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Vidros Quebrados Machado de Assis

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LITERATURA BRASILEIRA

Textos literrios em meio eletrnico


Vidros quebrados, de Machado de Assis
Edio de Referncia: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
[GL. 15 out., 1883]
HOMEM, c para mim isto de casamentos so cousas talhadas no cu. o que diz o
povo, e diz bem. No h acordo nem convenincia nem nada que faa um casamento,
quando Deus no quer...
Um casamento bom, emendou um dos interlocutores.
Bom ou mau, insistiu o orador. Desde que casamento obra de Deus. Tenho em
mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda cedo para o voltarete. Eu estou
abarrotado...
Venncio o nome deste cavalheiro. Est abarrotado, porque ele e trs amigos
acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma
vizinha, moa teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu,
e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturrio no Tesouro. Foi
sobremesa que este negcio comeou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a
companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava
o voltarete habitual. A o Venncio enunciou o princpio da origem divina dos matrimnios,
princpio que o Leal, scio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimnios bons.
Os maus, segundo ele explicou da a pouco, eram obra do diabo.
Vou dar-lhes a prova, continuou o Venncio, desabotoando o colete e encostando o
brao no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os
bailes da Campestre! Tinha eu ento vinte e dous anos. Namorei-me ali de uma moa de
vinte, linda como o sol, filha da viva Faria. A prpria viva, apesar dos cinqenta feitos,
ainda mostrava o que tinha sido. Vocs podem imaginar se me atirei ou no ao namoro...
Com a me?
Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me filha; comeamos o namoro logo na
primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estvamos ali, estvamos
apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licena para falar me;
e, com efeito, dirigi uma carta viva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria
uma grande honra, se me admitisse na famlia. Respondeu-me oito dias depois que

Ceclia no podia casar to cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e
por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei! Moo ainda, sangue
na guelra, e demais apaixonado, quis ir casa da viva, fazer uma estralada, arrancar a
moa, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi a Ceclia perguntando se consentia que
a tirasse por justia. Ceclia respondeu-me que era bom ver primeiro se a me voltava
atrs; no queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que
seria minha e s minha...
Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondncia. A viva, certa da
paixo da filha, fez o diabo. Comeou por no ir mais Campestre; trancou as janelas,
no ia a parte nenhuma; mas ns escrevamos um ao outro, e isso bastava. No fim de
algum tempo, arranjei meio de v-la, noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma
chcara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira cousa que a preta fazia
era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite, porm, o
cachorro soltou-se e veio a mim. A viva acordou com o barulho, foi janela dos fundos,
e viu-me saltar o muro, fugindo. Sups naturalmente que era um ladro; mas no dia
seguinte, comeou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confisso, e o demnio da
negra ps tudo em pratos limpos. A viva partiu para a filha:
Cabea-de-vento! peste! isto so cousas que se faam? foi isto que te ensinei?
Deixa estar; tu me pagas, to duro como osso! Peste! peste!
A preta apanhou uma sova que no lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal
mulherzinha era das arbias! Mandou chamar o irmo, que morava na Tijuca, um Jos
Soares, que era ento comandante do 6 batalho da Guarda Nacional; mandou-o
chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmo respondeu que o melhor era
casar Ceclia sem demora; mas a viva observou que, antes de aparecer noivo, tinha
medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retir-la de casa, e mand-la para o
convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...
Trs dias depois, Ceclia foi convidada pela me a aprontar-se, porque iam passar duas
semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu
jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinh-moa. Vestiu-se, ps a
roupa necessria no ba, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco
minutos, a me revelou tudo filha; no ia lev-la para a Tijuca, mas para o convento, de
onde sairia quando fosse tempo de casar. Ceclia ficou desesperada. Chorou de raiva,
bateu o p, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um
escndalo nas ruas por onde o carro ia passando. A me j lhe pedia pelo amor de Deus
que sossegasse; mas era intil. Ceclia bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e
conventos; e ameaava a me, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.

Quando soube disto no fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi
que a situao era melhor; Ceclia no teria mais contemplao com a me, e eu podia
tir-la por justia. Compreendi tambm que era negcio que no podia esfriar. Obtive o
consentimento dela, e tratei dos papis. Falei primeiro ao desembargador Joo Regadas,
pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moa seria
depositada na casa dele. Ceclia era agora a mais apressada; tinha medo que a me a
fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaas,
cordas... Queria sair quanto antes.
Tudo correu bem. Vocs no imaginam o furor da viva, quando as freiras lhe
mandaram dizer que Ceclia tinha sido tirada por justia. Correu casa do
desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ningum tinha o direito de lhe
botar a mo. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e no sabia que dizer; o
marido no estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dous
meses, e o Jaime, vivo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das cousas;
disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e no
armar escndalo. Fizeram-me boas ausncias; tanto eles como a me afirmaram-lhe que
eu, se no tinha posio nem famlia, era um rapaz srio e de futuro. Ceclia foi chamada
sala, e no fraqueou: declarou que, ainda que o cu lhe casse em cima, no cedia
nada. A me saiu como uma cobra.
Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava ento em Santos, deu-me por
carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse v-lo; podia ser
at que ele viesse comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos
filhos, e muito sisudo tambm. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo
interrogatrio acerca da famlia da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu
procedimento.
Andaste mal, Venncio; nunca se deve desgostar uma me...
Mas se ela no queria?
Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a
pessoa de tua amizade e da amizade da famlia. Esse mesmo desembargador podia fazer
muito. O que acontece que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a me da
filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faa feliz. Ela bonita?
Muito bonita.
Tanto melhor.
Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou
cedendo; imps s a condio de esperar um ms. Escrevi para a corte, e esperei as
quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre,

que me atrapalhou tudo. Minha me deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio
erisipela, febre, mais um ms de demora, e que demora! No morreu, felizmente; logo
que pde viemos todos juntos para a corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal
que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de maro, parada das tropas no Largo do
Pao.
Eu que no me pude ter, corri a ver Ceclia. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a
mulher do desembargador que me recebeu, mas to fria que desconfiei. Voltei no dia
seguinte, e a recepo foi ainda mais gelada. No terceiro dia, no pude mais e perguntei
se Ceclia teria feito as pazes com a me, e queria desfazer o casamento. Mastigou e no
respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Ceclia; depois, rasguei-a, e
escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se
no queria mais casar. Responderam-me vocs? Assim me respondeu ela.
Tinha feito as pazes com a me?
Qual! Ia casar com o filho vivo do desembargador, o tal que morava com o pai.
Digam-me, se no mesmo obra talhada no cu?
Mas as lgrimas, os vidros quebrados?...
Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela que casou com o filho do depositrio,
da a seis semanas... Realmente, se os casamentos no fossem talhados no cu, como
se explicaria que uma moa, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito,
casasse com ele, assim de p para mo? o que lhes digo. So cousas arranjadas por
Deus. Mal comparado, como no voltarete: eu tinha licena em paus, mas o filho do
desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.
boa! Vamos espadilha.
Ncleo Pesquisas em Informtica. Literatura e Lingstica

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