Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

A Utopia Da Pequena Africa - Tese PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 225

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA




A UTOPIA DA PEQUENA FRICA
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca











Roberta Sampaio Guimares






RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA




A UTOPIA DA PEQUENA FRICA
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca



Roberta Sampaio Guimares




Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de
Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios
obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Cultural.


Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves




RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011
3

A UTOPIA DA PEQUENA FRICA
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca


Roberta Sampaio Guimares



Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia e Antropologia / Instituto de
Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios
obteno do ttulo de Doutora em Antropologia Cultrual.


Aprovada por:

___________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Jos Reginaldo Santos Gonalves PPGSA/ UFRJ

___________________________________________________________________
Prof. Dra. Mrcia Contins PPCIS/ UERJ

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva PPGAS/ USP

___________________________________________________________________
Prof. Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia PPGSA/ UFRJ

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Peter Fry PPGSA/ UFRJ

4
























Guimares, Roberta Sampaio.
A Utopia da Pequena frica. Os espaos do patrimnio na
Zona Porturia carioca / Roberta Sampaio Guimares. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS/PPGSA, 2011.
225 f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Jos Reginaldo Santos Gonalves.
Tese (doutorado em Antropologia Cultural), Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia, 2011.
Referncias Bibliogrficas: f. 220-225.
1. Patrimnio. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Memria. 4.
Projetos urbansticos. 5. Zona Porturia do Rio de Janeiro. I.
Gonalves, Jos Reginaldo Santos. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro/Instituto de Filosofia e Cincias Sociais/Programa de
Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia. III. Ttulo.
5























A todos os que habitam.










6

AGRADECIMENTOS

Imaginar ser o mundo habitado por diversas espcies, entre deuses,
antepassados, homens, animais, plantas e vegetais, foi certamente o principal
aprendizado que a realizao desta tese me trouxe. Assim, mais do que um exerccio de
diversidade, a convivncia com pessoas to mltiplas me ofereceu um exerccio de
criatividade: de perceber que o sentido do mundo, alm de ser o significado que
atribumos a ele, tambm a forma como o vivenciamos sensivelmente. E, nesse
processo de pesquisa e aprendizado, algumas pessoas e instituies foram fundamentais
pelo apoio afetivo, intelectual e material que me ofereceram.
minha famlia, agradeo por todo o incentivo aos meus estudos e crescimento
pessoal: meus pais, Silvia e Humberto (in memoriam); meus avs maternos, Maria de
Lourdes (in memoriam) e Jefferson (in memoriam); meus avs paternos, Isolina (in
memoriam) e Henrique (in memoriam); e meu irmo, Rodrigo. E pelo carinho, apoio e
comentrios tese, agradeo ao Joca.
Ao meu orientador, Jos Reginaldo Santos Gonalves, agradeo pelo estmulo
criativo e pelo agradvel ambiente de troca de suas aulas e seminrios. Entre os
professores do PPGSA, tambm foram importantes na minha formao, atravs de
comentrios e aulas, Beatriz Heredia, Marco Antnio Gonalves, Maria Laura
Cavalcanti, Glucia Villas Bas e Ana Maria Galano (in memoriam).
Ao longo do doutorado, tambm contei com o apoio de diversos amigos, sendo
particularmente interessantes os dilogos acadmicos que tive com Roberto Marques,
Nina Bitar e Alberto Goyena. Alm deles, tambm foram fundamentais os amigos de
todas as horas Madalena Romeo, Elizete Igncio, Leonardo Menezes, Luzimar Pereira e
Priscila Barreto. E as companheiras presenas de Bianca Brando, Gustavo Autran e
Jos Maurcio Arruti.
E, nos diversos espaos que frequentei durante o trabalho de campo, gostaria de
agradecer em especial s contribuies e convivncias com Me Marlene dOxum,
Nazar, Luan, Wilson Silva, Carlos Machado, Cabea Branca, Regina Branca, Tia
Creusa, Lissandro Garrido, Maurcio Nolasco, Damio Braga, Adlia Vallis, Antnio
Agenor, Marcelo Abreu, Marcos Frigideira e Marcelo Frazo.
Agradeo, por fim, o apoio da secretaria do PPGSA nos encaminhamentos
burocrticos e CAPES por ter me concedido uma bolsa de estudo e viabilizado
financeiramente a pesquisa.
7














Como sabeis que cada Pssaro que desliza nas asas da ventania
No abarca um imenso universo de delcias, imerso em vossos cinco sentidos?

William Blake
Uma Viso Memorvel



O pensamento mgico no uma estreia, um comeo, um esboo, a parte de um todo
ainda no realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto
desse outro sistema que constitui a cincia, salvo a analogia formal que os aproxima e
que faz do primeiro uma espcie de expresso metafrica do segundo. Portanto, em
lugar de opor magia e cincia, seria melhor coloc-las em paralelo, como dois modos de
conhecimento desiguais quanto aos resultados tericos e prticos (pois, desse ponto de
vista, verdade que a cincia se sai melhor do que a magia, no sentido de que algumas
vezes ela tambm tem xito), mas no devido espcie de operaes mentais que ambas
supem e que diferem menos na natureza que na funo dos tipos de fenmeno aos
quais so aplicadas.

Claude Lvi-Strauss
O Pensamento Selvagem





8

RESUMO

A UTOPIA DA PEQUENA FRICA
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca

Roberta Sampaio Guimares

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

Nesta tese, apresento o estudo realizado sobre a divulgao e implantao de
projetos de revitalizao urbana idealizados pela prefeitura carioca nos bairros
porturios da Sade, Gamboa e Santo Cristo. Como o Morro da Conceio havia sido
definido o setor prioritrio de criao de novas unidades habitacionais, desenvolvi nele
um trabalho de campo entre 2007 e 2009, quando percebi que seus espaos portavam
diferentes cosmologias e formas de habitar, cada qual estruturando seus espaos a partir
de mltiplas relaes de oposio. Mas, na proposta elaborada pelos urbanistas da
prefeitura para a sua revitalizao, os sobrados habitados por diferentes ncleos
familiares ligados ao trabalho no porto e ao pequeno ou informal comrcio haviam sido
classificados como insalubres, vazios ou invadidos. Direcionei ento a pesquisa
para grupos que se contra posicionavam s propostas e classificaes da prefeitura, se
auto identificando herdeiros de um patrimnio negro e do santo e operando uma
cosmologia e imaginrio prprios, que denominei de mito da Pequena frica. Nesse
mito, os espaos do Morro da Conceio e da Zona Porturia no eram apenas um
territrio e natureza inanimados a serem dominados e explorados economicamente, mas
igualmente constitudos por humanos, animais, plantas, deuses e mortos, e em constante
criao e dissoluo.

Palavras-chaves: Patrimnio; Cultura afro-brasileira; Memria; Projetos urbansticos;
Zona Porturia do Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011
9

ABSTRACT

THE UTOPIA OF LITTLE AFRICA
The spaces of heritage in the Port Zone carioca

Roberta Sampaio Guimares

Orientador: Prof. Jos Reginaldo Santos Gonalves

In this thesis, I present the research on the dissemination and implementation of
"urban regeneration" projects devised by the cariocas port neighborhoods of Sade,
Gamboa and Santo Cristo. As Morro da Conceio had been defined the priority sector
for the creation of new housing units, I development a fieldwork between 2007 and
2009, when I realized that their spaces were carrying different cosmologies and ways of
living, each one building its space from multiple relations of opposition. But in the
proposal drawn up by prefecture planners to its "revitalization", the townhouses
inhabited by different households connected to the work in the port and the small and
informal trade had been classified as "unhealthy", "empty" or "invaded". I directed then
the search for groups that are positioned against the proposals and classifications of the
prefecture, identifying themselves heirs to a heritage "black" and "holy" and operating
an own imagination and cosmology, which I called "myth of Little Africa." In this
myth, the spaces of the Morro da Conceio and Port Zone were not just a territory and
inanimate nature to be mastered and exploited economically, but also constituted by
humans, animals, plants, gods and dead, and in constant creation and dissolution.


Keywords: Heritage; African-Brazilian culture, Memory, Urban projects; Port Zone of
Rio de Janeiro.




RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011
10


NDICE


Lista de ilustraes. ___________________________________________________ 12

I ntroduo.
A revitalizao da Zona Porturia e seus efeitos __________________________ 16
Apresentao da pesquisa ___________________________________________________ 16
De stio histrico ao plano urbanstico Porto do Rio _______________________________ 20
O Morro da Conceio segundo o urbanismo municipal ____________________________ 30
O reencontro da Pequena frica com Pereira Passos ______________________________ 42
Opes narrativas e diviso de captulos ________________________________________ 50

Captulo 1.
Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios ________________________ 53
O primeiro contato com o morro ______________________________________________ 53
As festas e bares da parte alta ________________________________________________ 61
O conflito da Pedra do Sal ___________________________________________________ 70
O carnaval e o candombl do Valongo _________________________________________ 83

Captulo 2.
A boa vizinhana da parte alta ________________________________________ 91
A valorizao cultural dos moradores tradicionais ______________________________ 91
O masculino e o feminino no Bar do Srgio e na Capela __________________________ 103
Os polticos e suas mediaes entre diferentes espaos __________________________ 109
Os espaos da reputao e dos projetos tursticos ________________________________ 121


11




Captulo 3.
O esprito quilombola da Pedra do Sal _________________________________ 125
Os mediadores do Quilombo da Pedra do Sal ___________________________________ 125
Os diversos usos do territrio tnico ________________________________________ 137
O projeto franciscano para uma populao marginalizada ________________________ 147
O processo de transformao de residncias em obras sociais _____________________ 157
Os espaos da reparao e das prticas do candombl ____________________________ 165

Captulo 4.
Os fundamentos do Valongo _________________________________________ 168
O Afox Filhos de Gandhi e o povo do santo ___________________________________ 168
O sagrado e o profano em desfile pelas ruas da cidade ____________________________ 178
O mundo dos orixs na casa de Me Marlene dOxum __________________________ 188
Transformao e permanncia nas diferentes pocas do Gandhi ___________________ 203
Os espaos da magia e da reciprocidade _______________________________________ 210

Concluso.
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca _______________________ 213

Referncias Bibliogrficas ____________________________________________ 220






12


LISTA DE ILUSTRAES


SIGLA DE IDENTIFICAO DAS IMAGENS
FA: fotografia da autora.
VA: vdeo da autora.
FSA: Fotografia de satlite do Google Earth com marcadores da autora.
PR: Imagem do plano urbanstico Porto do Rio/ Instituto Pereira Passos.
MC: Imagem do livro Morro da Conceio/ Instituto Pereira Passos.
VOT: Imagem da Venervel Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia.

INTRODUO
Pgina 16 Bairros da Sade, Gamboa e Santo Cristo. (PR)
Pgina 18 Localizao da Pedra do Sal, da Igreja da Prainha, do Valongo e do
Largo da Santa. (FSA)
Pgina 26 Puerto Madero, Buenos Aires, Argentina. (PR)
Pgina 27 Sequncia demonstrativa da rea aterrada e do traado original dos
bairros da Sade, Gamboa e Santo Cristo. (PR)
Pgina 28 Morro de So Bento visto do Per Mau. (PR)
Pgina 29 Ncleos estratgicos de atuao urbanstica nos bairros porturios.
(PR)
Pgina 32 reas porturia e central segundo o Plano Agache. (MC)
Pgina 33 reas porturia e central segundo o Plano Doxiadis. (MC)
Pgina 33 reas porturia e central segundo o PUB-RIO. Mapa ilustrado MC.
Pgina 34 reas porturia e central segundo o Plano Diretor de 1992. (MC)
Pgina 34 Bens preservados patrimonialmente no Morro da Conceio. (MC)
Pgina 39 Segmentos das dinmicas socioespaciais do Morro da Conceio.
(MC)
Pgina 41 Operaes de reabilitao do Morro da Conceio. (MC)
Pgina 48 Localizao do Sambdromo e Terreiro do Samba, do monumento
a Zumbi dos Palmares, da Escola Tia Ciata, da Pedra do Sal, do
Centro Cultural Jos Bonifcio, do Instituto Pretos Novos, do
Instituto Batucadas Brasileiras e do Afox Filhos de Gandhi. (FSA)
13


CAPTULO 1
Pgina 61 Largo da Santa e da entrada da Fortaleza. (FA)
Pgina 62 Rua Jogo da Bola com campanrio da capela ao fundo. (FA)
Pgina 71 Pedra do Sal com Rua Argemiro Bulco ao fundo. (FA)
Pgina 72 Largo da Prainha. (FA)
Pgina 73 Igreja da Prainha. (FA)
Pgina 74 Sobrados do Projeto Humanizao do Bairro no Adro de So
Francisco. (FA)
Pgina 83 Fachada da sede do Afox Filhos de Gandhi na Rua Camerino. (FA)
Pgina 84 Jardim Suspenso do Valongo. (FA)
Pgina 87 Integrantes do Gandhi durante apresentao no monumento a Zumbi
dos Palmares, Praa Onze. (FA)
Pgina 88 Sequncia de trs integrantes do Gandhi e suas diferentes
vestimentas: Cabea Branca, Nazar e Tia Creusa. (FA)

CAPTULO 2
Pgina 91 Localizao do Observatrio do Valongo, da Capela da Rua Jogo da
Bola, do Bar do Srgio, do Largo da Santa e do Bar do Geraldo.
(FSA)
Pgina 93 Sequncia da Capela e do Bar do Srgio no momento de sada da
procisso a Nossa Senhora da Conceio na Rua Jogo da Bola. (FA)
Pgina 94 Sada da Capela do andor de Virgem Maria. (FA)
Pgina 95 Passagem da procisso em frente ao Bar do Geraldo na Ladeira Joo
Homem. (FA)
Pgina 118 Escombros da Rua Major Daemon sendo pintado de purpurina
dourada durante evento do IPHAN. (FA)
Pgina 119 Ao artstica na Rua Sacadura Cabral em evento do IPHAN. (FA)
Pgina 120 Velas de citronela sendo colocadas na Pedra do Sal em evento do
IPHAN. (FA)

CAPTULO 3
Pgina 127 Localizao do Valongo, da Pedra do Sal, do Largo da Prainha, das
escolas da VOT e da Igreja da Prainha. (FSA)
14

Pgina 137 Restaurante Victoria Self Service e bar Bodega do Sal no Largo Joo
da Baiana. (FA)
Pgina 140 Centro Comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro no Largo
Joo da Baiana. (FA)
Pgina 142 Sobrados e depsito de materiais na Rua So Francisco da Prainha.
(FA)
Pgina 142 Padaria Escola na Rua So Francisco da Prainha. (FA)
Pgina 155 Sobrados utilizados pelo Projeto Humanizao do Bairro. (VOT)

CAPTULO 4
Pgina 176 rea interna da sede do Afox Filhos de Gandhi, com Praa dos
Estivadores ao fundo. (FA)
Pgina 178 Ritual de Me Torodi no lanamento do Projeto do Centro de
Cidadania Afox Filhos de Gandhi na sede do Gandhi. (VA)
Pgina 180 Preparo dos balaios para o Presente de Iemanj por Tia Creusa e
Regina na sede do Gandhi. (VA)
Pgina 180 Canto para Exu na sede do Gandhi. (VA)
Pgina 181 Pad para Exu depositado por Tia Creusa, Machado e Carlinhos na
Rua Camerino. (VA)
Pgina 181 Sequncia de Me Marlene dOxum benzendo participantes na tenda
dos balaios e carro de som com msicos do Gandhi, ambos na
Cinelndia durante o Presente de Iemanj. (VA)
Pgina 182 Percurso dos balaios da sede do Gandhi at a Cinelndia e do cortejo
at a Praa XV. (FSA)
Pgina 183 Estandarte do Gandhi com desfilantes ao fundo no Carnaval da
Avenida Rio Branco. (VA)
Pgina 184 Roda samba no final do desfile do Gandhi na Avenida Atlntica,
Copacabana. (VA)
Pgina 188 Me Marlene dOxum trajando fantasia do Gandhi. (FA)
Pgina 192 Saudaes dos filhos de santo da casa de candombl de Marlene na
festa para Exu. (VA)
Pgina 193 Ogans da casa de candombl de Marlene durante festa para Exu.
(VA)
15

Pgina 201 Sequncia do afox do Presente das Iabs dos filhos de santo de
Marlene pela Rua dos Manjolos e depsito dos balaios por Marlene e
Nazar na Baa de Guanabara. (VA)
Pgina 208 Percurso do desfile de carnaval do Gandhi na dcada de 1970 pelas
ruas do porto e do centro da cidade. (FSA)
16

I ntroduo.
A revitalizao da Zona Porturia e seus efeitos



APRESENTAO DA PESQUISA



Em meados de 2007, iniciei um estudo sobre o Porto do Rio, projeto de
revitalizao urbana idealizado pela prefeitura carioca para ser implantado nos bairros
porturios da Sade, Gamboa e Santo Cristo. Naquele momento, a Zona Porturia
estava em processo de ressignificao perante a geografia moral da cidade, como
conceituada pela antroploga Gary McDonogth (2003): nos imaginrios construdos por
diferentes mdias, no estava mais sendo associada apenas prostituio, ao trfico de
drogas e s favelas, despontando notcias que positivavam alguns de seus espaos e
habitantes. Essa transformao da percepo da mdia se relacionava diretamente com a
instalao de alguns bares e casas de show voltadas para um pblico de classe mdia na
Rua Sacadura Cabral e tambm com a reforma do terminal de passageiros do porto, que
havia incentivado o desembarque de turistas de cruzeiros martimos internacionais e
nacionais na cidade.
Dentro do amplo territrio dos bairros porturios, os urbanistas municipais
haviam definido como setor prioritrio de atuao a Praa Mau, o Per Mau e o Morro
da Conceio. Esses espaos estavam localizados na juno do bairro da Sade com a
17

Avenida Rio Branco, via de concentrao dos estabelecimentos financeiros da rea
central da cidade, e neles foram previstos o desenvolvimento de atividades tursticas e a
criao de novas unidades habitacionais. Como, entre eles, o Morro da Conceio era o
nico espao ocupado de forma predominantemente residencial, o escolhi para a
realizao de um trabalho de campo.
De acordo com os mapas utilizados pelos urbanistas, o territrio do morro era
delimitado por sua base e os encontros da Rua do Acre, Travessa do Liceu, Rua
Sacadura Cabral, Rua Camerino, Rua Senador Pompeu, Rua da Conceio, Rua Jlia
Lopes Almeida, Rua dos Andradas e Rua Leandro Martins. No pretendia, no entanto,
tratar analiticamente o morro como um mero cenrio de relaes sociais ou suporte
fsico racionalmente construdo e observvel. Pelo contrrio, buscava diluir a prpria
noo totalizante de morro operada pelo discurso administrativo da prefeitura e
ressaltar suas diferentes possibilidades de espaos, percursos e circuitos.
Pois o morro portava diferentes cosmologias e suas formas de habitar, cada qual
estruturando seus espaos a partir de mltiplas relaes de oposio. Era, portanto, um
local fragmentado, uma heterotopia, conforme definido por Michel Foucault (2006):
uma referncia espacial localizvel que abarcava posicionamentos e contra
posicionamentos que se refletiam e se designavam. Essas diferentes maneiras com que
grupos e indivduos estruturavam seus espaos movimentavam tambm sistemas
especficos de temporalidade, onde frequentemente seu passado era narrado a partir de
verses mticas que presentificavam eventos tidos como histricos. E com tais mitos,
como conceituado pelo antroplogo Claude Lvi-Strauss (1993 e 2005), eles buscavam
reconstituir uma noo de totalidade social e delimitar seus prprios tempos, espaos e
modos de vida.
Ao longo do trabalho de campo que desenvolvi durante dois anos, observei que,
a despeito dessa diversidade de habitantes, espacialidades e temporalidades, na proposta
elaborada pelos urbanistas da prefeitura para a revitalizao do Morro da Conceio
os sobrados habitados por diferentes ncleos familiares ligados ao trabalho no porto e
ao pequeno ou informal comrcio haviam sido classificados como insalubres,
vazios ou invadidos. E que essa classificao estava produzindo em seus espaos,
como efeito social, o acirramento de conflitos em torno dos seus usos, a atrao de
projetos elaborados por entidades assistenciais voltados para o controle e ordenamento
da populao classificada como marginalizada ou criminosa, e a movimentao de
narrativas de tradio para demarcar fronteiras identitrias e territoriais.
18

Dentre as vrias formas de habitar e estruturar os espaos do morro, pesquisei
trs que estavam sendo afetadas direta ou indiretamente pelos efeitos das propostas
urbansticas da prefeitura: a dos moradores da parte alta que tiveram suas prticas
valorizadas e classificadas pelos urbanistas municipais como referentes a um patrimnio
portugus e espanhol; a dos moradores da base do morro que se auto identificaram
como portadores de um patrimnio negro aps entrarem em conflito habitacional com
dirigentes de uma entidade catlica que se auto atribua uma patrimnio franciscano;
e a de integrantes de um grupo carnavalesco que se identificavam como portadores de
um patrimnio do santo, relacionado s prticas do candombl, e buscavam a
regularizao da ocupao de sua sede na regio do morro denominada de Valongo.



Ao pesquisar grupos sociais a partir da noo de patrimnio, privilegiei a
observao de espaos que eram de uso predominantemente coletivo e se apresentavam
como seus centros de irradiao simblica, ou pontos nodais, como definido pelo
urbanista Kevin Lynch (1999): espaos de conexo e/ou concentrao de algum uso ou
caracterstica fsica, que se apresentavam como foco ou sntese do morro, sendo, dele
prprio, smbolos. Em momentos ritualizados, eram esses espaos que os grupos
utilizavam para prticas sagradas que presentificavam suas narrativas mticas sobre o
passado do morro. Assim, estudei os moradores da parte alta a partir do Largo da Santa;
os do patrimnio negro a partir da Pedra do Sal e de sua interao conflituosa com os
portadores do patrimnio franciscano da Igreja da Prainha; e os do patrimnio do santo
a partir do antigo mercado de escravos do Valongo. Sendo que, cotidianamente, haviam
19

espaos que eram correlacionados a cada um deles, como determinados bares, ruas e
imveis.
Esses patrimnios, no entanto, nem sempre eram reconhecidos por medidas
governamentais de preservao artstica, histrica ou cultural e, no cotidiano das
prticas de seus mediadores ou portadores, extrapolavam a concepo jurdica do termo.
Para conceituar ento a noo de patrimnio, utilizei o estudo da antroploga Annette
Weiner (1992), que propunha que objetos e prticas sociais podiam ser distinguidos
entre bens alienveis e bens inalienveis. Para ela, estes ltimos eram vivenciados de
forma distinta por requererem uma conservao obrigatria, j que se trocados,
vendidos ou extintos poderiam desencadear uma mudana de status e posio social de
seus herdeiros frente sua rede de relaes. E, baseada no conceito de ressonncia
definido pelo antroplogo Jos Reginaldo Santos Gonalves (2007b), observei como e
por que tais patrimnios eram eficazes na evocao da apreciao de uma experincia
cultural nica em seus proprietrios e expectadores.
Esses bens inalienveis e suas referncias espaciais eram presentificados,
circulados, conservados e transmitidos no apenas atravs de usos e rituais, mas
tambm de produtos mediadores, como filmes, msicas, textos literrios, matrias
jornalsticas, estudos acadmicos, intervenes arquitetnicas, eventos culturais e aes
jurdicas, alm das polticas oficiais de patrimonializao. Tais produtos mediavam
diferentes formas de representar e apresentar o morro, anulando, suspendendo ou
invertendo seus posicionamentos e contra posicionamentos atravs de suas inseres em
um fluxo de imagens que acentuava o que o antroplogo Bruno Latour (2008) chamou
de iconoclash: a incerteza sobre os efeitos da ao humana ao gerar um mediador, pois
este poderia simultaneamente expor, denunciar, desmascarar, entreter, manter ou
preservar uma crena, mito ou princpio.
Ao final da pesquisa, percebi que os grupos relacionados ao patrimnio negro e
do santo se contra posicionavam s propostas urbansticas da prefeitura para o Morro da
Conceio e a Zona Porturia movimentando uma cosmologia e imaginrio prprios,
atravs do que denominei de mito da Pequena frica. Pois, para eles, seus espaos
no eram apenas um territrio e natureza inanimados a serem dominados e explorados
economicamente, mas formados por um mundo habitado, como proposto pelo
antroplogo Tim Ingold (2000): um espao igualmente constitudo por humanos,
animais, plantas, deuses e mortos, e em constante criao e dissoluo.

20

DE STIO HISTRICO AO PLANO URBANSTICO PORTO DO RIO

As primeiras informaes que obtive sobre o plano urbanstico Porto do Rio
foram atravs de textos jornalsticos disponibilizados na internet. Em sua maioria, eles
abordavam o polmico e frustrado projeto de construo do Museu Guggenheim,
idealizado para ocupar o Per Mau e considerado a ncora da revitalizao da Zona
Porturia. As matrias jornalsticas indicavam o ms de novembro de 2000 como o
incio das negociaes para a implantao da primeira filial do museu na Amrica
Latina. Nessa data, foi realizado um jantar na cidade-sede do museu, Nova Iorque, com
representantes das prefeituras de quatro cidades brasileiras: Recife, Curitiba, Salvador e
Rio de Janeiro. Eles disputavam a instalao do museu por consider-lo um
dinamizador das atividades tursticas, pautados pelas experincias tidas como bem
sucedidas de construo do museu nas cidades de Bilbao, Berlim e Veneza.
Dois anos aps esse jantar, a prefeitura carioca divulgou a finalizao do projeto
do museu, concebido pelo arquiteto francs Jean Nouvel para ser construdo no Per
Mau. No entanto, o contrato realizado entre a prefeitura e a fundao nova-iorquina foi
contestado por alguns vereadores e seus princpios construtivos tambm foram
questionados por diversos especialistas da arquitetura e urbanismo, ganhando uma
grande projeo na mdia nacional e internacional. Duas crticas se destacaram no
debate que se formou: a denncia do carter de shopping center do projeto, por ele
prever a instalao de centros comerciais, centros de convenes e estacionamentos; e a
avaliao de no haver necessidade de criao de um novo smbolo da cidade, por ela
possuir cones consagrados como a Praia de Copacabana, o Po de Acar, o
Corcovado e o Maracan. Nos meses seguintes, a crise em torno da construo do
museu foi crescente, at que ela foi completamente inviabilizada jurdica e socialmente
em fevereiro de 2005. Duas outras construes de dimenses monumentais elaboradas
no mbito do Porto do Rio, no entanto, lograram ser realizadas: a Vila Olmpica da
Gamboa, inaugurada em 2005, e a Cidade do Samba, inaugurada em 2006.
A minha escolha pelo estudo de um plano urbanstico no foi acidental. Durante
a realizao da dissertao de mestrado (Guimares, 2004), eu j havia pesquisado o
polmico processo de transformao de diversos imveis da economicamente
valorizada Zona Sul carioca em patrimnios culturais. Tambm uma iniciativa da
dupla gesto de Cesar Maia na prefeitura, entre os anos de 2001 e 2008, a decretao
das reas de Proteo ao Ambiente Cultural APACs havia unido os interesses do
21

poder pblico municipal e de algumas associaes de moradores para que fosse inibida
a alterao das caractersticas urbansticas, arquitetnicas, demogrficas e sociais dessa
regio, pressionando a indstria da construo civil a atuar em outros bairros da cidade.
Quando decidi desenvolver uma tese de doutorado sobre o Porto do Rio desejava,
assim, dar continuidade aos meus estudos sobre intervenes urbansticas em amplas
reas, mas desta vez focando a anlise da noo oposta de preservao, que era a de
revitalizao.
Ao comear minha pesquisa sobre a Zona Porturia, no encontrei nenhum
estudo acadmico que tivesse sido realizado nela a partir de um trabalho de campo de
durao prolongada, ausncia tambm apontada pela reviso bibliogrfica do gegrafo
Roberto Schmidt de Almeida (2005)
1
. Encontrei, no entanto, trs pesquisadores que j
haviam analisado o plano Porto do Rio e que, em comum, utilizavam o conceito de
gentrificao
2
para criticarem o papel econmico do que classificavam como cidades
globais. Cunhado em 1963 pela sociloga Ruth Glass, o conceito havia sido definido
originalmente como o processo de investimento, reabilitao e uso de moradias
desvalorizadas de bairros operrios ou populares do centro de Londres por camadas
mdias assalariadas (Bidou-Zachariasen, 2006). Posteriormente, vrias pesquisas o
utilizaram para analisar as transformaes de antigas reas centrais e porturias
causadas tanto por projetos urbansticos voltados para a implantao de novos usos e
funes nesses espaos, quanto por iniciativas individuais de reabilitao de
edificaes. Com sua difuso acadmica, o conceito foi usado por estudiosos que
buscavam compreender fenmenos sociais em cidades distintas, como Buenos Aires,
Barcelona, Cidade do Mxico, Lyon, Npoles, Baltimore, Nova Iorque, Recife,
Salvador, So Paulo e Belm.
O uso deste conceito, no entanto, recorrentemente conduzia a uma pauta de
perguntas a serem respondidas pelo pesquisador e a categorias preconcebidas que o
direcionavam a posicionamentos polticos-programticos, tais como: Quem eram os

1
Haviam publicados, porm, alguns textos que abordavam diferentes aspectos da Zona Porturia carioca,
como os que tinham como tema direto ou indireto o seu processo de urbanizao, como os do gegrafo
Maurcio Abreu (2006), do urbanista Sergio Lamaro (1991), dos historiadores Sidney Challoub (1996) e
Claudio Figueiredo (2005) e do arquiteto Henrique Barandier (2006); os sobre a ocupao e atividades da
populao negra na regio, como os dos historiadores Mary Karacsh (2000), Erika Bastos (2005) e Jlio
Csar Pereira (2007); e a coletnea de estudos Vozes do Porto: memria e histria oral (orgs. Thiesen,
Barros e Santana, 2005), que reunia trabalhos de diversos especialistas das cincias humanas.
2
Na literatura brasileira que abordava projetos de revitalizao urbana, havia duas tradues mais
correntes para o conceito gentrification, que eram gentrificao e enobrecimento. E uma variao do
conceito tambm podia ser encontrada no uso do termo elitizao.
22

gentrificadores da rea a ser revitalizada? Como o plano de revitalizao conseguiria
garantir a diversidade social das reas aps a atratividade da classe mdia? Qual era o
plano de gesto dos recursos econmicos do plano? Como evitar que o capital privado
provocasse uma especulao imobiliria na rea revitalizada? Como manter o
patrimnio e a cultura popular da rea? Como articular os movimentos sociais
para realizarem uma resistncia gentrificao?
O primeiro texto que utilizava o conceito gentrificao para analisar o plano
Porto do Rio foi publicado pela urbanista Clarissa Moreira (2004). Ela props que havia
tenses entre as prticas de transformao urbanstica e de preservao patrimonial e
que o plano poderia formar uma urbanidade contempornea, que caracterizou como
marcada pela segregao e hierarquizao do espao social, pela produo em massa e
pelo simulacro esttico. Em seguida, o gegrafo Julio Csar Santos (2005) apresentou
uma sequencia histrica que conectava o plano carioca modernizao fordista,
movimento global de reestruturao da produo capitalista iniciada na dcada de 1920.
E, por fim, a sociloga Maria Lobo (2006) mapeou os atores nacionais e regionais
envolvidos no plano e o comparou a outros projetos urbansticos de diversas cidades do
mundo.
Embora possussem abordagens distintas, em unssono as concluses desses trs
pesquisadores apontaram que o Porto do Rio era global e oposto a uma realidade
local que estava ameaada de desterritorializao por causa da valorizao
imobiliria da Zona Porturia e do encarecimento de seus servios. E que sua
comunidade popular e tradicional seria expulsa aps o fluxo residencial da classe
mdia desejosa por consumir equipamentos de lazer e cultura referenciados numa
esttica globalizada. Ou seja, o uso acusatrio do conceito gentrificao fez com que
seus estudos apresentassem de forma tipificada tanto a populao residente quanto a
potencialmente atrada para a regio aps as intervenes urbansticas. E tambm
operou oposies baseadas em modelos puros de realidade, como povo e elite,
local e global, coletivo e individual.
No entanto, essas oposies construram premissas empiricamente frgeis, pois,
alertando para os perigos de uma suposta elitizao da regio, partiram da ideia de que
as transformaes urbanas estariam em desacordo com os desejos de moradores tambm
supostamente tradicionais. Temendo a consolidao de uma forma de sociabilidade
urbana calcada no anonimato e na massificao cultural, idealizaram uma sociabilidade
baseada em relaes de proximidade e vizinhana. Acreditando no poder de ao dos
23

interesses individuais, imaginaram interesses coletivos deles apartados. E, ao
denunciarem a implantao de uma arquitetura globalizada, operaram com um regime
de autenticidade onde elegeram materialidades relacionadas a tcnicas construtivas
consideradas nativas.
Assim, esses trs crticos do Porto do Rio trabalharam em suas anlises com
modelos ideais de cidade, se aproximando de estudos como o do urbanista e historiador
da arte Giulio Argan (1992), que propunham uma normatizao dos projetos de
transformao do espao urbano. E, ao utilizarem grandes modelos formais para
compreenderem as cidades, ignoraram as atividades e redes de sociabilidade de seus
moradores e usurios, como criticado pelo antroplogo Jos Guilherme Magnani (2002)
em seu estudo sobre as tendncias dos estudos da questo urbana. Operaram, ainda,
com recursos narrativos especficos, que afirmavam serem externas percepes
estruturadas discursivamente: como o sistema que percebia a autenticidade como
imanente ao prprio objeto, noo problematizada pelos antroplogos Richard Handler
(1985), Jos Reginaldo Santos Gonalves (1988) e James Clifford (1994); e como a
retrica da perda que percebia a histria como um processo incontrolvel de destruio,
como conceituado tambm por Gonalves (1996).
Foi em busca de uma alternativa analtica a esses estudos que analisei a forma
como os urbanistas municipais haviam estruturado mentalmente suas noes de espao
e tempo no material de divulgao do plano Porto do Rio. Nessa anlise, dois estudos
foram especialmente teis: o do arquiteto Adrin Gorelik (2005), que pesquisou o
contexto poltico e ideolgico dos que haviam planejado a construo de Braslia e
elaborou uma crtica aos estudos formalistas sobre espaos construdos; e o estudo do
antroplogo Paul Rabinow (2003), que comparou diferentes modelos mentais de
cidades planejadas para observar as variaes urbansticas de modalidades de poder.
O plano urbanstico Porto do Rio foi divulgado oficialmente em outubro de 2001
e assinado por quatro representantes do poder municipal. No segundo semestre de 2008,
conversei com trs deles: Alfredo Sirkis, que na poca do lanamento do plano era
secretrio de urbanismo e presidente do rgo responsvel por sua elaborao, o
Instituto Pereira Passos - IPP; Augusto Ivan Pinheiro, ento diretor de urbanismo; e
Nina Rabha, que era gerente de urbanismo. Eles me contaram uma verso especfica de
suas atuaes na Zona Porturia, selecionando determinados fragmentos do passado
que, narrativamente organizados e compartilhados, compunham o passado mtico dos
urbanistas da prefeitura na regio. E suas narrativas demonstraram, ainda, que a
24

mudana do imaginrio sobre a Zona Porturia havia ocorrido gradualmente e a partir
de um processo de valorizao de seus bairros como bens culturais e histricos da
cidade.
Segundo esses trs urbanistas, as diretrizes de implantao de um amplo plano
urbanstico na Zona Porturia comearam a ser elaboradas por especialistas do
urbanismo e do patrimnio no final da dcada de 1970, quando foram criadas as
primeiras polticas pblicas especficas para a preservao do espao urbano carioca.
At esse momento, j tinham havido algumas iniciativas do poder municipal de
controlar o desenvolvimento das reas porturias e centrais, como a legislao que
limitava em dois pavimentos as novas construes. Mas estas medidas visavam impedir
somente o aumento da volumetria das edificaes, no obrigavam a manuteno de seus
aspectos fsicos.
Um projeto que se referia diretamente ao desejo de demarcar uma rea de
interesse cultural foi criado pela prefeitura em 1979: o Corredor Cultural do Centro,
que resultou na preservao patrimonial de cerca de 1.300 edificaes. E, visando
tambm a valorizao do patrimnio da rea central da cidade, foi realizada em 1982
uma obra de restauro do Pao Imperial, mas desta vez a partir de uma iniciativa do
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN. Objetivando
potencializar economicamente o espao atrelando-o atividade turstica, esse projeto
fez com que o bem se tornasse um equipamento cultural voltado para o lazer e o
entretenimento, catalisando ainda a transformao urbana de seu entorno. E essas duas
iniciativas consolidaram o primeiro stio histrico da cidade, difundindo a
possibilidade da relao entre a preservao de conjuntos edificados e a criao de
atrativos tursticos dinamizadores das economias locais.
De acordo com Augusto Ivan e Nina, foi tambm no incio da dcada de 1980
que comearam as discusses e estudos para que parte da Zona Porturia fosse
transformada em stio histrico. No ano de 1988, essa converso simblica foi
oficialmente realizada com a decretao da rea de Proteo Ambiental que ficou
conhecida como SAGAS, abreviao dos nomes dos bairros porturios contemplados:
Sade, Gamboa e Santo Cristo. Neles, foram preservados cerca de 2.000 bens,
localizados principalmente nos morros da Conceio, da Sade, do Livramento e do
Pinto e em suas reas planas circundantes.
O Morro da Providncia, embora tenha sido includo na rea de preservao, no
teve bens pontualmente preservados. J entre os bairros porturios, no foi contemplado
25

por essa preservao o Caju. E ficou ainda fora da preservao toda retro-rea porturia
surgida no incio do sculo XX com o aterro de parte da orla da Baa de Guanabara
realizado por Pereira Passos, onde foram instalados galpes, armazns e ramais
ferrovirios. A criao do SAGAS demarcou, assim, uma nova espacialidade
administrativa da Zona Porturia, que passou a distinguir temporalmente seus bens,
bairros e reas como histricos e no histricos. E, ao longo da dcada de 1990,
essa oposio e suas formas de classificar os espaos foram utilizadas pelos urbanistas
municipais para segmentar suas aes em trs linhas de interveno: a valorizao dos
aspectos histricos e culturais dos morros da Conceio, do Livramento, da Sade e
do Pinto; o planejamento urbano das favelas do Morro da Providncia e do Caju; e a
explorao imobiliria da retro-rea porturia.
Como informou Nina, nessa poca diretora da Regio Administrativa da Zona
Porturia, no entorno dos morros classificados como histricos foram desenvolvidos
diversos mecanismos de controle e disciplinamento dos usos de seus espaos: a
identificao de vazios e imveis arruinados que poderiam ser reabilitados; a
retirada de moradias irregulares construdas embaixo de viadutos; a criao ou
reforma de praas e largos, para que se tornassem pontos de referncia urbanos; e a
restrio espacial de vendedores ambulantes. J na parte alta desses morros, foram
realizados programas de reabilitao patrimonial e habitacional que visavam a
recuperao fsica dos casarios, a atrao residencial de famlias de classe mdia e a
criao de novos locais de visitao turstica.
Na retro-rea porturia, a prefeitura tambm desenvolveu algumas iniciativas de
implantao de projetos monumentais. Em 1995, criou o Plano Estratgico do Rio de
Janeiro para viabilizar a realizao de parcerias entre o poder pblico e a iniciativa
privada e procuraram se aliar Associao Comercial do Rio de Janeiro, Federao
das Indstrias do Rio de Janeiro e autarquia federal Companhia Docas. No entanto, de
acordo com os estudos da urbanista Rose Campons (1998), as medidas de cooperao
iniciadas com a Docas, que possua o direito de estabelecer contratos de arrendamento
para a explorao dos 500.000m de instalaes porturias, foram interrompidas pelas
divergncias entre suas concepes urbansticas, fazendo com que cada uma elaborasse
seus prprios projetos para a transformao da regio e tentasse agregar em torno deles
os investidores privados.
Buscando superar a sua insuficiente reserva patrimonial, a prefeitura negociou
ento diretamente com os ministrios da Agricultura e da Fazenda, para que os imveis
26

de propriedade federal fossem transferidos para o domnio municipal, e ofereceram
iniciativa privada a possibilidade de explorao dos novos equipamentos e espaos
urbanos que fossem por ela financiados. E, tendo como principal meta essa
revitalizao urbana da Zona Porturia, criou em 1998 o IPP que, segundo Sirkis,
deveria planejar as intervenes urbansticas, divulgar o projeto para o empresariado
nacional e internacional e promover a interlocuo com moradores, empresrios e
demais agentes econmicos da rea.
O Porto do Rio foi divulgado trs anos aps a criao do IPP, em material
disponibilizado na internet, e era composto por duas partes: Um projeto para o porto,
onde eram apresentadas concepes e objetivos gerais; e Setor prioritrio, onde eram
simuladas visualmente as implantaes de alguns dos projetos. Para compreender o
corpo de imagens e textos que apresentava as transformaes idealizadas, analisei como
ele havia sido comunicativamente emoldurado atravs do uso de metforas e
metonmias visuais e verbais, ou seja, dos aspectos metacomunicativos do seu discurso,
conforme proposto pelo antroplogo Gregory Bateson (1972).
A primeira imagem apresentada
neste material era a fotografia
panormica de uma orla clicada do ponto
de vista de uma pessoa embarcada,
realizada ao entardecer e que captava as
luzes acessas das vias e edificaes,
demonstrando que naquele espao eram
desenvolvidas atividades diurnas e noturnas. A legenda da foto informava que o espao
era Puerto Madero, Buenos Aires, onde havia sido realizada uma experincia de
revitalizao de rea porturia considerada exemplar pelos urbanistas da prefeitura
carioca. E o texto que a acompanhava operava um regime de historicidade calcado na
valorizao do futuro, utilizando termos como velho, antigo, ocioso e
abandonado para qualificar o espao no tempo presente da Zona Porturia carioca, e
novo, moderno, criativo e reciclado para se referir ao futuro e a seus projetos
de transformao.
Em seguida, eram confrontados dois projetos idealizados para o espao na
dcada de 1980. Com a insero de uma ilustrao publicada na capa da Revista da
Associao Comercial do Rio de Janeiro, era apresentada a proposta de instalao de
um teleporto, que ocuparia a retro-rea porturia dos bairros da Sade, Gamboa e
27

Santo Cristo com vias pblicas amplas e edificaes verticalizadas. O texto criticava
este projeto, acusando-o de descaracterizante das formas edificadas carregadas de
tradio e passado e, como contraponto a ele, citava a criao do projeto SAGAS e da
transformao desses bairros em stio histrico. Os projetos do Porto do Rio eram
ento apresentados como um avano nas discusses sobre as intervenes urbansticas
na rea, j que conciliariam a revitalizao com sua preservao.


Noes especficas de tempo e espao eram tambm movimentadas para
articular a percepo do suposto isolamento urbano desses bairros. Na construo do
discurso visual, uma fotografia de satlite tratada digitalmente separava a regio a ser
transformada da rea central da cidade, a ela contgua. Depois, um mapa destacava
graficamente as reas aterradas da orla (em amarelo) das reas ocupadas pelos morros e
suas bases (em tons de verde), identificando essas ltimas como o traado original da
cidade. A esse mapa eram ento adicionadas as vias pblicas que foram construdas ao
longo do sculo XX - avenidas Presidente Vargas, Baro de Tef, Francisco Bicalho e
31 de Maro e Tnel Joo Ricardo - e que teriam, segundo a legenda da imagem,
provocado o isolamento da regio (sugerido visualmente pela seta em semicrculo).
O texto que acompanhava estes mapas indicava dois fatores que teriam sido os
causadores desse isolamento e os classificava opositivamente como naturais e
construdos. Como fator natural, era apontada a morfologia do litoral composta pela
cadeia de colinas e que teria produzido uma barreira geogrfica. E, como fatores
construdos, eram classificados os ramais ferrovirios e metrovirios e as grandes reas
operacionais da atividade porturia. Essa diviso reforava, assim, a percepo de que
natureza e sociedade eram aspectos distintos e impenetrveis, onde a primeira seria
referente a uma realidade dada e exterior ao do homem e, a segunda, referente
construo de homens plenamente conscientes de suas aes.
Aps definida essa distino entre o natural e o social, dados socioeconmicos
apresentavam os bairros atingidos pelo plano e expunham sua situao fundiria.
28

Linhas aplicadas em uma foto area demarcavam diferentes lotes de um quarteiro,
ilustrando o processo tcnico denominado de georeferenciamento, atravs do qual as
diferentes propriedades desses bairros foram identificadas. No texto, era explicado que a
rea aterrada havia sido atrelada ao controle legal da Marinha, por ter sido considerada
um acrscimo sob o espao martimo. E que o presente abandonado e esvaziado da
Zona Porturia era de responsabilidade do governo federal, detentor da maior parte dos
grandes terrenos que havia se tornado obsoleta com a desativao das atividades
porturias e com a desocupao dos prdios ministeriais e rgos federais aps a
transferncia da capital do pas do Rio de Janeiro para Braslia.



Introduzindo as propostas de interveno, era ento exposta a nica foto
panormica que partia da perspectiva visual de um pedestre, retratando a Baa de
Guanabara e o Centro da cidade. A legenda que acompanhava a imagem indicava a
localizao de sua captura: A frente martima em ngulo inusitado, com destaque para o
Mosteiro de So Bento, vista do Per Mau. Essa imagem e texto valorizavam mais uma
vez o tempo futuro, ao antecipar como seria fruda esteticamente a paisagem da orla da
baa depois de implantadas as transformaes urbanas na regio e seu projeto
catalisador, que era o aproveitamento turstico do per.
Os objetivos, diretrizes e metas do Porto do Rio seguiam listados em
tpicos, pontuando as ideias anteriormente expostas e seus trs eixos de atuao,
todos articulados pela noo de renovao: a estrutura urbana, o sistema de circulao
e a legislao urbana. Como os grandes empreendimentos eram propostos para a
ocupao da orla martima, os seis ncleos de interesse de implantao de projetos
foram selecionados tendo como referncia espacial os dezoito armazns localizados ao
longo da Avenida Rodrigues Alves e que abarcavam 3,5 Km que se estendiam do Per
Mau Rodoviria Novo Rio.
Uma sequncia de mapas demonstrava ento o sistema de transporte do presente
da Zona Porturia e o seu futuro idealizado. O projeto de transportes se baseava na
29

facilitao da conexo interna entre os bairros da Zona Porturia e na sua interligao
com a rea central e a Zona Sul, regies mais valorizadas economicamente na cidade.
Todo o sistema idealizado era demonstrado como integrador, em oposio ao
isolamento que se percebia da regio, em um discurso que portava tanto a ideia
temporal de futuro quanto espacial de circuito.


















A apresentao das propostas gerais do plano se encerrava com uma sequncia
de fotos e mapas que visavam comprovar o vazio e o abandono da Zona Porturia e
embasar as proposta de alterao da legislao urbana. Mas, entre a classificao dos
locais pblicos, histricos e desativados que deviam ser criados, preservados
ou renovados, permaneceram sem representao no Porto do Rio todos os outros
imveis residenciais e comerciais, embora fossem ser tambm afetados por ele. A
ausncia desses espaos era reforada pelo olhar distanciado das vistas areas e das
fotos panormicas e de satlite, em detrimento do ponto de vista trreo, singular e
aproximado, impedindo que fosse percebida a existncia humana cotidiana e sugerindo
ainda serem esses espaos social e culturalmente vazios. Assim, para os idealizadores
30

do plano os espaos da Zona Porturia figuravam apenas como um objeto, um solo
degradado que deveria ser economicamente potencializado.
E, em seu conjunto, a divulgao oficial do plano movimentava as noes de
zona degradada, stio histrico, patrimnio cultural e renovao urbana,
produzindo um discurso sobre os espaos da Zona Porturia que construa o imaginrio
de que eles eram deteriorados e que, por isso, seria necessria a substituio de seus
usos e funes. E, temporalmente, esse imaginrio era reforado pela representao do
passado da regio como uma sucesso de erros que teriam levado sua degradao,
do seu presente como a oportunidade de mudana dessa situao, e de seu futuro como a
realizao de uma desejada modernizao.
Esse discurso temporal e espacial produzia, assim, uma imagem ideologicamente
poderosa, que tornava as propostas de transformao da Zona Porturia uma ao social
aparentemente bvia e inquestionvel. Mas a fora expressiva dos discursos que
estruturavam o Porto do Rio estava tambm ancorada na representao do espao como
um objeto deslocado da sociedade, uma natureza a ser dominada e explorada, como se
natureza e sociedade fossem pertencentes a dois domnios distintos na constituio do
mundo, em um processo de purificao da relao humanos e coisas que apagava todos
os trabalhos de mediao. Pois, como argumentado por Bruno Latour (1994), tal
processo de apagamento da produo de hbridos construa um discurso retoricamente
imparcial e cientfico, colocando os urbanistas da prefeitura em uma posio de
interventores tcnicos dessa natureza e, portanto, supostamente no ideolgicos.

O MORRO DA CONCEIO SEGUNDO O URBANISMO MUNICIPAL

Entre as diversas publicaes disponveis na livraria do IPP
3
, o livro Morro da
Conceio (2000) se dedicava exclusivamente a divulgar um conjunto de estudos
realizado nos seus espaos por tcnicos da prefeitura carioca e do governo francs entre
os anos de 1998 e 2000. O livro possua uma encadernao de capa dura, impresso em
tinta colorida, papel brilhante, muitas ilustraes, fotografias, mapas, desenhos e
transparncias. Sua elaborada produo editorial indicava, assim, que seus idealizadores
visavam alcanar um pblico de alto poder aquisitivo e mais amplo que o formado pelos
demais tcnicos da prefeitura e por pesquisadores de urbanismo e arquitetura. Seu texto

3
Abordando especificamente projetos idealizados para a Zona Porturia carioca, havia a coletnea de
artigos Revitalizao de centros urbanos em reas porturias (orgs. Schweisser e Cesario, 2004).
31

era de autoria de Mrcia Frota Sigaud e de Claudia Maria Madureira de Pinho e
graficamente mesclado com inseres de letras de msica e poesia, que fornecia um
contraponto potico ao tom denotativo dominante. J os estudos eram assinados pela
diretora do instituto, Ana Luiza Petrik Magalhes, e pela administradora da Regio
Administrativa da Zona Porturia, Nina Rabha, e pretendiam subsidiar projetos a serem
implantados no patrimnio urbanstico, paisagstico e arquitetnico do morro.
Na apresentao do livro, os espaos dos morros da Conceio, do Castelo, de
Santo Antnio e do So Bento eram miticamente narrados como o ncleo original da
cidade e tinham suas construes comparadas aos bairros lusitanos de Alfama e da
Moraria. Entre esses morros, apenas o Morro da Conceio estava administrativamente
classificado na Zona Porturia, os demais haviam sido classificados como pertencentes
rea central, sendo que os morros do Castelo e do Santo Antnio haviam sido
desmontados. E nessa narrao era construda tambm uma hierarquia ente os ocupantes
de tais espaos, associando-os inicialmente ao povoamento portugus e, posteriormente,
s imigraes africanas e de outros pases europeus.
Na narrao mtica do passado da Zona Porturia, a conformao da regio at o
sculo XIX era caracterizada pela presena de edificaes como igrejas, fortificaes,
cemitrio, armazns e mercado de escravos, e pela criao de aterros e trapiches. E a
hierarquia ocupacional era reafirmada: era citada a herana lusitana na formao da
cidade dos sculos XVI e XVIII e, depois, a expanso urbana ao final do sculo XIX e a
chegada de escravos recm libertos, imigrantes europeus e classe trabalhadora em geral.
O final da narrativa deste passado era demarcado pelas obras de urbanizao e
aterramento de parte da orla da Baa de Guanabara realizadas no incio do sculo XX
pelo prefeito Pereira Passos.
Em seguida, o passado do prprio Morro da Conceio era demarcado pelas
instalaes de edificaes catlicas, militares e de apoio ao comrcio escravista e pela
atuao do urbanismo municipal. Sua origem era narrada a partir do erguimento em seu
topo de uma ermida a Nossa Senhora da Conceio no incio do sculo XVII, onde em
seguida foi instalado o Palcio Episcopal. Depois, eram citadas as instalaes da Igreja
de So Francisco da Prainha no fim do sculo XVII, da Fortaleza da Conceio e do
mercado de escravos no Valongo no sculo XVIII, e a extino desse mercado e
nobilizao de sua rea pela prefeitura durante o sculo XIX. O sculo XX era ento
novamente narrado como o fim das transformaes urbanas do morro e sua
32

cristalizao como foco de resistncia residencial e de memria urbana,
sugerindo que nele no mais haviam ocorrido modificaes fsicas ou habitacionais.
A exposio das propostas de transformao urbanstica que se seguia era
baseada na afirmao da degradao fsica do morro e na estruturao da oposio
entre espaos pblicos e privados. Como espaos pblicos degradados eram
listados o Jardim Suspenso do Valongo, construdo durante a reforma de Pereira Passos
como projeto de embelezamento do espao anteriormente ocupado pelo mercado de
escravos; as instalaes irregulares de fiao eltrica; e os calamentos de cimento que
haviam substitudo os de pedras e paraleleppedos. E eram citadas como degradao dos
espaos privados as alteraes que os moradores haviam feito nas fachadas de suas
casas utilizando tecnologias construtivas entendidas como no originais. Partindo ento
do pressuposto de que havia a necessidade de criao de uma poltica de renovao
urbana, os urbanistas propuseram um amplo programa para reverter o processo de
degradao do que denominavam de stio histrico.
A apresentao do programa era iniciada com o levantamento dos projetos
urbansticos que haviam incidido anteriormente sobre a Zona Porturia e o Morro da
Conceio e articulava o passado mtico dos prprios urbanistas nesses espaos. A
Reforma Pereira Passos, realizada entre 1903 e 1906 e citada at ento como o final do
tempo passado da Zona Porturia e do Morro da Conceio, demarcava a origem dos
projetos urbansticos nesses espaos: havia alargado diversas vias da rea central, aberto
a Avenida Rio Branco, aterrado a orla para a ampliao das atividades porturias e
incentivado a circulao com a Zona Sul da cidade. Qualificada como embelezadora e
modernizadora pelos urbanistas, essa reforma, no entanto, no props o zoneamento da
cidade ou critrios de uso e ocupao do solo.
O primeiro plano urbanstico a
definir tais critrios e zoneamento foi o
Plano Agache de 1930. Nele, foram
criadas a Avenida Presidente Vargas e
algumas ligaes metrovirias e o
territrio do centro urbano foi dividido
nas categorias bairro comercial (em
azul), bairro de negcios (em verde) e
bairro industrial (em amarelo), este ltimo tendo seus usos e funes totalmente
voltados para as atividades relacionadas ao porto. E as partes mdias e altas do morro
33

foram classificadas como pertencentes ao bairro industrial e a maior parte de sua base
como ao bairro comercial.
Em 1965, aps a transferncia da
capital do pas para Braslia e da
transformao do Rio de Janeiro em
Cidade-Estado da Guanabara, foi
elaborado o Plano Doxiadis, que props o
reordenamento do mesmo espao
dividindo-o apenas em quatro: rea
porturia (em azul), rea central de
negcios (em amarelo), uma rea branca no assinalada englobando o espao do per e
do Morro do So Bento, e outra tambm branca e no assinalada delimitada por uma
lado da margem da Avenida Presidente Vargas. O Morro da Conceio foi ento
reclassificado como pertencente rea central, embora um trecho de sua base tenha
permanecido na rea porturia.
O PUB-RIO foi concebido em 1977 aps outra mudana administrativa do
territrio, que foi a fuso dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Neste plano, os
morros da Conceio, Livramento, Providncia e do Pinto foram destacados da rea
porturia e rea central e classificados
como rea de preservao ambiental e
paisagstica (em verde). A rea central
manteve sua nomenclatura, embora tenha
sido subdividida em rea central de
negcios (em amarelo) e expanso da
rea central de negcios (em bege). E a
retro-rea porturia permaneceu em
branco e no foi assinalada no mapa. E o Morro da Conceio, alm de ter ganhado uma
nova classificao, teve sua base mais fragmentada, passando a pertencer a quatro
diferentes tipos de zoneamento do entorno.
O Plano Diretor de 1992 foi criado aps a Constituio Federal de 1988 definir
que toda cidade com mais de 20 mil habitantes deveria ter um plano de diretrizes
aprovado pela Cmara Municipal de Vereadores. Neste plano, a cidade foi analisada de
forma setorial, com a indicao das polticas pblicas a serem desenvolvidas e
classificadas por reas de atuao: meio ambiente e patrimnio cultural, habitao,
34

sistema virio e transportes, servios
pblicos e equipamentos urbanos e
atividades econmicas e patrimnio
imobilirio. A rea central ganhou
novas subdivises (em tons de amarelo),
e a rea de proteo ambiental (em
verde) foi ampliada e a zona porturia
(em azul) foi restrita aos espaos
aterrados, seguindo as demarcaes do projeto SAGAS. E o Morro da Conceio foi
designado como rea integrada ao patrimnio paisagstico e cultural, com suas
diretrizes de uso e ocupao do solo prevendo o incentivo ao uso residencial; o
desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo, lazer e cultura; a melhoria das
condies ambientais; e a racionalizao do sistema de transportes.



Aps as mudanas da legislao urbanstica, foram apresentadas no livro as
legislaes de preservao patrimonial vigentes. Em um grande mapa, foram
assinalados em verde os tombamentos individuais do Jardim Suspenso do Valongo (1),
da Igreja de So Francisco da Prainha (3), da Fortaleza da Conceio (4) e do Palcio
Episcopal (5), realizados pelo IPHAN em 1938; e da Pedra do Sal (2) realizado pelo
governo estadual em 1987. E foi destacado em azul o tombamento de um cortio e de
um sobrado pela prefeitura em 1988. Foram tambm assinalados em amarelo os
diversos imveis que haviam sido preservados pelo municpio e em laranja os tutelados
pelo estado. E informado que todo o permetro do morro havia sido tutelado pelo
35

governo federal em 1986, com a definio de gabarito mximo de dois pavimentos, e
que o projeto SAGAS havia restringido seus usos como residencial e como comercial e
de servios voltados apenas para o atendimento local.
A apresentao de tais planos urbansticos e legislaes patrimoniais demarcava,
portanto, tempos e espaos referentes s distintas classificaes administrativas que
haviam incidido sobre a rea central, a Zona Porturia e, mais especificamente, o Morro
da Conceio. No entanto, no cdigo cronolgico operado era apenas brevemente citado
como tais leis urbansticas e patrimoniais dialogavam entre si e no eram explicitados
quais os efeitos que essas distintas classificaes e intervenes tiveram sobre os
espaos. O discurso dos urbanistas municipais sugeria, assim, que tais polticas de
ordenamento espacial inauguravam sempre uma nova poca, da mesma forma como
havia sido articulado no material de divulgao do novo plano da prefeitura para a
Zona Porturia, o Porto do Rio.
Mas, ao longo da pesquisa que desenvolvi, observei que os efeitos dos diversos
planos urbansticos perduravam e coexistiam na estruturao dos espaos do Morro da
Conceio. Nele estavam espacialmente justapostos, por exemplo, o Jardim Suspenso
do Valongo criado na Reforma Pereira Passos e as prticas de presentificao da
memria referente aos usos do antigo mercado de escravos. Viam-se tambm os
desdobramentos sociais, econmicos e culturais do aterramento da orla da Baa da
Guanabara e a especializao do espao como dedicado s atividades porturias, como a
diviso dos sobrados em cmodos para abrigar operrios e funcionrios da Marinha. Do
Plano Agache e do Plano Doxiadis, permaneciam os efeitos da classificao da base do
morro como rea limtrofe de desenvolvimento de atividades comerciais, industriais ou
de negcios, que havia provocado sua setorizao ocupacional.
Os tombamentos individuais feitos pelo IPHAN tambm haviam perpetuado o
imaginrio do morro como espao ligado s tradies militares, catlicas e urbansticas.
A ampliao da noo de preservao tinha sido ainda definida pelo PUB RIO, plano
que provocou como efeito a manuteno dos aspectos fsicos dos sobrados, garantindo
sua cristalizao, como enunciado no livro pelos urbanistas de forma naturalizada. E
essa manuteno foi posteriormente reforada pela definio da volumetria dos
sobrados, efeito da tutela patrimonial de todo o permetro do morro pelo IPHAN. A
separao das partes elevadas do morro, destinada ao uso residencial, das partes de sua
base, destinada aos usos comerciais locais, foram em seguida estipuladas pelo projeto
SAGAS, tendo como efeito a ocupao predominante desta ltima por lojas de artigos
36

para escritrios, restaurantes populares, grficas, depsitos de produtos e
estacionamentos. E, por fim, o Plano Diretor ao regular as intervenes voltadas para o
turismo, a cultura, o lazer e o adensamento habitacional do morro, produziu como
efeitos a renovao de largos e praas e a prpria eleio do morro como setor
prioritrio de atuao na revitalizao urbana da Zona Porturia.
Em seguida aos mapas, o livro exps os resultados de quatro pesquisas
desenvolvidas pelos urbanistas no morro: arquitetnica, socioeconmica, fundiria,
imobiliria e arqueolgica. A pesquisa arquitetnica se concentrou na parte externa das
edificaes e nas vias do morro, classificando-as por fachada e por ambiente
urbano. Sua etapa posterior previa o estudo do interior das edificaes e pretendia
analisar seu valor quanto ao patrimnio, incluindo os aspectos de sua salubridade,
segurana, conforto e estado de conservao. Sem definirem os critrios que
pautavam essas noes, os urbanistas enunciavam que, na concluso dessa pesquisa,
desejavam dimensionar os custos da reabilitao habitacional a ser implantada, em
uma proposta que deixava pouco ntida a fronteira entre os poderes pblicos e os
espaos privados das residncias.
J a pesquisa socioeconmica foi realizada atravs de visitas domiciliares e
buscou identificar sua quantidade, condies de ocupao, populao, renda,
composio familiar e as atividades profissionais desenvolvidas pelos moradores.
Foram cadastrados cerca de 2.000 moradores nas edificaes residenciais e
identificados 1.053 domiclios, sendo que, desses, 357 estavam localizados em trs
edifcios de apartamentos situados na base do morro e 133 estavam fechados. Entre as
dificuldades apontadas para a execuo das aes de reabilitao dos imveis, estava
o alto ndice de domiclios alugados, 48%, contra apenas 27,4% de ocupados por
proprietrios, sendo que a pesquisa no esclarecia quem eram os moradores dos 24,6%
domiclios restantes, possivelmente ocupantes informais dos imveis classificados como
fechados. A nfase dessa pesquisa, assim, recaiu sobre os aspectos jurdicos e
administrativos que unia os moradores aos imveis que habitavam, dividindo-os em
proprietrios, inquilinos e irregulares, estes ltimos indiretamente citados e no
oficialmente reconhecidos.
A pesquisa fundiria era um desdobramento dessa diviso e propunha a
identificao dos proprietrios a partir de uma nova classificao: instituies
religiosas, particulares e instituies governamentais. Entre as instituies
religiosas, a que possua mais propriedades era a Venervel Ordem Terceira de So
37

Francisco da Penitncia - VOT e, entre as instituies governamentais, a com maior
propriedade no morro era a Unio Federal, por causa dos extensos territrios do
Observatrio do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceio e do antigo Palcio
Episcopal, estas duas ltimas edificaes utilizadas pela Diviso de Levantamento
Cartogrfico do Exrcito. Segundo os urbanistas, a pesquisa fundiria havia sido
dificultada pela impossibilidade de dimensionamento de diversos lotes e da constante
indefinio do que era rea pblica e privada que, como visto anteriormente, era um
de seus princpios de estruturao mental dos espaos do morro. Outro fator
considerado complicador da reabilitao foi a inexistncia de registro em cartrio de
inmeros imveis, que os urbanistas explicaram historicamente com o fato de o morro
ter sido dividido em trs reas foreiras: da Unio, da Ordem dos Beneditinos e da
Ordem Terceira da Penitncia.
Na sequencia de pesquisas, a que tratava dos aspectos imobilirios do morro no
foi apresentada, foi feita apenas uma defesa de sua importncia, que seria o
monitoramento do mercado imobilirio antes e depois da implantao do programa
urbanstico. E foram tambm expostos como objetivos dessa pesquisa a aquisio ou
desapropriao de algumas reas pela prefeitura e o controle da valorizao econmica
do morro, que visava garantir a manuteno de seus ocupantes originais, que somente
mais adiante, na caracterizao da organizao comunitria, seriam identificados
pelos urbanistas.
Os resultados da prospeco arqueolgica, no entanto, ganharam grande
destaque ao abordarem a existncia de um stio histrico no morro, sendo o Jardim do
Valongo o espao escolhido para iniciar a implantao do programa. O livro ento
demonstrava, atravs de fotografias, a realizao de dois anos de escavao, catalogao
e anlise do material coletado, que resultaram na recuperao do jardim para seu
estado considerado original, que foi demarcado como o momento de sua construo
pela prefeitura de Pereira Passos. Antes dessa recuperao, o espao foi qualificado
como abandonado, soterrado por entulho e lixo, invadido por vegetao, danificado
por aes de vandalismo e frequentado por mendigos e desocupados. No entanto,
o fato de ele ter sido construdo em cima do antigo mercado de escravos no foi citado
nem constituiu uma meta da prospeco arqueolgica e de sua recuperao.
Finalizando a apresentao dessas pesquisas, os urbanistas propuseram uma
caracterizao da rea que sintetizava os resultados encontrados e estruturavam mais
claramente suas percepes sobre os espaos do morro que deveriam ser transformados
38

ou preservados. Novamente era indicada a ocupao inicial do morro pelo Palcio
Episcopal, Igreja de So Francisco da Prainha e Fortaleza da Conceio, mas, desta vez,
a essa ocupao era feito um contraponto: apesar da instalao de instituies
prestigiadas, ele [o morro] se viu obrigado a conviver com equipamentos indesejados
pela cidade, que foram identificados como o comrcio de escravos e as atividades de
explorao de pedreiras, comerciais, porturias e ligadas aos estaleiros, fundies,
serralherias e ferrarias. No entanto, era omitido o papel dos prprios planos urbansticos
municipais e de suas propostas de zoneamento e usos do solo na configurao desses
espaos do morro. E, associado a essas atividades indesejadas, era descrito o perfil de
populao que elas atraram e suas formas de habitar, tambm percebidas como
inadequadas: operrios fabris e trabalhadores porturios que se abrigavam em casas de
cmodo e cortios.
A partir da seleo desses eventos da ocupao do morro tidos como histricos e
das pesquisas que realizaram durante dois anos, os urbanistas apresentaram uma
classificao do que denominaram de reas sem uso ou uso precrio, ou seja, dos
espaos que seriam o foco de atuao dos projetos de transformao urbana. Elas foram
divididas em rea pblica ou lote no identificado, lote com edificao precria,
runa sem uso e runa com uso. Depois, foram classificadas as reas utilizadas para
lazer, divididas como pblica ou de propriedade ignorada, privada e
institucional. E, ainda para subsidiar as intervenes urbansticas, foram identificados
os pontos de visadas panormicas do morro, seus elementos da paisagem natural e
os perfis das vias, que era o estudo das volumetrias, dos parcelamentos dos lotes e das
propores entre as fachadas, com a inteno de definir parmetros urbansticos.
No ltimo item de caracterizao, a organizao comunitria, os urbanistas
fundiram essas informaes sobre os estados de conservao fsica dos imveis e das
vias com uma classificao dos moradores, que foram apresentados a partir de trs
categorias sociais e distribudos espacialmente em cinco segmentos das dinmicas
socioespaciais. A primeira categoria ocuparia o eixo cume morro (em azul) e seria
composta por moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhis
ligados s atividades porturias, que foram descritos como possuidores de uma relao
afetiva intensa com a rea e predominantemente proprietrios de imveis. A segunda
categoria ocuparia o flanco norte do morro (em verde) e seria composta por
moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maioria, apresentados como
responsveis pelo seu marcante processo de degradao fsica e social, possuidores de
39

uma relao meramente conjuntural com o local e como predominantemente
locatrios. E, a terceira categoria social, foi identificada como ocupante do sop
comercial (em amarelo) e seria composta por comerciantes instalados na base do
morro, descritos como pessoas que no tinham necessidade de transitar por seu
interior, de frequentar seus espaos, nem de compartilhar das mesmas expectativas dos
moradores do morro.



A populao estimada do morro de 2.000 habitantes. A esto includos os
moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhis, que tradicionalmente
estiveram ligados s atividades porturias e cuja relao afetiva com a rea intensa,
traduzindo-se numa forte identidade socioespacial.
No entanto, a rea vem sofrendo marcante processo de degradao, fsico e social,
dada proximidade com a Zona Porturia e todas as implicaes que ela acarreta. Com
isso, a populao original vem sendo substituda por migrantes de outros estados do pas.
Aqueles que tm condies e desprendimento para abandonar a rea, o fazem.
Os moradores recentes, migrantes nordestinos m sua grande maioria (35% segundo
pesquisa socioeconmica), tm uma relao com o Morro meramente conjuntural. Eles se
instalam a por sua proximidade com o mercado de trabalho, pelos baixos preos do
mercado imobilirio e pelo conforto proporcionado pela disponibilidade da infraestrutura
urbana.
H ainda a categoria dos comerciantes, que esto principalmente instalados na base
do Morro, cujos trajetos no implicam a necessidade de transitar por seu interior, de
frequentar seus espaos, nem de compartilhar das mesmas expectativas. Esta categoria est
muito mais voltada para as relaes com a cidade do que com o prprio Morro. Essas so
basicamente as trs grandes categorias sociais identificadas no Morro.
40

Os moradores antigos, geralmente ocupando as residncias no cume do Morro, so
os prprios proprietrios e no tem grande afinidade com os moradores mais recentes, estes
estabelecidos, sobretudo, na vertente norte do Morro e so, em grande parte, locatrios.
Grande parte da tenso social existente no Morro, portanto, gira em torno dessas
duas categorias, de suas aspiraes, suas identidades, de seus valores, que acabam por gerar
uma certa relao de hostilidade entre ambas as partes.

Na percepo desses urbanistas, portanto, a comunidade do morro estaria
dividida principalmente segundo seu tempo de moradia, sua relao econmica com o
imvel, seu local de origem e o tipo de uso do solo, sendo estruturada a partir dos
dualismos morador e comerciante; morador antigo e recente; proprietrio e
locatrio; portugus e espanhol e nordestino. Esta diviso categrica da prefeitura
construa, assim, esteretipos baseados em identidades puras, em vez de propor uma
representao dos espaos do morro e de seus habitantes a partir de identidades
relacionais.
E, nesse sistema de autenticidade comunitria, era implicitamente afirmado que
os descendentes de portugueses e espanhis deveriam ser os moradores preservados e
valorizados pelo programa de revitalizao e os migrantes nordestinos,
responsabilizados pela degradao do morro, poderiam ser retirados, como se suas
origens e condies econmicas de locatrios possussem uma relao de causalidade
com o estado fsico das casas e vias. Sendo que era na afirmao de uma hostilidade
entre os moradores colocados nessas duas grandes categorias de moradores que a
interveno urbanstica se ancorava discursivamente, ao proclamar uma suposta
necessidade externa de mediao dos moradores para que fosse solucionada a tenso
social do morro. Mas, ao longo da pesquisa, observei que havia diversas outras formas
de seus habitantes estruturarem seus espaos e classificarem uns aos outros, que
passavam por uma gama mais ampla de locais de origens, de crenas religiosas, de
divises de gnero e etrias, de atividades profissionais, entre outras.
Alm dessa diviso estereotipada dos habitantes do morro, chamava a ateno
que os do flanco sudeste (em ocre e vermelho), onde estava localizado o Jardim
Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antnio, no tivessem sido descritos ou
citados. Era, no entanto, nesse espao que a maioria dos imveis tinha sido classificada
pelos urbanistas como com potencial para operaes de reabilitao e eleitos
prioridade de implantao do programa. A no identificao desses habitantes na
41

pesquisa da organizao comunitria era, assim, uma forma de represent-los como
inexistentes.










A hierarquia de intervenes propostas pelos urbanistas, ao final desse conjunto
de estudos, operou ento com uma gradao entre os espaos considerados mais e
menos necessitados de operaes de reabilitao, a partir da identificao de maior ou
menor quantidade de imveis vazios, vazios em reforma, fechados, invadidos,
insalubres e com risco estrutural. Foi definido o setor do Valongo (em amarelo)
como prioridade de atuao e sugerido que nele fosse implantado empreendimentos
habitacionais e reas de lazer e estacionamento. Em seguida, foi indicada a interveno
urbanstica no setor da Rua Jogo da Bola/ Ladeira Joo Homem (em rosa) e no setor
da Ladeira Pedro Antnio (em laranja).
No setor do Adro de So Francisco (em abbora), foram identificados tambm
imveis vazios e com risco estrutural, mas nele as intervenes dependiam de
negociaes com a VOT, proprietria de grande parte dos imveis, e da concluso das
obras de ampliao de sua escola, a Padre Dr. Francisco da Motta. O setor da
Fortaleza (em pssego) foi classificado como o mais emblemtico no morro e
considerado necessitar de um amadurecimento da equipe para alter-lo, e tambm era
onde havia mesmo imveis com potencial para operaes de reabilitao. E o setor
do entorno (em pontilhado), foi definido com ltima rea a receber intervenes e
idealizado para interligar o morro a cidade e diminuir seu isolamento.
Concluindo as propostas de reabilitao dos imveis, os urbanistas
apresentaram um texto que incentivava o turismo no morro a partir da valorizao de
seus espaos como testemunho de uma memria mpar da cidade e como um stio
depositrio de um passado histrico. E, defendendo o uso pedaggico do morro na
42

observao de como haviam funcionado as sociedades precedentes e o patrimnio
que nos foi transmitido, movimentaram a percepo de que seus espaos e bens eram
capazes de operar uma mediao entre um tempo e experincia passados. Por fim, na
definio de como seriam os observadores desse patrimnio, propagaram a implantao
de equipamentos voltados para a atividade de um turismo atento, seleto e culto,
sugerindo, portanto, que haveria uma noo de turismo voltado para uma massa inculta.

O REENCONTRO DA PEQUENA FRICA COM PEREIRA PASSOS

A crescente divulgao do Morro da Conceio como atrao turstica e
potencialidade para empreendimentos habitacionais provocou tanto o aumento de
circulao de pessoas nos espaos classificados pelos urbanistas da prefeitura como
eixo cume morro, interessadas em fruir a arquitetura do casario e o estilo de vida
dos que estavam sendo identificados como descendentes de portugueses e espanhis;
quanto a precipitao de um conflito travado entre dirigentes da VOT e moradores da
parte do morro que havia sido classificada como sop comercial.
De grande visibilidade na mdia nacional, o auge desse conflito ocorreu quando
cinco moradores, classificados pela entidade catlica como invasores e notificados de
aes de despejo e reintegrao de posse, pleitearam judicialmente o reconhecimento de
vrios imveis da base do morro como Comunidade de Remanescentes do Quilombo
da Pedra do Sal. Atuantes no Movimento Negro Unificado - MNU, os moradores que
formaram esse quilombo acionaram ento suas relaes com o Estado para propor
uma interpretao tnica ao conflito que vivenciavam. E inseriram nos discursos de
autenticidade sobre os moradores do morro uma lgica patrimonial que propunha a
narrao de seu passado a partir de outro mito de origem: o da formao da Pequena
frica.
Dentre os mltiplos posicionamentos que encontrei no Morro da Conceio, a
Pequena frica foi o nico que se caracterizava por se relacionar com seus demais
espaos e patrimnios a partir de analogias que concebiam a sociedade de uma forma
aperfeioada, pautada por um modelo de ancestralidade africana e de identidade cultural
negra. O espao da Pequena frica era, assim, uma utopia, como tambm definido por
Foucault (2006): em comum com a heterotopia, abarcava posicionamentos e contra
posicionamentos, mas, em distino, no era localizvel. O passado da Pequena frica
43

era narrado por habitantes do morro e tambm de outros espaos da Zona Porturia e do
Centro da cidade que dele se entendiam herdeiros.
Comparando algumas verses do que chamei de mito da Pequena frica,
encontrei pontos de cruzamento que demarcavam eventos projetados sobre esses
espaos: a comercializao de escravos africanos no mercado do Valongo e o enterro no
bairro da Gamboa dos que haviam morrido na travessia martima continental, os pretos
novos, a partir do sculo XVIII; a ocupao de casas no bairro da Sade por migrantes
baianos em meados do sculo XIX; e, com as reformas urbansticas realizadas pelo
prefeito Pereira Passos na virada do sculo XX, o deslocamento habitacional desses
migrantes baianos e africanos para a Cidade Nova e para as primeiras favelas e
subrbios da cidade.
Para embasar juridicamente a territorializao dessa utpica Pequena frica, os
moradores do morro que formaram o Quilombo da Pedra do Sal acionaram o Artigo 68
do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitrios da Constituio Federal de 1988.
Esse artigo possibilitava que grupos que se entendessem afrodescendentes
pleiteassem perante o Estado o reconhecimento como comunidades remanescentes de
quilombo e a titulao de um territrio de uso coletivo. Em sua aplicabilidade, definida
apenas em 2003 atravs do Decreto 4.887, era qualificada como comunidade
quilombola os grupos tnico-raciais que assim se auto atribussem, que possussem
trajetria histrica prpria, relaes territoriais especficas e uma ancestralidade
negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida.
De acordo com a sistematizao do antroplogo Jos Maurcio Arruti (2006), a
noo de quilombo desse artigo havia sido construda a partir da operao de trs
conceitos: o de remanescentes, que equiparava a situao das comunidades negras das
indgenas, colocando como centro de sua retrica a noo de direito de memria; o de
terras de uso comum, que caracterizava como reas coletivas as que possuam os
recursos bsicos controlados por vrios grupos familiares e regulados a partir de um
universo legal prprio; e o de etnicidade, que postulava como quilombolas os grupos
que assim se auto atribussem, que possussem uma identidade referenciada na partilha
de vivncias e valores e que se percebessem contrastivamente em relao a outra
identidade em determinada situao de conflito fundirio.
Nos processos de reconhecimento de territrios tnicos que ento surgiram por
todo o pas, alguns mediadores especficos ligados ao poder pblico foram mobilizados.
Dentro do Poder Judicirio, os procuradores do Ministrio Pblico Federal se
44

posicionaram como os agentes que desenvolviam Aes Civis Pblicas para que fossem
assegurados os direitos coletivamente gozveis e de titularidade indeterminada dos
grupos. A Defensoria Pblica se posicionou como a instituio jurdica complementar
s aes dos procuradores, atuando em litgios individuais como nas aes de
reintegrao de posse onde os pleiteantes dos territrios quilombolas eram citados como
rus. E, nos rgos do Poder Executivo, os principais mediadores das comunidades
quilombolas se tornaram a Fundao Cultural Palmares, que emitia os certificados de
reconhecimento a partir da auto atribuio dos grupos, e o INCRA, que encaminhava o
processo de regularizao fundiria atravs da produo de relatrios de identificao e
delimitao territorial contendo informaes cartogrficas, fundirias, agronmicas,
ecolgicas, geogrficas, socioeconmicas, histricas e antropolgicas sobre as
comunidades
4
.
A presentificao do mito da Pequena frica pelos integrantes do Quilombo da
Pedra do Sal no estava, portanto, ancorada apenas ao contexto carioca, remetendo s
discusses travadas em todo o pas na dcada de 1980 que problematizavam o
centenrio da abolio da escravido e denunciavam a falta de polticas pblicas de
incluso dos setores populares da sociedade e, especificamente, dos negros. Havia
sido durante essas discusses que tinha se fortalecido o paradigma da implantao de
polticas de reparao, que pretendiam promover aes que permitissem a distribuio
de renda para esses setores classificados como socialmente marginalizados.
E, nas aes voltadas especificamente para a valorizao da cultura e da
memria negra, ganharam destaque as prticas oficiais de preservao do patrimnio,
que a partir de ento produziram imagens que perpetuavam, difundiam e expunham essa
cultura e que tambm rivalizavam com os mediadores das memrias estruturadas como
opostas, que eram as do catolicismo, da elite e dos brancos. Em uma perspectiva
institucional e poltica, convergiu para a realizao desse embate de imaginrios atravs
da oficializao de patrimnios a alterao da direo do IPHAN, que a partir da gesto
de Alosio Magalhes incentivou o tombamento de bens entendidos relevantes por sua
imaterialidade e por seu pertencimento ao cotidiano das comunidades
(Gonalves, 2002; Fonseca, 2005). Nas narrativas de integrantes do movimento negro

4
Sobre os aspectos jurdicos da noo de comunidades de remanescentes de quilombo definida pelo
Artigo 68, ver Arruti e Figueiredo, 2005.
45

brasileiro
5
, esse perodo foi demarcado como o gerador de duas importantes imagens
mediadas pelo instituto: a demarcao do Parque Histrico Nacional Zumbi em Serra da
Barriga/AL, onde havia existido o ncleo de resistncia escrava Quilombo dos
Palmares; e o tombamento da Casa Branca do Engenho Velho em Salvador/BA,
primeiro terreiro de candombl a se tornar patrimnio nacional.
No Rio de Janeiro, foi tambm nesse perodo que houve a divulgao do
primeiro produto mediador que organizava uma dramatizao do mito da Pequena
frica: o livro Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro, escrito pelo cineasta
Roberto Moura e publicado em 1983 como resultado de um concurso de monografias
sobre personalidades ligadas msica popular brasileira realizado pela FUNARTE,
rgo ligado ao Ministrio da Cultura
6
. Atravs desse livro, foram articuladas algumas
imagens do fim do sculo XX associadas ao mito: a moradia nos cortios; a organizao
de revoltas urbanas contra posturas higienistas da prefeitura; a celebrao de festas
com ritmos percussivos; a ascenso do msico popular na indstria cultural e de
entretenimento; e a formao de vnculos sociais a partir dos cultos do candombl e dos
sindicatos porturios
7
.
O recorte temporal demarcado pelo livro foi o ano de 1888, abolio da
escravido no Brasil, evento que o autor afirmou ser o causador de uma ruptura do
mundo associativo e simblico do negro. Na construo dos personagens do livro, ele
props que existia uma oposio racial entre negros e brancos antes da abolio e
que, aps, ela foi justaposta a uma oposio de classes sociais, entre populares,
oligarquia agrria e classes mdias urbanas. Essa justaposio teria sido decorrente
da introduo de uma tica de trabalho capitalista no pas e da unio classista de negros,
imigrantes e nordestinos os que eram identificados genericamente pelo autor como
populares.

5
Tais narrativas podiam ser encontradas em diversos livros sobre polticas pblicas de valorizao e
afirmao da cultura e memria afro-brasileira, entre eles o organizado pelo fotgrafo Janurio Garcia
(2008). E, especificamente sobre o processo de tombamento da Casa Branca, ver Velho, 2006.
6
Segundo reportagem de Aramis Millarch publicada no Estado do Paran em 08 de abril de 1980, o
primeiro concurso do rgo governamental foi realizado em 1977, e teve como tema o msico
Pixinguinha. Posteriormente, foram realizadas monografias sobre Waldemar Henrique, Lupicnio
Rodrigues, Nelson Ferreira, Dorival Caymmi, Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Jararaca e Ratinho,
Candeia e Alcebades Barcelos, at que Tia Ciata foi selecionada como tema do concurso no ano de 1980.
A primeira edio do livro foi publicada em 1983 pela prpria FUNARTE e, em 1995, o livro foi
reeditado pela prefeitura em verso ampliada, com a incluso do captulo Geografia musical da cidade.
Para fins analticos, no entanto, considerei a primeira edio, que possua dez captulos e que se tornou
referncia para as demais verses do mito da Pequena frica.
7
Publiquei uma verso inicial da anlise desse livro de Roberto Moura e seus usos na proposta de
tombamento da Pedra do Sal nos anais da II Reunio Equatorial de Antropologia (Guimares, 2009b).
46

Para acentuar as particularidades dos negros neste novo momento do pas, o
autor apresentou as prticas culturais dos afrodescendentes que moravam em Salvador
dcadas antes da abolio, dividindo-os por suas origens tnicas banto, ioruba e
islmica. A cada uma dessas etnias, atribuiu ento uma caracterstica na formao do
que denominou ser uma cultura urbana carioca: a criao dos ranchos carnavalescos
seria assim uma herana da festividade dos bantos, o culto aos orixs uma herana da
religiosidade dos iorubas e as revoltas urbanas uma herana da belicosidade dos
islmicos. E, na definio dos antagonistas narrativos, o autor colocou os brancos da
elite portuguesa e da igreja catlica em oposio cultura africana, equivalendo
assim as prticas e ideologias do capitalismo e do catolicismo para definir as fronteiras
identitrias dos afrodescendentes e retrat-los como uma totalidade sociocultural.
No desenvolvimento do livro, o autor narrou as prticas sociais dos
frequentadores das rodas de samba da casa de Ciata e da casa de candombl de Joo
Alab, denominando-os coletivamente de a dispora baiana na Pequena frica. E,
como fontes de informao, utilizou principalmente os depoimentos de Donga, Joo da
Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha gravados pelo Museu da Imagem e do Som
na dcada de 1960, onde os sambistas narravam o desenvolvimento de suas carreiras
musicais e as relaes sociais que haviam estabelecido na Zona Porturia e na Cidade
Nova no incio do sculo XX.
Sendo que, na sntese dramtica do livro, o autor construiu uma continuidade
histrica entre os integrantes da dispora baiana e seus herdeiros na dcada de
1980, a partir de depoimentos de descendentes consanguneos de Ciata e de uma de suas
irms de santo, Carmem do Xibuca. Atravs de suas falas, o autor articulou uma retrica
da perda onde foram enfatizados a troca dos ofcios tradicionais pelas atividades
industriais, o esfacelamento dos vnculos religiosos e recreativos ocorrido com a morte
das tias baianas e o fim dos ranchos carnavalescos, as relaes conflituosas com a
indstria musical em desenvolvimento, as frustraes amorosas, os constantes
deslocamentos habitacionais e o aumento das restries nas prticas do candombl nas
festividades catlicas. E reforou a mensagem de que o preconceito racial havia
persistido durante anos e sido deixado aos descendentes da extinta dispora como
herana visvel na excluso do negro do mercado de trabalho e na sua falta de acesso
aos recursos materiais.
Um ano aps a publicao do livro, houve sua primeira apropriao por uma
poltica pblica de valorizao da cultura negra: o tombamento da Pedra do Sal em
47

1984, apresentada pelo presidente do Instituto Estadual de Patrimnio Cultural -
INEPAC, o arquiteto talo Campofiorito, ao antroplogo Darcy Ribeiro, ento vice-
governador e secretrio de cultura do Rio de Janeiro. A proposta enfatizava que j havia
no Morro da Conceio bens catlicos e militares tombados pelo IPHAN desde 1934 e
apontava a necessidade de ser instituda uma nova hierarquia de valores no morro.
Para o arquiteto, o reconhecimento da Pedra do Sal como monumento negro e popular
seria capaz de representar a religiosidade dos orixs, a migrao baiana e o carnaval
carioca. Nos textos componentes da proposta de tombamento, o historiador Joel Rufino
apresentou os usos da Pedra do Sal e do casario de seu entorno no passado como
protagonistas narrativos. E a museloga Mercedes Viegas utilizou o livro de Roberto
Moura como fonte de informao para a delimitao temporal da memria a ser
resgatada pelo tombamento: a virada do sculo XIX para o sculo XX, perodo por ele
narrado como de formao da dispora baiana.
Tanto Joel como Mercedes articularam uma retrica da perda, argumentando que
a cidade passava por um processo de descaracterizao causado pelas sucessivas
transformaes urbansticas e que essa alterao dos aspectos fsicos dos logradouros e
imveis ameaava extinguir os testemunhos do passado da cidade negra. Assim,
enquanto a igreja catlica foi retratada como uma antagonista simblica, os projetos
urbansticos foram apresentados como os antagonistas fsicos pelas transformaes
materiais que provocavam. Mas a principal diferena entre a narrativa sobre a Pequena
frica elaborada por Roberto e a dos textos patrimoniais foi a excluso, nestes ltimos,
de qualquer interao social, conflituosa ou harmnica, dos afrodescendentes com
outros grupos sociais, bem como de transformaes de suas prticas culturais com o
passar dos anos. Norteados pelos paradigmas discursivos patrimoniais da dcada de
1980, de retratar grupos como totalidades culturais na busca de enfatizar seus aspectos
considerados autnticos, eles no utilizaram, assim, qualquer informao que pudesse
questionar a legitimidade do tombamento proposto.
E, ao longo da dcada de 1980, essa clivagem das prticas de setores
governamentais em torno dos temas das relaes raciais e dos patrimnios culturais
produziu, alm do tombamento da Pedra do Sal, outros produtos mediadores na cidade
do Rio de Janeiro que operavam em analogia direta utopia da Pequena frica. O
entorno da extinta Praa Onze foi ento escolhido como concentrador de smbolos
relacionados cultura e memria negra. A ressonncia patrimonial desse espao
provinha das narrativas de seu passado, que constantemente o relacionavam ao antigo
48

ponto de encontro de negros e sambistas da Cidade Nova do incio do sculo XX e sua
demolio pela prefeitura na dcada de 1940 para a criao da Avenida Presidente
Vargas, idealizada pelo Plano Agache.



Nos arredores da Praa Onze foram ento criados o monumental Sambdromo
(ponto 1) e, ao seu lado, o Terreiro do Samba, que abrigaram, respectivamente, os
desfiles das escolas de samba e shows de pagode durante o carnaval, manifestaes
associadas musicalidade negra e sua sociabilidade nos barraces de candombl; o
monumento a Zumbi dos Palmares (ponto 2), um grande busto de ferro em homenagem
ao lder antiescravista negro; e a Escola Tia Ciata (ponto 3), voltada para o ensino de
histria afro-brasileira e cujo nome homenageava a personagem central na genealogia
das matriarcas do samba e do candombl carioca. E na Zona Porturia, alm de ser
tombada a Pedra do Sal (ponto 4), foi criado na Gamboa o Centro Cultural Jos
Bonifcio (ponto 5), dedicado preservao e difuso da memria negra.
Na virada para o sculo XXI, esses mediadores da utopia da Pequena frica
foram movimentados por alguns grupos, mas dessa vez para territorializar pleitos
patrimoniais na Zona Porturia. E, nesse momento, a presentificao da utopia da
Pequena frica foi uma reao direta aos espaos, patrimnio e mito dos urbanistas do
poder pblico municipal que em meados da dcada de 1990 haviam se organizado em
um instituto que em seu nome reverenciava o cone do ex-prefeito Pereira Passos e
elaboraram o Porto do Rio. Denominei ento de herdeiros da Pequena frica os
49

grupos que se identificavam como portadores ou mediadores desse patrimnio negro,
que reivindicavam a retomada fsica e/ou simblica dos espaos de referncia do mito, e
que compartilhavam de uma gramtica performtica na realizao de manifestaes
pblicas: tocavam ritmos percussivos, desenvolviam rituais de candombl e ofertavam
comidas associadas culinria negra, como feijoada, frango com quiabo, acaraj e angu.
Alm dos moradores do Quilombo da Pedra do Sal, passaram a compor esse
circuito o Instituto Pretos Novos (ponto 6), centro de memria e pesquisa criado em um
sobrado da Gamboa aps seus proprietrios descobrirem a existncia de um cemitrio
de antigos escravos enterrados a poucos palmos do piso; a escola de msica Instituto
Batucadas Brasileiras (ponto 7), localizada em frente Praa dos Estivadores e que
buscava articular grupos de msica percussiva; e o grupo de carnaval Afox Filhos de
Gandhi (ponto 8), localizado no antigo mercado de escravos do Valongo e cujos
integrantes se apresentavam em eventos polticos, culturais e religiosos com msicas e
coreografias referenciadas nos rituais do candombl.
Ao longo da pesquisa, percebi que, dentre esses grupos, o Afox Filhos de
Gandhi era o nico que aderia aos diversos eventos e reivindicaes dos demais
herdeiros da Pequena frica, participando tanto do pleito tnico do Quilombo da
Pedra do Sal, quanto dos eventos ecumnicos do Instituto Pretos Novos e dos
projetos culturais do Instituto Batucadas Brasileiras. Tal prestgio social e
disponibilidade de atuao do grupo me indicaram que ele era considerado capaz de
conferir legitimidade a outros discursos e prticas relacionados cultura negra, por estar
no centro de circulao de uma ampla rede de trocas sociais, que envolvia variados
nveis sociais do mundo dos homens e do mundo dos orixs, incluindo mortos,
animais, vegetais e minerais.
Ao fim da pesquisa, compreendi que o mito da Pequena frica presentificado
nos tempos de revitalizao urbana da Zona Porturia estava intrinsecamente
relacionado cosmologia do candombl e sua noo de reciprocidade. Pois era essa
possibilidade de mediao entre o mundo dos orixs e o dos homens que fazia com que
uma pedra, a esquina de uma rua ou um morador-sem-teto fossem inseridos em uma
hierarquizao pautada por valores mgicos. Assim, atravs da lgica patrimonial desse
mito, era movimentada uma forma absolutamente distinta de estruturar mentalmente os
espaos habitados da Zona Porturia, que se opunha s formas de classificao do
urbanismo municipal e de outros grupos que no pertenciam ao povo do santo, como
50

eram chamados genericamente os que participavam dos cultos do candombl e da
umbanda.

OPES NARRATIVAS E DIVISO DE CAPTULOS

Para narrar o meu percurso de pesquisa no Morro da Conceio, fiz algumas
escolhas referentes etnografia. Optei por utilizar como tempo verbal o passado para
narrar encontros, espaos percorridos e usos e eventos observados, buscando acentuar
com isso a percepo de que pessoas, eventos, espaos e usos eram igualmente
contingentes, transitrios e sempre mediados por minha experincia concreta. Tambm
mantive o tempo passado nas anlises de matrias jornalsticas, estudos acadmicos,
legislaes, artigos, livros, fotografias e filmes, buscando ressaltar as datas em que
foram produzidos e seus contextos de produo. No entanto, esta opo me conduziu a
uma tenso insolvel, mesmo que analiticamente interessante: por estarem em um
suporte fsico e serem reprodutveis e portteis, estes produtos possuam o poder no
apenas de difundir, mas tambm de fixar imaginrios, sendo constantemente passveis
de presentificao.
Outra opo narrativa foi utilizar o nome verdadeiro das pessoas com que
convivi durante o trabalho de campo, por se tratar de um estudo em um local delimitado
aonde moradores e usurios se reconheceriam facilmente durante a apresentao dos
acontecimentos. Tambm desejava que posteriores pesquisas sobre a Zona Porturia
pudessem usar o estudo como referncia e contexto, como sugerido pelo antroplogo
Mrcio Goldman (2004). Recorri ao anonimato em poucos casos, apenas quando avaliei
que a identificao do autor da informao poderia precipitar um conflito local ainda
no manifesto. Nesses casos, optei por posicionar a informao em um dos mltiplos
espaos do morro, para que no se perdesse a relatividade de sua perspectiva.
Durante a tese, apresentei as pessoas de quatro maneiras diferentes: com seus
nomes e sobrenomes; s com o primeiro nome; com os apelidos correntemente usados;
e com os nomes correntemente entre o povo do santo para se referir aos seus orixs
de cabea. Essas diferentes formas de identificao foram o resultado das
especificidades dos encontros possibilitados durante o trabalho de campo: normalmente
as pessoas que se apresentaram a mim atravs do nome e sobrenome possuam alguma
forma de atuao profissional na Zona Porturia ou estavam envolvidas em algum
conflito judicial; as que s me disseram o primeiro nome eu havia encontrado em
51

situaes informais; as que se apresentaram atravs de apelidos costumavam estar
envolvidas na realizao de eventos festivos; e as pessoas que se apresentaram com os
nomes de seus orixs estavam envolvidas em atividades do candombl.
Vale tambm mencionar que, no meu percurso de pesquisa, utilizei alguns
recursos tecnolgicos: uma cmera fotogrfica digital, que possibilitou que conhecesse
detalhadamente os aspectos fsicos das vias e logradouros do morro e que memorizasse
possveis trajetos; um gravador sonoro que utilizei em algumas conversas mais formais,
embora a maioria dos encontros tenha sido anotada em meu caderno de campo; e uma
cmera filmadora, que possibilitou que registrasse algumas festas e eventos
relacionados ao candombl e descrevesse e analisasse cantos e gestos. As imagens e
citaes de entrevistas que inclu ao longo da tese foram realizadas a partir desses
registros.
Para apresentar o trabalho de campo, dividi a tese em quatro captulos. No
Captulo 1. Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios, descrevi os encontros
iniciais que tive com habitantes do Morro da Conceio e como eles determinaram o
percurso de pesquisa que desenvolvi entre as prticas e redes sociais dos grupos que
eram representados ou se identificavam como portadores de trs patrimnios: o
portugus e espanhol, o negro e o do santo. E analisei como, nesses primeiros
dilogos, fui classificada por integrantes de tais grupos e tambm como eles articularam
algumas oposies mentais que estruturavam suas formas de perceber os espaos do
morro.
No Captulo 2. A boa vizinhana da parte alta, descrevi os bares e
festividades frequentados ou organizados por moradores da parte alta do morro e
como suas prticas foram classificadas como patrimnio portugus e espanhol por
mediadores entre os espaos e habitantes do morro e os da cidade, que percebiam neles
a materializao de uma cultura popular e autntica. E analisei como os moradores
desse espao operavam as oposies de dentro e de fora e masculino e
feminino a partir de um rgido sistema de controle e reputao que diferenciava
prticas, espaos e habitantes de acordo com noes de virtude e vcio.
No Captulo 3. O esprito quilombola da Pedra do Sal, descrevi como o
conflito habitacional entre portadores de dois patrimnios no morro, o negro e o
franciscano, produziu um pleito tnico na base do morro que props a
identificao e delimitao jurdica de seus espaos como territrio quilombola. E
analisei como os portadores desse patrimnio negro, atravs de uma lgica de reparao
52

e do mito da Pequena frica, operavam as oposies elite e popular, catlico e
do santo e brancoe negro para diferenciar prticas, espaos e habitantes do morro
e sobrepor o imaginrio que os classificava como invasores e marginais.
No Captulo 4. Os fundamentos do Valongo, descrevi as prticas recreativas,
polticas e religiosas dos integrantes do grupo carnavalesco Afox Filhos de Gandhi,
que portavam no morro o patrimnio do santo e faziam parte do circuito mais amplo
de herdeiros da Pequena frica. E analisei como eles operavam, a partir de um amplo
sistema de trocas entre humanos e no humanos, as oposies bem e mal e
sagrado e profano para diferenciar prticas, espaos e habitantes no apenas do
morro, mas tambm das casas de candombl e dos grupos carnavalescos,
territorializando o mito da Pequena frica a partir de uma hierarquia baseada em uma
lgica mgica, que sobrepunha s lgicas socioeconmicas e raciais.



53

Captulo 1.
Um percurso por espaos, patrimnios e imaginrios



O PRIMEIRO CONTATO COM O MORRO

Para iniciar meu trabalho de campo no Morro da Conceio, procurei uma
mediao que no passasse por representantes de rgos pblicos ou de ONGs, j que
no queria ser influenciada por uma pauta institucional de pesquisa. Recorri ento ao
meu crculo de amigos para entrar em contato com um de seus moradores e, atravs da
antroploga Elizete Igncio, obtive o telefone do casal de antroplogos Martin
Ossowicki e Alessandra Tosta. Em um domingo, dia 14 de outubro de 2007, tomei um
txi e me guiei pelas dicas de percurso que Alessandra havia me oferecido para chegar
ao sobrado onde eles residiam localizado no topo do morro, na Rua Jogo da Bola.
O acesso de carro a essa rea do morro era possvel pela Rua do Acre, que
delimitava parte de sua base. A rea de rodagem dessa rua permitia o trfego de dois
veculos em um nico sentido, da Avenida Marechal Floriano para a Avenida Rio
Branco. Apesar de ampla, a rua no era utilizada como rota de nenhum transporte
coletivo, nela havia somente um ponto de txi e a liberao do uso das duas margens
para estacionamento de automveis. No seu lado mpar, o que contornava o morro, as
construes eram predominantemente casas assobradadas de dois andares, com a
presena de alguns prdios, entre eles o do Tribunal Regional da Justia Federal, que
destoava do conjunto por ser muito alto, largo e de fachada espelhada. J no lado par
ocorria o inverso, havia uma grande quantidade de prdios e poucos sobrados,
demarcando visualmente a transio para o centro comercial da cidade.
Em quase todos os andares trreos dos prdios e sobrados da rua estavam
instaladas pequenas lojas voltadas para a alimentao de baixo custo e para a venda de
materiais de escritrio. Alguns dos sobrados eram tambm utilizados como hospedarias
populares, com dirias em torno de oito reais. Durante o perodo diurno dos dias da
semana, esse comrcio movimentava uma grande quantidade de pessoas e uma de suas
caractersticas visuais mais marcantes era a divulgao de produtos em vrias tabuletas
postas nas fachadas, que produziam um efeito colorido e tumultuado, dificultando
54

qualquer fixao do olhar. Entre pastelarias, lanchonetes, botequins e restaurantes de
comida a quilo e self service, no entanto, havia alguns estabelecimentos pertencentes
a redes comerciais e de preos mais elevados recentemente inaugurados e que
contrastavam em sobriedade de cores e no uso corrente de portas de vidro, oferecendo
ambientes climatizados e menos expostos ao movimento da rua que o das lojas abertas.
A segunda rua esquerda da Rua do Acre era a Rua Major Daemon, que
conduzia ao topo do morro. A transio das vias era demarcada pela mudana de
calamento, que de asfaltado passava a ser de paraleleppedos, impondo a desacelerao
do veculo e a consequente diminuio do ritmo fisiolgico. Ocupada quase que
exclusivamente de forma residencial, a rua era ngreme e sinuosa e permitia o trfego
em mo dupla de dois veculos. Em sua base havia alguns edifcios, mas, conforme se
subia, predominavam os sobrados de dois e trs andares. Neste domingo em que
percorri a rua de txi, o veculo precisou desviar dos escombros de um pequeno edifcio
que tinha desabado havia poucos dias e que ocupavam parte da rea de rodagem. Com a
aproximao do alto do morro, o txi diminuiu ainda mais a velocidade, por causa de
uma placa que indicava o incio de uma rea militar e de uma trava de ferro pintada em
amarelo que fechava parcialmente a rua. Nessa rea militar, duas edificaes
arquitetonicamente imponentes dominavam a paisagem: o antigo Palcio Episcopal e a
Fortaleza da Conceio, ambos ocupados pelo Servio Geogrfico do Exrcito.
O Palcio Episcopal era um casaro branco de dois andares, destacado cerca de
um metro e meio do nvel do cho e ornamentado com ferro, madeira e pedra. Do outro
lado da rua, um mirante delimitado por um muro baixo de cimento voltava-se para a
Igreja de Santa Rita, localizada na Avenida Visconde de Inhama. Mais frente, havia
um amplo sobrado de padro construtivo semelhante ao do casaro, porm menos
adornado, e um pequeno porto que conduzia a duas quadras de futebol no declive do
morro, uma de grama e outra de terra batida. Ao lado do palcio, o complexo edificado
da Fortaleza, apesar de ocupar uma grande rea do morro, era apenas parcialmente
visvel da rua, por estar ocultado por uma muralha de pedra de cerca de cinco metros.
O final da Rua Major Daemon era a Praa Major Val, onde saltei do txi e
caminhei at a casa de Alessandra e Martin na Rua Jogo da Bola. Nossa conversa foi
marcada por um tom informal, sendo quase toda realizada na cozinha, mas se
desenvolveu como um dilogo entre pares, com o uso de metforas antropolgicas para
a explicao das relaes sociais do morro. E, apesar dos dois terem sido receptivos
realizao da pesquisa que iniciava, me avisaram que no desejavam participar dela
55

como nativos, informantes ou interlocutores, me explicando terem alugado havia
pouco tempo aquele apartamento e ainda estarem se inserindo nas relaes sociais da
vizinhana. Na opinio deles, se fossem identificados como pesquisadores essa
insero poderia ser prejudicada, porque acabaria mediada por suas atuaes
profissionais.
Ao longo do trabalho de campo no morro, atribu em parte a preocupao do
casal relao que alguns moradores tinham com a figura do pesquisador. Pois,
apesar de vrias pessoas terem se mostrado solcitas minha pesquisa, em alguns casos
encontrei um mal estar j instaurado pela presena constante em seus espaos de
jornalistas, fotgrafos, antroplogos, socilogos, arquitetos, representantes de rgos
pblicos e turistas, muitas vezes atuando, inclusive, como mediadores de conflitos
locais. Em relao a mim, este mal estar se manifestou na recusa de alguns moradores
em conversar, na enunciao de discursos politicamente engajados sobre identidade
cultural e, eventualmente, em um desconforto com a minha presena em determinados
espaos do morro que eram usados pelos moradores de maneira liminar, oscilando entre
o pblico e o privado.
Durante a conversa, Alessandra contou que havia conhecido o morro ao
participar de um curso de fotografia oferecido pela UERJ e tinha decidido se mudar para
l com Martin em 2004. Eles procuravam uma casa que no fosse localizada na Zona
Sul, onde no gostavam do estilo de vida e achavam os aluguis muito caros, e nem
no subrbio, considerado distante das atividades que j desenvolviam. Ao se mudarem,
Martin percebeu que a Rua Jogo da Bola oferecia intimidade social: todos os vizinhos
se conheciam, gerando um controle que tornava o local mais seguro, embora, em
contrapartida, houvesse uma grande movimentao de fofoca. Um exemplo que ele
ofereceu dessa segurana era o cuidado que todos tinham com as crianas uns dos
outros, possibilitando que elas brincassem nas ruas do morro sem a superviso de um
adulto.
Na opinio de Martin, era a alterao lenta da vizinhana que fazia com que
alguns ncleos familiares que residiam na denominada parte alta do morro se
reconhecessem como moradores tradicionais. A parte alta era composta pela Ladeira
Joo Homem e pela Rua Jogo da Bola e considerada a elite do morro. Suas casas
raramente eram anunciadas para aluguel em corretoras de imveis e, o mais comum, era
que fossem ocupadas pela indicao de algum morador. Nela, no entanto, havia tambm
uma diferenciao de espaos: os moradores da Ladeira Joo Homem eram, em sua
56

maioria, pertencentes classe mdia baixa, e os da Rua Jogo da Bola eram os que
possuam a maior renda do morro. Ele me advertiu, no entanto, que esses moradores no
utilizavam usualmente a categoria moradores tradicionais, mas narrativas que
remetiam a essa tradio como, por exemplo: Eu nasci aqui, casei com fulana da casa
tal....
Os dois me listaram trs bares como sendo os principais espaos de
sociabilidade da parte alta e me ofereceram tambm a identificao dos grupos sociais
que os frequentavam. Na Rua Jogo da Bola havia o Bar do Beto, frequentado pelos
nordestinos, e o Bar do Srgio, frequentado pelos portugueses e espanhis. J na
Ladeira Joo Homem havia o Bar do Geraldo, o nico frequentado por gente de fora e
por grupos de jovens moradores. Os moradores tidos como referncias da parte alta
eram o Seu Ren, comandante aposentado da Marinha, e Seu Luizinho, locador de
vrias casas e mantenedor das atividades da Capela de Nossa Senhora da Conceio
juntamente com sua esposa, Dona Glorinha. Alm desses dois, havia ainda Frigideira,
organizador de muitas das festas coletivas do morro.
Segundo Martin, os moradores mais velhos ligados tradio que denominou de
portuguesa e espanhola consideravam que as condies sociais de moradia no morro
tinham piorado nos ltimos anos por causa do aumento da criminalidade, da falta de
infraestrutura pblica e da entrada de novos moradores, principalmente dos
nordestinos. Mas ele observou que havia uma tenso nessas relaes de moradia, j
que a chegada ao morro desses moradores havia sido provocada pela prpria ao dos
descendentes das famlias ditas tradicionais, pois foram elas que, ao longo dos anos,
dividiram seus sobrados para aluguel. Alguns conflitos sociais tambm tinham sido
gerados pela perda gradual do controle sobre os direitos de herana das casas e a no
regularizao de suas propriedades, provocando a permanncia informal de antigos
inquilinos nos imveis. As casas divididas em cmodos para a moradia de vrios
ncleos familiares ou informalmente ocupadas eram ento muitas vezes apontadas como
causadoras da favelizao do morro.
Mas, como me indicou a narrativa de Alessandra sobre sua adaptao
vizinhana, as relaes entre seus moradores no eram estruturadas apenas por
classificaes de origem ou de condies de moradia, passavam de forma igualmente
relevante por distines de gnero e etrias. Alessandra tinha considerado difcil sua
adaptao ao morro porque as relaes da parte alta eram machistas, exemplificando
com o fato de que poucas mulheres circulavam por suas ruas e bares e sempre que havia
57

sido convidada para alguma festa foi indiretamente, atravs de Martin. Ela tambm
observou que s as nordestinas frequentavam o Bar do Srgio, as mulheres de
ascendncia espanhola e portuguesa participavam com assiduidade apenas das
atividades da capela e a maior parte de seus filhos no se divertiam nos bares do morro,
preferiam ir a outros lugares da cidade.
O espao oposto e correlato parte alta era a denominada parte baixa,
composta pelas vias do morro ligadas Rua Sacadura Cabral. O casal caracterizou seus
moradores como sendo principalmente inquilinos de classe baixa ou ocupantes
informais de imveis abandonados, a maioria de origem nordestina, e muitos atuando
profissionalmente como garons e empregadas domsticas. Nessa parte do morro,
muitos imveis pertenciam entidade catlica Venervel Ordem Terceira de So
Francisco da Penitncia VOT que, nos ltimos anos, estava despejando ou realocando
para moradias no Centro da cidade os antigos inquilinos. Aps esvaziar os imveis, a
entidade tinha ampliado a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, criado o Colgio Sonja
Kill e instalado consultrios mdicos e diversos cursos gratuitos, como informtica,
msica, moda, marcenaria e padaria, entre outros, em projeto que denominou de
Humanizao do Bairro.
Todos os imveis includos nesse projeto haviam passado por um processo de
restaurao das fachadas e de seus interiores, em obras financiadas principalmente por
instituies europeias. Mas, segundo Alessandra, essa transformao dos imveis
residenciais em assistenciais no teria sido vista de forma positiva pelo conjunto de
moradores do morro, j que tinha provocado o surgimento de espaos desertos noite
e nos fins de semana, gerando reas perigosas de possvel atuao para roubos e para
consumo e trfico de drogas. A iniciativa teria desagradado em especial os moradores
da parte alta, que consideraram as atividades do projeto um fator de atratividade dos
moradores do Morro da Providncia, proximidade indesejada porque eles no queriam
ser reconhecidos como moradores da Zona Porturia e, principalmente, como
favelados.
Os processos de despejo para que o projeto fosse implantado tambm tinha
gerado um conflito com alguns moradores de outro espao localizado na base do morro
que articulavam uma narrativa de tradio relacionada origem negra, ao trabalho no
porto, ao movimento de sambistas e ao candombl: a Pedra do Sal. Em 2005, aps o
estivador e integrante do Movimento Negro Unificado, Damio Braga, ter sido
judicialmente retirado de sua casa pela VOT, um grupo de moradores ligados a essa
58

tradio negra solicitou, junto ao Governo Federal, o reconhecimento de um territrio
remanescente de quilombo no entorno da Pedra do Sal.
Por fim, o casal contou que, nos trs anos em que estava morando no morro,
tinha observado duas transformaes na vizinhana: um aumento do afluxo residencial
de estudantes de ps-graduao e a organizao do Projeto Mau, evento anual de
visitao de atelis de artistas plsticos instalados, em sua maioria, em sobrados da
Ladeira Joo Homem. Perceberam tambm que havia se intensificado a visitao de
pessoas de fora ao morro, atribuindo o movimento aos ensaios do bloco de carnaval
Escravos da Mau, que reunia centenas de pessoas no Largo de So Francisco da
Prainha; divulgao em 2005 do documentrio Morro da Conceio... da cineasta
Cristiana Grumbach, que abordava o que denominou de tradio portuguesa do
morro; e abertura na Rua Sacadura Cabral das casas de shows Trapiche Gamboa e
Sacadura e da boate The Week, todas direcionadas ao pblico de classe mdia.
Ao me despedir, perguntei a eles se sabiam da existncia de alguma casa no
morro que pudesse alugar temporariamente, pois pretendia observar as variaes dos
usos dos espaos nos diferentes horrios e dias da semana. Alessandra ento me falou
que um amigo seu, o arquiteto Antnio Agenor, estava procurando algum para dividir
uma casa de dois quartos, localizada tambm na Rua Jogo da Bola. Fomos at sua casa
e combinamos um encontro para o fim da tarde de 2 feira, quando conversamos por
alguns minutos na sala.
Antnio foi muito solcito com a realizao da pesquisa, mas nessa primeira
conversa me tratou com bastante formalidade e preocupao em expor as boas
qualidades do morro, como se estivesse informando a uma jornalista os aspectos
excepcionais do local. Ele era sergipano e alugava o segundo andar de um sobrado de
propriedade de Seu Luizinho. Costumava organizar no morro algumas aulas prticas
de arquitetura para seus alunos quando, em 2004, decidiu se mudar de Copacabana,
Zona Sul da cidade, por achar seu apartamento pequeno e caro. Procurou ento Seu
Flix, morador da Ladeira Joo Homem que havia conhecido durante as aulas e que era
sergipano como ele. Seu Flix alugava a parte de cima de sua casa, mas, como estava
sem vaga naquele momento, anotou o telefone de Antnio caso soubesse de alguma
oportunidade de aluguel. Dois meses depois, ligou avisando que Maurcio estava
alugando um apartamento na Rua Jogo da Bola.
Antnio ento se mudou, mas ficou pouco tempo neste apartamento, por no ter
gostado das condies de conservao do imvel. Mas, como j estava inserido na
59

vizinhana, conseguiu alugar em seguida o sobrado onde estava morando. Ao falar
sobre sua acolhida na vizinhana, Antnio contou que, em 2006, sua me havia vindo
de Sergipe passar um ms de frias com ele, mas, durante a estadia, teve um grave
problema de sade e permaneceu em sua casa se recuperando por vrios meses. Como
era catlica, passou a frequentar as missas que eram realizadas nas manhs de domingo
na capela da Rua Jogo da Bola e, quando foi embora, as senhoras da capela continuaram
perguntando a Antnio sobre seu estado de sade. Assim, ainda que ele no
frequentasse as missas, atravs de sua me havia passado a ser reconhecido e
cumprimentado por uma parcela maior de seus vizinhos.
Essa breve histria de Antnio me indicou que as classificaes de vizinhana
operadas na Rua Jogo da Bola no priorizavam a origem dos moradores, antes eram
uma combinao de classificaes de condies de moradia, divises de gnero e
prticas religiosas. Sendo que nordestinos era mais uma categoria moral de acusao
associada s oposies morador e favelado e masculino e feminino, que uma
referncia ao fato dos moradores serem oriundos ou no da regio Nordeste do pas.
Assim, Antnio, que possua uma situao regular de inquilinato e morava em um
espao prestigiado da parte alta, e sua me, que frequentava o espao entendido como
catlico e feminino, foram bem aceitos nessa vizinhana, mesmo sendo
nordestinos.
Em seguida, fui com Antnio para a roda de samba que ocorria toda noite de 2
feira no Largo Joo da Baiana, em frente Pedra do Sal. Quando chegamos ao samba,
por volta das 19 horas, j havia cerca de oitenta pessoas no largo, entre homens e
mulheres que conversavam em p, que haviam se acomodado na pedra ou estavam
sentadas em cadeiras de alumnio em torno de mesinhas. Os msicos tocavam e
cantavam ao redor de uma grande mesa e o bar Bodega do Sal, em frente ao largo,
vendia petiscos fritos, caldos e bebidas aos frequentadores, sendo a cerveja de garrafa
muito consumida e adquirida diretamente no balco, mediante pagamento imediato.
Antnio ento me apresentou a Guenther Leyen, que estava no largo
conversando com Martin e Alessandra. Ele me contou que era gacho e dono de uma
empresa de informtica, mas se considerava mais artista que empresrio. Em 2005,
havia se mudado para um pequeno prdio na esquina da Rua Jogo da Bola com a
Travessa Coronel Julio e era, como Martin e Antnio, assduo frequentador do Bar do
Srgio. Antes de se mudar para o morro, morava na Fonte da Saudade, Zona Sul da
cidade, mas se queixou que mal conhecia os vizinhos. Em sua opinio, a vizinhana de
60

sua casa no morro era interessante por causa da diversidade social, exemplificando
essa caracterstica listando suas variadas profisses, e no suas origens, seu gnero ou
condies de moradia: para ele, no local conviviam bem pipoqueiros, antroplogos,
artistas, policiais, empresrios, estivadores etc. Essa forma diferenciada de estruturar a
vizinhana se explicava em parte pela forma como ele prprio havia se apresentado
perante os demais moradores, mediada principalmente pela sua atuao local como
artista plstico.
De forma parablica, Guenther ento narrou dois eventos que considerava
ilustrarem bem as relaes de vizinhana. O primeiro evento foi o dia em que viajou
para Porto Alegre durante uma semana e deixou o carro estacionado em frente sua
casa, avisando sua ausncia apenas ao Srgio, dono do bar. Quando retornou, Srgio lhe
disse que o seu senhorio tinha ficado preocupado por no ter visto mais ele por l e
por reparar que o carro tinha ficado no mesmo lugar: achou que ele poderia estar doente
ou com algum problema. Guenther foi ento falar com o locador para, em suas palavras,
fazer duas coisas: primeiro agradecer, por ter se preocupado comigo, segundo pedir
desculpas, por no ter te avisado. J a segunda histria se referia a um acontecimento
que ele havia considerado desagradvel: uma empregada domstica que trabalhava em
sua casa e tambm era moradora do morro havia comentado com outro morador que ele
era po duro porque, em um dia em que ela ficou doente e s pde trabalhar meio
perodo, ele havia se recusado a pagar a diria inteira.
Aps as duas histrias, Guenther afirmou que havia no morro uma convivncia
entre vizinhos que permitia o estabelecimento de laos de amizade, mas que havia
tambm um lado negativo dessa convivncia mais intensa, a fofoca, que podia ser
gerada e afetar a reputao de um recm-chegado. Alm de movimentarem suas
percepes sobre o novo local de moradia, as duas narrativas tambm me forneceram
importantes informaes: que na parte alta do morro havia empregadas domsticas,
patres, inquilinos e proprietrios que compartilhavam cotidianamente os mesmos
espaos, fazendo com que tanto as relaes profissionais quanto as de inquilinato
fossem importantes na estruturao e hierarquizao de suas relaes de vizinhana.
Ainda na roda de samba, fui apresentada por Alessandra a Damio, morador que,
ao ser despejado de um imvel da VOT, organizou o pleito de reconhecimento tnico do
Quilombo da Pedra do Sal. Ele tambm foi receptivo pesquisa, mas no quis
conversar por muito tempo. Nos poucos minutos em que nos falamos, afirmou que o seu
despejo era decorrente do processo de aburguesamento do morro e que outras famlias
61

tambm estavam resistindo a sair das casas, no s a dele. E, estendendo o conflito para
os urbanistas da prefeitura, disse que havia participado em 2003 de reunies com Nina
Rabha e Augusto Ivan para discutir os projetos do Porto do Rio, mas se queixou que
depois no havia sabido de mais nenhuma outra reunio realizada entre a prefeitura e os
moradores. Nesse primeiro contato que tivemos, Damio se posicionou, portanto,
contrrio aos que considerava serem os principais antagonistas do patrimnio no
apenas negro, mas tambm popular, que portava: a igreja catlica e o urbanismo
municipal.
Quando me despedi dos moradores que havia conhecido nesta roda de samba,
Guenther me convidou para participar das reunies de preparao do Projeto Mau, que
seria realizado no mesmo fim de semana de dezembro em que era comemorado o dia da
padroeira do morro, Nossa Senhora da Conceio. E Damio disse que estava
ocupado acompanhando um frum de discusses sobre a elaborao do novo Plano
Diretor da cidade, mas me forneceu o nmero de seu celular para que marcssemos um
encontro em novembro. Assim, aps o contato que tive com o casal Alessandra e
Martin, fui inserida numa rede mais ampla de vizinhana e iniciaram-se dois percursos
de pesquisa e seus desdobramentos: os bares e festividades da parte alta do morro e as
diferentes formas de classificao dos que eram de dentro e de fora de sua
vizinhana; e o conflito habitacional entre o movimento quilombola e a VOT, sua
presentificao do mito da Pequena frica e as prticas e cosmologia do candombl.

AS FESTAS E BARES DA PARTE ALTA

O espao de referncia simblica
da parte alta do morro era a Praa Major
Val, correntemente denominada pelos
moradores de Largo da Santa por conter a
imagem esculpida de Nossa Senhora da
Conceio figurando sobre um mastro de
cerca de oito metros em frente ao porto
principal da Fortaleza da Conceio. O
espao do largo era triangular: um dos vrtices se conectava a Rua Major Daemon e era
ocupado pela muralha da Fortaleza; outro se conectava a Ladeira Joo Homem e era
ocupado por casas trreas utilizadas como garagem pelo Exrcito e como residncias; e
62

o terceiro se conectava a Rua Jogo da Bola e era ocupado pelos fundos de sobrados
residenciais. No havia um calamento especfico nem uma elevao do cho
diferenciando o espao do largo: ele era de paraleleppedos assim como as vias que para
ele convergiam. Durante os perodos diurnos e noturnos, o largo era utilizado para
estacionamento e passagem de veculos. E, eventualmente, era ocupado por festividades
organizadas pelos moradores do morro.
A Rua Jogo da Bola era a via mais extensa
do morro. Na extremidade que ficava conectada ao
Largo da Santa, ela era ligada tambm ao Beco das
Escadinhas da Conceio. A sua continuidade era
uma passagem estreita e sinuosa rente muralha da
Fortaleza, onde apenas um carro por vez conseguia
trafegar e havia um mirante demarcado por uma
grade de ferro e voltado para a retro-rea porturia.
Aps essa curva, a muralha ainda ocupava um
trecho do lado esquerdo da rua enquanto, no outro,
havia sobrados e casas. Com o fim da muralha, os
dois lados eram ocupados unicamente por casas e sobrados. Como era estreita, a rua
possibilitava com dificuldades o trfego de dois veculos e as janelas das casas ficavam
rentes s caladas, sem rea intermediria entre a via e a fachada, produzindo uma
fronteira pouco ntida entre espaos pblicos e privados e gerando a sensao de
intimidade social citada pelos moradores.
Algumas das fachadas das casas e sobrados eram ornamentadas por azulejos,
gesso talhado e pedras, e exibiam emblemas no alto dos portais indicando terem sido
construdas entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX. Muitas fachadas
tambm exibiam materiais construtivos de dcadas posteriores, como esquadrias de
alumnio ou revestimento de cermica. E havia ainda outras onde a construo de
puxadinhos verticais produzia uma ruptura no padro construtivo e decorativo entre a
parte inferior e a superior. Assim, tanto vistos em relao uns aos outros, como a partir
de suas composies individuais, os sobrados apresentavam um acmulo de
temporalidades: os que estavam dispostos lado a lado tinham sido construdos em
perodos distintos; e em cada um deles eram visveis as alteraes causadas pelas
mudanas de usos e usurios.
63

O Bar do Beto era o primeiro estabelecimento comercial para quem seguia a Rua
Jogo da Bola a partir do Largo da Santa, ficando do lado esquerdo. Sua parte interna era
pequena e ocupada por um balco de atendimento, um banheiro ao fundo e uma
mquina de assar frangos utilizada apenas nos fins de semana. E suas cadeiras, mesas de
plstico e engradados de garrafas de cerveja ocupavam parcialmente a calada da via.
Ultrapassando alguns sobrados, do lado esquerdo havia a escadaria da Travessa Coronel
Julio, que ligava a Rua Jogo da Bola Rua Senador Pompeu, e mais a frente, direita,
havia um acesso para a mais extensa via da parte baixa: a Rua Mato Grosso, cuja
continuao era a Rua do Escorrega.
Logo aps esse acesso estava localizado, tambm direita, o Bar do Srgio, que
possua uma rea interna ampla com balco, prateleiras com mercadorias, freezer com
picols e algumas mesas e cadeiras de madeira, e que, do lado de fora, tambm dispunha
na calada mesas e cadeiras de alumnio. Quase em frente ao bar, ficava a Capela Nossa
Senhora da Conceio, que possua apenas um andar, uma torre e um portal adornado ao
alto com um azulejo decorado pela imagem da santa. Neste portal, havia ainda uma
placa informando que a capela havia sido fundada pela Irmandade de Nossa Senhora da
Conceio em 10 de julho de 1892.
Aps mais alguns sobrados havia direita a Praa Leopoldo Martins, chamada
pelos moradores apenas de pracinha. A praa era cerca de um metro e meio elevada
do nvel do cho e composta por pisos de terra batida e de pedras portuguesas, algumas
rvores, bancos de cimentos, brinquedos e equipamentos de ginstica em madeira e
conjuntos de banquetas e mesinhas de cimento com tabuleiros desenhados. sua frente,
havia uma passagem para a Travessa Joaquim Soares, que ligava a Rua Jogo da Bola ao
topo da Ladeira Pedro Antnio. Mais adiante, uma placa indicava aos motoristas que a
rua era sem sada e, direita, havia ainda uma escadaria que conduzia Travessa do
Sereno. Seguindo em frente, uma reteno de encosta ocupava todo o lado esquerdo e,
do lado direito, casas e sobrados eram distribudos por uma curva. Essa extremidade da
rua se encerrava com a conexo com a Rua Argemiro Bulco, que levava ao topo da
Pedra do Sal, cruzava a Rua Sacadura Cabral e seguia at a retro-rea porturia.
A outra via pertencente parte alta era a Ladeira Joo Homem. A ladeira era
sinuosa, calada por paraleleppedos e ocupada por casas e sobrados que tambm
apresentavam em alguns de seus portais azulejos com imagens de santos catlicos. Seu
nico ponto comercial era o Bar do Geraldo, composto por balco e algumas cadeiras de
plstico em sua rea interna e tambm por algumas mesas, cadeiras e engradados na
64

calada. De fronte ao bar, havia dois sobrados em runas e somente com parte das
fachadas suspensas. Nenhuma via era perpendicular a ela, sua conexo com outros
espaos era possibilitada apenas por suas extremidades. Na base da ladeira, uma
escadaria a ligava Travessa do Liceu, uma passagem estreita e exclusiva para
pedestres que interligava a Rua do Acre Rua Sacadura Cabral.
Aps os primeiros contatos que fiz no morro, tentei agendar no final de outubro
um encontro com a historiadora rika Bastos atravs de um numero telefnico oferecido
por Martin e Alessandra. Quando conversamos em sua casa, eles haviam comentado
que, logo aps a solicitao oficial de reconhecimento tnico do Quilombo da Pedra do
Sal, o INCRA havia iniciado o processo de sua identificao e demarcao atravs
da produo de um relatrio histrico e antropolgico, que deveria informar quem eram
os componentes do grupo afrodescendente e qual territrio ocupavam coletivamente.
Trs pesquisadoras da UFF haviam ento assumido a elaborao do relatrio e
procurado alguns historiadores e antroplogos que residiam no morro para compor a
equipe de pesquisa. O casal havia sido convidado, mas recusou por avaliar que, sendo
morador, no possua o distanciamento necessrio para a realizao de um trabalho
antropolgico. Mas rika tinha aceitado. Telefonei ento para sua casa, mas ela no
estava e quem atendeu foi o historiador Mrio Miranda. Ele dividia com ela o aluguel de
um sobrado na Ladeira Pedro Antnio e, em nossa breve conversa, comentou que iria
participar naquela noite de uma reunio de organizao do Projeto Mau. A reunio
seria realizada no Observatrio do Valongo da UFRJ, localizado no alto da Ladeira
Pedro Antnio, e Mrio me explicou como chegar ao espao atravs de um percurso
possibilitado pela Rua Senador Pompeu.
Uma sequncia de pequenos trechos de ruas delimitava o lado da base do morro
localizado entre a Rua do Acre e a Rua Senador Pompeu: os das ruas Leandro Martins,
dos Andradas, Julia Lopes Almeida e da Conceio. No havia qualquer acesso que
interligasse essas ruas s vias mais altas do morro e todos os fundos de suas edificaes
eram voltadas para uma encosta formada por pedreira e vegetao que se estendia at a
rea da Fortaleza. Essas ruas eram majoritariamente ocupadas por sobrados, com
exceo da Rua Leandro Martins, onde predominavam os prdios altos. Mesmo durante
o perodo diurno, muitas lojas trreas permaneciam fechadas, possivelmente por estarem
ocupadas de forma residencial, e as que abriam eram utilizadas como depsitos de
bebidas, botequins, estacionamentos e venda de materiais de escritrio. Havia ainda um
65

comrcio especializado em atividades grficas e, na Rua Leandro Martins, trs centros
de lazer, que eram pequenos sobrados utilizados como ponto de prostituio.
O trecho da Rua Senador Pompeu que compunha a base do morro era delimitado
pela conexo com a Rua da Conceio e pelo cruzamento da Rua Camerino. No
encontro com a Rua da Conceio, um amplo casaro era ocupado pela igreja
evanglica Deus Amor e, ao longo da via, muitos sobrados e prdios serviam de
estacionamento de veculos. O nico acesso ao alto do morro era a Travessa Coronel
Julio, que tambm tinha seu limite demarcado pela alterao do cho asfaltado para o
de paraleleppedos. Da base da Travessa Coronel Julio, dois caminhos podiam ser
percorridos: direita, a Ladeira Pedro Antnio, ou, frente, a longa escadaria que
desembocava na Rua Jogo da Bola.
A Ladeira Pedro Antnio era uma subida ngreme e retilnea ocupada por
sobrados e casas trreas e que possibilitava o trfego de dois veculos. O nico percurso
de entrada e sada de um automvel no morro que podia ser realizado sem a necessidade
de manobras era o que ligava essa ladeira Rua Major Daemon: subindo a Ladeira
Pedro Antnio, o automvel devia dobrar direita na Travessa Joaquim Soares, dobrar
novamente direita na Rua Jogo da Bola, seguir at o Largo da Santa, e dobrar direita
na Rua Major Daemon. Ou vice-versa, pois todas essas vias eram de mo-dupla. Ao fim
da ladeira, um muro branco com um porto vazado de ferro de cerca de trs metros com
letras aplicadas em alumnio identificava o Observatrio do Valongo. E, esquerda do
muro, havia uma vegetao alta com acmulo de sacos de lixo e um caminho de terra
batida na encosta do morro que desembocava no Jardim Suspenso do Valongo.
O porto do observatrio permitia a circulao de pessoas e carros e era vigiado
por uma guarita localizada do lado de dentro. Ao ultrapass-lo, havia um campus
universitrio com um cuidadoso projeto paisagstico, rea de rodagem de automveis e
um prdio branco de dois andares onde eram ministradas aulas de astronomia. Fui
recepcionada por Carlos Rabaa, professor que coordenava a participao da instituio
pela primeira vez no Projeto Mau. Enquanto caminhvamos pelo campus, ele contou
que frequentava o morro havia dez anos, primeiro como aluno do observatrio e, depois,
como professor. Ao pararmos em frente ao muro baixo que era voltado para a Rua
Senador Pompeu e oferecia uma ampla vista de ruas do Centro e da Gamboa, ele me
mostrou a proximidade do Morro do Livramento, separado do Morro da Conceio
apenas pela Rua Camerino, destacando que ambos os morros no eram favelas. Logo
aps o Morro do Livramento, e sem que houvesse uma demarcao ntida entre seus
66

limites, estava o extenso e populoso Morro da Providncia, o nico da Zona Porturia
que ele considerava ser uma favela.
Rabaa ento apontou o caminho de terra batida que passava rente ao muro do
observatrio e conduzia ao Jardim Suspenso do Valongo, dizendo que ali era um terreno
desocupado e perigoso, aonde os funcionrios da universidade j haviam encontrado
um cadver e alguns estudantes do Colgio Pedro II fumavam maconha. E, em seguida,
Rabaa comentou sobre a construo irregular que havia ao lado da guarita de entrada
do observatrio, contando que essa casa pertencia UFRJ, mas tinha sido ocupada pela
famlia de um antigo segurana da universidade aps ele se aposentar. Disse que a
universidade j tinha expulsado alguns moradores e demolido um puxadinho no
entorno do observatrio, mas que no tinha conseguido solucionar todo o problema.
Segundo ele, os moradores do morro consideravam degradadas todas as casas
construdas no topo da Ladeira Pedro Antnio e na Travessa Joaquim Soares e
chamavam seus ocupantes de sem terra. Nessa travessa, havia algumas casas com os
tijolos aparentes que destoavam das demais fachadas do morro que, mesmo possuindo
padres construtivos e decorativos diversos, eram revestidas. Mas Rabaa, ao se referir
aos moradores do morro, falava nitidamente dos que eram seus conhecidos na parte
alta, compartilhando com eles uma de suas formas de estruturar o espao: por condies
de moradia.
A reunio dos integrantes do Projeto Mau foi realizada em uma sala de aula e
composta por trs professores do observatrio, sete artistas, dois historiadores e um
filsofo. Sua conduo foi feita por Rabaa e pelo gravurista Marcelo Frazo, que
iniciaram a conversa manifestando a preocupao de procurar a comunidade do morro
para saber se ela desejava que a procisso de Nossa Senhora da Conceio fosse
includa na divulgao do evento. O grupo combinou que todos os atelis ficariam
fechados durante a procisso e que entrariam em contato com seus organizadores,
Frigideira e Seu Luizinho, para propor que os moradores da Rua Jogo da Bola
pendurassem tecidos nas janelas de suas casas, remetendo s festas de padroeira do
interior do pas. Os organizadores do Projeto Mau consideravam, assim, ser um
importante atrativo do evento a manifestao popular da procisso, embora durante
suas falas nenhum deles tenha se includo diretamente na noo de comunidade do
morro.
Outro assunto que mobilizou o grupo foi a seleo dos filmes que seriam
exibidos no observatrio durante o evento. Eles haviam decidido que o tema dos filmes
67

seria o morro e sugeriram a exibio do documentrio Morro da Conceio..., que
abordava as memrias de alguns moradores idosos descendentes de portugueses. O
historiador Marcelo Abreu ento sugeriu que fosse tambm exibido um curta-metragem
de sua autoria sobre uma favela carioca, mas a proposta foi prontamente recusada,
com o argumento de que no desejavam associar o evento ideia de favela. Por fim,
houve um debate sobre as estratgias de divulgao do projeto na imprensa, onde a
maioria decidiu que seriam enviados releases aos jornais O Globo e Jornal do Brasil e
Revista Veja, para privilegiar o pblico de classe alta e mdia da cidade, e que no seria
procurado o jornal O Dia, para no atrair a classe popular. Aps a reunio, vrios de
seus integrantes foram ao Bar do Srgio conversar e beber cerveja, confirmando a
importncia do espao em suas relaes cotidianas de vizinhana.
Duas semanas depois dessa reunio, combinei de encontrar o historiador
Marcelo, pois tinha percebido que ele desejava mediar diferentes espaos, patrimnios e
imaginrios sobre o morro e que no operava com a oposio morador e favelado.
Inicialmente, marcamos um encontro de fim de tarde na casa de Antnio, mas
continuamos a conversa no Bar e Restaurante Glria, localizado na esquina da Rua do
Acre com a Travessa do Liceu. De dia, esse bar integrava o comrcio de alimentao
popular da Rua do Acre voltado para os funcionrios dos escritrios do entorno da
Avenida Rio Branco, mas, noite, ele ficava na rea perifrica de prostituio da Praa
Mau e suas mesas eram ocupadas tambm por diferentes moradores da regio. E essa
alternncia de tempos e usurios fazia desse prprio bar tambm um espao de
mediao entre as diferenas da Zona Porturia.
Marcelo havia conhecido o morro em 1995, atravs de uma visita guiada por um
professor de histria da UFF e, depois, tinha voltado outras trs vezes parte alta para
beber cerveja no Bar do Srgio. Tinha tambm se tornado frequentador assduo da base
do morro por causa dos ensaios do bloco Escravos da Mau realizados no Largo So
Francisco da Prainha. Em 2005, ele decidiu alugar uma casa no Centro e arredores e
procurou o Bar do Srgio. Soube ento que os preos do aluguel no Morro da
Conceio eram os mesmos que no Morro da Providncia, variando entre 400 e 800
reais. E que as casas de propriedade de Seu Luizinho ficavam localizadas na parte
baixa do morro e no final da Rua Jogo da Bola, mas no eram alugadas para qualquer
um e havia a exigncia de apresentao de fiador.
A casa que Marcelo acabou por alugar no era localizada nem na parte alta nem
na parte baixa do morro, ficava na Ladeira Pedro Antnio, e ele a encontrou vendo uma
68

placa afixada na fachada que informava o telefone de uma imobiliria. A casa que
alugou possua trs quartos e ele convidou os historiadores Mrio e rika, que eram
seus amigos desde a graduao na UFF, para dividirem o aluguel. Embora no tivesse
precisado conhecer algum morador para conseguir alugar essa casa, sua relao de
inquilinato tambm possua regras: a imobiliria exigiu que Marcelo apresentasse um
fiador proprietrio de dois imveis.
Antes de sua mudana para o morro, Marcelo havia alugado um apartamento no
Graja, bairro da Zona Norte, e disse que antes era mais difcil ir ao cinema e receber a
visita de amigos, j que a maioria deles morava na Zona Sul e achava o bairro longe. E
que no gostava muito de seus vizinhos, porque eles se comportavam como insulares,
se achavam a aristocracia da Zona Norte. Reclamou tambm de no bairro s haver um
nico bar e de sentir falta da convivncia que o espao possibilitava. E acabou por
ponderar que os moradores do morro tambm eram insulares, mas logo fez a ressalva
de que a viso que tinha era a partir do Bar do Srgio. Foi ento que ele falou mais
demoradamente sobre como sua insero na vizinhana havia passado pela frequncia
nesse bar. Marcelo contou que, logo que chegou, Dona Regina, me do Srgio, o
ajudou a conhecer os vizinhos que frequentavam o bar quase todos os dias. Alguns deles
compunham a turma do Aliado, que era um jogo de tabuleiro onde participavam
apenas os mais velhos e seus filhos, ficando excludos os considerados de fora e as
crianas. Quem confeccionava o tabuleiro era Seu Ren, mas ele tambm podia ser
comprado na Casa da Armada, loja localizada prxima ao Morro do So Bento.
Ao comparar dois bares da parte alta do morro, o do Srgio e o do Geraldo,
Marcelo disse que achava o primeiro melhor porque era tambm frequentado por
crianas e mulheres; o outro era frequentado predominantemente por homens, embora
na Ladeira Joo Homem, assim como na Rua Jogo da Bola, tambm fosse comum que
crianas e mulheres conversassem em cadeiras domsticas dispostas na calada de suas
casas. Marcelo havia percebido ainda que os moradores da Rua Jogo da Bola no
circulavam por outras partes do morro, que eram alguns dos moradores da Ladeira Joo
Homem e da parte baixa que se deslocavam para o Bar do Srgio, exemplificando a
hierarquia entre os espaos e os grupos sociais do morro.
A vizinhana que frequentava o Bar do Srgio costumava dizer que os
moradores da Ladeira Pedro Antnio tinham mais relao com os espaos da Rua da
Conceio e da Rua Senador Pompeu, no sendo considerados por isso moradores do
morro. Assim, Marcelo indicava que os limites geogrficos e administrativos do morro
69

no equivaliam aos limites de suas diferentes vizinhanas ou, como outros
denominavam, de suas comunidades. E que as categorias que usualmente
classificavam seus habitantes entre de dentro e de fora do morro no podiam ser
compreendidas apenas como territoriais: elas envolviam diversos outros aspectos, como
morais, sociais, legais, econmicos e estticos. Um morador de uma das vias
administrativamente classificada pela prefeitura como Morro da Conceio podia,
portanto, ser entendido como um de fora tanto quanto algum que morasse em outro
bairro ou regio da cidade.
Segundo as observaes de Marcelo, embora os moradores da Rua Jogo da Bola
costumassem dizer que no morro sempre havia circulado gente que no era nascida e
criada aqui, eles se incomodavam bastante com as mudanas de vizinhana. Para
exemplificar essa reatividade a novos moradores, narrou o dia em que o Bar do Srgio
havia sado na coluna P Limpo do jornal O Globo sem que tivesse sido avisado pelo
jornalista. A propaganda inesperada foi muito mal recebida tanto por Srgio quanto
pelos frequentadores do bar, porque eles no desejavam turistas nem gente de fora
por l. Em sua opinio, mesmo os que eram proprietrios de imveis no morro, como
Srgio, Seu Ren e Seu Luizinho, se posicionavam de forma contrria sua
valorizao econmica. Havia nessa fala de Marcelo, portanto, mais uma importante
diferenciao entre turistas e de fora: o primeiro sendo associado a uma maior
contingncia em relao aos espaos do morro, por no permanecerem neles por muito
tempo nem estabelecerem vnculos sociais; e o segundo, mas temido, por ser associado
a um frequentador constante ou mesmo um morador que no compartilhasse dos
mesmos valores sociais e morais dos moradores tradicionais.
Assim, como Martin e Alessandra, ao se mudar para o morro Marcelo tambm
tinha decidido no atuar como pesquisador; mas se envolveu no Projeto Mau por
avaliar que ele no iria causar a atrao de novos moradores e poderia estimular o
investimento da prefeitura no entorno do morro, principalmente nas ruas Senador
Pompeu, da Conceio e do Acre, que considerava abandonadas, sujas e sem
iluminao. Ele tinha conhecido os artistas do projeto atravs de Guenther e comentou
que vrios dos envolvidos nele eram tambm proprietrios de casas no morro. No sabia
exatamente como os demais moradores da parte alta percebiam o projeto, mas j tinha
ouvido falar que alguns achavam de alto nvel.
Contou ento que tinha havido outro encontro dos integrantes do Projeto Mau
aps o realizado no Observatrio, e que novamente tinham recusado uma proposta sua:
70

organizar um debate aps a exibio do filme Morro da Conceio... com o historiador
Jlio Csar Pereira, que havia publicado em 2005 um livro sobre as atividades do
cemitrio dos pretos novos e do mercado de escravos africanos na Zona Porturia.
Marcelo explicou que sua inteno era fazer um contraponto participao da VOT no
evento, que havia disponibilizado o imvel onde funcionava sua casa de cultura para
abrigar uma exposio coletiva de fotos. Em sua avaliao, a incluso de um historiador
que falasse sobre a memria negra na regio era uma forma de apoiar os moradores que
estavam reivindicando o reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal.
O pedido de reconhecimento da regio como territrio quilombola era, na
opinio de Marcelo, um pouco exagerado, embora considerasse inegvel a
existncia de uma ligao histrica do passado negro com a Zona Porturia. Ele me
contou que conhecia algumas das famlias despejadas pela ordem franciscana e que
existiam moradores que ocupavam os imveis havia mais de 70 anos. E que, quando
houve a solicitao de parte da base do morro como territrio tnico, o frei que
administrava a VOT chamou para uma reunio os alunos e pais da Escola Padre Dr.
Francisco da Motta e do recm-inaugurado Colgio Sonja Kill para dizer que os
quilombolas queriam tomar a rea ocupada por esses estabelecimentos de ensino,
conseguindo dessa forma vrias adeses a um abaixo-assinado contra o Quilombo da
Pedra do Sal.
No desenvolvimento do trabalho de campo, dividi o aluguel na casa de Antnio
durante algumas semanas entre os meses de novembro de 2007 e abril de 2008. Nessa
estadia, observei o cotidiano do Bar do Srgio e a realizao de algumas festas coletivas
organizadas por diferentes moradores da parte alta. Analisei ento como estava sendo
valorizado turisticamente o que externamente ao morro estava sendo denominado
patrimnio portugus e espanhol e como seus moradores classificavam a boa
vizinhana atravs das categorias de dentro e de fora, a partir de uma gradao que
movimentava as figuras do morador, do turista, do poltico, do malandro e do
criminoso. E analisei, ainda, como suas formas de estruturar o morro passavam por
um rgido sistema de reputao que opunha vcio e virtude e dividia os espaos em
feminino e masculino, cujas figuras extremas do imaginrio negativo eram a
prostituta e o viado.

O CONFLITO DA PEDRA DO SAL

71

O conflito entre os moradores que
solicitaram a demarcao do territrio tnico do
Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT
foi ocasionado pela superposio da rea perifrica
de dois centros de irradiao simblica: a Pedra do
Sal e a Igreja de So Francisco da Prainha, ambas
localizadas no trecho da base do morro voltado para
a Rua Sacadura Cabral, via que percorria todo o
bairro da Sade e parte do bairro da Gamboa. A
pedra era uma formao rochosa que possua uma
rea lisa e escorregadia e outra de escadaria
esculpida que facilitava a circulao de pedestres. Na base da pedra, estava o Largo
Joo da Baiana, cujos limites fsicos eram tambm demarcados pela lateral do ltimo
sobrado do lado mpar da Rua So Francisco da Prainha; pelos sobrados do restaurante
Victoria Self Service e do bar Bodega do Sal; e por um muro alto e uma escadaria que
conduzia Travessa do Sereno, onde dois sobrados tiveram suas fachadas unificadas e
foram ocupados pelo centro comunitrio do Projeto Humanizao do Bairro da VOT.
A calada do largo era ornada por grandes pedras quadradas circundadas por
pequenas pedras portuguesas e possua dois bancos de madeira e um coqueiro. Ao nvel
do cho, havia um calamento formado apenas por grandes pedras que separavam seu
espao do das ruas So Francisco da Prainha e Argemiro Bulco, ambas caladas por
paraleleppedos. Na parede da Bodega do Sal, uma placa informava que, em 1987, a
Pedra do Sal havia sido tombada como monumento histrico e religioso afro-brasileiro
pelo INEPAC. Nos perodos diurnos, o largo era utilizado como rea para
estacionamento de carros e ocupado principalmente pela movimentao do restaurante
e, nas noites de 2 e 4 feiras, eram realizadas nele rodas de samba organizadas pelo bar.
Eventualmente, no largo tambm eram realizadas festividades de moradores ou
relacionadas ao circuito de sambistas.
O trecho da Rua Sacadura Cabral que compunha a base do morro possua dois
setores de caractersticas fsicas e ocupacionais distintas, demarcados pela alterao da
direo do trfego de automveis em frente ao Largo So Francisco da Prainha. Esta
alterao era provocada pela conexo com a Rua Edgard Gordilho, que interligava a
Rua Sacadura Cabral Avenida Rodrigues Alves, principal via de acesso da retro-rea
porturia e por cima da qual passava a Avenida Perimetral. A conexo provocava uma
72

encruzilhada em frente ao largo, que fazia com que os motoristas tivessem que optar em
dobrar para a esquerda, em direo Igreja da Prainha e Praa Mau, ou para a direita,
em direo Pedra do Sal e regio do morro denominada de Valongo.
O Largo So Francisco da Prainha,
denominado por seus usurios apenas
como Largo da Prainha, era de formato
triangular e delimitado pelos cruzamentos
da Rua Sacadura Cabral com a Rua So
Francisco da Prainha e o Beco Joo
Igncio. Seu espao era demarcado por
um calamento de paraleleppedo elevado
um palmo acima do nvel do cho, onde se encontravam dispostos um jarro com
plantas, bancos de madeira, rvores, postes e dois conjuntos de mesas em cimento com
tabuleiros pintados e banquetas tambm de cimento. Uma parte dos sobrados frontais ao
largo era de propriedade da VOT e estava desocupada, e a outra parte era utilizada como
depsito de bebidas ou para o funcionamento de bares e restaurantes populares. Durante
os perodos diurnos, o largo era usualmente tomado por estudantes, homens jogando
cartas, pessoas conversando e por muitos engradados de cerveja e recipientes de gua
filtrada que eram vendidos pelos depsitos. noite, o movimento de pessoas era menor
e apenas o bar da esquina da Rua So Francisco da Prainha com o Beco Jos Igncio
funcionava. E, em algumas 6 feiras, o espao era tomado pelo ensaio do bloco de
carnaval Escravos da Mau, que chegavam a atrair at duas mil pessoas.
A Rua So Francisco da Prainha continuava para alm do Largo da Prainha,
interligando a Rua Sacadura Cabral ao Largo Joo da Baiana. No trecho da rua entre a
esquina do Beco Joo Igncio e o Largo Joo da Baiana havia sobrados dos dois lados.
No lado mpar, eles eram quase todos utilizados como residncia por inquilinos da VOT
ou moradores informais, sendo que em um deles estava instalado o curso de padaria e,
no trreo de um pequeno edifcio, estavam os cursos de marcenaria e grfica, todos
componentes do Projeto Humanizao do Bairro. As edificaes desses trs cursos
permaneciam quase sempre fechadas, e se destacavam visualmente das demais por
possurem boas condies de conservao, fachadas pintadas em azul claro e uma placa
que expunha o nome do curso e as logomarcas dos realizadores do projeto.
No lado par da Rua So Francisco da Prainha, a maioria dos sobrados tinha suas
frentes voltadas para a Rua Sacadura Cabral e era ocupada por estacionamentos, sendo
73

alguns ocupados pelo pequeno comrcio, entre eles o Mercadinho Pai Dgua e o
Restaurante Gracioso. Esse trecho da Rua Sacadura Cabral era definido pelo Beco Joo
Igncio e a Rua Argemiro Bulco e marcado pela presena, no outro lado da calada, de
um estacionamento trreo que possibilitava a plena viso do prdio de oito andares da
Rua Venezuela utilizado pela ocupao de moradores sem teto Zumbi dos Palmares.
A Rua Argemiro Bulco se conectava a Rua Venezuela, atravessava as ruas
Coelho e Castro e Sacadura Cabral e percorria a Pedra do Sal at encontrar com a Rua
Jogo da Bola. O trecho alto da pedra era ocupado por sobrados e casas e, prximo sua
base, o lado esquerdo era totalmente tomado pela empena cega do edifcio de mais de
doze andares da CEDAE e o lado direito era ocupado tambm por um edifcio de altura
semelhante, utilizado por residncias. No final do setor da Rua Sacadura Cabral que
contornava o morro, entre a Rua Argemiro Bulco e a Rua Camerino, havia alguns
sobrados em runas ou fechados, outros que no perodo diurno eram utilizados como
estacionamento e alguns ocupados pelo pequeno comrcio. Em um dos sobrados,
funcionava uma igreja evanglica Universal do Reino de Deus. E, de padro construtivo
contrastante por possuir linhas arquitetnicas retas e janelas espelhadas, havia o prdio
de oito andares do hotel Villa Reggia. Ainda estavam localizadas neste setor as casas de
shows Trapiche Gamboa e Sacadura e a boate The Week, que s abriam noite.
A partir do Largo da Prainha em direo
Praa Mau, aps dois sobrados da Rua Sacadura
Cabral havia uma escadaria de acesso ao Adro de
So Francisco, um ptio retangular elevado cerca de
oito metros onde, ao centro, estava a pequena Igreja
de So Francisco da Prainha. Denominada pelos
usurios do morro como Igreja da Prainha, essa
edificao era o centro simblico dos portadores do
patrimnio franciscano e foram nos espaos de seu
entorno que os dirigentes da VOT implantaram em
mais de trinta sobrados suas obras sociais e
educacionais: a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, o Colgio Sonja Kill e o Projeto
Humanizao do Bairro. Pintada de branca e com detalhes em pedra na fachada, a
igreja possua uma placa datada de 1910 e afixada acima de seu portal informando que
sua construo havia comeado no ano de 1696 pelo grande benfeitor Padre Dr.
Francisco da Motta, que em 1704 a legou com o patrimnio da Prainha VOT.
74

frente da igreja, havia uma mureta branca que separava o adro da Rua Sacadura Cabral
e, em suas laterais e fundo, se alinhavam algumas casas trreas tambm de propriedade
da ordem franciscana. Atrs da igreja, direita, um corredor levava pequena escadaria
que demarcava o encontro da Rua do Escorrega com a Rua Mato Grosso e, ao lado dela,
uma passagem conduzia ao Beco Joo Jos. Nele, estavam localizadas as portas frontais
da Escola Padre Francisco Motta e do Colgio Sonja Kill, ambos pintados de azul e
branco. Juntas, essas instituies de ensino ocupavam todo o quarteiro delimitado
pelos becos Joo Jos e Joo Igncio, pela Rua Mato Grosso e pelo adro.
As fachadas das casas do adro
eram pintadas de branco, mas cada
conjunto de portas e janelas era alternado
em verde, azul, amarelo e branco.
Algumas possuam pequenas placas
afixadas no portal identificando as
atividades desenvolvidas pelo Projeto
Humanizao do Bairro: salo de
beleza, oficina das artes, escritrio modelo, sade para a comunidade, escola
popular de msica, arte e bordado, cantinho da moda, casa de cultura do Morro
da Conceio. Esse conjunto de construes era cuidadosamente pintado e seus tons de
cor pastis e frios contrastavam com a profuso de cores da Rua Sacadura Cabral e das
demais vias da base do morro.
Neste trecho da Rua Sacadura Cabral que ficava entre o Largo da Prainha e a
Praa Mau, havia um entroncamento no acesso ao morro que dividia o percurso entre a
escadaria do Adro de So Francisco e a escadaria da Rua Eduardo Jansen. Essa rua era
pouco extensa e desembocava na Rua do Escorrega, outra via que subia o morro e que,
unida sua continuao, a Rua Mato Grosso, atravessava quase toda sua parte baixa
at alcanar a Rua Jogo da Bola. Nenhuma dessas ruas possua um calamento em
paraleleppedo, eram apenas asfaltadas. E, ao longo desse trecho da Rua Sacadura
Cabral, diversos transportes coletivos faziam ponto final de passageiros e os sobrados e
prdios eram utilizados de forma comercial, residencial e tambm como hospedarias.
Nos perodos diurnos, as lojas trreas ofereciam servios de alimentao
popular, estacionamento de veculos, venda de bebidas ou produtos para escritrio, entre
outros, e repetiam o visual colorido de tabuletas da Rua do Acre. Barracas credenciadas
pela prefeitura compunham na proximidade da Praa Mau o Comrcio Popular
75

Sacadura Cabral, como podia ser lido em seus toldos de lona azul. noite, este trecho
da rua era ocupado pelas atividades voltadas para a prostituio e o lazer em torno das
boates, botequins e barraquinhas ambulantes de comidas e bebidas. Trs grandes boates
convidavam a entrada dos turistas estrangeiros afixando em suas fachadas os letreiros
Welcome Club Florida. Show. Music. Dance. Bar. Girls; Boite Scandinavia. Night
Club. Shows e Strips; ou simplesmente em luz neon Kabaret Kalesa. E, alm desses
espaos de acolhimento sexual aos estrangeiros e migrantes, havia algumas construes
governamentais voltadas para seu atendimento e controle: Polcia Federal, Hospital Jos
da Costa Moreira, 1 Delegacia de Polcia Civil, Terminal Rodovirio Mariano
Procpio, Arsenal da Marinha e Terminal de Passageiros do Porto.
Interligando essa extremidade da Rua Sacadura Cabral Rua do Acre, estava a
Travessa do Liceu, que permitia o acesso Ladeira Joo Homem. Essa travessa era
delimitada pelos fundos do edifcio A Noite, de mais de vinte andares, e pela encosta do
morro. Ao longo da encosta, a travessa era ocupada por barracas credenciadas pela
prefeitura, que vendiam alimentos no perecveis, como biscoitos, balas e chocolates, e
peas de vesturio e objetos para escritrio. Estas barracas diminuam ainda mais a
estreita rea de passagem dos pedestres e mantinham a via permanentemente ocupada.
J a lateral do edifcio possua algumas colunas de madeira que davam sustentao a sua
marquise. No perodo diurno, embaixo dela ficavam informalmente estacionadas motos
e bicicletas e pequenos grupos de usurios organizavam jogos de cartas e de tabuleiro.
Aps conversar rapidamente com Damio na roda de samba da Pedra do Sal,
falei com ele ainda mais duas vezes ao telefone at conseguir encontr-lo na manh do
dia 13 de novembro de 2007. Ele morava com sua mulher, Marilcia Luzia, em um
sobrado na Rua So Francisco da Prainha. Alm deles, tambm morava nessa rua outro
integrante do movimento quilombola, Marquinhos, que trabalhava como vendedor de
cachorros-quentes numa barraca ambulante instalava no Largo da Prainha. Meu
encontro com Damio aconteceu na calada em frente sua casa e, logo que nos
cumprimentamos, ele me avisou que no poderia falar durante muito tempo comigo e
emitiu a opinio de que os acadmicos atuavam quase sempre em favor dos interesses
da elite. Mas, embora tenha mantido uma postura desconfiada, conversamos por
quase uma hora.
Damio contou que trabalhava no porto e, alm de ser presidente da Associao
de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal - ARQPEDRA, havia sido eleito na
semana anterior vice-presidente da Associao dos Quilombos do Estado do Rio de
76

Janeiro - AQUILERJ. Ele no quis me responder sobre sua trajetria habitacional at a
chegada ao morro, afirmou apenas que tinha sido criado na Zona Porturia e que a
primeira moradia dele no morro havia sido em uma casa da VOT na Travessa do
Sereno, onde tinha permanecido por dois anos sem ter qualquer contrato de aluguel.
Quando foi despejado atravs de uma ao judicial movida pela entidade, ocupou uma
casa na Rua So Francisco da Prainha, que tambm estava vazia e era de propriedade da
ordem franciscana. Embora ele prprio no pagasse aluguel, disse que outras famlias
que foram despejadas pela entidade tinham contrato de locao e acusou seus dirigentes
de terem feito algumas expulses agressivas com o auxlio de policiais.
Disse ento que a VOT no tinha documentos que comprovassem a propriedade
das casas da parte baixa do morro, porque aquela rea da Rua Sacadura Cabral havia
sido aterrada e pertencia originalmente Unio. E de ter comeado a despejar os
moradores e reivindicar a propriedade dessas casas somente depois que a prefeitura
divulgou o plano urbanstico Porto do Rio, afirmando que a instalao dos cursos
profissionalizantes era apenas um pretexto para valoriz-las economicamente. Perguntei
ento a ele quem eram os integrantes da comunidade quilombola e onde se reuniam
cotidianamente, mas Damio respondeu de forma genrica, repetindo que a Zona
Porturia era um espao de ocupao histrica do negro e que durante anos essa
ocupao havia sido inibida pela atuao da igreja catlica e dos planos urbansticos.
E foi operando com esses grandes personagens mticos os negros, a igreja
catlica e os urbanistas - que ele informou que havia dcadas nenhuma casa de
candombl funcionava na rea, j que todas haviam se deslocado para o subrbio aps
serem perseguidas. No entanto, em seguida Damio lembrou que at 2005 havia
funcionado um candombl em uma das casas do Adro de So Francisco, mas que a casa
tambm tinha sido retomada pela VOT. Damio ento perguntou qual era a minha
religio e eu respondi que no era praticante de nenhuma, mas que havia sido batizada
na umbanda, religio que, durante a minha infncia, era a de minha me. Ele reagiu com
surpresa e disse que esperava que eu fosse catlica, j que ele prprio era do candombl,
mas batizado pela igreja catlica, e no conhecia muitas pessoas que eram batizadas em
religio do santo.
Enquanto conversvamos, Mauro Rasta passou pela rua e parou para falar
conosco. Mauro organizava junto com Damio e Marilcia o Projeto Sal do Samba, que
realizava apresentaes musicais na Pedra do Sal, e avisou a Damio que o Canal
Futura tinha entrado em contato para fazer uma matria televisiva com os integrantes do
77

Quilombo da Pedra do Sal. Damio disse que j tinha recebido o convite, mas que no
havia aceitado porque o movimento quilombola nacional tinha deliberado no participar
de nenhuma matria realizada por instituies ligadas Rede Globo de Comunicaes.
Explicou-me que esse posicionamento tinha sido tomado devido s distores que os
jornalistas estavam fazendo ao narrarem os conflitos em torno dos territrios tnicos.
Perguntei ento que instituies apoiavam o Quilombo da Pedra do Sal e ele me
falou que favorveis ao pleito haviam apenas o Movimento Negro Unificado; a ONG
Comcat, voltada para a formao de lderes comunitrios e sediada no Beco Joo Jos; a
ONG Koinonia, entidade carioca atuante no monitoramento e assessoria poltica dos
pleitos de reconhecimento de territrios quilombolas; e a ONG Centre On Housing
Rights and Evictions - COHRE, entidade paranaense voltada para a implantao de
projetos de moradia popular. Mas disse que a Comcat e a Koinonia haviam sido
pressionadas pela VOT, atravs da mediao de um representante da Comunidade
Europia, financiadora em comum das trs entidades, para que elas no oferecessem
apoio formal ao movimento.
Ao conversar com Mauro sobre os eventos que pretendiam realizar na Pedra do
Sal no fim do ano, Damio me disse que o Projeto Sal da Pedra costumava comemorar
o dia da Conscincia Negra, 20 de novembro, mas que naquele ano eles tinham decidido
no realizar nenhuma atividade porque estavam sem dinheiro. Mas que ele e Mauro
estavam organizando a festa de comemorao ao dia do Samba, 02 de dezembro, j que
tinham recebido o apoio de uma professora universitria que se prontificou a oferecer os
ingredientes para a produo de uma feijoada, pedindo em troca que eles organizassem
a apresentao de grupos de dana afro. Segundo Damio, havia dois anos que eles
no conseguiam realizar a festa de comemorao ao dia do Samba por causa das
despesas que tiveram com os embates judiciais com a VOT e que, antes do pleito de
reconhecimento tnico, nessa festa havia a lavagem da pedra com o auxlio de filhos
de santo seguida de uma roda de samba.
No final de nossa conversa, Damio sugeriu que eu consultasse o Relatrio
Histrico e Antropolgico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da
Pedra do Sal produzido pelo INCRA, dizendo que eu iria encontrar nele a histria da
Zona Porturia e do pleito quilombola. Sugeriu ainda que a leitura da Proposta de
Tombamento da Pedra do Sal apresentada ao INEPAC em 1984. Quando nos
despedamos, comentei com Damio que estava ainda em incio de pesquisa e que
pretendia conversar tambm com os dirigentes da ordem franciscana para saber a verso
78

deles sobre o conflito. Ele ento respondeu que no havia verses, que ele estava
contando a verdade.
No incio de dezembro, estava em um ensaio do bloco de carnaval Escravos da
Mau no Largo da Prainha quando Marcelo me informou que, entre as diversas barracas
de venda de comida e bebida montadas no largo, a que ficava na esquina do Beco Joo
Igncio pertencia ao Quilombo da Pedra do Sal. Fui ento para essa barraca e me
apresentei como pesquisadora a Sonia, que estava organizando as vendas. Ela me disse
que havia morado na ocupao de moradores sem teto Chiquinha Gonzaga, localizada
em um edifcio da Rua Baro de So Felix prximo Central do Brasil, trabalhava na
ONG Rede de Vtimas de Violncia de Comunidade e ajudava Lcia, que era como
todos chamavam Marilcia, a tomar conta da barraca dos quilombolas.
Sonia ento apresentou-me Lcia, que conversou rapidamente comigo, dizendo
que havia morado na Zona Porturia desde que nasceu, mas sem querer especificar
onde. Disse apenas que nem as ONGs e nem a igreja apoiavam o Quilombo da Pedra do
Sal, que eles s contavam com o apoio dos grupos negros. Amaury, amigo de Lcia,
se aproximou da conversa e ela se afastou para falar com outras pessoas. Ele era
produtor cultural e trabalhava principalmente com sambistas, e disse que seu desejo era
articular o movimento quilombola com outros grupos dedicados ao samba da Zona
Porturia, como os blocos Prata Preta e Escravos da Mau, mas que estava difcil unir
seus integrantes. Outro amigo do grupo, Renato Radical, entrou na conversa e, sabendo
que eu era pesquisadora, me perguntou, assim como havia feito Damio, se eu era
catlica. Depois que soube do meu batismo na umbanda, Renato me reapresentou Lcia,
enfatizando esse aspecto religioso, e conversamos por mais alguns minutos.
Ao mesmo tempo em que tentava estabelecer um contato com os moradores que
formaram o Quilombo da Pedra do Sal, tentei compreender como o pleito tnico
estava sendo conduzido pelo INCRA. Insisti assim em falar com rika, historiadora que
tinha participado da elaborao do relatrio de identificao e delimitao. Aps
alguns desencontros, ela me convidou para ir festa de comemorao de seu
aniversrio. Chegando sua casa, conversei por alguns poucos minutos com ela, que
contou que na elaborao do relatrio sobre o Quilombo da Pedra do Sal tinha feito
entrevistas apenas com os moradores que solicitaram o reconhecimento tnico e um
levantamento histrico sobre a regio; no havia entrevistado outros moradores que no
fizessem parte do grupo para saber o que achavam do pleito. E depois de entregue sua
79

parte do trabalho, no havia acompanhado mais o processo de reconhecimento; s sabia
que o relatrio j tinha sido enviado ao INCRA.
Alguns dias depois, fui convidada para um evento organizado por Mauro Rasta
na Pedra do Sal e, encontrando novamente rika, compreendi o seu desconforto em
falar sobre o pleito. Era o aniversrio de uma cantora de samba, que havia organizado
uma roda com alguns msicos e chamado seus amigos para a comemorao, a maioria
no moradora da regio. Nesse evento, o movimento quilombola havia montado uma
barraca para a venda de caldo de feijo, de quiabo com frango e de cerveja, como forma
de angariar dinheiro para o movimento. Ao chegar e ver os msicos, os convidados e a
comida servida pela aniversariante, que era torradas com tabule, rika criticou a festa,
dizendo que aquilo no era movimento quilombola, mas uma manifestao para-
folclrica. E percebi, assim, que durante a pesquisa ela havia ficado tensionada pela
sua prpria percepo do que considerava ser um autntico movimento quilombola.
Retomei o contato direto com integrantes do Quilombo da Pedra do Sal apenas
no incio de abril de 2008, quando conheci Carmem durante um evento de arte
contempornea organizado por um morador da parte alta do morro e patrocinado pelo
IPHAN. Parte das intervenes artsticas do evento havia ocupado a Pedra do Sal, e
encontrei Carmem porque ela explicava a um dos artistas o que era o movimento
quilombola. Ela ento me contou que havia seis anos que residia em um imvel na
Travessa do Sereno e que, antes mesmo de ter se tornado uma quilombola, j era
discriminada por outros moradores por ser da parte baixa e no da parte alta, que
ela identificava como a elite do morro. Acusou tambm a VOT de estar perseguindo
os integrantes do quilombo e de terem utilizado uma milcia formada por policiais a
paisana para expulsar os moradores dos imveis e retirarem seus pertences. Segundo
ela, esses despejados eram em torno de cinquenta pessoas, mas poucos haviam
continuado a morar na Zona Porturia; morando no morro, haviam restado apenas os
que organizaram o movimento.
No dia 23 de abril, reencontrei Carmem na Pedra do Sal em uma festa em
comemorao ao dia de So Jorge. Quem havia me avisado do evento foi novamente
Mauro Rasta que, por telefone, explicou que ele estava sendo organizado coletivamente,
com a participao de amigos do movimento quilombola, de moradores da regio e de
militantes do movimento negro e social. Ele tinha ficado encarregado de convidar as
pessoas e divulgar o evento, e Lcia de comandar a barraca de bebidas e o preparo da
feijoada. Cheguei festa no fim da manh, quando a barraca com feijoada e bebida j
80

estava montada, mesas e cadeiras de alumnio haviam sido dispostas ao redor do largo
e, em seu centro, msicos se revezavam para cantar sambas.
Carmem ento me apresentou ao historiador Luiz Torres, um dos integrantes do
movimento quilombola e, assim como j tinha ocorrido nos meus encontros com
Damio e Lcia, ele tambm no foi muito receptivo, mas concordou em conversar.
Contou que o primeiro trabalho histrico apresentado ao INCRA foi de sua autoria, se
referindo ao material de auto atribuio do grupo entregue Fundao Cultural
Palmares e que resultou em sua certificao. Luiz me explicou que a ideia do quilombo
estava associada a uma resistncia poltica que tinha como intuito divulgar a histria
da Pedra do Sal como ponto de referncia da cultura africana para outros moradores da
Zona Porturia.
Considerava que a solicitao do reconhecimento tnico do quilombo no era
apenas um projeto para solucionar um conflito habitacional, mas tambm um desejo de
ampliar a atuao do MNU na regio e fortalecer a memria negra, que ele entendia j
reconhecida atravs da criao do Cemitrio dos Pretos Novos e do Centro Cultural Jos
Bonifcio. E disse que o tombamento da Pedra do Sal na dcada de 1980 no havia sido
uma iniciativa dos moradores que formaram o quilombo, mas uma iniciativa
exclusivamente acadmica. E que havia sido sua iniciativa e de Damio tornar a Pedra
do Sal conhecida pelos moradores e pelos envolvidos nas atividades porturias, nas
rodas de samba e entre o povo do santo. Tinha sido, assim, para produzirem um
trabalho consciente de construo de identidade negra, que eles haviam se
posicionado como seus guardies de memria.
Luiz contou que, apesar de eles terem chamado outros moradores da regio para
aderiram ao movimento, atravs da afixao de cartazes sobre a realizao de reunies
da ARQPEDRA, muitos no quiseram por no se sentirem identificados com a causa
quilombola. Perguntei ento a ele como era o cotidiano do grupo de moradores que
tinham aderido ao movimento, se eles tinham algum ponto de encontro ou frequentavam
espaos comuns, como casas de candombl. Luiz disse que eles s se encontravam em
eventos de comemorao e divulgao da cultura afrodescendente ou em reunies onde
discutiam as estratgias do movimento, mas que eram dispersos. Por fim, Luiz disse que
s com o desenvolvimento do pleito foi que eles passaram a contar com apoio externo,
principalmente do Ministrio Pblico, do Governo Federal, de ONGs e de
universidades. No entanto, no haviam contado em nenhum momento com o apoio de
81

polticos, partidos ou associaes locais de moradores que, segundo ele, s se
interessavam em beneficiar pessoalmente seus integrantes.
No incio da tarde, logo aps a feijoada ter sido servida a cerca de cinquenta
pessoas, trs homens vestidos com camisetas brancas com o nome do Afox Filhos de
Gandhi impresso em azul se sentaram em cadeiras dispostas em frente aos bares do
largo. Esse grupo carnavalesco tambm estava reivindicando a incluso de sua sede,
localizada na Rua Camerino e de propriedade do governo estadual, no territrio tnico
do Quilombo da Pedra do Sal. Quando eles iniciaram o toque do ijex, ritmo
caracterizado pelo som dos atabaques e a marcao do agog e tocado em casas de
candombl, parte das mulheres presentes se posicionou em roda no centro do largo e
algumas, para marcar a transio musical, envolveram o tronco por um pano da costa,
pea de vesturio dos rituais de candombl.
Essas mulheres ento acompanharam os atabaques cantando diferentes msicas
em portugus e ioruba e danaram coreografias referenciadas tambm no candombl:
cada uma danou sozinha, andando em um crculo fechado, e seguiu o compasso dos
toques com passos breves e gestos suaves de mos. O tom da apresentao, embora
mais solene que o anterior da roda de samba, continuou festivo, a diferena foi ter
atrado para a dana mulheres j idosas, as tias respeitadas por todos os presentes no
evento. Depois da apresentao do Gandhi, como era geralmente chamado o grupo,
outros msicos voltaram a tocar samba e, ao longo da tarde, a festa ficou mais cheia
com a chegada de outras dezenas de pessoas de vrios locais da cidade, algumas
vestidas de branco e vermelho, cores associadas ao santo homenageado.
Essa apresentao do Gandhi havia, portanto, evidenciado a dimenso religiosa
do pleito quilombola, produzindo uma mediao social e cultural entre os integrantes
do movimento, sua rede de relaes e os prprios usurios do morro, fossem eles
moradores ou frequentadores de outros locais da cidade. Pois, atravs da comida
associada aos hbitos alimentares dos escravos afrodescendentes, do ritmo musical, da
coreografia e da vestimenta referenciados nos rituais do candombl, a comunidade
quilombola tinha operado a converso simblica da Pedra do Sal e do Largo Joo da
Baiana em territrio tnico, mas no na acepo jurdica e poltica do termo, e sim em
sua noo mgica. E era essa noo mgica que tinha feito com que outras pessoas
presentes festa de So Jorge, mas que no estavam diretamente envolvidas com o
conflito habitacional no morro, compartilhassem da reivindicao do grupo: pois elas,
82

assim como os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, faziam parte do povo do
santo.
A partir desses dilogos iniciais, comecei a entender que os moradores que
haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal possuam sua principal rede de relaes
sociais para fora dos limites fsicos do morro: uma rede formada por integrantes de
organizaes e movimentos polticos que atuavam junto s minorias tnicas e aos
conflitos de moradia popular e pelo povo do santo. E que, para tornar o conflito
habitacional com a VOT um pleito tnico, o grupo havia tido de acionar diferentes
mediadores dos poderes pblicos, como historiadores, antroplogos, advogados e
promotores, alm de se posicionar frente aos demais moradores do morro com quem
estavam em relao direta de vizinhana.
Mas, nessa judicializao do conflito, o grupo era constantemente avaliado a
partir de um sistema de autenticidade sobre as caractersticas culturais de um grupo
afrodescendente, avaliao que a prpria gramtica jurdica e poltica havia imposto
durante o processo pblico de certificao e titulao do territrio tnico. No
entanto, na concepo dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, a
etnicidade dos espaos do morro era articulada por oposies estruturais no previstas
na legislao que regulava o reconhecimento de comunidades quilombolas. Para eles,
as oposies povo e elite e povo do santo e catlicos eram as que os
diferenciavam dos demais moradores do morro e principalmente da VOT, sendo as
prticas do candombl, como veria ao longo do trabalho de campo, as que constituam a
principal base cosmolgica e de pertencimento do grupo.
Aps esses contatos iniciais com os integrantes do movimento quilombola,
houve uma contnua resistncia deles em conversar comigo ou permitir que eu
desenvolvesse uma pesquisa entre eles. Busquei ento conhecer alguns de seus
mediadores, como a ONG Koinonia e o INCRA e, apesar de no ter conseguido agendar
uma conversa com as pesquisadoras que haviam coordenado o Relatrio Histrico e
Antropolgico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal,
tambm me detive na anlise de seu discurso. Nela, busquei compreender como o mito
da Pequena frica estava sendo presentificado para operar a converso simblica dos
moradores do morro em um grupo tnico capaz de ser juridicamente identificado.
Por fim, entrei tambm em contato com usurios e funcionrios de atividades da
VOT no morro e realizei trs entrevistas com seus dirigentes: a coordenadora geral do
Projeto Humanizao do Bairro; a advogada que organizou as aes de remanejamento,
83

despejo e reintegrao de posse dos sobrados da parte baixa do morro para que eles
abrigassem o projeto; e o arquiteto que comandou suas reformas. E, atravs dessas
conversas, busquei compreender o processo de implantao das obras sociais e
educacionais no morro e o contexto de surgimento do conflito com os moradores que
se intitularam Quilombo da Pedra do Sal.

O CARNAVAL E O CANDOMBL DO VALONGO

O Gandhi, bloco carnavalesco que
havia aderido ao pleito quilombola,
estava sediado na parte do morro onde
havia funcionado o antigo mercado de
escravos do Valongo e que era, alm da
Pedra do Sal, o outro espao simblico
dos portadores do patrimnio negro
localizado no morro. Esse antigo mercado
havia ocupado toda sua base voltada para a Rua Camerino, entre as esquinas das ruas
Sacadura Cabral e Senador Pompeu, trecho onde haviam alguns sobrados com usos
diversos, como estacionamento, hotel e venda de mveis para escritrio. Quase metade
do quarteiro era ocupada pelo monumental Jardim Suspenso do Valongo, construdo
pela prefeitura de Pereira Passos. Era no sobrado de dois andares que ficava em uma das
extremidades do jardim e defronte Praa dos Estivadores que estava a sede do Afox
Filhos de Gandhi, identificada por uma tabuleta branca pregada na fachada com os
dizeres em azul: Ass. Cultural e Recreativa Afox Filhos de Gandhi RJ. Aulas de:
Capoeira - Dana Afro - Percusso.
No lado mpar do trecho da Rua Camerino que contornava o morro e fazia
esquina com a Rua Sacadura Cabral, havia um pequeno comrcio ocupando alguns
sobrados, a base da Ladeira do Morro do Valongo, que se conectava ao alto da Ladeira
Pedro Antnio, e a extensa murada de pedra do Jardim Suspenso do Valongo. No lado
par desse trecho tambm havia um pequeno comrcio e a Ladeira Madre de Deus, de
acesso ao Morro do Livramento e, logo adiante, havia o trecho da Rua Baro de So
Flix que seguia em direo Central do Brasil. Ao lado dessa rua, estava a Praa dos
Estivadores, em formato triangular, calada por pedras portuguesas e terra batida,
composta por bancos, equipamentos de ginstica em madeira e por um ponto de nibus.
84

Trs vrtices delimitavam seu espao: a Rua Sacadura Cabral, a Rua Baro de So
Felix, e uma sequncia de sobrados, onde dois possuam identificao em suas
fachadas: Batucadas Brasileiras Orquestra de Percusso Robertinho Silva e Centro
Cultural do Sindicato dos Rodovirios.
Elevado cerca de dez metros da
rua, ao centro do Jardim Suspenso do
Valongo havia uma escadaria de pedra,
estreita e muito ngreme que conectava a
Rua Camerino ao muro lateral do
Observatrio do Valongo. Duas placas
estavam afixadas na base dessa escadaria:
uma era em ao e havia sido posta pelo
rgo patrimonial municipal para informar que o jardim havia sido inaugurado em 1906
e que as quatro esttuas que nele figuravam tinham sido trazidas do Cais da Imperatriz,
atracadouro que foi assim batizado ao ser reformado para a chegada da noiva do
imperador Dom Pedro II em meados do sculo XIX; e outra placa, maior e esculpida em
pedra, que informava apenas o ano de construo do jardim e ter sido ele obra da
Prefeitura do Districto Federal. No jardim, ao lado direito da escadaria havia dois
pedestais de pedra de um metro e meio sem qualquer esttua em cima e, do lado
esquerdo, um sobrado de dois andares, outros dois pedestais vazios, um caminho que
conduzia a uma fonte de gua que no funcionava, uma rea onde estava pichado em
vermelho proibido cagar, e uma murada que permitia o acesso Ladeira do Morro
do Valongo. Alm dessa pichao, havia no jardim muitas que eram apenas rubricas e
outras com as letras CV, que demarcavam o espao como de atuao do Comando
Vermelho, grupo que geria o trfico de drogas do Morro da Providncia.
Assisti pela primeira vez a uma apresentao do Gandhi durante a comemorao
ao dia de So Jorge organizada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal. Mas s
comecei a perceber que o grupo era um importante articulador do que denominei de
circuito de herdeiros da Pequena frica quando presenciei, em seguida, outra
apresentao ritualmente semelhante do grupo, desta vez na abertura de um evento do
Instituto Pretos Novos. O instituto era um centro de estudos arqueolgicos e de
divulgao da cultura e memria negra localizado na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa. E
quem me apresentou a sua diretora, Mercedes, foi o guia turstico Jos Motta, com
quem tinha feito contato durante uma de suas visitas ao Morro da Conceio. Ele havia
85

comentado comigo que fazia tambm um roteiro de turismo tnico pela Pequena
frica, incluindo o Centro Cultural Jos Bonifcio, o Instituto Pretos Novos, a Igreja
Nossa Senhora da Sade, o Valongo e a Pedra do Sal.
Em maio, poucos dias depois de percorrer esse roteiro, voltei ao instituto e
Mercedes me contou que ele havia sido fundado aps sua famlia ter descoberto, durante
uma reforma nos cmodos de sua casa, em 1996, vrios ossos enterrados pertencentes a
um antigo cemitrio de escravos. E que, no incio da gesto de Csar Maia na prefeitura,
em 2001, havia sido feita uma grande festa no dia da Conscincia Negra anunciando a
realizao de uma prospeco arqueolgica e expondo em painis algumas fotos de
escavaes que j haviam sido realizadas no local pelos arquelogos municipais. Aps
essa divulgao, a casa de Mercedes comeou a receber a visitao de pesquisadores e
pessoas ligadas valorizao da cultura negra, se tornando um dos espaos da Zona
Porturia considerado parte desse patrimnio. Em 2005, a pesquisa anunciada pela
prefeitura ainda no havia sido realizada e, no dia 13 de maio, data de comemorao da
lei que aboliu a escravido, Mercedes decidiu organizar uma exposio de esculturas na
casa e criar a ONG Instituto Pretos Novos. E foi na comemorao dos trs anos de seu
funcionamento do instituto que assisti apresentao do Gandhi, em evento que teve
ainda uma roda de samba e a oferta de feijoada.
No entanto, tive contato direto com os integrantes do grupo carnavalesco
somente aps comear a frequentar, em junho, as reunies do Porto Cultural,
movimento que estava reunindo a sociedade civil da Zona Porturia para discutir as
propostas de revitalizao urbana. Soube da existncia desse movimento atravs de
uma amiga, Madalena Romeo, que era jornalista de O Dia e havia recebido um convite
por e-mail para participar dessas reunies. O movimento havia surgido em dezembro de
2007 e agregava cerca de vinte instituies
8
, alm de pesquisadores e moradores da
regio, sendo liderado pelo Instituto Batucadas Brasileiras, chamado usualmente apenas
de Batucadas. Essa ONG ficava sediada em um sobrado de trs andares na Praa dos
Estivadores e era uma escola de msica percussiva ministrada por Robertinho Silva e
dirigida pelo jornalista Maurcio Nolasco E, assim como os demais espaos

8
Compunham o Porto Cultural as seguintes instituies: Afox Filhos de Gandhi, Associao de
Servios Ambientais, Associao de Bandas Carnavalescas do Rio de Janeiro, Associao de Moradores e
Amigos da Gamboa, Banda do Morro da Conceio, CAPA Casa do Artista Plstico Afrodescendente,
Companhia Aplauso, Caboon, Centro Cultural Ao da Cidadania, Cia. Brasileira de Mystrios e
Novidades, bloco Escravos da Mau, INT Instituto Nacional de Tecnologia, IBB Instituto Bandeira
Branca/ Batucadas Brasileiras, IPN - Instituto Pretos Novos, Instituto Sociocultural Favelarte, IPPUR/
UFRJ, Pequena Central, Projeto Mau, Sindicato dos Estivadores, Sindicato dos Porturios, Sparta
Associao Esportiva da Providncia, Spectaculu, Topinheco07 e Observatrio do Valongo/ UFRJ.
86

frequentados pelo Gandhi, tambm propagava a valorizao da cultura negra na Zona
Porturia.
Na quarta reunio do Porto Cultural, ocorrida em julho no Batucadas, Nolasco
anunciou que sua organizao e o Gandhi haviam assinado um termo de cooperao
tcnica para desenvolver um projeto de recuperao da sede do grupo carnavalesco. E,
como a sede era de propriedade do governo estadual, as duas entidades estavam
coletando assinaturas de instituies locais para solicitar ao governador Srgio Cabral
Filho que ele decretasse sua doao definitiva para o Gandhi. Em seguida, Nolasco
props que o Porto Cultural apoiasse nas eleies daquele ano as candidaturas dos
vereadores Stephan Nercessian e Alfredo Sirkis, que estavam interessados em atuar,
respectivamente, nos projetos culturais e de revitalizao urbana da Zona Porturia.
Mas a maioria dos presentes foi contrria ao apoio, e o debate sobre as diferenas entre
politizar e partidarizar j estava ficando acalorado quando Carlos Machado,
presidente do Gandhi, pediu a palavra. Nesse momento, os demais participantes ficaram
em silncio, demonstrando que ele era socialmente reconhecido no s entre os
envolvidos com o povo do santo e a cultura negra, mas tambm entre o conjunto de
representantes de entidades que atuava na Zona Porturia.
Machado ento explicou que a ideia de formao do Porto Cultural era evitar
que houvesse um crescimento desordenado da expanso cultural da regio e
comentou o desrespeito legislao que foi feita para preservar o morador, se
referindo criao da rea de proteo ambiental SAGAS. Contou que o intuito dessa
preservao patrimonial era impedir que os sobrados fossem unificados para brigar
grandes casas de espetculo e espiges, numa referncia aos prdios verticalizados,
alertando que havia empresas da construo civil que possuam uma reserva de terrenos
na regio. E fez em seguida a defesa do envolvimento da comunidade no processo de
transformao da regio, dizendo que o movimento podia tentar garantir a permanncia
principalmente dos mais humildes, que se fossem retirados daqueles bairros iriam
morar em um lugar cada vez pior. A fala de Machado operava, assim, uma inverso
em relao aos discursos dos urbanistas da prefeitura sobre a Zona Porturia,
percebendo como construes regulares as que mantinham suas fachadas preservadas
e eram ocupadas pela moradia popular e, como irregulares, as revitalizadas e
ocupadas por grandes e lucrativos empreendimentos comerciais.
Passadas algumas reunies do Porto Cultural, soube atravs do fotgrafo
Lissandro Garrrido que Machado estava procurando tcnicos para realizar um
87

documentrio para a comemorao dos 60 anos do grupo, que ocorreria em 2011. Fui
ento em novembro a uma reunio da diretoria do grupo no Batucadas e, quando
cheguei, havia cerca de oito pessoas discutindo a organizao dos eventos da semana
seguinte, dedicada s comemoraes do dia da Conscincia Negra. Eles combinavam
quantos integrantes participariam dos eventos e que vestimentas usariam, cujas opes
eram camiseta e fantasia completa do Gandhi. Tambm foi discutido o retorno do
grupo para o desfile de carnaval no Sambdromo, j que fazia alguns anos que o
Gandhi s desfilava na rua. Ao fim da reunio, todos os presentes ficaram em crculo
e deram as mos, fazendo uma saudao que era o grito da palavra Ajai.
Em seguida, conversei com Machado e com
um dos diretores do grupo, Ulisses, durante alguns
minutos na Praa dos Estivadores e combinamos
que eu comearia a acompanhar e filmar seus
eventos a partir daquela semana. E, para que eu
comeasse a entender como funcionava o grupo,
enfatizaram que havia espaos diferenciados para
homens e mulheres e fundamentos e segredos
do candombl que eram precisos ser seguidos e
conhecidos para que os integrantes do Gandhi, ao se
apresentarem, ficassem protegidos. Em novembro
e dezembro de 2008, assisti ento a algumas apresentaes em que a diretoria do
Gandhi foi convidada para tocar e danar em eventos de valorizao da cultura negra
ou dos cultos afros. Inicialmente, assisti aos eventos relacionados semana de
comemorao da Conscincia Negra. Nela, o Gandhi se apresentou em um salo da
Cmara de Vereadores no encerramento do seminrio Polticas pblicas municipais de
promoo da igualdade e o combate discriminao racial. Depois, no prprio dia 20
de novembro, participou de um grande evento do governo estadual realizado no
monumento a Zumbi dos Palmares, na Praa Onze. Nele, a pista da Avenida Presidente
Vargas foi fechada e dois palcos forma armados: um em frente ao monumento, onde se
apresentaram, alm do Gandhi, capoeiristas e blocos afros; e outro, maior e equipado
com uma potente aparelhagem de som, onde se apresentarem cantores e grupos
musicais. No dia seguinte, o Gandhi se apresentou em evento que contou com a
participao de vrios representantes religiosos no Instituto Pretos Novos e, noite, na
eleio da Deusa do bano do bloco afro Ornmil no Circo Voador. At o fim do
88

ano, o Gandhi se apresentou ainda no encerramento da Feira da Providncia, em um
quilombo em Cachoeira de Macacu, no dia do Samba organizado pelo Quilombo da
Pedra do Sal, na festa de lanamento do Porto Cultural realizada no Largo da Santa do
Morro da Conceio, e no Presente de Iemanj oferecido pelo Mercado de Madureira.


Nessas apresentaes, normalmente os msicos da charanga vestiam uma cala
comprida branca, uma camiseta branca com o nome do grupo e o turbante. Alguns
homens e mulheres vestiam a fantasia completa do Gandhi: uma longa bata branca,
chamada por alguns de lenol, com o nome do grupo impresso em azul e amarrada
por faixa tambm azul; colares de contas grandes atravessadas no tronco nas cores azul
e branco; duas fitinhas brancas para amarrar as mangas da bata; um turbante de tecido
de toalha branco com o nome do grupo impresso em azul e enfeitado ao centro da testa
por um arranjo redondo de lantejoulas azuis, e sandlias brancas. Mas havia mulheres
que preferissem se vestir de baianas: com batas, saias e ojs, que eram uma espcie
de turbante de tecido branco liso ou bordado. Os turbantes e ojs eram amarrados de
forma diferente por homens e mulheres: nos homens, envolvia toda a cabea e apenas
uma de suas pontas cobria o pescoo; nas mulheres, o tecido era envolto de forma
circular na cabea, deixando para fora os cabelos, e algumas deixavam as duas pontas
para se projetarem na altura das orelhas. Muitos integrantes colocavam tambm
adornos como colares, pulseiras e braceletes de palha, bzios e contas.
Todas essas apresentaes do grupo que presenciei duraram cerca de meia hora,
foram realizadas para um pblico que variava entre trinta e duzentas pessoas e seguiram
um padro ritual. A charanga, que era como denominavam o conjunto de msicos do
grupo formado por babalorixs e ogans das casas de candombl, posicionava seu
89

atabaques, cabaas e agog em cima de um palco, ou frente da plateia quando no
havia palco, e sempre havia um equipamento de amplificao de som para o cantor, que
ficava um pouco projetado em relao aos demais msicos. Na frente da charanga, as
mulheres que nas casas de candombl eram ialorixs, ekedis e ias faziam uma roda e
danavam coreografias referenciadas no ritual do candombl.
A maioria das msicas cantadas pelo grupo tinha letra em portugus com
algumas palavras em ioruba, se referia ao toque do ijex e a marcao musical do
agog e cantava as qualidades associadas ao grupo, que eram a paz, o ser guerreiro,
a beleza, o amor, a liberdade e o no preconceito de cor. Parte das letras das
msicas era composta apenas por uma estrofe, repetida pelo grupo diversas vezes.
Tambm diversas vezes ao longo da apresentao o cantor gritava Ajai! e as
mulheres que danavam respondiam ! e levantavam as mos. E o grupo iniciava
sempre suas apresentaes com a msica Exu Mensageiro, quando era pedido que ele
abrisse caminho para o grupo e era listado o panteo dos orixs.


Exu mensageiro vai ligeiro
Abre caminho para a passagem do afox
Nosso candombl de rua com muitos anos de ax
Ogum Balogun
Od caador
Ossanhe das folhas, do ax e do amor
Nan (...), Omolu e Oxunmar
L vem o Gandhi com a beno do Orun
Filhos de Gandhi, panteo do Il Aiy
Awd
Sobe e desce ladeira
Entra em beco, sai em beco
Oy, Oxum, Ob
As mulheres de Xang
Vai buscar o seu senhor
Para ver Gandhi passar
Ogum menino vem no toque de ijex
Demonstrar nossa beleza para a deusa negra Ew
Odduw, Iemanj, com as suas foras do Olkn
Guerreiro Oxanguian, Bab Oxalufan
Filhos de Gandhi com as benes do Olrn
90


Ao final das apresentaes, era feito um canto em ioruba para Oxal, momento
em que as pessoas que danavam na roda dobravam seus joelhos e ficavam com as
cabeas voltadas para o cho. Aps esse canto, os msicos faziam um repique de
atabaques e o cantor falava palavras em ioruba e portugus pedindo paz, amor e
prosperidade. A apresentao se encerrava com todos batendo palmas, com as mulheres
da roda se levantando e com vrios gritos Ajai!. Em alguns eventos, ainda era
cantada depois uma msica de despedida, quando os msicos e danarinos faziam uma
nica roda e acenavam com as mos. E, em outros, aps a apresentao ritual do
Gandhi, a charanga cantava sambas de umbigada.
A partir desse contato inicial, percebi que os integrantes do Gandhi estruturavam
os espaos do morro e da Zona Porturia atravs com oposies que diferenciavam
sagrado e profano, povo e elite e masculino e feminino. E que o grupo era
formado por integrantes de diferentes casas de candombl, distribudas pelo subrbio e
Baixada Fluminense, e se baseava em fundamentos religiosos para se apresentar
musical e coreograficamente, colocando-se como um mediador entre os desejos deste
mundo e do mundo dos orixs. Percebi ainda que, para o grupo, as fronteiras
territoriais eram fluidas e as trocas no apenas horizontais, mas verticais, entre deuses
e humanos e mortos e vivos. E que sua rede de relaes se estendia para outros
grupos e instituies que atuavam na regio e tambm por um amplo sistema de
filiaes do candombl denominado de povo do santo.
No desenvolvimento do trabalho de campo, acompanhei as atividades do grupo
nos preparativos para o cortejo denominado de Presente de Iemanj, suas apresentaes
durante o Carnaval e as articulaes que fizeram para que esse amplo sistema de trocas
possibilitasse a propriedade definitiva e a reforma de sua sede na Rua Camerino. Por
fim, frequentei a casa de candombl de uma de suas integrantes, Me Marlene dOxum,
no Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do Governador; e conversei com dois
integrantes do grupo entre as dcadas de 1960 e 1990 sobre a origem e os
fundamentos do Gandhi, o ogan ndio o babalorix Hlio Tozan. E, atravs desse
percurso, busquei compreender como a cosmologia do candombl era socialmente
eficaz e conferia aspectos mgicos ao mito da Pequena frica.
91

Captulo 2.
A boa vizinhana da parte alta



A VALORIZAO CULTURAL DOS MORADORES TRADICIONAIS



A denominada por seus moradores de parte alta do morro era composta pela
Rua Jogo da Bola e a Ladeira Joo Homem. No primeiro fim de semana de dezembro de
2007, nela foi realizado o Projeto Mau junto com a celebrao da festa para Nossa
Senhora da Conceio, organizada pela capela da Rua Jogo da Bola. Nos trs dias do
Projeto Mau os atelis de alguns artistas foram abertos; houve quatro visitas gratuitas
pelo morro; a Fortaleza da Conceio e o Observatrio do Valongo abriram para
visitao; foram realizadas exposies coletivas de fotografia e artes plsticas na Casa
de Cultura da VOT e no Centro Cultural da Associao de Servidores da Justia Federal
SERJUS; e o documentrio Morro da Conceio... foi exibido no Observatrio.
Na manh de sbado, acompanhei o grupo de pessoas que se inscreveu para
participar da primeira visita guiada realizada por Marcelo e Antnio, cujo ponto de
encontro era um edifcio localizado no incio da Avenida Rio Branco. O grupo que se
formou foi composto por cerca de 20 pessoas, entre arquitetos, psiclogos, guias
tursticos, jornalistas e cientistas sociais, e haviam sabido do evento atravs da
divulgao de notas no jornal O Globo, no Jornal do Brasil e na Revista Veja e de e-
mails enviados por Frazo e Marcelo. Antes de a visita ser iniciada, Marcelo e Antnio
92

narraram suas verses do mito de origem do morro atravs da histria da cidade
organizada pelos urbanistas da prefeitura na publicao Morro da Conceio,, que
demarcava a ocupao dos portugueses nos morros da Conceio, de So Bento, de
Santo Antnio e do Castelo.
Depois, conduziram o grupo pela Ladeira Joo Homem, parando para conversar
com Seu Flix e no Bar do Geraldo. No topo do morro, visitaram a Fortaleza, o Palcio
Episcopal e o mirante voltado para a Igreja de Santa Rita, seguindo para a Rua Jogo da
Bola, onde pararam no Bar do Srgio e na pracinha. Foram ento para o Observatrio
do Valongo e, no muro voltado para o Morro da Providncia, comentaram sobre o
surgimento do que era considerada a primeira favela do Rio de Janeiro. E desceram
para a Pedra do Sal, onde comentaram a presena do samba na regio e a existncia do
movimento quilombola. A visita se encerrou no adro da Igreja da Prainha, com uma
visita exposio de fotografias na Casa de Cultura da VOT e a exibio de dois mapas
sobre os aterramentos da orla porturia no incio do sculo XX.
Marcelo e Antnio haviam organizado, assim, um roteiro onde foram visitados
todos os bens do morro preservados pelos rgos patrimoniais e valorizados seus
conhecimentos e sociabilidade como moradores da vizinhana da parte alta. E
tambm includos espaos e patrimnios que eram por alguns moradores negativamente
associados ao perigo, s drogas ou s moradias irregulares, como o Morro da
Providncia e o movimento quilombola. Em suas falas, no entanto, tais pessoas, espaos
e grupos foram apresentados de forma positiva, como parte das caractersticas do morro
e de uma autenticidade relacionada diversidade cultural, experincia popular e
histria negra.
A proposta inicial era que as demais visitas guiadas seguissem esse roteiro. No
entanto, a partir da segunda visita os artistas pediram aos dois que fosse priorizada a
entrada nos atelis no percurso. Havia seis atelis localizados na Ladeira Joo Homem e
dois na Rua Jogo da Bola, que durante os dias do Projeto Mau foram identificados por
faixas expostas nas fachadas. Os artistas haviam distribudo as obras pelos cmodos de
suas casas, vendendo-as com preos que variavam entre 200 e 5.000 reais. Mas os
objetos que foram mais comprados pelos visitantes tinham preos mdicos e remetiam
principalmente experincia cultural de caminhar pelo morro e procisso de Nossa
Senhora da Conceio, sendo deles um souvenir: camisetas e canecas com a logomarca
do evento, que era uma composio com placas de sinalizao de algumas vias do
morro, e caixinhas de fsforo decoradas com a imagem da santa.
93

Na tarde de sbado, as atividades do projeto foram interrompidas para a
passagem da procisso de Nossa Senhora da Conceio. A procisso estava programada
para sair s 16 horas da capela, percorrer o trecho da Rua Jogo da Bola at o Largo da
Santa, o trecho da Ladeira Joo Homem at o Bar do Geraldo, e retornar ao largo, onde
seria realizada uma missa campal em homenagem santa. Mas, um pouco antes desse
horrio, uma famlia que morava na Rua Jogo da Bola, na altura do Bar do Beto, tinha
organizado sua mudana de residncia e ocupava metade da estreita rua com um
pequeno caminho de frete onde estavam seus mveis e pertences.
Passando pela rua, ouvi ento a dona da mudana reclamar com outros
moradores que os organizadores da procisso tinham falado para ela retirar o caminho
para que a santa passasse, mas que ela tinha respondido para eles passarem por
cima. Comentei o incidente com Antnio e ele me explicou que existia na Rua Jogo da
Bola uma conveno criada por moradores antigos de que os fretes de mudana s
podiam ser realizados aos sbados. A moradora estava assim aborrecida por j estar
cumprindo com uma conveno sobre o uso do espao criada pelos mesmos que
organizavam a procisso e exigiam que ela retirasse o caminho da rua.

Enquanto isso, no interior da capela, flores enfeitavam os bancos, um coral de
jovens afinava seus instrumentos e trs andores sustentavam imagens esculpidas em
gesso de Virgem Maria, So Sebastio e Jesus Cristo. Na rua, mulheres se aglomeravam
na porta da capela, alguns homens armavam trs mesas de alumnio na calada e
senhoras distriburam as letras impressas dos cnticos que seriam entoados e velas
envoltas por copinhos de plstico, para que as chamas no fossem apagadas durante o
percurso. Acomodados em cadeiras de praia, alguns moradores idosos assistiam ao
94

movimento. E, no Bar do Srgio, localizado quase em frente capela, visitantes e
moradores conversavam e bebiam cerveja enquanto aguardavam a procisso.
Por volta das 16h30min, a moradora de mudana retirou o caminho da rua,
desobstruindo o percurso da procisso. As imagens e alguns participantes saram ento
aos poucos de dentro da capela: uma menina vestida de branco e com asas coladas nas
costas; jovens mulheres carregando o andor de Virgem Maria e trajando por cima dos
ombros um tecido azul com uma fita dourada aplicada na borda; jovens homens
carregando os andores de So Sebastio e Jesus
Cristo, trajando nos ombros um tecido vermelho
tambm com uma fita dourada aplicada na borda.
No momento em que as imagens tomaram a Rua
Jogo da Bola, outros moradores se alinharam nas
caladas e jogaram ptalas de rosas. As vestimentas
padronizadas sacralizavam as funes dos
moradores que carregavam as imagens e tambm os
distinguiam dos demais, separando duas formas dela
participar, entre devotos e pblico. Da mesma
forma, as ptalas de rosa convertiam a rua em
religioso e investido dos poderes mgicos da capela. E as imagens esculpidas
materializavam o patrimnio catlico dos moradores e mediavam suas relaes entre o
cu e a terra.
O cortejo que se formou atrs dessas imagens foi majoritariamente composto por
mulheres e crianas, demonstrando ser o espao da capela predominantemente
feminino. Alguns visitantes e jornalistas tambm acompanharam a procisso fazendo
fotos e filmagens, apreciando naquela procisso o que consideraram ser uma
manifestao cultural autntica dos moradores do morro. Ao todo, cerca de sessenta
pessoas tomaram a rua em direo ao Largo da Santa. Mas, quando a procisso dobrou a
curva da muralha da Fortaleza e entrou no largo, houve uma surpresa: o caminho de
mudana havia sido estacionado ao p do mastro da imagem de Nossa Senhora da
Conceio, impossibilitando a celebrao da missa campal. Em torno do caminho no
havia qualquer responsvel pela mudana que pudesse ser convencido de retir-lo, e
formou-se ento um clima de tenso entre os participantes da procisso.
95

Aps a procisso parar por alguns
minutos no Largo da Santa, seus
participantes seguiram para a Ladeira
Joo Homem. Chegando ao Bar do
Geraldo, encontraram vrios homens
reunidos, fazendo churrasco e portando
trofus e medalhas: eles comemoravam o
fim do campeonato de futebol entre
moradores e militares, disputado pela manh nas quadras do Exrcito. Alguns dos
homens estavam sem camisa e todos bebiam cerveja, numa imagem de extrema
informalidade que contrastava com a solenidade religiosa. Essa informalidade, no
entanto, no era, como no caso do caminho de mudanas, uma forma de confrontar os
moradores que celebravam o dia da santa, apenas a explicitao do limite espacial da
ressonncia daquela manifestao cultural na parte alta do morro.
Os participantes da procisso retornaram ento diretamente para a capela para
celebrarem a missa em seu interior, depositando os trs andores em cima das mesas de
alumnio armadas sua frente. O padre que conduziu a procisso e a missa era o que
comandava a Igreja de Santa Rita, parquia da qual a capela fazia parte. A missa teve
duas horas de durao e, durante parte dela, o padre pregou contra a devoo a outras
religies e agradeceu a Deus por no existir nenhuma igreja evanglica no morro.
Referia-se, no entanto, aos espaos construdos da parte alta, j que, na base do morro,
havia duas igrejas evanglicas e espaos dedicados aos cultos aos orixs.
Aps a celebrao da missa, o Projeto Mau organizou a apresentao de um
grupo de msicos de choro composto por alunos do Observatrio do Valongo na
calada ao lado do Bar do Srgio. De grande impacto sonoro por causa do uso de
amplificadores, essa apresentao manteve cerca de cinquenta pessoas, entre visitantes e
moradores, aglomeradas em frente ao bar. Mas, embora Srgio soubesse do projeto e da
intensificao da circulao de pessoas nesse fim de semana, no fez qualquer pedido
extra de suprimento de cervejas, que acabou rapidamente, fazendo com que o bar
encerrasse suas atividades uma hora antes do usual e os visitantes fossem embora.
Assim, a propriedade familiar do bar ajudava no controle dos usos dos espaos por sua
vizinhana em dias de maior movimento de turistas.
Durante o domingo, o movimento de visitantes do Projeto Mau foi menor,
confirmando que o maior atrativo do evento tinha sido mesmo a procisso e a percepo
96

de ser ela uma experincia cultural autntica. Mas, como atrao especial, foi exibido no
Observatrio do Valongo o documentrio Morro da Conceio..., dirigido por Cristiana
Grumbach
9
. Lanado no Rio de Janeiro em outubro de 2005, o filme valorizava a
ocupao portuguesa do morro, fosse do ponto de vista de sua arquitetura ou das
memrias de seus descendentes. E tinha se tornado um marco das narrativas dos
moradores da parte alta sobre o morro, sendo na poca de seu lanamento comercial
projetado na muralha da Fortaleza voltada para o Largo da Santa. Mas o documentrio
mobilizava opinies diversas.
A crtica mais comum que ouvi era de que ele teria sido parcial na representao
dos moradores, entrevistando apenas idosos descendentes diretos de portugueses e que
haviam nascido e morado sempre no morro, excluindo a mistura das origens
familiares que era valorizada por muitos moradores. Como havia ouvido em uma roda
de samba organizada no Bar do Geraldo: portugus mesmo, aquele que veio de
Portugal, isso no tem mais no morro desde a dcada de 1970, quando a Revoluo dos
Cravos fez com que os portugueses parassem de vir para c. Aqui j est todo mundo
misturado. E quem havia me dito a frase era Ablio, morador nascido e vivido na
Ladeira Joo Homem e pertencente a uma famlia que descendia, em parte, de
portugueses.
Alm dos efeitos sociais locais, o filme tambm produziu uma mediao entre os
espaos e moradores do morro e os da cidade. Como informado pelo site da produtora
da cineasta (www.crisisprodutivas.com) Morro da Conceio... foi lanado em uma das
salas de exibio do Unibanco Arteplex, cinema localizado no bairro de Botafogo, Zona
Sul da cidade, e permaneceu em cartaz por sete semanas. Na semana de lanamento, o
filme recebeu crticas positivas nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, na Revista Veja
Rio e em sites especializados em cinema. O filme tambm foi divulgado atravs de um
encarte em papel jornal colorido, composto por quatro pginas, que continham breves
resenhas laudatrias elaboradas por especialistas da antropologia, comunicao, da
educao, da psicanlise, do cinema e do urbanismo municipal.
Assistente de direo de alguns filmes de Eduardo Coutinho
10
, Cristiana definiu
sua filmagem no morro a partir de uma metodologia que o documentarista denominava
de dispositivo: um conjunto de procedimentos formais que tendia escolha de uma

9
Publiquei uma verso ampliada da anlise do filme em captulo do livro Devires Imagticos: a
etnografia, o outro e suas imagens (Guimares, 2009a).
10
Cristiana foi assistente de direo de Eduardo Coutinho nos documentrios O Fim e o Princpio (2004),
Pees (2002/2003), Edifcio Master (2002), Babilnia 2000 (2000) e Santo Forte (1999).
97

locao nica, do formato do vdeo e da apario da equipe de filmagem durante as
entrevistas (Lins, 2004). Mas adotou um procedimento a mais, no utilizado por
Coutinho, que era a delimitao sociocultural dos entrevistados: os mais velhos, com
idades que chegam a 97 anos, nascidos no morro e filhos de portugueses, como dizia a
sinopse do filme, transcrita abaixo.

Aps 5 anos de visitas ao Morro da Conceio uma equipe de cinema filmou conversas
com apenas 8 dos cerca de 4 mil moradores os mais velhos, com idades que chegam a 97
anos, nascidos no morro e filhos de portugueses. Esses senhores e senhoras narram histrias
de suas vidas inevitavelmente atravessadas pelas histrias da cidade e do pas. A construo
desse imaginrio devolve ao Rio de Janeiro um filme que trata da sua memria e do seu
esquecimento.

Embora no tendo sido idealizado ou financiado pela prefeitura, o imaginrio
propagado por Morro da Conceio... foi compartilhado com seus urbanistas, e seus
efeitos sociais foram visveis na sua recepo pelo pblico especializado, que o
comentou atravs de criticas jornalsticas e das breves resenhas de seu material de
divulgao. Nos textos desses especialistas, muitas vezes a sutil distino entre o recorte
arbitrrio da realidade produzido pela cineasta e a diversidade sociocultural dos que
habitavam o morro no foi absorvida: o que deveria ser a representao da parte se
tornou a representao do todo, ou seja, em alguns moradores de ascendncia
portuguesa foi visto o povo e o patrimnio imaterial do Morro da Conceio.

Marco da ocupao original do Rio de Janeiro, a partir de 1565, o Morro da Conceio
compunha um quadriltero com os morros do Castelo, de Santo Antnio e de So Bento,
com construes tipicamente portuguesas. Derrubaram-se os outros morros, espiges
subiram ao redor, mas o povo e o estilo de vida da Conceio mantiveram-se (Marco
Antnio Barbosa, Jornal do Brasil, 28.10.2005).

Este filme um registro eloquente do carter notvel do Morro da Conceio, expondo seu
valor intangvel, sua colocao como patrimnio imaterial. uma iniciativa que perpetua
sentimentos, relaes, amores. Registra lembranas, nostalgia, solido, alegria. Recupera
sons matinais dos pssaros e a ave-maria vespertina. Apresenta a paisagem em luz e
sombra. Junta tempo e espao, para compreender a histria de um lugar habitado por gente,
no por personagens. E alerta para perdas. E se mesmo assim, com tanto amor, um dia, do
Morro da Conceio restar apenas uma paisagem, animada por novos usos e outros
moradores e usurios, ser possvel recuperar o patrimnio cultural vendo e ouvindo dona
98

Iria, seu Feijo, seu Joo, seu Chapu, dona Duda, dona Alzira... (Nina Rabha, material de
divulgao do filme, 2005).

O Rio de hoje h muito rompeu com o Rio de Morro da Conceio. O maior feito de
Grumbach o de capturar este ltimo antes da inevitvel queda, num carinhoso gesto de
arqueologia urbana preventiva (Amir Labaki, site do Festival Tudo Verdade, 2007).

A escolha por retratar moradores do morro relacionados ocupao portuguesa e
a presena no material de divulgao do filme de uma resenha de Nina Rabha, uma das
idealizadoras do plano urbanstico Porto do Rio, indicavam, no entanto, que as
afinidades eletivas de Cristiana com o urbanismo municipal no eram exatamente frutos
de um acaso. Em uma matria publicada no Jornal do Brasil (28.10.2005), a cineasta
narrou que havia sido apresentada aos espaos e moradores do morro no ano de 2000,
atravs de uma mediao realizada por arquitetos e urbanistas da prefeitura. Convidada
para realizar o documentrio Ns, brasileiros e portugueses, registro de um seminrio
organizado pelo IPP sobre as experincias de reabilitao de patrimnios histricos
no Brasil e em Portugal, foi atravs de uma sugesto do organizador desse evento que a
cineasta foi entrevistar um arquiteto portugus no Morro da Conceio, em contato que
a fez perceber o local como a origem da cidade.

E ele me disse: Aqui parece que estou em Lisboa!. Aquele lugar remetia origem da
cidade, do pas. E ainda mantendo as caractersticas originais. Quando se arrasa uma rea
como aquela (como aconteceu com o Morro do Castelo), arrasa-se tambm toda carga
simblica que aquelas casas e prdios tinham. A cidade foi sendo apagada em nome do
progresso. Isso sempre me incomodou.

Incomodada pela sensao de perda dessa origem da cidade, que atribua de
forma difusa ao progresso, Cristiana decidiu ento voltar ao local para documentar o
que considerou estar mais ameaado: a carga simblica contida no casario do morro.
E, para construir o contraste perceptivo em relao ao espao urbano moderno,
presentificou atravs das lembranas de oito moradores idosos a chegada de seus
antepassados portugueses ao morro, as festas comunitrias e as prticas religiosas e
recreativas transmitidas aos descendentes, os casamentos, nascimentos e mortes que
marcaram suas vidas familiares, e as transformaes fsicas e os eventos do morro e da
cidade que vivenciaram.
99

Com imagens panormicas e fixas de logradouros do morro, com durao de um
minuto cada, a cineasta delimitou alguns blocos de entrevistas. Os primeiros
logradouros retratados no filme foram a Rua Jogo da Bola e a Ladeira Joo Homem, que
compunham o que seus moradores denominavam de parte alta e o que os urbanistas
da prefeitura haviam denominado no livro Morro da Conceio de eixo cume morro e
associado ocupao portuguesa e espanhola. Em seguida, foram retratados alguns
logradouros que compunham o que os moradores denominavam de parte baixa e o
que os urbanistas denominaram de flanco norte e associaram ocupao nordestina: a
Rua Mato Grosso, a Rua do Escorrega, a Rua Eduardo Jansen, o Beco Joo Jos e o
Adro de So Francisco. E, assim como no estudo do urbanismo municipal sobre a
organizao comunitria dos moradores, os demais espaos que eram
administrativamente classificados como pertencentes ao morro foram excludos da
representao flmica, reforando o discurso que os associavam a espaos sociais e
culturais vazios.
Todos os logradouros includos foram gravados em horrios de pouco
movimento, sugerindo que no morro o tempo cotidiano era mais lento que no resto da
cidade. E a sonoplastia de suas tomadas valorizou o silncio e o canto dos passarinhos,
transmitindo a ideia de que o morro era buclico, pacato, comunitrio, como
comentado na resenha da antroploga Andra Moraes Alves publicada no material de
divulgao do filme. Esse morro idlico, no entanto, s pde ser narrativamente
construdo atravs da excluso visual, verbal e sonora de alguns espaos e suas
caractersticas, como o trfego de veculos do centro da cidade que subiam algumas das
vias, as fachadas altamente deterioradas de muitas casas, os diversos estilos musicais
escutados em alto volume nas residncias, a movimentao das crianas e de seus
familiares na entrada e sada das escolas, os bares festivamente ocupados por jovens e
demais moradores, o comrcio de sua base etc. Era a excluso desses espaos e usos que
reforava o imaginrio de que o morro era um espao harmonioso e socialmente
homogneo, sem conflitos ou diferenas socioculturais.
Dentro de sua estrutura dramtica, a introduo exps as doces lembranas
desses idosos sobre a chegada de seus antepassados portugueses ao morro e as festas
coletivas que realizavam. Quase todos os idosos foram entrevistados sozinhos e dentro
de suas casas e os trechos de seus discursos selecionados na edio do filme eram
repletos de melancolia e saudosismo, sugerindo que eles e a cidade sofriam de um
constante processo de perda de suas belezas fsicas e de seus laos sociais. No primeiro
100

dilogo do filme, era dito por Dona Iria que, neste tempo passado, moravam ali somente
portugueses e funcionrios da Marinha e que, a convivncia no morro tinha mudado
muito com a chegada da gente do Norte, reforando o discurso que opunha a
ocupao portuguesa e espanhola a uma ocupao conjuntural do morro pelos
migrantes nordestinos, como os moradores do morro haviam sido caracterizados pelos
urbanistas da prefeitura.

Cristiana: Todo mundo se conhece aqui, no Dona Iria?
Dona Iria: Ah se conhece, aqui uma famlia, ainda tem muita gente... Mas pena que j
no tem como era antigamente, agora t vindo muita gente do Norte para aqui. Mas
antigamente eram s portugueses que comandavam isso aqui. Comandavam no, que
moravam, n? Era uma unio que se voc visse... As pessoas ficavam na porta conversando
noite, a gente danava, a gente fazia roda, cantava as msicas da roda...

O giro dramtico era marcado pela quebra da suave nostalgia dos depoimentos
introdutrios, com a percepo de que a velhice era ruim se comparada juventude. No
desenvolvimento do filme, o tempo passado era ento valorizado e retratado como um
tempo harmnico e ideal. E, atravs das noes de festas, prticas religiosas e
ancestrais abordadas e editadas em bloco pela cineasta, o espectador era conduzido a
perceber naqueles idosos uma identidade compartilhada e que diria respeito a um
tempo original do morro. No desfecho do filme, a cineasta resumia sua mensagem:
havia entres esses idosos um estado de solido e de perda gradual da memria, mas que
eram passveis de serem revertidos atravs das narrativas que presentificavam tal
passado mtico.
Em janeiro, um ms depois de encerrado o Projeto Mau, conversei com dois
artistas que haviam participado do evento para tentar compreender quais eram os pontos
de conexo e de afastamento entre os moradores antigos que frequentavam o Bar do
Sergio e a Capela de Nossa Senhora da Conceio e os que se identificavam com eles,
mas deles se percebiam diferenciados. Primeiro, fui casa de Frazo na Ladeira Joo
Homem, que me recebeu na sala do primeiro andar onde estava instalado seu ateli de
gravuras. Ele tinha nascido em Copacabana e morado sempre em edifcios nesse bairro
at decidir procurar uma casa onde pudesse expandir seu ateli e, como estava com
pouco dinheiro, comeou a pesquisar em bairros fora da Zona Sul.
Sua primeira opo foi Santa Teresa, bairro da rea central da cidade onde
moravam amigos seus que tambm eram artistas e organizavam o evento Santa Teresa
101

de Portas Abertas, precursor carioca na divulgao de abertura de atelis para visitao.
Mas Frazo achou os preos das casas do bairro tambm muito altos e desistiu. Sua
segunda opo foi o Morro da Conceio, que tinha conhecido atravs do escultor
Claudio Aun, morador da Ladeira Joo Homem. Auxiliado assim por sua rede de
relaes formada atravs das artes plsticas, Frazo soube da venda da casa Villa Olivia,
que j era utilizada de forma mista como residncia e ateli. Como a propriedade estava
com toda a documentao regularizada, ele conseguiu compr-la em 1998 apresentando
uma carta de crdito de financiamento. E, dois anos depois, comeou a oferecer
workshops de gravura.
Em 2001, organizou a primeira edio do Projeto Mau, que se tornou bienal. A
proposta inicial era que o evento fosse semelhante ao que ocorria em Santa Teresa,
quando artistas residentes ou com atelis localizados no bairro expunham e vendiam
suas peas. No entanto, Frazo contou que em 2003 o projeto havia passado por uma
discusso conceitua: os artistas Paulo Dallier e Claudio Aun propuseram incluir
expositores que avaliaram atrair um pblico maior, mas que no eram moradores nem
tinham atelis no morro. Frazo se posicionou contrrio a esse modelo de evento,
chamando-o de galeria de arte, e foi o nico artista do morro que no abriu seu ateli.
Segundo Frazo, nesse ano o projeto havia sido um fracasso e, depois, todos
concordaram em fazer o evento apenas com os artistas do morro.
Opondo essas duas categorias, galeria de arte e artistas do morro, Frazo
buscava ressaltar a arbitrariedade que percebia na exposio de obras de artistas no
vinculados socialmente ao morro, afirmando que tais obras poderiam estar expostas em
qualquer outro lugar. E, assim, pensava o morro como um espao a ser valorizado por
sua autenticidade cultural, ao querer remeter os visitantes do projeto apreciao do
que nele seria nico: a produo artstica de um morador, como se sua localizao no
morro conferisse um aspecto mgico aos artefatos produzidos. E, em seu sistema de
autenticidade cultural, a manifestao que ele e a maior parte dos integrantes do projeto
consideraram mais legtima era a festa da padroeira.
Ao falar sobre o aumento do fluxo de visitantes no morro, Frazo disse que no
desejava que o local fosse invadido por curiosos e ficasse protegido da violncia e
dos marginais da cidade, apesar de considerar o prprio Projeto Mau um atrativo
turstico capaz de incentivar tambm a sua especulao imobiliria no morro. Mas, em
sua opinio, o projeto era mais cuidadoso do que outras iniciativas de tornar o morro um
espao valorizado culturalmente, dando como exemplo negativo os guias que estavam
102

cobrando para levar turistas para conhecer o morro: suas visitas eram feitas com
pressa e tratava pessoas e fachadas como um zoolgico, sem pedir autorizao aos
moradores para fazer fotografias ou circular nas vias. Em seu uso do termo turista, ele
criticava assim os visitantes que no estabeleciam vnculos com os moradores do
morro, percebendo seus espaos de forma liminar entre o pblico e o privado, e
articulava um medo difuso da figura do de fora, associando-a a criminalidade, ao
perigo e ao vcio.
E, como havia percebido durante a preparao e realizao do Projeto Mau que
existia uma resistncia da maioria de seus integrantes em fazer qualquer referncia ao
movimento quilombola e ao patrimnio negro que portavam, perguntei a opinio de
Frazo sobre a reivindicao de transformar parte da base do morro em territrio
tnico. Ele me respondeu que os moradores e espaos relacionados ao movimento
quilombola no foram includos no projeto por causa do apoio que os artistas estavam
recebendo da VOT e que, alm disso, achava que a rea reivindicada nunca havia sido
um quilombo e que a proposta do movimento era racista. Em sua opinio, os
despejos faziam parte das relaes entre inquilinos e proprietrios: sendo a VOT a
proprietria dos imveis, ela podia dispor deles da maneira que desejasse.
Frazo articulava assim algumas formas especficas de estruturar os espaos do
morro e tambm de operar com o sistema de autenticidade sobre os que nele habitavam.
Sua percepo do que era um quilombo era informada por uma ideia de passado que
utilizava o termo para se referir ao agrupamento de escravos fugidos na poca em que o
pas era colnia de Portugal. Ele no conhecia, ou no reconhecia, a interpretao dada
ao termo pela Constituio Federal de 1988, que possibilitava que grupos que se
entendessem afrodescendentes pleiteassem perante o Estado seus reconhecimentos
como comunidades remanescentes de quilombo.
A percepo de que o movimento era racista era, assim, devida a Frazo no
estruturar os espaos do morro atravs das oposies negros e brancos, pobres e
ricos e povo do santo e catlicos, como era a forma dos integrantes do
movimento quilombola. E sua compreenso da categoria, alm de no ser mediada por
uma concepo tida como histrica, e no jurdica e poltica, passava tambm por sua
experincia cotidiana como morador da parte alta do morro que se identificava com os
que dela faziam parte e pela estruturao de que seus espaos atravs de oposies
referentes s condies de moradia, entre regular e irregular e proprietrio e
inquilino.
103

Mas as prticas culturais dos moradores do morro reconhecidas como
autnticas por Frazo no eram compartilhadas por todos os artistas que haviam
participado do Projeto Mau. A pintora Helenice Dornelles, moradora de uma casa no
Largo da Santa, contou sobre sua frustrao com o novo local de moradia, que ocupava
havia apenas um ano. Helenice tinha nascido em Santa Maria, no estado do Rio Grande
do Sul, e morado durante doze anos em Nova Iorque, onde trabalhou confeccionando
bolsas e pintando quadros. Ao retornar ao Brasil, ela e seu marido construram uma casa
na Praia da Ferradura, municpio de Bzios, mas se separaram dois anos depois. Com as
expectativas de ter um espao para trabalhar, de se inserir em um movimento de atelis
e de comear novas relaes de amizade, Helenice alugou a casa no morro, que havia
conhecido atravs de seu amigo Frazo.
Mas alguns fatores a desagradaram, como achar a Zona Porturia muito
isolada do resto da cidade e as ruas do entorno sujas e abandonadas. As relaes
de vizinhana tambm haviam sido determinantes para seu descontentamento: Helenice
se queixou de que no tinha conseguido fazer amigos no morro, porque os moradores s
eram solidrios para beber cerveja e a vida cultural era desanimada. Em tom de
ironia, disse que tinha muita gente que tinha ido morar no morro por gostar da ideia de
estar inserido em uma comunidade e por achar romntico ficar conversando com
moradores antigos como Seu Ren. Mas seu desejo era se mudar logo para
Copacabana e voltar para o meio do agito, o que fez um ms depois de nossa
conversa. Helenice invertia assim os valores que eram divulgados pelo Projeto Mau,
classificando de forma negativa como isolamento e desanimao o que muitos
consideravam sinnimo de tranquilidade, e como romantismo as relaes de
vizinhana e a sociabilidade que eram percebidas como genunas e autnticas.

O MASCULINO E O FEMININO NO BAR DO SRGIO E NA CAPELA

Em novembro de 2007, logo que aluguei um quarto no apartamento de Antnio
me apresentei a Srgio, dono do bar que compunha juntamente com a capela os espaos
cotidianos de sociabilidade da Rua Jogo da Bola. Era uma tarde de 6 feira e o
estabelecimento estava com pouco movimento, tinha apenas um casal com uma criana
assistindo televiso e uma mulher no balco. Expliquei a Srgio que era pesquisadora e
que gostaria de saber algumas informaes sobre o bar e combinamos de conversar na
3 feira s 09 horas, horrio que ele escolheu por ser depois da entrega do po, quando o
104

movimento de fregueses diminua, e antes das 11 horas, quando sua me o substitua
para que ele levasse a filha escola.
Voltei na data acertada e, embora Srgio no tenha se recusado a conversar,
pediu para que eu no me alongasse nas perguntas. Ele morava na Rua Jogo da Bola e
abria o bar durante a semana das 06h30min s 23 horas e, nos fins de semana, at s 02
horas. Alm de bebidas, servia salgados durante o dia e, no perodo da noite, caldo
verde, sanduches, batata frita e pores de queijo. Eventualmente nos fins de semana,
sua me, Dona Regina, preparava um prato para almoo, como lasanha, baio de dois
e estrogonofe. O bar tinha sido alugado em 1968 por seu pai, Seu Odlio, que era de
origem espanhola. Srgio havia nascido dois anos depois, comeando a ajudar o pai no
bar a partir dos 14 anos de idade. Em seguida, havia trabalhado em uma agncia de
corretagem de contineres de navios no porto e tambm na RIOTUR. Quando o pai
morreu, em 1997, Srgio assumiu o bar com a ajuda da me e da esposa, mantendo
assim o negcio em propriedade de sua famlia.
Minha conversa com ele se desenvolveu como se fosse uma reportagem
jornalstica: eu fazia uma pergunta e ele respondia de forma breve, sem entrar em
detalhes. Dois comentrios que fez, no entanto, abordaram suas relaes de vizinhana.
Disse que, havia pouco tempo, uma moradora tinha desvirtuado e estava comeando a
estragar a vizinhana com a organizao de bailes funks no Largo da Santa, mas que
graas a Deus ela j tinha ido embora. E que era costume de sua famlia apoiar,
atravs da oferta de salgados ou dinheiro, duas festividades: a procisso no dia de Nossa
Senhora da Conceio e a festa junina da Rua Jogo da Bola, ambas organizadas por
Seu Luizinho e Dona Glorinha. Srgio demarcava assim os limites fsicos de sua
vizinhana como sendo a Rua Jogo da Bola e duas formas de interao que considerava
serem negativa e positiva: os bailes funks, correntemente associados ao imaginrio das
favelas; e o espao catlico da capela e as festas organizadas por seus mantenedores.
Poucos dias depois, presenciei um evento atpico no Bar do Srgio: em uma
noite de novembro, Marcos Portella, professor de um curso do Ateli da Imagem, escola
de fotografia situada na Urca, Zona Sul da cidade, organizou no espao uma projeo de
fotografias realizadas por seus alunos em diferentes vias do morro. Soube desta
projeo na vspera e no atravs de um dos moradores, mas de amigos fotgrafos, Ana
Luiza Abreu e Fabrcio Cavalcanti, que me enviaram um e-mail divulgando o evento.
Era, portanto, uma festividade organizada por pessoas que no moravam no morro e
105

divulgada dentro de um circuito que passava pelos vnculos sociais dos fotgrafos
expositores.
Cheguei ao bar na companhia desse casal de fotgrafos e cerca de quarenta
pessoas assistiam s fotografias que eram continuamente projetadas em um telo
pendurado em sua parede interna. Srgio, para colaborar com a projeo, havia deixado
apagadas as luzes do bar. Fui apresentada pelo casal a Portella, que me explicou que
fazia visitas fotogrficas no morro havia quatro anos e sempre parava no Bar do Srgio
para tomar uma cerveja com seus alunos. Por isso havia tido a idia de fazer ali a
exposio, denominada Conceio, eu me lembro muito bem em aluso a uma msica
interpretada pelo cantor Cauby Peixoto. Portella tambm me disse que Srgio tinha
gostado da proposta do evento, dando a entender que havia estabelecido uma relao
mais constante com o dono do bar, o que significava, portanto, que no eram quaisquer
de fora que o desagradavam: havia mediaes possveis de serem realizadas, como a
solicitao para o uso do espao do bar, mesmo que informal, e ser dele um
frequentador, ainda que ocasional.
Aps conversar com Portella, me juntei roda formada por alguns de seus
frequentadores mais assduos, que assistiam exposio de p e do lado de fora do bar.
E ouvi Marcelo e Martin dizerem, em tom jocoso, que o espao havia se tornado o
Baixo Morro da Conceio, numa referncia ao Baixo Gvea, ponto de encontro de
jovens da Zona Sul. O sentido de ironia do comentrio estava no fato de que ambos, ao
se mudarem para o morro, compartilhavam a expectativa de sarem do que
consideravam ser o estilo de vida da Zona Sul. E de estarem reconhecendo, naquele
evento, visitantes que os remetiam a esse estilo, embora nenhum dos dois tenha
explicitado quais caractersticas exatamente os faziam ter a sensao de alterao do
cotidiano do bar.
Mas, ao longo da conversa, Marcelo me falou de um acontecimento que me
ajudou a compreender melhor as distines que eles consideravam haver entre os que
eram de dentro e de fora do que entendiam ser sua vizinhana, atravs da categoria
turista. Ele contou que, durante a semana, havia oferecido junto com Seu Ren e
Martin uma palestra sobre patrimnio histrico para alunos da faculdade de turismo
da Universidade Veiga de Almeida, onde Martin lecionava. Durante a palestra, Seu
Ren havia dito em tom de brincadeira que ambos eram turistas permanentes do
morro. E percebi que o contentamento causado por essa classificao adveio da
demarcao que eles no eram de dentro, por no serem antigos, mas eram
106

considerados parte da vizinhana. Esse acontecimento confirmava ainda ser Seu Ren
um dos detentores de autoridade moral da Rua Jogo da Bola, morador antigo cuja fala
era considerada um testemunho positivo do estilo de vida do morro e que tambm podia
alterar a reputao de um morador novo entre a vizinhana.
E a gradao de percepes de pertencimento - entre ser um de dentro, um
turista permanente, um turista e um de fora - parecia ser o que os dois desejavam
ressaltar com os comentrios jocosos que faziam, diferenciando suas prprias formas de
insero no morro como moradores, categoria que associavam a uma experincia
autntica de vizinhana. Assim, ser um de dentro era diferente de ser um turista
que, embora apreciasse o morro e tivesse dele uma imagem positiva, buscava apenas
uma fruio esttica e no estabelecia vnculos sociais duradouros com seus habitantes.
A categoria de fora era a mais desvalorizada e no designava apenas quem no
morava no morro: ela se referia tanto a quem tinha do morro uma imagem negativa, que
o associava favela, ao perigo e ao vcio; quanto a moradores que eram classificados
como portadores dessas caractersticas. Ouvi duas narrativas sobre os de fora ainda
nesta noite quando Antnio, tambm opondo as ideias de morro e Zona Sul, contou
de forma parablica a vez em que uma amiga da escola de sua filha, que morava com a
me no Jardim Botnico, tinha ido brincar com ela na pracinha da Rua Jogo da Bola.
Segundo ele, era comum que as crianas da vizinhana brincassem sem a superviso
direta de um adulto, que costumavam ficar reunidos a poucos metros no Bar do Srgio.
Mas, depois de um tempo, a menina havia chegado chorando ao bar e dito a Antnio
que estava com medo porque nunca tinha ficado sem um adulto por perto. Ele ento
concluiu a histria comentando como as crianas que cresciam em apartamentos da
Zona Sul criavam inseguranas tolas.
Essa sua fala articulava assim mais uma das qualidades que era correntemente
associada Rua Jogo da Bola, que era sua segurana. Mas Antnio contou em
seguida outra histria que se referia percepo negativa que muitas pessoas de fora
tinham sobre os que moravam no morro: quando ele foi abrir um credirio nas Casas
Bahia e colocou o endereo de sua casa, o vendedor comentou Esse malandro
mesmo! Mora no Centro e numa rua chamada Jogo da Bola!. Sua histria explicitava
assim as tenses e ambiguidades que haviam na classificao do morro como um espao
de autenticidade cultural: ela podia se referir tanto a noo de segurana, como s de
perigo e vcio, mesmo que relacionada comicamente ao imaginrio do malandro.
107

E, nesse ambiente ao mesmo tempo descontrado e de demarcaes de
pertencimento de vizinhana, conversei com Seu Ren, que tambm estava em p do
lado de fora do bar observando o movimento gerado pela exposio fotogrfica.
Morador da Rua Jogo da Bola, Seu Ren era aposentado da Marinha, onde havia
trabalhado como analista de sistemas. Ele costumava jogar no bar o Jogo do Aliado,
cujo nome tinha sido uma alterao do original, que era Jogo do Oleado, termo que
designava a lona impermevel usada em navios. Ao me mostrar um tabuleiro que estava
guardado no bar e que ele mesmo havia confeccionado, me explicou que era um jogo
de embarcados e que no conhecia outras pessoas que o jogassem fora do morro ou da
Marinha. E, ao dizer brincando que Srgio no colocava no salo aquele tabuleiro
porque tinha cimes da pea, afirmou que ia fazer outro para deixar no bar, j que o
tabuleiro que permaneceu em uso j estava bem gasto.
Seu Ren ressaltava assim o que, para ele, caracterizava a particularidade da
relao dos moradores antigos do morro com o Bar do Srgio, que era a deteno do
conhecimento sobre o Jogo do Aliado e a participao em seus torneios. E me indicou
que tais moradores possuam uma importante conexo com a proximidade do morro
com a orla da Baa da Guanabara e as instalaes da Marinha, localizadas prximas ao
Per Mau; conexo essa que extrapolava seus aspectos profissionais e se constitua em
uma das formas de construo de suas subjetividades. Assim, o cime que narrou em
torno do tabuleiro do jogo no era devido apenas ao fato de ele ser considerado nico:
mas principalmente por ser um objeto mediador de suas relaes sociais, que desejavam
que ficassem conservadas e no expostas no salo, movimentando uma forma de
colocar tanto o objeto quanto a vizinhana que o utilizava fora de circulao.
No perodo de cinco meses em realizei o trabalho de campo na parte alta do
morro, fui ainda cerca de duas dezenas de vezes ao Bar do Srgio, fosse para conversar,
beber cerveja, almoar ou ver um jogo de futebol no fim de semana. Normalmente ia
durante alguma festividade ou acompanhada de um ou mais moradores nos perodos em
que o bar estava mais cheio, que eram durante a semana no incio da noite, e nos fins de
semana, tarde. Alm das vezes em que entrei no bar. Observei ento que a maioria dos
moradores que o frequentavam diariamente eram homens com idade superior a 40 anos
e que as mulheres que faziam parte das famlias desses frequentadores costumavam ir
ao bar somente quando acompanhadas de seus maridos, pais ou filhos e, principalmente,
nas festas e nos almoos de fim de semana.
108

Muitas das narrativas que escutei dos frequentadores do bar sobre os espaos do
morro e sua vizinhana indicavam o medo de uma possvel contaminao social e
moral, oposta sensao de segurana que buscavam construir. Esse medo era
entendido como uma ameaa externa ao morro e canalizada pela figura distante do
bandido e tambm pela figura dos favelados da Zona Porturia, especialmente do
Morro da Providncia, cuja proximidade fsica fazia com que fossem constantemente
citados em narrativas de distino. E esses medos expressos pelos moradores que
frequentavam o bar visavam definir regras de conduta moral para os usos dos prprios
espaos da parte alta e, principalmente, da Rua Jogo da Bola.
Entre as narrativas de perigo e vcio que ouvi, a mais corrente era sobre os
usos de alguns espaos do morro para o consumo de drogas por jovens moradores e as
tentativas frustradas de implantao de um trfico de drogas com o apoio do Comando
Vermelho, grupo que atuava no Morro da Providncia. Havia tambm um boato de que
os traficantes do Morro da Providncia estavam querendo invadir terrenos baldios da
Ladeira Joo Homem para estabelecer neles pontos de consumo de drogas e que alguns
desses terrenos estavam sendo utilizados por mendigos da regio, outro tipo de
habitante considerado indesejado.
As casas vazias e terrenos baldios da parte alta, por causa desses usos
classificados como criminosos e irregulares, eram espaos liminares e motivos
constante de preocupao e de acusaes morais. Um dos frequentadores do Bar do
Srgio me disse que vrias casas ao lado do Bar do Geraldo haviam sido ocupadas
irregularmente por parabas, unindo assim, na mesma narrativa, condies de moradia
e uma categoria acusatria sobre a procedncia dos moradores considerados
indesejados. E outro frequentador me informou que havia um sobrado na Rua Jogo da
Bola, na altura do Bar do Beto, que estava sendo utilizado como casa de cmodos e
gerando constantemente brigas e discusses.
Escutei tambm falas que indicavam haver no trecho da Rua Jogo da Bola
prximo ao Bar do Srgio e capela um grande controle social exercido por seus
moradores. Um deles me contou que presenciou a vez em que um rapaz ia passando em
frente ao bar fumando maconha e um frequentador repreendeu alto: Aqui a Jogo da
Bola, vai fumar baseado em casa!. Este mesmo controle tambm havia ocorrido em
relao inibio da construo de um barraco na pedreira acessada pela Travessa
Coronel Julio, que ligava a Rua Jogo da Bola Rua Senador Pompeu. Alguns
frequentadores do bar teriam se organizado para inibir a instalao desses moradores,
109

avisando que, se continuassem a construo, iriam derrubar a casa, o que resultou na sua
interrupo.
A prostituio era outra categoria acusatria igualmente utilizada no
estabelecimento de um rgido padro moral de conduta, que separava os espaos da
parte alta do morro entre femininos e masculinos. O cdigo moral tcito era de que
os bares eram um espao predominantemente masculino, sendo que um morador que j
tinha ouvido outro dizer explicitamente que considerava ser prostituta a mulher que
frequentava bar. Outro morador me narrou tambm que um dia estava vendo um menino
brincar na pracinha da Rua Jogo da Bola e, como ele estava fazendo muita baguna, sua
av o repreendeu dizendo que parecia que a me dele morava na Praa Mau, numa
ofensa que aludia s atividades de prostituio do local.
Durante os meses em que circulei pela Rua Jogo da Bola, observei ainda que
havia uma estreita relao de vizinhana estabelecida entre os frequentadores do Bar do
Srgio e da Capela de Nossa Senhora da Conceio. E que, atravs dessa separao e
relao, eram articuladas duas formas opostas de estruturar esses espaos, que se
unificavam na festa da padroeira: a que os dividia entre masculino e feminino. A
diviso dos espaos por gnero era, assim, como elaborado pelo antroplogo Marcel
Granet (1997), um princpio de organizao e inteligibilidade regido pelas ideias de
complementaridade e alternncia que permitia a manuteno de uma noo de
totalidade social a esses moradores.
Alm dessa diviso de gnero, as condies de moradia regular e irregular
era outra oposio articulada entre os frequentadores desses espaos da Rua Jogo da
Bola. Assim, as casas ocupadas por muitos ncleos familiares, sem vnculo de
propriedade ou no mediadas por contrato de inquilinato; os terrenos sem espao
construdo e com crescimento descontrolado da vegetao; e as casas no regularizadas
em rgos municipais e construdas com materiais de pouca durabilidade eram postos
na mesma categoria acusatria de favelizao. E tanto as divises de gnero quanto a
de condies de moradia se baseavam em um padro de moralidade que opunha a
virtude ao vcio, que aparecia atravs nas categorias de fora, favelado,
traficante e prostituta, contra o imaginrio do que deveria ser o bom morador do
morro.

OS POLTICOS E SUAS MEDIAES ENTRE DIFERENTES ESPAOS

110

Ao acompanhar a organizao de duas outras festividades coletivas na parte
alta, as diferenas e multiplicidades de formas dos moradores estruturarem seus espaos
ficaram mais explcitas. A primeira que acompanhei foi a retomada da Banda da
Conceio organizada pelo Marcos Frigideira, morador da Ladeira Joo Homem. Em
uma conversar no Bar do Geraldo, Frigideira me contou que, quando nasceu, seu pai
morava no morro e sua me em Caxias, na Baixada Fluminense. Aos cinco anos de
idade, ela ficou doente e o deixou aos cuidados do pai, que era descendente de
portugueses. De suas experincias como jovem no morro, Frigideira se lembrava com
afeto das participaes nas festas juninas e de So Cosme e Damio, nos campeonatos
de futebol, na Banda da Conceio e nas boates da Rua Sacadura Cabral. E, quando
adulto, havia trabalhado durante dez anos em uma seguradora e outros dez anos como
conferente no porto. Considerava que esse trabalho porturio tinha dado esperteza a
ele, porque o havia feito conseguir circular por qualquer lugar e cumprimentar todo
mundo, fazendo de conta que no via nada nem sabia de nada, se referindo
implicitamente s prticas classificadas como ilcitas e clandestinas.
Ao me contar que seu grande sonho era ser jogador de futebol, Frigideira me
explicou que, antigamente, os campeonatos de futebol no morro eram realizados com
o enfrentamento de dois times: o da Conceio, onde jogavam os moradores da Rua
Jogo da Bola; e o da Unio, onde jogavam os da Ladeira Joo Homem. E narrou que,
nessa poca, a tradio espanhola e portuguesa era muito mais forte no morro e os
moradores da Rua Jogo da Bola eram fechados e filhinhos de papai. Como
exemplo desse fechamento, disse que quando Odlio, pai de Srgio, comandava o bar,
no se podia nem jogar porrinha, que era a denominao comum de um jogo de
palitos organizado por rodadas de apostas e onde podiam participar vrios jogadores. E,
havia poucos anos, os moradores dessa rua no gostavam de samba nem frequentavam
os ensaios do bloco de carnaval Escravos da Mau. Mas, com o passar do tempo,
muitos desses moradores se mudaram e o pessoal de l ficou mais aberto, acabando
com a diviso que existia entre as duas vias da parte alta do morro.
Seu projeto de reorganizao da Banda da Conceio tinha como principal
referncia, portanto, a vizinhana da Ladeira Joo Homem. E, ao narrar suas
caractersticas, Frigideira a colocava em oposio vizinhana dos moradores da Rua
Jogo da Bola, se referindo especialmente ao Bar do Srgio, e articulava as noes de
aberto e fechado, popular e elite. Assim, apesar de muitos dos moradores das
duas vias da parte alta possurem ascendncia portuguesa e espanhola e se entenderem
111

como tradicionais, nem todos articulavam um discurso de vizinhana que distinguia
valorativamente os de dentro e os de fora do morro: havia os que se posicionavam
favorveis mistura, ou unio, como era denominado o time de futebol.
E essa mistura era movimentada por Frigideira nas festas e atividades coletivas
que organizava: nelas, moradores de diferentes espaos do morro e do entorno
participavam e no havia um conhecimento restrito e nem uma participao distintiva,
como o Jogo do Aliado e a procisso de Nossa Senhora da Conceio. Nas festas
juninas, campeonatos de futebol e banda de carnaval qualquer pessoa que quisesse
podia participar e era mesmo desejado que isso acontecesse; e assim estava sendo feito
na rearticulao da Banda da Conceio, que havia sido extinta na dcada de 1970 e que
Frigideira pretendia botar na rua no carnaval de 2008.
Para tanto, ele havia conseguido apoios de diversas pessoas e instituies. Para
atuarem como msicos da banda, Frigideira tinha feito um acordo com bateristas da
escola de samba Unidos da Tijuca que ensaiavam na Rua Venezuela, que aceitaram
tocar em troca de cerveja. O aluguel de um carro de som ele tinha conseguido com
Vinicius, presidente do Sindicato dos Bancrios que ia se candidatar a vereador nas
eleies de outubro. As Frigiletes, que era como ele e outros moradores do morro
chamavam duas moradoras do Valongo que costumavam ajud-lo na organizao de
festas, tinham viabilizado a confeco das camisas do bloco recolhendo contribuies
entre comerciantes da regio. E com Frazo ele tinha combinado de tratar digitalmente
algumas fotos familiares realizadas durante o desfile da banda no carnaval de 1975, para
que fossem divulgadas como imagens antigas do morro. E tambm pretendia convidar
Guenther para fazer as fotos do desfile daquele ano, sugerindo que as vendesse.
Frigideira planejava, ainda, angariar mais recursos para a banda com a organizao de
ensaios no Largo da Prainha e com de bingos e feijoadas no centro cultural da SERJUS.
E era essa circulao por diferentes espaos do morro e da cidade a que
Frigideira se referia e valorizava atravs da categoria esperteza, por ele percebida
como positiva por permitir que falasse com todo mundo, e no sendo associada,
portanto, s ideias negativas de perigo, vcio ou ilegalidade. Assim, Frigideira havia
conseguido estabelecer relaes sociais com o circuito de sambistas que atuavam no
entorno do morro; com as moradoras de um espao estigmatizado por muitos da parte
alta, que era o Valongo; e com os que valorizavam o patrimnio cultural do morro
associado aos moradores da parte alta, como era o caso de Frazo e Guenther e suas
112

atuaes como divulgadores de imagens mediadoras do tempo passado e das
manifestaes entendidas como autnticas.
Mas essa capacidade de circulao de Frigideira muitas vezes era vista com
parcimnia, principalmente porque ela inclua tambm polticos, outra categoria
correntemente utilizada por moradores da parte alta de forma acusatria e que se referia
tanto aos especialistas de rgos pblicos, quanto aos candidatos a cargos legislativos e
executivos que buscavam apoio eleitoral. Mas essa categoria tambm podia se referir a
pessoas como Frigideira, que circulavam e mediavam diferentes espaos.
Ao me explicar como havia sido o convite para a participao do candidato a
vereador na retomada da banda, Frigideira disse que Vinicius tinha patrocinado os
trofus do campeonato de futebol de 2007 e que, por isso, tinha decidido dar uma
fora a ele nas eleies. E contou que, anos atrs, havia participado da Associao de
Moradores do Morro da Conceio, mas que, com o tempo, a entidade tinha se
desarticulado. Mas pediu para no nos prolongssemos nesse assunto, me explicando
que as Frigiletes, que estavam no bar ao nosso lado, haviam feito parte da associao e
eram amigas da sua ex-mulher, a antiga presidente. Disse que as Frigiletes possuam
interesses polticos na rearticulao da banda, mas que ele estava controlando a
participao delas para no deixar que ningum pegasse carona em seu projeto.
S compreendi o que Frigideira quis dizer com interesses polticos quando
conversei com Lus, que tambm estava participando da organizao da Banda da
Conceio. Nascido no municpio de Campo Grande e militante do PT, ele havia se
mudado para a cidade do Rio de Janeiro em 1985, convidado para trabalhar no
Sindicato dos Porturios. Ao se separar da esposa, em 2000, conheceu atravs de um
amigo do porto a parte alta do morro e alugou a casa em que morava na Rua Jogo da
Bola. Mas Lus em contou que tinha se decepcionado com os polticos e considerava
que o modelo das associaes de moradores estava gasto por causa do crescente
envolvimento dos partidos, explicando que a antiga associao dos moradores do morro
tinha sido bastante atuante durante um tempo, mas que a presidente usava a entidade
para obter benefcios pessoais. E, como exemplo desse uso, contou que muitas vezes
equipes de cinema ou de comerciais de televiso iam gravar no morro e os produtores
procuravam a associao para autorizar a utilizao de locaes pblicas. Mas que o
dinheiro pago nunca era revertido para fins sociais, era repartido entre os integrantes
da associao, qualificando assim o tipo de interesse poltico a que se referia
Frigideira como a obteno de vantagens individuais atravs da representao coletiva.
113

Filho de Ablio e primo de Frigideira, Gustavo tambm se referiu, durante uma
conversa no Bar do Srgio, a uma ao da extinta associao de moradores que tinha
reprovado e que possibilitava um dimensionamento da rejeio que a figura do
poltico possua entre os moradores da parte alta. Disse que a Praa Leandro Martins,
a que todos os moradores da Rua Jogo da Bola denominavam apenas de pracinha,
tinha sido reformada atravs de uma mediao de seus integrantes. E havia sido assim
denominada para homenagear um falecido morador do morro que, segundo ele, no era
importante: mas, como sua filha tinha um contato poltico com a prefeitura, ela havia
conseguido impor o nome.
Tambm ouvi de outros moradores um boato de que essa antiga associao
tinha uma ligao com o trfico do Morro da Providncia e estaria ajudando a implant-
lo no Morro da Conceio, fala annima que era mais uma forma de controle dos
espaos do morro, mas que, diferencialmente de outras formas, unia as ideias do vcio e
do perigo a essa outra figura indesejada que era a dos polticos. E por causa dessa
forma negativa de perceber a atuao dos polticos no morro, Lus, Marcelo e Frazo,
que estavam participando das reunies de retomada da Banda da Conceio no final de
2007, desistiram de sua organizao ao saberem que Frigideira queria receber o
patrocnio do candidato a vereador e colocar o nome dele na camiseta da banda. A
banda, no entanto, foi organizada e voltou a ser mais uma das festividades associada ao
passado carnavalesco dos moradores da Ladeira Joo Homem, se apresentando em
outras atividades locais que no apenas o carnaval.
O assunto da participao de polticos era, portanto, constante entre a
vizinhana de moradores da parte alta do morro e observei mais um evento onde sua
figura foi posta em movimento para estruturar as oposies de seus espaos. Ainda em
dezembro, durante a abertura da exposio fotogrfica do Projeto Mau na Casa de
Cultura da VOT, Frazo havia me apresentado ao professor de histria da arte Rafael
Cardoso, morador de um sobrado na Rua Jogo da Bola. Ele havia se tornado assunto
entre os artistas plsticos do morro por ter ganhado um apoio financeiro do IPHAN de
100 mil reais ao ser selecionado no edital pblico Projeto Arte e Patrimnio com a
proposta de realizao, durante o segundo final de semana de abril, de intervenes de
arte contempornea no morro. Seu projeto havia sido encaminhado pela galeria de arte
A Gentil Carioca, localizada na Praa Tiradentes, e tinha sido selecionado junto com
mais outros nove distribudos pelo pas.
114

O projeto previa um nmero limitado de trabalhos a serem expostos e uma
curadoria, no estando assim todos os artistas do morro automaticamente aceitos, o
que suspendia o sistema de autenticidade entre moradia e artefato cultural que os
integrantes do Projeto Mau articulavam. Na proposta de Rafael, foi idealizada a
realizao de dezoito intervenes nos espaos do morro, divididas por trs categorias
de produtores: seis artistas novos, seis artistas consagrados e outros seis artistas do
morro. Essa forma de classificao estava, assim, voltada principalmente para as
formas de estruturao do prprio circuito das artes plsticas ao qual Rafael pertencia;
sendo que a categoria artistas do morro era uma mediao entre esse circuito de artes
plsticas e a noo de patrimnio do IPHAN, que articulava valores associados s ideias
de comunidade e popular desde a inflexo de suas prticas polticas na virada da
dcada de 1980.
No ms de maro soube atravs da lista de e-mails do Projeto Mau que Rafael
realizaria uma reunio com moradores no salo da capela da Rua Jogo da Bola, com o
objetivo de expor as concepes do evento e sua programao oficial e tambm de
conseguir adeses para sua programao extraoficial. Todos os participantes da reunio
se distriburam pelos bancos do salo, formando um crculo irregular. Alm de mim,
tinham ido tambm dois artistas novos; trs artistas que possuam um ateli coletivo
no andar trreo do sobrado do Rafael e que conheci somente nesse dia; dois artistas do
Projeto Mau, Renato Santana e Frazo; e os moradores Frigideira, Mrio, Gustavo,
Ablio e Simone, filha de Seu Ren. Soube ento que na categoria artistas do morro
Rafael havia proposto a incluso dessa coletividade que utilizava o andar trreo de seu
sobrado como ateli de arte contempornea, mas no costumava frequentar os bares
da parte alta. Assim, na programao oficial do evento, haviam sido includos quatro
artistas ligados a esse ateli e, do Projeto Mau, apenas os dois que compareceram
reunio.
Rafael iniciou a reunio dizendo que morava no morro havia oito anos e nunca
tinha proposto desenvolver nenhuma ao junto sua comunidade. Mas, ao saber do
edital do IPHAN, se inscreveu por considerar que o instituto no costumava investir nos
bens que havia tombado no morro. E, comparando-o com Santa Teresa, disse achar que
a arte, mais que o turismo, podia trazer dinheiro para o morro, porque ele tinha
vocao para a cultura mais do que para a festa. Rafael movimentava assim, em
sua fala inicial, alguns valores e figuras prprias dos moradores da parte alta: a
valorizao dos pedidos informais de autorizao para atuar junto comunidade do
115

morro; a insatisfao com a atuao patrimonial do IPHAN, considerada punitiva e no
investidora; e a crtica valorizao turstica e a produo de festas para um pblico
numeroso.
Entre as instituies do morro, apoiavam o projeto o Observatrio do Valongo e
a VOT, que iam comportar algumas das obras em seus espaos, e a Fortaleza, que
abriria para visitao. Mas a maioria das obras estaria distribuda pelo Largo da Santa e
pela Pedra do Sal, pois o projeto pretendia privilegiar o uso dos espaos considerados
pblicos, em detrimento dos privados. Rafael ento conclamou a participao da
comunidade: banda, bloco, pipoqueiro, cerveja no bar... e dos artistas do morro que
no haviam entrado na programao oficial, explicando que, embora no pudesse incluir
esta participao no oramento do projeto, elas seriam divulgadas na imprensa. Assim,
seu projeto propunha uma mediao entre diferentes espaos do morro e buscava ser
legitimado pela participao da comunidade, que ele associava no apenas s
manifestaes tidas como populares, como tambm noo de rua.
Aps as explicaes de Rafael sobre o projeto, Ablio foi o primeiro a falar. E,
compreendendo-o como um representante do IPHAN, reclamou do lixo e do entulho
que estavam sendo depositados por comerciantes na Rua Major Daemon, perguntando
se o projeto podia ajudar a resolver o problema. Tambm se queixou de terem retirado o
ponto do jogo do bicho que ficava na base da Ladeira Joo Homem, porque ele
assegurava que ningum usasse a via para depositar lixo, e dos caramujos africanos que
haviam se proliferado no entorno da Fortaleza. Ao responder, Rafael se comprometeu a
abordar essas questes em uma reunio que teria com a secretaria municipal de
urbanismo, mantendo fluidas as distines entre poderes pblicos e privados e se
posicionando como um mediador com polticos, assumindo com isso a proximidade
com uma das figuras mais desvalorizadas entre os moradores da parte alta do morro.
Mrio perguntou, em seguida, qual era o posicionamento de Rafael em relao
possibilidade de projetos como o dele acelerarem a mudana dos moradores do morro
que, em sua opinio, j estaria ocorrendo desde a divulgao das propostas de
revitalizao urbana da Zona Porturia. Mas, antes que ele respondesse, Ablio
interveio, falando que muitos moradores gostavam do movimento que era gerado pela
mdia e que muitos no gostavam, no havendo, portanto, uma nica posio sobre tais
projetos. O dilogo entre os dois confrontava assim as oposies de dentro e de fora
e misturado e puro que eram movimentados na Rua Jogo da Bola e na Ladeira Joo
116

Homem, fazendo com que o tema da revitalizao urbana da regio fosse apenas mais
um catalisador das estruturaes dos espaos do morro existentes.
No incio de abril, encontrei com Rafael em sua casa e, logo no incio da
conversa, ele me disse que estava achando divertido ter se tornado um objeto de
estudo, demonstrando assim ter um bom conhecimento sobre o trabalho antropolgico
e, consequentemente, sobre a narrativa que ele prprio estava produzindo. Rafael tinha
nascido em Copacabana e, quando se casou, foi morar no bairro de Laranjeiras. Doze
anos depois se separou e comprou a casa no morro, em um momento em que disse estar
reavaliando sua vida. Antes de se mudar, j frequentava eventualmente o Bar do Srgio
e costumava perguntar a ele se havia alguma casa para vender.
Em 1998, soube que Marco Aurlio estava vendendo sua casa e, em uma visita,
viu que o imvel estava mal conservado interna e externamente. O andar de baixo era
alugado para a Marinha e, segundo ele, durante alguns perodos chegava a acomodar at
vinte marinheiros, se constituindo em uma cabea de porco. Ao comprar a casa,
passou dois anos refazendo o cho e a fachada, em uma reforma que triplicou seu
investimento inicial: a casa havia sido comprada por 50 mil reais e, nas obras, ele
calculou ter gasto cerca de 100 mil reais. Mas, em sua percepo, tinha sido
principalmente a reforma da fachada que havia feito com que ele fosse bem aceito pelos
vizinhos. A histria de aceitao de Rafael na vizinhana da Rua Jogo da Bola
operava assim com suas oposies estruturais relacionadas s condies de moradia:
pois, alm de proprietrio, ele havia transformado uma casa associada a uma forma de
habitar classificada como favelizada em um espao regular.
Com o incio dos preparativos para a implantao do projeto do IPHAN, Rafael
disse ter conhecido outros espaos e habitantes do morro com os quais, durante seus dez
anos de moradia, ele no havia interagido: a Fortaleza, os dirigentes da VOT e alguns
moradores do trecho da Rua Argemiro Bulco que ficava no topo da Pedra do Sal.
Perguntei se ele havia procurado tambm os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal,
mas Rafael disse que no sabia do conflito habitacional com a VOT e achava que o
quilombo que existia ali era uma coisa meio folclrica, se referindo s festividades
que realizavam com rodas de samba. E, para participar da programao extraoficial do
evento, disse que tinha conseguido a adeso da Banda da Conceio, dos artistas do
Projeto Mau e de uma rdio amadora organizada por no eram moradores do morro.
S havia tido problema com o Observatrio Valongo, que desistiu de apoiar o evento
devido a um desentendimento entre sua direo e um artista que ia expor no jardim.
117

Sua circulao por diferentes espaos do morro e a mediao que seu evento
estava propondo realizar entre tantos patrimnios, no entanto, no passou despercebida
pelos mecanismos de controle da vizinhana. Rafael me contou que um morador da
Rua Jogo da Bola havia perguntado se ele pretendia, depois do projeto, se candidatar a
algum cargo poltico. Essa percepo de que ele estava atuando como um poltico
tambm havia sido manifestada quando Rafael, para divulgar a reunio no salo da
capela, havia colado cerca de quarenta cartazes nos postes na Rua Jogo da Bola: cinco
haviam sido retirados e alguns pichados a caneta com o nmero 171. Esse nmero era
uma referncia ao artigo do cdigo penal que definia o delito do estelionato, que pelo
senso comum era associado figura do trambiqueiro, do que desejava tirar vantagem
econmica prejudicando outra pessoa atravs de algum artifcio. E, como tinha as
narrativas sobre a retomada da Banda da Conceio haviam demonstrado, as definies
do poltico e do malandro eram muito prximas entre os moradores da parte alta do
morro, sendo a categoria do trambiqueiro uma forma de gradao entre elas.
Rafael, no entanto, no sabia quem o estava acusando de agir de m f, mas
cogitou algumas possibilidades, todas elas referentes s formas como essa parte da
vizinhana estruturava os espaos do morro. Em sua opinio, podiam ser pessoas que
no queriam que fosse realizado no morro nada ligado ao poder pblico e reagiram
logomarca do IPHAN que havia no cartaz; podiam ser pessoas que associavam arte a
coisa de viado; ou podia ser algum integrante aborrecido do Projeto Mau, mas
achava essa terceira opo a menos provvel. Assim, ele explicitava que havia uma
resistncia s iniciativas do poder pblico que fazia com que a vizinhana da parte
alta percebesse negativamente os moradores que se envolviam com polticos.
Tambm indicava que essa mesma vizinhana se sentia confrontada por variaes de
seus rgidos papis de gnero e que, assim como alguns moradores podiam considerar
prostituta uma mulher que frequentava bar, podiam tambm considerar viado um
homem que organizava evento artstico. Por fim, a subverso da noo articulada por
integrantes do Projeto Mau do que era um artista do morro tambm podia ter gerado
descontentamento, embora, no cdigo moral local, fosse a menos ofensiva.
Logo depois de nossa conversa, Rafael me enviou por e-mail o release do evento
encaminhado aos jornais, onde o projeto era apresentado como um revitalizador do
Morro da Conceio e o associava tradio cultural de Montmartre. Conhecido por
seu estilo de vida bomio, esse bairro parisiense era recorrentemente aludido em
matrias jornalsticas e tursticas aos bairros da Lapa e de Santa Teresa, ambos
118

localizados na rea central da cidade, por causa da localizao de atelis de artistas e da
movimentao dos bares. E com a divulgao do plano Porto do Rio o morro estava
sendo propagado por alguns jornalistas e tambm pelos urbanistas da prefeitura como a
nova Montmarte carioca. E era com esse imaginrio que Rafael dialogava ao enviar
sua divulgao do evento para o conjunto dos habitantes da cidade.
Acompanhei os dois dias do evento e percebi que, entre as dezoito intervenes
artsticas que haviam sido montadas, algumas no possuam apenas propostas
plsticas: elas tambm articulavam um discurso sobre o morro e a Zona Porturia. Essas
instalaes estavam distribudas por diversos espaos do morro e propunham um
confronto entre imaginrios difundidos pela geografia moral da cidade, pelos urbanistas
da prefeitura e pelos diversos habitantes do morro. No espao que era o centro de
irradiao simblica do patrimnio portugus e espanhol do morro, que era o Largo da
Santa, as duas nicas intervenes artsticas realizadas tiveram uma preocupao
plstica, no propondo qualquer confronto de imaginrios sobre o morro.
Mas em dois espaos perifricos
da parte alta, que eram a Rua Major
Daemon, correlata a ela por sua conexo
com o Largo da Santa, e o Observatrio
do Valongo, correlato por sua relao
com os frequentadores do Bar do Srgio,
foram montadas intervenes que
dialogavam com os diferentes imaginrios
sobre o morro. Na Rua Major Daemon, um artista pintou os escombros de um sobrado
que havia desabado com a ajuda de uma grua e um jato de tinta, espalhando uma grossa
camada de purpurina dourada sobre as runas. Ele valorizava, assim, outra caracterstica
do morro considerada problemtica pelos moradores da parte alta, que eram os
desabamentos das edificaes sem conservao fsica, que os remetia ao imaginrio da
favelizao.
Em frente ao porto do Observatrio do Valongo, havia sido instalado um
grande letreiro luminoso com o dizer Feliz Ano Novo, em uma referncia aos letreiros
usualmente colocados pelo trfico de drogas nos topos dos morros. Assim, a obra
expunha uma compreenso do espao a partir da geografia moral da cidade, s que
positivando o que para muitos moradores era um de seus principais incmodos: a
possibilidade de sua percepo como uma favela. E estabelecia ainda uma
119

comunicao com os moradores do Morro da Providncia, que ficava na direo para
onde o letreiro estava voltado e era o espao mais negativado pelos moradores da parte
alta.
Na base do morro, distribudas pelo Adro de So Francisco e na Pedra do Sal, foi
realizada a maior parte das intervenes que dialogava com seus imaginrios. No adro,
foi montada uma instalao composta por um feixe de linhas vermelhas amarradas na
janela de uma de suas casas e que atravessava o acesso da escadaria, deslizava sobre o
muro, at alcanar um poste na Rua Sacadura Cabral. No alto desse poste, as linhas
foram atadas e suas pontas dispostas, uma parte sobre a calada de paraleleppedos e,
outra parte, sobre o asfalto. O acmulo de linhas no cho remetia visualmente a uma
poa de sangue e ideia da cena de um crime, em uma analogia violncia que a
geografia moral da cidade percebia na Zona Porturia.
Na noite de sbado, uma artista
tambm realizou no adro uma interveno
em que caminhava calada e
pausadamente vestida com um camisolo
branco e segurando em uma das mos um
lenol e, na outra, uma lamparina acesa.
Enquanto andava, algumas pessoas que
visitavam o morro a seguiram com ar
solene e religioso. Assim percorreram um trecho da Rua Jogo da Bola, a Rua Mato
Grosso e a Rua do Escorrega, at chegarem Rua Sacadura Cabral, por onde subiram a
escadaria do adro. Na frente da Igreja da Prainha, que estava com sua porta principal
coberta por um vu composto de retalhos de plstico branco, a artista depositou a
lamparina e o lenol sobre seu beiral, deitou-se e dormiu. O conjunto da cena composta
remeteu a duas imagens: os solenes cortejos catlicos e os mendigos que dormiam nas
portas das igrejas, provocando um choque entre imaginrios positivos e negativos.
J no interior de uma das casas do adro, Frazo exps um painel composto por
120 fotos de rostos em close de usurios do morro. Seu impacto visual advinha do
conjunto e das distores na proporo dos rostos, causadas pela extrema proximidade
do fotgrafo no momento do clique e do uso de uma lente grande angular. Em frente ao
painel, ele disps algumas cadeiras para que as pessoas pudessem contemplar as faces e,
durante o evento, registrou os depoimentos dos retratados com uma cmera, fazendo
perguntas breves, como nome, profisso, idade e o que tinham achado de sua
120

interveno artstica. Sua exposio buscava enfatizar a proximidade que ele tinha com
as pessoas retratadas e valorizava, assim, os artistas que moravam no morro e os
vnculos sociais estabelecidos com sua vizinhana.
Na Pedra do Sal, um artista
montou uma instalao sonora
composta por uma caixa de som que
reproduzia o barulho do mar, em uma
aluso poca anterior ao aterramento da
Zona Porturia, quando as ondas batiam
diretamente na pedra. Outra referncia ao
planejamento urbano da cidade foi a
instalao onde um artista distribuiu velas de citronela dentro de copos de vidro pela
pedra, dizendo ser uma ao para espantar a dengue: assim ele props uma
abordagem irnica a um dos problemas sanitrios mais graves do morro e tambm da
cidade, ao mesmo tempo em que se referia ao espao dos despachos do candombl.
Ainda na pedra, outro artista conectou mangueiras azuis e vermelhas a bicas de quatro
casas da subida da Rua Argemiro Bulco e as espalhou pelo cho. Ao fim da tarde de
sbado, essas mangueiras jorraram gua, produzindo uma lavagem da pedra que se
referia simbolicamente s oferendas aos orixs e valorizava tambm as prticas
relacionadas ao candombl.
E outro artista disps duas mesinhas de madeira no Largo Joo da Baiana com
uma maquete, um pequeno equipamento de som com fones e alguns encartes impressos.
A maquete simulava a demolio do altssimo prdio da CEDAE, ao que
possibilitaria a abertura da viso da Pedra do Sal. Denominou sua instalao de
tombamento, produzindo assim uma ironia com a noo, que podia designar tanto a
preservao de um patrimnio como a demolio de uma edificao. Nos fones, os
visitantes podiam ouvir alguns sambas antigos, fazendo referncia ao uso do espao por
sambistas e, nos encartes, era mostrada a rvore genealgica das afiliaes de santo
de antigos frequentadores da pedra ligados ao candombl, como Tia Ciata e Joo Alab.
Todas as intervenes se referiam, assim, ao patrimnio negro do morro que estava
sendo reivindicado de territorializao pelo movimento do Quilombo da Pedra do Sal, o
qual diversos moradores da parte alta do morro no reconheciam como tnico, mas
como composto por invasores ou moradores irregulares.
121

Na programao extraoficial do evento, pequenos cartazes foram afixados nos
postes da Rua Jogo da Bola divulgando a festa da radio amadora que se denominava La
Rica e que ocorreu domingo na pracinha. O nome da festa, ampliado e colado no poste,
estampava com ar festivo um dos principais desconfortos entre muitos dos que
moravam na parte alta do morro, que era a associao do local ao consumo e trfico de
drogas: pois larica era uma das grias mais conhecidas entre os jovens da cidade que
fumavam maconha. J no Largo da Santa, houve a apresentao da Banda da Conceio
na noite de sbado e, na Fortaleza, foi montada a exposio Casa de Armas, indicando
que o Exrcito havia decidido participar do evento valorizando sua prpria ocupao
dos espaos do morro e no apenas abrindo-a para visitao. Assim tambm fez a VOT,
que montou na Casa de Cultura uma exposio sobre sua histria e os projetos sociais
que desenvolvia no morro.
Mas houve tambm um posicionamento explicitamente dissonante em relao ao
evento, que proferiu claramente um discurso contrrio utilizao dos espaos do
morro por projetos classificados como culturais ou tursticos. Gustavo montou uma
exposio em frente sua casa, pendurando trs painis fotogrficos na porta e armando
um projetor de filmes em cima de uma mesa de alumnio que exibia outras fotografias
na parede. Embora as imagens no emitissem qualquer mensagem contestatria, seu
posicionamento o fazia: ele no havia combinado sua participao no evento com
Rafael, e me disse que, como estava utilizando a sua casa, no precisava pedir qualquer
permisso, questionando, portanto, a autoridade do curador. Falou ento que achava
que os moradores tinham que pensar melhor sobre os projetos que usavam os espaos
do morro e suas histrias e comear a ganhar alguma coisa com esse tipo de exposio,
se referindo a algum tipo de pagamento ou reconhecimento de autoria. Articulou, assim,
uma avaliao desses projetos prxima noo negativa da malandragem.

OS ESPAOS DA REPUTAO E DOS PROJETOS TURSTICOS

Quando iniciei o trabalho de campo na parte alta do morro, o espao estava
sendo valorizado pelos urbanistas da prefeitura e divulgado por matrias jornalsticas,
que difundia a percepo de que nele habitavam moradores tradicionais que eram
descendentes de portugueses e espanhis. Ao longo da convivncia cotidiana nos
bares e festas deste espao, percebi que esse patrimnio no passava pelas concepes
jurdicas ou polticas do termo, no havendo qualquer legislao que a certificasse ou
122

tornasse smbolo da cidade ou da nao. E que tampouco havia uma referncia explcita
na fala dos moradores a uma identidade construda em torno dessas origens, mesmo
daqueles que possuam ascendncia portuguesa e espanhola. Eram, assim, diversas as
maneiras que os moradores possuam de estruturar os espaos da parte alta e do
conjunto do morro, variveis tambm de acordo com a perspectiva de observao e
pertencimento do morador, fazendo com que o prprio imaginrio do que era esse
morador fosse continuamente deslocado, refeito, suspenso, negado ou confirmado.
O que encontrei como uma caracterstica constante em diferentes narrativas e
prticas vinculadas parte alta do morro foi uma noo de vizinhana construda a
partir principalmente da reputao, como conceituado pelo antroplogo Frederik
Bailey (1971): como um princpio formado pelo grau e intensidade da interao de cada
indivduo na vida coletiva dos moradores, tanto em grupos de interesses quanto em
conflitos locais. Assim, quanto maior era o nvel de interao, mas importante era sua
reputao na vizinhana, o que no tinha qualquer relao direta com as qualidades
positivas ou negativas que esse indivduo possua, mas sim com o que os outros
pensavam dele e informavam sobre ele. As demarcaes de proximidades e distncias
sociais que os moradores da parte alta produziam, portanto, sempre confirmavam a
existncia de relaes sociais, fossem elas de maior ou menor intensidade.
Assim, atravs da definio da boa vizinhana se operavam as distines
morais dos espaos e prticas. No caso dos frequentadores do Bar do Sergio e da capela,
os espaos eram estruturados a partir das oposies vcio e virtude e perigoso e
seguro, delimitando fronteiras que diferenciavam gradativamente os habitantes que
eram de dentro e de fora do morro e os espaos que eram masculinos e
femininos. Mas, quando essa distino era construda por moradores referenciados no
Bar do Geraldo, essa forma de estruturar os espaos do morro operava principalmente as
oposies misturado e puro e aberto e fechado. E a partir das narrativas de
reputao que eram movimentadas na parte alta e que incluam recorrentemente s
figuras do turista, do poltico, do traficante, da prostituta, do invasor e do
malandro, fossem essas categorias ditas de forma positiva ou negativa, percebi que
havia muitas conexes entre esse espao do morro e outros espaos do prprio morro e
da Zona Porturia.
Mais conexes do que os urbanistas da prefeitura que idealizavam sua
renovao apresentaram na classificao da organizao comunitria dos moradores
do morro que, esquemtica e ideologicamente, os dividiu em descendentes de
123

portugueses e espanhis com vnculo afetivo; nordestinos com uma relao
conjuntural com o espao; e comerciantes que no frequentavam seus espaos. A
representao do morro que os urbanistas da prefeitura haviam apresentado ao conjunto
da populao da cidade e que afirmava que seus moradores antigos eram associados
ocupao portuguesa e espanhola da parte alta produzia, assim, uma srie de
apagamentos de conflitos, tenses e de outras formas de estruturar no apenas dos
mltiplos espaos do morro como dessa prpria parte alta. Pois o Morro da Conceio
era vivenciado, mesmo por aqueles que estavam habitando seus imveis mais
valorizados turstica e economicamente, como uma experincia sempre limtrofe: uma
experincia carregada de ambivalncia, que podia se referir tanto a uma noo positiva
de moradia, associada autenticidade cultural e a intimidade social; quanto a uma noo
negativa, ligada decadncia, perigo e vcio.
Assim, contrastando o discurso dos urbanistas da prefeitura a partir das
observaes que realizei durante o trabalho de campo, conclu que o proclamado
patrimnio cultural do Morro da Conceio dizia mais respeito aos desejos de
interveno desses prprios urbanistas do que a uma suposta coletividade de moradores
compreendida de forma totalizante, harmnica e coesa. E que, se no morro os
descendentes de portugueses e espanhis foram eleitos para serem preservados em
suas moradias, foi para que se tornasse legtima a modificao que esses urbanistas
desejavam fazer de todos os demais classificados como moradores inautnticos.
Essa eleio do Morro da Conceio como setor prioritrio de implantao de
polticas de revitalizao urbana da Zona Porturia era ainda sustentada por diversos
mediadores: os urbanistas de outros pases que exportavam projetos e mtodos de
gesto urbana; os agentes locais de turismo, que difundiam as atraes da cidade e suas
identidades culturais; os agentes imobilirios, que valorizavam os imveis onde havia
projetos associados preservao de stios histricos; e os cineastas, crticos de jornais
e especialistas do patrimnio que compartilhavam das sensibilidades desses gestores na
procura de uma cultura popular tida como genuna e retoricamente percebida como
ameaada de extino. E era essa rede de relaes que movimentava e presentificava
determinadas narrativas de tradio e passado, inserindo-as em uma lgica do mercado
inerente aos processos de patrimonializao de bens culturais.
Pois a divulgao dos projetos do Porto do Rio promovia no Morro da
Conceio uma juno entre preservao de stio histrico, valorizao imobiliria e
desenvolvimento turstico. Mas, para que a revitalizao urbana fosse potencializada
124

era necessrio que seu patrimnio representasse uma cultura autntica, j que a
noo de turismo era vinculada construo de complexos exibicionrios da
diversidade cultural, constituindo-se em uma indstria particular dentro da indstria
cultural. Pois, como apontado por diversos pesquisadores, todo projeto turstico buscava
oferecer uma experincia diferente da que a pessoa vivenciava em seu cotidiano,
experincia que podia estar ancorada nas noes de passado histrico, de culturas
populares, regionais e primitivas ou mesmo de culturas empresariais, mtodos
produtivos e aventuras em paisagens naturais (Gonalves, 2007a; Kirshenblatt-
Gimblett, 1998; MacCannel, 1976). E, no Morro da Conceio, a cultura no apenas
eleita como autntica, mas discursivamente construda como uma totalidade, foi a dos
denominados descendentes de portugueses e espanhis.
125

Captulo 3.
O esprito quilombola da Pedra do Sal



OS MEDIADORES DO QUILOMBO DA PEDRA DO SAL

Em outubro de 2007, o processo de titulao do Quilombo da Pedra do Sal
que concederia a propriedade definitiva do territrio tnico pleiteado pelos
integrantes do grupo, estava no auge de sua projeo pblica, sendo discutida em
diferentes jornais e revistas de circulao nacional. Na internet, encontrei textos que
haviam divulgado desde o incio o conflito habitacional vivido entre os moradores que
formaram esse quilombo e a Venervel Ordem Terceira de So Francisco da
Penitncia - VOT.
A iniciativa de procurar a imprensa havia partido dos prprios integrantes do
movimento quilombola que, logo aps sua certificao pela Fundao Cultural
Palmares, em dezembro de 2005, enviaram uma nota para ONGs que divulgavam
conflitos envolvendo os temas do direito moradia e de afirmao tnica, como o
site do Observatrio Quilombola da ONG Koinonia (www.koinonia.org.br). No texto
ento redigido pela jornalista Lgia Coelho, a VOT era acusada de ter despejado 30
famlias da comunidade da Pedra do Sal com a inteno de valorizar seus imveis
aps o anncio do projeto da prefeitura de revitalizao da Zona Porturia. Assim,
todos os moradores despejados ou realocados pela VOT eram reunidos na noo de
comunidade, sugerindo que possuam a mesma forma de estruturar seus espaos e se
relacionarem com a entidade catlica.
Era tambm informado que o territrio quilombola era composto por toda a base
do Morro da Conceio margeada pela Rua Sacadura Cabral. A defesa do pleito
articulada pelo grupo abordava uma noo jurdica de patrimnio, ao dizer que o
territrio reivindicado era sua herana porque havia sido criado a partir de um aterro
realizado por escravos e assalariados durante as obras de construo do cais do
porto no incio do sculo XIX. O grupo, portanto, se apresentava como herdeiros de
escravos e assalariados, estruturando os espaos pleiteados a partir das oposies
com escravos e libertos e a povo e elite.
126

Mas o conflito ganhou projeo miditica apenas um ano depois, quando o
INCRA constituiu uma equipe para elaborar o relatrio antropolgico de caracterizao
histrica, econmica e sociocultural do territrio. Em matria assinada e divulgada em
fevereiro de 2007 pelo site do Boletim Quilombola da COHRE (www.cohre.org), o
pleito tnico era descrito enfatizando no mais os aspectos jurdicos, mas as origens
do grupo de moradores e as prticas culturais desenvolvidas no territrio: os moradores
eram caracterizados como composto por famlias de descendentes de negros
escravizados oriundos da Bahia e da frica; e o espao como de sociabilidade para
prtica de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira. E, aps a categoria
comunidade ser associada ideia de cultura popular, o mito da Pequena frica era
presentificado para demarcar o bairro da Sade como o espao do comrcio de escravos
durante os sculos XVIII e XIX e da convergncia de negros como efeito do bota
abaixo de Pereira Passos no incio do sculo XX.

Situado ao p do Morro da Conceio, no bairro da Sade prximo Praa Mau, o
Quilombo da Pedra do Sal formado por famlias descendentes de negros escravizados,
oriundos da Bahia e da frica. O bairro da Sade reunia toda infraestrutura do comrcio de
escravos durante os sculos XVIII e XIX. Aps o perodo escravista, os negros continuaram
vinculados ao local prximo ao porto do Rio de Janeiro. A rea foi apropriada como espao
de sociabilidade para prtica de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira. A
cultura popular carioca floresceu em torno da Pedra do Sal e sambistas tradicionais
buscavam inspirao na comunidade. Alm de Donga, Pixinguinha e Joo da Baiana,
Machado de Assis tambm viveu no bairro. O terreno estava localizado beira mar e
recebeu esta denominao por ser o ponto de desembarque do sal comercializado no
mercado da capital. Nessa mesma zona porturia foi formada a Pequena frica no Brasil,
rea de convergncia de negros que fugiam do bota abaixo, programa de reforma urbana
implantado por Pereira Passos nas primeiras dcadas do sculo XX.

Em maio, uma matria assinada pelo jornalista Oscar Henrique Cardoso e
publicada no site da Fundao Cultural Palmares, www.palmares.gov.br, oferecia um
resumo de uma entrevista concedida no dia anterior pelo presidente da entidade, Zulu
Arajo, ao Jornal Nacional da Rede Globo de Televiso. O texto destacava que a
comunidade quilombola da Pedra do Sal era realmente remanescente de quilombo e
sugeria que a autenticidade da reivindicao do grupo estava sendo questionada pelos
jornalistas e pela VOT. Segundo a defesa de Zulu, o processo de tombamento da Pedra
do Sal como monumento histrico e religioso afro-brasileiro pelo INEPAC tinha sido
127

a primeira certificao concedida ao grupo: ele argumentava assim que a
territorializao desse quilombo era decorrente do reconhecimento de um smbolo
cultural que havia sido criado para representar, de forma difusa, a figura do
afrodescendente articulada pelo mito da Pequena frica.



Ainda em maio, o Jornal Nacional replicou esta entrevista, caracterizando os
130 imveis que haviam entrado no pedido de titulao territorial como pertencentes
VOT e localizados em torno da igreja So Francisco da Prainha, tombada como
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, defendendo assim a entidade tambm por
meio de uma ao oficial de patrimonializao. A matria trazia a declarao de um frei,
que afirmava que as casas estavam quase todas alugadas ou eram usadas em projetos
sociais e uma escola, onde eram atendidos mil alunos de bairros pobres.
J na caracterizao da comunidade quilombola o jornal assumiu um tom de
denncia, dizendo que o grupo reivindicante era composto por sete moradores que se
dizem descendentes de escravos. Conferindo autoridade denncia, seguia a fala do
historiador Milton Teixeira, contratado pela ordem franciscana para contestar o pleito,
que dizia no haver encontrado registros de um quilombo na rea em disputa nos
arquivos da Biblioteca Nacional, da Igreja e do Exrcito, operando assim com a noo
colonial de quilombo, definida como um agrupamento de escravos fugidos.
E, durante a troca de acusaes, o espao mediador do Observatrio Quilombola
de Koinonia acabou por se conformar em uma extenso dos espaos do conflito. Em
julho, uma nova matria assinada pela ARQPEDRA, associao formada pelo
movimento quilombola, foi enviada ONG, onde o grupo acusava outro frei de ter
128

usado de artifcio ardil ao convocar uma reunio com pais e alunos das escolas da
VOT para informar que os quilombolas queriam tom-las, recebendo, com isso, o apoio
contra o pleito tnico. Dias depois, a VOT exigiu de Koinonia um direito de resposta
a essa carta e teve seu texto divulgado em agosto, onde afirmou ser favorvel ao
movimento quilombola, s que apenas ao verdadeiro, reforando o questionamento
da autenticidade cultural do grupo. E, aps listar as atividades educacionais e
assistenciais que desenvolvia no morro, acusou os integrantes do movimento de
invasores, opondo estruturalmente a eles as pessoas srias, dignas e de bem que
identificavam como sendo os pais de alunos e os moradores antigos do morro.

Nenhum circo foi armado, pois estvamos falando para pessoas srias, pais de alunos,
moradores antigos, pessoas dignas que sempre viveram do suor do seu trabalho enquanto
seus filhos eram educados na escola da Ordem da Penitncia. Falvamos tambm para
algumas pessoas que sempre moraram em imveis da entidade e, como pessoas de bem,
honravam as suas obrigaes locatcias, com isso viabilizando a manuteno no s da
escola Pe. Francisco da Motta, mas de toda obra social mantida secularmente pela Ordem da
Penitncia! No falvamos para invasores ou pessoas que a custa do sacrifcio de muitos,
buscam locupletar morando anos a fio sem pagar qualquer aluguel.

Em agosto, foi a jornalista Fabiana Cimieri do Estado de So Paulo quem
noticiou o conflito, mas de uma forma diferente da que estava sendo feita at ento: na
sua matria, haviam sido includas falas no apenas dos diretamente envolvidos, mas
tambm de moradores do morro. E foi articulada ento, pela primeira vez na mdia, a
oposio maioria portuguesa e minoria negra para se referir aos que habitavam o
morro, incluindo na polmica os depoimentos de alguns moradores que afirmavam ser
ali uma colnia portuguesa.
Dias depois, foi o jornalista Francisco Alves Filho da Revista Isto quem
publicou uma matria sobre a Pedra do Sal, onde focou sobre a discusso da prpria
noo de quilombo e a ocorrncia de pleitos tnicos em reas urbanas. O jornalista, no
entanto, buscou realizar uma mediao entre a noo histrica do termo e a jurdica e
poltica, confrontando os argumentos apresentados pela VOT, sobre a inexistncia no
passado de um acampamento de escravos fugidos no Morro da Conceio, aos
apresentados pela Fundao Cultural Palmares, que defendia a noo de quilombo que a
relacionada identidade cultural de grupos negros e sua reproduo fsica, econmica e
sociocultural.
129

Mas o auge da exposio miditica do processo de reconhecimento do Quilombo
da Pedra do Sal ocorreu no final de outubro, quando o filsofo Denis Lerrer Rosenfield
publicou o mesmo artigo em dois jornais de circulao nacional, O Globo e o Estado de
So Paulo. Intitulado Quilombos Urbanos, o texto denunciava que havia ocorrido
uma proliferao de quilombolas no pas aps a Constituio de 1988 por causa do
que chamou de um artifcio meramente jurdico. As acusaes eram tambm
direcionadas aos laudos ditos antropolgicos solicitados a ONGs e a pesquisadores
comprometidos com a causa dos movimentos sociais. E, como caso exemplar, era
exposto o Quilombo da Pedra do Sal, que o filsofo identificava como invasores que
queriam obter imveis. Segundo ele, sua titulao iria prejudicar a VOT e os servios
educacionais e cursos profissionalizantes que ofereciam a chance de adultos refazerem
suas vidas, em um discurso que valorizava o disciplinamento dos espaos da Zona
Porturia e os caracterizava como marcados pelo narcotrfico.
Posteriormente e at o final de 2009, no houve mais nenhuma matria que
tivesse repercusso nacional ou local, sendo veiculadas apenas pequenas notas no site
da Fundao Cultural Palmares informando tecnicamente o andamento judicial do
processo de reconhecimento do territrio tnico. E, assim, nesse conjunto de matrias,
artigos e cartas publicados durante os dois primeiros anos de formao do Quilombo da
Pedra do Sal, predominou a articulao de uma noo jurdica para definir o que seria
patrimnio, tanto por parte do grupo quilombola quanto da VOT. Mas essa noo
tambm movimentava um sistema de autenticidade que se referia, e questionava, tanto
validade histrica e cultural do grupo quilombola, quanto as motivaes sociais e
religiosas da ordem franciscana.
Na busca por compreender como estavam se posicionando alguns dos
mediadores do conflito entre os moradores do morro e a entidade franciscana, no incio
de dezembro de 2007 fui sede de Koinonia, localizada no bairro da Glria, rea central
da cidade. Quem me recebeu foi a historiadora Ana Gualberto, que me explicou que a
ONG tinha como foco principal de atuao a titulao de comunidades quilombolas
no meio rural, mas que recentemente estava havendo tambm um interesse de
acompanhamento de dois pleitos das reas urbanas da cidade do Rio de Janeiro: o da
Pedra do Sal e o de Sacop, localizado no bairro da Lagoa, Zona Sul da cidade. Mas, em
sua opinio, a comunidade quilombola de Sacop tinha mais possibilidade de obter a
titulao do territrio, porque seus moradores j possuam uma usucapio de mais de 40
anos, o que fornecia um maior reconhecimento jurdico.
130

Em relao ao Quilombo da Pedra do Sal, Ana contou que havia uma
notoriedade do pleito no Governo Federal porque era objetivo do MNU aumentar sua
atuao na Zona Porturia, onde j existiam como referncias da cultura negra o
Centro Cultural Jos Bonifcio e o Cemitrio dos Pretos Novos. E disse que, desde a
certificao Damio mandava notcias para serem divulgadas no Observatrio
Quilombola, mas negou acusao de que a ONG teria recebido uma presso
financeira da Comunidade Europeia para no apoiar o Quilombo da Pedra do Sal ou no
noticiar mais o conflito. Ana contou que Koinonia apenas tinha sido procurada por uma
representante da entidade para que dessem um direito de resposta VOT em relao a
uma carta enviada pelo grupo onde eram feitas acusaes aos dirigentes da entidade
franciscana. Mas afirmou que tinha sido um posicionamento da prpria organizao no
se envolver diretamente no conflito da Pedra do Sal, fazer somente seu
monitoramento, e que os dirigentes do COHRE tinham adotado a mesma posio
poltica.
Logo em seguida, tarde, fui sede do INCRA, localizada tambm na Glria.
Conheci ento Miguel Cardoso, antroplogo responsvel pela titulao dos territrios
quilombolas no Estado do Rio de Janeiro. Bastante tcnico em nossa primeira conversa,
ele informou que o Relatrio Histrico e Antropolgico ainda estava em fase de reviso
pelas pesquisadoras da UFF que haviam sido contratadas pelo instituto em 2006. E que
a VOT havia contestado na Justia o pedido de reconhecimento do quilombo,
conseguindo uma liminar que havia paralisado todo o processo de identificao,
incluindo os estudos tcnicos. Mas a procuradora do INCRA estava tentando anular essa
liminar e Damio acreditava que a atuao poltica do MNU junto ao Governo Federal
iria ajudar nessa suspenso.
Miguel ento solicitou que eu fizesse um requerimento oficial da UFRJ para
consultar o relatrio preliminar, me explicando que ele ainda no havia sido
publicado oficialmente pelo INCRA. S aps essa publicao era que os proprietrios
confrontantes e ocupantes do territrio pleiteado seriam notificados, desapropriados
e indenizados pelas terras e benfeitorias, utilizando assim um vocabulrio jurdico
para se referir ao processo de titulao do quilombo. E contou que o nico caso de
quilombo urbano que havia sido titulado no pas estava no Rio Grande do Sul. No Rio
de Janeiro, mesmo na rea rural apenas um quilombo havia sido titulado, o de
Campinho, em um processo que havia sido encaminhado pelo ITERJ e que Miguel tinha
considerado de fcil soluo porque a terra desapropriada era do governo estadual.
131

Retornei ao INCRA na semana seguinte e, nessa minha segunda visita, Miguel
falou mais sobre o prprio grupo e os espaos que desejava ocupar. Ele explicou que o
territrio pretendido pelos quilombolas se localizava no entorno da Pedra do Sal e era
composto por cerca de quinze imveis e, embora alguns dos integrantes do movimento
quisessem ampliar o nmero de imveis solicitados, ele achava improvvel que isso
acontecesse. Miguel ento disse que era o santo o que unia os integrantes do
movimento, porque todos participavam de cultos do candombl. E me deu um exemplo
de como essa ligao era fundamental falando de Marquinhos que, apesar de ser
nordestino, branco e homossexual, frequentava o mesmo barraco de candombl dos
demais integrantes.
Nessa fala de Miguel ficava assim mais fluida a definio jurdica de quilombo,
que restringia a classificao das comunidades quilombolas como grupos de
afrodescendentes. Mas, embora essa caracterstica enfatizada pelo antroplogo no
fosse juridicamente adequada, ela operava com um imaginrio sobre a cultura negra
baseado em um sistema prprio de autenticidade cultural, onde s prticas dos cultos do
candombl possuam grande ressonncia. E a movimentao das figuras do
nordestino e homossexual operava discursivamente com a proposta de uma
inverso de valores nos espaos da Zona Porturia, j que buscava a positivao dessas
categorias como smbolos da opresso e do popular, em vez do imaginrio oposto,
que as associava negativamente s ideias de decadncia e desvio.
Como nesse dia apresentei o ofcio da universidade atestando que eu era uma
pesquisadora a ela vinculada, pude consultar o Relatrio Histrico e Antropolgico
sobre o Quilombo da Pedra do Sal que havia sido recentemente elaborado pelas
historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu e pela antroploga Eliane Cantarino
11
. A
construo narrativa do relatrio tinha como diretrizes as definies do Artigo 68 e do
Decreto 4.887, que qualificava como comunidade quilombola os grupos tnico-
raciais que assim se auto atribussem, que possussem trajetria histrica prpria,

11
Aps a consulta do relatrio, Tentei agendar entre os meses de junho e setembro de 2008 uma conversa
com as relatoras e acessar as entrevistas realizadas com os integrantes da comunidade quilombola que
haviam sido armazenadas no Laboratrio de Histria Oral e Imagem da UFF. Enviei e-mails para a
historiadora Hebe Mattos, que se recusou a marcar uma conversa argumentando que o processo judicial
ainda estava em andamento e que qualquer palavra dela poderia ser utilizada como um acrscimo ao texto
do relatrio. J o e-mail que enviei para a antroploga Eliane Cantarino no foi respondido. E, no
laboratrio da universidade, apesar do atencioso atendimento, aps algumas ligaes telefnicas e trocas
de e-mails o acesso s entrevistas tambm foi negado, com o mesmo argumento de se tratar de um
conflito no concludo judicialmente.

132

relaes territoriais especficas e uma ancestralidade negra relacionada com a
resistncia opresso histrica sofrida.
E, para operar essas noes na defesa do pleito do Quilombo da Pedra do Sal,
props que havia uma trade identitria que unia seus integrantes: o porto, que era a
ligao com as atividades e sindicatos porturios; o samba, que era a participao nas
escolas e blocos carnavalescos; e o santo, que era as prticas do candombl. A
abordagem histrica era referenciada nas noes de direito de reparao e de dever
de memria, buscando revelar o que as relatoras entenderam ser o passado traumtico
vivenciado por essa comunidade quilombola. E, a antropolgica, era referenciada na
noo de formao de identidades sociais coletivas opostas, e identificava o
tombamento da Pedra do Sal em 1987 como sendo o incio da oposio entre a
comunidade quilombola e os dirigentes da VOT.
As relatoras postularam que a importncia do reconhecimento do Quilombo da
Pedra do Sal era a defesa da memria afro-brasileira na Zona Porturia e a visibilidade
do patrimnio cultural herdado de seus antepassados escravos e africanos. E
identificaram esse ano de 1987 como o comeo da implantao de uma nova poltica
imobiliria pela direo administrativa da VOT, marcada pela gesto do Frei Eckart
Hfling. Ao descreveram essa poltica, afirmaram haver ocorrido um processo de
reajustes de aluguis dos imveis da entidade franciscana no morro tendo como base os
preos de mercado; e que nesse processo teriam sido realizadas algumas aes de
despejo, a realocao de moradores que no podiam arcar com os novos custos e a
expulso dos que os ocupavam informalmente. Segundo as relatoras, antes dessas
medidas muitos moradores de baixo poder aquisitivo entendiam a poltica imobiliria da
VOT como filantrpica: pagavam aluguis considerados simblicos ou ocupavam
informalmente as casas com a anuncia da entidade, sendo que algumas famlias
moravam havia mais de 50 anos sob essas condies.
Na dcada de 1990, aps o esvaziamento de vrios imveis, a Associao de
Moradores e Amigos da Sade havia liderado a ocupao informal de alguns deles sob a
liderana de Damio, ento presidente da associao, que em seguida passou a residir
em um imvel localizado na Travessa do Sereno. Sua esposa Lcia tambm ocupou
com a famlia de sua me um imvel na Rua So Francisco da Prainha. Mas, de acordo
com as relatoras, aps a divulgao dos planos urbansticos da prefeitura para a Zona
Porturia, outros inquilinos e moradores informais foram novamente expulsos de seus
imveis por meio de ao policial ou de processos de reintegrao de posse.
133

Na percepo dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, o
projeto Humanizao do Bairro implantado pela VOT tinha como objetivo converter os
moradores da Zona Porturia para os valores catlicos e desejavam expulsar em
especial aqueles pertencentes s religies do santo. E consideravam que a entidade
franciscana e os urbanistas da prefeitura possuam uma concepo preconceituosa do
conjunto dos moradores da Zona Porturia, por consider-los desestruturados
socialmente e por, no Morro da Conceio, reconhecerem como tradicional apenas a
ocupao portuguesa e espanhola. E, colocando-se como representante de uma
coletividade de moradores, o grupo afirmava que havia sido por causa do despejo em
2005 de trinta famlias de um sobrado na Rua Mato Grosso, conhecido pelo nome de
Palcio das guias, que eles haviam decidido pleitear o reconhecimento do territrio
tnico.
Aps explicarem o conflito e apresentarem as percepes do grupo sobre ele, as
relatoras articularam os fundamentos histricos do pleito da comunidade quilombola.
Percebi ento que essa narrativa era a presentificao do que denominei de mito da
Pequena frica ao observar que ela se baseava principalmente em dois textos que
articulavam, cada qual, uma verso especfica dele: o livro Tia Ciata e a Pequena
frica no Rio de Janeiro, do cineasta Roberto Moura; e a Proposta de Tombamento da
Pedra do Sal do INEPAC, elaborada pelo historiador Joel Rufino e inventariada pela
museloga Mercedes Viegas. E, para compreender as diferentes verses do mito,
comparei esses dois textos ao das relatoras, procurando fazer uma qualificao das
variaes identitrias, espaciais e temporais da memria afrodescendente e popular
que estavam sendo articuladas por eles e de suas diferentes retricas da perda.
Em seu livro, Roberto havia delimitado como sendo o territrio da Pequena
frica o espao ocupado por negros de Salvador no bairro da Sade a partir da segunda
metade do sculo XIX e, aps as reformas urbansticas realizadas na Zona Porturia por
Pereira Passos no incio do sculo XX, estendeu este espao para a Cidade Nova, cujo
centro de referncia era a Praa Onze. Nesse territrio, ele havia reunido no apenas
africanos e baianos, mas tambm indivduos de diversas origens e religies que
participavam das atividades econmicas e recreativas que chamou de populares.
Assim, na verso mtica de Moura, a dispora baiana estaria includa na Pequena
frica, mas as duas categorias no eram simtricas.
Em sua verso da Pequena frica, o autor havia afirmado que buscava evitar a
perda da memria subalterna e negra da cidade do Rio de Janeiro atravs da narrao
134

desta histria, para que o conjunto da sociedade pudesse refletir sobre as desigualdades
raciais e sociais decorrentes do passado escravista do pas. Na rede de transmissores e
herdeiros desta memria que construiu, Roberto conectou os escravos africanos
chegados em Salvador, os negros baianos migrados para o Rio de Janeiro aps a
abolio, os participantes dos sambas da casa de Ciata e dos cultos de candombl da
casa de Joo Alab no incio do sculo XX, at seus descendentes consanguneos e de
famlia de santo nas dcadas de 1970 e 80. E, com seu livro, o autor inseriu a noo de
Pequena frica em uma lgica de patrimonializao, ao organizar e difundir um
conjunto especfico de genealogias, mitos de origem, ancestrais sagrados e deuses.
Na proposta de tombamento da Pedra do Sal, o livro de Roberto foi utilizado
como fonte primordial de informao, mas os termos dispora baiana e Pequena
frica foram definidos pelos especialistas do patrimnio com a incluso de algumas
nuances em relao narrativa do cineasta. Joel afirmou que a Sade era uma pequena
Bahia, e que era a Bahia uma pequena frica, articulando assim um sistema de
autenticidade de origens culturais. E o termo dispora baiana foi definido por
Mercedes tambm operando a separao entre baianos e africanos, j que ela
identificava como frequentadores da Pedra do Sal dois distintos grupos negros, com
especificidades territoriais e identitrias: os baianos que tinham ocupado as casas
prximas Praa Onze e ao cais do porto e que participavam das festas de candombl
lideradas por Joo Alab; e os africanos que moravam no alto da Pedra do Sal e
participavam dos cultos mulumanos conduzidos por Assumano Mina. Assim, na
patrimonializao da Pedra do Sal a memria subalterna e negra da Pequena frica
organizada por Roberto havia sido presentificada para evitar a perda do local de
memria, s que representando somente os afrodescendentes e excluindo, portanto,
a noo mais abrangente de populares.
No Relatrio Histrico e Antropolgico sobre o Quilombo da Pedra do Sal, o
mito da Pequena frica ganhou uma verso com variaes narrativas que buscavam dar
conta do conflito vivenciado pelos pleiteantes do reconhecimento tnico e de suas
caractersticas sociais especficas. Nessa verso, o encontro mtico entre o prefeito
Pereira Passos, os integrantes da dispora baiana e os brancos catlicos da elite foi
presentificado e personificado pelos urbanistas do Porto do Rio, os integrantes do
Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT. Foi articulando essa narrativa mtica
que as relatoras comprovaram a continuidade histrica no territrio pleiteado dos
moradores que haviam formado a comunidade quilombola. Pois, como no havia uma
135

ocupao de seus integrantes em um mesmo espao ao longo do tempo que fosse
baseada em uma trajetria histrica prpria, como era definida pela noo jurdica do
termo comunidade remanescente de quilombo, as relatoras argumentaram que o
direito dos quilombolas estava ancorado em uma noo de reparao histrica: por
serem eles emblemas de uma resistncia cultural e poltica contra o que afirmaram
ser uma sucesso histrica de opresses que teria impedido os afrodescendentes de
permanecerem morando nos bairros porturios e centrais da cidade.
A passagem da memria dos afrodescendentes que no passado moraram nesses
bairros para a identificao de um grupo de pessoas especficas que seriam herdeiras de
tal memria foi ento operada pelas relatoras a partir de mltiplas conexes simblicas,
divididas em trs momentos histricos. O primeiro momento abrangeu o perodo do
sculo XVIII at 1850 e abordou aspectos da conformao urbana da Pedra do Sal e da
comercializao de escravos que chegaram pelo porto. No segundo momento, que
abarcou o perodo entre 1850 e 1950, a narrativa de Roberto Moura sobre a Pequena
frica foi utilizada para delimitar o territrio que teria sido ocupado pelos
antepassados do grupo quilombola e para qualificar esse legado cultural: as rodas
de samba, os ranchos carnavalescos, o trabalho no porto, o culto aos orixs, as
habitaes populares e as revoltas urbanas.

Mesmo que sua presena na rea sempre fosse precria e transitria, posto que ali estavam
como inquilinos, moradores de barracos, ou trabalhadores temporrios, os afrodescendentes
impingiram ao local, neste momento histrico, entre as ltimas trs dcadas do sculo XIX e
as primeira do sculo XX, um reduto cultural reconhecidamente negro. A populao
residente nos distritos da Sade, Gamboa, Santo Cristo, Santana e Cidade Nova organizou-
se para ganhar a vida na capital do Imprio e, depois da Repblica, atravs da herana
comum afro-brasileira de trabalho, festa e religio (Moura, 1983, 81). Enfrentando o
preconceito e a segregao, o legado cultural hoje reivindicado pela comunidade do
Quilombo da Pedra do Sal foi fundamentalmente construdo neste momento.

As relatoras ento listaram todos os personagens da dispora baiana citados na
narrativa de Roberto e dos baianos e africanos da narrativa dos especialistas do
patrimnio. No entanto, incluram em sua verso do mito da Pequena frica mais um
antepassado: Mano Eloi, porturio nascido no Vale do Paraba fluminense e, portanto,
no classificvel como baiano ou africano. A incluso deste antepassado, no
entanto, buscava estabelecer uma conexo com as caractersticas socioculturais de parte
136

dos integrantes da comunidade quilombola da Pedra do Sal, j que alguns deles se
apresentavam como afrodescendentes, do santo, porturios e sambistas, mas
eram procedentes de famlias do interior do Estado do Rio de Janeiro.
No terceiro momento histrico, que percorria a dcada de 1950 at o presente, as
relatoras descreveram a ruptura da continuidade espacial da Pequena frica aps a
separao dos bairros da Cidade Nova e da Sade provocada pela abertura da Avenida
Presidente Vargas. E apresentaram as tradies negras da Zona Porturia que haviam
sido renovadas com o passar dos anos e se encontravam presentificadas nos
integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do bloco carnavalesco Afox Filhos de
Gandhi. E com a afirmao dessa renovao da tradio era feita a passagem narrativa
para a apresentao dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal: duas matriarcas
que foram morar na Zona Porturia na dcada de 1950 e cinco moradores qualificados
como militantes negros e de movimentos comunitrios, descendentes da ltima
gerao de africanos escravizados para a expanso cafeeira no Rio de Janeiro
oitocentista e/ou de estivadores negros chegados Regio Porturia logo aps a
abolio, do santo e do samba. E, por ltimo, eram citados mais cinco integrantes
que no possuam todos os elementos da identidade tnica articulada pela noo
jurdica de comunidade quilombola, mas que haviam aderido ao pleito por estarem
igualmente em conflito com a VOT e por possurem um esprito quilombola, que era
definido como o desejo por uma vida comunitria.

Hoje, os novos conflitos na regio incidem diretamente nas possibilidades de continuidade
dos afrodescendentes neste espao simblico africano. Com as novas ameaas de expulso,
so as prprias vozes dos herdeiros desse patrimnio que precisam ser protegidas e
garantidas. Seu patrimnio imaterial, entendido como suas histria e memria em torno da
Pedra do Sal, a base de sustentao para a defesa e continuidade da presena da
comunidade no territrio reivindicado para titulao.

Encerrando sua verso do mito as relatoras articularam discursivamente que a
perda eminente que o pleito de reconhecimento tnico do Quilombo da Pedra do Sal
desejava evitar era a dos herdeiros do local de memria, ou seja, de indivduos que
encarnariam a memria e os valores culturais dos antepassados mticos da Pequena
frica. E, nessa verso, era proposta uma nova dramatizao da continuidade histrica
entre os transmissores e herdeiros: de escravos e africanos aportados na Zona Porturia;
aos negros baianos e fluminenses que frequentavam a Pedra do Sal aps a escravido;
137

at os moradores despejados pela ordem franciscana comprometidos com a manuteno
do esprito quilombola.
E, nela, o territrio da Pequena frica tambm se modificou: na proposta de
delimitao do territrio tnico foram includos a Pedra do Sal e o Largo Joo da
Baiana, alguns imveis do entorno do largo e da Rua So Francisco da Prainha e a sede
do Afox Filhos de Gandhi localizada na Rua Camerino. Alm desse territrio, as
relatoras tambm indicaram o reconhecimento de alguns espaos como marcos
simblicos e territoriais identificados com a memria e a histria negras: toda a rea
contida entre o Largo da Prainha e o Morro da Sade, incluindo o antigo mercado de
escravos do Valongo, o cemitrio dos Pretos Novos e a retro-rea porturia dos bairros
da Sade e Gamboa; excluram, no entanto, a Cidade Nova.

OS DIVERSOS USOS DO TERRITRIO TNICO

Em abril de 2008, o antroplogo do INCRA, Miguel, me informou por telefone
que o territrio tnico que havia sido delimitado ficou composto pelos imveis
localizados no lado mpar do trecho da Rua So Francisco da Prainha entre os largos da
Prainha e Joo da Baiana; por quatro imveis localizados no entorno do Largo Joo da
Baiana; e pelo sobrado que sediava o Afox Filhos de Gandhi e que meses depois
soube, atravs de seus componentes, ser de propriedade do governo estadual e haver um
rgo interessado em retomar sua posse.
Dos imveis localizados no
entorno do Largo Joo da Baiana, foram
pleiteados os nmeros 27 e 29 da
Travessa do Sereno, utilizados pelo
Centro Comunitrio do Projeto
Humanizao do Bairro, e os sobrados 43
e 45, que ficavam atrs do bar Bodega do
Sal e do restaurante Victoria Self Service
e eram ocupados por moradores. Esses dois estabelecimentos comerciais, no entanto,
tinham ficado fora do territrio pleiteado. Conversei ento em maio com seus
proprietrios para conhecer suas atividades e saber como percebiam e se relacionavam
com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal.
138

O Victoria Self Service s abria nos dias de semana no horrio do almoo e era
comandado por Irene, que desde 1980 morava no sobrado: primeiro como sublocadora
de uma vaga e, depois, como proprietria do imvel. Quando era inquilina, no
segundo andar do sobrado eram oferecidas vagas para marinheiros e, no primeiro
andar, funcionava uma loja de estofado. Ao se casar com um funcionrio da Marinha,
em 1993, eles compraram o imvel por 20 mil dlares e, trs anos depois, abriram um
restaurante a quilo no andar trreo. No ano de 2000, ela e o marido se separaram e
Irene continuou a cuidar do restaurante com a ajuda de um de seus filhos.
Irene me disse que j tinha ouvido falar sobre o movimento quilombola, mas
nenhum de seus integrantes a havia chamado para participar de qualquer reunio ou do
prprio pleito tnico. Conhecia apenas Lcia e as festas que realizava no largo em
comemorao aos dias de So Jorge, da Conscincia Negra e do Samba, ocasies em
que pedia o seu consentimento para armar uma barraca de venda de cerveja. Em relao
VOT e s suas atividades educacionais e sociais, Irene contou que nunca tinha
conseguido uma vaga para qualquer um de seus trs filhos nas escolas franciscanas,
embora tivesse tentado: uma vez havia ficado de madrugada na fila para fazer a
inscrio na Escola Padre Dr. Francisco da Motta, mas no foi chamada, e muitos outros
moradores do morro tambm tinham tentado uma vaga e no tinham conseguido.
A fala de Irene demonstrava assim que ela no possua um relacionamento
constante com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, embora houvesse um
cdigo estabelecido de respeito mtuo sobre suas formas de habitar: Lcia pedia sua
autorizao informal para realizar as festas do grupo no largo e Irene no articulava
qualquer discurso sobre os integrantes do grupo serem invasores, moradores
irregulares, ou inautnticos em sua reivindicao. E era esse reconhecimento e
respeito que provavelmente havia determinado a no incluso do imvel no pleito
tnico, mesmo estando ele no centro simblico da comunidade quilombola. Irene
tampouco articulava uma narrativa contrria presena da VOT no morro, embora se
ressentisse de no ter conseguido usufruir, assim como outros, das atividades
educacionais desenvolvidas pela entidade.
A Bodega do Sal s abria nas noites de 2 e 4 feiras, quando organizava rodas
de samba, e foi em uma delas que conheci seu dono, Leonardo. Ele me contou que
morava em Niteri e trabalhava desde 1999 no prdio da CEDAE, ao lado do largo. E
que, nessa poca, funcionava naquele sobrado um botequim que vendia cachaa,
cerveja e sardinha frita e era composto por um balco longitudinal, um mictrio e um
139

banheiro para mulheres em pssimas condies. Esse sobrado era de propriedade da
Irmandade Santa Cruz dos Militares, entidade catlica sediada na regio central da
cidade, e em 2002 havia sido fechado por causa da falncia e despejo de seu
comerciante. Leonardo ento procurou a irmandade e negociou um contrato de aluguel
onde trocou os trs primeiros anos de pagamento por obras nas partes eltricas,
hidrulicas e de fachada do imvel.
Em sua avaliao, tinha sido o cenrio da Pedra do Sal e seu passado
associado ao samba que tinha feito com que msicos se interessassem por tocar no
largo. A roda de samba de 2 feira havia surgido em 2006, atravs da iniciativa de
msicos que procuravam um local que no cobrasse ingresso para se apresentarem com
seu grupo, o Batuque na Cozinha. Com o sucesso de pblico dessa roda, outro grupo
musical props a Leonardo a organizao de um evento de apresentao de
composies musicais inditas nas noites de 4 feira, que foi denominado Samba na
Fonte. Seu bar se colocado, assim, como um ponto de encontro de pessoas que
trabalhavam nas reas porturias e centrais e que j percebiam ser o largo uma
referncia histrica do samba.
Enquanto fazia a reforma do bar, Leonardo me disse que havia se dedicado a
pesquisar textos sobre a Zona Porturia para se adaptar socialmente, narrando em
seguida uma verso do passado do Morro da Conceio que demarcava sua origem pela
colonizao portuguesa. E, ao falar sobre a absoro da mo de obra escrava na cidade
no fim do sculo XIX, comentou o pleito do Quilombo da Pedra do Sal. Em sua
opinio, a histria da abolio da escravido no estava sendo bem utilizada no pedido
de reconhecimento daquela rea como quilombo: mesmo tendo sido a Zona Porturia
ocupada por um comrcio de negros e por pessoas excludas ou menos afortunadas,
achava um exagero afirmar que tribos haviam se estabelecido ali. Por isso
considerava os integrantes do grupo oportunistas, se comparados aos verdadeiros
quilombolas da Chapada da Diamantina, dos Veadeiros ou do Esprito Santo. Pois,
para ele, no era possvel garantir a perpetuao de uma cultura, uma etnia, um hbito,
um costume em uma rea urbana que qualificava como formada no meio de uma
argamassa de cimento, pequenos cmodos.
Leonardo associava, assim, o termo quilombo a uma noo de agrupamentos
humanos tidos por isolados ou primitivos, colocando-o em um sistema de autenticidade
cujo extremo mais negativo eram os oportunistas, que entedia como pessoas que se
apropriavam indevidamente da identidade cultural negra para obter benefcios pessoais.
140

E, para me demonstrar o que classificava ser um oportunismo, disse que Damio havia
tentado fundar uma associao de moradores da Pedra do Sal, mas era apenas invasor
de uma casa e pertencente a um movimento de sem tetos. Estruturava, portanto, a sua
percepo do espao articulando as oposies moradores e invasores e questionava
com argumentos semelhantes aos da VOT a autenticidade cultural e histrica do
movimento quilombola. E, ao incluir em seu discurso as condies de moradia que
considerava negativas, percebia as casas de pequenos cmodos da Zona Porturia
ocupadas por vrios ncleos familiares no como tambm uma forma de habitar, mas
apenas como decorrente de uma situao de excluso social.
Assim, o posicionamento de Leonardo, embora valorizasse o passado do Largo
Joo da Baiana e da Pedra do Sal associado ao samba, no compartilhava da percepo
de que o ritmo era herana de uma forma especfica de habitar ou de um grupo de
afrodescendentes. No entanto, a despeito de suas opinies, o uso contnuo de seu bar
por sambistas possibilitava que o largo permanecesse como um espao passvel de ser
associado cultura negra e ressonante entre seus frequentadores e expectadores. E
parecia ser pelo desejo de manuteno desse uso que os integrantes do movimento
quilombola no incluram o imvel no territrio tnico pleiteado, evitando, assim, que
ele fosse fechado e desapropriado.
Mas o principal usurio do
territrio tnico pleiteado pelos moradores
que formaram o Quilombo da Pedra era a
VOT, que possua muitos dos imveis do
entorno da Pedra do Sal. E, para conhecer
a atuao da entidade no morro, visitei o
Centro Comunitrio do Projeto
Humanizao do Bairro, cuja fachada era
identificada por uma grande faixa de plstico com as logomarcas de seus realizadores e
financiadores. O centro era instalado em dois sobrados unificados na Travessa do
Sereno, em frente ao Largo Joo da Baiana, e quando entrei nele fui recepcionada por
Ion. Advogada e coordenadora operacional do projeto, ela conversou comigo
articulando uma fala institucionalizada sobre as realizaes dos franciscanos no morro,
explicando que o projeto havia sido patrocinado por organizaes alems durante os
anos de 2002 e 2007 e que esse financiamento havia possibilitado as reformas das
141

casas, a compra de maquinrio e mobilirio e o pagamento de funcionrios; mas que,
passado esse perodo, era a verba da prpria VOT que o mantinha.
O projeto era composto por cursos de profissionalizao e por programas
voltados para a sade da mulher e da criana, incluindo atendimento mdico.
Segundo Ion, o perfil socioeconmico dos atendidos era de baixa escolaridade e
composto principalmente por mulheres vindas das regies Norte e Nordeste do pas,
sem marido e com filhos, muitas moradoras dos morros da Providncia e do Pinto. Os
cursos duravam 100 horas, eram realizados por cerca de trs meses, possuam em mdia
quinze alunos e eram gratuitos, incluindo o material didtico. Seus critrios de inscrio
eram a residncia na Zona Porturia ou no Centro e a idade superior a 14 anos. J o
atendimento odontolgico era disponibilizado apenas aos alunos das escolas da VOT,
s mulheres grvidas e s crianas de at 14 anos e suas mes. Tais critrios
estruturavam, assim, os espaos das obras franciscanas a partir das oposies
feminino e masculino, criana e adulto e, dentro da classificao de criana,
distinguia alunos e no alunos das escolas da VOT. E, na compreenso de
morador e no morador, estendia a noo para uma rea mais abrangente que a do
Morro da Conceio, incluindo nela todos os que residiam nos bairros porturios e
centrais da cidade.
Toda a parte financeira do projeto era controlada pela sede administrativa que
ficava no hospital na Usina, no morro no era movimentado dinheiro por questo de
segurana, j que o sobrado do centro comunitrio havia sido arrombado e seus
equipamentos roubados pouco dias aps sua abertura em 2004. Depois desse
arrombamento, os integrantes da VOT decidiram colocar grades em todas as janelas e
portas das casas reformadas pelo projeto, mas, segundo Ion, esse no era o principal
problema que enfrentavam: a situao que mais interferia nas suas atividades eram os
tiroteios no Morro da Providncia, quando o comando do trfico de drogas mandava
fechar o centro comunitrio e as escolas para evitar a circulao das crianas.
Ion ento me mostrou algumas fotos expostas em um mural na parede, onde
figurava o sobrado do centro comunitrio antes e depois da reforma realizada pela
entidade, exibindo assim o projeto como um demarcador de temporalidade e
materialidade do imvel. E contou que, antes, ali era uma cabea de porco: residiam
muitas pessoas, havia trfico de drogas e prostituio e j tinha ocorrido um homicdio.
As demais casas utilizadas pelo projeto foram descritas por Ion como ocupadas por
moradores, mas ela considerava que o fim do uso residencial para a instalao das
142

obras sociais havia gerado um bem maior. A fala de Ion fazia, assim, uma
recorrente referncia ao que considerava serem os perigos dos espaos da Zona
Porturia, os associando principalmente s ideias de criminalidade, prostituio e
condies precrias de moradia. E opunha discursivamente traficantes e prostitutas a
moradores e bem individual a bem coletivo.
Mas era na Rua So Francisco da Prainha
onde estava a maior parte dos imveis pleiteados
como territrio tnico. No trecho reivindicado
haviam nove sobrados de dois andares que eram
utilizados como moradia ou de forma mista, com o
desenvolvimento de algum tipo de atividade
comercial no trreo, como espao de depsito de
produtos e equipamentos por comerciantes
ambulantes de comida e bebida. Dispostos a sua
frente, havia engradados de cerveja, transportadores
manuais de produtos denominados usualmente de
burros sem rabo, carrinhos para venda de angu, churrasquinho e cachorro quente, e
cadeiras e mesas plsticas. Na maioria deles, a fiao eltrica percorria o lado externo
da fachada, o revestimento e a pintura estavam parcialmente deteriorados e havia vidros
de janelas quebrados; e, no topo de todos, o emblema da igreja catlica identificava os
imveis como pertencentes VOT. Havia ainda mais trs imveis que eram utilizados
de forma exclusivamente comercial: um que havia recebido o acrscimo de um terceiro
andar e que, no trreo, uma tabuleta de cho indicava ser a Penso Marie; e dois que
haviam sido unificados em um grande galpo para abrigar uma oficina de papel.
Compondo um nico e amplo
conjunto visual, outros trs imveis
estavam desocupados e ostentavam na
fachada um letreiro que os identificavam
como a sede da administrao da VOT em
1897. E dois imveis eram ocupados por
cursos de profissionalizao do Projeto
Humanizao do Bairro: um pela Padaria
143

Escola e outro pela Grfica Escola e a Marcenaria Escola. Ion havia me informado que,
naquele momento, estavam em funcionamento apenas os de padaria e marcenaria, o de
grfica estava sem turma.
Fui conhecer o curso de padaria durante o horrio de aula e o professor Marcos
solicitou que a aluna Joana me mostrasse suas instalaes. No primeiro andar do
sobrado ficavam os mantimentos e o maquinrio de fabricao dos pes; no segundo,
havia banheiros, uma cozinha e cortadores de po; e, no terceiro, uma sala com cadeiras
de aula e banheiros com chuveiro. O curso funcionava trs vezes por semana, com
durao de trs horas e meia cada aula e, ao final, o aluno saa formado como ajudante
de padaria. Segundo Joana, todos os cursos de profissionalizao que a VOT oferecia no
morro eram introdutrios e quem quisesse se aperfeioar precisava fazer aulas
complementares em outros cursos. Aquela turma da padaria era a terceira: a primeira
turma havia sido criada em dezembro 2007 e composta por alunos do Colgio Sonja
Kill e, a partir da segunda, j estavam sendo compostas pela comunidade. Os alunos
da padaria no recebiam qualquer pagamento pela produo dos pes nas aulas, que era
de 600 unidades por dia e destinada ao caf da manh das escolas da VOT. Havia ainda
um projeto para que essa produo fosse aumentada e servisse tambm creche e ao
hospital da entidade na Usina e, progressivamente, ao conjunto dos projetos que possua
no Estado do Rio de Janeiro; e outro para que fosse aberta uma loja para
comercializao dos produtos.
Durante nossa conversa, Joana me contou que trabalhava no porto e havia cinco
anos que morava na Gamboa. Ela possua um de seus filhos matriculado na Escola
Padre Dr. Francisco da Motta e, toda 5 feira, organizava voluntariamente junto com
outras mes de alunos um almoo para os comerciantes que participavam do Rotary
Club, uma das instituies financiadoras do projeto de ampliao da escola. Havia sido
durante um desses almoos que ela tinha sabido da existncia do Quilombo da Pedra do
Sal, quando uma equipe contratada pelo Rotary e formada por advogado, historiador e
antroplogo foi apresentar comunidade escolar documentos para comprovar que o
territrio que o grupo estava reivindicando era de propriedade da VOT. Na opinio de
Joana, o pedido de reconhecimento do territrio quilombola era sem eira nem beira e
tinha lhe causado especial estranhamento um dos integrantes do movimento ter um filho
matriculado na escola.
Logo aps, fui ao sobrado onde havia sido instalado o curso de marcenaria.
Cheguei fora do horrio de aula e o professor Paulo me recebeu e contou que as aulas
144

estavam sendo oferecidas havia dois anos e que, assim como no de padaria, o curso
funcionava trs vezes por semana e tinha trs horas e meia de durao por dia. No
primeiro andar do sobrado, funcionavam uma cozinha e a oficina de marcenaria e, no
segundo, havia um banheiro e uma sala de aula. Durante o curso, os alunos faziam
trabalhos manuais em madeira e, apenas ao final, usavam as mquinas voltadas para a
produo em fbrica. Eles j tinham conseguido produzir diversos objetos, como
gabinetes para computador, lixeiras, balco e portas, que foram utilizados para equipar
as escolas, o curso de informtica, e a biblioteca da VOT. Os produtos gerados no curso
de marcenaria tambm no eram remunerados.
O projeto da entidade era incentivar que os alunos abrissem seus prprios
negcios, mas, at aquele momento, apenas um ex-aluno que j trabalhava
anteriormente com mquina e madeira tinha conseguido organizar uma empresa. A
maioria declarava ter como interesse apenas a realizao de pequenos trabalhos e
consertos domsticos, sendo que as mulheres normalmente se voltavam para a produo
de objetos artesanais. Paulo tambm contou que a ideia inicial era que o curso fosse
frequentado apenas pelos moradores da Zona Porturia, mas, por causa do baixo
interesse, havia sido aberta a possibilidade de inscrio de moradores de outras regies
da cidade. Em sua avaliao, os cursos profissionalizantes da VOT no eram muito
procurados porque as pessoas consideravam pouco importantes as profisses oferecidas,
por isso apenas o de informtica havia tido um grande nmero de inscritos.
Essas conversas com frequentadores dos espaos da VOT no morro indicaram,
assim, que a ideia dos cursos de profissionalizao no estava encontrando
ressonncia entre os que deveriam ser o seu pblico, que eram os moradores pobres
da Zona Porturia, por serem introdutrios e voltados para atividades consideradas
pouco lucrativas. Alm disso, tambm demonstravam que o Projeto Humanizao do
Bairro voltava-se principalmente para a manuteno das escolas e a formao e
assistncia complementar de seus alunos, movimentando uma noo de coletividade
expressa pelo termo comunidade escolar. E que, nessa comunidade, havia uma
expectativa de compartilhamento com a viso de mundo e as maneiras de estruturar os
espaos dos franciscanos, como podia ser percebido no espanto de Joana ao saber que
um pai de aluno tinha organizado uma reivindicao contrria VOT.
A partir do conhecimento inicial do Projeto Humanizao do Bairro, percebi
que as escolas eram o principal espao de referncia dos franciscanos no morro, e
agendei um encontro com Cristina, coordenadora de educao infantil da Escola Padre
145

Dr. Francisco da Motta, cuja entrada ficava no Beco Joo Jos. Ela trabalhava na escola
havia 32 anos e conversou comigo rapidamente, me passando algumas informaes
sobre seu funcionamento. Naquele ano, havia 1.100 alunos matriculados na escola e 120
alunos no Colgio Sonja Kill, sendo que todos estudavam durante um perodo do dia e,
no outro, faziam os cursos oferecidos pela VOT nas casas do Adro de So Francisco.
Alm dessas atividades, em um sbado por ms os pais dos alunos se reuniam na escola
para debater algum assunto ou para realizar aulas de educao fsica. As escolas
possuam trs distintos critrios de admisso: ser morador da Zona Porturia, ser filho
de funcionrio da entidade ou ser irmo de um aluno j matriculado. E tais critrios
tornavam, assim, os vnculos j estabelecidos com a prpria entidade o principal
elemento de seleo.
Sobre os almoos que eram organizados na escola, Cristina explicou que a
diretora geral, Regina, era a presidente do Rotary Club da Sade e que essa instituio
era um clube de ao comunitria sem vnculo religioso e composto por comerciantes
e moradores da regio. Os almoos eram eventos beneficentes onde ocorriam
palestras e discusses sobre a Zona Porturia e seus participantes pagavam pela comida
e bebida consumida, angariando dinheiro para a escola. Alm desses almoos, uma vez
por ms, tambm s 5 feiras, entidades atuantes na regio como a VOT, o Rotary Club,
a CEDAE, a Light, algumas associaes de moradores, o Moinho Fluminense e os
dirigentes de igrejas catlicas organizavam um caf da manh com representantes da
secretaria estadual de segurana pblica para discutir problemas da comunidade.
Assim, atravs das escolas a VOT movimentava uma ampla rede de relaes, que
extrapolava as situaes educacionais e os limites fsicos do morro.
Na sada da escola, fui apresentada por Cristina a Perci, que alm de inspetor
dos alunos era o zelador da Igreja da Prainha e um dos ltimos moradores de uma das
casas do Adro de So Francisco, j que a maioria tinha sido desocupada para instalar
cursos do Projeto Humanizao do Bairro. Combinei com ele um encontro na igreja no
domingo seguinte, quando foi celebrada uma missa em homenagem ao dia das Mes.
Ao fim da celebrao, Perci me explicou que as missas ocorriam apenas nas manhs de
domingo e eram os alunos das escolas da VOT e suas mes que a frequentavam, os
demais moradores e usurios catlicos do morro costumavam ir capela da Rua Jogo da
Bola ou Igreja de Santa Rita. Todos os alunos das escolas tinham aulas obrigatrias de
religio e os que estavam fazendo a primeira comunho deviam comprovar a ida igreja
todo domingo. Assim como na organizao dos almoos do Rotary na escola, eram as
146

mes dos alunos que voluntariamente se encarregavam da limpeza da igreja, fazendo
um mutiro mensal depois da missa.
Perci tambm era voluntrio da igreja e me disse que considerava esse trabalho
um prestamento de contas a Deus. Sua famlia era formada por trabalhadores rurais de
Itapiruna, municpio do Norte Fluminense, e sua relao com a VOT havia comeado
em 1968, quando ele tinha 18 anos de idade. Um compadre de seu pai morava em
Belford Roxo, municpio da Baixada Fluminense, e ofereceu a moradia em sua casa
para que ele estudasse na cidade do Rio de Janeiro. A ideia inicial de Perci era se
sustentar economicamente entrando para o Exrcito, mas ele no foi convocado. Ento a
filha desse compadre, que era governanta na casa de Atade, administrador da VOT que
morava no Adro de So Francisco, conseguiu um emprego para Perci na Escola Padre
Dr. Francisco da Motta, que estava sendo reformada. Ele foi contratado como servente,
mas, ao fim da obra, Atade disse que, para continuar trabalhando na escola, tinha que
completar os estudos.
Ao aceitar a condio, Perci se tornou faxineiro da escola e passou a morar nela
para evitar a locomoo diria para Belford Roxo. Quando chegou ao morro, ele s
tinha estudado at a 3 srie e, nos anos que seguiram, conseguiu concluir o primrio e o
supletivo do 2 grau e se tornar auxiliar de secretaria da escola. Emocionado, Perci
contou que Atade o tratava como um filho: olhava seus cadernos escolares e
eventualmente o chamava para almoar junto de sua famlia. Em 1985, Perci se casou,
alugou uma casa da entidade, sua esposa foi trabalhar na escola e os dois filhos que teve
estudaram nela, sendo que sua filha Priscila tambm se tornou funcionria da VOT. E,
atravs dessa conversa com Perci, pude compreender que os envolvidos nos projetos
sociais e educacionais franciscanos se inseriam em um amplo sistema de trocas, onde
havia aes tanto voluntrias quanto obrigatrias e onde os vnculos no apenas
educacionais, mas tambm religiosos e de trabalho baseavam as relaes sociais.
E, com a observao desses diversos usos do territrio pleiteado pelo Quilombo
da Pedra do Sal, percebi que esse espao do morro contido entre os centros de irradiao
simblica do patrimnio franciscano da Igreja da Prainha e do patrimnio negro da
Pedra do Sal era instvel e liminar: variava de acordo com os dias da semana e com os
perodos diurnos e noturnos,e comportava diferentes atividades, como residenciais,
comerciais, recreativas, assistenciais e religiosas. E conclu que era a estabilizao
desses usos que se encontrava em disputa por seus diferentes habitantes, sendo o
confronto entre a VOT e os moradores ligados ao MNU e unidos pelo santo que
147

organizaram o pleito tnico a precipitao de uma crise habitacional local anterior ao
plano urbanstico Porto do Rio, ainda que por esse projeto catalisada.

O PROJETO FRANCISCANO PARA UMA POPULAO MARGINALIZADA

Segundo estudo do historiador William Martins (2006), a Ordem Terceira de
So Francisco havia surgido no continente europeu no sculo XIII com o intuito de
tornar interdependentes os diferentes membros que compunham a igreja catlica e a
sociedade leiga. Foi denominada de Terceira porque j existiam a Ordem Primeira,
formada pelos frades, e a Ordem Segunda, composta pelas freiras. Na cidade do Rio de
Janeiro, a instalao dos religiosos franciscanos havia ocorrido no incio do sculo
XVII, quando construram um convento no Morro de Santo Antnio, local
posteriormente transformado no Largo da Carioca. Durante o perodo colonial
brasileiro, os frades franciscanos seguiram as diretrizes adotadas em Portugal, que
postulavam a simplicidade material e a prestao de servios espirituais, como sermes,
ladainhas e missas. E VOT foi incumbida a responsabilidade de administrar os
legados que esses frades recebiam, o que fez com que se tornasse, no incio do sculo
XIX, a principal proprietria de imveis urbanos da cidade.
Em 2008, a entidade se apresentava em seu site institucional, www.vot.com.br,
como uma sociedade civil, de carter religioso, beneficente, educacional, cultural,
assistencial e filantrpico. Sediada na Usina, Zona Norte da cidade, onde possua um
grande hospital e uma creche, a entidade ainda administrava obras sociais no Vidigal,
Zona Sul da cidade, e no municpio de Duque de Caxias, um cemitrio no Caju e a
Igreja So Francisco da Penitncia no Largo da Carioca. E a misso que se atribua
era o cuidado com o doente atravs do tratamento de seu corpo e esprito, em um
discurso que conferia uma noo religiosa s atividades que desenvolvia e estruturava o
mundo opondo as ideias de material e imaterial e de sade e doena.
A ocupao da entidade no Morro da Conceio era narrada por seu site
institucional atravs da apresentao de antepassados, momento fundador das obras
sociais e misses. Segundo essa narrativa mtica, em 1696 o advogado portugus
Padre Francisco da Motta havia recebido um terreno na Rua da Prainha como forma de
pagamento de uma grande ao judicial movida contra os beneditinos situados no
Morro do So Bento. Construiu nele a Igreja de So Francisco da Prainha e, ao morrer
em 1704, fez a doao testamentria da igreja VOT. Em 1897, a entidade ento criou
148

em uma sala dessa igreja uma pequena escola com duas turmas de alunos que, em seu
nome, homenageava o padre. E, em 1922, essa escola foi transferida para um prdio
construdo nos fundos do Adro de So Francisco, no Beco Joo Jos, e manteve turmas
da pr-escola 4 srie do ensino fundamental que atendiam a 250 alunos.
O momento de transformao da atuao da VOT no morro era demarcado
como sendo o ano de 1999, quando a entidade elaborou um projeto de expanso do
ensino e de implantao de programas de assistncia social e mdica. Com a execuo
do projeto, em 2003 a entidade ampliou a escola para o ensino fundamental completo e
passou a atender mais de 900 alunos. Tambm foi implantado nesse perodo o Projeto
Humanizao do Bairro, composto por programas de sade, profissionalizao e
atendimento a mulheres que, segundo o site, incluam consultas nas reas de clnica
mdica, pediatria, ginecologia, dermatologia e odontologia, palestras de
aconselhamento familiar e psicolgico, atendimento jurdico e cursos de informtica,
cabeleireiro, costura, marcenaria, manicure, artesanato, padaria, entre outros. E, em
2005, a entidade iniciou as atividades do Colgio Sonja Kill, que passou a oferecer o
ensino mdio aos alunos egressos da escola.
Nessa clivagem de atuao, o site citava a luta incansvel de Frei Eckart.
Nascido na Alemanha e ordenado sacerdote em 1966 na Ordem Franciscana dos Frades
Menores na cidade de Rodeio, Estado de Santa Catarina, esse frei assumiu em 1987 a
Superintendncia Geral da VOT na cidade do Rio de Janeiro. E, atravs de sua rede
social, fundou em sua cidade natal a Associao de Amigos do Padre Eckart e
conseguiu o financiamento de organizaes alems e europeias para os projetos no
morro. A ampliao da escola foi ento custeada por Rotary Clubs do Rio de Janeiro e
da Alemanha e pelos governos da Alemanha e do Estado da Baviera. A construo do
colgio foi financiada pela Fundao Sonja Kill, entidade alem atuante em projetos
para crianas e jovens em reas de trfico, prostituio e de outras formas de
escravido. E o Projeto Humanizao do Bairro foi financiado pela Comunidade
Europeia, por Rotary Clubs, por entidades catlicas europeias e pelos governos da
Alemanha e da Baviera, visando atender populao exposta contraveno e
imoralidade.
Mas a VOT no era a nica entidade da Zona Porturia que estruturava seus
espaos a partir de um imaginrio que os conectava ao trfico de drogas e
prostituio. Ao conversar com Cristina, diretora pedaggica da escola, soube da
realizao de um dos cafs da manh mensais do Conselho Comunitrio de Segurana
149

Pblica que abrangia os bairros porturios. A reunio do conselho no ms de maio foi
realizada na sede do Banco Central, localizado na Avenida Rio Branco. Em seu
auditrio, o presidente do conselho e representantes da segurana pblica estadual se
posicionaram em cima de um tablado a frente dos demais presentes, que eram em torno
de quarenta pessoas, e conduziram as inscries das falas. E, durante duas horas de
reunio, o debate que se desenvolveu abordou os usos dos espaos da Zona Porturia e
os mecanismos de controle e segurana que precisavam ser criados durante a
implantao dos projetos de revitalizao urbana.
O debate foi iniciado por Darcy Birger, que se apresentou como integrante do
Rotary Club da Sade e dos projetos da VOT no Morro da Conceio. Ele manifestou a
preocupao com o incentivo aos usos noturnos da Rua Sacadura Cabral, por consider-
los uma influncia negativa aos alunos das escolas da entidade. Em sua opinio, o fim
das atividades porturias tinha sido positivo por ter diminudo as possibilidades de
desvios como o meretrcio, mas o aumento de concesses para a instalao de
bares poderia trazer tudo o mais. Embora Darcy tenha deixado esta expresso sem
definio, seu significado implcito foi facilmente compreendido pelos presentes: logo
em seguida, o presidente do conselho e empresrio do mercado imobilirio, Jos Maria,
conclamou as entidades a se oporem proposta da vereadora Leila do Flamengo de
incentivar a criao de um polo de turismo na Zona Porturia que atrasse os
homossexuais e os travestis de Copacabana e Ipanema. Assim, o tudo o mais dito
por Darcy e associado ideia de desvio e usos noturnos, estendeu-se para as
sexualidades entendidas como imorais e catalisada pela figura do homossexual.
Milton San Roman, presidente do Polo Empresarial da Rua Larga, que inclua os
comerciantes e empresrios instalados na Avenida Marechal Floriano, na Rua Sacadura
Cabral e no Morro da Conceio, afirmou ento que tinha conversado com algumas
pessoas tradicionais e que acordam cedo e que elas relataram se sentirem agredidas ao
verem homossexuais se beijando na Rua Sacadura Cabral, se referindo aos
frequentadores da boate The Week. Em sua opinio, os ambientes noturnos deviam
ser controlados porque podiam ainda movimentar o consumo de drogas. E informou que
sua entidade estava planejando a implantao de um projeto de segurana em toda a
Av. Marechal Floriano, que previa a instalao de cmeras de monitoramento e visava
reeducar ou estabelecer limites quelas pessoas que tm agredido s comunidades.
Sua fala reforava, assim, a estruturao dos espaos da regio atravs das oposies
150

diurno e noturno, sendo o primeiro considerado seguro e ocupado por moradores
tradicionais e, o segundo, perigoso e frequentado por homossexuais.
O vereador Lus Alberto, que havia sido convidado para a reunio por ter atuado
durante dois anos como secretrio de habitao do prefeito Csar Maia, props ento
um posicionamento conciliador entre as noes de segurana, moralidade e
revitalizao ao colocar como mediadora entre elas a noo de riqueza.
Concordando que o crescimento do comrcio trazia sempre um pouco de transtorno,
contra argumentou que, se fosse controlada a desordem, haveriam tambm
benefcios econmicos na transformao de um porto decadente em um porto
voltado para a cidade que oferecesse equipamentos urbanos de comrcio, cultura e
lazer, e ofereceu como exemplos Buenos Aires e Barcelona. E, com essa fala, uniu
como opostas s propostas de revitalizao urbana tanto as ideias de imoralidade e
desordem quanto s de pobreza e decadncia.
E foi a essa pobreza que Gabriel Catarina e Eduardo Pedro, ambos
representantes da Associao de Moradores e Amigos da Gamboa, se referiram a seguir.
Como forma de demonstrar o desrespeito da proposta da vereadora Leila do
Flamengo e de outros polticos com a Zona Porturia, Gabriel comentou que havia
existido tempos atrs uma proposta de remoo da Vila Mimosa
12
para um dos galpes
da retro-rea porturia. E Eduardo completou, tambm em tom de denncia, que j
havia sido feito um recolhimento de mendigos e menores abandonados da Zona Sul
para serem encaminhado para a regio. Outra integrante do Rotary Club da Sade,
Carmelina, se dirigiu ento para o vereador Lus Alberto e criticou a escolha constante
da prefeitura de concentrar no porto essas atividades da cidade que no eram bem
vistas. Na sequncia de falas, os trs tinham operado, portanto, com uma geografia
moral da cidade mais ampla, que valorizava social e economicamente os bairros que
conseguiam expulsar seus habitantes tidos como indesejados e associados aos
imaginrios da criminalidade e do desvio.
Encerrando a reunio, o responsvel pelo Grupamento de Policiamento em
reas Especiais no Morro da Providncia, capito Zuma, disse que considerava a
ocupao militar desse morro fundamental no processo de revitalizao da Zona
Porturia. E que, para combater o trfico de drogas do local, sua meta era recrutar os

12
A Vila Mimosa era um espao de prostituio localizado, at a dcada de 1990, no bairro do Estcio,
Centro da cidade. Com sua remoo, foi construdo no local o centro administrativo da prefeitura, que
passou a ser popularmente chamado de piranho, numa associao irnica entre a prostituio e a
prtica poltica. E a Vila Mimosa foi transferida para a Praa da Bandeira, Zona Norte.
151

jovens para que eles no se tornassem traficantes. Ele achava que o distanciamento
dos jovens em relao ao trafico de drogas j estava acontecendo com a ocupao
militar do morro, porque muitos traficantes estavam sendo mortos ou presos, o que
anteriormente no ocorria por causa da impunidade. E, aps falar do combate dessa
figura tida como a mais perigosa associada regio, que era o traficante, Zuma
solicitou que o conselho elaborasse um relatrio sobre o projeto de revitalizao para
que ele fizesse um pedido de aumento de efetivo do seu grupamento militar.
Com o trmino da reunio, me apresentei a Regina, presidente do Rotary Club
da Sade e diretora geral da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, e tambm a
Carmelina, que iria assumir a presidncia do clube em 2009. E, ao explicar que estava
realizando uma pesquisa no Morro da Conceio, fui convidada para participar do
almoo do Rotary na escola, que ocorria sempre na mesma 5 feira do ms em que se
reunia o Conselho Comunitrio de Segurana. Quando chegamos ao terrao da escola,
nele estavam dispostas mesas e cadeiras de alumnio decoradas por toalhas e, em uma
de suas quinas, havia uma tribuna com um microfone. Dos cerca de trinta scios do
Rotary e convidados que participaram do almoo, a maioria tinha estado tambm na
reunio do conselho e, quando todos se acomodaram, Carmelina apresentou o
palestrante do dia. O socilogo Maurcio Fabio, coordenador de um projeto
educacional da ONG Ao da Cidadania, localizada na Avenida Baro de Tef, proferiu
ento uma palestra sobre os programas Fome Zero e Bolsa Famlia do Governo Federal.
Esse almoo completava assim o circuito das relaes sociais da VOT na Zona
Porturia que era mediado por sua comunidade escolar sediada no morro. Atravs
desse circuito, a entidade se articulava com instituies da segurana pblica, catlicas,
comerciais, empresariais, assistenciais e de representao poltica de moradores que, em
comum, desejavam o controle dos espaos da regio atravs de aes de punio,
educao e assistncia dos que os habitavam. Em suas formas de estruturar tais
espaos, a populao era percebida em uma gradao entre morador, marginal,
desviante e criminoso: eram positivados como moradores os que possuam
hbitos diurnos e condies de moradia e relaes sociais consideradas boas e regulares;
classificados como marginais as prostitutas, os dependentes qumicos, os
favelados, os menores abandonados e os mendigos, figuras para as quais estas
instituies elaboravam projetos que os convertessem a uma moralidade tida como
positiva; como desviantes os homossexuais, que buscavam ser evitados na
152

convivncia da vizinhana; e como criminosos os traficantes, que possuam como
projetos a priso ou a morte.
Aps ter conhecido esse circuito da VOT, consegui agendar no final de agosto
uma conversa com a coordenadora geral do Projeto Humanizao do Bairro, Adlia
Vallis. Nosso encontro ocorreu na escola, quando ela ento solicitou que eu
apresentasse uma carta da UFRJ endereada VOT e um roteiro de pesquisa para que
me fornecesse um crach de acesso s escolas e aos cursos do morro, demonstrando que
esses espaos eram rigidamente controlados. Essa nossa primeira conversa foi breve e
Adlia sugeriu que eu tambm pesquisasse o dia a dia do Conselho Comunitrio de
Segurana.
Ela me explicou que, quando suas atividades foram iniciadas, o caf da manh
era sempre organizado no Batalho da Polcia Militar, localizado na Praa da Harmonia,
na Gamboa. Mas, como algumas pessoas tinham medo de entrar no batalho e serem
chamadas de X9, gria que em seu uso comum denominava as pessoas que delatavam
para a polcia prticas consideradas ilcitas, as instituies que participavam do conselho
decidiram organizar o evento de forma itinerante. O uso dessa gria, no entanto,
indicava que as classificaes de determinados habitantes da Zona Porturia como
marginais, criminosos e desviantes possuam contra posicionamentos e
produziam, igualmente, classificaes que negativavam os mecanismos de controle.
Por sugesto de Adlia, nos encontramos dois dias depois no Hospital da Usina,
onde estavam os relatrios fotogrficos e financeiros de implantao dos projetos
sociais da VOT no morro. Adlia iniciou a conversa narrando a ocupao do morro pela
entidade de forma semelhante ao site institucional, mas apresentando duas variaes
especficas. A primeira foi a delimitao do territrio doado pelo Padre Francisco da
Motta entidade, que havia se tornado relevante dentro da disputa que a entidade
travava com os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal. Segundo Adlia,
no testamento do padre estavam includos, alm da igreja, 53 escravos, algumas casas,
um trapiche e um territrio que se estendia por toda regio da Prainha, percorrendo o
trecho da Rua Sacadura Cabral entre a Praa Mau e a Pedra do Sal, formao rochosa
que antes de ser parcialmente dinamitada adentrava o mar e separava essa regio da
Gamboa.
E a segunda variao narrativa foi sobre a nova etapa dos projetos
educacionais e assistenciais desenvolvidos pela VOT no morro, que Adlia contou
como uma sequncia de eventos que relacionava a reformulao administrativa da
153

entidade, a entrada de Frei Eckart na sua superintendncia e o incio da parceira da
entidade com o Rotary Club. Segundo Adlia, at o incio do sculo XX o hospital da
VOT estava instalado na base do Morro de Santo Antnio, mas com o desmonte
realizado pela reforma urbanstica de Pereira Passos suas instalaes foram deslocadas
para duas chcaras na Usina. Com o passar dos anos, o estabelecimento ficou
reconhecido como um centro de maternidade, mas, como os descendentes dos
beneficirios que haviam financiado o hospital j estavam na terceira ou quarta gerao
e no pagavam por sua utilizao, em 1987 o hospital iniciou um processo de falncia:
os que ento administravam o hospital deviam cerca de 600 causas trabalhistas e, por
no conseguirem sanar as dvidas, entregaram todos os bens da entidade ao Cardeal
Dom Eugenio Salles.
O cardeal decidiu transmiti-los ordem primeira dos freis sediada em So Paulo
e Frei Eckart, que era o responsvel por seu setor jurdico, foi transferido para o Rio de
Janeiro como interventor do hospital. O frei ento negociou as dvidas trabalhistas e
criou um estatuto para a gesto do hospital; transformou-o de maternidade em hospital
geral; cancelou o convnio com o instituto previdencirio do governo e fez acordos com
diversos planos privados de sade. Ao reorganizar a atuao administrativa, jurdica,
econmica e mdica do hospital, o frei tambm buscou desoner-lo da manuteno
financeira da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, fazendo um emprstimo no banco
catlico Pax-Bank que a sustentou por quase dez anos. E, para pagar esse emprstimo,
criou na Alemanha duas organizaes que recebiam doaes: a Fundao de Amigos do
Padre Francisco da Motta e a Associao dos Amigos do Frei Eckart.
Em 1998, o frei e Adlia se conheceram durante a Conferncia Pan-Americana
da Paz realizada em um centro de convenes da cidade. Adlia estava sendo
empossada naquele ano governadora do Rotary do Rio de Janeiro, o que a tornaria
responsvel pela administrao de sessenta Rotary Clubs, e foi ento procurada por dois
governadores rotarianos da Alemanha e apresentada ao frei. Ele a convidou para apoiar
a ampliao da escola e Adlia aceitou, colocando como condio a implantao de
alguns padres educacionais, que foram definidos a partir de sua percepo de quais
seriam as caractersticas de uma escola localizada na Zona Porturia.
Na opinio de Adlia, os alunos que saam da Escola Padre Dr. Francisco da
Motta com 10 anos de idade iam para rua, porque no havia escolas pblicas locais
154

que as absorvessem. E, remetendo-se ao massacre na Candelria
13
, quando seis jovens
haviam sido assassinados, disse que possivelmente alguns deles fossem ex-alunos da
escola, colocando-os assim dentro de um imaginrio relacionado falta de controle
familiar e ao perigo. A proposta educacional encaminhada por Adlia previu ento a
extenso do ensino at a 8 srie, o atendimento de 800 alunos, a oferta de alimentao e
de programas de incluso digital e capacitao profissional e a obrigatoriedade da
presena do aluno nos turnos da manh e da tarde.
Para ampliar a escola, a VOT uniu internamente vrias casas de sua propriedade
que eram a ela contguas e comprou mais oito casas. Adlia, que estava administrando a
parte financeira do projeto, disse que, quando iniciou a obra, os 400 mil dlares doados
pelos rotarianos do Rio de Janeiro, da Alemanha e dos Estados Unidos no haviam sido
suficientes: comeou a brotar gua da pedra que ficava na base das casas e foi muito
oneroso remover o entulho gerado pelas obras e o lixo que havia no terreno atrs da
escola. Para complementar esses custos que no estavam previstos no oramento, os
parceiros alemes do projeto procuraram o Ministrio de Ao Social da Alemanha, que
concordou em contribuir com mais 500 mil dlares, e o governo do Estado da Baviera
tambm doou 85 mil dlares para instalar uma cisterna. A expanso de 3.500 m da
escola foi finalizada em 2003 e, em 2008, o seu custo mensal de manuteno era de 200
mil reais. O Colgio Sonja Kill foi construdo em seguida ao lado da escola e foi
financiado unicamente pela Fundao Sonja Kill, iniciando suas atividades em 2005.
Durante a expanso das atividades educacionais, a VOT tambm implantou o
Projeto Humanizao do Bairro. Segundo Adlia, o aumento do nmero de alunos
havia gerado tambm um aumento do nmero de pais e, como metade deles era
composta por moradores do Morro da Providncia, precisavam ser capacitados
profissionalmente. O projeto foi orado em 1,7 milhes de euros e o Rotary foi
convidado mais uma vez para apoi-lo. As duas entidades ento apresentaram o projeto
Comunidade Europeia, argumentando que ele visava atuar em um espao classificado
pelo governo brasileiro como habitado por uma populao marginalizada, devido a
pouca oferta de servios pblicos.
Assim, articulando novamente um discurso que associava a Zona Porturia a um
espao carente por projetos sociais, a VOT teve o projeto aprovado em 2000. A

13
A chacina da Candelria, como ficou conhecida, ocorreu em uma madrugada de julho de 1993,
quando policiais militares pararam em frente Igreja da Candelria e atiraram em mais de setenta
crianas e adolescentes que estavam dormindo. Como resultado da chacina, seis menores e dois maiores
morreram e vrias crianas e adolescentes ficaram feridos.
155

Comunidade Europeia, no entanto, financiou apenas 75% dele, exigindo que os demais
15% fossem financiados por uma ONG europeia, que deveria ser tambm a responsvel
por sua administrao financeira. Entraram ento como parceiros do projeto uma misso
franciscana alem e a Caritas Obra Papal. VOT, coube sua execuo e a
disponibilizao de trinta imveis de sua propriedade. E o Rotary contribuiu com a
doao de equipamentos para os cursos de marcenaria, padaria, grfica e computao e
para os laboratrios que funcionavam na escola. A maior parte dos cursos
profissionalizantes abriu turmas nos anos de 2005 e 2006 utilizando vinte e um imveis.
Os nove imveis restantes estavam localizados no Adro de So Francisco e na Rua So
Francisco da Prainha e ficaram aguardando a captao de novos recursos financeiros
para instalao de outros cursos.
Ao fim da conversa, fui encaminhada para Michele, designer que trabalhava na
VOT desde agosto de 2005 fazendo as peas grficas de seus projetos sociais. Ela me
mostrou a apresentao audiovisual do Projeto Humanizao do Bairro que havia sido
elaborada para prestar contas aos auditores da Comunidade Europeia e contou que o
projeto havia sido feito baseado em um modelo dessa organizao e registrado com o
nome Promoo do desenvolvimento para grupos de populao marginalizada da Zona
Porturia do Rio de Janeiro; mas, como os dirigentes da VOT acharam que utilizar o
termo populao marginalizada conferiria a ele uma conotao pejorativa associada
criminalidade, o nomearam Projeto Humanizao do Bairro.

156

O projeto foi composto por seis subprojetos e Michele me mostrou sua
distribuio pelas casas do morro atravs de uma foto area com marcadores grficos.
No Centro Comunitrio (casa 1) localizado em frente ao Largo Joo da Baiana, ficou
concentrado o ncleo de inscrio do subprojeto Cursos de Formao Profissional.
Segundo Michele, as maiores procuras haviam sido para os cursos de tcnicas artesanais
(casas 4 e 14), msica (casa 5), cabeleireiro e manicure (casa 10), corte e costura (casa
11), informtica e telemarketing (casa 15), todos esses localizados nas casas do adro; e
para os cursos de padaria (casa 19), artes grficas (casa 20) e marcenaria (casa 21),
localizados na Rua So Francisco da Prainha. No entanto, tambm houve cursos que
no tinham tido um funcionamento regular por falta de inscritos ou de professores
especializados, como os de auxiliar administrativo, gesto e microcrdito (casa 07), de
eletrnica e eletricidade (casa 08), camareira (casa 12), pintor e ladrilheiro (casa 09) e
tecelagem (casa 13).
O subprojeto Centro de Crianas com Estrutura Familiar tinha como objetivo
atender s crianas em risco que ficassem sob a tutela da VOT. Montado na casa 18,
esse centro seria gerenciado por funcionrios denominados de pais sociais e as
crianas seriam atendidas pela escola e cursos da entidade. Michele ento explicou que
a VOT j possua um projeto nesse formato em Tangu, municpio de Rio Bonito, e que
nem todas as crianas atendidas por ele eram rfs, muitas os pais tinham perdido a
guarda legal atravs do Juizado da Criana e do Adolescente, por causa de maus tratos,
violncia ou negligncia. Ela ento exemplificou o tipo de crianas que o projeto
pretendia atender na Zona Porturia narrando o caso de trs alunos da escola que eram
filhos de uma prostituta que morreu e que, por na falta de parentes para abrig-los,
foram adotadas informalmente pelos prprios pais da comunidade. Mas, Adlia
informou que esse subprojeto no pde ser implantado porque um acordo entre a
prefeitura e a Juizado da Criana e Adolescncia da cidade do Rio de Janeiro havia
proibido que instituies possussem a guarda ou adotassem crianas.
O subprojeto Sade Bsica ocupou o centro comunitrio, onde foram oferecidos
os atendimentos odontolgicos, e a casa 06, onde foram montados os consultrios de
ginecologia, clnica mdica, pediatria e o atendimento inicial de oftalmologia e
dermatologia, que depois eram encaminhados para o hospital da Usina. O subprojeto
Promoo de Mulheres, tambm instalado no centro comunitrio, tinha como objetivo
fornecer cursos de nutrio, cuidado com o beb, cuidado com idosos e atendimento
jurdico. Fazia ainda parte dele a creche que foi instalada dentro da escola. E o
157

subprojeto Centro de Contato e Informao tinha como objetivo a preveno
dependncia qumica de drogas ilcitas e lcitas, como lcool e cigarro. A VOT fez
ento uma parceria com a Secretaria Especial de Dependncia Qumica da prefeitura e
ofereceu um curso para multiplicadores da regio, com a presena de representantes
das igrejas, de empresas e dos institutos educacionais. E ofereceu atendimento
psicolgico individual ou em dinmicas de grupo.
E o subprojeto Centro de Tradio e Cultura construiu a Casa de Cultura (casa
03), que funcionava quando tinha alguma exposio; a biblioteca (casa 16); e o
cineteatro no sobrado que era denominado de Palcio das guias (casa 17), que ainda
estava sendo reformado e teria uma lotao de 100 pessoas e um espao utilizado como
centro de convivncia. E, embora no tenha sido includa diretamente em nenhum dos
subprojetos, a casa 02 havia sido disponibilizada para o Conselho Comunitrio de
Segurana Pblica, com a inteno de que abrigasse uma secretaria com sua memria
e documentao.
Assim, atravs de atividades educacionais e assistncias desenvolvidas no
morro, a entidade props a insero da populao marginalizada da Zona Porturia
em um mercado formal de trabalho que se opunha estruturalmente s atividades que
articulava como criminosas e imorais: o trfico de drogas e a prostituio. E,
relacionando seus espaos noo de perigo, ofereceu s crianas em risco, que
seriam os filhos dessa populao marginalizada, uma estrutura familiar que
identificavam como inexistente ou precria.
Opondo as noes de sade e doena, que eram a base de estruturao de
sua misso, a entidade operou ainda uma diviso de espaos entre femininos e
associados aos cuidados familiares, e masculinos e associados dependncia qumica.
E, para divulgar a tradio e a cultura que consideravam positivas, idealizou
espaos para a exposio de produtos mediadores como livros, fotografias, artes
plsticas, filmes e peas teatrais. Atravs desses espaos era ainda mais ampliada sua
rede de relaes locais, fosse oferecendo um local para o funcionamento do conselho
comunitrio de segurana, fosse para abrigar outras instituies e eventos que
estruturavam de forma semelhante os espaos da Zona Porturia, como os que eram
realizados por alguns dos moradores da parte alta do morro.

O PROCESSO DE TRANSFORMAO DE RESIDNCIAS EM OBRAS SOCIAIS

158

A narrativa de Adlia era predominantemente voltada para os aspectos
administrativos e financeiros dos projetos da VOT no morro e, buscando conhecer seus
aspectos jurdicos, fisiolgicos e estticos, agendei em setembro dois encontros com
especialistas da entidade: com o engenheiro civil e industrial Carlos Pinheiro,
responsvel pela idealizao e execuo do projeto arquitetnico de reforma das casas;
e com a advogada Tatiana Brando, que realizou os acordos e aes para que os
moradores dos imveis que seriam utilizados pelos projetos fossem despejados ou
realocados e estava enfrentando judicialmente o pleito do Quilombo da Pedra do Sal.
Pinheiro trabalhava para a VOT desde 1997, mas assumiu o projeto de reforma
das casas do morro apenas em 2001, quando ele j havia sido elaborado, mas precisava
de modificaes para atender a exigncias do rgo patrimonial municipal. O projeto
arquitetnico que ento props teve como diretrizes recuperar fisicamente o casario
sem alterar sua volumetria e desnveis e valorizar a beleza e a limpeza, noes por
ele operadas em oposio ao que entendia ser um espao triste e associado ao lixo.
Ele me explicou que a VOT possua cerca de 800 imveis na cidade, sendo que mais de
120 estavam localizados na parte do Morro da Conceio voltada para a Rua Sacadura
Cabral. Quando comeou a implantao do conjunto de projetos, algumas casas eram
alugadas, mas cerca de 70% eram ocupadas irregularmente. Tinha sido somente aps a
entrada do Frei Eckart na administrao da entidade que os invasores do conjunto dos
imveis que ela possua na cidade foram sendo gradualmente retirados e as casas
restauradas.
Quase todas as casas que foram utilizadas pelos projetos educacionais e sociais
da VOT eram de dois andares e, segundo Pinheiro, estavam ocupadas por inquilinos
ou invasores e se encontravam em pssimo estado, que ele qualificou como
construdas com tcnica de pau a pique e alteradas do original por reformas internas.
Assim, embora Pinheiro articulasse uma oposio entre inquilino e invasor, ela era
apenas econmica e jurdica, j que, mediado por suas categorias sensveis, ele
relacionava todos aqueles espaos ao sujo e ao feio. O material das casas era
percebido por ele tambm como instvel e perecvel, por fazer com que, no momento
de demolio das paredes internas, a estrutura da casa fosse abalada e ela russe.
O primeiro conjunto de casas foi desocupado para a ampliao da Escola Padre
Dr. Francisco da Motta e para a criao do Colgio Sonja Kill. Antes, a escola
funcionava em uma casa na esquina do Adro de So Francisco e do Beco Joo Jos.
Aps as obras, foram anexadas sua edificao treze casas contguas do beco e dois
159

terrenos da Rua Mato Grosso, fazendo com que a escola e o colgio ocupassem todo
um quarteiro do morro. A escolha dos materiais utilizados durante as reformas foi
pautada pelo desejo de conservao, com a adoo dos considerados de alta
qualidade e durabilidade e valorizando a riqueza em oposio ao que Pinheiro
percebia ser a pobreza da Zona Porturia.
Todas as paredes de pau a pique foram derrubadas e substitudas por blocos de
cimento, as lajes de madeira foram trocadas por pr-fabricadas de concreto, as telhas
foram feitas com madeira de primeira, o piso recebeu um revestimento de granito e
foram construdos banheiros de qualidade e uma grande cisterna para abastecer de
gua todo o complexo. No caso das madeiras, muitas foram reaproveitadas por serem
em pinho de riga, madeira considerada de boa qualidade, mas em todos os materiais foi
feito uma alterao ou dado um novo tratamento fsico ou qumico que possibilitasse
sua retirada da realidade anterior considerada decadente e o inserisse naquela nova
temporalidade e espacialidade bela e limpa. Para Pinheiro, a ao de reforma era,
portanto, no apenas a demarcao de um novo tempo dos espaos do morro, mas
tambm um embate cosmolgico entre os ideais franciscanos e as caractersticas que
percebia negativamente como estruturantes dos espaos habitacionais da Zona
Porturia.
Segundo Pinheiro, o processo de reforma das casas do morro havia sido um
perodo muito difcil de sua vida, que provocou nele duas paradas cardacas. Na vspera
de um dos enfartes, ele estava na obra e pegou um monte de troo de piolho, pulga,
uma coisa horrvel, mas disse que teve uma recuperao boa graas a Deus e So
Francisco. Assim, ao se deparar com a presena no s de humanos, mas tambm de
piolhos e pulgas que ele percebia como uma extenso da sujeira, pobreza e feiura
dos espaos, Pinheiro recorreu entidade espiritual do patriarca mtico dos
franciscanos. E havia sido tambm a partir de uma motivao religiosa e da percepo
de que havia um perigo externo que ele pintou as paredes da escola e do colgio na
cor azul claro, para que os mantos de Nossa Senhora oferecessem proteo.
Os momentos de dificuldade das reformas foram ento narrados por Pinheiro
como ultrapassados e recompensados com o que considerou ter sido uma das melhores
criaes do projeto de ampliao da escola, que foi a construo de uma rea de lazer
ao ar livre para os alunos brincarem. Ele falou da criao desse novo espao
enfatizando tambm seu aspecto religioso, como uma inspirao de So Francisco
que foi dada ao Frei Eckart. Segundo Pinheiro, a equipe de obra estava instalando a laje
160

para colocar o telhado no segundo andar de duas casas, mas tiveram de aguardar o
tempo da laje descurar, que variava entre 17 e 28 dias, dependendo da umidade do ar.
Nesse tempo, os alunos da escola soltaram pipa e brincaram de roda na laje e, quando o
frei viu esse uso, decidiu que ali no seria colocado um telhado, mas feito um terrao.
Essa alterao do projeto, no entanto, no era permitida pelas legislaes
patrimoniais municipal e federal, porque aumentava a volumetria da edificao. E,
apesar de Pinheiro ter sido contra a ideia, falou que concordou em faz-la porque devia
uma dupla lealdade ao Frei Eckart, como funcionrio da VOT e por ser ele seu
dirigente espiritual. Pinheiro ento levantou o telhado um pouco mais de dois metros
acima do cho e fez um terrao em todas as casas da parte ampliada da escola E, por
causa dessa alterao, havia seis anos que a prefeitura emitia ordens de demolio dos
terraos e se recusava a fornecer o habite-se da escola.
Articulando uma oposio entre as noes de uso e forma das casas
utilizadas pela escola, Pinheiro argumentou que a VOT trabalhava em favor da
primeira, dizendo que os imveis haviam sido reformados para a coletividade que
chamou de o povo e que estaria acima dos interesses individuais e das exigncias
formais dos rgos patrimoniais. Segundo ele, o espao das escolas era importante
para que as crianas no fossem para a rua, considerando, portanto, em oposio, ser
esse espao a casa delas. E, para evitar invases, Pinheiro estava estudando uma
forma de transformar a rea da escola em um condomnio fechado, com a colocao
de trs portes nas suas vias de acesso, embora soubesse que havia implicaes
jurdicas nesse procedimento de tornar vias pblicas em privadas.
Durante a execuo do Projeto Humanizao do Bairro, Pinheiro manteve a
volumetria de todas as casas para evitar mais atrito com os rgos pblicos. E os
exemplos que Pinheiro ofereceu de casas em pssimo estado uniam os aspectos
fsicos dos imveis a uma avaliao moral de seus usos e usurios. Ele contou que os
nmeros 27 e 29 da Travessa do Sereno, que foram unificados para a instalao do
centro comunitrio, e o Palcio das guias, que foi ocupado pelo cineteatro, antes eram
um ponto de atuao do trfico de drogas. Disse que, no incio das reformas, tinha
levado revlver no rosto trs vezes, porque muitos moradores eram contrrios
implantao do projeto nas casas e outros eram da noite e, como as obras iniciavam
s 07 horas, horrio em que estavam dormindo, eles ameaavam os funcionrios e
exigiam que s produzissem barulho a partir das 14 horas.
161

Segundo sua percepo, antes da implantao dos projetos ocorria assaltos e
roubos mesmo no perodo diurno e as pessoas eram violentas e agressivas. Mas,
por causa das reformas, das escolas e dos cursos, houve uma evoluo social da
comunidade, que ficou mais educada e tranquila. Em sua opinio, a pedagogia
com a espiritualidade franciscana tinha produzido uma miscigenao entre os
meninos, que era como chamava os alunos e qualificava a interao social dos filhos
de prostituas, de mulheres do local com outros alunos. E afirmou, em seguida, que os
cursos tinham como intuito dar treinamento para que as mulheres pudessem ter outra
profisso e fossem salvas.
O processo de transformao nas casas do morro pela VOT podia, portanto, ser
entendido a partir do uso que Pinheiro fazia da noo de reforma, que se opunha ao
tempo passado do imvel, caracterizado como deteriorado. Tambm operada pelos
termos resgate, recuperao, restaurao, reaproveitamento e salvao, essa
noo de reforma podia tanto se referir a aes de interveno nos aspectos fsicos das
casas, como nos aspectos morais e sociais dos moradores da Zona Porturia. E, como
categoria mediadora do tempo passado para o futuro, ele operava a noo de
inaugurao, que era o momento fundador onde se considerava alterada a realidade
tida como degradada e iniciada uma nova temporalidade e espacialidade. De acordo
com o arquiteto, a fase mais difcil de implantao dos projetos arquitetnicos era a da
conservao da qualidade da obra ou, como ele havia expressado, de deixar os
imveis parecendo sempre que vo inaugurar.
Pinheiro por fim comentou que a entidade ainda pretendia implantar o Projeto
Humanizao do Bairro 2 em seis imveis contguos da Rua So Francisco da Prainha
que ficavam defronte para o Largo da Prainha. A ideia era unificar a parte de cima de
todos os sobrados e instalar um salo para a escola de msica funcionar e se apresentar
e, no andar trreo, instalar centros gastronmicos e cursos para a formao de
cozinheiros. J no trecho da Rua So Francisco da Prainha entre os largos da Prainha e
Joo da Baiana, onde estava a maior parte dos imveis pleiteados pelo movimento
quilombola, a ideia era notificar os inquilinos para a sada dos imveis da entidade e
utiliz-los para a oferta de outros cursos. Nesse trecho da rua, o nico imvel que no
era de propriedade da entidade era onde funcionava a Penso Marie, mas eles tinham
planos de negociar suas compra.
Depois dessa expanso dos cursos, o projeto da VOT era captar recursos para
reformar a Igreja da Prainha e criar um mendigdromo, que foi como se referiu ao
162

projeto de abrigar moradores de rua em um prdio que a entidade possua prximo
Rodoviria Novo Rio. Alm desses projetos, o frei tambm estava captando recursos na
Alemanha para fazer um hotel escola e ocupar outro prdio da entidade na Avenida
Baro de Tef, em frente ao Hospital dos Servidores. A proposta era que se tornasse um
hotel franciscano que oferecesse cursos de camareira, abrigasse encontros de retiro
e absorvesse como mo de obra os alunos sados do Colgio Sonja Kill. Ainda com a
inteno de utilizar essa mo de obra, o frei estava idealizando criar uma faculdade de
enfermagem. Segundo Pinheiro, a grande obsesso do frei era tirar as crianas da
rua, para que elas no fossem trabalhar para o trfico.
Como havia sido demonstrado pela fala de Pinheiro, a transformao dos usos
residenciais dos imveis em projetos educacionais e assistncias no tinham sido um
processo social harmnico, movimentando diversos conflitos entre os moradores e a
entidade. E foi sobre esses conflitos que conversei com a advogada Tatiana no escritrio
jurdico que tambm era sediado no hospital da Usina. Ela trabalhava na VOT havia seis
anos e tinha acompanhado desde o comeo a formao do Quilombo da Pedra do Sal.
Logo no incio da conversa, Tatiana fez uma ressalva ao termo que eu estava usando
para se referir formao do quilombo, dizendo que no havia nenhum conflito,
apenas problemas judiciais. Sua distino de termos demarcava assim duas formas
diferentes de perceber o pleito desses moradores: na percepo dos dirigentes da VOT,
ele era uma questo habitacional referente s leis de inquilinato, e no uma questo
tnica referente a leis de promoo da igualdade racial e de reparao histrica.
Tatiana contou que, quando ela comeou a trabalhar na entidade, a maioria dos
imveis do morro era destinada para a locao e, como havia muitos inquilinos
inadimplentes e invasores, foram desenvolvidas aes de despejo e reintegrao de
posse. Mas nunca tinha havido uma poltica de aumento de aluguis da entidade para
que fosse aproveitada a divulgao dos projetos de revitalizao urbana da Zona
Porturia, apenas havia sido feita uma reviso de preos baseada no valor de mercado
dos imveis. Segundo Tatiana, o perfil dos inquilinos da entidade no morro era de
baixa renda e muitos moravam l havia vrios anos e trabalhavam no cais do porto,
como camel ou no comrcio do Centro da cidade.
Havia sido somente aps a entidade resolver utilizar alguns imveis para a
ampliao das atividades educacionais e para a implantao do Projeto Humanizao
do Bairro que os moradores inadimplentes foram notificados de despejo e os que
tinham um bom relacionamento e pagavam regularmente o aluguel foram realocados
163

para outros imveis da entidade localizados nas ruas So Francisco da Prainha,
Sacadura Cabral e Eduardo Jansen. E foi assim, diferenciando bons inquilinos,
inquilinos inadimplentes e invasores, que ela contou que o nico problema srio
que havia enfrentado no morro tinha sido a desocupao do casaro Palcio das guias,
localizado na Rua Mato Grosso.
Segundo Tatiana, foi a inquilina desse casaro que quis rescindir a locao que
tinha com a VOT havia mais de 40 anos, alegando que havia sublocado o imvel e que
os moradores estavam devendo a ela. A equipe jurdica da entidade foi ento conversar
com os que sublocavam o casaro e deram um prazo para que desocupassem o imvel.
Mas, como eles no aceitaram sair, a entidade desenvolveu a ao de despejo judicial,
cujos moradores Tatiana caracterizou dizendo que tinha angolano l dentro, gente sem
documento nenhum, gente que s tinha um colchonete e que botou nas costas e foi
embora, associando assim a noo de inadimplente falta de documentos ou bens.
Sobre os moradores que tinham formado o Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana
contou que, quando a VOT iniciou uma ao judicial de reintegrao de posse do
imvel que Damio ocupava de forma ilegal na Travessa do Sereno, Lcia tinha
procurado ela para negociar sua permanncia. Tatiana argumentou que queria reaver o
imvel porque ele estava caindo e precisando de obras, explicando que a falta de
cuidado com o imvel era outra caracterstica do pessoal da Praa Mau. E havia sido
um pouco depois desse seu encontro com Lcia que cinco moradores apresentaram o
certificado da Fundao Cultural Palmares se autodenominando comunidade
quilombola. Mas, segundo Tatiana, nunca tinha existido um movimento, o grupo era
formado apenas por pessoas que no queriam pagar aluguel; sendo que um dos que
assinaram o certificado nem mesmo era inquilino da VOT e outro que havia aderido
depois ao movimento era um chileno que no momento do despejo reivindicou ser
quilombola.
Depois da certificao, o INCRA havia movido uma Ao Civil Pblica para
impedir que a VOT pudesse alterar os usos de seus imveis at que fosse concludo o
processo de identificao e delimitao do Quilombo da Pedra do Sal. Mas a entidade
havia entrado com um mandato de segurana para impedir esse processo, concedido
em primeira instncia porque o juiz havia considerado que o Relatrio Histrico e
Antropolgico apresentado, alm de ser preliminar, no demonstrava a existncia de
um quilombo na regio. No entanto, em segunda instncia, a entidade havia perdido, e
estava ainda aguardando o resultado do recurso que apresentou. Assim, na fala de
164

Tatiana nada diferenciava os moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do
Sal dos demais que ela classificava como inadimplentes, ilegais e invasores, e a
solicitao de reconhecimento tnico era considerada apenas um artifcio jurdico
para que eles conseguissem permanecer de forma irregular nos imveis da entidade.
Operando ento com um regime de autenticidade sobre os habitantes do morro,
Tatiana disse que os moradores do morro tambm eram contrrios ao reconhecimento
do quilombo e que ela possua um abaixo-assinado com duas mil assinaturas
explicitando esse posicionamento. Em seguida, mostrou um mapa contido no relatrio
de delimitao e identificao produzido pelo INCRA, onde estava demarcada o
territrio que o quilombo havia solicitado e que inclua imveis na Rua Sacadura
Cabral, Rua do Escorrega, Travessa Mato Grosso, Rua So Francisco da Prainha,
Travessa do Sereno, Rua Argemiro Bulco, Rua Camerino e o Observatrio do
Valongo. E acentuou que eles tinham excludo desse territrio apenas o Adro de So
Francisco e o quarteiro onde estavam a escola e o colgio, porque, em sua opinio,
desejavam que a entidade continuasse mantendo as obras educacionais e sociais que
desenvolvia no morro.
E, para desqualificar o pleito do Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana afirmou que
a titulao de um grande territrio s se justificava em casos onde havia uma
comunidade que vivia economicamente da terra, se referindo plantao, pesca e
artesanato. Em sua avaliao, o relatrio apresentado pelo INCRA narrava apenas as
histrias de vida de Lcia, Damio e Luiz Torres. Mas, alm deles, havia outros
integrantes do quilombo que no tinham suas historias conhecidas: Marcos Evangelista
(Marquinhos) e o chileno Ernan, ambos moradores da Rua So Francisco da Prainha;
Rafael, morador de uma casa no Adro de So Francisco; e Getlio Brasil, morador da
Rua do Escorrega. E ela no reconhecia haver entre eles a formao de uma
comunidade, alegando que eles no possuam um cotidiano em comum nem um
lder comunitrio ou atividades como festas e celebraes, tendo se unificado apenas
para evitar as aes de despejo.
Tatiana ento contou que havia se encontrado com as historiadoras e a
antroploga que tinham produzido o relatrio para o INCRA, e que elas haviam
defendido o pleito do grupo argumentando que o termo quilombo definido
juridicamente era relacionado preservao da cultura negra. Mas ela considerava
que o movimento dos trabalhadores do cais do porto e a batucada que faziam na hora
do almoo no podiam ser classificados historicamente como um movimento
165

quilombola. E, para rebater a afirmao de que havia uma ocupao do morro por
afrodescendentes, narrou o que acreditava ser sua ocupao tradicional: a dos
franciscanos, demarcada pela Igreja da Prainha; e a dos portugueses que foram morar
na sua parte alta.
E, se referindo noo de Pequena frica, afirmou que ela ficava localizada
na Praa Onze, local onde estavam o monumento a Zumbi dos Palmares e a escola
municipal Tia Ciata, construes que em sua opinio comprovavam que era naquele
espao que os escravos iam fazer os batuques. Sobre o trfico negreiro que ocorria no
Valongo, ela respondeu que esse era um espao diferente do pleiteado, voltado para a
Rua Camerino e o Morro da Providncia. E, em relao a ter sido a Pedra do Sal um
espao de rituais do candombl, Tatiana argumentou que, se fosse considerar na cidade
como marco territorial de comunidade quilombola um espao de oferenda, qualquer
esquina, qualquer cruzamento virou quilombo.

OS ESPAOS DA REPARAO E DAS PRTICAS DO CANDOMBL

Tendo como referncia espacial a Pedra do Sal, tombada pelo INEPAC na
dcada de 1980 como monumento de representao da cultura afro-brasileira, a
Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal havia surgido duas
dcadas depois, em um contexto onde as propostas de transformao urbanstica e de
valorizao fundiria da Zona Porturia fizeram eclodir diferentes movimentos
habitacionais que reivindicavam um espao para a moradia popular da regio.
Havia sido aps a divulgao do Porto do Rio que surgiram, por exemplo, trs
ocupaes de moradores sem tetos, todas elas trazendo em seus nomes referncias ao
movimento abolicionista brasileiro: a Ocupao Chiquinha Gonzaga, criada em julho de
2004 em um prdio na Rua Baro de So Felix pertencente ao INCRA; a Ocupao
Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifcio na Avenida Venezuela
do Instituto Nacional de Seguridade Social INSS; e a Ocupao Quilombo das
Guerreiras, realizada em outubro de 2006 em um prdio da Companhia Docas na
Avenida Francisco Bicalho. Mas, nesses movimentos de moradores sem-teto havia
tido apenas o uso simblico da escravido e da excluso do negro no pas para que fosse
reivindicada uma poltica habitacional popular.
J o Quilombo da Pedra do Sal se organizou em torno da noo de identidade
tnico-racial e pleiteou juridicamente uma reparao histrica concedida atravs da
166

titulao territorial. E, atravs da operao da noo mtica de Pequena frica, seus
integrantes propuseram uma nova forma de percepo dos espaos do Morro da
Conceio e da Zona Porturia, que os conectavam memria negra, moradia popular,
ao trabalho porturio, ao samba e s prticas de candombl. E, no conflito que travaram
com a VOT, entidade por ele identificada como oposta sua identidade e ocupao
habitacional, duas formas distintas de estruturar os espaos do morro e da Zona
Porturia foram movimentadas.
Para os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, a pedra era considerada uma
importante referncia de seu passado mtico e vivenciada cotidianamente de forma tanto
profana quanto sagrada. Nas noites em que havia as rodas de samba organizadas pela
Bodega do Sal, eles armavam uma barraca de comidas e bebidas no local e atuavam
como vendedores ambulantes. E, nas datas comemorativas consideradas estruturantes
para a formao da identidade que denominavam de esprito quilombola, que eram os
dias de So Jorge, da Conscincia Negra e do Samba, organizavam festas coletivas onde
ritualizam a presena habitacional dos orixs e dos antepassados mortos dos escravos,
sambistas e porturios que, ao longo dos anos, haviam frequentado a pedra. E para a
VOT, a Pedra do Sal e seu entorno era um espao perifrico de seu centro simblico, a
Igreja da Prainha, e onde seus dirigentes desejavam implantar o Projeto Humanizao
do Bairro, que era pautado pelas noes de reforma e salvao e baseado em uma
moralidade que percebia o conjunto da populao da Zona Porturia como
marginalizada e exposta criminalidade e ao desvio.
Mas suas formas distintas de estruturar os espaos do entorno da Pedra do Sal
podiam ser compreendidos tambm pela maneira como vivenciavam suas vida religiosa
e como elas ordenavam o mundo pelos fundamentos catlicos ou do candombl; pois
havia uma srie de oposies entre os espaos considerados por ambos os grupos como
sagrados. A Pedra do Sal era um espao aberto, na rua, onde se desenvolviam
relaes igualitrias. Os rituais que eram nela realizados mediavam humanos, mortos e
deuses, reverenciando assim os espaos do solo, subsolo e cu, e utilizavam objetos
portteis e sacralizados pelo prprio ato ritual, como quartinhas, velas e alguidares, cujo
princpio era o consumo e, portanto, a perenidade. J a Igreja da Prainha era um espao
fechado, uma casa, onde se desenvolviam relaes hierarquizadas. Os rituais que nela
eram realizados mediavam humanos e um nico deus e dividiam o mundo em apenas
dois espaos verticalizados, a terra e o cu. E utilizavam objetivos entendidos como
167

portadores de uma aura sagrada e que deviam manter-se conservados, no sendo,
portanto, vivenciados como perecveis.
Mas, apesar dos aspectos religiosos e culturais que a comunidade quilombola
movimentava atravs das prticas do candombl, o Quilombo da Pedra do Sal se
apresentava jurdica e politicamente como um pleito de reconhecimento tnico polmico
entre acadmicos, integrantes de movimentos sociais e moradores da Zona Porturia.
Pois, para se adequar s especificidades do Artigo 68 da Constituio Federal e da sua
regulamentao pelo Decreto 4.887, o grupo e os mediadores de seu conflito com a
VOT articularam sua legitimidade reinterpretando as noes de territrio, trajetria
histrica e ancestralidade negra; e conferiram ao tombamento oficial de um
patrimnio uma relevncia incomum nos processos de reconhecimento de territrios
tnicos.
At o final de 2009, o Quilombo da Pedra do Sal no havia sido titulado e o
territrio delimitado na primeira verso do Relatrio Histrico e Antropolgico ainda
passava por modificaes, mas a narrativa mtica sobre a Pequena frica nele contida
permaneceu operada pelos quilombolas e pelos mediadores envolvidos no processo de
reconhecimento tnico. O vencedor da contenda entre o Quilombo da Pedra do Sal e a
VOT ainda estava, portanto, por ser decidido, e apontavam para o fato de que o
reconhecimento e estabilizao de ambos os patrimnios no dependeriam apenas de
suas estratgias polticas e jurdicas, mas tambm da ressonncia de suas narrativas
mticas frente sociedade, ou seja, na capacidade que teriam de evocar experincias
culturais que proclamavam como autnticas.

168

Captulo 4.
Os fundamentos do Valongo



O AFOX FILHOS DE GANDHI E O POVO DO SANTO

O grupo carnavalesco Afox Filhos de Gandhi possua duas formas bsicas de
diviso: cotidianamente era formado por sua diretoria e, no perodo do Carnaval, a
essa diretoria se agregavam os desfilantes
14
. A diretoria se apresentava em eventos de
valorizao e reconhecimento poltico da cultura negra ou dos cultos afros que eram
organizados por institutos, rgos pblicos, deputados, vereadores ou movimentos
sociais. J os desfilantes eram um grupo mais amplo composto pelo povo do santo de
diferentes casas de candombl e que participava de forma numericamente mais
expressiva nos desfiles de Carnaval do Gandhi na Avenida Rio Branco e na orla da
Praia de Copacabana.
A diretoria possua cerca de quinze integrantes, que se responsabilizavam pela
organizao dos eventos do grupo e pela manuteno de seus preceitos religiosos. No
Carnaval de 2009, ela era composta pelo presidente Carlos Machado; pelo vice-
presidente Carlinhos; pelo diretor de patrimnio Ulisses; pela produtora Regina Branca;
pela diretora de departamento feminino Tia Creusa; e por Nato, diretor de charanga,
que era composta ainda pelos msicos Cabea Branca, Galeto, Roberto, Alfredo,
Cotoquinho e Luan. E, danando e cantando, tambm participavam constantemente das
apresentaes Me Marlene dOxum, Nazar, Gustavo, Mrcia, Dona Rosa e Elizete.
A localizao da sede do Gandhi, os fundamentos religiosos de suas
apresentaes e a relao que possua com o povo do santo foram explicados a mim
por Carlos Machado em duas conversas que tivemos no final de novembro de 2008 no
Castelinho, centro cultural localizado no Flamengo onde ele trabalhava como
administrador pblico. Segundo Machado, o Gandhi havia sido fundado no Rio de
Janeiro em 1951, por iniciativa de trabalhadores do porto e com a participao de alguns
integrantes do Ijex Filhos de Gandhi de Salvador, fundado dois anos antes. Antes de

14
Publiquei uma anlise inicial desse grupo carnavalesco em artigo componente dos anais do XXXIII
Encontro Nacional da ANPOCS (Guimares, 2009c).

169

ocupar a sede na Rua Camerino, o grupo havia ensaiado em diferentes espaos cedidos
por outras entidades, todos localizados nas reas central e porturia da cidade por causa
da facilidade com que seus frequentadores, a maioria moradora da Baixada Fluminense
e dos subrbios, tinham em se deslocar para a regio.
Tanto ele como, percebi depois, outros integrantes do grupo, demarcava as
diferentes pocas do Gandhi vinculando-as aos seus presidentes, s verses que
tinham realizado do grupo carnavalesco e aos espaos onde haviam ensaiado. Assim,
Machado me narrou que o primeiro presidente oficial do Gandhi havia sido Alberto
Sales Pontes, que teve a iniciativa de organizar o grupo juridicamente em 1961. Nessa
poca, o grupo tocava predominantemente msicas do candombl e seu ponto de
encontro era na Central do Brasil em um local chamado de Palcio de Alumnio,
estrutura armada que depois foi demolida para a construo de um terminal metrovirio.
Na dcada de 1970, Aureliano Gervsio da Encarnao assumiu a gesto do
Gandhi e dirigiu o que Machado considerava ter sido a fase urea do Gandhi, porque
no Carnaval ele conseguia colocar na rua at quatro mil desfilantes vindos de diversas
casas de santo. Para ele, tamanha popularidade era devida principalmente ao seu
prestgio no meio religioso, pois, alm de ser ogan da casa de Pai Nin dOgum,
reconhecido babalorix da cidade, Encarnao era baiano e havia sido feito no santo
em Salvador. Na gesto de Encarnao, o grupo havia ensaiado no antigo Clube do
Brasil, localizado atrs da Central do Brasil, e, depois, no sobrado do rancho
carnavalesco Recreio das Flores localizado na Praa da Harmonia, na Gamboa.
Na virada da dcada de 1980, Encarnao faleceu e o babalorix ndio assumiu a
presidncia do grupo, conseguindo um espao de ensaios em um terreno na Praa Onze,
onde posteriormente foi construda a Escola Tia Ciata. Foi nessa dcada tambm,
durante os anos que transcorreram entre os debates e a decretao efetiva do projeto de
preservao patrimonial SAGAS, que a direo do Gandhi iniciou a procura de um
espao na Zona Porturia que pudesse abrigar seus ensaios. ndio ento contatou e
elegeu como presidente de honra do grupo Albino Pinheiro, fundador da Banda de
Ipanema, para ajud-lo na obteno da cesso de uso de um dos imveis da regio que
eram de propriedade do governo estadual.
Machado conheceu as atividades do Gandhi nesse perodo, em 1985, quando era
o presidente da Associao de Moradores e Amigos da Sade e participava ativamente
do processo de criao do projeto SAGAS. Segundo Machado, o seu conhecimento
sobre a situao imobiliria da Zona Porturia fez com que ndio tambm o procurasse
170

para saber quais imveis do governo estavam desocupados e podiam ser solicitados pelo
grupo. No lento processo de obteno da cesso de uso de um imvel na Zona Porturia,
o grupo no pde mais ensaiar na Praa Onze e transferiu suas atividades para o Centro
Cultural Jos Bonifcio, que na poca abrigava em suas dependncias diferentes
associaes e entidades.
Em 1988, Machado foi candidato a vereador e, mesmo no sendo eleito, sua
expressiva votao nos bairros porturios fez com que fosse indicado para dirigir esse
centro cultural. E, nesse ano, o Gandhi passou a ser dirigido pelo Guerra, que construiu
afinidades com Machado e o convidou para ser seu vice-presidente. Os dois ento
retomaram as articulaes para obter uma sede para o grupo e, em 1992, Albino
Pinheiro conseguiu juntamente com Srgio Cabral a cesso de uso do imvel da Rua
Camerino. O imvel, no entanto, encontrava-se ocupado informalmente por 32 pessoas
e no havia qualquer ao de reintegrao de posse sendo movida pelo poder pblico,
fazendo com que o Gandhi no conseguisse se instalar nele.
Com a mudana do governo estadual na virada do ano, o prdio foi novamente
cedido, s que desta vez para a prefeitura, que tinha aprovar recentemente uma lei que
possibilitava o desenvolvimento de projetos especficos de estruturao urbana dos
bairros da Sade e da Gamboa. Os moradores informais foram ento retirados, mas o
imvel permaneceu lacrado e sem qualquer uso. Findada essa gesto da prefeitura, o
grupo procurou o secretrio de governo da nova gesto e soube que ela no estava
interessada em permanecer com o imvel, j que o custo de sua reforma seria elevado.
Segundo Machado, este secretrio ento sugeriu que os integrantes do Gandhi
invadissem o imvel antes que a prefeitura o devolvesse para o estado, j que depois
seria mais difcil negociar o uso do espao. E foi assim que, em 1997, o grupo se
apossou da sede e reiniciou uma negociao com o governo estadual para que fosse
regularizada sua cesso de uso.
Alm de sua atuao poltica como representante da associao de moradores da
Sade, Machado tambm possua sua trajetria de vida marcada pela presidncia da
escola de samba Vizinha Faladeira, sediada no Santo Cristo. E, em 1998, Guerra props
a ele que assumisse a presidncia do Gandhi, que passava por um perodo de grande
desarticulao: no carnaval desse ano, o grupo havia desfilado com apenas seis
integrantes de velha guarda na Avenida Rio Branco. No entanto, Machado recebeu o
convite com preocupao, j que no era iniciado no candombl, e a conversa que teve
com Guerra sobre isso foi narrada por ele da seguinte forma:
171


Eu falei (Machado): Voc vai me criar um problema srio. Eu no sou da religio, eu no
tenho nenhum tipo de experincia. Ele disse (Guerra): Mas voc administra como se
fosse um bloco. (Machado): Mas o Gandhi no um bloco, voc sabe que no um
bloco, e voc sabe que eu vou levar bordoada a torto e a direito. Ele parou, pensou.
(Machado): Se eu no assumir voc no vai entregar pra ningum?. (Guerra): No, no
vou entregar pra ningum. (Machado): Ento me d um tempo, que eu vou tomar as
minhas providncias. Foi aonde eu procurei um zelador de santo pra poder me confirmar,
pra poder aprender as defesas mnimas pra me proteger.

Machado me explicou que, no Gandhi, no era obrigatrio que seus participantes
fossem do candombl, embora quase todos fossem. E, por isso, para assumir sua
presidncia em 2000 ele se iniciou no candombl aos 49 anos de idade, em uma casa da
nao de Jeje Mahi localizada em Itagua, Baixada Fluminense. Segundo me
explicou, as naes do candombl se diferenciavam pelo dialeto, pelas formas de tocar
os atabaques e por seus fundamentos religiosos. Para exemplificar essas diferenas,
disse que na nao Jeje Mahi eram cultuados os Voduns, que os Orixs eram cultuados
apenas na nao Ketu e, na nao Angola, eram cultuados os Nkisi. Mas, como havia
tido uma popularizao da nao Ketu, houve uma adaptao aos seus termos e seus
orixs. Assim, me disse que seu vodun, em analogia, tinha as qualidades do orix
Xang, mas era diferente na forma de cultuar.
Em sua avaliao, ser vice-presidente do Gandhi sem ter iniciao no era um
problema, mas como era o presidente quem devia proteger o conjunto de seus
integrantes e tambm o que sofria mais com as crticas e inimizades polticas, ele devia
fortalecer seu ori, termo iorubano que significava cabea, local onde se acreditava
ficar o orix pessoal dos filhos de santo. E disse que no costumava frequentar
candombl em outras casas, s eventualmente comparecia casa de Renato dObalua,
que era uma pessoa amiga.
No discurso de Machado, as oposies bem e do mal eram constantemente
articuladas, junto com a dos amigos e inimigos, o que fazia com que recorresse
constantemente noo de proteo, tambm presente nas letras das msicas cantadas
pelo grupo. Para Machado, a ocorrncia do mal nas prticas do candombl era uma
ao mgica que visava prejudicar outra pessoa e podia ser realizada apenas com o
pensamento: mesmo que a pessoa no recorresse a um trabalho, ou seja, que pedisse a
172

um orix a realizao de determinado acontecimento atravs da oferta de comidas,
bebidas, objetos e palavras rituais, ela podia fazer o mal se assim o desejasse.

Eu como um religioso, se eu desejar o mal de algum, desejar, dentro do meu corao,
quero fazer mal a fulano, s essa vontade, dependendo do tipo de pessoa, eu j estou
praticando um mal pra ela e ela vai sofrer alguma coisa. E na frente do Gandhi voc adquire
muitas inimizades desse tipo. De pessoas que no vo fazer nenhum trabalho pra te
derrubar, porque quando voc faz um mal voc recebe uma reao no sentido contrrio na
mesma intensidade, o que bater l vai bater em voc tambm. dividido. Ento muitas
vezes as pessoas no fazem, mas pensam. Pecam pelo pensamento. Quando voc faz uma
oferenda, bota o nome de fulano aqui, acende uma vela, a vela um pagamento pra fazer
um mal quele que voc botou o nome dele ali. Aquilo que voc pediu para aquele fulano,
pode estar certo que uma parte daquilo ali vai voltar pra voc. Ento, como as pessoas
sabem disso, elas preferem no fazer. Mas pensam. E no que pensam, a fora da cabea
dele, a fora do ori, que a cabea, a fora dos orixs, pode provocar tambm um estrago.

Comparando as religies afro religio catlica, disse que a primeira era
palpvel, porque acreditava em uma energia que trabalhava por voc ou contra
voc, e havia provas de que as coisas aconteciam. J na religio catlica, voc vai
igreja, ajoelha, reza, acende uma vela, a fica esperando. Considerava, assim, que era
possvel acessar essa fora atravs de rituais e ultrapassar as dificuldades da vida
prtica atravs da religio. E, ao me explicar a saudao a Exu, o mensageiro, no
incio das apresentaes do Gandhi, falou dessa mediao que os orixs eram capazes
de fazer em relao aos desejos dos homens.
Machado disse que, quando os integrantes do Gandhi davam de comer para
Exu antes das apresentaes, era para que ele pedisse a Ogum, orix responsvel pela
proteo do grupo, que lhe abrisse caminho, ou seja, que permitisse que suas
atividades transcorressem de forma pacfica e sem acidentes. Frisando existirem muitas
verses sobre essa figura no candombl, disse que acreditava que Exu no era o
diabo, mas um esprito de luz que estava buscando o nvel de elevao espiritual de
um orix. S os Exus das encruzilhadas faziam o mal, porque ainda no tinham luz
suficiente para recusarem os pedidos que eram pagos pelos homens, se referindo aos
rituais de oferta de comida e bebida.
Ogum era outra figura simblica central para o grupo, reverenciada no incio e
durante o desenvolvimento das apresentaes e desfiles do Gandhi a cada vez que seu
cantor pronunciava Ajai!. Segundo Machado, o sentido geral desse termo era
173

amuleto de paz, mas, em uma traduo literal do ioruba, era uma referncia a adja,
termo que significava cachorro. Explicou ento que o cachorro era a maior oferenda que
podia ser dada a Ogum e que esse orix era o senhor da estrada. Assim, quando se
ofertava um cachorro, o que se desejava em troca era a paz para caminhar.
Completando o rol das principais figuras simblicas do grupo estava Xang, orix que
era seu patrono, e as iabs, termo para designar os orixs femininos, como Iemanj,
Ob, Oxum, Oy e Nan, entre outras.
Ao me explicar a formao da diretoria do Gandhi, Machado falou que ela se
dava por afinidade, que as pessoas se aproximavam ou se afastavam conforme
concordavam ou no com a verso do Gandhi que estava sendo feita pelo presidente.
E que, ao longo dos anos, muitos integrantes saram do grupo formaram seus prprios
afoxs ou blocos afros. Machado ento contou que a ltima eleio que havia sido
realizada para a diretoria tinha ocorrido na sede do grupo, em 2003, quando foram
montadas quatro chapas. E ele havia sido reeleito com 56% dos quase 600 votos, mas,
como demonstrou sua narrativa, o processo eleitoral no havia sido harmnico e havia
envolvido tambm sua reputao como morador antigo da Zona Porturia.
Machado contou que um dos integrantes do Gandhi que havia montado uma
chapa concorrente tinha sido ajudado por ele a se estabelecer na cidade, atravs do
custeio de sua passagem de Salvador, do abrigo em sua casa e da obteno de um
emprego. E que, ao sair candidato a presidncia do grupo, havia falado besteiras de
mim para quem no devia e sido quase morto, no fosse a interveno de seu filho, que
o levou at a Central do Brasil para pegar um nibus e ir embora. Machado ento
explicou que ele morava havia 40 anos na Gamboa e que as pessoas do Morro da
Providncia no se referiam a ele como sendo o presidente do Gandhi, mas como sendo
o Seu Machado. E que os valores do pessoal que vive na bandidagem eram muito
rgidos, sendo o respeito e a lealdade dois dos mais importantes.

As pessoas l no morro quando se referem a mim no se referem ao presidente do Gandhi
ou ao Machado. Se referem ao Seu Machado. E quando eu passo, se o cara tiver armado,
ele esconde a arma. Ele sabe que eu no tenho que ficar olhando pra arma dele. Se eles
tiverem fumando ou tiverem cheirando, eles se afastam para que eu no veja eles fumando
nem cheirando. Eles tm respeito por mim. Ento, uma pessoa que respeitada, voc
chegar e falar mal dele j complicado. As pessoas sabendo que voc t comendo e
bebendo s minhas custas, t falando mal de mim, o negcio complica mais ainda. Os
valores do pessoal que vive na bandidagem, eles tm determinados valores que so muito
174

rgidos. De uma certa forma at errado, mas so rgidos. A lealdade uma delas, se voc
no leal voc deve morrer. E foi por causa disso que ele quase morreu.

Entre os motivos que Machado avaliou terem sido os causadores de algumas
inimizades e discordncias entre os integrantes do Gandhi que se afastaram do grupo
aps ele assumir a presidncia, era ele ser branco e no negro, no ser antigo no
candombl e ter implantado algumas modificaes na forma do grupo se apresentar,
principalmente no que dizia respeito s suas msicas e letras. Machado contou que sua
verso do Gandhi havia comeado a ser elaborada logo que assumiu a presidncia do
grupo em 2000. Nesse ano, o ento ministro da cultura e integrante do Ijex Filhos de
Gandhi de Salvador, Gilberto Gil, procurou o colunista de um jornal carioca e solicitou
que o ajudasse a encontrar o Filhos de Gandhi carioca publicando uma reportagem. Sua
inteno era apoiar as comemoraes dos 50 anos do grupo oferecendo um
financiamento do governo.
Aps Machado contatar Gil, ele articulou o uso gratuito do Clube dos Porturios,
localizado no Santo Cristo, para que o Gandhi realizasse os ensaios do Carnaval de
2001. E montou uma grande estrutura para esses ensaios, com camarotes, aparelhagem
de som e iluminao, um equipamento que Machado calculou ter custado por semana
cerca de cinco mil reais. A combinao era que o prprio Gil frequentasse os ensaios do
grupo e chamasse convidados para atrair o pblico, mas isso no ocorreu. E, como o
Gandhi tinha se desarticulado no final da gesto de Guerra, essa grande estrutura acabou
ficando subutilizada durante os ensaios, que s chegaram a reunir cerca de trinta
pessoas por semana.
Apesar do fracasso, a visita que Machado fez nesse ano ao presidente do Gandhi
soteropolitano o influenciou a iniciar algumas alteraes no grupo. Segundo Machado,
foi nela que ele percebeu que o sucesso popular conseguido pelo Gandhi de Salvador,
que colocava na rua cerca de dezesseis mil desfilantes fantasiados no Carnaval, era a
prtica que tinha de cantar msicas de sucesso radiofnico em portugus e adaptados
para o ritmo ijex, e no cantigas em ioruba como era feito no Rio de Janeiro. Com isso,
todos os folies conseguiam acompanhar as canes durante o desfile, mesmo no
sendo do candombl.
Quando props alterar as apresentaes do Gandhi, o desejo de Machado era
popularizar e profissionalizar as apresentaes do grupo. E a mudana das letras das
msicas para o portugus e a acelerao de seu andamento visavam resolver ainda trs
175

aspectos que ele considerava negativos na cantoria do candombl na rua: as pessoas que
no eram da religio e assistiam ao grupo no sabiam o que fazer durante os cnticos;
havia a possibilidade de elas serem negativamente afetadas pela energia das msicas; e a
forma prpria de cantar essas msicas requeria uma entonao mais severa que retirava
a alegria do profano. Aps sua ida a Salvador, o processo de convencimento do grupo
em relao mudana nas msicas foi gradativo e Machado contou que s comeou a
dar resultados havia cerca de trs anos. Mas essas inovaes no significavam, em sua
opinio, que o Gandhi tivesse deixado de ser um candombl de rua, j que ele
continuava a realizar seus preceitos religiosos antes das apresentaes.

Quando voc tem um afox desfilando, ou indo pra rua, se ele realmente um afox ele
um candombl de rua. Ainda que ele no cante as cantigas de candombl na rua, como os
Filhos de Gandhi eu fao questo hoje de no cantar, s levar a parte cultural, mas para
colocar o Gandhi na rua eu tenho um preceito religioso que tem que ser cumprido. Ento na
realidade ele no deixa de ser um candombl de rua, mesmo ele sendo um afox cultural.

Assim, no sistema de autenticidade operado por Machado, sua verso do
Gandhi no havia retirado o que considerava ser a principal caracterstica do grupo,
que eram as prticas religiosas do candombl. Sua opo por desenvolver um afox
cultural era justificada mais pelo desejo de tornar o grupo e sua tradio populares e
passveis de concorrerem no disputado mercado dos blocos carnavalescos
15
do que de
alterar os preceitos religiosos que tinham feito o Gandhi ser reconhecido como uma
herana cultural entre o povo do santo e tambm entre os habitantes da Zona Porturia.
Na opinio de Machado, o prestgio social do Gandhi entre as entidades que
valorizavam a cultura negra e os cultos afros era devido sua abordagem profana
da prtica religiosa do candombl; e, quando um vereador ou deputado realizava um
evento relacionado a esses temas, chamava o Gandhi para se apresentar e levar um
canto de paz. Mas ele se queixou da viso que as entidades e partidos polticos tinham
do Gandhi, que em sua opinio era tratado como uma casa de caridade e no como
um grupo que se apresentava profissionalmente e devia receber um bom cach. No
entanto, ele tambm considerava que o processo de profissionalizao do Gandhi no
estava consolidado, tanto por motivos externos, que ele atribua falta de

15
Sobre a introduo de uma lgica de comercializao e profissionalizao nas prticas carnavalescas,
ver Cavalcanti, 1994.
176

reconhecimento de sua tradio religiosa e cultural, quanto por internos, referentes
prpria organizao do grupo.
Reclamando da falta de profissionalismo dos integrantes do grupo, Machado
contou que muitas vezes pagava as passagens de nibus e o jantar ou almoo para que
os integrantes da diretoria participassem dos eventos. E tambm precisava que a
produtora do grupo, Regina, se responsabilizasse pelas fantasias, lavando-as e passando-
as. A falta de dinheiro e os baixos cachs que o grupo recebia eram recorrentemente
motivos para troca de acusaes de roubo, j que muitos integrantes se queixavam de
no receber nada para tocar e danar, embora Machado contra argumentasse que todo o
pouco dinheiro que entrava cobria as pequenas despesas de manuteno do Gandhi.
Muitos tambm se queixavam dos constantes atrasos nas apresentaes do grupo,
havendo mesmo quem fizesse piada, dizendo que era bloco de baiano, associando
assim o atraso a uma suposta caracterstica cultural e regional.
E, nesse projeto de tornar o grupo
profissional, a posse definitiva da sede
da Rua Camerino e sua reforma eram
tidas como as principais realizaes que
Machado desejava para sua gesto. Para
tanto, em 2007 o Gandhi se aliou ONG
Batucadas Brasileiras, dirigida pelo
jornalista Maurcio Nolasco, e elaborou
um projeto de transformao do sobrado da sede, que estava sem telhado e com as
estruturas comprometidas, em Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi.
Esse projeto pretendia, alm de reformar o imvel, preservar e divulgar o
Gandhi como patrimnio imaterial carioca ligado cultura afro, atravs das
instalaes de um Centro de Memria do Afox Filhos de Gandhi que reunisse um
acervo de documentos sobre o grupo; de um Memorial da Abolio na Praa dos
Estivadores que exibisse painis com imagens e textos sobre a contribuio das etnias
negras na formao da sociedade brasileira e possusse uma concha acstica para a
apresentao de shows de msica popular brasileira; e de um Monumento aos
Estivadores que deveria ser uma escultura escolhida por concurso pblico e pretendia
valorizar as atividades porturias.
Todos os subprojetos do Centro de Cidadania Afox Filhos de Gandhi tinham
como base argumentativa a necessidade de criao de smbolos que se sobrepusessem
177

memria negativa dos tempos lamentveis da escravido, como era argumentado no
projeto. Como sugerido pelo estudo sobre prticas de memria do crtico literrio
Andreas Huyssen (2000), as aes monumentais idealizadas pelo Gandhi e pelo
Batucadas Brasileiras buscavam, assim, construir na Zona Porturia espaos de
redeno dessa memria, associada ao evento histrico da escravido, classificado
como traumtico pela sociedade brasileira. E se diferenciava, portanto, da ao de
reparao articulada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal.
Juntos, o Gandhi e o Batucadas haviam conseguido, em 2008, o apoio de um
novo personagem poltico para seus projetos: a atriz Zez Motta, antiga integrante do
Movimento Negro Unificado e responsvel pela Secretria Estadual de Promoo da
Igualdade Racial SEPIR. E, repetindo a estratgia de apadrinhamento bem-sucedida
com Albino Pinheiro, o Gandhi a convidou para ser a nova madrinha do grupo. E,
durante o ano de 2009, presencie duas ocasies em que integrantes da diretoria do
Gandhi buscaram obter a cesso definitiva do imvel e recursos para sua reforma.
Em abril, acompanhei a visita de assessores das secretarias municipais de obras e
de cultura, que foram recebidos por Machado, Nato, Tia Creusa e Carlinhos. Mas
apesar das grandes expectativas do grupo, eles foram informados de que as secretarias
no poderiam realizar a reforma, j que qualquer obra precisava de licitao e de
comprovao da propriedade do imvel. Ao longo da conversa, um dos assessores
perguntou a Machado o porqu do grupo estar querendo ficar naquele espao e observei,
ento, ele articular um discurso que movimentava o mito da Pequena frica.
Segundo Machado, o espao era importante para o grupo por causa de sua
energia, j que ali tinha sido o mercado de escravos e, no sobrado em frente, havia
sido fundado o primeiro sindicato do pas, que era o dos estivadores. E que, por causa
dessas atividades do mercado dos escravos e do porto, o espao havia se tornado
conhecido como Pequena frica. Um dos assessores ento ressaltou que o grupo reunia
vrias casas de candombl e, em seguida, Machado entoou uma das msicas do Gandhi,
que falava de sua conexo com o mundo dos orixs e com a cidade do Rio de Janeiro. E
o outro assessor contou que gostava de batuque porque a av dele havia sido da
umbanda, confirmando a ressonncia que o grupo possua a partir de sua conexo com
as religies do santo.
Em junho, acompanhei tambm o lanamento do Projeto do Centro de
Cidadania Afox Filhos de Gandhi, que contou com a presena de sambistas,
prestigiados religiosos do candombl e da umbanda, e representantes dos governos
178

municipais, estaduais e federais, entre
eles a do presidente da Fundao Cultural
Palmares, Zulu Arajo, e a de Zez
Motta. O evento foi iniciado pela manh,
com um ritual na sede, onde Me Torodi
buscou estabelecer uma conexo com os
espritos dos escravos do antigo mercado do Valongo para que eles parassem de impedir
que o Gandhi caminhasse e realizasse a reforma da sede, auxiliando o grupo na
transformao daquele espao em um centro de referncia da memria negra. Aps a
realizao de uma oferenda para Exu e de um culto para o fogo, atravs do acendimento
de uma fogueira que visava atrair a prosperidade para os participantes do ritual, Torodi
entoou cnticos com o auxlio de filhos de santos de sua casa e fez alguns sacrifcios de
animais.
E encerrou o ritual dizendo que Machado e Nolasco deveriam organizar a
distribuio de quentinhas de comida aos moradores de rua da Zona Porturia,
explicando que o agradecimento deles iria ajud-los. Depois, foi realizado um debate na
sede do Batucadas Brasileiras com breves falas dos presentes e servida uma feijoada no
almoo. Nesse nico evento haviam sido articulados, assim, orixs, elementos da
natureza, mortos, plantas, animais e diferentes representantes do mundo dos homens,
dos moradores de rua aos seus mais prestigiados representantes religiosos, culturais e
governamentais.

O SAGRADO E O PROFANO EM DESFILE PELAS RUAS DA CIDADE

O primeiro evento em que observei o Gandhi desfilando foi o Presente de
Iemanj, festejado no dia 02 de fevereiro com um grande cortejo pelas ruas do Centro da
cidade. Nessa festa, se reuniram os integrantes de diversas casas de candombl, cada
qual participando com a elaborao e oferta de seu prprio presente, que eram
oferendas para as iabs, simbolicamente associadas s guas. Todo evento realizado na
rua pelo Gandhi era precedido por um agrado a Exu e, na vspera do Presente de
Iemanj, era feita a maior oferenda do ano para que o orix trouxesse, atravs de sua
mediao com Ogum, proteo ao grupo durante os desfiles de Carnaval e o conjunto
de suas apresentaes.
Assim, a preparao do Presente de Iemanj do Gandhi se iniciava cerca de um
179

ms antes com a abertura de diferentes jogos de bzios por trs integrantes da diretoria
do grupo, para saber que oferenda Exu iria comer. No Presente de 2009, estes jogos
foram feitos separadamente por Machado, Carlinhos e Ulisses e, do conjunto de
resultados, foi definido o que seria ofertado. Machado me explicou que agrado era o
que as pessoas normalmente denominavam de sacrifcio ou matana, e consistia em
uma troca de energia, tambm chamada de ax, atravs do sangue e de alguns
rgos do animal. Somente o ax era oferecido nas oferendas para os orixs, as demais
partes do animal deviam ser consumidas pelos participantes e convidados do ritual, por
isso comumente eram servidos pratos elaborados com frangos, cabritos, patos e pombos
nas casas de candombl. Mas, no caso da oferenda para Exu, todo o corpo do animal era
ofertado no sacrifcio e, dependendo do jogo de bzios, ele podia querer comer em sua
mesa, outra maneira de se referir ao despacho, um bicho de quatro pernas, um
bicho de duas pernas e pena ou comida seca, que eram as que no tinham sangue,
como as frutas e legumes, alm de beber cachaa.
Na vspera do dia do cortejo, os homens da diretoria do Gandhi fizeram vrias
oferendas a Exu por todas as esquinas da Zona Porturia e do Centro da cidade por onde
iriam passar os balaios do grupo at que fossem colocados na Baa de Guanabara.
Machado no concordou que eu participasse deste ritual, mas permitiu que eu assistisse
a feitura dos balaios, que eram cestos de palha preparados com comidas, folhas e flores
para que neles fossem colocadas as oferendas. Cheguei sede s 07 horas e, por causa
do horrio de vero, o sol ainda despontava no horizonte. A porta da sede estava aberta
e dentro dela j se encontravam Regina, Tia Creusa, Carlinhos, Galeto e Nato, alm
dos dois cachorros vira-latas que moravam no local.
Havia uma diviso entre as atividades consideradas femininas e masculinas.
Regina e Tia Creusa se movimentavam em torno de uma mesa improvisada com a
colocao de uma tbua de madeira sobre um enorme carretel. Nela, estavam dispostos
trs grandes balaios e as comidas e enfeites que seriam ofertados para Iemanj, Oxum
e Oy, que Regina explicou serem as iabs ligadas ideia de maternidade. Regina
estava vestida com uma camiseta de pijama e cala azuis claros e, ao longo do ritual,
envolveu com um pano da costa sua cintura, e Tia Creusa estava de blusa de regatas
brancas e uma saia rodada azul e florida que lhe cobria do peito at as pernas. Ambas
estavam de cabelos presos. Carlinhos e Galeto e Nato foram vestidos com camisetas,
calas ou bermudas, e circulavam pelo interior e o exterior da sede, mas sem
interferirem diretamente na feitura dos balaios.
180

Dentro dos balaios, foram postas
canjicas cozidas e flores de palmas
brancas dispostas de maneira circular,
fazendo uma coroa no cesto, entrepostas
por midas flores brancas chamadas de
chuveirinho. Ao redor do balaio de
Iemanj, havia flores de pano, entre grandes azuis e midas brancas, colocadas por cima
de um farto arranjo de fil branco. Os enfeites externos dos outros dois balaios diferiam
do de Iemanj, por no possurem flores de pano e por terem sido feitos com cetim das
cores lils e rosa. Assim, mesmo ornados, obedeciam a uma hierarquia no Presente
oferecido, onde Iemanj, considerada a me de todos os orixs, possua maior
importncia. Regina me explicou que as oferendas para as iabs seriam colocadas por
cima da canjica, e podiam ser perfumes, espelhos, bijuterias ou mesmo moedas.
Enquanto elas terminavam a preparao dos balaios, havia certa agitao no
grupo porque Machado ainda no havia chegado com as velas e a reza dos balaios
precisava comear. Tia Creusa ento reclamou que era necessrio tocar para Exu
antes que o sol invadisse a sede sem teto e atingisse os balaios. Mas Carlinhos preferiu
aguardar, argumentando que no podia botar Exu sem luz e despachar pad
apagado, utilizando o termo que designava o despacho especfico para Exu e se
referindo falta de velas. Galeto ento recolheu algumas folhas de bananeira e com elas
limpou o cho em frente mesa e, junto com Nato, colocou duas quartinhas no cho,
uma com um lquido branco turvo e a
outra com folhas; dois alguidares, um
com farinha branca e outro com farinha
misturada com azeite de dend; e uma
pequena jarra de cermica. Carlinhos foi
ao mercado e rapidamente voltou com as
velas, as acendendo em diferentes locais
da sede, uma delas em frente ao pad. Ao fim da colocao, Carlinhos bateu palma
cinco vezes para Exu, Tia Creusa respondeu Aleluia e Galeto bateu o atabaque.
Machado chegou logo depois e todos entoaram vrias cantigas para Exu,
acompanhados do toque dos atabaques de Nato e Galeto. At que Carlinhos, Machado e
Tia Creusa levaram o pad para fora da sede, atravessaram a Rua Camerino, e o
depositaram em um dos vrtices da Praa dos Estivadores, na esquina com a Rua Baro
181

de So Felix. Regina e Tia Creusa
pegaram ento uma bacia de plstico com
vrios acas, que eram um alimento
feito com uma folha de bananeira
dobrada em um pequeno tringulo, onde
dentro havia uma goma branca de milho.
E todos os que estavam na sede participando da feitura do presente passaram pelo corpo
os acas, os despejando em uma bacia em seguida, gesto que Regina me explicou ser
de purificao.
Elizete chegou e auxiliou na finalizao dos enfeites dos balaios. Aps os balaios
ficarem prontos, eles foram portados em cima da cabea pelas mulheres e conduzidos
at o carro de Machado, que estava estacionado na porta da sede. A concentrao do
cortejo estava marcada para as 11 horas na Cinelndia, e sua sada para a estao de
barcas da Praa XV para as 13 horas. O carro ento percorreu a Rua Camerino at a
Avenida Marechal Floriano, entrou na Avenida Passos, atravessou a Avenida Presidente
Vargas, seguiu at a Avenida Repblica do Paraguai, passou por baixo dos Arcos da
Lapa e dobrou na Rua Evaristo da Veiga, encontrando a Cinelndia (percurso assinalado
em amarelo na foto area seguinte). Segundo Machado, havia sido em cada uma das
esquinas desse trajeto que foram feitos despachos para Exu na noite anterior.

Os participantes do cortejo j comeavam a se concentrar na Cinelndia, vindos
de diversas casas de candombl do estado, cada qual trazendo o seu balaio. Na praa
tambm estava estacionado um carro de som, onde a charanga do Gandhi junto com
outros ogans cantava msicas do grupo e outras msicas populares que faziam
referncia s figuras das iabs. Os diversos balaios foram depositados embaixo de
tendas de plstico desmontveis brancas e, protegendo-os, havia ias e ialorixs, sendo
que essas tambm jogavam perfume e benziam, atravs de breves rezas e com a
182

passagem de flores nos braos, os participantes que aguardavam em pequenas filas para
oferecer sua flor ou objeto.
Nessa concentrao, que durou cerca de duas horas, uma grande roda de dana
foi feita na praa em frente ao carro de som, composta por participantes vestidos
predominantemente de roupas brancas. O evento foi extremamente festivo e o nico
momento em que imperou um tom mais solene foi na sada do cortejo da Cinelndia,
quando mulheres trajadas de baianas carregaram os balaios nas cabeas, em uma
fileira horizontal frente de todos os participantes, e caminharam em direo Praa
XV (percurso indicado em vermelho na foto area). Nem todas as cerca de mil pessoas
que acompanharam o cortejo entraram na barca da Baa de Guanabara, j que muitos
haviam aproveitado o horrio livre do almoo para participarem do presente e tiveram
que retornar aos seus trabalhos.



Os que entraram na barca, no entanto, intensificaram o toque dos atabaques, as
danas e cantos, sendo que alguns viraram no santo durante a travessia. Enquanto a
barca navegava, muitos jogaram flores e bebidas espumantes nas guas. E, no momento
em que a barca parou no meio da Baa, foram ofertados os balaios nas suas duas sadas
laterais. Os participantes ento se aglomeram nas janelas das barcas para assistirem a
entrega dos balaios e baterem palmas e fotgrafos e cinegrafistas se acotovelaram para
conseguir uma boa imagem. Encerrando o evento, a barca retornou Praa XV, onde os
183

participantes do cortejo ficaram em torno de barraquinhas de bebida e comida, enquanto
o carro de som tocava samba.
Alguns dias depois, comeou o Carnaval. No dia 21 de fevereiro, sbado, houve
o desfile considerado mais importante pelos integrantes do Gandhi, que era o realizado
no fim da tarde na Avenida Rio Branco. Ao meio-dia, integrantes do grupo ajudavam
Regina a separar e distribuir os kits com as fantasias completas na Praa da Harmonia;
Pratinha estirava no gramado da praa as fantasias que ainda estavam com a tinta da
impresso secando; e Machado ia e vinha com seu carro trazendo da casa da costureira
mais fantasias para receberem a serigrafia. E, na meia hora em que fiquei na praa,
vrias pessoas passaram e pegaram suas fantasias.
A concentrao do grupo estava marcada para as 15 horas, na esquina da
Avenida Rio Branco com a Rua da Alfndega, horrio em que a avenida estava repleta
de blocos afros. Depois de alguns minutos, os integrantes do Gandhi comearam a
chegar, reunidos em grupos de amigos, de casas de candombl, de moradia e familiares.
Vestiram suas fantasias e, enquanto todos aguardavam o horrio do desfile, foi feita
uma roda de samba. Havia uma grande quantidade de pessoas naquele desfile, que tinha
conseguido reunir tambm dissidentes do grupo e crticos presidncia do Machado.
As fantasias trajadas, embora fossem todas do grupo, eram de carnavais distintos, o que
possibilitava a percepo concreta da permanncia do grupo no tempo.
O desfile comeou por volta das
17 horas com cerca de 200 integrantes,
com o Gandhi encerrando o dia reservado
pela RIOTUR, rgo de turismo
municipal, para as apresentaes dos
afoxs e blocos afros. Na frente dos
desfilantes, ficaram o estandarte do grupo e os cantores, em um revezamento de vozes
no carro de som entre Cotoquinho, Ulisses e Machado. Os msicos da charanga, com
cerca de cinquenta instrumentos, se posicionaram na primeira ala do desfile e, na
segunda ala, vieram os demais homens e mulheres do grupo.
O batuque da charanga produzia um som muito alto e compassado e, na frente
do desfile, vrios folies embriagados brincavam fazendo gestuais que remetiam aos
transes do candombl, demonstrando que compartilhavam de seus rituais. Os
desfilantes, no entanto, ao mesmo tempo em que estavam festivos, mantiveram um
gestual e comportamento mais comedido, no limite entre o sagrado e o profano. Quando
184

o desfile chegou ao fim da avenida, na altura da Cinelndia, alguns integrantes se
reuniram em frente esttua de Mahatma Gandhi e Machado fez um breve discurso
sobre os ideais de paz do grupo.
Dois dias depois desse desfile, houve outro na orla da Praia de Copacabana, com
concentrao marcada para as 14 horas no Posto 6. A grande novidade do dia foi a
estreia de Edej como porta-estandarte, que Machado me explicou ser um reconhecido
danarino de ritmos afros. Edej participava recebendo cach do bloco afro
Maxambomba da Baixada Fluminense, mas tinha aceitado desfilar de graa pelo
Gandhi, confirmando o prestgio do grupo entre os afoxs e blocos afros da cidade. O
desfile saiu s 17 horas em direo ao Posto 5 da praia. E, nele, Carlinhos me disse que
havia uma disputa muito grande pela presidncia do Gandhi, que entre os participantes
da diretoria havia quem quisesse montar uma chapa para concorrer com Machado, como
Tia Creusa e Cotoquinho.
Ao final do percurso, foi formada uma roda de samba de umbigada na pista da
praia, quando os msicos da charanga se alinharam de um lado e, sua frente, as
mulheres do Gandhi danaram. Depois que a pista foi aberta aos carros, s 18 horas,
formou-se uma roda de macumba no calado. Na roda de samba, vrias pessoas que
no eram integrantes do grupo
participaram danando, principalmente
mulheres. J na roda de macumba, havia
um controle para que apenas os
integrantes do Gandhi participassem, j
que as msicas tocadas possuam regras
quanto aos papis de gnero e suas danas e tambm previam a execuo de
determinados movimentos. Assim, embora fosse experenciada como uma brincadeira,
essa roda definia os limites do prprio grupo e tambm do povo do santo, que eram os
capazes de compreender suas coreografias e mesmo as piadas que eram feitas a partir de
inverses deliberadamente propostas, como a entrada jocosa de um ogan em uma
msica que devia ser danada somente por mulheres.
O ltimo grande evento carnavalesco do Gandhi ocorreu no dia seguinte, tera-
feira de Carnaval: a participao no desfile de um bloco afro no Sambdromo de Juiz de
Fora. O encontro dos integrantes ocorreu s 08 horas na sede e quando cheguei, com
meia hora de atraso, muitos j estavam dentro de um nibus bem equipado para viagens
de estrada, com poltronas, ar condicionado, copinhos de gua e banheiro. Antes de
185

sairmos, Tia Creusa reclamou dos integrantes que no foram de roupas claras para o
encontro porque, segundo ela, era esperado do povo do santo que ele levasse uma
mensagem de paz e chegassem todos de roupas brancas.
Ainda aguardamos cerca de uma hora para sairmos, j que alguns integrantes
estavam retidos na Linha Amarela por causa de um tiroteio em Jacarepagu. Quando o
nibus saiu j eram quase 11 horas e havia nele menos de trinta pessoas, sendo que
tinham se inscrito previamente para participar da atividade quarenta, fato que Machado
criticou no discurso de partida, retomando sua argumentao de que o grupo tinha de se
profissionalizar. Durante a viagem, alguns dormiram e outros ficaram conversando,
sempre com muitas brincadeiras, e Dona Rosa ofereceu a todos salgadinhos feitos por
ela, como coxinhas, empadas, bolinhos de aipim e de carne. A mulher de Roberto
tambm levou salgadinhos e compartilhou com os mais prximos de sua poltrona.
Havia assim uma convivncia, e tambm uma tenso, entre as prticas religiosas,
profissionais e recreativas do Gandhi, fazendo com que muitos participassem dos
desfiles para se divertir e estabelecer laos de amizade e outros, principalmente a
diretoria e os msicos, desejassem um maior reconhecimento social, fosse como
representantes da cultura negra e dos cultos afros, fosse como grupo comercial.
Chegando a Juiz de Fora, o nibus se direcionou para um morro ocupado por
habitaes populares onde, no alto, estava localizada a casa de candombl do babalorix
e presidente do Afox Vinda do Povo na Rua, que havia convidado o Gandhi para
desfilar. Fomos recepcionados por ele e por sua esposa, que Machado me contou serem
ambos baianos. Na casa, havia dois cmodos com mesas arrumadas para o almoo: no
cmodo menor e prximo entrada da casa, ficaram a diretoria do grupo e os msicos
da charanga com suas esposas; e no maior e mais ao fundo, ficaram os demais
desfilantes. O almoo era dobradinha com agrio e, na mesa, estavam dispostos farinha,
po e pimenta. Os pratos j vinham fartamente prontos da cozinha e foram servidos por
mulheres da casa. Para beber havia cerveja e cachaa.
Comeou ento uma srie de brincadeiras entre Machado e o babalorix da casa,
s vezes em um tom competitivo, que abordaram os fundamentos e prticas do
candombl que eram considerados certos e errados. Ao mesmo tempo, as mulheres dos
dois trocavam simpatias e presentes, como uma flor de pano que foi entregue a
Helenice, namorada de Machado. Estas trocas e provocaes fazia com que a interao
dos dois casais ganhasse destaque entre os presentes no almoo, fossem desfilantes ou
186

filhos de santo da casa, reforando as figuras de autoridade e de beleza de ambos os
grupos, associadas oposio masculino e feminino.
Machado colocou muita pimenta em seu prato e foi debochado por Nato e
Alfredo, que contaram antigas histrias sobre integrantes que, de tanto usarem pimenta
no prato, na hora de tocar ficaram suando. Bebi um pouco de cachaa e de cerveja, aps
ter observado que havia outras mulheres fazendo o mesmo, mas Nato me disse que eu j
estava ficando com o olho baixo e devia parar de beber. E lembrei-me de ter ouvido
alguns vezes comentrios entre os integrantes do grupo sobre o uso de bebidas e drogas
nos dias de desfile, que se referiam sempre a uma necessidade de controle para que o
imaginrio sobre os aspectos sagrados que o Gandhi portava no fossem questionados
por um comportamento ofensivo e associado ao excesso, noo onde se inclua
tambm a comida.
Aps o almoo, foi combinado um intervalo de uma hora at a sada para o
desfile, onde alguns foram passear nas redondezas, dormir no nibus ou conversar. Ao
final do intervalo, os integrantes do Gandhi comearam a vestir as fantasias, e Gustavo
auxiliou algumas de seus amigos a amarrarem os turbantes. Alfredo, que estava distante
de Gustavo, comentou ento comigo, em tom de ironia e desaprovao, que no ia para
o lado dele porque batia uma brisa muito fresca, se referindo a Gustavo e seus amigos
serem homossexuais. No apenas desta vez, mas em situaes envolvendo outros
integrantes do grupo ou na configurao de alas dos desfiles carnavalescos, havia nas
divises dos papis masculinos e femininos uma afirmao constante de espaos.
Assim, homens heterossexuais e homossexuais eram separados em agrupamentos e
espaos de macho ou de viado.
E, nos espaos femininos, as diferenciaes ocorriam entre os valores associados
beleza: j que as fantasias eram iguais para todos, as mulheres buscavam se distinguir
atravs da maquiagem, da altura dos saltos dos sapatos, de enfeites como braceletes,
colares e brincos, e no uso de apliques nos cabelos e amarraes especiais dos turbantes.
Embora nessa valorizao da noo de beleza o excesso do luxo ou da exposio do
corpo tambm fosse visto com reprovao.
O nibus ento se dirigiu at o Sambdromo da cidade e, no caminho, Machado
entoou algumas msicas no microfone do nibus e tambm disse palavras de incentivo,
para que os integrantes fizessem um espetculo bonito. Em outro nibus, foram os cerca
de cinquenta integrantes do Afox Vinda do Povo na Rua, que eram todos da casa de
candombl onde havia sido oferecido o almoo. Na concentrao do desfile, seu
187

babalorix disse que preferia convidar para desfilar o Gandhi a chamar pessoas de
outras casas de candombl de Juiz de Fora, j que havia muita traio no local,
repetindo, assim, as falas de Machado sobre proteo, maldade e inimizade no
candombl. Ficamos cerca de uma hora concentrados e, durante este perodo, os
msicos da charanga tocaram e Roberto fez alguns movimentos de capoeira em uma
roda, mas foi repreendido por j estar vestido com a fantasia do Gandhi e parou.
Na entrada na avenida, na primeira ala desfilaram os integrantes dos dois afoxs.
Os do Vinda do Povo na Rua vestiram fantasias que no seguiam o mesmo padro e que
remetiam ao imaginrio da cultura africana e dos cultos do candombl, composto por
caadores, baianas, sacerdotes e vestidos estampados com folhas ou decorados
com bzios. Os integrantes do Gandhi desfilaram com as fantasias completas. Aps os
desfilantes, estava a ala da charanga, composta por msicos dos dois afoxs e um carro
de som. E, por ltimo, havia uma ala de capoeiristas. At a metade da passarela, foi
entoada a mesma msica do Afox Vinda do Povo na Rua, que tinha como enredo
Oxossi Caador. Em seguida, Ulisses e Machado cantaram diversas cantigas do
Gandhi. O Gandhi era, assim, de central importncia na apresentao do afox mineiro,
fosse por possuir um grande prestgio entre s entidades locais ligadas cultura negra e
ao candombl, fosse quantitativamente em seu desfile.
No entanto, as arquibancadas do Sambdromo estavam muito vazias,
demonstrando que, a despeito desse prestgio, dentro do sistema do prprio carnaval os
afoxs no eram to valorizados. O combinado era que ao fim do desfile fosse feita uma
roda de samba na disperso do Sambdromo, mas o espao estava muito tumultuado
com participantes de outros blocos e a roda no foi realizada. Machado ento reuniu os
integrantes do Gandhi, que voltaram para jantar na casa de candombl. O jantar, no
entanto, no se prolongou e, enquanto todos se organizavam no nibus para partir, Dona
Rosa cantou alguns partidos altos e sambas e outra senhora cantou antigas serestas.
Quando o nibus saiu, ainda houve um pouco de brincadeira, mas logo todos ficaram
quietos pelo cansao e alguns dormiram.
Alm desses desfiles, a diretoria do Gandhi havia ainda participado nesse
Carnaval de 2009 em um bloco em Santa Teresa e em um desfile da escola de samba
Cubango, do Grupo I dos desfiles oficiais cariocas no Sambdromo. E, no conjunto das
atividades que acompanhei, percebi como as noes de espao para o Gandhi se
estendiam para fora dos limites territoriais do Morro da Conceio: incluam locais da
cidade considerados politicamente importantes dentro do circuito de valorizao da
188

cultura negra, como a Cmara dos Vereadores e os marcos territoriais associados
Pequena frica; e espaos utilizados durante o perodo de carnaval, como a Avenida
Rio Branco e os sambdromos; e tambm os ocupados pelo circuito do povo do santo,
que eram as casas de candombl e afoxs. E, em cada um desses espaos, os seres no
humanos, como a Pedra do Sal, as esquinas das ruas, as guas da Baa de Guanabara, os
animais, as folhas e flores foram importantes participantes nas apresentaes do grupo;
pois, atravs da mediao que eles possibilitavam, seus integrantes pediam caminho
para passar e se conectavam com seus orixs e ancestrais.

O MUNDO DOS ORIXS NA CASA DE ME MARLENE DOXUM

Para compreender os aspectos religiosos e
mgicos que estavam sendo movimentados com a
utilizao da noo de Pequena frica pelos
integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e pela
diretoria do Afox Filhos de Gandhi, solicitei Me
Marlene dOxum que frequentasse sua casa de
candombl. Marlene era participante assdua dos
eventos do Gandhi e sua casa ficava localizada no
Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do
Governador. Ligados a sua casa de candombl
como filhos de santo, havia tambm outros
participantes constantes das atividades do Gandhi: Nazar, Luan, Juan, Bebel e
Gustavo. Alm deles, tambm visitavam sua casa em dia de festa os ogans Nato, Galeto
e Ulisses.
Comecei a frequentar a casa no incio de 2009, enquanto acompanhava as
atividades carnavalescas do Gandhi. Para chegar a ela, tomava o nibus 324 - Ribeira,
que saa do Castelo e passava pela Central do Brasil. Ao saltar do nibus no segundo
sinal da Vila Pan-Americana, andava em direo Rua dos Manjolos onde, na esquina
de um bar, esquerda, estava a entrada para o Beco dos Manjolos, que conduzia para
uma ladeira estreita com trechos em degraus e cercada por diversas casas, entre elas a de
Marlene. Todo o percurso, da Central do Brasil at a casa, levava cerca de uma hora e
meia e era o que usualmente Marlene fazia para ir s atividades do Gandhi.
189

O porto de ferro do barraco de Marlene costumava permanecer fechado, mas
nos dias de festa ficava aberto. Passado o porto, havia um pequeno jardim onde ficava
o assentamento de Exu, espao sagrado formado por diversos objetos. Virando direita
desse jardim, havia a porta de entrada da sala da casa: ao centro, ficava um mastro de
madeira; ao lado direito, trs bancos de madeira perfilados eram destinados
assistncia, denominao dos convidados das festas; e, na parede contrria, um
tablado elevava do nvel do cho os ogans e seus atabaques, diferenciando-os da roda de
dana que se formava sua frente e ao redor do mastro. As paredes da sala eram ainda o
suporte de um quadro pintado com uma figura de Oxum, de duas fotos da Casa Branca,
e de uma foto de seu filho Marcelo, principal autoridade masculina da casa. Nesta sala
principal havia trs portais, todos eles ornados com uma franja de capim que, aps a
passagem do tempo, haviam se tornaram palha. Ao lado esquerdo da entrada principal
tinha uma porta que permanecia quase sempre fechada por uma cortina amarela e que
conduzia ao cmodo considerado mais restrito e sagrado da casa, contendo diversas
imagens de santo, quartinhas e objetos rituais.
Mais adiante, uma porta levava para a copa, que possua uma mesa grande e
cadeiras. E nesta copa havia outra porta que conduzia cozinha, espao frequentado
principalmente pelas mulheres. No meio da cozinha, mais uma porta ligava ao quarto
onde os filhos de santo se vestiam e onde os orixs eram desincorporados, ou seja,
onde os filhos de santo eram retirados do estado de transe. Neste quarto, um pequeno
banheiro servia ainda de local para os banhos de folhas que os filhos de santo tomavam
durante determinados momentos do ritual.
Tanto da cozinha quanto da sala da casa havia uma porta que levava ao quintal
dos fundos. Nele, duas portas conduziam a pequenos quartos com assentamentos para
orixs e, na rea ao ar livre, eram feitos os sacrifcios rituais e havia uma rvore com
oferendas para Ogum. Havia ainda um pequeno banheiro que era usado para guardar os
animais vivos, antes do sacrifcio, e utilizado pela assistncia durante a realizao das
festas. Era tambm nesse espao do quintal que, durante as festas, ficavam reunidos os
homens e, aps, se realizava uma roda de samba.
Ainda no andar trreo, havia espaos diferenciados por seus usos profanos
relacionados ao cotidiano domstico, j que Marlene tambm morava na casa. Na
parede ao lado da cozinha do candombl estava a cozinha domstica, que durante as
festas era utilizada para que os filhos de santo fizessem pequenas refeies e lavassem a
loua. Dela, era possvel acessar ainda um quarto usado para guardar mantimentos e
190

uma sala com sofs e televiso ligada ao jardim da frente, que ficava esquerda em
relao a quem entrava pelo porta da sala do candombl. Na cozinha domstica, uma
escada permitia o acesso ao segundo andar, onde estavam distribudos os quartos de
Marlene e de Nazar; a sala de costura; e uma rea aberta para lavagem e secagem de
roupas. E o terceiro andar era ocupado pela famlia de Marcelo e Tnia, pais de Luan e
Juan.
Entre janeiro e outubro de 2009 acompanhei algumas festas e rituais da casa e
Marlene permitiu que eu fizesse algumas imagens com uma filmadora somente no
incio das rodas, no poderia mais filmar logo que os orixs descessem nos filhos de
santo. Durante esses meses de convivncia, Marlene me contou que havia feito a
cabea no candombl havia 40 anos na Casa Branca, em Salvador, barraco que
visitava uma vez por ano para receber ax. E que, no Rio de Janeiro, ela havia se
tornado filha de santo da casa de Me Meninazinha dOxum, sediada no municpio de
So Mateus, no Rio de Janeiro. Explicitando o sistema hierrquico do candombl, me
disse que em sua casa ela era me de santo, mas na casa de Me Meninazinha ela era ia
e ficava na cozinha como todas as outras filhas de santo.
Ao me mostrar fotos da Casa Branca que estavam penduradas nas paredes de sua
sala, ela me explicou que haviam sido princesas africanas que tinham fundado o
candombl na Bahia e afirmou que candombl era coisa de mulher, criticando em
seguida as casas que eram dirigidas por homens. Marlene tambm comentou diversas
vezes comigo que no concordava com as casas que faziam festas muito luxuosas e
vestiam com roupas caras os orixs, porque se todos deviam danar com o p no cho o
princpio religioso no era o luxo. Sua principal preocupao nas festas era servir
sempre uma comida bem feita, gostosa e bonita para as pessoas e os orixs. Suas
noes de riqueza e beleza eram, portanto, associadas ao cuidado nos enfeites
utilizados em sua casa e no preparo das comidas servidas, e contrrias ideia de
excesso.
Nas festas e rituais da casa sempre participavam os trs filhos consanguneos de
Marlene, que eram Nazar, Pedro Armando e Marcelo; seus trs netos Thomas, Luan e
Juan; suas noras Mrcia e Tnia; e os filhos de santo Anglica, Dona Madalena,
Dona Marlene, Gustavo, Bebel e Manuelzinho. Os preparativos para as festas se
iniciavam durante a semana, com Marlene convocando os filhos de santo, avisando aos
convidados e organizando as comidas que seriam preparadas e os objetos rituais.
Nazar, que era a me pequena do barraco, a funo de maior prestgio depois da
191

ialorix, auxiliava nessa semana que antecedia festa e cuidava das roupas que seriam
usadas pelos filhos de santo, as lavando, passando e engomando.
No dia da festa, os filhos de santo comeavam a chegar por volta das 07 horas,
comiam normalmente um caf com biscoito na cozinha domstica de Marlene e, em
seguida, faziam um ritual para iniciar suas atividades, que era composto por um banho
de folhas e a troca por uma roupa de trabalho onde predominavam as cores claras. Essa
roupa era, para as mulheres, uma camiseta envolta por um pano da costa longo e
estampado e uma saia larga e comprida e, para os homens, uma bermuda e camiseta. Em
seguida, cada filho de santo fazia uma saudao inicial a todos os assentamentos de
orixs da casa e aos outros filhos de santo que j estavam presentes.
Nessa saudao, o filho de santo se ajoelhava, encostava as duas laterais do
corpo no cho, virando os quadris; colocava as mos cerradas uma em cima da outra as
posicionando entre a testa e o cho; e alternavam a ordem das mos trs vezes enquanto
projetavam o corpo para frente, at que ele ficasse inteiramente deitado. Na hierarquia
das saudaes, o filho de santo comeava pelos assentamentos dos orixs e depois
seguia para a me de santo, a me pequena at os mais antigos feitos no santo. Os novos
eram saudados apenas com uma leve inclinao de tronco e dobra de joelhos, um beijo
nas costas das mos e o pedido e a oferta de bno, que era realizada pela fala das
palavras minha me te abenoe ou meu pai te abenoe, dependendo do gnero do
orix de cabea do filho de santo, se masculino ou feminino. Nessas saudaes, ao
mesmo tempo em que era pedida tambm era oferecida uma beno, movimentando
assim um sistema circular e recproco de ddivas.
Depois, os filhos de santo trabalhavam no preparo da festa: as mulheres
elaboravam os alimentos na cozinha ou decoravam a sala principal; enquanto os homens
compravam as bebidas, faziam pequenos reparos nos cmodos e organizavam os
atabaques. O momento de realizao dos rituais de sacrifcio dos animais ofertados ao
orix da festa era extremamente sacralizado. Iniciava-se com um pad para Exu,
seguido do toque de cantigas para os orixs e uma roda de dana formada pelas
mulheres. Os homens se dividiam entre o toque dos atabaques e do agog, e faziam os
cortes nos animais, que variam de acordo com cada orix. Quem comandava a
matana era Marlene, definindo que msicas seriam entoadas e em que ordem os
animais seriam sacrificados. As partes dos animais eram ento separadas: ao orix era
dado o sangue, onde estava o seu ax, e algumas penas, no caso de aves; e o restante da
carne era depois preparado e servido ao fim da festa.
192

A assistncia normalmente chegava para a festa no incio da tarde, quando os
filhos de santo j estavam preparando suas vestimentas do ritual. As ekedis eram as
filhas de santo que no incorporavam e que ajudavam a conduzir, desincorporar e
preparar as vestimentas dos filhos de santo que recebiam os orixs, e usavam um
vestido estampado com poucos ornamentos e um oj na cabea. Os filhos de santo que
incorporavam eram genericamente chamados de ias e, sendo mulheres, vestiam roupas
de baiana, composta de camisu, saias rodadas, calolo, oj e pano da costa e, sendo
homens, envolviam o tronco com um pano da costa e usavam calas. Os ogans, assim
como as ekedis, no incorporavam, e vestiam calas e batas claras.
A festa se iniciava com os ogans tocando e os filhos de santo entrando descalos
na sala e fazendo uma roda em torno do mastro. Eles repetiam o gestual de saudao
feito quando iniciavam suas atividades na casa, mas cumprimentavam os diferentes
espaos da sala e os que estavam nela presentes: primeiro era saudado o mastro, depois
o portal de passagem para o jardim, o portal do cmodo com objetos sagrados,
novamente o mastro, a me de santo, os ogans e as ekedis. E eram feitos os breves
cumprimentos a cada um dos ias que estavam na roda, pedindo e oferecendo beno
aos orixs de cabea.
A primeira festa do ano foi
realizada para Exu em fevereiro, e
Marlene me explicou que ela sempre
antecedia ao Carnaval. Nessa festa,
observei a partir do espao reservado
assistncia. O mastro havia sido enfeitado
com palmas brancas e vermelhas e com laos grandes de um tecido azul que tinha na
barra quatro fitas brancas e de um tecido dourado. Nove pessoas compuseram a roda e
sete ogans se revezaram nos toques de atabaques enquanto Marlene, vestida de baiana,
estava sentada em uma cadeira posta ao lado dos ogans e em frente roda. Todas as
msicas do incio do ritual foram cantadas em iorub e dedicadas a um orix. Ao fim
das saudaes iniciais, Marlene entrou tambm na roda e a msica mudou: houve a
acelerao da batida dos atabaques e foram cantadas letras em portugus para Exu e
Pomba Gira, citados tambm atravs das figuras Rosa Vermelha, Maria Padilha,
Ciganinha, Tranca Rua e Z Pelintra.
193

Sequencialmente, os ias viraram no santo e abraaram com os dois lados do
corpo integrantes da assistncia, que era composta por cerca de vinte pessoas que
cantavam as msicas e batiam palmas.
Depois de algumas msicas, a batida do
atabaque se intensificou novamente e
Marlene se posicionou em frente aos
ogans e virou no santo, passando ento a
segurar uma cigarrilha na mo. Os ias
incorporados pararam de danar e ficaram em semicrculo aberto assistindo dana da
me de santo. Ao final da dana, as ekedis os retiraram da sala pela porta que levava
copa. Marlene saiu por ltimo e voltou vestida de Pomba Gira, com um vestido rodado
vermelho escarlate e um pano da costa dourado, que demarcavam sua transio para o
estado de transe.
Depois, os ias da casa retornaram para a roda com suas roupas de transe e
muitos dos que estavam na assistncia tambm viraram no santo e vestiram roupas que
estavam guardadas na casa, sendo suas participaes, portanto, previstas no ritual.
Todas roupas eram referenciadas nas figuras associadas a Exu e Pomba Gira que
estavam sendo entoadas nas msicas e complementadas com acessrios de mo como
flores, taas e cigarrilhas. Ao longo da festa, os que haviam incorporado danaram na
roda e tambm conversaram com os convidados que no viraram no santo, dando
principalmente conselhos amorosos. E observei que a figura espacial da encruzilhada
era recorrentemente citada nas letras das msicas e nos conselhos amorosos, sendo os
Exus e Pombas Giras os orixs associados a esses espaos e passagem para um
caminho e suas escolhas. J tarde da noite, os ias incorporados foram retirados da sala
e a ltima a sair foi Marlene. Foi servido ento um jantar a todos e se iniciou uma roda
de samba no quintal.
Aps a festa para Exu, houve o Carnaval e at o fim de fevereiro mantive
contato com Marlene e seus filhos de santo atravs das atividades do Gandhi. No incio
de abril, telefonei para sua casa para saber se ela j havia marcado a data da festa para
Ogum, mas Marlene no estava e quem atendeu foi Nazar. Ela me disse que tinha
chegado naquela semana de Salvador, onde tinha passado quinze dias com Marlene e
Juan. E que faziam essa viagem todo ano para tomarem o ax da Casa Branca,
visitarem a Praia da Barra, assistirem s apresentaes de blocos afros e comerem as
comidas baianas. Enquanto preparava um feijo, Nazar conversou comigo sobre o
194

hbito que tinha de anotar em um caderno suas experincias de viagens, para poder
esquecer o que no tinha sido positivo. E comentou que fazia a mesma coisa quando
escutava as pessoas que se consultavam com ela tanto religiosamente, quanto na poca
em que era enfermeira: ouvia tudo e depois esquecia.
E, a partir desse dilogo, conversamos sobre meus dilemas afetivos, utilizando
metforas que envolviam experincias cotidianas e socialmente compartilhadas: sobre
as diferentes funes de guardar e apagar dados do computador; a necessidade de doar
roupas velhas e sem uso do armrio para abrir espao para novas; a variao do tempero
e dos alimentos na dieta culinria; e os diferentes modos de locomoo com
automveis, com suas possibilidades de um ou mais passageiros e de controle da
conduo. Durante a conversa, brincamos com as ambiguidades de sentido que essas
metforas geravam e Nazar me disse que muitas pessoas que se consultavam com ela
no gostavam de conversar de maneira abstrata, queriam dar nomes e contar detalhes
sobre as situaes que estavam vivenciando. Mas ela preferia a forma metafrica,
porque achava que no era preciso saber detalhes para dar um bom conselho, j que as
pessoas buscavam principalmente algum que as escutasse, mais do que lhes dissessem
o que deviam fazer. Quando nos despedimos, combinei de ligar para ela assim que
conseguisse um bom carro. E percebi que esta havia sido a minha primeira consulta
religiosa.
Poucos dias depois, falei com Marlene e ela me disse que estava distante das
atividades do Gandhi porque estava ocupada como as aulas de dana que fazia e os
eventos polticos em que solicitavam sua presena. E me explicou que, alm de
participar dos eventos do grupo, tambm frequentava a ONG Centro de Tradies Afro-
Brasileiras, onde sua casa estava cadastrada e ganhava cestas bsicas que eram
distribudas entre casas de candombl. Os alimentos dessa cesta ela utilizava no preparo
das comidas dos rituais e tambm distribua no morro onde morava.
Nos dias que se seguiram, conversamos mais algumas vezes sobre sua atuao
poltica e os movimentos relacionados valorizao da cultura negra e das religies do
santo. Marlene ento me contou que havia nascido na Bahia, mas chegado jovem ao Rio
de Janeiro e, quando era criana, sua me biolgica trabalhava como governanta em
uma casa em Copacabana, onde os filhos dos donos da casa a chamavam de b.
Segundo Marlene, todos da casa tratavam muito bem sua famlia: ela nunca havia
andado em elevador de servio; quando tinha grandes festas na casa, era chamada para
participar; e ela e seus irmos brincavam com igualdade com os filhos dos patres.
195

Marlene no se recordava de haver distino social ou de cor nessa casa onde
havia passado sua infncia, e essa sua experincia vivenciada como igualitria tinha
feito com que discordasse das polticas pblicas baseadas na noo de raa. Ela me
contou que participava de vrios eventos polticos, mas que no se considerava uma
militante, porque sabia que ningum queria ouvir que o negro era racista. Em sua
opinio, as pessoas tinham que se esforar para ter uma vida melhor, em vez de pleitear
benefcios do governo, sendo que o importante era que o ser humano fosse bom, e no
sua cor. Marlene tinha, assim, um posicionamento contrrio noo de reparao
histrica, articulando um discurso que valorizava a oposio bom e mau e evitava
operar com as oposies rico e pobre e branco e negro.
Em meados de maio, Marlene me convidou para participar de outro ritual de sua
casa, denominado bor. Perguntei a ela se poderia oferecer alguma coisa para o ritual
e Marlene falou que poderia levar trs velas de sete dias, flores brancas midas
chamadas de chuveirinho e um bolo de massa clara que podia ter um enfeite de
morango. E pediu para que eu fosse de vestido ou de saia de cores claras. O ritual estava
marcado para iniciar s 14 horas e, quando cheguei, soube que ele havia sido uma
encomenda de uma de suas filhas de santo, Cntia. Alm dos filhos da casa, estavam
presentes no ritual apenas o pai, a me e a irm de Cntia, no havia assistncia.
No quintal, havia uma sequncia de sete alguidares no cho, cada qual com um
tipo diferente de comida, entre os quais reconheci a farinha misturada com dend, o
feijo, o aca e a canjica. Cntia estava com uma camiseta e uma cala brancas e com
os ombros encobertos por uma folha de jornal. Prato por prato de comida, Marlene
jogou seus contedos pelo corpo de Cntia, com especial ateno para a cabea, os
braos e as mos, enquanto cantava e rezava, sempre acompanhada do agog e com a
ajuda de uma filha de santo. Ao fim desse ritual, Marlene incensou toda a casa e Cntia
foi tomar um banho de gua fria no banheiro do quintal. Enquanto Cntia ficou dentro
da casa sendo preparada para o ritual, que no presenciei, Marlene me explicou que bor
era um termo que unia as palavras eb (comida) e or (cabea). Seu objetivo era dar
comida para a cabea, fortalecendo o orix do filho de santo, que Marlene tambm
chamou de anjo da guarda. E que aquele ritual que havia acabado de assistir era de
purificao, para que Cntia pudesse receber o bor.
Enquanto conversvamos, Cntia entrou na sala virada no santo, vestindo uma
roupa branca e sendo guiada pelo som de um adj tocado por Nazar, que era um
instrumento musical formado por duas campnulas de metal. E fez as saudaes aos
196

espaos sacralizados da sala e a Marlene, entrando em seguida novamente para a copa.
Alguns minuto depois, Marlene foi se vestir para o ritual e, enquanto isso, no quintal
Marcelo e Luan lavaram os ps de uma galinha de angola que estava presa em uma
gaiola, de duas galinhas brancas e de um pombo. Em um canto da sala, Nazar e Mrcia
arrumaram um lenol branco e colocaram vrios doces em uma de suas extremidades:
manjar, doce de coco, dois bolos brancos com cobertura de morango e uma travessa
com frutas diversas, como goiaba, mamo, manga, uva e banana. Havia tambm alguns
potes de loua branca e uma vela acesa.
Cntia entrou na sala e se sentou sobre o lenol com as pernas esticadas para
frente, ficando os pratos de doce aos seus ps. Estava com um leno branco amarrado
no peito, que era fechado em um grande lao nas costas, e com uma cala branca.
Marlene ento comeou a cantar e rezar com a ajuda do coro das mulheres presentes e
do ogan que tocava o agog. Cntia virou novamente no santo e Marlene pegou cada um
dos pratos de doces e passou pelo seu corpo. Fez o mesmo com as galinhas brancas, a
galinha de angola e o pombo, que depois retornaram para as mos dos homens.
Cada um dos animais foi ento degolado com uma faca por Marcelo e dado para
Marlene, que deixou jorrar parte do sangue sobre um dos potes de loua e sobre os
doces expostos aos ps de Cntia. Em seguida, o corpo de cada animal foi levado sobre
sua cabea e braos, onde jorrou o restante do sangue. Quando o sangue estancou, os
corpos foram postos ao lado dos demais pratos de alimento. Aps o sacrifcio de todas
as aves, algumas de suas penas foram retiradas e colocadas sobre a cabea de Cntia,
sobre suas mos e debaixo do lenol onde estava sentada. E Marlene enrolou um pano
branco fechando a cabea de Cntia, que se deitou. Foram retiradas pequenas pores
dos doces e frutas e postas no mesmo pote de loua com o sangue e as penas.
Depois, o ambiente foi todo limpo, incluindo as comidas que receberam o
sangue das aves, e as filhas de santo se retiraram com as aves para preparar o jantar.
Enquanto eu e a famlia de Cntia espervamos na sala, seus pais me contaram que ela
tinha sido iniciada em outra casa de santo e que j tinha tomado um bor naquele ano.
Mas, como estava enfrentando dificuldades na vida, havia decidido procurar Marlene,
que aceitou dar outro bor desde que Cntia passasse a ser filha de santo de sua casa.
Marlene depois comentou comigo que muitas casas faziam os rituais de forma
errada por no conhecerem bem a religio. E me explicou que no era necessrio que o
bor fosse suntuoso, com vrias comidas e objetos, porque o ritual era de
fortalecimento da cabea e no uma festa de orix. Falava isso porque o outro bor feito
197

em Cntia tinha tido o sacrifcio de um bicho de quatro patas, se referindo ao cabrito,
e achava que este tipo de suntuosidade era feito por quem no entendia o significado de
cada ritual e acabava por dificultar sua realizao, j que todas as despesas deviam ser
pagas por quem estava tendo sua cabea fortalecida e muitas vezes as pessoas no
tinham tanto dinheiro. E com essa informao demarcava, mais uma vez, sua forma de
perceber a prtica do candombl, que negava o que considerava ser excessivo em prol
da eficcia do ritual.
Cerca de trs horas depois, as filhas de santo trouxeram pedaos de galinhas
assados em uma bandeja de prata, que foi repousada em cima do pote de loua com o
conjunto das oferendas. Marlene ento destroou pedaos do assado com as mos e os
colocou em pratos, servindo primeiro o pai de Cntia, depois a me, depois a mim, a
irm de Cntia e as filhas de santo. Comemos o assado e em seguida foi servido um
piro com pedaos de galinha cozidos. Desta vez quem serviu os pratos foi Dona
Madalena, a filha de santo mais antiga, e comeou pelos homens. Depois foram
servidos por Nazar pratos fartos com os diversos doces do ritual. No final do dia,
Marlene me explicou que, comendo da comida do ritual, eu estava compartilhando de
seu ax e me beneficiando, e me disse que as flores e a torta que eu havia levado
possibilitaram que eu trocasse com as pessoas que estavam participando do ritual e que
usaria as velas para rezar por mim e abrir os meus caminhos. E que essa troca era boa
para todos.
Em 11 de junho, fui convidada para participar da matana para Ogum, realizada
dois dias antes de sua festa. Cheguei casa de Marlene ao meio-dia e contribu com a
festa ofertando dinheiro para a compra de uma galinha. Mas, desta vez, quando
perguntei se podia ajudar, Tnia, que estava comandando as mulheres que trabalhavam
na cozinha preparando as comidas do ritual, disse que eu podia lavar a loua. E Nazar
me deu um pano da costa florido e o enrolou acima do meu peito, explicando que ele
impediria de sujar minha roupa. Acompanhei ento o preparo do aca vermelho, que
era uma farinha de canjica amarela cozida at escurecer e ficar na consistncia de um
mingau, posta em tiras de folhas de bananeira anteriormente queimadas no fogo,
formando o conjunto pequenas trouxinhas verdes recheadas.
E, enquanto era esperada a chegada das galinhas para comear o ritual da
matana, fiquei com as filhas de santo conversando na copa. Anglica me mostrou um
colar feito de palha, e me explicou que s o usava quem tinha mais de sete anos de
iniciada no santo. Na sala, Nazar substitua as varas de capim que enfeitavam cada
198

portal por novas, e Marlene me explicou que elas eram trocadas uma vez por ano e
sempre na festa de Ogum. No banheiro do quintal, estavam presos o cabrito e duas
galinhas e, engaioladas, havia uma conqum e um pombo branco. Marlene havia sado
para comprar mais quatro galinhas para o ritual, mas Marcelo j tinha percorrido as
redondezas e no havia encontrado, explicando que o caminho que devia abastecer de
galinhas a regio havia quebrado na Avenida Brasil. E, como vrias casas de candombl
estavam festejando o dia de Ogum, faltavam galinhas no mercado e nem mesmo em
Madureira havia mais galinhas para vender.
Quase no fim da tarde, Marlene conseguiu chegar com trs galinhas e disse que
eram suficientes para o ritual daquele dia. No quintal, Luan lavou os ps e bicos das
galinhas e do cabrito. Marcelo trocou a lmpada do cmodo dedicado a Ogum e Oxossi
e Marlene e Nazar prepararam o espao lavando todos os objetos rituais em ferro.
Depois, juntaram todas as guias para Ogum dos filhos de santo da casa, que eram
colares feitos de contas azuis-marinhos e podiam ser de diversos tamanhos e materiais,
como loua, cristal ou plstico. Marlene me explicou que todos em sua casa tinham uma
guia de Ogum, porque ela era para proteo e devia ser usada independente dos santos
que regiam cada cabea.
Aos poucos as comidas foram sendo postas dentro de alguidares no quintal.
Marlene chamou todas as filhas de santo e cada uma pegou uma ave, com exceo da
conqum, que era muito arredia e ficou na gaiola. Fui chamada para participar do ritual
e fiquei na fila de mulheres, sendo que as mais antigas da casa ficaram na frente e as
mais novas no final. Marlene comeou a entoar msicas enquanto Manuelzinho tocava
o agog e Marcelo e Nazar matavam as aves e, por fim, o cabrito. O sangue de cada
animal foi jorrado sobre alguidares e o sacrifcio do cabrito foi celebrado de forma mais
elaborada: todos da casa encostaram a cabea em sua testa antes de ele ser morto. E,
toda vez que um dos bichos era sacrificado, o toque do agog ficava mais intenso e as
mulheres cantavam mais alto as msicas.
Aps esse ritual, todos os filhos de santo foram para a sala. Os homens
comearam a tocar o xir, que era uma sequncia de toques e cantigas
especificamente executada durante as festas para Ogum. Marlene se sentou em sua
cadeira e chamou as filhas de santo para danarem, me convidando a entrar tambm no
crculo das mulheres. As ias foram aos poucos entrando em transe e as ekedis Mrcia e
Nazar me ajudaram a desenvolver a dana demonstrando os gestos correspondentes a
cada toque de atabaques, que variavam de tempos em tempos, de acordo com o orix
199

que estava sendo louvado. A cada toque de orix, a coreografia variava na marcao dos
ps, nos gestuais das mos e no ritmo. Percebi ento que o toque dos atabaques tambm
induzia a uma acelerao do batimento cardaco e que, para incorporar um orix, tinha
um papel central a experincia na roda e o aprendizado corporal das danas, com suas
modulaes individuais das coreografias e a concentrao exigida.
No fim da tarde, aps a dana de vrios toques de atabaques, Marlene encerrou o
ritual e as mulheres foram para a cozinha preparar as aves e os homens ficaram no
quintal para retirar a pele e cortar o cabrito. Nazar brincou comigo enquanto eu
depenava as galinhas, dizendo que havia branco no terreiro achando que era preto,
demarcando assim as diferenas de cor de uma forma jocosa que as suspendiam, ao
invs de confront-las. No incio da noite, jantamos risoto de galinha e piro; o cabrito
foi separado para ser servido na festa de Ogum. Marcelo foi comprar cerveja e todos
beberam e, na despedida, Marlene e Nazar devolveram para cada um suas guias de
Ogum que haviam ficado no quarto dedicado ao orix.
A festa para Ogum foi realizada dois dias depois e, quando cheguei casa de
Marlene s 09 horas, me ofereci novamente para trabalhar e Mrcia falou que eu podia
pegar o mesmo pano florido do dia da matana, que havia sido guardado no quarto onde
os filhos de santo se vestiam. Nesse quarto, tinham muitas roupas de orixs penduradas
nos cabides e ela me explicou que haviam sido todas costuradas na casa. Perguntei se
havia cores especficas de roupas para cada orix, e ela me falou que no, que a nica
cor que era proibida era a preta, porque significava a ausncia de cor. Enrolei o tecido
acima do peito e fui para a cozinha, onde outras mulheres comeavam a preparar o
salpico que seria servido no almoo para os filhos de santo.
No quintal, foram sacrificadas duas galinhas e, ao fim da matana, cada
participante do ritual teve a cabea, a nuca e a garganta embebidas pelo sangue das
aves, enquanto Marlene fazia uma orao pedindo fartura e que Ogum e Oxossi
abrissem os caminhos. Depois, Marlene chamou todos para tocar e danar na sala, mas,
antes do xir comear, pediu para que nos abaixssemos que ela queria falar: em tom
solene, disse que a partir das 10 horas o terreiro da Casa Branca fazia o mesmo ritual,
com todos os orixs j incorporados subindo as escadarias para tocar o xir de Ogum. E,
aps essa fala que propunha uma conexo simblica entre o espao de sua prpria casa
e o de sua casa de origem, iniciou o xir e a dana.
Todos os filhos de santo almoaram por volta das 14 horas e depois foram
colocar suas roupas rituais. Marlene me ofereceu uma roupa igual a das ekedi para
200

vestir. Na cozinha domstica, conversei com Nazar sobre a dana, porque no havia
entendido em quais momentos do ritual deveria entrar ou no na roda e nem a sequncia
de saudaes que deveria fazer. Ela ento me disse que eu poderia entrar e sair quando
quisesse, que no havia uma regra e, ao me ensinar como se amarrava o toj, disse que,
se eu quisesse tirar por estar incomodando, no tinha problema. Assim, demonstrava
que o ritual da festa, embora seguisse uma sequncia de eventos predeterminados e
socialmente compartilhados, permitia uma grande autonomia individual.
Aps a assistncia se acomodar nos bancos, as ias da casa entraram na sala
vestidas de baianas e, durante os cnticos, alguns convidados tambm foram danar e,
um a um, incorporaram quando tocou a msica de seu orix de cabea. Quando todos j
estavam virados no santo, o batuque acabou e eles saram para o quarto de vestir. Ao
voltarem, cada qual estava vestido com a roupa de seu orix. Todos os ias foram
acomodados em cadeiras e, a cada toque de orix, a pessoa do santo correspondente se
levantava e danava durante vrios minutos, enquanto os demais continuavam sentados.
Ao final da festa, com os santos j desincorporados, foi servido o jantar de cabrito,
realizado um batuque no quintal e feito um churrasco.
Dias depois, no fim de junho, Marlene me chamou para ir sua casa conversar.
Era um dia de semana tarde, e ela me atendeu em uma mesa e cadeira posta na sala em
frente ao cmodo com objetos rituais. Levei ento uma guia que havia combinado de
fazer para Ogum, em contas azuis-marinhos, que ela colocou em uma infuso de folhas
sacralizando-a. Marlene queria saber se eu queria continuar frequentando a casa como
amiga ou se iria me tornar filha. Na conversa que tive com ela, contei sobre minha
tradio familiar na umbanda, mas que no estava certa se desejava ser filha de santo da
casa.
Combinamos ento que, enquanto eu pensava, faria uma roupa para a prxima
festa, de culto ao Caboclo, e que passaria a usar por um ano as contas de Ogum, que era
o que iriam fazer todos os filhos da casa. Iniciei ento a preparao de uma roupa toda
branca de baiana: comprei um morim para fazer angua; um tecido mais malevel para
o calolo e a parte da blusa que ficava de dentro da saia; e um tecido de algodo com
flores midas bordadas para a blusa, o toj, o pano da costa e a saia rodada; e um
bordado ingls para dar o acabamento s peas. Quem fez a roupa foi Nazar, e visitei a
casa ainda por duas vezes para que ela tirasse minhas medidas e para experimentar a
roupa.
201

Em julho, foi participando da festa para o Caboclo como filha de santo que
compreendi como a casa se dividia em assentamentos, que todos os filhos tomavam um
banho de folhas antes de colocar a roupa de trabalho e que, aps, era tomado outro
banho, desta vez comum, para que fosse colocada a roupa do ritual. Atravs da
experincia de vestir a roupa de baiana, percebi com ela era extremamente pesada e
quente, fazendo com que houvesse fisicamente uma transio para o momento sagrado
da festa. E aprendi a saudar os orixs assentados e os filhos de santo de acordo com a
hierarquia da casa e que o trabalho das mulheres era concentrado na cozinha e na roda
de dana da sala. Em relao diviso de papis de gnero, observei que as mulheres
trabalhavam por muitas horas em p e que essa posio corporal era muito valorizada
por demonstrar o sacrifcio que faziam para servir a casa e seus orixs. E que,
enquanto as mulheres organizavam a festa e serviam aos convidados, os homens
ofereciam proteo e recursos para o barraco, alm da diviso ritual entre dana e
msica e de espaos preferencialmente habitados por cada um dos papis.
A ltima festa da casa da qual participei era a considerada a mais importante e
ocorreu em meados de outubro: o Presente das Iabs, onde o orix que dirigia a casa,
Oxum, era homenageado. Para essa festa, confeccionei uma nova roupa com Nazar,
desta vez florida, com a qual participei do ritual. A festa foi realizada parcialmente
dentro da casa, com as saudaes e os toques de algumas cantigas. Depois, todos os
filhos de santo saram em afox, que era como denominavam o candombl que era
feito na rua para que fosse realizada uma oferenda ou algum ritual ao ar livre.

Esse afox caminhou pelas ruas do bairro em direo orla da Baa de
Guanabara, que era prxima da casa. Chegando baa, todos os filhos de santo entraram
em um pequeno barco com os atabaques e quatro balaios e, aps alguns toques e
cantigas onde todos os ias viraram no santo, depositaram os balaios fartamente floridos
e decorados nas guas. Ao fim da oferenda, adormeci sentada no banco do barco por
alguns minutos e, quando acordei, me disseram que eu havia entrado em transe.
202

Depois dessa festa, conversei novamente com Marlene sobre minhas dvidas em
relao a me tornar filha de santo e me afastei das atividades da casa. Mas, aps
acompanhar essas festas e rituais em sua casa, compreendi melhor a cosmologia do
candombl que estava sendo operada na Zona Porturia pelos diferentes herdeiros da
Pequena frica e, em especial, pelos integrantes do Afox Filhos de Gandhi. Pois, na
casa de Marlene, as classificaes socioeconmicas, de origem, de gnero e etrias eram
ressignificadas pela personificao de cada orix e sua conexo com as esferas
csmicas; e as formas de estruturar mentalmente o mundo e seus habitantes eram mais
pautadas pelas noes de bom e mau do que pelas de negro e branco ou
pobre e rico. E todos os rituais e festas propunham a ampliao dos poderes
mgicos dos filhos de santo e os orientavam para as realizaes da vida prtica.
Analisando a formao social e espacial dos integrantes do Gandhi a partir dessa
experincia, percebi que ela era referenciada no candombl pois, assim como na casa de
Marlene, quando eles chegavam aos pontos de encontro, muitos beijavam as mos dos
presentes e ofereciam e pediam para serem abenoados. E havia especial deferncia s
pessoas mais antigas no santo, como Tia Creusa. Espacialmente, os ogans e seus
atabaques ficavam destacados e elevados dos ias e das ekedis que danavam sua
frente. E essa elevao dos homens em um tablado os deixava mais prximos do cu,
porm contidos uns ao lado dos outros, fazendo uma figura linear e fixa que mirava para
a porta principal de entrada e sada da casa, espao que simbolicamente permitia a troca
com o mundo dos homens. Em oposio e complementaridade, as mulheres
mantinham os ps em contato com o cho e realizavam um movimento amplo e
constante que, no entanto, por ser circular e em torno do mastro, mantinha como
referncia espacial o centro da casa e o mundo dos orixs.
No Gandhi, assim como no candombl, havia tambm uma ntida diviso no s
de espaos, mas de atividades consideradas masculinas e femininas. As mulheres eram
incumbidas do preparo dos alimentos para os integrantes do grupo e para os orixs e das
roupas dos desfilantes, e os homens eram os responsveis por arrumarem as condies
fsicas da sede e de fazerem as articulaes com o mundo dos homens para que o
grupo obtivesse prestgio e abundncia. Essa abundncia, no entanto, era controlada
para que no se tornasse um excesso, fosse atravs do luxo ou pelo consumo de
comida e bebida; preocupao que, na casa de Marlene, se estendia para a negao de
uma suntuosidade nas festas e rituais.
203

A formao linear e circular dos rituais do candombl s era desfeita quando os
integrantes saiam em afox, assim como nas apresentaes consideradas mais
importantes do Gandhi, que eram quando seus integrantes caminhavam nos desfiles de
carnaval e no cortejo do Presente de Iemanj. E, no afox cultural, as figuras da
assistncia e dos filhos de santo eram espacial e funcionalmente substitudas pelas do
pblico e dos desfilantes. Nessas apresentaes de rua do grupo, a maior parte
dos sacrifcios tambm ocorria na vspera e a primeira atividade ritual era o pad para
Exu. E, tanto aps o candombl quanto o afox cultural do Gandhi, era realizada uma
roda de samba onde homens e mulheres se reuniam no mesmo espao, possibilitando
uma troca menos regrada, mais ritualmente prevista, entre os gneros.

TRANSFORMAO E PERMANNCIA NAS DIFERENTES POCAS DO GANDHI

No final de outubro de 2009, atravs de um convite da antroploga Nina Bitar,
que estava desenvolvendo uma pesquisa sobre as prticas das baianas de acaraj e suas
apropriaes dos espaos pblicos da cidade (Bitar, 2010), fui a um festival do
acaraj organizado por Cia em um clube no Centro da cidade. Nessa festa, Nina me
apresentou a Wilson Silva, que havia sido integrante do Gandhi durante a gesto de
Guerra, antecessor de Machado na presidncia do grupo. Wilson era ogan da casa Pai
Nin dOgum e, em novembro, gentilmente marcou e realizou comigo duas conversas
com integrantes do Gandhi atuantes entre as dcadas de 1970 e 1990: o ogan ndio, que
havia sido presidente do grupo entre as gestes de Encarnao e Guerra, e o babalorix
Helio Tozan, que havia sido vice-presidente de Guerra. Nas duas conversas, a presena
e mediao de Wilson foram fundamentais na elaborao de perguntas sobre os
fundamentos que o Gandhi havia anteriormente seguido e na rememorao de eventos
passados.
Nosso primeiro encontro foi com ndio em um bar em Realengo, na Zona Oeste
da cidade. Ao narrar sua verso da origem do Gandhi, ndio disse que o grupo havia
surgido em 1949 em Salvador por iniciativa de trabalhadores da estiva e, no Rio de
Janeiro, havia sido fundado dois anos depois por iniciativa de dois baianos: Milton
Sapateiro e Rubens Sapateiro, que trabalhavam juntos em uma oficina no Palcio
do Alumnio, estrutura metlica armada na Central do Brasil. Mas o afox s havia
desfilado em 1952, com onze homens vestindo lenis, entre os quais se lembrava de
Le Paz, Alberto Sales Pontes, Vav Palm, Felipe, Mudinho e Prato Raso.
204

ndio me explicou que os baianos que fundaram o Gandhi se reuniam na Central
do Brasil para oferecer a possveis fregueses da cidade trabalhos manuais e tcnicos,
como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro, estucador, ferramenteiro, chapeleiro e
ourives. Havia ainda entre os integrantes do grupo alguns estivadores e cariocas, mas o
principal elo entre todos era participarem do candombl. O primeiro presidente do
Gandhi havia sido Le Paz: estivador, carioca e feito no candombl da casa do Op
Afonj, em Salvador. E Alberto Sales Pontes, eleito depois, tinha sido o segundo, mas o
primeiro a ser oficialmente empossado. O terceiro presidente do Gandhi havia sido
Encarnao, ogan confirmado na casa do Bate Folha, em Salvador e, no Rio de Janeiro,
filho de santo da casa de Pai Nin dOgum.
ndio havia comeado a participar do Gandhi na gesto de Encarnao, na
dcada de 1970, e contou que seus integrantes no moravam perto da Central e nem na
Zona Porturia, eram moradores de Nova Iguau, Itagua, Niteri, entre outros locais.
Como no sbado noite geralmente tinha candombl nas casas mais conhecidas do Rio
de Janeiro, o Gandhi deixava para ensaiar domingo tarde. Os candombls eram
localizados principalmente na Baixada Fluminense e os ogans do grupo muitas vezes
iam a trs casas de candombl em uma nica noite e, na alvorada, iam pra casa,
descansavam e, tarde, ensaiavam no Gandhi. Alm da casa de Pai Nin dOgum,
outros candombls tambm eram bastante frequentados pelos integrantes do Gandhi,
como os de Mafalda, Joaquim, Regina, Detinha de Xang e Madalena.
Quando o Gandhi foi fundado, ndio contou que s homem podia desfilar. A
primeira mulher a desfilar no Gandhi foi Valdete, que era amante do Le Paz e saiu
escondida, travestida de ndio. As mulheres comearam a ter permisso para entrar na
avenida somente na gesto de Encarnao, para responder s cantigas de candombl.
A diviso do desfile do Gandhi em alas tambm havia sido uma criao de Encarnao
e tinha surgido a partir de sua amizade com Jurandir, que foi convidada para ser a
diretora artstica e carnavalesca do grupo. Comparando ao Gandhi de Salvador, disse
que l essa diviso em alas nunca havia sido feita, nem sido permitido o desfile de
mulheres.
Na poca do Encarnao, ndio contou que o antroplogo Raul Lody havia sido
um de seus integrantes e importante incentivador do grupo atravs das mediaes que
realizava como funcionrio da FUNARTE, rgo federal ligado ao Ministrio da
Cultura. Raul era carioca, mas ainda jovem havia sido confirmado no santo por Nicinha
na casa do Bogum, em Salvador, e havia conseguido que o Gandhi comeasse a se
205

apresentar em eventos culturais e folclricos em diferentes espaos da cidade e do pas,
como Minas Gerais, Paraba e Alagoas. Nesses eventos, aps cantarem o ijex os
integrantes do Gandhi faziam uma roda de samba de umbigada, com finalidade
recreativa. Quando conversei com Machado, um ano antes, ele tambm havia me dito
que Raul tinha sido o responsvel pela consolidao do termo candombl de rua para
definir as prticas dos afoxs, termo que posteriormente foi incorporado s letras
musicais do grupo.
Eram de autoria de Raul os nicos dois textos que encontrei publicados sobre o
Gandhi carioca, um datado de 1976 e, outro, de 1993. Neles, o autor tecia pontos de
comparao entre diferentes afoxs carnavalescos do pas em diversas pocas e
articulava um sistema de autenticidade cultural baseado na noo de africanidade. E,
em sua descrio das prticas do Gandhi carioca, abordava algumas que no trabalho de
campo percebi que haviam permanecido ao longo do tempo, como o pad para Exu no
incio das apresentaes do grupo e os cantos para Oxal ao final, as coreografias
inspiradas nas danas para os orixs e a msica marcada pelo toque de atabaques,
agogs e cabaas. E Raul tambm narrava prticas que haviam se modificado, como os
cnticos em iorub para cada orix.
ndio havia sido feito no santo em Salvador ainda na barriga da me, que tinha
se iniciado no candombl sem saber que estava grvida, e assumiu a presidncia do
Gandhi aps a morte de Encarnao, em dezembro de 1978. Ele contou que, nessa
poca, alguns de seus integrantes diziam que quem no tinha pelo menos sete anos de
feitos no santo no podia fazer parte do grupo. Mas, em sua opinio, qualquer um podia
participar porque ele era folclrico, embora logo em seguida tenha feito a ressalva de
que havia um fundamento: antes dos eventos, era obrigatrio que fosse dada comida
para Exu. E me contou que havia dois Exus assentados do Gandhi: o Bar Jiquitiriri,
que tinha ficado na casa de Aderman, em Jacarepagu; e o Tucum, que havia ficado na
casa de Nin. Alm do casal de Exus, ndio disse que antes de colocar o Gandhi na rua
tambm devia ser dado de comer a Bab Egum, para encaminhar os ancestrais do
grupo, porque muitos de seus integrantes j haviam falecido.
O Presente de Iemanj havia sido, segundo ndio, uma criao sua no calendrio
do Gandhi. E, para contar o surgimento deste evento, ndio se referiu a sua busca e de
Encarnao para conseguir uma sede para o grupo. Contou-me que, no incio da dcada
de 1970, o grupo havia perdido o espao de ensaio em um clube de carteado chamado
Recreativo Brasil, localizado na Esplanada do Castelo, entre o Largo da Carioca e a
206

Praa XV. Esse clube havia sido demolido com a substituio do terminal de nibus
Erasmo Braga pelo Edifcio Garagem Menezes Cortes, inaugurado em 1973. E, no
incio da dcada de 1980, o Gandhi permanecia sem sede e utilizando a casa de
candombl de Magnlia para ensaiar e guardar os instrumentos, fantasias e estandarte.
Hlio Tozan ento se ofereceu para falar com Gentil, diretor da escola de samba Unidos
de So Carlos, posteriormente nomeada Estcio de S e localizada no bairro do Estcio,
Centro da cidade, e conseguiu que a diretoria cedesse a quadra para os ensaios de
domingo do Gandhi.
No primeiro dia de ensaio nesta quadra, realizado em 01 de fevereiro, um dos
integrantes do Gandhi, Roberto, tinha dado um bor para Xangozinho, que era de
Iemanj. E pediu para ndio convidar os demais integrantes para irem missa de
Iemanj no dia seguinte, que ia ser realizada na Igreja de Santa Ifignia, na Rua da
Alfndega, Centro da cidade. Depois da missa, Hlio sugeriu que fosse feita uma festa
do Saveiro e ndio props que ela sasse da Cinelndia, para divulgar o Gandhi para a
populao e os vereadores. Os dois ento convidaram os outros fiis que estavam na
missa, que ndio me explicou serem todos macumbeiros, e esses fiis queriam levar
bijuteria, perfume e sabonete para oferecer a Iemanj durante a festa. Embora ndio
insistisse que eles queriam realizar no um Presente para Iemanj, mas uma Festa do
Saveiro, que era apenas uma comemorao realizada na sede, foi tanta a insistncia que
virou Presente.
Os integrantes do Gandhi foram pelos mercados do Centro procurar um balaio
para depositar os objetos que estavam sendo ofertados pelos fiis, mas acharam apenas
no Mercado de Madureira, onde tambm compraram um prato de loua raso, uma faca,
e um obi, que era uma noz de cola utilizada para jogo divinatrio. Outro integrante foi
procurar um barco para levar o presente e duas mulheres ficaram incumbidas de fazer os
enfeites do balaio. s 15h30min eles se encontraram na Cinelndia, ndio jogou o obi
para saber se o grupo podia desfilar, fizeram a roda de canto e dana em frente
Cmara dos Vereadores e partiram tocando afox at o Museu de Arte Moderna -
MAM, porque estava acertada a sada de um barco na Marina da Glria. E assim me
narrou o primeiro Presente de Iemanj do Gandhi, no dia 02 de fevereiro de 1981.
Logo depois, surgiu o primeiro grupo afro criado como dissidncia do
Gandhi, em um conflito motivado por diferenas formas de perceber as divises de
gnero no grupo. O Filhos de Dan foi organizado aps o Carnaval de 1982, ano em que
o Gandhi participou com uma ala do desfile da Unidos de So Carlos, que tinha como
207

enredo a mulher rendeira. Segundo ndio, a diretora artstica do grupo, Jurandir, havia
montado uma ala numerosa composta por homossexuais e apresentado um figurino que
era todo de renda e com um calolo. Mas, quando os integrantes desfilaram, alguns
homens vestiram s a roupa de renda e um tapa sexo, ficando assim com o corpo
muito exposto. Rubens Confete, que era um reconhecido jornalista e comentador
carnavalesco da Rdio Nacional, criticou muito o figurino e, na reunio de diretoria
realizada aps o Carnaval, ndio exigiu que todo o figurino do Gandhi dali por diante
fosse aprovado por ele. Os que no concordaram foram os que eram prximos de
Jurandir e fundaram o bloco afro Filhos de Dan. E ndio e Wilson me explicaram da
seguinte maneira as diferenas dos dois tipos de grupo carnavalesco: o bloco afro era
tambm de negro, mas geralmente cantava s msicas em portugus e no seguia
fundamentos do candombl; e o afox fazia rituais ijex e era o lado profano das
casas de candombl.
O ltimo ano de gesto de ndio foi 1988, e ele contou que havia decidido sair
do Gandhi tambm aps o Carnaval, quando o grupo desfilou no Sambdromo na
escola de samba Vila Isabel, quando ela ganhou o campeonato com o enredo Kizomba,
a festa da raa, que abordava os 100 anos de Abolio da Escravido. Os diretores da
escola haviam pedido a ndio que levasse 100 figurantes para desfilar e apareceu o
dobro com a roupa do Gandhi. E, quando o Salgueiro solicitou 50 pessoas, apareceram
300. Essas pessoas que estavam surgindo nos desfiles, segundo ndio, no participavam
normalmente do Gandhi, s estavam comprando a fantasia de outros integrantes para
desfilar nas escolas de samba. Ele ficou ento chateado com essa falta de controle dos
desfilantes e pediu para que Guerra assumisse a presidncia do grupo.
tarde, Wilson me levou para a casa de Hlio, em Bangu, tambm Zona Oeste
da cidade. Hlio narrou uma verso semelhante a de ndio em relao origem do
Gandhi carioca, mas com a incluso das trocas do grupo com o circuito do Carnaval
carioca desde sua fundao. Ele contou que o Gandhi logo que foi criado havia
conseguido uma sede para ensaiar atravs de um contato com sambistas do Morro da
Mangueira, j que Alberto Sales, o segundo presidente do grupo, era genro de Cartola.
E sua verso do incio da participao das mulheres nos desfiles do grupo tambm
ofereceu alguns detalhes e variaes em relao de ndio.
Segundo Hlio, antes de desfilarem, algumas filhas de santo vestidas como
baianas de acaraj j seguiam os homens do grupo no final do Gandhi, levando
bolsas, comida, bebida e suas navalhas, caso houvesse briga. Mas essas baianas eram
208

fundamentais no s para apoiarem os msicos, mas tambm para cantarem os cnticos
do Gandhi. A primeira mulher que havia sado fantasiada de ndio tinha sido Dona
Dulce, que tinha utilizado do artifcio para que seu marido, o ogan Le Paz, no sasse
com outras mulheres durante o desfile. Depois que descobriram, aos poucos os
integrantes do grupo foram permitindo a formao de alas femininas no grupo. A
primeira havia sido formada pelas jovens filhas dos integrantes, que saram fantasiadas
de escravas. Mas, depois, foi tambm liberado o desfile das baianas. Mas, frisou
quem, antes do Machado, nunca havia sido permitido que mulheres desfilassem de
lenol, vesturio considerado parte da tradio masculina; s eram permitidas as
roupas de baianas.



Hlio tambm narrou a dcada de 1970 como os tempos ureos do Gandhi,
quando o grupo era chamado para desfilar em quatro ou cinco escolas de samba por
Carnaval, porque toda a escola que elaborava um enredo de tema africano chamava o
Gandhi para compor uma ala. Segundo Hlio, at esse perodo o Gandhi parava a
cidade quando desfilava, percorrendo um circuito fechado que inclua a Rua Baro de
So Felix, a Rua Camerino, a travessia da Presidente Vargas, a Praa Tiradentes e o
retorno Central do Brasil. Durante os anos 1980, na gesto de ndio, o Gandhi j
estava com grande prestgio na cidade e, atravs de uma mediao de Hlio, que
trabalhava na RIOTUR, o grupo havia sido convidado para fazer o desfile de abertura
209

oficial do Carnaval realizado na Avenida Rio Branco.
Quando o desfile foi transferido para a Avenida Marques de Sapuca, onde
posteriormente foi construdo o Sambdromo, o Gandhi ainda manteve trs anos
consecutivos o seu desfile de abertura. Mas, segundo Hlio, a falta de organizao do
grupo, com seus recorrentes atrasos e no cumprimento de contratos, fez com que ele
perdesse, a partir de meados da dcada de 1990 e j na gesto de Guerra, parte do
prestgio que havia obtido, no sendo mais convidado para a abertura oficial do
Carnaval. Entre outras perdas consideradas por Hlio e Wilson, estava tambm a do
controle da organizao do Presente de Iemanj no dia 02 de fevereiro, que era at ento
comandada pelo Gandhi e, depois, passou a ser um evento organizado pela RIOTUR em
conjunto com a Federao dos Grupos Afro-Brasileiros.
Mas Hlio tambm percebia outras perdas, relativas ligao do grupo com as
casas de candombl e sua tradio. Segundo ele, os integrantes do Gandhi tinham
perdido gradualmente o contato com as diferentes casas de candombl da cidade, que
at o incio da gesto do Guerra eram frequentemente visitadas e convidadas para
participarem dos desfiles do grupo. E em torno de quinze outros blocos afros dissidentes
do Gandhi haviam surgido nesse momento, rupturas que Hlio creditava a dois fatores:
muitos integrantes estavam chegando bbados para desfilar; e tinha havido uma
invaso de homossexuais no grupo. Para Hlio, esse aumento de homens
homossexuais tinha feito com que muitos dos integrantes ligados capoeira, estiva e
Marinha se afastassem do grupo, porque consideravam ser o Gandhi uma tradio
masculina: nas primeiras gestes, s homem valente podia presidir o grupo e danar
com o estandarte. A entrada de homossexuais era vista, assim, como uma perda de sua
autenticidade cultural.

A quem no era [homossexual], que no fazia parte do grupo, se afastou. Porque o Gandhi
antigamente era coisa de valente, era coisa de homem, sim senhor, capoeirista, gente que
danava com o estandarte. No se admitia homem de torcinho na cabea, homem que no
era homem danando com o estandarte do Afox Filhos de Gandhi. Hoje o estandarte do
Filhos de Gandhi, que sempre foi respeitado, hoje elaborado por quem ns chamamos de
Ad Fontofe, homossexual. A gente no tem nada a ver com isso. Cada um na sua. Mas era
tradio de no poder. Por exemplo, Gandhi em Salvador coisa de estivador. Continua
sendo gente de estiva, gente de Marinha, como era aqui a mesma coisa. E de repente aqui
no Rio o Gandhi se perdeu. Ele se perdeu em todos os sentidos.

210

Como soluo para o que percebiam serem perdas relacionadas aos aspectos
tradicionais do grupo, Hlio e Wilson consideravam que o grupo deveria retornar para a
gesto da famlia de Encarnao, se referindo tanto aos parentes consanguneos
quanto aos filhos de santo que foram a ele ligados. Em suas avaliaes, se o grupo
retornasse para essa famlia, os antigos voltariam a se interessar pelo Gandhi e a
integrar seus desfiles. E, para eles, mesmo que ainda houvesse mulheres de pocas
anteriores desfilando no grupo, como Creusa e Rosa, elas no eram capazes de,
sozinhas, resgatarem o que consideravam ser essa tradio perdida, pois fazia parte de
suas noes de tradicionalidade o grupo ser comandado por homens.
Assim, atravs dos textos de Raul Lody e das falas de ndio, Hlio e Wilson,
pude compreender as permanncias dos fundamentos religiosos tidos como
estruturantes das prticas do grupo, bem como o impacto na noo de tradicionalidade
que as alteraes propostas por Machado estava ocasionando: a acelerao do ritmo
musical; as cantigas com letras em portugus; as mulheres desfilando fantasiadas de
lenol; e a aceitao de homossexuais portando o estandarte do grupo, seu objeto
material considerado mais sagrado. Mas essas alteraes de sua tradio j haviam
acontecido anteriormente a Machado e faziam parte mesmo da verso que cada
presidente operava do grupo e de suas transformaes ao longo dos anos: a permisso
de participao das mulheres nos desfiles; a participao de pessoas no feitas do santo
no grupo; a diviso de alas; e a incluso das rodas de samba de umbigada ao final das
apresentaes.
E eram atravs dessas retricas de perda que seus integrantes de pocas
anteriores demarcavam tais transformaes, definindo assim o que era considerado
tradicional no apenas a partir de suas permanncias, mas tambm em contraste,
percebendo suas modificaes. No entanto, ao ouvir a narrao de todas as alteraes
implantadas nas diferentes pocas do Gandhi, percebi que sua constante
transformao fazia parte de suas noes de circulao e reciprocidade, j que
buscavam ampliar os espaos frequentados pelo grupo e o nmero de seus integrantes.
E que era nessa tenso dialtica entre preservar e transformar que o patrimnio do
Gandhi mantinha como bem inalienvel seus aspectos mgicos ligados s prticas do
candombl.

OS ESPAOS DA MAGIA E DA RECIPROCIDADE

211

O sistema de pensamento dos integrantes do Afox Filhos de Gandhi era
pautado pelas noes de magia e de reciprocidade: as trocas por eles movimentadas se
baseavam nas prticas das casas de candombl, que envolviam o mundo dos homens e
dos orixs atravs de rituais que visavam trazer proteo e benefcios no cotidiano.
Essas trocas tambm se expandiam para as relaes entre as casas de candombl, j que
a maioria dos integrantes do Gandhi estabelecia uma rede de amizades em torno das
prticas do candombl e de suas noes de magia para alm dos eventos do grupo, que
eram consolidadas nas festas de culto aos orixs. E era a circulao dos filhos de santo
entre as diferentes casas de candombl que possibilitava a densidade social observada
no Presente de Iemanj e nos desfiles de Carnaval do grupo e que os mantinha
participantes em eventos de divulgao da cultura negra e dos cultos afros.
Esse amplo sistema de trocas movimentado pelo grupo, alm de ser
estruturante de sua forma de pensamento e no estabelecimento de suas relaes sociais,
tambm era movimentado quando seus integrantes operavam com as noes de
transformao e permanncia de suas prticas: atravs da busca de um maior
reconhecimento pblico do Gandhi como representante da cultura afro-brasileira, do
aumento de participao de filhos de santo em seus desfiles e de profissionalizao de
sua diretoria e seus msicos.
Assim, acompanhando as atividades e projetos do Gandhi, compreendi que o
patrimnio imaterial que ele articulava buscava constantemente o equilbrio entre a
manuteno dos fundamentos do grupo, relacionados s prticas do candombl, e a
transformao das prticas consideradas alienveis e capazes de aumentar sua circulao
e mediao entre diferentes espaos e mundos. E que a trajetria do Gandhi ligada s
casas de candombl possua uma base histrica onde residia a eficcia simblica e a
ressonncia de seu patrimnio, como visto nas narrativas sobre as origens e
transformaes de suas prticas ao longo de seis dcadas.
E, por ser um afox, ou seja, por desfilar seguindo determinados fundamentos
religiosos do candombl, o Gandhi, apesar de portar seu patrimnio movimentado um
amplo sistema de trocas e de circulao, precisava ter um ponto de referncia espacial
para seus ensaios e rituais. E havia concentrado, ao longo do tempo, suas atividades em
diferentes espaos da Zona Porturia e do Centro da cidade, fazendo com que tais
regies fossem para o grupo parte constitutiva desse patrimnio.
Assim, era somente aparente o paradoxo entre a circulao e fixao desse grupo
carnavalesco em um territrio, j que, para que ele existisse, ambos os movimentos
212

eram necessrios: o de seus desfiles e de sua sede, cada qual se complementando e
alternando em funes. Sendo que, entre os espaos que ao longo da trajetria do
Gandhi haviam sido utilizados como sede do grupo, o antigo mercado de escravos do
Valongo era entendido por seus integrantes como de especial valor, devido aos aspectos
mgicos que movimentava por sua conexo com os mortos e o mito da Pequena frica.

213

Concluso.
Os espaos do patrimnio na Zona Porturia carioca



Aps o final dos dois anos de trabalho de campo, percebi que os planos
urbansticos da prefeitura para a Zona Porturia carioca no comearam com o Porto do
Rio, mas fizeram parte de um processo histrico que teve suas bases consolidadas no
primeiro grande plano urbanstico idealizado para a cidade, que foi a Reforma Pereira
Passos. As reas porturia e central se tornaram ento espaos de constantes
planejamentos e definies de usos do solo, tendo sido repensadas e modificadas ao
longo do sculo por diversos outros planos.
O plano urbanstico Porto do Rio, a despeito de sua autoproclamada novidade,
se apresentava, assim, como uma continuidade de imaginrios e prticas. No entanto, a
emergncia das noes de stio histrico e de rea de preservao cultural a partir
da dcada de 1970 nas polticas pblicas nacionais e regionais voltadas para a
identificao de patrimnios, redefiniram as classificaes que estavam incidindo sobre
essas reas porturia e central, propondo uma clivagem de sua funcionalidade dentro da
dinmica da cidade. Assim, os bairros que at ento eram predominantemente
destinados aos usos comerciais, industriais e de servios, comearam a ser valorizados
por seus aspectos culturais. E, a partir desse momento, foi a definio do conceito de
cultura que entrou em disputa por seus diferentes usurios: gestores pblicos,
especialistas das reas de arquitetura, urbanismo, histria, sociologia, geografia e
antropologia, moradores, associaes de bairro, sociais e recreativas, comerciantes,
empresrios, entre outros.
Ao invs de desenvolver minha pesquisa buscando propor uma normatizao ou
programa de usos dos espaos da Zona Porturia, optei por compreender como eles
estavam sendo estruturados por seus diversos habitantes. E, ao escolher o Morro da
Conceio como recorte territorial para a realizao de meu trabalho de campo, espao
que estava sendo privilegiado pelos urbanistas da prefeitura em suas aes de
renovao urbana, me deparei com os efeitos sociais locais dos planos urbansticos e
as disputas que, direta ou indiretamente, eles estavam provocando.
214

E, ao tentar dar conta da diversidade de formas de habitar e estruturar
mentalmente o morro, acabei por me deslocar da noo territorial totalizante que havia
sido proposta pela prefeitura: pois, se havia algo em comum entre os espaos da parte
alta, da parte baixa, da Pedra do Sal e do Valongo, era suas proximidades fsicas e o
estabelecimento que permitiam de uma noo, embora difusa, de vizinhana. Mas tal
vizinhana podia, dependendo do ponto de vista dos grupos e indivduos que habitavam
seus espaos, incluir ou excluir outros espaos, como o Morro da Providncia, os
bairros da Gamboa e Santo Cristo, o Centro da cidade, e at mesmo os fisicamente
distantes subrbios e municpios da Baixa Fluminense, que eram aproximados devido s
conexes possibilitadas pelas linhas rodovirias e metrovirias da Central do Brasil.
A definio do Morro da Conceio reconhecida administrativamente pelos
urbanistas da prefeitura era, assim, baseada em uma noo geogrfica da ideia de
planalto. E, para unificar os diferentes espaos desse planalto em um nico projeto de
renovao urbana, percebi que tais urbanistas haviam estruturado o morro a partir da
noo metafrica de casa. Apesar dos urbanistas da prefeitura no utilizarem
explicitamente essa metfora em seus discursos, ela era operada inconscientemente pela
distino que faziam entre o que denominavam de morro e de cidade. Assim, para
eles, era a ideia de casa que constitua a noo de morro, sendo suas ruas e
logradouros classificados pelos diferentes usos que possuam e possibilitavam; enquanto
a ideia de rua era associada aos espaos circundantes do planalto e genericamente
denominados de cidade.
Como sugerido pelo urbanista Amos Rapoport (1969), a noo de casa era
universal, embora variasse de acordo com cada contexto cultural. E, como proposto
ainda pelos estudos do socilogo Pierre Bourdieu (2003) e da antroploga Suzanne
Blier (1987), o que unificava a noo de casa era a srie de oposies e correlaes que
operavam entre espaos, como interior e exterior, coletivo e individual,
sagrado e profano, puro e impuro etc. Eram, portanto, essas oposies que
estruturavam a percepo dos limites de uma totalidade territorial imaginada. E, tendo
como referncia as elaboraes de Lvi-Strauss (2008), percebi que os espaos do que
se definia por morro haviam sido formalmente estruturados pelos urbanistas da
prefeitura como dualismos concntricos hierarquizados entre si: pois, tinha sido a partir
do principio lgico da oposio centro e periferia, que cinco regies haviam sido
identificadas como componentes de uma dinmica socioespacial no livro Morro da
Conceio.
215

No entendimento espacial e social do morro pelos urbanistas, havia sido
proposta uma gradao entre os espaos classificados como mais e menos
comunitrios e regulares em suas ocupaes. Assim, foi percebido como centro o
que foi classificado de eixo cume morro, regio onde estavam a localmente
denominada parte alta e as edificaes da Fortaleza e do Palcio Episcopal e a qual os
urbanistas associaram ocupao dos descendentes de portugueses e espanhis. A
regio classificada como flanco norte era o que localmente se denominava parte
baixa, e foi onde os urbanistas identificaram a ocupao dos migrantes nordestinos e
a predominncia fundiria da Venervel Ordem Terceira de So Francisco da
Penitncia. Como flanco sudeste foi identificado a regio onde estava localizada o
Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antnio, espaos onde no foi proposta
qualquer caracterizao de sua ocupao, sugerindo serem social e culturalmente vazios.
E, como o extremo da periferia, foi identificada quase toda a base do morro, incluindo o
Largo Joo da Baiana e a Rua So Francisco da Prainha, sendo classificadas como
sop comercial e caracterizadas como ocupada por comerciantes sem vnculos
sociais com os moradores do morro.
Analisando essas classificaes dos urbanistas da prefeitura a partir das noes
de casa/ morro e rua/ cidade e de centro e periferia, percebi que nelas estavam
sendo operadas outras oposies espaciais especficas: as que diferenciavam a
localizao vertical alto e baixo; a localizao horizontal rea central e rea
porturia; seus usos privado e pblico; suas funes residencial e comercial; e
as categorias estticas, econmicas e morais recuperado e decadente.
Trocando em midos, quanto mais alto se localizava um espao do morro e
menos relao possua com a cidade, acentuando-se seu carter de espao privado e
residencial, mais ele era percebido como central. Inversamente, quanto mais um espao
estava localizado prximo sua base e possibilitava diversas conexes com outros
espaos da cidade, acentuando-se seu carter de espao pblico e comercial, mais ele
era entendido como rea perifrica. A partir desse princpio tinham sido, portanto,
classificados o eixo cume morro, os flancos e o sop.
Cumulativamente, haviam sido ainda entendidos como mais centrais os espaos
voltados para a rea do Centro da cidade, associados a espaos recuperados, e como
mais perifricos aqueles voltados para a Zona Porturia, associados a espaos
decadentes. Assim, a Rua Major Daemon e a Ladeira Joo Homem, vias de acesso
mais rpido Avenida Rio Branco, ocupada por prdios de arquitetura moderna e
216

pelas atividades financeiras e empresariais, foram includas no eixo cume morro;
enquanto a Ladeira Pedro Antonio foi includa perifericamente no flanco sudeste,
composto por sobrados utilizados pelo pequeno comrcio e por habitaes coletivas e
voltado para o bairro da Gamboa e o Morro da Providncia. E, no meio dessa gradao,
foi classificado o flanco norte, que permitia a conexo entre ambas as regies.
Como os espaos do morro haviam sido inconscientemente estruturados pela
noo metafrica de casa, suas portas e janelas foram consideradas espaos
liminares de interligao do morro cidade, possibilitando movimentos alternados de
entrada e sada, aproximao e afastamento, interior e exterior. E foi para demarcar esse
movimento de alternncia que os urbanistas propuseram que todas as vias do morro
tivessem seus pisos revestidos por pedras e no por asfalto, como era o caso de algumas
de acesso componentes da parte baixa. Tal demarcao fsica seria, assim, uma
delimitao simblica de espaos.
E, na operao da oposio pblico e privado, os espaos foram ainda
diferenciados pelo uso coletivo ou individual que possibilitavam, sendo assim
estruturados pelas diferenciaes entre sala de visita e quarto de dormir. Foram
classificados como pblicos os espaos que possibilitavam o encontro entre diferentes
tipos de usurios, como vias, largos e praas; e privados os restritos ao uso dos grupos
familiares e suas residncias. E, por operaram com essa oposio, havia causado
incmodo aos urbanistas a indefinio de algumas reas do morro entre os usos pblicos
e privados; pois, para muitos dos habitantes, algumas vias que os urbanistas percebiam
como espaos coletivos eram vivenciados como de circulao restrita, onde a presena
de qualquer pessoa entendida como de fora provocava desconfiana.
Assim, embora os urbanistas da prefeitura possussem uma forma prpria de
delimitar e identificar o morro e seus habitantes, no cotidiano das prticas e experincias
desses habitantes os espaos eram estruturados a partir de diferentes lgicas de casa e
rua, que em algumas classificaes podiam se assemelhar dos urbanistas e, em
outras, suspend-las, invert-las ou anul-las. E, igualmente, as noes de centro e
periferia variavam de acordo com cada grupo e seus espaos considerados e utilizados
como sagrados.
Era o caso de alguns moradores da parte alta e sua centralidade simblica no
Largo da Santa, que operavam suas distines espaciais e sociais a partir das noes de
virtude e vcio, regular e irregular, masculino e feminino e puro e
misturado. Assim como dos dirigentes da VOT, cujo centro simblico estava na
217

Igreja da Prainha e para os quais a noo de casa era associada a um espao regrado e
de relaes hierarquizadas, sendo a noo de rua associada aos espaos e habitantes
que no compartilhavam de seus padres religiosos e de conduta moral, produzindo
uma gradao entre as classificaes de morador, marginal, desviante e
criminoso. E dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do Afox Filhos de
Gandhi, centrados respectivamente na Pedra do Sal e no antigo mercado de escravos do
Valongo, e que, apesar de suas diferenas, eram unificados pela cosmologia do
candombl e percebiam o espao da rua como de troca com o mundo dos homens e
dos orixs atravs da mediao fsica de esquinas, pedras, guas, plantas e animais; e
para os quais o espao da casa era de estabelecimento de relaes de amizade a partir
de uma hierarquia pautada por valores mgicos.
Permeando estes diferentes grupos, encontrei direta ou indiretamente
pronunciada a noo de patrimnio, mas que tambm variava de acordo com cada
contexto e formas de estruturar os espaos. Ao iniciar a minha pesquisa pela parte alta
do morro, que estava sendo proclamada pela prefeitura como de ocupao dos
descendentes de portugueses e espanhis, tinha a expectativa de que encontraria
narrativas de patrimonializao voltadas para a presentificao dessa memria. Mas,
neste primeiro espao pesquisado, percebi que os discursos de patrimnio eram
principalmente externos, referentes aos prprios urbanistas da prefeitura e a pessoas que
percebiam nele um modo de vida popular e autntico. E, de forma apenas
aparentemente paradoxal, foi nesse espao valorizado cultural, econmica e
turisticamente que encontrei discursos menos articulados sobre identidades e pleitos
territoriais: pois era essa valorizao mesma que legitimava seus moradores e fazia com
que no precisassem articular discursos de visibilidade, apenas prticas de controle
dos usos do espao e da vizinhana.
Assim, foi justamente entre os habitantes do morro que no haviam sido
contemplados na representao da organizao comunitria proposta pelos urbanistas
da prefeitura, e para cujos espaos estavam sendo idealizadas as principais aes de
renovao urbana, que encontrei a noo de patrimnio sendo operada em pleitos
territoriais e narrativas bem articuladas sobre tradio e identidade. Pois, tais narrativas
e pleitos era uma reao a essa invisibilidade difusa que estava sendo articulada por
mediadores de imaginrios que associavam a presente ocupao do morro como
relacionada a portugueses e espanhis, migrantes nordestinos e franciscanos: mas que
excluam a ocupao e memria espacial dos negros e do povo do santo.
218

Direcionei ento minha pesquisa para dois grupos que no tiveram suas formas
de habitar reconhecidas pelos urbanistas em suas representaes de morro: o dos
moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal e o dos integrantes do
Afox Filhos de Gandhi. E, percebi que ambos haviam proposto nessa busca de uma
territorializao a estruturao dos espaos do morro e da Zona Porturia a partir da
noo de Pequena frica: pois, atravs dela, eram reconhecidas e valorizadas a
ocupao negra, popular e do santo ligadas moradia popular, aos ritmos
percussivos, aos grupos carnavalescos, s prticas do candombl e s atividades
porturias.
Os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal pleitearam alguns
imveis do entorno do Largo Joo da Baiana argumentando pretenderem defender e
preservar da memria negra que estava materializada e oficialmente reconhecida pelo
tombamento da Pedra do Sal como monumento afro-brasileiro. E, atravs de suas
conexes com alguns movimentos sociais e rgos estatais, buscaram sua
territorializao se baseando no dispositivo jurdico que articulava a noo de
reparao histrica e reconhecia como comunidades remanescente de quilombo
grupos de afrodescendentes que assim se auto atribussem e que possussem uma
trajetria histrica prpria, relaes territoriais especficas e uma ancestralidade
negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida.
J os integrantes do Afox Filhos de Gandhi, alm de se unirem ao pleito do
movimento quilombola, desenvolveram concomitantemente formas prprias de atuao
para conseguirem a propriedade definitiva de sua sede na Rua Camerino, considerada de
relevante valor simblico por estar localizada no espao onde havia funcionado o
mercado de escravos do Valongo. E, embora o patrimnio que propalassem no
tivesse sido reconhecido oficialmente por leis de preservao, era por eles chamado de
imaterial e associado s prticas do candombl e do carnaval. Mas, em suas formas de
articular seu pleito territorial, as noes de redeno da memria da escravido e de
reciprocidade fizeram com que ampliassem seu sistema de trocas e de circulao,
atravs do aumento de mediadores: madrinhas, patronos, amigos, parceiros,
alm de humanos, antepassados, orixs, plantas, minerais e animais, foram assim por
eles operados e conectados.
Quando finalizei a pesquisa em novembro de 2009, os pleitos territoriais de tais
grupos pertencentes ao circuito de herdeiros da Pequena frica permaneceram sem
resoluo jurdica, embora seus patrimnios fossem ressonantes em parcela da
219

populao da cidade. No incio desse ano havia ocorrido ainda a transio da gesto da
prefeitura e a divulgao de um novo plano urbanstico para a Zona Porturia, o Porto
Maravilha, que passou a incluir como rea de interveno o bairro porturio do Caju e
parte dos bairros do Centro, Cidade Nova e So Cristovo. A aprovao do Rio de
Janeiro como sede das Olimpadas de 2016 tambm havia provocado o substancial
aumento de investimentos do Governo Federal nos projetos de revitalizao urbana da
prefeitura. E, nessa mudana de contexto poltico e administrativo, era impondervel o
quanto os herdeiros da Pequena frica conseguiriam alcanar o reconhecimento de seus
patrimnios e sua territorializao na Zona Porturia.

220

Referncias Bibliogrficas



LIVROS E ARTIGOS

ABREU, Maurcio de Almeida. A evoluo urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Instituto Pereira Passos, 2006.
ALMEIDA, Roberto Schmidt. Bairros porturios do Rio de Janeiro: memrias de
pesquisadores. Vozes do Porto: memria e histria oral. Rio de Janeiro: DPA/
UNIRIO, 2005.
ARANTES, rika Bastos. O Porto Negro: cultura e trabalho no Rio de Janeiro dos
primeiros anos do sculo XX. Dissertao de Mestrado em Histria, UNICAMP, 2005.
ARGAN, Giulio Carlo. A histria da arte como histria da cidade. So Paulo: Martins
Fontes, 1992.
ARRUTI, Jos Maurcio Andion. Mocambo: antropologia e histria do processo de
formao quilombola. So Paulo: EDUSC, 2006.
ARRUTI, Jos Maurcio Andion e FIGUEIREDO, Andr Luiz Videira. Processos
Cruzados: configurao da questo quilombola e campo jurdico no Rio de Janeiro.
Boletim Informativo NUER, vol. 2, n. 2. Florianpolis: NUER/ UFSC, 2005.
BAILEY, Frederick George. Gifts and Poison: the Politics of Reputation. Oxford: Basil
Blackwell, 1971.
BARANDIER, Henrique. Projeto urbano no Rio de Janeiro e as propostas para a rea
central nos anos 1990. A cidade pelo avesso: desafios do urbanismo contemporneo.
Rio de Janeiro: Viana & Mosley/ PROURB, 2006.
BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The Chicago University
Press, 1972.
BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine. Introduo. De volta cidade: dos processos
de gentrificao s polticas de revitalizao dos centros urbanos. So Paulo:
Annablume, 2006.
BITAR, Nina Pinheiro. Agora que somos patrimnio...: um estudo antropolgico
sobre as baianas do acaraj. Dissertao de mestrado em Antropologia Cultural,
PPGSA/ UFRJ, 2010.

221

BLIER, Suzanne Preston. The anatomy of architecture: ontology and metaphor in
Batammaliba architectural expression. Chicago: The Chicago University Press, 1987.
BOURDIEU, Pierre. The Berber House. The Anthropology of Space and Place.
Oxford: Basil Blackwell, 2003.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao
desfile. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.
CHALLOUB, Sidney. Cidade Febril. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CLIFFORD, James. Colecionando Arte e Cultura. Revista do Patrimnio, n. 23. Rio
de Janeiro: IPHAN, 1994.
COMPANS, Rose. Parceria Pblico-Privado na Renovao Urbana da Zona Porturia
do Rio de Janeiro. Cadernos IPPUR/ UFRJ, ano 1, n. 1. Rio de Janeiro: UFRJ/ IPPUR,
1998.
FIGUEIREDO, Cludio. O Porto e a cidade: o Rio de Janeiro entre 1565 e 1910. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
FONSECA, Maria Ceclia Londres. O Patrimnio em processo: trajetria da poltica
federal de preservao no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/ IPHAN, 2005.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault. Ditos e escritos. Volume III. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 2006.
GARCIA, Janurio. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil. Braslia:
Fundao Cultural Palmares, 2008.
GOLDMAN, Mrcio. Os Tambores dos Mortos e os Tambores dos Vivos. Etnografia,
Antropologia e Poltica em Ilhus, Bahia. Revista de Antropologia, vol. 46, n. 2. So
Paulo: USP, 2004.
GONALVES, Jos Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: colees, museus e
patrimnios. Rio de Janeiro: Garamond/ IPHAN, 2007b.
______. Os limites do patrimnio. Antropologia e patrimnio cultural: dilogos e
desafios contemporneos. Blumenau: ABA/ Nova Letra, 2007a.
______. Monumentalidade e Cotidiano: os patrimnios culturais como gnero de
discurso. Cidade: histria e desafios. Rio de Janeiro: CNPQ/ FGV, 2002.
______. A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro: UFRJ/ IPHAN, 1996.
______. Autenticidade, memria e ideologias nacionais: o problema dos patrimnios
culturais. Estudos Histricos, vol. 1, n. 2. Rio de Janeiro: FGV, 1988.
222

GORELIK, Adrin. Das vanguardas a Braslia. Cultura urbana e arquitetura na
Amrica Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GRANET, Marcel. O pensamento chins. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
GUIMARES, Roberta Sampaio. Afox Filhos de Gandhi/RJ: memrias, patrimnios
e usos da frica na cidade. XXXIII Encontro Nacional da ANPOCS. Caxambu:
ANPOCS, 2009c.
______. A Pequena frica atualizada. Representaes literrias e reapropriaes
polticos-raciais. II Reunio Equatorial de Antropologia. Natal: REA, 2009b.
______. Representaes, apresentaes e presentificaes do Morro da Conceio:
uma reflexo sobre cinema, patrimnio e projetos urbansticos. Devires Imagticos: a
etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2009a.
______. A moradia como patrimnio cultural: discursos oficiais e reapropriaes
locais. Dissertao de mestrado em Antropologia Cultural, PPGSA/ UFRJ, 2004.
HANDLER, Richard. On having a culture. Objects and others: essays on museums
and material culture. Madison: The Winconsin University Press, 1985.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos ela memria: arquitetura, monumentos, mdia. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2000.
INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays in livelihood, dwelling and
skill. London: Routledge, 2000.
KARACSH, Mary. A vida dos escravos na cidade do Rio de Janeiro (1808-1950). So
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Museum. Destination culture:
tourism, museums, and heritage. Berkeley: University of California Press, 1998.
LAMARO. Sergio Tadeu Niemeyer. Dos trapiches ao porto. Um estudo sobre a Zona
Porturia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo
e Esportes/ Biblioteca Carioca, 1991.
LATOUR, Bruno. O que iconoclash? Ou, h um mundo alm das guerras de
imagens?. Horizontes Antropolgicos, ano 14, n. 29. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
______. Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simtrica. So Paulo:
Editora 34, 1994.
LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural I. So Paulo: Cosac Naify, 2008.
______. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
LVI-STRAUSS, Claude e ERIBON, Didier. De perto e de longe. So Paulo: Cosac
Naify, 2005.
223

LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004.
LOBO, Maria da Silveira. O projeto urbano glocal do Porto do Rio: do Museu
Guggenheim Cidade do Samba. I Seminrio do Programa de Ps-Graduao Stricto
Sensu em Arquitetura e Urbanismo. So Paulo: Universidade So Judas Tadeu, 2006.
LODY, Raul Giovanni. Com o Carnaval no sangue: sobre vivncias e contribuies
memria das tradies carnavalescas afro-brasileiras. Comunicado Aberto 15. Rio de
Janeiro: Editora Autor, 1993.
______. Afox. Caderno de Folclore 7. Rio de Janeiro: MEC/ Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro, 1976.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. So Paulo: Perspectiva, 1999.
MACCANNEL, Dean. Staged Authenticity. The tourist: a new theory of the leisure
class. New York: Scocken Paperbacks, 1976.
MAGNANI, Jos Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia
urbana. Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 17, n.49. So Paulo: ANPOCS,
2002.
MARTINS, William de Souza. A Ordem Terceira de So Francisco no Rio de Janeiro
Colonial. XXVI Reunio da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica. Rio de
Janeiro: SBPH, 2006.
MCDONOGH, Gary Wray. Myth, Space and Virtue: Bars Gender and Change in
Bacelonas Barrio Chino. The Anthropology of Space and Place. Oxford: Basil
Blackwell, 2003.
MOREIRA, Clarissa da Costa. A cidade contempornea entre a tabula rasa e a
preservao: cenrios para o porto do Rio de Janeiro. So Paulo: UNESP, 2004.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
PEREIRA, Jlio Csar Medeiros da Silva. flor da terra: o cemitrio dos pretos novos
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond/ IPHAN, 2007.
RABINOW, Paul. Ordonnance, discipline, regulation: some reflections on urbanism.
The Anthropology of Space and Place. Oxford: Basil Blackwell, 2003.
RAPOPORT, Amos. House form and culture. New Jersey: Prentice Hall, Upper Saddle
River, 1969.
SANTOS, Jlio Csar Ferreira. Polticas espaciais de requalificao urbana na rea
central do Rio de Janeiro: nova esttica da desintegrao local e espetculo da projeo
224

global. Scripta Nova Revista Electrnica de Geografia y Cincias Sociales, vol. IX,
n. 194 (43). Barcelona: Universidade de Barcelona, 2005.
SCHWEISSER, Peter Jos e, CESARIO, Sebastiana (orgs). Revitalizao de centros
urbanos em reas porturias. Rio de Janeiro: 7 Letras/ AFEBA, 2004.
SIGAUD, Mrcia Frota e PINHO, Claudia Maria Madureira. Morro da Conceio: da
memria o futuro. Rio de Janeiro: Sextante/ Prefeitura, 2000.
THIESEN, Iclia, BARROS, Oliveira Cavalcanti e SANTANA, Marco Aurlio (orgs.).
Vozes do Porto: memria e histria oral. Rio de Janeiro: DPA/ UNIRIO, 2005.
VELHO, Gilberto. Patrimnio, negociao e conflito. Mana. Rio de Janeiro: PPGAS/
UFRJ, 2006.
WEINER, Annette. Inalienable possessions: the paradox of keeping-while-giving.
Berkeley: University of California Press, 1992.

DOCUMENTOS DE RGOS PBLICOS

INCRA. Relatrio Histrico e Antropolgico sobre o Quilombo da Pedra do Sal. Rio
de Janeiro: INCRA/ UFF, 2007.
INEPAC. Proposta de Tombamento da Pedra do Sal. Rio de Janeiro: INEPAC, 1984.
PCRJ. Porto do Rio: Plano de Recuperao e Revitalizao da Regio Porturia do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: SMU/ IPP, 2001.

SI TES E MATRIAS JORNALSTICAS

ALVES, Andra Moraes. Entre a cidade e a aldeia. Morro da Conceio...
www.crisisprodutivas.com. Rio de Janeiro: Crisis Produtivas, 2005.
ARQPEDRA. Em defesa da escola, seja ela da Ordem, pblica ou privada na Regio
Porturia. Nunca fomos contra escola e nunca lutamos pelo seu fim.... Observatrio
Quilombola. www.koinonia.org.br. Rio de Janeiro: Koinonia, 20 de julho de 2007.
CIMIERI, Fabiana. Na Zona Porturia, frades brigam por Pedra do Sal. Estado de So
Paulo. So Paulo, 12 de agosto de 2007.
COELHO, Lgia. Igreja desaloja moradores da Zona Porturia. Observatrio
Quilombola. www.koinonia.org.br. Rio de Janeiro: Koinonia, 02 de dezembro de 2005.
COHRE. Despejos e luta pela permanncia no centro do Rio de Janeiro. Boletim
Quilombol@. www.cohre.org. Paran: COHRE, fevereiro de 2007.
225

BARBOSA, Marco Antnio. Antropologia da longevidade. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 28 de outubro de 2005.
CARDOSO, Oscar Henrique. Quilombo da Pedra do Sal rea remanescente de
quilombo, afirma presidente da FCP a Rede Globo. Fundao Cultural Palmares.
www.palmares.gov.br. Braslia: MINC/ FCP, 24 de maio de 2007.
FILHO, Francisco Alves. Quilombos contra igreja. Demarcao de terras de supostos
descendentes de escravos ameaa propriedades eclesisticas. Isto on line.
www.terra.com.br/istoeonline. 31 de agosto de 2007.
LABAKI, Amir. Morro da Conceio, de Cristiana Grumbach. Festival Internacional
de Documentrios Tudo Verdade. www.itsalltrue.com.br. 06 de outubro de 2007.
MILLARCH, Aramis. Lcio Rangel d nome para estimular a MPB. Estado do
Paran. Paran, 08 de abril de 1980.
RABHA, Nina Maria de Carvalho. Morro da Conceio, patrimnio histrico. Morro
da Conceio... www.crisisprodutivas.com. Rio de Janeiro: Crisis Produtivas, 2005.
REDE GLOBO. ou no quilombo?. Jornal Nacional, 28 de maio de 2007.
ROSENFIELD, Denis Lerrer. Quilombos urbanos. Jornal O Globo e O Estado de So
Paulo. 29 de outubro de 2007.
VOT. Direito de resposta da Venervel Ordem Terceira de S. Francisco da Penitncia.
Observatrio Quilombola. www.koinonia.org.br. Rio de Janeiro: Koinonia, 01 de
agosto de 2007.

FILMES

GRUMBACH, Cristiana. Morro da Conceio... Rio de Janeiro: Crisis Produtivas,
2005.

Você também pode gostar