A Lã e A Neve - Ferreira de Castro
A Lã e A Neve - Ferreira de Castro
A Lã e A Neve - Ferreira de Castro
Romance
Ferreira de Castro
Obras de Ferreira de Castro
Reservado para todos os pases todos os direitos de traduo reproduo e adaptao.
Cpyright by Ferreira de Castro
PORTICO
Os primeiros teares criaram-se, em j difusos e incontveis dias, para a l que produ
ziam os rebanhos dos Herminios. O homem trabalhava, ento, no seu tugrio, erguido n
as faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das sole
dades alpestres, os lobos desciam tambm e vinham rondar, famintos, a porta fechad
a do homem. A solido enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa s
ombra. A serra, porque s a p ou a cavalo se podia vencer, parecia incomensurvel, mu
ito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refe
gos brotavam supersties e lendas histrias que os pegureiros contavam, ao lume, a e
ncher de terror as noites infindas.
O homem viera para ali h muitos sculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda
os que levantavam o seu abrigo de granito nos stios mais propcios; e, quando o fa
ziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circ
undante. Os gnios da montanha e as frias do cu possuam, assim, quase toda a majestos
a extenso da serrania, ermticos domnios onde podiam transitar com passos de fantasm
as ou bramir livremente.
No comeo do Vero, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixava
m, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braos possantes, fiada d
epois, a l subia, um dia, ao tear. E comeava a
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tec&agem. O homem movia, com os ps, a tosca construo de madeira, enquanto as suas mo
s iam operando o milagre de transformar a grosseira matria em forte tecido. Const
itua o acto uma indstria domstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a se
rra no dava, nessas recuadas eras, mais do que l e centeio.
Pouco a pouco, porm, foi sendo tradio no reino que os homens da Covilh e suas redond
ezas eram mestres, como nenhuns outros, em tecer bifas, almafegas e buris. Ento, o
s monarcas e seus aclitos acabaram atentando nesses teceles dispersos pelas abadas
da serra; e com ordenaes, pragmticas, alvars e regimentos, ora os estimulavam em se
u solitrio labor, ora os constrangiam sob pesadas sisas. Da Planares vinham panos
concorrentes, que exibiam mais esmerada tessitura; apesar disso, os humildes te
ares continuavam a mover-se, alimentados pelos rebanhos da Estrela.
Depois, Portugal descobriu longnquas terras e tambm a rota martima da ndia; e houve
que vestir a muitas gentes exticas, a troco do que elas, foradas ou voluntariament
e, entregavam aos descobridores. E os teares da serra multiplicaram-se. Cada tec
elo trabalhava, ainda, no seu casebre, de lume aceso no Inverno e porta escancara
da no Estio. A maior casa pertencia, ento, ao deus do povoado. Mas um dia, na Cov
ilh, ergueu-se uma casa maior do que a do deus. Era a primeira fbrica de tecidos.
Muitos teceles deixavam a faina individual e iam trabalhar em conjunto. Da Inglat
erra e da Irlanda chegavam outros homens para lhes ensinar os ltimos progressos d
a sua arte. A l da serra j no bastava; ia-se merc-la ao Alentejo e a outras terras d
o pas. E os teares comearam a vestir os exrcitos reais. Cada sculo aportava novos ap
erfeioamentos tecelagem e levantava novas fbricas nas margens das duas ribeiras qu
e desciam da serra, cantando, a um lado e outro da cidade.
Um dia, tudo se revolucionou. J no se tratava de melhores debuxos, de mais gratas
cores, mas de coisa mais profunda da produo automtica. L nas nevoentas terras ingle
sas o padre Cartwright inventara o tear mecnico. A gua, fazendo girar grandes roda
s, comeara a
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produzir o movimento dado, at a, pelos ps do homem. Mas continuavam a ser precisos
os homens junto das novas mquinas.
Os serranos, que nas solides da Estrela ora pastoreavam as suas ovelhas, ora teci
am a l que elas forneciam, tornaram-se cada vez mais raros. A maioria entrara nas
fbricas. Eles tinham de pautar, agora, a sua vida por um salrio fixo, chegasse ou
no chegasse para as exigncias de cada dia. Isso, porm, carecia de importncia; ningum
pensava em aumentar-lhes os ganhos, pois havia de se ter sempre em conta o preo
da mo-de-obra para a concorrncia dos tecidos nos mercados.
Os homens passavam os dias e as noites dentro das fbricas, s saindo aos domingos,
para olvidar o crcere. J no viam as ovelhas, nem ouviam o melanclico tanger dos seus
chocalhos nos pendores da serra, ao crepsculo; viam apenas a sua l, l que eles des
ensurravam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, l por toda a
parte.
A indstria ia crescendo sempre. Agora no eram grandes apenas a casa do deus dos ho
mens e as casas das fbricas; ao lado destas, outras casas grandes tinham surgido
as residncias dos industrieis. E todo o pas falava da prosperidade da Covilh.
Mais tarde, operou-se nova revoluo. As enormes rodas que giravam nas ribeiras deti
veram-se: o poder da gua fora substitudo pelo da electricidade. E fbricas existiam
onde j laboravam pais, filhos e netos. Os centos de teceles que, outrora, viviam n
os lugarejos da serra, tinham-se multiplicado e constituam, agora, milhares. Ladi
nas personagens, que, de magros dinheiros dispondo, compravam o fio a uns, manda
vam-no tecer a outros e a terceiros vendiam os panos, acabaram desaparecendo tam
bm, devoradas pelos industriais poderosos. E s ficavam as grandes fbricas, com seus
milhares de operrios.
A l do pas j no chegava; tinha-se de procur-la em terras estrangeiras. Da Austrlia, da
Nova Zelndia, da frica do Sul, passaram a vir grandes carregamentos. Rebanhos dis
tantes alimentavam, atravs dos mares, as fbricas quase escondidas nas ribeiras da
Estrela.
IO
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A indstria sofria, porm, constantes oscilaes. Ora fabricava sem descanso, ora, por e
scassez de matria-prima ou parco consumo, diminua os dias de seu trabalho. Ento, ho
mens e mulheres, que l haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma misria m
ais descarnada ainda do que a normal. com seu fabrico reduzido, a Covilh, em vez
de exportar panos, passara a exportar raparigas para o meretrcio de Lisboa.
A sujeio ao destino comum criara, todavia, alguns vnculos entre os descendentes dos
primeiros teceles. No sculo XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do
alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, pr
otestos, rumores dos homens que, s vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais
de po.
PRIMEIRA PARTE
OS REBANHOS
JOGO que as cabras e as ovelhas entestaram corte, o "Piloto" deu por findo o seu
trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os servios, se dirigir
a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspan
do a terra, ia triste, cismtico, como perro vadio de estrada, descorooado da vida.
Subitamente, porm, sorveu no ar algo que lhe era conhecido. A cauda ergueu-se nu
m pice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabea levantou-se tambm e ne
la luziram os olhitos at a amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava
cheio de tentaes, de paragens obrigatrias, estabelecidas por todos os ces que passa
ram ali desde que Manteigas existia, desde h muitos sculos. Forado a deter-se, ele
regava, esquerda e direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, m
as fazia-o alegremente e com o visvel modo de quem leva pressa. Em seguida, volta
va a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era mai
or o seu alvoroo. Por fim, lobrigou-o. Horcio estava junto
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de Idalina, tambm conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que
emergia da terra, ao cabo das decrpitas e negrentas casas do Eir, no cimo da vila.
E to atarefado parecia Horcio com as palavras que ia dizendo rapariga, que no deu,
sequer, pela chegada do co. Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquant
o agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se dec
idiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costum
e quando este o chamava, hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastore
ando o gado, l nos picarotos da serra. S ento o amo deu por aquela presena. Ele regr
essara nessa tarde do servio militar e, no entusiasmo de ver pai e me, os vizinhos
e, sobretudo, Idalina, no se havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Ago
ra, porm, afagava-lhe a cabea e metia, enternecido, um parntesis na narrativa que e
stava fazendo:
Olha o "Piloto"! O meu "Piloto"!
Idalina desviou ligeiramente os olhos para o co e voltou a fix-los na rocha, com a
quele mesmo ar preocupado que tinha quando o bicho chegara. Houve um pequeno siln
cio e Horcio volveu ao torn de voz anterior:
Como eu ia a dizer, o quartel de artilharia anti-area prantava-se mesmo beira do
mar. Viam-se passar os navios, que iam para Lisboa. s vezes, era cada um, to gra
ndalho, que dentro dele ningum podia ter medo de afundar-se. Ali perto ficava o E
storil. Tu j ouviste falar no Estoril ? Aquilo que uma terra bonita! como um jard
im a perder de vista. S te digo que l at os pinheiros parecem rvores mansas! Nalguns
, as roseiras trepam por eles arriba at chegar mesmo aos galhos. E todas as estra
das so mais limpinhas do que o cho de uma igreja! Nas horas de dispensa, eu nunca
me fartava de ver aquilo. H l automveis por toda a parte e pessoas que falam o rai
o de umas lnguas que a gente no percebe nada...
De sbito, Horcio ps freio sua loquacidade.
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Pela atitude e teimoso silncio de Idalina, compreendeu que ela, desinteressada de
quanto ouvia, pensava noutra coisa, aguardando que ele voltasse ao caminho de o
nde se desviara. com a mo, Horcio afastou da sua perna a cabea do "Piloto" e justif
icou-se:
Eu estava a falar disto s por mor das casas... Tu no podes imaginar! As dos indust
riais daqui nada so comparadas com as que l se vem! H-as de todos os feitios e lind
as a valer! Todas esto no meio de jardins e, mesmo no pino do Inverno, tm flores.
Eu passava horas a andar em frente delas e a olhar para dentro. Ento eu ia pensan
do que ali que se podia viver bem e ter muitos filhos e no aqui, na nossa terra.
Depois, eu via que no gostava muito daquelas casas grandes. Parecia-me que, se
uma delas fosse minha, me perderia l dentro. Aquilo estava bem para gente com out
ros costumes, gente rica, que gosta de se deitar em quartos separados e de ter
muitas salas. No para mim, que quero dormir sempre agarrado a ti...
Horcio riu, contemplando-a e desejando contagi-la com o seu fervor. Mas o sorriso
dela foi to melanclico, coisa to a despegar-se dos lbios, tanto de deitar fora, que
ele protestou:
No ponhas essa cara de enjoo, que at me ds raiva! O que eu pensei no nada contra ti.
Vais ver! Tornou a mudar de torn: Um dia, fui alm do Estoril, a um lugar chamad
o Parede, que fica ali perto. de menos luxo, mas tambm muito limpo. Foi l que eu e
ncontrei uma casa pequenina, mas engraada a valer. Se a viesses! A sua mo indicou
o fim da congosta: Olha: pouco mais ou menos do tamanho daquela ali, da tia Lu
ciana, mas, em vez de ser assim negra, era toda branquinha e com as janelas pint
adas de verde. E, em volta, muitas plantas. Eu pensei logo que uma casita assim
que estava mesmo a calhar para ns, no l, j se v, mas aqui. Podia ter outro feitio, pa
ra ficar ainda mais barata. O que eu queria era ter uma casa asseada e alegre e
no com burros por baixo, como se vem por a. Foi por isso que eu
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te disse que devamos deixar para mais tarde o nosso casamento...
Pela primeira vez, depois que ele alvitrara aquilo, Idalina pronunciava-se:
Ests muito mudado... Se ainda gostasses de mim, no me dirias isso...
Ele olhou-a com olhos sorridentes e glutes:
Ora essa! Se estivssemos num lugar em que ningum nos visse, havia de te morder t
anto a boca que j no falavas assim! Se tambm por ti, minha tola, e pelos nossos fil
hos! Pois eu quero que me ds muitos filhos, que se paream contigo. Percebes ? Aind
a esta manh eu vinha no comboio a pensar como serei feliz quando tivermos crianas.
Mas eu no quero que elas vivam num chiqueiro, como vivem muitas daqui. Se tu vis
ses como l, no Estoril, se tratam as crianas! Aquilo, sim, que saber criar filhos!
Eles andam em carrinhos quando tm poucos meses e, depois, quando so mais
crescidos e vem o Vero, brincam na praia e nos jardins das casas, que mesmo um r
egalo v-los. Tu sabes que eu sempre gostei de crianas. E, at por causa disso, uma
vez apanhei l um susto. Eu estava a ver uns petizes a brincarem num jardim, quan
do o dono da casa, que ia a entrar, me disse com maus modos: "Se voc continua aqu
i a desinquietar a minha criada, eu fao queixa ao seu comandante!" Eu nem vira ne
nhuma criada, mas no pude explicar-lhe, porque ele voltou-me logo as costas. P
arece que o homem tinha adivinhado que eu estava h pouco na tropa e que ainda e
ra lorpa. Durante alguns dias andei com medo de vir a ser castigado... bom! Est b
em de ver que os nossos filhos no podem ser criados como os de l, porque ns
somos pobres, mas podemos ter uma casinha limpa para eles e para ns. Demais a mai
s, no foi s no Estoril que eu vi casas assim; em muitas partes as h. Eu, antigament
e, que no reparava nelas...
Idalina interrompeu:
E onde tens tu o dinheiro ?
Optimista e confiante naquele poder de adaptao
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e de trabalho que ele sentia, instintivamente, em si prprio, Horcio no vacilou:
Arranjo-o! No o tenho, mas arranjo-o! Por quatro ou cinco notas compro ao tio Ber
nardo um pedao de monte, ali em cima, que lugar soalheiro. E se no for ali, ser n
outra parte. Eu no desejo grande coisa. com meia dzia de contos devemos pr a casa e
m p. Basta que ela tenha dois quartos, um para ns, outro para quando as crianas for
em crescidas, uma sala de jantar, a cozinha e uma latrina pegada. Se adregar hav
er perto uma pedreira, j faremos uma economia. Eu mesmo, aos domingos e em todas
as horas que puder, arranjarei a pedra. Mas, claro, sempre so precisos pedrei
ros e carpinteiros. E, para isso, tenho de arranjar maneira de poder forrar algu
m dinheiro. J pensei muito no caso, que julgas? A guardar ovelhas que eu no morro!
Hei-de arranjar outro trabalho, onde ganhe mais. Baixou a voz, como numa confi
dncia : Quando me licenciaram e antes de vir para aqui, eu procurei em Lisboa...
A ver se me empregava... Enquanto estive no quartel, ensinaram-me alg
uma coisa de ler e de escrever, pois eu, quando fui para a tropa, era uma desgr
aa; pouco mais sabia do que as primeiras letras. Assim, sempre posso governar-me
melhor. Ainda ontem, de manh, fui a duas casas, a dois armazns de vinhos, no Poo do
Bispo. No arranjei emprego porque no tinha ningum de peso que me recomendasse. O p
ai de um soldado que se tornou meu amigo acompanhou-me, mas como gente pobre, q
uando ele falava eu percebia que os patres ligavam-lhe pouca importncia. Foi po
r isso... Mas eu tenho outras pessoas. No garanto que possa forrar num ano ou doi
s todo o dinheiro preciso para a casa; mas estando a ganhar bem, logo arranjo qu
em me empreste o resto, para eu pagar, depois, aos poucos. Mas... que tens tu ?
Duas lgrimas desciam pelas faces de Idalina. Ele repetiu, surpreendido:
O que tens ? Por que choras ? Ela comeou a soluar:
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-g- Se tivesses muito amor por mim, no tinhas querido ficar em Lisboa, depois de
sares da vida militar... Quando comeou a guerra, eu nem podia dormir. Como tu eras
soldado e muitos diziam que Portugal, mais dia, menos dia, tambm havia de entrar
na guerra, at se me partia o corao por tua causa. Bem tola eu era! Eu, aqui, a pad
ecer e tu, agora, sem nenhuma pressa de vires. Porque mentiste h poucp, dizendo q
ue estavas mortinho por me ver ?
Horcio exaltou-se:
E estava! Deixa-te de tolices, anda! Uma coisa no tem nada com a outra! Eu estava
doido por vir, por te ver... Mas era por tua causa que eu ficava se tivesse arr
anjado alguma coisa de jeito...
Cada vez te vejo mais mudado...choramingou ela ainda. Essas terras por onde and
aste fizeram-te mal...
Horcio tentou sorrir:
O que diriam os outros recrutas se te ouvissem falar! Eles que ficaram cheios de
inveja quando eu fui mandado para a artilharia anti-area! Todos eles gostavam de
ir, porque assim podiam ver Lisboa, que ficava a dois passos... Mas v; deixa-t
e disso! Limpa-me essa cara! Se eu mudei, foi para melhor. Pegou-lhe numa das
mos, apertou-lha e olhou os olhos dela: Compreendes ?
com as costas da outra mo, Idalina enxugou o rosto de faces largas, morenas, e bo
ca de lbios grossos lbios que a ele apeteciam veementemente, embora preferisse ver
o de cima sem essa penugem que anunciava um futuro bigodito, semelhante ao da me
dela...
Bem... Por que no nos casamos e, depois, vamos fazendo a casa, pouco a pouco ?
Ele acorreu em defesa do seu critrio:
No a mesma coisa! Tambm j pensei nisso, mas vi que no era a mesma coisa. Vm os filhos
, h mais responsabilidades e no se pode pr vintm de lado. Pensei muito nisso. Ou j
ulgas que s tu tens pressa ? A sua mo apertou mais a mo dela: Se soubesses!...
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Alugvamos uma casa, como se tinha combinado... teimou Idalina. o que tod
os fazem. Poucos so os que tm casa sua. Por que havemos de querer ser mais do que
os outros ?
Eu no quero ser mais do que os outros. Mas quero ter uma casa que me d alegria. A
gente aluga um destes poleiros daqui, acostuma-se, vai-se desmazelando e deixand
o ficar. Quando menos nos precatamos, a famlia cresceu e pronto! j no se pode faz
er nada. No quero isso! Quando fizermos a boda, o quarto e toda a casa ho-de ser n
ovos e s nossos. E quando ficarmos sozinhos, eu hei-de atirar-me a ti, como um lo
bo... aos beijos. Assim... Ele estendeu os lbios: Assim... Muitas vezes, eu imag
inava isto, quando me deitava l no quartel e apagava a luz. Comeava a pensar em t
i e era como se j tivssemos acabado de casar. Pensava tanto que no podia dormir e a
t me vinham dores de cabea...
Anoitecia. Nos topes da serra ainda havia rsea claridade, mas, c em baixo, boiavam
sombras cada vez mais densas. com suas altivas lombas, as ramificaes da montanha
cercavam, de todas as bandas, a vila postada quase no fundo do grande vale, ao p
do Zzere, que na paz crepuscular adquiria voz forte, correndo e cantando entre os
penedais do seu leito. A luz parecia desprender-se, como um vu, da imensurvel cav
idade, deixando ainda vermelhar a telha francesa das casas abastadas, enquanto o
s negros telhados dos pobres se somavam j escurido que avanava. Nas encostas, os pi
nheiros formavam mancha compacta e, nos vastos soutos, os castanheiros, de arred
ondadas frondes, dir-se-iam sem troncos apenas largas copas pousadas nos pendor
es, como um acampamento aguardando a noite.
Idalina procurou soltar a sua mo de entre as mos de Horcio:
Vou-me embora. Faz-se o que tu quiseres. pena, porque eu e a minha me
j tnhamos arranjado umas coisitas para o enxoval e todo o povo estava
espera de que o nosso casamento fosse logo
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depois de tu voltares da vida militar, como tnhamos dito*
A sua voz mostrava-se to melanclica, to passiva, que ele comoveu-se:
No se faz o que eu quiser, no, senhor! S se faz o que eu quiser, se tu quiseres tam
bm. Eu acho que uma asneira, pois somos ainda novos e podamos esperar. Tu ainda no
fizeste vinte anos e eu poucos mais tenho. Dois ou trs anos levaramos a levantar a
casa e podamos comear a nossa vida em melhores condies. Mas se tu no quiseres, pacinc
ia! s vezes, at desejo que tu no queiras... Porque eu estou a dizer-te isto e, ao m
esmo tempo, estou mortinho por fazer o contrrio. Compreendes ?
Ela no respondeu logo. O "Piloto", que havia desaparecido, voltara a deitar-se ju
nto da rocha, aos ps deles. A sombra da noite ia j meia encosta e l em baixo, na ru
ela, a tia Joana Pucareira passava com um molho de lenha cabea.
No seu silncio, Idalina transigia, lentamente. Depois das ltimas palavras de Horcio
, aquela ideia acamava-se, com mais facilidade, no seu esprito. Agora, ele pareci
a-lhe sincero.
Talvez seja melhor como tu dizes murmurou ela, por fim. Pensando bem, ta
lvez seja melhor. Custa-me muito, mas faz-se assim, como tu queres...
J te disse que tambm a mim me custa. Mas quando penso que, ao voltar do trabalho,
tu estars minha espera numa casinha nova e que as crianas tero um cho limpo, sinto u
ma grande alegria. Havemos de ser muito felizes, vers!
Num impulso, estendeu os braos, para apert-la. Ela afastou-o:
No... No... Podem ver-nos! Vamo-nos embora, que j tarde...
O lusco-fusco apardaara toda a terra, desde o vale s cristas das Penhas Douradas.
Dir-se-ia que uma poalha escura e flutuante envolvia tudo, as casas dos homens e
os fojos dos lobos, nos declives abruptos, e se apossava do prprio cu.
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Os dois levantaram-se. Depois do longo dilogo, ela voltava a olhar direito para e
le. Parecia-lhe, na tnue obscuridade, ainda mais forte, mais msculo do que quando
partira dali. Ela, agora, sentia orgulho de vir a t-lo por marido e, ao mesmo tem
po, melancolia por no o ter j.
Iam caminhando, calados, um ao lado do outro. Por vezes, os seus corpos tocavam-
se. Esse roar de ombros, que parecia casual, provocava-o Horcio, obediente a uma i
deia fixa. A cada passo, os olhos dele vasculhavam os derredores. No havia ningum.
A luz, que saa de frinchas e de postigos, projectava-se sobre as pedras e a lama
da ruela e tornava-se cada vez mais viva na noite nascente. Um vulto surgiu, ao
longe, mas logo entrou num dos casebres. Ao passarem sob as janelas da tia Luci
ana, ele ainda olhou para cima. Encontravam-se fechadas. Idalina dera pelas prec
aues dele, pressentia o seu intento e desejava a mesma coisa, mas fingia-se distrad
a. "Ali seria melhor pensou do que no penedo, que estava mais vista".
Horcio estendeu o brao e atraiu-a a si. Ela ainda simulou reagir, mas logo as suas
bocas se colaram. E j uma das mos dele descia para os seios dela, numa carcia, qua
ndo se ouviu algo que rangia, timidamente. Horcio levantou os olhos e adivinhou,
mais do que viu, a car atua da velha Luciana sua janela acabada de abrir.
Idalina ficara perturbadssima. Ele, porm, sorriu, bonacheiro, e falou para cima:
Bico calado, tia Luciana, se no quer que lhe caia um raio em casa. Entendeu ?
A velha, em vez de responder, fechou estrepitosamente a janela, mas logo voltava
a abri-la, curvava-se no peitoril e gritava, furiosa e escandalizada, para
Idalina:
Pouca vergonha! Andar a pelos caminhos, como as cadelas! No pode esperar, a prince
sa! V-se cada coisa nestes tempos!
Antes que recebesse troco, tia Luciana cerrou a janela, novamente com violncia.
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Idalina comeara a andar, apressada. Ele seguia-a com dificuldade, sorrindo ainda,
ocultando o seu nervosismo. Percebeu que ela chorava.
Deixa l! consolou. feitio da velha, bem sabes. No casou, no teve quem a quisesse.
No te rales... Ora esta! Ento o diabo no queria que eu passasse tanto tempo fora
daqui e, ao voltar, nem ao menos te beijasse ? O estupor esteve, com certeza, a
espreitar-nos por detrs dos vidros toda a tarde...
Vai encher tudo, por a... murmurou Idalina.
No vai... Mas se for, acabou-se! No vamos ns casar?
Tinham comeado a descer a congosta. Era uma rua estreitssima, que cheirava a burro
s, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que
terminavam em ptios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avanando para sombrios
recantos, numa sugesto de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se
umas s outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte ci
meira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais ba
ratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de
madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzi
to quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas do paleio com as vizinhas. Alguma
s das portas e janelas estavam abertas e, atrs delas, pairava a rbida claridade do
fogo que, l dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianas, as s
uas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espao domstico, ciranda
vam numa confuso de movimentos humanos t de trapos dependurados.
Calcando as pedras abauladas e irregulares da rua onde, no Inverno, as enxurrada
s faziam correr todos os detritos, os detritos que, no Vero, secavam, cheios de m
oscas, ao bom sol da serra, Horcio procurava distrair Idalina:
Vs ? isto que eu no quero. Quanto melhor uma casinha como a que eu penso!
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Ela no respondia, sempre lesta no seu passo curto, zape-zape ladeira abaixo. Por
fim, deteve-se. Estavam em frente da sua casa, igual maioria das outras, com dua
s portas sobre a rua, uma sempre fechada, que eles, de to pobres, no podiam ter ne
m porco nem onagro na loja escura, e outra dando para a escada interna, estreito
s degraus de madeira que ligavam ao primeiro piso.
At amanh...
At amanh... E no te apoquentes! Aquilo no tem importncia. Mesmo nenhuma!
Ele falava assim, mas estava, tambm, enervado, sobretudo pelo mal-estar que senti
a em Idalina, ao despedir-se. Decidiu de repente:
you dar a salvao aos teus pais.
E, com ela adiante, temerosa do que iria acontecer, meteu s escadas. A senhora Ja
nuria, que estava para o fundo da habitao, ao pressentir a entrada da filha, admoes
tou de l, com sua voz roufenha:
Boas horas de voltar, no haja dvida!
Ao ver, porm, a cabea dele emergir na abertura do soalho, retraiu-se:
Ah, tu vens tambm!...
Nosso Senhor lhes d boas noites. Como tm passado ?
Vem com Deus. C vamos indo... E tu?
No h mal que me chegue... Vaso ruim no quebra...
A senhora Januria, cinquenta anos bem contados, pele arregoada e to escura que nem
a de uma cambojana, avanava para ele:
O meu homem ter gosto em ver-te. No queres subir ?
O piso em que se encontravam era formado por uma diviso estreita, atravancada com
duas arcas de pinho, alfaias agrcolas e roupas velhas dependuradas. Ao fundo est
ava um quarto simples tapume contornando, rente, a cama, como era costume nas c
asas pobres. Horcio lanou-lhe um olhar, condutor de voluptuosas ideias, por saber
que Idalina dormia ali. Mas j
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a senhora Januria fazia gesto de lhe franquear a outra escada, como se lhe tivess
e aberto uma porta. Ele comeou a subir, por entre os irmos mais novos de Idalina,
que, tendo sentido presena estranha, haviam corrido de cima, aglomerando-se nos d
egraus.
Ests muito crescido... E tu tambm... E tu tambm...ia-lhes dizendo.
O segundo piso, todo negro de fuligem, era ocupado pela cozinha, sem chamin, e um
outro quarto, maior do que o de baixo, pois alm da tarimba conjugal havia nele,
a um dos lados, uma enxerga sobre o soalho, para as crianas. E como nas demais ca
sas de operrios, jornaleiros e pastores da vila, os dois andares, com estreitura
de corredor, terminavam num meio forro, sob a telha v, para o qual se marinhava p
or uns escadotes de vindimas. Ali, a uma banda, se espalhavam as batatas que a f
amlia pudesse cultivar e, na outra, dormiam, sobre palha, os filhos mais velhos.
O tio Vicente, fraco de ouvidos, s deu pelo Horcio quando este e a senhora Januria
se puseram em frente do seu nariz. Estava deitado no quartelho, de porta aberta,
esperando a hora da ceia. Saltou da cama:
Viva! J sabia que tinhas vindo. E, ento, como te deste por l ?
Os outros irmos de Idalina, o Romo, o Zeca, j uns homens, aproximaram-se tambm. Ele
cumprimentou-os, inquiriu da sade de todos, e, medida que ia contando a sua vida
na tropa, ia dobrando, dobrando cada vez mais, sob nascente covardia, a ideia qu
e o fizera, de sbito, trepar ali. "No, no diria nada nessa noite. Tinha de pensar p
rimeiro como havia de dizer aquilo. Era conversa para depois, quando tivesse arr
anjado novo trabalho e se encontrassem sozinhos, sem o Romo e o Zeca".
Estavam todos de p e o tio Vicente puxou um banco:
No queres sentar-te ?
No, muito obrigado. Hoje no posso demorar-me. J tarde. Vim apenas para os ver.
A L E A NEVE
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Comeou a desandar para a escada, falando ainda. Pareceu-lhe, porm, que Januria fare
java na alma dele, pois ao topar os seus olhos vira-os com uma expresso incerta,
vagamente pesquisadora, que no lhe conhecia.
Idalina esperava-o no primeiro piso. Sussurrou-
-Ihe:
Disseste-lhes algumas coisa ?
No. Fica para outro dia. Olha: se tiveres ocasio, diz-lhes tu...
A luz do candeeiro projectou na parede, deformando-a, a sombra da mo dele ao afag
ar, de partida, a face de Idalina.
J na rua, de dedos nos bolsos e passo vagaroso, Horcio comeou a assobiar. "No fora g
rande coisa o dia da sua chegada. Pensara que Idalina acharia logo bem a resoluo d
ele e, afinal, tivera de gastar um ror de tempo para a convencer. E, ainda assim
, parecia que ela no estava l muito convencida..."
O "Piloto" continuava a seu lado. Depois, adiantou-se e meteu a cabea a uma porta
que se encontrava apenas encostada e que, com a sua passagem, se entreabriu. Ho
rcio entrou tambm e subiu os degrauzitos que davam para o primeiro andar, sobre a
loja destinada ao "vivo" aos animais domsticos como nas outras casas.
Que fumaceira! protestou, ao chegar acima. Mal via a me acocorada sobre a pedra
onde o fogo comeava a pegar. Mais adiante, sentado num cepo de carvalho, o pai co
sia as solas de uns velhos sapatos. O senhor Joaquim no era sapateiro, mas sobrav
a-lhe jeito para aquilo. Remendos, meias-solas, taces, tudo quanto no exigisse mqui
na, punha-os to bem e com maior pontualidade do que os profissionais de banca e t
ripea porta, seus inimigos de lngua solta, porque ele, assim sentado em casa, sem
pagar contribuies, trabalhava mais barato. Para o tio Joaquim aquilo constitua ocup
ao apenas de horas vagas, pois nas outras, a menos que fosse semana de pastorear o
gadito prprio e o alheio, ele cuidava das
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A LA E A NEVE
duaj courelas que possua ao p da encosta ou alugava os seus braos para a terra de o
utrem.
Horcio tirou o chapu e, passeando os olhos desde a figura do pai at as negras pared
es da cozinha, disse, como se falasse sozinho:
Est tudo na mesma...
De tarde, ao regressar de Lisboa, nem reparara na casa, comovido como se encontr
ava. Agora, aquela cena lembrava-lhe todos os comeos de noite que ele passara ali
, na infncia, at ser pastor do Valadares, e nos dias que antecederam a sua partida
para a vida militar.
O velho Joaquim ergueu os olhos da sola que cosia:
Est na mesma o c[u ?
Isto. Tudo isto. tal-qual como quando eu abalei...
Ento tu querias que estivesse diferente ?
No, no. Digo isto por dizer...
Voltou a olhar a quadra, toda negra e suja, com uma cama de ferro l ao fundo, ond
e dormiam os pais, uma arca rstica, a cantareira com pratos e tigelas, sobre a la
reira o canio para as castanhas e, em frente, a porta do seu quarto. Ao lado da p
orta, os saies, o alforge, o capote e o seu chapu de pastor, como se ele, durante
a sua ausncia, tivesse ficado, sem corpo, dependurado naquele prego.
Famlia pequena, a casa era tambm mais acanhada do que a maioria das outras: contav
a apenas a loja e aquele pisito por cima, onde eles cozinhavam e dormiam, onde s
e instalara a vida deles. Havia electricidade na vila, mas nenhuma casa pobre a
tinha; a luz, noite, dava-a um candeeiro de petrleo ou trmula candeia de azeite.
Horcio sentou-se em frente do pai e ficou calado, de braos sobre as coxas, as mos s
oltas entre as pernas, a cabea vergada. A ideia de se casar e de viver num casebr
e assim atafegado e sombrio, parecia-lhe, agora, ainda menos aceitvel do que quan
do, momentos antes, a repelira junto de Idalina.
Pois h diferena, h afirmou, lentamente, o
A L E A NEVE
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tio Joaquim. Tu que no reparaste. Estou mais velho... Quando tu foste, ainda eu
via bem e agora mal enxergo o buraco da sovela. Fazem-me falta uns culos, mas no t
enho tido dinheiro...
Horcio tornou a olhar o pai. Estava, com efeito, mais engelhadito, as costas mais
dobradas. S a me, abanando pachorrentamente o lume, que comeava a levantar cristas
sob a panela, parecia no ter sofrido alterao alguma. H dez anos que ela dir-se-ia i
nsensvel ao tempo, com sua tez queimada pelo sol, as faces secas, de ossos sali
entes, os lbios pregueados sob um nariz pequeno. O povo, ao v-la trafegar na vida
dura, fosse nas suas territas, fosse a auxiliar os demais, a troco de alguns es
cudos, dizia que ela, apesar dos seus sessenta anos bem contados, havia de assis
tir ao enterro de todos os moradores da vila. "Qual! protestava a senho
ra Gertrudes. Cada vez tenho mais brancas!" Protestava, mas, no fundo, sentia o
rgulho da sua resistncia. "L feita de manteiga, como essas reparigas de agora, no e
ra ela, isso no, louvado fosse Nosso Senhor!"
D-me um tio, me.
A senhora Gertrudes passou-lhe um garaveto a
arder.
Resolvi adiar o casamento... Combinei, agora, com a Idalina... disse Horcio, a
cendendo o cigarro.
Adiaste o casamento ? estranhou a velha. O pai, de sovela na mo e um sapato entr
e as pernas, olhava tambm para ele, surpreendido. No seria mau, no, porque isso se
mpre traz despesas e agora no nos fazia jeito volveu a senhora Gertrudes. Mas
por que
adiaste ?
Ele narrou, ento, a sua ambio aquela casita que trazia nos olhos, o seu desejo de
comear a vida de casado num lugar airoso e limpo, para eles e para os filhos. O p
ai, sem o interromper, ia aprovando com a cabea. A senhora Gertrudes, de olhos fi
xos nele, parecia suspensa no do que ouvia, mas do que ele ainda no dissera. E qua
ndo Horcio se calou, perguntou-lhe :
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A L E A NEVE
Olha l! E como vais arranjar isso?
>Era a segunda vez que, naquela tarde, ele tinha de defrontar-se com a mesma int
errogao a mesma dvida na boca da me e na de Idalina. Mas a sua confiana em si prprio
continuava, absoluta. Estendeu os braos com as mos fechadas e sorriu:
com estes! Pois como h-de ser ? Tenho c umas ideias... you entrar para as fbricas o
u arranjar um emprego...
Mas como ?
Depois se ver!
A senhora Gertrudes esperou, algum tempo, que ele adiantasse mais. Mas como Horci
o prosseguisse nos seus modos reservados, ela ergueu-se e caminhou para a pequen
a mesa. Apertou algumas couves na mo esquerda e, com uma faca, comeou a cort-las.
Ento tu pensas deixar o Valadares ?
Pois! No guardando o rebanho dele que levantarei cabea...
Mas ele contava contigo. Tinha-se combinado que ele no meteria outro moo, para que
tu no ficasses boa vida quando voltasses...
Est bem... Se eu arranjar outro trabalho, dou-Ihe uma desculpa.
O Valadares no vai ficar satisfeito e com razo. Para poder guardar o lugar para ti
, ele no tem pastor. So os filhos que tm tomado conta do gado. E como os rapazes lh
e faziam falta nas terras, teve de pagar a jornaleiros...
Horcio cortou:
Eu no gosto do Valadares, me! H muito tempo que no gosto dele. Nunca disse n
ada, porque vossemec, sempre que eu fazia alguma queixa, no me ligava importncia; d
izia que eu era um fedelho e que no sabia o que era a vida. Mas vossemec est engana
da. Se ele guardou o lugar para mim, no foi pelos meus bonitos olhos, nem para me
fazer favor. Foi no interesse dele. Ele mesmo, s vezes, dizia que no havia ningum
como eu para saber fazer queijos e tratar bem o rebanho...
A LA E A NEVE
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Parece que te estragaram, l na vida militar... Ests com uma vaidade! Se o Valadare
s dizia isso porque boa pessoa e gostava de ti. Outro, mesmo que fosse verdade,
calava-se.
... gostava de mim! Duas vezes que lhe pedi aumento de soldada, no me deu nem mais
um chavo. Acostumou-se a pagar-me como quando eu era garoto, quando comecei a a
companhar o tio Lus e nada! Vossemec bem sabe o trabalho que teve para ele me dar
mais alguma coisa quando eu fiz dezanove anos. Foi preciso vossemec ir l com chor
adeiras...
Eles tambm no so ricos desculpou a senhora Gertrudes. Tm aquelas terras que lhe to
mam todos os braos e por isso no podem cuidar do gado. Mas no que a riqueza por l ab
unde...
Vossemec j pensou quanto eles teriam de pagar, agora, por um moo que fosse para o m
eu lugar ? Pouco, que isto de ser pastor uma desgraa, mas com certeza muito mais
do que a mim. Se eu puder deix-lo, deixo-o! Eu j tinha resolvido isso mesmo antes
de ir para a tropa. Estava s espera de arranjar outra coisa. Pois como que eu po
deria manter uma casa com o que ele me paga ? Mesmo que arrendasse uma courela p
ara a Idalina amanhar, no podamos viver s com isso e a minha soldada. No verdade ?
A senhora Gertrudes no disse nada. Ps as couves num alguidar, lavou-as e, por fim,
meteu-as na panela. O pai debruara-se mais sobre o sapato, mostrando-se mui aten
to aos buracos que ia abrindo com a sovela. Horcio estranhava-os. Nunca eles havi
am defendido assim o Valadares, que, embora pequeno proprietrio, era um dos trs nic
os donos de ovelhas que fruam alguma prosperidade em terras de Manteigas.
A senhora Gertrudes tapou a panela, tornou a espevitar o lume e, depois, foi fec
har as janelas que abrira pouco antes, para sada do fumo. Quando voltou, colocou-
se em frente do filho, as gretadas mos postas sobre as ancas, os braos em forma de
asas de cntaro, como era seu costume sempre que se exaltava ou tinha de falar co
m solenidade a algum.
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A L E A NEVE
*Pode ser que tu tenhas razo... No digo que no... Mas ns no podamos adivinhar o que tu
tinhas resolvido. O teu pai adoeceu, esteve morte. Nunca te mandei dizer toda a
verdade, para no te afligir. Mas eu pensei que tu nunca mais o verias. At c veio o
doutor, oito vezes. E os remdios custavam uma fortuna. Foi-se tudo o que tnhamo
s, que bem pouco era. Vendi todas as nossas ovelhas. Ficmos reduzidos s trs cabras.
E eu precisava ainda de mais quinhentos mil ris. Um dia, botei-me at a casa dess
e malandro do Rufino. Pensei que ele ainda tivesse uns restos de corao, mas aquilo
pior do que um cigano. Prometi que lhe pagaramos em dois anos. Ele respondeu-me
que emprestar, no emprestava; mas que no tinha dvida em comprar, por trs contos, a
nossa courela que est pegada s suas terras. Eu vi logo a inteno dele. Como no
tnhamos querido vender aquilo das outras vezes, mesmo quando ele oferecera qu
atro contos, o maroto, ao ver-nos com a corda na garganta, queria aproveitar-se
da ocasio. Eu, ento, disse-lhe que guardasse para ele todo o seu dinheiro. Que eu
preferia atirar-me, viva, cova onde enterrassem o meu homem, do que ver a nossa
courela nas mos dele! E preferia!
A senhora Gertrudes fez uma pausa e deu outro torn sua voz:
As lgrimas que eu chorei depois, quando vim para casa! Foi, ento, que me lembrei d
o Valadares. Mais ruim do que o Rufino no podia ser. Fui at l. Ele recebeu-me bem
e emprestou-me os quinhentos mil ris, para descontar nas tuas soldadas...
O qu ?! Nas minhas soldadas ?
Pois foi... Eu no podia adivinhar... Se soubesse que tu no querias voltar para cas
a dele, eu no tinha aceitado isso...
Ento foi o Valadares quem falou em descontar ?
Eu prometi-lhe, como ao Rufino, que pagaria em dois anos. Mas ele disse-me:
"No vale a pena incomodar-se. Desconta-se nas soldadas do rapaz".
Horcio levantou-se e caminhou at o janelo que
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a me havia fechado. Abriu-o e nele meteu a cabea a receber o ar de fora. Tornou a
cerr-lo.
Quer dizer que eu tenho, agora, de trabalhar para ele um ror de meses... Se eu j
no tivesse resolvido adiar o casamento, tinha agora de o adiar por isto...
A me no respondeu. Mas o pai, que at a se conservara em silncio, um silncio humilde, c
omo se ele, por haver estado doente, fosse o culpado de tudo aquilo, disse:
No vale a pena ralares-te. Ns tnhamos pensado, em ltimo caso, vender a courela, para
tu casares. Se quiseres, vende-se. No ao Rufino, claro, mas a outro qualquer...
com tempo, sempre se h-de arranjar quem fique com ela... Assim como assim, essas
territas eram para ti...
Horcio fez um gesto negativo. Ele sabia que os pais dificilmente poderiam viver s
em aqueles dois degraus abertos na anca da montanha, alguns metros de cho onde cu
ltivavam centeio e batatas, seu principal alimento. com isso, os tostes da sovela
, alguns jornais que ganhavam e o rendimento das onze ovelhas, se mantinham. Ago
ra, vendidos os bichos, bem teriam de apertar a barriga, pois sem o dinheiro da
l e do queijo no poderiam mercar todas as coisas precisas numa casa, mesmo o po, j q
ue o das courelas mal chegava para quatro meses.
No quero... Foi para a sua sade, est bem. Mais que fosse!
A me olhou-o, inquiridora:
Que pensas fazer ?
No respondeu. Sentou-se e prolongou a sua mudez, um minuto atrs de outro e outro e
outro, com o lume crepitando e a senhora Gertrudes a soltar, de vez em quando,
um suspiro. Finalmente, ergueu a cabea:
Ainda demora muito a ceia ?
Est quase pronta.
Vendo-o assim preocupado, o pai, ansioso de desanuvi-lo, meteu-se a contar histria
avulsa. Ele mal o ouvia. Consultara o relgio e impacientara-se: "Eram
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A L E A NEVE
A L E A NEVE
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quase nove horas; come e no come, no saa dali antes das nove e meia. Quando chegass
e, o vigrio era capaz de j estar deitado". O pai sentia que ele pensava noutra coi
sa, mas continuava o seu monlogo, com aquela voz dbil e afvel que parecia pedir des
culpa de falar.
Sentaram-se, por fim, mesa. Ele soprou a sopa, comeu, soprando de novo, e, quand
o chegou ao po e ao conduto, devorou-os mais rapidamente ainda. com a ltima fula a
dilatar-lhe a face esquerda, abalou.
Em breve palmilhava a estrada que dividia a vila em duas partes. Meteu a uma rue
la que ali desembocava, dobrou a segunda e enfiou noutra ainda. De passagem, rec
onheceu, ao longe, a voz de Anbal, que falava num grupo; tinha vontade de o ver,
de o abraar, seu amigo desde os ninhos, mas no se deteve.
A casa do padre Barradas, toda de granito bem cortado, nua de cal como parede de
bastio, mas aligeirada na severidade por dois vasos de sardinheiras em cada jane
la, parecia adormecida na rua sossegada. Uma lmpada de iluminao pblica, que existia
em frente, lavava-lhe toda a fachada e no deixava perceber, por frincha de porta
ou de ventana, se l dentro havia tambm luz ou se estavam todos deitados. Horcio hes
itou e, depois, bateu, timidamente, com a aldrava. Aguardou, aguardou, sempre de
ouvido escuta, mas no ouviu rudo algum. Considerou que se j no era muito cedo, muit
o tarde no era tambm, tanto que o relgio de Santa Maria no dera ainda as dez; pensou
que, sem saber a resposta do padre Barradas, no podia buscar outro rumo para a s
ua vida e, assim impelido, bateu, de novo, com mais fora. Sentiu, ento, l dentro, u
ns passos que se acercavam lentamente. Pouco depois, a porta abria-se e, na sua
frente, recortava-se a senhora Alice, ama do abade, com gestos pesados e fofas c
arnes nos seus quarenta anos.
Ele salvou-a, humildemente, desejoso de colher-lhe a simpatia quela hora que tinh
a por molesta.
Eu precisava de falar ao senhor vigrio... Ele j sabe o que ... Se no fosse muito in
cmodo...
Alice advertiu:
O senhor vigrio, com certeza, j no pode falar-Ihe hoje. Mas eu you ver...
Desandou e, pouco depois, volveu:
o que eu tinha dito. O senhor vigrio diz que venha amanh...
A que horas ?
bom... Ele no me disse. Mas o melhor ser aparecer por a de tarde...
Horcio agradeceu, pediu de novo desculpa de haver incomodado, lanou desejo de boa
noite e partiu. Ia calcorreando as pedras, contrariado: "Assim, j no podia aprovei
tar a camioneta, no dia seguinte, para a Covilh, se aquilo no desse resultado. E o
utra camioneta s havia dali a trs dias".
Ainda no dobrara a esquina, quando ouviu um "pst!", "pst!", "pst!", cada vez mais
forte, rasgando o sossego da rua. Voltou-se. A senhora Alice estava outra vez p
orta e acenava-lhe, para que retrocedesse.
Logo que ele se aproximou, ela disse-lhe:
O senhor vigrio esteve a pensar que, amanh, tem o dia todo tomado. Depois da missa
, tem de ir s suas terras do Sameiro. , noite, h a novena. Que voc entre agora...
Ele sentiu alma nova, embora turbada pela emoo que lhe dava o entrar, pela primeir
a vez, na casa do proco. Alice ia frente, no corredor, com as suas grandes ndegas
estremecendo, direita e esquerda, conforme o movimento das pernas. porta que est
ava iluminada, ela deteve-se:
Entre.
Ele avanou e logo viu o padre Barradas, que procurava adaptar-se, comodamente, ao
cadeiro de braos onde acabava de se sentar, com um palito nos dentes. Era homem m
ais forte, mais entroncado ainda do que a sua ama. Tinha na cara redonda, de fac
es e nariz avermelhados, uns olhitos pequenos e vivos, que contrastavam com os s
eus lbios grossos, descados e levemente austeros. Contava cinquenta e quatro anos,
mas Horcio, que dele recebera a comunho em
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A L E A NEVE
criana, e a ele se confessara vrias vezes, sempre o tivera por um homem velho.
Agora, o padre Barradas, ouvidos os cumprimentos, perguntava, tirando o palito d
e boca:
Quando chegaste ?
Saiba o senhor vigrio que cheguei hoje mesmo. O padre considerou-o de alto a baix
o e afirmou,
amvel:
Fez-te bem a tropa. At parece que cresceste mais! E aprendeste a ler e a escrev
er bem, dizes-mo na tua carta...
O senhor vigrio desculpe o meu atrevimento. Se calhar ela est cheia de erros...Hes
itou, ps-se a rodar a aba do chapu entre os dedos e, como o padre fizesse um gesto
de absolvio e dissesse "no, erros no dei por eles", animou-se: Eu peo muita desculp
a. Mas estive a pensar e vi que no tinha mais ningum a quem fazer um pedido assim.
Ainda andei vai e no vai para escrever directamente ao senhor Martins, a ver se
ele me metia l na sua fbrica... Mas depois disse, c de mim para mim, que, sem um em
penho, o senhor Martins decerto no faria nada. Por isso escrevi ao senhor vigrio,
que o amigo dos pobres...
Sentia-se perturbado. Desde pequeno habituara-se a respeitar o padre, que lidava
com as coisas divinas, fizera estudos, pertencia a outra classe e exercia vasta
influncia na sua freguesia metade da vila que era como um condado. Quando ele s
e encontrava no quartel, esse prestgio do abade esmorecera com a distncia, tanto m
ais que outro recruta, o Jangada, anti-clerical, no passava dia sem lhe contar hi
strias mariolas de frades e de curas. Agora, porm, de p em frente do padre Barradas
, que continuava sentado e com as suas mos gordas e macias pousadas nos braos da p
oltrona, o antigo respeito volvia a renascer, tolhendo-lhe os gestos e dificulta
ndo-lhe as palavras. O proco escutava-o, atentamente, mas, medida que ele tartamu
deava, ia pondo uma cara de desconsolo. Por fim, comunicou-lhe:
A LA E A NEVE
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Eu tratei de fazer-te a vontade, logo que recebi a tua carta. Falei ao senhor Ma
rtins, como me pedias. Tambm falei ao senhor Fragoso e, ainda ontem, toquei no ca
so ao senhor Cabral. Mas todos eles me disseram mais ou menos a mesma coisa. Tm o
s quadros cheios e no precisam de mais pessoal. Antigamente, eles metiam q
uantos aprendizes quisessem, mas agora no podem meter mais de vinte por cento em
relao ao nmero de operrios. Tu compreendes ? Se uma fbrica tem cem operrios e empregad
os, no pode ter mais de vinte aprendizes... Percebeste?
Horcio fez um gesto afirmativo. O padre Barradas continuou, com expresso desolada:
Eu tenho muita pena de no poder ser-te til. Ainda pensei em falar com mais algun
s industriais, mas o senhor Cabral disse-me que era tempo perdido. Como os patres
tm de pagar quatro dias de salrio por semana, mesmo que no haja trabalho para os o
perrios, ningum quer ter gente que no seja absolutamente indispensvel. Alm disso, os
outros industriais pertencem outra freguesia e os da outra freguesia, como sabes
, no gostam de fazer nada em favor da nossa...
O padre calou-se. Em frente dele, sempre de p, Horcio ficou silencioso, de olhos p
ostos no cho. To imvel estava que a prpria aba do seu chapu deixara de lhe rodar entr
e os dedos, com aquele movimento inconsciente que ele lhe dera at ali.
Olha l! volveu Barradas, como se houvesse tido um sbito pensamento. Por que quer
es deixar a vida de pastor? Uma vida to bonita, que at os santos gostavam dela e
os poetas antigos a cantavam! A voz do padre tornara-se mais doce, evocativa, c
omo se ele prprio sonhasse: O cu por cima, o ar livre, o nascer do sol visto l do
alto... noite, as estrelas... No tens visto figuras de pastorinhos, com s
uas flautas, nos altares e nos prespios ? No h dvida que os poetas antigos tinham ra
zo!
Eu queria casar-me disse Horcio e, por Jsso, que pensei mudar de vida
. A guardar gado
2 Vol. Ill
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A L E A NEVE
no" ganho o suficiente. Ainda se as ovelhas fossem minhas ou os meus pais tivesse
m alguma coisa de seu... Mas, como o senhor vigrio sabe, o que temos e nada a mes
ma coisa... Vejo-me um homem, quero trabalhar e no sei o que hei-de fazer. Os meu
s pais no puderam dar-me estudos, mas, agora, que aprendi alguma coisa, tinha pen
sado...
O padre Barradas, depois de um ligeiro bocejo, interrompeu:
Bem. Tu l tens as tuas razes. No quero contrariar-te. Desta vez no tiveste sorte, ma
s podes ir descansado que, se aparecer alguma coisa, eu no me esquecerei de ti. No
queres um copo de vinho ? Alice! Alice!
No, muito obrigado, no quero!
Toma! Toma! Eu you deitar-me, que amanh tenho de me levantar cedo.
Padre Barradas bocejou de novo e levantou-se. Horcio repetiu:
Eu agradeo muito ao senhor vigrio. Se eu tivesse aqui outra pessoa,
no o teria incomodado. Mas assim...
No incomodaste nada. Vai com Deus! E para Alice, que aparecia porta: D aqui um c
opo de vinho...
Ele saiu da sala, humilde, modesto, cabea baixa, com a sensao de se encontrar no fu
ndo de um poo, respirando mal. No corredor, disse:
Eu no quero vinho, senhora Alice. Muito obrigado, mas no tenho vontade.
A ama insistia, empurrando-o para a cozinha:
Ande l! Ande l! Uma pinga no faz mal a ningum.
J com o copo na mo e enquanto Alice punha uma fatia de queijo sobre a fatia de po q
ue cortara, ele pensou: "Talvez aquilo fosse desejo de Nosso Senhor, para bem de
le. Sempre ouvira dizer que a indstria da Covilh era muito mais importante do que
a de Manteigas. L os teares eram de ferro e muitos teciam fio de estambre; ali er
am de pau e s havia fio cardado.
A LA E A NEVE
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Por mor disso, os teceles da Covilh ganhavam mais do que os de Manteigas. E talvez
o Manuel Peixoto ou o padrinho lhe conseguissem alguma coisa, pois a Covilh j era
uma cidade grande".
Mais aliviado do pesadume e com a esperana de novo a bulir-lhe na alma, olhou, en
quanto bebia, as prateleiras pintadas de branco, os grandes tachos de cobre area
do, para o dia do sarrabulho, as panelas e caarolas esmaltadas, dzias de pratos, vr
ias malgas e, ao fundo, o grande fogo, tudo muito em ordem, tudo muito limpo, a b
em dizer dos cuidados da senhora Alice. Os olhos fugiam-lhe para aquilo. "Assim
que ele gostaria de ter uma cozinha. No precisava de ser to grande, nem com tantas
coisas, nem com tanto luxo, mas assim asseada como a do senhor vigrio, que era m
esmo um gosto v-la".
II
QUANDO desceu da camioneta, na Covilh, voltou a olhar o seu fato. Durante o servio
militar, como andava de farda, poupara-o; apesar disso, j estava lustroso e fica
va-lhe, agora, apertado. As calas, especialmente, despraziam-lhe. Formavam joelhe
iras e mostravam-se mais estreitas em baixo do que as usadas nas cidades. "Era p
ena que ele no pudesse ir bem-posto, pois quem sabia se o padrinho no lhe arranjar
ia um emprego no comrcio?" Abotoou o casaco e ajeitou o chapu. No obstante o descon
tentamento que o fato lhe produzia, sentia-se muito mais senhor de si do que das
duas outras vezes que viera Covilh. A cidadezita serrana, de ruas tortuosas e ngr
emes, no lhe impunha, agora, aquele acanhamento de homem do mato que ele tinha, p
erante ela, antes de conhecer Lisboa e o Estoril. A Covilh parecia-lhe, desta fei
ta, muito mais pequena do que antigamente.
Ao chegar s Portas do Sol, deteve-se, um instante,
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A LA E A NEVE
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a vei as obras do mercado novo. Pensara tanto, durante a noite e enquanto vinha
na camioneta, sobre o que diria ao padrinho Marques e o que dele poderia ouvir,
que a sua vontade, agora, era no pensar no resultado pela incmoda incerteza que es
te lhe dava. Novamente a andar, lembrava-se do mercado que havia ao ar livre, no
dia em que ele, ainda garoto, viera ali, com o pai, trazer umas trutas que o Dr
. Couto, de Manteigas, enviara ao Dr. Caetano, da Covilh. Mas logo a outra ideia
se sobreps. Por muito que se esforasse, ele no conseguia dominar aquela preocupao. Or
a desejava falar imediatamente com o padrinho, ora surdia-lhe o desejo de demora
r um pouco mais esse momento. Por fim, decidiu-se e estugou o passo, encosta aba
ixo.
O estabelecimento do Marques ficava perto, na rua afogada entre duas filas de ve
lhas casas. Era uma mercearia de bairro pobre. Ao fundo, no centro da prateleira
que cobria totalmente a parede, havia uma porta em arco, dando para soturna div
iso que, de fora, mal se enxergava. Foi de l que, chamado pelo marano, surgiu o pad
rinho.
Ol, rapaz! H que tempos no te vejo! Por pouco no te conhecia! E estendeu-lhe a mo.
O Marques era um homem baixo e gordo. Comeara a vida com uma taberna em Manteigas
e fora nessa poca que o tio Joaquim o convidara para seu compadre. Mais tarde, t
omara de trespasse aquela mercearia da Covilh e, por sua vez, trespassara a taber
na a um irmo. Nos primeiros anos, ainda voltara a Manteigas, no Estio, para tomar
banhos nas caldas. Depois, deixara de o fazer. Desde ento, Horcio s o vira uma vez
. Mas, pelo Natal, Marques enviava-lhe sempre vinte escudos e uma carta desejand
o felicidades a toda a famlia. Ao receb-la, a senhora Gertrudes dizia: "Tem de se
pedir Romana que lhe escreva em teu nome, a agradecer. Ele nunca se esquece de t
i e tu tambm nunca te deves esquecer dele. O compadre no tem filhos e hoje conta m
uito dinheiro; hora da morte deixa-te, com certeza, alguma coisa". A senhora Ger
-
trudes s renunciara a falar assim quando se soubera que o Marques, alm da mulher,
tinha por sua conta uma amante de pouco mais de vinte anos. Contudo, porque o pa
drinho era estabelecido numa cidade, Horcio creditava-lhe larga importncia social.
Agora, Marques interrogava-o sobre a sade dos pais e de outras pessoas de Manteig
as e, como Horcio lhe dissesse que havia regressado na vspera de Lisboa, ps-se a el
ogiar a capital, que ele tinha visitado tempos antes:
Aquilo que uma cidade!
Por fim, mudou o torn de voz e lanou:
Ento o que te traz por c ?
Queria cumprimentar o padrinho e, ao mesmo tempo, ver se me fazia um favor...
Marques ficou em inquieta expectativa, no fosse sair dali pedido de dinheiro.
Dize l... murmurou.
Ele, ento, falou, atabalhoadamente, da sua vontade de deixar a vida de pastor e d
e conseguir um emprego na Covilh.
Pelas expresses e movimentos da cabea que o padrinho comeara a fazer, mal ele desve
lara a sua ambio, Horcio compreendeu que teria fraca resposta. E ia continuar a ins
istir naquilo em que podia e no podia trabalhar, quando entrou uma mulher. Marque
s abandonou-o prestemente, feliz por essa apario, que lhe dava tempo de raciocinar
. E, adiantando-se ao marano, ps-se em frente da freguesa, com as mos apoiadas no b
alco:
bom dia, senhora Ana. Como tem passado ? Ento que deseja ?
Do seu canto, Horcio viu-o pesar acar e arroz e, depois, embrulhar uma vela de este
arina.
Por fim, a mulher saiu e Marques voltou para junto dele:
muito difcil o que tu queres, meu rapaz... Muito difcil! Vontade de te ajudar no me
falta, j se v; mas no vejo ponta por onde lhe pegue. Quem tem um emprego no o larga
, mesmo que ganhe muito
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A L E A NEVE
pouo; e ningum quer meter mais gente. Andam por a muitos homens ao alto. E aqui ain
da pouca coisa, porque em Lisboa e no Porto parece que muito pior. No estrangeir
o, no se fala! Todos os dias vejo coisas nos jornais que de se ficar pasmado. Ter
ras ricas como a Amrica, onde parece que havia de haver trabalho a rodos, tinham
milhes de desempregados... O que lhes est a valer a guerra, que mata uns e d que fa
zer a outros... Se no fosse isso, no sei o que havia de ser. C no nosso Portugal, q
ue vive em paz, o que se v...
Marques ficou um momento em atitude pensativa e, depois, acrescentou:
Eu compreendo a tua situao... Compreendo muito bem... Tu o que querias era ganhar
mais alguma coisa. Vs-te sem futuro, no assim ? Mas os tempos esto maus, rapaz. E
stendeu o queixo, indicando o empregadito: Olha: vs aquele ali ? Quando se soube
que eu precisava de um marano, porque o outro tinha morrido de tifo, apareceram-
me mais de vinte. E com cada recomendao! At o presidente da Cmara me recomendou um!
E a alguns deles as famlias ofereciam-nos mesmo sem ordenado: s pela comida e pel
a roupa. Eu que no gosto de explorar ningum. Olhou para o marano com ar superior:
Fiquei com aquele e pago-lhe vinte e cinco escudos por ms. As coisas so assim. So
sempre mil ces a um osso. Tu s pastor e tens o teu emprego. Queres um conselho ?
Deixa-te estar! Ganhas pouco e um moo de pastor nunca levanta cabea, certo.
Mas tem pacincia! Espera melhores dias!
O humilde sorriso de Horcio desaparecera completamente. Ao ver-lhe o rosto, Marqu
es procurou tornar mais afectuosa a sua voz:
Eu queria ser-te agradvel, l isso queria. Mas que posso eu fazer ? Calou-se, com
o se estivesse a investigar na memria. No, no vejo nada... disse, depoi
s. Antigamente, ainda os armazenistas, quando lhes fazamos urn pedido, procur
avam atender-nos. Mas, hoje, no nos ligam nenhuma. Foi o que
A LA E A NEVE
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nos trouxe esta guerra. Toda a gente ficou malcriada. Se se vai comprar alguma c
oisa, parece que nos fazem um favor em vend-la. Os empregados j no do ateno, como anti
gamente. Quem quer, quer; quem no quer, que v a outra parte! Marques voltou a olh
ar, com sobranaria, o seu caixeiro: Outro dia, at aquele bisbrrias, que ainda no la
rgou os cueiros, estava aqui a tratar uma freguesa com duas pedras na mo. Imagina
, uma freguesa que gasta muito e paga sempre a pronto! Claro, obriguei-o a pedir
-lhe desculpa e se ele no pedisse, eu punha-o no olho da rua! Que os outros sejam
como quiserem, mas no em minha casa. Em minha casa no admito ms-criaes!
Preocupado consigo mesmo, Horcio mal o ouvia. Marques continuou a falar e, depois
, mudou de torn:
Se eu souber de alguma coisa, mando prevenir-te. Mas j te digo que no deves guarda
r muitas esperanas. No calculas a pena que tenho, pois sou muito teu amigo e dos t
eus pais. Aquilo gente de cara direita!
Horcio saiu confrangido. Tanto como a negativa, desorientavam-no as palavras que
ao Marques ouvira. Parecia-lhe que todos se haviam combinado, pois em Lisboa tin
ham-lhe dito quase a mesma coisa. E agora ele lembrava-se de que, desde pequeno,
ouvira sempre falar de pessoas que queriam trabalho e no o tinham, dos muitos pa
ssos que davam, dos pedidos que faziam, muitas vezes passando fome e sem arranja
r nada. No era, portanto, coisa s de agora; era coisa j antiga. Ele que no dava, nes
se tempo, ateno ao caso, por ser ainda garoto.
To aborrido ia, que, em vez de subir a rua, como lhe convinha, descera-a. Metendo
a outra, passara em frente do quartel da Covilh, depois ladeara vrias fbricas, sem
pre a caminhar ao acaso; sempre a magicar naquilo. "At o padrinho vira que ele es
tava sem futuro!" Reagiu: "No; em moo de pastor no acabaria ele! Iria falar j ao Man
uel Peixoto. Decerto, o Manuel Peixoto no lhe diria que no. Era melhor, l isso era,
um emprego no comrcio, do que entrar para as
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A L E A NEVE
fbricas. No comrcio, se ele estudasse de noite, podia vir a ser algum. Mesmo um hom
em importante, como se tinha visto com outros. Mas j que no tinha lugar, pacincia!"
Esgueirou-se entre a parede e um camio que, parado na rua estreita, lhe dificulta
va a passagem; voltou na primeira travessa e, pouco depois, cruzava, de novo, o
centro da Covilh. Ao chegar ao jardim da Praa da Repblica, examinou o seu relgio. Er
am onze horas e vinte e cinco. Da Aldeia do Carvalho mediam-se sete quilmetros e e
le tinha de voltar a tempo de tomar a camioneta. Comeou a descer apressadamente a
estrada, com os olhos a correrem sobre as fbricas de fiao e tecelagem que se esten
diam l em baixo, nas margens da Ribeira da Carpinteira o maior conjunto industri
al da Covilh. Ele olhava para aquilo de maneira muito diferente do que o fizera d
a outra vez que passara ali. Descobrira o casaro da firma Azevedo de Sousa, Lda.,
de que Manuel Peixoto tambm lhe havia falado, por nele trabalhar, como mestre, o
seu irmo e diminuiu o passo para melhor o contemplar. "Se Manuel Peixoto conseg
uisse met-lo na indstria, decerto seria para aquela fbrica que ele viria" pensou.
E demorava-se a fixar o longo e comprido edifcio, de dois pisos e muitas janelas,
erguido entre outros, tambm compridos, mas mais velhos. Em seu redor no se via ni
ngum. S um vago rumor de mquinas atestava o labor humano dentro das paredes.
A- estrada salvava a ribeira e, voltejando, subia. Agora, Horcio enxergava vrios h
omens estendendo tecidos nas rmulas, por detrs das fbricas. Ele voltou a dar pressa
s suas pernas. A estrada continuava deserta. O rudo fabril ficara para trs e ali h
avia silncio um silncio de sol em terra abandonada. Logo, porm, que ele ultrapasso
u a Borralheira, que espairecia, com suas casitas, na encosta, a expresso da estr
ada modificou-se. O que era mudez e solido enchera-se de gentes e de falas. O mei
o-dia estava a cair e numerosas mulheres e crianas, com cestos na cabea ou nas mos,
corriam a levar o almoo aos
A LA E A NEVE
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operrios. Essa revoada feminina em breve, porm, desapareceu. Aos grupos foram-se s
ucedendo figuras isoladas e, em seguida, a estrada mostrou-se novamente solitria.
Pouco depois, Horcio entrava na Aldeia do Carvalho. O lugar, de ruelas sinuosas,
becos soturnos, casas a derrurem de velhice e de pobreza, assemelhava-se, no seu
aspecto fsico, carregado de negrume, a quase todos os povoados beires. A Aldeia do
Carvalho distinguia-se de muitas outras apenas porque, em vez de se entregar so
mente vida pastoril e agrcola, a maioria dos seus habitantes trabalhava nas fbrica
s da Covilh.
Horcio viera ali s uma vez; apesar disso, lembrava-se bem da casa de Manuel Peixot
o, companheiro de pastoreio nos altos da serra. Justamente porque Maio ia no fim
, ele temia que o amigo houvesse j abalado para as pastagens dos cimos. Mas, mal
bateu porta, a mulher, que veio abrir, tranquilizou-o:
Ele anda a para riba a tratar das chaves duns borregos que esto mal armados.
Aonde ?
A mulher saiu rua, estendeu o brao e indicou-Ihe, com bastas explicaes, o caminho q
ue ele devia seguir. Horcio agradeceu e ps-se a atravessar a aldeia, enquanto mast
igava o po e o pedao de queijo que havia trazido consigo.
Foi encontrar Peixoto num campo sobranceiro ao povoado. Dois dos seus filhos sop
ravam o lume que ele acendera debaixo duma panela, fincada sobre trs pedras e na
qual se coziam batatas destinadas a amolecer os chifres dos carneiritos. Perto d
ali, o rebanho aguardava o incio da operao, metido dentro do bardo uma cerca de red
e de corda, segura por estacas.
Reconhecendo Horcio, Peixoto caminhou ao seu encontro:
Que novidade! Tu, por aqui ? Quando chegaste ? O convvio na serra, durante
vrios Estios, nas
horas em que os seus rebanhos confluam aos limites das reas concedidas a Manteigas
e Aldeia do Car-
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A L E A NEVE
vafho, criara, entre os dois, grande intimidade, apesar de Peixoto ser mais velh
o do que Horacio quase trinta anos. Este tratava-o sempre por "senhor" ou por "v
ossemec"; o outro dirigia-se-lhe, muitas vezes, com um torn paternal, mas essa di
ferena de tratamento no influa nos seus longos dilogos, travados nos ermos alpestres
, onde Peixoto confidenciava at as volpias que tivera com mulheres, como se ambos
fossem da mesma idade.
Agora, Peixoto abraava-o:
Que alegria! Que alegria! Deixa-me ver-te bem! Pusera-lhe as mos sobre os om
bros, afastara-se
ligeiramente e examinava-o de alto a baixo:
Como te deste l na tropa ? Anda! Conta! Senta-te aqui.
Os dois sentaram-se no cho. E Horacio ps-se a responder pergunta do amigo. Os filh
os de Peixoto tinham-se esquecido do lume que ardia sob a panela e seguiam todos
os seus gestos. Horacio falou da vida militar e de Lisboa, do que vira e do que
passara. Por fim, o palreio transitou para a vida na serra. Peixoto queixou-se
do Inverno:
Um tempo medonho! J no sabia que dar de comer ao gado. Cheguei a arrendar, por qua
tro notas, um lameiro que no valia um pataco.
Sempre espera de momento azado para expor a razo que o trouxera ali, Horacio apro
veitou o primeiro silncio que lhe pareceu propcio:
Pois verdade... Eu queria falar a vossemec... Pelo seu torn de voz, Peixoto julgo
u ser caso para
ficarem sozinhos. E fez um gesto aos filhos.
No assim coisa de segredo...interveio Horacio.
Os garotos afastaram-se. Ao Marques, no quisera ele falar do seu casamento. Agora
, a Manuel Peixoto, contava tudo, a ideia que tivera, o motivo por que adiava a
boda.
Eu queria ver se vossemec pedia ao seu irmo para me meter numa fbrica... Naquela o
nde ele mestre ou noutra qualquer...
A L E A NEVE
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Numa fbrica ? Na tua idade ? perguntou Peixoto, admirado. Logo, ao reparar na
expresso dele, consertou: bom! L falar, falo. E podes ter a certeza de que se e
le no o fizer a mim, no o far a mais ningum. Mas isso no coisa que se possa arranjar
assim de p para a mo. Se dependesse s do Mateus, estava bem; mas no depende. H sempre
muitos pedidos feitos ao patro. Depois, com os anos que j tens... O que que tu qu
erias ser ?
Eu queria ser tecelo...
Peixoto meditou um momento e logo volveu sua:
Tu j pensaste que tinhas de entrar como aprendiz?
-J...
Eu digo-te isto, porque um aprendiz ganha muito pouco. E, s vezes, passa muito te
mpo antes de chegar a operrio. So coisas boas para os garotos. Em vez de andar por
a na brincadeira, vo pegar fios e aprender um ofcio. Sempre recebem alguma coisa e
ajudam os pais. Mas tu s um homem, que at j foste s sortes. No sei se pensaste bem..
.
Pensei. Fiz as contas. Dinheiro, ganharei mais do que me d o Valadares. claro q
ue l no pago comida e aqui terei de a pagar. Mas uma coisa de mais futuro. Se cheg
o a tecelo, j serei compensado. Que isto de ser pastor, no vida! Para vossemec, est b
em, porque o gado seu. Mas ganhando noventa escudos, que quanto me pagam, no se r
esolve nada.
Calou-se. De cara magra e negra de barba, um casaco remendado em cima da camisa
suja e sem colarinho, Peixoto deixou, tambm, correr o silncio.
Tu l sabes...disse, por fim, o velho pastor. Mas talvez pudesses arranjar outra c
oisa...
Qual o qu! Julga que tambm no pensei nisso ? Em Lisboa bati vrias casas e, agora m
esmo, antes de vir falar consigo, estive com o meu padrinho, na Covilh. com o M
arques, aquele que tem uma mercearia abaixo do mercado novo. Todos me dizem o m
esmo. No basta um homem querer trabalhar; preciso arranjar trabalho e a que est a c
oisa. Eu nunca
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A LA E A NEVE
imginei que fosse to difcil! Depois, no tenho quem me proteja. Amigo verdadeiro, s vo
ssemec... No tenho outro.
E em Manteigas ? Nas fbricas de ]? Sempre ficavas com a famlia...
Pois isso era o que eu queria! At por causa da rapariga. Se eu vier para aqui,
fico muito longe dela... Mas no arranjei nada. Escrevi ao vigrio, ainda eu estava
em Lisboa, e ontem fui saber a resposta. Ele pediu por mini a vrios industriais
e todos lhe disseram que no. Tambm no me admirei muito. L todas as fbricas so pe
quenas e muita gente a querer entrar.
Veio novo silncio. Peixoto fixara os olhos no bardo e deixou-os assim fixos, como
se estivessem mortos. Foi Horcio quem voltou a falar, perguntando com ansiedade:
Diga-me, senhor Manuel: no lhe parece que melhor ser operrio do que pastor ?
Peixoto respondeu:
O meu pai entregou o gado a mini e mandou o meu irmo para as fbricas. Eu tambm you
mandar dois filhos para l, assim que eles tiverem idade. Mas eu te digo: o meu pa
i teve bom olho. Para o meu feitio no h como a liberdade. L passar os'dias metido
entre as quatro paredes de uma fbrica no comigo! Claro que se eu estivesse no teu
lugar j seria outra coisa...
Peixoto levantou-se e destapou a panela. O vapor da gua fervente subiu at o seu ro
sto, mal lhe deixando ver as batatas que l dentro se encontravam.
Olha l: ests com muita pressa ?
Eu tenh(r) de tomar a camioneta s cinco menos um quarto, na Covilh. Porqu ?
que talvez pudesses dar-me uma ajuda, pois com os garotos no se pode contar. S ser
vem para atrapalhar.
Ainda tenho tempo disse Horcio, levantando-se tambm. E, apanhando os trapos e o
gadanho que ali estavam, caminhou, com Peixoto, que levava
A LA E A NEVE
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a panela, para dentro do bardo. Junto do rebanho,
notou:
Vossemec, agora, tem mais cabras do que ovelhas...
No me fales nisso! No sabes a minha arrelia... H pouco, no te disse nem metade do q
ue foi o Inverno. Pasto, nenhum! Depois de arrendar dois lameiros, fiquei sem
dinheiro para arrendar mais. Fiquei depenado de todo e o gado sem ter onde come
r! Foi ento que me resolvi... Fiz como tinham feito os outros. Vendi umas ovelhit
as e comprei cabras... As cabras roem tudo, tudo lhes serve. As ovelhas querem b
ons pastos, como sabes... Que havia eu de fazer? O que tem acontecido em Cortes,
vai acontecer tambm aqui. Agora, na Aldeia, s h trs rebanhos de ovelhas. O r
esto tudo cabras. Os pobres no podem manter ovelhas. O rendimento das cabras mais
pequeno, mas sempre lhes vai dando o leitito, at colherem o centeio e as batatas
. Mas eu que no posso com cabras! A sua voz entristeceu: No imaginas a ralao que te
nho tido! Nunca pensei que tivesse de findar em cabreiro... Quando vi levar
em as ovelhas que eu tinha vendido, parecia que me separava de pessoas de famlia,
Deus me perdoe...
Peixoto moveu a cabea e ergueu os ombros, como se quisesse sacudir o seu desgosto
. Depois saiu atrs de feltroso carneirito que se escapava por entre as ovelhas, f
ura aqui, fura ali, fugindo sempre.
Horcio seguia a cena, sem a ver. Havia pensado pedir a Manuel Peixoto o dinheiro
que os pais deviam ao Valadares e libertar-se do patro, logo que disso carecesse.
Agora, as dificuldades que o amigo lhe revelara aumentavam as suas prprias dific
uldades. "Se, de um dia para o outro, o irmo de Peixoto lhe arranjasse um lugar n
as fbricas, como poderia ele deixar o Valadares sem, antes, lhe pagar?"
Eh, Horcio! Anda! gritou Manuel Peixoto.
Havia filado o bicho e metera-o sob os seus joelhos. Horcio aproximou-se. De gada
nho em punho, tirou da panela uma grande batata e passou-a para
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A LA E A NEVE
o ifapo. O carneirito mostrava dois chifres mui petulantes, a atestar a sua juve
ntude. com um gesto rpido de Horcio, um desses rebentos sumiu-se, enterrado na bat
ata escaldante. O animal teve um estremecimento e a haste amoleceu rapidamente.
Horcio ps-se, ento, a retorc-la, para que ela, ao crescer, no fosse tapar a vista do
bicho ou mesmo penetrar-lhe no pescoo, como sucedia muitas vezes, quando os pasto
res se descuidavam de intervir.
Trouxe outra batata e repetiu o acto na ponta que ainda se arrebitava sobre a ca
bea do borrego. Em breve os dois chifres pendiam, retorcidos, para o cho, como con
vinha a um carneiro que se prezasse, a um bom futuro padreador que quisesse boni
tas e avantajadas armas, sem ser, ele prprio, ferido por elas.
Amarrados os comos a um pedao de pau, que assim esfriariam mantendo a forma receb
ida, Peixoto lanou-se a pegar segundo borrego.
Ia em meio a tarde quando Horcio se despediu, j longe da aldeia, para onde o amigo
tinha vindo a caminhar com o seu rebanho. Peixoto tornava a repetir:
you tratar do que me pediste. O pior a tua idade... Mas vamos a ver o que se arr
anja... Eu abalo l para cima, com o gado, depois de amanh. Tu tambm vais qualquer d
ia destes, no verdade ? E como visse Horcio fazer um gesto incerto: bom! De qual
quer maneira, o que eu souber mando dizer-te...
De regresso, a camioneta entrou em Manteigas ao fim do dia. No meio do vale, bei
ra do Zzere, a vila, com as alvas torres das duas igrejas e o punhado de casas em
derredor, parecia uma construo infantil, um burgo de Liliput, no fundo de grande
concha verde. Da terra linda dir-se-ia terem sado ciclpicas figuras, ptreos vultos
que haviam ficado esculca, protegendo e vigiando o povoado, de sobre as altssimas
lombas que corriam das Penhas Douradas at os Cntaros.
A L E A NEVE
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Horcio desceu da camioneta e dirigiu-se a casa de Valadares, no fundo da vila.
O patro acolheu-o afavelmente. Era um homem alto, seco, cara rstica, toda queimada
pelo sol nos trabalhos dos campos. Fora tambm pastor de seu gadito antes de ser
dono de copioso rebanho e daquelas terras que comprara com o dinheiro que, por i
ndirectas vias, a mulher recebera do pai, um cura de Gouveia em transes de consc
incia beira da morte.
Ento como tens passado ? Como te deste por l ? Perante a resposta e a expresso de H
orcio, ele
quedou-se a contempl-lo, sorridente, mas inquiridor:
Pensei que estivesses zangado comigo...
Nada, no... Porqu?
Como chegaste h dois dias e ainda no tinhas aparecido... Sorriu mais: Estiveste
a matar saudades da rapariga ?
Horcio tomou por til aquela justificao e fez um gesto vago.
Eu virei amanh. Valadares mostrou-se generoso:
No, no venhas. Disseram-me que te queres casar e eu sei o que isso . Necessita
s de uns dias de folga. Prepara as tuas coisas e vem no fim do ms. O meu filho, o
Tnio, anda com o gado e pode andar mais um tempo.
Eu resolvi adiar o casamento... Posso vir amanh.
Adiaste ? Porqu ? Perante o silncio do seu pastor, Valadares no insistiu. Bem; t
u l sabes da tua vida... Queres comear, ento, amanh?
Sim, senhor. Amanh irei ter com o Tnio. Tudo aquilo fora rpido. Valadares murmurou:
Como queiras...
Horcio ainda perguntou pela sade da senhora Ludovina, que ele sentia andar l por de
ntro, na trafega domstica e saiu. Atravessou a vila a passos largos, a caminho d
e casa. Desde que comunicara ao Valadares que voltaria a pastorear-lhe as ovelha
s, aumentara a sua ternura por Idalina, o desejo de se encontrar ao seu lado. Pa
recia-lhe que, junto dela,
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A LA E A NEVE
ag"ra que o casamento se tornara mais difcil, ele teria maior coragem e seria men
os infeliz. "O que ele precisava era de convenc-la a esperar, mas convenc-la a val
er. Porque, agora, no se tratava s da casa; tratava-se mesmo do dinheiro para eles
viverem. Se casassem j, com que iam passar os primeiros meses, se a soldada fora
recebida adiantadamente ? E o pior que a sua me no queria, decerto, que ele disse
sse aquilo..."
Ao empurrar a porta da sua casa, viu, l dentro, os pais de Idalina. Estavam senta
dos em frente dos pais dele e tinham uma cara severa.
Horcio soltou uma "boa-noite" cordial, mas a senhora Januria e o marido respondera
m friamente.
Foi a me dele quem procurou romper o mal-estar que envolvia os seres e as prprias
coisas:
Vieste to tarde! Que aconteceu ?
To tarde ? estranhou ele. A camioneta chegou ainda no h meia hora...
A senhora Gertrudes olhou-o, ansiosamente, aguardando outro esclarecimento, mas
ele desviou os seus olhos e no disse mais coisa alguma. Ento, a me preveniu-o:
Aqui o senhor Vicente e a tia Januria h j um bocado que esto tua espera. Querem fala
r contigo...
Como no havia mais bancos, ele encostou-se parede, para ouvir. Mas os pais da Ida
lina continuavam calados. A senhora Januria, o tronco envolvido num xaile preto,
tinha os braos cruzados no peito e os olhos postos nos joelhos. Sobre o seu lbio i
nferior, repuxado para dentro, desciam, nos cantos, os cabelos negros do lbio sup
erior, retorcidos como miniaturas de chifres de carneiro. E na terra onde, naque
les apuros, os homens cediam sempre a iniciativa s mulheres, o senhor Vicente, alm
de tudo desconfiando de seus ouvidos, no desejava tambm antecipar-se. Foi ainda a
me de Horcio quem tornou a afastar o silncio:
Eles no querem que se adie o casamento. Eu j estive a explicar-lhes, mas eles...
A LA E A NEVE
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S ento, ao ouvir aquilo, a senhora Januria irrompeu, com a sua voz fanhosa:
Est bem de ver que isso no tem jeito nenhum! A rapariga estava comprometida contig
o, toda a gente o sabe, e, agora, se o casamento no se faz, o povo comea por a com
murmuraes...
Mas que murmuraes podem fazer, se eu no falto ao prometido ? Se s uma questo de deixa
r para mais tarde e toda a gente pode saber porqu... Demais a mais, eu no devo nad
a sua filha. Hei-de casar, porque gosto dela. Que que podem dizer?
A senhora Januria exaltou-se:
Muita coisa! Honra, creio que no lhe deves! Mas tambm te digo que se lha devesse
s e no pagasses, quando no houvesse mais ningum que te tirasse a vida ela olhou, a
ssanhada, para o marido estava eu aqui! Mas que tu andas a desacreditar-me a ra
pariga, no h dvida! A tia Luciana j encheu os-ouvidos do povo com as poucas-vergonha
s que viu ontem. A minha primeira teno foi partir-lhe a cara, mas, depois, pensei
se no seria verdade o que ela andava a espalhar. E, afinal, era. L a rapariga j apa
nhou duas bofetadas, para no ser desavergonhada como tu. Mas nisto so sempre
os homens que se adiantam e tu j ficas prevenido...
Os nervos da senhora Gertrudes comearam tambm a excitar-se, no por encontrar falta
de razo nas palavras de Januria, mas porque a irritava a forma como a outra se dir
igia ao seu filho. Alm disso, ela j assentara que, para os seus interesses, o melh
or era, efectivamente, adiar o casamento. A senhora Gertrudes conteve-se, porm, d
urante o pequeno silncio que Januria fez. To-pouco os outros falaram. O tio Joaquim
continuava, como na vspera, debruado sobre a sola de um sapatorro, como se no ouvi
sse coisa alguma; e o pai de Idalina no passara de uma expresso carregada, para mo
strar que apoiava a clera da mulher.
Encontrando o campo livre, a senhora Januria voltou:
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A LA E A NEVE
, Isso da casa estaria muito bem, se a pudesses fazer j. Mas podes?
Horcio hesitou. A sua prpria me tornava a contempl-lo, ansiosamente, como h pouco.
J, j, no posso disse, por fim. Tem de correr algum tempo, at ver se arranjo ou
tro modo de vida.
o que eu pensava! exclamou Januria. o que eu pensava! Quem sabe l quando ser isso!
Pode ser daqui a muitos anos, pode no ser nunca. E a rapariga que fique a espera,
como se fosse um traste usado.
Antes mesmo de Horcio responder, a senhora Gertrudes gritou, nervosa:
No posso ouvir uma coisa dessas, tia Januria! Se voc e a sua filha esto assim com ta
nta pressa, ela que case com outro. L favores desses no queremos, nem precisamos..
.
Horcio acenou me, pedindo-lhe que se calasse. Januria recuou:
Agora no se cuida disso. Isto falar por falar.
E voltando-se para Horcio: Vocs podiam casar agora e, depois, com tempo, tratar l
da tua ideia...
Eu j expliquei tudo Idalina defendeu-se ele.
Ela no lhe disse ?
A tia Januria fez um gesto que nem afirmava nem negava. Horcio continuou:
Vossemec no tem mais gosto de v-la casada do que eu de casar com ela. Acredite nist
o que lhe digo! Mas mesmo sem pensar na casa, eu no poderia fazer agora a boda...
Perante o olhar da me, acrescentou:
Ganho muito pouco...
Ora essa! Mas quando tu resolveste casar j sabias isso... Ganhavas a mesma
coisa.
Pois , mas...
A senhora Gertrudes interveio, apressadamente, no fosse vir ainda baila que ela t
inha recebido, adiantado, o salrio do filho:
Est tudo cada vez mais caro...disse.A mim tambm me parece melhor esperar mais algu
m tempo.
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A senhora pode ter a certeza de que eu caso com a Idalina. E no h-de demorar muito
. Mas deixe-me arranjar as coisas. Estou farto de dizer que isto de ser moo de pa
stor no ofcio! No s se ganha uma misria, como se vive longe da mulher. Quando eu pens
o que tinha de deixar a Idalina aqui e ir passar meses seguidos na serra ou l par
a a Idanha, sinto logo vontade de largar aquilo. No; quando eu casar, para estar
junto dela e dos filhos que vierem.
Tanto amor sua filha no bastava para convencer a senhora Januria. Ela comeou a pres
sentir que, alm da casa, havia ali algo mais, que contrariava no s os desejos dela,
mas os do prprio Horcio e da famlia.
Bem; eu no quero nada fora. O que eu tenho medo da lngua do povo. Mas se tu c
ontinuas com tenes de casar...
Foi o pai de Horcio quem respondeu:
J se v que continua, mulher! Se ele no casasse, tambm ns ficvamos desgostosos...
Era a primeira vez que o tio Joaquim, interrompendo o seu trabalho, intervinha n
a discusso. O senhor Vicente, perante aquele exemplo, decidiu tambm dizer alguma c
oisa:
Pois era isso que ns queramos saber. E voltando-se para a mulher: No verdade ?
Pouco depois, os dois saam. E a senhora Gertrudes, de nervos j apaziguados, coment
ava:
Pressa assim nunca vi! Porem-nos a faca ao peito!...
Coitados! desculpou-os o tio Joaquim. Tm uma data de filhos e esto mortos por fi
car com uma boca a menos.
A senhora Gertrudes colocou um prato na mesa, para Horcio:
com certeza a ceia j est fria. Olha l: sempre vais para o Valadares ?
Perante o gesto do filho ela ficou tranquila.
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in
Z\ serra corre de Nordeste a Sudoeste, como imensurvel raiz de outra cordilheira
que rompesse longe do seu tronco. Belo monstro de xisto e de granito com terra a
encher-lhe os ocos do esqueleto, ondula sempre: contorce-se aqui, alteia-se aco
l, abaixa-se mais adiante, para se altear de novo, num bote de serpente que quise
sse morder o sol. Ao distender-se, forma altivos promontrios, dos quais se pode i
nterrogar o infinito, e logo se ramifica que nem centopeia de pesadelo, criando,
entre as suas pernas, trgicos despenhadeiros e tortuosas ravinas, onde nascem ri
os e as guas rumorejam eternamente.
Vista de alto, sugere um fabuloso rptil, anfbio e descomunal, cortando em dois o g
rande vale que teria surgido aps haver secado o lago que aquele habitava. Examina
da de banda, vem-se-lhe inmeras patas estendidas e, a trechos, o lombo serrilhado.
Esse gume com muitas mossas , porm, ilusrio. Contemplado de perto, o dorso da serr
a, como o dos cetceos, mostra largas superfcies, ora chatas, ora abauladas, umas l
impas de acidentes, outras cercadas de frages, que, com estranhos perfis e enigmti
cas atitudes, parecem defender as terras solitrias. O ser humano tem volume mais
mesquinho do que uma velha giesta, do que uma velha urze, nesses planaltos que s
e alargam entre altas vagas de terreno, entre montanhas que cresceram no cimo da
montanha. E uma luz de mistrio, ao clarear as chapadas e pendores, enche de temv
eis sombras os silentes penedais, os rochedos majestosos, todos esses gigantesco
s vultos de granito que povoam a serra, como seus feros senhores.
O homem instalou-se, primeiro, nos vales, depois foi acendendo a sua lareira a q
uinhentos, a oitocentos, a mil metros; daqui, porm, no passou o tecto do seu abrig
o permanente. Mas, mais para cima, desde que as neves se derretiam at que outras
viessem,
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expunha-se ao sol uma efmera riqueza nos vastos piainos. E, para aproveit-la, o ho
mem subiu ainda, j sem casa e acompanhado apenas do seu gado. Assim, a grande ser
ra e seus mistrios foram conquistados mais do que com fundas, lanas ou arcabuzes,
com homens pastoreando ovelhas e cabras.
Desde ento, em Abril, se o gelo j se sumiu, ou em Maio, se a invernia se prolongou
, ouve-se tilintar, encostas arriba, as campainhas e os chocalhos dos rebanhos.
essa msica matinal que anuncia a Primavera na serra. Seria grato ouvi-la distanci
ar-se lentamente e continuar deitado, embrulhando-se mais na roupa, nessas manhs
ainda frgidas da montanha. Mas no pode ser. Cada pastor leva ovelhas ou cabras de
trs, quatro, cinco donos e cada um destes se reveza uma semana no pastoreio. Os q
ue ficam, saltam, tambm, da cama, trocando o cajado de pegureiro pela enxada de c
avador, que nas rampas da serra todos eles criam gado, duas ou trs dzias de cabeas,
e cuidam do seu agro duas ou trs pobres courelas. E se algum raro, por ter prdio
s maiores, pe um moo ao seu servio, que zagal assalariado, que lhe substitua o filh
o no pascigo alpestre, fica mais barato do que jornaleiro pago ao dia para subst
ituir o segundo nos amanhos da terra.
Os rebanhos partem e s volvem em Junho, para a tosquia; partem de novo e a sua msi
ca de regresso s se torna a ouvir quando o Outono comea a acobrear as folhas dos c
astanheiros.
Desta feita, porm, e pela primeira vez na sua vida de pastor, Horcio no carece de l
evantar-se com a alba. O gado de Valadares h trs semanas j que anda na serra e ele
encontr-lo- quando, meio-dia passante, o rebanho surja na Nave de Santo Antnio. Horc
io ouve o velho relgio do pai dar seis horas; ouve, depois, dar as sete; sente a
me lidar na cozinha e o tio Joaquim sair e continua deitado. J no dorme, que as pr
eocupaes da vspera voltaram e de manh ele v sempre tudo mais difcil, mais triste; mas
ao corpo continua a agradar a cama. S s nove
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se,levanta, bocejante. Roupa de pastor no se gasta com lavagens, mas a me teve tem
po de lavar a do filho durante o ano e meio em que ele esteve no quartel. Horcio
esvazia os bolsos do fato futriqueiro, veste as calas e o casaco de surrobeco, me
te os ps nos sapatorros ferrados de brochas e pega nos rsticos saies, feitos, por e
le, de uma pele de ovelha que morreu de parto. Ao amarr-los s pernas, parece-lhe,
confusamente, que se amarra, ele prprio, no l ensuj alhada e ainda com manchas de s
angue que mudou de cor, mas a algo mais forte do que aquilo, a algo que o escrav
iza. A me tem o caldo quente e d-lhe uma malga cheia. Ele toma-o, pe, em seguida, o
chapu de abas anchas, acomoda, sobre o ombro, o alforge e a manta, agarra no caj
ado e assobia ao co.
Bem; adeus. At vista diz me.
Vai com Deus, meu filho.
Ela fica, um momento, a v-lo afastar-se e ele, j porta, assobia de novoum assobio
autoritrio, mal-humorado.
O "Piloto" rompe, que nem flecha, de um negro boqueiro do bairro e, ao v-lo assim
vestido, festeja-o, lana-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto o seu rabo
se agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar at boca dele. Tomba,
impelido pelo andamento das pernas do amo, e logo corre para a esquerda e para a
direita, cheira aqui, cheira ali, tudo pressa e sem ateno, s por fazer alguma cois
a, doido de contente, como se a ruela se houvesse tornado para ele a via da feli
cidade. O dia est enevoado, cinzento, triste; mas "Piloto" dir-se- haver descobert
o um sol individual para sua completa volpia.
Em casa de Valadares, a mulher veio porta, tornou a desaparecer no corredor e to
rnou a voltar. E Horcio comeou a encher os alforges com o po de centeio, o pedao de
queijo e o pedao de toucinho que ela lhe entregou.
Batatas ainda o Tnio tem que bonde disse a senhora Ludovina, depois de o haver a
bastecido.
Ele partiu, com o "Piloto" sempre frente e sem-
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pr com aquela cauda erguida, aqueles passos midos e aquele ar de co feliz. Quando a
tentava nele, Horcio odiava-o, por essa alegria. Mas o "Piloto" continuava, como
se a vida tivesse comeado, para ele, nesse dia e perene de novidades e de encanto
s. Horcio vergou-se, ergueu-se e assentou-lhe uma pedrada. O co ganiu, voltou-se e
olhou-o surpreendido, percebendo que fora ele quem o agredira. Depois, a gemer
de novo, deixou-se cair de lado, dobrou-se e comeou a lamber a perna atingida.
Horcio volveu sua perplexidade. Desde a vspera ele estava ansioso de tornar a fala
r a Idalina, de ouvi-la, de lhe dizer no sabia bem o qu, de convenc-la de tranquil
izar-se a si prprio. A ideia de que encontraria a senhora Januria fazia-o, porm, he
sitar. Por fim, decidiu-se: "no podia partir assim, sem a ver".
Foi um dos garotos, irmo de Idalina, que veio porta, quando ele bateu:
Ela est para o prdio do senhor Vasco.
Qual?
O da beira da estrada...
Ele abalou rapidamente, satisfeito por no ter visto a senhora Januria. O "Piloto"
ia, agora, atrs dele, focinho baixo e triste, rabo entre as pernas e coxeando. H
orcio meteu estrada. A propriedade do senhor Vasco ficava entre a humilde capelit
a da Senhora dos Verdes e as Caldas. Descia, em degraus, desde a beira da via at
margem do Zzere e continuava para alm da margem oposta. Industrial de lanifcios, Va
sco da Gama Sotomayor, de ascendentes fidalgos, havia adquirido, pouco a pouco,
por herana de famlia e por compra em momentos aflitos dos pequenos pastores e agri
cultores, muitas das melhores terras do vale. Ele explorava umas directamente, o
utras arrendava-as aos operrios, aos pobres, algumas vezes at queles ou aos filhos
daqueles que haviam sido donos delas. Entre os vrios industriais, Sotomayor era u
m dos mais respeitados do povo, pelo muito trabalho que dava na sua fbrica e nos
seus campos. Havia numerosas fam-
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lias que viviam apenas para ele. Enquanto alguns dos sfus membros criavam o gado
cuja l ele comprava, outros, na fbrica, transformavam a l em tecidos e outros, ai
nda, amanhavam as terras que Sotomayor adquiria com o lucro obtido nos lanifcios
. Todos os industriais tinham muitos afilhados, que os pobres, ao pedirem-lhes
o apadrinhamento dos seus filhos, j futuravam um lugar nas fbricas para estes, log
o que chegassem a rapazes; Vasco da Gama Sotomayor contava, todavia, mais afilha
dos do que qualquer outro. A princpio, ainda se escusava, se no por si, pela mulhe
r, que considerava aquilo repetida maada; um dia, porm, j bem longnquo, tendo os o
perrios de Manteigas esboado um protesto contra os baixos salrios, Sotomayor verif
icara que, na sua fbrica, os afilhados no haviam acompanhado os camaradas, no por g
anharem mais, mas, decerto, com a esperana de que ele lhes deixasse alguma coisa
em testamento. E, desde ento, nunca se negava a apadrinhar qualquer recm-nascido.
Agora, contemplando aquele vasto prdio em socalcos, um dos muitos que Sotomayor t
inha dispersos no vale, Horcio lamentava-se novamente: "At naquilo tivera pouca so
rte. Se em vez de os seus pais haverem pedido ao Marques, houvessem pedido ao se
nhor Vasco para ser seu padrinho, outro galo lhe cantaria. Estaria, agora, a tra
balhar na fbrica e no ali, de alforge s costas, a servir o Valadares, como um criad
o".
Avistou Idalina l no fundo, entre outras mulheres e homens, cuidando de terra de
milho, beira do rio. Foi descendo lentamente. O co seguia-o, procurando a extrema
dos botarus, para evitar saltos, pois, agora, andava apenas com trs patas a quar
ta encolhida junto do ventre.
Idalina s os viu quando ambos estavam perto. Largou a enxada e avanou para Horcio,
os olhos postos na sua andaina de pastor. Ele sentia-se surpreendido e s soube
dizer: you para o gado...
Ela continuava a contempl-lo, intrigada, e ele, com a garganta a apertar-se-lhe,
s pde repetir:
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you para o gado...
Mas, ento, no podias ficar mais uns dias ? Pensei...
Ele sentia uma emoo cada vez maior.
para acabar mais depressa...murmurou. Queria poder dizer-lhe que era por
ela que partia
j, para mais rapidamente pagar a dvida, ser livre e trabalhar apenas para os dois.
Mas o desejo, que ele adivinhara na senhora Gertrudes, de que aquilo no se soube
sse, detinha-o.
Idalina voltava a olh-lo com expresso de ternura e de pena:
Desde que se adia, tanto faz uma semana a mais ou a menos... E eu mal te
vi. Estiveste tanto tempo fora e, agora, abalas de caminho!
Pois ... Mas eu quero a boda o mais depressa que possa ser. Assim vamos ganhando
tempo. Os teus pais estiveram ontem l em casa, sabes?
Ela fez um movimento com a cabea um movimento que o sensibilizou ainda mais, por
que parecia de indiferena, mesmo de desacordo, com a atitude tomada pela senhora
Januria e seu marido.
No h-de demorar muito...volveu ele. O vigrio prometeu-me interessar-se por
mim e ontem botei tambm Aldeia do Carvalho, a falar com um amigo que tenho l. Aqui
ou na Covilh, hei-de entrar para uma fbrica...Calou-se um momento e, como ela tam
bm se conservasse silenciosa, acrescentou com outro torn de voz: Era isto que eu
queria dizer-te...
Ambos sentiam-se pletricos de palavras a pronunciar, mas a emoo retinha-as a emoo e
aqueles golpes de enxadas na terra, ali pertinho, que pareciam marcar, sonoramen
te, os minutos de Idalina.
E quando que nos voltaremos a ver ? perguntou ela.
Para a tosquia. Para a tosquia, venho com o gado. A no ser que antes aparea luga
r numa fbrica...
Idalina continuava a ouvir o rudo das enxadas tape, tape, tape a chamar por ela,
jornaleira paga para amanhar a terra e no para estar ali de palreio,
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coisa de que o senhor Vasco no gostaria se o sou- i
fifesse. J
Bem. Ento, adeus. Tenho que ir...E pare- l
cia seca de alma, ao despedir-se assim, j uma face l
voltada para ele, outra para o lugar onde os demais l
ganhes trabalhavam. l
Horcio olhava-a, com um misto de carinho e de l
infelicidade, enquanto lutava com aquela pergunta que l
ora lhe vinha boca, ora recuava, para vir de novo, l
como uma tortura. Por fim soltou-a: B
Tu esperas, no verdade ? l Ela virou-se para ele: i
Espero o qu ? l
Por mim... balbuciou, timidamente. l Os olhos de Idalina mostraram-se novamente
sur- l
preendidos: l
Que tolice essa ? Pois no havia de esperar! l
Ento, adeus... l Ele voltou a cortar os campos, desta vez para a J
estrada. Atravessou as Caldas, a ponte sobre o rio, J
logo o flanco da mata nacional. O dia tornara-se mais 1
sombrio. E ele caminhava inquieto. S agora lhe au- i
diam as palavras que devia ter dito a Idalina, as que j
deviam t-la convencido definitivamente. Parecia-lhe l
que no dissera as suficientes, parecia-lhe que a ds- j
pedida fora brusca, que tudo ficara em suspenso, que j
ela no tomara um verdadeiro compromisso. l
Ia no vale estreito, profundo, sufocado, que ante- J
cede a nascente do Zzere. Era um corredor quase l
recto e compridssimo e dir-se-ia rasgado pelo casco l
de um navio, que ali imprimira a sua forma de U,
acrescentada, na base, pela inciso da quilha, onde
deslizava o rio. O Zzere, ainda infante, mal se enxer- I
gava entre os esbranquiados penedos que se erguiam l
no seu leito e as urzes que o ladeavam. Nas decli- I
vosas orlas, pacientes braos haviam semeado de cen- l
teio quantos escassos metros eram propcios e cons- l
trudo uns casebres de pastores, tudo metido l em l
baixo, como no fundo de um abismo. Em cima, muito l
ao alto, as beiorras da serra corriam quase a pique e |
por elas passavam, ligando-as um instante, farrapos de neblina.
Horcio trilhava, h mais de uma hora, a estrada que acompanha a fenda gigantesca, q
uando sentiu que algo lhe faltava. Voltou-se sua procura. L vinha, ao longe, arra
stando-se nas trs patas. Trazia o focinho roando o cho, pensativamente. De quando e
m quando, deitava-se, repousava um momento e volvia andana, a manquejar grotescam
ente, como se cumprisse um destino. Horcio detivera-se a seguir-lhe, com os olhos
, o penoso avano. O "Piloto" no o vira ainda a olhar para ele e s quando o assobio
lhe chegou aos ouvidos levantou a cabea. Ps-se, de sbito, alegre, a cauda no ar, os
olhitos muito vivos a sorrirem com humildade. Quis correr, acercar-se depressa,
para que o dono no tivesse de esperar. Ora punha a pata doente no cascalho, ora
a levantava, dorida, e prosseguia, desequilibrado, cada vez mais caricato, nas t
rs pernas. Por fim, deixou-se descair de novo, vencido, a dez passos, sempre a ol
har para o amo, humildemente. Horcio aproximou-se, pegou nele ao colo e continuou
a andar. Sentia, agora, vontade de lhe pedir perdo.
De sbito, Horcio reconheceu, ao longe, a figura de Valadares, que marchava em sent
ido oposto ao dele. Logo estranhou v-lo assim de mos livres, sem enxada, sem cajad
o, sem coisa alguma que indicasse jornada de trabalho. "Que andaria o patro a faz
er por ali, to longe de casa, quela hora? Por mor do recado para o Tnio no era, seno
tinha-o encarregado a ele de o dar. Queijos tambm no levava..."
Valadares aproximava-se e saudava-o:
bom dia! Vais-te chegando, hem? O Tnio anda mesmo a em cima. Eu vim ver o alqueive
que temos no Covo da Metade... Quando a outra malhada estiver estrumada, hs-de le
var as ovelhas para l... O que tem o co ?
Est coxo...
Parecia a Horcio que o patro no lhe falava com a naturalidade habitual, mas j Valada
res se ds-
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pedia e continuava o seu caminho. Ele prosseguiu, tambm, estrada acima.
Da banda da Nave de Santo Antnio surgira uma baforada de nevoaa, logo outra e outr
a e, em seguida, compacto nevoeiro, que descia para o vale. Pouco depois, baixav
am do cu uns rumores surdos, prolongados, como se o deus das alturas estivesse a
arrastar os seus mveis. Pumba, deixara tombar um! E o silncio, um silncio hmido de f
im de mina, volvia.
O "Piloto" comeara a mostrar-se nervoso nos braos do seu dono. Estavam o homem e o
co ao p da nascente do Zzere e a mudez da terra era, agora, quebrada pelo som de d
ispersas campainhas. Horcio ouviu a voz de Tnio praguejar, irritada, contra as ove
lhas, mas no via coisa alguma no meio da nvoa que o cercava. Os seus olhos estavam
cheios de branco, um branco espesso e frio, que se movimentava, mas que, de per
to, parecia esttico, como uma branca e lgida eternidade.
Horcio deps no cho o "Piloto" e chamou-:
Tnio! Tnio!
O outro respondeu-lhe de longe:
Estou aqui... Vem c!
Ele arriscou alguns passos atravs da bruma, em direco voz. Mas, pouco depois, volta
va a gritar:
Tnio! Eh, Tnio! Onde ests ?
Estou entrada do Co vo da Metade...
Comeou a orientar-se pela estrada, que branquejava sob os seus ps. O som das campa
inhas era, agora, mais ntido e, de quando em quando, ouvia-se um balido de ovelha
, perdida na cerrao.
Horcio divisou os sapatos e a ponta do cajado de Tnio, antes mesmo de lhe ver o ro
sto, que o bulco envolvia. Estava encostado a um rochedo, na atitude de quem se r
esigna, impotente. Mas, ao ver Horcio, largou o varapau e abriu os braos, num alvo
roo:
D c esses ossos! E abraou-o fortemente. Ento, como ests ? A modos que a tropa te fez
bem...
Era o primeiro gosto que Horcio tinha naquele
dia. De toda a famlia do Valadares, s por Tnio, o filho mais velho, ele lavrava que
nte estima. Haviam passado juntos quase toda a adolescncia e comeo da mocidade. Se
parados no Vero, quando Horcio pastoreava na serra, logo que as ovelhas eram levad
as para a Idanha, os dois conviviam todos os dias, iam crescendo e trabalhando l
ado a lado, nas mil tarefas que, com sua casa e terras, Valadares descobria semp
re para os filhos e para o moo assalariado. Havia horas em que Tnio parecia mais s
eu amigo do que do prprio irmo e fora at por intermdio dele que Horcio, por duas veze
s, pedira, inutilmente, aumento de soldada ao Valadares. Agora Tnio dizia:
J sabia que tinhas voltado, mas no pensei que viesses para aqui to cedo... No ias ca
sar?
Ele fez um gesto vago e Tnio ficou um momento a olh-lo, em silncio. Depois, Tnio con
siderou que ia ser-lhe mais difcil do que, a princpio, lhe parecera, dizer a Horcio
aquilo de que o haviam encarregado.
Na encosta prxima, um chocalho badalou, solitrio :
Por onde aquela anda! comentou Tnio, para afastar as suas prprias preocupaes. H um b
ocadinho, o gado tresmalhou-se de repente. Nesta semana a segunda vez que isto
me acontece. Houve uns dias de muito sol e, depois, os nevoeiros vieram outra
L
De quando em quando, passava, por eles, uma ovelha, passava como numa paisagem s
ubmarina e a sua l branca parecia diluir-se, tornar-se tambm nvoa. De cajado estend
ido, Tnio procurava desviar-lhe o rumo, met-la na abertura que se adivinhava entre
o nascimento de duas pedras, flor da terra. Mas, com trs passos, a ovelha desapa
recia na fumarada, como se, numa rpida tremura, se houvesse desfeito. Junto deles
via-se somente o focinho do "Lanzudo", que parecia no ter corpo, que parecia ser
apenas uma cabea de molosso suspensa no ar.
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, Dize-me uma coisa: como te deste por l ? Horcio teve um sorriso melanclico:
A princpio, custou-me muito, mas, depois, habituei-me, que remdio!
Hs-de contar-me como isso . Quando me lembro de que se o vigrio no tivesse metido em
penhos por mim, eu tambm teria de ir, at tremo!
A neblina comeara a esgarar-se para a banda do vale, batida por uma aragem mais fo
rte. E, por cima deles, voltaram a fazer-se ouvir os tumultos celestes. Por fim,
o nevoeiro rasgou-se, um momento, e Horcio examinou o cu suspeito:
Parece-me que no posso chegar com o gado Nave sem apanhar uma carga de gua...
o que eu j tinha pensado concordou Tnio. O melhor ficarmos c dentro, nas cabanas,
at isto passar.
Agora, a bruma desprendia-se da terra, em volta deles. E, nos acidentados derred
ores, cheios de urzes e de penedos, apareciam, pastando tranquilamente, vrias ove
lhas. Tnio chamou-as:
Tchi! Tchi! Velhinhas!
Uma e outra obedecia logo e, s que faziam ouvidos moucos, ele enviava uma pedrada
. O "Lanzudo", j mostrando todo o seu enorme corpo de co da serra, foi, de andar p
esado e com o "Piloto" a cheirar-lhe o rabo, postar-se atrs das ovelhas teimosas,
para as decidir obedincia.
Junto de Horcio e de Tnio viam-se, agora, dois altssimos frages. Mostravam uma abert
ura que dir-se-ia cortada a prumo por mo fabulosa e servia de porta natural para
o circo onde nascia o Zzere, porta que parecia dar para o tmulo de um deus. Atravs
dela, as ovelhas, chamadas, enxotadas ou apedrejadas, iam passando, enquanto Tnio
as contava.
Faltam quatro, mas talvez j estejam l dentro.
Os dois entraram. No Covo da Metade, a bruma,
encarcerada por vastas massas ptreas, elevava-se mais
lentamente do que c fora. Mas j se via a terra plana,
de uma banda coberta de verde cervum, que o reba-
nho ia devorando, da outra vrios alqueives e, ao centro, o rio correndo, aos zigu
ezagues, sob aquela fumaceira, como se fosse a ferver.
Tnio recontou as ovelhas e tranquilizou-se: estavam todas. Depois fez um cigarro
e ofereceu o tabaco e o papel a Horcio. Esse momento pareceu-lhe prprio para lanar
a ideia, mas deteve-se. "Talvez fosse melhor noutra ocasio e quando estivessem se
ntados. Tinha de fazer um grande rodeio, pois Horcio era esperto e ele no devia co
mear logo a falar daquilo".
Em frente deles viam-se vrias "cabanas" abrigos que velhos pastores tinham ergui
do no fundo do Covo da Metade, como no fundo de uma grande cratera. Eram formados
por trs paredes de pedras soltas arrumadas a uma fraga, pouco maiores do que cas
ota de co e onde, pela porta estreita e baixa, s como um co se podia entrar. Tnio fo
i encaminhando Horcio para um dos abrigadoiros e ao seu portelho se sentaram.
A bruma subia cada vez mais, deixando a descoberto os contrafortes speros, medonh
os, do bero do Zzere. Uma rotunda imensa, grave, misteriosa, de contornos imprevisv
eis, comeava a aparecer, como se as nvoas do princpio do Mundo a abandonassem pela
primeira vez. Iam-se desvendando enormes moles de granito, ao fundo, direita, es
querda, pedra de todos os milnios, basties de um s bloco e rude traa, que se apresen
tavam com uma soberba, uma majestosa solenidade. Essa muralha ciclpica e irregula
r, cheia de arestas, de vincos, crescia rapidamente, atrs do nevoeiro que se reti
rava. Cada vez se mostrava mais alta, mais arrogante cada vez e, assim tapada n
os cimos, dir-se-ia no ter fim. Pouco depois, porm, tripartia-se, libertando as su
as trs cabeas das toucas de algodo-em-rama e um relmpago recortava num fundo gneo, l
nas alturas, as formas orgulhosas, absurdas, fantsticas, dos trs Cntaros. Logo veio
o trovo. O "Piloto" ergueu o focinho para o cu e desatou a uivar lugubremente, in
terrompendo Horcio, que, puxado por Tnio, falava da vida militar.
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* O anfiteatro colossal em que eles se encontravam exibia-se, agora, em toda a
sua imponncia. Era de uma grandiosidade severa, essa rotunda propcia para um temp
lo de mitos alpestres. Estava metida entre assombrosas floraes de granito e termin
ava no Cntaro Magro, que lembrava a carcaa de imensurvel castelo de outrora, do qu
al se aproximassem fulminantes coriscos. Dir-se-ia que a natureza quisera defend
er e impregnar de mistrio a nascente do Zzere fechando-a como uma fortaleza. E, c
ontudo, parecia que o rio fora apenas um pretexto. Era uma pobre, trmula fita de g
ua, ora muito estreita, ora mais larguita, s vezes quase invisvel, que se lanava l d
o alto por um sulco ou diclase da rocha negra, aberta para lhe dar melhor caminho
. Ao seu lado, porm, tudo se agigantava. Sob os frequentes relmpagos, alguns trech
os dos paredes, cheios de estrias, de salincias, de avanos e de recuos, pareciam or
iundos de uma floresta petrificada. Outros, poliformes, laminados, lpides desm
esurveis coladas umas s outras, sugeriam livros de gigantes incrustados na montanh
a, escuros e corrodos pelo tempo, no meio de um caos de linhas verticais, tocadas
de irrealidade.
Havia um contnuo trovejar. A tempestade aproximava-se e o cu ia escurecendo cada v
ez mais, como se a noite fosse cair sobre o meio-dia. Uma guia veio remando de lo
nge, lentamente, e pousou nos topes do Cntaro Raso. Deu dois pulinhos, perscr
utou a distncia borrascosa e, depois, volveu o bico adunco para baixo, para o
stio onde Tnio e Horcio estavam. Da porta da sua lura, eles seguiam-lhe os movime
ntos e viram-na desaparecer numa cavidade da rocha. Mas j outras guias acorriam al
i, acossadas pelo temporal. Agora, por detrs dos Cntaros surgiam, estendendo-se so
bre o circo, grandes, pesados, grvidos bandos de nuvens. Em seguida, um relmpago,
uma enfiada de troves e ainda outra fasca rabiante, ali pertinho, ali por cima, no
pico do Cntaro Magro. O ar chiava e houve um gemer de pedra, fino, cortante, que
pairou, a enervar tudo, uns segundos. Horcio e Tnio vol-
taram, repentinamente, a cabea para a escurido do abrigo. Parecia-lhes que aquele
golpe de luz lhes havia ferido os olhos, que o raio havia cado nas suas prprias pu
pilas, traspassando-as como um punhal em brasa. Logo se deu, por cima deles, uma
exploso de catstrofe csmica, que fez estremecer a terra transida e ps tudo a vibrar
deixando errante na atmosfera um grito humano, lancinante, que vencia o ecoar l
ongnquo do ribombo. Horcio fechou os braos em volta da cabea, receando que as pedras
da cabana se desmoronassem sobre o seu corpo. porta, o "Piloto" ladrava para as
nuvens, desesperadamente. De novo, outros relmpagos laceraram a escuridade e de
novo reboou aquele grito de desespero impotente, de alucinao, um grito de cristal,
que dir-se-ia vir das entranhas da rocha e morrer em temerosos desfiladeiros Re
ceando pelos seus olhos, Horcio descerrou as plpebras. Via. Quedou escuta, no gran
de silncio que se fizera no circo, com o "Piloto" subitamente calado, com o cu cal
ado, com o grito morto. Tnio escutava tambm. Nada. Os dois levantaram-se e vieram
rotunda, esquadrinhar, com a vista, as redondezas. O silncio prosseguia, tudo est
ava quieto e parecia que tambm em expectativa, como eles. S as nuvens, por cima, s
e moviam, grossas, alvacentas, cada vez mais carregadas. Mas j o "Piloto", dando
gozo curiosidade, arrastava a perna e ia meter a cabea na porta do ltimo abrigo. H
orcio e Tnio caminharam para ali e, ao assomar abertura, viram, l dentro, estendido
no cho, um garotelho de olhos pvidos, to inchados de pavor que dir-se-iam fora das
rbitas e prestes a rebentar.
Eh, rapaz! Que fazes a?
No respondeu. Continuava a olh-los com aqueles seus olhos esbugalhados, como se no
os visse nem os ouvisse. Mas todo ele tremia e uma baba escura sujava-lhe a boca
.
Foste tu que gritaste ? Continuou calado.
alma do diabo, tu no sabes falar ?
3 Vol. Ill
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Devia ter nove, dez anos, estava vestidito de remendos e continuava a tremer. Fe
z um esforo, viu-se que queria dizer alguma coisa, mas ficou sem palavra. Horcio e
ntrou e, ento, deu conta de que era uma dessas crianas que os pais mandavam pastor
ear seu gadito por silvedos, valados e caminhos dos derredores da vila, como a e
le, outrora, quando pequeno. Por detrs do garoto, na escuridade, estavam cinco ov
elhas, muito juntas, de cabeas encostadas umas s outras.
Horcio levantou o corpito e conduziu-o para a beira do rio. Tnio reconheceu-o:
o mais novo do tio Avelino. Molharam-lhe a testa vrias vezes e continuaram
a falar-lhe, no desejo de lhe colher resposta. Ele continuava mudo, mas o espant
o ia-se levitando dos olhos arregalados e a excitao diminua. Horcio sentou-o e ofere
ceu-lhe do seu po. Ele no lhe pegou. As suas pupilas adquiriram outra expresso, mas
volviam-se, numa consulta de medo, para o Cntaro Magro, para a gigantesca mole q
ue atraa os raios.
Por que diabo vieste para aqui ?
A vozita saiu-lhe difcil, ainda entrecortada de tremuras :
As ovelhas vieram andando... L em baixo tinham pouco que comer... Depois veio a t
rovoada...
Parece-me que tambm eu te conheo... Ontem, quando fui tomar a camioneta, tu no ias
para a escola ?
Ia, sim, senhor.
E ento no foste hoje ?
O meu pai precisou do meu irmo para o campo e eu vim no lugar dele...
A chuva desabara, finalmente. Horcio e Tnio, com o pastorito entre eles, correram
para a caseta onde haviam estado e nela se recolheram. O "Piloto" sentara-se por
ta, com o focinho de fora, muito quieto, a olhar.
As minhas ovelhas... murmurou o garoto. Horcio tranquilizou-o:
Deixa l as ovelhas... Elas no fogem... E c est o co para os lobos...
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O pequeno sorriu e aceitou o naco de po. Tnio enervava-se com aquela presena.
Se queres ir, vai... disse-lhe. Mas j Horcio protestava:
No! Isso, no! Ia-se molhar todo e, daqui a pouco, estava outra vez com medo.
Cada vez mais contrariado, Tnio renunciou a insistir.
A chuva, que comeara por bagos gordos e raros, transformara-se, rapidamente, em g
rossas cordas lquidas. E prosseguia, ininterrupta, meia hora, uma hora, num dilvio
, enquanto Tnio ia falando de coisas vagas e Horcio lhe respondia tambm monotonamen
te. Perto deles, o Zzere, ainda to pequenito ao atravessar a alfombra da rotunda,
crescera num instante, transbordava atravs dos magotes de juncos e urzes das marg
ens e regougava, adquirindo subitamente voz de adulto ao despenhar-se na sada do
grande circo.
Por fim, o cu principiou a clarear. Tnio voltou-se para o garoto antes mesmo de a
chuva acabar de todo:
J podes ir s tuas ovelhas...
O pastorito levantou-se e, timidamente, sem dizer palavra, saiu.
Tnio sentiu-se aliviado por ter vencido aquela primeira dificuldade. Deixou o siln
cio correr alguns momentos e, depois, lanou:
H pouco no me disseste por que voltaste para o servio do meu pai antes de casares..
.
Resolvi adiar o casamento...
Porqu ?
Horcio encolheu os ombros, de novo mal-humorado.
Foi por falta de meios ? insistiu Tnio.
Por que havia de ser ?
Tnio ficou calado, como se meditasse. Abriu o 'eu alforge, tirou po e queijo e ps-s
e a mastigar.
No comes ?
No. Ainda no tenho vontade.
O "Piloto" voltara-se para eles, de olhos pedinches. Em frente da casinhola, sob
a aba de uma laje, estava
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o rebanho de Valadares, com o "Lanzudo" ao p. Tnio chamou o seu co. E entre este e
o "Piloto" dividiu quanto po lhe sobejava. Depois disse, olhando para a chuva ral
a, miudinha, que subsistia:
Talvez eu saiba como podes arranjar dinheiro... Horcio voltou-se, surpreendido, p
ara ele:
Como ?
Tnio no respondeu logo. Olhou novamente atravs da chuva e ps-se a mastigar com mais
rapidez, para desimpedir a boca. Sentia, ao seu lado, a ansiedade de Horcio, mas
ele prprio hesitava, agora, em falar daquilo.
Bem...Eu no sei se deva dizer-te... Mas, enfim... tu s quase como meu irmo...Mu
dou o torn de voz: Tu juras que no contars nada a ningum, mesmo que no quei
ras fazer o que eu te disser ?
Horcio olhava-o, espantado. Tnio baixara a vista e aguardava.
Homem, est bem, juro! De que se trata? Tnio parecia vacilar ainda. Ia tirando, len
tamente,
as migalhas que lhe haviam ficado coladas na ponta dos dedos e contemplando os d
edos, como se neles se encontrasse o seu segredo.
Eu tenho confiana em ti...murmurou. Sim, eu penso que tu no eras capaz de
dizer fosse o que fosse que me pudesse fazer mal... No verdade?
Horcio estava impaciente:
Podes falar vontade! E, demais a mais, para eu ganhar dinheiro!
uma coisa simples... A questo tu quereres. com as florestas... Em volta de Mantei
gas j no h um nico pasto, como sabes. Todas as encostas esto cheias de florestas do
Governo e no se vem seno rvores. O povo, se quer manter o seu gado, tem de andar lg
uas e lguas e ir para os picotos da serra, para os infernos. E se, ao passar nas
canadas, as ovelhas ou as cabras entram, mesmo contra nossa vontade, numa flores
ta zs! vem logo uma multa. Ainda o ano passado apanhei uma sem ter nenhuma
culpa. De duas notas, deram-me de volta dez mil ris. Imagina: cento e noventa mil
ris sem um homem ser culpado. O meu pai ficou furioso! Ao senhor Vasco sucedeu a
mesma coisa. O rebanho dele ia para as bandas do Poo do Inferno, quando apareceu
um guarda e bumba! passa para c duzentos mil ris. O senhor Vasco meteu empenhos
para no pagar, -mas foi o mesmo do que nada. Ento ele foi aos arames! No por mor d
o dinheiro, est claro, que o dinheiro no lhe fazia falta, mas porque tomou aquilo
como uma desconsiderao para um homem to importante como ele.
No sabia que o senhor Vasco tinha, agora, um rebanho.
Teve, mas j no tem. Comprou-o para ajudar o Marcelino. O Marcelino estava
rebentado, tinha mesmo de se desfazer das ovelhas, mas os outros pouco lhe d
avam por elas. Ento o senhor Vasco, com pena dele, comprou-lhas e deixou-o como p
? st or, como se os bichos fossem ainda do Marcelino. MMS aquilo durou pouco. Qu
ando foi da multa, o senhor Vasco ficou to aborrecido que resolveu vender o gado
e no se importar mais com aquilo. Nas outras terras, os rebanhos aumentaram de d
ia para dia; aqui, por causa das florestas, cada vez h menos ovelhas e s aumentam
os pinheiros.
Tnio fez uma pausa, para os seus olhos perscrutarem os de Horcio. Depois, continuo
u:
Antigamente no era assim. O meu av ainda se lembra dos pastos estarem mesmo ao p d
a porta. Os pastores tinham queimado as rvores dos tempos antigos e havia ovelhas
por toda a parte. Agora o que se v... Todos se queixam, mas ningum faz nada de je
ito. A princpio, ainda algum pastor ia deitando fogo onde podia... Mas depois que
h a Torre de S. Loureno, com um homem a vigiar, l do alto, as florestas e a. telef
onar c para baixo mal v um pouco de fumo, j no h fogo que pegue a valer...
Horcio sabia daquilo, ouvia falar daquilo, quase com as mesmas palavras, desde cr
iana.
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* Est certo interrompeu. Mas que tem isso que ver com eu ganhar dinheiro ?
Tnio disse, lentamente:
Se eu puser fogo em dois ou trs lugares na mesma tarde, eles no podem acudir a
toda a parte. Acodem ao que virem primeiro. Mas o primeiro seria s para os chamar
para l. O segundo que seria a srio. Trs ou quatro homens lanavam fogo, de ponta a p
onta, a uma floresta e, com vento de feio, aquilo ia num instante. Quando os outro
s voltassem do primeiro incndio, alm de estarem cansados, j seria tarde. Um f
ogo seguido, ningum o podia apagar... E, no ano seguinte, j haveria pastos com fa
rtura e tenrinhos perto da vila. com duas ou trs florestas queimadas, cada qual
podia criar mais ovelhas. At uma vez, antes da multa, o senhor Vasco tinha dito q
ue se no fosse a falta de pastos ele teria um grande rebanho. Como ele tem de com
prar l para a fbrica, ficava-lhe tudo em casa. Os outros industriais dizem que no v
ale a pena para eles terem ovelhas, mas o senhor Vasco no pensa assim...
Em Horcio desaparecera o entusiasmo inicial:
Ento eu seria um dos que...
Se quisesses. Receberias cinco notas da primeira vez. E mais cinco de cada outra
vez, se se tornasse a fazer.
E quem paga ? Tnio titubeou:
Bem... Algum paga. No importa saber agora. Eu mesmo te entregaria o dinheiro.
o teu pai ?
No, que ideia!
Ento o senhor Vasco...
Nem o meu pai nem o senhor Vasco tm nada com isso! E no so para aqui chamados prot
estou Tnio. escusado quereres adivinhar quem , que no acertas. E eu no posso dizer
mais. O que preciso saber se aceitas ou no.
Horcio no respondeu logo. De dentro do abrigo os seus olhos iam seguindo, abstract
amente, o pasto-
7i
rito que, com um ramo na mo, atrs das suas cinco ovelhas, regressava a Manteigas,
sob os ltimos choviscos.
Quinhentos mil ris quanto devo a teu pai. No you, por isso, arriscar-me a dar com
os ossos na cadeia...
Mas quem te disse que tu ias para a cadeia ? Est tudo bem pensado. E, depois, tod
a a gente de Manteigas nos encobria, se fosse preciso. uma coisa para o bem de t
odos. Todos tm o mesmo interesse. De vez em quando, aparece um fogo na serra e ni
ngum pode garantir que fogo posto...
Est bem... Est bem... No digo que no. Mas eu no tenho ovelhas e por cinco notas no you
arriscar-me. E olha l: no dizem que as florestas fazem bem lavoura, que trazem ma
is chuvas, que prendem as terras quando h enxurradas e que ainda por cima do quant
a lenha se quer ? J uma vez ouvi que no haveria campo que se aguentasse beira do r
io, que tudo ficaria cheio de calhaus, se no fossem as florestas.
Isso dizem os que recebem dinheiro do Governo, para as conservar. Que haviam ele
s de dizer, se vivem disso ?
Horcio comeara a sentir-se menos amigo de Tnio:
Por que no pes tu sozinho o fogo ?
J te disse que um homem s no faz nada de jeito! Os dos servios florestais vm e apaga
m logo. Ardem meia dzia de pinheiros, e pronto!
E, ento, quem ia connosco ? Tnio voltou a tartamudear:
So pessoas de confiana... Por ora no posso dizer o nome... Tu depois saberias...
S falta um e por isso te falei... Mas se tu no queres acrescentou, de mau humor
pacincia!
Ficaram os dois calados. A chuva passara completamente e o rebanho voltara a des
unir-se, pastando, tranquilo, sobre a relva.
Hei-de pensar nisso... declarou, por fim, Horcio. Depois te direi. Como s no pin
o do Vero a coisa pode pegar, ainda temos muito tempo...
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Tambm Tnio sentia esmorecer a sua amizade por Horcio.
Est bem... Mas no tardes a resolver, porque, se no quiseres, tenho de arranjar outr
o...
O cu j estava quase lmpido e a luz solar tornava a encher o covo. Tnio ainda se demor
ou a dar mais pormenores do projecto coisa certa, que no falhava e no trazia, per
igo a ningum e, finalmente, levantou-se:
Vou-me embora! As ovelhas, agora, so cento e dezasseis. E trs cabras. As ferradas
e o resto esto nuns penedos, ao fundo da malhada, esquerda de quem olha para Man
teigas. O sinal uma pedra grande e uma pequena, em cima de um graveto. Eu you ag
ora por l e levo os queijos... Ps aos ombros o alforge e a manta, pegou no cajado
e no chapu e, hesitante, murmurou: Adeus...
Adeus.
Tnio deu alguns passos fora da casota e voltou-se, ainda apreensivo:
Se eu no tivesse a mesma f em ti que tenho em mim, nunca te diria o que te disse.
Portanto, v l...
Vai descansado. J jurei, que queres mais ? Horcio viu Tnio desaparecer no fim do gr
ande
circo e levantou-se tambm. Reuniu as ovelhas e, pouco depois, subia, com elas, a
encosta coberta de altas urzes e adustas penedias, que dava para a Nave de Santo
Antnio, principal pastagem. Pela ltima vez, divisou, na lonjura, esquerda, l no ex
tremo do compridssimo corredor por onde, remotamente, deslizaram tremendos glacia
res e onde, agora, corria o Zzere recm-nascido, a sua pequena vila de Manteigas. E
ra um trecho apenas, umas pinceladas de branco, vermelho e escuro num fundo verd
e de campos agricultados e de florestas. Logo ao burgozito se associou outra ima
gem. E rapidamente Horcio amoleceu de saudades, como se fosse para longe, muito l
onge. "Raio de vida! Ia estar apenas a trs horas de caminho, mas com tantos dias
sem ver Idalina, como se estivesse no fim do Mundo".
O rebanho entrou, finalmente, na Nave de Santo Antnio, vasto planalto, ao fundo d
o qual se levantavam espectaculosos conjuntos ptreos, arestosas lombas que corria
m desde a pesada grandeza dos Cntaros at o Espinhao do Co, todo serrilhado. O sol ve
ncera as derradeiras placentas que a tempestade deixara no cu e prateava, agora,
o verde, muito fresco, da grande manta de cervum que cobria a Nave.
Quando Horcio ali chegou com as ovelhas de Valadares, j outros rebanhos iam rapand
o a erva, enquanto desgarradas cabras, trepando pelos alcantis prximos, buscavam,
para roer, solitrias folhitas. Dispersos, sentados ou de p, os pastores vigiavam,
corrigindo com gritos e pedradas, a lenta mas constante deslocao do seu gado. Um
ou outro, reconhecendo Horcio, acenava-lhe de longe. E dois deles, o Canholas e o
Papagaios, deixando, por momentos, os seus rebanhos, acercaram-se. Como estava,
como no estava, como era e no era aquilo da vida militar, depois destas vinham aq
uelas outras palavras que j comeavam a irrit-lo: "Pensei que ias casar antes de vol
tares para a serra. Quando casas?"
Horcio respondia com boa cara, mas sentindo uma raiva surda, no sabia porqu, nem pa
ra quem. "Parecia que as pessoas no sabiam falar de outra coisa!" Os pncaros petri
ficados, a grande bacia relvada aberta na sua frente, os zimbros que, mais alm, s
e lanavam sobre as pedras como polvos envolventes, as speras encostas, toda essa b
rava paisagem das alturas, cheia de corcovas, de ondas, de cristais e de esbarro
ndadeiros, que constitura, para ele, durante muitos anos, um mundo familiar, apar
ecia-lhe agora odiosa, sufocante, inimiga da nsia que ele sentia, opressivamente,
dentro do seu peito. Reconhecia tudo, at as moitas de urzes que haviam crescido
durante a sua ausncia, beira do regato que cortava a Nave; mas via tudo isso com
raiva, como se houvesse tido um conflito com tudo quanto o cercava, vegetal, min
eral e animal, com o prprio milhano que, no cu, agora limpo, traava lentas voltas e
que ele desejaria abater
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com um tiro de escopeta, para vingar-se de alguma coisa.
De longe, por entre o tilintar das campainhas dos rebanhos, veio um som alegre d
e flauta. Ele distendeu a vista, mais irritado ainda, e descobriu o tocador, mas
no pde identific-lo quela distncia.
Quem ?
o Chico da Levada informou o Canholas. Horcio sentia-se afrontado com a alegria
que o
outro parecia fruir e tinha, ao mesmo tempo, a sensao de que o haviam roubado. Dur
ante anos ele fora o nico que trouxera uma flauta para a montanha. Os pastores de
Manteigas vinham para ali como para um presdio, sem ganas de se divertir, sempre
a revezarem-se e sempre a pensar nas territas e nos trabalhos que os aguardavam
na vila. S ele, pastor efectivo, todo o Vero na serra, se entretinha a quebrar o
silncio e a solido dos cimos com aquela velha flauta que comprara a um homem de N
espereira e qual, antes de ir para a tropa, estimava mais do que a um amigo. Ago
ra, porm, a msica que vinha de longe dava-lhe desejos de chorar.
O Chico, antigamente, no tocava...
Pois ... concordou o Canholas. Toca desde que lhe morreu a mulher. Diz que no p
ode estar sozinho sem fazer alguma coisa, seno do-lhe muitas saudades dela...
Pouco depois, os outros dois pastores acorriam aos seus rebanhos. Horcio quedou-
se sobre uma pedra, a mastigar um pedao de po, que a garganta dificilmente deixava
passar. Estava, agora, crente de que no errara ao nomear, horas antes, o Valada
res e o Vasco Sotomayor. "Era um deles, ou os dois juntos, no havia dvida. Quando
encontrara o Valadares no caminho, com ar encavacado, decerto ele vinha d
e falar no caso ao filho. Por isso, o Tnio, em vez de ir direito da malhada Nave,
com o gado, fora descendo para a banda do .Zzere, pois assim fazia companhia ao
pai at ao comeo da estrada. Mas ele que no estava pelos ajustes. Primeiro, havia de
falar com Ma-
nuel Peixoto. No se ia arriscar a perder a sua liberdade para ser agradvel ao forr
eta do Valadares. Depois, todas as pessoas que sabiam alguma coisa diziam que as
florestas davam cabo do gado, era verdade, mas que, por outro lado, eram boas p
ara o povo. At o vigrio Barradas, h anos, quando tinha havido muitos incndios, falar
a nisso, numa prtica, na missa".
As ovelhas iam avanando e ele acompanhou-as. Tudo aquilo lhe parecia montono, lent
o, interminvel. Nunca tarde alguma de pastoreio se lhe apresentara to longa. Senti
a o tempo como uma vontade fria contrria sua, contrria quela nsia de que chegasse o
dia seguinte, para ele ouvir de Manuel Peixoto a resposta ao pedido que lhe fize
ra. De quando em quando, a flauta do outro pastor rompia, de sbito, a quietude da
montanha, com aqueles sons alegres, curtos, agudos e ele entristecia mais.
Finalmente, o rebanho atingiu o extremo da Nave e volveu. Todos os dias ocorria
a mesma coisa. Quando o crepsculo se aproximava, as ovelhas tomavam, espontaneame
nte, o caminho do lugar onde deviam dormir. Dir-se-ia conhecerem, com preciso de
relgio, o tempo de que careciam para alcanar a malhada, antes de a noite cair.
Os rebanhos regressavam a petiscar, aqui, ali, acol, ervita que, ida, escapara su
a fome. Regressavam lentamente, enchendo de melancolia a serra, com a dolncia das
suas campainhas nas derradeiras horas do dia. E sempre, a perturbar a sua msica
sempre igual, arrastada e triste, os sons jocosos, saltitantes, da flauta do Chi
co da Levada, a quem morrera a mulher.
A luz do poente, que doirava os pncaros, os pastores seguiam atrs dos rebanhos, co
mo guiados por eles; nos flancos marchavam os ces, uns e outros atentos a que no s
e tresmalhasse alguma ovelha, pois se alguma quedasse ali seria ceia de lobos. O
Chico da Levada vinha atrs de todos e atrs dele estendiam-se as primeiras sombras
da noite.
O rebanho de Valadares foi, pouco a pouco, afastando-se dos outros, meteu por en
tre grupos de fragas
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e chegou, por fim", sua malhada. Era um alqueive plano, rodeado de aflorament
os de pedra e coberto com excrementos de ovelhas. Por toda a parte onde as fl
orestas do Estado no tinham fechado ao sol as lombas e pendores, a crosta verdoen
ga da montanha apresentava numerosas malhadas semelhantes quela. Algumas, com as
formas irregulares de quanta terra fora possvel aproveitar, escondiam-se entre gi
gantescas famlias de rochedos, enquanto outras pareciam escorregar pelas prpria
s declividades. Os habitantes dos povoados serranos, vivendo em acanhados vales
e as melhores terras na posse de industriais, padres e outros senhores lugarenh
os, haviam ido, desde remotas eras, s adustas alturas e, onde descobriram b
aldio propcio a um punhado de centeio, cavaram-no e regaram-no com o seu suor. Ma
s o cho era pobre: por baixo dele, a um metro, s vezes menos ainda, jazia a rude o
ssatura de xisto ou de granito. Por cada ano que dava po, a terra alta tinha de
descansar, em esterilidade, um ano ou dois. Assim, perto ou longe de uma searaz
ita, quem a semeara possua sempre, prprio ou arrendado, outro tracto devoluto, o
alqueive onde as suas ovelhas vinham dormir, adubando a terra que criaria o po n
o ano vindoiro.
A malhada de Valadares no era maior do que as dos outros, mas ele contava mais du
as nas redondezas. Um bardo cercava o trecho a estrumar e nele o rebanho entrou.
O lusco-fusco apardaara j a montanha, comeando a dissolver as formas das suas quebr
adas e baixios. A flauta do Chico da Levada vinha aproximando-se, cada vez mais,
cada vez mais e, por fim, calou-se. Um grande silncio dominou a serra.
Horcio procurou as pedras que indicavam o esconderijo duas aqui, duas alm, sobre
um garaveto, at um dos magotes de rochedos que se erguiam na sua frente. Entre os
primeiros e os ltimos vultos granticos, em estreito espao, encontrou uma rima de b
atatas e os utenslios para fazer o queijo. Pegou em trs grandes latas trs "ferrada
s" e volveu ao bardo.
Mas, ao ordenhar, no procedia com a rapidez que mostrava antes de ir para a tropa
uma dzia de apertes em cada bere e logo outras tetas entre os dedos. Parecia-lhe
que as prprias ovelhas, to passivas, para ele, outrora, se rebelevam agora contra
as suas mos, que haviam perdido o jeito antigo. Contudo, o leite, muito branco l n
o fundo da vasilha, ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com
que a noite prxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia.
Horcio avanava, de ccoras, entre as ovelhas, empurrando para trs de si as que
j mungira. Por fim, ordenhou as trs cabras que faziam parte do rebanho e trouxe as
ferradas para entre os penedos. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando
um agudo pio. Ele levantou os olhos, mas j no a viu. Aquele silncio de terra molha
da e altaneira comeara a desagtadar-lhe. Dir-se-ia que, em vez de ar, era esse si
lncio frio que lhe descia para os pulmes, que lhe enchi-x a boca, o nariz, os ouvi
dos, que lhe penetrava a prpria pele. Horcio admirava-se de como, outrora, o supor
tava sem pensar sequer nessa mudez das coisas, nessa solido da noite, habituado qu
ilo, to habituado que, no quartel, o que mais lhe custara, nos primeiros tempos,
fora dormir com outros soldados, na grande quadra comum. Pensava, agora, que
no lhe comprazia nenhuma das duas situaes e que s quando ele trabalhasse numa fbrica
e dormisse em sua casa a vida lhe seria apetecvel.
Sentados na sua frente, o "Piloto" e o "Lanzudo" no tiravam os olhos dele. Estava
m quedos, mas ansiosos, sabendo que no comeriam sem ele fazer, primeiro, o queijo
e sofriam por v-lo com gestos to lentos. Horcio coava o leite, derramando-o das f
erradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano.
Os ces seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado
o pedao de cardo que devia produzir o coalhamento e ficaram mais nervosos. Era a
sua hora. Mas ele continuava com uns vagares de arreliar. O "Lanzudo",
78
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^.consciente de seus direitos de molosso, chegou mesmo a estender a cabea para um
a das ferradas e a cheirar o leite das cabras, que se destinava apenas a eles trs
. A escuridade aumentara mais. Uma estrela, ainda plida, surgira no cu, para as ba
ndas das Penhas Douradas. Ento Horcio comeou a esfarelar po sobre a ferrada que o "L
anzudo" e o "Piloto" contemplavam, famintos. E quando o po ficou embebido de lei
te, empurrou a lata para a frente dos ces renunciando sua parte.
Os dois companheiros comeram, ruidosos na sua gula, e quedaram, de novo, espera.
Ele fixou a rima de batatas, mas desistiu de as cozer. Abriu o alforge, content
ou os bichos com mais po e, lascando um naco para si, cobriu-o de toucinho e ps-se
a tasquinh-lo lentamente, de olhos vagueando no cu, agora todo estrelado. Uma voz
soou na noite: Horcio...
Ele estremeceu. De entre os penedos no via ningum. O "Lanzudo", na sua importncia d
e grande senhor sem medo, limitou-se a olhar para a banda de onde a voz sara; o "
Piloto", mais plebeu, ladrou. A voz repetiu:
Horcio...
Era uma voz discreta, quase tmida, como se tivesse receio de acordar a serra ou d
e espantar a noite. Horcio conhecia-a, mas no conseguiu identific-la.
Quem ?
A voz parecia encontrar-se, agora, mais perto:
Sou eu... O Chico... Onde ests?
Horcio saiu do esconderijo e encaminhou-se para a malhada. A sombra humana esboava
-se junto do bardo e, ao divis-lo, acercou-se. As suas palavras tremiam:
Ento como passaste por l ?
Eu passei bem... Tu, j sei que tiveste um grande desgosto...
No chegou a dizer mais. O Chico da Levada baixara a cabea, cruzara, depois, as mos
sobre os olhos e pusera-se a soluar, como se tivesse vindo ali somente
A LA E A NEVE
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para aquilo. Horcio agarrou-o e f-lo sentar-se numa pedra, ao seu lado.
Tem pacincia, homem! Acontece a toda a gente... Quando morreu a Lusa?
H trs semanas... murmurou o Chico da Levada chorando cada vez mais forte.
Horcio no sabia que dizer. Via a mulher do outro, to nova como ele, de ps de arvola e
feies delicadas, usando sempre, mesmo depois de casada, blusas de chita multicolo
r, na terra em que quase todas as mulheres se vestiam de negro, como se andassem
de perptuo luto pela sua prpria vida. Via-a, assim, airosa, nas ruelas de Manteig
as e lembrava-se de que, muitas vezes, ele mesmo desejara o seu corpo. E, agora,
sentia-se sem jeito para encontrar uma palavra de consolo.
Tu desculpa-me...disse o Chico da Levada, procurando dominar-se. No tenho esta n
oite ningum na malhada. Foi a irm do Canholas que me trouxe os acinchos. Ela no po
dia, j se v, dormir comigo e foi para a malhada do irmo. Assim sozinho, se eu no fal
asse agora com algum, parece-me que rebentava. Por isso vim. De dia ainda me you
aguentando, mas, noite, se estou sem companhia, um tormento. Estou sempre a pens
ar na que Deus levou e parece-me que a vejo, coitadinha, andar na escurido, sempr
e em meu redor, como se tivesse pena de mim. Ento, julgo que endoideo!
Horcio continuava a no saber como dar conforto.
De que morreu ela ?
Ela morreu... nem me quero lembrar! Uma coisa assim! Ela teve uma criana e parec
ia que tudo ia bem. Aos trs dias, como era a minha vez de tomar conta do gado, vi
m por a acima. Eu tinha deixado a. meio cavar o campito para milho que temos arre
ndado. Ela, ao quarto dia, levantou-se e andou por casa. Ao quinto, pegou na enx
ada e foi para o campo acabar aquilo, pois estava a passar o melhor tempo. Quand
o voltou, tinha muita sede e bebeu gua fria na fonte
8o
A L E A NEVE
*da Senhora dos Verdes. Logo nessa noite se sentiu mal. E, no dia seguinte, tin
ha febre. L a comadre disse que muitas mulheres, depois de dar luz, ficavam com
febre e no lhes acontecia nada. Fizeram umas ; rezas e queimaram umas ervas,
para ver se aquilo ' passava. Quando eu voltei, vi-a muito mal. Mandei j de
caminho chamar o doutor, mas j ela estava per- ; dida... Coitadinha, morreu abraad
a filha e lanou-me um olhar to triste que, s de pensar nisso, se me ; parte o corao.
.. i
Voltou a soluar. i
Tu o que devias era andar, agora, na serra, para j no estares sozinho... j
Pois era... Tenho pensado muito nisso... A peque- j nita est com a av e se en est
ivesse junto dela tal- j vez me consolasse mais. Mas que you fazer ? Agora
' s me faltam trs dias para acabar a semana que me j compete, mas, quando chegar
de novo a minha vez, j tenho de voltar. Os outros tambm no podem, coitados! Que
o meu gado cada vez menos. Vendi trs cabeas para pagar as despesas do enterro e,
na segunda-feira, um lobo deu-me cabo de mais duas.
Aonde ? perguntou Horcio, alarmado.
Aqui mesmo, ao lado, na malhada do Pimenta. Foi uma noite como a de hoje. Para no
estar sozinho, fui ter com o Canholas e a irm dele e o diabo do co seguiu-me... E
u no devia largar o gado, bem ; sei, mas que queres ? Quando voltei e vi o co
atrs j de mim, tive um pressentimento. Corri para o bardo
e ainda vi o bicho fugir... Ainda assim, tive sorte. As ovelhas eram minhas; s
e fossem dos outros, seria pior, pois perdiam a confiana em mim. Mudou o torn d
e voz: Peo-te que no digas nada disto a ningum. S a ti e ao Canholas eu disse a v
erdade. j Parece que, noite, depois de falar da Lusa, se falo ] de como
o lobo veio malhada no posso mentir... Mas aos outros eu contei uma histria
que arranjei, ; seno ainda por cima se riam de mim...
Calou-se. Horcio olhava na direco da malhada do Pimenta, auscultando o grande silnci
o nocturnal.
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O Chico da Levada acabou por sentir a mesma preocupao :
Hoje o co ficou l. Em todo o caso, no me posso fiar nele. No presta para nada. Vo
u-me embora... disse, mas continuou sentado, sem se mover. Os seus olhos erguer
am-se para o cu e demoraram-se como se estivessem a contar estrelas. Olha l, Horci
o ! Tu pensas que no outro mundo a nossa alma ter a mesma cara que ns tem
os c na terra? No deixaremos de ter um corpo igual ao que temos aqui ?
Horcio fez um gesto vago:
No sei. Como posso eu saber ?
Eu queria tornar a ver a Lusa, mas tal-qual ela era antes de morrer. com a mesm
a cara, com o mesmo corpo... No como dizem que uma alma, assim como um
fantasma. Se ela estivesse igual ao que era, eu no me importava de morrer
tambm.
Tem juzo! protestou Horcio. Tens agora uma filha a criar...
Ele levantou-se vagarosamente.
Pois ... Tenho a pequenita. isso que me prende... seno deitava fogo s flo
restas e depois dava cabo de mim.
Horcio olhou para ele, surpreendido:
Por conta de quem ?
Tambm o Chico o olhava pasmadoj vendo sarcasmo na pergunta:
Por conta de quem, o qu? No percebo...
Homem, no dizes que deitavas fogo s florestas ?
Pois deitava... E at com quanto petrleo eu arranjasse. Se me vissem, que import
ava? Antes de me apanharem, j eu me teria morto. Se no fossem as florestas, eu an
daria com o gado perto de casa e no deixaria que a Lusa fosse para o campo assim to
cedo...
Isso parece-te a ti, agora. Quantas mulheres se levantam ao fim de trs ou quatro
dias e trabalham sem que os homens andem longe de casa! A questo haver preciso.
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Eu c no deixaria a Lusa trabalhar naquelas condies, coitadita! Podes crer que no deixa
ria... A voz sara-lhe novamente trmula, enternecida. Durante um momento ele quedou
-se em silncio e, depois, comeou a afastar-se lentamente. At amanh...
Enquanto o Chico da Levada se sumia na noite, Horcio dirigiu-se ao esconderijo, p
ara acabar de fazer o queijo. O leite estava coalhado. com ele atestou os "acinc
hos", os arcos de folha que, postos sobre quadrados de madeira, davam massa lctea
forma redonda e baixa e pelos seus orficiozitos deixavam o soro escorrer livreme
nte.
Horcio respirou alvio: da sua parte, aquilo estava pronto; em casa do Valadares po
riam sal nos queijos e acabariam de prepar-los.
A noite esfriara. Os dois ces haviam-se deitado entrada do bardo e o cu e a terra
continuavam cheios de silncio. Horcio escolheu o stio mais propcio e deitou-se tambm
no cho, enrolado na sua manta, junto do rebanho. com o sono arisco, ps-se a divaga
r: "O Chico da Levada at faria aquilo de graa, porque todos os pastores eram contr
a as florestas. A ele, ao menos, pagariam quinhentos escudos. Quinhentos escudos
no resolviam a sua vida, mas chegariam para ele se ver livre do Valadares". A hu
midade da terra molestava-lhe a face e Horcio meteu entre a face e a terra o seu
alforge. Divagou novamente: "O vigrio no era homem que mentisse. Se lhe dissera aq
uilo, porque aquilo era verdade. Mas, com certeza, os pastores antigos no eram ig
uais aos de hoje, seno os santos e os tais poetas no iam gostar da vida deles".
Adormeceu para acordar, de repelo, a horas altas. O seu ouvido de pegureiro, que
dir-se-ia continuar desperto quando o resto do corpo dormia, acusava a quebra do
silncio alpestre. com a ideia nos lobos, Horcio olhou, rapidamente, para o bardo.
Mas antes mesmo de divisar os ces deitados, identificou a flauta do Chico da Lev
ada, tocando na noite morta, enquanto rebanhos de nuvens erravam no cu, a pastar
as estrelas. Pareceu-lhe que a alma da Lusa tambm andava
em volta dele e quis mal ao Chico da Levada por t-lo acordado. Voltou a adormecer
com a flauta ainda a tocar e, quando tornou a si, j para o lado dos Cntaros vadia
vam as primeiras claridades do dia. Ainda com o crebro ensonado, Horcio pensou em
Manuel Peixoto: "Ia, finalmente, saber a sua resposta!"
A serra continuava silente, mas, quela hora, por todas as malhadas, nas que se ex
punham sobre os declives e nas que, entre fragas, s do cu se viam, comeava a faina
dos pastores. Horcio pegou nas ferradas e ordenhou, de novo, as ovelhas. Queijou,
repetiu as operaes da vspera, -as operaes que ele havia de repetir, de manh e noite
at o fim de Junho, quando os beres secavam. E, tudo pronto, abriu o bardo. De anda
ina humedecida, o cajado na mo direita, no brao esquerdo uma ferrada com batatas,
partiu atrs do rebanho.
As ovelhas, ao princpio de lesto e decidido pa?so, logo que venceram o fraguedo v
izinho da malhada, abrandaram a marcha, pondo o focinho a quanto pasto lhes verd
ejava. E uma hora aps outra, pelas dez, j ao largo dos Poisos Brancos, Horcio via s
urgir de todos os desvos da serra, metendo a encostas e piainos, numerosos rebanh
os.
A manh pintara-se com as suas melhores cores. Um sol de prata a arder estadeava-s
e em cu azul e de tanta limpidez, que a grande redoma dir-se-ia mais espaosa do qu
e noutros dias; e a luz matinal, vinda do alto, desquitava a montanha das suas d
uras linhas, dilua as suas rudezas de outras horas, fazendo branquejar, num trans
parente flux, o eterno negror dos Cntaros e de quantos brutos penhascais cortavam
o passo aos olhos.
Resvs terra, a louania era maior ainda: os humildes sargaos mostravam-se todos garr
idos com suas amarelas floritas, as agulhas das giestas estavam enfloradas tambm
ao lado de moitas de urzes, sobre cujas brancas flores saltavam ledos insectos.
Annimas folhas retinham ainda lgrimas da noite, que o sol, agora, irisava; e as prp
rias carquejas, rasteiras e aspe-
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*as no seu verde-escuro, dir-se-iam mais verdinhas e macias sob a manh de mil ful
gores. As campainhas dos rebanhos iam enebriando com a sua msica a majestade da m
ontanha, enquanto frente das ovelhas se levantavam, em voos rpidos, cotovias e cr
ielvos cantadores e esvoaavam bandos de borboletas. Aqui e mais alm e depois novam
ente, outro cntico surgia, suave, baixinho, ininterrupto, que assim cantavam as r
ibeiras da serra, correndo para os vales as suas guas frescas, entre grandes pedr
as que elas arredondavam e macios de abetoiros em flor.
Mas nenhum dos homens que, na montanha, acompanhando rebanhos, esgotavam a melho
r parte da sua vida, primariamente vestidos, sumariamente alimentados, trazia es
prito vazio de ralaes, alma livre para fruir o esplendor da manh. De expresso resigna
da, um vago fatalismo nos olhos sombrios, mesmo quando riam, mesmo quando cantar
olavam, eles dir-se-iam apartados, por uma velha maldio, dessa alegria de viver qu
e se revelava em seu redor, no voo das aves, no voo dos insectos, no florir dos
vegetais e na rtmica toadilha que as guas soltavam na montanha.
De cajado estendido, Horcio correu a deter a marcha do seu rebanho, que metera a
terra que lhe era defesa. A montanha estava dividida em vrias zonas de pastoreio
cada uma delas reservada a um dos concelhos serranos, pois s assim se conseguira
pausa nas bravas discusses entre pastores, nas brigas que manchavam de sangue as
encumeadas. Murmuro fio de gua, um cordo de rochedos, por vezes uma torrezita de
pedras soltas um "talegre" indicavam os extremos de cada rea e transp-los seria
desafiar a razo, a clera e o varapau dos pastores da outra banda.
Retidas, as ovelhas de Valadares mostravam-se inquietas e uma e outra, mais afoi
ta e alheia aos acordos humanos, saltava a linha convencional que separava a par
te da serra atribuda a Manteigas daquela onde s deviam campear os rebanhos da Alde
ia do Carvalho. com pragas e pedradas, Horcio ia obri-
gando a recuar as atrevidas, quando viu, finalmente, recortar-se sobre uma lomba
a figura de Manuel Peixoto. Atrs do seu rebanho, o amigo acercava-se lentamente
e, mesmo quando chegou fala, parecia no ter pressa de o sossegar. Pairou sobre mu
itas outras coisas e s depois, ante o teimoso silncio com que ele o ouvia, disse:
L falei com o meu irmo... O que tu queres no fcil. Mas ele prometeu-me fazer o que
puder. o que eu pensava: alm de haver falta de lugar, tu j passaste a idade. S por
muita preciso ou grande cunha eles metem aprendizes com mais de dezasseis anos...
O Mateus diz que a lei assim. Mas desde que ele prometeu, decerto arranja. O pa
tro tem respeito por ele e em ele lhe pedindo, faz-lhe a vontade...
Horcio continuava ansioso:
E demorar muito, senhor Manuel ?
Isso que eu no sei. Pode ser uma semana, pode ser meses. questo de haver vaga ou
aumentar muito o trabalho.
IV
f\ o crepsculo, posta a um canto a enxada com que labutara o dia inteiro, pessoa
da famlia de cada pastor, um filho, um irmo, a maioria das vezes a mulher, empreen
dia o caminho da serra, com um burro frente. E, por canadas e atalhos, grimpava
dez, doze, mais quilmetros, ora em silncio fatigado, ora soltando cantigas que esp
airecesse o seu cansao. Todas as encostas eram vencidas assim, ao sol poente, por
estas isoladas figuras, subindo para as malhadas. Ao chegar, j noite fechada h mu
ito, cada qual descarregava do onagro o po e o conduto que o pegureiro e seus ces
comeriam no dia seguinte e os acinchos vazios para os novos queijos a fazer. Dep
ois, rendido da caminhada e do labor diurno, o familiar recm-
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^-chegado deitava-se na terra, junto do pastor, at que o tecto celeste, que a amb
os cobria, ameaasse clarear. Ento, acomodados sobre o burro os queijos feitos na vs
pera, os parentes dos ovelheiros abalavam de novo, agora serra abaixo, anda, and
a, a toda a pressa, para casa, para a enxada para outro trabalho.
malhada de Valadares era um dos filhos deste o Tnio ou o Leandro que ia l todas a
s noites. Nunca mais, porm, Tnio voltara a falar a Horcio , da sua proposta. Pareci
a at que evitava referir-se a i tudo quanto pudesse record-la. Tambm Horcio no aludia
ao caso, embora sentisse, muitas vezes, que os j dois pensavam na mesma coisa,
quando, deitados de : faces para o cu, na escurido, ficavam calados antes de a
dormecer. Na manh seguinte, Tnio partia; ; noite, vinha o Leandro e os dias
iam fluindo e pare- l cendo, a Horcio, sempre iguais, enervantemente iguais,
] densos de uma monotonia que, para ele, s Manuel i Peixoto quebrava ao surgir,
com suas ovelhas, na serra, j O amigo, porm, dizia-lhe sempre o mesmo
: "Que i tivesse pacincia, que desse tempo ao tempo".
Horcio sentia-se cada vez mais desventurado. Os : outros pastores, porque cada
rebanho pertencia a qua- ' tro e cinco donos, revezavam-se, de sete em sete
dias, no pastoreio enquanto ele ficava sempre ali. Todas as semanas chegavam un
s e partiam outros, deixando-lhe a sensao de que a vida, para ele, era mais i
ruim, de que ele andava ali como um degredado. Os outros viam as mulheres, os fi
lhos, os pais; ele, parte ' Manuel Peixoto, no via a ningum que estimasse, poi
s j com Leandro no simpatizava e de Tnio era cada vez menos amigo. Comeara a co
ntar os dias, ansioso de que chegasse o perodo da tosquia, para ele se encontrar,
de novo, com Idalina. i As ovelhas haviam j estrumado o primeiro alqueiye j
e dormiam, agora, no segundo. O tempo aquecera. s i vezes ainda surdia uma
tempestade, com nuvens brancas explodindo em raios e troves, mas isso era coisa q
ue passava abaixo das cristas da serra, conflito de elementos que os pastores
viam, de cima, a deitar
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grandes sombras sobre os vales, enquanto o cu continuava azul e o sol a brilhar.
Vrios rebanhos tinham j partido para ser tosquiados, sem que Valadares mandasse di
zer que o dele partisse tambm. Mas, uma noite, pelo S. Joo, Tnio trouxe, finalmente
, a ordem to desejada: Horcio devia baixar, com as ovelhas, no dia seguinte.
Partiram os dois ao alvorecer. Tnio conduzia o burro com os ltimos queijos e ele d
irigia o rebanho. O tempo continuava quente. Tnio comentou o facto e acrescentou:
At a carqueja j estala debaixo dos ps! O pasto ser cada vez pior...
Ao ladearem a floresta que se estendia desde a Fonte Santa at alm do Poo do Inferno
, Tnio comeou a olhar para os pinheiros, de forma demorada, ostensiva. Horcio adivi
nhou-lhe o intento, mas no disse coisa alguma. Ento, baixando a vista para a terra
, Tnio murmurou:
C em baixo est tudo seco...
Horcio continuou calado. As ovelhas haviam metido a uma canada, tortuosa, estreit
a, atravancada ae pedregulhos, como o leito de um ribeiro; o burro ia atrs delas
e, atrs do burro, os dois homens desciam com dificuldade e em silncio.
Subitamente, Tnio voltou-se:
J resolveste aquilo ? Horcio respondeu secamente:
No resolvi nada. Arranja outro.
De novo calados, continuaram a descer o spero caminho, fundo regueiro aberto entre
a linde da floresta e a terra maninha. Mais abaixo, Tnio lembrou:
Foi aqui que, no ano passado, me multaram. E mudou o torn da sua voz: Se quiser
es, recebers, da primeira vez, seis notas...
As ovelhas iam muito apertadas, roando-se os seus corpos uns pelos outros nas cur
vas da canada. O "Lanzudo" e o "Piloto" acompanhavam o rebanho, mas pela parte d
e cima, fora do caminho. Por entre os pinheiros
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*j se divisavam o hotel das termas e outras edificaes das Caldas. Horcio tardou a re
sponder:
Hei-de ver isso... disse, por fim.
Mas quando ? Est-se a perder o bom tempo!
A voz de Tnio soava, pela primeira vez, a irritao. As ovelhas continuavam a descer.
Via-se, agora, o balnerio e a muralha que, ali, subia do Zzere.
Amanh... o mais tardar depois de amanh. Nos arredores das Caldas, o rebanho pastou
, algum
tempo, num campito que Valadares possua ali. Tnio havia partido e, ao meio-dia, Ho
rcio meteu as ovelhas estrada. Pouco depois via, entre a Senhora dos Verdes e o O
uteiro, os dois castanheiros de que Tnio havia falado. J l o esperavam sombra das l
argas frondes, o tio Marrafa, a mais afamada e cara tesoura de Manteigas, e outr
os tosquiadores. Nas mos de Marrafa cada ovelha dir-se-ia massa inerme, plstica, s
em fora nem vontade. Em dois movimentos ele "apernava-as" amarrava-lhes as q
uatro patas, sentava-as entre as suas pernas e metia-lhe a tesoura vizinhana
do pescoo. A l, cortada cerce, ia-se arregaando suavemente e descendo em ondas
fofas, sem nunca se romper em volta do corpo. De quando em quando, deixava a d
escoberto, agarrado pele da ovelha, que nem verruga negra, um repugnante carrapa
to, outro e outro. Se algum lhe ficava a jeito, Marrafa cortava-o em dois, reso
luto. Um derradeiro instinto de defesa animava o parasita, que, embora de cabea
decepada, continuava a fugir, largando sangue. Mas nem plos mutilados, nem plos in
teiros, Marrafa desviava jamais a tesoura de seu caminho. Ele considerava que, e
m dia de tosquia, as ovelhas pastavam pouco e os carrapatos que elas comiam nas
costas umas das outras, logo que tosquiadas, lhes serviam de alimento, pois lhes
devolviam o, prprio sangue delas.
O velo continuava a descer. A l saa numa nica pea e sem um s esgarce, como um vestido
que no fora sequer desabotoado.
A tosquia do rebanho durou dois dias. Na primeira noite, ao p de Idalina, Horcio e
squeceu as suas agru-
A L E A NEVE
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rs na serra. Tudo isso lhe parecia j mui remoto, como se o instante que ele vivia
agora fosse o nico da sua vida e encerrasse todos os destinos do Mundo. Dissera a
Idalina que teria um lugar certo na Covilh, mais dia, menos dia; ela mostrara-se
muito alegre com aquilo e, desta vez, no lamentara ter de sair de Manteigas, log
o que casassem. Idalina no lhe fizera perguntas e s abandonara a mo dele, naquele r
ecanto do Eir, submerso no lusco-fusco, quando sentira passos na ruela.
Na segunda noite, vspera de S. Joo, o povo acendera grande fogueira numa praa da vi
la e, em sua volta, largara a danar, enquanto, no coreto, a banda da freguesia de
So Pedro tocava. Eles danaram tambm e, depois, somaram-se aos ranchos que, em desc
antes, ao som de pfaros e harmnicas, iam s orvalhadas, para a banda das Caldas. A e
strada enchera-se de grupos. A noite estava clida e estrelada. De toda a parte vi
nham sons musicais e nas termas, em frente do balnerio, haviam acendido outra fog
ueira.
Horcio foi retardando o passo e deixando os demais distanciarem-se. Depois, com a
mo no brao de Idalina, seguiu a estrada que contornava as Caldas, pela parte de c
ima, em direco ponte. Quando se sentaram, no havia ningum perto deles. Mas via-se, l
em baixo, a fogueira e os pares que bailavam sua roda. A noite estava cheia de c
anes de raparigas e de uma mornido voluptuosa. A terra que sucedia estrada era em s
uave declive e eles deixaram-se deslizar. Beijando Idalina e com a mo a acariciar
-lhe as mais inflamveis zonas do seu corpo, ele sentia correr, em si, toda a volpi
a da noite e toda a fome que sofrera a sua carne celibatria, vagueando na soledad
e da serra, soledade propcia, como a de um crcere, constante evocao do amor. Mas con
tinha-se. Outras vezes, como agora, ele pudera tentar aquilo, mas sempre se cont
ivera, sob a fora dos vetos tradicionais. Ela seria dele quando casassem.
Estavam deitados, um ao lado do outro, em silncio, a ouvir a noite, as cantigas d
a noite, a msica
go
A L E A NEVE
j, que chegava at ali com as canes, vinda de l dei
baixo. O fulgor da grande fogueira espalhava-se para]
alm do Zzere e ia doirar, do outro lado, a fmbria j
da floresta. Ele contemplou, Um momento, os pinhei- j
ros distantes, de formas mal definidas, e, depois, visio- j
nou aquele mesmo claro a ampliar-se, a ampliar-se j
sempre, a iluminar toda uma encosta do vale, a ilu- i
minar a noite, no aquela mas uma outra noite, no \
aquelas chamas baixas de fogueira, mas outras, altas, l
muito altas, rompendo de entre os pinhais, com homens j
de p, lutando contra elas, sudorosos, bronzeados pelo
fogo, enquanto ele fugia nas trevas e se ocultava algu- i
rs, como um lobo. "Seis notas... Pega l. Para outra l
vez ters outras seis". E, depois, um dia, um guarda
em frente dele: "Vem comigo". Quando os seus olhos l
voltaram fogueira, estranharam, um segundo, que l
quem em seu redor andava no estivesse a apag-la l
e sim a bailar e a cantar, rapazes e raparigas, como eles l
dois, enlaados na noite de S. Joo. Sentia a Idalina l
to sua, to pronta a entregar-se a ele, to pronta a i
esperar por ele, que mais uma vez venceu a tentao l
de aceitar a proposta que lhe haviam feito. l
Na manh seguinte, ao tirar o gado das cortes que l
Valadares possua perto dali, disse a Tnio: I
Sobre aquilo, no temos nada feito. Eu no quero, l
Est bem. Ningum te obriga ripostou Tnio, l com um sorriso plido. J
Ele voltou para a serra com o rebanho. E ia con- l tente consigo prprio. Arrumara
aquela indeciso que i o moera muitos dias e, por outro lado, vira e falara l tia
Januria sem que ela lhe fizesse observao alguma, l Quanto a Idalina, parecia que c
ada vez gostava mais l dele. l
S a meio da encosta, com as ovelhas subindo vaga- l rosamente, o seu estado de es
prito se alterou. Ao l voltar-se para o vale, que se mostrava cheio de sol l mati
nal e cromtico no casaredo, verde na moldura l das florestas, todo de uma beleza,
tranquila, lembrou-se l de que, nesse dia de S. Joo, ningum trabalhava l e entri
steceu de repente. "Se no fosse o raio daquele |
A LA E A NEVE
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ofcio que ele tinha, estaria tambm na vila e passaria a tarde com Idalina, em vez
de andar por ali a rebentar pedras com os ps. E de agora em diante seria sempre p
ior, pois o Valadares, furioso por ele no lhe fazer a vontade naquilo de deitar f
ogo, havia de o tomar de ponta".
No mais lhe voltara a satisfao de h pouco. Sentia-se, agora, como antes de descer a
Manteigas, com as mesmas impotncias, as mesmas dvidas, o mesmo futuro confuso. "Se
Idalina se mostrara assim como se mostrara, porque ele lhe dera muitas esperanas
e pintara tudo cor-de-rosa. Mas ele sabia l quanto tempo teria ainda de passar f
eito pastor! E se, depois do que dissera, se casava sem mudar de vida, ainda se
iam rir sua custa".
Passou manh e tarde a batalhar consigo prprio, a lutar com quanta ideia contrariav
a os seus desejos. Esperava topar Manuel Peixoto e desanuviar-se com ele, mas ta
mbm o amigo no sara da sua aldeia nesse dia. Na vastido da serra, s encontrou o Chico
da Levada. J no trazia flauta. Estava mais magro e de olhos fundos, fatigados. Fa
lava com voz triste, mas parecia resignado. Agora a sua malhada ficava muito dis
tante da terceira de Valadares a ltima a estrumar.
noite, Horcio dormiu sozinho. Porque os beres das ovelhas comeavam a secar, sendo c
ada vez menos o queijo que o seu leite produzia, somente na noite seguinte Tnio a
pareceu. No denunciava ressentimento algum. Ao contrrio do que Horcio pensara, ele
at parecia mais afvel e mais falador do que tempos antes. Dir-se-ia apenas desejar
que no houvesse um momento de silncio entre eles. E, desde essa noite, Tnio voltar
a a alternar com Leandro nas suas vindas serra. No ltimo dia do ms, mal chegara, t
irou do bolso algumas moedas e disse:
Est aqui a tua soldada. O meu pai aumentou-te dez mil ris. E manda dizer que se no
quiseres descontar nada, l na dvida, no faz mal...
Horcio quedou-se a olhar para Tnio, sem pegar
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*no dinheiro que ele lhe estendia. Depois, desviou a> vista.
Quero I Quero descontar toda a soldada, menos vinte mil ris. E d l os meus agradeci
mentos aoteu pai. Mas se com medo de que eu diga alguma coisa, escusava de me au
mentar... Se eu no valia mais at agora, tambm agora no valho.
Sentia-se, subitamente, forte, ao lembrar-se de que tinha aquele segredo. Ao con
trrio, Tnio mostrou-se nervoso:
Sempre tens cada ideia! J te disse que o meu pai no tem nada com o caso e, demais
a mais, j se desistiu disso...
As ovelhas deixaram de dar leite. Uma manh, Tnio pusera sobre o burro os ute
nslios, agora inteis, para fazer queijo, e despedira-se de Horcio at a prxima semana.
E porque os alqueives, j estrumados, dispensavam a presena nocturna do gado, os
rebanhos de oitenta, noventa, cem cabeas, juntaram-se, como todos os anos, naquel
a poca, para economizar pastores, em rebanhos de mil e mais ovelhas cada uma del
as ostentando, no lombo, a marca do seu dono, letra ou nmero feito com pez e tint
a, com "pesgo". Dois pegureiros, acompanhando cada uma das multides ovelhuns, fazi
am agora o mesmo trabalho que, antes, exigia dez ou doze.
Valadares era o nico que, por birra antiga com outros proprietrios de gado, no quer
ia reunir as suas ovelhas s dos demais. E, assim, o rebanho dele, que, no comeo do
pastoreio, se apresentava o maior de todos, tornava-se, de um momento para o ou
tro, o mais pequeno de quantos andavam na serra.
De dia, as ovelhas deambulavam pelos pascigos e, depois, dormiam onde a noite as
colhia. Estavam no perodo da cobrio e os carneiros, desenfreados retaguarda das fme
as, ao recordar a Horcio o acto reprodutivo, exaltavam-lhe os nervos e punham-lhe
no
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crebro e no sangue a imagem de Idalina, como uma sede permanente. A solido tornara
-se maior, pois contavam-se pelos dedos os pastores que se divisavam, durante o
dia, atrs dos enormes rebanhos. Agora, Tnio s vinha ali aos sbados, trazer po, batata
s e toucinho. Entregava aquilo, quedava-se uns minutos a pairar e voltava logo p
ara Manteigas. Horcio pedira-Ihe, uma vez, que passasse por sua casa e dissesse me
que lhe enviasse a flauta. Mas quando, na semana seguinte, Tnio lha trouxe, ele
lembrou-se da razo por que o Chico da Levada soltava aqueles sons alegres, saltit
antes, meio loucos e no tocou. Parecia-lhe que tambm ele levava alguma coisa mort
a dentro do peito e que a flauta se tornara fnebre e lhe daria m sorte.
O seu nico prazer era encontrar-se com Manuel Peixoto. Mas este deixara de aparec
er diariamente nos limites de Manteigas. Tinha, agora, mais cabras do que ovelha
s e muitos dias pastoreava o seu gadito nas encostas prximas da Aldeia do Carvalh
o. Quando vinha ali, Horcio esperava sempre ouvir-lhe a palavra desejada; muitas
vezes, porm, Manuel Peixoto nem sequer se referia ao caso, por no ter novidade alg
uma a dar-lhe e no estar a repetir o que j lhe havia dito.
Ao morrer de Julho, a serra voltou a mostrar copiosas presenas humanas. As famlias
dos pastores e os pastores que no andavam de guarda s ovelhas, haviam subido do v
ale montanha, para ceifar as searas. Por todas as encostas e mesmo nos plainos c
imeiros viam-se, nessa poca, pequenas e isoladas manchas amarelas, contrastando,
num soberbo efeito, com o verdor da serra onde elas se exibiam. Era o centeio ma
duro aguardando a foice dos que o semearam. Homens e mulheres chegavam, com seus
burros, e lanavam-se tarefa, em vrios dias de canseiras e noites dormidas ao rele
nto. Sega, sega, quando a messe estava por terra, transportavam as gavelas para
a mais prxima rocha que brindasse lisa superfcie e ali as malhavam. Existiam pobr
es to pobres que mesmo esse fraco cho altaneiro, outrora baldio e merc de quem o qu
i-
94
A L E A
NEVE
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^sesse ocupar, tinham de toma-lo de arrendamento aos descendentes daqueles, mais
felizes, que para si o haviam chamado a tempo. Assim, colhido o gro, eles comeava
m logo a medi-lo, pondo de banda o que competia ao dono do terreno, consoante a
quantidade obtida. Depois, o que restava era, de novo, dividido, uma parte desti
nada ao po desse ano, outra seara do ano vindoiro. A semente j no saa dali. Cavada a
terra que acabava de frutificar e quedaria em descanso, a comer os seus restolh
os, homens e mulheres, em fins de Agosto, antes de volver definitivamente ao val
e, dobravam-se sobre as malhadas que haviam ficado um ano inteiro em poisio e s
emeavam-nas.
Durante essas manhs de Vero, a serra adquiria vida diferente da habitual. Daqui, d
ali, de messes e alqueives ocultos entre penedos, elevavam-se vozes, rudos do tra
balho, muitas vezes cantigas que voavam para longe, quebrando o silncio da montan
ha.
Desejoso de convvio que metesse pausa nas apoquentaes que o roam, Horcio encaminhava
o rebanho, todas as tardes, para a vizinhana dos homens e mulheres que ceifavam o
u malhavam. Era sempre perto de uma das improvisadas eiras ou de seara a abater
que as ovelhas agora dormiam. E enquanto no se punham todos de ventre para o cu, d
erreados pela labuta diurna, ele ia parolando com um e outro, tudo gente conheci
da, desde o Fataunos, com quem, em pequeno, jogava o pio, ao Serafim Caador, amigo
de seus pais.
Uma noite, noite de claridade estival, estavam j para se deitar, quando a Josefa,
a mulher do Canholas, ; descobriu que, para as bandas de Manteigas, o cu a
presentava outra cor. um fogo, no ?
Todos olharam na direco apontada e nenhum deles teve dvidas. Mas aquilo pareceu-lhe
s coisa de pouca monta, um desses fogarus que, num e noutro Vero, se ateavam ningum
sabia como e para apagar os quais os guardas da floresta bastavam. S Horcio ficar
a calado e atento. Pouco depois, o que era, de
incio, dbil fulgor, alastrara e tornara-se enorme claro, que ia aumentando mais e m
ais a cada instante.
Ena, que um grande fogo! exclamou Serafim Caador.
por riba das Caldas... No lhes parece ? perguntou Canholas, apertando o cs das c
alas, que ele j havia desabotoado para se deitar.
Deve ser... respondeu-lhe a mulher. E, com este ventinho, vai levar tudo a eit
o, at a estrada.
Isso que preciso! disse, por detrs de um dos penedos, uma voz cansada, na qual H
orcio reconheceu a do velho Jernimo Latoeiro. Deus queira que no fique uma s rvore!
De todas as searas e restolhos prximos surgiam outras figuras e os comentrios pros
seguiam. As copas da floresta que se estendia n?, frente deles no lhes permitiam
ver seno aquele imenso claro, sempre maior, a doirar a noite, a doirar o cu por cim
a do vale, do vale que mal se adivinhava ao longe. Ento, uns atrs dos outros, todo
s correram para o pncaro que se erguia direita. E l se quedaram, um momento, em si
lncio, a contemplar as cristas das chamas, cada vez mais numerosas e mais extensa
s, na vertente oposta.
No h dvida, por riba das Caldas. A mata ali no grande, mas pode pegar outra admit
algum.
Qual pode pegar! J pegou, que !
Houve novo silncio. Vieram mais homens e mulheres ofegantes. Quase todos sentiam
desejos de intervir e mediam mentalmente a distncia que os separava do incndio e o
tempo que levariam a chegar l. Alguns, de ouvido mais sensvel, captavam os sons l
ongnquos dos sinos de So Pedro e de Santa Maria, tocando, a rebate, em Manteigas.
Para esses, aquilo era como um aguilho, picando-os, impelindo-os para a outra enc
osta.
com quase toda a gente na serra, no h quem lhe acuda a valer...voltou um deles a m
urmurar.
Ningum respondeu. Mas, parte o tio Jernimo Latoeiro, todos os outros se sentiam em
puxados por esse antigo e quase instintivo sentimento de solidarie-
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Jdade que, ao surgir um incndio na terra onde no havia bombeiros, levava as classe
s populares da vila, velhos e novos, homens e mulheres, a sair de suas casas c
om panelas, cntaros, ferradas e quantos outros recipientes pudessem transportar gu
a e a dispararem para a casa que ardia fosse ela a de um inimigo. Agora, de tod
os os pendores e cumes que cercavam Manteigas, desde ali s Penhas Douradas
, ao Campo Romano, Fraga da Batalha, mais longe ainda, as famlias pobres da vil
a, que haviam subido montanha para colher o seu po, olhavam o enorme incndio e sen
tiam, antes mesmo de raciocinar, a nsia de correr a extingui-lo.
E se ns fssemos l ? props Serafim Caador, mesmo ao lado de Horcio.
O velho Jernimo bradou, indignado:
Vocs sois uns estpidos! Uns estpidos chapados ! Porque estamos aqui ? Por que que no
temos terras de centeio e pastos junto de casa ? E voltando-se para o Serafim
Caador: Anda! Responde! Como todos se mantivessem calados, acrescentou: O que vo
s falta juzo! Juzo, juzo, o que vos falta!
O silncio continuava. A voz do tio Jernimo adquirira um torn de monlogo:
No estava mal a coisa, no... Para termos um selamim de po, o que se v! E as ovelhas,
onde esto elas agora ? com tantas terras que havia mesmo ao p da vila! Agora temo
s de dormir ao relento, se queremos ter algumas ovelhas ou algum po. E ainda vocs
querem acudir! Que o diabo leve todas as florestas! Todas! Quando vocs forem velh
os e comearem a berrar com dores de reumatismo, como eu, pelas noites que tive de
passar fora de casa, j no pensam assim...
Todos pensavam como ele. Mas, ao mesmo tempo, todos se sentiam atrados pelo incndi
o. Serafim Caador volveu:
Vossemec, por um lado, tem razo; mas, por outro lado...
No concluiu a frase, no encontrou claro argu-
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mento para a completar. Mas tambm no era preciso. Todos sentiam que havia um "outr
o lado", que nunca lhes tinha sido explicado suficientemente, at os convencer, um
"outro lado" que era contra os seus interesses de pastores e de pequenos agricu
ltores das encumeadas, mas que existia, fosse em benefcio da agricultura do vale,
como os doutores diziam, fossem quais fossem as razes.
Qual por outro lado, qual carapua!gritou, de novo, o tio Jernimo Latoeiro. O que
ns todos somos uns molengos, seno h muito que as florestas tinham acabado. ver com
o os pastores antigos faziam! Sempre que podiamzspegavam-lhes fogo!
Uma outra figura apareceu. Vinha esbaforida e mal descortinou, de sobre a ptrea i
minncia, a rea incendiada, comeou a carpir-se, desesperadamente:
Ai, meu Deus, que perco tudo! O fogo est perto das minhas courelas e va
i dar cabo das videiras que tanto trabalho me custaram!
Parecia alucinado. Olhou, de novo, o incndio, que lanava, cada vez, maior claro no
cu e abalou, a correr, por entre os penhascos. Os outros no hesitaram mais e segui
ram-no, correndo tambm. S ficaram ali o tio Jernimo, o Chico da Levada, Horcio e dua
s mulheres.
Scia de burros! exclamou, com desprezo, o velho. E, depois, ruminando a sua dis
cordncia, calou-se como os demais.
Horcio continuava a contemplar o incndio e tinha um sorriso frio ao pensar no seu
patro: "Agora ele compreendia porque Valadares no viera ainda nem mandara os filho
s ceifar o seu centeio. No havia dvida, estivera espera de um dia em que o vento t
rabalhasse por conta dele".
O Chico da Levada sentara-se ao lado do tio Jernimo, pusera os cotovelos sobre os
joelhos, a cara entre as mos e parecia dormitar. As duas mulheres caminharam par
a a malhada mais prxima. Horcio afastou-se tambm e foi deitar-se junto do rebanho.
Manh nascida, ele voltou ali. Os homens no tinham
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ainda regressado e l longe havia, agora, em vez de labaredas, uns tnues rolitos de
fumo. Horcio calculou a parte da floresta que fora destruda e concluiu ter sido m
ais pequena do que ele julgara de noite e muito menor do que, decerto, Valadares
queria. Esta ideia deu-lhe sbito prazer. E, assobiando, abalou com as ovelhas pa
ra a sua andadura quotidiana.
No sbado, ao trazer-lhe os mantimentos, Tnio comeou a falar, sem parana, de muitas c
oisas, como sempre que no desejava falar de uma coisa determinada. Depois, sentin
do que, apesar disso, o silncio se intrometia com ele, dada a teimosa mudez de Ho
rcio, perguntou de repente:
Viste o fogo do outro dia ?
Vi.
Tu pensaste logo que fui eu ou mais algum comigo... Dize l: no pensaste?
Horcio no respondeu.
com certeza que pensaste insistiu Tnio. To certinho como eu estar aqui. Pois
enganas-te! Eu no tive nada com isso. Aquilo de que te falei, ps-se de parte, como
j uma vez te disse...Ao ver em Horcio um sorriso incrdulo, ajuntou: No acreditas,
estou mesmo a ver... Pois podes acreditar! No ia fazer assim uma coisa to mal fei
ta como aquela. No reparaste que o fogo foi s num stio, em vez de ser em dois ou trs
, como eu tinha dito ? Assim, o povo e os homens dos servios florestais s tiveram
de correr para uma banda e deram cabo daquilo.
Horcio objectou, matreiro:
Ouvi dizer que o fogo pegou logo muito forte...
Pegou. Mas c para mim no foi fogo posto, como alguns querem crer. com tanta gente
para baixo e para cima, por mor de colher o po, deitaram, sem dar por isso, algu
ma ponta de cigarro... E o vento que fez o resto. Tem acontecido muitas vezes.
Horcio olhava-o fixamente e pensava, irritado: "s esperto, mas a mini no me enganas
tu".
Parecia que Tnio adivinhara o seu pensamento:
Demais a mais, no valia a pena disse. Os servios florestais mandavam, pel
a certa, semear outras rvores...
Ento Horcio perguntou, de mau humor:
Quando que vocs vm apanhar o centeio ?
Para a semana. Temos estado a ver se o meu irmo melhora e...
O Leandro est doente ? interrompeu Horcio.
Est. H j uma porrada de dias. O doutor Couto tem andado a v-lo. Parece que ele
tem maleitas. Mas o meu pai j perdeu as esperanas de ele sarar a tempo de vir c ac
ima e vai mandar um jornaleiro comigo...
Efectivamente, na semana seguinte, Tnio apareceu, no com um, mas com dois auxiliar
es, nas searas que o pai tinha na montanha. Ceifaram, malharam, cavaram os resto
lhos e volveram a Manteigas. Em fins de Agosto, tornaram ali, para semear os alq
ueives do ano anterior. E, quando partiram definitivamente, a serra voltou ao se
u silncio. Terminara a faina agrcola nas alturas; todas as famlias haviam j regressa
do terra baixa. Agora s se viam, na montanha, os ovelheiros pastoreando os grande
s rebanhos.
A inquietao de Horcio tinha-se agravado. Ele desesperava-se diariamente. "Se Manuel
Peixoto no lhe arranjasse lugar na fbrica, que ao menos chegasse Outubro para ele
abandonar a serra, pois, l em baixo, sempre passaria alguns dias com Idalina, en
quanto no fosse levar o gado Idanha". Mas Oututro ainda estava longe e o tempo pa
recia decorrer cada vez com maior lentido. Horcio acabara por vencer a fnebre repug
nncia que lhe causava a flauta e comeara a soprar-lhe nas horas de mais intenso en
ervamento.
Em Setembro, seguindo o velho costume, o gado foi, de novo, apartado. Vieram os
donos das ovelhas que se haviam reunido em enormes rebanhos e, pelos
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"sinais pintados nos lombos, cada qual foi separando as suas, que era a poca de s
e lhes aproveitar outra vez o esterco.
Novamente a serra se cobrira de pequenas ove-, lhadas. E cada grupo, com um s pas
tor, como o rebanho de Valadares, voltava a dormir em ponto certo, para deitar a
primeira adubadela terra que, esse ano, criara centeio.
Por fim, Outubro chegou. Os cimos arrefeceram, as noites tornaram-se longas e, m
uitas vezes, durante elas, as chuvadas molhavam os pastores sob as prprias lapas
onde se abrigavam. Era o tempo de partirem, mas eles iam resistindo, porque ali
sempre o gado encontrava umas folhitas, ao passo que em Manteigas e noutros povo
ados da montanha os pastos eram raros ou custavam rios de dinheiro. O primeiro a
despedir-se de Horcio foi Manuel Peixoto: "Que ficasse tranquilo, que assim que
ele soubesse alguma coisa mandava-lhe um recado a Manteigas". Depois, foi o Canh
olas com o seu rebanho. Logo abalaram outros, que cada vez havia mais nevoeiros
e mais chuvas na serra. Um dia, Horcio no divisou, desde que sara da malhada, ao al
vorecer, at chegar, pela tarde, Nave de Santo Antnio, um nico rebanho alm do que ele
conduzia. Havia, agora, um frio perene, o sol raramente rompia o cu plmbeo e a mo
ntanha adquirira, no seu abandono, uma rude severidade, to forte, to spera, que o s
eu prprio silncio dir-se-ia agressivo. S de longe a longe se via um insecto, e as a
ves j no voavam, numerosas e lacres, como antes, por cima de sargaos e torgas. Os prp
rios lobos, sempre no rasto dos rebanhos, tinham-se ido acercando das povoaes, ond
e seria mais fcil obter carnia. A vida animal abandonava a montanha, que se prepar
ava para entrar no Inverno com uma trgica desolao, at que a neve a transfigurasse.
Horcio indignava-se porque Valadares tardava em mandar dizer que ele descesse com
o gado. "O patro no tinha nenhuma considerao por ele. Aquilo parecia mesmo de propsi
to. J no tempo da tosquia fizera
o mesmo. Mas se ele quisesse falar, j no seria assim..."
Um dia, porm, Tnio apareceu na Nave. No trazia o burro desta feita e sim um cajado
nas mos. Auxiliou Horcio a encaminhar o rebanho para Manteigas e, ao fim da tarde,
as ovelhas entravam nas suas cortes, perto das Caldas, perto da erva que Valada
res semeara entre o milho e, agora, cortado este, lhes servia por alguns dias de
pastagem.
< noite, Horcio dizia a Idalina, vencendo as lti<mas indecises que o haviam tol
hido at ali: d. O lugar que me prometeram est a demorar e eu no quero empatar-t
e mais tempo. Se eu no o tver at o fim do ano, casamo-nos mesmo assim. fc Fez um s
ilencia e, depois, perguntou: f Ficas contente ?
O que tu quiseres, est bem. O Valadares disse tua me que te aumentara a soldada.
Mas se for reciso esperar mais, eu espero...
Aumentou-me a soldada! Olha o aumento! com l[ez mil ris a mais no se remedeia nada
!
Ento...?inquiriu ela, timidamente. m Tenho de me arranjar de outra maneira...
> Ele falava em torn decidido, mas, na alma, ia-lhe rande confrangimento. Pouco
antes, caminhando para i, sentira-se vexado, ao lembrar-se de que, pela tosuia,
havia dito a Idalina que entraria em breve para toa fbrica da Covilh e no entrara.
Pusera-se, nto, a esmiuar as mais pequenas possibilidades da "a vida. Conclura que
, em Dezembro, estaria quite om \aladares e, vendendo as quatro borregas a que i
nJia direito, lhe sobrariam alguns mil ris. "Esse inneiro pensou no chegaria seq
uer para aquilo ue o senhor vigrio costumava levar por um casaento; mas eie pedir
ia um novo emprstimo ao Vakil""0''' um conto ou um conto e quinhentos, que, depoi
s, igaria quando pudesse. O Valadares no lhe ia dizer Je no. Fossem ou no fossem o
Tnio e o Leandro
crtd mando do Pai' tivessem deitado aquele fogo,
que tinham querido deitar um ainda maior
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sabia-o ele muito bem. Ele no diria nada, j se v;j
* jurara que no diria e no diria; mas o Valadares!
havia sempre de ter medo de que ele desse com ai
lngua nos dentes. E, decerto, emprestaria o dinheiro!
e esperaria o tempo que fosse preciso. Era claro que l
a vida deles, depois de casados, seria uma misria, por-i
que ele no era homem que ficasse a dever nada a nin- j
gum e muito menos ao Valadares... Seria trabalhar!
para o po de cada dia e para pagar a dvida. Mais j
nada. Mas j que tinha de ser pronto, acabara-se!" j
Agora, depois de haver resolvido assim, sentia o j
corao oprimido ao pensar que se lhe ia a casita que J
ele sonhara. J
Ao seu lado e alheia sua luta ntima, Idalina i
estava contente. Notando a alegria que havia nos olhos l
dela, Horcio enervou-se: J
O que eu fizer por ti que o fao, compreen- l ds? para que no estejas mais tempo esp
era... l Pois eu terei de continuar com o gado... J
Ela ouviu aquilo, entendeu ser aquilo natural e l continuou contente: J
No faz mal... Depois, a gente combina com o l Valadares e, em vez de serem os fil
hos dele, sou eu l que you l, todos os dias, buscar os queijos e ver-te... l E
arrendamos umas terras, para as batatas... E a l casa... Hesitou, como
se voltasse a si, aps ter-se l distrado: Ento tu desistes da casa nova ? I
Horcio quis falar com a mesma deciso de h l pouco, mas no pde. As palavras saam-lhe va
cilan- l tes e num torn de angstia: l
No... Quer dizer... depois veremos... l Ela contemplou-o um momento e, em seguida
, bai- l
xou a vista. Perdera a sua alegria e as lgrimas vinham- l -lhe aos olhos. l
Assim no quero... disse. Se tu fazes isso l s por mim, contra a tua vontade, no
quero! l
Ele sentia-se, agora, melhor sentia-se melhor desde que tambm ela sofria. E logo
lhe surgiu o desejo de consol-la!
No s por ti; tambm por mim. Mas no f|
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digas nada a ningum por ora. Se tiveres de dizer tua me, que ela guarde segredo...
No dia seguinte, Idalina comunicou-lhe:
A minha me acha bem o que tu resolveste. Ela diz que vamos acabar o que falta
para o enxoval, pois j estava quase todo pronto quando tu voltaste da vida milit
ar...
Ele __ interrompeu-a:
E melhor esperar mais um pouco... Eu ainda no perdi a esperana... O Manuel Peixot
o prometeu-me e s se o irmo dele no puder que no far...
Encontrava-se com estado de esprito diferente do da vspera, sem aquela sensao de vex
ame que sentira ao ver Idalina aps os meses que estivera ausente.
melhor esperarmos mais algum tempo... repetiu.
Passaram-se vrios dias, passaram-se semanas e Manuel Peixoto no enviara notcia algu
ma. Os dois pastores que haviam ido Idanha, como todos os anos, arrendar pastage
ns para o Inverno, tinham regressado h muito. Novembro avanava e, com ele, o frio,
cada vez mais forte. J cara neve na Torre e nas Penhas e as ervagens de Manteigas
estavam esgotadas. Era a poca em que, anualmente, se iniciava a transumncia, leva
ndo-se o gado para longnquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O
primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia
a caminhada dali at a Idanha, fora o do Canholas, com ovelhas de mais quatro past
ores. Outros partiram depois e, por fim, o de Valadares, o do velho Jernimo Latoe
iro, o do Aniceto e o da tia Luciana largaram tambm, num s grupo, para poupar cond
utores. Eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda
a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. frente e aos lados, mantinham g
uarda o "Lanzudo" e outros ces, menos o "Piloto" que fora considerado dbil para a
104
A L E A NEVE
* longa jornada. Atrs marchavam Horcio, o Tnio, ^j
Aniceto, o Libnio, filho do tio Jernimo, e um burrd
por cada homem. Os onagros transportavam bardos a
ferradas; e os seus alforges, com alimentos no f undo J
guardavam espao para recolha de cordeiros que des-l
sem em nascer, como sempre acontecia, durante o|
trnsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muitM
juntas no seu passo curto, se gritos ou pedradas ai
isso as impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e'|
cortavam esquerda e direita, cata de pasto viz*t|
nho da estrada. s vezes, os seus focinhos orienta-"!
vam-se para folhagem que tinha dono sempre pronto j
a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas i
e at de multas policiais, outras pedras e outros berros-j
caam sobre as famintas, que retomavam o caminho, J
na esperana de serem, alm, mais felizes. Por Bel-1
monte, Caria e Capinha, elas iam seguindo o seu ds- J
tino, dormindo onde a noite tombava, longe dos povoa- j
dos, que nas redondezas destes a cama era-lhes proibida, l
e levantando-se mal clareava o cu, para continuarem l
a marcha, sempre com os ces testa e nos flancos, j
sempre com os burros cauda e, atrs dos burros, os J
homens. E brancas e negras, sem outro rudo que o l
marulho dos seus passos e rebeldes somente quando J
alguma folhita verde, to humilde como elas, se debru- J
cava na estrada, a desafiar-lhes o apetite, as ovelhas i
acumulavam gratido no esprito de Horcio e de seus i
parceiros por nenhuma haver ainda parido. Ao terceiro l
dia, porm, a "Farrusca", que pertencia a Aniceto e l
exibia barriga redonda que nem pipa, deu em balir, l
J c fazia falta! exclamou Tnio. l
Aniceto no gostou de que fosse sua a causadora l
do mau humor do companheiro; mas logo, pelo andar l
dos bichos, o seu olho esperto assinalou que, mesmo l
se a "Farrusca" no existisse, algumas ovelhas de Vala- l
dares obrigariam, em breve, o rebanho a deter-se. l
E sentiu-se vingado. l
Estavam entre um desfiladeiro que se abria, quase l
a prumo, direita da estrada, e uma vasta proprie- l
dade, com muro branco, que se erguia esquerda. |
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Os quatro homens comearam, ento, a apressar o rebanho, enxota, grita e apedreja, p
ara que a forada paragem se desse ao menos em stio de algum pascigo. Mas a "Farrus
ca", j com dores, deitou-se por terra, alheia fome das demais.
Rais te parta! praguejou Aniceto. E, metendo-lhe os braos por debaixo do c
orpo, ergueu-a e ps-se a correr com ela na estrada. Mas adiante do muro branc
o havia outro prdio e outro e outro. O rebanho j ficara para trs e Aniceto continua
va a correria. Contra o seu peito a ovelha pernejava e estorcia-se. "Rais te par
ta! Podias esperar que chegssemos Idanha! Rais te parta a ti e aos donos destas
terras! Raios vos partam!" ia ele murmurando. Ao mesmo tempo sentia ternura por
ela, ao pensar nas dores que estaria sofrendo.
Por fim, ilobrigou, junto de pequena ponte, um pinhal sem vedao, com alguns sargaos
e chamias beira da estrada. Aquilo pareceu-lhe pssimo, mas no havia tempo para esc
olher. Pousou a ovelha, acendeu um cigarro e sentou-se numa pedra, junto do bich
o. A "Farrusca" contorcia-se, agora, violentamente. Aniceto ia tirando fumaas e l
anando-lhe, de quando em quando, uma olhadela. A bexiga de gua aparecera e rebenta
ra. O sexo dilatava-se e a ovelha continuava a contorcer-se.
O rebanho aproximava-se. Horcio avanou e cortou-lhe o caminho, postando-se entrada
da ponte. As ovelhas, indiferentes sorte da "Farrusca", passaram junto dela e e
spalharam-se na linde do pinhal.
Como vai isso ? perguntou Tnio.
Regular.
Silenciosa, a "Farrusca" prosseguia nas suas contores, ora de olhos fechados, ora
apresentando-os cheios de nvoa, como se fosse morrer. Logo, duas Patitas seguidas
por tenra cabecita se mostraram vista de Aniceto. O corpo veio depois, de jacto
, como se um aude de sangue se houvesse rompido. A ove*ha quedou-se ainda uns mom
entos estendida, a resPirar docemente. Tambm Aniceto sentia alvio e me-
io6
A L E A NEVE
* lhor respirao. Mas j a "Farrusca" se levantava levando as preas dependura
das do sexo, como tripaj cheias de bolitas sangrentas. Num instante, ela com t
ara, com os dentes, o cordo umbilical e, lamts lambe, pusera-se a ass
ear o filho. A sua lngua colhendo e mandando para o estmago todas as vis cosas
imundcies que ele trouxera da madre. E coe tal af o fazia, que o cordeirito, mal s
e sustendo aind; nas pernas, cambaleava frequentes vezes sob esse fre nesi mater
no. O seu olhar morno vagueva, inocente mente, no mundo onde ele acabava de entr
ar. Era d estrada, eram os pinheiros esquerda, uns sobreiros! junto da ponte, um
as alminhas no princpio do cam" nho que ali perto desembocava. Ele no fixava coisa
alguma, como se tudo isso fosse indigno da pureza de seus olhos cndidos, feito
s para contemplar uma paisagem celeste. s vezes arriscava um passo e logo a "Farr
usca" avanava tambm, sempre a lamb-lq. As outras ovelhas, dispersas ao longo das
valetas e no comeo do pinhal, iam devorando quanta folha propcia se lhes deparava
.
Entretanto, Horcio, Tnio e Libnio conversavam e riam em grupo. Fora o Tnio quem cont
ara a histria que os fizera, gargalhar e, agora, preparava-se para soltar outra.
Ouve l, que esta boa l disse ele para Aniceto, desejando obter tambm o prmio do se
u riso. entremez era longo. Todos os homens estavam atentos, risonhos, gulosos d
o desfecho. Aniceto esquecera a "Farrusca" e o seu anho. Tnio sentia-se lisonjead
o pela ateno dos companheiros e prosseguia na anedota. Antes mesmo de acabar, j tod
os os outros gargalhavam.
Libnio ria ainda quando os seus olhos divisaram aquilo. Perante o alarme que ele
deu, Aniceto voltou-se e correu, aflitivamente, para a "Farrusca". J
era, l porm, tarde. A ovelha, na nsia de enxugar a barriga l do filho, comeara a r
oer-lhe o cordo umbilical. Aquilo l parecia-lhe a mais e quanto mais o puxava, q
uanto l mais o roa, mais comprido ficava. O cordeirito deba-
A LA E A NEVE
107
tia-se, tentava escapar-se, empregando as primeiras foras da sua vida para libert
ar-se das dores que o esmero da me lhe causava. Mas a "Farrusca", obstinada no tr
abalho, continuava a prend-lo, a esvazi-lo por aquela fita quente, gomosa, sangren
ta, que ligava o seu ventre boca materna. Quando Aniceto acudiu, ainda ele estav
a de p, mas pouco depois tombava, vencido. No lugar do cordo havia, agora, tripasJ
Os trs homens juntaram-se em volta de Aniceto, comentando e lamentando o sucedido
. Ele no dizia palavra e odiava a Tnio e ovelha. "Se no fosse Tnio t-lo distrado pe
ou, com raiva aquilo no se daria. Ele j sabia que a "Farrusca" era assim, pois no
ltimo ano chegara a roer o rabo do filho. Ao Valadares, borrego a mais ou a meno
s no fazia diferena; mas a ele, que era pobre, que tinha s aquelas trinta cabeas, aq
uilo fazia-lhe muita falta".
O rebanho voltou a caminhar. Os homens iam, agora, silenciosos, a capa mui chega
da ao pescoo, o chapeiro enterrado at as orelhas, sob o sol que no conseguia anular
o frio.
Ao atravessar a ponte, a "Farrusca" comeara a balir pelo filho e Aniceto irritou
-se ainda mais.
Pouco depois, detiveram-se de novo. Mas a paragem foi curta. A ovelha do tio Jern
imo, que se deitara na valeta, s demorara um quarto de hora a aliviar-se. E o cor
deiro, logo que se vira limpo, pusera-se a seguir a me, com suas pernitas tontas,
muito abertas para fora. Do acto no ficara ali seno um POUCO de terra humedecida
de sangue, porque o "Lanzudo" voltara atrs e devorara, num instante, as preas e ma
is membranas que haviam acompanhado o nascimento.
A marcha do rebanho continuou. Antes do pr do ^ol, os homens comearam a inspeccion
ar as margens da estrada, em busca de abrigo para a noite invernal. Horcio falava
de umas lapas onde dormira uma vez, ftias no se lembrava se estavam muito perto,
se ainda longe. Por fim, encontraram-nas. Era um grupo de rchedos com algumas ca
vidades naturais, ao p de
io8
A L E A NEVE
A L E A NEVE
109
' j
um matorral e de um fio de gua. Acampados, comi
os burros a pastarem em derredor e as ovelhas fam-J
lias a no quererem entrar no bardo que lhes haviam!
armado, Aniceto acendeu, entre trs pedras, uma fo-1
gueira e sobre ela ps a sua ferrada. Depois, sacou doj
alforge o filho da "Farrusca" e principiou a esfol-lo. J
Libnio, ao passar junto dele, cuspiu para o cho:i
Vais comer isso ? l
Aquele "isso" estava cheio de repugnncia. Aniceto J
no respondeu. Levantou-se e, agarrando pelo pescoo!
o cordeiro j sem pele, foi lav-lo no regato. Ao voltar, J
viu Horcio, Tnio e Libnio ajoelhados junto de uma j
ovelha entrada do bardo. Ele aproximou-se com o J
cadver do filho da "Farrusca" na mo. Adivinhou o j
que se estava passando e soltou as suas primeiras pala- J
vras desde que a "Farrusca" havia morto o filho: j
O que h ? l
O borrego est atravessado respondeu Tnio. l Aniceto verificou que era uma ovelha
do Vaiada- l
rs e, pela primeira vez nesse dia, sentiu-se feliz. O sexo l do bicho mostrava-se
semi-aberto e sangrento, abau- l lado e de pelecas muito retesadas. Tnio e Libnio
l seguravam a ovelha, que se contorcia desesperadamente, l e Horcio tentava intr
oduzir os dedos, para encarreirar l o anho na direco normal. Mestre nesses frequen
tes l transes, Aniceto via que s a muito custo me e filho l poderiam salvar-se e
assistia, calado e contente. I
No preciso que eu ajude ? perguntou, sbendo que no era preciso. l
No respondeu Horcio, que j tinha as mos l cheias de sangue. l
A noite descia. Aniceto voltou para junto da fogueira, l
cortou em pedaos o cordeirito e p-lo dentro da fer- l
rada. Na gua fervente, os tassalhos iam e vinham, I
mostrando-se e escondendo-se. Aniceto ora seguia essa
emerso e submerso do seu prejuzo, ora olhava para
os companheiros ajoelhados em redor da ovelha. Aquilo
demorava. Ele conhecia todos os gestos necessrios na
circunstncia^ e ia acompanhando, mentalmente, o parto
tormentoso. As vezes parecia-lhe que a ovelha j estava f
perdida, mas logo compreendia que ainda existiam esperanas.
Finalmente, viu os trs pastores pegarem nos alforges e dirigirem-se ao regato, pa
ra lavar as mos. Escurecera e ele s tornou a v-los nitidamente quando se aproximara
m da fogueira. Todos eles vinham j mastigando o seu po e o seu conduto.
Que tal ?
Foi Tnio quem respondeu:
Deu-nos um trabalho dos diabos, mas salvmo-la.
Aniceto agarrou-se ltima hiptese consoladora:
E o borrego ?
Tambm l est, vivo.
Os trs sentaram-se em volta do fogo. Os ces estavam ao lado, engolindo o po que Tnio
e Libnio lhes atiravam. "Burro de sorte, o Valadares" remoeu Aniceto. E desatou
, ento, a falar, a falar de outra coisa, para que no adivinhassem o seu despeito.
Depois, afastou a ferrada do lume, escorreu-a e ofereceu o cordeiro aos demais.
Ningum queria. Aniceto principiou a mastigar. De tenra, a carne desfazia-se-lhe n
a boca. E estava insossa, que ele se esquecera de lhe pr sal. Dois anos antes ele
comera, com outros pastores, um borrego do Canholas, morto nas nesmas condies. Nin
gum ia deitar fora o bicho e todos haviam gostado. Mas, agora, tambm a ele aquilo
causava asco. Os ces, sentados em frente, olhavam-no com ateno. Ele esforava-se por
comer, mas a garganta fechava-se-lhe. Adivinhando o sorriso de Tnio e de Libnio, t
eimou ainda. A boca repelia a carne e a garganta apertava-se mais. Subitamente,
Aniceto ergueu-se e deu um pontap na ferrada. Os ces acorreram logo, enquanto ele,
levando a manta e os alforges, se dirigia, sem palavras, para um buraco dos roc
hedos.
Os outros seguiram-no, com a vista. Depois, Tnio ps-se a rir:
Como ficaria ele se, em vez do anho, tivesse morrido a ovelha?
no
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
in
" Libnio riu tambm. Repentinamente, Horcio sentiu pena de Aniceto.
A fogueira morria e a noite gelava cada vez mais. Os trs levantaram-se e foram de
itar-se na mesma cavidade onde Aniceto se estendera.
De manh, tudo branco, tudo coberto de geada, enrolaram o bardo e puseram-se, outr
a vez, a caminho. Havia um novo cordeirto, mas to inteiriado pelo frio, que foi pre
ciso met-lo num alforge. As prprias capas dos homens estavam endurecidas e o orval
ho congelado, que penetrara na terra solta, estalava sob as botifarras.
Anda agora, pra logo, torna a andar, torna a parar, por mor de novas pa
rturies, o rebanho acercava-se de Pedrgo, sempre com mais cabeas. Algumas ovelhas cam
inhavam arrastando ainda as preas, outras mostravam no sexo um globo sangrento, c
omo uma bola de sabo vermelha. Dos anhos recm-nascidos, alguns, como o de Libnio, c
ontavam logo com as pernas e marchavam atrs do todo, mui tmidos, desajeitados e mi
mosos. Outros, porm, apresentavam-se to j dbeis, que os alforges dos burros se
iam enchendo j com os seus corpitos. E, no dia seguinte, nas redondezas de
Proena-a-Nova, j s havia lugar nos alforges dos homens. Tnio resmungava:
Algum nos rogou uma praga! J vamos atrasados dois dias e estes demnios no
acabam de parir!
Ora! Ora! O ano passado pariram muitas mais! Tu que no vieste disse Aniceto, de
modo consolador. Ele, agora, estava resignado. Na vspera, trs outras ovelhas suas
haviam parido tambm, filhos e mes caminhavam sem percalo e ele habituara-se j perda
que a "Farrusca" lhe dera.
Finalmente, ao stimo dia, vencida a estrada imensa, cruzando vales, grimpando ser
ras, os condutores do rebanho transumante, todos sujos, cara negra de barba, cor
pos esgotados pela andana, viram, ao longe, as campinas da Idanha, seu ltimo objec
tivo.
Horcio levava, s costas, uma ovelha doente. Lib-
nio conduzia outra. E Tnio e Aniceto, que marchavam leveiros, em breve os revezar
iam no transporte dos animais. Dos alforges de todos eles saam cabeas de borreguin
hos. Iam oito ali, outros oito sobre os burros, que avanavam juntamente, cansados
tambm. Os ces levavam a lngua de fora. E todos os do desfile pastoril caminhavam e
sfomeados, todos menos os anhos que iam por seu p e mamavam nas mes sempre que lhe
s apetecia.
As crianas, porta das casas pobres erguidas beira da estrada, viam passar os cord
eiros em cima dos burros, com as ternas cabecitas a sair dos alforges, como se f
ossem numa janela andante, e achavam aquilo bonito.
Mais adiante, outra criana, que era rica, mimada, caprichosa, e estava, com a me,
no terrao de uma moradia nova, pediu:
Mam, d-me aquele carneirinho que tem as orelhas esticadas...
Est bem; logo to dou.
Mas ao ver que a me no fazia movimento algum e, entretanto, o cordeirito se ia afa
stando, metido no alforge, a criana comeou a chorar e a bater com as mozitas fechad
as sobre a balaustrada do terrao:
Eu quero o carneirinho! Eu /quero o carneirinho que tem as orelhas esticadas!
'
J na plancie, prestes a confiarem o rebanho aos trs pastores que ali guardariam, du
rante o Inverno inteiro, todo o gado de Manteigas, Horcio viu correr ao seu encon
tro o Chico da Levada. Desde longe fazia-Ihe grandes gestos e, ao acercar-se, di
sse-lhe:
Parece que vocs nunca mais vinham! Andei de camioneta e de comboio para chegar de
pressa e, afinal, estou aqui parado desde ontem, tua espera!
Mas o que que h ?
O Chico da Levada mal respirava:
A tua me manda dizer-te que o Manuel Peixoto te arranjou um lugar na fbrica e que
tu deves voltar j para casa. Ela quis escrever-te, mas como no tens aqui direco, tev
e medo de no receberes a
112
A L E A NEVE
mim. O recado do Peixoto foi
' S? M SE? a mm' re"d" "o Pe,xoto ,oi
SEGUNDA PARTE
L E NEVE
I
C OM o seu ba, as suas saudades de Idalina e nutrida ^"^ confiana no futuro, Horcio
acomodou-se em casa de um fiandeiro o Ricardo Soares. Nela no havia maior espao,
nem menor nmero de crianas do que nas dos outros operrios a quem Manuel Peixoto em
vo falara para lhe darem albergue; mas Ricardo e a mulher, considerando que podi
am colher daquilo algum provento, decidiram aceit-lo como hspede.
A porta exterior do casebre ligava com a escada do sobrado uma s diviso com peque
na janela aberta no granito. Ali dormia Antero, o filho mais velho de Ricardo, q
ue tambm j andava nas fbricas como apartador; e foi ao lado da sua cama que armaram
outra para Horcio.
Em baixo, junto do nascimento dos degraus, havia uma porta interior e, por ela,
se passava para os dois trreos compartimentos. O primeiro, era cozinha e quarto d
o casal e de seus filhos menores; o segundo, um cubculo escuro, ocupava-o a me de
Ricardo, octo-
ii4
A L E A NEVE
* genra de todo surda e quase cega. Quem estava era
baixo ouvia os passos de quem andava em cima q
quem estava em cima apreendia todos os rudos qua
se produziam em baixo. l
Horcio viera para ali na vspera de entrar usa
fbrica e logo nessa primeira noite o molestara a per-l
meabilidade que o soalho oferecia ao som. Fora, pri-1
meiro, a voz de Jlia, berrando aos filhos que tardavam!
a aquietar-se; fora, depois, o ressonar da velha, oral
pesado, ora estrdulo; fora, por fim, quando o silncio!
se fizera longo, aquele leve ranger de cama, aqueles!
movimentos que ele adivinhava serem cautelosos, aque-|
ls sussurros mal sufocados que o seu ouvido captava, i
trazidos pela noite, envoltos em imagens lbricas. j
Horcio percebia que Antero se encontrava tam- J
bem acordado, embora simulasse doranr, para que o i
hspede no soubesse que ele ouvia, igualmente, o j
surdo rumor materno. J
Muitas vezes, em sua prpria casa, quando era i
ainda garoto, Horcio escutara essas mesmas inconfi- j
dncias da noite. E ficava descontente com os pais. j
Agora, porm, ele sentia uma perturbao diferente, j
A mulher de Ricardo, que, de tarde, lhe parecera i
ludra e feia, apresentava-se-lhe, na escuridade, com J
fascinaes irresistveis. Ele via-a, em baixo, j esgo- i
tada nos braos do marido e via-a, simultaneamente, i
ao seu lado, a enfebrec-lo, a domin-lo completamente. J
Ele queria resistir-lhe e no podia, porque a presena l
de Jlia no seu crebro era mais forte do que a von- I
tade dele. E acabara tendo-a imaginariamente, evi- l
tando qualquer rumorejo que o denunciasse ao filho l
dela, que fingia dormir ao seu lado. l
Ao findar da noite, foi ainda a voz de Jlia a pri- j
meira que ele ouviu na casa. O marido respondia-lhe l
com torn sonolento, mal-humorado. Horcio sentia os l
passos da mulher l em baixo, o acender do lume, a J
colocao da panela na cadeia e ia acompanhando, l
mentalmente, a figura de Jlia na tarefa domstica, l
iniciada mesmo antes de o dia nascer. O soalho dei- l
xava passar uns leves fumos de carqueja e de razes |
A LA E A NEVE
115
de torga, que se lhe metiam nas narinas, incomodamente. Antero dormia agora, a t
odo o pano. Ele estava tambm com sono, porque, ainda inadaptado ao meio e com tod
a a excitao da noite, mal conseguira pregar os olhos. E j ia perder de novo o enten
dimento, quando ouviu trs fortes pancadas no soalho. Jlia devia bater com a ponta
de uma vara ou cabo de vassoura e no confiava, decerto, no primeiro aviso, porque
repetiu as pancadas.
Uma vaga claridade comeava a entrar pelas frinchas do janelico. Antero saltou da
cama, acendeu o coto de uma vela e, sem dizer palavra, vestiu-se apressadamente.
Ele levantou-se tambm. Mas ainda no havia enfiado as calas e j o outro corria escad
a abaixo.
Horcio ouviu a voz de Jlia deter o filho, com um torn de estranheza, quando ele ab
ria a porta da rua:
Ento hoje no tomas nada?
Antero resmungou uma palavra ininteligvel e fechou, atrs de si, a porta.
Agora, Horcio ouvia, tambm, os passos e a voz de Ricardo. O fiandeiro dialogava co
m a mulher e, em seguida, os dois comearahi a falar em surdina, como se temessem
ser ouvidos por ele. Pouco depois, Jlia gritou do fundo da escada:
J est pronto ? Pode vir comer o caldo. Horcio desceu e entrou no quarto-cozinha. Ri
cardo
estava sentado mesa, esperando-o. Era um homem muito magro e moreno, de quarenta
anos bem puxados e melanclica expresso. Horcio saudou-o e sentou-se tambm. Em frent
e de seus olhos ficava a cama do casal, de cobertores revolvidos, e, do outro la
do, a cama de quatro crianas, que dormiam ainda, com os braos fora da roupa. Num b
ero encontrava-se o filho mais pequeno, de cara para baixo, deixando ver apenas a
cabecita de cabelo ainda ralo. Agora, a claridade do dia nascente golfava-se pe
lo postigo que havia mama das paredes da casa.
Jlia pusera diante de Horcio uma tigela com sopa e outra junto do marido. Os dois
principiaram a comer. Horcio sentia-se constrangido, j por falta de inti-
no
A L E A NEVE
* midade com o casal, j pela participao que tiveras
nos segredos da noite. Constantemente, procurava afasia
tar os seus olhos da cama vazia e do corpo de Jliaj
que perdera, de novo, o seu efmero interesse nocturno J
A cama teimava, porm, em atrair-lhe a vista e erml
lembrar-lhe a brusca sada de Antero. "O rapaz tinhaJ
razo pensou Horci. Ele, no seu lugar, tambmJ
no ficaria satisfeito. o que tinham aquelas casas.)!
Mas a sua no seria assim". j
Ricardo engolia, apressadamente, o caldo. j
j tardp) disse. No podemos perder J
tempo! i
Era, sobretudo, Ricardo e essa espcie de secreta l
e promscua sociedade que tivera com ele, que moles- i
tavam Horcio. Mas Ricardo preocupava-se, apenas, l
com a hora de entrar na fbrica: J
Vamos! l
Os dois saram, cada qual levando num cesto o l
almoo que Jlia preparara. O sol no nascera ainda J
nessa manh de Novembro. E um vento frio e seco J
fustigava-lhes a pele. l
Na estrada, caminhavam muitos outros operrios, l
em direco Covilh: homens de faces quase ocultas l
nas golas erguidas de velhos sobretudos; mulheres l
muito embrulhadas nos xailes escuros e garotos de l
doze, catorze anos, vestidos com remendadas roupas l
e uma das mozitas metidas no bolso, enquanto a l
outra segurava o cesto da comida. Todos marchavam l
lestamente, que a entrada nas fbricas era s oito l
menos cinco e se chegassem um minuto depois poderia l
ser-lhes descontada uma hora no salrio. l
H muito tempo que os cabeos e encostas dos l
subrbios da Covilh viam, de manh, aquelas filas l
negras de cardadores, penteadores, fiandeiros, urdi- l
deiras e teceles avanarem para o trabalho, houvesse l
sol ou chuva, poeira ou lama nos caminhos. Todos os l
mestres da indstria txtil da Covilh tinham ali, a
servi-los, dinastias de operrios, os pais metendo, em l
cada gerao, os filhos nas fbricas, mal estes iniciavam B
o trnsito da infncia para a adolescncia. E os novos (
A LA E A NEVE
II7
pareciam herdar dos velhos, por via do prprio sangue, a arte de transformar em t
ecidos os velos das ls.
Companheiro de raras falas, Ricardo deixara Horcio acertar o passo pelo seu e ca
minhava em silncio. O frio, a pressa e o sono que a maioria ainda tinha, faziam c
om que os outros pouco falassem tambm. Os vultos negros, isolados ou em grupos, i
am avanando na estrada branca com uma nica preocupao chegar! chegar!
Quando atingiram o alto de onde se avista a Carpinteira, com suas fbricas ribeiri
nhas, Horcio viu, no declive oposto, outras centenas de negros vultos que desciam
da Covilh para o trabalho. Nessa altura, as sereias fabris deram o primeiro sina
l. Horcio ia apreensivo e simultaneamente curioso sobre a sua iniciao. A cada passo
, porm, brotavam-lhe, de entre as preocupaes, quentes esperanas, nessa manh que marca
va novo perodo da sua vida.
Em frente do casaro de Azevedo de Sousa pareceu-lhe que, de sbito, ficava desampar
ado. Ricardo, que trabalhava noutra fbrica, despedira-se simplesmente, como semei
e j estivesse habituado quilo:
At logo.
Horcio deteve-se junto do largo porto. Operrios vindos da Covilh passavam ao seu lad
o e entravam. No conhecia nenhum deles. E, no meio de tanta gente, sentia-se sozi
nho. Decidiu avanar atrs dos outros. O porto dava para uma calada, ao fim da qual se
erguia a fbrica. Ele procurava, ansiosamente, com os olhos, o Mateus, irmo de Man
uel Peixoto, mas no o via em parte alguma. Os operrios desapareciam, agora, por um
a das portas da fbrica e ele entrou tambm, timidamente. Mateus estava l, metido num
fato-macaco, aberto em cima, para deixar ver a camisa com gravata. Tinha o tipo
de soldado de cavalaria, forte, alto, espadado. Era muito mais novo do que o irmo
e, agora, Horcio descobria nos seus olhos uma expresso de mando que no lhe descort
inara na antevspera, quando lhe falara na companhia de Manuel Peixoto.
u8
L E A NEVE
A L E A NEVE
119
* bom dia! respondeu Mateus sua saudao. Venha comigo.
Atravessaram as instalaes trreas e subiram uma escada para o andar superior. L do fu
ndo vinham operrios, uns j sem sobretudo, outros com casacos mais velhos do que aq
ueles com que haviam entrado. E cada qual ia-se colocando ao lado de uma das mui
tas mquinas que, em vrias filas, enchiam a fbrica.
Mateus deteve-se junto das "self-actings" as carruagens de fiao:
Voc, como lhe disse anteontem, comea por aprendiz de pegador de fios. por aqui que
um bom operrio deve principiar. E chamando o encarregado da fiao, que passava ao
lado deles: Olha l, Sampaio: este o rapaz de quem te falei. Coloca-o a, em qualqu
er carro.
Sampaio olhou para Horcio, olhou, em seguida, para as oito mquinas e pareceu hes
itar. Por fim, disse:
Est bem. Eu tenho agora que fazer, mas volto j. Pode ficar aqui. E dirigindo-se a
um dos rapazes que se encontravam junto da primeira mquina:
Pedro, este aprendiz fica contigo.
O jovem pegador de fios olhou Horcio de alto a baixo e no disse nada. Entretanto,
Mateus e Sampaio, retiravam-se. No foi grato a Horcio esse rpido exame visual que o
seu novo companheiro lhe fizera, mas j a sereia soltava o ltimo apito e, instanta
neamente, as mquinas comearam a funcionar em toda a fbrica.
As carruagens de fiao eram uns maquinismos compridos e baixos, dos quais uma parte
, cheia de fusos e com rodas deslizando sobre frreos trilhos, ora se acercava,
ora se afastava da outra parte, num contnuo movimento de abrir e fechar. No espao,
que se alargava ou encolhia entre a seco fixa e a seco mvel, quando esta recuava ou
avanava, havia sempre centenas de fios muito juntos e paralelos, que a mquina ia e
stirando e torcendo. Quatro rapazes acompanhavam, correndo, esse vem-e-vai
da carruagem, olhos atentos e mos lestas sobre os fios que se par-
tiam, para lig-los de novo, sem paragem do conjunto. A correr tambm com a sua mquin
a e como que levado por ela, Pedro deixara Horcio especado na coxia que separava
as "self-actings" dos aparelhos de penteao. Assim isolado, ele sentia-se ali a mai
s, inepto, incerto no gesto a tomar, sem saber que fazer dos braos e onde pousar
os olhos. Das penteadeiras, um robusto operrio contemplava-o com sarcasmo e envia
va olhares irnicos a outro companheiro, como se lhe perguntasse: "Quem aquele gra
ndalho, que aparece, agora, aqui?" Pouco depois, Horcio verificava, tambm, que os g
arotos pegadores de fios, aprendizes como ele, que acompanhavam as correrias das
mquinas, volviam, de quando em quando, as suas cabeas, miravam-no, assim quedo e
indeciso, e sorriam entre eles. Vexado, adivinhava que esses risos tinham por ca
usa a sua idade, ali onde raros vinham aprender o ofcio aps os doze e cada vez se
sentia mais deslocado no meio estranho. O prprio Pedro, j operrio feito, era, sem
dvida, mais novo do que ele.
Por fim, Sampaio voltou. Chamou-o e levou-o para a seco fixa da mquina. No era hbito
de Sampaio gastar seu tempo a ensinar os garotos que entravam ali como aptendize
s de pegadores de fios. Confiava-os aos operrios-e eles que fossem aprendendo por
si prprios, um ms aps outro ms, um ano a seguir a outro ano. Fora assim que ele apr
endera tambm, no tempo em que ainda se trabalhava de sol-nado a sol-posto. E muit
as bofetadas apanhara, coisa que hoje j no se dava. Mas tendo em conta a idade de
Horcio e pensando que Mateus, por isso mesmo, lhe atribura um salrio maior do que o
dos outros aprendizes, decidira proceder diferentemente.
Isto simples disse, pondo-se atrs da mquina, na "bancada". Aqui, est o desengross
o, estas bobinas cheias de mecha. Estas mechas parecem fitas de l, mas no esto torc
idas. Se lhe mexssemos muito, desfaziam-se. Agora veja... Elas passam por acol e a
mquina vai desengrossando-as. Est vendo ? O carro, quando recua, estira-as, porqu
e as pontas esto amar-
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A L E A NEVE
j, radas nos fusos que o carro tem. E assim elas vo ficando cada vez mais finas.
Olhe agora... Quando o carro chega ao fim, os fusos rodam e torcem o fio. Compre
endeu ?
Horcio no ousou responder afirmativamente. Sampaio fez um gesto de impacincia:
Venha comigo! Aproximou-se dos carros e mandou parar um. Est a ver como
? j
A voz de Horcio soou, timidamente: j
Estou... Estou... '
Bem! O principal, por agora, aprender a pegar ; fios. O resto aprende com o temp
o.
Sampaio estendeu a mo e quebrou um dos fios:
Veja. A pegadura faz-se assim: ligam-se as duas ] pontas do fio partido e torc
e-se, num instante. Depois,
a mquina acaba de torcer. No fio cardado, d-se um n, mas neste, que penteado, o n no
preciso. Basta fazer como eu fiz. E voltando-se para Pedro: Podes seguir!
O carro tornou a andar. Nas suas idas e vindas partiam-se vrios fios. Os operrios
e os aprendizes ligavam-nos rapidamente, mesmo com a mquina em movimento.
Veja agora como se faz. assim que tem de fazer. V! Ponha-se ao lado de Pedro! E
dirigindo-se a este, com um gesto de forada resignao, Sampaio concluiu: Vai-o ensi
nando. Tem pacincia...
Horcio comeou a correr, tambm, atrs do carro. Aquele "tem pacincia" quedara-se-lhe no
s ouvidos humiIhantemente.
Trs horas passadas, ele conseguia ligar o primeiro fio sem deter o carro. Pedro d
issera-lhe: "Est bem, assim mesmo. Mas preciso fazer a pegadura ainda mais depres
sa". Pouco depois, ele repetia o acto com outro fio que se partira. Pedro no fize
ra observao alguma. Ento, o seu optimismo volvera e com ele, a sua confiana no futur
o, uma confiana que brotava, espontnea, no de longo raciocnio, mas de secretas, obsc
uras foras da sua juventude.
hora do almoo, foi ainda junto de Pedro que
A LA E A NEVE
121
ele se sentou, no refeitrio, para comer o caldo, o po e as sardinhas que Jlia havia
metido no cesto. Outros operrios mais idosos iam falando, enquanto mastigavam, d
e um companheiro que fora despedido o Paredes. Todos se lhe referiam com simpat
ia, lamentando o seu destino. Mas, pelas prprias palavras que ouvia, pareceu a Ho
rcio que eles no diziam tudo quanto pensavam, como se ali houvesse presena que os t
rasse. O mais impetuoso era o Tramagal, o penteador que o fixara sarcasticamente
quando ele ficara isolado, de manh, ao p das mquinas. No meio dos seus indignados c
omentrios, dirigia sempre a Horcio um vesgo olhar. Algum afirmava agora:
Isso de o despedirem por ele ter faltado, durante o ano, quatro dias sem justifi
cao, uma desculpa. Despediram-no porque estava velho. J no dava grande
rendimento. A mesma coisa ho-de fazer a mim...
Horcio olhou o operrio que assim falava. Era um homem de cabelo j muito ralo e embr
anquecido, olhos encovados e dois nicos/dentes rompendo de sob o lbio superior.
A mim e a todos ns, quando no pudermos dar mais repetiu.
Houve um pequeno silncio. Algumas bocas deixaram de mastigar o seu po. Mas j Tramag
al garantia:
O Paredes era, ainda, um bom operrio. Ningum conhecia uma penteadeira ou uma "
Intersecting" como ele. Nisso ningum lhe levava a palma. Ele no tez outra coisa na
sua vida seno trabalhar nas fbricas. Agora estava velho, verdade, mas tomaram mui
tos novos chegar aos ps dele. E, ao dizer isto, Tramagal volveu os o
lhos para Horcio e, depois, para um rapaz que se sentara esquerda de Pedro: Desp
ediram-no, porque queriam dar o lugar a outros! Empenhes!... Proteces!
O rapaz que Tramagal fixara, protestou:
Eu no meti nenhum empenho, ouviu ?
Bem sei! Mas passando tu a penteador, ficava um lugar vago na fiao. Pedro passava
de aprendiz
122
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
123
*a pegador de fios e no seu lugar j se podia meteM
outro... ,'J
Pedro voltou-se e ia a dizer qualquer coisa, masJ
Tramagal atalhou: 7|
Tu no tiveste culpa nenhuma. \ Houve novo e incmodo silncio. Horcio olhou,,!
sombriamente, para Tramagal. E no pde dominar-se:; i
Se comigo que vossemec fala, est muito en- l ganado! No lhe admito isso, fique sabe
ndo! Eu noi l meti empenhos para que despedissem fosse quem fosse, i Se eu soubes
se que algum era despedido por minha l causa, nunca teria pensado em vir para aqu
i... com- i preende ? i
Tramagal encolheu os ombros e disse com torn i depreciativo: J
Cada um enfia a carapua que lhe serve... l Horcio levantou-se, num repente. Pedro
agarrou-o i
por um brao: J
Aqui, no! No pode haver desordens na fbrica, l Seramos todos despedidos... I
Os outros seguraram, por sua vez, a Tramagal, que i se erguera tambm e gritava:
~ l
Pois ! Isto aqui a casa da me Joana. com i
certeza h, por a, filhos de operrios que precisam de l
entrar nas fbricas e no encontram lugar. E vem um l
de fora, mete uma cunha e logo se arranja! Daqui a l
pouco, os nossos filhos andam a pedir esmola, enquanto l
os matules de outras terras enchem as fbricas daqui, l
At alfaiates e sapateiros, uns tipos j beira dos i
trinta, tm entrado na indstria, contra o regulamento, l
que diz que no se deve meter aprendizes com mais l
de dezasseis anos. Se por haver agora mais trabalho, l
por que puseram na rua o Paredes ? Sempre queria l
saber o que o Sindicato faz! I
Horcio ia ainda a replicar, quando o operrio de l cabelos brancos e dois dentes in
sulados se adiantou, l dirigindo-se a Tramagal: l
Acaba l com isso! Todos tm direito vida... l O Paredes foi despedido porque estava
velho e cheio l de achaques. J dera o que tinha a dar. O mesmo |
aconteceu com o Armando, com o Telhadais, com o Vicente, com todos. No preciso em
penhos de outros. J viste algum patro querer operrios velhos ? Antigamente, eram po
stos na rua sem mais aquelas... Agora, o Sindicato d-lhes vinte escudos por seman
a. Sempre podem comer quatro dias por ms...
Alguns riram. Horcio no desistira de esvaziar-se das suas razes, mas Pedro, apertan
do-lhe mais fortemente o brao, pedia-lhe:
Cale-se! Cale-se!
Do outro lado, alguns operrios afastavam-se, levando, com eles, a Tramagal! Ento,
o homem de cabelo branco, olhos profundos e dois nicos dentes na boca envelhecida
, acercou-se de Horcio:
No lhe leve a mal. Ele tem aquele feitio refilo, mas no m pessoa. O melhor no lhe l
ar importncia. Mas diga-me uma coisa: como que diabo voc, com essa i
dade, veio parar aqui ?
Os trs voltaram a sentar-se. Horcio desabafou. Havia simpatizado com aquele homem
desde a sua primeira interveno e contou-lhe tudo. O outro ouvia-o em silncio, sem
mesmo acabar de descascar a batata cozida que ^ifrTa entre as mos. Quando Horcio te
rminou, ele sorriu:
Est tudo muito bem. pouco mais ou menos como eu tinha imaginado. Ningum se sujeita
va a isto se no tivesse necessidade. O que me admira que voc, um homem feito, aind
a acredite que... Hesitou e o seu olhar envolveu tambm a Pedro: Enfim, vocs so ai
nda novos e o Mundo h-de dar muitas voltas. Eu logo explico tudo ao Tramagal. E
no o tome de ponta, que no vale a pena. Ficamos amigos, no verdade ? Eu chamo
-me Jos Nogueira, mas ningum me trata assim. Chame-me Marreta.
Horcio pronunciava tambm o seu nome quando a sereia da fbrica deu o sinal de recomea
r o trabalho.
Entendidos! exclamou o Marreta. E descascando e comendo, finalmente, a sua
batata, caminhou para o outro grupo.
124
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" Parece-me um homem s direitas! disse Horcio. com a cabea, Pedro fez um sin
al afirmativo.
As mulheres e as crianas da Covilh, que tinham vindo trazer a comida aos familiare
s, arrumavam, agora, tigelas e pratos nos cestos e os operrios transpunham, de no
vo, a porta da fbrica.
As mquinas voltaram a trabalhar. Nas "self-actings", as carruagens ia
m e vinham, vinham e iam, como se nem elas, nem os pegadores de fios que atrs del
as corriam, houvessem jamais parado. De manh, aquelas correrias dele e dos seus c
ompanheiros tinham parecido a Horcio to pitorescas como um castigo infantil ou e
xerccio desportivo. Mas, agora, aps o almoo, sentia as pernas fatigadas. De
quando em quando, ele desviava a vista, rapidamente, para o resto da fbrica, q
ue ainda no havia percorrido. Era um grande quadrilongo asfaltado e com vidros f
oscos e semiabertos altura dos beirais, para seu arejamento. A Horcio aquilo pare
cia excelente. Muito mais limpo e simptico do que o quartel; e com as casai de Ma
nteigas, a respeito de luz e de asseio, nem havia comparao. Surpreendia-o, porm
, no ver por parte alguma mais operrios a moverem-se, a correr a todo o mi
nuto, como ele e seus parceiros. As outras mquinas eram diferentes e homens e mul
heres estavam junto delas, quedos, como se fossem sentinelas. Raramente se movi
mentavam para intervir na laborao e, se o faziam, pouco tempo depois aquietavam-se
de novo. "Aqueles que tm boa vida pensou Horcio. As mquinas trabalham por eles.
No so como estas aqui". Aps o raciocnio, estranhou que os outros no mostrassem caras
alegres. Ao contrrio, sempre que, num relance, olhava para eles, via-os graves, s
ombrios, os mais diferentes rostos de homens e mulheres apresentando uma expresso
fria, uma espcie de dignidade cristalizada ao contacto com as mquinas. No pareciam
os mesmos que ele vira no refeitrio hora do almoo. Dir-se-ia que toda aquela gent
e jamais tinha rido na sua vida. "Aborrecem-se, porque estar assim parados at d so
no. Se andassem aqui, a correr, esta-
125
riam de outra maneira" tornou Horcio a pensar. Mas, pouco depois, olhando para o
s pegadores de fios, que corriam ao seu lado, para os prprios garotos que se havi
am sorrido, ironicamente, quando ele entrara de manh, viu que tambm eles tinham, a
gora, a mesma expresso dos outros uma seriedade precoce e cansada. Foi, ento, que
Horcio apreendeu que na fbrica havia mais alguma coisa do que ele enxergava, havi
a um ambiente dominador que lhe causava o mesmo desagrado sofrido nos seus prime
iros dias de quartel, quando os oficiais se encontravam presentes. Ali, porm, a v
ontade que produzia esse ar carregado de obedincia parecia estar ausente, porque,
mesmo quando o Mateus se encafuava no seu gabinete envidraado, ao fim da fbrica,
operrios e operrias continuavam de fisionomia parada, como se o trabalho fosse o ni
co acto profundo da sua vida, a obrigao que no admitia um sorriso. Alguns deles, vi
a-se-lhes nos olhos, estavam de esprito distante, mas, pela fora do hbito, a abstra
co quebrava-se logo que a mquina lhes exigia uma interveno.
Em todas as fbricas assimj^-perguntou Horcio a Pedro,
Assim o qu ?
Assim... como a guardar defuntos?
Pedro seguiu-lhe o olhar e a inteno e respondeu com piedade pela sua ignorncia:
Claro que . Voc queria um baile ? O Rodrigo, que esteve em Frana, nas fbricas de Lio,
disse que l ainda h mais disciplina.
As mquinas continuavam a laborar. E os homens e as mulheres, colocados ao seu lad
o, sombrios, ensimesmados, acompanhavam-lhes silenciosamente o trabalho, que ali
s elas tinham voz.
Horcio sentia um imenso desejo de fumar, mas j de manh Pedro lhe dissera que era pr
oibido faz-lo ali.
Se fumssemos, que mal poderia acontecer ? A l no arde...
Desta vez, Pedro respondeu bruscamente:
Ns estamos aqui para trabalhar e no para nos
126
A L E A
NEVE
, divertirmos. Parece que voc nunca trabalhou... Bera
se v que vem da serra... m
Ele comeava a antipatizar com Pedro. Mas j es
se voltava e o advertia, amigavelmente: "d
Homem, voc ainda no percebeu que s se poda
falar aqui em coisas de servio ? Os patres no que|
rem que se converse enquanto se trabalha. Se voca
teima, ainda apanhamos algum raspano...Mudotl
de torn: V latrina e fume l. A latrina a nica
defesa que ns temos. E parece que no s aquij
mas em toda a parte onde se trabalha... >|
Ele no foi. Esperaria at sair decidiu. "Era pr-i
ciso ter fora de vontade, como tinha no quartel i
disse a si prprio. Se se desacostumasse dos cigar-I
ros, at faria uma economia". l
Decidiu assim, mas logo comeou a evocar Manuel J
Peixoto, quando este lhe dissera que no nascera parai
viver dentro das quatro paredes de uma fbrica. Ento, l
parecera-lhe absurdo que o Peixoto preferisse andar l
sujo por montes e vales, dormindo ao relento, apo.-*!
nhando, no Vero, o estrume do gado, passando dias l
e dias longe da mulher e dos filhos, em vez de ter um l
horrio certo numa fbrica e de se lavar e vestir de l
limpo ao domingo. Mas, agora, a ele prprio, a sua l
antiga vida de pastor, com liberdade de se sentar, de l
se levantar, de fumar quando quisesse, de assobiar, l
de cantar ou de gritar para que a sua voz ecoasse pelos l
esbarrondadeiros, de falar sozinho ou com o "Piloto" l
quando no tinha ningum com quem falar, lhe apa- l
recia com mais atractivos do que dias antes. Logo, l
porm, se lembrou de Idalina e a imagem da serra l
desvaneceu-se num negrume de ms recordaes, l
" falta de costume consolou-se. com o tempo, l
habituo-me. Aquilo tambm era muito mau. No h l
dvida que ser operrio melhor do que ser pastor". I
s cinco da tarde, houve um rpido trnsito de l
figuras na fbrica. Os que trabalhavam de dia deram l
o seu lugar junto das mquinas a outios que chega- l
ram para o turno da noite e, to apressadamente como l
haviam entrado de manh, abalaram em direitura l
A L E A NEVE
127
calada que desembocava no porto. Modo pelas incessantes correrias feitas durante as
oito horas de um trabalho a que seu corpo no estava habituado, Horcio era o nico q
ue caminhava devagar entre os outros que o iam deixando para trs, como pedra que
resiste torrente. Ao seu lado passou Tramagal e, pouco depois, o Marreta, que lh
e bateu no ombro, ao mesmo tempo que lhe lanava um amistoso "at amanh". C tora, muit
os dos operrios se separavam, uns cortando para a Covilh, outros para a Aldeia do
Carvalho. Das fbricas vizinhas saam mais bandos, que se dividiam tambm, marchando e
m direces opostas.
De cigarro finalmente aceso, Horcio quedou-se na estrada, a aguardar Ricardo. Da
fbrica continuava a vir um surdo rumor mecnico. E l em baixo, na grande bacia corta
da pelo Z'zere, manchas verdes^ contrastavam com pardas extenses de Inverno. esqu
erda, a meio da serra, como se quisesse vigiar dali toda a vida do imenso vale q
ue lhe ficava aos ps, ostentava-se a Covilh. O sol horizontal fazia rebrilhar agor
a os vidros das suas incontveis janelas, tornando-a mais espectacular do que a qu
alquer outra hora do dia. A cidade fascinava os olhos de Horcio, que passeavam, l
entamente, do velho casaredo aos edifcios novos que se exibiam nas declividades.
"Poiicas casas havia ali que se comparassem com algumas do Estoril, mas, enfim,
tomara ele ter uma daquelas pensou. Vendia-a logo, pois no queria uma moradia gr
ande, e mandava fazer uma mais pequena, como ele desejava".
Quando deu por Ricardo, j este se encontrava muito perto. Subia a estrada, a coxe
ar.
Sucedeu-lhe alguma coisa ?
No. o diabo do reumatismo, por isso venho atrasado. Este ano ainda no me tinha ata
cado, mas esta manh, assim que entrei na fbrica, comecei a ientir a perna tomada
. Quando chega o Inverno, sempre sofro mais ou menos.
Pois eu estava a ver aquelas casas grandes. Parece-me que elas ainda no ex
istiam quando passei por aqui, h anos.
128
A L E A
NEVE
* Ricardo olhou na direco que ele indicava: i
Sim, so casas feitas h pouco. So de indus triais. n
Todas elas ?
Quase todas as casas grandes da Covilh sol de industriais. Olhe: aquela cor-
de-rosa a do seul patro. Mas parece que ele no gosta de viver ali.w Passa a ma
ior parte do tempo numa quinta que terral l em baixo, beira do rio. >|
Iam os dois andando, vagarosamente, por mor da i
perna de Ricardo. O crepsculo caa e o ar comeava l
a gelar mais, a tornar-se to spero como fora de j
manh. i
A certa altura, Horcio reconheceu, ao longe, numa i
curva da estrada, a Tramagal e a Marreta, que esta- i
vam parados, a falar coru outro homem. l
Ricardo tornava a queixar-se: l
Isto do reumatismo uma grande maada. Ainda l
se eu morasse perto da fbrica... Mas, assim, os sete l
quilmetros custam muito. O ano passado, tive, alguns l
dias, de me levantar duas horas mais cedo do que de l
costume, para no chegar atrasado ao trabalho. l
Ao passarem em frente do grupo que Horcio vira l
de longe, os trs homens voltaram-se e Tramagal, l
depois de ligeira hesitao, avanou: l
Ol, camarada, peco-lhe desculpa do que lhe disse I
esta manh. Aqui, o Marreta, j me explicou tudo e l
eu sei que cada um tem de ganhar a puta da vida. l
Vai um aperto de mo ? E, ao falar, estendia os l
dedos grossos, enrugados, que Horcio apertou.
Deixe vir sexta-feira, que eu hei-de oferecer-lhe um
copo de vinho... l
Marreta sorria, com ar paternal, e, por detrs dele,
um velhote sorria tambm, mais docemente ainda. B
Horcio sentia-se comovido com a atitude do Tra- l
magal. l
Estvamos justamente a falar de voc... disse B
Marreta. Este, aqui, o tio Paredes, o que foi ds- l
pedido... B
O velhote estendeu a mo. Ele tinha uns olhos m
A LA E A NEVE
129
piscos e humilde expresso; mas o que mais se destacava era o sorriso inocente que
pregueava e iluminava de candura todo o seu rosto.
Perturbado, Horcio agarrou a mo que Paredes lhe oferecia. No sabia o que dizer; s lh
e ocorriam frases que lhe pareciam imprprias do momento.
Eu no tive culpa do que lhe sucedeu... Paredes continuava a sorrir, resignadament
e:
Bem sei. Eu j h muito esperava que isso acontecesse. o fim de todos ns. Podia ser n
uma ocasio melhor, isso podia. L a patroa j no v um palmo frente do nariz. No ganh
um vintm. Velhice... Mas seja o que Deus quiser!...
Voc no quis ter filhos brincou o Tramagal. Agora auxiliavam-no.
Ainda bem que Deus no quis que eu os tivesse. Os que os tm andam por a na mesma. To
maram os filhos ganhar para os filhos deles... Paredes deixou de sorrir. A sua
expresso tornot-se melanclica: O pior que no sei como encher o tempo. Estava to acos
tumado ao trabalho, que o dia de hoje pareceu-me que nunca mais acabava. Por iss
o vim por a foia... Fica a gente como parvo. Parece que at as mos esto a mais no c
orpo... Se algum me quiser, seja l para o que for, eu you trabalhar por qualquer c
oisa... Mesmo de graa...
Tramagal riu, abrutalhado:
Voc ainda de bom tempo! O que eu gostava era de passar os dias sem fazer nada...
tendo de comer e de beber, est claro! E comeou a contar o que fizera no dia em qu
e encontrara uma nota de cem escudos junto do mercado da Covilh.
Quando este concluiu, Ricardo despediu-se:
tarde. E eu tenho de ir devagar.
Os outros separaram-se, tambm, de Paredes.
No penses mais nisso, rapaz! disse o velho a Horcio. Se no fosses tu, seria outro
...
Horcio comovia-se outra vez:
Se eu puder fazer alguma coisa por si... conte comigo!
5 Vol in
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A L E A
NEVE
Est bem... Est bem... Obrigado! E partitij a caminho da Covilh. ^
Os quatro homens ficaram, um momento, a v-$ afastar-se, estrada fora, a v-lo dilui
r-se na noite qu caa, ventosa e gelada. Depois, eles prprios comeai ram a caminhar t
ambm, silenciosos, em direco opost|
U J
M ms vencido, Pedro e Sampaio podiam atestai! que Horcio se encontrava apto a ser
pegador! de fios. Ele j sabia tirar a mecha, levantar a montada,! liar aos fusos
os novos fios e, quando estes se partiam,! os seus dedos hbeis faziam a pegadura
com tan t J presteza e perfeio como outros muito mais erperi"! mentados. Uma manh,
o prprio Sampaio comunicou i esse progresso a Mateus. O mestre, que estava no seu
l gabinete envidraado, l ao fundo da fbrica, ouviu l aquilo em silncio e no disse na
da. l
Porque se bacorejava ser Horcio protegido de Ma-1 teus, os outros aprendizes, ado
lescentes de catorze, l quinze anos, esperavam que ele lhes passasse frente l e
ganhasse, em breve, salrio de pegador de fios. Mas l os dias iam decorrendo e Horc
io continuava tambm l como aprendiz. l
E que o meu irmo no tem vaga para te dar l
disse-lhe, um dia, Manuel Peixoto, a quem ele pedira l
nova interveno junto de Mateus. Tens de ter p- l
cincia. com certeza no demora muito. E mesmo que I
demorasse um ano, j era uma grande sorte, pois os l
garotos andam l cinco anos e at mais, antes que os l
considerem operrios. Mas como tu s um homem feito,
o meu irmo h-de ter isso em conta. l
O que o Peixoto dizia parecia-lhe conforme razo, l
mas deixava-o desolado. No fim do ms, quando fora l
pagar Julia os cento e cinquenta escudos ajustados m
pela cama e comida, ela dissera que se havia enga- J
A LA E A NEVE
131
nado nos seus clculos e perdera dinheiro com ele. O que estava dito, estava dito
e por aquele ms no pedia mais. Mas, dali em diante, no poderia dar-lhe de comer e d
e dormir por menos de cinquenta escudos cada semana. Surpreendido, ele hesitara
em responder. Logo fora lembrando a Jlia que ele ganhava apenas nove escudos por
dia, pois este era o maior salrio que o regulamento autorizava para um aprendiz.
Assim, se lhe pagasse cinquenta escudos por semana, ficaria apenas com quatro pa
ra as outras despesas e isso no chegaria sequer para os cigarros. E com que ia v
estir-se e calar-se ?
Pois ... no digo que no... concordou Julia. Mas por menos no me paga a pena. com iss
o da guerra, as coisas cada vez esto mais caras.
Perante o silncio dele e a expresso que o seu rosto tomara, Jlia condoeu-se:
Realmente, com quatro escudos voc no faz nada. Mas eu no tenho culpa. O que pqss
o experimentar mais um ms, a quarenta e cinco por semana. Se chegar, muito bem
; se no chegar, voc tenha pacincia...
Fora, ento, que ele pedira a Manuel Peixoto para interceder junto do irmo. E, agor
a, o Manuel Peixoto dizia-lhe aquilo. Podia ter de esperar um ano ou ainda mais,
quem sabia l?
E isso do quarto ? perguntou.
Olha: falei a vrias pessoas. Mas ningum faz mais em conta do que a Jlia. Que ela no
deve enriquecer contigo, isso verdade...
Estavam os dois sob a alpendrada da capela do Esprito Santo e chovia. Peixoto adi
vinhava o mal-estar que as suas palavras haviam causado a Horcio e no encontrava o
utras para o consolar.
E tu?
Eu?...
No falaste a ningum ?
Falei. como vossemec diz. Uns no tm cmodos, outros no fazem por menos respondeu, des
alentado.
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A L E A NEVE
133
* Continuava a chover e a noite aproximava-se. Eiri
frente, na igrejita paroquial, o padre entreabrira J
porta, deitara a cabea de fora, olhara para o cuj
mas no ousara sair. JJ
bom, senhor Manuel: vou-me chegando. Estoa
como um pinto! Muito obrigado por tudo. n
Disparou sob a chuva para casa de Ricardo. Outros!
operrios atravessaram o adro, de regresso das fbriJ
cs, encharcados como ele. 'Q
No seu quarto, Horcio mudou de roupa, ouvindon
em baixo, a voz de Jlia, a querer dominar a chim!
frineira que os filhos faziam. A chuva aumentara j
batia agora, ruidosamente, no telhado. j
com o Inverno, a aldeia tornava outra fisionomia, l
At a, fosse na Primavera, fosse no Vero ou no J
Outono, os homens mal paravam em casa. Quando!
volviam das fbricas, punham-se a falacear com os l
vizinhos ou a cavar algum palmo de cho, at a hora l
do lusco-fusco. Os que laboravam no turno da noite i
e possuam um quinchoso ou leiras nas declividaojjs J
da serra, empregavam o dia a amanhar essas territas. l
Muitos deles, ao entrar nas fbricas, s cinco da tarde, l
j haviam trabucado seis e oito horas, mas tinham l
por boa sorte consumar, num mesmo dia, esse duplo l
trabalho, pois sem o acrescento das couves, das batatas l
e, s vezes, do centeio que as courelas davam, o sala- l
rio no lhes bastaria para sustentar a famlia. l
No Inverno, porm, belgas e quintais magra assis- l
tncia exigiam. Sob o cu pardo, nas ruelas cobertas I
de lama ou de neve, os casebres tornavam-se lgubres l
e, mesmo nas horas diurnas, adquiriam feies de caver- l
nas, com um lume a arder l dentro. Antigamente, os l
homens metiam-se nas vendas e emborrachavam-se l
nesses dias pluviosos. Mas, com o decorrer dos anos, l
a propaganda contra o lcool, feita pelos prprios ope- I
rrios mais conscientes, fora afastando das tabernas a l
maioria deles. Como Ricardo, quase todos os outros, l
ao volver das fbricas, ficavam em casa ou se junta- l
vam, em paleio, no casebre de Marreta. As casas eram, l
porm, de uma tristeza infinita, mais negras e ener- |
vantes do que o prprio Inverno. Nelas, as mes increpavam os filhos que saam a patin
ar nos lodaais, a correr, muito contentes, sob a chuva ou a brincar na neve, se e
sta j cara. Mas quando as crianas, detidas pelos ralhos maternos, estavam em casa,
brigavam umas com as outras, irmos contra irmos, os mais velhos com os mais pequen
os. Todos eles se sentiam prisioneiros e se os foravam quietude e mudez, esses di
as invernais pareciam-lhes eternos, como se eles vivessem numa s hora mais do que
toda a sua vida.
Ao contrrio dos filhos, Jlia e a outras mes esses sombrios dias invernais pareciam
curtssimos. Elas constituam como que o centro de cada lar, o eixo de cada famlia e
o tempo corria-lhes mais rpido do que a chuva sobre os telhados. Elas tinham de f
orar a imaginao para obter alimentos baratos, de forma a que todos comessem dentro
da exiguidade dos salrios e, no Inverno, isso era-lhes mais difcil. Elas tinham de
vestir os filhos, cortando, adaptando, remendando velhas roupas; e faina domstic
a, todos os dias igual, juntavam, muitas vezes, trabalhos para as fbricas.
Jlia disputava cada minuto de luz diurna para esbicar um corte de fazenda. O teci
do estava sobre um cavalete, a "banca", e ela, com umas pinas, ia-lhe arrancando
as impurezas, os ltimos resduos vegetais que a l conservava, teimosamente, atravs de
todas as outras operaes que sofria. Os industriais pagavam pouco por esse labor,
mas Jlia considerava que, sem esse pouco, no poderia, s com o salrio do marido e o a
bono de famlia que recebia nos ltimos tempos, dar governo capaz vida de sua casa.
Em frente de Jlia, vizinhando o lume, sentava-se a me de Ricardo a senhora Franci
sca. com seus oitenta anos, sua surdez e semicegueira, era como um traste da cas
a, uma esttua tosca, dramtica pela expresso e grotesca pelos trapos que vestia. De
cabea descada sobre o peito e o gato aninhado no regao, decorriam horas em que nela
se via apenas o movimento do rosrio passando entre as suas engelhadas mos. Se dei
xava as contas era para acariciar o gato
J34
A L E A NEVE
a sua maior ternura. Nem aos netos ela parecia
* querer tanto. Os seus olhos viam-nos de contorno!
diludos, quase esfumados, e esses corpos imprecisos!
quando ela estendia, para eles, as mos descarnadas!
fugiam-lhe aos afagos. O gato, pelo contrrio, mostras
va-se passivo, nestes dias de Inverno em que o regaol
da velha lhe oferecia grato calor. >J
A senhora Francsca trabalhara quase cinquenta!
anos na ultimao dos tecidos, quando era solteira/l
depois de casada e depois de viva. Fora "metedeiraj
de fios", cerzindo orifcios e eliminando outros defeitos!
que os teares deixam, por vezes, nos panos. E s ces-1
sara de trabalhar quando a luz dos seus olhos estava!
quase extinta. Nesse dia, Ricardo e Julia comearam l
a sentir a presena da velha como um peso morto, l
uma despesa apenas, na sua vida. Jlia passara a tra-1
balhar mais do que at a. Levantava-se ainda no l
negrume da noite e, quando o marido, o filho mais l
velho e Horcio acabavam de se vestir para ir para a l
fbrica, j ela tinha o caldo pronto e concludas outras l
lidas domsticas. Agarrava-se, ento, pea de fazenda l
e, de p, junto banca, as suas pinas nervosas iam, l
que nem bico de ave faminta, arrancando todas as
matrias estranhas l. Jlia fora, como a sogra, l
metedeira de fios, mas, por vontade do marido, ps-
sara a esbicadeira, para defender um pouco mais a l
sua vida. Ricardo obtivera, tambm, que a fbrica I
onde ele trabalhava lhe confiasse tecidos para Jlia l
os esbicar em casa, acumulando ela, assim, como outras l
mulheres locais, o labor industrial com a trafega do lar. I
O seu esforo era, porm, constantemente inter- I
rompido pelos filhos, que traquinavam no casebre, que l
berravam de quando em quando, criando conflitos e
aplicando, eles prprios, castigos entre si. Jlia ener- B
v va-se e, s vezes, praguejando, esbofeteava um deles,
deixando-o a carpir-se a um dos cantos. Logo, ela B
volvia ao seu trabalho, ciosa do tempo que perdera;
mas, pouco depois, tinha novamente de intervir, tinha l
novamente de se interromper. S a senhora Francisca, B
naqueles foscos dias de Inverno, com todas as crianas |
A L E A NEVE
135
metidas em casa, continuava impassvel, graas aos seus esclerosados ouvidos. Se os
netos, durante as suas lutas, embatiam nos joelhos dela ou, fugindo s iras matern
as, atrs do seu corpo buscavam proteco, a velha ainda abria a desdentada boca e per
guntava:
O que ? Que que vocs esto fazendo, seus marotos ?
Mas ningum lhe respondia, por serem inteis as palavras. Muitas vezes, essa atmosfe
ra domstica desagradava a Horcio e ele comeava, ento, a pensar no seu futuro, na cas
ita que sonhara e entristecia. Reagia depois, porque algo dentro dele, no sabia
o qu, algo confuso, obscuro, continuava a insinuar-lhe que a sua casa no seria ass
im. E, prendendo-se a essa esperana, desviava os olhos para o lume; desviava-os d
e Jlia, sempre, sempre atarefada, dos filhos de cara suja e, sobretudo, da velha
Francisca, para no lhe ver a cabea descada, de expresso idiota, e aqueles seus dedos
que iam deixando^ passar, incessantemente, automaticamente, as contas do rosrio,
tal como, na fbrica, as mquinas deixavam passar os fios de l.
Agora, no seu quarto, o corpo j com roupa enxuta, Horcio sentiu, em baixo, os pass
os de Ricardo, que volvia da fbrica, e, pouco depois, os de Antero, que fechava,
violentamente, a porta exterior e entrava na cozinha a vociferar contra a chuva.
Ouviu, depois, Jlia dirigir-se ao filho, com voz surda, refreada. Horcio no compre
endia as palavras, mas adivinhava que elas eram de admoestao. Antero ripostava e a
me ia-se encolerizando, subindo de torn, despreocupando-se do hspede que ela sabi
a estar em cima.
O que tu queres andar com esses valdevinos e essas perdidas da Covilh, gastando c
om elas tudo quanto ganhas. L para o tal clube de futebol e para ceares fora de c
asa tens sempre dinheiro. E ns, aqui, que nos aguentemos! Os teus irmos andam por
a rotos que uma vergonha e tu feito um janota, que neni o filho de um ricao!
Eu no tenho culpa de que vocs faam muitos filhos berrou Antero. Vocs que os fazem
e eu
136
A L E A NEVE
que tenho de me sacrificar? No! Eu tambm tenh^
* a minha vida! J
Cala-te, malvado! Cala-te, seno eu fao umd
asneira! Um filho dizer uma coisa dessas! Onde s j
viu um filho falar assim ? Jlia apostrofava e choJ
rava ao mesmo tempo. |
Horcio ouviu, ento, a voz de Ricardo, uma voa
fria, inflexvel, quase sinistra: '-]
Sai j da minha frente. J! J
Antero ainda argumentou, exaltado, mas logo Hor j
cio tornou a sentir os seus passos em direco j
porta e, de novo, a porta a abrir-se e a fechar-se comi
violncia. Horcio alegrou-se ao pensar que o outro ia i
molhar-se, sob a chuva. Ele no simpatizava com An-1
tero e a atitude de Jlia parecia-lhe justa. Aos prprios l
companheiros de trabalho ouvira censuras a Antero, l
porque, muitas vezes, ao sair da fbrica onde era apar- l
tador, metia-se na cidade, s regressando a casa para l
dormir e quase sempre embriagado. I
Agora, l em baixo, havia novamente silncio. Sen- l
tado no rebordo da cama, Horcio deixava fluir o B
tempo, pois adivinhava que a sua imediata presena l
na cozinha seria molesta para todos. Por fim, as crian- l
as voltaram aos seus rumores e a Jlia a transitar
de uma banda para outra. l
Quando Horcio desceu, Ricardo encontrava-se es- I
tendido sobre a cama e ao seu "boa noite" respondeu
de maneira vaga. Jlia cuidava da ceia, com gestos B
nervosos e carrancuda. S a senhora Francisca con- B
tinuava, como sempre, de expresso alheia ao meio, B
o rosrio entre os dedos e o gato no regao. B
Horcio debruou-se sobre o bero onde estava o
filho mais novo do casal e acariciou-lhe as tenras face- B
zitas. Desde que Jlia lhe aumentara o preo da hos- B
pedagem, ele tinha deixado de afagar a criana, como
era seu hbito. Durante os ltimos dias havia detes-
tado a Jlia e s com dificuldade conseguia disfarar
a sua contrariedade. Mas, agora, certo de que ningum, B
na aldeia, lhe daria mais econmica penso, a sua
simpatia voltava.
A LA E A NEVE
137
Jlia punha a mesa. Era seu costume servir, primeiro, os homens e, s depois disso,
ela, a sogra e as crianas comiam. Agora, como sempre, colocava trs pratos. Da sua
cama, Ricardo comeara a falar do tempo, para dizer alguma coisa. Estranhava que a
neve ainda no tivesse vindo, alm do poucochito que cair no princpio do ms. com certe
za, depois de tanta chuva, o tempo esfriaria e logo haveria neve.
Horcio concordou. E Ricardo inquiriu:
Voc vai hoje a casa do Marreta?
Se a chuva passar, you.
Passa disse Ricardo. J est a chover menos. Eu tambm irei.
Jlia protestou:
O qu ? Vais sair com uma noite destas ? Depois, queixa-te do reumatismo!
Tenho de falar com Marreta declarou Ricardo, secamente.
Jlia suspirava de vez em quando e os seus ouvidos pareciam atentos noite, chuva e
aos rudos de l de fora. Ela tinha o caldo pronto, mas hesitava em tir-lo do lume,
no fosse Ricardo ver o seu gesto e pedir logo a ceia. Ela tardou, assim, algum te
mpo, tardou mesmo depois de o marido haver estranhado a demora. S quando a chuva
cessou de todo, Jlia comeou a desprender, vagarosamente, a panela da "cadeia" que
a suspendia sobre o fogo.
Ricardo e Horcio sentaram-se. Ao lado deles, estavam o prato, a malga e a colher
destinados a Antero. Muitas noites a malga ficava ali, assim vazia, espera. Mas
nunca, como agora, ela causara a Jlia tanto pesar.
Os homens comearam a comer a sopa. De p, por detrs do marido, Jlia dirigiu-se a Horci
o:
Disseram-me que o Manuel Peixoto tem andado Ppr a a ver se arranja outra casa par
a si... Jlia disse isto e deteve-se. Mas logo voltou a sentir necessidade de derr
amar sobre algum a amargura e o mau humor com que o filho enrugara a sua alma. S
e voc acha que ns o exploramos, no se prenda.
138
A L E A NEVE
* Ricardo levantou a cabea: i
mulher! No podias deixar isso para outra ocasio ? ; J
Jlia calou-se. J
Vossemec no leve isso a peito desculpou-sJ Horcio. No que eu me sinta mal aqui ou
esteja! descontente. Nada disso! que, como ganho to poucol estive a ver se arranj
ava uma coisa mais barata. Mas est tudo muito caro, eu sei... Faa de conta que ncj
se passou nada... l
Jlia e Ricardo continuaram silenciosos. Os peque-J nos, de olhos fixos em Horcio,
escutavam atentamente! as palavras deste: M
Se eu tivesse de me ir embora, levava saudades! de vossemecs... Tm sido bons para
mim. Mas nol you, a no ser que no me queiram... >1
O casal prosseguia no seu silncio. Por fim, Ricardo! disse: l
No se fala mais nisso. Contrariado, aqui, no ol queremos, claro. Mas se voc no encon
trar melhorai a casa est s ordens. Tambm ns simpatizamos l consigo. l
L fora soaram uns passos e Jlia apurou o ouvido j*
mas logo os passos se distanciaram. m
Mal acabaram de comer, Ricardo e Horcio saram, l
Na rua, ao rentarem a porta de Tramagal, Ricardo
deteve-se: B
V andando, que eu j l you ter. Preciso de l
dizer uma coisa ao Tramagal. B
Horcio continuou a caminhar para a casa de Mar- l
reta. Quase todas as noites ele fazia esse mesmo cami- l
nho. O velho tecelo havia-se tornado o seu melhor
amigo na Aldeia do Carvalho. A princpio, quando
viera para ali, ainda Horcio buscava a convivncia
de Manuel Peixoto, mas, depois, fora-a trocando, pouco B
a pouco, pela de Marreta. Este parecia-hie diferente
dos outros operrios e com muito mais inteligncia. B
Marreta habitava, sozinho, um casinhoto perto da B
ribeira que ladeava o povoado. Era vivo e no ps- B
sua outra famlia alm de um filho na Amrica, do |
A LA E A NEVE
139
qual falava sempre com melancolia, queixando-se de que ele deixara de lhe escrev
er e o esquecera.
Vegetariano e esperantista, na defesa daquela forma de sustento e a pregar as va
ntagens de uma s lngua para a Humanidade inteira, Marreta punha tanto fervor como
se de credos religiosos se tratasse. Ele prprio cozinhava os seus vegetais e, vid
a sbria, despendia a maior parte da fria em brochuras e correspondncia com esperant
istas estrangeiros, nas semanas em que um ou outro operrio no lhe demandava a casa
, a tartamudear um pedido de emprstimo. Conhecedores do seu feitio, raros lhe pag
avam; e, se algum o fazia, era, quase sempre, para estar apto a pedir, noutra oc
asio de aperto, uma quantia maior. Marreta estimava o dinheiro em relao apenas com
o preo dos selos do correio. A sua grande volpia seria poder escrever muitas carta
s e receber muitas tambm dos esperantistas das outras terras. Como houvesse comead
o a corresponder-se com uns hngaros, tanto se apaixonara pela Hungria que acabara
estudando vrios aspectos da vida daquele pas, mesmo os que no tinham afinidade alg
uma com o esperanto. E, durante mais de um ano, ao falar, citava a Hungria por t
udo e por nada. V
Na Aldeia do Carvalho^poucos adeptos arrebanhara para a lngua internacional e par
a o vegetarianismo no conquistara um s. Debalde ele jurava que, assim, seria maior
a sade, mais longa a vida e menor a escravido do ser humano s necessidades de cada
dia. As mulheres, sobretudo, contrariavam-lhe a propaganda. Mais realistas do q
ue os homens, afirmavam, desdenhosas, que fartas de batatas estavam elas desde q
ue haviam nascido e que pena tinham de no poder comer carne todos os dias. Um bif
e! Uma perna de carneiro assada! Quem lhos dera!
Apesar dessas divergncias, a quadrazita que Marreta habitava enchia-se de operrios
quase todas as noites. Fugindo ao ambiente de suas casas, ao rudo e movimento da
filharada, os homens vinham para ali, naquele perodo de Inverno, jogar a bisca e
cavaquear.
140
A L E A NEVE
A L E A NEVE
141
l
^ \
A ausncia de mulheres, de crianas e dos problema]
domsticos dava-lhes uma efmera sensao de evasq
Alm disso, se as doutrinas vegetarianas no os sedul
ziam e se lhes produzia antecipada preguia a ideii
de estudar esperanto, eram fascinados por outras aspji
raes que Marreta juntava quelas, numa catequesi
que ele exercia h muito tempo j. Muitas vezes Hora
cio ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dial
um mundo onde no existiriam nem pobres, nem ricoj
nem grandes, nem pequenos e onde todos teriara
tudo quanto carecessem para viver sem apoquentaesj
Sempre a conversa ia para aquele ponto. Se se falava
de algum que fora despedido, de falta de luz na"
casas e de lugares no Albergue, de pai que no tinha
po para os filhos, de pessoa que andava esfarrapada!
ou pedia esmola, sempre se falava desse dia em qual
tudo isso acabaria e os homens seriam mais felizes!]
Seriam todos como irmos, uns no explorariam 09!
outros e no haveria mais guerras.
Horcio admirava-se de que, parecendo Marreta toa
inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabi&l
muito menos, no podia crer, pois ricos e pobres hou-j
vera-os sempre e se algum fosse tirar aos ricos o queri
lhes pertencia, logo viriam a guarda republicana e a-1
polcia e poriam tudo como dantes. E mais surpreen-|
dido ficava ao verificar que todos os outros, inter- j
rompendo o jogo, iam lanando as suas palavras na i
mesma direco das de Marreta. At o Ricardo, sem- i
pr to calado, to metido consigo, estava, via-se logo, j
de acordo com aquilo. Alguns dos operrios traziam l
jornais e liam coisas passadas em terras estrangeiras, j
notcias da guerra, que os outros escutavam em siln- i
cio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras j
atentas. Depois, um e outro afirmavam que o dia podia j
chegar mais depressa do que muitos esperavam. l
Durante semanas, Horcio olhava para os frequen- j
tadores da casa de Marreta como se eles tivessem um j
segredo que o seu entendimento no conseguia deso- j
brir completamente. Tudo quanto lhes ouvia o desnor- j
teava. Podia l ser que as coisas viesse.^n a ser como ]
eles diziam! Mas, ento, por que eles acreditavam naquilo, falando, s vezes, por me
ias palavras, como de um amor que estivesse no fundo dos seus coraes e do qual no q
uisessem dizer tudo?
Algumas noites, no meio das conversas, Marreta referia-se a cartas que recebera
de esperantistas de outros pases e sempre dava a entender que eles esperavam tambm
aquele dia de que todos, ali, falavam. Eram pessoas de cidades que Horcio rarame
nte ouvia nomear Charleroi, Praga, Atenas, Buenos Aires e, porque se tratava d
e terras longnquas, tudo aquilo lhe parecia fabuloso, sem ligao concreta com a vida
que eles viviam ali, na aldeia de rsticos casebres, de gentes pobres e de cabras
e ovelhas. Cada noite, porm, ficava mais perplexo entre o que escutava e o que p
ensava. Quando era pastor, ouvira, algumas vezes, falar de greves, mas sempre aq
uelas notcias chegavam, a ele e aos outros que viviam entre os rebanhos da serra,
como se fossem movimentos de homens que queriam apenas ganhar maior fria.
Marreta tinha muitos livros, quase todos sem capa, descosidos e ensebados, pois
emprestava-os frequentemente. s vezes, aparecia com um novo volume e, durante sem
anas, cada um dos operrios ia-o levando para sua casa, at todos o lerem. Pelos com
entrios escutados, Horcio acabou compreendendo que muitas daquelas obras eram proi
bidas. E, ento, sentira desejo de as ler tambm. Mas quando o dissera a Marreta, fi
zera-se um sbito silncio entre os que estavam presentes e o velho tecelo hesitara:
preciso escolher um que te possa interessar. Amanh verei isso...
Na noite seguinte, quando Horcio lhe lembrara
aquilo, ele desculpara-se:
Hoje no tive tempo nenhum. Vamos a ver
amanh.
Agora, porm, Horcio encontrava Marreta sozinho, a lavar o prato e a malga em qu
e comera.
Ainda bem que vieste cedo disse-lhe. H j trs dias que ando para falar contigo, ma
s no queria
142
A L E A NEVE
f faz-lo em frente de ningum. E como Horcio que-J
dasse em expectativa: por causa dos livros quel
me pediste. Olha, aqueles dois, que esto ali separados, J
podes lev-los. Mas antes queria dizer-te uma coisa...!
Horcio continuava a olh-lo, intrigado. Ele enxu-|
gou o prato e, depois, veio sentar-se beira do lume. l
Anda para aqui pediu-lhe. E logo que Horcio J
se sentou ao seu lado, Marreta deu-lhe uma palmada l
na perna: Eu sei que tu s bom rapaz, mas, s i
vezes, sem se querer, faz-se mal aos outros. Tu j per- l
cebeste, com certeza, que no se pode andar por a a'l
falar dos livros que ns lemos ou a mostr-los a torto l
e a direito. Eles no tm mal nenhum, mas se se sou- l
besse que ns os tnhamos... Tu compreendes? J uma l
vez fui preso por menos... i
J foi preso ? I Marreta sorriu, admirado da surpresa de Horcio: l
Quantas vezes! No tempo em que podamos fazer l
greves e eu morava na Covilh, era o po de cada dia. l
Uma vez, um guarda-republicano deu-me com a espada, l
mesmo a matar. Ainda tenho aqui, nas costas, a cica-
triz. Outra vez, prenderam-me e meteram-me num l
buraco escuro da cadeia e assim estive dois meses a
fio incomunicvel e sem ver a luz do dia. Criei umas B
barbas maiores do que as do Padre Eterno. At aqui... l
Levou a mo altura do umbigo e teve, de novo,
um sorriso infantil. B
Horcio ouvia aquilo com horror e perguntava a B si prprio porque Marreta, para evi
tar repetio do B que lhe acontecera, no mudara, desde ento, de atitude.
Pode estar sossegado disse. Da minha boca l ningum saber nada sobre isso dos
livros.
No bem por mim que te peo. Sou sozinho, B no fao falta a ningum. Mas pelos cama
das que tm famlia. E alguns, por causa disso, podem no se sentir vontade junto de t
i...
E que, s vezes, parece que no se sentem. J percebi isso...
natural justificou Marreta. H muitos |
A L E A NEVE
143
deles que tm sofrido. E como no sabem bem o que tu pensas...
O velho tecelo calou-se.
Desculpe-me, tio Marreta. Mas vossemec acredita, deveras, nessas coisas que dizem
aqui?
Marreta ergueu a cabea:
Ora essa! Sempre acreditei e cada vez acredito mais! a nossa nica esperana! Que ou
tra esperana podemos ns ter? Eu estou velho; j no ser, talvez, na minha vida, mas est
ou certo de que ser na tua...
Horcio contemplou-o, um momento. Viu os seus olhos a fulgirem, como o brasido, ma
s num rosto macilento e lavrado pelas rugas.
Pois eu no posso acreditar numa coisa dessas...
No me admira declarou Marreta, com o torn de quem o desculpava de um defeito ocu
lto. No me admira mesmo nada. No nasceste em casa de operrios e s agora comeas a
trabalhar nas fbricas. Eras pastor e isso muito diferente. Os pastores parece que
vivem no fim do mundo.
Marreta dobrou-se para o lume e acavalou mais algumas achas. Depois, demorou-se
na catequese, sempre com aquelas palavras de justia, de bem-estar comum, de igual
dade errtre os homens, que tornariam os homens mais felizes/Horcio ouvia-o atenta
mente, mas nele ficava sempre a sua dvida de montanhs, habituado a vida dura e a c
rer, excepo feita para o seu deus e almas de outro mundo, apenas naquilo que se v.
Contudo, ao escut-lo, a sua amizade por Marreta aumentava, uma amizade feita de t
ernura e de respeito, mais pelo que sentia de generoso na alma do tecelo, do que
pelas palavras que ele pronunciava. Parecia-lhe, alm disso, que Marreta o compree
ndia melhor do que os outros e que a ele podia dizer-lhe o que no poderia dizer a
mais ningum.
Comearam a chegar outros operrios. Primeiro veio o Belchior, depois o Rodrigo e o
Joo Ribeiro. Marreta arrastou para o meio da casa a mesita de pinho e sobre ela c
olocou o velho baralho de cartas.
Joga tu disse a Horcio.
144
A L E A NEVE
1
i
No, no. Jogue vossemec. q
* Marreta insistiu:
Eu tenho um jornal para ler. j Os quatro homens sentaram-se. Joo Ribeiro s oj
fez, porm, depois de haver estado a cochichar cortij
Marreta a um canto. j
Perto das onze horas, j Belchior havia declarado!
que "esta a ltima partida", Ricardo e Tramagatj
entraram. Contudo, Ricardo no avanou muito alntl
da porta. Marreta lia, beira do lume, o jornal e ele l
chamou-o. Encostados parede, os dois quedaram-se l
a falar em voz baixa. De quando em quando, Joo"
Ribeiro, levantando os olhos das cartas, contempla-1
va-os, como se soubesse o que eles diziam, ao mesmo l
tempo que Tramagal, de p por detrs de Belchior, l
seguia o jogo. I
H j semanas que Horcio dava conta daquelas l
conversaes murmuradas entre vrios operrios e Mar- l
reta, como se se tratasse de caso em evoluo, do qual l
ele no devia tomar conhecimento. Pela expresso que I
via num e noutro, Horcio adivinhava quando eles
estavam contentes ou maldispostos com o que escu- l
tavam ou diziam. Aquilo passava-se, sobretudo, nos
dias em que Ricardo ia Covilh depois do trabalho, l
Nessa noite no fora cidade, mas Horcio lembra- 8
va-se de que ele havia ido l na noite anterior e depois
do jantar no viera ali. l
Agora, Ricardo deixava Marreta e dirigia-se a ele: B
Voc ainda demora ?
No. you j respondeu Horcio, s aabar este jogo.
Pouco depois, saam, deixando ainda os outros com
Marreta. Ao chegarem a casa e logo que Ricardo abriu B
a porta, Julia correu para ele, aos gritos. Estava ds-
grenhada, o rosto cheio de lgrimas e o choro mal lhe B
permitia falar.
O Antero foi-se embora... O Antero foi-se em-
bora...
Ricardo ps-lhe as mos nos ombros e sacudiu-a,
obrigando-a a olhar para ele:
A LA E A NEVE
145
O qu ? O que dizes ?
Foi-se embora... Veio c buscar as suas coisas e disse que nunca mais voltaria...
in
lJ muito tempo j que, merc da guerra, as fbrics trabalhavam intensamente. Tudo quanto
se tecia se vendia e os industriais andavam contentes do seu destino, comprando
quintas e barras de oiro e projectando novas ampliaes fabris. Capitalistas com di
nheiro morto nos Bancos sonhavam tornar-se industriais tambm, pois nunca os lanifc
ios haviam produzido to grandes fortunas.
Milhares de operrios laboravam, durante o dia, nas fbricas e, ao fim da tarde, out
ros milhares vinham substitu-los para trabalhar noite adentro. Ordenava a lei que
no soassem sempre para os mesmos as longas horas nocturnas e, assim, em cada sem
ana eles alternavam.
Aquela segunda-feira, quando Horcio ia a entrar na fbrica, Mateus chamou-o e disse
-lhe:
V-se embora e volte s cinco. O Boca Negra adoeceu e voc vai substitu-lo no turno da
noite.
Horcio quedou-se a/olhar o mestre, desejoso de lhe fazer perguntas, rnas j Mateus
lhe voltava as costas, repetindo:
Apresente-se s cinco.
Horcio saiu, vagarosamente, por entre os ltimos operrios que entravam. Ia perturbad
o e ditoso. Boca Negra era um pegador de fios, que trabalhava na mquina ao lado d
aquela que ele andava como aprendiz. E se ele ia substitu-lo, porque Mateus o con
siderava j competente e, decerto, lhe pagaria a fria como a um operrio.
Encontrou-se na estrada sem saber como ludibriar o tempo. Guardou o cesto, com a
comida, numa taberna e entestou Covilh. Percorreu o centro da cidade,
146
A L E A NEVE
f para encher o dia livre, e, por fim, sentou-se no jardina da Praa da Repblica. S
entia cada vez maior conten-1 tamento e tinha desejo de fazer compartilhar a sua
i alegria, mas no avistava ningum conhecido. horal do almoo, voltou a descer para a
Carpinteira e pr* curou Ricardo no ptio da fbrica onde este trabalhava.! Ricardo l
estava, a comer, entre os demais. Ele deu-lhetl a notcia, aquela notcia de que des
ejaria falar longa-jj mente, mas Ricardo disse apenas: J
Nesse caso, preciso mandar-lhe a ceia. "m
No se incomodem. Eu me arranjo. <
No nos incomodamos nada. Vai l um garoto*! Ele lanou, ento, a pergunta que mais lhe
inte+jl
ressava: > B
Parece-lhe que me pagaro como a um operrio ? l
Claro! respondeu Ricardo, com o seu habitual I laconismo. l
s quatro e meia, depois de todas aquelas horas
impacientes, j ele andava em frente da fbrica de
Azevedo de Sousa, ansioso por entrar. Vinham che-
gando outros operrios e, por fim, apareceu Tramagal,
que nessa semana laborava, tambm, no turno da noite:
Ento, hoje, no trabalhaste ?
Desde o segundo dia das suas relaes, Tramagal '
tratava-o por "tu" e com aqueles modos despachados,
rudes, que tinha para toda a gente. Ele contou-lhe,
tambm, a novidade. Mas, como Ricardo, Tramagal
parecia no dar quilo valor algum, nem admitir sequer
que ele pudesse estar feliz. Limitou-se a dizer: m
Coitado do Boca Negra! Que ter ele ? l
Logo que entraram na fbrica, Sampaio apareceu B
junto da "self-acting" e assistiu s primeiras pegadu- B
rs que Horcio fez. Dir-se-ia satisfeito com o exame, I
porque se retirou pouco depois, sem lavrar qualquer
observao.
uma hora da noite, quando, finalmente, as m-
quinas pararam, Horcio continuava alegre: "Agora,
que j dera as suas provas, decerto o Mateus, assim B
que o Boca Negra voltasse, lhe arranjaria um lugar B
de operrio ou ele poderia arranj-lo noutra fbrica", jg
A LA E A NEVE
147
Saiu com Tramagal. E andando, ao seu lado, para a Aldeia do Carvalho, Horcio lame
ntava, intimamente, que os teceles nunca trabalhassem de noite, pois sentia a fal
ta da companhia de Marreta. A este poderia ele falar daquilo e ouvi-lo sobre o s
eu futuro, pois Marreta era diferente de Ricardo e de Tramagal.
A noite estava fria. O ms de Dezembro acercava-se do fim e a serra arrefecera.
No tarda, teremos neve a valer! vaticinou Tramagal.
Efectivamente, na manh seguinte, quando os operrios entravam para o trabalho diurn
o, o cu mostrava-se plmbeo, baixo, fechado. E, ao meio da tarde, a neve principiou
a cair. Mas, durante alguns dias, a neve quis outros espaos alm dos pontos mais a
ltos da montanha. De Lisboa comearam a chegar turistas. Pedro disse, na fbrica, te
r visto passar na Covilh vrios rapazes e raparigas com os seus esquis em cima dos
automveis: "Iam l duas "gajas" que eram de se lhe tirar o chapu..." E, ao evoc-las,
os olhos dele luziam de sensualidade.
O frio continuava a aumentar. Por fim, a neve estendera-se desde os topes da ser
ra at as suas faldas. Um dia, quando os operrios da Covilh e da Aldeia do Carvalho
saram de suas casas, viram todas as encostas, todas as dobras do terreno, todos o
s caminhos vestidos de branco. A cidade, num esporo da serra, parecia obra de fan
tasmagoria, com telhados e perfis inverosmeis. E, na aldeia, tudo estava tambm ass
im extravagctnte, enterrando-se na neve os ps dos homens que, pela estrada, se di
rigiam s fbricas.
s cinco da tarde, quando abandonaram o trabalho, continuava a nevar. Eles saam par
a a obscuridade da noite que descia sobre o branco da terra e outros entravam pa
ra as fbricas, enregelados.
Pisando a neve que cobria a rampa da Covilh, Pedro, atrs de outros operrios, ia pen
sando nas duas raparigas de gorro negro que ele divisara dentro de Urn automvel.
Deviam estar, quela mesma hora, Depois de voltar do esqui, a aquecer as mos junto
da
148
A L E A NEVE
i
* salamandra que ele vira, um dia, l em cima, no hotel
das Penhas. gulosa mocidade de Pedro vinha e
desejo de dormir, ao menos, com uma delas, se no
pudesse ser com as duas. Mas logo ele via outras mo$
tirando as luvas de l e estendendo-as tambm para
a salamandra as mos de todos os rapazes qua
tinham passado, nos automveis, para as Penhas d^
Sade. E entristecia como se lhe roubassem alguma!
coisa que j era dele. Depois, penseu noutra rapariga!
que ele vira passar, dois meses antes, para o novoj
sanatrio que havia l em cima. A essa hora, ela nol
devia estar a aquecer as mos e sim a tomar a suai
temperatura, pois a ele haviam-lhe dito que, no sana-^1
trio, todos os tuberculosos metiam o termmetro sob j
o brao quando findava o dia. Parecia-lhe que aquela!
podia ser mais dele do que as outras, mas aquela nol
agradava tanto sua imaginao como as que leva-1
vam gorro negro e esquis sobre os automveis. E cada l
vez o sonho gelava mais sobre o gelo existente na l
declividade que ele ia vencendo entre a Ribeira da l
Carpinteira e a Covilh. Por fim, quedaram apenas, l
ante os seus olhos, os vultos escuros de outros opera- l
rios, que, de ombros encolhidos dentro de velhas rou- l
ps, marchavam na neve, encosta acima. l
Entretanto, l em baixo, junto da ribeira, as f abri- l
cs prosseguiam no labor. Horcio e os demais pega- l
dores de fios corriam atrs das carruagens de fiao, l
Em frente, Tramagal vigiava a sua penteadeira. Mais l
alm, por todo o grande quadrilongo, os operrios se- l
guiam ou intervinham nos maquinismos. I
Durante o Inverno, como o sol desaparecia logo l
no comeo do trabalho, essas horas nocturnas torna- l
vam-se infindveis. O rumor das mquinas volvia-se l
mais ntido e, tambm, mais montono, propcio a um l
sono que no podia consumar-se. Mesmo onde a luz l
era forte, havia algo fnebre, uma claridade de viglia, l
de atmosfera doente. Dir-se-ia que as mquinas pr-
duziam porque tinham de produzir; que a mecha corria
porque tinha de correr; que as canelas se enchiam l
porque tinham de encher-se; que tudo trabalhava como J
A L E A NEVE
149
sob uma fatalidade inexorvel, alheia ao prprio objectivo da produo. Mais do que nout
ras horas, os homens pareciam autmatos, simples peas das mquinas, movimentando-se s
ob aquela mesma vontade fria que movimentava a fbrica.
uma hora da madrugada dava-se, enfim, pausa no rudo mecnico. A fbrica parava de rep
ente, como se obedecesse a um encanto igual ao que comandava o seu movimento. Ou
viam-se os passos apressados dos homens no cimento e viam-se as figuras que tran
spunham a porta, levantando a gola dos casacos. Raros falavam e se algum o fazia
era com duas ou trs palavras soltas, que dispensavam rplica. S havia neles o desejo
de chegar, rapidamente, a casa e de esquecer
aquilo.
C fora, com noite fria de transir, eles, encolhendo o pescoo, abaulando o dorso, m
etiam estrada coberta de neve. O gelo rangia sob os sapatos e as figuras iam-se
diluindo nas trevas, cada qual procurando caminhar mais depressa na noite branca
e negra.
Horcio, Tramagal e Malheiros iam tambm calados e em fila. A certa altura, porm, Tra
magal desalinhou os seus passos e dirigiu-se para a margem da estrada. A urze qu
e ele fixara de tarde, estava quase transfigurada. A mo de Tramagal comeou a afast
ar a neve e, em breve, tocava a face lisa do frasco que ele havia escondido ali.
Malheiros e Horcio j iam
longe.
Eh l Esperem a l gritou, enquanto corria para
eles.
Tramagal bebeu um trago e/suspirou de satisfao. Antigamente, ele levava a aguarden
te para a fbrica, contra os regulamentos. Depois, para fugir tentao de beber durant
e o trabalho e no ouvir as admoestaes do mestre, que chegara a amea-lo de despediment
o, nem escutar as frequentes censuras de Marreta, decidira ocultar a aguardente
na estrada, nas noites em que trabalhava. Os seus companheiros consideravam-no "
dos velhos tempos" e se uns o criticavam pelo vcio, outros riam-se do seu cuidado
em arranjar,
i5o
LA E A NEVE
jr de cada vez, um novo esconderijo, para que ningunf
lhe roubasse o frasco. ri
Agora, Tramagal oferecia a aguardente a HorciJ
e a Malheiros. Eles beberam e continuaram a marchar!
Os seus ps enterravam-se na neve e do imenso vul
da serra, branquejado sob as trevas, descia um Irj
cortante. f]
V uma noitinha de rachar, hem ? comentoiS
Malheiros. >J
Ningum lhe respondeu. E Malheiros pensou, ento/1
que se havia de dar graas a Deus por as fbricas!
fazerem dois turnos, pois isso era sinal de que os ope-. l
rrios teriam trabalho para todos os dias teis da i
semana. J
Subitamente, os trs homens viram riscos de fs- l
foros, muitos fsforos que se acendiam e se apaga- i
vam na estrada. Logo, o jacto luminoso de uma Iam- j
pada de algibeira, que avanava, revelando trechos J
de vrias figuras e se fixava, por fim, no cho. J
Horcio, Malheiros e Tramagal apressaram ainda J
mais o passo. Pouco depois, a luz da lmpada corta- l
va-lhes o rosto, num voo rpido. Os operrios que l
haviam partido frente deles estavam aglomerados i
em volta de um corpo que jazia na estrada. Era um l
homem. Um velho. Tinha as pernas muito encolhidas, l
de joelhos quase tocando o ventre, e os braos encos- l
tados ao tronco, como se se encontrasse numa caixa l
menor do que o seu corpo. l
Parece que ainda est vivo dizia um dos ope- l
rrios. l
Ravasco, que lhe apertava o pulso, desistiu do l
exame: l
No sei nada disto... l
Deixa-me ver interveio um terceiro. Ps-lhe i a mo sobre o corao e, depois, ergu
eu-se: Est l morto e bem morto. l
Mas ainda continuavam as dvidas. O homem cara l
sobre o lado direito e a neve fora crescendo em seu l
redor e criando uma cavidade para ele. Tramagal bai- l
xou-se e voltou o corpo. luz da lmpada surgiram |
A L E A NEVE
151
uns olhos frios, vtreos, que pareciam contemplar a todos e a ningum. Alguns dos op
errios recuaram, com horror. Ouviram-se ao mesmo tempo vrias vozes:
Est morto...
Logo um dos presentes pediu:
Torne a alumiar-lhe a cara. Parece-me que conheo este homem...
E eu tambm... disse um outro.
A luz volveu sobre aqueles olhos mui aberto e embaciados.
E que conheo!... Ora deixe ver... O outro adiantou-se:
um do Teixoso. Um que foi cardador, h uns dez anos.
esse mesmo. H muito tempo que eu no o via...
Nem eu. Depois que o despediram da fbrica, ele andava s esmolas e botava at longe..
.
Mas por que o mataram ? perguntou Tramagal. Houve um sbito silncio.
Se calhar... arriscou uma voz foi um salteador...
Ora!duvidou outro. A um velho que andava a pedir...
Sei l! H gente para tudo! E, s vezes, os mendigos tm dinheiro.
Joo Ribeiro, que sofria da laringe e no gostava de falar em noites assim, para que
o frio no lhe irritasse a garganta, quebrou a sua mudez e pediu a lmpada. com a l
uz foi inspeccionandc/b cadver: a camisa esfiapada e negra de sujidade, o casaco
leveiro, cheio de remendos, as calas rotas e os ps nus.
No... Aposto que ningum o matou... disse. E volveu a despejar a luz sobre o pescoo
de enrugada pele e sobre a cabea calva, cujo velho chapu estava cado ao lado. Mato
u-o a falta de roupa. Ele morreu de frio, o que ! Se no, depois veremos. Tanta l na
Covilh, tantos tecidos e, afinal...
A garganta de Joo Ribeiro exacerbara-se. Ele comeou a tossir e passou a lmpada ao s
eu dono.
152
A L E A NEVE
f Houve outro silncio. Cada qual principiou a sentid sobre o corpo, menos roupa d
o que em realidade tinh)| e mais frio. Depois, uma voz perguntou: >a
Vamos deix-lo aqui ? j Surgiram hesitaes:
l
No... Isto ... ,j
O melhor ir algum Covilh, prevenir m polcia. l l
Os homens consideraram os cinco quilmetros ,/uel os separavam da cidade, encarara
m a noite nevosa e l no responderam logo ao alvitre. J
you eu declarou Joo Ribeiro. i
Tu, no! protestou Tramagal. Tu vais j l para casa, que isto faz-te mal. Eu dou u
m salto at l. i
Ento, muitos outros se ofereceram para o acom- l panhar. l
Basta um, que a minha aguardente no d para i mais de dois... Tu, Augusto! l
Eles partiram e os outros voltaram a hesitar: l
Vamos deix-lo aqui sozinho ? J
Ora! Para que precisa de companhia, depois de l morto ? l
Discordncias foram pronunciadas. A lmpada es- l
tava apagada, porque o dono entendera ser desagra- l
dvel continuarem a ver o cadver. Na escurido mal l
se adivinhavam os circunstantes e somente pela sua l
voz se identificavam. Da noite vinham antigas supers- l
ties e uma espcie de dever para com a morte. E esse l
dever conflituava com o egosmo de muitos deles, com l
o frio que os impelia para casa. l
O outro teimou: l
Se ele tem de ficar sozinho quando for enter- l
rado, que mal h em que fique j ? Ou vocs esto l
resolvidos a ser enterrados tambm, para lhe fazer l
companhia na cova ?
Aquela voz pareceu sacrlega aos mais timoratos: l
"Era o bruto do Ravasco, pior ainda do que o Trama- l
gal. No havia que lhe fazer caso" pensaram. l
Em volta deles a noite continuava cheia de trgi- l
cs sugestes. Algumas vozes murmuravam, nas trevas: J
A L E A NEVE
153
Eu fico... Eu tambm... Ravasco tornou, sarcstico:
Uma hora para a Covilh, uma hora da Covilh para aqui, uma hora para a polcia resolv
er-se a vir... Uma hora? Qual o qu! Se fosse para prender um vivo, a polcia vinha
logo. Agora por um morto, que, demais a mais, no rico! Por um pobre de pedir
... Nem de manh! Vocs pensam que a polcia estpida ? Meus senhores, boa noite! No quer
o rebentar com uma pneumonia...
Ouviu-se, ento, a voz de Belchior, da Fbrica Nova, que at a estivera calado. Era a v
oz mais forte e decidida de quantas haviam soado na noite:
Ele foi cardador e eu sou cardador tambm. No you deix-lo aqui abandonado. Mas t
ambm no fico aqui com ele. O Ravasco tem razo: a noite no est para brincadeiras. you
lev-lo comigo!
Surgiram novos protestos:
E a polcia ? No se pode mexer nas pessoas encontradas mortas sem a polcia as ver p
rimeiro. No, isso no tem jeito nenhum!
Ora! Fui eu que o matei? Algum capaz de dizer que fui eu? Aqui ele no fica! you le
v-lo. Se ningum quer tomar a responsabilidade comigo, tomo-a eu sozinho.
Continuavam as discordncias. Mas j ningum esperava convencer Belchior, que todos sa
biam ser o mais teimoso de quantos trabalhavam nas margens da Carpinteira. \
O vozeiro de Belchior rompeu a noite:
Tramagal! Tramagal! Os gritos foram ecoando por todas as quebradas da serra, at
a vrzea. Tramagal! Tramagal!
O que que lhe queres ?
Quero que aqueles palermas no vo morrer de frio por a fora. Quando chegarmos aldei
a, faz-se abrir a Casa do Povo e telefonamos para a polcia. Deixa-se o pobre na
igreja e a polcia que venha quando lhe d na gana.
Todos se admiraram de que nenhum deles se hou-
154
A L E A NEVE
A L E A NEVE
155
i i
* vesse lembrado, at a, do telefone. Um homem saiu
a correr em direitura Covilh, gritando por Tramagai
e Augusto. l
Entretanto, Belchior pedia: fj
Acende l essa lmpada! E, mal a luz surgiu! dobrou-se sobre o cadver: pena no haver
umai padiola. Mas no faz mal... Levo-o s costas. Ele era] um cardador como eu. <
J
Algum alvitrou: j
Abre-se um sobretudo e pe-se o corpo em riba. J]
Boa ideia! exclamou Belchior. Mas logo hesiil tou: O meu no pode ser. Est to velh
o que sm rasgava com o peso e deixava cair o morto... a
O meu tem buracos, seno estava s ordens...! disse Joo Ribeiro. Outras vozes se segu
iram. TodoSj, i menos Ravasco, diziam a mesma coisa. Alguns despianil o sobretud
o, para lhe considerar a resistncia, luai da lmpada. l
Est num fio... concluam. J Ravasco pressentia que os outros pensavam no seul
sobretudo novo e justificou-se: l
O meu aguentava, l isso aguentava... Mas sei a minha mulher sabia que ele servira
de padiola parai um morto, nunca mais mo deixava vestir. E eu no l tenho dinheir
o para comprar outro... J
Houve novo silncio entre eles. Belchior estendeu J as suas rudes manpulas e, com e
las, agarrou os braos l inteiriados do cadver. Levantou-o ligeiramente e vol- J tou
a deix-lo pousar na neve. Os olhos do morto pare- J ciam seguir os gestos dele.
i
Est leve... O pobre perdeu as carnes antes de l morrer... O diabo que no sei como
hei-de ajeit-lo i nos meus ombros, assim encolhido como ele est... l
Ento, Ravasco aproximou-se. Tirou, lentamente, o j
sobretudo e ofereceu-o a Belchior. l
Pega l... l Todos sabiam que Ravasco andava, h muito, adoen- i
tado, com aquilo de no poder reter guas e que, ulti- j mamente, dera em emagrecer
e em tomar uma cor J baa. Belchior rerusou: '
No quero! J que a tua mulher assim, no vale a pena passares o Inverno ao frio... E
u levo-o
s costas!
Ravasco insistiu. E, com voz levemente humilhada,
confessou:
No era s por minha mulher... Era tambm por mim. Pode ser lavado, no h dvida... Mas, n
sei porqu, vai custar-me a vesti-lo depois... Mas acabou-se ! Agora fao questo!
Belchior continuava a recusar.
Fao questo, j te disse! exclamou Ravasco. E ele prprio estendeu o sobretudo ao lado
do cadver. Joo Ribeiro auxiliou Belchior a colocar o morto em cima. Quatro sombra
s agarraram nas extremidades do casaco e com as demais sombras puseram-se em marc
ha.
A neve continuava a cair. Aqui e alm os sapatos dos homens afundavam-se nela. O d
a lmpada ia frente e a dbil luz deixava ver as pegadas que ele prprio abandonava na
neve. Atrs das dele iam ficando as dos outros, metidas nas trevas, at que a neve
as apagasse.
De quando em quando, Ravasco detinha-se, desabotoava a braguilha e soltava uns p
ingqs na berma da estrada. Depois, numa ligeira corrida, alcanava os companheiros
.
Todos os homens caminhavam em silncio. Subitamente, porm, Belchior disse, com uma
voz mais suave do que a habitual, uma voz quase enternecida:
Eu conheci-o mal lhe deitei o olho. Mas, ao v-lo, fugiu-me a fala. Ainda um dia d
estes tinha pensado nele. Era um bom tipo. Eu at namorisquei a filha que ele tinh
a... Ele fingia que no percebia nada, mas eu estava farto de saber que ele no ia c
ontra eu ser seu genro... Nesse tempo, eles viviam na Covilh e trabalhavam no out
ro lado, na Degoldra. Quando o despediram da fbrica, por estar velho, valeu-lhe o
salrio da rapariga, que era fiandeira. Vocs no se recordam dela? Uma magrita, que
tinha sardas?
156
A L E A
NEVE
* Eu tenho uma ideia disse uma voz. Ela na
coxeava um pouco ? ;
Coxeava. Era essa mesmo. Era muito fraca -
o seu salrio no dava para os dois comerem e el
tratar da sade. Para a aliviar, ele fazia os trabalha
da casa enquanto ela estava na fbrica. Lavava j
roupa, preparava a comida, fazia tudo. Ele no vjj
seno a ela e tinha razo, porque sem aquela fill"i
ele morreria de fome... Mas, um dia, o bicho deu ne<|
pulmes da rapariga. Meteram-na na Misericrdia. Aindg
fui v-la vrias vezes e levar-lhe algumas coisas. Mas(
da ltima vez j ela no tinha olhos para me ve$
O velhote estava porta. Chorava que nem uraaj
criana. Atirou os braos a mira e chamou-me sed
filho. Depois disse-me: "Vocs iam ser muito felize^j
Eu sei que vocs iam ser muito felizes". . -T]
A voz de Belchior embargou-se-lhe. Os homens con"l
tinuavam a marchar com seu fardo e a lmpada ai
riscar na neve uma trmula vereda de luz. i l
Eu fui ao funeral e, dias depois, fui ver o vej j
lhote. Eu levava vinte mil ris para lhe dar. Quando l
cheguei, encontrei uns homens a tirar da casa dele]
todos os trastes que l havia. Ele disse-me que tinha i
vendido tudo. Que no podia continuar ali, porque!
estava sempre a ver a filha. Eu tirei, ento, do bolso/ j
os vinte mil ris, mas ele no os quis receber. Ms* i
trou-me uma nota de cinquenta, que lhe tinham dado l
pelos tarecos, e disse-me que no me preocupasse i
com ele... I
Cala-te l com isso l pediu Ravasco. Bem J basta irmos, aqui, com o corpo! Aind
a por cima esta- j rs a lembrar essas coisas! j
Belchior abreviou: J
Foi ento que ele foi para o Teixoso... J Caiu outro grande silncio entre os hom
ens. De J
quando em quando, porque as mos ao lu em breve i enregelavam, eles revezavam-se na
s pontas do sobre- l tudo onde ia o cadver e prosseguiam na marcha, l Depois do
que Belchior contara, parecia-lhes que o i morto no ia bem morto, que o sobretudo
ia cheio ]
A L E A NEVE
157
de sentimentos, que uma rapariga definhada e com muitas sardas ia tambm l d
entro, invisvel mas
sensvel.
Ao entrarem no povoado, Ravasco, como se quisesse absolver-se da sua primeira at
itude, adiantou-se para acordar o sacristo, que devia abrir a Igreja.
Pouco depois, a porta do pequeno templo, erguido no centro do lugar, descerrava-
se, rangendo. L dentro tremulava uma lmpada sonolenta e, sua luz difusa, os homens
pousaram o cadver no cho. Belchior olhou para o sobretudo de Ravasco e para a toa
lha branca, com bordados, que cobria o altar, l ao fundo. Parecia-lhe, porm, sacri
lgio privar os santos daquele ornamento. Joo Ribeiro adivinhou as hesitaes dele e av
anou para o altar. Levantou as jarras com flores de papel, depois as imagens e re
tirou a toalha. Os homens continuavam calados. Quando a toalha foi estendida no
soalho, eles depuseram, sobre ela, o cadver. Joo Ribeiro entregou o sobretudo a Ra
vasco e voltou-se para todas aquelas caras, s quais a vaga luz da lmpada dava expr
esses rudes, opacas, de esculturas feitas a podo: .
Eu no quis contrariar o Belchior, mas no h dvida que ainda p 'e haver algum sarilho c
om a polcia... Acho que ele deve dizer, quando telefonar, que fomos todos ns que r
esolvemos trazer o morto para aqui. E, amanh, se nos perguntarem, devemos dizer a
mesma coisa. Todos ns devemos tomar a responsabilidade.
Joo Ribeiro contemplou os presentes. Nenhum deles articulou uma s palavra, mas o s
eu silncio era aprovativo. Ento, Belchior pediu a Joo Ribeiro:
Telefona tu, que sabes dizer as coisas melhor do que eu.
bando comeou a dispersar-se. Joo Ribeiro e Belchior foram chamar a Rosalina, para
que viesse abrir a Casa do Povo, de que ela era empregada e onde se encontrava o
posto telefnico da aldeia. Horc|o deixou-os e dirigiu-se para o casebre de Ricard
o. ^a viela cruzou-se ainda com Tramagal, Augusto e
158
A L E
A NEVE
A L E A NEVE
* o outro homem que fora por eles. Depois de os infd
mar que o morto ficara na igreja, meteu na porta 4
Ricardo a chave que Jlia lhe dera desde que ele ai
dava no turno da noite e comeou a subir a escai
evitando fazer rudo. Havia ali grande silncio, qij
naquela semana Ricardo trabalhava de dia. J
Em cima, Horcio despiu-se com rapidez, e, sq
prando a vela que havia acendido, meteu-se na cami
Ao envolver-se nas mantas, teve uma sensao de ai
vio, uma sensao que ia aumentando, em prazer, f
medida que ele ia aquecendo. Cada vez aquela sensa
de calor lhe era mais agradvel. O corpo encolhia-9
de volpia quando ele recordava o frio que acabavl
de sofrer. Embrulhou-se ainda mais nos cobertores m
disps-se a dormir. Mas a figura do morto volveu aoi
olhos dele, agora incomodamente. E, com ela, as pall
vras de Joo Ribeiro sobre a l, quando descobrira
que o velho tombara de frio. Horcio comeou a veil
nas trevas, l por toda a parte, l a cair do corpo dam
ovelhas, na poca da tosquia, l fofa, depois l pren"
sada, montes de l nas fbricas, na lavagem, na cars!
bonizao, na escarduagem, homens a labutar semprel
com a l at ela passar s mquinas de cardar, atai
tornar-se em mecha e perder o seu aspecto original}!
Durante muito tempo a l fora, para ele, apenas uma"!
coisa que se vendia, aos quilos, que dava dinheiro ao9|
donos das ovelhas, e, depois, se comprava aos metros, l
Habituado a dormir ao relento no Vero, a cobrir-se i
com a manta quando esfriava, a abrigar-se de dia com |
os safes e o capote, nunca se detivera a relacionar l
esses elementos da sua defesa fsica com o prprio J
rebanho que ele pastoreava. Os safes eram uma pele l
de ovelha com a sua l pegada, mas quando ele criara l
entendimento j encontrara safes em seu redor, pois l
os pastores costumavam us-los, tal como usavam um l
cajado, certamente desde o princpio do Mundo. Agora, l
porm, a l aparecia-lhe com outro aspecto. E at o l
rebanho do Valadares, que ele vira, durante muito J
tempo, como simples cabeas de gado com um valor J
em dinheiro, passava, agora, nos seus olhos, de maneira |
159
diferente, como se as ovelhas tivessem perdido ossos e carne, patas e cabea, e fi
cassem s l, casulos em forma de ovelhas, que depois de transformados serviam para
aquecer os homens. Mas por entre toda aquela l surgia-lhe sempre, teimosa, a lemb
rana do velho estendido na neve e de cada vez que a figura se apresentava, com se
us olhos vtreos, mui abertos, ele sentia calafrios na quentura da cama. Voltou-se
para a direita, voltou-se para a esquerda; o sono no pegava e a volpia inicial fo
ra substituda por mal-estar. Ento, ele acendeu a vela, para matar a obsesso, para d
eixar de ver a l e o morto a l e os homens que no podiam t-la.
Na casa e l fora e parecia, at, que no Mundo inteiro, continuava a haver um grande
silncio. Horcio pegou num dos livros que Marreta lhe emprestara e comeou a l-lo. Le
u-o, a princpio, para esquecer o morto e leu-o, depois, uma hora a seguir a outra
, enquanto a vela durou, interessado pelo que o prprio livro lhe dizia. E s na ant
emanh adormeceu.
s cinco da tarde, quando entrou na fbrica, Mateus comunicou-lhe: /
O Boca Negra j est bem e vem na segunda-feira. Voc volta para o turno de dia.
Horcio hesitou, tornou a hesitar e, por fim, encorajou-se:
Volto para aprendiz ?
No tenho outro lugar respondeu Mateus, entrando no seu gabinete envidraado.
IV
\ parte aquele sbado, em que no pudera ir, por trabalhar de noite, em todos os outr
os, mal abandonava a fbrica, Horcio dirigia-se a Manteigas. A princpio, para utiliz
ar a camioneta que partia da Covilh s quatro e quarenta e cinco, ele solicitava a
i6o
A L E A NEVE
A L E A NEVE
225
* Mateus que lhe permitisse sair meia hora mais cedi
Desde, porm, que a Jlia lhe aumentara o preo d
hospedagem, comeara a minguar-lhe o dinheiro ps
o transporte. Por isso e porque era sempre de ma<
grado que o mestre lhe consentia deixar o traball|
antes dos outros, decidira ir a p. E, s cinco da tard"
em vez de caminhar para a Aldeia do Carvalho, meti)
montanha, direito a Manteigas. Eram quatro puxaf
das horas quando no havia neve, cinco e at ms$
quando ela cobria encostas e pncaros, de onde qj
prprios lobos haviam fugido. Algumas vezes, duran|
o percurso, ele irritava-se ao lembrar-se de que ia aljj
a esfalfar-se serra acima, somente pela diferena d|
um quarto de hora na fbrica e pela falta de algun
escudos. "Bem lhe bastava ter de calcorrear aquilo i|
volta, por no haver camioneta de Manteigas para
Covilh nem ao domingo, nem segunda-feira". Essf
enervamento durava, contudo, pouco tempo. Na sei
mana seguinte, novamente ele desejava que chegass
o sbado e era rindo que, ao entrar em casa, ouvidj
a me amaldioar "aqueles caminhos do demnio" quej
ele tinha de percorrer sozinho. t j
Rapazes na tua idade no tm juzo nenhum!j
Se fosse por ns, no virias, eu bem o sei! acres-J
centava a senhora Gertrudes. f
Ele continuava sorrindo e, s vezes, enternecia-se; f
ao verificar que os pais no tinham ceado, que esta-J
vam sua espera h muito tempo j, com a panela j
beira do lume, para que no esfriasse nem fervesse, j
Os trs comiam, ele contava histrias da Aldeia do i
Carvalho e, em seguida, deitava-se deitava-se com J
a nsia de que a noite acabasse, de que viesse a manh, i
porque, aos sbados, como arribava j tarde a Mantei- i
gs, pouco falava com Idalina quando passava sua j
porta. l
Assim, os domingos pareciam-lhe os dias mais fel- i
zes da sua vida, sobretudo antes de os viver. Era sem- l
pr um alvoroo a sua chegada junto de Idalina, mas, i
depois, com o decorrer das horas ao seu lado, a feli- j
cidade ia-se transformando em inquietao. Horcio |
se oporia. Mas ela no pensava consult-lo. Desde a vspera que o marido se encontrava
, de novo, tolhido na cama. Nessa semana ele trabalhara apenas segunda-feira; es
tavam na quarta e s na sexta veriam alguns escudos. Para que lhe falar naquilo, s
e Ricardo no podia solucionar a dificuldade, esses dois dias em branco que se abr
iam frente deles e em que eles e os filhos precisavam de comer?
Jlia decidiu-se. Pediria a Horcio. Tanto lhe custava pedir a ele como ao Marques e
, assim, sempre ficaria com os cobertores, pois muita gente dizia que o mau temp
o ainda voltava.
A esbicar a nova pea de tecido, Jlia estava de ouvido atento aos rudos exteriores.
Eram quase seis da tarde e, por volta dessa hora, ouviam-se, em todos os dias de
trabalho, muitos passos na aldeia. Subitamente, Jlia interrompeu o labor. Ajeito
u o avental e, rpida, transps a porta. Os operrios regressavam das fbricas e, em bre
ve, ela lobrigou a figura de Horcio, caminhando ao lado de Marreta, no lusco-fusc
o. Jlia ficou em inquieta expectativa, no fosse ele seguir para casa do outro, com
o tantas vezes fazia nos ltimos tempos, s aparecendo hora de comer. Justamente nes
sa noite no haveria ceia que bondasse, pois sem levar algum dinheiro por conta da
dvida ela no teria coragem de ir mercearia.
Jlia respirou. Horcio separara-se de Marreta e caminhava em direco a' ela. Dir-se-ia
, porm, no a divisar na obscuridade que comeava a envolver a aldeia. Jlia abordou-o
antes de ele se acercar da porta. E disse-lhe com voz mais trmula e acanhada do q
ue se lhe falasse pela primeira vez:
Voc tem de desculpar, mas eu queria pedir-Ihe um favor... Era que me adiantas
se o dinheiro da semana que vem... Se isso no lhe fizer diferena, j se v...
Ele ouviu, surpreendido, as primeiras palavras, mas as ltimas j no pde dar ateno. Fico
u mais perturbado ainda do que Jlia:
Olhe que pena! Tanto gosto eu teria... E como
! Vol. Ill
226
A L E A NEVE
tenho de pagar, tanto me fazia ser agora como n*| dia da fria... Justamente nesta
s ltimas semanas e| juntei uns vintns, mas dei-os no sbado ao alfaiatJ por conta do
feitio de um fato... Hoje s tenho quatra escudos... Que pena! Sucedeu-lhe alguma
coisa? i
Nada, no murmurou Jlia. uma preci so de momento. '3
Ele tirou os dedos do bolso: /a
Esto aqui os quatro escudos... Se lhe fazem jeito, esto ao seu dispor... ,J
Obrigada. Isso no me chega. Mas no se incota mode. Eu arranjarei por outro lado.
E abalou eim direco porta. Horcio seguiu-a e ps-se a vencera os degraus que davam pa
ra o seu quarto. Instantefflj passados, Jlia voltava a sair com um grande embrri
q lho debaixo do brao. '"
Pouco depois, Horcio ouvia, l em baixo, a voo
de Marreta, que se informava do estado de Ricardo!
e lhe pedia licena para subir. Logo, os seus passos!
soaram na escada. Intrigado com a visita, pois era a" l
primeira vez que Marreta o procurava ali, Horcio,"
caminhou para a abertura que havia ao fim do soa- l
lho. O velho tecelo trazia cara alegre. Sentou-se no l
rebordo da cama e comunicou que, depois de haver l
deixado Horcio, encontrara a tia Augusta, me de I
Ravasco. Tinham estado de conversa e ela dissera- j
-lhe que ia mandar amanhar as suas courelas. Que l
j ia mesmo atrasada, pois, com um tempo assim l
quente, h muito que as batatas deviam encontrar-se I
na terra. Mas por mor dos seus achaques e desgostos l
com a doena do filho fora-se descuidando. Ele, ento, l
lembrara-se do pedido que Horcio lhe havia feito, l
Como este andava, agora, semana sim, semana no, i
no turno da noite, podia, nos dias livres, cavar aquelas l
terras. E tambm nos outros poderia aproveitar algum l
tempo; saa da fbrica s cinco horas e, dali em diante, l
as tardes seriam cada vez maiores. Por isso, ele pedira i
tia Augusta que desse o trabalho a Horcio. Ela l
respondera que gostava mais de um homem que cavasse l
o dia inteiro, mas, depois, ficara de o mandar chamar. ]
A LA E A NEVE
227
claro que Horcio no devia esperar receber muito, desde j ele o prevenia, pois a vel
ha era somtica; mas aquilo sempre serviria de ajuda. At h pouco, fora ela e o filho
que haviam tratado das courelas; agora, porm, a tia Augusta, com quase oitenta a
nos, encontrava-se estafada e o filho estava doente, em Lisboa, como se sabia.
Horcio enterneceu-se com os cuidados de Marreta, j obtendo-lhe aquele trabalho, j v
indo ali dizer-Iho antes mesmo de fazer a sua ceia.
Muito obrigado! Vossemec uma jia! E diga-me c uma coisa: so muitas terras ?
No. L muitas no so, mas chegam para te entreter algum tempo. E, depois, veremos se s
e arranja mais alguma coisa...
Desde essa noite, ficou ansioso de que a velha lhe mandasse recado. Passaram-se,
todavia, vrios dias sem que ela o fizesse. E, entretanto, uma manh, Ravasco regre
ssou de Lisboa. Regressou antes do tempo em que o esperavam. Os mdicos do Institu
to de Oncologia, depois de o examinar e de terem mandado radiograf-lo, comunicara
m-lhe cue devia voltar dali a dois dias. E, dois dias passados^ele fora conduzido
a outra sala, onde comearam a aplicar-lhe raios X. Ele andara nesse tratamento u
mas trs semanas. Depois, levaram-no, mais uma vez, aos mdicos, que lhe meteram na
bexiga aquele aparelho de luz que o doutor Barbeito ] lhe tinha metido tambm. Fala
ram entre eles e disseram-lhe que voltasse na segunda-feira seguinte. Ele voltar
a, os mdicos tornaram a v-lo e, por fim, aconselharam-no a que regressasse Aldeia.
Ele ainda perguntara se no era caso para operao. "Que no era" responderam-lhe. Se s
entisse dores, que tomasse dois daqueles comprimidos que figuravam na receita qu
e lhe iam entregar. E se, mesmo assim, as dores no se fossem, chamasse o mdico da
Covilh para lhe
228
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* aplicar uma injeco, pois o mdico da Covilh j sabsS
que injeco devia dar-lhe. (j
Ravasco chegou Aldeia e encarou a vida. Trs
filhos, a mulher e aquelas despesas de viagem e toda
aquele tempo perdido. A mulher era urdideira, mas d
que recebia no chegava, sequer, para eles comerem!
quanto mais para eles se desempenharem. Ele tinha
de deitar mo a qualquer coisa. Se a sua me havia
de pagar a outro para lhe amanhar as courelas, pagaw
ria a ele, como nos anos anteriores, quando ele gozavsa
sade. l
Uma tarde, j depois de terem vindo juntos dai
fbrica, Marreta tornou a procurar Horcio em casa
de Ricardo. E disse-lhe que a tia Augusta pedia deslj
culpa de no lhe dar o trabalho prometido, pois (r)l
filho tomara conta dele. J
Na manh seguinte, o povo viu Ravasco dobrar-s
sobre a terra, enxada vai, enxada vem, l em riba,'I
nas ltimas j eiras da aldeia. Ele voltara de Lisboa'*
mais chupado e com uma cor ainda mais amarelenta*
do que quando partira, mas parecia senhor de uml
fora dos demnios naquele movimento contnuo. l
Todo o povo sabia que ele tinha um cancro, que l
assim o assoalhara Joo Ribeiro, depois de o haver.a
acompanhado ao consultrio do doutor Barbeito. E todos l
garantiam que um cancro tirava as foras a quem o l
tinha e era mal sem remdio, a no ser que o atalhas- l
sem logo de princpio. Ora o Ravasco andara um ror l
de tempo com aquilo, como fizera o Taborda, que l
morrera tambm com uma nascida na lngua. Como l
que ele, agora, se metia a cavar, com tanta gana, as l
courelas da me, que, ainda assim, eram uns bons l
pedaos de cho ? l
Das portas e janelas das casas vizinhas, as mulhe- i
rs lanavam, s vezes, um olhar curioso para as bei- l
gs da tia Augusta. Ravasco continuava de enxada nas l
mos, a vergar e a erguer o tronco. l
Por volta das onze horas, a sua figura desapareceu, l
Mas uma rapariga que descia os quebra-costas da aldeia m
informara que o Ravasco estava sentado debaixo de J
229
uma oliveira. Ao meio-dia, viram-no a trabalhar novamente.
Coitado! No sabe o mal que tem! Nem ele,
nem a mulher, nem a tia Augusta... o que lhes vale!
Durante a tarde, Ravasco continuou nas courelas. O povo notou, contudo, que ele,
agora, se deitava mais frequentemente sombra das oliveiras. Ao fim do dia, a mu
lher, regressando da fbrica, maralhou com ele: "Aquilo no tinha jeito nenhum! A su
a sade no estava para aquilo!" Ravasco ps o casaco sobre os ombros e caminhou para
o extremo do povoado. Bateu porta do Linguinhas e com este ajustou a dormida das
suas ovelhas, naquela noite, sobre a terra que ele cavara durante o dia. E volt
ou para casa a pensar e a antegozar a contrariedade que Manuel Peixoto teria ao
saber que, por causa do se.u irmo Mateus, que era colega do Felcio, ele no quisera,
desta feita, o seu gado.
Na manh seguinte, ao olhar a leira, considerou ser bastante o estrume deixado pel
as ovelhas e barato o preo que combinara. Ergueu a enxada e lanou o primeiro golpe
terra outro, outro e outro... Agora, porm, sentia-se mais fraco do que na vspera
. Quatro enxadadas e o corpo pedia-lhe sossego. Ravasco, ento, enervava-se: "Aque
la doena arrasava-o! Antigamente, ele era to forte que, com dois goles de aguarden
te, de manh, e uma tigela de caldo, ao meio-dia, trabucava de sol-nado a sol-post
o sem se cansar. Mas no ia, agora, deix^r-se tomar por aquilo. Tinha que fazer ha
via de^o fazer!" Mordia os lbios e voltava a enfiar a enxada na capa verde que as
ovelhas tinham rapado rapado tanto que no se via uma nica erva erguer-se acima d
a terra.
Ia cavando e remoendo os seus despeites e desesperos. Aquela velha que ele havia
encontrado na sala de espera do Instituto de Oncologia ajudara a dar cabo dele
pensou. Pois que preciso tinha ele de saber aquilo ? Desde a primeira no simpati
zara com ela. Mas que ia fazer ? A sala estava cheia de pessoas esperando vez pa
ra consultas e tratamentos e o diabo
230
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
231
* da bruxa metia-se com toda a gente. com aquele thtt
pu preto coado e um passarinho tambm preto e |
sem bico em riba do chapu, falava por todos os cotd
velos. Quando ela era assim faladeira e tinha manid
de janota naquela idade, o que seria o estafermo efl
nova ? A primeira vez que ele antipatizara com eli|
fora quando a ouvira dizer, em voz alta, na salaj
"Parece que eu tenho um cancro na ponta do seal
mas j me disseram que, aos oitenta e sete anos,o|
cancro no tem fora para se desenvolver e que fl
posso viver ainda muito tempo". Ela dizia aquilo com
satisfao e como se fosse, por isso, mais do que dj
outros. Todos ficaram calados, mas ele percebera muiwj
bem que todos ficaram aborrecidos, pois quem vina
ali sabia que no Instituto se tratavam as doenas mffl
mas ningum gostava de falar em cancros. '-fl
Naquela manh, a velha fora alm das marcara
Nunca esperara uma coisa assim. Quando ele voltav"
dos doutores, a bruxa, ao v-lo de cara alegre, logq
metera conversa. E ele, to tolo, a pr para ali tudo-aj
que os mdicos lhe tinham dito. E ela, ento, com
aquele ar de amizade, que se via mesmo que era falstd
"Ah, ainda bem! Ainda bem! No h-de ser nada, Sra
Deus quiser! Eu rezarei muito por si, para que Deti
Nosso Senhor lhe d sade!" A bruxa! Ele, agradecido",!
a voltar-lhe as costas, a procurar, nos bancos, no mei"|
daquela gente toda, o seu chapu, e ela a dizer aoSl
outros, pensando que ele j ia longe: "Coitado! Est]
perdido! Quando os mdicos falam assim, que jl
no h nada a fazer. Foi a mesma coisa que eles dis-i
seram minha irm Leonor, que tinha um cancro nol
fgado. No quiseram oper-la, por no servir de nada. l
E ela morreu pouco tempo depois..." Uma facada nos I
ouvidos ter-lhe-ia dodo menos. Ainda se voltara para j
o lado onde a velha estava sentada. Dera com os olhos l
nalguns dos homens que a escutavam e que, ao com- i
preenderem que ele tambm a tinha ouvido, ficaram l
com um sorriso parado, como se houvessem morrido i
com aquele sorriso. Ele vira logo tudo muito claro. At i
chegar rua, at ter mo em si, as suas pernas tre- ]
miam-lhe. Era certo que quando os mdicos lhe disseram que ele podia voltar para c
asa, parecera-lhe que havia alguma coisa que eles no diziam naquelas palavras. Ma
s ia l supor uma coisa assim!
Lanou, com mais fora, a enxada terra, como se a metesse no corpo da velha. Estava
perdido, mas havia de fazer das tripas corao, a ver se pagava a dvida antes de morr
er. Se no a pagasse, o miservel do Marques no largaria a Maria Antnia e era ela, a p
obre, quem teria de entrar com o dinheiro. E ainda com juros, que aquele avarent
o levava-os maiores do que as casas de prego da Covilh. com essa obrigao a pesar-lh
e, como poderia ela sustentar-se e aos pequenos com o salrio que recebia? No, ele
no queria morrer com a ideia de que os seus filhos iam passar fome logo que ele f
echasse os olhos! Felizmente, como estivera pouco tempo em Lisboa, gastara menos
de metade do dinheiro que tinha pedido emprestado ao Marques. E o que ficara po
r l, havia de o ganhar, se Deus lhe desse ainda algum tempo de vida. A sua me que
lhe podia valer, porque ele estava desconfiado de que ela tinha notas suficiente
s. Mas a velhota tambm era muito agarrada ao dinheiro e depois que ele lhe pedira
, h anos, aqueles cinquenta mil ris e no lhos pagara, nunca mais ela quisera empres
tar-lhe um tosto. Dizia sempre que os patacos que recebia da venda do centeio mal
chegavam para pagar o amanho das terras no ano seguinte e que se, um dia, adoec
esse, nem para remdios teria dinheiro. Podia ser, mas ele no acreditava. Sempre lh
e parecera que s ao outro filho, ao que estava no Teixoso, ela votava amor. Ele t
inha, pois, de contar s consigo, de pagar aquilo, se no queria que a desgraa casse s
obre os pequenos
- coitadinhos, que eram inocentes! logo que o levassem para o cemitrio. E tambm s
obre a Maria Antnia, que fora sempre trabalhadeira e honesta.
O seu prprio monlogo lhe dava novas foras, aquela fria com que ele, em certos moment
os, suado, fegante, o sexo pingando sangue, cavava a terra a grandes enxadadas. M
as logo surdia o cansao das
232
A L E A NEVE
'pernas, dos braos, do corpo todo, aquela sensao oh
frio, aquela sensao de desmaio e, em seguida, }
hemorragia. Quedavam-lhe dores e uma secura na gafl
ganta, que no havia gua que matasse por muitt
tempo. Ele emborcava a bilha, mas, pouco depois, l
estava a secura sem sede, como se a sua gargantl
fosse, agora, de cortia. E, novamente tambm, aqueM
imperiosidade de fazer a mico sangunea. >j
Todas as tardes, a me, curvada e amparando-s|
a um cajado, aparecia nas leiras. E ao v-lo assin
esfalfado, magro, de uma magreza que parecia transi
parente, dizia-lhe: D
melhor, talvez, chamar um homem para aquifl No ests com sade para tanto! Ld|
Ele rosnava uma recusa e continuava a cavar, ta
Mas, em cada novo dia que passava, a tia Augusta
via que o trabalho do filho era menor. -ij
Ao menos um homem para te ajudar... sugej ria ela, timidamente. m
Ravasco saltava de l: m
Se vossemec no fosse minha me, eu seal o que lhe havia de resp
onder. Deixe-me em paz|| ande! m
A tia Augusta partia, agarrando-se ao seu bordoij
e suspirando o desgosto de ver Ravasco assim aca-dj
bado e assim teimoso. E ele ficava, odiento, a rumi-fl
nar as suas cleras: "Ela tinha oitenta anos e j no l
fazia falta a ningum. Se ela morresse, ele venderia l
uma das courelas que lhe coubessem nas partilhas e j
pagava ao Marques. At podia descansar um bocado J
antes de ele prprio morrer. Iria, tambm, a S. Tor- j
cato de Guimares. Ele nunca pudera gozar nada. i
Andara sempre a trabalhar e sempre sem dinheiro, j
Quando era ainda vivo, o seu pai, que nascera para l
as bandas de Guimares, dissera-lhe, muitas vezes, que J
no havia, em Portugal, outra romaria como a de 1
S. Torcato. Mas ele nunca pudera l ir. Passara a vida J
com aquele desejo e nunca o pudera satisfazer. Agora, l
com certeza, tambm j no iria. A velha estava, ainda, J
muito rija. E mesmo que ela morresse j, aquilo das j
A LA E A NEVE
233
partilhas demorava sempre muito tempo; resolve e no resolve, j ele teria morrido t
ambm".
Desde que, naquela manh de Lisboa, compreendera que o seu mal no tinha cura, deixa
ra de se apiedar por quem morria. Viera-lhe mesmo um vago consolo ao saber que o
Cosme da Borralheira se finara e que o Isidoro do Sineirinho estava s portas da
morte, com uma tuberculose. Mas aqueles pensamentos que ele punha, como alcateia
danada, atrs da sua me, quando ela se retirava, acabavam sempre por o deixar de m
al consigo prprio. "A velha tinha aquele feitio, mas tambm ela no sabia que ele est
ava assim. At lhe dissera, quando ele a prevenira de que ia a Lisboa: "Agora, por
uma dor de barriga, mandam logo a gente para Lisboa, para Coimbra, para o hospi
tal... No meu tempo, ningum saa de onde estava e vivia-se muito mais". Ela no sabia
que aquilo era doena de matar e, ele, ento, tambm no sabia nada. Porque, se soubess
e, no teria sado dali e no estaria, agora, empenhado".
Numa daquelas tardes, quando a tia Augusta apareceu e se ps a olhar, em silncio, p
ara o cho cavado desde a vspera^ Ravasco julgou adivinhar o que a me pensava. E, po
usando as mos sobre o cabo da enxada, contemplou, tambm, a terra que ele revolvera
desde o dia anterior.
pouca, ... murmurou. Mas no se aflija por isso... Vossemec paga-me s metade da jorn
a... Como se eu trabalhasse s meio dia...
A tia Augusta no respondeu logo. Os seus olhos voltaram a percorrer no apenas a te
rra cavada, mas a- que faltava cavar, nas courelas vizinhas. E prolongou o silnci
o, fazendo clculos. Depois:
Quantos dias pensas que precisas para acabar ? Ele olhou a me e, em seguida, aque
las faixas de
cho, cobertas de verde felpa, que se estendiam ao seu lado.
Se eu estivesse forte, em quatro ou cinco dias dava conta de tudo isto. Assim..
. no sei... Talvez oito para cavar... Depois, para semear... no sei...
234
A L E A NEVE
A L E A NEVE
j, Oito dias... Bem! Eu pago-te, na mesma; <;
oito dias, mas vem um homem dar-te uma ajuda. Uq
rapaz de que me falou o Marreta. Um que se charm
Horcio. Tu conhece-lo... >\
Ele no disse nada. Os seus olhos volveram a fixdj
os olhos da me e, depois, humedeceram-se. A ts^
Augusta batia, agora, com o seu pau, num torr^
como se tivesse muito empenho em desprender uma
pequena pedra que ao torro se agarrava. <|
Pois isto disse ela, depois. Fica assim coflfl
binado. Por mim, no trabalhavas mais... E volto||
a arrastar a velhice em direco sua casita, que s"
erguia atrs das oliveiras. tf
Ele ficou a v-la afastar-se. "Se lhe contasse tudi
talvez ela, desta vez, lhe valesse. Pouco era... Ma||
no! Ele no ia contar-lhe aquilo. No queria quffl
ningum soubesse da sua desgraa e tivesse pena delda
Ningum! Se ele contasse velhota, a Maria Antni^l
viria a sab-lo. E ele no queria dar-lhe esse desgostoi
Bem bastava que fosse ela, agora, a sustentar sozinhgi
a casa". l
Quando, na manh seguinte, Horcio surgiu nal
courelas, j Ravasco l estava. Foi por entre denteai
que ele respondeu ao seu "bom dia!", enquanto olhava*
para a enxada que Horcio trazia ao ombro e quel
Manuel Peixoto lhe emprestara. ' i
Ento vossemec est melhor ? , i
Estou bom! Estou quase bom... disse, de mau l humor. E estendendo o dedo
, acrescentou: Pode l comear acol. l
Horcio dirigiu-se para a jeira indicada. Ravasco, l
s voltas com a terra, irritava-se mais: "Aquela mania l
que todos tinham de perguntar pela sua sade! S i
isso bastava para dar cabo de um homem! No poder l
ver ningum, sem logo a outra pessoa lhe lembrar J
aquilo. Como se no fosse bastante o que ele sofria, i
para os outros estarem ainda a remexer na sua ferida! i
E, afinal, os outros incomodavam-se tanto com ele, i
como ele com a primeira camisa que vestira. Era cos- l
tume e pronto! V de estragar a vida a um homem! J
235
Se no fosse isso, ele at gostaria de conversar. Gostaria mesmo muito, pois, quando
estava a conversar, esquecia-se, s vezes, daquilo".
com o rabo do olho perscrutou a leira vizinha. "O tipo d-lhe com gana" pensou, d
espeitado, ao ver a terra que, num instante, Horcio cavara. Comeou a invejar a juv
entude de Horcio. "Tambm ele, quando tinha vinte anos e no passava os dias a mijar
sangue, era assim. E mesmo agora, com quarenta e seis, ningum lhe levaria a palma
se no fosse aquilo. O fedelho ainda tinha muitos anos para viver enquanto ele..
. enquanto ele..."
No queria olhar, mas no se podia conter. A enxada de Horcio continuava a virar a te
rra, vigorosamente. J tinha quase um metro cavado a toda a largura. Ento, Ravasco
pensou que, a seguir assim, Horcio cavaria mais em duas horas do que ele num dia
inteiro.
Desfaa-me esses torres! gritou-lhe, com ntimo rancor. No s andar; fazer o servio
deve ser!
Sentia vontarte^ de o humilhar e de depreciar, de qualquer maneira, a quantidade
do seu trabalho. Horcio obedeceu-lhe e, com a cabea da enxada, ps-se a esboroar a
terra que havia quedado em bocados, aqui e alm. Apesar do tempo assim despendido,
Ravasco verificava pouco depois que Horcio ia de novo mais adiantado do que ele.
"No podia ser! A velha j sabia que ele no era capaz de dar muito, mas, enfim, no qu
eria comparaes. Ainda se ela soubesse como ele andava!"
Venha para c! berrou, de novo, a Horcio. ~~ E melhor trabalhar aqui, ao meu lado,
porque eu quero a terra bem esboroada.
Horcio obedeceu-lhe novamente. Ento, ele ficou tranquilo: "Assim j ningum saberia qu
al deles trabalhara mais". A princpio, Ravasco cavava em silnC1o. Depois, desatou
a falar. A falar da fbrica, do Felcio e do Mateus. Eram ambos dois tratantes disse
. Tinham sido operrios e, agora, mostravam-se
236
A L E A NEVE
j, piores do que os patres. O irmo de Mateus, o Maninj
Peixoto, esse, sim, era outra loia. Se no lhe coitt
prara as noites de esterco, fora s para lhe fazer v<|
que ele, Ravasco, tambm tinha alguma fora, embora
o houvessem mandado embora da fbrica onde o Mal
teus era mestre, como se mandassem um co. MaJ
no queria mal ao Manuel Peixoto, l isso no queria!
s quatro horas da tarde, quando Horcio largcia
a enxada, para se dirigir fbrica, Ravasco teve sbita
pena de ficar sozinho. Sentia-se, de repente, como qttH
abandonado e toda aquela terra sua inimiga. rj
No dia seguinte, quando Horcio voltou, Ravaseti
no estava l. O povo vira-o entrar, de manhzinha,!
na igreja. Homens e mulheres murmuraram comenta"
rios, porque Ravasco nunca ia ali e era, como Trama^i
gal, dos que andavam sempre a dizer mal dos padrea
Mais tarde, a empregada da Casa do Povo, que estavH
janela, ali mesmo em frente, viu-o sair da igrejaM
encostar-se a um canto, forado pela sua hematria,!
e volver a entrar. Desde ento, os habitantes da aldeia"
j no estranharam as constantes visitas que Ravascowj
cada vez mais magro, mais caquctico e de mais ama-1
relada cor, fazia ao pequeno templo, onde se demorav^a
largas horas. Um dia, porm, deixou de aparecer. E, d'J
tarde, o povo soube que ele estava na cama, contorci
cerido-se com dores e gemendo desesperadamente. > i
Entretanto, o frio voltara. O tempo continuava l
seco, mas gelado de cortar a pele. De madrugada, l
Horcio acordou com um choro de criana. E depois: l
Me! me! Eu tenho frio! l L em baixo, os outros filhos de Ricardo desper- I
taram e alguns deles gritavam como o irmo: l
Eu tambm tenho! Eu tambm tenho frio. l Jlia acendeu a luz e berrou-lhes que se cala
ssem, l
Em seguida, ergueu-se e colocou sobre os filhos quanto l trapo havia na casa. Ma
s ela via bem que aquilo no l chegava. Ela prpria tremia de frio. E os trapos que
]
A LA E A NEVE
237
davam melhor agasalho j a famlia os utilizava desde que os cobertores tinham sido
empenhados. Jlia dirigiu-se sua cama. Ultimamente, ela e o marido cobriam-se apen
as com uma manta e o sobretudo de Ricardo. Jlia tirou a manta e estendeu-a sobre
o corpo dos filhos, todos, menos o de bero, dormindo num mesmo colcho. Depois, ps-s
e a olhar para o corte de fazenda que ela comeara a esbicar na vspera. Era um teci
do vistoso e caro, que valia a fria de muitas semanas e s gente rica o poderia com
prar. Jlia hesitou. J uma vez, numa noite assim gelada, ela havia posto um corte d
e fazenda na cama das crianas e, de manh, o filho mais novo, que era mesmo um demni
o, fizera-lhe um rasgo, com um prego. Querendo ocultar aquilo, no fossem, l na fbric
a, negar-lhe, de futuro, trabalho, ela tivera de pagar metedeira de fios bom din
heiro para serzir o tecido. Jlia decidiu-se: "Agora, em cima dela e do Ricardo no
havia perigo". Meteu-se na cama e cobriu-se a si e ao marido com o corte de faze
nda. Puxou o sobretudo, para se aconchegarem melhor e apagou a luz. Os seus den
tes batiam uns nos outros, com aquelas tremuras que a percorriam violentamente.
Um dos filhos, o Ernesto, continuou a protestar, no escuro:
Isto no chega! C para mim isto no chega! Tenho frio...
Pois no tenho mais roupa! S o prncipe reclama, no querem ver ? gritou Jlia.
Foram as ltimas palavras que, naquela noite, Horcio lhe ouviu. Mas, pouco depois,
ele sentia os passos dela, l em baixo. Jlia tirara tambm o sobretudo da sua cama e
pusera-o sobre o Ernesto e os outros filhos.
Na manh seguinte, quando Horcio e Ricardo se dirigiam para as fbricas, o dia estava
soalheiro, como os anteriores, mas o frio da noite continuava. Ao acercarem-se
da Carpinteira, divisaram outros operrios lue marchavam em direco contrria deles e,
depois, deixando a estrada, cortavam para os Penedos Altos. Eram pedreiros, via-
se pelas ferramentas, e caminha-
238
A L E A NEVL
j, vam to friorentos e apressados como os operrios da
fbricas. Nem Ricardo, nem Horcio estranharam")
caso, na terra em que homens de Alcains andavaai
sempre em trabalhos de edificao para os industriai!
e outros capitalistas. Mas, ao meio-dia, uma mulhesi
que viera trazer fbrica o almoo ao marido, espa$
lhou a grande novidade. Nos Penedos Altos, havi|
comeado a construo de casas para os pobres. Tod^
a manh andara l, a trabalhar, uma turma de homenj
E a todo o momento chegavam camionetas com matei
rial. Ao ouvir aquilo, alguns dos operrios ainda duvf
davam, enquanto outros iam afirmando: "Eu bem prisj
ciso de uma casa..." "E eu tambm". "E eu tambm"!
hora da sada, os que moravam na Covilh acorari
panharam os da Aldeia do Carvalho at o ponto da
estrada de onde se viam os Penedos Altos. Afinal, e$m
verdade. J havia alguns alicerces abertos. Perto, levas*
tavam-se rimas de pedras e tijolos que no se encoaj
travam l de manh. E, ao fundo, um barraco dal
madeira e zinco, para recolha das ferramentas e dorm
mida de pedreiros e carpinteiros, fora concludo nun"
s dia. |
Horcio contemplava aquilo, extasiado. "O stio nc|J
podia ser mais airoso. Via-se o vale, via-se, ao longji
a Covilh e estava-se a dois passos da fbrica. Uma i
casita ali ficava mesmo a matar". ' j
Nos dias seguintes, quer vinda, quer ida para l
a Aldeia, ele olhava sempre o local, to ansioso pelo' 3
avano das construes como se a obra fosse sua. l
Muitos outros operrios faziam a mesma coisa. Uma" j
tarde, deixaram mesmo a estrada e caminharam at J
os Penedos Altos. Os pedreiros tambm j haviam 1
abandonado o trabalho e alguns deles estavam no bar- l
rao. Era uma casa de malta, com beliches sobre- j
postos e, por todos os lados, farrapagem, mantas sujas \
e utenslios de cozinha. Mas num outro compartimento, 1
onde o mestre-de-obras tinha uma mesa e se guardava
a ferramenta, via-se, na parede, emoldurado e dese- ;
nhado a alegres cores, o projecto das casas a edificar. ;
Horcio e os companheiros quedaram-se, largo tempo, j
A LA E A NEVE
239
a examinar aquilo em silncio. Havia umas casas que eram maiores do que outras, ma
s todas, pequenas ou grandes, prometiam ser garridas, com seus beirais recurvos
e largas janelas, semelhantes a muitas das que Horcio admirara no Estoril e na Pa
rede, quando era soldado.
So bem boas! comentou Belchior.
L isso so! respondeu um dos pedreiros de Alcains que andavam a constru-las. Tomar
a eu ter metade de uma assim para mim e para a famlia.
Horcio sentia-se cada vez mais contente. E, no domingo seguinte, em Manteigas, de
u a novidade a Idalina: "Estava resolvido a casar-se. J era operrio e pouco import
ava que a casa no fosse dele. O principal era que fosse como ele a havia desejado
. E a Cmara ia, agora, construir casas assim para os operrios".
Tinha renunciado a desflorar Idalina antecipadamente. E nesse mesmo domingo, ao
atravessar a serra, de volta Aldeia, ele ia evocando as pessoas a quem poderia p
edir dinheiro emprestado para as despesas do casamento. Pensava numa e logo a la
rgava; pensava noutra, avaliava a sua vida e imediatamente a deixava tambm. Todos
os seus conhecidos da Aldeia do Carvalho, salvo > Manuel Peixoto, no tinham mais
do que ele. E o /prprio Manuel Peixoto j vendera algumas cabeas do seu gado, por fa
lta de dinheiro. Em Manteigas, havia, era certo, pessoas de muitas posses. com e
ssas, porm, no tinha ele confiana. S ao Valadares poderia pedir aquilo. Mas a este no
queria ele pedir. Quando fora do incndio, parecia-lhe fcil chegar junto do Valada
res e dizer-lhe: "Precisava que me emprestasse um conto de ris, para eu, depois,
Pagar aos poucos". Agora, que j se passara muito tempo, custava-lhe falar em tal
coisa ao seu antigo Patro.
Eram quase onze horas da noite quando ele entrou na Aldeia do Carvalho. Ao trans
itar em frente da casa de Ravasco, viu, porta deste, um grupo de iiulheres. Horci
o adivinhou o que acontecera antes
240
A L E A NEVE
* mesmo de algum lho dizer. L dentro, a Maria Antni gritava:
Meu Deus, que vai, agora, ser de mim ? Quj vai ser de mim e das crianas ?
\
Horcio aproximou-se. Jlia estava c fora, entrj as outras mulheres, e disse-lhe com
simplicidade: ?
Morreu ontem ao fim da tarde e foi enterrado hoje. Viemos fazer um pouco de comp
anhia Mariaj Antnia, mas ela, coitada, no se resigna.
Outras mulheres vinham saindo. Horcio ainda avanou at a porta; logo pensou que no sa
bia d que havia de dizer Maria Antnia e desistiu d" entrar. l
Embrulhadas nos seus negros xales, algumas daa| mulheres iam-se separando. Na ca
sa, j sem visitasd a viva continuava a gritar: M
Meu Deus, que vai ser de mim ? il Jlia e outras vizinhas comearam a descer a en-J
costa. Horcio caminhava ao lado delas, acabrunhadoHJ
Coitada! Ela tem razo! disse Jlia. Sozi-"! nh e com a vida como est... [m
As outras mulheres, esquecidas j da Maria Ant-fl
nia, largaram a falar do preo das coisas, que era ai
sua obsesso quotidiana. Um quilo disto ou daquilo/a
que, no ano anterior, custava tanto, agora custava om
dobro. As sardinhas haviam aumentado duas e trsl
vezes mais. E as batatas, quem as no tinha, via-se"
doido para as arranjar. E se as arranjava, pagava-a B
a peso de oiro. S o que estava racionado no subira l
muito de preo, mas isso pouco valia, pois o que davam
no racionamento no chegava para nada.
Na Covilh ainda pior afirmou Jlia. l
Aqui, alguns ainda amanham as suas territas. Mas *
na Covilh tudo fora de dinheiro. Fui l a semana B
passada visitar a minha cunhada e vi que as mulhe-
rs de l no sabem o que ho-de fazer vida. O que B
os homens delas ganham no chega para comer e elas
tm tudo no prego.
As que ouviam a Jlia pensavam que se ela fora,
nos ltimos tempos, muitas vezes Covilh, no tinha f
A L E A NEVE
241
sido em visita cunhada, como dizia, mas sim para ver o filho, aquele matulo do An
tero, que justamente na ltima semana abalara para Lisboa, sem ligar nenhuma impor
tncia aos pais. Pensaram isso, um momento, mas logo esqueceram Antero, como havia
m esquecido a Maria Antnia, todas atentas ao que Jlia contava sobre a vida na cida
de.
Horcio escutava de mau humor. Ia ruminando que Jlia queria, decerto, aumentar outr
a vez o preo da comida e da dormida, pois nos ltimos tempos andava sempre a referi
r-se, na frente dele, carestia que os alimentos tinham sofrido. Pareceu-lhe, con
tudo, que naquela noite Jlia falava com um torn diferente do das outras vezes, co
mo se partisse de alguma coisa que s ela sabia.
VII
JXIiNGUM, talvez, poderia dizer como a notcia entrou, quela hora, na fbrica e passou
, murmurada, de homem para homem e de mquina para mquina sem as mquinas se deterem
. Horcio soube-a pelo Boca Negra, enquanto as "self-actings" trabalhavam:
Prenderam o\ Ricardo e o Gabriel Alcafoses e parece que mais alguns da Covilh...
Horcio olhou para o lado das penteadeiras e, pela cara de Tramagal e dos outros o
perrios, compreendeu que tambm eles j tinham conhecimento daquilo.
Por que os prenderam ?
A Boca Negra pareceu intil a pergunta:
Por que havia de ser! disse.
H muito tempo que Horcio ouvia falar de Gabriel Alcafoses como de um dos mais acti
vos operrios da Covilh. Mas ele no o conhecia. E s a priso de Ricardo lhe dava verdad
eira pena.
As mquinas continuaram a trabalhar, mas dirse-ia que por baixo do seu rumor havia
um silncio
242
A L E A NEVE
A L E A NEVE
243
l
* pesado, mais forte do que o prprio rumor, come"!
dia em que Ravasco fora despedido. -3
Quando, s cinco horas, os operrios saram J
fbrica, logo se formaram grupos na estrada, que torn
queriam saber pormenores sobre o caso. Os que cr]j|
gavam da Renovadora informaram que dois polqii
haviam entrado ali, hora do almoo, e dito simpi
mente ao Alcafoses que os acompanhasse. Ricardo!
Cristino disseram outros, que eram seus companha
ros de fbrica tinham sido presos j depois dem
trabalho haver recomeado. um
Tambm levaram o Cristino ? estranhou Ti" magal. oj
Tambm. <m
Eu you Covilh... disse, subitamente, MaJ reta. I
Tramagal olhou para ele, um momento, e declaroisj
Eu you ^contigo... <jl
No... melhor eu ir sozinho... Vocs prev" nam a Julia. E, noite, passem por minha
casa., m
Marreta partiu. Os grupos comearam a desfazer-ra|
Tramagal e Horcio, desta vez no meio de muitdB
outros operrios, que comentavam ainda o aconteciddjl
regressaram Aldeia do Carvalho. Tm
Jlia tinha o filho mais novo nos braos e ia daj
-lhe o seio quando eles chegaram sua porta e Ibfl
comunicaram aquilo. <m
Ah, prenderam o meu homem ? disse ela conn
sombria serenidade. Ento prenderam-no ? repeli
tiu. A sua voz denunciava uma clera jacente. Abrindo!
a blusa, Jlia entregou o peito ao filho. > i
Os homens ficaram a olh-la, surpreendidos e cala- l
dos perante aquela atitude. Jlia voltou a erguer os J
olhos e dirigiu-se a Horcio: 1
Se voc quiser comer agora, a ceia est pronta, j Antes mesmo de Horcio responder, Tr
amagal pro-r
testou: l
Qual comer, qual carapua! Ele ceia hoje comigo, Jlia fez um gesto de indiferena. j
Os homens no sabiam que lhe dizer, nem sabiam j
air dali sem lhe dizer mais alguma coisa. Pela primeira vez Horcio sentiu que a v
oz de Tramagal procurava tornar-se doce:
. Ele no h-de ficar l muito tempo. E eu you
dizer minha patroa para vir fazer-te um pouco de companhia...
Jlia manteve-se silenciosa e com o mesmo ar indiferente.
Quando, depois de comer, eles se acercaram, pela segunda vez, da casa de Marreta
, esta continuava fechada e s escuras. Horcio examinou o seu relgio:
Se calhar, levaram-no tambm...
Tramagal no disse nada, pois havia pensado a mesma coisa.
Os dois caminharam at a ribeira, detiveram-se l um momento e volveram. E nesse vai
e vem andaram mais duma hora. De quando em quando, surgiam outros operrios, que
tambm frequentavam a casa de Marreta, mas, como o tmpo estivesse frio, retiravam-s
e.
Era quase meia-no^te quando, finalmente, o velho tecelo apareceu, acompanhado de
Joo Ribeiro, que lhe sara ao caminho.
Marreta olhou, mais uma vez, para trs, no fosse algum hav-lo seguido. Meteu, depois,
a chave na porta, acendeu o candeeiro e, perante a cara dos outros, que o fixav
am interrogativamente, disse:
No est nada perdido. A organizao est de P. Na Covilh tinha-se trabalhado bem, nestes
mos dias... Agora vai-se andar depressa, antes que acontea mais alguma c
oisa. No so precisas novas reunies e amanh todos os operrios sero prevenidos. A greve
depois de amanh...
Marreta falava com muita naturalidade e, no mesmo torn calmo e simples, responde
u s vrias perguntas (lue Tramagal e Joo Ribeiro lhe fizeram.
Ao ouvi-lo assim tranquilo, os confusos receios que Horcio tinha de vir a ser des
pedido da fbrica, de
244
A L E A NEVE
A L E A NEVE
* perder o seu novo lugar, de ser, talvez, preso tambq
desapareceram. Ele sentia, agora, um estado de es
rito diferente do dos dias anteriores. t|
Ao entrar em casa de Ricardo, para se deitl
encontrou l um grande silncio. Isso acontecia-ffl
muitas vezes, quando entrava tarde, mas, agora/g
silncio parecia-lhe maior e com maior vcuo, ca
maiores cavidades do que nunca. Ao subir as escada
tossiu propositadamente, esperando que ao seu ru|l
Jlia correspondesse com outro, para assinalar que ej
estava l. Mas o silncio manteve-se. Horcio acenda
a vela, despiu-se, tornou a apag-la, sempre com aqudj
mudez a pesar sobre a casa. aj
De manh, Jlia acordou-o com as trs pancada
no soalho, como de costume. Mas ele percebeu qul
l em baixo, ela trafegava mais lentamente do qm
nos outros dias. As prprias crianas dir-se-iam mu
comedidas do que habitualmente. l
Quando Horcio desceu, j a malga de caldo fumJ
gava sobre a mesa. Ele sentiu logo que Jlia no tinj
vontade de falar e tentou consol-la: (m
Provavelmente soltam-no hoje... -Jj
Jlia no disse nada. Mas logo que ele saiu, eUJ
ajeitou os cabelos, ps o xale e foi pedir a uma vizm
nh que lhe tomasse conta dos filhos. Depois, met"
mesma estrada por onde Horcio e os outros opm
rrios seguiam todos os dias. fj
Jlia ia andando e pensando que talvez quelsl
hora Ricardo no tivesse ainda comido nada. E qufi
esses buracos onde, segundo se dizia, metiam os pre-1
ss, podiam aumentar-lhe o reumatismo. Contra a vonej
tade dela, visionou Ricardo a contorcer-se com doresi
entre paredes negras, onde no havia luz e a humidades!
escorria. Jlia mordeu os lbios. Ela pensou, ento, querl
Ricardo era corajoso. Lembrava-se, subitamente, dei
vrios pequenos actos da sua vida, de vrios nadas, l
aos quais, nesses momentos, no dera importncia ' l
e de novo pensou que Ricardo era forte de nimo.1 j
Tornou a visionar o seu vulto contorcendo-se entre l
hmidas sombras mas ela, agora, estava calma. J
245
Ao chegar Covilh, Jlia entrou, resoluta, na esquadra de polcia e pediu que a deixas
sem ver o marido. Veio um guarda, veio um segundo, veio, por fim, o chefe. Peran
te a negativa recebida, Jlia insistiu.' Insistiu tanto, que, pelas mastigadas pal
avras de um e de outro, ela concluiu que Ricardo j no se encontrava ali, que a polc
ia tinha-o mandado para Lisboa e o acusava de andar incitando o povo para uma re
belio.
Jlia deteve-se, um momento, a fixar os guardas com os seus grandes olhos, agora n
ublados. A sua boca ainda se entreabriu, como se fosse falar, mas logo ela volto
u as costas e saiu, muito embrulhadita no seu xale negro.
Quando chegou a casa, colocou sobre a banca o corte de fazenda que havia princip
iado a esbicar na vspera. Mas os olhos mal viam os resduos vegetais que a l prendia
; a ateno andava longe, o trabalho no avanava e a mo que sustinha as pinas detinha-se,
muitas vezes, como inerte, sobre o tecido.
A alpardinha, quando Horcio volveu da fbrica, Jlia disse-lhe:
Levaram o RicardoXpara Lisboa... J sabe? Ele fez um sinal afirmativo. Desde manh,
todos
os operrios sabiam que a polcia havia metido os presos numa camioneta, conduzi
ndo-os, primeiro, para Castelo Branco e, dali, para a capital. Jlia continuou:
Voc tem de arranjar outro quarto para si. Eu no sei quanto tempo o Ricardo andar po
r l. E eu no posso viver aqui com um homem solteiro, enquanto
0 Ricardo est na cadeia... O povo podia comear a murmurar e eu no quero.
Surpreendido, Horcio balbuciou:
Est bem... Irei embora... desde que essa a sua vontade... Mas de que vai vossemec
viver com toda esta crianada ?
Jlia no respondeu. Pela primeira vez, aps a notcia da priso do marido, duas lgrimas su
rgiram ns seus olhos. Em frente dela, a velha Francisca,
246
A L E A NEVE
surda e cega, sentada beira do lume, parecia dor com o gato no regao e o rosrio ca
indo-lhe das rn esquelticas.
VIII f!
1 *
':
A-* greve comeou, efectivamente, na quinta-feifi Quando Horcio saiu de casa,
a manh most*( va-se muito lmpida. Um milhafre planava, lentamen sobre um dos flanc
os da aldeia e dir-se-ia haver uj luz de domingo. fl
Horcio estava ansioso de ouvir os companheira nesse dia em branco que lhe parecia
a mais na si" vida. Mas em redor da casa de Ricardo no se vj ningum. Apenas alguma
s galinhas bicavam a teriaj a um canto. Tudo o mais jazia em quietude, J
Logo, porm, que dobrou a ruela, Horcio ouvi rumores de vozes e divisou grupos de op
errios qul falavam e gesticulavam muito. Ao aproximar-se, conu preendeu que eles
discutiam, exaltados. Mais alns Tramagal gritava:
So uns malandros! No h direito duma cois* destas! O que eles precisavam que ns lhes
partial semos a cara! ,;J
Mas o que que aconteceu ? perguntou Ho rcio. l
Cada vez mais excitado, Tramagal no lhe deva
ateno. Foi Belchior quem lhe explicou ter-se sabidoa
h pouco, que muitos operrios no haviam abando
nado o trabalho. Na vspera, parecia que s meia
dzia deles discordava da greve; mas, de manh, veri-j
ficara-se que o nmero dos "amarelos" era maior do J
que se imaginara. 'A
Tramagal propunha, agora: f
Vamos l! Vamos l met-los na ordem! l
Outros homens avanavam viela acima, entre os j
velhos pardieiros, e falavam tambm acaloradamente,! j
A L E A NEVE
247
por toda a parte se ouviam palavras de desdm e de
indignao ,..,...
Informado do que se passava, Horcio dirigiu-se a casa de Marreta. No caminho, cru
zou-se com outros grupos mais calmos, mas que avanavam j para a estrada da Covilh.
Malheiros, que ia num deles, disse-lhe :
Vamos ver como aquilo anda por l. No queres
vir tambm ?
Horcio desejava ouvir, primeiro, a Marreta.
J l you respondeu.
Quando chegou a casa do velho tecelo, a porta encontrava-se fechada. Mas l dentro
algum fazia discreto rudo. Horcio bateu. O rudo deteve-se, houve um silncio, como que
uma hesitao. Horcio bateu de novo. Sentiu, ento, uns passos.
Quem ?
No era a voz de Marreta.
Quem ? tornaram a perguntar. Horcio reconheceu a voz de Joo Ribeiro.
Sou eu... Eu, Horcio. A porta abriu-se.
Ah, s tu! Entra.
Joo Ribeiro no parecia- tranquilo. Fechou outra vez a porta.
O Marreta no est disse, depois, mais sereno. Foi a correr para a Covilh, por causa
desses ranhosos que esto a furar a greve.
Sobre a pequena mesa viam-se os livros de Marreta, alguns deles j embrulhados em
velhos jornais. Joo Ribeiro seguiu o olhar de Horcio e explicou:
O Marreta no teve tempo de tirar isto daqui. Pediu-me que lhos guardasse em casa
da minha irm. Como ela viva, se a polcia vier meter o nariz por ai> com certeza no i
r a casa dela...
Joo Ribeiro avanou para a mesa e acabou de embrulhar os livros.
. Tu podes ajudar-me a lev-los disse. E deP!s iremos Covilh, se quiseres... Olh
ou Horcio e acrescentou: Eu quero ir.
248
A L E A NEVE
* A irm de Joo Ribeiro morava do outro lado n aldeia. Eles deixaram l os pacotes e
meteram estr^ da Covilh.
Horcio viu que muitos operrios faziam o mesa
caminho. Alguns, dos mais jovens, tinham envergai
os seus fatos de domingo, mas marchavam apressaxi
mente, como se fosse dia de trabalho. ,'-j
Pouco depois, avistaram a Covilh. i
As primeiras fbricas estavam fechadas. Ento, 4
que iam aperaltados diminuram o seu passo e com
aram a avanar devagar, gingando, com o chapa
inclinado a uma das bandas. Eles olhavam para l
portes cerrados e, ante a quietao e abandono dl
edifcios, sentiam uma confusa volpia em passar ai
em passar assim lentamente, como se tudo aquiM
pela primeira vez, dependesse deles, como se tudo aquiM
sem eles, tivesse de estar assim parado, assim moiii
como nesse dia. J
Logo, porm, que desceram mais a estrada para i
Carpinteira, Joo Ribeiro e Horcio viram grande ajtui
tamento em frente da Fbrica Levante. '
com certeza acol disse Joo Ribeiro, -m
No me admira nada: na Levante e na Renovado"
houve sempre "amarelos". l
Entre os que se aglomeravam na estrada, em frenti
da fbrica, havia muitos operrios da Covilh, homenl
e mulheres, e com eles j se encontravam tambnl
Belchior e Tramagal. Ouvia-se zoeira de protestos m
de discusses junto do grande porto fechado e cada
vez se juntava mais gente, descida da cidade. m
Quem so eles ? perguntou Joo Ribeiro, aj chegar. l
Horcio ouviu citar nomes. E depois: J
J se foi Covilh, falar com as mulheres deles)j para elas lhes virem dizer que larg
uem o trabalho..;! Mas parece que a polcia prendeu os que foram l Covilh. Agor
a, o Marreta est l para dentro, a veil se consegue alguma coisa. Mas isso consegue
ele l Aque-1 ls foram sempre uns sem-vergonhas... s a
Chegava, de momento a momento, mais gente. J
A L E A NEVE
249
E com ela, veio a notcia de que o "comit" da greve havia sido preso tambm, depois d
e apresentar aos patres um novo pedido de aumento de salrios. Homens e mulheres ex
altaram-se mais. Em frente do porto, centenas de bocas gritavam:
Marreta l Marreta l Deixa l esses traidores \ Dir-se-ia no haver ningum na fbrica. N
enhum
vulto assomava s suas muitas janelas. No se via nada vivo. Mas quando a multido se
calava, ouvia-se, distintamente, o rudo dos teares a trabalharem l dentro. Junto d
o largo porto de ferro, espera de Marreta, o povilu impacientava-se, vozeando as s
uas discordncias. E estavam todos assim, quando apareceu, subitamente, na curva d
a estrada, vindo da Covilh, um copioso grupo de polcias, que se deteve em frente d
os grevistas.
Armados de pistolas e de carabinas, os guardas e o tenente seu comandante ordena
ram:
Daqui para fora, j! Daqui para fora! Homens, mulheres e j*arotos-aprendizes hesit
aram
um instante. Depois, algum se lembrou de perguntar:
Daqui para fora, porqu ? No fizemos mal a
ningum!
Palavras ditas, a multido largou em apupadas e assobios polcia, enquanto alguns do
s guardas continuavam a mandar:
Daqui para fora, j disse!
Ningum obedecia. E a surriada aumentava. Ento, o comandante da polcia, sentindo-se
desrespeitado na sua autoridade, tornou-se sobrecenho e ordenou que fosse preso
quem mais se destacava no escrnio e na gritaria. Vendo a deciso dos guardas ao lev
arem a carabina cara, de novo a maioria hesitou. Mas havia
05 que, no alvoroo provocado, tinham perdido receios e instintos defensivos e, de
nervos soltos, prosseguiam na assuada. A esses, alguns polcias iam prendendo, pr
otegidos pelas suas armas e pelas dos colegas.
Entretanto, o porto abria-se, o tenente e dois guardas entravam e, pouco depois,
volviam, trazendo entre eles a Marreta. E logo se viu marcharem estrada alm,
250
A L E A NEVE
* ladeados pelos seus captores, duas dezenas de hontejj
de mulheres e de adolescentes. ,^j
A multido, surpreendida e vacilante, calou-se, nfijj
pois reagiu e tudo se passou rapidamente. Operrfl
e operrias corriam pela estrada, atrs dos seus, m
iam presos. Berravam e protestavam e, chegados^!
cidade, em todos os casebres das ruelas proletra
soaram vozes de levantamento: ia
Mandam-nos para Lisboa, depois para a com
de frica e nunca mais os veremos! *
Eram, sobretudo, as mulheres que gritavam assei
e outras mulheres, tirando a panela do lume ou ddj
xando os filhos, somavam-se s primeiras e iam fazeis!
rabiar o alarme e a revolta de porta em porta. rm
Mal os presos haviam sido aferrolhados na cadefflj
instalada, como a esquadra da polcia, no rs-do-cfaia
do velho edifcio filipino que a Cmara Municipal oca
pava, j a multido surgia ali em frente, no PelourinJ
enchendo de gritos toda a praa. E cada vez engrossavj
mais, mulheres atrs de mulheres, sempre mais mm
lheres. 'fil
Queremos os presos! E queremos po para (m
nossos filhos! m
O comandante da polcia veio porta, viu aquela
massa ululante e considerou que, se se estabeleces"
luta, ele e os subordinados seriam vencidos. Num inl
tante, alinhou, de carabinas aperradas, os seus homenll
em frente da esquadra e telefonou para a Guardai
Republicana e para o Batalho de Caadores Dosfl
pedindo urgente auxlio. rtf
O vozeario continuava. As mulheres berravam sen>ffl
pr mais alto e incitavam, com palavras e gestos, o$l
homens mais tmidos. Horcio sentiu-se empurrado pelas l
costas: ''<!
Vamos l! Vamos tir-los da cadeia! "]
O Pelourinho andava em obras, para alargamento*1!
da sua rea e as pedras do calcetamento amontoa-"!
vam-se aos cantos da praa. Enfurecidas mos femini- J
nas agarravam-nas e arremessavam-nas sobre a polcia. \
De repente, desembocaram ali soldados do exr- |
A L E A NEVE
251
cito e da Guarda Republicana, luzindo metralhadoras. A praa fora cercada. A multi
do deu conta do acontecido, hesitou uns segundos e continuou a avanar para a cadei
a.
Quero o meu filho! Quero o meu homem! Queremos os nossos presos!
Queremos po! E a voz isolada logo se multiplicou e se repercutiu por t
oda a praa: Po! Po! Po!
Postados junto das metralhadoras, boca das ruas, os soldados do exrcito e da Guar
da Republicana viam, de sorriso frio e amarelo, o mulherio avanar, vociferante. M
as hesitavam em abrir fogo, que o prlio era com a polcia e s para a polcia as pedras
e as apstrofes se dirigiam furiosamente. De sbito, porm, um tiro soou. Batido por
certeira pedra, mesmo porta da esquadra, um dos polcias apontara, em desforo, a su
a carabina e um rapaz cara com uma perna traspassada pela bala. Ao seu grito suc
edeu um unssono grito de dio da multido inteira. E viu-se, ento, homens e mulheres q
ue caminhavam para o assalto cadeia, volver seus passos e correrem, encolerizado
s, sobre a esquadra de polcia. Um outro guarda, perante essas cabeas desvairadas,
que se aproximavam dele numa onda de raiva e de clamor, meteu a carabina cara e
levou o dedo ao gatilho. E foi nesse momento, em dois segundos apenas, que tudo
aquilo se metamorfoseou. O tenente que comandava a polcia, ao ver o gesto do subo
rdinado, deu um salto sobre ele. A sua mo no teve tempo de tirar-lhe a arma, mas i
mpeliu, num gesto brusco o cano para cima, desviando a pontaria. Ouviu-se um tir
o, dois, trs, que o polcia, tambm em desvario, continuava a fazer fogo. Mas as bala
s Jam altas, perdiam-se no ar.
A multido odiava o tenente. Fora ele quem, duas horas antes, mandara prender home
ns e mulheres junto do porto da fbrica. E, mesmo antes disso, corriam sobre ele hi
strias de brutezas, de impulsos do seu carcter violento. Mas, agora, perante o seu
inesperado gesto, a multido, surpreendida, amolecia de repente.
252
A L E
A NEVE
* Os que avanavam, enfunados, detiveram-se; o fulg
do dio que havia nos seus olhos esmoreceu, os se
rostos contrados duramente adquiriram outra expcj
so e um sbito, um imenso silncio, dominou toda
praa. Dir-se-ia que, aps esses poucos segundos, un
gratido colectiva substitura o rancor. Aproveitaaj
aquele amortecimento, o tenente estendeu os braoss
arengou. Que fossem para casa, que tivessem juzo, ca
aquilo s lhes podia trazer desgraas. Ele no quej
fazer mal ao povo, mas tinha de cumprir o seu devj
Ele no podia soltar os presos sob ameaas de ningui^
Ele tinha de entreg-los aos seus superiores e s d
seus superiores que poderiam mand-los em paz. >J
Falava em torn paternal e os operrios, habituada
a v-lo faanhudo e autoritrio, amoleciam ainda man
ao ouvi-lo falar assim. aj
Que pensassem bem as coisas volveu a dizer. n|
No viam que, se todas aquelas espingardas e metrJ
lhadoras disparassem, morreria muita gente ? Ele nl
quisera, at agora, dar ordem de atirar, mas seria obril
gado a faz-lo se teimassem naquela atitude. E pani
que servia, afinal, tudo isso ? Depois do que se paaj
sara, ele, como j dissera, no podia, s por sua voai
tade, libertar os presos. Contudo, ia interessar-se'pan
eles, junto dos seus superiores, para que nenhum mal
lhes acontecesse. Mas que ningum visse naquilo unffl
sinal de fraqueza e sim apenas o seu desejo de evitaaj
derramamento de sangue. .-ri
Desarmado, em frente dos polcias, cujas carabinas!
fizera baixar, no eiradozito que havia junto da esquaf-J
dra e que dominava toda a praa, o tenente deu contai
do efeito das suas palavras e, depois, abalou parai
dentro do edifcio. - i
Muitas das mulheres comoveram-se. Entretanto, j
haviam chegado mais soldados, mais metralhadoras, l
Viam-se, agora, armas em todos os lados da praa, j
Alguns operrios ainda barafustavam, mas j a mui'- j
tido se dividia em grupos, que discutiam entre si, l
e uns e outros comeavam a retirar-se, de passos vaga- j
rosos, vencidos. Das janelas que abriam sobre o Pelou- j
A L E A NEVE
253
rinho, as cabeas curiosas, que tinham retardado o seu almoo para assistir quela cen
a, principiaram tambm a desaparecer. Pouco depois, a praa volvia ao seu aspecto no
rmal, enquanto nas ruas as mes e as mulheres dos presos iam chorando a caminho de
suas casas.
A greve prosseguiu. Todos os dias se viam, no Pelourinho e no jardim, grupos de
operrios que, antes, s se reuniam ali, quelas horas, em dias dominicais. Ora falava
m entre eles, ora se calavam longamente, de olhos parados, como se assistissem p
assagem do tempo invisvel, que vinha do fundo dos tempos e ia para os horizontes
onde se abrem as auroras. Ao cabo duma semana, a populao da Covilh j se habituara a
ver aqueles grupos nos extremos dos passeios ou encostados s paredes, vestidos de
escuro e espera.
Na Aldeia do Carvalho, os homens esperavam tambm, mas os sinais exteriores de gre
ve eram menos perceptveis do que ali. Os operrios metiam-se em casa, conserta isto
, conserta aquilo, reparaes que nunca tinham encontrado tempo e disposio de nimo para
fazer, ou dobravam-se, de enxada nas mos, sobre as courelas arrendadas. Apenas a
s mulheres, que, com um embrulho debaixo do brao, iam cidade mais frequentemente
do que antes, lembravam a existncia da greve.
Como sucedera a Ricardo, a Alcafoses e a Cristino, tambm Marreta e os outros pris
ioneiros haviam sido conduzidos para Lisboa. Ao saber isto, logo no segundo dia
do movimento, Joo Ribeiro dissera a Horcio:
Uma vez que a Jlia no te quer em sua casa, e como eu tenho a chave da casa do Marr
eta, tu podes lr iormir para l.
Horcio mudara-se nessa mesma tarde. Mas os operrios haviam deixado de se reunir al
i. Reuniam-se agora, todas as noites, em casa do Tramagal. Escutavam os que tinh
am ido cidade e demoravam-se a discutir as notcias que eles traziam. Na Covilh con
s-
254
A L E A NEVE
A L E A NEVE
255
* titura-se um novo "comit". Mais uma vez, porm,!
industriais haviam declarado ser-lhes impossvel ata
der as reivindicaes. Que tivessem pacincia, mas ej
no podiam elevar os salrios, porque o governo c<|
tinuava a no lhes permitir elevar o preo dos tecidg
O governo entendia que, se se cedesse, cair-se-ia mjj
crculo vicioso, pois o aumento de salrios provocar!
fatalmente, um aumento do custo de vida, prejudcj)
para todos. Assim, a nica promessa que podiam faj
era no despedir quem houvesse tomado parte 14
greve e isto se no se desse qualquer novo inciden
A casa de Tramagal estava cheia quando se comed
tou aquilo. Tramagal disse: -i
Os industriais perdem ainda mais dinheiro ajj
que ns. E, salvo esses malandros que no aderiras!
por toda a parte os camaradas esto firmes. EsperemoJ
A mulher de Tramagal olhou-o, ao ouvi-lo falJ
assim. Ele sentiu esse olhar e tomou uma expressa
mais dura. J
Esperemos! repetiu, como se respondesse J
mulher.
Quase todos pensavam da mesma maneira. E outraJ
noites e outros dias se esgotaram sempre naquela expeal
tativa. 'id!
Na Covilh, os homens continuavam a formar griMJ
ps na Praa do Pelourinho e no Jardim Pblico. E aJ
mulheres cantarolavam mais do que outrora nas suas
casinhotas. Mas era um cntico nervoso, to nervos]
e to distrado que no as fazia esquecer aquilo erni
que elas no queriam pensar. Nos caminhos enlameai!
dos encontravam-se, agora, mais pegadas femininas di
que masculinas e os proprietrios dos cafs populardsl
verificavam, preocupados, que o seu negcio minguava!
de dia para dia. J
O segundo "comit" fora preso tambm e nas ruas!
da Covilh viam-se passar, a toda a hora, patrulhas I
da Guarda Republicana. Alguns industriais tinham par" f
tido para Lisboa e Coimbra, aproveitando aquele for- l
ado descanso. E os que ficaram no davam mostras l
de querer novas negociaes. Ao fim da tarde, as ando- l
rinhas pousavam nos fios telegrficos e quedavam-se a ver de alto a cidade. Outras
, com a sua cabecita redonda, entretinham-se a coar o colo, l em cima e com o cu po
r cima delas.
Uma noite, Malheiros trouxe a notcia de que Covilh cada vez chegavam mais polcias v
indos de Lisboa. Os homens que se reuniam em casa de Tramagal ouviram aquilo e no
estranharam, pois recordavam-se de que tinha sido quase sempre assim. Mas logo
as suas caras se abriam num sorriso de vingana ao saberem, por Belchior, que na c
idade se formara um terceiro "comit". Dizia-se, tambm, que os operrios de Gouveia,
de Unhais da Serra, de Arrentela e at das longnquas margens do Vizela iam dar a su
a solidariedade aos dali. Fiassem l ou algodo, todas as fbricas txteis do pas paralis
ariam em breve.
Horcio ouviu Tramagal exclamar:
Veremos se, assim, os industriais continuam a cantar de alto! O que nos faltava
era justamente a solidariedade de todos os camaradas. Se a tivssemos tido logo d
e princpio, isto j teria acabado!
Nessa noite os homens saram com novo alento. E, de manh, as mulheres levaram de su
as casas, suspirando menos do que das outras vezes, as ltimas utilidades domsticas
.
Desde ento, todos os dias homens e mulheres se levantavam com aquela esperana. Mas
o tempo passava e a notcia to desejada no chegava nunca. Soubera-se somente que a
polcia andava azafamada em Gouveia, em Unhais da Serra e noutras terras. Perante
isso, Malheiros comeara a duvidar, contra a opinio de Tramagal, que teimava:
A polcia no pode prend-los a todos, nem as fbricas vo ficar paradas toda a vida! Eles
devem ir Para a greve, por que no ? Eles tm toda a vantagem em fazer greve ao mes
mo tempo que ns.
Joo Ribeiro chegou nesse momento. Vinha da Cvilh e informou que a polcia havia proib
ido as casas de penhores de emprestarem mais dinheiro sobre objectos pertencente
s aos grevistas.
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A L E A NEVE
f O candeeiro dava uma luz difusa. Mal ilumnadg e assim imveis, as caras pareciam,
mais do que nunca talhadas em granito. A cabea de Belchior dir-se-s um busto de
pedra, corroido pelo sol e pela chuva nos beios do qual um garoto colocara uma po
nta dj cigarro apagada. Subitamente, uma voz rompeu o si lncio: *
Querem render-nos pela fome! Querem matan -nos fome! A ns e aos nossos filhos...
j
Durante alguns segundos ningum disse mais nada Depois, todos comearam a bradar, ao
mesmo tempei palavras de clera. Duas dezenas de homens estavaai ali e os seus ol
hos fulguravam e as suas bocas conl traam-se duramente. l
Sim, a ns e aos nossos filhos e ns no fazemos nada! Ns no nos defendemos! l
A mulher de Tramagal estava sentada a um canta e Horcio viu que os seus olhos se
humedeceram. 1 Os homens saram dali excitados. C fora, eles olhai ram a noite e
spessa, olharam, com dio, o caminha da Covilh e pensaram no que fariam no dia seg
uinte! No dia seguinte, porm, averiguaram que a polcia no interviera naquilo. Se al
guns penhoristas se havianl recusado a emprestar mais dinheiro, era porque
oaj derradeiros trapos que as mulheres dos operrios lhes levavam no tinham, para e
les, valor. J
Essa verificao no s apaziguara os mais exal-I tados, como deixara, no esprito de muit
os, um sbitol vcuo, ao secar aquele dio suplementar que l havia! brotado. '\
Entretanto, a greve mantinha-se. A esperada soli-ii dariedade de outras terras no
se efectivara, mas osl operrios da Covilh continuavam a formar grupos, j como a
t ali, no Pelourinho e no Jardim Pblico. ' J Nos seus casebres, as mulheres ha
viam-se tornado! to azedas como os homens, mais ainda, pois enquanto eles, somb
riamente concentrados, cada dia falavam menos, elas cada vez falavam e
protestavam mais. Empenhado tudo quanto dava algum dinheiro, esta, aquela e aq
ueloutra cobriam quilmetros sobre quil-
A LA E A NEVE
257
metros para ir a Cortes do Meio, a Teixoso, a outras distantes aldeias, pedir, a
um parente pobre como elas, um pouco de po que as ajudasse a manter os filhos e
o marido. Mas, nos dias imediatos, a carncia surgia de novo, porque abundantes er
am apenas as necessidades e aquelas chuvas primaveris, que de quando em quando c
aam, dificultando os movimentos e enchendo os casebres, as ruas e as prprias almas
de maior enervamento. A princpio, se as crianas se tornavam pedinchonas e irritan
tes, as mes castigavam-nas colericamente e disparavam-lhes pragas, como era de se
u costume. Mas, com o decorrer dos dias, foram deixando de bater nos filhos. s ve
zes, perante as impertinncias destes, ainda elas, mal-humoradas, levantavam os br
aos; logo, porm, aquele sbito pensamento as detinha e as mos que se haviam erguido,
num gesto de ira, desciam, vencidas.
Uma tarde, a mulher de Tramagal prevenira-o:
Amanh no temos nada para comer. As crianas vo rebentar de fome...
Pois que rebentem! respondeu ele, com um torn furioso.
noite, Tramagal parecia ainda mais inflexvel do que fora at ali:
So uns ces! So uns ces! vociferou, quando soube que alguns operrios da Covilh haviam
retornado o trabalho. Parece que s eles tm preciso! E os outros ? Os outros ?
Pena tenho eu de haver vendido a minha espingarda! Porque o que eles precisava
m...
Nenhum dos presentes acreditava que Tramagal fosse capaz de fazer o que ele prpri
o sugeria. Ningum acreditava, mas as suas palavras pareciam dar maior gravidade a
o acto dos outros. Os homens sorriram primeiro e, depois, quedaram-se num longo
silnC1o. Entretanto, os olhos de Tramagal, muito incendidos, iam examinando cara
por cara e, finalmente, detinham-se detinham-se e demoravam-se sobre Palheiros
e sobre Horcio. Este suportou-os um momento e acabou por baixar a vista, maldisp
osto, pois
9 Vol. Ill
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desde h dias paiecia-lhe que Tramagal julgava qd ele era pela capitulao. l
Uns miserveis! Uns tipos sem nenhuma verga nh e que desconhecem mesmo os seus inte
resses! -J tornou Tramagal. por causa deles que os indul triais levam sempre a
melhor. >i
No vale a pena fervermos em pouca gua, pm so raros os que tm pegado no trabalho int
ervM Belchior. A grande maioria aguenta-se. ver qd das fbricas que fecharam logo
no primeiro dia, airwl nenhuma reabriu. Os que tm voltado so dos qaj trabalhavam
em fbricas onde houve sempre "ama relos". J
Tramagal pareceu ficar mais calmo. Afirmou mesral que no voltaria Covilh enquanto
aquilo durassw para no perder a cabea. VJ
Na noite seguinte, porm, ele enervou-se novamentffl ao saber que mais alguns operr
ios haviam renunciada a continuar em greve. J
porta das fbricas h, agora, muitos mam guardas-republicanos do que antes,
para garantirerJ a liberdade do trabalho...informou Malheiros. -J E parece
que o "comit" vai dar a greve por finda..!
o "comit" que vai dar a greve por finda oa s tu que o desejas ? berrou Tramagal.
l
Criara-se, subitamente, grande discusso. E Malhei! ros sara amuado. ijj
De manh, ao contrrio do que afirmara, TramagaH dirigiu-se Covilh. <1
No jardim continuavam os grupos de operrios" Mas j no apresentavam o mesmo aspecto
dos pri-1 meiros dias. Embora o tempo no houvesse aquecido!! quase todos eles est
avam sem sobretudo e, se alguifll o envergava ainda, era o abrigo to velho, to rot
oi e esfiapado que, mais do que de homem vlido, dir*_ -se-ia de coxo pedinte de e
strada. v
Tramagal comeou a andar de grupo para grupo) De todos ouvia a mesma coisa. Ningum
afirmava; mas todos diziam que "parecia que o "comit" ia da: ordem para se voltar
ao trabalho". '
E vocs ?
A pergunta criara repentinos embaraos. Alguns barafustaram, pondo-se ao lado de T
ramagal; outros mantiveram-se em silncio, sob esse cansao que se via nos seus olho
s, no seu todo, como se eles houvessem passado as ltimas semanas no em cio, mas num
permanente labor. Todos pareciam de acordo com Tramagal, mesmo os que no falavam
; todos, porm, sentiam que aquilo era j inevitvel.
Tramagal dirigiu-se ao Pelourinho. Tambm l havia, como nos dias anteriores, numero
sos ajuntamentos de grevistas. Mal ele comeou a protestar, Silvano, que era tido
como um tecelo inteligente, muito gabado por Marreta, e que pertencia ao novo "co
mit", puxou-o para um lado e disse-lhe:
Ns vamos sem querer, claro. Mas o pior para eles que, justamente, ns vamos sem que
rer ir, que ns vamos contra a nossa vontade... Compreendes?
Tramagal no compreendia. Ouviu aquilo, ouviu mais explicaes, mas no se convenceu. E,
ao fim da tarde, tendo-se reunido a outros discordantes, levantava os seus irad
os punhos e agredia, sobre a rampa da Carpinteira, alguns dos operrios que haviam
retomado o trabalho.
Era quase noite quando um grupo de guardas-republicanos atravessou o Pelourinho,
levando-o a ele e aos seus companheiros para a esquadra.
Foi numa segunda-feira. Os homens comearam a descer da Covilh, uns ao lado dos out
ros, uns atrs dos outros, em negras filas. Ningum dizia nada. A manh estava spera e
eles marchavam de cabea baixa, contra o vento cortante.
Pela estrada da Aldeia do Carvalho chegavam outros operrios homens e mulheres, e
las embrulhadas
6in esfarrapados xales, eles de golas levantadas. Tambm vinham em silncio e, medid
a que se aproximavam, iam caminhando mais lentamente, esmoendo
200
A L E A NEVE
* a sua humilhao de vencidos. Todas as fbricas estq
vam abertas, como nos dias normais, antes da grev<
A nica diferena que nos portes e sobre a prprj
estrada se viam numerosas foras da guarda republ
cana, umas a cavalo e outras a p. Os guardas falava]
entre eles e fingiam que no davam conta do que ei
seu redor se passava. j
As sereias soltaram o primeiro apito e os operris
foram-se acercando mais. Depois, os vultos escuros de
homens e das mulheres comearam a transpor os poi
toes, sempre calados. j
Em breve, as sereias davam o ltimo sinal e log
chegava c fora o rumor das mquinas, que haviai
recomeado a trabalhar.
Alguns guardas-republicanos, que eram tambi pobres e tambm tinham dificuldades em
suas casa; olharam-se entre si, sorriram de satisfao e acende ram os seus cigarros
. i
TERCEIRA PARTE
A CASA
I
J-NJORCADOS nas fatiotas domingueiras, barba feita, este e aquele de flor na lap
ela, convidados e padrinhos iam chegando, enquanto a senhora Gertrudes, auxiliad
a pela tia Madalena e por Arminda, andava em trafega incessante, da sua cozinha
para o forno do Belisrio e do forno para a cozinha, em preparao de cabritos e coelh
os.
s onze horas, todos os homens presentes, levando no meio deles a madrinha, o tio
Joaquim e Horcio, largaram Eir abaixo, a buscar a noiva em sua casa.
Ao alcanarem a porta, de dentro rompeu segundo grupo: vinha Idalina e os seus pad
rinhos, o tio Vicente, mais homens e mais mulheres. De xale e leno negros, saia e
blusa, faces coradas, Idalina sentia sbita vergonha ao olhar para Horcio em frent
e dos outros. ^las j os dois bandos formavam um s e, trilhando a ruela, avanavam pa
ra a igreja.
L, aos ps do abade, eles ouviram o que entendiam e o que no entendiam, responderam
"sim" quando *i preciso e encontraram-se casados. O encarregado
202
A LA E A NEVE
A LA E A NEVE
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* do registo civil estava tambm presente e foi o primeijj
a desejar-lhes felicidades. ^J
C fora, farejando ddiva de moedas, aglomera
vam-se garotos e umas velhas que lanaram punha
dos de flores. Idalina ia, agora, ao lado de HorcS
e sempre que avistava, a um lado e outro do cair"
nho, algum a olhar, sorridente, para ela, voltava |
sentir-se envergonhada, como se a vissem no ali J
sim noutro lugar, nua em vez de vestida dos ps ata
a cabea. l
Ao entrarem no Eir, algumas raparigas da vizjl
nhana debruaram-se nas suas janelas e atiraram!
tambm, flores. Todas, porm, contemplavam sem alvm
roo o cortejo, porque os convidados eram poucos, om
noivos pobres como elas prprias e demasiado aa
nhada, para se poder danar, a casa onde a boda sfl
efectuava. M
A senhora Gertrudes j havia conseguido assar OM
cabritos quando o filho, a nora e seu acompanhamentql
chegaram. Os homens agruparam-se a um lado, am
mulheres a outro, parolando enquanto Arminda cohJj
cava os ltimos pratos sobre a grande mesa feita (19
vrias mesas emprestadas. r dl
L fora havia um fulgurante sol de Junho, masl
vaga era a luz que entrava em casa. De janelico aberto*
para maior claridade, homens e mulheres sentaram-saj
a comer. Quando falavam pouco ou se calavam, oui
viam-se as lamrias dos mendigos que, sabendo di
festim, iam chegando e reunindo-se, l em baixo, nfflj
rua. Eram tantos e to persistentes nas solicitaes em
nos lamentos que a senhora Januria, para os ouvir!
menos, pedira licena senhora Gertrudes e fechara;!
a janela. Entretanto, com o vinho, os homens iarnti
graolando cada vez mais, menos os padrinhos, que l
entendiam ser de sua obrigao mostrar-se austeros l
enquanto estivessem junto dos noivos. l
A meio da tarde, j as mulheres se haviam reti- *
rado, para volver hora da ceia, os homens separa- '
ram as mesas e comearam a jogar as cartas, bebendo \
sempre. Foi ento que Arminda teve a ideia de levar \
Horcio e Idalina para sua casa e l, onde havia maior espao do que ali, cantarem e d
anarem. Como os convidados eram quase todos velhos, sem fervores para bailaricos,
ela bateu as redondezas em busca de rapazes e raparigas. Poucos arrebanhou, por
que a maioria labutava ainda, quela hora de sbado, nas fbricas ou nos campos; os ra
ros que vieram danaricaram at s oito da noite, em volta do Francisco Silveira, que
tocava a sua harmnica. Depois tornaram ao lugar da boda e, de novo, comeram e beb
eram.
J passava da meia-noite quando a senhora Januria disse filha:
So horas de irmos, pois amanh tens de te levantar cedo...
E, em seguida, ela e o tio Vicente partiram, levando Idalina. Arminda trocou um
olhar atrevido com Horcio e os ltimos convidados largaram novas chocarrices, "por
em noites daquelas ser caso de arreliar ir a noiva com os pais, em vez de ficar
na cama com quem de direito".
Finalmente, a senhora Gertrudes viu, na sua casa, apenas o marido e o filho, com
o antes de este casar. Moda muito embora pela faina que tivera, ela no resistiu e
ps-se a manusear o dinheiro que padrinhos e convidados haviam oferecido, como os
bons usos mandavam. Contou, ao todo, duzentos e oitenta escudos e concluiu, pesa
rosamente, que aquilo nada era em relao s despesas feitas, ali, em Manteigas, com a
boda e o senhor vigrio, e na Covilh com a casa para onde o filho ia morar. E, ento
, pensou que escolhera mal os padrinhos, pois se houvesse falado aos Fonsecas, c
omo queria o tio Joaquim, estes, decerto, dariam muito mais. com tal ideia ela s
e deitou e no pde dormir. Ouviu cantar os primeiros galos e quando ia, enfim, pega
r no sono, o despertador tocou. Sentiu Horcio mexer-se na cama, no quarto ao lado
, e, depois, levantar-se. A senhora Gertrudes ergueu-se tambm, para lhe aquecer u
ns restos de cabrito e uma pinga de caf de caf que comprara de propsito para essa
manh.
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s sete e meia, as duas famlias estavam junto a
camioneta que ia partir para Belmonte. O condula
ps no tejadilho o ba de Idalina e dois sacos de bail
tas, oferecidos, na vspera, pelos convidados que na
haviam dado dinheiro. O sol branqueava j os cuml
da serra que envolvia, como uma muralha, a vila m
Manteigas; e na igreja de Santa Maria os sinos toam
vam para a missa de domingo. j
Horcio e Idalina despediram-se dos pais e sura
ram. A camioneta arrancou, deixando a senhora Gel
trudes encostada ao tio Joaquim e com duas lgrima
nos olhos. Velha que era, sabia que levando HorcS
a Idalina, ela no tornaria a ver to cedo o filho. Qia
s por ela, que o criara, ele no voltaria tantas vezflj
como at a. '-l
Entretanto, na camioneta, muito chegado a Idsi
lina e com o brao sobre os ombros dela, Horcio sel
tia-se feliz. O veculo ia avanando e ele semicerraV
os olhos, sempre com aquela gula que o queimava!
sempre com aquela nsia de que o dia se esgotas"
depressa e viesse a noite, para ser mais feliz aindaj
Duas horas corridas na estrada e chegaram estdi
co de Belmonte. A camioneta de Manteigas s vinh"
ali uma vez por dia, quela hora, buscar o correia
que o comboio de Lisboa trazia. E o comboio descenfl
dente, que os deixaria na Covilh, s s cinco da tarcM
passaria ali. t"
o raio esta falta de transportes l lamentora
Horcio. Termos de sair to cedo de casa, paraq
afinal, perder o tempo aqui! J por causa disto, etti
e o Serafim Caador nos vimos gregos, aquela noiteff
na serra! -1
com tantas horas livres, Horcio decidiu arrecadar l
ba e sacos na estao e ir vaguear com Idalina no J
picaroto de Belmonte. Como a vila e seu velho roqueiro j
quedavam distantes do caminho de ferro, os dois diri* l
giram-se vagarosamente para l, ele com um dos bra- ij
cos na cintura dela e os olhos parecendo boiar em
seiva. Nas ladeiras do povoado, se enxergavam vulto j
humano sua frente, cortavam logo em oposta direc- ;
co, porque, nesse dia, s a eles prprios desejavam ver.' E, assim, atingiram e se pu
seram a deambular pelos solitrios meandros do castelo, mais atentos s sombras e re
cantos das antigas muralhas onde pudessem apertar-se e beijar-se, do que aos pan
oramas que de l se escortinavam em larguezas de pasmar.
Almoaram numa taberna de Belmonte e, a meio da tarde, havendo entestado a sua vag
a curiosidade at a remota Torre de Centum-Cellas, ali, no meio dos campos, ele no
se contivera mais e consumara, em poucos minutos, a sua ambio de tantos anos, de t
antas noites de insnia e de imaginao.
s cinco horas estavam, de novo, com o ba e os sacos junto do caminho-de-ferro e, u
ma hora depois, o comboio deixava-os, finalmente, na estao da Covilh.
com um carregador, Horcio discutiu o preo do transporte dos sacos de batatas para
casa, pois o ba lev-lo-ia ele prprio. Idalina interveio, afirmando que, em vista da
quilo ser to caro, ela levaria o ba e ele um dos sacos. O outro ficaria guardado n
a estao e, depois, viriam busc-lo. Horcio considerou que isso seria o melhor, j que o
carregador lhe pedia mais do que ele ganhava em meio dia de trabalho na fbrica.
No quis, porm, que Idalina andasse com carregos logo naquele dia, que era o verdad
eiro dia do seu casamento, pois na vspera cada um tinha ido para casa dos pais.
longe...disse. So quase dois quilmetros e sempre a trepar.,.
No faz mal! declarou ela, resoluta. Eu levo o ba!
Pouco depois, os dois subiam as ngremes rampas que do acesso Covilh, ele vergado so
b o saco de batatas, em cima do qual pusera, dobrada, a jaqueta nova; ela de ba c
abea, onde levava as suas roupitas de noivado e umas louas que lhe oferecera a mad
rinha.
Quando entraram na rua Azedo Gneco, negra e tortuosa como as demais da vizinhana
que eles haviam
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atravessado, iam ambos ofegantes, estafados. Idali" deteve-se e colocou o ba no c
ho: "Ufa!" Hordl pousou tambm o saco e ps-se a limpar o suor Sfl testa. __ i<m
um bom bocado, no te dizia eu ? Mas, agotS a casa est perto. Fica logo a adiante. -
;"
Um velho corcovado vinha avanando na rua. HaB rcio reconheceu nele o Manuel da Boua
, mas finai" no o ver. O velho, porm, ao acercar-se deles exclamoM
Ol, rapaz! J no h quem te ponha a visy| em cima! examinou Idalina e, depois, pergun
tou" Horcio, em voz baixa: J casaste ? esta a rapJ| riga de quem falavas ? .ji
Aquela presena maldispunha Horcio. Ele conhM cera Manuel da Boua h pouco tempo ainda
. ConhaB cera-o pouco depois de as autoridades de Lisboa tereM afinal, decidido s
oltar todos os operrios que havia" sido presos durante a greve, menos Ricardo e A
lem foses. Marreta regressara ao seu casebre e Horcio pas sara a viver na Covilh, p
ara ir preparando a casjjl que alugara para si e para Idalina. Manuel da Bou^B m
orava no sto do mesmo pardieiro onde HorciM tinha um quarto com vrios rapazes de Cor
tes do Meio" que trabalhavam tambm nas fbricas e dormiam todoij juntos, para pagar
menor aluguer. Era encarregado dal limpeza de um armazm e, s vezes, Horcio apiejl
dava-se do seu destino, vendo-o assim velho e acabados sem parente algum na Covi
lh e mal ganhando par" comer. Mas no lhe aprazia falar com ele, porque, afflj ouvi
-lo, ficava descorooado, pois Manuel da Boui no acreditava no futuro e falava sempre
mal dosj homens e da vida. Contava que tivera uma casa e | tivera terras e perd
era tudo porque quisera viver me-(-i lhor do que vivia. E que haviam sido outros
homens >; que lhe tiraram quanto era dele. Que atravessara oss mares, rolara po
r terras distantes, trabucara como um negro e nunca amealhara nada, porque em to
da a parte existiam homens que tinham mais poder do que outros e ficavam com tud
o quanto podiam. Depois, andara aos trambolhes em Portugal, de uma banda
para outra, a ver se ainda levantava cabea. Mas nunca o conseguira. Cada um s trat
ava de si e no se importava com os demais. At a sua filha e o seu genro o haviam d
esprezado, quando souberam que ele no trouxera vintm l das terras por onde andara.
Aquilo no tinha remdio algum e havia de ser sempre assim. Os homens eram como eram
e no havia jeito a dar-lhes. Quem tinha sorte, tinha; quem no a tinha, que rebent
asse! Ali mesmo, na Covilh, onde viera parar com os ossos, se no o punham no olho
da rua porque ningum faria mais barato o trabalho que ele fazia no armazm. E ainda
porque, sendo o dono podre de rico, no queria, certamente, que o criticassem por
haver despedido um pobre diabo que no tinha onde cair morto e s ganhava cento e c
inquenta mil ris por ms.
Tambm eu fui como tu afirmava, frequentemente, a Horcio, com desagrado deste.
Tambm eu pensei, como tu, fazer alguma coisa na vida e, como vs, acabei para aqui
, neste estado. E olha que trabalhei a valer!
Manuel da Boua repetia tanto as suas descrenas e amarguras, que Marreta, quando, u
m domingo, viera ali e o ^conhecera, dissera, depois de o ouvir falar:
um vencido, porque perdeu todas as esperanas. S os que no tm nenhuma esperana so
ncidos como ele.
Agora, Manuel da Boua, esfarrapado e de barba crescida, voltava-se para Idalina,
fazendo um gesto largo, a indicar a cidade:
Ento a menina gosta disto ? Idalina sorriu:
Sei l! Cheguei agora mesmo...
Ah, ento nunca tinha c vindo ? Olhe, se precisar que lhe faa algum trabalhinho l em
casa, algum recado, estou s suas ordens. O Horcio sabe onde
moro.
Porque continuava a molest-lo a presena de Manuel da Boua, Horcio pegou no saco e fe
z o movimento de partir. Mas o outro, ao ver Idalina vergar-se tambm, para erguer
o ba, interveio:
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Deixe l menina, que eu levo-lhe isso. l Idalina olhou para ele e, ante o seu corp
o decrpito!
recusou: !
No preciso, muito obrigado. Isto pesados tem louas dentro... J
Ora! Ora! Posso com ele, vai ver! D-mo cal com esse vestido novo, at no fica bem
menina levar um ba cabea... J
Horcio pensou: "O que ele quer eu bem o seil
O que ele quer ver se lhe dou alguma coisa". Ma
Horcio sentia desejos de ser gentil com a mulhel
naquele dia de npcias e disse-lhe: <J
D-lho. J que o quer levar, que o leve. E elei
prprio auxiliou Manuel da Boua a pr o ba sl
costas. r]
com o velho frente, de passos lentos e hesitantes]
sob aquele peso que lhe dobrava ainda mais o tronco!
j dobrado pela idade, os trs comearam a trilhar ai
ruela. l
A casa que Horcio alugara ficava quase em frente j
do quarto onde ele se tinha acomodado desde que sara 3
da Aldeia do Carvalho. l
aqui... j
Manuel da Boua j havia pousado o ba e, en- j
quanto Horcio metia a chave, Idalina olhava a por- j
tit humilde do rs-do-cho, olhava a parede suja e j
escalavrada, fendida no primeiro piso, toda a cair de i
velhice. Ela mirou, depois, em derredor, em busca de j
melhores habitaes. Mas toda a rua proletria, sufo- j
cada em sua estreitura, era assim negra, assim velha, |
assim pobre, pingando tristeza e imundcie. Enfezadas j
e rotas crianas, de cara mascarrada, brincavam no j
lajedo, entre ces e gatos; e, sentadas s portas trreas, j
esqulidas mulheres esbicavam cortes de fazenda e i
velhas desmelenadas pareciam beber com os olhos j j
amortecidos a ltima luz do dia, enquanto outras j
seguiam, curiosas, os movimentos do casal recm-che- j
gado. 1
Manuel da Boua ajudou Horcio a meter em casa l
o saco e o ba e despediu-se: 1
Desejo-te boa sorte, meu rapaz!
Horcio deu-lhe uma moeda e, depois, ps-se a riscar fsforos, porque, embora o sol lu
zisse ainda no cu, no interior do casebre havia uma obscuridade que mal deixava d
ivisar as coisas.
Logo que acendeu o candeeiro, Horcio fechou a porta e correu a abraar e a beijar a
mulher. Teve-a, assim, alguns momentos, contra o peito, e, quando a largou, ela
viu-se entre uma quadrazita de paredes to velhas e enegrecidas como as exteriore
s. Ao fundo, estava a cama de ferro e a mesa-de-cabeceira; ao centro, uma mesita
e duas cadeiras, tudo isso j muito usado. esquerda, havia uma arca de pinho e, d
ireita, o fogo, que semelhava tambm uma mesa, com cobertura de tijolo e, neste, do
is buracos para o brasedo. S a cantareira era nova, branquejando ainda as suas tbu
as sem pintura. Nela Horcio tinha metido as tigelas, pratos, garfos, facas e colh
eres que julgara indispensveis para eles dois. Em baixo encontravam-se uma panela
, um tacho, um alguidar e nada mais.
Idalina olhava, lentamente, a quadra. E Horcio seguia, atento, esse exame, ansios
o de obter aprovao, porque fora ele quem, nos ltimos meses, andara, de uma banda pa
ra a outra da cidade, em busca de mveis em segunda mo, dos mais baratos que pudess
e haver.
Que tal ? perguntou.
Est bem... respondeu Idalina. E acrescentou, com ternura: Tens pena de no ter a
casita nova, de que falavas, no verdade ?
Claro! E no tenho razo ? Ora dize l: no era bem melhor virmos logo para uma casinha
nova como eu queria e que depois fosse boa para os nossos filhos ?
L isso era, no h dvida. Mas deixa l... A gente h-de viver. E o principal a g
te dar-se bem...
Ela falava assim, meigamente, mas tambm ela se havia acostumado ideia dele e sent
ia, agora, uma sbita melancolia. "Aquilo ali era ainda pior do que o Eir, de onde
ela vinha" pensou.
270
A L t A N E \ L
A L E A NEVE
271
j, Tambm verdade que isto provisrio vq
vu Horcio. s at estarem prontas as casas qi
a Cmara mandou fazer... Depois mudamo-nos psa
l. o que vale! Porque l passar a vida metido acpj
isso no quero eu, isso no! "<
Horcio avanou para a mesa-de-cabeceira, qj
ele s adquirira porque o dono da cama no quiseg
vender-lhe esta sem aquela. E, pondo a mo em ciou
do traste, disse: ij
Resolvi comprar isto... Que achas? m
Ele sentia, nesse momento, vaidade pela aquisia
j que, fosse em Manteigas, fosse na Aldeia do Gaal
valho ou ali, os pobres no usavam aquele mvej
metiam o vaso de noite sob a cama. fl
Idalina repetiu: cm
Est bem... iJ
Por sbita ligao de ideias, ela voltava-se, agora
para um lado e outro, como se procurasse algo qul
faltava. A casa, diviso nica, tinha apenas uma porta
e um j anelo de dois palmos que abria sobre a ruas
Mas o olhar de Idalina insistia, como se no tivessffl
visto tudo da primeira vez, como se teimasse em de$i
cobrir, nas paredes, uma porta falsa, uma porta ocultaflj
que facultasse passagem para outro lado. fll
Horcio julgou adivinhar o que ela procurava "l
hesitou em explicar-lhe, em referir-se quilo, nesse prill
meiro dia da sua vida em comum. Muitas vezes, aol
falar com ela sobre a casa que ele desejava, lhe dissera*!
que queria uma casa com latrina pegada. Mas, agora?!
sentia um repentino pudor. Continuou hesitante, ata \
se convencer de que no podia deixar de falar daquilo. J
E foi titubeando, enchendo de reticncias as primeiras i
palavras, que disse: i
Bem... Necessria no h... l isso no... Aqui, j
nas casas dos operrios, quase tudo assim... A gente |
arranja-se como pode e, depois, vai despejar numa pi |
que est a, na porta do lado... Logo vs: tem uma 1
tampa de pau... ao p da escada que d para o .
primeiro andar, por mor de servir a todas as pessoas }
do prdio...
Tendo Idalina posto, pudicamente, os olhos no cho, como se ouvisse e no ouvisse, e
le procurou desculpar-se:
Eu bem quis alugar uma casa que no fosse assim, l isso quis, mas, para as nossas
posses, no encontrei. E ainda as desta rua so das melhores. Porque h umas, a para b
aixo, onde s existe uma pia para todo o quarteiro. Como as pias tinham de ser liga
das aos esgotos e isso era por conta dos senhorios, eles, para gastar pouco dinh
eiro, s mandaram fazer uma. As mulheres vm de longe, de uns ptios que h l para os fun
dos, fazer os seus despejos ali e, por onde passam, deixam tudo empestado. L havi
a uma casa para alugar, que era maior do que esta e pelo mesmo preo, mas eu, ests
a ver!, no a quis. Aqui, pelos menos, a pia est na porta dos vizinhos e s incomoda,
a bem dizer, aos que vivem c por cima de ns...
Como ele fizesse uma pausa, Idalina disse, com voz resignada:
you arranj ar as coisas que trouxe... Horcio olhou-a, inquieto:
Parece que no gostaste nada da casa... Tu no ests triste, no verdade?
No... Que ideia a tua! protestou ela, mas, contra sua vontade, a voz continuava
melanclica. E ia a dobrar-se, para abrir o ba, quando ele a tomou pela cintura e
a beijou de novo.
Deixa agora isso! Vamos, primeiro, comer e, quando voltarmos, arranjas a
s coisas.
Ento no comemos aqui ?
Hoje, no, pois no comprei nada para cozinhar. Vamos embora! Quero tambm mostrar-te
onde a Cniara est a fazer casas para operrios. Vers que stio bonito !
Rua em fora, Idalina ia vendo, dentro de cada Porta de escada, mesmo junto do li
miar, aquelas redondas tampas de madeira de que o marido falara. E parecia-lhe q
ue teria vergonha, muita vergonha de vir ali. Os dois dobraram para outra viela
e era sempre a niesma coisa. E sempre crianas farroupilhas, mulhe-
272
A L E A NEVE
9 res mondongas, velhas desgrenhadas, ces e gate vadios. j
Pensei que a Covilh fosse outra coisa... mui murou, agarrando-se ao brao de Horcio
. 3
A Covilh no s isto, minha tola! Tamb tem coisas bonitas, vais ver. Isto c dos po
Mas l para cima h casas que pem de cara bandi todas as de Manteigas, Depois vers. H
algumas qul so mesmo to boas como as que vi em Lisboa e ni Estoril. a
Vero andante, com duas horas adiantadas nora
mal, havia ainda poalha de sol para as bandas dd
Ferro e de Belmonte, quando eles entraram na Praa
da Repblica no Jardim. As altas tlias estavanl
carregadinhas de flores e o seu aroma enchia o vasta
terrao ajardinado que a cidade lanava, ali, sobre J
vale. Gente tarda, homens e mulheres, rapazes e rapad
rigas, sentados nos bancos ou transitando nas leasj
fruam o encanto vesperal, antes de ir jantar. il
Horcio atravessou, com Idalina, por entre eles e j
foi debruar-se nas grades que deitavam para o lado J
da Carpinteira. j
Olha, acol! disse. E apontava os Penedos i
Altos, numa suave declividade da outra margem dal
ribeira. acol que esto a construir as casas para l
os pobres. Vs ? um stio bonito, no verdade ? J
Idalina mirava as dezenas de paredes, ainda sem 1
cobertura, que se erguiam ao longe, em frente dela, l
e confirmava: l
muito bonito. l
Pois l que ficar a nossa... Vo construir por i ali acima, para os operrios da Covilh.
Idalina repetiu: J
um lugar bonito... Quando ficaro prontas? J
No sei, mas no deve demorar muito. quelas j que ests vendo, s faltam as obras de ca
rpinteiro, o J reboco e os telhados. Deve ser questo de poucos j mese
s... i
Horcio indicava, agora, um outro ponto, sua j esquerda:
A LA E A NEVE
273
Olha, ali a fbrica onde eu trabalho... Aquela grande, toda envidraada... Ests ven
do? As fbricas daqui so muito melhores do que as de Manteigas...
aquela que est assim um pouco de travs ?
No. Essa a do Alada. a outra, a que tem uma bandeira.
Ah, j sei.
Idalina demorou-se a contemplar o conjunto de construes fabris, que se exibia l em
baixo, junto da ribeira:
Horcio tornou:
para l que tu irs tambm. Quando pedi ao Mateus, que o meu mestre, para me dispensar
sexta-feira e ontem, aproveitei a ocasio e pedi tambm ao Felcio, que mestre da ult
imao, um lugar para ti... Para tu aprenderes a meter fios ou a esbicar, conforme o
que houver mais falta... E o Felcio ficou de arranjar isso, logo que possa. Horc
io sorriu, com esperteza: Pelo sim, pelo no, pedi tambm ao Marreta para falar a me
stres de outras fbricas... Assim, quando fores operria, ganharemos por dois lado
s...
J vrias vezes ele se havia referido quele projecto e ela, agora, escutava-o sem o i
nterromper. Os seus olhos passaram do grupo de fbricas para as casas do Sineiro e
do Sineirinho, postas mais acima, nas fraguentas curvas da Carpinteira.
Horcio insistiu:
E quando eu chegar a tecelo porque hei-de chegar a tecelo, custe l o que custar!
ganharemos ainda mais.
Tambm aquilo Idalina lhe tinha ouvido de outras vezes, embora com outras palavras
. Sorriu-lhe, com carinhoso assentimento, e os seus olhos voltaram s fbricas, ali
em frente, e das fbricas ao vale, grande Cova da Beira, que se estendia l em baixo
.
Gosto mais de Manteigas... disse Idalina, como se falasse consigo prpria.
que ainda no ests acostumada aqui. Isto tambm no feio. Repara no castelo de Belmont
e,
274
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* onde estivemos hoje. Agora volta-te. E indicandd
-lhe a parte mais alta da cidade: Olha as casas dj
que te falei h pouco. Vs ? Em Manteigas s h una!
que se lhes pode comparar: aquela nova, na Senhos!
dos Verdes. Estas tm tudo o que bom. Eu nund
entrei em nenhuma, est claro, mas todos garantea
que elas tm, l dentro, muitas coisas compradas en
Coimbra e Lisboa, coisas boas que no se vendem pm
aqui. Aquela, cor-de-rosa, com uma data de sacada
a do meu patro. Para mim a melhor de toda"
Ele no tem filhos, mas dizem que gosta de casal
grandes. s vezes, vm pessoas de Lisboa visit-lo i
ficam ali uns dias, antes de irem para a quinta qtm
ele tem l em baixo, no vale... li
Falando, parecia-lhe que, ao valorizar o seu patrdl
se valorizava a si prprio, perante Idalina. >j
E que tal ele ? 4 Horcio vacilou: J
Eu c no sei... S o vi duas vezes... Uns dizes! bem, outros mal. Mas que ele est por
cima de todos os outros industriais, no h dvida. H dois to fortl como ele, mas toda a
gente garante que o meu patr o mais esperto... J
Subitamente, Horcio recordou-se do olhar que Trfri magal lhe havia lanado no dia em
que Azevedo a Sousa entrara na fbrica com um suo e calou-sl maldisposto. "M
Vamos comer disse, depois, com outro torn dei voz. Vo sendo horas... l
Voltaram maranha das ruelas proletrias e abanai caram numa locanda. Terminado o j
antar e ao recebera o troco da nota que dera em pagamento, Horcio con-1 tou, vaga
rosamente, fazendo clculos, o seu dinheirofl Dos mil e duzentos escudos que pedir
a emprestado aOI Valadares, para pr a casa, restavam-lhe cinquenta em seis. com c
inquenta e seis escudos, Idalina podia faze| a comida at sexta-feira. l
Tranquilizado pelos seus raciocnios, estendeu mu* | lher a nota de Banco: l
Pega l... E como Idalina hesitasse em rece-l |
275
b-la: para fazeres, amanh, as compras, para a semana...
Regressaram a casa, descia j a noite.
Ao v-lo acender, de novo, o candeeiro, Idalina perguntou:
Ento, aqui, no h electricidade ?
O que no falta por a electricidade! Estas casas que no a tm...
Tornou a beijar Idalina, uma, duas, muitas vezes. Depois, saiu, um instante, cer
imonioso naquela primeira noite de casados; e demorou-se mais do que precisava,
para que a mulher dispusesse tambm de tempo. Voltou a entrar e beijou-a novamente
.
Ao despir-se, Horcio considerou a dificuldade. Na Aldeia do Carvalho, ele acordav
a com as trs pancadas que Julia costumava dar no soalho. E na Covilh, no quarto qu
e tivera com os rapazes de Cortes do Meio, havia um despertador, que era do Fane
ca. Ali, porm, carecia de uma e outra coisa. No que ele no tivesse pensado nisso, a
o pr a casa; mas, sempre temendo que o dinheiro viesse a faltar-lhe, no comprara o
despertador. Agora, era o diabo, porque ele no podia deixar de estar na fbrica ho
ra da entrada. Voltou-se para Idalina:
Tu costumas acordar cedo ?
Conforme...
Ento no tens a certeza ?
A certeza... a certeza, no tenho. L em casa havia um despertador e...
disso mesmo que eu preciso aqui! Tenho de estar a p s sete, sem falta, por causa d
o trabalho... E, se no me acordam, sou capaz de ficar para a ferrado no sono. No f
oi s por haver dificuldade em encontrar casa na Aldeia do Carvalho que eu vim par
a a Covilh. Foi tambm para ficar mais perto da fbrica. Assim, posso levantar-me um
bocado mais tarde... Eu gosto de dormir e no com grande vontade que de manhzinha d
eixo o quente...
Podes dormir descansado...disse Idalina. Pe o relgio a e dorme tua vontade. Eu a
cordo-te...
270
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
Tu no te importas de fazer isso ? j Tambm ela gostaria de dormir tranquila e sai
que, com aquela obrigao, no dormiria sossegai! mas respondeu prontamente: 4
No; no me importo. ?| Ele estava feliz e ansioso de se deitar, ansioso "|
apertar nos seus braos o corpo da mulher. Tudo'" mais que o preocupara at ali no ti
nha agora, pa| ele, importncia nenhuma, nenhuma importncia n rante o instinto supr
emo que o galvanizava. 4J
II
J\JA segunda semana de casados, sexta-feira, ele efl
tendeu ser prefervel dar-lhe o dinheiro de UM
s vez. Aos poucos, parecia que aquilo no rendia nadl
e Idalina estava sempre a pedir-lhe mais. Assim, tell
do-o ela todo sua guarda, talvez se enchesse de brifl|
e economizasse como era preciso. "m
Acabava de entrar, vindo da fbrica, e colocou fB
notas e as moedas sobre a mesa: j|
Pega l... Est aqui a fria. Eu fico s con|
vinte e cinco tostes, para cigarros. Doravante s t
que governas o dinheiro... Mas no deixes de pr dH
banda pelo menos vinte escudos por semana, para B
pagando a dvida ao Valadares. De trs em trs meses!
podemos entregar-lhe duzentos e cinquenta escudos n
ao fim de um ano, estamos quase quites com ele.HJ
Idalina pressentia que, por detrs das palavras a
marido, havia algo que ele no dizia, mas, ao mesmej
tempo, pareceu-lhe natural que fosse ela a administrai!
a vida domstica dos dois. Tambm em casa de seuSl
pais era a me quem punha e dispunha do dinheirqf
que l entrava para as despesas da famlia. " i
Horcio aconselhava: l
Em vez de comprares dia a dia, podes comprar j
277
de uma s vez o que for preciso para toda a semana, menos o que se estrague, est be
m de ver... Assim, poders comprar mais barato. Todos os sbados h o mercado grande,
onde se pode escolher mais vontade. por isso que as frias so pagas, aqui, sexta-fe
ira...
Farei como dizes declarou Idalina. E quedou-se lisonjeada com a autonom
ia que o marido lhe dava, pois dessa maneira j ela seria verdadeiramente mulher,
dona de sua casa, como a sua me e como as outras mulheres casadas. Esse estado de
esprito durou-Ihe, contudo, pouco tempo.
Na manh seguinte, indo ao mercado, ela obedeceu s indicaes de Horcio; mas na quarta-f
eira verificou que, sem tocar no dinheiro que reservara para o Valadares, no pode
ria comprar as sardinhas e as couves para esse dia. E, ento, arreliou-se: "Horcio
ia dizer que ela era uma desperdiadeira e ela no era desperdiadeira nenhuma, tinha
a certeza disso. O que lhe faltava, talvez, era prtica". Amofinou-se durante toda
a manh e, por fim, decidiu-se: no diria nada a Horcio e, na outra semana, puxaria
mais os cordes bolsa, para repor o que ia tirar agora.
No sbado, regateou com as vendedeiras, disputou todos os tostes e comprou menos do
que havia pensado. No domingo, ficou contente, porque Horcio jantara sem estranh
ar que ela no lhe desse, ao contrrio do que fizera no domingo anterior, um pedao de
carne de porco. Segunda-feira, porm, voltava a enervar-se. As sardinhas mudavam
todos os dias de preo e at as couves e os nabos tambm. E quase sempre era para Riai
s. Quando ela viera para ali, havia um litro de Petrleo e, agora, a garrafa estav
a vazia.
Idalina resolveu comprar menos po em cada dia: cern gramas que fossem, ao fim da
semana davam quase um quilo.
Uma noite, Horcio queixou-se:
O caldo tem pouco azeite...
que no reparei bem, ao botar... desculPou-se.
278
A L L A NtVE
De outra vez, ele notou: i J
Parece que andas sem apetite... V l norB cair doente! Comes como um passarinho... IJ
H
Ela apressou-se a justificar-se: tfl
No... Eu como bem... que enquanto esraB a arranjar a ceia, sempre you provando e
petiscancwH E, de po, nunca gostei muito... '
Ele caoou: -nM
s como os ricos, no querem ver ? $B Na terceira semana, ela tremia quando o niaraB
lhe entregou a fria. Dos quarenta escudos que t|l tara arrecadar para o Valadares
, tinha apenas dezo^M E Horcio prevenia-a:
verdade, esqueci-me de te dizer que tenjB de contar com sete mil e quinhentos p
or semana pafl a renda da casa. V l isso... /fl
Ela ficou gelada, primeiro a olhar para ele, deptfl a olhar para o cho. "Ele ia a
rrepender-se de ter casdM com ela, mas que ia ela fazer ?" Hesitou, desesperoraH
e, sem levantar os olhos, murmurou: H
O dinheiro no chega... No chega para daroH Valadares... tijH
Quando ela lhe disse, a seguir, que no consegu|H forrar, por semana, os vinte esc
udos de que ele falaiH Horcio irritou-se: txH
No percebo nada! No digo que os catdnM escudos que eu ganho por dia sejam
muito dinheiM no ; mas ns no temos filhos e os que os tm vivM com a mesma coisa. E ai
a h os que ganham meraM do que eu. Os pegadores de cardado s ganham dcaH escudos.
No percebo como gastas tanto! IB
Era a primeira vez, depois de terem casado, <]4I ele lhe falava com aquele torn
de voz. Idalina comeam a chorar: ^W
Eu no sei... Eu no sei como os outros fazen^w Tu pensas que eu no governo bem, mas e
u no possjlj fazer mais... Puxando muito, pode dar para a rendi da casa, mas, par
a o Valadares, no d de maneira nenhuma... Tu queres ver? Vai contando...
Ele sentou-se mesa e ela, limpando os olhos cofl!
A LA E A NEVE
279
as costas das mos, ps-se a rememorar: tanto disto, tanto; tanto daquilo, tanto...
J contaste ? E isto porque temos tido as batatas que trouxemos de Manteigas. Mas
esto a acabar...
com ela em p, ao lado dele, Horcio demorou-se em seu silncio. Depois disse, como se
se dirigisse a si prprio:
verdade que os pegadores de penteado, como eu, ganham mais do que os pegadores
de cardado, mas um pouco menos do que alguns outros operrios. um ofcio que se apr
ende depressa, mas tambm o salrio que se recebe mais pequeno...E voltando-se para
a mulher: bom! Vamos a ver se dou um jeito vida, que isto, assim, no pode ser!
Idalina ficou-se a olh-lo. Mas ele no disse mais nada. Voltou ao seu silncio, cabea
vergada sobre a mesa e as mos fazendo rodar, distraidamente, as moedas que ali se
encontravam.
A ideia de que tinham provindo as suas ltimas palavras desagradava-lhe fortemente
. E agora, depois de ouvir Idalina, muito mais do que at a, por aquilo se apresent
ar como uma obrigao. Desde os seus primeiros dias de fbrica, ele decidira aprender
tecelagem logo que chegasse a pegador de fios, pois os teceles ganhavam mais do q
ue os restantes operrios. Em vez de salrio fixo, recebiam conforme o nmero de passa
gens que as lanadeiras faziam nos teares e alguns havia que, ao fim da semana, ti
nham uma fria superior s dos outros obreiros melhor pagos. Alm disso, os teceles era
m, entre o pessoal fabril, os mais respeitados por mestres e industriais.
Quando, porm, chegara a pegador de fios, ele resolvera adiar a nova aprendizagem,
porque estava ansioso de casar-se e aquilo tomar-lhe-ia todo o seu tempo. Aps o
casamento, adiara mais uma vez, guloso de convvio com Idalina e daquelas horas de
sol que, nesses meses de Estio, havia ainda quando ele largava o trabalho. Agor
a, porm, no encontrava outra soluo. E marralhava consigo prprio: "Se estivessem no In
verno, com chuva ou neve, seria, por um lado, pior,
28o
A LA E A NEVE
A L E A NEVE
28l
mas ele no teria, pelo menos, saudades da vida" c de fora. Mas, com um tempo assim
bonito co estava e, ainda por cima, casado de fresco, metei na fbrica s oito da m
anh e s sair uma da mad gada, era duro de roer. Uma hora para chegar a c$ despir-s
e e deitar-se, outra para levantar-se, vesti| e chegar fbrica, s lhe restavam cinc
o horas pj dormir. E ele, nem mesmo dormindo oito, ficava sa: feito. Ento, ser ca
sado ou solteiro, era a mesma coi No disporia de tempo para viver com Idalina. l
no havia outro remdio. Aquilo tinha de ser, p tratava-se do seu futuro. E como tin
ha de ser, qual mais depressa fosse, melhor". --*
Ao levantar a cabea, encontrou os olhos de I\ lina, que, junto do fogo, onde acaba
ra de acende lume, o contemplava, sempre interrogativamente.
Que queres ? perguntou ele, ainda de r$ humor. 9
Eu c no quero nada... com timidez, aci centou: Que que tu pensas fazer ?
No sei ainda... Depois se ver... E, ergui do-se da mesa, ps-se a transitar na casa
, de um Ia para o outro, de mos nos bolsos e a assobiar eneri damente.
No dia seguinte, ao sair da fbrica, Horcio recajM cou as ltimas hesitaes e, como se a
pagasse a lufl do sol que ele, antigo pastor, gostava de encontrar iflfl fora, d
epois do trabalho, abordou Mateus. O mest"| ouviu-o, carrancudo como sempre que
lhe solicitavaM alguma coisa; e, em seguida, prometeu: '"B
Falarei ao senhor gerente, a ver se ele qtiefi escrever ao Sindicato, a pedir aut
orizao... 4
Fico-lhe muito obrigado... <4 Mateus fez um gesto de quem recusava o prernatf
turo agradecimento: >>
Ainda falta ver se h algum que queira tra
balhar s de dia, para voc poder trabalhar sempre de noite...
Horcio balbuciou:
O Boca Negra diz que no se importa... Que at lhe faz jeito...
O mestre pronunciou, ento, a frase ambgua com que costumava responder a todos os p
edidos:
Hei-de ver isso...
Horcio saiu. Boca Negra aguardava-o na estrada.
Que tal ?
Ele contou-lhe o seu dilogo com Mateus e o companheiro mostrou-se optimista:
No tarda quinze dias, tens o carto do Sindicato. Teceles desempregados no h. O que h s
os velhos, que ningum quer. Portanto, o Sindicato no se ope. E na fbrica tambm no h
empeno. Se fosses ganhar mais do que ganhas, ento seria outra coisa. Mas tu, enqu
anto aprendes, continuas a ganhar o mesmo e sempre prestas alguns servios na tece
lagem. No tarda quinze dias, vais ver! No te importes com a cara que o Mateus fez.
..
Um momento, ao subirem da Carpinteira para a Covilh, Horcio desejou que Boca Negra
estivesse enganado e o Sindicato demorasse a autorizao, que assim ele ficaria em
paz com a sua conscincia e poderia aproveitar, junto de Idalina, aqueles fins de
tarde
estivais.
Boca Negra, porm, no se enganara. Na semana imediata, o Sindicato e o Instituto do
Trabalho permitiam-lhe a aprendizagem e Mateus dizia-lhe, com simplicidade:
Pode comear amanh.
Ele balbuciou um agradecimento e sentiu-se infeliz. Quando, ao chegar a casa, de
u a notcia a Idalina, ela lamentou tambm:
A vida, assim, no tem jeito nenhum! Dezaszete horas por dia metido na fbrica de ma
is! E eu fico aqui sozinha...
Para no entristecer a mulher, ele nunca quisera confessar-lhe quanto aquilo lhe c
ustava. Mas parecia
i
282
A L E A NEVE
A L E A NEVE
283
que Idalina adivinhava o que ele sentia, pois ela cHi a mesma coisa que ele tinh
a dito, muitas vezes, ajl prprio. \
s um ano...atenuou.Ao cabo de dj ano, estou pronto. Muitos teceles fizeram-se assi
n" Ganhavam a vida de noite, para poder aprendei V
Ora! Nunca me tinhas dito que, para aprenaj rs tecelagem, era preciso isso... "
preciso, . E um favor que os patres faze" pois quem passa todo o dia na fbrica, qua
ndo chejl a trabalhar no turno da noite j est cansado e ill d o mesmo rendimento...
Foi o que o Mateus im disse e est-se a ver que verdade... li
Idalina insistia: J
Ainda se eu j tivesse, tambm, trabalho... M"B assim... Assim sozinha no meio de qu
atro paredeslj quase sem conhecer ningum daqui... 'J
Bem... Ns estaremos juntos todos os domiij gos... Temos todos os domingos
por nossa conta;B E um ano depressa se passa... Trabalho para ti, taMJ bem se h-
de arranjar. L na fbrica no sei quandl ser, mas l ou noutra parte arranja-se, com cer
tea Ainda hoje o Marreta me disse que havia tornado""" falar ao mestre da Renovad
ora... -J
Como a mulher continuasse atristada e num silndH resignado, ele passou-lhe a mo pe
las faces: m
Deixa l... um sacrifcio, claro que ! Majj vale a pena! Ganharei mais e a nossa
vida melhtM rara... Temos de pagar ao Valadares e de forrar alguma coisa, porque
, quando formos para a casa dos Penedi Altos, precisamos de mais mveis... Precisam
s de p" aquilo bonito, por dentro. Mudou o torn de voz ff Anda, vem da! Vamos
dar uma volta, para espaiM recer... .r
Tenho de tratar da ceia... Ele encolheu os ombros:
bom! Ento you eu...
Sentia necessidade de ar livre, daquele sol que havia l fora, para alm do bairro p
roletrio, e que ele ia
deixar de ter. Saiu. Venceu, primeiro, as sinuosidades da rua Azedo Gneco, depoi
s as da Rui Faleiro. E ia falando sozinho: "Tem de ser... Tem de ser..." Quando
entrou no Pelourinho, j l havia numerosos operrios, que vinham, ali, todas as tarde
s, parolar um pouco, entre a sada das fbricas e a hora do jantar, como nos dias em
que tinham estado em greve. De longe, Horcio reconheceu a muitos deles, mas no te
ve ganas de se aproximar. Sentia-se de mal com tudo e mesmo consigo prprio. Corto
u direito s Portas do Sol e 'l, no velho miradoiro, com motoristas a discutirem at
rs dele, espraiou a vista. Havia sol no vale: via-se at o Fundo, at as Donas, mas el
e no via o sol. Via apenas o interior da fbrica, ele e as mquinas da fbrica, o dia e
a noite na fbrica, onde o sol no entrava e onde ele tinha saudades do sol. Contin
uava a olhar sem ver o vale ensoalheirado. Por fim, os seus olhos fixaram a coli
na que estava em frente, com o convento de Santo Antnio em cima e, mais abaixo,
a figura da Senhora da Conceio, sobre alto plinto. Ele lembrou-se, ento, de que se
dizia e estava mesmo l gravado numa pedra que quem visse de longe aquela image
m e lhe rezasse trs Ave-Marias receberia muitos favores celestes. Encostado ao pa
rapeito, decidiu rezar. Hesitou. Tinha tantas coisas a pedir, que no sabia bem qu
al devia pedir primeiro. Operrio j ele era e j estava autorizado tambm a aprende
r para tecelo. Aquilo de passar os dias e as noites metido numa fbrica estrag
ava a vida de um homem, mas ele precisava daquilo. "Bem; podia pedir que a sua v
ida melhorasse, sem ele dizer como, pois Deus que sabia como devia ser". E ia j a
dobrar os joelhos quando se recordou de que os cardeais e bispos, cujos
nomes estavam inscritos aos ps da imagem, prometiam facilidades, mas era para a v
ida no cu e no para a da terra. Ento, ele pensou que uma coisa nada tinha a ver com
a outra. E disparou dali, cada vez mais entristecido. Tornou a atravessar o Pel
ourinho e foi batendo os sapatos pela Rua Direita. Ia andando e monologando: "No
h mal que sempre dure, nem bem que
284
A L E A NEVE
A L E A NEVE
285
*no acabe. Se eu estou mal, ainda h outros que estj
piores do que eu". Repetia as frases que Manuel P|
xoto, um dia, na serra, lhe havia dito que eram bei
para quando algum desanimava; repetia-as, mas eU
no o consolavam. Pensou nos homens que estava!
na cadeia, com a barba por fazer e todos cheios
piolhos; pensou no Ricardo, que ainda estava proa
na famlia dele e no Ravasco, que morrera. E cadj
vez ficava mais triste, mais aborrecido, ao contrail
do que Manuel Peixoto lhe dissera, quando lhe enJ
nara aquilo... J
Desembocou em frente da igreja de S. FranciS
e, dali, meteu ao jardim pblico. L ao fundo, jurnj
das grades, mirou os Penedos Altos. A construo da
casas progredia. E isso deu-lhe uma sbita satisfaa!
a primeira dessa tarde. Logo, porm, que os seus olha
encontraram a fbrica onde ele trabalhava, voltou m
enervar-se. Naquele dia a fbrica era-lhe odiosa e l
ele parecia-lhe que s se sentiria bem longe dali, nm
sabia onde, longe, num lugar indefinido. j]
Decidiu voltar para casa e ps-se a trilhar a ala
meda central do jardim. Grupos de velhos, encarqial
lhados e de fatos pudos, conversavam em volta dl
coreto. Eram os destroos humanos das fbricas, aquM
ls que as fbricas despediam assim que os seus corpcj
denunciavam fadiga e menor capacidade de trabalh|
seres to inteis para a indstria como os resduGJj
vegetais e minerais que as mquinas separavam daffl
ls para deitar fora. A um e outro, mais felizesaj
ainda um filho, que prosseguia, nas fbricas, o trabalhi
iniciado h sculos pelos prias seus maiores, prorroffl
gava-lhes, precariamente, a velhice, dividindo com elesi
o seu po. A maioria, porm, falha, por isto e porf
aquilo, do apoio da descendncia, tinha apenas a sexta1"!
-feira como alvio. Nesse dia, palmilhando negras ruelas/J
entravam no Sindicato, casaro to senil como eletf j
prprios e onde, outrora, em livres tempos, se gritara,1' l
muitas vezes, que todos os homens eram irmos e 1
riqueza social a todos pertencia. Escada acima e, depois, ,
arrastando-se na vetusta sala, velhos e velhas forma- \
escur<? cortejo, costas dobradas pelos anos, mos Emulas t>ocas entreabertas pela
respirao que a bida tr1113- opressa, caras de linhas rudes, de esculturas a pic^o. a
s Iaces enrugadas e, nas cabeas, humildemente Descobertas, desgrenhados cabelos b
rancos. Eles e ela^ ^am avanando a passos inseguros, sobre o soalho, i-t que, l ao f
im, um empregado, luzidio de juventude, entregava, em nome da Caixa Sindical, vi
nte esc-^os a ca(ia um- De novo o cortejo, com modos de prstito fnebre, se movia. V
elhos e velhas voltavam a Passar nas vielas proletrias, de sapatos rotos de rouPa
s rotas, caminhando em direco a outras escoas, noutros bairros, as escadas dos ant
igos patres t7ara quem eles haviam trabalhado toda a vida. Algi-115 industriais, e
vocando obrigatrios contributos a c"fganismos de assistncia, no davam coisa alguma;
<?utros, porm, j se sabia, davam todas as sextas-feir^s dez tostes.
Tudo gomado e depois repartido pelos sete dias a
viver eJ^a a fme- E, ento, os velhos e as velhas
passavam a ludibriar o estmago e o tempo, aguardando a n)Va sexta-feira, enquanto
iam morrendo lenta e premati?11^11161^6 Por mngua alimentar. Todos eles pensavam
no Albergue e todos o temiam, porque o Albergue era a antecmara da morte, o fim d
o fim, o fjm cor^fessado a eles e a todos. Tanto, porm, a misria o^ espremia, que,
muitos deles, no podendo resistir-lh^ niais, dominavam os seus terrores e porta
do Alber^ue iam> um ^a' t>ater. Mas tambm l no havia esp^1?0 Para e^es- Aquilo esta
va sempre cheio e, muitas v^zes> quan(io a morte levava um dos internados ia alg
uns dos candidatos ao seu lugar tinham
morrido t^ambm-
O sol ^ra nico amigo. Encafuados nas suas tocas durante o^3 invernos nevosos, na
Primavera e no Vero os que dispunham de melhores roupitas ajuntavam-se, em gfupc^
s de trs e quatro, no jardim da Praa da Republic^-' <lue' a certas horas do dia, s
e tornava um jardim de invlidos, mesmo em frente das fbricas onde eles havi^1111 t
rabalhado dezenas de anos a seguir. Ali
286
A L E A NEVE
A LA E A NEVE
* havia sol e havia, sobretudo, o caminho que os am
rrios vlidos trilhavam ao regressar do seu lamj
Estes constituam, para os velhos, a esperana de uj
moeda em dia de fria, de um cigarro noutros "
de uma promessa, pelo menos, quando no tinl3
tambm, nem cigarros, nem dinheiro. 3
Agora, ao divisar os vultos decrpitos em redor"
coreto, Horcio tentou passar de largo, fingindo na
ter reparado neles. Mas j de um dos grupos saa
Paredes, que, agarrando-se a uma bengala, se acercai!
chamando-o! >"
Horcio! Horcio! E quando esteve perto}JB
O Boca Negra disse-me, h pouco, que vais aprenoB
tecelagem. Fazes bem! Fiquei contente por saber isfl
Ests novo; ests na fora da vida. Fazes bem! QuiB
me dera estar na tua idade! 44JB
O Paredes, que enviuvara h pouco, nunca >|B
pedia nada, mas ele j sabia o que o velho ambicSB
nava quando lhe saa ao caminho. Meteu a mo "
bolso e deu-lhe cinco tostes. /fl
Paredes continuou a desejar-lhe felicidades e, anl
mesmo de ele se afastar, dobrou-se e apanhou a ponlB
de cigarro que tinha visto no cho enquanto falar]
Horcio entestou, novamente, s ruas proletriaiB
Aquele encontro com o Paredes, que lhe lembrava
dia em que o velho fora despedido e ele entrara itfl
fbrica pela primeira vez, deixara, no seu esprito, uM
novo rasto de enfado. Parecia-lhe ouvir ainda a vddB
de Tramagal a recrimin-lo, como se ele tivesse algumW
culpa. sal
Nas ruelas que Horcio trilhava estavam, con!
sempre, quela hora, no Vero, mulheres sentadas tfi
portas, aproveitando a ltima luz diurna para esbicamj
ou meter fios em cortes de fazenda. De passagem, elel
salvara uma e outra a Paula, a Josefa, a Guida, '&1
Procpia companheiras de operrios seus conhecidos^ i
Depois de saudar a ltima, Horcio teve, de repente/ i
aquela ideia e volveu atrs. Procpia morava a doa l
passos da sua porta e, como as outras mulheres, encon-f l
trava-se sentada na soleira, a trabalhar. Horcio lanou J
287
pedido. A Procpia, que havia deixado de esbicar ra Q ouvir, tornou a pegar nas pi
nas quando ele concluiu e disse com desenfado:
Que ela venha.
Ao entrar em casa, Horcio comunicou a Idalina:
Lembrei-me de falar Procpia, para ela te ir ensinando a esbicar. Assim vais ganha
ndo tempo e, depois, chegas mais depressa a operria. E at te entretns. A Procpia sim
ptica e parece-me boa vizinha. Achas bem? Eu lembrei-me disso por tu dizeres que
ficavas muito tempo sozinha, agora que you passar dia e noite na fbrica...
Eu acho muito bem. Tanto mais que quero ganhar, quanto antes, alguma
coisa, para ajudar as despesas da casa.
Horcio tirou o chapu e sentou-se mesa para cear satisfeito com a resposta da mulh
er.
Mateus colocara-o junto de Marreta, o mais antigo dos teceles. Ao lado, trabalhav
a o Dagoberto, de corpo seco e cabea to calva e esticada que, em vez de cabea, seme
lhava um grande ovo posto sobre os ombros. Para alm dos seus teares, outros teare
s havia, dezenas de teceles laborando continuamente.
Horcio regozijava-se por ser Marreta quem ia ensinar-lhe a tecer. Desde que sara d
a Aldeia do Carvalho, s hora do almoo, na fbrica, e num ou noutro raro domingo em q
ue o velho tecelo aparecia na Covilh, os dois conversavam. Mas no era a mesma coisa
, nem com o mesmo tempo folgado de quando se reuniam, noite, em casa de Marreta
ou caminhavam para a Aldeia, de volta do trabalho. E ele comeara, ultimamente, a
sentir falta, no sabia bem porqu, daquelas palavras sobre a vida deles que o amigo
costumava dizer, sobretudo quando os dois estavam sozinhos. Continuava a descre
r das largas vises e afirmaes de Marreta, mas a confiana que este tinha no futuro
288
A L E A
NEVE
A LA E A NEVE
* confortava-o de indefinida maneira, embora ele |
masse em opor-lhe as suas dvidas. Atribua, porej
amizade e ao feitio de Marreta, sempre pronWl
desculpar os companheiros e a interessar-se por tocH
essa sensao de alvio que, muitas vezes, dele receia
nas horas apoquentadas. Parecera-lhe, todavia, ca
Marreta no tivera contentamento igual ao dele quantj
naquela manh, o vira chegar com Mateus e pr-se i
lado do seu tear. Essa frieza., que tanto o surpreendei
durara, porm, um migalho de tempo apenas. Loj
o velho retomara o seu sorriso afectuoso e dera-sei
instru-lo sobre o funcionamento da mquina: i
Estes fios ao comprido so os da teia, que egl
montada acol, ao fundo. Os fios passam por aquelj
buraquitos que os arames das perchadas tm. As pl
chadas so aquelas coisas que parecem pentes. Mas l
que se chama pente do tear outra coisa: isto aqj
Ests vendo? Agora repara: umas perchadas sobem
outras descem ao mesmo tempo. Assim, uns fios ficai!
por baixo e outros por cima. E ento a lanadeinj
passa de travs por entre eles, metendo o fio da trama
com sucessivos rumores secos, pausados, o tear difl
-se-ia autnomo de vontades humanas, todo entregt<|
obsesso dos seus movimentos rpidos, sempre iguaij
e mal permitindo a Horcio fixar as operaes qiM
Marreta lhe ia explicando: ~m
Agora, as perchadas com os fios que estavam pffl|
cima foram para baixo e as de baixo vieram par"
cima. A lanadeira tornou a passar, cruzando o fio quil
ela leva. cruzando o fio da lanadeira com os da teian
que se fazem os tecidos... Percebeste? ;m
Ao olhar para a cara do discpulo, Marreta com?i
preendeu ter sido intil a lio. Sorriu indulgente*!
mente e volveu a repeti-la. Por fim, declarou: i'l
Isto no difcil, mas o melhor tu ires vendo, l
S com o tempo podes aprender. Porque no s o l
que o tear faz; tambm o nosso trabalho. Se hou- j
vesses nascido na Covilh, decerto terias ido Escola l
Industrial e serias j um tecelo feito. Assim, tens de J
te fazer por ti prprio... E eu sei o que isso custa! j
289
Tambm aprendi como tu e, nesse tempo, tudo era pior. Nem me quero lembrar!
Depois, Marreta informou, com outro torn de voz:
Daqui a nada acaba o fio da canela que est dentro da lanadeira e o tear pra. Temos
de ter j pronta outra lanadeira com uma canela cheia de fio. A canela mete-se assi
m... Vs? muito fcil. Chama-se embocar.
O tear deteve-se. Marreta trocou, rapidamente, as lanadeiras:
Isto tem de se fazer depressa. Ns recebemos conforme o nmero de passagens que a l
anadeira faz. Ora quanto mais demorarmos, menos ganhamos. E os patres so, tambm, p
rejudicados, pois se um tear produz pouco, menor o lucro deles. Outra coisa que
preciso fazer a toda a pressa atar os fios da teia que, s vezes, se partem. Tem d
e se parar o tear, como hs-de ver, e se o tecelo no se despacha, pior para ele e pa
ra a casa. Mas disso tu j tens a prtica l da fiao. Marreta voltou a sorrir: Aqui, o
que nos faz andar depressa a "pinta", este fiozito branco que est na margem do c
orte e que, depois, se tira, para a fazenda no ir, assim, para as lojas. nele que
ns medimos as passagens que fazemos. E ests a ver como ns desejamos que ele aument
e, pois quanto mais aumentar, mais ganhamos. Quando eu era novo, fazia mais de t
rs "ramos" por dia, mais de quinze metros de tecido...
Dir-se-ia que Marreta se tinha arrependido das suas ltimas palavras, porque rapid
amente as emendou:
Claro que eu ainda posso fazer a mesma coisa, se quiser;^ e se, s vezes, no o fao,
no porque no possa... porque, como sou sozinho e tenho poucas despesas, no preciso
de correr atrs de foguetes...
O tear continuava com aqueles rudos secos, aquelas fortes pancadas que impeliam a
s lanadeiras, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, num voo de
bala.
10 Vol. Ill
29 A L E A NEVE
in
\ s casitas estavam quase prontas, branquinhas, aaB ss, soalheiras e at em cada um
dos seus qial talejos havia j sido plantada uma rvore de fnlB Vendo-as assim, Horci
o interrogava, frequentemlM os camaradas, mas nenhum deles sabia inform-lo SQU quan
do abriria a inscrio para os candidatos a inq" linos. Duas vezes ele fora mesmo ao
Sindicato e" haviam-lhe dito: sy|
Ainda cedo. Ainda no temos ordens para tjjl Entretanto, correra que a Cmara Municip
al ffl
construiria mais vivendas econmicas. Ao ouvir is" Horcio duvidou. Como podia ser,
se tinham sido feilM apenas setenta casas e s os operrios dos lanifcM eram seis mil
? V
Dias depois, porm, ele verificava que os cabdM queiros, pedreiros e carpinteiros
haviam desaparecifM dos Penedos Altos e principiado a edificar uma noiB fbrica, p
rximo do hospital. As sobras dos material de construo tinham sido, tambm, retiradas
d|B O novo bairro apresentava-se limpinho, com ar "< stio onde no havia mais nada a
fazer. Ento, alajl mado, Horcio voltou ao Sindicato. O presidente w direco devia sa
ber mais do que os operrios, pdH dava-se com muitas pessoas importantes e at com -
fl doutor delegado do Instituto. f"l
verdade disse-lhe o presidente do Sindij cato. Para a construo do bairro,
a Cmara d&at metade do dinheiro e o Governo a outra metade. Mas(r) agora, a Cmar
a no tem mais dinheiro. E penl porque isto era uma boa obra! J
Ento no fazem mais nenhuma casa? ^
Certamente, um dia ho-de fazer... ^
Um dia... Quando? !
Isso que no se sabe... Nestes anos mais pr-' ximos, a Cmara tem muitas despesas e o
utras neces-
A L E A NEVE
2QI
"idades a atender... Foi o que me disse, h dias, o doutor Teixeira.
Horcio saiu de cabea baixa. E, durante o resto da semana, andou a moer aquilo. Com
o podia ele ter uma das casas dos Penedos Altos, se elas eram to poucas e a gente
que precisava delas era tanta?
Mete um empenho! disse-lhe, no domingo, o Boca Negra, na floresta que sobrepuja
va a Covilh, onde eles haviam ido, com as mulheres e Marreta, passar o dia. Mete
um empenho, enquanto tempo. . Eu c por mim no quero nenhuma das casas. E h outros
camaradas que tambm no querem. No que ns no precisssemos, mas porque a renda mais bai
xa de setenta escudos. No^ digo que seja cara, nestes tempos que vo correndo. at ba
rata, tendo em conta que so casas bonitas e com cinco divises. Mas a mim j me custa
, s eu o sei, pagar vinte escudos por aquela em que vivo. Agora tu, que queres mu
dar-te, deves andar de olho aberto. As casas no so apenas para os operrios dos lani
fcios; so tambm para funcionrios pblicos, empregados do comrcio, motoristas, padeiros,
para todos os sindicatos. Ests a ver... Se no te mexes, ficas sem nenhuma.
Mas como hei-de eu mexer-me ?
No sei. Isso contigo... V se arranjas um empenho, j te disse.
Estavam os dois sentados, com Marreta, na Varanda dos Carqueijais, enquanto as m
ulheres arrumavam, entre os pinheiros, o cesto em que haviam trazido o almoo para
esse dia de ripano. Horcio coou a cabea e olhou a cidade que se estendia l em baixo,
luzindo ao sol e padroando o imenso vale do Zzere.
Que raio de empenho posso eu arranjar, se no conheo ningum de peso na Covilh?
Eu digo-te isto, porque j ouvi dizer que h Pessoas que vo meter empnhos. E s se fore
m tolas que no faro isso!
Sentado ao lado deles, Marreta escutava-os em silncio. Horcio voltou-se e olhou-o,
como a pedir-lhe um conselho. Marreta continuou, porm, calado. Depois,
292
A L E A NEVE
* tirou um jornal do bolso e ps-se a l-lo tranquil mente. a
Da estrada que cortava a floresta vinha o rua de uma camioneta que subia. Horcio p
egou no gd rafo que tinha trazido e bebeu. No lhe apeteci agora, vinho, mas tornou
a beber. d
Que diz vossemec a isto ? perguntou, dir tamente, a Marreta. c
Em vez de lhe responder, o velho tecelo dobrca vagarosamente, o jornal. il
Estou cansado declarou. J no tenho idaa para estas caminhadas. Da Aldeia do Carv
alho at aqa um bom bocado e quase sempre a subir. ?j
Horcio compreendeu que Marreta no queria, <m
maneira alguma, falar das novas moradias. Lembrou-sa
ento, da noite em que ele lhe havia dito: "Tu encojl
trs uma panela com libras e mandas fazer uma casa
Tu ficas satisfeito, mas os outros continuam na mesmaj
Horcio pegou no garrafo e bebeu pela terceira vl|
Boca Negra estava tambm calado. Marreta para
cia olhar para a Serra da Gata, que se divisava "
muito ao longe, de contornos imprecisos. O rudo dfl
camioneta esmorecia, distncia. E de dentro do pinhij
saram, trazendo o cesto, Idalina e a mulher de BocjB
Negra. Ao dar por elas, Marreta levantou-se e prop^l
Vamos andando ? (
com Marreta no meio, o grupo comeou a descei!
a floresta. E, desde essa tarde, Horcio procurou queUil
pudesse interceder a seu favor. II
Falou, primeiramente, ao Marques. Mas, dias pasa"
sados, o padrinho dizia-lhe: All
Tens de esperar que se abra a inscrio. No sdm aceitam empenhes. l
Aquilo brigava com o que Boca Negra dissera e"
ele comunicou-o ao merceeiro. l
Marques repetiu: i 1
No se aceitam empenhes neste caso. Foi, pelo I menos, o que me garantiram. Se alg
um os mete, isso l no sei! A mim, o que me disseram que as casas l seriam distribud
as ou sorteadas por quem tivesse a f
A LA E A NEVE
293
idade que a lei manda e bom comportamento. Pessoas que no sejam assduas no trabalh
o, bbedos e zaragateiros, no sero aceites. Mas, felizmente, tu no s desses.
Tambm aquilo no tranquilizou Horcio. E, de esperanas j bruxuleantes, ele partiu dali
para recorrer a Pedro. Embora operrio, Pedro conhecia muita gente fora das fbricas
e havia at pessoas ricas que o cumprimentavam, talvez por saberem quem era q pai
dele. Pedro prometeu falar a um empregado da Cmara Municipal, seu conhecido; mas
, no domingo seguinte, disse-lhe o mesmo que o Marques lhe tinha dito:
No se pode fazer nada. Tens de esperar que se abra a inscrio.
Nessa mesma tarde, Horcio ouviu, no Pelourinho, que vrias pessoas haviam decidido
no se inscrever. Afirmavam, uns e outros, que o novo bairro ficava longe da cidad
e e que, no Inverno, dificilmente as crianas poderiam vir escola e as mulheres ao
mercado. E, de noite, eram caminhos que davam medo.
Os operrios escutavam os camaradas e a si prprios e cada vez sentiam maior necessi
dade de elaborar senes e exagerar inconvenientes, para se consolarem da certeza d
e que, fizessem o que fizessem, a quase totalidade deles no poderia instalar-se n
o novo bairro.
Tramagal, que viera passar o domingo Covilh, era quem mais fomentava aquela ideia
:
C para o meu pensar, ningum devia inscrever-se. Ou casas para todos ou para ningum
.
Horcio ouvia-os, sem intervir. Agradava-lhe que s outros amarrassem defeitos s casa
s e desistissem delas. "Assim ele teria mais probabilidades de ficar cora uma p
ensou. E dissessem os outros o que dissessem, as casas eram muito boas! Quedava
m afastadas da cidade, l isso era verdade, mas assim mesmo ^ que ele gostava. Qua
ndo fosse para o trabalho, as fbricas estavam ali a dois passos, e quando estives
se em casa, era uma alegria com a terra livre em volta e tudo cheio de sol. Pare
cia impossvel que os outros
294
A L E A NEVE
A L E A NEVE
295
dissessem aquilo, vivendo, como viviam, nuns burij
onde nunca entrava a luz do dia".
Tramagal marralhava: i*j
Ou casas para todos ou para ningum! g
Horcio continuava calado. Tambm aquilo Ihefj
receu absurdo. "Como que se podia fazer casas p^
todos, assim de p para a mo ? Demais a mais, hS
muitos que nem sequer podiam pagar aquelas ren|
baratas. Era ver o Boca Negra e tantos outros". <r|
A inscrio foi aberta uma semana depois. HoriH soube da notcia hora do almoo, pela mul
hersB Boca Negra, que viera trazer a comida ao mari" Logo ele saiu do refeitrio e
correu ladeira acima, pai a Covilh, levando na mo a cdea que no tiv*M tempo de mast
igar. "
Quando, arquejante, entrou no Sindicato, out" operrios saam. Reconheceu um deles,
o Alosio:.|B
Vocs vieram tambm por mor das casas ? 'fl
Viemos. IB L dentro estavam outros, sua frente. Por faB
ele pde dar o nome e a morada ao empregado ill Sindicato. H
H muita gente que quer as casas ? perg^B tou, quando o outro acabou de escrever.
W
Alguma...respondeu o empregado. :>
Alguma... Mas, ento, no muita ? interrogai de novo, ansioso pela resposta. "IB
Bem v... A inscrio comeou h pouco... B Horcio volveu fbrica. No disse nada
reta, nem Marreta lhe perguntara coisa alguma. Mafl ele sentia, no silncio do vel
ho, que este adivinhaw a razo da sua sada do refeitrio, pouco antes. tfl
As cinco da tarde, ao abandonar o trabalho, DagflW berto confessou-lhe que talve
z ele se inscrevesse tarnii bem. No tinha f acrescentou mas no perdill nada em te
ntar. '*|
Horcio dirigiu-se para a fiao. E, atrs do carroiTj
indo e vindo e pegando os fios que se partiam, procedia por fora de hbito, to autom
aticamente como a prpria mquina. "Eram sempre muitos ces a um osso! Eram sempre mui
tos ces a um osso!" monologava.
uma hora da madrugada, quando, enfim, saiu da fbrica, velhas supersties enleavam-no
. Ao vencer a rampa da Covilh, via tudo incerto, tudo precrio; e, como daquela vez
que atravessara a serra com o Serafim Caador, as casas dos Penedos Altos comeavam
a tremer, a adelgaar-se, a desvanecer-se, como se fossem deixando de existir, co
mo se, at ali, tivessem existido apenas na imaginao dele.
A noite estava quente. No labirinto proletrio da cidade, muitos dos moradores, fu
gindo ao calor que os sufocava nas baiucas onde habitavam e aos parasitas que lh
es chupavam o sangue, haviam posto as enxergas sobre o cho das vielas e, como era
seu costume, todos os anos, naquela poca, dormiam ao ar livre da madrugada. Horci
o ia andando por entre esses velhos colches cheios de figuras que ressonavam, com
o em acampamento improvisado junto de destroos feitos por uma catstrofe. E cada ve
z ele sentia maior angstia, cada vez se sentia mais desamparado na noite, nos seu
s desejos, em toda a sua vida. Tramagal dissera que as casas no chegavam a ser se
te por cada mil pessoas que precisavam delas. Assim, que esperanas podia ele ter?
Ao chegar sua porta, Horcio levantou o brao Para bater, mas, de sbito, deteve-se. D
e novo, velhas crenas o envencilhavam. E uma derradeira hiptese de proteco surgia no
silncio nocturnal da ruela.
Perto dele, a Procpia moveu-se entre o marido e s filhos, nas duas enxergas juntas
; logo, porm, aquele silncio, quente e pesado como o ar da noite, volveu. Horcio va
cilou ainda um momento e, depois, meio decidido, meio hesitante, continuou a and
ar, afastando-se, lentamente, da sua porta.
Cidade pequena, acolhedora e pacata, a Covilh dormia. O seu prprio centro dir-se-i
a abandonado.
296
A L E A NEVE
A L E A NEVE
297
Somente no Pelourinho, Horcio lobrigou uns vultj
que, falando, metiam Rua Direita. O velho edifq
filipino, onde se instalavam os Paos do Concelho, pas|
cia golfar, atravs do arco que dava entrada para^
Rua i. de Dezembro, um denso mistrio de outro|j
E, mais adiante, as casas construdas sobre as antig^
muralhas da cidade mostravam-se numa confuso
burgo pretrito, onde os camartelos renovadores ni
haviam conseguido fazer olvidar todos os sculos pai
sados com suas noites infindas. 4
O relgio de uma das igrejas bateu duas horaa
Sempre vagarosamente, Horcio comeou a subir pai
as Portas do Sol. Sentia-se cansado. O corpo, de jf
desde a manh do dia anterior, fosse junto do tei
fosse em correrias para o Sindicato ou atrs da cal
ruagem de fiao, amolengava cada vez mais. Mas, J
dentro, a surda batalha prosseguia com a incerte31
a ideia de pouca sorte, de desarrimo no Mundo. Agon
ele pensava: "Se ela d vantagens no cu, tambm ai
h-de dar na terra. Porque no ?" l
As Portas do Sol estavam solitrias, como as rua
que ele havia calcorreado. O quiosque encontrava-
fechado e os motoristas, que ali faziam praa de seui
automveis, haviam desaparecido. S o paredo di
onde se abarcava a plancie se erguia em frente dela
O vale jazia no escuro, mas, direita, sobre o seu pilaw
a Senhora da Conceio, envolta em luz directa, refuH
gia. Era uma luz verde, de profundidades submarinas!
uma luz de sonho; e a imagem dir-se-ia acabada dm
aparecer, milagrosamente, no negrume da noite, para
dominar a noite da terra e das almas e servir de guiai
aos homens que transitavam na escuridade do grandsj
vale. Horcio contemplou-a um momento e tornou ai
perguntar a si prprio: "Se ela nos protege depois de]
mortos, porque no h-de proteger-nos enquanto somos \
vivos ?"
Horcio ajoelhou e rezou as trs Av-Marias que cardeais e bispos aconselhavam para se
obter favores celestes. Depois, pediu Senhora da Conceio que o patrocinasse. Murm
urou novas Av-Marias e prometeu
que iria todos os domingos, durante um ano, rezar com a mulher aos ps da imagem,
se lhe coubesse uma das casas dos Penedos Altos.
As Portas do Sol continuavam em soledade quando ele se levantou. Apenas um gato
corria das bandas do quiosque para o lado das antigas muralhas.
Horcio ps-se a arrepiar caminho. A andar, ia imaginando o que seria a sua existncia
familiar se lhe fosse entregue uma das casas e antegozava a alegria desse mome
nto. Pagando os setenta escudos mensais da renda, ao fim de vinte anos, merc do s
eguro de vida, a casa pertencer-lhe-ia. Era como se a houvesse comprado. Nessa a
ltura, ele teria pouco mais de quarenta anos; estaria ainda novo e Idalina tambm.
Ao subir a Rua Rui Faleiro, as palavras do Marreta voltaram-lhe, de repente: "Tu
ficas com uma casa, mas os outros continuam na mesma". Ento, ele apressou o pass
o, novamente maldisposto.
Depois de lhe abrir a porta, Idalina olhou o relgio e lamentou:
Vieste, hoje, to tarde! J passa das trs horas e tens de te levantar s sete. Assim, n
em descansas...
No faz mal... Pacincia...
Mas porque demoraste tanto ? Ele cortou:
Deixa-me dormir. No estou agora para falar. Depois te conto.
s oito da manh, ao entrar na fbrica, ainda sonolento, perguntou a Dagoberto ?
Voc sempre se inscreveu ?
Inscrevi.
E que tal ? Que lhe parece ? Dagoberto encolheu os ombros:
Que me vai parecer ? Como por agora no fazem Riais casas, se no apanhamos estas, f
icamos a chuchar no dedo...
298
A LA E A NEVE
L E A NEVE
299
Marreta ouvia-os, mas fingia no os ouvir, cedi das outras vezes em que se falava
das moradias i^l Penedos Altos. Essa muda discordncia, de to re9 tida, enervou Horc
io: "Se Marreta se punha assJH no era s por as casas serem poucas pensouJM Era ta
mbm por Marreta no gostar da Cmara dl as fizera. Mas ele no tinha nada com isso". ,^
B
Colocou-se ao lado do tear e, despeitado, desde eifl manh evitou falar daquilo em
frente do velho tecel^B
Ele ia, entretanto, progredindo facilmente na s9 nova aprendizagem. Poucas seman
as depois de a hasfl iniciado, j auxiliava, durante a montagem das tei|B a enrola
r, a atar, a empeirar, sem que Marreta tivej de dizer-lhe constantemente, como ao
princpio: "^H assim... assim!" E cada vez as suas mos se m J travam mais destras e
m meter os fios nos olhais uB lios, aqueles aramezitos que constituam as perchadjM
Marreta estimulava-o, paternalmente. Jl
Este esperto dizia, dirigindo-se a DagobertM mas para que ele o ouvisse. L espe
rto, ! Ne|B precisaria de um ano para ser tecelo... >M
Horcio quedava lisonjeado. Quando, porm, corruB cavam a aproximar-se as cinco hora
s da tarde e niuB e noutro operrio se adivinhava a impacincia peB momento da sada,
ele entristecia. Os outros iam paJJB suas casas ou falacear no largo do Pelourin
ho e s efl pegava o dia com a noite, como se fizesse dois turncaB Mudava apenas d
e mquina. E, junto do tear, aindH era melhor, porque ali, ao menos, no se cansavB e
nquanto na fiao de carruagem tinha de andar sernjl pr a trote, para a frente e para
trs, sempre no mesm|| espao, sempre a fazer a mesma coisa, como um burrol puxando
nora. >9
Passara-se o ms de Setembro e cada vez o sol ial desaparecendo mais cedo. Mas iss
o, ao contrrio dql que ele imaginara no pino do Vero, no o consolava ;< agora. Era
uma tristeza diferente da de quando havia i sol, mas no deixava de ser uma triste
za, e at maior, ' aquela hora cinzenta da tarde em que os outros aba* lavam e ele
ficava. E, uma da noite, quando, enfim,
saa, estafado, maldisposto, muitas vezes caam potes de gua. Por mais que corresse l
adeira acima, para a Covilh, chegava a. casa encharcado.
Ao ouvir as pancadas violentas que ele dava, IdaUna erguia-se da cama e vinha, e
stremunhada, abrir-Ihe a porta. A princpio, Horcio falara em mandar fazer mais uma
chave, mas ela dissera-lhe que queria acordar quando ele viesse, pois, de cont
rrio, quase nunca se veriam sua vontade. De manh, ele estava sempre com pressa;
e ao meio-dia, quando ela lhe levava a comida, havia tantos operrios roda d
eles, que era como se no estivessem juntos. Horcio aceitara logo aquele desejo, qu
e tambm a ele a ideia de chegar a desoras e encontrar a mulher a dormir e tu
do morto sua volta lhe pesava desagradavelmente. Idalina guardava-lhe, no fogo, u
m caldo morno, que ele comia antes de se deitar. E, algumas noites, enquanto no a
dormeciam, os dois iam discorrendo sobre a sua vida. Para ele, esses dilogos acab
avam quase sempre em desgosto, desgosto que at lhe chupava o sono, porque Idalina
sempre dizia que estava tudo cada vez mais caro e j nem sequer se referia ao din
heiro a pr de banda, destinado ao Valadares.
Numa dessas noites, como a mulher suspirasse descontentamento ainda maior do que
o dele, Horcio encontrou-se a repetir, para a aliviar, as palavras de
Marreta:
com o fim da guerra, isto muda. E vem outra
coisa, com certeza.
Em Outubro, nova esperana medrou entre eles. O mestre da ultimao da Renovadora adm
itira, finalmente, a Idalina como aprendiza de esbicadeira. Horcio preferia que e
la fosse para a fbrica onde ele trabalhava, que ali podia t-la sob as suas vistas
e obrigar todos a dar-lhe respeito, enquanto na Renovadora no faltariam matules qu
e quisessem desinquiet-la, incluindo o Pedro, que andava sempre atrs de saias e di
sso ainda se gabava. Essa ideia anojava-o, no que lhe minguasse confiana na mulher
, mas porque, s de pensar que outro poderia cobi-la ou soprar-lhe aos
3oo
L E A NEVE
j, ouvidos palavras de seduo, punham-se-lhe os ner" em clera. O Felcio, porm, havia s
empre adiado admisso de Idalina e ele resignara-se, por isso, a q ela entrasse pa
ra a Renovadora.
Quando lhe deu a notcia, Idalina disse somen
you ter pena de no poder levar-te a comidaj fbrica, como at aqui... >S
Ele no prestou ouvidos quilo e meteu logo st obsesso: >|
Foi boa ideia isso de andares a praticar comg Procpia. Assim, adiantada como ests,
no tardaj^ s operria. E, para o ano, eu serei tecelo. Acabl remos com o raio da dvid
a ao Valadares e tratarem^ da nossa vida... "<
Horcio calou-se, de olhos distantes, como se ai
dasse a medir o seu futuro; e, no silncio que se fd
a mulher tornou: j
Tu podes aquecer a comida l na fbrica, ms
no a mesma coisa. No tens pacincia e no a aqui
cs to bem como eu ta levava... <*f
Desde esse dia, Idalina principiou a levantar-se ma
cedo do que ele. S quando tinha tudo pronto, o cald
da vspera metido nas latas e estas, com o po e >
conduto, acamadas nos dois cestos, o despertava. Ho
rcio vestia-se apressadamente e saam juntos e junto
caminhavam at o porto da Renovadora, onde el
a deixava.
1 A concesso das casas fez-se no escritrio do fiscal^
do novo bairro. Estavam o presidente da Cmara, o; representante do Governo, que v
iera propositadamente1 de Lisboa, engenheiros municipais e outras figuras.
O escritrio do fiscal era pequeno e nele no cabia mais ningum. C fora, os candidatos
a inquilinos, com suas mulheres, muito embrulhadas nos xales, tremiam de frio.
Era um domingo de Janeiro e de noite cara um nevo to forte que o presidente da Cmara
deci-
A L E A NEVE
301
Hira telefonar para Lisboa, sugerindo o adiamento da cerimnia. De l, porm, disseram
-lhe que o enviado do Governo, o Dr. Navarro, j havia partido, com os jornalistas
e fotgrafos, indo dormir, nessa noite, a Castelo Branco. Alm disso, os jornais da
capital tinham anunciado o acontecimento para aquele dia e no convinha, portanto
, adi-lo.
Agora, metidos entre outros pretendentes s casas, Horcio e Dagoberto ouviam o Dr.
Navarro discursar l dentro. Ele louvava a Cmara Municipal e o Governo, que compart
icipara largamente no dinheiro gasto em obra de to grande alcance. "Graas a esta i
niciativa, vai-se, finalmente, oferecer um lar a quem, de outra forma, no o poder
ia ter. Por isso, este domingo, apesar de invernoso, um dia de jbilo, no s para a aml
ia operria covilhanense, mas para a cidade inteira, um verdadeiro amplexo entre a
s vrias classes da sociedade, pois s assim, pela justia social, se obtm a harmonia q
ue constitui a base slida para o bem-estar das colectividades".
Os ouvintes percebiam que o Dr. Navarro, apesar de ser homem ainda novo, tambm se
ntia frio, porque, embora se esforasse por tornar a sua voz bastante forte, muita
s das palavras que dizia mal se ouviam c fora.
Alguns retardatrios iam chegando, somando-se ao grupo que estava em frente da por
ta, sobre a neve, e todos se quedavam a escutar. Havia ali gente de vrios sectore
s sociais, desde os operrios enfiados em velhos sobretudos, de gola levantada, a
funcionrios pblicos e a pequenos comerciantes com um alfinete na gravata todos ca
ndidatos s casas. O cu continuava soturno e via-se que, no alto da serra, continua
va a nevar.
Logo que o delegado do Governo terminou o seu discurso, houve, l dentro, rumor de
passos, vozes soltes, enquanto os que estavam c fora se apertavam niais, na nsia
de escortinar o que se passava. Mas s s que se encontravam frente o podiam fazer
e Horcio, por muito que distendesse o pescoo, por mais
302
A L E A NEVE
A L E A NEVE
33
que tentasse enfiar a cabea por entre os ombros " parceiros, no divisava coisa alg
uma. "
Subitamente, porm, no escritrio do fiscal -U uma voz que se dirigia para o exterior
e que doJB nou tudo: fljm
Casas do tipo Dois-A, cinco divises, setenta edl dos por ms. Concedidas a: Heliodo
ro de Sousa, meijB da fbrica Renovadora; Francisco Teles, motoristlB Cmara Municipa
l; Jos Bento, tecelo... ~"
Horcio deixara de sentir o corpo, o frio, a nlB Dir-se-ia que toda a sua vida se c
oncentrara nos otfB dos, como se no houvesse mais coisa alguma no MulfB do que os
seus ouvidos e aquela voz que soava paufll damente, l dentro: i|B
Jos Antnio da Silva, empregado do comrdH Felcio Saraiva, mestre; Roberto das Dores..
. >JI
A cada nome que ouvia, Horcio esperava, ansjl samente, que sucedesse o seu. Tudo
aquilo era rpiH mas a ele parecia-lhe que tudo aquilo se arrastava, arrastava, se
arrastava, se arrastava infinitamente, m
C fora, a multido agitava-se e comprimia-se <B quando em quando, com os movimentos
de alegria qdl alguns dos contemplados iam tendo. Uma mulher ptj testava, porque
um deles tantos saltos dera que iol fizera cair o xale. Entretanto, l dentro, a v
oz prcil seguia, impassvel:
Mrio Tavares, padeiro; Lucas Soares, emprtB gado da indstria... l
Houve uma pequena pausa e logo a voz tornofl
Casas do tipo Trs-A, seis divises, oitenta m cinco escudos por ms. Concedidas
a... "'m
De novo se fez um grande silncio c fora. VieraBfli outros nomes. Nomes a seguir a
nomes. E quando?! finalmente, a voz se calou, sem pronunciar o nomfll dele, H
orcio j no via e nem ouvia nada do que| estava em seu redor. Ao contrrio, ele via co
isas i&>\ tantes dali, a imagem da Conceio, o seu casebre d ' Rua Azedo Gneco e o Ei
r, de Manteigas, onde ele; tantas vezes, falara com Idalina da casa que haviai" d
e ter. O corao, que estivera sempre aos pulos, sem
aue ele houvesse dado por isso, sempre a pulsar mais forte naquela expectativa l
enta, parecia agora sossegado, mas deixara-lhe os lbios secos e a garganta quase
sufocada. Ao levantar os olhos, verificou que pagoberto estava com uma expresso s
ombria. Lembrou-se, ento, de que ele no fora tambm contemplado.
Em volta, a multido dividia-se e formavam-se grupos, que comentavam o sucedido. H
avia homens que riam e outros que partiam de cabea baixa. Os fotgrafos que tinham
vindo de Lisboa fotografavam vrios trechos do bairro. Um deles apontava a sua mqui
na ao Jos Bento, tecelo, e pedia-lhe:
V l! Ria! Faa uma cara alegre! para publicar no jornal...
O Jos Bento ps-se a rir e o outro fotografou-o.
As entidades oficiais comearam a sair da casa do fiscal. O Dr. Navarro deteve-se,
um momento, porta, a contemplar os fotgrafos e o bairro novo, todo coberto de ne
ve. Ele tinha um olhar melanclico, pensando que no se havia tirado todo o efeito p
oltico do acontecimento. O presidente da Cmara, julgando compreend-lo, disse:
Foi pena haver um tempo destes! Seno, tnhamos embandeirado tudo isto e posto a uma
banda de msica. Sempre dava outro aspecto.
O Dr. Navarro continuou calado e os dois partiram, seguidos pelos seus aclitos.
Nesse momento, Horcio sentiu algum bater-lhe no ombro, amigavelmente:
Tambm te havias inscrito ?
Ele voltou-se e viu o Felcio, mestre da ultimao.
Tambm.
No te deram nenhuma, v-se logo na tua cara. Tem pacincia... No pode ser para todos a
o mesmo
tempo...
As palavras de Felcio, que tinha sido um dos beneficiados, irritaram-no. Mas cont
eve-se:
Pois ... L isso ...
Dagoberto havia desaparecido. Dando costas ao
304
A L E A NEVE
9 Felcio, Horcio procurou Idalina. Ela estava ao loifH
junto de uma das casas novas, a conversar coal
Procpia. Ele acenou-lhe, uma, duas, trs vezes, JB
ela no o viu. Ento, tocado de impacincia, rutyjH
sozinho, estrada. Centenas de outros operrios ctgjl
nhavam sua frente, caminhavam devagar e em sUfH
cio na neve, devagar e em silncio como se fossem nl
enterro. 'ijM
Ao atravessar a Carpinteira, Horcio topou, medH
na curva da estrada, grande ajuntamento. Os qu$|H
nham dos Penedos Altos cercavam um homem e quffl
todos faziam perguntas ao mesmo tempo. Horcio apjH
ximou-se e reconheceu Ricardo. Plido, muito m|l
magro do que era, os ossos do rosto desenhavam-^M
-lhe, nitidamente, sob a pele. O seu fato apresentavawH
coado, lustroso, cheio de arquiplagos de ndoas,^B
rota a parte que se divisava da camisa. S o cabdB
estava cortado de fresco. Ricardo tinha, numa ^JH
mos, um embrulho e, ao ver Horcio, abriu os bradM
Como tens passado ? J sei que casaste... A Jll
mandou-me dizer... '|H
Era a primeira vez que Ricardo o tratava por ^H
como se a ausncia houvesse aumentado a intimidadiM
E ele, com uma nova emoo enxertada na que tro^H
xera dos Penedos Altos, olhava-o demoradamente. H
Quando chegou ? E o Alcafoses ? jl
Cheguei agora mesmo. O Alcafoses tambm. <{
E a sua mulher j sabe ? '?lM
No. you fazer-lhe uma surpresa... ? Ao lado, Malheiros insistia pelas confisses qu
e '$fl
chegada de Horcio interrompera: ;B
E, ento, eles teimavam ? fH Ricardo mostrou-se desejoso de continuar o seu*
1B
caminho: ^B
Depois falamos disse. *
Homem, s um instante!... J
Bem, eles teimavam, todas as vezes. Parece que M pensavam que havia outra coisa
e queriam saber quem * estava metido nela. Queriam saber tambm se no l hav
ia gente de Lisboa que nos dava ordens... Eu far- J|
X
A LA E A NEVE
305
tava-rne de dizer que no, que ns tnhamos feito aquilo porque tudo estava caro e o q
ue recebamos de fria no chegava para nada. Ento, eles julgavam que eu estava a menti
r e teimavam. Mas o que mais me custava era pensar na Jlia e nos pequenos. Quando
estava incomunicvel, sem poder receber notcias deles, isso custava-me, claro. Ago
ra mesmo, no sei como eles esto. A Jlia tem-me escrito, mas eu adivinho que ela no d
iz tudo nas cartas.
Ricardo falava com simplicidade, mas num torn que parecia ainda mais firme do qu
e antes. Voltou-se para Bernardo e perguntou-lhe.
Tu tens visto a Jlia e os pequenos ? Esto todos bem ?
Alguns dos presentes conheciam a situao da famlia de Ricardo e aquela pergunta lanav
a-os, de repente, num embarao contagiante. Bernardo, que vivia na Aldeia do Carva
lho, ps-se a gaguejar:
Sim... Sim... Tenho-os visto... Ainda ontem os vi... L vo andando...
Ricardo pressentia as palavras que ningum pronunciava.
Sucedeu-lhes alguma coisa ?
No... No...murmuravam um e outro. Depois, Bernardo disse: Vivem com dificuldade, c
laro... Tu sabes... Tu calculas... Mas l vo passando... Os camaradas, mesmo que qu
eiram, pouco podem auxiliar...
Ricardo despediu-se, bruscamente:
bom. Adeus! At outra vez! Depois falamos.
Os homens viram-no desaparecer na curva da estrada e, em seguida, comearam a subi
r para a Covilh.
Ia o grupo a meio da rampa, quando Horcio ouviu a mulher cham-lo. Ela corria atrs d
ele, tropeando no gelo.
Andei tua procura, mas tu sumiste-te disse Idalina, ao acercar-se.
Horcio levantou os ombros, mal-humorado:
Estavas a dar lngua com a Procpia... Nunca mais acabavas...
306
A L E A NEVE
* que a Procpia queria ver, outra vez, as cam Ela estava muito amachucada e at ch
orou por ijj lhe ter cabido nenhuma. Eu tambm tive muita p<jj So to bonitas! E, no s
ei porqu, tinha-me af<j| ideia de que amos para l. Eu at havia feito WB promessa...
m
Tu tambm ? -m Idalina no compreendeu a pergunta e disse ca
naturalidade: J
Sim, eu havia feito uma promessa... Mas, agoS que j sabia que nenhuma das casas s
eria para T custava-me at olhar para elas. Por isso eu no qu" acompanhar a Procpia..
. Ela l ficou. Diz que taji bem a ela aquilo lhe d tristeza, mas que, mesfl
assim, queria tornar a ver as casas por dentro. M
Horcio ouvia a mulher e a melancolia da sua vw ia somando, no esprito dele, a viso
das moradias "j Penedos Altos com a da chegada de Ricardo Aldaj do Carvalho, o en
contro com a Jlia, os filhos, a velM o rosrio e o gato e, de novo, as casas novas
e o caSB bre da Rua Azedo Gneco, tudo numa confuso m imagens e de sentimentos as
imagens ora acentuai do-se, ora desvanecendo-se e os sentimentos permanj cendo,
assentando como lia no fundo de uma vasilhaj
Tive uma grande pena! repetiu Idalina. m
Deixa l...consolou ele. Havemos de tm
uma casa nossa. E feita a nosso gosto. Aquelas sM
bonitas, no h dvida, mas tm os seus defeitos!
Ficam longe. Para se vir cidade, um castigo! E imal
gina um dia de chuva... Eu, para dizer a verdade J
no tive grande pena, no... Ns havemos de ter a|
nossa, mas num stio melhor. Havemos de t-laTm
j s esbicadeira, j ganhas alguma coisa... E eu, parai
o Vero, acabo o ano de aprendizagem. Depois, maiftl
dia, menos dia, passo a tecelo. E tambm se diz que "j
os patres vo, agora, dar um aumento de salrios.^
J vs que no deves arreliar-te... . !
A voz saa-lhe to triste como a da mulher, que ele procurava confortar.
A L E A NEVE 307
IV
HORCIO fora-se assenhoreando da arte de tecer. O tear era-lhe j familiar: conhecia
todas as suas peas, o objectivo dos seus movimentos e montava a enviadura, empei
rava e embocava com tanta rapidez como Marreta o fazia. Se um dos fios do barbim
se quebrava, em dois segundos os seus dedos o atavam; se havia nova teia, ele s
abia como proceder, desde o rgo de onde esta se desenrolava, at a sua passagem no p
ente, antes de se enrolar novamente,
j tecida.
Quando ele comeara a aprendizagem, Marreta, se tinha de ir cloaca, voltava-se par
a Dagoberto e pedia-lhe: "Olha-me por isto". Agora, partia sem dizer nada ao out
ro tecelo, certo de que Horcio daria boa conta do tear. E at o Dagoberto, quando pr
ecisava tambm de ir l fora, o encarregava de vigiar a sua
mquina.
com o tempo, Horcio pudera avaliar mesmo a capacidade profissional de cada um. A
princpio, no compreendia por que Marreta punha uns culos quando tinha de empeirar e
os tirava, escondendo-os apressadamente, se via Mateus aproximar-se. E se o mes
tre parava junto dele, Marreta procurava fazer outra coisa que no fosse introduzi
r os fios naqueles orificiozitos que os lios possuam. S quando Mateus continuava a
sua andana, ele tornava a pr os culos e a empeirar, olhando, frequentemente, para t
rs, no fosse o outro volver pela mesma coxia. Na manh em que Horcio compreendera a r
azo daquilo, no dissera nada, mas tivera muita pena de Marreta. Da em diante evitar
a perguntas que pudessem lembrar ao amigo a sua velhice. E se lobrigava, ao long
e, o vulto de Mateus, era ele prprio quem prevenia Marreta da aproximao do mestre.
O velho tecelo parecia no gostar, porm, dessa espontnea cumplicidade, que denunciava
o conhecimento dos seus receios. "Pois que venha!" dizia
308
A L E A
NEVE
, sacudidamente, com um torn que no lhe era habitil
Mas, pouco depois, os seus olhos convergiam parai
bolso do casaco onde guardava os culos. E se esl
se entremostravam, ele impelia-os, discretamente, cfl
os dedos, para baixo. h
Horcio acabou por notar que Dagoberto, ali, Tj
lado deles, produzia muito mais do que Marreta. Aqu^
ia sempre alm de trs "ramos" por dia, enquanto @
nunca os alcanava. Ao pegar no dcimo de meti
para medir, na "pinta", o trabalho feito, a mo
Marreta tremia como quando ele tentava meter, sd
culos, os fios nos olhais dos lios. De comeo, Horas
acreditava que se Marreta no tecia mais era porq
efectivamente, no queria, por no precisar de grana
fria para as suas despesas de homem sozinho; mal
depois, convencera-se de que isso no era assim. Tcxjj
a gente afirmava que, na fbrica, ningum sabia, coo
ele, do seu ofcio e que melhor tecelo no existi
tambm na Covilh inteira. Mas, medida que Cf
meses iam decorrendo, Marreta parecia conhecer o tea
e a tecelagem mais de teoria do que de prtica, poim
ao trabalhar, fazia-o cada vez com maior lentido m
cautela, como se lhe faltasse experincia. Mesmo m
substituir as lanadeiras ou a embocar, Dagoberto, tida
e havido como um remendo, andava muito mais dal
pressa. Horcio detestava essa superioridade do vizinho]
que contava menos vinte anos do que Marreta e naj
era afvel como este. Mas Horcio sabia que ele prjt
prio podia realizar aquilo com mais rapidez do que 01
velho tecelo. E, um dia, assim o fizera. Ao ver, porm^j
o olhar melanclico com que Marreta seguira os seu*j
despachados gestos ao carregar, tirar e meter as lan^l
cadeiras, renunciara a mostrar-se capaz de vencer Dago-* l
berto. ' i
Chegara a Primavera e, Abril andante, um dia Mar- l
reta entrara na fbrica com voz rouca e tempestade l
no nariz. "Estou constipado" disse, apertando em l
volta do pescoo um velho "cache-col". Na manh i
seguinte, voltara ainda com mais espirros e febre, l
Ao terceiro dia, fora o prprio Mateus quem lhe dis- j
A LA E A NEVE
309
ser que, estando ele com gripe, o melhor seria quedar uns dias em casa, pois assi
m no se curava e at podia pegar o mal aos companheiros.
Ele partira e Horcio ficara com o tear. Antes de lho confiar, Mateus repetira, ao
Dagoberto, as mesmas palavras que, ao princpio, Marreta costumava dizer-Ihe, qua
ndo tinha de ir s instalaes sanitrias:
Olha-me por isto.
Obediente a essa ordem, Dagoberto aproximava-se, de quando em quando, de Horcio e
dava-lhe indicaes. Mas Horcio fingia no o ouvir. Fingia ostensivamente. Quando, porm
, o outro estava de costas, no seu tear, ele espiava-lhe os movimentos e procura
va ultrapass-lo, trabalhando ainda com maior presteza.
S cinco da tarde, Horcio verificava, envaidecido, que tecera tanto como Dagoberto
e muito mais do que Marreta costumava tecer. Foi essa a primeira vez que ele se
sentiu feliz ao transitar da tecelagem para a fiao, enquanto os outros operrios, qu
e laboravam diurnamente, saam da fbrica.
Marreta regressou na quinta-feira seguinte, rnais magro, e de olhos mais encovad
os, mais profundos, do que habitualmente.
Inspeccionou o tear e p-lo em movimento. Mas no fizera aquilo com a naturalidade d
os outros dias. Voltava-se, de quando em quando, para Horcio, falava-Ihe e proced
ia como se o tear j no fosse s de sua conta, mas dos dois. Procedia como se, durant
e a sua ausncia, houvesse perdido a primazia que tivera ali e Horcio pudesse ter p
or inoportuno o seu regresso. Nos primeiros momentos, parecia tocar nas coisas c
om timidez, como se mexesse, vista de outrem, em objectos da casa de um parente
que acabara de morrer.
Pouco depois, Marreta disse:
J sei que fizeste boa figura. Para um aprendiz, trs ramos por dia obra! Claro que
tu j no podes ser considerado um aprendiz... Tu j sabes como um tecelo...
Depois de ver aqueles modos com que Marreta en-
3io
A L L
A NEVE
A L E A NEVE
311
l s
f trar., Horcio arrependia-se de, na nsia de igq| Dagoberto e de se valorizar a si
prprio, haver >jjj duzido mais do que Marreta ultimamente prodia
Se j sei alguma coisa, a si o devo declaq sentindo-se vexado com a ideia que Mar
reta poda fazer sobre o seu procedimento. m
Ora! Ora! Tu s esperto, o que ! Sempnj disse! Fosses outro, e veramos! <J
hora do almoo, os dois amesendaram-se no nsj
comedoiro. O dia apresentava-se friorento para eles!
sentarem ao ar livre, como era tanto de seu goij
coisa que irritava Azevedo de Sousa, o gerente, o pj
prio Mateus, sempre prontos a lamentarem ter a fab
gasto um dinheiro a construir o refeitrio que a.M
mandava e, afinal, os operrios preferirem contin"
a comer arrumados a qualquer parte, l fora, ao aj
como os bichos, sem ordem, sem jeito nenhum. Aped
do dia agreste, alguns haviam ido para as bermas m
estrada e, no extremo da terceira mesa do refeito
Marreta encontrava-se sozinho com Horcio. Ele dai
cascara as suas batatas cozidas, comera-as e bebed
em seguida, o caldo que tinha aquecido. Depois, pu9
ra-se a olhar, lentamente, para o recinto onde estavaaj
para o tecto de vidro fosco, para a porta. Jj
So mais uns trs mesitos... murmurou, corril ^ se falasse consigo prprio. " j
O qu ? perguntou Horcio. / So mais uns trs meses...
que venho fabricai
Por que diz isso ? m Horcio j tinha adivinhado a causa das palavra!
de Marreta, mas sentia necessidade de lhe desvanece" aquela ideia aquela ideia
que se fazia notar no tool da sua voz, no seu sorriso resignado, na profundidade
dos seus prprios olhos. j
Digo isto, porque daqui a trs meses entregam-te l o meu tear e est tudo acabado...
j
Ora essa! Est tudo acabado, porqu ? Primeiro,1 j eu no aceito o seu lugar; depois,
quem lhe diz que j lho vo tirar ? * ^
Marreta sorriu com cepticismo:
Quando, na semana passada, o Mateus me mandou para casa, eu percebi logo que o q
ue ele queria era experimentar-te. Queria ver o que tu davas. Farto de ter const
ipaes e gripes estou eu e nunca ele me disse que eu podia ir-me embora e s voltar q
uando estivesse bom. Algumas vezes em que me senti doente a valer e lhe pedi par
a me dispensar do trabalho, ele mostrou-me sempre m cara... Mas j h muito tempo que
eu esperava isto: desde que' tu vieste aprender e ele te ps no meu tear... Lembr
as-te que te perguntei se lhe havias pedido para aprenderes comigo? Tu disseste-
me que no; que no era por falta de vontade, mas que tiveras vergonha de andar semp
re com pedidos ao Mateus... E disseste, tambm, que se ele fizera aquilo f ora, d
ecerto, por saber que ns ramos amigos. Ento, eu no quis desgostar-te, mas eu tinha a
certeza de que no era assim. Demais a mais, ele nunca quis que ningum apr
endesse comigo, porque dizia que eu tinha umas ideias que estragavam os
rapazes. Compreendes agora?
Horcio deixara de mastigar o seu po. Ele desejava falar olhando direito, mas, ao m
esmo tempo, os seus olhos acovardavam-se ao encontrar os de Marreta.
Por mim, no lhe tiram o seu lugar, pode vossemec estar descansado. Antes queria qu
e me quebrassem os braos do que tomar-lho.
No mo tomas; do-to disse Marreta, lentamente. No tens razo para falar assim. Se no
to derem a ti, do-no a outro e a mesma coisa. E, ento, eu prefiro que o dem a ti, q
ue s meu amigo.
Eu no aceitarei, j disse!
Pois eu acho que deves aceitar. Tu no tens nenhuma culpa. Se pensas que te dei
tarei alguma responsabilidade, ests enganado. Eles no te do o lugar para te ser agr
advel. Nem a ti, nem a qualquer outro. Do-to porque eu j produzo pouco. E eles no qu
erem ter empatado um tear com um velho que no chega a tecer trs ramos por dia...
Comovido, Horcio sentia a garganta apertar-se-Ihe e vontade de abraar Marreta.
312
A L E A NEVE
A L E A NEVE
313
* Eu c por mim no aceito... teimou. SeJ|
preciso, esperarei at arranjar noutra fbrica... m
Marreta voltou a sorrir, piedosamente, comajB
falasse a uma criana: "
Mas a mesma coisa! A no ser que ponSfjI
teares novos, tem de sair algum para tu entrlB
Pode ser que o que saia mude apenas de fbrica, iSB
no fim, algum h-de sair para no voltar. Podei
tambm que uni arranje trabalho melhor pago. M|
isso rarssimo. As mais das vezes, quem sai s<"
velhos como eu... claro que no me queixo do 7f/M
teus. Ele ruim, mas est na sua obrigao. Eu w
fazer sessenta e cinco anos e eu mesmo vejo que"
no trabalho como um homem novo... 3B
Marreta calara-se. Horcio buscava, em vo/lB
palavras de consolo que queria dizer. Nas mesas vifl
nhs, vrios operrios comiam e pairavam. E algulB
que tinham ido l para fora, voltavam esfregando V
mos. v
Tu no deves incomodar-te com isto, j te did
volveu Marreta. Antes de comeares a aprendei
j o Mateus andava com o olho em cima de mim. lB
trabalho aqui vai em cinquenta anos. Sou ainda dfl
tempo do primeiro dono da fbrica. Ests a ver se nB
sei quando os patres ou os mestres comeam a pensi
na idade do operrio e a reparar na maneira como e"l
trabalha... Se os mestres so boas pessoas, que tambna
os h, podem fingir, por algum tempo, que no dw
por nada; mas l est a fria a mostrar ao patro Owj
ao gerente o trabalho que cada tecelo faz. Como nwj
trabalhamos passagem, fcil ver... O ano passado,!
por esta poca, o Mateus achegou-se a mim, olhou!
para a teia que eu estava a tecer e disse-me de maurf
modos: "Voc ainda no acabou isso?" Ele sabia perf|
feitamente que eu ainda estava com aquele corte, ma^l
queria mostrar-me que eu j dava pouco rendimento..- 1
O meu interesse era tecer o mais possvel, est claro \ l
se no tecia mais porque no podia. A no ser que
eu no me importasse de deixar defeitos na fazenda.,
mas isso tambm me desacreditaria e ainda era pior...
Mas no foi s aquilo que o Mateus me disse. Por meias palavras, tem-me dito muitas
outras coisas, para eu rne ir convencendo de que estou velho e que j no sirvo para
isto. Tu no vs a maneira como ele olha para o que estou a fazer, quando passa pel
os teares? Desde o ano passado que ele pensa pr-me na rua, tenho a certeza disso.
De forma que no vale a pena tu ralares-te comigo. Se ainda me deixam estar aqui,
justamente por tua causa. Como o irmo dele se interessa por ti, o Mateus est espe
ra de que completes o ano, para te dar o meu lugar. Seno, j me tinham despedido e
metido outro. To certo como estarmos os dois aqui a falar...
Marreta calou-se um momento e, depois, acrescentou, com um torn mais melanclico:
uma tristeza a gente ser velho, l isso ! At temos vergonha de j no prestar para nada.
.. Mas que podes tu fazer?
Horcio continuava a no encontrar as palavras que desejava. E, no seu silncio, ia vi
sionando esses velhos invlidos que se juntavam, em dias de sol, no jardim pblico,
mal vestidos, mal alimentados, teceles, fiaiideiros, cardadores, outros profissio
nais que as fbricas despediam quando as energias deles se esgotavam. Via-os ali,
no jardim, com o Paredes a dobrar-se e a apanhar pontas de cigarros e os outros
aguardando a passagem dos camaradas que trabalhavam, na esperana de que estes lhe
s dessem uns vintns. Via-os, depois, pelas escadas dos antigos patres, de mo estend
ida esmola, e trilhando a rua onde ele prprio morava, velhos e velhas a caminho d
o Sindicato, onde recebiam os vinte escudos que mal chegavam para comer dois dia
s entre os sete que a semana tinha. E, no meio deles, via sempre a Marreta.
E vossemec de que vai viver ? perguntou,
timidamente.
O velho tecelo fez um gesto largo:
Isso depois se ver... No te preocupes com isso! Logo, com um torn mais ligeiro, co
mo se mudasse
de assunto, sem, no fundo, mudar:
314
A L E A NEVE
A L E A NEVE
315
* Ento a guerra parece que vai para o fim
A Itlia comeou a levar bordoada rija. Tens lidofiB
Horcio abanou a cabea: r*
No, no tenho lido. Mas tenho ouvido M
Pois tem levado porrada de criar bicho! B Marreta desatou a falar da guerra.
Noutras mefl
outros operrios falavam da mesma coisa. E nos M
e semanas que se seguiram, a evoluo da guerra'iB
perou sobre a ateno de todos eles. O desembariB
dos anglo-americanos na Siclia e as primeiras vitfB
dos russos haviam acendido nova f no planeta intlB
e incinerado o desnimo dos anos iniciais. E, assB
nas fbricas e nos humildes casebres da cidade qu"
ignorada do Mundo, a meia encosta da brava serra'Jj
lobos, os homens das ls iam vivendo tambm JB
angstias e as esperanas universais. Este, aquetll
aqueloutro compravam gazetas de Lisboa ou do Portj|
liam-nas e os demais quedavam a comentar os avand|
e os recuos dos exrcitos em luta. Dagoberto recW
tara, do "Primeiro de Janeiro", dois mapas coloridoOTB
hora do almoo, desdobrando-os sobre uma das mesH
do refeitrio, buscava, de indicador estendido, as cidHJ
ds onde os aliados combatiam: "Hoje, esto aqural
Amanh ou depois, com certeza chegam ali..." s vezfijB
explodiam discusses, porque uns haviam profetizad*
triunfos ou derrotas no consumados e outros, tidl
por mais espertos, a seu bel-prazer talhavam, para
tropas, caminhos de que os parceiros discordavam. MasH
acima dos seus fragores verbais e do longnquo fragor dal
batalhas, importava-lhes, sobretudo, o resultado do pr*|
lio, o mundo novo que, todos diziam, viria depois dal
guerra. n
Marreta e Joo Ribeiro eram dos que mais apre*>*
goavam, ali, essa crena. Quando eles afirmavam aquilo,
logo as discusses se interrompiam e todos emudecianl
a ouvi-los. Joo Ribeiro trazia os bolsos sempre cheios
de jornais e revistas, alguns j pudos nas dobras; e,
em abono das suas palavras, puxava por eles e lia
telegramas ou trechos de discursos oficiais onde se afir-
mava, igualmente, que, finda a grande luta, viria um mundo melhor para todos os
homens.
]VIas vir mesmo ? duvidou, um dia, Horcio.
Se at chefes de governos que so conservado-
res o dizem! respondeu Joo Ribeiro. E se eles o dizem, porque vem mesmo; porque
ningum o
pode evitar...
Na imaginao dos operrios, a era nova que se lhes prometia, se a Alemanha e a Itlia f
ossem derrotadas que se lhes prometia na imprensa, na rdio, nos parlamentos, por
toda a parte apresentava-se de forma ainda mal definida, mas em todos eles exi
stia a funda esperana de que essa era efectivamente viria. Horcio acabara, tambm, p
or se contagiar da mesma f e ela ia vinculando, dia a dia, por lenta metamorfose,
de que ele prprio no dava conta, alguns dos anseios da sua vida.
Uma madrugada de Julho, quando regressava a casa, no meio de outros homens que t
rabalhavam, como ele, no turno da noite, avistou, ao entrar na Praa da Repblica, u
m grupo de operrios que, por gestos e palavras, anunciava, a distncia, o seu jbilo.
Que seria, que no seria, mal os que estavam viram os que se aproximavam, correram
para eles, aos gritos:
O Mussolini caiu! O Mussolini caiu!
Os que chegavam das fbricas, cansados do trabalho, tardaram a acreditar.
Quem vos disse isso ?
Vrias pessoas ouviram na telefonia. Eu estava j a dormir quando aqui o Ildefonso,
que soube do caso, me foi acordar. Ento ns dois chammos os outros para lhes dar
a novidade...
Mas como caiu o Mussolini ? perguntou o Boca
Negra.
O Ildefonso adiantou-se:
L isso ainda no se sabe. Mas que ele foi tirado do governo, verdade. A B. B. C. di
sse-o e repetiu-o
muitas vezes...
Os homens abriram os braos e comearam a abraar-se. Havia sobre a cidade dos lan
ifcios um cu
3i6
A L E A NEVE
9 estrelado de Vero e os homens continuaram a gj
ar-se. i/3
Agora est por pouco! Agora falta poucofl
profetizavam um e outro. E abraavam-se de ncJ
A alegria que aquela notcia criara prolongou-se j
vrios dias. E as velhas ansiedades de redeno m
taram a florir mais fortemente, estimuladas, cadajj
mais, por essa propaganda que, emitida em todafl
lnguas e alimentada pela boca dos estadistas, and3
no prprio ar que se respirava, a garantir, sem q
canso, um mundo melhor para os que trabalhavaiM
assim que o inimigo estivesse feito em cinzas. Ml
Uma manh, Horcio perguntou a Marreta: '"
Vossemec capaz de tornar a emprestar" aqueles dois livros que me emprestou l
ogo no pifl cpo de eu o conhecer? Eu queria l-los outra veiM
No olhar do velho houve um lume de satisfa^B
Ora essa! Esto s tuas ordens! Logo, por" que concluiu a mudana das lanadeiras, Marre
ta acr"B centou: Mas, agora, tu no tens tempo para leni Ests sempre aqui metido..
. .ill
A sua voz tomara, de sbito, um torn melancMB e do seu olhar desaparecera o fulgor
de h momenaB antes. fl
para ler aos domingos explicou Horcio.
Bem. Amanh j tos trago... Marreta ia a dizer aquilo e ele a adivinhar o qdfl
Marreta pensava. Ele pensara, de repente, a mesiniB coisa: "Em breve, chegaria a
tecelo e teria tempB para ler. Marreta seria despedido..." Esta ideia surgfl agora
, constantemente, entre os dois. No carecia mesrawl de palavras ou de gestos para
nascer; apresentava-sflM por tudo e por nada, infiltrava-se nos silncios deles]!
ou ela prpria, depois de estar presente, criava siln'1! cios. f
Numa das semanas anteriores, Marreta dissera: "Qualquer destas sextas-feiras, de
pois de me pagarem a fria, pem-me na rua". Marreta nunca mais se referira quilo, co
mo se lhe fosse penoso falar do caso. Mas Horcio sentia que era verdade o que lhe
ouvira.
A LA E A NEVE
317
Mateus, que se dirigia secamente a todos, nos ltimos dias comeara a tratar Marreta
com afabilidade, como se quisesse tornar-se menos antiptico durante o acto que s
e aproximava. Se se detinha junto do tear, os seus olhos j no fixavam o trabalho d
e Marreta com a expresso fria de outrora; ao contrrio, pareciam encher-se de indul
gncia. E era, ento, Dagoberto quem lanava odientos olhares sobre Mateus. S Marreta c
ontinuava com o seu sorriso paternal, ali e hora dp almoo, quando falava da guerr
a e do mundo novo que lhe sucederia. Agora, ele afirmava:
Fico muito contente por quereres reler esses livros. No imaginas, o maior p
razer que tenho hoje...
Na manh seguinte, trouxera os dois volumes:
Todos os outros ficam tua disposio... ofereceu. Ao ouvi-lo, Horcio pensou que, viv
endo Marreta na Aldeia do Carvalho, ele deixaria de o ver frequentemente, desde
que o despedissem. Mas j o velho tecelo dizia:
Mesmo depois, se quiseres, posso mandar-tos por um camarada...
Aquele "depois" comoveu Horcio. Ele afastou-se de Marreta e andou em volta da mqui
na, at junto do rgo; volveu, em seguida, e louvou intimamente o fio que se partira
e lhe permitia estender os braos para at-lo, para fazer qualquer coisa...
Desde essa manh os dias foram decorrendo, para eles dois, cada vez mais penosamen
te. Marreta parecia resignado, mas Horcio adivinhava que ele, embora no o exterior
izasse, estava atento a todos os pormenores que podiam relacionar-se com a sua s
ituao. Uma tarde, perguntou:
J fez um ano que comeaste a aprender, no verdade ?
Fez anteontem...
Sim, deve andar por a... J estou admirado como tarda...
Arremessadas por metdicas pancadas secas, as lanadeiras passavam vertiginosamente
de um lado para o outro, como se passassem no atravs da teia, mas
i
3i8
LA E A NEVE
atravs dos olhos de Horco; e depois iam-se li<j
* fazendo, porque nos olhos haviam rebentado lgriu
No quero! gritou Horcio, torturado...Ji fico aqui! 3
No sejas tolo... Viria outro, j te disse.M Marreta tornou mais doce a sua voz:
Desculpa-mj Eu que sou o culpado, pois no devia estar a faj disto. Mas, s vezes,
esqueo-me e fao-te mal, s" querer... /l
4
>l Efectivamente, naquela sexta-feira, depois do a
moo, Mateus parou, um momento, junto do tear, d|
amveis "Boas tardes" e continuou andando at o S
da coxia. Voltou pelo mesmo lado, sempre em pass
vagaroso e no olhando para as mquinas, como -em
seu costume, mas para o cho. Deteve-se, outra v
junto de Marreta e disse-lhe rapidamente, como ij
tivesse p_ena de descarregar-se da obrigao: J
Voc est cansado, est quase no limite da idadi
e o melhor reformar-se. Eu c por mim custa-BM
dizer-lhe isto, mas so ordens. Voc deve ir ao mdii
da Caixa Sindical, para que lhe passe o atestado a
invalidez e voc poder receber o subsdio... No >]
muito: so apenas vinte escudos por semana, mas
melhor do que nada...
;j
f MBORA tecelo feito e com a sua fria acrescen-;
"^ tada, todas as semanas, pela da mulher, ao fim ] de um ano Horcio no se remira
ainda, integralmente, da dvida ao Valadares. Os industriais haviam aumentado, fin
almente, os salrios, mas o custo da vida subia sem parana, agravando-se sempre a d
esigualdade entre o que se recebia e o que se era forado a pagar.
Horcio barafustava e desconsolava-se tanto quando
A LA E A NEVE
319
falava daquilo, que Idalina, reprimindo os seus prprios enervamentos, procurava
conform-lo:
Ns ainda temos muita sorte. Somos s dois e, melhor ou pior, l vamos passando. No for
ramos duzentos escudos por ms, como tu queres, mas forramos sessenta ou oitenta..
. O ms passado, forrmos cem. Agora, essas famlias que h para a...
Ele interrompia, sarcstico:
Forrmos cem! Tirmo-los ao corpo, que ! No gastamos um vintm que no seja preciso. No
os a divertimentos, no comemos o que queremos, no fazemos nenhuma extravagncia nad
a!
Idalina, mesmo quando pensava como ele, insistia em apazigu-lo:
Est bem, homem! Mas os outros passam pior ainda do que ns. Tu s tecelo e no temos fil
hos. Quase todos os outros ganham ainda menos do que tu e esto carregados de famli
a. Carregados de famlia e com tudo no prego. Ao passo que ns no temos nada empenha
do. E se no fora o dinheiro que deste ao Marreta e aquele tempo em que houve s qua
tro dias de trabalho por semana, j tinhas acabado de pagar ao Valadares...
O dinheiro que dei ao Marreta! Vinte e cinco escudos, a grande fortuna! E isso
de quatro dias por semana, pode acontecer muitas vezes... Todos dizem que antiga
mente era o po de cada dia.
No digo que no... No sei... Mas os outros tambm trabalharo ento s quatro dias e tm
tas bocas a comer...
Ele calava-se, admitindo, de mau humor, que a mulher tinha razo. "Sim, l filhos a
sustentar no tinham eles, graas a Deus".
Essa situao durou, contudo, pouco tempo. Uma manh, quando ele ia a levantar-se da c
ama, Idalina disse-lhe:
Ando desconfiada... J h dias que ando desconfiada...
Desconfiada de qu ? perguntou, alarmado. Ela no respondeu e ele no insistiu.
320
A L E A
NEVE
Era o que faltava agora...murmurou, GR
* dentes. ,j
Mas tu dizias que gostavas muito de cria as... -g
Gostava e gosto! Mas no assim... jj. A semana decorrera-lhe inquietamente e, por j
j
ele tivera de aceitar aquela ideia, que tanto o etif
dava. . j
No domingo de manh, sentara-se mesita de pinj
e lanara-se a fazer contas. De quando em quanffl
detinha-se, com a ponta do lpis metida na boca &J
olhos fixos na parede; depois voltava a riscar o papi
Idalina preparava o almoo, de costas para ele. A cej
altura, ouviu-o dizer: dl
O dinheiro que falta pagar ao Valadares ainal devemos arranj-lo... Mas mais nada.
!
Idalina voltou-se: m
O que dizes? No entendo... M
Digo que no podemos pensar mais na casa Agora, com um filho, vai-se tudo. T
u j no podj" trabalhar tanto e sempre h mais despesas... m
Ora essa! E os que tm cinco e seis ? ::
Tm cinco e seis, mas no tm casa sua... Estiw
a ver... Est aqui, no papel. Mesmo que as coisas dfl
comer e de vestir no subam mais, mesmo que nijB
haja nenhuma doena, depois de termos um filho, sjm
economizarmos dez ou vinte escudos por ms j/M
uma sorte. E com o preo que tm hoje os terreno"
e os materiais de construo, nem no fim de vidjB
tnhamos juntado o suficiente para fazer a casa. HB
muitos dias que ando a pensar nisto. Desde que tu"
me disseste aquilo...
Era a primeira vez que ele lhe expunha, assim B
concretamente, as suas desesperanas sobre a casa; a
primeira vez em que no procurava ocultar-lhe o seu
desgosto e em que sentia at uma vaga, uma inde- l
finida volpia de faz-la sofrer tambm. I
O instinto de Idalina captava esse estado de esp- l
rito dele, pressentindo, no fundo das suas palavras, l
algo que era contra ela ou contra o filho que ela levava J|
A LA E A NEVE
321
no ventre. E vinha-lhe, ento, o desejo de reagir, de convencer do contrrio o marid
o, de se defender:
Ora! Ora! A vida d muitas voltas! Quem sabe l o que vai acontecer? Antes da guer
ra as coisas eram mais baratas e podem voltar mesma, assim que a guerra acabar.
Tambm j estive a ver isso objectou ele, soturnamente. A ver quanto se ganh
ava antes da guerra e quanto as coisas custavam ento. As contas esto aqui... Est t
udo na proporo. Um operrio ganhava roda de dez escudos. S alguns teceles de primeira
categoria iam at dezasseis. vida era mais barata, no h dvida, mas tambm os salrios
am mais pequenos. A prova que os operrios no faziam casas para eles. Viviam nas m
esmas em que vivem agora... Eu, s vezes, pensava nisto, mas como o que eu queria
era chegar a operrio, no dava grande ateno. Eu pensava que os outros no eram econmicos
, que gastavam dinheiro em vinho, em cafs e noutras coisas que no eram precisas. O
Manuel Peixoto, quando andvamos na serra, todos os dias me dizia que os operrios
eram uns relaxados. E, alguns que eu conhecia, eram relaxados, no h dvida. Por essa
s coisas todas, eu julgava que se um homem fosse econmico, podia, s com o seu trab
alho, levantar cabea. Mas, agora, vejo que no. S com o salrio no se pode fazer nada.
Tu at deixaste de comprar vinho e eu, hoje, fumo menos cigarros do que quando er
a pastor. E, afinal, o que se v...
A culpa no minha justificou-se Idalina. Eu fao o que posso...
Ele exaltou-se:
- Quem te est a deitar a culpa ? Nunca sabes ficar calada!
Levantou-se e rasgou, nervosamente, o papel em que rabiscara algarismos.
Desde esse dia sentiu que algo alura dentro dele, algo que vinha fraquejando h alg
um tempo j e desmoralizando-o nas ambies, na sua prpria fora de vontade. A ideia de p
erseverana, de vida regrada e
11 Vol. Ill
322
A L E A NEVE
dirigida para um s objectivo, deixava-lhe, muitas v|
* uma sensao de inutilidade. n
Comeara a no contar os cigarros um de mail
dois tarde e dois noite como fazia at a. Sei
menos desejo de estar em casa, sentia-se saturada
casa e mesmo da companhia da mulher. Parecia!
que tinha a vida inteira para estar ali, sempre!
mesmo casebre obscuro e sempre ao lado de Id|
e isso impelia-o para fora e para outras cell
vencias. li
Muitos dias, ao volver da fbrica, dirigia-se dm
tamente ao Pelourinho e s noite aparecia em cm
hora de comer. Tornava a sair e, como se dec$j
a mandar fazer duas chaves da porta, s vezes IdaJI
j dormia quando ele regressava. Um dia, ela ($
xara-se: fw
Nunca ests comigo... Parece que j no goa de mini... r 4
No nada disso. Tenho outras coisas... 4| um homem precisa de saber o que vai pelo
MurreB E no aqui, metido em casa, que eu sei... :'ji
Ele dissera aquilo apenas para se desculpar, mi|
depois, pensara que, alm de tudo o mais, tamWB
aquilo era verdade, que era tambm por aquilo <$V
ele passava muito tempo fora de casa. E que, se dfflj
xasse de o fazer, seria mais infeliz, pois custava-lHB
agora, viver sem ouvir falar de guerra. Tinham-se dadll
h pouco, a invaso da Normandia e grandes avani|
a leste e isso galvanizara, de novo, os operriol|
Quase todos eles se haviam tornado combatentes meil
tais e, cada vez com maior paixo, comentavam >j
luta sempre que estavam juntos, j no s hora dol
almoo e da sada das fbricas, mas tambm tardel
no Pelourinho, e noite nas esquinas e nos Cafs!
proletrios da cidade. J
Era no "Joo Leito" que Horcio, depois de jarP j
tar, se reunia com o Dagoberto, o Ildefonso, o Boca l
Negra e outros mais. Algumas vezes Pedro ia tambm l
ali. Dagoberto trazia, quase sempre, um novo mapa J
o ltimo publicado pelo "Primeiro de Janeiro". E, en- j
A LA E A NEVE
323
to todos se vergavam sobre os nomes de cidades e regies que haviam sido conquistad
as ou onde se peleiava, nomes que eles no sabiam mesmo pronunciar, e iam acompanh
ando, pelas notcias de cada dia, a marcha dos exrcitos conjugados, como se acompan
hassem a marcha das suas prprias esperanas.
Pedro era o nico que levantava grandes disputas, sobretudo com o Ildefonso. Ele i
nteressava-se pelos acontecimentos a que os jornais se referiam, mas mostrava-se
cptico sobre os resultados que os companheiros aguardavam. E, algumas noites, re
tirava-se antes dos demais, melindrado com o que Ildefonso lhe havia dito enquan
to discutiam. Ento, os outros tambm maldiziam de Pedro, afirmando que ele manifest
ara sempre tendncias burguesas, talvez por julgar que o pai lhe deixaria uma hera
na. E logo voltavam ao mapa ao mundo que eles esperavam ver desenhar-se, um dia,
sobre o mapa.
Alguns domingos, em vez de ir passar a tarde ali ou no Pelourinho, Horcio caminha
va at a Aldeia do Carvalho, a visitar Marreta. Mais do que a amizade, impelia-o o
desejo de ouvir o antigo tecelo dizer as suas palavras de crena no futuro, aquela
s palavras de que ele, agora, carecia como de um alento para a vida. Continuava
a considerar Marreta mais inteligente e sabedor do que os outros e aquilo, dito
por ele, parecia-lhe mais digno de f do que escutado aos operrios da Covilh.
Contudo, dessas visitas trazia sempre um amargor mesclado confiana nos dias vindo
iros que o velho lhe insuflava. Marreta nunca falava de si prprio e, se algum se r
eferia sua situao, ele afirmava que no tinha dificuldades que os vinte escudos sem
anais lhe chegavam para a renda da casa e para as batatas. Ningum o acreditava e
toda a vizinhana sabia que ele passara a comer uma s vez por dia e que, em alguns
dias, no acendia sequer o lume, alimentando-se com duas ou trs batatas cozidas na
vspera. Joo Ribeiro, Tramagal, Belchior e um ou outro camarada mais dedicado procu
ravam auxili-lo, mas ele teimava
324
A L E
A NEVE
* em recusar aquilo que eles teimavam em faz-lo ace
Que no, que no precisava; os outros tinham faia
e mais preciso do que ele. No domingo em que Ru
cio lhe levara cinquenta escudos, ele no quisera i|
b-los. Horcio, ao partir, deixara-os, escondidos, >\
um prato; mas, no domingo seguinte, ele devolvi
-lhos e s depois de muito instado aceitara ficar q
metade. i|
Emagrecera mais do que j era e os seus dois cH
tes isolados dir-se-ia terem crescido na boca chupai
Nunca mais falara da sua correspondncia com esl
rantistas estrangeiros e, uma vez que Horcio aludi
ao caso, ele soltara um rpido "deixei-me disso" e m
ter logo a outro assunto. Jl
Um domingo, ao chegar ali, Horcio encontrou!
casa fechada. Bateu uma, duas, trs vezes e rjj
gum veio abrir. Era, de novo, Inverno, as ruas eSB
vam cheias de lama e desertas, porque comeaval
cair uma molinha incmoda. Horcio bateu de now
S a ribeira, l ao fundo, lhe respondeu com sal
regougos nos penedais por onde se despenhava. Dep
Horcio ouviu ranger uma porta. Voltou-se e deu COT
a caratula da tia Lucrcia, vizinha de Marreta. *>J
Ele j deixou a casa informou a velha. MJ para o Albergue. m
Foi para o Albergue ? repetiu Horcio, sum preendido. '-m
Foi; foi ontem. E a velha, a tremer com m frio, tornou a fechar a sua porta. l
Sob a chuva, Horcio pensou em refugiar-se riSI
casa de Ricardo e l colher pormenores da partidll
de Marreta. Mas logo desistiu, perante a ideia de qUil
ficaria ainda mais triste se visse a misria em qoSR
Ricardo e a sua famlia ultimamente viviam. Ps-s j
a correr para casa de Tramagal. A chuva aumentara i
e, aqui e ali, por detrs dos janelicos da aldeia, lobrP ,
gavam-se rostos de crianas colados aos vidros, na j
monotonia do domingo invernoso.
Tramagal estava de serrote metido a uma tbua quando Horcio entrou:
A L E A NEVE
325
Ol! Vens de casa do Marreta ? Horcio queixou-se:
Venho... Voc no me tinha dito nada... Nem voc, nem ningum...
Ao contrrio do seu feitio, Tramagal mostrava-se sbrio de gestos e de palavras:
Tambm eu no sabia. S ontem, depois de voltar do trabalho, mo disseram. Pelo visto,
o Marreta no queria que ningum soubesse do caso antes de ele sair daqui. Parece qu
e ele pediu para entrar no Albergue logo que o despediram da fbrica, mas esteve t
odo este tempo espera de vaga... Anda, senta-te!
Horcio sentou-se. Os dois homens ficaram, um momento, silenciosos. L fora a chuva
prosseguia.
Mas ele andava sempre a dizer mal do Albergue: que aquilo no prestava para nada e
que at eram mal empregados os cinco tostes que ns dvamos, por semana, para l...
Pois ...murmurou Tramagal. isso que me custa... Ele no foi para l porque gostasse
daquilo... Ele no podia at ouvir falar do Albergue... por isso que eu, hoje, no ti
ve coragem de ir l v-lo...
Horcio examinou o seu relgio.
Eu gostava de dar l uma saltada... Mas j tarde. Chega e no chega, faz-se noite...
Vamos os dois no domingo que vem. Quando penso no caso, at parece que sinto uma
coisa a arranhar-me c por dentro! disse Tramagal, levantando-se. E, caminhando p
ara a porta, abriu-a totalmente e ps-se a respirar o ar hmido de l de fora, enqua-n
to a. chuva caa diante dos seus olhos.
Vetusto casaro, com uma esplanadazita em frente,
0 Albergue dos Invlidos do Trabalho erguia-se no rneio de outras casas velhas da
cidade. Horcio conhecia-o exteriormente, por haver passado algumas vezes ali, mas
nunca se detivera no seu limiar. Agora, ao
326
A L E
A NEVE
f premir a campainha, a mo tremia-lhe. A prnd
ele no ouviu coisa alguma. Depois, soaram uns pj|
que vinham de longe, aproximando-se vagarosanai
e a porta abriu-se. $
Horcio viu, ento, na sua frente, uma freira "jj
rentona, de alto chapu engomado e faces nil
brancas: 4
Boa tarde... saudou com uma voz ao me^ tempo pastosa e doce. Que deseja ? l
Eu queria falar ao Jos Nogueira... A um a chamam Marreta... |
A freira hesitou e, puxando do seu hbito um O do, examinou o relgio que na extremida
de destfej amarrava: M
Ainda no hora de visitas... disse.l
tam dez minutos... Tornou a hesitar e decidiu-segi
Bem, j que est aqui, entre! ia
Horcio encontrou-se numa espcie de velho p
ao fundo do qual uma escada subia para o primdl
andar. m
Espere aqui, que eu you cham-lo. t
Mal a freira desapareceu, Horcio ouviu uma nj
que rompia, de sbito, o silncio do edifcio, cantand
nervosamente, uma cantiga que nunca se conclua, qw|
ficava sempre nos primeiros versos nos primeiros ve
ss sempre repetidos. A voz ora se calava, ora vohnj
a cantar, s vezes, com frenesi, com um torn raivosa
de quem houvesse fincado o p sobre o cadver de um
inimigo vencido. Os desvairados estrdulos cada vai
soavam mais perto, mais perto cada vez, e, somaflH
do-se emoo que Horcio trazia, produziam-lhe crSM
cente mal-estar. Por fim, a voz emudecera. Mas unI
outro rudo atraiu os olhos de Horcio para o cirnol
da escada. Desgrenhada rapariga surgira ali e contem-1
plava-o com alucinada expresso. Quedara-se um mo-1
mento parada e, em seguida, fugira, soltando um grito, j
De longe, chegou at Horcio outra voz de mulherg" l
que admoestava: .
Eu no lhe disse j, menina, que no sasse do J corredor ?
A LA E A NEVE
327
Houve novo silncio e, depois, a freira voltou a aparecer. Na penumbra do ptio, a b
rancura dos seus hbitos quase anulava a outra figura que ao lado dela vinha. Era
um homem metido numa fardeta coada, que sorria a Horcio, ternamente. O velho dlman
e a cala remendada, mui cingidos ao corpo, ainda amesquinhavam mais o vulto. Horci
o identificou-o pelo sorriso.
Tio Marreta... Ento? Queria dizer mais, mas no podia. As palavras ficavam-lhe na
garganta, como pedras que a obstrussem.
Marreta abraara-se a ele:
Ento, meu rapaz? Ento... como vais? Tinha lgrimas nos olhos e tambm dificuldade em
falar.
Estiveram assim alguns momentos e, depois, Marreta disse:
Folgo muito em ver-te...
Mas no era nada daquilo que ele desejava dizer. Ambos sentiam que a presena da fre
ira os perturbava. Marreta passou as costas das mos nos olhos, voltou-se e pediu:
A irm d licena que v com este amigo l para dentro?
A freira inclinou a cabea.
Alguns passos feitos e os dois encontraram-se num obscuro corredor, logo numa ga
leria que neste entroncava. Agora, para onde quer que ele volvesse os olhos, Horc
io via figuras de velhos velhos por toda a parte. Uns coxeavam sua frente, outr
os arrastavam-se sobre o lajedo, apoiando-se a bengalas. Aqui estava um grupo se
ntado e emudecido; alm, um homem solitrio, que roa as unhas e olhava para ele. Algu
ns, mais audaciosos, saam-lhe ao caminho e pediam:
Tem um cigarrinho c para o velhote ?
Da banda de trs, o Albergue dos Invlidos do Trabalho lanava duas alas sobre umas te
rritas cultivadas. Nestas andava, de um lado para o outro, semPre no mesmo trilh
o, como animal nocturno, e sempre de olhos no cho, outro velho que falava sozinho
e
328
A L E
A NEVE
* gesticulava incessantemente para um interlocutor ift
svel. De quando em quando, detinha-se, escarr^
fazia gestos mais bruscos e depois tornava a ir eijf
nava a vir, todo entregue quela intrmina discu$
com o seu fantasma, quele infindo monlogo con$|
prprio. .jjj
Do lado de l da horta havia outras galerias^
trrea e a do primeiro piso, lembrando um trecho^
pobre claustro. Tambm nelas Horcio divisava num
rosos invlidos, uns esqulidos, vergados e complejj
mente calvos, outros com umas farripas brancas pj
cima das orelhas. Num deles Horcio reconheceu!
Paredes, que se mostrava de perfil, falando com own
velho. J
Podemos ficar aqui disse Marreta. l
Encontravam-se no extremo da galeria e, em frerB
erguiam-se, nico osis para os olhos, duas laranjefl
com o seu verde picado pelo oiro dos frutos. >m
Horcio sentou-se num pequeno banco, ao lado m
Marreta: J
Que ideia a sua de vir para c! E sem pr"
nir ningum! Quando soube, no domingo passado, till
um grande desgosto... m
Marreta no respondeu logo. Colocou as rrjos sobjjl
os joelhos e ficou-se, um momento, a olhar para ela"
Que ia eu fazer ? murmurou, depois. Os cm maradas vivem com dificuldades e est
avam a sacriM car-se por minha causa...
Ora! Ora! Vossemec no queria aceitar nadaj E um pouco a cada um no custava. J
Eu no queria aceitar, mas ia aceitando. E, urj dia, os camaradas acabavam por se
cansar. Coitadosjj Tomaram eles ganhar para a famlia que tm... J
A voz da louca voltou a descer do primeiro andar"!
Era a mesma cantiga de h pouco os mesmos versos I
sempre iguais. Logo, porm, se calou. l
Marreta deu uma leve palmada na perna de Ho- f
rcio: J
Agradeo-te, mas no te aflijas comigo! Aqui i
no se est to mal como eu pensava... No se pode |
A L E A NEVE
329
dizer que seja um paraso, mas vai-se vivendo. A princpio, pode custar... Depois, a
gente acostuma-se. Eu, daqui a pouco, estou acostumado, tenho a certeza... A de
svairada cantiga tornou a reboar do piso superior. E parecia meter-se por todas
as frinchas, cobrir os dilogos de todos os velhos, traspassar e estarrecer o edifc
io inteiro.
isto que mais me custa confessou Marreta. Mas tambm eu me hei-de habituar...
Ento aqui h loucos ?
H alguns... No tm onde os meter e esto para a... No digo que estejam doidos de todo,
mas faz impresso olhar para eles. A alguns conheci-os eu quando ainda trabalhavam
nas fbricas e, agora, custa-me v-los assim, com o juzo perdido. Essa rapariga a qu
e est pior. D pena, porque no tem ainda vinte anos...
Marreta calou-se e, l em cima, a louca calara-se tambm. Horcio disse:
Eu queria trazer alguma coisa para si, mas no sabia bem o que havia de ser... Com
o vossemec no fuma e, alm disso, vegetariano... Mas diga-me o que que mais falta lh
e faz, que eu, no domingo que vem, trago-lhe.
No preciso de nada. No te incomodes. Marreta vacilou um instante e acrescentou:
O que eu desejo que o frio passe. Estas terras do Albergue so tratadas por ns e eu
gosto muito de tratar de terras. Logo que o frio abrande, eu irei cuidar
da horta e j me entretenho.
Horcio voltou a insistir. De alguma coisa ele devia precisar, tinha a certeza. To
da a gente garantia que a vida do Albergue era m e ele prprio, Marreta, lhe tinha
dito, muitas vezes, a mesma coisa, quando falava dos invlidos. E se agora dizia o
contrrio, era com a ]deia de no o incomodar, mas estivesse certo de que no o incom
odava nada.
Marreta baixou os olhos:
Bem, j que teimas, quando voltares c traz-me dois selos para o estrangeiro. E umas
folhas de papel
330
A L E A NEVE
de carta... Devo resposta a uns esperantistas da AM
tir e no tenho podido escrever-lhes...A vo2
Marreta comeara a enternecer-se, mas ele levantai
e perguntou, com outro torn: J viste istojy
qui ? J
Do extremo da galeria abrangia-se, para baixttf
terras do Albergue, as vertentes da ribeira DegdH
e as vrias fbricas de lanifcios que, nas suas nal
gens, se erguiam. Mais alm, na encosta da serra, ju
travam-se longos aglomerados de pinheiros e urna^f
outra ferida branca de pedreira. Marreta estendeis
brao e indicou ao longe: ,j|
Acol, uma vez, encontrei um lobo. Eu airj
era pequeno e vinha de Cortes do Meio. Foi h mui3
anos... Quase todas aquelas casas que se vem daql
ainda no existiam... M
A sua voz tornava a comover-se. Ele queria reagi
mas a voz humedecia-se sempre daquela comoo: J
Nasci cedo de mais... Tu que ests em n|
idade. Tens muitas mudanas para ver, quando J
guerra acabar... "m
No comeo da galeria surgira o velho Paredes, agal
rado sua bengala: >9
Olha o Horcio! Olha o Horcio! ;m Tinha um sorriso pateta, desdentado. Horcio dei"
-lhe os dois cigarros que lhe restavam: 3]
No sabia que vossemec tinha vindo, tambH| para c... ;M
Pois vim... Desde que me morreu a mulher.>m Que ia eu fazer? Mas de quem tenho p
ena aqui doa nosso Marreta. Eu sou um pobre-diabo; no valhqj nada... Mas e
le... Custa-me l L isso custa-me! f l
Marreta interveio: -, J
Cale-se, homem I Deixe-se de tolices! r l
Ouviram-se novos passos no lajedo. E uma voz l
grossa, que Horcio conhecia. Tramagal e Joo Ribeiro i
avanavam na galeria. A freira que os guiava rei- i
rou-se e Tramagal abriu os braos: J
D c esses ossos, meu velho! No h direito l
de sair assim calado, que nem um rato! Por tua causa, f
A L E A NEVE 33!
u at ia serrando um dedo... Olha! E mostrava o indicador envolto num trapo branc
o.
Pouco depois, Tramagal e Joo Ribeiro faziam as mesmas perguntas e ofertas que Horc
io fizera e Marreta repetia as mesmas escusas e explicaes que havia dado momentos
antes. Paredes interrompeu-o:
O que ele precisa de um cobertor...
O qu ?! exclamou Tramagal. Ento ele no tem cobertores ?
Tenho... Tenho... declarou Marreta.
Tem dois, mas no chegam. Eu tenho trs e, mesmo assim, com este tempo, sinto frio.
Quanto mais ele! Ainda a noite passada eu vi-o a tremer na cama, l no nosso dorm
itrio.
Marreta ia a falar, mas j Tramagal enchia tudo com a sua indignao:
Parece impossvel! Um homem que trabalhou toda a vida com ls, para os outros, no
ter um cobertor quando chega a velho! Onde est essa superiora, que eu you cantar-
lhe das boas! No faltava mais nada!
Os outros invlidos, que se encontravam sentados nas galerias, voltaram-se todos p
erante o vozeiro de Tramagal. Marreta conseguiu, por fim, interromp-lo:
A superiora no tem culpa. Ela at mostra boa vontade... Mas o Albergue tem
poucos rendimentos. Os operrios pagam cinco tostes por semana e, com os salrios
que tm, no podero pagar muito mais. De vez em quando, as freiras fazem um peditrio
, mas, mesmo assim, no arranjam dinheiro que chegue, pois se alguns ricos do qualq
uer coisa, outros no do coisa nenhuma... De maneira que no vale a pena dizeres nad
a superiora... Ainda se fosse s eu! Mas h muitos mais assim...
Todos ficaram, um momento, calados e, depois, Joo Ribeiro perguntou:
E os cobertores que tu tinhas... l em casa?
Bem... Muitas vezes tenho pensado nisso... Mas eu tinha feito umas dividazitas e
, antes de vir para c, vendi-os, para pagar... Vendi tudo...
Tramagal afirmou, sombriamente:
332
A L E A
NEVE
1
Amanh j ters um cobertor. E j podias U
* mandado dizer que te faltava... !>1
No quero! Onde tens tu dinheiro para fazeil assim, de p para a mo, uma despesa dess
as ? J
No h-de ser s o Tramagal a pag-lo...jJ disse Joo Ribeiro. -,jj
Amanh ters um cobertor repetiu Tramagl E vamos c a saber: a paparoca ? -J
Paredes ia a responder por Marreta, quando esi
o deteve com um olhar um olhar que fez surdir, im
boca do outro velho, um sorriso resignado, em vez dm
palavras que ele se propusera dizer. m
Tramagal comentou: >|B
No presta para nada, est visto! M
A comida boa...corrigiu Marreta. DepoM
perante o admirado olhar de Paredes, acrescentou, hesB
tante:A comida no mal feita... Nos quartel"
fazem-na muito pior... Talvez os velhotes comesseoM
mais, se lha dessem... Alguns tm bom apetite, coit^M
dos!... Aqui o tio Paredes, por exemplo... Mas quei^l
vem para aqui j sabe o que estas coisas so... AgorajJ
c por mim, vocs no estejam a preocupar-se, que eaB
no passo necessidades. Como sou vegetariano, corfH
pouco me arranjo. Nos primeiros dias ainda tive ajB
umas dificuldades. Mas, depois, falei superiora e agorafH
fazem, para mim, uma panela parte, com batatas-H
e couves. Ontem, deram-me cenouras, coisa que eu jjB
no comia h tempos. Souberam-me muito bem. V
Mais uma vez a louca desatara a cantar. Alguns B
dos velhos olharam para cima, como se lhes fosse ps--H
svel ver a figura dela atravs do tecto. Logo voltaram 8
aos seus lentos dilogos ou quela modorra a que se m
entregavam, de cabea vergada, as plpebras cerradas,
as mos postas sobre o ventre.
Tramagal olhou em seu redor:
Ainda assim, h, aqui, muita velhada... disse.
E voltando-se para Horcio: O que me d raiva B
pensar que nenhum destes gajos fez o que quis na vida.' fl
Horcio tornou a entristecer de repente. Fechou B
os olhos para no ver os velhos, mas continuava a ver f
A L E A NEVE
333
velhos dentro dos seus olhos, os velhos e a casita
ele sonhara a desenhar-se agora sobre os velhos
0S VelUU" UC11LU V_l.<_>0 OV-UO V.LUVSO, x,o ,^.1+j
L^ ~ ~
que ele sonhara a desenhar-se agora sobre os velhos e ele velho tambm, ali, no Al
bergue, entre os outros velhos. Sentiu, de sbito, uma nsia enorme de sair dali, de
deixar Marreta, de ir l para fora, para o Pelourinho, para algures, onde no visse
nem os velhos nem o Albergue. Mas j Tramagal chalaceava e ria forte, procurando
espairecer a Marreta, nos olhos do qual ele adivinhava, tambm, uma nuvem de trist
eza.
Quedaram-se ali at as quatro da tarde. Quando se despediam, Marreta puxou Horcio p
ara uma banda e murmurou-lhe:
Estive a pensar nisso das cartas e como, agora, com a guerra, elas demoram muito
a chegar e, s vezes, vo mesmo para o fundo do mar, o melhor eu deix-las para mais
tarde... Assim, em vez de trazeres os selos que eu te tinha pedido, traz um boca
do de queijo para o Paredes comer. Eu sei que ele gosta muito de queijo, pois ai
nda anteontem mo disse.
VI
(j filho de Horcio nasceu com bom tempo. Nas encostas vizinhas da cidade, os cast
anheiros sobreviventes dos grandes soutos pretritos mostravam, de novo, as suas c
opas lustrosas de um verde mui vivo de Primavera. No jardim pblico, as tlias apres
entavam-se, tambm, exuberantes de folhagem, enquanto as roseiras de trepar haviam
j florido sob as varandas das casas ricas. Das povoaes serranas, os rebanhos comeav
am a subir para os cumes, ento como h cem, h duzentos, h mil anos, e iam devorando a
s flores silvestres que rompiam de todas as bandas, pulcras e humildes. Nas Penh
as da Sade e na Nave de Santo Antnio, os amadores de esqui tinham dado o seu lugar
aos pastores. E no mesmo stio onde, no Inverno, soavam gargalhadas de moos e moas
ele-
334
A L E A NEVE
I
gantes, nas suas quedas, corridas e volteios sobid
* neve, o silncio das alturas s era quebrado agora ,a
melancolia humana de alguma cano de pegurj
Na Covilh, quando, a horas matinais, os opera
saam de casa para as fbricas, j encontravam,?!
caminho, um sol lmpido que cobria a cidade e a $m
e parecia encher a serra e o Mundo todo de paaa
a paz doce, luminosa, perfumada, cromtica, com <n
nesses dias primaveris, a natureza realizava, em sila
cio, a sua obra de criao. Era uma paz que dir-sel
segregada pelas prprias ervas, plantas e arbusj
pelas prprias fragas hirsutas e s por esforo do cem
bro se concebia que no fosse universal o domnio qji
ela exercia ali, nos pendores da montanha agora revm
decides. m
Contudo, l longe, a guerra, acercando-se mu|
embora do seu bito, no morrera ainda. E ali mesMB
a harmonia s tinha existncia entre os vegetaisB
minerais da serra e no na alma dos homens. Os opfl
rrios entravam nas fbricas j excitados e trabaluB
vam ansiosos pela hora da sada, que lhes permitJI
conhecer as ltimas novas da peleja. Berlim agonizava]
Sitiada e fuzilada de todas as bandas, ferida a todoB
os instantes por bombas e granadas, a cidadela arrdiB
gante ia cedendo hoje um passo, amanh dois, cada
vez mais vermelha de sangue, mais dbil e encolhidffl
sob o retumbar incessante do ferro e do fogo. M
A irm de Dagoberto, quando vinha trazer-lhe <|I
almoo fbrica, trazia-lhe, tambm, o ltimo jorna
chegado de Lisboa ou do Porto. Em volta da gazet"l
formava-se copioso grupo e as bocas iam mastigandcM
o seu po enquanto os ouvidos escutavam, atentos, xm
leitura que Dagoberto fazia, tambm de boca cheia.1
Mas era tarde e noite, no Pelourinho e nos encon-*
tros de rua, que eles se apossavam das mais recentes
notcias, propaladas por um ou outro habitante da
cidade, que as colhera nos aparelhos de radiofonia. m
Hitler morrera. Os russos haviam chegado beira da -l
Chancelaria do Reich. O almirante Doenitz formara m
novo governo, longe da capital. E j ningum fixava f|
A LA E A NEVE
335
os nomes das cidades que americanos, ingleses, russos e franceses ocupavam nesse
s derradeiros dias de batalha.
O ms de Maio comeara e nos castanheiros da colina de Santo Antnio surgiam os primei
ros laivos amarelos da sua prxima florao. Na Praa da Repblica, as tlias preparavam-se
igualmente para florir e encher o jardim com o seu gordo aroma.
H j semanas se aguardavam, ansiosamente, pa,lavras anunciadoras de que a guerra te
rminara e a paz volvera tambm s terras da Alemanha. Por fim, essas palavras vieram
e, ento, nas aldeias os sinos repicaram e cortejos festivos percorreram vilas e
cidades.
A guerra terminara, mas a coincidncia que se havia previsto para o seu fim no se d
era e um vcuo se abrira, mais uma vez, nas esperanas dos homens que trabalhavam na
s fbricas. Era como se mos invisveis houvessem cavado, repentinamente, um fosso na
estrada que eles trilhavam. Os aparelhos de rdio e os jornais j no se referiam a um
mundo novo para todos os homens. Agora, os estadistas tratavam de outros proble
mas.
Uma noite, no "Caf Leito", Ildefonso procurou justificar-se perante os companheiro
s e perante ele prprio da f que andara espalhando durante tanto tempo:
Ainda cedo para se deixar de acreditar... disse. Ainda est tudo muito embrulhado
...
Pedro sorria, sarcstico. Os outros operrios viam aquele sorriso e irritavam-se. Ta
mbm eles, agora, acreditavam menos nas palavras de Ildefonso do que meses antes.
Mas o sorriso escarninho de Pedro parecia-lhes uma ofensa a todos eles, a algo q
ue possua mesmo mais fora do que eles.
Pedro vangloriava-se:
Um mundo melhor l... Quem tinha razo ? Eu no dizia que o tal mundo no viria
? Eram tudo lerias! E vocs, uns palermas, que acreditavam nisso!
Ildefonso levantou-se bruscamente e fez o movimento de retirar-se. Mal deu, porm,
dois passos entre as mesas, no pde conter-se e voltou-se:
336
A L E A NEVE
f Palerma s tu, compreendes ?
Pedro olhou-o, surpreendido por aquela reacj
Depois respondeu com voz cortante: JJ
Aprendi contigo... s
Palavra atrs de palavra, o nada tornara-se, l
repente, muito. Boca Negra agarrou-se a Ildefonso, <1
momento em que ele ia levantar os braos. Os oura
operrios cercaram Pedro, que se havia erguido, taa
bem, da mesa: j
Vai-te embora... melhor que te vs embora*
disseram-lhe, rudemente. E as vozes de todos paflj ciam solidarizar-se numa ameaa
contra ele. <3J
Boca Negra e Horcio saram, levando Ildefonsi
E, desde essa noite, os homens evitavam falar daquili
Mas os dilogos acabavam sempre por se aproxima
daquilo. Ento, um ou outro, tinha um sorriso seal
e triste. J
No domingo, Horcio foi visitar Marreta, que havil
adoecido. O antigo tecelo encontrava-se numa dal
camas de ferro, cobertas de branco, que, em duas filas]
constituam o dormitrio do Albergue. O seu coraw
enfraquecera, em Maro tivera duas sncopes e o mel
dico diagnosticara tambm uma nefrite. l
Era a primeira vez que Horcio vinha ali depoiil
de finda a guerra. E no queria desgostar a Marretai
falando-lhe do caso, pois isso lembrar-lhe-ia, decerto^l
as previses que ele, como o Ildefonso e muitos outrosj J
fizera e no se haviam consumado. Mas fora o prprioi
Marreta quem, depois de ter respondido s perguntas!
de Horcio sobre a sua sade, dissera de repente: l
Ento, mais uma vez, tudo ficou na mesma ? l Horcio no respondeu. As mos de Marreta
, ds- 1
camadas e da cor do marfim velho, dir-se-iam faleci- i
das sobre a puda colcha branca. l
Mas isto no fica assim... tornou. Mais ano, i
menos ano, isto modifica-se. Vocs, os novos, ho-de l
ver muitas coisas... i
Horcio continuou calado. Tambm ele, depois de J
finda a guerra, voltara a ter dvidas. Os projectos i
que fizera, relacionando-os com uma melhoria colec- J
A LA E A NEVE
337
tiva, haviam comeado a parecer-lhe, nos momentos de desnimo, to inexequveis como os
que tinha imaginado base do seu salrio. Pedro dissera-lhe, vrias vezes, que Marret
a "era um homem que andava nas nuvens" e ele, agora, escutava-o quase com as mes
mas reservas de quando o conhecera na Aldeia do Carvalho. Havia algo, porm, que p
ermanecia, apesar de tudo, no seu esprito uma admisso, uma hiptese, uma semente qu
e no germinara e que no estava, l antes de ele vir para as fbricas. E essa imponderv
el presena criava-lhe frequentes contradies. Quando ele, resmungando, maldizendo de
tudo e de todos, pensava em resignar-se, em aceitar as circunstncias, acomodando
-se a elas, submetendo-se a elas, como tinham feito muitos outros, como faziam m
uitos outros, logo aquela esperana que parecia morta ressurgia, nublada como semp
re se lhe apresentara, mas viva e dando-Ihe o nico consolo que ele encontrava nas
suas horas de desespero.
Agora, escutando Marreta e lembrando-se de tudo quanto parecia confirmar as pala
vras de Pedro, a esperana e a dvida voltavam a degladiar-se.
Marreta acabara por notar o seu silncio:
Hoje no ests nos teus dias... Ele fez um gesto vago:
Queria que vossemec ficasse bom...
Marreta teve um sorriso resignado e triste. Depois, disse:
Hei-de ficar bom, ento no hei-de! Passo as noites mal e incomodo para a a velhada
e as irms, coitadas! Mas isto cura-se.
Horcio olhou para ele. E quando, s quatro horas, saiu, vinha mais triste do que o
sorriso triste que Marreta tivera.
Os dias iam-se tornando cada vez mais longos. E das Portas do Sol viam-se j os ca
stanheiros da colina de Santo Antnio todos amarelados, todos floridos. Eram pouco
s e dispersos, como os das encostas sobranceiras ao Sineirinho, mas lembravam a
Horcio, numa tnue saudade, os grandes soutos das proximi-
338
A L E A NEVE
f dades de Manteigas. Ele parou, um instante, a pj
os castanheiros e a pensar no que lhe dava sauefej
Desenterrou da memria dias e anos da sua inffl
e da sua adolescncia e concluiu que nunca tivera m
de to bom que merecesse a pena ser recordado. C|
tinuava, porm, a sentir saudades, uma saudade |
coisas indefinidas, que no sabia explicar a si prpi
Pensou que seria pelos pais, a quem no via hl
bastante tempo; que seria dos primeiros dias de nama
com a Idalina, mas, depois, convenceu-se de que m
era por isso tambm. J
Quando, finalmente, Horcio atravessou o Peia
rinho, havia l, como todas as tardes, grupos de am
rrios e de empregados comerciais a pairarem. Mas a
no se deteve. Desde que terminara a guerra, voltai
a passar quase tantas horas em casa como nas p|
meiras semanas de casado. S saa depois de janta
quando o Joanico dormia. E era a prpria Idalina qm
lhe pedia, agora, para ele sair: "Vai dar uma voltl
seno, assim, sempre a falar, acordas o menino". i
Ele sentia-se cada vez mais preso ao JoanicojJj
contente porque a cara do filho se assemelhava deli
Todos diziam que raras crianas, nos primeiros meseJI
se pareciam com os pais, mas o Joanico, desde qui
nascera, parecia-se com ele; eram os seus olhos, o sei
nariz e at o seu queixo aguado. .1
Na fbrica, Horcio estava sempre desejoso de vm
tar a casa e, muitas vezes, imaginava que podia acoBM
tecer, na ausncia dele e da mulher, algum acidenta|
ao menino. Depois do parto e antes de retomar o seM
trabalho de esbicadeira, Idalina tentara deixar o nlhdj
no Lactrio, onde a Josefa tambm deixava o seu.*
Mas l disseram-lhe que no podiam receb-lo, quell
no tinham lugar para mais de doze crianas, nem l
leite para mais de vinte e quatro, nem dinheiro parai
comprar mais leite e mais beros. Escusava ela d l
falar alto, de reclamar, pois aquilo era uma obra de l
particulares, de senhoras que possuam bom corao, J
mas no dispunham de meios para recolher as mil ou l
mais crianas pobres que havia sempre na Covilh, l
A LA E A NEVE
339
Idalina decidira, ento, pedir Procpia que lhe tomasse conta do Joanico, enquanto e
la estava na fbrica. A Procpia no quisera fazer-lhe preo, mas calara-se quando a ouv
ira dizer que, depois, lhe daria alguma coisa.
Todos os dias, durante a hora do almoo, Idalina saa, a correr, da fbrica, disparava
rampa acima e vinha entregar o seio ao filho. Recomendava sempre Procpia que no s
e esquecesse do bibero das quatro e, s depois disso, regressando ao trabalho, comea
va a tasquinhar, ladeira abaixo, a sua cdea e a sua ardmha. As outras mulheres, qu
e a viam chegar e partir, sorriam, cpticas e experientes, daquela azfama e garant
iam, mesmo em frente dela, que tantos cuidados s se tinham com o primeiro filho.
Mas Idalina pensava que ela seria sempre assim, por muitos filhos que tivesse.
A Horcio, a Procpia parecia-lhe mondonga, pouco cuidadosa e cada dia ele tinha mai
or receio de que ela no tratasse bem o Joanico.
Ainda o melhor seria tu deixares de ir fbrica e comeares a esbicar em casa disse
ele, uma noite, mulher.
Tambm tenho pensado nisso. Mas, se fico em casa, ganho menos, j se sabe... Por mu
ito que no queira, mete-se uma coisa e outra e o trabalho rende pouco.
Horcio considerou um momento, em silncio, e, depois, concordou:
Pois ... Isso ...
Outra noite, ao pegar no Joanico ao colo, ele viu nas pernitas do filho uns crcul
os avermelhados, que nem de brotoeja.
Que isto ? gritou.
Idalina aproximou-se, mas, antes mesmo de examinar a tenra pelezita, j ele berrav
a de novo:
So mordeduias de percevejos, no h que ver! Essa Procpia uma porca, eu sempre o disse
!
Idalina interveio, inquieta:
Cala-te, homem, cala-te! Fala baixo... Ela pode estar a na rua e ouvir-te...
340
A L E
A NEVE
Pois que oua! uma porcalhona, no h dvj
* Deixa fazer isto ao menino! j,
Idalina sabia que no tinha na vizinhana o
mulher que pudesse, como a Procpia, tomar-lhe ce^
do filho enquanto ela estava na fbrica. E, aflita, p
curava serenar Horcio: "
Deixa l, que no por isso que a criana mor|
Eu hei-de falar Procpia, mas percevejos h-os $
toda a parte, agora com o calor. Aqui mesmo os terj
a dar com um pau. Ainda ontem encontrei dois. E,|
no s, todas as noites, ferrado por eles ? j
Ns somos crescidos! Uma coisa somos n^j
outra coisa o inocente, que no se pode defendi
Compreendes ? d
Depois destas ltimas palavras de enervamento, a
pareceu ter reconsiderado e calou-se. Mas, logoa
seguir, pousou o filho na cama e comeou a tirar, lei
tamente, a traparia do bero e a escabich-la de im
lado e de outro. |
C est um! exclamou. E logo: C esq
outro! Assim, como que a criana no h-de esta
mordida ? J
Novamente Idalina interveio, conciliadora: J
Pode ser que sejam mesmo da nossa casa. NesiM tempo, as madeiras esto cheias dele
s... a
Pois ento, no domingo, vai-se fazer, aqui, umJ limpeza geral. Tem de se acabar co
m isto! l
Efectivamente, no domingo seguinte, mal regres!
sara do Albergue, com a alma mais aliviada porque!
Marreta parecia haver melhorado, metera mos tarefa,!
Havia comprado petrleo e ps insecticidas e, numl
instante, com Idalina, desarmara a cama. i|
O colcho para a rua, para arejar! l
E enquanto Idalina lhe obedecia, ele buscava os l
parasitas entre os ferros. Surgira um, surgiram dois; l
surgiram dezenas, que ele ia esmagando com raiva, j
Posto a um canto, no seu bero, o Joanico largara a \
chorar.
Cala a criana e vem c! ordenou Horcio mulher.
A L E A NEVE
341
Ele acabara de descobrir que, nas j unturas do soalho por baixo da cama, tambm se
acoitavam perceveis. Pusera, ento, Idalina a esfregar aquelas tbuas velhas, enquan
to ele esquadrinhava, com uma lascazita cie pinho na mo, a mesa-de-cabeceira. Mas
o Toanico voltara a chorar, a complicar aquilo, a irrit-lo mais. Idalina caminha
va do alguidar de gua suja para o bero e do bero para o alguidar.
Tambm a mesa-de-cabeceira se encontrava habitada. Ele comeara a escarafunch-la e a
polvilhar-lhe o interior, quando a figura de Manuel da Boua se esboou porta, com a
queles retrados modos de quem se tem sempre por inoportuno:
Boa tarde...
Horcio mal lhe respondeu e continuou a sua faina.
H muitos meses j que Manuel da Boua lhe frequentava o casebre. O proprietrio do arma
zm onde o velho trabalhava, considerando quase inteis os seus servios, nunca lhe au
mentara o ordenado. E, com a carestia dos alimentos, pela guerra provocada, dias
havia em que ele passava fome. Dera-se, ento, a buscar um e outro conhecido, a a
parecer-lhes hora do jantar, a oferecer-se para recados, a precipitar-se se via
ensejo de poder auxiliar a dona da casa. Estava cada vez mais decrpito e, com a b
arba quase sempre por fazer e o dorso abaulado, os seus pesados movimentos lembr
avam os de um velho gorila. Percebera que a Horcio no eram gratas as suas descrenas
sobre os homens e sobre o seu amanh e cessara de falar delas. E se, por alguma i
rreprimida palavra, as deixava entender, logo as corrigia ou se calava. Humilde,
servial, de suja andaina remendada por ele prprio, a fome adivinhava-se-lhe nos o
lhos e na tremura dos lbios quando algum comia na sua frente. Horcio compadecia-se
dele, mas continuava a no lhe dar espontnea simPatia. Algumas vezes surpreendia-o
de olhar fixo, muito fixo, no Joanico, como se estivesse a recordar-se de alguma
coisa que s ele sabia ou a ver a cabea do rnenino por dentro. Nesses momentos, pa
recia a HorC1o que aquela mirada podia fazer mal criana, pr-
342
A L E A NEVE
judicar-lhe o seu futuro, pois dir-se-ia que os oll|
Manuel da Boua estavam a ver coisas que maisf j
gum via. E, ento, maldisposto, Horcio solj
bruscas palavras, que faziam o velho quebrar a Sa
do seu olhar e estremecer, como se voltasse a m
algures, de muito longe ou de dentro da cabeal
prprio menino. J
Ao contrrio do marido, Idalina simpatizava *m
Manuel da Boua. li
um pobre homem! E honrado! Nunca meai
com um tosto! dizia, quando Horcio o criticsa
um pobre homem e no tem ningum por "m Quando penso que teve uma filha e se v agora
as" abandonado, sinto pena... i
Como Idalina, desde que trabalhava na fbricaJj
aos domingos podia ir ao mercado, era Manuel j
Boua quem, um e outro dia, de manh cedo, aim
de entrar no emprego, lhe fazia algumas compJ
E tambm ao comeo da noite, depois de sair do anal
zm, estava sempre pronto a obedecer-lhe, a ajuda
nisto e naquilo, a ir ali e acol, consoante ela prwj
sava. Depois, quando a via a levantar do lume a cQB
fingia que se retirava: m
bom... Ento at amanh... Deus lhes d bfl noites... m
Espere a, homem! E Idalina metia-lhe iB mos uma tigela de caldo. (m
Posteriormente, como Horcio afirmasse que o mm lestava ver Manuel da Boua a olhar
para eles enquanwj ceavam, tanto mais que no podiam oferecer-lhe <MJ tudo, Idalin
a, logo que ele simulava despedir-se, dm zia-lhe: '
Volte daqui a um bocado... Preciso de si... <^ Naquela tarde, ao encontrar a
casa desarrumada 'm
Horcio a limpar a mesa-de-cabeceira, Manuel da Bou>| sorriu, desde a porta: r -if
Ests a dar-lhes, hem? o tempo deles... N<8| meu quarto tambm os h aos cardumes. Olh
a lcl queres uma ajuda ? 1J
Horcio no lhe respondeu, mas ele tomou o sei" l
A LA E A NEVE
343
ilncio por aceitao. E, com um gancho de cabelo nue Idalina lhe dera, ps-se cata dos
ninhos ocultos em quantos cortes e gretas tinham as paredes e as madeiras. Proce
dia lentamente, mas com mestria, como se houvesse passado a vida naquela funo. Par
a ver melhor, pedira a Idalina que acendesse o candeeiro e, de quando em quando,
JHorcio ouvia-lhe um riso voluptuoso e surdo: " ". Era sempre no momento em que ext
raa do seu aprisco um dos percevejos e o fazia estalar sobre a chama do candeeiro
. Havia-os por toda a parte. Da casa j tresandava para a rua o cheiro do petrleo e
muitas das frinchas estavam j tapadas com o p insecticida; apesar disso, Horcio e
Manuel da Boua continuavam a encontrar parasitas. O Joanico voltara a chorar.
Horcio ouvia o filho, via a mulher agarrada ao esfrego, Manuel da Boua puxando semp
re o candeeiro para junto dos seus olhos cansados, ele prprio a pesquisar os inte
rstcios da cantareira e rosnava: "Porcaria de casas! Grande porcaria!" De repent
e, ele viu o Joanico, j mais crescido, j a andar por seu p, num quintal que havia j
unto de uma casa pequena, mas que era muito branca por fora e muito limpa por de
ntro e de telha francesa, como as dos Penedos Altos. Depois, viu muitas crianas a
brincarem em jardins, onde havia palmeiras e relvas e grandes casas ao fundo, n
o Estoril, na Parede e ali mesmo, no cimo da Covilh, onde estavam as casas dos pa
tres. Pela primeira vez, ele no evocava aquilo com a simpatia admirativa de quando
regressara de Lisboa a Manteigas, nem com a tristeza de quando vira que no lhe c
oubera nenhuma das casitas dos Penedos Altos. Pela primeira vez ele evocava aqui
lo com estado de esprito odiento, numa surda revolta que o fazia resmungar enquan
to buscava os percevejos.
Na tarde domingueira, a Traquitanas, a Josefa e a Procpia, vendo expostos ao sol
a enxerga e as mantas, vieram trazendo a curiosidade at a porta aberta.
Boa vai ela! exclamou a velha Traquitanas, com seu caro escuro e enrugado, quand
o deu pelo
344
A L E
A NEVE
f que se fazia l dentro. um trabalho que no p a pena! Vocs limpam hoje, mas, amanh,
est tu outra vez, cheio deles...
E as trs mulheres comearam a rir-se, umas pi as outras, daquela falta de experincia
da vida. f
,
* ^
f j edifcio, velho e longo, muito longo e de um s piso, parecia querer mostrar que
a sua misso, justamente por ser celeste, devia agarrar-se terra, estender-se bem
na terra, para extrair a alma dos homens que nela viviam. No telhado antigo, co
m o p dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar,
os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas
que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lrios, roseiras t
repadoras e tenros ps de salsa que o irmo hortelo no se dispensava de cultivar. Ao f
undo, com uma rvore em frente, to ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a cape
la, que, ligada embora ao edifcio, avanava sobre o jardim, dando ao todo a forma d
um grande L.
Ao entrar na cerca, Georges Mounier viu uma escada posta ao beiral. Junto dela,
o "Bagatelle", homem de sete ofcios, pedreiro, pintor, at carpinteiro se fosse pre
ciso, uma vez por outra trabalhando na Misso, 'a remexendo com o pincel a tinta b
ranca coalhada no fundo duma lata.
Mounier parou:
bom dia! Ento qual hoje o trabalho?
Ele vinha a rememorar a influncia malfica que uns quadris femininos podem ter, pel
o facto de pare-
022
A MISSO
"1
I
cer"m maiores do que efectivamente so quanf corpo est sentado, e perguntara aquilo
distraidamj muito mais por hbito de cortesia do que por l de curiosidade. ,|
O "Bagatelle" deixou a lata, pousou uma das i sujas sobre a escada e olhou para
o beiral: l
you pintar a palavra "Misso" no telhadoj causa dos bombardeamentos... l
Muito bem. preciso apoiou Mounier, sea com um torn descuidado e j a afastar-se.
J
A mulher volvera sua lembrana. Continuai
v-la sentada ao sol, os ps sem tocar o cho, as pl
a badalar, a irem e virem sob o banco, como se i
vessem num trapzio. Dir-se-ia que as suas pel
tinham, nessa hora, uma felicidade independent*
tronco, todo um desejo de folgar que comeava!
joelhos para baixo. Ele levantara os olhos devai
num esforo, e fora ento que as ancas da m
assim sentada, lhe pareceram mais amplas do'i
quando ela estava em p. Os seus olhos rugiram il
diatamente do diabo que se escondia ali, sob as sai
redondo que nem uma abbora; mas logo se eniw
ram no sorriso que a mulher luzia um sorriso brsfflj
e hmido. Havia um sabor no ar. Um mpeto sel
a garganta. Ele tentara pensar na razo das suas J$
tas, pensar no homem que estava doente para ali
da porta que se abria ao lado do banco e que UM
trepadeira popular engrinaldava. No conseguira, porta
reprimir a ideia solta e tivera medo de si prpw
medo dessa flor proibida e fanada que as suas vindj
ali iam fazendo reverdecer, medo do sol tmido q$
sobe pelos muros invernais, musgosos e tristes. ConM
cendo os hbitos da famlia, decidira s voltar quanq
estivesse certo de que a tentao, sentada ou de p^
no se encontrava em casa. E agora, ao record-W
crescia-lhe uma saudade da luz que existia nessa manw
uma luz quente a que ele soprara tantas vezes, extin
guindo-a, mas que volvia a acender-se quando menos t
esperava, com a vitalidade e a teimosia dos incendiai
no Vero.
A MISSO
623
Mounier deteve-se, como se uma fractura nos seus estratos cristalizados o alerta
sse de repente. Hesitou um momento, pensativo, deu mais alguns passos e tornou a
parar, ainda indeciso. Pouco depois, as sucessivas portas do corredor viram-no
voltar atrs e sair.
J o pintor, levando a lata de tinta, ia perto do beiral quando ele lhe perguntou,
c de baixo:
Quem o mandou fazer isso ?
Estranhou o "Bagatelle" a pergunta, mais pelo torn do que pelas palavras em si p
rprias. L de cima, ele no divisava a cara de Mounier, que vergara a cabea; a voz, le
vemente trmula, subira e apresentara-se isolada de todo o gesto ou expresso que aj
udasse a explicar o seu cerne nervoso. "Bagatelle" via apenas aquela roda branca
da calvcie que prolongara a tonsura e contrastava com o negrume do longo hbito; M
ounier parecia orar sobre uma tumba.
Foi o senhor Padre Superior respondeu, com um modo que significava: "Pois quem
havia de ser?"
O missionrio manteve-se de cabea baixa. De sobre a escada, o pintor continuava a v
er apenas a brancura da sua calva e, ao fim das mangas negras, as mos que se fech
avam e abriam constantemente. O "Bagatelle" havia compreendido que aquela pergun
ta se alargava para fora da curiosidade corrente, pois alguma coisa a mais viera
embrulhada com as palavras; e, pousando a lata sobre o telhado, aguardou, respe
itoso.
Mounier ergueu, finalmente, a cabea:
No faa isso, por enquanto. you falar com o nosso Superior e, mais tarde, lhe direm
os se deve ou no pintar as letras.
Mounier perdera as suas hesitaes. L de cima, o "Bagatelle" viu-o desaparecer, a pas
sos largos, na porta da Misso, deixando c fora todo um silncio suspenso e perturbad
o.
sua mesa negra, de torcidos e tremidos, o Superior examinava, com o ecnomo, as de
spesas do ms,
624
A MISSO
Aquando ele entrou. Depois de o saudar, MounielM e encostara-se ombreira, numa at
itude coBwH
Quer falar comigo ? lj^M
Sim, queria...A sua voz parecia esfB por um precipcio, ao mesmo tempo urgente e^
fM
Um momento disse o Superior, sentindc^B tudo, a urgncia que o torn projectava al
i. irB
O ecnomo continuou a mostrar-lhe os algaH
Mas alguns desfaziam-se, furtavam-se ao examSH
que aquela presena, calada e soturna, pusera,". IB
seu retrado silncio e modos que no lhe erartnH
tuais, um mistrio e uma gravidade junto da^jM
"Uma intriga presumiu, vagamente, o SuperaH
Uma intriga ou uma disputa. J no a. pnme^B
que isso acontece, sobretudo com o Brissac e ^1
chaux". Ao lembrar-se do temperamento de MoflH
to oposto ao dos outros, o Superior deixou PJH
a sua hiptese. "No deve ser isso concluiu. AjB
nunca se queixava de ningum, era um passa-nH
e estava sempre pronto a desculpar tudo e todJpB
O ecnomo levantou-se, por fim, levando ojH
Ento o que h ? Tirando os culos, o NH rior voltava-se, arredando um pouco a cadeira
on$M ecnomo estivera. 4B
Georges Mounier sentou-se: -^H
Vossa Reverncia mandou pintar a palavra #J|H so" no telhado, no verdade ? '^jH
Sim...respondeu hesitantemente o SupefraH pondo a vaguear a sua expectativa se
m compreenijjM Sim... Mandei... Porqu? ,fl|
Mounier baixou os olhos: ' J
Desculpe-me, mas eu disse ao "Bagatelle" cffip no fizesse aquilo sem receber no
va ordem... ^K
Mounier sentiu que havia comeado mal. Em wm de esvaziar pouco a pouco o saco, vol
tara-o de boc para baixo, mostrando logo o que trazia, no fundo. Parecia-lhe que
a sua timidez de agora se ligava, atra-,, vs do tempo, timidez sofrida ante as p
ernas quL se balouavam, como um pndulo a marcar horas ct*
A MISSO
625
'hilo numa longnqua manh de sol. Ergueu a vista encontrou os olhos surpreend
idos e inquietos do
Superior.
_- Ora essa! Porque ?
Mounier tossiu. Queria falar com firmeza, queria aue aquela inexplicvel dificulda
de lhe desaparecesse da garganta. Ao avanar para ali, convencera-se de que expori
a a sua opinio com voz clara, mesmo vibrante, como quando se discorda duma injust
ia; agora, porm, no encontrava o torn desejado, nem a porta que desse directamente
sobre o caso. Ele estava certo de que essa porta se abria algures e que somente
o seu imprevisto desgoverno o impedia de a descobrir.
H apenas um motivo disse que pode levar os alemes a gastarem as suas bombas com
uma aldeia to humilde como esta em que vivemos: a fbrica que existe aqui. Como Vos
sa Reverncia veio h pouco para c, talvez no a tenha visto ainda e no saiba, portanto,
que o edifcio por ela ocupado igual ao da Misso. Os dois foram construdos na mesma
poca: um para convento de frades, outro para freiras. E se este ltimo nunca chego
u a ter religiosas e foi, mais tarde, adaptado para a fbrica, no perdeu, contudo,
as suas antigas caractersticas. At a capela existe ainda...
Mounier encarou o Superior. Gordo, espadado, de mos estendidas sobre as pernas, co
mo nas velhas esttuas dos faras sentados, o seu corpo transbordava da Poltrona. Ju
lgar-se-ia que somente os olhos estavam vivos, cheios dum brilho novo, estremece
nte. Mounier esperava ouvi-lo declarar que nunca vira o outro edifcio, mas ele fi
cou calado, a grande cabea recostada a espaldar, o largo rosto imvel.
Portanto, se mandarmos pintar sobre o nosso telhado a palavra "Misso", tiramos t
oda e qualquer dvida a quem venha eventualmente bombardear a fbrica. A denncia s
er, nesse caso, feita por ns Prprios. As mesmas letras que nos protegerem, podem
representar uma sentena de morte para os homens que ali trabalham...
M
026
A MISSO
A MISSO
627
* As plpebras do Superior baixaram lentamejjM estiveram um momento cerradas. Quand
o volta^H abrir-se, Mounier notou que os olhos se havianwM
Aqui, incluindo o irmo cozinheiro e o joB hortelo, ns somos actualmente apenas trez
e hoial ao passo que, na fbrica, trabalham cerca de qual
O Superior moveu, enfim, o corpo, inclnarJM
novamente para o lado de Mounier. Ele acabay3B
pensar que, de todas as palavras ouvidas, aquelas ifB
as mais graves e que sobre elas tinha, inevitaM
mente, de pronunciar-se. A sua mo direita seraB
gueu-se, como para fazer um gesto, mas tornoB
descair sobre as pernas, vagarosa e arrependida. SeM
dos antes, ele vira tudo muito claro: a Misso isjfll
a fbrica atacada, talvez muitos homens mortos QfJB
as runas; segundos antes, os dois quadros haviaiqj
iluminado por inteiro e parecera-lhe que tudo aq|fl
merecia longa ponderao; de repente, porm, SfjfflB
ra-se desnorteado. A luz toldara-se e no bosque oi"l
ele se extraviava no havia apenas uma sombra, BB
diversas sombras, no havia uma s vereda, mas muMl
veredas cruzadas. Tentou explorar a primeira e hesit<w
hesitou de novo na segunda e cada vez sentia majffl
confuso no seu esprito. Tinha de olhar, ao meSiiB
tempo, para diferentes lados e nisso estava o graqsB
embarao. Um momento, como se abraasse o trofliB
mais robusto, apegou-se ideia de que, verdadeifiW
na sua realidade fsica, as palavras de Mounier d^S
xavam de o ser quando transpostas para a realidaiJjB
espiritual. ifli
Confesso que no havia pensado nisso prof$ji
riu, finalmente. De facto, ainda no tive ocasio dei
ver a fbrica. Mas compreendo muito bem os selS-j
escrpulos. Conheo, alis, os bons sentimentos qP \
tem demonstrado em vrias circunstncias, pelo qUft
s merece louvores. Neste caso, porm, creio que n^
h motivo para que torture a conscincia, pois partQ
dum receio que me parece completamente hipottico"
gm todas as manifestaes da vida se encontra, claro, a possibilidade de um perigo
e s Deus sabe porque criou a vida como ela .
O silncio de Mounier f-lo vacilar de novo, insatisfeito com o valor do que dissera
. O seu temperamento inclinava-se sempre para a conciliao, produtora do sossego da
alma e do repouso do corpo que ele tanto amava ter; mas, desta vez, parecia-lhe
que um forte embargo o impedia de reconciliar-se inteiramente consigo prprio.
No procedo por uma ideia minha acrescentou. Ao mandar pintar as letras, obedeo a
um uso internacional, como sabe. Isso indica que esta casa neutra e deve ser
respeitada por todos os combatentes.
A voz desceu, num desnimo:
Infelizmente, nem sempre nos do a considerao que nos devida. A poca em que vivemos e
st cheia de lutas e de injustias e perdeu o respeito que tinha outrora pela nossa
comunidade, quando dispnhamos de fora at nas grandes cortes da Europa. Actualmente,
a nossa aco torna-se cada dia mais difcil e mais incompreendida. Mas, por isso me
smo, penso que no devemos imiscuir-nos nas desavenas dos homens, que so efmeras com
o tudo quanto humano. O nosso papel deve limitar-se a procurar cham-los para a bo
a causa...
O Superior calou-se. Pareceu a Mounier que ele desejava conceder-lhe tempo sufic
iente para reflectir. Mas logo, suspirando, ajuntou ainda:
Temos, tambm, de pensar que os homens no valem apenas pelo seu nmero e sim pela sua
qualidade... Jesus, sozinho, fez mais do que os milhes e milhes de seres que, ant
es e depois dele, passaram sobre este triste vale de lgrimas. A nossa Misso no vale
, portanto, somente pelos homens que alberga. Aqui, ns somos poucos, certo, e na
fbrica os operrios so muitos; mas a Misso um centro de luz, um lar de onde irradia a
doutrina divina...
Georges Mounier, de olhos no cho, parecia no
L
628
A MISSO
ouvir aquilo e respondeu-lhe logo: "A mim tanto se me d, como se me deu! Que pode
m eles fazer contra jnirn, que estou velha e no tenho aonde cair morta?" "Podem f
azer muito! disse o homem. Podem acusar a si ou sua sobrinha duma coisa que no
fizeram, mas que, para o caso, como se tivessem feito. Imagine que eles acusam a
sua sobrinha de ter roubado alguma coisa antes de sair l da casa... Ou que conse
guem provar que no foi o Armando que a desonrou". "Isso conseguem eles!" gritou
a minha tia. O homem ficou um momento calado e, depois, disse com o ar de quem t
inha pensado melhor: "Admira-me o que voc me conta da Dona Ludovina, pois toda a
gente diz que boa pessoa e que est sempre pronta a atender pedidos. No h dvida que t
em valido a muitos e at eu conheo alguns a quem emprestou dinheiro sem juros. Mas,
enfim, voc l sabe. Eu, por mim, sei que uma rvore grande d muito trabalho a deitar
abaixo. Mesmo depois de termos conseguido cort-la, somos obrigados a fugir, po
rque at quando ela cai pode matar-nos".
Da sala, que as mulheres perdidas entulhavam, filtrava-se para o quarto um vozea
r surdo, confuso, um rumorejo de impacincia, quente como o das chamas. A minha ti
a no se deu por convencida, mas, depois de o homem ir-se embora, eu senti que ela
ficou ainda mais desanimada. No s pelo que lhe ouvira, mas porque j comeavam a cons
tar muitas falsidades a meu respeito. Tudo por causa do tal rapaz que tinha esta
do tambm no Asilo e que, s vezes, parava ali, quando o patro dele o mandava levar a
lgum recado a casa do filho. Dizia-se que ele, quando l ia, ficava muito tempo a
falar comigo. verdade que, a princpio, ficava e no havia nisso nenhum mal. Mas, as
sim que comecei a gostar do outro, eu nem sequer lhe aparecia, pois no me sentia
vontade na sua frente... O rumor que vinha da sala aumentava cada vez mais. Alg
umas das mulheres saam ao corredor, abriam a porta, espreitavam as escadas e punh
am-se a suspirar contra aquele grande atraso: "Ora a minha vida!"
26 Vol. Ill
802
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
f O mdico chegou, por fim. Era um homem ^j
espadado, de culos e cara redonda, ainda novJI zia uns modos decididos e, na mo, o
estojo ondel dava o especulo. Atrs dele, marchava o ageifcj polcia, tambm alto, mas
seco de carnes e triga trajava de civil e, sob o brao, negrejava-lh)! pasta. > \
Aborrecidas, hem ? -ti Oh, senhor doutor, tanto tempo l t >4
No pude vir mais cedo. Pacincia... S Ele no amava o emprego, mal pago e desi|
dvel, uma provao para quem sonhava com as |
ds posies na medic1'na; mas era preciso viverp
quanto no se obtinha fama e clientela. Por outro-i
gostaria de se quedar, de vez em quando, em^I
dedos de conversa com uma ou outra que expunha
rosto a suavidade dum mundo imaginado e nos oil
uma vida de cepa profunda e estranha; coibia-se, pofll
temendo que essa fraqueza anulasse o respeito qfifi
sua funo devia impor a todas elas. /l
Fui eu que cheguei primeiro l disse uma til
Chegmos as duas ao mesmo tempo! prw tou outra. YJ
O mdico dirigia-se para o quarto de Pilu, que rt em toda a casa, o mais beneficiad
o de luz.
O polcia sentara-se mesa, no meio da sala. Abm
rj|
a pasta e tirara de l um carimbo, mas no tirara"
cabea o chapu, pois sempre lhe parecera que ofil
casa assim e mulheres daquelas no mereciam que til
homem se descobrisse. ^
Elas iam-se acercando, com um papel a sair ii
entre as folhas dos seus livretes. Junto da mesa piudl
vam-no e estendiam-no ao polcia, que lhe passava p"
cima os olhos certificadores. Era o recibo mensal OT
taxa sanitria, a garantia de que fora pago o bfflto
dinheiro da lei. f"
Outra... Outra..ia dizendo o agente.
Dali as mulheres partiam a enfileirar-se porta d&
quarto onde se encontrava o mdico e, sempre de
livrete na mo, aguardavam a sua vez. Saa uma-f
803
[Og0 entrava outra. Para a maioria delas aquilo era rpido, quase to breve como o g
esto do clnico que, baixando a plpebra inferior do seu doente, busca na parede int
erna expresses de anemia ou conjuntivite. O espectculo penetrava, abrindo caminho
luz, o olhar experiente avanava tambm, o especulo retirava-se e a mulher erguia-se
, dando lugar a outra. Ao volver sala, aproximava-se novamente do polcia e recebi
a na caderneta, sobre a assinatura do mdico, a chancela da inspeco um carimbo verm
elho, que a cor ntima do ofcio que elas tm.
Natalia entrou no quarto a coxear levemente. E mal se estendeu, de travs, na cama
, as pernas dobradas em ngulo, conforme a praxe, e uma pequena nota de banco a ve
r-se sob a meia, seu cofre, como um rtulo colado na pele, disse:
Desde anteontem, sinto no sei o qu...
De busto inclinado para a frente, o mdico introduziu o especulo e logo o retirou,
convencido. Dir-se-ia, porm, que se arrependera, pois voltou a examinar mais dem
oradamente.
Tem de entrar no hospital afirmou, depois. Hoje mesmo! Quem sabe l quantos j c
ontagiou!
Mas, ontem, eu no recebi ningum...
Pois sim... Pois sim... mastigou o mdico sem olhar para ela. Isso deve andar a h,
pelo menos, quinze dias.
A expresso habitual de Natalia desaparecera. As suas recordaes dos hospitais tombav
am ali de repente: era um corrosivo que dissolvia o soalho onde ela acabava de f
incar os ps e apagava, em seguida, a luz dos dias. Virou-se para o mdico com uns o
lhos suplicantes. Mas ela prpria ignorava o qu e a quem devia suplicar.
Ele tirara do bolso esquerdo uma mancheia de papis, separara uns, que eram todos
iguais entre si e estavam dobrados pelo meio, e, sentando-se na cama, pusera-se
a escrever sobre a mesa-de-cabeceira, copiando nomes e datas do livrete de Natal
ia. Depois, levantou-se, dobrou, de novo, o impresso que havia preenchido e
804
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
805
* foi ento, ao entregar-lho, que os seus olhos 'ttm traram os olhos dela. ofifl
Tens aqui a guia de internamento drapM Deves ir hoje mesmo; para teu bem... a^B
Era a primeira vez que ele a tratava por tu;flfi3 aquele torn de voz e ela ficou
a olh-lo, em silaJB antes de estender a rno para agarrar o papel. ;''-/$!
Foi logo a seguir ao almoo. Aps o bulci",|j
manh, a sala havia retomado a sua largueza, a-"
desimpedida duma parede a outra, o relevo das KM
rs vagas, espera de clientes, espera como i^ra
Cegaria, que se sentavam no div, ou como Lusal
Clarinda, que acabava de dizer: "Depois de andaratH
esmorecida, a minha tia..." "UM
A porta abriu-se e Natalia entrou com a pe^pd
maleta de carto que Cesria lhe emprestara. M^M
havia pintado. Parecia, assim, mais magra, o 'rija
mais transparente e muito delgados os lbios. -i'lfim
Sempre gostava de saber quem foi o tipo...51 a| Desde manh, Natalia repetia aquel
as palavral|
Se calhar, ele sabia tanto como tu disse CH ria, maneira de consolo. - 11
Natalia apertou a mo de cada uma das muUn^H e, em frente de Ciar ida, vacilou um
momento, ^Mfli diu-se e estendeu-lhe a mo tambm. Do div, enquftffl acariciava o lomb
o do gaio, Pilu dava-lhe conselfji Depois, ouviu-se a porta da escada fechar-se e
vaHj aquela rabanada de silncio, mas por instantes apensflp como se fosse o ar q
ue a prpiia porta deslocara.
Pilu e Cesria, que tinham visto muitas partiBfSc! assim e elas prprias haviam, Um
dia, partido igsfifr mente, prosseguiram na sua conversao, embora a^ui^ ficasse alg
um tempo a rondar o que diziam, or^f afastar-se, ora a achegar-se, teimoso que ne
m fragmeirt* de rolha flutuando no vinho que se bebe. W8
Para Clarinda e Lusa era outra coisa. A male*? de carto, j esbranquiada e a esfarela
r-se nas extWP
Cidades, de velha e usada, e o bater da porta, o seu rudo solitrio, a propagar-se
por toda a casa, semearam nelas um desassossego. Lusa queria mergulhar imediatame
nte noutra ideia, interessar-se fosse pelo que fosse, conquanto a fizesse esquec
er aquilo.
Anda, continua... pediu.
Clarinda no lhe obedeceu. Os seus olhos no se moveram. A maleta fora a ltima a desa
parecer na porta do corredor e ela olhava fixamente a porta, como se a maleta pe
rsistisse l.
Lusa insistia, com uma voz cada vez mais pressurosa :
Ento ? Ento ?
Ainda desta vez no obteve conformidade. S mais tarde Clarinda volveu:
A minha tia principiou a dizer que, se o advogado no tomasse conta do caso, ela a
proveitaria a Feira dos Onze para ir ver, de novo, as autoridades. E se continua
ssem a empatar, faria um escndalo diante de todo o povo que, nesse dia, estivesse
na feira... Ela garantia que no lhe importava nada que a metessem na cadeia ou m
esmo que a matassem. Mas se no lhe dessem ouvidos, por ser pobre, ento iramos apres
entar queixa em Braga ou no Porto, que l eram terras grandes e, com certeza, havi
a justia. Demais a mais, nas cidades dizia ela a Dona Ludovina no tmha a mesma f
ora que tinha ali... Ela dizia isto por toda a parte, a quem a queria ouvir. Mas,
dum dia para o outro, deixou de falar assim. Na segunda-feira, que era a vspera
de irmos ao advogado, j trazia uns modos diferentes, quando voltou de pedir esmol
a...
Natalia e a maleta de carto, aquela grande paz da sala, as cadeiras vazias, os cr
omos estticos, Pilu de mo parada sobre o gato, a ouvir Cesria, que falava calmament
e, enquanto ia desbastando, com um alicate, as peles em volta das unhas, tudo, t
udo se fundiu de sbito na cara da velha. Ela entrara, pousara o saco, remendado e
sujo como as suas vestes, e, Danando para o cntaro, mergulhara fundo o caneco p b
ebera, de p, sofregamente. Depois, soltara um
JjJ
8o6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
807
' "1
." grande suspiro. "Estou arrasada de tanto andul
esses caminhos. Tambm no me admira; j-'j$JB
faltando as foras. Muito rija tenho sido eif'X^SB
vida que levo". Olhara para a lareira e derajiH
acordo: "Acendeste o lume, fizeste bem. O ft&ajBj
ano no acaba mais". Vira-a a aproximar-se e\wfl3
tar-se ao seu lado, com a grossa saia de roda,rfi^B
e esfiapada, os ps descalos e gretados, que nnxadB
tinham abrigado em sapatos. Estendera as ms^n
o fogo e quedara-se um momento calada, dendl
abertos, como se estivesse espera que o calor jpfHJ
trasse at os ossos. "Sabes? dissera, depois.;r*^H
contrei, na vila, o doutor Belarmino. Ele viuimieffll
longe e veio do outro passeio ter comigo, para ir&|H
dez tostes. Foi uma boa esmolinha". Tornara a c!fl|
enquanto mexia nas razes que estavam no lut^9|
tendo uma sobre outra, para acabar com o fumtnH
que duma delas se elevava. "Ento ele no lhe 41
nada ?" A velha ouvira, mas parecia no querer teJU
tar o rosto; e continuara vergada sobre o fogo, *^B
em nova ordem as razes que ardiam. "Sim, ele deu-jMj
dez tostes e disse-me que passasse dali a bocadffi"M
seu escritrio, que precisava de me falar". Ela sflJH
decerto, aquela expectativa que a mirava nos ottlH
to inquieta como as labaredas na lareira e acreaaaH
tara: " claro que fui. Tive pena que no estiv("8M
l, mas que ia eu fazer ?" A sua voz parecia magoajlj
Virou-se para o lado do cntaro e pediu: "Podes ^|H
gar-me um pouco mais de gua ? No sei de onde^|B
vem esta sede. Deve ser do que ele me fez sofrer, P**H
de comida, s engoli uma cdea em todo o santo dJ|B|
Tremiam-lhe as mos quando pegara no caneco. -Pffil
volvera-lho "muito obrigada, minha filha" e n^jlH
um momento, pensativa. Dir-se-ia no ter pressa algtifliB
de prosseguir. Ora estendia um p, ora outro, Pfl|
aquec-los ao lume e continuava a suspirar. DePjjj
parecia falar sozinha: "com histrias assim, nem tufljf
pessoa sabe como h-de haver-se". O lume crepita*^
mas existia um silncio secreto que dominava o tSW
pitar do lume e criava todo aquele mal-estar. "$ ^
j,sse-me mais ou menos o mesmo que o homem do carvo: que no valiam a pena estas qu
estes, que, no fim de contas, ningum ganhava nada com elas, que havia exemplos s mos
-cheias por toda a parte. Pareciam coisas tecidas pelo demnio. O melhor, nestes c
asos, era chegar-se a um acordo e dar tudo por findo". Novamente a ansiedade dos
olhos fixos nela devia t-la incomodado, pois ajuntara: "No te aflijas; no v
i nenhum mal no que ele me disse. Ele disse apenas que era muito difcil ganharmos
a questo e eu estou a ver que . Disse, tambm, que, se tu recebesses alguma coisa d
e jeito, podias tratar do teu futuro e acabar de vez com estas complicaes". "Mas r
eceber de quem ?" "Ora de quem h-de ser! Eu no tomei nenhum compromisso, j se v, mas
fiquei de falar contigo... Temos tempo para pensar". A velha firmara a mo no seu
ombro, buscando um apoio, e levantara-se. O saco jazia, de boca fechada
e cado de lado, sobre a mesa enegrecida que havia ao fundo; estava meio vazio
, mas o seu tecido modelava os volumes que se encontravam dentro dele, uns volum
es agudos e irregulares como miniaturas de serras e de colinas. A velha abrira-o
, metera-lhe os dedos e tirara os nacos de po seco que lhe haviam dado e um pedac
ito de chourio, envolto num papel com manchas de gordura. "Este comprei-o. Imagin
a, trs mil-ris por isto!" Dividira tudo com ela e principiara a comer. Eram j rar
os os seus dentes e mastigava devagar, metendo muito os lbios para dentro e sempr
e a olhar para ela, sempre a olhar com aqueles olhos parados, meio-mortos, que m
ais adivinhavam do que viam. "Anda, minha filha, come! No te arrelies; ainda s mui
to nova e tens toda a vida Para viveres. E quem te diz que ainda no hs-de ser niui
to feliz? com certeza que hs-de ser, porque Deus Nosso Senhor justo e escreve dir
eito por linhas tortas. O que me d nojo so as calnias! Imagina que o doutor Belarm
ino disse-me que pensavam prender o tal rapaz que esteve no Asilo, pois parecia
que tinha sido ele quem te desonrou. Ests a ver que eu jurei lgo que era mentira,
que era uma pouca-vergonha.
8o8
EXPERINCIA
Mas, quando se pobre, quem acredita em ny
* o po numa das mos e o resto do chourio,j|
polegar e o ndice da outra, a velha tornaria J
sua beira e suspirara, mais uma vez, depois>vj
tar-se. me
No dia seguinte, logo de manhzinha, jfga
falar-lhe daquilo: "Estive a pensar nessa idez
ires para Lisboa e olha que no me parece mS
que ele nunca teve teno de ir l ver-te e, dfflw
que se tem passado, muito menos. Mas que t#oa
isso ? Se tiveres dinheiro para os primeiros temo"
te importa ? Pes fora o que trazes na barsjgj
adiante! Lisboa uma cidade grande, poder
podes at arranjar outro trabalho melhor; coram
ler, podes escolher tua vontade. Ficar aqiau
qu ? Isto so terras miserveis, no h traj^p
mesmo que se trabalhe at morrer, nunca se fQ
cabea". "Mas como you eu para Lisboa, se no^on
l ningum?" perguntai a, a sentir-se j prdO|
cidade e com aquela imensa confuso que se estjjj
sobre todos os seus sentidos. "Ora! Ora! O qw!
faltam so pessoas conhecidas. H muita genei,
que tem l parentes. Ainda esta manh peiBj
Lucrcia, uma prima da Severina da Frgua, at$|
tu podias procurar. E h outras pessoas. No, pfjg
no!" A sensao de desamparo crescia e, com eiq^
grande desejo de morrer. No tinha mais niS
seno a sua tia e tambm a sua tia a empurrava^
fora dali. "M
Clarnda voltou-se, de novo, para Lusa: '^j
Nem me lembro do que lhe respondi. Pareei^|
ela falava por mim e dizia: "Ests de acordo, j s^J
pois seria uma tolice no aceitar..." |
Um silncio breve, cheio de rugas, de fadigayjflf
trado como a cara da velha quando se calava, desjjjj
Lusa no afastava o seu olhar de Clarinda: a<1Hl
interrogao muda sobre as razes do amargurado ifffl
sito de tantas mulheres continuava a incitar-lhe a coifi
sidade. Ela pressentia uma definio, mas no s8||
conclu-la. Para alm do que as palavras revela^^
A EXPERINCIA
o\o para alm dum alto muro, tudo lhe parecia ecreto, fechado, misterioso. Via o cav
alo a remoer entrada do alpendre, como se houvesse estado em frente d^ eram, dep
ois, dois cavalos a trotar frente dum carro, na encosta de Sintra e ela prpria d
entro do carro. Ao menos, ela tivera uma cama.
A minha tia saiu pouco depois e s voltou noitinha, com um ar de mais cansada aind
a do que na vspera. Mal se sentou, queixou-se de que as esmolas andavam to raras,
que ela nem queria pensar em como ia ser o fim da sua vida. "No, minha filh
a, por estas terras no fiques disse-me. Eles no foram mos-largas, isso no. Teria
gostado que tu estivesses l, para ouvires como discuti at ltima. Mas o dou
tor Belarmino havia-me dito que mais valia eu ir sozinha. Tive de aceitar o q
ue me ofereceram, no tinha outro remdio. Mas acho que, do mal, o menos". A minha
tia falava-me com uma voz muito doce e...
Lusa semicerrara os olhos e entrevia Clarinda atra^s das pestanas, como se a visse
atrs duma dessas cortinas formadas por fios verticais de missanga. Ele tinha, ta
mbm, uma voz muito doce, naquele dia. To doce que, se o cocheiro chicoteava os cav
alos, ela crispava-se toda, pois dir-se-ia que a doura da voz dele tornava mais b
rutal o rudo do chicote. J se via o Castelo da Pena, por entre as rvores, quando el
e deixara de olhar para o brao do cocheiro, que se agitava n ar, e dissera: "Manda
s fava os teus patres e iremos ^iver juntos, enquanto no casamos. No sabes quanto t
e amo' Se os meus pais no quiserem, pacincia! Vais Ver que havemos de ser muito fe
lizes". Depois, tornara a beij-la. Ele parecia sincero. Ainda hoje lhe parecia lu
e ele era sincero nesse tempo.
S ento vi que a minha tia trazia o dinheiro lechado na mo. "Tens aqui trs contos di
sse-me.
7~ No uma riqueza, l isso no ; mas, enfim, tu ^ sozinha, s nova e tens sade; podes p
sar uma Jr^porada sem ralaes, at arranjares a tua vida.
niara eu estar na tua situao e no feita um caco, assirri velha como estou". A minha
tia tornou a sus-
Sio
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
8ll
1 4
^
,-" ft
>y
, pirar, como era seu costume, sempre que faq
coisas tristes, e ficou um momento de cabeia?
Depois, foi-me dizendo: "Tens ainda os outrci
contos. Dos trezentos e cinquenta escudos "of
deste no primeiro dia, no se fala, pois gasteiw
bem de ver, em manter-te e no chegaram. Bjpl
temos, ao todo, oito contos. Esse dinheiro M
claro, mas tu sabes como eu vivo aqui na ,m
No tenho um trapinho para vestir e, no pinem!
verno, tremo na enxerga como se tivesse roa
porque as mantas no chegam. E a fominhajl
tenho passado, nem te quero dizer!" A minha tira
ou a chorar. "Para viver assim, antes npt^i
nascido..." J,M
Nos ouvidos de Lusa, as palavras de Clariti
se apagavam, ora se confundiam com o rudo longa
do carro de cavalos, a subir, entre rvores; niSjt
entre rvores, a caminho da Pena. Ele levava dJ|
por detrs dos ombros dela e quando, nas volfjl
estrada, os seus corpos se juntavam mais, aperpl
muito e beijava-a novamente. ssM
...enxugou os olhos com as costas da nl^S
que tinha o dinheiro e disse-me: "Penso que, cc^y
contos, te podes governar vontade. Tens passi
bom par de meses. E fazias-me um grande jcffil
deixasses o outro conto para mim. Era uma esiHffl|
que me fazias, tanto mais que eu you ofereceEOT
os anos uma dzia de velas Nossa Senhora da PifpJ
para que te d boa sorte. No imaginas os desgofl
que tenho tido por tua causa, com todos esses nflM
dros a no quererem saber de ns. Nunca ma?>j|
daro esmola, est bem de ver. Tenho passa4fsl
noites a rezar por ti, no sei se tens dado porfi$|
A minha tia abriu a mo, entregou-me duas notasjjS
l trazia e ficou com uma. "Muito obrigada, aj||
filha, seja pela tua felicidade disse-me, com um^
que parecia chorar. Deus Nosso Senhor te Te<*m
pensar. Eu bem queria no precisar da tua ajuda. Jpjz
assim, j posso comprar uma manta e alguma jfiw
para vestir. Hei-de continuar a rezar muito pan"*
agora, vamo-nos deitar, que j tarde. Amanh, iremos perguntar Severina onde mora a
prima dela, a Lucrcia. s duas ou s trs da tarde, h uma camioneta que liga com o combo
io. Havemos de saber a hora certa. No dia seguinte, de manh, estars em Lisboa. A L
ucrcia vai tratar-te bem, no tenhas dvida; boa mulher, mas tu, em todo o caso, abre
os olhos, porque ela, em lhe cheirando a dinheiro, um bocado exploradora..." Qu
ando se levantou da lareira, a minha tia continuava com a nota de conto fechada
na mo. Mas, com o movimento que ela fez, eu vi as pontas de mais duas notas sarem
um pouco do bolso que h nas saias de roda das mulheres da aldeia...
Clarinda calara-se. Lusa tornara a ver o carro, naquele dia em que voltara, anos
depois, a Sintra, com Cesria. Estava, ento, parado. Os cavalos tinham as cabeas met
idas dentro de seiras e comiam pacificamente. O banco onde fora sentada com ele
encontrava-se vazio. Mas, agora, parecia-lhe vislumbrar, sobre o banco vazio, os
dedos de Clarinda a moverem-se, como quando Clarinda os movia sobre o regao, aco
mpanhando a conversao; estavam isolados, sem braos, maneira de peas de cermica sobre
um fundo de veludo, com a diferena apenas de que se moviam...
Pilu, que se levantara para ir ao quarto, volvia sala, de passos vagarosos, grav
es. Fosse por interveno de Cesria, fosse por seu prprio alvedrio, ao passar junto de
Clarinda e Lusa detivera-se, um momento, a falar ainda sobre Natalia. Ora estend
ia as suas palavras a uma, ora a outra. E, embora nessa primeira transigncia o to
rn no se mostrasse inteiramente desembaraado de traves quando a Clarinda se dirigia
, as duas compreenderam que Pilu aterrava o fosso e assinava as pazes.
Logo que ela voltou para o div, Lusa disse, como se no a tivesse ouvido:
Oxal eu no v sonhar, logo noite, com o que me estiveste a contar!
812
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
8l3
VII
54." TARDE 'Jj
>:>m
UK% M aps outro, os dias vo-se em branco eu"
anda cada vez mais enervada e triste. Maffll
vergonha da sua tristeza, sente-se humilhada pea*
amargura que lhe circula no prprio sangue.*, jQui
olha a sua cara, sempre pronta a contrair-saplnj
orgulho, no v aquela tristeza, como quem olhaau
rvore rugosa no v a seiva que lhe corre por tknt
Pilu adivinha que a sua partida est prximas^
Dona Fortunata s aguarda um pretexto. A>jft
maciez desses dias encontra-se no plo do gato^g
passa constantemente a mo sobre o bicho aninl|
no seu regao. uma carcia sem fim, que parece^
trada e automtica. Ela viu outras partirem qwt
comearam a envelhecer e os seus corpos a das^
menos proventos casa. Dona Fortunata na^
espao para albergar mulheres que s raros hjMJjfl
escolhem. H j meses que Pilu, aproveitando aslaffl
sadas, procura que a aceitem em outras casjy
mesmo preo. Mas, em toda a parte, lhe dizem ,-f
no h espao, depois de olharem para ela; em tsj|
parte lhe dizem que a lotao est completa. Nas oj|
onde as mulheres no dormem, onde vo apeng
tarde e noite, tantas casas, tantas! recusam-na taj
bem. verdade, ela sabe; h mulheres a mais, hcapl
sempre mulheres a mais; mas parece que com >e$
crise o seu nmero aumentou. A alma de Pilu "fl
cheia de imprecaes, que so como preces falhadji
j que entre certas imprecaes e certas preces ejgl
a mesma ligao fraternal que se d entre o diafl!
amor. H outras casas evidentemente, aquelas oO<j
se vendem os restos das mais categorizadas, os dej
pojos que s os pobres compram; mas Pilu luta ainw
lutar enquanto puder, para no baixar o degrau. BI*
sabe que, em seguida, no haver mais nada. Numa pele enrugada ningum atenta, pois en
tre as gelhas parece que se concentram todas as doenas e todos os negrumes das no
ites sem remisso. E at uma cama no hospital ser difcil conquista, porque tambm nos ho
spitais a lotao est sempre esgotada: Natalia fora, uma tarde, com a maleta de carto,
e voltara, noite, cairegada de desenganos, depois de saber que nem nesse dia, n
em nos prximos, havia lugar para ela; e prenderam-na depois, por se querer tratar
ao deus-dar. Pilu olha Clarinda e olha Natalia, lembra-se de quando tambm era nov
a e sente uma inveja funda e spera. Olha Lusa, recorda-se do tempo em que os homen
s preferiam a ela entre todas as outras e sente uma inveja mais dolorosa ainda.
Os seus dedos deixam as carcias lentas e comeam a passar sobre o plo do gato com r
apidez e nervosismo. O gato estranha, mexe-se no regao e levanta-se, sonolento, a
estirar-se, prestes a saltar e a ir-se embora. Ela faz um gesto para o reter e
do seu gesto, mesmo quando a mo j se recolheu, fica demorando no ar uma tristeza d
esampaiada.
Pilu agarra, finalmente, no jornal e abre aquela ponta por onde costuma evadir-s
e. O jornal arremessa para longe a ateno e traz de casas da cidade e de terras dis
tantes vidas desconhecidas; afaga a curiosidade de ptio que habita, dormente, a a
lma de cada qual, fazendo, ao mesmo tempo, sonhar com o inverosmil, que vai da vo
lpia tragdia e uma das marcas da existncia humana; e narra tambm as desgraas alheia
que confortam os que sofrem, levando-os a. sentirem-se menos singulares no Mundo
.
Pilu l em silncio, com um ligeiro movimento dos fbios; mas, depois, lembra-se de pa
lavras que ouvira e principia a ler em voz alta. Todos os olhares se volyem ora
para ela, ora para Clarinda. Pilu interrompe-se, tosse, baixa o jornal para toss
ir mais forte, torna a aproxim-lo dos olhos e continua:
"Desta vez, a pista deu resultado. Depois de longos esforos, a polcia conseguiu, e
nfim, deitar a mo ao
8i4
A EXPERINCIA
autor do crime. o cadastrado Janurio de Sousjl
'vivia ultimamente em Lisboa, Rua do CastanheMJ
lho, 320, 4.. O que, de comeo, dificultou as:iin3
gaes, foi o facto de tudo parecer indicar queiaM
minoso devia habitar a regio e no a capital, qttM
a mais de quatrocentos quilmetros de distnc||
Pilu ergue a vista: aja
... A voz de Clarinda sussurra apenas/!
treme-lhe quando se estende e recebe o jornal,3|
ouvido ler toda a notcia, mas quer l-la, ela prol
do princpio at o fim, como se precisasse dessa u^H
prova para acreditar. l3<H
As mulheres aguardam, impacientes. Lusa vaiaWJB
sando pergunta atrs de pergunta para no ijjl
romper. No lhe v o rosto, v apenas a largal^jH
impressa e os dedos do lado de fora, a segurarsnM
e a faz-la vibrar. So apenas duas dzias de hniB
mas ela tarda imenso. As mulheres continuam ateM
no mesmo silncio de curiosidade que as liga a tn[
elas. Finalmente, o jornal tomba, um curto rudsaJB
papel amarfanhado agride o ar. 'JJHB
Clarinda diz: 'B^B
Eu andava na rua quando ele parou na nto^^gi frente e me chamou pelo meu nome. A
princpio qftj| no o reconheci. J no era um rapazote; estava &JB um homem. Fiquei
com o corao aos saltos, T^jM gosto de o ver e porque pensava que ele tinha ragi
j para no me querer bem, pois eu nem sequer lhe aPjjS| recera das ltimas vezes que
perguntara por Hiini^*S| casa da Dona Ludovina. Parecia que ele tambm esta0"ji|
comovido por me haver encontrado. Tinha um sorf$*|j* doce, mas assim como se tre
messe, e repetiu o B*rt|| nome em voz baixa e muito meiga. Eu percebia *-? ele de
sejava dizer mais alguma coisa, mas no safof*^ por onde principiar. Comigo passav
a-se o mesmo, coiDQ se ele fosse muito importante e eu sentisse vergonw*
A EXPERINCIA
815
(je repente. Eu disse apenas: "H muito tempo que no te via". " verdade" respondeu
ele. E tornou a ficar calado. Umas vezes olhava para mim, outras baixava os olho
s. Estvamos parados no meio do passeio e as pessoas que iam andando roavam por ns.
Ento cheguei-me para o lado da parede, para ficarmos mais vontade. Cada vez senti
a maior desejo de falar com ele, mas parecia que a voz me faltava. Ele disse-me:
"Quando, h pouco, te vi, ali em baixo, duvidei que fosses tu. Depois fui-te seg
uindo pelo outro passeio at me convencer". No me perguntou o que me trazia por al
i, com a carteira sempre enfiada no brao. "Tenho muita alegria em ver-te!" torno
u a dizer. "Tambm eu" respondi. E era verdade. H muito tempo no tinha uma alegria
asdm. Conversmos um momento, mas sempre como se dissssemos coisas diferentes daque
las em que estvamos a pensar. Ele falava e ia olhando para a biqueira do sapato,
que se havia levantado um pouco e se movia dum lado para o outro. Depois, pergun
tou-me se eu queria tomar alguma coisa. Eu disse logo que sim, est claro. Por m so
rte, ele levou-me a uma das leitarias onde no nos deixam entrar. No lhe expliquei
a razo por que, ao chegarmos porta, lhe pedi para no irmos ali, mas julgo que ele
achou isso natural, pois no perguntou nada e foi andando comigo para outra leitar
ia. Quando nos sentmos, pareceu-me que ele estava mais senhor de si do que h pouco
. Eu tambm me sentia mais vontade. "Tens vivido sempre em Lisboa?" perguntei-lhe
. Ele disse-me que sim, que tinha vivido sempre em Lisboa desde que viera da te
rra. Depois, principimos a falar do Asilo e das freiras, mas sem nos referirmos a
o nosso namorico. A certa altura, creio que aquilo lhe desagradou, pois mudou de
conversa. "E tu disse-me gostas de Lisboa?" Eu encolhi os ombros. Ficmos ou
tra vez calados. Ele comeou, ento, a olhar para as minhas unhas envernizadas. Havi
a mais raparigas n.a leitaria, s havia mesmo raparigas como ns, porque as outras m
ulheres, j se sabe, no entravam ali. Ele passou a vista por elas e, depois, pergun
tou-me, com
At
8x6
EXPERINCIA
uns olhos cheios de amizade: "Andas na vidaagjl|
* verdade ?" Parecia que tinha pena, mas que, ao ttaSm
tempo, no estranhava aquilo. E como no 1M"
pondi, ps-se a bater de leve, com as pontas dos "iffjB
sobre a mesa. "Tu sabes ?" disse eu. Ele bautj|3
cabea e continuou a bater com a ponta dos^JjBBI
Pilu aprendia a fazer "tricot". Havia comeadeSil
blusa e o novelo da l verde-clara estava no seu J*ffJ
sobre a barriga do gato adormecido. A cor d^fpjH
confundia-se com a saia de Pilu e, se se olhavajliSjM
mente, s se via o novelo, aquela bola verde, qiptS
subia, ora descia, no regao, ao sabor da respg^Jj
do gato. Cesria sorria, maternalmente, enquanto/aSS
nava Pilu. Sorria dos seus dedos inexperiente^-dJB
pontos que eles faziam e desfariam, e daquele bfBB
decotado que, ao puxar o fio, se erguia de manmB
absurda, com esse ondular de serpente que tem oijajE
coo dos cisnes. "Nunca dispus de tempo para apreifflH
dizia Pilu. Em pequena, porque tinha derxoH
balhar; depois... depois, tu sabes, mesmo quando yjj
samos dias e dias sem fazer nada, parece que j$jil
temos tempo... Uma vez, ainda tentei, mas aborreci*""
logo. Isso bom para as outras mulheres". CesajB
tirou-lhe o pedao de "ricot", pegou nas agulhas?JBJ
ensinou-lhe a fazer o novo ponto. "Devias comear pfll
um "cache-col" e no por uma blusa, que tem (lue'|8|
lhe diga". "Ora! desdenhou Pilu, novamente. "irfflM|
no aprender, acabou-se!" Parecia que a sua indjMJ^
rena no se ligava com a sua idad^,, mas que ela ^ffiH
tava de se mostrar indiferente, como se fosse UBB
rapariga nova e estouvada. ' '41
Pilu voltou-se para Clarinda: ' piB
Desculpa ter-te interrompido. Ento como acMl
Os olhos de Clarinda ergueram-se e viram quer'4t" luz forte da janela que o ilumi
nava, o rosto de PWjgj" mantinha ainda, sob as rugas e as pinturas exager*Stf> da
s, uns restos da sua beleza na mocidade, como Jtffa", cinza dum bom cigarro se m
antm, por algum templo a marca impressa no papel que se queimou. lj<i
A EXPERINCIA
817
_ Ento ? insistiu Pilu.
_ Bem, ns passmos a ver-nos quase todos os dias- Ele falava comigo como se eu foss
e mulher s "ara s outros, como se ele fosse s meu amigo e jnais nada. Um dia, perg
untou-me como eu cara nisto. Contei-lhe, ento, o que me sucedera em casa da Lucrcu,
enquanto tive dinheiro, e como, depois, ela me Desprezou. No lhe disse de onde m
e tinha vindo o dinheiro, mas pareceu-me que ele adivinhara logo. Tambm no me refe
ri ao motivo por que eu tivera uma infeco e estivera tanto tempo doente. E no me re
feri porque ele parecia arrependido de ter puxado aquela conversa e ouvia-me com
um ar distrado, que eu via mesmo que era falso. Quando acabei, ele acendeu um ci
garro, ps-se a tirar muitas fumaas e depois asse: "A vida assim..." Eu andava, h mu
itos dias, cheia de curiosidade e perguntei-lhe, por meu lado, como se tinha dad
o ele em Lisboa e o que fazia.
Estava justamente a pensar nisso murmurou Lusa. De que vivia ele ?
Ora, de que vivia! Quando lhe perguntei aquilo, respondeu-me que estivera empreg
ado algum tempo e, agora, trabalhava por sua conta. certo que, alguns dias, ele
no aparecia e, depois, dizia que tinha andado a tratar dos seus negcios. Era ele q
uem pagava as despesas na leitaria e, uma vez, que eu quis pagar, no deixou. Mas
eu via-o sempre com o mesmo fato coado, sempre com o ar de quem no nadava em dinhe
iro. Havia nele no sei o qu que me dava pena. E claro, eu voltara a gostar dele. A
lgumas vezes pareCla-me que, depois do Asilo, no se tinha passado mais nada na mi
nha vida, que eu no havia gostado de mais ^ngum.
Lusa, de costas vergadas, retesava a meia da perna esquerda e a sua voz, como que
vinda do soalho, dir"Se-ia despropositada:
Compreendo...
Eu sabia que tambm ele gostava de mim. Basava ver como, s vezes, me fitava com u
ns olhos
^uito parados e tristes. Mas nunca ia alm daquilo.
8i8
EXPERINCIA
1 "1
Eu pensava que, se ele no me queria, erajj
eu tinha feito e pela vida que levava. E, endSj
desgostosa. Uma noite, reparei que, de quS
quando, dois homens passavam em frente' dif"
onde estvamos a conversar e olhavam deiWHJ
o nosso lado. A certa altura, ele viu tambwMJ
homens e pareceu-me que um deles lhe fazi^it3
com os olhos. Pouco depois, levantou-se e desjS
Era mais cedo do que de costume. Passei qifi
cinco dias sem lhe pr a vista em cima, mB
noite, ele tornou a aparecer. Trazia um fato^
camisa e gravata tambm novas. Estvamos nuriilj
e perguntou-me se, no dia seguinte, eu queriawI
passeio pelo campo... 'iaJ
O domingo distante volveu. As mulheres ti"
vindo Clarinda e o domingo distante ia-se abltf
novo, com o seu regato bordado de choupos e a"lM
verde, de largas comas e pasmados rochedos, <}u*l
giam da vegetao, numa expectativa de prJtH
mundo. O restolho, ardente de sol, havia fia<J8
trs; s a colina se via agora, mas a terra conflSlj
a cantar, como se algum houvesse passado feaj
deles, metendo a mo no saco e semeando poKfl
parte cigarras. Os dois iam ladeando o ribeiro, ,<&fl|
sombra dos choupos e ele com o brao nain|
dela; era assim que ela havia sonhado aos catoSg
era assim que havia sonhado. Quando, l eui.H|
perto da gua, se apresentou uma relva toda-Jow|
sua frescura, ele quisera ajud-la a descer,* JlVM
trazia sapatos de taces altos e, ento, ele pe$fij|
ao colo e, pela primeira vez, ela sentira aper^aei|
em volta do seu corpo os braos fortes dele. ^jj
cantava nas pedras, como as cigarras cantavan"Sjl
cima. As pedras impediam a marcha livre da^l
mas a gua ardilosa subia um pouco, movia-se^aMI
va-as e, sempre cantando, passava. Ela tirara os tpi
e ficara com os ps sobre a relva, a fruir nos pS5**|
aquela humidade fresca que a erva concentrar^
olhara para um dos choupos e, pensando nuTn<^5
castanheiro, perguntara: "Ainda te lembras do bJwi
A EXPERINCIA
819
que
te mandei quando estvamos no Asilo?" "Leni-
AL
bro-me perfeitamente" dissera ela, sem deixar de olhar a gua. Dissera aquilo e,
de repente, os seus vinte jjjos incompletos haviam-lhe parecido muito longos e m
uito congestionados. Mas a gua cantante recordara-Ihe que tambm aos humildes ribei
ros os temporais engrossam rapidamente, povoando-os com os destroos que as enxurr
adas transportam. "Parece-me que, naquele tempo, ramos felizes" tornara ele. Ao
ouvi-lo, ela tivera a sensao de que a sua vida anterior se encurtara instantaneame
nte, que o ribeiro se encolhera, que ela tinha de novo catorze anos, que tudo de
a em diante se apagara, que tudo o mais deixara de existir e que fora assim que
ela sonhara, que fora assim mesmo que sonhara. "Tambm agora me sinto feliz". Ele
no dissera nada. De sbito, porm, estendera o brao, inclinara-se e beijara-a longame
nte, como se quisesse englobar nessa hora todos os tempos perdidos no Tempo.
Mais tarde, confessou-me que escolhera aquele stio porque pensara que eu recebia
fregueses no meu quarto e no queria deitar-se na mesma cama... Eu jurei-lhe que no
e no mentia.
Clarinda fala e sobre as suas palavras a grande abbada volta a encher-se de astro
s. A terra quente continuava cheia de vibraes musicais. Asas invisveis, que haviam
substitudo as das cigarras, cantavam ainda no mistrio da noite estival; e de toda
a parte, do cho e do cu, do que se divisava e do que se pressentia apenas, dir-se-
ia exalar-se um repetido apelo Para secretas npcias da natureza. Eles regressavam
^vagar, brao no brao. Ela havia pensado, muitas vezes, que um dia assim j no seria
possvel na sua Vlda e, afinal, era possvel e, mesmo quando vinha a nite, cada palav
ra que ele pronunciava parecia acender uma nova estrela l no alto.
. Acreditou na jura que eu tinha feito e, nessa ttoite, dormiu no meu quarto. N
a segunda e na tera~*eira veio tambm e trouxe-me uma pequena pulseira fle ouro. Eu
no queria receb-la, mas ele garantiu-me
820
A EXPERINCIA
f que a havia comprado para mim. "Est bem; nijf
desejo que faas despesas por minha causa"*^-^
-lhe eu. "Ora que despesas! Se fosse rico, era-jM^
comprar o Mundo inteiro para ti" responderia
quarta-feira no veio. Na quinta tambm nStfl
manh, muito cedo, bateram porta e eu fnyp
ainda estremunhada. Dois homens entrramos
taram-me com o brao e comearam a melfil
tudo... Hjtj
Bem me parecia...interrompeu Lusa^] sbito mal-estar, como se ela prpria se encrt no
quarto, em frente dos dois homens. "psj
Um pegou nos meus brincos e disse: "Qilai deu isto ?" Depois pegou na pulseira e
tornou a tH "E isto ?" 11 < iM
O gato despertou no regao de Pilu e, qasOm
ergueu, todo a distender-se, o novelo de l verdedW
para o tapete. Foi nesse momento que o gaios-M
Espreguiou-se novamente e, depois, saltou. iRil
as outras mulheres julgaram que ele ia brincai 'dal
novelo, desmanch-lo, deixando um fio atravs d^H
como fazem os gatos novos assim que apanhafflrtS
novelo. Mas o gato, fatigado pela velhice, deu-llu4
nas uma sapatada e, quando Pilu ia intervir, $P
atravessava a sala, a caminho do corredor, indifB
bola de l verde. ! "lH
Um dia, recebi uma carta, onde me dizia Ji
tinha muitas saudades minhas e me pedia que jffl
visit-lo cadeia. Fui, est claro. Quando me *fj
ficou com os olhos cheios de lgrimas. Passei aifijj
todos os domingos. A princpio, no queria acSj
os cigarros e as outras coisas que eu lhe levav;^!
sabia porque era. Os outros presos parece que taiuHj
sabiam e punham-se a troar: "J que ele no qo|
d c. E, para a outra vez, no te esqueas de tffll
mais. Se puder ser dos americanos, dos caros, meli"
Ele, por fim, acostumou-se. Um dia, at me pediu-~<fl
lhe comprasse uma camisola... "Jjjj
Eram quatro da tarde. Pilu parecia mais farQWJ
rizada com as agulhas. A seu lado, Natalia recostara**
A EXPERINCIA
821
no div e cerrara os olhos, mas todas percebiam que e[a continuava atenta.
Esteve l uns seis meses. No dia em que saiu, tto veio logo ter comigo. S veio dois
dias depois. Eu sabia que ele no tinha vintm e perguntei-lhe onde dormia. Disse-me
que em casa duns amigos. "Por que no vieste para aqui?" tornei a perguntar-lhe.
No me respondeu e comeou a falar doutra coisa. Ento teimei: "V l se agora tens juzo".
"Pois claro que hei-de ter disse-me ele. Uns amigos ficaram de me arranjar tr
abalho". No acreditei naquilo e, de madrugada, quando o apanhei a dormir, meti-lh
e uma nota de cem escudos no bolso do casaco. Nos dias seguintes, ele no se refer
iu ao dinheiro, mas contou-me toda a sua vida em Lisboa. Ento eu soube que nunca
tinha estado empregado a valer. Nunca havia arranjado trabalho seguido. Se traba
lhava dois ou trs dias, era por acaso e isso mesmo s lhe acontecera raras vezes. D
isse-me que, como ningum o protegia, nem o recomendava, ningum queria saber dele e
que chegara a ter saudades da casa do patro que tivera na provncia, porque l, ao m
enos, comia, enquanto em Lisboa andava cheio de fome. Mais tarde, conhecera outr
os que tinham a mesma vida. Fora, ento, que o prenderam a primeira vez. Ao ouvir
aquilo, eu no estava tranquila e perguntei-lhe o que ia, agora, fazer. Respondeu-
me que tinha muitas esperanas e que eu ficasse sossegada. Mas eu no fiquei sossega
da, qual o qu! Quando ele se punha a falar, falava mal de tudo e de todos, como s
e j no acreditasse em coisa alguma e ningum fosse bom neste Mundo. Era isso que me
afligia, pois se ele pensava assim de toda a gente, como que, ao mesmo tempo, ac
reditava que lhe iam an"anjar emprego? De quando em quando, eu continuava a mete
r-lhe dinheiro na algibeira. Uma vez, ele deu-se por achado e disse-me: "Custa-m
e que estejas a incomodar-te por minha causa. Nem tu imaginas Quanto me custa! M
as, um dia, hei-de pagar-te tudo. A maior alegria que eu posso ter ser no dia em
que "-e tire dessa vida que levas".
822
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
823
Dona Fortunata entrara pela mesma porta pej
o gato sara pouco antes e atravessara a salatqj
seu andar pesado e lento de patroa. Ao renta|)|
os olhos desceram-lhe, um momento, sobre asa*
que faziam "tricot" e logo se ergueram, carregado!
sombra, em direco outra porta, onde, enfiai
desapareceu. **>ivs
Quando tive aquela nova doena, ele (jpan
quase todo o tempo a meu lado. Dava-me n"i
mdios, cuidava de mim, fazia tudo quanto ,ei"
cisava. Eu tinha cada vez menos dinheiro, ujlji
Antes de haver adoecido, ganhava pouco, porqup h<
raparigas de mais nas ruas, muito mais do quea
gueses. - ai
Clarinda voltou a ver os medicamentos e orvc
com uma colher sobre o "napperon" que havia naa
-de-cabeceira; os postais e a imagem do Sagrado Con
de Jesus, muito vermelho, na parede; ao canto, onto
trio e o jarro e, em frente da cama, a janela do <Jw
andar, de onde, por cima dos telhados, se enxeg
o Tejo, marchando vagarosamente para a morefi
mar que o esperava ali prximo. QI
Ele queria que o mdico viesse mais vezes
que vinha e, um dia, disse-me: "Se por causU
dinheiro, no te rales, que eu arranjo-o". "Comi
arranjas tu ?" perguntei. "Bem respondeu-np
os meus amigos j me emprestaram algum e estou"<8
que podem emprestar-me mais. So eles que vo aEB
jar-me o emprego e sabem que, depois, eu pago. ON
preciso tu ficares boa". Eu no acreditava nada a
tais amigos e dava-lhe sempre conselhos. Ele rep"
que eu ficasse descansada e que em vez de estar "9
aquilo, pensasse no nosso futuro, pois agora era o>
coisa sria. Quando me curei, disse-me: "AmanM
depois no venho c, mas no te aflijas, que na*
por nada de mau". Perguntei-lhe porque, se no^l
nada de mau, ele no dizia o que era e ele respH
deu-me: "Depois vers"; e, ao dizer aquilo, sorria, as*
como ns sorrimos para as crianas quando vari
fazer-lhes uma surpresa... -^
aia
Dona Fortunata voltava do outro lado da casa e, em frente de Pilu, no se conteve
e berrou:
So horas dos clientes comearem a chegar. Se quer fazer "tricot" v para o seu quarto
. Isto, aqui, no uma casa de famlia! At os homens perdiam o entusiasmo se chegassem
e vissem as mulheres a fazer "tricot". Ouviu?
Dona Fortunata atravessou a sala com um andar nervoso. As cinco mulheres viram-n
a sair e todas ficaram com vontade de lhe bater.
VIII
78." TARDE
J todas sabiam que Pilu descia porque tinha de descer, j todas o sabiam; um dia, e
las desceriam tambm, porque fora sempre assim e no se conhecia uma s pessoa, um s bi
cho, um s vegetal, que conservasse sempre a juventude. Unicamente o sol que visit
ava a sala parecia no envelhecer. Unicamente o sol subia nas paredes enquanto ia
descendo para a linha do horizonte e descia pelos troncos das rvores enquanto ia
subindo na abbada celeste, orgulhoso de caminhar ao contrrio dos homens.
Dona Fortunata tinha os braos arqueados e as mos sobre a cintura, mas as suas pala
vras soavam to violentamente como se as mos estivessem a gesticular e a emprestar-
lhes maior fora:
Ainda por cima respondona! Saia! Saia j de minha casa! Muita pacincia tenho tido e
u! Outras, no meu lugar, j a haviam posto no olho da rua!
Era tambm assim que ela despedia as criadas. As outras mulheres estranharam o siln
cio de Pilu e olharam-na discretamente, sempre espera de a ouvir reagir, como de
costume. Mas, pela primeira vez, ela
824
EXPERINCIA
1 4
* tomou expresso humilde, baixou lentamente osdl
e no disse nada. O gato despertou com aaJH
dedos que tremiam sobre o seu ventre. Dona Fanl
nata parecia aguardar tambm que Pilu a insutSB
Sempre de mos nas ilhargas, demorou-se em ffj
dela alguns segundos e, depois, como o silncio nfMJ
seguisse, gritou ainda: "Hoje mesmo!" E partiu. ctMB
As outras mulheres viram que os olhos de KSH
humedeciam, que a sua cabea se vergava e comSjM
a chorar forte. ''31
Elas queriam consol-la e no sabiam como fazH
O sol subia devagar e indiferente para a jarra tl
tinha as flores de papel. * W
Deixa l disse Lusa. Eu you falar com aB Lusa saiu da sala e, ento, as outras mulhe
res,*B|
sem receio que Dona Fortunata as ouvisse, princfgH ram a censur-la: *j|
Ela teve a sorte de tornar-se patroa, mas/^H no fosse isso, eu queria ver! Teria
de andar, naqdH idade, a pedir esmola por a, como as outras. DedB que teve sorte,
esqueceu-se de que foi como ns..,'< **
No chores, a Lusa h-de convenc-la... ' mflB L dentro, Dona Fortunata dizia: 41 No, n
e no! No me peas isso. Goste^H
te fazer a vontade, bem o sabes, mas isso no IJJU peas tu. Estou farta de a a
turar! Demais a niawH era preciso que eu fosse rica para deixar estar aapH uma m
ulher assim. Sabes quantos clientes ela tevejlgB ltimos dois meses ? Pois eu te di
go: no ms passad^B cinco; no outro, oito, mas isso mesmo foi por catujU daquela e
squadra que esteve em Lisboa. Se ela ntlf tem dinheiro, a culpa no minha. Que o
guarda^K enquanto o ganhava! 13~M
Na sala, as mulheres calaram-se quando ouvira(r)^ os passos que voltavam. Pilu e
rgueu os olhos e souWjjiJo que Lusa tinha para lhe dizer, antes mesmo diP* Lusa
falar. jJJ
rj* il*
TODOS ELES
6. DIA
/NEGUNDA-FEIRA um dia despovoado depois do movimento que as missas provocam ao d
omingo. Raramente passa algum na praa. Na cela, segunda-feira parece um dia de des
canso, imensamente longo e bocejante. A prpria arvola viva, quando pra os movimentos
da sua cauda e fica muito tempo quieta sobre o telhado da igreja, dir-se- tambm c
ontagiada pelo tdio das horas que no terminam mais.
De repente, porm, o vazio do dia enche-se e todos os presos ficam atentos. Era co
mo se Janurio houvesse comeado a puxar o corpo de segunda-feira, cinzento e chato,
de baixo do grande peso morto de domingo. At o Malafaia, que amava a mudez e a q
uietao, se acercara. E os seus olhos ora vinham, ra se afastavam, como se seguissem
atrs das pala^ias, a v-las transformarem-se em pessoas e em actos.
Eu conhecia todos os cantos da casa e sabia nde ele guardava as jias da falecida m
ulher e tambm onde metia o dinheiro; por esse lado no havia enipeno. Como eu tinha
sado h muito c da terra,
J
826
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
1 4
* pensei que ningum se ia lembrar de mim. Pensei
bem que no devia dizer nada aos outros, pois, q\
so muitos, descobre-se tudo com mais facilidad
noite em que resolvi definitivamente, havia luar. '
as noites seguintes, eu chegava janela do qua
Clarinda e olhava para o cu. Em Lisboa pass
anos sem vermos a Lua, mas dali, que era um i
alto, eu via-a perfeitamente. Algumas noites, ela,<
em cheio no Tejo e, ento, parecia que o rio ff
muito devagar, e era todo de oiro. s vezes, eu S
ansioso de que voltassem as noites escuras, mas oi
vezes no tinha pressa de que elas voltassem, pois
lembrar-me do negrume da estrada que passava
frente da casa do doutor Carrazedas, via-me a ai
por l e a saltar o muro, naquelas trevas e naq
silncio, e sentia medo...
"O Sbio" deixou cair o seu riso mais grosso...^
A fabricar ovos moles de Aveiro que tu e vs bem...
Eu tinha medo, que quer ? Mas, depois, sava na pistola que levava e isso dav
a-me coUg O pior era o dinheiro. Se quisesse contar aos cora nheiros a minha idei
a, eles emprestavam-me certastM o suficiente para o comboio. Mas como no qpM di
zer nada, vi-me em apuros, tanto mais que ' devia a quase todos eles. Tive de empe
nhar as OT coisas e ainda de pedir dez escudos a este e vinte <jQ para completar.
Eu queria poder voltar imediatafnj para Lisboa, tivesse ou no tivesse sorte... '
A emoo secara a garganta do Palhetas e ele^ brou-se das mas que a mulher lhe trouxer
a na''81 pra. Abriu o saco e iniciou uma segunda ddiva $ outros. Fazia aquilo em s
ilncio e muito pachorrefl mente, para no interromper Janurio. 'J!
Parti de Lisboa quando o luar acabou. Mas i. vim direito estao daqui, no, no vim, pa
ra evj que me reconhecessem. Desembarquei em Calhoucei fiz a p, de noite, o resto
do caminho. Ao amanheb escondi-me na serra e passei ali o dia inteiro. D(r) eu v
ia, ao longe, a casa do doutor Carrazedas, bp
827
(ja estrada. Quando pensava no que tinha sofrido naquela casa, desapareciam-me o
s remorsos que, s vezes, sentia, antes mesmo de fazer o que ia fazer... Eram umas
mas grandes e bonitas as que Palhetas distribura, todas coloridas, como essas que
as vendedeiras expem flor dos cestos, para atrair os compradores. Malafaia pegou,
sem pressa, na que lhe fora dada e meteu-a no bolso. "O Sbio" ferrou logo os den
tes na sua, tirou quase metade e desatou a comer com fora.
Calculei bem o tempo e s por volta das onze da noite comecei a descer. C, a vila,
ainda se encontrava toda iluminada, mas, l para as bandas onde vivia o doutor Car
razedas, j s havia duas luzes acesas e eu sabia que, antes da meia-noite, tudo fic
aria no escuro. Eu vinha devagar, pois se me custava estar mais tempo parado na
serra, no queria tambm entrar na casa antes das trs da madrugada. Quanto mais desc
ia para o vale, melhor ouvia as horas que dava aqui o relgio da igreja. E, cada
vez, as horas me faziam bater com mais fora o corao...
Janurio olhou para a boca cheia do "Sbio" e uma lembrana veio-lhe da noite:
Naquele momento, o que eu gostaria no era de ir roubar, mas sim comer, pois dura
nte o dia s engolira uma bucha que trouxera de Lisboa...
Calou-se um instante e ajuntou:
Finalmente, cheguei estrada...
Palhetas mastigava lentamente, como se no atentasse no que fazia ou quisesse derr
eter a ma na boca, Para suavizar a sua garganta seca, onde dir-se-ia que a estrada
se enfiava.
Antigamente ela era branca e enchia de p o ar quando passavam carros de cavalos o
u os primeiros automveis, que os homens, as mulheres e as crianas vinham ver s port
as, muito admirados daquelas novas Mquinas que corriam por si prprias. Nuvens de P
oeira rolavam, sopradas, tapando a viso e apagando, Pr momentos, quem ia a p; mas a
estrada era branca e> noite, luzia como uma promessa de bom destino.
828
A EXPERINCIA
Agora, a estrada encontra-se revestida de alcat j no h desvairados rolos de poeira q
uando o&( mveis transitam; mas, noite, tudo escuro, a^jy funde-se com a noite e t
udo misterioso e escuS a grande casa continua a branquejar no negrume^! mecido;
a sua brancura, porm, amedronta ddtS amedronta mais do que a prpria escuridade, a sf
l que avana e comea a agir prudentemente. > ,ffi
Depois daquilo, a porta cedeu. i j
No compreendo disse "O Sbio", com rafe i de surpresa. Se tinhas a tal janela de
guilh por que te empenhaste com a porta ? KI
Foi porque a escada das vindimas, quef cot
mava arrecadar no alpendre, no estava l nessatfl
Mas isso no me fez mossa, porque eu tinha-me$f
venido e a ferramenta que trazia, no era m. Dean
a mais, foi um rudo de nada. claro que, antes
entrar, estive muito tempo escuta e, logo que <o$
l dentro, parei de novo. Convenci-me de quests
estava a dormir. Havia mais silncio do que num> p8
Qualquer outro, no meu lugar, teria feito a mH
coisa... "VW
Hum... duvidou "O Sbio". Parece-meJffl tens mais vaidade do que arte... -^l
Se eu lhe digo que foi um rudo de nada! Al "O Sbio" no contestou, mas manteve o
seu dnl
dvida: 'f
E depois ? *rj
Depois, acendi a lmpada de algibeira. A lm
meira coisa de jeito que vi foi a jarra que estava^
cima do piano. Mas pensei que me ocuparia as m$|
e que at podia partir-se e desisti. O quarto onde m
guardava as jias ficava a meio do corredor. O 'EM
desejo era levar a lmpada numa das mos e na o^H
a pistola, mas as pontas soltas do leno, com qu"|
tinha coberto a caia, roavam-me o queixo e faziam*!
nervos. Tive, ento, de segur-las com a mo esquepaf
para ir mais vontade... ^np
Janurio interrompeu-se ao ver o sorriso piedfiwl das barbas do "Sbio".
A EXPERINCIA
829
Por que que voc est a rir ? No digo mais nada, acabou-se! Mas se voc sabe fazer tudo
melhor do qUe os outros, por que se deixou apanhar e est aqui ?
"O Sbio" continuava a sorrir. Palhetas olhou para um e para outro e aquela atitud
e deles pareceu-lhe absurda, justamente no momento em que ele estava mais intere
ssado.
Ande, diga o resto pediu. Diga o resto.
Janurio continuou calado. "O Sbio" tinha a certeza de que sem a sua interveno ele no
voltaria a falar.
Ainda ests muito peludo! disse. Amuas como uma criana. No h dvida, o que te falta u
m bibero... Conta l, deixa-te de tolices!
Se voc torna a fazer pouco de mim, no digo mais nada...
Est bem... Est bem... Ento tu foste pelo corredor adiante...
Embezerrado, Janurio no atendeu logo. Palhetas olhava-o, tambm contrafeito. Para a
sua dbil imaginao a cena interrompera-se logo que viera aquele silncio. Ele no via ma
is alm. Era como se se houvesse erguido um muro e a cena se fixasse no muro, perd
endo, pouco a pouco, as suas formas e desbotando como um velho fresco. "O Sbio",
ao contrrio, visionava Janurio a hesitar no princpio do corredor, com um fio de luz
volante a sair-lhe da mo, as pontas cmicas do leno sobre o queixo e, em todos os g
estos, uma grande falta de habilidade. E sentia novamente desejo de rir.
Janurio recomeou:
As jias costumavam estar no fundo do armado, numa caixa de metal, pois, uma vez
, eu tinha visto o doutor Carrazedas ir busc-las ali, para mostr-las ao doutor Ma
cieira. O armrio andava sempre fechado, mas eu contava com a ferramenta. Fique
i contente ao ver que no quarto tudo estava como antes e comecei, ento, o trabalh
o. Pode estar certo de que trabalhava com muita ateno. Mais cuidado ningum teria. M
as, de repente, pareceu-me ouvir um rudo de
83o
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
831
* passos. claro, apaguei logo a lmpada e tirltJB
tola do bolso. Que que voc faria no meu>4j|H
A luz do corredor acendera-se. Eram uns |3M
firmes, pesados, de quem no tem receio. PatSfl
encher de segurana e, ao mesmo tempo, de jaquB
todo o silncio da casa. Ele conhecia muito benj tf^l
passos. De quando em quando, sentia que eles sayH
nham e ouvia dar a volta aos comutadores. '' ~^
Percebi logo que o doutor Carrazedas iaaljH
nando os quartos, para ver se estava l alguminHaM
virei-me para a janela. Eu sabia que o andar enfiM
e que podia partir as pernas se saltasse, mas, 'nlmB
assim, tinha resolvido saltar. Num instante, aJbmH
portadas; o diabo foi a janela de guilhotina estar! |tiH
Eu fazia fora para erguer a parte de baixo; ela-sjjB
um pouco dum lado, mas no subia do outr<fc"M
batalhava com aquilo, sempre a ouvir os passos, qttflfil
a luz do quarto se acendeu. S tive tempo de voltlB
Ao ver o doutor Carrazedas na minha frente} '"pH
num instante, todas as foras... ''"^H
Ele no conhecia s os passos; conhecia taajijB
aquela espingarda, aquela espingarda bonita, deofllM
canos brunidos e bela correia castanha, com a 3B
o doutor Carrazedas se distraa por montes ehSM
em dias santos ou feriados. Muitas vezes, ele mffllij
ao fazer a limpeza da casa, a tirara do seu lujpriH
a apontara, num simulacro, para os serzinos quo ag|
tavam nas videiras, ou para os frutos da laranj*H|
que se patenteava ao fundo do quintal; e teria |M
feliz se pudesse experimentar, duma forma realistfljBj
sua pontaria. Mas esse tempo j passara h muitH|
agora, era para ele prprio que a espingarda se apJM
tava. Ele via aqueles dois canos que iam subindo jj
a altura dos olhos do doutor Carrazedas e umviali
olhos a fechar-se por detrs dos canos; uns olhos f**5
sem medo, como se fossem atirar a um troncoCT^
rvore. Ento, as suas foras esvadas tinham voMWr
^fgA
subitamente e dispararam a pistola contra aqueles Ww* cos que seguravam os canos
, contra aqueles ol"w contra tudo. 'ul3^
No sei bem o que se passou. Eu tinha perdido
cabea. Ele ainda me deu um tiro, mas parece que de lado, assim como se j no pudesse
com a espingarda; depois a espingarda caiu e ele afastou-se do meio da porta, p
ara se encostar parede. Desatei a correr, passei mesmo junto dele e continuei a
correr
6j quando cheguei estrada ainda ouvi os gritos que dava a senhora Germana, uns g
ritos to grandes que eu julguei que o havia matado.
Janurio interrompeu-se e todos os outros ficaram calados: o Palhetas olhava para
o cho e o Malafaia fechara os olhos com indolncia.
S em Lisboa soube, por um jornal, que ele no tinha morrido...
"O Sbio" levantou-se e disse:
o negcio mais arriscado que h. Tanto trabalho, tantos perigos, agora vais apanha
r uns bons pares de anos de cadeia, ol se vais!, e, afinal, voltaste para Lisboa
sem cheta. Mesmo com sorte, um negcio pouco rendoso. No me consta que algum tivess
e feito fortuna com ele...
Os olhos do "Sbio" pousaram sobre o saco das mas e, depois, rolaram para a cara do
Palhetas.
Pode ser mais uma ?
Palhetas abriu o saco e deu-lhe outra ma.
II
21.0 DIA
\_jIR-SE-IA que, tendo o fio terminado, ela se esquecera de pousar o trabalho, s
e esquecera das suas mos e do que as suas mos estavam a fazer, e come?ara a andar
na cela com o pedao de l entretecida, aRuele "tricot" que se via entre as agulhas,
to verme"to e to achegado ao peito como entre as pernas dos Camares os germes da s
ua descendncia.
M
832
A EXPERINCIA
i
j Pela primeira vez, Janurio divisava-lh|i|^
rosto, quando ela cortava o raio de sol horizcafiM
entrara na cela. As grades ora lhe enqnadrjjflB
cabea, num caixilho de ferro, ora lhe divdifflB
corpo em pedaos, maneira das esttuas fcfeMfl
vrios blocos. 'l^fil
Era uma cara de linhas speras, mas suava^fijj
no se sabia qu, alguma coisa que descia dos3|
uma amargura ou um retraimento. Pareceu wteB rio mais nova do que a julgara at ali
, ao v-IarJS(H com o cabelo desgrenhado, os sapatos tortos e a 4w8 negro a esfarr
apar-se. < JS^Jj^
Desde a sua enxerga, os olhos de Malafaia segta|| igualmente, no benefcio imprevisto
que o sol ItePMB seguiam de pupilas brilhantes, famintas, as suasajp bem redonda
s, os seios bem salientes, os lbioeli(| dos seguiam-na como se ela fosse a nica pasS
j^M dum cargueiro que no escalasse porto algum'." '^ Pela expresso do velho Palhetas,
subitamen$^P ter e depreciativa, Janurio compreendeu queslHp bem o campons dera co
nta do milagre quewbgif realizara do outro lado. S "O Sbio" parecia BlM| a tudo,
contemplando a praa desde as grades. swjP Aquilo viu que no tinha com que o siStwH e
pumba! disse Janurio, isoladamente. '[?&*$ Parecia que todos os presos ev
itavam referi^WI ela. Quando Palhetas lhe contara o caso, fizera-tf5** m vontade
e apenas porque ele o instara. I)*?fJ disso, mostrara-se sempre severo.
E, agora, saW* campo com o mesmo torn: l> *
Ora! Ora! H muitas em iguais condies e nfr vo, por isso, matar os filhos. Js
No digo o contrrio, mas se voc fosse patll sempre queria ver se aceitava uma criada
com Wf filho de mama nos braos. Demais a mais, no te*~? famlia a quem o deixar... >
*(r)
Se ela fosse boa rs, pedia esmola, roubava, a*W tudo, menos isso. ^9f.
Palhetas abriu um gesto de repulsa, a estabelea*" definitivamente, que tinha nojo
de falar daquilo. &*&
A EXPERINCIA
833
iesejo forte de o contradizer tornava a subir no espnto de Janurio. Ele no sabia po
rque sentia aquele desejo intil, pois estava de acordo com o Palhetas. j(as era c
omo se tivesse necessidade de opor-se a si prprio. ^
H ainda a vergonha de ter um filho sem pai legtimo... Quem sabe se o tipo que lho
fez no a abandonou em seguida?...
Deixe-se l disso! volveu Palhetas, sem poder manter a sua resoluo de no se ocupar m
ais daquilo. Quantas mulheres tm tido filhos assim, e aguentam-nos! Vergonha, por
qu? No h nenhum animal que tenha vergonha de ter um filho, de o ter e, at, de o faze
r vista de toda a gente, se for preciso.
Ento voc compara um ser humano com um animal ? No querem l ver!
Palhetas virou-lhe as costas e comeou a mover as suas faces chupadas, a mov-las se
m descanso, como se mascasse alguma coisa.
Na terceira cela, haviam principiado a cantar ilegalmente, confiantes na tolernci
a que o carcereiro manifestara de outras vezes. Embora num torn discreto, era um
a cantarola alegre e fresca, decidida a estrangular as tristezas que moravam den
tro das grades.
Aqueles levam-na boa...comentou Janurio, perante a indiferena dos companheiros. No
fazem mais do que abrir as goelas...
"O Sbio" largara a passear. Passeava com sobranaria, muito silencioso, de mos atrs d
as costas. Se s da terceira cela estivessem na segunda, se ele pudesse v-los dali,
como via a rapariga atrs das grades viziihas, ter-lhes-ia enviado um berro para
que se calasSem. Mas com os outros no havia mais comunicao alrn do ar, aquele maldit
o ar que transportava a cantoria e o obrigava a reprimir-se e a suport-los.
A carta jazia sobre o caixote para onde ele a atirara, quando o carcereiro lha t
rouxera. A alvura do sobrescrito contrastava com o amarelo velho da madeira. Ele
lanara-a para ali, porque lhe parecera uma ^ferioridade evidenciar qualquer pres
sa em l-la. E ia
27 Vol. Ill
JM
"34
A EXPERINCIA
- e vinha, duma parede a outra, sem jamais >M
O prprio Palhetas, mesmo assim tapado dota
pressentia naquilo uma vaidade pegada e, fm
Janurio e Malafaia, desinteressara-se da stj|
tude. M
"O Sbio" prosseguia no andamento, semprei^
alta, mas ia pensando sobre quem podia serjf^j
sando que s uma vez sara da freguesia e qu$i$
tambm uma vez s, vinte e quatro anos depS*
fora sequer sua aldeia, fora directamente '. 9(8
da Piedade. aldeia, para qu ? Os pais havlsHi
rido h muito; irmos ou parentes mais chegaSjMj
tinha. Dos vizinhos, no guardava de nettttHf
recordao, nenhuma boa recordao da sua sfe
a apanhar bofetadas, pontaps e bosta nas ttfi
Apenas um garoto e uma garota, companheiros
guedos e de castigos, se mantiveram, durantffl
anos, na sua memria, com toda a simpatia de #|
Mas, quando subira de moo para marinheif&t"sW
mandara a novidade, no lhe haviam dado Treji
Ele no estranhara e nem de leve pensara que twl
morrido, pois nessa altura j sabia que as pessoa"
vivem em terra esquecem facilmente as que ipOt
a vida dum lado para o outro no mar. R ^
"O Sbio" bocejou duas vezes, alto e prolong)
mente, para resguardar, com uma expresso de'<W
cncia, o gesto que ia fazer; depois, ao passar em
do caixote, estendeu o brao e agarrou o sobre2l
Abriu-o e ps-se a decifrar a carta muito pertcw
olhos, como quem mope e vai lendo na ru/>l
nunca se deter: *
"H quatro meses que tenho estado beirA*
morte, com uma grande doena, e por isso s "
lhe escrevo. Disseram-me que voc pensa mataf*
quando sair da cadeia. Eu no tenho medo de si, j
ter a certeza, pois no qualquer lobisomem que
faz arredar p do meu caminho. Mas, porque a.$j
dade a verdade, sempre quero dizer-lhe que0 *w|
anda muito enganado se julga que fui eu que o drfjjj
ciei. you provar-lhe que numa porta se pe o railw
A EXPERINCIA
835
noutra se vende o vinho. Se quiser lembrar-se de como as coisas aconteceram, log
o ver que no poderia ter sido eu e que isso so calnias de algum que me quer mal. Ora
veja bem se se lembra de que quando o seu companheiro, depois de furar a barriga
do outro, deu s de vila-diogo e voc para que ele tivesse tempo de fugir, puxou ta
mbm da navalha..."
" Sbio" deteve-se, enfim; encostou-se s grades e continuou a ler, cada vez mais apr
essadamente. Leu uma vez, leu duas vezes; depois, cismtico, com a carta aberta en
tre os dedos, quedou-se, um momento, de olhos na praa deserta e neutra. Atrs dele,
Malafaia encontrava-se estendido de abdome para baixo, os cotovelos apoiados so
bre a enxerga e as faces metidas entre as mos, como era de seu hbito. "O Sbio" entr
egou-Ihe a carta e tornou a passear atravs da cela, de plpebras semicerradas e ass
obiando baixinho, sem dar conta de que assobiava. Palhetas mirou Janurio, em silnc
io, e o seu olhar imobilizou-se com essa expectativa do co que ouviu um rudo ao lo
nge e olha antes de ladrar.
Malafaia lia vagarosamente, extraindo de cada palavra todo o sumo que pudesse te
r. A sua posio na cama acabou por lhe ser incmoda e voltou-se de ventre para o ar.
Encolheu as pernas e ficou de joelhos em ngulo, mais altos do que a cabea, no jeit
o dos dentes de cimento-armado sobre a terra defendida contra tanques.
Malafaia leu, tambm, duas vezes. "O Sbio" parava e divagava o olhar pelo punhal e
pela cruz que ele Prprio havia desenhado na parede. Ento, Malafaia dobrou lentamen
te a carta e, num esgar irnico, devolveu-lha. Ao "Sbio" no contentou aquele sorriso
.
Que dizes ? perguntou, num torn que parecia repreender.
Malafaia fez um gesto vago:
Que queres que eu diga? Parece que no foi ele... Janurio e Palhetas viram "O Sbio"
hesitar, meter
a carta no bolso e olhar, de novo, para a parede onde estavam desenhados o punha
l e a cruz, olhar de relance,
836
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
837
' 4
.1
como se desejasse que ningum o visse. Depe&g
tou-se para o lado das grades. >sa
A praa continuava vazia. Um vazio, ca2
mais agradvel, criara-se tambm no esprito do <jKH
um vo iluminado num bosque onde, magidaS
sem ningum lhe tocar, uma rvore venenosa se'sna
num instante, pela terra adentro, deixando todaqH
clareira. , 'rtjj,
Ele olhava a praa e no via a praa; viacup
o homem no cais, l longe, no tempo e no\^m
com o p esmagado e, em volta, as pessoas quejhjpi
acorrido e se vergavam ligeiramente para obs^MJ
sapato a pingar sangue. De vez em quando, o:,faaa
mordia os lbios, como se mordesse a sua t-s
dizendo: "Percebi logo que o camio vinha deal
rado ao ver aquele brao a agitar-se fora da xm
e eu sabia que ele era surdo. Eu andava zangada
ele, pois, um dia, ofendeu-me e fez-me perder a aj(
O homem tinha um s p no cho; o outro esteta
ar, a um palmo da terra, meio encolhido e senffl
pingar sangue da ponta do sapato, que se vifj
esborrachado pelo camio. Queriam lev-lo dafiy|
ele teimava: "No, no se incomodem; j telefoiMg
vale mais esperar a ambulncia". Firmava Oslsj
sobre o ombro de outro homem e estava muito p|
sempre a morder os lbios por cima dum sorrispow
nado. "Eu andava de mal com ele e tinha muita ^
para isso. Mas, ao ver o camio, pensei que >aoj|
diabo era um homem como eu, pensei que antdff
estarmos zangados, sempre me parecera um hoJ^
como eu e que no era l por causa duma zangaKj
ele deixava de ser um homem igual a mim, tanto iff
que os que no estavam de mal com ele julgavas^
um homem como qualquer outro. Foi, ento, que <?<
e o tirei ainda a tempo daquele perigo e no haSjj
novidade se o camio no tivesse dado, de rep
meia volta, apanhando-me o p com a roda". l
"O Sbio" voltou-se: \f
Um cigarro... Ainda tens? 4
Janurio abanou a cabea. De cara desolada/J
lhetas tirou do bolso um invlucro j intil e amarrotou-o entre os dedos:
Agora, s no domingo, quando vier a minha
patroa...
Um automvel passou, levando, enfim, o silncio que havia na praa. "O Sbio" endireitar
a o tronco e parecia alargar toda a orelha direita quele rudo, como se quisesse so
rv-lo enquanto no se extinguia no declive do planalto. Depois, sempre com o sapato
longnquo a verter-lhe sangue nos olhos, avanou at a parede do fundo e, puxando o s
eu leno velho e sujo, ps-se a apagar o punhal e a cruz. De quando em quando, cuspi
a no leno e voltava a friccionar a parede. O negro do lpis ia-se distendendo como
uma pincelada larga com pouca tinta; mas, sob o borro, continuavam a distinguir-s
e as linhas dos dois instrumentos de morte. Janurio via aquilo e ouvia a voz da i
rm Sacramento, que ressuscitava na sala do Asilo: "Limpa esses vidros do armrio, p
orque amanh dia de Pscoa e vem c o senhor abade". Pareceu a Janurio que ele prprio ia
rolando no tempo falecido e que tudo se esfumava sua frente.
"O Sbio" tornou a investir contra os desenhos, com fora, quase com raiva, como se
esfregasse a parede. Quando, por fim, guardou o leno, tudo se ligava dentro e for
a dele. Ele no gostava de estar sentado.-Contra as grades ou andando, era de p que
moa os dias. Mas, depois daquilo, cobrira com as suas grandes ndegas todo o caixo
te. Tudo se ligava, sem ele saber Porqu: a curiosidade de Janurio, que ele at ali r
epelira, vingando-se das reservas que Janurio, a princpio, mantivera; o asseio que
sentira no esprito, logo lue metera o leno sujo no bolso e, ainda, aquele alvio lu
e parecia forar uma porta e romper para a claridade, expor-se, comungar com os ou
tros, fechar o primeiro abismo.
. Janurio ouvia-o falar com uma voz repousada,
1Jidicando Malafaia:
Se eu no o houvesse desafiado, ele no desa^arrava de l. Conheo-o muito bem. Preferia
ficar
838
A EXPERINCIA
" .i
tleitado com uma fmea, no Porto, ou esteuJM
beliche, com uma garrafa de aguardente debajB
travesseiro. No assim ? '^U
Da sua enxerga, Malafaia sorriu uma apjjiB
nublada e indolente: lll>itt
Cada um para o que nasceu... r/$"
-1- Em vinte e quatro anos, eu s fundeargBjeHJ
xes uma vez. Andava sempre de proa feits az<m
portos e vir ali era quase uma novidade p^M
Pareceu-me que devia aproveitar a monct^/Jail
barco ia demorar, para substituir umas peas, epfw|
o comandante no nos diria que no. Mas &4ltt
no mostrava nenhum entusiasmo em vir. JTtyalj
sarmos em frente da costa, eu tinha-lhe difto$l]
acol, no cimo da ltima serra. Se pegares nu^w
culo, logo vers uma capelinha branca". LeJ$fel{|l
Malafaia fez, de novo, um movimento cpiS
Em Leixes, insisti com ele, disse-lhe qw uma romaria bonita e, j que calhava estar
iafSl no seu dia, no devamos perd-la. Apanhando a" neta, em menos de duas horas cheg
aramos'l&l ento, concordou, mas eu bem percebi que *3M| para me fazer a vontade do
que por seu desejo;'P3 que adivinhava... 4>S|
"O Sbio" ergueu-se e aproximou-se das gtfKBJ corredor, depois das que davam sobre a
praa wsjM pr sentir aquela ausncia. Caminhou ale fcjj enxerga, suspendeu o coberto
r pelo meio, criodlq uma forma de pirmide, e logo o deixou cair s& com aquela ausnc
ia de tabaco na garganta, "U|j insatisfeito vcio em todo ele. <3J
Quando o ouviram dizer: "Antigamente", os <&& compreenderam, pelo torn, que ele
saltava dos ipi gais do seu passado para o presente, um presente Jlf sem, ao men
os, duas ou trs pontas chupadas col9l quais pudesse fazer um novo cigarro. s L
Antigamente, depois de terem proibido as 4" ainda havia quem nos mandasse alguns
tostes, -f intermdio do jornal c da terra. Mas, agora, paBl
A EXPERINCIA
839
flue toda a gente modesta e j no tem gosto em yer o nome publicado...
Os outros ficaram calados. A luz, que vinha de fora, batia na cara emagrecida do
Palhetas, mas ele, de cabea baixa, dir-se-ia ainda mais silencioso do que os out
ros e de todo indiferente ao que ouvia. "O Sbio" recordou-se das cartas que escre
vera em vo e dirigm-se a Janurio:
Eu no quero dar confiana a essa gente, mas tu, que s novo, que podias mandar duas l
inhas ao
jornal...
Palhetas sabia ser aquilo o serpentear disfarado duma ideia que visava apenas o d
inheiro que ele tinha ferrado no bolso. "Assim de um homem estoirar" dizia "O Sbi
o", ao mesmo tempo que se sentia aquecer por uma humilhao.
O campons continuava imvel. Captava os secretos apelos que ressumavam do silncio, c
aptava aquela ambio incmoda que vinha dos outros e prosseguia na sua imobilidade.
Ele dava, sem grande sacrifcio, alguns dos cigarros que a mulher lhe trazia ao do
mingo, pois, desde que se convertia em tabaco, o dinheiro deixava de lhe parecer
valioso. Tudo era fumo. Mas quando pensava em abrir a ponta do seu leno vermelho
e pr luz as moedas, o dinheiro voltava a readquirir, subitamente, todo o valor e
squecido.
No faz mal disse "O Sbio", como se falasse sozinho e sem nexo. O que importa t-lo
s no seu lugar. E retomou, imediatamente, os ares andarilhos e importantes.
Janurio estava espera. Palhetas j tinha ouvido a histria, tempos antes, mas para Ja
nurio tudo era novo o grande fardo saa do poro e descosia-se pela Pnmeira vez. "O
Sbio" parara, enfim, em frente dele:
Se a rapariga danara quase toda a noite com
0 Malafaia e andara com aqueles requebros de gata em Janeiro, a culpa era dela e
era com ela que o outro jinha de ajustar contas. Mas o outro estava me
io "ebedo. Quando o vi sair-nos ao caminho com a faca n^ mo, percebi logo que ele
j no regulava bem. Se
840
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
841
' 4
a coisa fosse comigo, eu no teria feito comc^ffiS faia; aplicava-lhe meia dzia de
socos nos <|I*M depois, passava-lhe o pezinho por baixo, ipul ficasse a cur
ar a bebedeira no cho. Mas Gadlll como . Claro, quando dei conta de que o inpii ti
rara a beata do beio e se pusera a navegar! do Malafaia, tive de lhe fazer frente
, pois, se tm eu, o Malafaia no teria ido romaria... jTl "O Sbio" deu algun
s passos a pensar na3l na ponta do cigarro do outro. Depois, detesl ps-se a des
prender, com a unha do dedo mura escamas de tinta estalada sobre as barras di| Pr
ocedia distraidamente enquanto ia dizendob,
Parece-me que foi asneira grossa termafe lado. Mas, agora, que as frias acabaram,
-isA resolver-se. Se havemos de ir tripular a Penitfill quanto mais depressa for
mos, melhor. No ser paquete de luxo, mas, depois que proibiram JSijj e nos desemb
arcaram da cadeia velha, estar aqjM bem no tem graa nenhuma. Nem sequer urnae"
Riu forte, como se quisesse expelir a exigncflj havia na sua garganta. Extraiu, e
m seguida, o p de tinta seca que se encravara entre a unha e >| e olhou Janurio: /s
E quem sabe se no te despacharo a ,t| de ires connosco! No seria nada mau, amigofl s
omos... No poderamos falar nos primeiros ano% enfim, ficaramos com camarotes no mes
mo barcode
in
54- DIA
l FECTIVAMENTE, as frias tinham terminado, a{g
processos haviam sido sacudidos da poeirtf
Vero e, h mais dum ms, os juizes trabalha^
como era seu dever. Quando se reuniam em vol*
tf
grande mesa, pacatas discusses, modos diferentes de interpretar as leis subiam, p
or vezes, at os ouvidos dos velhos retratos que, das paredes, comandavam a. auste
ridade da sala; mas, perante aqueles cadernos cosidos linha, altos de cinco dedo
s grossos, nenhuma divergncia se franqueou entre os magistrados. A deciso estabele
cera-se por unanimidade e o presidente, depois de meter a caneta no bolso, olhar
a o relgio e gozara a satisfao de verificar que, nesse dia, o trabalho havia findad
o mais cedojustamente a horas de ele poder ir tomar o seu ch.
"O Sbio", quando lhe disseram que o recurso fora negado, encolhera, com desdm, os
seus ombros possantes: "Tanto se me d! C por mim, nunca acreditei..." Pareceu a Pa
lhetas e a Janurio que to aparatoso desprezo no vinha de dentro, estava s no rosto,
como uma pomada sobre uma ferida; mas, nos dias seguintes, compreenderam que, pa
ssadas as guas vivificantes, o tronco da terra seca, um momento humedecido, se re
signara, de novo, aridez do seu deserto.
"O Sbio" via, agora, o carcereiro entregar a Janurio um sobrescrito e esse gesto
sobrepunha-se, nele, a tudo o mais. Era a terceira carta registada que Janurio re
cebia desde que se encontrava ali e, perante aquele papel blindado de telagara e
os lacres vermelhos do seu verso, no jeito de marcas de beijos dados por uma boc
a pintada de mulher, "O Sbio" adivinhara, num pice, o que l vinha. E, ento, a sua ga
rganta encheu-se novamente de esperanas.
Os sinos continuavam a dobrar. Desde manh, eles enviavam, de quando em quando, do
planalto para o vale, as suas mensagens. Era uma dolncia pontilhada, que fazia,
nos quintais, os galos erguerem a cabea e ficarem de olhos parados, escuta.
- Quem foi ? perguntou "O Sbio" ao carcereiro, Bicando, com um movimento de quei
xo, a igreja
Azinha.
Ele sabia que quando os sinos dobram assim, circunspectos, solenes, por pessoas
ricas, pois os sinos
842
EXPERINCIA
f gostam de guardar os seus tons mais nobresrm| almas que deixam muitos bens no
Mundo. t}H O carcereiro, que ia a despegar-se das gradesjj Quem ? insistiu
"O Sbio". fjfifil
O homem vacilou ainda e os seus olhos Hafej taram a entrar na cela, de mau humor,
rastejanl os ps de Janurio; depois, venceram aquelefjj mento instintivo e recuara
m. ilSHi
> O tabelio... O doutor Carrazedas... srjj deu, bom uma voz que parecia tornar ai
nda maio a novidade. oq}1!
Viram-no afastar-se, deixando no seu lu^t11! presena. Os sinos prosseguiam. Umas v
ezes, ,|n -se-ia que tocavam dentro da prpria cela, enerw tudo, outras muito ao l
onge, para serem ouviddstp por aquele silncio que se fechara ali. "t> fc
Janurio sentara-se na extremidade do colct, Malafaia se estendia; segurava a carta
com fgg mos, em cima das pernas, e tinha os olhos fbaasa ela. "O Sbio" percebeu, nu
m relance, que l$ estava a ler o endereo, nem a pensar no que a1 trazia. < >J
Sobre o caixote, Palhetas mostrava-se maisrr" Ihido ainda do que habitualmente.
A sua mudezofl em redor dele uma zona densa de austeridadaB separao, de onde pareci
a emitirem-se indefinidal cordncias...
Deixa l...disse "O Sbio", com voz dert
forto. certo que, se atribuem isso ao tiro qlti
deste, as coisas podem complicar-se um bocadcuf
tambm verdade que, se ele vivesse, havia deO
tar-te bem da sade, no tenhas dvidas1 Havias
fazer tudo para que ficasses mais pregado Penjl
ciaria do que a quilha ao casco dum barco. De man0
que no se pode saber se foi pior ou melhor qtBH
tivesse morrido... - .
Janurio levantou a cabea. "O Sbio" viiio
dos olhos dele escorria uma humidade de vitnl
quando chove e que o lbio inferior lhe tremiiij
pouco.
A EXPERINCIA
843
__ Mas se a bala s lhe tocou no brao, como podia ele morrer daquilo tantos meses d
epois ?
Era uma voz doente. A amargura irradiava-se como uffl fluido. O futuro metera-se
, de repente, na cela, num mergulho de ave morta, tombada do cu.
Isso no sei. Mas, est descansado, que, um dia, sabers...
No gostou "O Sbio" de ver Janurio passar a manga do casaco no sobrescrito, para abs
orver as gotas que haviam cado, desfazendo as letras:
Ali, na igreja, a ajudar o sacristo, que te quadrava bem. Tu no s mau rapaz, mas s
um molengo, sem carcter. At parece que no tens tomates!
"O Sbio" voltou-lhe as costas. Os sinos haviam parado. Andava, l fora, um sol de V
ero de S. Martinho e, mrito das chuvas recentes, as plantas bravas exibiam-se muit
o reverdecidas sobre o telhado do templo.
Janurio retirou vagarosamente a carta de dentro do sobrescrito que o carcereiro,
mantendo o regulamento, tinha aberto. Dir-se-ia que, com o dinheiro, s>aa de l uma
maciez carinhosa e um odor que se prendia ao seu olfacto, odor de lenis que abrig
aram um corpo de mulher.
No h nada como ser um rapaz bonito... disse "O Sbio", j alegre e irnico, quando se vo
ltou e o viu com os cem escudos na mo.
Janurio levou o sobrescrito ao nariz. Iludira-se, no exalava cheiro algum. Aquilo,
porm, continuava. Como se ele estivesse vendo uma cama, uma cama targa, sem pare
des conhecidas, s a cama e um homem traando Clarinda e ele com a cama metida na mo
fechada.
"O Sbio" ora observava, pelos cantos dos olhos, s seus movimentos, ora a praa, onde
passavam, de luando em quando, figuras vestidas de negro, como j*p dia de Todos
os Santos. "Grande enterro vai ter o bicho" pensou. Ele j se arrependera de hav
er interrgado o carcereiro. Que lhe importava saber que mor-. rera o tabelio ou ou
tro tipo assim grado, desses que
844
A EXPERINCIA
O
A EXPERINCIA
845
no ligavam importncia alguma a um hometj
ele ? Se no fosse essa curiosidade intil, j^aM
ali a fumar, satisfeitos, de garganta reconciliada!!
acontecia sempre que chegava uma carta xiiufi
Finalmente, "O Sbio" repousou. Janurio ^K
ra-se das grades, introduzira os braos e batias
palmas. O velho Palhetas levantou a vista, poll
cera-lhe que eram umas palmas incertas e dbdu
O rudo deixara, no corredor, um silncio paw
como o p atrs duma vassoura. Eles estavam1 3
de ouvir os passos conhecidos e os passos no '^H|
E cada vez o silncio parecia mais propositado.^"
No seu cubculo, o carcereiro lembrava-se p
mente de que, das outras vezes, Janurio tamaj
chamara assim e, afinal, era apenas para Ihroflf
que comprasse doze maos de "Almirantes" e uma oj
de queijos de cabra. Enquanto ia afiando a naw
de barba e experimentando o seu gume nas unlijl
carcereiro, sentado junto de pequena mesa, em M
da janela, pensava que no havia razo algurool
se dar pressa. Janurio, certamente, tambm no COT
apressado, pois desta vez tardara mais a bater a$j
mas do que das outras. ib.1
Quando, enfim, se aproximou da cela, com GQ
vagaroso e olhando por baixo, verificou que se hi
enganado em parte. 9
Vinte maos de "Almirantes", faa favor {K Janurio. .t
Estranhou o carcereiro o torn hmido da v pensou no queijo de cabra que recebia, gr
atuitameJ do taberneiro, sempre que comprava uma dzia-"!
Mais nada ? >M
Mais nada, muito obrigado. Q] S duas horas depois o carcereiro voltou. Ao "v4|
"O Sbio" manteve-se muito calado, porque o dinhw no era seu, mas teve de morder os
lbios para n% insultar. tf
Janurio entregou ao Palhetas o mao de cigaai que lhe devia; meteu quatro no seu bo
lso, agaE nos outros e estendeu-os ao "Sbio".
Pegue l, para vocs dois. De boca apagada, a viagem seria mais aborrecida...
"O Sbio" no agradeceu, mas todos compreenderam o seu silncio. Malafaia no disse tambm
uma s palavra.
Janurio levantava o troco de sobre o caixote e contava-o na palma da mo. Era tudo
metal, menos uma nota de vinte escudos. Ele dobrou-a uma vez, dobrou-a duas veze
s, como a uma carta e meteu-a, isoladamente, no bolso superior do casaco. Palhe
tas julgou adivinhar a razo porque a nota fora separada e posta ali. Sentiu-se mo
lestado por um dever, viu-se a desmanchar o n do seu leno e logo se encheu de ind
eciso. Por fim, concluiu que seria melhor resolver no momento dos dois partirem.
Ouvia-se, com uma nitidez diferente da dos outros dias, os passos da rapariga na
cela prxima, enquanto "O Sbio" olhava todos aqueles maos de cigarros, ainda empilh
ados sobre o caixote, espera das suas mos, e se admirava de no sentir agora desejo
de fumar, ao contrrio do que lhe sucedia momentos antes.
Janurio admitiu que ele quereria levar os pacotes assim fechados e ofereceu-lhe u
m dos cigarros com que ficara. Ento, "O Sbio" deu vida aos seus grandes olhos, fez
um movimento com o brao, como se cortasse o ar. "No; mais, no"; depois dobrou-se
sobre o caixote e, abrindo, enfim, um dos maos, serviu-se e passou-o a Malafaia.
A cela encheu-se de espirais, em silncio; sempre com esse silncio que nenhum deles
havia previsto quando, duas horas antes, o carcereiro viera ali trazer
a carta.
"O Sbio" voltava a ver uns homens vestidos de luto, que atravessavam a praa. Um ia
frente, sozinho, e dois mais atrs, lado a lado, a conversarem. Da banda do corre
io acabava de aparecer outro, tambm com um fato negro. "O Sbio" seguia-os com a vi
sta, quando sentiu que Janurio se aproximava. Ento deixou de olhar para os homens,
voltou-se e encostou o seu corpanzil s grades. Parecera-lhe que fizera aquilo
846
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
847
'com naturalidade. Parecera-lhe que ningum pie^ o seu intento, mas, depois, compre
endeu que ora diente no era de todo eficaz. Se Janurio enfias olhos pela direita o
u pela esquerda do corpojj poderia ver perfeitamente quem passava l fora.ij^ bio"
hesitou um instante e logo resolveu det4a| outro meio: /s,
E se fssemos jogar um bocado? Que te pari
IV
55- DIA
'OTdfl
"&
M^|
"nJ
C~J rudo da furgoneta chegou de longe, a aums^w
sempre. Na cela calada, os ouvidos enrqjj
ram-se a uma ltima incerteza. Mas, assim que etejjl
extinguiu em frente da cadeia, "O Sbio" no tejl
mais dvidas e ps-se a apagar calmamente o( s"
cigarro e a guardar a ponta no bolso. Depois, olhai
atravs^ das grades e disse: )Ujm
um velho palhabote, mas de grande tona"
gem. No sei para qu, se a carga to pouca. A <$MJ
te trouxe era mais jeitosa e muito mais bonita. Tivestaj
sorte... (\ si
A cela escutou aquilo, impassvel. Somente "O Sbioi
rematou com um sorriso as suas prprias palavraj
Dir-se-ia que os rectngulos formados pelas barras oro
ferro haviam criado olhos, todos aqueles olhos qu^l
drados a olharem para dentro. Malafaia levantou-se|
vagarosamente, a espreguiar-se. "Um navio tambny
uma priso pensou. com a nica diferena dfli
que h uma pequena liberdade condicional ao fim aj
cada viagem. Os marinheiros desbaratam a vida comai
se fossem condenados a sucessivas penas correccionaisfjj
Uma voz sussurrou-lhe: "Mas voluntariamente". Eli
no gostou daquilo e tornou a bocejar: "A liberdade#|
a liberdade, mesmo que seja para ir, vestido de negro, a um enterro", insistiu a
voz que teimava em desfazer a frmula de paz.
"O Sbio" comeou a reunir os seus trapos ao fundo da cela. Janurio viu-o dobrar-se e
as suas largas ancas ficarem para cima, muito salientes e arredondadas, enquant
o a cabea se movia prxima do cho, como os pintainhos quando aprendem a comer. Volto
u para o meio da cela trazendo embrulhado num jornal velho tudo quanto possua. Du
rante um momento, fingiu-se hesitante e vexado perante a nota de vinte escudos q
ue Janurio lhe dava; mas logo descobriu uma soluo que o satisfez:
Podes estar certo de que, um dia, te pagarei... Do fundo do corredor chegavam as
vozes de dois
homens, que falavam com o carcereiro e riam.
Estou-me nas tintas! volveu "O Sbio", na cela que no dizia nada. O que me d ra
iva foi o tempo perdido com o tal recurso em que nunca tive f.
Malafaia acabava tambm de envolver as suas coisas numa camisa suja, que amarrara
com um cordel, "O Sbio" sorria, mas Palhetas e Janurio viam nitidamente que era um
sorriso constrangido.
Para este vai ser uma delcia! pronunciou, estendendo o lbio inferior na dire
co de Malafaia.
Se o condenassem a falar, isso, sim, que seria um castigo a valer...
Malafaia continuava de olhos lquidos e luminosos. Apenas aquele brilho de ao que r
ompia l do fundo, como por uma fresta, parecia mais forte e mais frio do que habi
tualmente.
As vozes desconhecidas aproximavam-se, iam aumentando de som e de sentido, como
se as palavras fossem pronunciadas numa volta de estrada, antes de se ver quem a
s dizia. Palhetas voltou a apalpar, dentro do bolso, a ponta do seu leno.
Os que vinham de fora detiveram-se atrs do carcereiro, que se ps a abrir as grades
. Um polcia avanou, saudando cordialmente, enquanto o outro ficava no corredor, co
m a mo na algibeira, sobre a pistola.
848
A EXPERINCIA
f Aquele que entrara procedia de modo vagar$fe
se no quisesse magoar os pulsos do "Sbio" >^
faia; s vezes, parecia um alfaiate tirandJo^ffi
nas costas do seu cliente. ((^cg
Palhetas s se decidiu no ltimo momelp5|
do leno duas moedas de cinco escudos 6/lpaf
grande d de alma por elas, deixou-as cair $&
do "Sbio". 'riat
Encostado parede, Janurio ora erguia, faflj
xava os olhos. No corredor, o outro polC&rl
com o carcereiro. Mas era como se no falaiSj
como se as palavras fossem laterais, baleeiras 'Htif
do convs, suspensas sobre o mar, ligadas awj
apenas pelos turcos; era como se tudo fosse'>li
Muita sade por c murmurou Malat^ um sorriso vago, ao passar em frente de JantiS! de
Palhetas. '3 -
Muita sade e muita sorte disse, pot sUJt "O Sbio", com ar exuberante. Ainda havetg
nos encontrar! E, j sabem, se, um dia, eu pu" til em alguma coisa, contem comigo!
tffl
Janurio viu aquelas duas mos ligadas pl$*
ss, mas abertas, que se iam afastando e agSj
atrs das costas, uma para cada lado, com um ffl
mento de barbatanas e um sentido irnico de''OT
dida. ' \jL
Que eles no te carreguem muito na balM
foram as ltimas palavras do "Sbio", voltaMl
j no corredor. fi<l
O carcereiro fechara as grades. Soaram, ow'fl
mento, os passos mltiplos; depois houve um silwj
depois o rudo do motor da furgoneta e novamai
silncio muito prolongado. -^
O'
A EXPERINCIA 849
V
79. DIA
(joM os olhos cheios duma fadiga que se notava ^ mesmo por detrs dos culos, como a
escorrer sobre a expresso afectuosa do rosto, o doutor Macieira, moreno e desemp
enado, estava ali, na sua frente, e dizia-lhe:
Recebi a tua carta. No vim mais cedo, porque tenho tido muito trabalho. Mas est de
scansado, que serei tua testemunha.
Uma mescla de alegria e de humildade prendia a voz de Janurio, baralhando-lhe as
palavras de agradecimento. Era tudo um redemoinho. Ele sentia-se comovido e repe
ntinamente valorizado, perante o carcereiro e o Palhetas, com aquela visita.
O doutor Macieira ia-o confortando e examinando, atravs das grades, o fundo da ce
la, as duas enxergas e a farraparia desordenada sobre a tbua cravada na parede.
Janurio escutava-o e um enternecimento por si prprio, uma sensao de fragilidade, que
avivava as suas dvidas e os seus receios, desenvolvia-se rapidamente, como se o
amparo que lhe vinha daquela presena o tornasse mais sensvel.
Acha que me condenaro a uma grande pena ? murmurou num torn infantil, choroso.
O mdico olhou para ele. Era uma pergunta intil e incmoda, uma dessas lajes desmesur
adas sobre as quais assentam os grandes penedos do Mundo e que Briguem podia lev
antar para ver o que jazia por oaixo.
com certeza, no... respondeu, numa voz nublada. preciso no desanimar. Hei-de faze
r tudo Quanto puder...
85o
A EXPERINCIA
1 4
.\
Como se no quisesse deter-se mais sobre -&i
* o doutor Macieira voltou-se para o lado do P$fg
E o senhor, por que est aqui ? ' ^B
O velho acercou-se das grades e explicou-lal
sentia-se tambm humilde e enleado pela timideS
sempre tinha quando falava com as pessoas $3
da vila. a3|
Enquanto o ouvia, o mdico ia baixando e Itm
tando a cabea, com esse ar de quem acompa^fl
relato e pensa, ao mesmo tempo, noutra coisa^fi^i
Daqui a dias est l fora. o que se quenfc$a|
Pareceu a Janurio que, no fundo, ele diziai~j3|
crime no tem importncia; o deste, sim, lttS
grave". ->cl"''$J
A filarmnica da vila rompia do lado do GoMl
atravessava a praa, tocando os seus metais, iil
nho do monte do Crasto, onde, nessa tarde dpnafiti
havia festa. 'ftftfl
O doutor Macieira demorou-se ainda alguttkrlB
a conversar com Janurio e Palhetas, mas a lembfllB
sempre, e sempre com uma fora nova, do teatafiil
que criara o Asilo e cuja cpia ele prometera fcMNB
ao advogado no dia seguinte. Por fim, despediwrStiH
Coragem! Nada de desanimes! repetiujjjB
gindo"se a Janurio, quando j se afastava da|jB
De longe, chegavam ainda os sons da chadjlll
O doutor Macieira caminhava devagar e de raH|
baixa ao longo do corredor e quase no deu pe^Jjl
cereiro, que, no topo da escada, se vergou, respeiwB
sua passagem. ' {*
Ao chegar praa, deteve-se e ficou a oibfBtm
fachada da cadeia, como Janurio no dia em 0(r)^R
haviam trazido para ali, com a diferena apenS/wE
o fazia ponderativamente, sem surpresa algumadJ^g
seus olhos lassos. Ele olhava e via ressurgir, d-JwS
das paredes restauradas, como o esqueleto dentrosflP
corpo, a carcaa do velho Asilo. E um vnculo voltaj*
a formar-se-lhe no esprito. Um vnculo que se,i^P"
belecia, inevitavelmente, quando ele pensava eiUs-Sw
A EXPERINCIA
851
^ urio e semPre com desagrado que produz a lemf- brana dum compromisso que no se po
de ainda te cumPrir-
\ Baixou, enfim, a vista e retomou o seu caminho. l ,4 meio da praa,
admitiu que poderia desistir do p repouso clue projectara para essa tard
e, no s por j> ser domingo, mas, tambm, por haver perdido a noite ! .unto du
ma parturiente. Sentia-se cansado, pois, de F manh, tivera ainda de visitar
vrios doentes; pensou, porm, que se no aproveitasse os momentos como
1 aqueles, mesmo impregnados de fadiga, jamais se liber-
1 taria da obrigao tomada com a Cmara Municipal,
1 que o havia encarregado de redigir os "Anais de angudas". Ess
e trabalho encontrava-se em grande atraso. O primeiro volume sara ia j para qu
atro anos e, embora tratasse da obscura origem da vila, com seus presumveis heris
godos e aquele fantstico rei Ordonho, que teria ganho rija batalha no lugar onde
, actualmente, a quinta do farmacutico produzia vinho verde, um verde rascante, d
e muitos graus, como se andasse adubado de herosmo, dera-lhe menos canseiras do q
ue a histria contempornea. certo que, nessa poca, ele disfrutava menor clientela, s
obretudo no o chamavam tanto das aldeias "senhor doutor venha", senhor doutor pe
co-lhe pelas almas", "senhor doutor icuda, coitadinha, est mesmo a morrer" como
lhe sucedia hoje; nem tinha, ao fim da tarde, todos aqueles clientes no seu cons
ultrio, todos aqueles pobres que "ao mostravam pressa alguma, mas que ele sabia e
starem to apressados como os que pagavam. Fora, justemente, por isso e pela incli
nao sempre manifestada Para as letras, amador que era desde os tempos dos *us estu
dos em Coimbra, que aceitara o convite da Cmara Municipal. Agora, com a vida ca
mbiada, o lue, a princpio, constitura volpia, esquecimento do tabor profissional,
tornara-se um incmodo dever. O se?Undo volume j devia estar publicado e, contudo,
a Maioria dos documentos encontrava-se ainda na escur'do das suas gavetas.
O doutor Macieira consultou o relgio e decidiu-se:
852
A EXPERINCIA
' 4
j que tinha de procurar a cpia do testamenteyl
veitaria para continuar o trabalho. Eram trs ela
se ningum o chamasse, at a noite poderia eira
precisamente, a histria do Asilo, j que da ltiSi
se ocupara da fundao do Hospital. olffl
Ao entrar em casa, hesitou de novo perantelfi
cansao, que parecia aumentar medida queif
lembrava da proximidade da cama, mas reagifr n
teu-se no escritrio, com a chvena de caf quejjfi
lhe trouxe. ,S|
Sentado secretria, tirou das gavetas opalSj
mentos e empilhou-os junto dos dicionrios, lni
pequeno calendrio rotativo, reclamo dum produ"|]
macutico, o cinzeiro e as amostras de novos tarai
mentos, ainda por abrir. S ento perguntou a sai
prio se a pressa que sentira, h pouco, em comfnl
nessa mesma tarde, os "Anais de Mangudas", aqj
forte deciso, ao mesmo tempo dolorida e apranl
era apenas para se desobrigar junto da Cmara Ml
cipal ou, ao contrrio, porque ia escrever sobre o.jl
e o Asilo se transformara em cadeia, onde se encoras
uma solidariedade que ele dera um dia e que cinS
tncias, prximas e distantes, haviam transforrna(S
certa maneira, em cumplicidade. Sobre essa <3lW
acendeu vagarosamente um cigarro, sem afastar cwi
olhos dos documentos. Depois, comeou a reler om
ms perodos que traara semanas antes. Parecera"!
duros, com uma vulgaridade de escrivo e, por riH
mal cingidos ao corpo das ideias, como se houvesl
sido influenciados pelos editais da Cmara; mas pti
que, nos derradeiros tempos, no andava bem-disf*!
e sossegou-se com a promessa de que os afeioaria f*
teriormente. &
As suas mos desdobraram, ento, a cpia do.vw
testamento e os seus olhos voltaram a l-la. Um $1
mento, o doutor Macieira ficara imvel perante!"
voz do passado que rompia atravs dele prprio pWl
ajeitando-se sobre a poltrona, experimentou o bieoil
pena na extremidade do papel em branco e come$
a escrever: '"*
A EXPERINCIA
O ASILO
853
"Como j dissemos mais acima, ao falarmos do Hospital, a nossa vila teve, tambm, um
asilo infantil, durante algumas dezenas de anos. Apesar da populao da comarca ser
numerosa e muita dela abastada, essa obra s se tornou possvel graas a um legado de
Henrique Sampaio Mendo, homem celibatrio, bastante viajado e culto, que, embora
nascido no Porto, passou a maior parte da sua vida entre ns. Era um apaixonado pe
las belezas naturais de Mangudas, pelas suas encostas cobertas de pmpanos, os seu
s combros enfeitados de sardinheiras, os seus moinhos ronronando nas margens do
rio, entre a folhagem dos amieiros. Era, tambm, um amigo secreto do seu povo, des
tes camponeses encardidos de sol, de terra e de trabalho, bisonhos, ossu
dos, .como se penassem duma fome milenria e irredimvel; e destas mulheres corajosa
s, sbias em tornar elsticos os dias, sempre numa faina pegada, agora cuidando dos
filhos, logo vergadas no amanho dos campos, a toda a hora absorvidas pelos mil l
abores que a, vida rural exige incessantemente; estas mulheres dum herosmo sem glr
ia que, aos olhos de quem passa, s se destacam da sombra que as apaga quando cami
nham nas estradas, de vara ao ombro, frente de gemebundos carros de bois, mal
nutridas, mal vestidas, os ps nus e endurecidos como os dos animais que elas cond
uzem, o que faz com que a nossa bonita regio, toda donairosa e espairecida, seja,
do lado feminino, mesmo que a velha sia uma sia sem "sari" e sem outro amparo alm
daquele que s atribulaes de cada qual permitido visionar nos territrios ilimitados
do futuro.
"Porque se trata dum testamento muito curioso, lue at no estilo, duma ironia toca
da de piedade humana, se isola dos moldes comuns, queremos arquivar nos "Anais"
a parte que se refere criao do Asilo. Fazemo-lo, tambm, para reencarnar a verdade n
o seu antigo corpo, j que, de andana em andana atravs do tempo, ela se encheu de def
ormaes e se cobriu
"54
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
855
,'
- de escrias, erguendo a imaginao popular, sua*" toda uma lenda absurda. Eis os ver
dadeiros '%< desse documento, escrito pelo prprio punhpod||| paio Mendo e onde no
difcil descortinar ceurtil e inconformismos da segunda metade do ^&id" em que ele
viveu e que, como as chuvas daiiPrill fez florir tantas e to fortes aspiraes, gui^j d
elas conservam, ainda hoje, um vio sempre'rti^jji
Deixo o remanescente da minha fortuna pontais
dao e manuteno dum asilo destinado ,l-^j
desprotegida de Mangudas. Este acto no incitei atftjl
sentimento de caridade, nem to-pouco de opitmisSiiSt
gerado. Sei perfeitamente que as crianas de Jiojii
como me disse, uma vez, o padre Matos -"-"ofdH
pecadores de amanh: sei que os homens qwffi mi$
tm injuriado e feito sofrer tambm foram, um dia^A
as. Em muitos dos olhos ainda inocentes, que se /im
para a beira dos caminhos e me coniemplamcstiM
mente, quando passo, se enxertaro futuras madadoA
que os homens parecem andar ao contrrio dos-/s(mj
meu pomar, que so cidos enquanto verdes e tioejjm
que o sol os amadurece. Mas quando vejo os gatosmL
ninos a brincarem, com toda a sua graciosidadvbesi
ternura redonda que a natureza parece ter neles rcdM
trado, no you pensar que, ao chegarem a autfSJi
podem arranhar ou morder; alm de tudo, sei que<o$i
instintos dos gaios dependem muito do meio em f"tJ"j
e da forma como foram educados. Sei, tambmf>qttm
homem o mais temvel e complexo de todos os otttt4
como prevenia, h dias, sabiamente, a "EnciefafiiE
Moral das Famlias" isso se deve ao facto de a2sP|
nico que participa dos instintos, das qualidades QJ
de/eitos de todos os outros. Assim, quero crer "^3
medonho bicho s poder modificar-se depois de m&if&
o seu meio ambiente no com doces falas natittjf
para que ele propenso, mas investindo resoluttM**^
contra ela. :^M
Claro est que anda muito longe de mim a idff$(r)m
resolver todos os problemas do Mundo com um ast *m
tangudas, apesar do comovido respeito que nutro por ista terra, to clebre pelo seu
vinho verde. No creio Mesmo que isto seja uma das solues mais recomendveis. Simplesm
ente e em primeiro lugar (o resto ver-se- Diante) pretendo restituir o dinheiro q
ue meu pai ganhou (ffi S. Tom, explorando o trabalho alheio. No que eu pense ter s
ido isso devido a uma degenerescncia especial Io seu carcter, no, pois jamais lhe n
otei anormalidade dguma. Era um homem como os outros e at com apreciveis qualidade
s, nada vaidoso e mesmo caritativo em certas ocasies. Julgo que o seu caso se dev
e, mais do que a ele, aos usos da poca em que viveu e que, afinal, continuam a se
r os usos dos nossos dias, apesar do padre Matos garantir que tudo se encontra m
udado e perdidos os bons e severos exemplos de ouirora. (Que to estimado amigo , t
alvez, demasiado pessimista, prova-o o facto de ainda nesta manh de u de Novembro
de i88j, cheia ie sol e de cu azul, eu haver lido, nos jornais, que em Chicago q
uatro homens foram, ontem, enforcados, em consequncia dum congresso que, a i de M
aio do ano passado, se reuniu naquela cidade, para obter que os operrios trabalhe
m apenas oito horas por dia. No sei se " posteridade compreender o meu acto, mas,
confesso, foi depois de ler esta notcia que me decidi definitivamente a restituir
o produto do trabalho dos negros de S. Tom).
Que o dinheiro acumulado por meu pai sirva, pois, para dar um tecto s crianas de M
angudas que no tm pais e ainda quelas que os tm, mas nas cadeias, nos degredos ou pe
rdidos em certos labirintos para onde tantos homens so empurrados sem eles prprios
saberem exactamente como e porqu. Um tecto sob o qual no exista uma atmosfera de
priso e sim de casa comum, com uma grande quinta aberta ao sol, tudo alegre, acol
hed&rt nde a vida no parea to feia como, muitas vezes, da .
No desejo que, por tal gesto, o povo de Mangudas venha a manifestar qualquer espci
e de gratido pela ninho, memria. No quero, tambm, que o Asilo ostente
0 meu nome na fachada. E oponho-me a que se grave sbre a minha sepultura a palavr
a "benemrito", que, por
856
EXPERINCIA
f em vida me ter feito sempre mal aos nervos,?.^
mente no me deixaria dormir em paz na. "S
compensao, determino que neste asilo, que se\^
"Experimental", se ministre uma educao dtfotft
que se d em todos os outros. Que, com as lety
ofcio, se cultive e desenvolva nas crianas assai"
lhosa e to inexplorada faculdade de compreenM
todos, mesmo os mais primrios, trazemos em n&^
na quase-toialidade dos casos, em estado embfiof
semente que ainda no germinou. Que, em vez <de%$\
ouvir s crianas os tambores picos da histrias
mtico acabou por transcender a realidade, etn^M
extravasar nos seus espritos desprevenidos o<<,ii
raas, a ideia de rivalidades entre povos, de supjjl
duns em relao aos outros, o que me parece bef
cioso e desatinado, pois todos so susceptveis <&ts,fc$
baixezas e das mesmas grandezas, se lhes v etm^(
mais modestamente e desde os mais verdes anos,%M
preenderem-se entre elas. E que se lhes inlensifiq
ensino medida que forem crescendo, para que "aft
a compreender todos os seres humanos, os seus'^a
e as suas virtudes, as razes por que ora se vasta
luz, ora submergem em trevas, de forma que, 00$
rem-se homens, se possam amar uns aos outros,.^
de se odiarem mutuamente. Que se lhes ensine, atVl
rem conscincia do que aprendem, que compreeA
ceder em benefcio do nosso semelhante, sem nenhu^
juzo pessoal, uma parte do que de melhor h em "
simultaneamente, despojar-nos do pior; e que ttM
Bem, que, por partir, quase sempre, dum movm
simples do esprito, se esclarece facilmente por si j*"wl
e sim o Mal, com todas as suas complexidades e seswl
que mais precisa de compreenso. Que se estimul&y9
mente na alma das crianas o sentimento de justia, "*
sendo tambm inato, se encontra atrofiado, s vezes #W
suprimido por velhas ideias feitas, por princpios ivlm
que emprestam s maiores iniquidades a legitimidam
actos normais e, pela lei de precedncia e fora do ha*
tranquilizam as conscincias se, apesar de tudo, em afyjt
delas se produz um rebate.
EXPERINCIA
857
Mais determino que esta obra de compreenso seja y/ientada num sentido activo e no
passivo: compreender i amar os homens para melhor aclarar e melhor combater us r
azes das injustias, da misria e da servido que anulam tantas vidas e que levam muita
s outras ao desespero e at ao crime, transformando em noite negra a alvorada que
cada qual traz consigo quando nasce. Embora o nosso bom padre Matos, com o cepti
cismo que os anos e os segredos ouvidos durante as confisses lhe deram, seja muit
o capaz de me recomendar no cu, no pela argcia que manifestei na terra, mas pela ca
ndidez anglica que, certamente, me debita, eu quero crer que, ao sarem do Asilo, a
o defrontarem a aspereza da vida que os aguarda l fora, os homens assim formados
podero ser uma conscincia em aco e um exemplo de possibilidades humanas at hoje ainda
no aproveitadas, nem desenvolvidas.
Estabeleo ainda que o dito ensino se aplique a todo o pessoal do Asilo e que para
o ministrar seja convidado o meu amigo Dr. Navarro de Sousa, ex-professor em Co
imbra, actualmente vivendo no Porto.
Mesmo alegre como pretendo que o de Mangudas seja, wn asilo sempre uma bem trist
e instituio, e j que no o tenho por meio definitivo, nem satisfatrio, que sirva, ao m
enos, para nele se fazer uma experincia.
O doutor Macieira recostou-se na cadeira e acendeu novo cigarro. A fadiga ressur
gia. Era um torpor, lento e morno, que relaxava os nervos como um hipntico. Mas e
le dominou-o e, retomando a pena prosseguiu :
"Henrique Sampaio Mendo faleceu nove anos depois de haver redigido o seu testame
nto. Na Europa de ento, falava-se muito da necessidade de criar novos mtodos de en
sino e a essncia do documento foi tornada, a princpio, por uma consequncia desse am
biente, embora um tanto confusa e talvez pouco frutuosa. certo que, sobre a part
e referente histria, houve logo quem proclamasse que os povos precisavam tanto do
pico, como as crianas do maravilhoso; mas
858
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
859
'4
"verdadeiras discusses s se levantaram em redifl
forma do testamento, que a maioria das pessoa.Alya
tantes da vila acoimava de hertica e inteiramenosSI
propositada para um caso daqueles. Os amigos .atnl
do testador justificavam-no, porm, com o hbitoS!
Sampaio Mendo tinha, de se mostrar irreverensteoj
rante as coisas mais vultosas e srias da vida, pOM"
diziam eles, pudoroso da sua bondade, pretendiaiJaaS
ocult-la; e garantiam ser essa ironia mais inofensil
ainda do que os insectos de grandes pernas que (r)D2|3
sobre ribeiros e lagoas como sobre uma vidraa^q8
sem ferir o lume da gua em que tocam e sem -yjjjn
morder ningum. s"*3
Para atabafar estas primeiras discordncias, ^nmjl
contribuiu o padre Matos, honra lhe seja, que estaB
velho e amolecido, tendo mesmo renunciado &
declarou no ver ofensa nas aluses que Sampaio Mep)8
lhe fizera e, se ofensa havia, ele, j de ps p&||B
cova, lhe perdoava. '^Hl
Assim, com uma parte do dinheiro legado se *ml
prou a antiga propriedade da Carreira e se adaptai
asilo a casa ali existente. Em poucos dias, aqueJB
encheu de risos infantis, pois na comarca de Mangual
eram tantas as crianas rfs como os velhos que anaH
vam, de pernas trpegas e bomal ao ombro, a p<pH
esmola. Ainda em conformidade com a ltima vontafll
de Sampaio Mendo, o ex-professor de filosofia DrONH
varro de Sousa foi convidado a exercer o seu magpB
trio no Asilo Experimental. Homem j idoso, de barfca|
patriarcais, ningum ousou, nos primeiros tempos, 3-ttjm
messar-lhe, publicamente, a sombra sequer duma peMH
As crianas amavam-no e, entre elas, chamavan-ljffl
"O Pai Natal"; nas ruas, o povo, quando o encontMj
descobria-se e saudava-o com respeito. Tudo, no Asiat
parecia decorrer normalmente..." jfljjl
O doutor Macieira ia iniciar outra frase, quando"*'
sua mulher surgiu porta do escritrio, com modsf
suaves, como sempre que tinha de o interromper. >%
Est ali um homem de Albelhe, a pedir para 'Ih!
ires ver um irmo disse-lhe, com uma voz cheia 9&
lbtima por ele prprio. Parece que urgente. A esta hora, quase a hora de jantar!
A filha do doutor Macieira viera tambm e olhava-o com o queixo apoiado num dos om
bros da me e o brao sobre o outro.
V l, v l, no h muita razo de queixa: Albelhe perto comentou ele, pousando a caneta
te arrelies: num instante estou de volta. E vocs ? Sempre foram a Rojante ?
No, no fomos. Mas isso no tem importncia. Iremos num outro domingo, em que estejas l
ivre...
A expresso dele contristou-se:
Aqui metido, nem dei por vocs... Tenho pena de vos ver sacrificadas por minha cau
sa. No um ofcio invejvel ser mulher ou filha dum mdico... Tornou a inclinar-se
para a secretria: Dize ao homem que j l you. E se eu no voltar at as oito, no
esperem por mim e jantem...
A mulher e a filha retiraram-se e ele comeou a pr na gaveta os documentos que util
izara e o caderno que acabava de escrever. Depois, ao levantar-se, pensou : "Qua
ndo virem impressa toda a histria, os homens da Cmara Municipal vo arrepender-se de
me terem convidado para redigir os "Anais"". O doutor Macieira saiu do escritrio
com essa ideia. Mas, ao passar no corredor, falou sozinho, como s vezes lhe acon
tecia: "No faz mal, desde que verdade".
VI
707." DIA
J\ manh apresentava-se enevoada, mas Palhetas tinha na alma todo o sol do Mundo.
Tinha o verde dos seus lameiros, a brancura do leite das suas vacas, o andar len
to das suas ovelhas pastando nas encostas da aldeia. E toda a alegria de colar o
futuro
86o
A EXPERINCIA
EXPERINCIA
861
' 4
f ao passado, cicatrizando o golpe que os separaagm
ls negros meses que estivera ali. ;p^
S no ltimo momento ele emudeceu comlil
de que Janurio ia ficar sozinho. Os seus olhos*]
correram a cela, como se a medissem ou procurai
algum que no se encontrava l; e, durante uma(r)
dos, breves como o trnsito duma ave visto do"ffi
dum poo, a cela pareceu-lhe muito maior do qoil
Vo uns e vm outros...disse, lanandl
vento a semente duma esperana. - E, mesrf<j2|
no venha ningum, um ms passa-se depressa.JSi
puder, irei ao seu julgamento. ill
A mulher e dois filhos esperavam-no em frehtl
grades. Ao lado do carcereiro estava tambm um seal
da Justia, muito srio e com um papel na mo/ <|S
Palhetas despediu-se e, ao chegar praca/'dSl
se voltou e fez um aceno de adeus para cima. >IOT
Atravs das grades, Janurio viu-o afastar-s% Em
os familiares, em direco ao cunhal da igreja. laM
pegando um pouco, mas adivinhava-se que ia feui
gesticular constantemente, a olhar para todos os la
como se quisesse reapossar-se, num s momento^
vida que o cercava e lhe sorria. Cy
Por fim, o grupo sumiu-se. S ento a cela paren
a Janurio verdadeiramente vazia. Como se ele fivl
ficado no passado, num tempo morto, e o prS"|
houvesse partido com o velho Palhetas. Contra tf>"
costume, principiou a andar dum lado para o out|
a andar com uma sensao de dia feriado, vago, m
rente dos demais. *
Na cela vizinha no se via ningum. Mas, po<|l
depois, a rapariga passava atrs das suas grades, vai
tava a passar, com o xaile nos ombros e as mos era
zadas em cima do peito. Dir-se-ia que, ao control
dos outros dias, os seus olhos se volviam, de quaoug
em quando, para o lado dele. Era um estmulo ou uwj
iluso ? Ele duvidou vrias vezes. Finalmente, deC|
diu-se e encostou-se s barras que davam sobre o COK
redor. Via-a dali como duma jaula para outra ja^^l
duas jaulas separadas somente pela passagem de acesg
ao circo. Ficou ostensivamente parado, a oferecer-se ateno dela, a oferecer-lhe um
a unio contra o isolamento, enquanto os olhos evitavam aquelas mos cruzadas que ha
viam feito o que se sabia. A rapariga continuou, porm, no seu giro, sem tornar a
erguer a vista para ele.
Janurio acabou por se afastar. E s ao meio-dia, quando o carcereiro lhes trouxe as
duas marmitas, voltou a v-la. Ela viera s grades entreabertas receber a sua, mas
sempre de olhar baixo, como se se sentisse acanhada. Fora um instante apenas. Lo
go se retirara para o fundo da cela, deixando novamente aquela solido que esvazia
va o Mundo inteiro. A colher dele descia e subia, descorooada e lenta, da marmita
posta sobre os joelhos. Pouco a pouco, porm, o prprio mal-estar ia estabelecendo
um elo entre ele e a rapariga, uma corrente criada por tudo quanto neles era igu
al e simultneo: a mesma comida, a mesma situao, talvez os mesmos pensamentos, nesse
momento. A sua dvida reagiu mais uma vez. "Aquilo no significava nada. Quem lhe g
arantia que ela sentia a mesma coisa?"
tarde, comeara a ter saudades do "Sbio" e do Palhetas. As horas haviam perdido tod
os os seus limites, o tempo adormecera no relgio da igreja, o sol demorava muito
mais do que nos outros dias a fazer no cu a sua curva radiosa. Ele nunca fora loq
uaz, Mas, desde que no tinha com quem falar, roa-o o desejo de falar fosse com que
m fosse mesmo com a ponta do sapato, com um co, se o co ao menos o olhasse. A som
bra que voltejava na cela vizinha surgia-lhe, de novo, como a nica mitigao. Ele elh
ava as nuvens brancas que se acumulavam ao longe, no cimo da montanha, por detrs
da ermida, e imaginava o dilogo, o que ele e ela diriam duma grade para a outra.
As nuvens ampliavam-se, a brancura da capela, que se via a sete lguas de distncia,
j se confundia com a brancura das nuvens e a ele continuava a vex-lo a ideia de s
er o primeiro a lanar a ponte, o apelo que talvez no colhesse resposta alguma.
862
A EXPERINCIA
1 4
t Finalmente, a solido esbarrondava o fara
ele havia erguido dentro de si prprio desdebql
bera a razo por que ela estava presa, um marM
os que bordam os pntanos e os despenhad^n
agora, os seus olhos j podiam encontrar aquelas!
grosseiras sem se lembrarem do que haviam ifoi
podiam v-las como um simples pormenor dtcj
inteiramente desligadas da outra imagem. - ofe
Tornara a parecer-lhe que ela passeava mdi
cela do que habitualmente e que o fazia, sofert
quando ele passeava tambm. Numa das vindadj
ra-lhe, perto das grades, a agulha do "tricot"; ia/
abaixara e, ao endireitar-se, ele julgou que uma
sorriso voara na sua direco. ,^Aj
Rompeu, de vez, contra a dvida, contra ele-iad
Ento no se aborrece de estar sozinha &nM
Falava-lhe encostado s barras, atravs do cogi
com uma voz cheia de expectativa, de receiosiM
ser ouvida, como se lhe falasse de borda parati
dum abismo. No era assim que havia imaginado."
ar, mas a excitao s permitira vir superficial
tamente aquilo que mais lhe pesava no esprito. J&f
tudo, o seu torn incerto deixara-o humilhado. E, ia"
tudo fora muito simples. O vulto negro detiviM
passos, como se no esperasse a interveno olfj
houvesse compreendido bem; depois, aproximara+sii
grades: -fa
Que diz ? ) M Ele ficou, de sbito, contente. Jamais teriaofl
ditado que a portadora daquelas mos lhe pudesaoj tanta alegria s porque dispunha d
o condo de^J!
Eu perguntava se no se sente aborrecida?! estar, h tanto tempo, sozinha... .'"MJ
Ela encolheu os ombros, resignada. Mas nailj uma resignao seca, masculina, como o s
eu corpo, permitia esperar. O movimento mostrara-se chei"! curvas e duma feminil
idade oleosa e quente. 'iv^
Que you fazer ? respondeu. E voc ? i<
Estou muito aborrecido, claro... W* A corda ligara os dois declives. A pouco e p
oa"i
A EXPERINCIA
863
foram diminuindo a intensidade da voz, medindo o torn, harmonizando-o com a distn
cia que os separava. A vida retalhava-se em bagatelas verbais. Era s o prazer de
falar, de restiturem a eles prprios o que neles havia de humano atravs das rioites
e dos plagos. De quando em quando calavam-se, o pensamento em busca de terra neut
ra, pois sentiam perfeitamente que, naqueles primeiros contactos, nem tudo quant
o emergia devia ser utilizado. Foi depois dum desses curtos silncios, cheio de pa
lavras recalcadas, que ela
disse:
Ainda me lembro do dia em que voc trepou macieira e o castigaram por isso...
Ela dissera aquilo com naturalidade e os seus olhos redondos, dum brilho negro,
anormal, pareciam suavizar-se sob a influncia da recordao:
Janurio ficara calado, a fix-la, sem a ver. Tudo era febril e surpreendente. Tudo
lhe parecia, ao mesmo tempo, absurdo.
Como ? perguntou com brusquido, sob a fora do nexo que acabava de formar-se.
Lembro-me muito bem...volveu ela, numa voz ainda mais doce. Voc fez aquilo p
or causa da Clarinda... Eu era pequena, mas percebi logo que foi por causa da Cl
arinda que voc trepou macieira...
Viu-a sorrir com ternura e uma indulgncia maternal que, subitamente, iluminava de
simpatia a sua cara rude. Nele, porm, alguma coisa se opunha a <}ue ela pudesse
sorrir assim depois do acto que praticara.
Ento voc tambm estava no Asilo ? perguntou de mau humor, como se essa igualdade pr
etrita o Desgostasse.
Pois! Eu j tinha compreendido que no se lembrava de mim. No me admira: andvamos sem
pre Separados, s nos vamos atravs da rede e eu era niuito mais pequena do que vocs.
Alm disso, mudei "iuito...
Ele voltara a contempl-la, despojando-a dos anos ^Ue ela vivera depois da infncia
e tentando a sua
864
EXPERINCIA
A EXPERINCIA
865
I
* identificao entre as batas cor-de-rosa quethJ do recreio, traquinavam do outro lad
o da xitgm arame. A memria dos olhos recusava-se, pqnB estabelecer qualquer liame
entre a mulher qut> ttijjl agora, na sua frente e a criana que ele procwMB passad
o. 'ffll
Era interessante disse ela, isoladarntaiffli
O qu? stTm
q Asilo. tfa
Aquilo tornou a indisp-lo. *:i*^|
Parece-lhe ? Pois no me deixou saudades'.^! Dir-se-ia que ela ficara perplexa, pe
rdida rfi^B
tncia dos anos vividos, a perguntar a si prpjf|j era ela ou ele quem tinha razo. fiB
A mim deixou-me muitas afirmou, dep0JbB um torn longnquo. Nunca mais esse tempo V
4JM
Ele sentia, agora, o desejo de abandonar as $s"l de tornar solido que pouco antes
o oprimia. '(fJM
Calaram-se novamente. Era uma escolha ffiM como se procurassem, entre restos de
pedra briM um fragmento que no fosse cortante, uma dessas pgjjjl lisas, arredondad
as, que s se encontram abufidM mente nos rios e nos regatos onde correu a gtrfH sculo
s incontveis. Foi ela quem julgou t-la' fKiB
Quando o seu julgamento ? '*%5
no ms que vem respondeu ele, nuir$ MJ
Ela quedara-se a olh-lo com humildade e P^H no encontrar mais nada para dizer. '^I
fS
E o seu ? perguntou Janurio. - : J Perguntara aquilo apenas por perguntar, poiSi
<^H
tinuava desinteressado pelo destino dela. '^^JB
E o seu ? repetiu. - ^E Esteve ainda um momento espera, mas no/flP
veio resposta alguma. < i<Pl.
Tudo fora aparentemente muito simples, tuftojtf reduzira quela meia dzia de palavra
s, reciptiflw" dade que a primeira pergunta comportava; ma&$ compreendeu logo que
se haviam enganado, qne,vf
volver, a pedra redonda adquirira um gume e se enterrara na carne deles.
Janurio viu os olhos negros afastarem-se das grades e perderem o seu brilho; viu
a figura distanciar-se no silncio oco que cara nas duas celas; viu-a desaparecer e
ficar s o silncio e as grades; e depois ouviu, vindo do fundo do silncio e da cela
, aquela voz sufocada, que dizia sem convico:
Desculpe... Tenho de trabalhar.
VII
no." DIA
- J-JENSA-SE que no se descobrir, que ningum saber. Mas o pior que ns prprias ficamo
sabendo... Isso que o pior! Claro, a no ser que se esteja doida, ningum faz aquilo
por prazer... Voc compreende ?
VIII
A EXPERINCIA
D
_LJE novo o doutor Macieira se encontrava sua secretria, continuando os "Anais de
Mangudas". Na noite dum silncio morno, a luz do gabinete, ao Projectar-se no pom
ar atravs da janela aberta, enquajhava a copa duma laranjeira e o ramo prateado d
o jjttioeiro que pendia sobre ela, como se a quisesse beijar. Estendido no tapet
e, o co abria, de quando em quando, s olhos sonolentos, em direco ao amo, e voltava
a Dormir.
28 Vol. Ill
866
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
867
' 4
* O doutor Macieira j relera as folhas Q)le,<|
escrito da ltima vez, retocara, de passagenjfiJM
outro perodo e lixava agora a frase ondeifljM
rompera: fn9dra|
"Tudo, no Asilo, parecia decorrer normaltaSH
Ardia o cigarro na borda do cinzeiro emspfJI
pena hesitava procura duma ligao rtmica.oMS
confusos, mal ordenados, infiltrando-se por"i^^3
recordao de cenas e emoes recentes, os vtfi-tt
que acudiam chamada; e ora apareciam, o$j
sumiam, como os peixes que andam entre limos, l
que so tambm a recordao de guas passadasJ
A pena ordenou, enfim, as palavras: ,y|
"Um dia, porm, comeou a murmurar-se 'cm
doutor Navarro de Sousa ministrava s crianaS
ensino nefasto. Um e outro afirmava que, com oj
texto de explicar "as razes das injustias, da mu
e da servido que anulavam tantas vidas e levjB
muitas outras ao desespero e at ao crime", cOnji
dizia no testamento, ele inoculava nos asilados '.m
perniciosas, fazendo deles, em vez de cidado&CJH
Ptria, uma horda de rebeldes, de futurosr$e8|
tentes, que viria aumentar o grande nmero i$m
tente c fora. (,3
Defendendo-se do que se propalava, o doutor |
varro de Sousa declarou que, no Asilo, obedecia apfl|
s determinaes deixadas pelo seu amigo Samj
Mendo e nestas nada havia que fosse malfico ou mel
novo, pois eram, ainda, o eco duma voz que soaria
dois mil anos nas plancies da Galileia, uma voz da
ento adorada por tanta gente que a consideravaj
origem divina. jl
As explicaes do professor no tranquilizara!
contudo, as pessoas mais responsveis de MangWoS
que no desejo expresso por Sampaio Mendo tiM^
visto apenas, at a, essa parcela de ideal com tfwt
hbito chancelar as iniciativas louvveis e que nenhOi
ligao manter depois com as realidades sequSffl
Ningum havia imaginado a srio que as ideias&J
critas no testamento fossem, um dia, postas em pr*H
Elas pertenciam ao nmero dos bons princpios morais
TT--_ .',3^,3^ -.Trt arr-^c^i-tT-anrlr* rnmn f"n mainr
que
jyas V^L -
ue a Humanidade vai entesourando, como seu maior bem, ao longo dos sculos, sem os
gastar jamais na vida quotidiana, pois um tesouro, pela sua prpria natureza, des
tina-se a ser guardado e no convertido em moeda corrente.
Mais do que meditadas, estas reaces eram sentidas de forma obscura, inconsciente,
tanto que se assinalava uma tendncia para se desculpar a memria de Sampaio Mendo p
elo que acontecia no Asilo e responsabilizar, em vez dele, o doutor Navarro de S
ousa. E isto no s pela condescendncia e respeito que costume dar a um morto, mas, s
obretudo, porque a essncia do seu testamento se evolava para um cu abstracto, onde
no se enxergava inconvenincia alguma, ao passo que o velho professor se empenhara
em dar-Ihe realidade directa e fazia-o com uma perseverana e uma f que ningum esp
erava, por serem de todo desusadas.
Inicialmente, estas discordncias e comentrios eram elaborados apenas pelas classes
abastadas e alguns mdicos, advogados e polticos. O povo, a braos com as suas prpria
s dificuldades, ouvia aquilo e logo se desinteressava, apesar de um e de outro s
e mostrar surpreendido de que o velho professor, com seus ares de boa pessoa, mu
ito simples, falando a toda a gente, que nem parecia um doutor, fosse assim to pe
rigoso como se dizia. com o tempo, porm, o prprio povo, quase todo analfabeto, dei
xou-se influenciar pelas pessoas importantes da vila e mudou de atitude. Constar
a que o doutor Navarro de Sousa havia ensinado aos asilados que a propriedade no
era sagrada e o facto de uns possurem tudo e outros no possurem nada 'arnbm concorri
a para abrir ressentimentos entre os homens e levantar os seus maus instintos, d
o mesmo ftiodo que quem est nu e com frio, se v uma ovelha, Pensa logo em liquid-la
e arrancar-lhe a pele, ao passo que se estivesse vestido, talvez lhe acariciass
e demoradamente o lombo e, com certeza, deix-la-ia viver er>i paz.
868
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
' "
* Se bem que uma parte da comarca de -Mn
se encontrasse muito fragmentada em pequei]
priedades, como ainda hoje acontece, a mifl
habitantes no tinha um s palmo de terrap<afc
que, naturalmente, lhe estavam reservados ne
trio, por higiene pblica. Mas esses mesmos<;ltt
os pequenos proprietrios dizerem: "Assim no M
estmulo para o trabalho, assim nunca chegady
coisa alguma, assim ficaro uns vadios", entB
que, efectivamente, e embora isso parecesse nqi
a quem olhasse para ele, o doutor Navarro det
andava a meter ms ideias nas cabeas das-oa
pobres de Mangudas. v.
Foi por essa altura que, no conselho nuri
um dos vereadores se levantou e, aps declafti
o professor devia ser tido como um inimigo &
da Ptria e do Rei, props que o demitissem B
mente, para se acabar com aquilo a que o p
chamava "o escndalo do Asilo". "Quando, hb
vinte anos disse ele o governo de entnal
da Universidade de Coimbra esse homem, os -Mi
rios do nosso glorioso partido apresentaram aqfilf
apenas como uma perseguio poltica e quiseralH
formar o doutor Navarro de Sousa num heri f a
mrtir. Agora, porm, v-se, claramente, ter o T$W
procedido em virtude duma razo muite mais prtlj
do que aquela que os seus inimigos apregoaram *
razo que interessa aos prprios fundamentos ct'1
sociedade. Nunca fui reaccionrio; ao contrarie J
a minha vida prova que tenho sido sempre untfl
svel defensor do progresso. Mas progresso umaO
e subverso dos espritos outra muito diferente^
O doutor Navarro de Sousa foi demitido dias *
E, durante alguns anos, o Asilo ficou apenas coltf
professores primrios. ^
Mas, com o rodar do tempo, o semanrio <Jo<>
tido Regenerador, uma vez mais gritando na opo
comeou a afirmar que o facto de o doutor Na*1
de Sousa haver exagerado nas suas funes nofe
titua motivo suficiente para se deixar de cumpl
869
testamento de Henrique Sampaio Mendo. Este, bem vistas e ponderadas as coisas, s
desejara que os homens se compreendessem e amassem mutuamente e se mostrassem ju
stos uns com os outros, o que era, no fundo, a prpria doutrina de Cristo.
Como o jornal argumentasse com a "sagrada vontade do morto, que no fora acatada,
apesar da grandeza de alma que ele revelara", criou-se, mesmo entre os que apoia
vam as autoridades, um estado de esprito em que a superstio tinha, talvez, maior pa
pel do que o respeito s ideias de Sampaio Mendo ou o prprio destino das crianas rfs d
e Mangudas.
Quando, aps novas eleies, o Partido Regenerador voltou ao poder, de estandarte lava
do de todas as ndoas antigas, decidiu-se contratar um outro pedagogo, tambm profes
sor de filosofia, que reacendesse no Asilo a chama apagada. Era um homem jovem,
o doutor Ribeiro de Vasconcelos, que obtivera alta classificao e laudatcias palavra
s em todos os exames. Mas a sua magistratura foi, igualmente, efmera. Ao fim de a
lguns meses, principiaram a tombar sobre ele acusaes semelhantes s que haviam sido
atiradas ao seu predecessor, como se uma draga lhe despejasse em cima a lama e a
s pedras trazidas do fundo dum mesmo rio, velho e sempre sujo. E o jornal que, a
nteriormente, protestava por no se respeitar a vontade de Henrique Sampaio Mendo,
mantinha agora, sobre o caso, um Prolongado silncio.
Foi nesses operosos dias em que o "Eco de Mangudas" louvava, sem nenhuma tempera
na, os sucesSlvos empreendimentos do governo regenerador, que
0 presidente da comisso directiva do Asilo escreveu a doutor Ribeiro de Vasconcelo
s, advertindo-o de que e^e estava a ir muito alm da funo que lhe comPetia. Ningum sa
be o que se passou na alma do novo Prfessor, assim posta, de asas coladas, sobre
um fio; nias respondeu, como o doutor Navarro de Sousa, que Se Hmitava a cumprir
o que o testamento estabelecia, P,0ls era esse o seu dever. E ajuntava que se,
a prinClPio, ele prprio no concedia um acordo macio s
870
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
87I
ideias do testador, depois de as haver experftiid
nas crianas acabara por concordar com elasf 31
O presidente desfechou-lhe imediata rptseSl
rante vrios dias, uma polmica epistolar rr^j
entre ele e o professor, com ressonncias na'fa
nos sales das pessoas importantes da vila e.nwfj
valos dos espectculos que uma companhia de<4
estava a dar em Mangudas. Tudo andava &M&I
forma como se devia interpretar as palawepl
preenso activa e no passiva", que SampaiU*!!
havia escrito no seu testamento e o presidente^
dera v subversivas. 1> i
Como acontecera ao doutor Navarro deS<"j
segundo professor foi demitido tambm e parsiH
manh de Maio, em que a quinta do Asilo seofl
trava cheia de flores, que as crianas colhiafift '
ofereceram em dois grandes ramos. oM
Depois disso, muitos mais anos se passatffli
se executar o testamento. Talvez uma ou outraopd
ao lembrar-se de Sampaio Mendo metido naquebyl
tura rasa que havia num canto do cemitrios, Sj
oculta pelas plantas bravas sobre ela nascida",^
sentisse satisfeita com essa desobedincia suduaol
vontade, mas ningum ousava dizer palavra quj
tasse adormecidas antipatias. Veio, por fim, alft
lorizao da moeda e se, para muitos mangled"
isso constituiu a runa, para o caso moral do As
uma soluo providencial. Desde que o rendimp*
dinheiro legado por Sampaio Mendo j no b
para sustentar as crianas, cessava, com grande1'^
dos mais tementes, o dever de cumprir o testaaht
Quase todos estavam de acordo em que, pOffli
parte as ideias extravagantes de Sampaio Menl
Asilo seria uma instituio til; s dois ou tt
quem os outros chamavam desdenhosamente "os flj
tas", homens nem sempre de maneiras correctas^
a polcia vigiava de quando em quando, garant
que o futuro havia de resolver o problema derffl
forma muito melhor. Mas ningum lhes dava ouv
O prprio vereador que se tinha erguido contra o dQ
Navarro de Sousa declarou que seria louvvel manter
0 Asilo, desde que as crianas fossem educadas com necessria disciplina e nos boris
princpios usados pelas famlias honestas, que ainda as havia, felizmente, para hon
ra de Deus e da Ptria, em Mangudas.
Perante esse sentimento colectivo, decidiu-se substituir o pessoal laico por fre
iras, na esperana de que as pessoas ricas da vila, sobretudo as que eram muito de
votas, contribussem, com os seus donativos, para a manuteno dos asilados. Isso, porm
, no aconteceu e, assim que se esgotou o capital deixado por Sampaio Mendo, a por
ta de carvalho do Asilo, slida e escura, com uma bela cruz de madeira doirada que
a Superiora mandara embutir ao centro, fechou-se definitivamente sobre a ltima c
riana que sara, sem que a experincia estabelecida no testamento tenha sido jamais r
ealizada".
IX
132." TARDE
JjiA Cesria em voz alta e as outras estavam sentadas ao lado, [muito quietas e at
entas, quando Qarinda entrou na sala. Fosse porque o nome do doutor Carrazedas v
iera, pelo ar, ao seu encontro, fosse Pr aquela pausa que Cesria fizera ao v-la apa
recer, eta pressentiu logo o que o jornal propagava.
As mulheres volveram os olhos, carregados de lstlrna e de esperana, como se lhe di
ssessem: "no te arrelies, que ainda no est nada perdido"; e a Isaura, jttorenaa, jov
em, bonita, que substitura Pilu, afasj-Va-se ligeiramente de Natalia, criando-lhe
lugar no div.
^ -No nos tinhas dito nada... observou Cesria. k ficou a olhar para ela, para a e
xpresso vacilante
872
A EXPERINCIA
' 4
., do seu rosto, para a dvida inquieta que 6o*
suas pupilas: No sabias ? Ele no te mandoj
Toda a curiosidade lhe parecia despropsito
a resposta to absurda como nascer para motei;
Agarrou, bruscamente, no jornal e foi meteu"
dos cortinados da janela. As outras viram-nau
mo testa e impelir os cabelos para cima, ^r
tro, cinco vezes, como se os cabelos no lhe ai
sem ou ela no pensasse no que fazia. Por finj,
olhos correram sobre as palavras que parecjp)
e dissolverem-se. >
"...apesar de vasta, a sala estava cheia, .fr
processo despertou grande interesse na regia/q
categoria da vtima". IBM
Aquilo no a quis afligir e, por isso, n^a,
veniu... aventurou Lusa. Essa histria d-l
da cabea... ,D.
"O ru apresentou-se com modos tmidos e, i
quando o juiz o interrogava, para identificaca'j
pondia sem jamais levantar a vista".
Da cabea e da algibeira...Natalia l
ainda mais a voz: A Dona Fortunata disse-me, q
que no lhe emprestava nem mais um vintm...
"A leitura da acusao e a da defesa, que o
gado ditou, ocuparam toda a manh, dado que o Jj
rio tem maus antecedentes". f
Lusa sussurrou: >,i
Eu emprestei-lhe um conto de ris. E, se^
mais, mais lhe emprestava. A patroa no fazi
nenhum... h'
"...reabriu s 14 horas, com o interrogat^H
testemunhas. impossvel darmos todos os depfil
tos feitos, que se arrastaram durante a tarde, lBf
-nos-emos ao mais importante, o da senhora Gerf
Ribeiro, governanta do tabelio ao tempo do ci
S o advogado uma conta calada con
rou Cesria. Se ela no toma juzo, nunca mais<
reita a vida...
"A testemunha, vestida de negro e uma blusa toada at junto do queixo, entrou na s
ala com n}
A EXPERINCIA
873
HrJBBfifc deciso- De todas as pessoas j ouvidas, era ela quem
Jy^Br parecia estar mais vontade. Contudo, um momento
l*Nlp jjouve em que a sua voz dir-se-ia comovida por ser
gHj^B obrigada a recordar aquilo: "Quando cheguei ao cor-
^SJB redor, ele estava a esvair-se em sangue e disse-me:
rSaR "O malandro matou-me". Pensei, ento, que nunca mais
flgpBp veria vivo um homem to bom e to srio como era
qjSii> Q senhor doutor Carrazedas". A voz da senhora Ger-
M^jgK mana perdeu a sua dolncia e comeou a depor com
rmj^H muito desembarao. Contou, pormenorizadamente, a
XjjSB "da ^ r^u< 1uan<io era criado em casa do notrio,
j^^B " No tinha nenhum amor ao trabalho. At fomos
j ill obrigados a comprar uma bicicleta, para ele no perder
[Kgj^B duas horas por dia, que quanto gastava para ir ao
^j^Mj mercado. E quando o mandvamos a casa do doutor
n^B Agnelo, era uma tarde inteira, j se sabia. Muitas
oj^B vezes e cnamei vadio, pois parece que eu adivinhava
^M| cmo ele ia acabar".
h1|^K As mulheres j no falavam to baixo como h
gjrf^B pouco e as suas palavras infiltravam-se, confusamente,
^B nos ouvidos de Clarinda:
' 'H^B ^ (lue you ao Estoril no domingo, isso you
jg^B dizia Lusa. No gosto muito de regatas, mas pro-
"^B meti ao meu rapaz... Se a Dona Fortunata no ficar
"j^m contente, por ser domingo, pacincia!
i"BB "...o advogado perguntou-lhe:
^fi^m * E voc o que fazia l em casa ?
>'^B * -^u fa:ia a cozinha, senhor doutor, e era a gover-
a^ <(~~ Muito bem. So dois ofcios perfeitamente res-
o||jH Peitveis. E quantas divises tinha a casa ?
rngjjH <(Assim de repente, senhor doutor... A teste-
tjjj^B munha baixou os olhos, como a interrogar-se a si pr-
n^B Pfia. - Umas catorze...
H: ^ * E uma adega, a horta, o jardim e os animais,
ji^B io verdade ?
-Ojj^B Enquanto conversava, os olhos de Cesria foram
^d a* a janela, voltaram, tornaram a ir. Clarinda estava
"74
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
875
pif
' 4
m
de perfil, a cabea inclinada sobre o jornal^ dB
vibrava ligeiramente nas mos; e o seu GOTp^f
atravs do cortinado de renda, dir-se-ia pcn
feito de milhares de partculas, como um mpajjjfi
No te rales, rapariga! Largos dias tfe 1
anos! gritou-lhe Cesria. , jxaJlJj
As outras mulheres contemplaram-na tambxtej
ram um momento caladas. ' -ffyj
" Era uma casa grande, como comp&tBtfIfa
homem com a riqueza do doutor CarrazedasfLdj
casa com muita labuta, est claro... E quanti
dos tinha ? aofm
"Pois tinha a ele, senhor doutor... E/41^
bem! Antes de ele ir para l, tambm s iaftajj
criada. __ io/f)
" verdade que, na vspera de o ir byga
Asilo, voc despediu um homem que ia l a Cf
vez em quando, tratar da horta e do jardimitf|
outro, o Joaquim Chambuta, que ia tirar a gfs
" A gua, senhor doutor, foi sempre tirada a
criadas. O homem era provisrio. > l
" E o que cuidava da horta e do jardim? /y$
"- Antigamente era a criada que fazia tud&
o senhor doutor sabe o que so hoje as criadas^fS
nasala), >BII
" Ento foi ele quem passou a tratar tamM8
horta e do jardim? <>,,J|
"Pois! E olhe, senhor doutor, que no fM
balho de rebentar". -l
Eu tambm no acho graa nenhuma s g
tas dizia Natalia. uma pasmaceira. Ainta-i
gente estivesse perto! De touradas, sim, gosto. ,'>vi
" ...quando havia pessoas de fora a jantgrrJ
chamava, para a auxiliar, uma sua prima... A,|
" J v, senhor doutor! Para no o sobrecarr
" Mas antes de ele ir para l, voc chamas
sua prima trs dias por semana, mesmo que nogl
vesse visitas a jantar... i -|
"A testemunha olhou para o tecto, como a HHJ
dar-se: 6'
" No digo que no, senhor doutor. No que o trabalho fosse muito; as criadas que no pr
estavam-. (Novos risos).
" Quantas teve voc no ano anterior ida dele
para l?
" Oh, senhor doutor, disso que no me lembro nada. J foi h tanto tempo!
"Bem, nesse caso you ajudar-lhe a memria...
"O advogado leu, ento, os nomes duma dezena de raparigas, das quais apenas uma es
teve mais de dois meses em casa do doutor Carrazedas.
"A testemunha interrompeu: J v, senhor doutor, que no prestavam...Mas o juiz orden
ou-lhe que se calasse".
Pareceu a Clarinda que a campainha soava no na porta, mas dentro da sua prpria cab
ea, com o torn repentino e agudo dum alarme, que, depois de se prolongar, ficava
em expectativa, a aumentar a confuso que ela sentia.
"E, agora, diga-me uma coisa: quanto que ele ganhava ?
"Oh, senhor doutor! Se era um asilado!
"-O seu patro nunca lhe disse que lhe pagasse alguma coisa?
" No, nem tinha que dizer, pois se lhe fazamos toda aquela esmola!"
Os passos da Augusta expandiam-se no corredor, mas chegavam-lhe duma maneira vag
a, apagada. Parecia-lhe que, em vez de se aproximarem, se iam distanciando, ensu
rdecendo, morrendo sobre tapetes.
" Nem lhe disse depois de saber que ele tinha mentido sobre o verdadeiro preo dos
produtos e ficara com cinco escudos que no lhe pertenciam?
" No.
"O advogado voltou-se, ento, para o juiz:
" No preciso mais nada da testemunha",
A Augusta chegou porta da sala e, de modos despachados, vozeou:
Meninas, para o quarto!
As mulheres tardaram a obedecer. Viraram-se para
8;6
A EXPERINCIA
f Clarinda e ficaram, um momento, indecisas* ~(r)s~eH
dela no se erguiam do jornal. , jM
"Foi ouvido a seguir, como declarante, o dam
Agnelo Carrazedas, filho da vtima. No tribuna}-^*
de novo, um grande silncio. O doutor Agnelo m"
que o seu pai fora, toda a vida, um carcter aaste
E acrescentou: "De rija tmpera, como o desse n^
gueses antigos, que descobriram meio Mundo -ene]
ram Portugal de glria; desses portugueses dmn
cara e duma s palavra, que se, aparentemeqhj
mostravam duros, porque detrs dos seus actosrmj
sempre um objectivo nobre a atingir. Se o rae"j
recolheu um asilado, porque tinha, tamba$ ,J
plano sobre o futuro deste. Ao colocar o rapaz ae
servio, no pretendia mais do que fazer detTJ|
homem cumpridor dos seus deveres, experimentastes!
disciplina e no trabalho, pois certamente pensa v arS
jar-lhe uma situao superior de criado logocS
ele atingisse a maioridade". aMI
"O advogado de defesa: Pode o declarante inja
mar-me se o doutor Carrazedas lhe confessou, ajgfflj
dia, esse projecto e em que termos o fez? -" i
" No. O meu pai, pela sua educao, perteWl
a esse nmero de homens que se sentem dimittmB
se tm de falar de assuntos domsticos, mesma wB
seja com um filho". |||
Era como um disco avariado, sempre a rej&nl
"Meninas para o quarto! Meninas para o quarto! ||
ninas para o quarto!" Um disco dentro da sua cabefil
Finalmente, as mulheres levantaram-se e, ao pasfl|
em frente dela, olharam-na como se lhe dissesse"
"E tu no vens ?" Mas ela continuou de olhos fixdsiH
" Ento em que se baseia a sua hiptese ? jl
" No conhecimento do carcter de meu pai e fm
mil pormenores. Porque ele, apesar do seu aspecto frfl
tinha, no fundo, um corao de oiro. jl
"O advogado, irnico: Muito bem. Estou Perjl
tamente informado. E felicito-o pelos seus bons senifj
mentos filiais... No h muitos filhos assim... Jl
A EXPERINCIA
877
"Foi ouvido, ainda, um antigo caseiro do doutor Carrazedas, a quem pertenceu, in
icialmente, a bicicleta que o ru usava quando ia ao mercado. s dezoito horas, o ju
iz marcou nova audincia para tera-feira
prxima".
X
151. DIA
f) Francelim, raiando os quarenta, de cabelo luzidio, cara ovalada e cinco centa
vos de bigode sob o nariz, havia mostrado logo ser homem previdente, farto de sa
ber que s se conhece o verdadeiro valor dos objectos da nossa vida quando, fora d
e casa, precisamos deles e verificamos termo-nos esquecido de os trazer. Entrara
de maleta cheiinha de coisas vistosas: um frasco azul de brilhantina, uma escov
a assente em prata, gravatas de muitas cores, reluzente mquina de barbear, outra
quinquilharia; e clandestinamente, iluminando as trevas da algibeira, uma harmnic
a de boca, capaz de pr a danar os insectos mumificados nos museus.
Mas, naqueles primeiros dias, ignorando ainda a pinta do carcereiro, Francelim no
a soprara; falava de manh noite, mais verboso e opulento de tons que o ramalhar
de floresta sob vento desabrido. A princpio, ainda tratara por "voc" a Janurio; dep
ois, era tu c, tu l no ests a ver, ora essa! mas sem
0 ar de superioridade com que "O Sbio" prestigiava as suas barbas longas e negras
.
Andaste com sorte, pois alguns tm de esperar anos para serem julgados...
Francelim passeava dum lado a outro da cela, de tal modo que ningum veria nele um
cativo a pulverizar, entre os ps e o soalho, as horas preguiosas; Passeava em fre
nte de Janurio, conversando, as mos
878
A EXPERINCIA
f nos bolsos e o busto bem erecto, no jeitarddd|
discreteia, em sua casa, com um velho amigtfoji
que o escuta comodamente sentado. De quraS
quando, aproximava-se das grades e derran^K
fora um olhar distrado, de todo alheio gros^H
barras de ferro e importncia do seu sigf|
olhava a praa como um proprietrio, vendo,- Hg!
janela, as terras que lhe so familiares. t*ftc|
Tambm nisso tiveste sorte. No h dtHilti
ela gosta de ti e viu a coisa como deve ser^t^g
um defensor oficioso como um almocreVe'Ha3
cigano: mesmo que diga a verdade, ninguem'^ljj
dita. Mas, ento, ela rica ? ~'"s" J
Janurio tardou a vencer a sbita hesitaif
porm, abonou, descendo a vista: .57'"
Rica, rica, no sei se , mas os paiVftfeM
tante... 9^1|
Voltou Francelim a olh-lo de alto a baie^aM
joso de esquadrinhar-lhe corpo e alma, em'foaaoH
qualidade que justificasse to avantajado .pfrij
homem to vulgar. Depois comentou, numa'-^IIB
derrota interior: 3 .JgjJ
No caso de todos os dias uma raparigawH de boas famlias interessar-se por um tipo
comiM mesmo um caso raro... Disseste que ela se*l|H Florinda ? lfl*SS
No; Clarinda. '^ffl Francelim tirou o pente, que se via no bola(r) JH
rior do casaco, como o dos barbeiros, emergJJldlH detrs do pequeno leno, e aprimoro
u o cabelo: rO^H
O nome no nada feio e v-se que a pe<wH tem bons sentimentos. Tiveste sorte! <^JB
O doutor Macieira disse-me que pedira a^>a^B gado para no receber mais nada dela.
.. -J-s^8j
Ento ele quem paga ? ' "jH
Na outra cela, a figura negra continuava *"^J roda do seu poo invisvel agora mais
distairfjiB das grades do que quando Janurio se enconlsjB sozinho. No tornara a fa
lar com ele desde que hsawfl
A EXPERINCIA
879
trazido Francelim para ali. Como nos primeiros tempos, volteava somente na parte
menos iluminada da cela ti mesmo quando o rosto surgia, por momentos, na clarid
ade, dir-se-ia ainda pegado s sombras, maneira dos velhos retratos pintados sobre
fundo escuro. Algumas vezes, Janurio encostava-se s grades, olhando-a muito, na e
sperana de recomear os dilogos interrompidos; mas sempre o olhar dela passava sem s
e volver, como se ele no estivesse ali, como se entre os dois o ar se houvesse to
rnado opaco. Uma manh de maior audcia, ele enviara-lhe, em voz alta, um "bom dia"
cordial; ela baixara apenas a cabea e prosseguira no andamento de animal puxando,
de olhos vendados, os seus alcatruzes.
Tambm Francelim, a toda a hora loquaz e bemdisposto, tentara ligar um fio verbal q
uele silncio rotativo; viram-na, porm, acolher-se ao fundo da cela, s voltando a tr
ansitar mais tarde, teimosamente indiferente ao que decorria na cela vizinha. Ja
nurio ficara-lhe, de sbito, agradecido. Ele no simpatizava com os modos decididos e
galanteadores do seu novo companheiro e a atitude dela parecera-lhe um saboroso
castigo.
Naquela segunda-feira, Francelim dissera, mal se levantara:
Provavelmente, finda amanh. Deves ter coragem.
Depois, foi insistindo naquilo:
Um caso assim no d mais, com certeza, do que duas audincias...
Francelim parecia, por vezes, to preocupado como se fosse o prprio destino dele qu
e a Justia ia pr sobre a balana:
uma espiga se tenho de ficar para aqui sozinho ~ disse.
Ento Janurio lembrou-se de como ele era falaCeiro e largou a rir:
Deixe l... Tambm eu pensei ficar muito tempo sem ningum e, afinal, veio voc...
Pela primeira vez desde que estava ali, Francelim
88o
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
881
1 4
,j
pegara na harmnica. Sentia-se vaidoso de a. ktf
trado ao exame regulamentar com a mesma &H
com que subtraa carteiras; mas, depois de *ti^|
boca, renunciou a toc-la e afundou-a novaml
bolso. iilMl
Ao comeo da tarde, dormitava Francelim, USEI?
ss soaram ao fundo do corredor; os do carcereira^
Janurio reconheceu logo, e uns outros, suaves, l^q|
que lhe despertavam uma lembrana, um vagfl^Mj
sentimento, o desejo de no estar a enganar-spl
prprio. ' JBt
Era a hora em que se permitia visitas. Osi^pjl
aproximavam-se, alargando a expectativa. fiiifi
De sbito, Clarnda pareceu-lhe ainda mais bet
mais delicada de expresso e de gestos do qus";!
gem que ele trazia na memria. O carcereiro deitt
ali e voltara para o seu cubculo. Ela ficara ertl
duas celas, a olhar para o lado dele, mas dumftl
incerta, como se o no visse nitidamente na obSB
dade interior. $ti
Janurio correu para as grades. "No te esp^
- disse e no pde dizer mais nada. Os lbi-j
miam-lhe, mas como se fosse do lado de dentro, $
os dentes. Ela tambm queria falar e tamblfl^l
podia; sentia-se mais envencilhada do que a prMJ
vez que se tinham encontrado em Lisboa e ele, -SM
o passeio, a chamara, tmida e docemente, quando
andava por ali a ganhar a sua vida. '*"!
Foi a figura adormecida, em mangas de caiai
sobre a enxerga, aquela presena indesejvel, ab"
dante de realidade, que a reconduziu a si prpriaM
Ento como ests ? A sua voz era aind"^| mida. Ela olhava-o muito, mas no o via a se
u gflW Dir-se-ia que a barra de ferro cortava a cabea tfe em duas partes; em cima
, s a testa e o cabeto jf baixo, o rosto mais magro do que quando ela o W da ltima v
ez e com os olhos a evitarem fix-la, c<&& se estivessem envergonhados. 'a
Por que no me mandaste dizer o dia ? "* Ele no respondeu. Mas ela j adivinhar
a tat"
j sabia tudo e se perguntava no era para confirmar, j^s para o repreender maternal
mente:
Eu teria gostado mais se mo houvesses dito...
Francelim despertara e, sentado no colcho, os braos estendidos sobre os joelhos, o
lhava com uns olhos pestanej antes, cheios de sono e de surpresa.
Quando chegaste ?
H pouco... Ainda no h uma hora... Janurio estava certo de que o embrulho que ela
trazia era para ele. Estava certo disso, mas no sentia pressa de saber o que vinh
a naquele embrulho to bonito, o papel novo cuidadosamente dobrado e preso com um
fio azul, tudo ainda como sado da loja, apesar do carcereiro haver metido os dedo
s para verificar se no se tratava de ferramenta de evaso.
Deves estar cansada, pois longe...
No, enganas-te, no estou. A noite passou-se depressa e, mesmo sentada, dormi...
Tantas coisas para lhe dizer, tantas!, a arca cheiinha at acima, o rio a transbor
dar, e sempre aquele empecilho na garganta, aquele empecilho em todo ele, como s
e s lhe fosse possvel falar longe dali, sem as grades, sem o Francelim atrs das sua
s costas, longe dali, longe dali, onde pudesse abra-la, beij-la, onde pudesse chora
r se tivesse vontade de o fazer.
E, agora, onde vais ficar ?
Bem... Eu deixei a maleta na Penso Moderna... respondeu e abriu um sorriso irnico
e, simultaneamente, resignado: Parece que tm faro... No me disseram nada, mas pe
rcebi que no me aceitavam de boa vontade...
Ele tambm no disse nada. Mas um ressentimento enovelou-se contra aquela gente, con
tra a sua casa de Achada branca, com grandes letras vermelhas "Penso Moderna Pr
eos mdicos" aquelas letras que ete sempre vira de longe, por entre os grossos tro
ncos ^os eucaliptos, com uma ideia de bem-estar, e que lhe Pareciam odiosas agor
a.
Clarinda arqueara o embrulho e introduzira-o atras das grades.
882
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
883
uma camisa e uma gravata... Logftiii centara, num torn mais arrastado: Para 3JU
M
Ele ia a agradecer-lhe, mas ela, de repen(^^ se no quisesse nem ouvi-lo, nem v-lo,
pusaali olhar para o corredor e para a outra cela()najg(
Est tudo muito mudado... Muito difejfa^ nosso tempo... f y|3
O Francelim levantara-se, vestira o casaciM""f tara discretamente a gravata, que
em frenlan mulher ele sentia sempre a necessidade de esnoilj O seu desejo seria
aspirar aquela pele joveifl} fe| participar daquela sorte de que Janurio no htojl c
ia, nem de longe, merecedor; mas, com unjftfS provisria, que no sabia ainda onde l
anar asa^n foi encostar-se s grades que davam sobre are| razoar sobre a forma de int
ervir. f>(3fs^
Clarinda tornara a olhar para a outra Gai* olhava e a sua dvida prosseguia, ela re
tirava jofe e a dvida mantinha-se l, mantinha-se como,S| que se vislumbra de noite,
sobre o caminho, eUflji se' acende um cigarro e volve escurido logod^Ji afastamos
. O vulto negro continuava a passispj repassar, as mos cruzadas sobre o peito
e sem ym voltar a cabea, na atitude dum cura atravessas! sua igreja. oM
ela, no verdade ? perguntou, enfirjj,^ se estivesse certa de que ele sabia. aqu
ela p<?fii que esteve no Asilo connosco, no ? > ,q|
Janurio baixou a cabea. ,OT
Tambm est muito diferente... Por que nJM escreveste nada ? iov J
Ele encolheu os ombros: a3!
Para tristezas j tens que baste... ,nt{9< As plpebras de Clarinda desceram.
Tantos-fei
tantas corridas de meninas, tantas brincadeira^ M* hora; e o castanheiro com seu
s rebentos, a naai* com os seus frutos e, do outro lado, os girassf*) tantas menin
as a correrem quando tocava a S19 findava o recreio, tantos bibes cor-de-rosa a sut$
P esvoaantes e apressados, as escadas. ,-f
Por que est presa ?
Ele disse-lho e, depois, ficou sombriamente calado. gla ficou tambm sombriamente
calada, sem saber como proceder, perdida dentro de si prpria, perdida e a pensar
que fora tudo uma questo de tempo: a outra esperara mais e ela no quisera esperar,
o tempo que criara a crueldade, tudo fora uma questo de tempo e tudo tivera o me
smo fim.
Um momento, pareceu-lhe que j sabia o que havia de fazer; mas ficou ainda parada,
a derrotar, de novo, aquela repugnncia seca, que ora morria, ora ressuscitava, m
uito forte.
Por fim, atravessou o corredor e encostou-se s outras grades:
Boa tarde...
Teve de repetir com voz menos trmula: "Boa tarde...", "Boa tarde"; teve de repeti
r at o vulto se imobilizar e aqueles olhos virem para ela, redondos e frios como
os das aves nocturnas, quando se aborda o seu cativeiro.
No te lembras de mim ?
Nos olhos, a fixidez parecia aumentar de instante a instante e debalde Clarinda
procurava relacion-los com o olhar que conhecera outrora.
No te lembras? Eu sou a Clarinda...
Lembro-me...
Os lbios ainda tiveram um outro movimento, como se fossem dizer mais alguma coisa
; logo, porm, aquela imobilidade dos olhos se dissolveu e o corpo deu meia volta,
agitando as franjas do velho xaile.
Pega l. Guarda para ti...
Clarinda falava apressadamente, para a reter, enquanto as suas mos abriam a carte
ira; mas, atravs das grades, s se via j a parede do outro lado e, esquerda, abandon
ados sobre o velho caixote, as agu'has e um novelo de l vermelha.
Vem c, ento...
Do canto que no se via dali, chegava um murmrio quente, de quando em quando sacudi
do, e, depois, tudo ficou em silncio.
884
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
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1 4
* Clarinda volveu para o lado de Janurio. !| ^g
J outro dia ela me fez a mesma coisa - dist Francelim julgou propcio o momento para
<swS||
ximar e meter o seu enxerto na conversa: v -fijjn
No deve regular muito bem... declani(Wj o ar todo iluminado de cortesia. E ps-se a
distw os comentrios, s para continuar em frente dej rinda, da tentao que cara do
cu, enqusn<"| estava a dormir. mj
O carcereiro veio busc-la logo que o relop igreja deu trs horas. Ela despediu-se: g
feA
At amanh... No te aflijas... ,ky E partiu ante o sorriso comovido de Januiij
gula hmida de Francelim e uns olhos imveis ap|
fixavam do fundo escuro da outra cela. i j
C em baixo, na galeria que atravessava o edui
Clarinda deteve-se: "jd
D-me licena de olhar a quinta ? i c|
proibido disse o carcereiro. m
S para a ver, de acol, um momento...-iA mal faz ? Estive aqui, muitos anos, no tem
po do All| e gostava de ver como ela est agora. > j
O carcereiro mirou-a de lado. E lembrou-se dej todos os asilados que ele conhece
ra, depois de o Am terminar, tinham a mania de querer olhar a quisj se vinham po
rventura ali; nunca, porm, havia apflf eido um assim to bem vestido. "^
Clarinda tomara aquele silncio por uma conceal
e o carcereiro viu os seus pezitos ligeiros avanai)
para o extremo da galeria, metidos em sapatos noil
e elegantes, iguais aos das mulheres que so ric|
"Esta teve sorte" considerou. ' {
Haviam tirado a antiga rede de arame. O ara^l
engordara, transformara-se em barras de ferro e mflJi
ra-se dentro da casa. Nada, agora, dividia a quirt
mas no se encontrava l ningum. Tinham tamfai
cortado os filhos do castanheiro e o velho pai estaf!
ainda quase nu, deixando entrever a montanha cKI
tante atravs dos seus mltiplos braos abertos. S<|
grande macieira se apresentava j coberta de floral
na Primavera nascente. O olhar de Clarinda vagueou para o lado da casita que se
erguia l fora, a meia encosta, e onde uma mulher, em p, junto da porta, atirava de
comer s galinhas. E, ento, a enorme copa florida da macieira, que dominava toda a
quinta solitria, provocando os verdes ainda tmidos e os botes ainda hesitantes, av
anou para os seus olhos, a ench-los de brancura, a ench-los completamente, como se
as flores houvessem sido esmagadas e derramassem neles o seu sumo.
O carcereiro estranhou que ela demorasse to pouco. "Muito obrigado" ouviu-a dize
r, com voz apagada, quando passava na frente dele. E viu-a sair depressa, como s
e lhe tivesse ocorrido alguma coisa.
XI
O JANTAR
p^RAM oito da noite, uma noite de lousa, pesada e
opaca, que acabava de cair, escorregando dos
montes, sobre o vale; e a essa hora, em todo o concelho,
quem podia ter panela ao lume encontrava-se a jantar.
Palhetas sentava-se na cozinha, velha mesa roda pelo caruncho, negra de ndoas e de
fumo como o escabelo e as paredes e sem nenhuma toalha. Findara tarde o julgam
ento, beira das sete, e ele sentia-se ^nda fatigado da caminhada, que os quatro
quilmefros de Mangudas sua aldeia, sempre a subir, custavarn-lhe mais do que duas
lguas quando era novo.
com os dois filhos homens a seu lado, um a cada cabeceira, e a mulher de p, em fr
ente, que ela jantava sempre por ltimo, depois de os servir, Palhetas esfarelara
sobre a malga de caldo um naco de broa, derramara-lhe em cima um dedal de vinho,
mas pareC1a no ter, nessa noite, pressa alguma. Ao contrrio
886
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
'4
da sua maneira habitual de engolir a sopa^aafe
com uns rumores que exigiam dos ouviddsjfajBj
cado trabalho de seleco para estabelecer"a. . Hi^
que existia, apesar de tudo, entre as manifestaot
gamela e as da tigela, comia lentamente destS
interrompia-se, para falar, a cada duas ou r^e
radas que levava boca. -"-9*4 4
Pois foi... Tive pena do rapaz. A pri<4c4
doutor Macieira portou-se bem. O delegadb adno
a espica-lo, mas ele no se arreceou e dissa.4hto<
senhor, fui eu que lhe dei os cem escudos panaiete
da casa do doutor Carrazedas e ir para Listtoaal
o caso se repetisse hoje, faria o mesmo". Q<d"U||
claro, no gostou de ouvir aquilo e CQntHH|
meter-se com ele. Parece que queria dar a en"
que o rapaz era culpado do Carrazedas ter nJilf
Mas o doutor respondeu logo que isso no era venj
Disse que o outro tinha morrido duma molsti
que padecia h muito, uma coisa dos rins, ele di!
nome, mas um nome arrevesado, e garantiu (J
tiro no havia tirado nem posto para aquilo, p$
bala s lhe tinha tocado num brao. Ento, o delej
perguntou-lhe se o Carrazedas^stivera sempre $
feito com ele e se era verdade ou no que, Mff
altura da doena, mandou vir outro mdico. Q $(r)
disse que no tinha sido o Carrazedas, que tinhjril
ele prprio que tinha chamado um especialista d" B|
quando achou que era preciso. "Muito bem tii
delegado. Mas como explica as suas relacesrcbM
zade com o doutor Carrazedas, pensando to ntolfi
como se est mesmo a ver que pensava?" fiM
Palhetas mergulhou, de novo, a colher na.tigd ps-se a revolver a sopa, a trazer s
uperfcie os $$ esses afogados incorruptveis, que preferem retfl pela cintura a entra
r em decomposio e que, uaM? luz, tornavam a sumir-se sob as couves, engirt ele reme
xia em silncio. "
- E depois ? perguntou o filho mais velho^-ll tando de sob o queixo a sua malga
j vazia. *'<&
Bem... Eu estava a lembrar-me e a ver serU
887
seguia perceber o que o doutor queria l na sua. Ele (jisse que era por ser a nica
pessoa que podia contrariar as ideias do outro. Que no tinha a certeza de que o s
eu desejo desse resultado, mas que julgava que assim seria melhor para o Carraze
das e para o seu pessoal do que dizer amm a tudo. O delegado parece que no acredit
ou naquilo e tornou a pic-lo. "De forma que Vossa Excelncia disse ele mostrava-s
e amigo da vtima, mas, no fundo, no o era, e at dava dinheiro aos seus serviais para
que lhe fugissem de casa". O doutor ps-se encarnado ao ouvir aquelas palavras e
via-se mesmo que ficara muito aborrecido, tanto mais que o delegado tinha um sor
risinho que parecia de desprezo. "Est Vossa Excelncia muito enganado se pensa que
as minhas relaes com o doutor Carrazedas eram por interesse pessoal respondeu ele
. Eu no tinha nenhum interesse nisso. Nem mesmo como mdico, pois nunca lhe levei u
m vintm. O que eu queria era ver se o tornava uma pessoa como devia ser". Ele no d
isse assim, claro, mas foi mais ou menos isto o que ele disse.
Palhetas voltou ao seu caldo: duas colheres, outras duas, com a mulher sempre de
p na sua frente, de braos cruzados sobre o peito e olhos parados sobre ele.
O delegado era mesmo antiptico! Depois de falar muito tempo, disse que o doutor
queria convenc-lo de que o Carrazedas fora o responsvel do que acontecera, mas iss
o no era verdade. Que o responsvel fora o prprio doutor, pois, em vez de persuadir
o rapaz a ter juzo, dera-lhe dinheiro para fugir duma casa onde no lhe faltava nad
a e ir para Lisboa, onde fto conhecia ningum e onde acabara por se tornar um ladro,
j se v.
Palhetas pegou na fatia de broa, arrancou-lhe uma Ponta, meteu-a na boca e sobre
a broa despejou mais duas colheres de sopa.
E que respondeu o doutor ? perguntou a mulher, agora debruada na lareira, a cara
entre o vapor lue subia da panela das batatas, que ela acabava de destapar.
A EXPERINCIA
O rosto de Palhetas contraiu-se numa exnjMJ de lstima! rP^H
Aqui que ele comeou a descambar. Elj de se defender, disse que a responsabilidade lj
Pl s do Carrazedas; disse que era de uma outratf Toda a gente ficou muito admirad
a de ouviir fojjn pois parece que, por causa do Carrazedas e dafloi nanta que ele
tinha, o rapaz levava l em eastern vida de co. Houve at algum que tossiu no mas o dou
tor Macieira no se importou conv^dE continuou sempre naquele sentido, a dizer uml
&fl que eu no conseguia perceber... "^^m
Os dois filhos do Palhetas, de braos esteiilH sobre a mesa e olhos intrigados, pe
rguntaram*?! ao mesmo tempo: H
Mas que diabo dizia ele ? Que dizia ? 1>s-jjH
Pois se no percebi, como vos posso dizer ? Aqq| pelo visto, era s l para os doutore
s. Ele diziaiw era preciso saber compreender os outros, masiediH para mim, no com
preendia patavina... Parecia-fteJI ele embrulhava tudo. At trouxe baila a fapfiH El
a, quando o ouviu falar daquela maneira, nenrfslfl aonde se meter... .ai
- Mas qual rapariga ? Palhetas no satisfeifljM a curiosidade do filho mais velho
. Dobrou-se, primai sobre a tigela e engoliu trs novas colheradas. ' Sj|
A tal que mandava dinheiro l para a caddBl A que o afilhado da Dona Ludovina de U
ruje^j sonrou... k**!
A mulher estranhava: (>cBa
Ah, ela tambm estava l? M.
Estava, estava. Por sinal, ningum quis 9 tar-se nos dois lugares ao lado dela
e olha que ^#^S no cabia uma agulha; at se via gente de p.-'^.
Mas que tinha ela a ver com o caso ? "tfa
Isso perguntava eu. Parece que foi por ter esii tambm no Asilo, mas no sei. O douto
r disse qu""j| era outro exemplo e que tambm era uma vtima. Mf depois, a modos que
disse o contrrio. Parece ^*j mal era outro. Parece que ela era uma vtima,'J*"
A EXPERINCIA
889
no daquilo que ns pensvamos. No cheguei a perceber bem. Ele esteve a falar da Nature
za e a dizer que a Natureza tinha uma fora danada nos homens e nas mulheres e que
era assim mesmo. At algumas pessoas desataram a rir. Depois, disse que, quando a
quilo lhe acontecera com o Armando, a rapariga j era mulher e que, provavelmente,
por causa da Natureza, ela tambm ajudara... Que talvez nenhum deles fosse respon
svel por aquilo...
Que raio de conversa! interrompeu a mulher, enquanto os dois filhos olhavam um
para o outro e sorriam, maliciosos mas discretos, que o pai no lhes consentia fal
tas de respeito na sua frente. Palhetas captou, porm, essa atitude e respondeu c
om dureza:
j lhes disse que no era assim que ele falava! O velho dir-se-ia melindrado. E os f
ilhos, apesar de
maiores, livres j das sortes, no ousavam incit-lo a continuar. Foi a mulher quem so
ltou o desabafo partido:
E afinal ? Para que estava ele com isso ?
Palhetas tinha necessidade de varrer toda a sombra que o tribunal pusera dentro
dele. Mas, ao recomear, veio-lhe uma voz pautada e uma cara fria de quem fala por
favor:
Ele disse que, naquele caso, o mal no era da Natureza, nem dos homens, nem das mu
lheres, que era da tal coisa, pois se o mundo estivesse de outra maneira, a rapa
riga no teria ido cair na vida, l porque lhe acontecera aquilo...
Palhetas j se esquecera do fulgorzito de irreverncia que os filhos haviam acendido
e voltava ao torn deixado pouco antes:
Ele ps-se para ali, com tais palavras, que at a rapariga se levantou, como uma do
ida, e gritou: "No! No!" e, depois, caiu no banco a chorar. Ento
0 juiz chamou-o ordem, com bons modos, claro, Ppis parece que se d com ele. Mas
sempre lhe foi dizendo que aquilo no tinha nada que ver com o processo e, se tive
sse que ver, era para ser tratado iurna sesso secreta e no frente de toda a gente..
.
8go
A EXPERINCIA
(&
li '<
* A mulher no deixou Palhetas concluir" tup"k
Nunca imaginei que um homem assim fcsgjni de andar a dizer indecncias comentou e
la/ara cara de nojo. 'i/rcr*"
Palhetas olhou-a, surpreendido: '5 "
Mas ele no disse nenhuma indecncia! ^QbJ| para a a falar ? ''"'8
- Julguei... murmurou, indecisamente; adiara Da maneira como tu contas... ^J*^
No! Ele esteve a dizer muitas coisafdwp tas, mas no eram indecentes. L isso no! otolg
Ento no fizeram uma sesso secreta P.ftrfl
No fizeram, porque ele, assim qu &-$ censurou, ergueu o brao, como a pedir-lhe
qty6,Jl| pacincia e disse-lhe: "Eu queria apenas acrf|sej| que a nossa grande res
ponsabilidade, talvez' s/ ffl responsabilidade dos homens, no terem orgaMjl ainda
um mundo menos injusto e menos..." ^pl ps-se a tartamudear: Deixa ver se me le
miS Menos injusto... Menos injusto... Tenho mesmafrjl vra debaixo da lngua... Men
os injusto... Ah1,:fff| Absurdo! Ele disse: "Um mundo menos injusto &IH absurdo
do que este em que vivemos". Assim qttfl Depois disto, no disse mais nada. 'r (m
A mulher e os filhos ficaram um momento-|l ticos, sem nenhum dos olhos pestaneja
r, sem umilBJ mnimo a bulir e sem saberem o que pensar "deWJ aquilo. Palhetas tor
nara a meter a colher na "Iffl e o rudo do metal, tocando o rebordo, fez a flM vo
ltar a si e dizer, com um suspiro: > '^ _}
Deixaste esfriar a sopa. D-ma c, que "flui aquec-la. '^SX
Clarinda jantava na Penso Moderna. Era um"i|f| quadrilonga, enxovalhada nas pared
es e um colgi-ni cs dependurado do tecto, cor de mel e retorcido' 'Qf uma alga sec
a. J?"
Ela sentava-se junto porta; ao fundo, doifjj
A EXPERINCIA
891
jros-viajantes jantavam tambm e iam conversando C0ni um negociante de gados, que
comia na mesa prxima, to descuidado que lhe ficavam migalhas presas no bigode. No h
avia mais ningum. A criada, novita, magra, na cinta um avental enodoado, servira
os trs homens e, ao passar em frente dela, de travessa vazia na mo, sorrira-lhe e
dissera-lhe que no tardaria a voltar. Mas haviam j fugido mais de dez minutos e ai
nda no viera. S se ouvia a voz dos homens, uma surda, baixa, gorda como o seu dono
, as outras despachadas, cheirando a cidade e a cinismo. O caixeiro que ficava d
e frente ia-lhe deitando, enquanto falava, uns olhos ao mesmo tempo de oferta e
compra, mas ela no os via. Ela via apenas o doutor Macieira, alto e de culos, ora
a virar-se para o juiz, ora para o delegado e a afirmar:
O prprio doutor Carrazedas era uma consequncia. E as dificuldades que este r
apaz passou em Lisboa foram e so igualmente uma consequncia.
Janurio mexia-se, enfim. Ela vira-o, at ali, sempre de costas e cabea baixa, muito
imvel no seu banco, com a camisa nova que lhe oferecera na vspera a alvejar entre
a gola do casaco e a nuca. Agora, porm, lento como um eixo de nora quando comea a
girar, ele rodava o pescoo para o lado do doutor Macieira, que dizia:
Mas h-de vir um dia em que ningum ter necessidade de roubar ou de se prostituir.
..
A face de Janurio estava muito plida e ela, toda num calor inquieto, sentiu aquele
frio, que se expandia da face como da neve sombra, transi-la bruscamente. Ele v
oltara a endireitar a cabea e, agora, era o delegado que agitava as suas mos, fina
s e de unhas polidas,
110 fundo da memria dos olhos dela; agitava as mos
2angadas e abria e fechava os braos, riscando no ar as breves mas repetidas cinti
laes de pedras preciosas, ^ue manavam, com o nervosismo dum relmpago e clricas como u
m raio, dos anis que guarneciam os Seus bonitos dedos.
"-Homicdio voluntrio frustrado! Legtima de-
892
A EXPERINCIA
'"<
i !
4tl
_, fesa, como? Quando se vai roubar, levando-s
pistola, leva-se, implicitamente, a ideia de ,s
da pistola e cometer, portanto, um duplo j|j
algumas declaraes do ru esto, como lhe R(
cheias de trevas, as que fez o doutor Carrazedas ei
pelo contrrio, o nosso esprito de luz. Ele ng
que foi o primeiro a erguer a espingarda e a af
Ele declarou, com toda a preciso, que, ao si$8
porta do quarto, trazendo a espingarda, o "j
apontou uma pistola e disparou imediatamenji
o doutor Carrazedas, que, alm de tudo o mijg
formado em Direito, no podia ignorar o va|@
este pormenor teria para a justia. Se ele n&jj
referncia alguma, porque tal atenuante no<^
Todo o passado do doutor Carrazedas e tudo ig
se tem dito sobre ele neste tribunal provam a 4
ridade do seu carcter; no , portanto, de '$d
que haja feito voluntariamente aquela omisso. J$
duma rgida dignidade, que o era, como afirmo^;
o seu filho, ele pertencia linhagem daquela
para terem autoridade sobre os outros, se mqgj
inflexveis consigo prprios". $
Ela via o doutor delegado descer um brao ($
tender o outro, de dedo erguido para o tecto: (
"Reincidente! Reincidente perigoso! Comece
roubar quando no tinha necessidade alguma, qi
se encontrava numa casa abastada onde no lhe.
tava nada. Continuou a roubar em Lisboa, segi|J
a evoluo clssica dos criminosos do seu tipo. K
pequenos roubos iniciais sucederam-se os assalto?;
pistola em punho e, amanh, se o tribunal nj$
mostrar justamente severo, teremos de lamentar/1
homicdios frustrados, mas homicdios consumados]
ento, a responsabilidade ser nossa. Ento, a resp*
sabilidade ser unicamente nossa". <
A criada chegava, enfim: <
Desculpe. Estavam ainda a fritar. So mi^
fresquinhos. M
Clarinda pegou no talher. Mas no se pode t as espinhas aos carapaus e cismar, ao me
smo tenjjp
A EXPERINCIA
893
noutra coisa. De quando em quando, o garfo e a faca modorravam, apoiados, um de
cada lado, na borda do prato.
Era um homem de sessenta anos, o advogado; baixo e de cabelo ainda grosso e abun
dante, mas j de todo embranquecido. Ela continuava a v-lo atrs da mesa, de ombros l
argos e braos curtos; e, assim redondo, com um ar paciente, bonacheiro e uns fios
de bigode a deslocarem-se-lhe do rosto, sugeria-lhe uma foca.
" A legtima defesa evidente. Admitindo mesmo que o doutor Carrazedas no apontou pr
imeiro, o facto de trazer uma espingarda indicava, sem sombra de dvida, que apont
aria e dispararia imediatamente. Qualquer de ns, no seu lugar, faria a mesma cois
a. Portanto, o instinto de defesa manifestar-se-ia, de sbito, no ru. Apesar disso,
no foi assim que os factos se passaram. As declaraes de Janurio de Sousa so extraord
inariamente claras, ao contrrio do que diz a acusao pblica. Ao sentir passos no corr
edor, a sua primeira reaco no foi matar o doutor Carrazedas e concluir o roubo, mas
sim fugir rapidamente. O exame pericial feito ao quarto provou que, como ele ha
via dito, a janela de guilhotina estava perra, no sendo fcil abri-la num momento d
e confuso como aquele".
O advogado interrompia-se, tossia, passava um leno sobre a boca e, depois, aponta
va Janurio:
" Vejamos, agora, o estado de esprito deste homem para quem a vida foi sempre cru
el. Em primeiro lugar, no esqueamos que, quando entrou ao servio do doutor Carrazed
as, era ainda um adolescente e que os adolescentes, sobretudo entre o povo, tm a
tendncia Para ver nos adultos das classes privilegiadas uns seres superiores, for
a da escala humana a que esto habituados. Por outro lado, o doutor Carrazedas, da
do o seu carcter, mantinha entre si e os que o serviam uma distncia intransponvel.
No se humanizava jamais, como, embora com outras palavras, o seu prprio filho aqui
no-lo declarou. Assim, a posio do meu constituinte era a duma humildade rasteira
perante uma divindade inacessvel.. "
894
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
895
I'. <4
* Janurio deixara de olhar para o advogado"e Jgi
as mos aos olhos. Ela sentira, de sbito, o des{9
passar as suas mos sobre os cabelos negros odhS|
afagar-lhe muito, muito, os cabelos e as faces/j3|
se ele fosse uma criana. . 'mSm
" Portanto, quando declarara que ficou pacam
ao ver o doutor Carrazedas porta do quartafS
verdade. O respeito que o seu antigo amo Iherojij
r v, o facto de se encontrar na casa onde esse ie%n
se criara e at o medo que ele confessa ter tdo*el
perfeitamente compreensvel, dado ser a primini j
que cometia um assalto como aquele, tudo isso/
prova ser veidadeira a sua afirmao de que nsm
um s movimento ao ver chegar o doutor Cojjl
das. O seu velho complexo de inferioridade p"
aquele homem agravara-se de sbito..." fra
Os braos curtos voltavam-se, muito aberosd|
o juiz, logo para os jurados: ''7lMl
" Se, nesse instante, em vez de lhe apn(
espingarda, o doutor Carrazedas o tem agarrado"!
um brao, muito provvel que ele se deixasseiH
sem resistncia, para a cadeia... O seu hbito dei
dincia quele homem, o respeito que lhe tributa1"
sua total perturbao e, ainda, a fora do sdbcji
ciente perante o seu acto condenvel, f-lo-iam,"
vez, aceitar, naquele momento, a ideia da P&M
no s como uma ideia lgica, mas tambm leglM
justa". J|
O advogado voltava a tossir, com a mo em fral
da boca. E via-se que o enervava aquela inopoi!tw|
rebelio dos brnquios, pelas imprevistas modulaM
que lhe trazia voz, obrigando-o a interromper-se"
repetir vrias frases. < tst
" No pretendo, porm, utilizar-me deste g*M|
de argumentos. Para tudo compreendermos, basta-lj
imaginar a situao do doutor Carrazedas perant>ll|
homem mascarado, que, demais a mais, tinha i AM
pistola na mo. Ele apontou imediatamente a sua eapji
garda, claro... E, em face disto, ao meu constituiril
no restava outra soluo seno a de defender-sen*!
a de deixar-se matar. Estamos, pois, sem sombra de dvida, perante um caso de legti
ma defesa..."
A faca e o garfo levantam-se, um pouco trmulos, e procuram, ainda uma vez, o peix
e humilde. Um peixe que no sabe libertar-se do incognoscvel, separar-se das sombra
s que habitam em cardume, por baixo dele, os mares profundos.
A certa altura, o juiz impacientou-se e j no queria ouvir mais nada. E muita tolern
cia teve, vamos l i dizia o doutor Agnelo Carrazedas, olhando a porta por onde a
criada devia entrar.
Ele jantava sozinho com a mulher, um em frente do outro, separados apenas pelas
flores que emergiam do centro da mesa e se reflectiam na garrafa de cristal, che
ia de vinho branco, a lembrar ramificaes de coral dentro dum pesa-papis de vidro.
Instalados h pouco na casa onde o pai vivera e morrera, Agnelo mandara construir
uma garagem, renovara o quarto de banho e adquirira um motor para a gua encanada.
E, desejando comprazer a mulher, que "no queria ali quem mandasse mais do que el
a", despachara a senhora Germana para a Fontebela, em substituio do antigo caseiro
, que, depois daquela histria da bicicleta, tanto buscara e rebuscara que descobr
iu outro senhorio.
Era muito magra e branca a mulher de Agnelo, com os seus trinta e dois anos mela
nclicos, um rosto esguio e olhos largos, indolentes, uns olhos atrasados de adole
scente, que o marido dizia serem de cordeiro depois de haver mamado. Nunca simpa
tizara tambm com o velho Carrazedas. E, nos primeiros dias da sua lristalao naquela
casa, sentia um brusco mal-estar guando, ao erguer a vista, encontrava o retrat
o dele ^a. parede. Um mal-estar que lhe parecia preceder, por ujna tenso gelada d
a pele e dbeis, subterrneas, vibraes dos nervos, uma apario sobrenatural, que se
8g6
A EXPERINCIA
.1
* iria produzir, viva, palpvel, por detrs das facA
das e do olhar frio que a moldura enquadrada,*!
Ela compreendia que o marido se aproxit^
fim do seu relato e ouvia-o cada vez mais.ia||
com uma poeirazita de alegria, como essa qm$
v quando baila nos raios de sol; uma alegriai|||
depois de perceber que o doutor Macieira hawia
firmado no tribunal o que ela prpria pensara, |
vezes, do tabelio: , v
Agnelo Carrazedas contava: ( ~
Quando o juiz lhe fez aquela pergunta, ejf
pondeu que o prprio juiz sabia, e at melhor')f
ele, que o nico meio encontrado pelo homen^ij
o princpio, para viver em sociedade, fora o^7
ciao da fora com a moral, mas que, desftfe
elementos, a fora era, apesar de tudo, o majsal
E que, portanto, a principal arma do homemiKM
os incitamentos da sua prpria natureza ter,-fite
sobretudo, de ordem moral, como toda a gente tflj
sabe. Depois disse que na constituio dessa m)j
que se encontrava todo o problema, pois se nfl
verdade que cada povo tinha o regime que uaS3
verdade que cada regime tem a moral que W&
e vice-versa... n<j \
A criada voltava sala, com um andar dlfCJ
para no lhes perturbar a conversao; e a mi*|
de to presa s palavras do marido, no deu pe$3n
presena. Sentiu-a apenas quando as suas mos>aj
aram sobre a mesa, apresentando-lhe a tra/vil
E, ento, fugazmente, as mos da criada tornara!
mais morenas, os dedos engrossaram, perderam iQt
pecto feminino e ela via, com o mesmo mal-estaDi
lhe dava o retrato, as mos do rapaz a servi-la qtia!
vinha jantar ou almoar ali, no tempo em que o MJ
vivia ainda. t
O delegado interrompeu-o e disse-lhe quew
justamente para defesa da moral social que o tH
nal estava reunido. O Macieira, claro, no contef
directamente aquilo, mas fez um rodeio habilidosa
declarou que uma moral, qualquer que seja, se, 4
A EXPERINCIA
897
UIn lado, se renova, por outro envelhece, e que h normas de moralidade colectiva
que, com o tempo, revelam toda a sua desumanidade e tornam-se, portanto, imorais
. Foi ento que toda a gente percebeu que o juiz se havia enervado e s no comeara a d
iscutir com o Macieira por no lhe ficar bem faz-lo ali.
Estou arrependida de no haver ido contigo. Gostava de ter tambm assistido...p
roferiu a mulher. E em que ficaram ?
De colher na mo, Agnelo Carrazedas ia regando com o molho, duma ponta a outra, a
fatia de vitela que pusera no seu prato.
Bem; o Macieira ainda comeou a dizer que a moral, mesmo quando se renova, anda ma
is atrasada em relao melhor inteligncia de cada poca do que os comboios em relao aos
eus horrios, quando os neves obstroem as linhas. Mas o delegado quase no o deixou a
cabar e disse-lhe que as suas consideraes no o interessavam e que ali no era uma aul
a de moral, nem to-pouco um seminrio...
A mulher parecia lamentar:
Ele deve ter-se sentido vexado, claro...
No creio... O advogado de defesa principiou logo a inst-lo e at me pareceu que fi
cou mais vontade.
A voz de Agnelo Carrazedas tornara-se grave. Ele mterrompeu-se como para se libe
rtar dessa sombra que lhe escurecia a voz e, inclinando-se sobre o prato, princi
piou a comer a vitela, um pouco excitado. Depois comentou:
O meu pai teve sempre um fraco pelo Macieira, fto sei porqu, pois nunca vi criatur
as mais diferentes, ialvez fosse pela lei dos contrastes, por o Macieira ter Aqu
ilo que faltava a ele e ele aquilo que faltava ao Macieira; talvez, Deus me perd
oe, porque o Macieira nunca lhe levava dinheiro... Eu, por mim, considero-o Uln
tipo perigoso. Inteligente, sem dvida, mas com a cabea bastante desarrumada. E no h
nada como as coisas sem nexo para sugestionar as pessoas. J h Ulas sujeitos para a
que lem pela mesma cartilha...
29 Vol. Ill
898 A EXPERINCIA
Durante um momento, Agnelo Carrazed^
em silncio; logo tornou: l>
Provavelmente, um despeitado encobrt
que se formou sua custa, com os maiores safi
e que, por isso, ao lembrar-se do que passcra
preendia melhor os outros e as injustias denarii
vtimas. O ressentimento deve vir desse tempaji
sem ele o saber. flj
" por no me ter habituado ainda .jbem
mulher. com certeza, por isso... Mas haver
melhor se continussemos na casa onde viviam!!
sempre os mdicos me disseram que os meusil
eram demasiado sensveis". Ela voltara a resffil
do sogro, a v-lo sentado ali, a discutir com o *d!
Macieira, e o rapaz a servi-los, a fazer avana*!
mo direita, que tinha nas costas um pequencra
em forma de pio, um sinal que ela nunca ~tjjj
quecera. , > tf
E depois ? i r | Agnelo Carrazedas, de boca cheia, uma daj
mais saliente do que a outra, tardou a responda
Claro, ele aproveitou a mono para veiicief; o seu peixe. Depois de falar da moral,
falou dos fll dos homens, das injustias que existem, enfira,; estendal de pal
avras e de utopias que s servem! desorientar as pessoas. r t,
A mulher estava de olhos baixos; mas/ dS ergueu pensativamente a cabea e, com uma
gw doura na voz, perguntou: j/
Mas tu no achas, Nelo, que h, de facto, nt injustias ? ' -
Ele encolheu os ombros: >?"!
Sim, sem dvida. Mas o que a NatureoSw que tanto fala o Macieira, seno uma perpetua
i ao tia ? S um cego de nascena no ter sofridoi melancolia sem remdio, este grande de
mparo fl| que nos vem dos maus exemplos da Natureza. Aoiy e ao fim, justia e inju
stia so definies exclit mente humanas dum sentimento que a Natureza ig" por completo.
(r)
A EXPERINCIA
899
" Mas tu no achas, Nelo..." Era nestas pala-
^s, com que iniciava os perodos, que a mulher punha toda a sua ternura, macia com
o um pedao de camura para se agarrar um ferro aquecido, uma ternura que, (jesde es
se ponto de partida, impregnava tudo quanto ela ia dizendo.
Mas tu no achas, Nelo, que esse sentimento admirvel justamente por ser exclusivo d
os humanos ? No achas que devemos lutar contra todas as injustias, inclusive as da
Natureza?
Ele olhou-a com um sorriso de condescendncia.
Hs-de ser sempre a mesma disse. De repente, porm, lembrou-se de que as palavras d
ela se assemelhavam extraordinariamente s que uma noite o doutor Macieira pronunc
iara ali, quela mesma mesa, tambm durante um jantar, e tornou a fix-la, mas desta v
ez com um olhar fino, perscrutador e muito srio.
A princpio, devo diz-lo, ele foi mais hbil do (jue o prprio advogado. As suas palavr
as sobre a primazia da responsabilidade biolgica, como ele lhe chamou, em relao res
ponsabilidade do indivduo, tinham um certo interesse especulativo. Por isso, o de
ixei falar mais do que seria admissvel para um depoimento quase todo abstracto. M
as, depois, ele caiu numa srie de lugares-comuns e at em algumas infantilidades. C
hegou a afirmar que, numa sociedade de ttioral diferente, o prprio Carrazedas no h
averia sido, em relao aos outros, como foi, o que uma ingenuidade...
Alm da mulher, o juiz tinha mesa o genro e a filha, que todas as semanas vinham j
antar ali naquele dia. A criada j havia levantado os pratos, menos o ^le, sempre
retardatrio, no que comesse muito, mas Porque gostava de conversar enquanto comia.
Final"fiente, o genro viu-o cruzar o talher, moda antiga, esvaziar o copo a peq
uenos goles e, passando o guar^anapo sobre os lbios, volver:
coo
A EXPERINCIA
F
i *
w *
' E o que ele disse sobre a interdependfij
estrutura social e da moral e da influncia LdH
doutra sobre os homens, mais velho do qiie|
de Braga... /ajl
O genro ia enfeixando perguntas e duvidas^pj
ousava desamarrar, pois sabia que o juiz, taljj^
que pertencia ao seu ofcio interromper os.;lsj|j
aborrecia-se se algum o interrompia quandovj
A criada punha os pratos da sobremesa. tfaaj
H, sem dvida, uma interdependncia >j&f
estrutura social e a moral dizia ele, agora, eon^S
voz lenta de exame ntimo. sabido. cef"j
haltere. Uma extremidade comanda a outra. Qfei
cieira no mau homem e eu at simpatizo oodHJ
mas no se pode permitir que uma testemunha
um comcio no tribunal... -tlm
Ento ele fez um comcio ? perguntou/iaM o genro, com um interesse mal disfarado, ao
veq o juiz se calava. l
Um comcio um exagero, evidentemente, a as suas palavras iam para l... AefcJ
Pareceu ao genro que o sogro, habitualmente 0a claro nos raciocnios, lgico nas ded
ues e na sua" sio, se tornara, nessa noite, obscuro e inconseqa" Era como se lhe des
agradasse dizer tudo quaiOT passara e de tal maneira discorria que as suas palal
pareciam, s vezes, no destinadas famlia, >(Btf ele prprio, um monlogo sincopado par
essas p*l nagens secretas que cada qual leva dentro d&m gostam de ouvir os homen
s falar sozinhos, em <vM cantar, quando se vestem ou fazem a barba. 9iJ
Ns julgamos sobre factos, perante as coisasrtBJI elas so e no como deviam ou poderi
am ser'^*Eg tinuava o juiz, de olhos baixos, enquanto ia robi| entre os dedos a
bolita que fizera com uma m%3B de po. " w
A criada servia o doce, um pudim doirado^*" rescendia em toda a sala. 'J"!
O juiz mudara de voz. Dir-se-ia querer coiaoM aquilo, desenvencilhando-se das su
gestes que as'S^
A EXPERINCIA
901
prprias palavras lhe davam, antes de se dedicar sobremesa:
Enfim, um trabalho para um caso trivial, um caso de folheto de cordel, que poderam
os ter resolvido muito mais cedo se no fosse o depoimento do Macieira. Mas ele in
sistia em que se tratava de dois casos tpicos e que a sua prpria frequncia lhe aume
ntava o significado... verdade que o delegado tambm teve culpa, pois gastou muit
o tempo com perguntas que no tinham vantagem alguma para o julgamento.
Dois casos ? Como dois casos ? estranhou a filha, no torn de quem volta a
trs por no haver compreendido bem.
O juiz encolheu os ombros, como se descarregasse, finalmente, a pacincia que fora
obrigado a ter no tribunal:
Um outro folheto para vender nas feiras: "A rf que foi desonrada pelo patro". que e
le referiu-se, tambm, rapariga do Asilo que esteve em casa da Ludovina de Urujes..
.
Novamente o genro se surpreendia com as constantes mudanas que se davam na maneir
a de falar do juiz, aquela diversidade de reaces, como se ele fosse procurando, in
conscientemente, a que mais poderia concorrer para a sua harmonia ntima, sobretud
o o torn sarcstico das ltimas palavras, um torn desusado nele nele que propendia
sempre para a solenidade.
No fim de contas, em nada influiu na sentena e estou mesmo convencido de que a ma
ioria dos jurados no compreendeu nem metade do que ele disse...
Que pena deste, ento, ao rapaz ? tornou a filha.
Ainda a pensar no doutor Macieira, o juiz respondeu com naturalidade, com essa e
spcie de inocncia e iseno que, nos ofcios graves, que implicam vidas humanas, separam
dos actos praticados por dever profissional a responsabilidade e o esprito de qu
em s Pratica:
Seis anos de priso maior...
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A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
93
'I
-~ Seis anos ? Era, agora, a mulher que $$9 gia a ele. Aparentemente, a sua voz no
acuSH^ louvava. Mas pareceu ao juiz que havia ali spS luso, pedao de neve que tombav
a dum rldM de longe, se julgara ter visto uma grande flo^rfoil
Vamos l, que no foi muito para umbral dente justificou-se. As respostas dos jur
adas! quesitos eram terminantes... ifiijrg
''l .JK
lnF
* (PIS
No comeu nada disse a criada, levatfl| prato e passando um pano sobre as migalhas q
u^fl vam em volta. - No gostou do jantar ? * '^ffi
Gostei, mas ando com falta de apetite. TrfgiM um caf. '^ -7
A criada, que sabia a razo daquilo e falava SJ61 por cortesia, pegou no tabuleiro
e saiu. O rhd gordo e os dois caixeiros-viajantes j haviam ^3P tambm, o mais alto ren
tando a sua mesa, cosW sorriso devasso e um olhar ainda mais convidatiw que quan
do a desafiava de longe. Ela ficara St^ na sala, sozinha com as mesas vazias, como
iSI'il aluno a quem se proibiu o recreio. f"?
O silncio volvia sua faina absurda, baraltl os naipes dos tempos, de todo alheio s
regras f lgicas; e, de quando em quando, sempre incoei^B voltava a arrastar para os
olhos dela a casita brat que se via da quinta do Asilo, com uma ranaffll porta e
longa fila de craveiros, lrios e malmeqUej junto da parede. Era o fim da tarde e
Janurio fegf sava do trabalho. E um filho, por que no ? Gosta de ter um filho, no,
um s no; gostaria de ter"-'ac uma menina e um menino, com os quais ela e Jafi"a f
ossem passear, aos domingos, para o campo, ond(r)3 crianas se divertissem a colhe
r flores silvestres^ encontrassem uma casita como aquela, com dois'fffl ms de ter
ra, havia de fazer um jardim para os ffll e, no centro, plantaria uma macieira.
Era, de novo, o rei do naipe, o juiz, numa voz paternal e com a sentena ainda nas
mos, a dirigir-se a ele: "O tribunal foi generoso, tendo em considerao a sua juven
tude. E espera que, quando retome a liberdade, esteja regenerado e se transforme
num homem de bem. muito jovem e tem toda a vida sua frente. Nunca pude compreen
der que haja algum que prefira o roubo, com todos os seus perigos e desonras, ao
trabalho honesto, que dignifica a vida".
Ela via-se, a si prpria, a abrir caminho entre as gentes que debandavam, ansiosa
de alcanar a porta lateral por onde ele devia sair. Era uma porta estreita, baixa
e nica na parede, como a das sacristias; de longe salientava-se, porque o seu ca
ixilho de pedra enegrecida contrastava com a brancura do todo onde fora aberta.
J se haviam formado ali vrios grupos e num deles conversava o doutor Macieira, que
a olhou um momento, quando a viu chegar. Acima dos eucaliptos, mesmo em frente
da Penso Moderna, as pombas de no se sabia quem, voavam em crculo, de asas inclinad
as para dentro, como se traassem no ar a parede dum funil, por onde se esvaziava
o azul do cu.
Janurio saa entre os dois guardas, muito plido. Ela no se surpreendera de que ele ch
orasse quando a divisou; parecera-lhe, por si prpria, que aquilo era assim mesmo,
que devia ser assim mesmo; mas, perante o estado dele, logo reagira, os olhos s
ecaram-se-lhe e viera-lhe, subitamente, uma fora de nimo que jamais sentira at ali:
"No te aflijas! Estamos novos e temos toda a vida nossa frente... No ouviste o qu
e disse o juiz? Temos toda a vida nossa frente!"
Os guardas haviam parado um instante, de m vontade. Ela olhava-o com a nsia de abr
aar-se a ele, de o beijar nos olhos e de no o largar mais: <(Enquanto no te transfe
rirem, ficarei aqui e irei ver-te todos os dias. E, depois, ficarei todos os dia
s tua espera, at tu sares. Podes ter a certeza disso!"
E ficara a v-lo desaparecer, entre os dois guardas, fla. esquina da rua prxima, fi
cara at mesmo depois de ele haver desaparecido ficara at sentir aquela
904
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
905
mo pousar sobre o seu ombro, lenta e caril mente.
Tnio, pastor de dezoito anos, desempregado "'*&
mista, que na serra, dizia ele, era capaz de acertar>|3|
pedrada a mais de duzentos metros de distanciaria!!
em bicho grandalho como um lobo, fosse pequewijii
como um chasco, entrou em Urujes com andaifea
apressado e, ao mesmo tempo, sem pressa moral algUlM
de chegar a casa. Ia caminhando e visionando os ff"
sua espera, preocupados, decerto, com tanta deaal
e sem terem jantado, quela hora em que toda a g&jm
que dispunha de alguma coisa para comer estav^H
fim do repasto ou j mesmo acabara. E era justameflij
essa imagem, que, s vezes, parecia correr sua fittMQ|
como levada, na noite, retaguarda dum carro,1 ffiflj
criava aquela desagradvel incongruncia que ele seropp
no marchar. Tudo estava escuro, dum escuro que'oB
ise-ia granulado, feito de pairantes areias negras, ^^Hlfi
se divisavam os vultos das encostas, nem se adivinfcMl
a existncia do vale; a treva cobria-os, igualava-o& &m
o cu, como as guas dos rios nivelam mesma ali^H
os pegos sombrios, que parecem sem fundo, e os^lmj
chos baixos, que se atingem com um brao. S6|M
janelas iluminadas de Dona Ludovina e, mais adiafiMp
umas laminazitas de luz, rompendo pelas frinchlSSpP
portas humildes, beira da estrada, assinalavam "wfi
sena humana na noite. Ele j passara a casa onwSI
doutor Agnelo Carrazedas habitava antes de o^'Mr
morrer e agora, junto das alminhas que patrocinvaj|i|
a velha encruzilhada, saa-lhe, laia de diabo, o d^S""
de se meter serra, de se estender sob a asa duS"
fraga e, como faziam os pastores mais idosos, dQtfflp
corajosamente, esquecido de si e do Mundo, at o'^gl'
seguinte. Mas essa ideia logo lhe pareceu desatiitp**
porque daria, ento, ainda maior desgosto aos >*ft'd
Tnio atravessou a ponte e, de a para cima, *yt
suas pernas abandonaram a regularidade que trazia"*!;
e ora caminhavam resolutas, ora com a lentido das grandes indecises. O casebre erg
uia-se ali perto. Ele conhecia-o, mesmo sem o ver, pelo murmrio do arroio que lhe
deslizava num dos flancos, um murmrio que, nas noites silenciosas e negras como
aquela, partia ao encontro de quem se aproximava, como uma garantia de paz e ofe
rta duma meiguice desprezada.
Tnio levou a mo porta e a porta abriu-se vagarosamente. Joaquim Chambuta e sua mul
her estavam tal-qual ele os tinha imaginado, sentados ao p da lareira, de mos sobr
e os joelhos e, na cara, um ar calado de resignao e de derrota. Era a primeira vez
que uma coisa por ele visionada saa assim absolutamente certa e, perante essa mu
da confirmao de que eles, pelo seu lado, nada tambm haviam obtido, sentiu-se mais i
nquieto e mais acabrunhado ainda do que antes.
Boa noite, senhor pai...-disse. Boa noite, senhora me...
No sabia por qual das duas notcias comear. Desde a ponte, hesitava na primazia a co
nceder a uma delas e continuava indeciso, pois ambas eram ms. Tirou o seu chapu de
abas largas e acercou-se da lareira. Havia apenas um brasido a morrer sob as ci
nzas. E a candeia, dependurada na extremidade dum arame que descia da trave da c
ozinha e oscilando aragem vinda da porta que ele no encostara bem, ora lhe prolon
gava a sombra parede acima, ora a encolhia, tremulamente, at junto dos seus ps.
Joaquim Chambuta e a mulher, que haviam olhado para as mos dele, quando entrara,
pareciam no ter tambm curiosidade nem pressa alguma. No lhe perguntaram mesmo porqu
e se demorara tanto. A pequena e negra cadeira de pinho, baixa, prpria para a lar
eira, um traste familiar to velho como a casa, encontrava-se em frente deles. Tnio
considerou-a um momento e decidiu-se pela ponta do mesmo banco onde os pais se
sentavam, que assim no teria o desgosto de continuar a ver-lhes a cara. Ento a me,
com ele ao seu lado, vergou-se a revolver as cinzas, tentando pr a
go6
A EXPERINCIA
A EXPERINCIA
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'<<
f jt
descoberto algumas brasas, para lhes extrair "m^Hk radeiro hlito de calor. - jb"
A "tia" Landueira disse-me que tinha pena?i|S que no podia... murmurou Tnio. Dis
se q Ml vez pensssemos que era por no lhe termos pagoaij^ o que ela nos emprestou h te
mpos, mas que'tiaaogS por nada disso. Que se tivesse, da melhor vont4dtj|j|t Ento
, decidi ir loja, a ver se, por acaso... .nTosfc
Tnio calou-se de repente. O pai continuowrttit bem calado. A me havia conseguido tra
zer umap^^ quena brasa ao de cima, mas, depois, pusera^SS , faz-la rolar distraidam
ente sobre a cinza, como sbJSj > vez de querer reaviv-la, se empenhasse em a atafe
gi| r
Tenho amanh um biscato disse, por fift^l f pai, ao cabo dum largo silncio, num torn
de prejiyllt: e de consolo. E o Veloso ? i <J*B '
Venho agora mesmo de casa dele respcasi" Tnio. De tarde, quando l cheguei, ele no'
esfeflW"* e o criado disse-me que s voltaria hora do jaip Fui ver o julgamento do t
al rapaz, para fazer teHiwfr e, mesmo assim, ainda tive de esperar... bwp
A me, que acabava de pousar a tenaz, voltcuafc para o novo silncio do filho, com um
ligeiro ffdnP^ nos olhos, como se fosse esse verdadeiramente o ttoMP1 reflexo da
pequena brasa. < xtt&" *
E ento? its"*
No cheguei a falar com ele prprio. O criptffc disse-me que j era muito tarde e que
ele vinha caflfc sado e ainda no jantara. Pediu-me que lhe contact* o que queria.
Eu contei-lhe e o criado foi l de$tr<$* Mas ele mandou dizer que j tinha pastor..
. srjs$
Tnio preferiria que os pais falassem. Eles havotf regressado, porm, sua mudez e s o
murmrio hatof? ual do arroio, de que j ningum dava conta, pifflS*1 seguia na sua humi
ldade teimosa. tlf
Ainda estive para ir tambm ao julgamento-^ disse, enfim, o pai, com a voz solta d
e quem fala pWb no pensar noutra coisa. Mas lembrei-me de que^ Germana devia est
ar l e eu no posso ver essa fflW^ lher... Condenaram-no ? J->*^
A seis anos respondeu Tnio. At me vieram as lgrimas aos olhos ao reparar na cara
dele. O doutor Macieira e o advogado tinham dito tantas coisas bonitas, que eu j
ulguei que o iam pr em liberdade.
Ento a me, ao ouvir aquilo, perguntou e reperguntou e cada uma das suas perguntas
ressumava brandura e piedade. Depois de ela se calar, Joaquim Chambuta, sempre d
e rosto fechado e frio, volveu:
Foi por o ter a ele, que a Germana, logo no primeiro dia, me disse que no precisa
va mais que eu lhe tirasse a gua e me despediu. Mas eu, a ele, no fiquei a querer
mal. Era ainda um garoto e at me deu pena quando o vi, assim novito, a puxar a um
a bomba daquelas.
A me levantara-se para meter a mo sob o pano amarrotado que cobria o aafate e volta
va trazendo uma pequena cdea de broa. Era dum branco sarapintado de pontos escuro
s e enegrecida da banda oposta, lembrando fragmento de cantaria recm-partida, dep
ois de ter envelhecido, ao sol e ao frio, numa ombreira; uma cdea seca e quase to
dura como o granito a que se assemelhava estranhamente.
Pega l...
Tnio olhou o po que os dedos engelhados e trmulos lhe ofereciam e recusou:
-Comam-no vossemecs, que precisam mais...
Pega l, anda!
No tenho fome. J comi.
Onde comeste tu ?
Na vila.
Na vila...?A me olhava para ele, sempre com um ar de amor e de dvida, e ele no podi
a supor ^ tar aqueles olhos. Quem te deu de comer ?
Bem... Foi o criado do senhor Veloso...
O criado do senhor Veloso ?.
A me percebia que eram palavras sem raiz, ramos cortados pressa para lhe tapar os
olhos; o pai via tambm que era mentira e, ento, voltando-se para ele, gritou-lhe,
autoritrio:
go8
A EXPERINCIA
' *
-^-Come! / .
Para qu, se no tenho vontade ? j; flHK
Ele sabia que o pai se exaltava quando hfeBjjr obedeciam e, com o gesto de quem p
ratica um.ajHP intil, estendeu o brao e pegou na cdea; lasrjjlf encontrar, de novo,
os olhos da me, baixou a wag e ps-se a chorar. O pai deixou correr aquilo,oaqi se no
sse por nada. Depois, repetiu: ^siiu*'
J te disse que tenho amanh um biscaiforW ""T* Ele no conseguia engolir A boca movia
-se, parily
tornava a mover-se, tornava a parar; as cG&tafc aE mo passavam sobre as plpebras e
sobre os lbiolmjP boca retomava o seu movimento, mas sempre eprtSjl:
mesmo migalho.
"f mi)
Que diziam, ento, o doutor Macieira e o atvSi* gado ? perguntou o pai, com uma voz
soturnajimjjD
Tnio deglutiu, finalmente. Uma ideia alargavafSEi destrua outra e deixava um rasto
de luz. EnqumlL*, ele ia falando, a me levantara-se e retirara dedralfc do antepa
ro de velhas tbuas casqueiras, onde elate4fi| marido dormiam, a enxerga enrolada
do filho. Desdn|| brou-a junto da lareira, ao lado do banco, e ps4|K' uma manta em
cima. Depois, sempre com lentM^Sj caminhou at a porta e fechou-a por dentro. IB
iu^ii continuava a falar, repetindo as passagens qu&afcf^ pudera compreender
e mais o haviam impressiona^^ no tribunal. s vezes, o pai interrompia-o com unKK
pergunta, mas logo voltava a inclinar a cabea e^Jj^, ficar calado e imvel, de olho
s semicerrados, como s^ ele prprio estivesse vendo o que as palavras sugeriam,^;
E a me, terminados os seus ltimos arranjos donis^, ticos, viera novamente sentar-se
ao lado do filho, pW^ ouvir, antes de se ir deitar, o resto do que ele contava^
Na noite cheia de silncio e de negrume, o arroio prosseguia no seu murmrio, duma
fora humilde, mas viva.j, que se mantinha e se libertava atravs das trevas?a quand
o Tnio chegou ao fim: "033
E ele disse que h-de vir um dia em que havei4ir po para todos. J'JB
O SENHOR DOS NAVEGANTES
(NOVELA)
*k^
O SENHOR DOS NAVEGANTES
'<t
llji
KRANCA, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor
dos Navegantes divisava-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma l
uz que brilhasse na noite atlntica, os pescadores enviavam esperanas e desesperos
quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque ficava alta, a
o fim de ngreme, pedregoso carreiro, raras gentes l iam, salvo em dia de festa, co
m morteiros e filarmnica, uma vez cada ano. Fascinado pela sua solido e largueza p
anormica, eu encontrara, porm, maneira de a atingir, naquelas tardes de Estio, sem
me fatigar. Para subir as montanhas, um livro vale mais do que um bordo e, com
um livro sob o brao, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-
me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas rvores da encosta. Sem o liv
ro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascenso antes de refeito, que a t
endncia de quem anda, leve rodas, leve hlices ou apenas, modestamente, os ps com qu
e nasceu, , j se sabe, chegar com brevidade ao ponto de destino mesmo que nada te
nha l que fazer. com um livro, outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do q
ue os braos duma mulher e s desejamos interromper a sua leitura no final dum captul
o ou em pargrafo onde possamos retom-la facilmente. Entretanto, as pernas recobram
foras.
gi2
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
913
i '<
Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do &. nhor dos Navegantes, demorei-me
a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, ento muito sereST com suas vel
as graciosas e fugidias. Em baixo, estaJ dia-se a grande praia semi-selvagem. di
reita, njn^, pendo de entre um pinhal e com seu verde contrastando, espaireciam
casitas modernas, todas faceiras e colorida* ao passo que, da banda oposta, aglo
meravam-se $f barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre " areia e to velhas
, negras e rodas pelos anos como a fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros
Qab" tantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lacte onde se trabalhava
rudemente ao sol, muitas vezes <$K' colaborao com a morte, para se activar apenas
afe quele onde se descansava sombra tranquite^a^fe, pinheiros. >F> ^|
Aps esse longo olhar de amor com que totto&lj|| dias eu envolvia o oceano, a terr
a e o cu, sntefrifp e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porliai^aB abri o livr
o, um rumor veio de dentro da capelafi$R preendido, voltei-me e notei que a porta
estavai^KH" aberta. Era a primeira vez que isto me acontedi At ento, eu encont
rara sempre ali o rraior sillSSMg um abandono total, com esse sabor potico, fino *Wf
jante, que parece destilado pelo ar e prprfldMi ermidas que padroam as montanhas.
Agora, os fttOttijc continuavam. Senti passos e vi um homem transpdfe$| porta. Tr
azia os braos fechados sobre numerosos eW^w tos barcos de cera e pequenos quadro
s, ingnuas^llK turas feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estai** contrariado; te
ve, em seguida, uma expresso in^f*" logo um movimento de indiferena, por fim dirig
ftWH para o extremo do adro. Desse lado, o flanco da ctt descia quase a pique, at um
matorral que se esteflffl* l em baixo. Era um temvel despenhadeiro e.'xpa** defes
a de quem vinha ao Senhor dos Navegltw haviam construdo um murozito, que,
da banda'-* dentro, formava bancada, em semicrculo. Ali o hofe"* se sentou, a un
s quatro metros de mim. ;'l!f?
Descontente com a sua presena inoportuna, eiP*
baixar, de novo, os olhos sobre o livro, quando ele me disse:
Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladro... No verdade?
certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas
foras em relao s minhas e concludo que talvez ele me vencesse, em caso de luta. No que
fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu no chegar
a ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braos muito mais possan
tes do que estes, to franzinos, de que eu me servia para pegar no livro. Os seus
olhos claros no precisavam de culos, ao passo que os meus, sem auxlio de vidros, no
me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas fsic
as dele no se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e no sei mais
o qu do seu todo, sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do M
undo, de varapau na mo, ao assalto da vida.
Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir,
acrescentou:
No, no sou um ladro. Isto e apontava os ex-votos pertence-me. Eu que no os mereo..
.
Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, no me recordo o qu, u
ma necedade por certo, e ele voltou:
O senhor no de c, pois no ? Est a veranear na praia?
Estou.
Logo vi. A gente da terra no tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o
trabalho.
No entendi logo se ele falava assim para me ser desagradvel ou simplesmente para d
emonstrar a sua
perspiccia.
Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas
senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer:
O senhor esteja sua vontade. Eu no me demoro. E no tenha medo de mim. No fao mal a
^
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O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
915
'4
'ningum. Todos ns, certo, j algum dia fizenyflgjlL
e eu fiz um grande mal, mas isso foi h muitenE
A sua voz repetiu, de modo profundo: Hfii3B
claro que no tenho medo declarei, ^H torn frio. Na verdade, porm, eu enervara-me J
ItaB a abrir o livro e fingi ler. , "jJB
O homem calou-se. Vergado sobre os ex-voto3,| suas mos iam desfazendo os barcos de
cera^aiaiiB messando-os para o abismo, para o saral quaid"" l no fundo. Deles rete
ve apenas a extremidade "CMB mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejdart
jB ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice. >pi3| tem para as coisas frgeis, e
logo enfiou .na k8oflH| do casaco. Depois, estendeu o brao, agarrourrnjHj pedra e d
eu-se a partir os quadros onde se viafaid|B barcaes de pesca em luta com o mar emb
ravajM e o Senhor dos Navegantes de p sobre nuvens.oTriH eles tinham datas, algumas
seculares, e legendetjffcH reconhecimento, com muitos erros ortogrficos'"^p desen
hadas letras. O homem lia-as antes de de&peiiijjm as pequenas tbuas onde elas est
avam inscritasjepdjBj seguida, lanava os destroos l para baixo, 'paft mesmo lugar dos
barquitos de cera. Entretanto^cplH cia falar sozinho: -iCUaS
-Nunca salvei ningum... Ningum! Eu bei"8j|| desejaria fazer, mas j no tinha fora para
iss,<KW|| estes se livraram da morte, foi apenas por cFe$BP| tncias favorveis... <r
f***?*
Levantou-se e voltou a entrar na capela.' Peof! ser o momento de me retirar. Ele
ia julgar que eatD|- cobarde, mas isso no me importava. "VerdadeirapWfflif disse a
mim prprio o que busco nesta colite*5 sossego, e sossego, hoje, no existe aqui".
'4fiP
Antes, porm, de eu haver tomado uma dsfllf definitiva, o homem surgiu, novamente,
no a.dro,CttP outra braada de ex-votos. Eram, agora, mos, seli* cabeas e ps de cera.
Ou por falta de pacincia!'p** os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso part" aq
ueles smiles de membros humanos, que lhe aora"*
riam, porventura, remotas supersties, ele acercou-se do murozito e lanou os ex-voto
s, duma s vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se um moment
o, como eu fizera antes, a contemplar o oceano.
O senhor gosta disto ? perguntou, voltando-se ligeiramente para mim.
Isto bonito respondi-lhe. um magnfico
panorama...
Tornou a olhar o mar e a terra, lentamente.
Sim, no feio...murmurou. Podia ter sado muito melhor, mas, enfim... J os r
omanos gostavam deste stio. Ningum o sabe ainda, seno eu, mas a verdade que houve a
qui um crasto. Olhe, acol, esquerda, antes de se entrar no adro, se algum escavar
, encontrar restos de sepulturas... E praia, l em baixo, chegaram a vir muitas gal
eras... Existia, ento, um pequeno porto, que o tempo assoreou...
Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. Tentei exa
min-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fix
os ao longe.
Efectivamente disse-me, depois se olharmos bem para a terra, para o mar e para
o cu e se pensarmos na grande variedade de seres que h no Mundo e em todo este ad
mirvel equilbrio planetrio, parece-nos que estamos perante um milagre. No assim? A s
i tambm no lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas?
Sem dvida, o Mundo muito variado e... Ele interrompeu-me:
Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples
insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o p, se
ele no fugir, capaz de levar-nos a meditar sobre o mistrio da criao, capaz de arrast
ar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, no tnhamos
sequer admitido percorrer...
O homem interrogou-me bruscamente:
O senhor o que ? Qual a sua profisso ?
gi
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
917
'"t
'""M
* Eu disse-lha e ele pareceu contente: t*nri
Ah, muito bem! Ento pode compreender.;frittfe verdade que o Mundo parece feito po
r uma agMfe nao portentosa? Por uma inteligncia que nejDSS homem pode igualar ? nttt|
Algumas vezes tenho reflectido sobre isscm3| confessei, modestamente. ' - &
A est! exclamou ele. A est! Mas O:SRHhaB engana-se! Pelo menos, engana-se em metad
e...\>,f>nM
Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado} wjff de p; eu tinha de olh-lo de baixo
para cima e^sentjfcflll com receio de que estendesse as mos e me dominasS
Ora diga-me uma coisa... Nunca lhe pareceu^M| essa inteligncia havia ficado a meio
do seu li il HiJM Que no tinha ido at onde parece que pretendiauiM
No sei. A nossa razo tem limites. Para 'a&HB da nossa razo podem existir outras raze
s, qu&dMB so explicveis... ^^B
Era a, justamente, onde eu queria chegar l j3faM| Ao dizer isto, o homem sentou-s
e ao meu \aaJm
dobrando-se levemente para a frente, com os brataili
apoiados nas pernas e as mos juntas. A sua vafl|
adquiriu, ento, um murmurejar de confidncia e-rd|B
quem no sente pressa alguma: '"'1J"B
Tudo correu muito bem, a princpio declaronB
como se continuasse uma narrativa interrompida-^wB
Eu tinha um poder infinito. E uma imaginao paB
alm de todos os prodgios. At eu me admiro, hoMH
disso. Bastava pensar uma coisa e o meu pensamentij}
materializava-se rapidamente, adquirindo forma e vidwH
A minha fantasia no encontrava limite algum e 4B
habitantes das profundidades deste mar que estamfliB
vendo o atestam. um prazer que o senhor no conheodM
tornar realidade o prprio absurdo. Mas, nesse temp>q|B
tambm eu no sentia esse prazer; eu no fazia ideiij
alguma do que era absurdo e do que era lgico, d*H
que era belo e do que era feio, do que era bom e d&jm
que era mau. Estas definies s se estabeleceram maiwH
tarde, justamente quando surgiram os limites... EtiB
criava, criava, como num delrio. E no h dvida de-*J
ue a minha principal obra foi isso a que os homens chamam o Universo, a mecnica c
eleste, o Infinito... Os senhores andam, com a vossa cincia, a colocar l algumas b
alizas, mas trabalho mais difcil do que se quisessem remover com uma colher de ch
a terra duma montanha...
Enquanto ia falando, o homem olhava para o cho, como se no desejasse ver nos meus
olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o torn de voz:
Um dia, porm, senti-me decadente. As aves, por exemplo, so um indcio do meu declnio.
No sei se o senhor viajado, se conhece a sia e a Amrica, as grandes florestas trop
icais onde h aves maravilhosas. Mas se no conhece, no importa; tem visto isso, pelo
menos, nos livros com estampas multicolores. Parece-lhe no verdade ? que h uma
diversidade deslumbrante, uma fantasia inesgotvel no mundo das aves. Pois no assim
! Se observar bem, ver que no assim. A minha imaginao havia j comeado a diminuir, co
va j a aproximar-se do que \iria a ser a imaginao dos homens. Criei um pssaro e os o
utros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os tam
anhos, desde a avestruz, to grande que pode ser cavalgada, at o colibri, que, de m
insculo, se confunde com um insecto. A seguir, fi-lo de todas as cores e com toda
s as combinaes de cores. Depois, em vez de criar, pus-me a exagerar determinadas p
arcelas do que j havia feito. E cheguei, assim, at a caricatura da minha prpria bra.
A algumas das aves limitei-me a esticar-lhe as Pernas, as caudas ou os bicos, d
e tal forma que estes ficaram grotescos e muito maiores do que o corpo. A outras
dei-lhes uma amplitude de asas de que no careciam ou deixei-lhes apenas uns simp
les cotos. Variei-lhes, tambm, o fulgor dos olhos e a composio dos seus gorjeios, d
eixando umas eternamente mudas e obrigando outras a cantarem at na hora da morte.
Mas tudo isso eram simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia fundame
ntal, era a mesma. Eu Parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma
gi8
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
919
descobeita feliz e passou, depois, o restoisawi lutar desesperadamente para dar a
iluso1 de mj se repetia, quando, em realidade, no fazia'"fUjifC seno plagiar-se a si
prprio... ," ^3
O homem calou-se subitamente e, soergua* cabea, olhou-me pela primeira vez, desde
(Jwafg sentado. > ei/pn]
O senhor est a pensar que sou um^looeiOS verdade ? fsisq
Foi, ento, que, por meu turno, baixei r"tfe[ ^ admitindo de novo que ele poderia,
em quajiqm" mento, lanar-me por cima do murozito de'T^^Jl como fizera aos ex-Vot
os. -omaj
No, senhor. Estou a ouvi-lo com m{t$gjj resse. O que acontece que se vai fazendoQf
rSI
Ele examinou atentamente o cu, como selialjj o Tempo: '^k
No, tarde no ... So apenas cinco hoiacwfc c um cigarro. op|
Passei-lhe o mao, meteu-lhe os dedos, risabUifjl gar, um fsforo, soltou o fumo e t
ornou: - $$
com o mundo vegetal aconteceu a mesaa^j O que uma rvore ? O que uma planta ? lfcn|
J metida na terra. Para evitar a monotonia, tiveudU variedade s folhas, s flores,
aos frutos e aospaK Mesmo aos troncos. Mas, apesar de tudo, tff^j uma raiz metid
a na terra. Ora no era isso-'Spl queria. Eu no queria o Mundo submetido a uHB$l tio
perptua. Eu desejava que ele se rn0<$pB constantemente. O senhor j pensou que
poderiltM feitamente existir bosques areos e que o homem <fe| andar no fundo dos m
ares ou no espao celeste^ tanta facilidade como anda aqui na terra ? 0R"$Bi no v qu
e os homens esto todos os dias a pu^l corrigir os defeitos do meu trabalho ? O que
uH#lH ou um escafandro seno um remendo minhwJ Mesmo os que me adoram, passam a vi
da a digiI de mim e a tentarem emendar o que eu fiz. Q&l imploram as minhas graas
para as suas infelicita no fazem, no fundo, outra coisa do que censuEBK
pois o que uma splica seno tuna revolta que no
5g pode exteriorizar? Sorriu vagamente e ajuntou: __S no me amaldioam porque ainda
me julgam mais forte do que eles...
Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um torn
doce, melanclico, confessou :
Eles tm razo, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha obra. O
que devia ser mutvel tornou-se imutvel e as leis que ficaram a reger o Mundo so imp
iedosas. Eu s me lembrei de criar o homem muito tarde. J havia feito os outros ani
mais, j havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos pormenores, quando me
ocorreu uma outra vanante. A minha tendncia fora, at a, dar aos bichos quatro apoi
os sobre a terra ou sobre as rvores. Pois bem! Aos novos seres eu daria, como s av
es, apenas duas patas. Mas o senhor no pode imaginar o que senti ao ver de p, entr
e os outros, o novo casal. Eu estava a criar o canguru e to impressionado fiquei
que lhe pus logo mais dois embries de pernas e deixei-o incompleto para todo o se
mpre. No meio dos outros bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos rudos
na manh da sua vida, o homem e a mulher, nicos que eram verticais, dir-se-iam dois
pinguins entre um bando de pssaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber c
omo orientar-se. Mostrava-se to triste, to incerto no seu destino, que tive de rep
ente pena dele. Porque fora talhado ao alto, o seu prprio sexo se apresentava men
os oculto do que o dos outros animais e parecia vex-lo. No ocaso do meu poder, eu
comeava a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funes a um mesmo rgo. Para
as aves bastara-me um tubo de vazo; para os outros viventes criei, inutilmente, d
ois - e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o erro, era dema
siado tarde; dali em diante, a prpria vida humana brotaria dum cano de esgoto. As
sim, a piedade que eu sentia pelo homem ia-se tornando cada vez maior. Hesite
i um Comento e decidi: " a este que eu me darei. a este
920
O SENHOR DOS NAVEGANTES
O SENHOR DOS NAVEGANTES
921
'"<
que eu darei o que ainda resta de grande eijl m E fundi a minha decadncia, o creps
culo da" potestade, naquele melanclico animal. Foi ou1| o meu maior erro. O homem f
icara com todas gwj raes dum deus e no era completamente dei(r)! giram, devido a is
so, inmeros conflitos. QnQJ queria ser eterno como o deus que ele guardava w de si
e era, pelo contrrio, to efmero como dSral animais. Queria ser feliz, impelido por
aquelateb reminiscncia de quando uma parte dele me' pf&tl a mini, sua divindade, e
havia de passar milMo j milnios a lutar para ser feliz, sem nunca o >p!oi| por muito
tempo. S o era integralmente Rorgia minutos e justamente quando fecundava notasil
humanas. Eu havia-o deixado to desamparadara tantos problemas a resolver, que a p
rpria (catnj em vez de ser apenas um ponto de partidar</fo| contrrio, um ponto de
chegada a sua prinffiilffj quista. O Mundo ficara imperfeito e o homem'com S nsi
a de perfeio impossvel. O Mundo ficara im pleto, injusto e sem finalidade visivel e
o homin>iM a lutar para que o Mundo tivesse para ele tudor que o Mundo no tinha. Qu
ando no pode u^l outra maneira, recorre s hipteses. So as hrpol que o tm amparado desd
e que ele vive. EiaSI remorsos, creia, por tudo quanto fiz... Sinto espS mente rem
orsos por tudo quanto no cheguefelffi zer... o W
O meu interlocutor levantou-se, meteu as mmro bolsos e caminhou, como opresso, at
a extreMM do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhffl para baixo, para os de
stroos dos ex-votos, vi-o, jdef estender a vista at o mar e, em seguida, vol" para
mim: ri
Ento, eu prprio comecei a lutar tambinol tra a minha obra. claro que, ao fundir-me
no prinS homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao cottfri dos outros, o privi
lgio de guardar memria das jntt vidas que tenho vivido. Lembro-me de tudo des comeo
do Tempo, desde que fiz o Mundo. E >"
est o meu principal sofrimento, porque a memria, para quem praticou o mal, , como s
e sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, s vezes,
milhares de anos para acreditar no que evidente. Quando lhes digo a verdade, ele
s maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo, "O Mundo est mal feito e preciso,
dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo" - os mais fracos, o
s mais ingnuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda sobre se ou no verdade o q
ue lhes digo, enquanto os mais fortes mandam imediatamente perseguir-me. Se, par
a me defender, declaro: "Tenho a certeza de que est mal feito, pois fui eu prprio
quem o fez"
ento consideram-me louco, bruxo, hereje, visionrio, e perseguem-me da mesma maneir
a. Poucas vezes tenho morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos o
utros homens. Ao contrrio, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado
, enforcado, fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das mi
nhas vidas foi sempre aplicada a moda a que cada poca e cada povo obedecem para m
atar os seus inimigos. Disso no tenho que me queixar...
acrescentou, com um sorriso. H pouco, contei-Ihe que, ali, entrada do adro, se e
ncontra um velho cemitrio romano. Decerto, o senhor no acreditou. Compreendo
perfeitamente: no seu lugar, eu tambm duvidaria. Mas pode ter a certeza de que es
tou l... Ou, se j no existe resduo algum do meu corpo de ento, deve estar l, pelo rnen
os, uma fibula que eu usava nesse perodo. Enterraram-me ali depois de me terem su
pliciado brutalmente, s por eu haver dito |.u.e, como criador que fora do Mundo,
vivia a penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que eu pretendia, com
isso, ser mais importante do que o 'rnperador de Roma e liquidaram-me...
Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia dim
inuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao prPrio
adro, onde a voz do homem prosseguia:
Se eu lhe contasse o que observei e sofri atra-
922
O SENHOR DOS NAVEGANTES
'"t
" vs dos Tempos! Mas nunca mais acabaria!"imeg
o senhor est com pressa... O que me valeu noa/AS
sculos foi a inveno da tipografia. Sem 'qs^S
sofrido ainda mais, dado que as minhas ltintg^S
passei-as, quase inteiramente, nas prises. Ass^dj
pr arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido}"|
muito; desde h quatrocentos anos quase! ftf^yj
outra coisa. Por um lado, a leitura distrai-me^Jejil
a esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, poisou
livros dos homens que eu vejo, sobretudo, o dbaai]jjj|
criei... Ultimamente, l no manicmio, so(|Sj
dar-me livros optimistas, livros em prol. Os ,fMM
afirmavam que essas obras no me despertarianfcjj
sombrias... Mas eu protestei imediatamente.j. oi2|
Ah, o senhor esteve no manicmio ? peafgllj de modo tmido. Wi<i3|
Estive respondeu-me ele, com naturlidj"fj|
No tenha medo de me ofender, pois desde orp*M
adivinhei que o senhor pensa que eu sou urabjfl
No me ofende nada... Todos tm pensado d&JI
a mesma coisa, j lhe disse. Estive e l estaiatafl
se, ontem, no tenho conseguido fugir. Estav^ai
j para oito anos. E sabe porqu? Porque, QflfiM
entrei numa igreja e gritei aos crentes que seirWI
travam ajoelhados: "No vos resigneis, pois & >$M(|
que eu fiz muito imperfeito e, portanto, preeds"$l
do vosso esforo do que da vossa resignao, i SSHj
feito h-de ele ser sempre e vs tambm; contu0J|
muita coisa podeis aperfeioar o Mundo e a v^@|
prios. Mas no de joelhos que o fareis; de 9&M
lutar! Quem vos fala j foi Deus e sabe por qu%|I
assim..." u M
O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe>i|M ressasse conhecer a minha reaco. Ven
do que Ettcffl tinuava calado, teve um sorriso melanclico f" tinuou: I'-Jgl
O que fui dizer! S as imagens dos santos?1*! ram impassveis... Mas o Cristo, no al
tar-mor, pflij contemplar-me meigamente, com um ar secrelQtii cumplicidade. Dos fii
s, uns olhavam para mira, esfipl
o SENHOR DOS NAVEGANTES
923
dalizados, outros faziam esforos para no se rir... junto do altar da Senho
ra dos Aflitos encontrava-se, ajoelhada, urna pobre mulher, a nica que, naquela
manh, estava ali com verdadeira uno. Ela tinha um filho morte e no tinha recurso alg
um, nem para o mdico, nem para os medicamentos para nada. Viera ah pedir ao cu qu
e lhe salvasse o filho, pois era o cu a ltima esperana que lhe restava. Senti tanta
pena por essa me infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braos para a imag
em da Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoo um dos muitos cordes de oiro que
os devotos lhe haviam oferecido. Quis entreg-lo mulher, dizendo-lhe: "Vende
-o e vai a correr chamar o mdico1" Mas a mulher, depois de limpar as suas lgrimas
, encarou-me com repugnncia, como se eu fosse o prprio diabo e recusou o
cordo. Teimei: "Despacha-te, seno o teu filho pode morrer!" Ela continuou a recusa
r e a olhar-me com desprezo. Ento, sempre com piedade por ela e pelo filho, resol
vi mentir: "Anda' Pega l! No tenhas escrpulos! Eu sou o instrumento de que Nossa Se
nhora dos Aflitos se serviu para te ajudar". Ela hesitou um momento. Olhou a i
magem, olhou para mim, mas no cheguei a saber se se havia decidido a aceitar aqui
lo. A igreja enchera-se de gritos. " louco! louco! ladro! ladro! Quer roubar a Noss
a Senhora dos Aflitos'" Um polcia, que esta\a tambm ajoelhado, levantou-se, avanou
para ttiim, tirou-me o cordo e p-lo, de novo, ao pescoo da imagem. Depois, ordenou-
me que sasse na sua companhia... O senhor est a ver o que aconteceu... Se, ntem, no
apanho um guarda distrado e no salto o ^uro, no estaria agora aqui a falar consigo.
..
Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou com um gesto.
So horas de nos irmos embora disse, empregando o plural, como se estivesse certo
de que eu pariria, com ele, do Senhor dos Navegantes. Realmente, eu deixara de
o temer.
Atravessmos o adro. Ao passarmos junto do local lue ele me dissera havei sido um
cemitrio romano,
'I
924
O SENHOR DOS NAVEGANTES
vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar^djj plantas silvestres, um determin
ado stio. EncdlB decerto, porque, vergando a cabea, gritou pafB da terra: ^s,a
C estou! Ouves ? C estou e you coltiM lutar! n fel
.iftH Jfeft!
t*"
O INSTINTO SUPREMO
(ROMANCE1"
'4
memria de Cndido Rondon, grande figura moral do nosso tempo, e de todos aqueles qu
e lealizaram nas profundidades dos sertes brasileiros, luz das suas ideias, uma e
popeia de humanitarismo.
PRTICO
<*
L
Meu amigo:
l J M dia, j no sei h quantos anos desaparecido, mas certamente h mais de vinte, che
gou, enfim, a mancheia de terra do longnquo seringai onde vivi; chegou numa caixi
ta de papelo, que a viagem maltratou e eu conservo ainda, um pouco a modo de relqu
ia.
Havia-a pedido a outrem, mas foi-me remetida por si, depois de encontrar a minha
carta solicitante olvidada entre as folhas de velho dicionrio, amarelecida pela
luz a extremidade deixada vista,' por si, que j nesse tempo entregava, perdulria e
amorosamente, a sua vida e a sua paixo de bilogo, de etngrafo e de etnlogo ao estud
o das expresses fsicas e humanas da floresta imensa; por si, caro Nunes Pereira, q
ue eu no conhecia ainda.
Mais tarde, numa das suas deslocaes sobre as veias da Amaznia, cujo mistrio renasce
logo aps cada violao, como ressurge o do nosso corpo a seguir ao trnsito dos Raios X
, voc tornou a desembarcar no seringai Paraso, pensando de novo em mim. E desta fe
ita buscou pacientemente, nos antigos livros daquele escritrio que tinha dois bel
os crtons bicolores em frente da janela e estava ainda como eu o havia frequentad
o, a minha conta ali, entre as de outros prias, a minha vida sintetizada e/>n alg
arismos, como de bom e corrente uso no mundo fn que vivemos; neste caso poucas c
ifras, pois eu ganhava dez tostes por dia. E pelo mesmo correio recebi esse
30 Vol. Ill
930
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
931
'H
jt
inesperado documento, num jornal reproduzido, e a into. gem que a sua mquina foto
grfica extrara do barraco onde o final da minha infncia e a minha adolescncia trabalh
aram quatro anos infindveis, que cada vez w parecem mais inverosmeis; a imagem do
barraco e da sapotilheira que o antecedia, com o tronco enquadrado por um banco,
meu assento eleito ao cair das tardes, para ler, sonhar e desesperar-me ante um
futuro que eu desejaria sem limites e via-o sempre limitado pelas ribas do Madei
ra, que flua diante de mim.
J nesses dias, que as suas espontneas remessas,
impregnadas de delicadeza, dir-se-ia mesmo que de poesia
romntica da parte de um homem devotado ao estudo,
de sbito me recordavam de modo to emotivo, as marchai
punitivas contra os Parintintins, atravs da floresta -cem
rada e espinhosa, como se ela prpria fosse uma^Msl^om
dncia, haviam sido interditas nos seringais daquel(r)'"re<%
por influncia de Rondon, grande fautor de humantartitt^
Eram o meu terror esses ndios. Quase criana,'OfiH,
arribada dum meio diferente, quando caminhava ^MflMH
varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearttSf
e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muit\foiyft
umas das outras, esperava sempre ver os Parintibmjfj
surgirem por detrs das rvores, as flechas j n0s> ^**W
retesados, e abaterem-me num momento e cortarett^^
cabea e sumirem-se de novo, deixando regressar o fosWH
silncio da mata, que s por si me atemorizava irt^Helfc
mente. E foi ento que principiei a admirar, com p&t&f
bante estranheza, aqueles homens do seu pas, que s0*f**J
do meu temor, como se fosse apenas infantil. A<pM*
homens que todas as manhs, e quase todos sem <"9Wp
metiam brenha ameaadora para agenciar a sM^twjl
infeliz, sabendo perfeitamente que dum instante ^^f
outro podiam ser decapitados; aqueles desconhecidos ##*
populares, irmos desses outros de que me ocupo w*~
romance, com o mesmo amor fraternal que voc ^^vS?
e a razo por que hoje lhe escrevo estas linhas. "**
No podia eu, nessa poca em que mal comeM><f~s
alvorecer-me o esprito, imaginar que no futuro co>W*B
raria os Parintintins de maneira bem distinta daqi&f
com que os julgava ento; e que iria utilizar at a sua selvageria antiga como semen
te dos temas que se entrecruzam, se insinuam apenas ou se desenvolvem nitidatnen
ie aqui. Mesmo depois de haver, muito mais tarde, numa hora porventura leviana,
prometido a Rondon este livro, largos anos partiram, inquietos, perplexos, antes
de n promessa se cumprir.
que, embora no vasto e diverso Mundo numerosos romancistas tenham edificado as s
uas obras, tantas delas tocadas de perenidade, num s meio ambiental, terrestre ou
martimo, citadino ou provncias adentro, em planuras e montanhas, eu sempre prefer
i um novo territrio literrio para cada novo romance. Seduz-me auscultar os caminho
s que ainda no trilhei, estudar as atmosferas que a minha pena ainda no captou, de
svelar o que inerente a cada terra; atraem-me as prprias dificuldades e assusta-m
e a eventualidade de repeties.
Amaznia j eu entregara muito da minha existncia e muito mais ainda da minha alma; d
eslumbrara-me a sua imponncia, conhecera-a no seu mago, andava-me sempre na memria.
E se l voltasse literariamente, mesmo sendo de todo diferente o problema, decert
o haveria quem julgasse ir eu tentar uma recidiva da benevolncia concedida ao pri
meiro trabalho que lhe dediquei e essa ideia me vexava.
Mas se, em alguns momentos, os dois recifes se apresentavam diante de mim bastan
te fortes para me levarem i diferir a construo da nave projectada, noutros parecia
m-me simples maravalhas erradias, balanando-se superfcie dum mar profundo, coisas
de somenos, se as comparava justia de preitear a orientao moral dum grande homem, a
s assombrosas jornadas da sua hoste e dos seus discpulos, o esprito imensamente co
mpreensivo e generoso do seu povo.
Entretanto Rondon falecia, deixando ainda mais viva * que at a a promessa que lhe h
avia feito; e outros hvros meus, aceites tambm com indulgncia, pareciam tfastar a
hiptese de que eu voltava ao mesmo caminho Pira colher, em planta marginal, a flo
r duma nova generosidade.
932
O INSTINTO SUPREMO
'4
Em I59' encontrando-me eu no Rio de JcMgUtii^ nosso amigo Jaguaribe de Matos, com
panheiro de JttNfe e emrito cartgrafo das suas expedies, pergwtx^KHtt de repente, e
da do Museu do ndio: '*<&W4tB E esse prometido livro quando aparece? v\
su^ge Tardei ainda um molho de anos a inici-lo, tns.vbjfr agora aqui. Escrev-lo to
rnara-se uma imposio dxw&tm conscincia. Embora enraizado num facto aconieoigopate ex
ame dum problema moral que vem de muito >lotgt& dum herosmo popular sem espadas, s
em carabitag^ sem sangue, esta epopeia vivida apagadamente ewivfaj ainda recentes
, ignorada do Mundo e da prpria WCOMWM dos brasileiros, um romance. romance, mesm
o quaiHQ na aco comparecem, ao lado das que foram imagitvadm^ algumas personagens
que existiram em carne e assSi com sacrifcio, pertincia e coragem se entregaram Cim
que serviam. aa"f,
Fiel realidade literria, que pelo seu poder coMett^ sador e harmonizante , como de
h muito se sabe,imiH convincente, tantas vezes mais verosmil do que a da'Vtt^ em
numerosos passos desta obra rompi deliberadantit com a histria, em prol da fico cria
dora e livr^^pVi^ que os seus heris no parecessem mitos, as suas tf&> no segregassem
a incredulidade que brota das j4bU&m as suas virtudes emergissem da prpria condio
hutttji^ como em todas as pocas foi verdade, antes dos ftu& se decomporem e tornar
em lendrios. E assim, ^orHW* tantos problemas confluentes, tentei averiguar,
swwj* tendo-as prova psicolgica, as possibilidades duma "W" nobre sobre o instint
o de conservao dos homens *y* habitam estas pginas e moralmente no podiam, ad6j>N que
eram de Rondon, defender as suas vidas, mat<&l*b aqueles que se empenhavam em m
at-los. E agora, **** velho Nunes Pereira, o livro que hoje lhe remeto, pBQf* ofe
renda de quem no conseguiu melhor, dir, destA W* obedecendo inteiramente ao episdio
real, se eles vencer^* ou no o instinto supremo, l onde o Mundo g**1**** ainda, c
omo nos dias da sua aurora, tantos e to &*** plexos enigmas. ~
FERREIRA DE CASTRO '-"f
O INSTINTO SUPREMO
f OM os remos a chapejarem surdamente, cautelo^^ ss como os dos ladres, nas proas
um rudo fino, menor ainda que o dos botos cortando a tona da gua, as canoas metera
m a terra. A noite tropical, embora de estrelas acesas, mal permitia divisar as
sombras que se erguiam dos bancos e, de terado cintura, machado ao ombro, desemba
rcavam umas aps outras, todas hesitando sobre onde colocar os ps. Os seus toscos s
apatos de borracha, com o feitio exacto das pegas, semienterravam-se no tijuco ri
beirinho e mais facilmente as pernas se desprendiam de dentro deles, do que eles
se libertavam dessa lama pegajosa, quase to voraz como as areias movedias. Mas a
lmpada de bolso, de algum ainda sentado numa das popas, estoqueou de repente a obs
curidade, abrindo um caminho de luz, estreito e oscilante, na terra que trepava
do rio para a floresta, gretada na parte alta, que mal se via.
Quando os homens chegaram, enfim, ao cimo da declividade, l de onde o cu era vasto
e dir-se-ia ttiais claro, deram com enorme parede vegetal, quase sem espao para
os seus corpos nesse cho plano, que eles sabiam ser imenso e ali vinha desbordar.
Ento
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
935
'"<
novas lmpadas se acenderam e os seus focos inqtfi, dores foram riscando o grande em
aranhado, ondw& grossos fios das lianas cosiam, uns aos outros, arbttfbf "" plantas
, rvores, e os velhos troncos de pele esbrash quicada pareciam, quando a luz por
eles subia, a modo de rptil transparente, de contornos imprecisos, que^o assustar o
s homens com a lividez de cadver que?4* sua casca, de sbito, tomava. fe
Mas j se ouvia uma voz de mando, a de Amaro,* baixa e curta. E rapidamente brilha
ram as lmirts<* dos terados, seguindo as indicaes das lmpadas'f" rasgando as primeiras
sendas, que lembravam minai* a furar a tremenda espessura da brenha. tt
Pouco depois, aqui, ali, mais alm, soavam os gW ps dos machados, na noite j toda ner
vosa. Lmpadf dispersas, iluminando os ps dos troncos, quase estfttl ticas, dir-se-ia
m detidas para dar tempo a decifrar UW* remota inscrio. No se enxergava quem as sust
itjirl nem os homens que cortavam; s se viam os machaaSP e as mos, ora a sair, ora a
mergulhar na som^t como os insectos chamados ao farol que os mat^F Vai pau! Num in
stante, a frase humarriMB aquela alegoria de desvairo. Todas as lmpadas se Bj^J gar
am, menos a do homem que a proferira. Mas'tpj| outras trs se reacenderam, volta da r
vore qafi&wl tombar, e por ela os seus focos subiram at a cOwf onde se fixaram co
mo se pretendessem sust-la fWR essas dbeis escoras de luz. lMl
O machado voltou a insistir. O tronco foi-se iP6*? nando, estalando pouco a pouc
o, ainda hesitante 6JPr obedecer ao desgnio dos seus algozes. E quando, enfinjse
decidiu, os galhos dos vizinhos, a que se amparJjjjP e com brutalidade ia partind
o, lanaram protestos i*|5C ruidosos e aflitos do que ele prprio, que a esse ap<BJ|
^ forado ficou devendo poder morrer abafadamentlr como se tivesse rolado de degra
u em degrau, a^X cova. "^2
Desde ento, na noite cheia de rumores, potlfijjl minutos decorriam sem que se ouvi
sse "Vai pau!", "^m pau!" e sem que os quatro jactos de luz tornasserfl3*||
aderir, no jeito de arcobotantes, frana da nova vtima.
As horas iam-se esgotando cada vez mais agitadas, mais febris e sudorosas, os ho
mens das lmpadas a alternarem com os dos machados no corte da floresta cerrada e
negra, que s nessa noite, ali, depois que existia o Mundo, cedia enfim a sua virg
indade. Dir-se-ia que as prprias rvores tinham abandonado o ar austero e imvel, ess
a enigmtica expectativa com que haviam recebido, pouco antes, aquele bando de demn
ios, que tudo assarapantava em seu redor. S Amaro no trabalhava, como se tivesse a
penas a misso de vigiar os outros, contar o nmero de fustes que abatiam e pronunci
ar, de quando em quando, algumas palavras breves, sempre baixas; mas via-se, pel
a frequncia com que tirava o relgio do bolso e lhe achegava a sua lmpada, que era d
e todos o mais apressado. s quatro da madrugada, por entre os troncos j cados e os
arbustos esfrangalhados, ele tornou ao rio, com a luzita frente. Na canoa maior
encheu uma serapilheira de terados, de colares de missanga, braceletes, espelhito
s redondos, outras bugigangas; e, pondo-a aos ombros, voltou terra, na mo esquerd
a a lmpada, na direita dois machados. A passo insonoro de fantasma, rentou alguns
dos homens que cortavam as rvores e logo penetrou mais na brenha, at a linde da re
a onde se efectuava a derrubada. Parecia que o seu pequeno jacto de luz, vaguean
do de um lado a outro, buscava um stio idealizado e que finalmente o encontrara.
Cho limpo de plantas, habitado apenas por troncos gigantescos, que recusavam a qu
alquer outro vegetal a possibilidade de viver sombra fatdica das suas comas, obje
cto que nele se depositasse enxergar-se-ia facilmente de longe, desde que possuss
e algum relevo.
Amaro deixou cair os machados, pousou a serapilheira e, reentrando no cerrado, d
ele volveu com dois arbustos, que rapidamente desfolhou. Espetou-os na terra e n
eles foi dependurando, cuidadoso, quase carinhoso, maneira dos ourives repondo a
s jias preciosas
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i 'H
nos seus estojos, os colares e braceletes que troiBwAg sobre os quais a luz perp
assava, sugerindo uma bqthjj leta elstica e fazendo rebrilhar as contas multicoil
"Plantou os machados pelos cabos, que assim c^n" verticais como num campo herldico
, de gume valta|U para a banda onde as rvores tombavam; e aoB.itt" ados deu-lhes o
jeito de sabres rompendo de sepultai" de guerreiros, para que se algum raio de
sol coisa" guisse, apesar de tudo, traspassar o grande dosse, ele atrassem, faiscan
do, os olhos que transitassem disia^ tes. Foi-se ainda por um cip, estendeu-o de
um rgisp a outro, nele deixando a prpria serapilheira, depe$p durada e aberta como
uma capa de burel a segiv E finalmente afastou-se dali, com sua luzita ince^J ent
regando escuridade todos os presentes trazdll1 que lembravam ex-votos de um eremi
ta aos deuses^jp floresta imensurvel. 'tVtt
Agora, isoladas das vizinhas j mortas, as n$jqj| maiores caam desamparadamente. E o
estrondo yH^ lanavam na noite de fbula dir-se-ia encaracolai^ antes de se repercut
ir, j desdobrado em sucessif| ondas, mata adentro e pelos meandros do rio, de f^J^
lenta e medonha. lPl
Vai pau! Vai pau! * ifSf
Amaro examinou novamente o seu relgio e taMt enviou o pequeno foco da lmpada aos f
ustes aiSp por abater. Eram cinco horas e onze. O sol nao^ii^ daria a surgir, apr
essado, teatralmente rpido, truq^* dum prestidigitador, como aparece sempre nos trp
itHP e, com ele, a entrega dos corpos ao grande perigo. B^ lbios de Amaro partiu u
m silvo prolongado. E quflip' sinal, cortante e frio na madrugada quente, os ma"f
S" dos despediram com maior fria ainda os seus gcJjpP de misericrdia sobre os tron
cos j feridos. Encuftfr ram-se os intervalos da matana, os quatro focos-pjpf tos vo
avam, lestos, de copa a copa, e tumultuosamente as rvores caam umas a seguir s outr
as, num frag" de tudo estarrecer. '**
O relgio tornara-se uma obsesso. Eram cincow vinte e oito e Amaro sibilou de novo,
desta vez impWf
L
rativamente. O tumulto cessou. Assinalando os escombros vegetais com as luzitas
que lhes facultavam o passo, por entre os caules prostrados e as comas aleijadas
, os cortadores avanavam para a margem do rio. Entretanto, com a lmpada ao alto, A
maro inspeccionava mais uma vez o ar: na noite que findava, vrias rvores mantinham
-se ainda de p, de novo com uma serenidade grave, quase pattica. Ele encolheu lent
amente os ombros, como se domasse a conscincia perante o que era j irremedivel; e,
juntando-se aos outros homens, caminhou tambm para a beira da gua. Uma voz, que se
adivinhava preocupada, interrogou entre os rumores abafados do embarque:
Que hora , seu Amaro ? Hesitou e respondeu apenas:
Muito tarde. Vamos depressa!
As canoas, que haviam chegado com movimentos sigilosos, como para um assalto, pa
rtiam agora com um nervosismo de fuga, sob aquela tira de cu que cobria, l muito d
e cima, as duas margens e ameaava azular-se. Dir-se-ia que os remos penetravam ra
ivosamente na gua, como se os braos, exaustos pelo trabalho da derrubada, precisas
sem de clera para ter ainda energias.
Pouco depois o sol rompia, amarelo como uma grande gema de ovo. A sua luz horizo
ntal doirava de sbito as cristas da brenha, doirava-as to expeditamente como se se
descerrasse o reposteiro dum palco j iluminado; e denunciava a flotilha de canoa
s, agora bem visveis, correndo umas atrs das outras sobre o Maici-Mirim, estreito
e cor de barro.
A montante, no cho da derrubada, j oculto pelas sucessivas curvas do rio, as rvores
ainda vivas, que s por mngua de tempo haviam escapado aos gumes dos machados, iam
captando nas suas franas os ecos das remadas, cada vez mais dbeis e longnquos. De
sbito, assustando a paz da manh em desenvolvimento, revoaram at elas brados de guer
ra, estridentes e selvticos, atravs dos quais a morte parecia tomar, antecipadamen
te, uma voz de frentica alegria; brados
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de triunfo, alternando com gritos de dor, to ago^d" to desesperados, como jamais o
s enormes troncos,sS| mesmo os muito velhos, tinham ouvido naquelasftHJj" does d
o Mundo. "^Saf
Mas em breve a manh florestal recuperaVEJ "y" verde silncio e at um soco, que almoar
a aosjpn" meiros fulgores do sol, veio modorrar, enquanto rfn^|| a digesto, sobre
um pequeno galho ribeirinho, apoda somente numa perna. i ujft,
* " aw
'. drfp ")ial
Quando, semanas depois, nos caules abatidos jiafcrt seiva coagulara e as suas cop
as, nuas de folhas,'ini|f tavam os esqueletos das figueiras no Inverno, algudpf d
os homens voltaram ali, tambm numa noite c&tref, lada. E enquanto uns despediam f
uriosamente os-ifegf' machados contra as rvores sobreviventes, comotoif quisesse
m vingar-se do suplemento de vida que UB" tinham concedido contra vontade, outro
s iam regata^ a querosene, esvaziando latas aps latas, tudo o rqpt' haviam prostr
ado durante a arremetida anterior., ffid^
Entretanto, de novo com a serapilheira s costoi; Amaro caminhava para o stio onde d
eixara, na !pR*> meira noite, as oferendas aos ndios destinadas. Aasg; lmpada pesqui
sou o terreno, examinou os troncos' ori" amarrara um cip; e a prpria luz, borbolete
andoi'fl" derredor, um pouco em doidivanas, parecia contend^ por terem desaparec
ido todos os objectos que ele hsat ali depositado. IBE
Afastou-se para cortar mais dois arbustos, que dep** nou e fincou na terra, como
fizera da outra vez. E sob<& eles e no cho, sua volta, disps os novos presente" q
ue trazia. Eram iguais aos primeiros, na missaB^* dos colares e braceletes, nos
espelhos e faces; somenA" os machados, grandes cunhas, haviam sido substitlt" dos
por pequenas caixas de fsforos. 'rl
^ Perto, as ltimas rvores condenadas principiavai" a cair, sobressaltando a no
ite. Mas o relgio no chefr
gara ainda s duas horas quando a floresta estremeceu pela derradeira vez com aque
les estrondos de ecos longos e pnicos.
Amaro colocara-se na parte superior da margem, a contar os homens que passavam n
a sua frente e desciam para as canoas, levando nas narinas o cheiro insistente d
e petrleo. Ouviu alguns deles embarcarem, meter os remos gua, afastando-se velozme
nte, obedientes s suas ordens. E s quando morreu de todo ao longe o discreto rudo q
ue faziam, ele comeou a riscar fsforos, para incendiar a derrubada. Em baixo ningum
o esperava. Entrou na canoa solitria e, com um cigarro olvidado no canto dos lbio
s, partiu tambm. Ia perto ainda quando viu os topes da brenha iluminarem-se com u
ma luz muito mais doirada do que a dessa manh traioeira que lhes sara ao caminho, q
uarenta e trs dias antes, e os delatara fatalmente. Voltou-se e verificou, satisf
eito, que o fogo cumpria, com impetuoso brio, a misso que ele lhe confiara. As ch
amas j se erguiam muito alto, por detrs do arvoredo que muralhava a curva do Maici
-Mirim; e o seu claro, como que levado por uma brisa que nenhuma pele sentia, amp
liava-se de instante a instante. J se distinguiam nitidamente os contornos dos ra
mos que na margem direita se debruavam, muito quedos e misteriosos, sobre a gu
a. Amaro aproximou a canoa da margem oposta, onde havia sombra, e continuou a re
mar. A remar com fora. Cada vez com mais fora, com mais fora cada vez.
II
[VRAM novos, magros e descascados, um ao lado do outro, os dois mastros. Unia-os
, ao meio, uma tira de pano branco, com grandes letras negras, onde se lia: "Mor
rer se necessrio for; matar, nunca!" Glocindo, que a amarrara, deslizava agora po
r um deles, sustendo-se apenas com o brao esquerdo, enquanto os
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'*
olhos procuravam na mo direita, arqueada no*" frente, a farpa que l se introduzira;
e fazia-o catS"' se se mirasse num espelho, indiferente a quem o vaZ? C em baixo
, o Dr. Joo Bonifcio, quarentaAnos morenos e de estatura me, fixava, de cabea. imjjn
nada para trs, a faixa estremecendo ao ventosa, contente pela sua iniciativa, ma
is uma vez penseh^g. "Ele gostar certamente desta homenagem". o ^
com a proa redonda, fundo chato e liso, rnaoeitA dos cascos das tartarugas, as o
bras mortas quase toBaa abertas dos lados, para maior frescura, o "Cuiab", .qua t
raria Rondon, j abandonara o rio e se apresentas^ vista. De marcha refreada subia
o igarap, aproando ao barranco, ali pertinho, onde se alinhavam o Dr. Jo$% Bonifc
io, alguns dos homens j seleccionados e Man^, Lobo, proprietrio do seringai Trs Cas
as, que se estais dia atrs deles, com seus lagos e sua brenha imeas^ at sombrias pr
ofundidades ainda por dominar. coj$ Subitamente, a tira de pano branco, que
de com^ ondulava apenas, muito de leve e silenciosa, como^lfs amealhasse foras, des
atara a estralejar entre os ma^b tros, com fria cada vez maior. Era um alarido sw
wfe nervoso, de multplices tons, ora parecendo bater p*J9, mas, a aplaudir a sua
prpria clera, ora a encarreiil, para o desespero, com finos e cortantes gemidos.
ufa, Joo Bonifcio tornou a erguer os seus grande%_ olhos negros. Os homens que
o ladeavam seguiam taaft^ bem, de mos atrs das costas, sem migalha de comei"; trio,
os movimentos da faixa, cada vez mais enfurecida^ e iam considerando que o tecid
o, se o vapor tardassfti em manobras, poderia rasgar-se antes mesmo de Rondon le
r a frase l pintada a sua frase clebre, brevirio de todos eles. e Esqueci-me de
mandar abrir-lhe uns furos =" disse Bonifcio, arvorando a sua responsabilidade
pep rante a mudez deliberada que o cercava. " ' Mas o "Cuiab"
procedia com tanta rapidez e con* fiana em si como se houvesse substitudo a quilha
longa e cega que lhe faltava por dois olhos vigilantes; no fundo do seu casco.
J Glocindo prendia no cepo da mangueira que secara e era to slido como os cabeos
dos cais de melhor reputao, o cabo que lhe haviam lanado da proa. J se viam tambm, ni
tidamente, numerosas figuras de bordo: umas debruadas na amura, muito quietas e t
ediosas, perante esse novo porto, semelhante a tantos mais que o vapor escalara;
outras cruzando-se, ao longo do convs, com um oficial de farda branca, que march
ava apressadamente em direco r, enquanto na sua ponte altaneira, junto do prtico e d
o marinheiro do leme, o capito do barco, tendo reconhecido Manuel Lobo, lhe fazia
de l um gesto amvel.
Todos quantos se encontravam na ribanceira, com os ps afundados no capim, havia
m imaginado ver Rondon mal o "Cuiab" se avizinhasse. V-lo ao lado do comandante, l
em cima, onde costumavam aparecer, nos momentos de chegada, os passageiros que s
e tinham por superiores aos outros, ou ento a acenar-Ihes da amurada e a ler na t
ira de pano, com um sorriso talvez lisonjeado, o comportamento que ele prprio est
abelecera e do qual, nesse dia desabrido, o vento tanto parecia discordar. M
as os olhos percorriam o barco de proa popa, voltavam a ir, tornavam a vir e, po
r muito que teimassem, no descobriam em parte alguma o general. A experincia do Dr
. Joo Bonifcio devaneou: "Justamente as pessoas importantes gostam de se demorar
nos seus camarotes quando os vapores chegam aos portos e elas calculam que m
uita gente as espera, para as homenagear".
Pela boca larga do portal, a prancha j saa, longa e escura. E foi ento que no convs d
a primeira classe surgiu algum vinculado ao objectivo que reunia, nessa tarde, aq
uele grupo de homens sobre um barranco do rio Madeira, uma escalavrada ingremida
de a que as guas, nos meses pluviosos, em que elas se mostram tanto mais famintas
quanto mais gordas andam, todos s anos devoravam um pouco. Era o etnlogo Curt Nim
uendaj, germnico de lena naturalizado brasileiro, de h muito trabalhando, como auxi
liar, no Servio de Proteco aos ndios, que saudava com um
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" s gesto da mo direita as gentes de terra, efujUiHt a esquerda sustinha a aba do
panam, muito''bwilite> que a ventania insistia em arrebatar-lhe. toSm
Vamos l, doutor...murmurou Mann"l[Ti^- roando o cotovelo pelo brao de Joo Bonifdojlff
Os guinchos, que abalavam o prprio baraa/t"fcp a sua fora estrepitosa, j haviam com
eado a ieptkr a carga dos pores quando os dois chegaram aais db Curt Nimuendaj, sorri
ntes e intrigados. , r>vafe
Vendo a pergunta que traziam nos rostos, torlttfe vel como se viesse escrita, ele
voltou-se, logo apfcfc cumprimentos, para a faixa que continuava a onddf l em cima
e disse: '"Tu
Vocs esperavam o Rondon, ? ltimay<|(S|| no pde vir. O governo encarregou-o duma dom
! urgente no Rio Grande do Sul. i onflfr
Largada a notcia, Nimuendaj calou-se. Mas*SHO adivinhar a insatisfao dos olhos que o
miravam,cdaii aquele silncio exigente, acrescentou: a^K*
Desde que director da Engenharia, no dJBB& tanto dele como quando era chefe das li
nhas telegrfinU
A voz calma do etnlogo parecia adensar (VtUFbiente de frustrao. r s* O
pena. Seria um exemplo moral para coB$t os mais excitveis...comentou Bonifcio, olh
ato ansioso por notcias da mulher, o saco do correif"JW Glocindo levava para terra.
'-f ***
Tambm eu sinto um grande desgosto por 'A no ter vindo afirmava Manuel Lobo, que
jatttti* consentira que de seus largos domnios sassem fepe* dies contra os Parintinti
ns e algumas tentativas^"" ciara para os civilizar sem luta, embora todas emuj?*
* um velho amigo e eu gostaria muito de ob"" aqui alguns dias. Conheci-o ainda e
le era cordefej* sempre me honrou com a sua estima, mesmo efQP de ser quem . '{^
Nimuendaj deixou extinguir-se aquele pequefiiBO lume de amor-prprio, que lucilava
ainda sobf(r)*** cinzas repentinamente criadas; e depois comun(r)1*?" num vago to
rn de conforto: "?' .
Trago uma carta dele para vocs todos. Ele pensa que talvez possa vir, mai
s tarde, ter connosco.
Manuel Lobo inquiria de si prprio porque o etnlogo no dissera aquilo antes, mas j Bo
nifcio perguntava, entre dois rebombos dos guinchos:
Veio o resto do material, claro ? E tambm os medicamentos que pedi ?
Nimuendaj apontou para baixo:
Tudo a, mas deu-me muito trabalho. Era uma lista enorme. Ainda na vspera da partid
a de Manaus, estive o dia inteiro no Servio de Proteco, para que nada faltasse. So
rriu, enfim :Tambm trago muitos presentes para voc, que manda sua senhora. Vm nas m
alas, logo lhe entrego. Dona Tarslia me procurou. Est bem, mas queria vir acompanh
ar voc. Eu lhe expliquei que uma senhora no pode ir connosco, mas no sei se a conve
nci. Ela lhe escreveu.
Nimuendaj tirou dum dos bolsos interiores do casaco dois sobrescritos, deu o mais
grosso a Bonifcio e tornou a guardar o outro.
Calvo, baixo, arredondado, com passinhos rpidos e curtos que pareciam aumentar e
condizer com a sua expresso jubilosa, o comandante acercava-se para ofertar algun
s momentos de lisonja a Manuel Lobo, rendoso carregador que era do "Cuiab". E enq
uanto conversavam, com Nimuendaj ao lado, Bonifcio afastou-se ligeiramente deles,
encostou-se amurada e abriu a carta. Eram queixas aps queixas, eram como as folha
s de xisto, umas em cima das outras, umas pesando sobre as outras, todas ligadas
, formando um s bloco:
"Quando ontem li, num jornal, que os Parintintins no estavam ainda civilizados po
rque so os ndios mais ferozes do Amazonas, fiquei como louca". "Tu no gostas de mim
; se gostasses no terias ido para a, terias ido para o Rio Branco, dirigir as faze
ndas do meu pai, e me levado contigo". "Antes de casarmos me disseste que havias
sado do exrcito, porque o teu feitio no se dava com os regulamentos militares e pe
nsavas de maneira diferente da de muitos oficiais, mas que ias continuar no Serv
io de Proteco aos
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ndios. Disseste que era um dever civilizar eles.^yjto.
deles homens iguais aos outros e que tinhas as no^y.
ideias de Rondon e se todos tivessem as mesmasiSejn"
as pessoas seriam melhores no futuro. Ento aqaflbjtai
pareceu bonito, mas tu no me falaste dos gratia"
perigos que ias passar e eu no sabia ainda qnp n>t
podia viver muito tempo sem ti". "Se demoras." XMfe
do que prometeste, you ter contigo. Se morreres, queck
morrer tambm". "Te parece, que esses selvagens, q^e
s sabem cortar as cabeas dos civilizados, mere^|
os sacrifcios que vais fazer por eles?" ;"l
Bonifcio conhecia as reaces de Tarslia, mirai
e caprichosa, quase vinte anos mais nova do quejdl^
e sentia-se ao mesmo tempo lisonjeado, enternecidBWI
inquieto. Filha nica de uma amaznida e de um *Mfl
tugus emigrado muito jovem para Manaus, ondp!OH(it'
seguira, laborioso e sovina, transformar num slilp
cofre de negociante o frgil ba de folha com'tyJE
desembarcara, ela recebera da me a gracilidad>a^
figura e era mais fiel ao sentimentalismo choramiflg^p
da Coimbra paterna do que as guas o so no Invi||
aos choupos fadistas do Mondego. "Tinha de respCI
der-lhe pelo primeiro vapor, se no ela era capaJS^fc
fazer alguma asneira. Ele com tantas saudades da>fllB
presena, mesmo das suas infantilidades carinhosas^lB
com tanta ansiedade e tanto desejo, e ela agota$W
dizer aquilo. Sabia perfeitamente que s a pax^g
decidira ao casamento que ela queria e ele procuriWJf
evitar, perante o grande desnvel das suas idades; saWH
a razo que o impelira para ali, mas era bem c^pp
que ainda poucas mulheres compreendiam inteiraffle^
os grandes compromissos morais dos homens, defwi
que no se relacionassem com elas prprias. Tintedg
escrever-lhe longamente, tinha de tentar convenc-l**"P
novo". E j o crebro lhe fabricava os argumente(r)^
opor-lhe, quando o comandante passou rente a d&&
lhe estendeu a mo, a despedir-se. Manuel LobfiB"l|
Nimuendaj esperavam-no.
Desembarcou com eles para o cho declivoso oll~m a prancha apoiava a sua extremida
de e se encontra^|
a bagagem do etnlogo, que o Glocindo comeava j a transportar. Mais alm, os guindaste
s iam descarregando fardos, caixas, barricas, outros volumes, com marcas industr
iais de belas cidades do Sul e de famosos pases estrangeiros, que recordados ali,
na terra cercada pela floresta indomada, dir-se-iam irreais, assombrosas urbes
de imaginao criadas compensadoramente em acres momentos de soledade. Os olhos de B
onifcio esbarraram em dois atados de chapas de zinco e logo os transferiram para
as horas perigosas, beira de outras guas mais estreitas e menos frequentadas; e,
sem o desejar, porque a ideia o molestava, ia associando o vulto da sua mulher s
imagens que entrevia num vasto e misterioso quadro, onde as manchas arbreas do fu
ndo quase anulavam a grcil figura que ele situava no primeiro plano.
Todos novatos ? perguntou-lhe Nimuendaj quando, enfim, se aproximaram dos homens
que continuavam enfileirados no tope da ribanceira.
Quase todos.
O etnlogo percorreu-os com um lento olhar de exame, mais sereno e tcnico do que o
dum militar.
Boa tarde. Esto passando bem, ? E foi ajuntando, sem deter o passo: Venham de a.
.. Trago uma carta do nosso general para ler a vocs.
No reconheceu nenhum dos que o haviam acompanhado durante a primeira incurso que f
izera, para estudo, nos territrios onde a morte, vermelha e nua, se escondia atrs
das rvores.
O Raimundo e o Crisstomo ?
Foram com o Amaro. Estamos espera de que voltem respondeu-lhe Bonifcio.
Esto atrasados ?
Sim, um pouco.
Nimuendaj sopesou, rapidamente, a hiptese que nesse momento encerrava aquele torn
de voz e no perguntou mais nada.
Por entre os cavalos e os bois que rapavam os talos de capim, em frente da casa
maioral, erguida na terra livre que se estendia desde o comeo do bar-
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rano at a orla da floresta prxima,- Manuel ijxftae apressou o seu andamento para ma
ndar abrir ataj^^
Nimuendaj caminhava ao lado de BonifciouBtoc apertando e largando, entre o indicador
e o pokgau,e o seu curto bigode, enquanto lhe ressoava ainda aqdBds resposta to s
umria. Era uma figura seca, de rdsto oblongo, pele terrosa de impaludado, cabelo n
egro,"a9rtt risca da banda esquerda e no lbio fino, cingido ana dentes como o dos
tuberculosos, esse ornato capil^e que ele estimava trazer sempre com recorte esme
$u85j|
A sua cor e a sua magreza haviam desagradados!^ Bonifcio, momentos antes, ao cump
riment-lo a bacante
Como foi voc de sade enquanto andou pcteitiSif perguntava agora. 'KIQV
No tive crises. Em Belm, consultei doi GqWH gas seus e eles me disseram que seria m
ais prudeflilp; no vir para aqui, mas como ia eu perder esta oportni|f nidade? Me
sinto bem. l;HiPf;
Manuel Lobo j se tinha libertado do chapmiB encontrava-se na varanda quando eles ch
egaram. ;<KV
Quadrilonga e vibrtil de luz, a sala exibia, etofrJ^ as trs janelas a nascente, du
as cabeas de veada embalsamadas e, na parede oposta, a todo o seu eoip|| primento
, numerosas flechas, cruzadas em formai*" X X X X. Guardava-as Manuel Lobo com
o lembrffllBf duma sua ousadia irrecompensada e tambm $W*l|f de sinais da boa sorte
que tivera nesses temerosos dUlm em que debalde procurara contactar amigavel
merig| com os Parintintins e eles, de entre as sombras % floresta, o atacaram e a
os homens que o acompanha^ vam. Uma grande oleografia do Sagrado CoraafiP Jesus, de
tons fortemente vermelhos, presidia ago^J sobre a porta do fundo, por iniciativ
a da esposa dtf seringalista, quelas recordaes de vitrias cinegtica" e de derrotas du
ma corajosa ideia de paz; e essa *SP a nica pea que Nimuendaj no tinha ainda visto w
Os homens que vinham escutar a leitura da cart* de Rondon j se apinhavam entrada
da sala. Varf*^ dos na tez como na estatura, brancos e pretos, bcfllpj:
zeos e mulatos, uma dezena de corpos entre os trinta e os cinquenta anos, quase
todos se retraam, sussurlando apenas as palavras, por se encontrarem nos aposento
s do senhor daquelas terras imensas, to misteriosas e to pouco habitadas que dir-s
e-iam mesmo sem dono. Manuel Lobo fez-lhes um sinal para se aproximarem e eles v
ieram situar-se perto da mesa, colocada ao centro, onde Nimuendaj, por detrs dela,
depois de haver pousado o panam, desdobrava a mensagem de que falara.
E certamente j a havia lido, mesmo estudado os efeitos que daquelas linhas manusc
ritas, desenhadas com firmeza, poderia desentranhar. A sua voz passou, rpida e em
pastada, sobre as saudaes que Rondon enviava e logo se ergueu nas frases de maior
aco sugestiva, que ele pronunciava com nfase e acentuava com gestos conjugados:
"Estou em esprito com vocs e ningum pode imaginar como lamento no estar em corpo tam
bm. Conto com a vossa coragem. Os ndios so nossos irmos, so mesmo os mais brasileiros
dos brasileiros. O nosso sangue veio da Europa e da frica, e comemos por ser estra
ngeiros, ao passo que o deles aqui se gerou e desenvolveu. Quando os portugueses
chegaram, j esta ptria, que parece sem fim, to grande , pertencia aos ndios, desde t
empos to remotos que ainda hoje no lhes podemos atribuir uma data certa".
Os homens estavam de olhos muito fixos no papel que Nimuendaj sustinha com as mos
completamente imveis, cor de cera e veias salientes, que nem de santo de madeira
num altar; mas adivinhava-se que eles iam vagueando, sob o impulso das palavras,
longe de ali, previvendo, incertos e fantasiosos, os dias que os aguardavam; el
es, todos eles, mesmo o Jarbas, o nico que deixava escorrer, pelos cantos dos lbio
s, um sorriso lento e ambguo.
"Tommos-lhes as terras, algumas vezes mesmo os brancos destruram-lhes as malocas,
por essas clareiras afora, nos recessos das selvas, onde criavam os filhos e con
fiavam ao sol uma vida isenta de ambies; e
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quando reagiam aos invasores, com suas flechas prinfe tivas, gentes sem compr
eenso respondiam-lhes "^fa balas de rifles. Chegou, porm, o momento de-imi clui
rmos a tarefa pacificadora, que inicimos htfe" ps, de acordo com o profundo sentido
humanqusilQi ( nosso povo. Devemos conclu-la sem sangue, antes cofe ' pacincia e
fraternidade, para que os ndios possa^ evoluir e beneficiar tambm da civilizao que e
xist"; agora no Mundo". , f gfot
Beneficiar da civilizao... Que civilizao? laMfcf retrica! disse subitamente Jarbas,
agitando ca*" bea e voltando-se para o Mariano, que estava si*,:,. banda. Desferid
o embora a meia voz, todos deram p>f comentrio, mesmo Nimuendaj, apesar de mais sfffo
ft, tado. E quase todos se entreolharam, surpresos e HMM% rogativos, que muitos d
eles ignoravam at o signik^rf da ltima palavra. tK^,
O etnlogo ergueu a vista, lanando-a sobre o ^imsife portuno, com uma condenao reprim
ida, mas ^Mi prosseguiu na leitura: .aoSlj
"Entre o algoz e a vtima sempre a vtima <ptt adquire autoridade moral. Eu conheo, p
or mina priM|| prio, a dificuldade que temos em subjugar o instME de conservao, que
o instinto supremo do hoiraa|P sobretudo quando h grande risco de morte. O mdia" m
ento de legtima defesa s pode ser dominado F^PSl fora de uma ideia, que ser tan
to mais podeBaI^l quanto mais nobre for. Se algum, de entre vs, n^*fl|[ julgar c
apaz de vencer as suas reaces instintiwMBI deve declar-lo antes de partir, sem se s
entir vexdM| nem se sentir cobarde, pois isso perfeitamente caMB preensvel e human
o, mesmo nos mais valentes. ^3" que estiverem dispostos a irem para morrer s
e.fJg necessrio e nunca para matar, eu direi que eles honraalf a nossa terra e to
da a Humanidade". if^**
Percebendo que a carta terminara, Jarbas insistSP* voltado agora para Honrio: *Jr
>;
Est bem, mas no h dvida que tem um potH** de retrica... t**P
Nimuendaj ia pronunciar ainda algumas frases p69#
soais, na esteira das de Rondon, mas de sbito dobrou a folha de papel que tinha n
as mos e, olhando friamente o seu pequeno auditrio, disse apenas:
Se algum no quiser ir, est a tempo de o declarar.
Foi ento que Honrio, um dos pretos, de corpo esguio e ondulante como os dos bons c
apoeiras, lhe perguntou:
No h mais nada ? No h ? E, parecendo-Ihe que Nimuendaj hesitava em responder-lhe, ac
rescentou com desenfado: Sobre esse negcio de a gente ir ou no ir, o doutor Bonifc
io j sabe tudo.
in
f OMIAM sempre com Manuel Lobo e a mulher, na sala que vizinha v o pequeno jardim
e onde, ao surgir da noite, entrava uma brisa fresca, grato complemento dos rep
astos, vinda das bandas do Lago Antnio.
Desde que desembarcara em Trs Casas, Nimuendaj tornara-se a figura principal. J no e
ra para Bonifcio, como sucedera at ali, mas quase sempre para ele, que o seringali
sta dirigia os olhos e a conversa quando se falava da pacificao dos Parintintins,
do transporte de cargas pesadas que ela exigia, to difcil e aventuroso ao longo de
guas e florestas de mil contingncias, ou do carcter dos populares que ftela iam pa
rticipar, muitos deles com reaces a desencadearem-se nas razes dos instintos, l onde
as alfaias da sociologia e da filosofia pouco haviam arroteado ainda. No ano an
terior, o dono de Trs Casas sugerira a etnlogo que os futuros pacificadores se inst
alassem ^s fundes do seu prprio seringai, assaltados pelos Mdios nos perodos estivais
, justamente quando o cho Se despia da sua capa de gua e os seringueiros careciam
de veredas sem estrepes, de grupos arbreos que no
L
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951
disparassem flechas, de passos livres de perigos ."Mn as suas vidas desprotegida
s e operosas. Mas, eiwJalM de aderir quela pretenso, Nimuendaj avanarai^m doze caboc
los, to destemidos como ele, para -BOBIL vasta e misteriosa, que as ameaas dos Par
intidIli interditavam aos extractores de borracha. E, por"sdh5S" e rios, dias aps
dias, nela procurara, para a sua-iapt misso, o stio que a ele prprio parecera maia
sfM Quando, enfim, regressara, com os braos lavrados ft arranhes e um olhar frio de t
riunfador que se dotmfc Manuel Lobo compreendeu, antes mesmo de Ihoiom" que o Posto
de Pacificao no ficaria nos seus tenrMl nos. Porque ele prprio havia levado a cabo,
temjp^ antes, uma faanha quase igual quela, conhecia bea o promontrio que o etnlogo e
legera. E sem resse^Hf mento admitiu que o mais importante seria, no fintaif con
tas, a pacificao dos ndios, permitindo assnfcS lida dos seringueiros isenta de risco
s e de interruptj" e no o lugar onde se efectuasse o ingresso dos sew*' gens na ci
vilizao. ^^
Agora, mesmo durante esses almoos e jantare&!<H| animavam a velha sala, Manuel Lob
o mostrava-sejif" vezes, preocupado, tanto como Nimuendaj e B|j| fcio, com a demora
dos homens que haviam ido et$| minar as rvores do local escolhido para o futuro acpj
B pamento. H trs semanas deviam estar de voKwS cada dia que passava, dilatado por
aquela expectatolB adensava as apreenses de todos eles. 33*"
Finalmente os homens chegaram, era uma sex"B -feira, ao decair da tarde. Quando,
prevenido por Q!" cindo, Bonifcio saltou da rede, onde alongara a se^J e correu
varanda, j Curt Nimuendaj e MaBEIf Lobo os interrogavam. Viu apenas trs: o CaroUneW
i Aristeu e, um pouco banda do grupo, o Genaro, <p| se apoiava a um dos esteios,
em volta do qual pass"" o brao. Antes mesmo de os cumprimentar, Bonf&Pl julgou con
firmado, pelos rostos deles, o pressentiraeflW que desde a semana anterior o mol
estava. ^**f
Os homens apertaram-lhe a mo com um ar aust^i que ele nunca descobrira na varieda
de das suas exprti|
soes, geralmente humildes, mas sempre tendendo para os gracejos e quedaram-se d
epois em silncio. Um silncio de irremedivel, a que Nimuendaj e Manuel Lobo aderiam t
ambm.
Mataram o Camargo e o Felcio disse, em seguida, o dono do seringai.
Bonifcio voltou-se para os homens, que tinham baixado os olhos, como se fosse j um
princpio de cumplicidade serem emissrios de ms novas, e perguntou-lhes em torn ans
ioso:
Quando ? Onde ?
Saiba seu doutor que foi quando ns vnhamos da derrubada, a primeira vez responde
u Caroline, sempre com ar digno e pesaroso. Os bichos estavam-nos esperando ma
is abaixo, escondidos no mato, beira do rio. De repente, ouvimos uma gritaria
danada, mas no se via ningum nas margens. Nem um s. S se via as flechas que eles jo
gavam de dentro das folhas e caam nossa volta. Seu Amaro, que pilotava a primeira
canoa, se voltava para ns e dizia, muito alto, para fugirmos depressa. Ns j amos re
mando como regato perseguido e ento remmos com mais fora ainda. No valia nada. As can
oas corriam, mas no valia nada, nada. As flechas continuavam a passar juntinho de
ns. Uma tocou o cabelo de Juvncio. Parecia mesmo que eles estavam espalhados por
toda a margem, como as rvores. Camargo soltou um grito medonho. Ia popa da segun
da canoa e vimos que o pobre caa gua, com uma flecha espetada no peito. Seu Amaro
voltou logo para trs na sua canoa e nos disse que segussemos, que ele ia salvar o
Camargo. Ns queramos ajudar ele, mas ele tornou a dizer que tnhamos de fugir, que e
ra uma ordem que dava e que nos matava se no respeitssemos aquela ordem. Ento fomos
esperar depois da curva do rio, onde parecia no haver Parintintins. Foi l que ouv
imos o grito do Felcio, que ia na canoa dele com o Juvncio, o Manga Verde e o Cava
lcanti. Seu Amaro demorou uns vinte minutos. Meteu a canoa debaixo duns ramos, n
a outra Margem, e ficou de tocaia, para ver se o Camargo
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'"l
* vinha ao de cima. Os ndios continuavam a goto* mas parecia que no tinham mais fl
echas. O Cananin no apareceu. Me disse o Manga Verde que Sfhrgfr. sangue tingir a
gua. Aquilo foi piranha... Quadi seu Amaro chegou junto de ns, trazia tambm ofea" c
heio de sangue e o Felcio no fundo da canoa/isb^ gemidos que nem quero pensar. Mo
rreu da a pouc*^
Isso foi de manh cedo ? interrompeu bnu camente Nimuendaj, com o rosto muito sever
o reofe voz condenatria. .'aafe
Foi ao amanhecer... - ^
Mas ento a que horas saram do limpo ? u* A resposta de Caroline entrecortou-se
de vacilpfc
enquanto os seus olhos, de novo baixos, pareciam- "BU minar o estado dos "sering
otes", velhos e enlamead^ que lhe protegiam os ps, o esquerdo com um bu&fe aberto
pela unha do dedo grande, que ali assomaMI como se quisesse evadir-se: f-<'^^
Bem... Seu Amaro pensou que se podia dd!" abaixo todos os paus naquela noite...
E fomos ficaijdp' um bocadinho mais... Depois se arrependeu... &ffa sempre a d
izer que o responsvel da morte dorM. margo e do Felcio. Mas ele no tem razo, no, ?%:
ecerto os Parintintins, quando ouviram o barulho dM rvores a irem ao cho, comearam l
ogo beirandwjB rio para ver onde era aquilo. No posso jurar, SWB como havia algu
ns ndios muito longe ainda da dWf rubada, com certeza nos iam atacar mesmo se tyrf
semos sado mais cedo. Mas seu Amaro no quer satap de nada. Aqui o Aristeu at viu el
e chorar. Ns afW cevamos que a flecha que feriu ele no brao tivesili veneno e ele d
izia que ficaria contente se ela tiveiP
l (%
veneno mesmo... 'tflP1
Meses antes, nas vsperas da sua ida capipP Nimuendaj, de relgio em cima da mesa e lp
* esboar o mapa de Maici-Mirim, instrura Amaro, GOT** uma preciso de oficial do Est
ado-Maior teuton^"* sobre a maneira como devia agir para que os hoi"0** se encon
trassem j distantes da mata violada quaflW o sol rompesse; e s pelo desejo de no des
autoflJ*W|
perante os subordinados, o subchefe desobediente, ele refreava agora o seu colric
o desacordo.
Ao menos voltaram l, como se combinara ? perguntou com um misto de dvida e de desp
rezo.
Voltmos. Cortmos os paus que tinham ficado e botmos fogo.
E ele ps l os brindes ?
Caroline entreviu o caminho para onde se dirigia a pergunta e, com um sorriso de
quem d, enfim, boas novas, procurou amaciar a severidade do etnlogo:
Sim, senhor. E quando fomos da segunda vez, j no estavam l. Voltou-se para Bonifcio
e Manuel Lobo, como se quisesse tambm sosseg-los: Os ndios tinham levado tudo. Se
u Amaro deixou outros brindes.
Dir-se-ia ser a mo esquerda de Nimuendaj, ao coar de leve o bigode, que lhe comanda
va o desenrolar do pensamento, por detrs dos olhos subitamente parados. Encarou a
Aristeu, depois a Genaro, o nico que aparentava, com os movimentos nervosos do s
eu brao em volta do esteio, uma impacincia reprimida:
Agora vo descansar uns dias. Voc, Genaro, quer ir ver a sua gente, ? Pode ir.
A sua canoa est l onde a deixou. Bia bem, ainda ontem a vi. Mas se quiser ir numa d
as minhas, mais pequena, v ofereceu Manuel Lobo, num torn amistoso, quase patern
al, com que nunca o tratara.
Genaro agradeceu respeitosamente, um pouco trmulo e apressado, dir-se-ia que romp
endo os liames duma secreta timidez, mas j o etnlogo, sobressaltado pela lembrana r
epentina, cobria com a sua voz as palavras dele:
E os outros ?
Ficaram com seu Amaro, nos Muras tranquilizou-o Caroline.
No domingo, o caboclo aproou a sua canoa ao barranco de Trs Casas, amarrou-a, sub
iu terra capinada
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'4
e atrs de Glocindo foi percorrendo a varan&i^fc Manuel Lobo, aps haver ejaculado a
saliva prodaiaS pelo baependi que mascava. JreS
Ao entrar na sala, deu com Nimuendaj e Bonifjttjft sentados grande mesa, um volta
do para o outro;^" conversa pegada, enquanto o fumo dos cigarros sj0ffl| ralava po
r cima das suas cabeas, preguioso e aulalSf
Sorriu-lhes afavelmente, como a relaes atafe^lj muito, inclinou-se e saudou-os, sem
pre com um SQBft| prdigo, sem nunca retirar as mos de trs das coswijjf onde segurava
o chapu de carnaba. Olhou, depoSI as flechas cruzadas na parede, olhou o Sagrado
Coigtfl de Jesus, novamente as setas, perante as quaisi &H vezes baixou e ergueu a
cabea, como se aprovasJ|iH| presena delas ali, como se aprovasse isso ou 6WB coisa
mais secreta s ele saberia o qu. >- ^a*ll
Por fim, brnzeo e atarracado, vivendo pelos ^WV quenta afora, acercou-se da mesa.
O seu sorriso,rjj|| sorriso chinesa, permanente e optimista, era cowlR gioso. A
Bonifcio pareceu-lhe uma dessas simpa^J que florescem em poucos minutos e o prprio
NimWHrdaj se mostrou rapidamente de bom humor: * '^K.
Precisamos de dois homens para irem conno|SB| ao rio Maici-Mirim e o senhor Manu
el Lobo disse^lB que voc era um valente... ^JK
Encostando-se cabeceira da mesa, o caboclo st$jflf| cerrou os olhos luzentes de m
aliciosidade e, baixai! a voz, como para uma confidncia, retorquiu: ' '*|
Isso so lorotas de seu Lobo... Ele no AMI gostar de ningum sem meter logo calnia. No
iSw valente, no si. Tenho medo de muita coisa. Do cl^| pira, da iara que se escon
de na gua e nem qtt^jR falar da boina quando estou pescando e da surucuCjt quando
caminho no mato... E at de minha mulMf tenho medo, quando ela se zanga... Fez uma
p***"* sorridente e ajuntou: pra ir os Parintintins, ne ? Quanto tempo se leva?
''*
Conforme as coisas correrem explicou-lhe N* muendaj. Podem ser uns dois meses, p
ara levaf * carga, construir o posto e voltar; mas tambm pocfw
ser quatro ou cinco, ou mais, se for preciso que voc fique l. Est compreendendo bem
, ?
E que you fazer eu ?
Remar e, se tiver jeito, ajudar a fazer dois barraces.
O caboclo lanou nova mirada aos grandes X X X X que as flechas formavam, piscou o
olho esquerdo a Bonifcio, o direito a Nimuendaj e, sempre a sorrir, quis saber:
Quanto se ganha ?
Nimuendaj hesitou um momento, pronunciou depois a remunerao decidida em Manaus para
tais servios; e, pela primeira vez, a sua voz pareceu a Bonifcio ligeiramente tmid
a, como se temesse oferecer pouco; mas o caboclo aceitou logo:
No est mal. Mesmo que sejam s dois meses, chega pr baile. E contou que outro cabocl
o, o Leovegildo, seu compadre de fogueira de S. Joo, que morava no Crato, d
era no ano anterior um grande forr. Havia l muita caboclada, muito seringueiro,
muita dona e cunhat, havia, si si. E tambm muita cachaa. Mas Leovegildo, um vai
doso, pusera-se a dizer que baile assim supimpa nunca se vira no Madeira, nem n
unca mais se veria, porque ningum tinha coragem de dar um igual. Ele ento comeara a
contar as pessoas. Eram cinquenta e trs: trinta e sete homens, dezasseis mulhere
s. "Pois eu, compadre, lhe digo que ainda se h-de ver outro mais bom do que este.
Um baile de duzentas pernas. E h-de ser no meu terreiro. Sim, compadre, um forr c
om cem pessoas no meu terreiro". Leovegildo no quisera acreditar, os outros caboc
los duvidaram tambm. Onde ia arranjar dinheiro Para tanta cachaa? No dia seguinte,
arrependera-se de haver jurado aquilo. Jurara porque bebera uns porres a mais e
tambm porque estava reparando muito numa cabocla ali sentada, que lhe fazia, sem
a mulher dele ver, uns olhinhos redondos de maracan. Mas o que dissera estava di
to e havia de cumprir. No podia esquecer a mangao de Leovegildo, aquele sorrisinho
de desprezo com que respondera, olhando-lhe os ps:
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"Duzentas pernas, compadre? S se contar com af fljm suas galinhas". Desde essa no
ite, parecia-lhe qu 3a vegildo lhe fizera mandingarias, para que ele ardesse no infe
rno por ter jurado em vo. Nunca mais areqJB" um peixe-boi. Batia os lagos, olhava
para a cananm horas e horas a fio, a ver se a mexiam por baixo^TBi levinho estrem
ecimento que fosse e nada. Comete pirarucus tivera mais sorte. Mas dos grandes,
desj de que se podem tirar muitas mantas, sec-las- bafe secas no girau, comer umas
, vender as outras, flftt pegara nenhum. Havia, claro, anos assim de ittr tura, an
os de caiporice, todos os caboclos o sabigi mas ele tinha pressa de realizar o ba
ile. -o$P
Nimuendaj aprestava-se para lhe dirigir as ptt vras graves que havia escolhido, ess
as de que depM| diam todos os engajamentos feitos ali, quando--e" parecendo refle
ctir, tornou: 'l^w
verdade o que me disse o Glocindo ? M| dade que no se pode levar cachaa ? f(^Sm-
O rosto do etnlogo fechou-se, mas Bonifcio G" tinuava a sorrir e o caboclo voltou-
se para ele: >iOB
Nem um porrinho ? Sem cachaa no pode luMft, homem valente... **4|
At chegarmos taba dos Muras-Piras ha'BH| um porre de manh disse Nimuendaj, friameiMB
Quedou-se um instante de olhos no cho, p6flB| tivo, enquanto punha distraidamente
sobre a extraia" dade da mesa o largo carnaba, como se abafasse"" com ele, as sua
s ltimas hesitaes: '^flf
Nimuendaj perdera a satisfao inicial: l1S3Jf
Voc sabe que no se pode atirar aos fad^jlj Que no se pode mat-los em nenhuma circuns
tnd^B
O caboclo tornou a sorrir, um sorriso irnico, C$B! prido, que deixava ver a sua b
oca de raros dentij" enegrecidos pelo tabaco que mascava: ' jfe
Matar pra qu ? No se come carne de ndirf^E E, se se comesse, eu c no queria; no gosto
de cafflR de macaco, que mole e doce e se diz que iguaMB do homem... -'"B
A hiptese de sempre, que vivia enroscada, como ofdio venenoso, no esprito de todos
os habitantes daquelas redondezas, esgueirou-se da conscincia de Bonifcio para a l
uz do dia:
com certeza voc j pensou em tudo. J pensou que pode no voltar...
J tinha pensado, sim, senhor, viu-se logo pela maneira desatada como riu e a segu
rana com que falou depois:
Meu filho est um homem. capenga, tem aquele defeito, mas bom pescador. Pode suste
ntar a me. Mas agora no se fala nisso, no. Ento o seu doutor no tem esperana de voltar
? Tem esperana, tem. No tendo, no ia l. Eu tambm tenho. Mas para se ter muita esper
ana que se devia beber todos os dias um bocadinho de cachaa...
Bonifcio interrogou-o sobre a sade, deu-lhe uma apalpadela ao pulso, uma auscultad
ela ao peito, e o seu bom estado parecia to evidente que Nimuendaj, de caderno abe
rto sobre a mesa e lpis entre os dedos, no esperou mesmo pela sentena do mdico:
Como se chama ?
Me chamo Eleutrio... Eleutrio de Campos, seu servidor.
Nimuendaj anotou-lhe a identidade, gratificou-o com um dos seus vagos sorrisos e
apertou-lhe a mo:
Ser daqui a uns dez dias... Mandaremos preveni-lo antes.
Eleutrio despediu-se tambm de Bonifcio e atravessou a sala, muito ledo e despachado
, a balancear o chapu, que segurava pela grande aba. Ia j porta, quando Nimuendaj l
he gritou:
Diga ao Glocindo que mande entrar o outro. Viram o outro aparecer ao lado de
Jarbas, que
vinha falando com ele, instruindo-o talvez, mas logo o abandonava, em frente da
porta. Era alto, trigueiro e magro, o rosto taciturno, os olhos torturados, os p
assos com vagarosidade de espectro; dir-se-ia que um desespero reprimido entrava
na sala onde ressoava ainda, amavelmente, um enxame de reaces
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optimistas. E agora o homem parava, muito hiiftn^ seno. **T&>
e(r)
"uflto,
bom dia... ''"fimfce Nimuendaj sorriu-lhe ambiguamente. E, ida"si$a
sobre as energias de corpo to desprovido de cafUgo olhou com estranheza, de alto a
baixo, antes decaem" aquela figura de anacorticas sugestes: U "
Soubemos, pelo Jarbas, que voc est dispo^u a ir connosco... t)(4j|b
O homem inclinou a cabea de modo anrmativeio depois desviou-se para o ngulo da mes
a, furtaradotfll^ luz duma janela que lhe incendiava os olhos, 'sitia
Tem boa sade ? ot?
Sim, senhor. {>4^
O Jarbas disse-nos tambm que voc sabe algumjif coisa de carpinteiro... Precisamos
disso. Mas precria' ms ainda mais de voc para remar durante vrinlfc dias. Sente-se c
om foras ? '>q#f,
Sinto. O Jarbas me explicou tudo. aofP
O senhor doutor vai examinar voc... > $jl Ao ouvido do mdico o corao do homem respaii
deu excelentemente. $/m
Melhor do que um relgio suo informou nifco, dobrando em quatro a toalha que uti
lizM" durante a auscultao. J teve disenteria? '' MuK
No senhor. a^m
Febres ? nB
Tambm no. Apenas constipaes. jl^S Nimuendaj tornava a encarar o homem: ' w
Sabe que, se formos atacados pelos ndios, poderemos defender-nos pela inteligncia
e nunca pf^tij, violncia ? fa^B
Est compreendendo bem o que lhe digo, 4"r
Perfeitamente. JBJt Era demasiado sbrio. Aquela conciso, duma ^Sllk
meza que dir-se-ia mecnica, nada respeitosa, mal d!3| punha o etnlogo. Para atingir
, no seu mago, a verd2rtf|| desse homem to sombrio, parecia-lhe ser necesslgK perder
muito tempo e desgastar muito os nervos, p^^l
ela, como os troncos duros dos ciprestes, se escondia num capote j spero por si prp
rio.
Ao recomend-lo, Jarbas dissera a Bonifcio que se tratava dum sujeito com cara de p
oucos amigos, mas inteligente, corajoso e sabedor de sete ofcios. Haviam trabalha
do os dois em Pdua, na borracha. No gostavam, porm, daquilo e um dia tinham abalado
para Humait, onde ele principiara a viver como um faz-tudo, j que nas cidades, me
smo assim pequenitas, se podem arranjar biscatos, o que no acontecia nos seringai
s. E Jarbas oferecera-se para lhe ir falar. Agora Bonifcio olhava Nimuendaj, segui
a o lpis que a mo dele ia rolando distraidamente sobre a mesa e compreendia o seu
pensamento e o mau humor que na cara estadeava. Gente no faltava. Por que aturar
aquele tipo ?
Bonifcio precedera Nimuendaj em Trs Casas, para seleccionar os homens que deviam co
mpletar a turma expedicionria, escolhendo-os no somente pelo estado fsico, mas tambm
, tanto quanto possvel, pelo seu comportamento psquico ante os perigos que ele, em
vez de lhes ocultar, lhes expunha com larga probidade. O recrutamento havia sid
o fcil, quase uma inscrio de voluntrios e Nimuendaj sabia-o. A pacificao dos Parinti
ins, essa ideia que possua um sabor a inverosmil desde o tempo das mtuas expedies vin
gativas, sempre rematadas a sangue, excitara ainda mais o povo local, a sua fant
asia, a sua curiosidade e um intento secreto, nunca raciocinado at ali, quando se
soubera que os novos expedicionrios no poderiam matar ningum. Velhos caboclos das
beiras dos rios, dos igaraps e dos lagos, sem outras ambies que viverem em paz a su
a vida humilde, de hbitos to sedentrios como as rvores que se erguiam atrs e aos lado
s das barracas onde habitavam, tinham ido de alma aberta pedir a Bonifcio que os
contratasse. E quando, vista da idade deles, o mdico os recusava, quedavam-se de
olhos baixos, perturbados, pronunciando frases tmidas, mais espacejadas ainda pel
as reticncias do que antes. Confuso desejo de se trans-
g6o
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cenderem, um momento que fosse, mesmo s por jgk teno, vontade de ultrapassarem a lu
ta diria de eaa, renses e maranhenses na mata brava, de que eles eram testemunhas
desde a infncia, os impeliam; e a ceita^i de serem ainda vigorosos para meter di
reito aos perigej rompendo a monotonia quotidiana das suas pobci" vidas, produzia
-lhes, com um fervor de coragem, ,uat sentimento de superao. De Trs Casas, de Popun
ha4l de Pdua e de Paraso vinham tambm ofertas sd" seringueiros, algumas chanceladas
at pelos donos lesg, ss tremendas florestas, ansiosos de porem fim s ameae as que em
peciam fortemente a explorao da borracfaj por tantas mos de prias colhida nas veredas
i 3jb" silncios estarrecidos. ij^
Enervado, Nimuendaj decidiu insistir, uma ltianJ vez, com o homem que parecia disp
or de menos palp* f vras do que frutos ostentava o jenipapeiro que JftJj divisava
dali: a^A*
O Jarbas disse ao doutor Bonifcio que l MN& centro de Pdua, onde voc foi seringueiro
, os Parian? tintins haviam ido muitas vezes. Ento se encontras^, alguns na sua e
strada e eles o flechassem, voc tit^ lhes atirava? ^Hll
Atirava. >;>JW
Um silncio caiu. E a palavra quedou isolada TOif meio dele, firme, honesta e fria
como uma pedra. S9
Portanto, se voc fosse connosco... Era BafdsJ fcio que intervinha, sem convico. ti
A
Antes de responder, o homem pareceu consultaiMnl a si mesmo; e depois declarou co
m a mesma decis^,,; de h pouco: >$*!**
No atirava. Na estrada da seringa no seriaiJi< mesma coisa, no. Na estrada eu atira
va, porque-iip sozinho. Mas indo com outros e sabendo que no %&< deve atirar, no a
tiro. "4
O Jarbas disse que voc no gostava de vivei1 l... Era com medo dos Parintintins ? >
^
Dir-se-ia que o homem se descerrava, finalment$N gastando um pouco das suas econ
omias verbais, P3*^ que no o julgassem mal: >tii||
certo que ali nunca se anda vontade, o senhor sabe. A princpio nos custa; depoi
s a gente se habitua. Temos sempre a esperana de no encontrar os ndios. E se imagin
amos que um dia podemos encontrar eles, pensamos logo que um homem um homem e qu
e mais cedo ou mais tarde havemos de morrer. Algum medo eu tinha; mas foi mais p
or outra coisa que eu quis sair de l. que no gosto de fazer sempre o mesmo. No sou
anta para andar todos os dias pelo mesmo caminho, como os seringueiros so obrigad
os a fazer. E tambm no gosto de estar muito tempo na mesma terra. Gosto de mudar..
.
Fixou Nimuendaj, atentamente, perscrutantemente, como se o exame se invertesse e
ele quisesse adivinhar, naquele novo silncio que se prolongava, as intenes ou as su
speitas do etnlogo:
Sa de l, mas no fiquei a dever nada ao patro. Nem eu, nem o Jarbas. Ns no fugimos, no
ei se o senhor sabe.
S movimentava a boca. O corpo continuava hirto, com os braos sempre cados e as mos f
echadas.
Foi l, na borracha, que ouvi essa histria do general Rondon querer civilizar os ndi
os. Contou-a o Boaventura Freire, aquele portugus que vive em Pdua e andou na expe
dio com o senhor, o ano passado, quando foi escolher o lugar onde devia ficar o Po
sto. Depois, em Humait, li um artigo numa revista e pensei que estava bem o que o
general queria.
Ento voc sabe ler ?
Dir-se-ia que a pergunta de Bonifcio deixava, atrs do som, um rasto de simpatia.
Sei alguma coisa.
Apesar da quietude ponderativa que os seus olhos mantinham, a cara de Nimuendaj p
areceu tambm mais cordial.
Precisa de voltar a Humait ?
- Preciso, mas na quarta-feira j posso estar
aqui.
Nimuendaj tomou-lhe o nome Moacir de Sousa, trinta e oito anos, pernambucano de
Limoeiro e ele
SI Vol in
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
963
saiu lentamente como entrara, depois de agradece^ terem-no engajado. >ffife?
A verdade que todo o animal tem medo,'|ijj o medo a primeira arma de defesa do in
divdtftf-i disse o etnlogo, displicentemente, ao v-lo desaparftf na varanda. A prpri
coragem um recurso de {ttj| o medo se serve nos momentos mais perigosos. O ip suc
ede que uns conseguem sublimar o medo e outtffl| no. f" o
Ser s isso ? Vi coisas extraordinrias quanO andava com Rondon. H uma coragem natura
l, fj| certas reaces que so logo corajosas, sobretudo tSt, pessoas rudes. < > t *-
H admitiu Nimuendaj, levantando-se. "iSJtf Talvez se produzam com rapidez porque
partem;"<|| medo inerme no subconsciente de cada qual ou dtiljllfj velha clera abaf
ada. De todas as maneiras, eu pen&jf que o melhor purgante para o medo servir-se
tBStfitf causa em que se acredite. !f*^if
"Sb
IV
T-l '*!
j agora iam ali, h j dias que iam por ali, catetfff
homens nos bateles, com o material trai* pelo "Cuiab", e trs na pequena montaria, dia
nteil^P, para denunciarem os baixios que se formavam de um ano a outro e os tron
cos vogando nas curvas apertadas, meio imersos como torpedos. ""
Avanavam lentamente e todos de peito nu, a bobulhar suor, cantavam enquanto iam re
mando. Sentado popa do primeiro dos bateles, atrs de CaroliflS* e de Mariano, a ca
na do timo sob o brao, a cabe* olhando sempre em frente, Nimuendaj dir-se-ia morto n
o seu posto se no fosse o leve movimento que de quando em quando impunha ao leme.
No segundo batelo, que Bonifcio pilotava, taifr1 bem Filipe, Tanajara e Antnio Roch
a, com a part**
cipao hesitante de Eleutrio, faziam subir uma cantiga para aquela nesga de cu, aque
la estrada azul que reproduzia as sinuosidades do rio por cima do arvoredo, alto
e cerrado, que muralhava as margens. S Dorival e Moacir continuavam de rostos fe
chados, como que atentos apenas s mos que moviam os remos, fortes e sincrnic
as. Era uma cano do Sul, dolente, nostlgica, das muitas que a alma popular cele
brara, com taperas j sem donos, colinas de onde o amor partira, a lua criando, no
s longos chapades, sombras, poesia e feitios. Ao ritmo decadente, infiltrando-se c
omo um perfume venenoso, Bonifcio divisava com mais nitidez as cenas ficadas para
trs, j longe, na vida de outros dias, do que o mundo aqutico que se ia desdobr
ando, vagaroso e montono, diante dos seus olhos. E, de sbito, veio-lhe o mpeto d
e gritar aos homens que se calassem. Parecia-lhe ouvir de novo Tarslia, no dia do
seu aniversrio, depois de ele plantar a roseira comemorativa: "No sei, meu bem, s
e terei coragem de olhar para ela, quando andares por l". Ele tentava furtar-se qu
ela imagem, mas a obsesso voltava, procurando um apoio: "Ela sabia que tam
bm Nimuendaj deixara a mulher em Belm e que Rondon, que amava doidamente a sua, pas
sava meses e meses sem a ver, porque a viagem desde as selvas de Mato Grosso ao
Rio de Janeiro demorava muitas semanas. E mesmo ali, nos bateles, alguns trip
ulantes eram igualmente casados. A mulher do Eleutrio chorava na varanda, ao lado
da de Manuel Lobo, quando eles tinham partido de Trs Casas. Como podia ele quere
r que os homens deixassem de ludibriar o seu esforo, cantando, se dentro de algun
s dias teriam de remar calados, recorrendo ao silncio como a uma couraa que lhes d
efendesse o peito, j no pelo sentimento dele, mas pela vida de todos eles ? Talvez
no houvesse sido suficientemente persuasivo quando respondera carta de Tarslia. D
evia ter insistido mais. Havia alguma crueldade naquilo, era claro, ainda maior
para ele prPrio do que para ela. Mas todas as ideias que exigiram sacrifcios tinha
m sido uma autocrueldade. E ele no
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'"<
ia por um dever militar, como ela e at Manuel turn* pareciam entender; ele ia ali
por uma ideia. AmMJi* estava certamente no seu temperamento, pois muito vezes l
he parecera at que j havia sentido obsct|| mente algumas das doutrinas de Rondou, an
tes mefeijj| de o conhecer". f^
Tripulada por Genaro, o carpinteiro Maximianl^ Etelvino, a montaria pesquisadora
ora se sumia rial voltas do Maici, ora surgia, esbelta e gil, no cdxi| da corrente
, para logo beirar e se deter sombra 'doe grandes ramos que escondiam na gua as v
erdes extnp. midades. E s quando de seu bordo anunciaram o veHL cedro, que descia,
num desamparo de vagabundo/Ai, nova curva do Maici, os homens deixaram de canta
ta! Tanajara contemplou a rvore morta, admitiu viesse da terra dos Parintin
tins, passando de rio pMp rio, ao sabor das confluncias; e uma sensao de ldlj| peito
supersticioso e de fraternidade longnqua criav^g -lhe, simultaneamente, ternura
e mal-estar, ligados*^*! raa de que ele mesmo provinha, selvagem h poufcdlP sculos
ainda. "Mt
Tambm no batelo de Nimuendaj as candwl haviam cessado. Os homens contavam
histrias ;$B Manicor e Porto Velho, orlando-as de comentridIK enquanto remavam.
Histrias iniciadas por Filipe, tetm cs aventurosos que no tinham acontecido, triunl3
||| distantes, ingnuas mentiras. Mas alguns acabaVawl sempre voltando aos
afloramentos da razo que OTf levava por ali, esfalfadamente, h longos dias. Ja
rtw" lembrava-se do Madeira, com a sua amplido qualr a desafiar a do Amazonas,
e sentia-se sufocado ff estreitura do Maici, pouco mais largo do que uma rdi? po
uco mais do que a Avenida de Nazar, entre daSB filas de mangueiras, que ele percor
ria diariamente a$ ir e voltar da fbrica, quando trabalhava em Belffl antes da grev
e, h quanto tempo j! ''
E que vantagens podem trazer, afinal, toda esttf nossa canseira e todos os perig
os que vamos correr1. Era com Aristeu que ele dialogava, com Aristetf sentado j
unto do outro bordo, sobre o mesmo banct
0 da frente. No digo vantagens para ns, digo para os ndios, claro. H quem pense que
no vo ganhar nada com isso. Outros julgam que eles so uma vergonha para a civilizao,
estes daqui e os que vivem l para a sia e para a Oceania e tambm cortam cabeas huma
nas.
Onde isso ?
Isso o qu ?
Bem... A Oceania...
Jarbas respondeu modestamente, em poucas palavras, como se no quisesse humilhar o
companheiro ou no tivesse importncia alguma saber aquilo. Logo tornou:
Um homem que eu conheci h tempos, na cidade, me disse: Pode ser que seja uma verg
onha para a tal civilizao, no estou fora disso. Mas que benefcios tero eles em ser ci
vilizados agora? Talvez os ndios no sejam mais felizes do que ns, pode ser, mas com
certeza mais infelizes tambm no so. Andam acostumados quela vida, como ns andamos no
ssa. Trabalhar verdadeiramente, como ns, no trabalham. Acertar com a flecha
num bicho no trabalho, uma satisfao. Tambm no precisam de dinheiro para muit
coisas de que ns precisamos, nem eles precisam dessas coisas. E mulheres no lhes
faltam.
Honrio e Tito Boludo, que remavam no banco de trs, riram alto.
Quando chegarmos l eu quero que seu Curt me deixe ter pelo menos trs... E depois e
les podem espetar a minha cabea num pau e danar volta dela, junto da fogueira, com
o se fosse um churrasco, que j no me importa mais nada... chasqueou Honrio, perant
e o novo riso grosso de Tito Boludo, que lhe retrucava:
Trs ? No falta vaidade a voc, no. Para mim me chega uma de manh, outra tarde e outra
noite, fiias nunca a mesma.
Parecia que Jarbas no os tinha ouvido.
O homem me disse: Se os civilizamos agora, que temos depois para dar a eles? Cor
tar seringa? J se
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'<(
sabe o que ser seringueiro. Vender sorvete ein jjL naus? Lev-los para as fbricas, l
na cidade, inS balhar o dia inteiro e met-los no xadrez se anJK com protestos duran
te as greves ? Nas malocas;, |3| a caa e a pesca, sustentam os filhos. E na cidaj
3| s vezes, alguns dos que l vivem, no tm s^pln uma colher de farinha para os curumi
ns. Na siaVZ mesmo. Na Oceania o mesmo. jjJL
Alinhavam-se perto um do outro, Jarbas e Aristeji pois que o banco dianteiro, pre
gado onde o baijslIHB j estreitava para formar a proa, era o mais ctutpgjjffll to
dos e as pernas deles quase se tocavam. Mas Aris^" deixara de intervir. Porque Ja
rbas falava alto, pOtS vencer os murmulhos da gua ferida pelos remos, e3| temia q
ue Nimuendaj o ouvisse l na popa e, S"! ouvisse, ficasse de mau humor com ele tambm.
1HJK Boludo, que ia da outra banda, justamente atr&iriflB Aristeu, tossiu e pergu
ntou com voz desfrutante; olR
Ento o tal homem no queria mesmo que-jjH ndios fossem civilizados ? '->J^P
Queria... Mas quando j houvesse farinha e j ao para todos. Aqui e no Mundo inteir
o. Dizia, que s devia ser quando a civilizao j estivesse taUfl bem civilizada. Voc es
t compreendendo ? '^9
Tito Boluto repetiu a sua tosse chocarreira: e3B
No tava mau, no. Mas os Parintintins tinhsuijl muito que esperar. Quando vai chega
r isso ? jhm,
Ento, pela primeira vez, pareceu que Jarbas, a" a afectando discorrer por conta al
heia, perdia a pilfifc tagem de si prprio e de repente se inclua nas patef vras qu
e articulava: fQ{
Um dia vir... E mais depressa talvez do qt(S| se julga. Algumas pessoas daqui se
riem disto, porq<t nunca viveram nas cidades. Jarbas voltou a cabed? lanando um o
lhar para o encerado que protegia * carga, alto ao centro, rugoso dos lados, min
iatura w serra escura e pelada; um olhar de carinho, acompflfl nhado de ligeiro
sorriso de meiguice, tudo to inexplicvel e absurdo, que Tito Boludo admitiu, por a
lguns segundos, estar ali algum escondido, sem conhecimeow
^gle Quase todas as coisas que levamos aqui e no batelo do doutor Bonifcio foram
feitas, no sei se voc sabe, em fbricas de S. Paulo, do Rio e de Belm. At da Europa! E
, quase todos os homens que l as fizeram, pensam que esse dia no h-de demorar muito
. No quero contrariar voc, mas talvez no tenha estado ainda numa fbrica. J esteve?
O silncio de Tito Boludo negava, Jarbas compreendeu-o e insistiu:
Muita gente supe que l s se aprendem ofcios e se trabalha, mas no assim. Isso era ant
igamente. Hoje aprendemos nas fbricas, com os camaradas, muitas outras coisas que
interessam a todos os homens. Se fica a conhecer melhor o que a nossa vida...
Tito, Honrio e Aristeu continuavam na sua mudez, enquanto iam viajando longe dali
, onde tudo lhes era desconhecido, tudo era turvo, por vezes mesmo informe; onde
s os guiavam as fotografias encontradas, em jornais e revistas, de grandes mquina
s que a sua imaginao punha agora em movimento e de altas chamins cujo fumo parado c
omeava repentinamente a animar-se, a formar novos anis, a subir mais e a estender-
se devagar por todo o horizonte, como sob a aco mgica^ dum paj.
verdade que h coisas em que eu no penso como aquele homem disse ainda Jarbas, co
m seu qu de tardio, como se houvesse estado espera de que a vaga regressasse dent
ro dele mesmo.
Ento que que voc pensa ?
Era Honrio quem o interrogava, mas ele escusou-se :
Estou cansado. Remar e ir falando alto ao mesmo tempo mais cansativo do que faze
r um discurso. Me desculpe. Falamos depois com mais tempo, est bem?
Os bateles, sempre tardinheiros, navegavam agora em arco, ladeando as duas novas
curvas do rio, uma logo a seguir outra, a segunda menos saliente do que a primei
ra, como os contornos dos violinos. E a Pequena montaria, aparentemente esttica,
pois s o remo de Genaro, meio imerso, se movia popa, to
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'4
de leve que recordava a cauda dos peixes quajl parados nos aqurios, parecem obser
var secretos aoaw tecimentos, que apenas os seus olhos vem, agu^S^ va-os ao fim d
aquelas duas ancas da brenha. ij Honrio, que ia atrs de Jarbas e era o mais
joV"j de todos eles, com seu tronco negro, alto e nu, |ajj lustroso pelo suor qu
e dir-se-ia engraxado, retomavS dilogo que havia iniciado com Tito Boludo e inters
rompera quando o etnlogo se levantara. Era conversa discordante entre o
alfinete e a almofa^S Depois de o contradizer muitas vezes, Tito declaraaflf in
opinadamente, por aquela sua boca larga, de ltmB grossos, onde um sorriso transf
ormista passava c"B facilidade do escrnio para a tristeza: ai"
Si si, eu disse que no matava. Mas l quS| se sabe se a gente mata ou no mata. Eu no q
u$fl matar, mas s vezes as mos podem mais do que n$S
No podem, no contestou Honrio, olham" de novo para Tito Boludo, um cafuso que dobr
avaJHf idade dele e tinha pouco mais de metade da sua altuM|| Perante aqueles br
aos curtos e rolios, aqueles punJMJil cos de lutador japons, que evidenciavam fora f
tn| pela maneira de se fecharem sobre o remo, sorrhliM pensou: "Se eu lhe desse
um dos meus golpes de &$B poeira, jogava-o logo ao cho; mas se ele me pegasse,J"
ui! com suas manzorras capaz de estrangular um boil"
Tito perguntou-lhe:
Voc tem a certeza de que no matar ? jffi
Tenho, si si. jf
Mesmo a certeza ? *
Si si. o|" Parecendo-lhe desatinadas aquelas afirmaes, fif
tas mais para o contrariar do que para o convencei Tito Boludo vacilou alguns se
gundos e depois, nfl$ torn onde se mesclavam piedade, pacincia e ligeif condimento
de desdm, replicou: '?
Voc, seu moo, ainda comeu pouco minga*i;>; L da frente, Jarbas semivoltou-se, t
ambm dlff
crepante: 4
Eh, compadre, que est voc dizendo a? 9^
matasse um ndio, que se ia pensar? Pensava-se que era uma cobardia e voc no cobarde
. Os ndios no so os culpados de estar ainda selvagens. Certamente voc julga que foi
Nosso Senhor quem os fez. Mas voc j pensou matar Nosso Senhor por ter feito ele
s assim ? No era por medo, no, que voc matava ? Era com raiva? E depois? Os ndios m
atavam a voc e a todos ns, que no ramos os responsveis. Voc no se lembra de que eles
muitos e ns somos poucos ? De olhos ao longe, como se as palavras se dirigissem a
outros ouvidos, Tito Boludo comeara a bater pausadamente, com o cabo do remo, na
orla do batelo e no deu troco algum. Mas j Aristeu, at a prudentemente calado, semp
re receoso de que Nimuendaj pudesse ouvi-los, se voltava tambm:
Voc tem rifle ? No tem. Mas se um dia lhe vejo com um rifle na mo, digo logo a seu
Curt para lho tirar.
Jarbas voltava:
No sente que quando se tem a ideia de que no devemos matar ningum, no matamos mesmo
? Que no matamos at aqueles que queiram matar a ns ? Voc no sente isso ?
Tito Boludo parecia amuado. De rosto sombrio e olhos quedos, prosseguia nas suas
remadas chape, chape, chape como se houvesse lanado gua, com uma cuspinhadela,
o resto da controvrsia.
O rio continuava num abandono medonho, como se atravessasse o Mundo no seu comeo,
com a mesma fisionomia solitria, ilusoriamente repetida at saturao, at loucura, em
ra no emaranhado ribeirinho no existisse um s palmo igual.
L
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'H
J5K ',*
Z\ o oitavo dia, de repente, a gua do Maici^a" rvores, os arbustos, as plantas que
se eng|*R nhavam nas margens, toda aquela verde soledade^H prprio sol que pareci
a ilumin-la por favor, se faijaqf nizaram nos olhos e na alma dos homens, antes m
eSiA de eles enxergarem qualquer vulto humano. Um vel5| batelo, meio afundado, qu
atro canoas e vrias pirogj ndias, feitas de cascas de rvores, encontravanfcj amarrado
s ao fundo de um barranco.
Tambm ali a terra parecia deserta, porto de gemi
morta por ignorada catstrofe. Mas em breve surtJM
no topo da ribanceira, a modo de pigmeu sobre altml
penha, a figura de um curumim seminu, que logo de^jf
parecia, alvoroando a floresta com seus gritos esi"
dentes. E a esse alarme se formou l em cima, qual"
instantaneamente, um renque de ndios Muras-PrarfB
j civilizados, que se embasbacavam perante os moME
mentos dos bateles e da montaria rumando devam!
sua aldeia. J Amaro aparecia tambm, desceujM
apressadamente a rampa, com um co ao lado e iM
homens atrs, entre os quais Nimuendaj reconheo^B
de sbito contente, a Raimundo, a Crisstomo 6tf(B
Cavalcanti, que pegaram e amarraram as cordas dj"|
embarcaes.
Os remadores vestiram as blusas, meteram as mgn
s alas das serapilheiras e com elas principiaram -Ijm
desembarcar. Logo que pisou terra, Nimuendaj sezttkB
toda a confuso de Amaro ao cumpriment-lo, tod&lB
confuso dele mesmo, da sua autoridade desobedecid^B
perante aquele homem com um ar repentinamenfHf
humildoso, de mo a tremer dentro da sua e que e"
sabia ser a mo dum valente. Mas j as responsabiffift
dades do momento, directas, urgentes, se sobrepunhan
lembrana do ocorrido. JB
Tem mantimentos que cheguem para todos sB
homens ? perguntou, sem evitar que as palavras trol^J
xessem ainda, na sua frieza e secura, o despeito recente.
Temos. Temos bastantes.
Precisamos de comida fresca. H j uma semana que partimos de Trs Casas e na viagem s
nos alimentmos de conservas, pois as caadas no deram
nada.
Bem... comida fresca h pouca. Tenho pena... Mas os Muras podem ir tarrafear num i
nstante, para ver se pegam algum peixe. s o senhor querer...
Aquela voz servil e vexada, que Nimuendaj nunca lhe ouvira, continuava a colocar
entre eles, fazendo-os reviver, os corpos de Felcio e Camargo, que os Parintintin
s haviam matado.
Ser para o jantar. Nimuendaj desviou os olhos do rosto de Amaro, pousou-os sobre
o primeiro volume por eles topado, o do pequeno co que se sentara no barranco e o
mirava com curiosidade. O pessoal no pode esperar. Deve estar a morrer de fome.
Mande dar-lhe das suas conservas, para no se perder tempo a abrir as caixas que
vm nos bateles.
Bonifcio desembarcara tambm e viera juntar-se a eles. Compreendera logo o mal-esta
r que os separava e rapidamente o contagiara; e, perante os gestos contrafeitos
de Amaro, perante o seu olhar que evitava fix-lo, apiedou-se dele mesmo antes de
lhe cerrar
a mo.
Estvamos esperando o senhor doutor. O Soares dos Santos est muito mal disse Amaro
, sempre com voz humilde.
Nimuendaj enervou-se com esse acrscimo nas suas
preocupaes:
Que tem ele ?
Tem a barriga e as pernas muito inchadas. E parece que lhe falta o ar.
Est ruim aquilo. Quando a barriga comeou a aumentar, eu lhe dei um purgante : ele
continuou na mesma. Lhe dei ento quinino e tambm lhe pus arnica nas costas, mas no
ficou
melhor, no.
Nimuendaj escutava-o e ia ligando, apreensiva-
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mente, a viso da rede do enfermo dificuldade au* ele lhe criava, ali onde j no podi
a arranjar oulf9 homem para substitu-lo na expedio. Olhou interrogativamente Bonifci
o e ouviu-o dizer com simplici-
rlarlp- ts>
aaae. ,,;
you l v-lo. Deve ser o mal de quem andai como ns, por aqui. ^3*
Perto de Nimuendaj, muito quietos e silencioso?" dois homens esperavam. Amaro apr
esentou-os: Jc
Este o Hlio de Sousa, que todos chamara^ Manga Verde e ele no se zanga; este o Juvn
cc? Marcolino. O doutor Bonifcio aprovou eles. Fora"** tambm derrubada. 3iS
Ainda a pensar em Soares dos Santos, na lactnifl que ele abria, Nimuendaj inclino
u apenas a cabea3jif Os que tinham vindo de Trs Casas aguardavam suas ordens, fing
indo-se atentos s conversas que tedJanjji uns com os outros, umas conversas em vo
z bain sempre a carem em sncope, enquanto os olhos seguia$p| de modo discreto, os p
assos de Bonifcio, que o Cris^C tomo acompanhava, encosta arriba. '9||!
Subam aqui com o Mariano e o senhor Amara que lhes vo dar de comer disse-lhes Ni
muendaj^ os homens iam j a abalar quando ele, ao mesma tempo que fixava os Muras-
Piras ainda aglomerado^ no cimo da ribanceira, advertiu com o rosto muitfc auster
o: Estes ndios so pacficos e bons. Mas quean rem que respeitemos as suas mulheres
e ns temos des respeit-las mesmo. Esto compreendendo bem, ? ',
E se alguma se vier meter na minha rede, sefy Curt ? Se vier, tenho de lhe dize
r que no presta e^T jog-la fora? Era Eleutrio quem falava, provocandf <'* o riso d
os outros, menos de Tito Boludo e DorivaC^ que de sbito ficaram carrancudos. e*"
L em cima, aps o barranco, na sua pequena, aldeia ensoalheirada, de barracas de pa
lha com largos, ^ terreiros frente, os Muras-Piras, selvagens ainda b ;$ pouco, ia
m-se conformando lentamente com a civili*-,* zao. Sorriam a Nimuendaj, numa humilda
de cordial,." ao v-lo passar em direitura ao posto que o Servio jj|t
de Proteco aos ndios erguera ali, tempos antes, j ento pela ideia de se pacificarem o
s Parintintins, essa velha e rdua esperana que nunca vingara. Os homens ferozes vi
viam longe, reconditamente longe, e antigos actos de guerra, travados nos recess
os da floresta, entre a sua tribo e a dos Mura-Piras, tremendos dios imperdoados,
mantidos como muralhas, haviam obstado a todas as ligaes com eles. Agora, enquanto
se ia de peito aberto renovar a tentativa, no flanco mesmo da nao parintintina, E
gdio, o encarregado do primeiro posto, ensinava a ler as crianas muras, naquela pe
quena casa, ao fim da aldeia, que pela cobertura de zinco e uma laranjeira em ca
da ngulo da frente se distinguia de todas as demais. Estava ele nesse magistrio,
com os curumins sentados em longos bancos diante da sua mesa e uma grande fo
tografia de Rondon na parede que lhe ficava por detrs das costas, quando
Nimuendaj entrou:
Ento como tem passado ? Se a Amrica estivesse ainda por descobrir, no seria voc, co
m certeza, quem daria pela chegada de Colombo...
Egdio levantou-se prestemente, muito atarantado, e veio cumpriment-lo, falando dep
ressa, sempre com ar de quem se escusava:
Realmente ouvi para a umas correrias e uns gritos... Mas como os Muras fazem isso
quando matam alguma anta ou pegam um peixe-boi e eu estava com a lio, no dei impo
rtncia... Deteve-se um instante e logo interrogou, quase aflito: E o nosso gene
ral? Onde est?
Explicou-lhe Nimuendaj, enquanto avanava no sulco de outra ideia, o motivo por que
Rondon no viera e Egdio pareceu ento mais sossegado. Despachou as crianas. ... "A a
ula continua amanh, quando tocar a sineta" e depois volveu sua inquietude:
curioso como me distra! Ainda ontem o Amaro e eu estivemos a falar da vossa chega
da e a combinar que voc e o general poderiam dormir aqui. Quantos dias pensa fica
r ?
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gi '"<
A resposta veio de trs da porta, onde Nimtlj^ da j dependurava o chapu: 'tfia
Seguiremos amanh. Em vez de Rondon, db^. mira o doutor Bonifcio. \fd9l
Egdio ficou calado um momento e os seus dean pareciam desprovidos de bom senso, s
empre a abotoar e a desabotoar uma das casas da blusa, vagarosamente sem jamais
se deterem. t ^
O Amaro no lhe disse nada ? No lhe disse qoi na semana passada, os Parintintins des
ceram para <t da boca do Maici-Mirim, onde dois muras estavam pescando ? '*%
Tornou a calar-se, como se temesse a cara de M muendaj, agora concentrada e severa.
^1
E ento ? A voz arremetia, autoritria e dues contra aqueles silenciosos e graves se
gundos, dir-s(c)$| que j debitando, sem mais exame, uma responsabil dade a algum; e
, entretanto, os dedos de Egdio et" tinuavam a hesitar na blusa como as palavras
na stip garganta: "#'1
Bem... Um ficou l... O outro conseguiu escapa$g! mas, mesmo assim, flexado numa c
oxa... Pensei qt|(S
o Amaro j J he tivesse dito... *
No, no disse. No teve tempo ainda. Mandeisi" logo tratar do almoo do pessoal apress
ou-se Nimuei*" daj a declarar, no fosse o outro supor que Amaif lhe faltara de nov
o ao respeito. ^
Egdio falava-lhe agora com mais naturalidade: s
Eu julgo que se os Parintintins vieram to 6* para baixo, foi por causa da derrubad
a. Provavelmem** f pensaram que havia sido feita pelos Muras. Digo isto, *; porq
ue no tendo eles se aproximado daqui nos ltim* anos, aparecem assim de repente... ^
*
Como podiam pensar que os Muras, com o dio que tm a eles, lhes iam levar brindes ?
*
Egdio escolhia as hipteses: 3
Poderiam talvez julgar que era uma cilada... _ !\ A ideia de um novo erro f
ronde Java cada vez mas |
no esprito de Nimuendaj: "A no ser que..." Tinte f acabado de sentar-se; ergueu-se
de novo, como se hot* ||
vesse descoberto de sbito o criador da dvida que
o picava:
O Amaro levou alguns muras para a derrubada ?
No, no levou. Foi apenas com os nossos homens. Eu no sei nada, claro,
mas me parece que o melhor seria ficarem aqui algumas semanas, esperando que os
Parintintins voltem s suas malocas.
Rectificando-se a si prprio, em voz lenta e baixa, Nimuendaj parecia monologar:
Eles atacaram o pessoal da derrubada luz da manh. Verificaram, decerto, que no era
m os Muras ..
Egdio visionava, j h dias, aquela eventualidade a descer o rio, encapotada e perigo
sa como os grossos troncos desprendidos do solo natal e no se aventurou a ,mais
palavras. O seu silncio congelava o ambiente da pequena casa. Nimuendaj desa
tou a andar de um lado para outro, em frente dele, com as mos enfiadas nos bolsos
, velho costume que dir-se-ia tornar-lhe ainda mais alto e seco o corpo delgado.
A ordem para a derrubada fora ele quem a dera, a escolha do Amaro fora ele quem
a fizera, portanto a responsabilidade era sua. Continuava a andar entre a cadei
ra do professor primrio e a parede que ostentava, a meia altura, a fotografia de
Rondon. E foi ele mesmo quem encontrou, momentaneamente, a brecha necessria, ao e
ncarar aquela cabea, cheia de gravidade, com um
5 metlico na gola da farda, os bigodes descendo-lhe, em forma de asas, at as extre
midades dos lbios e os olhos muito calmos.
Afinal, qualquer que tenha sido o motivo, o caso, para ns, muda pouco de figura
pensou alto Nimuendaj, sem deter os passos. A nica diferena com a situao anterior, q
ue passamos a correr riscos antes do tempo previsto...
Egdio apoiou aquele raciocnio, mas ele, como se no o ouvisse ou o desprezasse, pros
seguiu nas suas idas e vindas, de novo silencioso, o olhar inclinado, a testa fr
anzida. Por fim, pareceu intervir na sua disputa interior, falando para dentro d
ele:
Evidentemente disse. E a palavra isolada rolou
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'"t
um instante pelo ar, como que insensatamente, CGJ& o seu qu de psiquitrica, enquan
to Egdio se esf|au cava por lhe descobrir um nexo.
Passos rpidos soaram no terreiro e logo a cabea de Bonifcio surgiu porta: trf
No espere por mini para almoar. Tenho de it' ao batelo, abrir uma das caixas dos me
dicamentou
Nimuendaj aproximou-se:
Que tem o Soares dos Santos ? -f
Beribri, o que eu pensava. ""
Tambm eu havia imaginado isso. Tenho viste partir tantos... Ele no pode vir connos
co, ? ^
Pareceu a Bonifcio que a pergunta hospedava doj| sentidos, um superfcie, outro no
fundo, como lTt espuma e o lquido nos copos de cerveja; e antes mesttflj de procur
ar qual era o verdadeiro, ou se ambos o eraffl^ ao mesmo tempo, veio-lhe essa iro
nia negra com q"P| os mdicos, quando j afastados do drama, tantas veziM! se compen
sam das mentiras que oferecem aos doenttm graves e aos seus familiares inquietos.
**$*
Pode... Pode, se voc quiser que ele v acabalhj de morrer no acampamento... Deu me
ia volta e, Jft de perfil, pronto a abalar, ajuntou apressadamentdfjj A nica e
sperana que vejo mand-lo para Humait Pense nisso. Se ele resistir viagem, pode ser q
ue al."f Enfim, tudo possvel... "^
Quando proferiu as ltimas palavras j estava d<r costas e Nimuendaj viu-o afastar-se
, lestamente, eflt direco ao porto, enquanto nos seus olhos a figura 5 dele ia sen
do substituda pela de Soares dos Santos,* rijo, bom remador, to modesto, to a apaga
r-se sefflf * pr como se pedisse desculpa de existir, e que fora uifl dos seus co
mpanheiros na primeira explorao em volta1 das terras dos Parintintins.
Ainda Nimuendaj se encontrava porta, com Egdio ao lado e a vista errando ao longe,
quando duaS raparigas muras, comboiadas por Amaro e seu co, ^ chegaram, traze
ndo o almoo. Caras redondas e tmidas, | os braos curtos e sob os vestidos de chit
a ramalhuda, I talhados maneira de sacos, os pesitos descalos esprei- <
tando em frente, logo que entraram fizeram nascer e desenvolver-se na sala uma a
tmosfera de inocncia e de ternura.
Quase to enleado como as ndias, Amaro acercou-se de Nimuendaj, falou-lhe das medida
s que tomara para que ao jantar houvesse alimentos frescos e, finalmente, venceu
o receio que lhe causava verbalizar aquela m notcia:
H uma coisa que ainda no disse ao senhor, mas que tenho mesmo de lhe dizer: dois m
uras, que estavam pescando, aqui h uns dias...
J sei interrompeu Nimuendaj, bruscamente. Mande pr em trs canoas as mercadorias que
c esto e preparar tudo como se nada tivesse acontecido. O Soares dos Santos no pod
e ir. Para remar de dia, nos vai fazer falta, mas, para de noite, o pessoal que
temos chega perfeitamente, pois no poderemos andar depressa. Hesitou um instant
e, caldeou a nova ideia e logo ajuntou: favor dizer ao Jarbas que venha falar c
omigo, s cinco horas. No... s cinco e meia. J sabe quem ? No sabe ? Pergunte aos outr
os
homens.
Estava ansioso por se libertar da presena de Amaro, aquele incmodo necessrio, to des
agradvel para ele como se fosse obrigado a beber pelo mesmo copo dum tuberculoso,
e despachou-se:
Nenhum mura pode ir connosco, pois agora, mais do que nunca, no devemos provocar
os Parintintins. Mas precisamos que cinco deles levem imediatamente o Soares dos
Santos a. Humait. Est ouvindo, ? Fale com o tuxua.
Amaro baixava a cabea, mais uma vez, enquanto ia imaginando os Muras, ainda to mat
utos, to filhos do mato, a embaraarem-se todos, mal arribassem cidade. Mas Nimuend
aj acrescentava:
Podem deixar ele em Trs Casas. Dali o transportaro para Humait.
Puxou o relgio e disse ainda:
H tempo. Mande fazer um ensaio de desembarque, conforme lhe recomendei antes de i
r ao Sul.
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
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r '"i
Lembra-se bem? Exactamente como se estivssexni"4* desembarcar no Nove de Janeiro.
Mas deixe prirn^^ os homens descansarem um pouco. ,j 3jj
'^ ;a
* "oo
n*
As cinco e um quarto, depois de acompanhar a$ o porto a rede onde ia Soares dos
Santos e de un sumir-se na curva do rio a canoa que o levava pa$j Trs Casas, jacen
te como num esquife, Nimuenda| estava j sentado junto do Posto, sob a laranjeira i
|| esquerda, com uma cadeira vazia sua banda, so|% trio porque dissera a Bonifcio
e a Egdio que pfMH sava de ficar a ss com Jarbas, quando ele chegagft
Vrias vezes, ao longo da tarde, desde que soub|fi| da doena de Soares dos Santos,
hesitara em consmiJB o dilogo que havia imaginado. Hesitara mesmo de^mE de se enco
ntrar ali, espera e a meditar de novohBK caso.
Jarbas chegou s cinco e meia em ponto: naiff
Me quer falar?
A poa que a chuva matinal enchera e se aM|i| muito perto da laranjeira, irregular
nos bordos con||I uma ilha, enegrecendo e tomando brilho metHeOflB medida que a
noite se avizinhava, reflectiu difusamesM| o movimento afirmativo da cabea de Nim
uendafw| depois o seu brao a apontar, numa atitude de cw| descendncia, a cadeira de
socupada. Jarbas sentou-swl cruzou as pernas e tirou da algibeira o tabaco, twj
com tanta naturalidade como se exclusse qualque| constrangimento hierrquico. ;l**
Nimuendaj votava-lhe uma spera antipatia, qW* a si prprio incomodava, desde que ele
o interrompei"! desrespeitosamente, em Trs Casas, quando lia, dianfe dos futuros
subordinados, a carta de Rondon "aqit* magnfico incitamento, que assim ficara ma
culado"Enervava-o a sua maneira de ser, que ora lhe pareci? larvada pelas incoern
cias dos hipcritas, ora obede" cendo a uma razo secreta, que se servia apenas oB e
xpresses medianas para melhor influenciar o esprito*
alheio. No era humilde, to pouco arvorava qualquer arrogncia; dir-se-ia empenhado,
porm, em mostrar-se igual a todos aqueles com quem tratava, fosse com os caboclos
iletrados, fosse com Bonifcio ou com ele prprio. Via-se logo que discordava de qu
ase tudo quanto os outros aceitavam por to definitivo nas leis humanas, como as l
eis naturais pareciam ser no Mundo. Mas fazia-o de voz mansa, de quando em quand
o com oportunas transigncias, a evitar toda a polmica; e como nunca desvendava int
eiramente o que pensava, abria, por isso mesmo, um maior interesse futuro aos qu
e o ouviam. Se alguma vez se excitava, perdendo o autodomnio e fora decerto
o que lhe acontecera no momento em que lhe cortara a leitura logo volvia sua ap
arente tolerncia, s meias palavras, s frases reticentes, como tantas vezes ele lhe
surpreendera nas conversas de arraial, beira do rio, quando se detinham para o a
lmoo, ou noite, antes de dormirem, e at no prprio batelo. Debalde Bonifcio lhe disser
a, com o seu feitio de passa-culpas, que se tratava de homem ainda mais instrudo
do que aparentava, talvez um pouco visionrio e diferente dos outros que iam ali,
talvez com um mistrio acoitado na sua vida, mas, no fundo, boa pessoa; debalde,
porque essas mesmas qualidades lhe aumentaram, ainda mais ressentidamente,
a averso que sentia por ele.
Digo, no digo, Nimuendaj abstrara-se tanto nas suas vacilaes, metera-se por to diverso
s caminhos, sempre receoso de ficar com dois homens a menos para a subida do rio
, que se esquecera de reflectir sobre a forma de dar princpio ao dilogo. Tentou ai
nda elaborar um prlogo, moldando-o sobre a sua m vontade, mas aqueles segundos sem
voz, com o homem sentado ali, aguardando-lhe as palavras, pareceram-lhe demasia
do longos, uma inferioridade para ele, se continuasse calado; e, abandonando o d
esejo inicial, rompeu friamente:
Mandei chamar voc porque anda para a a desmoralizar o pessoal, ao contrrio do que s
eria de esperar de quem voluntariamente decidiu vir connosco.
g8o
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
981
'l
Anda a insinuar aos homens que so inteis os sasfe" fcios que esto fazendo e os perig
os que vo passai porque no devamos civilizar os ndios e que mesa" prejudicial para e
les serem civilizados por ns. Ora "eu no posso consentir uma coisa dessas! Est ente
n" dendo, ? ^
Lhe peo desculpa, mas se trata, sem dviot" duma incompreenso. Quem lhe disse isso
? O Aristeijl O Tito Boludo? ,||
Ningum mo disse. Os homens repetem uns aos outros os absurdos que voc lhes anda a
meter jj^ cabea e eu prprio tenho ouvido conversas sua&jjL esse respeito. .^
Ainda bem que ningum lho disse profeM Jarbas, agitando sobre o queixo, com o
pequeno naw vimento da sua boca, a mortalha que colara por uflffi1 ponta no lbio
inferior, enquanto extraa da bolsas"! tabaco. Ainda bem, pois no gosto de pensar
WK dos meus camaradas.
Nimuendaj destravara-se: ; flfsj
Se no est contente, pode ficar aqui. Baixaafil para Trs Casas na primeira canoa que
houver e, a|H chegar l, continuar ganhando como se viesse CHMJ nosco... ojm
Um espao vago fez-se sentir no seu amor-prpri Estava dito. Sim e no, sim e no toda a
tarde >i*B agora estava dito. Precisava de dizer aquilo. O P$m nhasco que alura
e tombara no seu caminho for^B enfim, removido. No tardou, porm, que a terra r60(r
)11" -aplainada escurecesse e nela abrisse os braos descaDJB nados, a pedir socor
ro, o fantasma que ele terni^H Quando decidira aquilo, sentado popa do batelifB
em luta com um irritante solilquio, ignorava aindaijw doena de Soares dos Santos.
Mas desde que lhe conbiff cera a gravidade, ele sabia que no desejava ver JarbaMI
ir-se embora. Tinha de prever todos os pormenore^S vigiar cada elo da corrente,
para conduzir ao porTOl eleito a expedio a que estavam to vinculados 3$M suas idei
as e o seu prestgio. Por isso mesmo no lh$" falara antes de partir a canoa que lev
ava Soares do*J
Santos e onde ele poderia remar e at ser til ao doente, pois que era mais civiliza
do do que os Muras.
Surpreendido com o silncio de Jarbas, mirou-o de relance e viu-o de cigarro ainda
intacto na boca, os olhos fixos nos dedos, os da mo direita torcendo os da esque
rda, devagar e distrados.
A voz de Nimuendaj suavizou-se um pouco:
O que eu no percebo porque veio connosco, se discordava do que amos fazer. No foi v
oc mesmo que se ofereceu ao doutor Bonifcio para vir?
Jarbas acendeu, por fim, o cigarro. Soprou o fsforo, deitou-o ao cho, olhou-o como
se quisesse certificar-se de que estava realmente apagado, efectivamente morto,
e ainda lhe ps por cima, maneira de laje sobre uma sepultura, a ponta do sapato.
Fui. Fui de Humait a Trs Casas para pedir isso ao doutor. Mas uma coisa nada tem a
ver com a outra, pois eu no disse que no devamos civilizar os ndios. Quem disse iss
o foi um homem que conheci e que era um pouco reaccionrio em algumas ideia
s. O que eu queria dizer que h muito devamos ter uma vida melhor. Ao senhor tambm no
lhe parece? Acha que o mundo est bem? Acha que a civilizao justa com toda a gente?
Nimuendaj sabia que a perguntas assim apendiculares, mesmo sumarentas que sejam,
o interlocutor no estranha que fiquem sem resposta; elas levantavam, porm, do cho d
a sua vida, um estrato j bastante fundo, que os anos haviam coberto com muitas ou
tras camadas. E tentando afast-las, inoportunas que eram, repetiu:
Mas se pensava desse modo, por que veio ?
Vim, porque se civilizarmos os ndios agora, eles ] iro ficando preparados para dese
jar um dia melhor. Mas seria mais bonito, no h dvida, que, quando tirssemos eles das
malocas, j lhes pudssemos dar tudo aquilo que os homens precisam de ter e at a mui
tos de ns falta. O senhor nunca pensou nisto? Vendo bem as coisas, quase todos ns
, que os vamos civilizar, somos ainda mais pobres do que eles.
982
O INSTINTO SUPREMO
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O INSTINTO SUPREMO
Sacudiu uma cinza imaginria, aqueles dois inflfc. metros esbranquiados que ainda s
e confundiaiji **m o papel do cigarro: H1159
Vim tambm porque a ideia de no matarr"ifai mesmo que estejam para matar a ns, me pa
rece fyjBf ressante. Nem parece ideia dum general. O senhor>i2<' tome isto como
falta de considerao por ele. ra por ser general e conseguir pensar assim que eum
respeito. No quero discutir, no, mas j tenho'Fl||t vrias vezes que os principais resp
onsveis de cecal violncias dos povos so os que mantm as injusijiB no Mundo. No deixam
outro recurso e depois casJI gam, alguns at mandam condenar morte, aqueMi que luta
m pela justia. !l3jjjlr
Era um tabaco regional, melado e hmido" ^jm enrugava o papel e ardia dificilmente
. Jarbas puxJX -lhe trs fumaas e, mesmo depois de o fazer, cotB nuou calado durante
alguns segundos. Logo veio 1MB uma voz diferente: 'HB
Eu posso ficar aqui, se o senhor me obrigdnu isso, mas o meu desejo ir...
No esprito de Nimuendaj, o espectro baixav*jB| braos e desfazia-se; a terra escurec
ida voltava a^^B| minar-se e ele, liberto da primeira opresso, sentiwH contente po
r se haver anulado tambm a segthgjB Entre o que Jarbas acabava de lhe dizer e o qu
e'dlH sera no batelo a Aristeu, a Honrio e a Tito BoliMiH e ele ouvira, rabiavam,
sem dvida, algumas coskflfl dies, mas no valia a pena meter-se, naquele ^i mento, s co
ntingncias do labirinto. ^^m
No era a primeira vez que o convvio mais dire"(|F com um homem o levava a honestas
correces e Hjp recordava os maus julgamentos, sobre ele prprio, w| muitos que tinh
am embirrado com o seu feitio e w haviam dado estima depois de o conhecer melhor
. Sw^ -se-ia que at as expresses externas de Jarbas se mew* morfoseavam: em vez da
repulsa anterior, fabricavSlt| agora crescentes simpatias. Era como se a pele s
e h^S tuasse temperatura do banho e a sentisse mesmo agii dvel depois de ter reagi
do gua demasiado quefloM
Um tiro soou, logo seguido de outro, rompendo a paz da tarde. As crianas, que bri
ncavam nos terreiros, olharam na direco de onde vinham os estampidos e logo volver
am aos folguedos, em frente da velha ndia, surda talvez, que se sentava porta de
uma das barracas, com as mos sobre os joelhos, e ficara inteiramente impassvel na
sua demorada cisma.
Vi um homem ir caar explicou Jarbas, quando o etnlogo volveu tambm a cabea para a f
loresta, j a enegrecer,^ ali muito perto deles.
Eu sei. o Raimundo disse Nimuendaj, que logo voltou a prolongar, deliberadamente
, o seu cauteloso silncio anterior, no fosse Jarbas se convencer de que lhe era in
dispensvel.
Est bem. Pode continuar connosco declarou finalmente, com um sentimento confus
o, um sbito prazer, quase gratido. Pode continuar, mas veja l como fala aos
homens, para que eles no confundam uma coisa com outra. No h dvida que a civilizao est
cheia de contradies. Est. Eu prprio tenho discordado, muitas vezes, das suas inju
stias. Mas s quem for cego pode admitir que a vida primitiva e a ignorncia trazem a
felicidade aos homens, como pensam alguns. H muitas pequenas e grandes satisfaes q
ue somente os espritos instrudos podem ter. E elas compensam largamente as novas r
esponsabilidades e mesmo alguns novos sofrimentos que a nossa evoluo nos tenha dad
o e nos d. Voc foi operrio, ?
Pareceu-lhe que Jarbas tardava demasiado a responder-lhe. Juntara as pernas e ao
lado da direita deixara cair a ponta do cigarro, que imediatamente cobrira e es
magara com o sapato, to cuidadoso como h pouco, quando apagara o fsforo.
Se adivinha ?
O doutor Bonifcio me disse.
Bem... Tenho sido operrio, estivador, empregado de escritrio, outras coisas. Con
forme as necessidades e as circunstncias... Ultimamente, carpinteiro.
No Par?
De novo Nimuendaj sentiu, desta vez sem ne-
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O INSTINTO SUPREMO
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987
sua prpria rispidez. E, perante essa nova certeza, de<dir guardar para mais tarde a
s palavras de ferro a>m trouxera; para mais tarde, no sabia quando, poisi comprov
ao dos seus mritos de orientador IheaS! sossegando lentamente a clera. ,3f
Amaro dizia com simplicidade, enquanto a r"S" direita, descida da coxa, afagava
ocultamente o lombjt do "Mimoso", o seu cozito, que se encostara, mtiitB quieto,
aos ps da cadeira: S
O ensaio correu bem. Tive de repeti-lo com d<w dos novatos que o senhor trouxe,
porque se atrapw lharam com as chapas de zinco. Mas j esto sabendo! o que devem fa
zer.
Nimuendaj no comentou. E Amaro volveu, ser"! pr com uma voz que se esforava por ser d
oce: oB
O tuxua me disse que os Muras queriam daffifM esta noite para o senhor e para o d
outor BonifcicB uma dana que o senhor no conhece. ?cj|
Hoje no pode ser. Estamos cansados e amaBfflJl temos de nos levantar cedo. Ficar p
ara quando vfH tarmos. JK
Quedaram todos em silncio. Depois Amaro arr^B cou-se:
O Raimundo tinha dito a eles que o senhor g<*fi tava muito de danas, para estudar
...
Nimuendaj encarou Bonifcio e leu na sua mudeS o mesmo receio: r*|
Ficam aborrecidos connosco, ? ><4|
Pois murmurou Amaro. "'SJ
Bem! s oito e meia. E agora a distribuio pessoal para amanh. O Raimundo e o Cri
sston^ffl passam para o meu batelo, para os lugares do AristOT| e do Tito Boludo.
com estes, com os que vinham oj montaria e com os que estavam aqui consigo, vo<|
tripula trs canoas. Uma pilotada por si, outra peJrS Genaro. Esse Manga Verde est b
em?Amaro baixou; a cabea. Ento ir com a outra. A sua vai frentet'; A montaria ser r
ebocada pelo meu batelo. Partir* ms ao nascer do sol. ''
Foi luz baa de dois faris, modorrando sobre as portas de barracas fronteiras, q
ue os Muras-Piras, libertos de calas e blusas, saram a bailar no seu terreiro. Ap
enas uma tanga, pouco mais larga do que gravata de seringueiro com saldo em noit
es de forr, indicava transigncia com a civilizao. De cabeas emplumadas, arcos e flech
as nas mos, executavam danas dos seus tempos hericos, quando guerreavam os Parintin
tins entre as rvores da floresta, agora sugeridas pelas sombras que alastrava
m nas extremidades da terra batida, onde eles se diluam para logo reaparecer na r
ea luminosa, em saltos miudinhos, acompanhados de gritos fortes, com a pele mais
brilhante do que se tivesse sido mergulhada num banho de esmalte.
Nimuendaj havia-se sentado defronte do Posto, entre Bonifcio, Egdio e Amaro, com os
remadores perfilados atrs deles, todos de p, como se completassem, sob as estr
elas cintilando ironia, um grupo fotogrfico. E era a quatro, cinco metros dali,
que os jovens Muras-Piras vinham realizar os passos mais violentos do seu bailad
o de luta e de morte. Mas s os que figuravam de Parintintins, medonhos satanases,
de corpos listrados a preto e branco, caam vencidos, durante a pantomima. S eles
se contorciam e berravam no cho, com uma flecha na axila, que as suas prprias mos
ali introduziam, de forma to cndida que Eleutrio ria alto e dizia a Juvncio, por det
rs de Nimuendaj e Bonifcio:
Para que vamos ns l... l onde vamos, se estes compadres podem civilizar eles?
com uma indolente simpatia, nunca at ali meditada nem sentida, pelas vastas pueri
lidades do Mundo, Nimuendaj pensou que o caboclo tinha razo: aquilo era realmente
ingnuo. E era ao confrontar-se com a ingenuidade que a inteligncia se dava melhor
conta da sua imensa fora e dessa espcie de corrupo sublime que o homem sofrera nas z
onas mentais mais
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989
'4
+
puras ou mais brutas. Mas fora a partir, justamente, da*
manifestaes pueris dos ndios, dos seus costume#l|*
objectos primrios, que ele e tantos outros tinhbH
podido confirmar a maravilhosa evoluo do gnjB
humano, em toda a sua complexidade e vastitu"
Ingnuas haviam sido tambm as danas dos GuaiSB
nis de Ararib, naquela noite de honraria ao etnloB
autodidacta que ele era, naquela noite em que SR
concederam o nome de Nimuendaj, "o homem qn|
abriu o seu prprio caminho", rebaptizando-o com stJK
vticos rituais, luz crepitante de trs fogueiras, dal
-se-ia em pocas fabulosas, milhares de anos antes ^am
a sua pessoa haver surgido no Mundo. A ele mesrilH
a cerimnia extica havia parecido duma puerilidalM
extravagante; em Paris ter-lhe-iam aditado algumlM
frases de esprito, substitudo o velho paj por utijB
jovem sacerdotisa de exaltantes formas, trocando ilfH
ndios que danavam de tanga, com trs polegada"
somente, por ndias de ancas rebolantes, com a mesifflM
economia de tecido, e feito um quadro para as "FolwH
Bergres", musicado ao longe, surdamente, por uiaH
ronda invisvel de tambores. Contudo, essa noite ingm
nua iria dividir o seu comportamento mental, peraiwjH
os outros homens, em duas fases contnuas mas diM
tintas, como a do mar que repele os corpos dos afafjl
gados e a da praia que os recebe, solidria com elaM
At a, somente lhe interessava de modo profundo eHH
prprio, o eu nietzscheano ento em curso triunfa^
cujas ressonncias se vinham alojar no seu esprito coOm
centrado, que s margem das grandes expressividadeil
dos outros lhe parecia realizar-se inteiramente. Interes||
savam-lhe os ndios porque ao seu lado se sentia logva
superior, uma grata sensao de paternidade benevOw
lente, afagadora de muitas e obscuras clulas. InteresrJ
savam-lhe pelo seu primarismo, que lhe permitia afroft"!
tar o mistrio e o maravilhoso que se opunham e adi
mesmo tempo seduziam o temperamento prtico detl
e lanar-se em prospeces retrospectivas sobre a con1* l
duta humana, para sua prpria glria, objectivo prin^ l
cipal dos estudos que publicava. Mas, naquela noitej J
enternecera-se rapidamente com o preito dos homens serni-selvagens, mesmo com os
movimentos de feitiaria e os apelos a uma sobrenaturalidade caricatural que ofen
diam a sua lucidez; e a gratido que sentira perante a cerimnia ingnua desencadeara
o primeiro abalo na torre onde se refugiava, pois que um amor-prprio honorificado
se transforma de sbito, como numa operao de qumica, em efervescente generosidade e
clida ternura para os outros. To reconhecido ficara, que nessas mesmas horas de co
munho humana decidira substituir o apelido familiar, o Unker paterno, por aquele
brbaro Nimuendaj que o velho grupo de Guaranis lhe atribura puerilmente. E fora a p
artir desses momentos que ele aderira por completo s doutrinas de Rondon, que hav
iam posto, finalmente, uma soldadura l onde o eu e os outros conflituavam at ali.
Atrs de Nimuendaj, o pessoal alheava-se j dos movimentos dos Muras-Piras, constantem
ente repetidos na sua coreografia elementar, quando duas ndias, uma nova, a outra
ressequida de velhice, romperam da sombra, puseram-se de ccoras e ficaram a v-los
danar. A jovem secundava os seus gritos de jbilo, sempre que eles simulavam vence
r os Parintintins; a.
velha chorava.
A moa era a companheira do pescador que eles mataram; a velha a me dele explicou
Amaro.
Os homens contemplaram-nas uns momentos, depois pegararn-se de conversa, a princp
io com voz ainda respeitosamente baixa, logo a altear-se pouco a pouco; e Genaro
afirmava, muito convencido, a Maximiano:
C por mim no sei o que medo. Medo nenhum! Sou fatalista e j o meu pai tambm era. S mo
rremos quando temos de morrer...
Mas se se fizer um jeitinho, talvez se possa escapar... caoou Eleutrio, entre dois
bocejos.
Jarbas intervinha:
Me desculpe voc, mas isso parece uma superstio. Como tantas outras...
Superstio ? Se h-de ver! Est escrito l em cima. Genaro indicava o cu constelado ao m
esmo
990
O INSTINTO SUPREMO
tempo que garantia: Podem vir todos os Parj$t^ tins, podem vir todos, que no
fujo, no. Arista*.
vnr inn -nXr^ << 3
. ^ ^^, ^.u^ nau iuju, no. ArjfljjjL
voc viu, no ? que eu estava sereno quando ;^M mataram o Felcio e o Camargo. No viu ?
)Jtj^
Pois eu s no fujo ou no me escondo sfr &|Z puder. Se morrssemos todos, quem ia civil
izar elgjl tornou Eleutrio, cada vez mais sonolento. ,2 A dana guerreira terminara,
finalmente. Tg"B os que figuravam de Parintintins encontravam-se agf2 estendido
s no cho, os vencedores com um dos % sobre eles e as cabeas agitando freneticamente
{3 capacetes de plumas. ,d||
Viu-se ento a rapariga mura endireitar-se, otiJSjl Nimuendaj, vacilar um instante
e logo aproxima^p dele, os dedos revolvendo desesperadamente os cah$(j|* a boca s
oltando gritos histricos: $2
Mata eles! Mata eles! Mata eles! repetia Cap seu queixo apontava para as lonjur
as onde vivian^gE Parintintins. A velha ndia veio busc-la, afagou-ajS testa e levo
u-a, vagarosamente, pela mo. No sUQf|jP>' repentino, os olhos de Nimuendaj toparam
os -dS bailadores a fix-lo estranhamente, os corpos miMMr. hirtos, agora todos
de p; e no tardou a compreei$U| que s por eles o respeitarem no verbalizavam a ajJM
| so tremenda que lhes ardia nas pupilas. iJI
L detrs, Jarbas dizia com uma voz que par^i" tambm ensonada: W
O que ns devamos era ensinar a estes Muf^jK que os Parintintins no so culpados de se
rem coiaflS so... i M"
Nimuendaj pensou, de sbito, que fora um errtfj seu, agora j sem remdio algum. Certame
nte aos Pp^ rintintins, to isolados e odiados pelas outras tribot no chegaria a notci
a de que ele e todo o pessoal * haviam assistido quela farsa, onde se humilhava
.^ braveza deles, precisamente o que se julgava ser o sett maior orgulho. Decert
o no chegaria, porque, se che- >t gasse, a misso que levava quelas terras mefticas *
\ seu corpo impaludado, rejeitando todos os conselhos " mdicos, estaria desde j pr
ejudicada. u?
O INSTINTO SUPREMO 991
VI
QUANDO o sol os esculpiu inteiramente, ao fundo do barranco, definindo-lhes bem
as figuras e os gestos, at esse momento imprecisos luz dos faris, Amaro distribua-l
hes a rao de cachaa, com Bonifcio ao lado e o co aos ps. Servia-se duma tigelinha de f
olha, dessas que os seringueiros empregavam na recolha do ltex e, por sua iniciat
iva ou ordem de Nimuendaj, talvez at porque as mos lhe tremiam, enchia-a a transbor
dar, ao contrrio do que sucedera nos ltimos dias.
Alguns bocejavam ainda. E Eleutrio, que parecia o nico de bom humor matinal, pergu
ntava, piscando urn dos olhos:
Depois deste no h mesmo outro porre ? No h? Ento dobre, si faz favor...
Dir-se-ia que os homens nunca haviam pensado naquilo. Mariano, cozinheiro da exp
edio, poisou no solo o paneiro com duas galinhas, mais um galo, tambm os ps de mandi
oca e de inhame que levava; e ps-se a beber lentamente. Os outros imitavam-no, sa
boreando o lcool, enquanto lanavam um olhar moroso para o rio que iam subir ou par
a a aldeia dos Muras-Piras, derradeiro posto da civilizao naquelas imensas profundi
dades.
Depois foram embarcando. Nimuendaj descia a ribanceira, de maleta na mo, sozinho;
e, ao v-lo, Bonifcio partiu da vizinhana de Amaro e de Dorival ao seu encontro.
Queria dizer-lhe...
Pela cara que expunha, pelo grupo de onde sara, Nimuendaj adivinhou o que ele pret
endia mesmo antes de concluir a frase:
por causa do cachorro, ?
Sim. O Amaro at chorou.
No pode ser! Ele prprio tinha dvidas, pois me foi pedir licena. No podemos levar n
ada que
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
993
'4
*
assuste os Parintintins. Imagine que o bicho corria a ladrar atrs deles. Seria na
tural...
O Amaro jura que no cachorro para isso. Que mole e, mal se lhe diz uma coisa, ob
edece j^&! diatamente. prova est nas danas de ontem/Q| Muras apresentavam-se como o
s Parintintins e o "Sff. moso" no se mexeu. g|
Pudera! Conhecia-os bem, nus ou vestidos. BA tava aqui h muito tempo. ,m
Parado a meio do barranco, a contrariedade J| fechar-lhe o rosto, Nimuen
daj seguia os passos qt Amaro, dirigindo-se pela borda do rio para a sua caacft I
a frente do Maximiano e do Etelvino e o co sefflnK atrs. Bonifcio insistia, brandam
ente:
No quero contrari-lo, mas o Rondon tinha unfit matilha... At acuava onas... rr M
Tinha! Uma vez ele me falou nisso. Era outB coisa. Andava a construir a linha tel
egrfica, a abnB picadas na mata e, nessas condies, os cachorros iMR podiam indicar
os perigos. Mas me disse tambm
um dia, no vale do Jamari, passou um mau bCWBi Eles se atiraram a uns ndios que est
avam a caar MB| ali e com os quais Rondon queria ter boas relaes|w|
No foi no meu tempo. Mas que medo P<"B meter um cachorro to pequeno ? r|B
Nimuendaj encolhia os ombros: I*SP
Estou certo de que se o Rondon viesse aqui/ijB dirigir-nos, no levaria cachorro a
lgum.
Bonifcio ainda coseu as suas dvidas durante alguB segundos. Os Nhambiquaras tinham
sido pacificadfflK sem que a coluna rondoniana se desfizesse dos E no eram do ta
manho dum cordeiro, como o Amaro, mas enormes, bocas arreganhadas, terrveis deqK
tuas que ele continuava a ver, quase com tanta nitid^g como se estivessem ali me
smo, medonhos, na sua frentW
A mim custa-me, porque o Amaro um atora|
E voc ? Voc no ? E no deixou a sua raum^f|f em Manaus ? Tenho pena de no lhe ser agr
adav^jB mas o Amaro j fez asneiras de mais. NimuendaJ^fg
recomeara o andamento, com Bonifcio ao lado. Tambm a mim me custa um pouco, claro.
Mas que se vai fazer ? acrescentou de modo tardio, depois de dar alguns passos.
com os remos pousados sobre as coxis, todos os homens se encontravam j nos seus p
ostos. Alguns enrolavam vagarosamente os cigarros, como se metessem na mesma mor
talha o tabaco e o sentimento daqueles instantes, alm da expectativa pelos dias q
ue iam vir; outros enviavam gracejos aos Muras-Piras, aglomerados, como na vspera,
sobre o extremo da rampa e que dificilmente os ouviam. O prprio Amaro j se sentar
a popa da sua canoa. E pedia a Etelvino e a Maximiano, sem os olhar, pedia-lhes
s com um gesto, para expulsarem dali o co, que por duas vezes surgira ao lado dele
, a primeira de rabo no ar, a mover-se todo contente, a segunda enfiado entre as
pernas e com o focinho baixo e tmido. Nimuendaj e Bonifcio subiram para os bateles,
tomaram as canas dos lemes e, na manh cada vez mais fulgorosa, com os Muras a se
guir-lhes os movimentos l de cima e o "Mimoso" a correr e a uivar beira da gua, a
pequena frota partiu.
A aldeia desapareceu atrs da curva e a floresta, vingando-se daquela ferida que l
he tinham aberto, voltara ao seu completo domnio de um lado e outro do no. Perant
e a marcha das embarcaes, um alentado jacar, navegando da margem direita para a esq
uerda, meio submerso, o olho sagaz rente superfcie e quase triangular como um olh
o manico, decidiu mergulhar, a cauda tornando-se pouco a pouco vertical, at sumir-s
e de todo, maneira dos navios que naufragam lentamente. Mais alm, garas espantadas
abalavam dos rarnos marginais, para longe, riscando o espao livre com a sua bran
cura de cal, logo seguidas pelo voo Pesado dos magoaris, jaburus, outras belas p
ernaltas, at a meditando, sobre uma s pata, beira da gua tranquila, que os espelhava
e talvez lhes levasse os retratos para o imensurvel depsito de imagens de todos o
s tempos e de todos os continentes, vivas como
32 Vol in
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O INSTINTO SUPREMO
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no momento de serem colhidas e transportadasrapgr
quantos rios, arroios e fontes dessedentam e refloteffi
o Mundo, para esse infindvel documentrio que deva
existir na fundura de todos os mares. i hsgjj
No batelo de Bonifcio, de novo os homens Trtfc,
vam calados, to montona e silenciosamente qo
pensamento dele voltava, mais uma vez, para Maiaim
"Era certo que nunca teria conseguido obter, sobra"
sua primeira mulher, nenhum predomnio espri<pa|j
pois se at o doce quebranto, impregnado de ternmi|
que sucede volpia da posse, fora em poucos nu^f
substitudo por um mtuo fastio. Algumas npiAN|
mesmo quando abraados, j ele pressentia que Nivgl^l
se encontrava pouco interessada por aquele momen^f
e se entregava a outras preocupaes, talvez disttt
tes dali e muito provavelmente no tempo em i:j<pp
ainda no o enganava. Fria e autoritria, tomanp
sempre por indiscutveis todos os seus argumentos^"
era a completa antinomia dele, inteiramente deep"!
vida de iseno para se examinar a si prpria >i|ML
isso mesmo sem a faculdade de compreender os outjMl
Tarslia, embora caprichosa e bastante exagerada, Mi
ria muito. Ardente como ele gostava e intensa injj"
sentimentos, via-se bem que o amava e certame!"
ser-lhe-ia fiel, sobretudo se ele no demorasse taitoiB
regressar como demorara quando fora de NivaldansilBr
Em voz alta, Dorival recomeara a falar com TaolB
j ara, que se prezava, como ele prprio, de ser >OfB
veterano naquelas brenhas pasmadas e remava no baa"
do meio: "jf
No sei por que vamos dormir de dia e resi|
de noite no Maici-Mirim. Voc sabe ? No se pode di4r
que seu Curt tem medo, pois a primeira vez que fon*Pl
l com ele, por terra, e a segunda, por aqui, esc(dhj|
o stio onde devia ficar o Posto, fomos sempre de dJJB
Medo coisa que nunca vi nele. No sei pois, tartm
mais que quando foi da derrubada se viu que no ^m
resultado seguir de noite. >*"
Querendo agradar a Bonifcio, Tanajara declaras^j"
elevando igualmente a voz: '*lf
Medo do doutor tambm no , no, tenho a certeza. Todo o pessoal sabe o que ele fez qu
ando andava com seu Rondon. E aqui o Filipe, que andou l com ele, sabe mais do qu
e todos. No , Filipe?
Sempre com aquele torn ingnuo, que todos percebiam ser falso, Dorival lanava-se ag
ora sobre o seu verdadeiro intento:
Por alguma coisa deve ser... Talvez seja pelos novatos... Deve ser por eles... E
u c fao o que me mandam, mas gostar de remar de noite no gosto, no. Noite fez-se par
a dormir.
Do banco de trs, Antnio Rocha, que vinha ali pela primeira vez, protestava:
Para mim igual, est sabendo ? Entre mortos e feridos, voc h-de escapar... No conheo a
qui ningum com medo.
Ouvindo-os, Bonifcio inclinou-se para a frente e explicou-lhes:
Temos de ir de noite, para chegarmos sem os Parintintins darem por isso. Se eles
nos vissem antes, no nos deixavam construir o Posto. Esto compreendendo ? Quando
o senhor Curt foi fazer o reconhecimento, levava s nove homens e os ndios no andava
m desconfiados, como decerto andam depois da derrubada. Agora somos mais do dobr
o e no a mesma coisa arriscar a vida de nove pessoas ou de vinte e trs.
Houve um silncio. Depois Dorival disse, isoladamente: "Eram bobagens minhas". E d
e novo se sentiu o rumor, muito distinto, dos remos e da gua no meio do silncio do
s homens. Pensou ento Bonifcio haver sido a coragem que Tanajara lhe atribura uma c
oragem bem pequena, comparada com a que tivera depois de receber a carta annima.
Tivera-a, sobretudo, ao ouvir
0 denunciante, aquela voz que procurava disfarar-se enquanto lhe telefonava, afir
mando-lhe que no o conhecia pessoalmente, que se o prevenia era apenas por ser ta
mbm oficial do exrcito e ter a opinio de que um militar devia, em todas as circunstn
cias, honrar os seus gales; aquela voz safada que lhe perguntara se ele recebera
a carta que lhe havia escrito e se j se
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'H
decidira desafrontar-se. E que se no se decidira ainda.
devia faz-lo sem demora, pois o outro andava a v4u|
gloriar-se, por toda a parte, das suas intimidades cfaj
a mulher dele; mesmo no "Caf Eldorado", que >effl|
todas as tardes frequentava quando vinha a Manau
o outro se gabava. 'dl
Admitira logo no ser um oficial do exrcito qrajl
lhe dizia aquilo e lhe dava at o nome da rua e o nmeiB
da casa onde Nivalda e o amante se encontrava"!
sugerindo-lhe discretamente a proteco da lei e|8
acordo moral da maioria dos homens casados e .&
prprias mulheres, "se num momento de justificada lojl
cura os matasse". No era seguramente um oficial"sB
exrcito, se fosse no o confessaria; mas alguns ha^JB
decerto que prefeririam v-lo desagravar-se, a tirOJ
a chicote, do que restar de braos cruzados, comoJB
nada houvesse ocorrido. ' j|
A sua coragem fora grande justamente por ele sbjl
que podia mat-los e ficar impune. Todas as suas cl"
Ias protestavam contra a humilhao, mas ele resistuM
sempre. A sua profisso era salvar as vidas em peroB
e no suprimi-las; mas essa ideia, s por si, noJM
serenava. Muito o auxiliara haver pensado ser a culfH
tambm sua, com as largas ausncias e confiando denaH
siado no temperamento de Nivalda, to frgido' <$jm
corpo como nos sentimentos. O que ele bem desejJBl|
matar, sem o conseguir, eram as vozes que contiriu^Ji
vam, ressoantes e vexadas, dentro do seu prprio ceo"
bro, na solido daquele quarto que alugara no HQW
Casina, uma solido que dir-se-ia brotar da peque"
maleta escura, isolada sobre a colcha branca da can"
para onde a atirara, como se fosse a msera sntese1""
toda uma vida finda e o embrio de outra que ia MJ"
ciar-se angustiadamente. '',
Ouvia ainda Rondon dizer-lhe, quando ele reg"l|
sara antes da licena terminar e lhe confessara tudflH
"Ora, ora, meu amigo! Onde que existe uma granNf
corporao em que nenhum dos seus membros foi &&*
ganado pela mulher ? Fez muito bem em no se vinga^
Como se compreenderia que andssemos a arriscar a<f^
a vida para no matarmos ningum e fssemos matar noutra parte ? Demais a mais um mdico
! Quem estiver livre de que tal lhe acontea, que atire pedras ao seu telhado. No p
ea nada a demisso!"
Tornava a visionar o rosto franzido e desgostado de Rondon, quando lhe responder
a que j a havia pedido. "Mas eu preciso do doutor aqui e no tenho nenhuma vontade
de o substituir! you mandar um recadinho ao Servio de Proteco aos ndios. Vamos a ver
se o contratam como civil. Tem havido outros!" Navegavam sempre com a mesma cadn
cia, hora aps hora, naquela longa veia da floresta, tendo o sol, j alto, a infiltr
ar-se pelo verde-escuro das rvores, devagar, muito sonso, dir-se-ia prudentemente
, como se receasse que as folhas ou os ramos se opusessem sua invaso. "com Tarslia
seria diferente. Tinha a certeza de que ela o amava deveras, alm disso era muito
ciumenta, para o caso bom sintoma. A ausncia dele fortaleceria, em vez de debili
tar, os seus sentimentos, pelo menos durante algum tempo. Mas se ele morresse, no
tardaria decerto a casar-se de novo, bonita e fortemente sensual como era, tend
o um pai rico a valoriz-la ainda mais".
Antnio Rocha voltara-se para a distraco de Bonifcio e indicava-lhe Nimuendaj, que lhe
fazia o sinal de encostar a terra.
Almoaram num pequeno limpo da margem e, enquanto comiam, ouviram Filipe gritar: E
h valente, vem c!
O co de Amaro saa da espessa maranha, movendo jubilosamente o rabo no ar, e s parav
a junto do seu dono, sentado, com Etelvino, contra uma das rvores. Os homens deti
veram-se na mastigao, calados; e era como se a prpria brisa houvesse suspendido a m
elodia que vinha executando nas frondes mais altas da mata. Sempre com ar festiv
o, o "Mimoso", aps as carcias de Amaro, roava-se pelos braos de Etelvino, pelas pern
as de Crisstomo e de Raimundo, por quantos ia encontrando e o chamavam estalando
os dedos. Junto de Nimuendaj e de Bonifcio, que j se encontravam
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O INSTINTO SUPREMO
'*(
levafltados, ele ps-se tambm de p, fixando sobra "a joelhos dum, sobre os do outro
depois, as patitas dmg teiras, sem jamais deter o movimento de cauda,ijwi que tant
o abusava nas constantes saudaes. ({S
Ah, seu cabra sabido! tornava Filipe, ao \*-Ip to afectuoso para o etnlogo, enquan
to Amaro levava!" aos olhos as costas da mo. no
Contrariedade, uma suspeita de ternura, a imp&st cante ideia do seu dever, todas
em doses desiguam emulsionavam-se no esprito de Nimuendaj, como "at filtradas por
areias grossas, que poucos sedimentos tet* nham. Bonifcio conservava-se silencios
o e ele prefeip que Bonifcio falasse. Dos grupos chegavam frasca*
Coitadito! Mesmo assim teve que andar! Sw umas lguas... < JSK
Esquecem o que mau no dono e s si lembra" do que bom... ,slf
Nimuendaj tinha decidido. Mas j no sabia exofL tamente se estimava ou se odiava o "M
imoso". Ningufflf interviera, ningum ignorava, portanto, a solidez '&&" sua oposio.
Incomodava-o, porm, aquele silnq|i| recalcado sobre as mudas discordncias que senti
a pnK toda a parte. VgBe
Foi o primeiro a sentar-se no batelo. Enquaa^" os homens retomavam os seus lugare
s, ele fingia co"" sultar o caderno de apontamentos, que o justificaWK de no olha
r para terra, mas no o impediu de adivijS nhar o momento em que Amaro, inclinando
-se na canofw e servindo-se do remo, empurrou para a margem o cagC teimoso, que
estava em frente dele, com gua at rnei" do corpo e a cabea erguida, fixando-o muito
.
Quanto mais Nimuendaj compreendia o que ajEt outros pensavam, quanto mais lhe par
ecia ouvir ej|| comentrios que fariam logo que ele no estivesse pr**( sente, mais
se enervava. "Tinha de cumprir a sua misftf so e de proteger a eles prprios. Depoi
s de tantp^ trabalho, no ia arriscar tudo por uma ninharia sentip mental". 1*.
Por fim, os homens recomearam o seu palreio e>" alguma coisa quebrantava dentro d
ele. '-*!
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Ao morrer da tarde, j com a meia-lua, no cu azulado, muito plida ainda, entremostro
u-se um lugar propcio para jantarem e dormirem. Situava-se, porm, na mesma margem
em que o "Mimoso" viera ter com eles e Nimuendaj decidiu procurar outro do lado o
posto. No insinuava as excelncias do primeiro aquele que os seus olhos descobriram
pouco depois, mas ele resignou-se e disse a Raimundo que o indicasse ao
pessoal.
Gorda canarana bordava o Maici, brotando da gua maneira de canavial em sebe, que
defendesse a mata infinda; e bateles e canoas avanavam sobre essas folhas peludas,
em forma de lminas, que dir-se-iam espadas vergadas escutando ordens vindas do f
undo
do rio.
Os homens desembarcaram com os ltimos alimentos frescos e os utenslios de cozinha.
E, enquanto Mariano acendia a fogueira, tratando do jantar, limparam de plantas
e de ramos secos os sinuosos corredores que os troncos formavam, com recantos l
aterais, como brbaras capelas em naves de templos onricos, onde armaram os mosquit
eiros e as redes.
Havia j uma poalha doirada sobre as frondes altaneiras, que a lua sobre elas espa
rgia, mas, c em baixo, s a fogueira iluminava as figuras, quando se sentaram para
comer. Raimundo servia Nimuendaj e Bonifcio, Mariano distribua a comida pelos outro
s e alguns iam palavreando mesmo com a boca cheia, todos eles transformados em p
ersonagens caravagianas por aquela luz que lhes dava nos rostos. De repente, nos
seus dilogos imiscuram-se uns dbeis latidos, tmidos, pouco audveis, que vinham da ma
rgem oposta e passavam ali para ir morrer muito perto. Amaro e Etelvino deixaram
logo de mastigar, reerguendo a cabea, ouvidos escuta, olhos repletos de dvida. Ne
sse momento foi um uivo, bastante prolongado, que chegou at eles. E ento formou-se
, rapidamente, to grande e to geral silncio, que os uivos seguintes, furando a noit
e e atravessando o rio, pareciam ainda mais tristes e arrastados. Todos os homen
s haviam aliado a sua mudez a uma imobi-
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'4
lidade total, naquela expectativa que dir-se-ia eis^r suspensa e impregnada de ma
l-estar, nas prprias faml rs que os cercavam. Mas j Raimundo, para ser\pnm etnlogo, l
anava uma conversa a Tanajara, a Etelvinm e a Filipe, como se despejasse a gua que
ainda restoa nas igaabas sobre essoutro fogo que se acendera dfentjB deles: umas
palavras altas, formuladas pressa, fras" toa, que baldadamente lutavam por se a
garr^igS naturalidade que lhes fugia. Os homens recomeacafl ento, a comer, a falar
em voz baixa, tudo muito v&gP" rosamente e todos a simular que no davam ccntaia" a
pelos vindos da outra margem, que ora cessa vamiil instantes, fecundando esperanas
de desistncia, ;"&! tornavam a fazer-se ouvir, sempre num torn lamentam! Nimuend
aj percebeu que ningum ousava oUria na sua direco. E o dilogo que Raimundo iniciajS, o
s paleios de favor que se lhe seguiram, aqueles VOM bulos para atulharem o oco r
epentinamente abeffljl humilhavam-no ainda mais. Julgando adivinhar a-tqn| luta,
Bonifcio disse-lhe de modo discreto e lento yflS
Se podia prend-lo l... 'i$K Nimuendaj tardou a reagir, como se, antestijl
tudo o mais, houvesse de passear a soluo em &flli dos seus receios e cautelas, para
lhes obter o conseffllH mento. Bonifcio ouviu-o falar depois, com voz smcM|
No me tinha lembrado disso. Sou um idonH Diga-lhe que o v buscar, mas que tem de o
amasW quando estivermos no Posto.
Se os outros no haviam olhado ainda para to-pouco ele tivera coragem de mirar os o
utros. >PM agora os seus olhos partiam em busca de Amaro, saj tado para l da fogueir
a, aparentando to devota" ateno s palavras de Eleutrio e de Juvncio, acoer rados su
ira, que mesmo de longe compreende",, ser aquela atitude calma um completo fingi
mento. Wj, uivos haviam-se interrompido quando Bonifcio ^ft levantou. E d
ir-se-ia que os homens pressentiam tudra| pois que voltaram a calar-se ao v-lo pa
ssar junto delfy|
Ainda um instante Amaro se conservou sentadas com o olhar investigando o rosto d
e Bonifcio, p3**j|
se convencer de que tinha ouvido bem; depois ergueu-se de repente, enquanto Eleu
trio clamava para todo o
acampamento:
Eh, minha gente! O "Mimoso" pode vir! Seu Curt
autorizou. Vamos buscar ele!
No foi preciso. Na borda do rio, l onde se debilitava o fulgor do lume, alguma coi
sa se moveu na meia sombra, avanou um pouco e se deteve a sacudir a gua que se lhe
agarrara ao plo. Depois, molhado ainda, parecendo mais pequeno do que era, pela
fraca luminosidade que lhe desvanecia os contornos, o "Mimoso", com o rabo a agi
tar-se no ar, mas sem os movimentos eufricos, os saltos e as correrias da sua apa
rio anterior, acercou-se de Amaro, roou-lhe carinhosamente as pernas e, antes que e
le se baixasse para o tomar ao colo, estendeu-se, exausto, a seus ps.
Ao comeo da tarde, no dia seguinte, divisaram, finalmente, o entroncamento dos do
is rios. Descia o Maici esquerda, vinha da direita o Maici-Mirim, ambos solitrios
e mansarres; e, uma vez fundidos, completavam a forma dum psilon gigantesco, aos
lados da terra de permeio, que ali morria aguada em ngulo.
Mais estreito do que o outro rio, como competia sua qualidade de afluente, o Ma
ici-Mirim cortava a fera nao dos Parintintins, j todos os homens o sabiam; e
fazia-o com sucessivas e apertadas curvas, como se ele prprio se opusesse dessa m
aneira violao da terra proibida. Perante aquele mundo bravio, to isento de comunicaes
e cada vez mais enigmtico, Bonifcio voltava admisso obsessiva: "Se todos morressem
ali, muito tempo passaria antes que algum o soubesse em Manaus, mesmo em Trs Casa
s e talvez ningum jamais saberia exactamente como eles haviam desaparecido. Mas
ela tornaria a casar, sem dvida que tornava a casar, o que seria compreensvel, m
esmo se no tivesse aquele temperamento ardente de que os homens tanto gostavam."
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Da popa do seu batelo, Nimuendaj conthnia^f^ perscrutando as margens, monotonia tr
emenda, catet??' e deserta. Era auscultar um cadver: tudo para*1?^ tudo silente, a p
rpria brisa, respirao do univer^^ havia-se negado a comparecer. Mas, a certa altH^s A
maro deteve a sua canoa, volveu-se e fez um geSiff tmido, dir-se-ia que forado, a
quantos vinham at^fre dele. __ '3
a sepultura do Felcio explicou Raimune|i em voz baixa, no batelo de Nimuendaj, enqu
a**i? naquele que Bonifcio governava, Caroline dava. * *f| mesma informao. ^M
Via-se uma pequena abertura no cerrado da "ff** resta, pouco mais de dois metros
de fundo por outsjj? dois de largo, talvez menos ainda e tudo veiwff Vas
ta plantaria, obedecendo vitalidade duma na^jj? reza alucinada, desenvolvera-se
to exuberantemeiffe sobre o cho um momento limpo e remexido, que ,rE' no fora a cru
z de duas varas toscas unidas com cit" ningum imaginaria que h muito pouco ain
da J* enterrara ali um homem. Todas as embarcaes havi*?f parado, com os remadores em
grande silncio. Am2gl desembarcou, de olhos baixos e passos curtos. Lev#?m| uma
nova cruz, alisada plaina e pintada de bran**" uma cruz que ele tinha por mais d
igna de Felci^S,' trouxera envolta em serapilheira, sem Nimuendaj^ Bonifcio saberem
. Enquanto a espetava no lugar '*\JL , outra, Genaro ia rezando baixinho, ajoelh
ado na 5*j**' canoa, ao passo que Jarbas, h muito incrdulo, * $ mungava para si
mesmo: l"?'|
Lhe h-de importar muito agora, ao pobre... ^
Que que voc est dizendo a ? pergunt1*" Honrio. * ^
Nada. ji No demoraram a partir, amofinados, silncios*?!
com aquela imagem que parecia lanar razes de^ os olhos at os canais respiratrios, dii
icultando-lfrfj o acesso do ar; aquela imagem que a floresta devora**^ tambm em b
reve, transfigurando-a totalmente. j A meio da tarde, Nimuendaj fez-lhes sinal P^
!|
que parassem de novo: uma das margens revelava, finalmente, vestgios dos homens c
om quem se vinham defrontar. Esteios e varas que tinham sustentado oito tapiris,
oito tectos de palha, abrigadores de Parintintins, inclinavam-se, uns ao lado d
os outros, velhos e destroados. Ele j os havia estudado na sua anterior incurso, ma
s pensou ser til ir familiarizando os novios com as habitaes dos ndios e, frente dele
s, desembarcou.
Junto do arbustedo que crescera sobre o antigo rancho, uma rvore grossa, a mais a
lentada de quantas o vizinhavam, ostentava algumas iniciais abertas a canivete,
j quase absorvidas pela cicatrizao da casca.
Foi Caetano Cetauro quem gravou isto disse Nimuendaj. Dormiu aqui o ano passado
.
Eleutrio acercou-se do tronco, mirou, remirou com a sua incapacidade de analfabet
o e, pondo o dedo sobre as letras quase sumidas, inquiriu:
Quem era esse Caetano ?
Admitindo que um dia, depois de todos os seus esforos, de todos os riscos desafia
dos, de todas as negligncias tidas com a sade, algum ousasse fazer a mesma pergunta
, com o mesmo nimo leviano, em relao a ele prprio, Nimuendaj enervou-se:
Quem era, no; quem respondeu, de modo rspido. Caetano Cetauro um desses homens c
orajosos que tm gasto a vida por estes stios da morte e que quase todos os outros
brasileiros ignoram. At voc, que do Amazonas! Dir-se-ia que se arrependera daquel
e torn agreste, pois logo a voz se tornou mais branda: empregado do seringai
Paraso e veio por conta do seu patro. Veio ver se se podia fazer as pazes com os
Parintintins, sem meter balas neles, para depois explorar a borracha daqui. Foi
o primeiro a descer por este rio, depois pelo Maici e pelo Marmelos, at o Madeir
a. Manuel Lobo fez quase a mesma coisa, tambm por causa da borracha e por amor ao
s ndios. Ambos tinham as ideias do general Rondon e no comearam por a aos tiros. For
am eles que deram o nome de Nove de Janeiro ao igarap para
ioo4
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'"<
onde ns vamos. No conseguiram nada, mas coraJajjS no faltou a eles. Percebeu, ? !fi
S|
Mas o Caetano veio sozinho ? Era Etehiij quem o interrogava agora e a car
a de Nimuenqjj] tomou um ar de pacincia: ,2oS
Que podia ele fazer sozinho nestes sertes ? d&g com doze companheiros, valentes c
omo ele. tjii
A lembrana dos pioneiros que haviam dormido m a sensao das suas presenas invisveis a
colaremll aos seres e s coisas, a dificuldade de situar geogrfica mente a eles prpr
ios nesse momento e, sobretudo" ambiente de tapera abandonada, logo desfeita por
'ura natureza sem piedade, criavam de sbito nos hoi| um estado de alma singular,
mal definido, que pa| Tito Boludo era como se ele, semelhana de Felffl e de Camar
go, j no estivesse vivo. i 3
Latas de conserva vazias, todas ferrugentas^ l tampas enroladas, um pouco ao mod
o de bzios,da volta das chaves que as abriram, e ties apagaoi negrejando entre o ver
de das plantas, agravavam ainj mais, nos que vinham ali pela primeira vez, esse
an timento de comunho dramtica que se estabeleci entre eles e os outros que os hav
iam precedido. Eli ento, ao ver Jarbas afastar rapidamente os seus ol3< dos resto
s de madeira semiardida, como se esbrasps sem ainda e lhe queimassem as pupilas,
que Ninrq daj associou esse movimento, que dir-se-ia instintis| a outros gestos de
le quela maneira cuidadosa oqap! apagava os fsforos e quase violncia com que 00 ca
va as pontas de cigarro, gestos sobre os quais mus! havia meditado, mas que o in
trigavam agora. -fill
Voltaram s embarcaes e, pouco aps, ladeava! outros ranchos, tambm abandonados, terras
um M roadas, que os anos haviam transformado em viqj jantes capoeiras. ^
Nimuendaj verificou que no ltimo, quase ti velho como os anteriores, o cho fora de
novo lim| e sobre as antigas palmas de uauau, que lhe serviaa de tecto, j escureci
das pelo tempo, outras, colocad h pouco, se conservavam ainda verdes. Era no pon"
mais alto da margem, airosa esplanada na anca da floresta, de onde se podia abra
nger, para vigilncia defensiva ou recreio dos olhos, um estiro fluvial muito longo
e desimpedido.
A presena recente dos Parintintins evidenciava-se, de novo, mais adiante. O tijuc
o ribeirinho guardava ainda a marca de uma proa de igara, a proa duma dessas pir
ogas que eles, bons cirurgies dos vegetais, obtinham cosendo, com cip, as cascas f
lexveis e grossas de certas grandes rvores. "Talvez pescadores" aventurou Nimuenda
j, hesitando em prevenir imediatamente os seus homens. Mas no tardou a aparecer ta
mbm, sobre a lama da margem esquerda, um ninho de japim, amachucado como se criana
s lhe tivessem posto as mos, e vrios ramos torcidos h poucos dias, para dar passage
m ao dono das pegadas humanas que ali igualmente se viam, muito ntidas e direitas
floresta. Nimuendaj reconsiderou: "Um ataque esperado j uma possibilidade de vitri
a sobre o atacante". Inclnou-se para a frente, pediu a Raimundo que pusesse de so
breaviso os outros remadores; mirou depois a canoa que vinha mais perto do s
eu batelo, acenou ao Manga Verde que se aproximasse e encarregou-o de informar Bo
nifcio e Amaro sobre as insinuaes que a orla da grande mata acabava de lhe fazer.
medida que iam sendo alertados, os homens endireitavam os bustos, volviam a cabea
para a margem esquerda, fixavam-na um instante, trocando comentrios em voz baixa
; e continuavam a remar lentamente, com esse mnimo de rudo que o chefe lhes ordena
ra. Parecia que nada de novo se apresentava, que nada de grave se sugeria; e o M
anga Verde, de volta ao seu lugar, disse a Nimuendaj, roando-lhe o batelo, que Boni
fcio e Amaro tambm j tinham dado por aquilo. Declinando sobre a floresta, o Sol dei
xara de se ver. E nessa tremenda soledade da terra, que nenhum deles sabia agora
se era verdadeira ou ilusria, dir-se-ia que a Natureza se sujeitava a uma rendio a
bstrusa, passiva, de todo alheia s cambiantes que ia sofrendo com a luz; mas sobr
e ela parecia baixar, vinda dos
1000
tormentos iniciais do Universo, urna poesia pica, soturna e densa, que aguardaria
apenas a hora de poder exprimir o inefvel, de exprimi-lo dramaticamente, em voze
s ou em ritmos como jamais algum ouvira.
Repousaram sobre os prprios oleados das canoas e dos bateles, ao abrigo do dossel
que lhes ofereceram as pernadas ribeirinhas. A meio da noite volveram a pegar no
s remos, pela primeira vez entregues ao patrocnio do luar; e cautelosamente, mas
sem parana, navegaram at o amanhecer.
Viveram o novo dia ocultos entre as rvores, dormindo sobre a folhagem morta, depo
is jogando as cartas, gesticulando em vez de falarem, sorrindo-se dos seus prprio
s gestos, c sempre com dois vigias atentos, um floresta, outro ao rio. E logo qu
e a Lua reapareceu e mesmo antes de Mariano e Etelvino levantarem todos os prato
s do jantar, encaminhamm-se para as embarcaes, com a lngua desalojando os restos de
goiabada que se lhes haviam grudado aos dentes.
O rio apresentou-se-lhes como estrada de oiro, muito calma, fulgente e veludosa.
Ao longe rugia uma suuarana, lanando para ali os seus ecos medonhos; e parecia-lh
es mais estranho do que nunca que em tanta paz, solido e deslumbramento nocturno
houvesse uma fera a fazer arrepiar a terra.
Viagem que tanto os enfastiai a pela sua longuido, agora que s aquela noite lhes f
altava para remat-la, iam eufricos. encurtamento duma expectativa to morosa em conc
luir-se, as novas situaes para a saciedade psquica que manava duma constante presso
moral, a prpria habituao a variadas iiipteses, pareciam haver conciliado, de maneira
duradoura, o instinto de defesa individual com a ideia que os comandava. S Tito
Boludo, sabendo que o perigo se aproximava do cume, perguntava a si mesmo se dev
ia efectivamente arriscar-se por uns tipos ferozes, que no faziam falta alguma no
Mundo. " minha me conheo
INSTINTO SUPRKMO
TOO"
i, que muitos trabalhos passou para me criar; s ls, nunca as vi mais gor
das". E j no compreendia i in por que se engajara e viera para ali.
Continuaram os bateles e as canoas a rentear a i u'gem direita, sempre com a
quela passadeira doirada
e o luar estendia banda, atrs e frente deles, 'lele tapete suave e esplendor
oso, imperceptivelineiite
l uite, sado, dir-se-ia, do palcio onde habitava o io incognoscvel da flores
ta, para uso das suas fabu-
is visitas, em noite de festival.
Subiram ainda mais e arribaram, enfim, ao stio
'< seria instalado o PoMo. Era a modo de promou-
10 a terra que fora limpa pelo grupo de Amaro e
.cria, ao fulgor da Lua, a proa de enorme paquete
Calhado entre o Maioi-Mirim e o igarap Nove de
neiro, que ali confluam placidamente; um paquete
andonado, escondendo a popa na linde da brenha e
.,miando a ponte de comando com a mancha escura
is rvores que se viam ao fundo, como uma barreira
fendendo o mistrio.
Pouco passava da meia-noite e. mesmo depois de narradas as embarcaes, Xunuendaj c
ontinuou sendo no batelo, sentindo alastrar pelo corpo uma Ima nov
a e macia, como se estivesse em lena, no iverno, e se honve-.se banhado
em gua emente. Tirou do bolso o seu caderno de chefe e, por favor luar, pde escrev
er, com mo iirme e letras gradas:
31 !>]: MARCO D1-: /OJ-;
C PI EGA M OS
Filipe, que tendia para a1- alvoicant> s supoMc-;, i via admitido e- .nlusum nte qu
e o <k --embarque ali, pois de tanta loiijura t- de to ruins rvrntualidades,
realizaria de foi ma extr,amimai ia, nem ele \isioava como; e, afinal, nulo deco
rria noi malmente, pois ormais eram at os suspiros de ,ili\u> eme alguns aviam so
ltado. IV p sobre o barr.ui'u, a noitf tr.iM-lhe palavras surd i^ de Amaro, dai U
D otdttis:
ioo8
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1009
Voc, voc, voc... E voc tambm e tamb&n voc, voc, voc e voc, vo descansar agora, at
o horas. Os outros, das quatro s seis. O({
Estamos sempre a descansar; no fazemos outra coisa. Onde est a rvore para nos agar
rar a ela B sermos preguias ? repontava Juvncio, querendo vap lorizar-se com aquel
a audcia de tmido, que de repen^ o incendiara por dentro. Ontem foi o dia inteiojt
Eu c no preciso, no. }\\
No vem para c com histrias. Se no dew cansa agora, quando for dia, que quando faz m
ail falta, no tem foras. i
Vamos experimentar ? Os outros tossiram, dtW vidosos e irnicos. ija
No experimenta nada. Descansa agora torno" Amaro. if
Alguns, depois de desembarcar, alteavam os busto^ distendiam os braos, repetiam o
s bocejos, como f houvessem terminado uma sesta. E logo, uns atrs di outros, seguin
do Raimundo e Carolino, j pilotos-mfisl trs daquele cho, foram transportando aos om
bros, ribanceira acima, as estacas de aguadas pontas, qu vinham na canoa do Manga
Verde, ern pilha, maneix^ de grosso feixe que se desatara. 3
L no alto, restos dos velhos troncos prostrados^ ' que o fogo no consumira inteira
mente, dincultavam-Ihes os passos; mas, ladeando-os ou sobre eles abrindo as per
nas, iam depor as cargas ao fim da terra queimada, como lhes fora ordenado. Iam
e voltavam, sombras que o luar recortava; e, aps duas levas, deram-se a fazer ava
nar, por entre aqueles grandes trambolhos mortos, rolos e mais rolos de arame far
pado.
Bonifcio, que subira para o batelo de Nimuendaj, viu-os carregar, mais tarde, as ch
apas de zinco} duma cor quase igual da comprida nuvem que rompera pelo cu adiante
, lenta e ameaadora, semiocultando por momentos a Lua. Os homens levavam-nas hori
zontalmente, sobre as cabeas, um atrs, outro frente, segurando-as pelas bandas, co
m os braos arqueados como asas de vasos.
Oxal no chova disse Nimuendaj, espraiando a vista sobre o recheio das embarcaes, aps
haver seguido, um instante, o curso da nuvem. Estas coisas demoram sempre mais
do que se pensa. E, depois, o tempo que se vai gastar para pr em ordem tudo o que
vem a! S a lista do Servio de Proteco tinha duzentos e oito artigos, sem contar com
as repeties e os medicamentos. E eu ainda indiquei mais uns trinta e tantos... Oxa
l que a chuva no venha atrasar tudo.
A nuvem foi amvel e no choveu.
VII
/\o surgir da manh afanosa, alguns relancearam ainda, para confirmar a viso noctur
na, o pedao de terreno que se estendia, mais comprido do que largo, defronte dele
s. Dir-se-ia leira de restolho queimado, por entre os troncos prostrados, a dese
ncadear uma sensao desprazvel, quase irritante, como se lhes tocasse na pele. "Vai
ser, ento, aqui pensou Etelvino, que s via com nitidez por um dos olhos, embora j
amais o confessasse. Mas aqui ou noutra parte, d
o mesmo".
Perto dele, com um dos ps sobre o caixote que havia transportado, Filipe visionav
a os ndios a investirem por ali fora. E vinha-lhe o desejo de que isso acontecess
e precisamente naquele instante, para assistir ao alarme e confuso que ele estava
a imaginar para ver sobretudo se Tito Boludo e Dorival eram assim valentaos como
apregoavam.
Os movimentos dos homens, to cautelosos de madrugada ... "cuidado, por a no t bem",
"voc por aqui tropea" haviam-se transformado num frenesi quando a luz do dia cheg
ara. Lufa-lufa bem-humorada, uns abriam covas, j outros espetavam as estacas e at
rs deles outros ainda iam desdobrando o arame farpado no extremo da terra calcina
da, l onde comeava a
IOIO
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&
floresta com a sua ameaa e o seu enigma. Do lado " Maici-Mirim, machados cheios de
pressa abatiam, entufe as rvores mais prximas, as que melhor servisse" para estei
os, vigas e caibros do barraco a constj3r e tambm para as muitas estacas que falta
va!" ainda. HJJJ.
Fardos, caixas, ferramentas, subiam dos bateli sobre os dorsos dos homens vergado
s; e s Filipe dS toava na fila dos que iam pelo barranco afora. PegaS nos volumes
com as pontas dos dedos, parecia hesitar antes de os erguer, se pesavam muito c
ompunha imediSi tamente rosto de sacrificado. Avanava to ronceiij entre os demais,
to sereno e indolente, que logo nulfr das primeiras subidas, Dorival, que caminha
va atrjjfc dele e com seus modos embirrava, metera-lhe violen^M mente o indicador
pelas ndegas, como se o picaSS! com uma aguilhada.
Se voc no quer trabalhar, no me tape o calA nho. T ouvindo, hem? *^m
Filipe era elegante por sua natureza, nos geslB delicados, nos movimentos do corp
o, s vezes nas pffllj prias falas, adaptadas das que em Manaus escutaWB" Os outro
s viram-no enfurecer-se repentinamente, laai" ao cho o pequeno caixote que levava
e virar-se PWH a cara de Dorival, de braos decididos e punhos <m chados: >fi"
Seu safado, se voc pensa que sou desses, ettt lhe you ensinar! 4
Juvncio, intervindo com suas maneiras tmicWtf' suportou, metade no ombro, outra me
tade no pescofS j a roar a mandbula, o soco que a mo de Filipe colericamente despacha
ra. <
Todos os demais voltaram atrs, l onde o sorriso parado de Dorival enfrentava a con
ciliao tentada por Juvncio e a espuma que o adversrio tinha ix& lbios. No era a primei
ra vez que Filipe pressenti^ nos outros aquela admisso e essa recarga de suspeita
s rebentava agora to violentamente como no dia d* duas bofetadas que dera num sold
ado, em Manaus
Fresco ser ele! l(
Dorival continuava calado, mas parecia de bom humor e no retirara sequer o fardo
de sobre os ombros. Por fim, perante o coro dos apaziguadores, disse, sem
se mover:
Era uma brincadeira. Lhe peo desculpa. T bem? No pensei ofender. Mas nunca m
ais voc v adiante de mim, pois quero subir depressa.
S ele e o Tito andam sempre a implicar com o pessoal e depois dizem que bri
ncadeira vozeou ainda Filipe, na direco de Maximiano, que mais insistia em acalm-l
o.
Perto da floresta, em trs pontos diferentes, retaguarda dos homens que ali trabal
havam, outras mos laboriosas iam fincando verticalmente na terra duas folhas de z
inco. Juntas dum lado, separadas do outro, formavam ngulo, quase no jeito das vel
has seteiras; e, maneira de telhado, outra chapa ondulada se sobrepunha a elas,
horizontalmente, contra a chuva e contra o sol. Por essas guaritas protegidos, f
icaram logo de atalaia, espiando a mata atravs dos quatro buracos furados altura
dos olhos, Genaro, Cavalcanti
e Aristeu.
A meio do acampamento, entre o material j desembarcado, Nimuendaj e Bonifcio, de ma
rtelo e talhadeira em punho, abriam as caixas de brindes. Preso a um cepo, ao p d
eles, o "Mimoso" seguia, de olhos curiosos, o andamento de Amaro em fiscalizao aos
trabalhos, enquanto Mariano, acocorado atrs dum dos troncos semicarbonizados, co
m uma colunazita de fumo evolando-se to prxima da sua cabea e to tnue que dir-se-ia o
seu prprio bafo em fria manh de Inverno, preparava o caf.
Expostas luz do Sol, muitas delas rebrilhando, as bufarinhas que as duas caixas
j abertas continham, ora lembravam importao de bazar, ora sugeriam um catico tesouro
de piratas. Nimuendaj apartava calmamente, por vezes hesitando entre uma e outra
, aquelas que admitia serem mais propcias para as relaes iniciais, dele e dos seus
homens, com os Parintintins.
A^J
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1013
Parece-me que no deram ainda por ns. J&j$|L rei ir consigo ? perguntou-lhe, de sbi
to, Bonif^H
No pode. >'Hff
you sentir-me aqui um intil... i>una
Oxal que nunca deixe de ser intil. ~^ Nimuendaj desviou os olhos para o pessoal nu
trabalhava e, como sempre que previa dificuldadesj||| pensava num apoio a que es
tivesse j habituado, effl lheu Raimundo. ^w
Depois do caf e de Eleutrio ter pedido, emumH de todos, mais cachaa, os homens vira
m os dois parai de braos a pendularem e serapilheiras s costas,' Mi* chadas de pre
sentes para o inimigo. IBM
Aprofundaram-se na brenha, com o silncio a sujil mir cada vez mais o rudo dos mach
ados na rijeza troncos e o dos martelos a pregarem nas estacasljl fios de arame
farpado, ao longe; e cautamente foraj identificando as possibilidades ali existen
tes de cilaap e de ocultao. a||
Visvel no havia ningum. Somente as rvdljK sempre as rvores, que pareciam, elas prprias
, tamJ|H| interrogativas perante aqueles dois estranhos, comEp jamais tivessem vi
sto um vulto humano a pertoraS! a sua extrema solido; rvores, arbustos e, aqM|" alm,
rsteas de sol escorrendo preguiosamente pSf fustes. Duas vezes Nimuendaj e Raimundo
desemfcsr caram num velho carreiro dos Parintintins, lanara" para as bandas do s
eringai Paraso, em alguns dos<effc tractos pouco mais perceptvel do que trilho de a
rtftt que eles percorreram durante uma hora larga, JEW vagarosos passos e olhos
muito atentos. Embora '"P" bendo que os ndios tinham pisado, recentemente anwt, es
se solo bravio, quando atacaram os homens da derrubada e recolheram os brindes d
eixados por Amara, em parte nenhuma conseguiram descobrir vestgios te*" cos do se
u trnsito. A folhagem morta, cmplice alfoscbra da floresta, recusara-se a guardar
as marcas denUBf ciadoras dos ps que a haviam calcado. '
No seu regresso, vinham Nimuendaj e Rarnuno" extraindo das serapilheiras vistosos c
olares de vidroS
rutilantes na diversidade das cores, pequenos espelhos, saquitis de missanga, tud
o dependurando nas varas que torciam e inclinavam para aquela senda estreita, a
modo de canas de pesca sobre um ribeiro, com iscas destinadas amizade que se des
ejava fundar. E quando, meio-dia andante, voltaram terra limpa, j a cerca de aram
e farpado, que devia ladear a mata desde a borda do igarap Nove de Janeiro at a do
Maici-Minm, estava quase terminada. Apenas Caroline e Antnio Rocha trabalha
vam a meio da seco mais comprida, onde Nimuendaj pretendia engonar uma cancela, abri
ndo o acampamento floresta, para que os Parintintins por ela entrassem na hora d
a confraternizao, por enquanto muito incerta ainda. Tambm o esqueleto do principal
barraco do Posto se recortava j no ar, com os esteios e as traves ainda lagrimejan
do seiva de seus corpos recm-esfolados. Perante tanto avano em to minguado tempo,
uma satisfao desaparecida com a morte de Felcio e de Camargo, como que levada por e
les, renascia no esprito de Nimuendaj em relao a Amaro, ao ver de novo a sua arte de
dirigir e concertar, sem berros autoritrios, nem gestos duros, os esforos de dife
rentes braos. Uma satisfao alicerada sobre a actividade dos homens que haviam ido ma
is alm de tudo quanto ele tinha previsto e continuavam a laborar com essa expresso
desenfadada que o surpreendera no povo braslico desde a sua chegada a S. Paulo,
povo optimista superfcie, no cerne como que nostlgico duma ventura interrompida e
sempre tendendo, talvez por essa prpria dualidade, ao
sorriso e ao chiste.
Logo a seguir ao almoo, Nimuendaj emparelhou Raimundo e Caroline no banco da monta
ria. E com ele popa subiram o Maici-Mirim, rompendo a gua e a terra do medo, dese
mbarcando nas margens onde nenhuma folha bulia, para depositarem dentro da flore
sta novos brindes. O pessoal viu-os descerem a meio da tarde, passar em frente d
o acampamento, meterem estreitura do igarap, decididos a repetir, nos mais prximos
trilhos dos ndios, as ousadias que haviam
ioi4
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'"<
levado a cabo, horas antes, nas vizinhanas doL'lio.
Volveram noitinha e de novo abalaram na manh
seguinte, lanando a proa a jusante do Maici-Mim
onde foram terminar, com suas quinquilharias, aquel%
linhas de fortificaes psquicas, eventualmente defefe.
sivas. ,rtf
Bonifcio no largava a vista do rio. Ia acheganl
materiais aos homens que construam o barraco,' cj|
trepados sobre escadas improvisadas com duas gros&il
varas, mas a sua inquietude no cessava j amais '<J|
disparar-se para aquela banda. Viu, enfim, a montara
regressar, completa e vagarosa, com a gua que escawH
das ps dos remos, quando levantadas, brilhando fugaas^
mente luz do Sol. '"tal*
Avanou ento para o extremo do barranco,-^-
encontro dos homens que andavam, desde a vsper
arremessando seu desafio ao segredo da floresta. Ti
parecia estranhamente natural, quotidiano, acto comBit|
Nimuendaj, Raimundo e Carolino subiam agoras,,
ribanceira, tranquilamente como se viessem duma ped|
mediana, nem farta em capturas, nem gorda de dedffl|
coes. E ao v-los Bonifcio considerou, como tapilL
vezes lhe ocorrera quando se integrava na hoste njMH
doniana, que muito frgeis seriam os vnculos, se pcfl|
ventura alguns existiam, entre o herosmo de pala-vtMB
faulhantes nos textos escolares, nas histrias patriHK
ticas e nos discursos retricos, e o herosmo nos foo^BK
necessrios, sem contgios excitadores, mesmo se4||
naturalidade que os trs homens aparentavam f08^^
premeditada, mesmo que a sua audcia no se tives"
consumado sem largas e ferventes apreenses. Mas-'":?
palavras podiam mais do que os factos, eram eles qw
os matavam ou eternizavam, criando a seu bel-praOT
outras alastrantes verdades. >r<1*,
Em cima, o pessoal acenava jubilosamente do# ;
vrios pontos do acampamento. Nimuendaj inclinatfv
de leve a cabea, avaliou os trabalhos efectuados na"|!
ltimas horas, voltou-se para Bonifcio e disse-lhe, *,|
sabor daquela satisfao que se lhe vazava no esrjFi
rito: f i
Se eles no aparecerem dentro de cinco ou seis dias, teremos quase tudo feito quan
do vierem e j poderemos defender-nos melhor.
Vieram no terceiro dia, ao findar da manh. Faltava bastante ainda para terminar a
s instalaes, mesmo as provisrias, e o pessoal pensava mais na hora do almoo, que se
aproximava, do que neles, quando Genaro, de sentinela ao fundo da terra roada, en
viou os assobios de alarme, uns a seguir aos outros, como silvos de barcos dent
ro do nevoeiro. Imediatamente uma brbara gritaria, sada de bocas que ningum enx
ergava, onde o dio parecia alternar com o regozijo, soou na orla da floresta, per
to dali. Os homens, largando seus trabalhos, correram a abrigar-se atrs das folha
s zincadas que Nimuendaj mandara, logo no primeiro dia, pregar no madeiramento do
barraco, dos dois lados voltados para a mata, os mais perigosos por serem os mai
s expostos. Corriam e entre eles iam caindo flechas aps flechas, como se comandad
as pelo ritmo daqueles gritos. Uma atingiu o carnaba de Antnio Rocha, enfiou pela
copa, ps a aba dianteira para o alto, como se levantada por um p-de-vento; outra
rompeu a blusa de Jarbas, acima dos quadris, deixando um ardor de lngua de fogo n
a pele que a sua haste violentamente roou.
A terra limpa quedara, enfim, deserta e as frechas passaram a bater, teque, tequ
e, teque, nas fortes chapas de zinco; a bater repetidamente, mas em vo. Logo, porm
, abandonaram seu voo horizontal e, como as dos caboclos quando arpoam, na foz d
os igaraps, as tartarugas em acto de imerso, traavam um arco sob o azul do cu e vinh
am cair a prumo a dois passos apenas do stio onde, permutando chalaas, os homens s
e refugiavam, o que Eleutrio tinha, ainda assim, por m pontaria. No tardaram a espa
cejar-se, elas e os berros que at a pareciam dar-lhes maior fora. Bruscamente
ioi6
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t<*K
um grande silncio veio daquele lado, com tod^ a sugesto de um silncio definit
ivo. (?^j
Ps-se ento Nimuendaj a contar as flechas, de^ft as que se mantinham de p, enfeitados
postes deqn territrio de bonecas, s que se estendiam, com SM' ar de coisa j intil,
no cho cinzento a que elas empre!' tavam, dispersamente, a graa das suas penas mul
ti colores. E verificando que eram em menor numere <jj que lhe parecera no momen
to do ataque, concluim aps haver atribudo, por alto, uma dzia a cgaw carcs
: >>ttul
Foi, provavelmente, um pequeno grupo que f>a" sou a, talvez por acaso ou por anda
r de vigilncUf depois da derrubada. Eram poucos, seno teriaraof chado de vrios pontos
da cerca. E at pelos gritosfMt percebia que no eram muitos. i ixB
No eram muitos, mas eram bestas, graas"! Deus comentou ainda Eleutrio. >rfS
Ao ver desimpedidas de terror as caras dos qoHV escutavam, Nimuendaj pensou ser ti
l revelar-mea'aif demais^ dedues que fizera: 'flR
claro que eles vo prevenir os outros e qufBL quer destes dias a esto em grande band
o. P3^8^! de novo os olhos sobre o pessoal e acrescentou pa*MH damente: Que ve
nham! No para outra coisa' *EJm estamos aqui. O pior seria se nos acontecesse o m
esinMj que aos do Posto nos Muras-Piras, que nunca virfflH um parintintim. Rira
m alguns dos homens e ttwi aproveitando essa rarefaco do ambiente, termiluJ*|
com deliberado desprendimento: Vamos almoar. Scf horas. Ji<t
Comeram vagarosamente, falaceando para um$ outro lado, como se quisessem demonstr
ar a eles pf"| prios que no tinham medo, j que o medo est semp(r) com pressa; mas d
epois lanaram-se aos trabalhos com o mesmo despacho dos dias precedentes. Os que
se encontravam de vigia foram ento rendidos e Genard] perto do qual os ndios havia
m atacado, trazia, a mod^ de bufarinheiro oriental, as mos a transbordar de colaf
rs, que lhe escorregavam dos dedos, como serpenteai
Desprezaram os brindes; jogaram para dentro da cerca disse a Nimuendaj e Bonifcio
.
Voc viu eles ?
S vi uns bocados de caras. E tambm algumas das mos que saam das folhas. Perceberam
que eu estava ali pelos assobios que dei e no paravam de jogar flecha contra o zi
nco.
Eram muitos ?
No sei. Mas me parece que no eram, no. Secundado por Bonifcio, Nimuendaj recolheu as
flechas, em seguida os presentes rejeitados; e a meio da tarde exps ao mdico as su
as decises. Era preciso repor os brindes, juntando-lhes outros novos, ainda mais
tentadores, e ele prprio iria faz-lo, como no dia
da chegada.
possvel que ainda estejam por l admitiu Bonifcio, com voz de preocupao.
No devem estar. Se esgotaram todas ou quase todas as flechas, como suponho, natur
al que tenham ido maloca arranjar mais. Mas se estiverem, pacincia! Se no me ataca
rem traio e se alguns deles compreenderem a lngua geral, pode ser o comeo
da paz...
No haveria outra maneira?
Que maneira ? Nimuendaj interrompeu-se um instante e, pressentindo as palavras q
ue Bonifcio guardava, ajuntou: No acontece nada. Mas se alguma vez acontecer qual
quer coisa, desde j peo o favor de auxiliar o Amaro. Ele tem boa vontade e sabe o
que necessrio fazer, mas no tem muita instruo.
Encontrava-se Amaro junto de Maximiano, que aplainava madeira, no centro do acam
pamento, sobre um banco tambm improvisado, e Nimuendaj chamou-o. __
conveniente mandar ver se eles levaram os outros brindes que anteontem deixei a p
ara cima. Rena o pessoal e escolha dois voluntrios para irem l, na montaria, com o
Raimundo. Se os levaram,
ponham mais.
Amaro afastou-se, mas no tardou a voltar:
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O INSTINTO SUPREMO
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O INSTINTO SUPREMO
Todos querem ir. *
bom. Escolha o Rocha e o Juvncio, que /Mg, pediu para o aproveitar. ^t
No sei se eles sabero fazer isso como d" ser. melhor eu ir com eles... gjn
No vai, no. Voc hoje no sai daqui. O Rni mundo sabe perfeitamente. ^j,
Ento o Raimundo no vai consigo ? interveR Bonifcio. ^R
Para qu ? preciso no outro lado. E quariB menos gente ocuparmos com isso, mais es
taro adaP tando os trabalhos aqui. l jB|
Bonifcio argumentou ainda. As palavras, corflOjfB setas de h momentos antes, voava
m e tombatdM^ sem efeito. E pouco depois viu Nimuendaj avan|H| para a mata, de no
vo com a serapilheira atestada IB bugigangas, o faco cinta, o carnaba de abas larg
K a recordar-lhe enorme cogumelo e uma dzia de flecfiHj sob o brao, como se fosse,
por sua vez, atacarNBE
Junto da cerca, voltou-se e acenou-lhe, a chamB" Pediu-lhe que segurasse as flecha
s enquanto ele remesjBB nos bolsos, de onde extraiu o seu caderno de aponfflH me
ntos, que lhe entregou.
Guarde-mo, no v eu perd-lo por a disi -lhe e pareceu a Bonifcio que havia na sua voz
ura" breve emoo. 9
Logo que penetrou na floresta, Nimuendaj cortflfi uma vara. E com a ponta foi lev
antando, media" que avanava, as folhas mortas que em frente dos senff passos lhe p
areciam suspeitas, por menos acamadajf, do que as demais. No tardou a sorrir. M
uito prxit^ ainda da cerca, um estrepe envenenado, de reborcw* cuidadosamente afi
ados, aguardava os ps invasort, alapardado sob um daqueles despojos vegetais, coff
lb sob uma asa. (0
Envaidecido pela sua experincia haver descoberw a velha cilada ndia, satisfeito po
rque o seu pessoal andava bem calado e no de rudes seringotes ou &p p nu como os ho
mens que tiravam a borracha, vtimas
mores daquelas armadilhas, Nimuendaj prosseguiu no avano. E, de quando em quando,
a vara que lhe parecia to eficaz na circunstncia como as das fadas, punha ao lu nov
as pontas de setas, muito inclinadas na direco do Posto, como se reverenciassem, e
m nome da Morte, quem para elas desprevenidamente caminhasse.
Ia sobre o mesmo cho solitrio que tinha pisado com Raimundo dias antes e em parte
alguma topou um nico dos brindes que por ali deixara, a mos rotas, como joalheiro
ambulante, enlouquecido de repente. Tantos, tantos em comparao com os arremessados
para dentro da cerca, que depressa se convenceu de no terem os Parintintins resi
stido a guardar a maioria deles, justamente os que expunham os atractivos das su
as formas e das suas cores mais longe do acampamento. No havia sido, pois, intil a
iniciativa que tomara e com essa verificao de novo se sentiu
contente.
Sobre o velho trilho que apontava ao seringai Paraso, to distante dali, foi espeta
ndo, nos trechos mais a direito, as doze flechas que trazia. Em baixo, volta das
hastes, de modo bem visvel, disps cuidadosamente os estrepes por ele desvelados;
e na extremidade superior, l onde elas apresentavam um corte anguloso para aderir
corda dos arcos, pendurou, de encontro s plumas, novos saquitos de oferendas, no
vos convites ao entendimento e paz. Descia a noite, dum quente abafado e hmido, q
uando reapareceu no Posto, com o olhar preocupado e a serapilheira vazia. Cavalc
anti, ultimamente a queixar-se de poucas foras, foi o primeiro a surgir na sua fr
ente e a dizer-lhe num torn
de alvio:
J no tvamos contentes com a demora do si...
Pouco depois alguns batiam palmas ao ver Raimundo, Juvncio e Antnio Rocha voltarem
tambm. Na terra que haviam inspeccionado, os ndios no tinham passado ainda e os br
indes deixados continuavam a desafi-los.
IO20
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"MB
A partir daquele dia, a expectativa adensou-se aiiaM, mais no esprito do pessoal,
nos seus olhos, nos ieiB ouvidos, dir-se-ia que no prprio tacto, pois qu X dedos
se detinham, s vezes, sobre o material em g3| trabalhavam, como se escutassem tam
bm. Uma expecfi tativa em emulao com a da floresta vizinha, qw parecia aguardar, in
cessantemente, desde as cabeceiiijj dos tempos, uma presa que tardava. A presa c
hegaJI por fim; a presa eram eles, todos o pensavam. A steofE de arame farpado,
que de comeo s os isolava da mat! j se distendia agora ao longo dos barrancos do No
iH de Janeiro e do Maici-Mirim, cercando tanto o acanJB pamento, as prprias canoa
s e bateles arrastados psfl| terra e entregues sua proteco, que Eleutrio, seinlf pr d
e bom humor, comentara perante a ltima esta^H
Estamos agora to seguros como uma boiafqH no curral. Quem havia de dizer minha
av quej ia. virar boi ou vaca ? "iH
Os homens riram. Riram porque, justamente nuB mentos antes, Nimuendaj mandara faz
er uma segunoM vedao, apenas do lado mais perigoso, o da florestM pois que o arame
sobrante no chegava para duplicdM a que defendia as margens do igarap e do rio. Fi
neiH ram-na em poucos dias, a uns seis palmos da primehaj
O barraco maior, todo revestido de zinco, com doM dormitrios, a cozinha, a sala, o
s quartos de NimueaM daj e Bonifcio, uma alpendrada espairecendo park'OT banda do
pontal, ficou tambm rematado pouco depo^W E o menor, onde se aboletariam mercador
ias, se inS talaria a oficina de carpinteiro e podiam dormir quatMf homens, desen
hava j no ar a sua armao.
No sendo necessrio abater mais rvores, aqueles que se haviam entregado a essa truci
dao desatravaffrt cavam agora a terra ocupada, transformando em lenha para a cozinh
a os velhos troncos meio carbonizados" E uma tarde, de machado em p, a mo apoiada
na/ extremidade do cabo, Jarbas lanou um novo olhar
sobre os carves e ties que ainda se viam a esmo por ali e confessou a Moacir, que n
a sua frente enrolava um cigarro:
Foi bom eu ter vindo. No quis te dizer nada, mas me custou muito ver todos esses
paus queimados, quando chegmos aqui. Agora parece que j me habituei. No me recordo
tanto daquilo.
J no era sem tempo. Ainda ontem estive a pensar nisso, porque s vezes a cara do Tit
o, vista de lado, me lembra a do dono da fbrica. Me parecia que eu estava a ouvir
, outra vez, o teu discurso naquela tarde disse Moacir, pausadamente. E ficou,
um momento, a considerar que se os patres estivessem realmente no lugar dos grevi
stas, sofrendo todas aquelas misrias e injustias, teriam feito o mesmo que eles fi
zeram ou pior ainda. Aos seus olhos revinha, muito debruado na janela do primeiro
andar, sempre com gestos de raiva e berros furiosos, o da indstria onde o Jarbas
, o Duarte e ele trabalhavam. "Aquele era bruto mesmo. Em vez de serenar os h
omens, gritava aos soldados que espadeirassem eles ainda mais. Havia j alguns com
golpes nos ombros e nos braos, outros de cabea rachada e o sujeito sempre l em ci
ma a exigir mais. Afinal, nem aquele estpido mau, nem os outros patres, haviam per
dido nada. Os seguros pagaram os estragos, as fbricas voltaram a ficar como nova
s; o Duarte que morrera e ele e o Jarbas que tinham de andar por ali".
Moacir repegou no machado:
Foi uma sorte eu no ser to amigo do Duarte como tu eras, nem ter visto os restos d
a barraca queimada como tu viste, se no talvez ficasse tambm impressionado para mu
ito tempo. Quando me mostraram, l onde eu estava escondido, a fotografia daquilo
no jornal, j haviam passado muitos dias. E se via melhor os homens que levavam a
padiola do que o corpo carbonizado.
Era um grande militante. Temos poucos como ele disse Jarbas, com voz enternecid
a e profunda.
Era. Nisso estive sempre de acordo com vocs.
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Era bom militante, mas no bom dirigente. No tinhje calma. Um homem com calma no ia
assim botar fogs" barraca onde estava, por que espiou e viu a policial cercar el
a e ele no podia fugir. Se o prendessem, qut acontecia? Um ano ou dois de cadeia,
mas mesmo qus fossem cinco, dez ou vinte, valiam menos do que eme perder a vida e
a aco que ainda podia ter. .$|f
Jarbas ia contestar, mas refreou-se mais uma vej{" Olhou para Moacir com uma mel
ancolia resignada w por fim decidiu-se: >jn|
Ele tinha l papis, planos, muitos nomes. El" sabia de muitas coisas. Eu nunca to d
isse, mas pena" que hoje posso dizer. Estamos aqui, longe, passou temp"| e agor
a te conheo melhor do que quando estava" ms l. Agora sei que se pode ter con
fiana em tia|| Tu j percebeste h muito que a greve no era s petB aumento dos salrios;
ra tambm para habituar k9B| trabalhadores luta. J havia anos que no se fsalj
Jarbas estava voltado para Moacir, mas parecia ntir o ver; falava com ele e dir-se
-ia que monologava"(r) algures, distante dali.
Se lhe apanhassem os papis ou se ele revelassSl o que sabia, muita gente que se c
omprometera e eifl" que ningum pensava, seria perseguida. Havia grupo" at nas cida
des do interior. E todo o trabalho Qt^B tivemos para organizar isso ficaria per
dido por muit"BJ tempo. Ele mesmo estava consciente de que lhe faltava" calma. U
ma vez me disse que, se um dia fosse presoJfl tinha medo de se ir abaixo quando
lhe fizessem inter-*" rogatrios. Ests compreendendo agora? >*>*
Moacir no respondeu. Franziu o rosto, levantoffi bruscamente o machado e continu
ou a rachar o velho!' tronco semiardido. 1
Os dias decorriam lentos e mansos. Mariano j encontrara tempo e levantara das cov
as provisrias, onde os havia metido para que no secassem, os ps
de mandioca e de inhame trazidos da aldeia dos Muras-Piras; e plantara-os definit
ivamente atrs do barraco, lanando tambm terra algumas sementes de melancia, de que e
ra mais guloso do que os tamandus
pelas formigas.
Nimuendaj no autorizava ningum a ir caa e as guas do Maici-Mirim e do Nove de Janeiro
pareciam conter somente aqueles barbados, ingnuos e vorazes, que aos anzis acorri
am to lpidos como bando de frangos mo que lhes deita milho; aqueles peixes lisos, s
em escamas, por nenhuma boca apetecidos, nem mesmo pela de Eleutrio, que os pesc
ava e logo os devolvia origem, com gestos desolados e um desdm suplementar. Os ho
mens viviam apenas da carne seca, das mantas de pirarucu, ressequidas tambm,
e da farinha de gua que tinham embarcado em Trs Casas. A alguns at o piro desagradav
a, pois o saco das malaguetas ficara esquecido no stio onde haviam dormido, na no
ite em que o "Mimoso" atravessara o rio a nado e provocara neles, de repente, to
dos aqueles sentimentos inesperados. "C pr meu gosto, piro sem pimenta como se tira
ssem a capacidade e o esprito farinha" declarara Filipe, com a cara simulando
enjoo.
Foi durante o almoo em que lhe ouvira aquilo e talvez incitado pela sua frase, em
bora lhe parecesse arrevesada, que Eleutrio sentenciara:
O caboclo nasce pescador e, se algum pode viver sem peixe fresco, j no mesmo um ca
boclo de verdade.
Os outros riram, olharam-no um momento, riram de novo. E Eleutrio, percebendo que
essa hilariedade se amarrava tanto aos barbados que ningum queria, como o fio e
o anzol com que os apanhava, sentiu-se quase to humilhado como naquela noite em q
ue o compadre Leovegildo duvidara de que ele fosse capaz de realizar um baile co
m cem pessoas.
Lembrou-se, mais uma vez ainda, de ter ouvido a Nimuendaj e a Raimundo que eles h
aviam encontrado um igap, ali muito perto, em frente da cancela,
^
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quando do reconhecimento que fizeram, logo no dfe da chegada. E antes mesmo de o
s seus parceirosi^ terem levantado das tbuas que lhes serviam de rne^ foi caixa o
nde se guardavam os aprestos de peesr tirou um espinhei, escapou-se por detrs do ba
rracfc^ para que ningum o visse e sumiu-se na floresta.
Aquela gua estagnada desde a grande cheia nuafy expondo-se soturnamente por entre
os ps das rvores como um rio largo sado do leito e agora morto, cena folhas secas e
gravetos boiando, muito estticos, na sua negra superfcie, jazia efectivamente a p
ouco rmai de quinhentos metros dos homens civilizados. Eleu* j, trio amarrou a po
nta do espinhei a um tronco,' defe-"' piu-se, pediu ao seu deus que o livrasse d
os choqpest elctricos dos puraqus e, entrando no igap, foi atsfirj na margem oposta
a outra extremidade da corda. S- * gressou de cara feliz, ainda os outros no havi
am ret& ' mado o trabalho. -in'
Ao morrer do Sol, logo que Amaro deu sinal-idesuspender a faina, esgueirou-se de
novo para a mata Volveu j mal se enxergava a terra e imediatamente entestou cozi
nha, onde Mariano desiludiu a sua ategria ao ver os dois tambaquis que ele lhe a
presentvl",.,'
Hoje no h tempo para se preparar isso. Tjetwi* de ficar para amanh. |
Informado e sem luzir nenhum prazer, Nimuendj f disse, hora do jantar: ' i
peixe bom, mas o melhor no voltar lVoc sabe muito bem que h perigo em sair dacp-
Eleutrio sorria, um sorriso largo e envaidecicW^ enquanto protestava lisonjeirame
nte:
Mas o si tambm saiu... E o Raimundo, >i" Caroline, o Rocha e o... *
Nimuendaj interrompeu-o: '>
Era indispensvel levar mais brindes. Mas agoija devemos ter pacincia, pois talve
z isto no demore muito a resolver-se. >'
Estamos com boca de coronel, porque ainda h muita bia e variada proferiu Amaro,
dirigindo-s'e j ao pessoal. Mas se nos faltasse, se comia mesmo o* f
barbados e se pedia ainda mais. Se comia at piraba, at boto...
Bonifcio apoiou:
O general Rondon chegou a comer sucuriju...
Sucuriju mesmo, seu doutor ? perguntou Juvncio, de olhos arregalados.
Sucuriju respondeu-lhe Bonifcio, ao compreender que aquela dvida assentava no es
prito de todos. Faltava tudo. At veio nos jornais...
Cobra que eu no comia, no tornou Juvncio, enquanto os outros se riam do torn medit
ativo e ingnuo com que dizia aquilo.
Outros dias se dobaram e a situao no se resolveu. A conselho de Bonifcio, Cavalcanti
deixara de se levantar da rede. Nem o fortificante lhe havia devolvido as foras,
nem o quinino apagara de vez aquele brasido invisvel que todas as tardes nele se
avivava. Era certo que os braos de Cavalcanti, to-pouco os de Crisstomo, que andan
do desintrico, a. emagrecer dia a dia, Nimuendaj dispensara de trabalhar, j no fazia
m mngua no acampamento. O segundo barraco estava pronto. Como no primeiro, as pare
des de zinco no se uniam, do lado da brenha, ao tecto que se prolongava para alm d
a armao. Pequeno espao livre, no jeito de fresta horizontal, as separava dele, uma
fresta que de longe no se via e de onde se poderia seguir, com algum resguardo, o
s movimentos dos Parintintins, se eles se aproximassem dali, no decurso do ataqu
e previsto. E nessa casa-armazm, com um quarto ao fundo, para os guardas ou
para enfermaria, os homens no tardaram a arrumar o material do Posto, os manti
mentos de reserva, barricas, caixas, fardos, tudo quanto s mais tarde fosse til
; e era como se o "Cuiab" voltasse a despejar, desta vez no prprio corao da floresta
, a carga que havia trazido. com ar ainda provisrio, Maximiano instalara tambm ali
a sua banca e lavrara um caixilho para a fotografia
S3 Vol. Ill
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!*i
de Rondon vestida de civil, com o bigode em &*"* de acento circunflexo sobre a b
oca e a fronte n^f" alta. Bonifcio dependurou o retrato na sala, vott%4e para os h
omens e disse: '
Se seguirmos at o fim as ideias dele, podert" ficar contentes: honraremos o Brasil
e toda a Isiun^ nidade.
Alguns dos homens ainda comentaram as suas palfe vras; Raimundo, porm, ficou cal
ado. Aquilo estirai mais firme no seu esprito do que as rvores na ttfB prxima e con
siderava mania "o doutor andar aeaaj com essas coisas". Velho mateiro, muito expe
rimenta^^ sem que dessa fora se apercebesse, tendia a fecharei sobre ele mesmo, r
ealizando-se ao cumprir as or4"| de Nimuendaj, criadoras de um misto de gratidraB
de vaidade por o etnlogo confiar nele; e pareddB que se falava agora demasiadament
e sobre os perfiBI a correr, os sacrifcios a fazer, tudo, sem dviday^B causa dos
novatos. O longo convvio com a sdHR hbito que lhe vinha do seu tempo de serin
gueireaB muitos anos j, extraa-lhe o receio dos ParintiaIB e a ideia de que um dia e
les poderiam decapit-lo t^B bem, aparecia-lhe densamente enevoada, quase iiflB r
osmil. Discreto, dir-se-ia bastar-se a si prprio!" embora se somasse, de quan
do em quando, aos grpH dos outros homens, a imagem que dele se guarda" era a de u
m corpo meo que se via passar quase senrfJMf ao longe, como um vizinho muito meti
do consigo, ffiqp cipiara a estimar Jarbas porque, de entre o pessoaijlB acampame
nto, era o nico que lhe aparava o cabpB a seu gosto, quase to bem como ele cortava
o de ,tcra|B os outros. E foi precisamente a Jarbas que ele disp de olhos no cho,
como se o consultasse, depois fl ouvir as palavras de Bonifcio: >*
No sei nada, mas me parece que seu Rondftt no vai duvidar de ns. No vai mesmo ? f>/*
J nesse dia estava pronto tambm o "banheiro* casinhoto flutuante que se amarrava n
a margem^M9 igarap, onde os homens, metendo uma cuia pelo bttraJO existente no so
alho, erguiam a gua que derramava*
sobre o corpo. Concludos se encontravam igualmente os mveis destinados ao barraco m
aior: a mesa de cozinha, a grande para a alpendrada, a coluna para o gramofone e
as muitas prateleiras que aqueles dias de espera, cada vez mais libertos de tra
balhos urgentes, consentiam a Maximiano fazer. Nas do seu quarto, Nimuendaj alin
hara, com esprito metdico, todos os objectos que trouxera, desde livros ao binculo;
nas de Bonifcio, onde avultavam a mquina fotogrfica, rolos de papis brancos, telas
enroladas e uma paleta, os medicamentos da expedio enfileiravam-se como numa farmci
a. Tudo ia ficando em ordem, desde as roupas suspensas nos pregos que serviam de
cabides, s trs espingardas para a caa mida e aos trs rifles para a grossa, dependura
dos no interior, a um lado e outro da porta. E de todas as arrumaes se desprendia
um ar definitivo, sentido de longa permanncia, em contraste com o estado de alma
provisrio dos homens.
As pernas de Cavalcanti tinham desatado a inchar, perdendo a facilidade de movim
entos e mostrando-se insensveis palpao que Bonifcio lhes fazia, de cara sorridente e
palavras optimistas para velar o que pensava.
Nimuendaj foi v-lo e, j fora do barraco, onde ele no pudesse ouvi-los, perguntou a Bo
nifcio:
Ser mesmo ?
. E os dois, ao mesmo tempo, lembraram-se do Soares dos Santos. Por enquanto, o
corao est a reagir bem. Vamos a ver.
Como j no tinham obras requerendo pressa, os homens, quando passavam na alpendrada
, onde o "Mimoso" se encontrava amarrado, acariciavam-lhe mais demoradamente a c
abea e o lombo do que nos dias precedentes; mas o co, em lugar de agradecer-lhes c
om as festas costumeiras, aproveitava-lhes a presena para tentar desenvencilhar-s
e da corda que lhe suprimia a liberdade e nessa forma de protesto, ele, de seu h
abitual to manso, desesperava-se, enfurecia-se, parecia transfigurado.
Em breve o prprio cho ficou livre de obstculos
L
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e as plantas mais humildes, at a duas orelhitas trti" das superfcie da terra, em bus
ca de luz e de espofe*" principiavam a deitar corpo. Os seus impeditivoSfrit" mig
os, os gordos troncos que tanto haviam chupa*fo, o hmus colectivo e o incndio no ti
vera apetite toflflff tante para os devorar inteiramente, j se encastelavai|| tra
nsformados em achas, ao lado da cozinha, agmJj* dando o seu termo definitivo. E
comeou, ento3| sobrar tempo. , JB
Alguns dos homens viviam horas sobre horas <K cartas nas mos: "Corto! Trunfo! Vej
a l, compadtj| Ganhmos!"; outros agrupavam-se distante dali, r" de Jarbas. A princpi
o, apenas trs: o Moacir, o Jtn$jH cio e ele. Depois foram vindo o Raimundo, o Anti
B Rocha, s vezes o prprio Genaro. Era Jarbas qUH mais falava. Ouviam-no, atentos, c
abea baixa ou oHMJp postos nele; e, de quando em quando, lanavam-lB perguntas, mui
tas delas transportando dvidas ou de" cordos. Jamais, porm, o viram alterar a sua
paciridMl que dir-se-ia to dctil como a gua do rio que trafif sitava, pachorrenta, e
m frente deles. Uma tarde ajMB receu o Etelvino. Devolveu-lhe o semanrio paulfflB
| um jornal velho e sujo, com as dobras a desfazereralB| de tanto andar nos bols
os, de tanto ser emprestado'*" e declarou: B
No acredito nisso. Quem que se vai preocupi" com os pobres ? ?J"
Os pobres mesmo respondeu Jarbas, numa v<l" sussurrada, ao mesmo tempo carinhos
a e secreta, corilM se lhe fizesse uma revelao proibida. E com muitcM pormenores l
he explicou as razes por que assim acoap teceria, mais cedo ou mais tarde,
inevitavelmea" Etelvino no tornara a vir durante algum tempo; msJf uma tarde, v
olvera e escutara-o sem intervir. ^
Honrio, melfilo e bom danador, todos os diai a evocar as cabrochas mais faceiras qu
e havia apertadflf nos seus braos, transformara em flautas as tabocaS que cortara
junto da cerca, mesmo ao p do lugS* onde Tanajara se encontrava de vigilncia, e e
mps^ nhava-se em ensinar todos os demais a toc-las. M^s
tendo os discpulos renunciado logo s primeiras experincias, acabara por juntar-se t
ambm ao grupo de Jarbas. E foi nesse perodo que as rvores daquele recanto virgem e
esquecido do Mundo escutaram, pela primeira vez, as aspiraes que residiam na alma
de muitos homens de outras latitudes.
parte Cavalcanti, de doena em desenvolvimento, e dos que faziam sentinela, em tur
nos de quatro horas, como os pilotos de bordo, s Maximiano, entre o pessoal, pare
cia comprazer-se em imaginar novos trabalhos. Mo para todo o pau, movida pela volp
ia de vencer as dificuldades com a sumria ferramenta de que dispunha, mostrava-se
sempre a mais laboriosa de todas, passando os dias sozinho, a carpinteirar no b
arraco menor. E agora dera-se a fabricar cadeiras para substituir os caixotes vaz
ios que serviam de assentos nos quartos, na sala e na alpendrada. J tinha armado
duas, rsticas mas slidas, quando uma tarde Etelvino entrou ali e, depois de ter se
guido os movimentos do seu formo, de repente inquiriu: Que dia hoje ?
Meteram-se os dois a clculos e, havendo desacordo, puseram-se a contar pelos dedo
s, ajudando a memria com a evocao dos sucessos por eles vividos desde a partida de
Trs Casas.
Hoje dezasseis de Abril asseverou, por fim, Maximiano, desferindo a mo sobre a m
utuca que o ferrava na perna.
Dezasseis de Abril? No pode ser! Ento ns estamos aqui s h dezassete dias? Voc tem mesm
o
a certeza?
Maximiano inclinou a cabea.
Todo este tempo e s dezassete dias... tornou a repetir Etelvino, com a voz j a que
brantar-se. A mim me parecia que estvamos aqui h meses. A voc no lhe parece?
Condensou-se, entre os dois homens, uma mudez cooperante. E Etelvino aceitou,
por fim, num torn
dolente:
Ento foi ontem que fez anos o meu irmo mais
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1. W
velho. Tinha-me esquecido. Quarenta e oito... fy^ homem sem amor famlia...
t<$K
Maximiano ouviu-o estender as queixas, aproft. dar-se no desabafo; viu-o depois sa
ir bruscamente, difo, gir-se alpendrada, acariciar o "Mimoso", desamarrfW" e ir va
guear com ele, trela, pelo acampamento, 'luaj^
Ainda a' matutar naquilo, Etelvino passou rented ao cavalete onde Bonifcio, aps ha
ver fotografadoosi| vrios aspectos do Posto, para os arquivos do Serviim de Proteco a
os ndios, entretinha o seu amadoristajlr pintando trechos da mata; e, sempre com
o co^aifii lado, prosseguiu a todo o comprimento da cerca. "A natE assim se devia
chamar irmo? Se devia? ArranjocS! dinheiro mesmo sem sair de Paraba, tinha uma gr
aiidjH| fazenda, podia auxiliar ele e nunca o fizera, no/jM ele estivesse no seu l
ugar, no seria ruim; famlia" havia de fazer sempre um jeitinho. E ele escusava "ta
l andar por ali..." Etelvino olhou a floresta, lembrotwBJf dos Parintintins. E de
sbito veio-lhe uma estranhii simpatia por eles; de sbito e de novo pareceu legitia
w" sua necessidade de afecto, sentida agora, que ningum^ os matasse, mesmo que ti
vesse de arriscar a vida, contra dizia o general. Se no dessem cabo dele, havia d
tm escrever uma carta ao irmo, uma carta a contar tudo* quanto passara, a coragem
que sempre tivera. 'jflffi
Encontrou Genaro e Caroline sentados no rebordo" dum dos bateles, para c do arame
farpado, com drf pernas a balanarem-se lentamente, dois palmos aciraa$j| do cho, e
nquanto discreteavam. Inseriu-se na conversa,!* forjou um a-propsito e desabafou
de novo. Mas GenaMg" com modos desprendidos, ops-lhe imediatamente: fiw
O que tem de acontecer, acontece; se o seacv irmo tiver de fazer algum
a coisa por voc, estejas, descansado, far. Se voc tiver de ser rico, vai sec mes
mo, ningum pode impedir o seu destino. No valea pena se atormentar, que se a rique
za tiver de viiS.* est a, quando voc menos espera. O mesmo com a, morte. O mesmo co
m o medo. No vale nada ter medo."
Bem... Uns pensam assim, outros pensam o con") trrio proferiu Caroline, num torn
neutral, sempre
com aquele seu rosto srio, to srio como se fosse epgono do de Nimuendaj. Voc, outro d
ia, estava a jurar que no teve medo quando mataram o Felcio e o Camargo. Eu tenho
e no tenho medo. Daquela vez, no sinto vergonha de dizer, tive um bocado de medo,
mas no fugi, voc viu. S fiz o que seu Amaro mandou. Se for preciso morrer, morro
mesmo, no deixo de fazer a minha obrigao; mas no tenho vontade de morrer; v
oc tem? E, sinto saudades da minha tapera, l no Maranho, e do meu curumim, que est,
com a av, me esperando. Voc est percebendo, hem?
A cisterna que Etelvino procurava aterrar, com um consolo que lhe parecesse lgico
e slido, continuava aberta. Sentia o "Mimoso" agitar-se de encontro sua perna di
reita e, dentro de si, aquele vcuo povoado de sentimentos obscuros, que s vezes di
r-se-ia terem peso e formas confusas de bichos sados de sob velhas pedras, cruzan
do-se e entrechocando-se como se andassem no ar, levitadamente. Parecia-lhe que
Carolino no acreditava muito nas palavras de Genaro e h poucos dias ele prprio ouv
ira Jarbas chamar-lhes bobagens e sorrir daquilo como se fosse duma criana.
Sempre desconfortado, Etelvino abandonou-os e veio novamente atar o "Mimoso", qu
e tentava escapulir-se, esticando a corda, do local da sua escravido. Na alpendra
da, o Manga Verde remendava as calas. Tinha um cigarro morto no canto da boca e a
s pernas todas nuas metidas debaixo da mesa, que lhe ocultava o sexo. Mal deu pe
la melancolia que travava a cara de Etelvino, comentou:
Voc vem mais triste que soco a dormir no ramo.
Lhe sucedeu alguma coisa?
Etelvino gostou da pergunta. Gostou, naquele momento, que tivessem pena dele, qu
e fraternizassem com ele, naquele momento em que lhe parecia ouvir ainda a voz e
gosta do irmo, que o atirara para a Amaznia: "Trabalhei muito, me custou muito. Tra
balha tu tambm. Tenho os meus deveres, os meus filhos, no posso ser pai de toda a
gente".
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Sentou-se defronte do Manga Verde e, por entrei os ganidos do "Mimoso", que teim
ava em desprender-sei4a amarra, de novo expandiu a velha mofina, inesperada" men
te ressuscitada pela lembrana do dia aniversariai de Chiquinho, o injusto. >y
Manga Verde escutou-o, enquanto ia remendandcf| e, quando ele concluiu, ps-se a f
ilosofar, com um1 ta meio indiferente, meio superior e olhos sempre postds
na costura:
'f
Isso de irmos conversa fiada. Se h um qg# presta, os outros so como se sabe. s vezes
, quandp* no se espera, at um carcamano pode fazer mais d4 que toda a famlia... tT
Etelvino aprovava, baixando a cabea, embora na"! gum jamais houvesse feito coisa a
lguma por ele, receai dava-se disso agora mesmo, com nova tristeza.
Voc me est vendo por aqui e julga que n^fti tenho tambm os meus desgostos, julga qu
e fui sem^j assim. natural. Mas no fui, no. Gerente de lejf, grande, isso sim decl
arou Manga Verde, de sbito" com uma voz interessada e desviando os olhos, finaf m
ente, da agulha e do remendo. )$ ^
Tinha ouvido dizer que voc era criado de bordQl% at vir para c... , J
Fui. Pouco tempo tornou Manga Verde, com*! secura, como se lhe desagradasse aqu
ela interven<&JI Logo, porm, o seu rosto, longo e oval, na boca:fyjf espao vazi
o de trs dentes emigrados da frente, & abriu de novo. , ainda outro dia me estava
a lenfr* brar dessas coisas, quando se falava da loja de sil Lobo, em Trs Casas.
Voc ouviu ? Diferentes as coisas, l mas parecidas. Quando eu era curumim, tambm ha
via uma loja diante da minha casa, em Manaus, mesmo diante, diante. No mercearia,
nem de dono de seringai, no. Loja pequena, de srio, que tinha sido masr cate. Faz
endas, no sei que mais, brinquedos, pouca mercadoria. Havia um tambor pequeno e b
onito, como esse dos brindes. Eu queria ele, Mame no dava dinheiro, no ti
nha, e eu pensava que quando fosse homem tambm havia de ter uma loja. Loja maior.
muita coisa, muitos brinquedos. Pensava, mas duvidava.
Calou-se um instante, olhou ao longe, como se fosse das cristas da floresta que
a sua memria, voando, lhe acudisse melhor:
Aos dezassete anos que fui para criado de bordo. Para o "Japur". Viu algum
dia esse gaiola?
Etelvino hesitou:
H tantos vapores... Mas tenho uma ideia... No era um de cano amarelo, com bar
ra preta?
Um pequeno, que ia para o Purus, para o Juru...
Esse! No era grande como um vaticano, no, mas tambm no era assim nenhuma lancha. Com
ida, muita e boa. Mas ordenado de moleque. Se garantia que os passageiros compen
savam. Compensavam nada. Eles pensam que no tornam a ver o criado e do uma misria.
Os que gostam de dar muito, para mostrar importncia, so os que tm pouco dinheiro. H
avia at coronis que fingiam no me ver quando desembarcavam no seringai. Mas o ruim
a bordo era o copeiro, um vesgo, e mais pior que ele o dispenseiro. Gente sem va
lor. Em terra, nada, nada. Se passa por eles como pelo tronco duma rvore, sem olh
ar. A bordo, uns reis, uns tuxuas para os criados. Um dia, em Itacoatiara, fugi d
o "Japur". Me escondi perto do rio e quando vi ele viajar para Belm, me senti cont
ente. Eu fazia falta; o copeiro e o dispenseiro iam virar jararacas. Quanto ma
is pensava que iam virar jararacas, mais contente ficava mesmo. Quase meio-dia,
os outros dois criados no chegavam para servir o almoo aos passageiros e aos ofi
ciais. E o jantar?
Mas no podiam mandar perseguir voc, depois ?
, se diz que sim. Mas para o dispenseiro um criado s era gente quando fazia falta.
Quem ia perder tempo, andar com falas mansas a incomodar as autoridades, por um
bicho sem importncia ? Se mete outro. H sempre muitos que precisam de comer bem.
Manga Verde calou-se, deteve as mos sobre a costura, sorriu gozoso:
i~
1034
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1035
H tf
Quando o "Japur" desapareceu na curva, cOisfct cei a passear em Itacoatiara. Um c
oronel, dos boi" que vinha doente do seringai, quase a morrer, seriijfctj a toss
ir e a escarrar no cho, me tinha dado ufa|| grossas pelegas quando chegmos a Manau
s. Me dsse "s inteligente, me trataste bem, tiveste pacincia <f santo, limpando as mi
nhas porcarias no camarote, peg l". E me deu duzentos mil-ris. * T
Duzentos mil-ris ? admirou-se Etelvino. -4L Voc no tinha dito que davam pouc
o ou nada ? ' *&
Duzentos repetiu Manga Verde, num tomujiP dignidade. E como visse persistir a
dvida nos olhoiS tristes e largos que o contemplavam, cruzou os dedjS indicadores
e beijou-os rapidamente. Por esta! w| o nico que me deu duzentos mil-ris duma s V*
JH Pensou que ia morrer, para que servia o dinheiro a el4*| Mandei fazer um ter
no novo. Pedi ao alfaiate <OTp fizesse depressa. No outro dia estava pronto.
Eu ]f$ii& sava, as caboclas me olhavam. Vi uma loja com cSjjto rutos. Dos grand
es, dos que fumam os coronis. '"g nunca tinha fumado daqueles. O homem que estafw
f ao balco adivinhei logo que era srio ou turcofWi/ chamou o empregado. Andava pa
ra os fundos da loJ<M demorou. O homem me foi perguntando o que_^|ra que
ria. Lhe disse que queria charutos. "De que marca$$1 tornou a perguntar. "Dos me
lhores", lhe respondi. MpsW trou, comprei trs. Fiquei contente de saber pegar bt"
' no charuto, cortar a ponta nem mais nem menO* acender, soltar fumaa deva
gar, como faziam os outros? ; At me parecia que eu tinha fumado sempre aquihP e q
ue falava com mais jeito, como os doutores d"t* gados. Palpei a barriga: estava n
a mesma. No ver-* dade que os charutos fazem crescer a barriga, cofl$ eu pensava;
a barriga, depois de crescida, que comea a pedir charutos. Levei mais duma hora a
fumar ~& sempre falando com o homem. No era srio, era turcetf No fim, me disse: "
Gostei de conversar com voc. Nfitf conheo muitos moos com tanta inteligncia. Isto aq
di uma sucursal da minha casa de Manaus. Vim inspeccionar. Faz pouco negcio. D te
mpo para falar/
Se quiser, aparea amanh. Gosto de conversar com homens inteligentes. No paga charut
o".
Manga Verde considerou, de relance, a mudez de
Etelvino:
-Voc est a pensar que lorota, que vaidade minha. Pois eu lhe digo que Mustafa, o h
omem, me falou assim mesmo. Ao fim de trs dias j estava convidado para empregado d
ele. No ali, no; coisa melhor. Em Manaus, na casa principal, e bom ordenado. Tinha
uma lancha esperando ele no trapiche. Corria como bala, corria mais que a lanch
a da polcia. Fomos os dois. A loja de Manaus no era pequenina como a do srio, que e
u via em minino. Era maior do que eu havia pensado ter para mim. Loja muito gra
nde, com tudo que um homem pode precisar para vestir, para baile, para beber,
perfume, muito brinquedo, tudo! Fumo da Bahia, do bom, no deste daqui. E at pele
s de raposa para mulheres. Voc sabe? Dessas da Oropa, das fotografias nos jornais
, volta do pescoo, j viu? Negcio tambm de regato. No Purus, no Juru,
noutros rios.
Mas para que queriam as peles com o calor que faz aqui ? perguntou Etelv
ino, voltando atrs,
com voz ingnua.
Manga Verde no respondeu logo. Pareceu muito interessado no seu trabalho. Cuspiu
de lado a ponta do cigarro, prendeu a agulha nos lbios, com a linha branca a desc
er-lhe pelo queixo, quase at o peito. E sobre os fundilhos das calas, estendidos
na mesa, as suas mos comearam a dar sucessivas palmadinhas, que dir-se-iam alegres
e amigveis, como se ele quisesse nivelar carinhosamente as orlas do remendo com
o resto do tecido. Tirou a agulha da boca, deu um n na extremidade da linha e ps-s
e a coser o rasgo existente numa das pernas da cala; e s depois, com ar de piedade
pela ignorncia de Etelvino, disse:
Pele de raposa no s para fazer calor, tambm para fazer bonito. E os portugueses? No
vo muitos portugueses Oropa? Portugueses, brasileiros, judeus, tantos! Estou vend
o que voc no sabe nada
io^,6
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
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i!*
disso. No admira, nunca viveu na cidade. Nenhuj"
loja de seringai vale nada, comparando com aqueJal
Ergueu a cabea, tomou expresso sobranceira,
falou devagar: II
Pouco tempo... Pouco... S uns dois meses e eu j estava gerente. Mustafa no tinha
confiana noj : chefes dos regates e ia na lancha espiar eles, levafe mercadorias,
fazer contas, l nos rios, no alto, muitt longe. Passava semanas e semanas por aque
las guii^ Eu que mandava tudo. O outro empregado, um tall Catolino, tinha de me o
bedecer como um moleque| Antes de ir, Mustafa me dizia sempre: "Manga, t tenh
o confiana em ti. Trabalha, no sejas preguite quando eu estiver mais velho, te dou
sociedade o" loja. No me roubes nada, porque o mesmo qu&" roubar a ti, no fut
uro". Ele tinha uns sessenta, talvd| mais; e eu perguntava a mim quando era que
ele & pensar que estava velho ? >5j
J fatigada, a ateno de Etelvino deslocavat% muitas vezes dali, perdendo palavra
s, frases inteira!^ durante a ausncia; Manga Verde persistia, porm" ^ agora, eleva
ndo a mo, afirmava: .J
O cofre era mais alto do que eu. E largo, largai assim acrescentou, descerrand
o uns braos magror J de crucificado. Quando Mustafa demorava rnais dum j ms, o din
heiro j no cabia l. Pelegas que nunca, \ acabavam. Eu metia elas numa lata e enterr
ava no "< cho da loja. Cheguei a enterrar, sem o Catolino saben, dez latas das gr
andes, das de bolachas. Quase do tamanho das de querosene...
Luziam-lhe os olhos, humedeciam-se-lhe os lbios, sorrindo ditosamente, como se ti
vesse ali, debaixo da mesa e das pernas nuas e peludas, aquela fortuna subterrnea
.
Etelvino comeara a duvidar. E foi o interesse gerado pelas prprias dvidas, foi o se
ntimento policial de descobrir onde se erguia a verdade e onde o desconsiderava
a mentira, que lhe arrebatou a tristeza e fez esquecer a falta de solidariedade
do irmo. >
Eu no roubava nada e no queria que outro
roubasse. Todos me respeitavam. Lhe parece que fiz
bem?
Tornou Etelvino a aprovar com um movimento de cabea, mas j o Manga Verde abria um
sorriso misterioso e, levando a perna da cala boca, cortava a
linha com os dentes.
Quando eu tinha a uns catorze anos, mais, talvez uns quinze ou dezasseis, antes d
e ser criado no "Japur", uma cafusa bonita, mesmo bonita, ia todas as tardes loja
do srio, no de Mustafa, do srio, essa loja pequena, em frente da minha casa. Se di
zia que eles se juntavam l para as traseiras, mas me parecia impossvel. Como ? Ele
era j velho e ela tinha a minha idade, mais ou menos. Se muito bobo quando no se t
em experincia! Eu ficava minha porta, a ver chegar ela, toda sassariqueira, no co
meo da rua, e ia logo lhe dizer palavras doces, baixinhas. Mas ela fingia que no o
uvia nada, botava ar de desprezo e caminhava mais depressa para a loja. Eu ento m
e via numa loja grande, dando presentes, e pensava que um dia havia de ter caf
usas, mulatas, negras, brancas todas! Foi assim mesmo. Quando era gerente do
Mustafa, cheguei a ter dez ao mesmo tempo...
Dez ao mesmo tempo ? Voltou Etelvino a estranhar, desta feita com voz de mau hu
mor.
r Eu no quero dizer na mesma hora, eu digo no mesmo ms, voc est compreendendo ? Lev
antou as duas mos, juntou os dedos em feixe: Eram assim atrs de mim... Gerente de
loja grande, homem de
futuro...
"No me est respeitando, me est a julgar bobo tambm para acreditar nestas histrias" e
smoa Etelvino, enfadadamente, com um ar agreste onde, at h pouco, exibia humilde e
passiva tristeza.
com um canto do olho diligente, Manga Verde captou depressa a metamorfose. E pon
do de novo em cruz os dedos indicadores, grossos, j com acentuadas gelhas nas art
iculaes, beijou-os e exclamou:
Por esta! No duvide! Veio at da a minha grande desgraa...
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O INSTINTO SUPREMO
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1039
Etelvino ouviu-o dizer "a minha grande desgrfcfm e viu-o sorrir-se ao mesmo temp
o, como se dissujsfe "a minha grande felicidade"; e esse contra-senso-desprazeu-
lhe mais ainda. uda
A mulher de Mustafa, uma branca, tambinri|| queria. Era mais nova do que ele, uns
trinta ano$a| Morava no sobrado, por cima da loja. Mustafa no g" tinha mandado da
r contas a ela do negcio. MaavS dava, quando era coisa grande. Ela me dizia semjs
ijj"T bem, Manga, tu faz tudo bem". E s vezes, qua^nS falava, ia passando a mo dela
, que era peqtieiiiaSl macia no cozinhava, nem nada na costa damia^fc mo. Outras
vezes, descia a escada que havia no fraME sem barulho, como mutuca a andar no d
egrau, e agpf recia de repente na loja. Era sempre quando se^gj que estava l algum
a das minhas cabrochas. Eu com* cei a perceber tudo, mas tinha mulheres a mais,
tiqja tambm brancas, para que fazer aquilo a MustaEft6 Uma tarde, quando subi a f
alar do negcio, ela apap!t> tou o dedo para o lado da cozinha, por causa da crajjp
' e me abraou e me beijou antes de eu falar e a baffll me chupava tanto que at me
parecia que ia desapr recer dentro dela, como o pssaro dentro da jitwjlv4 com aq
uelas provocaes todas que me andava fazeiuit eu j tinha vontade de provar ela tambm;
voc saa" mulher que um homem ainda no provou parece segre pr melhor do que as outras
. Mas pensei em MustqpSn' grande amigo, que me deu a mo, me fizera gerenfc^ e dis
se a ela: "Meu bem, lembre-se do seu marido, ql* bom sujeito". Ela ento tirou os
braos que tMbi volta do meu pescoo e me ficou a olhar, toda, desconfiada, como se
tivesse medo de eu prevenir elpVoltei para a loja; foi o diabo, foi. 'tV
Interrompeu-se, suspirou. E Etelvino, vendo-o tristD como ele prprio estivera h pou
co, j no sabia'no vmente discernir, naquele jogo de sombras e de clatfdades, o que
era verdadeiro e o que era falso, souto(r) e realidade ou tudo misturado ao mesm
o tempo. ^
Que lhe sucedeu ento ?
Que sucedeu ?
De cotovelo sobre a mesa, a agulha entre os dedos mais uma vez fechados. Manga V
erde, seus olhos e a sua voz cansada pareceram regressar de longe, como as prpria
s imagens que ele esboava:
Mustafa andava nos rios altos. Voltou, tornou a ir, tornou a voltar. Uma tarde m
e chamou ao escritrio, l no fundo da loja, e me disse: "Manga, negcio de mulher aca
ba sempre mal. Voc se lembra que eu o preveni em Itacoatiara, antes de querer voc
para empregado? Voc um homem que interessa s mulheres, tem olhos e boca que elas g
ostam, sabe falar quase como um doutor e eu no quero esse negcio em minha casa, lh
e disse. E voc que respondeu ? Respondeu que era verdade, que mulher bicho ruim,
que veio ao mundo para dar cabo dum homem e que at conheceu um srio que tinha uma
loja e perdeu tudo, voltou a mascate, por uma cafusa. Eu podia matar voc ou mand
ar matar voc. No digo com faca ou tiro, como se mata um animal, um porco de casa o
u um caetetu, no. Voc inteligente, honrado, fui seu amigo. Dava muitos presentes s
moas, mas punha tudo na sua conta, vi. Merecia ser morto com categoria e honra, c
om veneno, como se matava aos imperadores e aos califas da minha terra, os tuxuas
de l, voc j ouviu falar deles? Morte boa. Se fica sem ferida e sem sangue. Quem va
i saber? Mas depois pensei que no vale a pena matar um homem, mesmo um amigo trai
dor, um sujo, por uma mulher, pois
mulher h muita".
No estou compreendendo bem...confessou Etelvino. No estou compreendendo nada. Ento
voc no disse que tinha desprezado ela?
Manga Verde fixou-o com um olhar simultaneamente irnico e jubiloso, uns olhos ilu
minados que pareciam falar mais do que a prpria boca:
Disse. Naquele dia foi verdade. Mas no dia seguinte j no foi verdade. Se eu lhe re
sistisse, que ia pensar ela de mini? Me garantiu que no era casada com Mustafa. E
que at lhe fazia um favor viver com ele...
1040
O INSTINTO SUPREMO
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1041
i flfl
Etelvino regressava curiosidade inicial, quando
tudo ainda lhe parecia verdadeiro: tf
E que fez o turco ? ,fg
Ele me disse: "Voc podia estar amanh no cemi
trio, mas no est, lhe deixo a vida. Vi sua contjt
tem um saldo de vinte mil e duzentos ris. J am
ordem ao Catolino o Catolino era o empregado abaixtjl
de mim para lhe pagar. No quero mandar para Ji
rua, depressa, como um cachorro, a um velho amigcl
que me roubou uma coisa, mas no roubou dinheinB
Lhe dou meia hora para sair, devagar". Eu me queriil
desculpar, ele no deixava. Me tratava por tu ou pun
voc, conforme. "Tu, Manga, pena no saber a lngOT
dos americanos me disse, quando se levantou dJB
cadeira. Pode vir a um novo presidente deles, comfB
esse que o general Rondon acompanhou a caar onaal
Se voc soubesse falar a ele, vendo que muito inteB
ligente, podia contratar voc para secretrio. Vai"
Manga! Te desejo boa sorte. Sai de Manaus, no volteai
a passar nesta rua. Compreendes ? Ests percebendB
bem?" Mustafa subiu para o sobrado e o Catolino mM
pagou o saldo. Se fingia muito triste, o safado; nB
sei se escutou porta, se no, e me foi dizendo: "Teimai
pena de voc ir embora, mas soube, por seu MustafJM
que vai para um emprego melhor. Vai fazer muitH
falta aqui, no h gerente como voc. Seu Mustafa majB
disse tambm que eu no fosse preguia, nem roubass^H
nada a ele, que ele, quando estivesse mais velho, m&m
dava sociedade na loja. Ele me disse essa coisa, mas efiM
sei que no tenho qualidade para ser um gerente boirn|
como voc foi". **
Etelvino no estava satisfeito: "
Mas como que o turco soube que a mulher... l
-Fcil! Ela andava doida por mim. Eu lhe pedis l
que tivesse cuidado e nada, andava sempre cheia l
de cime e de loucura. No sei quem denunciou, no. i
Podia ser a criada, podia ser o Catolino ou as outras, l
que tambm desconfiavam... O meu quarto quarto l
bom, caro mas bom ficava longe da casa de Mus- l
taf; ficava quase ao lado do palcio do governador. ]
Me meti l, sem saber que fazer. Quase noite, veio um carregador portugus, desses d
e corda no ombro, voc sabe ? Me trazia uma carta. Ela me dizia ela a Ambrosinha
do Mustafa que no podia viver sem mim, que nunca conhecera um homem como eu, que
um dia aparecia, agora no, tinha medo que ele lhe desse veneno. E me mandava alg
umas pelegas. Um
conto.
Etelvino, cujas mos jamais haviam estremecido, ao longo de toda a sua vida, sobre
tanto dinheiro duma s vez, arregalou de novo os olhos, meio incrdulo:
Um conto de ris ?
Um conto respondeu Manga Verde, com voz sbria, ligeiro timbre de superioridade e
um ar improvisadamente natural, como se a oferta no lhe interessasse. E me dizi
a na carta que ia mandar mais, no queria que me faltasse nada. Eu peguei no dinhe
iro, meti noutro envelope, colei, lacrei. No escrevi uma palavra a ela, no; escrev
i s o nome e entreguei ao carregador. A cara trigueira do Manga Verde austerizou
-se mais ainda: Nunca vivi custa de mulheres. Dar a elas, gosto; receber, no rec
ebo; no deixo ningum me ofender. Eu estava mesmo piudo comigo por no haver dito a Mu
stafa, quando ele falou em veneno, que eu c no tinha medo de morrer. Coisa boba!'N
aquela hora fiquei mesmo com um medo bruto. com rifle ou com faca, se pode lutar
, ver quem mata primeiro, quem mais valente. Mas ele disse que seria com veneno.
Em veneno, sem ser nas pontas das flechas, veneno em casa, sem ningum saber, nun
ca tinha pensado, no. Assim um homem no se pode defender. pior que receber um tiro
traio. Me parecia que era tudo sombra de curupira, que eu tambm era sombra
e que se matava a sombra de mim; eu caa sem barulho e quando se acendesse a luz j
no havia nada onde eu cara. Besteiras! Estava ouvindo Mustafa e at me parecia que e
u j estava morto. Fiquei contente de ver na carta da Ambrosinha que ela tambm tinh
a medo de morrer com veneno. Mas quando aquilo me passou, eu me senti envergonha
do, at roa
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as unhas, porque medo nunca tive, no tenho; se f<M>, preciso se ver por aqui. >
com o esprito na terra, deserdado de jactncia e de imaginao, Etelvino pergunta
va, humildemenliprtico: ^
E no arranjou outro emprego? <&& De novo Manga Verde trouxe ao rosto um sorris&a
de moderado desdm, enquanto os seus braos se av"$ queavam, como se fossem cerrar-s
e volta dum cest0)# de brindes, destinados aos Parintintins, ou de outisae matria q
ue ele, apenas ele, conhecia e era desprezi^ velmente abundante. nj*
S eu querer! Na rua onde estava a loja do* Mustafa e nas outras perto da loja, h
avia muitos armafe* zns de borracha, de portugueses e de judeus. Me davaKW^ bom o
rdenado, mesmo bom; me conheciam, sabiam date** minha competncia; mas gerentes j t
inham. No quiff-* outro lugar, no. No queria ser ona a virar gate$ ali naquela rua ou
perto. E ento me resolvi. VottdjiS" para criado de bordo. No "Rio Machado", de B
e Levf^ e Companhia. Voc est compreendendo agora? *iP
Etelvino no compreendia: '*1
Criado de bordo no menos que empregadf*" de armazm, na cidade, com bom ordenado ? >
<$'
Pode ser... Mas as minhas cabrochas no sabiaitf^ onde eu andava, no me viam perder
categoria. Andava^* para o Madeira. Numa viagem, quando estvamos d* volta, embarc
ou em Porto Velho um peruano. Vnfaqf* tambm o doutor Bonifcio. Foi l que vi ele a prm
eira vez. Novo, com farda de capito. Um dia, quandto estavam almoando, o peruano c
omeou a discutir com o doutor, que comia em frente dele, perto do comail dante, se
ntado na cabeceira. Dizia que os brasileiros >e at os peruanos mesmo no gostavam d
um patrcio dele, um tal Benjamim Maya, que matara muito" Parintintins. E
le nunca matara nenhum ndio; no serin* gal dele, no Acre, no havia. Mas se os ndios
matavairi os civilizados e os civilizados no matavam eles, se no davam lio, nunca m
ais se tinha paz. Era precisei castigar esses selvagens ou ento deixar as terras
a
eles. Mas no valia de nada deixar as terras, eles no sabiam tirar as riquezas. Se
voltaria ao princpio do Mundo. O doutor Bonifcio no estava de acordo, mas o peruano
era teimoso. Dizia coisas to ruins que at fizeram chorar a viva dum coronel, l no f
im da mesa. Todos os passageiros, menos um sujeito com olhos de boi morrendo,
eram contra ele. Me lembro que eu estava servindo farofa de tartaruga e que p
ensei no veneno de Mustafa. Eu tinha vontade de quebrar mesmo a travessa na cabea
do peruano. Quando ele disse que no defendia o outro por ser seu patrcio, mas por
que um dia todos haviam de dar razo a ele, o doutor Bonifcio respondeu com palavra
s mais duras e olhou para todos, a adivinhar o que pensavam. Olhou tambm para mim
, que estava em p, em frente dele, por detrs do outro, esperando que acabassem a f
arofa, para mudar os pratos. Meus olhos lhe falaram, porque ele me olhou depois
como se j fosse meu amigo. O peruano encabulou mesmo. Foi bom para o doutor Bonifc
io, porque a viva do coronel, que ainda era nova e ficava uma belezinha vestida d
e luto, andou sempre com ele o resto da viagem. No sei como aquilo acabou, a bord
o ningum viu nada. No podia ser ali; em vapor pequeno todos espiam, com inveja, e
tudo proibido. Parece que nos ingleses e nos americanos que um homem pode entrar
vontade, a qualquer hora, no camarote duma senhora ou ela no dele. Gente como d
eve ser. Gente feliz. No "Rio Machado", s eu que consegui, uma vez...
Suspendeu-se, contrariado. Antnio Rocha, com olhos redondos, rosto ossudo, cabelo
s negros, surgira no cunhal do barraco e, aproximando-se, exclamava:
Ah, voc tem agulha! Me h-de emprestar ela. Me caram dois botes da blusa...
Manga Verde no o atendeu logo. Voltou a fixar Etelvino e concluiu apressadamente:
Foi por ouvir o que dizia o doutor Bonifcio naquele dia, que eu resolvi vir com
vocs, quando soube que ele estava em Trs Casas, a aceitar pessoal. E olhe que j me
tinham convidado para dispenseiro!
io44
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nu
Me gostava que Mustafa tambm estivesse aqui, para ver que se no lhe respondi, como
devia ser, quando me despediu, no foi por aquilo que ele ficou pensando, no. Talv
ez um dia lhe escreva uma carta... o
Virou-se, finalmente, para Antnio Rocha: ,) f
Pegue l a agulha. Se sirva vontade, mas nb f a perca. S tenho essa. Pegue tambm a li
nha. i J|
E ficou a visionar, um momento ainda, j desesn peranado, a pequena loja do srio que
existia em frente,; da casa materna e lhe dera, em menino, esse irreali^, zado
sonho de ter uma loja maior, muito maior, de que j fosse proprietrio, gerente pel
o menos, quando chef-j gasse a homem. ,, ^
4:
*-> ]
As longas conversas, as barbas feitas com frequap cia inabitual, as ajudas voluntr
ias a Mariano, quand"! lavava pratos e panelas, as jogatas e outras evagaesfc \ tu
do os saturava j perante aquela infindvel abut- dncia de tempo; e alguns voltaram a t
eimar com mt igarap e com o rio, lanando-lhes tediosamente c*< anzis por cima do a
rame farpado. Juvncio, Moacir^ Genaro, Tito Boludo, eram os mais pertinazes; Rai"
mundo o mais dextro de todos. Voltejava por cima da cabea a sua linha, como um va
queiro o seu lao| _ e de rosto severo, seguindo friamente o voo da isca, arremess
ava-a mais longe do que os outros. Mas a gua desdenhosa respondia-lhes sempre da
mesma maneira, f< enviando-lhes apenas barbados, os seus maiores glutes,
No h-de haver aqui s desta porcaria avensturava Tito Boludo, libertando do anzol a
sua vtima^ atirando-a a terra e esmagando-lhe a cabea, forte e desprezivelmente,
com um dos ps. Se pudssemos ir com a tarrafa por a acima ou abaixo, com certeza se
pegava outro peixe.
Eleutrio desistira de pescar ali, mas aparecia por detrs deles, a seguir-lhes os g
estos, de lbios dilatados por um vago sorriso profissional, com leve ar de indulgn
cia e uma pontinha de superioridade. Tambm ele
no andava satisfeito, apesar de se ter por mestre naquelas caprichosas artes. H do
is dias que se esgueirava, mal vinham as primeiras sombras da noite e se afastav
am as ltimas da madrugada, para a tentao do igap. Somente Genaro sabia dessas surtid
as. Mas at a Genaro ele ocultara haver deitado fora, por vergonha de o trazer par
a o acampamento, to pequeno era ainda, o nico tambaqui que inocentemente abocanhar
a, no espinhei, um dos caroos de tuturub.
Me parece que seu Curt no vai gostar nada quando souber que voc sai daqui. capaz d
e no querer mesmo comer o peixe que voc pegar advertiu-o Genaro.
Eu direi a ele que you de noite, com a luz das estrelas. De noite ndio no anda. E,
c para mim, os ndios j no vm. Nem de noite, nem de dia. Viram todo esse arame com bi
cos e pensam que j no podem fazer nada. Pensam que estamos deixando brindes para e
les virem andando at aqui e ns lhe botarmos bala, como faziam os outros. Foi, com
certeza, por isso, eu lhe digo, que outro dia jogaram as flechas escondidos atrs
do mato. Voc viu algum? No viu. Ningum viu nenhum. No voltam, no. Mas se voltarem, no
agora; s quando as guas baixarem muito e os varadouros estiverem secos... Interro
mpeu-se, sorriu com malcia e logo acrescentou: Para eles fugirem
mais depressa...
Sempre de expresso cordial, discorria serenamente, de modo to convicto e contagian
te, que Genaro comeara a sentir-se menos desgostoso com ele prprio, pelos seus coc
hiles quando estava de sentinela.
O pior no isso continuou Eleutrio. O pior que me parece que o igap tem p
ouco peixe.
Efectivamente, na manh seguinte, tornou a voltar de mos vazias. E quando, mais tar
de, vendo-lhe a cara desprovida de sorriso, Genaro o interrogou, respondeu-lhe c
om uma s palavra, desviando os olhos:
Nada.
Percebeu Genaro que ele tomava a recusa dos tambaquis em se entregarem aos anzis
como um ultraje
1046
O INSTINTO SUPREMO
INSTINTO SUPREMO
1047
pessoal, uma ofensa sua competncia e no insisftj mais. -,'n
Ao quinto dia daquela obstinao, rutilante manh%, sem palmo de nuvem a enodo-la, ao
contrrio do qt" sucedera s mais recentes, Eleutrio no tinha aindtft regressado ao Po
sto quando os outros j se encontr" vam a p e lavados. >m
Ningum deu pela sua ausncia, ningum, neR mesmo Genaro. Desde a concluso do acampament
ali os homens j no se amesendavam ao mesmo tempJi sob a alpendrada, para beber o c
af, irritando assi" a Mariano, que os servia e se mostrava sempre resmin3 go por e
sse atentado contra o horrio. >ijB
Alguns deles acabavam justamente de se sentar J| de levar as chvenas boca quando
chegaram os diaUB primeiros assobios dos vigias. Logo aquela gritaria exaflB tad
a. Ergueram as cabeas, como se quisessem escuta"K um pouco mais ainda; depois ent
reolharam-se, siteriH ciosamente, com um sorriso dbio parado nos cantMB dos lbios.
Tomaram devagar o caf, naqueles instante^ breves e suspensos, longos, longos, lo
ngos; e quand" Nimuendaj rompeu apressadamente l de dentro,1*! mo esquerda cheia de
colares pendentes, o braalj direito empurrando Bonifcio e Amaro para trs, aind"l T
ito Boludo passeava, com ostensiva tranquilidade, ^m ponta da lngua sobre o beio s
uperior, como se dali buscasse, gulosa, a ltima lembrana do acar. m$
Foram com o etnlogo para a esquina do barracof e ficaram a observar a folhagem esp
essa, de onde bnfe-| tavam aqueles gritos, que pareciam apenas jubiloso?, * sem
clera alguma a entremear-se, ao contrrio do qvf sucedera na primeira arremetida. A
inda desta vez no se enxergava ningum. Dir-se-ia ser a prpria floresta que regougav
a um prazer delirante, num ritual escondido e demonaco. Nenhuma flecha voava tambm
<fe l e era isso, principalmente, que os surpreendia e intrigava.
Nimuendaj abandonou a proteco da casa, deu trs ou quatro passos em frente, agitando
no ar os colares:
Irmos, no queremos fazer-vos mal!
Genaro pusera-se ao seu lado. E alguns dos outros homens, com Raimundo dianteira
, desobedecendo aos gestos dele, para que no se aglomerassem, tornando-se alvo fci
l, iam-se acercando tambm.
Estamos aqui como vossos irmos e trazemos muitos presentes para vocs gritou Nimue
ndaj, com a maior fora da sua voz.
Mesmo que compreendessem a lngua geral, em que lhes falava, sua grande esperana de
fraternizao, no deviam t-lo ouvido, porque mal o seu vulto surgira, indefeso sobre
o campo descoberto, a berraria que faziam redobrara. Mas ainda desta vez n
enhuma flecha sara da mata. A folhagem cerrada, at a muito quieta, comeara, porm, a e
stremecer, de leve, to de leve como se um pssaro somente houvesse pousado num dos
ramos. Depois os homens viram-na agitar-se, abrir-se um pouco e por ela passar a
quela massa confusa, meio escura, meio avermelhada, de linhas empastadas, to mal
definidas que primeira vista mais parecia, assim na ponta de comprida vara, um b
rinco de carnaval do que cabea humana decepada.
Sentindo o pressentimento a roe-lo, Genaro olhara, hesitara, tornou a olhar e, p
or fim, exclamou com voz
alucinada:
o Eleutrio! Mataram o Eleutrio! Ento os homens vieram todos para ali. De braos ergui
dos, punhos fechados, uns protestavam, gritando tambm; outros, muito silenciosos,
mordiam os lbios e dir-se-ia quererem fuzilar a brenha com os olhos sinistrament
e fixos.
Nimuendaj tentou ainda um gesto de acalmia, de que ele prprio precisava; o movimen
to da sua mo saiu-lhe, porm, sem autoridade. Alguns dos homens abalavam, desaparec
iam no interior do barraco, volviam com o ar de no saberem que deciso tomar, enquan
to a vara, apoiada agora sobre o fio de arame mais altaneiro, ia rolando vagaros
amente a cabea ensanguentada de Eleutrio, como se utilizasse uma manivela algum que
na folhagem se ocultava.
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1049
No faam isso! No vem que deitam tudo a! perder ?
Nimuendaj voltou-se. Era Bonifcio que impedia^, porta do barraco, que Tito Boludo e
Dorival sassem* com dois rifles. {&
Me permita, seu doutor, mas isto assim no foi* combinado. Eu sei onde est um, esse
safado que rolj| a cabea, e bala certa para castigar ele dizia Dorii" vai, com
grande excitao. *4
Amaro interveio tambm e Nimuendaj viu-o tiraiffi -lhes as armas. jp
A gritaria durou algum tempo ainda, por fim interna rompeu-se um instante. A cab
ea desaparecera. Mal logo aquele vozear de regozijo recomeou e prosseguia"* pela fl
oresta adentro mais longe cada vez. >if|[
Ao ouvir os passos de Bonifcio, lentos no corredoflfJ do barraco, Cavalcanti, com vo
z lassa de febre, perfj, guntou da sua rede, onde curtia o beribri: f'
Que foi, seu doutor ? Os ndios voltaram ? ^| Bonifcio assomou porta do dormi
trio: ,/i*
Voltaram, mas no jogaram nenhuma flechatf V Nenhuma! Vieram s para nos meter
medo e j foran^* para a maloca. '*!
L fora, os homens regressavam alpendrada, vagaiff? rosos, calados, os braos tomban
do ao longo do corptfi^; S Tito Boludo, arrimado a um dos esteios, com os1} olhos
bogalhudos e a boca meio babada pela clera, se mostrava ainda insurgente: >
Porque no, se so bandidos mesmo ? E ns aqui sem poder fazer nada! Se eu adivinhass
e esta coisa* no tinha vindo!
Ningum despejara outro comentrio, mas aquele silncio dos homens, rubro como uma lmin
a na forja^ considerou-o Nimuendaj mais nocivo do que as p* lavras.
Genaro, que parecia de cera, alto, magro e amarelado, no chegara mesmo a sentar-s
e. Passou as costas, da mo pelos olhos e props a Honrio, com voz a amorrinhar-se-lh
e na garganta:
Vamos busc-lo ? E s depois de dizer aquilo,
olhou interrogativamente para Nimuendaj, que lhe respondeu com um sinal de conco
rdncia.
Eu you tambm.
Eu tambm.
Eu tambm.
Como todos queriam ir, o etnlogo cortou-lhes prudentemente a deciso:
Bastam trs ou quatro.
Genaro encarou Honrio, Jarbas e Antnio Rocha:
Vocs, t bem ?
Foram encontr-lo estendido no declive que ia findar, suavemente, junto do igap. Es
tava de peito para o ar, as pernas abertas em ngulo, os ps beirando a gua. Tinha as
calas arregaadas at os joelhos e, acima dos ombros, s se via uma pasta de terra e d
e folhas secas, ligadas por uma espcie de cola grossa, esponjosa e vermelha, hmida
ainda. Dir-se-ia um grande boneco, destroado por crianas, filhas de gigantes.
Em frente dele, a corda do espinhei, que tantas humilhaes secretas lhe produzira n
os ltimos dias, com os seus anzis sempre desabitados, estremecia agora ao l
ume da gua, puxada pelas vidas que aprisionara. Trs tambaquis de alentado porte co
mearam a debater-se em terra, bocas e guelras sangrando sobre os corpos prateados
, logo que os retiraram do igap. Honrio visionou Mariano, de faca em punho, a aman
h-los na cozinha; entreviu os outros homens e ele mesmo a com-los e pareceu-lhe im
possvel que o pudessem fazer sem angstia. Seria como se mastigassem e engolissem a
s prprias recordaes de Eleutrio. Olhou de novo aquela prata ainda viva, a lutar dese
speradamente com a asfixia; fitou a Jarbas e a Genaro e, convencido do seu mudo
acordo, principiou a devolver gua os trs grandes peixes, cuidadosamente, quase res
peitosamente, para no mago-los mais.
Pegaram no companheiro morto, um pelas pernas, outro pelos braos e partiram. Jar
bas e Antnio Rocha ora iam frente, a quebrar os ramos, facilitando o caminho, ora
a revezar os outros.
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Honrio tornou a pensar que poderia haver tfe* ndios ocultos, espiando-os, para atac
arem em segui^S como era de seu hbito; admitiu essa possibilidadfjJt mas encolheu
os ombros. Os outros avanavam cor3| se nunca tivessem existido ndios. Sentiam uma
coraM gem reforada e austera, como se aquela morte Iheff desse nova fora moral so
bre os Parintintins e os seu" vagens o percebessem nitidamente; as suas prpriaR v
idas lhes pareciam agora desvalorizadas. j"
Junto das mercadorias, no barraco menor, Maxffl| miano preparava j as tbuas quando
eles chegaram* Devagar o fazia, como que abstractamente, nada dj|I zendo quando
os viu entrar. Lanou apenas os olh||| de lado ao vulto que transportavam, depois tb
uni que tinha sobre o banco; e decerto ficou tranqu^B quanto s medidas calculadas
, porque prosseguira seu trabalho, sempre calado.
Raimundo, que os vira de longe, chegara tamb^B a correr, trazendo um lenol nas mos.
Pouco depcuwi, Maximiano ficava de novo sozinho, com aquele tecidlP branco dist
endido sua esquerda, a insinuar, pelgfi relevos, as formas que ele no queria ver. O
s outr$| J caminharam para Nimuendaj, sentado ao ar livre,jjji cadeira encostada a
o barraco maior. Tinha as pern$#J| cruzadas, o caderno de apontamentos sobre o jo
elho"]! a cara erguida para os homens que se aglomeravail na sua frente. 11 *
Carolino, que acabava de ser rendido no posto tift * vigilncia pelo Manga Verde,
dizia-lhe:
Ainda vi uns quatro. Vi mal a eles, por causs das folhas. Havia mais, com certez
a, mas me parece^ que no muitos. Calculo uns oito ou dez. >
Eram moos os que viu, ? i
Todos muito moos.
Nimuendaj baixou reflexivamente a cabea, sei& explicar porque fizera aquela pergun
ta. Entretanto, voara at ali o rudo das primeiras marteladas que Maximiano dava, a
o longe. pequeno calor de curiosidade que o silncio do etnlogo acendera nos homens
dir-se-ia ter gelado de repente. S o martelo do car-
pinteiro parecia comandar agora aquela mudez, os rostos imveis e inclinados para
o cho. Por fim, dirigindo-se a Amaro, Nimuendaj proferiu lentamente:
Uma canoa vai voltar j a subir o rio. Se eles levaram os brindes, ponham l outros.
.. Depois ir para o lado de baixo fazer a mesma coisa.
Tito Boludo, de corpo quase oculto pelos ombros de Antnio Rocha e de Juvncio, romp
eu por entre eles, com voz rancorosa:
Mais brindes ainda para esses bandidos ?
Dorival apoiou-o:
Mais brindes, seu Curt ?
Os homens animaram, finalmente, as caras, perante aquele germe de disputa. Nimue
ndaj teve um gesto de pacincia e respondeu de modo seco:
Os brindes so as nicas armas de que podemos dispor. Vocs dois no compreenderam ainda
, ? S eles podem salvar as nossas vidas. E esta manh no deve haver perigo, creio eu
. Os ndios vo agora, provavelmente, a caminho da maloca, para festejar a morte
de Eleutrio. Pousou um olhar severo sobre Tito Boludo, depois sobre Dorival, e a
centuou, mais secamente ainda: Mas est bem. Vocs ficam dispensados de todo o serv
io. Recebem na mesma, enquanto estiverem aqui, mas dispenso o vosso trabalho.
A Tanajara pareceu justa aquela deciso; dava-lhe mesmo um imprevisto e inoportuno
prazer. Mas j
Tito Boludo dizia:
No si, eu quero ir. No por medo que falo. Mas pensar que aqueles selvagens... Eleutr
io era mesmo
um homem bom.
Os outros mantinham-se silenciosos, como se estivessem de novo mais atentos s mar
teladas que soavam ao longe do que s palavras derramadas junto deles. Somente Jar
bas interferia, dirigindo-se a todos:
J uma vez disse ao Tito que os ndios no tm culpa de ser selvagens. Nenhuma culpa.
No tm, no aprovou Tanajara.
Ento quem a tem ? Somos ns ? Ou so vocs ?
A voz de Dorival era dura, acompanhada dum olhar
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(i'
* ,1,
agressivo para os dois. Se fique sabendo que eu aft como o Tito: medo no tenho!
E tambm quero^" Mas o meu desejo... o meu desejo era fazer a esj3i bichos o mesmo
que eles fizeram ao Eleutrio. ^^K Quase to franzino como Moacir, com as mac&.BK
rosto muito salientes e a tez brnzea, Tanajara, dfjjm cendente de ndios do Maranho,
voltara a lembrar-^B do tempo em que o av lhe contava histrias vind|S| de longe,
atravs de vrias geraes da tribo, sobreesjBf vicissitudes sofridas pelos seus ancestr
ais, em fazendaB de portugueses e de holandeses, nos tempos agrilhoad|nP da escr
avatura. "Se eu j fosse homem e estivesse li* vov, matava eles". Um fervor infantil
e a nsia 'AB vingar os da sua raa, j ento a apagar-se por sucjfi sivos cruzamentos,
o exaltavam. Os ndios parecia" -lhe sagrados. Mas os holandeses haviam partido SB
muito e dos portugueses s conhecia um. Era, na Q8$JK mares maranhense, o da merce
aria onde os paisaB mandavam, de quando em quando, por pequenas coraB pras, quas
e sempre a crdito: "Para botar no li\LuJ| O portugus franzia a testa, s vezes mesmo
declaraiiB que no venderia mais nada fiado, nem mais um cha*)j|j| enquanto no pag
assem o que lhe deviam. TanajaJB olhava aquele corpo muito branco, de ventre j aba
wH lado, mangas arregaadas, os braos peludos, a bad^B por fazer. E pensava: "Um di
a... Um dia, roubo rniilH espingarda e venho..." Mas, aos doze anos, os psjj
H entregaram-no a uma famlia abastada, a do Dr. MlJB randa, residente em S. Lus, p
ara substituir o molequjB que fugira. O merceeiro que a fornecia era tamblSB por
tugus; parecia-lhe at que ser portugus e ser rnenB ceeiro era a mesma coisa, tanto
os encontrava amalga*B mados por toda a parte onde ia. A famlia compraWK muito, p
agava bem, e seu Manuel Galego, pensando^ que os domsticos podem influir nos patre
s, at 1^(r)* dava rebuados ou bolachas uma vez por semana. Mais H tarde ouvira diz
er que havia portugueses e holandeses" "| muito diferentes uns dos outros e que
naqueles tempos | os costumes ainda eram piores do que os de agora. | Tambm o dep
utado federal, quando jantara em casa f
do Dr. Miranda, falara de alguns tapuias que caavam ndios de outras tribos e iam v
end-los aos feitores da Holanda e de Portugal, para serem escravos. E se nin
gum lhos comprava, matavam-nos e comiam-nos, saboreando-os como se fosse veado ou
anta. Uma das senhoras que estavam mesa gritara: " mesmo verdade? Que horror!" E
nto o deputado desprendera o guardanapo do pescoo e, enquanto o dobrava, dissera,
muito srio: "Tirar um homem ao domnio da Natureza, custa bastante. Mas alguns l vo
saindo, com a ajuda de outros ou por seus ps!" No compreendera aquelas palavras, s
empre recordadas por esse seu prprio mistrio. S h poucos dias Jarbas lhas explicara,
mas ele no estava certo se era aquilo mesmo que o doutor deputado queria dizer.
O marano de seu Manuel Galego tambm viera de Portugal, com a mesma idade dele e ai
nda mais humilde. Quando as compras eram pesadas, saco de feijo, saco de batata,
outros comestveis, ia levar-lhas a casa, pelas ladeiras acima, aquelas ladeiras m
uito inclinadas de que havia tantas em S. Lus e lhe faziam o suor pingar da testa
. Ele, s vezes, auxiliava-o e o Zeca falava de coisas tristes, sofridas antes de
sair de Portugal, e dos pontaps, cascudos e bofetadas que o patro lhe dava, depois
de estar na mercearia. Ouvindo-o," parecia-lhe que as vidas dos dois eram semel
hantes, ambos a servirem os outros, ambos temperados ao fogo das mesmas humilhaes,
porque a ele tambm a cozinheira e o filho mais velho de seu doutor Miranda o esb
ofeteavam de quando em quando. Alguns dias, o Zeca ocultava, nos bolsos, pequena
s barras de chocolate, que lhe oferecia; e fora essa amizade com o pequeno marano
, de unhas sujas e olhos melanclicos, que lhe atenuara o ressentimento contra a r
aa a que ele pertencia.
"Eu quero ir". Recordava-se bem desse momento em que duvidava de ser aprovado pe
lo doutor Bonifcio, assim magricelas como era. As ideias que Rondon espargia havi
am-lhe reavivado, posto que de maneira diferente, o velho lume amortecido. A ali
ana estabe-
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lecera-se. Rondon descendia de portugueses, de eSpafet nhis e de ndios guanas, ter
enas e borors. O heroslaafr,, dos dez anos, que deveria realizar-se num dia aidH* d
istante e obscuro como o de todas as largas prorroga coes, metamorfoseara-se, tor
nando-se claro, adquirira'jfflUf sentido das datas e conscincia; j no seria de viwt
* gana, mas de remio. Bonifcio examinara-o e diste ser: "Pode ir". u*$
Agora, perante aquela morte, Tanajara sentia-s" desamparado por si prprio. Nenhum
tronco, nenhumif parede slida, a que se arrimasse com segurana, ne" nhuma regra a
orientar-lhe aquele grande desejo q,,, falar mas de falar certo. O tempo havia t
ransfcm&r mado os ndios de que ele descendia numa verdadenjfe* muito longnqua, que
o prprio av s conhecia pOfM tradio, ao passo que Eleutrio era seu amigo, lirna' real
ade presente e viva, mais viva e mais presence-* ainda depois de estar morto. Ta
najara teimava ewb separar-se do conflito que sentia nos outros, aquet1" mal-estar
que a ele tambm deteriorava e no o con", seguia inteiramente. Os raciocnios que i
a encadeancfeWi pareciam-lhe sempre confusos, desconexos, pouco ade*> rentes ao
instante que ele suportava, s prprias razeS* que o consumiam. E foi com a sensao de q
ue nS dizia exactamente o que desejava dizer, que, por mfdisse: 'f"1
E esses que l pr Europa enforcavam as pesH-* soas e deixavam elas pendurad
as para os outrofe ver ? "J
Os homens ouviram-no falar assim, isoladamente^ e quedaram-se indiferentes como
se no o tivesses" ouvido; somente Jarbas, Nimuendaj e Bonifcio et" gueram um breve
olhar para Tanajara, um olhar que logo baixaram, discretamente. Jarbas sabia que
era por influncia dele.
Entretanto, Nimuendaj brigava consigo mesmo, com a sua piedade e o seu despeito,
por lhe terem desobedecido mais uma vez: "Recomendara ao caboclo que no voltasse
ao igap e o caboclo voltara. Mas agora, ao contrrio do que sucedera com Amaro, ta
lvez
ele prprio tivesse alguma responsabilidade no caso", pensou, sempre enervado. "No
fora suficientemente enrgico quando soubera das idas de Eleutrio ao igap. Desde qu
e convivia com Bonifcio, andava amolecendo, cada dia a transigir mais, j dera por
isso. No queria que o pessoal o tomasse por menos complacente do que o mdico, meno
s at do que Amaro, e na noite dos primeiros tambaquis tinha sido demasiado brando
. Era evidente que os homens haviam perdido aquela simpatia tolerante pelos Pari
ntintins, aquela compreenso dos seus costumes brbaros, das suas reaces ferozes, que
era necessrio ter. E isso acontecia precisamente quando abordavam os dias
mais perigosos, precisamente quando se tornava indispensvel uma unidade
psquica entre todos eles, quaisquer que fossem as circunstncias. Parecia at que o
respeitavam menos agora, muito menos, como se a morte de Eleutrio houvesse estabe
lecido o mesmo nvel para todos, rasando as hierarquias, transcendendo tudo. Ele p
rprio j no sabia como cingir os outros ordem que dera, como manter a sua autoridade
sem criar novos marulhos entre os homens, os marulhos silentes os mais danosos
de todos".
Encontrou os olhos dedicados de Raimundo, esse aumento de fora que ele sentia qua
ndo o tinha a seu
lado e decidiu-se:
Vai voc, com os que foram da ltima vez. Diga ao Mariano que lhes arranje uma bia, p
ara comerem no caminho. Para os lados onde eles desapareceram, irei eu. Quero ve
r se levaram ou no os brindes que l deixei. A voz comoveu-se-lhe: Mas antes diss
o vamos enterrar o nosso amigo.
Bonifcio viu-o passar a mo, repetidamente, sobre o bigode, apertando de quando em
quando o lbio entre os dedos, como se castigasse as variantes da sua batalha ntima
, antes de tornar a falar:
Foi uma grande crueldade, no h dvida. Mas, quando viemos, j sabamos que eles eram ass
im. E foi por isso mesmo que viemos. No estamos aqui pelo que eles so, mas pelo qu
e podem vir a ser. O que
.J
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S 'j Jrl
sucedeu ao Eleutrio, no haveria acontecido se ele tivesse feito caso do que eu lh
e disse. . ,lf
Ao lado de Nimuendaj, as costas apoiando-se na parede do barraco, Bonifcio pressent
ia tambm crise que a maioria dos homens sofria e decidiu intervir:
No temos de modificar em nada o nosso corq> portamento disse-lhes. Devemos pens
ar que tudo isto selvagem: os Parintintins, esta mata que nos cerca e a vida que
levamos aqui. S as nossas ideias so civilizadas e podemos sentir-nos contentes de
as termos. Nos estamos superando, compreendem?
Pareceu-lhe, pelo olhar incerto de alguns, que as suas palavras no eram rapidamen
te entendidas e prof curou esclarec-los e influenci-los com uma evocap que a ele mes
mo, de quando em quando, ainda aqueciat
Conheo um caso bonito. Mesmo bonito. Uraa tarde, Rondon ia a cavalo por um varado
uro, quando sentiu alguma coisa passar-lhe por detrs da cabeal Ele me disse ter ju
lgado, a princpio, que fora um pssaro. Mas aquilo se repetiu. Dois nhambiquaras
estaf vam a flech-lo de entre as rvores. Eram flechas envenenadas e uma del
as, por pouco, no o atingia. Essa est agora no Museu Nacional do Rio de Janeiro; u
ma relquia. Que fez ele? Tirou a carabina do ombro ali ns andvamos sempre armados,
por causa da caa e, quando os Nhambiquaras iam jogar maio flechas, deu dois tir
os para o ar. Os ndios fugiram, mas viram perfeitamente que Rondon no quisera atir
ar sobre eles e isso era o principal. Assim que chegou ao acampamento, ele nos
contou o que lhe havia suce*- dido. Os homens que estavam ali eram todos militar
est oficiais e soldados, que andavam a construir a linha telegrfica nos sertes. E
h muitos militares que tm umas ideias esquisitas, no sei se vocs sabem. Para eles, u
ma espada no um bocado de ao, como para as outras pessoas; uma coisa que tem honra
, que tem orgulho e s vezes at lhes parece que tem alma superior dos homens. Pensa
m assim, que havemos de fazer ? Os que estavam ali eram uns valentes, tinham amo
r pelos ndios e ideias mais modernas. Estive l,
posso garantir. Mas um capito e um aspirante, chegados h pouco, diziam que seria u
ma vergonha para o exrcito se no castigssemos os Nhambiquaras. Diziam que se os ndio
s no tivessem medo de ns, at poderiam dificultar, com os seus ataques, a abertura d
a picada que andvamos fazendo.
Bonifcio hesitou. Parecia-lhe agora que estava a degradar o episdio, a sua prpria s
ubstncia, narrando-o puerilmente, por ouvir ao mesmo tempo as marteladas que Maxi
miano continuava a dar ao longe.
E, depois, que aconteceu ? perguntou Honrio.
Bem... O Rondon levantou a cabea e respondeu-lhes : "Meus senhores, quem represen
ta aqui o exrcito sou eu. E o exrcito no veio aqui para fazer guerras. A do Paragua
i j acabou h muito, esto compreendendo ? No viemos para matar ningum. Mas, por enquan
to, os Nhambiquaras no sabem que a nossa misso de paz. Ora se esta terra f
osse vossa e algum viesse roub-la e ainda por cima vos desse tiros, o que que
os senhores fariam, apesar de civilizados?"
Bonifcio interrompeu-se e logo acrescentou, voltando-se para Tito Boludo e Doriva
l:
Ningum, nem mesmo aqueles que tinham pedido castigos, por causa da honra militar,
levantou a voz. Ento ele disse-lhes: "Vamos j fazer um girau no stio onde os dois
nhambiquaras me atacaram e cobrir o girau com brindes. Cada um de ns leva para l u
m presente pessoal, qualquer coisa que no lhe faa muita falta". Rondon disse aquil
o e todos, depois de pensar um bocado, todos, at o capito e o aspirante, oferecera
m alguma coisa. Pacificmos aqueles ndios, que tambm eram muito ferozes.
Continuaram calados os homens. Pareceu-lhe, porm, que comeava a reflutuar a adeso n
aufragada nessa manh. S Tito Boludo reagia:
Mas seu Rondon foi sapecando dois tiros, hem ? O primeiro sorriso, depois da mor
te de Eleutrio, surgiu no rosto de alguns dos homens. Jarbas protestava :
34-Vol. Ill
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O INSTINTO SUPREMO
O doutor j explicou que eles perceberam qtij no era para matar. Quem sabe se no fo
i mesia^ til ter acontecido aquilo ? Os ndios podem at s(r)- i melhores pessoas do
que estamos julgando. Podem SB" bons entre eles, gostarem dos pais, das mulhere
s e dom filhos. Esto habituados ideia de se defender de nlw de atacar e de matar;
o que preciso tirar essa ideia" a eles. >
Os homens articulavam novos comentrios e adrvd" nhavam, como se estivessem a v-las
, quando as cabil" as dos pregos atingiam a superfcie das tbuas. Aim marteladas tor
navam-se, ento, mais copiosas e ma" rpidas; tuntum, tuntum, tuntum... &
Ao observ-los, ainda perturbados pela rotura cf" pacto entre o instinto de conserv
ao e a ideia dim solidariedade que os governara at h pouco, Bo^H fcio sentiu uma sbita
ternura por eles. Os misss nrios, que haviam empreendido outrora a catequefl| de vr
ias tribos, em terras ainda quase virgens, co&JB tavam com uma recompensa metafsi
ca, prdiga '-if eterna, pelos sacrifcios que faziam, ao passo que d M homens ali reu
nidos agiam apenas sob o efeito duma l ideia civil, sem prmio algum prometido. E
at l orgulho dos seus feitos, no caso de virem a t-lo, no p excederia a orla domstic
a e fatigaria os prprios ami1- ^ gos, se os ouvissem narrar a aventura mais duma
v. f
Amaro viera de dentro do barraco, pusera-se eitt frente de Nimuendaj, apontando o
grupo de arbustos e plantas que cresciam entre as rvores, onde os Parinr tintins
se haviam escondido, com tanta opacidade e to eficazmente como ao abrigo de uma f
ortaleza.
No lhe parece que seria melhor roar aquilo ?
J tinha pensado nisso assentiu Nimuendaj, metendo o caderno no bolso, certo de qu
e s no isolamento do seu quarto poderia anotar convenientemente os eventos dessa
manh. J tinha pensado, mas no se deve roar muito. Uns seis ou sete metros apenas, p
ara o interior. Precisamos de ter contactos com eles e eles no vo certamente apres
entar-se frente a frente se no puderem esconder-se depressa.
O INSTINTO SUPREMO K>59
Amaro olhou para Moacir, Tanajara e Etelvino e
disse-lhes:
Iremos l depois do almoo. Agora vamos abrir
a cova.
Eu quero ir com voc. E eu tambm declararam Tito Boludo e Dorival, um a seguir ao
outro.
VIII
"JIO-DE ir todos ao meu baile... Ho-de ir todos ao meu baile de cem pessoas..." A
alguns parecia ainda ouvirem aquilo, dentro deles, de quando em quando; e todos
evitavam olhar para o lado do ngulo que a cerca formava, l adiante, beira do rio.
Quanto mais afiava os seus raciocnios, mais Nimuendaj se convencia de que a grande
reaco dos Parintintins se estava incubando ainda. As duas surtidas j realizadas
proviriam somente de pequenos bandos, grupos de jovens quentes, decididos pe
la idade, porventura margem do prprio tuxua ou por ordem dele computando as defesa
s dos civilizados; e haviam-no feito como se os tivessem despido e de sbito encos
tado aos corpos nus as pontas das flechas, para suputar a intensidade dos seus e
stremecimentos.
O doutor Bonifcio pensa que devamos ficar todos aqui at vir o grande ataque. Sabend
o que ramos muitos, talvez os Parintintins nos respeitassem mais disse Nimuendaj
ao pessoal, antes de se levantarem da mesa onde tinham almoado, no dia seguinte m
orte de Eleutrio. Por isso no mandei ainda para Trs Casas, como havia dito, aquele
s que j no fossem precisos, depois de construdo o Posto. Mas o ataque est a demorar.
Ele vir, com certeza; quando, no sei. E, como depois de amanh a lua est boa para a
viagem, quem quiser partir que o diga.
Quedaram-se alguns dos homens com os cigarros a consumir-se entre os dedos, quan
do iam met-los na
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O INSTINTO SUPREMO
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boca; outros entreolharam-se, surpreendidos, no silncio que de repente sobreviera
. "tjj Nimuendaj acrescentou, pausadamente: r
Quantos mais ficarem, mais vidas estaro ecjl perigo, sobretudo se no respeitare
m as ordens, coro(r)* fez o Eleutrio. a"
Eu quero ficar! Era Dorival quem falava, coiflf voz resoluta, e todos os outros
o imitaram, salvo Tit" Boludo, que se quedara, com olhos considerativos, jm rola
r entre o polegar e o indicador um gro de farinhi de gua, cado da tigela.
Eu tambm quero ouviram-no declarar por finjA
claro que aqueles que no forem necessrnpj" no podem ficar sempre aqui. Temos de eco
nomiza!" os mantimentos, pois cercados como estamos e cojfi tanta gente a comer,
depressa acabariam. PrecisamSj!* tambm de ter comunicaes com Trs Casas, logo qtfW for
possvel. - Nimuendaj interrompeu-se um ins** tante, olhando circularmente
para os homens: ^*1 no penso que so valentes s aqueles que ncaronff^ Para ir a Trs
Casas e voltar, tambm precise corai* ; gem, j todos o sabem. id f
Iremos l depois de eles virem nos visitar...-^.^ volveu Dorival. E mudez de algun
s e expressa^'1 irnica dos outros, tomou-as Nimuendaj por um acorct * geral, que el
e esperava. 5
Foi um grande castigo que dei a mini prprio disse Bonifcio, sorrindo, quando os ho
mens se afastaram.
Que castigo ?
Dizer-lhe que, por enquanto, seria melhor ficarem todos aqui, quando a verdade q
ue estou ansioso de ter e de mandar notcias minha mulher.
Nimuendaj no comentou logo. Parecia sondar a si mesmo.
Eu tambm pronunciou depois. Voc est arrependido de ter vindo ?
No. No, de maneira alguma! A causa justa e vale muito mais do que o meu interesse
pessoal. Mas tenho imensas saudades de minha mulher.
Os dias longos de expectativa, ante a verde quietude da brenha, com o cio amoleng
ando os homens e excitando-lhes a imaginao, recomearam. Recomeou aquela impacincia, s
empre mais forte, de cada qual se defrontar consigo mesmo ao defrontar-se com os
Parintintins, aquela impacincia que jamais se esclarecia completamente e que o S
ol encontrava todas as manhs, ao surgir por cima da floresta, .e todas as tardes
deixava, madura, mas intacta, quando desaparecia da outra banda, depois de haver
traado sobre o acampamento o seu arco resplandecente.
Me parece que voltei a ser menino: o tempo no passa mais queixou-se, uma tarde,
Aristeu, abrindo os braos e espreguiando-se, aps se ter levantado da mesa onde joga
vam.
Aparentemente, o que mais os enfadava e lhes criava aquele tdio mole e verde como
os limos, sobre os quais passava uma gua que parecia sempre igual e ia, contudo,
aumentando-os sempre, um tdio que se exprimia em repetidos bocejos, s vezes to alt
os, ressonantes e prolongados como os gritos matinais dos guaribas, era a aco de v
igilncia, repartida entre quase todos eles e de tal maneira desprazvel que os fazi
a olvidar at, por largos momentos, a sua suprema razo de ser.
Nimuendaj metia-se no quarto, com os cadernos de apontamentos abertos diante dele
, e redigia longos relatrios, fortemente cevados de pormenores; escrevia artigos
para as revistas onde colaborava e cartas a seguir a cartas, que os homens dispe
nsveis levariam quando fossem a Trs Casas e que os amigos, a quem as endereava, na
Europa, nos Estados Unidos, no prprio Sul do Brasil, s receberiam muito tempo depo
is, sem nenhuma ideia exacta sobre o crcere vegetal de onde elas tinham sado.
Tambm Bonifcio se isolava grande parte das manhs, entregue confisso das reaces nele
ovocadas pelo ambiente em que vivia e pelo que em seu redor se passava; cerradas
pginas destinadas mulher, origem desse rosto absorto que o pessoal notava quando
ele aparecia para almoar. E por aquelas tardes de
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lOS
tocaia ao provvel, compridas como um Vero inteiro viam-no sentar-se ao ar livre, d
iante do cavalete, fca mos os pincis recreativos, que muitas vezes se deti<" nham,
solidrios com o olhar dele, pousado esquecida? mente sobre a floresta. Era quelas
horas e not^ na rede, que a lembrana de Tarslia mais o frequeae tava: quelas horas,
nos sentimentos, noite, quasft sempre nua, "Andava a escrever s para ela, mas tin
iai de escrever tambm aos sogros. J o devia ter feita Nunca haviam compreendido int
eiramente o procedi^ mento dele, mas ele compreendia-os bem. Talvez gose tasse r
nais do sogro, por aquilo mesmo em que eram completamente diferentes, embora Tar
slia lhe houvess^ dito, antes do casamento, que o velho portugus sonhaE *. para ela
um marido com um futuro mais brilhantt/ Podia ser mdico, no havia inconveniente, d
esde qu, fosse categorizado, um mdico de que precisassem p* grandes da cidade, um
desses doutores que o Govw| nador convidava sempre para as festas do Palcio Ritf
Negro, pois bem o merecia Tarslia, bonita, muito edtl" cada e com ele, seu pai, j
feito comendador. No, nltej; tinha verdadeiramente queixa dos sogros. Ficar
ians contentes se ele lhes escrevesse. Era certo que a so^r" envenenara o esprito
de Tarslia para sempre, quartf, lhe falara da diferena de idades e lhe sugerira que
ele. tinha provavelmente mais desejo de carne tenra dfr que amor por ela. Mas t
ambm isso era compreensvel; pois que se tratava da filha. Sem dvida, a oposift" teri
a sido maior se o velho no se houvesse tornadff esprita, ficando mais bondoso, mai
s generoso, emborf com o aspecto dum homem vencido". -;
As cores da paleta misturavam-se, passavam paw as imagens dos sogros e os seus ro
stos diluam-se, desaK parecendo sob manchas vermelhas, azuis e amarelas,' para lo
go ressurgirem de novo. "Tinha de escrever-lhes, j devia t-lo feito de Trs Casas, e
m vez de lhes man1dar apenas cumprimentos nas cartas para Tarslia. Gos& tava dos d
ois; e at lhe parecia que gostava mais ainds desde que os contrariara, vindo para
ali. Nunca haviartf falado, pelo menos que o soubesse, sobre a questo d'
serem ricos e ele viver do seu trabalho e do pouco que lhe legara o seu tio e pa
drinho, questo que sempre o incomodara, no fossem imaginar que desejava Tarslia pel
o dinheiro, quando podia perfeitamente sustent-la, sem precisar da riqueza de ni
ngum. Mas se estivesse no lugar deles e com a mesma mentalidade, certamente have
ria posto as mesmas reservas que a sogra pusera. Ela era esperta, por vezes mesm
o subtil; naquilo, porm, enganara-se em parte. Ele no desejava apenas o corpo jove
m de Tarslia, ele tinha uma verdadeira paixo por ela. A sogra no podia prever as co
nsequncias do que fizera, mas criara-lhes aquele desagradvel complexo. O que
ela no sabia era ter ele percebido, quando das primeiras carcias secretas, que Ta
rslia j as conhecia, que a inocncia dos seus olhos era maior do que a do seu corpo.
Fora essa prpria verificao que lhe estimulara ainda mais a gula sexual, perante aq
ueles arrebatamentos sentimentais e nervosos, to acima da normalidade, que s uma m
ulher que ame autenticamente um homem ou seja quase louca pode ter. Tambm fora de
cisivo o dia em que ela lhe dissera: "Nunca, nunca, juro, gostei de moos da minha
idade!" e ele lhe perguntara: "E daqui a trinta anos, quando eu j estiver perto
dos setenta?" "Ora! Sei l se viverei daqui a trinta anos! Mas se viver, terei
passado os cinquenta, estarei velha, por que hei-de pensar agora nisso?" Sem a
quelas frases ardentes, que haviam legitimado a possibilidade de satisfazer o se
u desejo e o seu amor, ele no teria decerto casado. Ela sabia o que lhe acontecer
a com Nivalda. Ele prprio lho contara honestamente, como lhe parecera justo, emb
ora o fizesse em sntese e a confisso o magoasse. E era isso que podia vir a aument
ar o perigo. Uma cidade est cheia de tentaes e mais fcil enganar o marido numa cidad
e do que numa aldeia, onde tudo se sabe". A admisso incompatibilizou-o, finalme
nte, com a aguarela e com a tendncia que o seu esprito mostrava para fugir sempre
dali nessa tarde. Enfeixou os pincis, cerrou a caixa das tintas e dobrava o caval
ete quando Juvncio correu para ele, todo solcito:
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No se incomode, seu doutor, eu levo.
Resolveu dar um pouco de distraco a Cavalcanti" narrando-lhe velhas histrias, quase
ao nvel infantil, como muitas vezes sucedia; mas ainda caminhava % corredor e j p
ercebera que Jarbas estava a fazer-l&$ companhia, ao ouvi-lo dizer: "Ento a vida
dos homeqj^ como ns ser muito diferente". &*
A doena de Cavalcanti avanava para a fase hidrj pica e a medicao que Bonifcio lhe apl
ava, ness^S dias em que a origem do beribri era ainda to obscujift como no tratado
de patologia em que ele a estudar"! vinte anos antes, mostrava-se sem eficcia.
Outros homens cediam ao meio, aos seus miasm^S" aos parasitas invisveis que nele
afanosamente se nufflB tiplicavam. Parecia que a amitina e a cnfora haviaoH resga
tado Crisstomo; mas ainda ele no se restabM" lecera de todo e j a desinteria, como
se mudasse apenajB de abrigo, se instalara em Antnio Rocha e Etelvin3 O prprio Nim
uendaj, com o seu impaludismo ci|jm nico, voltara a ter acessos de febre, na terr
a que qfi servia de armas microscpicas para se defender de que^l a violava. jal
Rocha e Etelvino haviam sido transferidos para;*! barraco menor, improvisado rudi
mento de hospitapf onde ouviam Maximiano continuar, obsessionantement&i a sua fa
bricao de cadeiras, do outro lado da divj-f sria. E foi precisamente numa dessas man
hs em qvt Bonifcio atravessava o Posto, depois de os havef examinado, que A
risteu perturbou a paz reinante COE" o brusco sinal de alarme. De comeo ningum ouv
iu mais nada. Nimuendaj surgira porta do barraco maior, avanando at a sua esquina,
os olhos e os ouvidos a perscrutarem a orla da floresta. Alguns dS homens que se
agrupavam na cerca, em paleios de mata-tempo, foram-se aproximando dele, com
uma lentido deliberada, que pretendia suprimir toda a aparncia de medo. O siln
cio continuava. Mas, pouco depois, dir-se-ia que spidos representantes do mund
o alado, vindos de longe, como sugeria o som, cada vez mais ntido, das suas diver
sas falas, se tinham reunido
muito prximo do acampamento, para um concerto ornitolgico. Jas, inambus, outra
s aves ainda, que tanto as flechas como as espingardas gostavam de encaminhar
para o lume, depenadas, ungidas de limo, esfregadas com malagueta, pipilavam
como se chamassem um cnjuge infiel e ausente. E s pobres saudosas respondiam, com
seus grunhidos, os melhores javalis do Mundo, os feros e feios caetetus, sonho d
e todos os gastrnomos, fossem selvcolas ou urbanos, nus ou de casaca, que os tives
sem saboreado num dia de felicidade gstrica. Ouviam-se, depois, os coats, os prego
s, os capijubas, os guaribas e outros macacos, cada qual com vozearia prpria, a l
embrar aos homens o gosto das suas carnes, excelentes para deleite de tribos ant
ropfagas. Emudeciam um instante, restituindo floresta uma paz nervosada, mas logo
recomeavam, como se lamentassem que nenhum daqueles civilizados, habitando to per
to dali, largasse do seu campo com a espingarda na mo e, dorso curvado, metesse s
ilenciosamente por entre os galhos baixos para os caar. Era perfeita a imitao. H mu
ito que se conhecia essa armadilha sonora das tribos selvagens, quando desejava
m atrair o inimigo, com um arremedo da arca de No, na terra de saborosa fauna, on
de a ideia da caa acompanhava, to fielmente como a lngua hmida dentfo da boca, todos
os que a pisavam. Em horas secretas, dessas que a sensao do perigo regula, os ndio
s serviam-se tambm daquele processo canoro para comunicar entre eles; mas os velh
os florestrios, como Raimundo, mesmo Nimuendaj e Bonifcio, depressa distinguiam a i
sca trinada ou roncada e a mensagem transmitida por gorjeios breves e solitrios,
embora
maviosos.
Os homens escutavam. E, parte Tito Boludo, de novo cenhoso, todos sorriam um so
rriso lento, macio de ironia e indulgncia.
Eles no sabem que ns sabemos... disse Bonifcio e os homens sorriram mais.
A floresta calou-se, finalmente. Nimuendaj e Bonifcio admitiram que se trataria ai
nda de pequeno
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grupo, talvez o mesmo que decapitara Eleutrio. TinJqi sido vitria fcil e pretenderi
am voltar maloca c0A novos trofeus. fl^
Os passos dos homens tornaram-se mais cautelo^ quando andavam no acampamento, co
m a ideia que continuavam a ser rondados. O tempo do jogo*! das histrias erticas e
sticou-se. Vises femininas, atitudes obscenas, passavam pelas redes e pelas ocioa
S! dades, deixando nos corpos um rasto de fogo. O gr"| mofone seria uma distracoe p
ara isso viera. MiUR havendo-se considerado que os impediria de ouvirifllt sinal
de alerta, conservava-se mudo sobre a pequeodti coluna, a campanula em forma de
flor, que mais pareci"! boca para engolir as palavras soltas na sua frente "dMl
que para falar ou cantar. O prprio Honrio s mui" baixinho dedilhava o seu violo, qua
se como se estill vesse apenas a afin-lo, o que tanto o desgostava, p(c)8| assim no
reunia auditores.
Tendo observado sonolentos cabeceies nos que esta" vam de atalaia, sobretudo em
Aristeu, Filipe e Tiwf Boludo, Nimuendaj ordenara-lhes, com a secura do# I seus m
omentos de contrariedade, uma vigilncia ma8J| conscienciosa. E no querendo minguar
o efeito daquel" rudeza, pedira depois a Bonifcio que lhes explicassi" evocando o e
rro de Eleutrio, que embora os ndio4 preferissem atacar de dia, algumas vezes, cape
ando-sa*?; com as trevas, rodeavam de noite os stios que pretend diam assaltar ao
abrir da manh, justamente quandd os olhos das prximas vtimas se encontravam ainda
fechados.
Foi no corredor, perto do dormitrio, que Bonifcio transmitiu aquilo aos homens; e,
da sua rede" Cavalcanti apoiou, com voz frouxa: " assim mesmo" ". Tmido de incio, o
seu edema crescera. Alastrara das coxas para o abdmen, avolumando-o tanto como s
e ele retivesse, por digerir, um grande jirimum. "Parece barriga de minino que c
omeu terra" dizia Cavalcanti aos companheiros, num torn resignado e olhando a su
a prpria disformidade.
Podemos tentar mandar ele para Humait, como
ao Soares dos Santos sugeriu Nimuendaj a Bonifcio, nesse mesmo dia.
J pensei nisso. Me parece intil. to longe... Tantos dias... E o mdico exps ao etnlog
a evoluo que a doena ameaava tomar. Se ela atingisse a fase cardaca durante a viagem,
o mais certo era o homem morrer pelo caminho. Mesmo que os ndios no atacassem a c
anoa, ele iria sempre em perigo. Calou-se, tornou a volver: Ns trouxemos os med
icamentos indicados para o beribri e eu tenho-me ocupado de muitos destes casos,
infelizmente.
Estranhou a cara de Nimuendaj. Nem uma palavra, nem um gesto, os olhos fixos no c
ho e no ar aquela suspeita de que ele preferia despachar Cavalcanti para Humait. B
onifcio pensou que talvez fosse por falta de confiana na sua competncia, talvez ain
da pelo caso de Eleutrio, para no impressionar de novo o pessoal com a morte de Ca
valcanti se ela se desse. Para mim seria mais cmodo mand-lo, claro. Um doente gra
ve ao nosso lado, num stio isolado do Mundo como este, faz-se sentir mais no espri
to do mdico do que dez ou vinte clientes espalhados numa cidade. O caso de Soares
dos Santos era diferente. Eu no tinha esperanas de o salvar, mas o meu desejo foi
ficar l nos Muras com ele. Voc no estaria de acordo, e com razo, pois seria trocar
a sorte de um pela de todos os outros que vinham connosco...
No estaria... disse Nimuendaj, maneira
de eco.
Tambm no o podamos trazer para aqui. No
tnhamos ainda nada preparado e no sabamos mesmo se chegaramos vivos. muito desagra
dvel pensar
nisso.
Est bem. Voc que sabe.
*
Finalmente a expectativa quebrou-se. Na manh j avanada, mediaram apenas alguns segu
ndos entre os assobios dos vigias e aquela gritaria imensa, cada
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vez mais frentica. Dir-se-ia um parto mitolgico da floresta. De arcos em riste, br
otavam de dentro da folhagem, rpidos, simultneos, vociferantes, cercando instantan
eamente o acampamento. S o trecho do porto parecia livre. Mas era simples aparncia
, porque o dominavam da outra margem do igarap e da parte alta da terra onde Eleu
trio jazia, separado delefc somente pelos fios do arame farpado. Os seus brados d
e guerra, vibrantes de antigas cleras remoadas, d ressentimentos nunca de todo desf
orrados, entrecruza* vam-se, lanavam furibundos ecos rio alm, galvann zando de repe
nte a suave tranquilidade da manh.
Na vspera, que parecia agora j muito distanciada no tempo, Nimuendaj sofrera novos
acessos de febre" E estava ainda deitado quando ouvira o sinal de alarm", > e as
primeiras flechas baterem l fora, de encontro s t chapas de zinco, ao abrigo das
quais a sua rede sp, estendia. Metedia e inoportuna, uma lembrana saltou ' desse I
nverno spero que ele vivera, era ainda adoles- , cente, numa aldeia da Baviera, e
nto regelada. Uma, repentina lembrana, agora incmoda, de quando s, aconchegava s roup
as da cama, sentindo-se feliz, egoisf-, ticamente feliz, ao ouvir, sobre o camin
ho cheio de neve* \ os passos dos que andavam ao frio daquelas noites para \i lo
bos. Mas uma deduo irritante, toda venenosa, sobre^ ps-se imediatamente ao inespera
do lucilar desses momentos j longnquos: "Decerto o vigia dormira mais uma vez, poi
s tardara demasiado a preveni-los".
Apressadamente Nimuendaj abandonou a rede" abriu a porta e gritou para o barraco i
nteiro:
Que no saia ningum por enquanto! Ningum! Deixem eles ir gastando primeiro as f
lechas. Esto ouvindo, ?
Bonifcio correu para o quarto dele, roando de passagem a Mariano, que regressava p
achorrentamente cozinha, depois de haver ido alpendrada, sempre com a grande col
her de pau na mo, lanar uma olhadela quela balbrdia intensa.
Deite-se! Deite-se! disse Bonifcio a Nimuendaj, com voz de ordem profissional, lo
go que chegou
porta. De pijama todo enrugado, ele trepava j os degraus que antecediam a abertur
a de onde se podia ver a linde da floresta e voltou-se. Lhe pode fazer mal! Dei
te-se! Fixou Bonifcio com um olhar surpreendido, quase fuzilante, em que a mental
idade do chefe se opunha do mdico, tendo por absurdo que ele lhe lanasse, nesse d
ifcil momento, uma tal recomendao. Sem palavra alguma, continuou a subir at a fre
sta, l em cima, junto do tecto, onde ficou, carrancudo e impassvel, a observar o q
ue decorria do lado de fora. Bonifcio veio ento debruar-se junto dele.
Do dormitrio chegavam vozes do pessoal, comentrios irnicos, ligeiras disputas pelos
lugares no vo que tambm ali se abria aquele mirante discreto, que o beiral longo
e inclinado resguardava como uma
pala.
Os homens enxergavam, enfim, os Parintintins.
Todos os enxergavam pela primeira vez, mesmo Nimuendaj e os veteranos, que haviam
trilhado a fmbria dos seus territrios. Baixos, espadados, pintados de negro, sua c
or de guerra, na cabea um diadema de plumas, as maiores pendentes sobre as costas
, em ramalhete multicolor, eles pulavam e batiam furiosamente com os ps no cho, pr
osseguindo nos gritos blicos, sempre mais rancorosos por falta de resposta. E, se
micerrando um dos olhos, regulavam pelo arco a pontaria
das suas flechas.
Ao acaso dos papis encontrados, todos os homens que estavam no barraco, mesmo os a
nalfabetos, tinham visto, em desenhos ou fotografias impressas, outras trib
os semelhantes, outros gestos iguais queles; e tendiam a mesclar a seriedade com
a farsa representada pelos Muras-Piras, dois meses antes, numa longa noite da sua
aldeia. S pelos rgos genitais, escondidos dentro de folhas de arum, enroladas em fo
rma de canudo, uns tubos que desciam quase at os joelhos, aparentando to exorbitan
tes dimenses dos sexos que Tito os comparara, em desbocadas palavras, s dos jument
os quando itiflicos, os Parintintins se distinguiam dos
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outros ndios. Mas essa mesma caracterstica ajudava a substituir por um estado de e
sprito irnico a ideia, de crueldade e morte que a presena deles sugeria.
Do outro lado da divisria, ao p de Nimuendaj, Bonifcio ligava romanticamente a um pa
norama antigo o desenrolar das primeiras cenas: era o Neolticok desdobrando-se na
s suas ltimas fases, j to distantes^ que se lhe patenteava agora; e ele tinha como
una privilgio ser testemunha, no sculo xx, daquela per}- turbante ressurreio. Era co
mo se os homens de gestos colricos e expresses ferozes disparassem as flechas por
sobre as montanhas de cinzas de mais de sete milnios, atravs de ares desde h muito
extintos. Homens que no tinham desenvolvido ainda as suafc riquezas interiores, c
omo se a Natureza houvesse aa"bado de os formar h pouco, alm das setas, de alguns r
udes objectos domsticos e dos seus tapiris, simple abreviaturas das cabanas neoltic
as, nada mais deviam a eles prprios. A inteligncia s muito vagamente lhes havia tem
perado a violncia primria e era justamente com a esperana de os tornar menos escrav
os da stfa tremenda autenticidade, era para sobrepor criao natural a recriao humana,
que se vivia aquela grave manh, comandada pelas doutrinas de outro homemi um hom
em que assinalava, mesmo quando ausente, mesmo ali na brenha enigmtica e bruta, a
evoluo da espcie portentosa. S o arame farpado separava os dois tempos e representa
va paradoxalmente, como que sarcasticamente, a civilizao que se pretendia oferecer
aos selvcolas. Vistos de longe, os seus fios davam a Bonifcio a iluso de penetrare
m nos corpos dos ndios quando eles se movimentavam, de penetrar maneira de serras
, dividindo-os em vrias seces, como as esttuas feitas de diversos bocados.
Tendo percebido que as guaritas ocultavam alguns dos invasores, os Parintintins
no se fatigavam de distender a corda dos seus arcos em direco aos furos que elas ex
ibiam. Mas as flechas, mesmo as mais certeiras, que assomavam ali as agudas pont
as, como cabeas de serpentes em golpes rpidos, tombavam,
vencidas, ante a pequenez dos orifcios, enquanto um ligeiro regozijo lastrava as
preocupaes de Nimuendaj perante aquele desperdcio que os ndios faziam das suas armas.
Ele via nitidamente Carolino, colado a uma das chapas zincadas, muito direito e
imvel, como num jogo infantil, um jogo s escondidas, em que os ouvidos juntassem
sua funo normal aquela que compete especificamente aos olhos. Via-o e admitiu que
seria morto antes de qualquer outro se os selvagens rompessem, com toda a sanha
que alardeavam, pelo acampamento adentro; e, de sbito, esse homem to vizinho do pe
rigo pareceu-lhe diferente do que era momentos antes, valorizou-se, tomou alma n
a alma dele, trouxe-lhe mesmo a ideia de um grande desgosto
se o matassem.
Quem est mais de vigia ? perguntou a Bonifcio.
O Jarbas e o Dorival.
O Jarbas e o Dorival...repetiu devagar Nimuendaj, como se desse elasticidade s slab
as, para elas abrangerem, secretamente, mais alguma coisa alm
dos nomes.
Escassos em imaginao, os Parintintins insistiam sempre na mesma tcnica. Disparavam
trs revoadas de flechas, logo baixavam os arcos, olhavam um momento o reduto dos
civilizados e, numa vozearia de desafio, de novo batiam na terra com os ps. Conti
nuando teimosamente deserto o espao do acampamento, como que de todo alheio pre
sena deles, volviam a flechar, a espezinhar o cho, a lanar os seus reptos cada vez
com maior clera. Mas j vrios moos, certamente insatisfeitos com essa infrutuosa est
ratgia, to repetida e to intil, procuravam derrubar a cerca: acocorados no meio do
s que flechavam e apostrofavam, iam retirando, servindo-se de pontas de v
aras ou das mos, a terra em volta das estacas. Parecia, a alguns dos homens ocult
os no barraco, que os ndios, naquela faina, agiam depressa num tempo confuso e mui
to longo; que a pressa, correndo na lonjura do tempo como bicho faminto atrs
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da presa num chapado imenso, onde boiavam esfarrapadas nvoas, lhes deixava, apesar
de tudo, certa posse deles mesmos, flego e movimentos, voz e ratio* cnios, princi
palmente o desejo de serem homens alegres, como sempre que se enfrenta o perigo
e se est ao lado de outros homens. Nimuendaj tornou a pensar em Honrio, no ensaio a
que ele se entregara ainda h poucos dias, voluntria e alegremente, como se fosse
exibir as suas virtualidades musicais e as longas perna ondeantes no palco dum te
atro ou em larga pista cir* cense e reservou-o para um mais til momento.
Os sitiados revezavam-se na fresta do dormitrio, demasiado acanhada para a curios
idade de todos eles; e alguns vinham colocar-se sob o alpendre, prosseguindo nos
comentrios, rindo-se por vezes junto de Amaro; que se encontrava ali em observao.
Mas logo que um se isolava, por instantes apenas que fosse, aquilo abria-se em n
ovas expresses e cada qual penetrava mais em si prprio. Mariano, homem do lume e d
as panelas, bicho de casa, sentira-se sempre um pouco margem dos outros; e agora
, por isso mesmo, ia tem* perando a situao que os seus olhos contemplavam! molemen
te, pelo postigo da cozinha, com a obscura admisso de que a ele nada ocorreria ta
lvez de grave, como j muitas vezes pensara. Dessas aventuras quase sempre escapav
am alguns e se ele no escapasse, pacincia! Ao abrigo da sua pele ainda bastante li
sa, Mariano havia sido, nos ltimos anos, to secreto sobre a idade que contava como
uma melancia, antes de a abrirem, o sobre o seu grau de maturao. Mas agora lembra
va-se que j fizera sessenta e sofrera muitos desgostos; no valia a pena assustar-s
e demasiado com aquilo, embora apreciasse viver e pretendesse findar os seus dia
s em paz, que para isso trabalhara sempre e guardara algumas economias. Pena era
que aqueles estpidos no compreendessem que o pessoal estava ali para bem deles, p
ena se os homens morressem e eles, apesar disso, continuassem selvagens como tin
ham sido toda a vida.
Mariano cuspiu para fora, atravs do postigo, no
por desdm, mas por sentir gua a mais na boca; e, com vagaroso andamento, pesado co
mo o seu corpo, voltou a desembocar na alpendrada. Moacir estava de p, quase a me
io da porta, mas no deu por ele passar. Mariano olhou para Amaro e para os outros
, sem proferir uma s palavra; depois estendeu de novo, at os ndios, os seus olhos l
argos, com bolsas nas plpebras inferiores, um olhar que dir-se-ia cansado e enco
lheu os ombros.
Em Moacir, naquele instante, a sensao de perigo amortecera sob a repentina lembrana
do que ele havia dito a Nimuendaj e Bonifcio, em Trs Casas, aquando do recrutament
o. "Falara certo, no sentia medo; uma coisa um homem s, outra, muito diferente, a
solidariedade. Seria melhor, era claro, que ele e o Jarbas sassem vivos dali e pu
dessem continuar a sua luta, como antes da greve, entre os civilizados. Mas se no
pudesse ser, outros l andavam, outros l apareceriam para substitu-los e sempre em
maior nmero". Conclua o que j havia inferido tantas vezes, quando divagava sobre o
futuro; gostava, porm, de ouvir naquele momento o que diziam os companheiros, as
suas mangaes, os seus sorrisos; gostava de intervir nos dilogos, o que muito rarame
nte nele acontecia.
Tambm na alpendrada se expunham numerosas flechas, dispersas no cho batido e at em
cima da grande mesa, com formigas a inspeccionarem j as suas hastes redondas e li
sas. Lanadas da outra margem do igarap, tinham exaurido, durante a travessia demas
iado longa para elas, as energias e as ofensas. Sabendo embora que o no compreend
eriam, mas para manter nele mesmo a chalaa que desanuvia o esprito, Filipe gritou
aos ndios que as disparavam:
Eh, amigos, deixem l isso! No percam tempo, no. Venham almoar connosco. Temos aqui o
s caetetus que roncavam da outra vez...
Arrimado a um dos esteios, como dias antes, todo o corpo imvel, os olhos fixos no
Maici-Mirim, s Tito Boludo mostrava cara severa. O dio voltara-lhe, dir-se-ia que
pelo ar, contagiosamente, nas setas e nos
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berros dos Parintintins, ou rastejando secretamente como um rptil invisvel, sado da
cova de Eleutrio, E tudo, tudo, parecia vibrante de rapidez, a ele qu$ estava pa
rado.
Um banda do outro, os quadris apoiando-se rj4 cabeceira da grande mesa, Filipe e
Raimundo, agorj$ calados, seguiam os movimentos dos assaltantes. Parf cia a Raim
undo que o perigo, ali, era menor do que n$ emaranhado da floresta, onde os Pari
ntintins flechavaifj traio, antes de a vtima os enxergar e poder fugir ou defender-
se; parecia a Filipe que o perigo era maio% parecia-lhe estarem ali, ele e os ou
tros, como numft dessas trincheiras de que tantas fotografias e tantas descries ti
nham andado nos jornais durante a prjr meira guerra mundial. Uma trincheira com
soldados sem armas, que o inimigo sabia rigorosamente onde s,e situava e podia c
hacinar, livre de qualquer tolhimentQ eficaz, a guarnio completa. Filipe aprovou l
ogo ,a ideia que lhe viera de sbito, no por ele, mas pelp^ outros, sempre prontos
a caoarem dos seus grandes cuidados com as mos, at mesmo quando remava^ Saiu, foi a
o dormitrio, voltou imediatamente com una* pequena tesoura e ps-se a cortar as unh
as enquanto^ baixinho, assobiava. ,
Do outro lado do barraco, em face da brenha mais cerrada, l onde o assalto dos Par
intintins se coordejf nava melhor, Crisstomo abandonara tambm a fresta^ por se sen
tir comprimido entre Genaro e o Manga Verde, e lhe parecer que o beiral, por mui
to saliente^ descendo at perto da sua cabea, lhe dificultava a respirao. E viera pel
o corredor afora, propositadamente devagar, tamborilando nas paredes com as extr
e<- midades dos dedos, sem disso se aperceber. Recordava o ataque dos Parintinti
ns s canoas, na manh nascida aps a derrubada, e a fora de vontade que ento tivera. E
parecia-lhe agora encontrar-se amolentada a terra batida, to rija at ali, do corre
dor onde os ps iam avanando; mas no era a terra mole, nem os segundos que estava vi
vendo que interessavam ao seu andamento; era o minuto a viver, quando alcanasse
a alpendrada e visse a actividade dos ndios daquela banda; eram os minutos que su
cederiam quele minuto suspenso e dos quais no podia avaliar o nmero e a extenso. Lo
go, porm, que se encontrou no alpendre, onde alguns dos companheiros permutavam n
ovamente pilhrias e sorrisos, o desejo ambulatrio desapareceu e, de sbito, ele volt
ou a sentir-se completo.
Aquela necessidade de mover-se, de acompanhar o desenvolvimento do ataque nos do
is lados que o barraco permitia observar, no era fora que impelisse a ele s. Pouco d
epois, vindo igualmente da fresta, Maximiano arribava alpendrada tambm. O seu ros
to, grande e escuro, com ligeiras e sucessivas covinhas, onde a varola, semelhana
das pulgas do mar, residira, no tentava de forma alguma velar a inquietao que ele t
razia e o levara a correr at ali, onde tudo aparentava imobilidade contra a press
a que se desenvolvia detrs da cerca. Mal chegou, deu conta de que Raimundo e Mari
ano deixavam de contemplar, sem nenhum comentrio, o barraco menor, justamente
para onde ele dirigia os seus olhos. H segundos apenas tinha visionado Antnio Roc
ha e Etelvino deitados nas redes, ainda no restabelecidos da desinteria; e imedia
tamente sentira remorsos da sua demora em lembrar-se deles, que se encontravam,
como os vigias, mais acessveis ao perigo, por isolados e prximos, muito prximos, do
s ndios. "Ele tivera sorte: se no houvesse precisado de vir encher a bolsa do taba
co ao barraco maior, pouco antes de os Parintintins chegarem, tambm estaria l".
Afinal, Etelvino e Antnio Rocha no se encontravam deitados, mas porta; e, ao v-lo,
iluminaram os rostos com um sorriso largo e acenaram-lhe quase jovialmente. A gr
ande magreza que a doena lhes produzira reconhecia-se perfeitamente de longe, mai
s ainda por eles se mostrarem de p; e, apesar daqueles acenos eufricos, Maximiano
tornou a considerar, cada vez com maior pena, que ningum poderia acudir-lhes, com
o ningum poderia salvar a Jarbas, a Carolino e a Dorival, se os Parintintins cons
eguissem derrubar o arame far-
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pado. Cerrou a mo, estendeu o brao, mimou o gesto de dar a volta a uma chave. Os d
ois homens baixaram as cabeas, indicando terem compreendido. Maximiano no ficou, p
orm, tranquilo. O barraco menor oferecia menos resistncia do que o maior; a sua por
ta, qu" ele prprio fizera, seria mais fcil de arrombar. Vir tudo em estilhaos, tudo
perdido, o principal roubado" Voltou-se para Raimundo e Crisstomo:
Vamos buscar eles ? > Foi Tito Boludo, a quem no se havia dirigido, qu"
respondeu primeiro, descosendo-se do pilar e sempre de carranca posta:
Eu you com voc. i
J tnhamos pensado nisso declarou Raimundo^ indicando Amaro com um movimento de qu
eixo. >
Maximiano aproximou-se: tf
Seu Amaro, podemos ir trazer o Rocha e o Etels vino para aqui? />
Espaadamente as flechas continuavam a vir e morrer perto deles. Amaro coou a orelh
a: i
No podem. Seu Curt disse que ningum devi|. sair do barraco. Voc no ouviu ? "
Deste lado, h menos ndios... Se podia ir beir, rando a cerca, junto dos bateles...t
eimou Maxijmiano, com voz ofegante. s*
A pressa continuava no ar. Apartava-se dos gestos dos homens e das suas palavras
, mas brotava de todas as frinchas, de todas as folhas de zinco, da gritaria sel
vagem que ali arribava, dir-se-ia erguer-se dos pr<> prios poros da terra e, se
mpre vibrante, prossegui^ no ar.
Vocs se expunham duas vezes, ida e volta, sem vantagem explicou Amaro. Ento era
melhor eles virem sozinhos. Se arriscavam menos homens. mais fcil acertar
em quatro do que em dois. Mas virem eles para qu ? Se os ndios entrarem no Posto,
no atacam s aquele barraco; atacam tambm este, j pensou? E, se o Rocha e o telvino vie
ssem agora, os ndios podiam matar eles sem entrar mesmo no Posto. Mas ainda pio
r esto os vigias.
Pela primeira vez, desde que principiara aquilo, Maximiano considerou rapida
mente que o seu destino no diferia muito do dos outros cinco homens. At esse inst
ante, a ausncia de solido, que os companheiros expulsavam, a presena de Nimuendaj e
de Bonifcio, o prprio stio onde se levantava o barraco maior, mais distante da cerc
a do que o outro, e o sentimento supersticioso de ele se encontrar ali ocasiona
lmente, davam-lhe uma sensao de resguardo que lhe parecia no ter se estivesse no ba
rraco menor. Amaro derrubara-lhe, porm, com algumas palavras somente, a fortal
eza de pau e zinco, criando-lhe um vazio no esprito, l onde ele j se tinha instalad
o na companhia de outra obscura sensao vital. Admitiu que talvez vivesse ali, ape
sar de tudo, mais alguns minutos do que se estivesse no barraco menor ou de vigiln
cia como estavam Dorival, Carolino e Jarbas; e, um instante, essa hiptese fez-lhe
bem. Mas logo volveu ideia de que se engajara, como os outros, para todos os pe
rigos e fizera-o de sua prpria vontade, porque se dizia ser preciso fazer aquilo
como devia ser feito, para honra do Brasil e deles prprios, e no bala do rifle ou
de qualquer outra maneira. E esse regresso ao estado psquico anterior serenou-o,
quase comple-
tamente.
Momentos antes, quando abandonara a fresta, nela deixando folgado espao, Maximian
o produzira um inesperado bem-estar nos que l se debruavam, at a cerrados uns contra
os outros. E Tanajara, ante os ndios a forarem as estacas, de modo to inbil, olha
va-os, naqueles segundos, mais com ternura do que receio. Imaginava abeirar-se d
eles, nessa atmosfera carregada de urgncia, dizer-lhes que cessassem o ataque, ex
plicar-lhes quem era e por que estava ali, falar-lhes do sangue que trazia nas v
eias, chamar-lhes irmos, docemente; sentia, depois, o frio verdadeiro com que a i
maginao lhe importunava, de sbito, a medula e logo supostas flechas cravarem-se-lhe
na carne, dolorosamente. E ento parecia-lhe que no eram bem os Parntntins, ferozes
e odientos, que se encontravam
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diante dos seus olhos e podiam mat-lo, os ndios que ele estimava; os ndios que ele
amava eram os humilda!^ os confiantes, os antigos, que haviam sido batidos.* esc
ravizados pelos europeus. jg
Tanajara voltou a ficar perplexo logo que as setil imaginrias se arredaram do seu
corpo e os calafriefc lhe deixaram tranquila a espinha dorsal, de novo mornas L
estamente esboou-se na sua memria aquele homem de S. Lus do Maranho, h muitos anos es
quecii"|^ que andava nas ruas a falar sozinho, sempre de pretff a gravata em jeito
de borboleta, os cabelos, de tflfctr compridos, encaracolando-se-lhes nos ombro
s; um SMt>,A jeito a quem todos consideravam maluco e lhe disseisaf/; um dia, qu
e devia reinar uma s lngua, para toda> as pessoas se entenderem e gostarem mais um
as dip' outras, fossem l de onde fossem. A imaginao de Taa*, j ara e suas velhas rec
ordaes exterminaram-se a e}H8 prprias e ele voltou a olhar reflexivamente os Pariu"
tintins, ao mesmo tempo que se sentia incapaz de.is por si, vencer o perigo. "
Aristeu alinhava sua direita. E, melhor ainda d" que os ndios, via a Nimuendaj e a
Bonifcio asss| mados um ao lado do outro, na fresta vizinha. Refc peitoso, a sua
esperana encostava-se ao etnlogo e aoii mdico, ao poder da inteligncia que lhes cre
ditavs^f s solues que houvessem estudado sem as revelar aftS pessoal; a sua esper
ana detinha-se ali, como uiflfcj| rvore meio tombada pela ventania, a fronde a
poiafl|f" do-se sobre o muro da chcara, que lhe evitava *" ,'Jj queda total. P
ara alm de Nimuendaj e de Bonifcfe * tudo lhe parecia incerto, mal definido, campo v
aporoso a esconder, com suas fumarolas, os gestos desordenadofi Essa viso dum cao
s movimentado e vozeante s& xava-o, porm, to suserano dos seus nervos como no dia
em que os ndios haviam morto Felcio e Camargo1, nesse dia em que ele, mesmo quand
o remava a toda 'A fora, nunca se atrapalhara, nunca ficara esculhambad(r) at Amar
o dissera isso. l
Por baixo da fresta, do lado de fora, quase rente parede de zinco, uma das galin
has que Mariano trotf-
xera, previdentemente, da aldeia dos Muras-Piras, ensinava aos pintainhos,
entre as plantas rasteiras, as boas regras de comer. Arranhava o cho, recua
va, bicava-o trs, quatro vezes, indicando aos filhos os lugares onde descobrir
a alguns cibalhos. Depois erguia a cabea e, muito parada, perscrutava os longes t
umultuosos, perscrutava-os com o seu qu de testemunha futura, que houvesse escuta
do ainda mais do que visto; e tambm ela, naqueles momentos apressados, parecia li
berta de qualquer pressa. Se alguma flecha, vinda de l, lhe perturbava o magistrio
, caindo na zona das suas pesquisas, a galinha pedrs avanava um pouco mais e os pi
ntainhos, ainda ingnuos, que andavam dispersos, corriam para a proteco das asas mat
ernais como ratitos para debaixo dum mvel.
Da fresta, Genaro seguiu-lhes, um instante, os movimentos, mas j o Manga Verde lh
e contava, numa voz que pretendia ser discreta:
Uma vez, a bordo do "Japur", trs moos de convs se revoltaram contra o mestre e pegar
am facas para o matar. Ele se meteu no camarote, ao fim da terceira, e eles fica
ram porta, esperando ele, sempre com as facas na mo. Ningum ia l porque eles gritav
am: "Quem vier, matamos". O comandante olhava, o imediato olhava, todos davam or
dens para eles deixarem as facas, mas ningum ia tirar as facas a eles. S eu tive c
oragem de ir...
Chiu! fez Genaro, para o Manga Verde se
calar.
A galinha continuava no seu mester; os Parintintins prosseguiam na luta contra a
s estacas. Ningum sabia se a galinha dispunha de alguma noo do tempo parte da luz q
ue lhe marcava o princpio e o fim de cada dia; os homens, que a tinham, haviam-na
perdido nas fervenas, diversas e simultneas, dos seus espritos, desde que comeara o
ataque. Aquilo sobreviera h menos de duas dezenas de minutos, mas a eles tornara
-se emotivamente impossvel afirmar se eram minutos consecutivos ou separados por
largos hiatos, se eram minutos ou mesmo horas, se o tempo no era
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apenas o que cada qual sentia e se flua ou no flua numa medida diferente da que reg
ulava a vida da galinha. I
Entre Genaro e Moacir, que chegara da alpendrad e esticava muito o pescoo, na nsia
intil de enxergajf o posto de vigilncia onde Jarbas se acoitava, os lbios de Honrio
deixavam entrever um sorriso pequeno? quase feliz. Sentia-se mais generoso ainda
do que habi* tualmente, com o sangue em alvoroo e o arriscado plano a dar-lhe um
a satisfao ntima e antecipada! como se as cordas que sustinham todos eles beil dum de
spenhadeiro estivessem, por momentos, depen* dentes das suas mos apenas. Parecia-
lhe, porm, qut tardava demasiado a ordem de Nimuendaj para efe se expor, a ordem pa
ra tentar aquilo e o comporta^ mento dos seus lbios era uma forma cordial de log
rar a impacincia. i
Genaro viu-lhe o sorriso, adivinhou a sua origem <y picado por sbita emulao, decidi
u-se, depois de matutar um instante. Desceu da fresta, penetrou no quarta de Nim
uendaj, subiu os degraus que o separavam d$* etnlogo, precisamente quando ele tent
ava, com nsia quase angustiosa e esperana duma alegria exultante e prxima, confirma
r se as palavras que alguns doa' ndios lanavam, em voz alta, a outros mais distant
es) provinham, como lhe parecia, do tupi puro, identificao essencial e meio caminh
o andado para civiliza-los, pois ele falava essa velha lngua.
A voz de Genaro era, ao contrrio da dos selvagens; tmida, meio comovida e baixa:
Se seu Curt quiser, eu you levar brindes a eles... com a algazarra dos Parintint
ins e o inesperado
daquela presena, Nimuendaj no compreendeu e virou-se, surpreendido:
Que est voc dizendo a ?
Digo que se seu Curt quiser, eu you levar brindes a eles. Se eu tiver de morrer
aqui, tanto faz ir como no.
Viu o rosto de Nimuendaj endurecer de repente, ao mesmo tempo que o seu brao traava
um gesto brusco, negativo, como que a expuls-lo dali; viu-o,
depois, voltar-lhe as costas, sem proferir uma s palavra. Devia ter julgado, porm,
a sua atitude insuficiente, pois que, ao sentir que ele no se retirava logo, ain
da lhe ordenou, com rudeza, l de cima: V-se embora!
No corredor, Genaro topou Filipe, que ia da alpendrada para a fresta, e Juvncio q
ue vinha da fresta para a alpendrada, ambos caminhando to apressados que eram os n
icos a darem, at ali, uma sensao de instantaneidade s diferentes sombras que se prop
agavam, simultaneamente, no esprito de todos eles. S a voz de Cavalcanti, saindo d
a sua rede de doente, perturbou a curiosidade que os impulsionava:
Que ? Que ? Ningum me diz nada.
No h perigo. No estejas pensando a. como das outras vezes respondeu-lhe Filipe, sem
deter o
passo.
Ainda humilhado pela reaco de Nimuendaj e temendo que na fresta a tivessem captado,
Genaro rumou tambm ao alpendre, mais entregue excitao que lhe dava o vexame do que
ideia das contingncias desse momento febril. Atrs dele chegou Manga Verde, que se
ps ao lado de Juvncio, alongou os olhos para os ndios e disse, de cabea levantada e
leve ar de
desdm:
* Se eu estivesse no lugar deles, j h muito tinha
deitado abaixo a cerca.
Ningum o contestou. Dir-se-ia, efectivamente, que os Parintintins tambm receavam e
xpor-se demasiado, que a luta com as estacas era mais um simulacro, um inqurito s
reaces dos assediados, do que a firme deciso de romperem pelo acampamento adentro,
at junto deles, enfrentando as suas balas. Mas s Nimuendaj, Amaro e Raimundo julgar
am ter percebido essa hesitao dos selvcolas, uma cautela que lhes pareceu, de comeo,
apenas inexperincia. E, na alpendrada, a conversa de Amaro com o prprio Raimundo
e com Mariano, um momento interrompida, continuava em voz pausada e baixa, lanand
o sobre a mudez de Crisstomo, de Juvncio, de Maximiano e at do Manga
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Verde, um estranho ambiente de pachorrncia, que mais os intrigava do que os esfri
ava, por no saberem defini-lo.
Parecia a Juvncio que ningum ali confessava tudo quanto sentia, que ele prprio no co
nseguiria confessar, mesmo se quisesse, tudo quanto voltara a esbrase-lo por dent
ro, um calor limitando-lhe o juzo, levaivdo-o a pensar s naquele momento e naquele
stio, como se nada mais existisse longe do Posto, como Se no houvesse distncias ne
m outros lugares e outras gentes. Medo como tivera alguma vez, medo com frio no e
ra, estava certo. Mas se um parintintim corresse para ele e o atirasse a terra,
se lhe pusesse o p efflt cima, como numa ona morta, e se lhe quisesse espetar uma
flecha no peito, nesse caso, sim, nesse caso s se no pudesse sair de baixo dos ps d
o ndio que nb se defenderia com quantas foras tivesse.
A conversa de Amaro, Raimundo e Mariano, avivada por uma nova interveno do Manga V
erde, pros'" seguia ainda:
Nisso tambm h muita falta disto...afii* mava o cozinheiro, batendo na testa
com a ponta d dedo.
Subitamente, os Parintintins que atacavam na face mais longa da mata, perto do b
arraco menor, onde sua agressividade se mostrara, at a, sem eficincia alguma, deixar
am de flechar. Olharam sobre a esquerda, todos ao mesmo tempo, como se algum de l
os chamasse; e imediatamente correram para o fim do acampamento, com os arcos ao
alto e vozearia triunfal. Ficara deserta, num instante, a terra onde se postava
m; e Raimundo, avanando at o cunhal do barraco, alongou o pescoo e disse, sem se vol
tar:
Se juntaram aos outros, l ao fundo, para ajudar a derrubar a cerca...
Os homens que estavam na alpendrada foram mirar tambm, mas logo decidiram ir para
a grande fresta do dormitrio, donde abrangeriam melhor a nova fase do ataque. Ti
to Boludo viu-os penetrarem rapidamente no barraco, deixando-o sozinho, caritide t
osca, acha-
parrada e soturna, aderida ao esteio, com o "Mimoso"
ao lado.
Quando chegaram, os que se encontravam na fresta seguiam, de rosto muito quieto
e todos eles silenciosos, a acrescida luta dos ndios contra as duas sebes de aram
e farpado. No esprito de uns e de outros tudo se modificara de repente, como se u
ma personalidade improvisada, frvida e una, se houvesse instalado dentro deles, e
xpulsando a anterior, perante as possibilidades de xito que oferecia aos Parintin
tins a sua concentrao naquele reduzido espao. Extinguira-se o passado, s o presente
comandava os homens e fazia-o duma forma total. As minudncias da vida de cada um
e a variedade das suas reaces haviam desaparecido tambm; s ficara aquela que a cerca
continuava a fomentar. Era como se tivessem apagado, com um sopro apenas, todas
as velas de complexo e imenso lustre, menos uma. E a essa luz nica, fecundadora
de muitas obscuridades prximas, surgia imediatamente a aceitao da fatalidade e do s
acrifcio previstos, uma aceitao meio atordoada, mas corajosa e plena. Diante dos o
lhos deles, que dir-se-ia terem sede, como se fossem anexos da boca, os Parintin
tins progrediam no arranco das estacas. Amaro e Filipe identificaram mesmo, entr
e os que ali se esforavam, por vezes com gestos ineptos de 'crianas, alguns ndios v
istos, momentos antes, na outra margem do igarap, que certamente eles haviam tran
sposto mais acima, l onde as guas se estreitavam. A parte exterior da cerca havia
j cedido ao longo duns dez metros. E logo que os Parintintins conseguissem prostr
ar completamente as estacas ainda inclinadas, com os fios de arame agora em disp
osio de degraus, um declive de espinhos metlicos, o caminho para a segunda sebe est
aria aberto. Somente nos homens isolados, fosse no barraco menor, fosse nas guari
tas ou na alpendrada, onde Tito Boludo continuava a esmoer, solitariamente, a su
a m vontade contra os selvagens, a tendncia para o herico, ante o perigo de sbito au
mentado, no aquecera ainda por falta de contgio. Os outros j estavam preparados.
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A Dorival, de sentinela nas imediaes do Maicfe -Mirim, o barraco maior impedia-o de
ver o que s" fazia agora, com menos gritos do que h pouco e mesmo alguns silncios
, no outro extremo do Posto. Entre ete e a alpendrada, com Tito Boludo sempre imv
el, not se encontrava mais ningum. Naquele trecho havia uma paz toa, como essa que
os combatentes legant aos campos das batalhas recm-findas; e de tal ma% neira a
terra abandonada parecia respirar suavemente!) que Dorival sups mesmo terem os ndi
os comeado > retirar-se, devagar como das outras vezes. Os enxurros de vozes excit
adas ou os brados que lhe chegavam" ainda, de quando em quando, pareciam-lhe de
opiniosot retardatrios, descompassados rebombos de foguetes qn exigiram mais tempo
para ser escorvados e acesos dfc que os outros. No estranhou mesmo que Antnid Roch
a e Etelvino, ao sabor daquela aparente mart baixa, atravessassem do barraco meno
r para o maior? em andamento quase normal. Sentiu desejos de os imitar, desejo d
e pedir uma tigelinha de caf a Mariana e de botar fogo a um novo cigarro, que ass
im, com B garganta a escorrer doura, lhe saberia melhor. Mae" espreitando pelos bu
racos duma das folhas de zinco> imediatamente desanimou: os ndios postados na out
ra) margem do rio, logo no comeo do ataque, nove rapa* ges, caras redondas de lua
cheia, no tinham ido" juntar-se aos demais. Ao chegar ali, haviam flechadotrs veze
s seguidas a guarita, como se praticassem uma? saudao ritual ou batessem, por desf
astio, a porta d improvvel abertura; e, agora quietos, no mesmo stio" continuavam,
as cabeas a emergir do aibustedo ribei- rinho, sem poderem tambm divisar o que suce
dia do> outro lado do barraco.
Parecendo a Dorival ser evidncia irrefragvel a dificuldade de uma agresso lanada daq
uela banda, admitiu, para justificar a presena dos nove ndios, que eles estariam d
e sentinela, como ele prprio estava. E sendo a imobilidade e a mudez impostas pel
a vigilncia enervantemente desprazveis ao seu temperamento movedio, tomou-se a ele
mesmo como exemplo
i
f
de sacrifcio, presumiu que os outros se encontravam ali por ordem dum bruto tuxua,
ainda mais autoritrio do que Nimuendaj o era, e um minuto veio em que chegou a ap
iedar-se deles. Logo, porm, ferrava os dentes sobre o ndice esquerdo ao deduzir qu
e os selvagens, com toda essa quietude que lhe parecera fbrica de tortura, agu
ardavam a eventualidade de matar os civilizados, a ele tambm, se tentassem fugi
r pelo rio, nos bateles e canoas que se expunham muito perto da guarita, a dois p
assos somente. E ento a sua freima e o seu desejo de sair dali, para beber caf, nu
m instante amorteceram.
Menos feliz do que Dorival, Jarbas podia facilmente suputar, pelos orifcios da ch
apa que lhe ficava direita, o perigo que crescia, de momento a momento, ao fim d
a terra limpa. Acabava justamente de idealizar os Parintintins, se no aqueles, ca
recentes de longa adaptao, os das prximas geraes, j de todo civilizados, comungando em
ideias novas, quando viu os da parte mais longa da cerca correrem para somar-se
aos outros, de arcos erguidos, gritos de alegria a reboarem ao longe e os tubos
protectores dos sexos badalando-lhes, com aspecto de mocas, entre as pernas. A
posio da sua guarita permitia-lhe lanar os olhos, sempre que se voltava dentro das
duas folhas de zinco, a uma das face's do barraco maior, essa que nenhuma abertur
a apresentava; no conseguia, porm, descortinar a fresta onde os companheiros se ag
lomeravam, nem mesmo Tito Boludo no alpendre; e tudo parecia sugerir renncia, aba
ndono, casa desabitada. A defesa instintivamente activa, pensou ento Jarbas, puxa
do pelo que via e pela sua prpria experincia; mesmo num homem perseguido, oculto n
um buraco, todo o aparelho defensivo, os olhos, os ouvidos, a agilidade concentr
ada para a fuga eventual, encontravam-se em actividade excitada ou aptos a nela
entrar lestos e febrilmente. A coragem desenvolvia-se no movimento, como a espum
a nos lquidos agitados; a dificuldade era ser corajoso na imobilidade, pois que
na aco todos o podiam ser. Ali, porm, era a passividade, vencendo as regras
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normais, que tinha fora, que tinha coragem e tinJb% peso. E Jarbas, observando e
ssa aceitao esfingio$| mente parada em frente do movimento dos ndios, tte" contrria
ao seu passado, aderia-lhe calmamente, pam^f cia-lhe mesmo ter-lhe aderido h muit
o, ele que tanfegi correra naquela manh de Belm, no pelo receio <||* ser morto, mas
apenas para evitar ser preso. Nesm, calma de agora s os raciocnios e as sensaes and
ava^* activos e, mais ainda do que os raciocnios entreco"|r tados, as sensaes se de
senvolviam com instantneff rapidez, enquanto ele via os Parintintins continuarenjf
l a derrubar a cerca; uma sensao de estar vivo provip.* soriamente, de no ser naque
le momento inteiramente como era, de voltar a ser ou deixar de ser definitiva^ m
ente, ligado a outra sensao de obscura superioria dade sobre ele mesmo, dir-se-ia
sobre os rgos interno^" sobre as prprias vsceras. Pensou que gostaria de vMC aquele di
a to sonhado, em que se abrissem ao sol todas as portas e se anulassem todas as v
elhas sentia does, aquele dia que tanta luta lhe havia exigido, uraf luta que o
obrigara at a vir pedir floresta que "fo encobrisse por algum tempo. Se tivesse a
certeza de que alvoreceria enquanto ele vivesse, talvez lhe custasse arriscar a
alegria de assistir ao seu amanhecer, tanfc$ mais que se podiam deixar para de
pois as relaes com os Parintintins, esse depois onde a justia e a conquistas da civi
lizao seriam, finalmente, para todos*. Tanto isolara no seu desejo esse dia emanci
pado, todo" em alvoroo pelas esperanas consumadas, que ent algumas horas di
vagantes lhe parecia, confusamente," que j o tinha vivido parte da imaginao, vividc
r em esprito, carne e nervos, despegado das velhas medi"1 das temporais; e sentia
, ento, como que saudades dq si prprio. Ele sabia, porm, desde que entrara nas reiv
indicaes proletrias, que essa manh de sol justo se inscrevia ainda em datas to incert
as, como a da chegada das antigas caravelas que andavam por vastos oceanos, longn
quos, encrespados, por vezes tempestuosos mesmo. Tanto podia demorar menos do qu
e muitos julgavam, como demorar bastante mais; e era preci-
samente para que tardasse menos que ele e milhes de outros homens lutavam em todo
s os continentes, no raro at a morte. Mas dessa prpria falta duma data fixa lhe vin
ha a serenidade com que aceitava o risco e seguia os esforos dos ndios contra a ba
rreira farpada, na sua frente, muito prximo dele.
Mais perto ainda dos Parintintins do que Jarbas, Carolino olhava, muitas vezes,
o barraco. Perdera a imobilidade de h pouco, ora se volvendo para o lado da cerca,
ora para ali, sempre metido entre as duas chapas de zinco, como se estivesse a
o fim de beco miniatural, com as paredes laterais terminando em ngulo, a mo
do de proa de navio vista por dentro. E esses seus pequenos movimentos e o encon
tro dos seus olhos com os dos homens debruados na fresta e os sorrisos que voltav
am a trocar com ele, haviam-no tornado ainda mais corajoso do que momentos antes
, embora estonteado levemente.
Aparentando disposio jocosa, Manga Verde lanou-lhe algumas palavras, l de cima, engr
ossando a voz para que ele as ouvisse bem; mas o alarido dos ndios, ali to prximos,
no lhe permitiu compreender nenhuma. Do torn e dos gestos facetos deduziu que er
am de menoscabo pelo nervosismo e desajeitada lentido que os Parintintins manifes
tavam no seu prlio com a cerca; e sorriu e acenou ao Manga Verde, como se as houv
esse entendido perfeitamente. Parecia-lhe, todavia, que nem s os ndios demoravam
muito; parecia-lhe que tambm Nimuendaj tardava a mandar Honrio sair do barraco. Quan
do, porm, o olhava, via-o austero, cara fechada, dir-se-ia que to seguro de si mes
mo como um deus sentado sobre as nuvens da tempestade que por baixo dele vocifer
ava. Nunca lhe sorria, como se houvesse delegado em Bonifcio essa misso de esperana
e de solidariedade.
Nimuendaj via-o tambm, via-o completamente, mas era como se no o visse, como se no d
esse conta da existncia de si prprio, todo entregue quela secreta alegria de etnlogo
e de chefe que acabava de identificar o tronco de onde brotara o dialecto dos P
arin-
a
io88
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1089
tintins, que lhe lembrava o dos tupis do alto Rio Machado e lhe dava a gostosa c
onvico de poder fazer-se compreender por eles atravs do guarani, d h muito seu famili
ar.
Na alpendrada, Tito Boludo continuava sozinhos. A sua malquerena aos selvcolas com
eara mesmo antes da morte de Eleutrio. Comeara no batelo, a caminho dali, naquela ta
rde em que Honrio e Jarbas contes"taram as dvidas que ele exteriorizara sobre o se
iji comportamento e o dos outros homens quando ch$r gasse o instante da opo entre
matar e morrer. At a aceitara, com alma aberta e asseada, a ideia de ser necessrio
e bonito pacificar, enfim, todos os ndios ~fe pacific-los sem violncias. Rondon par
ecia-lhe umi. figura lendria, como as dos heris e dos santos, embru" mada pelas tr
adies, pela lembrana dos actos qu praticara e eram frequentemente evocados; um homem
superior a todos aqueles que ele conhecia, cujas douy trinas desencadeavam no s
eu esprito sentimentos de respeito, posto que no as sentisse completamente. Mas" n
aquele momento, as discordncias de Honrio e Jarbas, sobretudo o torn de algumas da
s suas palavras, haviami-Ihe produzido um rpido e humilhado azedume contra, os do
is, reflexivamente contra os Parintintins tambm, por os terem valorizado mais do
que a ele prprio, mais do que sua prpria vida. "Sabia perfeitamente que no se devia
matar os ndios, no era preciso lhe darem a entender que ele valia menos do que aq
ueles selvagens cruis, que cortavam a cabea dos outros e haviam morto a Camargo e
Felcio" pensara ento. E, semanas depois, fora como se a cabea de Eleutrio houvesse
cado da ponta da vara sobre uma poa, fazendo transbordar a sua gua j grossa de animo
sidade gua negra e estagnada como a do igap. Agora, junto dele, o "Mimosa" forava
a corda, sempre que do outro lado do barraco chegavam at ali os clamores dos Parin
tintins. Distendia o corpo como se fosse elstico, arrastava-se teimosamente no cho
, recolhendo as patas de encontro ao ventre como os avies recolhem as rodas. E a
sua curiosidade era tanta que
ele gemia baixinho durante o esforo desesperado que tentava para a apascentar.
Tito Boludo despejou-lhe em cima uma olhadela de desprezo e em seguida aquela id
eia que o ressentimento fizera subitamente boiar. Espraiou a vista, inspeccionan
do o terreno que se estendia at o rio, e s enxergou a Dorival l ao fim, de costas e
ntre as duas folhas de zinco, a observar os ndios postados na outra
margem.
J decidido, Tito Boludo entrou no barraco, foi cozinha, trouxe uma faca. E semelha
na dos cortadores de rvores, que lhes descascam os ps antes de enviar o machado em
direitura ao cerne, ps-se a raspar e a golpear com ela as fibras exteriores da co
rda, debilitando-a para que cedesse aos puxes de "Mimoso" e os olhos desprevenido
s a tomassem como partida por ele somente. Sentiu-se mais aliviado em seu pesadu
me quando terminou, satisfeito consigo mesmo por haver feito aquilo num instante
apenas. Volveu a depor a faca na cozinha e, finalmente, rumou a passos largos p
ara a fresta. No a havia atingido ainda quando os primeiros latidos se ouviram em
todo o acampamento. Amaro e Raimundo entestaram logo alpendrada e dali para o c
unhal do barraco. Atrs vinham outros homens aodados e, com olhos altos de curiosida
de, desejoo de anular suspeitas, Tito Boludo tambm. Mimoso! Mimoso! Aqui!
O co virou ligeiramente a cabea, por entre as duas flechas que acabavam de cair ao
seu lado. Olhou o dono, hesitou alguns segundos, e to aulado por tudo quanto ocor
ria diante dele, como enraivecido pelo longo emprisionamento, prosseguiu no avano
, sempre a ladrar com mpeto redobrado.
Amaro insistiu, numerosas vezes, no chamamento, com uma voz mais autoritria de ca
da vez; o "Mimoso" no lhe obedecia. Os homens viram-no tornar ao interior da casa
, quase esbarrando em Nimuendaj, que surgia tambm no alpendre, e volver imediatame
nte com um dos rifles nas mos. Encostou-se esquina do barraco, como se fosse camba
lear, ergueu a arma e
35 Vol. Ill
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
I0gi
apontou. O tiro no soara, porm, nos ouvidos quefo esperavam; era relmpago sem trovo.
O rifle descera). Amaro circunvagou os olhos nublados pelos rostos dos homens,
uns olhos que dir-se-iam j exaustos pela lufe travada com ele prprio, uns olhos qu
e escolhiam dit cilmente e, por fim, se detiveram sobre Raimundo: ><|
Pega... Faz favor... Mata ele... n| A voz era surda, como se emergisse, moribunl
duma cisterna. < rir
Manga Verde interveio:
Mimoso! Vem c! Vem c! / jp1 Os ndios haviam deixado de forar a cerca. O c4f|
de plo eriado, continuava a arremeter, cada vez malfl prximo deles; e podia-se reco
nstituir perfeitamente"5! marcha que j havia feito pelas flechas que a denidfc ca
vam. g
Mata ele...repetiu Amaro. )!&& Aps um olhar consultante de Raimundo a Nimueff
daj, que lhe respondeu baixando a cabea e cerrai""" as plpebras, ouviu-se o tiro. O
"Mimoso" tombou logtt de banda e a ganir. Os Parintintins tinham-se calatt O co ga
nia ainda, o ventre a encher-se e a esvaziar^ 4 apressadamente, as patitas diant
eiras a estremecerei"^ muito. Raimundo voltou a disparar. Os homens devvi viaram
os olhos para no ver, mas a piedade s tA demora nas almas livres de perigo imedia
to. Nimueifedaj ordenava a Raimundo:
D-lhes a entender que no queremos atirar a eles. Faa-lhes um sinal. < &
Erguendo o rifle acima da cabea, como se atravessasse a vau lagoa ou rio, Raimund
o, de ndice esteitfdido, indicou-os aos ndios; e o mesmo dedo tracei no ar, em rel
ao a eles, um movimento negativo, trs vezes repetindo o gesto, perante a quietude a
tenta dos selvcolas.
De pijama s riscas verticais, brancas e azuis, to largas que pareciam artificializ
ar-lhe a austeridade do rosto, Nimuendaj chamou Honrio e murmurou-lh* algumas pala
vras; depois acenou tambm aos outros homens, para que recolhessem alpendrada.
A grandes passos, Honrio entrou no barraco e volveu j com uma pequena harmnica inser
ida nos lbios e um paneiro atestado de outras, que pousou junto dos seus ps, no me
io do acampamento. Era terra descoberta, sem outra sombra que a dele. E os ndios,
que principiavam a mover-se de novo, tentando uma vez mais destruir a cerca, qu
edaram-se a observ-lo, surpreendidos por suas atitudes e seu arriscado
isolamento.
Bonifcio surgira no alpendre com o binculo na mo e Nimuendaj disse-lhe num torn de o
rdem: V agora e veja bem as reaces deles. Parecia-lhe que o seu plano se articulava
cedo de mais, que os Parintintins ainda no estariam fatigados, nem suficientemen
te desmunidos de flechas; e que a morte do co tanto podia t-los impressionado util
mente, como lev-los a um maior futor, depois de verem que os civilizados cont
inuavam a empregar rifles, mesmo para coisa de to pouca monta.
A harmnica ia dum canto ao outro da boca de Honrio, voltava, tornava a ir, como se
ele fosse sugando um favo prateado, at o ltimo alvolo. Um favo de onde se exalavam
aqueles enxames de melodias que as suas altas pernas acompanhavam, bamboleando-
se lentamente. Tocava do lado do Maici-Mirim, l onde as setas no chegavam ou chega
riam to desprovidas de fora que o mesmo era que falecessem pelo caminho. De quand
o em quando, porm, vergava-se sobre o paneiro, dele tirava duas ou trs harmni
cas, todas iguais sua; e leve, gil, sinuoso, corria em direco ao stio onde os ndios s
e aglomeravam, de novo a gritar o velho dio. Sem nunca se deter, arremessava-Ihes
os pequenos instrumentos por cima do arame farpado e voltava, deixando atrs de
si um rastro de flechas, ao terreno que a distncia protegia, onde ento mimava, j
ovialmente, a maneira de eles os utilizarem.
Como a partida dos ndios, pouco antes, da parte mais longa da cerca, o obrigava a
sair repetidamente da rea que fora considerada menos perigosa durante
ioga
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o ensaio que havia feito, Nimuendaj, observando-lhe os movimentos, gritou-lhe com
rudeza: /,'oy
No se aproxime tanto! Ouviu, ? ij Lustrosa de suor, a imagem de Honrio tornara-a"
para Tito Boludo, que ora o olhava sombriamente, OIS retraa a vista quando ele lad
eava o cadver do "M^ moso", como que numa estranha mescla de repulsa, yg de fascnio
. Parecia-lhe ser o co, cuja morte no tinl* previsto, que lhe causava, desde a sua
agonia, todai as ebulies que o perturbavam agora. |
Nimuendaj avanara tambm para a terra limpap Mais uma vez levava frases sedutoras que
manipulara* cuidadosamente, desta feita em guarani, sua nova espejl rana; e, par
a que todos as ouvissem, tentou uma waj simptica e altissonante, que lhe saiu, mau
gradeai seu intento, um pouco esganiada. >a(j(
Irmos, viemos aqui fazer as pazes com voc(r)*" Somos vossos amigos e trazemos muit
as coisas bonita" para vos dar. Muitas, muitas coisas! Para vocs, pariB^ as vossa
s mulheres e para os vossos filhos. Esto com", preendendo bem ? M
As flechas rentavam-lhe o corpo, trazendo-lhe, cora" nica resposta, os seus zumbi
dos finos e irritantes" Nimuendaj insistiu ainda, antes de recuar, nas suas" pala
vras de confraternizao; mas, como da primeirsl vez, no obteve que os arcos, alinhad
os ao fim do caro" pamento, cessassem de disparar, embora lhe parecesse que os Pa
rintintins haviam entendido uma parte ef que ele lhes dissera. <\
Fauno negro, a harmnica a substituir a flauta & Pan, Honrio continuava na sua taref
a, agora a tocse e a requebrar-se, logo em correrias para as vizinhanas dos ndios,
de onde lhes lanava, com afveis sorrisoB,- mais algumas daquelas pequenas fontes
de ritmos,
No se aproxime tanto, j lhe disse! ] No extremo da alpendrada, os homens seguiam
-
-Ihe as evolues, terrivelmente silenciosos, os lbios contrados, as mos fechadas, os e
spritos suspensos pelo que lhe pudesse suceder um medo que no tinham ainda sentid
o por eles prprios.
Honrio captava essa fremente expectativa, os olhares que se lhe colavam ao corpo,
aquele secreto desejo de que ele sasse ileso do transe; e cada vez mais contente
consigo mesmo, ia tentando apurar, at o virtuosismo, os seus movimentos audacios
os e eufricos. A prpria ideia de coragem se lhe extinguira, amortecera-lhe a sensao
de receio e pouco lhe custava, quando corria para os ndios, a hiptese de morrer as
sim, perante a admirao apenas dos companheiros, naquela glria to efmera e to restrita.
Eram to generosas as suas mos, to velozes as suas pernas, que o paneiro j se encont
rava quase vazio. Os Parintintins continuavam, porm, a flech-lo, sempre que deles
se acercava a sua ousadia.
De sbito, os homens viram-no deter-se um momento, inclinar a cabea sobre o brao esq
uerdo, l onde a manga da blusa lhes aparecia agora furada e com uma ndoa vermelha
a alastrar rapidamente.
Venha! gritou-lhe Nimuendaj.
Parecia no o ter ouvido ou desprezar de todo o ferimento; embebedado pelo seu prpr
io destemor, experimentou tocar e bailar de novo.
Venha! Venha imediatamente! E traga a flecha! Era um torn imperativo. Honrio olho
u. A flecha
jazia a dois passos, inerme, num ar inocente, entre duas ervitas do terreno que
as cinzas da queimada enegreciam ainda. E foi quando se abaixava para a recolher
, que outra veio espetar-se no seu tronco e espetada horizontalmente continuou p
or alguns alarmados segundos, antes de os tecidos cederem ao peso da haste e ela
se inclinar como uma escora. De lbios franzidos, Honrio retirou-a.
Os homens avanavam j para o socorrer, quando por entre eles, s cotoveladas, todo br
utalho, Tito
Boludo passou.
Bastam dois! voltou a intervir Nimuendaj, ao ver que todos os outros o seguiam.
Bastam dois! E chamem o doutor Bonifcio.
Tito Boludo cruzou-se com Honrio, tomou do paneiro uma das harmnicas restantes e,
apertando-a nos
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lbios grossos, procurou imit-lo lestamente. Eram, porm, grotescos os meneios do seu
corpo atarracado,! com os quadris a lembrar as ancas das velhas negra" em maxixe
s de carnaval; e pareceu a Nimuendaipt que do prprio grupo dos ndios saam risos sara
s*: ticos. '\
A perna direita de Honrio ia escorrendo sobre a> terra sucessivos traos de um verm
elho escuro, s vezef" de pontos em forma de reticncias, que os homens viam aumenta
r de dimetro medida que ele se aproa ximava. O ar de coragem com que vinha no cons
egui^ esconder de todo o sorriso melanclico que pretendwp suprimir. Nimuendaj pego
u nas duas flechas que et trazia na mo, olhou rapidamente as suas pontas 4> logo a
venturou, descontraindo o rosto: >
Parece-me que no esto envenenadas. u Alertado por Filipe e Aristeu, Bonifcio acabav
a d(r)
descer do posto de observao e Nimuendaj passou* -lhas:
Veja l...
j - - . . - i
A sua opinio foi concordante:
A sua opinio foi concordante: - >1
As pontas das flechas envenenadas tm outriti cor. Alm disso, so tambm perigosas para
quem a traz. Os Nhambiquaras metiam-nas em tubos de taquara, para no se ferirem a
eles prprios. "L
Voltou-se para Honrio, com a vista larga a fuga" do sangue que coalhava na terra:
3
Ande, vamos ver como isso est e fazer o tratap mento. ^
Honrio entrou com ele no barraco, recusando ' amparo de Tanajara e de Maximiano, qu
e o haviam1 segurado pelos braos. "
C fora, o ar parecia j impregnado de fadiga. Os gritos dos Parintintins eram menos
veementes e maisf espaados; dir-se-ia mesmo que alguns haviam renurtj ciado a gr
itar. Nimuendaj assomou esquina do barraco, espiou e viu que fora interrompida a l
uta contra o arame farpado. Um dos ndios, com o arco encostado5 ao ombro, contemp
lava as mos ensanguentadas. As prprias flechas atiradas sobre Tito Boludo, quando
ele corria em direco cerca, comeavam a rarear
tambm.
Podem ir agora autorizou Nimuendaj.
Era o seu exrcito de paz que ele fazia sair. E os homens, distanciados uns dos ou
tros, com ele frente, foram agrupar-se no terreno onde as flechas morriam. De l,
acompanhando as palavras que ele proferia em guarani, puseram-se a acenar frater
nidades, que os Parintintins, desconfiados, olhavam como a um espectculo. E mais
uma vez Nimuendaj pensou que teria magro efeito, ou mesmo nenhum, aquela ideia de
Bonifcio, pois no dia em que desaparecesse dali alguma das embarcaes, os ndios comp
reenderiam facilmente que ficara reduzido o nmero de homens agora expostos
em frente deles.
Vamos embora disse pouco depois.
Ao rentar Tito Boludo, deteve-se um instante:
Venha tambm.
O ar continuava saturado do cansao que produzem as constantes repeties. Mas o panei
ro continha ainda duas harmnicas e Tito Boludo, antes de obedecer, correu a lan-las
para fora da cerca. As flechas que passaram, como um sopro vibrante, junto das
suas orelhas, foram as ltimas desse dia.
No barraco pairava um cheiro a desinfectantes, ainda denso e enjoativo, quando Ni
muendaj entrou. No tem gravidade respondeu Bonifcio aos seus olhos interrogativos.
A ferida do brao pequena. A outra maior, mas pouco profunda. A flecha embateu n
uma costela e no atingiu nenhum rgo. Dentro de oito ou dez dias est tudo cicatrizado
. Andou
com sorte!
A vozearia dos ndios tornara a elevar-se, estrepitando novas cleras, mas ia-se dis
tanciando sempre, sempre, como se fosse j o seu prprio eco.
V-se deitar disse Bonifcio a Honrio. E logo que ele saiu, voltou-se para Nimuendaj:
E voc tambm. Por hoje isto parece arrumado.
Viu eles apanharem as harmnicas ?
No apanharam. Pelo menos enquanto estive ali
logo
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na fresta. S um deles tentou ficar com uma. Era tlin moo. Mas outro, mais velho, t
irou-lha das mos c bateu nele. Parecia furioso. Lanou a harmnica ao cho e quis esmag-
la com o p. Magoou-se decerto pois ergueu logo a perna. V-se deitar, ande! e ponha
o termmetro. l
Nimuendaj tardou a obedecer-lhe. ' l
um bocado estranho que no tenham trazida flechas envenenadas disse, como se fala
sse sozinhti.
Quando entrou, finalmente, no seu quarto, Nimueipdaj ouviu Honrio narrar a Cavalca
nti, do outro lad da divisria, o episdio que acabava de representar
Sabe ? Quando eu estava a tocar e eles me $& chavam, pensei na maldita. Pouco tem
po, mas pensei'. Gostava que ela me visse assim. Gostava que estives^ no alpendr
e, para me ver assim. Mas foi bom que no estivesse. Talvez eu me arriscasse mais
e ela no me"recia.
j\
IX fs
>h
, - P
JWI ANH do dia seguinte, oito horas exactas, coS" impacincia aguardadas, Nimuendaj
extraiu de sob o brao o termmetro, que se lhe mostrou optimista, quase entrevado,
desdenhoso das escaladas precedentes. Levantou-se, lavou o rosto demoradamente c
omo se quisesse limp-lo de todos os bocejos e mal1-estar da madrugada insone, que
se fazia recordar ainda!. E examinando a palidez da cara, aumentada nos ltimos d
ias, ao sabor dos acessos recidivistas, comeou A barbear-se. O seu desejo era ref
rescar novamente a testa e as faces.
Bonifcio entrou com expresso de bonomia:
Como vai isso ?
No tenho febre.
Nem tudo mau. Acabo de ver o Cavalcanti e parece-me que escapar da fase cardiovas
cular. Ainda pode vir de repente, claro.
/-l ti T37PT" Ji
Esperou que Nimuendaj terminassec-ori;un^jvas barba, observou-lhe a lngua sabur
renta, a' ^ ltimas amareladas e auscultou-o, como em toi\ asse apalmanhs; por f
im, pedindo-lhe que se d1 pou-lhe o fgado e o bao. , se levantar.
Est melhor. Mas seria prefervel na' ^-g^ i Voc
S um bocado. Sinto-me farto d estao habibem sabe que os impaludados crnicos j
'
tuados^a no fazer caso disto. ^prometem
E um doente rebelde, desses que ldente E enos mdicos replicou Bonifcio, condescen
da tomar o quanto ele se vestia, veio para a alpendt pequeno-almoo. frente dele>
Nimuendaj no tardou. Sentou-se eL anteiga que com um breve gesto recusou a lata de
'^s bolachas e Mariano comeava a abrir, ps de lado '^do Genaro bebeu apenas o caf.
Ia j pelo cigarro qt1 que regressava da vigilncia, o informou(a_rem ^ ^ar-
De manhzinha, vi uns ndios peL-^ Andavam mnicas: as que estavam mais longe do ar.^
nao assustar de rastos, como jacars. No dei sinal, p) aquilo. E vieles, pois me par
eceu que vinham s poi e desaparenham mesmo. Pegaram umas quanta'
ceram logo.
Eram moos ?
-- Eram moos, eram. num torn que
Est bem proferiu Nimuenda]UQenaro entrOu parecia alheado do que ouvira. Logo que
no barraco, Bonifcio disse: iS Parintintins
Estive esta noite a pensar que ^^ i^eia gene_ ignoram, com certeza, a influncia q
ue i1 g talvez no rosa pode exercer sobre muitos homen^-an^os ^jindes compreenda
m que estejamos aqui a da nenhum intee a gastar o nosso tempo, sem termo'^e^es
tambm resse nisso. Se estivssemos no lugar an.0s'a ocuparno compreenderamos. Andmos
tanto,ertencia a eles -lhes as terras, a chamar a ns o que L.quj feitos uns e, du
m dia para o outro, aparecemos ?s sao homens> santinhos. Ora, apesar de selvagen
s, l acre^tar qu E, sendo homens sem ideal, no devei'
iog8
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I(H)()
algum se sacrifique pelos outros, sobretudo um inimigo.
Emagrecido, a expresso fatigada, os cotovelos apoiados no rebordo da mesa, Nimuen
daj baixava e erguia de leve a cabea, baixava-a e erguia-a como os tteres dos ventrl
oquos e como se tudo aprovasse de modo automtico.
Se pudssemos dizer a eles por que viemos, creio bem que os convenceramos. Mas
parece que no o compreendem, no verdade ? Por isso seria talvez melhor simul
armos que estamos aqui com um determinado interesse. Uma coisa que seja fcil eles
satisfazerem.
Simularmos, como ?
Por exemplo, que estamos interessados em trocar os nossos brindes por acanita
ras iguais aos que trazem na cabea. com meia dzia de plumas podem faz-los e ficar
iam com a impresso de que a troca era vantajosa para eles.
Nimuendaj voltava a sentir, como na noite passada entre os Muras-Piras, a fora do m
undo pueril, as abdicaes que impunha, os recursos que exigia aos espritos mais evol
udos; e com voz lenta aceitou:
No est mal pensado, no. O problema , realmente, comunicar-lhes isso. Eu julgava que
eles poderiam entender o guarani; mas ontem no me entenderam ou fingiram no en
tender, por no quererem relaes connosco. Calou-se um instante e logo recomeou, s
empre com voz cansada: Talvez algum de ns pudesse explicar-lhes por gestos. O Ho
nrio muito expressivo, mas...
No precisamos do Honrio. Vi uma vez, quando andvamos na construo de linhas
telegrficas, o Dr. Miranda Ribeiro pintar um quadro representando a confrater
nizao dos civilizados com os Nhambiquaras. Eu desenharia algumas cena
s que eles compreendessem facilmente. Veja l: um civilizado a oferecer o brinde
com uma das mos e a receber com a outra o acanhara. Que lhe parece ? Talvez eu no
tenha
j cartes suficientes, mas se no chegarem, posso desenhar sobre as prprias telas. Ou
pintar.
Me parece bem. Para dizer a vordade, me parece melhor do que termos mostrado a e
les todo o nosso pessoal. Retardmos a partida dos que eslo a mais < as comunicaes co
m Trs Casas, talvez sem nenhuma vantagem. Se continussemos a ser muitos, os Parin'
intins poderiam sempre admitir que estaramos aqui para os atacar, mais cedo ou ma
is tarde. Se formos POUCOS, provvel que no pendem o mesmo. E se liver de acontecer
alguma coisa, quantos menos formos,
melhor.
Eu no tinha encarado essa hiptese...
No devemos aborrecer-nos por isso - - cortou Ximuendaj, como se se houvess
e arrependido do que dissera. Pode ser que tenha sido uma ingenuidade, aia e mi
nha, pois concordei consigo, mas ningum se livra de alguma vez ser ingnuo. Se os
Parintintins pensaram isso, e no sei se pensaram, em breve se ilaro cont
a de que j no somos muitos...
Vai ento mandar os homens ?
Sim, logo que houver luar.
Pareceu-lhe que Bonifcio, de repente silencioso, reflectia, sem lhe aderir, sobre
aquela deciso, que significava, afinal, prximas notcias de Trs Casas. E estranhava
que ele se mostrasse assim reservado, to frio, quase opositor, ante a ideia, que
certamente lhe ocorrera, de receber cartas da sua mulher dentro em breve. Viu-o
pedir mais caf a Mariano, falar de novo sobre as aguarelas enquanto o esperava, t
oma-lo pressa e partir rapidamente. you comear.
Na ms? do seu quarto estendeu um dos cartes, soprou a sarar que nele vadiava e deu-
se a esboar o quadro, concebido em dois pisos, o do comrcio e o didctico. Em cirna,
substituindo as nuvens e os anjos de outrora, o parintintim entregava o acanita
ra, igualzinho ao capacete de plumas que lhe ornava a cabea, e recebia o machado;
e, assim provido, abatia na parte inferior, l onde as velhas pinturas exibiam a
Viigem
IIOO
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
IIOI
lnguida e o menino bochechudo sentados no seu trono, uma bela e gross
a rvore.
Fortemente colorido nas longas penas dos diademas, hora do almoo o desenho estava
pronto. Nimuendaj louvou-o, o pessoal, surpreendido com a no vir dade, achou-o r
espeitosamente "muito bonito, seu doutor" e Maximiano foi encarregado de lhe pr u
m caixilho nesse mesmo dia.
A tarde, Bonifcio continuou a explorar, paciente e convicto, aquela volumosa espe
rana. Diversificava apenas os rostos das figuras, os objectos e a sua apli"cao. Se
no primeiro andar se trocava uma caixa de fsforos, no rs-do-cho ensinava-se a acend
er a fogueira. "Talvez j saibam isto, talvez, mas o essencial sugerir a permuta"
- dizia a si prprio. Aquilo era tambm uma fuga s umbrosidades ntimas, uma eva-*- so no
deliberada e pouco eficiente do novo conflito que se desenvolvia no esprito dele
, entre as suas desr favorveis admisses de clnico sobre a sade de Niimuendaj e a sua n
sia de receber notcias de Tarsliai Ia desenhando o selvagem a colocar, no rude pes
coo da companheira, o pobre cordo de missanga, com ademanes de prncipe oferecendo a
mante prima-dona, , ao seu colo provocantemente decotado, um colar de prolas de a
lto custo; e, ao terminar, surpreendeu-se de haver delineado a cena com rapidez
e graciosidade, no obstante estar a pensar noutra coisa.
"Vamos agora lisonjear o pai". E no tardou que no carto surgisse o eventual filho
do parintintim a rufar, todo ditoso, o pequeno tambor azul, de rebordos doirados
, sustido a tiracolo.
A ferramenta de Maximiano actuou prestemente. Dir-se-ia mesmo comungar no prazer
do carpinteiro perante a suposio de que uma utilidade imediata, fecho de tantas s
emanas nuas de resultados, poderia advir daquilo. Mas s no dia seguinte, sobre a
tarde, ele pde concluir todas as molduras e fixar-lhes nas costas as tabuinhas qu
e deveriam defender de encarquilhamentos e outras agresses o verso dos desenhos a
quelas novas mensagens.
Era uma tera-feira e a noite acercava-se quando Nimuendaj, quebrantado pelos dcimos
de febre que ressurgiam, como os bacuraus, com as sombras baixadas do cu, disse
aos homens reunidos na sua
frente:
At agora eles tm mostrado tendncia para vir da parte da manh, talvez para ficarem co
m tempo de regressar maloca. Mas isso no quer dizer que no venham de tarde. Podem
mesmo estar l a esta hora. Podem ter um tapiri perto de ns...
Juvncio adiantou-se:
Eu, por mim, you.
Cada um sabia, antecipadamente, a resposta de todos os outros. A ideia do perigo
, inflamada num instante, j no raciocinava: contagiados pelo destemer, que era com
o uma intoxicao, ofereciam-se logo. Nimuendaj escolheu os que falaram primeiro.
Jarbas e Filipe transportavam a chapa zincada, que abrigaria a exposio, pois que a
o dealbar chovera um pouco; Maximiano, as seis delgadas estacas, em molho, no om
bro; Juvncio metera na serapilheira os brindes midos, o martelo, os pregos, e leva
va os machados nas mos; frente rompia Amaro, com os quadros emoldurados sob os br
aos. Abriram a porteira e desapareceram na mata.
-A luz que ainda avivava o acampamento, quente e policrmica, esmorecera j entre o
aglomerado de rvores. Mas s ao deterem-se no varadouro que buscavam, se deram cont
a do silncio, medonho e morto como se estivesse cheio de olhos vtreos, com que o l
usco-fusco da brenha ali os esperava.
Na terra hmida, Maximiano espetou, sem dificuldades, as estacas. Colocaram-lhe em
cima a folha de zinco, nos seus furos os pregos que deviam segur-la. Ento Amaro b
aixou-se e, sob a proteco da cobertura, disps no segundo plano, em semicrculo, ampar
ando os caixilhos com gravetos, as cenas que Bonifcio desenhara. Diante delas ali
nhou os brindes, os pomposos ao centro, os demais a cerc-los, tudo como numa vitr
ina, trabalho que os outros homens seguiam muda-
1102
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1103
mente, sem que nenhum olhasse para os lados, no fossem os companheiros julgarem-n
o pusilnime. <
Ao longo das horas elsticas, que pareciam estirar-se enlanguescidamente pela flo
resta adentro, a curif sidade atazanava-os mais do que se esperassem o result tad
o duma dessas armadilhas de que Raimundo set dizia mestre, com um pau rachad
o sustentando ura, rifle "Quando se puder sair daqui pr caar, vocs vero mesmo" sob
re o trilho nocturno da anta que, lhes forneceria carne abundante, fresca e sabo
rosa, para dois ou trs dias. Mas as sentinelas, por muito qu lhes pedissem ouvido
fino, no haviam captado rumai; algum e Nimuendaj, querendo poup-los a repetidqs, co
ntingncias, recusara a sua autorizao para eles irem, espiar logo na tarde seguinte.
Na quinta-feira, nenhum grito cortara tambm a dvida, nenhuma flecha vieqa, cair n
o acampamento; a brenha remergulhara no seu torpor antigo e dir-se-ia que mantin
ha de propsito, aquele vasto e desolante silncio. K
Finalmente, ao terceiro dia, Nimuendaj deu o seu acordo e Juvncio penetrou na mata
, desta vez sem' mais ningum. Volveu pouco depois e, pela cara qu, abria, compreen
deram logo que trazia boas novas.
Levaram tudo... > Tambm a folha de zinco ?
Isso no. Os homens riram. Nimuendaj tornou:
Deixaram algum acanhara ?
Uma ansiedade partiu dos olhos de Bonifcio para Juvncio, que parecia confundido po
r no haver pen* sado naquilo.
Acanitaras no deixaram, no... Lentamente e em silncio, Nimuendaj friccionou,
com a palma da mo direita, as costas da mo esquerda, que estava fechada; depois vo
ltou-se para Amaro e disse:
Mande colocar l novos brindes.
No domingo, ao escurecer, Jarbas, para que no fosse apenas Juvncio a arriscar-se,
enfiou-se por entre as rvores e, meio oculto por uma delas, espreitou. De sob a c
hapa zincada, os novos objectos tinham sido levados, sem que na terra escura, qu
e eles ocupavam, ficasse retribuio alguma.
Quando Jarbas comunicou o desengano, perante as caras interrogativas dos outros
homens, Nimuendaj declarou, rpida e friamente, como se j trouxesse aquela resoluo na
boca que o mau humor endurecia:
Por agora no lhes daremos mais brindes. melhor deix-los pensar algum tempo.
Revezando-se, toda uma semana se expuseram, avanando ao anoitecer no meio dos ram
os e voltando sempre de mos vazias.
Mas um dia Filipe divisou, enfim, por entre a gorda folhagem, pequenas manchas
irregulares, vermelhas, amarelas, azuis, s vezes simples pontos onde conflua
m diversas cores, em rivalidade com o verde imperante; e era como se visse trech
os de araras, mutuns, japus e tucanos atravs dum velho crivo roto. Filipe avanou m
ais. L estava. Um, apenas um, sob a folha de zinco, ao centro da terra destinada
aos brindes, que lhe parecia agora, por contraste, mais negra e mais vasta. Dir-
se-ia que falava. Que prometia, de dentro dum passado bastante escuro, um presen
te luminoso e fruitivo. O acanitara excedia at, na variedade das plumas, aqueles
com que os Parintintins se haviam apresentado para ruidosos combates, junto da c
erca. emoo aquentava Filipe e ele experimentou-o em si mesmo, como para uma posse
verdadeira e definitiva. E foi ento que julgou ver uma sombra a escoar-se, rpida e
tambm emplumada, a uns quarenta metros dele, por entre as rvores.
Ficou a olhar, muito quieto, muito hirto, com uma calma repentina a esfriar-lhe
a emotividade. Certo de que os seus movimentos eram espiados, incerto sobre se o
frechariam ou no quando se deslocasse, regressou ao Posto lentamente. Antes mesm
o de transpor a can-
iio4
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1105
cela, sentiu-se ridculo com o acanitara a selvagizar-lhe a cabea e entrou j com ele
dependurado do ndice direito, balanando ligeiramente ao sabor do seu passa vagaro
so. 'n<>
S um ? perguntou Amaro com a boca alar>{ gada de ventura. }ft
Manga Verde desdenhava:
com um regato se fazia melhor negcio. Tanto(r) brindes e tantos dias esperando, s p
ara isto! Mangfr Verde desdenhava e ao mesmo tempo ia passando " mo, cariciosamen
te, sobre as plumas mais longas a acanitara.
Somente os lbios de Moacir no sorriam, nem nH olhos dele brilhavam. Mas Jarbas, qu
e h muito o conhecia e decifrava os segredos da sua cara paraj^ com mais despacho
ainda do que os epigrafistas tia$| as inscries de velhas pedras imveis, estava cert
o d" que tambm ele se sentia feliz, perante aquele primeiro trofeu. ias
" pena no ter sido antes" pensava BonifeidJ nublando a vitria da sua ideia com a fi
gura de M* muendaj estendido na rede, as dores a morderem*-^ os rins e a minar-lh
e a cabea, sucessivos calafriosr quarenta graus de febre. 'h
Finalmente! disse Bonifcio ao entrar, com-"8 outros homens, no quarto dele; e a
voz parecia quener transferir o seu regozijo para o doente, inocular-lho na carn
e e no esprito, como um novo medicamentai
Nimuendaj voltou-se na rede, penosamente, j tod amarelado pela ictercia. Lanou um olh
ar febril ao acanitara, que Bonifcio agitava diante dele, com brinquedo diante de
uma criana no bero, e abriu um sorriso vago e triste. No tardou, porm, que ,0 ouviss
em dizer a Amaro, com uma inteno que no desertara e o torn decidido do seu carcter:
Mande pr l mais brindes. Muitos!
Encarou Bonifcio, parecia ir comunicar-lhe tambm alguma coisa, uma ordem disfarada
em pedido, quando a nusea lhe veio. Sentou-se sufocadamente na orla da rede, logo
se ps de p, convulso, dispneico,
a mo sobre o ventre, a boca arquejante escorrendo
baba.
Jarbas retirou-se, Moacir seguiu-lhe discretamente os passos. Os olhos de Bonifci
o voltaram a fixar, dir-se-ia que involuntariamente, que desnecessariamente, poi
s j o tinha visto, o lquido que cobria o fundo do vaso, sob a rede, dum vermelho-a
castanhado, cor que os seus colegas comparavam do vinho de Malaga ou do Porto, c
omo se pretendessem hierarquiz-la e envolver numa sugesto menos desagradvel o grave
sintoma que ela representava.
Frequentemente abalado pelos vmitos biliosos, que subiam como ondas nervosas, ama
rgando-lhe na garganta e dificultando-lhe a respirao, Nimuendaj sentia-se exausto.
Amparava-o Bonifcio, os outros homens assistiam, de cabea baixa, respeitosos. Hesi
tavam entre continuar ali e o chefe consider-los importunos ou partirem e ele pen
sar, talvez, que no se interessavam pelo seu estado; e, nessa dvida, iam-se deixan
do ficar. Por fim a crise amainou. E Nimuendaj, ao volver rede, fez um gesto de
desagrado por todas aquelas presenas. Os homens foram ento saindo, um pouco vexado
s, ps leves comendo o rudo e aquela respirao sempre difcil do doente a acompanh-los, a
persegui-los, como ralos escalonados beira do caminho, nas noites belas e quent
es do Estio.
Me parece que este stio est sendo mais ruim ainda do que os Parintintins... Foi o
Soares dos Santos, o Cavalcanti, agora ele, sem falar nos da desinteria... desab
afou Filipe, logo que chegaram alpendrada, em frente de Honrio, cujas feridas j ha
viam cicatrizado.-Qualquer dia vamos todos ns!
Do exagero sorriam ainda alguns dos homens, quando Bonifcio surgiu porta, de olho
s no cho e
rosto contrado.
Est mesmo mal ? perguntou-lhe Maximiano,
timidamente.
Viram-no baixar a cabea, sem uma palavra; viram-no passar ao lado deles, com as mo
s enfiadas nos bolsos, como fazia o etnlogo, e dar umas voltas
iio
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1107
toa pelo acampamento, sob as estrelas que principias vam a nascer. -f
A biliose desatara-se na vspera, sem surpresa de maior para ele, que sabia estar
Nimuendaj, como todos os impaludados crnicos, h muito submetida a esse risco e que
os recentes sintomas eram j bastante significativos. Os trs dias seguintes decidir
iam tudo i para a vida ou para a morte, o prazo seria curto. Recor* dou-se do pe
rodo em que ele e outro mdico acofl& panhavam a hoste de Rondon, pelo bravio interi
or d<* Mato Grosso, e o impaludismo e o beribri haviai^ prostrado numerosos solda
dos, dezenas de praas que construam as linhas telegrficas no longo trecho & Cuiab a J
uruena, aquele infindvel serto. Muitof deles tinham perecido de bilioses, mesmo en
tre d enviados a toda a pressa para a derradeira esperan$a$ para a ltima possibili
dade, que eram os hospitais * capital, l to longe. Recordava-se do doutor Costa} qu
e o antecedera, do doutor Murilo que lhe havif[ sucedido, ambos, nessa altura, c
om mais experiiei do que ele, ainda h pouco formado; lembrava->St dos dois e sentia-
lhes a falta ali. Partilhar a expeef tativa, as opinies e as apreenses com esses v
elfatf colegas, que tinham enfrentado tantas circunstft* cias desastrosas, faria m
inguar a sua responsabil* dade solitria, aquele peso individual que o molestava ag
ora.
s oito horas, Bonifcio tornou ao quarto de Ni" muendaj, para a medicao. No se via o co
rpo/ divisavam-se apenas, atravs do tecido, as formas do seu volume, muito quieto
no fundo da rede. '
Vamos tomar isto ? * Nimuendaj moveu-se, deitou as pernas de fora,
ficou sentado por fim. Parecia mais sereno. Somente os olhos, encovados e febris
, que a luz do farol tornava mais profundos, dir-se-iam buscar disfaradamente, no
rosto de Bonifcio, alguma coisa que ali se escondia^ Engoliu o medicamento, toss
iu de leve.
uma biliose, ?
No... Apenas um acesso mais forte...
Nimuendaj olhou para o lquido do vaso, debaixo
da rede, e insistiu:
uma biliose hemoglobinrica, eu sei...
Quem aqui o mdico ? voc ou sou eu ?
A voz de Nimuendaj tornou-se mais arrastada:
Eu esperava ela h muito... Li os sintomas... Estava no interior do Maranho, longe
de mdicos. Precisava de saber distinguir entre um acesso vulgar e as outras comp
licaes.
Leu e no adiantou. Felizmente os livros de medicina so caros e muito cacetes,
se no toda a humanidade se julgava em perigo de morte. Mesmo as pessoas inteli
gentes no escapam auto-sugesto...
Calou-se uns segundos, a temperar a voz, e acrescentou, sem confiar no que dizia
, perante aqueles olhos incomodamente fixos na sua cara:
Pode crer... Mas se receava uma biliose, por
que veio?
Tinha a esperana de que me poupasse... Nem todos os impaludados crnicos morrem com
bilioses...
o que vai acontecer consigo...
Tornou Bonifcio a ficar descontente com o torn de voz que empregara e a ele prprio
soara como artificial; mas Nimuendaj parecia no t-lo ouvido:
Esta misso me entusiasmou... No queria perd-la... Est compreendendo, ? Me interessava
muito.
A mim tambm, mas agora descanse. Na manh seguinte delirava com os ndios:
No mata eles! No mata eles!
Quando, porm, acordou e viu Bonifcio sentado perto da rede, a sorrir-lhe, voltou a
cerrar os olhos. Encontrava-se to estuporado, to entorpecido, que as suas energia
s, at a sempre persistentes, faliam perante as respostas as perguntas do mdico e re
cusavam-se aos movimentos que ele lhe solicitava, para exame. O seu esprito havia
amortecido tambm, dir-se-ia que tudo lhe era j indiferente, cisco da vida, coisa
nenhuma. Mas ao cair da noite, quando Bonifcio lhe acendia o farol, a sua voz mur
murou:
Trouxeram mais acanharas ?
no8
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
II09
Hoje no, mas vo trazer, com certeza. Voltou sua modorra e s a respirao pareca
viva. Cada vez mais incerto sobre o desfecho, Bonifcio acercou-se da pequena mesa
, abriu a caixita, pegou no copo: "Lutar at ao fim... Mesmo contra moinhos de ven
to... Lutar sempre..." pensou, um pouco esfarrapadamente, lembrando-se do seu p
apel, enquanto ia dissolvendo o medicamento. '[
Ao quarto dia, a estuporao, a febre, as ameaas de anria mantinham-se; a biliose cont
inuava no seu curso, hasteando sempre a grande dvida; mas ato lusco-fusco, Nimuen
daj tartamudeou ainda: ,i,f
Trouxeram ? <s Bonifcio respondeu afirmativamente. Pareceu-lhe"
porm, que a mentira no enraizara, que naqueles olha" esmorecidos, j sem brilho algu
m, se acendera de repea" uma descrena, curta e desvalida, como um pirilampo que di
sparasse a ltima luz ao findar da madrugadqi Bonifcio dirigiu-se ao seu quarto, ag
arrou sobre o tope do cavalete, onde o havia enfiado, o nico acanitau recolhido, a
rrancou-lhe as plumas mais longas, disfarou-o o melhor que a rapidez lhe permitia
e com ele regressou: '-k
Veja! IR Indicou-lho da porta, mas Nimuendaj parecia j
no dar acordo de si. -b
Foi, contudo, nessa noite, muito prximo do amanhecer, que o termmetro abandonou a
sua eloquncia sobre as cumeadas e principiou a falar moderadamente, no vale, pela
primeira vez naqueles quatro dias. Quando o sol irrompeu por cima da imensidade
da floresta, conf o ar de espio celeste que apresentava a essa hora, ji trazia u
m carrego de esperanas, luzentes como ele prprio. Sempre fiel aos seus hbitos, a bi
liose, desde que se inclinasse para a benevolncia, empreendia a retirada quase to
rapidamente, quase to bruscamente5, como chegava; desistira da vida de Nimuendaj,
ma deixava-o entre os escombros dele mesmo.
Voc, que andou a ler todas essas coisas, sabe perfeitamente que no pode continuar
aqui disse-lhe
Bonifcio, dias depois, perante a sua pele a revelar a armao ssea, as mos esquelticas,
as orelhas transparentes. No foi s pelos ndios, posso dizer-lho agora, mas ta
mbm pelo receio de que, um dia, tivssemos de mandar urgentemente para Trs Casas a s
i ou a qualquer outro, que no mostrei nenhum entusiasmo pela sua ideia de reduzir
o pessoal. Voc precisa de mudar de meio, precisa de tratar rapidamente da sua an
emia, que muito grave, como sempre nestes casos. Percebe? Uma vida higinica, outr
os cuidados, outra alimentao. Vai para Belm, que uma belezinha de cidade, sem carap
ans e com mdicos muito melhores do que eu. Est l a sua mulher, a sua casa, que mais
pode desejar? E leva consigo, at Manaus, o pobre Cavalcanti, que tambm escapou d
e boa.
Ele compreendia. Ele compreendia que tinha de se ri embora. Mas aprazia-lhe escu
tar Bonifcio a repetir aquilo sua muda resistncia, ao seu teimoso silncio, ressumad
o mais pelo homem-etnlogo, do que pelo homem somente fsico. Precisava de ouvir rep
etir aquilo, carecia de reconvencer-se de que no havia alternativa, j que nem a prp
ria gravidade do seu estado conseguia submet-lo, sem reaces, ideia de interromper a
gora a misso que o trouxera ali. Agora, que lhe parecia estar muito prximo o xito,
a anelada glria de ser o primeiro a estudar os costumes dos Parintintins, o prime
iro a revelar ao Mundo a sua vida actual e o seu passado, pois que deles apenas
se conheciam, por etnlogos que jamais os tinham visto, confusas referncias, diludas
hipteses; e da realidade sabia-se unicamente que protegiam o sexo com um tubo e
que eram tremendamente
ferozes.
No voltaram a permutar... disse por fim Nimuendaj, num torn de monlogo.
- No voltaram, mas voltam. O primeiro lao est feito. No se preocupe com isso. O Amar
o bom. E eu farei o que puder. No falamos o tupi-guarani, no conhecemos o dialecto
deles; mas, ao passar em Manaus, voc mesmo pode pedir, no Servio de Proteco, que ma
ndem algum que os entenda. O Garcia no estaria
IIIO
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
IIII
fel i
mal e seu amigo; mas parece-me que tambm ele no fala o tupi-guarani, nem qualquer
dialecto.
Nimuendaj volvera ao seu silncio. Bonifcio insistiu :
Voc precisa de um repouso absoluto. E o Cavalcanti igualmente. Devem ir no batelo
, estendidos no fundo, sempre que puderem. O batelo andar menos do que uma canoa,
claro, mas neste caso mais recomendvel e, para baixo, todos os santos ajudam. Me
smo se fossem atacados, teriam onde se abrigar melhor. Penso que deve lev
ar um rifle e disparar para o ar, como Rondon, se isso acontecesse. Na aldeia do
s Mura-Piras, pode tomar ento uma canoa, se se sentir mais recomposto. Pensei no c
aminho mais curto, por onde voc veio a primeira vez. Andou quatro dias por terra
e depois desceu o Igarap da Trara, numa montaria que construiu ali mesmo, no foi ?
Nesse temp(c) voc tinha resistncia, hoje no tem. E como ia num batelo, ou mesmo numa
canoa, subir de noite o Trara1, que to estreito e com ramos a dificultarem a past
sagem ? Ali, sim, era muito provvel que os ndios pegassem vocs, quando amanheces
se. i
Bonifcio interrompeu-se, fez seus clculos:
Dois ou trs dias no Trara, quatro ou cinco na , rede, aos ombros dos outros homens
, at ao seringai
' fit Paraso... No pode ser! Mesmo que chegassem vivos, -* era em muito pior estad
o do que tinham sado daqui. Nimuendaj havia j pensado e repensado tudo aquilo, esmi
uado as duas possibilidades, arribado s mesmas concluses. Agora parecia-lhe que Bon
ifcio falava por ele. Parecia-lhe, mais estranhamente ainda', que falava como ele
, com a mesma extenso de racio^ cnios, as mesmas previses, a mesma viso de conjunto
e at uma autoridade igual, como se Bonifcio fosse agora ele prprio e ele uma criana,
como se Bonifcio lhe houvesse usurpado, ao sabor das circunstncias, a sua persona
lidade.
Est bem assentiu finalmente, num torn concentrado e melanclico.
Se tiver cuidado, pode restabelecer-se em cinco
ou seis meses e voltar. Mas desta vez no embarque sem o acordo dos mdicos. Eu gost
aria de poder acompanh-lo. Gostaria de dar um salto at Manaus. Matar as saudades q
ue tenho da minha mulher, ver outras
caras.
*
Foi Nimuendaj quem os escolheu, mentalmente, pesando vantagens, medindo inconveni
entes, naquela outra madrugada sem sono, ainda na rede.
Filipe, Aristeu e Juvncio no faziam nenhuma falta ali; Crisstomo, Antnio Rocha
e Etelvino, dbeis como tinham ficado, estariam melhor em Trs Casas; havia de perg
untar a Bonifcio se j no existiria perigo de contgio em to pequeno espao. Pouco po
deriam remar, nem seria justo que lhes pedisse muito. Um iria ao leme, os outros
revezar-se-iam. E s at a aldeia dos Muras-Piras, onde os substituiria por alguns d
esses ndios, se visse que era preciso. Mas talvez no fosse, pois que levaria tambm
Tito Boludo e Dorival. Ambos vigorosos, dariam aos remos as energias que aos trs
faltavam; e, levando-os com ele, libertaria dos seus temperamentos azedos os que
ficariam ali. Caroline, por quem todos sentiam respeito, estaria bem para os
chefiar, sobretudo no regresso, quando ele j no viesse. J no viesse! Ia sentir a fal
ta de Raimundo, sem dvida; mas no seria legtimo retirar um elemento to sensato e to e
xperimentado.
Contou-os, incluiu-se na soma, meteu tambm o Cavalcanti, o prprio Eleutrio; e
verificou que no acampamento quedariam apenas onze homens dos vinte e trs que ti
nham vindo. Podia perfeitamente dispensar os que haviam sofrido disenteria. Mas
porque no lev-los, se era til sade deles e no estariam ali a diminuir mais ainda os m
antimentos ? Talvez fosse melhor deixar Carolino. Deixava-o e tomava o lugar que
lhe destinava. No se encontrava assim to mal que j no pudesse ser o chefe dum simpl
es batelo. E, com doze no Posto, era mais do que suficiente.
De manh comunicou a Bonifcio e a Amaro a
I IP
III2
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III3
seleco que fizera, anunciou a largada para dali a. dois dias, que j haveria ento uma
rstea de luar^ pediu a opinio do mdico sobre a ida de Crisstomo, Antnio Rocha e Etel
vino e pareceu-lhe que eles aprovavam tudo com sinceridade. ,
Faa a lista do que est faltando aqui disse a Amaro. E voc, doutor, veja se precis
a de mais alguma coisa de farmcia.
Logo que Amaro preveniu os homens escolhidos^ Tito Boludo, lanando-lhe um olhar s
oturno, inter-" rompeu-o:
Posso voltar ?
Isso com seu Curt. Pergunte a ele. O batelo, volta; traz mercadorias.
Pouco depois, com voz rouca, o lbio inferior a tremer-lhe de leve, estava em fren
te de Nimuendaj que pareceu vacilar e reflectir um momento antes d$ responder: [p,
- Todos os que tiverem boa sade podem voltafo Mesmo que no fosse para levar doente
s, alguns homeufl tinham de ir a Trs Casas, pois j outro dia expliquei que est aqui
pessoal a mais e precisamos de novoi abastecimentos.
Ento posso voltar mesmo ? i Recebeu um olhar duro, to duro e to imediato
como a resposta que o alvejou:
Voc est duvidando do que eu digo ?
Nessa mesma manh, auxiliado por Jarbas, Maximiano deu-se pressa em realizar uma a
rmao de madeira, facilmente desmontvel, onde assentasse o oleado que defenderia Nim
uendaj e Cavalcanti das ofensas do sol e do relento, no batelo. Tomara as medidas
discretamente, mais discretamente ainda preparara os encaixes, no estivessem os nd
ios a espiar o acampamento e compreendessem o que se projectava. E foi tambm com
disfarados modos que Raimundo se escondeu dentro da embarcao e principiou a calafet
ar, evitando rudos denunciantes, algumas pequenas fendas que ela apresentava, por
haver estado muito tempo fora de gua e exposta ao sol.
Finalmente, na noite acordada, Nimuendaj olhou o quarto, que sempre lhe parecera
desconfortvel, as prateleiras vazias, a fresta que l em cima mirava o perigo; e de
sbito teve saudades daquilo tudo, saudades de alguma coisa dele prprio, que no se
definia nitidamente mas se enraizara para sempre ali.
C fora esperava-o todo o pessoal, Raimundo e Honrio com a bagagem dele, Amaro e Bo
nifcio que se puseram do seu lado. Uma vaga luminosidade doirada, que o quarto cr
escente e as estrelas difundiam sobre a vastido florestal, lhes facultava os pass
os e tornava confusos os seus vultos, caminhando em silncio para o rio.
Assim que o grupo se deteve beira da gua, os homens abraaram-se "at volta!" "at v
ta!" e os que partiam entraram no batelo. Viram ainda Nimuendaj dizer palavras bai
xas a Amaro e Bonifcio, cerrar-lhes as mos, em seguida embarcar tambm. Tanajara des
prendeu a ponta da corda, atirando-a a Juvncio, que estava na proa, de p, com os b
raos estendidos, ao mesmo tempo que Filipe se inclinava muito no rebordo e aos qu
e ficavam prometia, desen-
f adadamente:
Podem dormir sossegados, que quando eu voltar
trago dois sacos cheios de malaguetas...
'Os remos chapinharam e o batelo principiou a afastar-se, primeiro devagar, um po
uco mais lesto depois, povoado de sombras moventes, enquanto Moacir, Carolino e
Maximiano subiam o barranco, para retomar a vigilncia entre as duas folhas de zin
co.
No meio dos que continuavam no porto, Tanajara
dizia:
com certeza o Tito j no volta... E vo ver
que o Dorival tambm no...
Seu Curt garantiu ao Tito que todos podiam
voltar retorquiu Jarbas.
Hum... com o mau gnio que eles tm! Seu Curt arranja l, em Trs Casas, uma desculpaz
inha e nunca mais pem c os ps. Pelo menos o Tito.
Um instante, Jarbas imaginou-se tambm no bate-
iii4
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III5
Io, vencendo a noite, no para ir ao seringai de Manuel Lobo, mas para regressar ci
dade, a uma fbrica^ s mquinas e sua luta; logo tornou: ,
O Tito no assim to mau como parece.' me contou, um destes dias, a sua vida. Foi se
mpre- unfa, misria. Em Manaus chegou a passar fome. Se arrant Java trabalho e dep
ois despediam algum, era o primeiro a ser mandado embora. No gostavam dos setis mo
dos. Nos seringais e em Humait, o mesmo. S queia conhece a vida dura pode saber o
que ele sofreu. E ura ressentido.
Mas porque no tinha outros modos ? dispam rou Mariano, que no conseguia liar-se qu
ela inesperada complacncia. Ele est sempre contra todas as pessoas. Mesmo contra
ns estava. i u{
No teve nenhuma preparao. Eram muitos irmos, numa barraca, ao deus-dar. Tambm n
ulpado do seu feitio. Voc no ouviu o que disse outfefo dia o doutor? Disse que tod
o o homem nasce parioltintim. S depois de nascer que um homem, com js> que vai ve
ndo e ouvindo sua volta, deixa ou no * ser parintintim. O Tito nunca teve quem lhe
explicasse a razo das coisas ruins que lhe aconteciam. Se algiirii lhas tivesse
explicado, talvez ele gostasse mais dos companheiros. Assim, deixa-se levar
pela sua natureza. Parece ser contra tudo e, afinal, no contra aquilo que devia
ser. Mas, nos ltimos dias, j estava melhor,.!.
Melhor ? estranhou novamente Mariano, ap mesmo tempo que se voltava para
Tanajara:Voc deu por isso ?
Jarbas esperou que se escoasse o riso cptico vindo daquele lado e, com voz pacien
te, insistiu: '>
No fundo, no tem maus sentimentos. Se viu quando mataram o Eleutrio. Ficou
com dio a<?s ndios, ficou, porque no podia entender a diferena de responsabilidad
.es que h entre um selvagem ou mesmo um tipo como ele e as pessoas conscie
ntes. Mas parece que depois compreendeu e foi substituir o Honrio, sem que ningum
o mandasse.
Honrio apoiava. Nas ltimas semanas, ele e o
Juvncio tinham aderido s secretas aspiraes de Jarbas e agora secundava-o.
Bem... para dizer a verdade, eu mal no lhe queria, no. Mas se ele ficasse por l, no
fazia c falta nenhuma... proferiu Tanajara, a desligar-se da
conversa.
Cozinheiro para muita gente, cansado de trabalhar com vultosos alimentos em rest
aurantes populares de Belm, Mariano voltava ao princpio, bastante incrdulo:
O que me admira mesmo que ele, com aquele corpo de boi sempre no capim, tenha pa
ssado fome...
O que eu quero ver outra coisa interveio Manga Verde, com um torn de importncia.
O que eu quero ver como isto vai andar, agora que seu
Curt viajou...
Os outros homens ficaram calados, como se fizessem a si prprios a mesma pergunta
e no se aventurassem
a uma resposta.
Vai andar como at aqui ouviram Jarbas dizer, lentamente. Seu Curt tinha competnc
ia, tinha, mas isto no s obra dele. do povo. Que podia fazer ele sem ns, j pensaram?
O batelo aproximava-se da curva do Maici-Mirim, difusamente, como que a desfazer-
se, levando os companheiros. E ento, nessa noite de afastamento, em que o Posto p
arecia ter ficado, sob a frouxidade do luar, com um xtase de cemitrio e encontrar-
se mais segregado do Mundo do que habitualmente, alguns dos homens recordaram-se
das cartas que haviam escrito, ou rogado a outros que as escrevessem por eles,
essas cartas que eram, com os relatrios e os artigos de Nimuendaj e as muitas pg
inas de Bonifcio para a mulher, a nica histria, s vezes resumida parcimoniosamente c
omo nas lpidas, daquele primeiro trecho da sua aventura.
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O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
III7
4
x .,5
P;p ODE ser que fosse s um ndio. Pode ter sida at um ndio de outra maloca. Ps l o a
canie tara para ns darmos mais brindes e foi levando o" brindes sem os outros sab
erem dizia Amaro a Bors fcio, a seguir ao pequeno-almoo, naquele primeirl dia em
que as resolues dependiam deles apenas. ^4" A sombra que o Filipe viu estava fugin
do como ura ladro. Pode tambm estar escondendo os brindes, paro depois ficarem s pa
ra ele...
Bonifcio hesitava: M
Pode ser... Mas me custa a acreditar que .x" tuxua mandasse s um ndio espia
r aqui. Ns poda ms matar a ele e o tuxua ficava sem saber o que estvamos fazendo. Devi
a pensar nisso... '&
Passeavam no acampamento, luz da manh, js muito forte, e Amaro respondeu, baixando
os olhoso
. E se fosse de outra maloca, como eu disseM
No sei, mas ento o tuxua no mandava oa ndios da maloca dele nos seguirem ? Se desinter
essava"' da nossa presena aqui, depois de tantos ataques ?
Bonifcio ia raciocinando e falando morosamente^ como se sincronizasse essas duas
faculdades com <S{ ritmo lento dos seus passos. o
Que o acanitara pode ter sido posto l s pelai vontade de um ou de alguns, isso pod
e. Tambm > possvel que o tuxua, ao saber daquilo, tenha proi+1 bido que pusessem out
ros, por ele no querer a paz...} Mas quem vai adivinhar ? J
As hipteses rolavam e entrechocavam-se, amea4 ando cair inutilmente umas atrs das o
utras, como, ao mais leve movimento, o chumbo de caa na palma da mo aberta. Bonifcio
e Amaro detiveram-se junto do arame farpado, de novo calados, diante do rio. Na
vspera, quando o arrastavam para a gua, o batelo em que Nimuendaj partira deixara i
mpressa, sobre a terra mole do barranco, a marca do seu casco, mais
funda do que 9 da Cobra Grande que serpejava, monstruosa e pnica, nas velhas lend
as dos indgenas. E, ao ver essa denncia, Amaro resolveu mandar disfar-la, arranhando
a lama, como as tartarugas arranham a areia aps a desova; foi, porm, deciso dum s i
nstante, logo suprimida ao pensar que os Parintintins notariam facilmente, mesmo
sem aquele indcio, que faltava ali uma embarcao e das maiores. Bonifcio dizia, sor
ridentemente: Mas no levaro mais brindes de graa, isso no. Olhou Amaro e apressou-se
a acrescentar. Se voc estiver de acordo, claro. Se estiver de acordo, fao outro
quadro. Uma grande mesa, cheia de coisas, ao meio da porteira. Eles do lado de f
ora, sem flechas e com muitos acanitaras nas mos, para trocarem; ns do lado de den
tro, a entregar os objectos...
Amaro ouvia de olhos postos nos olhos dele e apoiou com voz de reconhecimento, q
uase humilde:
Pensou bem, mesmo bem, seu doutor.
No sei se dar resultado, vamos ver...precaveu-se Bonifcio, no fosse a sua nova ideia
ter o mesmo precrio xito, ou menos ainda, do que a primeira. Vamos a ver...
Passaram pelo barraco menor, levaram com eles Maximiano; e no seu quarto, com rec
omendao de urgncia, Bonifcio deu-lhe as medidas, para ir fazendo o caixilho, enquant
o ele desenhava.
hora do almoo a cena estava esboada, de tarde concluiu-a e meteu-lhe cor. E ao mor
rer do sol, como o maior perigo ali era entrar na floresta, todos os homens quis
eram transportar aquele convite aos bravios senhores da terra, mesmo Honrio que e
stava a tocar, baixinho, o seu violo. Amaro rejeitou os que se tinham aventurado
nos ltimos dias, olhou para o Manga Verde e elegeu-o.
Partiu de quadro debaixo do brao, cabea bem ao alto, um cigarro fumaando na boca; a
briu as cancelas com naturalidade e desapareceu. Tantas idas e tantos regressos
haviam j criado um ligeiro trilho, desimpedido de ramos obstrutores, entre o Post
o e a
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O INSTINTO SUPREMO
III9
folha de zinco abrigadora das ofertas; e Manga Verde caminhava lentamente, sempr
e a duvidar de que os Parintintins viessem porteira desarmados, como lhes sugeri
a o desenho de Bonifcio.
Estava j muito prximo do destino, de ouvidos alerta, olhos perscrutantes, quando a
flecha zumbiu e se foi espetar no tronco duma rvore, a dois palmos dele, barrand
o-lhe o caminho. i
Manga Verde estremeceu, recomps-se e olhou sobre a direita, l a uns trinta metros
de distncia, de onde o disparo havia sido feito. Era um corpo forte, atarracado,
como o de Tito Boludo, quarento talvez, -o" cabelo muito negro, os pomos das face
s salientes, peitos" quase de atleta; e fixava-o severamente. Apoiava no cho a po
nta do arco e da sua figura nenhum trecho bulia; mas essa prpria imobilidade, agr
avando a fixfe dez dos olhos, ressumbrava uma fora secreta, muito dona de si, uma
rudez altaneira, que dir-se-ia por vezes de piedade despreziva e que Manga Verd
e captava sem saber exactamente como devia agir. O ndio esteve assim, em frente d
ele, alguns segundos, logo cambiou) o rosto por outro ainda mais arrogante e vo
ltou-lhe as costas. Ia j a sumir-se no arvoredo, quando Mangar Verde, tirando do
sovaco o quadro, o chamou:
Eh, amigo, vem c! Vem ver isto, que ums belezinha! Anda comigo ao Posto, que darem
os a t muitas coisas. Seu Amaro te dar um porrinho de cachaa...
Ouviu o pequeno rumor de galhos, ao serem afas-> tados, e depois o silncio. >
A flecha encontrava-se espetada horizontalmente,' diante dele, mesmo altura do s
eu nariz. com a absurda sensao de que a gente do acampamenttf poderia observ-lo, Ma
nga Verde passou-lhe a mo por cima, a toda a longura, como se acariciasse o dorso
de bicho domstico e como realmente procederia se os seus camaradas estivessem a
v-lo. Tirou-a, depois-, sem pressa, arrimou-a rvore, com a inteno de lev-la quando vo
ltasse; e avanou a sorrir, enquanto imaginava o que teriam parecido ao ndio as sua
s
palavras, decerto para ele mais incompreensveis ainda do que os guinchos dos maca
cos.
J com a folha de zinco vista, chegou-lhe aos ouvidos um zunzum de vozes estranhas
e espaadas, perto dali. Estendeu os olhos ao encontro do som e enxergou de perfi
l dois parintintins, a conversar vagarosamente, encostados a uma rvore, muito mai
s grossa do que essa onde, momentos antes, a flecha se cravara. Volvidos um para
o outro, parecia no terem dado por ele; Manga Verde compreendeu, porm, que j o tin
ham lobrigado e ser aquilo apenas simulao.
Decidiu colocar primeiro o quadro no stio prprio, agora a dez ou doze passos somen
te, e depois lanar-Ihes as suas falas; mas logo resolveu o contrrio, pensando que
era prefervel amansar os selvagens antes
de mais nada:
Boa tarde! Esto passando bem ? Mesmo bem ? Ns somos amigos de vocs e podamos ir bebe
r nossa amizade umas cervejinhas, que h muitas l no Posto. Muitas! Cervejas e at ga
rrafas de "champagne", da boa, daquela que os coronis tomam disse com a voz mais
cordial e mais doce que as suas cordas vocais puderam tanger. Vocs esto compreen
dendo ?
Os ndios fingiram no o ter sequer ouvido. Ento o Manga Verde, sempre a sorrir-lhes,
cobriu o terreno que faltava para atingir o pequeno tecto de zinco; num pice se
vergou e deps o quadro, num pice porque esperava que as flechas viessem precisamen
te quando ele se inclinasse para diante; mas as flechas no vieram.
Adeus! At vista! Quando forem ao Posto, vocs vo ficar mais ricos do que os comendad
ores de Manaus, com as coisas bonitas que l temos.
Receou ainda que o matassem, traioeiramente, logo que voltasse as costas, como se
dizia ser costume deles; entrou, porm, no acampamento ainda mais sobranceiro do
que partira e contente consigo prprio, por haver subjugado o medo.
Quando, j na alpendrada, atirou para cima da grande mesa, com gesto de superior i
ndiferena, a flecha
J
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II2I
que trazia e comeou a narrar o sucedido, os outros, tendo em conta a sua fama, en
treolharam-se e hesitavam em acreditar naquilo.
Voc viu mesmo eles ? perguntou Tanajara, com voz de inocncia, perante o silncio
muito atento de Amaro e Bonifcio. >
Se vi eles ? Por esta! exclamou, cruzando os ndices e beijando-os, fiel ao seu hb
ito. O primeiro tinha uns olhos negros, sempre apontados em mini, que at parecia
m duas bocas de rifles para me matai4-; quando ele se zanga deve ter bufo de ona.
Eu aguentei aquele olhar, aguentei firme, firme, est percebendo? Depois lhe diss
e: "ndio, sou teu amigo, todos l somos amigos de vocs; no tenho medo de ti, mas no va
le a pena andar a com besteiras. A vida so dois dias*. Cheguei mesmo juntinho dele
e lhe garanti: "Temos l cachaa; seu Amaro no vai negar... Cachaa e todas as coisas
da civilizao, que tu nunca viste". Mas parece que ele no acreditou, no, e foi-se emb
ora... "
Ento ele compreendia voc ? Era Honro quem o interrompia agora e todos os outro
s o fixaraafe
No sei se compreendia, isso era com ele; eu fazia a minha obrigao. Aos outros disse
: "Vocs esto a a falar e a fingir que no me vem, at j parecem homens civilizados. Me
atem como irmo e venharft ao acampamento. Venham todos, mulheres tambm. Seu Amar
o boa pessoa, prepara um forr e at capaz de mandar buscar "champagne" a Manaus, pa
ra vocs. Sabem o que "champagne"? melhor que chicha, que cachaa, que cerveja mes
mo; o melhor que h. Quando eu era gerente de loja grande, bebia todos os dias uma
garrafa. Tm mulher doente ? Curumim com barriga crescida ? Doutor Bonifcio, que e
st l, o maior mdico do Mundo. Tragam acanitaras tambm para ns e vamos ser amigos. Pe
guem l a mo, amigos at morte". Eles no apertaram, nem voltaram a cara, mas riram. Pe
na no ter levado brindes; se levasse, talvez apertassem...
Tanajara voltou a perguntar, com o vago desconsolo de que talvez ele nunca viv
esse um momento
assim, que seria maravilhoso para a sua alma, se fosse realmente verdadeiro.
Riram mesmo ?
Manga Verde encontrou os olhos de Bonifcio e de Amaro postos sobre ele, muito srio
s, muito penetrantes, e vacilou. Interrogou-se a si prprio, mas agora via os ndios
a rir, sem desviarem as cabeas para ele, mas a rir, tal como dissera. Tornou a e
voc-los e ora lhe parecia que no riam, ora que riam e era, sobretudo, a rir que a
imagem deles se fixava agora nos seus
olhos.
Bem... Talvez no tivessem rido assim tanto como ns rimos quando se conta uma coisa
engraada. Mas me pareceu que riram um bocadinho... Pode ser que me tenha enganad
o, havia muita sombra de rvore na cara deles, mas me pareceu... justificou-se Ma
nga Verde, com a sensao confusa de que nesse instante, ao dizer a verdade, que men
tia.
Doutor, se fssemos ao seu quarto ouvir ele ? props Amaro a Bonifcio e logo se dirig
iu aos outros, desejoso de lhes quitar humilhaes: com pouca gente se fala melhor
e muito importante para todos ns saber bem o que ele viu. Depois ele conta tudo a
vocs...
Foi tambm de manh, como nos ataques precedentes, mas desta feita sem gritaria, cin
co dias aps o batelo ter desaparecido dali.
Os silvos dos vigias entraram no barraco maior uns a seguir aos outros, muito rep
etidos, dir-se-ia mesmo que mais nervosos e alarmantes do que das
outras vezes.
E imediatamente sobreveio pequeno silncio, como se tudo houvesse findado. Depois
ouviram-se uns baques sem vibrao, pesados, surdos, mas to reincidentes como os asso
bios, momentos antes.
Mariano preparava o pequeno-almoo e alguns
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homens no haviam sado ainda das redes. Os ptj_ meiros, porm, que foram andando para
a fresta, com o rosto ensonado, e os que vieram at a alpendrada, viram copiosos n
dios escalonados ao longo de toda a cerca e mesmo da outra banda do igarap. Estav
a!" armados, mas no disparavam nenhuma flecha, nb faziam gesto algum, no proferiam
uma nica palavraj Olhavam apenas. M>
Os que agiam formavam um nutrido bando, junrtb da porteira. Agiam tambm surdament
e, s fora desencadeada, s movimentos obstinados, como mquinas Os grossos tacapes, aq
uelas clavas rsticas que possantes braos empunhavam, subiam e desciam violei* tame
nte junto dos gonzos da primeira cancela, coM1 borando com os machados e terados
que haviam sido oferecidos como penhor de amizade. E, aos sucessivas golpes, o a
rame farpado cedia sempre um pouco, encufvando-se, baixando sempre mais, enquant
o as estacas, cortadas na base, se inclinavam, amparadas na queda prxima pelos fi
os que as sustinham ainda. ''f
Protegiam os corpos dos que batalhavam contra, fa matria bruta, vrios ndios de arco
e flecha, perfeit^- mente dispostos em semicrculo, por detrs deles, como se assis
tissem, do fundo arqueado de velha abside, a um acto de esconjuro antigo.
Bonifcio observava os que actuavam com machados e um secreto dissabor o invadia d
e repente, ao concluir que eles haviam aprendido, em potico tempo e bem, a lio que
lhes ministrara nos seus desenhos.
Embora cada sebe tivesse a sua cancela, uma em,, frente da outra, e a segun
da se encontrasse ainda intacta, o pessoal deduziu que desta vez o
plano dos Parintintins seria eficaz e se consumaria rapidamente, i
Todos, excepto as sentinelas e Honrio, tambm encarregado de espiar pela fresta o e
xtremo do acampamento, se haviam reunido junto da alpendrada, do lado de fora, d
e onde podiam seguir melhor o ataque, sempre em progresso excitado.
Amaro entrou no barraco, volveu ajoujado de
brindes, caminhando direito aos ndios; e mais uma vez os homens viram desenrolar-
se a cena que fora, at a, completamente intil.
Irmos, irmos, no faam essas coisas, somos amigos! Era uma voz ingnua, familiar, de l
eve toque suplicante, que dir-se-ia reduzir a vastido da floresta, a terra roada d
o Posto e a vibratilidade da luz que sobre ela se chapava, a um compartimento do
mstico, soturno e exguo.
Amaro detivera-se a uns vinte passos deles, olhara-os sem rancor e principiara a
arremessar-lhes as ofertas que levava, sempre a repetir: "Somos irmos! Somos irmo
s!"; a repetir sem esperana de as palavras serem compreendidas, a insistir soment
e para dizer sua conscincia que experimentara todos os elos possveis.
Nem os tacapes, nem machados e terados se interromperam na demolio da porteira; os n
dios que os manejavam ergueram os olhos, um instante, logo tornaram a baix-los, c
omo se se desinteressassem totalmente dele.
Amaro, porm, foi e voltou sem que nenhuma flecha alvejasse as suas costas ou lhe
zunisse aos ouvidos. Os homens que se encontravam junto do alpendre avanaram igua
lmente para a terra desabrigada, simulando abraos de confraternizao: "Somos
irmos, somos amigos, estamos aqui para fazer as pazes com vocs"; e Manga Verde,
perante a cara de ndio de Tanajara, lembrou-se mesmo de ensaiar, puerilmente, uma
dana com ele. De mos dadas, foram ainda mais longe do que Amaro havia ido, entreg
ando-se a passos de velhas polcas e maxixes. Nenhuma flecha veio tambm. E Manga
Verde pde enfim divisar, entre os ndios que estavam armados e em semicrculo,
alguns que sorriam, desta vez verdadeiramente.
Querem-nos pegar vivos! exclamou ao regressar. Querem as nossas cabeas! Mas vivo
, a mim,
no pegam, no!
A primeira cancela havia j tombado. Alguns parintintins afastavam, de junto dos ps
, os arames cados,
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enquanto outros alargavam a abertura, derrubando os topos das sebes.
Agrupados esquina do barraco, os homens olhavam, quietos e silenciosos, como se f
ossem um s. Olhavam com uma calma fria, pela primeira vez sem ramificaes, sem razes,
sem passado e sem porvir; apenas aquele momento bloqueado, isolado dos outros, n
tegro e espesso.
A meio da alpendrada, Amaro continuava, de rosto franzido, a ciciar um dilogo com
Bonifcio:
Seu Curt no faria...
Faria. Ele prprio me disse que faria isso em caso de extremo perigo. No disse a m
ais ningum, para no quebrar a abnegao e a disciplina do pessoal. Mas naquele dia do
grande ataque, quando Honrio danou, ele pensava mandar disparar, se fosse preciso.
Foi por isso que ele deixou os ndios estarem tanto tempo a flechar. A voz calou
-se e logo volveu: Tambm Rondon disparou... Disparou at duas vezes... Tudo depende
das circunstncias... Tem de se evitar que eles matem todos os homens...
Desde o comeo Amaro estava de acordo, sentia que no podia deixar de estar de acord
o, mas teimava
ainda:
Quando foi do cachorro, seu Curt no queria
assustar eles...
Era diferente. No devemos assust-los seno em ltimo recurso, claro...A voz tornava a
fracturar-se, descia, reemergia, apressada: Se nos matassem a todos, no teria va
lido nada o sacrifcio que fizemos para estar aqui, j pensou? Eles, julgando que po
deriam sempre vencer-nos, resistiriam ainda mais a outros que viessem depois de
ns tentar a paz... As palavras mudavam de torn, parecia mudarem de cor e de emoti
vidade medida que Bonifcio as murmurava: Assim, ainda fica uma esperana...
A ideia de responsabilidade atenuava-se, dividia-se. Amaro ^sentia-se melhor ao
ouvir aquilo.
pena, mas no h outra soluo. Amea-los primeiro, fazer gestos para entenderem que s a
-
remos se avanarem contra ns... acrescentou ainda
Bonifcio.
Era isso que eu estava mesmo pensando, doutor.
A segunda porteira ia cedendo tambm. Os fios de arame haviam j perdido a sua rect
ido, formando largas curvas; as pancadas desferiam-se cada vez mais violentas,
mais nervosas; via-se que os Parintintins queriam terminar a destruio rapidamen
te. "Eles tambm cospem mas mos, quando fazem grande esforo com os tacapes... Como
os pobres trabalhadores de enxada...", pensou Jarbas, admirado de estar, nesses
veementes instantes, a preocupar-se com aquilo. Amaro aproximara-se e disse, a e
le, ao Manga Verde e ao
Tanajara:
Venham buscar os rifles e as espingardas...
Jarbas encarou-o:
O qu ? Buscar os rifles e espingardas ? Me desculpe, eu no atiro contra ningum.
Voc quer morrer mesmo ?
Eu tambm no mato ndio declarou Tanajara,
s para o ar... S para assustar eles... Tendo Amaro muita pressa, embora a disfarass
e,
considerou no ser momento para discutir. "Era pena que Raimundo estivesse de vigi
a" pensou ainda e instantaneamente lhe ressurgiu o desagrado de visionar Raimun
do a abater o "Mimoso". De sentinela encontravam-se igualmente Moacir e Carolino
, alm de Honrio na fresta. E parecendo-lhe o cozinheiro j velho e pesado para aquil
o, fixou os olhos em Genaro, logo em
Maximiano:
Venham vocs.
Seguidos pelo Manga Verde, foram ao barraco e volveram j com as armas ao alto.
Faam como eu recomendou Amaro, iniciando
a mmica.
com tanto denodo e fria os ndios se entregavam a prostrar os restos da ltima cancel
a, que no deram imediatamente pela preveno que Amaro gesticulava ao longe, em frent
e deles; e s ergueram a vista e se imobilizaram quando alertados pelos seus guard
a-cos-
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tas. Olhando os rifles e as espingardas, com modoa toscos de lapuzes, pareciam s
urpreendidos por aquela ameaa vinda de gente que se mostrara to pacfica, to dadivosa
, to plena de condescendncia at a. Mas logo, como se no acreditassem ou desprezassem,
aquilo, tornaram resolutamente sua faina, dir-se-iai com maior mpeto ainda. /
Amaro voltou-se: p
Tanajara, bote uma cano bonita no gramod fone. Bote "A casinha pequenina". Se, dep
ois dos tiros j eles estiverem caminhando sempre contra ns, bote Q, hino brasilei
ro. Aquele disco que seu Rondon mandou por seu Curt. Aquele que est metido num pa
pel verd^ e amarelo. f
Tanajara ia j entrar no barraco, com um ltimo olhar para os ndios, quando Amaro pens
ou: "Se, depois dos tiros para o ar, rnatarem a ns quatro e aos vigias, vendo que
no quisemos matar eles, que preferimos" morrer a matar eles, vendo que somos rea
lmente amigos, talvez faam ento as pazes com os que escaparem" pensou e imediatame
nte se decidiu:
Voc Jarb^s e voc Mariano vo l para dentro. E o doutor Bonifcio tambm, se faz favor.
Se joa tiros no assustarem eles e eles chegarem a entrar J3fy barraco, dem muitos
brindes, tratem bem, mesnwi que eles tenham morto a ns e aos vigias. Suceda t que
suceder, aqui no h ningum que queira fazei? mal aos ndios; mas se algum perdesse a c
abea,e; quisesse fazer mal, tirar vingana, doutor Bonifcio; no deixava. /
Falara com uma voz ao mesmo tempo de mando e de resignao, estranhamente serena e hm
ida de emotividade. Jarbas ps-se ao lado de Bonifcio, Ma? riano seguiu atrs deles,
meneando a cabea, como se fosse discutindo consigo prprio.
Os quatro homens recomearam ento a mimar para os ndios as ideias que as palavras no
lhes podiam transmitir. O prprio Maximiano, a princpio com a mesma inpcia que Amaro
debitara ao cozinheiro, tor-i nara-se rapidamente expressivo, Sustentava a espi
n-
garda com a mo esquerda, enquanto fazia avanar a direita, bem espalmada, como se e
mpurrasse a carapaa de um automvel doente e, sem mesmo saber que estava falando, d
izia de modo automtico:
No venham, voltem para trs, se no botamos
fogo a vocs...
Era intil. A entrada encontrava-se j desimpedida, braos apressados retiravam as der
radeiras farpas, em frente dos ps ansiosos de arremeter. E muitos dos ndios coloca
dos ao longo da cerca, at esse momento em firme quietude, corriam agora para as c
ancelas destroadas, levando com eles arcos, flechas e ruidoso
entusiasmo.
H j alguns segundos, a velha cano enviava para o acampamento uma dolncia romntica, aqu
eles ritmos doces e nostlgicos, que vinham impregnados de distncia, de saudade e d
e amor. A sua decadente melodia, amortecedora de cleras, penetrava em todos os ou
vidos, mas ningum a ouvia, nem o prprio Amaro, que mandara toc-la e jamais saberia
explicar todas as razes por que o fizera.
Os Parintintins irrompiam j pela cerca adentro, na dianteira os que traziam arcos
e flechas, no meio os dos machados e tacapes, atrs muitos outros armados tambm, t
odos numa s vaga de corpos e de plumas multicolores, que os seus prprios movimento
s agitavam.
Agora disse Amaro.
As duas espingardas e os dois rifles ergueram-se mais, na direco do Sol que se alt
eava sobre a mata
e dispararam.
Durante um momento, os ndios interromperam a invaso, hesitantes. Amaro voltou a am
ea-los, mas j eles avanavam novamente, com um sorriso indefinido na boca de alguns e
de dio ludibriado nas de todos os outros.
Mais baixo.
As miras dos canos desceram, quatro tiros voltaram a soar.
Os Parintintins estacaram, finalmente. Falavam en-
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tre eles, com desordenada vivacidade, pareciam mesmo discutir raivosamente, prdig
os de carantonhas e <Je gestos desavenados.
Maximiano e Genaro meteram novos cartuchos nas espingardas e tornaram a apont-las
, ao lado de Manga Verde e de Amaro.
E assim alinhados, na manh j radiosa, sugeriam as alvoradas indecisas, sobre as es
planadas de quartis ou ptios de crceres, quando a luz nascente, tomada de piedade,
vacila em iluminar os alvos dos pelotes
executores.
Discutiam os ndios e logo a sua gritaria habitual, at esse instante reprimida, atr
oou a terra e os ares. Flechas atrs de flechas, centenas de flechas num zunimento
de cabas exasperadas, misturando-se com o ala^ rido furioso, vinham de toda aqu
ela banda da cercar, do extremo do acampamento e at da margem oposta do igarap, on
de j em outros dias se comprovara a sua inteira ineficcia.
Comearam a retirar-se lentamente, voltando-se de quando em quando, brandindo os a
rcos em ameaas de futuros e severos castigos. Manga Verde correu ao barraco, troux
e mais brindes por ordem de Amaro; e, acampamento afora, ia-os lanando por cima d
a cerca, ofertando-os com sorrisos, mas nenhum parintintim volveu atrs, todos pro
sseguindo nos seus gestos de clera e nos seus gritos.
Regressou Amaro alpendrada com as esperanas em fuga, nimo abatido, desejoso de lam
entar-se. Pousou o rifle sobre a grande mesa e sentou-se em frente de Bonifcio, q
ue sara do barraco ao seu encontro, com o resto do pessoal.
Tanto tempo perdido! Agora j no vo acreditar mais em ns. Em vez de virem porteira pe
gar os brindes, vieram bot-la no cho.
No queria muito dizer aquilo, mas disse-o mesmo sem o querer verdadeiramente.
Bonifcio parecia calmo. Havia admitido, desde o comeo do assalto, j quase inesperad
o, que Amaro e os outros acabariam vinculando a escolha das cancelas
sugesto por ele feita aos Parintintins, no seu ltimo desenho, para ali se efectuar
em as permutas, primeira grande ponte da confraternizao.
Pode ser que isso que voc est pensando a tenha contribudo proferiu. No digo que no t
enha. Mas quando um batelo desaparece, ou foram homens que o levaram ou foi o rio
. O batelo estava no seco e no rio no houve enchentes. Foi levado por homens, que
s podiam ser daqui.
Sem levantar a cabea e com uma voz de aceitao
forada, Amaro declarou:
Doutor, no quero contrariar...
A mo de Bonifcio estendeu-se, afectuosa, dir-se-ia que risonha, como ele prprio, e
tocou-lhe de leve no
ombro:
No se esteja afligindo. Eu creio que no se perdeu nada. Agora eles j sabem que
isto aqui no
uma arapuca.
Amaro ergueu, finalmente, os olhos duvidosos e
inquiridores.
Agora j sabem que no queremos atrair eles aqui para os matar, pois se quisssemos
fazer isso, podamos ter morto os que vieram hoje. Tambm j pensam que no deixamos ele
s matar a ns e isto me parece muito importante. Quem lhe diz que no vieram julgand
o realmente que podiam cortar as nossas cabeas e acabar com o Posto duma vez, ag
ora que somos poucos e nos temos mostrado sempre pacficos?
Foi por isso, com certeza, que vieram interrompeu o Manga Verde, orgulhoso de
haver sido o primeiro a clamar aquela hiptese.
Esses que estiveram agora a devem ter ficado convencidos de que no podem destruir
o Posto e que, portanto, o melhor remdio ser talvez fazerem as pazes. claro q
ue nunca se sabe bem como pensa um
selvagem...
com voz cndida e delicadeza de quem se mete na conversa, Mariano perguntou discre
tamente a Jarbas, que estava a seu lado:
H3
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
II3I
Ento se os ndios tivessem avanado sempre, ns j no amos deixar que eles nos matassem?
Era s para eles pensarem que no...
- Voc parece que ficou com pena! exclamou Manga Verde e os homens riram. ,
O que eu no compreendo bem disse, .enfim* Amaro como no atacaram a voc mesmo, qua
ndo> foi levar o quadro. Eram trs e voc no levava rifle....
XI
C ONSIDEROU Amaro ser demasiado perigoso arriscarem-se alguns dos homens a entra
r na floresta, nesses primeiros dias em que os Parintintins, desmoyaq lizados na
sua tentativa, estariam certamente de clera ainda incendida. Admitiu tambm que um
a nova pausa nas ofertas, sugerindo algum ressentimento, talvez fogstj prefervel
a continuar a faz-las com generosidade sem limites, tanto mais que os objectos de
stinados a briadp" tinham diminudo muito e era necessrio no desbq rat-los como at ali.
Bonifcio concordou e as hoaq morosas, as longas esperas, a arrastada monotonia d>
tempos antes, volveram ao acampamento, como se s& tornassem tambm prisioneiras da
cerca, onde as duascancelas haviam sido j reconstrudas e de novo. fechadas. . ,.i
-7 hoje ? perguntava Manga Verde, todos os dias, a Amaro, mas ele j no lhe respon
dia, j.no abanava a cabea sequer.
Genaro pensara que um ramo de arbusto, suspenso do tecto, na sala ou na alpendra
da, ligado por trs fios s guaritas, um para cada uma delas, permitiria tocar o gra
mofone, matando sem perigo o aborrecimento. Em vez dos assobios, que a msica no co
nsentiria ouvir, as sentinelas puxariam os cordis; o ramo balouaria, o aviso estav
a feito. E os homens passaram a sentar-se horas e horas em volta do gramofone, a
.
princpio distrados, depois a entediar-se, mesmo a j no suportar os discos que sabiam
de cor. Alguns abandonavam a sala, metiam ao acampamento, solitrios, como o pret
erido que troca o baile pela varanda, porque a eleita dana demasiado com outros.
Foi o perodo mais feliz para o violo de Honrio, que nesses enervados dias, mesmo pe
las noites afora, tinha muitos clientes, algumas vezes a entoarem em coro as mod
inhas que ele musicava. Mas tambm isso lhes fazia mal, porque lhes ressuscitava v
elhos sentimentos, saudades do passado e da vida longe dali.
Finalmente, uma tarde, aps duas semanas inacabveis, Amaro decidiu mandar pr novos b
rindes na mata. Todos pressentiam que seria o Manga Verde a lev-los, ele prprio o
sentia tambm, por se haver defrontado com os ndios, sem ser flechado.
Desta vez eram poucos e de magro volume os objectos que Amaro enviava, a tentear
. Manga Verde agarrou-os e penetrou na floresta, deixando os companheiros numa e
xpectativa mais preocupada ainda do que a da sua ltima surtida.
Caminhou pelo terreno j trilhado, com a tarde quente a falecer, to desprotegida d
e brisa que se ele no roava, de passagem, ramo ou folha, nada se movia. I
a avanando sempre espera duma flecha, sem olhar demasiadamente para os lados, por
saber que os ndios, quando no desejavam ser vistos na mata, ningum os via mesmo e
por no querer dar a entender-lhes que ia com medo. E assim se aproximou do stio o
nde devia colocar os brindes e foi l que teve a primeira surpresa. A chapa de zin
co havia desaparecido, a terra e a folhagem morta que ela abrigava mostravam-se
fortemente pisadas, como se os Parintintins as tivessem calcado e recalcado com
esses saltos nervosos que faziam, acompanhados de gritos blicos, quando cercavam
o acampamento.
Manga Verde no hesitou; dobrou-se, deps os brindes, como se tudo continuasse igual
sua ltima vinda ali. E j se retirava quando viu, altura do peito, numa rvore prxima
, de grosso tronco com umbela supe-
O INSTINTO SUPREMO
H33
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rando as das vizinhas, vrias flechas espetadas, simetricamente dispostas em quatr
o filas, como se houvessem sido disparadas num concurso de acerto no alvo. Conto
u-as, eram doze. E foi j de regresso, junto da cerca, no momento de enxergar os c
amaradas encostados ao barraco, sua espera, que ele associou esse nmero ao dos hom
ens que viviam no Posto e quase supersticiosamente admitiu significar aquilo uma
flecha para o corao de cada um deles.
- Talvez seja bom sinal comentou Amaro, ao ser informado pelo Manga Verde. Pel
o menos sinal de que pensavam que no tnhamos ficado piudos com eles e amos voltar l..
.
Falava sem convico. E tambm a Bonifcio e a todos os outros homens que o ouviam parec
ia-lhes muito incerto o mrito que daquela ameaa de vingana ele tentava extrair por
to dbeis condutos.
Quatro dias depois, ao comeo da tarde, o amor-prprio de Genaro envaidecia-se e sim
ultaneamente alarmava-se ao ver que a sua ideia de suspender um ramalho do tecto
do barraco maior dava completo rendimento. Estavam na sala e o pequeno galho pri
ncipiou, de sbito, a agitar-se nervosamente. Tanajara levantou a agulha do gramof
one, Honrio e Moacir correram direitos fresta, os outros alpendrada.
Velho selvcola, de fartas plumas na cabea e com tantos acanitaras pendendo-lhe das
mos que se imaginaria, assim multicolor e assim de longe, um Pap Natal florestino
, aproximava-se da cerca, ladeado por mais quatro ndios, todos eles desarmados.
As contradies dos Parintintins, to evidenciadas nos ltimos meses, intrigavam tanto o
s homens, que mesmo os de esprito mais aberto candura, como Maximiano e Mariano,
delas se capacitavam facilmente. E aquela, agora em frente deles, perturbava-lhe
s os raciocnios mais ainda do que todas as anteriores, com seu qu de festiva.
Tinham-se agrupado na esquina do barraco e Raimundo, mesmo beira de Amaro e de Bo
nifcio, ambos silenciosos, previu:
com certeza h outros escondidos atrs deles, com arcos e flechas, para nos atacarem
.
O velho ndio olhava-os, muito quieto, muito digno sob o seu diadema carnavalesco
espera. Conservou-se assim parado dois ou trs minutos; depois, talvez por v-los to
imveis como ele prprio, pareceu desejar acenar-lhes, erguendo solenemente os braos
com os acanitaras que seguravam; e ento, vibrtil transparncia da luz, as variegada
s cores das plumas
brilharam mais ainda.
Ser o tuxua ? alvitrou Genaro, remirando-o,
mas logo Raimundo o contradisse:
Qual tuxua! Os chefes dos ndios usam outros capacetes. No sei, mas me parece ser o
paj.
A curiosidade concitava o esprito de todos eles. Amaro abanou a cabea perante os q
ue se ofereciam para ir at junto da cerca e quedou-se a cochichar com Bonifcio, se
m os dois retirarem de l os seus olhos.
O ndio voltara imobilidade e cada vez parecia emitir com mais fora aquela pacincia
anci que os
homens captavam.
Tanajara ouviu, finalmente, Amaro dizer a Bonifcio, quando se apartava dele:
you! O doutor at seria melhor chefe do que eu.
E a largas pernadas, cuja sombra parecia ir tesourando o imenso pano branco que
o sol estendera e corava no cho, avanou para as cancelas, enquanto Mariano, sempre
tardo em compreender, perguntava:
Ento no vamos buscar os rifles para proteger ele?
Amaro acercou-se do velho parintintim, tanto quanto o permitiam as duas sebes de
arame farpado:
Boa tarde, senhor. Veio ento fazer-nos uma visitinha ? Vem mesmo ser nosso a
migo ?
Sentia, como o Manga Verde dias antes, necessidade de dizer fosse o que fosse, p
alavras ao vento ele o sabia, enquanto as mos traavam no ar gestos cordiais e os s
eus grossos lbios sorriam afectuosamente. O ndio examinava-o com serenidade, to ser
eno que no seu rosto senil, todo lavrado de gelhas, nem
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O INSTINTO SUPREMO
sequer os olhos piscavam: fixava-lhe sobretudo a boca, como se placidamente admi
rasse o contraste dos dentes muito brancos de Amaro com a sua pele de negrura es
pessa.
Subitamente desatou a falar. Era uma voz aguda e seca, algumas vezes autoritria,
dir-se-ia a protestar, outras entrecortada por um rudo que lembrava a gua chiando
sobre o ferro em brasa.
O velho convergiu os olhos cansados para o mais jovem do seu pequeno squito, corp
o de Apoio rstico, um pouco sobre o baixo, mas bem torneado na nudez; e logo ele
se ps a mimar um arco disparando flechas e um tacape arrasando as cancelas. Depoi
s, estendendo o brao, apontou, ao longe, as maiores profundidades da floresta, l p
ara onde o Sol comearia em breve a declinar.
Compreendeu o velho selvagem que o civilizado nada percebera e, a um movimento d
a sua cabea, moo repetiu a gesticulao. Debalde Amaro pressentiu ser urgente adivinha
r o significado daquilo, em vo o raciocnio largou a toda a brida no mesmo rumo d lti
mo gesto; o seu entendimento fechava-se ainda mais luz do que dentro do fruto o
caroo. E crendo, humildemente, possuir Bonifcio uma lucidez superior dele, ia j vir
ar-se, ia j a acenar-lhe que viesse substitu-lo, quando o jovem se acercou com rap
idez da mata, deixando-o irresolute e suspeitoso. Viu-o, porm, simular um terado d
ecepando plantas, um machado a cortar rvores, finalmente as mos a acenderem fsforos
numa caixa imaginria; e desempenhava de tal jeito a pantomima, que dir-se-ia hav
er realizado um ensaio com tanto esmero como esse a que Nimuendaju submetera Honr
io, aquando das harmnicas.
Aquilo compreendeu-o Amaro facilmente, compreen^ deu-o mesmo sem o desejar, ness
a tarde afvel em que lhe parecera haver a Paz chegado, enfim, s portas da cerca fa
rpada. E resolveu que mais terados e machados para eles utilizarem em assaltos ao
Posto, como tinham feito h pouco tempo ainda, no daria.
As duas enfiadas de acanharas continuavam a des-
cer dos braos estendidos do velho, como suportes duns pratos de balana. E Amaro, a
ps a reaco inicial, imediata e negativa, hesitava agora. Sentia que a esperana de mi
nutos antes, embora encolhida e quase de todo cptica, agarrada a um jbilo que se
reduzira muito, persistia ainda viva, sob as cinzas de repente criadas, como uma
salamandra. Pensou em Bonifcio, na sua provvel concordncia, mas desistiu de cham-lo
, para no o expor tambm a um perigo que poderia efectivamente ocultar-se atrs da or
la florestal; e, entretanto, o moo parintintim, julgando que ele no havia percebid
o, prosseguia a ceifar plantas, a atacar ps de rvores tudo no ar. Tinha de deci
dir rapidamente, minguavam-lhe os segundos para mais vacilaes. E embora no conhece
sse outro Salomo alm dum judeu de Manaus, decidiu-se mesmo sem o conforto dum exe
mplo.
Raimundo! Raimundo! Traga um terado, um machado e dez caixas de fsforos. Depressa!
Traga tambm cinco espelhos.
Temendo no ser completamente ouvido pelo grupo especado junto do barraco, ergueu a
voz, duas vezes repetiu a ordem; e depois fez ao velho um sinal para
que esperasse.
Aps aquela deciso conciliatria, voltou a ficar jubiloso e esperanado, capaz de ofere
cer vinte jamaxis atulhados de brindes, se ainda restassem muitos ou se soubesse
exactamente quando o batelo regressava,
trazendo mais.
Mas agora o jovem parintintim imitava, com arte despachada, um homem a encostar
ao ombro direito a coronha dum rifle, a semicerrar o olho, ligando a mira ao alv
o, a disparar finalmente. "Pum! Pum! Pum!" acrescentava sem jamais sorrir, srio,
muito srio, grave
mesmo.
O regozijo de Amaro deteve-se.
Quando formos amigos, daremos rifles a vocs disse e tentou tambm explicar por mmica
a sua
promessa.
Via perfeitamente serem agora os ndios que no
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O INSTINTO SUPREMO
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H37
compreendiam nada e se tornavam soturnos, deixando-lhe aquela infelicidade de pe
rder talvez a ocasio, h tanto tempo esperada, de lhes obter a simpatia; e tudo iss
o ia ele lastimando-se por no saber falar nenhuma lngua alm da sua, tudo isso pel
a sua ignorncia, que em muitos dias o vexava. Insistiu nos gestos que j havia feit
o, insistiu de cara obstinadamente risonha, perante os cinco parintintins cada v
ez mais sisudos.
Raimundo chegou, deps os brindes sobre a terra e comeou a desenroscar, por ordem d
ele, os arames farpados que ligavam a armao da primeira cancela aos topos da sebe,
para a reforar. Os ndios haviam olhado friamente o terado, o machado, os pequenos
espelhos e os fsforos; e, sem palavra, quedaram-se muito atentos aos trabalhos de
Raimundo, como se aprendessem uma lio, to atentos que nem mesmo sorriram quando el
e se picou e meteu o dedo na boca, careteando exageradamente, enquanto o chupava
.
Abriram-se finalmente as cancelas, diante dos ncolas indiferentes, e Amaro acenou
ao velho, convidando-o a entrar e a receber os brindes, que lhe apontou para el
e bem compreender. Mas o velho no se moveu. Insistiu Amaro, secundou-o Raimundo,
sorrisos e cortesias partiam de dentro da cerca, uns a seguir aos outros, mensag
eiros alades saindo duma gaiola; em resposta colheram apenas um movimento de cab
ea, desconfiado, breve e negativo. Ento levaram-lhe os presentes.
O velho olhou-os de novo, com o p separou-os em grupos que pudesse contar e foi e
ntregando dezassete acanitaras, como se naquele singular comrcio o valor dum terad
o ou dum machado fosse o mesmo duma caixa de fsforos. Amaro via, com nova emoo, as
mos ancis, engelhadas, j um pouco trmulas, agirem na permuta; emoo por encontrar-se a
cinco ou seis palmos somente, quase em boa paz, com alguns desses temerosos e es
quivos selvagens, que se haviam furtado sempre a contactos com civilizados. E o
velho parecia-
-Ihe agora, mais do que nunca, um homem igual a ele; olhou os jovens e os jovens
pareceram-lhe tambm iguais a ele, quando era moo e se punha nu para mudar de roup
a ou banhar-se. E sentiu o desejo de faceciar amistosamente, de lhes dizer "No se
jam bobos, vamos acabar com isto, vamos ser amigos", como o Manga Verde afirmava
que dissera a um outro parintintim. Mas j o velho desfranzia a cara austera, ao
abrir
a boca de um s dente:
Pum! Pum! Pum! E, enquanto ia imitando os rifles, indicava Raimundo, a seguir o
barraco e erguia, como para oferec-los, os dois acanitaras que lhe brilhavam aind
a nas mos.
Amaro considerou que Raimundo, de rosto normalmente to parado como se prefigurass
e o do velho, carecia de chiste para o entremez que de sbito imaginara; e, virand
o-se para ele, disse-lhe com voz pressurosa :
V e se o Mariano tiver beiju, que mande um bocado; que mande tudo. Se no tem, trag
a bolachas, das doces. Mesmo se tem, traga bolachas. E tambm um pouco de missanga
. E diga ao Manga Verde que
venha com voc.
Raimundo ia j a distanciar-se, quando ele aumentou ainda a lista:
. Olhe, traga algumas latas vazias, das maiores. No tardou Raimundo a despachar-s
e, apesar de os homens encostados ao barraco o terem retido alguns instantes, ans
iosos de saber pormenores das cenas que viam ao longe. Amaro sentia-se, porm, j en
ervado de esperar em frente dos Parintintins, sorrindo-Ihes com a certeza de que
lhes sorria estultamente, sem nada lhes poder dizer, tendo tanto para lhes dize
r, quando ele voltou com o Manga Verde.
Traziam tudo quanto pedira e, deixando as latas vazias entre as duas cancelas, o
s trs avanaram para os ndios. Amaro ofereceu o beiju, Manga Verde as bolachas. O ve
lho recusou, abanando a cabea; os outros, tambm de olhar desconfiado, no fizeram me
smo gesto algum. Ento o Manga Verde, recuando ligeiramente,
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O INSTINTO SUPREMO
INSTINTO SUPREMO
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para abranger a todos eles, e cada vez de sorriso mate aberto, disse-lhes:
Vocs tm medo, Parintintins do diabo, mas aqu no h veneno, no somos patrcios do Mustaf
voa comer para vocs verem. E, tirando um pedao do, beiju, meteu-o na boca, masti
gou-o lentamente, cora alarde de satisfao, a ponta da lngua a passar sobre os lbios,
a cara sempre prazenteira, logo acompanhado no exemplo por Amaro e Raimundo. ,,
Em seguida dedicaram-se s bolachas, de que haviam enchido uma cuia, comendo-as co
m glutnicas expreso soes, tentando sugerir um sabor que condensasse todas as delci
as do Mundo. .,[\
Doces... Mais docinhas no pode haver-dizia o Manga Verde. a
Tinha ainda Raimundo uma das faces avolumadas pela massa farinhosa quando exibiu
, com modos <% rabe procurando deslumbrar o turista, a pequena caixa de missangas
diante do velho ndio, que sem hesitao a aceitou. Voltaram a oferecer o beiju e as b
olar chs e ento os cinco parintintins foram estendendo^ vagarosamente, as suas mos.
"10
Vendo-os, porm, de olhos mais atrados pelas estampagens policrmicas das latas vazia
s do que pela cuia que o Manga Verde levava de um a outro/ Amaro mandou Raimundo
traz-las para fora da
cerca.
Peguem elas! disse, com um gesto de grande) senhor generoso, como que influen
ciado pelo Mangai Verde. v
Parecia que os Parintintins compreendiam, pela pri* meira vez, as suas palavras:
os jovens lanaram-$6 prestemente sobre as latas, ergueram-nas, examina"" do-as d
e todos os lados, enquanto o velho, nico que no se movera, repetia, levantando nov
amente os acanitaras :
Pum! Pum! Pum!
Havendo Amaro j esquecido a razo porque chamara o Manga Verde, aquelas imitaes de ti
ros, to insistentes, de sbito lha recordaram; e em curtas
frases explicou, a ele e a Raimundo, o que tinham imediatamente de executar.
Recuaram os dois para as cancelas e logo os ndios viram o Manga Verde, que ficara
entrada, pr na cabea um dos acanitaras permutados, simular que tinha um rifle e
Pum! Pum! Pum! disparar sobre Raimundo, que se colocara do lado de dentro da ce
rca e caa estrebuchando. Manga Verde correu para ele, fingiu cortar-lhe o pescoo,
com a mo aberta e os dedos muito unidos, a irem e a vir, entre a cabea e os ombros
, como um serrote.
Ouviu-se ento, tambm pela primeira vez, os Parintintins gargalharem, num regozijo
infantil, que vencia o arame farpado e se espalhava pelo acampamento.
Estando Amaro igualmente feliz por haver tido aquela ideia, que o alteava na sua
prpria considerao, voltou-se para os selvcolas, figurou tambm um rifle e, erguendo o
ndice, abanou-o repetidas vezes, sempre
negativamente.
Pum! Pum! para vocs, no. S mais tarde, quando fizermos as pazes. E pronunciou "
mais tarde" abrindo muito a boca, esticando muito as slabas, como se as palavras
j fossem um eco, ressoando bastante
longe, inutilmente.
- melhor vir o Tanajara, que tem cara de ndio
alvitrou o Manga Verde.
Veio o Tanajara, enleado, olhos e modos tmidos, com emoo ainda mais forte do que a
de Amaro, por acercar-se, enfim, dos Parintintins.
Passou-lhe o Manga Verde, cariciosamente, a mo volta do rosto, que apontou aos ndi
os, mostrando-Ihes a semelhana que tinha com o deles. Colocou-lhe na cabea um dos
acanitaras, abraou-o depois, sempre com exagerado alvoroo cmico, sempre a compar-lo
aos selvagens e sempre a dizer-lhes: amigo! amigo! amigo! Sorriram os Parintinti
ns jovens, em contraste com a solenidade que o velho mantinha, e Amaro deu-lhes
o resto do beiju, as bolachas sobrantes, a prpria cuia
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II4I
onde elas jaziam. Indicou-lhes o Sol, gesticulou que voltassem noutro dia.
Comearam a retirar-se, muito calados, em fila indiana, ao longo da cerca, para os
lados da testa do acampamento. O velho ia frente e Amaro ainda admitiu que ele
se lembrasse de voltar atrs e de lhe oferecer os acanitaras que destinava a serem
trocados
por rifles.
Mas no se voltou e pouco depois chegavam, dt> interior da mata espessa, os sons m
etlicos duma das latas vazias, tamborilada cada vez mais distantemente. Dir-se-ia
voz indita na floresta, criando, medida que esmorecia, um mistrio indefinvel e incm
odo, como um funeral brbaro a efectuar-se ao longe, atravs das solides tremendas. <
\
Ao fim da tarde, quando Jarbas, de toalha ao ombro, descia descuidadamente a rib
anceira, prestes a entrar no banheiro, uma sbita rajada de flechas, partida da ma
rgem oposta do igarap, veio ao seu encontro e uma delas, j enfraquecida pela distnc
ia, ainda lhe tocou de leve no peito. Mesmo depois de se abrigar, sentiu outras
a embaterem no casinhoto fUfr tuante, enquanto Genaro e Honrio o preveniam "Ia al
pendrada, com quantas foras as suas vozes tinharai
No saia! No saia! I Despiu-se, banhou-se, tornou a vestir-se, devagar.
Na noite j nascente, o surdo bicar das setas nas paredes do banheiro cessou e Jar
bas ouviu Genaro libert-lo, l de cima:
Pode vir!
Quando chegou ao alpendre, Genaro afirmava ter visto, dali mesmo, alguns ndios su
rdirem entre os arbustos, durante instantes apenas, por detrs daqueles que flecha
vam; e ento parecera-lhe, pelos gestos e expresses deles, que censuravam o que os
outros estavam fazendo, de cara ora enraivecida, ora suando jbilo.
O batelo demorava. E um dia, na roda da bisca, Maximiano verbalizou, enfim, aquil
o que j havia pensado numerosas vezes sobre a tardana dos companheiros em voltarem
:
Quem sabe se no mataram eles ? H muito que os homens amassavam aquela hiptese e alg
uns at visionavam a cena. O batelo tardava com os novos abastecimentos e os franga
nitos que a galinha pedrs criara j haviam ilustrado quatro arrozadas, antes mesmo
de alcanar a juventude completa; depois os doze homens principiaram a comer barba
dos. Bonifcio garantia ser prefervel para a sade sujeitarem-se quele peixe fresco, a
pesar de malquisto, do que se alimentarem sempre de conservas de carne e de pira
rucu secos; e embora, forando o gosto, ele prprio desse o exemplo, a insatisfao mant
inha-se alapardada nos homens.
Uma tarde, a dupla expectativa quebrou-se quando o velho parntintim, a quem Raimu
ndo teimava em dar a hierarquia de paj, por lhe parecer que aparentava modos e ro
sto de feiticeiro, surgiu novamente s
portas da cerca.
Vinha acompanhado do jovem mimo que o escoltara da primeira vez, de trs ndios desc
onhecidos, muito desconfiados, todos j distantes da mocidade, e de quatro raparig
as, mais nuas ainda do que eles, pois nem as suas naturezas recatavam.
Amaro avanou rapidamente para as cancelas, com Raimundo ao lado, enquanto o rest
o do pessoal se encostava ao zinco do barraco, daquela mesma banda, e o Manga Ver
de dizia a Bonifcio, muito srio: Seu doutor, podia emprestar o binculo ? O velho ndi
o contemplou Amaro alguns instantes, com olhos largos, moles, mas profundos; ati
rou uma palavra seca para o lado e o jovem simulou flechar como da primeira vez,
agora indicando a outra margem do igarap, antes de apontar a seta. Logo renovou
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os gestos que traara na semana anterior, em direccf s entranhas da floresta, l onde e
la parecia justamente mais virgem e misteriosa.
Amaro julgou entender o comeo da representao.* * A segunda parte continuava obturad
a, deixando-o vd- * lante, os olhos a perscrutarem a orla da mata, sabendo" muito
embora que seria em vo a pesquisa. Decidiu^g,* fez sinal ao ndio que esperasse e c
hamou de longe a Bonifcio. sl
s um instantinho, doutor disse-lhe, quando * ele chegou. Me parece que no h ningum
escottx dido, mas no gosto que o senhor se demore aq!fi|b.' Veja se compreende
o que ele quer dizer... >> *
A dificuldade ramificou-se e avanou ento, com$ os cips, por sucessivos e recprocos e
maranhados tt confuses. ^
Tardando tambm o ndio a perceber que desejavam v-lo a repetir a mmica inicial, em to
descoiflchavados gestos os trs se aventuraram, que todos, <4 parte o velho, acaba
ram rindo do burlesco que et prprios fabricavam. E foram esses passos de farsa que
produziram rapidamente, sobre os refreamentos assim' demolidos, uma imprevista
familiaridade, viva huffi> nizao a nvel igual, que os brindes, mesmo os maife fascin
antes, no haviam podido criar. Mas quando, finalmente, o jovem os entendeu e lhes
satisfez a pretenso, Bonifcio desiludiu Amaro: T
- Parece querer dizer que no foram eles que fle'- charam o Jarbas, naquele dia.
Bem... Era isso mesmo que eu tinha pensado. Mas o resto ?
O resto no compreendo. Pode ser que esteja apontando o Sol para figurar a Lua, p
ela qual eles se regulam. Querer indicar um perodo de tempo futuro ?
Ser para fazer a paz l no centro do mato ? A voz de Amaro trazia simultaneamente dv
ida e
inocncia e Bonifcio encolheu os ombros:
Qual paz, se ele faz tambm meno de flechar ? As dedues esfrangalhavam-se, derrotadas;
as que
vinham substitu-las no conseguiam igualmente sair
para a luz explicadora que existiria ao fim do tnel. Instado por Amaro, Bonifcio v
oltou parede do barraco, l onde o binculo passava de mos para mos, de olhos para olho
s, enquanto na cerca Raimundo retirava os arames reforantes da ltima cancela e a a
bria, sem hesitao, aos selvagens. Como da primeira vez, o ndio velho recusou-se a e
ntrar.
O jovem mimou ento trs faces para os novos visitantes, quatro colares para as rapar
igas, para ele o chapu de carnaba de Raimundo, que imediatamente recebeu, com to cnd
ida alegria que logo aos
pulos comeou.
Amaro contou discretamente, pelo ngulo do olho, os acanitaras que o velho segurav
a e eram oito. Disse
a Raimundo:
Alm do que eles pedirem, traga quatro braceletes, quatro pentes e bolachas tambm.
Para o velho que h-de ser? Olhe! Pea ao doutor que mande dois daqueles livros com
figuras. O que tem, dum lado, ndios nus e, do outro, j vestidos. E tambm o das mulh
eres com saias bonitas e de muitas cores...
Quando Raimundo se aproximou de Bonifcio, tirava ele o binculo ao Tanajara, punha-
o a tiracolo e dizia aos homens, com uma voz meio sumida, mas quente de experinci
a prpria:
Se acabou! Isto faz mal, esto compreendendo ? Ao voltar, Raimundo preveniu Amaro
, enquanto
pousava no cho os terados.
So os ltimos. O que ficou l tem o cabo despregado. Bolacha Maria tambm s h estas a...
Trouxera a prpria lata, onde metera os brindes midos e agora destapava-a. Amaro co
meou por um dos livros. O velho tinha as mos ocupadas e, para as libertar, entrego
u logo os acanitaras. Pegou no tomo que se lhe oferecia, ficou a olhar para ele,
molemente, incerto sobre a sua utilidade. Amaro acercou-se mais e ensinou-o a f
olhe-lo; e os dedos dum contactaram com os do outro e as suas mos roaram-se, o que
sucedia tambm pela primeira vez. O velho pareceu interessar-se, um momento, pel
as figuras do livro, mas
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vivacidade alguma luziu nas suas pupilas. E no tardou a colocar o volume sob o br
ao, retomando a atitude solene e passiva do chefe que devia assistir ao decorrer
da cerimnia, apenas iniciada.
Amaro distribuiu os terados, acenou depois as raparigas, um aceno que aspirava a
ser delicado, mesmo terno, para que se aproximassem. Formavam assembleia parte,
timoratas, cochichantes, os olhos brilhando de curiosidade, a uns dez metros del
e; sorriram acanhadamente e no lhe obedeceram.
O velho lanou-lhes, porm, duas palavras comandativas e secas, como parecia ser de
seu costume quando se dirigia aos que o acompanhavam. E elas, ento, principiaram
a acercar-se, sempre com timidez indo* mada, sempre vagarosas, as formas arredon
dadas, os seios ainda erectos, o promontrio pbico saliente, a contrastar, pela sua
vegetao rala, com a exuberncia da floresta nativa, ali mesmo ao lado.
Amaro ofereceu-lhes os colares, em seguida os braceletes e, antes de lhes entreg
ar os pentes, exemplificou na prpria cabea como deviam us-los.
Elas tornaram a sorrir, um sorriso veludoso, quase maternal, que parecia comunic
ar-lhe ser-lhes intil, desde h muito, aquela lio. Olharam as mulheres das cidades, s
eus vestidos e sapatos, no livro que ele tanv bem lhes deu; miraram-se umas s out
ras e sorriram mais uma vez.
Por fim, Amaro ergueu a lata, carregou a mo de bolachas e foi deixando-as cair de
alto, como moedas tombando duma comucopia, sobre o mesmo fundo de onde as havia
iado. Gesticulou ao velho que as distribusse por todos, deu-lhe a prpria lata, que
ele segurou de encontro ao peito, com o brao arqueado sua volta, no jeito das fi
guras que nos antigos quadros religiosos transportavam relicrios.
At o ltimo instante Amaro aguardou, com um arsenal de desculpas negativas, antecip
adamente construdas, que o velho reincidisse no pedido que fizera da outra vez; m
as viu-o partir, comboiando os seus, partir devagar sem ter voltado a falar-lhe
de rifles.
INSTINTO SUPREMO
XII
fj batelo chegou, finalmente. A manh dealbava e Tanajara, que cumpria, com Raimu
ndo e Carolino, o seu quarto de vigilncia, vendo-o a fantasmar no rio, quela luz m
eio fusca, correu para o barraco, oferecendo a boa nova ao pessoal, que ainda dor
mia. Todos os homens que no estavam, como ele, de sentinela, em breve desceram a
ribanceira do Maici-Mirim, engolindo ou disfarando os ltimos bocejos
e de alma contente.
Filipe, Juvncio e Aristeu acenavam-lhes do batelo e Genaro, passando a vista por e
les, deu conta de que Dorival e Tito Boludo haviam regressado tambm. Associavam-s
e s manifestaes cordiais, embora de maneira mais fria, como era de seu feitio, sobr
etudo
o primeiro.
Cearense baixote, de ombros largos, cara sorridente, modos comunicativos, mesmo
susceptvel, dir-se-ia, de contar histrias para rir entre dois choros do violo, Jos G
arcia de Freitas, que vinha chefiar o Posto, j havia desembarcado quando eles che
garam. E do princpio *do barranco presidia, bem-disposto, como se houvesse dormid
o dum sono macio a noite inteira, descarga das mercadorias que o batelo trans
portara. Sua senhora est boazinha e me entregou muitas coisas para o doutor fora
m as primeiras palavras que dirigiu a Bonifcio, aps os cumprimentos.
Os homens que tinham ficado no Posto abraavam os que volviam, abraavam todos, meno
s Garcia e o ndio, hirto e srio, que ele tinha ao seu lado e no se lhes dissera ain
da quem era.
No me esqueci, no pense gritou Filipe a Mariano, antes mesmo de saltar do batelo.
As pimentas vm a, dois sacos cheiinhos.
Amaro ia relacionando o novo chefe com o pessoal, um a um, no torn desafectado q
ue era o seu.
O INSTINTO SUPREMO
1147
1146
O INSTINTO SUPREMO
Que pena no poder fixar os nomes de vocs todos agora mesmo! Mas trago a a lista e
logo j saberei quem so os donos deles. Seu Curt me informou que tudo gente boa, c
apaz de morrer pela nossa ideia, se necessrio for disse Garcia.
Jarbas ouvia-o, examinava-o de lado, enquanto G^- naro ciciava as suas impresses,
confrontando-o com Amaro. , r\
E os doentes ? perguntou Bonifcio.
Seu Curt foi para Belm. O Cavalcanti, em Humait, melhor. Os outros fic
aram em Trs Casas. Quase fortes quando samos; queriam voltar para aqui, no deixei.
<.'
Virou-se para Amaro e ps-se a justificar a demora-:
Estvamos sempre a pensar em vocs. Mas que fazer ? Seu Curt, quando chegou a Trs Cas
as, mandou logo botar um telegrama em Humait, para o doutxpr Bento. Lhe pedia qu
e fosse arranjando algum qie soubesse tupi e guarani, para falar com os Parintint
ims, que ele explicaria tudo quando passasse em Manaus. Passou e explicou. Mas f
oi difcil arranjar quem soubesse e estivesse livre para vir. Uns no podiam abandon
ar o servio, outros andavam em misses, longe.
Garcia bateu afectuosamente no ombro do ndio que se encontrava junto dele:
Quem estava mais perto, era este, o Mangori. Perto, perto, uma maneira de dizer.
Estava em Tef. Mandar vir ele, esperar vapor para embarcar, chegar a Manaus, esp
erar outro "gaiola" para o Madeira um tempo! Doutor Bento, eu, todos, andvamos p
reocupados. Quando desembarcmos em Trs Casas, seu Manuel Lobo tambm estava. At arran
jou uma lancha em Humait, para virmos mais depressa. No sei como arranjou, me diss
e que no foi fcil. Ela nos andou rebocando no Madeira, no Marmelos, no Maici, at al
deia dos Muras-Piras. Se no fosse isso, quando amos chegar?
Amaro interrompia-o, de sbito inquieto:
Os brindes esto faltando. Trouxe ?
Vm ali.
E cartas, h ? Era Genaro quem o interrogava desta vez, com um torn apressado e a
rdente.
H algumas.
Garcia puxou Amaro de lado, ao mesmo tempo que olhava a extremidade da cerca, l e
m cima, ao fim
do barranco:
E as coisas, por aqui, como vo ?
Ia abrindo cada vez mais o rosto e cortando frequentemente a exposio que Amaro lhe
fazia.
No me diga! bom. No me diga! bom mesmo! Depois me conta tudo.
Subiram a rampa, meteram terra limpa, direitos ao barraco. O acampamento dir-se-i
a diferente e excitado, mais excitado ainda do que em hora de navio uma dessas i
lhas, pequenas e longnquas, que a navegao s aborda de largos em largos tempos. A ter
ra, as plantas humildes, as bordas da floresta, pareciam contaminadas pelo mesmo
alvoroo dos espritos; o prprio arame farpado minimizava, naquela manh saborosa, a s
ua desagradvel significao.
Dos homens que haviam descido ao rio, somente Jarbas e Moacir tinham ficado no b
arranco, a auxiliar a descarga. No esperavam correio algum. Cartas de Belm, notcias
dos camaradas distantes, eram endereadas ao nome dum companheiro em Humait, que d
evia guard-las at eles regressarem.
Chegado alpendrada, Genaro deps sobre a mesa o saco que Tito Boludo lhe passara d
e bordo do batelo e ele trazia s costas, meio cheio e o resto do espao ocupado pela
s suas esperanas ali comprimidas. Garcia abriu-o e iniciou a distribuio.
No havia nada para Raimundo nem para Mariano; to-pouco para Carolino. Amaro recebi
a um ofcio timbrado do Servio de Proteco aos ndios e mais trs cartas; Honrio, Genaro,
aximiano e Tanajara, uma; Manga Verde duas, escritas por mulheres, adivinhava-se
pela letra, cartas que ele demorou a retirar da mesa, para que os companheiros
as vissem bem. Todas as outras se destinavam a Bonifcio, elas e os jornais, os li
vros e as pequenas caixas que Tarslia fora mandando
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INSTINTO SUPREMO
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para Trs Casas, por todos os vapores, antes de Garcia partir de Manaus. O prprio s
ogro lhe enviava um pacote. Tanto correio, tanto! e ele a sentir-se vexado ao pe
nsar nos que no haviam recebido nenhum, mesmo nos que tinham recebido algum, tant
o correio vindo da terra civilizada, a agravar aquele sentimento desolido voluntri
a e brbara em que todos eles viviam, com o cu a cobrir, como uma tampa, as paredes
verdes e atafegantes, onde habitava a Morte.
Os homens voltaram ribanceira, para cooperar no desembarque dos "novos abastecim
entos; e caminhavam devagar, lendo as cartas, com Genaro no meio, contente por o
cunhado, a quem confiara a sua velha me, lhe escrever que ela ia de boa sade, rij
a que nem macacaba.
O Crisstomo, o Rocha e o Etelvino mandam abraos para todos disse Maximiano, depoi
s de Jarbas lhe reler a sua folha de papel. Dizem que j esto bons at para pegar ona
e que tm saudades daqui.
Saudades ?! exclamou Manga Verde, acentuando ironicamente a palavra e
exagerando a sua admirao.
Est ali escrito. Quer ver ?
Para ouvir a exposio de Amaro, Garcia metera-se com ele no quarto de Nimuendaj, que
agora ocuparia. Somente Bonifcio ficara no alpendre, sentado grande mesa, perant
e as cartas de Tarslia. Umas vinte ou mais, no as contara ainda, com os sobrescrit
os volumosos, quase a rebentarem. Comeou pela ltima, confiada a Garcia, e continuo
u depois por aquelas que o correio deixara em Trs Casas.
E estava ele naquilo, com o esprito longe, quando do Maici-Mirim, l onde se descar
regava o batelo, subiram, ao mesmo tempo, gritos ditosos de selvagens e apstrofes
de civilizados, tudo de mistura com os assobios dos vigias, que enervavam ainda
mais a sbita balbrdia.
Garcia e Amaro surgiram logo porta, com os olhos meio surpreendidos, meio irreso
lutos, mas j a gara-
bulha, que to depressa estalara, havia terminado. Pouco aps, Genaro aparecia no ex
tremo do barranco, os braos estendidos, apoiados sobre os ombros de Filipe e Mang
a Verde e os ps acima do cho.
A flecha havia mergulhado na parte interior da
coxa, quase rente ao sexo, emergindo a ponta da banda
oposta entrada; e ele mesmo, cerrando os dentes,
dum safano apenas a arrancara.
Sorria quando Amaro, Garcia e Bonifcio foram ao
seu encontro e disse-lhes com ar resignado:
que tinha de ser...
Filipe trazia a seta e entregou-a a Bonifcio, ensanguentada como as calas de Genar
o.
Flecharam do outro lado do rio, por detrs do cerrado, e no vimos nenhum informou
o Manga Verde. S ouvimos os gritos de alegria, umas gargalhadas que me pareceram
iguais s daqueles que acompanhavam o velho no outro dia.
H muitas gargalhadas que se parecem umas com as outras ops Amaro, para responder
ao seu prprio esprito, que resistia a hospedar aquela admisso.
Dirigiram-se todos ao quarto de Bonifcio, onde ele voltou a examinar a flecha, a
limp-la do sangue para a analisar melhor, concluindo que ela, como as anteriores,
no estaria envenenada. E j desinfectava a ferida de Genaro quando Amaro reflectiu
:
Dali, eles podiam matar muitos de vocs, no sei porque se foram embora assim de rep
ente.
Talvez trouxessem poucas flechas aventou Garcia. No sabiam quando o batelo estav
a voltando, talvez pensassem que nunca mais voltava e no vinham
preparados...
Eram apenas suposies e ali mesmo as remataram, perante Genaro que se ia deitar, co
m a cara enrugada pelas dores e o pessoal aparentemente calmo, como se tudo j lhe
parecesse natural.
Bonifcio tornou leitura. "No sei se ests vivo ou se ests morto. E quando julgo que p
osso estar a escrever a um morto parece-me que you desmaiar". Havia tambm cartas
de amigos. Na que lhe escrevera,
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"51
Nimuendaj dizia: "Resolvi descansar uns dias end Manaus, antes de seguir para Belm
. Me sinto coift mais foras. Penso voltar a em Dezembro, mesmo que, os Parintntins
j estejam civilizados. Quero fazer fo meus estudos sobre eles, que considero essen
ciais".
A meio da tarde, todas as mercadorias arrumadas,) algumas caixas j mesmo abertas
e o batelo dentrp> da cerca, Jarbas viu Bonifcio sentado sombra dnfc> barraco, a le
r os jornais. E devagar se foi aproximando, espera de que ele erguesse a cabea. v
O doutor me empresta eles depois ? Entregou-lhe Bonifcio os que j lera, prometeu
dar-lhe, mais tarde, os restantes. n^j
Sentia-se deprimido. S as cartas de Tarslia o haviam ocupado duas horas bem compri
das e tormen* tosas. Parecera-lhe que as ltimas j no eram t arrebatadas e espontneas,
como as primeiras. Puretl cera-lhe, na enviada por intermdio de Garcia, qw{ alguma
coisa lhe impedia a sinceridade ardorosa que costumava ter. "Talvez para me ir
habituando a pei" d-la... Ou talvez pelo receio de Garcia ler a cartaq Mas se ela
lha confiou aberta, certamente sabia que ele a fechava na sua frente..." -b
Sempre a conversar, Garcia e Amaro vinham atra*-} vessando o acampamento, aproxi
maram-se e pediram-', -lhe para ir com eles. < ,-
Detiveram-se os trs junto das cancelas, Garcia olhou os arames que as consolidava
m, olhou para fora' da cerca, em silncio; depois disse, como para si prprio:
Ento foi aqui... Ergueu a voz: Se seu Curt> no se enganou, se o dialecto dos Par
intintins baseado) no tupi puro e se se assemelha ao guarani, a coisa estj resolv
ida. O Mangori se entender com eles.
Tornou a fixar as cancelas: s
Se voc concorda, me parece melhor tirar esses arames, abrir essas porteiras. D mai
s confiana a eles.' Abrir de dia, fechar de noite.
Amaro dizia que sim, que Nimuendaj tambm j havia pensado aquilo e ele estava espera
de que os ndios viessem outra vez.
Sentia-se que Garcia no queria vexar Amaro, sobrepondo-se-lhe imediatamente, tira
ndo-lhe de repente o
comando.
Voc fez aqui um bom servio, no h dvida; agora est tudo mais fcil. preciso que o dou
Bento saiba isso, o doutor Bento e os outros, l em
Manaus.
Na alpendrada, os homens confraternizavam com o ndio Mangori, a novidade desse di
a, apesar de o verem ganhar sempre na bisca que j travavam.
Ele no est fazendo mandinga, mesmo ? perguntava Tito Boludo a Honrio, seu parceiro
naquela
batalha.
com um sorriso grosso, Mangori alargava a sua cara arredondada, diferente da de
todos os outros, amenizando-a com ares de inocncia, enquanto ia lanando a nova car
ta sobre a mesa. Tito Boludo mostrava-se de bom humor, mesmo condescendente para
ele e Filipe, que o derrotavam no jogo; dir-se-ia mais ligado a todos os compan
heiros desde o seu regresso e, logo de manh, aps a chegada, comunicara a Jarbas, e
m torn de confidncia :
Andei pensando naquilo que voc me disse e
agora julgo que est certo.
Ao fim do dia, encostados ao barraco menor, sozinhos; Jarbas passava a Moacir os
jornais que tinha
sob o brao:
Parece que o Sodr vai ser o novo governador. Viveu muitos anos no Rio, mais democ
rtico do que o outro. Se for governador mesmo, decerto muda muita coisa. Outro c
hefe de polcia, outra gente. E ento talvez iremos poder voltar.
*
H mais j de uma semana sempre alerta, as duas cancelas se escancaravam, de sol nad
o a sol posto, diante da mata. Debalde os homens miravam e remiravam, centenas d
e vezes por dia, naquela direco: o terreno limpo, to limitado, to desprovido de hozi
-
J
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1153
zonte, entre a cerca e a floresta, iludia os seus olhos teimosos, parecendo mais
limpo ainda do que habitualmente. Podia um carro rodar ou os bateles serem arras
tados pela ampla entrada, que o espao chegava; mas nela divisava-se apenas, quand
o o sol estava a pino, a sombra rendilhada, levemente trmula se corria brisa, do
galho intruso que grande rvore fazia avanar sobre o acampamento.
Souberam que o batelo tinha voltado e que havia outra vez mais gente arriscou A
maro, ante o silncio de Garcia e o olhar incerto de Bonifcio, que ultimamente pare
cia mais profundo do que antes.
Uma tarde, porm, quando modorravam a sesta, os silvos dos espias foram logo copul
ados por um rumor de vozes femininas, que dir-se-iam triladas e venturosas. Copi
oso bando de parintintins, caminhando em cortejo, na cauda mais de vinte mulhere
s de braos no ar, agitando acanitaras, to vistosos que sugeriam de longe as prprias
araras que lhes haviam fornecido as plumas maiorais, ofereceu-se aos olhos cont
entes do pessoal.
Feliz tambm, mas homem prtico como as suas panelas, Mariano, vendo aquele espalhaf
ato, perguntou com ar ponderativo:
Para que serve tanto capacete ? Onde vamos pr tudo isso ?
Levamos para os coronis dos seringais respondeu-lhe o Manga Verde, muito srio e d
igno, como se lhe falasse duma deciso j tomada.
Entretanto, Garcia pensava ser mais prudente ele ir apenas com o Mangori, no acon
tecesse haver cilada e o Posto ficar sem nenhum chefe; lembrou-se, porm, de que o
s Parintintins desconheciam-no ainda, que a presena de Amaro era necessria e fora
m os trs.
Encontraram o velho com aspecto mais derreado do que das outras vezes e o jovem
da mmica junto dele, fixando muito atento o Mangori, parecendo at com um lume de f
erocidade ardendo no fundo das pupilas, ao verificar que ele era ndio tambm. Amaro
no reconheceu nenhum dos outros, uns de modos tmidos, alguns orgulhosos, cabeas to
levantadas que
as plumas pendentes dos diademas se lhes entortavam sobre as costas; e todos cal
ados e imveis, ao lado das mulheres, que de repente haviam suspendido o seu regoz
ijo; to calados e inteirios como se aguardassem uma sentena pronunciada do interior
da cerca.
Garcia acenava-lhes as cancelas franqueadas, enfeitando a sua cara optimista com
sorrisos sucessivos, que iam duma jucundidade esperta lisonja calculada, enquan
to ordenava a Mangori, em voz baixa e rpida: Diga a eles que entrem, que estejam
vontade, que somos amigos e viemos fazer as pazes.
Verbalizou Mangori a traduo e foi-lhe menos difcil do que julgara. Verificou que o
dialecto da sua tribo, fixada no alto Riozinho, se aparentava efectivamente, pel
o lado -do tupi puro, com o dos Parintintins, conforme Nimuertdaj previra quando
passara em Manaus, quebrando o longo mistrio.
Diz que no querem entrar, que tambm so amigos, mas s entram para outra vez. Hoje no tm
tempo, vrn s pegar os brindes.
Pergunte o que ele queria dizer outro dia a seu Amaro, quando o moo fingiu jogar
flecha e indicou o Sol e esses fundes para a tornou Garcia.
Sempre com aquele dente insulado a surgir e a esconder-se, o velho falou ento dem
oradamente, por vezes num torn vivaz que lhe retirava a solenidade, outras parec
endo imitar uma discusso, entre ele e algum que no se encontrava agora presente.
Mangori transmitiu:
Diz que os Parintintins j no esto pensando todos da mesma maneira, que muitos j deix
aram as suas malocas e foram viver longe. Os que vieram deitar abaixo a porteira
, foram embora na outra lua. Os que flecharam o banheiro e o batelo e outros que
tambm andaram por a atacando, foram ontem. Esses no trn confiana nos civilizados, no q
uerem mudar de vida, querem ser selvagens mesmo.
No faz mal interrompeu Garcia, sempre bem disposto. At bom! Agora deixam a ns em
paz e mais tarde so estes que vo civilizar eles.
37 Vol. Ill
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O IN
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Bem aderido ao seu papel, Mangori ia traduzindo, 1 secretamente satisfeito com
a superioridade que tinha sobre a ignorncia de Amaro e de Garcia: 'Jura
Diz que ele e muitos outros querem fazer.^s pazes, mas desconfiam de ns, no querem
perderias suas terras e ns somos maus. )
Lhe explique que no precisamos das terras 'delas! para nada. Temos muitas, no pr
ecisamos de ma> Lhe explique que isto se chama Brasil e que o Brpsii uma terra que
parece no ter fim, que so precisas muitas luas para ir dum lado ao outro, que se e
le>fossf> a p no chegava a sua vida para conhecer toda' ela e se fosse de canoa ta
mbm a vida no lhe chegaitD para andar em todos os rios que ela tem. "(ff$
Enquanto Mangori comunicava aquilo, num ditognjt manso, cada vez mais correntio,
Garcia sussurrante^" Amaro: 'is&s.
Mande trazer os brindes. Voc no volte. Qjj$ no esqueam as duas enxadas. Espere a...
iimp
Tornando a olhar as ndias de largas ancas, vejitcpf dilatado, longos seios cados,
que o peito ameigava da parte interior, como os mames quando nascem miait4 encost
ados uns aos outros, Garcia fez o seu juzo deue tivo e acrescentou. . r
Mande tambm brinquedos para crianas. Muitos? Mangori prosseguia. O velho escutava-
o sem nunegf
alterar a sua expresso, de novo circunspecta e impas" svel, como se ele falasse so
zinho para o tronco incite ferente duma rvore. Os outros, porm, entreolhavain-se,,
parecia que surpreendidos, parecia que desejando comentar a imensurabilidade da
terra e os seus rios fabuloabe^ que eles ignoravam. Os mais ousados balbuciaram
pen? guntas, baixando os olhos; e, quando Mangori temdp nou, somente o velho pe
rsistia na sua imobilidade"^ mudez, o corpo manchado pelas sombras que o aivO**
redo sobre ele derramava. ' "^
Diga que a civilizao tem muitas coisas bonitas^ que eles no conhecem, nem podem pen
sar que h; e que ns queremos que eles tenham tambm essa& coisas, para serem iguais
a ns e a todos os outro"
;A esto civit muitos ndios que laj ve.de
^M^~&"&
Homens. "W^ todos ] esto H - indw,
Uzados, q"e,.^to a eles; que Bocejam ^{]
r5f%"siri^rqr"s \tt"&~"""'
vapores e carros q dia int IO e logo
n^^ssr^s ***"qtte
expediu al%n08 ' rosto: nio precisam de
al a &S C: t^rexpS^ser
vir deS?"-rrX- -rSSlieate,
zadS ^&tfSB*?%ssz%.
- s^TfS^^5- pMecelT
mentos da sua p v tequese. esttua de
de boa tmpera para a idava de que a dida
dC E quando Garcia ja^. PelosUa^e a utilizar
sasss^r;:
vras. . ,.._ no tem confiana em
vras.
^Diga ^ ^ compreendeu, be: a nao
s tt^^Ejt-s ^ist;
que so anos.
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haver'mais. A gente quer a paz e o nosso chefe cants todas as guerras. Diga que q
uando eles j foremicvilizados, ns daremos rifles e iremos fazer juntos mujtafe caada
s. h[
Enquanto Mangori interpretava a nova meisagem, Garcia entreviu, sobranceira ao ar
telho dum dos > ndios, uma grande e nojenta ferida, que logo considercrar a sua m
ais preciosa descoberta desde que desembaccaara no Posto. No s grande, mas tambm ar
roxeada^ bordas a desfazerem-se em podrido, como as do& velhos mendigos que outro
ra ladeavam os caminhos condi"centes aos templos, em dias de festas religiosas.
B nunca o mal dos inimigos de Garcia lhe fornecera to repeitm& satisfao como a vista
daquela chaga, gudio-oeuto de mutucas, que at aos seus olhos repugnava. i
Os brindes j estavam ali, acumulados atrs doaseteira. Raimundo agarrou uma das enxad
as, dobroarisa, cavou no cho escuro do acampamento at Garcia 'daw "Basta". Pegou n
os inhames trazidos dos palnw afe horta que Mariano cultivava ao p da cozinha,, ftt
tchou-os na terra, que levemente aplanou, ao teuniiaior a lio. ."f>W<f
Diga a eles que venham buscar. sh & Mangori disse, mas eles no vieram. -"fiiv
Ponham tudo isso l fora tornou Garcia. Eram copiosas as ofertas, desde as clssica
s s no**-
dades das enxadas, deputaes de lojas de quiriqui* lharias e de armazns de ferragens
, imbricao de fopmas e de cores, que Raimundo, Tanajara, o prprio Mangori, transpor
taram lestamente e com jeito 'va^- rativo expuseram ao lado do velho. }t
Ento, abandonando suas atitudes coibidas, ndrps e ndias se vergaram e se lanaram rapi
damente aOB utenslios e bufarinhas, com af irreprimido, uns sobi* os outros, como
os leites por cima dos irmos, oiquista duma teta, logo que a me se deita. To aoda/-
ente se conduziam no assalto ao tesouro de pechisbeque, que ainda depois de o ve
lho lhes haver falado em torn exprobativo, duas mulheres disputavam mesmo colar,
cada uma puxando-o tanto para si, que
o ho se partiu e as contas desapareceram entre a folhagem morta, ansiosas de paz
.
Diga a ele que ns temos um mdico, que pode tratar a ferida daquele parintintim. E
tambm outras doenas deles. Explique o que um mdico.
Mangori explicou, o velho pareceu hesitar, meteu-se em dilogo com o selvcola apo
ntado, que por fim
transigiu.
Diga que preciso ele ir ao barraco, para tratar l.
Tornou o velho sua perplexidade, volveu a falar
ao ndio e Mangori traduziu que o ndio no ia. Garcia virou-se para Tanajara:
Pea ao doutor que venha, que traga remdio,
que uma ferida m.
Tanajara partiu e logo voltou com duas cadeiras, que deps perto das cancelas, do
lado de dentro.
Bonifcio no demorou tambm e trouxe a sua maleta de jornada, miniatura de ba, com abe
rtura e
ala no dorso.
Diga a ele para entrar.
Mangori verteu as palavras de Bonifcio, mas o parintintim, depois de breve hesitao,
respondeu-lhe
que sassem eles.
A, debaixo das rvores, h sombra, no se v bem a ferida; aqui melhor justificou Mangor
i, por sua conta desta vez.
O indgena tornou a vacilar, fixou o velho com olhos de consulta e, perante o seu
gesto lento, veio andando, muito vagaroso e ainda desconfiado.
Bonifcio indicou-lhe que colocasse o p sobre uma
das cadeiras e em cima da outra abriu a maleta. Mas
logo que achegou ferida a compressa embebida do
soluto anti-sptico, o ndio retirou violentamente a
perna, indignado pela ardncia que sentira. Debalde
Mangori lhe falou da brevidade do incmodo, em vo
tentou esclarecer-lhe a remota ignorncia; os punhos
dele haviam-se cerrado, a boca tremia-lhe de clera,
os olhos, muito abertos, chispavam. Ia j a abalar,
talvez a vingar-se, como pensava Raimundo, seguin-
* Vol. Ill
US"
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do-lhe os movimentos e pronto a intervir, quando Bonifcio, arregaando a manga da s
ua blusa e pegando o bisturi, a si prprio se golpeou. Instantaneamente ao dio se r
eunira o jbilo nos olhos grandes do parintintim, ao ver o sangue aflorar; uma volp
ia cruel, brilhante, oleosa, dir-se-ia escorrer-lhe por toda a cara. Bonifcio mir
ou-o indulgentemente, enquanto passava e repassava o algodo com desinfectante sob
re o brao; e Garcia, Tanajara e Mangori ouviram-no dizer, com uma voz de onde par
ecia manar, simultaneamente, uma antiga melancolia, unida a um secreto e pequeno
orgulho:
Como ns ramos!
Cortou alguns palmos de ligadura, umas polegadas de adesivo e estava a pensar-se
quando o velho atravessou as cancelas e se foi aproximando para assistir de per
to quilo, pela primeira vez rompendo a fronteira que h tantos milnios separava dois
tempos e os dois grupos humanos que ali os representavam.
Quando o selvagem consentiu, finalmente, que o mdico lhe limpasse a chaga e esten
desse de rebordo a rebordo a pomada, os olhos de Garcia no se despegavam das mos d
e Bonifcio, tanto se convencera j de que o desaparecimento daquela ferida asqueros
a seria mais til e decisivo para a sua misso do que todo o oiro da Terra.
Que volte amanh, para fazer outro tratamento. E que no meta o p na gua, nem no tijuc
o disse Bonifcio.
Estava ainda Mangori articulando a recomendao e j o parintintim se apossava das tes
ouras, da bisnaga da pomada, dos rolos de gaze e do adesivo, de tudo quanto os s
eus dedos sfregos podiam de momento capturar.
Previna ele de que s o doutor sabe tratar da ferida interveio Garcia. E com aleg
res gestos, como se a um folguedo se entregasse, das mos ladras foi retirando o q
ue elas j fortemente encerravam.
O ndio pareceu conformar-se. Tomou o caminho da porteira, olhando a polaina branc
a que a ligadura
formava acima do artelho, l onde as mulheres da sua tribo usavam outras semelhant
es, mas escuras, feitas de embira, o que levava a sorrir os demais parintintins,
aglomerados fora da cerca.
O velho no paj. Se fosse, no deixava pr remdio de civilizados; queria ele tratar com
feitiaria comentou de sbito Raimundo, destruindo a sua prpria hiptese.
Garcia recorreu novamente a Mangori:
Pergunte a ele se os Parintintins no tm chefe. O velho ia j a retirar-se, sem gesto
e sem palavra.
Viram-no deter-se, olh-los de novo, responder com voz cansada, pela primeira vez
ligando a sua austeridade a um fundo que soava a triste.
Est dizendo que tm. O chefe era irmo dele, mas morreu h pouco. Ele era o segundo che
fe, mas no quer agora ser o grande chefe, porque tambm est velho. Quem vai ser, daq
ui a trs luas, o filho
dele.
Mas ento os Parintintins no obedecem todos a ele? Esses que andam por a a flechar a
ns?
Depois de ouvir Mangori, o velho ps-se a falar com um torn mais deprimido ainda d
o que h pouco.
Diz que os da maloca dele e de outra que est perto obedecem. Mas os das que esto
longe, umas vezes obedecem, outras no. Diz que os moos de agora no so to bons como os
antigos. Quando vivem longe, no respeitam o chefe e s querem fazer a vontade dele
s. H dois grupos. Aqueles que foram embora arranjaram outro chefe mais novo, um c
hamado Hainambi.
Bonifcio sorriu: havia tambm nos selvagens a incompreenso entre as geraes ?
J no exterior da cerca, o velho acenou aos seus companheiros para que entregassem
os acanitaras. Garcia correu para ele, abraou-o, com palmadinhas o festejou nos
ombros, todo efusivo perante aquela solenidade renascida e imvel; e era como se a
braasse um dos esteios da alpendrada.
Diga a ele que hoje no so precisos acanitaras. Hoje damos todas essas coisas, sem
receber nada.
* " _ Vol. Ill
u6o
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1161
Pareceu no compreender logo. Mangori repetiu e ele quedou-se ainda perplexo. Algu
ns dos diademas jaziam no cho, esmagados durante a luta pelos brin.^ ds; outros mo
stravam-se encarquilhados, quase desr feitos, nas mos que os seguravam. O velho e
scolheu os melhores, entre os intactos, e insistiu, antes ds partir, em oferec-los
a Garcia.
O ndio voltou. A princpio com guarda-costas, quatro robustos mocetes, via-se que de
cididos a defend-lo, embora viessem desarmados; Aristeu julgou ver, porm, como da
primeira vez, quando estava de sentinela, outros mais, com arcos e flechas, desl
izando entre as rvores. .
O tratamento realizava-se ainda ao ar livre. Mas os selvcolas distraam-se das mos d
e Bonifcio, os seus olhos curiosiavam para o lado do barraco, seguindo os moviment
os do pessoal, os homens que entravam, os que saam ou se aproximavam deles, sempr
e poucos, conforme Garcia ordenara, para no os assustar. Mangori ora lhes ministr
ava explicaes, tentando deslumbr-los, ora os interrogava sobre os seus nomes, a vid
a na maloca, os seus costumes, as plantas que cultivavam) os xitos na caa e na pes
ca. Eram todos guerreiros e o da ferida chamava-se Emboacari. Tanto lhes falara
do que havia no barraco, das surpresas que l os esperavam, das maravilhas que no co
nheciam, que ao quinto dia entraram.
Garcia meteu um disco no gramofone, que eles ouviram sem comentrio, os olhos muit
o abertos, subindo e descendo da agulha para a campanula que tinha voz humana e
cantava. Bonifcio mostrou-lhes uma fotografia do Posto, outra do pessoal, indicou
a mquina que as fizera e, por intermdio do Mangori, ofereceu-se para os fotografa
r tambm. Trouxe-os porta, ensinou-lhes a regular o binculo, na direco da margem opos
ta; e viu-os entreolharem-se, sorridentes e admirados. Por fim, diante da pratel
eira dos
medicamentos, Mangori afirmou-lhes que serviam no s para curar feridas, mas muitas
outras doenas, e que deviam acorrer imediatamente ao Posto, quando
as tivessem.
sada, rentando a porta da cozinha, Emboacari estendeu o brao, agarrou uma baci
a e, perante o olhar suspenso, meio interrogativo, meio protestante de Mariano
, prosseguiu com naturalidade o seu caminho. Recuperou-a Mangori, j na alpendrada
, em troca de outros presentes e copiosos argumentos sobre a falta que o objecto
fazia ao cozinheiro, um homem que no podia viver sem aquilo.
Bonifcio fctografou-os, eles esperaram que a prova ficasse pronta e com ela, pass
ando-a de mo em mo e falando muito, ao fim da tarde partiram. E ento Garcia conside
rou que j se podia efectuar o tratamento no quarto de Bonifcio, mas que seria pref
ervel, aps aquela experincia, continuar a faz-lo ao ar
livre...
A ferida tardava a cicatrizar, dias havia em que a preguiosa parecia no ter avanado
nada e os homens do acampamento andavam to interessados na sua evoluo como se ela
roesse a carne deles prprios. Emboacari passara a vir testa de ndios ainda ali d
esconhecidos, que pretendiam entrar no barraco, escutar o gramofone, ver as coisa
s e os seres avolumarem-se atravs do binculo e serem fotografados, todos rendidos
ao fascnio do maravilhoso. E quase sempre, ao retirarem-se, um deles tentava lanar
a mo, dir-se-ia com inocncia, sobre algum dos objectos que os deslumbravam.
Finalmente a cicatrizao terminou. Vendo essa nesga da sua pele j de todo lisa,
como que passada a ferro, com leve brilho a esmalt-la, Emboacari largou aos salt
os, acompanhados de gritos monossilbicos; e logo, com o rosto ainda dilatado de jb
ilo, deteve-se em frente de Mangori, proferindo algumas palavras mansas, qu
e pareciam de cortesia ou solicitude. Ele diz que vai trazer outro amanh. Foi um n
dio da sua mesma gerao, com um tumor
II2
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1163
no pescoo, bem maduro, j suporejante, que ele trouxe na tarde seguinte. E to feliz
ficou Garcia ao ver os dois, que se meteu no quarto, acendeu e se ps a fumar, com
satisfao nunca esperada de tal origem, o ltimo charuto que lhe restava, enquanto B
onifcio se ocupava do doente.
Cinco dias depois, ia Dorival retirando dos dentes as fveras do almoo, servindo-se
dum pequeno fragmento de madeira, e discreteando indolentemente com Honrio, beir
a das mandiocas e dos inhames de Mariano, quando ouviu e ao mesmo tempo viu a gr
ande invaso. Uma centena de parintintins, mais talvez, homens, mulheres, vrias cri
anas, rompera da mata, caminhava para as cancelas e transpunha-as com ar folgazo.
Alguns olhavam ainda esquerda, direita, incertos, meio curiosos, meio precavidos
; outros acenavam, como de terra familiar, aos homens que na alpendrada iam surg
indo rapidamente.
"Era, sim, gente de mais, mesmo sem arcos e sem flechas, mesmo trazendo os filho
s" pensou Garcia, depois de Dorival lhe haver dito que duas ndias, ao sarem da fl
oresta, se tinham voltado e pareciam falar com algum que l ficara escondido. "Seri
a uma baguna do diabo e quem poderia se movimentar e se defender se depois daquel
es, com aspecto de inofensivos, viesse um bando armado, para acabar de vez com o
s civilizados ?">
Os olhos de Garcia procuraram o velho entre a multido de parintintins e dificilme
nte o acharam: desta feita no vinha frente, vinha no meio e dele s metade da cabea
se divisava.
Seu Amaro, mande dois homens para o meu quarto, com rifles; talvez o Raimundo e
o Caroline, voc veja. Que se fechem por dentro, que trepem fresta, que faam duas d
escargas para o cho se eu gritar que disparem.
Os selvagens detiveram-se no centro do acampamento. Garcia e Mangori separaram-s
e do pessoal agrupado junto do barraco e avanaram resolutamente para eles, colhend
o os sorrisos de alguns, a expectativa
de outros e os olhares muito vivos das mulheres, que os examinavam da cabea aos ps
.
O velho, seguido de mais cinco macrbios como ele, todos de ar e passos graves, co
m seu qu de sacerdotes extravagantes, despidos e empenachados para se dirigirem a
o templo, contornou o magoto de ndios e veio postar-se em frente de Garcia e de se
u intrprete. As mos ancis, bem grosseiras, todas rugosas mas firmes, seguravam uma
rede de fibras, avermelhadas pela substncia tintorial do urucueiro e cuidadosamen
te dobrada, que ele ofereceu a Garcia, com a dignidade de quem entrega, para cer
imnia prxima, um objecto cultual. E falou depois, dirigindo-se sua segunda boca, a
Mangori, que o ouviu respeitosamente.
Diz que vem aqui toda a gente da maloca onde ele vive e de outra que fica ali pe
rto. Que todos vm para ser amigos. Os velhos so os chefes das famlias l da terra del
es. Que os das outras malocas viro mais tarde. Disse agora que todos querem ver o
barraco e as coisas bonitas que ns temos. Aquele de grande cangote, aquele que es
t ao lado do Emboacari, que vai ser chefe. o filho.
Diga que eu lhe quero falar. Pergunte o nome
dele.
Chamava-se Dia e teria quarenta anos o seu corpo entroncado, cara austera como a
do pai, braos fortemente musculados e, por contraste, as pernas demasiado finas,
caractersticas de todos os Parintintins. Aproximou-se, Garcia brindou-o com muito
s sorrisos afveis e palmadinhas nos ombros, como era de seu costume; desejou-lhe
felicidades na prxima soberania, prometeu-lhe amizade e cooperao. E mais uma vez se
ntiu prazer naquele dia, ao v-lo, enfim, sorrir e garantir-lhe que seria amigo ta
mbm.
De novo Garcia se serviu do intrprete: Vamos mostrar a eles o barraco. Diga
que venham andando comigo.
Os velhos tomaram a dianteira, com Garcia e Mangori dos lados, o futuro chefe ao
centro. E a brbara procisso, que as plumas dos diademas selvagens sobre-
ii4
O INSTINTO SUPREMO
pujavam? resplandecendo ao sol tropical, avanou lentamente atravs do acampamento,
num silncio excitado, cheio de estranhezas ainda no desvanecidas, um silncio largo
e forte que a oprimia.
Reunido em frente do alpendre, o pessoal adivinhara a rendio tanto tempo desejada
e que lhe parecia agora j confusa e longnqua, com outro valor mais intenso a sobre
por-se-lhe no prprio momento em que ela ocorria; agora que tudo se ia concentrand
o nos olhos dos homens famintos de amor e nos corpos inteiramente nus das mulher
es, medida que o bando, devagar, se acercava. Elas estavam ali, forjas da esp* ci
e, instinto maior logo aps o da conservao, exultante fora impelidora para todos os cu
s e todos os abismos e era como se no estivessem! Vinham ali to pertinho, reais, a
utnticas, os seios muito pronunciados, aS ancas muito arredondadas, os sexos vist
a, e era como se pertencessem ao reino de Onan, como se fossem apenas imaginao er
a como se no existissem! Genaro, apoiado bengala que Maximiano improvisara, rangi
a os dentes; e uma nsia de subjugao violenta, quase feroz, corria desaustinadamente
no sangue em fogo de Tito Boludo, enquanto elas, ainda timoratas, olhos baixos,
passavam sem dar por eles.
Garcia pediu a Amaro que ficasse de vigilncia, c fora; pediu a Bonifcio e a Jarbas
que o acompanhassem e viu logo tambm o Manga Verde a seu lado, sem nada lhe ter p
edido.
No cabendo todos l dentro, levaram primeiro Dia e os velhos, tambm a Emboacari, que
por sua conta lhes ia apontando os objectos e distribuindo esclarecimentos, muit
o satisfeito, parecia mesmo um pouco vaidoso de j lhe ser familiar tudo quanto se
encontrava no barraco.
Perante as trs supremas tentaes, Garcia prometeu, com ampla bonomia, colocar o gram
ofone no meio do acampamento, para que a bandada inteira o ouvisse; afirmou que
o binculo passaria por todos os olhos que quisessem ver aquele milagre, l fora tam
bm; e Bonifcio, com os braos sobre a mquina, sempre
O INSTINTO SUPREMO
1165
montada no seu trip, declarou que fotografaria colectivamente os visitantes,
para recordao daquele
grande dia.
Os mais idosos examinavam tudo com um olhar que dir-se-ia indolente, s pedindo ex
plicaes sobre as caixitas dos medicamentos; mas em alguns adivinhava-se, pela comi
ssura dos lbios e pelos dedos coando a cabea entre as plumas, a excitao que lhes vibr
ava nos espritos. Pareceu a Garcia que o dormitrio do pessoal os deixara desiludid
os, que os utenslios da cozinha, bem limpos e alinhados, lhes haviam interessado
mais; e quando, enfim, j se retiravam, sempre com o futuro chefe frente deles, qu
edaram-se um momento a contemplar as espingardas que subsistiam na parede, a um
lado e outro da porta; a contempl-las com um silncio diferente do que haviam suste
ntado at a.
Saram sem comentrios e ento comearam a entrar ndios de outras idades, algumas mulhere
s tambm e, entre elas, Manga Verde, que pelos seus corpos se roava discretamente.
S oito de cada vez! disse-lhe Garcia. com o Manga Verde j eram nove; ele, porm, de
olhos febris e lbios hmidos, contava de outra forma. Estendeu o brao horizontalmen
te, para a ombreira oposta, como trave em passagem-de-nvel, cortando o acesso; es
tendeu-o, com um sorriso meigo, precisamente sobre os seios duma ndia que ia a en
trar, jovem e
capitosa.
Mas j por baixo do obstculo passava Mariano, muito aflito, para fechar a cozinha.
Era excesso de zelo, porque Mangori, aps haver explicado aos Parintintins que o m
elhor da festa seria apresentado ao ar livre, viera colocar-se porta, substituin
do o Manga Verde. E com suaves modos, diante de Jarbas, que gozosamente sorria d
o conceito que os selvagens tinham sobre a propriedade dos civilizados, ia retir
ando das mos dos ndios, prometendo-lhes futuros similares, os chinelos de Bonifcio,
a guilhotina de migar tabaco, o terno que Filipe reservara para os grandes forrs
,
n66
O INSTINTO SUPREMO
nunca surgidos ainda, bem como o relgio de parede, redondo* como vigia de navio,
que uma ndia transportava, s por ser objecto desconhecido.
com tantos parintintins espera, extravasando da alpendrada para a esquina do bar
raco, alguns mesmo trepados sobre a mesa, a rirem tambm, Garcia reflectiu que a vi
sita de todos demoraria muito e o melhor seria pr j o gramofone a tocar.
Transportou-o Manga Verde, a caixa aninhada no brao esquerdo, a campanula repousa
ndo sobre o ombro, com a bocarra voltada para quem o visse por detrs; e na mo dire
ita a coluna que lhe servia de suporte e de trono. Por entre os Parintintins ava
nou, alegre e orgulhoso, crente de que desse modo participaria, mesmo que pouco f
osse, do prestgio que a mquina ia exercer sobre o esprito inocente das ndias, logo q
ue funcionasse.
J os velhos e Dia o rodeavam, ao mesmo tempo que do abundoso grupo se desuniam e v
inham aproximando tambm alguns jovens.
Tome conta, seu Amaro, que eu you buscar os discos.
Regressou com Filipe, que trazia a mquina fotogrfica, seu pano escuro e seu trpode;
e com Honrio ostentando, como um almirante, o binculo a tiracolo. Entretanto, Man
gori apressava a visita dos curiosos, de novo lhes afirmando que o mais bonito,
aquilo que valia realmente a pena ver, j se encontrava l fora, ao sol, bem ao alca
nce dos seus olhos.
O gramofone comeou a tocar e, volta, o nmero de ndios a crescer. Era um maxixe, agi
tado, remexido, do qual Manga Verde logo se arrependeu, ao verificar que no estav
a ainda ali nenhuma ndia; e, suspendendo a agulha, meteu rapidamente outro disco.
Os velhos escutavam a cano, olhavam o aparelho e iam trocando as suas opinies em v
oz baixa, muito discretos. Mas assim que o cantor emudeceu, Manga Verde, sempre
de vista ao longe, a reparar se era macho ou fmea quem saa do barraco e se encaminh
ava para ali, props a Amaro, com grande ar de querer ser prestante r
O INSTINTO SUPREMO
1167
Em vez de tocar, no seria melhor ir mostrando a estes o bincu
lo, at virem todos os
outros ?
Amaro concordou e pacientemente Honrio foi leccionando as mos e os olhos ignorante
s a utilizarem a
novidade.
Quando, finalmente, cerrada a porta do barraco, Garcia, Bonifcio e o intrprete se a
cercaram, com os ltimos visitantes correndo frente deles, Manga Verde lanou outro
maxixe. Tirando o binculo a Honrio, passou-o a Filipe e com Honrio disparou a danar.
Magro tempo andaram enlaados nos requebros lascivos, exagerando-os carnavalescam
ente, s para dar a lio e o estmulo, como ao parceiro bichanou Manga Verde, que nesse
s momentos sentia a inspirao dos seus melhores dias. Em breve se apartaram e aos nd
ios que lhes pareceram mais propensos folia acenaram o convite. Um aceitou, outr
o declinou-o, indeciso. Manga Verde no desistiu. Sem deteriorar o sorriso que lhe
fulgia na cara, j um pouco suada, acercou-se dum terceiro, que Mangori incitou,
com eficazes explicaes, a participar na recreao. Largaram os quatro a maxixar e os n
colas a apertarem-se em redor deles, rindo-se dos movimentos executados pelos da
sua raa, que eram inexperientes e grotescos. E foi nesse pandegoso instante de g
argalhadas e de comentrios em mtua combusto, que Garcia viu duas ndias voltarem-se p
ara os lados das cancelas, com gestos de chamarem algum. Dois garotos saam da mata
e paravam atrs do arame farpado, com modos tmidos, a mirar de longe o espectculo.
Insistiram as mes em que eles viessem e, como no se movessem, foram busc-los pelas
mos. E ento Garcia, sentindo o esprito mais leve, como se desanuviado por um ar nov
o, aproximou-se de Amaro e disse-Ihe, tomado de sbito contentamento:
Os homens que esto na fresta, com os rifles, j podem sair de l. Podem vir tambm para
aqui, se quiserem.
A msica findava. " agora o momento" pensou Manga Verde, pedindo a Mangori que" ex
ortasse os
u68
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1169
Parintintins a danarem com as mulheres e pondo de novo em marcha o mesmo disco.
Vendo-os hesitantes, ele prprio quis patentear o bom exemplo e de mo estendida cam
inhou para a mocetona de lbios grossos, seios duros, um sorriso meio recatado, me
io enigmtico, que desde o comeo lhe assanhara os nervos. Ela recusou, mas j alguns
pares caricaturavam o maxixe e at Honrio, que tivera mais sorte na investida, anda
va agarrado a uma selvagem. E ento o Manga Verde, errando os olhos sobre as que e
stavam ainda disponveis e nenhuma o fascinando tanto, brandamente com a eleita in
sistiu. Transpirava muito e o corao batia forte quando lhe ps, enfim, as mos ardente
s sobre a pele, uma desiluso, sem a maciez que ele sonhara, recordando a da amant
e de Mustafa, que era mais sedosa do que a sumama e mais quente do que o veludo.
Filipe lanara-se tambm na dana, sentindo-se naquele dia com pouca sorte, que a ndia
era levemente vesga e ele sabia que a valorizava com a sua figura bem-talhada e
os seus movimentos elegantes.
O pessoal viera todo para ali, salvo Mariano, sentado na alpendrada, a olhar a d
istncia, com olhos preguiosos e uma vaga nostalgia da sua juventude.
Os homens ardiam. Afogueavam-se os que bailavam, encontravam-se em fogo os que
assistiam, muito quietos e sisudos. Contemplando as formas despudoradas, nos seu
s volteios desenfreados, nas ondulaes luxuriosas das pernas, ancas, torsos e braos,
os olhos famlicos habituavam-se rapidamente confuso pag dos corpos nus e os nicos q
ue lhes pareciam ilgicos eram justamente os deles, que estavam vestidos. No enebr
iamento que a nudez lhes insuflava, j nenhum sabia se eram os selvagens que ascen
diam a civilizados, se os civilizados que se integravam prestemente na <selva
geria; e, tomados por novos euforismos, quase todos abjurariam nesse instan
te, se tal fosse o preo, da civilizao que tinham vindo propagar ali com risc
o das suas prprias vidas.
Logo que a msica se extinguiu, Garcia lembrou-se
de que ele era o chefe, dominou-se quanto pde e, pressentindo que o Manga Verde f
aria soar outro maxixe, acenou-lhe para que se aproximasse.
Bote discos de modinhas. Voc andou muito pegadinho ndia, sempre a mo descendo pelas
costas dela at bunda. Eles no vo gostar. Voc se fosse
eles gostava?
Era para tomarem mais intimidade com a gente justificou-se Manga Verde, com o se
u vontade
sorridoso.
Bote modinhas.
Todos em expectativa, suarentos como os civilizados, seguindo os passos do Manga
Verde, o seu dilogo com o chefe, as suas mos colocando novo disco no gramofone, o
s prprios ndios pareceram surpreendidos, a cara a fechar-se pelo desengano, quando
a dolente cano surgiu e se expandiu ares em fora. Brusca tristeza abafou a
alegria do acampamento, como se uma das chapas zincadas do barraco casse e fosse
tapar e esmagar, no ali, mas em Manaus, o canteiro de flores que existia atrs da l
oja de Mustafa, flores variadas e viosas que o Manga Verde trazia na memria, depoi
s daquela cena de carcias com a mulher, que ele no esquecera tambm.
Garcia captou o descontentamento e apressou-se a remedi-lo, pedindo a Mangori:
Diga a eles que dancem como fazem l nas
malocas.
Escusaram-se os Parintintins com a falta de adornos propcios, alm dos arcos, flech
as e outros smbolos; mas, rogados, transigiram, quando o velho lhes fez um gesto.
Afastaram as mulheres, a chusma concedeu-Ihes espao, formando roda; e, nessa are
na improvisada onze jovens entraram, saltando e gritando, em danas guerreiras, dbe
is de originalidade, pois que lembravam as das outras tribos.
Os homens enervavam-se, os seus dedos abriam-se e fechavam-se de modo arbitrrio,
os seus pensamentos vagueavam em zonas diferentes daquela, diziam-no os rostos;
e, socapa, iam desviando os olhos para os
INSTINTO SUPREMO
II7I
1170
O INSTINTO SUPREMO
trechos que os magnetizavam nos corpos nus das mulheres. r
melhor comear a pr os brindes c fora murmurou Garcia a Amaro. Quantas tarrafas h ?
Trs ou quatro, j no me lembro bem.
Vamos oferecer uma ao velho. E brinquedos bonitos s crianas.
Se agora sair daqui todo o pessoal, eles julgam que estamos desprezando as suas
danas.
Tem razo.
Amaro afastou-se apenas com Raimundo, Tanajara e Aristeu; e os ndios, que os havi
am acompanhado com os olhos, viram pouco depois, ao ar livre, os primeiros volum
es. Alguns abalaram imediatamente para l, enquanto Garcia se lastimava da prematu
ridade da sua ideia.
Interrompendo a dana, os prprios bailadores tomaram, em correrias frenticas, a dire
co dos outros parintintins, com gritos j bem diferentes dos dos guerreiros que mome
ntos antes figuravam.
Mangori, pea ao velho que v ele distribuir os
brindes.
Foi o velho, foram todos. E aqueles que os haviam precedido j se inclinavam sobre
as alfaias e quinquilharias expostas no cho, com as formas e as cores brilhando,
como em campo de feira, ao sol; estavam, porm, quietos, a aguardar a vinda de ou
tras mais, para elegerem a seu gosto, quando eles chegaram.
Tendo ao lado o filho, o velho repartiu, servindo-se apenas de um dedo: apontava
um dos ndios e, com breves palavras, o objecto que ele devia apanhar. Parecia qu
e todos o respeitavam muito ou que ele escolhia segundo as convenincias de cada q
ual, porque ningum o contrariava, mesmo os que se mostravam, em vez de jubilosos,
apenas resignados.
Quando os ltimos parintintins receberam os brindes, Garcia ofereceu ao velho a ta
rrafa e disse a Mangori:
Pergunte-lhe quem deve aprender a jogar ela.
O velho olhou o jovem mimo, que logo saiu do
grupo, contente, via-se bem, por ele o haver preferido. E na terra seca, dentr
o de um crculo imaginrio, Mangori espalhou folhas de ervas, explicando-lhe que
elas representavam peixes, como em actos de feitiaria. Raimundo pegou na tarrafa,
prendeu uma das malhas aos dentes, nas mos colheu a sua roda e com tanta mestria
a lanou, que ela abrangeu todo o espao marcado, caindo elegantemente abert
a e redonda que nem saia de balo. Trs, quatro vezes repetiu-lhe os voos, passando-
a em seguida ao aluno, que fixava os gestos dele com olhar muito vivo e sorria a
gora ao t-la nas mos. Falhou ligeiramente o alvo nas primeiras tentativas, mas qui
nta j o mestre no podia envaidecer-se da sua preciso, porque a vitria do jovem
parintintim fora tambm completa.
Vamos agora experimentar no rio props Raimundo.
Partiram os dois, atrs deles todos os outros ndios, mesmo os curumins, que as mes l
evavam pelas mos. No tardou que chegasse ao barraco deleitada algazarra, vinda l de
baixo, que se abafava um momento para logo soar de novo, sempre em torn de alvor
oo; e pouco depois os Parintintins regressavam com dois pequenos jandis, vrios pac
us, mandis e barbados, uma farta dzia de peixes, alguns dos quais o pessoal via
ali pela primeira vez.
O rancho transps as cancelas, a gritar:
Araragape Araragape! Araragape!
Querem tirar o retrato explicou Mangori. Bonifcio dividiu-os em cinco grupos, fo
tografou-os
pacientemente e dois dos jovens mais entusiastas, como a luz da tarde j tombasse,
pediram para dormir no Posto e levarem as provas no dia seguinte.
Considerou Filipe que seria justo, alm de justo, delicado, os ndios oferecerem ao
pessoal aqueles peixes, que assim fariam as pessoas bem-educadas como ele; mas o
s selvagens no lhe interceptaram o pensamento e saram com o pescado metido entre a
s dvidas recebidas, como um brinde suplementar.
Parecia irem contentes. Encostado parede do bar-
1172
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
1173
rao e vendo-os partir rendidos, Jarbas lembrou-se do dilogo que tivera com Aristeu,
Tito Boludo e Honrio logo no comeo da viagem, depois com Nimuendaj, na aldeia dos
Muras-Piras, horas j cineradas ao longe. E agora Moacir e tambm Honrio, Tito Boludo
e Juvncio, que se encontravam sua banda, j por ele meio catequizados, ouviam-no mu
rmurar, como se falasse sozinho:
Oxal que esse dia no tarde.
Ficaram a ver os ndios desaparecer na mata e Jarbas repetiu:
Oxal no tarde.
Na alpendrada, Garcia dirigia-se a Raimundo, por sugesto de Amaro:
Agora que j se pode tarrafear, veja l se pega algum peixe fresco para ns.
Entraram todos no barraco, Bonifcio foi ao seu quarto e trouxe a bandeira para a s
ala. Desdobrou-a, ajeitando-a sobre a moldura da fotografia de Rondon, em curva
de grinalda na parte superior, as extremidades descendo dos lados, a modo de cor
tinas descerradas, da mesma cor de esperana que a floresta guardava; e, com simpl
icidade, proferiu:
Morremos alguns, mas no matmos ningum. Olhou o pessoal, quis prosseguir no mesmo to
rn, mas
a voz humedeceu-se:
Devemos estar satisfeitos com a nossa conscincia. No nas guerras, na solidariedade
que o homem supera a si prprio. Amanh j podemos colocar a bandeira num mastro.
Muito direitos e calados, os homens estiveram assim alguns momentos. Parecia agu
ardarem que ele dissesse mais alguma coisa ainda, mas viram-no baixar a cabea e c
ompreenderam que no diria mais nada. Foi ento que o Manga Verde, sempre despachado
, comeou abraando a eito todos os companheiros e Honrio exclamou, para respirar mel
hor: "Olha l, no me partas as costelas !"
Garcia tinha pressa. Pediu a Bonifcio e a Amaro que o acompanhassem e c fora, ambu
lando no acam-
pamento, com o dia a morrer sobre a gesta humilde, que ficaria sem renome, foi d
izendo:
Precisamos de comunicar, com urgncia, ao Servio de Proteco aos ndios, o que aconteceu
. Como agora j no h perigo e pelo igarap da Trara demora menos tempo, uma canoa pode
ir por l, em vez de
ir pelo rio.
Atrs deles, conversando com Mangori, perguntas sobre perguntas, caminhavam tambm o
s dois jovens parintintins que haviam ficado no Posto.
Garcia deteve o passo e voltou-se para Amaro: Voc conhece os homens que vieram co
m seu Curt, a primeira vez, pelo Trara. Escolha eles. you escrever esta noite um
relatrio a contar tudo o que se passou desde que seu Curt foi embora at eu vir e d
epois de eu chegar. E dizer o que o doutor e voc e todo o pessoal fizeram, que fo
i muito e merece louvao. Se o doutor quiser, eu digo tambm que j est aqui h bastante t
empo, que o trabalho agora vai aumentar, que precisa de algum descanso e que e
les deviam dar-lhe uma licena e mandar outro mdico para ir tratando de ns e dos ndio
s. O doutor Bento de Lemos no vai responder que no.
Como Bonifcio, recordando-se dos outros, no se pronunciasse imediatamente, Garcia
acrescentou:
. Dona Tarslia e seu Manuel Lobo me pediram que no dissesse nada ao doutor, enquan
to isto aqui no se resolvesse, mas agora j posso dizer. Sua senhora veio ter a Trs
Casas, para ficar mais perto de si. Veio antes de mim, sem eu saber. O pai dela
no deixou vir sozinha. Mas como ele tem reumatismo e viu que seu Manuel Lobo a re
cebia bem, voltou para a cidade. A ltima carta que ela mandou j foi escrita em Trs
Casas, fingindo que ainda estava em Manaus e que ma havia entregue l. O que dona
Tarslia queria era vir para aqui. Mas seu Manuel Lobo lhe explicou que no podia se
r. Lhe disse que no tinha pessoal para trazer ela, mesmo se tivesse no ia tomar es
sa responsabilidade. Quando chegou o batelo e dona Tarslia soube que o doutor esta
va bem, ficou mais tranquila.
1174
O INSTINTO SUPREMO
O INSTINTO SUPREMO
H75
Agora o est esperando ali e a senhora de seu Manuel Lobo trata ela como filha.
Bonifcio baixou os olhos, tentando dominar a ternura que dentro dele reflua.
Muito lhe agradeo disse com voz sumida. Realmente, o pior aqui j passou. Mas os o
utros? Seu Amaro e o pessoal ?
Garcia voltou a encarar Amaro:
Voc quer ir ?
No estava mal, no.
Peo tambm uma licena para si. No lhe havia ainda perguntado, por ter medo que voc jul
gasse que eu queria ficar sozinho a mandar. com o pessoal, temos primeiro de con
sultar cada um, ver os que querem ir, os que no querem; agora fcil, se precisa de
menos gente.
Continuaram a andar e Garcia pareceu lembrar-se, de repente, de alguma coisa que
era necessrio dizer ainda:
Como os homens tm de deixar a nossa canoa no alto Trara e de ir a p pelo mato at ao
seringai Paraso, pedem l emprestada outra canoa e vo a Humait botar a carta com o re
latrio. Botam tambm um telegrama para o doutor Bento, a prevenir ele do que se pas
sou hoje aqui, pois a carta pode no encontrar logo vapor e demorar muitos dias a
chegar a Manaus. Depois vo a. Trs Casas, levar notcias senhora do doutor e a s
eu Manuel Lobo, trazer o que houver para ns e voltam pelo mesmo caminho. Est certo
assim ?
A escuridade nocturna alastrava j no acampamento. Cruzando-se com outros grupos,
que deambulavam como eles, conversando tambm, tornaram ao barraco, onde Mariano pu
nha a toalha na mesa.
Garcia jantou moderadamente e no seu quarto, luz do farol de querosene, escreveu
at tarde na noite, escreveu at muito depois de o violo nostlgico de Honrio e os que
cantavam ao seu ritmo terem emudecido, l fora. De manh, bastante cedo, submeteu a
Bonifcio e a Amaro, debaixo da alpendrada, a larga
narrativa e aceitou ir fazer as correces que lhe pediram sobre a aco que haviam tido
no Posto, antes
de ele chegar ali.
Numa das cabeceiras da grande mesa, Mariano servia caf e leite condensado aos doi
s jovens parintintns, sempre a caretearem ao seu gosto desconhecido, enquanto Man
gori lhes explicava, com um ligeiro sorriso de protector, aquela maneira de inau
gurar cada novo dia. Sentados na outra extremidade, os homens escolhidos para a
viagem a Humait e Trs Casas esperavam molemente a Garcia, a cabecearem e a boceja
r de quando em quando, com singeleza popular, dir-se-ia que de todo indiferentes
ideia de irem transmitir, longe dali, a mensagem da sua vitria. E do interior do
barraco vinha um silncio fresco, repousante, pois que a maioria do pessoal, agora
que o perigo falecera, decidira dormir at mais tarde.
Ao lado de Amaro, os dois encostados s ombreiras da porta, ambos silenciosos, Bon
ifcio passeava os olhos pelo acampamento inteiro, que o sol recm-nascido comeara a
branquear; e tudo parecia simples, muito simples, como se nada houvesse ocorrido
nos longos
dias ali sofridos.
Garcia voltou com a sua relao j emendada, mostrou-lhes tambm o texto do telegrama, q
ue eles aprovaram e dizia assim:
PAZES FEITAS SEGUE RELATRIO FAVOR
MANDAR URGENTEMENTE ROUPA VESTIR
ELES E UM PROFESSOR PRIMRIO
BIBLIOGRAFIA
Escrito em Lisboa, Caldelas, Chiolo, Macieira de Cambra, Torre, Caldas das Taipa
s e Funchal, 1965 1967.
Novamente revisto para a 4." edio, em 1968.
Sobre a parte histrica deste romance, o relatrio de Curt Nimuendaj Os ndios Parintin
tins, no Journal de Ia Sociit ds Amcricanistes, de Paris, vol. XVI, 1924; e a broc
hura de Joaquim Gondim A pacificao dos Parintintins, ed. do autor, Manaus, 1925.
Sobre Rondon, a excelente biografia que dele fez Ester de Viveiros: Rondon conta
a sua vida, Livraria S. Jos, Rio, 1958.
Sobre a personalidade de Curt Nimuendaj, trs artigos de Egon Schaden, em O Estado
de S. Paulo, de 3 e 24 de Dezembro de 1960 e
4 de Janeiro de 1964.
Ainda sobre os Parintintins, ficamos a dever alguns pormenoresj s conhecidos depo
is de sairmos do Madeira, aos nossos amigos e notveis escritores brasileiros lvaro
Maia e Nunes Pereira, pormenores fornecidos por meio de cartas ou pelos seus li
vros Beirado (Ed. Borsoi, Rio, 1958) e Banco de Canoa (Ed. Srgio Cardoso, Manaus,
1963), do primeiro; e Morongut (Ed. Civilizao Brasileira, Rio, 1967), do segundo, be
las obras que recomendamos a quem se interesse por aquela tribo, qual dedicam vri
as passagens.
Acentua-se, porm, ainda uma vez, que O Instinto Supremo um romance e, como tal, s
e afastou de qualquer rigor histrico na grande maioria das suas pginas.
OPINIES CRTICAS
FERREIRA DE CASTRO OU A ARTE DE SER HUMANO
por Povina Cavalcanti (*)
Quando para m:m bastarem sete palmos de terra, eu quereria } haver trilhado toda
a terra do mundo e que o meu corao houvesse pulsado unissonamente com o corao da Hum
anidade inteira.
FERREIRA DE CASTRO
Se o escritor indissocivel da criatura humana, h escritores em que_ o homem a prpri
a razo de ser do escritor. Assim Ferreira de Castro. Para se jazer o seu retraio
literrio, entretanto, no basta o conhecimento da obra, em que pese a autenticidade
desta; mister penetrar-se, atravs dela, as coordenadas de sua sensibilidade, o f
undo luminoso de sua conscincia. No satisfaz a este escritor o infinito da fico. Seu
poder criativo expande-se no ilimitado da imaginao, mas quaisquer que sejam as co
ndies circunstanciais , essencialmente, o homem que Ferreira de Castro considera. S
ua literatura um laboratrio de vidas humanas. Explica-se assim o espirito de sua
obra, a universalidade do seu sentimento. Escritores do seu tipo lembram os gran
des compositores, cujos intrpretes no se discriminam por lugar de nascimento ou prt
ica de idioma. Em Ferreira de Castro a comunicao faz-se subjectivamente, atravs da
compreenso humana, sem smbolos materiais, mas densa de alma e corao. Est a a razo de
r do seu cosmopolitismo. Na selva amaznica ou nas neves da
(*) Escritor, poeta, crtico e jurisconsulto brasileiro.
u8o
O INSTINTO SUPREMO
serra da Estrela, a importncia do meio cresce na proporo em que bom ou nocivo ao ho
mem. Este que conta.
O cho que a charrua revolve; o novelo de fumo que se desprende da casita da aldei
a; o cu azul que se arqueia na linha do horizonte sobre os longes da serra; o rio
que fecunda os vales; a ovelhinha desgarrada na invernia e o espanto do pastor
adolescente, que a procura em vo; a terceira classe de um navio de emigrantes, qu
e "pede um novo Dante para escrever um outro Inferno"; a pulsao do corao humano na a
ritmia das angstias que o afligem; a fome dos prias; o frio, o abandono, a solido d
o homem em luta com a natureza; a sobrevivncia da espcie num mundo socialmente jus
to e melhor do que este tudo isto vive e palpita na obra de Ferreira de Castro.
Dele se dir no futuro que clamou como um apstolo, semeando nas eiras com esperana,
segundo o conselho de S. Paulo numa de suas epistolas aos cornios. Faz obra da la
vrador de almas, preparando-as para a festa da colheita, quando amaduram os frut
os e pompeia a messe.
Ferreira de Castro um desses raros escritores, que sonham com um amanhecer, uma
nova aurora, na clarinada redentora de seus lumes tutelares. Se a noite pressaga
se abate sobre os homens, ele a v na sua escurido opressora, que descreve com emoo
contagiante; e a gente necessita de acender as lamparinas da f para quebrar o den
so negrume. Mas no um escritor deprimente. Ao contrrio, como nos livros sagrados,
sua palavra de advertncia. Toda sua obra literria um chamamento ao amor da fratern
idade humana.
Ora, no se faz a caminhada da vida sobre ptalas de rosas, como nos poemas lricos da
juventude; a caminhada spera, dura, terrivelmente dura. H, todavia, um sentimento
que floresce no fundo do corao e se chama solidariedade humana. Amai-vos uns aos
outros, pregou o Cristo. A meta da fico de Ferreira de Castro banhada por essa luz
apostolar; veste a tnica inconstil do Filho de Deus.
O MENINO DE SALGUEIROS
Remontemos minscula aldeia de Salgueiros, na freguesia de Ossela, do concelho de
Oliveira de Azemis. Ai nasceu Ferreira de Castro. Ossela precedeu Portugal, isto ,
"j acendia o seu lume antes da fundao de Portugal. J era parquia no tempo dos Godos"
, segundo depe o romancista.
Nessa longnqua povoao, o menino Jos Maria sentiu, pela primeira vez, os seus ntimos p
endores para uma interpretao da vida, que no se resumisse no seu rio Caima, na aleg
oria de seus amieiros, na paisagem gergica dos seus "rinces ednicos", no vale umbro
so e frtil, na tradio bem lusitana do amanho da terra.
O escritor Jaime Brasil, num estudo admirvel, observou: "O homem nascido nesse me
io deveria ser o portugus comum: valente nas armas, belicoso at; amante da terra,
mas para a possuir e fecundar como a uma mulher; crente perdido nos arroubos msti
cos; e, se escritor, poeta pico ou lrico, cronista ou historiador. Ora, Ferreira d
e Castro no nada disto. Tambm verdade que um portugus fora do comum".
OPINIES CRTICAS
Il8l
E mestre Fidelino Figueiredo escreveu: "Peneira de Castro tem as suas originalid
ades; no doutor em Direito, no faz versos nem funcionrio pblico".
Pois o menino pobre de Salgueiros revelou precocemente esse homem incomum. E o q
ue mais espanta na sua vivncia de criana a confisso de sua timidez. Ele prprio narra
como se deu a sua entrada na escola. "Era de Inverno. Ia de chancas, friorento,
enroupadito. Creio que foi minha me quem me acompanhou at meia caminho. No me reco
rdo bem. Mas lembro-me, nitidamente, da minha entrada na escola. L estava, ao fun
do, secretria, instalada sobre um estrado, o Sr. Prof. Portela. Era gordo e de ca
rne muito branca e fofa. No primeiro plano, as carteiras com os alunos chilreant
es. Alguns conhecia-os eu c de fora. Mas tomavam ali, para a minha timidez, o pap
el de inimigos". Essa timidez, como tudo nele, reagia diferentemente. Prova-o a
sua odisseia amaznica, da qual trataremos adiante.
O menino Jos Maria, aos nove anos, fez o seu primeiro exame e somente ele e o fil
ho do 'professor ficaram ta estudar para o segundo". O escritor rememora: que os
pais dos meus condiscpulos entendiam que estes, para a vida, necessitavam apenas
de saber fazer as quatro operaes e ler e escrever uma carta para o Brasil."
H um episdio dessa poca, que no me furto ao prazer de contar, recorrendo s confisses d
o prprio Ferreira de Castro, em citao de Jaime Brasil. Trata-se do seu primeiro amo
r. A namorada era bem mais velha do que ele. Chamava-se Margarida. Tinha os seus
n ou IS anos, "linda, linda, como nunca tinha visto outra".
Esse amor de menino por moas feitas uma fatalidade inexorvel. Manuel Bandeira cont
ou recentemente a Ledo Ivo o seguinte: "Amei muito e o curioso que, mesmo antes
dos dez anos, eu nunca me apaixonava por meninas, e sim por mulheres feitas."
Margarida foi assim o primeiro arrebatamento sentimental do menino Jos Maria que,
afagando as esperanas de um amor prematuro, escrevia cartas e mais curtos sua do
ce namorada, to indiferente e fria, "que lhe voltava a cara sem dirigir sua timid
ez uma s palavra, um olhar sequer". Tornou-se notrio na pequenina povoao o romance m
enineiro. Ele prprio conta o vexame que sofreu na escola. "Vm dia, como titubeass
e na "Educao Cvica", o Sr. Prof. Portela abriu a gaveta de sua secretria e, tirando
de l, uma das minhas epstolas Margarida, exclamou: Para estudar a lio no tem tempo, m
as tem-no para escrever s filhas dos outros! Pediu-me a mo e deu-me
uma forte palmatoada."
lance final desse episdio uma delcia. Narra-o assim o seu protagonista. Alguns mes
es depois, durante o recreio, os alunos divertiam-se atirando uma carapua ao ar e
, em seguida, apanhavam-na na ponta de uma vara. Foi quando Margarida apareceu l
em baixo, junto Capela de Santo Antnio. Confessa Ferreira de Castro, textualmente
: "Abandonei togo o folguedo para prender os meus olhos ao seu corpo (...) Acont
eceu, porm, que os meninos no quiseram deix-la passar. Ela protestou, mas foi intil.
Ento, num impulso, caminhei para o grupo, agarrei a vara pelo meio e fiz forca.
Os meus companheiros indignaram-se comigo, mas na confuso Margarida pde
Il82
O INSTINTO SUPREMO
passar. Momentos depois ramos chamados escola. A secretria estava o Senhor Ajudant
e Almeida, carrancudo como nunca o tinha visto. Ao seu lado, de p, a Margarida. T
inha-se ido queixar. Duas palmatoadas a cada um. Alguns negavam. Mas a Margarida
friamente, implacavelmente, afirmava:
Foi! Foi!
Chegou-me a vez. Quis balbuciar a minha inocncia, mas a emoo no mo permitiu. Estendi
a mo... Margarida, porm, exclamou:
Esse no foi!
Ah! como eu me senti nesse momento compensado de tudo quanto tinha sofrido por e
la!"
Agora, o principal. Foi graas a essa doce e remota camponezinha de Salgueiros que
se decidiu Ferreira de Castro a emigrar para o Brasil. Assim ele o conta: "com
o meu gesto (o de partir) antecipava a idade e comeava a viver o homem que eu des
ejava ser. S um homem iria para to longe, e Margarida, decerto, atentaria nisso. S
em ela eu no teria partido! No teria tido coragem. Morreu sem o saber, talvez, mas
foi ela, foi o desejo de que no me julgasse criana, foi esse meu primeiro amor, p
ulcro e ingnuo, que me deram foras para afrontar o monstro fabuloso que me parecia
, ento, o Brasil."
O menino Jos Maria embarcou no vapor "Jerme", numa tarde triste, em 1911, no porto
de Leixes. Tinha, como enfaticamente lembra
12 anos, 7 meses e 14 dias!
SERINGAL DO PARASO
O monstro fabuloso", o Brasil, naquele comeo do sculo era, principalmente, uma atr
aco telrica e quimrica: a Amaznia. A borracha parecia anunciar o advento de uma civil
izao no Inferno Verde. Manaus, a pacata capital da Plancie, monopolizava as atenes do
pais inteiro.
Eu era menino, em Macei, quando ouvia deslumbrado as histrias maravilhosas, que me
contava um conhecido circunstancial recm-vindo da Cana amaznica. Eram lendas sobre
lendas. Pois foi para a selva cictpica, num restrito tracto de terra, mas escala
vradas margens do Madeira", numa clareira da floresta, que Ferreira de Castro se
exilou por quatro anos!
Por uma ironia da sorte, o seringai tinha o nome bblico de "Paraso". Se Deus lhe r
eservou essa aflitiva experincia, deu-lhe em troca a gloria de escrever A Selva,
livro em que condensou, segundo seu prprio depoimento, "o drama dos homens perant
e a injustia de outros homens e as violncias da natureza".
Esse livro, publicado em 1930, um retraio vivo do sub-mundo da Amaznia, das suas g
uas barrentas e suas terras moles, mas tambm dos gigantes vegetais, dos bichos me
donhos, vivncia de pnico para o homem que habita aquelas regies como um nufrago, pre
so s lianas, aos cips e solidoamarras da bravia natureza num habitat de duendes e f
antasmas dantescos.
O Brasil ficou a dever a Ferreira de Castro uma obra pioneira de profundo poder
de penetrao humana, um romance, por assim
OPINIES CRITICAS
II83
dizer, da virgindade florestal violada pelo homem na mais estica luta pela prpria
sobrevivncia. A Selva, a despeito da fico, um impressionante documentrio. O escritor
vive, sob o pseudnimo de Alberto, a tragdia de um quotidiano terrvel. E o mais adm
irvel que ele preserva, acima de tudo, a sua dignidade pessoal.
Logo no comeo do livro, quando Alberto, "portugus exilado e monrquico", aborda o co
mendador Arago, chefe da casa "que maior flotilha alinhava nos braos do Amazonas e
a que maior tonelagem adquiria nos barcos que partiam para a Europa e para a Amr
ica do Norte", a fim de pedir-lhe um emprego, ocorre o seguinte dilogo: " No, no po
de ser. Eu no preciso de empregados.
Est muito bem, Senhor Comendador. Desculpe t-lo incomodado.
Espere a.
Elevou o brao rolio e felpudo, de manga arregaada, ao casaco que estava dependurado
nas costas do "fauteuil". Tirou a carteira e desta uma nota de cinco-mil ris.
Pegue l.
As faces de Alberto coloriram-se, transformando-se em barco desvairado o cho que
ele pisava.
Eu no vim pedir-lhe uma esmola, Senhor Comendador, vim
pedir-lhe trabalho.
Surpreendido, Arago olhou-o de mau modo. E ele saiu formalizado."
Esse, o carto-de-visita do bravo Alberto, em trnsito para o desconhecido, dado ao
poderoso Arago, na cidade de Manaus; esse o seu estado de espirito ao penetrar a
Amaznia Misteriosa do baptismo literrio de Gasfo Cruls. Misteriosa, sim. Ferreira
de Castro, porm, desvendou-lhe muitos dos segredos. E viu, como nenhum outro, a f
igura desprotegida do homem, o verdadeiro mrtir da selva.
Oliveira e Silva, no excelente limo Julgamentos Fictcios, tirou das pginas do dant
esco romance uma personagem edificante: o negro Tiago, antigo escravo, que por a
mor da liberdade incendiou o barraco one dormia o chefe tirnico. Preso, no negou a s
ua culpa.
"No eslava bbedo, no estava, branco. Seu Juc era meu amigo; eu lhe queria muito e
lhe choro a alma dele; mas no era amigo da liberdade".
O julgamento de Oliveira e Silva conclusivo: "Pleiteia o antigo escravo, na sua
decadncia, beira da morte, um direito que deve sobrepairar a todas as leis, imane
nte prpria Criao: o do homem livre, movimentando-se na livre comunidade".
Em A Selva, o poeta tambm est presente. A pgina em que o autor narra o encontro de
uma orqudea de sortilgio lrico. A rara cataleia que Alberto colhe e lana depois gua
ela se pe a flutuar, "as ptalas abertas, a haste mergulhada uma estrela acendida
na superfcie negra", coroa a descrio do mundo vegetal dos parasitas. Mas A Selva ,
sobretudo, um apelo misericrdia de Deus. A experincia de Ferreira de Castro revelo
u um sub-mundo, onde vegetam prias e escravos, mas donde, algum dia, h-de surgir a
redeno da terra e do homem.
1184
O INSTINTO SUPREMO
* ADEUS AO SERINGAL
O rapazote de Salgueiros, agora com 16 anos, partia na noite quente e hmida de 28
de Outubro de 1914 do seringai "Paraso", a bordo do "Sapucaia". Ele conta: "Uma n
ica luz ardia na terra: a do farol que iluminava os degraus de acesso varanda do
barraco maioral, esse farol, que durante anos eu fora encarregado de acender, de
apagar e de limpar dos insectos que sobre ele morriam ao longo das noites tropi
cais. Ainda disse adeus com um leno, mas ningum me respondeu".
Libertando-se da selva, sentir-se-ia Ferreira de Castro completamente alegre? Cu
riosos so os segredos da alma humana. Ao partir, o adolescente levava no corao (por
mais incrvel que parea!) um amor do seringai! Vira e apaixonara-se, poucos dias a
ntes, "pela nica rapariga que existia l nas profundidades da mata, beira do Lago-Au
.*
A luz daquele farol tambm era nica: ardia na noite escura e foi o seu adeus corres
pondido, o intrprete do adeus silencioso sua Mundia, reincarnao selvtica da Margarida
de sua infncia, longnqua e olvidada na minscula aldeia portuguesa.
Narram quantos tm escrito sobre a vida nos seringais como rara a mulher naquelas
paragens. Eu prprio j aludi ao facto num livrinho de crnicas. a mulher a "encomenda
" mais preciosa, que viaja nos "gaiolas". To preciosa que h a respeito, contada pe
lo escritor Arajo Lima, com acento de veracidade, o seguinte caso: Morreu num aci
dente um seringueiro. A noticia espalhou-se rpida. E a casa do defunto encheu-se
dos amigos desolados. Um mais tardio s chegou ao anoitecer. Compungido, aproximou
-se da viva, que velava o cadver. E aventurou:
Dona Isabel, a senhora quer se casar comigo? Ao que ela ops prontamente, entrecor
tada por soluos:
No posso, porque j estou comprometida com seu Serapio... Quem sabe l se essa Dona Is
abel no seria a Mundia do nosso
Ferreira de Castro?
O GRANDE ROMANCISTA E O BRASIL
No cabe nos limites destas notas um estudo pormenorizado da obra do notvel escrito
r. A Selva e Emigrantes soo, porm, dois dos seus romances, que nos tocam directam
ente. Sobre o primeiro, a que ] nos referimos, h a exclamao de Humberto de Campos, a
o cabo de sua leitura: "A Amaznia est aqui!" Emigrantes tambm a histria de um portug
us que veio para o Brasil atrado pela miragem da prosperidade e da riqueza, a qual
se foi desfazendo, dia a dia, na dura realidade de uma vida de privaes.
Ferreira de Castro no fantasiou nada. O heri desse livro amargou a nostalgia de su
a aldeia, saudoso do seu pinhal, do campanrio l em baixo, do outeiro, do mesmo rio
Caima de Oliveira de Azemis do autor, "da capoeira de criao, do quintal cultivado
e muito verde, as
OPINIES CRITICAS
Il85
couves gordas, os feijoeiros abraados s estacas e as ervilhas cheias de garridice
por terem flores como violetas". Manuel da Boua esse heri que pensou enriquecer no
nosso pas, como tantos outros patrcios seus. A Fazenda de Santa Efignia, em S. Pau
lo, foi a sua ltima iluso: um emprego de trabalhador rural com cento e cinquenta m
il-ris por
ms...
Houve quem visse no romance uma crtica desabonadora ao Brasil. O equvoco foi desfe
ito em artigo muito lcido pelo escritor e acadmico Barbosa Lima Sobrinho. Ferreira
de Castro no denegriu a terra, que ele tanto ama; apontou o drama do emigrante.
Como escolheu S. Paulo para cenrio do seu romance, poderia ter escolhido Chicago
ou Santa F. O certo que Manuel da Boua o homem-tipo da ingenuidade e da confiana do
emigrante desprevenido, que os ladinos engodam com promessas mirabolantes.
esse, como todos os demais de Ferreira de Castro, um livro humano. Sua busca de
po e justia. Suas personagens gravitam em tomo desse binmio social. Em Emigrantes,
ele descreve a odisseia do seu heri com realismo. Sem embargo da descrio, o escrito
r um amoroso da nossa terra e da nossa gente. Voltando ao Brasil, universalmente
famoso, tudo nele denotou uma imensa ternura pelo "monstro fabuloso" da sua ima
ginao infantil. Vi-o de olhos molhados, comovidssimo, quando h seis anos passados, d
esembarcou no Rio para um suspirado reencontro. Tinha-o visto em Lisboa meses an
tes, num longo cavaco, que entrou pela madrugada, a falar de tudo que era nosso,
dos nossos homens de letras, dos nossos costumes, das nossas esperanas com uma
saudade brasileira em delquio de quase nostalgia!
O HOMEM IRMO DO HOMEM
Certa vez, de veia potica, comecei a ver, na solido da minha paisagem interior, al
argar-se o horizonte. Senti-me, de repente, em frente ao mar. Era uma baia, uma
angra, um ancoradouro, um cais. Via tudo na palpitao da vida normal prpria de um lu
gar desses. Os guindastes, que Henri Allorge, um velho poeta de Frana, cantou; o
vai-e-vem dos passageiros, a mistura bablica das lnguas; os transatlnticos, no repo
uso da escala, fazendo a sesta da viagem. Esse quadro to comum tinha, porm, na min
ha imaginao, um efeito onrico. A poesia explica o fenmeno. Em tais estados, ocorrem
os nossos sonhos de acordado: sonhos to misteriosos que pairam numa zona do espir
ito, entre a conscincia e a subconscincia, zona neutral, fronteiria, indefinida. Po
is foi ai, na hiptese criativa de um sonho desses que eu vi a encarnao de um smbolo
da fraternidade humana, dessa fraternidade e dessa humanidade, que substancializ
am o talento de Peneira de Castro: a figura do imigrante, do homem carregado de
iluses que pisa, pela primeira vez, o cho de um pas, que no conhece. O homem que tem
por si, apenas, este ttulo; homem irmo do homem. Que mais precisaria ter? Se a so
ciedade fosse justa e humana, a resposta seria: Nada, nada mais precisaria ter.
Mas precisa, e por isto que um romancista, como Ferreira de Castro, faz de sua o
bra uma mensagem de confraternizao e de amor pela humanidade.
n86
O INSTINTO SUPREMO
O HOMEM FERREIRA DE CASTRO
OPINIES CRTICAS
1187
Remontando ao comeo destas notas, afirmamos: o humano a razo de ser do escritor Fe
rreira de Castro. As imensas dimenses de sua obra ampliam-se universalmente em to
das as latitudes pelo substancial de seu amor humanidade. Esta a direco, a meta d
o seu espirito criador. Em tudo quanto escreveu at hoje, Ferreira de Castro deixo
u a marca deste amor. No "Prtico" de A Selva, confessou: "... ao farfalhar do pat
riotismo, venha do Norte ou do Sul, da Europa ou da Amrica, se sobrepe sempre, no
meu esprito, uma causa mais forte, uma razo maior: a da humanidade."
Este escritor no cria para o homem; o homem a prpria fonte da sua criao. Romancista
da experincia humana, onde quer que se eleve a sua imaginao, a fantasia noa existe
por si, mas em funo do bem social. No preciso conhec-lo em pessoa para estim-lo. Ele
est, de corpo inteiro, nos seus livros: um retraio inconfundvel, autntico. L-lo iden
tiftc-lo. Certo que muito autobiogrfico, sem ser narcsico. A gente o surpreende nas
terras cadas da Amaznia ou nos jardins suspensos do Funchal. Naquelas paragens am
ericanas, o protagonista de A Selva, egresso do seringai e chegando a Belm do Par
"mais carregado de sonho lilerrio do que o navio carregado de borracha"; na ilha
encantada, o Juvenal de Eternidade, "enfermo de amor e de morte".
Ferreira de Castro no sarcstico nem irnico, como o maravilhoso Ea. No abusa, outrossi
m, dos temas sexuais. O verdadeiro sentido de sua literatura o da sua identificao
com a humanidade. , alm disso, um idealista militante, ou se preferirem um legionr
io do ideal, um prmio Nobel por antecipao.
Para se ter uma ideia da humanidade do escritor, cuja sensibilidade extremamente
delicada, no nos privamos do prazer de citar o episdio da pequena abelha, ocorrid
o a bordo do "Avelona Star" com o heri do seu romance Eternidade, em viagem para
a Madeira. Ele narra: "Logo que terminou a refeio, Juvenal dirigiu-se ao seu camar
ote. L estava, sobre a placa de vidro, ao lado do lavatrio, a caixita que guardara
frasco de caprichoso perfume, colhido em roseirais de Frana. Pegou-lhe cuidadosa
mente e descerrou-a o bastante, apenas, para poder ver o contedo. Brnzea e humild
e no branco do quadrilongo interno, trmulas as asas e as palitas na luz que, de r
epente, a envolvia toda, expunha-se uma pequena abelha. Ele a encontrara ali mes
mo, no camarote, debatendo-se contra o vidro grosso da vigia. Dar-lhe a liberdad
e nesse momento seria dar-lhe talvez a morte." Juvenal ps-se, ento, a filosofar. A
quele insecto no tinha uma vida como a sua? Aconteceu que a abelha conseguira fug
ir. Foi uma luta para reconquist-la. Mas triunfou e, agora, ei-la presa novamente
na caixa. Aproximava-se o Funchal e Juvenal levou, consigo a caixita para o con
vs. Debruou-se, como os demais passageiros, na amurada para rever a terra nativa.
"As suas mos, ao procurar no bolso a cigarreira, encontraram a caixa com a abelha
. Tinha-se esquecido dela e enterneceu-se mais. Olhou para a ilha, calculou a di
stncia. O navio j
estava muito perto. Poderia solt-la ali, que ela atingiria facilmente
o seu porto de salvamento. Ocorreu, porm, o inesperado. Um incidente
causara a queda da caixa, que continha a abelha e "logo se fincara
sobre ela o sapato do criado de bordo. Apesar de esmagada, a abelha
movia ainda algumas das patitas. (...) A vida prosseguia, ali, na terra
em frente, em todo o mundo. S ele sabia que aquela outra vida deixara
de existir... Deixara? Hesitou. Depois, estendendo o brao, atirou para
o mar a caixita destroada, onde a abelha era j um pouco de matria
informe, um cisco viscoso pegado ao carto. Se soubessem daquilo
ach-lo-iam ridculo, pensou, um instante. Continuava a contemplar
o esquife de papel, flutuando agora sobre as ondas sobe, desce, desce,
sobe e afastando-se para a popa do navio. Dali a alguns segundos
leria desaparecido para sempre e s a memria dele guardaria, talvez,
uma vaga recordao."
Est a um flash do sensvel espirito do escritor, tocado de uma profunda delicadeza e
m relao s coisas mais aparentemente insignificantes. Urn simples insecto para ele u
m ser representativo da vida. Outra passagem e so tantas! memoro com enternecim
ento. Trata-se do episdio do "Piloto", em A L e a Neve, "um dos romances mais emoc
ionantes, escreveu Ren Jouglet, que li durante estes ltimos anos: sbrio, sem efeito
s exteriores, sem virtuosismo, quase modesto pela atitude, mas revelando uma exp
erincia humana de fora extraordinria."
a histria de um pastor, que tem uma namorada e deseja casar-se com ela. Mas a ocu
pao do pastoreio lhe d, apenas, um salrio de fome. A mquina revolucionou os mtodos ana
crnicos, restringindo as actividades dos serranos. A vez no era mais do pastor, ma
s do tecelo. Horcio, egresso do servio militar, enamorado de sua Idalina, quer tambm
progredir. Mas no pode por circunstncias particulares. Os teares vo ficando para t
rs e ele segue o seu destino. Galga a serra, onde, mo Inverno, quando os zagais s
e retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam tambm e vinham rondar, fami
ntos, a porta fechada do homem. A solido enchia-se dos seus uivos e a neve reflec
tia
a sua temerosa sombra."
Horcio decidiu-se: Vai levar o rebanho ao pastoreio. "Veste as calas e casaco de s
urrobeco, mete os ps nos sapatorros jorrados de brochas e pega nos rsticos safes fe
itos por ele de uma pele de ovelha que morreu de parto." Segue de mau humor. Pe o
chapu de abas anchas, acomoda sobre os ombros o alforge e a manta, agarra no caj
ado
e assobia ao co.
O "Piloto" rompe, que nem flecha, de um negro boqueiro do bairro e, ao v-lo assim
vestido, festeja-o, lana-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto seu rabo s
e agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar at a boca dele. (...) O
dia est enevoado, cinzento, triste; mas o "Piloto" dir-se- ter descoberto um sol
individual para sua completa volpia."
Horcio partiu, com o "Piloto" sempre /rente e sempre com aquela cauda erguida, aq
ueles passos midos e aquele ar de co feliz. Horcio no se conformou. "Vergou-se, ergu
eu-se e assentou-lhe uma pedrada. O co ganiu, voltou-se e olhou-o surpreendido, p
ercebendo que
n88
O INSTINTO SUPREMO
fora ele quem o agredira. Depois, a gemer de novo, deixou-se cair de lado, dobrO
u-se e comeou a lamber a perna atingida, ...) Horcio trilhava M mais de uma hora, a
estrada que acompanha a fenda gigantesca, quando sentiu que algo lhe faltava. V
oltou-se, sua procura. L vinha, ao longe, arrastando-se nas trs patas. Trazia o fo
cinho roando o cho, pensativamente. De quando em quando, deitava-se, repousava um
momento e volvia andana, a manquejar grotescamente, como se cumprisse um destino.
Horcio detivera-se a seguir-lhe com os olhos o penoso avano. O "Piloto" no o vira
ainda a olhar para ele e, s quando o assobio lhe chegou aos ouvidos, levantou a c
abea. Ps-se, de sbito, alegre, a cauda no ar, os olhitos muito vivos a sorrirem com
humildade. Quis correr, acercar-se depressa, para que o dono no tivesse de esper
ar. Ora punha a pata doente no cascalho, ora a levantava, dorida, e prosseguia d
esequilibrado, cada vez mais caricato, nas trs pernas. Por fim, deixou-se descair
de novo, vencido, a dez passos, sempre a olhar para o amo, humildemente. Horcio
aproximou-se, pegou nele ao colo e continuou a andar. Sentia, agora, vontade de
lhe pedir perdo."
A beleza da obra de Ferreira de Castro deriva dos mais nobres sentimentos de com
paixo. Ela reflecte o homem. endoscpica. E, se em muitos lances, tem uma prodigios
a fascinao telrica, no seno para submeter as foras da natureza ao imprio do ser hum
Esse episdio do "Piloto" , alm do mais, de uma comunicativa poesia. Faz lembrar um
poema do saudoso Olegrio Mariano. Esse poema (disseram-me), est gravado em azulejo
no Jardim Zoolgico de Lisboa:
Foi no Jardim Zoolgico, em Lisboa: A luz do sol, numa carcia boa, Se infiltrava en
tre as rvores, em festa: Era uma miniatura de floresta.
Meus passos me levaram para a frente, Quando vi a meu lado, de repente, Um co a m
e observar com simpatia. Quando um co me acompanha, eu ganho o dia.
Chega-se a mim. Era simptico o rapaz. Co da rua no sabe o destino que traz. Rabo es
petado no ar, a coleira de sola E o olhar aflito de quem pede esmola. Meio sujo,
talvez, mas que importa a sujeira?
Havia nele uma ternura verdadeira.
E fiquei a pensar. Por que entre tanta gente
Ele me preferiu? Serei eu diferente
Dos outros homens que ele encontra pela rua?
No. Sou igual aos outros mas, na sua,
A. minh'alma passou num sentimento aberto:
OPINIES CRTICAS Il8g
Ele sentiu em mim urn amigo, por certo. Dei-lhe tudo do que me deram de comer. M
exia o rabo no ar para me agradecer.
Se eu pudesse ao Brasil transport-lo comigo? Ter um amigo co ter um grande amigo.
Ao deix-lo, estendi-lhe a mo em despedida. Olhou-me firme, erguendo a pata comovid
a. E li na dura luz de seus olhos leais: "Foste bom para mim e eu no te esqueo mai
s I" Sinto orgulho em dizer: Em Portugal assim: at os ces gostam
[de mim l
Esse co do poeta brasileiro devia ser irmo do "Piloto" de Horcio...
A AURORA DE UM MUNDO NOVO
Ao correr destas notas margem de uma obra de escritor, que vitalizada pelo mais
srio espirito de compreenso humana, fixmos, apenas, panoramicamente, alguns aspecto
s da sua transcendente beleza. Qualquer dos seus livros digno de uma anlise de fu
ndo; qualquer dos seus livros uma pea essencial no conjunto orgnico da sua obra. T
al o esprito dessa unidade que, sendo Ferreira de Castro um romancista, na mais c
ompleta significao desta palavra, mesmo quando escreveu A Volta ao Mundo, volumes
macios de impresses de viagem, versando, portanto, um gnero literrio por assim dizer
antagnico da fico o glorioso escritor no cindiu aquek esprito de unidade.
Em toda a extenso de suas narrativas de vagamundo, a gente encontra o homem Ferre
ira de Castro cioso de sua humanidade acima de tudo.
Depois dos Pequenos Mundos e Velhas Civilizaes e de A Volta ao Mundo, que teria fe
ito o romancista? Continuou, como continua, com a graa de Deus, a escrever belos
livros. Mas um cuidado ele teve, todo especial, amoroso e evocativo. Foi, segund
o confessa, alguns meses aps a concluso ds. viagem sua aldeia de nascimento, subin
do "aquela mesma spera serra de urzes e pinheiros bravos, aonde ia em criana conte
mplar mais rasgados horizontes do que o do vale nativo, pressentindo, adivinhand
o o mundo que fascinava a sua inquietude infantil".
Quereis saber o que o escritor viu trinta anos depois, do dorso da serrania? Tud
o igual, ou quase igual. O que era diferente era ele prprio. A viso da infncia se s
obreps a realidade; imaginao do menino Jos Maria a experincia do romancista Ferreira
de Castro. Mas como a infncia marca indelvel no carcter do homem, o escritor, entre
as urzes e os pinheiros bravos da sua minscula aldeia, depe, pleno de amor e frat
ernidade: "A posse do planeta no matou em ns o sortilgio da distncia, a atraco do long
quo, a voz encantada que se oculta para alm da linha do horizonte."
iigo
O INSTINTO SUPREMO
E, gloriosamente pattico: "Queramos, como a personagem de um livro nosso, como a m
aioria da humanidade, viver muito, muito, para voltarmos a contemplar o mundo de
pois da sua nova aurora, o mundo que ns sabemos que vir um dia, um mundo sem as in
justias e sem muitas das dores que os homens tm sofrido at agora. Queramos ver o mun
do de amanh e, s depois disso, forados pela lei fatal, vir buscar aqui (na sua alde
ia), sob as estrelas, a intrmina imobilidade."
Ferreira de Castro, meu Irmo, Deus te abenoe'
(Conferncia realizada em 23 de Junho de
1966, no PEN Clube do Rio de Janeiro.)
UMA LIO PARA OS HOMENS DE HOJE
por Philippe Brunetire (*)
O ltimo romance do escritor portugus Ferreira de Castro situa-se na mesma linha do
s precedentes e, em especial, de "A Selva". Nele se reencontram a amplido, a gran
deza esmagadora dessas paisagens da Amaznia onde a floresta s cortada por alguns c
ursos de gua que constituem quase os nicos meios de acesso at ela. O livro denso, p
rofundo, recamado de factos, de ideias e de reaces, narrados com tanta fora como fi
nura, com tanta psicologia como profundeza e compreenso na anlise dos comportament
os. Nele se descreve a aventura de um grupo de homens audaciosos e corajosos, im
pelidos por uma alta ideia da civilizao, que partiram para se enclausurar literalm
ente na floresta e nela instalar um acampamento rodeado de arame farpado, tentan
do entrar em contacto amigvel com uma das tribos mais irredutveis e mais ferozes d
o Brasil: os Paratintins. A sua divisa : "Morrer, talvez; matar, nunca*. E alguns
deixaro ali a vida.
O romancista soube, notavelmente, relatar os estados de alma desses homens, por
vezes rudes, mas de uma dedicao total.
Um livro verdadeiro, de enredo denso, construtivo, sensvel e corajoso, em que tod
as as pginas so uma lio para os homens de hoje tal este romance de Ferreira de Castr
o.
(In Ls Nouvelles Litiraires, Paris.)
(") Crtico literrio francs.
_i
SESSO NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
EPOPEIA DO HUMANISMO
Em sesso recente da Academia Brasileira de Letras, no ms de Julho passado, foi pre
stada expressa homenagem desta alta instituio de cultura a Ferreira de Castro pela
publicao do seu ltimo romance O Instinto Supremo. O acadmico e antigo presidente pr
of. Peregrino Jnior props, justificando-a com caloroso louvor ao significado luso-
brasileiro da obra de Ferreira de Castro, a atribuio da medalha "Machado de Assis"
ao romancista portugus distino de extraordinrio relevo que foi aprovada por unanim
idade do plenrio da Academia.
Tomou a palavra, em seguida, o acadmico Elmano Cardim, que em demorado discurso s
alientou o significado de A Selva, romance em que Ferreira de Castro "ofereceu a
o Brasil a revelao da Amaznia" e que Humberto de Campos e Afrnio Peixoto "no hesitara
m em consagrar como verdadeira obra-prima". E, mais adiante, acrescentou: "Ferre
ira de Castro, com o poder do seu gnio criador, com a beleza da sua arte, gravou
pelo buril do seu estilo mpar (em O Instinto Supremo) a epopeia de que Rondon foi
o autor. com o seu talento de romancista conseguiu maravilha aquilo que pretend
eu." Elmano Cardim afirmou, depois, 10 dever de tornar publico o reconhecimento
que merece o escritor Ferreira de Castro, por haver fixado em pginas eternas um m
omento da nossa evoluo e a pureza de um ideal que, se foi de um homem s, tocou a to
dos os brasileiros". E, a terminar, o acadmico brasileiro declarou: "Louvores sej
am dados a Ferreira de Castro pelo primor do seu livro e graa lhe demos pelo bem
que com ele fez ao Brasil."
Na sesso da Academia falou, ainda, sobre a personalidade e a obra de Ferreira de
Castro o escritor Ivan Lins.
Temos notcia de que a entrega da medalha "Machado de Assis" ao escritor expressiv
amente distinguido pela Academia Brasileira de Letras ser realizada em Lisboa, ta
lvez em data prxima, pela mo do prprio presidente da instituio, Austregsilo de Athayde
.
(De jornais brasileiros.)
por Jorge Amado
"Embora enraizado num facto acontecido, este exame de um problema moral que vem
de muito longe e de um herosmo popular sem espadas, sem carabinas e sem sangue, e
sta epopeia vivida apagadamente em dias ainda recentes, ignorada do mundo e da p
rpria maioria dos brasileiros, um romance", escreve Ferreira de Castro na carta-p
refcio de seu ltimo livro, dirigida a Nunes Pereira. importante tal constatao: em to
das as suas pginas, "O Instinto Supremo" romance, e romance dos mais densos e bel
os entre quantos foram publicados nos ltimos anos pela literatura portuguesa ou p
ela literatura brasileira.
Epopeia do humanismo, onde se resume, no drama ardentemente exposto e narrado, a
prpria condio do ser humano. Hoje estamos cercados de violncia desatada como se j o
desespero fosse o crculo final de uma civilizao.
Quando o livro de Ferreira de Castro chegou s minhas mos e iniciei a leitura de su
as pginas, os jornais brasileiros e a imprensa mundial denunciavam o drama monstr
uoso da liquidao dos ndios da bacia Amaznica por aqueles que eram e so pagos para def
end-los, para cuidar e zelar pelas tribos. O crime sem nome se estampava desnudo
nas narraes de testemunhas e at em fotos terrveis. Crime inacreditvel, vergonha de no
sso tempo, humilhao para a terra de Rondon, para o povo cuja filosofia de vida fei
ta de ternura, de amor e de paz.
O livro de Ferreira de Castro foi como o blsamo sobre a chaga aberta com o noticir
io da violncia mais ignbil desabada sobre os ndios iguais a crianas rfs. Ferreira de C
astro, portugus feito homem na Amaznia e homem de bem, decente, homem irmo do home
m, escritor de vida e obra dedicada humanidade e ao futuro restituiu-nos a confi
ana abalada, restaurou nossa mais profunda verdade: a do amor ao ser humano. Foi
buscar na epgrafe de Rondon
1194
O INSTINTO SUPREMO
antes morrer do que matar aquilo que faz a conscincia brasileira, a verdade huma
nista do homem brasileiro. "O Instinto Supremo" chegou no momento exacto, quando
ns, brasileiros, vamos com espanto e horror a degradao de nosso estilo de vida, de
nossa filosofia de viver, nas mos de miserveis nascidos do tempo melanclico e humil
hante que sofremos desde 64. Ferreira de Castro, o mestre de "A Selvat, foi mais
uma vez intrprete do homem brasileiro e de sua verdade.
Grande romancista contemporneo, dos maiores de nosso tempo, voz de seu povo, tambm
voz do povo brasileiro. Sua obra, toda ela importante, onde romances como (A L e
a Neve", "Terra Fria*, tA Selva*. "A Curva da Estrada" so expresses do que de mai
s alto nos deu a novelstica actual, hoje patrimnio da cultura do homem, e expresso
do verdadeiro humanismo, com ela o homem cresceu em dignidade. "O Instinto Supre
mo soma-se a essa grande obra de criao como um dos romances mais nobres da lngua po
rtuguesa.
Outro dia esteve em minha casa uma jovem redactora de um jornal de Lisb'oa. Perg
untou-me como me sentia vendo-me indicado a um prmio em companhia de Peneira de C
astro. E eu lhe respondi: "Jovem, quem merece o prmio s seu patrcio, o romancista m
estre do romance, o homem mestre do homem, Ferreira de Castro. Eu j fui mais do q
ue premiado ao ver-me colocado a seu lado, estou cumulado de honra".
(In 3'ornal do Comero do Rio ^ de Janeiro e muitos outros jornais.)
NDICE
A L E A NEVE 5
Prtico 7
I Parte Os Rebanhos 'l
II Parte L e Neve "3
in Parte A Casa 2bl
OPINIES CRTICAS 3 '
A CURVA DA ESTRADA 365
Prtico 367
A Curva da Estrada |7'
OPINIES CRTICAS 7
A MISSO 6l9
OPINIES CRTICAS "5
A EXPERINCIA 693
Ele 695
I A entrada ^95
II i."dia 699
in 2. dia 74
IV 4.0 dia 7H
V 5.0 dia 730
Ela 745
I i." tarde 745
II 3." tarde 751
in 4." tarde 73
IV 5." tarde 772
V 6." tarde > 7"4
VI 7." tarde \ 799
VII-54-a tarde |"
VIII 78." tarde 823
1196
NDICE
Pags
Todos Eles 825
I 6." dia 825
II 2i. dia 831
in 54. dia 840
IV 55. dia 846
V 79. dia 849
VI 107. dia 859
VIIi io." dia 865
VIII A experincia 865
IX132." tarde 871
X151.0 dia 877
XI O jantar 885
O SENHOR DOS NAVEGANTES 909
O INSTINTO SUPREMO 925
Prtico 929
O Instinto Supremo 933
Bibliografia 1177
OPINIES CRTICAS 1179
^fc
; A