo, de etngrafo e de etnlogo ao estud
o das expresses fsicas e humanas da floresta imensa; por si, caro Nunes Pereira, q
ue eu no conhecia ainda.
Mais tarde, numa das suas deslocaes sobre as veias da Amaznia, cujo mistrio renasce
logo aps cada violao, como ressurge o do nosso corpo a seguir ao trnsito dos Raios X
, voc tornou a desembarcar no seringai Paraso, pensando de novo em mim. E desta fe
ita buscou pacientemente, nos antigos livros daquele escritrio que tinha dois bel
os crtons bicolores em frente da janela e estava ainda como eu o havia frequentad
o, a minha conta ali, entre as de outros prias, a minha vida sintetizada e/>n alg
arismos, como de bom e corrente uso no mundo fn que vivemos; neste caso poucas c
ifras, pois eu ganhava dez tostes por dia. E pelo mesmo correio recebi esse
30 Vol. Ill
930
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
931
'H
jt
inesperado documento, num jornal reproduzido, e a into. gem que a sua mquina foto
grfica extrara do barraco onde o final da minha infncia e a minha adolescncia trabalh
aram quatro anos infindveis, que cada vez w parecem mais inverosmeis; a imagem do
barraco e da sapotilheira que o antecedia, com o tronco enquadrado por um banco,
meu assento eleito ao cair das tardes, para ler, sonhar e desesperar-me ante um
futuro que eu desejaria sem limites e via-o sempre limitado pelas ribas do Madei
ra, que flua diante de mim.
J nesses dias, que as suas espontneas remessas,
impregnadas de delicadeza, dir-se-ia mesmo que de poesia
romntica da parte de um homem devotado ao estudo,
de sbito me recordavam de modo to emotivo, as marchai
punitivas contra os Parintintins, atravs da floresta -cem
rada e espinhosa, como se ela prpria fosse uma^Msl^om
dncia, haviam sido interditas nos seringais daquel(r)'"re<%
por influncia de Rondon, grande fautor de humantartitt^
Eram o meu terror esses ndios. Quase criana,'OfiH,
arribada dum meio diferente, quando caminhava ^MflMH
varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearttSf
e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muit\foiyft
umas das outras, esperava sempre ver os Parintibmjfj
surgirem por detrs das rvores, as flechas j n0s> ^**W
retesados, e abaterem-me num momento e cortarett^^
cabea e sumirem-se de novo, deixando regressar o fosWH
silncio da mata, que s por si me atemorizava irt^Helfc
mente. E foi ento que principiei a admirar, com p&t&f
bante estranheza, aqueles homens do seu pas, que s0*f**J
do meu temor, como se fosse apenas infantil. A<pM*
homens que todas as manhs, e quase todos sem <"9Wp
metiam brenha ameaadora para agenciar a sM^twjl
infeliz, sabendo perfeitamente que dum instante ^^f
outro podiam ser decapitados; aqueles desconhecidos ##*
populares, irmos desses outros de que me ocupo w*~
romance, com o mesmo amor fraternal que voc ^^vS?
e a razo por que hoje lhe escrevo estas linhas. "**
No podia eu, nessa poca em que mal comeM><f~s
alvorecer-me o esprito, imaginar que no futuro co>W*B
raria os Parintintins de maneira bem distinta daqi&f
com que os julgava ento; e que iria utilizar at a sua selvageria antiga como semen
te dos temas que se entrecruzam, se insinuam apenas ou se desenvolvem nitidatnen
ie aqui. Mesmo depois de haver, muito mais tarde, numa hora porventura leviana,
prometido a Rondon este livro, largos anos partiram, inquietos, perplexos, antes
de n promessa se cumprir.
que, embora no vasto e diverso Mundo numerosos romancistas tenham edificado as s
uas obras, tantas delas tocadas de perenidade, num s meio ambiental, terrestre ou
martimo, citadino ou provncias adentro, em planuras e montanhas, eu sempre prefer
i um novo territrio literrio para cada novo romance. Seduz-me auscultar os caminho
s que ainda no trilhei, estudar as atmosferas que a minha pena ainda no captou, de
svelar o que inerente a cada terra; atraem-me as prprias dificuldades e assusta-m
e a eventualidade de repeties.
Amaznia j eu entregara muito da minha existncia e muito mais ainda da minha alma; d
eslumbrara-me a sua imponncia, conhecera-a no seu mago, andava-me sempre na memria.
E se l voltasse literariamente, mesmo sendo de todo diferente o problema, decert
o haveria quem julgasse ir eu tentar uma recidiva da benevolncia concedida ao pri
meiro trabalho que lhe dediquei e essa ideia me vexava.
Mas se, em alguns momentos, os dois recifes se apresentavam diante de mim bastan
te fortes para me levarem i diferir a construo da nave projectada, noutros parecia
m-me simples maravalhas erradias, balanando-se superfcie dum mar profundo, coisas
de somenos, se as comparava justia de preitear a orientao moral dum grande homem, a
s assombrosas jornadas da sua hoste e dos seus discpulos, o esprito imensamente co
mpreensivo e generoso do seu povo.
Entretanto Rondon falecia, deixando ainda mais viva * que at a a promessa que lhe h
avia feito; e outros hvros meus, aceites tambm com indulgncia, pareciam tfastar a
hiptese de que eu voltava ao mesmo caminho Pira colher, em planta marginal, a flo
r duma nova generosidade.
932
O INSTINTO SUPREMO
'4
Em I59' encontrando-me eu no Rio de JcMgUtii^ nosso amigo Jaguaribe de Matos, com
panheiro de JttNfe e emrito cartgrafo das suas expedies, pergwtx^KHtt de repente, e
da do Museu do ndio: '*<&W4tB E esse prometido livro quando aparece? v\
su^ge Tardei ainda um molho de anos a inici-lo, tns.vbjfr agora aqui. Escrev-lo to
rnara-se uma imposio dxw&tm conscincia. Embora enraizado num facto aconieoigopate ex
ame dum problema moral que vem de muito >lotgt& dum herosmo popular sem espadas, s
em carabitag^ sem sangue, esta epopeia vivida apagadamente ewivfaj ainda recentes
, ignorada do Mundo e da prpria WCOMWM dos brasileiros, um romance. romance, mesm
o quaiHQ na aco comparecem, ao lado das que foram imagitvadm^ algumas personagens
que existiram em carne e assSi com sacrifcio, pertincia e coragem se entregaram Cim
que serviam. aa"f,
Fiel realidade literria, que pelo seu poder coMett^ sador e harmonizante , como de
h muito se sabe,imiH convincente, tantas vezes mais verosmil do que a da'Vtt^ em
numerosos passos desta obra rompi deliberadantit com a histria, em prol da fico cria
dora e livr^^pVi^ que os seus heris no parecessem mitos, as suas tf&> no segregassem
a incredulidade que brota das j4bU&m as suas virtudes emergissem da prpria condio
hutttji^ como em todas as pocas foi verdade, antes dos ftu& se decomporem e tornar
em lendrios. E assim, ^orHW* tantos problemas confluentes, tentei averiguar,
swwj* tendo-as prova psicolgica, as possibilidades duma "W" nobre sobre o instint
o de conservao dos homens *y* habitam estas pginas e moralmente no podiam, ad6j>N que
eram de Rondon, defender as suas vidas, mat<&l*b aqueles que se empenhavam em m
at-los. E agora, **** velho Nunes Pereira, o livro que hoje lhe remeto, pBQf* ofe
renda de quem no conseguiu melhor, dir, destA W* obedecendo inteiramente ao episdio
real, se eles vencer^* ou no o instinto supremo, l onde o Mundo g**1**** ainda, c
omo nos dias da sua aurora, tantos e to &*** plexos enigmas. ~
FERREIRA DE CASTRO '-"f
O INSTINTO SUPREMO
f OM os remos a chapejarem surdamente, cautelo^^ ss como os dos ladres, nas proas
um rudo fino, menor ainda que o dos botos cortando a tona da gua, as canoas metera
m a terra. A noite tropical, embora de estrelas acesas, mal permitia divisar as
sombras que se erguiam dos bancos e, de terado cintura, machado ao ombro, desemba
rcavam umas aps outras, todas hesitando sobre onde colocar os ps. Os seus toscos s
apatos de borracha, com o feitio exacto das pegas, semienterravam-se no tijuco ri
beirinho e mais facilmente as pernas se desprendiam de dentro deles, do que eles
se libertavam dessa lama pegajosa, quase to voraz como as areias movedias. Mas a
lmpada de bolso, de algum ainda sentado numa das popas, estoqueou de repente a obs
curidade, abrindo um caminho de luz, estreito e oscilante, na terra que trepava
do rio para a floresta, gretada na parte alta, que mal se via.
Quando os homens chegaram, enfim, ao cimo da declividade, l de onde o cu era vasto
e dir-se-ia ttiais claro, deram com enorme parede vegetal, quase sem espao para
os seus corpos nesse cho plano, que eles sabiam ser imenso e ali vinha desbordar.
Ento
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'"<
novas lmpadas se acenderam e os seus focos inqtfi, dores foram riscando o grande em
aranhado, ondw& grossos fios das lianas cosiam, uns aos outros, arbttfbf "" plantas
, rvores, e os velhos troncos de pele esbrash quicada pareciam, quando a luz por
eles subia, a modo de rptil transparente, de contornos imprecisos, que^o assustar o
s homens com a lividez de cadver que?4* sua casca, de sbito, tomava. fe
Mas j se ouvia uma voz de mando, a de Amaro,* baixa e curta. E rapidamente brilha
ram as lmirts<* dos terados, seguindo as indicaes das lmpadas'f" rasgando as primeiras
sendas, que lembravam minai* a furar a tremenda espessura da brenha. tt
Pouco depois, aqui, ali, mais alm, soavam os gW ps dos machados, na noite j toda ner
vosa. Lmpadf dispersas, iluminando os ps dos troncos, quase estfttl ticas, dir-se-ia
m detidas para dar tempo a decifrar UW* remota inscrio. No se enxergava quem as sust
itjirl nem os homens que cortavam; s se viam os machaaSP e as mos, ora a sair, ora a
mergulhar na som^t como os insectos chamados ao farol que os mat^F Vai pau! Num in
stante, a frase humarriMB aquela alegoria de desvairo. Todas as lmpadas se Bj^J gar
am, menos a do homem que a proferira. Mas'tpj| outras trs se reacenderam, volta da r
vore qafi&wl tombar, e por ela os seus focos subiram at a cOwf onde se fixaram co
mo se pretendessem sust-la fWR essas dbeis escoras de luz. lMl
O machado voltou a insistir. O tronco foi-se iP6*? nando, estalando pouco a pouc
o, ainda hesitante 6JPr obedecer ao desgnio dos seus algozes. E quando, enfinjse
decidiu, os galhos dos vizinhos, a que se amparJjjjP e com brutalidade ia partind
o, lanaram protestos i*|5C ruidosos e aflitos do que ele prprio, que a esse ap<BJ|
^ forado ficou devendo poder morrer abafadamentlr como se tivesse rolado de degra
u em degrau, a^X cova. "^2
Desde ento, na noite cheia de rumores, potlfijjl minutos decorriam sem que se ouvi
sse "Vai pau!", "^m pau!" e sem que os quatro jactos de luz tornasserfl3*||
aderir, no jeito de arcobotantes, frana da nova vtima.
As horas iam-se esgotando cada vez mais agitadas, mais febris e sudorosas, os ho
mens das lmpadas a alternarem com os dos machados no corte da floresta cerrada e
negra, que s nessa noite, ali, depois que existia o Mundo, cedia enfim a sua virg
indade. Dir-se-ia que as prprias rvores tinham abandonado o ar austero e imvel, ess
a enigmtica expectativa com que haviam recebido, pouco antes, aquele bando de demn
ios, que tudo assarapantava em seu redor. S Amaro no trabalhava, como se tivesse a
penas a misso de vigiar os outros, contar o nmero de fustes que abatiam e pronunci
ar, de quando em quando, algumas palavras breves, sempre baixas; mas via-se, pel
a frequncia com que tirava o relgio do bolso e lhe achegava a sua lmpada, que era d
e todos o mais apressado. s quatro da madrugada, por entre os troncos j cados e os
arbustos esfrangalhados, ele tornou ao rio, com a luzita frente. Na canoa maior
encheu uma serapilheira de terados, de colares de missanga, braceletes, espelhito
s redondos, outras bugigangas; e, pondo-a aos ombros, voltou terra, na mo esquerd
a a lmpada, na direita dois machados. A passo insonoro de fantasma, rentou alguns
dos homens que cortavam as rvores e logo penetrou mais na brenha, at a linde da re
a onde se efectuava a derrubada. Parecia que o seu pequeno jacto de luz, vaguean
do de um lado a outro, buscava um stio idealizado e que finalmente o encontrara.
Cho limpo de plantas, habitado apenas por troncos gigantescos, que recusavam a qu
alquer outro vegetal a possibilidade de viver sombra fatdica das suas comas, obje
cto que nele se depositasse enxergar-se-ia facilmente de longe, desde que possuss
e algum relevo.
Amaro deixou cair os machados, pousou a serapilheira e, reentrando no cerrado, d
ele volveu com dois arbustos, que rapidamente desfolhou. Espetou-os na terra e n
eles foi dependurando, cuidadoso, quase carinhoso, maneira dos ourives repondo a
s jias preciosas
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i 'H
nos seus estojos, os colares e braceletes que troiBwAg sobre os quais a luz perp
assava, sugerindo uma bqthjj leta elstica e fazendo rebrilhar as contas multicoil
"Plantou os machados pelos cabos, que assim c^n" verticais como num campo herldico
, de gume valta|U para a banda onde as rvores tombavam; e aoB.itt" ados deu-lhes o
jeito de sabres rompendo de sepultai" de guerreiros, para que se algum raio de
sol coisa" guisse, apesar de tudo, traspassar o grande dosse, ele atrassem, faiscan
do, os olhos que transitassem disia^ tes. Foi-se ainda por um cip, estendeu-o de
um rgisp a outro, nele deixando a prpria serapilheira, depe$p durada e aberta como
uma capa de burel a segiv E finalmente afastou-se dali, com sua luzita ince^J ent
regando escuridade todos os presentes trazdll1 que lembravam ex-votos de um eremi
ta aos deuses^jp floresta imensurvel. 'tVtt
Agora, isoladas das vizinhas j mortas, as n$jqj| maiores caam desamparadamente. E o
estrondo yH^ lanavam na noite de fbula dir-se-ia encaracolai^ antes de se repercut
ir, j desdobrado em sucessif| ondas, mata adentro e pelos meandros do rio, de f^J^
lenta e medonha. lPl
Vai pau! Vai pau! * ifSf
Amaro examinou novamente o seu relgio e taMt enviou o pequeno foco da lmpada aos f
ustes aiSp por abater. Eram cinco horas e onze. O sol nao^ii^ daria a surgir, apr
essado, teatralmente rpido, truq^* dum prestidigitador, como aparece sempre nos trp
itHP e, com ele, a entrega dos corpos ao grande perigo. B^ lbios de Amaro partiu u
m silvo prolongado. E quflip' sinal, cortante e frio na madrugada quente, os ma"f
S" dos despediram com maior fria ainda os seus gcJjpP de misericrdia sobre os tron
cos j feridos. Encuftfr ram-se os intervalos da matana, os quatro focos-pjpf tos vo
avam, lestos, de copa a copa, e tumultuosamente as rvores caam umas a seguir s outr
as, num frag" de tudo estarrecer. '**
O relgio tornara-se uma obsesso. Eram cincow vinte e oito e Amaro sibilou de novo,
desta vez impWf
L
rativamente. O tumulto cessou. Assinalando os escombros vegetais com as luzitas
que lhes facultavam o passo, por entre os caules prostrados e as comas aleijadas
, os cortadores avanavam para a margem do rio. Entretanto, com a lmpada ao alto, A
maro inspeccionava mais uma vez o ar: na noite que findava, vrias rvores mantinham
-se ainda de p, de novo com uma serenidade grave, quase pattica. Ele encolheu lent
amente os ombros, como se domasse a conscincia perante o que era j irremedivel; e,
juntando-se aos outros homens, caminhou tambm para a beira da gua. Uma voz, que se
adivinhava preocupada, interrogou entre os rumores abafados do embarque:
Que hora , seu Amaro ? Hesitou e respondeu apenas:
Muito tarde. Vamos depressa!
As canoas, que haviam chegado com movimentos sigilosos, como para um assalto, pa
rtiam agora com um nervosismo de fuga, sob aquela tira de cu que cobria, l muito d
e cima, as duas margens e ameaava azular-se. Dir-se-ia que os remos penetravam ra
ivosamente na gua, como se os braos, exaustos pelo trabalho da derrubada, precisas
sem de clera para ter ainda energias.
Pouco depois o sol rompia, amarelo como uma grande gema de ovo. A sua luz horizo
ntal doirava de sbito as cristas da brenha, doirava-as to expeditamente como se se
descerrasse o reposteiro dum palco j iluminado; e denunciava a flotilha de canoa
s, agora bem visveis, correndo umas atrs das outras sobre o Maici-Mirim, estreito
e cor de barro.
A montante, no cho da derrubada, j oculto pelas sucessivas curvas do rio, as rvores
ainda vivas, que s por mngua de tempo haviam escapado aos gumes dos machados, iam
captando nas suas franas os ecos das remadas, cada vez mais dbeis e longnquos. De
sbito, assustando a paz da manh em desenvolvimento, revoaram at elas brados de guer
ra, estridentes e selvticos, atravs dos quais a morte parecia tomar, antecipadamen
te, uma voz de frentica alegria; brados
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de triunfo, alternando com gritos de dor, to ago^d" to desesperados, como jamais o
s enormes troncos,sS| mesmo os muito velhos, tinham ouvido naquelasftHJj" does d
o Mundo. "^Saf
Mas em breve a manh florestal recuperaVEJ "y" verde silncio e at um soco, que almoar
a aosjpn" meiros fulgores do sol, veio modorrar, enquanto rfn^|| a digesto, sobre
um pequeno galho ribeirinho, apoda somente numa perna. i ujft,
* " aw
'. drfp ")ial
Quando, semanas depois, nos caules abatidos jiafcrt seiva coagulara e as suas cop
as, nuas de folhas,'ini|f tavam os esqueletos das figueiras no Inverno, algudpf d
os homens voltaram ali, tambm numa noite c&tref, lada. E enquanto uns despediam f
uriosamente os-ifegf' machados contra as rvores sobreviventes, comotoif quisesse
m vingar-se do suplemento de vida que UB" tinham concedido contra vontade, outro
s iam regata^ a querosene, esvaziando latas aps latas, tudo o rqpt' haviam prostr
ado durante a arremetida anterior., ffid^
Entretanto, de novo com a serapilheira s costoi; Amaro caminhava para o stio onde d
eixara, na !pR*> meira noite, as oferendas aos ndios destinadas. Aasg; lmpada pesqui
sou o terreno, examinou os troncos' ori" amarrara um cip; e a prpria luz, borbolete
andoi'fl" derredor, um pouco em doidivanas, parecia contend^ por terem desaparec
ido todos os objectos que ele hsat ali depositado. IBE
Afastou-se para cortar mais dois arbustos, que dep** nou e fincou na terra, como
fizera da outra vez. E sob<& eles e no cho, sua volta, disps os novos presente" q
ue trazia. Eram iguais aos primeiros, na missaB^* dos colares e braceletes, nos
espelhos e faces; somenA" os machados, grandes cunhas, haviam sido substitlt" dos
por pequenas caixas de fsforos. 'rl
^ Perto, as ltimas rvores condenadas principiavai" a cair, sobressaltando a no
ite. Mas o relgio no chefr
gara ainda s duas horas quando a floresta estremeceu pela derradeira vez com aque
les estrondos de ecos longos e pnicos.
Amaro colocara-se na parte superior da margem, a contar os homens que passavam n
a sua frente e desciam para as canoas, levando nas narinas o cheiro insistente d
e petrleo. Ouviu alguns deles embarcarem, meter os remos gua, afastando-se velozme
nte, obedientes s suas ordens. E s quando morreu de todo ao longe o discreto rudo q
ue faziam, ele comeou a riscar fsforos, para incendiar a derrubada. Em baixo ningum
o esperava. Entrou na canoa solitria e, com um cigarro olvidado no canto dos lbio
s, partiu tambm. Ia perto ainda quando viu os topes da brenha iluminarem-se com u
ma luz muito mais doirada do que a dessa manh traioeira que lhes sara ao caminho, q
uarenta e trs dias antes, e os delatara fatalmente. Voltou-se e verificou, satisf
eito, que o fogo cumpria, com impetuoso brio, a misso que ele lhe confiara. As ch
amas j se erguiam muito alto, por detrs do arvoredo que muralhava a curva do Maici
-Mirim; e o seu claro, como que levado por uma brisa que nenhuma pele sentia, amp
liava-se de instante a instante. J se distinguiam nitidamente os contornos dos ra
mos que na margem direita se debruavam, muito quedos e misteriosos, sobre a gu
a. Amaro aproximou a canoa da margem oposta, onde havia sombra, e continuou a re
mar. A remar com fora. Cada vez com mais fora, com mais fora cada vez.
II
[VRAM novos, magros e descascados, um ao lado do outro, os dois mastros. Unia-os
, ao meio, uma tira de pano branco, com grandes letras negras, onde se lia: "Mor
rer se necessrio for; matar, nunca!" Glocindo, que a amarrara, deslizava agora po
r um deles, sustendo-se apenas com o brao esquerdo, enquanto os
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'*
olhos procuravam na mo direita, arqueada no*" frente, a farpa que l se introduzira;
e fazia-o catS"' se se mirasse num espelho, indiferente a quem o vaZ? C em baixo
, o Dr. Joo Bonifcio, quarentaAnos morenos e de estatura me, fixava, de cabea. imjjn
nada para trs, a faixa estremecendo ao ventosa, contente pela sua iniciativa, ma
is uma vez penseh^g. "Ele gostar certamente desta homenagem". o ^
com a proa redonda, fundo chato e liso, rnaoeitA dos cascos das tartarugas, as o
bras mortas quase toBaa abertas dos lados, para maior frescura, o "Cuiab", .qua t
raria Rondon, j abandonara o rio e se apresentas^ vista. De marcha refreada subia
o igarap, aproando ao barranco, ali pertinho, onde se alinhavam o Dr. Jo$% Bonifc
io, alguns dos homens j seleccionados e Man^, Lobo, proprietrio do seringai Trs Cas
as, que se estais dia atrs deles, com seus lagos e sua brenha imeas^ at sombrias pr
ofundidades ainda por dominar. coj$ Subitamente, a tira de pano branco, que
de com^ ondulava apenas, muito de leve e silenciosa, como^lfs amealhasse foras, des
atara a estralejar entre os ma^b tros, com fria cada vez maior. Era um alarido sw
wfe nervoso, de multplices tons, ora parecendo bater p*J9, mas, a aplaudir a sua
prpria clera, ora a encarreiil, para o desespero, com finos e cortantes gemidos.
ufa, Joo Bonifcio tornou a erguer os seus grande%_ olhos negros. Os homens que
o ladeavam seguiam taaft^ bem, de mos atrs das costas, sem migalha de comei"; trio,
os movimentos da faixa, cada vez mais enfurecida^ e iam considerando que o tecid
o, se o vapor tardassfti em manobras, poderia rasgar-se antes mesmo de Rondon le
r a frase l pintada a sua frase clebre, brevirio de todos eles. e Esqueci-me de
mandar abrir-lhe uns furos =" disse Bonifcio, arvorando a sua responsabilidade
pep rante a mudez deliberada que o cercava. " ' Mas o "Cuiab"
procedia com tanta rapidez e con* fiana em si como se houvesse substitudo a quilha
longa e cega que lhe faltava por dois olhos vigilantes; no fundo do seu casco.
J Glocindo prendia no cepo da mangueira que secara e era to slido como os cabeos
dos cais de melhor reputao, o cabo que lhe haviam lanado da proa. J se viam tambm, ni
tidamente, numerosas figuras de bordo: umas debruadas na amura, muito quietas e t
ediosas, perante esse novo porto, semelhante a tantos mais que o vapor escalara;
outras cruzando-se, ao longo do convs, com um oficial de farda branca, que march
ava apressadamente em direco r, enquanto na sua ponte altaneira, junto do prtico e d
o marinheiro do leme, o capito do barco, tendo reconhecido Manuel Lobo, lhe fazia
de l um gesto amvel.
Todos quantos se encontravam na ribanceira, com os ps afundados no capim, havia
m imaginado ver Rondon mal o "Cuiab" se avizinhasse. V-lo ao lado do comandante, l
em cima, onde costumavam aparecer, nos momentos de chegada, os passageiros que s
e tinham por superiores aos outros, ou ento a acenar-Ihes da amurada e a ler na t
ira de pano, com um sorriso talvez lisonjeado, o comportamento que ele prprio est
abelecera e do qual, nesse dia desabrido, o vento tanto parecia discordar. M
as os olhos percorriam o barco de proa popa, voltavam a ir, tornavam a vir e, po
r muito que teimassem, no descobriam em parte alguma o general. A experincia do Dr
. Joo Bonifcio devaneou: "Justamente as pessoas importantes gostam de se demorar
nos seus camarotes quando os vapores chegam aos portos e elas calculam que m
uita gente as espera, para as homenagear".
Pela boca larga do portal, a prancha j saa, longa e escura. E foi ento que no convs d
a primeira classe surgiu algum vinculado ao objectivo que reunia, nessa tarde, aq
uele grupo de homens sobre um barranco do rio Madeira, uma escalavrada ingremida
de a que as guas, nos meses pluviosos, em que elas se mostram tanto mais famintas
quanto mais gordas andam, todos s anos devoravam um pouco. Era o etnlogo Curt Nim
uendaj, germnico de lena naturalizado brasileiro, de h muito trabalhando, como auxi
liar, no Servio de Proteco aos ndios, que saudava com um
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" s gesto da mo direita as gentes de terra, efujUiHt a esquerda sustinha a aba do
panam, muito''bwilite> que a ventania insistia em arrebatar-lhe. toSm
Vamos l, doutor...murmurou Mann"l[Ti^- roando o cotovelo pelo brao de Joo Bonifdojlff
Os guinchos, que abalavam o prprio baraa/t"fcp a sua fora estrepitosa, j haviam com
eado a ieptkr a carga dos pores quando os dois chegaram aais db Curt Nimuendaj, sorri
ntes e intrigados. , r>vafe
Vendo a pergunta que traziam nos rostos, torlttfe vel como se viesse escrita, ele
voltou-se, logo apfcfc cumprimentos, para a faixa que continuava a onddf l em cima
e disse: '"Tu
Vocs esperavam o Rondon, ? ltimay<|(S|| no pde vir. O governo encarregou-o duma dom
! urgente no Rio Grande do Sul. i onflfr
Largada a notcia, Nimuendaj calou-se. Mas*SHO adivinhar a insatisfao dos olhos que o
miravam,cdaii aquele silncio exigente, acrescentou: a^K*
Desde que director da Engenharia, no dJBB& tanto dele como quando era chefe das li
nhas telegrfinU
A voz calma do etnlogo parecia adensar (VtUFbiente de frustrao. r s* O
pena. Seria um exemplo moral para coB$t os mais excitveis...comentou Bonifcio, olh
ato ansioso por notcias da mulher, o saco do correif"JW Glocindo levava para terra.
'-f ***
Tambm eu sinto um grande desgosto por 'A no ter vindo afirmava Manuel Lobo, que
jatttti* consentira que de seus largos domnios sassem fepe* dies contra os Parintinti
ns e algumas tentativas^"" ciara para os civilizar sem luta, embora todas emuj?*
* um velho amigo e eu gostaria muito de ob"" aqui alguns dias. Conheci-o ainda e
le era cordefej* sempre me honrou com a sua estima, mesmo efQP de ser quem . '{^
Nimuendaj deixou extinguir-se aquele pequefiiBO lume de amor-prprio, que lucilava
ainda sobf(r)*** cinzas repentinamente criadas; e depois comun(r)1*?" num vago to
rn de conforto: "?' .
Trago uma carta dele para vocs todos. Ele pensa que talvez possa vir, mai
s tarde, ter connosco.
Manuel Lobo inquiria de si prprio porque o etnlogo no dissera aquilo antes, mas j Bo
nifcio perguntava, entre dois rebombos dos guinchos:
Veio o resto do material, claro ? E tambm os medicamentos que pedi ?
Nimuendaj apontou para baixo:
Tudo a, mas deu-me muito trabalho. Era uma lista enorme. Ainda na vspera da partid
a de Manaus, estive o dia inteiro no Servio de Proteco, para que nada faltasse. So
rriu, enfim :Tambm trago muitos presentes para voc, que manda sua senhora. Vm nas m
alas, logo lhe entrego. Dona Tarslia me procurou. Est bem, mas queria vir acompanh
ar voc. Eu lhe expliquei que uma senhora no pode ir connosco, mas no sei se a conve
nci. Ela lhe escreveu.
Nimuendaj tirou dum dos bolsos interiores do casaco dois sobrescritos, deu o mais
grosso a Bonifcio e tornou a guardar o outro.
Calvo, baixo, arredondado, com passinhos rpidos e curtos que pareciam aumentar e
condizer com a sua expresso jubilosa, o comandante acercava-se para ofertar algun
s momentos de lisonja a Manuel Lobo, rendoso carregador que era do "Cuiab". E enq
uanto conversavam, com Nimuendaj ao lado, Bonifcio afastou-se ligeiramente deles,
encostou-se amurada e abriu a carta. Eram queixas aps queixas, eram como as folha
s de xisto, umas em cima das outras, umas pesando sobre as outras, todas ligadas
, formando um s bloco:
"Quando ontem li, num jornal, que os Parintintins no estavam ainda civilizados po
rque so os ndios mais ferozes do Amazonas, fiquei como louca". "Tu no gostas de mim
; se gostasses no terias ido para a, terias ido para o Rio Branco, dirigir as faze
ndas do meu pai, e me levado contigo". "Antes de casarmos me disseste que havias
sado do exrcito, porque o teu feitio no se dava com os regulamentos militares e pe
nsavas de maneira diferente da de muitos oficiais, mas que ias continuar no Serv
io de Proteco aos
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ndios. Disseste que era um dever civilizar eles.^yjto.
deles homens iguais aos outros e que tinhas as no^y.
ideias de Rondon e se todos tivessem as mesmasiSejn"
as pessoas seriam melhores no futuro. Ento aqaflbjtai
pareceu bonito, mas tu no me falaste dos gratia"
perigos que ias passar e eu no sabia ainda qnp n>t
podia viver muito tempo sem ti". "Se demoras." XMfe
do que prometeste, you ter contigo. Se morreres, queck
morrer tambm". "Te parece, que esses selvagens, q^e
s sabem cortar as cabeas dos civilizados, mere^|
os sacrifcios que vais fazer por eles?" ;"l
Bonifcio conhecia as reaces de Tarslia, mirai
e caprichosa, quase vinte anos mais nova do quejdl^
e sentia-se ao mesmo tempo lisonjeado, enternecidBWI
inquieto. Filha nica de uma amaznida e de um *Mfl
tugus emigrado muito jovem para Manaus, ondp!OH(it'
seguira, laborioso e sovina, transformar num slilp
cofre de negociante o frgil ba de folha com'tyJE
desembarcara, ela recebera da me a gracilidad>a^
figura e era mais fiel ao sentimentalismo choramiflg^p
da Coimbra paterna do que as guas o so no Invi||
aos choupos fadistas do Mondego. "Tinha de respCI
der-lhe pelo primeiro vapor, se no ela era capaJS^fc
fazer alguma asneira. Ele com tantas saudades da>fllB
presena, mesmo das suas infantilidades carinhosas^lB
com tanta ansiedade e tanto desejo, e ela agota$W
dizer aquilo. Sabia perfeitamente que s a pax^g
decidira ao casamento que ela queria e ele procuriWJf
evitar, perante o grande desnvel das suas idades; saWH
a razo que o impelira para ali, mas era bem c^pp
que ainda poucas mulheres compreendiam inteiraffle^
os grandes compromissos morais dos homens, defwi
que no se relacionassem com elas prprias. Tintedg
escrever-lhe longamente, tinha de tentar convenc-l**"P
novo". E j o crebro lhe fabricava os argumente(r)^
opor-lhe, quando o comandante passou rente a d&&
lhe estendeu a mo, a despedir-se. Manuel LobfiB"l|
Nimuendaj esperavam-no.
Desembarcou com eles para o cho declivoso oll~m a prancha apoiava a sua extremida
de e se encontra^|
a bagagem do etnlogo, que o Glocindo comeava j a transportar. Mais alm, os guindaste
s iam descarregando fardos, caixas, barricas, outros volumes, com marcas industr
iais de belas cidades do Sul e de famosos pases estrangeiros, que recordados ali,
na terra cercada pela floresta indomada, dir-se-iam irreais, assombrosas urbes
de imaginao criadas compensadoramente em acres momentos de soledade. Os olhos de B
onifcio esbarraram em dois atados de chapas de zinco e logo os transferiram para
as horas perigosas, beira de outras guas mais estreitas e menos frequentadas; e,
sem o desejar, porque a ideia o molestava, ia associando o vulto da sua mulher s
imagens que entrevia num vasto e misterioso quadro, onde as manchas arbreas do fu
ndo quase anulavam a grcil figura que ele situava no primeiro plano.
Todos novatos ? perguntou-lhe Nimuendaj quando, enfim, se aproximaram dos homens
que continuavam enfileirados no tope da ribanceira.
Quase todos.
O etnlogo percorreu-os com um lento olhar de exame, mais sereno e tcnico do que o
dum militar.
Boa tarde. Esto passando bem, ? E foi ajuntando, sem deter o passo: Venham de a.
.. Trago uma carta do nosso general para ler a vocs.
No reconheceu nenhum dos que o haviam acompanhado durante a primeira incurso que f
izera, para estudo, nos territrios onde a morte, vermelha e nua, se escondia atrs
das rvores.
O Raimundo e o Crisstomo ?
Foram com o Amaro. Estamos espera de que voltem respondeu-lhe Bonifcio.
Esto atrasados ?
Sim, um pouco.
Nimuendaj sopesou, rapidamente, a hiptese que nesse momento encerrava aquele torn
de voz e no perguntou mais nada.
Por entre os cavalos e os bois que rapavam os talos de capim, em frente da casa
maioral, erguida na terra livre que se estendia desde o comeo do bar-
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rano at a orla da floresta prxima,- Manuel ijxftae apressou o seu andamento para ma
ndar abrir ataj^^
Nimuendaj caminhava ao lado de BonifciouBtoc apertando e largando, entre o indicador
e o pokgau,e o seu curto bigode, enquanto lhe ressoava ainda aqdBds resposta to s
umria. Era uma figura seca, de rdsto oblongo, pele terrosa de impaludado, cabelo n
egro,"a9rtt risca da banda esquerda e no lbio fino, cingido ana dentes como o dos
tuberculosos, esse ornato capil^e que ele estimava trazer sempre com recorte esme
$u85j|
A sua cor e a sua magreza haviam desagradados!^ Bonifcio, momentos antes, ao cump
riment-lo a bacante
Como foi voc de sade enquanto andou pcteitiSif perguntava agora. 'KIQV
No tive crises. Em Belm, consultei doi GqWH gas seus e eles me disseram que seria m
ais prudeflilp; no vir para aqui, mas como ia eu perder esta oportni|f nidade? Me
sinto bem. l;HiPf;
Manuel Lobo j se tinha libertado do chapmiB encontrava-se na varanda quando eles ch
egaram. ;<KV
Quadrilonga e vibrtil de luz, a sala exibia, etofrJ^ as trs janelas a nascente, du
as cabeas de veada embalsamadas e, na parede oposta, a todo o seu eoip|| primento
, numerosas flechas, cruzadas em formai*" X X X X. Guardava-as Manuel Lobo com
o lembrffllBf duma sua ousadia irrecompensada e tambm $W*l|f de sinais da boa sorte
que tivera nesses temerosos dUlm em que debalde procurara contactar amigavel
merig| com os Parintintins e eles, de entre as sombras % floresta, o atacaram e a
os homens que o acompanha^ vam. Uma grande oleografia do Sagrado CoraafiP Jesus, de
tons fortemente vermelhos, presidia ago^J sobre a porta do fundo, por iniciativ
a da esposa dtf seringalista, quelas recordaes de vitrias cinegtica" e de derrotas du
ma corajosa ideia de paz; e essa *SP a nica pea que Nimuendaj no tinha ainda visto w
Os homens que vinham escutar a leitura da cart* de Rondon j se apinhavam entrada
da sala. Varf*^ dos na tez como na estatura, brancos e pretos, bcfllpj:
zeos e mulatos, uma dezena de corpos entre os trinta e os cinquenta anos, quase
todos se retraam, sussurlando apenas as palavras, por se encontrarem nos aposento
s do senhor daquelas terras imensas, to misteriosas e to pouco habitadas que dir-s
e-iam mesmo sem dono. Manuel Lobo fez-lhes um sinal para se aproximarem e eles v
ieram situar-se perto da mesa, colocada ao centro, onde Nimuendaj, por detrs dela,
depois de haver pousado o panam, desdobrava a mensagem de que falara.
E certamente j a havia lido, mesmo estudado os efeitos que daquelas linhas manusc
ritas, desenhadas com firmeza, poderia desentranhar. A sua voz passou, rpida e em
pastada, sobre as saudaes que Rondon enviava e logo se ergueu nas frases de maior
aco sugestiva, que ele pronunciava com nfase e acentuava com gestos conjugados:
"Estou em esprito com vocs e ningum pode imaginar como lamento no estar em corpo tam
bm. Conto com a vossa coragem. Os ndios so nossos irmos, so mesmo os mais brasileiros
dos brasileiros. O nosso sangue veio da Europa e da frica, e comemos por ser estra
ngeiros, ao passo que o deles aqui se gerou e desenvolveu. Quando os portugueses
chegaram, j esta ptria, que parece sem fim, to grande , pertencia aos ndios, desde t
empos to remotos que ainda hoje no lhes podemos atribuir uma data certa".
Os homens estavam de olhos muito fixos no papel que Nimuendaj sustinha com as mos
completamente imveis, cor de cera e veias salientes, que nem de santo de madeira
num altar; mas adivinhava-se que eles iam vagueando, sob o impulso das palavras,
longe de ali, previvendo, incertos e fantasiosos, os dias que os aguardavam; el
es, todos eles, mesmo o Jarbas, o nico que deixava escorrer, pelos cantos dos lbio
s, um sorriso lento e ambguo.
"Tommos-lhes as terras, algumas vezes mesmo os brancos destruram-lhes as malocas,
por essas clareiras afora, nos recessos das selvas, onde criavam os filhos e con
fiavam ao sol uma vida isenta de ambies; e
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'"l
quando reagiam aos invasores, com suas flechas prinfe tivas, gentes sem compr
eenso respondiam-lhes "^fa balas de rifles. Chegou, porm, o momento de-imi clui
rmos a tarefa pacificadora, que inicimos htfe" ps, de acordo com o profundo sentido
humanqusilQi ( nosso povo. Devemos conclu-la sem sangue, antes cofe ' pacincia e
fraternidade, para que os ndios possa^ evoluir e beneficiar tambm da civilizao que e
xist"; agora no Mundo". , f gfot
Beneficiar da civilizao... Que civilizao? laMfcf retrica! disse subitamente Jarbas,
agitando ca*" bea e voltando-se para o Mariano, que estava si*,:,. banda. Desferid
o embora a meia voz, todos deram p>f comentrio, mesmo Nimuendaj, apesar de mais sfffo
ft, tado. E quase todos se entreolharam, surpresos e HMM% rogativos, que muitos d
eles ignoravam at o signik^rf da ltima palavra. tK^,
O etnlogo ergueu a vista, lanando-a sobre o ^imsife portuno, com uma condenao reprim
ida, mas ^Mi prosseguiu na leitura: .aoSlj
"Entre o algoz e a vtima sempre a vtima <ptt adquire autoridade moral. Eu conheo, p
or mina priM|| prio, a dificuldade que temos em subjugar o instME de conservao, que
o instinto supremo do hoiraa|P sobretudo quando h grande risco de morte. O mdia" m
ento de legtima defesa s pode ser dominado F^PSl fora de uma ideia, que ser tan
to mais podeBaI^l quanto mais nobre for. Se algum, de entre vs, n^*fl|[ julgar c
apaz de vencer as suas reaces instintiwMBI deve declar-lo antes de partir, sem se s
entir vexdM| nem se sentir cobarde, pois isso perfeitamente caMB preensvel e human
o, mesmo nos mais valentes. ^3" que estiverem dispostos a irem para morrer s
e.fJg necessrio e nunca para matar, eu direi que eles honraalf a nossa terra e to
da a Humanidade". if^**
Percebendo que a carta terminara, Jarbas insistSP* voltado agora para Honrio: *Jr
>;
Est bem, mas no h dvida que tem um potH** de retrica... t**P
Nimuendaj ia pronunciar ainda algumas frases p69#
soais, na esteira das de Rondon, mas de sbito dobrou a folha de papel que tinha n
as mos e, olhando friamente o seu pequeno auditrio, disse apenas:
Se algum no quiser ir, est a tempo de o declarar.
Foi ento que Honrio, um dos pretos, de corpo esguio e ondulante como os dos bons c
apoeiras, lhe perguntou:
No h mais nada ? No h ? E, parecendo-Ihe que Nimuendaj hesitava em responder-lhe, ac
rescentou com desenfado: Sobre esse negcio de a gente ir ou no ir, o doutor Bonifc
io j sabe tudo.
in
f OMIAM sempre com Manuel Lobo e a mulher, na sala que vizinha v o pequeno jardim
e onde, ao surgir da noite, entrava uma brisa fresca, grato complemento dos rep
astos, vinda das bandas do Lago Antnio.
Desde que desembarcara em Trs Casas, Nimuendaj tornara-se a figura principal. J no e
ra para Bonifcio, como sucedera at ali, mas quase sempre para ele, que o seringali
sta dirigia os olhos e a conversa quando se falava da pacificao dos Parintintins,
do transporte de cargas pesadas que ela exigia, to difcil e aventuroso ao longo de
guas e florestas de mil contingncias, ou do carcter dos populares que ftela iam pa
rticipar, muitos deles com reaces a desencadearem-se nas razes dos instintos, l onde
as alfaias da sociologia e da filosofia pouco haviam arroteado ainda. No ano an
terior, o dono de Trs Casas sugerira a etnlogo que os futuros pacificadores se inst
alassem ^s fundes do seu prprio seringai, assaltados pelos Mdios nos perodos estivais
, justamente quando o cho Se despia da sua capa de gua e os seringueiros careciam
de veredas sem estrepes, de grupos arbreos que no
L
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disparassem flechas, de passos livres de perigos ."Mn as suas vidas desprotegida
s e operosas. Mas, eiwJalM de aderir quela pretenso, Nimuendaj avanarai^m doze caboc
los, to destemidos como ele, para -BOBIL vasta e misteriosa, que as ameaas dos Par
intidIli interditavam aos extractores de borracha. E, por"sdh5S" e rios, dias aps
dias, nela procurara, para a sua-iapt misso, o stio que a ele prprio parecera maia
sfM Quando, enfim, regressara, com os braos lavrados ft arranhes e um olhar frio de t
riunfador que se dotmfc Manuel Lobo compreendeu, antes mesmo de Ihoiom" que o Posto
de Pacificao no ficaria nos seus tenrMl nos. Porque ele prprio havia levado a cabo,
temjp^ antes, uma faanha quase igual quela, conhecia bea o promontrio que o etnlogo e
legera. E sem resse^Hf mento admitiu que o mais importante seria, no fintaif con
tas, a pacificao dos ndios, permitindo assnfcS lida dos seringueiros isenta de risco
s e de interruptj" e no o lugar onde se efectuasse o ingresso dos sew*' gens na ci
vilizao. ^^
Agora, mesmo durante esses almoos e jantare&!<H| animavam a velha sala, Manuel Lob
o mostrava-sejif" vezes, preocupado, tanto como Nimuendaj e B|j| fcio, com a demora
dos homens que haviam ido et$| minar as rvores do local escolhido para o futuro acpj
B pamento. H trs semanas deviam estar de voKwS cada dia que passava, dilatado por
aquela expectatolB adensava as apreenses de todos eles. 33*"
Finalmente os homens chegaram, era uma sex"B -feira, ao decair da tarde. Quando,
prevenido por Q!" cindo, Bonifcio saltou da rede, onde alongara a se^J e correu
varanda, j Curt Nimuendaj e MaBEIf Lobo os interrogavam. Viu apenas trs: o CaroUneW
i Aristeu e, um pouco banda do grupo, o Genaro, <p| se apoiava a um dos esteios,
em volta do qual pass"" o brao. Antes mesmo de os cumprimentar, Bonf&Pl julgou con
firmado, pelos rostos deles, o pressentiraeflW que desde a semana anterior o mol
estava. ^**f
Os homens apertaram-lhe a mo com um ar aust^i que ele nunca descobrira na varieda
de das suas exprti|
soes, geralmente humildes, mas sempre tendendo para os gracejos e quedaram-se d
epois em silncio. Um silncio de irremedivel, a que Nimuendaj e Manuel Lobo aderiam t
ambm.
Mataram o Camargo e o Felcio disse, em seguida, o dono do seringai.
Bonifcio voltou-se para os homens, que tinham baixado os olhos, como se fosse j um
princpio de cumplicidade serem emissrios de ms novas, e perguntou-lhes em torn ans
ioso:
Quando ? Onde ?
Saiba seu doutor que foi quando ns vnhamos da derrubada, a primeira vez responde
u Caroline, sempre com ar digno e pesaroso. Os bichos estavam-nos esperando ma
is abaixo, escondidos no mato, beira do rio. De repente, ouvimos uma gritaria
danada, mas no se via ningum nas margens. Nem um s. S se via as flechas que eles jo
gavam de dentro das folhas e caam nossa volta. Seu Amaro, que pilotava a primeira
canoa, se voltava para ns e dizia, muito alto, para fugirmos depressa. Ns j amos re
mando como regato perseguido e ento remmos com mais fora ainda. No valia nada. As can
oas corriam, mas no valia nada, nada. As flechas continuavam a passar juntinho de
ns. Uma tocou o cabelo de Juvncio. Parecia mesmo que eles estavam espalhados por
toda a margem, como as rvores. Camargo soltou um grito medonho. Ia popa da segun
da canoa e vimos que o pobre caa gua, com uma flecha espetada no peito. Seu Amaro
voltou logo para trs na sua canoa e nos disse que segussemos, que ele ia salvar o
Camargo. Ns queramos ajudar ele, mas ele tornou a dizer que tnhamos de fugir, que e
ra uma ordem que dava e que nos matava se no respeitssemos aquela ordem. Ento fomos
esperar depois da curva do rio, onde parecia no haver Parintintins. Foi l que ouv
imos o grito do Felcio, que ia na canoa dele com o Juvncio, o Manga Verde e o Cava
lcanti. Seu Amaro demorou uns vinte minutos. Meteu a canoa debaixo duns ramos, n
a outra Margem, e ficou de tocaia, para ver se o Camargo
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* vinha ao de cima. Os ndios continuavam a goto* mas parecia que no tinham mais fl
echas. O Cananin no apareceu. Me disse o Manga Verde que Sfhrgfr. sangue tingir a
gua. Aquilo foi piranha... Quadi seu Amaro chegou junto de ns, trazia tambm ofea" c
heio de sangue e o Felcio no fundo da canoa/isb^ gemidos que nem quero pensar. Mo
rreu da a pouc*^
Isso foi de manh cedo ? interrompeu bnu camente Nimuendaj, com o rosto muito sever
o reofe voz condenatria. .'aafe
Foi ao amanhecer... - ^
Mas ento a que horas saram do limpo ? u* A resposta de Caroline entrecortou-se
de vacilpfc
enquanto os seus olhos, de novo baixos, pareciam- "BU minar o estado dos "sering
otes", velhos e enlamead^ que lhe protegiam os ps, o esquerdo com um bu&fe aberto
pela unha do dedo grande, que ali assomaMI como se quisesse evadir-se: f-<'^^
Bem... Seu Amaro pensou que se podia dd!" abaixo todos os paus naquela noite...
E fomos ficaijdp' um bocadinho mais... Depois se arrependeu... &ffa sempre a d
izer que o responsvel da morte dorM. margo e do Felcio. Mas ele no tem razo, no, ?%:
ecerto os Parintintins, quando ouviram o barulho dM rvores a irem ao cho, comearam l
ogo beirandwjB rio para ver onde era aquilo. No posso jurar, SWB como havia algu
ns ndios muito longe ainda da dWf rubada, com certeza nos iam atacar mesmo se tyrf
semos sado mais cedo. Mas seu Amaro no quer satap de nada. Aqui o Aristeu at viu el
e chorar. Ns afW cevamos que a flecha que feriu ele no brao tivesili veneno e ele d
izia que ficaria contente se ela tiveiP
l (%
veneno mesmo... 'tflP1
Meses antes, nas vsperas da sua ida capipP Nimuendaj, de relgio em cima da mesa e lp
* esboar o mapa de Maici-Mirim, instrura Amaro, GOT** uma preciso de oficial do Est
ado-Maior teuton^"* sobre a maneira como devia agir para que os hoi"0** se encon
trassem j distantes da mata violada quaflW o sol rompesse; e s pelo desejo de no des
autoflJ*W|
perante os subordinados, o subchefe desobediente, ele refreava agora o seu colric
o desacordo.
Ao menos voltaram l, como se combinara ? perguntou com um misto de dvida e de desp
rezo.
Voltmos. Cortmos os paus que tinham ficado e botmos fogo.
E ele ps l os brindes ?
Caroline entreviu o caminho para onde se dirigia a pergunta e, com um sorriso de
quem d, enfim, boas novas, procurou amaciar a severidade do etnlogo:
Sim, senhor. E quando fomos da segunda vez, j no estavam l. Voltou-se para Bonifcio
e Manuel Lobo, como se quisesse tambm sosseg-los: Os ndios tinham levado tudo. Se
u Amaro deixou outros brindes.
Dir-se-ia ser a mo esquerda de Nimuendaj, ao coar de leve o bigode, que lhe comanda
va o desenrolar do pensamento, por detrs dos olhos subitamente parados. Encarou a
Aristeu, depois a Genaro, o nico que aparentava, com os movimentos nervosos do s
eu brao em volta do esteio, uma impacincia reprimida:
Agora vo descansar uns dias. Voc, Genaro, quer ir ver a sua gente, ? Pode ir.
A sua canoa est l onde a deixou. Bia bem, ainda ontem a vi. Mas se quiser ir numa d
as minhas, mais pequena, v ofereceu Manuel Lobo, num torn amistoso, quase patern
al, com que nunca o tratara.
Genaro agradeceu respeitosamente, um pouco trmulo e apressado, dir-se-ia que romp
endo os liames duma secreta timidez, mas j o etnlogo, sobressaltado pela lembrana r
epentina, cobria com a sua voz as palavras dele:
E os outros ?
Ficaram com seu Amaro, nos Muras tranquilizou-o Caroline.
No domingo, o caboclo aproou a sua canoa ao barranco de Trs Casas, amarrou-a, sub
iu terra capinada
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e atrs de Glocindo foi percorrendo a varan&i^fc Manuel Lobo, aps haver ejaculado a
saliva prodaiaS pelo baependi que mascava. JreS
Ao entrar na sala, deu com Nimuendaj e Bonifjttjft sentados grande mesa, um volta
do para o outro;^" conversa pegada, enquanto o fumo dos cigarros sj0ffl| ralava po
r cima das suas cabeas, preguioso e aulalSf
Sorriu-lhes afavelmente, como a relaes atafe^lj muito, inclinou-se e saudou-os, sem
pre com um SQBft| prdigo, sem nunca retirar as mos de trs das coswijjf onde segurava
o chapu de carnaba. Olhou, depoSI as flechas cruzadas na parede, olhou o Sagrado
Coigtfl de Jesus, novamente as setas, perante as quaisi &H vezes baixou e ergueu a
cabea, como se aprovasJ|iH| presena delas ali, como se aprovasse isso ou 6WB coisa
mais secreta s ele saberia o qu. >- ^a*ll
Por fim, brnzeo e atarracado, vivendo pelos ^WV quenta afora, acercou-se da mesa.
O seu sorriso,rjj|| sorriso chinesa, permanente e optimista, era cowlR gioso. A
Bonifcio pareceu-lhe uma dessas simpa^J que florescem em poucos minutos e o prprio
NimWHrdaj se mostrou rapidamente de bom humor: * '^K.
Precisamos de dois homens para irem conno|SB| ao rio Maici-Mirim e o senhor Manu
el Lobo disse^lB que voc era um valente... ^JK
Encostando-se cabeceira da mesa, o caboclo st$jflf| cerrou os olhos luzentes de m
aliciosidade e, baixai! a voz, como para uma confidncia, retorquiu: ' '*|
Isso so lorotas de seu Lobo... Ele no AMI gostar de ningum sem meter logo calnia. No
iSw valente, no si. Tenho medo de muita coisa. Do cl^| pira, da iara que se escon
de na gua e nem qtt^jR falar da boina quando estou pescando e da surucuCjt quando
caminho no mato... E at de minha mulMf tenho medo, quando ela se zanga... Fez uma
p***"* sorridente e ajuntou: pra ir os Parintintins, ne ? Quanto tempo se leva?
''*
Conforme as coisas correrem explicou-lhe N* muendaj. Podem ser uns dois meses, p
ara levaf * carga, construir o posto e voltar; mas tambm pocfw
ser quatro ou cinco, ou mais, se for preciso que voc fique l. Est compreendendo bem
, ?
E que you fazer eu ?
Remar e, se tiver jeito, ajudar a fazer dois barraces.
O caboclo lanou nova mirada aos grandes X X X X que as flechas formavam, piscou o
olho esquerdo a Bonifcio, o direito a Nimuendaj e, sempre a sorrir, quis saber:
Quanto se ganha ?
Nimuendaj hesitou um momento, pronunciou depois a remunerao decidida em Manaus para
tais servios; e, pela primeira vez, a sua voz pareceu a Bonifcio ligeiramente tmid
a, como se temesse oferecer pouco; mas o caboclo aceitou logo:
No est mal. Mesmo que sejam s dois meses, chega pr baile. E contou que outro cabocl
o, o Leovegildo, seu compadre de fogueira de S. Joo, que morava no Crato, d
era no ano anterior um grande forr. Havia l muita caboclada, muito seringueiro,
muita dona e cunhat, havia, si si. E tambm muita cachaa. Mas Leovegildo, um vai
doso, pusera-se a dizer que baile assim supimpa nunca se vira no Madeira, nem n
unca mais se veria, porque ningum tinha coragem de dar um igual. Ele ento comeara a
contar as pessoas. Eram cinquenta e trs: trinta e sete homens, dezasseis mulhere
s. "Pois eu, compadre, lhe digo que ainda se h-de ver outro mais bom do que este.
Um baile de duzentas pernas. E h-de ser no meu terreiro. Sim, compadre, um forr c
om cem pessoas no meu terreiro". Leovegildo no quisera acreditar, os outros caboc
los duvidaram tambm. Onde ia arranjar dinheiro Para tanta cachaa? No dia seguinte,
arrependera-se de haver jurado aquilo. Jurara porque bebera uns porres a mais e
tambm porque estava reparando muito numa cabocla ali sentada, que lhe fazia, sem
a mulher dele ver, uns olhinhos redondos de maracan. Mas o que dissera estava di
to e havia de cumprir. No podia esquecer a mangao de Leovegildo, aquele sorrisinho
de desprezo com que respondera, olhando-lhe os ps:
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"Duzentas pernas, compadre? S se contar com af fljm suas galinhas". Desde essa no
ite, parecia-lhe qu 3a vegildo lhe fizera mandingarias, para que ele ardesse no infe
rno por ter jurado em vo. Nunca mais areqJB" um peixe-boi. Batia os lagos, olhava
para a cananm horas e horas a fio, a ver se a mexiam por baixo^TBi levinho estrem
ecimento que fosse e nada. Comete pirarucus tivera mais sorte. Mas dos grandes,
desj de que se podem tirar muitas mantas, sec-las- bafe secas no girau, comer umas
, vender as outras, flftt pegara nenhum. Havia, claro, anos assim de ittr tura, an
os de caiporice, todos os caboclos o sabigi mas ele tinha pressa de realizar o ba
ile. -o$P
Nimuendaj aprestava-se para lhe dirigir as ptt vras graves que havia escolhido, ess
as de que depM| diam todos os engajamentos feitos ali, quando--e" parecendo refle
ctir, tornou: 'l^w
verdade o que me disse o Glocindo ? M| dade que no se pode levar cachaa ? f(^Sm-
O rosto do etnlogo fechou-se, mas Bonifcio G" tinuava a sorrir e o caboclo voltou-
se para ele: >iOB
Nem um porrinho ? Sem cachaa no pode luMft, homem valente... **4|
At chegarmos taba dos Muras-Piras ha'BH| um porre de manh disse Nimuendaj, friameiMB
Quedou-se um instante de olhos no cho, p6flB| tivo, enquanto punha distraidamente
sobre a extraia" dade da mesa o largo carnaba, como se abafasse"" com ele, as sua
s ltimas hesitaes: '^flf
Nimuendaj perdera a satisfao inicial: l1S3Jf
Voc sabe que no se pode atirar aos fad^jlj Que no se pode mat-los em nenhuma circuns
tnd^B
O caboclo tornou a sorrir, um sorriso irnico, C$B! prido, que deixava ver a sua b
oca de raros dentij" enegrecidos pelo tabaco que mascava: ' jfe
Matar pra qu ? No se come carne de ndirf^E E, se se comesse, eu c no queria; no gosto
de cafflR de macaco, que mole e doce e se diz que iguaMB do homem... -'"B
A hiptese de sempre, que vivia enroscada, como ofdio venenoso, no esprito de todos
os habitantes daquelas redondezas, esgueirou-se da conscincia de Bonifcio para a l
uz do dia:
com certeza voc j pensou em tudo. J pensou que pode no voltar...
J tinha pensado, sim, senhor, viu-se logo pela maneira desatada como riu e a segu
rana com que falou depois:
Meu filho est um homem. capenga, tem aquele defeito, mas bom pescador. Pode suste
ntar a me. Mas agora no se fala nisso, no. Ento o seu doutor no tem esperana de voltar
? Tem esperana, tem. No tendo, no ia l. Eu tambm tenho. Mas para se ter muita esper
ana que se devia beber todos os dias um bocadinho de cachaa...
Bonifcio interrogou-o sobre a sade, deu-lhe uma apalpadela ao pulso, uma auscultad
ela ao peito, e o seu bom estado parecia to evidente que Nimuendaj, de caderno abe
rto sobre a mesa e lpis entre os dedos, no esperou mesmo pela sentena do mdico:
Como se chama ?
Me chamo Eleutrio... Eleutrio de Campos, seu servidor.
Nimuendaj anotou-lhe a identidade, gratificou-o com um dos seus vagos sorrisos e
apertou-lhe a mo:
Ser daqui a uns dez dias... Mandaremos preveni-lo antes.
Eleutrio despediu-se tambm de Bonifcio e atravessou a sala, muito ledo e despachado
, a balancear o chapu, que segurava pela grande aba. Ia j porta, quando Nimuendaj l
he gritou:
Diga ao Glocindo que mande entrar o outro. Viram o outro aparecer ao lado de
Jarbas, que
vinha falando com ele, instruindo-o talvez, mas logo o abandonava, em frente da
porta. Era alto, trigueiro e magro, o rosto taciturno, os olhos torturados, os p
assos com vagarosidade de espectro; dir-se-ia que um desespero reprimido entrava
na sala onde ressoava ainda, amavelmente, um enxame de reaces
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optimistas. E agora o homem parava, muito hiiftn^ seno. **T&>
e(r)
"uflto,
bom dia... ''"fimfce Nimuendaj sorriu-lhe ambiguamente. E, ida"si$a
sobre as energias de corpo to desprovido de cafUgo olhou com estranheza, de alto a
baixo, antes decaem" aquela figura de anacorticas sugestes: U "
Soubemos, pelo Jarbas, que voc est dispo^u a ir connosco... t)(4j|b
O homem inclinou a cabea de modo anrmativeio depois desviou-se para o ngulo da mes
a, furtaradotfll^ luz duma janela que lhe incendiava os olhos, 'sitia
Tem boa sade ? ot?
Sim, senhor. {>4^
O Jarbas disse-nos tambm que voc sabe algumjif coisa de carpinteiro... Precisamos
disso. Mas precria' ms ainda mais de voc para remar durante vrinlfc dias. Sente-se c
om foras ? '>q#f,
Sinto. O Jarbas me explicou tudo. aofP
O senhor doutor vai examinar voc... > $jl Ao ouvido do mdico o corao do homem respaii
deu excelentemente. $/m
Melhor do que um relgio suo informou nifco, dobrando em quatro a toalha que uti
lizM" durante a auscultao. J teve disenteria? '' MuK
No senhor. a^m
Febres ? nB
Tambm no. Apenas constipaes. jl^S Nimuendaj tornava a encarar o homem: ' w
Sabe que, se formos atacados pelos ndios, poderemos defender-nos pela inteligncia
e nunca pf^tij, violncia ? fa^B
Est compreendendo bem o que lhe digo, 4"r
Perfeitamente. JBJt Era demasiado sbrio. Aquela conciso, duma ^Sllk
meza que dir-se-ia mecnica, nada respeitosa, mal d!3| punha o etnlogo. Para atingir
, no seu mago, a verd2rtf|| desse homem to sombrio, parecia-lhe ser necesslgK perder
muito tempo e desgastar muito os nervos, p^^l
ela, como os troncos duros dos ciprestes, se escondia num capote j spero por si prp
rio.
Ao recomend-lo, Jarbas dissera a Bonifcio que se tratava dum sujeito com cara de p
oucos amigos, mas inteligente, corajoso e sabedor de sete ofcios. Haviam trabalha
do os dois em Pdua, na borracha. No gostavam, porm, daquilo e um dia tinham abalado
para Humait, onde ele principiara a viver como um faz-tudo, j que nas cidades, me
smo assim pequenitas, se podem arranjar biscatos, o que no acontecia nos seringai
s. E Jarbas oferecera-se para lhe ir falar. Agora Bonifcio olhava Nimuendaj, segui
a o lpis que a mo dele ia rolando distraidamente sobre a mesa e compreendia o seu
pensamento e o mau humor que na cara estadeava. Gente no faltava. Por que aturar
aquele tipo ?
Bonifcio precedera Nimuendaj em Trs Casas, para seleccionar os homens que deviam co
mpletar a turma expedicionria, escolhendo-os no somente pelo estado fsico, mas tambm
, tanto quanto possvel, pelo seu comportamento psquico ante os perigos que ele, em
vez de lhes ocultar, lhes expunha com larga probidade. O recrutamento havia sid
o fcil, quase uma inscrio de voluntrios e Nimuendaj sabia-o. A pacificao dos Parinti
ins, essa ideia que possua um sabor a inverosmil desde o tempo das mtuas expedies vin
gativas, sempre rematadas a sangue, excitara ainda mais o povo local, a sua fant
asia, a sua curiosidade e um intento secreto, nunca raciocinado at ali, quando se
soubera que os novos expedicionrios no poderiam matar ningum. Velhos caboclos das
beiras dos rios, dos igaraps e dos lagos, sem outras ambies que viverem em paz a su
a vida humilde, de hbitos to sedentrios como as rvores que se erguiam atrs e aos lado
s das barracas onde habitavam, tinham ido de alma aberta pedir a Bonifcio que os
contratasse. E quando, vista da idade deles, o mdico os recusava, quedavam-se de
olhos baixos, perturbados, pronunciando frases tmidas, mais espacejadas ainda pel
as reticncias do que antes. Confuso desejo de se trans-
g6o
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cenderem, um momento que fosse, mesmo s por jgk teno, vontade de ultrapassarem a lu
ta diria de eaa, renses e maranhenses na mata brava, de que eles eram testemunhas
desde a infncia, os impeliam; e a ceita^i de serem ainda vigorosos para meter di
reito aos perigej rompendo a monotonia quotidiana das suas pobci" vidas, produzia
-lhes, com um fervor de coragem, ,uat sentimento de superao. De Trs Casas, de Popun
ha4l de Pdua e de Paraso vinham tambm ofertas sd" seringueiros, algumas chanceladas
at pelos donos lesg, ss tremendas florestas, ansiosos de porem fim s ameae as que em
peciam fortemente a explorao da borracfaj por tantas mos de prias colhida nas veredas
i 3jb" silncios estarrecidos. ij^
Enervado, Nimuendaj decidiu insistir, uma ltianJ vez, com o homem que parecia disp
or de menos palp* f vras do que frutos ostentava o jenipapeiro que JftJj divisava
dali: a^A*
O Jarbas disse ao doutor Bonifcio que l MN& centro de Pdua, onde voc foi seringueiro
, os Parian? tintins haviam ido muitas vezes. Ento se encontras^, alguns na sua e
strada e eles o flechassem, voc tit^ lhes atirava? ^Hll
Atirava. >;>JW
Um silncio caiu. E a palavra quedou isolada TOif meio dele, firme, honesta e fria
como uma pedra. S9
Portanto, se voc fosse connosco... Era BafdsJ fcio que intervinha, sem convico. ti
A
Antes de responder, o homem pareceu consultaiMnl a si mesmo; e depois declarou co
m a mesma decis^,,; de h pouco: >$*!**
No atirava. Na estrada da seringa no seriaiJi< mesma coisa, no. Na estrada eu atira
va, porque-iip sozinho. Mas indo com outros e sabendo que no %&< deve atirar, no a
tiro. "4
O Jarbas disse que voc no gostava de vivei1 l... Era com medo dos Parintintins ? >
^
Dir-se-ia que o homem se descerrava, finalment$N gastando um pouco das suas econ
omias verbais, P3*^ que no o julgassem mal: >tii||
certo que ali nunca se anda vontade, o senhor sabe. A princpio nos custa; depoi
s a gente se habitua. Temos sempre a esperana de no encontrar os ndios. E se imagin
amos que um dia podemos encontrar eles, pensamos logo que um homem um homem e qu
e mais cedo ou mais tarde havemos de morrer. Algum medo eu tinha; mas foi mais p
or outra coisa que eu quis sair de l. que no gosto de fazer sempre o mesmo. No sou
anta para andar todos os dias pelo mesmo caminho, como os seringueiros so obrigad
os a fazer. E tambm no gosto de estar muito tempo na mesma terra. Gosto de mudar..
.
Fixou Nimuendaj, atentamente, perscrutantemente, como se o exame se invertesse e
ele quisesse adivinhar, naquele novo silncio que se prolongava, as intenes ou as su
speitas do etnlogo:
Sa de l, mas no fiquei a dever nada ao patro. Nem eu, nem o Jarbas. Ns no fugimos, no
ei se o senhor sabe.
S movimentava a boca. O corpo continuava hirto, com os braos sempre cados e as mos f
echadas.
Foi l, na borracha, que ouvi essa histria do general Rondon querer civilizar os ndi
os. Contou-a o Boaventura Freire, aquele portugus que vive em Pdua e andou na expe
dio com o senhor, o ano passado, quando foi escolher o lugar onde devia ficar o Po
sto. Depois, em Humait, li um artigo numa revista e pensei que estava bem o que o
general queria.
Ento voc sabe ler ?
Dir-se-ia que a pergunta de Bonifcio deixava, atrs do som, um rasto de simpatia.
Sei alguma coisa.
Apesar da quietude ponderativa que os seus olhos mantinham, a cara de Nimuendaj p
areceu tambm mais cordial.
Precisa de voltar a Humait ?
- Preciso, mas na quarta-feira j posso estar
aqui.
Nimuendaj tomou-lhe o nome Moacir de Sousa, trinta e oito anos, pernambucano de
Limoeiro e ele
SI Vol in
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O INSTINTO SUPREMO
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963
saiu lentamente como entrara, depois de agradece^ terem-no engajado. >ffife?
A verdade que todo o animal tem medo,'|ijj o medo a primeira arma de defesa do in
divdtftf-i disse o etnlogo, displicentemente, ao v-lo desaparftf na varanda. A prpri
coragem um recurso de {ttj| o medo se serve nos momentos mais perigosos. O ip suc
ede que uns conseguem sublimar o medo e outtffl| no. f" o
Ser s isso ? Vi coisas extraordinrias quanO andava com Rondon. H uma coragem natura
l, fj| certas reaces que so logo corajosas, sobretudo tSt, pessoas rudes. < > t *-
H admitiu Nimuendaj, levantando-se. "iSJtf Talvez se produzam com rapidez porque
partem;"<|| medo inerme no subconsciente de cada qual ou dtiljllfj velha clera abaf
ada. De todas as maneiras, eu pen&jf que o melhor purgante para o medo servir-se
tBStfitf causa em que se acredite. !f*^if
"Sb
IV
T-l '*!
j agora iam ali, h j dias que iam por ali, catetfff
homens nos bateles, com o material trai* pelo "Cuiab", e trs na pequena montaria, dia
nteil^P, para denunciarem os baixios que se formavam de um ano a outro e os tron
cos vogando nas curvas apertadas, meio imersos como torpedos. ""
Avanavam lentamente e todos de peito nu, a bobulhar suor, cantavam enquanto iam re
mando. Sentado popa do primeiro dos bateles, atrs de CaroliflS* e de Mariano, a ca
na do timo sob o brao, a cabe* olhando sempre em frente, Nimuendaj dir-se-ia morto n
o seu posto se no fosse o leve movimento que de quando em quando impunha ao leme.
No segundo batelo, que Bonifcio pilotava, taifr1 bem Filipe, Tanajara e Antnio Roch
a, com a part**
cipao hesitante de Eleutrio, faziam subir uma cantiga para aquela nesga de cu, aque
la estrada azul que reproduzia as sinuosidades do rio por cima do arvoredo, alto
e cerrado, que muralhava as margens. S Dorival e Moacir continuavam de rostos fe
chados, como que atentos apenas s mos que moviam os remos, fortes e sincrnic
as. Era uma cano do Sul, dolente, nostlgica, das muitas que a alma popular cele
brara, com taperas j sem donos, colinas de onde o amor partira, a lua criando, no
s longos chapades, sombras, poesia e feitios. Ao ritmo decadente, infiltrando-se c
omo um perfume venenoso, Bonifcio divisava com mais nitidez as cenas ficadas para
trs, j longe, na vida de outros dias, do que o mundo aqutico que se ia desdobr
ando, vagaroso e montono, diante dos seus olhos. E, de sbito, veio-lhe o mpeto d
e gritar aos homens que se calassem. Parecia-lhe ouvir de novo Tarslia, no dia do
seu aniversrio, depois de ele plantar a roseira comemorativa: "No sei, meu bem, s
e terei coragem de olhar para ela, quando andares por l". Ele tentava furtar-se qu
ela imagem, mas a obsesso voltava, procurando um apoio: "Ela sabia que tam
bm Nimuendaj deixara a mulher em Belm e que Rondon, que amava doidamente a sua, pas
sava meses e meses sem a ver, porque a viagem desde as selvas de Mato Grosso ao
Rio de Janeiro demorava muitas semanas. E mesmo ali, nos bateles, alguns trip
ulantes eram igualmente casados. A mulher do Eleutrio chorava na varanda, ao lado
da de Manuel Lobo, quando eles tinham partido de Trs Casas. Como podia ele quere
r que os homens deixassem de ludibriar o seu esforo, cantando, se dentro de algun
s dias teriam de remar calados, recorrendo ao silncio como a uma couraa que lhes d
efendesse o peito, j no pelo sentimento dele, mas pela vida de todos eles ? Talvez
no houvesse sido suficientemente persuasivo quando respondera carta de Tarslia. D
evia ter insistido mais. Havia alguma crueldade naquilo, era claro, ainda maior
para ele prPrio do que para ela. Mas todas as ideias que exigiram sacrifcios tinha
m sido uma autocrueldade. E ele no
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'"<
ia por um dever militar, como ela e at Manuel turn* pareciam entender; ele ia ali
por uma ideia. AmMJi* estava certamente no seu temperamento, pois muito vezes l
he parecera at que j havia sentido obsct|| mente algumas das doutrinas de Rondou, an
tes mefeijj| de o conhecer". f^
Tripulada por Genaro, o carpinteiro Maximianl^ Etelvino, a montaria pesquisadora
ora se sumia rial voltas do Maici, ora surgia, esbelta e gil, no cdxi| da corrente
, para logo beirar e se deter sombra 'doe grandes ramos que escondiam na gua as v
erdes extnp. midades. E s quando de seu bordo anunciaram o veHL cedro, que descia,
num desamparo de vagabundo/Ai, nova curva do Maici, os homens deixaram de canta
ta! Tanajara contemplou a rvore morta, admitiu viesse da terra dos Parintin
tins, passando de rio pMp rio, ao sabor das confluncias; e uma sensao de ldlj| peito
supersticioso e de fraternidade longnqua criav^g -lhe, simultaneamente, ternura
e mal-estar, ligados*^*! raa de que ele mesmo provinha, selvagem h poufcdlP sculos
ainda. "Mt
Tambm no batelo de Nimuendaj as candwl haviam cessado. Os homens contavam
histrias ;$B Manicor e Porto Velho, orlando-as de comentridIK enquanto remavam.
Histrias iniciadas por Filipe, tetm cs aventurosos que no tinham acontecido, triunl3
||| distantes, ingnuas mentiras. Mas alguns acabaVawl sempre voltando aos
afloramentos da razo que OTf levava por ali, esfalfadamente, h longos dias. Ja
rtw" lembrava-se do Madeira, com a sua amplido qualr a desafiar a do Amazonas,
e sentia-se sufocado ff estreitura do Maici, pouco mais largo do que uma rdi? po
uco mais do que a Avenida de Nazar, entre daSB filas de mangueiras, que ele percor
ria diariamente a$ ir e voltar da fbrica, quando trabalhava em Belffl antes da grev
e, h quanto tempo j! ''
E que vantagens podem trazer, afinal, toda esttf nossa canseira e todos os perig
os que vamos correr1. Era com Aristeu que ele dialogava, com Aristetf sentado j
unto do outro bordo, sobre o mesmo banct
0 da frente. No digo vantagens para ns, digo para os ndios, claro. H quem pense que
no vo ganhar nada com isso. Outros julgam que eles so uma vergonha para a civilizao,
estes daqui e os que vivem l para a sia e para a Oceania e tambm cortam cabeas huma
nas.
Onde isso ?
Isso o qu ?
Bem... A Oceania...
Jarbas respondeu modestamente, em poucas palavras, como se no quisesse humilhar o
companheiro ou no tivesse importncia alguma saber aquilo. Logo tornou:
Um homem que eu conheci h tempos, na cidade, me disse: Pode ser que seja uma verg
onha para a tal civilizao, no estou fora disso. Mas que benefcios tero eles em ser ci
vilizados agora? Talvez os ndios no sejam mais felizes do que ns, pode ser, mas com
certeza mais infelizes tambm no so. Andam acostumados quela vida, como ns andamos no
ssa. Trabalhar verdadeiramente, como ns, no trabalham. Acertar com a flecha
num bicho no trabalho, uma satisfao. Tambm no precisam de dinheiro para muit
coisas de que ns precisamos, nem eles precisam dessas coisas. E mulheres no lhes
faltam.
Honrio e Tito Boludo, que remavam no banco de trs, riram alto.
Quando chegarmos l eu quero que seu Curt me deixe ter pelo menos trs... E depois e
les podem espetar a minha cabea num pau e danar volta dela, junto da fogueira, com
o se fosse um churrasco, que j no me importa mais nada... chasqueou Honrio, perant
e o novo riso grosso de Tito Boludo, que lhe retrucava:
Trs ? No falta vaidade a voc, no. Para mim me chega uma de manh, outra tarde e outra
noite, fiias nunca a mesma.
Parecia que Jarbas no os tinha ouvido.
O homem me disse: Se os civilizamos agora, que temos depois para dar a eles? Cor
tar seringa? J se
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'<(
sabe o que ser seringueiro. Vender sorvete ein jjL naus? Lev-los para as fbricas, l
na cidade, inS balhar o dia inteiro e met-los no xadrez se anJK com protestos duran
te as greves ? Nas malocas;, |3| a caa e a pesca, sustentam os filhos. E na cidaj
3| s vezes, alguns dos que l vivem, no tm s^pln uma colher de farinha para os curumi
ns. Na siaVZ mesmo. Na Oceania o mesmo. jjJL
Alinhavam-se perto um do outro, Jarbas e Aristeji pois que o banco dianteiro, pre
gado onde o baijslIHB j estreitava para formar a proa, era o mais ctutpgjjffll to
dos e as pernas deles quase se tocavam. Mas Aris^" deixara de intervir. Porque Ja
rbas falava alto, pOtS vencer os murmulhos da gua ferida pelos remos, e3| temia q
ue Nimuendaj o ouvisse l na popa e, S"! ouvisse, ficasse de mau humor com ele tambm.
1HJK Boludo, que ia da outra banda, justamente atr&iriflB Aristeu, tossiu e pergu
ntou com voz desfrutante; olR
Ento o tal homem no queria mesmo que-jjH ndios fossem civilizados ? '->J^P
Queria... Mas quando j houvesse farinha e j ao para todos. Aqui e no Mundo inteir
o. Dizia, que s devia ser quando a civilizao j estivesse taUfl bem civilizada. Voc es
t compreendendo ? '^9
Tito Boluto repetiu a sua tosse chocarreira: e3B
No tava mau, no. Mas os Parintintins tinhsuijl muito que esperar. Quando vai chega
r isso ? jhm,
Ento, pela primeira vez, pareceu que Jarbas, a" a afectando discorrer por conta al
heia, perdia a pilfifc tagem de si prprio e de repente se inclua nas patef vras qu
e articulava: fQ{
Um dia vir... E mais depressa talvez do qt(S| se julga. Algumas pessoas daqui se
riem disto, porq<t nunca viveram nas cidades. Jarbas voltou a cabed? lanando um o
lhar para o encerado que protegia * carga, alto ao centro, rugoso dos lados, min
iatura w serra escura e pelada; um olhar de carinho, acompflfl nhado de ligeiro
sorriso de meiguice, tudo to inexplicvel e absurdo, que Tito Boludo admitiu, por a
lguns segundos, estar ali algum escondido, sem conhecimeow
^gle Quase todas as coisas que levamos aqui e no batelo do doutor Bonifcio foram
feitas, no sei se voc sabe, em fbricas de S. Paulo, do Rio e de Belm. At da Europa! E
, quase todos os homens que l as fizeram, pensam que esse dia no h-de demorar muito
. No quero contrariar voc, mas talvez no tenha estado ainda numa fbrica. J esteve?
O silncio de Tito Boludo negava, Jarbas compreendeu-o e insistiu:
Muita gente supe que l s se aprendem ofcios e se trabalha, mas no assim. Isso era ant
igamente. Hoje aprendemos nas fbricas, com os camaradas, muitas outras coisas que
interessam a todos os homens. Se fica a conhecer melhor o que a nossa vida...
Tito, Honrio e Aristeu continuavam na sua mudez, enquanto iam viajando longe dali
, onde tudo lhes era desconhecido, tudo era turvo, por vezes mesmo informe; onde
s os guiavam as fotografias encontradas, em jornais e revistas, de grandes mquina
s que a sua imaginao punha agora em movimento e de altas chamins cujo fumo parado c
omeava repentinamente a animar-se, a formar novos anis, a subir mais e a estender-
se devagar por todo o horizonte, como sob a aco mgica^ dum paj.
verdade que h coisas em que eu no penso como aquele homem disse ainda Jarbas, co
m seu qu de tardio, como se houvesse estado espera de que a vaga regressasse dent
ro dele mesmo.
Ento que que voc pensa ?
Era Honrio quem o interrogava, mas ele escusou-se :
Estou cansado. Remar e ir falando alto ao mesmo tempo mais cansativo do que faze
r um discurso. Me desculpe. Falamos depois com mais tempo, est bem?
Os bateles, sempre tardinheiros, navegavam agora em arco, ladeando as duas novas
curvas do rio, uma logo a seguir outra, a segunda menos saliente do que a primei
ra, como os contornos dos violinos. E a Pequena montaria, aparentemente esttica,
pois s o remo de Genaro, meio imerso, se movia popa, to
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'4
de leve que recordava a cauda dos peixes quajl parados nos aqurios, parecem obser
var secretos aoaw tecimentos, que apenas os seus olhos vem, agu^S^ va-os ao fim d
aquelas duas ancas da brenha. ij Honrio, que ia atrs de Jarbas e era o mais
joV"j de todos eles, com seu tronco negro, alto e nu, |ajj lustroso pelo suor qu
e dir-se-ia engraxado, retomavS dilogo que havia iniciado com Tito Boludo e inters
rompera quando o etnlogo se levantara. Era conversa discordante entre o
alfinete e a almofa^S Depois de o contradizer muitas vezes, Tito declaraaflf in
opinadamente, por aquela sua boca larga, de ltmB grossos, onde um sorriso transf
ormista passava c"B facilidade do escrnio para a tristeza: ai"
Si si, eu disse que no matava. Mas l quS| se sabe se a gente mata ou no mata. Eu no q
u$fl matar, mas s vezes as mos podem mais do que n$S
No podem, no contestou Honrio, olham" de novo para Tito Boludo, um cafuso que dobr
avaJHf idade dele e tinha pouco mais de metade da sua altuM|| Perante aqueles br
aos curtos e rolios, aqueles punJMJil cos de lutador japons, que evidenciavam fora f
tn| pela maneira de se fecharem sobre o remo, sorrhliM pensou: "Se eu lhe desse
um dos meus golpes de &$B poeira, jogava-o logo ao cho; mas se ele me pegasse,J"
ui! com suas manzorras capaz de estrangular um boil"
Tito perguntou-lhe:
Voc tem a certeza de que no matar ? jffi
Tenho, si si. jf
Mesmo a certeza ? *
Si si. o|" Parecendo-lhe desatinadas aquelas afirmaes, fif
tas mais para o contrariar do que para o convencei Tito Boludo vacilou alguns se
gundos e depois, nfl$ torn onde se mesclavam piedade, pacincia e ligeif condimento
de desdm, replicou: '?
Voc, seu moo, ainda comeu pouco minga*i;>; L da frente, Jarbas semivoltou-se, t
ambm dlff
crepante: 4
Eh, compadre, que est voc dizendo a? 9^
matasse um ndio, que se ia pensar? Pensava-se que era uma cobardia e voc no cobarde
. Os ndios no so os culpados de estar ainda selvagens. Certamente voc julga que foi
Nosso Senhor quem os fez. Mas voc j pensou matar Nosso Senhor por ter feito ele
s assim ? No era por medo, no, que voc matava ? Era com raiva? E depois? Os ndios m
atavam a voc e a todos ns, que no ramos os responsveis. Voc no se lembra de que eles
muitos e ns somos poucos ? De olhos ao longe, como se as palavras se dirigissem a
outros ouvidos, Tito Boludo comeara a bater pausadamente, com o cabo do remo, na
orla do batelo e no deu troco algum. Mas j Aristeu, at a prudentemente calado, semp
re receoso de que Nimuendaj pudesse ouvi-los, se voltava tambm:
Voc tem rifle ? No tem. Mas se um dia lhe vejo com um rifle na mo, digo logo a seu
Curt para lho tirar.
Jarbas voltava:
No sente que quando se tem a ideia de que no devemos matar ningum, no matamos mesmo
? Que no matamos at aqueles que queiram matar a ns ? Voc no sente isso ?
Tito Boludo parecia amuado. De rosto sombrio e olhos quedos, prosseguia nas suas
remadas chape, chape, chape como se houvesse lanado gua, com uma cuspinhadela,
o resto da controvrsia.
O rio continuava num abandono medonho, como se atravessasse o Mundo no seu comeo,
com a mesma fisionomia solitria, ilusoriamente repetida at saturao, at loucura, em
ra no emaranhado ribeirinho no existisse um s palmo igual.
L
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'H
J5K ',*
Z\ o oitavo dia, de repente, a gua do Maici^a" rvores, os arbustos, as plantas que
se eng|*R nhavam nas margens, toda aquela verde soledade^H prprio sol que pareci
a ilumin-la por favor, se faijaqf nizaram nos olhos e na alma dos homens, antes m
eSiA de eles enxergarem qualquer vulto humano. Um vel5| batelo, meio afundado, qu
atro canoas e vrias pirogj ndias, feitas de cascas de rvores, encontravanfcj amarrado
s ao fundo de um barranco.
Tambm ali a terra parecia deserta, porto de gemi
morta por ignorada catstrofe. Mas em breve surtJM
no topo da ribanceira, a modo de pigmeu sobre altml
penha, a figura de um curumim seminu, que logo de^jf
parecia, alvoroando a floresta com seus gritos esi"
dentes. E a esse alarme se formou l em cima, qual"
instantaneamente, um renque de ndios Muras-PrarfB
j civilizados, que se embasbacavam perante os moME
mentos dos bateles e da montaria rumando devam!
sua aldeia. J Amaro aparecia tambm, desceujM
apressadamente a rampa, com um co ao lado e iM
homens atrs, entre os quais Nimuendaj reconheo^B
de sbito contente, a Raimundo, a Crisstomo 6tf(B
Cavalcanti, que pegaram e amarraram as cordas dj"|
embarcaes.
Os remadores vestiram as blusas, meteram as mgn
s alas das serapilheiras e com elas principiaram -Ijm
desembarcar. Logo que pisou terra, Nimuendaj sezttkB
toda a confuso de Amaro ao cumpriment-lo, tod&lB
confuso dele mesmo, da sua autoridade desobedecid^B
perante aquele homem com um ar repentinamenfHf
humildoso, de mo a tremer dentro da sua e que e"
sabia ser a mo dum valente. Mas j as responsabiffift
dades do momento, directas, urgentes, se sobrepunhan
lembrana do ocorrido. JB
Tem mantimentos que cheguem para todos sB
homens ? perguntou, sem evitar que as palavras trol^J
xessem ainda, na sua frieza e secura, o despeito recente.
Temos. Temos bastantes.
Precisamos de comida fresca. H j uma semana que partimos de Trs Casas e na viagem s
nos alimentmos de conservas, pois as caadas no deram
nada.
Bem... comida fresca h pouca. Tenho pena... Mas os Muras podem ir tarrafear num i
nstante, para ver se pegam algum peixe. s o senhor querer...
Aquela voz servil e vexada, que Nimuendaj nunca lhe ouvira, continuava a colocar
entre eles, fazendo-os reviver, os corpos de Felcio e Camargo, que os Parintintin
s haviam matado.
Ser para o jantar. Nimuendaj desviou os olhos do rosto de Amaro, pousou-os sobre
o primeiro volume por eles topado, o do pequeno co que se sentara no barranco e o
mirava com curiosidade. O pessoal no pode esperar. Deve estar a morrer de fome.
Mande dar-lhe das suas conservas, para no se perder tempo a abrir as caixas que
vm nos bateles.
Bonifcio desembarcara tambm e viera juntar-se a eles. Compreendera logo o mal-esta
r que os separava e rapidamente o contagiara; e, perante os gestos contrafeitos
de Amaro, perante o seu olhar que evitava fix-lo, apiedou-se dele mesmo antes de
lhe cerrar
a mo.
Estvamos esperando o senhor doutor. O Soares dos Santos est muito mal disse Amaro
, sempre com voz humilde.
Nimuendaj enervou-se com esse acrscimo nas suas
preocupaes:
Que tem ele ?
Tem a barriga e as pernas muito inchadas. E parece que lhe falta o ar.
Est ruim aquilo. Quando a barriga comeou a aumentar, eu lhe dei um purgante : ele
continuou na mesma. Lhe dei ento quinino e tambm lhe pus arnica nas costas, mas no
ficou
melhor, no.
Nimuendaj escutava-o e ia ligando, apreensiva-
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mente, a viso da rede do enfermo dificuldade au* ele lhe criava, ali onde j no podi
a arranjar oulf9 homem para substitu-lo na expedio. Olhou interrogativamente Bonifci
o e ouviu-o dizer com simplici-
rlarlp- ts>
aaae. ,,;
you l v-lo. Deve ser o mal de quem andai como ns, por aqui. ^3*
Perto de Nimuendaj, muito quietos e silencioso?" dois homens esperavam. Amaro apr
esentou-os: Jc
Este o Hlio de Sousa, que todos chamara^ Manga Verde e ele no se zanga; este o Juvn
cc? Marcolino. O doutor Bonifcio aprovou eles. Fora"** tambm derrubada. 3iS
Ainda a pensar em Soares dos Santos, na lactnifl que ele abria, Nimuendaj inclino
u apenas a cabea3jif Os que tinham vindo de Trs Casas aguardavam suas ordens, fing
indo-se atentos s conversas que tedJanjji uns com os outros, umas conversas em vo
z bain sempre a carem em sncope, enquanto os olhos seguia$p| de modo discreto, os p
assos de Bonifcio, que o Cris^C tomo acompanhava, encosta arriba. '9||!
Subam aqui com o Mariano e o senhor Amara que lhes vo dar de comer disse-lhes Ni
muendaj^ os homens iam j a abalar quando ele, ao mesma tempo que fixava os Muras-
Piras ainda aglomerado^ no cimo da ribanceira, advertiu com o rosto muitfc auster
o: Estes ndios so pacficos e bons. Mas quean rem que respeitemos as suas mulheres
e ns temos des respeit-las mesmo. Esto compreendendo bem, ? ',
E se alguma se vier meter na minha rede, sefy Curt ? Se vier, tenho de lhe dize
r que no presta e^T jog-la fora? Era Eleutrio quem falava, provocandf <'* o riso d
os outros, menos de Tito Boludo e DorivaC^ que de sbito ficaram carrancudos. e*"
L em cima, aps o barranco, na sua pequena, aldeia ensoalheirada, de barracas de pa
lha com largos, ^ terreiros frente, os Muras-Piras, selvagens ainda b ;$ pouco, ia
m-se conformando lentamente com a civili*-,* zao. Sorriam a Nimuendaj, numa humilda
de cordial,." ao v-lo passar em direitura ao posto que o Servio jj|t
de Proteco aos ndios erguera ali, tempos antes, j ento pela ideia de se pacificarem o
s Parintintins, essa velha e rdua esperana que nunca vingara. Os homens ferozes vi
viam longe, reconditamente longe, e antigos actos de guerra, travados nos recess
os da floresta, entre a sua tribo e a dos Mura-Piras, tremendos dios imperdoados,
mantidos como muralhas, haviam obstado a todas as ligaes com eles. Agora, enquanto
se ia de peito aberto renovar a tentativa, no flanco mesmo da nao parintintina, E
gdio, o encarregado do primeiro posto, ensinava a ler as crianas muras, naquela pe
quena casa, ao fim da aldeia, que pela cobertura de zinco e uma laranjeira em ca
da ngulo da frente se distinguia de todas as demais. Estava ele nesse magistrio,
com os curumins sentados em longos bancos diante da sua mesa e uma grande fo
tografia de Rondon na parede que lhe ficava por detrs das costas, quando
Nimuendaj entrou:
Ento como tem passado ? Se a Amrica estivesse ainda por descobrir, no seria voc, co
m certeza, quem daria pela chegada de Colombo...
Egdio levantou-se prestemente, muito atarantado, e veio cumpriment-lo, falando dep
ressa, sempre com ar de quem se escusava:
Realmente ouvi para a umas correrias e uns gritos... Mas como os Muras fazem isso
quando matam alguma anta ou pegam um peixe-boi e eu estava com a lio, no dei impo
rtncia... Deteve-se um instante e logo interrogou, quase aflito: E o nosso gene
ral? Onde est?
Explicou-lhe Nimuendaj, enquanto avanava no sulco de outra ideia, o motivo por que
Rondon no viera e Egdio pareceu ento mais sossegado. Despachou as crianas. ... "A a
ula continua amanh, quando tocar a sineta" e depois volveu sua inquietude:
curioso como me distra! Ainda ontem o Amaro e eu estivemos a falar da vossa chega
da e a combinar que voc e o general poderiam dormir aqui. Quantos dias pensa fica
r ?
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gi '"<
A resposta veio de trs da porta, onde Nimtlj^ da j dependurava o chapu: 'tfia
Seguiremos amanh. Em vez de Rondon, db^. mira o doutor Bonifcio. \fd9l
Egdio ficou calado um momento e os seus dean pareciam desprovidos de bom senso, s
empre a abotoar e a desabotoar uma das casas da blusa, vagarosamente sem jamais
se deterem. t ^
O Amaro no lhe disse nada ? No lhe disse qoi na semana passada, os Parintintins des
ceram para <t da boca do Maici-Mirim, onde dois muras estavam pescando ? '*%
Tornou a calar-se, como se temesse a cara de M muendaj, agora concentrada e severa.
^1
E ento ? A voz arremetia, autoritria e dues contra aqueles silenciosos e graves se
gundos, dir-s(c)$| que j debitando, sem mais exame, uma responsabil dade a algum; e
, entretanto, os dedos de Egdio et" tinuavam a hesitar na blusa como as palavras
na stip garganta: "#'1
Bem... Um ficou l... O outro conseguiu escapa$g! mas, mesmo assim, flexado numa c
oxa... Pensei qt|(S
o Amaro j J he tivesse dito... *
No, no disse. No teve tempo ainda. Mandeisi" logo tratar do almoo do pessoal apress
ou-se Nimuei*" daj a declarar, no fosse o outro supor que Amaif lhe faltara de nov
o ao respeito. ^
Egdio falava-lhe agora com mais naturalidade: s
Eu julgo que se os Parintintins vieram to 6* para baixo, foi por causa da derrubad
a. Provavelmem** f pensaram que havia sido feita pelos Muras. Digo isto, *; porq
ue no tendo eles se aproximado daqui nos ltim* anos, aparecem assim de repente... ^
*
Como podiam pensar que os Muras, com o dio que tm a eles, lhes iam levar brindes ?
*
Egdio escolhia as hipteses: 3
Poderiam talvez julgar que era uma cilada... _ !\ A ideia de um novo erro f
ronde Java cada vez mas |
no esprito de Nimuendaj: "A no ser que..." Tinte f acabado de sentar-se; ergueu-se
de novo, como se hot* ||
vesse descoberto de sbito o criador da dvida que
o picava:
O Amaro levou alguns muras para a derrubada ?
No, no levou. Foi apenas com os nossos homens. Eu no sei nada, claro,
mas me parece que o melhor seria ficarem aqui algumas semanas, esperando que os
Parintintins voltem s suas malocas.
Rectificando-se a si prprio, em voz lenta e baixa, Nimuendaj parecia monologar:
Eles atacaram o pessoal da derrubada luz da manh. Verificaram, decerto, que no era
m os Muras ..
Egdio visionava, j h dias, aquela eventualidade a descer o rio, encapotada e perigo
sa como os grossos troncos desprendidos do solo natal e no se aventurou a ,mais
palavras. O seu silncio congelava o ambiente da pequena casa. Nimuendaj desa
tou a andar de um lado para outro, em frente dele, com as mos enfiadas nos bolsos
, velho costume que dir-se-ia tornar-lhe ainda mais alto e seco o corpo delgado.
A ordem para a derrubada fora ele quem a dera, a escolha do Amaro fora ele quem
a fizera, portanto a responsabilidade era sua. Continuava a andar entre a cadei
ra do professor primrio e a parede que ostentava, a meia altura, a fotografia de
Rondon. E foi ele mesmo quem encontrou, momentaneamente, a brecha necessria, ao e
ncarar aquela cabea, cheia de gravidade, com um
5 metlico na gola da farda, os bigodes descendo-lhe, em forma de asas, at as extre
midades dos lbios e os olhos muito calmos.
Afinal, qualquer que tenha sido o motivo, o caso, para ns, muda pouco de figura
pensou alto Nimuendaj, sem deter os passos. A nica diferena com a situao anterior, q
ue passamos a correr riscos antes do tempo previsto...
Egdio apoiou aquele raciocnio, mas ele, como se no o ouvisse ou o desprezasse, pros
seguiu nas suas idas e vindas, de novo silencioso, o olhar inclinado, a testa fr
anzida. Por fim, pareceu intervir na sua disputa interior, falando para dentro d
ele:
Evidentemente disse. E a palavra isolada rolou
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O INSTINTO SUPREMO
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'"t
um instante pelo ar, como que insensatamente, CGJ& o seu qu de psiquitrica, enquan
to Egdio se esf|au cava por lhe descobrir um nexo.
Passos rpidos soaram no terreiro e logo a cabea de Bonifcio surgiu porta: trf
No espere por mini para almoar. Tenho de it' ao batelo, abrir uma das caixas dos me
dicamentou
Nimuendaj aproximou-se:
Que tem o Soares dos Santos ? -f
Beribri, o que eu pensava. ""
Tambm eu havia imaginado isso. Tenho viste partir tantos... Ele no pode vir connos
co, ? ^
Pareceu a Bonifcio que a pergunta hospedava doj| sentidos, um superfcie, outro no
fundo, como lTt espuma e o lquido nos copos de cerveja; e antes mesttflj de procur
ar qual era o verdadeiro, ou se ambos o eraffl^ ao mesmo tempo, veio-lhe essa iro
nia negra com q"P| os mdicos, quando j afastados do drama, tantas veziM! se compen
sam das mentiras que oferecem aos doenttm graves e aos seus familiares inquietos.
**$*
Pode... Pode, se voc quiser que ele v acabalhj de morrer no acampamento... Deu me
ia volta e, Jft de perfil, pronto a abalar, ajuntou apressadamentdfjj A nica e
sperana que vejo mand-lo para Humait Pense nisso. Se ele resistir viagem, pode ser q
ue al."f Enfim, tudo possvel... "^
Quando proferiu as ltimas palavras j estava d<r costas e Nimuendaj viu-o afastar-se
, lestamente, eflt direco ao porto, enquanto nos seus olhos a figura 5 dele ia sen
do substituda pela de Soares dos Santos,* rijo, bom remador, to modesto, to a apaga
r-se sefflf * pr como se pedisse desculpa de existir, e que fora uifl dos seus co
mpanheiros na primeira explorao em volta1 das terras dos Parintintins.
Ainda Nimuendaj se encontrava porta, com Egdio ao lado e a vista errando ao longe,
quando duaS raparigas muras, comboiadas por Amaro e seu co, ^ chegaram, traze
ndo o almoo. Caras redondas e tmidas, | os braos curtos e sob os vestidos de chit
a ramalhuda, I talhados maneira de sacos, os pesitos descalos esprei- <
tando em frente, logo que entraram fizeram nascer e desenvolver-se na sala uma a
tmosfera de inocncia e de ternura.
Quase to enleado como as ndias, Amaro acercou-se de Nimuendaj, falou-lhe das medida
s que tomara para que ao jantar houvesse alimentos frescos e, finalmente, venceu
o receio que lhe causava verbalizar aquela m notcia:
H uma coisa que ainda no disse ao senhor, mas que tenho mesmo de lhe dizer: dois m
uras, que estavam pescando, aqui h uns dias...
J sei interrompeu Nimuendaj, bruscamente. Mande pr em trs canoas as mercadorias que
c esto e preparar tudo como se nada tivesse acontecido. O Soares dos Santos no pod
e ir. Para remar de dia, nos vai fazer falta, mas, para de noite, o pessoal que
temos chega perfeitamente, pois no poderemos andar depressa. Hesitou um instant
e, caldeou a nova ideia e logo ajuntou: favor dizer ao Jarbas que venha falar c
omigo, s cinco horas. No... s cinco e meia. J sabe quem ? No sabe ? Pergunte aos outr
os
homens.
Estava ansioso por se libertar da presena de Amaro, aquele incmodo necessrio, to des
agradvel para ele como se fosse obrigado a beber pelo mesmo copo dum tuberculoso,
e despachou-se:
Nenhum mura pode ir connosco, pois agora, mais do que nunca, no devemos provocar
os Parintintins. Mas precisamos que cinco deles levem imediatamente o Soares dos
Santos a. Humait. Est ouvindo, ? Fale com o tuxua.
Amaro baixava a cabea, mais uma vez, enquanto ia imaginando os Muras, ainda to mat
utos, to filhos do mato, a embaraarem-se todos, mal arribassem cidade. Mas Nimuend
aj acrescentava:
Podem deixar ele em Trs Casas. Dali o transportaro para Humait.
Puxou o relgio e disse ainda:
H tempo. Mande fazer um ensaio de desembarque, conforme lhe recomendei antes de i
r ao Sul.
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r '"i
Lembra-se bem? Exactamente como se estivssexni"4* desembarcar no Nove de Janeiro.
Mas deixe prirn^^ os homens descansarem um pouco. ,j 3jj
'^ ;a
* "oo
n*
As cinco e um quarto, depois de acompanhar a$ o porto a rede onde ia Soares dos
Santos e de un sumir-se na curva do rio a canoa que o levava pa$j Trs Casas, jacen
te como num esquife, Nimuenda| estava j sentado junto do Posto, sob a laranjeira i
|| esquerda, com uma cadeira vazia sua banda, so|% trio porque dissera a Bonifcio
e a Egdio que pfMH sava de ficar a ss com Jarbas, quando ele chegagft
Vrias vezes, ao longo da tarde, desde que soub|fi| da doena de Soares dos Santos,
hesitara em consmiJB o dilogo que havia imaginado. Hesitara mesmo de^mE de se enco
ntrar ali, espera e a meditar de novohBK caso.
Jarbas chegou s cinco e meia em ponto: naiff
Me quer falar?
A poa que a chuva matinal enchera e se aM|i| muito perto da laranjeira, irregular
nos bordos con||I uma ilha, enegrecendo e tomando brilho metHeOflB medida que a
noite se avizinhava, reflectiu difusamesM| o movimento afirmativo da cabea de Nim
uendafw| depois o seu brao a apontar, numa atitude de cw| descendncia, a cadeira de
socupada. Jarbas sentou-swl cruzou as pernas e tirou da algibeira o tabaco, twj
com tanta naturalidade como se exclusse qualque| constrangimento hierrquico. ;l**
Nimuendaj votava-lhe uma spera antipatia, qW* a si prprio incomodava, desde que ele
o interrompei"! desrespeitosamente, em Trs Casas, quando lia, dianfe dos futuros
subordinados, a carta de Rondon "aqit* magnfico incitamento, que assim ficara ma
culado"Enervava-o a sua maneira de ser, que ora lhe pareci? larvada pelas incoern
cias dos hipcritas, ora obede" cendo a uma razo secreta, que se servia apenas oB e
xpresses medianas para melhor influenciar o esprito*
alheio. No era humilde, to pouco arvorava qualquer arrogncia; dir-se-ia empenhado,
porm, em mostrar-se igual a todos aqueles com quem tratava, fosse com os caboclos
iletrados, fosse com Bonifcio ou com ele prprio. Via-se logo que discordava de qu
ase tudo quanto os outros aceitavam por to definitivo nas leis humanas, como as l
eis naturais pareciam ser no Mundo. Mas fazia-o de voz mansa, de quando em quand
o com oportunas transigncias, a evitar toda a polmica; e como nunca desvendava int
eiramente o que pensava, abria, por isso mesmo, um maior interesse futuro aos qu
e o ouviam. Se alguma vez se excitava, perdendo o autodomnio e fora decerto
o que lhe acontecera no momento em que lhe cortara a leitura logo volvia sua ap
arente tolerncia, s meias palavras, s frases reticentes, como tantas vezes ele lhe
surpreendera nas conversas de arraial, beira do rio, quando se detinham para o a
lmoo, ou noite, antes de dormirem, e at no prprio batelo. Debalde Bonifcio lhe disser
a, com o seu feitio de passa-culpas, que se tratava de homem ainda mais instrudo
do que aparentava, talvez um pouco visionrio e diferente dos outros que iam ali,
talvez com um mistrio acoitado na sua vida, mas, no fundo, boa pessoa; debalde,
porque essas mesmas qualidades lhe aumentaram, ainda mais ressentidamente,
a averso que sentia por ele.
Digo, no digo, Nimuendaj abstrara-se tanto nas suas vacilaes, metera-se por to diverso
s caminhos, sempre receoso de ficar com dois homens a menos para a subida do rio
, que se esquecera de reflectir sobre a forma de dar princpio ao dilogo. Tentou ai
nda elaborar um prlogo, moldando-o sobre a sua m vontade, mas aqueles segundos sem
voz, com o homem sentado ali, aguardando-lhe as palavras, pareceram-lhe demasia
do longos, uma inferioridade para ele, se continuasse calado; e, abandonando o d
esejo inicial, rompeu friamente:
Mandei chamar voc porque anda para a a desmoralizar o pessoal, ao contrrio do que s
eria de esperar de quem voluntariamente decidiu vir connosco.
g8o
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O INSTINTO SUPREMO
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'l
Anda a insinuar aos homens que so inteis os sasfe" fcios que esto fazendo e os perig
os que vo passai porque no devamos civilizar os ndios e que mesa" prejudicial para e
les serem civilizados por ns. Ora "eu no posso consentir uma coisa dessas! Est ente
n" dendo, ? ^
Lhe peo desculpa, mas se trata, sem dviot" duma incompreenso. Quem lhe disse isso
? O Aristeijl O Tito Boludo? ,||
Ningum mo disse. Os homens repetem uns aos outros os absurdos que voc lhes anda a
meter jj^ cabea e eu prprio tenho ouvido conversas sua&jjL esse respeito. .^
Ainda bem que ningum lho disse profeM Jarbas, agitando sobre o queixo, com o
pequeno naw vimento da sua boca, a mortalha que colara por uflffi1 ponta no lbio
inferior, enquanto extraa da bolsas"! tabaco. Ainda bem, pois no gosto de pensar
WK dos meus camaradas.
Nimuendaj destravara-se: ; flfsj
Se no est contente, pode ficar aqui. Baixaafil para Trs Casas na primeira canoa que
houver e, a|H chegar l, continuar ganhando como se viesse CHMJ nosco... ojm
Um espao vago fez-se sentir no seu amor-prpri Estava dito. Sim e no, sim e no toda a
tarde >i*B agora estava dito. Precisava de dizer aquilo. O P$m nhasco que alura
e tombara no seu caminho for^B enfim, removido. No tardou, porm, que a terra r60(r
)11" -aplainada escurecesse e nela abrisse os braos descaDJB nados, a pedir socor
ro, o fantasma que ele terni^H Quando decidira aquilo, sentado popa do batelifB
em luta com um irritante solilquio, ignorava aindaijw doena de Soares dos Santos.
Mas desde que lhe conbiff cera a gravidade, ele sabia que no desejava ver JarbaMI
ir-se embora. Tinha de prever todos os pormenore^S vigiar cada elo da corrente,
para conduzir ao porTOl eleito a expedio a que estavam to vinculados 3$M suas idei
as e o seu prestgio. Por isso mesmo no lh$" falara antes de partir a canoa que lev
ava Soares do*J
Santos e onde ele poderia remar e at ser til ao doente, pois que era mais civiliza
do do que os Muras.
Surpreendido com o silncio de Jarbas, mirou-o de relance e viu-o de cigarro ainda
intacto na boca, os olhos fixos nos dedos, os da mo direita torcendo os da esque
rda, devagar e distrados.
A voz de Nimuendaj suavizou-se um pouco:
O que eu no percebo porque veio connosco, se discordava do que amos fazer. No foi v
oc mesmo que se ofereceu ao doutor Bonifcio para vir?
Jarbas acendeu, por fim, o cigarro. Soprou o fsforo, deitou-o ao cho, olhou-o como
se quisesse certificar-se de que estava realmente apagado, efectivamente morto,
e ainda lhe ps por cima, maneira de laje sobre uma sepultura, a ponta do sapato.
Fui. Fui de Humait a Trs Casas para pedir isso ao doutor. Mas uma coisa nada tem a
ver com a outra, pois eu no disse que no devamos civilizar os ndios. Quem disse iss
o foi um homem que conheci e que era um pouco reaccionrio em algumas ideia
s. O que eu queria dizer que h muito devamos ter uma vida melhor. Ao senhor tambm no
lhe parece? Acha que o mundo est bem? Acha que a civilizao justa com toda a gente?
Nimuendaj sabia que a perguntas assim apendiculares, mesmo sumarentas que sejam,
o interlocutor no estranha que fiquem sem resposta; elas levantavam, porm, do cho d
a sua vida, um estrato j bastante fundo, que os anos haviam coberto com muitas ou
tras camadas. E tentando afast-las, inoportunas que eram, repetiu:
Mas se pensava desse modo, por que veio ?
Vim, porque se civilizarmos os ndios agora, eles ] iro ficando preparados para dese
jar um dia melhor. Mas seria mais bonito, no h dvida, que, quando tirssemos eles das
malocas, j lhes pudssemos dar tudo aquilo que os homens precisam de ter e at a mui
tos de ns falta. O senhor nunca pensou nisto? Vendo bem as coisas, quase todos ns
, que os vamos civilizar, somos ainda mais pobres do que eles.
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Sacudiu uma cinza imaginria, aqueles dois inflfc. metros esbranquiados que ainda s
e confundiaiji **m o papel do cigarro: H1159
Vim tambm porque a ideia de no matarr"ifai mesmo que estejam para matar a ns, me pa
rece fyjBf ressante. Nem parece ideia dum general. O senhor>i2<' tome isto como
falta de considerao por ele. ra por ser general e conseguir pensar assim que eum
respeito. No quero discutir, no, mas j tenho'Fl||t vrias vezes que os principais resp
onsveis de cecal violncias dos povos so os que mantm as injusijiB no Mundo. No deixam
outro recurso e depois casJI gam, alguns at mandam condenar morte, aqueMi que luta
m pela justia. !l3jjjlr
Era um tabaco regional, melado e hmido" ^jm enrugava o papel e ardia dificilmente
. Jarbas puxJX -lhe trs fumaas e, mesmo depois de o fazer, cotB nuou calado durante
alguns segundos. Logo veio 1MB uma voz diferente: 'HB
Eu posso ficar aqui, se o senhor me obrigdnu isso, mas o meu desejo ir...
No esprito de Nimuendaj, o espectro baixav*jB| braos e desfazia-se; a terra escurec
ida voltava a^^B| minar-se e ele, liberto da primeira opresso, sentiwH contente po
r se haver anulado tambm a segthgjB Entre o que Jarbas acabava de lhe dizer e o qu
e'dlH sera no batelo a Aristeu, a Honrio e a Tito BoliMiH e ele ouvira, rabiavam,
sem dvida, algumas coskflfl dies, mas no valia a pena meter-se, naquele ^i mento, s co
ntingncias do labirinto. ^^m
No era a primeira vez que o convvio mais dire"(|F com um homem o levava a honestas
correces e Hjp recordava os maus julgamentos, sobre ele prprio, w| muitos que tinh
am embirrado com o seu feitio e w haviam dado estima depois de o conhecer melhor
. Sw^ -se-ia que at as expresses externas de Jarbas se mew* morfoseavam: em vez da
repulsa anterior, fabricavSlt| agora crescentes simpatias. Era como se a pele s
e h^S tuasse temperatura do banho e a sentisse mesmo agii dvel depois de ter reagi
do gua demasiado quefloM
Um tiro soou, logo seguido de outro, rompendo a paz da tarde. As crianas, que bri
ncavam nos terreiros, olharam na direco de onde vinham os estampidos e logo volver
am aos folguedos, em frente da velha ndia, surda talvez, que se sentava porta de
uma das barracas, com as mos sobre os joelhos, e ficara inteiramente impassvel na
sua demorada cisma.
Vi um homem ir caar explicou Jarbas, quando o etnlogo volveu tambm a cabea para a f
loresta, j a enegrecer,^ ali muito perto deles.
Eu sei. o Raimundo disse Nimuendaj, que logo voltou a prolongar, deliberadamente
, o seu cauteloso silncio anterior, no fosse Jarbas se convencer de que lhe era in
dispensvel.
Est bem. Pode continuar connosco declarou finalmente, com um sentimento confus
o, um sbito prazer, quase gratido. Pode continuar, mas veja l como fala aos
homens, para que eles no confundam uma coisa com outra. No h dvida que a civilizao est
cheia de contradies. Est. Eu prprio tenho discordado, muitas vezes, das suas inju
stias. Mas s quem for cego pode admitir que a vida primitiva e a ignorncia trazem a
felicidade aos homens, como pensam alguns. H muitas pequenas e grandes satisfaes q
ue somente os espritos instrudos podem ter. E elas compensam largamente as novas r
esponsabilidades e mesmo alguns novos sofrimentos que a nossa evoluo nos tenha dad
o e nos d. Voc foi operrio, ?
Pareceu-lhe que Jarbas tardava demasiado a responder-lhe. Juntara as pernas e ao
lado da direita deixara cair a ponta do cigarro, que imediatamente cobrira e es
magara com o sapato, to cuidadoso como h pouco, quando apagara o fsforo.
Se adivinha ?
O doutor Bonifcio me disse.
Bem... Tenho sido operrio, estivador, empregado de escritrio, outras coisas. Con
forme as necessidades e as circunstncias... Ultimamente, carpinteiro.
No Par?
De novo Nimuendaj sentiu, desta vez sem ne-
g86
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sua prpria rispidez. E, perante essa nova certeza, de<dir guardar para mais tarde a
s palavras de ferro a>m trouxera; para mais tarde, no sabia quando, poisi comprov
ao dos seus mritos de orientador IheaS! sossegando lentamente a clera. ,3f
Amaro dizia com simplicidade, enquanto a r"S" direita, descida da coxa, afagava
ocultamente o lombjt do "Mimoso", o seu cozito, que se encostara, mtiitB quieto,
aos ps da cadeira: S
O ensaio correu bem. Tive de repeti-lo com d<w dos novatos que o senhor trouxe,
porque se atrapw lharam com as chapas de zinco. Mas j esto sabendo! o que devem fa
zer.
Nimuendaj no comentou. E Amaro volveu, ser"! pr com uma voz que se esforava por ser d
oce: oB
O tuxua me disse que os Muras queriam daffifM esta noite para o senhor e para o d
outor BonifcicB uma dana que o senhor no conhece. ?cj|
Hoje no pode ser. Estamos cansados e amaBfflJl temos de nos levantar cedo. Ficar p
ara quando vfH tarmos. JK
Quedaram todos em silncio. Depois Amaro arr^B cou-se:
O Raimundo tinha dito a eles que o senhor g<*fi tava muito de danas, para estudar
...
Nimuendaj encarou Bonifcio e leu na sua mudeS o mesmo receio: r*|
Ficam aborrecidos connosco, ? ><4|
Pois murmurou Amaro. "'SJ
Bem! s oito e meia. E agora a distribuio pessoal para amanh. O Raimundo e o Cri
sston^ffl passam para o meu batelo, para os lugares do AristOT| e do Tito Boludo.
com estes, com os que vinham oj montaria e com os que estavam aqui consigo, vo<|
tripula trs canoas. Uma pilotada por si, outra peJrS Genaro. Esse Manga Verde est b
em?Amaro baixou; a cabea. Ento ir com a outra. A sua vai frentet'; A montaria ser r
ebocada pelo meu batelo. Partir* ms ao nascer do sol. ''
Foi luz baa de dois faris, modorrando sobre as portas de barracas fronteiras, q
ue os Muras-Piras, libertos de calas e blusas, saram a bailar no seu terreiro. Ap
enas uma tanga, pouco mais larga do que gravata de seringueiro com saldo em noit
es de forr, indicava transigncia com a civilizao. De cabeas emplumadas, arcos e flech
as nas mos, executavam danas dos seus tempos hericos, quando guerreavam os Parintin
tins entre as rvores da floresta, agora sugeridas pelas sombras que alastrava
m nas extremidades da terra batida, onde eles se diluam para logo reaparecer na r
ea luminosa, em saltos miudinhos, acompanhados de gritos fortes, com a pele mais
brilhante do que se tivesse sido mergulhada num banho de esmalte.
Nimuendaj havia-se sentado defronte do Posto, entre Bonifcio, Egdio e Amaro, com os
remadores perfilados atrs deles, todos de p, como se completassem, sob as estr
elas cintilando ironia, um grupo fotogrfico. E era a quatro, cinco metros dali,
que os jovens Muras-Piras vinham realizar os passos mais violentos do seu bailad
o de luta e de morte. Mas s os que figuravam de Parintintins, medonhos satanases,
de corpos listrados a preto e branco, caam vencidos, durante a pantomima. S eles
se contorciam e berravam no cho, com uma flecha na axila, que as suas prprias mos
ali introduziam, de forma to cndida que Eleutrio ria alto e dizia a Juvncio, por det
rs de Nimuendaj e Bonifcio:
Para que vamos ns l... l onde vamos, se estes compadres podem civilizar eles?
com uma indolente simpatia, nunca at ali meditada nem sentida, pelas vastas pueri
lidades do Mundo, Nimuendaj pensou que o caboclo tinha razo: aquilo era realmente
ingnuo. E era ao confrontar-se com a ingenuidade que a inteligncia se dava melhor
conta da sua imensa fora e dessa espcie de corrupo sublime que o homem sofrera nas z
onas mentais mais
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'4
+
puras ou mais brutas. Mas fora a partir, justamente, da*
manifestaes pueris dos ndios, dos seus costume#l|*
objectos primrios, que ele e tantos outros tinhbH
podido confirmar a maravilhosa evoluo do gnjB
humano, em toda a sua complexidade e vastitu"
Ingnuas haviam sido tambm as danas dos GuaiSB
nis de Ararib, naquela noite de honraria ao etnloB
autodidacta que ele era, naquela noite em que SR
concederam o nome de Nimuendaj, "o homem qn|
abriu o seu prprio caminho", rebaptizando-o com stJK
vticos rituais, luz crepitante de trs fogueiras, dal
-se-ia em pocas fabulosas, milhares de anos antes ^am
a sua pessoa haver surgido no Mundo. A ele mesrilH
a cerimnia extica havia parecido duma puerilidalM
extravagante; em Paris ter-lhe-iam aditado algumlM
frases de esprito, substitudo o velho paj por utijB
jovem sacerdotisa de exaltantes formas, trocando ilfH
ndios que danavam de tanga, com trs polegada"
somente, por ndias de ancas rebolantes, com a mesifflM
economia de tecido, e feito um quadro para as "FolwH
Bergres", musicado ao longe, surdamente, por uiaH
ronda invisvel de tambores. Contudo, essa noite ingm
nua iria dividir o seu comportamento mental, peraiwjH
os outros homens, em duas fases contnuas mas diM
tintas, como a do mar que repele os corpos dos afafjl
gados e a da praia que os recebe, solidria com elaM
At a, somente lhe interessava de modo profundo eHH
prprio, o eu nietzscheano ento em curso triunfa^
cujas ressonncias se vinham alojar no seu esprito coOm
centrado, que s margem das grandes expressividadeil
dos outros lhe parecia realizar-se inteiramente. Interes||
savam-lhe os ndios porque ao seu lado se sentia logva
superior, uma grata sensao de paternidade benevOw
lente, afagadora de muitas e obscuras clulas. InteresrJ
savam-lhe pelo seu primarismo, que lhe permitia afroft"!
tar o mistrio e o maravilhoso que se opunham e adi
mesmo tempo seduziam o temperamento prtico detl
e lanar-se em prospeces retrospectivas sobre a con1* l
duta humana, para sua prpria glria, objectivo prin^ l
cipal dos estudos que publicava. Mas, naquela noitej J
enternecera-se rapidamente com o preito dos homens serni-selvagens, mesmo com os
movimentos de feitiaria e os apelos a uma sobrenaturalidade caricatural que ofen
diam a sua lucidez; e a gratido que sentira perante a cerimnia ingnua desencadeara
o primeiro abalo na torre onde se refugiava, pois que um amor-prprio honorificado
se transforma de sbito, como numa operao de qumica, em efervescente generosidade e
clida ternura para os outros. To reconhecido ficara, que nessas mesmas horas de co
munho humana decidira substituir o apelido familiar, o Unker paterno, por aquele
brbaro Nimuendaj que o velho grupo de Guaranis lhe atribura puerilmente. E fora a p
artir desses momentos que ele aderira por completo s doutrinas de Rondon, que hav
iam posto, finalmente, uma soldadura l onde o eu e os outros conflituavam at ali.
Atrs de Nimuendaj, o pessoal alheava-se j dos movimentos dos Muras-Piras, constantem
ente repetidos na sua coreografia elementar, quando duas ndias, uma nova, a outra
ressequida de velhice, romperam da sombra, puseram-se de ccoras e ficaram a v-los
danar. A jovem secundava os seus gritos de jbilo, sempre que eles simulavam vence
r os Parintintins; a.
velha chorava.
A moa era a companheira do pescador que eles mataram; a velha a me dele explicou
Amaro.
Os homens contemplaram-nas uns momentos, depois pegararn-se de conversa, a princp
io com voz ainda respeitosamente baixa, logo a altear-se pouco a pouco; e Genaro
afirmava, muito convencido, a Maximiano:
C por mim no sei o que medo. Medo nenhum! Sou fatalista e j o meu pai tambm era. S mo
rremos quando temos de morrer...
Mas se se fizer um jeitinho, talvez se possa escapar... caoou Eleutrio, entre dois
bocejos.
Jarbas intervinha:
Me desculpe voc, mas isso parece uma superstio. Como tantas outras...
Superstio ? Se h-de ver! Est escrito l em cima. Genaro indicava o cu constelado ao m
esmo
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tempo que garantia: Podem vir todos os Parj$t^ tins, podem vir todos, que no
fujo, no. Arista*.
vnr inn -nXr^ << 3
. ^ ^^, ^.u^ nau iuju, no. ArjfljjjL
voc viu, no ? que eu estava sereno quando ;^M mataram o Felcio e o Camargo. No viu ?
)Jtj^
Pois eu s no fujo ou no me escondo sfr &|Z puder. Se morrssemos todos, quem ia civil
izar elgjl tornou Eleutrio, cada vez mais sonolento. ,2 A dana guerreira terminara,
finalmente. Tg"B os que figuravam de Parintintins encontravam-se agf2 estendido
s no cho, os vencedores com um dos % sobre eles e as cabeas agitando freneticamente
{3 capacetes de plumas. ,d||
Viu-se ento a rapariga mura endireitar-se, otiJSjl Nimuendaj, vacilar um instante
e logo aproxima^p dele, os dedos revolvendo desesperadamente os cah$(j|* a boca s
oltando gritos histricos: $2
Mata eles! Mata eles! Mata eles! repetia Cap seu queixo apontava para as lonjur
as onde vivian^gE Parintintins. A velha ndia veio busc-la, afagou-ajS testa e levo
u-a, vagarosamente, pela mo. No sUQf|jP>' repentino, os olhos de Nimuendaj toparam
os -dS bailadores a fix-lo estranhamente, os corpos miMMr. hirtos, agora todos
de p; e no tardou a compreei$U| que s por eles o respeitarem no verbalizavam a ajJM
| so tremenda que lhes ardia nas pupilas. iJI
L detrs, Jarbas dizia com uma voz que par^i" tambm ensonada: W
O que ns devamos era ensinar a estes Muf^jK que os Parintintins no so culpados de se
rem coiaflS so... i M"
Nimuendaj pensou, de sbito, que fora um errtfj seu, agora j sem remdio algum. Certame
nte aos Pp^ rintintins, to isolados e odiados pelas outras tribot no chegaria a notci
a de que ele e todo o pessoal * haviam assistido quela farsa, onde se humilhava
.^ braveza deles, precisamente o que se julgava ser o sett maior orgulho. Decert
o no chegaria, porque, se che- >t gasse, a misso que levava quelas terras mefticas *
\ seu corpo impaludado, rejeitando todos os conselhos " mdicos, estaria desde j pr
ejudicada. u?
O INSTINTO SUPREMO 991
VI
QUANDO o sol os esculpiu inteiramente, ao fundo do barranco, definindo-lhes bem
as figuras e os gestos, at esse momento imprecisos luz dos faris, Amaro distribua-l
hes a rao de cachaa, com Bonifcio ao lado e o co aos ps. Servia-se duma tigelinha de f
olha, dessas que os seringueiros empregavam na recolha do ltex e, por sua iniciat
iva ou ordem de Nimuendaj, talvez at porque as mos lhe tremiam, enchia-a a transbor
dar, ao contrrio do que sucedera nos ltimos dias.
Alguns bocejavam ainda. E Eleutrio, que parecia o nico de bom humor matinal, pergu
ntava, piscando urn dos olhos:
Depois deste no h mesmo outro porre ? No h? Ento dobre, si faz favor...
Dir-se-ia que os homens nunca haviam pensado naquilo. Mariano, cozinheiro da exp
edio, poisou no solo o paneiro com duas galinhas, mais um galo, tambm os ps de mandi
oca e de inhame que levava; e ps-se a beber lentamente. Os outros imitavam-no, sa
boreando o lcool, enquanto lanavam um olhar moroso para o rio que iam subir ou par
a a aldeia dos Muras-Piras, derradeiro posto da civilizao naquelas imensas profundi
dades.
Depois foram embarcando. Nimuendaj descia a ribanceira, de maleta na mo, sozinho;
e, ao v-lo, Bonifcio partiu da vizinhana de Amaro e de Dorival ao seu encontro.
Queria dizer-lhe...
Pela cara que expunha, pelo grupo de onde sara, Nimuendaj adivinhou o que ele pret
endia mesmo antes de concluir a frase:
por causa do cachorro, ?
Sim. O Amaro at chorou.
No pode ser! Ele prprio tinha dvidas, pois me foi pedir licena. No podemos levar n
ada que
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
993
'4
*
assuste os Parintintins. Imagine que o bicho corria a ladrar atrs deles. Seria na
tural...
O Amaro jura que no cachorro para isso. Que mole e, mal se lhe diz uma coisa, ob
edece j^&! diatamente. prova est nas danas de ontem/Q| Muras apresentavam-se como o
s Parintintins e o "Sff. moso" no se mexeu. g|
Pudera! Conhecia-os bem, nus ou vestidos. BA tava aqui h muito tempo. ,m
Parado a meio do barranco, a contrariedade J| fechar-lhe o rosto, Nimuen
daj seguia os passos qt Amaro, dirigindo-se pela borda do rio para a sua caacft I
a frente do Maximiano e do Etelvino e o co sefflnK atrs. Bonifcio insistia, brandam
ente:
No quero contrari-lo, mas o Rondon tinha unfit matilha... At acuava onas... rr M
Tinha! Uma vez ele me falou nisso. Era outB coisa. Andava a construir a linha tel
egrfica, a abnB picadas na mata e, nessas condies, os cachorros iMR podiam indicar
os perigos. Mas me disse tambm
um dia, no vale do Jamari, passou um mau bCWBi Eles se atiraram a uns ndios que est
avam a caar MB| ali e com os quais Rondon queria ter boas relaes|w|
No foi no meu tempo. Mas que medo P<"B meter um cachorro to pequeno ? r|B
Nimuendaj encolhia os ombros: I*SP
Estou certo de que se o Rondon viesse aqui/ijB dirigir-nos, no levaria cachorro a
lgum.
Bonifcio ainda coseu as suas dvidas durante alguB segundos. Os Nhambiquaras tinham
sido pacificadfflK sem que a coluna rondoniana se desfizesse dos E no eram do ta
manho dum cordeiro, como o Amaro, mas enormes, bocas arreganhadas, terrveis deqK
tuas que ele continuava a ver, quase com tanta nitid^g como se estivessem ali me
smo, medonhos, na sua frentW
A mim custa-me, porque o Amaro um atora|
E voc ? Voc no ? E no deixou a sua raum^f|f em Manaus ? Tenho pena de no lhe ser agr
adav^jB mas o Amaro j fez asneiras de mais. NimuendaJ^fg
recomeara o andamento, com Bonifcio ao lado. Tambm a mim me custa um pouco, claro.
Mas que se vai fazer ? acrescentou de modo tardio, depois de dar alguns passos.
com os remos pousados sobre as coxis, todos os homens se encontravam j nos seus p
ostos. Alguns enrolavam vagarosamente os cigarros, como se metessem na mesma mor
talha o tabaco e o sentimento daqueles instantes, alm da expectativa pelos dias q
ue iam vir; outros enviavam gracejos aos Muras-Piras, aglomerados, como na vspera,
sobre o extremo da rampa e que dificilmente os ouviam. O prprio Amaro j se sentar
a popa da sua canoa. E pedia a Etelvino e a Maximiano, sem os olhar, pedia-lhes
s com um gesto, para expulsarem dali o co, que por duas vezes surgira ao lado dele
, a primeira de rabo no ar, a mover-se todo contente, a segunda enfiado entre as
pernas e com o focinho baixo e tmido. Nimuendaj e Bonifcio subiram para os bateles,
tomaram as canas dos lemes e, na manh cada vez mais fulgorosa, com os Muras a se
guir-lhes os movimentos l de cima e o "Mimoso" a correr e a uivar beira da gua, a
pequena frota partiu.
A aldeia desapareceu atrs da curva e a floresta, vingando-se daquela ferida que l
he tinham aberto, voltara ao seu completo domnio de um lado e outro do no. Perant
e a marcha das embarcaes, um alentado jacar, navegando da margem direita para a esq
uerda, meio submerso, o olho sagaz rente superfcie e quase triangular como um olh
o manico, decidiu mergulhar, a cauda tornando-se pouco a pouco vertical, at sumir-s
e de todo, maneira dos navios que naufragam lentamente. Mais alm, garas espantadas
abalavam dos rarnos marginais, para longe, riscando o espao livre com a sua bran
cura de cal, logo seguidas pelo voo Pesado dos magoaris, jaburus, outras belas p
ernaltas, at a meditando, sobre uma s pata, beira da gua tranquila, que os espelhava
e talvez lhes levasse os retratos para o imensurvel depsito de imagens de todos o
s tempos e de todos os continentes, vivas como
32 Vol in
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
995
no momento de serem colhidas e transportadasrapgr
quantos rios, arroios e fontes dessedentam e refloteffi
o Mundo, para esse infindvel documentrio que deva
existir na fundura de todos os mares. i hsgjj
No batelo de Bonifcio, de novo os homens Trtfc,
vam calados, to montona e silenciosamente qo
pensamento dele voltava, mais uma vez, para Maiaim
"Era certo que nunca teria conseguido obter, sobra"
sua primeira mulher, nenhum predomnio espri<pa|j
pois se at o doce quebranto, impregnado de ternmi|
que sucede volpia da posse, fora em poucos nu^f
substitudo por um mtuo fastio. Algumas npiAN|
mesmo quando abraados, j ele pressentia que Nivgl^l
se encontrava pouco interessada por aquele momen^f
e se entregava a outras preocupaes, talvez disttt
tes dali e muito provavelmente no tempo em i:j<pp
ainda no o enganava. Fria e autoritria, tomanp
sempre por indiscutveis todos os seus argumentos^"
era a completa antinomia dele, inteiramente deep"!
vida de iseno para se examinar a si prpria >i|ML
isso mesmo sem a faculdade de compreender os outjMl
Tarslia, embora caprichosa e bastante exagerada, Mi
ria muito. Ardente como ele gostava e intensa injj"
sentimentos, via-se bem que o amava e certame!"
ser-lhe-ia fiel, sobretudo se ele no demorasse taitoiB
regressar como demorara quando fora de NivaldansilBr
Em voz alta, Dorival recomeara a falar com TaolB
j ara, que se prezava, como ele prprio, de ser >OfB
veterano naquelas brenhas pasmadas e remava no baa"
do meio: "jf
No sei por que vamos dormir de dia e resi|
de noite no Maici-Mirim. Voc sabe ? No se pode di4r
que seu Curt tem medo, pois a primeira vez que fon*Pl
l com ele, por terra, e a segunda, por aqui, esc(dhj|
o stio onde devia ficar o Posto, fomos sempre de dJJB
Medo coisa que nunca vi nele. No sei pois, tartm
mais que quando foi da derrubada se viu que no ^m
resultado seguir de noite. >*"
Querendo agradar a Bonifcio, Tanajara declaras^j"
elevando igualmente a voz: '*lf
Medo do doutor tambm no , no, tenho a certeza. Todo o pessoal sabe o que ele fez qu
ando andava com seu Rondon. E aqui o Filipe, que andou l com ele, sabe mais do qu
e todos. No , Filipe?
Sempre com aquele torn ingnuo, que todos percebiam ser falso, Dorival lanava-se ag
ora sobre o seu verdadeiro intento:
Por alguma coisa deve ser... Talvez seja pelos novatos... Deve ser por eles... E
u c fao o que me mandam, mas gostar de remar de noite no gosto, no. Noite fez-se par
a dormir.
Do banco de trs, Antnio Rocha, que vinha ali pela primeira vez, protestava:
Para mim igual, est sabendo ? Entre mortos e feridos, voc h-de escapar... No conheo a
qui ningum com medo.
Ouvindo-os, Bonifcio inclinou-se para a frente e explicou-lhes:
Temos de ir de noite, para chegarmos sem os Parintintins darem por isso. Se eles
nos vissem antes, no nos deixavam construir o Posto. Esto compreendendo ? Quando
o senhor Curt foi fazer o reconhecimento, levava s nove homens e os ndios no andava
m desconfiados, como decerto andam depois da derrubada. Agora somos mais do dobr
o e no a mesma coisa arriscar a vida de nove pessoas ou de vinte e trs.
Houve um silncio. Depois Dorival disse, isoladamente: "Eram bobagens minhas". E d
e novo se sentiu o rumor, muito distinto, dos remos e da gua no meio do silncio do
s homens. Pensou ento Bonifcio haver sido a coragem que Tanajara lhe atribura uma c
oragem bem pequena, comparada com a que tivera depois de receber a carta annima.
Tivera-a, sobretudo, ao ouvir
0 denunciante, aquela voz que procurava disfarar-se enquanto lhe telefonava, afir
mando-lhe que no o conhecia pessoalmente, que se o prevenia era apenas por ser ta
mbm oficial do exrcito e ter a opinio de que um militar devia, em todas as circunstn
cias, honrar os seus gales; aquela voz safada que lhe perguntara se ele recebera
a carta que lhe havia escrito e se j se
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'H
decidira desafrontar-se. E que se no se decidira ainda.
devia faz-lo sem demora, pois o outro andava a v4u|
gloriar-se, por toda a parte, das suas intimidades cfaj
a mulher dele; mesmo no "Caf Eldorado", que >effl|
todas as tardes frequentava quando vinha a Manau
o outro se gabava. 'dl
Admitira logo no ser um oficial do exrcito qrajl
lhe dizia aquilo e lhe dava at o nome da rua e o nmeiB
da casa onde Nivalda e o amante se encontrava"!
sugerindo-lhe discretamente a proteco da lei e|8
acordo moral da maioria dos homens casados e .&
prprias mulheres, "se num momento de justificada lojl
cura os matasse". No era seguramente um oficial"sB
exrcito, se fosse no o confessaria; mas alguns ha^JB
decerto que prefeririam v-lo desagravar-se, a tirOJ
a chicote, do que restar de braos cruzados, comoJB
nada houvesse ocorrido. ' j|
A sua coragem fora grande justamente por ele sbjl
que podia mat-los e ficar impune. Todas as suas cl"
Ias protestavam contra a humilhao, mas ele resistuM
sempre. A sua profisso era salvar as vidas em peroB
e no suprimi-las; mas essa ideia, s por si, noJM
serenava. Muito o auxiliara haver pensado ser a culfH
tambm sua, com as largas ausncias e confiando denaH
siado no temperamento de Nivalda, to frgido' <$jm
corpo como nos sentimentos. O que ele bem desejJBl|
matar, sem o conseguir, eram as vozes que contiriu^Ji
vam, ressoantes e vexadas, dentro do seu prprio ceo"
bro, na solido daquele quarto que alugara no HQW
Casina, uma solido que dir-se-ia brotar da peque"
maleta escura, isolada sobre a colcha branca da can"
para onde a atirara, como se fosse a msera sntese1""
toda uma vida finda e o embrio de outra que ia MJ"
ciar-se angustiadamente. '',
Ouvia ainda Rondon dizer-lhe, quando ele reg"l|
sara antes da licena terminar e lhe confessara tudflH
"Ora, ora, meu amigo! Onde que existe uma granNf
corporao em que nenhum dos seus membros foi &&*
ganado pela mulher ? Fez muito bem em no se vinga^
Como se compreenderia que andssemos a arriscar a<f^
a vida para no matarmos ningum e fssemos matar noutra parte ? Demais a mais um mdico
! Quem estiver livre de que tal lhe acontea, que atire pedras ao seu telhado. No p
ea nada a demisso!"
Tornava a visionar o rosto franzido e desgostado de Rondon, quando lhe responder
a que j a havia pedido. "Mas eu preciso do doutor aqui e no tenho nenhuma vontade
de o substituir! you mandar um recadinho ao Servio de Proteco aos ndios. Vamos a ver
se o contratam como civil. Tem havido outros!" Navegavam sempre com a mesma cadn
cia, hora aps hora, naquela longa veia da floresta, tendo o sol, j alto, a infiltr
ar-se pelo verde-escuro das rvores, devagar, muito sonso, dir-se-ia prudentemente
, como se receasse que as folhas ou os ramos se opusessem sua invaso. "com Tarslia
seria diferente. Tinha a certeza de que ela o amava deveras, alm disso era muito
ciumenta, para o caso bom sintoma. A ausncia dele fortaleceria, em vez de debili
tar, os seus sentimentos, pelo menos durante algum tempo. Mas se ele morresse, no
tardaria decerto a casar-se de novo, bonita e fortemente sensual como era, tend
o um pai rico a valoriz-la ainda mais".
Antnio Rocha voltara-se para a distraco de Bonifcio e indicava-lhe Nimuendaj, que lhe
fazia o sinal de encostar a terra.
Almoaram num pequeno limpo da margem e, enquanto comiam, ouviram Filipe gritar: E
h valente, vem c!
O co de Amaro saa da espessa maranha, movendo jubilosamente o rabo no ar, e s parav
a junto do seu dono, sentado, com Etelvino, contra uma das rvores. Os homens deti
veram-se na mastigao, calados; e era como se a prpria brisa houvesse suspendido a m
elodia que vinha executando nas frondes mais altas da mata. Sempre com ar festiv
o, o "Mimoso", aps as carcias de Amaro, roava-se pelos braos de Etelvino, pelas pern
as de Crisstomo e de Raimundo, por quantos ia encontrando e o chamavam estalando
os dedos. Junto de Nimuendaj e de Bonifcio, que j se encontravam
998
O INSTINTO SUPREMO
'*(
levafltados, ele ps-se tambm de p, fixando sobra "a joelhos dum, sobre os do outro
depois, as patitas dmg teiras, sem jamais deter o movimento de cauda,ijwi que tant
o abusava nas constantes saudaes. ({S
Ah, seu cabra sabido! tornava Filipe, ao \*-Ip to afectuoso para o etnlogo, enquan
to Amaro levava!" aos olhos as costas da mo. no
Contrariedade, uma suspeita de ternura, a imp&st cante ideia do seu dever, todas
em doses desiguam emulsionavam-se no esprito de Nimuendaj, como "at filtradas por
areias grossas, que poucos sedimentos tet* nham. Bonifcio conservava-se silencios
o e ele prefeip que Bonifcio falasse. Dos grupos chegavam frasca*
Coitadito! Mesmo assim teve que andar! Sw umas lguas... < JSK
Esquecem o que mau no dono e s si lembra" do que bom... ,slf
Nimuendaj tinha decidido. Mas j no sabia exofL tamente se estimava ou se odiava o "M
imoso". Ningufflf interviera, ningum ignorava, portanto, a solidez '&&" sua oposio.
Incomodava-o, porm, aquele silnq|i| recalcado sobre as mudas discordncias que senti
a pnK toda a parte. VgBe
Foi o primeiro a sentar-se no batelo. Enquaa^" os homens retomavam os seus lugare
s, ele fingia co"" sultar o caderno de apontamentos, que o justificaWK de no olha
r para terra, mas no o impediu de adivijS nhar o momento em que Amaro, inclinando
-se na canofw e servindo-se do remo, empurrou para a margem o cagC teimoso, que
estava em frente dele, com gua at rnei" do corpo e a cabea erguida, fixando-o muito
.
Quanto mais Nimuendaj compreendia o que ajEt outros pensavam, quanto mais lhe par
ecia ouvir ej|| comentrios que fariam logo que ele no estivesse pr**( sente, mais
se enervava. "Tinha de cumprir a sua misftf so e de proteger a eles prprios. Depoi
s de tantp^ trabalho, no ia arriscar tudo por uma ninharia sentip mental". 1*.
Por fim, os homens recomearam o seu palreio e>" alguma coisa quebrantava dentro d
ele. '-*!
O INSTINTO SUPREMO
999
Ao morrer da tarde, j com a meia-lua, no cu azulado, muito plida ainda, entremostro
u-se um lugar propcio para jantarem e dormirem. Situava-se, porm, na mesma margem
em que o "Mimoso" viera ter com eles e Nimuendaj decidiu procurar outro do lado o
posto. No insinuava as excelncias do primeiro aquele que os seus olhos descobriram
pouco depois, mas ele resignou-se e disse a Raimundo que o indicasse ao
pessoal.
Gorda canarana bordava o Maici, brotando da gua maneira de canavial em sebe, que
defendesse a mata infinda; e bateles e canoas avanavam sobre essas folhas peludas,
em forma de lminas, que dir-se-iam espadas vergadas escutando ordens vindas do f
undo
do rio.
Os homens desembarcaram com os ltimos alimentos frescos e os utenslios de cozinha.
E, enquanto Mariano acendia a fogueira, tratando do jantar, limparam de plantas
e de ramos secos os sinuosos corredores que os troncos formavam, com recantos l
aterais, como brbaras capelas em naves de templos onricos, onde armaram os mosquit
eiros e as redes.
Havia j uma poalha doirada sobre as frondes altaneiras, que a lua sobre elas espa
rgia, mas, c em baixo, s a fogueira iluminava as figuras, quando se sentaram para
comer. Raimundo servia Nimuendaj e Bonifcio, Mariano distribua a comida pelos outro
s e alguns iam palavreando mesmo com a boca cheia, todos eles transformados em p
ersonagens caravagianas por aquela luz que lhes dava nos rostos. De repente, nos
seus dilogos imiscuram-se uns dbeis latidos, tmidos, pouco audveis, que vinham da ma
rgem oposta e passavam ali para ir morrer muito perto. Amaro e Etelvino deixaram
logo de mastigar, reerguendo a cabea, ouvidos escuta, olhos repletos de dvida. Ne
sse momento foi um uivo, bastante prolongado, que chegou at eles. E ento formou-se
, rapidamente, to grande e to geral silncio, que os uivos seguintes, furando a noit
e e atravessando o rio, pareciam ainda mais tristes e arrastados. Todos os homen
s haviam aliado a sua mudez a uma imobi-
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'4
lidade total, naquela expectativa que dir-se-ia eis^r suspensa e impregnada de ma
l-estar, nas prprias faml rs que os cercavam. Mas j Raimundo, para ser\pnm etnlogo, l
anava uma conversa a Tanajara, a Etelvinm e a Filipe, como se despejasse a gua que
ainda restoa nas igaabas sobre essoutro fogo que se acendera dfentjB deles: umas
palavras altas, formuladas pressa, fras" toa, que baldadamente lutavam por se a
garr^igS naturalidade que lhes fugia. Os homens recomeacafl ento, a comer, a falar
em voz baixa, tudo muito v&gP" rosamente e todos a simular que no davam ccntaia" a
pelos vindos da outra margem, que ora cessa vamiil instantes, fecundando esperanas
de desistncia, ;"&! tornavam a fazer-se ouvir, sempre num torn lamentam! Nimuend
aj percebeu que ningum ousava oUria na sua direco. E o dilogo que Raimundo iniciajS, o
s paleios de favor que se lhe seguiram, aqueles VOM bulos para atulharem o oco r
epentinamente abeffljl humilhavam-no ainda mais. Julgando adivinhar a-tqn| luta,
Bonifcio disse-lhe de modo discreto e lento yflS
Se podia prend-lo l... 'i$K Nimuendaj tardou a reagir, como se, antestijl
tudo o mais, houvesse de passear a soluo em &flli dos seus receios e cautelas, para
lhes obter o conseffllH mento. Bonifcio ouviu-o falar depois, com voz smcM|
No me tinha lembrado disso. Sou um idonH Diga-lhe que o v buscar, mas que tem de o
amasW quando estivermos no Posto.
Se os outros no haviam olhado ainda para to-pouco ele tivera coragem de mirar os o
utros. >PM agora os seus olhos partiam em busca de Amaro, saj tado para l da fogueir
a, aparentando to devota" ateno s palavras de Eleutrio e de Juvncio, acoer rados su
ira, que mesmo de longe compreende",, ser aquela atitude calma um completo fingi
mento. Wj, uivos haviam-se interrompido quando Bonifcio ^ft levantou. E d
ir-se-ia que os homens pressentiam tudra| pois que voltaram a calar-se ao v-lo pa
ssar junto delfy|
Ainda um instante Amaro se conservou sentadas com o olhar investigando o rosto d
e Bonifcio, p3**j|
se convencer de que tinha ouvido bem; depois ergueu-se de repente, enquanto Eleu
trio clamava para todo o
acampamento:
Eh, minha gente! O "Mimoso" pode vir! Seu Curt
autorizou. Vamos buscar ele!
No foi preciso. Na borda do rio, l onde se debilitava o fulgor do lume, alguma coi
sa se moveu na meia sombra, avanou um pouco e se deteve a sacudir a gua que se lhe
agarrara ao plo. Depois, molhado ainda, parecendo mais pequeno do que era, pela
fraca luminosidade que lhe desvanecia os contornos, o "Mimoso", com o rabo a agi
tar-se no ar, mas sem os movimentos eufricos, os saltos e as correrias da sua apa
rio anterior, acercou-se de Amaro, roou-lhe carinhosamente as pernas e, antes que e
le se baixasse para o tomar ao colo, estendeu-se, exausto, a seus ps.
Ao comeo da tarde, no dia seguinte, divisaram, finalmente, o entroncamento dos do
is rios. Descia o Maici esquerda, vinha da direita o Maici-Mirim, ambos solitrios
e mansarres; e, uma vez fundidos, completavam a forma dum psilon gigantesco, aos
lados da terra de permeio, que ali morria aguada em ngulo.
Mais estreito do que o outro rio, como competia sua qualidade de afluente, o Ma
ici-Mirim cortava a fera nao dos Parintintins, j todos os homens o sabiam; e
fazia-o com sucessivas e apertadas curvas, como se ele prprio se opusesse dessa m
aneira violao da terra proibida. Perante aquele mundo bravio, to isento de comunicaes
e cada vez mais enigmtico, Bonifcio voltava admisso obsessiva: "Se todos morressem
ali, muito tempo passaria antes que algum o soubesse em Manaus, mesmo em Trs Casa
s e talvez ningum jamais saberia exactamente como eles haviam desaparecido. Mas
ela tornaria a casar, sem dvida que tornava a casar, o que seria compreensvel, m
esmo se no tivesse aquele temperamento ardente de que os homens tanto gostavam."
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Da popa do seu batelo, Nimuendaj conthnia^f^ perscrutando as margens, monotonia tr
emenda, catet??' e deserta. Era auscultar um cadver: tudo para*1?^ tudo silente, a p
rpria brisa, respirao do univer^^ havia-se negado a comparecer. Mas, a certa altH^s A
maro deteve a sua canoa, volveu-se e fez um geSiff tmido, dir-se-ia que forado, a
quantos vinham at^fre dele. __ '3
a sepultura do Felcio explicou Raimune|i em voz baixa, no batelo de Nimuendaj, enqu
a**i? naquele que Bonifcio governava, Caroline dava. * *f| mesma informao. ^M
Via-se uma pequena abertura no cerrado da "ff** resta, pouco mais de dois metros
de fundo por outsjj? dois de largo, talvez menos ainda e tudo veiwff Vas
ta plantaria, obedecendo vitalidade duma na^jj? reza alucinada, desenvolvera-se
to exuberantemeiffe sobre o cho um momento limpo e remexido, que ,rE' no fora a cru
z de duas varas toscas unidas com cit" ningum imaginaria que h muito pouco ain
da J* enterrara ali um homem. Todas as embarcaes havi*?f parado, com os remadores em
grande silncio. Am2gl desembarcou, de olhos baixos e passos curtos. Lev#?m| uma
nova cruz, alisada plaina e pintada de bran**" uma cruz que ele tinha por mais d
igna de Felci^S,' trouxera envolta em serapilheira, sem Nimuendaj^ Bonifcio saberem
. Enquanto a espetava no lugar '*\JL , outra, Genaro ia rezando baixinho, ajoelh
ado na 5*j**' canoa, ao passo que Jarbas, h muito incrdulo, * $ mungava para si
mesmo: l"?'|
Lhe h-de importar muito agora, ao pobre... ^
Que que voc est dizendo a ? pergunt1*" Honrio. * ^
Nada. ji No demoraram a partir, amofinados, silncios*?!
com aquela imagem que parecia lanar razes de^ os olhos at os canais respiratrios, dii
icultando-lfrfj o acesso do ar; aquela imagem que a floresta devora**^ tambm em b
reve, transfigurando-a totalmente. j A meio da tarde, Nimuendaj fez-lhes sinal P^
!|
que parassem de novo: uma das margens revelava, finalmente, vestgios dos homens c
om quem se vinham defrontar. Esteios e varas que tinham sustentado oito tapiris,
oito tectos de palha, abrigadores de Parintintins, inclinavam-se, uns ao lado d
os outros, velhos e destroados. Ele j os havia estudado na sua anterior incurso, ma
s pensou ser til ir familiarizando os novios com as habitaes dos ndios e, frente dele
s, desembarcou.
Junto do arbustedo que crescera sobre o antigo rancho, uma rvore grossa, a mais a
lentada de quantas o vizinhavam, ostentava algumas iniciais abertas a canivete,
j quase absorvidas pela cicatrizao da casca.
Foi Caetano Cetauro quem gravou isto disse Nimuendaj. Dormiu aqui o ano passado
.
Eleutrio acercou-se do tronco, mirou, remirou com a sua incapacidade de analfabet
o e, pondo o dedo sobre as letras quase sumidas, inquiriu:
Quem era esse Caetano ?
Admitindo que um dia, depois de todos os seus esforos, de todos os riscos desafia
dos, de todas as negligncias tidas com a sade, algum ousasse fazer a mesma pergunta
, com o mesmo nimo leviano, em relao a ele prprio, Nimuendaj enervou-se:
Quem era, no; quem respondeu, de modo rspido. Caetano Cetauro um desses homens c
orajosos que tm gasto a vida por estes stios da morte e que quase todos os outros
brasileiros ignoram. At voc, que do Amazonas! Dir-se-ia que se arrependera daquel
e torn agreste, pois logo a voz se tornou mais branda: empregado do seringai
Paraso e veio por conta do seu patro. Veio ver se se podia fazer as pazes com os
Parintintins, sem meter balas neles, para depois explorar a borracha daqui. Foi
o primeiro a descer por este rio, depois pelo Maici e pelo Marmelos, at o Madeir
a. Manuel Lobo fez quase a mesma coisa, tambm por causa da borracha e por amor ao
s ndios. Ambos tinham as ideias do general Rondon e no comearam por a aos tiros. For
am eles que deram o nome de Nove de Janeiro ao igarap para
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
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'"<
onde ns vamos. No conseguiram nada, mas coraJajjS no faltou a eles. Percebeu, ? !fi
S|
Mas o Caetano veio sozinho ? Era Etehiij quem o interrogava agora e a car
a de Nimuenqjj] tomou um ar de pacincia: ,2oS
Que podia ele fazer sozinho nestes sertes ? d&g com doze companheiros, valentes c
omo ele. tjii
A lembrana dos pioneiros que haviam dormido m a sensao das suas presenas invisveis a
colaremll aos seres e s coisas, a dificuldade de situar geogrfica mente a eles prpr
ios nesse momento e, sobretudo" ambiente de tapera abandonada, logo desfeita por
'ura natureza sem piedade, criavam de sbito nos hoi| um estado de alma singular,
mal definido, que pa| Tito Boludo era como se ele, semelhana de Felffl e de Camar
go, j no estivesse vivo. i 3
Latas de conserva vazias, todas ferrugentas^ l tampas enroladas, um pouco ao mod
o de bzios,da volta das chaves que as abriram, e ties apagaoi negrejando entre o ver
de das plantas, agravavam ainj mais, nos que vinham ali pela primeira vez, esse
an timento de comunho dramtica que se estabeleci entre eles e os outros que os hav
iam precedido. Eli ento, ao ver Jarbas afastar rapidamente os seus ol3< dos resto
s de madeira semiardida, como se esbrasps sem ainda e lhe queimassem as pupilas,
que Ninrq daj associou esse movimento, que dir-se-ia instintis| a outros gestos de
le quela maneira cuidadosa oqap! apagava os fsforos e quase violncia com que 00 ca
va as pontas de cigarro, gestos sobre os quais mus! havia meditado, mas que o in
trigavam agora. -fill
Voltaram s embarcaes e, pouco aps, ladeava! outros ranchos, tambm abandonados, terras
um M roadas, que os anos haviam transformado em viqj jantes capoeiras. ^
Nimuendaj verificou que no ltimo, quase ti velho como os anteriores, o cho fora de
novo lim| e sobre as antigas palmas de uauau, que lhe serviaa de tecto, j escureci
das pelo tempo, outras, colocad h pouco, se conservavam ainda verdes. Era no pon"
mais alto da margem, airosa esplanada na anca da floresta, de onde se podia abra
nger, para vigilncia defensiva ou recreio dos olhos, um estiro fluvial muito longo
e desimpedido.
A presena recente dos Parintintins evidenciava-se, de novo, mais adiante. O tijuc
o ribeirinho guardava ainda a marca de uma proa de igara, a proa duma dessas pir
ogas que eles, bons cirurgies dos vegetais, obtinham cosendo, com cip, as cascas f
lexveis e grossas de certas grandes rvores. "Talvez pescadores" aventurou Nimuenda
j, hesitando em prevenir imediatamente os seus homens. Mas no tardou a aparecer ta
mbm, sobre a lama da margem esquerda, um ninho de japim, amachucado como se criana
s lhe tivessem posto as mos, e vrios ramos torcidos h poucos dias, para dar passage
m ao dono das pegadas humanas que ali igualmente se viam, muito ntidas e direitas
floresta. Nimuendaj reconsiderou: "Um ataque esperado j uma possibilidade de vitri
a sobre o atacante". Inclnou-se para a frente, pediu a Raimundo que pusesse de so
breaviso os outros remadores; mirou depois a canoa que vinha mais perto do s
eu batelo, acenou ao Manga Verde que se aproximasse e encarregou-o de informar Bo
nifcio e Amaro sobre as insinuaes que a orla da grande mata acabava de lhe fazer.
medida que iam sendo alertados, os homens endireitavam os bustos, volviam a cabea
para a margem esquerda, fixavam-na um instante, trocando comentrios em voz baixa
; e continuavam a remar lentamente, com esse mnimo de rudo que o chefe lhes ordena
ra. Parecia que nada de novo se apresentava, que nada de grave se sugeria; e o M
anga Verde, de volta ao seu lugar, disse a Nimuendaj, roando-lhe o batelo, que Boni
fcio e Amaro tambm j tinham dado por aquilo. Declinando sobre a floresta, o Sol dei
xara de se ver. E nessa tremenda soledade da terra, que nenhum deles sabia agora
se era verdadeira ou ilusria, dir-se-ia que a Natureza se sujeitava a uma rendio a
bstrusa, passiva, de todo alheia s cambiantes que ia sofrendo com a luz; mas sobr
e ela parecia baixar, vinda dos
1000
tormentos iniciais do Universo, urna poesia pica, soturna e densa, que aguardaria
apenas a hora de poder exprimir o inefvel, de exprimi-lo dramaticamente, em voze
s ou em ritmos como jamais algum ouvira.
Repousaram sobre os prprios oleados das canoas e dos bateles, ao abrigo do dossel
que lhes ofereceram as pernadas ribeirinhas. A meio da noite volveram a pegar no
s remos, pela primeira vez entregues ao patrocnio do luar; e cautelosamente, mas
sem parana, navegaram at o amanhecer.
Viveram o novo dia ocultos entre as rvores, dormindo sobre a folhagem morta, depo
is jogando as cartas, gesticulando em vez de falarem, sorrindo-se dos seus prprio
s gestos, c sempre com dois vigias atentos, um floresta, outro ao rio. E logo qu
e a Lua reapareceu e mesmo antes de Mariano e Etelvino levantarem todos os prato
s do jantar, encaminhamm-se para as embarcaes, com a lngua desalojando os restos de
goiabada que se lhes haviam grudado aos dentes.
O rio apresentou-se-lhes como estrada de oiro, muito calma, fulgente e veludosa.
Ao longe rugia uma suuarana, lanando para ali os seus ecos medonhos; e parecia-lh
es mais estranho do que nunca que em tanta paz, solido e deslumbramento nocturno
houvesse uma fera a fazer arrepiar a terra.
Viagem que tanto os enfastiai a pela sua longuido, agora que s aquela noite lhes f
altava para remat-la, iam eufricos. encurtamento duma expectativa to morosa em conc
luir-se, as novas situaes para a saciedade psquica que manava duma constante presso
moral, a prpria habituao a variadas iiipteses, pareciam haver conciliado, de maneira
duradoura, o instinto de defesa individual com a ideia que os comandava. S Tito
Boludo, sabendo que o perigo se aproximava do cume, perguntava a si mesmo se dev
ia efectivamente arriscar-se por uns tipos ferozes, que no faziam falta alguma no
Mundo. " minha me conheo
INSTINTO SUPRKMO
TOO"
i, que muitos trabalhos passou para me criar; s ls, nunca as vi mais gor
das". E j no compreendia i in por que se engajara e viera para ali.
Continuaram os bateles e as canoas a rentear a i u'gem direita, sempre com a
quela passadeira doirada
e o luar estendia banda, atrs e frente deles, 'lele tapete suave e esplendor
oso, imperceptivelineiite
l uite, sado, dir-se-ia, do palcio onde habitava o io incognoscvel da flores
ta, para uso das suas fabu-
is visitas, em noite de festival.
Subiram ainda mais e arribaram, enfim, ao stio
'< seria instalado o PoMo. Era a modo de promou-
10 a terra que fora limpa pelo grupo de Amaro e
.cria, ao fulgor da Lua, a proa de enorme paquete
Calhado entre o Maioi-Mirim e o igarap Nove de
neiro, que ali confluam placidamente; um paquete
andonado, escondendo a popa na linde da brenha e
.,miando a ponte de comando com a mancha escura
is rvores que se viam ao fundo, como uma barreira
fendendo o mistrio.
Pouco passava da meia-noite e. mesmo depois de narradas as embarcaes, Xunuendaj c
ontinuou sendo no batelo, sentindo alastrar pelo corpo uma Ima nov
a e macia, como se estivesse em lena, no iverno, e se honve-.se banhado
em gua emente. Tirou do bolso o seu caderno de chefe e, por favor luar, pde escrev
er, com mo iirme e letras gradas:
31 !>]: MARCO D1-: /OJ-;
C PI EGA M OS
Filipe, que tendia para a1- alvoicant> s supoMc-;, i via admitido e- .nlusum nte qu
e o <k --embarque ali, pois de tanta loiijura t- de to ruins rvrntualidades,
realizaria de foi ma extr,amimai ia, nem ele \isioava como; e, afinal, nulo deco
rria noi malmente, pois ormais eram at os suspiros de ,ili\u> eme alguns aviam so
ltado. IV p sobre o barr.ui'u, a noitf tr.iM-lhe palavras surd i^ de Amaro, dai U
D otdttis:
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Voc, voc, voc... E voc tambm e tamb&n voc, voc, voc e voc, vo descansar agora, at
o horas. Os outros, das quatro s seis. O({
Estamos sempre a descansar; no fazemos outra coisa. Onde est a rvore para nos agar
rar a ela B sermos preguias ? repontava Juvncio, querendo vap lorizar-se com aquel
a audcia de tmido, que de repen^ o incendiara por dentro. Ontem foi o dia inteiojt
Eu c no preciso, no. }\\
No vem para c com histrias. Se no dew cansa agora, quando for dia, que quando faz m
ail falta, no tem foras. i
Vamos experimentar ? Os outros tossiram, dtW vidosos e irnicos. ija
No experimenta nada. Descansa agora torno" Amaro. if
Alguns, depois de desembarcar, alteavam os busto^ distendiam os braos, repetiam o
s bocejos, como f houvessem terminado uma sesta. E logo, uns atrs di outros, seguin
do Raimundo e Carolino, j pilotos-mfisl trs daquele cho, foram transportando aos om
bros, ribanceira acima, as estacas de aguadas pontas, qu vinham na canoa do Manga
Verde, ern pilha, maneix^ de grosso feixe que se desatara. 3
L no alto, restos dos velhos troncos prostrados^ ' que o fogo no consumira inteira
mente, dincultavam-Ihes os passos; mas, ladeando-os ou sobre eles abrindo as per
nas, iam depor as cargas ao fim da terra queimada, como lhes fora ordenado. Iam
e voltavam, sombras que o luar recortava; e, aps duas levas, deram-se a fazer ava
nar, por entre aqueles grandes trambolhos mortos, rolos e mais rolos de arame far
pado.
Bonifcio, que subira para o batelo de Nimuendaj, viu-os carregar, mais tarde, as ch
apas de zinco} duma cor quase igual da comprida nuvem que rompera pelo cu adiante
, lenta e ameaadora, semiocultando por momentos a Lua. Os homens levavam-nas hori
zontalmente, sobre as cabeas, um atrs, outro frente, segurando-as pelas bandas, co
m os braos arqueados como asas de vasos.
Oxal no chova disse Nimuendaj, espraiando a vista sobre o recheio das embarcaes, aps
haver seguido, um instante, o curso da nuvem. Estas coisas demoram sempre mais
do que se pensa. E, depois, o tempo que se vai gastar para pr em ordem tudo o que
vem a! S a lista do Servio de Proteco tinha duzentos e oito artigos, sem contar com
as repeties e os medicamentos. E eu ainda indiquei mais uns trinta e tantos... Oxa
l que a chuva no venha atrasar tudo.
A nuvem foi amvel e no choveu.
VII
/\o surgir da manh afanosa, alguns relancearam ainda, para confirmar a viso noctur
na, o pedao de terreno que se estendia, mais comprido do que largo, defronte dele
s. Dir-se-ia leira de restolho queimado, por entre os troncos prostrados, a dese
ncadear uma sensao desprazvel, quase irritante, como se lhes tocasse na pele. "Vai
ser, ento, aqui pensou Etelvino, que s via com nitidez por um dos olhos, embora j
amais o confessasse. Mas aqui ou noutra parte, d
o mesmo".
Perto dele, com um dos ps sobre o caixote que havia transportado, Filipe visionav
a os ndios a investirem por ali fora. E vinha-lhe o desejo de que isso acontecess
e precisamente naquele instante, para assistir ao alarme e confuso que ele estava
a imaginar para ver sobretudo se Tito Boludo e Dorival eram assim valentaos como
apregoavam.
Os movimentos dos homens, to cautelosos de madrugada ... "cuidado, por a no t bem",
"voc por aqui tropea" haviam-se transformado num frenesi quando a luz do dia cheg
ara. Lufa-lufa bem-humorada, uns abriam covas, j outros espetavam as estacas e at
rs deles outros ainda iam desdobrando o arame farpado no extremo da terra calcina
da, l onde comeava a
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&
floresta com a sua ameaa e o seu enigma. Do lado " Maici-Mirim, machados cheios de
pressa abatiam, entufe as rvores mais prximas, as que melhor servisse" para estei
os, vigas e caibros do barraco a constj3r e tambm para as muitas estacas que falta
va!" ainda. HJJJ.
Fardos, caixas, ferramentas, subiam dos bateli sobre os dorsos dos homens vergado
s; e s Filipe dS toava na fila dos que iam pelo barranco afora. PegaS nos volumes
com as pontas dos dedos, parecia hesitar antes de os erguer, se pesavam muito c
ompunha imediSi tamente rosto de sacrificado. Avanava to ronceiij entre os demais,
to sereno e indolente, que logo nulfr das primeiras subidas, Dorival, que caminha
va atrjjfc dele e com seus modos embirrava, metera-lhe violen^M mente o indicador
pelas ndegas, como se o picaSS! com uma aguilhada.
Se voc no quer trabalhar, no me tape o calA nho. T ouvindo, hem? *^m
Filipe era elegante por sua natureza, nos geslB delicados, nos movimentos do corp
o, s vezes nas pffllj prias falas, adaptadas das que em Manaus escutaWB" Os outro
s viram-no enfurecer-se repentinamente, laai" ao cho o pequeno caixote que levava
e virar-se PWH a cara de Dorival, de braos decididos e punhos <m chados: >fi"
Seu safado, se voc pensa que sou desses, ettt lhe you ensinar! 4
Juvncio, intervindo com suas maneiras tmicWtf' suportou, metade no ombro, outra me
tade no pescofS j a roar a mandbula, o soco que a mo de Filipe colericamente despacha
ra. <
Todos os demais voltaram atrs, l onde o sorriso parado de Dorival enfrentava a con
ciliao tentada por Juvncio e a espuma que o adversrio tinha ix& lbios. No era a primei
ra vez que Filipe pressenti^ nos outros aquela admisso e essa recarga de suspeita
s rebentava agora to violentamente como no dia d* duas bofetadas que dera num sold
ado, em Manaus
Fresco ser ele! l(
Dorival continuava calado, mas parecia de bom humor e no retirara sequer o fardo
de sobre os ombros. Por fim, perante o coro dos apaziguadores, disse, sem
se mover:
Era uma brincadeira. Lhe peo desculpa. T bem? No pensei ofender. Mas nunca m
ais voc v adiante de mim, pois quero subir depressa.
S ele e o Tito andam sempre a implicar com o pessoal e depois dizem que bri
ncadeira vozeou ainda Filipe, na direco de Maximiano, que mais insistia em acalm-l
o.
Perto da floresta, em trs pontos diferentes, retaguarda dos homens que ali trabal
havam, outras mos laboriosas iam fincando verticalmente na terra duas folhas de z
inco. Juntas dum lado, separadas do outro, formavam ngulo, quase no jeito das vel
has seteiras; e, maneira de telhado, outra chapa ondulada se sobrepunha a elas,
horizontalmente, contra a chuva e contra o sol. Por essas guaritas protegidos, f
icaram logo de atalaia, espiando a mata atravs dos quatro buracos furados altura
dos olhos, Genaro, Cavalcanti
e Aristeu.
A meio do acampamento, entre o material j desembarcado, Nimuendaj e Bonifcio, de ma
rtelo e talhadeira em punho, abriam as caixas de brindes. Preso a um cepo, ao p d
eles, o "Mimoso" seguia, de olhos curiosos, o andamento de Amaro em fiscalizao aos
trabalhos, enquanto Mariano, acocorado atrs dum dos troncos semicarbonizados, co
m uma colunazita de fumo evolando-se to prxima da sua cabea e to tnue que dir-se-ia o
seu prprio bafo em fria manh de Inverno, preparava o caf.
Expostas luz do Sol, muitas delas rebrilhando, as bufarinhas que as duas caixas
j abertas continham, ora lembravam importao de bazar, ora sugeriam um catico tesouro
de piratas. Nimuendaj apartava calmamente, por vezes hesitando entre uma e outra
, aquelas que admitia serem mais propcias para as relaes iniciais, dele e dos seus
homens, com os Parintintins.
A^J
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Parece-me que no deram ainda por ns. J&j$|L rei ir consigo ? perguntou-lhe, de sbi
to, Bonif^H
No pode. >'Hff
you sentir-me aqui um intil... i>una
Oxal que nunca deixe de ser intil. ~^ Nimuendaj desviou os olhos para o pessoal nu
trabalhava e, como sempre que previa dificuldadesj||| pensava num apoio a que es
tivesse j habituado, effl lheu Raimundo. ^w
Depois do caf e de Eleutrio ter pedido, emumH de todos, mais cachaa, os homens vira
m os dois parai de braos a pendularem e serapilheiras s costas,' Mi* chadas de pre
sentes para o inimigo. IBM
Aprofundaram-se na brenha, com o silncio a sujil mir cada vez mais o rudo dos mach
ados na rijeza troncos e o dos martelos a pregarem nas estacasljl fios de arame
farpado, ao longe; e cautamente foraj identificando as possibilidades ali existen
tes de cilaap e de ocultao. a||
Visvel no havia ningum. Somente as rvdljK sempre as rvores, que pareciam, elas prprias
, tamJ|H| interrogativas perante aqueles dois estranhos, comEp jamais tivessem vi
sto um vulto humano a pertoraS! a sua extrema solido; rvores, arbustos e, aqM|" alm,
rsteas de sol escorrendo preguiosamente pSf fustes. Duas vezes Nimuendaj e Raimundo
desemfcsr caram num velho carreiro dos Parintintins, lanara" para as bandas do s
eringai Paraso, em alguns dos<effc tractos pouco mais perceptvel do que trilho de a
rtftt que eles percorreram durante uma hora larga, JEW vagarosos passos e olhos
muito atentos. Embora '"P" bendo que os ndios tinham pisado, recentemente anwt, es
se solo bravio, quando atacaram os homens da derrubada e recolheram os brindes d
eixados por Amara, em parte nenhuma conseguiram descobrir vestgios te*" cos do se
u trnsito. A folhagem morta, cmplice alfoscbra da floresta, recusara-se a guardar
as marcas denUBf ciadoras dos ps que a haviam calcado. '
No seu regresso, vinham Nimuendaj e Rarnuno" extraindo das serapilheiras vistosos c
olares de vidroS
rutilantes na diversidade das cores, pequenos espelhos, saquitis de missanga, tud
o dependurando nas varas que torciam e inclinavam para aquela senda estreita, a
modo de canas de pesca sobre um ribeiro, com iscas destinadas amizade que se des
ejava fundar. E quando, meio-dia andante, voltaram terra limpa, j a cerca de aram
e farpado, que devia ladear a mata desde a borda do igarap Nove de Janeiro at a do
Maici-Minm, estava quase terminada. Apenas Caroline e Antnio Rocha trabalha
vam a meio da seco mais comprida, onde Nimuendaj pretendia engonar uma cancela, abri
ndo o acampamento floresta, para que os Parintintins por ela entrassem na hora d
a confraternizao, por enquanto muito incerta ainda. Tambm o esqueleto do principal
barraco do Posto se recortava j no ar, com os esteios e as traves ainda lagrimejan
do seiva de seus corpos recm-esfolados. Perante tanto avano em to minguado tempo,
uma satisfao desaparecida com a morte de Felcio e de Camargo, como que levada por e
les, renascia no esprito de Nimuendaj em relao a Amaro, ao ver de novo a sua arte de
dirigir e concertar, sem berros autoritrios, nem gestos duros, os esforos de dife
rentes braos. Uma satisfao alicerada sobre a actividade dos homens que haviam ido ma
is alm de tudo quanto ele tinha previsto e continuavam a laborar com essa expresso
desenfadada que o surpreendera no povo braslico desde a sua chegada a S. Paulo,
povo optimista superfcie, no cerne como que nostlgico duma ventura interrompida e
sempre tendendo, talvez por essa prpria dualidade, ao
sorriso e ao chiste.
Logo a seguir ao almoo, Nimuendaj emparelhou Raimundo e Caroline no banco da monta
ria. E com ele popa subiram o Maici-Mirim, rompendo a gua e a terra do medo, dese
mbarcando nas margens onde nenhuma folha bulia, para depositarem dentro da flore
sta novos brindes. O pessoal viu-os descerem a meio da tarde, passar em frente d
o acampamento, meterem estreitura do igarap, decididos a repetir, nos mais prximos
trilhos dos ndios, as ousadias que haviam
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'"<
levado a cabo, horas antes, nas vizinhanas doL'lio.
Volveram noitinha e de novo abalaram na manh
seguinte, lanando a proa a jusante do Maici-Mim
onde foram terminar, com suas quinquilharias, aquel%
linhas de fortificaes psquicas, eventualmente defefe.
sivas. ,rtf
Bonifcio no largava a vista do rio. Ia acheganl
materiais aos homens que construam o barraco,' cj|
trepados sobre escadas improvisadas com duas gros&il
varas, mas a sua inquietude no cessava j amais '<J|
disparar-se para aquela banda. Viu, enfim, a montara
regressar, completa e vagarosa, com a gua que escawH
das ps dos remos, quando levantadas, brilhando fugaas^
mente luz do Sol. '"tal*
Avanou ento para o extremo do barranco,-^-
encontro dos homens que andavam, desde a vsper
arremessando seu desafio ao segredo da floresta. Ti
parecia estranhamente natural, quotidiano, acto comBit|
Nimuendaj, Raimundo e Carolino subiam agoras,,
ribanceira, tranquilamente como se viessem duma ped|
mediana, nem farta em capturas, nem gorda de dedffl|
coes. E ao v-los Bonifcio considerou, como tapilL
vezes lhe ocorrera quando se integrava na hoste njMH
doniana, que muito frgeis seriam os vnculos, se pcfl|
ventura alguns existiam, entre o herosmo de pala-vtMB
faulhantes nos textos escolares, nas histrias patriHK
ticas e nos discursos retricos, e o herosmo nos foo^BK
necessrios, sem contgios excitadores, mesmo se4||
naturalidade que os trs homens aparentavam f08^^
premeditada, mesmo que a sua audcia no se tives"
consumado sem largas e ferventes apreenses. Mas-'":?
palavras podiam mais do que os factos, eram eles qw
os matavam ou eternizavam, criando a seu bel-praOT
outras alastrantes verdades. >r<1*,
Em cima, o pessoal acenava jubilosamente do# ;
vrios pontos do acampamento. Nimuendaj inclinatfv
de leve a cabea, avaliou os trabalhos efectuados na"|!
ltimas horas, voltou-se para Bonifcio e disse-lhe, *,|
sabor daquela satisfao que se lhe vazava no esrjFi
rito: f i
Se eles no aparecerem dentro de cinco ou seis dias, teremos quase tudo feito quan
do vierem e j poderemos defender-nos melhor.
Vieram no terceiro dia, ao findar da manh. Faltava bastante ainda para terminar a
s instalaes, mesmo as provisrias, e o pessoal pensava mais na hora do almoo, que se
aproximava, do que neles, quando Genaro, de sentinela ao fundo da terra roada, en
viou os assobios de alarme, uns a seguir aos outros, como silvos de barcos dent
ro do nevoeiro. Imediatamente uma brbara gritaria, sada de bocas que ningum enx
ergava, onde o dio parecia alternar com o regozijo, soou na orla da floresta, per
to dali. Os homens, largando seus trabalhos, correram a abrigar-se atrs das folha
s zincadas que Nimuendaj mandara, logo no primeiro dia, pregar no madeiramento do
barraco, dos dois lados voltados para a mata, os mais perigosos por serem os mai
s expostos. Corriam e entre eles iam caindo flechas aps flechas, como se comandad
as pelo ritmo daqueles gritos. Uma atingiu o carnaba de Antnio Rocha, enfiou pela
copa, ps a aba dianteira para o alto, como se levantada por um p-de-vento; outra
rompeu a blusa de Jarbas, acima dos quadris, deixando um ardor de lngua de fogo n
a pele que a sua haste violentamente roou.
A terra limpa quedara, enfim, deserta e as frechas passaram a bater, teque, tequ
e, teque, nas fortes chapas de zinco; a bater repetidamente, mas em vo. Logo, porm
, abandonaram seu voo horizontal e, como as dos caboclos quando arpoam, na foz d
os igaraps, as tartarugas em acto de imerso, traavam um arco sob o azul do cu e vinh
am cair a prumo a dois passos apenas do stio onde, permutando chalaas, os homens s
e refugiavam, o que Eleutrio tinha, ainda assim, por m pontaria. No tardaram a espa
cejar-se, elas e os berros que at a pareciam dar-lhes maior fora. Bruscamente
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t<*K
um grande silncio veio daquele lado, com tod^ a sugesto de um silncio definit
ivo. (?^j
Ps-se ento Nimuendaj a contar as flechas, de^ft as que se mantinham de p, enfeitados
postes deqn territrio de bonecas, s que se estendiam, com SM' ar de coisa j intil,
no cho cinzento a que elas empre!' tavam, dispersamente, a graa das suas penas mul
ti colores. E verificando que eram em menor numere <jj que lhe parecera no momen
to do ataque, concluim aps haver atribudo, por alto, uma dzia a cgaw carcs
: >>ttul
Foi, provavelmente, um pequeno grupo que f>a" sou a, talvez por acaso ou por anda
r de vigilncUf depois da derrubada. Eram poucos, seno teriaraof chado de vrios pontos
da cerca. E at pelos gritosfMt percebia que no eram muitos. i ixB
No eram muitos, mas eram bestas, graas"! Deus comentou ainda Eleutrio. >rfS
Ao ver desimpedidas de terror as caras dos qoHV escutavam, Nimuendaj pensou ser ti
l revelar-mea'aif demais^ dedues que fizera: 'flR
claro que eles vo prevenir os outros e qufBL quer destes dias a esto em grande band
o. P3^8^! de novo os olhos sobre o pessoal e acrescentou pa*MH damente: Que ve
nham! No para outra coisa' *EJm estamos aqui. O pior seria se nos acontecesse o m
esinMj que aos do Posto nos Muras-Piras, que nunca virfflH um parintintim. Rira
m alguns dos homens e ttwi aproveitando essa rarefaco do ambiente, termiluJ*|
com deliberado desprendimento: Vamos almoar. Scf horas. Ji<t
Comeram vagarosamente, falaceando para um$ outro lado, como se quisessem demonstr
ar a eles pf"| prios que no tinham medo, j que o medo est semp(r) com pressa; mas d
epois lanaram-se aos trabalhos com o mesmo despacho dos dias precedentes. Os que
se encontravam de vigia foram ento rendidos e Genard] perto do qual os ndios havia
m atacado, trazia, a mod^ de bufarinheiro oriental, as mos a transbordar de colaf
rs, que lhe escorregavam dos dedos, como serpenteai
Desprezaram os brindes; jogaram para dentro da cerca disse a Nimuendaj e Bonifcio
.
Voc viu eles ?
S vi uns bocados de caras. E tambm algumas das mos que saam das folhas. Perceberam
que eu estava ali pelos assobios que dei e no paravam de jogar flecha contra o zi
nco.
Eram muitos ?
No sei. Mas me parece que no eram, no. Secundado por Bonifcio, Nimuendaj recolheu as
flechas, em seguida os presentes rejeitados; e a meio da tarde exps ao mdico as su
as decises. Era preciso repor os brindes, juntando-lhes outros novos, ainda mais
tentadores, e ele prprio iria faz-lo, como no dia
da chegada.
possvel que ainda estejam por l admitiu Bonifcio, com voz de preocupao.
No devem estar. Se esgotaram todas ou quase todas as flechas, como suponho, natur
al que tenham ido maloca arranjar mais. Mas se estiverem, pacincia! Se no me ataca
rem traio e se alguns deles compreenderem a lngua geral, pode ser o comeo
da paz...
No haveria outra maneira?
Que maneira ? Nimuendaj interrompeu-se um instante e, pressentindo as palavras q
ue Bonifcio guardava, ajuntou: No acontece nada. Mas se alguma vez acontecer qual
quer coisa, desde j peo o favor de auxiliar o Amaro. Ele tem boa vontade e sabe o
que necessrio fazer, mas no tem muita instruo.
Encontrava-se Amaro junto de Maximiano, que aplainava madeira, no centro do acam
pamento, sobre um banco tambm improvisado, e Nimuendaj chamou-o. __
conveniente mandar ver se eles levaram os outros brindes que anteontem deixei a p
ara cima. Rena o pessoal e escolha dois voluntrios para irem l, na montaria, com o
Raimundo. Se os levaram,
ponham mais.
Amaro afastou-se, mas no tardou a voltar:
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O INSTINTO SUPREMO
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O INSTINTO SUPREMO
Todos querem ir. *
bom. Escolha o Rocha e o Juvncio, que /Mg, pediu para o aproveitar. ^t
No sei se eles sabero fazer isso como d" ser. melhor eu ir com eles... gjn
No vai, no. Voc hoje no sai daqui. O Rni mundo sabe perfeitamente. ^j,
Ento o Raimundo no vai consigo ? interveR Bonifcio. ^R
Para qu ? preciso no outro lado. E quariB menos gente ocuparmos com isso, mais es
taro adaP tando os trabalhos aqui. l jB|
Bonifcio argumentou ainda. As palavras, corflOjfB setas de h momentos antes, voava
m e tombatdM^ sem efeito. E pouco depois viu Nimuendaj avan|H| para a mata, de no
vo com a serapilheira atestada IB bugigangas, o faco cinta, o carnaba de abas larg
K a recordar-lhe enorme cogumelo e uma dzia de flecfiHj sob o brao, como se fosse,
por sua vez, atacarNBE
Junto da cerca, voltou-se e acenou-lhe, a chamB" Pediu-lhe que segurasse as flecha
s enquanto ele remesjBB nos bolsos, de onde extraiu o seu caderno de aponfflH me
ntos, que lhe entregou.
Guarde-mo, no v eu perd-lo por a disi -lhe e pareceu a Bonifcio que havia na sua voz
ura" breve emoo. 9
Logo que penetrou na floresta, Nimuendaj cortflfi uma vara. E com a ponta foi lev
antando, media" que avanava, as folhas mortas que em frente dos senff passos lhe p
areciam suspeitas, por menos acamadajf, do que as demais. No tardou a sorrir. M
uito prxit^ ainda da cerca, um estrepe envenenado, de reborcw* cuidadosamente afi
ados, aguardava os ps invasort, alapardado sob um daqueles despojos vegetais, coff
lb sob uma asa. (0
Envaidecido pela sua experincia haver descoberw a velha cilada ndia, satisfeito po
rque o seu pessoal andava bem calado e no de rudes seringotes ou &p p nu como os ho
mens que tiravam a borracha, vtimas
mores daquelas armadilhas, Nimuendaj prosseguiu no avano. E, de quando em quando,
a vara que lhe parecia to eficaz na circunstncia como as das fadas, punha ao lu nov
as pontas de setas, muito inclinadas na direco do Posto, como se reverenciassem, e
m nome da Morte, quem para elas desprevenidamente caminhasse.
Ia sobre o mesmo cho solitrio que tinha pisado com Raimundo dias antes e em parte
alguma topou um nico dos brindes que por ali deixara, a mos rotas, como joalheiro
ambulante, enlouquecido de repente. Tantos, tantos em comparao com os arremessados
para dentro da cerca, que depressa se convenceu de no terem os Parintintins resi
stido a guardar a maioria deles, justamente os que expunham os atractivos das su
as formas e das suas cores mais longe do acampamento. No havia sido, pois, intil a
iniciativa que tomara e com essa verificao de novo se sentiu
contente.
Sobre o velho trilho que apontava ao seringai Paraso, to distante dali, foi espeta
ndo, nos trechos mais a direito, as doze flechas que trazia. Em baixo, volta das
hastes, de modo bem visvel, disps cuidadosamente os estrepes por ele desvelados;
e na extremidade superior, l onde elas apresentavam um corte anguloso para aderir
corda dos arcos, pendurou, de encontro s plumas, novos saquitos de oferendas, no
vos convites ao entendimento e paz. Descia a noite, dum quente abafado e hmido, q
uando reapareceu no Posto, com o olhar preocupado e a serapilheira vazia. Cavalc
anti, ultimamente a queixar-se de poucas foras, foi o primeiro a surgir na sua fr
ente e a dizer-lhe num torn
de alvio:
J no tvamos contentes com a demora do si...
Pouco depois alguns batiam palmas ao ver Raimundo, Juvncio e Antnio Rocha voltarem
tambm. Na terra que haviam inspeccionado, os ndios no tinham passado ainda e os br
indes deixados continuavam a desafi-los.
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O INSTINTO SUPREMO
1021
"MB
A partir daquele dia, a expectativa adensou-se aiiaM, mais no esprito do pessoal,
nos seus olhos, nos ieiB ouvidos, dir-se-ia que no prprio tacto, pois qu X dedos
se detinham, s vezes, sobre o material em g3| trabalhavam, como se escutassem tam
bm. Uma expecfi tativa em emulao com a da floresta vizinha, qw parecia aguardar, in
cessantemente, desde as cabeceiiijj dos tempos, uma presa que tardava. A presa c
hegaJI por fim; a presa eram eles, todos o pensavam. A steofE de arame farpado,
que de comeo s os isolava da mat! j se distendia agora ao longo dos barrancos do No
iH de Janeiro e do Maici-Mirim, cercando tanto o acanJB pamento, as prprias canoa
s e bateles arrastados psfl| terra e entregues sua proteco, que Eleutrio, seinlf pr d
e bom humor, comentara perante a ltima esta^H
Estamos agora to seguros como uma boiafqH no curral. Quem havia de dizer minha
av quej ia. virar boi ou vaca ? "iH
Os homens riram. Riram porque, justamente nuB mentos antes, Nimuendaj mandara faz
er uma segunoM vedao, apenas do lado mais perigoso, o da florestM pois que o arame
sobrante no chegava para duplicdM a que defendia as margens do igarap e do rio. Fi
neiH ram-na em poucos dias, a uns seis palmos da primehaj
O barraco maior, todo revestido de zinco, com doM dormitrios, a cozinha, a sala, o
s quartos de NimueaM daj e Bonifcio, uma alpendrada espairecendo park'OT banda do
pontal, ficou tambm rematado pouco depo^W E o menor, onde se aboletariam mercador
ias, se inS talaria a oficina de carpinteiro e podiam dormir quatMf homens, desen
hava j no ar a sua armao.
No sendo necessrio abater mais rvores, aqueles que se haviam entregado a essa truci
dao desatravaffrt cavam agora a terra ocupada, transformando em lenha para a cozinh
a os velhos troncos meio carbonizados" E uma tarde, de machado em p, a mo apoiada
na/ extremidade do cabo, Jarbas lanou um novo olhar
sobre os carves e ties que ainda se viam a esmo por ali e confessou a Moacir, que n
a sua frente enrolava um cigarro:
Foi bom eu ter vindo. No quis te dizer nada, mas me custou muito ver todos esses
paus queimados, quando chegmos aqui. Agora parece que j me habituei. No me recordo
tanto daquilo.
J no era sem tempo. Ainda ontem estive a pensar nisso, porque s vezes a cara do Tit
o, vista de lado, me lembra a do dono da fbrica. Me parecia que eu estava a ouvir
, outra vez, o teu discurso naquela tarde disse Moacir, pausadamente. E ficou,
um momento, a considerar que se os patres estivessem realmente no lugar dos grevi
stas, sofrendo todas aquelas misrias e injustias, teriam feito o mesmo que eles fi
zeram ou pior ainda. Aos seus olhos revinha, muito debruado na janela do primeiro
andar, sempre com gestos de raiva e berros furiosos, o da indstria onde o Jarbas
, o Duarte e ele trabalhavam. "Aquele era bruto mesmo. Em vez de serenar os h
omens, gritava aos soldados que espadeirassem eles ainda mais. Havia j alguns com
golpes nos ombros e nos braos, outros de cabea rachada e o sujeito sempre l em ci
ma a exigir mais. Afinal, nem aquele estpido mau, nem os outros patres, haviam per
dido nada. Os seguros pagaram os estragos, as fbricas voltaram a ficar como nova
s; o Duarte que morrera e ele e o Jarbas que tinham de andar por ali".
Moacir repegou no machado:
Foi uma sorte eu no ser to amigo do Duarte como tu eras, nem ter visto os restos d
a barraca queimada como tu viste, se no talvez ficasse tambm impressionado para mu
ito tempo. Quando me mostraram, l onde eu estava escondido, a fotografia daquilo
no jornal, j haviam passado muitos dias. E se via melhor os homens que levavam a
padiola do que o corpo carbonizado.
Era um grande militante. Temos poucos como ele disse Jarbas, com voz enternecid
a e profunda.
Era. Nisso estive sempre de acordo com vocs.
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Era bom militante, mas no bom dirigente. No tinhje calma. Um homem com calma no ia
assim botar fogs" barraca onde estava, por que espiou e viu a policial cercar el
a e ele no podia fugir. Se o prendessem, qut acontecia? Um ano ou dois de cadeia,
mas mesmo qus fossem cinco, dez ou vinte, valiam menos do que eme perder a vida e
a aco que ainda podia ter. .$|f
Jarbas ia contestar, mas refreou-se mais uma vej{" Olhou para Moacir com uma mel
ancolia resignada w por fim decidiu-se: >jn|
Ele tinha l papis, planos, muitos nomes. El" sabia de muitas coisas. Eu nunca to d
isse, mas pena" que hoje posso dizer. Estamos aqui, longe, passou temp"| e agor
a te conheo melhor do que quando estava" ms l. Agora sei que se pode ter con
fiana em tia|| Tu j percebeste h muito que a greve no era s petB aumento dos salrios;
ra tambm para habituar k9B| trabalhadores luta. J havia anos que no se fsalj
Jarbas estava voltado para Moacir, mas parecia ntir o ver; falava com ele e dir-se
-ia que monologava"(r) algures, distante dali.
Se lhe apanhassem os papis ou se ele revelassSl o que sabia, muita gente que se c
omprometera e eifl" que ningum pensava, seria perseguida. Havia grupo" at nas cida
des do interior. E todo o trabalho Qt^B tivemos para organizar isso ficaria per
dido por muit"BJ tempo. Ele mesmo estava consciente de que lhe faltava" calma. U
ma vez me disse que, se um dia fosse presoJfl tinha medo de se ir abaixo quando
lhe fizessem inter-*" rogatrios. Ests compreendendo agora? >*>*
Moacir no respondeu. Franziu o rosto, levantoffi bruscamente o machado e continu
ou a rachar o velho!' tronco semiardido. 1
Os dias decorriam lentos e mansos. Mariano j encontrara tempo e levantara das cov
as provisrias, onde os havia metido para que no secassem, os ps
de mandioca e de inhame trazidos da aldeia dos Muras-Piras; e plantara-os definit
ivamente atrs do barraco, lanando tambm terra algumas sementes de melancia, de que e
ra mais guloso do que os tamandus
pelas formigas.
Nimuendaj no autorizava ningum a ir caa e as guas do Maici-Mirim e do Nove de Janeiro
pareciam conter somente aqueles barbados, ingnuos e vorazes, que aos anzis acorri
am to lpidos como bando de frangos mo que lhes deita milho; aqueles peixes lisos, s
em escamas, por nenhuma boca apetecidos, nem mesmo pela de Eleutrio, que os pesc
ava e logo os devolvia origem, com gestos desolados e um desdm suplementar. Os ho
mens viviam apenas da carne seca, das mantas de pirarucu, ressequidas tambm,
e da farinha de gua que tinham embarcado em Trs Casas. A alguns at o piro desagradav
a, pois o saco das malaguetas ficara esquecido no stio onde haviam dormido, na no
ite em que o "Mimoso" atravessara o rio a nado e provocara neles, de repente, to
dos aqueles sentimentos inesperados. "C pr meu gosto, piro sem pimenta como se tira
ssem a capacidade e o esprito farinha" declarara Filipe, com a cara simulando
enjoo.
Foi durante o almoo em que lhe ouvira aquilo e talvez incitado pela sua frase, em
bora lhe parecesse arrevesada, que Eleutrio sentenciara:
O caboclo nasce pescador e, se algum pode viver sem peixe fresco, j no mesmo um ca
boclo de verdade.
Os outros riram, olharam-no um momento, riram de novo. E Eleutrio, percebendo que
essa hilariedade se amarrava tanto aos barbados que ningum queria, como o fio e
o anzol com que os apanhava, sentiu-se quase to humilhado como naquela noite em q
ue o compadre Leovegildo duvidara de que ele fosse capaz de realizar um baile co
m cem pessoas.
Lembrou-se, mais uma vez ainda, de ter ouvido a Nimuendaj e a Raimundo que eles h
aviam encontrado um igap, ali muito perto, em frente da cancela,
^
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quando do reconhecimento que fizeram, logo no dfe da chegada. E antes mesmo de o
s seus parceirosi^ terem levantado das tbuas que lhes serviam de rne^ foi caixa o
nde se guardavam os aprestos de peesr tirou um espinhei, escapou-se por detrs do ba
rracfc^ para que ningum o visse e sumiu-se na floresta.
Aquela gua estagnada desde a grande cheia nuafy expondo-se soturnamente por entre
os ps das rvores como um rio largo sado do leito e agora morto, cena folhas secas e
gravetos boiando, muito estticos, na sua negra superfcie, jazia efectivamente a p
ouco rmai de quinhentos metros dos homens civilizados. Eleu* j, trio amarrou a po
nta do espinhei a um tronco,' defe-"' piu-se, pediu ao seu deus que o livrasse d
os choqpest elctricos dos puraqus e, entrando no igap, foi atsfirj na margem oposta
a outra extremidade da corda. S- * gressou de cara feliz, ainda os outros no havi
am ret& ' mado o trabalho. -in'
Ao morrer do Sol, logo que Amaro deu sinal-idesuspender a faina, esgueirou-se de
novo para a mata Volveu j mal se enxergava a terra e imediatamente entestou cozi
nha, onde Mariano desiludiu a sua ategria ao ver os dois tambaquis que ele lhe a
presentvl",.,'
Hoje no h tempo para se preparar isso. Tjetwi* de ficar para amanh. |
Informado e sem luzir nenhum prazer, Nimuendj f disse, hora do jantar: ' i
peixe bom, mas o melhor no voltar lVoc sabe muito bem que h perigo em sair dacp-
Eleutrio sorria, um sorriso largo e envaidecicW^ enquanto protestava lisonjeirame
nte:
Mas o si tambm saiu... E o Raimundo, >i" Caroline, o Rocha e o... *
Nimuendaj interrompeu-o: '>
Era indispensvel levar mais brindes. Mas agoija devemos ter pacincia, pois talve
z isto no demore muito a resolver-se. >'
Estamos com boca de coronel, porque ainda h muita bia e variada proferiu Amaro,
dirigindo-s'e j ao pessoal. Mas se nos faltasse, se comia mesmo o* f
barbados e se pedia ainda mais. Se comia at piraba, at boto...
Bonifcio apoiou:
O general Rondon chegou a comer sucuriju...
Sucuriju mesmo, seu doutor ? perguntou Juvncio, de olhos arregalados.
Sucuriju respondeu-lhe Bonifcio, ao compreender que aquela dvida assentava no es
prito de todos. Faltava tudo. At veio nos jornais...
Cobra que eu no comia, no tornou Juvncio, enquanto os outros se riam do torn medit
ativo e ingnuo com que dizia aquilo.
Outros dias se dobaram e a situao no se resolveu. A conselho de Bonifcio, Cavalcanti
deixara de se levantar da rede. Nem o fortificante lhe havia devolvido as foras,
nem o quinino apagara de vez aquele brasido invisvel que todas as tardes nele se
avivava. Era certo que os braos de Cavalcanti, to-pouco os de Crisstomo, que andan
do desintrico, a. emagrecer dia a dia, Nimuendaj dispensara de trabalhar, j no fazia
m mngua no acampamento. O segundo barraco estava pronto. Como no primeiro, as pare
des de zinco no se uniam, do lado da brenha, ao tecto que se prolongava para alm d
a armao. Pequeno espao livre, no jeito de fresta horizontal, as separava dele, uma
fresta que de longe no se via e de onde se poderia seguir, com algum resguardo, o
s movimentos dos Parintintins, se eles se aproximassem dali, no decurso do ataqu
e previsto. E nessa casa-armazm, com um quarto ao fundo, para os guardas ou
para enfermaria, os homens no tardaram a arrumar o material do Posto, os manti
mentos de reserva, barricas, caixas, fardos, tudo quanto s mais tarde fosse til
; e era como se o "Cuiab" voltasse a despejar, desta vez no prprio corao da floresta
, a carga que havia trazido. com ar ainda provisrio, Maximiano instalara tambm ali
a sua banca e lavrara um caixilho para a fotografia
S3 Vol. Ill
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!*i
de Rondon vestida de civil, com o bigode em &*"* de acento circunflexo sobre a b
oca e a fronte n^f" alta. Bonifcio dependurou o retrato na sala, vott%4e para os h
omens e disse: '
Se seguirmos at o fim as ideias dele, podert" ficar contentes: honraremos o Brasil
e toda a Isiun^ nidade.
Alguns dos homens ainda comentaram as suas palfe vras; Raimundo, porm, ficou cal
ado. Aquilo estirai mais firme no seu esprito do que as rvores na ttfB prxima e con
siderava mania "o doutor andar aeaaj com essas coisas". Velho mateiro, muito expe
rimenta^^ sem que dessa fora se apercebesse, tendia a fecharei sobre ele mesmo, r
ealizando-se ao cumprir as or4"| de Nimuendaj, criadoras de um misto de gratidraB
de vaidade por o etnlogo confiar nele; e pareddB que se falava agora demasiadament
e sobre os perfiBI a correr, os sacrifcios a fazer, tudo, sem dviday^B causa dos
novatos. O longo convvio com a sdHR hbito que lhe vinha do seu tempo de serin
gueireaB muitos anos j, extraa-lhe o receio dos ParintiaIB e a ideia de que um dia e
les poderiam decapit-lo t^B bem, aparecia-lhe densamente enevoada, quase iiflB r
osmil. Discreto, dir-se-ia bastar-se a si prprio!" embora se somasse, de quan
do em quando, aos grpH dos outros homens, a imagem que dele se guarda" era a de u
m corpo meo que se via passar quase senrfJMf ao longe, como um vizinho muito meti
do consigo, ffiqp cipiara a estimar Jarbas porque, de entre o pessoaijlB acampame
nto, era o nico que lhe aparava o cabpB a seu gosto, quase to bem como ele cortava
o de ,tcra|B os outros. E foi precisamente a Jarbas que ele disp de olhos no cho,
como se o consultasse, depois fl ouvir as palavras de Bonifcio: >*
No sei nada, mas me parece que seu Rondftt no vai duvidar de ns. No vai mesmo ? f>/*
J nesse dia estava pronto tambm o "banheiro* casinhoto flutuante que se amarrava n
a margem^M9 igarap, onde os homens, metendo uma cuia pelo bttraJO existente no so
alho, erguiam a gua que derramava*
sobre o corpo. Concludos se encontravam igualmente os mveis destinados ao barraco m
aior: a mesa de cozinha, a grande para a alpendrada, a coluna para o gramofone e
as muitas prateleiras que aqueles dias de espera, cada vez mais libertos de tra
balhos urgentes, consentiam a Maximiano fazer. Nas do seu quarto, Nimuendaj alin
hara, com esprito metdico, todos os objectos que trouxera, desde livros ao binculo;
nas de Bonifcio, onde avultavam a mquina fotogrfica, rolos de papis brancos, telas
enroladas e uma paleta, os medicamentos da expedio enfileiravam-se como numa farmci
a. Tudo ia ficando em ordem, desde as roupas suspensas nos pregos que serviam de
cabides, s trs espingardas para a caa mida e aos trs rifles para a grossa, dependura
dos no interior, a um lado e outro da porta. E de todas as arrumaes se desprendia
um ar definitivo, sentido de longa permanncia, em contraste com o estado de alma
provisrio dos homens.
As pernas de Cavalcanti tinham desatado a inchar, perdendo a facilidade de movim
entos e mostrando-se insensveis palpao que Bonifcio lhes fazia, de cara sorridente e
palavras optimistas para velar o que pensava.
Nimuendaj foi v-lo e, j fora do barraco, onde ele no pudesse ouvi-los, perguntou a Bo
nifcio:
Ser mesmo ?
. E os dois, ao mesmo tempo, lembraram-se do Soares dos Santos. Por enquanto, o
corao est a reagir bem. Vamos a ver.
Como j no tinham obras requerendo pressa, os homens, quando passavam na alpendrada
, onde o "Mimoso" se encontrava amarrado, acariciavam-lhe mais demoradamente a c
abea e o lombo do que nos dias precedentes; mas o co, em lugar de agradecer-lhes c
om as festas costumeiras, aproveitava-lhes a presena para tentar desenvencilhar-s
e da corda que lhe suprimia a liberdade e nessa forma de protesto, ele, de seu h
abitual to manso, desesperava-se, enfurecia-se, parecia transfigurado.
Em breve o prprio cho ficou livre de obstculos
L
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e as plantas mais humildes, at a duas orelhitas trti" das superfcie da terra, em bus
ca de luz e de espofe*" principiavam a deitar corpo. Os seus impeditivoSfrit" mig
os, os gordos troncos que tanto haviam chupa*fo, o hmus colectivo e o incndio no ti
vera apetite toflflff tante para os devorar inteiramente, j se encastelavai|| tra
nsformados em achas, ao lado da cozinha, agmJj* dando o seu termo definitivo. E
comeou, ento3| sobrar tempo. , JB
Alguns dos homens viviam horas sobre horas <K cartas nas mos: "Corto! Trunfo! Vej
a l, compadtj| Ganhmos!"; outros agrupavam-se distante dali, r" de Jarbas. A princpi
o, apenas trs: o Moacir, o Jtn$jH cio e ele. Depois foram vindo o Raimundo, o Anti
B Rocha, s vezes o prprio Genaro. Era Jarbas qUH mais falava. Ouviam-no, atentos, c
abea baixa ou oHMJp postos nele; e, de quando em quando, lanavam-lB perguntas, mui
tas delas transportando dvidas ou de" cordos. Jamais, porm, o viram alterar a sua
paciridMl que dir-se-ia to dctil como a gua do rio que trafif sitava, pachorrenta, e
m frente deles. Uma tarde ajMB receu o Etelvino. Devolveu-lhe o semanrio paulfflB
| um jornal velho e sujo, com as dobras a desfazereralB| de tanto andar nos bols
os, de tanto ser emprestado'*" e declarou: B
No acredito nisso. Quem que se vai preocupi" com os pobres ? ?J"
Os pobres mesmo respondeu Jarbas, numa v<l" sussurrada, ao mesmo tempo carinhos
a e secreta, corilM se lhe fizesse uma revelao proibida. E com muitcM pormenores l
he explicou as razes por que assim acoap teceria, mais cedo ou mais tarde,
inevitavelmea" Etelvino no tornara a vir durante algum tempo; msJf uma tarde, v
olvera e escutara-o sem intervir. ^
Honrio, melfilo e bom danador, todos os diai a evocar as cabrochas mais faceiras qu
e havia apertadflf nos seus braos, transformara em flautas as tabocaS que cortara
junto da cerca, mesmo ao p do lugS* onde Tanajara se encontrava de vigilncia, e e
mps^ nhava-se em ensinar todos os demais a toc-las. M^s
tendo os discpulos renunciado logo s primeiras experincias, acabara por juntar-se t
ambm ao grupo de Jarbas. E foi nesse perodo que as rvores daquele recanto virgem e
esquecido do Mundo escutaram, pela primeira vez, as aspiraes que residiam na alma
de muitos homens de outras latitudes.
parte Cavalcanti, de doena em desenvolvimento, e dos que faziam sentinela, em tur
nos de quatro horas, como os pilotos de bordo, s Maximiano, entre o pessoal, pare
cia comprazer-se em imaginar novos trabalhos. Mo para todo o pau, movida pela volp
ia de vencer as dificuldades com a sumria ferramenta de que dispunha, mostrava-se
sempre a mais laboriosa de todas, passando os dias sozinho, a carpinteirar no b
arraco menor. E agora dera-se a fabricar cadeiras para substituir os caixotes vaz
ios que serviam de assentos nos quartos, na sala e na alpendrada. J tinha armado
duas, rsticas mas slidas, quando uma tarde Etelvino entrou ali e, depois de ter se
guido os movimentos do seu formo, de repente inquiriu: Que dia hoje ?
Meteram-se os dois a clculos e, havendo desacordo, puseram-se a contar pelos dedo
s, ajudando a memria com a evocao dos sucessos por eles vividos desde a partida de
Trs Casas.
Hoje dezasseis de Abril asseverou, por fim, Maximiano, desferindo a mo sobre a m
utuca que o ferrava na perna.
Dezasseis de Abril? No pode ser! Ento ns estamos aqui s h dezassete dias? Voc tem mesm
o
a certeza?
Maximiano inclinou a cabea.
Todo este tempo e s dezassete dias... tornou a repetir Etelvino, com a voz j a que
brantar-se. A mim me parecia que estvamos aqui h meses. A voc no lhe parece?
Condensou-se, entre os dois homens, uma mudez cooperante. E Etelvino aceitou,
por fim, num torn
dolente:
Ento foi ontem que fez anos o meu irmo mais
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1. W
velho. Tinha-me esquecido. Quarenta e oito... fy^ homem sem amor famlia...
t<$K
Maximiano ouviu-o estender as queixas, aproft. dar-se no desabafo; viu-o depois sa
ir bruscamente, difo, gir-se alpendrada, acariciar o "Mimoso", desamarrfW" e ir va
guear com ele, trela, pelo acampamento, 'luaj^
Ainda a' matutar naquilo, Etelvino passou rented ao cavalete onde Bonifcio, aps ha
ver fotografadoosi| vrios aspectos do Posto, para os arquivos do Serviim de Proteco a
os ndios, entretinha o seu amadoristajlr pintando trechos da mata; e, sempre com
o co^aifii lado, prosseguiu a todo o comprimento da cerca. "A natE assim se devia
chamar irmo? Se devia? ArranjocS! dinheiro mesmo sem sair de Paraba, tinha uma gr
aiidjH| fazenda, podia auxiliar ele e nunca o fizera, no/jM ele estivesse no seu l
ugar, no seria ruim; famlia" havia de fazer sempre um jeitinho. E ele escusava "ta
l andar por ali..." Etelvino olhou a floresta, lembrotwBJf dos Parintintins. E de
sbito veio-lhe uma estranhii simpatia por eles; de sbito e de novo pareceu legitia
w" sua necessidade de afecto, sentida agora, que ningum^ os matasse, mesmo que ti
vesse de arriscar a vida, contra dizia o general. Se no dessem cabo dele, havia d
tm escrever uma carta ao irmo, uma carta a contar tudo* quanto passara, a coragem
que sempre tivera. 'jflffi
Encontrou Genaro e Caroline sentados no rebordo" dum dos bateles, para c do arame
farpado, com drf pernas a balanarem-se lentamente, dois palmos aciraa$j| do cho, e
nquanto discreteavam. Inseriu-se na conversa,!* forjou um a-propsito e desabafou
de novo. Mas GenaMg" com modos desprendidos, ops-lhe imediatamente: fiw
O que tem de acontecer, acontece; se o seacv irmo tiver de fazer algum
a coisa por voc, estejas, descansado, far. Se voc tiver de ser rico, vai sec mes
mo, ningum pode impedir o seu destino. No valea pena se atormentar, que se a rique
za tiver de viiS.* est a, quando voc menos espera. O mesmo com a, morte. O mesmo co
m o medo. No vale nada ter medo."
Bem... Uns pensam assim, outros pensam o con") trrio proferiu Caroline, num torn
neutral, sempre
com aquele seu rosto srio, to srio como se fosse epgono do de Nimuendaj. Voc, outro d
ia, estava a jurar que no teve medo quando mataram o Felcio e o Camargo. Eu tenho
e no tenho medo. Daquela vez, no sinto vergonha de dizer, tive um bocado de medo,
mas no fugi, voc viu. S fiz o que seu Amaro mandou. Se for preciso morrer, morro
mesmo, no deixo de fazer a minha obrigao; mas no tenho vontade de morrer; v
oc tem? E, sinto saudades da minha tapera, l no Maranho, e do meu curumim, que est,
com a av, me esperando. Voc est percebendo, hem?
A cisterna que Etelvino procurava aterrar, com um consolo que lhe parecesse lgico
e slido, continuava aberta. Sentia o "Mimoso" agitar-se de encontro sua perna di
reita e, dentro de si, aquele vcuo povoado de sentimentos obscuros, que s vezes di
r-se-ia terem peso e formas confusas de bichos sados de sob velhas pedras, cruzan
do-se e entrechocando-se como se andassem no ar, levitadamente. Parecia-lhe que
Carolino no acreditava muito nas palavras de Genaro e h poucos dias ele prprio ouv
ira Jarbas chamar-lhes bobagens e sorrir daquilo como se fosse duma criana.
Sempre desconfortado, Etelvino abandonou-os e veio novamente atar o "Mimoso", qu
e tentava escapulir-se, esticando a corda, do local da sua escravido. Na alpendra
da, o Manga Verde remendava as calas. Tinha um cigarro morto no canto da boca e a
s pernas todas nuas metidas debaixo da mesa, que lhe ocultava o sexo. Mal deu pe
la melancolia que travava a cara de Etelvino, comentou:
Voc vem mais triste que soco a dormir no ramo.
Lhe sucedeu alguma coisa?
Etelvino gostou da pergunta. Gostou, naquele momento, que tivessem pena dele, qu
e fraternizassem com ele, naquele momento em que lhe parecia ouvir ainda a voz e
gosta do irmo, que o atirara para a Amaznia: "Trabalhei muito, me custou muito. Tra
balha tu tambm. Tenho os meus deveres, os meus filhos, no posso ser pai de toda a
gente".
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1033
Sentou-se defronte do Manga Verde e, por entrei os ganidos do "Mimoso", que teim
ava em desprender-sei4a amarra, de novo expandiu a velha mofina, inesperada" men
te ressuscitada pela lembrana do dia aniversariai de Chiquinho, o injusto. >y
Manga Verde escutou-o, enquanto ia remendandcf| e, quando ele concluiu, ps-se a f
ilosofar, com um1 ta meio indiferente, meio superior e olhos sempre postds
na costura:
'f
Isso de irmos conversa fiada. Se h um qg# presta, os outros so como se sabe. s vezes
, quandp* no se espera, at um carcamano pode fazer mais d4 que toda a famlia... tT
Etelvino aprovava, baixando a cabea, embora na"! gum jamais houvesse feito coisa a
lguma por ele, receai dava-se disso agora mesmo, com nova tristeza.
Voc me est vendo por aqui e julga que n^fti tenho tambm os meus desgostos, julga qu
e fui sem^j assim. natural. Mas no fui, no. Gerente de lejf, grande, isso sim decl
arou Manga Verde, de sbito" com uma voz interessada e desviando os olhos, finaf m
ente, da agulha e do remendo. )$ ^
Tinha ouvido dizer que voc era criado de bordQl% at vir para c... , J
Fui. Pouco tempo tornou Manga Verde, com*! secura, como se lhe desagradasse aqu
ela interven<&JI Logo, porm, o seu rosto, longo e oval, na boca:fyjf espao vazi
o de trs dentes emigrados da frente, & abriu de novo. , ainda outro dia me estava
a lenfr* brar dessas coisas, quando se falava da loja de sil Lobo, em Trs Casas.
Voc ouviu ? Diferentes as coisas, l mas parecidas. Quando eu era curumim, tambm ha
via uma loja diante da minha casa, em Manaus, mesmo diante, diante. No mercearia,
nem de dono de seringai, no. Loja pequena, de srio, que tinha sido masr cate. Faz
endas, no sei que mais, brinquedos, pouca mercadoria. Havia um tambor pequeno e b
onito, como esse dos brindes. Eu queria ele, Mame no dava dinheiro, no ti
nha, e eu pensava que quando fosse homem tambm havia de ter uma loja. Loja maior.
muita coisa, muitos brinquedos. Pensava, mas duvidava.
Calou-se um instante, olhou ao longe, como se fosse das cristas da floresta que
a sua memria, voando, lhe acudisse melhor:
Aos dezassete anos que fui para criado de bordo. Para o "Japur". Viu algum
dia esse gaiola?
Etelvino hesitou:
H tantos vapores... Mas tenho uma ideia... No era um de cano amarelo, com bar
ra preta?
Um pequeno, que ia para o Purus, para o Juru...
Esse! No era grande como um vaticano, no, mas tambm no era assim nenhuma lancha. Com
ida, muita e boa. Mas ordenado de moleque. Se garantia que os passageiros compen
savam. Compensavam nada. Eles pensam que no tornam a ver o criado e do uma misria.
Os que gostam de dar muito, para mostrar importncia, so os que tm pouco dinheiro. H
avia at coronis que fingiam no me ver quando desembarcavam no seringai. Mas o ruim
a bordo era o copeiro, um vesgo, e mais pior que ele o dispenseiro. Gente sem va
lor. Em terra, nada, nada. Se passa por eles como pelo tronco duma rvore, sem olh
ar. A bordo, uns reis, uns tuxuas para os criados. Um dia, em Itacoatiara, fugi d
o "Japur". Me escondi perto do rio e quando vi ele viajar para Belm, me senti cont
ente. Eu fazia falta; o copeiro e o dispenseiro iam virar jararacas. Quanto ma
is pensava que iam virar jararacas, mais contente ficava mesmo. Quase meio-dia,
os outros dois criados no chegavam para servir o almoo aos passageiros e aos ofi
ciais. E o jantar?
Mas no podiam mandar perseguir voc, depois ?
, se diz que sim. Mas para o dispenseiro um criado s era gente quando fazia falta.
Quem ia perder tempo, andar com falas mansas a incomodar as autoridades, por um
bicho sem importncia ? Se mete outro. H sempre muitos que precisam de comer bem.
Manga Verde calou-se, deteve as mos sobre a costura, sorriu gozoso:
i~
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H tf
Quando o "Japur" desapareceu na curva, cOisfct cei a passear em Itacoatiara. Um c
oronel, dos boi" que vinha doente do seringai, quase a morrer, seriijfctj a toss
ir e a escarrar no cho, me tinha dado ufa|| grossas pelegas quando chegmos a Manau
s. Me dsse "s inteligente, me trataste bem, tiveste pacincia <f santo, limpando as mi
nhas porcarias no camarote, peg l". E me deu duzentos mil-ris. * T
Duzentos mil-ris ? admirou-se Etelvino. -4L Voc no tinha dito que davam pouc
o ou nada ? ' *&
Duzentos repetiu Manga Verde, num tomujiP dignidade. E como visse persistir a
dvida nos olhoiS tristes e largos que o contemplavam, cruzou os dedjS indicadores
e beijou-os rapidamente. Por esta! w| o nico que me deu duzentos mil-ris duma s V*
JH Pensou que ia morrer, para que servia o dinheiro a el4*| Mandei fazer um ter
no novo. Pedi ao alfaiate <OTp fizesse depressa. No outro dia estava pronto.
Eu ]f$ii& sava, as caboclas me olhavam. Vi uma loja com cSjjto rutos. Dos grand
es, dos que fumam os coronis. '"g nunca tinha fumado daqueles. O homem que estafw
f ao balco adivinhei logo que era srio ou turcofWi/ chamou o empregado. Andava pa
ra os fundos da loJ<M demorou. O homem me foi perguntando o que_^|ra que
ria. Lhe disse que queria charutos. "De que marca$$1 tornou a perguntar. "Dos me
lhores", lhe respondi. MpsW trou, comprei trs. Fiquei contente de saber pegar bt"
' no charuto, cortar a ponta nem mais nem menO* acender, soltar fumaa deva
gar, como faziam os outros? ; At me parecia que eu tinha fumado sempre aquihP e q
ue falava com mais jeito, como os doutores d"t* gados. Palpei a barriga: estava n
a mesma. No ver-* dade que os charutos fazem crescer a barriga, cofl$ eu pensava;
a barriga, depois de crescida, que comea a pedir charutos. Levei mais duma hora a
fumar ~& sempre falando com o homem. No era srio, era turcetf No fim, me disse: "
Gostei de conversar com voc. Nfitf conheo muitos moos com tanta inteligncia. Isto aq
di uma sucursal da minha casa de Manaus. Vim inspeccionar. Faz pouco negcio. D te
mpo para falar/
Se quiser, aparea amanh. Gosto de conversar com homens inteligentes. No paga charut
o".
Manga Verde considerou, de relance, a mudez de
Etelvino:
-Voc est a pensar que lorota, que vaidade minha. Pois eu lhe digo que Mustafa, o h
omem, me falou assim mesmo. Ao fim de trs dias j estava convidado para empregado d
ele. No ali, no; coisa melhor. Em Manaus, na casa principal, e bom ordenado. Tinha
uma lancha esperando ele no trapiche. Corria como bala, corria mais que a lanch
a da polcia. Fomos os dois. A loja de Manaus no era pequenina como a do srio, que e
u via em minino. Era maior do que eu havia pensado ter para mim. Loja muito gra
nde, com tudo que um homem pode precisar para vestir, para baile, para beber,
perfume, muito brinquedo, tudo! Fumo da Bahia, do bom, no deste daqui. E at pele
s de raposa para mulheres. Voc sabe? Dessas da Oropa, das fotografias nos jornais
, volta do pescoo, j viu? Negcio tambm de regato. No Purus, no Juru,
noutros rios.
Mas para que queriam as peles com o calor que faz aqui ? perguntou Etelv
ino, voltando atrs,
com voz ingnua.
Manga Verde no respondeu logo. Pareceu muito interessado no seu trabalho. Cuspiu
de lado a ponta do cigarro, prendeu a agulha nos lbios, com a linha branca a desc
er-lhe pelo queixo, quase at o peito. E sobre os fundilhos das calas, estendidos
na mesa, as suas mos comearam a dar sucessivas palmadinhas, que dir-se-iam alegres
e amigveis, como se ele quisesse nivelar carinhosamente as orlas do remendo com
o resto do tecido. Tirou a agulha da boca, deu um n na extremidade da linha e ps-s
e a coser o rasgo existente numa das pernas da cala; e s depois, com ar de piedade
pela ignorncia de Etelvino, disse:
Pele de raposa no s para fazer calor, tambm para fazer bonito. E os portugueses? No
vo muitos portugueses Oropa? Portugueses, brasileiros, judeus, tantos! Estou vend
o que voc no sabe nada
io^,6
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i!*
disso. No admira, nunca viveu na cidade. Nenhuj"
loja de seringai vale nada, comparando com aqueJal
Ergueu a cabea, tomou expresso sobranceira,
falou devagar: II
Pouco tempo... Pouco... S uns dois meses e eu j estava gerente. Mustafa no tinha
confiana noj : chefes dos regates e ia na lancha espiar eles, levafe mercadorias,
fazer contas, l nos rios, no alto, muitt longe. Passava semanas e semanas por aque
las guii^ Eu que mandava tudo. O outro empregado, um tall Catolino, tinha de me o
bedecer como um moleque| Antes de ir, Mustafa me dizia sempre: "Manga, t tenh
o confiana em ti. Trabalha, no sejas preguite quando eu estiver mais velho, te dou
sociedade o" loja. No me roubes nada, porque o mesmo qu&" roubar a ti, no fut
uro". Ele tinha uns sessenta, talvd| mais; e eu perguntava a mim quando era que
ele & pensar que estava velho ? >5j
J fatigada, a ateno de Etelvino deslocavat% muitas vezes dali, perdendo palavra
s, frases inteira!^ durante a ausncia; Manga Verde persistia, porm" ^ agora, eleva
ndo a mo, afirmava: .J
O cofre era mais alto do que eu. E largo, largai assim acrescentou, descerrand
o uns braos magror J de crucificado. Quando Mustafa demorava rnais dum j ms, o din
heiro j no cabia l. Pelegas que nunca, \ acabavam. Eu metia elas numa lata e enterr
ava no "< cho da loja. Cheguei a enterrar, sem o Catolino saben, dez latas das gr
andes, das de bolachas. Quase do tamanho das de querosene...
Luziam-lhe os olhos, humedeciam-se-lhe os lbios, sorrindo ditosamente, como se ti
vesse ali, debaixo da mesa e das pernas nuas e peludas, aquela fortuna subterrnea
.
Etelvino comeara a duvidar. E foi o interesse gerado pelas prprias dvidas, foi o se
ntimento policial de descobrir onde se erguia a verdade e onde o desconsiderava
a mentira, que lhe arrebatou a tristeza e fez esquecer a falta de solidariedade
do irmo. >
Eu no roubava nada e no queria que outro
roubasse. Todos me respeitavam. Lhe parece que fiz
bem?
Tornou Etelvino a aprovar com um movimento de cabea, mas j o Manga Verde abria um
sorriso misterioso e, levando a perna da cala boca, cortava a
linha com os dentes.
Quando eu tinha a uns catorze anos, mais, talvez uns quinze ou dezasseis, antes d
e ser criado no "Japur", uma cafusa bonita, mesmo bonita, ia todas as tardes loja
do srio, no de Mustafa, do srio, essa loja pequena, em frente da minha casa. Se di
zia que eles se juntavam l para as traseiras, mas me parecia impossvel. Como ? Ele
era j velho e ela tinha a minha idade, mais ou menos. Se muito bobo quando no se t
em experincia! Eu ficava minha porta, a ver chegar ela, toda sassariqueira, no co
meo da rua, e ia logo lhe dizer palavras doces, baixinhas. Mas ela fingia que no o
uvia nada, botava ar de desprezo e caminhava mais depressa para a loja. Eu ento m
e via numa loja grande, dando presentes, e pensava que um dia havia de ter caf
usas, mulatas, negras, brancas todas! Foi assim mesmo. Quando era gerente do
Mustafa, cheguei a ter dez ao mesmo tempo...
Dez ao mesmo tempo ? Voltou Etelvino a estranhar, desta feita com voz de mau hu
mor.
r Eu no quero dizer na mesma hora, eu digo no mesmo ms, voc est compreendendo ? Lev
antou as duas mos, juntou os dedos em feixe: Eram assim atrs de mim... Gerente de
loja grande, homem de
futuro...
"No me est respeitando, me est a julgar bobo tambm para acreditar nestas histrias" e
smoa Etelvino, enfadadamente, com um ar agreste onde, at h pouco, exibia humilde e
passiva tristeza.
com um canto do olho diligente, Manga Verde captou depressa a metamorfose. E pon
do de novo em cruz os dedos indicadores, grossos, j com acentuadas gelhas nas art
iculaes, beijou-os e exclamou:
Por esta! No duvide! Veio at da a minha grande desgraa...
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Etelvino ouviu-o dizer "a minha grande desgrfcfm e viu-o sorrir-se ao mesmo temp
o, como se dissujsfe "a minha grande felicidade"; e esse contra-senso-desprazeu-
lhe mais ainda. uda
A mulher de Mustafa, uma branca, tambinri|| queria. Era mais nova do que ele, uns
trinta ano$a| Morava no sobrado, por cima da loja. Mustafa no g" tinha mandado da
r contas a ela do negcio. MaavS dava, quando era coisa grande. Ela me dizia semjs
ijj"T bem, Manga, tu faz tudo bem". E s vezes, qua^nS falava, ia passando a mo dela
, que era peqtieiiiaSl macia no cozinhava, nem nada na costa damia^fc mo. Outras
vezes, descia a escada que havia no fraME sem barulho, como mutuca a andar no d
egrau, e agpf recia de repente na loja. Era sempre quando se^gj que estava l algum
a das minhas cabrochas. Eu com* cei a perceber tudo, mas tinha mulheres a mais,
tiqja tambm brancas, para que fazer aquilo a MustaEft6 Uma tarde, quando subi a f
alar do negcio, ela apap!t> tou o dedo para o lado da cozinha, por causa da crajjp
' e me abraou e me beijou antes de eu falar e a baffll me chupava tanto que at me
parecia que ia desapr recer dentro dela, como o pssaro dentro da jitwjlv4 com aq
uelas provocaes todas que me andava fazeiuit eu j tinha vontade de provar ela tambm;
voc saa" mulher que um homem ainda no provou parece segre pr melhor do que as outras
. Mas pensei em MustqpSn' grande amigo, que me deu a mo, me fizera gerenfc^ e dis
se a ela: "Meu bem, lembre-se do seu marido, ql* bom sujeito". Ela ento tirou os
braos que tMbi volta do meu pescoo e me ficou a olhar, toda, desconfiada, como se
tivesse medo de eu prevenir elpVoltei para a loja; foi o diabo, foi. 'tV
Interrompeu-se, suspirou. E Etelvino, vendo-o tristD como ele prprio estivera h pou
co, j no sabia'no vmente discernir, naquele jogo de sombras e de clatfdades, o que
era verdadeiro e o que era falso, souto(r) e realidade ou tudo misturado ao mesm
o tempo. ^
Que lhe sucedeu ento ?
Que sucedeu ?
De cotovelo sobre a mesa, a agulha entre os dedos mais uma vez fechados. Manga V
erde, seus olhos e a sua voz cansada pareceram regressar de longe, como as prpria
s imagens que ele esboava:
Mustafa andava nos rios altos. Voltou, tornou a ir, tornou a voltar. Uma tarde m
e chamou ao escritrio, l no fundo da loja, e me disse: "Manga, negcio de mulher aca
ba sempre mal. Voc se lembra que eu o preveni em Itacoatiara, antes de querer voc
para empregado? Voc um homem que interessa s mulheres, tem olhos e boca que elas g
ostam, sabe falar quase como um doutor e eu no quero esse negcio em minha casa, lh
e disse. E voc que respondeu ? Respondeu que era verdade, que mulher bicho ruim,
que veio ao mundo para dar cabo dum homem e que at conheceu um srio que tinha uma
loja e perdeu tudo, voltou a mascate, por uma cafusa. Eu podia matar voc ou mand
ar matar voc. No digo com faca ou tiro, como se mata um animal, um porco de casa o
u um caetetu, no. Voc inteligente, honrado, fui seu amigo. Dava muitos presentes s
moas, mas punha tudo na sua conta, vi. Merecia ser morto com categoria e honra, c
om veneno, como se matava aos imperadores e aos califas da minha terra, os tuxuas
de l, voc j ouviu falar deles? Morte boa. Se fica sem ferida e sem sangue. Quem va
i saber? Mas depois pensei que no vale a pena matar um homem, mesmo um amigo trai
dor, um sujo, por uma mulher, pois
mulher h muita".
No estou compreendendo bem...confessou Etelvino. No estou compreendendo nada. Ento
voc no disse que tinha desprezado ela?
Manga Verde fixou-o com um olhar simultaneamente irnico e jubiloso, uns olhos ilu
minados que pareciam falar mais do que a prpria boca:
Disse. Naquele dia foi verdade. Mas no dia seguinte j no foi verdade. Se eu lhe re
sistisse, que ia pensar ela de mini? Me garantiu que no era casada com Mustafa. E
que at lhe fazia um favor viver com ele...
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i flfl
Etelvino regressava curiosidade inicial, quando
tudo ainda lhe parecia verdadeiro: tf
E que fez o turco ? ,fg
Ele me disse: "Voc podia estar amanh no cemi
trio, mas no est, lhe deixo a vida. Vi sua contjt
tem um saldo de vinte mil e duzentos ris. J am
ordem ao Catolino o Catolino era o empregado abaixtjl
de mim para lhe pagar. No quero mandar para Ji
rua, depressa, como um cachorro, a um velho amigcl
que me roubou uma coisa, mas no roubou dinheinB
Lhe dou meia hora para sair, devagar". Eu me queriil
desculpar, ele no deixava. Me tratava por tu ou pun
voc, conforme. "Tu, Manga, pena no saber a lngOT
dos americanos me disse, quando se levantou dJB
cadeira. Pode vir a um novo presidente deles, comfB
esse que o general Rondon acompanhou a caar onaal
Se voc soubesse falar a ele, vendo que muito inteB
ligente, podia contratar voc para secretrio. Vai"
Manga! Te desejo boa sorte. Sai de Manaus, no volteai
a passar nesta rua. Compreendes ? Ests percebendB
bem?" Mustafa subiu para o sobrado e o Catolino mM
pagou o saldo. Se fingia muito triste, o safado; nB
sei se escutou porta, se no, e me foi dizendo: "Teimai
pena de voc ir embora, mas soube, por seu MustafJM
que vai para um emprego melhor. Vai fazer muitH
falta aqui, no h gerente como voc. Seu Mustafa majB
disse tambm que eu no fosse preguia, nem roubass^H
nada a ele, que ele, quando estivesse mais velho, m&m
dava sociedade na loja. Ele me disse essa coisa, mas efiM
sei que no tenho qualidade para ser um gerente boirn|
como voc foi". **
Etelvino no estava satisfeito: "
Mas como que o turco soube que a mulher... l
-Fcil! Ela andava doida por mim. Eu lhe pedis l
que tivesse cuidado e nada, andava sempre cheia l
de cime e de loucura. No sei quem denunciou, no. i
Podia ser a criada, podia ser o Catolino ou as outras, l
que tambm desconfiavam... O meu quarto quarto l
bom, caro mas bom ficava longe da casa de Mus- l
taf; ficava quase ao lado do palcio do governador. ]
Me meti l, sem saber que fazer. Quase noite, veio um carregador portugus, desses d
e corda no ombro, voc sabe ? Me trazia uma carta. Ela me dizia ela a Ambrosinha
do Mustafa que no podia viver sem mim, que nunca conhecera um homem como eu, que
um dia aparecia, agora no, tinha medo que ele lhe desse veneno. E me mandava alg
umas pelegas. Um
conto.
Etelvino, cujas mos jamais haviam estremecido, ao longo de toda a sua vida, sobre
tanto dinheiro duma s vez, arregalou de novo os olhos, meio incrdulo:
Um conto de ris ?
Um conto respondeu Manga Verde, com voz sbria, ligeiro timbre de superioridade e
um ar improvisadamente natural, como se a oferta no lhe interessasse. E me dizi
a na carta que ia mandar mais, no queria que me faltasse nada. Eu peguei no dinhe
iro, meti noutro envelope, colei, lacrei. No escrevi uma palavra a ela, no; escrev
i s o nome e entreguei ao carregador. A cara trigueira do Manga Verde austerizou
-se mais ainda: Nunca vivi custa de mulheres. Dar a elas, gosto; receber, no rec
ebo; no deixo ningum me ofender. Eu estava mesmo piudo comigo por no haver dito a Mu
stafa, quando ele falou em veneno, que eu c no tinha medo de morrer. Coisa boba!'N
aquela hora fiquei mesmo com um medo bruto. com rifle ou com faca, se pode lutar
, ver quem mata primeiro, quem mais valente. Mas ele disse que seria com veneno.
Em veneno, sem ser nas pontas das flechas, veneno em casa, sem ningum saber, nun
ca tinha pensado, no. Assim um homem no se pode defender. pior que receber um tiro
traio. Me parecia que era tudo sombra de curupira, que eu tambm era sombra
e que se matava a sombra de mim; eu caa sem barulho e quando se acendesse a luz j
no havia nada onde eu cara. Besteiras! Estava ouvindo Mustafa e at me parecia que e
u j estava morto. Fiquei contente de ver na carta da Ambrosinha que ela tambm tinh
a medo de morrer com veneno. Mas quando aquilo me passou, eu me senti envergonha
do, at roa
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as unhas, porque medo nunca tive, no tenho; se f<M>, preciso se ver por aqui. >
com o esprito na terra, deserdado de jactncia e de imaginao, Etelvino pergunta
va, humildemenliprtico: ^
E no arranjou outro emprego? <&& De novo Manga Verde trouxe ao rosto um sorris&a
de moderado desdm, enquanto os seus braos se av"$ queavam, como se fossem cerrar-s
e volta dum cest0)# de brindes, destinados aos Parintintins, ou de outisae matria q
ue ele, apenas ele, conhecia e era desprezi^ velmente abundante. nj*
S eu querer! Na rua onde estava a loja do* Mustafa e nas outras perto da loja, h
avia muitos armafe* zns de borracha, de portugueses e de judeus. Me davaKW^ bom o
rdenado, mesmo bom; me conheciam, sabiam date** minha competncia; mas gerentes j t
inham. No quiff-* outro lugar, no. No queria ser ona a virar gate$ ali naquela rua ou
perto. E ento me resolvi. VottdjiS" para criado de bordo. No "Rio Machado", de B
e Levf^ e Companhia. Voc est compreendendo agora? *iP
Etelvino no compreendia: '*1
Criado de bordo no menos que empregadf*" de armazm, na cidade, com bom ordenado ? >
<$'
Pode ser... Mas as minhas cabrochas no sabiaitf^ onde eu andava, no me viam perder
categoria. Andava^* para o Madeira. Numa viagem, quando estvamos d* volta, embarc
ou em Porto Velho um peruano. Vnfaqf* tambm o doutor Bonifcio. Foi l que vi ele a prm
eira vez. Novo, com farda de capito. Um dia, quandto estavam almoando, o peruano c
omeou a discutir com o doutor, que comia em frente dele, perto do comail dante, se
ntado na cabeceira. Dizia que os brasileiros >e at os peruanos mesmo no gostavam d
um patrcio dele, um tal Benjamim Maya, que matara muito" Parintintins. E
le nunca matara nenhum ndio; no serin* gal dele, no Acre, no havia. Mas se os ndios
matavairi os civilizados e os civilizados no matavam eles, se no davam lio, nunca m
ais se tinha paz. Era precisei castigar esses selvagens ou ento deixar as terras
a
eles. Mas no valia de nada deixar as terras, eles no sabiam tirar as riquezas. Se
voltaria ao princpio do Mundo. O doutor Bonifcio no estava de acordo, mas o peruano
era teimoso. Dizia coisas to ruins que at fizeram chorar a viva dum coronel, l no f
im da mesa. Todos os passageiros, menos um sujeito com olhos de boi morrendo,
eram contra ele. Me lembro que eu estava servindo farofa de tartaruga e que p
ensei no veneno de Mustafa. Eu tinha vontade de quebrar mesmo a travessa na cabea
do peruano. Quando ele disse que no defendia o outro por ser seu patrcio, mas por
que um dia todos haviam de dar razo a ele, o doutor Bonifcio respondeu com palavra
s mais duras e olhou para todos, a adivinhar o que pensavam. Olhou tambm para mim
, que estava em p, em frente dele, por detrs do outro, esperando que acabassem a f
arofa, para mudar os pratos. Meus olhos lhe falaram, porque ele me olhou depois
como se j fosse meu amigo. O peruano encabulou mesmo. Foi bom para o doutor Bonifc
io, porque a viva do coronel, que ainda era nova e ficava uma belezinha vestida d
e luto, andou sempre com ele o resto da viagem. No sei como aquilo acabou, a bord
o ningum viu nada. No podia ser ali; em vapor pequeno todos espiam, com inveja, e
tudo proibido. Parece que nos ingleses e nos americanos que um homem pode entrar
vontade, a qualquer hora, no camarote duma senhora ou ela no dele. Gente como d
eve ser. Gente feliz. No "Rio Machado", s eu que consegui, uma vez...
Suspendeu-se, contrariado. Antnio Rocha, com olhos redondos, rosto ossudo, cabelo
s negros, surgira no cunhal do barraco e, aproximando-se, exclamava:
Ah, voc tem agulha! Me h-de emprestar ela. Me caram dois botes da blusa...
Manga Verde no o atendeu logo. Voltou a fixar Etelvino e concluiu apressadamente:
Foi por ouvir o que dizia o doutor Bonifcio naquele dia, que eu resolvi vir com
vocs, quando soube que ele estava em Trs Casas, a aceitar pessoal. E olhe que j me
tinham convidado para dispenseiro!
io44
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nu
Me gostava que Mustafa tambm estivesse aqui, para ver que se no lhe respondi, como
devia ser, quando me despediu, no foi por aquilo que ele ficou pensando, no. Talv
ez um dia lhe escreva uma carta... o
Virou-se, finalmente, para Antnio Rocha: ,) f
Pegue l a agulha. Se sirva vontade, mas nb f a perca. S tenho essa. Pegue tambm a li
nha. i J|
E ficou a visionar, um momento ainda, j desesn peranado, a pequena loja do srio que
existia em frente,; da casa materna e lhe dera, em menino, esse irreali^, zado
sonho de ter uma loja maior, muito maior, de que j fosse proprietrio, gerente pel
o menos, quando chef-j gasse a homem. ,, ^
4:
*-> ]
As longas conversas, as barbas feitas com frequap cia inabitual, as ajudas voluntr
ias a Mariano, quand"! lavava pratos e panelas, as jogatas e outras evagaesfc \ tu
do os saturava j perante aquela infindvel abut- dncia de tempo; e alguns voltaram a t
eimar com mt igarap e com o rio, lanando-lhes tediosamente c*< anzis por cima do a
rame farpado. Juvncio, Moacir^ Genaro, Tito Boludo, eram os mais pertinazes; Rai"
mundo o mais dextro de todos. Voltejava por cima da cabea a sua linha, como um va
queiro o seu lao| _ e de rosto severo, seguindo friamente o voo da isca, arremess
ava-a mais longe do que os outros. Mas a gua desdenhosa respondia-lhes sempre da
mesma maneira, f< enviando-lhes apenas barbados, os seus maiores glutes,
No h-de haver aqui s desta porcaria avensturava Tito Boludo, libertando do anzol a
sua vtima^ atirando-a a terra e esmagando-lhe a cabea, forte e desprezivelmente,
com um dos ps. Se pudssemos ir com a tarrafa por a acima ou abaixo, com certeza se
pegava outro peixe.
Eleutrio desistira de pescar ali, mas aparecia por detrs deles, a seguir-lhes os g
estos, de lbios dilatados por um vago sorriso profissional, com leve ar de indulgn
cia e uma pontinha de superioridade. Tambm ele
no andava satisfeito, apesar de se ter por mestre naquelas caprichosas artes. H do
is dias que se esgueirava, mal vinham as primeiras sombras da noite e se afastav
am as ltimas da madrugada, para a tentao do igap. Somente Genaro sabia dessas surtid
as. Mas at a Genaro ele ocultara haver deitado fora, por vergonha de o trazer par
a o acampamento, to pequeno era ainda, o nico tambaqui que inocentemente abocanhar
a, no espinhei, um dos caroos de tuturub.
Me parece que seu Curt no vai gostar nada quando souber que voc sai daqui. capaz d
e no querer mesmo comer o peixe que voc pegar advertiu-o Genaro.
Eu direi a ele que you de noite, com a luz das estrelas. De noite ndio no anda. E,
c para mim, os ndios j no vm. Nem de noite, nem de dia. Viram todo esse arame com bi
cos e pensam que j no podem fazer nada. Pensam que estamos deixando brindes para e
les virem andando at aqui e ns lhe botarmos bala, como faziam os outros. Foi, com
certeza, por isso, eu lhe digo, que outro dia jogaram as flechas escondidos atrs
do mato. Voc viu algum? No viu. Ningum viu nenhum. No voltam, no. Mas se voltarem, no
agora; s quando as guas baixarem muito e os varadouros estiverem secos... Interro
mpeu-se, sorriu com malcia e logo acrescentou: Para eles fugirem
mais depressa...
Sempre de expresso cordial, discorria serenamente, de modo to convicto e contagian
te, que Genaro comeara a sentir-se menos desgostoso com ele prprio, pelos seus coc
hiles quando estava de sentinela.
O pior no isso continuou Eleutrio. O pior que me parece que o igap tem p
ouco peixe.
Efectivamente, na manh seguinte, tornou a voltar de mos vazias. E quando, mais tar
de, vendo-lhe a cara desprovida de sorriso, Genaro o interrogou, respondeu-lhe c
om uma s palavra, desviando os olhos:
Nada.
Percebeu Genaro que ele tomava a recusa dos tambaquis em se entregarem aos anzis
como um ultraje
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INSTINTO SUPREMO
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pessoal, uma ofensa sua competncia e no insisftj mais. -,'n
Ao quinto dia daquela obstinao, rutilante manh%, sem palmo de nuvem a enodo-la, ao
contrrio do qt" sucedera s mais recentes, Eleutrio no tinha aindtft regressado ao Po
sto quando os outros j se encontr" vam a p e lavados. >m
Ningum deu pela sua ausncia, ningum, neR mesmo Genaro. Desde a concluso do acampament
ali os homens j no se amesendavam ao mesmo tempJi sob a alpendrada, para beber o c
af, irritando assi" a Mariano, que os servia e se mostrava sempre resmin3 go por e
sse atentado contra o horrio. >ijB
Alguns deles acabavam justamente de se sentar J| de levar as chvenas boca quando
chegaram os diaUB primeiros assobios dos vigias. Logo aquela gritaria exaflB tad
a. Ergueram as cabeas, como se quisessem escuta"K um pouco mais ainda; depois ent
reolharam-se, siteriH ciosamente, com um sorriso dbio parado nos cantMB dos lbios.
Tomaram devagar o caf, naqueles instante^ breves e suspensos, longos, longos, lo
ngos; e quand" Nimuendaj rompeu apressadamente l de dentro,1*! mo esquerda cheia de
colares pendentes, o braalj direito empurrando Bonifcio e Amaro para trs, aind"l T
ito Boludo passeava, com ostensiva tranquilidade, ^m ponta da lngua sobre o beio s
uperior, como se dali buscasse, gulosa, a ltima lembrana do acar. m$
Foram com o etnlogo para a esquina do barracof e ficaram a observar a folhagem esp
essa, de onde bnfe-| tavam aqueles gritos, que pareciam apenas jubiloso?, * sem
clera alguma a entremear-se, ao contrrio do qvf sucedera na primeira arremetida. A
inda desta vez no se enxergava ningum. Dir-se-ia ser a prpria floresta que regougav
a um prazer delirante, num ritual escondido e demonaco. Nenhuma flecha voava tambm
<fe l e era isso, principalmente, que os surpreendia e intrigava.
Nimuendaj abandonou a proteco da casa, deu trs ou quatro passos em frente, agitando
no ar os colares:
Irmos, no queremos fazer-vos mal!
Genaro pusera-se ao seu lado. E alguns dos outros homens, com Raimundo dianteira
, desobedecendo aos gestos dele, para que no se aglomerassem, tornando-se alvo fci
l, iam-se acercando tambm.
Estamos aqui como vossos irmos e trazemos muitos presentes para vocs gritou Nimue
ndaj, com a maior fora da sua voz.
Mesmo que compreendessem a lngua geral, em que lhes falava, sua grande esperana de
fraternizao, no deviam t-lo ouvido, porque mal o seu vulto surgira, indefeso sobre
o campo descoberto, a berraria que faziam redobrara. Mas ainda desta vez n
enhuma flecha sara da mata. A folhagem cerrada, at a muito quieta, comeara, porm, a e
stremecer, de leve, to de leve como se um pssaro somente houvesse pousado num dos
ramos. Depois os homens viram-na agitar-se, abrir-se um pouco e por ela passar a
quela massa confusa, meio escura, meio avermelhada, de linhas empastadas, to mal
definidas que primeira vista mais parecia, assim na ponta de comprida vara, um b
rinco de carnaval do que cabea humana decepada.
Sentindo o pressentimento a roe-lo, Genaro olhara, hesitara, tornou a olhar e, p
or fim, exclamou com voz
alucinada:
o Eleutrio! Mataram o Eleutrio! Ento os homens vieram todos para ali. De braos ergui
dos, punhos fechados, uns protestavam, gritando tambm; outros, muito silenciosos,
mordiam os lbios e dir-se-ia quererem fuzilar a brenha com os olhos sinistrament
e fixos.
Nimuendaj tentou ainda um gesto de acalmia, de que ele prprio precisava; o movimen
to da sua mo saiu-lhe, porm, sem autoridade. Alguns dos homens abalavam, desaparec
iam no interior do barraco, volviam com o ar de no saberem que deciso tomar, enquan
to a vara, apoiada agora sobre o fio de arame mais altaneiro, ia rolando vagaros
amente a cabea ensanguentada de Eleutrio, como se utilizasse uma manivela algum que
na folhagem se ocultava.
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No faam isso! No vem que deitam tudo a! perder ?
Nimuendaj voltou-se. Era Bonifcio que impedia^, porta do barraco, que Tito Boludo e
Dorival sassem* com dois rifles. {&
Me permita, seu doutor, mas isto assim no foi* combinado. Eu sei onde est um, esse
safado que rolj| a cabea, e bala certa para castigar ele dizia Dorii" vai, com
grande excitao. *4
Amaro interveio tambm e Nimuendaj viu-o tiraiffi -lhes as armas. jp
A gritaria durou algum tempo ainda, por fim interna rompeu-se um instante. A cab
ea desaparecera. Mal logo aquele vozear de regozijo recomeou e prosseguia"* pela fl
oresta adentro mais longe cada vez. >if|[
Ao ouvir os passos de Bonifcio, lentos no corredoflfJ do barraco, Cavalcanti, com vo
z lassa de febre, perfj, guntou da sua rede, onde curtia o beribri: f'
Que foi, seu doutor ? Os ndios voltaram ? ^| Bonifcio assomou porta do dormi
trio: ,/i*
Voltaram, mas no jogaram nenhuma flechatf V Nenhuma! Vieram s para nos meter
medo e j foran^* para a maloca. '*!
L fora, os homens regressavam alpendrada, vagaiff? rosos, calados, os braos tomban
do ao longo do corptfi^; S Tito Boludo, arrimado a um dos esteios, com os1} olhos
bogalhudos e a boca meio babada pela clera, se mostrava ainda insurgente: >
Porque no, se so bandidos mesmo ? E ns aqui sem poder fazer nada! Se eu adivinhass
e esta coisa* no tinha vindo!
Ningum despejara outro comentrio, mas aquele silncio dos homens, rubro como uma lmin
a na forja^ considerou-o Nimuendaj mais nocivo do que as p* lavras.
Genaro, que parecia de cera, alto, magro e amarelado, no chegara mesmo a sentar-s
e. Passou as costas, da mo pelos olhos e props a Honrio, com voz a amorrinhar-se-lh
e na garganta:
Vamos busc-lo ? E s depois de dizer aquilo,
olhou interrogativamente para Nimuendaj, que lhe respondeu com um sinal de conco
rdncia.
Eu you tambm.
Eu tambm.
Eu tambm.
Como todos queriam ir, o etnlogo cortou-lhes prudentemente a deciso:
Bastam trs ou quatro.
Genaro encarou Honrio, Jarbas e Antnio Rocha:
Vocs, t bem ?
Foram encontr-lo estendido no declive que ia findar, suavemente, junto do igap. Es
tava de peito para o ar, as pernas abertas em ngulo, os ps beirando a gua. Tinha as
calas arregaadas at os joelhos e, acima dos ombros, s se via uma pasta de terra e d
e folhas secas, ligadas por uma espcie de cola grossa, esponjosa e vermelha, hmida
ainda. Dir-se-ia um grande boneco, destroado por crianas, filhas de gigantes.
Em frente dele, a corda do espinhei, que tantas humilhaes secretas lhe produzira n
os ltimos dias, com os seus anzis sempre desabitados, estremecia agora ao l
ume da gua, puxada pelas vidas que aprisionara. Trs tambaquis de alentado porte co
mearam a debater-se em terra, bocas e guelras sangrando sobre os corpos prateados
, logo que os retiraram do igap. Honrio visionou Mariano, de faca em punho, a aman
h-los na cozinha; entreviu os outros homens e ele mesmo a com-los e pareceu-lhe im
possvel que o pudessem fazer sem angstia. Seria como se mastigassem e engolissem a
s prprias recordaes de Eleutrio. Olhou de novo aquela prata ainda viva, a lutar dese
speradamente com a asfixia; fitou a Jarbas e a Genaro e, convencido do seu mudo
acordo, principiou a devolver gua os trs grandes peixes, cuidadosamente, quase res
peitosamente, para no mago-los mais.
Pegaram no companheiro morto, um pelas pernas, outro pelos braos e partiram. Jar
bas e Antnio Rocha ora iam frente, a quebrar os ramos, facilitando o caminho, ora
a revezar os outros.
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Honrio tornou a pensar que poderia haver tfe* ndios ocultos, espiando-os, para atac
arem em segui^S como era de seu hbito; admitiu essa possibilidadfjJt mas encolheu
os ombros. Os outros avanavam cor3| se nunca tivessem existido ndios. Sentiam uma
coraM gem reforada e austera, como se aquela morte Iheff desse nova fora moral so
bre os Parintintins e os seu" vagens o percebessem nitidamente; as suas prpriaR v
idas lhes pareciam agora desvalorizadas. j"
Junto das mercadorias, no barraco menor, Maxffl| miano preparava j as tbuas quando
eles chegaram* Devagar o fazia, como que abstractamente, nada dj|I zendo quando
os viu entrar. Lanou apenas os olh||| de lado ao vulto que transportavam, depois tb
uni que tinha sobre o banco; e decerto ficou tranqu^B quanto s medidas calculadas
, porque prosseguira seu trabalho, sempre calado.
Raimundo, que os vira de longe, chegara tamb^B a correr, trazendo um lenol nas mos.
Pouco depcuwi, Maximiano ficava de novo sozinho, com aquele tecidlP branco dist
endido sua esquerda, a insinuar, pelgfi relevos, as formas que ele no queria ver. O
s outr$| J caminharam para Nimuendaj, sentado ao ar livre,jjji cadeira encostada a
o barraco maior. Tinha as pern$#J| cruzadas, o caderno de apontamentos sobre o jo
elho"]! a cara erguida para os homens que se aglomeravail na sua frente. 11 *
Carolino, que acabava de ser rendido no posto tift * vigilncia pelo Manga Verde,
dizia-lhe:
Ainda vi uns quatro. Vi mal a eles, por causs das folhas. Havia mais, com certez
a, mas me parece^ que no muitos. Calculo uns oito ou dez. >
Eram moos os que viu, ? i
Todos muito moos.
Nimuendaj baixou reflexivamente a cabea, sei& explicar porque fizera aquela pergun
ta. Entretanto, voara at ali o rudo das primeiras marteladas que Maximiano dava, a
o longe. pequeno calor de curiosidade que o silncio do etnlogo acendera nos homens
dir-se-ia ter gelado de repente. S o martelo do car-
pinteiro parecia comandar agora aquela mudez, os rostos imveis e inclinados para
o cho. Por fim, dirigindo-se a Amaro, Nimuendaj proferiu lentamente:
Uma canoa vai voltar j a subir o rio. Se eles levaram os brindes, ponham l outros.
.. Depois ir para o lado de baixo fazer a mesma coisa.
Tito Boludo, de corpo quase oculto pelos ombros de Antnio Rocha e de Juvncio, romp
eu por entre eles, com voz rancorosa:
Mais brindes ainda para esses bandidos ?
Dorival apoiou-o:
Mais brindes, seu Curt ?
Os homens animaram, finalmente, as caras, perante aquele germe de disputa. Nimue
ndaj teve um gesto de pacincia e respondeu de modo seco:
Os brindes so as nicas armas de que podemos dispor. Vocs dois no compreenderam ainda
, ? S eles podem salvar as nossas vidas. E esta manh no deve haver perigo, creio eu
. Os ndios vo agora, provavelmente, a caminho da maloca, para festejar a morte
de Eleutrio. Pousou um olhar severo sobre Tito Boludo, depois sobre Dorival, e a
centuou, mais secamente ainda: Mas est bem. Vocs ficam dispensados de todo o serv
io. Recebem na mesma, enquanto estiverem aqui, mas dispenso o vosso trabalho.
A Tanajara pareceu justa aquela deciso; dava-lhe mesmo um imprevisto e inoportuno
prazer. Mas j
Tito Boludo dizia:
No si, eu quero ir. No por medo que falo. Mas pensar que aqueles selvagens... Eleutr
io era mesmo
um homem bom.
Os outros mantinham-se silenciosos, como se estivessem de novo mais atentos s mar
teladas que soavam ao longe do que s palavras derramadas junto deles. Somente Jar
bas interferia, dirigindo-se a todos:
J uma vez disse ao Tito que os ndios no tm culpa de ser selvagens. Nenhuma culpa.
No tm, no aprovou Tanajara.
Ento quem a tem ? Somos ns ? Ou so vocs ?
A voz de Dorival era dura, acompanhada dum olhar
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(i'
* ,1,
agressivo para os dois. Se fique sabendo que eu aft como o Tito: medo no tenho!
E tambm quero^" Mas o meu desejo... o meu desejo era fazer a esj3i bichos o mesmo
que eles fizeram ao Eleutrio. ^^K Quase to franzino como Moacir, com as mac&.BK
rosto muito salientes e a tez brnzea, Tanajara, dfjjm cendente de ndios do Maranho,
voltara a lembrar-^B do tempo em que o av lhe contava histrias vind|S| de longe,
atravs de vrias geraes da tribo, sobreesjBf vicissitudes sofridas pelos seus ancestr
ais, em fazendaB de portugueses e de holandeses, nos tempos agrilhoad|nP da escr
avatura. "Se eu j fosse homem e estivesse li* vov, matava eles". Um fervor infantil
e a nsia 'AB vingar os da sua raa, j ento a apagar-se por sucjfi sivos cruzamentos,
o exaltavam. Os ndios parecia" -lhe sagrados. Mas os holandeses haviam partido SB
muito e dos portugueses s conhecia um. Era, na Q8$JK mares maranhense, o da merce
aria onde os paisaB mandavam, de quando em quando, por pequenas coraB pras, quas
e sempre a crdito: "Para botar no li\LuJ| O portugus franzia a testa, s vezes mesmo
declaraiiB que no venderia mais nada fiado, nem mais um cha*)j|j| enquanto no pag
assem o que lhe deviam. TanajaJB olhava aquele corpo muito branco, de ventre j aba
wH lado, mangas arregaadas, os braos peludos, a bad^B por fazer. E pensava: "Um di
a... Um dia, roubo rniilH espingarda e venho..." Mas, aos doze anos, os psjj
H entregaram-no a uma famlia abastada, a do Dr. MlJB randa, residente em S. Lus, p
ara substituir o molequjB que fugira. O merceeiro que a fornecia era tamblSB por
tugus; parecia-lhe at que ser portugus e ser rnenB ceeiro era a mesma coisa, tanto
os encontrava amalga*B mados por toda a parte onde ia. A famlia compraWK muito, p
agava bem, e seu Manuel Galego, pensando^ que os domsticos podem influir nos patre
s, at 1^(r)* dava rebuados ou bolachas uma vez por semana. Mais H tarde ouvira diz
er que havia portugueses e holandeses" "| muito diferentes uns dos outros e que
naqueles tempos | os costumes ainda eram piores do que os de agora. | Tambm o dep
utado federal, quando jantara em casa f
do Dr. Miranda, falara de alguns tapuias que caavam ndios de outras tribos e iam v
end-los aos feitores da Holanda e de Portugal, para serem escravos. E se nin
gum lhos comprava, matavam-nos e comiam-nos, saboreando-os como se fosse veado ou
anta. Uma das senhoras que estavam mesa gritara: " mesmo verdade? Que horror!" E
nto o deputado desprendera o guardanapo do pescoo e, enquanto o dobrava, dissera,
muito srio: "Tirar um homem ao domnio da Natureza, custa bastante. Mas alguns l vo
saindo, com a ajuda de outros ou por seus ps!" No compreendera aquelas palavras, s
empre recordadas por esse seu prprio mistrio. S h poucos dias Jarbas lhas explicara,
mas ele no estava certo se era aquilo mesmo que o doutor deputado queria dizer.
O marano de seu Manuel Galego tambm viera de Portugal, com a mesma idade dele e ai
nda mais humilde. Quando as compras eram pesadas, saco de feijo, saco de batata,
outros comestveis, ia levar-lhas a casa, pelas ladeiras acima, aquelas ladeiras m
uito inclinadas de que havia tantas em S. Lus e lhe faziam o suor pingar da testa
. Ele, s vezes, auxiliava-o e o Zeca falava de coisas tristes, sofridas antes de
sair de Portugal, e dos pontaps, cascudos e bofetadas que o patro lhe dava, depois
de estar na mercearia. Ouvindo-o," parecia-lhe que as vidas dos dois eram semel
hantes, ambos a servirem os outros, ambos temperados ao fogo das mesmas humilhaes,
porque a ele tambm a cozinheira e o filho mais velho de seu doutor Miranda o esb
ofeteavam de quando em quando. Alguns dias, o Zeca ocultava, nos bolsos, pequena
s barras de chocolate, que lhe oferecia; e fora essa amizade com o pequeno marano
, de unhas sujas e olhos melanclicos, que lhe atenuara o ressentimento contra a r
aa a que ele pertencia.
"Eu quero ir". Recordava-se bem desse momento em que duvidava de ser aprovado pe
lo doutor Bonifcio, assim magricelas como era. As ideias que Rondon espargia havi
am-lhe reavivado, posto que de maneira diferente, o velho lume amortecido. A ali
ana estabe-
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lecera-se. Rondon descendia de portugueses, de eSpafet nhis e de ndios guanas, ter
enas e borors. O heroslaafr,, dos dez anos, que deveria realizar-se num dia aidH* d
istante e obscuro como o de todas as largas prorroga coes, metamorfoseara-se, tor
nando-se claro, adquirira'jfflUf sentido das datas e conscincia; j no seria de viwt
* gana, mas de remio. Bonifcio examinara-o e diste ser: "Pode ir". u*$
Agora, perante aquela morte, Tanajara sentia-s" desamparado por si prprio. Nenhum
tronco, nenhumif parede slida, a que se arrimasse com segurana, ne" nhuma regra a
orientar-lhe aquele grande desejo q,,, falar mas de falar certo. O tempo havia t
ransfcm&r mado os ndios de que ele descendia numa verdadenjfe* muito longnqua, que
o prprio av s conhecia pOfM tradio, ao passo que Eleutrio era seu amigo, lirna' real
ade presente e viva, mais viva e mais presence-* ainda depois de estar morto. Ta
najara teimava ewb separar-se do conflito que sentia nos outros, aquet1" mal-estar
que a ele tambm deteriorava e no o con", seguia inteiramente. Os raciocnios que i
a encadeancfeWi pareciam-lhe sempre confusos, desconexos, pouco ade*> rentes ao
instante que ele suportava, s prprias razeS* que o consumiam. E foi com a sensao de q
ue nS dizia exactamente o que desejava dizer, que, por mfdisse: 'f"1
E esses que l pr Europa enforcavam as pesH-* soas e deixavam elas pendurad
as para os outrofe ver ? "J
Os homens ouviram-no falar assim, isoladamente^ e quedaram-se indiferentes como
se no o tivesses" ouvido; somente Jarbas, Nimuendaj e Bonifcio et" gueram um breve
olhar para Tanajara, um olhar que logo baixaram, discretamente. Jarbas sabia que
era por influncia dele.
Entretanto, Nimuendaj brigava consigo mesmo, com a sua piedade e o seu despeito,
por lhe terem desobedecido mais uma vez: "Recomendara ao caboclo que no voltasse
ao igap e o caboclo voltara. Mas agora, ao contrrio do que sucedera com Amaro, ta
lvez
ele prprio tivesse alguma responsabilidade no caso", pensou, sempre enervado. "No
fora suficientemente enrgico quando soubera das idas de Eleutrio ao igap. Desde qu
e convivia com Bonifcio, andava amolecendo, cada dia a transigir mais, j dera por
isso. No queria que o pessoal o tomasse por menos complacente do que o mdico, meno
s at do que Amaro, e na noite dos primeiros tambaquis tinha sido demasiado brando
. Era evidente que os homens haviam perdido aquela simpatia tolerante pelos Pari
ntintins, aquela compreenso dos seus costumes brbaros, das suas reaces ferozes, que
era necessrio ter. E isso acontecia precisamente quando abordavam os dias
mais perigosos, precisamente quando se tornava indispensvel uma unidade
psquica entre todos eles, quaisquer que fossem as circunstncias. Parecia at que o
respeitavam menos agora, muito menos, como se a morte de Eleutrio houvesse estabe
lecido o mesmo nvel para todos, rasando as hierarquias, transcendendo tudo. Ele p
rprio j no sabia como cingir os outros ordem que dera, como manter a sua autoridade
sem criar novos marulhos entre os homens, os marulhos silentes os mais danosos
de todos".
Encontrou os olhos dedicados de Raimundo, esse aumento de fora que ele sentia qua
ndo o tinha a seu
lado e decidiu-se:
Vai voc, com os que foram da ltima vez. Diga ao Mariano que lhes arranje uma bia, p
ara comerem no caminho. Para os lados onde eles desapareceram, irei eu. Quero ve
r se levaram ou no os brindes que l deixei. A voz comoveu-se-lhe: Mas antes diss
o vamos enterrar o nosso amigo.
Bonifcio viu-o passar a mo, repetidamente, sobre o bigode, apertando de quando em
quando o lbio entre os dedos, como se castigasse as variantes da sua batalha ntima
, antes de tornar a falar:
Foi uma grande crueldade, no h dvida. Mas, quando viemos, j sabamos que eles eram ass
im. E foi por isso mesmo que viemos. No estamos aqui pelo que eles so, mas pelo qu
e podem vir a ser. O que
.J
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S 'j Jrl
sucedeu ao Eleutrio, no haveria acontecido se ele tivesse feito caso do que eu lh
e disse. . ,lf
Ao lado de Nimuendaj, as costas apoiando-se na parede do barraco, Bonifcio pressent
ia tambm crise que a maioria dos homens sofria e decidiu intervir:
No temos de modificar em nada o nosso corq> portamento disse-lhes. Devemos pens
ar que tudo isto selvagem: os Parintintins, esta mata que nos cerca e a vida que
levamos aqui. S as nossas ideias so civilizadas e podemos sentir-nos contentes de
as termos. Nos estamos superando, compreendem?
Pareceu-lhe, pelo olhar incerto de alguns, que as suas palavras no eram rapidamen
te entendidas e prof curou esclarec-los e influenci-los com uma evocap que a ele mes
mo, de quando em quando, ainda aqueciat
Conheo um caso bonito. Mesmo bonito. Uraa tarde, Rondon ia a cavalo por um varado
uro, quando sentiu alguma coisa passar-lhe por detrs da cabeal Ele me disse ter ju
lgado, a princpio, que fora um pssaro. Mas aquilo se repetiu. Dois nhambiquaras
estaf vam a flech-lo de entre as rvores. Eram flechas envenenadas e uma del
as, por pouco, no o atingia. Essa est agora no Museu Nacional do Rio de Janeiro; u
ma relquia. Que fez ele? Tirou a carabina do ombro ali ns andvamos sempre armados,
por causa da caa e, quando os Nhambiquaras iam jogar maio flechas, deu dois tir
os para o ar. Os ndios fugiram, mas viram perfeitamente que Rondon no quisera atir
ar sobre eles e isso era o principal. Assim que chegou ao acampamento, ele nos
contou o que lhe havia suce*- dido. Os homens que estavam ali eram todos militar
est oficiais e soldados, que andavam a construir a linha telegrfica nos sertes. E
h muitos militares que tm umas ideias esquisitas, no sei se vocs sabem. Para eles, u
ma espada no um bocado de ao, como para as outras pessoas; uma coisa que tem honra
, que tem orgulho e s vezes at lhes parece que tem alma superior dos homens. Pensa
m assim, que havemos de fazer ? Os que estavam ali eram uns valentes, tinham amo
r pelos ndios e ideias mais modernas. Estive l,
posso garantir. Mas um capito e um aspirante, chegados h pouco, diziam que seria u
ma vergonha para o exrcito se no castigssemos os Nhambiquaras. Diziam que se os ndio
s no tivessem medo de ns, at poderiam dificultar, com os seus ataques, a abertura d
a picada que andvamos fazendo.
Bonifcio hesitou. Parecia-lhe agora que estava a degradar o episdio, a sua prpria s
ubstncia, narrando-o puerilmente, por ouvir ao mesmo tempo as marteladas que Maxi
miano continuava a dar ao longe.
E, depois, que aconteceu ? perguntou Honrio.
Bem... O Rondon levantou a cabea e respondeu-lhes : "Meus senhores, quem represen
ta aqui o exrcito sou eu. E o exrcito no veio aqui para fazer guerras. A do Paragua
i j acabou h muito, esto compreendendo ? No viemos para matar ningum. Mas, por enquan
to, os Nhambiquaras no sabem que a nossa misso de paz. Ora se esta terra f
osse vossa e algum viesse roub-la e ainda por cima vos desse tiros, o que que
os senhores fariam, apesar de civilizados?"
Bonifcio interrompeu-se e logo acrescentou, voltando-se para Tito Boludo e Doriva
l:
Ningum, nem mesmo aqueles que tinham pedido castigos, por causa da honra militar,
levantou a voz. Ento ele disse-lhes: "Vamos j fazer um girau no stio onde os dois
nhambiquaras me atacaram e cobrir o girau com brindes. Cada um de ns leva para l u
m presente pessoal, qualquer coisa que no lhe faa muita falta". Rondon disse aquil
o e todos, depois de pensar um bocado, todos, at o capito e o aspirante, oferecera
m alguma coisa. Pacificmos aqueles ndios, que tambm eram muito ferozes.
Continuaram calados os homens. Pareceu-lhe, porm, que comeava a reflutuar a adeso n
aufragada nessa manh. S Tito Boludo reagia:
Mas seu Rondon foi sapecando dois tiros, hem ? O primeiro sorriso, depois da mor
te de Eleutrio, surgiu no rosto de alguns dos homens. Jarbas protestava :
34-Vol. Ill
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O INSTINTO SUPREMO
O doutor j explicou que eles perceberam qtij no era para matar. Quem sabe se no fo
i mesia^ til ter acontecido aquilo ? Os ndios podem at s(r)- i melhores pessoas do
que estamos julgando. Podem SB" bons entre eles, gostarem dos pais, das mulhere
s e dom filhos. Esto habituados ideia de se defender de nlw de atacar e de matar;
o que preciso tirar essa ideia" a eles. >
Os homens articulavam novos comentrios e adrvd" nhavam, como se estivessem a v-las
, quando as cabil" as dos pregos atingiam a superfcie das tbuas. Aim marteladas tor
navam-se, ento, mais copiosas e ma" rpidas; tuntum, tuntum, tuntum... &
Ao observ-los, ainda perturbados pela rotura cf" pacto entre o instinto de conserv
ao e a ideia dim solidariedade que os governara at h pouco, Bo^H fcio sentiu uma sbita
ternura por eles. Os misss nrios, que haviam empreendido outrora a catequefl| de vr
ias tribos, em terras ainda quase virgens, co&JB tavam com uma recompensa metafsi
ca, prdiga '-if eterna, pelos sacrifcios que faziam, ao passo que d M homens ali reu
nidos agiam apenas sob o efeito duma l ideia civil, sem prmio algum prometido. E
at l orgulho dos seus feitos, no caso de virem a t-lo, no p excederia a orla domstic
a e fatigaria os prprios ami1- ^ gos, se os ouvissem narrar a aventura mais duma
v. f
Amaro viera de dentro do barraco, pusera-se eitt frente de Nimuendaj, apontando o
grupo de arbustos e plantas que cresciam entre as rvores, onde os Parinr tintins
se haviam escondido, com tanta opacidade e to eficazmente como ao abrigo de uma f
ortaleza.
No lhe parece que seria melhor roar aquilo ?
J tinha pensado nisso assentiu Nimuendaj, metendo o caderno no bolso, certo de qu
e s no isolamento do seu quarto poderia anotar convenientemente os eventos dessa
manh. J tinha pensado, mas no se deve roar muito. Uns seis ou sete metros apenas, p
ara o interior. Precisamos de ter contactos com eles e eles no vo certamente apres
entar-se frente a frente se no puderem esconder-se depressa.
O INSTINTO SUPREMO K>59
Amaro olhou para Moacir, Tanajara e Etelvino e
disse-lhes:
Iremos l depois do almoo. Agora vamos abrir
a cova.
Eu quero ir com voc. E eu tambm declararam Tito Boludo e Dorival, um a seguir ao
outro.
VIII
"JIO-DE ir todos ao meu baile... Ho-de ir todos ao meu baile de cem pessoas..." A
alguns parecia ainda ouvirem aquilo, dentro deles, de quando em quando; e todos
evitavam olhar para o lado do ngulo que a cerca formava, l adiante, beira do rio.
Quanto mais afiava os seus raciocnios, mais Nimuendaj se convencia de que a grande
reaco dos Parintintins se estava incubando ainda. As duas surtidas j realizadas
proviriam somente de pequenos bandos, grupos de jovens quentes, decididos pe
la idade, porventura margem do prprio tuxua ou por ordem dele computando as defesa
s dos civilizados; e haviam-no feito como se os tivessem despido e de sbito encos
tado aos corpos nus as pontas das flechas, para suputar a intensidade dos seus e
stremecimentos.
O doutor Bonifcio pensa que devamos ficar todos aqui at vir o grande ataque. Sabend
o que ramos muitos, talvez os Parintintins nos respeitassem mais disse Nimuendaj
ao pessoal, antes de se levantarem da mesa onde tinham almoado, no dia seguinte m
orte de Eleutrio. Por isso no mandei ainda para Trs Casas, como havia dito, aquele
s que j no fossem precisos, depois de construdo o Posto. Mas o ataque est a demorar.
Ele vir, com certeza; quando, no sei. E, como depois de amanh a lua est boa para a
viagem, quem quiser partir que o diga.
Quedaram-se alguns dos homens com os cigarros a consumir-se entre os dedos, quan
do iam met-los na
IOO
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
IOI
boca; outros entreolharam-se, surpreendidos, no silncio que de repente sobreviera
. "tjj Nimuendaj acrescentou, pausadamente: r
Quantos mais ficarem, mais vidas estaro ecjl perigo, sobretudo se no respeitare
m as ordens, coro(r)* fez o Eleutrio. a"
Eu quero ficar! Era Dorival quem falava, coiflf voz resoluta, e todos os outros
o imitaram, salvo Tit" Boludo, que se quedara, com olhos considerativos, jm rola
r entre o polegar e o indicador um gro de farinhi de gua, cado da tigela.
Eu tambm quero ouviram-no declarar por finjA
claro que aqueles que no forem necessrnpj" no podem ficar sempre aqui. Temos de eco
nomiza!" os mantimentos, pois cercados como estamos e cojfi tanta gente a comer,
depressa acabariam. PrecisamSj!* tambm de ter comunicaes com Trs Casas, logo qtfW for
possvel. - Nimuendaj interrompeu-se um ins** tante, olhando circularmente
para os homens: ^*1 no penso que so valentes s aqueles que ncaronff^ Para ir a Trs
Casas e voltar, tambm precise corai* ; gem, j todos o sabem. id f
Iremos l depois de eles virem nos visitar...-^.^ volveu Dorival. E mudez de algun
s e expressa^'1 irnica dos outros, tomou-as Nimuendaj por um acorct * geral, que el
e esperava. 5
Foi um grande castigo que dei a mini prprio disse Bonifcio, sorrindo, quando os ho
mens se afastaram.
Que castigo ?
Dizer-lhe que, por enquanto, seria melhor ficarem todos aqui, quando a verdade q
ue estou ansioso de ter e de mandar notcias minha mulher.
Nimuendaj no comentou logo. Parecia sondar a si mesmo.
Eu tambm pronunciou depois. Voc est arrependido de ter vindo ?
No. No, de maneira alguma! A causa justa e vale muito mais do que o meu interesse
pessoal. Mas tenho imensas saudades de minha mulher.
Os dias longos de expectativa, ante a verde quietude da brenha, com o cio amoleng
ando os homens e excitando-lhes a imaginao, recomearam. Recomeou aquela impacincia, s
empre mais forte, de cada qual se defrontar consigo mesmo ao defrontar-se com os
Parintintins, aquela impacincia que jamais se esclarecia completamente e que o S
ol encontrava todas as manhs, ao surgir por cima da floresta, .e todas as tardes
deixava, madura, mas intacta, quando desaparecia da outra banda, depois de haver
traado sobre o acampamento o seu arco resplandecente.
Me parece que voltei a ser menino: o tempo no passa mais queixou-se, uma tarde,
Aristeu, abrindo os braos e espreguiando-se, aps se ter levantado da mesa onde joga
vam.
Aparentemente, o que mais os enfadava e lhes criava aquele tdio mole e verde como
os limos, sobre os quais passava uma gua que parecia sempre igual e ia, contudo,
aumentando-os sempre, um tdio que se exprimia em repetidos bocejos, s vezes to alt
os, ressonantes e prolongados como os gritos matinais dos guaribas, era a aco de v
igilncia, repartida entre quase todos eles e de tal maneira desprazvel que os fazi
a olvidar at, por largos momentos, a sua suprema razo de ser.
Nimuendaj metia-se no quarto, com os cadernos de apontamentos abertos diante dele
, e redigia longos relatrios, fortemente cevados de pormenores; escrevia artigos
para as revistas onde colaborava e cartas a seguir a cartas, que os homens dispe
nsveis levariam quando fossem a Trs Casas e que os amigos, a quem as endereava, na
Europa, nos Estados Unidos, no prprio Sul do Brasil, s receberiam muito tempo depo
is, sem nenhuma ideia exacta sobre o crcere vegetal de onde elas tinham sado.
Tambm Bonifcio se isolava grande parte das manhs, entregue confisso das reaces nele
ovocadas pelo ambiente em que vivia e pelo que em seu redor se passava; cerradas
pginas destinadas mulher, origem desse rosto absorto que o pessoal notava quando
ele aparecia para almoar. E por aquelas tardes de
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
lOS
tocaia ao provvel, compridas como um Vero inteiro viam-no sentar-se ao ar livre, d
iante do cavalete, fca mos os pincis recreativos, que muitas vezes se deti<" nham,
solidrios com o olhar dele, pousado esquecida? mente sobre a floresta. Era quelas
horas e not^ na rede, que a lembrana de Tarslia mais o frequeae tava: quelas horas,
nos sentimentos, noite, quasft sempre nua, "Andava a escrever s para ela, mas tin
iai de escrever tambm aos sogros. J o devia ter feita Nunca haviam compreendido int
eiramente o procedi^ mento dele, mas ele compreendia-os bem. Talvez gose tasse r
nais do sogro, por aquilo mesmo em que eram completamente diferentes, embora Tar
slia lhe houvess^ dito, antes do casamento, que o velho portugus sonhaE *. para ela
um marido com um futuro mais brilhantt/ Podia ser mdico, no havia inconveniente, d
esde qu, fosse categorizado, um mdico de que precisassem p* grandes da cidade, um
desses doutores que o Govw| nador convidava sempre para as festas do Palcio Ritf
Negro, pois bem o merecia Tarslia, bonita, muito edtl" cada e com ele, seu pai, j
feito comendador. No, nltej; tinha verdadeiramente queixa dos sogros. Ficar
ians contentes se ele lhes escrevesse. Era certo que a so^r" envenenara o esprito
de Tarslia para sempre, quartf, lhe falara da diferena de idades e lhe sugerira que
ele. tinha provavelmente mais desejo de carne tenra dfr que amor por ela. Mas t
ambm isso era compreensvel; pois que se tratava da filha. Sem dvida, a oposift" teri
a sido maior se o velho no se houvesse tornadff esprita, ficando mais bondoso, mai
s generoso, emborf com o aspecto dum homem vencido". -;
As cores da paleta misturavam-se, passavam paw as imagens dos sogros e os seus ro
stos diluam-se, desaK parecendo sob manchas vermelhas, azuis e amarelas,' para lo
go ressurgirem de novo. "Tinha de escrever-lhes, j devia t-lo feito de Trs Casas, e
m vez de lhes man1dar apenas cumprimentos nas cartas para Tarslia. Gos& tava dos d
ois; e at lhe parecia que gostava mais ainds desde que os contrariara, vindo para
ali. Nunca haviartf falado, pelo menos que o soubesse, sobre a questo d'
serem ricos e ele viver do seu trabalho e do pouco que lhe legara o seu tio e pa
drinho, questo que sempre o incomodara, no fossem imaginar que desejava Tarslia pel
o dinheiro, quando podia perfeitamente sustent-la, sem precisar da riqueza de ni
ngum. Mas se estivesse no lugar deles e com a mesma mentalidade, certamente have
ria posto as mesmas reservas que a sogra pusera. Ela era esperta, por vezes mesm
o subtil; naquilo, porm, enganara-se em parte. Ele no desejava apenas o corpo jove
m de Tarslia, ele tinha uma verdadeira paixo por ela. A sogra no podia prever as co
nsequncias do que fizera, mas criara-lhes aquele desagradvel complexo. O que
ela no sabia era ter ele percebido, quando das primeiras carcias secretas, que Ta
rslia j as conhecia, que a inocncia dos seus olhos era maior do que a do seu corpo.
Fora essa prpria verificao que lhe estimulara ainda mais a gula sexual, perante aq
ueles arrebatamentos sentimentais e nervosos, to acima da normalidade, que s uma m
ulher que ame autenticamente um homem ou seja quase louca pode ter. Tambm fora de
cisivo o dia em que ela lhe dissera: "Nunca, nunca, juro, gostei de moos da minha
idade!" e ele lhe perguntara: "E daqui a trinta anos, quando eu j estiver perto
dos setenta?" "Ora! Sei l se viverei daqui a trinta anos! Mas se viver, terei
passado os cinquenta, estarei velha, por que hei-de pensar agora nisso?" Sem a
quelas frases ardentes, que haviam legitimado a possibilidade de satisfazer o se
u desejo e o seu amor, ele no teria decerto casado. Ela sabia o que lhe acontecer
a com Nivalda. Ele prprio lho contara honestamente, como lhe parecera justo, emb
ora o fizesse em sntese e a confisso o magoasse. E era isso que podia vir a aument
ar o perigo. Uma cidade est cheia de tentaes e mais fcil enganar o marido numa cidad
e do que numa aldeia, onde tudo se sabe". A admisso incompatibilizou-o, finalme
nte, com a aguarela e com a tendncia que o seu esprito mostrava para fugir sempre
dali nessa tarde. Enfeixou os pincis, cerrou a caixa das tintas e dobrava o caval
ete quando Juvncio correu para ele, todo solcito:
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No se incomode, seu doutor, eu levo.
Resolveu dar um pouco de distraco a Cavalcanti" narrando-lhe velhas histrias, quase
ao nvel infantil, como muitas vezes sucedia; mas ainda caminhava % corredor e j p
ercebera que Jarbas estava a fazer-l&$ companhia, ao ouvi-lo dizer: "Ento a vida
dos homeqj^ como ns ser muito diferente". &*
A doena de Cavalcanti avanava para a fase hidrj pica e a medicao que Bonifcio lhe apl
ava, ness^S dias em que a origem do beribri era ainda to obscujift como no tratado
de patologia em que ele a estudar"! vinte anos antes, mostrava-se sem eficcia.
Outros homens cediam ao meio, aos seus miasm^S" aos parasitas invisveis que nele
afanosamente se nufflB tiplicavam. Parecia que a amitina e a cnfora haviaoH resga
tado Crisstomo; mas ainda ele no se restabM" lecera de todo e j a desinteria, como
se mudasse apenajB de abrigo, se instalara em Antnio Rocha e Etelvin3 O prprio Nim
uendaj, com o seu impaludismo ci|jm nico, voltara a ter acessos de febre, na terr
a que qfi servia de armas microscpicas para se defender de que^l a violava. jal
Rocha e Etelvino haviam sido transferidos para;*! barraco menor, improvisado rudi
mento de hospitapf onde ouviam Maximiano continuar, obsessionantement&i a sua fa
bricao de cadeiras, do outro lado da divj-f sria. E foi precisamente numa dessas man
hs em qvt Bonifcio atravessava o Posto, depois de os havef examinado, que A
risteu perturbou a paz reinante COE" o brusco sinal de alarme. De comeo ningum ouv
iu mais nada. Nimuendaj surgira porta do barraco maior, avanando at a sua esquina,
os olhos e os ouvidos a perscrutarem a orla da floresta. Alguns dS homens que se
agrupavam na cerca, em paleios de mata-tempo, foram-se aproximando dele, com
uma lentido deliberada, que pretendia suprimir toda a aparncia de medo. O siln
cio continuava. Mas, pouco depois, dir-se-ia que spidos representantes do mund
o alado, vindos de longe, como sugeria o som, cada vez mais ntido, das suas diver
sas falas, se tinham reunido
muito prximo do acampamento, para um concerto ornitolgico. Jas, inambus, outra
s aves ainda, que tanto as flechas como as espingardas gostavam de encaminhar
para o lume, depenadas, ungidas de limo, esfregadas com malagueta, pipilavam
como se chamassem um cnjuge infiel e ausente. E s pobres saudosas respondiam, com
seus grunhidos, os melhores javalis do Mundo, os feros e feios caetetus, sonho d
e todos os gastrnomos, fossem selvcolas ou urbanos, nus ou de casaca, que os tives
sem saboreado num dia de felicidade gstrica. Ouviam-se, depois, os coats, os prego
s, os capijubas, os guaribas e outros macacos, cada qual com vozearia prpria, a l
embrar aos homens o gosto das suas carnes, excelentes para deleite de tribos ant
ropfagas. Emudeciam um instante, restituindo floresta uma paz nervosada, mas logo
recomeavam, como se lamentassem que nenhum daqueles civilizados, habitando to per
to dali, largasse do seu campo com a espingarda na mo e, dorso curvado, metesse s
ilenciosamente por entre os galhos baixos para os caar. Era perfeita a imitao. H mu
ito que se conhecia essa armadilha sonora das tribos selvagens, quando desejava
m atrair o inimigo, com um arremedo da arca de No, na terra de saborosa fauna, on
de a ideia da caa acompanhava, to fielmente como a lngua hmida dentfo da boca, todos
os que a pisavam. Em horas secretas, dessas que a sensao do perigo regula, os ndio
s serviam-se tambm daquele processo canoro para comunicar entre eles; mas os velh
os florestrios, como Raimundo, mesmo Nimuendaj e Bonifcio, depressa distinguiam a i
sca trinada ou roncada e a mensagem transmitida por gorjeios breves e solitrios,
embora
maviosos.
Os homens escutavam. E, parte Tito Boludo, de novo cenhoso, todos sorriam um so
rriso lento, macio de ironia e indulgncia.
Eles no sabem que ns sabemos... disse Bonifcio e os homens sorriram mais.
A floresta calou-se, finalmente. Nimuendaj e Bonifcio admitiram que se trataria ai
nda de pequeno
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1067
grupo, talvez o mesmo que decapitara Eleutrio. TinJqi sido vitria fcil e pretenderi
am voltar maloca c0A novos trofeus. fl^
Os passos dos homens tornaram-se mais cautelo^ quando andavam no acampamento, co
m a ideia que continuavam a ser rondados. O tempo do jogo*! das histrias erticas e
sticou-se. Vises femininas, atitudes obscenas, passavam pelas redes e pelas ocioa
S! dades, deixando nos corpos um rasto de fogo. O gr"| mofone seria uma distracoe p
ara isso viera. MiUR havendo-se considerado que os impediria de ouvirifllt sinal
de alerta, conservava-se mudo sobre a pequeodti coluna, a campanula em forma de
flor, que mais pareci"! boca para engolir as palavras soltas na sua frente "dMl
que para falar ou cantar. O prprio Honrio s mui" baixinho dedilhava o seu violo, qua
se como se estill vesse apenas a afin-lo, o que tanto o desgostava, p(c)8| assim no
reunia auditores.
Tendo observado sonolentos cabeceies nos que esta" vam de atalaia, sobretudo em
Aristeu, Filipe e Tiwf Boludo, Nimuendaj ordenara-lhes, com a secura do# I seus m
omentos de contrariedade, uma vigilncia ma8J| conscienciosa. E no querendo minguar
o efeito daquel" rudeza, pedira depois a Bonifcio que lhes explicassi" evocando o e
rro de Eleutrio, que embora os ndio4 preferissem atacar de dia, algumas vezes, cape
ando-sa*?; com as trevas, rodeavam de noite os stios que pretend diam assaltar ao
abrir da manh, justamente quandd os olhos das prximas vtimas se encontravam ainda
fechados.
Foi no corredor, perto do dormitrio, que Bonifcio transmitiu aquilo aos homens; e,
da sua rede" Cavalcanti apoiou, com voz frouxa: " assim mesmo" ". Tmido de incio, o
seu edema crescera. Alastrara das coxas para o abdmen, avolumando-o tanto como s
e ele retivesse, por digerir, um grande jirimum. "Parece barriga de minino que c
omeu terra" dizia Cavalcanti aos companheiros, num torn resignado e olhando a su
a prpria disformidade.
Podemos tentar mandar ele para Humait, como
ao Soares dos Santos sugeriu Nimuendaj a Bonifcio, nesse mesmo dia.
J pensei nisso. Me parece intil. to longe... Tantos dias... E o mdico exps ao etnlog
a evoluo que a doena ameaava tomar. Se ela atingisse a fase cardaca durante a viagem,
o mais certo era o homem morrer pelo caminho. Mesmo que os ndios no atacassem a c
anoa, ele iria sempre em perigo. Calou-se, tornou a volver: Ns trouxemos os med
icamentos indicados para o beribri e eu tenho-me ocupado de muitos destes casos,
infelizmente.
Estranhou a cara de Nimuendaj. Nem uma palavra, nem um gesto, os olhos fixos no c
ho e no ar aquela suspeita de que ele preferia despachar Cavalcanti para Humait. B
onifcio pensou que talvez fosse por falta de confiana na sua competncia, talvez ain
da pelo caso de Eleutrio, para no impressionar de novo o pessoal com a morte de Ca
valcanti se ela se desse. Para mim seria mais cmodo mand-lo, claro. Um doente gra
ve ao nosso lado, num stio isolado do Mundo como este, faz-se sentir mais no espri
to do mdico do que dez ou vinte clientes espalhados numa cidade. O caso de Soares
dos Santos era diferente. Eu no tinha esperanas de o salvar, mas o meu desejo foi
ficar l nos Muras com ele. Voc no estaria de acordo, e com razo, pois seria trocar
a sorte de um pela de todos os outros que vinham connosco...
No estaria... disse Nimuendaj, maneira
de eco.
Tambm no o podamos trazer para aqui. No
tnhamos ainda nada preparado e no sabamos mesmo se chegaramos vivos. muito desagra
dvel pensar
nisso.
Est bem. Voc que sabe.
*
Finalmente a expectativa quebrou-se. Na manh j avanada, mediaram apenas alguns segu
ndos entre os assobios dos vigias e aquela gritaria imensa, cada
io68
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vez mais frentica. Dir-se-ia um parto mitolgico da floresta. De arcos em riste, br
otavam de dentro da folhagem, rpidos, simultneos, vociferantes, cercando instantan
eamente o acampamento. S o trecho do porto parecia livre. Mas era simples aparncia
, porque o dominavam da outra margem do igarap e da parte alta da terra onde Eleu
trio jazia, separado delefc somente pelos fios do arame farpado. Os seus brados d
e guerra, vibrantes de antigas cleras remoadas, d ressentimentos nunca de todo desf
orrados, entrecruza* vam-se, lanavam furibundos ecos rio alm, galvann zando de repe
nte a suave tranquilidade da manh.
Na vspera, que parecia agora j muito distanciada no tempo, Nimuendaj sofrera novos
acessos de febre" E estava ainda deitado quando ouvira o sinal de alarm", > e as
primeiras flechas baterem l fora, de encontro s t chapas de zinco, ao abrigo das
quais a sua rede sp, estendia. Metedia e inoportuna, uma lembrana saltou ' desse I
nverno spero que ele vivera, era ainda adoles- , cente, numa aldeia da Baviera, e
nto regelada. Uma, repentina lembrana, agora incmoda, de quando s, aconchegava s roup
as da cama, sentindo-se feliz, egoisf-, ticamente feliz, ao ouvir, sobre o camin
ho cheio de neve* \ os passos dos que andavam ao frio daquelas noites para \i lo
bos. Mas uma deduo irritante, toda venenosa, sobre^ ps-se imediatamente ao inespera
do lucilar desses momentos j longnquos: "Decerto o vigia dormira mais uma vez, poi
s tardara demasiado a preveni-los".
Apressadamente Nimuendaj abandonou a rede" abriu a porta e gritou para o barraco i
nteiro:
Que no saia ningum por enquanto! Ningum! Deixem eles ir gastando primeiro as f
lechas. Esto ouvindo, ?
Bonifcio correu para o quarto dele, roando de passagem a Mariano, que regressava p
achorrentamente cozinha, depois de haver ido alpendrada, sempre com a grande col
her de pau na mo, lanar uma olhadela quela balbrdia intensa.
Deite-se! Deite-se! disse Bonifcio a Nimuendaj, com voz de ordem profissional, lo
go que chegou
porta. De pijama todo enrugado, ele trepava j os degraus que antecediam a abertur
a de onde se podia ver a linde da floresta e voltou-se. Lhe pode fazer mal! Dei
te-se! Fixou Bonifcio com um olhar surpreendido, quase fuzilante, em que a mental
idade do chefe se opunha do mdico, tendo por absurdo que ele lhe lanasse, nesse d
ifcil momento, uma tal recomendao. Sem palavra alguma, continuou a subir at a fre
sta, l em cima, junto do tecto, onde ficou, carrancudo e impassvel, a observar o q
ue decorria do lado de fora. Bonifcio veio ento debruar-se junto dele.
Do dormitrio chegavam vozes do pessoal, comentrios irnicos, ligeiras disputas pelos
lugares no vo que tambm ali se abria aquele mirante discreto, que o beiral longo
e inclinado resguardava como uma
pala.
Os homens enxergavam, enfim, os Parintintins.
Todos os enxergavam pela primeira vez, mesmo Nimuendaj e os veteranos, que haviam
trilhado a fmbria dos seus territrios. Baixos, espadados, pintados de negro, sua c
or de guerra, na cabea um diadema de plumas, as maiores pendentes sobre as costas
, em ramalhete multicolor, eles pulavam e batiam furiosamente com os ps no cho, pr
osseguindo nos gritos blicos, sempre mais rancorosos por falta de resposta. E, se
micerrando um dos olhos, regulavam pelo arco a pontaria
das suas flechas.
Ao acaso dos papis encontrados, todos os homens que estavam no barraco, mesmo os a
nalfabetos, tinham visto, em desenhos ou fotografias impressas, outras trib
os semelhantes, outros gestos iguais queles; e tendiam a mesclar a seriedade com
a farsa representada pelos Muras-Piras, dois meses antes, numa longa noite da sua
aldeia. S pelos rgos genitais, escondidos dentro de folhas de arum, enroladas em fo
rma de canudo, uns tubos que desciam quase at os joelhos, aparentando to exorbitan
tes dimenses dos sexos que Tito os comparara, em desbocadas palavras, s dos jument
os quando itiflicos, os Parintintins se distinguiam dos
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outros ndios. Mas essa mesma caracterstica ajudava a substituir por um estado de e
sprito irnico a ideia, de crueldade e morte que a presena deles sugeria.
Do outro lado da divisria, ao p de Nimuendaj, Bonifcio ligava romanticamente a um pa
norama antigo o desenrolar das primeiras cenas: era o Neolticok desdobrando-se na
s suas ltimas fases, j to distantes^ que se lhe patenteava agora; e ele tinha como
una privilgio ser testemunha, no sculo xx, daquela per}- turbante ressurreio. Era co
mo se os homens de gestos colricos e expresses ferozes disparassem as flechas por
sobre as montanhas de cinzas de mais de sete milnios, atravs de ares desde h muito
extintos. Homens que no tinham desenvolvido ainda as suafc riquezas interiores, c
omo se a Natureza houvesse aa"bado de os formar h pouco, alm das setas, de alguns r
udes objectos domsticos e dos seus tapiris, simple abreviaturas das cabanas neoltic
as, nada mais deviam a eles prprios. A inteligncia s muito vagamente lhes havia tem
perado a violncia primria e era justamente com a esperana de os tornar menos escrav
os da stfa tremenda autenticidade, era para sobrepor criao natural a recriao humana,
que se vivia aquela grave manh, comandada pelas doutrinas de outro homemi um hom
em que assinalava, mesmo quando ausente, mesmo ali na brenha enigmtica e bruta, a
evoluo da espcie portentosa. S o arame farpado separava os dois tempos e representa
va paradoxalmente, como que sarcasticamente, a civilizao que se pretendia oferecer
aos selvcolas. Vistos de longe, os seus fios davam a Bonifcio a iluso de penetrare
m nos corpos dos ndios quando eles se movimentavam, de penetrar maneira de serras
, dividindo-os em vrias seces, como as esttuas feitas de diversos bocados.
Tendo percebido que as guaritas ocultavam alguns dos invasores, os Parintintins
no se fatigavam de distender a corda dos seus arcos em direco aos furos que elas ex
ibiam. Mas as flechas, mesmo as mais certeiras, que assomavam ali as agudas pont
as, como cabeas de serpentes em golpes rpidos, tombavam,
vencidas, ante a pequenez dos orifcios, enquanto um ligeiro regozijo lastrava as
preocupaes de Nimuendaj perante aquele desperdcio que os ndios faziam das suas armas.
Ele via nitidamente Carolino, colado a uma das chapas zincadas, muito direito e
imvel, como num jogo infantil, um jogo s escondidas, em que os ouvidos juntassem
sua funo normal aquela que compete especificamente aos olhos. Via-o e admitiu que
seria morto antes de qualquer outro se os selvagens rompessem, com toda a sanha
que alardeavam, pelo acampamento adentro; e, de sbito, esse homem to vizinho do pe
rigo pareceu-lhe diferente do que era momentos antes, valorizou-se, tomou alma n
a alma dele, trouxe-lhe mesmo a ideia de um grande desgosto
se o matassem.
Quem est mais de vigia ? perguntou a Bonifcio.
O Jarbas e o Dorival.
O Jarbas e o Dorival...repetiu devagar Nimuendaj, como se desse elasticidade s slab
as, para elas abrangerem, secretamente, mais alguma coisa alm
dos nomes.
Escassos em imaginao, os Parintintins insistiam sempre na mesma tcnica. Disparavam
trs revoadas de flechas, logo baixavam os arcos, olhavam um momento o reduto dos
civilizados e, numa vozearia de desafio, de novo batiam na terra com os ps. Conti
nuando teimosamente deserto o espao do acampamento, como que de todo alheio pre
sena deles, volviam a flechar, a espezinhar o cho, a lanar os seus reptos cada vez
com maior clera. Mas j vrios moos, certamente insatisfeitos com essa infrutuosa est
ratgia, to repetida e to intil, procuravam derrubar a cerca: acocorados no meio do
s que flechavam e apostrofavam, iam retirando, servindo-se de pontas de v
aras ou das mos, a terra em volta das estacas. Parecia, a alguns dos homens ocult
os no barraco, que os ndios, naquela faina, agiam depressa num tempo confuso e mui
to longo; que a pressa, correndo na lonjura do tempo como bicho faminto atrs
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da presa num chapado imenso, onde boiavam esfarrapadas nvoas, lhes deixava, apesar
de tudo, certa posse deles mesmos, flego e movimentos, voz e ratio* cnios, princi
palmente o desejo de serem homens alegres, como sempre que se enfrenta o perigo
e se est ao lado de outros homens. Nimuendaj tornou a pensar em Honrio, no ensaio a
que ele se entregara ainda h poucos dias, voluntria e alegremente, como se fosse
exibir as suas virtualidades musicais e as longas perna ondeantes no palco dum te
atro ou em larga pista cir* cense e reservou-o para um mais til momento.
Os sitiados revezavam-se na fresta do dormitrio, demasiado acanhada para a curios
idade de todos eles; e alguns vinham colocar-se sob o alpendre, prosseguindo nos
comentrios, rindo-se por vezes junto de Amaro; que se encontrava ali em observao.
Mas logo que um se isolava, por instantes apenas que fosse, aquilo abria-se em n
ovas expresses e cada qual penetrava mais em si prprio. Mariano, homem do lume e d
as panelas, bicho de casa, sentira-se sempre um pouco margem dos outros; e agora
, por isso mesmo, ia tem* perando a situao que os seus olhos contemplavam! molemen
te, pelo postigo da cozinha, com a obscura admisso de que a ele nada ocorreria ta
lvez de grave, como j muitas vezes pensara. Dessas aventuras quase sempre escapav
am alguns e se ele no escapasse, pacincia! Ao abrigo da sua pele ainda bastante li
sa, Mariano havia sido, nos ltimos anos, to secreto sobre a idade que contava como
uma melancia, antes de a abrirem, o sobre o seu grau de maturao. Mas agora lembra
va-se que j fizera sessenta e sofrera muitos desgostos; no valia a pena assustar-s
e demasiado com aquilo, embora apreciasse viver e pretendesse findar os seus dia
s em paz, que para isso trabalhara sempre e guardara algumas economias. Pena era
que aqueles estpidos no compreendessem que o pessoal estava ali para bem deles, p
ena se os homens morressem e eles, apesar disso, continuassem selvagens como tin
ham sido toda a vida.
Mariano cuspiu para fora, atravs do postigo, no
por desdm, mas por sentir gua a mais na boca; e, com vagaroso andamento, pesado co
mo o seu corpo, voltou a desembocar na alpendrada. Moacir estava de p, quase a me
io da porta, mas no deu por ele passar. Mariano olhou para Amaro e para os outros
, sem proferir uma s palavra; depois estendeu de novo, at os ndios, os seus olhos l
argos, com bolsas nas plpebras inferiores, um olhar que dir-se-ia cansado e enco
lheu os ombros.
Em Moacir, naquele instante, a sensao de perigo amortecera sob a repentina lembrana
do que ele havia dito a Nimuendaj e Bonifcio, em Trs Casas, aquando do recrutament
o. "Falara certo, no sentia medo; uma coisa um homem s, outra, muito diferente, a
solidariedade. Seria melhor, era claro, que ele e o Jarbas sassem vivos dali e pu
dessem continuar a sua luta, como antes da greve, entre os civilizados. Mas se no
pudesse ser, outros l andavam, outros l apareceriam para substitu-los e sempre em
maior nmero". Conclua o que j havia inferido tantas vezes, quando divagava sobre o
futuro; gostava, porm, de ouvir naquele momento o que diziam os companheiros, as
suas mangaes, os seus sorrisos; gostava de intervir nos dilogos, o que muito rarame
nte nele acontecia.
Tambm na alpendrada se expunham numerosas flechas, dispersas no cho batido e at em
cima da grande mesa, com formigas a inspeccionarem j as suas hastes redondas e li
sas. Lanadas da outra margem do igarap, tinham exaurido, durante a travessia demas
iado longa para elas, as energias e as ofensas. Sabendo embora que o no compreend
eriam, mas para manter nele mesmo a chalaa que desanuvia o esprito, Filipe gritou
aos ndios que as disparavam:
Eh, amigos, deixem l isso! No percam tempo, no. Venham almoar connosco. Temos aqui o
s caetetus que roncavam da outra vez...
Arrimado a um dos esteios, como dias antes, todo o corpo imvel, os olhos fixos no
Maici-Mirim, s Tito Boludo mostrava cara severa. O dio voltara-lhe, dir-se-ia que
pelo ar, contagiosamente, nas setas e nos
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berros dos Parintintins, ou rastejando secretamente como um rptil invisvel, sado da
cova de Eleutrio, E tudo, tudo, parecia vibrante de rapidez, a ele qu$ estava pa
rado.
Um banda do outro, os quadris apoiando-se rj4 cabeceira da grande mesa, Filipe e
Raimundo, agorj$ calados, seguiam os movimentos dos assaltantes. Parf cia a Raim
undo que o perigo, ali, era menor do que n$ emaranhado da floresta, onde os Pari
ntintins flechavaifj traio, antes de a vtima os enxergar e poder fugir ou defender-
se; parecia a Filipe que o perigo era maio% parecia-lhe estarem ali, ele e os ou
tros, como numft dessas trincheiras de que tantas fotografias e tantas descries ti
nham andado nos jornais durante a prjr meira guerra mundial. Uma trincheira com
soldados sem armas, que o inimigo sabia rigorosamente onde s,e situava e podia c
hacinar, livre de qualquer tolhimentQ eficaz, a guarnio completa. Filipe aprovou l
ogo ,a ideia que lhe viera de sbito, no por ele, mas pelp^ outros, sempre prontos
a caoarem dos seus grandes cuidados com as mos, at mesmo quando remava^ Saiu, foi a
o dormitrio, voltou imediatamente com una* pequena tesoura e ps-se a cortar as unh
as enquanto^ baixinho, assobiava. ,
Do outro lado do barraco, em face da brenha mais cerrada, l onde o assalto dos Par
intintins se coordejf nava melhor, Crisstomo abandonara tambm a fresta^ por se sen
tir comprimido entre Genaro e o Manga Verde, e lhe parecer que o beiral, por mui
to saliente^ descendo at perto da sua cabea, lhe dificultava a respirao. E viera pel
o corredor afora, propositadamente devagar, tamborilando nas paredes com as extr
e<- midades dos dedos, sem disso se aperceber. Recordava o ataque dos Parintinti
ns s canoas, na manh nascida aps a derrubada, e a fora de vontade que ento tivera. E
parecia-lhe agora encontrar-se amolentada a terra batida, to rija at ali, do corre
dor onde os ps iam avanando; mas no era a terra mole, nem os segundos que estava vi
vendo que interessavam ao seu andamento; era o minuto a viver, quando alcanasse
a alpendrada e visse a actividade dos ndios daquela banda; eram os minutos que su
cederiam quele minuto suspenso e dos quais no podia avaliar o nmero e a extenso. Lo
go, porm, que se encontrou no alpendre, onde alguns dos companheiros permutavam n
ovamente pilhrias e sorrisos, o desejo ambulatrio desapareceu e, de sbito, ele volt
ou a sentir-se completo.
Aquela necessidade de mover-se, de acompanhar o desenvolvimento do ataque nos do
is lados que o barraco permitia observar, no era fora que impelisse a ele s. Pouco d
epois, vindo igualmente da fresta, Maximiano arribava alpendrada tambm. O seu ros
to, grande e escuro, com ligeiras e sucessivas covinhas, onde a varola, semelhana
das pulgas do mar, residira, no tentava de forma alguma velar a inquietao que ele t
razia e o levara a correr at ali, onde tudo aparentava imobilidade contra a press
a que se desenvolvia detrs da cerca. Mal chegou, deu conta de que Raimundo e Mari
ano deixavam de contemplar, sem nenhum comentrio, o barraco menor, justamente
para onde ele dirigia os seus olhos. H segundos apenas tinha visionado Antnio Roc
ha e Etelvino deitados nas redes, ainda no restabelecidos da desinteria; e imedia
tamente sentira remorsos da sua demora em lembrar-se deles, que se encontravam,
como os vigias, mais acessveis ao perigo, por isolados e prximos, muito prximos, do
s ndios. "Ele tivera sorte: se no houvesse precisado de vir encher a bolsa do taba
co ao barraco maior, pouco antes de os Parintintins chegarem, tambm estaria l".
Afinal, Etelvino e Antnio Rocha no se encontravam deitados, mas porta; e, ao v-lo,
iluminaram os rostos com um sorriso largo e acenaram-lhe quase jovialmente. A gr
ande magreza que a doena lhes produzira reconhecia-se perfeitamente de longe, mai
s ainda por eles se mostrarem de p; e, apesar daqueles acenos eufricos, Maximiano
tornou a considerar, cada vez com maior pena, que ningum poderia acudir-lhes, com
o ningum poderia salvar a Jarbas, a Carolino e a Dorival, se os Parintintins cons
eguissem derrubar o arame far-
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pado. Cerrou a mo, estendeu o brao, mimou o gesto de dar a volta a uma chave. Os d
ois homens baixaram as cabeas, indicando terem compreendido. Maximiano no ficou, p
orm, tranquilo. O barraco menor oferecia menos resistncia do que o maior; a sua por
ta, qu" ele prprio fizera, seria mais fcil de arrombar. Vir tudo em estilhaos, tudo
perdido, o principal roubado" Voltou-se para Raimundo e Crisstomo:
Vamos buscar eles ? > Foi Tito Boludo, a quem no se havia dirigido, qu"
respondeu primeiro, descosendo-se do pilar e sempre de carranca posta:
Eu you com voc. i
J tnhamos pensado nisso declarou Raimundo^ indicando Amaro com um movimento de qu
eixo. >
Maximiano aproximou-se: tf
Seu Amaro, podemos ir trazer o Rocha e o Etels vino para aqui? />
Espaadamente as flechas continuavam a vir e morrer perto deles. Amaro coou a orelh
a: i
No podem. Seu Curt disse que ningum devi|. sair do barraco. Voc no ouviu ? "
Deste lado, h menos ndios... Se podia ir beir, rando a cerca, junto dos bateles...t
eimou Maxijmiano, com voz ofegante. s*
A pressa continuava no ar. Apartava-se dos gestos dos homens e das suas palavras
, mas brotava de todas as frinchas, de todas as folhas de zinco, da gritaria sel
vagem que ali arribava, dir-se-ia erguer-se dos pr<> prios poros da terra e, se
mpre vibrante, prossegui^ no ar.
Vocs se expunham duas vezes, ida e volta, sem vantagem explicou Amaro. Ento era
melhor eles virem sozinhos. Se arriscavam menos homens. mais fcil acertar
em quatro do que em dois. Mas virem eles para qu ? Se os ndios entrarem no Posto,
no atacam s aquele barraco; atacam tambm este, j pensou? E, se o Rocha e o telvino vie
ssem agora, os ndios podiam matar eles sem entrar mesmo no Posto. Mas ainda pio
r esto os vigias.
Pela primeira vez, desde que principiara aquilo, Maximiano considerou rapida
mente que o seu destino no diferia muito do dos outros cinco homens. At esse inst
ante, a ausncia de solido, que os companheiros expulsavam, a presena de Nimuendaj e
de Bonifcio, o prprio stio onde se levantava o barraco maior, mais distante da cerc
a do que o outro, e o sentimento supersticioso de ele se encontrar ali ocasiona
lmente, davam-lhe uma sensao de resguardo que lhe parecia no ter se estivesse no ba
rraco menor. Amaro derrubara-lhe, porm, com algumas palavras somente, a fortal
eza de pau e zinco, criando-lhe um vazio no esprito, l onde ele j se tinha instalad
o na companhia de outra obscura sensao vital. Admitiu que talvez vivesse ali, ape
sar de tudo, mais alguns minutos do que se estivesse no barraco menor ou de vigiln
cia como estavam Dorival, Carolino e Jarbas; e, um instante, essa hiptese fez-lhe
bem. Mas logo volveu ideia de que se engajara, como os outros, para todos os pe
rigos e fizera-o de sua prpria vontade, porque se dizia ser preciso fazer aquilo
como devia ser feito, para honra do Brasil e deles prprios, e no bala do rifle ou
de qualquer outra maneira. E esse regresso ao estado psquico anterior serenou-o,
quase comple-
tamente.
Momentos antes, quando abandonara a fresta, nela deixando folgado espao, Maximian
o produzira um inesperado bem-estar nos que l se debruavam, at a cerrados uns contra
os outros. E Tanajara, ante os ndios a forarem as estacas, de modo to inbil, olha
va-os, naqueles segundos, mais com ternura do que receio. Imaginava abeirar-se d
eles, nessa atmosfera carregada de urgncia, dizer-lhes que cessassem o ataque, ex
plicar-lhes quem era e por que estava ali, falar-lhes do sangue que trazia nas v
eias, chamar-lhes irmos, docemente; sentia, depois, o frio verdadeiro com que a i
maginao lhe importunava, de sbito, a medula e logo supostas flechas cravarem-se-lhe
na carne, dolorosamente. E ento parecia-lhe que no eram bem os Parntntins, ferozes
e odientos, que se encontravam
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diante dos seus olhos e podiam mat-lo, os ndios que ele estimava; os ndios que ele
amava eram os humilda!^ os confiantes, os antigos, que haviam sido batidos.* esc
ravizados pelos europeus. jg
Tanajara voltou a ficar perplexo logo que as setil imaginrias se arredaram do seu
corpo e os calafriefc lhe deixaram tranquila a espinha dorsal, de novo mornas L
estamente esboou-se na sua memria aquele homem de S. Lus do Maranho, h muitos anos es
quecii"|^ que andava nas ruas a falar sozinho, sempre de pretff a gravata em jeito
de borboleta, os cabelos, de tflfctr compridos, encaracolando-se-lhes nos ombro
s; um SMt>,A jeito a quem todos consideravam maluco e lhe disseisaf/; um dia, qu
e devia reinar uma s lngua, para toda> as pessoas se entenderem e gostarem mais um
as dip' outras, fossem l de onde fossem. A imaginao de Taa*, j ara e suas velhas rec
ordaes exterminaram-se a e}H8 prprias e ele voltou a olhar reflexivamente os Pariu"
tintins, ao mesmo tempo que se sentia incapaz de.is por si, vencer o perigo. "
Aristeu alinhava sua direita. E, melhor ainda d" que os ndios, via a Nimuendaj e a
Bonifcio asss| mados um ao lado do outro, na fresta vizinha. Refc peitoso, a sua
esperana encostava-se ao etnlogo e aoii mdico, ao poder da inteligncia que lhes cre
ditavs^f s solues que houvessem estudado sem as revelar aftS pessoal; a sua esper
ana detinha-se ali, como uiflfcj| rvore meio tombada pela ventania, a fronde a
poiafl|f" do-se sobre o muro da chcara, que lhe evitava *" ,'Jj queda total. P
ara alm de Nimuendaj e de Bonifcfe * tudo lhe parecia incerto, mal definido, campo v
aporoso a esconder, com suas fumarolas, os gestos desordenadofi Essa viso dum cao
s movimentado e vozeante s& xava-o, porm, to suserano dos seus nervos como no dia
em que os ndios haviam morto Felcio e Camargo1, nesse dia em que ele, mesmo quand
o remava a toda 'A fora, nunca se atrapalhara, nunca ficara esculhambad(r) at Amar
o dissera isso. l
Por baixo da fresta, do lado de fora, quase rente parede de zinco, uma das galin
has que Mariano trotf-
xera, previdentemente, da aldeia dos Muras-Piras, ensinava aos pintainhos,
entre as plantas rasteiras, as boas regras de comer. Arranhava o cho, recua
va, bicava-o trs, quatro vezes, indicando aos filhos os lugares onde descobrir
a alguns cibalhos. Depois erguia a cabea e, muito parada, perscrutava os longes t
umultuosos, perscrutava-os com o seu qu de testemunha futura, que houvesse escuta
do ainda mais do que visto; e tambm ela, naqueles momentos apressados, parecia li
berta de qualquer pressa. Se alguma flecha, vinda de l, lhe perturbava o magistrio
, caindo na zona das suas pesquisas, a galinha pedrs avanava um pouco mais e os pi
ntainhos, ainda ingnuos, que andavam dispersos, corriam para a proteco das asas mat
ernais como ratitos para debaixo dum mvel.
Da fresta, Genaro seguiu-lhes, um instante, os movimentos, mas j o Manga Verde lh
e contava, numa voz que pretendia ser discreta:
Uma vez, a bordo do "Japur", trs moos de convs se revoltaram contra o mestre e pegar
am facas para o matar. Ele se meteu no camarote, ao fim da terceira, e eles fica
ram porta, esperando ele, sempre com as facas na mo. Ningum ia l porque eles gritav
am: "Quem vier, matamos". O comandante olhava, o imediato olhava, todos davam or
dens para eles deixarem as facas, mas ningum ia tirar as facas a eles. S eu tive c
oragem de ir...
Chiu! fez Genaro, para o Manga Verde se
calar.
A galinha continuava no seu mester; os Parintintins prosseguiam na luta contra a
s estacas. Ningum sabia se a galinha dispunha de alguma noo do tempo parte da luz q
ue lhe marcava o princpio e o fim de cada dia; os homens, que a tinham, haviam-na
perdido nas fervenas, diversas e simultneas, dos seus espritos, desde que comeara o
ataque. Aquilo sobreviera h menos de duas dezenas de minutos, mas a eles tornara
-se emotivamente impossvel afirmar se eram minutos consecutivos ou separados por
largos hiatos, se eram minutos ou mesmo horas, se o tempo no era
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apenas o que cada qual sentia e se flua ou no flua numa medida diferente da que reg
ulava a vida da galinha. I
Entre Genaro e Moacir, que chegara da alpendrad e esticava muito o pescoo, na nsia
intil de enxergajf o posto de vigilncia onde Jarbas se acoitava, os lbios de Honrio
deixavam entrever um sorriso pequeno? quase feliz. Sentia-se mais generoso ainda
do que habi* tualmente, com o sangue em alvoroo e o arriscado plano a dar-lhe um
a satisfao ntima e antecipada! como se as cordas que sustinham todos eles beil dum de
spenhadeiro estivessem, por momentos, depen* dentes das suas mos apenas. Parecia-
lhe, porm, qut tardava demasiado a ordem de Nimuendaj para efe se expor, a ordem pa
ra tentar aquilo e o comporta^ mento dos seus lbios era uma forma cordial de log
rar a impacincia. i
Genaro viu-lhe o sorriso, adivinhou a sua origem <y picado por sbita emulao, decidi
u-se, depois de matutar um instante. Desceu da fresta, penetrou no quarta de Nim
uendaj, subiu os degraus que o separavam d$* etnlogo, precisamente quando ele tent
ava, com nsia quase angustiosa e esperana duma alegria exultante e prxima, confirma
r se as palavras que alguns doa' ndios lanavam, em voz alta, a outros mais distant
es) provinham, como lhe parecia, do tupi puro, identificao essencial e meio caminh
o andado para civiliza-los, pois ele falava essa velha lngua.
A voz de Genaro era, ao contrrio da dos selvagens; tmida, meio comovida e baixa:
Se seu Curt quiser, eu you levar brindes a eles... com a algazarra dos Parintint
ins e o inesperado
daquela presena, Nimuendaj no compreendeu e virou-se, surpreendido:
Que est voc dizendo a ?
Digo que se seu Curt quiser, eu you levar brindes a eles. Se eu tiver de morrer
aqui, tanto faz ir como no.
Viu o rosto de Nimuendaj endurecer de repente, ao mesmo tempo que o seu brao traava
um gesto brusco, negativo, como que a expuls-lo dali; viu-o,
depois, voltar-lhe as costas, sem proferir uma s palavra. Devia ter julgado, porm,
a sua atitude insuficiente, pois que, ao sentir que ele no se retirava logo, ain
da lhe ordenou, com rudeza, l de cima: V-se embora!
No corredor, Genaro topou Filipe, que ia da alpendrada para a fresta, e Juvncio q
ue vinha da fresta para a alpendrada, ambos caminhando to apressados que eram os n
icos a darem, at ali, uma sensao de instantaneidade s diferentes sombras que se prop
agavam, simultaneamente, no esprito de todos eles. S a voz de Cavalcanti, saindo d
a sua rede de doente, perturbou a curiosidade que os impulsionava:
Que ? Que ? Ningum me diz nada.
No h perigo. No estejas pensando a. como das outras vezes respondeu-lhe Filipe, sem
deter o
passo.
Ainda humilhado pela reaco de Nimuendaj e temendo que na fresta a tivessem captado,
Genaro rumou tambm ao alpendre, mais entregue excitao que lhe dava o vexame do que
ideia das contingncias desse momento febril. Atrs dele chegou Manga Verde, que se
ps ao lado de Juvncio, alongou os olhos para os ndios e disse, de cabea levantada e
leve ar de
desdm:
* Se eu estivesse no lugar deles, j h muito tinha
deitado abaixo a cerca.
Ningum o contestou. Dir-se-ia, efectivamente, que os Parintintins tambm receavam e
xpor-se demasiado, que a luta com as estacas era mais um simulacro, um inqurito s
reaces dos assediados, do que a firme deciso de romperem pelo acampamento adentro,
at junto deles, enfrentando as suas balas. Mas s Nimuendaj, Amaro e Raimundo julgar
am ter percebido essa hesitao dos selvcolas, uma cautela que lhes pareceu, de comeo,
apenas inexperincia. E, na alpendrada, a conversa de Amaro com o prprio Raimundo
e com Mariano, um momento interrompida, continuava em voz pausada e baixa, lanand
o sobre a mudez de Crisstomo, de Juvncio, de Maximiano e at do Manga
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Verde, um estranho ambiente de pachorrncia, que mais os intrigava do que os esfri
ava, por no saberem defini-lo.
Parecia a Juvncio que ningum ali confessava tudo quanto sentia, que ele prprio no co
nseguiria confessar, mesmo se quisesse, tudo quanto voltara a esbrase-lo por dent
ro, um calor limitando-lhe o juzo, levaivdo-o a pensar s naquele momento e naquele
stio, como se nada mais existisse longe do Posto, como Se no houvesse distncias ne
m outros lugares e outras gentes. Medo como tivera alguma vez, medo com frio no e
ra, estava certo. Mas se um parintintim corresse para ele e o atirasse a terra,
se lhe pusesse o p efflt cima, como numa ona morta, e se lhe quisesse espetar uma
flecha no peito, nesse caso, sim, nesse caso s se no pudesse sair de baixo dos ps d
o ndio que nb se defenderia com quantas foras tivesse.
A conversa de Amaro, Raimundo e Mariano, avivada por uma nova interveno do Manga V
erde, pros'" seguia ainda:
Nisso tambm h muita falta disto...afii* mava o cozinheiro, batendo na testa
com a ponta d dedo.
Subitamente, os Parintintins que atacavam na face mais longa da mata, perto do b
arraco menor, onde sua agressividade se mostrara, at a, sem eficincia alguma, deixar
am de flechar. Olharam sobre a esquerda, todos ao mesmo tempo, como se algum de l
os chamasse; e imediatamente correram para o fim do acampamento, com os arcos ao
alto e vozearia triunfal. Ficara deserta, num instante, a terra onde se postava
m; e Raimundo, avanando at o cunhal do barraco, alongou o pescoo e disse, sem se vol
tar:
Se juntaram aos outros, l ao fundo, para ajudar a derrubar a cerca...
Os homens que estavam na alpendrada foram mirar tambm, mas logo decidiram ir para
a grande fresta do dormitrio, donde abrangeriam melhor a nova fase do ataque. Ti
to Boludo viu-os penetrarem rapidamente no barraco, deixando-o sozinho, caritide t
osca, acha-
parrada e soturna, aderida ao esteio, com o "Mimoso"
ao lado.
Quando chegaram, os que se encontravam na fresta seguiam, de rosto muito quieto
e todos eles silenciosos, a acrescida luta dos ndios contra as duas sebes de aram
e farpado. No esprito de uns e de outros tudo se modificara de repente, como se u
ma personalidade improvisada, frvida e una, se houvesse instalado dentro deles, e
xpulsando a anterior, perante as possibilidades de xito que oferecia aos Parintin
tins a sua concentrao naquele reduzido espao. Extinguira-se o passado, s o presente
comandava os homens e fazia-o duma forma total. As minudncias da vida de cada um
e a variedade das suas reaces haviam desaparecido tambm; s ficara aquela que a cerca
continuava a fomentar. Era como se tivessem apagado, com um sopro apenas, todas
as velas de complexo e imenso lustre, menos uma. E a essa luz nica, fecundadora
de muitas obscuridades prximas, surgia imediatamente a aceitao da fatalidade e do s
acrifcio previstos, uma aceitao meio atordoada, mas corajosa e plena. Diante dos o
lhos deles, que dir-se-ia terem sede, como se fossem anexos da boca, os Parintin
tins progrediam no arranco das estacas. Amaro e Filipe identificaram mesmo, entr
e os que ali se esforavam, por vezes com gestos ineptos de 'crianas, alguns ndios v
istos, momentos antes, na outra margem do igarap, que certamente eles haviam tran
sposto mais acima, l onde as guas se estreitavam. A parte exterior da cerca havia
j cedido ao longo duns dez metros. E logo que os Parintintins conseguissem prostr
ar completamente as estacas ainda inclinadas, com os fios de arame agora em disp
osio de degraus, um declive de espinhos metlicos, o caminho para a segunda sebe est
aria aberto. Somente nos homens isolados, fosse no barraco menor, fosse nas guari
tas ou na alpendrada, onde Tito Boludo continuava a esmoer, solitariamente, a su
a m vontade contra os selvagens, a tendncia para o herico, ante o perigo de sbito au
mentado, no aquecera ainda por falta de contgio. Os outros j estavam preparados.
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A Dorival, de sentinela nas imediaes do Maicfe -Mirim, o barraco maior impedia-o de
ver o que s" fazia agora, com menos gritos do que h pouco e mesmo alguns silncios
, no outro extremo do Posto. Entre ete e a alpendrada, com Tito Boludo sempre imv
el, not se encontrava mais ningum. Naquele trecho havia uma paz toa, como essa que
os combatentes legant aos campos das batalhas recm-findas; e de tal ma% neira a
terra abandonada parecia respirar suavemente!) que Dorival sups mesmo terem os ndi
os comeado > retirar-se, devagar como das outras vezes. Os enxurros de vozes excit
adas ou os brados que lhe chegavam" ainda, de quando em quando, pareciam-lhe de
opiniosot retardatrios, descompassados rebombos de foguetes qn exigiram mais tempo
para ser escorvados e acesos dfc que os outros. No estranhou mesmo que Antnid Roch
a e Etelvino, ao sabor daquela aparente mart baixa, atravessassem do barraco meno
r para o maior? em andamento quase normal. Sentiu desejos de os imitar, desejo d
e pedir uma tigelinha de caf a Mariana e de botar fogo a um novo cigarro, que ass
im, com B garganta a escorrer doura, lhe saberia melhor. Mae" espreitando pelos bu
racos duma das folhas de zinco> imediatamente desanimou: os ndios postados na out
ra) margem do rio, logo no comeo do ataque, nove rapa* ges, caras redondas de lua
cheia, no tinham ido" juntar-se aos demais. Ao chegar ali, haviam flechadotrs veze
s seguidas a guarita, como se praticassem uma? saudao ritual ou batessem, por desf
astio, a porta d improvvel abertura; e, agora quietos, no mesmo stio" continuavam,
as cabeas a emergir do aibustedo ribei- rinho, sem poderem tambm divisar o que suce
dia do> outro lado do barraco.
Parecendo a Dorival ser evidncia irrefragvel a dificuldade de uma agresso lanada daq
uela banda, admitiu, para justificar a presena dos nove ndios, que eles estariam d
e sentinela, como ele prprio estava. E sendo a imobilidade e a mudez impostas pel
a vigilncia enervantemente desprazveis ao seu temperamento movedio, tomou-se a ele
mesmo como exemplo
i
f
de sacrifcio, presumiu que os outros se encontravam ali por ordem dum bruto tuxua,
ainda mais autoritrio do que Nimuendaj o era, e um minuto veio em que chegou a ap
iedar-se deles. Logo, porm, ferrava os dentes sobre o ndice esquerdo ao deduzir qu
e os selvagens, com toda essa quietude que lhe parecera fbrica de tortura, agu
ardavam a eventualidade de matar os civilizados, a ele tambm, se tentassem fugi
r pelo rio, nos bateles e canoas que se expunham muito perto da guarita, a dois p
assos somente. E ento a sua freima e o seu desejo de sair dali, para beber caf, nu
m instante amorteceram.
Menos feliz do que Dorival, Jarbas podia facilmente suputar, pelos orifcios da ch
apa que lhe ficava direita, o perigo que crescia, de momento a momento, ao fim d
a terra limpa. Acabava justamente de idealizar os Parintintins, se no aqueles, ca
recentes de longa adaptao, os das prximas geraes, j de todo civilizados, comungando em
ideias novas, quando viu os da parte mais longa da cerca correrem para somar-se
aos outros, de arcos erguidos, gritos de alegria a reboarem ao longe e os tubos
protectores dos sexos badalando-lhes, com aspecto de mocas, entre as pernas. A
posio da sua guarita permitia-lhe lanar os olhos, sempre que se voltava dentro das
duas folhas de zinco, a uma das face's do barraco maior, essa que nenhuma abertur
a apresentava; no conseguia, porm, descortinar a fresta onde os companheiros se ag
lomeravam, nem mesmo Tito Boludo no alpendre; e tudo parecia sugerir renncia, aba
ndono, casa desabitada. A defesa instintivamente activa, pensou ento Jarbas, puxa
do pelo que via e pela sua prpria experincia; mesmo num homem perseguido, oculto n
um buraco, todo o aparelho defensivo, os olhos, os ouvidos, a agilidade concentr
ada para a fuga eventual, encontravam-se em actividade excitada ou aptos a nela
entrar lestos e febrilmente. A coragem desenvolvia-se no movimento, como a espum
a nos lquidos agitados; a dificuldade era ser corajoso na imobilidade, pois que
na aco todos o podiam ser. Ali, porm, era a passividade, vencendo as regras
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normais, que tinha fora, que tinha coragem e tinJb% peso. E Jarbas, observando e
ssa aceitao esfingio$| mente parada em frente do movimento dos ndios, tte" contrria
ao seu passado, aderia-lhe calmamente, pam^f cia-lhe mesmo ter-lhe aderido h muit
o, ele que tanfegi correra naquela manh de Belm, no pelo receio <||* ser morto, mas
apenas para evitar ser preso. Nesm, calma de agora s os raciocnios e as sensaes and
ava^* activos e, mais ainda do que os raciocnios entreco"|r tados, as sensaes se de
senvolviam com instantneff rapidez, enquanto ele via os Parintintins continuarenjf
l a derrubar a cerca; uma sensao de estar vivo provip.* soriamente, de no ser naque
le momento inteiramente como era, de voltar a ser ou deixar de ser definitiva^ m
ente, ligado a outra sensao de obscura superioria dade sobre ele mesmo, dir-se-ia
sobre os rgos interno^" sobre as prprias vsceras. Pensou que gostaria de vMC aquele di
a to sonhado, em que se abrissem ao sol todas as portas e se anulassem todas as v
elhas sentia does, aquele dia que tanta luta lhe havia exigido, uraf luta que o
obrigara at a vir pedir floresta que "fo encobrisse por algum tempo. Se tivesse a
certeza de que alvoreceria enquanto ele vivesse, talvez lhe custasse arriscar a
alegria de assistir ao seu amanhecer, tanfc$ mais que se podiam deixar para de
pois as relaes com os Parintintins, esse depois onde a justia e a conquistas da civi
lizao seriam, finalmente, para todos*. Tanto isolara no seu desejo esse dia emanci
pado, todo" em alvoroo pelas esperanas consumadas, que ent algumas horas di
vagantes lhe parecia, confusamente," que j o tinha vivido parte da imaginao, vividc
r em esprito, carne e nervos, despegado das velhas medi"1 das temporais; e sentia
, ento, como que saudades dq si prprio. Ele sabia, porm, desde que entrara nas reiv
indicaes proletrias, que essa manh de sol justo se inscrevia ainda em datas to incert
as, como a da chegada das antigas caravelas que andavam por vastos oceanos, longn
quos, encrespados, por vezes tempestuosos mesmo. Tanto podia demorar menos do qu
e muitos julgavam, como demorar bastante mais; e era preci-
samente para que tardasse menos que ele e milhes de outros homens lutavam em todo
s os continentes, no raro at a morte. Mas dessa prpria falta duma data fixa lhe vin
ha a serenidade com que aceitava o risco e seguia os esforos dos ndios contra a ba
rreira farpada, na sua frente, muito prximo dele.
Mais perto ainda dos Parintintins do que Jarbas, Carolino olhava, muitas vezes,
o barraco. Perdera a imobilidade de h pouco, ora se volvendo para o lado da cerca,
ora para ali, sempre metido entre as duas chapas de zinco, como se estivesse a
o fim de beco miniatural, com as paredes laterais terminando em ngulo, a mo
do de proa de navio vista por dentro. E esses seus pequenos movimentos e o encon
tro dos seus olhos com os dos homens debruados na fresta e os sorrisos que voltav
am a trocar com ele, haviam-no tornado ainda mais corajoso do que momentos antes
, embora estonteado levemente.
Aparentando disposio jocosa, Manga Verde lanou-lhe algumas palavras, l de cima, engr
ossando a voz para que ele as ouvisse bem; mas o alarido dos ndios, ali to prximos,
no lhe permitiu compreender nenhuma. Do torn e dos gestos facetos deduziu que er
am de menoscabo pelo nervosismo e desajeitada lentido que os Parintintins manifes
tavam no seu prlio com a cerca; e sorriu e acenou ao Manga Verde, como se as houv
esse entendido perfeitamente. Parecia-lhe, todavia, que nem s os ndios demoravam
muito; parecia-lhe que tambm Nimuendaj tardava a mandar Honrio sair do barraco. Quan
do, porm, o olhava, via-o austero, cara fechada, dir-se-ia que to seguro de si mes
mo como um deus sentado sobre as nuvens da tempestade que por baixo dele vocifer
ava. Nunca lhe sorria, como se houvesse delegado em Bonifcio essa misso de esperana
e de solidariedade.
Nimuendaj via-o tambm, via-o completamente, mas era como se no o visse, como se no d
esse conta da existncia de si prprio, todo entregue quela secreta alegria de etnlogo
e de chefe que acabava de identificar o tronco de onde brotara o dialecto dos P
arin-
a
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tintins, que lhe lembrava o dos tupis do alto Rio Machado e lhe dava a gostosa c
onvico de poder fazer-se compreender por eles atravs do guarani, d h muito seu famili
ar.
Na alpendrada, Tito Boludo continuava sozinhos. A sua malquerena aos selvcolas com
eara mesmo antes da morte de Eleutrio. Comeara no batelo, a caminho dali, naquela ta
rde em que Honrio e Jarbas contes"taram as dvidas que ele exteriorizara sobre o se
iji comportamento e o dos outros homens quando ch$r gasse o instante da opo entre
matar e morrer. At a aceitara, com alma aberta e asseada, a ideia de ser necessrio
e bonito pacificar, enfim, todos os ndios ~fe pacific-los sem violncias. Rondon par
ecia-lhe umi. figura lendria, como as dos heris e dos santos, embru" mada pelas tr
adies, pela lembrana dos actos qu praticara e eram frequentemente evocados; um homem
superior a todos aqueles que ele conhecia, cujas douy trinas desencadeavam no s
eu esprito sentimentos de respeito, posto que no as sentisse completamente. Mas" n
aquele momento, as discordncias de Honrio e Jarbas, sobretudo o torn de algumas da
s suas palavras, haviami-Ihe produzido um rpido e humilhado azedume contra, os do
is, reflexivamente contra os Parintintins tambm, por os terem valorizado mais do
que a ele prprio, mais do que sua prpria vida. "Sabia perfeitamente que no se devia
matar os ndios, no era preciso lhe darem a entender que ele valia menos do que aq
ueles selvagens cruis, que cortavam a cabea dos outros e haviam morto a Camargo e
Felcio" pensara ento. E, semanas depois, fora como se a cabea de Eleutrio houvesse
cado da ponta da vara sobre uma poa, fazendo transbordar a sua gua j grossa de animo
sidade gua negra e estagnada como a do igap. Agora, junto dele, o "Mimosa" forava
a corda, sempre que do outro lado do barraco chegavam at ali os clamores dos Parin
tintins. Distendia o corpo como se fosse elstico, arrastava-se teimosamente no cho
, recolhendo as patas de encontro ao ventre como os avies recolhem as rodas. E a
sua curiosidade era tanta que
ele gemia baixinho durante o esforo desesperado que tentava para a apascentar.
Tito Boludo despejou-lhe em cima uma olhadela de desprezo e em seguida aquela id
eia que o ressentimento fizera subitamente boiar. Espraiou a vista, inspeccionan
do o terreno que se estendia at o rio, e s enxergou a Dorival l ao fim, de costas e
ntre as duas folhas de zinco, a observar os ndios postados na outra
margem.
J decidido, Tito Boludo entrou no barraco, foi cozinha, trouxe uma faca. E semelha
na dos cortadores de rvores, que lhes descascam os ps antes de enviar o machado em
direitura ao cerne, ps-se a raspar e a golpear com ela as fibras exteriores da co
rda, debilitando-a para que cedesse aos puxes de "Mimoso" e os olhos desprevenido
s a tomassem como partida por ele somente. Sentiu-se mais aliviado em seu pesadu
me quando terminou, satisfeito consigo mesmo por haver feito aquilo num instante
apenas. Volveu a depor a faca na cozinha e, finalmente, rumou a passos largos p
ara a fresta. No a havia atingido ainda quando os primeiros latidos se ouviram em
todo o acampamento. Amaro e Raimundo entestaram logo alpendrada e dali para o c
unhal do barraco. Atrs vinham outros homens aodados e, com olhos altos de curiosida
de, desejoo de anular suspeitas, Tito Boludo tambm. Mimoso! Mimoso! Aqui!
O co virou ligeiramente a cabea, por entre as duas flechas que acabavam de cair ao
seu lado. Olhou o dono, hesitou alguns segundos, e to aulado por tudo quanto ocor
ria diante dele, como enraivecido pelo longo emprisionamento, prosseguiu no avano
, sempre a ladrar com mpeto redobrado.
Amaro insistiu, numerosas vezes, no chamamento, com uma voz mais autoritria de ca
da vez; o "Mimoso" no lhe obedecia. Os homens viram-no tornar ao interior da casa
, quase esbarrando em Nimuendaj, que surgia tambm no alpendre, e volver imediatame
nte com um dos rifles nas mos. Encostou-se esquina do barraco, como se fosse camba
lear, ergueu a arma e
35 Vol. Ill
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O INSTINTO SUPREMO
I0gi
apontou. O tiro no soara, porm, nos ouvidos quefo esperavam; era relmpago sem trovo.
O rifle descera). Amaro circunvagou os olhos nublados pelos rostos dos homens,
uns olhos que dir-se-iam j exaustos pela lufe travada com ele prprio, uns olhos qu
e escolhiam dit cilmente e, por fim, se detiveram sobre Raimundo: ><|
Pega... Faz favor... Mata ele... n| A voz era surda, como se emergisse, moribunl
duma cisterna. < rir
Manga Verde interveio:
Mimoso! Vem c! Vem c! / jp1 Os ndios haviam deixado de forar a cerca. O c4f|
de plo eriado, continuava a arremeter, cada vez malfl prximo deles; e podia-se reco
nstituir perfeitamente"5! marcha que j havia feito pelas flechas que a denidfc ca
vam. g
Mata ele...repetiu Amaro. )!&& Aps um olhar consultante de Raimundo a Nimueff
daj, que lhe respondeu baixando a cabea e cerrai""" as plpebras, ouviu-se o tiro. O
"Mimoso" tombou logtt de banda e a ganir. Os Parintintins tinham-se calatt O co ga
nia ainda, o ventre a encher-se e a esvaziar^ 4 apressadamente, as patitas diant
eiras a estremecerei"^ muito. Raimundo voltou a disparar. Os homens devvi viaram
os olhos para no ver, mas a piedade s tA demora nas almas livres de perigo imedia
to. Nimueifedaj ordenava a Raimundo:
D-lhes a entender que no queremos atirar a eles. Faa-lhes um sinal. < &
Erguendo o rifle acima da cabea, como se atravessasse a vau lagoa ou rio, Raimund
o, de ndice esteitfdido, indicou-os aos ndios; e o mesmo dedo tracei no ar, em rel
ao a eles, um movimento negativo, trs vezes repetindo o gesto, perante a quietude a
tenta dos selvcolas.
De pijama s riscas verticais, brancas e azuis, to largas que pareciam artificializ
ar-lhe a austeridade do rosto, Nimuendaj chamou Honrio e murmurou-lh* algumas pala
vras; depois acenou tambm aos outros homens, para que recolhessem alpendrada.
A grandes passos, Honrio entrou no barraco e volveu j com uma pequena harmnica inser
ida nos lbios e um paneiro atestado de outras, que pousou junto dos seus ps, no me
io do acampamento. Era terra descoberta, sem outra sombra que a dele. E os ndios,
que principiavam a mover-se de novo, tentando uma vez mais destruir a cerca, qu
edaram-se a observ-lo, surpreendidos por suas atitudes e seu arriscado
isolamento.
Bonifcio surgira no alpendre com o binculo na mo e Nimuendaj disse-lhe num torn de o
rdem: V agora e veja bem as reaces deles. Parecia-lhe que o seu plano se articulava
cedo de mais, que os Parintintins ainda no estariam fatigados, nem suficientemen
te desmunidos de flechas; e que a morte do co tanto podia t-los impressionado util
mente, como lev-los a um maior futor, depois de verem que os civilizados cont
inuavam a empregar rifles, mesmo para coisa de to pouca monta.
A harmnica ia dum canto ao outro da boca de Honrio, voltava, tornava a ir, como se
ele fosse sugando um favo prateado, at o ltimo alvolo. Um favo de onde se exalavam
aqueles enxames de melodias que as suas altas pernas acompanhavam, bamboleando-
se lentamente. Tocava do lado do Maici-Mirim, l onde as setas no chegavam ou chega
riam to desprovidas de fora que o mesmo era que falecessem pelo caminho. De quand
o em quando, porm, vergava-se sobre o paneiro, dele tirava duas ou trs harmni
cas, todas iguais sua; e leve, gil, sinuoso, corria em direco ao stio onde os ndios s
e aglomeravam, de novo a gritar o velho dio. Sem nunca se deter, arremessava-Ihes
os pequenos instrumentos por cima do arame farpado e voltava, deixando atrs de
si um rastro de flechas, ao terreno que a distncia protegia, onde ento mimava, j
ovialmente, a maneira de eles os utilizarem.
Como a partida dos ndios, pouco antes, da parte mais longa da cerca, o obrigava a
sair repetidamente da rea que fora considerada menos perigosa durante
ioga
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o ensaio que havia feito, Nimuendaj, observando-lhe os movimentos, gritou-lhe com
rudeza: /,'oy
No se aproxime tanto! Ouviu, ? ij Lustrosa de suor, a imagem de Honrio tornara-a"
para Tito Boludo, que ora o olhava sombriamente, OIS retraa a vista quando ele lad
eava o cadver do "M^ moso", como que numa estranha mescla de repulsa, yg de fascnio
. Parecia-lhe ser o co, cuja morte no tinl* previsto, que lhe causava, desde a sua
agonia, todai as ebulies que o perturbavam agora. |
Nimuendaj avanara tambm para a terra limpap Mais uma vez levava frases sedutoras que
manipulara* cuidadosamente, desta feita em guarani, sua nova espejl rana; e, par
a que todos as ouvissem, tentou uma waj simptica e altissonante, que lhe saiu, mau
gradeai seu intento, um pouco esganiada. >a(j(
Irmos, viemos aqui fazer as pazes com voc(r)*" Somos vossos amigos e trazemos muit
as coisas bonita" para vos dar. Muitas, muitas coisas! Para vocs, pariB^ as vossa
s mulheres e para os vossos filhos. Esto com", preendendo bem ? M
As flechas rentavam-lhe o corpo, trazendo-lhe, cora" nica resposta, os seus zumbi
dos finos e irritantes" Nimuendaj insistiu ainda, antes de recuar, nas suas" pala
vras de confraternizao; mas, como da primeirsl vez, no obteve que os arcos, alinhad
os ao fim do caro" pamento, cessassem de disparar, embora lhe parecesse que os Pa
rintintins haviam entendido uma parte ef que ele lhes dissera. <\
Fauno negro, a harmnica a substituir a flauta & Pan, Honrio continuava na sua taref
a, agora a tocse e a requebrar-se, logo em correrias para as vizinhanas dos ndios,
de onde lhes lanava, com afveis sorrisoB,- mais algumas daquelas pequenas fontes
de ritmos,
No se aproxime tanto, j lhe disse! ] No extremo da alpendrada, os homens seguiam
-
-Ihe as evolues, terrivelmente silenciosos, os lbios contrados, as mos fechadas, os e
spritos suspensos pelo que lhe pudesse suceder um medo que no tinham ainda sentid
o por eles prprios.
Honrio captava essa fremente expectativa, os olhares que se lhe colavam ao corpo,
aquele secreto desejo de que ele sasse ileso do transe; e cada vez mais contente
consigo mesmo, ia tentando apurar, at o virtuosismo, os seus movimentos audacios
os e eufricos. A prpria ideia de coragem se lhe extinguira, amortecera-lhe a sensao
de receio e pouco lhe custava, quando corria para os ndios, a hiptese de morrer as
sim, perante a admirao apenas dos companheiros, naquela glria to efmera e to restrita.
Eram to generosas as suas mos, to velozes as suas pernas, que o paneiro j se encont
rava quase vazio. Os Parintintins continuavam, porm, a flech-lo, sempre que deles
se acercava a sua ousadia.
De sbito, os homens viram-no deter-se um momento, inclinar a cabea sobre o brao esq
uerdo, l onde a manga da blusa lhes aparecia agora furada e com uma ndoa vermelha
a alastrar rapidamente.
Venha! gritou-lhe Nimuendaj.
Parecia no o ter ouvido ou desprezar de todo o ferimento; embebedado pelo seu prpr
io destemor, experimentou tocar e bailar de novo.
Venha! Venha imediatamente! E traga a flecha! Era um torn imperativo. Honrio olho
u. A flecha
jazia a dois passos, inerme, num ar inocente, entre duas ervitas do terreno que
as cinzas da queimada enegreciam ainda. E foi quando se abaixava para a recolher
, que outra veio espetar-se no seu tronco e espetada horizontalmente continuou p
or alguns alarmados segundos, antes de os tecidos cederem ao peso da haste e ela
se inclinar como uma escora. De lbios franzidos, Honrio retirou-a.
Os homens avanavam j para o socorrer, quando por entre eles, s cotoveladas, todo br
utalho, Tito
Boludo passou.
Bastam dois! voltou a intervir Nimuendaj, ao ver que todos os outros o seguiam.
Bastam dois! E chamem o doutor Bonifcio.
Tito Boludo cruzou-se com Honrio, tomou do paneiro uma das harmnicas restantes e,
apertando-a nos
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lbios grossos, procurou imit-lo lestamente. Eram, porm, grotescos os meneios do seu
corpo atarracado,! com os quadris a lembrar as ancas das velhas negra" em maxixe
s de carnaval; e pareceu a Nimuendaipt que do prprio grupo dos ndios saam risos sara
s*: ticos. '\
A perna direita de Honrio ia escorrendo sobre a> terra sucessivos traos de um verm
elho escuro, s vezef" de pontos em forma de reticncias, que os homens viam aumenta
r de dimetro medida que ele se aproa ximava. O ar de coragem com que vinha no cons
egui^ esconder de todo o sorriso melanclico que pretendwp suprimir. Nimuendaj pego
u nas duas flechas que et trazia na mo, olhou rapidamente as suas pontas 4> logo a
venturou, descontraindo o rosto: >
Parece-me que no esto envenenadas. u Alertado por Filipe e Aristeu, Bonifcio acabav
a d(r)
descer do posto de observao e Nimuendaj passou* -lhas:
Veja l...
j - - . . - i
A sua opinio foi concordante:
A sua opinio foi concordante: - >1
As pontas das flechas envenenadas tm outriti cor. Alm disso, so tambm perigosas para
quem a traz. Os Nhambiquaras metiam-nas em tubos de taquara, para no se ferirem a
eles prprios. "L
Voltou-se para Honrio, com a vista larga a fuga" do sangue que coalhava na terra:
3
Ande, vamos ver como isso est e fazer o tratap mento. ^
Honrio entrou com ele no barraco, recusando ' amparo de Tanajara e de Maximiano, qu
e o haviam1 segurado pelos braos. "
C fora, o ar parecia j impregnado de fadiga. Os gritos dos Parintintins eram menos
veementes e maisf espaados; dir-se-ia mesmo que alguns haviam renurtj ciado a gr
itar. Nimuendaj assomou esquina do barraco, espiou e viu que fora interrompida a l
uta contra o arame farpado. Um dos ndios, com o arco encostado5 ao ombro, contemp
lava as mos ensanguentadas. As prprias flechas atiradas sobre Tito Boludo, quando
ele corria em direco cerca, comeavam a rarear
tambm.
Podem ir agora autorizou Nimuendaj.
Era o seu exrcito de paz que ele fazia sair. E os homens, distanciados uns dos ou
tros, com ele frente, foram agrupar-se no terreno onde as flechas morriam. De l,
acompanhando as palavras que ele proferia em guarani, puseram-se a acenar frater
nidades, que os Parintintins, desconfiados, olhavam como a um espectculo. E mais
uma vez Nimuendaj pensou que teria magro efeito, ou mesmo nenhum, aquela ideia de
Bonifcio, pois no dia em que desaparecesse dali alguma das embarcaes, os ndios comp
reenderiam facilmente que ficara reduzido o nmero de homens agora expostos
em frente deles.
Vamos embora disse pouco depois.
Ao rentar Tito Boludo, deteve-se um instante:
Venha tambm.
O ar continuava saturado do cansao que produzem as constantes repeties. Mas o panei
ro continha ainda duas harmnicas e Tito Boludo, antes de obedecer, correu a lan-las
para fora da cerca. As flechas que passaram, como um sopro vibrante, junto das
suas orelhas, foram as ltimas desse dia.
No barraco pairava um cheiro a desinfectantes, ainda denso e enjoativo, quando Ni
muendaj entrou. No tem gravidade respondeu Bonifcio aos seus olhos interrogativos.
A ferida do brao pequena. A outra maior, mas pouco profunda. A flecha embateu n
uma costela e no atingiu nenhum rgo. Dentro de oito ou dez dias est tudo cicatrizado
. Andou
com sorte!
A vozearia dos ndios tornara a elevar-se, estrepitando novas cleras, mas ia-se dis
tanciando sempre, sempre, como se fosse j o seu prprio eco.
V-se deitar disse Bonifcio a Honrio. E logo que ele saiu, voltou-se para Nimuendaj:
E voc tambm. Por hoje isto parece arrumado.
Viu eles apanharem as harmnicas ?
No apanharam. Pelo menos enquanto estive ali
logo
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na fresta. S um deles tentou ficar com uma. Era tlin moo. Mas outro, mais velho, t
irou-lha das mos c bateu nele. Parecia furioso. Lanou a harmnica ao cho e quis esmag-
la com o p. Magoou-se decerto pois ergueu logo a perna. V-se deitar, ande! e ponha
o termmetro. l
Nimuendaj tardou a obedecer-lhe. ' l
um bocado estranho que no tenham trazida flechas envenenadas disse, como se fala
sse sozinhti.
Quando entrou, finalmente, no seu quarto, Nimueipdaj ouviu Honrio narrar a Cavalca
nti, do outro lad da divisria, o episdio que acabava de representar
Sabe ? Quando eu estava a tocar e eles me $& chavam, pensei na maldita. Pouco tem
po, mas pensei'. Gostava que ela me visse assim. Gostava que estives^ no alpendr
e, para me ver assim. Mas foi bom que no estivesse. Talvez eu me arriscasse mais
e ela no me"recia.
j\
IX fs
>h
, - P
JWI ANH do dia seguinte, oito horas exactas, coS" impacincia aguardadas, Nimuendaj
extraiu de sob o brao o termmetro, que se lhe mostrou optimista, quase entrevado,
desdenhoso das escaladas precedentes. Levantou-se, lavou o rosto demoradamente c
omo se quisesse limp-lo de todos os bocejos e mal1-estar da madrugada insone, que
se fazia recordar ainda!. E examinando a palidez da cara, aumentada nos ltimos d
ias, ao sabor dos acessos recidivistas, comeou A barbear-se. O seu desejo era ref
rescar novamente a testa e as faces.
Bonifcio entrou com expresso de bonomia:
Como vai isso ?
No tenho febre.
Nem tudo mau. Acabo de ver o Cavalcanti e parece-me que escapar da fase cardiovas
cular. Ainda pode vir de repente, claro.
/-l ti T37PT" Ji
Esperou que Nimuendaj terminassec-ori;un^jvas barba, observou-lhe a lngua sabur
renta, a' ^ ltimas amareladas e auscultou-o, como em toi\ asse apalmanhs; por f
im, pedindo-lhe que se d1 pou-lhe o fgado e o bao. , se levantar.
Est melhor. Mas seria prefervel na' ^-g^ i Voc
S um bocado. Sinto-me farto d estao habibem sabe que os impaludados crnicos j
'
tuados^a no fazer caso disto. ^prometem
E um doente rebelde, desses que ldente E enos mdicos replicou Bonifcio, condescen
da tomar o quanto ele se vestia, veio para a alpendt pequeno-almoo. frente dele>
Nimuendaj no tardou. Sentou-se eL anteiga que com um breve gesto recusou a lata de
'^s bolachas e Mariano comeava a abrir, ps de lado '^do Genaro bebeu apenas o caf.
Ia j pelo cigarro qt1 que regressava da vigilncia, o informou(a_rem ^ ^ar-
De manhzinha, vi uns ndios peL-^ Andavam mnicas: as que estavam mais longe do ar.^
nao assustar de rastos, como jacars. No dei sinal, p) aquilo. E vieles, pois me par
eceu que vinham s poi e desaparenham mesmo. Pegaram umas quanta'
ceram logo.
Eram moos ?
-- Eram moos, eram. num torn que
Est bem proferiu Nimuenda]UQenaro entrOu parecia alheado do que ouvira. Logo que
no barraco, Bonifcio disse: iS Parintintins
Estive esta noite a pensar que ^^ i^eia gene_ ignoram, com certeza, a influncia q
ue i1 g talvez no rosa pode exercer sobre muitos homen^-an^os ^jindes compreenda
m que estejamos aqui a da nenhum intee a gastar o nosso tempo, sem termo'^e^es
tambm resse nisso. Se estivssemos no lugar an.0s'a ocuparno compreenderamos. Andmos
tanto,ertencia a eles -lhes as terras, a chamar a ns o que L.quj feitos uns e, du
m dia para o outro, aparecemos ?s sao homens> santinhos. Ora, apesar de selvagen
s, l acre^tar qu E, sendo homens sem ideal, no devei'
iog8
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INSTINTO SUPREMO
I(H)()
algum se sacrifique pelos outros, sobretudo um inimigo.
Emagrecido, a expresso fatigada, os cotovelos apoiados no rebordo da mesa, Nimuen
daj baixava e erguia de leve a cabea, baixava-a e erguia-a como os tteres dos ventrl
oquos e como se tudo aprovasse de modo automtico.
Se pudssemos dizer a eles por que viemos, creio bem que os convenceramos. Mas
parece que no o compreendem, no verdade ? Por isso seria talvez melhor simul
armos que estamos aqui com um determinado interesse. Uma coisa que seja fcil eles
satisfazerem.
Simularmos, como ?
Por exemplo, que estamos interessados em trocar os nossos brindes por acanita
ras iguais aos que trazem na cabea. com meia dzia de plumas podem faz-los e ficar
iam com a impresso de que a troca era vantajosa para eles.
Nimuendaj voltava a sentir, como na noite passada entre os Muras-Piras, a fora do m
undo pueril, as abdicaes que impunha, os recursos que exigia aos espritos mais evol
udos; e com voz lenta aceitou:
No est mal pensado, no. O problema , realmente, comunicar-lhes isso. Eu julgava que
eles poderiam entender o guarani; mas ontem no me entenderam ou fingiram no en
tender, por no quererem relaes connosco. Calou-se um instante e logo recomeou, s
empre com voz cansada: Talvez algum de ns pudesse explicar-lhes por gestos. O Ho
nrio muito expressivo, mas...
No precisamos do Honrio. Vi uma vez, quando andvamos na construo de linhas
telegrficas, o Dr. Miranda Ribeiro pintar um quadro representando a confrater
nizao dos civilizados com os Nhambiquaras. Eu desenharia algumas cena
s que eles compreendessem facilmente. Veja l: um civilizado a oferecer o brinde
com uma das mos e a receber com a outra o acanhara. Que lhe parece ? Talvez eu no
tenha
j cartes suficientes, mas se no chegarem, posso desenhar sobre as prprias telas. Ou
pintar.
Me parece bem. Para dizer a vordade, me parece melhor do que termos mostrado a e
les todo o nosso pessoal. Retardmos a partida dos que eslo a mais < as comunicaes co
m Trs Casas, talvez sem nenhuma vantagem. Se continussemos a ser muitos, os Parin'
intins poderiam sempre admitir que estaramos aqui para os atacar, mais cedo ou ma
is tarde. Se formos POUCOS, provvel que no pendem o mesmo. E se liver de acontecer
alguma coisa, quantos menos formos,
melhor.
Eu no tinha encarado essa hiptese...
No devemos aborrecer-nos por isso - - cortou Ximuendaj, como se se houvess
e arrependido do que dissera. Pode ser que tenha sido uma ingenuidade, aia e mi
nha, pois concordei consigo, mas ningum se livra de alguma vez ser ingnuo. Se os
Parintintins pensaram isso, e no sei se pensaram, em breve se ilaro cont
a de que j no somos muitos...
Vai ento mandar os homens ?
Sim, logo que houver luar.
Pareceu-lhe que Bonifcio, de repente silencioso, reflectia, sem lhe aderir, sobre
aquela deciso, que significava, afinal, prximas notcias de Trs Casas. E estranhava
que ele se mostrasse assim reservado, to frio, quase opositor, ante a ideia, que
certamente lhe ocorrera, de receber cartas da sua mulher dentro em breve. Viu-o
pedir mais caf a Mariano, falar de novo sobre as aguarelas enquanto o esperava, t
oma-lo pressa e partir rapidamente. you comear.
Na ms? do seu quarto estendeu um dos cartes, soprou a sarar que nele vadiava e deu-
se a esboar o quadro, concebido em dois pisos, o do comrcio e o didctico. Em cirna,
substituindo as nuvens e os anjos de outrora, o parintintim entregava o acanita
ra, igualzinho ao capacete de plumas que lhe ornava a cabea, e recebia o machado;
e, assim provido, abatia na parte inferior, l onde as velhas pinturas exibiam a
Viigem
IIOO
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
IIOI
lnguida e o menino bochechudo sentados no seu trono, uma bela e gross
a rvore.
Fortemente colorido nas longas penas dos diademas, hora do almoo o desenho estava
pronto. Nimuendaj louvou-o, o pessoal, surpreendido com a no vir dade, achou-o r
espeitosamente "muito bonito, seu doutor" e Maximiano foi encarregado de lhe pr u
m caixilho nesse mesmo dia.
A tarde, Bonifcio continuou a explorar, paciente e convicto, aquela volumosa espe
rana. Diversificava apenas os rostos das figuras, os objectos e a sua apli"cao. Se
no primeiro andar se trocava uma caixa de fsforos, no rs-do-cho ensinava-se a acend
er a fogueira. "Talvez j saibam isto, talvez, mas o essencial sugerir a permuta"
- dizia a si prprio. Aquilo era tambm uma fuga s umbrosidades ntimas, uma eva-*- so no
deliberada e pouco eficiente do novo conflito que se desenvolvia no esprito dele
, entre as suas desr favorveis admisses de clnico sobre a sade de Niimuendaj e a sua n
sia de receber notcias de Tarsliai Ia desenhando o selvagem a colocar, no rude pes
coo da companheira, o pobre cordo de missanga, com ademanes de prncipe oferecendo a
mante prima-dona, , ao seu colo provocantemente decotado, um colar de prolas de a
lto custo; e, ao terminar, surpreendeu-se de haver delineado a cena com rapidez
e graciosidade, no obstante estar a pensar noutra coisa.
"Vamos agora lisonjear o pai". E no tardou que no carto surgisse o eventual filho
do parintintim a rufar, todo ditoso, o pequeno tambor azul, de rebordos doirados
, sustido a tiracolo.
A ferramenta de Maximiano actuou prestemente. Dir-se-ia mesmo comungar no prazer
do carpinteiro perante a suposio de que uma utilidade imediata, fecho de tantas s
emanas nuas de resultados, poderia advir daquilo. Mas s no dia seguinte, sobre a
tarde, ele pde concluir todas as molduras e fixar-lhes nas costas as tabuinhas qu
e deveriam defender de encarquilhamentos e outras agresses o verso dos desenhos a
quelas novas mensagens.
Era uma tera-feira e a noite acercava-se quando Nimuendaj, quebrantado pelos dcimos
de febre que ressurgiam, como os bacuraus, com as sombras baixadas do cu, disse
aos homens reunidos na sua
frente:
At agora eles tm mostrado tendncia para vir da parte da manh, talvez para ficarem co
m tempo de regressar maloca. Mas isso no quer dizer que no venham de tarde. Podem
mesmo estar l a esta hora. Podem ter um tapiri perto de ns...
Juvncio adiantou-se:
Eu, por mim, you.
Cada um sabia, antecipadamente, a resposta de todos os outros. A ideia do perigo
, inflamada num instante, j no raciocinava: contagiados pelo destemer, que era com
o uma intoxicao, ofereciam-se logo. Nimuendaj escolheu os que falaram primeiro.
Jarbas e Filipe transportavam a chapa zincada, que abrigaria a exposio, pois que a
o dealbar chovera um pouco; Maximiano, as seis delgadas estacas, em molho, no om
bro; Juvncio metera na serapilheira os brindes midos, o martelo, os pregos, e leva
va os machados nas mos; frente rompia Amaro, com os quadros emoldurados sob os br
aos. Abriram a porteira e desapareceram na mata.
-A luz que ainda avivava o acampamento, quente e policrmica, esmorecera j entre o
aglomerado de rvores. Mas s ao deterem-se no varadouro que buscavam, se deram cont
a do silncio, medonho e morto como se estivesse cheio de olhos vtreos, com que o l
usco-fusco da brenha ali os esperava.
Na terra hmida, Maximiano espetou, sem dificuldades, as estacas. Colocaram-lhe em
cima a folha de zinco, nos seus furos os pregos que deviam segur-la. Ento Amaro b
aixou-se e, sob a proteco da cobertura, disps no segundo plano, em semicrculo, ampar
ando os caixilhos com gravetos, as cenas que Bonifcio desenhara. Diante delas ali
nhou os brindes, os pomposos ao centro, os demais a cerc-los, tudo como numa vitr
ina, trabalho que os outros homens seguiam muda-
1102
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O INSTINTO SUPREMO
1103
mente, sem que nenhum olhasse para os lados, no fossem os companheiros julgarem-n
o pusilnime. <
Ao longo das horas elsticas, que pareciam estirar-se enlanguescidamente pela flo
resta adentro, a curif sidade atazanava-os mais do que se esperassem o result tad
o duma dessas armadilhas de que Raimundo set dizia mestre, com um pau rachad
o sustentando ura, rifle "Quando se puder sair daqui pr caar, vocs vero mesmo" sob
re o trilho nocturno da anta que, lhes forneceria carne abundante, fresca e sabo
rosa, para dois ou trs dias. Mas as sentinelas, por muito qu lhes pedissem ouvido
fino, no haviam captado rumai; algum e Nimuendaj, querendo poup-los a repetidqs, co
ntingncias, recusara a sua autorizao para eles irem, espiar logo na tarde seguinte.
Na quinta-feira, nenhum grito cortara tambm a dvida, nenhuma flecha vieqa, cair n
o acampamento; a brenha remergulhara no seu torpor antigo e dir-se-ia que mantin
ha de propsito, aquele vasto e desolante silncio. K
Finalmente, ao terceiro dia, Nimuendaj deu o seu acordo e Juvncio penetrou na mata
, desta vez sem' mais ningum. Volveu pouco depois e, pela cara qu, abria, compreen
deram logo que trazia boas novas.
Levaram tudo... > Tambm a folha de zinco ?
Isso no. Os homens riram. Nimuendaj tornou:
Deixaram algum acanhara ?
Uma ansiedade partiu dos olhos de Bonifcio para Juvncio, que parecia confundido po
r no haver pen* sado naquilo.
Acanitaras no deixaram, no... Lentamente e em silncio, Nimuendaj friccionou,
com a palma da mo direita, as costas da mo esquerda, que estava fechada; depois vo
ltou-se para Amaro e disse:
Mande colocar l novos brindes.
No domingo, ao escurecer, Jarbas, para que no fosse apenas Juvncio a arriscar-se,
enfiou-se por entre as rvores e, meio oculto por uma delas, espreitou. De sob a c
hapa zincada, os novos objectos tinham sido levados, sem que na terra escura, qu
e eles ocupavam, ficasse retribuio alguma.
Quando Jarbas comunicou o desengano, perante as caras interrogativas dos outros
homens, Nimuendaj declarou, rpida e friamente, como se j trouxesse aquela resoluo na
boca que o mau humor endurecia:
Por agora no lhes daremos mais brindes. melhor deix-los pensar algum tempo.
Revezando-se, toda uma semana se expuseram, avanando ao anoitecer no meio dos ram
os e voltando sempre de mos vazias.
Mas um dia Filipe divisou, enfim, por entre a gorda folhagem, pequenas manchas
irregulares, vermelhas, amarelas, azuis, s vezes simples pontos onde conflua
m diversas cores, em rivalidade com o verde imperante; e era como se visse trech
os de araras, mutuns, japus e tucanos atravs dum velho crivo roto. Filipe avanou m
ais. L estava. Um, apenas um, sob a folha de zinco, ao centro da terra destinada
aos brindes, que lhe parecia agora, por contraste, mais negra e mais vasta. Dir-
se-ia que falava. Que prometia, de dentro dum passado bastante escuro, um presen
te luminoso e fruitivo. O acanitara excedia at, na variedade das plumas, aqueles
com que os Parintintins se haviam apresentado para ruidosos combates, junto da c
erca. emoo aquentava Filipe e ele experimentou-o em si mesmo, como para uma posse
verdadeira e definitiva. E foi ento que julgou ver uma sombra a escoar-se, rpida e
tambm emplumada, a uns quarenta metros dele, por entre as rvores.
Ficou a olhar, muito quieto, muito hirto, com uma calma repentina a esfriar-lhe
a emotividade. Certo de que os seus movimentos eram espiados, incerto sobre se o
frechariam ou no quando se deslocasse, regressou ao Posto lentamente. Antes mesm
o de transpor a can-
iio4
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1105
cela, sentiu-se ridculo com o acanitara a selvagizar-lhe a cabea e entrou j com ele
dependurado do ndice direito, balanando ligeiramente ao sabor do seu passa vagaro
so. 'n<>
S um ? perguntou Amaro com a boca alar>{ gada de ventura. }ft
Manga Verde desdenhava:
com um regato se fazia melhor negcio. Tanto(r) brindes e tantos dias esperando, s p
ara isto! Mangfr Verde desdenhava e ao mesmo tempo ia passando " mo, cariciosamen
te, sobre as plumas mais longas a acanitara.
Somente os lbios de Moacir no sorriam, nem nH olhos dele brilhavam. Mas Jarbas, qu
e h muito o conhecia e decifrava os segredos da sua cara paraj^ com mais despacho
ainda do que os epigrafistas tia$| as inscries de velhas pedras imveis, estava cert
o d" que tambm ele se sentia feliz, perante aquele primeiro trofeu. ias
" pena no ter sido antes" pensava BonifeidJ nublando a vitria da sua ideia com a fi
gura de M* muendaj estendido na rede, as dores a morderem*-^ os rins e a minar-lh
e a cabea, sucessivos calafriosr quarenta graus de febre. 'h
Finalmente! disse Bonifcio ao entrar, com-"8 outros homens, no quarto dele; e a
voz parecia quener transferir o seu regozijo para o doente, inocular-lho na carn
e e no esprito, como um novo medicamentai
Nimuendaj voltou-se na rede, penosamente, j tod amarelado pela ictercia. Lanou um olh
ar febril ao acanitara, que Bonifcio agitava diante dele, com brinquedo diante de
uma criana no bero, e abriu um sorriso vago e triste. No tardou, porm, que ,0 ouviss
em dizer a Amaro, com uma inteno que no desertara e o torn decidido do seu carcter:
Mande pr l mais brindes. Muitos!
Encarou Bonifcio, parecia ir comunicar-lhe tambm alguma coisa, uma ordem disfarada
em pedido, quando a nusea lhe veio. Sentou-se sufocadamente na orla da rede, logo
se ps de p, convulso, dispneico,
a mo sobre o ventre, a boca arquejante escorrendo
baba.
Jarbas retirou-se, Moacir seguiu-lhe discretamente os passos. Os olhos de Bonifci
o voltaram a fixar, dir-se-ia que involuntariamente, que desnecessariamente, poi
s j o tinha visto, o lquido que cobria o fundo do vaso, sob a rede, dum vermelho-a
castanhado, cor que os seus colegas comparavam do vinho de Malaga ou do Porto, c
omo se pretendessem hierarquiz-la e envolver numa sugesto menos desagradvel o grave
sintoma que ela representava.
Frequentemente abalado pelos vmitos biliosos, que subiam como ondas nervosas, ama
rgando-lhe na garganta e dificultando-lhe a respirao, Nimuendaj sentia-se exausto.
Amparava-o Bonifcio, os outros homens assistiam, de cabea baixa, respeitosos. Hesi
tavam entre continuar ali e o chefe consider-los importunos ou partirem e ele pen
sar, talvez, que no se interessavam pelo seu estado; e, nessa dvida, iam-se deixan
do ficar. Por fim a crise amainou. E Nimuendaj, ao volver rede, fez um gesto de
desagrado por todas aquelas presenas. Os homens foram ento saindo, um pouco vexado
s, ps leves comendo o rudo e aquela respirao sempre difcil do doente a acompanh-los, a
persegui-los, como ralos escalonados beira do caminho, nas noites belas e quent
es do Estio.
Me parece que este stio est sendo mais ruim ainda do que os Parintintins... Foi o
Soares dos Santos, o Cavalcanti, agora ele, sem falar nos da desinteria... desab
afou Filipe, logo que chegaram alpendrada, em frente de Honrio, cujas feridas j ha
viam cicatrizado.-Qualquer dia vamos todos ns!
Do exagero sorriam ainda alguns dos homens, quando Bonifcio surgiu porta, de olho
s no cho e
rosto contrado.
Est mesmo mal ? perguntou-lhe Maximiano,
timidamente.
Viram-no baixar a cabea, sem uma palavra; viram-no passar ao lado deles, com as mo
s enfiadas nos bolsos, como fazia o etnlogo, e dar umas voltas
iio
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1107
toa pelo acampamento, sob as estrelas que principias vam a nascer. -f
A biliose desatara-se na vspera, sem surpresa de maior para ele, que sabia estar
Nimuendaj, como todos os impaludados crnicos, h muito submetida a esse risco e que
os recentes sintomas eram j bastante significativos. Os trs dias seguintes decidir
iam tudo i para a vida ou para a morte, o prazo seria curto. Recor* dou-se do pe
rodo em que ele e outro mdico acofl& panhavam a hoste de Rondon, pelo bravio interi
or d<* Mato Grosso, e o impaludismo e o beribri haviai^ prostrado numerosos solda
dos, dezenas de praas que construam as linhas telegrficas no longo trecho & Cuiab a J
uruena, aquele infindvel serto. Muitof deles tinham perecido de bilioses, mesmo en
tre d enviados a toda a pressa para a derradeira esperan$a$ para a ltima possibili
dade, que eram os hospitais * capital, l to longe. Recordava-se do doutor Costa} qu
e o antecedera, do doutor Murilo que lhe havif[ sucedido, ambos, nessa altura, c
om mais experiiei do que ele, ainda h pouco formado; lembrava->St dos dois e sentia-
lhes a falta ali. Partilhar a expeef tativa, as opinies e as apreenses com esses v
elfatf colegas, que tinham enfrentado tantas circunstft* cias desastrosas, faria m
inguar a sua responsabil* dade solitria, aquele peso individual que o molestava ag
ora.
s oito horas, Bonifcio tornou ao quarto de Ni" muendaj, para a medicao. No se via o co
rpo/ divisavam-se apenas, atravs do tecido, as formas do seu volume, muito quieto
no fundo da rede. '
Vamos tomar isto ? * Nimuendaj moveu-se, deitou as pernas de fora,
ficou sentado por fim. Parecia mais sereno. Somente os olhos, encovados e febris
, que a luz do farol tornava mais profundos, dir-se-iam buscar disfaradamente, no
rosto de Bonifcio, alguma coisa que ali se escondia^ Engoliu o medicamento, toss
iu de leve.
uma biliose, ?
No... Apenas um acesso mais forte...
Nimuendaj olhou para o lquido do vaso, debaixo
da rede, e insistiu:
uma biliose hemoglobinrica, eu sei...
Quem aqui o mdico ? voc ou sou eu ?
A voz de Nimuendaj tornou-se mais arrastada:
Eu esperava ela h muito... Li os sintomas... Estava no interior do Maranho, longe
de mdicos. Precisava de saber distinguir entre um acesso vulgar e as outras comp
licaes.
Leu e no adiantou. Felizmente os livros de medicina so caros e muito cacetes,
se no toda a humanidade se julgava em perigo de morte. Mesmo as pessoas inteli
gentes no escapam auto-sugesto...
Calou-se uns segundos, a temperar a voz, e acrescentou, sem confiar no que dizia
, perante aqueles olhos incomodamente fixos na sua cara:
Pode crer... Mas se receava uma biliose, por
que veio?
Tinha a esperana de que me poupasse... Nem todos os impaludados crnicos morrem com
bilioses...
o que vai acontecer consigo...
Tornou Bonifcio a ficar descontente com o torn de voz que empregara e a ele prprio
soara como artificial; mas Nimuendaj parecia no t-lo ouvido:
Esta misso me entusiasmou... No queria perd-la... Est compreendendo, ? Me interessava
muito.
A mim tambm, mas agora descanse. Na manh seguinte delirava com os ndios:
No mata eles! No mata eles!
Quando, porm, acordou e viu Bonifcio sentado perto da rede, a sorrir-lhe, voltou a
cerrar os olhos. Encontrava-se to estuporado, to entorpecido, que as suas energia
s, at a sempre persistentes, faliam perante as respostas as perguntas do mdico e re
cusavam-se aos movimentos que ele lhe solicitava, para exame. O seu esprito havia
amortecido tambm, dir-se-ia que tudo lhe era j indiferente, cisco da vida, coisa
nenhuma. Mas ao cair da noite, quando Bonifcio lhe acendia o farol, a sua voz mur
murou:
Trouxeram mais acanharas ?
no8
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
II09
Hoje no, mas vo trazer, com certeza. Voltou sua modorra e s a respirao pareca
viva. Cada vez mais incerto sobre o desfecho, Bonifcio acercou-se da pequena mesa
, abriu a caixita, pegou no copo: "Lutar at ao fim... Mesmo contra moinhos de ven
to... Lutar sempre..." pensou, um pouco esfarrapadamente, lembrando-se do seu p
apel, enquanto ia dissolvendo o medicamento. '[
Ao quarto dia, a estuporao, a febre, as ameaas de anria mantinham-se; a biliose cont
inuava no seu curso, hasteando sempre a grande dvida; mas ato lusco-fusco, Nimuen
daj tartamudeou ainda: ,i,f
Trouxeram ? <s Bonifcio respondeu afirmativamente. Pareceu-lhe"
porm, que a mentira no enraizara, que naqueles olha" esmorecidos, j sem brilho algu
m, se acendera de repea" uma descrena, curta e desvalida, como um pirilampo que di
sparasse a ltima luz ao findar da madrugadqi Bonifcio dirigiu-se ao seu quarto, ag
arrou sobre o tope do cavalete, onde o havia enfiado, o nico acanitau recolhido, a
rrancou-lhe as plumas mais longas, disfarou-o o melhor que a rapidez lhe permitia
e com ele regressou: '-k
Veja! IR Indicou-lho da porta, mas Nimuendaj parecia j
no dar acordo de si. -b
Foi, contudo, nessa noite, muito prximo do amanhecer, que o termmetro abandonou a
sua eloquncia sobre as cumeadas e principiou a falar moderadamente, no vale, pela
primeira vez naqueles quatro dias. Quando o sol irrompeu por cima da imensidade
da floresta, conf o ar de espio celeste que apresentava a essa hora, ji trazia u
m carrego de esperanas, luzentes como ele prprio. Sempre fiel aos seus hbitos, a bi
liose, desde que se inclinasse para a benevolncia, empreendia a retirada quase to
rapidamente, quase to bruscamente5, como chegava; desistira da vida de Nimuendaj,
ma deixava-o entre os escombros dele mesmo.
Voc, que andou a ler todas essas coisas, sabe perfeitamente que no pode continuar
aqui disse-lhe
Bonifcio, dias depois, perante a sua pele a revelar a armao ssea, as mos esquelticas,
as orelhas transparentes. No foi s pelos ndios, posso dizer-lho agora, mas ta
mbm pelo receio de que, um dia, tivssemos de mandar urgentemente para Trs Casas a s
i ou a qualquer outro, que no mostrei nenhum entusiasmo pela sua ideia de reduzir
o pessoal. Voc precisa de mudar de meio, precisa de tratar rapidamente da sua an
emia, que muito grave, como sempre nestes casos. Percebe? Uma vida higinica, outr
os cuidados, outra alimentao. Vai para Belm, que uma belezinha de cidade, sem carap
ans e com mdicos muito melhores do que eu. Est l a sua mulher, a sua casa, que mais
pode desejar? E leva consigo, at Manaus, o pobre Cavalcanti, que tambm escapou d
e boa.
Ele compreendia. Ele compreendia que tinha de se ri embora. Mas aprazia-lhe escu
tar Bonifcio a repetir aquilo sua muda resistncia, ao seu teimoso silncio, ressumad
o mais pelo homem-etnlogo, do que pelo homem somente fsico. Precisava de ouvir rep
etir aquilo, carecia de reconvencer-se de que no havia alternativa, j que nem a prp
ria gravidade do seu estado conseguia submet-lo, sem reaces, ideia de interromper a
gora a misso que o trouxera ali. Agora, que lhe parecia estar muito prximo o xito,
a anelada glria de ser o primeiro a estudar os costumes dos Parintintins, o prime
iro a revelar ao Mundo a sua vida actual e o seu passado, pois que deles apenas
se conheciam, por etnlogos que jamais os tinham visto, confusas referncias, diludas
hipteses; e da realidade sabia-se unicamente que protegiam o sexo com um tubo e
que eram tremendamente
ferozes.
No voltaram a permutar... disse por fim Nimuendaj, num torn de monlogo.
- No voltaram, mas voltam. O primeiro lao est feito. No se preocupe com isso. O Amar
o bom. E eu farei o que puder. No falamos o tupi-guarani, no conhecemos o dialecto
deles; mas, ao passar em Manaus, voc mesmo pode pedir, no Servio de Proteco, que ma
ndem algum que os entenda. O Garcia no estaria
IIIO
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
IIII
fel i
mal e seu amigo; mas parece-me que tambm ele no fala o tupi-guarani, nem qualquer
dialecto.
Nimuendaj volvera ao seu silncio. Bonifcio insistiu :
Voc precisa de um repouso absoluto. E o Cavalcanti igualmente. Devem ir no batelo
, estendidos no fundo, sempre que puderem. O batelo andar menos do que uma canoa,
claro, mas neste caso mais recomendvel e, para baixo, todos os santos ajudam. Me
smo se fossem atacados, teriam onde se abrigar melhor. Penso que deve lev
ar um rifle e disparar para o ar, como Rondon, se isso acontecesse. Na aldeia do
s Mura-Piras, pode tomar ento uma canoa, se se sentir mais recomposto. Pensei no c
aminho mais curto, por onde voc veio a primeira vez. Andou quatro dias por terra
e depois desceu o Igarap da Trara, numa montaria que construiu ali mesmo, no foi ?
Nesse temp(c) voc tinha resistncia, hoje no tem. E como ia num batelo, ou mesmo numa
canoa, subir de noite o Trara1, que to estreito e com ramos a dificultarem a past
sagem ? Ali, sim, era muito provvel que os ndios pegassem vocs, quando amanheces
se. i
Bonifcio interrompeu-se, fez seus clculos:
Dois ou trs dias no Trara, quatro ou cinco na , rede, aos ombros dos outros homens
, at ao seringai
' fit Paraso... No pode ser! Mesmo que chegassem vivos, -* era em muito pior estad
o do que tinham sado daqui. Nimuendaj havia j pensado e repensado tudo aquilo, esmi
uado as duas possibilidades, arribado s mesmas concluses. Agora parecia-lhe que Bon
ifcio falava por ele. Parecia-lhe, mais estranhamente ainda', que falava como ele
, com a mesma extenso de racio^ cnios, as mesmas previses, a mesma viso de conjunto
e at uma autoridade igual, como se Bonifcio fosse agora ele prprio e ele uma criana,
como se Bonifcio lhe houvesse usurpado, ao sabor das circunstncias, a sua persona
lidade.
Est bem assentiu finalmente, num torn concentrado e melanclico.
Se tiver cuidado, pode restabelecer-se em cinco
ou seis meses e voltar. Mas desta vez no embarque sem o acordo dos mdicos. Eu gost
aria de poder acompanh-lo. Gostaria de dar um salto at Manaus. Matar as saudades q
ue tenho da minha mulher, ver outras
caras.
*
Foi Nimuendaj quem os escolheu, mentalmente, pesando vantagens, medindo inconveni
entes, naquela outra madrugada sem sono, ainda na rede.
Filipe, Aristeu e Juvncio no faziam nenhuma falta ali; Crisstomo, Antnio Rocha
e Etelvino, dbeis como tinham ficado, estariam melhor em Trs Casas; havia de perg
untar a Bonifcio se j no existiria perigo de contgio em to pequeno espao. Pouco po
deriam remar, nem seria justo que lhes pedisse muito. Um iria ao leme, os outros
revezar-se-iam. E s at a aldeia dos Muras-Piras, onde os substituiria por alguns d
esses ndios, se visse que era preciso. Mas talvez no fosse, pois que levaria tambm
Tito Boludo e Dorival. Ambos vigorosos, dariam aos remos as energias que aos trs
faltavam; e, levando-os com ele, libertaria dos seus temperamentos azedos os que
ficariam ali. Caroline, por quem todos sentiam respeito, estaria bem para os
chefiar, sobretudo no regresso, quando ele j no viesse. J no viesse! Ia sentir a fal
ta de Raimundo, sem dvida; mas no seria legtimo retirar um elemento to sensato e to e
xperimentado.
Contou-os, incluiu-se na soma, meteu tambm o Cavalcanti, o prprio Eleutrio; e
verificou que no acampamento quedariam apenas onze homens dos vinte e trs que ti
nham vindo. Podia perfeitamente dispensar os que haviam sofrido disenteria. Mas
porque no lev-los, se era til sade deles e no estariam ali a diminuir mais ainda os m
antimentos ? Talvez fosse melhor deixar Carolino. Deixava-o e tomava o lugar que
lhe destinava. No se encontrava assim to mal que j no pudesse ser o chefe dum simpl
es batelo. E, com doze no Posto, era mais do que suficiente.
De manh comunicou a Bonifcio e a Amaro a
I IP
III2
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III3
seleco que fizera, anunciou a largada para dali a. dois dias, que j haveria ento uma
rstea de luar^ pediu a opinio do mdico sobre a ida de Crisstomo, Antnio Rocha e Etel
vino e pareceu-lhe que eles aprovavam tudo com sinceridade. ,
Faa a lista do que est faltando aqui disse a Amaro. E voc, doutor, veja se precis
a de mais alguma coisa de farmcia.
Logo que Amaro preveniu os homens escolhidos^ Tito Boludo, lanando-lhe um olhar s
oturno, inter-" rompeu-o:
Posso voltar ?
Isso com seu Curt. Pergunte a ele. O batelo, volta; traz mercadorias.
Pouco depois, com voz rouca, o lbio inferior a tremer-lhe de leve, estava em fren
te de Nimuendaj que pareceu vacilar e reflectir um momento antes d$ responder: [p,
- Todos os que tiverem boa sade podem voltafo Mesmo que no fosse para levar doente
s, alguns homeufl tinham de ir a Trs Casas, pois j outro dia expliquei que est aqui
pessoal a mais e precisamos de novoi abastecimentos.
Ento posso voltar mesmo ? i Recebeu um olhar duro, to duro e to imediato
como a resposta que o alvejou:
Voc est duvidando do que eu digo ?
Nessa mesma manh, auxiliado por Jarbas, Maximiano deu-se pressa em realizar uma a
rmao de madeira, facilmente desmontvel, onde assentasse o oleado que defenderia Nim
uendaj e Cavalcanti das ofensas do sol e do relento, no batelo. Tomara as medidas
discretamente, mais discretamente ainda preparara os encaixes, no estivessem os nd
ios a espiar o acampamento e compreendessem o que se projectava. E foi tambm com
disfarados modos que Raimundo se escondeu dentro da embarcao e principiou a calafet
ar, evitando rudos denunciantes, algumas pequenas fendas que ela apresentava, por
haver estado muito tempo fora de gua e exposta ao sol.
Finalmente, na noite acordada, Nimuendaj olhou o quarto, que sempre lhe parecera
desconfortvel, as prateleiras vazias, a fresta que l em cima mirava o perigo; e de
sbito teve saudades daquilo tudo, saudades de alguma coisa dele prprio, que no se
definia nitidamente mas se enraizara para sempre ali.
C fora esperava-o todo o pessoal, Raimundo e Honrio com a bagagem dele, Amaro e Bo
nifcio que se puseram do seu lado. Uma vaga luminosidade doirada, que o quarto cr
escente e as estrelas difundiam sobre a vastido florestal, lhes facultava os pass
os e tornava confusos os seus vultos, caminhando em silncio para o rio.
Assim que o grupo se deteve beira da gua, os homens abraaram-se "at volta!" "at v
ta!" e os que partiam entraram no batelo. Viram ainda Nimuendaj dizer palavras bai
xas a Amaro e Bonifcio, cerrar-lhes as mos, em seguida embarcar tambm. Tanajara des
prendeu a ponta da corda, atirando-a a Juvncio, que estava na proa, de p, com os b
raos estendidos, ao mesmo tempo que Filipe se inclinava muito no rebordo e aos qu
e ficavam prometia, desen-
f adadamente:
Podem dormir sossegados, que quando eu voltar
trago dois sacos cheios de malaguetas...
'Os remos chapinharam e o batelo principiou a afastar-se, primeiro devagar, um po
uco mais lesto depois, povoado de sombras moventes, enquanto Moacir, Carolino e
Maximiano subiam o barranco, para retomar a vigilncia entre as duas folhas de zin
co.
No meio dos que continuavam no porto, Tanajara
dizia:
com certeza o Tito j no volta... E vo ver
que o Dorival tambm no...
Seu Curt garantiu ao Tito que todos podiam
voltar retorquiu Jarbas.
Hum... com o mau gnio que eles tm! Seu Curt arranja l, em Trs Casas, uma desculpaz
inha e nunca mais pem c os ps. Pelo menos o Tito.
Um instante, Jarbas imaginou-se tambm no bate-
iii4
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
III5
Io, vencendo a noite, no para ir ao seringai de Manuel Lobo, mas para regressar ci
dade, a uma fbrica^ s mquinas e sua luta; logo tornou: ,
O Tito no assim to mau como parece.' me contou, um destes dias, a sua vida. Foi se
mpre- unfa, misria. Em Manaus chegou a passar fome. Se arrant Java trabalho e dep
ois despediam algum, era o primeiro a ser mandado embora. No gostavam dos setis mo
dos. Nos seringais e em Humait, o mesmo. S queia conhece a vida dura pode saber o
que ele sofreu. E ura ressentido.
Mas porque no tinha outros modos ? dispam rou Mariano, que no conseguia liar-se qu
ela inesperada complacncia. Ele est sempre contra todas as pessoas. Mesmo contra
ns estava. i u{
No teve nenhuma preparao. Eram muitos irmos, numa barraca, ao deus-dar. Tambm n
ulpado do seu feitio. Voc no ouviu o que disse outfefo dia o doutor? Disse que tod
o o homem nasce parioltintim. S depois de nascer que um homem, com js> que vai ve
ndo e ouvindo sua volta, deixa ou no * ser parintintim. O Tito nunca teve quem lhe
explicasse a razo das coisas ruins que lhe aconteciam. Se algiirii lhas tivesse
explicado, talvez ele gostasse mais dos companheiros. Assim, deixa-se levar
pela sua natureza. Parece ser contra tudo e, afinal, no contra aquilo que devia
ser. Mas, nos ltimos dias, j estava melhor,.!.
Melhor ? estranhou novamente Mariano, ap mesmo tempo que se voltava para
Tanajara:Voc deu por isso ?
Jarbas esperou que se escoasse o riso cptico vindo daquele lado e, com voz pacien
te, insistiu: '>
No fundo, no tem maus sentimentos. Se viu quando mataram o Eleutrio. Ficou
com dio a<?s ndios, ficou, porque no podia entender a diferena de responsabilidad
.es que h entre um selvagem ou mesmo um tipo como ele e as pessoas conscie
ntes. Mas parece que depois compreendeu e foi substituir o Honrio, sem que ningum
o mandasse.
Honrio apoiava. Nas ltimas semanas, ele e o
Juvncio tinham aderido s secretas aspiraes de Jarbas e agora secundava-o.
Bem... para dizer a verdade, eu mal no lhe queria, no. Mas se ele ficasse por l, no
fazia c falta nenhuma... proferiu Tanajara, a desligar-se da
conversa.
Cozinheiro para muita gente, cansado de trabalhar com vultosos alimentos em rest
aurantes populares de Belm, Mariano voltava ao princpio, bastante incrdulo:
O que me admira mesmo que ele, com aquele corpo de boi sempre no capim, tenha pa
ssado fome...
O que eu quero ver outra coisa interveio Manga Verde, com um torn de importncia.
O que eu quero ver como isto vai andar, agora que seu
Curt viajou...
Os outros homens ficaram calados, como se fizessem a si prprios a mesma pergunta
e no se aventurassem
a uma resposta.
Vai andar como at aqui ouviram Jarbas dizer, lentamente. Seu Curt tinha competnc
ia, tinha, mas isto no s obra dele. do povo. Que podia fazer ele sem ns, j pensaram?
O batelo aproximava-se da curva do Maici-Mirim, difusamente, como que a desfazer-
se, levando os companheiros. E ento, nessa noite de afastamento, em que o Posto p
arecia ter ficado, sob a frouxidade do luar, com um xtase de cemitrio e encontrar-
se mais segregado do Mundo do que habitualmente, alguns dos homens recordaram-se
das cartas que haviam escrito, ou rogado a outros que as escrevessem por eles,
essas cartas que eram, com os relatrios e os artigos de Nimuendaj e as muitas pg
inas de Bonifcio para a mulher, a nica histria, s vezes resumida parcimoniosamente c
omo nas lpidas, daquele primeiro trecho da sua aventura.
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
III7
4
x .,5
P;p ODE ser que fosse s um ndio. Pode ter sida at um ndio de outra maloca. Ps l o a
canie tara para ns darmos mais brindes e foi levando o" brindes sem os outros sab
erem dizia Amaro a Bors fcio, a seguir ao pequeno-almoo, naquele primeirl dia em
que as resolues dependiam deles apenas. ^4" A sombra que o Filipe viu estava fugin
do como ura ladro. Pode tambm estar escondendo os brindes, paro depois ficarem s pa
ra ele...
Bonifcio hesitava: M
Pode ser... Mas me custa a acreditar que .x" tuxua mandasse s um ndio espia
r aqui. Ns poda ms matar a ele e o tuxua ficava sem saber o que estvamos fazendo. Devi
a pensar nisso... '&
Passeavam no acampamento, luz da manh, js muito forte, e Amaro respondeu, baixando
os olhoso
. E se fosse de outra maloca, como eu disseM
No sei, mas ento o tuxua no mandava oa ndios da maloca dele nos seguirem ? Se desinter
essava"' da nossa presena aqui, depois de tantos ataques ?
Bonifcio ia raciocinando e falando morosamente^ como se sincronizasse essas duas
faculdades com <S{ ritmo lento dos seus passos. o
Que o acanitara pode ter sido posto l s pelai vontade de um ou de alguns, isso pod
e. Tambm > possvel que o tuxua, ao saber daquilo, tenha proi+1 bido que pusessem out
ros, por ele no querer a paz...} Mas quem vai adivinhar ? J
As hipteses rolavam e entrechocavam-se, amea4 ando cair inutilmente umas atrs das o
utras, como, ao mais leve movimento, o chumbo de caa na palma da mo aberta. Bonifcio
e Amaro detiveram-se junto do arame farpado, de novo calados, diante do rio. Na
vspera, quando o arrastavam para a gua, o batelo em que Nimuendaj partira deixara i
mpressa, sobre a terra mole do barranco, a marca do seu casco, mais
funda do que 9 da Cobra Grande que serpejava, monstruosa e pnica, nas velhas lend
as dos indgenas. E, ao ver essa denncia, Amaro resolveu mandar disfar-la, arranhando
a lama, como as tartarugas arranham a areia aps a desova; foi, porm, deciso dum s i
nstante, logo suprimida ao pensar que os Parintintins notariam facilmente, mesmo
sem aquele indcio, que faltava ali uma embarcao e das maiores. Bonifcio dizia, sor
ridentemente: Mas no levaro mais brindes de graa, isso no. Olhou Amaro e apressou-se
a acrescentar. Se voc estiver de acordo, claro. Se estiver de acordo, fao outro
quadro. Uma grande mesa, cheia de coisas, ao meio da porteira. Eles do lado de f
ora, sem flechas e com muitos acanitaras nas mos, para trocarem; ns do lado de den
tro, a entregar os objectos...
Amaro ouvia de olhos postos nos olhos dele e apoiou com voz de reconhecimento, q
uase humilde:
Pensou bem, mesmo bem, seu doutor.
No sei se dar resultado, vamos ver...precaveu-se Bonifcio, no fosse a sua nova ideia
ter o mesmo precrio xito, ou menos ainda, do que a primeira. Vamos a ver...
Passaram pelo barraco menor, levaram com eles Maximiano; e no seu quarto, com rec
omendao de urgncia, Bonifcio deu-lhe as medidas, para ir fazendo o caixilho, enquant
o ele desenhava.
hora do almoo a cena estava esboada, de tarde concluiu-a e meteu-lhe cor. E ao mor
rer do sol, como o maior perigo ali era entrar na floresta, todos os homens quis
eram transportar aquele convite aos bravios senhores da terra, mesmo Honrio que e
stava a tocar, baixinho, o seu violo. Amaro rejeitou os que se tinham aventurado
nos ltimos dias, olhou para o Manga Verde e elegeu-o.
Partiu de quadro debaixo do brao, cabea bem ao alto, um cigarro fumaando na boca; a
briu as cancelas com naturalidade e desapareceu. Tantas idas e tantos regressos
haviam j criado um ligeiro trilho, desimpedido de ramos obstrutores, entre o Post
o e a
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
III9
folha de zinco abrigadora das ofertas; e Manga Verde caminhava lentamente, sempr
e a duvidar de que os Parintintins viessem porteira desarmados, como lhes sugeri
a o desenho de Bonifcio.
Estava j muito prximo do destino, de ouvidos alerta, olhos perscrutantes, quando a
flecha zumbiu e se foi espetar no tronco duma rvore, a dois palmos dele, barrand
o-lhe o caminho. i
Manga Verde estremeceu, recomps-se e olhou sobre a direita, l a uns trinta metros
de distncia, de onde o disparo havia sido feito. Era um corpo forte, atarracado,
como o de Tito Boludo, quarento talvez, -o" cabelo muito negro, os pomos das face
s salientes, peitos" quase de atleta; e fixava-o severamente. Apoiava no cho a po
nta do arco e da sua figura nenhum trecho bulia; mas essa prpria imobilidade, agr
avando a fixfe dez dos olhos, ressumbrava uma fora secreta, muito dona de si, uma
rudez altaneira, que dir-se-ia por vezes de piedade despreziva e que Manga Verd
e captava sem saber exactamente como devia agir. O ndio esteve assim, em frente d
ele, alguns segundos, logo cambiou) o rosto por outro ainda mais arrogante e vo
ltou-lhe as costas. Ia j a sumir-se no arvoredo, quando Mangar Verde, tirando do
sovaco o quadro, o chamou:
Eh, amigo, vem c! Vem ver isto, que ums belezinha! Anda comigo ao Posto, que darem
os a t muitas coisas. Seu Amaro te dar um porrinho de cachaa...
Ouviu o pequeno rumor de galhos, ao serem afas-> tados, e depois o silncio. >
A flecha encontrava-se espetada horizontalmente,' diante dele, mesmo altura do s
eu nariz. com a absurda sensao de que a gente do acampamenttf poderia observ-lo, Ma
nga Verde passou-lhe a mo por cima, a toda a longura, como se acariciasse o dorso
de bicho domstico e como realmente procederia se os seus camaradas estivessem a
v-lo. Tirou-a, depois-, sem pressa, arrimou-a rvore, com a inteno de lev-la quando vo
ltasse; e avanou a sorrir, enquanto imaginava o que teriam parecido ao ndio as sua
s
palavras, decerto para ele mais incompreensveis ainda do que os guinchos dos maca
cos.
J com a folha de zinco vista, chegou-lhe aos ouvidos um zunzum de vozes estranhas
e espaadas, perto dali. Estendeu os olhos ao encontro do som e enxergou de perfi
l dois parintintins, a conversar vagarosamente, encostados a uma rvore, muito mai
s grossa do que essa onde, momentos antes, a flecha se cravara. Volvidos um para
o outro, parecia no terem dado por ele; Manga Verde compreendeu, porm, que j o tin
ham lobrigado e ser aquilo apenas simulao.
Decidiu colocar primeiro o quadro no stio prprio, agora a dez ou doze passos somen
te, e depois lanar-Ihes as suas falas; mas logo resolveu o contrrio, pensando que
era prefervel amansar os selvagens antes
de mais nada:
Boa tarde! Esto passando bem ? Mesmo bem ? Ns somos amigos de vocs e podamos ir bebe
r nossa amizade umas cervejinhas, que h muitas l no Posto. Muitas! Cervejas e at ga
rrafas de "champagne", da boa, daquela que os coronis tomam disse com a voz mais
cordial e mais doce que as suas cordas vocais puderam tanger. Vocs esto compreen
dendo ?
Os ndios fingiram no o ter sequer ouvido. Ento o Manga Verde, sempre a sorrir-lhes,
cobriu o terreno que faltava para atingir o pequeno tecto de zinco; num pice se
vergou e deps o quadro, num pice porque esperava que as flechas viessem precisamen
te quando ele se inclinasse para diante; mas as flechas no vieram.
Adeus! At vista! Quando forem ao Posto, vocs vo ficar mais ricos do que os comendad
ores de Manaus, com as coisas bonitas que l temos.
Receou ainda que o matassem, traioeiramente, logo que voltasse as costas, como se
dizia ser costume deles; entrou, porm, no acampamento ainda mais sobranceiro do
que partira e contente consigo prprio, por haver subjugado o medo.
Quando, j na alpendrada, atirou para cima da grande mesa, com gesto de superior i
ndiferena, a flecha
J
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O INSTINTO SUPREMO
II2I
que trazia e comeou a narrar o sucedido, os outros, tendo em conta a sua fama, en
treolharam-se e hesitavam em acreditar naquilo.
Voc viu mesmo eles ? perguntou Tanajara, com voz de inocncia, perante o silncio
muito atento de Amaro e Bonifcio. >
Se vi eles ? Por esta! exclamou, cruzando os ndices e beijando-os, fiel ao seu hb
ito. O primeiro tinha uns olhos negros, sempre apontados em mini, que at parecia
m duas bocas de rifles para me matai4-; quando ele se zanga deve ter bufo de ona.
Eu aguentei aquele olhar, aguentei firme, firme, est percebendo? Depois lhe diss
e: "ndio, sou teu amigo, todos l somos amigos de vocs; no tenho medo de ti, mas no va
le a pena andar a com besteiras. A vida so dois dias*. Cheguei mesmo juntinho dele
e lhe garanti: "Temos l cachaa; seu Amaro no vai negar... Cachaa e todas as coisas
da civilizao, que tu nunca viste". Mas parece que ele no acreditou, no, e foi-se emb
ora... "
Ento ele compreendia voc ? Era Honro quem o interrompia agora e todos os outro
s o fixaraafe
No sei se compreendia, isso era com ele; eu fazia a minha obrigao. Aos outros disse
: "Vocs esto a a falar e a fingir que no me vem, at j parecem homens civilizados. Me
atem como irmo e venharft ao acampamento. Venham todos, mulheres tambm. Seu Amar
o boa pessoa, prepara um forr e at capaz de mandar buscar "champagne" a Manaus, pa
ra vocs. Sabem o que "champagne"? melhor que chicha, que cachaa, que cerveja mes
mo; o melhor que h. Quando eu era gerente de loja grande, bebia todos os dias uma
garrafa. Tm mulher doente ? Curumim com barriga crescida ? Doutor Bonifcio, que e
st l, o maior mdico do Mundo. Tragam acanitaras tambm para ns e vamos ser amigos. Pe
guem l a mo, amigos at morte". Eles no apertaram, nem voltaram a cara, mas riram. Pe
na no ter levado brindes; se levasse, talvez apertassem...
Tanajara voltou a perguntar, com o vago desconsolo de que talvez ele nunca viv
esse um momento
assim, que seria maravilhoso para a sua alma, se fosse realmente verdadeiro.
Riram mesmo ?
Manga Verde encontrou os olhos de Bonifcio e de Amaro postos sobre ele, muito srio
s, muito penetrantes, e vacilou. Interrogou-se a si prprio, mas agora via os ndios
a rir, sem desviarem as cabeas para ele, mas a rir, tal como dissera. Tornou a e
voc-los e ora lhe parecia que no riam, ora que riam e era, sobretudo, a rir que a
imagem deles se fixava agora nos seus
olhos.
Bem... Talvez no tivessem rido assim tanto como ns rimos quando se conta uma coisa
engraada. Mas me pareceu que riram um bocadinho... Pode ser que me tenha enganad
o, havia muita sombra de rvore na cara deles, mas me pareceu... justificou-se Ma
nga Verde, com a sensao confusa de que nesse instante, ao dizer a verdade, que men
tia.
Doutor, se fssemos ao seu quarto ouvir ele ? props Amaro a Bonifcio e logo se dirig
iu aos outros, desejoso de lhes quitar humilhaes: com pouca gente se fala melhor
e muito importante para todos ns saber bem o que ele viu. Depois ele conta tudo a
vocs...
Foi tambm de manh, como nos ataques precedentes, mas desta feita sem gritaria, cin
co dias aps o batelo ter desaparecido dali.
Os silvos dos vigias entraram no barraco maior uns a seguir aos outros, muito rep
etidos, dir-se-ia mesmo que mais nervosos e alarmantes do que das
outras vezes.
E imediatamente sobreveio pequeno silncio, como se tudo houvesse findado. Depois
ouviram-se uns baques sem vibrao, pesados, surdos, mas to reincidentes como os asso
bios, momentos antes.
Mariano preparava o pequeno-almoo e alguns
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homens no haviam sado ainda das redes. Os ptj_ meiros, porm, que foram andando para
a fresta, com o rosto ensonado, e os que vieram at a alpendrada, viram copiosos n
dios escalonados ao longo de toda a cerca e mesmo da outra banda do igarap. Estav
a!" armados, mas no disparavam nenhuma flecha, nb faziam gesto algum, no proferiam
uma nica palavraj Olhavam apenas. M>
Os que agiam formavam um nutrido bando, junrtb da porteira. Agiam tambm surdament
e, s fora desencadeada, s movimentos obstinados, como mquinas Os grossos tacapes, aq
uelas clavas rsticas que possantes braos empunhavam, subiam e desciam violei* tame
nte junto dos gonzos da primeira cancela, coM1 borando com os machados e terados
que haviam sido oferecidos como penhor de amizade. E, aos sucessivas golpes, o a
rame farpado cedia sempre um pouco, encufvando-se, baixando sempre mais, enquant
o as estacas, cortadas na base, se inclinavam, amparadas na queda prxima pelos fi
os que as sustinham ainda. ''f
Protegiam os corpos dos que batalhavam contra, fa matria bruta, vrios ndios de arco
e flecha, perfeit^- mente dispostos em semicrculo, por detrs deles, como se assis
tissem, do fundo arqueado de velha abside, a um acto de esconjuro antigo.
Bonifcio observava os que actuavam com machados e um secreto dissabor o invadia d
e repente, ao concluir que eles haviam aprendido, em potico tempo e bem, a lio que
lhes ministrara nos seus desenhos.
Embora cada sebe tivesse a sua cancela, uma em,, frente da outra, e a segun
da se encontrasse ainda intacta, o pessoal deduziu que desta vez o
plano dos Parintintins seria eficaz e se consumaria rapidamente, i
Todos, excepto as sentinelas e Honrio, tambm encarregado de espiar pela fresta o e
xtremo do acampamento, se haviam reunido junto da alpendrada, do lado de fora, d
e onde podiam seguir melhor o ataque, sempre em progresso excitado.
Amaro entrou no barraco, volveu ajoujado de
brindes, caminhando direito aos ndios; e mais uma vez os homens viram desenrolar-
se a cena que fora, at a, completamente intil.
Irmos, irmos, no faam essas coisas, somos amigos! Era uma voz ingnua, familiar, de l
eve toque suplicante, que dir-se-ia reduzir a vastido da floresta, a terra roada d
o Posto e a vibratilidade da luz que sobre ela se chapava, a um compartimento do
mstico, soturno e exguo.
Amaro detivera-se a uns vinte passos deles, olhara-os sem rancor e principiara a
arremessar-lhes as ofertas que levava, sempre a repetir: "Somos irmos! Somos irmo
s!"; a repetir sem esperana de as palavras serem compreendidas, a insistir soment
e para dizer sua conscincia que experimentara todos os elos possveis.
Nem os tacapes, nem machados e terados se interromperam na demolio da porteira; os n
dios que os manejavam ergueram os olhos, um instante, logo tornaram a baix-los, c
omo se se desinteressassem totalmente dele.
Amaro, porm, foi e voltou sem que nenhuma flecha alvejasse as suas costas ou lhe
zunisse aos ouvidos. Os homens que se encontravam junto do alpendre avanaram igua
lmente para a terra desabrigada, simulando abraos de confraternizao: "Somos
irmos, somos amigos, estamos aqui para fazer as pazes com vocs"; e Manga Verde,
perante a cara de ndio de Tanajara, lembrou-se mesmo de ensaiar, puerilmente, uma
dana com ele. De mos dadas, foram ainda mais longe do que Amaro havia ido, entreg
ando-se a passos de velhas polcas e maxixes. Nenhuma flecha veio tambm. E Manga
Verde pde enfim divisar, entre os ndios que estavam armados e em semicrculo,
alguns que sorriam, desta vez verdadeiramente.
Querem-nos pegar vivos! exclamou ao regressar. Querem as nossas cabeas! Mas vivo
, a mim,
no pegam, no!
A primeira cancela havia j tombado. Alguns parintintins afastavam, de junto dos ps
, os arames cados,
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enquanto outros alargavam a abertura, derrubando os topos das sebes.
Agrupados esquina do barraco, os homens olhavam, quietos e silenciosos, como se f
ossem um s. Olhavam com uma calma fria, pela primeira vez sem ramificaes, sem razes,
sem passado e sem porvir; apenas aquele momento bloqueado, isolado dos outros, n
tegro e espesso.
A meio da alpendrada, Amaro continuava, de rosto franzido, a ciciar um dilogo com
Bonifcio:
Seu Curt no faria...
Faria. Ele prprio me disse que faria isso em caso de extremo perigo. No disse a m
ais ningum, para no quebrar a abnegao e a disciplina do pessoal. Mas naquele dia do
grande ataque, quando Honrio danou, ele pensava mandar disparar, se fosse preciso.
Foi por isso que ele deixou os ndios estarem tanto tempo a flechar. A voz calou
-se e logo volveu: Tambm Rondon disparou... Disparou at duas vezes... Tudo depende
das circunstncias... Tem de se evitar que eles matem todos os homens...
Desde o comeo Amaro estava de acordo, sentia que no podia deixar de estar de acord
o, mas teimava
ainda:
Quando foi do cachorro, seu Curt no queria
assustar eles...
Era diferente. No devemos assust-los seno em ltimo recurso, claro...A voz tornava a
fracturar-se, descia, reemergia, apressada: Se nos matassem a todos, no teria va
lido nada o sacrifcio que fizemos para estar aqui, j pensou? Eles, julgando que po
deriam sempre vencer-nos, resistiriam ainda mais a outros que viessem depois de
ns tentar a paz... As palavras mudavam de torn, parecia mudarem de cor e de emoti
vidade medida que Bonifcio as murmurava: Assim, ainda fica uma esperana...
A ideia de responsabilidade atenuava-se, dividia-se. Amaro ^sentia-se melhor ao
ouvir aquilo.
pena, mas no h outra soluo. Amea-los primeiro, fazer gestos para entenderem que s a
-
remos se avanarem contra ns... acrescentou ainda
Bonifcio.
Era isso que eu estava mesmo pensando, doutor.
A segunda porteira ia cedendo tambm. Os fios de arame haviam j perdido a sua rect
ido, formando largas curvas; as pancadas desferiam-se cada vez mais violentas,
mais nervosas; via-se que os Parintintins queriam terminar a destruio rapidamen
te. "Eles tambm cospem mas mos, quando fazem grande esforo com os tacapes... Como
os pobres trabalhadores de enxada...", pensou Jarbas, admirado de estar, nesses
veementes instantes, a preocupar-se com aquilo. Amaro aproximara-se e disse, a e
le, ao Manga Verde e ao
Tanajara:
Venham buscar os rifles e as espingardas...
Jarbas encarou-o:
O qu ? Buscar os rifles e espingardas ? Me desculpe, eu no atiro contra ningum.
Voc quer morrer mesmo ?
Eu tambm no mato ndio declarou Tanajara,
s para o ar... S para assustar eles... Tendo Amaro muita pressa, embora a disfarass
e,
considerou no ser momento para discutir. "Era pena que Raimundo estivesse de vigi
a" pensou ainda e instantaneamente lhe ressurgiu o desagrado de visionar Raimun
do a abater o "Mimoso". De sentinela encontravam-se igualmente Moacir e Carolino
, alm de Honrio na fresta. E parecendo-lhe o cozinheiro j velho e pesado para aquil
o, fixou os olhos em Genaro, logo em
Maximiano:
Venham vocs.
Seguidos pelo Manga Verde, foram ao barraco e volveram j com as armas ao alto.
Faam como eu recomendou Amaro, iniciando
a mmica.
com tanto denodo e fria os ndios se entregavam a prostrar os restos da ltima cancel
a, que no deram imediatamente pela preveno que Amaro gesticulava ao longe, em frent
e deles; e s ergueram a vista e se imobilizaram quando alertados pelos seus guard
a-cos-
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tas. Olhando os rifles e as espingardas, com modoa toscos de lapuzes, pareciam s
urpreendidos por aquela ameaa vinda de gente que se mostrara to pacfica, to dadivosa
, to plena de condescendncia at a. Mas logo, como se no acreditassem ou desprezassem,
aquilo, tornaram resolutamente sua faina, dir-se-iai com maior mpeto ainda. /
Amaro voltou-se: p
Tanajara, bote uma cano bonita no gramod fone. Bote "A casinha pequenina". Se, dep
ois dos tiros j eles estiverem caminhando sempre contra ns, bote Q, hino brasilei
ro. Aquele disco que seu Rondon mandou por seu Curt. Aquele que est metido num pa
pel verd^ e amarelo. f
Tanajara ia j entrar no barraco, com um ltimo olhar para os ndios, quando Amaro pens
ou: "Se, depois dos tiros para o ar, rnatarem a ns quatro e aos vigias, vendo que
no quisemos matar eles, que preferimos" morrer a matar eles, vendo que somos rea
lmente amigos, talvez faam ento as pazes com os que escaparem" pensou e imediatame
nte se decidiu:
Voc Jarb^s e voc Mariano vo l para dentro. E o doutor Bonifcio tambm, se faz favor.
Se joa tiros no assustarem eles e eles chegarem a entrar J3fy barraco, dem muitos
brindes, tratem bem, mesnwi que eles tenham morto a ns e aos vigias. Suceda t que
suceder, aqui no h ningum que queira fazei? mal aos ndios; mas se algum perdesse a c
abea,e; quisesse fazer mal, tirar vingana, doutor Bonifcio; no deixava. /
Falara com uma voz ao mesmo tempo de mando e de resignao, estranhamente serena e hm
ida de emotividade. Jarbas ps-se ao lado de Bonifcio, Ma? riano seguiu atrs deles,
meneando a cabea, como se fosse discutindo consigo prprio.
Os quatro homens recomearam ento a mimar para os ndios as ideias que as palavras no
lhes podiam transmitir. O prprio Maximiano, a princpio com a mesma inpcia que Amaro
debitara ao cozinheiro, tor-i nara-se rapidamente expressivo, Sustentava a espi
n-
garda com a mo esquerda, enquanto fazia avanar a direita, bem espalmada, como se e
mpurrasse a carapaa de um automvel doente e, sem mesmo saber que estava falando, d
izia de modo automtico:
No venham, voltem para trs, se no botamos
fogo a vocs...
Era intil. A entrada encontrava-se j desimpedida, braos apressados retiravam as der
radeiras farpas, em frente dos ps ansiosos de arremeter. E muitos dos ndios coloca
dos ao longo da cerca, at esse momento em firme quietude, corriam agora para as c
ancelas destroadas, levando com eles arcos, flechas e ruidoso
entusiasmo.
H j alguns segundos, a velha cano enviava para o acampamento uma dolncia romntica, aqu
eles ritmos doces e nostlgicos, que vinham impregnados de distncia, de saudade e d
e amor. A sua decadente melodia, amortecedora de cleras, penetrava em todos os ou
vidos, mas ningum a ouvia, nem o prprio Amaro, que mandara toc-la e jamais saberia
explicar todas as razes por que o fizera.
Os Parintintins irrompiam j pela cerca adentro, na dianteira os que traziam arcos
e flechas, no meio os dos machados e tacapes, atrs muitos outros armados tambm, t
odos numa s vaga de corpos e de plumas multicolores, que os seus prprios movimento
s agitavam.
Agora disse Amaro.
As duas espingardas e os dois rifles ergueram-se mais, na direco do Sol que se alt
eava sobre a mata
e dispararam.
Durante um momento, os ndios interromperam a invaso, hesitantes. Amaro voltou a am
ea-los, mas j eles avanavam novamente, com um sorriso indefinido na boca de alguns e
de dio ludibriado nas de todos os outros.
Mais baixo.
As miras dos canos desceram, quatro tiros voltaram a soar.
Os Parintintins estacaram, finalmente. Falavam en-
O INSTINTO SUPREMO
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O INSTINTO SUPREMO
tre eles, com desordenada vivacidade, pareciam mesmo discutir raivosamente, prdig
os de carantonhas e <Je gestos desavenados.
Maximiano e Genaro meteram novos cartuchos nas espingardas e tornaram a apont-las
, ao lado de Manga Verde e de Amaro.
E assim alinhados, na manh j radiosa, sugeriam as alvoradas indecisas, sobre as es
planadas de quartis ou ptios de crceres, quando a luz nascente, tomada de piedade,
vacila em iluminar os alvos dos pelotes
executores.
Discutiam os ndios e logo a sua gritaria habitual, at esse instante reprimida, atr
oou a terra e os ares. Flechas atrs de flechas, centenas de flechas num zunimento
de cabas exasperadas, misturando-se com o ala^ rido furioso, vinham de toda aqu
ela banda da cercar, do extremo do acampamento e at da margem oposta do igarap, on
de j em outros dias se comprovara a sua inteira ineficcia.
Comearam a retirar-se lentamente, voltando-se de quando em quando, brandindo os a
rcos em ameaas de futuros e severos castigos. Manga Verde correu ao barraco, troux
e mais brindes por ordem de Amaro; e, acampamento afora, ia-os lanando por cima d
a cerca, ofertando-os com sorrisos, mas nenhum parintintim volveu atrs, todos pro
sseguindo nos seus gestos de clera e nos seus gritos.
Regressou Amaro alpendrada com as esperanas em fuga, nimo abatido, desejoso de lam
entar-se. Pousou o rifle sobre a grande mesa e sentou-se em frente de Bonifcio, q
ue sara do barraco ao seu encontro, com o resto do pessoal.
Tanto tempo perdido! Agora j no vo acreditar mais em ns. Em vez de virem porteira pe
gar os brindes, vieram bot-la no cho.
No queria muito dizer aquilo, mas disse-o mesmo sem o querer verdadeiramente.
Bonifcio parecia calmo. Havia admitido, desde o comeo do assalto, j quase inesperad
o, que Amaro e os outros acabariam vinculando a escolha das cancelas
sugesto por ele feita aos Parintintins, no seu ltimo desenho, para ali se efectuar
em as permutas, primeira grande ponte da confraternizao.
Pode ser que isso que voc est pensando a tenha contribudo proferiu. No digo que no t
enha. Mas quando um batelo desaparece, ou foram homens que o levaram ou foi o rio
. O batelo estava no seco e no rio no houve enchentes. Foi levado por homens, que
s podiam ser daqui.
Sem levantar a cabea e com uma voz de aceitao
forada, Amaro declarou:
Doutor, no quero contrariar...
A mo de Bonifcio estendeu-se, afectuosa, dir-se-ia que risonha, como ele prprio, e
tocou-lhe de leve no
ombro:
No se esteja afligindo. Eu creio que no se perdeu nada. Agora eles j sabem que
isto aqui no
uma arapuca.
Amaro ergueu, finalmente, os olhos duvidosos e
inquiridores.
Agora j sabem que no queremos atrair eles aqui para os matar, pois se quisssemos
fazer isso, podamos ter morto os que vieram hoje. Tambm j pensam que no deixamos ele
s matar a ns e isto me parece muito importante. Quem lhe diz que no vieram julgand
o realmente que podiam cortar as nossas cabeas e acabar com o Posto duma vez, ag
ora que somos poucos e nos temos mostrado sempre pacficos?
Foi por isso, com certeza, que vieram interrompeu o Manga Verde, orgulhoso de
haver sido o primeiro a clamar aquela hiptese.
Esses que estiveram agora a devem ter ficado convencidos de que no podem destruir
o Posto e que, portanto, o melhor remdio ser talvez fazerem as pazes. claro q
ue nunca se sabe bem como pensa um
selvagem...
com voz cndida e delicadeza de quem se mete na conversa, Mariano perguntou discre
tamente a Jarbas, que estava a seu lado:
H3
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
II3I
Ento se os ndios tivessem avanado sempre, ns j no amos deixar que eles nos matassem?
Era s para eles pensarem que no...
- Voc parece que ficou com pena! exclamou Manga Verde e os homens riram. ,
O que eu no compreendo bem disse, .enfim* Amaro como no atacaram a voc mesmo, qua
ndo> foi levar o quadro. Eram trs e voc no levava rifle....
XI
C ONSIDEROU Amaro ser demasiado perigoso arriscarem-se alguns dos homens a entra
r na floresta, nesses primeiros dias em que os Parintintins, desmoyaq lizados na
sua tentativa, estariam certamente de clera ainda incendida. Admitiu tambm que um
a nova pausa nas ofertas, sugerindo algum ressentimento, talvez fogstj prefervel
a continuar a faz-las com generosidade sem limites, tanto mais que os objectos de
stinados a briadp" tinham diminudo muito e era necessrio no desbq rat-los como at ali.
Bonifcio concordou e as hoaq morosas, as longas esperas, a arrastada monotonia d>
tempos antes, volveram ao acampamento, como se s& tornassem tambm prisioneiras da
cerca, onde as duascancelas haviam sido j reconstrudas e de novo. fechadas. . ,.i
-7 hoje ? perguntava Manga Verde, todos os dias, a Amaro, mas ele j no lhe respon
dia, j.no abanava a cabea sequer.
Genaro pensara que um ramo de arbusto, suspenso do tecto, na sala ou na alpendra
da, ligado por trs fios s guaritas, um para cada uma delas, permitiria tocar o gra
mofone, matando sem perigo o aborrecimento. Em vez dos assobios, que a msica no co
nsentiria ouvir, as sentinelas puxariam os cordis; o ramo balouaria, o aviso estav
a feito. E os homens passaram a sentar-se horas e horas em volta do gramofone, a
.
princpio distrados, depois a entediar-se, mesmo a j no suportar os discos que sabiam
de cor. Alguns abandonavam a sala, metiam ao acampamento, solitrios, como o pret
erido que troca o baile pela varanda, porque a eleita dana demasiado com outros.
Foi o perodo mais feliz para o violo de Honrio, que nesses enervados dias, mesmo pe
las noites afora, tinha muitos clientes, algumas vezes a entoarem em coro as mod
inhas que ele musicava. Mas tambm isso lhes fazia mal, porque lhes ressuscitava v
elhos sentimentos, saudades do passado e da vida longe dali.
Finalmente, uma tarde, aps duas semanas inacabveis, Amaro decidiu mandar pr novos b
rindes na mata. Todos pressentiam que seria o Manga Verde a lev-los, ele prprio o
sentia tambm, por se haver defrontado com os ndios, sem ser flechado.
Desta vez eram poucos e de magro volume os objectos que Amaro enviava, a tentear
. Manga Verde agarrou-os e penetrou na floresta, deixando os companheiros numa e
xpectativa mais preocupada ainda do que a da sua ltima surtida.
Caminhou pelo terreno j trilhado, com a tarde quente a falecer, to desprotegida d
e brisa que se ele no roava, de passagem, ramo ou folha, nada se movia. I
a avanando sempre espera duma flecha, sem olhar demasiadamente para os lados, por
saber que os ndios, quando no desejavam ser vistos na mata, ningum os via mesmo e
por no querer dar a entender-lhes que ia com medo. E assim se aproximou do stio o
nde devia colocar os brindes e foi l que teve a primeira surpresa. A chapa de zin
co havia desaparecido, a terra e a folhagem morta que ela abrigava mostravam-se
fortemente pisadas, como se os Parintintins as tivessem calcado e recalcado com
esses saltos nervosos que faziam, acompanhados de gritos blicos, quando cercavam
o acampamento.
Manga Verde no hesitou; dobrou-se, deps os brindes, como se tudo continuasse igual
sua ltima vinda ali. E j se retirava quando viu, altura do peito, numa rvore prxima
, de grosso tronco com umbela supe-
O INSTINTO SUPREMO
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rando as das vizinhas, vrias flechas espetadas, simetricamente dispostas em quatr
o filas, como se houvessem sido disparadas num concurso de acerto no alvo. Conto
u-as, eram doze. E foi j de regresso, junto da cerca, no momento de enxergar os c
amaradas encostados ao barraco, sua espera, que ele associou esse nmero ao dos hom
ens que viviam no Posto e quase supersticiosamente admitiu significar aquilo uma
flecha para o corao de cada um deles.
- Talvez seja bom sinal comentou Amaro, ao ser informado pelo Manga Verde. Pel
o menos sinal de que pensavam que no tnhamos ficado piudos com eles e amos voltar l..
.
Falava sem convico. E tambm a Bonifcio e a todos os outros homens que o ouviam parec
ia-lhes muito incerto o mrito que daquela ameaa de vingana ele tentava extrair por
to dbeis condutos.
Quatro dias depois, ao comeo da tarde, o amor-prprio de Genaro envaidecia-se e sim
ultaneamente alarmava-se ao ver que a sua ideia de suspender um ramalho do tecto
do barraco maior dava completo rendimento. Estavam na sala e o pequeno galho pri
ncipiou, de sbito, a agitar-se nervosamente. Tanajara levantou a agulha do gramof
one, Honrio e Moacir correram direitos fresta, os outros alpendrada.
Velho selvcola, de fartas plumas na cabea e com tantos acanitaras pendendo-lhe das
mos que se imaginaria, assim multicolor e assim de longe, um Pap Natal florestino
, aproximava-se da cerca, ladeado por mais quatro ndios, todos eles desarmados.
As contradies dos Parintintins, to evidenciadas nos ltimos meses, intrigavam tanto o
s homens, que mesmo os de esprito mais aberto candura, como Maximiano e Mariano,
delas se capacitavam facilmente. E aquela, agora em frente deles, perturbava-lhe
s os raciocnios mais ainda do que todas as anteriores, com seu qu de festiva.
Tinham-se agrupado na esquina do barraco e Raimundo, mesmo beira de Amaro e de Bo
nifcio, ambos silenciosos, previu:
com certeza h outros escondidos atrs deles, com arcos e flechas, para nos atacarem
.
O velho ndio olhava-os, muito quieto, muito digno sob o seu diadema carnavalesco
espera. Conservou-se assim parado dois ou trs minutos; depois, talvez por v-los to
imveis como ele prprio, pareceu desejar acenar-lhes, erguendo solenemente os braos
com os acanitaras que seguravam; e ento, vibrtil transparncia da luz, as variegada
s cores das plumas
brilharam mais ainda.
Ser o tuxua ? alvitrou Genaro, remirando-o,
mas logo Raimundo o contradisse:
Qual tuxua! Os chefes dos ndios usam outros capacetes. No sei, mas me parece ser o
paj.
A curiosidade concitava o esprito de todos eles. Amaro abanou a cabea perante os q
ue se ofereciam para ir at junto da cerca e quedou-se a cochichar com Bonifcio, se
m os dois retirarem de l os seus olhos.
O ndio voltara imobilidade e cada vez parecia emitir com mais fora aquela pacincia
anci que os
homens captavam.
Tanajara ouviu, finalmente, Amaro dizer a Bonifcio, quando se apartava dele:
you! O doutor at seria melhor chefe do que eu.
E a largas pernadas, cuja sombra parecia ir tesourando o imenso pano branco que
o sol estendera e corava no cho, avanou para as cancelas, enquanto Mariano, sempre
tardo em compreender, perguntava:
Ento no vamos buscar os rifles para proteger ele?
Amaro acercou-se do velho parintintim, tanto quanto o permitiam as duas sebes de
arame farpado:
Boa tarde, senhor. Veio ento fazer-nos uma visitinha ? Vem mesmo ser nosso a
migo ?
Sentia, como o Manga Verde dias antes, necessidade de dizer fosse o que fosse, p
alavras ao vento ele o sabia, enquanto as mos traavam no ar gestos cordiais e os s
eus grossos lbios sorriam afectuosamente. O ndio examinava-o com serenidade, to ser
eno que no seu rosto senil, todo lavrado de gelhas, nem
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sequer os olhos piscavam: fixava-lhe sobretudo a boca, como se placidamente admi
rasse o contraste dos dentes muito brancos de Amaro com a sua pele de negrura es
pessa.
Subitamente desatou a falar. Era uma voz aguda e seca, algumas vezes autoritria,
dir-se-ia a protestar, outras entrecortada por um rudo que lembrava a gua chiando
sobre o ferro em brasa.
O velho convergiu os olhos cansados para o mais jovem do seu pequeno squito, corp
o de Apoio rstico, um pouco sobre o baixo, mas bem torneado na nudez; e logo ele
se ps a mimar um arco disparando flechas e um tacape arrasando as cancelas. Depoi
s, estendendo o brao, apontou, ao longe, as maiores profundidades da floresta, l p
ara onde o Sol comearia em breve a declinar.
Compreendeu o velho selvagem que o civilizado nada percebera e, a um movimento d
a sua cabea, moo repetiu a gesticulao. Debalde Amaro pressentiu ser urgente adivinha
r o significado daquilo, em vo o raciocnio largou a toda a brida no mesmo rumo d lti
mo gesto; o seu entendimento fechava-se ainda mais luz do que dentro do fruto o
caroo. E crendo, humildemente, possuir Bonifcio uma lucidez superior dele, ia j vir
ar-se, ia j a acenar-lhe que viesse substitu-lo, quando o jovem se acercou com rap
idez da mata, deixando-o irresolute e suspeitoso. Viu-o, porm, simular um terado d
ecepando plantas, um machado a cortar rvores, finalmente as mos a acenderem fsforos
numa caixa imaginria; e desempenhava de tal jeito a pantomima, que dir-se-ia hav
er realizado um ensaio com tanto esmero como esse a que Nimuendaju submetera Honr
io, aquando das harmnicas.
Aquilo compreendeu-o Amaro facilmente, compreen^ deu-o mesmo sem o desejar, ness
a tarde afvel em que lhe parecera haver a Paz chegado, enfim, s portas da cerca fa
rpada. E resolveu que mais terados e machados para eles utilizarem em assaltos ao
Posto, como tinham feito h pouco tempo ainda, no daria.
As duas enfiadas de acanharas continuavam a des-
cer dos braos estendidos do velho, como suportes duns pratos de balana. E Amaro, a
ps a reaco inicial, imediata e negativa, hesitava agora. Sentia que a esperana de mi
nutos antes, embora encolhida e quase de todo cptica, agarrada a um jbilo que se
reduzira muito, persistia ainda viva, sob as cinzas de repente criadas, como uma
salamandra. Pensou em Bonifcio, na sua provvel concordncia, mas desistiu de cham-lo
, para no o expor tambm a um perigo que poderia efectivamente ocultar-se atrs da or
la florestal; e, entretanto, o moo parintintim, julgando que ele no havia percebid
o, prosseguia a ceifar plantas, a atacar ps de rvores tudo no ar. Tinha de deci
dir rapidamente, minguavam-lhe os segundos para mais vacilaes. E embora no conhece
sse outro Salomo alm dum judeu de Manaus, decidiu-se mesmo sem o conforto dum exe
mplo.
Raimundo! Raimundo! Traga um terado, um machado e dez caixas de fsforos. Depressa!
Traga tambm cinco espelhos.
Temendo no ser completamente ouvido pelo grupo especado junto do barraco, ergueu a
voz, duas vezes repetiu a ordem; e depois fez ao velho um sinal para
que esperasse.
Aps aquela deciso conciliatria, voltou a ficar jubiloso e esperanado, capaz de ofere
cer vinte jamaxis atulhados de brindes, se ainda restassem muitos ou se soubesse
exactamente quando o batelo regressava,
trazendo mais.
Mas agora o jovem parintintim imitava, com arte despachada, um homem a encostar
ao ombro direito a coronha dum rifle, a semicerrar o olho, ligando a mira ao alv
o, a disparar finalmente. "Pum! Pum! Pum!" acrescentava sem jamais sorrir, srio,
muito srio, grave
mesmo.
O regozijo de Amaro deteve-se.
Quando formos amigos, daremos rifles a vocs disse e tentou tambm explicar por mmica
a sua
promessa.
Via perfeitamente serem agora os ndios que no
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compreendiam nada e se tornavam soturnos, deixando-lhe aquela infelicidade de pe
rder talvez a ocasio, h tanto tempo esperada, de lhes obter a simpatia; e tudo iss
o ia ele lastimando-se por no saber falar nenhuma lngua alm da sua, tudo isso pel
a sua ignorncia, que em muitos dias o vexava. Insistiu nos gestos que j havia feit
o, insistiu de cara obstinadamente risonha, perante os cinco parintintins cada v
ez mais sisudos.
Raimundo chegou, deps os brindes sobre a terra e comeou a desenroscar, por ordem d
ele, os arames farpados que ligavam a armao da primeira cancela aos topos da sebe,
para a reforar. Os ndios haviam olhado friamente o terado, o machado, os pequenos
espelhos e os fsforos; e, sem palavra, quedaram-se muito atentos aos trabalhos de
Raimundo, como se aprendessem uma lio, to atentos que nem mesmo sorriram quando el
e se picou e meteu o dedo na boca, careteando exageradamente, enquanto o chupava
.
Abriram-se finalmente as cancelas, diante dos ncolas indiferentes, e Amaro acenou
ao velho, convidando-o a entrar e a receber os brindes, que lhe apontou para el
e bem compreender. Mas o velho no se moveu. Insistiu Amaro, secundou-o Raimundo,
sorrisos e cortesias partiam de dentro da cerca, uns a seguir aos outros, mensag
eiros alades saindo duma gaiola; em resposta colheram apenas um movimento de cab
ea, desconfiado, breve e negativo. Ento levaram-lhe os presentes.
O velho olhou-os de novo, com o p separou-os em grupos que pudesse contar e foi e
ntregando dezassete acanitaras, como se naquele singular comrcio o valor dum terad
o ou dum machado fosse o mesmo duma caixa de fsforos. Amaro via, com nova emoo, as
mos ancis, engelhadas, j um pouco trmulas, agirem na permuta; emoo por encontrar-se a
cinco ou seis palmos somente, quase em boa paz, com alguns desses temerosos e es
quivos selvagens, que se haviam furtado sempre a contactos com civilizados. E o
velho parecia-
-Ihe agora, mais do que nunca, um homem igual a ele; olhou os jovens e os jovens
pareceram-lhe tambm iguais a ele, quando era moo e se punha nu para mudar de roup
a ou banhar-se. E sentiu o desejo de faceciar amistosamente, de lhes dizer "No se
jam bobos, vamos acabar com isto, vamos ser amigos", como o Manga Verde afirmava
que dissera a um outro parintintim. Mas j o velho desfranzia a cara austera, ao
abrir
a boca de um s dente:
Pum! Pum! Pum! E, enquanto ia imitando os rifles, indicava Raimundo, a seguir o
barraco e erguia, como para oferec-los, os dois acanitaras que lhe brilhavam aind
a nas mos.
Amaro considerou que Raimundo, de rosto normalmente to parado como se prefigurass
e o do velho, carecia de chiste para o entremez que de sbito imaginara; e, virand
o-se para ele, disse-lhe com voz pressurosa :
V e se o Mariano tiver beiju, que mande um bocado; que mande tudo. Se no tem, trag
a bolachas, das doces. Mesmo se tem, traga bolachas. E tambm um pouco de missanga
. E diga ao Manga Verde que
venha com voc.
Raimundo ia j a distanciar-se, quando ele aumentou ainda a lista:
. Olhe, traga algumas latas vazias, das maiores. No tardou Raimundo a despachar-s
e, apesar de os homens encostados ao barraco o terem retido alguns instantes, ans
iosos de saber pormenores das cenas que viam ao longe. Amaro sentia-se, porm, j en
ervado de esperar em frente dos Parintintins, sorrindo-Ihes com a certeza de que
lhes sorria estultamente, sem nada lhes poder dizer, tendo tanto para lhes dize
r, quando ele voltou com o Manga Verde.
Traziam tudo quanto pedira e, deixando as latas vazias entre as duas cancelas, o
s trs avanaram para os ndios. Amaro ofereceu o beiju, Manga Verde as bolachas. O ve
lho recusou, abanando a cabea; os outros, tambm de olhar desconfiado, no fizeram me
smo gesto algum. Ento o Manga Verde, recuando ligeiramente,
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para abranger a todos eles, e cada vez de sorriso mate aberto, disse-lhes:
Vocs tm medo, Parintintins do diabo, mas aqu no h veneno, no somos patrcios do Mustaf
voa comer para vocs verem. E, tirando um pedao do, beiju, meteu-o na boca, masti
gou-o lentamente, cora alarde de satisfao, a ponta da lngua a passar sobre os lbios,
a cara sempre prazenteira, logo acompanhado no exemplo por Amaro e Raimundo. ,,
Em seguida dedicaram-se s bolachas, de que haviam enchido uma cuia, comendo-as co
m glutnicas expreso soes, tentando sugerir um sabor que condensasse todas as delci
as do Mundo. .,[\
Doces... Mais docinhas no pode haver-dizia o Manga Verde. a
Tinha ainda Raimundo uma das faces avolumadas pela massa farinhosa quando exibiu
, com modos <% rabe procurando deslumbrar o turista, a pequena caixa de missangas
diante do velho ndio, que sem hesitao a aceitou. Voltaram a oferecer o beiju e as b
olar chs e ento os cinco parintintins foram estendendo^ vagarosamente, as suas mos.
"10
Vendo-os, porm, de olhos mais atrados pelas estampagens policrmicas das latas vazia
s do que pela cuia que o Manga Verde levava de um a outro/ Amaro mandou Raimundo
traz-las para fora da
cerca.
Peguem elas! disse, com um gesto de grande) senhor generoso, como que influen
ciado pelo Mangai Verde. v
Parecia que os Parintintins compreendiam, pela pri* meira vez, as suas palavras:
os jovens lanaram-$6 prestemente sobre as latas, ergueram-nas, examina"" do-as d
e todos os lados, enquanto o velho, nico que no se movera, repetia, levantando nov
amente os acanitaras :
Pum! Pum! Pum!
Havendo Amaro j esquecido a razo porque chamara o Manga Verde, aquelas imitaes de ti
ros, to insistentes, de sbito lha recordaram; e em curtas
frases explicou, a ele e a Raimundo, o que tinham imediatamente de executar.
Recuaram os dois para as cancelas e logo os ndios viram o Manga Verde, que ficara
entrada, pr na cabea um dos acanitaras permutados, simular que tinha um rifle e
Pum! Pum! Pum! disparar sobre Raimundo, que se colocara do lado de dentro da ce
rca e caa estrebuchando. Manga Verde correu para ele, fingiu cortar-lhe o pescoo,
com a mo aberta e os dedos muito unidos, a irem e a vir, entre a cabea e os ombros
, como um serrote.
Ouviu-se ento, tambm pela primeira vez, os Parintintins gargalharem, num regozijo
infantil, que vencia o arame farpado e se espalhava pelo acampamento.
Estando Amaro igualmente feliz por haver tido aquela ideia, que o alteava na sua
prpria considerao, voltou-se para os selvcolas, figurou tambm um rifle e, erguendo o
ndice, abanou-o repetidas vezes, sempre
negativamente.
Pum! Pum! para vocs, no. S mais tarde, quando fizermos as pazes. E pronunciou "
mais tarde" abrindo muito a boca, esticando muito as slabas, como se as palavras
j fossem um eco, ressoando bastante
longe, inutilmente.
- melhor vir o Tanajara, que tem cara de ndio
alvitrou o Manga Verde.
Veio o Tanajara, enleado, olhos e modos tmidos, com emoo ainda mais forte do que a
de Amaro, por acercar-se, enfim, dos Parintintins.
Passou-lhe o Manga Verde, cariciosamente, a mo volta do rosto, que apontou aos ndi
os, mostrando-Ihes a semelhana que tinha com o deles. Colocou-lhe na cabea um dos
acanitaras, abraou-o depois, sempre com exagerado alvoroo cmico, sempre a compar-lo
aos selvagens e sempre a dizer-lhes: amigo! amigo! amigo! Sorriram os Parintinti
ns jovens, em contraste com a solenidade que o velho mantinha, e Amaro deu-lhes
o resto do beiju, as bolachas sobrantes, a prpria cuia
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II4I
onde elas jaziam. Indicou-lhes o Sol, gesticulou que voltassem noutro dia.
Comearam a retirar-se, muito calados, em fila indiana, ao longo da cerca, para os
lados da testa do acampamento. O velho ia frente e Amaro ainda admitiu que ele
se lembrasse de voltar atrs e de lhe oferecer os acanitaras que destinava a serem
trocados
por rifles.
Mas no se voltou e pouco depois chegavam, dt> interior da mata espessa, os sons m
etlicos duma das latas vazias, tamborilada cada vez mais distantemente. Dir-se-ia
voz indita na floresta, criando, medida que esmorecia, um mistrio indefinvel e incm
odo, como um funeral brbaro a efectuar-se ao longe, atravs das solides tremendas. <
\
Ao fim da tarde, quando Jarbas, de toalha ao ombro, descia descuidadamente a rib
anceira, prestes a entrar no banheiro, uma sbita rajada de flechas, partida da ma
rgem oposta do igarap, veio ao seu encontro e uma delas, j enfraquecida pela distnc
ia, ainda lhe tocou de leve no peito. Mesmo depois de se abrigar, sentiu outras
a embaterem no casinhoto fUfr tuante, enquanto Genaro e Honrio o preveniam "Ia al
pendrada, com quantas foras as suas vozes tinharai
No saia! No saia! I Despiu-se, banhou-se, tornou a vestir-se, devagar.
Na noite j nascente, o surdo bicar das setas nas paredes do banheiro cessou e Jar
bas ouviu Genaro libert-lo, l de cima:
Pode vir!
Quando chegou ao alpendre, Genaro afirmava ter visto, dali mesmo, alguns ndios su
rdirem entre os arbustos, durante instantes apenas, por detrs daqueles que flecha
vam; e ento parecera-lhe, pelos gestos e expresses deles, que censuravam o que os
outros estavam fazendo, de cara ora enraivecida, ora suando jbilo.
O batelo demorava. E um dia, na roda da bisca, Maximiano verbalizou, enfim, aquil
o que j havia pensado numerosas vezes sobre a tardana dos companheiros em voltarem
:
Quem sabe se no mataram eles ? H muito que os homens amassavam aquela hiptese e alg
uns at visionavam a cena. O batelo tardava com os novos abastecimentos e os franga
nitos que a galinha pedrs criara j haviam ilustrado quatro arrozadas, antes mesmo
de alcanar a juventude completa; depois os doze homens principiaram a comer barba
dos. Bonifcio garantia ser prefervel para a sade sujeitarem-se quele peixe fresco, a
pesar de malquisto, do que se alimentarem sempre de conservas de carne e de pira
rucu secos; e embora, forando o gosto, ele prprio desse o exemplo, a insatisfao mant
inha-se alapardada nos homens.
Uma tarde, a dupla expectativa quebrou-se quando o velho parntintim, a quem Raimu
ndo teimava em dar a hierarquia de paj, por lhe parecer que aparentava modos e ro
sto de feiticeiro, surgiu novamente s
portas da cerca.
Vinha acompanhado do jovem mimo que o escoltara da primeira vez, de trs ndios desc
onhecidos, muito desconfiados, todos j distantes da mocidade, e de quatro raparig
as, mais nuas ainda do que eles, pois nem as suas naturezas recatavam.
Amaro avanou rapidamente para as cancelas, com Raimundo ao lado, enquanto o rest
o do pessoal se encostava ao zinco do barraco, daquela mesma banda, e o Manga Ver
de dizia a Bonifcio, muito srio: Seu doutor, podia emprestar o binculo ? O velho ndi
o contemplou Amaro alguns instantes, com olhos largos, moles, mas profundos; ati
rou uma palavra seca para o lado e o jovem simulou flechar como da primeira vez,
agora indicando a outra margem do igarap, antes de apontar a seta. Logo renovou
O INSTINTO SUPREMO
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O INSTINTO SUPREMO
os gestos que traara na semana anterior, em direccf s entranhas da floresta, l onde e
la parecia justamente mais virgem e misteriosa.
Amaro julgou entender o comeo da representao.* * A segunda parte continuava obturad
a, deixando-o vd- * lante, os olhos a perscrutarem a orla da mata, sabendo" muito
embora que seria em vo a pesquisa. Decidiu^g,* fez sinal ao ndio que esperasse e c
hamou de longe a Bonifcio. sl
s um instantinho, doutor disse-lhe, quando * ele chegou. Me parece que no h ningum
escottx dido, mas no gosto que o senhor se demore aq!fi|b.' Veja se compreende
o que ele quer dizer... >> *
A dificuldade ramificou-se e avanou ento, com$ os cips, por sucessivos e recprocos e
maranhados tt confuses. ^
Tardando tambm o ndio a perceber que desejavam v-lo a repetir a mmica inicial, em to
descoiflchavados gestos os trs se aventuraram, que todos, <4 parte o velho, acaba
ram rindo do burlesco que et prprios fabricavam. E foram esses passos de farsa que
produziram rapidamente, sobre os refreamentos assim' demolidos, uma imprevista
familiaridade, viva huffi> nizao a nvel igual, que os brindes, mesmo os maife fascin
antes, no haviam podido criar. Mas quando, finalmente, o jovem os entendeu e lhes
satisfez a pretenso, Bonifcio desiludiu Amaro: T
- Parece querer dizer que no foram eles que fle'- charam o Jarbas, naquele dia.
Bem... Era isso mesmo que eu tinha pensado. Mas o resto ?
O resto no compreendo. Pode ser que esteja apontando o Sol para figurar a Lua, p
ela qual eles se regulam. Querer indicar um perodo de tempo futuro ?
Ser para fazer a paz l no centro do mato ? A voz de Amaro trazia simultaneamente dv
ida e
inocncia e Bonifcio encolheu os ombros:
Qual paz, se ele faz tambm meno de flechar ? As dedues esfrangalhavam-se, derrotadas;
as que
vinham substitu-las no conseguiam igualmente sair
para a luz explicadora que existiria ao fim do tnel. Instado por Amaro, Bonifcio v
oltou parede do barraco, l onde o binculo passava de mos para mos, de olhos para olho
s, enquanto na cerca Raimundo retirava os arames reforantes da ltima cancela e a a
bria, sem hesitao, aos selvagens. Como da primeira vez, o ndio velho recusou-se a e
ntrar.
O jovem mimou ento trs faces para os novos visitantes, quatro colares para as rapar
igas, para ele o chapu de carnaba de Raimundo, que imediatamente recebeu, com to cnd
ida alegria que logo aos
pulos comeou.
Amaro contou discretamente, pelo ngulo do olho, os acanitaras que o velho segurav
a e eram oito. Disse
a Raimundo:
Alm do que eles pedirem, traga quatro braceletes, quatro pentes e bolachas tambm.
Para o velho que h-de ser? Olhe! Pea ao doutor que mande dois daqueles livros com
figuras. O que tem, dum lado, ndios nus e, do outro, j vestidos. E tambm o das mulh
eres com saias bonitas e de muitas cores...
Quando Raimundo se aproximou de Bonifcio, tirava ele o binculo ao Tanajara, punha-
o a tiracolo e dizia aos homens, com uma voz meio sumida, mas quente de experinci
a prpria:
Se acabou! Isto faz mal, esto compreendendo ? Ao voltar, Raimundo preveniu Amaro
, enquanto
pousava no cho os terados.
So os ltimos. O que ficou l tem o cabo despregado. Bolacha Maria tambm s h estas a...
Trouxera a prpria lata, onde metera os brindes midos e agora destapava-a. Amaro co
meou por um dos livros. O velho tinha as mos ocupadas e, para as libertar, entrego
u logo os acanitaras. Pegou no tomo que se lhe oferecia, ficou a olhar para ele,
molemente, incerto sobre a sua utilidade. Amaro acercou-se mais e ensinou-o a f
olhe-lo; e os dedos dum contactaram com os do outro e as suas mos roaram-se, o que
sucedia tambm pela primeira vez. O velho pareceu interessar-se, um momento, pel
as figuras do livro, mas
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O INSTINTO SUPREMO
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vivacidade alguma luziu nas suas pupilas. E no tardou a colocar o volume sob o br
ao, retomando a atitude solene e passiva do chefe que devia assistir ao decorrer
da cerimnia, apenas iniciada.
Amaro distribuiu os terados, acenou depois as raparigas, um aceno que aspirava a
ser delicado, mesmo terno, para que se aproximassem. Formavam assembleia parte,
timoratas, cochichantes, os olhos brilhando de curiosidade, a uns dez metros del
e; sorriram acanhadamente e no lhe obedeceram.
O velho lanou-lhes, porm, duas palavras comandativas e secas, como parecia ser de
seu costume quando se dirigia aos que o acompanhavam. E elas, ento, principiaram
a acercar-se, sempre com timidez indo* mada, sempre vagarosas, as formas arredon
dadas, os seios ainda erectos, o promontrio pbico saliente, a contrastar, pela sua
vegetao rala, com a exuberncia da floresta nativa, ali mesmo ao lado.
Amaro ofereceu-lhes os colares, em seguida os braceletes e, antes de lhes entreg
ar os pentes, exemplificou na prpria cabea como deviam us-los.
Elas tornaram a sorrir, um sorriso veludoso, quase maternal, que parecia comunic
ar-lhe ser-lhes intil, desde h muito, aquela lio. Olharam as mulheres das cidades, s
eus vestidos e sapatos, no livro que ele tanv bem lhes deu; miraram-se umas s out
ras e sorriram mais uma vez.
Por fim, Amaro ergueu a lata, carregou a mo de bolachas e foi deixando-as cair de
alto, como moedas tombando duma comucopia, sobre o mesmo fundo de onde as havia
iado. Gesticulou ao velho que as distribusse por todos, deu-lhe a prpria lata, que
ele segurou de encontro ao peito, com o brao arqueado sua volta, no jeito das fi
guras que nos antigos quadros religiosos transportavam relicrios.
At o ltimo instante Amaro aguardou, com um arsenal de desculpas negativas, antecip
adamente construdas, que o velho reincidisse no pedido que fizera da outra vez; m
as viu-o partir, comboiando os seus, partir devagar sem ter voltado a falar-lhe
de rifles.
INSTINTO SUPREMO
XII
fj batelo chegou, finalmente. A manh dealbava e Tanajara, que cumpria, com Raimu
ndo e Carolino, o seu quarto de vigilncia, vendo-o a fantasmar no rio, quela luz m
eio fusca, correu para o barraco, oferecendo a boa nova ao pessoal, que ainda dor
mia. Todos os homens que no estavam, como ele, de sentinela, em breve desceram a
ribanceira do Maici-Mirim, engolindo ou disfarando os ltimos bocejos
e de alma contente.
Filipe, Juvncio e Aristeu acenavam-lhes do batelo e Genaro, passando a vista por e
les, deu conta de que Dorival e Tito Boludo haviam regressado tambm. Associavam-s
e s manifestaes cordiais, embora de maneira mais fria, como era de seu feitio, sobr
etudo
o primeiro.
Cearense baixote, de ombros largos, cara sorridente, modos comunicativos, mesmo
susceptvel, dir-se-ia, de contar histrias para rir entre dois choros do violo, Jos G
arcia de Freitas, que vinha chefiar o Posto, j havia desembarcado quando eles che
garam. E do princpio *do barranco presidia, bem-disposto, como se houvesse dormid
o dum sono macio a noite inteira, descarga das mercadorias que o batelo trans
portara. Sua senhora est boazinha e me entregou muitas coisas para o doutor fora
m as primeiras palavras que dirigiu a Bonifcio, aps os cumprimentos.
Os homens que tinham ficado no Posto abraavam os que volviam, abraavam todos, meno
s Garcia e o ndio, hirto e srio, que ele tinha ao seu lado e no se lhes dissera ain
da quem era.
No me esqueci, no pense gritou Filipe a Mariano, antes mesmo de saltar do batelo.
As pimentas vm a, dois sacos cheiinhos.
Amaro ia relacionando o novo chefe com o pessoal, um a um, no torn desafectado q
ue era o seu.
O INSTINTO SUPREMO
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1146
O INSTINTO SUPREMO
Que pena no poder fixar os nomes de vocs todos agora mesmo! Mas trago a a lista e
logo j saberei quem so os donos deles. Seu Curt me informou que tudo gente boa, c
apaz de morrer pela nossa ideia, se necessrio for disse Garcia.
Jarbas ouvia-o, examinava-o de lado, enquanto G^- naro ciciava as suas impresses,
confrontando-o com Amaro. , r\
E os doentes ? perguntou Bonifcio.
Seu Curt foi para Belm. O Cavalcanti, em Humait, melhor. Os outros fic
aram em Trs Casas. Quase fortes quando samos; queriam voltar para aqui, no deixei.
<.'
Virou-se para Amaro e ps-se a justificar a demora-:
Estvamos sempre a pensar em vocs. Mas que fazer ? Seu Curt, quando chegou a Trs Cas
as, mandou logo botar um telegrama em Humait, para o doutxpr Bento. Lhe pedia qu
e fosse arranjando algum qie soubesse tupi e guarani, para falar com os Parintint
ims, que ele explicaria tudo quando passasse em Manaus. Passou e explicou. Mas f
oi difcil arranjar quem soubesse e estivesse livre para vir. Uns no podiam abandon
ar o servio, outros andavam em misses, longe.
Garcia bateu afectuosamente no ombro do ndio que se encontrava junto dele:
Quem estava mais perto, era este, o Mangori. Perto, perto, uma maneira de dizer.
Estava em Tef. Mandar vir ele, esperar vapor para embarcar, chegar a Manaus, esp
erar outro "gaiola" para o Madeira um tempo! Doutor Bento, eu, todos, andvamos p
reocupados. Quando desembarcmos em Trs Casas, seu Manuel Lobo tambm estava. At arran
jou uma lancha em Humait, para virmos mais depressa. No sei como arranjou, me diss
e que no foi fcil. Ela nos andou rebocando no Madeira, no Marmelos, no Maici, at al
deia dos Muras-Piras. Se no fosse isso, quando amos chegar?
Amaro interrompia-o, de sbito inquieto:
Os brindes esto faltando. Trouxe ?
Vm ali.
E cartas, h ? Era Genaro quem o interrogava desta vez, com um torn apressado e a
rdente.
H algumas.
Garcia puxou Amaro de lado, ao mesmo tempo que olhava a extremidade da cerca, l e
m cima, ao fim
do barranco:
E as coisas, por aqui, como vo ?
Ia abrindo cada vez mais o rosto e cortando frequentemente a exposio que Amaro lhe
fazia.
No me diga! bom. No me diga! bom mesmo! Depois me conta tudo.
Subiram a rampa, meteram terra limpa, direitos ao barraco. O acampamento dir-se-i
a diferente e excitado, mais excitado ainda do que em hora de navio uma dessas i
lhas, pequenas e longnquas, que a navegao s aborda de largos em largos tempos. A ter
ra, as plantas humildes, as bordas da floresta, pareciam contaminadas pelo mesmo
alvoroo dos espritos; o prprio arame farpado minimizava, naquela manh saborosa, a s
ua desagradvel significao.
Dos homens que haviam descido ao rio, somente Jarbas e Moacir tinham ficado no b
arranco, a auxiliar a descarga. No esperavam correio algum. Cartas de Belm, notcias
dos camaradas distantes, eram endereadas ao nome dum companheiro em Humait, que d
evia guard-las at eles regressarem.
Chegado alpendrada, Genaro deps sobre a mesa o saco que Tito Boludo lhe passara d
e bordo do batelo e ele trazia s costas, meio cheio e o resto do espao ocupado pela
s suas esperanas ali comprimidas. Garcia abriu-o e iniciou a distribuio.
No havia nada para Raimundo nem para Mariano; to-pouco para Carolino. Amaro recebi
a um ofcio timbrado do Servio de Proteco aos ndios e mais trs cartas; Honrio, Genaro,
aximiano e Tanajara, uma; Manga Verde duas, escritas por mulheres, adivinhava-se
pela letra, cartas que ele demorou a retirar da mesa, para que os companheiros
as vissem bem. Todas as outras se destinavam a Bonifcio, elas e os jornais, os li
vros e as pequenas caixas que Tarslia fora mandando
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para Trs Casas, por todos os vapores, antes de Garcia partir de Manaus. O prprio s
ogro lhe enviava um pacote. Tanto correio, tanto! e ele a sentir-se vexado ao pe
nsar nos que no haviam recebido nenhum, mesmo nos que tinham recebido algum, tant
o correio vindo da terra civilizada, a agravar aquele sentimento desolido voluntri
a e brbara em que todos eles viviam, com o cu a cobrir, como uma tampa, as paredes
verdes e atafegantes, onde habitava a Morte.
Os homens voltaram ribanceira, para cooperar no desembarque dos "novos abastecim
entos; e caminhavam devagar, lendo as cartas, com Genaro no meio, contente por o
cunhado, a quem confiara a sua velha me, lhe escrever que ela ia de boa sade, rij
a que nem macacaba.
O Crisstomo, o Rocha e o Etelvino mandam abraos para todos disse Maximiano, depoi
s de Jarbas lhe reler a sua folha de papel. Dizem que j esto bons at para pegar ona
e que tm saudades daqui.
Saudades ?! exclamou Manga Verde, acentuando ironicamente a palavra e
exagerando a sua admirao.
Est ali escrito. Quer ver ?
Para ouvir a exposio de Amaro, Garcia metera-se com ele no quarto de Nimuendaj, que
agora ocuparia. Somente Bonifcio ficara no alpendre, sentado grande mesa, perant
e as cartas de Tarslia. Umas vinte ou mais, no as contara ainda, com os sobrescrit
os volumosos, quase a rebentarem. Comeou pela ltima, confiada a Garcia, e continuo
u depois por aquelas que o correio deixara em Trs Casas.
E estava ele naquilo, com o esprito longe, quando do Maici-Mirim, l onde se descar
regava o batelo, subiram, ao mesmo tempo, gritos ditosos de selvagens e apstrofes
de civilizados, tudo de mistura com os assobios dos vigias, que enervavam ainda
mais a sbita balbrdia.
Garcia e Amaro surgiram logo porta, com os olhos meio surpreendidos, meio irreso
lutos, mas j a gara-
bulha, que to depressa estalara, havia terminado. Pouco aps, Genaro aparecia no ex
tremo do barranco, os braos estendidos, apoiados sobre os ombros de Filipe e Mang
a Verde e os ps acima do cho.
A flecha havia mergulhado na parte interior da
coxa, quase rente ao sexo, emergindo a ponta da banda
oposta entrada; e ele mesmo, cerrando os dentes,
dum safano apenas a arrancara.
Sorria quando Amaro, Garcia e Bonifcio foram ao
seu encontro e disse-lhes com ar resignado:
que tinha de ser...
Filipe trazia a seta e entregou-a a Bonifcio, ensanguentada como as calas de Genar
o.
Flecharam do outro lado do rio, por detrs do cerrado, e no vimos nenhum informou
o Manga Verde. S ouvimos os gritos de alegria, umas gargalhadas que me pareceram
iguais s daqueles que acompanhavam o velho no outro dia.
H muitas gargalhadas que se parecem umas com as outras ops Amaro, para responder
ao seu prprio esprito, que resistia a hospedar aquela admisso.
Dirigiram-se todos ao quarto de Bonifcio, onde ele voltou a examinar a flecha, a
limp-la do sangue para a analisar melhor, concluindo que ela, como as anteriores,
no estaria envenenada. E j desinfectava a ferida de Genaro quando Amaro reflectiu
:
Dali, eles podiam matar muitos de vocs, no sei porque se foram embora assim de rep
ente.
Talvez trouxessem poucas flechas aventou Garcia. No sabiam quando o batelo estav
a voltando, talvez pensassem que nunca mais voltava e no vinham
preparados...
Eram apenas suposies e ali mesmo as remataram, perante Genaro que se ia deitar, co
m a cara enrugada pelas dores e o pessoal aparentemente calmo, como se tudo j lhe
parecesse natural.
Bonifcio tornou leitura. "No sei se ests vivo ou se ests morto. E quando julgo que p
osso estar a escrever a um morto parece-me que you desmaiar". Havia tambm cartas
de amigos. Na que lhe escrevera,
"50
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"51
Nimuendaj dizia: "Resolvi descansar uns dias end Manaus, antes de seguir para Belm
. Me sinto coift mais foras. Penso voltar a em Dezembro, mesmo que, os Parintntins
j estejam civilizados. Quero fazer fo meus estudos sobre eles, que considero essen
ciais".
A meio da tarde, todas as mercadorias arrumadas,) algumas caixas j mesmo abertas
e o batelo dentrp> da cerca, Jarbas viu Bonifcio sentado sombra dnfc> barraco, a le
r os jornais. E devagar se foi aproximando, espera de que ele erguesse a cabea. v
O doutor me empresta eles depois ? Entregou-lhe Bonifcio os que j lera, prometeu
dar-lhe, mais tarde, os restantes. n^j
Sentia-se deprimido. S as cartas de Tarslia o haviam ocupado duas horas bem compri
das e tormen* tosas. Parecera-lhe que as ltimas j no eram t arrebatadas e espontneas,
como as primeiras. Puretl cera-lhe, na enviada por intermdio de Garcia, qw{ alguma
coisa lhe impedia a sinceridade ardorosa que costumava ter. "Talvez para me ir
habituando a pei" d-la... Ou talvez pelo receio de Garcia ler a cartaq Mas se ela
lha confiou aberta, certamente sabia que ele a fechava na sua frente..." -b
Sempre a conversar, Garcia e Amaro vinham atra*-} vessando o acampamento, aproxi
maram-se e pediram-', -lhe para ir com eles. < ,-
Detiveram-se os trs junto das cancelas, Garcia olhou os arames que as consolidava
m, olhou para fora' da cerca, em silncio; depois disse, como para si prprio:
Ento foi aqui... Ergueu a voz: Se seu Curt> no se enganou, se o dialecto dos Par
intintins baseado) no tupi puro e se se assemelha ao guarani, a coisa estj resolv
ida. O Mangori se entender com eles.
Tornou a fixar as cancelas: s
Se voc concorda, me parece melhor tirar esses arames, abrir essas porteiras. D mai
s confiana a eles.' Abrir de dia, fechar de noite.
Amaro dizia que sim, que Nimuendaj tambm j havia pensado aquilo e ele estava espera
de que os ndios viessem outra vez.
Sentia-se que Garcia no queria vexar Amaro, sobrepondo-se-lhe imediatamente, tira
ndo-lhe de repente o
comando.
Voc fez aqui um bom servio, no h dvida; agora est tudo mais fcil. preciso que o dou
Bento saiba isso, o doutor Bento e os outros, l em
Manaus.
Na alpendrada, os homens confraternizavam com o ndio Mangori, a novidade desse di
a, apesar de o verem ganhar sempre na bisca que j travavam.
Ele no est fazendo mandinga, mesmo ? perguntava Tito Boludo a Honrio, seu parceiro
naquela
batalha.
com um sorriso grosso, Mangori alargava a sua cara arredondada, diferente da de
todos os outros, amenizando-a com ares de inocncia, enquanto ia lanando a nova car
ta sobre a mesa. Tito Boludo mostrava-se de bom humor, mesmo condescendente para
ele e Filipe, que o derrotavam no jogo; dir-se-ia mais ligado a todos os compan
heiros desde o seu regresso e, logo de manh, aps a chegada, comunicara a Jarbas, e
m torn de confidncia :
Andei pensando naquilo que voc me disse e
agora julgo que est certo.
Ao fim do dia, encostados ao barraco menor, sozinhos; Jarbas passava a Moacir os
jornais que tinha
sob o brao:
Parece que o Sodr vai ser o novo governador. Viveu muitos anos no Rio, mais democ
rtico do que o outro. Se for governador mesmo, decerto muda muita coisa. Outro c
hefe de polcia, outra gente. E ento talvez iremos poder voltar.
*
H mais j de uma semana sempre alerta, as duas cancelas se escancaravam, de sol nad
o a sol posto, diante da mata. Debalde os homens miravam e remiravam, centenas d
e vezes por dia, naquela direco: o terreno limpo, to limitado, to desprovido de hozi
-
J
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1153
zonte, entre a cerca e a floresta, iludia os seus olhos teimosos, parecendo mais
limpo ainda do que habitualmente. Podia um carro rodar ou os bateles serem arras
tados pela ampla entrada, que o espao chegava; mas nela divisava-se apenas, quand
o o sol estava a pino, a sombra rendilhada, levemente trmula se corria brisa, do
galho intruso que grande rvore fazia avanar sobre o acampamento.
Souberam que o batelo tinha voltado e que havia outra vez mais gente arriscou A
maro, ante o silncio de Garcia e o olhar incerto de Bonifcio, que ultimamente pare
cia mais profundo do que antes.
Uma tarde, porm, quando modorravam a sesta, os silvos dos espias foram logo copul
ados por um rumor de vozes femininas, que dir-se-iam triladas e venturosas. Copi
oso bando de parintintins, caminhando em cortejo, na cauda mais de vinte mulhere
s de braos no ar, agitando acanitaras, to vistosos que sugeriam de longe as prprias
araras que lhes haviam fornecido as plumas maiorais, ofereceu-se aos olhos cont
entes do pessoal.
Feliz tambm, mas homem prtico como as suas panelas, Mariano, vendo aquele espalhaf
ato, perguntou com ar ponderativo:
Para que serve tanto capacete ? Onde vamos pr tudo isso ?
Levamos para os coronis dos seringais respondeu-lhe o Manga Verde, muito srio e d
igno, como se lhe falasse duma deciso j tomada.
Entretanto, Garcia pensava ser mais prudente ele ir apenas com o Mangori, no acon
tecesse haver cilada e o Posto ficar sem nenhum chefe; lembrou-se, porm, de que o
s Parintintins desconheciam-no ainda, que a presena de Amaro era necessria e fora
m os trs.
Encontraram o velho com aspecto mais derreado do que das outras vezes e o jovem
da mmica junto dele, fixando muito atento o Mangori, parecendo at com um lume de f
erocidade ardendo no fundo das pupilas, ao verificar que ele era ndio tambm. Amaro
no reconheceu nenhum dos outros, uns de modos tmidos, alguns orgulhosos, cabeas to
levantadas que
as plumas pendentes dos diademas se lhes entortavam sobre as costas; e todos cal
ados e imveis, ao lado das mulheres, que de repente haviam suspendido o seu regoz
ijo; to calados e inteirios como se aguardassem uma sentena pronunciada do interior
da cerca.
Garcia acenava-lhes as cancelas franqueadas, enfeitando a sua cara optimista com
sorrisos sucessivos, que iam duma jucundidade esperta lisonja calculada, enquan
to ordenava a Mangori, em voz baixa e rpida: Diga a eles que entrem, que estejam
vontade, que somos amigos e viemos fazer as pazes.
Verbalizou Mangori a traduo e foi-lhe menos difcil do que julgara. Verificou que o
dialecto da sua tribo, fixada no alto Riozinho, se aparentava efectivamente, pel
o lado -do tupi puro, com o dos Parintintins, conforme Nimuertdaj previra quando
passara em Manaus, quebrando o longo mistrio.
Diz que no querem entrar, que tambm so amigos, mas s entram para outra vez. Hoje no tm
tempo, vrn s pegar os brindes.
Pergunte o que ele queria dizer outro dia a seu Amaro, quando o moo fingiu jogar
flecha e indicou o Sol e esses fundes para a tornou Garcia.
Sempre com aquele dente insulado a surgir e a esconder-se, o velho falou ento dem
oradamente, por vezes num torn vivaz que lhe retirava a solenidade, outras parec
endo imitar uma discusso, entre ele e algum que no se encontrava agora presente.
Mangori transmitiu:
Diz que os Parintintins j no esto pensando todos da mesma maneira, que muitos j deix
aram as suas malocas e foram viver longe. Os que vieram deitar abaixo a porteira
, foram embora na outra lua. Os que flecharam o banheiro e o batelo e outros que
tambm andaram por a atacando, foram ontem. Esses no trn confiana nos civilizados, no q
uerem mudar de vida, querem ser selvagens mesmo.
No faz mal interrompeu Garcia, sempre bem disposto. At bom! Agora deixam a ns em
paz e mais tarde so estes que vo civilizar eles.
37 Vol. Ill
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O IN
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Bem aderido ao seu papel, Mangori ia traduzindo, 1 secretamente satisfeito com
a superioridade que tinha sobre a ignorncia de Amaro e de Garcia: 'Jura
Diz que ele e muitos outros querem fazer.^s pazes, mas desconfiam de ns, no querem
perderias suas terras e ns somos maus. )
Lhe explique que no precisamos das terras 'delas! para nada. Temos muitas, no pr
ecisamos de ma> Lhe explique que isto se chama Brasil e que o Brpsii uma terra que
parece no ter fim, que so precisas muitas luas para ir dum lado ao outro, que se e
le>fossf> a p no chegava a sua vida para conhecer toda' ela e se fosse de canoa ta
mbm a vida no lhe chegaitD para andar em todos os rios que ela tem. "(ff$
Enquanto Mangori comunicava aquilo, num ditognjt manso, cada vez mais correntio,
Garcia sussurrante^" Amaro: 'is&s.
Mande trazer os brindes. Voc no volte. Qjj$ no esqueam as duas enxadas. Espere a...
iimp
Tornando a olhar as ndias de largas ancas, vejitcpf dilatado, longos seios cados,
que o peito ameigava da parte interior, como os mames quando nascem miait4 encost
ados uns aos outros, Garcia fez o seu juzo deue tivo e acrescentou. . r
Mande tambm brinquedos para crianas. Muitos? Mangori prosseguia. O velho escutava-
o sem nunegf
alterar a sua expresso, de novo circunspecta e impas" svel, como se ele falasse so
zinho para o tronco incite ferente duma rvore. Os outros, porm, entreolhavain-se,,
parecia que surpreendidos, parecia que desejando comentar a imensurabilidade da
terra e os seus rios fabuloabe^ que eles ignoravam. Os mais ousados balbuciaram
pen? guntas, baixando os olhos; e, quando Mangori temdp nou, somente o velho pe
rsistia na sua imobilidade"^ mudez, o corpo manchado pelas sombras que o aivO**
redo sobre ele derramava. ' "^
Diga que a civilizao tem muitas coisas bonitas^ que eles no conhecem, nem podem pen
sar que h; e que ns queremos que eles tenham tambm essa& coisas, para serem iguais
a ns e a todos os outro"
;A esto civit muitos ndios que laj ve.de
^M^~&"&
Homens. "W^ todos ] esto H - indw,
Uzados, q"e,.^to a eles; que Bocejam ^{]
r5f%"siri^rqr"s \tt"&~"""'
vapores e carros q dia int IO e logo
n^^ssr^s ***"qtte
expediu al%n08 ' rosto: nio precisam de
al a &S C: t^rexpS^ser
vir deS?"-rrX- -rSSlieate,
zadS ^&tfSB*?%ssz%.
- s^TfS^^5- pMecelT
mentos da sua p v tequese. esttua de
de boa tmpera para a idava de que a dida
dC E quando Garcia ja^. PelosUa^e a utilizar
sasss^r;:
vras. . ,.._ no tem confiana em
vras.
^Diga ^ ^ compreendeu, be: a nao
s tt^^Ejt-s ^ist;
que so anos.
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haver'mais. A gente quer a paz e o nosso chefe cants todas as guerras. Diga que q
uando eles j foremicvilizados, ns daremos rifles e iremos fazer juntos mujtafe caada
s. h[
Enquanto Mangori interpretava a nova meisagem, Garcia entreviu, sobranceira ao ar
telho dum dos > ndios, uma grande e nojenta ferida, que logo considercrar a sua m
ais preciosa descoberta desde que desembaccaara no Posto. No s grande, mas tambm ar
roxeada^ bordas a desfazerem-se em podrido, como as do& velhos mendigos que outro
ra ladeavam os caminhos condi"centes aos templos, em dias de festas religiosas.
B nunca o mal dos inimigos de Garcia lhe fornecera to repeitm& satisfao como a vista
daquela chaga, gudio-oeuto de mutucas, que at aos seus olhos repugnava. i
Os brindes j estavam ali, acumulados atrs doaseteira. Raimundo agarrou uma das enxad
as, dobroarisa, cavou no cho escuro do acampamento at Garcia 'daw "Basta". Pegou n
os inhames trazidos dos palnw afe horta que Mariano cultivava ao p da cozinha,, ftt
tchou-os na terra, que levemente aplanou, ao teuniiaior a lio. ."f>W<f
Diga a eles que venham buscar. sh & Mangori disse, mas eles no vieram. -"fiiv
Ponham tudo isso l fora tornou Garcia. Eram copiosas as ofertas, desde as clssica
s s no**-
dades das enxadas, deputaes de lojas de quiriqui* lharias e de armazns de ferragens
, imbricao de fopmas e de cores, que Raimundo, Tanajara, o prprio Mangori, transpor
taram lestamente e com jeito 'va^- rativo expuseram ao lado do velho. }t
Ento, abandonando suas atitudes coibidas, ndrps e ndias se vergaram e se lanaram rapi
damente aOB utenslios e bufarinhas, com af irreprimido, uns sobi* os outros, como
os leites por cima dos irmos, oiquista duma teta, logo que a me se deita. To aoda/-
ente se conduziam no assalto ao tesouro de pechisbeque, que ainda depois de o ve
lho lhes haver falado em torn exprobativo, duas mulheres disputavam mesmo colar,
cada uma puxando-o tanto para si, que
o ho se partiu e as contas desapareceram entre a folhagem morta, ansiosas de paz
.
Diga a ele que ns temos um mdico, que pode tratar a ferida daquele parintintim. E
tambm outras doenas deles. Explique o que um mdico.
Mangori explicou, o velho pareceu hesitar, meteu-se em dilogo com o selvcola apo
ntado, que por fim
transigiu.
Diga que preciso ele ir ao barraco, para tratar l.
Tornou o velho sua perplexidade, volveu a falar
ao ndio e Mangori traduziu que o ndio no ia. Garcia virou-se para Tanajara:
Pea ao doutor que venha, que traga remdio,
que uma ferida m.
Tanajara partiu e logo voltou com duas cadeiras, que deps perto das cancelas, do
lado de dentro.
Bonifcio no demorou tambm e trouxe a sua maleta de jornada, miniatura de ba, com abe
rtura e
ala no dorso.
Diga a ele para entrar.
Mangori verteu as palavras de Bonifcio, mas o parintintim, depois de breve hesitao,
respondeu-lhe
que sassem eles.
A, debaixo das rvores, h sombra, no se v bem a ferida; aqui melhor justificou Mangor
i, por sua conta desta vez.
O indgena tornou a vacilar, fixou o velho com olhos de consulta e, perante o seu
gesto lento, veio andando, muito vagaroso e ainda desconfiado.
Bonifcio indicou-lhe que colocasse o p sobre uma
das cadeiras e em cima da outra abriu a maleta. Mas
logo que achegou ferida a compressa embebida do
soluto anti-sptico, o ndio retirou violentamente a
perna, indignado pela ardncia que sentira. Debalde
Mangori lhe falou da brevidade do incmodo, em vo
tentou esclarecer-lhe a remota ignorncia; os punhos
dele haviam-se cerrado, a boca tremia-lhe de clera,
os olhos, muito abertos, chispavam. Ia j a abalar,
talvez a vingar-se, como pensava Raimundo, seguin-
* Vol. Ill
US"
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1159
do-lhe os movimentos e pronto a intervir, quando Bonifcio, arregaando a manga da s
ua blusa e pegando o bisturi, a si prprio se golpeou. Instantaneamente ao dio se r
eunira o jbilo nos olhos grandes do parintintim, ao ver o sangue aflorar; uma volp
ia cruel, brilhante, oleosa, dir-se-ia escorrer-lhe por toda a cara. Bonifcio mir
ou-o indulgentemente, enquanto passava e repassava o algodo com desinfectante sob
re o brao; e Garcia, Tanajara e Mangori ouviram-no dizer, com uma voz de onde par
ecia manar, simultaneamente, uma antiga melancolia, unida a um secreto e pequeno
orgulho:
Como ns ramos!
Cortou alguns palmos de ligadura, umas polegadas de adesivo e estava a pensar-se
quando o velho atravessou as cancelas e se foi aproximando para assistir de per
to quilo, pela primeira vez rompendo a fronteira que h tantos milnios separava dois
tempos e os dois grupos humanos que ali os representavam.
Quando o selvagem consentiu, finalmente, que o mdico lhe limpasse a chaga e esten
desse de rebordo a rebordo a pomada, os olhos de Garcia no se despegavam das mos d
e Bonifcio, tanto se convencera j de que o desaparecimento daquela ferida asqueros
a seria mais til e decisivo para a sua misso do que todo o oiro da Terra.
Que volte amanh, para fazer outro tratamento. E que no meta o p na gua, nem no tijuc
o disse Bonifcio.
Estava ainda Mangori articulando a recomendao e j o parintintim se apossava das tes
ouras, da bisnaga da pomada, dos rolos de gaze e do adesivo, de tudo quanto os s
eus dedos sfregos podiam de momento capturar.
Previna ele de que s o doutor sabe tratar da ferida interveio Garcia. E com aleg
res gestos, como se a um folguedo se entregasse, das mos ladras foi retirando o q
ue elas j fortemente encerravam.
O ndio pareceu conformar-se. Tomou o caminho da porteira, olhando a polaina branc
a que a ligadura
formava acima do artelho, l onde as mulheres da sua tribo usavam outras semelhant
es, mas escuras, feitas de embira, o que levava a sorrir os demais parintintins,
aglomerados fora da cerca.
O velho no paj. Se fosse, no deixava pr remdio de civilizados; queria ele tratar com
feitiaria comentou de sbito Raimundo, destruindo a sua prpria hiptese.
Garcia recorreu novamente a Mangori:
Pergunte a ele se os Parintintins no tm chefe. O velho ia j a retirar-se, sem gesto
e sem palavra.
Viram-no deter-se, olh-los de novo, responder com voz cansada, pela primeira vez
ligando a sua austeridade a um fundo que soava a triste.
Est dizendo que tm. O chefe era irmo dele, mas morreu h pouco. Ele era o segundo che
fe, mas no quer agora ser o grande chefe, porque tambm est velho. Quem vai ser, daq
ui a trs luas, o filho
dele.
Mas ento os Parintintins no obedecem todos a ele? Esses que andam por a a flechar a
ns?
Depois de ouvir Mangori, o velho ps-se a falar com um torn mais deprimido ainda d
o que h pouco.
Diz que os da maloca dele e de outra que est perto obedecem. Mas os das que esto
longe, umas vezes obedecem, outras no. Diz que os moos de agora no so to bons como os
antigos. Quando vivem longe, no respeitam o chefe e s querem fazer a vontade dele
s. H dois grupos. Aqueles que foram embora arranjaram outro chefe mais novo, um c
hamado Hainambi.
Bonifcio sorriu: havia tambm nos selvagens a incompreenso entre as geraes ?
J no exterior da cerca, o velho acenou aos seus companheiros para que entregassem
os acanitaras. Garcia correu para ele, abraou-o, com palmadinhas o festejou nos
ombros, todo efusivo perante aquela solenidade renascida e imvel; e era como se a
braasse um dos esteios da alpendrada.
Diga a ele que hoje no so precisos acanitaras. Hoje damos todas essas coisas, sem
receber nada.
* " _ Vol. Ill
u6o
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1161
Pareceu no compreender logo. Mangori repetiu e ele quedou-se ainda perplexo. Algu
ns dos diademas jaziam no cho, esmagados durante a luta pelos brin.^ ds; outros mo
stravam-se encarquilhados, quase desr feitos, nas mos que os seguravam. O velho e
scolheu os melhores, entre os intactos, e insistiu, antes ds partir, em oferec-los
a Garcia.
O ndio voltou. A princpio com guarda-costas, quatro robustos mocetes, via-se que de
cididos a defend-lo, embora viessem desarmados; Aristeu julgou ver, porm, como da
primeira vez, quando estava de sentinela, outros mais, com arcos e flechas, desl
izando entre as rvores. .
O tratamento realizava-se ainda ao ar livre. Mas os selvcolas distraam-se das mos d
e Bonifcio, os seus olhos curiosiavam para o lado do barraco, seguindo os moviment
os do pessoal, os homens que entravam, os que saam ou se aproximavam deles, sempr
e poucos, conforme Garcia ordenara, para no os assustar. Mangori ora lhes ministr
ava explicaes, tentando deslumbr-los, ora os interrogava sobre os seus nomes, a vid
a na maloca, os seus costumes, as plantas que cultivavam) os xitos na caa e na pes
ca. Eram todos guerreiros e o da ferida chamava-se Emboacari. Tanto lhes falara
do que havia no barraco, das surpresas que l os esperavam, das maravilhas que no co
nheciam, que ao quinto dia entraram.
Garcia meteu um disco no gramofone, que eles ouviram sem comentrio, os olhos muit
o abertos, subindo e descendo da agulha para a campanula que tinha voz humana e
cantava. Bonifcio mostrou-lhes uma fotografia do Posto, outra do pessoal, indicou
a mquina que as fizera e, por intermdio do Mangori, ofereceu-se para os fotografa
r tambm. Trouxe-os porta, ensinou-lhes a regular o binculo, na direco da margem opos
ta; e viu-os entreolharem-se, sorridentes e admirados. Por fim, diante da pratel
eira dos
medicamentos, Mangori afirmou-lhes que serviam no s para curar feridas, mas muitas
outras doenas, e que deviam acorrer imediatamente ao Posto, quando
as tivessem.
sada, rentando a porta da cozinha, Emboacari estendeu o brao, agarrou uma baci
a e, perante o olhar suspenso, meio interrogativo, meio protestante de Mariano
, prosseguiu com naturalidade o seu caminho. Recuperou-a Mangori, j na alpendrada
, em troca de outros presentes e copiosos argumentos sobre a falta que o objecto
fazia ao cozinheiro, um homem que no podia viver sem aquilo.
Bonifcio fctografou-os, eles esperaram que a prova ficasse pronta e com ela, pass
ando-a de mo em mo e falando muito, ao fim da tarde partiram. E ento Garcia conside
rou que j se podia efectuar o tratamento no quarto de Bonifcio, mas que seria pref
ervel, aps aquela experincia, continuar a faz-lo ao ar
livre...
A ferida tardava a cicatrizar, dias havia em que a preguiosa parecia no ter avanado
nada e os homens do acampamento andavam to interessados na sua evoluo como se ela
roesse a carne deles prprios. Emboacari passara a vir testa de ndios ainda ali d
esconhecidos, que pretendiam entrar no barraco, escutar o gramofone, ver as coisa
s e os seres avolumarem-se atravs do binculo e serem fotografados, todos rendidos
ao fascnio do maravilhoso. E quase sempre, ao retirarem-se, um deles tentava lanar
a mo, dir-se-ia com inocncia, sobre algum dos objectos que os deslumbravam.
Finalmente a cicatrizao terminou. Vendo essa nesga da sua pele j de todo lisa,
como que passada a ferro, com leve brilho a esmalt-la, Emboacari largou aos salt
os, acompanhados de gritos monossilbicos; e logo, com o rosto ainda dilatado de jb
ilo, deteve-se em frente de Mangori, proferindo algumas palavras mansas, qu
e pareciam de cortesia ou solicitude. Ele diz que vai trazer outro amanh. Foi um n
dio da sua mesma gerao, com um tumor
II2
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1163
no pescoo, bem maduro, j suporejante, que ele trouxe na tarde seguinte. E to feliz
ficou Garcia ao ver os dois, que se meteu no quarto, acendeu e se ps a fumar, com
satisfao nunca esperada de tal origem, o ltimo charuto que lhe restava, enquanto B
onifcio se ocupava do doente.
Cinco dias depois, ia Dorival retirando dos dentes as fveras do almoo, servindo-se
dum pequeno fragmento de madeira, e discreteando indolentemente com Honrio, beir
a das mandiocas e dos inhames de Mariano, quando ouviu e ao mesmo tempo viu a gr
ande invaso. Uma centena de parintintins, mais talvez, homens, mulheres, vrias cri
anas, rompera da mata, caminhava para as cancelas e transpunha-as com ar folgazo.
Alguns olhavam ainda esquerda, direita, incertos, meio curiosos, meio precavidos
; outros acenavam, como de terra familiar, aos homens que na alpendrada iam surg
indo rapidamente.
"Era, sim, gente de mais, mesmo sem arcos e sem flechas, mesmo trazendo os filho
s" pensou Garcia, depois de Dorival lhe haver dito que duas ndias, ao sarem da fl
oresta, se tinham voltado e pareciam falar com algum que l ficara escondido. "Seri
a uma baguna do diabo e quem poderia se movimentar e se defender se depois daquel
es, com aspecto de inofensivos, viesse um bando armado, para acabar de vez com o
s civilizados ?">
Os olhos de Garcia procuraram o velho entre a multido de parintintins e dificilme
nte o acharam: desta feita no vinha frente, vinha no meio e dele s metade da cabea
se divisava.
Seu Amaro, mande dois homens para o meu quarto, com rifles; talvez o Raimundo e
o Caroline, voc veja. Que se fechem por dentro, que trepem fresta, que faam duas d
escargas para o cho se eu gritar que disparem.
Os selvagens detiveram-se no centro do acampamento. Garcia e Mangori separaram-s
e do pessoal agrupado junto do barraco e avanaram resolutamente para eles, colhend
o os sorrisos de alguns, a expectativa
de outros e os olhares muito vivos das mulheres, que os examinavam da cabea aos ps
.
O velho, seguido de mais cinco macrbios como ele, todos de ar e passos graves, co
m seu qu de sacerdotes extravagantes, despidos e empenachados para se dirigirem a
o templo, contornou o magoto de ndios e veio postar-se em frente de Garcia e de se
u intrprete. As mos ancis, bem grosseiras, todas rugosas mas firmes, seguravam uma
rede de fibras, avermelhadas pela substncia tintorial do urucueiro e cuidadosamen
te dobrada, que ele ofereceu a Garcia, com a dignidade de quem entrega, para cer
imnia prxima, um objecto cultual. E falou depois, dirigindo-se sua segunda boca, a
Mangori, que o ouviu respeitosamente.
Diz que vem aqui toda a gente da maloca onde ele vive e de outra que fica ali pe
rto. Que todos vm para ser amigos. Os velhos so os chefes das famlias l da terra del
es. Que os das outras malocas viro mais tarde. Disse agora que todos querem ver o
barraco e as coisas bonitas que ns temos. Aquele de grande cangote, aquele que es
t ao lado do Emboacari, que vai ser chefe. o filho.
Diga que eu lhe quero falar. Pergunte o nome
dele.
Chamava-se Dia e teria quarenta anos o seu corpo entroncado, cara austera como a
do pai, braos fortemente musculados e, por contraste, as pernas demasiado finas,
caractersticas de todos os Parintintins. Aproximou-se, Garcia brindou-o com muito
s sorrisos afveis e palmadinhas nos ombros, como era de seu costume; desejou-lhe
felicidades na prxima soberania, prometeu-lhe amizade e cooperao. E mais uma vez se
ntiu prazer naquele dia, ao v-lo, enfim, sorrir e garantir-lhe que seria amigo ta
mbm.
De novo Garcia se serviu do intrprete: Vamos mostrar a eles o barraco. Diga
que venham andando comigo.
Os velhos tomaram a dianteira, com Garcia e Mangori dos lados, o futuro chefe ao
centro. E a brbara procisso, que as plumas dos diademas selvagens sobre-
ii4
O INSTINTO SUPREMO
pujavam? resplandecendo ao sol tropical, avanou lentamente atravs do acampamento,
num silncio excitado, cheio de estranhezas ainda no desvanecidas, um silncio largo
e forte que a oprimia.
Reunido em frente do alpendre, o pessoal adivinhara a rendio tanto tempo desejada
e que lhe parecia agora j confusa e longnqua, com outro valor mais intenso a sobre
por-se-lhe no prprio momento em que ela ocorria; agora que tudo se ia concentrand
o nos olhos dos homens famintos de amor e nos corpos inteiramente nus das mulher
es, medida que o bando, devagar, se acercava. Elas estavam ali, forjas da esp* ci
e, instinto maior logo aps o da conservao, exultante fora impelidora para todos os cu
s e todos os abismos e era como se no estivessem! Vinham ali to pertinho, reais, a
utnticas, os seios muito pronunciados, aS ancas muito arredondadas, os sexos vist
a, e era como se pertencessem ao reino de Onan, como se fossem apenas imaginao er
a como se no existissem! Genaro, apoiado bengala que Maximiano improvisara, rangi
a os dentes; e uma nsia de subjugao violenta, quase feroz, corria desaustinadamente
no sangue em fogo de Tito Boludo, enquanto elas, ainda timoratas, olhos baixos,
passavam sem dar por eles.
Garcia pediu a Amaro que ficasse de vigilncia, c fora; pediu a Bonifcio e a Jarbas
que o acompanhassem e viu logo tambm o Manga Verde a seu lado, sem nada lhe ter p
edido.
No cabendo todos l dentro, levaram primeiro Dia e os velhos, tambm a Emboacari, que
por sua conta lhes ia apontando os objectos e distribuindo esclarecimentos, muit
o satisfeito, parecia mesmo um pouco vaidoso de j lhe ser familiar tudo quanto se
encontrava no barraco.
Perante as trs supremas tentaes, Garcia prometeu, com ampla bonomia, colocar o gram
ofone no meio do acampamento, para que a bandada inteira o ouvisse; afirmou que
o binculo passaria por todos os olhos que quisessem ver aquele milagre, l fora tam
bm; e Bonifcio, com os braos sobre a mquina, sempre
O INSTINTO SUPREMO
1165
montada no seu trip, declarou que fotografaria colectivamente os visitantes,
para recordao daquele
grande dia.
Os mais idosos examinavam tudo com um olhar que dir-se-ia indolente, s pedindo ex
plicaes sobre as caixitas dos medicamentos; mas em alguns adivinhava-se, pela comi
ssura dos lbios e pelos dedos coando a cabea entre as plumas, a excitao que lhes vibr
ava nos espritos. Pareceu a Garcia que o dormitrio do pessoal os deixara desiludid
os, que os utenslios da cozinha, bem limpos e alinhados, lhes haviam interessado
mais; e quando, enfim, j se retiravam, sempre com o futuro chefe frente deles, qu
edaram-se um momento a contemplar as espingardas que subsistiam na parede, a um
lado e outro da porta; a contempl-las com um silncio diferente do que haviam suste
ntado at a.
Saram sem comentrios e ento comearam a entrar ndios de outras idades, algumas mulhere
s tambm e, entre elas, Manga Verde, que pelos seus corpos se roava discretamente.
S oito de cada vez! disse-lhe Garcia. com o Manga Verde j eram nove; ele, porm, de
olhos febris e lbios hmidos, contava de outra forma. Estendeu o brao horizontalmen
te, para a ombreira oposta, como trave em passagem-de-nvel, cortando o acesso; es
tendeu-o, com um sorriso meigo, precisamente sobre os seios duma ndia que ia a en
trar, jovem e
capitosa.
Mas j por baixo do obstculo passava Mariano, muito aflito, para fechar a cozinha.
Era excesso de zelo, porque Mangori, aps haver explicado aos Parintintins que o m
elhor da festa seria apresentado ao ar livre, viera colocar-se porta, substituin
do o Manga Verde. E com suaves modos, diante de Jarbas, que gozosamente sorria d
o conceito que os selvagens tinham sobre a propriedade dos civilizados, ia retir
ando das mos dos ndios, prometendo-lhes futuros similares, os chinelos de Bonifcio,
a guilhotina de migar tabaco, o terno que Filipe reservara para os grandes forrs
,
n66
O INSTINTO SUPREMO
nunca surgidos ainda, bem como o relgio de parede, redondo* como vigia de navio,
que uma ndia transportava, s por ser objecto desconhecido.
com tantos parintintins espera, extravasando da alpendrada para a esquina do bar
raco, alguns mesmo trepados sobre a mesa, a rirem tambm, Garcia reflectiu que a vi
sita de todos demoraria muito e o melhor seria pr j o gramofone a tocar.
Transportou-o Manga Verde, a caixa aninhada no brao esquerdo, a campanula repousa
ndo sobre o ombro, com a bocarra voltada para quem o visse por detrs; e na mo dire
ita a coluna que lhe servia de suporte e de trono. Por entre os Parintintins ava
nou, alegre e orgulhoso, crente de que desse modo participaria, mesmo que pouco f
osse, do prestgio que a mquina ia exercer sobre o esprito inocente das ndias, logo q
ue funcionasse.
J os velhos e Dia o rodeavam, ao mesmo tempo que do abundoso grupo se desuniam e v
inham aproximando tambm alguns jovens.
Tome conta, seu Amaro, que eu you buscar os discos.
Regressou com Filipe, que trazia a mquina fotogrfica, seu pano escuro e seu trpode;
e com Honrio ostentando, como um almirante, o binculo a tiracolo. Entretanto, Man
gori apressava a visita dos curiosos, de novo lhes afirmando que o mais bonito,
aquilo que valia realmente a pena ver, j se encontrava l fora, ao sol, bem ao alca
nce dos seus olhos.
O gramofone comeou a tocar e, volta, o nmero de ndios a crescer. Era um maxixe, agi
tado, remexido, do qual Manga Verde logo se arrependeu, ao verificar que no estav
a ainda ali nenhuma ndia; e, suspendendo a agulha, meteu rapidamente outro disco.
Os velhos escutavam a cano, olhavam o aparelho e iam trocando as suas opinies em v
oz baixa, muito discretos. Mas assim que o cantor emudeceu, Manga Verde, sempre
de vista ao longe, a reparar se era macho ou fmea quem saa do barraco e se encaminh
ava para ali, props a Amaro, com grande ar de querer ser prestante r
O INSTINTO SUPREMO
1167
Em vez de tocar, no seria melhor ir mostrando a estes o bincu
lo, at virem todos os
outros ?
Amaro concordou e pacientemente Honrio foi leccionando as mos e os olhos ignorante
s a utilizarem a
novidade.
Quando, finalmente, cerrada a porta do barraco, Garcia, Bonifcio e o intrprete se a
cercaram, com os ltimos visitantes correndo frente deles, Manga Verde lanou outro
maxixe. Tirando o binculo a Honrio, passou-o a Filipe e com Honrio disparou a danar.
Magro tempo andaram enlaados nos requebros lascivos, exagerando-os carnavalescam
ente, s para dar a lio e o estmulo, como ao parceiro bichanou Manga Verde, que nesse
s momentos sentia a inspirao dos seus melhores dias. Em breve se apartaram e aos nd
ios que lhes pareceram mais propensos folia acenaram o convite. Um aceitou, outr
o declinou-o, indeciso. Manga Verde no desistiu. Sem deteriorar o sorriso que lhe
fulgia na cara, j um pouco suada, acercou-se dum terceiro, que Mangori incitou,
com eficazes explicaes, a participar na recreao. Largaram os quatro a maxixar e os n
colas a apertarem-se em redor deles, rindo-se dos movimentos executados pelos da
sua raa, que eram inexperientes e grotescos. E foi nesse pandegoso instante de g
argalhadas e de comentrios em mtua combusto, que Garcia viu duas ndias voltarem-se p
ara os lados das cancelas, com gestos de chamarem algum. Dois garotos saam da mata
e paravam atrs do arame farpado, com modos tmidos, a mirar de longe o espectculo.
Insistiram as mes em que eles viessem e, como no se movessem, foram busc-los pelas
mos. E ento Garcia, sentindo o esprito mais leve, como se desanuviado por um ar nov
o, aproximou-se de Amaro e disse-Ihe, tomado de sbito contentamento:
Os homens que esto na fresta, com os rifles, j podem sair de l. Podem vir tambm para
aqui, se quiserem.
A msica findava. " agora o momento" pensou Manga Verde, pedindo a Mangori que" ex
ortasse os
u68
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1169
Parintintins a danarem com as mulheres e pondo de novo em marcha o mesmo disco.
Vendo-os hesitantes, ele prprio quis patentear o bom exemplo e de mo estendida cam
inhou para a mocetona de lbios grossos, seios duros, um sorriso meio recatado, me
io enigmtico, que desde o comeo lhe assanhara os nervos. Ela recusou, mas j alguns
pares caricaturavam o maxixe e at Honrio, que tivera mais sorte na investida, anda
va agarrado a uma selvagem. E ento o Manga Verde, errando os olhos sobre as que e
stavam ainda disponveis e nenhuma o fascinando tanto, brandamente com a eleita in
sistiu. Transpirava muito e o corao batia forte quando lhe ps, enfim, as mos ardente
s sobre a pele, uma desiluso, sem a maciez que ele sonhara, recordando a da amant
e de Mustafa, que era mais sedosa do que a sumama e mais quente do que o veludo.
Filipe lanara-se tambm na dana, sentindo-se naquele dia com pouca sorte, que a ndia
era levemente vesga e ele sabia que a valorizava com a sua figura bem-talhada e
os seus movimentos elegantes.
O pessoal viera todo para ali, salvo Mariano, sentado na alpendrada, a olhar a d
istncia, com olhos preguiosos e uma vaga nostalgia da sua juventude.
Os homens ardiam. Afogueavam-se os que bailavam, encontravam-se em fogo os que
assistiam, muito quietos e sisudos. Contemplando as formas despudoradas, nos seu
s volteios desenfreados, nas ondulaes luxuriosas das pernas, ancas, torsos e braos,
os olhos famlicos habituavam-se rapidamente confuso pag dos corpos nus e os nicos q
ue lhes pareciam ilgicos eram justamente os deles, que estavam vestidos. No enebr
iamento que a nudez lhes insuflava, j nenhum sabia se eram os selvagens que ascen
diam a civilizados, se os civilizados que se integravam prestemente na <selva
geria; e, tomados por novos euforismos, quase todos abjurariam nesse instan
te, se tal fosse o preo, da civilizao que tinham vindo propagar ali com risc
o das suas prprias vidas.
Logo que a msica se extinguiu, Garcia lembrou-se
de que ele era o chefe, dominou-se quanto pde e, pressentindo que o Manga Verde f
aria soar outro maxixe, acenou-lhe para que se aproximasse.
Bote discos de modinhas. Voc andou muito pegadinho ndia, sempre a mo descendo pelas
costas dela at bunda. Eles no vo gostar. Voc se fosse
eles gostava?
Era para tomarem mais intimidade com a gente justificou-se Manga Verde, com o se
u vontade
sorridoso.
Bote modinhas.
Todos em expectativa, suarentos como os civilizados, seguindo os passos do Manga
Verde, o seu dilogo com o chefe, as suas mos colocando novo disco no gramofone, o
s prprios ndios pareceram surpreendidos, a cara a fechar-se pelo desengano, quando
a dolente cano surgiu e se expandiu ares em fora. Brusca tristeza abafou a
alegria do acampamento, como se uma das chapas zincadas do barraco casse e fosse
tapar e esmagar, no ali, mas em Manaus, o canteiro de flores que existia atrs da l
oja de Mustafa, flores variadas e viosas que o Manga Verde trazia na memria, depoi
s daquela cena de carcias com a mulher, que ele no esquecera tambm.
Garcia captou o descontentamento e apressou-se a remedi-lo, pedindo a Mangori:
Diga a eles que dancem como fazem l nas
malocas.
Escusaram-se os Parintintins com a falta de adornos propcios, alm dos arcos, flech
as e outros smbolos; mas, rogados, transigiram, quando o velho lhes fez um gesto.
Afastaram as mulheres, a chusma concedeu-Ihes espao, formando roda; e, nessa are
na improvisada onze jovens entraram, saltando e gritando, em danas guerreiras, dbe
is de originalidade, pois que lembravam as das outras tribos.
Os homens enervavam-se, os seus dedos abriam-se e fechavam-se de modo arbitrrio,
os seus pensamentos vagueavam em zonas diferentes daquela, diziam-no os rostos;
e, socapa, iam desviando os olhos para os
INSTINTO SUPREMO
II7I
1170
O INSTINTO SUPREMO
trechos que os magnetizavam nos corpos nus das mulheres. r
melhor comear a pr os brindes c fora murmurou Garcia a Amaro. Quantas tarrafas h ?
Trs ou quatro, j no me lembro bem.
Vamos oferecer uma ao velho. E brinquedos bonitos s crianas.
Se agora sair daqui todo o pessoal, eles julgam que estamos desprezando as suas
danas.
Tem razo.
Amaro afastou-se apenas com Raimundo, Tanajara e Aristeu; e os ndios, que os havi
am acompanhado com os olhos, viram pouco depois, ao ar livre, os primeiros volum
es. Alguns abalaram imediatamente para l, enquanto Garcia se lastimava da prematu
ridade da sua ideia.
Interrompendo a dana, os prprios bailadores tomaram, em correrias frenticas, a dire
co dos outros parintintins, com gritos j bem diferentes dos dos guerreiros que mome
ntos antes figuravam.
Mangori, pea ao velho que v ele distribuir os
brindes.
Foi o velho, foram todos. E aqueles que os haviam precedido j se inclinavam sobre
as alfaias e quinquilharias expostas no cho, com as formas e as cores brilhando,
como em campo de feira, ao sol; estavam, porm, quietos, a aguardar a vinda de ou
tras mais, para elegerem a seu gosto, quando eles chegaram.
Tendo ao lado o filho, o velho repartiu, servindo-se apenas de um dedo: apontava
um dos ndios e, com breves palavras, o objecto que ele devia apanhar. Parecia qu
e todos o respeitavam muito ou que ele escolhia segundo as convenincias de cada q
ual, porque ningum o contrariava, mesmo os que se mostravam, em vez de jubilosos,
apenas resignados.
Quando os ltimos parintintins receberam os brindes, Garcia ofereceu ao velho a ta
rrafa e disse a Mangori:
Pergunte-lhe quem deve aprender a jogar ela.
O velho olhou o jovem mimo, que logo saiu do
grupo, contente, via-se bem, por ele o haver preferido. E na terra seca, dentr
o de um crculo imaginrio, Mangori espalhou folhas de ervas, explicando-lhe que
elas representavam peixes, como em actos de feitiaria. Raimundo pegou na tarrafa,
prendeu uma das malhas aos dentes, nas mos colheu a sua roda e com tanta mestria
a lanou, que ela abrangeu todo o espao marcado, caindo elegantemente abert
a e redonda que nem saia de balo. Trs, quatro vezes repetiu-lhe os voos, passando-
a em seguida ao aluno, que fixava os gestos dele com olhar muito vivo e sorria a
gora ao t-la nas mos. Falhou ligeiramente o alvo nas primeiras tentativas, mas qui
nta j o mestre no podia envaidecer-se da sua preciso, porque a vitria do jovem
parintintim fora tambm completa.
Vamos agora experimentar no rio props Raimundo.
Partiram os dois, atrs deles todos os outros ndios, mesmo os curumins, que as mes l
evavam pelas mos. No tardou que chegasse ao barraco deleitada algazarra, vinda l de
baixo, que se abafava um momento para logo soar de novo, sempre em torn de alvor
oo; e pouco depois os Parintintins regressavam com dois pequenos jandis, vrios pac
us, mandis e barbados, uma farta dzia de peixes, alguns dos quais o pessoal via
ali pela primeira vez.
O rancho transps as cancelas, a gritar:
Araragape Araragape! Araragape!
Querem tirar o retrato explicou Mangori. Bonifcio dividiu-os em cinco grupos, fo
tografou-os
pacientemente e dois dos jovens mais entusiastas, como a luz da tarde j tombasse,
pediram para dormir no Posto e levarem as provas no dia seguinte.
Considerou Filipe que seria justo, alm de justo, delicado, os ndios oferecerem ao
pessoal aqueles peixes, que assim fariam as pessoas bem-educadas como ele; mas o
s selvagens no lhe interceptaram o pensamento e saram com o pescado metido entre a
s dvidas recebidas, como um brinde suplementar.
Parecia irem contentes. Encostado parede do bar-
1172
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1173
rao e vendo-os partir rendidos, Jarbas lembrou-se do dilogo que tivera com Aristeu,
Tito Boludo e Honrio logo no comeo da viagem, depois com Nimuendaj, na aldeia dos
Muras-Piras, horas j cineradas ao longe. E agora Moacir e tambm Honrio, Tito Boludo
e Juvncio, que se encontravam sua banda, j por ele meio catequizados, ouviam-no mu
rmurar, como se falasse sozinho:
Oxal que esse dia no tarde.
Ficaram a ver os ndios desaparecer na mata e Jarbas repetiu:
Oxal no tarde.
Na alpendrada, Garcia dirigia-se a Raimundo, por sugesto de Amaro:
Agora que j se pode tarrafear, veja l se pega algum peixe fresco para ns.
Entraram todos no barraco, Bonifcio foi ao seu quarto e trouxe a bandeira para a s
ala. Desdobrou-a, ajeitando-a sobre a moldura da fotografia de Rondon, em curva
de grinalda na parte superior, as extremidades descendo dos lados, a modo de cor
tinas descerradas, da mesma cor de esperana que a floresta guardava; e, com simpl
icidade, proferiu:
Morremos alguns, mas no matmos ningum. Olhou o pessoal, quis prosseguir no mesmo to
rn, mas
a voz humedeceu-se:
Devemos estar satisfeitos com a nossa conscincia. No nas guerras, na solidariedade
que o homem supera a si prprio. Amanh j podemos colocar a bandeira num mastro.
Muito direitos e calados, os homens estiveram assim alguns momentos. Parecia agu
ardarem que ele dissesse mais alguma coisa ainda, mas viram-no baixar a cabea e c
ompreenderam que no diria mais nada. Foi ento que o Manga Verde, sempre despachado
, comeou abraando a eito todos os companheiros e Honrio exclamou, para respirar mel
hor: "Olha l, no me partas as costelas !"
Garcia tinha pressa. Pediu a Bonifcio e a Amaro que o acompanhassem e c fora, ambu
lando no acam-
pamento, com o dia a morrer sobre a gesta humilde, que ficaria sem renome, foi d
izendo:
Precisamos de comunicar, com urgncia, ao Servio de Proteco aos ndios, o que aconteceu
. Como agora j no h perigo e pelo igarap da Trara demora menos tempo, uma canoa pode
ir por l, em vez de
ir pelo rio.
Atrs deles, conversando com Mangori, perguntas sobre perguntas, caminhavam tambm o
s dois jovens parintintins que haviam ficado no Posto.
Garcia deteve o passo e voltou-se para Amaro: Voc conhece os homens que vieram co
m seu Curt, a primeira vez, pelo Trara. Escolha eles. you escrever esta noite um
relatrio a contar tudo o que se passou desde que seu Curt foi embora at eu vir e d
epois de eu chegar. E dizer o que o doutor e voc e todo o pessoal fizeram, que fo
i muito e merece louvao. Se o doutor quiser, eu digo tambm que j est aqui h bastante t
empo, que o trabalho agora vai aumentar, que precisa de algum descanso e que e
les deviam dar-lhe uma licena e mandar outro mdico para ir tratando de ns e dos ndio
s. O doutor Bento de Lemos no vai responder que no.
Como Bonifcio, recordando-se dos outros, no se pronunciasse imediatamente, Garcia
acrescentou:
. Dona Tarslia e seu Manuel Lobo me pediram que no dissesse nada ao doutor, enquan
to isto aqui no se resolvesse, mas agora j posso dizer. Sua senhora veio ter a Trs
Casas, para ficar mais perto de si. Veio antes de mim, sem eu saber. O pai dela
no deixou vir sozinha. Mas como ele tem reumatismo e viu que seu Manuel Lobo a re
cebia bem, voltou para a cidade. A ltima carta que ela mandou j foi escrita em Trs
Casas, fingindo que ainda estava em Manaus e que ma havia entregue l. O que dona
Tarslia queria era vir para aqui. Mas seu Manuel Lobo lhe explicou que no podia se
r. Lhe disse que no tinha pessoal para trazer ela, mesmo se tivesse no ia tomar es
sa responsabilidade. Quando chegou o batelo e dona Tarslia soube que o doutor esta
va bem, ficou mais tranquila.
1174
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
H75
Agora o est esperando ali e a senhora de seu Manuel Lobo trata ela como filha.
Bonifcio baixou os olhos, tentando dominar a ternura que dentro dele reflua.
Muito lhe agradeo disse com voz sumida. Realmente, o pior aqui j passou. Mas os o
utros? Seu Amaro e o pessoal ?
Garcia voltou a encarar Amaro:
Voc quer ir ?
No estava mal, no.
Peo tambm uma licena para si. No lhe havia ainda perguntado, por ter medo que voc jul
gasse que eu queria ficar sozinho a mandar. com o pessoal, temos primeiro de con
sultar cada um, ver os que querem ir, os que no querem; agora fcil, se precisa de
menos gente.
Continuaram a andar e Garcia pareceu lembrar-se, de repente, de alguma coisa que
era necessrio dizer ainda:
Como os homens tm de deixar a nossa canoa no alto Trara e de ir a p pelo mato at ao
seringai Paraso, pedem l emprestada outra canoa e vo a Humait botar a carta com o re
latrio. Botam tambm um telegrama para o doutor Bento, a prevenir ele do que se pas
sou hoje aqui, pois a carta pode no encontrar logo vapor e demorar muitos dias a
chegar a Manaus. Depois vo a. Trs Casas, levar notcias senhora do doutor e a s
eu Manuel Lobo, trazer o que houver para ns e voltam pelo mesmo caminho. Est certo
assim ?
A escuridade nocturna alastrava j no acampamento. Cruzando-se com outros grupos,
que deambulavam como eles, conversando tambm, tornaram ao barraco, onde Mariano pu
nha a toalha na mesa.
Garcia jantou moderadamente e no seu quarto, luz do farol de querosene, escreveu
at tarde na noite, escreveu at muito depois de o violo nostlgico de Honrio e os que
cantavam ao seu ritmo terem emudecido, l fora. De manh, bastante cedo, submeteu a
Bonifcio e a Amaro, debaixo da alpendrada, a larga
narrativa e aceitou ir fazer as correces que lhe pediram sobre a aco que haviam tido
no Posto, antes
de ele chegar ali.
Numa das cabeceiras da grande mesa, Mariano servia caf e leite condensado aos doi
s jovens parintintns, sempre a caretearem ao seu gosto desconhecido, enquanto Man
gori lhes explicava, com um ligeiro sorriso de protector, aquela maneira de inau
gurar cada novo dia. Sentados na outra extremidade, os homens escolhidos para a
viagem a Humait e Trs Casas esperavam molemente a Garcia, a cabecearem e a boceja
r de quando em quando, com singeleza popular, dir-se-ia que de todo indiferentes
ideia de irem transmitir, longe dali, a mensagem da sua vitria. E do interior do
barraco vinha um silncio fresco, repousante, pois que a maioria do pessoal, agora
que o perigo falecera, decidira dormir at mais tarde.
Ao lado de Amaro, os dois encostados s ombreiras da porta, ambos silenciosos, Bon
ifcio passeava os olhos pelo acampamento inteiro, que o sol recm-nascido comeara a
branquear; e tudo parecia simples, muito simples, como se nada houvesse ocorrido
nos longos
dias ali sofridos.
Garcia voltou com a sua relao j emendada, mostrou-lhes tambm o texto do telegrama, q
ue eles aprovaram e dizia assim:
PAZES FEITAS SEGUE RELATRIO FAVOR
MANDAR URGENTEMENTE ROUPA VESTIR
ELES E UM PROFESSOR PRIMRIO
BIBLIOGRAFIA
Escrito em Lisboa, Caldelas, Chiolo, Macieira de Cambra, Torre, Caldas das Taipa
s e Funchal, 1965 1967.
Novamente revisto para a 4." edio, em 1968.
Sobre a parte histrica deste romance, o relatrio de Curt Nimuendaj Os ndios Parintin
tins, no Journal de Ia Sociit ds Amcricanistes, de Paris, vol. XVI, 1924; e a broc
hura de Joaquim Gondim A pacificao dos Parintintins, ed. do autor, Manaus, 1925.
Sobre Rondon, a excelente biografia que dele fez Ester de Viveiros: Rondon conta
a sua vida, Livraria S. Jos, Rio, 1958.
Sobre a personalidade de Curt Nimuendaj, trs artigos de Egon Schaden, em O Estado
de S. Paulo, de 3 e 24 de Dezembro de 1960 e
4 de Janeiro de 1964.
Ainda sobre os Parintintins, ficamos a dever alguns pormenoresj s conhecidos depo
is de sairmos do Madeira, aos nossos amigos e notveis escritores brasileiros lvaro
Maia e Nunes Pereira, pormenores fornecidos por meio de cartas ou pelos seus li
vros Beirado (Ed. Borsoi, Rio, 1958) e Banco de Canoa (Ed. Srgio Cardoso, Manaus,
1963), do primeiro; e Morongut (Ed. Civilizao Brasileira, Rio, 1967), do segundo, be
las obras que recomendamos a quem se interesse por aquela tribo, qual dedicam vri
as passagens.
Acentua-se, porm, ainda uma vez, que O Instinto Supremo um romance e, como tal, s
e afastou de qualquer rigor histrico na grande maioria das suas pginas.
OPINIES CRTICAS
FERREIRA DE CASTRO OU A ARTE DE SER HUMANO
por Povina Cavalcanti (*)
Quando para m:m bastarem sete palmos de terra, eu quereria } haver trilhado toda
a terra do mundo e que o meu corao houvesse pulsado unissonamente com o corao da Hum
anidade inteira.
FERREIRA DE CASTRO
Se o escritor indissocivel da criatura humana, h escritores em que_ o homem a prpri
a razo de ser do escritor. Assim Ferreira de Castro. Para se jazer o seu retraio
literrio, entretanto, no basta o conhecimento da obra, em que pese a autenticidade
desta; mister penetrar-se, atravs dela, as coordenadas de sua sensibilidade, o f
undo luminoso de sua conscincia. No satisfaz a este escritor o infinito da fico. Seu
poder criativo expande-se no ilimitado da imaginao, mas quaisquer que sejam as co
ndies circunstanciais , essencialmente, o homem que Ferreira de Castro considera. S
ua literatura um laboratrio de vidas humanas. Explica-se assim o espirito de sua
obra, a universalidade do seu sentimento. Escritores do seu tipo lembram os gran
des compositores, cujos intrpretes no se discriminam por lugar de nascimento ou prt
ica de idioma. Em Ferreira de Castro a comunicao faz-se subjectivamente, atravs da
compreenso humana, sem smbolos materiais, mas densa de alma e corao. Est a a razo de
r do seu cosmopolitismo. Na selva amaznica ou nas neves da
(*) Escritor, poeta, crtico e jurisconsulto brasileiro.
u8o
O INSTINTO SUPREMO
serra da Estrela, a importncia do meio cresce na proporo em que bom ou nocivo ao ho
mem. Este que conta.
O cho que a charrua revolve; o novelo de fumo que se desprende da casita da aldei
a; o cu azul que se arqueia na linha do horizonte sobre os longes da serra; o rio
que fecunda os vales; a ovelhinha desgarrada na invernia e o espanto do pastor
adolescente, que a procura em vo; a terceira classe de um navio de emigrantes, qu
e "pede um novo Dante para escrever um outro Inferno"; a pulsao do corao humano na a
ritmia das angstias que o afligem; a fome dos prias; o frio, o abandono, a solido d
o homem em luta com a natureza; a sobrevivncia da espcie num mundo socialmente jus
to e melhor do que este tudo isto vive e palpita na obra de Ferreira de Castro.
Dele se dir no futuro que clamou como um apstolo, semeando nas eiras com esperana,
segundo o conselho de S. Paulo numa de suas epistolas aos cornios. Faz obra da la
vrador de almas, preparando-as para a festa da colheita, quando amaduram os frut
os e pompeia a messe.
Ferreira de Castro um desses raros escritores, que sonham com um amanhecer, uma
nova aurora, na clarinada redentora de seus lumes tutelares. Se a noite pressaga
se abate sobre os homens, ele a v na sua escurido opressora, que descreve com emoo
contagiante; e a gente necessita de acender as lamparinas da f para quebrar o den
so negrume. Mas no um escritor deprimente. Ao contrrio, como nos livros sagrados,
sua palavra de advertncia. Toda sua obra literria um chamamento ao amor da fratern
idade humana.
Ora, no se faz a caminhada da vida sobre ptalas de rosas, como nos poemas lricos da
juventude; a caminhada spera, dura, terrivelmente dura. H, todavia, um sentimento
que floresce no fundo do corao e se chama solidariedade humana. Amai-vos uns aos
outros, pregou o Cristo. A meta da fico de Ferreira de Castro banhada por essa luz
apostolar; veste a tnica inconstil do Filho de Deus.
O MENINO DE SALGUEIROS
Remontemos minscula aldeia de Salgueiros, na freguesia de Ossela, do concelho de
Oliveira de Azemis. Ai nasceu Ferreira de Castro. Ossela precedeu Portugal, isto ,
"j acendia o seu lume antes da fundao de Portugal. J era parquia no tempo dos Godos"
, segundo depe o romancista.
Nessa longnqua povoao, o menino Jos Maria sentiu, pela primeira vez, os seus ntimos p
endores para uma interpretao da vida, que no se resumisse no seu rio Caima, na aleg
oria de seus amieiros, na paisagem gergica dos seus "rinces ednicos", no vale umbro
so e frtil, na tradio bem lusitana do amanho da terra.
O escritor Jaime Brasil, num estudo admirvel, observou: "O homem nascido nesse me
io deveria ser o portugus comum: valente nas armas, belicoso at; amante da terra,
mas para a possuir e fecundar como a uma mulher; crente perdido nos arroubos msti
cos; e, se escritor, poeta pico ou lrico, cronista ou historiador. Ora, Ferreira d
e Castro no nada disto. Tambm verdade que um portugus fora do comum".
OPINIES CRTICAS
Il8l
E mestre Fidelino Figueiredo escreveu: "Peneira de Castro tem as suas originalid
ades; no doutor em Direito, no faz versos nem funcionrio pblico".
Pois o menino pobre de Salgueiros revelou precocemente esse homem incomum. E o q
ue mais espanta na sua vivncia de criana a confisso de sua timidez. Ele prprio narra
como se deu a sua entrada na escola. "Era de Inverno. Ia de chancas, friorento,
enroupadito. Creio que foi minha me quem me acompanhou at meia caminho. No me reco
rdo bem. Mas lembro-me, nitidamente, da minha entrada na escola. L estava, ao fun
do, secretria, instalada sobre um estrado, o Sr. Prof. Portela. Era gordo e de ca
rne muito branca e fofa. No primeiro plano, as carteiras com os alunos chilreant
es. Alguns conhecia-os eu c de fora. Mas tomavam ali, para a minha timidez, o pap
el de inimigos". Essa timidez, como tudo nele, reagia diferentemente. Prova-o a
sua odisseia amaznica, da qual trataremos adiante.
O menino Jos Maria, aos nove anos, fez o seu primeiro exame e somente ele e o fil
ho do 'professor ficaram ta estudar para o segundo". O escritor rememora: que os
pais dos meus condiscpulos entendiam que estes, para a vida, necessitavam apenas
de saber fazer as quatro operaes e ler e escrever uma carta para o Brasil."
H um episdio dessa poca, que no me furto ao prazer de contar, recorrendo s confisses d
o prprio Ferreira de Castro, em citao de Jaime Brasil. Trata-se do seu primeiro amo
r. A namorada era bem mais velha do que ele. Chamava-se Margarida. Tinha os seus
n ou IS anos, "linda, linda, como nunca tinha visto outra".
Esse amor de menino por moas feitas uma fatalidade inexorvel. Manuel Bandeira cont
ou recentemente a Ledo Ivo o seguinte: "Amei muito e o curioso que, mesmo antes
dos dez anos, eu nunca me apaixonava por meninas, e sim por mulheres feitas."
Margarida foi assim o primeiro arrebatamento sentimental do menino Jos Maria que,
afagando as esperanas de um amor prematuro, escrevia cartas e mais curtos sua do
ce namorada, to indiferente e fria, "que lhe voltava a cara sem dirigir sua timid
ez uma s palavra, um olhar sequer". Tornou-se notrio na pequenina povoao o romance m
enineiro. Ele prprio conta o vexame que sofreu na escola. "Vm dia, como titubeass
e na "Educao Cvica", o Sr. Prof. Portela abriu a gaveta de sua secretria e, tirando
de l, uma das minhas epstolas Margarida, exclamou: Para estudar a lio no tem tempo, m
as tem-no para escrever s filhas dos outros! Pediu-me a mo e deu-me
uma forte palmatoada."
lance final desse episdio uma delcia. Narra-o assim o seu protagonista. Alguns mes
es depois, durante o recreio, os alunos divertiam-se atirando uma carapua ao ar e
, em seguida, apanhavam-na na ponta de uma vara. Foi quando Margarida apareceu l
em baixo, junto Capela de Santo Antnio. Confessa Ferreira de Castro, textualmente
: "Abandonei togo o folguedo para prender os meus olhos ao seu corpo (...) Acont
eceu, porm, que os meninos no quiseram deix-la passar. Ela protestou, mas foi intil.
Ento, num impulso, caminhei para o grupo, agarrei a vara pelo meio e fiz forca.
Os meus companheiros indignaram-se comigo, mas na confuso Margarida pde
Il82
O INSTINTO SUPREMO
passar. Momentos depois ramos chamados escola. A secretria estava o Senhor Ajudant
e Almeida, carrancudo como nunca o tinha visto. Ao seu lado, de p, a Margarida. T
inha-se ido queixar. Duas palmatoadas a cada um. Alguns negavam. Mas a Margarida
friamente, implacavelmente, afirmava:
Foi! Foi!
Chegou-me a vez. Quis balbuciar a minha inocncia, mas a emoo no mo permitiu. Estendi
a mo... Margarida, porm, exclamou:
Esse no foi!
Ah! como eu me senti nesse momento compensado de tudo quanto tinha sofrido por e
la!"
Agora, o principal. Foi graas a essa doce e remota camponezinha de Salgueiros que
se decidiu Ferreira de Castro a emigrar para o Brasil. Assim ele o conta: "com
o meu gesto (o de partir) antecipava a idade e comeava a viver o homem que eu des
ejava ser. S um homem iria para to longe, e Margarida, decerto, atentaria nisso. S
em ela eu no teria partido! No teria tido coragem. Morreu sem o saber, talvez, mas
foi ela, foi o desejo de que no me julgasse criana, foi esse meu primeiro amor, p
ulcro e ingnuo, que me deram foras para afrontar o monstro fabuloso que me parecia
, ento, o Brasil."
O menino Jos Maria embarcou no vapor "Jerme", numa tarde triste, em 1911, no porto
de Leixes. Tinha, como enfaticamente lembra
12 anos, 7 meses e 14 dias!
SERINGAL DO PARASO
O monstro fabuloso", o Brasil, naquele comeo do sculo era, principalmente, uma atr
aco telrica e quimrica: a Amaznia. A borracha parecia anunciar o advento de uma civil
izao no Inferno Verde. Manaus, a pacata capital da Plancie, monopolizava as atenes do
pais inteiro.
Eu era menino, em Macei, quando ouvia deslumbrado as histrias maravilhosas, que me
contava um conhecido circunstancial recm-vindo da Cana amaznica. Eram lendas sobre
lendas. Pois foi para a selva cictpica, num restrito tracto de terra, mas escala
vradas margens do Madeira", numa clareira da floresta, que Ferreira de Castro se
exilou por quatro anos!
Por uma ironia da sorte, o seringai tinha o nome bblico de "Paraso". Se Deus lhe r
eservou essa aflitiva experincia, deu-lhe em troca a gloria de escrever A Selva,
livro em que condensou, segundo seu prprio depoimento, "o drama dos homens perant
e a injustia de outros homens e as violncias da natureza".
Esse livro, publicado em 1930, um retraio vivo do sub-mundo da Amaznia, das suas g
uas barrentas e suas terras moles, mas tambm dos gigantes vegetais, dos bichos me
donhos, vivncia de pnico para o homem que habita aquelas regies como um nufrago, pre
so s lianas, aos cips e solidoamarras da bravia natureza num habitat de duendes e f
antasmas dantescos.
O Brasil ficou a dever a Ferreira de Castro uma obra pioneira de profundo poder
de penetrao humana, um romance, por assim
OPINIES CRITICAS
II83
dizer, da virgindade florestal violada pelo homem na mais estica luta pela prpria
sobrevivncia. A Selva, a despeito da fico, um impressionante documentrio. O escritor
vive, sob o pseudnimo de Alberto, a tragdia de um quotidiano terrvel. E o mais adm
irvel que ele preserva, acima de tudo, a sua dignidade pessoal.
Logo no comeo do livro, quando Alberto, "portugus exilado e monrquico", aborda o co
mendador Arago, chefe da casa "que maior flotilha alinhava nos braos do Amazonas e
a que maior tonelagem adquiria nos barcos que partiam para a Europa e para a Amr
ica do Norte", a fim de pedir-lhe um emprego, ocorre o seguinte dilogo: " No, no po
de ser. Eu no preciso de empregados.
Est muito bem, Senhor Comendador. Desculpe t-lo incomodado.
Espere a.
Elevou o brao rolio e felpudo, de manga arregaada, ao casaco que estava dependurado
nas costas do "fauteuil". Tirou a carteira e desta uma nota de cinco-mil ris.
Pegue l.
As faces de Alberto coloriram-se, transformando-se em barco desvairado o cho que
ele pisava.
Eu no vim pedir-lhe uma esmola, Senhor Comendador, vim
pedir-lhe trabalho.
Surpreendido, Arago olhou-o de mau modo. E ele saiu formalizado."
Esse, o carto-de-visita do bravo Alberto, em trnsito para o desconhecido, dado ao
poderoso Arago, na cidade de Manaus; esse o seu estado de espirito ao penetrar a
Amaznia Misteriosa do baptismo literrio de Gasfo Cruls. Misteriosa, sim. Ferreira
de Castro, porm, desvendou-lhe muitos dos segredos. E viu, como nenhum outro, a f
igura desprotegida do homem, o verdadeiro mrtir da selva.
Oliveira e Silva, no excelente limo Julgamentos Fictcios, tirou das pginas do dant
esco romance uma personagem edificante: o negro Tiago, antigo escravo, que por a
mor da liberdade incendiou o barraco one dormia o chefe tirnico. Preso, no negou a s
ua culpa.
"No eslava bbedo, no estava, branco. Seu Juc era meu amigo; eu lhe queria muito e
lhe choro a alma dele; mas no era amigo da liberdade".
O julgamento de Oliveira e Silva conclusivo: "Pleiteia o antigo escravo, na sua
decadncia, beira da morte, um direito que deve sobrepairar a todas as leis, imane
nte prpria Criao: o do homem livre, movimentando-se na livre comunidade".
Em A Selva, o poeta tambm est presente. A pgina em que o autor narra o encontro de
uma orqudea de sortilgio lrico. A rara cataleia que Alberto colhe e lana depois gua
ela se pe a flutuar, "as ptalas abertas, a haste mergulhada uma estrela acendida
na superfcie negra", coroa a descrio do mundo vegetal dos parasitas. Mas A Selva ,
sobretudo, um apelo misericrdia de Deus. A experincia de Ferreira de Castro revelo
u um sub-mundo, onde vegetam prias e escravos, mas donde, algum dia, h-de surgir a
redeno da terra e do homem.
1184
O INSTINTO SUPREMO
* ADEUS AO SERINGAL
O rapazote de Salgueiros, agora com 16 anos, partia na noite quente e hmida de 28
de Outubro de 1914 do seringai "Paraso", a bordo do "Sapucaia". Ele conta: "Uma n
ica luz ardia na terra: a do farol que iluminava os degraus de acesso varanda do
barraco maioral, esse farol, que durante anos eu fora encarregado de acender, de
apagar e de limpar dos insectos que sobre ele morriam ao longo das noites tropi
cais. Ainda disse adeus com um leno, mas ningum me respondeu".
Libertando-se da selva, sentir-se-ia Ferreira de Castro completamente alegre? Cu
riosos so os segredos da alma humana. Ao partir, o adolescente levava no corao (por
mais incrvel que parea!) um amor do seringai! Vira e apaixonara-se, poucos dias a
ntes, "pela nica rapariga que existia l nas profundidades da mata, beira do Lago-Au
.*
A luz daquele farol tambm era nica: ardia na noite escura e foi o seu adeus corres
pondido, o intrprete do adeus silencioso sua Mundia, reincarnao selvtica da Margarida
de sua infncia, longnqua e olvidada na minscula aldeia portuguesa.
Narram quantos tm escrito sobre a vida nos seringais como rara a mulher naquelas
paragens. Eu prprio j aludi ao facto num livrinho de crnicas. a mulher a "encomenda
" mais preciosa, que viaja nos "gaiolas". To preciosa que h a respeito, contada pe
lo escritor Arajo Lima, com acento de veracidade, o seguinte caso: Morreu num aci
dente um seringueiro. A noticia espalhou-se rpida. E a casa do defunto encheu-se
dos amigos desolados. Um mais tardio s chegou ao anoitecer. Compungido, aproximou
-se da viva, que velava o cadver. E aventurou:
Dona Isabel, a senhora quer se casar comigo? Ao que ela ops prontamente, entrecor
tada por soluos:
No posso, porque j estou comprometida com seu Serapio... Quem sabe l se essa Dona Is
abel no seria a Mundia do nosso
Ferreira de Castro?
O GRANDE ROMANCISTA E O BRASIL
No cabe nos limites destas notas um estudo pormenorizado da obra do notvel escrito
r. A Selva e Emigrantes soo, porm, dois dos seus romances, que nos tocam directam
ente. Sobre o primeiro, a que ] nos referimos, h a exclamao de Humberto de Campos, a
o cabo de sua leitura: "A Amaznia est aqui!" Emigrantes tambm a histria de um portug
us que veio para o Brasil atrado pela miragem da prosperidade e da riqueza, a qual
se foi desfazendo, dia a dia, na dura realidade de uma vida de privaes.
Ferreira de Castro no fantasiou nada. O heri desse livro amargou a nostalgia de su
a aldeia, saudoso do seu pinhal, do campanrio l em baixo, do outeiro, do mesmo rio
Caima de Oliveira de Azemis do autor, "da capoeira de criao, do quintal cultivado
e muito verde, as
OPINIES CRITICAS
Il85
couves gordas, os feijoeiros abraados s estacas e as ervilhas cheias de garridice
por terem flores como violetas". Manuel da Boua esse heri que pensou enriquecer no
nosso pas, como tantos outros patrcios seus. A Fazenda de Santa Efignia, em S. Pau
lo, foi a sua ltima iluso: um emprego de trabalhador rural com cento e cinquenta m
il-ris por
ms...
Houve quem visse no romance uma crtica desabonadora ao Brasil. O equvoco foi desfe
ito em artigo muito lcido pelo escritor e acadmico Barbosa Lima Sobrinho. Ferreira
de Castro no denegriu a terra, que ele tanto ama; apontou o drama do emigrante.
Como escolheu S. Paulo para cenrio do seu romance, poderia ter escolhido Chicago
ou Santa F. O certo que Manuel da Boua o homem-tipo da ingenuidade e da confiana do
emigrante desprevenido, que os ladinos engodam com promessas mirabolantes.
esse, como todos os demais de Ferreira de Castro, um livro humano. Sua busca de
po e justia. Suas personagens gravitam em tomo desse binmio social. Em Emigrantes,
ele descreve a odisseia do seu heri com realismo. Sem embargo da descrio, o escrito
r um amoroso da nossa terra e da nossa gente. Voltando ao Brasil, universalmente
famoso, tudo nele denotou uma imensa ternura pelo "monstro fabuloso" da sua ima
ginao infantil. Vi-o de olhos molhados, comovidssimo, quando h seis anos passados, d
esembarcou no Rio para um suspirado reencontro. Tinha-o visto em Lisboa meses an
tes, num longo cavaco, que entrou pela madrugada, a falar de tudo que era nosso,
dos nossos homens de letras, dos nossos costumes, das nossas esperanas com uma
saudade brasileira em delquio de quase nostalgia!
O HOMEM IRMO DO HOMEM
Certa vez, de veia potica, comecei a ver, na solido da minha paisagem interior, al
argar-se o horizonte. Senti-me, de repente, em frente ao mar. Era uma baia, uma
angra, um ancoradouro, um cais. Via tudo na palpitao da vida normal prpria de um lu
gar desses. Os guindastes, que Henri Allorge, um velho poeta de Frana, cantou; o
vai-e-vem dos passageiros, a mistura bablica das lnguas; os transatlnticos, no repo
uso da escala, fazendo a sesta da viagem. Esse quadro to comum tinha, porm, na min
ha imaginao, um efeito onrico. A poesia explica o fenmeno. Em tais estados, ocorrem
os nossos sonhos de acordado: sonhos to misteriosos que pairam numa zona do espir
ito, entre a conscincia e a subconscincia, zona neutral, fronteiria, indefinida. Po
is foi ai, na hiptese criativa de um sonho desses que eu vi a encarnao de um smbolo
da fraternidade humana, dessa fraternidade e dessa humanidade, que substancializ
am o talento de Peneira de Castro: a figura do imigrante, do homem carregado de
iluses que pisa, pela primeira vez, o cho de um pas, que no conhece. O homem que tem
por si, apenas, este ttulo; homem irmo do homem. Que mais precisaria ter? Se a so
ciedade fosse justa e humana, a resposta seria: Nada, nada mais precisaria ter.
Mas precisa, e por isto que um romancista, como Ferreira de Castro, faz de sua o
bra uma mensagem de confraternizao e de amor pela humanidade.
n86
O INSTINTO SUPREMO
O HOMEM FERREIRA DE CASTRO
OPINIES CRTICAS
1187
Remontando ao comeo destas notas, afirmamos: o humano a razo de ser do escritor Fe
rreira de Castro. As imensas dimenses de sua obra ampliam-se universalmente em to
das as latitudes pelo substancial de seu amor humanidade. Esta a direco, a meta d
o seu espirito criador. Em tudo quanto escreveu at hoje, Ferreira de Castro deixo
u a marca deste amor. No "Prtico" de A Selva, confessou: "... ao farfalhar do pat
riotismo, venha do Norte ou do Sul, da Europa ou da Amrica, se sobrepe sempre, no
meu esprito, uma causa mais forte, uma razo maior: a da humanidade."
Este escritor no cria para o homem; o homem a prpria fonte da sua criao. Romancista
da experincia humana, onde quer que se eleve a sua imaginao, a fantasia noa existe
por si, mas em funo do bem social. No preciso conhec-lo em pessoa para estim-lo. Ele
est, de corpo inteiro, nos seus livros: um retraio inconfundvel, autntico. L-lo iden
tiftc-lo. Certo que muito autobiogrfico, sem ser narcsico. A gente o surpreende nas
terras cadas da Amaznia ou nos jardins suspensos do Funchal. Naquelas paragens am
ericanas, o protagonista de A Selva, egresso do seringai e chegando a Belm do Par
"mais carregado de sonho lilerrio do que o navio carregado de borracha"; na ilha
encantada, o Juvenal de Eternidade, "enfermo de amor e de morte".
Ferreira de Castro no sarcstico nem irnico, como o maravilhoso Ea. No abusa, outrossi
m, dos temas sexuais. O verdadeiro sentido de sua literatura o da sua identificao
com a humanidade. , alm disso, um idealista militante, ou se preferirem um legionr
io do ideal, um prmio Nobel por antecipao.
Para se ter uma ideia da humanidade do escritor, cuja sensibilidade extremamente
delicada, no nos privamos do prazer de citar o episdio da pequena abelha, ocorrid
o a bordo do "Avelona Star" com o heri do seu romance Eternidade, em viagem para
a Madeira. Ele narra: "Logo que terminou a refeio, Juvenal dirigiu-se ao seu camar
ote. L estava, sobre a placa de vidro, ao lado do lavatrio, a caixita que guardara
frasco de caprichoso perfume, colhido em roseirais de Frana. Pegou-lhe cuidadosa
mente e descerrou-a o bastante, apenas, para poder ver o contedo. Brnzea e humild
e no branco do quadrilongo interno, trmulas as asas e as palitas na luz que, de r
epente, a envolvia toda, expunha-se uma pequena abelha. Ele a encontrara ali mes
mo, no camarote, debatendo-se contra o vidro grosso da vigia. Dar-lhe a liberdad
e nesse momento seria dar-lhe talvez a morte." Juvenal ps-se, ento, a filosofar. A
quele insecto no tinha uma vida como a sua? Aconteceu que a abelha conseguira fug
ir. Foi uma luta para reconquist-la. Mas triunfou e, agora, ei-la presa novamente
na caixa. Aproximava-se o Funchal e Juvenal levou, consigo a caixita para o con
vs. Debruou-se, como os demais passageiros, na amurada para rever a terra nativa.
"As suas mos, ao procurar no bolso a cigarreira, encontraram a caixa com a abelha
. Tinha-se esquecido dela e enterneceu-se mais. Olhou para a ilha, calculou a di
stncia. O navio j
estava muito perto. Poderia solt-la ali, que ela atingiria facilmente
o seu porto de salvamento. Ocorreu, porm, o inesperado. Um incidente
causara a queda da caixa, que continha a abelha e "logo se fincara
sobre ela o sapato do criado de bordo. Apesar de esmagada, a abelha
movia ainda algumas das patitas. (...) A vida prosseguia, ali, na terra
em frente, em todo o mundo. S ele sabia que aquela outra vida deixara
de existir... Deixara? Hesitou. Depois, estendendo o brao, atirou para
o mar a caixita destroada, onde a abelha era j um pouco de matria
informe, um cisco viscoso pegado ao carto. Se soubessem daquilo
ach-lo-iam ridculo, pensou, um instante. Continuava a contemplar
o esquife de papel, flutuando agora sobre as ondas sobe, desce, desce,
sobe e afastando-se para a popa do navio. Dali a alguns segundos
leria desaparecido para sempre e s a memria dele guardaria, talvez,
uma vaga recordao."
Est a um flash do sensvel espirito do escritor, tocado de uma profunda delicadeza e
m relao s coisas mais aparentemente insignificantes. Urn simples insecto para ele u
m ser representativo da vida. Outra passagem e so tantas! memoro com enternecim
ento. Trata-se do episdio do "Piloto", em A L e a Neve, "um dos romances mais emoc
ionantes, escreveu Ren Jouglet, que li durante estes ltimos anos: sbrio, sem efeito
s exteriores, sem virtuosismo, quase modesto pela atitude, mas revelando uma exp
erincia humana de fora extraordinria."
a histria de um pastor, que tem uma namorada e deseja casar-se com ela. Mas a ocu
pao do pastoreio lhe d, apenas, um salrio de fome. A mquina revolucionou os mtodos ana
crnicos, restringindo as actividades dos serranos. A vez no era mais do pastor, ma
s do tecelo. Horcio, egresso do servio militar, enamorado de sua Idalina, quer tambm
progredir. Mas no pode por circunstncias particulares. Os teares vo ficando para t
rs e ele segue o seu destino. Galga a serra, onde, mo Inverno, quando os zagais s
e retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam tambm e vinham rondar, fami
ntos, a porta fechada do homem. A solido enchia-se dos seus uivos e a neve reflec
tia
a sua temerosa sombra."
Horcio decidiu-se: Vai levar o rebanho ao pastoreio. "Veste as calas e casaco de s
urrobeco, mete os ps nos sapatorros jorrados de brochas e pega nos rsticos safes fe
itos por ele de uma pele de ovelha que morreu de parto." Segue de mau humor. Pe o
chapu de abas anchas, acomoda sobre os ombros o alforge e a manta, agarra no caj
ado
e assobia ao co.
O "Piloto" rompe, que nem flecha, de um negro boqueiro do bairro e, ao v-lo assim
vestido, festeja-o, lana-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto seu rabo s
e agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar at a boca dele. (...) O
dia est enevoado, cinzento, triste; mas o "Piloto" dir-se- ter descoberto um sol
individual para sua completa volpia."
Horcio partiu, com o "Piloto" sempre /rente e sempre com aquela cauda erguida, aq
ueles passos midos e aquele ar de co feliz. Horcio no se conformou. "Vergou-se, ergu
eu-se e assentou-lhe uma pedrada. O co ganiu, voltou-se e olhou-o surpreendido, p
ercebendo que
n88
O INSTINTO SUPREMO
fora ele quem o agredira. Depois, a gemer de novo, deixou-se cair de lado, dobrO
u-se e comeou a lamber a perna atingida, ...) Horcio trilhava M mais de uma hora, a
estrada que acompanha a fenda gigantesca, quando sentiu que algo lhe faltava. V
oltou-se, sua procura. L vinha, ao longe, arrastando-se nas trs patas. Trazia o fo
cinho roando o cho, pensativamente. De quando em quando, deitava-se, repousava um
momento e volvia andana, a manquejar grotescamente, como se cumprisse um destino.
Horcio detivera-se a seguir-lhe com os olhos o penoso avano. O "Piloto" no o vira
ainda a olhar para ele e, s quando o assobio lhe chegou aos ouvidos, levantou a c
abea. Ps-se, de sbito, alegre, a cauda no ar, os olhitos muito vivos a sorrirem com
humildade. Quis correr, acercar-se depressa, para que o dono no tivesse de esper
ar. Ora punha a pata doente no cascalho, ora a levantava, dorida, e prosseguia d
esequilibrado, cada vez mais caricato, nas trs pernas. Por fim, deixou-se descair
de novo, vencido, a dez passos, sempre a olhar para o amo, humildemente. Horcio
aproximou-se, pegou nele ao colo e continuou a andar. Sentia, agora, vontade de
lhe pedir perdo."
A beleza da obra de Ferreira de Castro deriva dos mais nobres sentimentos de com
paixo. Ela reflecte o homem. endoscpica. E, se em muitos lances, tem uma prodigios
a fascinao telrica, no seno para submeter as foras da natureza ao imprio do ser hum
Esse episdio do "Piloto" , alm do mais, de uma comunicativa poesia. Faz lembrar um
poema do saudoso Olegrio Mariano. Esse poema (disseram-me), est gravado em azulejo
no Jardim Zoolgico de Lisboa:
Foi no Jardim Zoolgico, em Lisboa: A luz do sol, numa carcia boa, Se infiltrava en
tre as rvores, em festa: Era uma miniatura de floresta.
Meus passos me levaram para a frente, Quando vi a meu lado, de repente, Um co a m
e observar com simpatia. Quando um co me acompanha, eu ganho o dia.
Chega-se a mim. Era simptico o rapaz. Co da rua no sabe o destino que traz. Rabo es
petado no ar, a coleira de sola E o olhar aflito de quem pede esmola. Meio sujo,
talvez, mas que importa a sujeira?
Havia nele uma ternura verdadeira.
E fiquei a pensar. Por que entre tanta gente
Ele me preferiu? Serei eu diferente
Dos outros homens que ele encontra pela rua?
No. Sou igual aos outros mas, na sua,
A. minh'alma passou num sentimento aberto:
OPINIES CRTICAS Il8g
Ele sentiu em mim urn amigo, por certo. Dei-lhe tudo do que me deram de comer. M
exia o rabo no ar para me agradecer.
Se eu pudesse ao Brasil transport-lo comigo? Ter um amigo co ter um grande amigo.
Ao deix-lo, estendi-lhe a mo em despedida. Olhou-me firme, erguendo a pata comovid
a. E li na dura luz de seus olhos leais: "Foste bom para mim e eu no te esqueo mai
s I" Sinto orgulho em dizer: Em Portugal assim: at os ces gostam
[de mim l
Esse co do poeta brasileiro devia ser irmo do "Piloto" de Horcio...
A AURORA DE UM MUNDO NOVO
Ao correr destas notas margem de uma obra de escritor, que vitalizada pelo mais
srio espirito de compreenso humana, fixmos, apenas, panoramicamente, alguns aspecto
s da sua transcendente beleza. Qualquer dos seus livros digno de uma anlise de fu
ndo; qualquer dos seus livros uma pea essencial no conjunto orgnico da sua obra. T
al o esprito dessa unidade que, sendo Ferreira de Castro um romancista, na mais c
ompleta significao desta palavra, mesmo quando escreveu A Volta ao Mundo, volumes
macios de impresses de viagem, versando, portanto, um gnero literrio por assim dizer
antagnico da fico o glorioso escritor no cindiu aquek esprito de unidade.
Em toda a extenso de suas narrativas de vagamundo, a gente encontra o homem Ferre
ira de Castro cioso de sua humanidade acima de tudo.
Depois dos Pequenos Mundos e Velhas Civilizaes e de A Volta ao Mundo, que teria fe
ito o romancista? Continuou, como continua, com a graa de Deus, a escrever belos
livros. Mas um cuidado ele teve, todo especial, amoroso e evocativo. Foi, segund
o confessa, alguns meses aps a concluso ds. viagem sua aldeia de nascimento, subin
do "aquela mesma spera serra de urzes e pinheiros bravos, aonde ia em criana conte
mplar mais rasgados horizontes do que o do vale nativo, pressentindo, adivinhand
o o mundo que fascinava a sua inquietude infantil".
Quereis saber o que o escritor viu trinta anos depois, do dorso da serrania? Tud
o igual, ou quase igual. O que era diferente era ele prprio. A viso da infncia se s
obreps a realidade; imaginao do menino Jos Maria a experincia do romancista Ferreira
de Castro. Mas como a infncia marca indelvel no carcter do homem, o escritor, entre
as urzes e os pinheiros bravos da sua minscula aldeia, depe, pleno de amor e frat
ernidade: "A posse do planeta no matou em ns o sortilgio da distncia, a atraco do long
quo, a voz encantada que se oculta para alm da linha do horizonte."
iigo
O INSTINTO SUPREMO
E, gloriosamente pattico: "Queramos, como a personagem de um livro nosso, como a m
aioria da humanidade, viver muito, muito, para voltarmos a contemplar o mundo de
pois da sua nova aurora, o mundo que ns sabemos que vir um dia, um mundo sem as in
justias e sem muitas das dores que os homens tm sofrido at agora. Queramos ver o mun
do de amanh e, s depois disso, forados pela lei fatal, vir buscar aqui (na sua alde
ia), sob as estrelas, a intrmina imobilidade."
Ferreira de Castro, meu Irmo, Deus te abenoe'
(Conferncia realizada em 23 de Junho de
1966, no PEN Clube do Rio de Janeiro.)
UMA LIO PARA OS HOMENS DE HOJE
por Philippe Brunetire (*)
O ltimo romance do escritor portugus Ferreira de Castro situa-se na mesma linha do
s precedentes e, em especial, de "A Selva". Nele se reencontram a amplido, a gran
deza esmagadora dessas paisagens da Amaznia onde a floresta s cortada por alguns c
ursos de gua que constituem quase os nicos meios de acesso at ela. O livro denso, p
rofundo, recamado de factos, de ideias e de reaces, narrados com tanta fora como fi
nura, com tanta psicologia como profundeza e compreenso na anlise dos comportament
os. Nele se descreve a aventura de um grupo de homens audaciosos e corajosos, im
pelidos por uma alta ideia da civilizao, que partiram para se enclausurar literalm
ente na floresta e nela instalar um acampamento rodeado de arame farpado, tentan
do entrar em contacto amigvel com uma das tribos mais irredutveis e mais ferozes d
o Brasil: os Paratintins. A sua divisa : "Morrer, talvez; matar, nunca*. E alguns
deixaro ali a vida.
O romancista soube, notavelmente, relatar os estados de alma desses homens, por
vezes rudes, mas de uma dedicao total.
Um livro verdadeiro, de enredo denso, construtivo, sensvel e corajoso, em que tod
as as pginas so uma lio para os homens de hoje tal este romance de Ferreira de Castr
o.
(In Ls Nouvelles Litiraires, Paris.)
(") Crtico literrio francs.
_i
SESSO NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
EPOPEIA DO HUMANISMO
Em sesso recente da Academia Brasileira de Letras, no ms de Julho passado, foi pre
stada expressa homenagem desta alta instituio de cultura a Ferreira de Castro pela
publicao do seu ltimo romance O Instinto Supremo. O acadmico e antigo presidente pr
of. Peregrino Jnior props, justificando-a com caloroso louvor ao significado luso-
brasileiro da obra de Ferreira de Castro, a atribuio da medalha "Machado de Assis"
ao romancista portugus distino de extraordinrio relevo que foi aprovada por unanim
idade do plenrio da Academia.
Tomou a palavra, em seguida, o acadmico Elmano Cardim, que em demorado discurso s
alientou o significado de A Selva, romance em que Ferreira de Castro "ofereceu a
o Brasil a revelao da Amaznia" e que Humberto de Campos e Afrnio Peixoto "no hesitara
m em consagrar como verdadeira obra-prima". E, mais adiante, acrescentou: "Ferre
ira de Castro, com o poder do seu gnio criador, com a beleza da sua arte, gravou
pelo buril do seu estilo mpar (em O Instinto Supremo) a epopeia de que Rondon foi
o autor. com o seu talento de romancista conseguiu maravilha aquilo que pretend
eu." Elmano Cardim afirmou, depois, 10 dever de tornar publico o reconhecimento
que merece o escritor Ferreira de Castro, por haver fixado em pginas eternas um m
omento da nossa evoluo e a pureza de um ideal que, se foi de um homem s, tocou a to
dos os brasileiros". E, a terminar, o acadmico brasileiro declarou: "Louvores sej
am dados a Ferreira de Castro pelo primor do seu livro e graa lhe demos pelo bem
que com ele fez ao Brasil."
Na sesso da Academia falou, ainda, sobre a personalidade e a obra de Ferreira de
Castro o escritor Ivan Lins.
Temos notcia de que a entrega da medalha "Machado de Assis" ao escritor expressiv
amente distinguido pela Academia Brasileira de Letras ser realizada em Lisboa, ta
lvez em data prxima, pela mo do prprio presidente da instituio, Austregsilo de Athayde
.
(De jornais brasileiros.)
por Jorge Amado
"Embora enraizado num facto acontecido, este exame de um problema moral que vem
de muito longe e de um herosmo popular sem espadas, sem carabinas e sem sangue, e
sta epopeia vivida apagadamente em dias ainda recentes, ignorada do mundo e da p
rpria maioria dos brasileiros, um romance", escreve Ferreira de Castro na carta-p
refcio de seu ltimo livro, dirigida a Nunes Pereira. importante tal constatao: em to
das as suas pginas, "O Instinto Supremo" romance, e romance dos mais densos e bel
os entre quantos foram publicados nos ltimos anos pela literatura portuguesa ou p
ela literatura brasileira.
Epopeia do humanismo, onde se resume, no drama ardentemente exposto e narrado, a
prpria condio do ser humano. Hoje estamos cercados de violncia desatada como se j o
desespero fosse o crculo final de uma civilizao.
Quando o livro de Ferreira de Castro chegou s minhas mos e iniciei a leitura de su
as pginas, os jornais brasileiros e a imprensa mundial denunciavam o drama monstr
uoso da liquidao dos ndios da bacia Amaznica por aqueles que eram e so pagos para def
end-los, para cuidar e zelar pelas tribos. O crime sem nome se estampava desnudo
nas narraes de testemunhas e at em fotos terrveis. Crime inacreditvel, vergonha de no
sso tempo, humilhao para a terra de Rondon, para o povo cuja filosofia de vida fei
ta de ternura, de amor e de paz.
O livro de Ferreira de Castro foi como o blsamo sobre a chaga aberta com o noticir
io da violncia mais ignbil desabada sobre os ndios iguais a crianas rfs. Ferreira de C
astro, portugus feito homem na Amaznia e homem de bem, decente, homem irmo do home
m, escritor de vida e obra dedicada humanidade e ao futuro restituiu-nos a confi
ana abalada, restaurou nossa mais profunda verdade: a do amor ao ser humano. Foi
buscar na epgrafe de Rondon
1194
O INSTINTO SUPREMO
antes morrer do que matar aquilo que faz a conscincia brasileira, a verdade huma
nista do homem brasileiro. "O Instinto Supremo" chegou no momento exacto, quando
ns, brasileiros, vamos com espanto e horror a degradao de nosso estilo de vida, de
nossa filosofia de viver, nas mos de miserveis nascidos do tempo melanclico e humil
hante que sofremos desde 64. Ferreira de Castro, o mestre de "A Selvat, foi mais
uma vez intrprete do homem brasileiro e de sua verdade.
Grande romancista contemporneo, dos maiores de nosso tempo, voz de seu povo, tambm
voz do povo brasileiro. Sua obra, toda ela importante, onde romances como (A L e
a Neve", "Terra Fria*, tA Selva*. "A Curva da Estrada" so expresses do que de mai
s alto nos deu a novelstica actual, hoje patrimnio da cultura do homem, e expresso
do verdadeiro humanismo, com ela o homem cresceu em dignidade. "O Instinto Supre
mo soma-se a essa grande obra de criao como um dos romances mais nobres da lngua po
rtuguesa.
Outro dia esteve em minha casa uma jovem redactora de um jornal de Lisb'oa. Perg
untou-me como me sentia vendo-me indicado a um prmio em companhia de Peneira de C
astro. E eu lhe respondi: "Jovem, quem merece o prmio s seu patrcio, o romancista m
estre do romance, o homem mestre do homem, Ferreira de Castro. Eu j fui mais do q
ue premiado ao ver-me colocado a seu lado, estou cumulado de honra".
(In 3'ornal do Comero do Rio ^ de Janeiro e muitos outros jornais.)
NDICE
A L E A NEVE 5
Prtico 7
I Parte Os Rebanhos 'l
II Parte L e Neve "3
in Parte A Casa 2bl
OPINIES CRTICAS 3 '
A CURVA DA ESTRADA 365
Prtico 367
A Curva da Estrada |7'
OPINIES CRTICAS 7
A MISSO 6l9
OPINIES CRTICAS "5
A EXPERINCIA 693
Ele 695
I A entrada ^95
II i."dia 699
in 2. dia 74
IV 4.0 dia 7H
V 5.0 dia 730
Ela 745
I i." tarde 745
II 3." tarde 751
in 4." tarde 73
IV 5." tarde 772
V 6." tarde > 7"4
VI 7." tarde \ 799
VII-54-a tarde |"
VIII 78." tarde 823
1196
NDICE
Pags
Todos Eles 825
I 6." dia 825
II 2i. dia 831
in 54. dia 840
IV 55. dia 846
V 79. dia 849
VI 107. dia 859
VIIi io." dia 865
VIII A experincia 865
IX132." tarde 871
X151.0 dia 877
XI O jantar 885
O SENHOR DOS NAVEGANTES 909
O INSTINTO SUPREMO 925
Prtico 929
O Instinto Supremo 933
Bibliografia 1177
OPINIES CRTICAS 1179
^fc
; A

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