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Resenha Louis Comolli Sobre Ficção e Documentario

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Uma jornada para o espectador:

crer, no crer, crer apesar de tudo


A journey for the spectator:
believe, not believe, believe despite everything
G U S T AV O S O U Z A *
COMOLLI, Jean-Louis (2008).
Ver e poder, a inocncia perdida: cinema, televiso, fico, documentrio.
(trad. Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira, Rubens Caixeta).
Belo Horizonte: Editora UFMG, 373p.

* Jornalista pela UFPE,


mestre em Comunicao e
Cultura pela ECO/UFRJ e
doutorando pela ECA-USP.
Membro do conselho
deliberativo (representante discente) da Socine.
gustavo03@uol.com.br

Resumo
Fruto do pensamento dos ltimos 15 anos do professor, crtico e documentarista JeanLouis Comolli, a coletnea Ver e poder apresenta uma instigante forma de perceber
os arranjos que se do entre diversos materiais audiovisuais filmes de fico, documentrios, reality shows, telejornalismo -, bem como os seus produtores. Ao debater
o lugar do espectador e as aes do espetculo, Comolli convida o leitor a empreender
um novo regime de crena, em que preciso crer, mas sem deixar de duvidar, para a
partir da perceber o cinema como arte poltica em potencial.
Palavras-chave: documentrio, espectador, espetculo
Abstract
Result of Jean Louis Comollis thinking from the last 15 years, the collection Ver e Poder
provides an instigating way to understand the arrangements between various audivisual materials fiction films, documentaries, reality shows, television journalism ,
and their producers. In discussing the place of the spectator and the actions of the
spectacle, the researcher, critic and documentary filmmaker invites the reader to
undertake a new belief system in which we must believe, but while doubt, in order to
understand the cinema as a potential political art.
Keywords: documentary, spectator, spectacle

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Ano 2 n 2 primeiro semestre de 2009

resenhas

pensamento francs contemporneo sobre cinema representado


por uma constelao de pesquisadores que se debruam sobre uma
incontvel quantidade de temas e abordagens, tornando a diversidade
uma de suas marcas significativas. Diversos tambm so os espaos onde os
integrantes da constelao esto abrigados. Em Paris, destacam-se dois centros:
a Universidade de Paris 3, com Jacques Aumont, Roger Odin, Michel Marie
e Philippe Dubois entre seus representantes, e a Universidade de Paris 8, que
conta com Jacques Rancire e Jean-Louis Comolli no quadro de professores. Do
primeiro time h no Brasil um considervel nmero de livros e textos publicados, o que torna o contato com esta produo mais estreito. J do segundo, no
entanto, s agora que comeam a chegar por aqui as primeiras publicaes. H
vrios ttulos de Rancire lanados no Brasil, alguns esgotados, inclusive, mas
nenhum sobre cinema. Por outro lado, alguns dos textos de Comolli s estavam
disponveis nos catlogos do Forumdoc.bh (Festival do Filme Documentrio
e Etnogrfico), que passavam em cpia de mo em mo, quase como uma
preciosidade. Esta lacuna, porm, comea a ser minimizada com a publicao
de Ver e poder, a inocncia perdida: cinema, televiso, fico, documentrio, de
Jean-Louis Comolli, lanado em dezembro de 2008 pela Editora UFMG.
Trata-se do mais recente livro do autor, tambm crtico e documentarista,
publicado na Frana em 2004 e que rene artigos, cartas e tpicos para palestras
produzidos nos ltimos 15 anos. O livro conta com um prefcio do autor escrito
especificamente para a edio brasileira. H ainda, um outro texto introdutrio,
de autoria de Csar Guimares e Rubens Caixeta, ambos professores da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais) e responsveis pela seleo e organizao da coletnea, que discute limites e fronteiras entre documentrio e fico.
Ver e poder apresenta dois eixos centrais: um agrupa discusses em torno do
documentrio, do espetculo e do espectador; outro rene textos sobre filmes
e cineastas. Embora haja essa separao, a discusso sobre o cinema como arte
poltica, em que se observam o lugar e a importncia do espectador, os efeitos
do espetculo e as materializaes da (auto)-mise-en-scne, perpassa toda a
obra. Mesmo que dedique uma ateno especial ao documentrio, Comolli
no perde de vista outros formatos audiovisuais da atualidade que estabelecem
tambm uma relao, direta ou indireta, com o documentrio, tais como a
televiso, o vdeo, os reality shows, apresentando ao leitor uma reflexo sobre
o audiovisual em seu sentido amplo.
Partindo do pressuposto de que o cinema , antes de tudo, um encontro
entre mquina e corpos, vrios textos da coletnea levam reflexo sobre quem
ter acesso ao resultado das imagens produzidas deste encontro: o espectador.
Para Comolli, a verborragia visual com a qual temos que lidar diariamente
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faz o espectador de cinema, a quem o crtico chama de cinespectador e


essa terminologia no ao acaso, como veremos adiante , perder a inocncia
diante das imagens. Ele as v, mas no acredita piamente nelas. As imagens,
agora, geram dvida, e essa dvida que alimenta o seu processo de produo
e consumo. Este movimento, por sua vez, traa um itinerrio de mo dupla,
que cria uma espcie de equao para o espectador: crer, no crer, crer apesar
de tudo. Comolli considera que ao espectador de cinema, diante de sua imobilidade corporal e de sua conteno do campo visual na sala escura, cabe o
exerccio de abandonar sua zona de conforto para adentrar um lugar de perigo,
em que o visvel cede lugar ao invisvel, a partir do fora-de-campo, dos jogos
de apagamento, por uma conscincia flutuante de que o olhar investido no
filme inteiramente incompleto, impreenchvel, cegado e cegante (p. 142). Isto
levaria o espectador a duvidar, mas ciente do risco. Acreditar, desacreditando.
Um dos aspectos que mais chama ateno nesta jornada que solicita um novo
posicionamento diante das imagens que, indiretamente ou acidentalmente, o
autor nos apresenta uma das mais instigantes teorias da espectoralidade, sem
transparecer que este de fato o seu objetivo central.
Uma referncia-chave no trabalho de Jean-Louis Comolli o conceito de
sociedade do espetculo, elaborado por Guy Debord. Diversos dos seus textos
pensam a produo e veiculao das imagens no momento atual em que impera
a espetacularizao da vida cotidiana. Os reality shows, como observa em vrios
momentos, so um indicativo desse movimento. curiosa a apropriao desse
conceito para se pensar o contemporneo, num momento em que a filosofia
francesa j se encarregou de destacar a passagem da sociedade do espetculo
(Debord, 1997) para a sociedade disciplinar (Foucault, 2001), e desta para a
sociedade de controle (Deleuze, 1992). Entretanto, a apropriao do conceito
de Debord no empresta s discusses de Comolli um ar datado. O uso de tal
referncia oxigena o debate, possibilitando leituras pouco previsveis da relao que se estabelece entre mquinas, corpos, espectadores e sugere, por que
no, a coexistncia de diversas sociedades. Para alm de cortes pontuais no
tempo e no espao que sancionam o incio e o fim de uma nova era ou sociedade, importante perceber tambm que o dilogo, s vezes explcito, s vezes
implcito, com autores de distintas tradies tericas e diferentes perspectivas
histricas e analticas como Bazin, Daney, Metz, Foucault, Guattari, Bourdieu,
Didi-Huberman e Rancire, s enriquece o debate. Ainda nesse leque de referncias, no se pode esquecer de Claudine de France, que, em seu Cinema
e Antropologia (1999), elabora o conceito de auto-mise-en-scne, fortemente
utilizado por Comolli. Para a autora, a auto-mise-en-scne integra qualquer
produo documentria. Ela surge a partir do momento em que processos
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ou pessoas se apresentam por si mesmos ao cineasta, revelando uma maneira


particular de lidar com o registro, assumindo diversas materializaes. Como
forma de insero no tempo e no espao, e acima de tudo, da relao entre documentarista e aquele que filmado, a auto-mise-en-scne capaz de enfrentar
com mais vivacidade e mais fortemente as contradies subjetivas e coletivas
(Comolli, 2008: 68), configurando-se, assim, como fato social (p.98), uma
vez que durante o processo de confeco de um documentrio no apenas o
olhar do cineasta que orienta a construo de sentidos, mas o olhar cruzado
do mundo, das pessoas, dos objetos, dos espectadores.
Essa amplitude de referncias leva Comolli no somente discusso sobre
o espectador e o documentrio, mas tambm a filmes e cineastas. De Flaherty
a Cassavetes, de Vertov a Kiarostami, passando tambm por Buuel, Rouch
e Godard, o autor discorre em torno da montagem, da crena nas imagens,
da mise-en-scne. Segundo Comolli, o desejo secreto do espectador nada
mais ver, de tanto ver. Ver, enfim, demais, para finalmente no mais ver (p.
141) no algo recente, e pode ser percebido em toda sua potencialidade j
em O homem com a cmera (1929), de Dziga Vertov, a quem o autor dedica
uma anlise de maior flego. Diante do filme de Vertov, Comolli passeia por
questes que lhe so caras (espectador, documentrio, espetculo...), mas
sem deixar de passar pelas especificidades que o filme nos revela. Pontuar
todas aqui nos conduziria a uma digresso pouco produtiva, e diante disso
vale ressaltar a viso do crtico sobre a questo da propaganda, ponto quase
inevitvel quando se discute o cinema sovitico deste perodo. Como seus
contemporneos Eisenstein e Pudovkin, Vertov tambm fez cinema para
as massas, mas Comolli detecta que este objetivo estava carregado de
ambiguidade, pois a preocupao de Vertov era atingir cada indivduo que
compunha essa massa, rejeitando a ideia de se relacionar, a partir dos filmes,
com um corpo homogneo e amorfo. Uma questo poltica, certamente, mas
acima de tudo um princpio do cineasta, ressalta Comolli. Outro ponto diz
respeito montagem vertoviana, que promove a unio entre o olho humano
e o olho maqunico, passando inevitavelmente tambm pelas aes da miseen-scne esta cortada, combinada, agenciada, preparada (p. 239) , e
que ainda assim no impede a manifestao clara do real. A discusso em
torno da montagem e seus efeitos tambm pontua os comentrios sobre Os
pescadores de Aran, de Robert Flaherty, e Terra sem po, de Luis Buuel. Mais
uma vez, Comolli reivindica o carter opaco que este procedimento capaz
de proporcionar, seja a partir da mise-en-scne de pescadores que reproduzem
para a cmera uma pesca que j no se pratica mais, ou pela apario de pessoas
e animais de Las Hurdes que Buuel pe em evidncia.
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Atento ao papel que as imagens exercem na era do espetculo, Comolli


no deixa de debater um tema bastante controverso nos estudos sobre o
audiovisual: a televiso. Ele expe sua argumentao de forma apaixonada,
e isso serve tanto para os elogios em torno do documentrio, como para
as crticas ferrenhas televiso e seus produtos. Seu ponto de partida, como
no de se estranhar, a televiso francesa. E esse fato, por si s, poderia
servir como justificativa plausvel para entendermos seu posicionamento. No
entanto, muitos dos aspectos que o vemos ressaltar podem tambm ser vistos
em outros espaos onde a TV atua. O resultado desse embate o ponto mais
problemtico da argumentao de Comolli. De fato, a contundncia de suas
observaes sobre o papel nocivo que a televiso exerce sobre as sociedades
no pode ser desconsiderada. E isso o leva a separar os espectadores: de um
lado o telespectador, visto como um mero consumidor de imagens e estmulos
a quem a televiso tem a misso de alienar; do outro, o cinespectador, capaz
de refletir sobre o mundo sua volta. Mas a questo, neste caso, enviesada e
conduz o debate aos reducionismos que enxergam a televiso sob a tica de um
meio bom ou mau, desperdiando a possibilidade de visualiz-la em um
cenrio em que justificativas dicotmicas ou carregadas de concepes prvias
cedem espao para percepo das mltiplas facetas e conexes que a televiso
capaz de produzir (Williams, 2003; Machado, 2005). A argumentao de
Comolli TV, em alguns casos, at destoa da originalidade e da sofisticao
de seus argumentos sobre o documentrio ou o espectador, por exemplo.
Seu olhar acaba por produzir um ponto de vista tenaz, em que no cinema se
faz arte, enquanto na televiso, produtos palatveis, unicamente. Mas hoje o
sentido inverso tambm possvel e existe.
Se a discusso sobre a TV apresenta, no entanto, um ponto de vista quase
adorniano, o mesmo no se pode dizer sobre a seara plural em que Comolli
situa o documentrio. Longe do rigor acadmico que exige dos textos uma
certa distncia em relao aos objetos, Comolli no leva tal recomendao
risca, de modo que sua escrita revela, como salientamos anteriormente, uma
defesa apaixonada pelo documentrio. Destaque-se o fato de o autor debater o
documentrio muitas vezes pontuando diferenas em relao fico, mas no
para retornar s discusses que permearam os anos 1960 e 1970, sobre demarcaes rgidas entre estes dois formatos, mas para revelar, apaixonadamente,
as potncias do documentrio. Diz Comolli: o cinema documentrio extrai
sua potncia de sua prpria dificuldade, naquilo, precisamente, que o real no
lhe permite o prazer de esquecer, a que o mundo o pressiona, ou seja, que se
atirando com ele que esse cinema se fabrica (p. 148). Esta discusso latente
em Sob o risco do real, texto mais conhecido de Comolli no Brasil, em que o
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A journey for the spectator: believe, not believe, believe despite everything

resenhas

embate entre documentrio e jornalismo nos d a possibilidade de vermos o


documentrio fora dos sistemas duais. Para o autor, um dos vetores de maior
importncia para entendermos a dinmica do documentrio o confronto
com o outro, com a mise-en-scne deste outro, pois a partir da se estabelecem
as crises de representao, o acesso apenas, como diria Niney (2002: 14), aos
rastros do real, que estaro visveis, talvez, sombra do espetculo, dos olhares
cruzados entre espectador, cineastas e personagens.

REFERNCIAS
DEBORD, Guy (1997). A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto.
DELEUZE, Gilles (1992). Conversaes, 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34.
FOUCAULT, Michel (2001). A ordem do discurso. 7. ed. So Paulo: Loyola.
FRANCE, Claudine de (1999). Cinema e antropologia. Campinas: Editora Unicamp.
MACHADO, Arlindo (2005). A televiso levada srio. 4. ed. So Paulo: Senac So
Paulo.
NINEY, Franois (2002). Lpreuve du rel lcran. Essai sur le principe de ralit
documentaire. Bruxelas: De Boeck.
WILLIAMS, Raymond (2003). Television. 3. ed. Londres: Routledge.

Resenha recebida em 29 de maro e aprovada em 15 de abril de 2009.

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