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[SUMMARY] The document presents Roberta Guimarães' doctoral thesis which studied urban revitalization projects in Rio de Janeiro's port neighborhoods. It focuses on groups that opposed the city government's classifications of spaces in Morro da Conceição hill and identified as heirs to an Afro-Brazilian heritage. Guimarães conceptualizes these groups' cosmology and imagination of the place as the "myth of Little Africa."
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
A UTOPIA DA PEQUENA FRICA Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca
Roberta Sampaio Guimares
RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2011 2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
A UTOPIA DA PEQUENA FRICA Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca
Roberta Sampaio Guimares
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Cultural.
Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves
RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2011 3
A UTOPIA DA PEQUENA FRICA Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca
Roberta Sampaio Guimares
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Cultrual.
Aprovada por:
___________________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Jos Reginaldo Santos Gonalves PPGSA/ UFRJ
___________________________________________________________________ Prof. Dra. Mrcia Contins PPCIS/ UERJ
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva PPGAS/ USP
___________________________________________________________________ Prof. Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia PPGSA/ UFRJ
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Peter Fry PPGSA/ UFRJ
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Guimares, Roberta Sampaio. A Utopia da Pequena frica. Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca / Roberta Sampaio Guimares. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2011. 225 f.: il. Orientador: Prof. Dr. Jos Reginaldo Santos Gonalves. Tese (doutorado em Antropologia Cultural), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia, 2011. Referncias Bibliogrficas: f. 220-225. 1. Patrimnio. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Memria. 4. Projetos urbansticos. 5. Zona Porturia do Rio de Janeiro. I. Gonalves, Jos Reginaldo Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Filosofia e Cincias Sociais/Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. III. Ttulo. 5
A todos os que habitam.
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AGRADECIMENTOS
Imaginar ser o mundo habitado por diversas espcies, entre deuses, antepassados, homens, animais, plantas e vegetais, foi certamente o principal aprendizado que a realizao desta tese me trouxe. Assim, mais do que um exerccio de diversidade, a convivncia com pessoas to mltiplas me ofereceu um exerccio de criatividade: de perceber que o sentido do mundo, alm de ser o significado que atribumos a ele, tambm a forma como o vivenciamos sensivelmente. E, nesse processo de pesquisa e aprendizado, algumas pessoas e instituies foram fundamentais pelo apoio afetivo, intelectual e material que me ofereceram. minha famlia, agradeo por todo o incentivo aos meus estudos e crescimento pessoal: meus pais, Silvia e Humberto (in memoriam); meus avs maternos, Maria de Lourdes (in memoriam) e Jefferson (in memoriam); meus avs paternos, Isolina (in memoriam) e Henrique (in memoriam); e meu irmo, Rodrigo. E pelo carinho, apoio e comentrios tese, agradeo ao Joca. Ao meu orientador, Jos Reginaldo Santos Gonalves, agradeo pelo estmulo criativo e pelo agradvel ambiente de troca de suas aulas e seminrios. Entre os professores do PPGSA, tambm foram importantes na minha formao, atravs de comentrios e aulas, Beatriz Heredia, Marco Antnio Gonalves, Maria Laura Cavalcanti, Glucia Villas Bas e Ana Maria Galano (in memoriam). Ao longo do doutorado, tambm contei com o apoio de diversos amigos, sendo particularmente interessantes os dilogos acadmicos que tive com Roberto Marques, Nina Bitar e Alberto Goyena. Alm deles, tambm foram fundamentais os amigos de todas as horas Madalena Romeo, Elizete Igncio, Leonardo Menezes, Luzimar Pereira e Priscila Barreto. E as companheiras presenas de Bianca Brando, Gustavo Autran e Jos Maurcio Arruti. E, nos diversos espaos que frequentei durante o trabalho de campo, gostaria de agradecer em especial s contribuies e convivncias com Me Marlene dOxum, Nazar, Luan, Wilson Silva, Carlos Machado, Cabea Branca, Regina Branca, Tia Creusa, Lissandro Garrido, Maurcio Nolasco, Damio Braga, Adlia Vallis, Antnio Agenor, Marcelo Abreu, Marcos Frigideira e Marcelo Frazo. Agradeo, por fim, o apoio da secretaria do PPGSA nos encaminhamentos burocrticos e CAPES por ter me concedido uma bolsa de estudo e viabilizado financeiramente a pesquisa. 7
Como sabeis que cada Pssaro que desliza nas asas da ventania No abarca um imenso universo de delcias, imerso em vossos cinco sentidos?
William Blake Uma Viso Memorvel
O pensamento mgico no uma estreia, um comeo, um esboo, a parte de um todo ainda no realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto desse outro sistema que constitui a cincia, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espcie de expresso metafrica do segundo. Portanto, em lugar de opor magia e cincia, seria melhor coloc-las em paralelo, como dois modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados tericos e prticos (pois, desse ponto de vista, verdade que a cincia se sai melhor do que a magia, no sentido de que algumas vezes ela tambm tem xito), mas no devido espcie de operaes mentais que ambas supem e que diferem menos na natureza que na funo dos tipos de fenmeno aos quais so aplicadas.
Claude Lvi-Strauss O Pensamento Selvagem
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RESUMO
A UTOPIA DA PEQUENA FRICA Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca
Roberta Sampaio Guimares
Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves
Nesta tese, apresento o estudo realizado sobre a divulgao e implantao de projetos de revitalizao urbana idealizados pela prefeitura carioca nos bairros porturios da Sade, Gamboa e Santo Cristo. Como o Morro da Conceio havia sido definido o setor prioritrio de criao de novas unidades habitacionais, desenvolvi nele um trabalho de campo entre 2007 e 2009, quando percebi que seus espaos portavam diferentes cosmologias e formas de habitar, cada qual estruturando seus espaos a partir de mltiplas relaes de oposio. Mas, na proposta elaborada pelos urbanistas da prefeitura para a sua revitalizao, os sobrados habitados por diferentes ncleos familiares ligados ao trabalho no porto e ao pequeno ou informal comrcio haviam sido classificados como insalubres, vazios ou invadidos. Direcionei ento a pesquisa para grupos que se contra posicionavam s propostas e classificaes da prefeitura, se auto identificando herdeiros de um patrimnio negro e do santo e operando uma cosmologia e imaginrio prprios, que denominei de mito da Pequena frica. Nesse mito, os espaos do Morro da Conceio e da Zona Porturia no eram apenas um territrio e natureza inanimados a serem dominados e explorados economicamente, mas igualmente constitudos por humanos, animais, plantas, deuses e mortos, e em constante criao e dissoluo.
Palavras-chaves: Patrimnio; Cultura afro-brasileira; Memria; Projetos urbansticos; Zona Porturia do Rio de Janeiro.
RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2011 9
ABSTRACT
THE UTOPIA OF LITTLE AFRICA The spaces of heritage in the Port Zone carioca
Roberta Sampaio Guimares
Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves
In this thesis, I present the research on the dissemination and implementation of "urban regeneration" projects devised by the cariocas port neighborhoods of Sade, Gamboa and Santo Cristo. As Morro da Conceio had been defined the priority sector for the creation of new housing units, I development a fieldwork between 2007 and 2009, when I realized that their spaces were carrying different cosmologies and ways of living, each one building its space from multiple relations of opposition. But in the proposal drawn up by prefecture planners to its "revitalization", the townhouses inhabited by different households connected to the work in the port and the small and informal trade had been classified as "unhealthy", "empty" or "invaded". I directed then the search for groups that are positioned against the proposals and classifications of the prefecture, identifying themselves heirs to a heritage "black" and "holy" and operating an own imagination and cosmology, which I called "myth of Little Africa." In this myth, the spaces of the Morro da Conceio and Port Zone were not just a territory and inanimate nature to be mastered and exploited economically, but also constituted by humans, animals, plants, gods and dead, and in constant creation and dissolution.
Keywords: Heritage; African-Brazilian culture, Memory, Urban projects; Port Zone of Rio de Janeiro.
RIO DE JANEIRO Fevereiro de 2011 10
NDICE
Lista de ilustraes. ___________________________________________________ 12
I ntroduo. A revitalizao da Zona Porturia e seus efeitos __________________________ 16 Apresentao da pesquisa ___________________________________________________ 16 De stio histrico ao plano urbanstico Porto do Rio _______________________________ 20 O Morro da Conceio segundo o urbanismo municipal ____________________________ 30 O reencontro da Pequena frica com Pereira Passos ______________________________ 42 Opes narrativas e diviso de captulos ________________________________________ 50
Captulo 1. Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios ________________________ 53 O primeiro contato com o morro ______________________________________________ 53 As festas e bares da parte alta ________________________________________________ 61 O conflito da Pedra do Sal ___________________________________________________ 70 O carnaval e o candombl do Valongo _________________________________________ 83
Captulo 2. A boa vizinhana da parte alta ________________________________________ 91 A valorizao cultural dos moradores tradicionais ______________________________ 91 O masculino e o feminino no Bar do Srgio e na Capela __________________________ 103 Os polticos e suas mediaes entre diferentes espaos __________________________ 109 Os espaos da reputao e dos projetos tursticos ________________________________ 121
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Captulo 3. O esprito quilombola da Pedra do Sal _________________________________ 125 Os mediadores do Quilombo da Pedra do Sal ___________________________________ 125 Os diversos usos do territrio tnico ________________________________________ 137 O projeto franciscano para uma populao marginalizada ________________________ 147 O processo de transformao de residncias em obras sociais _____________________ 157 Os espaos da reparao e das prticas do candombl ____________________________ 165
Captulo 4. Os fundamentos do Valongo _________________________________________ 168 O Afox Filhos de Gandhi e o povo do santo ___________________________________ 168 O sagrado e o profano em desfile pelas ruas da cidade ____________________________ 178 O mundo dos orixs na casa de Me Marlene dOxum __________________________ 188 Transformao e permanncia nas diferentes pocas do Gandhi ___________________ 203 Os espaos da magia e da reciprocidade _______________________________________ 210
Concluso. Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca _______________________ 213
SIGLA DE IDENTIFICAO DAS IMAGENS FA: fotografia da autora. VA: vdeo da autora. FSA: Fotografia de satlite do Google Earth com marcadores da autora. PR: Imagem do plano urbanstico Porto do Rio/ Instituto Pereira Passos. MC: Imagem do livro Morro da Conceio/ Instituto Pereira Passos. VOT: Imagem da Venervel Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia.
INTRODUO Pgina 16 Bairros da Sade, Gamboa e Santo Cristo. (PR) Pgina 18 Localizao da Pedra do Sal, da Igreja da Prainha, do Valongo e do Largo da Santa. (FSA) Pgina 26 Puerto Madero, Buenos Aires, Argentina. (PR) Pgina 27 Sequncia demonstrativa da rea aterrada e do traado original dos bairros da Sade, Gamboa e Santo Cristo. (PR) Pgina 28 Morro de So Bento visto do Per Mau. (PR) Pgina 29 Ncleos estratgicos de atuao urbanstica nos bairros porturios. (PR) Pgina 32 reas porturia e central segundo o Plano Agache. (MC) Pgina 33 reas porturia e central segundo o Plano Doxiadis. (MC) Pgina 33 reas porturia e central segundo o PUB-RIO. Mapa ilustrado MC. Pgina 34 reas porturia e central segundo o Plano Diretor de 1992. (MC) Pgina 34 Bens preservados patrimonialmente no Morro da Conceio. (MC) Pgina 39 Segmentos das dinmicas socioespaciais do Morro da Conceio. (MC) Pgina 41 Operaes de reabilitao do Morro da Conceio. (MC) Pgina 48 Localizao do Sambdromo e Terreiro do Samba, do monumento a Zumbi dos Palmares, da Escola Tia Ciata, da Pedra do Sal, do Centro Cultural Jos Bonifcio, do Instituto Pretos Novos, do Instituto Batucadas Brasileiras e do Afox Filhos de Gandhi. (FSA) 13
CAPTULO 1 Pgina 61 Largo da Santa e da entrada da Fortaleza. (FA) Pgina 62 Rua Jogo da Bola com campanrio da capela ao fundo. (FA) Pgina 71 Pedra do Sal com Rua Argemiro Bulco ao fundo. (FA) Pgina 72 Largo da Prainha. (FA) Pgina 73 Igreja da Prainha. (FA) Pgina 74 Sobrados do Projeto Humanizao do Bairro no Adro de So Francisco. (FA) Pgina 83 Fachada da sede do Afox Filhos de Gandhi na Rua Camerino. (FA) Pgina 84 Jardim Suspenso do Valongo. (FA) Pgina 87 Integrantes do Gandhi durante apresentao no monumento a Zumbi dos Palmares, Praa Onze. (FA) Pgina 88 Sequncia de trs integrantes do Gandhi e suas diferentes vestimentas: Cabea Branca, Nazar e Tia Creusa. (FA)
CAPTULO 2 Pgina 91 Localizao do Observatrio do Valongo, da Capela da Rua Jogo da Bola, do Bar do Srgio, do Largo da Santa e do Bar do Geraldo. (FSA) Pgina 93 Sequncia da Capela e do Bar do Srgio no momento de sada da procisso a Nossa Senhora da Conceio na Rua Jogo da Bola. (FA) Pgina 94 Sada da Capela do andor de Virgem Maria. (FA) Pgina 95 Passagem da procisso em frente ao Bar do Geraldo na Ladeira Joo Homem. (FA) Pgina 118 Escombros da Rua Major Daemon sendo pintado de purpurina dourada durante evento do IPHAN. (FA) Pgina 119 Ao artstica na Rua Sacadura Cabral em evento do IPHAN. (FA) Pgina 120 Velas de citronela sendo colocadas na Pedra do Sal em evento do IPHAN. (FA)
CAPTULO 3 Pgina 127 Localizao do Valongo, da Pedra do Sal, do Largo da Prainha, das escolas da VOT e da Igreja da Prainha. (FSA) 14
Pgina 137 Restaurante Victoria Self Service e bar Bodega do Sal no Largo Joo da Baiana. (FA) Pgina 140 Centro Comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro no Largo Joo da Baiana. (FA) Pgina 142 Sobrados e depsito de materiais na Rua So Francisco da Prainha. (FA) Pgina 142 Padaria Escola na Rua So Francisco da Prainha. (FA) Pgina 155 Sobrados utilizados pelo Projeto Humanizao do Bairro. (VOT)
CAPTULO 4 Pgina 176 rea interna da sede do Afox Filhos de Gandhi, com Praa dos Estivadores ao fundo. (FA) Pgina 178 Ritual de Me Torodi no lanamento do Projeto do Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi na sede do Gandhi. (VA) Pgina 180 Preparo dos balaios para o Presente de Iemanj por Tia Creusa e Regina na sede do Gandhi. (VA) Pgina 180 Canto para Exu na sede do Gandhi. (VA) Pgina 181 Pad para Exu depositado por Tia Creusa, Machado e Carlinhos na Rua Camerino. (VA) Pgina 181 Sequncia de Me Marlene dOxum benzendo participantes na tenda dos balaios e carro de som com msicos do Gandhi, ambos na Cinelndia durante o Presente de Iemanj. (VA) Pgina 182 Percurso dos balaios da sede do Gandhi at a Cinelndia e do cortejo at a Praa XV. (FSA) Pgina 183 Estandarte do Gandhi com desfilantes ao fundo no Carnaval da Avenida Rio Branco. (VA) Pgina 184 Roda samba no final do desfile do Gandhi na Avenida Atlntica, Copacabana. (VA) Pgina 188 Me Marlene dOxum trajando fantasia do Gandhi. (FA) Pgina 192 Saudaes dos filhos de santo da casa de candombl de Marlene na festa para Exu. (VA) Pgina 193 Ogans da casa de candombl de Marlene durante festa para Exu. (VA) 15
Pgina 201 Sequncia do afox do Presente das Iabs dos filhos de santo de Marlene pela Rua dos Manjolos e depsito dos balaios por Marlene e Nazar na Baa de Guanabara. (VA) Pgina 208 Percurso do desfile de carnaval do Gandhi na dcada de 1970 pelas ruas do porto e do centro da cidade. (FSA) 16
I ntroduo. A revitalizao da Zona Porturia e seus efeitos
APRESENTAO DA PESQUISA
Em meados de 2007, iniciei um estudo sobre o Porto do Rio, projeto de revitalizao urbana idealizado pela prefeitura carioca para ser implantado nos bairros porturios da Sade, Gamboa e Santo Cristo. Naquele momento, a Zona Porturia estava em processo de ressignificao perante a geografia moral da cidade, como conceituada pela antroploga Gary McDonogth (2003): nos imaginrios construdos por diferentes mdias, no estava mais sendo associada apenas prostituio, ao trfico de drogas e s favelas, despontando notcias que positivavam alguns de seus espaos e habitantes. Essa transformao da percepo da mdia se relacionava diretamente com a instalao de alguns bares e casas de show voltadas para um pblico de classe mdia na Rua Sacadura Cabral e tambm com a reforma do terminal de passageiros do porto, que havia incentivado o desembarque de turistas de cruzeiros martimos internacionais e nacionais na cidade. Dentro do amplo territrio dos bairros porturios, os urbanistas municipais haviam definido como setor prioritrio de atuao a Praa Mau, o Per Mau e o Morro da Conceio. Esses espaos estavam localizados na juno do bairro da Sade com a 17
Avenida Rio Branco, via de concentrao dos estabelecimentos financeiros da rea central da cidade, e neles foram previstos o desenvolvimento de atividades tursticas e a criao de novas unidades habitacionais. Como, entre eles, o Morro da Conceio era o nico espao ocupado de forma predominantemente residencial, o escolhi para a realizao de um trabalho de campo. De acordo com os mapas utilizados pelos urbanistas, o territrio do morro era delimitado por sua base e os encontros da Rua do Acre, Travessa do Liceu, Rua Sacadura Cabral, Rua Camerino, Rua Senador Pompeu, Rua da Conceio, Rua Jlia Lopes Almeida, Rua dos Andradas e Rua Leandro Martins. No pretendia, no entanto, tratar analiticamente o morro como um mero cenrio de relaes sociais ou suporte fsico racionalmente construdo e observvel. Pelo contrrio, buscava diluir a prpria noo totalizante de morro operada pelo discurso administrativo da prefeitura e ressaltar suas diferentes possibilidades de espaos, percursos e circuitos. Pois o morro portava diferentes cosmologias e suas formas de habitar, cada qual estruturando seus espaos a partir de mltiplas relaes de oposio. Era, portanto, um local fragmentado, uma heterotopia, conforme definido por Michel Foucault (2006): uma referncia espacial localizvel que abarcava posicionamentos e contra posicionamentos que se refletiam e se designavam. Essas diferentes maneiras com que grupos e indivduos estruturavam seus espaos movimentavam tambm sistemas especficos de temporalidade, onde frequentemente seu passado era narrado a partir de verses mticas que presentificavam eventos tidos como histricos. E com tais mitos, como conceituado pelo antroplogo Claude Lvi-Strauss (1993 e 2005), eles buscavam reconstituir uma noo de totalidade social e delimitar seus prprios tempos, espaos e modos de vida. Ao longo do trabalho de campo que desenvolvi durante dois anos, observei que, a despeito dessa diversidade de habitantes, espacialidades e temporalidades, na proposta elaborada pelos urbanistas da prefeitura para a revitalizao do Morro da Conceio os sobrados habitados por diferentes ncleos familiares ligados ao trabalho no porto e ao pequeno ou informal comrcio haviam sido classificados como insalubres, vazios ou invadidos. E que essa classificao estava produzindo em seus espaos, como efeito social, o acirramento de conflitos em torno dos seus usos, a atrao de projetos elaborados por entidades assistenciais voltados para o controle e ordenamento da populao classificada como marginalizada ou criminosa, e a movimentao de narrativas de tradio para demarcar fronteiras identitrias e territoriais. 18
Dentre as vrias formas de habitar e estruturar os espaos do morro, pesquisei trs que estavam sendo afetadas direta ou indiretamente pelos efeitos das propostas urbansticas da prefeitura: a dos moradores da parte alta que tiveram suas prticas valorizadas e classificadas pelos urbanistas municipais como referentes a um patrimnio portugus e espanhol; a dos moradores da base do morro que se auto identificaram como portadores de um patrimnio negro aps entrarem em conflito habitacional com dirigentes de uma entidade catlica que se auto atribua uma patrimnio franciscano; e a de integrantes de um grupo carnavalesco que se identificavam como portadores de um patrimnio do santo, relacionado s prticas do candombl, e buscavam a regularizao da ocupao de sua sede na regio do morro denominada de Valongo.
Ao pesquisar grupos sociais a partir da noo de patrimnio, privilegiei a observao de espaos que eram de uso predominantemente coletivo e se apresentavam como seus centros de irradiao simblica, ou pontos nodais, como definido pelo urbanista Kevin Lynch (1999): espaos de conexo e/ou concentrao de algum uso ou caracterstica fsica, que se apresentavam como foco ou sntese do morro, sendo, dele prprio, smbolos. Em momentos ritualizados, eram esses espaos que os grupos utilizavam para prticas sagradas que presentificavam suas narrativas mticas sobre o passado do morro. Assim, estudei os moradores da parte alta a partir do Largo da Santa; os do patrimnio negro a partir da Pedra do Sal e de sua interao conflituosa com os portadores do patrimnio franciscano da Igreja da Prainha; e os do patrimnio do santo a partir do antigo mercado de escravos do Valongo. Sendo que, cotidianamente, haviam 19
espaos que eram correlacionados a cada um deles, como determinados bares, ruas e imveis. Esses patrimnios, no entanto, nem sempre eram reconhecidos por medidas governamentais de preservao artstica, histrica ou cultural e, no cotidiano das prticas de seus mediadores ou portadores, extrapolavam a concepo jurdica do termo. Para conceituar ento a noo de patrimnio, utilizei o estudo da antroploga Annette Weiner (1992), que propunha que objetos e prticas sociais podiam ser distinguidos entre bens alienveis e bens inalienveis. Para ela, estes ltimos eram vivenciados de forma distinta por requererem uma conservao obrigatria, j que se trocados, vendidos ou extintos poderiam desencadear uma mudana de status e posio social de seus herdeiros frente sua rede de relaes. E, baseada no conceito de ressonncia definido pelo antroplogo Jos Reginaldo Santos Gonalves (2007b), observei como e por que tais patrimnios eram eficazes na evocao da apreciao de uma experincia cultural nica em seus proprietrios e expectadores. Esses bens inalienveis e suas referncias espaciais eram presentificados, circulados, conservados e transmitidos no apenas atravs de usos e rituais, mas tambm de produtos mediadores, como filmes, msicas, textos literrios, matrias jornalsticas, estudos acadmicos, intervenes arquitetnicas, eventos culturais e aes jurdicas, alm das polticas oficiais de patrimonializao. Tais produtos mediavam diferentes formas de representar e apresentar o morro, anulando, suspendendo ou invertendo seus posicionamentos e contra posicionamentos atravs de suas inseres em um fluxo de imagens que acentuava o que o antroplogo Bruno Latour (2008) chamou de iconoclash: a incerteza sobre os efeitos da ao humana ao gerar um mediador, pois este poderia simultaneamente expor, denunciar, desmascarar, entreter, manter ou preservar uma crena, mito ou princpio. Ao final da pesquisa, percebi que os grupos relacionados ao patrimnio negro e do santo se contra posicionavam s propostas urbansticas da prefeitura para o Morro da Conceio e a Zona Porturia movimentando uma cosmologia e imaginrio prprios, atravs do que denominei de mito da Pequena frica. Pois, para eles, seus espaos no eram apenas um territrio e natureza inanimados a serem dominados e explorados economicamente, mas formados por um mundo habitado, como proposto pelo antroplogo Tim Ingold (2000): um espao igualmente constitudo por humanos, animais, plantas, deuses e mortos, e em constante criao e dissoluo.
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DE STIO HISTRICO AO PLANO URBANSTICO PORTO DO RIO
As primeiras informaes que obtive sobre o plano urbanstico Porto do Rio foram atravs de textos jornalsticos disponibilizados na internet. Em sua maioria, eles abordavam o polmico e frustrado projeto de construo do Museu Guggenheim, idealizado para ocupar o Per Mau e considerado a ncora da revitalizao da Zona Porturia. As matrias jornalsticas indicavam o ms de novembro de 2000 como o incio das negociaes para a implantao da primeira filial do museu na Amrica Latina. Nessa data, foi realizado um jantar na cidade-sede do museu, Nova Iorque, com representantes das prefeituras de quatro cidades brasileiras: Recife, Curitiba, Salvador e Rio de Janeiro. Eles disputavam a instalao do museu por consider-lo um dinamizador das atividades tursticas, pautados pelas experincias tidas como bem sucedidas de construo do museu nas cidades de Bilbao, Berlim e Veneza. Dois anos aps esse jantar, a prefeitura carioca divulgou a finalizao do projeto do museu, concebido pelo arquiteto francs Jean Nouvel para ser construdo no Per Mau. No entanto, o contrato realizado entre a prefeitura e a fundao nova-iorquina foi contestado por alguns vereadores e seus princpios construtivos tambm foram questionados por diversos especialistas da arquitetura e urbanismo, ganhando uma grande projeo na mdia nacional e internacional. Duas crticas se destacaram no debate que se formou: a denncia do carter de shopping center do projeto, por ele prever a instalao de centros comerciais, centros de convenes e estacionamentos; e a avaliao de no haver necessidade de criao de um novo smbolo da cidade, por ela possuir cones consagrados como a Praia de Copacabana, o Po de Acar, o Corcovado e o Maracan. Nos meses seguintes, a crise em torno da construo do museu foi crescente, at que ela foi completamente inviabilizada jurdica e socialmente em fevereiro de 2005. Duas outras construes de dimenses monumentais elaboradas no mbito do Porto do Rio, no entanto, lograram ser realizadas: a Vila Olmpica da Gamboa, inaugurada em 2005, e a Cidade do Samba, inaugurada em 2006. A minha escolha pelo estudo de um plano urbanstico no foi acidental. Durante a realizao da dissertao de mestrado (Guimares, 2004), eu j havia pesquisado o polmico processo de transformao de diversos imveis da economicamente valorizada Zona Sul carioca em patrimnios culturais. Tambm uma iniciativa da dupla gesto de Cesar Maia na prefeitura, entre os anos de 2001 e 2008, a decretao das reas de Proteo ao Ambiente Cultural APACs havia unido os interesses do 21
poder pblico municipal e de algumas associaes de moradores para que fosse inibida a alterao das caractersticas urbansticas, arquitetnicas, demogrficas e sociais dessa regio, pressionando a indstria da construo civil a atuar em outros bairros da cidade. Quando decidi desenvolver uma tese de doutorado sobre o Porto do Rio desejava, assim, dar continuidade aos meus estudos sobre intervenes urbansticas em amplas reas, mas desta vez focando a anlise da noo oposta de preservao, que era a de revitalizao. Ao comear minha pesquisa sobre a Zona Porturia, no encontrei nenhum estudo acadmico que tivesse sido realizado nela a partir de um trabalho de campo de durao prolongada, ausncia tambm apontada pela reviso bibliogrfica do gegrafo Roberto Schmidt de Almeida (2005) 1 . Encontrei, no entanto, trs pesquisadores que j haviam analisado o plano Porto do Rio e que, em comum, utilizavam o conceito de gentrificao 2 para criticarem o papel econmico do que classificavam como cidades globais. Cunhado em 1963 pela sociloga Ruth Glass, o conceito havia sido definido originalmente como o processo de investimento, reabilitao e uso de moradias desvalorizadas de bairros operrios ou populares do centro de Londres por camadas mdias assalariadas (Bidou-Zachariasen, 2006). Posteriormente, vrias pesquisas o utilizaram para analisar as transformaes de antigas reas centrais e porturias causadas tanto por projetos urbansticos voltados para a implantao de novos usos e funes nesses espaos, quanto por iniciativas individuais de reabilitao de edificaes. Com sua difuso acadmica, o conceito foi usado por estudiosos que buscavam compreender fenmenos sociais em cidades distintas, como Buenos Aires, Barcelona, Cidade do Mxico, Lyon, Npoles, Baltimore, Nova Iorque, Recife, Salvador, So Paulo e Belm. O uso deste conceito, no entanto, recorrentemente conduzia a uma pauta de perguntas a serem respondidas pelo pesquisador e a categorias preconcebidas que o direcionavam a posicionamentos polticos-programticos, tais como: Quem eram os
1 Haviam publicados, porm, alguns textos que abordavam diferentes aspectos da Zona Porturia carioca, como os que tinham como tema direto ou indireto o seu processo de urbanizao, como os do gegrafo Maurcio Abreu (2006), do urbanista Sergio Lamaro (1991), dos historiadores Sidney Challoub (1996) e Claudio Figueiredo (2005) e do arquiteto Henrique Barandier (2006); os sobre a ocupao e atividades da populao negra na regio, como os dos historiadores Mary Karacsh (2000), Erika Bastos (2005) e Jlio Csar Pereira (2007); e a coletnea de estudos Vozes do Porto: memria e histria oral (orgs. Thiesen, Barros e Santana, 2005), que reunia trabalhos de diversos especialistas das cincias humanas. 2 Na literatura brasileira que abordava projetos de revitalizao urbana, havia duas tradues mais correntes para o conceito gentrification, que eram gentrificao e enobrecimento. E uma variao do conceito tambm podia ser encontrada no uso do termo elitizao. 22
gentrificadores da rea a ser revitalizada? Como o plano de revitalizao conseguiria garantir a diversidade social das reas aps a atratividade da classe mdia? Qual era o plano de gesto dos recursos econmicos do plano? Como evitar que o capital privado provocasse uma especulao imobiliria na rea revitalizada? Como manter o patrimnio e a cultura popular da rea? Como articular os movimentos sociais para realizarem uma resistncia gentrificao? O primeiro texto que utilizava o conceito gentrificao para analisar o plano Porto do Rio foi publicado pela urbanista Clarissa Moreira (2004). Ela props que havia tenses entre as prticas de transformao urbanstica e de preservao patrimonial e que o plano poderia formar uma urbanidade contempornea, que caracterizou como marcada pela segregao e hierarquizao do espao social, pela produo em massa e pelo simulacro esttico. Em seguida, o gegrafo Julio Csar Santos (2005) apresentou uma sequencia histrica que conectava o plano carioca modernizao fordista, movimento global de reestruturao da produo capitalista iniciada na dcada de 1920. E, por fim, a sociloga Maria Lobo (2006) mapeou os atores nacionais e regionais envolvidos no plano e o comparou a outros projetos urbansticos de diversas cidades do mundo. Embora possussem abordagens distintas, em unssono as concluses desses trs pesquisadores apontaram que o Porto do Rio era global e oposto a uma realidade local que estava ameaada de desterritorializao por causa da valorizao imobiliria da Zona Porturia e do encarecimento de seus servios. E que sua comunidade popular e tradicional seria expulsa aps o fluxo residencial da classe mdia desejosa por consumir equipamentos de lazer e cultura referenciados numa esttica globalizada. Ou seja, o uso acusatrio do conceito gentrificao fez com que seus estudos apresentassem de forma tipificada tanto a populao residente quanto a potencialmente atrada para a regio aps as intervenes urbansticas. E tambm operou oposies baseadas em modelos puros de realidade, como povo e elite, local e global, coletivo e individual. No entanto, essas oposies construram premissas empiricamente frgeis, pois, alertando para os perigos de uma suposta elitizao da regio, partiram da ideia de que as transformaes urbanas estariam em desacordo com os desejos de moradores tambm supostamente tradicionais. Temendo a consolidao de uma forma de sociabilidade urbana calcada no anonimato e na massificao cultural, idealizaram uma sociabilidade baseada em relaes de proximidade e vizinhana. Acreditando no poder de ao dos 23
interesses individuais, imaginaram interesses coletivos deles apartados. E, ao denunciarem a implantao de uma arquitetura globalizada, operaram com um regime de autenticidade onde elegeram materialidades relacionadas a tcnicas construtivas consideradas nativas. Assim, esses trs crticos do Porto do Rio trabalharam em suas anlises com modelos ideais de cidade, se aproximando de estudos como o do urbanista e historiador da arte Giulio Argan (1992), que propunham uma normatizao dos projetos de transformao do espao urbano. E, ao utilizarem grandes modelos formais para compreenderem as cidades, ignoraram as atividades e redes de sociabilidade de seus moradores e usurios, como criticado pelo antroplogo Jos Guilherme Magnani (2002) em seu estudo sobre as tendncias dos estudos da questo urbana. Operaram, ainda, com recursos narrativos especficos, que afirmavam serem externas percepes estruturadas discursivamente: como o sistema que percebia a autenticidade como imanente ao prprio objeto, noo problematizada pelos antroplogos Richard Handler (1985), Jos Reginaldo Santos Gonalves (1988) e James Clifford (1994); e como a retrica da perda que percebia a histria como um processo incontrolvel de destruio, como conceituado tambm por Gonalves (1996). Foi em busca de uma alternativa analtica a esses estudos que analisei a forma como os urbanistas municipais haviam estruturado mentalmente suas noes de espao e tempo no material de divulgao do plano Porto do Rio. Nessa anlise, dois estudos foram especialmente teis: o do arquiteto Adrin Gorelik (2005), que pesquisou o contexto poltico e ideolgico dos que haviam planejado a construo de Braslia e elaborou uma crtica aos estudos formalistas sobre espaos construdos; e o estudo do antroplogo Paul Rabinow (2003), que comparou diferentes modelos mentais de cidades planejadas para observar as variaes urbansticas de modalidades de poder. O plano urbanstico Porto do Rio foi divulgado oficialmente em outubro de 2001 e assinado por quatro representantes do poder municipal. No segundo semestre de 2008, conversei com trs deles: Alfredo Sirkis, que na poca do lanamento do plano era secretrio de urbanismo e presidente do rgo responsvel por sua elaborao, o Instituto Pereira Passos - IPP; Augusto Ivan Pinheiro, ento diretor de urbanismo; e Nina Rabha, que era gerente de urbanismo. Eles me contaram uma verso especfica de suas atuaes na Zona Porturia, selecionando determinados fragmentos do passado que, narrativamente organizados e compartilhados, compunham o passado mtico dos urbanistas da prefeitura na regio. E suas narrativas demonstraram, ainda, que a 24
mudana do imaginrio sobre a Zona Porturia havia ocorrido gradualmente e a partir de um processo de valorizao de seus bairros como bens culturais e histricos da cidade. Segundo esses trs urbanistas, as diretrizes de implantao de um amplo plano urbanstico na Zona Porturia comearam a ser elaboradas por especialistas do urbanismo e do patrimnio no final da dcada de 1970, quando foram criadas as primeiras polticas pblicas especficas para a preservao do espao urbano carioca. At esse momento, j tinham havido algumas iniciativas do poder municipal de controlar o desenvolvimento das reas porturias e centrais, como a legislao que limitava em dois pavimentos as novas construes. Mas estas medidas visavam impedir somente o aumento da volumetria das edificaes, no obrigavam a manuteno de seus aspectos fsicos. Um projeto que se referia diretamente ao desejo de demarcar uma rea de interesse cultural foi criado pela prefeitura em 1979: o Corredor Cultural do Centro, que resultou na preservao patrimonial de cerca de 1.300 edificaes. E, visando tambm a valorizao do patrimnio da rea central da cidade, foi realizada em 1982 uma obra de restauro do Pao Imperial, mas desta vez a partir de uma iniciativa do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN. Objetivando potencializar economicamente o espao atrelando-o atividade turstica, esse projeto fez com que o bem se tornasse um equipamento cultural voltado para o lazer e o entretenimento, catalisando ainda a transformao urbana de seu entorno. E essas duas iniciativas consolidaram o primeiro stio histrico da cidade, difundindo a possibilidade da relao entre a preservao de conjuntos edificados e a criao de atrativos tursticos dinamizadores das economias locais. De acordo com Augusto Ivan e Nina, foi tambm no incio da dcada de 1980 que comearam as discusses e estudos para que parte da Zona Porturia fosse transformada em stio histrico. No ano de 1988, essa converso simblica foi oficialmente realizada com a decretao da rea de Proteo Ambiental que ficou conhecida como SAGAS, abreviao dos nomes dos bairros porturios contemplados: Sade, Gamboa e Santo Cristo. Neles, foram preservados cerca de 2.000 bens, localizados principalmente nos morros da Conceio, da Sade, do Livramento e do Pinto e em suas reas planas circundantes. O Morro da Providncia, embora tenha sido includo na rea de preservao, no teve bens pontualmente preservados. J entre os bairros porturios, no foi contemplado 25
por essa preservao o Caju. E ficou ainda fora da preservao toda retro-rea porturia surgida no incio do sculo XX com o aterro de parte da orla da Baa de Guanabara realizado por Pereira Passos, onde foram instalados galpes, armazns e ramais ferrovirios. A criao do SAGAS demarcou, assim, uma nova espacialidade administrativa da Zona Porturia, que passou a distinguir temporalmente seus bens, bairros e reas como histricos e no histricos. E, ao longo da dcada de 1990, essa oposio e suas formas de classificar os espaos foram utilizadas pelos urbanistas municipais para segmentar suas aes em trs linhas de interveno: a valorizao dos aspectos histricos e culturais dos morros da Conceio, do Livramento, da Sade e do Pinto; o planejamento urbano das favelas do Morro da Providncia e do Caju; e a explorao imobiliria da retro-rea porturia. Como informou Nina, nessa poca diretora da Regio Administrativa da Zona Porturia, no entorno dos morros classificados como histricos foram desenvolvidos diversos mecanismos de controle e disciplinamento dos usos de seus espaos: a identificao de vazios e imveis arruinados que poderiam ser reabilitados; a retirada de moradias irregulares construdas embaixo de viadutos; a criao ou reforma de praas e largos, para que se tornassem pontos de referncia urbanos; e a restrio espacial de vendedores ambulantes. J na parte alta desses morros, foram realizados programas de reabilitao patrimonial e habitacional que visavam a recuperao fsica dos casarios, a atrao residencial de famlias de classe mdia e a criao de novos locais de visitao turstica. Na retro-rea porturia, a prefeitura tambm desenvolveu algumas iniciativas de implantao de projetos monumentais. Em 1995, criou o Plano Estratgico do Rio de Janeiro para viabilizar a realizao de parcerias entre o poder pblico e a iniciativa privada e procuraram se aliar Associao Comercial do Rio de Janeiro, Federao das Indstrias do Rio de Janeiro e autarquia federal Companhia Docas. No entanto, de acordo com os estudos da urbanista Rose Campons (1998), as medidas de cooperao iniciadas com a Docas, que possua o direito de estabelecer contratos de arrendamento para a explorao dos 500.000m de instalaes porturias, foram interrompidas pelas divergncias entre suas concepes urbansticas, fazendo com que cada uma elaborasse seus prprios projetos para a transformao da regio e tentasse agregar em torno deles os investidores privados. Buscando superar a sua insuficiente reserva patrimonial, a prefeitura negociou ento diretamente com os ministrios da Agricultura e da Fazenda, para que os imveis 26
de propriedade federal fossem transferidos para o domnio municipal, e ofereceram iniciativa privada a possibilidade de explorao dos novos equipamentos e espaos urbanos que fossem por ela financiados. E, tendo como principal meta essa revitalizao urbana da Zona Porturia, criou em 1998 o IPP que, segundo Sirkis, deveria planejar as intervenes urbansticas, divulgar o projeto para o empresariado nacional e internacional e promover a interlocuo com moradores, empresrios e demais agentes econmicos da rea. O Porto do Rio foi divulgado trs anos aps a criao do IPP, em material disponibilizado na internet, e era composto por duas partes: Um projeto para o porto, onde eram apresentadas concepes e objetivos gerais; e Setor prioritrio, onde eram simuladas visualmente as implantaes de alguns dos projetos. Para compreender o corpo de imagens e textos que apresentava as transformaes idealizadas, analisei como ele havia sido comunicativamente emoldurado atravs do uso de metforas e metonmias visuais e verbais, ou seja, dos aspectos metacomunicativos do seu discurso, conforme proposto pelo antroplogo Gregory Bateson (1972). A primeira imagem apresentada neste material era a fotografia panormica de uma orla clicada do ponto de vista de uma pessoa embarcada, realizada ao entardecer e que captava as luzes acessas das vias e edificaes, demonstrando que naquele espao eram desenvolvidas atividades diurnas e noturnas. A legenda da foto informava que o espao era Puerto Madero, Buenos Aires, onde havia sido realizada uma experincia de revitalizao de rea porturia considerada exemplar pelos urbanistas da prefeitura carioca. E o texto que a acompanhava operava um regime de historicidade calcado na valorizao do futuro, utilizando termos como velho, antigo, ocioso e abandonado para qualificar o espao no tempo presente da Zona Porturia carioca, e novo, moderno, criativo e reciclado para se referir ao futuro e a seus projetos de transformao. Em seguida, eram confrontados dois projetos idealizados para o espao na dcada de 1980. Com a insero de uma ilustrao publicada na capa da Revista da Associao Comercial do Rio de Janeiro, era apresentada a proposta de instalao de um teleporto, que ocuparia a retro-rea porturia dos bairros da Sade, Gamboa e 27
Santo Cristo com vias pblicas amplas e edificaes verticalizadas. O texto criticava este projeto, acusando-o de descaracterizante das formas edificadas carregadas de tradio e passado e, como contraponto a ele, citava a criao do projeto SAGAS e da transformao desses bairros em stio histrico. Os projetos do Porto do Rio eram ento apresentados como um avano nas discusses sobre as intervenes urbansticas na rea, j que conciliariam a revitalizao com sua preservao.
Noes especficas de tempo e espao eram tambm movimentadas para articular a percepo do suposto isolamento urbano desses bairros. Na construo do discurso visual, uma fotografia de satlite tratada digitalmente separava a regio a ser transformada da rea central da cidade, a ela contgua. Depois, um mapa destacava graficamente as reas aterradas da orla (em amarelo) das reas ocupadas pelos morros e suas bases (em tons de verde), identificando essas ltimas como o traado original da cidade. A esse mapa eram ento adicionadas as vias pblicas que foram construdas ao longo do sculo XX - avenidas Presidente Vargas, Baro de Tef, Francisco Bicalho e 31 de Maro e Tnel Joo Ricardo - e que teriam, segundo a legenda da imagem, provocado o isolamento da regio (sugerido visualmente pela seta em semicrculo). O texto que acompanhava estes mapas indicava dois fatores que teriam sido os causadores desse isolamento e os classificava opositivamente como naturais e construdos. Como fator natural, era apontada a morfologia do litoral composta pela cadeia de colinas e que teria produzido uma barreira geogrfica. E, como fatores construdos, eram classificados os ramais ferrovirios e metrovirios e as grandes reas operacionais da atividade porturia. Essa diviso reforava, assim, a percepo de que natureza e sociedade eram aspectos distintos e impenetrveis, onde a primeira seria referente a uma realidade dada e exterior ao do homem e, a segunda, referente construo de homens plenamente conscientes de suas aes. Aps definida essa distino entre o natural e o social, dados socioeconmicos apresentavam os bairros atingidos pelo plano e expunham sua situao fundiria. 28
Linhas aplicadas em uma foto area demarcavam diferentes lotes de um quarteiro, ilustrando o processo tcnico denominado de georeferenciamento, atravs do qual as diferentes propriedades desses bairros foram identificadas. No texto, era explicado que a rea aterrada havia sido atrelada ao controle legal da Marinha, por ter sido considerada um acrscimo sob o espao martimo. E que o presente abandonado e esvaziado da Zona Porturia era de responsabilidade do governo federal, detentor da maior parte dos grandes terrenos que havia se tornado obsoleta com a desativao das atividades porturias e com a desocupao dos prdios ministeriais e rgos federais aps a transferncia da capital do pas do Rio de Janeiro para Braslia.
Introduzindo as propostas de interveno, era ento exposta a nica foto panormica que partia da perspectiva visual de um pedestre, retratando a Baa de Guanabara e o Centro da cidade. A legenda que acompanhava a imagem indicava a localizao de sua captura: A frente martima em ngulo inusitado, com destaque para o Mosteiro de So Bento, vista do Per Mau. Essa imagem e texto valorizavam mais uma vez o tempo futuro, ao antecipar como seria fruda esteticamente a paisagem da orla da baa depois de implantadas as transformaes urbanas na regio e seu projeto catalisador, que era o aproveitamento turstico do per. Os objetivos, diretrizes e metas do Porto do Rio seguiam listados em tpicos, pontuando as ideias anteriormente expostas e seus trs eixos de atuao, todos articulados pela noo de renovao: a estrutura urbana, o sistema de circulao e a legislao urbana. Como os grandes empreendimentos eram propostos para a ocupao da orla martima, os seis ncleos de interesse de implantao de projetos foram selecionados tendo como referncia espacial os dezoito armazns localizados ao longo da Avenida Rodrigues Alves e que abarcavam 3,5 Km que se estendiam do Per Mau Rodoviria Novo Rio. Uma sequncia de mapas demonstrava ento o sistema de transporte do presente da Zona Porturia e o seu futuro idealizado. O projeto de transportes se baseava na 29
facilitao da conexo interna entre os bairros da Zona Porturia e na sua interligao com a rea central e a Zona Sul, regies mais valorizadas economicamente na cidade. Todo o sistema idealizado era demonstrado como integrador, em oposio ao isolamento que se percebia da regio, em um discurso que portava tanto a ideia temporal de futuro quanto espacial de circuito.
A apresentao das propostas gerais do plano se encerrava com uma sequncia de fotos e mapas que visavam comprovar o vazio e o abandono da Zona Porturia e embasar as proposta de alterao da legislao urbana. Mas, entre a classificao dos locais pblicos, histricos e desativados que deviam ser criados, preservados ou renovados, permaneceram sem representao no Porto do Rio todos os outros imveis residenciais e comerciais, embora fossem ser tambm afetados por ele. A ausncia desses espaos era reforada pelo olhar distanciado das vistas areas e das fotos panormicas e de satlite, em detrimento do ponto de vista trreo, singular e aproximado, impedindo que fosse percebida a existncia humana cotidiana e sugerindo ainda serem esses espaos social e culturalmente vazios. Assim, para os idealizadores 30
do plano os espaos da Zona Porturia figuravam apenas como um objeto, um solo degradado que deveria ser economicamente potencializado. E, em seu conjunto, a divulgao oficial do plano movimentava as noes de zona degradada, stio histrico, patrimnio cultural e renovao urbana, produzindo um discurso sobre os espaos da Zona Porturia que construa o imaginrio de que eles eram deteriorados e que, por isso, seria necessria a substituio de seus usos e funes. E, temporalmente, esse imaginrio era reforado pela representao do passado da regio como uma sucesso de erros que teriam levado sua degradao, do seu presente como a oportunidade de mudana dessa situao, e de seu futuro como a realizao de uma desejada modernizao. Esse discurso temporal e espacial produzia, assim, uma imagem ideologicamente poderosa, que tornava as propostas de transformao da Zona Porturia uma ao social aparentemente bvia e inquestionvel. Mas a fora expressiva dos discursos que estruturavam o Porto do Rio estava tambm ancorada na representao do espao como um objeto deslocado da sociedade, uma natureza a ser dominada e explorada, como se natureza e sociedade fossem pertencentes a dois domnios distintos na constituio do mundo, em um processo de purificao da relao humanos e coisas que apagava todos os trabalhos de mediao. Pois, como argumentado por Bruno Latour (1994), tal processo de apagamento da produo de hbridos construa um discurso retoricamente imparcial e cientfico, colocando os urbanistas da prefeitura em uma posio de interventores tcnicos dessa natureza e, portanto, supostamente no ideolgicos.
O MORRO DA CONCEIO SEGUNDO O URBANISMO MUNICIPAL
Entre as diversas publicaes disponveis na livraria do IPP 3 , o livro Morro da Conceio (2000) se dedicava exclusivamente a divulgar um conjunto de estudos realizado nos seus espaos por tcnicos da prefeitura carioca e do governo francs entre os anos de 1998 e 2000. O livro possua uma encadernao de capa dura, impresso em tinta colorida, papel brilhante, muitas ilustraes, fotografias, mapas, desenhos e transparncias. Sua elaborada produo editorial indicava, assim, que seus idealizadores visavam alcanar um pblico de alto poder aquisitivo e mais amplo que o formado pelos demais tcnicos da prefeitura e por pesquisadores de urbanismo e arquitetura. Seu texto
3 Abordando especificamente projetos idealizados para a Zona Porturia carioca, havia a coletnea de artigos Revitalizao de centros urbanos em reas porturias (orgs. Schweisser e Cesario, 2004). 31
era de autoria de Mrcia Frota Sigaud e de Claudia Maria Madureira de Pinho e graficamente mesclado com inseres de letras de msica e poesia, que fornecia um contraponto potico ao tom denotativo dominante. J os estudos eram assinados pela diretora do instituto, Ana Luiza Petrik Magalhes, e pela administradora da Regio Administrativa da Zona Porturia, Nina Rabha, e pretendiam subsidiar projetos a serem implantados no patrimnio urbanstico, paisagstico e arquitetnico do morro. Na apresentao do livro, os espaos dos morros da Conceio, do Castelo, de Santo Antnio e do So Bento eram miticamente narrados como o ncleo original da cidade e tinham suas construes comparadas aos bairros lusitanos de Alfama e da Moraria. Entre esses morros, apenas o Morro da Conceio estava administrativamente classificado na Zona Porturia, os demais haviam sido classificados como pertencentes rea central, sendo que os morros do Castelo e do Santo Antnio haviam sido desmontados. E nessa narrao era construda tambm uma hierarquia ente os ocupantes de tais espaos, associando-os inicialmente ao povoamento portugus e, posteriormente, s imigraes africanas e de outros pases europeus. Na narrao mtica do passado da Zona Porturia, a conformao da regio at o sculo XIX era caracterizada pela presena de edificaes como igrejas, fortificaes, cemitrio, armazns e mercado de escravos, e pela criao de aterros e trapiches. E a hierarquia ocupacional era reafirmada: era citada a herana lusitana na formao da cidade dos sculos XVI e XVIII e, depois, a expanso urbana ao final do sculo XIX e a chegada de escravos recm libertos, imigrantes europeus e classe trabalhadora em geral. O final da narrativa deste passado era demarcado pelas obras de urbanizao e aterramento de parte da orla da Baa de Guanabara realizadas no incio do sculo XX pelo prefeito Pereira Passos. Em seguida, o passado do prprio Morro da Conceio era demarcado pelas instalaes de edificaes catlicas, militares e de apoio ao comrcio escravista e pela atuao do urbanismo municipal. Sua origem era narrada a partir do erguimento em seu topo de uma ermida a Nossa Senhora da Conceio no incio do sculo XVII, onde em seguida foi instalado o Palcio Episcopal. Depois, eram citadas as instalaes da Igreja de So Francisco da Prainha no fim do sculo XVII, da Fortaleza da Conceio e do mercado de escravos no Valongo no sculo XVIII, e a extino desse mercado e nobilizao de sua rea pela prefeitura durante o sculo XIX. O sculo XX era ento novamente narrado como o fim das transformaes urbanas do morro e sua 32
cristalizao como foco de resistncia residencial e de memria urbana, sugerindo que nele no mais haviam ocorrido modificaes fsicas ou habitacionais. A exposio das propostas de transformao urbanstica que se seguia era baseada na afirmao da degradao fsica do morro e na estruturao da oposio entre espaos pblicos e privados. Como espaos pblicos degradados eram listados o Jardim Suspenso do Valongo, construdo durante a reforma de Pereira Passos como projeto de embelezamento do espao anteriormente ocupado pelo mercado de escravos; as instalaes irregulares de fiao eltrica; e os calamentos de cimento que haviam substitudo os de pedras e paraleleppedos. E eram citadas como degradao dos espaos privados as alteraes que os moradores haviam feito nas fachadas de suas casas utilizando tecnologias construtivas entendidas como no originais. Partindo ento do pressuposto de que havia a necessidade de criao de uma poltica de renovao urbana, os urbanistas propuseram um amplo programa para reverter o processo de degradao do que denominavam de stio histrico. A apresentao do programa era iniciada com o levantamento dos projetos urbansticos que haviam incidido anteriormente sobre a Zona Porturia e o Morro da Conceio e articulava o passado mtico dos prprios urbanistas nesses espaos. A Reforma Pereira Passos, realizada entre 1903 e 1906 e citada at ento como o final do tempo passado da Zona Porturia e do Morro da Conceio, demarcava a origem dos projetos urbansticos nesses espaos: havia alargado diversas vias da rea central, aberto a Avenida Rio Branco, aterrado a orla para a ampliao das atividades porturias e incentivado a circulao com a Zona Sul da cidade. Qualificada como embelezadora e modernizadora pelos urbanistas, essa reforma, no entanto, no props o zoneamento da cidade ou critrios de uso e ocupao do solo. O primeiro plano urbanstico a definir tais critrios e zoneamento foi o Plano Agache de 1930. Nele, foram criadas a Avenida Presidente Vargas e algumas ligaes metrovirias e o territrio do centro urbano foi dividido nas categorias bairro comercial (em azul), bairro de negcios (em verde) e bairro industrial (em amarelo), este ltimo tendo seus usos e funes totalmente voltados para as atividades relacionadas ao porto. E as partes mdias e altas do morro 33
foram classificadas como pertencentes ao bairro industrial e a maior parte de sua base como ao bairro comercial. Em 1965, aps a transferncia da capital do pas para Braslia e da transformao do Rio de Janeiro em Cidade-Estado da Guanabara, foi elaborado o Plano Doxiadis, que props o reordenamento do mesmo espao dividindo-o apenas em quatro: rea porturia (em azul), rea central de negcios (em amarelo), uma rea branca no assinalada englobando o espao do per e do Morro do So Bento, e outra tambm branca e no assinalada delimitada por uma lado da margem da Avenida Presidente Vargas. O Morro da Conceio foi ento reclassificado como pertencente rea central, embora um trecho de sua base tenha permanecido na rea porturia. O PUB-RIO foi concebido em 1977 aps outra mudana administrativa do territrio, que foi a fuso dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Neste plano, os morros da Conceio, Livramento, Providncia e do Pinto foram destacados da rea porturia e rea central e classificados como rea de preservao ambiental e paisagstica (em verde). A rea central manteve sua nomenclatura, embora tenha sido subdividida em rea central de negcios (em amarelo) e expanso da rea central de negcios (em bege). E a retro-rea porturia permaneceu em branco e no foi assinalada no mapa. E o Morro da Conceio, alm de ter ganhado uma nova classificao, teve sua base mais fragmentada, passando a pertencer a quatro diferentes tipos de zoneamento do entorno. O Plano Diretor de 1992 foi criado aps a Constituio Federal de 1988 definir que toda cidade com mais de 20 mil habitantes deveria ter um plano de diretrizes aprovado pela Cmara Municipal de Vereadores. Neste plano, a cidade foi analisada de forma setorial, com a indicao das polticas pblicas a serem desenvolvidas e classificadas por reas de atuao: meio ambiente e patrimnio cultural, habitao, 34
sistema virio e transportes, servios pblicos e equipamentos urbanos e atividades econmicas e patrimnio imobilirio. A rea central ganhou novas subdivises (em tons de amarelo), e a rea de proteo ambiental (em verde) foi ampliada e a zona porturia (em azul) foi restrita aos espaos aterrados, seguindo as demarcaes do projeto SAGAS. E o Morro da Conceio foi designado como rea integrada ao patrimnio paisagstico e cultural, com suas diretrizes de uso e ocupao do solo prevendo o incentivo ao uso residencial; o desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo, lazer e cultura; a melhoria das condies ambientais; e a racionalizao do sistema de transportes.
Aps as mudanas da legislao urbanstica, foram apresentadas no livro as legislaes de preservao patrimonial vigentes. Em um grande mapa, foram assinalados em verde os tombamentos individuais do Jardim Suspenso do Valongo (1), da Igreja de So Francisco da Prainha (3), da Fortaleza da Conceio (4) e do Palcio Episcopal (5), realizados pelo IPHAN em 1938; e da Pedra do Sal (2) realizado pelo governo estadual em 1987. E foi destacado em azul o tombamento de um cortio e de um sobrado pela prefeitura em 1988. Foram tambm assinalados em amarelo os diversos imveis que haviam sido preservados pelo municpio e em laranja os tutelados pelo estado. E informado que todo o permetro do morro havia sido tutelado pelo 35
governo federal em 1986, com a definio de gabarito mximo de dois pavimentos, e que o projeto SAGAS havia restringido seus usos como residencial e como comercial e de servios voltados apenas para o atendimento local. A apresentao de tais planos urbansticos e legislaes patrimoniais demarcava, portanto, tempos e espaos referentes s distintas classificaes administrativas que haviam incidido sobre a rea central, a Zona Porturia e, mais especificamente, o Morro da Conceio. No entanto, no cdigo cronolgico operado era apenas brevemente citado como tais leis urbansticas e patrimoniais dialogavam entre si e no eram explicitados quais os efeitos que essas distintas classificaes e intervenes tiveram sobre os espaos. O discurso dos urbanistas municipais sugeria, assim, que tais polticas de ordenamento espacial inauguravam sempre uma nova poca, da mesma forma como havia sido articulado no material de divulgao do novo plano da prefeitura para a Zona Porturia, o Porto do Rio. Mas, ao longo da pesquisa que desenvolvi, observei que os efeitos dos diversos planos urbansticos perduravam e coexistiam na estruturao dos espaos do Morro da Conceio. Nele estavam espacialmente justapostos, por exemplo, o Jardim Suspenso do Valongo criado na Reforma Pereira Passos e as prticas de presentificao da memria referente aos usos do antigo mercado de escravos. Viam-se tambm os desdobramentos sociais, econmicos e culturais do aterramento da orla da Baa da Guanabara e a especializao do espao como dedicado s atividades porturias, como a diviso dos sobrados em cmodos para abrigar operrios e funcionrios da Marinha. Do Plano Agache e do Plano Doxiadis, permaneciam os efeitos da classificao da base do morro como rea limtrofe de desenvolvimento de atividades comerciais, industriais ou de negcios, que havia provocado sua setorizao ocupacional. Os tombamentos individuais feitos pelo IPHAN tambm haviam perpetuado o imaginrio do morro como espao ligado s tradies militares, catlicas e urbansticas. A ampliao da noo de preservao tinha sido ainda definida pelo PUB RIO, plano que provocou como efeito a manuteno dos aspectos fsicos dos sobrados, garantindo sua cristalizao, como enunciado no livro pelos urbanistas de forma naturalizada. E essa manuteno foi posteriormente reforada pela definio da volumetria dos sobrados, efeito da tutela patrimonial de todo o permetro do morro pelo IPHAN. A separao das partes elevadas do morro, destinada ao uso residencial, das partes de sua base, destinada aos usos comerciais locais, foram em seguida estipuladas pelo projeto SAGAS, tendo como efeito a ocupao predominante desta ltima por lojas de artigos 36
para escritrios, restaurantes populares, grficas, depsitos de produtos e estacionamentos. E, por fim, o Plano Diretor ao regular as intervenes voltadas para o turismo, a cultura, o lazer e o adensamento habitacional do morro, produziu como efeitos a renovao de largos e praas e a prpria eleio do morro como setor prioritrio de atuao na revitalizao urbana da Zona Porturia. Em seguida aos mapas, o livro exps os resultados de quatro pesquisas desenvolvidas pelos urbanistas no morro: arquitetnica, socioeconmica, fundiria, imobiliria e arqueolgica. A pesquisa arquitetnica se concentrou na parte externa das edificaes e nas vias do morro, classificando-as por fachada e por ambiente urbano. Sua etapa posterior previa o estudo do interior das edificaes e pretendia analisar seu valor quanto ao patrimnio, incluindo os aspectos de sua salubridade, segurana, conforto e estado de conservao. Sem definirem os critrios que pautavam essas noes, os urbanistas enunciavam que, na concluso dessa pesquisa, desejavam dimensionar os custos da reabilitao habitacional a ser implantada, em uma proposta que deixava pouco ntida a fronteira entre os poderes pblicos e os espaos privados das residncias. J a pesquisa socioeconmica foi realizada atravs de visitas domiciliares e buscou identificar sua quantidade, condies de ocupao, populao, renda, composio familiar e as atividades profissionais desenvolvidas pelos moradores. Foram cadastrados cerca de 2.000 moradores nas edificaes residenciais e identificados 1.053 domiclios, sendo que, desses, 357 estavam localizados em trs edifcios de apartamentos situados na base do morro e 133 estavam fechados. Entre as dificuldades apontadas para a execuo das aes de reabilitao dos imveis, estava o alto ndice de domiclios alugados, 48%, contra apenas 27,4% de ocupados por proprietrios, sendo que a pesquisa no esclarecia quem eram os moradores dos 24,6% domiclios restantes, possivelmente ocupantes informais dos imveis classificados como fechados. A nfase dessa pesquisa, assim, recaiu sobre os aspectos jurdicos e administrativos que unia os moradores aos imveis que habitavam, dividindo-os em proprietrios, inquilinos e irregulares, estes ltimos indiretamente citados e no oficialmente reconhecidos. A pesquisa fundiria era um desdobramento dessa diviso e propunha a identificao dos proprietrios a partir de uma nova classificao: instituies religiosas, particulares e instituies governamentais. Entre as instituies religiosas, a que possua mais propriedades era a Venervel Ordem Terceira de So 37
Francisco da Penitncia - VOT e, entre as instituies governamentais, a com maior propriedade no morro era a Unio Federal, por causa dos extensos territrios do Observatrio do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceio e do antigo Palcio Episcopal, estas duas ltimas edificaes utilizadas pela Diviso de Levantamento Cartogrfico do Exrcito. Segundo os urbanistas, a pesquisa fundiria havia sido dificultada pela impossibilidade de dimensionamento de diversos lotes e da constante indefinio do que era rea pblica e privada que, como visto anteriormente, era um de seus princpios de estruturao mental dos espaos do morro. Outro fator considerado complicador da reabilitao foi a inexistncia de registro em cartrio de inmeros imveis, que os urbanistas explicaram historicamente com o fato de o morro ter sido dividido em trs reas foreiras: da Unio, da Ordem dos Beneditinos e da Ordem Terceira da Penitncia. Na sequencia de pesquisas, a que tratava dos aspectos imobilirios do morro no foi apresentada, foi feita apenas uma defesa de sua importncia, que seria o monitoramento do mercado imobilirio antes e depois da implantao do programa urbanstico. E foram tambm expostos como objetivos dessa pesquisa a aquisio ou desapropriao de algumas reas pela prefeitura e o controle da valorizao econmica do morro, que visava garantir a manuteno de seus ocupantes originais, que somente mais adiante, na caracterizao da organizao comunitria, seriam identificados pelos urbanistas. Os resultados da prospeco arqueolgica, no entanto, ganharam grande destaque ao abordarem a existncia de um stio histrico no morro, sendo o Jardim do Valongo o espao escolhido para iniciar a implantao do programa. O livro ento demonstrava, atravs de fotografias, a realizao de dois anos de escavao, catalogao e anlise do material coletado, que resultaram na recuperao do jardim para seu estado considerado original, que foi demarcado como o momento de sua construo pela prefeitura de Pereira Passos. Antes dessa recuperao, o espao foi qualificado como abandonado, soterrado por entulho e lixo, invadido por vegetao, danificado por aes de vandalismo e frequentado por mendigos e desocupados. No entanto, o fato de ele ter sido construdo em cima do antigo mercado de escravos no foi citado nem constituiu uma meta da prospeco arqueolgica e de sua recuperao. Finalizando a apresentao dessas pesquisas, os urbanistas propuseram uma caracterizao da rea que sintetizava os resultados encontrados e estruturavam mais claramente suas percepes sobre os espaos do morro que deveriam ser transformados 38
ou preservados. Novamente era indicada a ocupao inicial do morro pelo Palcio Episcopal, Igreja de So Francisco da Prainha e Fortaleza da Conceio, mas, desta vez, a essa ocupao era feito um contraponto: apesar da instalao de instituies prestigiadas, ele [o morro] se viu obrigado a conviver com equipamentos indesejados pela cidade, que foram identificados como o comrcio de escravos e as atividades de explorao de pedreiras, comerciais, porturias e ligadas aos estaleiros, fundies, serralherias e ferrarias. No entanto, era omitido o papel dos prprios planos urbansticos municipais e de suas propostas de zoneamento e usos do solo na configurao desses espaos do morro. E, associado a essas atividades indesejadas, era descrito o perfil de populao que elas atraram e suas formas de habitar, tambm percebidas como inadequadas: operrios fabris e trabalhadores porturios que se abrigavam em casas de cmodo e cortios. A partir da seleo desses eventos da ocupao do morro tidos como histricos e das pesquisas que realizaram durante dois anos, os urbanistas apresentaram uma classificao do que denominaram de reas sem uso ou uso precrio, ou seja, dos espaos que seriam o foco de atuao dos projetos de transformao urbana. Elas foram divididas em rea pblica ou lote no identificado, lote com edificao precria, runa sem uso e runa com uso. Depois, foram classificadas as reas utilizadas para lazer, divididas como pblica ou de propriedade ignorada, privada e institucional. E, ainda para subsidiar as intervenes urbansticas, foram identificados os pontos de visadas panormicas do morro, seus elementos da paisagem natural e os perfis das vias, que era o estudo das volumetrias, dos parcelamentos dos lotes e das propores entre as fachadas, com a inteno de definir parmetros urbansticos. No ltimo item de caracterizao, a organizao comunitria, os urbanistas fundiram essas informaes sobre os estados de conservao fsica dos imveis e das vias com uma classificao dos moradores, que foram apresentados a partir de trs categorias sociais e distribudos espacialmente em cinco segmentos das dinmicas socioespaciais. A primeira categoria ocuparia o eixo cume morro (em azul) e seria composta por moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhis ligados s atividades porturias, que foram descritos como possuidores de uma relao afetiva intensa com a rea e predominantemente proprietrios de imveis. A segunda categoria ocuparia o flanco norte do morro (em verde) e seria composta por moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maioria, apresentados como responsveis pelo seu marcante processo de degradao fsica e social, possuidores de 39
uma relao meramente conjuntural com o local e como predominantemente locatrios. E, a terceira categoria social, foi identificada como ocupante do sop comercial (em amarelo) e seria composta por comerciantes instalados na base do morro, descritos como pessoas que no tinham necessidade de transitar por seu interior, de frequentar seus espaos, nem de compartilhar das mesmas expectativas dos moradores do morro.
A populao estimada do morro de 2.000 habitantes. A esto includos os moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhis, que tradicionalmente estiveram ligados s atividades porturias e cuja relao afetiva com a rea intensa, traduzindo-se numa forte identidade socioespacial. No entanto, a rea vem sofrendo marcante processo de degradao, fsico e social, dada proximidade com a Zona Porturia e todas as implicaes que ela acarreta. Com isso, a populao original vem sendo substituda por migrantes de outros estados do pas. Aqueles que tm condies e desprendimento para abandonar a rea, o fazem. Os moradores recentes, migrantes nordestinos m sua grande maioria (35% segundo pesquisa socioeconmica), tm uma relao com o Morro meramente conjuntural. Eles se instalam a por sua proximidade com o mercado de trabalho, pelos baixos preos do mercado imobilirio e pelo conforto proporcionado pela disponibilidade da infraestrutura urbana. H ainda a categoria dos comerciantes, que esto principalmente instalados na base do Morro, cujos trajetos no implicam a necessidade de transitar por seu interior, de frequentar seus espaos, nem de compartilhar das mesmas expectativas. Esta categoria est muito mais voltada para as relaes com a cidade do que com o prprio Morro. Essas so basicamente as trs grandes categorias sociais identificadas no Morro. 40
Os moradores antigos, geralmente ocupando as residncias no cume do Morro, so os prprios proprietrios e no tem grande afinidade com os moradores mais recentes, estes estabelecidos, sobretudo, na vertente norte do Morro e so, em grande parte, locatrios. Grande parte da tenso social existente no Morro, portanto, gira em torno dessas duas categorias, de suas aspiraes, suas identidades, de seus valores, que acabam por gerar uma certa relao de hostilidade entre ambas as partes.
Na percepo desses urbanistas, portanto, a comunidade do morro estaria dividida principalmente segundo seu tempo de moradia, sua relao econmica com o imvel, seu local de origem e o tipo de uso do solo, sendo estruturada a partir dos dualismos morador e comerciante; morador antigo e recente; proprietrio e locatrio; portugus e espanhol e nordestino. Esta diviso categrica da prefeitura construa, assim, esteretipos baseados em identidades puras, em vez de propor uma representao dos espaos do morro e de seus habitantes a partir de identidades relacionais. E, nesse sistema de autenticidade comunitria, era implicitamente afirmado que os descendentes de portugueses e espanhis deveriam ser os moradores preservados e valorizados pelo programa de revitalizao e os migrantes nordestinos, responsabilizados pela degradao do morro, poderiam ser retirados, como se suas origens e condies econmicas de locatrios possussem uma relao de causalidade com o estado fsico das casas e vias. Sendo que era na afirmao de uma hostilidade entre os moradores colocados nessas duas grandes categorias de moradores que a interveno urbanstica se ancorava discursivamente, ao proclamar uma suposta necessidade externa de mediao dos moradores para que fosse solucionada a tenso social do morro. Mas, ao longo da pesquisa, observei que havia diversas outras formas de seus habitantes estruturarem seus espaos e classificarem uns aos outros, que passavam por uma gama mais ampla de locais de origens, de crenas religiosas, de divises de gnero e etrias, de atividades profissionais, entre outras. Alm dessa diviso estereotipada dos habitantes do morro, chamava a ateno que os do flanco sudeste (em ocre e vermelho), onde estava localizado o Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antnio, no tivessem sido descritos ou citados. Era, no entanto, nesse espao que a maioria dos imveis tinha sido classificada pelos urbanistas como com potencial para operaes de reabilitao e eleitos prioridade de implantao do programa. A no identificao desses habitantes na 41
pesquisa da organizao comunitria era, assim, uma forma de represent-los como inexistentes.
A hierarquia de intervenes propostas pelos urbanistas, ao final desse conjunto de estudos, operou ento com uma gradao entre os espaos considerados mais e menos necessitados de operaes de reabilitao, a partir da identificao de maior ou menor quantidade de imveis vazios, vazios em reforma, fechados, invadidos, insalubres e com risco estrutural. Foi definido o setor do Valongo (em amarelo) como prioridade de atuao e sugerido que nele fosse implantado empreendimentos habitacionais e reas de lazer e estacionamento. Em seguida, foi indicada a interveno urbanstica no setor da Rua Jogo da Bola/ Ladeira Joo Homem (em rosa) e no setor da Ladeira Pedro Antnio (em laranja). No setor do Adro de So Francisco (em abbora), foram identificados tambm imveis vazios e com risco estrutural, mas nele as intervenes dependiam de negociaes com a VOT, proprietria de grande parte dos imveis, e da concluso das obras de ampliao de sua escola, a Padre Dr. Francisco da Motta. O setor da Fortaleza (em pssego) foi classificado como o mais emblemtico no morro e considerado necessitar de um amadurecimento da equipe para alter-lo, e tambm era onde havia mesmo imveis com potencial para operaes de reabilitao. E o setor do entorno (em pontilhado), foi definido com ltima rea a receber intervenes e idealizado para interligar o morro a cidade e diminuir seu isolamento. Concluindo as propostas de reabilitao dos imveis, os urbanistas apresentaram um texto que incentivava o turismo no morro a partir da valorizao de seus espaos como testemunho de uma memria mpar da cidade e como um stio depositrio de um passado histrico. E, defendendo o uso pedaggico do morro na 42
observao de como haviam funcionado as sociedades precedentes e o patrimnio que nos foi transmitido, movimentaram a percepo de que seus espaos e bens eram capazes de operar uma mediao entre um tempo e experincia passados. Por fim, na definio de como seriam os observadores desse patrimnio, propagaram a implantao de equipamentos voltados para a atividade de um turismo atento, seleto e culto, sugerindo, portanto, que haveria uma noo de turismo voltado para uma massa inculta.
O REENCONTRO DA PEQUENA FRICA COM PEREIRA PASSOS
A crescente divulgao do Morro da Conceio como atrao turstica e potencialidade para empreendimentos habitacionais provocou tanto o aumento de circulao de pessoas nos espaos classificados pelos urbanistas da prefeitura como eixo cume morro, interessadas em fruir a arquitetura do casario e o estilo de vida dos que estavam sendo identificados como descendentes de portugueses e espanhis; quanto a precipitao de um conflito travado entre dirigentes da VOT e moradores da parte do morro que havia sido classificada como sop comercial. De grande visibilidade na mdia nacional, o auge desse conflito ocorreu quando cinco moradores, classificados pela entidade catlica como invasores e notificados de aes de despejo e reintegrao de posse, pleitearam judicialmente o reconhecimento de vrios imveis da base do morro como Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal. Atuantes no Movimento Negro Unificado - MNU, os moradores que formaram esse quilombo acionaram ento suas relaes com o Estado para propor uma interpretao tnica ao conflito que vivenciavam. E inseriram nos discursos de autenticidade sobre os moradores do morro uma lgica patrimonial que propunha a narrao de seu passado a partir de outro mito de origem: o da formao da Pequena frica. Dentre os mltiplos posicionamentos que encontrei no Morro da Conceio, a Pequena frica foi o nico que se caracterizava por se relacionar com seus demais espaos e patrimnios a partir de analogias que concebiam a sociedade de uma forma aperfeioada, pautada por um modelo de ancestralidade africana e de identidade cultural negra. O espao da Pequena frica era, assim, uma utopia, como tambm definido por Foucault (2006): em comum com a heterotopia, abarcava posicionamentos e contra posicionamentos, mas, em distino, no era localizvel. O passado da Pequena frica 43
era narrado por habitantes do morro e tambm de outros espaos da Zona Porturia e do Centro da cidade que dele se entendiam herdeiros. Comparando algumas verses do que chamei de mito da Pequena frica, encontrei pontos de cruzamento que demarcavam eventos projetados sobre esses espaos: a comercializao de escravos africanos no mercado do Valongo e o enterro no bairro da Gamboa dos que haviam morrido na travessia martima continental, os pretos novos, a partir do sculo XVIII; a ocupao de casas no bairro da Sade por migrantes baianos em meados do sculo XIX; e, com as reformas urbansticas realizadas pelo prefeito Pereira Passos na virada do sculo XX, o deslocamento habitacional desses migrantes baianos e africanos para a Cidade Nova e para as primeiras favelas e subrbios da cidade. Para embasar juridicamente a territorializao dessa utpica Pequena frica, os moradores do morro que formaram o Quilombo da Pedra do Sal acionaram o Artigo 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitrios da Constituio Federal de 1988. Esse artigo possibilitava que grupos que se entendessem afrodescendentes pleiteassem perante o Estado o reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombo e a titulao de um territrio de uso coletivo. Em sua aplicabilidade, definida apenas em 2003 atravs do Decreto 4.887, era qualificada como comunidade quilombola os grupos tnico-raciais que assim se auto atribussem, que possussem trajetria histrica prpria, relaes territoriais especficas e uma ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. De acordo com a sistematizao do antroplogo Jos Maurcio Arruti (2006), a noo de quilombo desse artigo havia sido construda a partir da operao de trs conceitos: o de remanescentes, que equiparava a situao das comunidades negras das indgenas, colocando como centro de sua retrica a noo de direito de memria; o de terras de uso comum, que caracterizava como reas coletivas as que possuam os recursos bsicos controlados por vrios grupos familiares e regulados a partir de um universo legal prprio; e o de etnicidade, que postulava como quilombolas os grupos que assim se auto atribussem, que possussem uma identidade referenciada na partilha de vivncias e valores e que se percebessem contrastivamente em relao a outra identidade em determinada situao de conflito fundirio. Nos processos de reconhecimento de territrios tnicos que ento surgiram por todo o pas, alguns mediadores especficos ligados ao poder pblico foram mobilizados. Dentro do Poder Judicirio, os procuradores do Ministrio Pblico Federal se 44
posicionaram como os agentes que desenvolviam Aes Civis Pblicas para que fossem assegurados os direitos coletivamente gozveis e de titularidade indeterminada dos grupos. A Defensoria Pblica se posicionou como a instituio jurdica complementar s aes dos procuradores, atuando em litgios individuais como nas aes de reintegrao de posse onde os pleiteantes dos territrios quilombolas eram citados como rus. E, nos rgos do Poder Executivo, os principais mediadores das comunidades quilombolas se tornaram a Fundao Cultural Palmares, que emitia os certificados de reconhecimento a partir da auto atribuio dos grupos, e o INCRA, que encaminhava o processo de regularizao fundiria atravs da produo de relatrios de identificao e delimitao territorial contendo informaes cartogrficas, fundirias, agronmicas, ecolgicas, geogrficas, socioeconmicas, histricas e antropolgicas sobre as comunidades 4 . A presentificao do mito da Pequena frica pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal no estava, portanto, ancorada apenas ao contexto carioca, remetendo s discusses travadas em todo o pas na dcada de 1980 que problematizavam o centenrio da abolio da escravido e denunciavam a falta de polticas pblicas de incluso dos setores populares da sociedade e, especificamente, dos negros. Havia sido durante essas discusses que tinha se fortalecido o paradigma da implantao de polticas de reparao, que pretendiam promover aes que permitissem a distribuio de renda para esses setores classificados como socialmente marginalizados. E, nas aes voltadas especificamente para a valorizao da cultura e da memria negra, ganharam destaque as prticas oficiais de preservao do patrimnio, que a partir de ento produziram imagens que perpetuavam, difundiam e expunham essa cultura e que tambm rivalizavam com os mediadores das memrias estruturadas como opostas, que eram as do catolicismo, da elite e dos brancos. Em uma perspectiva institucional e poltica, convergiu para a realizao desse embate de imaginrios atravs da oficializao de patrimnios a alterao da direo do IPHAN, que a partir da gesto de Alosio Magalhes incentivou o tombamento de bens entendidos relevantes por sua imaterialidade e por seu pertencimento ao cotidiano das comunidades (Gonalves, 2002; Fonseca, 2005). Nas narrativas de integrantes do movimento negro
4 Sobre os aspectos jurdicos da noo de comunidades de remanescentes de quilombo definida pelo Artigo 68, ver Arruti e Figueiredo, 2005. 45
brasileiro 5 , esse perodo foi demarcado como o gerador de duas importantes imagens mediadas pelo instituto: a demarcao do Parque Histrico Nacional Zumbi em Serra da Barriga/AL, onde havia existido o ncleo de resistncia escrava Quilombo dos Palmares; e o tombamento da Casa Branca do Engenho Velho em Salvador/BA, primeiro terreiro de candombl a se tornar patrimnio nacional. No Rio de Janeiro, foi tambm nesse perodo que houve a divulgao do primeiro produto mediador que organizava uma dramatizao do mito da Pequena frica: o livro Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro, escrito pelo cineasta Roberto Moura e publicado em 1983 como resultado de um concurso de monografias sobre personalidades ligadas msica popular brasileira realizado pela FUNARTE, rgo ligado ao Ministrio da Cultura 6 . Atravs desse livro, foram articuladas algumas imagens do fim do sculo XX associadas ao mito: a moradia nos cortios; a organizao de revoltas urbanas contra posturas higienistas da prefeitura; a celebrao de festas com ritmos percussivos; a ascenso do msico popular na indstria cultural e de entretenimento; e a formao de vnculos sociais a partir dos cultos do candombl e dos sindicatos porturios 7 . O recorte temporal demarcado pelo livro foi o ano de 1888, abolio da escravido no Brasil, evento que o autor afirmou ser o causador de uma ruptura do mundo associativo e simblico do negro. Na construo dos personagens do livro, ele props que existia uma oposio racial entre negros e brancos antes da abolio e que, aps, ela foi justaposta a uma oposio de classes sociais, entre populares, oligarquia agrria e classes mdias urbanas. Essa justaposio teria sido decorrente da introduo de uma tica de trabalho capitalista no pas e da unio classista de negros, imigrantes e nordestinos os que eram identificados genericamente pelo autor como populares.
5 Tais narrativas podiam ser encontradas em diversos livros sobre polticas pblicas de valorizao e afirmao da cultura e memria afro-brasileira, entre eles o organizado pelo fotgrafo Janurio Garcia (2008). E, especificamente sobre o processo de tombamento da Casa Branca, ver Velho, 2006. 6 Segundo reportagem de Aramis Millarch publicada no Estado do Paran em 08 de abril de 1980, o primeiro concurso do rgo governamental foi realizado em 1977, e teve como tema o msico Pixinguinha. Posteriormente, foram realizadas monografias sobre Waldemar Henrique, Lupicnio Rodrigues, Nelson Ferreira, Dorival Caymmi, Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Jararaca e Ratinho, Candeia e Alcebades Barcelos, at que Tia Ciata foi selecionada como tema do concurso no ano de 1980. A primeira edio do livro foi publicada em 1983 pela prpria FUNARTE e, em 1995, o livro foi reeditado pela prefeitura em verso ampliada, com a incluso do captulo Geografia musical da cidade. Para fins analticos, no entanto, considerei a primeira edio, que possua dez captulos e que se tornou referncia para as demais verses do mito da Pequena frica. 7 Publiquei uma verso inicial da anlise desse livro de Roberto Moura e seus usos na proposta de tombamento da Pedra do Sal nos anais da II Reunio Equatorial de Antropologia (Guimares, 2009b). 46
Para acentuar as particularidades dos negros neste novo momento do pas, o autor apresentou as prticas culturais dos afrodescendentes que moravam em Salvador dcadas antes da abolio, dividindo-os por suas origens tnicas banto, ioruba e islmica. A cada uma dessas etnias, atribuiu ento uma caracterstica na formao do que denominou ser uma cultura urbana carioca: a criao dos ranchos carnavalescos seria assim uma herana da festividade dos bantos, o culto aos orixs uma herana da religiosidade dos iorubas e as revoltas urbanas uma herana da belicosidade dos islmicos. E, na definio dos antagonistas narrativos, o autor colocou os brancos da elite portuguesa e da igreja catlica em oposio cultura africana, equivalendo assim as prticas e ideologias do capitalismo e do catolicismo para definir as fronteiras identitrias dos afrodescendentes e retrat-los como uma totalidade sociocultural. No desenvolvimento do livro, o autor narrou as prticas sociais dos frequentadores das rodas de samba da casa de Ciata e da casa de candombl de Joo Alab, denominando-os coletivamente de a dispora baiana na Pequena frica. E, como fontes de informao, utilizou principalmente os depoimentos de Donga, Joo da Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha gravados pelo Museu da Imagem e do Som na dcada de 1960, onde os sambistas narravam o desenvolvimento de suas carreiras musicais e as relaes sociais que haviam estabelecido na Zona Porturia e na Cidade Nova no incio do sculo XX. Sendo que, na sntese dramtica do livro, o autor construiu uma continuidade histrica entre os integrantes da dispora baiana e seus herdeiros na dcada de 1980, a partir de depoimentos de descendentes consanguneos de Ciata e de uma de suas irms de santo, Carmem do Xibuca. Atravs de suas falas, o autor articulou uma retrica da perda onde foram enfatizados a troca dos ofcios tradicionais pelas atividades industriais, o esfacelamento dos vnculos religiosos e recreativos ocorrido com a morte das tias baianas e o fim dos ranchos carnavalescos, as relaes conflituosas com a indstria musical em desenvolvimento, as frustraes amorosas, os constantes deslocamentos habitacionais e o aumento das restries nas prticas do candombl nas festividades catlicas. E reforou a mensagem de que o preconceito racial havia persistido durante anos e sido deixado aos descendentes da extinta dispora como herana visvel na excluso do negro do mercado de trabalho e na sua falta de acesso aos recursos materiais. Um ano aps a publicao do livro, houve sua primeira apropriao por uma poltica pblica de valorizao da cultura negra: o tombamento da Pedra do Sal em 47
1984, apresentada pelo presidente do Instituto Estadual de Patrimnio Cultural - INEPAC, o arquiteto talo Campofiorito, ao antroplogo Darcy Ribeiro, ento vice- governador e secretrio de cultura do Rio de Janeiro. A proposta enfatizava que j havia no Morro da Conceio bens catlicos e militares tombados pelo IPHAN desde 1934 e apontava a necessidade de ser instituda uma nova hierarquia de valores no morro. Para o arquiteto, o reconhecimento da Pedra do Sal como monumento negro e popular seria capaz de representar a religiosidade dos orixs, a migrao baiana e o carnaval carioca. Nos textos componentes da proposta de tombamento, o historiador Joel Rufino apresentou os usos da Pedra do Sal e do casario de seu entorno no passado como protagonistas narrativos. E a museloga Mercedes Viegas utilizou o livro de Roberto Moura como fonte de informao para a delimitao temporal da memria a ser resgatada pelo tombamento: a virada do sculo XIX para o sculo XX, perodo por ele narrado como de formao da dispora baiana. Tanto Joel como Mercedes articularam uma retrica da perda, argumentando que a cidade passava por um processo de descaracterizao causado pelas sucessivas transformaes urbansticas e que essa alterao dos aspectos fsicos dos logradouros e imveis ameaava extinguir os testemunhos do passado da cidade negra. Assim, enquanto a igreja catlica foi retratada como uma antagonista simblica, os projetos urbansticos foram apresentados como os antagonistas fsicos pelas transformaes materiais que provocavam. Mas a principal diferena entre a narrativa sobre a Pequena frica elaborada por Roberto e a dos textos patrimoniais foi a excluso, nestes ltimos, de qualquer interao social, conflituosa ou harmnica, dos afrodescendentes com outros grupos sociais, bem como de transformaes de suas prticas culturais com o passar dos anos. Norteados pelos paradigmas discursivos patrimoniais da dcada de 1980, de retratar grupos como totalidades culturais na busca de enfatizar seus aspectos considerados autnticos, eles no utilizaram, assim, qualquer informao que pudesse questionar a legitimidade do tombamento proposto. E, ao longo da dcada de 1980, essa clivagem das prticas de setores governamentais em torno dos temas das relaes raciais e dos patrimnios culturais produziu, alm do tombamento da Pedra do Sal, outros produtos mediadores na cidade do Rio de Janeiro que operavam em analogia direta utopia da Pequena frica. O entorno da extinta Praa Onze foi ento escolhido como concentrador de smbolos relacionados cultura e memria negra. A ressonncia patrimonial desse espao provinha das narrativas de seu passado, que constantemente o relacionavam ao antigo 48
ponto de encontro de negros e sambistas da Cidade Nova do incio do sculo XX e sua demolio pela prefeitura na dcada de 1940 para a criao da Avenida Presidente Vargas, idealizada pelo Plano Agache.
Nos arredores da Praa Onze foram ento criados o monumental Sambdromo (ponto 1) e, ao seu lado, o Terreiro do Samba, que abrigaram, respectivamente, os desfiles das escolas de samba e shows de pagode durante o carnaval, manifestaes associadas musicalidade negra e sua sociabilidade nos barraces de candombl; o monumento a Zumbi dos Palmares (ponto 2), um grande busto de ferro em homenagem ao lder antiescravista negro; e a Escola Tia Ciata (ponto 3), voltada para o ensino de histria afro-brasileira e cujo nome homenageava a personagem central na genealogia das matriarcas do samba e do candombl carioca. E na Zona Porturia, alm de ser tombada a Pedra do Sal (ponto 4), foi criado na Gamboa o Centro Cultural Jos Bonifcio (ponto 5), dedicado preservao e difuso da memria negra. Na virada para o sculo XXI, esses mediadores da utopia da Pequena frica foram movimentados por alguns grupos, mas dessa vez para territorializar pleitos patrimoniais na Zona Porturia. E, nesse momento, a presentificao da utopia da Pequena frica foi uma reao direta aos espaos, patrimnio e mito dos urbanistas do poder pblico municipal que em meados da dcada de 1990 haviam se organizado em um instituto que em seu nome reverenciava o cone do ex-prefeito Pereira Passos e elaboraram o Porto do Rio. Denominei ento de herdeiros da Pequena frica os 49
grupos que se identificavam como portadores ou mediadores desse patrimnio negro, que reivindicavam a retomada fsica e/ou simblica dos espaos de referncia do mito, e que compartilhavam de uma gramtica performtica na realizao de manifestaes pblicas: tocavam ritmos percussivos, desenvolviam rituais de candombl e ofertavam comidas associadas culinria negra, como feijoada, frango com quiabo, acaraj e angu. Alm dos moradores do Quilombo da Pedra do Sal, passaram a compor esse circuito o Instituto Pretos Novos (ponto 6), centro de memria e pesquisa criado em um sobrado da Gamboa aps seus proprietrios descobrirem a existncia de um cemitrio de antigos escravos enterrados a poucos palmos do piso; a escola de msica Instituto Batucadas Brasileiras (ponto 7), localizada em frente Praa dos Estivadores e que buscava articular grupos de msica percussiva; e o grupo de carnaval Afox Filhos de Gandhi (ponto 8), localizado no antigo mercado de escravos do Valongo e cujos integrantes se apresentavam em eventos polticos, culturais e religiosos com msicas e coreografias referenciadas nos rituais do candombl. Ao longo da pesquisa, percebi que, dentre esses grupos, o Afox Filhos de Gandhi era o nico que aderia aos diversos eventos e reivindicaes dos demais herdeiros da Pequena frica, participando tanto do pleito tnico do Quilombo da Pedra do Sal, quanto dos eventos ecumnicos do Instituto Pretos Novos e dos projetos culturais do Instituto Batucadas Brasileiras. Tal prestgio social e disponibilidade de atuao do grupo me indicaram que ele era considerado capaz de conferir legitimidade a outros discursos e prticas relacionados cultura negra, por estar no centro de circulao de uma ampla rede de trocas sociais, que envolvia variados nveis sociais do mundo dos homens e do mundo dos orixs, incluindo mortos, animais, vegetais e minerais. Ao fim da pesquisa, compreendi que o mito da Pequena frica presentificado nos tempos de revitalizao urbana da Zona Porturia estava intrinsecamente relacionado cosmologia do candombl e sua noo de reciprocidade. Pois era essa possibilidade de mediao entre o mundo dos orixs e o dos homens que fazia com que uma pedra, a esquina de uma rua ou um morador-sem-teto fossem inseridos em uma hierarquizao pautada por valores mgicos. Assim, atravs da lgica patrimonial desse mito, era movimentada uma forma absolutamente distinta de estruturar mentalmente os espaos habitados da Zona Porturia, que se opunha s formas de classificao do urbanismo municipal e de outros grupos que no pertenciam ao povo do santo, como 50
eram chamados genericamente os que participavam dos cultos do candombl e da umbanda.
OPES NARRATIVAS E DIVISO DE CAPTULOS
Para narrar o meu percurso de pesquisa no Morro da Conceio, fiz algumas escolhas referentes etnografia. Optei por utilizar como tempo verbal o passado para narrar encontros, espaos percorridos e usos e eventos observados, buscando acentuar com isso a percepo de que pessoas, eventos, espaos e usos eram igualmente contingentes, transitrios e sempre mediados por minha experincia concreta. Tambm mantive o tempo passado nas anlises de matrias jornalsticas, estudos acadmicos, legislaes, artigos, livros, fotografias e filmes, buscando ressaltar as datas em que foram produzidos e seus contextos de produo. No entanto, esta opo me conduziu a uma tenso insolvel, mesmo que analiticamente interessante: por estarem em um suporte fsico e serem reprodutveis e portteis, estes produtos possuam o poder no apenas de difundir, mas tambm de fixar imaginrios, sendo constantemente passveis de presentificao. Outra opo narrativa foi utilizar o nome verdadeiro das pessoas com que convivi durante o trabalho de campo, por se tratar de um estudo em um local delimitado aonde moradores e usurios se reconheceriam facilmente durante a apresentao dos acontecimentos. Tambm desejava que posteriores pesquisas sobre a Zona Porturia pudessem usar o estudo como referncia e contexto, como sugerido pelo antroplogo Mrcio Goldman (2004). Recorri ao anonimato em poucos casos, apenas quando avaliei que a identificao do autor da informao poderia precipitar um conflito local ainda no manifesto. Nesses casos, optei por posicionar a informao em um dos mltiplos espaos do morro, para que no se perdesse a relatividade de sua perspectiva. Durante a tese, apresentei as pessoas de quatro maneiras diferentes: com seus nomes e sobrenomes; s com o primeiro nome; com os apelidos correntemente usados; e com os nomes correntemente entre o povo do santo para se referir aos seus orixs de cabea. Essas diferentes formas de identificao foram o resultado das especificidades dos encontros possibilitados durante o trabalho de campo: normalmente as pessoas que se apresentaram a mim atravs do nome e sobrenome possuam alguma forma de atuao profissional na Zona Porturia ou estavam envolvidas em algum conflito judicial; as que s me disseram o primeiro nome eu havia encontrado em 51
situaes informais; as que se apresentaram atravs de apelidos costumavam estar envolvidas na realizao de eventos festivos; e as pessoas que se apresentaram com os nomes de seus orixs estavam envolvidas em atividades do candombl. Vale tambm mencionar que, no meu percurso de pesquisa, utilizei alguns recursos tecnolgicos: uma cmera fotogrfica digital, que possibilitou que conhecesse detalhadamente os aspectos fsicos das vias e logradouros do morro e que memorizasse possveis trajetos; um gravador sonoro que utilizei em algumas conversas mais formais, embora a maioria dos encontros tenha sido anotada em meu caderno de campo; e uma cmera filmadora, que possibilitou que registrasse algumas festas e eventos relacionados ao candombl e descrevesse e analisasse cantos e gestos. As imagens e citaes de entrevistas que inclu ao longo da tese foram realizadas a partir desses registros. Para apresentar o trabalho de campo, dividi a tese em quatro captulos. No Captulo 1. Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios, descrevi os encontros iniciais que tive com habitantes do Morro da Conceio e como eles determinaram o percurso de pesquisa que desenvolvi entre as prticas e redes sociais dos grupos que eram representados ou se identificavam como portadores de trs patrimnios: o portugus e espanhol, o negro e o do santo. E analisei como, nesses primeiros dilogos, fui classificada por integrantes de tais grupos e tambm como eles articularam algumas oposies mentais que estruturavam suas formas de perceber os espaos do morro. No Captulo 2. A boa vizinhana da parte alta, descrevi os bares e festividades frequentados ou organizados por moradores da parte alta do morro e como suas prticas foram classificadas como patrimnio portugus e espanhol por mediadores entre os espaos e habitantes do morro e os da cidade, que percebiam neles a materializao de uma cultura popular e autntica. E analisei como os moradores desse espao operavam as oposies de dentro e de fora e masculino e feminino a partir de um rgido sistema de controle e reputao que diferenciava prticas, espaos e habitantes de acordo com noes de virtude e vcio. No Captulo 3. O esprito quilombola da Pedra do Sal, descrevi como o conflito habitacional entre portadores de dois patrimnios no morro, o negro e o franciscano, produziu um pleito tnico na base do morro que props a identificao e delimitao jurdica de seus espaos como territrio quilombola. E analisei como os portadores desse patrimnio negro, atravs de uma lgica de reparao 52
e do mito da Pequena frica, operavam as oposies elite e popular, catlico e do santo e brancoe negro para diferenciar prticas, espaos e habitantes do morro e sobrepor o imaginrio que os classificava como invasores e marginais. No Captulo 4. Os fundamentos do Valongo, descrevi as prticas recreativas, polticas e religiosas dos integrantes do grupo carnavalesco Afox Filhos de Gandhi, que portavam no morro o patrimnio do santo e faziam parte do circuito mais amplo de herdeiros da Pequena frica. E analisei como eles operavam, a partir de um amplo sistema de trocas entre humanos e no humanos, as oposies bem e mal e sagrado e profano para diferenciar prticas, espaos e habitantes no apenas do morro, mas tambm das casas de candombl e dos grupos carnavalescos, territorializando o mito da Pequena frica a partir de uma hierarquia baseada em uma lgica mgica, que sobrepunha s lgicas socioeconmicas e raciais.
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Captulo 1. Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios
O PRIMEIRO CONTATO COM O MORRO
Para iniciar meu trabalho de campo no Morro da Conceio, procurei uma mediao que no passasse por representantes de rgos pblicos ou de ONGs, j que no queria ser influenciada por uma pauta institucional de pesquisa. Recorri ento ao meu crculo de amigos para entrar em contato com um de seus moradores e, atravs da antroploga Elizete Igncio, obtive o telefone do casal de antroplogos Martin Ossowicki e Alessandra Tosta. Em um domingo, dia 14 de outubro de 2007, tomei um txi e me guiei pelas dicas de percurso que Alessandra havia me oferecido para chegar ao sobrado onde eles residiam localizado no topo do morro, na Rua Jogo da Bola. O acesso de carro a essa rea do morro era possvel pela Rua do Acre, que delimitava parte de sua base. A rea de rodagem dessa rua permitia o trfego de dois veculos em um nico sentido, da Avenida Marechal Floriano para a Avenida Rio Branco. Apesar de ampla, a rua no era utilizada como rota de nenhum transporte coletivo, nela havia somente um ponto de txi e a liberao do uso das duas margens para estacionamento de automveis. No seu lado mpar, o que contornava o morro, as construes eram predominantemente casas assobradadas de dois andares, com a presena de alguns prdios, entre eles o do Tribunal Regional da Justia Federal, que destoava do conjunto por ser muito alto, largo e de fachada espelhada. J no lado par ocorria o inverso, havia uma grande quantidade de prdios e poucos sobrados, demarcando visualmente a transio para o centro comercial da cidade. Em quase todos os andares trreos dos prdios e sobrados da rua estavam instaladas pequenas lojas voltadas para a alimentao de baixo custo e para a venda de materiais de escritrio. Alguns dos sobrados eram tambm utilizados como hospedarias populares, com dirias em torno de oito reais. Durante o perodo diurno dos dias da semana, esse comrcio movimentava uma grande quantidade de pessoas e uma de suas caractersticas visuais mais marcantes era a divulgao de produtos em vrias tabuletas postas nas fachadas, que produziam um efeito colorido e tumultuado, dificultando 54
qualquer fixao do olhar. Entre pastelarias, lanchonetes, botequins e restaurantes de comida a quilo e self service, no entanto, havia alguns estabelecimentos pertencentes a redes comerciais e de preos mais elevados recentemente inaugurados e que contrastavam em sobriedade de cores e no uso corrente de portas de vidro, oferecendo ambientes climatizados e menos expostos ao movimento da rua que o das lojas abertas. A segunda rua esquerda da Rua do Acre era a Rua Major Daemon, que conduzia ao topo do morro. A transio das vias era demarcada pela mudana de calamento, que de asfaltado passava a ser de paraleleppedos, impondo a desacelerao do veculo e a consequente diminuio do ritmo fisiolgico. Ocupada quase que exclusivamente de forma residencial, a rua era ngreme e sinuosa e permitia o trfego em mo dupla de dois veculos. Em sua base havia alguns edifcios, mas, conforme se subia, predominavam os sobrados de dois e trs andares. Neste domingo em que percorri a rua de txi, o veculo precisou desviar dos escombros de um pequeno edifcio que tinha desabado havia poucos dias e que ocupavam parte da rea de rodagem. Com a aproximao do alto do morro, o txi diminuiu ainda mais a velocidade, por causa de uma placa que indicava o incio de uma rea militar e de uma trava de ferro pintada em amarelo que fechava parcialmente a rua. Nessa rea militar, duas edificaes arquitetonicamente imponentes dominavam a paisagem: o antigo Palcio Episcopal e a Fortaleza da Conceio, ambos ocupados pelo Servio Geogrfico do Exrcito. O Palcio Episcopal era um casaro branco de dois andares, destacado cerca de um metro e meio do nvel do cho e ornamentado com ferro, madeira e pedra. Do outro lado da rua, um mirante delimitado por um muro baixo de cimento voltava-se para a Igreja de Santa Rita, localizada na Avenida Visconde de Inhama. Mais frente, havia um amplo sobrado de padro construtivo semelhante ao do casaro, porm menos adornado, e um pequeno porto que conduzia a duas quadras de futebol no declive do morro, uma de grama e outra de terra batida. Ao lado do palcio, o complexo edificado da Fortaleza, apesar de ocupar uma grande rea do morro, era apenas parcialmente visvel da rua, por estar ocultado por uma muralha de pedra de cerca de cinco metros. O final da Rua Major Daemon era a Praa Major Val, onde saltei do txi e caminhei at a casa de Alessandra e Martin na Rua Jogo da Bola. Nossa conversa foi marcada por um tom informal, sendo quase toda realizada na cozinha, mas se desenvolveu como um dilogo entre pares, com o uso de metforas antropolgicas para a explicao das relaes sociais do morro. E, apesar dos dois terem sido receptivos realizao da pesquisa que iniciava, me avisaram que no desejavam participar dela 55
como nativos, informantes ou interlocutores, me explicando terem alugado havia pouco tempo aquele apartamento e ainda estarem se inserindo nas relaes sociais da vizinhana. Na opinio deles, se fossem identificados como pesquisadores essa insero poderia ser prejudicada, porque acabaria mediada por suas atuaes profissionais. Ao longo do trabalho de campo no morro, atribu em parte a preocupao do casal relao que alguns moradores tinham com a figura do pesquisador. Pois, apesar de vrias pessoas terem se mostrado solcitas minha pesquisa, em alguns casos encontrei um mal estar j instaurado pela presena constante em seus espaos de jornalistas, fotgrafos, antroplogos, socilogos, arquitetos, representantes de rgos pblicos e turistas, muitas vezes atuando, inclusive, como mediadores de conflitos locais. Em relao a mim, este mal estar se manifestou na recusa de alguns moradores em conversar, na enunciao de discursos politicamente engajados sobre identidade cultural e, eventualmente, em um desconforto com a minha presena em determinados espaos do morro que eram usados pelos moradores de maneira liminar, oscilando entre o pblico e o privado. Durante a conversa, Alessandra contou que havia conhecido o morro ao participar de um curso de fotografia oferecido pela UERJ e tinha decidido se mudar para l com Martin em 2004. Eles procuravam uma casa que no fosse localizada na Zona Sul, onde no gostavam do estilo de vida e achavam os aluguis muito caros, e nem no subrbio, considerado distante das atividades que j desenvolviam. Ao se mudarem, Martin percebeu que a Rua Jogo da Bola oferecia intimidade social: todos os vizinhos se conheciam, gerando um controle que tornava o local mais seguro, embora, em contrapartida, houvesse uma grande movimentao de fofoca. Um exemplo que ele ofereceu dessa segurana era o cuidado que todos tinham com as crianas uns dos outros, possibilitando que elas brincassem nas ruas do morro sem a superviso de um adulto. Na opinio de Martin, era a alterao lenta da vizinhana que fazia com que alguns ncleos familiares que residiam na denominada parte alta do morro se reconhecessem como moradores tradicionais. A parte alta era composta pela Ladeira Joo Homem e pela Rua Jogo da Bola e considerada a elite do morro. Suas casas raramente eram anunciadas para aluguel em corretoras de imveis e, o mais comum, era que fossem ocupadas pela indicao de algum morador. Nela, no entanto, havia tambm uma diferenciao de espaos: os moradores da Ladeira Joo Homem eram, em sua 56
maioria, pertencentes classe mdia baixa, e os da Rua Jogo da Bola eram os que possuam a maior renda do morro. Ele me advertiu, no entanto, que esses moradores no utilizavam usualmente a categoria moradores tradicionais, mas narrativas que remetiam a essa tradio como, por exemplo: Eu nasci aqui, casei com fulana da casa tal.... Os dois me listaram trs bares como sendo os principais espaos de sociabilidade da parte alta e me ofereceram tambm a identificao dos grupos sociais que os frequentavam. Na Rua Jogo da Bola havia o Bar do Beto, frequentado pelos nordestinos, e o Bar do Srgio, frequentado pelos portugueses e espanhis. J na Ladeira Joo Homem havia o Bar do Geraldo, o nico frequentado por gente de fora e por grupos de jovens moradores. Os moradores tidos como referncias da parte alta eram o Seu Ren, comandante aposentado da Marinha, e Seu Luizinho, locador de vrias casas e mantenedor das atividades da Capela de Nossa Senhora da Conceio juntamente com sua esposa, Dona Glorinha. Alm desses dois, havia ainda Frigideira, organizador de muitas das festas coletivas do morro. Segundo Martin, os moradores mais velhos ligados tradio que denominou de portuguesa e espanhola consideravam que as condies sociais de moradia no morro tinham piorado nos ltimos anos por causa do aumento da criminalidade, da falta de infraestrutura pblica e da entrada de novos moradores, principalmente dos nordestinos. Mas ele observou que havia uma tenso nessas relaes de moradia, j que a chegada ao morro desses moradores havia sido provocada pela prpria ao dos descendentes das famlias ditas tradicionais, pois foram elas que, ao longo dos anos, dividiram seus sobrados para aluguel. Alguns conflitos sociais tambm tinham sido gerados pela perda gradual do controle sobre os direitos de herana das casas e a no regularizao de suas propriedades, provocando a permanncia informal de antigos inquilinos nos imveis. As casas divididas em cmodos para a moradia de vrios ncleos familiares ou informalmente ocupadas eram ento muitas vezes apontadas como causadoras da favelizao do morro. Mas, como me indicou a narrativa de Alessandra sobre sua adaptao vizinhana, as relaes entre seus moradores no eram estruturadas apenas por classificaes de origem ou de condies de moradia, passavam de forma igualmente relevante por distines de gnero e etrias. Alessandra tinha considerado difcil sua adaptao ao morro porque as relaes da parte alta eram machistas, exemplificando com o fato de que poucas mulheres circulavam por suas ruas e bares e sempre que havia 57
sido convidada para alguma festa foi indiretamente, atravs de Martin. Ela tambm observou que s as nordestinas frequentavam o Bar do Srgio, as mulheres de ascendncia espanhola e portuguesa participavam com assiduidade apenas das atividades da capela e a maior parte de seus filhos no se divertiam nos bares do morro, preferiam ir a outros lugares da cidade. O espao oposto e correlato parte alta era a denominada parte baixa, composta pelas vias do morro ligadas Rua Sacadura Cabral. O casal caracterizou seus moradores como sendo principalmente inquilinos de classe baixa ou ocupantes informais de imveis abandonados, a maioria de origem nordestina, e muitos atuando profissionalmente como garons e empregadas domsticas. Nessa parte do morro, muitos imveis pertenciam entidade catlica Venervel Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia VOT que, nos ltimos anos, estava despejando ou realocando para moradias no Centro da cidade os antigos inquilinos. Aps esvaziar os imveis, a entidade tinha ampliado a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, criado o Colgio Sonja Kill e instalado consultrios mdicos e diversos cursos gratuitos, como informtica, msica, moda, marcenaria e padaria, entre outros, em projeto que denominou de Humanizao do Bairro. Todos os imveis includos nesse projeto haviam passado por um processo de restaurao das fachadas e de seus interiores, em obras financiadas principalmente por instituies europeias. Mas, segundo Alessandra, essa transformao dos imveis residenciais em assistenciais no teria sido vista de forma positiva pelo conjunto de moradores do morro, j que tinha provocado o surgimento de espaos desertos noite e nos fins de semana, gerando reas perigosas de possvel atuao para roubos e para consumo e trfico de drogas. A iniciativa teria desagradado em especial os moradores da parte alta, que consideraram as atividades do projeto um fator de atratividade dos moradores do Morro da Providncia, proximidade indesejada porque eles no queriam ser reconhecidos como moradores da Zona Porturia e, principalmente, como favelados. Os processos de despejo para que o projeto fosse implantado tambm tinha gerado um conflito com alguns moradores de outro espao localizado na base do morro que articulavam uma narrativa de tradio relacionada origem negra, ao trabalho no porto, ao movimento de sambistas e ao candombl: a Pedra do Sal. Em 2005, aps o estivador e integrante do Movimento Negro Unificado, Damio Braga, ter sido judicialmente retirado de sua casa pela VOT, um grupo de moradores ligados a essa 58
tradio negra solicitou, junto ao Governo Federal, o reconhecimento de um territrio remanescente de quilombo no entorno da Pedra do Sal. Por fim, o casal contou que, nos trs anos em que estava morando no morro, tinha observado duas transformaes na vizinhana: um aumento do afluxo residencial de estudantes de ps-graduao e a organizao do Projeto Mau, evento anual de visitao de atelis de artistas plsticos instalados, em sua maioria, em sobrados da Ladeira Joo Homem. Perceberam tambm que havia se intensificado a visitao de pessoas de fora ao morro, atribuindo o movimento aos ensaios do bloco de carnaval Escravos da Mau, que reunia centenas de pessoas no Largo de So Francisco da Prainha; divulgao em 2005 do documentrio Morro da Conceio... da cineasta Cristiana Grumbach, que abordava o que denominou de tradio portuguesa do morro; e abertura na Rua Sacadura Cabral das casas de shows Trapiche Gamboa e Sacadura e da boate The Week, todas direcionadas ao pblico de classe mdia. Ao me despedir, perguntei a eles se sabiam da existncia de alguma casa no morro que pudesse alugar temporariamente, pois pretendia observar as variaes dos usos dos espaos nos diferentes horrios e dias da semana. Alessandra ento me falou que um amigo seu, o arquiteto Antnio Agenor, estava procurando algum para dividir uma casa de dois quartos, localizada tambm na Rua Jogo da Bola. Fomos at sua casa e combinamos um encontro para o fim da tarde de 2 feira, quando conversamos por alguns minutos na sala. Antnio foi muito solcito com a realizao da pesquisa, mas nessa primeira conversa me tratou com bastante formalidade e preocupao em expor as boas qualidades do morro, como se estivesse informando a uma jornalista os aspectos excepcionais do local. Ele era sergipano e alugava o segundo andar de um sobrado de propriedade de Seu Luizinho. Costumava organizar no morro algumas aulas prticas de arquitetura para seus alunos quando, em 2004, decidiu se mudar de Copacabana, Zona Sul da cidade, por achar seu apartamento pequeno e caro. Procurou ento Seu Flix, morador da Ladeira Joo Homem que havia conhecido durante as aulas e que era sergipano como ele. Seu Flix alugava a parte de cima de sua casa, mas, como estava sem vaga naquele momento, anotou o telefone de Antnio caso soubesse de alguma oportunidade de aluguel. Dois meses depois, ligou avisando que Maurcio estava alugando um apartamento na Rua Jogo da Bola. Antnio ento se mudou, mas ficou pouco tempo neste apartamento, por no ter gostado das condies de conservao do imvel. Mas, como j estava inserido na 59
vizinhana, conseguiu alugar em seguida o sobrado onde estava morando. Ao falar sobre sua acolhida na vizinhana, Antnio contou que, em 2006, sua me havia vindo de Sergipe passar um ms de frias com ele, mas, durante a estadia, teve um grave problema de sade e permaneceu em sua casa se recuperando por vrios meses. Como era catlica, passou a frequentar as missas que eram realizadas nas manhs de domingo na capela da Rua Jogo da Bola e, quando foi embora, as senhoras da capela continuaram perguntando a Antnio sobre seu estado de sade. Assim, ainda que ele no frequentasse as missas, atravs de sua me havia passado a ser reconhecido e cumprimentado por uma parcela maior de seus vizinhos. Essa breve histria de Antnio me indicou que as classificaes de vizinhana operadas na Rua Jogo da Bola no priorizavam a origem dos moradores, antes eram uma combinao de classificaes de condies de moradia, divises de gnero e prticas religiosas. Sendo que nordestinos era mais uma categoria moral de acusao associada s oposies morador e favelado e masculino e feminino, que uma referncia ao fato dos moradores serem oriundos ou no da regio Nordeste do pas. Assim, Antnio, que possua uma situao regular de inquilinato e morava em um espao prestigiado da parte alta, e sua me, que frequentava o espao entendido como catlico e feminino, foram bem aceitos nessa vizinhana, mesmo sendo nordestinos. Em seguida, fui com Antnio para a roda de samba que ocorria toda noite de 2 feira no Largo Joo da Baiana, em frente Pedra do Sal. Quando chegamos ao samba, por volta das 19 horas, j havia cerca de oitenta pessoas no largo, entre homens e mulheres que conversavam em p, que haviam se acomodado na pedra ou estavam sentadas em cadeiras de alumnio em torno de mesinhas. Os msicos tocavam e cantavam ao redor de uma grande mesa e o bar Bodega do Sal, em frente ao largo, vendia petiscos fritos, caldos e bebidas aos frequentadores, sendo a cerveja de garrafa muito consumida e adquirida diretamente no balco, mediante pagamento imediato. Antnio ento me apresentou a Guenther Leyen, que estava no largo conversando com Martin e Alessandra. Ele me contou que era gacho e dono de uma empresa de informtica, mas se considerava mais artista que empresrio. Em 2005, havia se mudado para um pequeno prdio na esquina da Rua Jogo da Bola com a Travessa Coronel Julio e era, como Martin e Antnio, assduo frequentador do Bar do Srgio. Antes de se mudar para o morro, morava na Fonte da Saudade, Zona Sul da cidade, mas se queixou que mal conhecia os vizinhos. Em sua opinio, a vizinhana de 60
sua casa no morro era interessante por causa da diversidade social, exemplificando essa caracterstica listando suas variadas profisses, e no suas origens, seu gnero ou condies de moradia: para ele, no local conviviam bem pipoqueiros, antroplogos, artistas, policiais, empresrios, estivadores etc. Essa forma diferenciada de estruturar a vizinhana se explicava em parte pela forma como ele prprio havia se apresentado perante os demais moradores, mediada principalmente pela sua atuao local como artista plstico. De forma parablica, Guenther ento narrou dois eventos que considerava ilustrarem bem as relaes de vizinhana. O primeiro evento foi o dia em que viajou para Porto Alegre durante uma semana e deixou o carro estacionado em frente sua casa, avisando sua ausncia apenas ao Srgio, dono do bar. Quando retornou, Srgio lhe disse que o seu senhorio tinha ficado preocupado por no ter visto mais ele por l e por reparar que o carro tinha ficado no mesmo lugar: achou que ele poderia estar doente ou com algum problema. Guenther foi ento falar com o locador para, em suas palavras, fazer duas coisas: primeiro agradecer, por ter se preocupado comigo, segundo pedir desculpas, por no ter te avisado. J a segunda histria se referia a um acontecimento que ele havia considerado desagradvel: uma empregada domstica que trabalhava em sua casa e tambm era moradora do morro havia comentado com outro morador que ele era po duro porque, em um dia em que ela ficou doente e s pde trabalhar meio perodo, ele havia se recusado a pagar a diria inteira. Aps as duas histrias, Guenther afirmou que havia no morro uma convivncia entre vizinhos que permitia o estabelecimento de laos de amizade, mas que havia tambm um lado negativo dessa convivncia mais intensa, a fofoca, que podia ser gerada e afetar a reputao de um recm-chegado. Alm de movimentarem suas percepes sobre o novo local de moradia, as duas narrativas tambm me forneceram importantes informaes: que na parte alta do morro havia empregadas domsticas, patres, inquilinos e proprietrios que compartilhavam cotidianamente os mesmos espaos, fazendo com que tanto as relaes profissionais quanto as de inquilinato fossem importantes na estruturao e hierarquizao de suas relaes de vizinhana. Ainda na roda de samba, fui apresentada por Alessandra a Damio, morador que, ao ser despejado de um imvel da VOT, organizou o pleito de reconhecimento tnico do Quilombo da Pedra do Sal. Ele tambm foi receptivo pesquisa, mas no quis conversar por muito tempo. Nos poucos minutos em que nos falamos, afirmou que o seu despejo era decorrente do processo de aburguesamento do morro e que outras famlias 61
tambm estavam resistindo a sair das casas, no s a dele. E, estendendo o conflito para os urbanistas da prefeitura, disse que havia participado em 2003 de reunies com Nina Rabha e Augusto Ivan para discutir os projetos do Porto do Rio, mas se queixou que depois no havia sabido de mais nenhuma outra reunio realizada entre a prefeitura e os moradores. Nesse primeiro contato que tivemos, Damio se posicionou, portanto, contrrio aos que considerava serem os principais antagonistas do patrimnio no apenas negro, mas tambm popular, que portava: a igreja catlica e o urbanismo municipal. Quando me despedi dos moradores que havia conhecido nesta roda de samba, Guenther me convidou para participar das reunies de preparao do Projeto Mau, que seria realizado no mesmo fim de semana de dezembro em que era comemorado o dia da padroeira do morro, Nossa Senhora da Conceio. E Damio disse que estava ocupado acompanhando um frum de discusses sobre a elaborao do novo Plano Diretor da cidade, mas me forneceu o nmero de seu celular para que marcssemos um encontro em novembro. Assim, aps o contato que tive com o casal Alessandra e Martin, fui inserida numa rede mais ampla de vizinhana e iniciaram-se dois percursos de pesquisa e seus desdobramentos: os bares e festividades da parte alta do morro e as diferentes formas de classificao dos que eram de dentro e de fora de sua vizinhana; e o conflito habitacional entre o movimento quilombola e a VOT, sua presentificao do mito da Pequena frica e as prticas e cosmologia do candombl.
AS FESTAS E BARES DA PARTE ALTA
O espao de referncia simblica da parte alta do morro era a Praa Major Val, correntemente denominada pelos moradores de Largo da Santa por conter a imagem esculpida de Nossa Senhora da Conceio figurando sobre um mastro de cerca de oito metros em frente ao porto principal da Fortaleza da Conceio. O espao do largo era triangular: um dos vrtices se conectava a Rua Major Daemon e era ocupado pela muralha da Fortaleza; outro se conectava a Ladeira Joo Homem e era ocupado por casas trreas utilizadas como garagem pelo Exrcito e como residncias; e 62
o terceiro se conectava a Rua Jogo da Bola e era ocupado pelos fundos de sobrados residenciais. No havia um calamento especfico nem uma elevao do cho diferenciando o espao do largo: ele era de paraleleppedos assim como as vias que para ele convergiam. Durante os perodos diurnos e noturnos, o largo era utilizado para estacionamento e passagem de veculos. E, eventualmente, era ocupado por festividades organizadas pelos moradores do morro. A Rua Jogo da Bola era a via mais extensa do morro. Na extremidade que ficava conectada ao Largo da Santa, ela era ligada tambm ao Beco das Escadinhas da Conceio. A sua continuidade era uma passagem estreita e sinuosa rente muralha da Fortaleza, onde apenas um carro por vez conseguia trafegar e havia um mirante demarcado por uma grade de ferro e voltado para a retro-rea porturia. Aps essa curva, a muralha ainda ocupava um trecho do lado esquerdo da rua enquanto, no outro, havia sobrados e casas. Com o fim da muralha, os dois lados eram ocupados unicamente por casas e sobrados. Como era estreita, a rua possibilitava com dificuldades o trfego de dois veculos e as janelas das casas ficavam rentes s caladas, sem rea intermediria entre a via e a fachada, produzindo uma fronteira pouco ntida entre espaos pblicos e privados e gerando a sensao de intimidade social citada pelos moradores. Algumas das fachadas das casas e sobrados eram ornamentadas por azulejos, gesso talhado e pedras, e exibiam emblemas no alto dos portais indicando terem sido construdas entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX. Muitas fachadas tambm exibiam materiais construtivos de dcadas posteriores, como esquadrias de alumnio ou revestimento de cermica. E havia ainda outras onde a construo de puxadinhos verticais produzia uma ruptura no padro construtivo e decorativo entre a parte inferior e a superior. Assim, tanto vistos em relao uns aos outros, como a partir de suas composies individuais, os sobrados apresentavam um acmulo de temporalidades: os que estavam dispostos lado a lado tinham sido construdos em perodos distintos; e em cada um deles eram visveis as alteraes causadas pelas mudanas de usos e usurios. 63
O Bar do Beto era o primeiro estabelecimento comercial para quem seguia a Rua Jogo da Bola a partir do Largo da Santa, ficando do lado esquerdo. Sua parte interna era pequena e ocupada por um balco de atendimento, um banheiro ao fundo e uma mquina de assar frangos utilizada apenas nos fins de semana. E suas cadeiras, mesas de plstico e engradados de garrafas de cerveja ocupavam parcialmente a calada da via. Ultrapassando alguns sobrados, do lado esquerdo havia a escadaria da Travessa Coronel Julio, que ligava a Rua Jogo da Bola Rua Senador Pompeu, e mais a frente, direita, havia um acesso para a mais extensa via da parte baixa: a Rua Mato Grosso, cuja continuao era a Rua do Escorrega. Logo aps esse acesso estava localizado, tambm direita, o Bar do Srgio, que possua uma rea interna ampla com balco, prateleiras com mercadorias, freezer com picols e algumas mesas e cadeiras de madeira, e que, do lado de fora, tambm dispunha na calada mesas e cadeiras de alumnio. Quase em frente ao bar, ficava a Capela Nossa Senhora da Conceio, que possua apenas um andar, uma torre e um portal adornado ao alto com um azulejo decorado pela imagem da santa. Neste portal, havia ainda uma placa informando que a capela havia sido fundada pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceio em 10 de julho de 1892. Aps mais alguns sobrados havia direita a Praa Leopoldo Martins, chamada pelos moradores apenas de pracinha. A praa era cerca de um metro e meio elevada do nvel do cho e composta por pisos de terra batida e de pedras portuguesas, algumas rvores, bancos de cimentos, brinquedos e equipamentos de ginstica em madeira e conjuntos de banquetas e mesinhas de cimento com tabuleiros desenhados. sua frente, havia uma passagem para a Travessa Joaquim Soares, que ligava a Rua Jogo da Bola ao topo da Ladeira Pedro Antnio. Mais adiante, uma placa indicava aos motoristas que a rua era sem sada e, direita, havia ainda uma escadaria que conduzia Travessa do Sereno. Seguindo em frente, uma reteno de encosta ocupava todo o lado esquerdo e, do lado direito, casas e sobrados eram distribudos por uma curva. Essa extremidade da rua se encerrava com a conexo com a Rua Argemiro Bulco, que levava ao topo da Pedra do Sal, cruzava a Rua Sacadura Cabral e seguia at a retro-rea porturia. A outra via pertencente parte alta era a Ladeira Joo Homem. A ladeira era sinuosa, calada por paraleleppedos e ocupada por casas e sobrados que tambm apresentavam em alguns de seus portais azulejos com imagens de santos catlicos. Seu nico ponto comercial era o Bar do Geraldo, composto por balco e algumas cadeiras de plstico em sua rea interna e tambm por algumas mesas, cadeiras e engradados na 64
calada. De fronte ao bar, havia dois sobrados em runas e somente com parte das fachadas suspensas. Nenhuma via era perpendicular a ela, sua conexo com outros espaos era possibilitada apenas por suas extremidades. Na base da ladeira, uma escadaria a ligava Travessa do Liceu, uma passagem estreita e exclusiva para pedestres que interligava a Rua do Acre Rua Sacadura Cabral. Aps os primeiros contatos que fiz no morro, tentei agendar no final de outubro um encontro com a historiadora rika Bastos atravs de um numero telefnico oferecido por Martin e Alessandra. Quando conversamos em sua casa, eles haviam comentado que, logo aps a solicitao oficial de reconhecimento tnico do Quilombo da Pedra do Sal, o INCRA havia iniciado o processo de sua identificao e demarcao atravs da produo de um relatrio histrico e antropolgico, que deveria informar quem eram os componentes do grupo afrodescendente e qual territrio ocupavam coletivamente. Trs pesquisadoras da UFF haviam ento assumido a elaborao do relatrio e procurado alguns historiadores e antroplogos que residiam no morro para compor a equipe de pesquisa. O casal havia sido convidado, mas recusou por avaliar que, sendo morador, no possua o distanciamento necessrio para a realizao de um trabalho antropolgico. Mas rika tinha aceitado. Telefonei ento para sua casa, mas ela no estava e quem atendeu foi o historiador Mrio Miranda. Ele dividia com ela o aluguel de um sobrado na Ladeira Pedro Antnio e, em nossa breve conversa, comentou que iria participar naquela noite de uma reunio de organizao do Projeto Mau. A reunio seria realizada no Observatrio do Valongo da UFRJ, localizado no alto da Ladeira Pedro Antnio, e Mrio me explicou como chegar ao espao atravs de um percurso possibilitado pela Rua Senador Pompeu. Uma sequncia de pequenos trechos de ruas delimitava o lado da base do morro localizado entre a Rua do Acre e a Rua Senador Pompeu: os das ruas Leandro Martins, dos Andradas, Julia Lopes Almeida e da Conceio. No havia qualquer acesso que interligasse essas ruas s vias mais altas do morro e todos os fundos de suas edificaes eram voltadas para uma encosta formada por pedreira e vegetao que se estendia at a rea da Fortaleza. Essas ruas eram majoritariamente ocupadas por sobrados, com exceo da Rua Leandro Martins, onde predominavam os prdios altos. Mesmo durante o perodo diurno, muitas lojas trreas permaneciam fechadas, possivelmente por estarem ocupadas de forma residencial, e as que abriam eram utilizadas como depsitos de bebidas, botequins, estacionamentos e venda de materiais de escritrio. Havia ainda um 65
comrcio especializado em atividades grficas e, na Rua Leandro Martins, trs centros de lazer, que eram pequenos sobrados utilizados como ponto de prostituio. O trecho da Rua Senador Pompeu que compunha a base do morro era delimitado pela conexo com a Rua da Conceio e pelo cruzamento da Rua Camerino. No encontro com a Rua da Conceio, um amplo casaro era ocupado pela igreja evanglica Deus Amor e, ao longo da via, muitos sobrados e prdios serviam de estacionamento de veculos. O nico acesso ao alto do morro era a Travessa Coronel Julio, que tambm tinha seu limite demarcado pela alterao do cho asfaltado para o de paraleleppedos. Da base da Travessa Coronel Julio, dois caminhos podiam ser percorridos: direita, a Ladeira Pedro Antnio, ou, frente, a longa escadaria que desembocava na Rua Jogo da Bola. A Ladeira Pedro Antnio era uma subida ngreme e retilnea ocupada por sobrados e casas trreas e que possibilitava o trfego de dois veculos. O nico percurso de entrada e sada de um automvel no morro que podia ser realizado sem a necessidade de manobras era o que ligava essa ladeira Rua Major Daemon: subindo a Ladeira Pedro Antnio, o automvel devia dobrar direita na Travessa Joaquim Soares, dobrar novamente direita na Rua Jogo da Bola, seguir at o Largo da Santa, e dobrar direita na Rua Major Daemon. Ou vice-versa, pois todas essas vias eram de mo-dupla. Ao fim da ladeira, um muro branco com um porto vazado de ferro de cerca de trs metros com letras aplicadas em alumnio identificava o Observatrio do Valongo. E, esquerda do muro, havia uma vegetao alta com acmulo de sacos de lixo e um caminho de terra batida na encosta do morro que desembocava no Jardim Suspenso do Valongo. O porto do observatrio permitia a circulao de pessoas e carros e era vigiado por uma guarita localizada do lado de dentro. Ao ultrapass-lo, havia um campus universitrio com um cuidadoso projeto paisagstico, rea de rodagem de automveis e um prdio branco de dois andares onde eram ministradas aulas de astronomia. Fui recepcionada por Carlos Rabaa, professor que coordenava a participao da instituio pela primeira vez no Projeto Mau. Enquanto caminhvamos pelo campus, ele contou que frequentava o morro havia dez anos, primeiro como aluno do observatrio e, depois, como professor. Ao pararmos em frente ao muro baixo que era voltado para a Rua Senador Pompeu e oferecia uma ampla vista de ruas do Centro e da Gamboa, ele me mostrou a proximidade do Morro do Livramento, separado do Morro da Conceio apenas pela Rua Camerino, destacando que ambos os morros no eram favelas. Logo aps o Morro do Livramento, e sem que houvesse uma demarcao ntida entre seus 66
limites, estava o extenso e populoso Morro da Providncia, o nico da Zona Porturia que ele considerava ser uma favela. Rabaa ento apontou o caminho de terra batida que passava rente ao muro do observatrio e conduzia ao Jardim Suspenso do Valongo, dizendo que ali era um terreno desocupado e perigoso, aonde os funcionrios da universidade j haviam encontrado um cadver e alguns estudantes do Colgio Pedro II fumavam maconha. E, em seguida, Rabaa comentou sobre a construo irregular que havia ao lado da guarita de entrada do observatrio, contando que essa casa pertencia UFRJ, mas tinha sido ocupada pela famlia de um antigo segurana da universidade aps ele se aposentar. Disse que a universidade j tinha expulsado alguns moradores e demolido um puxadinho no entorno do observatrio, mas que no tinha conseguido solucionar todo o problema. Segundo ele, os moradores do morro consideravam degradadas todas as casas construdas no topo da Ladeira Pedro Antnio e na Travessa Joaquim Soares e chamavam seus ocupantes de sem terra. Nessa travessa, havia algumas casas com os tijolos aparentes que destoavam das demais fachadas do morro que, mesmo possuindo padres construtivos e decorativos diversos, eram revestidas. Mas Rabaa, ao se referir aos moradores do morro, falava nitidamente dos que eram seus conhecidos na parte alta, compartilhando com eles uma de suas formas de estruturar o espao: por condies de moradia. A reunio dos integrantes do Projeto Mau foi realizada em uma sala de aula e composta por trs professores do observatrio, sete artistas, dois historiadores e um filsofo. Sua conduo foi feita por Rabaa e pelo gravurista Marcelo Frazo, que iniciaram a conversa manifestando a preocupao de procurar a comunidade do morro para saber se ela desejava que a procisso de Nossa Senhora da Conceio fosse includa na divulgao do evento. O grupo combinou que todos os atelis ficariam fechados durante a procisso e que entrariam em contato com seus organizadores, Frigideira e Seu Luizinho, para propor que os moradores da Rua Jogo da Bola pendurassem tecidos nas janelas de suas casas, remetendo s festas de padroeira do interior do pas. Os organizadores do Projeto Mau consideravam, assim, ser um importante atrativo do evento a manifestao popular da procisso, embora durante suas falas nenhum deles tenha se includo diretamente na noo de comunidade do morro. Outro assunto que mobilizou o grupo foi a seleo dos filmes que seriam exibidos no observatrio durante o evento. Eles haviam decidido que o tema dos filmes 67
seria o morro e sugeriram a exibio do documentrio Morro da Conceio..., que abordava as memrias de alguns moradores idosos descendentes de portugueses. O historiador Marcelo Abreu ento sugeriu que fosse tambm exibido um curta-metragem de sua autoria sobre uma favela carioca, mas a proposta foi prontamente recusada, com o argumento de que no desejavam associar o evento ideia de favela. Por fim, houve um debate sobre as estratgias de divulgao do projeto na imprensa, onde a maioria decidiu que seriam enviados releases aos jornais O Globo e Jornal do Brasil e Revista Veja, para privilegiar o pblico de classe alta e mdia da cidade, e que no seria procurado o jornal O Dia, para no atrair a classe popular. Aps a reunio, vrios de seus integrantes foram ao Bar do Srgio conversar e beber cerveja, confirmando a importncia do espao em suas relaes cotidianas de vizinhana. Duas semanas depois dessa reunio, combinei de encontrar o historiador Marcelo, pois tinha percebido que ele desejava mediar diferentes espaos, patrimnios e imaginrios sobre o morro e que no operava com a oposio morador e favelado. Inicialmente, marcamos um encontro de fim de tarde na casa de Antnio, mas continuamos a conversa no Bar e Restaurante Glria, localizado na esquina da Rua do Acre com a Travessa do Liceu. De dia, esse bar integrava o comrcio de alimentao popular da Rua do Acre voltado para os funcionrios dos escritrios do entorno da Avenida Rio Branco, mas, noite, ele ficava na rea perifrica de prostituio da Praa Mau e suas mesas eram ocupadas tambm por diferentes moradores da regio. E essa alternncia de tempos e usurios fazia desse prprio bar tambm um espao de mediao entre as diferenas da Zona Porturia. Marcelo havia conhecido o morro em 1995, atravs de uma visita guiada por um professor de histria da UFF e, depois, tinha voltado outras trs vezes parte alta para beber cerveja no Bar do Srgio. Tinha tambm se tornado frequentador assduo da base do morro por causa dos ensaios do bloco Escravos da Mau realizados no Largo So Francisco da Prainha. Em 2005, ele decidiu alugar uma casa no Centro e arredores e procurou o Bar do Srgio. Soube ento que os preos do aluguel no Morro da Conceio eram os mesmos que no Morro da Providncia, variando entre 400 e 800 reais. E que as casas de propriedade de Seu Luizinho ficavam localizadas na parte baixa do morro e no final da Rua Jogo da Bola, mas no eram alugadas para qualquer um e havia a exigncia de apresentao de fiador. A casa que Marcelo acabou por alugar no era localizada nem na parte alta nem na parte baixa do morro, ficava na Ladeira Pedro Antnio, e ele a encontrou vendo uma 68
placa afixada na fachada que informava o telefone de uma imobiliria. A casa que alugou possua trs quartos e ele convidou os historiadores Mrio e rika, que eram seus amigos desde a graduao na UFF, para dividirem o aluguel. Embora no tivesse precisado conhecer algum morador para conseguir alugar essa casa, sua relao de inquilinato tambm possua regras: a imobiliria exigiu que Marcelo apresentasse um fiador proprietrio de dois imveis. Antes de sua mudana para o morro, Marcelo havia alugado um apartamento no Graja, bairro da Zona Norte, e disse que antes era mais difcil ir ao cinema e receber a visita de amigos, j que a maioria deles morava na Zona Sul e achava o bairro longe. E que no gostava muito de seus vizinhos, porque eles se comportavam como insulares, se achavam a aristocracia da Zona Norte. Reclamou tambm de no bairro s haver um nico bar e de sentir falta da convivncia que o espao possibilitava. E acabou por ponderar que os moradores do morro tambm eram insulares, mas logo fez a ressalva de que a viso que tinha era a partir do Bar do Srgio. Foi ento que ele falou mais demoradamente sobre como sua insero na vizinhana havia passado pela frequncia nesse bar. Marcelo contou que, logo que chegou, Dona Regina, me do Srgio, o ajudou a conhecer os vizinhos que frequentavam o bar quase todos os dias. Alguns deles compunham a turma do Aliado, que era um jogo de tabuleiro onde participavam apenas os mais velhos e seus filhos, ficando excludos os considerados de fora e as crianas. Quem confeccionava o tabuleiro era Seu Ren, mas ele tambm podia ser comprado na Casa da Armada, loja localizada prxima ao Morro do So Bento. Ao comparar dois bares da parte alta do morro, o do Srgio e o do Geraldo, Marcelo disse que achava o primeiro melhor porque era tambm frequentado por crianas e mulheres; o outro era frequentado predominantemente por homens, embora na Ladeira Joo Homem, assim como na Rua Jogo da Bola, tambm fosse comum que crianas e mulheres conversassem em cadeiras domsticas dispostas na calada de suas casas. Marcelo havia percebido ainda que os moradores da Rua Jogo da Bola no circulavam por outras partes do morro, que eram alguns dos moradores da Ladeira Joo Homem e da parte baixa que se deslocavam para o Bar do Srgio, exemplificando a hierarquia entre os espaos e os grupos sociais do morro. A vizinhana que frequentava o Bar do Srgio costumava dizer que os moradores da Ladeira Pedro Antnio tinham mais relao com os espaos da Rua da Conceio e da Rua Senador Pompeu, no sendo considerados por isso moradores do morro. Assim, Marcelo indicava que os limites geogrficos e administrativos do morro 69
no equivaliam aos limites de suas diferentes vizinhanas ou, como outros denominavam, de suas comunidades. E que as categorias que usualmente classificavam seus habitantes entre de dentro e de fora do morro no podiam ser compreendidas apenas como territoriais: elas envolviam diversos outros aspectos, como morais, sociais, legais, econmicos e estticos. Um morador de uma das vias administrativamente classificada pela prefeitura como Morro da Conceio podia, portanto, ser entendido como um de fora tanto quanto algum que morasse em outro bairro ou regio da cidade. Segundo as observaes de Marcelo, embora os moradores da Rua Jogo da Bola costumassem dizer que no morro sempre havia circulado gente que no era nascida e criada aqui, eles se incomodavam bastante com as mudanas de vizinhana. Para exemplificar essa reatividade a novos moradores, narrou o dia em que o Bar do Srgio havia sado na coluna P Limpo do jornal O Globo sem que tivesse sido avisado pelo jornalista. A propaganda inesperada foi muito mal recebida tanto por Srgio quanto pelos frequentadores do bar, porque eles no desejavam turistas nem gente de fora por l. Em sua opinio, mesmo os que eram proprietrios de imveis no morro, como Srgio, Seu Ren e Seu Luizinho, se posicionavam de forma contrria sua valorizao econmica. Havia nessa fala de Marcelo, portanto, mais uma importante diferenciao entre turistas e de fora: o primeiro sendo associado a uma maior contingncia em relao aos espaos do morro, por no permanecerem neles por muito tempo nem estabelecerem vnculos sociais; e o segundo, mas temido, por ser associado a um frequentador constante ou mesmo um morador que no compartilhasse dos mesmos valores sociais e morais dos moradores tradicionais. Assim, como Martin e Alessandra, ao se mudar para o morro Marcelo tambm tinha decidido no atuar como pesquisador; mas se envolveu no Projeto Mau por avaliar que ele no iria causar a atrao de novos moradores e poderia estimular o investimento da prefeitura no entorno do morro, principalmente nas ruas Senador Pompeu, da Conceio e do Acre, que considerava abandonadas, sujas e sem iluminao. Ele tinha conhecido os artistas do projeto atravs de Guenther e comentou que vrios dos envolvidos nele eram tambm proprietrios de casas no morro. No sabia exatamente como os demais moradores da parte alta percebiam o projeto, mas j tinha ouvido falar que alguns achavam de alto nvel. Contou ento que tinha havido outro encontro dos integrantes do Projeto Mau aps o realizado no Observatrio, e que novamente tinham recusado uma proposta sua: 70
organizar um debate aps a exibio do filme Morro da Conceio... com o historiador Jlio Csar Pereira, que havia publicado em 2005 um livro sobre as atividades do cemitrio dos pretos novos e do mercado de escravos africanos na Zona Porturia. Marcelo explicou que sua inteno era fazer um contraponto participao da VOT no evento, que havia disponibilizado o imvel onde funcionava sua casa de cultura para abrigar uma exposio coletiva de fotos. Em sua avaliao, a incluso de um historiador que falasse sobre a memria negra na regio era uma forma de apoiar os moradores que estavam reivindicando o reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal. O pedido de reconhecimento da regio como territrio quilombola era, na opinio de Marcelo, um pouco exagerado, embora considerasse inegvel a existncia de uma ligao histrica do passado negro com a Zona Porturia. Ele me contou que conhecia algumas das famlias despejadas pela ordem franciscana e que existiam moradores que ocupavam os imveis havia mais de 70 anos. E que, quando houve a solicitao de parte da base do morro como territrio tnico, o frei que administrava a VOT chamou para uma reunio os alunos e pais da Escola Padre Dr. Francisco da Motta e do recm-inaugurado Colgio Sonja Kill para dizer que os quilombolas queriam tomar a rea ocupada por esses estabelecimentos de ensino, conseguindo dessa forma vrias adeses a um abaixo-assinado contra o Quilombo da Pedra do Sal. No desenvolvimento do trabalho de campo, dividi o aluguel na casa de Antnio durante algumas semanas entre os meses de novembro de 2007 e abril de 2008. Nessa estadia, observei o cotidiano do Bar do Srgio e a realizao de algumas festas coletivas organizadas por diferentes moradores da parte alta. Analisei ento como estava sendo valorizado turisticamente o que externamente ao morro estava sendo denominado patrimnio portugus e espanhol e como seus moradores classificavam a boa vizinhana atravs das categorias de dentro e de fora, a partir de uma gradao que movimentava as figuras do morador, do turista, do poltico, do malandro e do criminoso. E analisei, ainda, como suas formas de estruturar o morro passavam por um rgido sistema de reputao que opunha vcio e virtude e dividia os espaos em feminino e masculino, cujas figuras extremas do imaginrio negativo eram a prostituta e o viado.
O CONFLITO DA PEDRA DO SAL
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O conflito entre os moradores que solicitaram a demarcao do territrio tnico do Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT foi ocasionado pela superposio da rea perifrica de dois centros de irradiao simblica: a Pedra do Sal e a Igreja de So Francisco da Prainha, ambas localizadas no trecho da base do morro voltado para a Rua Sacadura Cabral, via que percorria todo o bairro da Sade e parte do bairro da Gamboa. A pedra era uma formao rochosa que possua uma rea lisa e escorregadia e outra de escadaria esculpida que facilitava a circulao de pedestres. Na base da pedra, estava o Largo Joo da Baiana, cujos limites fsicos eram tambm demarcados pela lateral do ltimo sobrado do lado mpar da Rua So Francisco da Prainha; pelos sobrados do restaurante Victoria Self Service e do bar Bodega do Sal; e por um muro alto e uma escadaria que conduzia Travessa do Sereno, onde dois sobrados tiveram suas fachadas unificadas e foram ocupados pelo centro comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro da VOT. A calada do largo era ornada por grandes pedras quadradas circundadas por pequenas pedras portuguesas e possua dois bancos de madeira e um coqueiro. Ao nvel do cho, havia um calamento formado apenas por grandes pedras que separavam seu espao do das ruas So Francisco da Prainha e Argemiro Bulco, ambas caladas por paraleleppedos. Na parede da Bodega do Sal, uma placa informava que, em 1987, a Pedra do Sal havia sido tombada como monumento histrico e religioso afro-brasileiro pelo INEPAC. Nos perodos diurnos, o largo era utilizado como rea para estacionamento de carros e ocupado principalmente pela movimentao do restaurante e, nas noites de 2 e 4 feiras, eram realizadas nele rodas de samba organizadas pelo bar. Eventualmente, no largo tambm eram realizadas festividades de moradores ou relacionadas ao circuito de sambistas. O trecho da Rua Sacadura Cabral que compunha a base do morro possua dois setores de caractersticas fsicas e ocupacionais distintas, demarcados pela alterao da direo do trfego de automveis em frente ao Largo So Francisco da Prainha. Esta alterao era provocada pela conexo com a Rua Edgard Gordilho, que interligava a Rua Sacadura Cabral Avenida Rodrigues Alves, principal via de acesso da retro-rea porturia e por cima da qual passava a Avenida Perimetral. A conexo provocava uma 72
encruzilhada em frente ao largo, que fazia com que os motoristas tivessem que optar em dobrar para a esquerda, em direo Igreja da Prainha e Praa Mau, ou para a direita, em direo Pedra do Sal e regio do morro denominada de Valongo. O Largo So Francisco da Prainha, denominado por seus usurios apenas como Largo da Prainha, era de formato triangular e delimitado pelos cruzamentos da Rua Sacadura Cabral com a Rua So Francisco da Prainha e o Beco Joo Igncio. Seu espao era demarcado por um calamento de paraleleppedo elevado um palmo acima do nvel do cho, onde se encontravam dispostos um jarro com plantas, bancos de madeira, rvores, postes e dois conjuntos de mesas em cimento com tabuleiros pintados e banquetas tambm de cimento. Uma parte dos sobrados frontais ao largo era de propriedade da VOT e estava desocupada, e a outra parte era utilizada como depsito de bebidas ou para o funcionamento de bares e restaurantes populares. Durante os perodos diurnos, o largo era usualmente tomado por estudantes, homens jogando cartas, pessoas conversando e por muitos engradados de cerveja e recipientes de gua filtrada que eram vendidos pelos depsitos. noite, o movimento de pessoas era menor e apenas o bar da esquina da Rua So Francisco da Prainha com o Beco Jos Igncio funcionava. E, em algumas 6 feiras, o espao era tomado pelo ensaio do bloco de carnaval Escravos da Mau, que chegavam a atrair at duas mil pessoas. A Rua So Francisco da Prainha continuava para alm do Largo da Prainha, interligando a Rua Sacadura Cabral ao Largo Joo da Baiana. No trecho da rua entre a esquina do Beco Joo Igncio e o Largo Joo da Baiana havia sobrados dos dois lados. No lado mpar, eles eram quase todos utilizados como residncia por inquilinos da VOT ou moradores informais, sendo que em um deles estava instalado o curso de padaria e, no trreo de um pequeno edifcio, estavam os cursos de marcenaria e grfica, todos componentes do Projeto Humanizao do Bairro. As edificaes desses trs cursos permaneciam quase sempre fechadas, e se destacavam visualmente das demais por possurem boas condies de conservao, fachadas pintadas em azul claro e uma placa que expunha o nome do curso e as logomarcas dos realizadores do projeto. No lado par da Rua So Francisco da Prainha, a maioria dos sobrados tinha suas frentes voltadas para a Rua Sacadura Cabral e era ocupada por estacionamentos, sendo 73
alguns ocupados pelo pequeno comrcio, entre eles o Mercadinho Pai Dgua e o Restaurante Gracioso. Esse trecho da Rua Sacadura Cabral era definido pelo Beco Joo Igncio e a Rua Argemiro Bulco e marcado pela presena, no outro lado da calada, de um estacionamento trreo que possibilitava a plena viso do prdio de oito andares da Rua Venezuela utilizado pela ocupao de moradores sem teto Zumbi dos Palmares. A Rua Argemiro Bulco se conectava a Rua Venezuela, atravessava as ruas Coelho e Castro e Sacadura Cabral e percorria a Pedra do Sal at encontrar com a Rua Jogo da Bola. O trecho alto da pedra era ocupado por sobrados e casas e, prximo sua base, o lado esquerdo era totalmente tomado pela empena cega do edifcio de mais de doze andares da CEDAE e o lado direito era ocupado tambm por um edifcio de altura semelhante, utilizado por residncias. No final do setor da Rua Sacadura Cabral que contornava o morro, entre a Rua Argemiro Bulco e a Rua Camerino, havia alguns sobrados em runas ou fechados, outros que no perodo diurno eram utilizados como estacionamento e alguns ocupados pelo pequeno comrcio. Em um dos sobrados, funcionava uma igreja evanglica Universal do Reino de Deus. E, de padro construtivo contrastante por possuir linhas arquitetnicas retas e janelas espelhadas, havia o prdio de oito andares do hotel Villa Reggia. Ainda estavam localizadas neste setor as casas de shows Trapiche Gamboa e Sacadura e a boate The Week, que s abriam noite. A partir do Largo da Prainha em direo Praa Mau, aps dois sobrados da Rua Sacadura Cabral havia uma escadaria de acesso ao Adro de So Francisco, um ptio retangular elevado cerca de oito metros onde, ao centro, estava a pequena Igreja de So Francisco da Prainha. Denominada pelos usurios do morro como Igreja da Prainha, essa edificao era o centro simblico dos portadores do patrimnio franciscano e foram nos espaos de seu entorno que os dirigentes da VOT implantaram em mais de trinta sobrados suas obras sociais e educacionais: a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, o Colgio Sonja Kill e o Projeto Humanizao do Bairro. Pintada de branca e com detalhes em pedra na fachada, a igreja possua uma placa datada de 1910 e afixada acima de seu portal informando que sua construo havia comeado no ano de 1696 pelo grande benfeitor Padre Dr. Francisco da Motta, que em 1704 a legou com o patrimnio da Prainha VOT. 74
frente da igreja, havia uma mureta branca que separava o adro da Rua Sacadura Cabral e, em suas laterais e fundo, se alinhavam algumas casas trreas tambm de propriedade da ordem franciscana. Atrs da igreja, direita, um corredor levava pequena escadaria que demarcava o encontro da Rua do Escorrega com a Rua Mato Grosso e, ao lado dela, uma passagem conduzia ao Beco Joo Jos. Nele, estavam localizadas as portas frontais da Escola Padre Francisco Motta e do Colgio Sonja Kill, ambos pintados de azul e branco. Juntas, essas instituies de ensino ocupavam todo o quarteiro delimitado pelos becos Joo Jos e Joo Igncio, pela Rua Mato Grosso e pelo adro. As fachadas das casas do adro eram pintadas de branco, mas cada conjunto de portas e janelas era alternado em verde, azul, amarelo e branco. Algumas possuam pequenas placas afixadas no portal identificando as atividades desenvolvidas pelo Projeto Humanizao do Bairro: salo de beleza, oficina das artes, escritrio modelo, sade para a comunidade, escola popular de msica, arte e bordado, cantinho da moda, casa de cultura do Morro da Conceio. Esse conjunto de construes era cuidadosamente pintado e seus tons de cor pastis e frios contrastavam com a profuso de cores da Rua Sacadura Cabral e das demais vias da base do morro. Neste trecho da Rua Sacadura Cabral que ficava entre o Largo da Prainha e a Praa Mau, havia um entroncamento no acesso ao morro que dividia o percurso entre a escadaria do Adro de So Francisco e a escadaria da Rua Eduardo Jansen. Essa rua era pouco extensa e desembocava na Rua do Escorrega, outra via que subia o morro e que, unida sua continuao, a Rua Mato Grosso, atravessava quase toda sua parte baixa at alcanar a Rua Jogo da Bola. Nenhuma dessas ruas possua um calamento em paraleleppedo, eram apenas asfaltadas. E, ao longo desse trecho da Rua Sacadura Cabral, diversos transportes coletivos faziam ponto final de passageiros e os sobrados e prdios eram utilizados de forma comercial, residencial e tambm como hospedarias. Nos perodos diurnos, as lojas trreas ofereciam servios de alimentao popular, estacionamento de veculos, venda de bebidas ou produtos para escritrio, entre outros, e repetiam o visual colorido de tabuletas da Rua do Acre. Barracas credenciadas pela prefeitura compunham na proximidade da Praa Mau o Comrcio Popular 75
Sacadura Cabral, como podia ser lido em seus toldos de lona azul. noite, este trecho da rua era ocupado pelas atividades voltadas para a prostituio e o lazer em torno das boates, botequins e barraquinhas ambulantes de comidas e bebidas. Trs grandes boates convidavam a entrada dos turistas estrangeiros afixando em suas fachadas os letreiros Welcome Club Florida. Show. Music. Dance. Bar. Girls; Boite Scandinavia. Night Club. Shows e Strips; ou simplesmente em luz neon Kabaret Kalesa. E, alm desses espaos de acolhimento sexual aos estrangeiros e migrantes, havia algumas construes governamentais voltadas para seu atendimento e controle: Polcia Federal, Hospital Jos da Costa Moreira, 1 Delegacia de Polcia Civil, Terminal Rodovirio Mariano Procpio, Arsenal da Marinha e Terminal de Passageiros do Porto. Interligando essa extremidade da Rua Sacadura Cabral Rua do Acre, estava a Travessa do Liceu, que permitia o acesso Ladeira Joo Homem. Essa travessa era delimitada pelos fundos do edifcio A Noite, de mais de vinte andares, e pela encosta do morro. Ao longo da encosta, a travessa era ocupada por barracas credenciadas pela prefeitura, que vendiam alimentos no perecveis, como biscoitos, balas e chocolates, e peas de vesturio e objetos para escritrio. Estas barracas diminuam ainda mais a estreita rea de passagem dos pedestres e mantinham a via permanentemente ocupada. J a lateral do edifcio possua algumas colunas de madeira que davam sustentao a sua marquise. No perodo diurno, embaixo dela ficavam informalmente estacionadas motos e bicicletas e pequenos grupos de usurios organizavam jogos de cartas e de tabuleiro. Aps conversar rapidamente com Damio na roda de samba da Pedra do Sal, falei com ele ainda mais duas vezes ao telefone at conseguir encontr-lo na manh do dia 13 de novembro de 2007. Ele morava com sua mulher, Marilcia Luzia, em um sobrado na Rua So Francisco da Prainha. Alm deles, tambm morava nessa rua outro integrante do movimento quilombola, Marquinhos, que trabalhava como vendedor de cachorros-quentes numa barraca ambulante instalava no Largo da Prainha. Meu encontro com Damio aconteceu na calada em frente sua casa e, logo que nos cumprimentamos, ele me avisou que no poderia falar durante muito tempo comigo e emitiu a opinio de que os acadmicos atuavam quase sempre em favor dos interesses da elite. Mas, embora tenha mantido uma postura desconfiada, conversamos por quase uma hora. Damio contou que trabalhava no porto e, alm de ser presidente da Associao de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal - ARQPEDRA, havia sido eleito na semana anterior vice-presidente da Associao dos Quilombos do Estado do Rio de 76
Janeiro - AQUILERJ. Ele no quis me responder sobre sua trajetria habitacional at a chegada ao morro, afirmou apenas que tinha sido criado na Zona Porturia e que a primeira moradia dele no morro havia sido em uma casa da VOT na Travessa do Sereno, onde tinha permanecido por dois anos sem ter qualquer contrato de aluguel. Quando foi despejado atravs de uma ao judicial movida pela entidade, ocupou uma casa na Rua So Francisco da Prainha, que tambm estava vazia e era de propriedade da ordem franciscana. Embora ele prprio no pagasse aluguel, disse que outras famlias que foram despejadas pela entidade tinham contrato de locao e acusou seus dirigentes de terem feito algumas expulses agressivas com o auxlio de policiais. Disse ento que a VOT no tinha documentos que comprovassem a propriedade das casas da parte baixa do morro, porque aquela rea da Rua Sacadura Cabral havia sido aterrada e pertencia originalmente Unio. E de ter comeado a despejar os moradores e reivindicar a propriedade dessas casas somente depois que a prefeitura divulgou o plano urbanstico Porto do Rio, afirmando que a instalao dos cursos profissionalizantes era apenas um pretexto para valoriz-las economicamente. Perguntei ento a ele quem eram os integrantes da comunidade quilombola e onde se reuniam cotidianamente, mas Damio respondeu de forma genrica, repetindo que a Zona Porturia era um espao de ocupao histrica do negro e que durante anos essa ocupao havia sido inibida pela atuao da igreja catlica e dos planos urbansticos. E foi operando com esses grandes personagens mticos os negros, a igreja catlica e os urbanistas - que ele informou que havia dcadas nenhuma casa de candombl funcionava na rea, j que todas haviam se deslocado para o subrbio aps serem perseguidas. No entanto, em seguida Damio lembrou que at 2005 havia funcionado um candombl em uma das casas do Adro de So Francisco, mas que a casa tambm tinha sido retomada pela VOT. Damio ento perguntou qual era a minha religio e eu respondi que no era praticante de nenhuma, mas que havia sido batizada na umbanda, religio que, durante a minha infncia, era a de minha me. Ele reagiu com surpresa e disse que esperava que eu fosse catlica, j que ele prprio era do candombl, mas batizado pela igreja catlica, e no conhecia muitas pessoas que eram batizadas em religio do santo. Enquanto conversvamos, Mauro Rasta passou pela rua e parou para falar conosco. Mauro organizava junto com Damio e Marilcia o Projeto Sal do Samba, que realizava apresentaes musicais na Pedra do Sal, e avisou a Damio que o Canal Futura tinha entrado em contato para fazer uma matria televisiva com os integrantes do 77
Quilombo da Pedra do Sal. Damio disse que j tinha recebido o convite, mas que no havia aceitado porque o movimento quilombola nacional tinha deliberado no participar de nenhuma matria realizada por instituies ligadas Rede Globo de Comunicaes. Explicou-me que esse posicionamento tinha sido tomado devido s distores que os jornalistas estavam fazendo ao narrarem os conflitos em torno dos territrios tnicos. Perguntei ento que instituies apoiavam o Quilombo da Pedra do Sal e ele me falou que favorveis ao pleito haviam apenas o Movimento Negro Unificado; a ONG Comcat, voltada para a formao de lderes comunitrios e sediada no Beco Joo Jos; a ONG Koinonia, entidade carioca atuante no monitoramento e assessoria poltica dos pleitos de reconhecimento de territrios quilombolas; e a ONG Centre On Housing Rights and Evictions - COHRE, entidade paranaense voltada para a implantao de projetos de moradia popular. Mas disse que a Comcat e a Koinonia haviam sido pressionadas pela VOT, atravs da mediao de um representante da Comunidade Europia, financiadora em comum das trs entidades, para que elas no oferecessem apoio formal ao movimento. Ao conversar com Mauro sobre os eventos que pretendiam realizar na Pedra do Sal no fim do ano, Damio me disse que o Projeto Sal da Pedra costumava comemorar o dia da Conscincia Negra, 20 de novembro, mas que naquele ano eles tinham decidido no realizar nenhuma atividade porque estavam sem dinheiro. Mas que ele e Mauro estavam organizando a festa de comemorao ao dia do Samba, 02 de dezembro, j que tinham recebido o apoio de uma professora universitria que se prontificou a oferecer os ingredientes para a produo de uma feijoada, pedindo em troca que eles organizassem a apresentao de grupos de dana afro. Segundo Damio, havia dois anos que eles no conseguiam realizar a festa de comemorao ao dia do Samba por causa das despesas que tiveram com os embates judiciais com a VOT e que, antes do pleito de reconhecimento tnico, nessa festa havia a lavagem da pedra com o auxlio de filhos de santo seguida de uma roda de samba. No final de nossa conversa, Damio sugeriu que eu consultasse o Relatrio Histrico e Antropolgico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal produzido pelo INCRA, dizendo que eu iria encontrar nele a histria da Zona Porturia e do pleito quilombola. Sugeriu ainda que a leitura da Proposta de Tombamento da Pedra do Sal apresentada ao INEPAC em 1984. Quando nos despedamos, comentei com Damio que estava ainda em incio de pesquisa e que pretendia conversar tambm com os dirigentes da ordem franciscana para saber a verso 78
deles sobre o conflito. Ele ento respondeu que no havia verses, que ele estava contando a verdade. No incio de dezembro, estava em um ensaio do bloco de carnaval Escravos da Mau no Largo da Prainha quando Marcelo me informou que, entre as diversas barracas de venda de comida e bebida montadas no largo, a que ficava na esquina do Beco Joo Igncio pertencia ao Quilombo da Pedra do Sal. Fui ento para essa barraca e me apresentei como pesquisadora a Sonia, que estava organizando as vendas. Ela me disse que havia morado na ocupao de moradores sem teto Chiquinha Gonzaga, localizada em um edifcio da Rua Baro de So Felix prximo Central do Brasil, trabalhava na ONG Rede de Vtimas de Violncia de Comunidade e ajudava Lcia, que era como todos chamavam Marilcia, a tomar conta da barraca dos quilombolas. Sonia ento apresentou-me Lcia, que conversou rapidamente comigo, dizendo que havia morado na Zona Porturia desde que nasceu, mas sem querer especificar onde. Disse apenas que nem as ONGs e nem a igreja apoiavam o Quilombo da Pedra do Sal, que eles s contavam com o apoio dos grupos negros. Amaury, amigo de Lcia, se aproximou da conversa e ela se afastou para falar com outras pessoas. Ele era produtor cultural e trabalhava principalmente com sambistas, e disse que seu desejo era articular o movimento quilombola com outros grupos dedicados ao samba da Zona Porturia, como os blocos Prata Preta e Escravos da Mau, mas que estava difcil unir seus integrantes. Outro amigo do grupo, Renato Radical, entrou na conversa e, sabendo que eu era pesquisadora, me perguntou, assim como havia feito Damio, se eu era catlica. Depois que soube do meu batismo na umbanda, Renato me reapresentou Lcia, enfatizando esse aspecto religioso, e conversamos por mais alguns minutos. Ao mesmo tempo em que tentava estabelecer um contato com os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, tentei compreender como o pleito tnico estava sendo conduzido pelo INCRA. Insisti assim em falar com rika, historiadora que tinha participado da elaborao do relatrio de identificao e delimitao. Aps alguns desencontros, ela me convidou para ir festa de comemorao de seu aniversrio. Chegando sua casa, conversei por alguns poucos minutos com ela, que contou que na elaborao do relatrio sobre o Quilombo da Pedra do Sal tinha feito entrevistas apenas com os moradores que solicitaram o reconhecimento tnico e um levantamento histrico sobre a regio; no havia entrevistado outros moradores que no fizessem parte do grupo para saber o que achavam do pleito. E depois de entregue sua 79
parte do trabalho, no havia acompanhado mais o processo de reconhecimento; s sabia que o relatrio j tinha sido enviado ao INCRA. Alguns dias depois, fui convidada para um evento organizado por Mauro Rasta na Pedra do Sal e, encontrando novamente rika, compreendi o seu desconforto em falar sobre o pleito. Era o aniversrio de uma cantora de samba, que havia organizado uma roda com alguns msicos e chamado seus amigos para a comemorao, a maioria no moradora da regio. Nesse evento, o movimento quilombola havia montado uma barraca para a venda de caldo de feijo, de quiabo com frango e de cerveja, como forma de angariar dinheiro para o movimento. Ao chegar e ver os msicos, os convidados e a comida servida pela aniversariante, que era torradas com tabule, rika criticou a festa, dizendo que aquilo no era movimento quilombola, mas uma manifestao para- folclrica. E percebi, assim, que durante a pesquisa ela havia ficado tensionada pela sua prpria percepo do que considerava ser um autntico movimento quilombola. Retomei o contato direto com integrantes do Quilombo da Pedra do Sal apenas no incio de abril de 2008, quando conheci Carmem durante um evento de arte contempornea organizado por um morador da parte alta do morro e patrocinado pelo IPHAN. Parte das intervenes artsticas do evento havia ocupado a Pedra do Sal, e encontrei Carmem porque ela explicava a um dos artistas o que era o movimento quilombola. Ela ento me contou que havia seis anos que residia em um imvel na Travessa do Sereno e que, antes mesmo de ter se tornado uma quilombola, j era discriminada por outros moradores por ser da parte baixa e no da parte alta, que ela identificava como a elite do morro. Acusou tambm a VOT de estar perseguindo os integrantes do quilombo e de terem utilizado uma milcia formada por policiais a paisana para expulsar os moradores dos imveis e retirarem seus pertences. Segundo ela, esses despejados eram em torno de cinquenta pessoas, mas poucos haviam continuado a morar na Zona Porturia; morando no morro, haviam restado apenas os que organizaram o movimento. No dia 23 de abril, reencontrei Carmem na Pedra do Sal em uma festa em comemorao ao dia de So Jorge. Quem havia me avisado do evento foi novamente Mauro Rasta que, por telefone, explicou que ele estava sendo organizado coletivamente, com a participao de amigos do movimento quilombola, de moradores da regio e de militantes do movimento negro e social. Ele tinha ficado encarregado de convidar as pessoas e divulgar o evento, e Lcia de comandar a barraca de bebidas e o preparo da feijoada. Cheguei festa no fim da manh, quando a barraca com feijoada e bebida j 80
estava montada, mesas e cadeiras de alumnio haviam sido dispostas ao redor do largo e, em seu centro, msicos se revezavam para cantar sambas. Carmem ento me apresentou ao historiador Luiz Torres, um dos integrantes do movimento quilombola e, assim como j tinha ocorrido nos meus encontros com Damio e Lcia, ele tambm no foi muito receptivo, mas concordou em conversar. Contou que o primeiro trabalho histrico apresentado ao INCRA foi de sua autoria, se referindo ao material de auto atribuio do grupo entregue Fundao Cultural Palmares e que resultou em sua certificao. Luiz me explicou que a ideia do quilombo estava associada a uma resistncia poltica que tinha como intuito divulgar a histria da Pedra do Sal como ponto de referncia da cultura africana para outros moradores da Zona Porturia. Considerava que a solicitao do reconhecimento tnico do quilombo no era apenas um projeto para solucionar um conflito habitacional, mas tambm um desejo de ampliar a atuao do MNU na regio e fortalecer a memria negra, que ele entendia j reconhecida atravs da criao do Cemitrio dos Pretos Novos e do Centro Cultural Jos Bonifcio. E disse que o tombamento da Pedra do Sal na dcada de 1980 no havia sido uma iniciativa dos moradores que formaram o quilombo, mas uma iniciativa exclusivamente acadmica. E que havia sido sua iniciativa e de Damio tornar a Pedra do Sal conhecida pelos moradores e pelos envolvidos nas atividades porturias, nas rodas de samba e entre o povo do santo. Tinha sido, assim, para produzirem um trabalho consciente de construo de identidade negra, que eles haviam se posicionado como seus guardies de memria. Luiz contou que, apesar de eles terem chamado outros moradores da regio para aderiram ao movimento, atravs da afixao de cartazes sobre a realizao de reunies da ARQPEDRA, muitos no quiseram por no se sentirem identificados com a causa quilombola. Perguntei ento a ele como era o cotidiano do grupo de moradores que tinham aderido ao movimento, se eles tinham algum ponto de encontro ou frequentavam espaos comuns, como casas de candombl. Luiz disse que eles s se encontravam em eventos de comemorao e divulgao da cultura afrodescendente ou em reunies onde discutiam as estratgias do movimento, mas que eram dispersos. Por fim, Luiz disse que s com o desenvolvimento do pleito foi que eles passaram a contar com apoio externo, principalmente do Ministrio Pblico, do Governo Federal, de ONGs e de universidades. No entanto, no haviam contado em nenhum momento com o apoio de 81
polticos, partidos ou associaes locais de moradores que, segundo ele, s se interessavam em beneficiar pessoalmente seus integrantes. No incio da tarde, logo aps a feijoada ter sido servida a cerca de cinquenta pessoas, trs homens vestidos com camisetas brancas com o nome do Afox Filhos de Gandhi impresso em azul se sentaram em cadeiras dispostas em frente aos bares do largo. Esse grupo carnavalesco tambm estava reivindicando a incluso de sua sede, localizada na Rua Camerino e de propriedade do governo estadual, no territrio tnico do Quilombo da Pedra do Sal. Quando eles iniciaram o toque do ijex, ritmo caracterizado pelo som dos atabaques e a marcao do agog e tocado em casas de candombl, parte das mulheres presentes se posicionou em roda no centro do largo e algumas, para marcar a transio musical, envolveram o tronco por um pano da costa, pea de vesturio dos rituais de candombl. Essas mulheres ento acompanharam os atabaques cantando diferentes msicas em portugus e ioruba e danaram coreografias referenciadas tambm no candombl: cada uma danou sozinha, andando em um crculo fechado, e seguiu o compasso dos toques com passos breves e gestos suaves de mos. O tom da apresentao, embora mais solene que o anterior da roda de samba, continuou festivo, a diferena foi ter atrado para a dana mulheres j idosas, as tias respeitadas por todos os presentes no evento. Depois da apresentao do Gandhi, como era geralmente chamado o grupo, outros msicos voltaram a tocar samba e, ao longo da tarde, a festa ficou mais cheia com a chegada de outras dezenas de pessoas de vrios locais da cidade, algumas vestidas de branco e vermelho, cores associadas ao santo homenageado. Essa apresentao do Gandhi havia, portanto, evidenciado a dimenso religiosa do pleito quilombola, produzindo uma mediao social e cultural entre os integrantes do movimento, sua rede de relaes e os prprios usurios do morro, fossem eles moradores ou frequentadores de outros locais da cidade. Pois, atravs da comida associada aos hbitos alimentares dos escravos afrodescendentes, do ritmo musical, da coreografia e da vestimenta referenciados nos rituais do candombl, a comunidade quilombola tinha operado a converso simblica da Pedra do Sal e do Largo Joo da Baiana em territrio tnico, mas no na acepo jurdica e poltica do termo, e sim em sua noo mgica. E era essa noo mgica que tinha feito com que outras pessoas presentes festa de So Jorge, mas que no estavam diretamente envolvidas com o conflito habitacional no morro, compartilhassem da reivindicao do grupo: pois elas, 82
assim como os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, faziam parte do povo do santo. A partir desses dilogos iniciais, comecei a entender que os moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal possuam sua principal rede de relaes sociais para fora dos limites fsicos do morro: uma rede formada por integrantes de organizaes e movimentos polticos que atuavam junto s minorias tnicas e aos conflitos de moradia popular e pelo povo do santo. E que, para tornar o conflito habitacional com a VOT um pleito tnico, o grupo havia tido de acionar diferentes mediadores dos poderes pblicos, como historiadores, antroplogos, advogados e promotores, alm de se posicionar frente aos demais moradores do morro com quem estavam em relao direta de vizinhana. Mas, nessa judicializao do conflito, o grupo era constantemente avaliado a partir de um sistema de autenticidade sobre as caractersticas culturais de um grupo afrodescendente, avaliao que a prpria gramtica jurdica e poltica havia imposto durante o processo pblico de certificao e titulao do territrio tnico. No entanto, na concepo dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, a etnicidade dos espaos do morro era articulada por oposies estruturais no previstas na legislao que regulava o reconhecimento de comunidades quilombolas. Para eles, as oposies povo e elite e povo do santo e catlicos eram as que os diferenciavam dos demais moradores do morro e principalmente da VOT, sendo as prticas do candombl, como veria ao longo do trabalho de campo, as que constituam a principal base cosmolgica e de pertencimento do grupo. Aps esses contatos iniciais com os integrantes do movimento quilombola, houve uma contnua resistncia deles em conversar comigo ou permitir que eu desenvolvesse uma pesquisa entre eles. Busquei ento conhecer alguns de seus mediadores, como a ONG Koinonia e o INCRA e, apesar de no ter conseguido agendar uma conversa com as pesquisadoras que haviam coordenado o Relatrio Histrico e Antropolgico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal, tambm me detive na anlise de seu discurso. Nela, busquei compreender como o mito da Pequena frica estava sendo presentificado para operar a converso simblica dos moradores do morro em um grupo tnico capaz de ser juridicamente identificado. Por fim, entrei tambm em contato com usurios e funcionrios de atividades da VOT no morro e realizei trs entrevistas com seus dirigentes: a coordenadora geral do Projeto Humanizao do Bairro; a advogada que organizou as aes de remanejamento, 83
despejo e reintegrao de posse dos sobrados da parte baixa do morro para que eles abrigassem o projeto; e o arquiteto que comandou suas reformas. E, atravs dessas conversas, busquei compreender o processo de implantao das obras sociais e educacionais no morro e o contexto de surgimento do conflito com os moradores que se intitularam Quilombo da Pedra do Sal.
O CARNAVAL E O CANDOMBL DO VALONGO
O Gandhi, bloco carnavalesco que havia aderido ao pleito quilombola, estava sediado na parte do morro onde havia funcionado o antigo mercado de escravos do Valongo e que era, alm da Pedra do Sal, o outro espao simblico dos portadores do patrimnio negro localizado no morro. Esse antigo mercado havia ocupado toda sua base voltada para a Rua Camerino, entre as esquinas das ruas Sacadura Cabral e Senador Pompeu, trecho onde haviam alguns sobrados com usos diversos, como estacionamento, hotel e venda de mveis para escritrio. Quase metade do quarteiro era ocupada pelo monumental Jardim Suspenso do Valongo, construdo pela prefeitura de Pereira Passos. Era no sobrado de dois andares que ficava em uma das extremidades do jardim e defronte Praa dos Estivadores que estava a sede do Afox Filhos de Gandhi, identificada por uma tabuleta branca pregada na fachada com os dizeres em azul: Ass. Cultural e Recreativa Afox Filhos de Gandhi RJ. Aulas de: Capoeira - Dana Afro - Percusso. No lado mpar do trecho da Rua Camerino que contornava o morro e fazia esquina com a Rua Sacadura Cabral, havia um pequeno comrcio ocupando alguns sobrados, a base da Ladeira do Morro do Valongo, que se conectava ao alto da Ladeira Pedro Antnio, e a extensa murada de pedra do Jardim Suspenso do Valongo. No lado par desse trecho tambm havia um pequeno comrcio e a Ladeira Madre de Deus, de acesso ao Morro do Livramento e, logo adiante, havia o trecho da Rua Baro de So Flix que seguia em direo Central do Brasil. Ao lado dessa rua, estava a Praa dos Estivadores, em formato triangular, calada por pedras portuguesas e terra batida, composta por bancos, equipamentos de ginstica em madeira e por um ponto de nibus. 84
Trs vrtices delimitavam seu espao: a Rua Sacadura Cabral, a Rua Baro de So Felix, e uma sequncia de sobrados, onde dois possuam identificao em suas fachadas: Batucadas Brasileiras Orquestra de Percusso Robertinho Silva e Centro Cultural do Sindicato dos Rodovirios. Elevado cerca de dez metros da rua, ao centro do Jardim Suspenso do Valongo havia uma escadaria de pedra, estreita e muito ngreme que conectava a Rua Camerino ao muro lateral do Observatrio do Valongo. Duas placas estavam afixadas na base dessa escadaria: uma era em ao e havia sido posta pelo rgo patrimonial municipal para informar que o jardim havia sido inaugurado em 1906 e que as quatro esttuas que nele figuravam tinham sido trazidas do Cais da Imperatriz, atracadouro que foi assim batizado ao ser reformado para a chegada da noiva do imperador Dom Pedro II em meados do sculo XIX; e outra placa, maior e esculpida em pedra, que informava apenas o ano de construo do jardim e ter sido ele obra da Prefeitura do Districto Federal. No jardim, ao lado direito da escadaria havia dois pedestais de pedra de um metro e meio sem qualquer esttua em cima e, do lado esquerdo, um sobrado de dois andares, outros dois pedestais vazios, um caminho que conduzia a uma fonte de gua que no funcionava, uma rea onde estava pichado em vermelho proibido cagar, e uma murada que permitia o acesso Ladeira do Morro do Valongo. Alm dessa pichao, havia no jardim muitas que eram apenas rubricas e outras com as letras CV, que demarcavam o espao como de atuao do Comando Vermelho, grupo que geria o trfico de drogas do Morro da Providncia. Assisti pela primeira vez a uma apresentao do Gandhi durante a comemorao ao dia de So Jorge organizada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal. Mas s comecei a perceber que o grupo era um importante articulador do que denominei de circuito de herdeiros da Pequena frica quando presenciei, em seguida, outra apresentao ritualmente semelhante do grupo, desta vez na abertura de um evento do Instituto Pretos Novos. O instituto era um centro de estudos arqueolgicos e de divulgao da cultura e memria negra localizado na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa. E quem me apresentou a sua diretora, Mercedes, foi o guia turstico Jos Motta, com quem tinha feito contato durante uma de suas visitas ao Morro da Conceio. Ele havia 85
comentado comigo que fazia tambm um roteiro de turismo tnico pela Pequena frica, incluindo o Centro Cultural Jos Bonifcio, o Instituto Pretos Novos, a Igreja Nossa Senhora da Sade, o Valongo e a Pedra do Sal. Em maio, poucos dias depois de percorrer esse roteiro, voltei ao instituto e Mercedes me contou que ele havia sido fundado aps sua famlia ter descoberto, durante uma reforma nos cmodos de sua casa, em 1996, vrios ossos enterrados pertencentes a um antigo cemitrio de escravos. E que, no incio da gesto de Csar Maia na prefeitura, em 2001, havia sido feita uma grande festa no dia da Conscincia Negra anunciando a realizao de uma prospeco arqueolgica e expondo em painis algumas fotos de escavaes que j haviam sido realizadas no local pelos arquelogos municipais. Aps essa divulgao, a casa de Mercedes comeou a receber a visitao de pesquisadores e pessoas ligadas valorizao da cultura negra, se tornando um dos espaos da Zona Porturia considerado parte desse patrimnio. Em 2005, a pesquisa anunciada pela prefeitura ainda no havia sido realizada e, no dia 13 de maio, data de comemorao da lei que aboliu a escravido, Mercedes decidiu organizar uma exposio de esculturas na casa e criar a ONG Instituto Pretos Novos. E foi na comemorao dos trs anos de seu funcionamento do instituto que assisti apresentao do Gandhi, em evento que teve ainda uma roda de samba e a oferta de feijoada. No entanto, tive contato direto com os integrantes do grupo carnavalesco somente aps comear a frequentar, em junho, as reunies do Porto Cultural, movimento que estava reunindo a sociedade civil da Zona Porturia para discutir as propostas de revitalizao urbana. Soube da existncia desse movimento atravs de uma amiga, Madalena Romeo, que era jornalista de O Dia e havia recebido um convite por e-mail para participar dessas reunies. O movimento havia surgido em dezembro de 2007 e agregava cerca de vinte instituies 8 , alm de pesquisadores e moradores da regio, sendo liderado pelo Instituto Batucadas Brasileiras, chamado usualmente apenas de Batucadas. Essa ONG ficava sediada em um sobrado de trs andares na Praa dos Estivadores e era uma escola de msica percussiva ministrada por Robertinho Silva e dirigida pelo jornalista Maurcio Nolasco E, assim como os demais espaos
8 Compunham o Porto Cultural as seguintes instituies: Afox Filhos de Gandhi, Associao de Servios Ambientais, Associao de Bandas Carnavalescas do Rio de Janeiro, Associao de Moradores e Amigos da Gamboa, Banda do Morro da Conceio, CAPA Casa do Artista Plstico Afrodescendente, Companhia Aplauso, Caboon, Centro Cultural Ao da Cidadania, Cia. Brasileira de Mystrios e Novidades, bloco Escravos da Mau, INT Instituto Nacional de Tecnologia, IBB Instituto Bandeira Branca/ Batucadas Brasileiras, IPN - Instituto Pretos Novos, Instituto Sociocultural Favelarte, IPPUR/ UFRJ, Pequena Central, Projeto Mau, Sindicato dos Estivadores, Sindicato dos Porturios, Sparta Associao Esportiva da Providncia, Spectaculu, Topinheco07 e Observatrio do Valongo/ UFRJ. 86
frequentados pelo Gandhi, tambm propagava a valorizao da cultura negra na Zona Porturia. Na quarta reunio do Porto Cultural, ocorrida em julho no Batucadas, Nolasco anunciou que sua organizao e o Gandhi haviam assinado um termo de cooperao tcnica para desenvolver um projeto de recuperao da sede do grupo carnavalesco. E, como a sede era de propriedade do governo estadual, as duas entidades estavam coletando assinaturas de instituies locais para solicitar ao governador Srgio Cabral Filho que ele decretasse sua doao definitiva para o Gandhi. Em seguida, Nolasco props que o Porto Cultural apoiasse nas eleies daquele ano as candidaturas dos vereadores Stephan Nercessian e Alfredo Sirkis, que estavam interessados em atuar, respectivamente, nos projetos culturais e de revitalizao urbana da Zona Porturia. Mas a maioria dos presentes foi contrria ao apoio, e o debate sobre as diferenas entre politizar e partidarizar j estava ficando acalorado quando Carlos Machado, presidente do Gandhi, pediu a palavra. Nesse momento, os demais participantes ficaram em silncio, demonstrando que ele era socialmente reconhecido no s entre os envolvidos com o povo do santo e a cultura negra, mas tambm entre o conjunto de representantes de entidades que atuava na Zona Porturia. Machado ento explicou que a ideia de formao do Porto Cultural era evitar que houvesse um crescimento desordenado da expanso cultural da regio e comentou o desrespeito legislao que foi feita para preservar o morador, se referindo criao da rea de proteo ambiental SAGAS. Contou que o intuito dessa preservao patrimonial era impedir que os sobrados fossem unificados para brigar grandes casas de espetculo e espiges, numa referncia aos prdios verticalizados, alertando que havia empresas da construo civil que possuam uma reserva de terrenos na regio. E fez em seguida a defesa do envolvimento da comunidade no processo de transformao da regio, dizendo que o movimento podia tentar garantir a permanncia principalmente dos mais humildes, que se fossem retirados daqueles bairros iriam morar em um lugar cada vez pior. A fala de Machado operava, assim, uma inverso em relao aos discursos dos urbanistas da prefeitura sobre a Zona Porturia, percebendo como construes regulares as que mantinham suas fachadas preservadas e eram ocupadas pela moradia popular e, como irregulares, as revitalizadas e ocupadas por grandes e lucrativos empreendimentos comerciais. Passadas algumas reunies do Porto Cultural, soube atravs do fotgrafo Lissandro Garrrido que Machado estava procurando tcnicos para realizar um 87
documentrio para a comemorao dos 60 anos do grupo, que ocorreria em 2011. Fui ento em novembro a uma reunio da diretoria do grupo no Batucadas e, quando cheguei, havia cerca de oito pessoas discutindo a organizao dos eventos da semana seguinte, dedicada s comemoraes do dia da Conscincia Negra. Eles combinavam quantos integrantes participariam dos eventos e que vestimentas usariam, cujas opes eram camiseta e fantasia completa do Gandhi. Tambm foi discutido o retorno do grupo para o desfile de carnaval no Sambdromo, j que fazia alguns anos que o Gandhi s desfilava na rua. Ao fim da reunio, todos os presentes ficaram em crculo e deram as mos, fazendo uma saudao que era o grito da palavra Ajai. Em seguida, conversei com Machado e com um dos diretores do grupo, Ulisses, durante alguns minutos na Praa dos Estivadores e combinamos que eu comearia a acompanhar e filmar seus eventos a partir daquela semana. E, para que eu comeasse a entender como funcionava o grupo, enfatizaram que havia espaos diferenciados para homens e mulheres e fundamentos e segredos do candombl que eram precisos ser seguidos e conhecidos para que os integrantes do Gandhi, ao se apresentarem, ficassem protegidos. Em novembro e dezembro de 2008, assisti ento a algumas apresentaes em que a diretoria do Gandhi foi convidada para tocar e danar em eventos de valorizao da cultura negra ou dos cultos afros. Inicialmente, assisti aos eventos relacionados semana de comemorao da Conscincia Negra. Nela, o Gandhi se apresentou em um salo da Cmara de Vereadores no encerramento do seminrio Polticas pblicas municipais de promoo da igualdade e o combate discriminao racial. Depois, no prprio dia 20 de novembro, participou de um grande evento do governo estadual realizado no monumento a Zumbi dos Palmares, na Praa Onze. Nele, a pista da Avenida Presidente Vargas foi fechada e dois palcos forma armados: um em frente ao monumento, onde se apresentaram, alm do Gandhi, capoeiristas e blocos afros; e outro, maior e equipado com uma potente aparelhagem de som, onde se apresentarem cantores e grupos musicais. No dia seguinte, o Gandhi se apresentou em evento que contou com a participao de vrios representantes religiosos no Instituto Pretos Novos e, noite, na eleio da Deusa do bano do bloco afro Ornmil no Circo Voador. At o fim do 88
ano, o Gandhi se apresentou ainda no encerramento da Feira da Providncia, em um quilombo em Cachoeira de Macacu, no dia do Samba organizado pelo Quilombo da Pedra do Sal, na festa de lanamento do Porto Cultural realizada no Largo da Santa do Morro da Conceio, e no Presente de Iemanj oferecido pelo Mercado de Madureira.
Nessas apresentaes, normalmente os msicos da charanga vestiam uma cala comprida branca, uma camiseta branca com o nome do grupo e o turbante. Alguns homens e mulheres vestiam a fantasia completa do Gandhi: uma longa bata branca, chamada por alguns de lenol, com o nome do grupo impresso em azul e amarrada por faixa tambm azul; colares de contas grandes atravessadas no tronco nas cores azul e branco; duas fitinhas brancas para amarrar as mangas da bata; um turbante de tecido de toalha branco com o nome do grupo impresso em azul e enfeitado ao centro da testa por um arranjo redondo de lantejoulas azuis, e sandlias brancas. Mas havia mulheres que preferissem se vestir de baianas: com batas, saias e ojs, que eram uma espcie de turbante de tecido branco liso ou bordado. Os turbantes e ojs eram amarrados de forma diferente por homens e mulheres: nos homens, envolvia toda a cabea e apenas uma de suas pontas cobria o pescoo; nas mulheres, o tecido era envolto de forma circular na cabea, deixando para fora os cabelos, e algumas deixavam as duas pontas para se projetarem na altura das orelhas. Muitos integrantes colocavam tambm adornos como colares, pulseiras e braceletes de palha, bzios e contas. Todas essas apresentaes do grupo que presenciei duraram cerca de meia hora, foram realizadas para um pblico que variava entre trinta e duzentas pessoas e seguiram um padro ritual. A charanga, que era como denominavam o conjunto de msicos do grupo formado por babalorixs e ogans das casas de candombl, posicionava seu 89
atabaques, cabaas e agog em cima de um palco, ou frente da plateia quando no havia palco, e sempre havia um equipamento de amplificao de som para o cantor, que ficava um pouco projetado em relao aos demais msicos. Na frente da charanga, as mulheres que nas casas de candombl eram ialorixs, ekedis e ias faziam uma roda e danavam coreografias referenciadas no ritual do candombl. A maioria das msicas cantadas pelo grupo tinha letra em portugus com algumas palavras em ioruba, se referia ao toque do ijex e a marcao musical do agog e cantava as qualidades associadas ao grupo, que eram a paz, o ser guerreiro, a beleza, o amor, a liberdade e o no preconceito de cor. Parte das letras das msicas era composta apenas por uma estrofe, repetida pelo grupo diversas vezes. Tambm diversas vezes ao longo da apresentao o cantor gritava Ajai! e as mulheres que danavam respondiam ! e levantavam as mos. E o grupo iniciava sempre suas apresentaes com a msica Exu Mensageiro, quando era pedido que ele abrisse caminho para o grupo e era listado o panteo dos orixs.
Exu mensageiro vai ligeiro Abre caminho para a passagem do afox Nosso candombl de rua com muitos anos de ax Ogum Balogun Od caador Ossanhe das folhas, do ax e do amor Nan (...), Omolu e Oxunmar L vem o Gandhi com a beno do Orun Filhos de Gandhi, panteo do Il Aiy Awd Sobe e desce ladeira Entra em beco, sai em beco Oy, Oxum, Ob As mulheres de Xang Vai buscar o seu senhor Para ver Gandhi passar Ogum menino vem no toque de ijex Demonstrar nossa beleza para a deusa negra Ew Odduw, Iemanj, com as suas foras do Olkn Guerreiro Oxanguian, Bab Oxalufan Filhos de Gandhi com as benes do Olrn 90
Ao final das apresentaes, era feito um canto em ioruba para Oxal, momento em que as pessoas que danavam na roda dobravam seus joelhos e ficavam com as cabeas voltadas para o cho. Aps esse canto, os msicos faziam um repique de atabaques e o cantor falava palavras em ioruba e portugus pedindo paz, amor e prosperidade. A apresentao se encerrava com todos batendo palmas, com as mulheres da roda se levantando e com vrios gritos Ajai!. Em alguns eventos, ainda era cantada depois uma msica de despedida, quando os msicos e danarinos faziam uma nica roda e acenavam com as mos. E, em outros, aps a apresentao ritual do Gandhi, a charanga cantava sambas de umbigada. A partir desse contato inicial, percebi que os integrantes do Gandhi estruturavam os espaos do morro e da Zona Porturia atravs com oposies que diferenciavam sagrado e profano, povo e elite e masculino e feminino. E que o grupo era formado por integrantes de diferentes casas de candombl, distribudas pelo subrbio e Baixada Fluminense, e se baseava em fundamentos religiosos para se apresentar musical e coreograficamente, colocando-se como um mediador entre os desejos deste mundo e do mundo dos orixs. Percebi ainda que, para o grupo, as fronteiras territoriais eram fluidas e as trocas no apenas horizontais, mas verticais, entre deuses e humanos e mortos e vivos. E que sua rede de relaes se estendia para outros grupos e instituies que atuavam na regio e tambm por um amplo sistema de filiaes do candombl denominado de povo do santo. No desenvolvimento do trabalho de campo, acompanhei as atividades do grupo nos preparativos para o cortejo denominado de Presente de Iemanj, suas apresentaes durante o Carnaval e as articulaes que fizeram para que esse amplo sistema de trocas possibilitasse a propriedade definitiva e a reforma de sua sede na Rua Camerino. Por fim, frequentei a casa de candombl de uma de suas integrantes, Me Marlene dOxum, no Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do Governador; e conversei com dois integrantes do grupo entre as dcadas de 1960 e 1990 sobre a origem e os fundamentos do Gandhi, o ogan ndio o babalorix Hlio Tozan. E, atravs desse percurso, busquei compreender como a cosmologia do candombl era socialmente eficaz e conferia aspectos mgicos ao mito da Pequena frica. 91
Captulo 2. A boa vizinhana da parte alta
A VALORIZAO CULTURAL DOS MORADORES TRADICIONAIS
A denominada por seus moradores de parte alta do morro era composta pela Rua Jogo da Bola e a Ladeira Joo Homem. No primeiro fim de semana de dezembro de 2007, nela foi realizado o Projeto Mau junto com a celebrao da festa para Nossa Senhora da Conceio, organizada pela capela da Rua Jogo da Bola. Nos trs dias do Projeto Mau os atelis de alguns artistas foram abertos; houve quatro visitas gratuitas pelo morro; a Fortaleza da Conceio e o Observatrio do Valongo abriram para visitao; foram realizadas exposies coletivas de fotografia e artes plsticas na Casa de Cultura da VOT e no Centro Cultural da Associao de Servidores da Justia Federal SERJUS; e o documentrio Morro da Conceio... foi exibido no Observatrio. Na manh de sbado, acompanhei o grupo de pessoas que se inscreveu para participar da primeira visita guiada realizada por Marcelo e Antnio, cujo ponto de encontro era um edifcio localizado no incio da Avenida Rio Branco. O grupo que se formou foi composto por cerca de 20 pessoas, entre arquitetos, psiclogos, guias tursticos, jornalistas e cientistas sociais, e haviam sabido do evento atravs da divulgao de notas no jornal O Globo, no Jornal do Brasil e na Revista Veja e de e- mails enviados por Frazo e Marcelo. Antes de a visita ser iniciada, Marcelo e Antnio 92
narraram suas verses do mito de origem do morro atravs da histria da cidade organizada pelos urbanistas da prefeitura na publicao Morro da Conceio,, que demarcava a ocupao dos portugueses nos morros da Conceio, de So Bento, de Santo Antnio e do Castelo. Depois, conduziram o grupo pela Ladeira Joo Homem, parando para conversar com Seu Flix e no Bar do Geraldo. No topo do morro, visitaram a Fortaleza, o Palcio Episcopal e o mirante voltado para a Igreja de Santa Rita, seguindo para a Rua Jogo da Bola, onde pararam no Bar do Srgio e na pracinha. Foram ento para o Observatrio do Valongo e, no muro voltado para o Morro da Providncia, comentaram sobre o surgimento do que era considerada a primeira favela do Rio de Janeiro. E desceram para a Pedra do Sal, onde comentaram a presena do samba na regio e a existncia do movimento quilombola. A visita se encerrou no adro da Igreja da Prainha, com uma visita exposio de fotografias na Casa de Cultura da VOT e a exibio de dois mapas sobre os aterramentos da orla porturia no incio do sculo XX. Marcelo e Antnio haviam organizado, assim, um roteiro onde foram visitados todos os bens do morro preservados pelos rgos patrimoniais e valorizados seus conhecimentos e sociabilidade como moradores da vizinhana da parte alta. E tambm includos espaos e patrimnios que eram por alguns moradores negativamente associados ao perigo, s drogas ou s moradias irregulares, como o Morro da Providncia e o movimento quilombola. Em suas falas, no entanto, tais pessoas, espaos e grupos foram apresentados de forma positiva, como parte das caractersticas do morro e de uma autenticidade relacionada diversidade cultural, experincia popular e histria negra. A proposta inicial era que as demais visitas guiadas seguissem esse roteiro. No entanto, a partir da segunda visita os artistas pediram aos dois que fosse priorizada a entrada nos atelis no percurso. Havia seis atelis localizados na Ladeira Joo Homem e dois na Rua Jogo da Bola, que durante os dias do Projeto Mau foram identificados por faixas expostas nas fachadas. Os artistas haviam distribudo as obras pelos cmodos de suas casas, vendendo-as com preos que variavam entre 200 e 5.000 reais. Mas os objetos que foram mais comprados pelos visitantes tinham preos mdicos e remetiam principalmente experincia cultural de caminhar pelo morro e procisso de Nossa Senhora da Conceio, sendo deles um souvenir: camisetas e canecas com a logomarca do evento, que era uma composio com placas de sinalizao de algumas vias do morro, e caixinhas de fsforo decoradas com a imagem da santa. 93
Na tarde de sbado, as atividades do projeto foram interrompidas para a passagem da procisso de Nossa Senhora da Conceio. A procisso estava programada para sair s 16 horas da capela, percorrer o trecho da Rua Jogo da Bola at o Largo da Santa, o trecho da Ladeira Joo Homem at o Bar do Geraldo, e retornar ao largo, onde seria realizada uma missa campal em homenagem santa. Mas, um pouco antes desse horrio, uma famlia que morava na Rua Jogo da Bola, na altura do Bar do Beto, tinha organizado sua mudana de residncia e ocupava metade da estreita rua com um pequeno caminho de frete onde estavam seus mveis e pertences. Passando pela rua, ouvi ento a dona da mudana reclamar com outros moradores que os organizadores da procisso tinham falado para ela retirar o caminho para que a santa passasse, mas que ela tinha respondido para eles passarem por cima. Comentei o incidente com Antnio e ele me explicou que existia na Rua Jogo da Bola uma conveno criada por moradores antigos de que os fretes de mudana s podiam ser realizados aos sbados. A moradora estava assim aborrecida por j estar cumprindo com uma conveno sobre o uso do espao criada pelos mesmos que organizavam a procisso e exigiam que ela retirasse o caminho da rua.
Enquanto isso, no interior da capela, flores enfeitavam os bancos, um coral de jovens afinava seus instrumentos e trs andores sustentavam imagens esculpidas em gesso de Virgem Maria, So Sebastio e Jesus Cristo. Na rua, mulheres se aglomeravam na porta da capela, alguns homens armavam trs mesas de alumnio na calada e senhoras distriburam as letras impressas dos cnticos que seriam entoados e velas envoltas por copinhos de plstico, para que as chamas no fossem apagadas durante o percurso. Acomodados em cadeiras de praia, alguns moradores idosos assistiam ao 94
movimento. E, no Bar do Srgio, localizado quase em frente capela, visitantes e moradores conversavam e bebiam cerveja enquanto aguardavam a procisso. Por volta das 16h30min, a moradora de mudana retirou o caminho da rua, desobstruindo o percurso da procisso. As imagens e alguns participantes saram ento aos poucos de dentro da capela: uma menina vestida de branco e com asas coladas nas costas; jovens mulheres carregando o andor de Virgem Maria e trajando por cima dos ombros um tecido azul com uma fita dourada aplicada na borda; jovens homens carregando os andores de So Sebastio e Jesus Cristo, trajando nos ombros um tecido vermelho tambm com uma fita dourada aplicada na borda. No momento em que as imagens tomaram a Rua Jogo da Bola, outros moradores se alinharam nas caladas e jogaram ptalas de rosas. As vestimentas padronizadas sacralizavam as funes dos moradores que carregavam as imagens e tambm os distinguiam dos demais, separando duas formas dela participar, entre devotos e pblico. Da mesma forma, as ptalas de rosa convertiam a rua em religioso e investido dos poderes mgicos da capela. E as imagens esculpidas materializavam o patrimnio catlico dos moradores e mediavam suas relaes entre o cu e a terra. O cortejo que se formou atrs dessas imagens foi majoritariamente composto por mulheres e crianas, demonstrando ser o espao da capela predominantemente feminino. Alguns visitantes e jornalistas tambm acompanharam a procisso fazendo fotos e filmagens, apreciando naquela procisso o que consideraram ser uma manifestao cultural autntica dos moradores do morro. Ao todo, cerca de sessenta pessoas tomaram a rua em direo ao Largo da Santa. Mas, quando a procisso dobrou a curva da muralha da Fortaleza e entrou no largo, houve uma surpresa: o caminho de mudana havia sido estacionado ao p do mastro da imagem de Nossa Senhora da Conceio, impossibilitando a celebrao da missa campal. Em torno do caminho no havia qualquer responsvel pela mudana que pudesse ser convencido de retir-lo, e formou-se ento um clima de tenso entre os participantes da procisso. 95
Aps a procisso parar por alguns minutos no Largo da Santa, seus participantes seguiram para a Ladeira Joo Homem. Chegando ao Bar do Geraldo, encontraram vrios homens reunidos, fazendo churrasco e portando trofus e medalhas: eles comemoravam o fim do campeonato de futebol entre moradores e militares, disputado pela manh nas quadras do Exrcito. Alguns dos homens estavam sem camisa e todos bebiam cerveja, numa imagem de extrema informalidade que contrastava com a solenidade religiosa. Essa informalidade, no entanto, no era, como no caso do caminho de mudanas, uma forma de confrontar os moradores que celebravam o dia da santa, apenas a explicitao do limite espacial da ressonncia daquela manifestao cultural na parte alta do morro. Os participantes da procisso retornaram ento diretamente para a capela para celebrarem a missa em seu interior, depositando os trs andores em cima das mesas de alumnio armadas sua frente. O padre que conduziu a procisso e a missa era o que comandava a Igreja de Santa Rita, parquia da qual a capela fazia parte. A missa teve duas horas de durao e, durante parte dela, o padre pregou contra a devoo a outras religies e agradeceu a Deus por no existir nenhuma igreja evanglica no morro. Referia-se, no entanto, aos espaos construdos da parte alta, j que, na base do morro, havia duas igrejas evanglicas e espaos dedicados aos cultos aos orixs. Aps a celebrao da missa, o Projeto Mau organizou a apresentao de um grupo de msicos de choro composto por alunos do Observatrio do Valongo na calada ao lado do Bar do Srgio. De grande impacto sonoro por causa do uso de amplificadores, essa apresentao manteve cerca de cinquenta pessoas, entre visitantes e moradores, aglomeradas em frente ao bar. Mas, embora Srgio soubesse do projeto e da intensificao da circulao de pessoas nesse fim de semana, no fez qualquer pedido extra de suprimento de cervejas, que acabou rapidamente, fazendo com que o bar encerrasse suas atividades uma hora antes do usual e os visitantes fossem embora. Assim, a propriedade familiar do bar ajudava no controle dos usos dos espaos por sua vizinhana em dias de maior movimento de turistas. Durante o domingo, o movimento de visitantes do Projeto Mau foi menor, confirmando que o maior atrativo do evento tinha sido mesmo a procisso e a percepo 96
de ser ela uma experincia cultural autntica. Mas, como atrao especial, foi exibido no Observatrio do Valongo o documentrio Morro da Conceio..., dirigido por Cristiana Grumbach 9 . Lanado no Rio de Janeiro em outubro de 2005, o filme valorizava a ocupao portuguesa do morro, fosse do ponto de vista de sua arquitetura ou das memrias de seus descendentes. E tinha se tornado um marco das narrativas dos moradores da parte alta sobre o morro, sendo na poca de seu lanamento comercial projetado na muralha da Fortaleza voltada para o Largo da Santa. Mas o documentrio mobilizava opinies diversas. A crtica mais comum que ouvi era de que ele teria sido parcial na representao dos moradores, entrevistando apenas idosos descendentes diretos de portugueses e que haviam nascido e morado sempre no morro, excluindo a mistura das origens familiares que era valorizada por muitos moradores. Como havia ouvido em uma roda de samba organizada no Bar do Geraldo: portugus mesmo, aquele que veio de Portugal, isso no tem mais no morro desde a dcada de 1970, quando a Revoluo dos Cravos fez com que os portugueses parassem de vir para c. Aqui j est todo mundo misturado. E quem havia me dito a frase era Ablio, morador nascido e vivido na Ladeira Joo Homem e pertencente a uma famlia que descendia, em parte, de portugueses. Alm dos efeitos sociais locais, o filme tambm produziu uma mediao entre os espaos e moradores do morro e os da cidade. Como informado pelo site da produtora da cineasta (www.crisisprodutivas.com) Morro da Conceio... foi lanado em uma das salas de exibio do Unibanco Arteplex, cinema localizado no bairro de Botafogo, Zona Sul da cidade, e permaneceu em cartaz por sete semanas. Na semana de lanamento, o filme recebeu crticas positivas nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, na Revista Veja Rio e em sites especializados em cinema. O filme tambm foi divulgado atravs de um encarte em papel jornal colorido, composto por quatro pginas, que continham breves resenhas laudatrias elaboradas por especialistas da antropologia, comunicao, da educao, da psicanlise, do cinema e do urbanismo municipal. Assistente de direo de alguns filmes de Eduardo Coutinho 10 , Cristiana definiu sua filmagem no morro a partir de uma metodologia que o documentarista denominava de dispositivo: um conjunto de procedimentos formais que tendia escolha de uma
9 Publiquei uma verso ampliada da anlise do filme em captulo do livro Devires Imagticos: a etnografia, o outro e suas imagens (Guimares, 2009a). 10 Cristiana foi assistente de direo de Eduardo Coutinho nos documentrios O Fim e o Princpio (2004), Pees (2002/2003), Edifcio Master (2002), Babilnia 2000 (2000) e Santo Forte (1999). 97
locao nica, do formato do vdeo e da apario da equipe de filmagem durante as entrevistas (Lins, 2004). Mas adotou um procedimento a mais, no utilizado por Coutinho, que era a delimitao sociocultural dos entrevistados: os mais velhos, com idades que chegam a 97 anos, nascidos no morro e filhos de portugueses, como dizia a sinopse do filme, transcrita abaixo.
Aps 5 anos de visitas ao Morro da Conceio uma equipe de cinema filmou conversas com apenas 8 dos cerca de 4 mil moradores os mais velhos, com idades que chegam a 97 anos, nascidos no morro e filhos de portugueses. Esses senhores e senhoras narram histrias de suas vidas inevitavelmente atravessadas pelas histrias da cidade e do pas. A construo desse imaginrio devolve ao Rio de Janeiro um filme que trata da sua memria e do seu esquecimento.
Embora no tendo sido idealizado ou financiado pela prefeitura, o imaginrio propagado por Morro da Conceio... foi compartilhado com seus urbanistas, e seus efeitos sociais foram visveis na sua recepo pelo pblico especializado, que o comentou atravs de criticas jornalsticas e das breves resenhas de seu material de divulgao. Nos textos desses especialistas, muitas vezes a sutil distino entre o recorte arbitrrio da realidade produzido pela cineasta e a diversidade sociocultural dos que habitavam o morro no foi absorvida: o que deveria ser a representao da parte se tornou a representao do todo, ou seja, em alguns moradores de ascendncia portuguesa foi visto o povo e o patrimnio imaterial do Morro da Conceio.
Marco da ocupao original do Rio de Janeiro, a partir de 1565, o Morro da Conceio compunha um quadriltero com os morros do Castelo, de Santo Antnio e de So Bento, com construes tipicamente portuguesas. Derrubaram-se os outros morros, espiges subiram ao redor, mas o povo e o estilo de vida da Conceio mantiveram-se (Marco Antnio Barbosa, Jornal do Brasil, 28.10.2005).
Este filme um registro eloquente do carter notvel do Morro da Conceio, expondo seu valor intangvel, sua colocao como patrimnio imaterial. uma iniciativa que perpetua sentimentos, relaes, amores. Registra lembranas, nostalgia, solido, alegria. Recupera sons matinais dos pssaros e a ave-maria vespertina. Apresenta a paisagem em luz e sombra. Junta tempo e espao, para compreender a histria de um lugar habitado por gente, no por personagens. E alerta para perdas. E se mesmo assim, com tanto amor, um dia, do Morro da Conceio restar apenas uma paisagem, animada por novos usos e outros moradores e usurios, ser possvel recuperar o patrimnio cultural vendo e ouvindo dona 98
Iria, seu Feijo, seu Joo, seu Chapu, dona Duda, dona Alzira... (Nina Rabha, material de divulgao do filme, 2005).
O Rio de hoje h muito rompeu com o Rio de Morro da Conceio. O maior feito de Grumbach o de capturar este ltimo antes da inevitvel queda, num carinhoso gesto de arqueologia urbana preventiva (Amir Labaki, site do Festival Tudo Verdade, 2007).
A escolha por retratar moradores do morro relacionados ocupao portuguesa e a presena no material de divulgao do filme de uma resenha de Nina Rabha, uma das idealizadoras do plano urbanstico Porto do Rio, indicavam, no entanto, que as afinidades eletivas de Cristiana com o urbanismo municipal no eram exatamente frutos de um acaso. Em uma matria publicada no Jornal do Brasil (28.10.2005), a cineasta narrou que havia sido apresentada aos espaos e moradores do morro no ano de 2000, atravs de uma mediao realizada por arquitetos e urbanistas da prefeitura. Convidada para realizar o documentrio Ns, brasileiros e portugueses, registro de um seminrio organizado pelo IPP sobre as experincias de reabilitao de patrimnios histricos no Brasil e em Portugal, foi atravs de uma sugesto do organizador desse evento que a cineasta foi entrevistar um arquiteto portugus no Morro da Conceio, em contato que a fez perceber o local como a origem da cidade.
E ele me disse: Aqui parece que estou em Lisboa!. Aquele lugar remetia origem da cidade, do pas. E ainda mantendo as caractersticas originais. Quando se arrasa uma rea como aquela (como aconteceu com o Morro do Castelo), arrasa-se tambm toda carga simblica que aquelas casas e prdios tinham. A cidade foi sendo apagada em nome do progresso. Isso sempre me incomodou.
Incomodada pela sensao de perda dessa origem da cidade, que atribua de forma difusa ao progresso, Cristiana decidiu ento voltar ao local para documentar o que considerou estar mais ameaado: a carga simblica contida no casario do morro. E, para construir o contraste perceptivo em relao ao espao urbano moderno, presentificou atravs das lembranas de oito moradores idosos a chegada de seus antepassados portugueses ao morro, as festas comunitrias e as prticas religiosas e recreativas transmitidas aos descendentes, os casamentos, nascimentos e mortes que marcaram suas vidas familiares, e as transformaes fsicas e os eventos do morro e da cidade que vivenciaram. 99
Com imagens panormicas e fixas de logradouros do morro, com durao de um minuto cada, a cineasta delimitou alguns blocos de entrevistas. Os primeiros logradouros retratados no filme foram a Rua Jogo da Bola e a Ladeira Joo Homem, que compunham o que seus moradores denominavam de parte alta e o que os urbanistas da prefeitura haviam denominado no livro Morro da Conceio de eixo cume morro e associado ocupao portuguesa e espanhola. Em seguida, foram retratados alguns logradouros que compunham o que os moradores denominavam de parte baixa e o que os urbanistas denominaram de flanco norte e associaram ocupao nordestina: a Rua Mato Grosso, a Rua do Escorrega, a Rua Eduardo Jansen, o Beco Joo Jos e o Adro de So Francisco. E, assim como no estudo do urbanismo municipal sobre a organizao comunitria dos moradores, os demais espaos que eram administrativamente classificados como pertencentes ao morro foram excludos da representao flmica, reforando o discurso que os associavam a espaos sociais e culturais vazios. Todos os logradouros includos foram gravados em horrios de pouco movimento, sugerindo que no morro o tempo cotidiano era mais lento que no resto da cidade. E a sonoplastia de suas tomadas valorizou o silncio e o canto dos passarinhos, transmitindo a ideia de que o morro era buclico, pacato, comunitrio, como comentado na resenha da antroploga Andra Moraes Alves publicada no material de divulgao do filme. Esse morro idlico, no entanto, s pde ser narrativamente construdo atravs da excluso visual, verbal e sonora de alguns espaos e suas caractersticas, como o trfego de veculos do centro da cidade que subiam algumas das vias, as fachadas altamente deterioradas de muitas casas, os diversos estilos musicais escutados em alto volume nas residncias, a movimentao das crianas e de seus familiares na entrada e sada das escolas, os bares festivamente ocupados por jovens e demais moradores, o comrcio de sua base etc. Era a excluso desses espaos e usos que reforava o imaginrio de que o morro era um espao harmonioso e socialmente homogneo, sem conflitos ou diferenas socioculturais. Dentro de sua estrutura dramtica, a introduo exps as doces lembranas desses idosos sobre a chegada de seus antepassados portugueses ao morro e as festas coletivas que realizavam. Quase todos os idosos foram entrevistados sozinhos e dentro de suas casas e os trechos de seus discursos selecionados na edio do filme eram repletos de melancolia e saudosismo, sugerindo que eles e a cidade sofriam de um constante processo de perda de suas belezas fsicas e de seus laos sociais. No primeiro 100
dilogo do filme, era dito por Dona Iria que, neste tempo passado, moravam ali somente portugueses e funcionrios da Marinha e que, a convivncia no morro tinha mudado muito com a chegada da gente do Norte, reforando o discurso que opunha a ocupao portuguesa e espanhola a uma ocupao conjuntural do morro pelos migrantes nordestinos, como os moradores do morro haviam sido caracterizados pelos urbanistas da prefeitura.
Cristiana: Todo mundo se conhece aqui, no Dona Iria? Dona Iria: Ah se conhece, aqui uma famlia, ainda tem muita gente... Mas pena que j no tem como era antigamente, agora t vindo muita gente do Norte para aqui. Mas antigamente eram s portugueses que comandavam isso aqui. Comandavam no, que moravam, n? Era uma unio que se voc visse... As pessoas ficavam na porta conversando noite, a gente danava, a gente fazia roda, cantava as msicas da roda...
O giro dramtico era marcado pela quebra da suave nostalgia dos depoimentos introdutrios, com a percepo de que a velhice era ruim se comparada juventude. No desenvolvimento do filme, o tempo passado era ento valorizado e retratado como um tempo harmnico e ideal. E, atravs das noes de festas, prticas religiosas e ancestrais abordadas e editadas em bloco pela cineasta, o espectador era conduzido a perceber naqueles idosos uma identidade compartilhada e que diria respeito a um tempo original do morro. No desfecho do filme, a cineasta resumia sua mensagem: havia entres esses idosos um estado de solido e de perda gradual da memria, mas que eram passveis de serem revertidos atravs das narrativas que presentificavam tal passado mtico. Em janeiro, um ms depois de encerrado o Projeto Mau, conversei com dois artistas que haviam participado do evento para tentar compreender quais eram os pontos de conexo e de afastamento entre os moradores antigos que frequentavam o Bar do Sergio e a Capela de Nossa Senhora da Conceio e os que se identificavam com eles, mas deles se percebiam diferenciados. Primeiro, fui casa de Frazo na Ladeira Joo Homem, que me recebeu na sala do primeiro andar onde estava instalado seu ateli de gravuras. Ele tinha nascido em Copacabana e morado sempre em edifcios nesse bairro at decidir procurar uma casa onde pudesse expandir seu ateli e, como estava com pouco dinheiro, comeou a pesquisar em bairros fora da Zona Sul. Sua primeira opo foi Santa Teresa, bairro da rea central da cidade onde moravam amigos seus que tambm eram artistas e organizavam o evento Santa Teresa 101
de Portas Abertas, precursor carioca na divulgao de abertura de atelis para visitao. Mas Frazo achou os preos das casas do bairro tambm muito altos e desistiu. Sua segunda opo foi o Morro da Conceio, que tinha conhecido atravs do escultor Claudio Aun, morador da Ladeira Joo Homem. Auxiliado assim por sua rede de relaes formada atravs das artes plsticas, Frazo soube da venda da casa Villa Olivia, que j era utilizada de forma mista como residncia e ateli. Como a propriedade estava com toda a documentao regularizada, ele conseguiu compr-la em 1998 apresentando uma carta de crdito de financiamento. E, dois anos depois, comeou a oferecer workshops de gravura. Em 2001, organizou a primeira edio do Projeto Mau, que se tornou bienal. A proposta inicial era que o evento fosse semelhante ao que ocorria em Santa Teresa, quando artistas residentes ou com atelis localizados no bairro expunham e vendiam suas peas. No entanto, Frazo contou que em 2003 o projeto havia passado por uma discusso conceitua: os artistas Paulo Dallier e Claudio Aun propuseram incluir expositores que avaliaram atrair um pblico maior, mas que no eram moradores nem tinham atelis no morro. Frazo se posicionou contrrio a esse modelo de evento, chamando-o de galeria de arte, e foi o nico artista do morro que no abriu seu ateli. Segundo Frazo, nesse ano o projeto havia sido um fracasso e, depois, todos concordaram em fazer o evento apenas com os artistas do morro. Opondo essas duas categorias, galeria de arte e artistas do morro, Frazo buscava ressaltar a arbitrariedade que percebia na exposio de obras de artistas no vinculados socialmente ao morro, afirmando que tais obras poderiam estar expostas em qualquer outro lugar. E, assim, pensava o morro como um espao a ser valorizado por sua autenticidade cultural, ao querer remeter os visitantes do projeto apreciao do que nele seria nico: a produo artstica de um morador, como se sua localizao no morro conferisse um aspecto mgico aos artefatos produzidos. E, em seu sistema de autenticidade cultural, a manifestao que ele e a maior parte dos integrantes do projeto consideraram mais legtima era a festa da padroeira. Ao falar sobre o aumento do fluxo de visitantes no morro, Frazo disse que no desejava que o local fosse invadido por curiosos e ficasse protegido da violncia e dos marginais da cidade, apesar de considerar o prprio Projeto Mau um atrativo turstico capaz de incentivar tambm a sua especulao imobiliria no morro. Mas, em sua opinio, o projeto era mais cuidadoso do que outras iniciativas de tornar o morro um espao valorizado culturalmente, dando como exemplo negativo os guias que estavam 102
cobrando para levar turistas para conhecer o morro: suas visitas eram feitas com pressa e tratava pessoas e fachadas como um zoolgico, sem pedir autorizao aos moradores para fazer fotografias ou circular nas vias. Em seu uso do termo turista, ele criticava assim os visitantes que no estabeleciam vnculos com os moradores do morro, percebendo seus espaos de forma liminar entre o pblico e o privado, e articulava um medo difuso da figura do de fora, associando-a a criminalidade, ao perigo e ao vcio. E, como havia percebido durante a preparao e realizao do Projeto Mau que existia uma resistncia da maioria de seus integrantes em fazer qualquer referncia ao movimento quilombola e ao patrimnio negro que portavam, perguntei a opinio de Frazo sobre a reivindicao de transformar parte da base do morro em territrio tnico. Ele me respondeu que os moradores e espaos relacionados ao movimento quilombola no foram includos no projeto por causa do apoio que os artistas estavam recebendo da VOT e que, alm disso, achava que a rea reivindicada nunca havia sido um quilombo e que a proposta do movimento era racista. Em sua opinio, os despejos faziam parte das relaes entre inquilinos e proprietrios: sendo a VOT a proprietria dos imveis, ela podia dispor deles da maneira que desejasse. Frazo articulava assim algumas formas especficas de estruturar os espaos do morro e tambm de operar com o sistema de autenticidade sobre os que nele habitavam. Sua percepo do que era um quilombo era informada por uma ideia de passado que utilizava o termo para se referir ao agrupamento de escravos fugidos na poca em que o pas era colnia de Portugal. Ele no conhecia, ou no reconhecia, a interpretao dada ao termo pela Constituio Federal de 1988, que possibilitava que grupos que se entendessem afrodescendentes pleiteassem perante o Estado seus reconhecimentos como comunidades remanescentes de quilombo. A percepo de que o movimento era racista era, assim, devida a Frazo no estruturar os espaos do morro atravs das oposies negros e brancos, pobres e ricos e povo do santo e catlicos, como era a forma dos integrantes do movimento quilombola. E sua compreenso da categoria, alm de no ser mediada por uma concepo tida como histrica, e no jurdica e poltica, passava tambm por sua experincia cotidiana como morador da parte alta do morro que se identificava com os que dela faziam parte e pela estruturao de que seus espaos atravs de oposies referentes s condies de moradia, entre regular e irregular e proprietrio e inquilino. 103
Mas as prticas culturais dos moradores do morro reconhecidas como autnticas por Frazo no eram compartilhadas por todos os artistas que haviam participado do Projeto Mau. A pintora Helenice Dornelles, moradora de uma casa no Largo da Santa, contou sobre sua frustrao com o novo local de moradia, que ocupava havia apenas um ano. Helenice tinha nascido em Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, e morado durante doze anos em Nova Iorque, onde trabalhou confeccionando bolsas e pintando quadros. Ao retornar ao Brasil, ela e seu marido construram uma casa na Praia da Ferradura, municpio de Bzios, mas se separaram dois anos depois. Com as expectativas de ter um espao para trabalhar, de se inserir em um movimento de atelis e de comear novas relaes de amizade, Helenice alugou a casa no morro, que havia conhecido atravs de seu amigo Frazo. Mas alguns fatores a desagradaram, como achar a Zona Porturia muito isolada do resto da cidade e as ruas do entorno sujas e abandonadas. As relaes de vizinhana tambm haviam sido determinantes para seu descontentamento: Helenice se queixou de que no tinha conseguido fazer amigos no morro, porque os moradores s eram solidrios para beber cerveja e a vida cultural era desanimada. Em tom de ironia, disse que tinha muita gente que tinha ido morar no morro por gostar da ideia de estar inserido em uma comunidade e por achar romntico ficar conversando com moradores antigos como Seu Ren. Mas seu desejo era se mudar logo para Copacabana e voltar para o meio do agito, o que fez um ms depois de nossa conversa. Helenice invertia assim os valores que eram divulgados pelo Projeto Mau, classificando de forma negativa como isolamento e desanimao o que muitos consideravam sinnimo de tranquilidade, e como romantismo as relaes de vizinhana e a sociabilidade que eram percebidas como genunas e autnticas.
O MASCULINO E O FEMININO NO BAR DO SRGIO E NA CAPELA
Em novembro de 2007, logo que aluguei um quarto no apartamento de Antnio me apresentei a Srgio, dono do bar que compunha juntamente com a capela os espaos cotidianos de sociabilidade da Rua Jogo da Bola. Era uma tarde de 6 feira e o estabelecimento estava com pouco movimento, tinha apenas um casal com uma criana assistindo televiso e uma mulher no balco. Expliquei a Srgio que era pesquisadora e que gostaria de saber algumas informaes sobre o bar e combinamos de conversar na 3 feira s 09 horas, horrio que ele escolheu por ser depois da entrega do po, quando o 104
movimento de fregueses diminua, e antes das 11 horas, quando sua me o substitua para que ele levasse a filha escola. Voltei na data acertada e, embora Srgio no tenha se recusado a conversar, pediu para que eu no me alongasse nas perguntas. Ele morava na Rua Jogo da Bola e abria o bar durante a semana das 06h30min s 23 horas e, nos fins de semana, at s 02 horas. Alm de bebidas, servia salgados durante o dia e, no perodo da noite, caldo verde, sanduches, batata frita e pores de queijo. Eventualmente nos fins de semana, sua me, Dona Regina, preparava um prato para almoo, como lasanha, baio de dois e estrogonofe. O bar tinha sido alugado em 1968 por seu pai, Seu Odlio, que era de origem espanhola. Srgio havia nascido dois anos depois, comeando a ajudar o pai no bar a partir dos 14 anos de idade. Em seguida, havia trabalhado em uma agncia de corretagem de contineres de navios no porto e tambm na RIOTUR. Quando o pai morreu, em 1997, Srgio assumiu o bar com a ajuda da me e da esposa, mantendo assim o negcio em propriedade de sua famlia. Minha conversa com ele se desenvolveu como se fosse uma reportagem jornalstica: eu fazia uma pergunta e ele respondia de forma breve, sem entrar em detalhes. Dois comentrios que fez, no entanto, abordaram suas relaes de vizinhana. Disse que, havia pouco tempo, uma moradora tinha desvirtuado e estava comeando a estragar a vizinhana com a organizao de bailes funks no Largo da Santa, mas que graas a Deus ela j tinha ido embora. E que era costume de sua famlia apoiar, atravs da oferta de salgados ou dinheiro, duas festividades: a procisso no dia de Nossa Senhora da Conceio e a festa junina da Rua Jogo da Bola, ambas organizadas por Seu Luizinho e Dona Glorinha. Srgio demarcava assim os limites fsicos de sua vizinhana como sendo a Rua Jogo da Bola e duas formas de interao que considerava serem negativa e positiva: os bailes funks, correntemente associados ao imaginrio das favelas; e o espao catlico da capela e as festas organizadas por seus mantenedores. Poucos dias depois, presenciei um evento atpico no Bar do Srgio: em uma noite de novembro, Marcos Portella, professor de um curso do Ateli da Imagem, escola de fotografia situada na Urca, Zona Sul da cidade, organizou no espao uma projeo de fotografias realizadas por seus alunos em diferentes vias do morro. Soube desta projeo na vspera e no atravs de um dos moradores, mas de amigos fotgrafos, Ana Luiza Abreu e Fabrcio Cavalcanti, que me enviaram um e-mail divulgando o evento. Era, portanto, uma festividade organizada por pessoas que no moravam no morro e 105
divulgada dentro de um circuito que passava pelos vnculos sociais dos fotgrafos expositores. Cheguei ao bar na companhia desse casal de fotgrafos e cerca de quarenta pessoas assistiam s fotografias que eram continuamente projetadas em um telo pendurado em sua parede interna. Srgio, para colaborar com a projeo, havia deixado apagadas as luzes do bar. Fui apresentada pelo casal a Portella, que me explicou que fazia visitas fotogrficas no morro havia quatro anos e sempre parava no Bar do Srgio para tomar uma cerveja com seus alunos. Por isso havia tido a idia de fazer ali a exposio, denominada Conceio, eu me lembro muito bem em aluso a uma msica interpretada pelo cantor Cauby Peixoto. Portella tambm me disse que Srgio tinha gostado da proposta do evento, dando a entender que havia estabelecido uma relao mais constante com o dono do bar, o que significava, portanto, que no eram quaisquer de fora que o desagradavam: havia mediaes possveis de serem realizadas, como a solicitao para o uso do espao do bar, mesmo que informal, e ser dele um frequentador, ainda que ocasional. Aps conversar com Portella, me juntei roda formada por alguns de seus frequentadores mais assduos, que assistiam exposio de p e do lado de fora do bar. E ouvi Marcelo e Martin dizerem, em tom jocoso, que o espao havia se tornado o Baixo Morro da Conceio, numa referncia ao Baixo Gvea, ponto de encontro de jovens da Zona Sul. O sentido de ironia do comentrio estava no fato de que ambos, ao se mudarem para o morro, compartilhavam a expectativa de sarem do que consideravam ser o estilo de vida da Zona Sul. E de estarem reconhecendo, naquele evento, visitantes que os remetiam a esse estilo, embora nenhum dos dois tenha explicitado quais caractersticas exatamente os faziam ter a sensao de alterao do cotidiano do bar. Mas, ao longo da conversa, Marcelo me falou de um acontecimento que me ajudou a compreender melhor as distines que eles consideravam haver entre os que eram de dentro e de fora do que entendiam ser sua vizinhana, atravs da categoria turista. Ele contou que, durante a semana, havia oferecido junto com Seu Ren e Martin uma palestra sobre patrimnio histrico para alunos da faculdade de turismo da Universidade Veiga de Almeida, onde Martin lecionava. Durante a palestra, Seu Ren havia dito em tom de brincadeira que ambos eram turistas permanentes do morro. E percebi que o contentamento causado por essa classificao adveio da demarcao que eles no eram de dentro, por no serem antigos, mas eram 106
considerados parte da vizinhana. Esse acontecimento confirmava ainda ser Seu Ren um dos detentores de autoridade moral da Rua Jogo da Bola, morador antigo cuja fala era considerada um testemunho positivo do estilo de vida do morro e que tambm podia alterar a reputao de um morador novo entre a vizinhana. E a gradao de percepes de pertencimento - entre ser um de dentro, um turista permanente, um turista e um de fora - parecia ser o que os dois desejavam ressaltar com os comentrios jocosos que faziam, diferenciando suas prprias formas de insero no morro como moradores, categoria que associavam a uma experincia autntica de vizinhana. Assim, ser um de dentro era diferente de ser um turista que, embora apreciasse o morro e tivesse dele uma imagem positiva, buscava apenas uma fruio esttica e no estabelecia vnculos sociais duradouros com seus habitantes. A categoria de fora era a mais desvalorizada e no designava apenas quem no morava no morro: ela se referia tanto a quem tinha do morro uma imagem negativa, que o associava favela, ao perigo e ao vcio; quanto a moradores que eram classificados como portadores dessas caractersticas. Ouvi duas narrativas sobre os de fora ainda nesta noite quando Antnio, tambm opondo as ideias de morro e Zona Sul, contou de forma parablica a vez em que uma amiga da escola de sua filha, que morava com a me no Jardim Botnico, tinha ido brincar com ela na pracinha da Rua Jogo da Bola. Segundo ele, era comum que as crianas da vizinhana brincassem sem a superviso direta de um adulto, que costumavam ficar reunidos a poucos metros no Bar do Srgio. Mas, depois de um tempo, a menina havia chegado chorando ao bar e dito a Antnio que estava com medo porque nunca tinha ficado sem um adulto por perto. Ele ento concluiu a histria comentando como as crianas que cresciam em apartamentos da Zona Sul criavam inseguranas tolas. Essa sua fala articulava assim mais uma das qualidades que era correntemente associada Rua Jogo da Bola, que era sua segurana. Mas Antnio contou em seguida outra histria que se referia percepo negativa que muitas pessoas de fora tinham sobre os que moravam no morro: quando ele foi abrir um credirio nas Casas Bahia e colocou o endereo de sua casa, o vendedor comentou Esse malandro mesmo! Mora no Centro e numa rua chamada Jogo da Bola!. Sua histria explicitava assim as tenses e ambiguidades que haviam na classificao do morro como um espao de autenticidade cultural: ela podia se referir tanto a noo de segurana, como s de perigo e vcio, mesmo que relacionada comicamente ao imaginrio do malandro. 107
E, nesse ambiente ao mesmo tempo descontrado e de demarcaes de pertencimento de vizinhana, conversei com Seu Ren, que tambm estava em p do lado de fora do bar observando o movimento gerado pela exposio fotogrfica. Morador da Rua Jogo da Bola, Seu Ren era aposentado da Marinha, onde havia trabalhado como analista de sistemas. Ele costumava jogar no bar o Jogo do Aliado, cujo nome tinha sido uma alterao do original, que era Jogo do Oleado, termo que designava a lona impermevel usada em navios. Ao me mostrar um tabuleiro que estava guardado no bar e que ele mesmo havia confeccionado, me explicou que era um jogo de embarcados e que no conhecia outras pessoas que o jogassem fora do morro ou da Marinha. E, ao dizer brincando que Srgio no colocava no salo aquele tabuleiro porque tinha cimes da pea, afirmou que ia fazer outro para deixar no bar, j que o tabuleiro que permaneceu em uso j estava bem gasto. Seu Ren ressaltava assim o que, para ele, caracterizava a particularidade da relao dos moradores antigos do morro com o Bar do Srgio, que era a deteno do conhecimento sobre o Jogo do Aliado e a participao em seus torneios. E me indicou que tais moradores possuam uma importante conexo com a proximidade do morro com a orla da Baa da Guanabara e as instalaes da Marinha, localizadas prximas ao Per Mau; conexo essa que extrapolava seus aspectos profissionais e se constitua em uma das formas de construo de suas subjetividades. Assim, o cime que narrou em torno do tabuleiro do jogo no era devido apenas ao fato de ele ser considerado nico: mas principalmente por ser um objeto mediador de suas relaes sociais, que desejavam que ficassem conservadas e no expostas no salo, movimentando uma forma de colocar tanto o objeto quanto a vizinhana que o utilizava fora de circulao. No perodo de cinco meses em realizei o trabalho de campo na parte alta do morro, fui ainda cerca de duas dezenas de vezes ao Bar do Srgio, fosse para conversar, beber cerveja, almoar ou ver um jogo de futebol no fim de semana. Normalmente ia durante alguma festividade ou acompanhada de um ou mais moradores nos perodos em que o bar estava mais cheio, que eram durante a semana no incio da noite, e nos fins de semana, tarde. Alm das vezes em que entrei no bar. Observei ento que a maioria dos moradores que o frequentavam diariamente eram homens com idade superior a 40 anos e que as mulheres que faziam parte das famlias desses frequentadores costumavam ir ao bar somente quando acompanhadas de seus maridos, pais ou filhos e, principalmente, nas festas e nos almoos de fim de semana. 108
Muitas das narrativas que escutei dos frequentadores do bar sobre os espaos do morro e sua vizinhana indicavam o medo de uma possvel contaminao social e moral, oposta sensao de segurana que buscavam construir. Esse medo era entendido como uma ameaa externa ao morro e canalizada pela figura distante do bandido e tambm pela figura dos favelados da Zona Porturia, especialmente do Morro da Providncia, cuja proximidade fsica fazia com que fossem constantemente citados em narrativas de distino. E esses medos expressos pelos moradores que frequentavam o bar visavam definir regras de conduta moral para os usos dos prprios espaos da parte alta e, principalmente, da Rua Jogo da Bola. Entre as narrativas de perigo e vcio que ouvi, a mais corrente era sobre os usos de alguns espaos do morro para o consumo de drogas por jovens moradores e as tentativas frustradas de implantao de um trfico de drogas com o apoio do Comando Vermelho, grupo que atuava no Morro da Providncia. Havia tambm um boato de que os traficantes do Morro da Providncia estavam querendo invadir terrenos baldios da Ladeira Joo Homem para estabelecer neles pontos de consumo de drogas e que alguns desses terrenos estavam sendo utilizados por mendigos da regio, outro tipo de habitante considerado indesejado. As casas vazias e terrenos baldios da parte alta, por causa desses usos classificados como criminosos e irregulares, eram espaos liminares e motivos constante de preocupao e de acusaes morais. Um dos frequentadores do Bar do Srgio me disse que vrias casas ao lado do Bar do Geraldo haviam sido ocupadas irregularmente por parabas, unindo assim, na mesma narrativa, condies de moradia e uma categoria acusatria sobre a procedncia dos moradores considerados indesejados. E outro frequentador me informou que havia um sobrado na Rua Jogo da Bola, na altura do Bar do Beto, que estava sendo utilizado como casa de cmodos e gerando constantemente brigas e discusses. Escutei tambm falas que indicavam haver no trecho da Rua Jogo da Bola prximo ao Bar do Srgio e capela um grande controle social exercido por seus moradores. Um deles me contou que presenciou a vez em que um rapaz ia passando em frente ao bar fumando maconha e um frequentador repreendeu alto: Aqui a Jogo da Bola, vai fumar baseado em casa!. Este mesmo controle tambm havia ocorrido em relao inibio da construo de um barraco na pedreira acessada pela Travessa Coronel Julio, que ligava a Rua Jogo da Bola Rua Senador Pompeu. Alguns frequentadores do bar teriam se organizado para inibir a instalao desses moradores, 109
avisando que, se continuassem a construo, iriam derrubar a casa, o que resultou na sua interrupo. A prostituio era outra categoria acusatria igualmente utilizada no estabelecimento de um rgido padro moral de conduta, que separava os espaos da parte alta do morro entre femininos e masculinos. O cdigo moral tcito era de que os bares eram um espao predominantemente masculino, sendo que um morador que j tinha ouvido outro dizer explicitamente que considerava ser prostituta a mulher que frequentava bar. Outro morador me narrou tambm que um dia estava vendo um menino brincar na pracinha da Rua Jogo da Bola e, como ele estava fazendo muita baguna, sua av o repreendeu dizendo que parecia que a me dele morava na Praa Mau, numa ofensa que aludia s atividades de prostituio do local. Durante os meses em que circulei pela Rua Jogo da Bola, observei ainda que havia uma estreita relao de vizinhana estabelecida entre os frequentadores do Bar do Srgio e da Capela de Nossa Senhora da Conceio. E que, atravs dessa separao e relao, eram articuladas duas formas opostas de estruturar esses espaos, que se unificavam na festa da padroeira: a que os dividia entre masculino e feminino. A diviso dos espaos por gnero era, assim, como elaborado pelo antroplogo Marcel Granet (1997), um princpio de organizao e inteligibilidade regido pelas ideias de complementaridade e alternncia que permitia a manuteno de uma noo de totalidade social a esses moradores. Alm dessa diviso de gnero, as condies de moradia regular e irregular era outra oposio articulada entre os frequentadores desses espaos da Rua Jogo da Bola. Assim, as casas ocupadas por muitos ncleos familiares, sem vnculo de propriedade ou no mediadas por contrato de inquilinato; os terrenos sem espao construdo e com crescimento descontrolado da vegetao; e as casas no regularizadas em rgos municipais e construdas com materiais de pouca durabilidade eram postos na mesma categoria acusatria de favelizao. E tanto as divises de gnero quanto a de condies de moradia se baseavam em um padro de moralidade que opunha a virtude ao vcio, que aparecia atravs nas categorias de fora, favelado, traficante e prostituta, contra o imaginrio do que deveria ser o bom morador do morro.
OS POLTICOS E SUAS MEDIAES ENTRE DIFERENTES ESPAOS
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Ao acompanhar a organizao de duas outras festividades coletivas na parte alta, as diferenas e multiplicidades de formas dos moradores estruturarem seus espaos ficaram mais explcitas. A primeira que acompanhei foi a retomada da Banda da Conceio organizada pelo Marcos Frigideira, morador da Ladeira Joo Homem. Em uma conversar no Bar do Geraldo, Frigideira me contou que, quando nasceu, seu pai morava no morro e sua me em Caxias, na Baixada Fluminense. Aos cinco anos de idade, ela ficou doente e o deixou aos cuidados do pai, que era descendente de portugueses. De suas experincias como jovem no morro, Frigideira se lembrava com afeto das participaes nas festas juninas e de So Cosme e Damio, nos campeonatos de futebol, na Banda da Conceio e nas boates da Rua Sacadura Cabral. E, quando adulto, havia trabalhado durante dez anos em uma seguradora e outros dez anos como conferente no porto. Considerava que esse trabalho porturio tinha dado esperteza a ele, porque o havia feito conseguir circular por qualquer lugar e cumprimentar todo mundo, fazendo de conta que no via nada nem sabia de nada, se referindo implicitamente s prticas classificadas como ilcitas e clandestinas. Ao me contar que seu grande sonho era ser jogador de futebol, Frigideira me explicou que, antigamente, os campeonatos de futebol no morro eram realizados com o enfrentamento de dois times: o da Conceio, onde jogavam os moradores da Rua Jogo da Bola; e o da Unio, onde jogavam os da Ladeira Joo Homem. E narrou que, nessa poca, a tradio espanhola e portuguesa era muito mais forte no morro e os moradores da Rua Jogo da Bola eram fechados e filhinhos de papai. Como exemplo desse fechamento, disse que quando Odlio, pai de Srgio, comandava o bar, no se podia nem jogar porrinha, que era a denominao comum de um jogo de palitos organizado por rodadas de apostas e onde podiam participar vrios jogadores. E, havia poucos anos, os moradores dessa rua no gostavam de samba nem frequentavam os ensaios do bloco de carnaval Escravos da Mau. Mas, com o passar do tempo, muitos desses moradores se mudaram e o pessoal de l ficou mais aberto, acabando com a diviso que existia entre as duas vias da parte alta do morro. Seu projeto de reorganizao da Banda da Conceio tinha como principal referncia, portanto, a vizinhana da Ladeira Joo Homem. E, ao narrar suas caractersticas, Frigideira a colocava em oposio vizinhana dos moradores da Rua Jogo da Bola, se referindo especialmente ao Bar do Srgio, e articulava as noes de aberto e fechado, popular e elite. Assim, apesar de muitos dos moradores das duas vias da parte alta possurem ascendncia portuguesa e espanhola e se entenderem 111
como tradicionais, nem todos articulavam um discurso de vizinhana que distinguia valorativamente os de dentro e os de fora do morro: havia os que se posicionavam favorveis mistura, ou unio, como era denominado o time de futebol. E essa mistura era movimentada por Frigideira nas festas e atividades coletivas que organizava: nelas, moradores de diferentes espaos do morro e do entorno participavam e no havia um conhecimento restrito e nem uma participao distintiva, como o Jogo do Aliado e a procisso de Nossa Senhora da Conceio. Nas festas juninas, campeonatos de futebol e banda de carnaval qualquer pessoa que quisesse podia participar e era mesmo desejado que isso acontecesse; e assim estava sendo feito na rearticulao da Banda da Conceio, que havia sido extinta na dcada de 1970 e que Frigideira pretendia botar na rua no carnaval de 2008. Para tanto, ele havia conseguido apoios de diversas pessoas e instituies. Para atuarem como msicos da banda, Frigideira tinha feito um acordo com bateristas da escola de samba Unidos da Tijuca que ensaiavam na Rua Venezuela, que aceitaram tocar em troca de cerveja. O aluguel de um carro de som ele tinha conseguido com Vinicius, presidente do Sindicato dos Bancrios que ia se candidatar a vereador nas eleies de outubro. As Frigiletes, que era como ele e outros moradores do morro chamavam duas moradoras do Valongo que costumavam ajud-lo na organizao de festas, tinham viabilizado a confeco das camisas do bloco recolhendo contribuies entre comerciantes da regio. E com Frazo ele tinha combinado de tratar digitalmente algumas fotos familiares realizadas durante o desfile da banda no carnaval de 1975, para que fossem divulgadas como imagens antigas do morro. E tambm pretendia convidar Guenther para fazer as fotos do desfile daquele ano, sugerindo que as vendesse. Frigideira planejava, ainda, angariar mais recursos para a banda com a organizao de ensaios no Largo da Prainha e com de bingos e feijoadas no centro cultural da SERJUS. E era essa circulao por diferentes espaos do morro e da cidade a que Frigideira se referia e valorizava atravs da categoria esperteza, por ele percebida como positiva por permitir que falasse com todo mundo, e no sendo associada, portanto, s ideias negativas de perigo, vcio ou ilegalidade. Assim, Frigideira havia conseguido estabelecer relaes sociais com o circuito de sambistas que atuavam no entorno do morro; com as moradoras de um espao estigmatizado por muitos da parte alta, que era o Valongo; e com os que valorizavam o patrimnio cultural do morro associado aos moradores da parte alta, como era o caso de Frazo e Guenther e suas 112
atuaes como divulgadores de imagens mediadoras do tempo passado e das manifestaes entendidas como autnticas. Mas essa capacidade de circulao de Frigideira muitas vezes era vista com parcimnia, principalmente porque ela inclua tambm polticos, outra categoria correntemente utilizada por moradores da parte alta de forma acusatria e que se referia tanto aos especialistas de rgos pblicos, quanto aos candidatos a cargos legislativos e executivos que buscavam apoio eleitoral. Mas essa categoria tambm podia se referir a pessoas como Frigideira, que circulavam e mediavam diferentes espaos. Ao me explicar como havia sido o convite para a participao do candidato a vereador na retomada da banda, Frigideira disse que Vinicius tinha patrocinado os trofus do campeonato de futebol de 2007 e que, por isso, tinha decidido dar uma fora a ele nas eleies. E contou que, anos atrs, havia participado da Associao de Moradores do Morro da Conceio, mas que, com o tempo, a entidade tinha se desarticulado. Mas pediu para no nos prolongssemos nesse assunto, me explicando que as Frigiletes, que estavam no bar ao nosso lado, haviam feito parte da associao e eram amigas da sua ex-mulher, a antiga presidente. Disse que as Frigiletes possuam interesses polticos na rearticulao da banda, mas que ele estava controlando a participao delas para no deixar que ningum pegasse carona em seu projeto. S compreendi o que Frigideira quis dizer com interesses polticos quando conversei com Lus, que tambm estava participando da organizao da Banda da Conceio. Nascido no municpio de Campo Grande e militante do PT, ele havia se mudado para a cidade do Rio de Janeiro em 1985, convidado para trabalhar no Sindicato dos Porturios. Ao se separar da esposa, em 2000, conheceu atravs de um amigo do porto a parte alta do morro e alugou a casa em que morava na Rua Jogo da Bola. Mas Lus em contou que tinha se decepcionado com os polticos e considerava que o modelo das associaes de moradores estava gasto por causa do crescente envolvimento dos partidos, explicando que a antiga associao dos moradores do morro tinha sido bastante atuante durante um tempo, mas que a presidente usava a entidade para obter benefcios pessoais. E, como exemplo desse uso, contou que muitas vezes equipes de cinema ou de comerciais de televiso iam gravar no morro e os produtores procuravam a associao para autorizar a utilizao de locaes pblicas. Mas que o dinheiro pago nunca era revertido para fins sociais, era repartido entre os integrantes da associao, qualificando assim o tipo de interesse poltico a que se referia Frigideira como a obteno de vantagens individuais atravs da representao coletiva. 113
Filho de Ablio e primo de Frigideira, Gustavo tambm se referiu, durante uma conversa no Bar do Srgio, a uma ao da extinta associao de moradores que tinha reprovado e que possibilitava um dimensionamento da rejeio que a figura do poltico possua entre os moradores da parte alta. Disse que a Praa Leandro Martins, a que todos os moradores da Rua Jogo da Bola denominavam apenas de pracinha, tinha sido reformada atravs de uma mediao de seus integrantes. E havia sido assim denominada para homenagear um falecido morador do morro que, segundo ele, no era importante: mas, como sua filha tinha um contato poltico com a prefeitura, ela havia conseguido impor o nome. Tambm ouvi de outros moradores um boato de que essa antiga associao tinha uma ligao com o trfico do Morro da Providncia e estaria ajudando a implant- lo no Morro da Conceio, fala annima que era mais uma forma de controle dos espaos do morro, mas que, diferencialmente de outras formas, unia as ideias do vcio e do perigo a essa outra figura indesejada que era a dos polticos. E por causa dessa forma negativa de perceber a atuao dos polticos no morro, Lus, Marcelo e Frazo, que estavam participando das reunies de retomada da Banda da Conceio no final de 2007, desistiram de sua organizao ao saberem que Frigideira queria receber o patrocnio do candidato a vereador e colocar o nome dele na camiseta da banda. A banda, no entanto, foi organizada e voltou a ser mais uma das festividades associada ao passado carnavalesco dos moradores da Ladeira Joo Homem, se apresentando em outras atividades locais que no apenas o carnaval. O assunto da participao de polticos era, portanto, constante entre a vizinhana de moradores da parte alta do morro e observei mais um evento onde sua figura foi posta em movimento para estruturar as oposies de seus espaos. Ainda em dezembro, durante a abertura da exposio fotogrfica do Projeto Mau na Casa de Cultura da VOT, Frazo havia me apresentado ao professor de histria da arte Rafael Cardoso, morador de um sobrado na Rua Jogo da Bola. Ele havia se tornado assunto entre os artistas plsticos do morro por ter ganhado um apoio financeiro do IPHAN de 100 mil reais ao ser selecionado no edital pblico Projeto Arte e Patrimnio com a proposta de realizao, durante o segundo final de semana de abril, de intervenes de arte contempornea no morro. Seu projeto havia sido encaminhado pela galeria de arte A Gentil Carioca, localizada na Praa Tiradentes, e tinha sido selecionado junto com mais outros nove distribudos pelo pas. 114
O projeto previa um nmero limitado de trabalhos a serem expostos e uma curadoria, no estando assim todos os artistas do morro automaticamente aceitos, o que suspendia o sistema de autenticidade entre moradia e artefato cultural que os integrantes do Projeto Mau articulavam. Na proposta de Rafael, foi idealizada a realizao de dezoito intervenes nos espaos do morro, divididas por trs categorias de produtores: seis artistas novos, seis artistas consagrados e outros seis artistas do morro. Essa forma de classificao estava, assim, voltada principalmente para as formas de estruturao do prprio circuito das artes plsticas ao qual Rafael pertencia; sendo que a categoria artistas do morro era uma mediao entre esse circuito de artes plsticas e a noo de patrimnio do IPHAN, que articulava valores associados s ideias de comunidade e popular desde a inflexo de suas prticas polticas na virada da dcada de 1980. No ms de maro soube atravs da lista de e-mails do Projeto Mau que Rafael realizaria uma reunio com moradores no salo da capela da Rua Jogo da Bola, com o objetivo de expor as concepes do evento e sua programao oficial e tambm de conseguir adeses para sua programao extraoficial. Todos os participantes da reunio se distriburam pelos bancos do salo, formando um crculo irregular. Alm de mim, tinham ido tambm dois artistas novos; trs artistas que possuam um ateli coletivo no andar trreo do sobrado do Rafael e que conheci somente nesse dia; dois artistas do Projeto Mau, Renato Santana e Frazo; e os moradores Frigideira, Mrio, Gustavo, Ablio e Simone, filha de Seu Ren. Soube ento que na categoria artistas do morro Rafael havia proposto a incluso dessa coletividade que utilizava o andar trreo de seu sobrado como ateli de arte contempornea, mas no costumava frequentar os bares da parte alta. Assim, na programao oficial do evento, haviam sido includos quatro artistas ligados a esse ateli e, do Projeto Mau, apenas os dois que compareceram reunio. Rafael iniciou a reunio dizendo que morava no morro havia oito anos e nunca tinha proposto desenvolver nenhuma ao junto sua comunidade. Mas, ao saber do edital do IPHAN, se inscreveu por considerar que o instituto no costumava investir nos bens que havia tombado no morro. E, comparando-o com Santa Teresa, disse achar que a arte, mais que o turismo, podia trazer dinheiro para o morro, porque ele tinha vocao para a cultura mais do que para a festa. Rafael movimentava assim, em sua fala inicial, alguns valores e figuras prprias dos moradores da parte alta: a valorizao dos pedidos informais de autorizao para atuar junto comunidade do 115
morro; a insatisfao com a atuao patrimonial do IPHAN, considerada punitiva e no investidora; e a crtica valorizao turstica e a produo de festas para um pblico numeroso. Entre as instituies do morro, apoiavam o projeto o Observatrio do Valongo e a VOT, que iam comportar algumas das obras em seus espaos, e a Fortaleza, que abriria para visitao. Mas a maioria das obras estaria distribuda pelo Largo da Santa e pela Pedra do Sal, pois o projeto pretendia privilegiar o uso dos espaos considerados pblicos, em detrimento dos privados. Rafael ento conclamou a participao da comunidade: banda, bloco, pipoqueiro, cerveja no bar... e dos artistas do morro que no haviam entrado na programao oficial, explicando que, embora no pudesse incluir esta participao no oramento do projeto, elas seriam divulgadas na imprensa. Assim, seu projeto propunha uma mediao entre diferentes espaos do morro e buscava ser legitimado pela participao da comunidade, que ele associava no apenas s manifestaes tidas como populares, como tambm noo de rua. Aps as explicaes de Rafael sobre o projeto, Ablio foi o primeiro a falar. E, compreendendo-o como um representante do IPHAN, reclamou do lixo e do entulho que estavam sendo depositados por comerciantes na Rua Major Daemon, perguntando se o projeto podia ajudar a resolver o problema. Tambm se queixou de terem retirado o ponto do jogo do bicho que ficava na base da Ladeira Joo Homem, porque ele assegurava que ningum usasse a via para depositar lixo, e dos caramujos africanos que haviam se proliferado no entorno da Fortaleza. Ao responder, Rafael se comprometeu a abordar essas questes em uma reunio que teria com a secretaria municipal de urbanismo, mantendo fluidas as distines entre poderes pblicos e privados e se posicionando como um mediador com polticos, assumindo com isso a proximidade com uma das figuras mais desvalorizadas entre os moradores da parte alta do morro. Mrio perguntou, em seguida, qual era o posicionamento de Rafael em relao possibilidade de projetos como o dele acelerarem a mudana dos moradores do morro que, em sua opinio, j estaria ocorrendo desde a divulgao das propostas de revitalizao urbana da Zona Porturia. Mas, antes que ele respondesse, Ablio interveio, falando que muitos moradores gostavam do movimento que era gerado pela mdia e que muitos no gostavam, no havendo, portanto, uma nica posio sobre tais projetos. O dilogo entre os dois confrontava assim as oposies de dentro e de fora e misturado e puro que eram movimentados na Rua Jogo da Bola e na Ladeira Joo 116
Homem, fazendo com que o tema da revitalizao urbana da regio fosse apenas mais um catalisador das estruturaes dos espaos do morro existentes. No incio de abril, encontrei com Rafael em sua casa e, logo no incio da conversa, ele me disse que estava achando divertido ter se tornado um objeto de estudo, demonstrando assim ter um bom conhecimento sobre o trabalho antropolgico e, consequentemente, sobre a narrativa que ele prprio estava produzindo. Rafael tinha nascido em Copacabana e, quando se casou, foi morar no bairro de Laranjeiras. Doze anos depois se separou e comprou a casa no morro, em um momento em que disse estar reavaliando sua vida. Antes de se mudar, j frequentava eventualmente o Bar do Srgio e costumava perguntar a ele se havia alguma casa para vender. Em 1998, soube que Marco Aurlio estava vendendo sua casa e, em uma visita, viu que o imvel estava mal conservado interna e externamente. O andar de baixo era alugado para a Marinha e, segundo ele, durante alguns perodos chegava a acomodar at vinte marinheiros, se constituindo em uma cabea de porco. Ao comprar a casa, passou dois anos refazendo o cho e a fachada, em uma reforma que triplicou seu investimento inicial: a casa havia sido comprada por 50 mil reais e, nas obras, ele calculou ter gasto cerca de 100 mil reais. Mas, em sua percepo, tinha sido principalmente a reforma da fachada que havia feito com que ele fosse bem aceito pelos vizinhos. A histria de aceitao de Rafael na vizinhana da Rua Jogo da Bola operava assim com suas oposies estruturais relacionadas s condies de moradia: pois, alm de proprietrio, ele havia transformado uma casa associada a uma forma de habitar classificada como favelizada em um espao regular. Com o incio dos preparativos para a implantao do projeto do IPHAN, Rafael disse ter conhecido outros espaos e habitantes do morro com os quais, durante seus dez anos de moradia, ele no havia interagido: a Fortaleza, os dirigentes da VOT e alguns moradores do trecho da Rua Argemiro Bulco que ficava no topo da Pedra do Sal. Perguntei se ele havia procurado tambm os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, mas Rafael disse que no sabia do conflito habitacional com a VOT e achava que o quilombo que existia ali era uma coisa meio folclrica, se referindo s festividades que realizavam com rodas de samba. E, para participar da programao extraoficial do evento, disse que tinha conseguido a adeso da Banda da Conceio, dos artistas do Projeto Mau e de uma rdio amadora organizada por no eram moradores do morro. S havia tido problema com o Observatrio Valongo, que desistiu de apoiar o evento devido a um desentendimento entre sua direo e um artista que ia expor no jardim. 117
Sua circulao por diferentes espaos do morro e a mediao que seu evento estava propondo realizar entre tantos patrimnios, no entanto, no passou despercebida pelos mecanismos de controle da vizinhana. Rafael me contou que um morador da Rua Jogo da Bola havia perguntado se ele pretendia, depois do projeto, se candidatar a algum cargo poltico. Essa percepo de que ele estava atuando como um poltico tambm havia sido manifestada quando Rafael, para divulgar a reunio no salo da capela, havia colado cerca de quarenta cartazes nos postes na Rua Jogo da Bola: cinco haviam sido retirados e alguns pichados a caneta com o nmero 171. Esse nmero era uma referncia ao artigo do cdigo penal que definia o delito do estelionato, que pelo senso comum era associado figura do trambiqueiro, do que desejava tirar vantagem econmica prejudicando outra pessoa atravs de algum artifcio. E, como tinha as narrativas sobre a retomada da Banda da Conceio haviam demonstrado, as definies do poltico e do malandro eram muito prximas entre os moradores da parte alta do morro, sendo a categoria do trambiqueiro uma forma de gradao entre elas. Rafael, no entanto, no sabia quem o estava acusando de agir de m f, mas cogitou algumas possibilidades, todas elas referentes s formas como essa parte da vizinhana estruturava os espaos do morro. Em sua opinio, podiam ser pessoas que no queriam que fosse realizado no morro nada ligado ao poder pblico e reagiram logomarca do IPHAN que havia no cartaz; podiam ser pessoas que associavam arte a coisa de viado; ou podia ser algum integrante aborrecido do Projeto Mau, mas achava essa terceira opo a menos provvel. Assim, ele explicitava que havia uma resistncia s iniciativas do poder pblico que fazia com que a vizinhana da parte alta percebesse negativamente os moradores que se envolviam com polticos. Tambm indicava que essa mesma vizinhana se sentia confrontada por variaes de seus rgidos papis de gnero e que, assim como alguns moradores podiam considerar prostituta uma mulher que frequentava bar, podiam tambm considerar viado um homem que organizava evento artstico. Por fim, a subverso da noo articulada por integrantes do Projeto Mau do que era um artista do morro tambm podia ter gerado descontentamento, embora, no cdigo moral local, fosse a menos ofensiva. Logo depois de nossa conversa, Rafael me enviou por e-mail o release do evento encaminhado aos jornais, onde o projeto era apresentado como um revitalizador do Morro da Conceio e o associava tradio cultural de Montmartre. Conhecido por seu estilo de vida bomio, esse bairro parisiense era recorrentemente aludido em matrias jornalsticas e tursticas aos bairros da Lapa e de Santa Teresa, ambos 118
localizados na rea central da cidade, por causa da localizao de atelis de artistas e da movimentao dos bares. E com a divulgao do plano Porto do Rio o morro estava sendo propagado por alguns jornalistas e tambm pelos urbanistas da prefeitura como a nova Montmarte carioca. E era com esse imaginrio que Rafael dialogava ao enviar sua divulgao do evento para o conjunto dos habitantes da cidade. Acompanhei os dois dias do evento e percebi que, entre as dezoito intervenes artsticas que haviam sido montadas, algumas no possuam apenas propostas plsticas: elas tambm articulavam um discurso sobre o morro e a Zona Porturia. Essas instalaes estavam distribudas por diversos espaos do morro e propunham um confronto entre imaginrios difundidos pela geografia moral da cidade, pelos urbanistas da prefeitura e pelos diversos habitantes do morro. No espao que era o centro de irradiao simblica do patrimnio portugus e espanhol do morro, que era o Largo da Santa, as duas nicas intervenes artsticas realizadas tiveram uma preocupao plstica, no propondo qualquer confronto de imaginrios sobre o morro. Mas em dois espaos perifricos da parte alta, que eram a Rua Major Daemon, correlata a ela por sua conexo com o Largo da Santa, e o Observatrio do Valongo, correlato por sua relao com os frequentadores do Bar do Srgio, foram montadas intervenes que dialogavam com os diferentes imaginrios sobre o morro. Na Rua Major Daemon, um artista pintou os escombros de um sobrado que havia desabado com a ajuda de uma grua e um jato de tinta, espalhando uma grossa camada de purpurina dourada sobre as runas. Ele valorizava, assim, outra caracterstica do morro considerada problemtica pelos moradores da parte alta, que eram os desabamentos das edificaes sem conservao fsica, que os remetia ao imaginrio da favelizao. Em frente ao porto do Observatrio do Valongo, havia sido instalado um grande letreiro luminoso com o dizer Feliz Ano Novo, em uma referncia aos letreiros usualmente colocados pelo trfico de drogas nos topos dos morros. Assim, a obra expunha uma compreenso do espao a partir da geografia moral da cidade, s que positivando o que para muitos moradores era um de seus principais incmodos: a possibilidade de sua percepo como uma favela. E estabelecia ainda uma 119
comunicao com os moradores do Morro da Providncia, que ficava na direo para onde o letreiro estava voltado e era o espao mais negativado pelos moradores da parte alta. Na base do morro, distribudas pelo Adro de So Francisco e na Pedra do Sal, foi realizada a maior parte das intervenes que dialogava com seus imaginrios. No adro, foi montada uma instalao composta por um feixe de linhas vermelhas amarradas na janela de uma de suas casas e que atravessava o acesso da escadaria, deslizava sobre o muro, at alcanar um poste na Rua Sacadura Cabral. No alto desse poste, as linhas foram atadas e suas pontas dispostas, uma parte sobre a calada de paraleleppedos e, outra parte, sobre o asfalto. O acmulo de linhas no cho remetia visualmente a uma poa de sangue e ideia da cena de um crime, em uma analogia violncia que a geografia moral da cidade percebia na Zona Porturia. Na noite de sbado, uma artista tambm realizou no adro uma interveno em que caminhava calada e pausadamente vestida com um camisolo branco e segurando em uma das mos um lenol e, na outra, uma lamparina acesa. Enquanto andava, algumas pessoas que visitavam o morro a seguiram com ar solene e religioso. Assim percorreram um trecho da Rua Jogo da Bola, a Rua Mato Grosso e a Rua do Escorrega, at chegarem Rua Sacadura Cabral, por onde subiram a escadaria do adro. Na frente da Igreja da Prainha, que estava com sua porta principal coberta por um vu composto de retalhos de plstico branco, a artista depositou a lamparina e o lenol sobre seu beiral, deitou-se e dormiu. O conjunto da cena composta remeteu a duas imagens: os solenes cortejos catlicos e os mendigos que dormiam nas portas das igrejas, provocando um choque entre imaginrios positivos e negativos. J no interior de uma das casas do adro, Frazo exps um painel composto por 120 fotos de rostos em close de usurios do morro. Seu impacto visual advinha do conjunto e das distores na proporo dos rostos, causadas pela extrema proximidade do fotgrafo no momento do clique e do uso de uma lente grande angular. Em frente ao painel, ele disps algumas cadeiras para que as pessoas pudessem contemplar as faces e, durante o evento, registrou os depoimentos dos retratados com uma cmera, fazendo perguntas breves, como nome, profisso, idade e o que tinham achado de sua 120
interveno artstica. Sua exposio buscava enfatizar a proximidade que ele tinha com as pessoas retratadas e valorizava, assim, os artistas que moravam no morro e os vnculos sociais estabelecidos com sua vizinhana. Na Pedra do Sal, um artista montou uma instalao sonora composta por uma caixa de som que reproduzia o barulho do mar, em uma aluso poca anterior ao aterramento da Zona Porturia, quando as ondas batiam diretamente na pedra. Outra referncia ao planejamento urbano da cidade foi a instalao onde um artista distribuiu velas de citronela dentro de copos de vidro pela pedra, dizendo ser uma ao para espantar a dengue: assim ele props uma abordagem irnica a um dos problemas sanitrios mais graves do morro e tambm da cidade, ao mesmo tempo em que se referia ao espao dos despachos do candombl. Ainda na pedra, outro artista conectou mangueiras azuis e vermelhas a bicas de quatro casas da subida da Rua Argemiro Bulco e as espalhou pelo cho. Ao fim da tarde de sbado, essas mangueiras jorraram gua, produzindo uma lavagem da pedra que se referia simbolicamente s oferendas aos orixs e valorizava tambm as prticas relacionadas ao candombl. E outro artista disps duas mesinhas de madeira no Largo Joo da Baiana com uma maquete, um pequeno equipamento de som com fones e alguns encartes impressos. A maquete simulava a demolio do altssimo prdio da CEDAE, ao que possibilitaria a abertura da viso da Pedra do Sal. Denominou sua instalao de tombamento, produzindo assim uma ironia com a noo, que podia designar tanto a preservao de um patrimnio como a demolio de uma edificao. Nos fones, os visitantes podiam ouvir alguns sambas antigos, fazendo referncia ao uso do espao por sambistas e, nos encartes, era mostrada a rvore genealgica das afiliaes de santo de antigos frequentadores da pedra ligados ao candombl, como Tia Ciata e Joo Alab. Todas as intervenes se referiam, assim, ao patrimnio negro do morro que estava sendo reivindicado de territorializao pelo movimento do Quilombo da Pedra do Sal, o qual diversos moradores da parte alta do morro no reconheciam como tnico, mas como composto por invasores ou moradores irregulares. 121
Na programao extraoficial do evento, pequenos cartazes foram afixados nos postes da Rua Jogo da Bola divulgando a festa da radio amadora que se denominava La Rica e que ocorreu domingo na pracinha. O nome da festa, ampliado e colado no poste, estampava com ar festivo um dos principais desconfortos entre muitos dos que moravam na parte alta do morro, que era a associao do local ao consumo e trfico de drogas: pois larica era uma das grias mais conhecidas entre os jovens da cidade que fumavam maconha. J no Largo da Santa, houve a apresentao da Banda da Conceio na noite de sbado e, na Fortaleza, foi montada a exposio Casa de Armas, indicando que o Exrcito havia decidido participar do evento valorizando sua prpria ocupao dos espaos do morro e no apenas abrindo-a para visitao. Assim tambm fez a VOT, que montou na Casa de Cultura uma exposio sobre sua histria e os projetos sociais que desenvolvia no morro. Mas houve tambm um posicionamento explicitamente dissonante em relao ao evento, que proferiu claramente um discurso contrrio utilizao dos espaos do morro por projetos classificados como culturais ou tursticos. Gustavo montou uma exposio em frente sua casa, pendurando trs painis fotogrficos na porta e armando um projetor de filmes em cima de uma mesa de alumnio que exibia outras fotografias na parede. Embora as imagens no emitissem qualquer mensagem contestatria, seu posicionamento o fazia: ele no havia combinado sua participao no evento com Rafael, e me disse que, como estava utilizando a sua casa, no precisava pedir qualquer permisso, questionando, portanto, a autoridade do curador. Falou ento que achava que os moradores tinham que pensar melhor sobre os projetos que usavam os espaos do morro e suas histrias e comear a ganhar alguma coisa com esse tipo de exposio, se referindo a algum tipo de pagamento ou reconhecimento de autoria. Articulou, assim, uma avaliao desses projetos prxima noo negativa da malandragem.
OS ESPAOS DA REPUTAO E DOS PROJETOS TURSTICOS
Quando iniciei o trabalho de campo na parte alta do morro, o espao estava sendo valorizado pelos urbanistas da prefeitura e divulgado por matrias jornalsticas, que difundia a percepo de que nele habitavam moradores tradicionais que eram descendentes de portugueses e espanhis. Ao longo da convivncia cotidiana nos bares e festas deste espao, percebi que esse patrimnio no passava pelas concepes jurdicas ou polticas do termo, no havendo qualquer legislao que a certificasse ou 122
tornasse smbolo da cidade ou da nao. E que tampouco havia uma referncia explcita na fala dos moradores a uma identidade construda em torno dessas origens, mesmo daqueles que possuam ascendncia portuguesa e espanhola. Eram, assim, diversas as maneiras que os moradores possuam de estruturar os espaos da parte alta e do conjunto do morro, variveis tambm de acordo com a perspectiva de observao e pertencimento do morador, fazendo com que o prprio imaginrio do que era esse morador fosse continuamente deslocado, refeito, suspenso, negado ou confirmado. O que encontrei como uma caracterstica constante em diferentes narrativas e prticas vinculadas parte alta do morro foi uma noo de vizinhana construda a partir principalmente da reputao, como conceituado pelo antroplogo Frederik Bailey (1971): como um princpio formado pelo grau e intensidade da interao de cada indivduo na vida coletiva dos moradores, tanto em grupos de interesses quanto em conflitos locais. Assim, quanto maior era o nvel de interao, mas importante era sua reputao na vizinhana, o que no tinha qualquer relao direta com as qualidades positivas ou negativas que esse indivduo possua, mas sim com o que os outros pensavam dele e informavam sobre ele. As demarcaes de proximidades e distncias sociais que os moradores da parte alta produziam, portanto, sempre confirmavam a existncia de relaes sociais, fossem elas de maior ou menor intensidade. Assim, atravs da definio da boa vizinhana se operavam as distines morais dos espaos e prticas. No caso dos frequentadores do Bar do Sergio e da capela, os espaos eram estruturados a partir das oposies vcio e virtude e perigoso e seguro, delimitando fronteiras que diferenciavam gradativamente os habitantes que eram de dentro e de fora do morro e os espaos que eram masculinos e femininos. Mas, quando essa distino era construda por moradores referenciados no Bar do Geraldo, essa forma de estruturar os espaos do morro operava principalmente as oposies misturado e puro e aberto e fechado. E a partir das narrativas de reputao que eram movimentadas na parte alta e que incluam recorrentemente s figuras do turista, do poltico, do traficante, da prostituta, do invasor e do malandro, fossem essas categorias ditas de forma positiva ou negativa, percebi que havia muitas conexes entre esse espao do morro e outros espaos do prprio morro e da Zona Porturia. Mais conexes do que os urbanistas da prefeitura que idealizavam sua renovao apresentaram na classificao da organizao comunitria dos moradores do morro que, esquemtica e ideologicamente, os dividiu em descendentes de 123
portugueses e espanhis com vnculo afetivo; nordestinos com uma relao conjuntural com o espao; e comerciantes que no frequentavam seus espaos. A representao do morro que os urbanistas da prefeitura haviam apresentado ao conjunto da populao da cidade e que afirmava que seus moradores antigos eram associados ocupao portuguesa e espanhola da parte alta produzia, assim, uma srie de apagamentos de conflitos, tenses e de outras formas de estruturar no apenas dos mltiplos espaos do morro como dessa prpria parte alta. Pois o Morro da Conceio era vivenciado, mesmo por aqueles que estavam habitando seus imveis mais valorizados turstica e economicamente, como uma experincia sempre limtrofe: uma experincia carregada de ambivalncia, que podia se referir tanto a uma noo positiva de moradia, associada autenticidade cultural e a intimidade social; quanto a uma noo negativa, ligada decadncia, perigo e vcio. Assim, contrastando o discurso dos urbanistas da prefeitura a partir das observaes que realizei durante o trabalho de campo, conclu que o proclamado patrimnio cultural do Morro da Conceio dizia mais respeito aos desejos de interveno desses prprios urbanistas do que a uma suposta coletividade de moradores compreendida de forma totalizante, harmnica e coesa. E que, se no morro os descendentes de portugueses e espanhis foram eleitos para serem preservados em suas moradias, foi para que se tornasse legtima a modificao que esses urbanistas desejavam fazer de todos os demais classificados como moradores inautnticos. Essa eleio do Morro da Conceio como setor prioritrio de implantao de polticas de revitalizao urbana da Zona Porturia era ainda sustentada por diversos mediadores: os urbanistas de outros pases que exportavam projetos e mtodos de gesto urbana; os agentes locais de turismo, que difundiam as atraes da cidade e suas identidades culturais; os agentes imobilirios, que valorizavam os imveis onde havia projetos associados preservao de stios histricos; e os cineastas, crticos de jornais e especialistas do patrimnio que compartilhavam das sensibilidades desses gestores na procura de uma cultura popular tida como genuna e retoricamente percebida como ameaada de extino. E era essa rede de relaes que movimentava e presentificava determinadas narrativas de tradio e passado, inserindo-as em uma lgica do mercado inerente aos processos de patrimonializao de bens culturais. Pois a divulgao dos projetos do Porto do Rio promovia no Morro da Conceio uma juno entre preservao de stio histrico, valorizao imobiliria e desenvolvimento turstico. Mas, para que a revitalizao urbana fosse potencializada 124
era necessrio que seu patrimnio representasse uma cultura autntica, j que a noo de turismo era vinculada construo de complexos exibicionrios da diversidade cultural, constituindo-se em uma indstria particular dentro da indstria cultural. Pois, como apontado por diversos pesquisadores, todo projeto turstico buscava oferecer uma experincia diferente da que a pessoa vivenciava em seu cotidiano, experincia que podia estar ancorada nas noes de passado histrico, de culturas populares, regionais e primitivas ou mesmo de culturas empresariais, mtodos produtivos e aventuras em paisagens naturais (Gonalves, 2007a; Kirshenblatt- Gimblett, 1998; MacCannel, 1976). E, no Morro da Conceio, a cultura no apenas eleita como autntica, mas discursivamente construda como uma totalidade, foi a dos denominados descendentes de portugueses e espanhis. 125
Captulo 3. O esprito quilombola da Pedra do Sal
OS MEDIADORES DO QUILOMBO DA PEDRA DO SAL
Em outubro de 2007, o processo de titulao do Quilombo da Pedra do Sal que concederia a propriedade definitiva do territrio tnico pleiteado pelos integrantes do grupo, estava no auge de sua projeo pblica, sendo discutida em diferentes jornais e revistas de circulao nacional. Na internet, encontrei textos que haviam divulgado desde o incio o conflito habitacional vivido entre os moradores que formaram esse quilombo e a Venervel Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia - VOT. A iniciativa de procurar a imprensa havia partido dos prprios integrantes do movimento quilombola que, logo aps sua certificao pela Fundao Cultural Palmares, em dezembro de 2005, enviaram uma nota para ONGs que divulgavam conflitos envolvendo os temas do direito moradia e de afirmao tnica, como o site do Observatrio Quilombola da ONG Koinonia (www.koinonia.org.br). No texto ento redigido pela jornalista Lgia Coelho, a VOT era acusada de ter despejado 30 famlias da comunidade da Pedra do Sal com a inteno de valorizar seus imveis aps o anncio do projeto da prefeitura de revitalizao da Zona Porturia. Assim, todos os moradores despejados ou realocados pela VOT eram reunidos na noo de comunidade, sugerindo que possuam a mesma forma de estruturar seus espaos e se relacionarem com a entidade catlica. Era tambm informado que o territrio quilombola era composto por toda a base do Morro da Conceio margeada pela Rua Sacadura Cabral. A defesa do pleito articulada pelo grupo abordava uma noo jurdica de patrimnio, ao dizer que o territrio reivindicado era sua herana porque havia sido criado a partir de um aterro realizado por escravos e assalariados durante as obras de construo do cais do porto no incio do sculo XIX. O grupo, portanto, se apresentava como herdeiros de escravos e assalariados, estruturando os espaos pleiteados a partir das oposies com escravos e libertos e a povo e elite. 126
Mas o conflito ganhou projeo miditica apenas um ano depois, quando o INCRA constituiu uma equipe para elaborar o relatrio antropolgico de caracterizao histrica, econmica e sociocultural do territrio. Em matria assinada e divulgada em fevereiro de 2007 pelo site do Boletim Quilombola da COHRE (www.cohre.org), o pleito tnico era descrito enfatizando no mais os aspectos jurdicos, mas as origens do grupo de moradores e as prticas culturais desenvolvidas no territrio: os moradores eram caracterizados como composto por famlias de descendentes de negros escravizados oriundos da Bahia e da frica; e o espao como de sociabilidade para prtica de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira. E, aps a categoria comunidade ser associada ideia de cultura popular, o mito da Pequena frica era presentificado para demarcar o bairro da Sade como o espao do comrcio de escravos durante os sculos XVIII e XIX e da convergncia de negros como efeito do bota abaixo de Pereira Passos no incio do sculo XX.
Situado ao p do Morro da Conceio, no bairro da Sade prximo Praa Mau, o Quilombo da Pedra do Sal formado por famlias descendentes de negros escravizados, oriundos da Bahia e da frica. O bairro da Sade reunia toda infraestrutura do comrcio de escravos durante os sculos XVIII e XIX. Aps o perodo escravista, os negros continuaram vinculados ao local prximo ao porto do Rio de Janeiro. A rea foi apropriada como espao de sociabilidade para prtica de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira. A cultura popular carioca floresceu em torno da Pedra do Sal e sambistas tradicionais buscavam inspirao na comunidade. Alm de Donga, Pixinguinha e Joo da Baiana, Machado de Assis tambm viveu no bairro. O terreno estava localizado beira mar e recebeu esta denominao por ser o ponto de desembarque do sal comercializado no mercado da capital. Nessa mesma zona porturia foi formada a Pequena frica no Brasil, rea de convergncia de negros que fugiam do bota abaixo, programa de reforma urbana implantado por Pereira Passos nas primeiras dcadas do sculo XX.
Em maio, uma matria assinada pelo jornalista Oscar Henrique Cardoso e publicada no site da Fundao Cultural Palmares, www.palmares.gov.br, oferecia um resumo de uma entrevista concedida no dia anterior pelo presidente da entidade, Zulu Arajo, ao Jornal Nacional da Rede Globo de Televiso. O texto destacava que a comunidade quilombola da Pedra do Sal era realmente remanescente de quilombo e sugeria que a autenticidade da reivindicao do grupo estava sendo questionada pelos jornalistas e pela VOT. Segundo a defesa de Zulu, o processo de tombamento da Pedra do Sal como monumento histrico e religioso afro-brasileiro pelo INEPAC tinha sido 127
a primeira certificao concedida ao grupo: ele argumentava assim que a territorializao desse quilombo era decorrente do reconhecimento de um smbolo cultural que havia sido criado para representar, de forma difusa, a figura do afrodescendente articulada pelo mito da Pequena frica.
Ainda em maio, o Jornal Nacional replicou esta entrevista, caracterizando os 130 imveis que haviam entrado no pedido de titulao territorial como pertencentes VOT e localizados em torno da igreja So Francisco da Prainha, tombada como Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, defendendo assim a entidade tambm por meio de uma ao oficial de patrimonializao. A matria trazia a declarao de um frei, que afirmava que as casas estavam quase todas alugadas ou eram usadas em projetos sociais e uma escola, onde eram atendidos mil alunos de bairros pobres. J na caracterizao da comunidade quilombola o jornal assumiu um tom de denncia, dizendo que o grupo reivindicante era composto por sete moradores que se dizem descendentes de escravos. Conferindo autoridade denncia, seguia a fala do historiador Milton Teixeira, contratado pela ordem franciscana para contestar o pleito, que dizia no haver encontrado registros de um quilombo na rea em disputa nos arquivos da Biblioteca Nacional, da Igreja e do Exrcito, operando assim com a noo colonial de quilombo, definida como um agrupamento de escravos fugidos. E, durante a troca de acusaes, o espao mediador do Observatrio Quilombola de Koinonia acabou por se conformar em uma extenso dos espaos do conflito. Em julho, uma nova matria assinada pela ARQPEDRA, associao formada pelo movimento quilombola, foi enviada ONG, onde o grupo acusava outro frei de ter 128
usado de artifcio ardil ao convocar uma reunio com pais e alunos das escolas da VOT para informar que os quilombolas queriam tom-las, recebendo, com isso, o apoio contra o pleito tnico. Dias depois, a VOT exigiu de Koinonia um direito de resposta a essa carta e teve seu texto divulgado em agosto, onde afirmou ser favorvel ao movimento quilombola, s que apenas ao verdadeiro, reforando o questionamento da autenticidade cultural do grupo. E, aps listar as atividades educacionais e assistenciais que desenvolvia no morro, acusou os integrantes do movimento de invasores, opondo estruturalmente a eles as pessoas srias, dignas e de bem que identificavam como sendo os pais de alunos e os moradores antigos do morro.
Nenhum circo foi armado, pois estvamos falando para pessoas srias, pais de alunos, moradores antigos, pessoas dignas que sempre viveram do suor do seu trabalho enquanto seus filhos eram educados na escola da Ordem da Penitncia. Falvamos tambm para algumas pessoas que sempre moraram em imveis da entidade e, como pessoas de bem, honravam as suas obrigaes locatcias, com isso viabilizando a manuteno no s da escola Pe. Francisco da Motta, mas de toda obra social mantida secularmente pela Ordem da Penitncia! No falvamos para invasores ou pessoas que a custa do sacrifcio de muitos, buscam locupletar morando anos a fio sem pagar qualquer aluguel.
Em agosto, foi a jornalista Fabiana Cimieri do Estado de So Paulo quem noticiou o conflito, mas de uma forma diferente da que estava sendo feita at ento: na sua matria, haviam sido includas falas no apenas dos diretamente envolvidos, mas tambm de moradores do morro. E foi articulada ento, pela primeira vez na mdia, a oposio maioria portuguesa e minoria negra para se referir aos que habitavam o morro, incluindo na polmica os depoimentos de alguns moradores que afirmavam ser ali uma colnia portuguesa. Dias depois, foi o jornalista Francisco Alves Filho da Revista Isto quem publicou uma matria sobre a Pedra do Sal, onde focou sobre a discusso da prpria noo de quilombo e a ocorrncia de pleitos tnicos em reas urbanas. O jornalista, no entanto, buscou realizar uma mediao entre a noo histrica do termo e a jurdica e poltica, confrontando os argumentos apresentados pela VOT, sobre a inexistncia no passado de um acampamento de escravos fugidos no Morro da Conceio, aos apresentados pela Fundao Cultural Palmares, que defendia a noo de quilombo que a relacionada identidade cultural de grupos negros e sua reproduo fsica, econmica e sociocultural. 129
Mas o auge da exposio miditica do processo de reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal ocorreu no final de outubro, quando o filsofo Denis Lerrer Rosenfield publicou o mesmo artigo em dois jornais de circulao nacional, O Globo e o Estado de So Paulo. Intitulado Quilombos Urbanos, o texto denunciava que havia ocorrido uma proliferao de quilombolas no pas aps a Constituio de 1988 por causa do que chamou de um artifcio meramente jurdico. As acusaes eram tambm direcionadas aos laudos ditos antropolgicos solicitados a ONGs e a pesquisadores comprometidos com a causa dos movimentos sociais. E, como caso exemplar, era exposto o Quilombo da Pedra do Sal, que o filsofo identificava como invasores que queriam obter imveis. Segundo ele, sua titulao iria prejudicar a VOT e os servios educacionais e cursos profissionalizantes que ofereciam a chance de adultos refazerem suas vidas, em um discurso que valorizava o disciplinamento dos espaos da Zona Porturia e os caracterizava como marcados pelo narcotrfico. Posteriormente e at o final de 2009, no houve mais nenhuma matria que tivesse repercusso nacional ou local, sendo veiculadas apenas pequenas notas no site da Fundao Cultural Palmares informando tecnicamente o andamento judicial do processo de reconhecimento do territrio tnico. E, assim, nesse conjunto de matrias, artigos e cartas publicados durante os dois primeiros anos de formao do Quilombo da Pedra do Sal, predominou a articulao de uma noo jurdica para definir o que seria patrimnio, tanto por parte do grupo quilombola quanto da VOT. Mas essa noo tambm movimentava um sistema de autenticidade que se referia, e questionava, tanto validade histrica e cultural do grupo quilombola, quanto as motivaes sociais e religiosas da ordem franciscana. Na busca por compreender como estavam se posicionando alguns dos mediadores do conflito entre os moradores do morro e a entidade franciscana, no incio de dezembro de 2007 fui sede de Koinonia, localizada no bairro da Glria, rea central da cidade. Quem me recebeu foi a historiadora Ana Gualberto, que me explicou que a ONG tinha como foco principal de atuao a titulao de comunidades quilombolas no meio rural, mas que recentemente estava havendo tambm um interesse de acompanhamento de dois pleitos das reas urbanas da cidade do Rio de Janeiro: o da Pedra do Sal e o de Sacop, localizado no bairro da Lagoa, Zona Sul da cidade. Mas, em sua opinio, a comunidade quilombola de Sacop tinha mais possibilidade de obter a titulao do territrio, porque seus moradores j possuam uma usucapio de mais de 40 anos, o que fornecia um maior reconhecimento jurdico. 130
Em relao ao Quilombo da Pedra do Sal, Ana contou que havia uma notoriedade do pleito no Governo Federal porque era objetivo do MNU aumentar sua atuao na Zona Porturia, onde j existiam como referncias da cultura negra o Centro Cultural Jos Bonifcio e o Cemitrio dos Pretos Novos. E disse que, desde a certificao Damio mandava notcias para serem divulgadas no Observatrio Quilombola, mas negou acusao de que a ONG teria recebido uma presso financeira da Comunidade Europeia para no apoiar o Quilombo da Pedra do Sal ou no noticiar mais o conflito. Ana contou que Koinonia apenas tinha sido procurada por uma representante da entidade para que dessem um direito de resposta VOT em relao a uma carta enviada pelo grupo onde eram feitas acusaes aos dirigentes da entidade franciscana. Mas afirmou que tinha sido um posicionamento da prpria organizao no se envolver diretamente no conflito da Pedra do Sal, fazer somente seu monitoramento, e que os dirigentes do COHRE tinham adotado a mesma posio poltica. Logo em seguida, tarde, fui sede do INCRA, localizada tambm na Glria. Conheci ento Miguel Cardoso, antroplogo responsvel pela titulao dos territrios quilombolas no Estado do Rio de Janeiro. Bastante tcnico em nossa primeira conversa, ele informou que o Relatrio Histrico e Antropolgico ainda estava em fase de reviso pelas pesquisadoras da UFF que haviam sido contratadas pelo instituto em 2006. E que a VOT havia contestado na Justia o pedido de reconhecimento do quilombo, conseguindo uma liminar que havia paralisado todo o processo de identificao, incluindo os estudos tcnicos. Mas a procuradora do INCRA estava tentando anular essa liminar e Damio acreditava que a atuao poltica do MNU junto ao Governo Federal iria ajudar nessa suspenso. Miguel ento solicitou que eu fizesse um requerimento oficial da UFRJ para consultar o relatrio preliminar, me explicando que ele ainda no havia sido publicado oficialmente pelo INCRA. S aps essa publicao era que os proprietrios confrontantes e ocupantes do territrio pleiteado seriam notificados, desapropriados e indenizados pelas terras e benfeitorias, utilizando assim um vocabulrio jurdico para se referir ao processo de titulao do quilombo. E contou que o nico caso de quilombo urbano que havia sido titulado no pas estava no Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, mesmo na rea rural apenas um quilombo havia sido titulado, o de Campinho, em um processo que havia sido encaminhado pelo ITERJ e que Miguel tinha considerado de fcil soluo porque a terra desapropriada era do governo estadual. 131
Retornei ao INCRA na semana seguinte e, nessa minha segunda visita, Miguel falou mais sobre o prprio grupo e os espaos que desejava ocupar. Ele explicou que o territrio pretendido pelos quilombolas se localizava no entorno da Pedra do Sal e era composto por cerca de quinze imveis e, embora alguns dos integrantes do movimento quisessem ampliar o nmero de imveis solicitados, ele achava improvvel que isso acontecesse. Miguel ento disse que era o santo o que unia os integrantes do movimento, porque todos participavam de cultos do candombl. E me deu um exemplo de como essa ligao era fundamental falando de Marquinhos que, apesar de ser nordestino, branco e homossexual, frequentava o mesmo barraco de candombl dos demais integrantes. Nessa fala de Miguel ficava assim mais fluida a definio jurdica de quilombo, que restringia a classificao das comunidades quilombolas como grupos de afrodescendentes. Mas, embora essa caracterstica enfatizada pelo antroplogo no fosse juridicamente adequada, ela operava com um imaginrio sobre a cultura negra baseado em um sistema prprio de autenticidade cultural, onde s prticas dos cultos do candombl possuam grande ressonncia. E a movimentao das figuras do nordestino e homossexual operava discursivamente com a proposta de uma inverso de valores nos espaos da Zona Porturia, j que buscava a positivao dessas categorias como smbolos da opresso e do popular, em vez do imaginrio oposto, que as associava negativamente s ideias de decadncia e desvio. Como nesse dia apresentei o ofcio da universidade atestando que eu era uma pesquisadora a ela vinculada, pude consultar o Relatrio Histrico e Antropolgico sobre o Quilombo da Pedra do Sal que havia sido recentemente elaborado pelas historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu e pela antroploga Eliane Cantarino 11 . A construo narrativa do relatrio tinha como diretrizes as definies do Artigo 68 e do Decreto 4.887, que qualificava como comunidade quilombola os grupos tnico- raciais que assim se auto atribussem, que possussem trajetria histrica prpria,
11 Aps a consulta do relatrio, Tentei agendar entre os meses de junho e setembro de 2008 uma conversa com as relatoras e acessar as entrevistas realizadas com os integrantes da comunidade quilombola que haviam sido armazenadas no Laboratrio de Histria Oral e Imagem da UFF. Enviei e-mails para a historiadora Hebe Mattos, que se recusou a marcar uma conversa argumentando que o processo judicial ainda estava em andamento e que qualquer palavra dela poderia ser utilizada como um acrscimo ao texto do relatrio. J o e-mail que enviei para a antroploga Eliane Cantarino no foi respondido. E, no laboratrio da universidade, apesar do atencioso atendimento, aps algumas ligaes telefnicas e trocas de e-mails o acesso s entrevistas tambm foi negado, com o mesmo argumento de se tratar de um conflito no concludo judicialmente.
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relaes territoriais especficas e uma ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. E, para operar essas noes na defesa do pleito do Quilombo da Pedra do Sal, props que havia uma trade identitria que unia seus integrantes: o porto, que era a ligao com as atividades e sindicatos porturios; o samba, que era a participao nas escolas e blocos carnavalescos; e o santo, que era as prticas do candombl. A abordagem histrica era referenciada nas noes de direito de reparao e de dever de memria, buscando revelar o que as relatoras entenderam ser o passado traumtico vivenciado por essa comunidade quilombola. E, a antropolgica, era referenciada na noo de formao de identidades sociais coletivas opostas, e identificava o tombamento da Pedra do Sal em 1987 como sendo o incio da oposio entre a comunidade quilombola e os dirigentes da VOT. As relatoras postularam que a importncia do reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal era a defesa da memria afro-brasileira na Zona Porturia e a visibilidade do patrimnio cultural herdado de seus antepassados escravos e africanos. E identificaram esse ano de 1987 como o comeo da implantao de uma nova poltica imobiliria pela direo administrativa da VOT, marcada pela gesto do Frei Eckart Hfling. Ao descreveram essa poltica, afirmaram haver ocorrido um processo de reajustes de aluguis dos imveis da entidade franciscana no morro tendo como base os preos de mercado; e que nesse processo teriam sido realizadas algumas aes de despejo, a realocao de moradores que no podiam arcar com os novos custos e a expulso dos que os ocupavam informalmente. Segundo as relatoras, antes dessas medidas muitos moradores de baixo poder aquisitivo entendiam a poltica imobiliria da VOT como filantrpica: pagavam aluguis considerados simblicos ou ocupavam informalmente as casas com a anuncia da entidade, sendo que algumas famlias moravam havia mais de 50 anos sob essas condies. Na dcada de 1990, aps o esvaziamento de vrios imveis, a Associao de Moradores e Amigos da Sade havia liderado a ocupao informal de alguns deles sob a liderana de Damio, ento presidente da associao, que em seguida passou a residir em um imvel localizado na Travessa do Sereno. Sua esposa Lcia tambm ocupou com a famlia de sua me um imvel na Rua So Francisco da Prainha. Mas, de acordo com as relatoras, aps a divulgao dos planos urbansticos da prefeitura para a Zona Porturia, outros inquilinos e moradores informais foram novamente expulsos de seus imveis por meio de ao policial ou de processos de reintegrao de posse. 133
Na percepo dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, o projeto Humanizao do Bairro implantado pela VOT tinha como objetivo converter os moradores da Zona Porturia para os valores catlicos e desejavam expulsar em especial aqueles pertencentes s religies do santo. E consideravam que a entidade franciscana e os urbanistas da prefeitura possuam uma concepo preconceituosa do conjunto dos moradores da Zona Porturia, por consider-los desestruturados socialmente e por, no Morro da Conceio, reconhecerem como tradicional apenas a ocupao portuguesa e espanhola. E, colocando-se como representante de uma coletividade de moradores, o grupo afirmava que havia sido por causa do despejo em 2005 de trinta famlias de um sobrado na Rua Mato Grosso, conhecido pelo nome de Palcio das guias, que eles haviam decidido pleitear o reconhecimento do territrio tnico. Aps explicarem o conflito e apresentarem as percepes do grupo sobre ele, as relatoras articularam os fundamentos histricos do pleito da comunidade quilombola. Percebi ento que essa narrativa era a presentificao do que denominei de mito da Pequena frica ao observar que ela se baseava principalmente em dois textos que articulavam, cada qual, uma verso especfica dele: o livro Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro, do cineasta Roberto Moura; e a Proposta de Tombamento da Pedra do Sal do INEPAC, elaborada pelo historiador Joel Rufino e inventariada pela museloga Mercedes Viegas. E, para compreender as diferentes verses do mito, comparei esses dois textos ao das relatoras, procurando fazer uma qualificao das variaes identitrias, espaciais e temporais da memria afrodescendente e popular que estavam sendo articuladas por eles e de suas diferentes retricas da perda. Em seu livro, Roberto havia delimitado como sendo o territrio da Pequena frica o espao ocupado por negros de Salvador no bairro da Sade a partir da segunda metade do sculo XIX e, aps as reformas urbansticas realizadas na Zona Porturia por Pereira Passos no incio do sculo XX, estendeu este espao para a Cidade Nova, cujo centro de referncia era a Praa Onze. Nesse territrio, ele havia reunido no apenas africanos e baianos, mas tambm indivduos de diversas origens e religies que participavam das atividades econmicas e recreativas que chamou de populares. Assim, na verso mtica de Moura, a dispora baiana estaria includa na Pequena frica, mas as duas categorias no eram simtricas. Em sua verso da Pequena frica, o autor havia afirmado que buscava evitar a perda da memria subalterna e negra da cidade do Rio de Janeiro atravs da narrao 134
desta histria, para que o conjunto da sociedade pudesse refletir sobre as desigualdades raciais e sociais decorrentes do passado escravista do pas. Na rede de transmissores e herdeiros desta memria que construiu, Roberto conectou os escravos africanos chegados em Salvador, os negros baianos migrados para o Rio de Janeiro aps a abolio, os participantes dos sambas da casa de Ciata e dos cultos de candombl da casa de Joo Alab no incio do sculo XX, at seus descendentes consanguneos e de famlia de santo nas dcadas de 1970 e 80. E, com seu livro, o autor inseriu a noo de Pequena frica em uma lgica de patrimonializao, ao organizar e difundir um conjunto especfico de genealogias, mitos de origem, ancestrais sagrados e deuses. Na proposta de tombamento da Pedra do Sal, o livro de Roberto foi utilizado como fonte primordial de informao, mas os termos dispora baiana e Pequena frica foram definidos pelos especialistas do patrimnio com a incluso de algumas nuances em relao narrativa do cineasta. Joel afirmou que a Sade era uma pequena Bahia, e que era a Bahia uma pequena frica, articulando assim um sistema de autenticidade de origens culturais. E o termo dispora baiana foi definido por Mercedes tambm operando a separao entre baianos e africanos, j que ela identificava como frequentadores da Pedra do Sal dois distintos grupos negros, com especificidades territoriais e identitrias: os baianos que tinham ocupado as casas prximas Praa Onze e ao cais do porto e que participavam das festas de candombl lideradas por Joo Alab; e os africanos que moravam no alto da Pedra do Sal e participavam dos cultos mulumanos conduzidos por Assumano Mina. Assim, na patrimonializao da Pedra do Sal a memria subalterna e negra da Pequena frica organizada por Roberto havia sido presentificada para evitar a perda do local de memria, s que representando somente os afrodescendentes e excluindo, portanto, a noo mais abrangente de populares. No Relatrio Histrico e Antropolgico sobre o Quilombo da Pedra do Sal, o mito da Pequena frica ganhou uma verso com variaes narrativas que buscavam dar conta do conflito vivenciado pelos pleiteantes do reconhecimento tnico e de suas caractersticas sociais especficas. Nessa verso, o encontro mtico entre o prefeito Pereira Passos, os integrantes da dispora baiana e os brancos catlicos da elite foi presentificado e personificado pelos urbanistas do Porto do Rio, os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT. Foi articulando essa narrativa mtica que as relatoras comprovaram a continuidade histrica no territrio pleiteado dos moradores que haviam formado a comunidade quilombola. Pois, como no havia uma 135
ocupao de seus integrantes em um mesmo espao ao longo do tempo que fosse baseada em uma trajetria histrica prpria, como era definida pela noo jurdica do termo comunidade remanescente de quilombo, as relatoras argumentaram que o direito dos quilombolas estava ancorado em uma noo de reparao histrica: por serem eles emblemas de uma resistncia cultural e poltica contra o que afirmaram ser uma sucesso histrica de opresses que teria impedido os afrodescendentes de permanecerem morando nos bairros porturios e centrais da cidade. A passagem da memria dos afrodescendentes que no passado moraram nesses bairros para a identificao de um grupo de pessoas especficas que seriam herdeiras de tal memria foi ento operada pelas relatoras a partir de mltiplas conexes simblicas, divididas em trs momentos histricos. O primeiro momento abrangeu o perodo do sculo XVIII at 1850 e abordou aspectos da conformao urbana da Pedra do Sal e da comercializao de escravos que chegaram pelo porto. No segundo momento, que abarcou o perodo entre 1850 e 1950, a narrativa de Roberto Moura sobre a Pequena frica foi utilizada para delimitar o territrio que teria sido ocupado pelos antepassados do grupo quilombola e para qualificar esse legado cultural: as rodas de samba, os ranchos carnavalescos, o trabalho no porto, o culto aos orixs, as habitaes populares e as revoltas urbanas.
Mesmo que sua presena na rea sempre fosse precria e transitria, posto que ali estavam como inquilinos, moradores de barracos, ou trabalhadores temporrios, os afrodescendentes impingiram ao local, neste momento histrico, entre as ltimas trs dcadas do sculo XIX e as primeira do sculo XX, um reduto cultural reconhecidamente negro. A populao residente nos distritos da Sade, Gamboa, Santo Cristo, Santana e Cidade Nova organizou- se para ganhar a vida na capital do Imprio e, depois da Repblica, atravs da herana comum afro-brasileira de trabalho, festa e religio (Moura, 1983, 81). Enfrentando o preconceito e a segregao, o legado cultural hoje reivindicado pela comunidade do Quilombo da Pedra do Sal foi fundamentalmente construdo neste momento.
As relatoras ento listaram todos os personagens da dispora baiana citados na narrativa de Roberto e dos baianos e africanos da narrativa dos especialistas do patrimnio. No entanto, incluram em sua verso do mito da Pequena frica mais um antepassado: Mano Eloi, porturio nascido no Vale do Paraba fluminense e, portanto, no classificvel como baiano ou africano. A incluso deste antepassado, no entanto, buscava estabelecer uma conexo com as caractersticas socioculturais de parte 136
dos integrantes da comunidade quilombola da Pedra do Sal, j que alguns deles se apresentavam como afrodescendentes, do santo, porturios e sambistas, mas eram procedentes de famlias do interior do Estado do Rio de Janeiro. No terceiro momento histrico, que percorria a dcada de 1950 at o presente, as relatoras descreveram a ruptura da continuidade espacial da Pequena frica aps a separao dos bairros da Cidade Nova e da Sade provocada pela abertura da Avenida Presidente Vargas. E apresentaram as tradies negras da Zona Porturia que haviam sido renovadas com o passar dos anos e se encontravam presentificadas nos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do bloco carnavalesco Afox Filhos de Gandhi. E com a afirmao dessa renovao da tradio era feita a passagem narrativa para a apresentao dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal: duas matriarcas que foram morar na Zona Porturia na dcada de 1950 e cinco moradores qualificados como militantes negros e de movimentos comunitrios, descendentes da ltima gerao de africanos escravizados para a expanso cafeeira no Rio de Janeiro oitocentista e/ou de estivadores negros chegados Regio Porturia logo aps a abolio, do santo e do samba. E, por ltimo, eram citados mais cinco integrantes que no possuam todos os elementos da identidade tnica articulada pela noo jurdica de comunidade quilombola, mas que haviam aderido ao pleito por estarem igualmente em conflito com a VOT e por possurem um esprito quilombola, que era definido como o desejo por uma vida comunitria.
Hoje, os novos conflitos na regio incidem diretamente nas possibilidades de continuidade dos afrodescendentes neste espao simblico africano. Com as novas ameaas de expulso, so as prprias vozes dos herdeiros desse patrimnio que precisam ser protegidas e garantidas. Seu patrimnio imaterial, entendido como suas histria e memria em torno da Pedra do Sal, a base de sustentao para a defesa e continuidade da presena da comunidade no territrio reivindicado para titulao.
Encerrando sua verso do mito as relatoras articularam discursivamente que a perda eminente que o pleito de reconhecimento tnico do Quilombo da Pedra do Sal desejava evitar era a dos herdeiros do local de memria, ou seja, de indivduos que encarnariam a memria e os valores culturais dos antepassados mticos da Pequena frica. E, nessa verso, era proposta uma nova dramatizao da continuidade histrica entre os transmissores e herdeiros: de escravos e africanos aportados na Zona Porturia; aos negros baianos e fluminenses que frequentavam a Pedra do Sal aps a escravido; 137
at os moradores despejados pela ordem franciscana comprometidos com a manuteno do esprito quilombola. E, nela, o territrio da Pequena frica tambm se modificou: na proposta de delimitao do territrio tnico foram includos a Pedra do Sal e o Largo Joo da Baiana, alguns imveis do entorno do largo e da Rua So Francisco da Prainha e a sede do Afox Filhos de Gandhi localizada na Rua Camerino. Alm desse territrio, as relatoras tambm indicaram o reconhecimento de alguns espaos como marcos simblicos e territoriais identificados com a memria e a histria negras: toda a rea contida entre o Largo da Prainha e o Morro da Sade, incluindo o antigo mercado de escravos do Valongo, o cemitrio dos Pretos Novos e a retro-rea porturia dos bairros da Sade e Gamboa; excluram, no entanto, a Cidade Nova.
OS DIVERSOS USOS DO TERRITRIO TNICO
Em abril de 2008, o antroplogo do INCRA, Miguel, me informou por telefone que o territrio tnico que havia sido delimitado ficou composto pelos imveis localizados no lado mpar do trecho da Rua So Francisco da Prainha entre os largos da Prainha e Joo da Baiana; por quatro imveis localizados no entorno do Largo Joo da Baiana; e pelo sobrado que sediava o Afox Filhos de Gandhi e que meses depois soube, atravs de seus componentes, ser de propriedade do governo estadual e haver um rgo interessado em retomar sua posse. Dos imveis localizados no entorno do Largo Joo da Baiana, foram pleiteados os nmeros 27 e 29 da Travessa do Sereno, utilizados pelo Centro Comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro, e os sobrados 43 e 45, que ficavam atrs do bar Bodega do Sal e do restaurante Victoria Self Service e eram ocupados por moradores. Esses dois estabelecimentos comerciais, no entanto, tinham ficado fora do territrio pleiteado. Conversei ento em maio com seus proprietrios para conhecer suas atividades e saber como percebiam e se relacionavam com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal. 138
O Victoria Self Service s abria nos dias de semana no horrio do almoo e era comandado por Irene, que desde 1980 morava no sobrado: primeiro como sublocadora de uma vaga e, depois, como proprietria do imvel. Quando era inquilina, no segundo andar do sobrado eram oferecidas vagas para marinheiros e, no primeiro andar, funcionava uma loja de estofado. Ao se casar com um funcionrio da Marinha, em 1993, eles compraram o imvel por 20 mil dlares e, trs anos depois, abriram um restaurante a quilo no andar trreo. No ano de 2000, ela e o marido se separaram e Irene continuou a cuidar do restaurante com a ajuda de um de seus filhos. Irene me disse que j tinha ouvido falar sobre o movimento quilombola, mas nenhum de seus integrantes a havia chamado para participar de qualquer reunio ou do prprio pleito tnico. Conhecia apenas Lcia e as festas que realizava no largo em comemorao aos dias de So Jorge, da Conscincia Negra e do Samba, ocasies em que pedia o seu consentimento para armar uma barraca de venda de cerveja. Em relao VOT e s suas atividades educacionais e sociais, Irene contou que nunca tinha conseguido uma vaga para qualquer um de seus trs filhos nas escolas franciscanas, embora tivesse tentado: uma vez havia ficado de madrugada na fila para fazer a inscrio na Escola Padre Dr. Francisco da Motta, mas no foi chamada, e muitos outros moradores do morro tambm tinham tentado uma vaga e no tinham conseguido. A fala de Irene demonstrava assim que ela no possua um relacionamento constante com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, embora houvesse um cdigo estabelecido de respeito mtuo sobre suas formas de habitar: Lcia pedia sua autorizao informal para realizar as festas do grupo no largo e Irene no articulava qualquer discurso sobre os integrantes do grupo serem invasores, moradores irregulares, ou inautnticos em sua reivindicao. E era esse reconhecimento e respeito que provavelmente havia determinado a no incluso do imvel no pleito tnico, mesmo estando ele no centro simblico da comunidade quilombola. Irene tampouco articulava uma narrativa contrria presena da VOT no morro, embora se ressentisse de no ter conseguido usufruir, assim como outros, das atividades educacionais desenvolvidas pela entidade. A Bodega do Sal s abria nas noites de 2 e 4 feiras, quando organizava rodas de samba, e foi em uma delas que conheci seu dono, Leonardo. Ele me contou que morava em Niteri e trabalhava desde 1999 no prdio da CEDAE, ao lado do largo. E que, nessa poca, funcionava naquele sobrado um botequim que vendia cachaa, cerveja e sardinha frita e era composto por um balco longitudinal, um mictrio e um 139
banheiro para mulheres em pssimas condies. Esse sobrado era de propriedade da Irmandade Santa Cruz dos Militares, entidade catlica sediada na regio central da cidade, e em 2002 havia sido fechado por causa da falncia e despejo de seu comerciante. Leonardo ento procurou a irmandade e negociou um contrato de aluguel onde trocou os trs primeiros anos de pagamento por obras nas partes eltricas, hidrulicas e de fachada do imvel. Em sua avaliao, tinha sido o cenrio da Pedra do Sal e seu passado associado ao samba que tinha feito com que msicos se interessassem por tocar no largo. A roda de samba de 2 feira havia surgido em 2006, atravs da iniciativa de msicos que procuravam um local que no cobrasse ingresso para se apresentarem com seu grupo, o Batuque na Cozinha. Com o sucesso de pblico dessa roda, outro grupo musical props a Leonardo a organizao de um evento de apresentao de composies musicais inditas nas noites de 4 feira, que foi denominado Samba na Fonte. Seu bar se colocado, assim, como um ponto de encontro de pessoas que trabalhavam nas reas porturias e centrais e que j percebiam ser o largo uma referncia histrica do samba. Enquanto fazia a reforma do bar, Leonardo me disse que havia se dedicado a pesquisar textos sobre a Zona Porturia para se adaptar socialmente, narrando em seguida uma verso do passado do Morro da Conceio que demarcava sua origem pela colonizao portuguesa. E, ao falar sobre a absoro da mo de obra escrava na cidade no fim do sculo XIX, comentou o pleito do Quilombo da Pedra do Sal. Em sua opinio, a histria da abolio da escravido no estava sendo bem utilizada no pedido de reconhecimento daquela rea como quilombo: mesmo tendo sido a Zona Porturia ocupada por um comrcio de negros e por pessoas excludas ou menos afortunadas, achava um exagero afirmar que tribos haviam se estabelecido ali. Por isso considerava os integrantes do grupo oportunistas, se comparados aos verdadeiros quilombolas da Chapada da Diamantina, dos Veadeiros ou do Esprito Santo. Pois, para ele, no era possvel garantir a perpetuao de uma cultura, uma etnia, um hbito, um costume em uma rea urbana que qualificava como formada no meio de uma argamassa de cimento, pequenos cmodos. Leonardo associava, assim, o termo quilombo a uma noo de agrupamentos humanos tidos por isolados ou primitivos, colocando-o em um sistema de autenticidade cujo extremo mais negativo eram os oportunistas, que entedia como pessoas que se apropriavam indevidamente da identidade cultural negra para obter benefcios pessoais. 140
E, para me demonstrar o que classificava ser um oportunismo, disse que Damio havia tentado fundar uma associao de moradores da Pedra do Sal, mas era apenas invasor de uma casa e pertencente a um movimento de sem tetos. Estruturava, portanto, a sua percepo do espao articulando as oposies moradores e invasores e questionava com argumentos semelhantes aos da VOT a autenticidade cultural e histrica do movimento quilombola. E, ao incluir em seu discurso as condies de moradia que considerava negativas, percebia as casas de pequenos cmodos da Zona Porturia ocupadas por vrios ncleos familiares no como tambm uma forma de habitar, mas apenas como decorrente de uma situao de excluso social. Assim, o posicionamento de Leonardo, embora valorizasse o passado do Largo Joo da Baiana e da Pedra do Sal associado ao samba, no compartilhava da percepo de que o ritmo era herana de uma forma especfica de habitar ou de um grupo de afrodescendentes. No entanto, a despeito de suas opinies, o uso contnuo de seu bar por sambistas possibilitava que o largo permanecesse como um espao passvel de ser associado cultura negra e ressonante entre seus frequentadores e expectadores. E parecia ser pelo desejo de manuteno desse uso que os integrantes do movimento quilombola no incluram o imvel no territrio tnico pleiteado, evitando, assim, que ele fosse fechado e desapropriado. Mas o principal usurio do territrio tnico pleiteado pelos moradores que formaram o Quilombo da Pedra era a VOT, que possua muitos dos imveis do entorno da Pedra do Sal. E, para conhecer a atuao da entidade no morro, visitei o Centro Comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro, cuja fachada era identificada por uma grande faixa de plstico com as logomarcas de seus realizadores e financiadores. O centro era instalado em dois sobrados unificados na Travessa do Sereno, em frente ao Largo Joo da Baiana, e quando entrei nele fui recepcionada por Ion. Advogada e coordenadora operacional do projeto, ela conversou comigo articulando uma fala institucionalizada sobre as realizaes dos franciscanos no morro, explicando que o projeto havia sido patrocinado por organizaes alems durante os anos de 2002 e 2007 e que esse financiamento havia possibilitado as reformas das 141
casas, a compra de maquinrio e mobilirio e o pagamento de funcionrios; mas que, passado esse perodo, era a verba da prpria VOT que o mantinha. O projeto era composto por cursos de profissionalizao e por programas voltados para a sade da mulher e da criana, incluindo atendimento mdico. Segundo Ion, o perfil socioeconmico dos atendidos era de baixa escolaridade e composto principalmente por mulheres vindas das regies Norte e Nordeste do pas, sem marido e com filhos, muitas moradoras dos morros da Providncia e do Pinto. Os cursos duravam 100 horas, eram realizados por cerca de trs meses, possuam em mdia quinze alunos e eram gratuitos, incluindo o material didtico. Seus critrios de inscrio eram a residncia na Zona Porturia ou no Centro e a idade superior a 14 anos. J o atendimento odontolgico era disponibilizado apenas aos alunos das escolas da VOT, s mulheres grvidas e s crianas de at 14 anos e suas mes. Tais critrios estruturavam, assim, os espaos das obras franciscanas a partir das oposies feminino e masculino, criana e adulto e, dentro da classificao de criana, distinguia alunos e no alunos das escolas da VOT. E, na compreenso de morador e no morador, estendia a noo para uma rea mais abrangente que a do Morro da Conceio, incluindo nela todos os que residiam nos bairros porturios e centrais da cidade. Toda a parte financeira do projeto era controlada pela sede administrativa que ficava no hospital na Usina, no morro no era movimentado dinheiro por questo de segurana, j que o sobrado do centro comunitrio havia sido arrombado e seus equipamentos roubados pouco dias aps sua abertura em 2004. Depois desse arrombamento, os integrantes da VOT decidiram colocar grades em todas as janelas e portas das casas reformadas pelo projeto, mas, segundo Ion, esse no era o principal problema que enfrentavam: a situao que mais interferia nas suas atividades eram os tiroteios no Morro da Providncia, quando o comando do trfico de drogas mandava fechar o centro comunitrio e as escolas para evitar a circulao das crianas. Ion ento me mostrou algumas fotos expostas em um mural na parede, onde figurava o sobrado do centro comunitrio antes e depois da reforma realizada pela entidade, exibindo assim o projeto como um demarcador de temporalidade e materialidade do imvel. E contou que, antes, ali era uma cabea de porco: residiam muitas pessoas, havia trfico de drogas e prostituio e j tinha ocorrido um homicdio. As demais casas utilizadas pelo projeto foram descritas por Ion como ocupadas por moradores, mas ela considerava que o fim do uso residencial para a instalao das 142
obras sociais havia gerado um bem maior. A fala de Ion fazia, assim, uma recorrente referncia ao que considerava serem os perigos dos espaos da Zona Porturia, os associando principalmente s ideias de criminalidade, prostituio e condies precrias de moradia. E opunha discursivamente traficantes e prostitutas a moradores e bem individual a bem coletivo. Mas era na Rua So Francisco da Prainha onde estava a maior parte dos imveis pleiteados como territrio tnico. No trecho reivindicado haviam nove sobrados de dois andares que eram utilizados como moradia ou de forma mista, com o desenvolvimento de algum tipo de atividade comercial no trreo, como espao de depsito de produtos e equipamentos por comerciantes ambulantes de comida e bebida. Dispostos a sua frente, havia engradados de cerveja, transportadores manuais de produtos denominados usualmente de burros sem rabo, carrinhos para venda de angu, churrasquinho e cachorro quente, e cadeiras e mesas plsticas. Na maioria deles, a fiao eltrica percorria o lado externo da fachada, o revestimento e a pintura estavam parcialmente deteriorados e havia vidros de janelas quebrados; e, no topo de todos, o emblema da igreja catlica identificava os imveis como pertencentes VOT. Havia ainda mais trs imveis que eram utilizados de forma exclusivamente comercial: um que havia recebido o acrscimo de um terceiro andar e que, no trreo, uma tabuleta de cho indicava ser a Penso Marie; e dois que haviam sido unificados em um grande galpo para abrigar uma oficina de papel. Compondo um nico e amplo conjunto visual, outros trs imveis estavam desocupados e ostentavam na fachada um letreiro que os identificavam como a sede da administrao da VOT em 1897. E dois imveis eram ocupados por cursos de profissionalizao do Projeto Humanizao do Bairro: um pela Padaria 143
Escola e outro pela Grfica Escola e a Marcenaria Escola. Ion havia me informado que, naquele momento, estavam em funcionamento apenas os de padaria e marcenaria, o de grfica estava sem turma. Fui conhecer o curso de padaria durante o horrio de aula e o professor Marcos solicitou que a aluna Joana me mostrasse suas instalaes. No primeiro andar do sobrado ficavam os mantimentos e o maquinrio de fabricao dos pes; no segundo, havia banheiros, uma cozinha e cortadores de po; e, no terceiro, uma sala com cadeiras de aula e banheiros com chuveiro. O curso funcionava trs vezes por semana, com durao de trs horas e meia cada aula e, ao final, o aluno saa formado como ajudante de padaria. Segundo Joana, todos os cursos de profissionalizao que a VOT oferecia no morro eram introdutrios e quem quisesse se aperfeioar precisava fazer aulas complementares em outros cursos. Aquela turma da padaria era a terceira: a primeira turma havia sido criada em dezembro 2007 e composta por alunos do Colgio Sonja Kill e, a partir da segunda, j estavam sendo compostas pela comunidade. Os alunos da padaria no recebiam qualquer pagamento pela produo dos pes nas aulas, que era de 600 unidades por dia e destinada ao caf da manh das escolas da VOT. Havia ainda um projeto para que essa produo fosse aumentada e servisse tambm creche e ao hospital da entidade na Usina e, progressivamente, ao conjunto dos projetos que possua no Estado do Rio de Janeiro; e outro para que fosse aberta uma loja para comercializao dos produtos. Durante nossa conversa, Joana me contou que trabalhava no porto e havia cinco anos que morava na Gamboa. Ela possua um de seus filhos matriculado na Escola Padre Dr. Francisco da Motta e, toda 5 feira, organizava voluntariamente junto com outras mes de alunos um almoo para os comerciantes que participavam do Rotary Club, uma das instituies financiadoras do projeto de ampliao da escola. Havia sido durante um desses almoos que ela tinha sabido da existncia do Quilombo da Pedra do Sal, quando uma equipe contratada pelo Rotary e formada por advogado, historiador e antroplogo foi apresentar comunidade escolar documentos para comprovar que o territrio que o grupo estava reivindicando era de propriedade da VOT. Na opinio de Joana, o pedido de reconhecimento do territrio quilombola era sem eira nem beira e tinha lhe causado especial estranhamento um dos integrantes do movimento ter um filho matriculado na escola. Logo aps, fui ao sobrado onde havia sido instalado o curso de marcenaria. Cheguei fora do horrio de aula e o professor Paulo me recebeu e contou que as aulas 144
estavam sendo oferecidas havia dois anos e que, assim como no de padaria, o curso funcionava trs vezes por semana e tinha trs horas e meia de durao por dia. No primeiro andar do sobrado, funcionavam uma cozinha e a oficina de marcenaria e, no segundo, havia um banheiro e uma sala de aula. Durante o curso, os alunos faziam trabalhos manuais em madeira e, apenas ao final, usavam as mquinas voltadas para a produo em fbrica. Eles j tinham conseguido produzir diversos objetos, como gabinetes para computador, lixeiras, balco e portas, que foram utilizados para equipar as escolas, o curso de informtica, e a biblioteca da VOT. Os produtos gerados no curso de marcenaria tambm no eram remunerados. O projeto da entidade era incentivar que os alunos abrissem seus prprios negcios, mas, at aquele momento, apenas um ex-aluno que j trabalhava anteriormente com mquina e madeira tinha conseguido organizar uma empresa. A maioria declarava ter como interesse apenas a realizao de pequenos trabalhos e consertos domsticos, sendo que as mulheres normalmente se voltavam para a produo de objetos artesanais. Paulo tambm contou que a ideia inicial era que o curso fosse frequentado apenas pelos moradores da Zona Porturia, mas, por causa do baixo interesse, havia sido aberta a possibilidade de inscrio de moradores de outras regies da cidade. Em sua avaliao, os cursos profissionalizantes da VOT no eram muito procurados porque as pessoas consideravam pouco importantes as profisses oferecidas, por isso apenas o de informtica havia tido um grande nmero de inscritos. Essas conversas com frequentadores dos espaos da VOT no morro indicaram, assim, que a ideia dos cursos de profissionalizao no estava encontrando ressonncia entre os que deveriam ser o seu pblico, que eram os moradores pobres da Zona Porturia, por serem introdutrios e voltados para atividades consideradas pouco lucrativas. Alm disso, tambm demonstravam que o Projeto Humanizao do Bairro voltava-se principalmente para a manuteno das escolas e a formao e assistncia complementar de seus alunos, movimentando uma noo de coletividade expressa pelo termo comunidade escolar. E que, nessa comunidade, havia uma expectativa de compartilhamento com a viso de mundo e as maneiras de estruturar os espaos dos franciscanos, como podia ser percebido no espanto de Joana ao saber que um pai de aluno tinha organizado uma reivindicao contrria VOT. A partir do conhecimento inicial do Projeto Humanizao do Bairro, percebi que as escolas eram o principal espao de referncia dos franciscanos no morro, e agendei um encontro com Cristina, coordenadora de educao infantil da Escola Padre 145
Dr. Francisco da Motta, cuja entrada ficava no Beco Joo Jos. Ela trabalhava na escola havia 32 anos e conversou comigo rapidamente, me passando algumas informaes sobre seu funcionamento. Naquele ano, havia 1.100 alunos matriculados na escola e 120 alunos no Colgio Sonja Kill, sendo que todos estudavam durante um perodo do dia e, no outro, faziam os cursos oferecidos pela VOT nas casas do Adro de So Francisco. Alm dessas atividades, em um sbado por ms os pais dos alunos se reuniam na escola para debater algum assunto ou para realizar aulas de educao fsica. As escolas possuam trs distintos critrios de admisso: ser morador da Zona Porturia, ser filho de funcionrio da entidade ou ser irmo de um aluno j matriculado. E tais critrios tornavam, assim, os vnculos j estabelecidos com a prpria entidade o principal elemento de seleo. Sobre os almoos que eram organizados na escola, Cristina explicou que a diretora geral, Regina, era a presidente do Rotary Club da Sade e que essa instituio era um clube de ao comunitria sem vnculo religioso e composto por comerciantes e moradores da regio. Os almoos eram eventos beneficentes onde ocorriam palestras e discusses sobre a Zona Porturia e seus participantes pagavam pela comida e bebida consumida, angariando dinheiro para a escola. Alm desses almoos, uma vez por ms, tambm s 5 feiras, entidades atuantes na regio como a VOT, o Rotary Club, a CEDAE, a Light, algumas associaes de moradores, o Moinho Fluminense e os dirigentes de igrejas catlicas organizavam um caf da manh com representantes da secretaria estadual de segurana pblica para discutir problemas da comunidade. Assim, atravs das escolas a VOT movimentava uma ampla rede de relaes, que extrapolava as situaes educacionais e os limites fsicos do morro. Na sada da escola, fui apresentada por Cristina a Perci, que alm de inspetor dos alunos era o zelador da Igreja da Prainha e um dos ltimos moradores de uma das casas do Adro de So Francisco, j que a maioria tinha sido desocupada para instalar cursos do Projeto Humanizao do Bairro. Combinei com ele um encontro na igreja no domingo seguinte, quando foi celebrada uma missa em homenagem ao dia das Mes. Ao fim da celebrao, Perci me explicou que as missas ocorriam apenas nas manhs de domingo e eram os alunos das escolas da VOT e suas mes que a frequentavam, os demais moradores e usurios catlicos do morro costumavam ir capela da Rua Jogo da Bola ou Igreja de Santa Rita. Todos os alunos das escolas tinham aulas obrigatrias de religio e os que estavam fazendo a primeira comunho deviam comprovar a ida igreja todo domingo. Assim como na organizao dos almoos do Rotary na escola, eram as 146
mes dos alunos que voluntariamente se encarregavam da limpeza da igreja, fazendo um mutiro mensal depois da missa. Perci tambm era voluntrio da igreja e me disse que considerava esse trabalho um prestamento de contas a Deus. Sua famlia era formada por trabalhadores rurais de Itapiruna, municpio do Norte Fluminense, e sua relao com a VOT havia comeado em 1968, quando ele tinha 18 anos de idade. Um compadre de seu pai morava em Belford Roxo, municpio da Baixada Fluminense, e ofereceu a moradia em sua casa para que ele estudasse na cidade do Rio de Janeiro. A ideia inicial de Perci era se sustentar economicamente entrando para o Exrcito, mas ele no foi convocado. Ento a filha desse compadre, que era governanta na casa de Atade, administrador da VOT que morava no Adro de So Francisco, conseguiu um emprego para Perci na Escola Padre Dr. Francisco da Motta, que estava sendo reformada. Ele foi contratado como servente, mas, ao fim da obra, Atade disse que, para continuar trabalhando na escola, tinha que completar os estudos. Ao aceitar a condio, Perci se tornou faxineiro da escola e passou a morar nela para evitar a locomoo diria para Belford Roxo. Quando chegou ao morro, ele s tinha estudado at a 3 srie e, nos anos que seguiram, conseguiu concluir o primrio e o supletivo do 2 grau e se tornar auxiliar de secretaria da escola. Emocionado, Perci contou que Atade o tratava como um filho: olhava seus cadernos escolares e eventualmente o chamava para almoar junto de sua famlia. Em 1985, Perci se casou, alugou uma casa da entidade, sua esposa foi trabalhar na escola e os dois filhos que teve estudaram nela, sendo que sua filha Priscila tambm se tornou funcionria da VOT. E, atravs dessa conversa com Perci, pude compreender que os envolvidos nos projetos sociais e educacionais franciscanos se inseriam em um amplo sistema de trocas, onde havia aes tanto voluntrias quanto obrigatrias e onde os vnculos no apenas educacionais, mas tambm religiosos e de trabalho baseavam as relaes sociais. E, com a observao desses diversos usos do territrio pleiteado pelo Quilombo da Pedra do Sal, percebi que esse espao do morro contido entre os centros de irradiao simblica do patrimnio franciscano da Igreja da Prainha e do patrimnio negro da Pedra do Sal era instvel e liminar: variava de acordo com os dias da semana e com os perodos diurnos e noturnos,e comportava diferentes atividades, como residenciais, comerciais, recreativas, assistenciais e religiosas. E conclu que era a estabilizao desses usos que se encontrava em disputa por seus diferentes habitantes, sendo o confronto entre a VOT e os moradores ligados ao MNU e unidos pelo santo que 147
organizaram o pleito tnico a precipitao de uma crise habitacional local anterior ao plano urbanstico Porto do Rio, ainda que por esse projeto catalisada.
O PROJETO FRANCISCANO PARA UMA POPULAO MARGINALIZADA
Segundo estudo do historiador William Martins (2006), a Ordem Terceira de So Francisco havia surgido no continente europeu no sculo XIII com o intuito de tornar interdependentes os diferentes membros que compunham a igreja catlica e a sociedade leiga. Foi denominada de Terceira porque j existiam a Ordem Primeira, formada pelos frades, e a Ordem Segunda, composta pelas freiras. Na cidade do Rio de Janeiro, a instalao dos religiosos franciscanos havia ocorrido no incio do sculo XVII, quando construram um convento no Morro de Santo Antnio, local posteriormente transformado no Largo da Carioca. Durante o perodo colonial brasileiro, os frades franciscanos seguiram as diretrizes adotadas em Portugal, que postulavam a simplicidade material e a prestao de servios espirituais, como sermes, ladainhas e missas. E VOT foi incumbida a responsabilidade de administrar os legados que esses frades recebiam, o que fez com que se tornasse, no incio do sculo XIX, a principal proprietria de imveis urbanos da cidade. Em 2008, a entidade se apresentava em seu site institucional, www.vot.com.br, como uma sociedade civil, de carter religioso, beneficente, educacional, cultural, assistencial e filantrpico. Sediada na Usina, Zona Norte da cidade, onde possua um grande hospital e uma creche, a entidade ainda administrava obras sociais no Vidigal, Zona Sul da cidade, e no municpio de Duque de Caxias, um cemitrio no Caju e a Igreja So Francisco da Penitncia no Largo da Carioca. E a misso que se atribua era o cuidado com o doente atravs do tratamento de seu corpo e esprito, em um discurso que conferia uma noo religiosa s atividades que desenvolvia e estruturava o mundo opondo as ideias de material e imaterial e de sade e doena. A ocupao da entidade no Morro da Conceio era narrada por seu site institucional atravs da apresentao de antepassados, momento fundador das obras sociais e misses. Segundo essa narrativa mtica, em 1696 o advogado portugus Padre Francisco da Motta havia recebido um terreno na Rua da Prainha como forma de pagamento de uma grande ao judicial movida contra os beneditinos situados no Morro do So Bento. Construiu nele a Igreja de So Francisco da Prainha e, ao morrer em 1704, fez a doao testamentria da igreja VOT. Em 1897, a entidade ento criou 148
em uma sala dessa igreja uma pequena escola com duas turmas de alunos que, em seu nome, homenageava o padre. E, em 1922, essa escola foi transferida para um prdio construdo nos fundos do Adro de So Francisco, no Beco Joo Jos, e manteve turmas da pr-escola 4 srie do ensino fundamental que atendiam a 250 alunos. O momento de transformao da atuao da VOT no morro era demarcado como sendo o ano de 1999, quando a entidade elaborou um projeto de expanso do ensino e de implantao de programas de assistncia social e mdica. Com a execuo do projeto, em 2003 a entidade ampliou a escola para o ensino fundamental completo e passou a atender mais de 900 alunos. Tambm foi implantado nesse perodo o Projeto Humanizao do Bairro, composto por programas de sade, profissionalizao e atendimento a mulheres que, segundo o site, incluam consultas nas reas de clnica mdica, pediatria, ginecologia, dermatologia e odontologia, palestras de aconselhamento familiar e psicolgico, atendimento jurdico e cursos de informtica, cabeleireiro, costura, marcenaria, manicure, artesanato, padaria, entre outros. E, em 2005, a entidade iniciou as atividades do Colgio Sonja Kill, que passou a oferecer o ensino mdio aos alunos egressos da escola. Nessa clivagem de atuao, o site citava a luta incansvel de Frei Eckart. Nascido na Alemanha e ordenado sacerdote em 1966 na Ordem Franciscana dos Frades Menores na cidade de Rodeio, Estado de Santa Catarina, esse frei assumiu em 1987 a Superintendncia Geral da VOT na cidade do Rio de Janeiro. E, atravs de sua rede social, fundou em sua cidade natal a Associao de Amigos do Padre Eckart e conseguiu o financiamento de organizaes alems e europeias para os projetos no morro. A ampliao da escola foi ento custeada por Rotary Clubs do Rio de Janeiro e da Alemanha e pelos governos da Alemanha e do Estado da Baviera. A construo do colgio foi financiada pela Fundao Sonja Kill, entidade alem atuante em projetos para crianas e jovens em reas de trfico, prostituio e de outras formas de escravido. E o Projeto Humanizao do Bairro foi financiado pela Comunidade Europeia, por Rotary Clubs, por entidades catlicas europeias e pelos governos da Alemanha e da Baviera, visando atender populao exposta contraveno e imoralidade. Mas a VOT no era a nica entidade da Zona Porturia que estruturava seus espaos a partir de um imaginrio que os conectava ao trfico de drogas e prostituio. Ao conversar com Cristina, diretora pedaggica da escola, soube da realizao de um dos cafs da manh mensais do Conselho Comunitrio de Segurana 149
Pblica que abrangia os bairros porturios. A reunio do conselho no ms de maio foi realizada na sede do Banco Central, localizado na Avenida Rio Branco. Em seu auditrio, o presidente do conselho e representantes da segurana pblica estadual se posicionaram em cima de um tablado a frente dos demais presentes, que eram em torno de quarenta pessoas, e conduziram as inscries das falas. E, durante duas horas de reunio, o debate que se desenvolveu abordou os usos dos espaos da Zona Porturia e os mecanismos de controle e segurana que precisavam ser criados durante a implantao dos projetos de revitalizao urbana. O debate foi iniciado por Darcy Birger, que se apresentou como integrante do Rotary Club da Sade e dos projetos da VOT no Morro da Conceio. Ele manifestou a preocupao com o incentivo aos usos noturnos da Rua Sacadura Cabral, por consider- los uma influncia negativa aos alunos das escolas da entidade. Em sua opinio, o fim das atividades porturias tinha sido positivo por ter diminudo as possibilidades de desvios como o meretrcio, mas o aumento de concesses para a instalao de bares poderia trazer tudo o mais. Embora Darcy tenha deixado esta expresso sem definio, seu significado implcito foi facilmente compreendido pelos presentes: logo em seguida, o presidente do conselho e empresrio do mercado imobilirio, Jos Maria, conclamou as entidades a se oporem proposta da vereadora Leila do Flamengo de incentivar a criao de um polo de turismo na Zona Porturia que atrasse os homossexuais e os travestis de Copacabana e Ipanema. Assim, o tudo o mais dito por Darcy e associado ideia de desvio e usos noturnos, estendeu-se para as sexualidades entendidas como imorais e catalisada pela figura do homossexual. Milton San Roman, presidente do Polo Empresarial da Rua Larga, que inclua os comerciantes e empresrios instalados na Avenida Marechal Floriano, na Rua Sacadura Cabral e no Morro da Conceio, afirmou ento que tinha conversado com algumas pessoas tradicionais e que acordam cedo e que elas relataram se sentirem agredidas ao verem homossexuais se beijando na Rua Sacadura Cabral, se referindo aos frequentadores da boate The Week. Em sua opinio, os ambientes noturnos deviam ser controlados porque podiam ainda movimentar o consumo de drogas. E informou que sua entidade estava planejando a implantao de um projeto de segurana em toda a Av. Marechal Floriano, que previa a instalao de cmeras de monitoramento e visava reeducar ou estabelecer limites quelas pessoas que tm agredido s comunidades. Sua fala reforava, assim, a estruturao dos espaos da regio atravs das oposies 150
diurno e noturno, sendo o primeiro considerado seguro e ocupado por moradores tradicionais e, o segundo, perigoso e frequentado por homossexuais. O vereador Lus Alberto, que havia sido convidado para a reunio por ter atuado durante dois anos como secretrio de habitao do prefeito Csar Maia, props ento um posicionamento conciliador entre as noes de segurana, moralidade e revitalizao ao colocar como mediadora entre elas a noo de riqueza. Concordando que o crescimento do comrcio trazia sempre um pouco de transtorno, contra argumentou que, se fosse controlada a desordem, haveriam tambm benefcios econmicos na transformao de um porto decadente em um porto voltado para a cidade que oferecesse equipamentos urbanos de comrcio, cultura e lazer, e ofereceu como exemplos Buenos Aires e Barcelona. E, com essa fala, uniu como opostas s propostas de revitalizao urbana tanto as ideias de imoralidade e desordem quanto s de pobreza e decadncia. E foi a essa pobreza que Gabriel Catarina e Eduardo Pedro, ambos representantes da Associao de Moradores e Amigos da Gamboa, se referiram a seguir. Como forma de demonstrar o desrespeito da proposta da vereadora Leila do Flamengo e de outros polticos com a Zona Porturia, Gabriel comentou que havia existido tempos atrs uma proposta de remoo da Vila Mimosa 12 para um dos galpes da retro-rea porturia. E Eduardo completou, tambm em tom de denncia, que j havia sido feito um recolhimento de mendigos e menores abandonados da Zona Sul para serem encaminhado para a regio. Outra integrante do Rotary Club da Sade, Carmelina, se dirigiu ento para o vereador Lus Alberto e criticou a escolha constante da prefeitura de concentrar no porto essas atividades da cidade que no eram bem vistas. Na sequncia de falas, os trs tinham operado, portanto, com uma geografia moral da cidade mais ampla, que valorizava social e economicamente os bairros que conseguiam expulsar seus habitantes tidos como indesejados e associados aos imaginrios da criminalidade e do desvio. Encerrando a reunio, o responsvel pelo Grupamento de Policiamento em reas Especiais no Morro da Providncia, capito Zuma, disse que considerava a ocupao militar desse morro fundamental no processo de revitalizao da Zona Porturia. E que, para combater o trfico de drogas do local, sua meta era recrutar os
12 A Vila Mimosa era um espao de prostituio localizado, at a dcada de 1990, no bairro do Estcio, Centro da cidade. Com sua remoo, foi construdo no local o centro administrativo da prefeitura, que passou a ser popularmente chamado de piranho, numa associao irnica entre a prostituio e a prtica poltica. E a Vila Mimosa foi transferida para a Praa da Bandeira, Zona Norte. 151
jovens para que eles no se tornassem traficantes. Ele achava que o distanciamento dos jovens em relao ao trafico de drogas j estava acontecendo com a ocupao militar do morro, porque muitos traficantes estavam sendo mortos ou presos, o que anteriormente no ocorria por causa da impunidade. E, aps falar do combate dessa figura tida como a mais perigosa associada regio, que era o traficante, Zuma solicitou que o conselho elaborasse um relatrio sobre o projeto de revitalizao para que ele fizesse um pedido de aumento de efetivo do seu grupamento militar. Com o trmino da reunio, me apresentei a Regina, presidente do Rotary Club da Sade e diretora geral da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, e tambm a Carmelina, que iria assumir a presidncia do clube em 2009. E, ao explicar que estava realizando uma pesquisa no Morro da Conceio, fui convidada para participar do almoo do Rotary na escola, que ocorria sempre na mesma 5 feira do ms em que se reunia o Conselho Comunitrio de Segurana. Quando chegamos ao terrao da escola, nele estavam dispostas mesas e cadeiras de alumnio decoradas por toalhas e, em uma de suas quinas, havia uma tribuna com um microfone. Dos cerca de trinta scios do Rotary e convidados que participaram do almoo, a maioria tinha estado tambm na reunio do conselho e, quando todos se acomodaram, Carmelina apresentou o palestrante do dia. O socilogo Maurcio Fabio, coordenador de um projeto educacional da ONG Ao da Cidadania, localizada na Avenida Baro de Tef, proferiu ento uma palestra sobre os programas Fome Zero e Bolsa Famlia do Governo Federal. Esse almoo completava assim o circuito das relaes sociais da VOT na Zona Porturia que era mediado por sua comunidade escolar sediada no morro. Atravs desse circuito, a entidade se articulava com instituies da segurana pblica, catlicas, comerciais, empresariais, assistenciais e de representao poltica de moradores que, em comum, desejavam o controle dos espaos da regio atravs de aes de punio, educao e assistncia dos que os habitavam. Em suas formas de estruturar tais espaos, a populao era percebida em uma gradao entre morador, marginal, desviante e criminoso: eram positivados como moradores os que possuam hbitos diurnos e condies de moradia e relaes sociais consideradas boas e regulares; classificados como marginais as prostitutas, os dependentes qumicos, os favelados, os menores abandonados e os mendigos, figuras para as quais estas instituies elaboravam projetos que os convertessem a uma moralidade tida como positiva; como desviantes os homossexuais, que buscavam ser evitados na 152
convivncia da vizinhana; e como criminosos os traficantes, que possuam como projetos a priso ou a morte. Aps ter conhecido esse circuito da VOT, consegui agendar no final de agosto uma conversa com a coordenadora geral do Projeto Humanizao do Bairro, Adlia Vallis. Nosso encontro ocorreu na escola, quando ela ento solicitou que eu apresentasse uma carta da UFRJ endereada VOT e um roteiro de pesquisa para que me fornecesse um crach de acesso s escolas e aos cursos do morro, demonstrando que esses espaos eram rigidamente controlados. Essa nossa primeira conversa foi breve e Adlia sugeriu que eu tambm pesquisasse o dia a dia do Conselho Comunitrio de Segurana. Ela me explicou que, quando suas atividades foram iniciadas, o caf da manh era sempre organizado no Batalho da Polcia Militar, localizado na Praa da Harmonia, na Gamboa. Mas, como algumas pessoas tinham medo de entrar no batalho e serem chamadas de X9, gria que em seu uso comum denominava as pessoas que delatavam para a polcia prticas consideradas ilcitas, as instituies que participavam do conselho decidiram organizar o evento de forma itinerante. O uso dessa gria, no entanto, indicava que as classificaes de determinados habitantes da Zona Porturia como marginais, criminosos e desviantes possuam contra posicionamentos e produziam, igualmente, classificaes que negativavam os mecanismos de controle. Por sugesto de Adlia, nos encontramos dois dias depois no Hospital da Usina, onde estavam os relatrios fotogrficos e financeiros de implantao dos projetos sociais da VOT no morro. Adlia iniciou a conversa narrando a ocupao do morro pela entidade de forma semelhante ao site institucional, mas apresentando duas variaes especficas. A primeira foi a delimitao do territrio doado pelo Padre Francisco da Motta entidade, que havia se tornado relevante dentro da disputa que a entidade travava com os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal. Segundo Adlia, no testamento do padre estavam includos, alm da igreja, 53 escravos, algumas casas, um trapiche e um territrio que se estendia por toda regio da Prainha, percorrendo o trecho da Rua Sacadura Cabral entre a Praa Mau e a Pedra do Sal, formao rochosa que antes de ser parcialmente dinamitada adentrava o mar e separava essa regio da Gamboa. E a segunda variao narrativa foi sobre a nova etapa dos projetos educacionais e assistenciais desenvolvidos pela VOT no morro, que Adlia contou como uma sequncia de eventos que relacionava a reformulao administrativa da 153
entidade, a entrada de Frei Eckart na sua superintendncia e o incio da parceira da entidade com o Rotary Club. Segundo Adlia, at o incio do sculo XX o hospital da VOT estava instalado na base do Morro de Santo Antnio, mas com o desmonte realizado pela reforma urbanstica de Pereira Passos suas instalaes foram deslocadas para duas chcaras na Usina. Com o passar dos anos, o estabelecimento ficou reconhecido como um centro de maternidade, mas, como os descendentes dos beneficirios que haviam financiado o hospital j estavam na terceira ou quarta gerao e no pagavam por sua utilizao, em 1987 o hospital iniciou um processo de falncia: os que ento administravam o hospital deviam cerca de 600 causas trabalhistas e, por no conseguirem sanar as dvidas, entregaram todos os bens da entidade ao Cardeal Dom Eugenio Salles. O cardeal decidiu transmiti-los ordem primeira dos freis sediada em So Paulo e Frei Eckart, que era o responsvel por seu setor jurdico, foi transferido para o Rio de Janeiro como interventor do hospital. O frei ento negociou as dvidas trabalhistas e criou um estatuto para a gesto do hospital; transformou-o de maternidade em hospital geral; cancelou o convnio com o instituto previdencirio do governo e fez acordos com diversos planos privados de sade. Ao reorganizar a atuao administrativa, jurdica, econmica e mdica do hospital, o frei tambm buscou desoner-lo da manuteno financeira da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, fazendo um emprstimo no banco catlico Pax-Bank que a sustentou por quase dez anos. E, para pagar esse emprstimo, criou na Alemanha duas organizaes que recebiam doaes: a Fundao de Amigos do Padre Francisco da Motta e a Associao dos Amigos do Frei Eckart. Em 1998, o frei e Adlia se conheceram durante a Conferncia Pan-Americana da Paz realizada em um centro de convenes da cidade. Adlia estava sendo empossada naquele ano governadora do Rotary do Rio de Janeiro, o que a tornaria responsvel pela administrao de sessenta Rotary Clubs, e foi ento procurada por dois governadores rotarianos da Alemanha e apresentada ao frei. Ele a convidou para apoiar a ampliao da escola e Adlia aceitou, colocando como condio a implantao de alguns padres educacionais, que foram definidos a partir de sua percepo de quais seriam as caractersticas de uma escola localizada na Zona Porturia. Na opinio de Adlia, os alunos que saam da Escola Padre Dr. Francisco da Motta com 10 anos de idade iam para rua, porque no havia escolas pblicas locais 154
que as absorvessem. E, remetendo-se ao massacre na Candelria 13 , quando seis jovens haviam sido assassinados, disse que possivelmente alguns deles fossem ex-alunos da escola, colocando-os assim dentro de um imaginrio relacionado falta de controle familiar e ao perigo. A proposta educacional encaminhada por Adlia previu ento a extenso do ensino at a 8 srie, o atendimento de 800 alunos, a oferta de alimentao e de programas de incluso digital e capacitao profissional e a obrigatoriedade da presena do aluno nos turnos da manh e da tarde. Para ampliar a escola, a VOT uniu internamente vrias casas de sua propriedade que eram a ela contguas e comprou mais oito casas. Adlia, que estava administrando a parte financeira do projeto, disse que, quando iniciou a obra, os 400 mil dlares doados pelos rotarianos do Rio de Janeiro, da Alemanha e dos Estados Unidos no haviam sido suficientes: comeou a brotar gua da pedra que ficava na base das casas e foi muito oneroso remover o entulho gerado pelas obras e o lixo que havia no terreno atrs da escola. Para complementar esses custos que no estavam previstos no oramento, os parceiros alemes do projeto procuraram o Ministrio de Ao Social da Alemanha, que concordou em contribuir com mais 500 mil dlares, e o governo do Estado da Baviera tambm doou 85 mil dlares para instalar uma cisterna. A expanso de 3.500 m da escola foi finalizada em 2003 e, em 2008, o seu custo mensal de manuteno era de 200 mil reais. O Colgio Sonja Kill foi construdo em seguida ao lado da escola e foi financiado unicamente pela Fundao Sonja Kill, iniciando suas atividades em 2005. Durante a expanso das atividades educacionais, a VOT tambm implantou o Projeto Humanizao do Bairro. Segundo Adlia, o aumento do nmero de alunos havia gerado tambm um aumento do nmero de pais e, como metade deles era composta por moradores do Morro da Providncia, precisavam ser capacitados profissionalmente. O projeto foi orado em 1,7 milhes de euros e o Rotary foi convidado mais uma vez para apoi-lo. As duas entidades ento apresentaram o projeto Comunidade Europeia, argumentando que ele visava atuar em um espao classificado pelo governo brasileiro como habitado por uma populao marginalizada, devido a pouca oferta de servios pblicos. Assim, articulando novamente um discurso que associava a Zona Porturia a um espao carente por projetos sociais, a VOT teve o projeto aprovado em 2000. A
13 A chacina da Candelria, como ficou conhecida, ocorreu em uma madrugada de julho de 1993, quando policiais militares pararam em frente Igreja da Candelria e atiraram em mais de setenta crianas e adolescentes que estavam dormindo. Como resultado da chacina, seis menores e dois maiores morreram e vrias crianas e adolescentes ficaram feridos. 155
Comunidade Europeia, no entanto, financiou apenas 75% dele, exigindo que os demais 15% fossem financiados por uma ONG europeia, que deveria ser tambm a responsvel por sua administrao financeira. Entraram ento como parceiros do projeto uma misso franciscana alem e a Caritas Obra Papal. VOT, coube sua execuo e a disponibilizao de trinta imveis de sua propriedade. E o Rotary contribuiu com a doao de equipamentos para os cursos de marcenaria, padaria, grfica e computao e para os laboratrios que funcionavam na escola. A maior parte dos cursos profissionalizantes abriu turmas nos anos de 2005 e 2006 utilizando vinte e um imveis. Os nove imveis restantes estavam localizados no Adro de So Francisco e na Rua So Francisco da Prainha e ficaram aguardando a captao de novos recursos financeiros para instalao de outros cursos. Ao fim da conversa, fui encaminhada para Michele, designer que trabalhava na VOT desde agosto de 2005 fazendo as peas grficas de seus projetos sociais. Ela me mostrou a apresentao audiovisual do Projeto Humanizao do Bairro que havia sido elaborada para prestar contas aos auditores da Comunidade Europeia e contou que o projeto havia sido feito baseado em um modelo dessa organizao e registrado com o nome Promoo do desenvolvimento para grupos de populao marginalizada da Zona Porturia do Rio de Janeiro; mas, como os dirigentes da VOT acharam que utilizar o termo populao marginalizada conferiria a ele uma conotao pejorativa associada criminalidade, o nomearam Projeto Humanizao do Bairro.
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O projeto foi composto por seis subprojetos e Michele me mostrou sua distribuio pelas casas do morro atravs de uma foto area com marcadores grficos. No Centro Comunitrio (casa 1) localizado em frente ao Largo Joo da Baiana, ficou concentrado o ncleo de inscrio do subprojeto Cursos de Formao Profissional. Segundo Michele, as maiores procuras haviam sido para os cursos de tcnicas artesanais (casas 4 e 14), msica (casa 5), cabeleireiro e manicure (casa 10), corte e costura (casa 11), informtica e telemarketing (casa 15), todos esses localizados nas casas do adro; e para os cursos de padaria (casa 19), artes grficas (casa 20) e marcenaria (casa 21), localizados na Rua So Francisco da Prainha. No entanto, tambm houve cursos que no tinham tido um funcionamento regular por falta de inscritos ou de professores especializados, como os de auxiliar administrativo, gesto e microcrdito (casa 07), de eletrnica e eletricidade (casa 08), camareira (casa 12), pintor e ladrilheiro (casa 09) e tecelagem (casa 13). O subprojeto Centro de Crianas com Estrutura Familiar tinha como objetivo atender s crianas em risco que ficassem sob a tutela da VOT. Montado na casa 18, esse centro seria gerenciado por funcionrios denominados de pais sociais e as crianas seriam atendidas pela escola e cursos da entidade. Michele ento explicou que a VOT j possua um projeto nesse formato em Tangu, municpio de Rio Bonito, e que nem todas as crianas atendidas por ele eram rfs, muitas os pais tinham perdido a guarda legal atravs do Juizado da Criana e do Adolescente, por causa de maus tratos, violncia ou negligncia. Ela ento exemplificou o tipo de crianas que o projeto pretendia atender na Zona Porturia narrando o caso de trs alunos da escola que eram filhos de uma prostituta que morreu e que, por na falta de parentes para abrig-los, foram adotadas informalmente pelos prprios pais da comunidade. Mas, Adlia informou que esse subprojeto no pde ser implantado porque um acordo entre a prefeitura e a Juizado da Criana e Adolescncia da cidade do Rio de Janeiro havia proibido que instituies possussem a guarda ou adotassem crianas. O subprojeto Sade Bsica ocupou o centro comunitrio, onde foram oferecidos os atendimentos odontolgicos, e a casa 06, onde foram montados os consultrios de ginecologia, clnica mdica, pediatria e o atendimento inicial de oftalmologia e dermatologia, que depois eram encaminhados para o hospital da Usina. O subprojeto Promoo de Mulheres, tambm instalado no centro comunitrio, tinha como objetivo fornecer cursos de nutrio, cuidado com o beb, cuidado com idosos e atendimento jurdico. Fazia ainda parte dele a creche que foi instalada dentro da escola. E o 157
subprojeto Centro de Contato e Informao tinha como objetivo a preveno dependncia qumica de drogas ilcitas e lcitas, como lcool e cigarro. A VOT fez ento uma parceria com a Secretaria Especial de Dependncia Qumica da prefeitura e ofereceu um curso para multiplicadores da regio, com a presena de representantes das igrejas, de empresas e dos institutos educacionais. E ofereceu atendimento psicolgico individual ou em dinmicas de grupo. E o subprojeto Centro de Tradio e Cultura construiu a Casa de Cultura (casa 03), que funcionava quando tinha alguma exposio; a biblioteca (casa 16); e o cineteatro no sobrado que era denominado de Palcio das guias (casa 17), que ainda estava sendo reformado e teria uma lotao de 100 pessoas e um espao utilizado como centro de convivncia. E, embora no tenha sido includa diretamente em nenhum dos subprojetos, a casa 02 havia sido disponibilizada para o Conselho Comunitrio de Segurana Pblica, com a inteno de que abrigasse uma secretaria com sua memria e documentao. Assim, atravs de atividades educacionais e assistncias desenvolvidas no morro, a entidade props a insero da populao marginalizada da Zona Porturia em um mercado formal de trabalho que se opunha estruturalmente s atividades que articulava como criminosas e imorais: o trfico de drogas e a prostituio. E, relacionando seus espaos noo de perigo, ofereceu s crianas em risco, que seriam os filhos dessa populao marginalizada, uma estrutura familiar que identificavam como inexistente ou precria. Opondo as noes de sade e doena, que eram a base de estruturao de sua misso, a entidade operou ainda uma diviso de espaos entre femininos e associados aos cuidados familiares, e masculinos e associados dependncia qumica. E, para divulgar a tradio e a cultura que consideravam positivas, idealizou espaos para a exposio de produtos mediadores como livros, fotografias, artes plsticas, filmes e peas teatrais. Atravs desses espaos era ainda mais ampliada sua rede de relaes locais, fosse oferecendo um local para o funcionamento do conselho comunitrio de segurana, fosse para abrigar outras instituies e eventos que estruturavam de forma semelhante os espaos da Zona Porturia, como os que eram realizados por alguns dos moradores da parte alta do morro.
O PROCESSO DE TRANSFORMAO DE RESIDNCIAS EM OBRAS SOCIAIS
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A narrativa de Adlia era predominantemente voltada para os aspectos administrativos e financeiros dos projetos da VOT no morro e, buscando conhecer seus aspectos jurdicos, fisiolgicos e estticos, agendei em setembro dois encontros com especialistas da entidade: com o engenheiro civil e industrial Carlos Pinheiro, responsvel pela idealizao e execuo do projeto arquitetnico de reforma das casas; e com a advogada Tatiana Brando, que realizou os acordos e aes para que os moradores dos imveis que seriam utilizados pelos projetos fossem despejados ou realocados e estava enfrentando judicialmente o pleito do Quilombo da Pedra do Sal. Pinheiro trabalhava para a VOT desde 1997, mas assumiu o projeto de reforma das casas do morro apenas em 2001, quando ele j havia sido elaborado, mas precisava de modificaes para atender a exigncias do rgo patrimonial municipal. O projeto arquitetnico que ento props teve como diretrizes recuperar fisicamente o casario sem alterar sua volumetria e desnveis e valorizar a beleza e a limpeza, noes por ele operadas em oposio ao que entendia ser um espao triste e associado ao lixo. Ele me explicou que a VOT possua cerca de 800 imveis na cidade, sendo que mais de 120 estavam localizados na parte do Morro da Conceio voltada para a Rua Sacadura Cabral. Quando comeou a implantao do conjunto de projetos, algumas casas eram alugadas, mas cerca de 70% eram ocupadas irregularmente. Tinha sido somente aps a entrada do Frei Eckart na administrao da entidade que os invasores do conjunto dos imveis que ela possua na cidade foram sendo gradualmente retirados e as casas restauradas. Quase todas as casas que foram utilizadas pelos projetos educacionais e sociais da VOT eram de dois andares e, segundo Pinheiro, estavam ocupadas por inquilinos ou invasores e se encontravam em pssimo estado, que ele qualificou como construdas com tcnica de pau a pique e alteradas do original por reformas internas. Assim, embora Pinheiro articulasse uma oposio entre inquilino e invasor, ela era apenas econmica e jurdica, j que, mediado por suas categorias sensveis, ele relacionava todos aqueles espaos ao sujo e ao feio. O material das casas era percebido por ele tambm como instvel e perecvel, por fazer com que, no momento de demolio das paredes internas, a estrutura da casa fosse abalada e ela russe. O primeiro conjunto de casas foi desocupado para a ampliao da Escola Padre Dr. Francisco da Motta e para a criao do Colgio Sonja Kill. Antes, a escola funcionava em uma casa na esquina do Adro de So Francisco e do Beco Joo Jos. Aps as obras, foram anexadas sua edificao treze casas contguas do beco e dois 159
terrenos da Rua Mato Grosso, fazendo com que a escola e o colgio ocupassem todo um quarteiro do morro. A escolha dos materiais utilizados durante as reformas foi pautada pelo desejo de conservao, com a adoo dos considerados de alta qualidade e durabilidade e valorizando a riqueza em oposio ao que Pinheiro percebia ser a pobreza da Zona Porturia. Todas as paredes de pau a pique foram derrubadas e substitudas por blocos de cimento, as lajes de madeira foram trocadas por pr-fabricadas de concreto, as telhas foram feitas com madeira de primeira, o piso recebeu um revestimento de granito e foram construdos banheiros de qualidade e uma grande cisterna para abastecer de gua todo o complexo. No caso das madeiras, muitas foram reaproveitadas por serem em pinho de riga, madeira considerada de boa qualidade, mas em todos os materiais foi feito uma alterao ou dado um novo tratamento fsico ou qumico que possibilitasse sua retirada da realidade anterior considerada decadente e o inserisse naquela nova temporalidade e espacialidade bela e limpa. Para Pinheiro, a ao de reforma era, portanto, no apenas a demarcao de um novo tempo dos espaos do morro, mas tambm um embate cosmolgico entre os ideais franciscanos e as caractersticas que percebia negativamente como estruturantes dos espaos habitacionais da Zona Porturia. Segundo Pinheiro, o processo de reforma das casas do morro havia sido um perodo muito difcil de sua vida, que provocou nele duas paradas cardacas. Na vspera de um dos enfartes, ele estava na obra e pegou um monte de troo de piolho, pulga, uma coisa horrvel, mas disse que teve uma recuperao boa graas a Deus e So Francisco. Assim, ao se deparar com a presena no s de humanos, mas tambm de piolhos e pulgas que ele percebia como uma extenso da sujeira, pobreza e feiura dos espaos, Pinheiro recorreu entidade espiritual do patriarca mtico dos franciscanos. E havia sido tambm a partir de uma motivao religiosa e da percepo de que havia um perigo externo que ele pintou as paredes da escola e do colgio na cor azul claro, para que os mantos de Nossa Senhora oferecessem proteo. Os momentos de dificuldade das reformas foram ento narrados por Pinheiro como ultrapassados e recompensados com o que considerou ter sido uma das melhores criaes do projeto de ampliao da escola, que foi a construo de uma rea de lazer ao ar livre para os alunos brincarem. Ele falou da criao desse novo espao enfatizando tambm seu aspecto religioso, como uma inspirao de So Francisco que foi dada ao Frei Eckart. Segundo Pinheiro, a equipe de obra estava instalando a laje 160
para colocar o telhado no segundo andar de duas casas, mas tiveram de aguardar o tempo da laje descurar, que variava entre 17 e 28 dias, dependendo da umidade do ar. Nesse tempo, os alunos da escola soltaram pipa e brincaram de roda na laje e, quando o frei viu esse uso, decidiu que ali no seria colocado um telhado, mas feito um terrao. Essa alterao do projeto, no entanto, no era permitida pelas legislaes patrimoniais municipal e federal, porque aumentava a volumetria da edificao. E, apesar de Pinheiro ter sido contra a ideia, falou que concordou em faz-la porque devia uma dupla lealdade ao Frei Eckart, como funcionrio da VOT e por ser ele seu dirigente espiritual. Pinheiro ento levantou o telhado um pouco mais de dois metros acima do cho e fez um terrao em todas as casas da parte ampliada da escola E, por causa dessa alterao, havia seis anos que a prefeitura emitia ordens de demolio dos terraos e se recusava a fornecer o habite-se da escola. Articulando uma oposio entre as noes de uso e forma das casas utilizadas pela escola, Pinheiro argumentou que a VOT trabalhava em favor da primeira, dizendo que os imveis haviam sido reformados para a coletividade que chamou de o povo e que estaria acima dos interesses individuais e das exigncias formais dos rgos patrimoniais. Segundo ele, o espao das escolas era importante para que as crianas no fossem para a rua, considerando, portanto, em oposio, ser esse espao a casa delas. E, para evitar invases, Pinheiro estava estudando uma forma de transformar a rea da escola em um condomnio fechado, com a colocao de trs portes nas suas vias de acesso, embora soubesse que havia implicaes jurdicas nesse procedimento de tornar vias pblicas em privadas. Durante a execuo do Projeto Humanizao do Bairro, Pinheiro manteve a volumetria de todas as casas para evitar mais atrito com os rgos pblicos. E os exemplos que Pinheiro ofereceu de casas em pssimo estado uniam os aspectos fsicos dos imveis a uma avaliao moral de seus usos e usurios. Ele contou que os nmeros 27 e 29 da Travessa do Sereno, que foram unificados para a instalao do centro comunitrio, e o Palcio das guias, que foi ocupado pelo cineteatro, antes eram um ponto de atuao do trfico de drogas. Disse que, no incio das reformas, tinha levado revlver no rosto trs vezes, porque muitos moradores eram contrrios implantao do projeto nas casas e outros eram da noite e, como as obras iniciavam s 07 horas, horrio em que estavam dormindo, eles ameaavam os funcionrios e exigiam que s produzissem barulho a partir das 14 horas. 161
Segundo sua percepo, antes da implantao dos projetos ocorria assaltos e roubos mesmo no perodo diurno e as pessoas eram violentas e agressivas. Mas, por causa das reformas, das escolas e dos cursos, houve uma evoluo social da comunidade, que ficou mais educada e tranquila. Em sua opinio, a pedagogia com a espiritualidade franciscana tinha produzido uma miscigenao entre os meninos, que era como chamava os alunos e qualificava a interao social dos filhos de prostituas, de mulheres do local com outros alunos. E afirmou, em seguida, que os cursos tinham como intuito dar treinamento para que as mulheres pudessem ter outra profisso e fossem salvas. O processo de transformao nas casas do morro pela VOT podia, portanto, ser entendido a partir do uso que Pinheiro fazia da noo de reforma, que se opunha ao tempo passado do imvel, caracterizado como deteriorado. Tambm operada pelos termos resgate, recuperao, restaurao, reaproveitamento e salvao, essa noo de reforma podia tanto se referir a aes de interveno nos aspectos fsicos das casas, como nos aspectos morais e sociais dos moradores da Zona Porturia. E, como categoria mediadora do tempo passado para o futuro, ele operava a noo de inaugurao, que era o momento fundador onde se considerava alterada a realidade tida como degradada e iniciada uma nova temporalidade e espacialidade. De acordo com o arquiteto, a fase mais difcil de implantao dos projetos arquitetnicos era a da conservao da qualidade da obra ou, como ele havia expressado, de deixar os imveis parecendo sempre que vo inaugurar. Pinheiro por fim comentou que a entidade ainda pretendia implantar o Projeto Humanizao do Bairro 2 em seis imveis contguos da Rua So Francisco da Prainha que ficavam defronte para o Largo da Prainha. A ideia era unificar a parte de cima de todos os sobrados e instalar um salo para a escola de msica funcionar e se apresentar e, no andar trreo, instalar centros gastronmicos e cursos para a formao de cozinheiros. J no trecho da Rua So Francisco da Prainha entre os largos da Prainha e Joo da Baiana, onde estava a maior parte dos imveis pleiteados pelo movimento quilombola, a ideia era notificar os inquilinos para a sada dos imveis da entidade e utiliz-los para a oferta de outros cursos. Nesse trecho da rua, o nico imvel que no era de propriedade da entidade era onde funcionava a Penso Marie, mas eles tinham planos de negociar suas compra. Depois dessa expanso dos cursos, o projeto da VOT era captar recursos para reformar a Igreja da Prainha e criar um mendigdromo, que foi como se referiu ao 162
projeto de abrigar moradores de rua em um prdio que a entidade possua prximo Rodoviria Novo Rio. Alm desses projetos, o frei tambm estava captando recursos na Alemanha para fazer um hotel escola e ocupar outro prdio da entidade na Avenida Baro de Tef, em frente ao Hospital dos Servidores. A proposta era que se tornasse um hotel franciscano que oferecesse cursos de camareira, abrigasse encontros de retiro e absorvesse como mo de obra os alunos sados do Colgio Sonja Kill. Ainda com a inteno de utilizar essa mo de obra, o frei estava idealizando criar uma faculdade de enfermagem. Segundo Pinheiro, a grande obsesso do frei era tirar as crianas da rua, para que elas no fossem trabalhar para o trfico. Como havia sido demonstrado pela fala de Pinheiro, a transformao dos usos residenciais dos imveis em projetos educacionais e assistncias no tinham sido um processo social harmnico, movimentando diversos conflitos entre os moradores e a entidade. E foi sobre esses conflitos que conversei com a advogada Tatiana no escritrio jurdico que tambm era sediado no hospital da Usina. Ela trabalhava na VOT havia seis anos e tinha acompanhado desde o comeo a formao do Quilombo da Pedra do Sal. Logo no incio da conversa, Tatiana fez uma ressalva ao termo que eu estava usando para se referir formao do quilombo, dizendo que no havia nenhum conflito, apenas problemas judiciais. Sua distino de termos demarcava assim duas formas diferentes de perceber o pleito desses moradores: na percepo dos dirigentes da VOT, ele era uma questo habitacional referente s leis de inquilinato, e no uma questo tnica referente a leis de promoo da igualdade racial e de reparao histrica. Tatiana contou que, quando ela comeou a trabalhar na entidade, a maioria dos imveis do morro era destinada para a locao e, como havia muitos inquilinos inadimplentes e invasores, foram desenvolvidas aes de despejo e reintegrao de posse. Mas nunca tinha havido uma poltica de aumento de aluguis da entidade para que fosse aproveitada a divulgao dos projetos de revitalizao urbana da Zona Porturia, apenas havia sido feita uma reviso de preos baseada no valor de mercado dos imveis. Segundo Tatiana, o perfil dos inquilinos da entidade no morro era de baixa renda e muitos moravam l havia vrios anos e trabalhavam no cais do porto, como camel ou no comrcio do Centro da cidade. Havia sido somente aps a entidade resolver utilizar alguns imveis para a ampliao das atividades educacionais e para a implantao do Projeto Humanizao do Bairro que os moradores inadimplentes foram notificados de despejo e os que tinham um bom relacionamento e pagavam regularmente o aluguel foram realocados 163
para outros imveis da entidade localizados nas ruas So Francisco da Prainha, Sacadura Cabral e Eduardo Jansen. E foi assim, diferenciando bons inquilinos, inquilinos inadimplentes e invasores, que ela contou que o nico problema srio que havia enfrentado no morro tinha sido a desocupao do casaro Palcio das guias, localizado na Rua Mato Grosso. Segundo Tatiana, foi a inquilina desse casaro que quis rescindir a locao que tinha com a VOT havia mais de 40 anos, alegando que havia sublocado o imvel e que os moradores estavam devendo a ela. A equipe jurdica da entidade foi ento conversar com os que sublocavam o casaro e deram um prazo para que desocupassem o imvel. Mas, como eles no aceitaram sair, a entidade desenvolveu a ao de despejo judicial, cujos moradores Tatiana caracterizou dizendo que tinha angolano l dentro, gente sem documento nenhum, gente que s tinha um colchonete e que botou nas costas e foi embora, associando assim a noo de inadimplente falta de documentos ou bens. Sobre os moradores que tinham formado o Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana contou que, quando a VOT iniciou uma ao judicial de reintegrao de posse do imvel que Damio ocupava de forma ilegal na Travessa do Sereno, Lcia tinha procurado ela para negociar sua permanncia. Tatiana argumentou que queria reaver o imvel porque ele estava caindo e precisando de obras, explicando que a falta de cuidado com o imvel era outra caracterstica do pessoal da Praa Mau. E havia sido um pouco depois desse seu encontro com Lcia que cinco moradores apresentaram o certificado da Fundao Cultural Palmares se autodenominando comunidade quilombola. Mas, segundo Tatiana, nunca tinha existido um movimento, o grupo era formado apenas por pessoas que no queriam pagar aluguel; sendo que um dos que assinaram o certificado nem mesmo era inquilino da VOT e outro que havia aderido depois ao movimento era um chileno que no momento do despejo reivindicou ser quilombola. Depois da certificao, o INCRA havia movido uma Ao Civil Pblica para impedir que a VOT pudesse alterar os usos de seus imveis at que fosse concludo o processo de identificao e delimitao do Quilombo da Pedra do Sal. Mas a entidade havia entrado com um mandato de segurana para impedir esse processo, concedido em primeira instncia porque o juiz havia considerado que o Relatrio Histrico e Antropolgico apresentado, alm de ser preliminar, no demonstrava a existncia de um quilombo na regio. No entanto, em segunda instncia, a entidade havia perdido, e estava ainda aguardando o resultado do recurso que apresentou. Assim, na fala de 164
Tatiana nada diferenciava os moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal dos demais que ela classificava como inadimplentes, ilegais e invasores, e a solicitao de reconhecimento tnico era considerada apenas um artifcio jurdico para que eles conseguissem permanecer de forma irregular nos imveis da entidade. Operando ento com um regime de autenticidade sobre os habitantes do morro, Tatiana disse que os moradores do morro tambm eram contrrios ao reconhecimento do quilombo e que ela possua um abaixo-assinado com duas mil assinaturas explicitando esse posicionamento. Em seguida, mostrou um mapa contido no relatrio de delimitao e identificao produzido pelo INCRA, onde estava demarcada o territrio que o quilombo havia solicitado e que inclua imveis na Rua Sacadura Cabral, Rua do Escorrega, Travessa Mato Grosso, Rua So Francisco da Prainha, Travessa do Sereno, Rua Argemiro Bulco, Rua Camerino e o Observatrio do Valongo. E acentuou que eles tinham excludo desse territrio apenas o Adro de So Francisco e o quarteiro onde estavam a escola e o colgio, porque, em sua opinio, desejavam que a entidade continuasse mantendo as obras educacionais e sociais que desenvolvia no morro. E, para desqualificar o pleito do Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana afirmou que a titulao de um grande territrio s se justificava em casos onde havia uma comunidade que vivia economicamente da terra, se referindo plantao, pesca e artesanato. Em sua avaliao, o relatrio apresentado pelo INCRA narrava apenas as histrias de vida de Lcia, Damio e Luiz Torres. Mas, alm deles, havia outros integrantes do quilombo que no tinham suas historias conhecidas: Marcos Evangelista (Marquinhos) e o chileno Ernan, ambos moradores da Rua So Francisco da Prainha; Rafael, morador de uma casa no Adro de So Francisco; e Getlio Brasil, morador da Rua do Escorrega. E ela no reconhecia haver entre eles a formao de uma comunidade, alegando que eles no possuam um cotidiano em comum nem um lder comunitrio ou atividades como festas e celebraes, tendo se unificado apenas para evitar as aes de despejo. Tatiana ento contou que havia se encontrado com as historiadoras e a antroploga que tinham produzido o relatrio para o INCRA, e que elas haviam defendido o pleito do grupo argumentando que o termo quilombo definido juridicamente era relacionado preservao da cultura negra. Mas ela considerava que o movimento dos trabalhadores do cais do porto e a batucada que faziam na hora do almoo no podiam ser classificados historicamente como um movimento 165
quilombola. E, para rebater a afirmao de que havia uma ocupao do morro por afrodescendentes, narrou o que acreditava ser sua ocupao tradicional: a dos franciscanos, demarcada pela Igreja da Prainha; e a dos portugueses que foram morar na sua parte alta. E, se referindo noo de Pequena frica, afirmou que ela ficava localizada na Praa Onze, local onde estavam o monumento a Zumbi dos Palmares e a escola municipal Tia Ciata, construes que em sua opinio comprovavam que era naquele espao que os escravos iam fazer os batuques. Sobre o trfico negreiro que ocorria no Valongo, ela respondeu que esse era um espao diferente do pleiteado, voltado para a Rua Camerino e o Morro da Providncia. E, em relao a ter sido a Pedra do Sal um espao de rituais do candombl, Tatiana argumentou que, se fosse considerar na cidade como marco territorial de comunidade quilombola um espao de oferenda, qualquer esquina, qualquer cruzamento virou quilombo.
OS ESPAOS DA REPARAO E DAS PRTICAS DO CANDOMBL
Tendo como referncia espacial a Pedra do Sal, tombada pelo INEPAC na dcada de 1980 como monumento de representao da cultura afro-brasileira, a Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal havia surgido duas dcadas depois, em um contexto onde as propostas de transformao urbanstica e de valorizao fundiria da Zona Porturia fizeram eclodir diferentes movimentos habitacionais que reivindicavam um espao para a moradia popular da regio. Havia sido aps a divulgao do Porto do Rio que surgiram, por exemplo, trs ocupaes de moradores sem tetos, todas elas trazendo em seus nomes referncias ao movimento abolicionista brasileiro: a Ocupao Chiquinha Gonzaga, criada em julho de 2004 em um prdio na Rua Baro de So Felix pertencente ao INCRA; a Ocupao Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifcio na Avenida Venezuela do Instituto Nacional de Seguridade Social INSS; e a Ocupao Quilombo das Guerreiras, realizada em outubro de 2006 em um prdio da Companhia Docas na Avenida Francisco Bicalho. Mas, nesses movimentos de moradores sem-teto havia tido apenas o uso simblico da escravido e da excluso do negro no pas para que fosse reivindicada uma poltica habitacional popular. J o Quilombo da Pedra do Sal se organizou em torno da noo de identidade tnico-racial e pleiteou juridicamente uma reparao histrica concedida atravs da 166
titulao territorial. E, atravs da operao da noo mtica de Pequena frica, seus integrantes propuseram uma nova forma de percepo dos espaos do Morro da Conceio e da Zona Porturia, que os conectavam memria negra, moradia popular, ao trabalho porturio, ao samba e s prticas de candombl. E, no conflito que travaram com a VOT, entidade por ele identificada como oposta sua identidade e ocupao habitacional, duas formas distintas de estruturar os espaos do morro e da Zona Porturia foram movimentadas. Para os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, a pedra era considerada uma importante referncia de seu passado mtico e vivenciada cotidianamente de forma tanto profana quanto sagrada. Nas noites em que havia as rodas de samba organizadas pela Bodega do Sal, eles armavam uma barraca de comidas e bebidas no local e atuavam como vendedores ambulantes. E, nas datas comemorativas consideradas estruturantes para a formao da identidade que denominavam de esprito quilombola, que eram os dias de So Jorge, da Conscincia Negra e do Samba, organizavam festas coletivas onde ritualizam a presena habitacional dos orixs e dos antepassados mortos dos escravos, sambistas e porturios que, ao longo dos anos, haviam frequentado a pedra. E para a VOT, a Pedra do Sal e seu entorno era um espao perifrico de seu centro simblico, a Igreja da Prainha, e onde seus dirigentes desejavam implantar o Projeto Humanizao do Bairro, que era pautado pelas noes de reforma e salvao e baseado em uma moralidade que percebia o conjunto da populao da Zona Porturia como marginalizada e exposta criminalidade e ao desvio. Mas suas formas distintas de estruturar os espaos do entorno da Pedra do Sal podiam ser compreendidos tambm pela maneira como vivenciavam suas vida religiosa e como elas ordenavam o mundo pelos fundamentos catlicos ou do candombl; pois havia uma srie de oposies entre os espaos considerados por ambos os grupos como sagrados. A Pedra do Sal era um espao aberto, na rua, onde se desenvolviam relaes igualitrias. Os rituais que eram nela realizados mediavam humanos, mortos e deuses, reverenciando assim os espaos do solo, subsolo e cu, e utilizavam objetos portteis e sacralizados pelo prprio ato ritual, como quartinhas, velas e alguidares, cujo princpio era o consumo e, portanto, a perenidade. J a Igreja da Prainha era um espao fechado, uma casa, onde se desenvolviam relaes hierarquizadas. Os rituais que nela eram realizados mediavam humanos e um nico deus e dividiam o mundo em apenas dois espaos verticalizados, a terra e o cu. E utilizavam objetivos entendidos como 167
portadores de uma aura sagrada e que deviam manter-se conservados, no sendo, portanto, vivenciados como perecveis. Mas, apesar dos aspectos religiosos e culturais que a comunidade quilombola movimentava atravs das prticas do candombl, o Quilombo da Pedra do Sal se apresentava jurdica e politicamente como um pleito de reconhecimento tnico polmico entre acadmicos, integrantes de movimentos sociais e moradores da Zona Porturia. Pois, para se adequar s especificidades do Artigo 68 da Constituio Federal e da sua regulamentao pelo Decreto 4.887, o grupo e os mediadores de seu conflito com a VOT articularam sua legitimidade reinterpretando as noes de territrio, trajetria histrica e ancestralidade negra; e conferiram ao tombamento oficial de um patrimnio uma relevncia incomum nos processos de reconhecimento de territrios tnicos. At o final de 2009, o Quilombo da Pedra do Sal no havia sido titulado e o territrio delimitado na primeira verso do Relatrio Histrico e Antropolgico ainda passava por modificaes, mas a narrativa mtica sobre a Pequena frica nele contida permaneceu operada pelos quilombolas e pelos mediadores envolvidos no processo de reconhecimento tnico. O vencedor da contenda entre o Quilombo da Pedra do Sal e a VOT ainda estava, portanto, por ser decidido, e apontavam para o fato de que o reconhecimento e estabilizao de ambos os patrimnios no dependeriam apenas de suas estratgias polticas e jurdicas, mas tambm da ressonncia de suas narrativas mticas frente sociedade, ou seja, na capacidade que teriam de evocar experincias culturais que proclamavam como autnticas.
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Captulo 4. Os fundamentos do Valongo
O AFOX FILHOS DE GANDHI E O POVO DO SANTO
O grupo carnavalesco Afox Filhos de Gandhi possua duas formas bsicas de diviso: cotidianamente era formado por sua diretoria e, no perodo do Carnaval, a essa diretoria se agregavam os desfilantes 14 . A diretoria se apresentava em eventos de valorizao e reconhecimento poltico da cultura negra ou dos cultos afros que eram organizados por institutos, rgos pblicos, deputados, vereadores ou movimentos sociais. J os desfilantes eram um grupo mais amplo composto pelo povo do santo de diferentes casas de candombl e que participava de forma numericamente mais expressiva nos desfiles de Carnaval do Gandhi na Avenida Rio Branco e na orla da Praia de Copacabana. A diretoria possua cerca de quinze integrantes, que se responsabilizavam pela organizao dos eventos do grupo e pela manuteno de seus preceitos religiosos. No Carnaval de 2009, ela era composta pelo presidente Carlos Machado; pelo vice- presidente Carlinhos; pelo diretor de patrimnio Ulisses; pela produtora Regina Branca; pela diretora de departamento feminino Tia Creusa; e por Nato, diretor de charanga, que era composta ainda pelos msicos Cabea Branca, Galeto, Roberto, Alfredo, Cotoquinho e Luan. E, danando e cantando, tambm participavam constantemente das apresentaes Me Marlene dOxum, Nazar, Gustavo, Mrcia, Dona Rosa e Elizete. A localizao da sede do Gandhi, os fundamentos religiosos de suas apresentaes e a relao que possua com o povo do santo foram explicados a mim por Carlos Machado em duas conversas que tivemos no final de novembro de 2008 no Castelinho, centro cultural localizado no Flamengo onde ele trabalhava como administrador pblico. Segundo Machado, o Gandhi havia sido fundado no Rio de Janeiro em 1951, por iniciativa de trabalhadores do porto e com a participao de alguns integrantes do Ijex Filhos de Gandhi de Salvador, fundado dois anos antes. Antes de
14 Publiquei uma anlise inicial desse grupo carnavalesco em artigo componente dos anais do XXXIII Encontro Nacional da ANPOCS (Guimares, 2009c).
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ocupar a sede na Rua Camerino, o grupo havia ensaiado em diferentes espaos cedidos por outras entidades, todos localizados nas reas central e porturia da cidade por causa da facilidade com que seus frequentadores, a maioria moradora da Baixada Fluminense e dos subrbios, tinham em se deslocar para a regio. Tanto ele como, percebi depois, outros integrantes do grupo, demarcava as diferentes pocas do Gandhi vinculando-as aos seus presidentes, s verses que tinham realizado do grupo carnavalesco e aos espaos onde haviam ensaiado. Assim, Machado me narrou que o primeiro presidente oficial do Gandhi havia sido Alberto Sales Pontes, que teve a iniciativa de organizar o grupo juridicamente em 1961. Nessa poca, o grupo tocava predominantemente msicas do candombl e seu ponto de encontro era na Central do Brasil em um local chamado de Palcio de Alumnio, estrutura armada que depois foi demolida para a construo de um terminal metrovirio. Na dcada de 1970, Aureliano Gervsio da Encarnao assumiu a gesto do Gandhi e dirigiu o que Machado considerava ter sido a fase urea do Gandhi, porque no Carnaval ele conseguia colocar na rua at quatro mil desfilantes vindos de diversas casas de santo. Para ele, tamanha popularidade era devida principalmente ao seu prestgio no meio religioso, pois, alm de ser ogan da casa de Pai Nin dOgum, reconhecido babalorix da cidade, Encarnao era baiano e havia sido feito no santo em Salvador. Na gesto de Encarnao, o grupo havia ensaiado no antigo Clube do Brasil, localizado atrs da Central do Brasil, e, depois, no sobrado do rancho carnavalesco Recreio das Flores localizado na Praa da Harmonia, na Gamboa. Na virada da dcada de 1980, Encarnao faleceu e o babalorix ndio assumiu a presidncia do grupo, conseguindo um espao de ensaios em um terreno na Praa Onze, onde posteriormente foi construda a Escola Tia Ciata. Foi nessa dcada tambm, durante os anos que transcorreram entre os debates e a decretao efetiva do projeto de preservao patrimonial SAGAS, que a direo do Gandhi iniciou a procura de um espao na Zona Porturia que pudesse abrigar seus ensaios. ndio ento contatou e elegeu como presidente de honra do grupo Albino Pinheiro, fundador da Banda de Ipanema, para ajud-lo na obteno da cesso de uso de um dos imveis da regio que eram de propriedade do governo estadual. Machado conheceu as atividades do Gandhi nesse perodo, em 1985, quando era o presidente da Associao de Moradores e Amigos da Sade e participava ativamente do processo de criao do projeto SAGAS. Segundo Machado, o seu conhecimento sobre a situao imobiliria da Zona Porturia fez com que ndio tambm o procurasse 170
para saber quais imveis do governo estavam desocupados e podiam ser solicitados pelo grupo. No lento processo de obteno da cesso de uso de um imvel na Zona Porturia, o grupo no pde mais ensaiar na Praa Onze e transferiu suas atividades para o Centro Cultural Jos Bonifcio, que na poca abrigava em suas dependncias diferentes associaes e entidades. Em 1988, Machado foi candidato a vereador e, mesmo no sendo eleito, sua expressiva votao nos bairros porturios fez com que fosse indicado para dirigir esse centro cultural. E, nesse ano, o Gandhi passou a ser dirigido pelo Guerra, que construiu afinidades com Machado e o convidou para ser seu vice-presidente. Os dois ento retomaram as articulaes para obter uma sede para o grupo e, em 1992, Albino Pinheiro conseguiu juntamente com Srgio Cabral a cesso de uso do imvel da Rua Camerino. O imvel, no entanto, encontrava-se ocupado informalmente por 32 pessoas e no havia qualquer ao de reintegrao de posse sendo movida pelo poder pblico, fazendo com que o Gandhi no conseguisse se instalar nele. Com a mudana do governo estadual na virada do ano, o prdio foi novamente cedido, s que desta vez para a prefeitura, que tinha aprovar recentemente uma lei que possibilitava o desenvolvimento de projetos especficos de estruturao urbana dos bairros da Sade e da Gamboa. Os moradores informais foram ento retirados, mas o imvel permaneceu lacrado e sem qualquer uso. Findada essa gesto da prefeitura, o grupo procurou o secretrio de governo da nova gesto e soube que ela no estava interessada em permanecer com o imvel, j que o custo de sua reforma seria elevado. Segundo Machado, este secretrio ento sugeriu que os integrantes do Gandhi invadissem o imvel antes que a prefeitura o devolvesse para o estado, j que depois seria mais difcil negociar o uso do espao. E foi assim que, em 1997, o grupo se apossou da sede e reiniciou uma negociao com o governo estadual para que fosse regularizada sua cesso de uso. Alm de sua atuao poltica como representante da associao de moradores da Sade, Machado tambm possua sua trajetria de vida marcada pela presidncia da escola de samba Vizinha Faladeira, sediada no Santo Cristo. E, em 1998, Guerra props a ele que assumisse a presidncia do Gandhi, que passava por um perodo de grande desarticulao: no carnaval desse ano, o grupo havia desfilado com apenas seis integrantes de velha guarda na Avenida Rio Branco. No entanto, Machado recebeu o convite com preocupao, j que no era iniciado no candombl, e a conversa que teve com Guerra sobre isso foi narrada por ele da seguinte forma: 171
Eu falei (Machado): Voc vai me criar um problema srio. Eu no sou da religio, eu no tenho nenhum tipo de experincia. Ele disse (Guerra): Mas voc administra como se fosse um bloco. (Machado): Mas o Gandhi no um bloco, voc sabe que no um bloco, e voc sabe que eu vou levar bordoada a torto e a direito. Ele parou, pensou. (Machado): Se eu no assumir voc no vai entregar pra ningum?. (Guerra): No, no vou entregar pra ningum. (Machado): Ento me d um tempo, que eu vou tomar as minhas providncias. Foi aonde eu procurei um zelador de santo pra poder me confirmar, pra poder aprender as defesas mnimas pra me proteger.
Machado me explicou que, no Gandhi, no era obrigatrio que seus participantes fossem do candombl, embora quase todos fossem. E, por isso, para assumir sua presidncia em 2000 ele se iniciou no candombl aos 49 anos de idade, em uma casa da nao de Jeje Mahi localizada em Itagua, Baixada Fluminense. Segundo me explicou, as naes do candombl se diferenciavam pelo dialeto, pelas formas de tocar os atabaques e por seus fundamentos religiosos. Para exemplificar essas diferenas, disse que na nao Jeje Mahi eram cultuados os Voduns, que os Orixs eram cultuados apenas na nao Ketu e, na nao Angola, eram cultuados os Nkisi. Mas, como havia tido uma popularizao da nao Ketu, houve uma adaptao aos seus termos e seus orixs. Assim, me disse que seu vodun, em analogia, tinha as qualidades do orix Xang, mas era diferente na forma de cultuar. Em sua avaliao, ser vice-presidente do Gandhi sem ter iniciao no era um problema, mas como era o presidente quem devia proteger o conjunto de seus integrantes e tambm o que sofria mais com as crticas e inimizades polticas, ele devia fortalecer seu ori, termo iorubano que significava cabea, local onde se acreditava ficar o orix pessoal dos filhos de santo. E disse que no costumava frequentar candombl em outras casas, s eventualmente comparecia casa de Renato dObalua, que era uma pessoa amiga. No discurso de Machado, as oposies bem e do mal eram constantemente articuladas, junto com a dos amigos e inimigos, o que fazia com que recorresse constantemente noo de proteo, tambm presente nas letras das msicas cantadas pelo grupo. Para Machado, a ocorrncia do mal nas prticas do candombl era uma ao mgica que visava prejudicar outra pessoa e podia ser realizada apenas com o pensamento: mesmo que a pessoa no recorresse a um trabalho, ou seja, que pedisse a 172
um orix a realizao de determinado acontecimento atravs da oferta de comidas, bebidas, objetos e palavras rituais, ela podia fazer o mal se assim o desejasse.
Eu como um religioso, se eu desejar o mal de algum, desejar, dentro do meu corao, quero fazer mal a fulano, s essa vontade, dependendo do tipo de pessoa, eu j estou praticando um mal pra ela e ela vai sofrer alguma coisa. E na frente do Gandhi voc adquire muitas inimizades desse tipo. De pessoas que no vo fazer nenhum trabalho pra te derrubar, porque quando voc faz um mal voc recebe uma reao no sentido contrrio na mesma intensidade, o que bater l vai bater em voc tambm. dividido. Ento muitas vezes as pessoas no fazem, mas pensam. Pecam pelo pensamento. Quando voc faz uma oferenda, bota o nome de fulano aqui, acende uma vela, a vela um pagamento pra fazer um mal quele que voc botou o nome dele ali. Aquilo que voc pediu para aquele fulano, pode estar certo que uma parte daquilo ali vai voltar pra voc. Ento, como as pessoas sabem disso, elas preferem no fazer. Mas pensam. E no que pensam, a fora da cabea dele, a fora do ori, que a cabea, a fora dos orixs, pode provocar tambm um estrago.
Comparando as religies afro religio catlica, disse que a primeira era palpvel, porque acreditava em uma energia que trabalhava por voc ou contra voc, e havia provas de que as coisas aconteciam. J na religio catlica, voc vai igreja, ajoelha, reza, acende uma vela, a fica esperando. Considerava, assim, que era possvel acessar essa fora atravs de rituais e ultrapassar as dificuldades da vida prtica atravs da religio. E, ao me explicar a saudao a Exu, o mensageiro, no incio das apresentaes do Gandhi, falou dessa mediao que os orixs eram capazes de fazer em relao aos desejos dos homens. Machado disse que, quando os integrantes do Gandhi davam de comer para Exu antes das apresentaes, era para que ele pedisse a Ogum, orix responsvel pela proteo do grupo, que lhe abrisse caminho, ou seja, que permitisse que suas atividades transcorressem de forma pacfica e sem acidentes. Frisando existirem muitas verses sobre essa figura no candombl, disse que acreditava que Exu no era o diabo, mas um esprito de luz que estava buscando o nvel de elevao espiritual de um orix. S os Exus das encruzilhadas faziam o mal, porque ainda no tinham luz suficiente para recusarem os pedidos que eram pagos pelos homens, se referindo aos rituais de oferta de comida e bebida. Ogum era outra figura simblica central para o grupo, reverenciada no incio e durante o desenvolvimento das apresentaes e desfiles do Gandhi a cada vez que seu cantor pronunciava Ajai!. Segundo Machado, o sentido geral desse termo era 173
amuleto de paz, mas, em uma traduo literal do ioruba, era uma referncia a adja, termo que significava cachorro. Explicou ento que o cachorro era a maior oferenda que podia ser dada a Ogum e que esse orix era o senhor da estrada. Assim, quando se ofertava um cachorro, o que se desejava em troca era a paz para caminhar. Completando o rol das principais figuras simblicas do grupo estava Xang, orix que era seu patrono, e as iabs, termo para designar os orixs femininos, como Iemanj, Ob, Oxum, Oy e Nan, entre outras. Ao me explicar a formao da diretoria do Gandhi, Machado falou que ela se dava por afinidade, que as pessoas se aproximavam ou se afastavam conforme concordavam ou no com a verso do Gandhi que estava sendo feita pelo presidente. E que, ao longo dos anos, muitos integrantes saram do grupo formaram seus prprios afoxs ou blocos afros. Machado ento contou que a ltima eleio que havia sido realizada para a diretoria tinha ocorrido na sede do grupo, em 2003, quando foram montadas quatro chapas. E ele havia sido reeleito com 56% dos quase 600 votos, mas, como demonstrou sua narrativa, o processo eleitoral no havia sido harmnico e havia envolvido tambm sua reputao como morador antigo da Zona Porturia. Machado contou que um dos integrantes do Gandhi que havia montado uma chapa concorrente tinha sido ajudado por ele a se estabelecer na cidade, atravs do custeio de sua passagem de Salvador, do abrigo em sua casa e da obteno de um emprego. E que, ao sair candidato a presidncia do grupo, havia falado besteiras de mim para quem no devia e sido quase morto, no fosse a interveno de seu filho, que o levou at a Central do Brasil para pegar um nibus e ir embora. Machado ento explicou que ele morava havia 40 anos na Gamboa e que as pessoas do Morro da Providncia no se referiam a ele como sendo o presidente do Gandhi, mas como sendo o Seu Machado. E que os valores do pessoal que vive na bandidagem eram muito rgidos, sendo o respeito e a lealdade dois dos mais importantes.
As pessoas l no morro quando se referem a mim no se referem ao presidente do Gandhi ou ao Machado. Se referem ao Seu Machado. E quando eu passo, se o cara tiver armado, ele esconde a arma. Ele sabe que eu no tenho que ficar olhando pra arma dele. Se eles tiverem fumando ou tiverem cheirando, eles se afastam para que eu no veja eles fumando nem cheirando. Eles tm respeito por mim. Ento, uma pessoa que respeitada, voc chegar e falar mal dele j complicado. As pessoas sabendo que voc t comendo e bebendo s minhas custas, t falando mal de mim, o negcio complica mais ainda. Os valores do pessoal que vive na bandidagem, eles tm determinados valores que so muito 174
rgidos. De uma certa forma at errado, mas so rgidos. A lealdade uma delas, se voc no leal voc deve morrer. E foi por causa disso que ele quase morreu.
Entre os motivos que Machado avaliou terem sido os causadores de algumas inimizades e discordncias entre os integrantes do Gandhi que se afastaram do grupo aps ele assumir a presidncia, era ele ser branco e no negro, no ser antigo no candombl e ter implantado algumas modificaes na forma do grupo se apresentar, principalmente no que dizia respeito s suas msicas e letras. Machado contou que sua verso do Gandhi havia comeado a ser elaborada logo que assumiu a presidncia do grupo em 2000. Nesse ano, o ento ministro da cultura e integrante do Ijex Filhos de Gandhi de Salvador, Gilberto Gil, procurou o colunista de um jornal carioca e solicitou que o ajudasse a encontrar o Filhos de Gandhi carioca publicando uma reportagem. Sua inteno era apoiar as comemoraes dos 50 anos do grupo oferecendo um financiamento do governo. Aps Machado contatar Gil, ele articulou o uso gratuito do Clube dos Porturios, localizado no Santo Cristo, para que o Gandhi realizasse os ensaios do Carnaval de 2001. E montou uma grande estrutura para esses ensaios, com camarotes, aparelhagem de som e iluminao, um equipamento que Machado calculou ter custado por semana cerca de cinco mil reais. A combinao era que o prprio Gil frequentasse os ensaios do grupo e chamasse convidados para atrair o pblico, mas isso no ocorreu. E, como o Gandhi tinha se desarticulado no final da gesto de Guerra, essa grande estrutura acabou ficando subutilizada durante os ensaios, que s chegaram a reunir cerca de trinta pessoas por semana. Apesar do fracasso, a visita que Machado fez nesse ano ao presidente do Gandhi soteropolitano o influenciou a iniciar algumas alteraes no grupo. Segundo Machado, foi nela que ele percebeu que o sucesso popular conseguido pelo Gandhi de Salvador, que colocava na rua cerca de dezesseis mil desfilantes fantasiados no Carnaval, era a prtica que tinha de cantar msicas de sucesso radiofnico em portugus e adaptados para o ritmo ijex, e no cantigas em ioruba como era feito no Rio de Janeiro. Com isso, todos os folies conseguiam acompanhar as canes durante o desfile, mesmo no sendo do candombl. Quando props alterar as apresentaes do Gandhi, o desejo de Machado era popularizar e profissionalizar as apresentaes do grupo. E a mudana das letras das msicas para o portugus e a acelerao de seu andamento visavam resolver ainda trs 175
aspectos que ele considerava negativos na cantoria do candombl na rua: as pessoas que no eram da religio e assistiam ao grupo no sabiam o que fazer durante os cnticos; havia a possibilidade de elas serem negativamente afetadas pela energia das msicas; e a forma prpria de cantar essas msicas requeria uma entonao mais severa que retirava a alegria do profano. Aps sua ida a Salvador, o processo de convencimento do grupo em relao mudana nas msicas foi gradativo e Machado contou que s comeou a dar resultados havia cerca de trs anos. Mas essas inovaes no significavam, em sua opinio, que o Gandhi tivesse deixado de ser um candombl de rua, j que ele continuava a realizar seus preceitos religiosos antes das apresentaes.
Quando voc tem um afox desfilando, ou indo pra rua, se ele realmente um afox ele um candombl de rua. Ainda que ele no cante as cantigas de candombl na rua, como os Filhos de Gandhi eu fao questo hoje de no cantar, s levar a parte cultural, mas para colocar o Gandhi na rua eu tenho um preceito religioso que tem que ser cumprido. Ento na realidade ele no deixa de ser um candombl de rua, mesmo ele sendo um afox cultural.
Assim, no sistema de autenticidade operado por Machado, sua verso do Gandhi no havia retirado o que considerava ser a principal caracterstica do grupo, que eram as prticas religiosas do candombl. Sua opo por desenvolver um afox cultural era justificada mais pelo desejo de tornar o grupo e sua tradio populares e passveis de concorrerem no disputado mercado dos blocos carnavalescos 15 do que de alterar os preceitos religiosos que tinham feito o Gandhi ser reconhecido como uma herana cultural entre o povo do santo e tambm entre os habitantes da Zona Porturia. Na opinio de Machado, o prestgio social do Gandhi entre as entidades que valorizavam a cultura negra e os cultos afros era devido sua abordagem profana da prtica religiosa do candombl; e, quando um vereador ou deputado realizava um evento relacionado a esses temas, chamava o Gandhi para se apresentar e levar um canto de paz. Mas ele se queixou da viso que as entidades e partidos polticos tinham do Gandhi, que em sua opinio era tratado como uma casa de caridade e no como um grupo que se apresentava profissionalmente e devia receber um bom cach. No entanto, ele tambm considerava que o processo de profissionalizao do Gandhi no estava consolidado, tanto por motivos externos, que ele atribua falta de
15 Sobre a introduo de uma lgica de comercializao e profissionalizao nas prticas carnavalescas, ver Cavalcanti, 1994. 176
reconhecimento de sua tradio religiosa e cultural, quanto por internos, referentes prpria organizao do grupo. Reclamando da falta de profissionalismo dos integrantes do grupo, Machado contou que muitas vezes pagava as passagens de nibus e o jantar ou almoo para que os integrantes da diretoria participassem dos eventos. E tambm precisava que a produtora do grupo, Regina, se responsabilizasse pelas fantasias, lavando-as e passando- as. A falta de dinheiro e os baixos cachs que o grupo recebia eram recorrentemente motivos para troca de acusaes de roubo, j que muitos integrantes se queixavam de no receber nada para tocar e danar, embora Machado contra argumentasse que todo o pouco dinheiro que entrava cobria as pequenas despesas de manuteno do Gandhi. Muitos tambm se queixavam dos constantes atrasos nas apresentaes do grupo, havendo mesmo quem fizesse piada, dizendo que era bloco de baiano, associando assim o atraso a uma suposta caracterstica cultural e regional. E, nesse projeto de tornar o grupo profissional, a posse definitiva da sede da Rua Camerino e sua reforma eram tidas como as principais realizaes que Machado desejava para sua gesto. Para tanto, em 2007 o Gandhi se aliou ONG Batucadas Brasileiras, dirigida pelo jornalista Maurcio Nolasco, e elaborou um projeto de transformao do sobrado da sede, que estava sem telhado e com as estruturas comprometidas, em Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi. Esse projeto pretendia, alm de reformar o imvel, preservar e divulgar o Gandhi como patrimnio imaterial carioca ligado cultura afro, atravs das instalaes de um Centro de Memria do Afox Filhos de Gandhi que reunisse um acervo de documentos sobre o grupo; de um Memorial da Abolio na Praa dos Estivadores que exibisse painis com imagens e textos sobre a contribuio das etnias negras na formao da sociedade brasileira e possusse uma concha acstica para a apresentao de shows de msica popular brasileira; e de um Monumento aos Estivadores que deveria ser uma escultura escolhida por concurso pblico e pretendia valorizar as atividades porturias. Todos os subprojetos do Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi tinham como base argumentativa a necessidade de criao de smbolos que se sobrepusessem 177
memria negativa dos tempos lamentveis da escravido, como era argumentado no projeto. Como sugerido pelo estudo sobre prticas de memria do crtico literrio Andreas Huyssen (2000), as aes monumentais idealizadas pelo Gandhi e pelo Batucadas Brasileiras buscavam, assim, construir na Zona Porturia espaos de redeno dessa memria, associada ao evento histrico da escravido, classificado como traumtico pela sociedade brasileira. E se diferenciava, portanto, da ao de reparao articulada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal. Juntos, o Gandhi e o Batucadas haviam conseguido, em 2008, o apoio de um novo personagem poltico para seus projetos: a atriz Zez Motta, antiga integrante do Movimento Negro Unificado e responsvel pela Secretria Estadual de Promoo da Igualdade Racial SEPIR. E, repetindo a estratgia de apadrinhamento bem-sucedida com Albino Pinheiro, o Gandhi a convidou para ser a nova madrinha do grupo. E, durante o ano de 2009, presencie duas ocasies em que integrantes da diretoria do Gandhi buscaram obter a cesso definitiva do imvel e recursos para sua reforma. Em abril, acompanhei a visita de assessores das secretarias municipais de obras e de cultura, que foram recebidos por Machado, Nato, Tia Creusa e Carlinhos. Mas apesar das grandes expectativas do grupo, eles foram informados de que as secretarias no poderiam realizar a reforma, j que qualquer obra precisava de licitao e de comprovao da propriedade do imvel. Ao longo da conversa, um dos assessores perguntou a Machado o porqu do grupo estar querendo ficar naquele espao e observei, ento, ele articular um discurso que movimentava o mito da Pequena frica. Segundo Machado, o espao era importante para o grupo por causa de sua energia, j que ali tinha sido o mercado de escravos e, no sobrado em frente, havia sido fundado o primeiro sindicato do pas, que era o dos estivadores. E que, por causa dessas atividades do mercado dos escravos e do porto, o espao havia se tornado conhecido como Pequena frica. Um dos assessores ento ressaltou que o grupo reunia vrias casas de candombl e, em seguida, Machado entoou uma das msicas do Gandhi, que falava de sua conexo com o mundo dos orixs e com a cidade do Rio de Janeiro. E o outro assessor contou que gostava de batuque porque a av dele havia sido da umbanda, confirmando a ressonncia que o grupo possua a partir de sua conexo com as religies do santo. Em junho, acompanhei tambm o lanamento do Projeto do Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi, que contou com a presena de sambistas, prestigiados religiosos do candombl e da umbanda, e representantes dos governos 178
municipais, estaduais e federais, entre eles a do presidente da Fundao Cultural Palmares, Zulu Arajo, e a de Zez Motta. O evento foi iniciado pela manh, com um ritual na sede, onde Me Torodi buscou estabelecer uma conexo com os espritos dos escravos do antigo mercado do Valongo para que eles parassem de impedir que o Gandhi caminhasse e realizasse a reforma da sede, auxiliando o grupo na transformao daquele espao em um centro de referncia da memria negra. Aps a realizao de uma oferenda para Exu e de um culto para o fogo, atravs do acendimento de uma fogueira que visava atrair a prosperidade para os participantes do ritual, Torodi entoou cnticos com o auxlio de filhos de santos de sua casa e fez alguns sacrifcios de animais. E encerrou o ritual dizendo que Machado e Nolasco deveriam organizar a distribuio de quentinhas de comida aos moradores de rua da Zona Porturia, explicando que o agradecimento deles iria ajud-los. Depois, foi realizado um debate na sede do Batucadas Brasileiras com breves falas dos presentes e servida uma feijoada no almoo. Nesse nico evento haviam sido articulados, assim, orixs, elementos da natureza, mortos, plantas, animais e diferentes representantes do mundo dos homens, dos moradores de rua aos seus mais prestigiados representantes religiosos, culturais e governamentais.
O SAGRADO E O PROFANO EM DESFILE PELAS RUAS DA CIDADE
O primeiro evento em que observei o Gandhi desfilando foi o Presente de Iemanj, festejado no dia 02 de fevereiro com um grande cortejo pelas ruas do Centro da cidade. Nessa festa, se reuniram os integrantes de diversas casas de candombl, cada qual participando com a elaborao e oferta de seu prprio presente, que eram oferendas para as iabs, simbolicamente associadas s guas. Todo evento realizado na rua pelo Gandhi era precedido por um agrado a Exu e, na vspera do Presente de Iemanj, era feita a maior oferenda do ano para que o orix trouxesse, atravs de sua mediao com Ogum, proteo ao grupo durante os desfiles de Carnaval e o conjunto de suas apresentaes. Assim, a preparao do Presente de Iemanj do Gandhi se iniciava cerca de um 179
ms antes com a abertura de diferentes jogos de bzios por trs integrantes da diretoria do grupo, para saber que oferenda Exu iria comer. No Presente de 2009, estes jogos foram feitos separadamente por Machado, Carlinhos e Ulisses e, do conjunto de resultados, foi definido o que seria ofertado. Machado me explicou que agrado era o que as pessoas normalmente denominavam de sacrifcio ou matana, e consistia em uma troca de energia, tambm chamada de ax, atravs do sangue e de alguns rgos do animal. Somente o ax era oferecido nas oferendas para os orixs, as demais partes do animal deviam ser consumidas pelos participantes e convidados do ritual, por isso comumente eram servidos pratos elaborados com frangos, cabritos, patos e pombos nas casas de candombl. Mas, no caso da oferenda para Exu, todo o corpo do animal era ofertado no sacrifcio e, dependendo do jogo de bzios, ele podia querer comer em sua mesa, outra maneira de se referir ao despacho, um bicho de quatro pernas, um bicho de duas pernas e pena ou comida seca, que eram as que no tinham sangue, como as frutas e legumes, alm de beber cachaa. Na vspera do dia do cortejo, os homens da diretoria do Gandhi fizeram vrias oferendas a Exu por todas as esquinas da Zona Porturia e do Centro da cidade por onde iriam passar os balaios do grupo at que fossem colocados na Baa de Guanabara. Machado no concordou que eu participasse deste ritual, mas permitiu que eu assistisse a feitura dos balaios, que eram cestos de palha preparados com comidas, folhas e flores para que neles fossem colocadas as oferendas. Cheguei sede s 07 horas e, por causa do horrio de vero, o sol ainda despontava no horizonte. A porta da sede estava aberta e dentro dela j se encontravam Regina, Tia Creusa, Carlinhos, Galeto e Nato, alm dos dois cachorros vira-latas que moravam no local. Havia uma diviso entre as atividades consideradas femininas e masculinas. Regina e Tia Creusa se movimentavam em torno de uma mesa improvisada com a colocao de uma tbua de madeira sobre um enorme carretel. Nela, estavam dispostos trs grandes balaios e as comidas e enfeites que seriam ofertados para Iemanj, Oxum e Oy, que Regina explicou serem as iabs ligadas ideia de maternidade. Regina estava vestida com uma camiseta de pijama e cala azuis claros e, ao longo do ritual, envolveu com um pano da costa sua cintura, e Tia Creusa estava de blusa de regatas brancas e uma saia rodada azul e florida que lhe cobria do peito at as pernas. Ambas estavam de cabelos presos. Carlinhos e Galeto e Nato foram vestidos com camisetas, calas ou bermudas, e circulavam pelo interior e o exterior da sede, mas sem interferirem diretamente na feitura dos balaios. 180
Dentro dos balaios, foram postas canjicas cozidas e flores de palmas brancas dispostas de maneira circular, fazendo uma coroa no cesto, entrepostas por midas flores brancas chamadas de chuveirinho. Ao redor do balaio de Iemanj, havia flores de pano, entre grandes azuis e midas brancas, colocadas por cima de um farto arranjo de fil branco. Os enfeites externos dos outros dois balaios diferiam do de Iemanj, por no possurem flores de pano e por terem sido feitos com cetim das cores lils e rosa. Assim, mesmo ornados, obedeciam a uma hierarquia no Presente oferecido, onde Iemanj, considerada a me de todos os orixs, possua maior importncia. Regina me explicou que as oferendas para as iabs seriam colocadas por cima da canjica, e podiam ser perfumes, espelhos, bijuterias ou mesmo moedas. Enquanto elas terminavam a preparao dos balaios, havia certa agitao no grupo porque Machado ainda no havia chegado com as velas e a reza dos balaios precisava comear. Tia Creusa ento reclamou que era necessrio tocar para Exu antes que o sol invadisse a sede sem teto e atingisse os balaios. Mas Carlinhos preferiu aguardar, argumentando que no podia botar Exu sem luz e despachar pad apagado, utilizando o termo que designava o despacho especfico para Exu e se referindo falta de velas. Galeto ento recolheu algumas folhas de bananeira e com elas limpou o cho em frente mesa e, junto com Nato, colocou duas quartinhas no cho, uma com um lquido branco turvo e a outra com folhas; dois alguidares, um com farinha branca e outro com farinha misturada com azeite de dend; e uma pequena jarra de cermica. Carlinhos foi ao mercado e rapidamente voltou com as velas, as acendendo em diferentes locais da sede, uma delas em frente ao pad. Ao fim da colocao, Carlinhos bateu palma cinco vezes para Exu, Tia Creusa respondeu Aleluia e Galeto bateu o atabaque. Machado chegou logo depois e todos entoaram vrias cantigas para Exu, acompanhados do toque dos atabaques de Nato e Galeto. At que Carlinhos, Machado e Tia Creusa levaram o pad para fora da sede, atravessaram a Rua Camerino, e o depositaram em um dos vrtices da Praa dos Estivadores, na esquina com a Rua Baro 181
de So Felix. Regina e Tia Creusa pegaram ento uma bacia de plstico com vrios acas, que eram um alimento feito com uma folha de bananeira dobrada em um pequeno tringulo, onde dentro havia uma goma branca de milho. E todos os que estavam na sede participando da feitura do presente passaram pelo corpo os acas, os despejando em uma bacia em seguida, gesto que Regina me explicou ser de purificao. Elizete chegou e auxiliou na finalizao dos enfeites dos balaios. Aps os balaios ficarem prontos, eles foram portados em cima da cabea pelas mulheres e conduzidos at o carro de Machado, que estava estacionado na porta da sede. A concentrao do cortejo estava marcada para as 11 horas na Cinelndia, e sua sada para a estao de barcas da Praa XV para as 13 horas. O carro ento percorreu a Rua Camerino at a Avenida Marechal Floriano, entrou na Avenida Passos, atravessou a Avenida Presidente Vargas, seguiu at a Avenida Repblica do Paraguai, passou por baixo dos Arcos da Lapa e dobrou na Rua Evaristo da Veiga, encontrando a Cinelndia (percurso assinalado em amarelo na foto area seguinte). Segundo Machado, havia sido em cada uma das esquinas desse trajeto que foram feitos despachos para Exu na noite anterior.
Os participantes do cortejo j comeavam a se concentrar na Cinelndia, vindos de diversas casas de candombl do estado, cada qual trazendo o seu balaio. Na praa tambm estava estacionado um carro de som, onde a charanga do Gandhi junto com outros ogans cantava msicas do grupo e outras msicas populares que faziam referncia s figuras das iabs. Os diversos balaios foram depositados embaixo de tendas de plstico desmontveis brancas e, protegendo-os, havia ias e ialorixs, sendo que essas tambm jogavam perfume e benziam, atravs de breves rezas e com a 182
passagem de flores nos braos, os participantes que aguardavam em pequenas filas para oferecer sua flor ou objeto. Nessa concentrao, que durou cerca de duas horas, uma grande roda de dana foi feita na praa em frente ao carro de som, composta por participantes vestidos predominantemente de roupas brancas. O evento foi extremamente festivo e o nico momento em que imperou um tom mais solene foi na sada do cortejo da Cinelndia, quando mulheres trajadas de baianas carregaram os balaios nas cabeas, em uma fileira horizontal frente de todos os participantes, e caminharam em direo Praa XV (percurso indicado em vermelho na foto area). Nem todas as cerca de mil pessoas que acompanharam o cortejo entraram na barca da Baa de Guanabara, j que muitos haviam aproveitado o horrio livre do almoo para participarem do presente e tiveram que retornar aos seus trabalhos.
Os que entraram na barca, no entanto, intensificaram o toque dos atabaques, as danas e cantos, sendo que alguns viraram no santo durante a travessia. Enquanto a barca navegava, muitos jogaram flores e bebidas espumantes nas guas. E, no momento em que a barca parou no meio da Baa, foram ofertados os balaios nas suas duas sadas laterais. Os participantes ento se aglomeram nas janelas das barcas para assistirem a entrega dos balaios e baterem palmas e fotgrafos e cinegrafistas se acotovelaram para conseguir uma boa imagem. Encerrando o evento, a barca retornou Praa XV, onde os 183
participantes do cortejo ficaram em torno de barraquinhas de bebida e comida, enquanto o carro de som tocava samba. Alguns dias depois, comeou o Carnaval. No dia 21 de fevereiro, sbado, houve o desfile considerado mais importante pelos integrantes do Gandhi, que era o realizado no fim da tarde na Avenida Rio Branco. Ao meio-dia, integrantes do grupo ajudavam Regina a separar e distribuir os kits com as fantasias completas na Praa da Harmonia; Pratinha estirava no gramado da praa as fantasias que ainda estavam com a tinta da impresso secando; e Machado ia e vinha com seu carro trazendo da casa da costureira mais fantasias para receberem a serigrafia. E, na meia hora em que fiquei na praa, vrias pessoas passaram e pegaram suas fantasias. A concentrao do grupo estava marcada para as 15 horas, na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua da Alfndega, horrio em que a avenida estava repleta de blocos afros. Depois de alguns minutos, os integrantes do Gandhi comearam a chegar, reunidos em grupos de amigos, de casas de candombl, de moradia e familiares. Vestiram suas fantasias e, enquanto todos aguardavam o horrio do desfile, foi feita uma roda de samba. Havia uma grande quantidade de pessoas naquele desfile, que tinha conseguido reunir tambm dissidentes do grupo e crticos presidncia do Machado. As fantasias trajadas, embora fossem todas do grupo, eram de carnavais distintos, o que possibilitava a percepo concreta da permanncia do grupo no tempo. O desfile comeou por volta das 17 horas com cerca de 200 integrantes, com o Gandhi encerrando o dia reservado pela RIOTUR, rgo de turismo municipal, para as apresentaes dos afoxs e blocos afros. Na frente dos desfilantes, ficaram o estandarte do grupo e os cantores, em um revezamento de vozes no carro de som entre Cotoquinho, Ulisses e Machado. Os msicos da charanga, com cerca de cinquenta instrumentos, se posicionaram na primeira ala do desfile e, na segunda ala, vieram os demais homens e mulheres do grupo. O batuque da charanga produzia um som muito alto e compassado e, na frente do desfile, vrios folies embriagados brincavam fazendo gestuais que remetiam aos transes do candombl, demonstrando que compartilhavam de seus rituais. Os desfilantes, no entanto, ao mesmo tempo em que estavam festivos, mantiveram um gestual e comportamento mais comedido, no limite entre o sagrado e o profano. Quando 184
o desfile chegou ao fim da avenida, na altura da Cinelndia, alguns integrantes se reuniram em frente esttua de Mahatma Gandhi e Machado fez um breve discurso sobre os ideais de paz do grupo. Dois dias depois desse desfile, houve outro na orla da Praia de Copacabana, com concentrao marcada para as 14 horas no Posto 6. A grande novidade do dia foi a estreia de Edej como porta-estandarte, que Machado me explicou ser um reconhecido danarino de ritmos afros. Edej participava recebendo cach do bloco afro Maxambomba da Baixada Fluminense, mas tinha aceitado desfilar de graa pelo Gandhi, confirmando o prestgio do grupo entre os afoxs e blocos afros da cidade. O desfile saiu s 17 horas em direo ao Posto 5 da praia. E, nele, Carlinhos me disse que havia uma disputa muito grande pela presidncia do Gandhi, que entre os participantes da diretoria havia quem quisesse montar uma chapa para concorrer com Machado, como Tia Creusa e Cotoquinho. Ao final do percurso, foi formada uma roda de samba de umbigada na pista da praia, quando os msicos da charanga se alinharam de um lado e, sua frente, as mulheres do Gandhi danaram. Depois que a pista foi aberta aos carros, s 18 horas, formou-se uma roda de macumba no calado. Na roda de samba, vrias pessoas que no eram integrantes do grupo participaram danando, principalmente mulheres. J na roda de macumba, havia um controle para que apenas os integrantes do Gandhi participassem, j que as msicas tocadas possuam regras quanto aos papis de gnero e suas danas e tambm previam a execuo de determinados movimentos. Assim, embora fosse experenciada como uma brincadeira, essa roda definia os limites do prprio grupo e tambm do povo do santo, que eram os capazes de compreender suas coreografias e mesmo as piadas que eram feitas a partir de inverses deliberadamente propostas, como a entrada jocosa de um ogan em uma msica que devia ser danada somente por mulheres. O ltimo grande evento carnavalesco do Gandhi ocorreu no dia seguinte, tera- feira de Carnaval: a participao no desfile de um bloco afro no Sambdromo de Juiz de Fora. O encontro dos integrantes ocorreu s 08 horas na sede e quando cheguei, com meia hora de atraso, muitos j estavam dentro de um nibus bem equipado para viagens de estrada, com poltronas, ar condicionado, copinhos de gua e banheiro. Antes de 185
sairmos, Tia Creusa reclamou dos integrantes que no foram de roupas claras para o encontro porque, segundo ela, era esperado do povo do santo que ele levasse uma mensagem de paz e chegassem todos de roupas brancas. Ainda aguardamos cerca de uma hora para sairmos, j que alguns integrantes estavam retidos na Linha Amarela por causa de um tiroteio em Jacarepagu. Quando o nibus saiu j eram quase 11 horas e havia nele menos de trinta pessoas, sendo que tinham se inscrito previamente para participar da atividade quarenta, fato que Machado criticou no discurso de partida, retomando sua argumentao de que o grupo tinha de se profissionalizar. Durante a viagem, alguns dormiram e outros ficaram conversando, sempre com muitas brincadeiras, e Dona Rosa ofereceu a todos salgadinhos feitos por ela, como coxinhas, empadas, bolinhos de aipim e de carne. A mulher de Roberto tambm levou salgadinhos e compartilhou com os mais prximos de sua poltrona. Havia assim uma convivncia, e tambm uma tenso, entre as prticas religiosas, profissionais e recreativas do Gandhi, fazendo com que muitos participassem dos desfiles para se divertir e estabelecer laos de amizade e outros, principalmente a diretoria e os msicos, desejassem um maior reconhecimento social, fosse como representantes da cultura negra e dos cultos afros, fosse como grupo comercial. Chegando a Juiz de Fora, o nibus se direcionou para um morro ocupado por habitaes populares onde, no alto, estava localizada a casa de candombl do babalorix e presidente do Afox Vinda do Povo na Rua, que havia convidado o Gandhi para desfilar. Fomos recepcionados por ele e por sua esposa, que Machado me contou serem ambos baianos. Na casa, havia dois cmodos com mesas arrumadas para o almoo: no cmodo menor e prximo entrada da casa, ficaram a diretoria do grupo e os msicos da charanga com suas esposas; e no maior e mais ao fundo, ficaram os demais desfilantes. O almoo era dobradinha com agrio e, na mesa, estavam dispostos farinha, po e pimenta. Os pratos j vinham fartamente prontos da cozinha e foram servidos por mulheres da casa. Para beber havia cerveja e cachaa. Comeou ento uma srie de brincadeiras entre Machado e o babalorix da casa, s vezes em um tom competitivo, que abordaram os fundamentos e prticas do candombl que eram considerados certos e errados. Ao mesmo tempo, as mulheres dos dois trocavam simpatias e presentes, como uma flor de pano que foi entregue a Helenice, namorada de Machado. Estas trocas e provocaes fazia com que a interao dos dois casais ganhasse destaque entre os presentes no almoo, fossem desfilantes ou 186
filhos de santo da casa, reforando as figuras de autoridade e de beleza de ambos os grupos, associadas oposio masculino e feminino. Machado colocou muita pimenta em seu prato e foi debochado por Nato e Alfredo, que contaram antigas histrias sobre integrantes que, de tanto usarem pimenta no prato, na hora de tocar ficaram suando. Bebi um pouco de cachaa e de cerveja, aps ter observado que havia outras mulheres fazendo o mesmo, mas Nato me disse que eu j estava ficando com o olho baixo e devia parar de beber. E lembrei-me de ter ouvido alguns vezes comentrios entre os integrantes do grupo sobre o uso de bebidas e drogas nos dias de desfile, que se referiam sempre a uma necessidade de controle para que o imaginrio sobre os aspectos sagrados que o Gandhi portava no fossem questionados por um comportamento ofensivo e associado ao excesso, noo onde se inclua tambm a comida. Aps o almoo, foi combinado um intervalo de uma hora at a sada para o desfile, onde alguns foram passear nas redondezas, dormir no nibus ou conversar. Ao final do intervalo, os integrantes do Gandhi comearam a vestir as fantasias, e Gustavo auxiliou algumas de seus amigos a amarrarem os turbantes. Alfredo, que estava distante de Gustavo, comentou ento comigo, em tom de ironia e desaprovao, que no ia para o lado dele porque batia uma brisa muito fresca, se referindo a Gustavo e seus amigos serem homossexuais. No apenas desta vez, mas em situaes envolvendo outros integrantes do grupo ou na configurao de alas dos desfiles carnavalescos, havia nas divises dos papis masculinos e femininos uma afirmao constante de espaos. Assim, homens heterossexuais e homossexuais eram separados em agrupamentos e espaos de macho ou de viado. E, nos espaos femininos, as diferenciaes ocorriam entre os valores associados beleza: j que as fantasias eram iguais para todos, as mulheres buscavam se distinguir atravs da maquiagem, da altura dos saltos dos sapatos, de enfeites como braceletes, colares e brincos, e no uso de apliques nos cabelos e amarraes especiais dos turbantes. Embora nessa valorizao da noo de beleza o excesso do luxo ou da exposio do corpo tambm fosse visto com reprovao. O nibus ento se dirigiu at o Sambdromo da cidade e, no caminho, Machado entoou algumas msicas no microfone do nibus e tambm disse palavras de incentivo, para que os integrantes fizessem um espetculo bonito. Em outro nibus, foram os cerca de cinquenta integrantes do Afox Vinda do Povo na Rua, que eram todos da casa de candombl onde havia sido oferecido o almoo. Na concentrao do desfile, seu 187
babalorix disse que preferia convidar para desfilar o Gandhi a chamar pessoas de outras casas de candombl de Juiz de Fora, j que havia muita traio no local, repetindo, assim, as falas de Machado sobre proteo, maldade e inimizade no candombl. Ficamos cerca de uma hora concentrados e, durante este perodo, os msicos da charanga tocaram e Roberto fez alguns movimentos de capoeira em uma roda, mas foi repreendido por j estar vestido com a fantasia do Gandhi e parou. Na entrada na avenida, na primeira ala desfilaram os integrantes dos dois afoxs. Os do Vinda do Povo na Rua vestiram fantasias que no seguiam o mesmo padro e que remetiam ao imaginrio da cultura africana e dos cultos do candombl, composto por caadores, baianas, sacerdotes e vestidos estampados com folhas ou decorados com bzios. Os integrantes do Gandhi desfilaram com as fantasias completas. Aps os desfilantes, estava a ala da charanga, composta por msicos dos dois afoxs e um carro de som. E, por ltimo, havia uma ala de capoeiristas. At a metade da passarela, foi entoada a mesma msica do Afox Vinda do Povo na Rua, que tinha como enredo Oxossi Caador. Em seguida, Ulisses e Machado cantaram diversas cantigas do Gandhi. O Gandhi era, assim, de central importncia na apresentao do afox mineiro, fosse por possuir um grande prestgio entre s entidades locais ligadas cultura negra e ao candombl, fosse quantitativamente em seu desfile. No entanto, as arquibancadas do Sambdromo estavam muito vazias, demonstrando que, a despeito desse prestgio, dentro do sistema do prprio carnaval os afoxs no eram to valorizados. O combinado era que ao fim do desfile fosse feita uma roda de samba na disperso do Sambdromo, mas o espao estava muito tumultuado com participantes de outros blocos e a roda no foi realizada. Machado ento reuniu os integrantes do Gandhi, que voltaram para jantar na casa de candombl. O jantar, no entanto, no se prolongou e, enquanto todos se organizavam no nibus para partir, Dona Rosa cantou alguns partidos altos e sambas e outra senhora cantou antigas serestas. Quando o nibus saiu, ainda houve um pouco de brincadeira, mas logo todos ficaram quietos pelo cansao e alguns dormiram. Alm desses desfiles, a diretoria do Gandhi havia ainda participado nesse Carnaval de 2009 em um bloco em Santa Teresa e em um desfile da escola de samba Cubango, do Grupo I dos desfiles oficiais cariocas no Sambdromo. E, no conjunto das atividades que acompanhei, percebi como as noes de espao para o Gandhi se estendiam para fora dos limites territoriais do Morro da Conceio: incluam locais da cidade considerados politicamente importantes dentro do circuito de valorizao da 188
cultura negra, como a Cmara dos Vereadores e os marcos territoriais associados Pequena frica; e espaos utilizados durante o perodo de carnaval, como a Avenida Rio Branco e os sambdromos; e tambm os ocupados pelo circuito do povo do santo, que eram as casas de candombl e afoxs. E, em cada um desses espaos, os seres no humanos, como a Pedra do Sal, as esquinas das ruas, as guas da Baa de Guanabara, os animais, as folhas e flores foram importantes participantes nas apresentaes do grupo; pois, atravs da mediao que eles possibilitavam, seus integrantes pediam caminho para passar e se conectavam com seus orixs e ancestrais.
O MUNDO DOS ORIXS NA CASA DE ME MARLENE DOXUM
Para compreender os aspectos religiosos e mgicos que estavam sendo movimentados com a utilizao da noo de Pequena frica pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e pela diretoria do Afox Filhos de Gandhi, solicitei Me Marlene dOxum que frequentasse sua casa de candombl. Marlene era participante assdua dos eventos do Gandhi e sua casa ficava localizada no Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do Governador. Ligados a sua casa de candombl como filhos de santo, havia tambm outros participantes constantes das atividades do Gandhi: Nazar, Luan, Juan, Bebel e Gustavo. Alm deles, tambm visitavam sua casa em dia de festa os ogans Nato, Galeto e Ulisses. Comecei a frequentar a casa no incio de 2009, enquanto acompanhava as atividades carnavalescas do Gandhi. Para chegar a ela, tomava o nibus 324 - Ribeira, que saa do Castelo e passava pela Central do Brasil. Ao saltar do nibus no segundo sinal da Vila Pan-Americana, andava em direo Rua dos Manjolos onde, na esquina de um bar, esquerda, estava a entrada para o Beco dos Manjolos, que conduzia para uma ladeira estreita com trechos em degraus e cercada por diversas casas, entre elas a de Marlene. Todo o percurso, da Central do Brasil at a casa, levava cerca de uma hora e meia e era o que usualmente Marlene fazia para ir s atividades do Gandhi. 189
O porto de ferro do barraco de Marlene costumava permanecer fechado, mas nos dias de festa ficava aberto. Passado o porto, havia um pequeno jardim onde ficava o assentamento de Exu, espao sagrado formado por diversos objetos. Virando direita desse jardim, havia a porta de entrada da sala da casa: ao centro, ficava um mastro de madeira; ao lado direito, trs bancos de madeira perfilados eram destinados assistncia, denominao dos convidados das festas; e, na parede contrria, um tablado elevava do nvel do cho os ogans e seus atabaques, diferenciando-os da roda de dana que se formava sua frente e ao redor do mastro. As paredes da sala eram ainda o suporte de um quadro pintado com uma figura de Oxum, de duas fotos da Casa Branca, e de uma foto de seu filho Marcelo, principal autoridade masculina da casa. Nesta sala principal havia trs portais, todos eles ornados com uma franja de capim que, aps a passagem do tempo, haviam se tornaram palha. Ao lado esquerdo da entrada principal tinha uma porta que permanecia quase sempre fechada por uma cortina amarela e que conduzia ao cmodo considerado mais restrito e sagrado da casa, contendo diversas imagens de santo, quartinhas e objetos rituais. Mais adiante, uma porta levava para a copa, que possua uma mesa grande e cadeiras. E nesta copa havia outra porta que conduzia cozinha, espao frequentado principalmente pelas mulheres. No meio da cozinha, mais uma porta ligava ao quarto onde os filhos de santo se vestiam e onde os orixs eram desincorporados, ou seja, onde os filhos de santo eram retirados do estado de transe. Neste quarto, um pequeno banheiro servia ainda de local para os banhos de folhas que os filhos de santo tomavam durante determinados momentos do ritual. Tanto da cozinha quanto da sala da casa havia uma porta que levava ao quintal dos fundos. Nele, duas portas conduziam a pequenos quartos com assentamentos para orixs e, na rea ao ar livre, eram feitos os sacrifcios rituais e havia uma rvore com oferendas para Ogum. Havia ainda um pequeno banheiro que era usado para guardar os animais vivos, antes do sacrifcio, e utilizado pela assistncia durante a realizao das festas. Era tambm nesse espao do quintal que, durante as festas, ficavam reunidos os homens e, aps, se realizava uma roda de samba. Ainda no andar trreo, havia espaos diferenciados por seus usos profanos relacionados ao cotidiano domstico, j que Marlene tambm morava na casa. Na parede ao lado da cozinha do candombl estava a cozinha domstica, que durante as festas era utilizada para que os filhos de santo fizessem pequenas refeies e lavassem a loua. Dela, era possvel acessar ainda um quarto usado para guardar mantimentos e 190
uma sala com sofs e televiso ligada ao jardim da frente, que ficava esquerda em relao a quem entrava pelo porta da sala do candombl. Na cozinha domstica, uma escada permitia o acesso ao segundo andar, onde estavam distribudos os quartos de Marlene e de Nazar; a sala de costura; e uma rea aberta para lavagem e secagem de roupas. E o terceiro andar era ocupado pela famlia de Marcelo e Tnia, pais de Luan e Juan. Entre janeiro e outubro de 2009 acompanhei algumas festas e rituais da casa e Marlene permitiu que eu fizesse algumas imagens com uma filmadora somente no incio das rodas, no poderia mais filmar logo que os orixs descessem nos filhos de santo. Durante esses meses de convivncia, Marlene me contou que havia feito a cabea no candombl havia 40 anos na Casa Branca, em Salvador, barraco que visitava uma vez por ano para receber ax. E que, no Rio de Janeiro, ela havia se tornado filha de santo da casa de Me Meninazinha dOxum, sediada no municpio de So Mateus, no Rio de Janeiro. Explicitando o sistema hierrquico do candombl, me disse que em sua casa ela era me de santo, mas na casa de Me Meninazinha ela era ia e ficava na cozinha como todas as outras filhas de santo. Ao me mostrar fotos da Casa Branca que estavam penduradas nas paredes de sua sala, ela me explicou que haviam sido princesas africanas que tinham fundado o candombl na Bahia e afirmou que candombl era coisa de mulher, criticando em seguida as casas que eram dirigidas por homens. Marlene tambm comentou diversas vezes comigo que no concordava com as casas que faziam festas muito luxuosas e vestiam com roupas caras os orixs, porque se todos deviam danar com o p no cho o princpio religioso no era o luxo. Sua principal preocupao nas festas era servir sempre uma comida bem feita, gostosa e bonita para as pessoas e os orixs. Suas noes de riqueza e beleza eram, portanto, associadas ao cuidado nos enfeites utilizados em sua casa e no preparo das comidas servidas, e contrrias ideia de excesso. Nas festas e rituais da casa sempre participavam os trs filhos consanguneos de Marlene, que eram Nazar, Pedro Armando e Marcelo; seus trs netos Thomas, Luan e Juan; suas noras Mrcia e Tnia; e os filhos de santo Anglica, Dona Madalena, Dona Marlene, Gustavo, Bebel e Manuelzinho. Os preparativos para as festas se iniciavam durante a semana, com Marlene convocando os filhos de santo, avisando aos convidados e organizando as comidas que seriam preparadas e os objetos rituais. Nazar, que era a me pequena do barraco, a funo de maior prestgio depois da 191
ialorix, auxiliava nessa semana que antecedia festa e cuidava das roupas que seriam usadas pelos filhos de santo, as lavando, passando e engomando. No dia da festa, os filhos de santo comeavam a chegar por volta das 07 horas, comiam normalmente um caf com biscoito na cozinha domstica de Marlene e, em seguida, faziam um ritual para iniciar suas atividades, que era composto por um banho de folhas e a troca por uma roupa de trabalho onde predominavam as cores claras. Essa roupa era, para as mulheres, uma camiseta envolta por um pano da costa longo e estampado e uma saia larga e comprida e, para os homens, uma bermuda e camiseta. Em seguida, cada filho de santo fazia uma saudao inicial a todos os assentamentos de orixs da casa e aos outros filhos de santo que j estavam presentes. Nessa saudao, o filho de santo se ajoelhava, encostava as duas laterais do corpo no cho, virando os quadris; colocava as mos cerradas uma em cima da outra as posicionando entre a testa e o cho; e alternavam a ordem das mos trs vezes enquanto projetavam o corpo para frente, at que ele ficasse inteiramente deitado. Na hierarquia das saudaes, o filho de santo comeava pelos assentamentos dos orixs e depois seguia para a me de santo, a me pequena at os mais antigos feitos no santo. Os novos eram saudados apenas com uma leve inclinao de tronco e dobra de joelhos, um beijo nas costas das mos e o pedido e a oferta de bno, que era realizada pela fala das palavras minha me te abenoe ou meu pai te abenoe, dependendo do gnero do orix de cabea do filho de santo, se masculino ou feminino. Nessas saudaes, ao mesmo tempo em que era pedida tambm era oferecida uma beno, movimentando assim um sistema circular e recproco de ddivas. Depois, os filhos de santo trabalhavam no preparo da festa: as mulheres elaboravam os alimentos na cozinha ou decoravam a sala principal; enquanto os homens compravam as bebidas, faziam pequenos reparos nos cmodos e organizavam os atabaques. O momento de realizao dos rituais de sacrifcio dos animais ofertados ao orix da festa era extremamente sacralizado. Iniciava-se com um pad para Exu, seguido do toque de cantigas para os orixs e uma roda de dana formada pelas mulheres. Os homens se dividiam entre o toque dos atabaques e do agog, e faziam os cortes nos animais, que variam de acordo com cada orix. Quem comandava a matana era Marlene, definindo que msicas seriam entoadas e em que ordem os animais seriam sacrificados. As partes dos animais eram ento separadas: ao orix era dado o sangue, onde estava o seu ax, e algumas penas, no caso de aves; e o restante da carne era depois preparado e servido ao fim da festa. 192
A assistncia normalmente chegava para a festa no incio da tarde, quando os filhos de santo j estavam preparando suas vestimentas do ritual. As ekedis eram as filhas de santo que no incorporavam e que ajudavam a conduzir, desincorporar e preparar as vestimentas dos filhos de santo que recebiam os orixs, e usavam um vestido estampado com poucos ornamentos e um oj na cabea. Os filhos de santo que incorporavam eram genericamente chamados de ias e, sendo mulheres, vestiam roupas de baiana, composta de camisu, saias rodadas, calolo, oj e pano da costa e, sendo homens, envolviam o tronco com um pano da costa e usavam calas. Os ogans, assim como as ekedis, no incorporavam, e vestiam calas e batas claras. A festa se iniciava com os ogans tocando e os filhos de santo entrando descalos na sala e fazendo uma roda em torno do mastro. Eles repetiam o gestual de saudao feito quando iniciavam suas atividades na casa, mas cumprimentavam os diferentes espaos da sala e os que estavam nela presentes: primeiro era saudado o mastro, depois o portal de passagem para o jardim, o portal do cmodo com objetos sagrados, novamente o mastro, a me de santo, os ogans e as ekedis. E eram feitos os breves cumprimentos a cada um dos ias que estavam na roda, pedindo e oferecendo beno aos orixs de cabea. A primeira festa do ano foi realizada para Exu em fevereiro, e Marlene me explicou que ela sempre antecedia ao Carnaval. Nessa festa, observei a partir do espao reservado assistncia. O mastro havia sido enfeitado com palmas brancas e vermelhas e com laos grandes de um tecido azul que tinha na barra quatro fitas brancas e de um tecido dourado. Nove pessoas compuseram a roda e sete ogans se revezaram nos toques de atabaques enquanto Marlene, vestida de baiana, estava sentada em uma cadeira posta ao lado dos ogans e em frente roda. Todas as msicas do incio do ritual foram cantadas em iorub e dedicadas a um orix. Ao fim das saudaes iniciais, Marlene entrou tambm na roda e a msica mudou: houve a acelerao da batida dos atabaques e foram cantadas letras em portugus para Exu e Pomba Gira, citados tambm atravs das figuras Rosa Vermelha, Maria Padilha, Ciganinha, Tranca Rua e Z Pelintra. 193
Sequencialmente, os ias viraram no santo e abraaram com os dois lados do corpo integrantes da assistncia, que era composta por cerca de vinte pessoas que cantavam as msicas e batiam palmas. Depois de algumas msicas, a batida do atabaque se intensificou novamente e Marlene se posicionou em frente aos ogans e virou no santo, passando ento a segurar uma cigarrilha na mo. Os ias incorporados pararam de danar e ficaram em semicrculo aberto assistindo dana da me de santo. Ao final da dana, as ekedis os retiraram da sala pela porta que levava copa. Marlene saiu por ltimo e voltou vestida de Pomba Gira, com um vestido rodado vermelho escarlate e um pano da costa dourado, que demarcavam sua transio para o estado de transe. Depois, os ias da casa retornaram para a roda com suas roupas de transe e muitos dos que estavam na assistncia tambm viraram no santo e vestiram roupas que estavam guardadas na casa, sendo suas participaes, portanto, previstas no ritual. Todas roupas eram referenciadas nas figuras associadas a Exu e Pomba Gira que estavam sendo entoadas nas msicas e complementadas com acessrios de mo como flores, taas e cigarrilhas. Ao longo da festa, os que haviam incorporado danaram na roda e tambm conversaram com os convidados que no viraram no santo, dando principalmente conselhos amorosos. E observei que a figura espacial da encruzilhada era recorrentemente citada nas letras das msicas e nos conselhos amorosos, sendo os Exus e Pombas Giras os orixs associados a esses espaos e passagem para um caminho e suas escolhas. J tarde da noite, os ias incorporados foram retirados da sala e a ltima a sair foi Marlene. Foi servido ento um jantar a todos e se iniciou uma roda de samba no quintal. Aps a festa para Exu, houve o Carnaval e at o fim de fevereiro mantive contato com Marlene e seus filhos de santo atravs das atividades do Gandhi. No incio de abril, telefonei para sua casa para saber se ela j havia marcado a data da festa para Ogum, mas Marlene no estava e quem atendeu foi Nazar. Ela me disse que tinha chegado naquela semana de Salvador, onde tinha passado quinze dias com Marlene e Juan. E que faziam essa viagem todo ano para tomarem o ax da Casa Branca, visitarem a Praia da Barra, assistirem s apresentaes de blocos afros e comerem as comidas baianas. Enquanto preparava um feijo, Nazar conversou comigo sobre o 194
hbito que tinha de anotar em um caderno suas experincias de viagens, para poder esquecer o que no tinha sido positivo. E comentou que fazia a mesma coisa quando escutava as pessoas que se consultavam com ela tanto religiosamente, quanto na poca em que era enfermeira: ouvia tudo e depois esquecia. E, a partir desse dilogo, conversamos sobre meus dilemas afetivos, utilizando metforas que envolviam experincias cotidianas e socialmente compartilhadas: sobre as diferentes funes de guardar e apagar dados do computador; a necessidade de doar roupas velhas e sem uso do armrio para abrir espao para novas; a variao do tempero e dos alimentos na dieta culinria; e os diferentes modos de locomoo com automveis, com suas possibilidades de um ou mais passageiros e de controle da conduo. Durante a conversa, brincamos com as ambiguidades de sentido que essas metforas geravam e Nazar me disse que muitas pessoas que se consultavam com ela no gostavam de conversar de maneira abstrata, queriam dar nomes e contar detalhes sobre as situaes que estavam vivenciando. Mas ela preferia a forma metafrica, porque achava que no era preciso saber detalhes para dar um bom conselho, j que as pessoas buscavam principalmente algum que as escutasse, mais do que lhes dissessem o que deviam fazer. Quando nos despedimos, combinei de ligar para ela assim que conseguisse um bom carro. E percebi que esta havia sido a minha primeira consulta religiosa. Poucos dias depois, falei com Marlene e ela me disse que estava distante das atividades do Gandhi porque estava ocupada como as aulas de dana que fazia e os eventos polticos em que solicitavam sua presena. E me explicou que, alm de participar dos eventos do grupo, tambm frequentava a ONG Centro de Tradies Afro- Brasileiras, onde sua casa estava cadastrada e ganhava cestas bsicas que eram distribudas entre casas de candombl. Os alimentos dessa cesta ela utilizava no preparo das comidas dos rituais e tambm distribua no morro onde morava. Nos dias que se seguiram, conversamos mais algumas vezes sobre sua atuao poltica e os movimentos relacionados valorizao da cultura negra e das religies do santo. Marlene ento me contou que havia nascido na Bahia, mas chegado jovem ao Rio de Janeiro e, quando era criana, sua me biolgica trabalhava como governanta em uma casa em Copacabana, onde os filhos dos donos da casa a chamavam de b. Segundo Marlene, todos da casa tratavam muito bem sua famlia: ela nunca havia andado em elevador de servio; quando tinha grandes festas na casa, era chamada para participar; e ela e seus irmos brincavam com igualdade com os filhos dos patres. 195
Marlene no se recordava de haver distino social ou de cor nessa casa onde havia passado sua infncia, e essa sua experincia vivenciada como igualitria tinha feito com que discordasse das polticas pblicas baseadas na noo de raa. Ela me contou que participava de vrios eventos polticos, mas que no se considerava uma militante, porque sabia que ningum queria ouvir que o negro era racista. Em sua opinio, as pessoas tinham que se esforar para ter uma vida melhor, em vez de pleitear benefcios do governo, sendo que o importante era que o ser humano fosse bom, e no sua cor. Marlene tinha, assim, um posicionamento contrrio noo de reparao histrica, articulando um discurso que valorizava a oposio bom e mau e evitava operar com as oposies rico e pobre e branco e negro. Em meados de maio, Marlene me convidou para participar de outro ritual de sua casa, denominado bor. Perguntei a ela se poderia oferecer alguma coisa para o ritual e Marlene falou que poderia levar trs velas de sete dias, flores brancas midas chamadas de chuveirinho e um bolo de massa clara que podia ter um enfeite de morango. E pediu para que eu fosse de vestido ou de saia de cores claras. O ritual estava marcado para iniciar s 14 horas e, quando cheguei, soube que ele havia sido uma encomenda de uma de suas filhas de santo, Cntia. Alm dos filhos da casa, estavam presentes no ritual apenas o pai, a me e a irm de Cntia, no havia assistncia. No quintal, havia uma sequncia de sete alguidares no cho, cada qual com um tipo diferente de comida, entre os quais reconheci a farinha misturada com dend, o feijo, o aca e a canjica. Cntia estava com uma camiseta e uma cala brancas e com os ombros encobertos por uma folha de jornal. Prato por prato de comida, Marlene jogou seus contedos pelo corpo de Cntia, com especial ateno para a cabea, os braos e as mos, enquanto cantava e rezava, sempre acompanhada do agog e com a ajuda de uma filha de santo. Ao fim desse ritual, Marlene incensou toda a casa e Cntia foi tomar um banho de gua fria no banheiro do quintal. Enquanto Cntia ficou dentro da casa sendo preparada para o ritual, que no presenciei, Marlene me explicou que bor era um termo que unia as palavras eb (comida) e or (cabea). Seu objetivo era dar comida para a cabea, fortalecendo o orix do filho de santo, que Marlene tambm chamou de anjo da guarda. E que aquele ritual que havia acabado de assistir era de purificao, para que Cntia pudesse receber o bor. Enquanto conversvamos, Cntia entrou na sala virada no santo, vestindo uma roupa branca e sendo guiada pelo som de um adj tocado por Nazar, que era um instrumento musical formado por duas campnulas de metal. E fez as saudaes aos 196
espaos sacralizados da sala e a Marlene, entrando em seguida novamente para a copa. Alguns minuto depois, Marlene foi se vestir para o ritual e, enquanto isso, no quintal Marcelo e Luan lavaram os ps de uma galinha de angola que estava presa em uma gaiola, de duas galinhas brancas e de um pombo. Em um canto da sala, Nazar e Mrcia arrumaram um lenol branco e colocaram vrios doces em uma de suas extremidades: manjar, doce de coco, dois bolos brancos com cobertura de morango e uma travessa com frutas diversas, como goiaba, mamo, manga, uva e banana. Havia tambm alguns potes de loua branca e uma vela acesa. Cntia entrou na sala e se sentou sobre o lenol com as pernas esticadas para frente, ficando os pratos de doce aos seus ps. Estava com um leno branco amarrado no peito, que era fechado em um grande lao nas costas, e com uma cala branca. Marlene ento comeou a cantar e rezar com a ajuda do coro das mulheres presentes e do ogan que tocava o agog. Cntia virou novamente no santo e Marlene pegou cada um dos pratos de doces e passou pelo seu corpo. Fez o mesmo com as galinhas brancas, a galinha de angola e o pombo, que depois retornaram para as mos dos homens. Cada um dos animais foi ento degolado com uma faca por Marcelo e dado para Marlene, que deixou jorrar parte do sangue sobre um dos potes de loua e sobre os doces expostos aos ps de Cntia. Em seguida, o corpo de cada animal foi levado sobre sua cabea e braos, onde jorrou o restante do sangue. Quando o sangue estancou, os corpos foram postos ao lado dos demais pratos de alimento. Aps o sacrifcio de todas as aves, algumas de suas penas foram retiradas e colocadas sobre a cabea de Cntia, sobre suas mos e debaixo do lenol onde estava sentada. E Marlene enrolou um pano branco fechando a cabea de Cntia, que se deitou. Foram retiradas pequenas pores dos doces e frutas e postas no mesmo pote de loua com o sangue e as penas. Depois, o ambiente foi todo limpo, incluindo as comidas que receberam o sangue das aves, e as filhas de santo se retiraram com as aves para preparar o jantar. Enquanto eu e a famlia de Cntia espervamos na sala, seus pais me contaram que ela tinha sido iniciada em outra casa de santo e que j tinha tomado um bor naquele ano. Mas, como estava enfrentando dificuldades na vida, havia decidido procurar Marlene, que aceitou dar outro bor desde que Cntia passasse a ser filha de santo de sua casa. Marlene depois comentou comigo que muitas casas faziam os rituais de forma errada por no conhecerem bem a religio. E me explicou que no era necessrio que o bor fosse suntuoso, com vrias comidas e objetos, porque o ritual era de fortalecimento da cabea e no uma festa de orix. Falava isso porque o outro bor feito 197
em Cntia tinha tido o sacrifcio de um bicho de quatro patas, se referindo ao cabrito, e achava que este tipo de suntuosidade era feito por quem no entendia o significado de cada ritual e acabava por dificultar sua realizao, j que todas as despesas deviam ser pagas por quem estava tendo sua cabea fortalecida e muitas vezes as pessoas no tinham tanto dinheiro. E com essa informao demarcava, mais uma vez, sua forma de perceber a prtica do candombl, que negava o que considerava ser excessivo em prol da eficcia do ritual. Cerca de trs horas depois, as filhas de santo trouxeram pedaos de galinhas assados em uma bandeja de prata, que foi repousada em cima do pote de loua com o conjunto das oferendas. Marlene ento destroou pedaos do assado com as mos e os colocou em pratos, servindo primeiro o pai de Cntia, depois a me, depois a mim, a irm de Cntia e as filhas de santo. Comemos o assado e em seguida foi servido um piro com pedaos de galinha cozidos. Desta vez quem serviu os pratos foi Dona Madalena, a filha de santo mais antiga, e comeou pelos homens. Depois foram servidos por Nazar pratos fartos com os diversos doces do ritual. No final do dia, Marlene me explicou que, comendo da comida do ritual, eu estava compartilhando de seu ax e me beneficiando, e me disse que as flores e a torta que eu havia levado possibilitaram que eu trocasse com as pessoas que estavam participando do ritual e que usaria as velas para rezar por mim e abrir os meus caminhos. E que essa troca era boa para todos. Em 11 de junho, fui convidada para participar da matana para Ogum, realizada dois dias antes de sua festa. Cheguei casa de Marlene ao meio-dia e contribu com a festa ofertando dinheiro para a compra de uma galinha. Mas, desta vez, quando perguntei se podia ajudar, Tnia, que estava comandando as mulheres que trabalhavam na cozinha preparando as comidas do ritual, disse que eu podia lavar a loua. E Nazar me deu um pano da costa florido e o enrolou acima do meu peito, explicando que ele impediria de sujar minha roupa. Acompanhei ento o preparo do aca vermelho, que era uma farinha de canjica amarela cozida at escurecer e ficar na consistncia de um mingau, posta em tiras de folhas de bananeira anteriormente queimadas no fogo, formando o conjunto pequenas trouxinhas verdes recheadas. E, enquanto era esperada a chegada das galinhas para comear o ritual da matana, fiquei com as filhas de santo conversando na copa. Anglica me mostrou um colar feito de palha, e me explicou que s o usava quem tinha mais de sete anos de iniciada no santo. Na sala, Nazar substitua as varas de capim que enfeitavam cada 198
portal por novas, e Marlene me explicou que elas eram trocadas uma vez por ano e sempre na festa de Ogum. No banheiro do quintal, estavam presos o cabrito e duas galinhas e, engaioladas, havia uma conqum e um pombo branco. Marlene havia sado para comprar mais quatro galinhas para o ritual, mas Marcelo j tinha percorrido as redondezas e no havia encontrado, explicando que o caminho que devia abastecer de galinhas a regio havia quebrado na Avenida Brasil. E, como vrias casas de candombl estavam festejando o dia de Ogum, faltavam galinhas no mercado e nem mesmo em Madureira havia mais galinhas para vender. Quase no fim da tarde, Marlene conseguiu chegar com trs galinhas e disse que eram suficientes para o ritual daquele dia. No quintal, Luan lavou os ps e bicos das galinhas e do cabrito. Marcelo trocou a lmpada do cmodo dedicado a Ogum e Oxossi e Marlene e Nazar prepararam o espao lavando todos os objetos rituais em ferro. Depois, juntaram todas as guias para Ogum dos filhos de santo da casa, que eram colares feitos de contas azuis-marinhos e podiam ser de diversos tamanhos e materiais, como loua, cristal ou plstico. Marlene me explicou que todos em sua casa tinham uma guia de Ogum, porque ela era para proteo e devia ser usada independente dos santos que regiam cada cabea. Aos poucos as comidas foram sendo postas dentro de alguidares no quintal. Marlene chamou todas as filhas de santo e cada uma pegou uma ave, com exceo da conqum, que era muito arredia e ficou na gaiola. Fui chamada para participar do ritual e fiquei na fila de mulheres, sendo que as mais antigas da casa ficaram na frente e as mais novas no final. Marlene comeou a entoar msicas enquanto Manuelzinho tocava o agog e Marcelo e Nazar matavam as aves e, por fim, o cabrito. O sangue de cada animal foi jorrado sobre alguidares e o sacrifcio do cabrito foi celebrado de forma mais elaborada: todos da casa encostaram a cabea em sua testa antes de ele ser morto. E, toda vez que um dos bichos era sacrificado, o toque do agog ficava mais intenso e as mulheres cantavam mais alto as msicas. Aps esse ritual, todos os filhos de santo foram para a sala. Os homens comearam a tocar o xir, que era uma sequncia de toques e cantigas especificamente executada durante as festas para Ogum. Marlene se sentou em sua cadeira e chamou as filhas de santo para danarem, me convidando a entrar tambm no crculo das mulheres. As ias foram aos poucos entrando em transe e as ekedis Mrcia e Nazar me ajudaram a desenvolver a dana demonstrando os gestos correspondentes a cada toque de atabaques, que variavam de tempos em tempos, de acordo com o orix 199
que estava sendo louvado. A cada toque de orix, a coreografia variava na marcao dos ps, nos gestuais das mos e no ritmo. Percebi ento que o toque dos atabaques tambm induzia a uma acelerao do batimento cardaco e que, para incorporar um orix, tinha um papel central a experincia na roda e o aprendizado corporal das danas, com suas modulaes individuais das coreografias e a concentrao exigida. No fim da tarde, aps a dana de vrios toques de atabaques, Marlene encerrou o ritual e as mulheres foram para a cozinha preparar as aves e os homens ficaram no quintal para retirar a pele e cortar o cabrito. Nazar brincou comigo enquanto eu depenava as galinhas, dizendo que havia branco no terreiro achando que era preto, demarcando assim as diferenas de cor de uma forma jocosa que as suspendiam, ao invs de confront-las. No incio da noite, jantamos risoto de galinha e piro; o cabrito foi separado para ser servido na festa de Ogum. Marcelo foi comprar cerveja e todos beberam e, na despedida, Marlene e Nazar devolveram para cada um suas guias de Ogum que haviam ficado no quarto dedicado ao orix. A festa para Ogum foi realizada dois dias depois e, quando cheguei casa de Marlene s 09 horas, me ofereci novamente para trabalhar e Mrcia falou que eu podia pegar o mesmo pano florido do dia da matana, que havia sido guardado no quarto onde os filhos de santo se vestiam. Nesse quarto, tinham muitas roupas de orixs penduradas nos cabides e ela me explicou que haviam sido todas costuradas na casa. Perguntei se havia cores especficas de roupas para cada orix, e ela me falou que no, que a nica cor que era proibida era a preta, porque significava a ausncia de cor. Enrolei o tecido acima do peito e fui para a cozinha, onde outras mulheres comeavam a preparar o salpico que seria servido no almoo para os filhos de santo. No quintal, foram sacrificadas duas galinhas e, ao fim da matana, cada participante do ritual teve a cabea, a nuca e a garganta embebidas pelo sangue das aves, enquanto Marlene fazia uma orao pedindo fartura e que Ogum e Oxossi abrissem os caminhos. Depois, Marlene chamou todos para tocar e danar na sala, mas, antes do xir comear, pediu para que nos abaixssemos que ela queria falar: em tom solene, disse que a partir das 10 horas o terreiro da Casa Branca fazia o mesmo ritual, com todos os orixs j incorporados subindo as escadarias para tocar o xir de Ogum. E, aps essa fala que propunha uma conexo simblica entre o espao de sua prpria casa e o de sua casa de origem, iniciou o xir e a dana. Todos os filhos de santo almoaram por volta das 14 horas e depois foram colocar suas roupas rituais. Marlene me ofereceu uma roupa igual a das ekedi para 200
vestir. Na cozinha domstica, conversei com Nazar sobre a dana, porque no havia entendido em quais momentos do ritual deveria entrar ou no na roda e nem a sequncia de saudaes que deveria fazer. Ela ento me disse que eu poderia entrar e sair quando quisesse, que no havia uma regra e, ao me ensinar como se amarrava o toj, disse que, se eu quisesse tirar por estar incomodando, no tinha problema. Assim, demonstrava que o ritual da festa, embora seguisse uma sequncia de eventos predeterminados e socialmente compartilhados, permitia uma grande autonomia individual. Aps a assistncia se acomodar nos bancos, as ias da casa entraram na sala vestidas de baianas e, durante os cnticos, alguns convidados tambm foram danar e, um a um, incorporaram quando tocou a msica de seu orix de cabea. Quando todos j estavam virados no santo, o batuque acabou e eles saram para o quarto de vestir. Ao voltarem, cada qual estava vestido com a roupa de seu orix. Todos os ias foram acomodados em cadeiras e, a cada toque de orix, a pessoa do santo correspondente se levantava e danava durante vrios minutos, enquanto os demais continuavam sentados. Ao final da festa, com os santos j desincorporados, foi servido o jantar de cabrito, realizado um batuque no quintal e feito um churrasco. Dias depois, no fim de junho, Marlene me chamou para ir sua casa conversar. Era um dia de semana tarde, e ela me atendeu em uma mesa e cadeira posta na sala em frente ao cmodo com objetos rituais. Levei ento uma guia que havia combinado de fazer para Ogum, em contas azuis-marinhos, que ela colocou em uma infuso de folhas sacralizando-a. Marlene queria saber se eu queria continuar frequentando a casa como amiga ou se iria me tornar filha. Na conversa que tive com ela, contei sobre minha tradio familiar na umbanda, mas que no estava certa se desejava ser filha de santo da casa. Combinamos ento que, enquanto eu pensava, faria uma roupa para a prxima festa, de culto ao Caboclo, e que passaria a usar por um ano as contas de Ogum, que era o que iriam fazer todos os filhos da casa. Iniciei ento a preparao de uma roupa toda branca de baiana: comprei um morim para fazer angua; um tecido mais malevel para o calolo e a parte da blusa que ficava de dentro da saia; e um tecido de algodo com flores midas bordadas para a blusa, o toj, o pano da costa e a saia rodada; e um bordado ingls para dar o acabamento s peas. Quem fez a roupa foi Nazar, e visitei a casa ainda por duas vezes para que ela tirasse minhas medidas e para experimentar a roupa. 201
Em julho, foi participando da festa para o Caboclo como filha de santo que compreendi como a casa se dividia em assentamentos, que todos os filhos tomavam um banho de folhas antes de colocar a roupa de trabalho e que, aps, era tomado outro banho, desta vez comum, para que fosse colocada a roupa do ritual. Atravs da experincia de vestir a roupa de baiana, percebi com ela era extremamente pesada e quente, fazendo com que houvesse fisicamente uma transio para o momento sagrado da festa. E aprendi a saudar os orixs assentados e os filhos de santo de acordo com a hierarquia da casa e que o trabalho das mulheres era concentrado na cozinha e na roda de dana da sala. Em relao diviso de papis de gnero, observei que as mulheres trabalhavam por muitas horas em p e que essa posio corporal era muito valorizada por demonstrar o sacrifcio que faziam para servir a casa e seus orixs. E que, enquanto as mulheres organizavam a festa e serviam aos convidados, os homens ofereciam proteo e recursos para o barraco, alm da diviso ritual entre dana e msica e de espaos preferencialmente habitados por cada um dos papis. A ltima festa da casa da qual participei era a considerada a mais importante e ocorreu em meados de outubro: o Presente das Iabs, onde o orix que dirigia a casa, Oxum, era homenageado. Para essa festa, confeccionei uma nova roupa com Nazar, desta vez florida, com a qual participei do ritual. A festa foi realizada parcialmente dentro da casa, com as saudaes e os toques de algumas cantigas. Depois, todos os filhos de santo saram em afox, que era como denominavam o candombl que era feito na rua para que fosse realizada uma oferenda ou algum ritual ao ar livre.
Esse afox caminhou pelas ruas do bairro em direo orla da Baa de Guanabara, que era prxima da casa. Chegando baa, todos os filhos de santo entraram em um pequeno barco com os atabaques e quatro balaios e, aps alguns toques e cantigas onde todos os ias viraram no santo, depositaram os balaios fartamente floridos e decorados nas guas. Ao fim da oferenda, adormeci sentada no banco do barco por alguns minutos e, quando acordei, me disseram que eu havia entrado em transe. 202
Depois dessa festa, conversei novamente com Marlene sobre minhas dvidas em relao a me tornar filha de santo e me afastei das atividades da casa. Mas, aps acompanhar essas festas e rituais em sua casa, compreendi melhor a cosmologia do candombl que estava sendo operada na Zona Porturia pelos diferentes herdeiros da Pequena frica e, em especial, pelos integrantes do Afox Filhos de Gandhi. Pois, na casa de Marlene, as classificaes socioeconmicas, de origem, de gnero e etrias eram ressignificadas pela personificao de cada orix e sua conexo com as esferas csmicas; e as formas de estruturar mentalmente o mundo e seus habitantes eram mais pautadas pelas noes de bom e mau do que pelas de negro e branco ou pobre e rico. E todos os rituais e festas propunham a ampliao dos poderes mgicos dos filhos de santo e os orientavam para as realizaes da vida prtica. Analisando a formao social e espacial dos integrantes do Gandhi a partir dessa experincia, percebi que ela era referenciada no candombl pois, assim como na casa de Marlene, quando eles chegavam aos pontos de encontro, muitos beijavam as mos dos presentes e ofereciam e pediam para serem abenoados. E havia especial deferncia s pessoas mais antigas no santo, como Tia Creusa. Espacialmente, os ogans e seus atabaques ficavam destacados e elevados dos ias e das ekedis que danavam sua frente. E essa elevao dos homens em um tablado os deixava mais prximos do cu, porm contidos uns ao lado dos outros, fazendo uma figura linear e fixa que mirava para a porta principal de entrada e sada da casa, espao que simbolicamente permitia a troca com o mundo dos homens. Em oposio e complementaridade, as mulheres mantinham os ps em contato com o cho e realizavam um movimento amplo e constante que, no entanto, por ser circular e em torno do mastro, mantinha como referncia espacial o centro da casa e o mundo dos orixs. No Gandhi, assim como no candombl, havia tambm uma ntida diviso no s de espaos, mas de atividades consideradas masculinas e femininas. As mulheres eram incumbidas do preparo dos alimentos para os integrantes do grupo e para os orixs e das roupas dos desfilantes, e os homens eram os responsveis por arrumarem as condies fsicas da sede e de fazerem as articulaes com o mundo dos homens para que o grupo obtivesse prestgio e abundncia. Essa abundncia, no entanto, era controlada para que no se tornasse um excesso, fosse atravs do luxo ou pelo consumo de comida e bebida; preocupao que, na casa de Marlene, se estendia para a negao de uma suntuosidade nas festas e rituais. 203
A formao linear e circular dos rituais do candombl s era desfeita quando os integrantes saiam em afox, assim como nas apresentaes consideradas mais importantes do Gandhi, que eram quando seus integrantes caminhavam nos desfiles de carnaval e no cortejo do Presente de Iemanj. E, no afox cultural, as figuras da assistncia e dos filhos de santo eram espacial e funcionalmente substitudas pelas do pblico e dos desfilantes. Nessas apresentaes de rua do grupo, a maior parte dos sacrifcios tambm ocorria na vspera e a primeira atividade ritual era o pad para Exu. E, tanto aps o candombl quanto o afox cultural do Gandhi, era realizada uma roda de samba onde homens e mulheres se reuniam no mesmo espao, possibilitando uma troca menos regrada, mais ritualmente prevista, entre os gneros.
TRANSFORMAO E PERMANNCIA NAS DIFERENTES POCAS DO GANDHI
No final de outubro de 2009, atravs de um convite da antroploga Nina Bitar, que estava desenvolvendo uma pesquisa sobre as prticas das baianas de acaraj e suas apropriaes dos espaos pblicos da cidade (Bitar, 2010), fui a um festival do acaraj organizado por Cia em um clube no Centro da cidade. Nessa festa, Nina me apresentou a Wilson Silva, que havia sido integrante do Gandhi durante a gesto de Guerra, antecessor de Machado na presidncia do grupo. Wilson era ogan da casa Pai Nin dOgum e, em novembro, gentilmente marcou e realizou comigo duas conversas com integrantes do Gandhi atuantes entre as dcadas de 1970 e 1990: o ogan ndio, que havia sido presidente do grupo entre as gestes de Encarnao e Guerra, e o babalorix Helio Tozan, que havia sido vice-presidente de Guerra. Nas duas conversas, a presena e mediao de Wilson foram fundamentais na elaborao de perguntas sobre os fundamentos que o Gandhi havia anteriormente seguido e na rememorao de eventos passados. Nosso primeiro encontro foi com ndio em um bar em Realengo, na Zona Oeste da cidade. Ao narrar sua verso da origem do Gandhi, ndio disse que o grupo havia surgido em 1949 em Salvador por iniciativa de trabalhadores da estiva e, no Rio de Janeiro, havia sido fundado dois anos depois por iniciativa de dois baianos: Milton Sapateiro e Rubens Sapateiro, que trabalhavam juntos em uma oficina no Palcio do Alumnio, estrutura metlica armada na Central do Brasil. Mas o afox s havia desfilado em 1952, com onze homens vestindo lenis, entre os quais se lembrava de Le Paz, Alberto Sales Pontes, Vav Palm, Felipe, Mudinho e Prato Raso. 204
ndio me explicou que os baianos que fundaram o Gandhi se reuniam na Central do Brasil para oferecer a possveis fregueses da cidade trabalhos manuais e tcnicos, como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro, estucador, ferramenteiro, chapeleiro e ourives. Havia ainda entre os integrantes do grupo alguns estivadores e cariocas, mas o principal elo entre todos era participarem do candombl. O primeiro presidente do Gandhi havia sido Le Paz: estivador, carioca e feito no candombl da casa do Op Afonj, em Salvador. E Alberto Sales Pontes, eleito depois, tinha sido o segundo, mas o primeiro a ser oficialmente empossado. O terceiro presidente do Gandhi havia sido Encarnao, ogan confirmado na casa do Bate Folha, em Salvador e, no Rio de Janeiro, filho de santo da casa de Pai Nin dOgum. ndio havia comeado a participar do Gandhi na gesto de Encarnao, na dcada de 1970, e contou que seus integrantes no moravam perto da Central e nem na Zona Porturia, eram moradores de Nova Iguau, Itagua, Niteri, entre outros locais. Como no sbado noite geralmente tinha candombl nas casas mais conhecidas do Rio de Janeiro, o Gandhi deixava para ensaiar domingo tarde. Os candombls eram localizados principalmente na Baixada Fluminense e os ogans do grupo muitas vezes iam a trs casas de candombl em uma nica noite e, na alvorada, iam pra casa, descansavam e, tarde, ensaiavam no Gandhi. Alm da casa de Pai Nin dOgum, outros candombls tambm eram bastante frequentados pelos integrantes do Gandhi, como os de Mafalda, Joaquim, Regina, Detinha de Xang e Madalena. Quando o Gandhi foi fundado, ndio contou que s homem podia desfilar. A primeira mulher a desfilar no Gandhi foi Valdete, que era amante do Le Paz e saiu escondida, travestida de ndio. As mulheres comearam a ter permisso para entrar na avenida somente na gesto de Encarnao, para responder s cantigas de candombl. A diviso do desfile do Gandhi em alas tambm havia sido uma criao de Encarnao e tinha surgido a partir de sua amizade com Jurandir, que foi convidada para ser a diretora artstica e carnavalesca do grupo. Comparando ao Gandhi de Salvador, disse que l essa diviso em alas nunca havia sido feita, nem sido permitido o desfile de mulheres. Na poca do Encarnao, ndio contou que o antroplogo Raul Lody havia sido um de seus integrantes e importante incentivador do grupo atravs das mediaes que realizava como funcionrio da FUNARTE, rgo federal ligado ao Ministrio da Cultura. Raul era carioca, mas ainda jovem havia sido confirmado no santo por Nicinha na casa do Bogum, em Salvador, e havia conseguido que o Gandhi comeasse a se 205
apresentar em eventos culturais e folclricos em diferentes espaos da cidade e do pas, como Minas Gerais, Paraba e Alagoas. Nesses eventos, aps cantarem o ijex os integrantes do Gandhi faziam uma roda de samba de umbigada, com finalidade recreativa. Quando conversei com Machado, um ano antes, ele tambm havia me dito que Raul tinha sido o responsvel pela consolidao do termo candombl de rua para definir as prticas dos afoxs, termo que posteriormente foi incorporado s letras musicais do grupo. Eram de autoria de Raul os nicos dois textos que encontrei publicados sobre o Gandhi carioca, um datado de 1976 e, outro, de 1993. Neles, o autor tecia pontos de comparao entre diferentes afoxs carnavalescos do pas em diversas pocas e articulava um sistema de autenticidade cultural baseado na noo de africanidade. E, em sua descrio das prticas do Gandhi carioca, abordava algumas que no trabalho de campo percebi que haviam permanecido ao longo do tempo, como o pad para Exu no incio das apresentaes do grupo e os cantos para Oxal ao final, as coreografias inspiradas nas danas para os orixs e a msica marcada pelo toque de atabaques, agogs e cabaas. E Raul tambm narrava prticas que haviam se modificado, como os cnticos em iorub para cada orix. ndio havia sido feito no santo em Salvador ainda na barriga da me, que tinha se iniciado no candombl sem saber que estava grvida, e assumiu a presidncia do Gandhi aps a morte de Encarnao, em dezembro de 1978. Ele contou que, nessa poca, alguns de seus integrantes diziam que quem no tinha pelo menos sete anos de feitos no santo no podia fazer parte do grupo. Mas, em sua opinio, qualquer um podia participar porque ele era folclrico, embora logo em seguida tenha feito a ressalva de que havia um fundamento: antes dos eventos, era obrigatrio que fosse dada comida para Exu. E me contou que havia dois Exus assentados do Gandhi: o Bar Jiquitiriri, que tinha ficado na casa de Aderman, em Jacarepagu; e o Tucum, que havia ficado na casa de Nin. Alm do casal de Exus, ndio disse que antes de colocar o Gandhi na rua tambm devia ser dado de comer a Bab Egum, para encaminhar os ancestrais do grupo, porque muitos de seus integrantes j haviam falecido. O Presente de Iemanj havia sido, segundo ndio, uma criao sua no calendrio do Gandhi. E, para contar o surgimento deste evento, ndio se referiu a sua busca e de Encarnao para conseguir uma sede para o grupo. Contou-me que, no incio da dcada de 1970, o grupo havia perdido o espao de ensaio em um clube de carteado chamado Recreativo Brasil, localizado na Esplanada do Castelo, entre o Largo da Carioca e a 206
Praa XV. Esse clube havia sido demolido com a substituio do terminal de nibus Erasmo Braga pelo Edifcio Garagem Menezes Cortes, inaugurado em 1973. E, no incio da dcada de 1980, o Gandhi permanecia sem sede e utilizando a casa de candombl de Magnlia para ensaiar e guardar os instrumentos, fantasias e estandarte. Hlio Tozan ento se ofereceu para falar com Gentil, diretor da escola de samba Unidos de So Carlos, posteriormente nomeada Estcio de S e localizada no bairro do Estcio, Centro da cidade, e conseguiu que a diretoria cedesse a quadra para os ensaios de domingo do Gandhi. No primeiro dia de ensaio nesta quadra, realizado em 01 de fevereiro, um dos integrantes do Gandhi, Roberto, tinha dado um bor para Xangozinho, que era de Iemanj. E pediu para ndio convidar os demais integrantes para irem missa de Iemanj no dia seguinte, que ia ser realizada na Igreja de Santa Ifignia, na Rua da Alfndega, Centro da cidade. Depois da missa, Hlio sugeriu que fosse feita uma festa do Saveiro e ndio props que ela sasse da Cinelndia, para divulgar o Gandhi para a populao e os vereadores. Os dois ento convidaram os outros fiis que estavam na missa, que ndio me explicou serem todos macumbeiros, e esses fiis queriam levar bijuteria, perfume e sabonete para oferecer a Iemanj durante a festa. Embora ndio insistisse que eles queriam realizar no um Presente para Iemanj, mas uma Festa do Saveiro, que era apenas uma comemorao realizada na sede, foi tanta a insistncia que virou Presente. Os integrantes do Gandhi foram pelos mercados do Centro procurar um balaio para depositar os objetos que estavam sendo ofertados pelos fiis, mas acharam apenas no Mercado de Madureira, onde tambm compraram um prato de loua raso, uma faca, e um obi, que era uma noz de cola utilizada para jogo divinatrio. Outro integrante foi procurar um barco para levar o presente e duas mulheres ficaram incumbidas de fazer os enfeites do balaio. s 15h30min eles se encontraram na Cinelndia, ndio jogou o obi para saber se o grupo podia desfilar, fizeram a roda de canto e dana em frente Cmara dos Vereadores e partiram tocando afox at o Museu de Arte Moderna - MAM, porque estava acertada a sada de um barco na Marina da Glria. E assim me narrou o primeiro Presente de Iemanj do Gandhi, no dia 02 de fevereiro de 1981. Logo depois, surgiu o primeiro grupo afro criado como dissidncia do Gandhi, em um conflito motivado por diferenas formas de perceber as divises de gnero no grupo. O Filhos de Dan foi organizado aps o Carnaval de 1982, ano em que o Gandhi participou com uma ala do desfile da Unidos de So Carlos, que tinha como 207
enredo a mulher rendeira. Segundo ndio, a diretora artstica do grupo, Jurandir, havia montado uma ala numerosa composta por homossexuais e apresentado um figurino que era todo de renda e com um calolo. Mas, quando os integrantes desfilaram, alguns homens vestiram s a roupa de renda e um tapa sexo, ficando assim com o corpo muito exposto. Rubens Confete, que era um reconhecido jornalista e comentador carnavalesco da Rdio Nacional, criticou muito o figurino e, na reunio de diretoria realizada aps o Carnaval, ndio exigiu que todo o figurino do Gandhi dali por diante fosse aprovado por ele. Os que no concordaram foram os que eram prximos de Jurandir e fundaram o bloco afro Filhos de Dan. E ndio e Wilson me explicaram da seguinte maneira as diferenas dos dois tipos de grupo carnavalesco: o bloco afro era tambm de negro, mas geralmente cantava s msicas em portugus e no seguia fundamentos do candombl; e o afox fazia rituais ijex e era o lado profano das casas de candombl. O ltimo ano de gesto de ndio foi 1988, e ele contou que havia decidido sair do Gandhi tambm aps o Carnaval, quando o grupo desfilou no Sambdromo na escola de samba Vila Isabel, quando ela ganhou o campeonato com o enredo Kizomba, a festa da raa, que abordava os 100 anos de Abolio da Escravido. Os diretores da escola haviam pedido a ndio que levasse 100 figurantes para desfilar e apareceu o dobro com a roupa do Gandhi. E, quando o Salgueiro solicitou 50 pessoas, apareceram 300. Essas pessoas que estavam surgindo nos desfiles, segundo ndio, no participavam normalmente do Gandhi, s estavam comprando a fantasia de outros integrantes para desfilar nas escolas de samba. Ele ficou ento chateado com essa falta de controle dos desfilantes e pediu para que Guerra assumisse a presidncia do grupo. tarde, Wilson me levou para a casa de Hlio, em Bangu, tambm Zona Oeste da cidade. Hlio narrou uma verso semelhante a de ndio em relao origem do Gandhi carioca, mas com a incluso das trocas do grupo com o circuito do Carnaval carioca desde sua fundao. Ele contou que o Gandhi logo que foi criado havia conseguido uma sede para ensaiar atravs de um contato com sambistas do Morro da Mangueira, j que Alberto Sales, o segundo presidente do grupo, era genro de Cartola. E sua verso do incio da participao das mulheres nos desfiles do grupo tambm ofereceu alguns detalhes e variaes em relao de ndio. Segundo Hlio, antes de desfilarem, algumas filhas de santo vestidas como baianas de acaraj j seguiam os homens do grupo no final do Gandhi, levando bolsas, comida, bebida e suas navalhas, caso houvesse briga. Mas essas baianas eram 208
fundamentais no s para apoiarem os msicos, mas tambm para cantarem os cnticos do Gandhi. A primeira mulher que havia sado fantasiada de ndio tinha sido Dona Dulce, que tinha utilizado do artifcio para que seu marido, o ogan Le Paz, no sasse com outras mulheres durante o desfile. Depois que descobriram, aos poucos os integrantes do grupo foram permitindo a formao de alas femininas no grupo. A primeira havia sido formada pelas jovens filhas dos integrantes, que saram fantasiadas de escravas. Mas, depois, foi tambm liberado o desfile das baianas. Mas, frisou quem, antes do Machado, nunca havia sido permitido que mulheres desfilassem de lenol, vesturio considerado parte da tradio masculina; s eram permitidas as roupas de baianas.
Hlio tambm narrou a dcada de 1970 como os tempos ureos do Gandhi, quando o grupo era chamado para desfilar em quatro ou cinco escolas de samba por Carnaval, porque toda a escola que elaborava um enredo de tema africano chamava o Gandhi para compor uma ala. Segundo Hlio, at esse perodo o Gandhi parava a cidade quando desfilava, percorrendo um circuito fechado que inclua a Rua Baro de So Felix, a Rua Camerino, a travessia da Presidente Vargas, a Praa Tiradentes e o retorno Central do Brasil. Durante os anos 1980, na gesto de ndio, o Gandhi j estava com grande prestgio na cidade e, atravs de uma mediao de Hlio, que trabalhava na RIOTUR, o grupo havia sido convidado para fazer o desfile de abertura 209
oficial do Carnaval realizado na Avenida Rio Branco. Quando o desfile foi transferido para a Avenida Marques de Sapuca, onde posteriormente foi construdo o Sambdromo, o Gandhi ainda manteve trs anos consecutivos o seu desfile de abertura. Mas, segundo Hlio, a falta de organizao do grupo, com seus recorrentes atrasos e no cumprimento de contratos, fez com que ele perdesse, a partir de meados da dcada de 1990 e j na gesto de Guerra, parte do prestgio que havia obtido, no sendo mais convidado para a abertura oficial do Carnaval. Entre outras perdas consideradas por Hlio e Wilson, estava tambm a do controle da organizao do Presente de Iemanj no dia 02 de fevereiro, que era at ento comandada pelo Gandhi e, depois, passou a ser um evento organizado pela RIOTUR em conjunto com a Federao dos Grupos Afro-Brasileiros. Mas Hlio tambm percebia outras perdas, relativas ligao do grupo com as casas de candombl e sua tradio. Segundo ele, os integrantes do Gandhi tinham perdido gradualmente o contato com as diferentes casas de candombl da cidade, que at o incio da gesto do Guerra eram frequentemente visitadas e convidadas para participarem dos desfiles do grupo. E em torno de quinze outros blocos afros dissidentes do Gandhi haviam surgido nesse momento, rupturas que Hlio creditava a dois fatores: muitos integrantes estavam chegando bbados para desfilar; e tinha havido uma invaso de homossexuais no grupo. Para Hlio, esse aumento de homens homossexuais tinha feito com que muitos dos integrantes ligados capoeira, estiva e Marinha se afastassem do grupo, porque consideravam ser o Gandhi uma tradio masculina: nas primeiras gestes, s homem valente podia presidir o grupo e danar com o estandarte. A entrada de homossexuais era vista, assim, como uma perda de sua autenticidade cultural.
A quem no era [homossexual], que no fazia parte do grupo, se afastou. Porque o Gandhi antigamente era coisa de valente, era coisa de homem, sim senhor, capoeirista, gente que danava com o estandarte. No se admitia homem de torcinho na cabea, homem que no era homem danando com o estandarte do Afox Filhos de Gandhi. Hoje o estandarte do Filhos de Gandhi, que sempre foi respeitado, hoje elaborado por quem ns chamamos de Ad Fontofe, homossexual. A gente no tem nada a ver com isso. Cada um na sua. Mas era tradio de no poder. Por exemplo, Gandhi em Salvador coisa de estivador. Continua sendo gente de estiva, gente de Marinha, como era aqui a mesma coisa. E de repente aqui no Rio o Gandhi se perdeu. Ele se perdeu em todos os sentidos.
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Como soluo para o que percebiam serem perdas relacionadas aos aspectos tradicionais do grupo, Hlio e Wilson consideravam que o grupo deveria retornar para a gesto da famlia de Encarnao, se referindo tanto aos parentes consanguneos quanto aos filhos de santo que foram a ele ligados. Em suas avaliaes, se o grupo retornasse para essa famlia, os antigos voltariam a se interessar pelo Gandhi e a integrar seus desfiles. E, para eles, mesmo que ainda houvesse mulheres de pocas anteriores desfilando no grupo, como Creusa e Rosa, elas no eram capazes de, sozinhas, resgatarem o que consideravam ser essa tradio perdida, pois fazia parte de suas noes de tradicionalidade o grupo ser comandado por homens. Assim, atravs dos textos de Raul Lody e das falas de ndio, Hlio e Wilson, pude compreender as permanncias dos fundamentos religiosos tidos como estruturantes das prticas do grupo, bem como o impacto na noo de tradicionalidade que as alteraes propostas por Machado estava ocasionando: a acelerao do ritmo musical; as cantigas com letras em portugus; as mulheres desfilando fantasiadas de lenol; e a aceitao de homossexuais portando o estandarte do grupo, seu objeto material considerado mais sagrado. Mas essas alteraes de sua tradio j haviam acontecido anteriormente a Machado e faziam parte mesmo da verso que cada presidente operava do grupo e de suas transformaes ao longo dos anos: a permisso de participao das mulheres nos desfiles; a participao de pessoas no feitas do santo no grupo; a diviso de alas; e a incluso das rodas de samba de umbigada ao final das apresentaes. E eram atravs dessas retricas de perda que seus integrantes de pocas anteriores demarcavam tais transformaes, definindo assim o que era considerado tradicional no apenas a partir de suas permanncias, mas tambm em contraste, percebendo suas modificaes. No entanto, ao ouvir a narrao de todas as alteraes implantadas nas diferentes pocas do Gandhi, percebi que sua constante transformao fazia parte de suas noes de circulao e reciprocidade, j que buscavam ampliar os espaos frequentados pelo grupo e o nmero de seus integrantes. E que era nessa tenso dialtica entre preservar e transformar que o patrimnio do Gandhi mantinha como bem inalienvel seus aspectos mgicos ligados s prticas do candombl.
OS ESPAOS DA MAGIA E DA RECIPROCIDADE
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O sistema de pensamento dos integrantes do Afox Filhos de Gandhi era pautado pelas noes de magia e de reciprocidade: as trocas por eles movimentadas se baseavam nas prticas das casas de candombl, que envolviam o mundo dos homens e dos orixs atravs de rituais que visavam trazer proteo e benefcios no cotidiano. Essas trocas tambm se expandiam para as relaes entre as casas de candombl, j que a maioria dos integrantes do Gandhi estabelecia uma rede de amizades em torno das prticas do candombl e de suas noes de magia para alm dos eventos do grupo, que eram consolidadas nas festas de culto aos orixs. E era a circulao dos filhos de santo entre as diferentes casas de candombl que possibilitava a densidade social observada no Presente de Iemanj e nos desfiles de Carnaval do grupo e que os mantinha participantes em eventos de divulgao da cultura negra e dos cultos afros. Esse amplo sistema de trocas movimentado pelo grupo, alm de ser estruturante de sua forma de pensamento e no estabelecimento de suas relaes sociais, tambm era movimentado quando seus integrantes operavam com as noes de transformao e permanncia de suas prticas: atravs da busca de um maior reconhecimento pblico do Gandhi como representante da cultura afro-brasileira, do aumento de participao de filhos de santo em seus desfiles e de profissionalizao de sua diretoria e seus msicos. Assim, acompanhando as atividades e projetos do Gandhi, compreendi que o patrimnio imaterial que ele articulava buscava constantemente o equilbrio entre a manuteno dos fundamentos do grupo, relacionados s prticas do candombl, e a transformao das prticas consideradas alienveis e capazes de aumentar sua circulao e mediao entre diferentes espaos e mundos. E que a trajetria do Gandhi ligada s casas de candombl possua uma base histrica onde residia a eficcia simblica e a ressonncia de seu patrimnio, como visto nas narrativas sobre as origens e transformaes de suas prticas ao longo de seis dcadas. E, por ser um afox, ou seja, por desfilar seguindo determinados fundamentos religiosos do candombl, o Gandhi, apesar de portar seu patrimnio movimentado um amplo sistema de trocas e de circulao, precisava ter um ponto de referncia espacial para seus ensaios e rituais. E havia concentrado, ao longo do tempo, suas atividades em diferentes espaos da Zona Porturia e do Centro da cidade, fazendo com que tais regies fossem para o grupo parte constitutiva desse patrimnio. Assim, era somente aparente o paradoxo entre a circulao e fixao desse grupo carnavalesco em um territrio, j que, para que ele existisse, ambos os movimentos 212
eram necessrios: o de seus desfiles e de sua sede, cada qual se complementando e alternando em funes. Sendo que, entre os espaos que ao longo da trajetria do Gandhi haviam sido utilizados como sede do grupo, o antigo mercado de escravos do Valongo era entendido por seus integrantes como de especial valor, devido aos aspectos mgicos que movimentava por sua conexo com os mortos e o mito da Pequena frica.
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Concluso. Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca
Aps o final dos dois anos de trabalho de campo, percebi que os planos urbansticos da prefeitura para a Zona Porturia carioca no comearam com o Porto do Rio, mas fizeram parte de um processo histrico que teve suas bases consolidadas no primeiro grande plano urbanstico idealizado para a cidade, que foi a Reforma Pereira Passos. As reas porturia e central se tornaram ento espaos de constantes planejamentos e definies de usos do solo, tendo sido repensadas e modificadas ao longo do sculo por diversos outros planos. O plano urbanstico Porto do Rio, a despeito de sua autoproclamada novidade, se apresentava, assim, como uma continuidade de imaginrios e prticas. No entanto, a emergncia das noes de stio histrico e de rea de preservao cultural a partir da dcada de 1970 nas polticas pblicas nacionais e regionais voltadas para a identificao de patrimnios, redefiniram as classificaes que estavam incidindo sobre essas reas porturia e central, propondo uma clivagem de sua funcionalidade dentro da dinmica da cidade. Assim, os bairros que at ento eram predominantemente destinados aos usos comerciais, industriais e de servios, comearam a ser valorizados por seus aspectos culturais. E, a partir desse momento, foi a definio do conceito de cultura que entrou em disputa por seus diferentes usurios: gestores pblicos, especialistas das reas de arquitetura, urbanismo, histria, sociologia, geografia e antropologia, moradores, associaes de bairro, sociais e recreativas, comerciantes, empresrios, entre outros. Ao invs de desenvolver minha pesquisa buscando propor uma normatizao ou programa de usos dos espaos da Zona Porturia, optei por compreender como eles estavam sendo estruturados por seus diversos habitantes. E, ao escolher o Morro da Conceio como recorte territorial para a realizao de meu trabalho de campo, espao que estava sendo privilegiado pelos urbanistas da prefeitura em suas aes de renovao urbana, me deparei com os efeitos sociais locais dos planos urbansticos e as disputas que, direta ou indiretamente, eles estavam provocando. 214
E, ao tentar dar conta da diversidade de formas de habitar e estruturar mentalmente o morro, acabei por me deslocar da noo territorial totalizante que havia sido proposta pela prefeitura: pois, se havia algo em comum entre os espaos da parte alta, da parte baixa, da Pedra do Sal e do Valongo, era suas proximidades fsicas e o estabelecimento que permitiam de uma noo, embora difusa, de vizinhana. Mas tal vizinhana podia, dependendo do ponto de vista dos grupos e indivduos que habitavam seus espaos, incluir ou excluir outros espaos, como o Morro da Providncia, os bairros da Gamboa e Santo Cristo, o Centro da cidade, e at mesmo os fisicamente distantes subrbios e municpios da Baixa Fluminense, que eram aproximados devido s conexes possibilitadas pelas linhas rodovirias e metrovirias da Central do Brasil. A definio do Morro da Conceio reconhecida administrativamente pelos urbanistas da prefeitura era, assim, baseada em uma noo geogrfica da ideia de planalto. E, para unificar os diferentes espaos desse planalto em um nico projeto de renovao urbana, percebi que tais urbanistas haviam estruturado o morro a partir da noo metafrica de casa. Apesar dos urbanistas da prefeitura no utilizarem explicitamente essa metfora em seus discursos, ela era operada inconscientemente pela distino que faziam entre o que denominavam de morro e de cidade. Assim, para eles, era a ideia de casa que constitua a noo de morro, sendo suas ruas e logradouros classificados pelos diferentes usos que possuam e possibilitavam; enquanto a ideia de rua era associada aos espaos circundantes do planalto e genericamente denominados de cidade. Como sugerido pelo urbanista Amos Rapoport (1969), a noo de casa era universal, embora variasse de acordo com cada contexto cultural. E, como proposto ainda pelos estudos do socilogo Pierre Bourdieu (2003) e da antroploga Suzanne Blier (1987), o que unificava a noo de casa era a srie de oposies e correlaes que operavam entre espaos, como interior e exterior, coletivo e individual, sagrado e profano, puro e impuro etc. Eram, portanto, essas oposies que estruturavam a percepo dos limites de uma totalidade territorial imaginada. E, tendo como referncia as elaboraes de Lvi-Strauss (2008), percebi que os espaos do que se definia por morro haviam sido formalmente estruturados pelos urbanistas da prefeitura como dualismos concntricos hierarquizados entre si: pois, tinha sido a partir do principio lgico da oposio centro e periferia, que cinco regies haviam sido identificadas como componentes de uma dinmica socioespacial no livro Morro da Conceio. 215
No entendimento espacial e social do morro pelos urbanistas, havia sido proposta uma gradao entre os espaos classificados como mais e menos comunitrios e regulares em suas ocupaes. Assim, foi percebido como centro o que foi classificado de eixo cume morro, regio onde estavam a localmente denominada parte alta e as edificaes da Fortaleza e do Palcio Episcopal e a qual os urbanistas associaram ocupao dos descendentes de portugueses e espanhis. A regio classificada como flanco norte era o que localmente se denominava parte baixa, e foi onde os urbanistas identificaram a ocupao dos migrantes nordestinos e a predominncia fundiria da Venervel Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia. Como flanco sudeste foi identificado a regio onde estava localizada o Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antnio, espaos onde no foi proposta qualquer caracterizao de sua ocupao, sugerindo serem social e culturalmente vazios. E, como o extremo da periferia, foi identificada quase toda a base do morro, incluindo o Largo Joo da Baiana e a Rua So Francisco da Prainha, sendo classificadas como sop comercial e caracterizadas como ocupada por comerciantes sem vnculos sociais com os moradores do morro. Analisando essas classificaes dos urbanistas da prefeitura a partir das noes de casa/ morro e rua/ cidade e de centro e periferia, percebi que nelas estavam sendo operadas outras oposies espaciais especficas: as que diferenciavam a localizao vertical alto e baixo; a localizao horizontal rea central e rea porturia; seus usos privado e pblico; suas funes residencial e comercial; e as categorias estticas, econmicas e morais recuperado e decadente. Trocando em midos, quanto mais alto se localizava um espao do morro e menos relao possua com a cidade, acentuando-se seu carter de espao privado e residencial, mais ele era percebido como central. Inversamente, quanto mais um espao estava localizado prximo sua base e possibilitava diversas conexes com outros espaos da cidade, acentuando-se seu carter de espao pblico e comercial, mais ele era entendido como rea perifrica. A partir desse princpio tinham sido, portanto, classificados o eixo cume morro, os flancos e o sop. Cumulativamente, haviam sido ainda entendidos como mais centrais os espaos voltados para a rea do Centro da cidade, associados a espaos recuperados, e como mais perifricos aqueles voltados para a Zona Porturia, associados a espaos decadentes. Assim, a Rua Major Daemon e a Ladeira Joo Homem, vias de acesso mais rpido Avenida Rio Branco, ocupada por prdios de arquitetura moderna e 216
pelas atividades financeiras e empresariais, foram includas no eixo cume morro; enquanto a Ladeira Pedro Antonio foi includa perifericamente no flanco sudeste, composto por sobrados utilizados pelo pequeno comrcio e por habitaes coletivas e voltado para o bairro da Gamboa e o Morro da Providncia. E, no meio dessa gradao, foi classificado o flanco norte, que permitia a conexo entre ambas as regies. Como os espaos do morro haviam sido inconscientemente estruturados pela noo metafrica de casa, suas portas e janelas foram consideradas espaos liminares de interligao do morro cidade, possibilitando movimentos alternados de entrada e sada, aproximao e afastamento, interior e exterior. E foi para demarcar esse movimento de alternncia que os urbanistas propuseram que todas as vias do morro tivessem seus pisos revestidos por pedras e no por asfalto, como era o caso de algumas de acesso componentes da parte baixa. Tal demarcao fsica seria, assim, uma delimitao simblica de espaos. E, na operao da oposio pblico e privado, os espaos foram ainda diferenciados pelo uso coletivo ou individual que possibilitavam, sendo assim estruturados pelas diferenciaes entre sala de visita e quarto de dormir. Foram classificados como pblicos os espaos que possibilitavam o encontro entre diferentes tipos de usurios, como vias, largos e praas; e privados os restritos ao uso dos grupos familiares e suas residncias. E, por operaram com essa oposio, havia causado incmodo aos urbanistas a indefinio de algumas reas do morro entre os usos pblicos e privados; pois, para muitos dos habitantes, algumas vias que os urbanistas percebiam como espaos coletivos eram vivenciados como de circulao restrita, onde a presena de qualquer pessoa entendida como de fora provocava desconfiana. Assim, embora os urbanistas da prefeitura possussem uma forma prpria de delimitar e identificar o morro e seus habitantes, no cotidiano das prticas e experincias desses habitantes os espaos eram estruturados a partir de diferentes lgicas de casa e rua, que em algumas classificaes podiam se assemelhar dos urbanistas e, em outras, suspend-las, invert-las ou anul-las. E, igualmente, as noes de centro e periferia variavam de acordo com cada grupo e seus espaos considerados e utilizados como sagrados. Era o caso de alguns moradores da parte alta e sua centralidade simblica no Largo da Santa, que operavam suas distines espaciais e sociais a partir das noes de virtude e vcio, regular e irregular, masculino e feminino e puro e misturado. Assim como dos dirigentes da VOT, cujo centro simblico estava na 217
Igreja da Prainha e para os quais a noo de casa era associada a um espao regrado e de relaes hierarquizadas, sendo a noo de rua associada aos espaos e habitantes que no compartilhavam de seus padres religiosos e de conduta moral, produzindo uma gradao entre as classificaes de morador, marginal, desviante e criminoso. E dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do Afox Filhos de Gandhi, centrados respectivamente na Pedra do Sal e no antigo mercado de escravos do Valongo, e que, apesar de suas diferenas, eram unificados pela cosmologia do candombl e percebiam o espao da rua como de troca com o mundo dos homens e dos orixs atravs da mediao fsica de esquinas, pedras, guas, plantas e animais; e para os quais o espao da casa era de estabelecimento de relaes de amizade a partir de uma hierarquia pautada por valores mgicos. Permeando estes diferentes grupos, encontrei direta ou indiretamente pronunciada a noo de patrimnio, mas que tambm variava de acordo com cada contexto e formas de estruturar os espaos. Ao iniciar a minha pesquisa pela parte alta do morro, que estava sendo proclamada pela prefeitura como de ocupao dos descendentes de portugueses e espanhis, tinha a expectativa de que encontraria narrativas de patrimonializao voltadas para a presentificao dessa memria. Mas, neste primeiro espao pesquisado, percebi que os discursos de patrimnio eram principalmente externos, referentes aos prprios urbanistas da prefeitura e a pessoas que percebiam nele um modo de vida popular e autntico. E, de forma apenas aparentemente paradoxal, foi nesse espao valorizado cultural, econmica e turisticamente que encontrei discursos menos articulados sobre identidades e pleitos territoriais: pois era essa valorizao mesma que legitimava seus moradores e fazia com que no precisassem articular discursos de visibilidade, apenas prticas de controle dos usos do espao e da vizinhana. Assim, foi justamente entre os habitantes do morro que no haviam sido contemplados na representao da organizao comunitria proposta pelos urbanistas da prefeitura, e para cujos espaos estavam sendo idealizadas as principais aes de renovao urbana, que encontrei a noo de patrimnio sendo operada em pleitos territoriais e narrativas bem articuladas sobre tradio e identidade. Pois, tais narrativas e pleitos era uma reao a essa invisibilidade difusa que estava sendo articulada por mediadores de imaginrios que associavam a presente ocupao do morro como relacionada a portugueses e espanhis, migrantes nordestinos e franciscanos: mas que excluam a ocupao e memria espacial dos negros e do povo do santo. 218
Direcionei ento minha pesquisa para dois grupos que no tiveram suas formas de habitar reconhecidas pelos urbanistas em suas representaes de morro: o dos moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal e o dos integrantes do Afox Filhos de Gandhi. E, percebi que ambos haviam proposto nessa busca de uma territorializao a estruturao dos espaos do morro e da Zona Porturia a partir da noo de Pequena frica: pois, atravs dela, eram reconhecidas e valorizadas a ocupao negra, popular e do santo ligadas moradia popular, aos ritmos percussivos, aos grupos carnavalescos, s prticas do candombl e s atividades porturias. Os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal pleitearam alguns imveis do entorno do Largo Joo da Baiana argumentando pretenderem defender e preservar da memria negra que estava materializada e oficialmente reconhecida pelo tombamento da Pedra do Sal como monumento afro-brasileiro. E, atravs de suas conexes com alguns movimentos sociais e rgos estatais, buscaram sua territorializao se baseando no dispositivo jurdico que articulava a noo de reparao histrica e reconhecia como comunidades remanescente de quilombo grupos de afrodescendentes que assim se auto atribussem e que possussem uma trajetria histrica prpria, relaes territoriais especficas e uma ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. J os integrantes do Afox Filhos de Gandhi, alm de se unirem ao pleito do movimento quilombola, desenvolveram concomitantemente formas prprias de atuao para conseguirem a propriedade definitiva de sua sede na Rua Camerino, considerada de relevante valor simblico por estar localizada no espao onde havia funcionado o mercado de escravos do Valongo. E, embora o patrimnio que propalassem no tivesse sido reconhecido oficialmente por leis de preservao, era por eles chamado de imaterial e associado s prticas do candombl e do carnaval. Mas, em suas formas de articular seu pleito territorial, as noes de redeno da memria da escravido e de reciprocidade fizeram com que ampliassem seu sistema de trocas e de circulao, atravs do aumento de mediadores: madrinhas, patronos, amigos, parceiros, alm de humanos, antepassados, orixs, plantas, minerais e animais, foram assim por eles operados e conectados. Quando finalizei a pesquisa em novembro de 2009, os pleitos territoriais de tais grupos pertencentes ao circuito de herdeiros da Pequena frica permaneceram sem resoluo jurdica, embora seus patrimnios fossem ressonantes em parcela da 219
populao da cidade. No incio desse ano havia ocorrido ainda a transio da gesto da prefeitura e a divulgao de um novo plano urbanstico para a Zona Porturia, o Porto Maravilha, que passou a incluir como rea de interveno o bairro porturio do Caju e parte dos bairros do Centro, Cidade Nova e So Cristovo. A aprovao do Rio de Janeiro como sede das Olimpadas de 2016 tambm havia provocado o substancial aumento de investimentos do Governo Federal nos projetos de revitalizao urbana da prefeitura. E, nessa mudana de contexto poltico e administrativo, era impondervel o quanto os herdeiros da Pequena frica conseguiriam alcanar o reconhecimento de seus patrimnios e sua territorializao na Zona Porturia.
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Nas Rotas Que Levam Às Minas - Mercadores e Homens de Negócios Da Capitania de Pernambuco No Comércio de Abastecimento Da Região Mineradora No Século XVIII PDF