Traduo: Carlos Eduardo Jordo Machado

Juergen Habermas

Conferncia proferida por Habermas por ocasio da abertura da exposio A Outra Tradio Arquitetura em Munique de 1800 Atualidade, em novembro de 1981. Publicada originalmente na revista Der Architekt n 2, 1982, e includa posteriormente com acrscimos no livro Die Neue Unuebersichtlichkeit, Frankfurt, 1985, pp. 11-29. Traduo feita do alemo a partir da verso de 1985. SETEMBRO DE 1987

Esta exposio oferece oportunidade para refletir sobre o sentido de um prefixo, pois toma partido, discretamente, no debate em torno do ps-moderno ou do posterior ao moderno na arquitetura. Com este "ps" querem os protagonistas se desfazer de um passado; atualidade no podem ainda dar um novo nome, na medida em que para os reconhecveis problemas do futuro no temos at agora nenhuma resposta. Frmulas como "ps-ilustrao" ou "ps-histria" desempenham o mesmo papel. Gestos de despedida apressada como estes so adequados aos perodos de transio. primeira vista os "ps-modernos" de hoje apenas repetem o credo dos assim chamados "ps-racionalistas" de ontem. Leonardo Benevolo, excelente historiador da arquitetura moderna, caracteriza da seguinte maneira esta orientao ps-racionallsta que se propagou precisamente no meio dos jovens arquitetos entre 1930 e 1933: "Uma .vez reduzido o movimento moderno a um sistema de preceitos formais, supe-se que a origem do mal-estar resida na estreiteza e no esquematismo de tais preceitos acredita-se que o remdio consista em mais uma mudana de tendncia formal, em uma suavizao
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1 L. Benevolo, Geschichte der Architektur des 19 und 20 Jahrhunderts, 2 vol., Muenchen, 1978, vol. 2, p. 192.

2 M. Koehler, Postmodernismus, in Amerikastudien 22, 1977, p. 8 ss.

3 Ch. Jencks, Spaetmoderne Architektur, Stuttgart, 1980. 4 Die Sprache der Postmodernen Architektur, Stuttgart, 1980.

5 M. Brix, M. Steinhauser, Geschichte im Dienst der Baukunst, in M. Brix, M. Steinhauser, Geschichte allein Ist Zeitgemaess, Giessen, 1978, p. 225.

do tecnicismo e da regularidade, no retorno a uma arquitetura mais humana, mais clida, mais livre e mais diretamente relacionada com os valores tradicionais. A crise econmica faz com que este debate se desenvolva em um tempo brevssimo; a ditadura nazista que vem em seguida se encarrega de cort-lo definitivamente e, ao mesmo tempo, atua como pedra de toque, mostrando abertamente quais solues se acham ocultas por detrs da polmica estilstica"1. No quero com isto sugerir nenhum falso paralelo, mas apenas lembrar que no a primeira vez que a arquitetura moderna dada como morta e no entanto ela ainda vive. Mas o prefixo que nos coloca diante de tais designaes de estilo e de orientao no tem sempre o mesmo significado. O que comum aos "ismos" que se formam com o prefixo "ps" o sentido do tomar distncia. Eles expressam uma experincia de descontinuidade, porm assumem posies diferentes em relao ao passado que distanciam. Com a palavra "ps-industrial", por exemplo, os socilogos querem apenas dizer que o capitalismo continuou a se desenvolver, que os novos setores de prestao de servios se ampliaram custa do mbito diretamente produtivo. Com a palavra "ps-emprico" os filsofos querem dar a entender que determinados conceitos normativos de cincia e de progresso cientfico foram ultrapassados pelas novas investigaes. Os "psestruturalistas" querem aperfeioar, mais do que superar, o seu conhecido princpio terico. Finalmente denominamos de "ps-vanguardista" a pintura contempornea que utiliza livremente as formas de linguagem criadas pelo movimento moderno, ao passo que abandona as entusisticas esperanas de uma reconciliao entre arte e vida. Inicialmente a expresso "ps-moderno" designava novas variantes no interior do amplo espectro da modernidade tardia, isto ao ser aplicada nos Estados Unidos, durante os anos 50 e 60, s correntes literrias que se queriam diferenciar das obras do modernismo inicial2. O ps-modernismo s se transformou em grito de guerra afetivamente carregado e diretamente poltico quando, nos anos 70, duas posies contrrias ganharam fora de expresso, de um lado, os neoconservadores, que gostariam de se livrar dos contedos supostamente subversivos de uma "cultura espiritualmente hostil", em defesa do reavivamento das tradies; de outro, os radicais dentre os crticos do crescimento econmico, para os quais a Nova Construo (Neues Bauen) se havia tornado smbolo da destruio provocada pela modernizao. Somente ento os movimentos psvanguardistas, que ainda partilhavam inteiramente a posio terica da arquitetura moderna e que Charles Jencks, com razo, dava como representativos da "modernidade tardia"3 , so tragados pela atmosfera de conservadorismo dos anos 70 e preparam o caminho para a rejeio intelectualmente ldica mas provocativa dos fundamentos morais da arquitetura moderna4. Estes exemplos de expresses formadas com "ps" no esgotam o espectro das posies em relao a um passado do qual se quer tomar distncia. S o pressuposto sempre o mesmo: experimenta-se uma descontinuidade, o distanciamento em relao a uma forma de vida ou de conscincia na qual anteriormente se havia confiado de maneira ingnua e irrefietida. Estas so as expresses com as quais a seu tempo Schiller e Schlegel, Schelling e Hegel tentaram compreender as experincias de descontinuidade de sua poca. A era da Ilustrao rompera definitivamente o continuum do presente com o mundo das tradies imediatamente vividas, dos legados tanto grego quanto cristo. A Ilustrao, tornada histrica, no esperou o pensamento historicista do fim do sculo XIX para se fazer sentir. Por outro lado, os clssicos e romnticos nascidos no sculo XVIII no se bastavam com a simples quebra de continuidade: queriam antes, atravs de uma apropriao refletida da histria, encontrar o seu prprio caminho. ainda este impulso da filosofia idealista da reconciliao (Versoehnungsphilosophie) que anima a busca de um estilo de construo novo e sinttico, estilo este que dominou na primeira metade do sculo XIX5. O concurso atravs do qual Maximiliano II da Baviera, em 1850, convidava os arquitetos
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para uma prova, da qual o desejado novo estilo deveria nascer e do qual a Maximilianstrasse efetivamente o resultado, hoje parece uma reminiscncia daquela aspirao. S na segunda metade do sculo XIX o pluralismo dos estilos, objetivados e apresentados pela historiografia da arte, seria efetivamente adotado. Somente ento as grandes realizaes das cincias histricas (historische Geisteswissenschaften), vindo depois da Ilustrao e distanciando o passado pela segunda vez, tomavam a feio de uma conscincia historicista, com as suas faces de Jano. Por um lado, o historicismo significa uma continuao e radicalizao da Ilustrao que, como Nietzsche logo reconheceu, define as condies para a formao das identidades modernas de maneira ainda mais estrita e inexorvel; por outro lado, o historicismo torna as tradies histricas disponveis na forma de uma contemporaneidade ideal, e possibilita a um presente inconstante, para si mesmo fugaz, um disfarce na forma de identidades emprestadas. O pluralismo estilstico, que at ento fizera figura de incmodo, torna-se pois um trunfo. A resposta a esta situao, que o Jugendstil e a modernidade clssica, posterior a ele, encontraram, permanece atual at hoje. O adjetivo "clssica" alis revela, tambm ele, a distncia que neste meio tempo no deixamos de tomar em relao ao movimento moderno de nosso sculo. Por isso temos de enfrentar a questo acerca de nossa atitude diante desta descontinuidade nova e agora aberta. H dez anos Wend Fischer, como diretor da Neue Sammlung, deu incio a uma exposio muito apreciada. Com ela quis ele se contrapor venerao neo-historicista, ao clima de nostalgia que ento reivindicava justamente o ecletismo do sculo XIX, com a sua "mascarada dos estilos" to rica em contrastes. Fischer queria tornar visveis as tendncias ocultas da "razo" na medida em que apresentava o sculo XIX como prhistria da construo moderna e funcional. J agora em Munique, neste espao que se diria indiferente modernidade, apesar do muito vidro e do aspecto de mercado central, bem mais difcil descobrir as pistas da razo e segui-las at o presente. Mas no apenas a fraqueza dos sinais que a modernidade deixa sob o sol dos wittelsbacherianos que explica a situao alterada: em comparao com aquela exposio de dez anos atrs os lances defensivos esto hoje mais fortemente em evidncia. A luta em torno da psmodernidade, que no mais decidida apenas nas revistas de arquitetura, afeta tambm os pontos de referncia de ambas as tentativas de reconstruo. O observatrio a partir do qual o olhar adentra na pr-histria do movimento moderno est em disputa. As frentes no so fceis de deslindar, pois existe acordo geral na crtica desalmada arquitetura de container (Behaelterarchitektur), falta de relao com o ambiente, solitria arrogncia dos prdios de escritrio, s monstruosas lojas de departamentos, universidades e centros de convenes monumentais, falta de urbanidade e misantropia das cidades-satlite, aos colossos da especulao, brutais sucessores da arquitetura de bunker, produo em massa de casinhas de cachorros, destruio das cidades a bem do automvel etc.6 tudo palavras de ordem que no provocam dissenso. Siegfrid Giedion, que h mais de uma gerao defendeu to apaixonadamente a arquitetura moderna, j em 1964 emitia frases de crtica que, hoje, poderiam ser escritas por Oswald Mathias Ungers ou Charles Moore7. Todavia, o que uns expunham como crtica imanente, para outros oposio modernidade; as mesmas razes que animam um partido a dar continuao crtica a uma tradio insubstituvel bastam ao outro lado para proclamar uma era ps-moderna. E estes oponentes por sua vez extraem conseqncias opostas, segundo considerem o mal por um ponto de vista cosmtico ou de crtica ao sistema. Aqueles de impostao conservadora satisfazem-se com disfarar artisticamente a tendncia reinante seja como o tradicionalista Branca, ou como hoje o artista pop Venturi, que converte o esprito do movimento moderno em citao a ser ironicamente misturada com outras citaes, com as quais compe um luminoso de non. Os antimodernistas radicais, pelo contrrio, vo mais a fundo; querem escapar da violncia administrativa e econmica da construo industrial, e visam des-diferenciao da cultura arSETEMBRO DE 1987

Estas caracterizaes foram tomadas de H. Klotz, Tendenzen Heutiger Architektur in der Bundesrepublik, in Das Kunstwerk32,1979, p.6 ss. e de J. Paul, Kulturgeschichtliche Betrachtungen zur Deutschen Nachkriegsarchitektur, ibid., p. 13 ss. 6 S. Giedion, Raum, Zeit, Architektur, Zuerich und Muenchen, 1978, p. 22 ss. Ch. Moore, Eine Persoenliche Erklaerung, in G.R. Blomeyer, B. Tietze, in Opposition zur Moderne, Braunschweig, 1977, p. 64 ss.

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quitetnica. O que para um lado so problemas de estilo, o outro entende como problemas da descolonizao dos mundos da vida (Lebenswelten) destrudos. Assim, aqueles que querem continuar o projeto incompleto de uma modernidade que derrapa se vem confrontados com diferentes opositores, os quais se unem apenas na determinao em dizer adeus mesma modernidade. Seja como for, a arquitetura moderna, que nos seus incios se desenvolvia a partir do organicismo bem como do racionalismo de um Frank Lloyd Wright e de um Adolf Loos, para em seguida florescer nas obras mais bem-sucedidas de um Gropius e Mies van der Rohe, de um Corbusier e Alvar Aalto, esta arquitetura, dizamos, foi o primeiro e nico estilo, desde os dias do classicismo, capaz de se impor deveras e at de impregnar o cotidiano. S ela brotou do esprito das vanguardas, equiparando-se pintura, msica e literatura vanguardista de nosso sculo. Ela continua a tradio do racionalismo ocidental, e foi suficientemente forte para criar modelos, isto , se tomar clssica e fundar uma tradio que desde o incio ultrapassava fronteiras nacionais. Como compatibilizar estes fatos incontestveis com aquelas deformaes unanimemente condenadas, ocorridas aps a II Guerra Mundial, que se produziram na esteira e at em nome do estilo internacional? As mencionadas monstruosidades revelam a verdadeira face do moderno, ou so falsificaes do seu esprito? Para uma resposta provisria, quero primeiramente enumerar os problemas que se colocaram arquitetura do sculo XIX; em seguida, assinalar as respostas programticas oferecidas pela nova arquitetura; em terceiro lugar, mostrar quais os tipos de problema que no poderiam ser solucionados com este programa. Em quarto lugar, estas reflexes devem servir para avaliar a sada que a presente exposio prope se que entendi bem as intenes. At que ponto boa a recomendao de adotar imperturbavelmente a tradio moderna e de continu-la criticamente, em lugar de seguir os movimentos escapistas hoje dominantes os da tradio terica do neo-historicismo, os da arquitetura teatralmente ultramoderna, exposta no ano passado na Bienal de Veneza, ou aqueles do vitalismo simplificador, da construo annima, desprofissionalizada e presa a condies locais? Ponto 1: ao longo do sculo XIX, a revoluo industrial e a decorrente modernizao social acelerada colocaram a arquitetura e o planejamento urbano diante de uma nova situao. Gostaria de mencionar os trs desafios mais conhecidos: demanda qualitativamente nova de criao arquitetnica; novos materiais e novas tcnicas de construo; finalmente, a sujeio da construo aos novos imperativos funcionais e sobretudo econmicos. Com o capitalismo industrial surgem novas esferas da vida, que se furtam arquitetura palaciana e eclesistica, bem como antiga cultura arquitetnica da Europa urbana ou rural. O aburguesamento da cultura e a constituio de um pblico mais amplo, artisticamente interessado e cultivado, exige novas bibliotecas e escolas, peras e teatros. Mas estas so tarefas convencionais. O caso diverso com a ferrovia e a revoluo na rede dos transportes, que no s erigem a locomotiva em smbolo da dinamizao e do progresso, mas conferem outro significado construo de estradas, de pontes e tneis, colocando, com a edificao das estaes ferrovirias, um problema novo. As estaes obrigam ao contato prximo e variado, mas tambm annimo e fugitivo, e so o lugar caracterstico do tipo de interao carregado de estmulos sensveis e sala de encontros que iria conformar o sentimento da vida nas grandes cidades. Como as rodovias, aeroportos e torres de televiso mostram, o desenvolvimento da rede de transportes e comunicao sempre impulsionou inovaes. O mesmo valia ento para a circulao de mercadorias, que exigia no apenas armazns e mercados com novas dimenses, mas tambm implicava tarefas arquitetnicas no-convencionais: grandes lojas de departamentos e pavilhes de exposio. Disto so exemplos fascinantes os primeiros grandes palcios de cristal, das exposies industriais de Londres, Munique e Paris. A produo industrial, com as fbricas, os acampamentos
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de trabalho, os bens produzidos para o consumo em massa, faz emergir mbitos da vida em que inicialmente a busca de forma e a criao arquitetnica no puderam penetrar. A misria social do incio da industrializao prevalece sobre a feira; os problemas suscitam a presena do Estado, o reformismo social burgus, e, finalmente, o movimento revolucionrio dos trabalhadores, mas no falam fantasia criativa dos arquitetos abstrao feita dos projetos utpicos para a nova cidade industrial (de Robert Owen a Tony Garnier). Na segunda metade do sculo XIX, os produtos de massa de uso dirio, que haviam escapado ao molde estilstico do artesanato tradicional, so percebidos pela primeira vez como um problema esttico. John Ruskin e William Morris querem superar, por meio de uma reforma das artes aplicadas, o abismo que separou utilidade e beleza no cotidiano industrial (industrielle Lebenswelt). Este movimento de reforma orientava-se por um conceito ampliado de arquitetura, voltado para o futuro, que se acompanhava da reivindicao de redesenhar arquitetonicamente o meio ambiente fsico da sociedade burguesa no seu todo. Morris, em particular, nota a contradio entre as exigncias democrticas de participao universal na cultura e o fato de que, no capitalismo industrial, mbitos da vida cada vez mais amplos escapam s instncias culturais formadoras. Um segundo desafio surge com o desenvolvimento de novos materiais (como vidro e ferro, ao e concreto) e de novos mtodos de construo (sobretudo o emprego de elementos pr-moldados). Ao longo do sculo XIX, os engenheiros impulsionam a tcnica de construo, abrindo arquitetura possibilidades novas de criao que rompem os limites clssicos da elaborao construtiva de superfcies e espaos. Os palcios de cristal, edificados com peas padronizadas, segundo o modelo anterior das estufas, proporcionam aos contemporneos fascinados uma primeira impresso das novas ordens de grandeza e dos novos princpios de construo. Revolucionavam os hbitos visuais e o sentimento do espao dos observadores to drasticamente como a ferrovia havia transformado o conceito de tempo dos viajantes. O interior descentrado e repetitivo do palcio de cristal londrino deve ter provocado nos contemporneos um efeito de suspenso de todos os limites conhecidos em espaos organizados pelo homem. Finalmente, o terceiro desafio a mobilizao capitalista da fora de trabalho, da edificao e do terreno urbano, ou seja, condies de vida metropolitanas em geral. Este processo leva concentrao de grandes massas e irrupo da especulao no mbito da moradia privada. O que hoje provoca protestos em Kreuzberg e em outros lugares teve origem naquela ocasio: na medida em que a construo da casa torna-se investimento amortizvel, as decises sobre compra e venda de terrenos, sobre urbanizao, demolio e reconstruo, sobre aluguel e resciso desligam-se da tradio local e familiar; em poucas palavras, tornam-se independentes das orientaes fornecidas pelo valor de uso. As leis do mercado da construo e da moradia mudam a atitude em relao ao construir e ao morar. Os imperativos econmicos determinam tambm o crescimento incontrolado das cidades; resulta da a exigncia de um tipo de planejamento urbano que no pode ser comparado ao projeto de expanso das cidades barrocas. O remodelamento de Paris por Haussmann sob Napoleo III mostra em grande estilo como estas duas espcies de imperativos funcionais, os do mercado e os do planejamento comunal e urbano, estabelecem um entrelaamento recproco que envolve a arquitetura em um novo sistema de dependncias. Nestas planificaes, os arquitetos no tiveram participao digna de meno. Para entender o impulso a partir do qual nasceu a arquitetura moderna, deve-se ter presente que, na segunda metade do sculo XIX, a arquitetura no apenas foi dominada por este terceiro desafio do capitalismo industrial, como tambm no dominou os dois outros desafios mencionados, embora os sentisse. A disposio arbitrria sobre estilos cientificamente objetivados, arrancados ao seu contexto originrio, permite ao historicismo evadir-se em direo de um idealismo
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8 M. Brix, M. Steinhauser,

op. cit., p. 220.

9 G.W.F. Hegel, Vorlesun-

gen ueber die Aesthetik, Theorie-Werkausgabe, vol. 14, Frankfurt, 1970, p. 258 s. 10 ibid., p. 303 s. 11 Ibid., p. 296.

12 Ibid., p. 196.

impotente, bem como separar das banalidades do cotidiano burgus a esfera da arquitetura. As carncias dos novos mbitos de vida, apartados da criao arquitetnica, so transformadas em vantagem: servem para isentar de exigncia artstica a arquitetura utilitria. As chances oferecidas pelas novas possibilidades tcnicas so levadas em conta apenas para dividir o mundo entre arquitetos e engenheiros, entre estilo e funo, entre suntuosa fachada externa e disposio econmica do espao interior. Por isso mesmo, a arquitetura tornada historicista nada sonha opor dinmica autnoma do crescimento econmico, mobilizao das condies de vida nas metrpoles, misria social das massas, salvo a evaso representada pelo triunfo do esprito e da cultura sobre os fundamentos materiais (disfarados). Na sociedade contempornea os conjuntos habitacionais berlinenses transformam-se em impressionante smbolo: "A parte da frente cuja fachada historicizada deveria garantir o prestgio dos apartamentos e, ao mesmo tempo, aumentar o seguro contra incndio da edificao estava reservada mdia burguesia, ao passo que nos prdios de fundo habitava a populao mais pobre"8. Ponto 2: com a arquitetura historicista o idealismo abandonava as suas intenes originrias. certo que tambm Schelling e Hegel haviam situado a arquitetura no degrau mais baixo da hierarquia das artes, "pois o material desta primeira arte o que em si mesmo no espiritual, a matria conformvel s segundo as leis da gravidade"9. Por isso entende Hegel "que o significado espiritual da arquitetura no est situado exclusivamente dentro da obra ela mesma, mas alcanou existncia livre fora da arquitetura"10. Este fim, que a arquitetura deve servir, Hegel o entende como o nexo total da vida e da comunicao social "na qualidade de indivduos humanos da comunidade, de povo"". A arquitetura historicista abandona esta idia de reconciliao e o esprito, j no sendo fora reconciliadora, passa a alimentar o dinamismo compensatrio de uma realidade enfeitada e oculta por detrs de fachadas. As tendncias de reforma vital do Jugendstil, do qual nasceu a arquitetura moderna, manifestam um primeiro protesto contra esta falta de veracidade, contra uma arquitetura do recalque e da formao de sintomas. No por acaso, Sigmund Freud desenvolvia na mesma poca as bases de sua teoria das neuroses. O movimento moderno aceita os desafios a que a arquitetura do sculo XIX no pudera responder: supera o pluralismo estilstico, bem como as dissociaes e especializaes a que a arquitetura havia se conformado. alienao que separa da cultura os mbitos de vida do capitalismo industrial, o movimento moderno contrape a exigncia de um estilo que no se limite a vincar as construes de aparato, mas que impregne a prxis cotidiana. O esprito moderno se deve comunicar totalidade das exteriorizaes da vida social. Para tanto, o desenho industrial pde se ligar reforma das artes aplicadas, a concepo funcionalista tirou proveito das experincias da engenharia de transporte e de construes comerciais, e enfim a concepo de zona comercial se valeu dos projetos da escola de Chicago. Alm disso, a nova linguagem formal se apropria dos domnios exclusivos da arquitetura monumental, de igrejas, teatros, tribunais, ministrios, cmaras municipais, universidades, balnerios etc; de outro lado, expande-se nas reas-chave da produo industrial, em vilas operrias, moradias coletivas e fbricas. O novo estilo no teria penetrado em todos os mbitos da vida se a arquitetura moderna no houvesse respondido com vis esttico prprio ao segundo desafio, o das possibilidades tcnicas da criao imensamente aumentadas. Como palavra de ordem, o "funcionalismo" circunscreve determinadas orientaes, princpios para a construo de espaos, para a utilizao de materiais, mtodos de produo e organizao; o funcionalismo fundamenta-se na convico de que as formas devem expressar as funes de uso para as quais a construo foi criada. Isto, entretanto, no to novo assim; mesmo Hegel, embora classicista, havia escrito: "A necessidade cria formas na arquitetura que so exclusivamente adequadas a fins e pertencem ao entendimento: o retilneo, o retangular, a superfcie plana"12. Alm do que a expresso "funcionalismo" sugere idias erNOVOS ESTUDOS n18

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radas. Ela oculta, por exemplo, que as caractersticas da construo moderna a ela associadas so o resultado de uma legalidade especfica ao campo esttico, buscada com grande conseqncia. Deve-se ao construtivismo, esteticamente motivado e nascido de problemas novos, colocados pela prpria arte, o que erroneamente atribudo ao funcionalismo. Atravs, do construtivismo a arquitetura moderna acompanhou o impulso experimental da pintura vanguardista. O ponto de partida da arquitetura moderna paradoxal. Por um lado ela foi sempre uma arte ligada a fins. diferena da msica, da pintura e da lrica, a arquitetura dificilmente se pode desprender das convenes prticas, como tambm a prosa literria exigente no se pode evadir das praxes da linguagem comum. So artes que permanecem ligadas rede da prtica e da comunicao cotidianas: alis Adolf Loos via a arquitetura como excluda do mbito da arte, como tudo que serve a fins. Por outro lado, a arquitetura se subordina s leis da modernidade cultural. Ela est sujeita, como toda arte, ao imperativo da autonomizao radical, delimitao (Ausdifferenzierung) de um mbito de experincia esttica genuna, mbito que a subjetividade liberada das obrigaes do cotidiano, das rotinas da ao e das convenes da percepo pode explorar atravs do trato com a prpria espontaneidade. Adorno caracterizou a arte de vanguarda que se desliga da tonalidade musical, do objeto percebido em perspectiva, da imitao ou da harmonia, e que se orienta por seus prprios meios de representao atravs de palavras-chave como construo, experimentao e montagem. As obras exemplares se entregam segundo Adorno a um absolutismo esotrico, " custa da funcionalidade real, em que as edificaes utilitrias, como pontes ou construes industriais, procuram a lei de sua forma ... A obra de arte autnoma, pelo contrrio, funcional unicamente em si mesma, pretende alcanar pela sua teleologia imanente o que outrora se chamava beleza"13. Adorno contrape portanto a obra de arte funcional "em si" a criaes funcionais com "finalidade exterior". Em seus exemplos mais convincentes, contudo, a arquitetura moderna no se encaixa na dicotomia indicada por Adorno. Muito pelo contrrio, o funcionalismo da arquitetura coincide com a lgica interna de um desenvolvimento artstico. Os problemas que resultaram da pintura cubista foram tratados principalmente por trs grupos o dos puristas em torno de Corbusier, o crculo dos construtivistas em torno de Malevitch, e sobretudo o movimento De Stijl (com Van Doesburg, Mondrian e Oud). Assim como Saussure na poca investiga as estruturas da linguagem, os neoplasticistas holandeses, como eles se denominam, estudam a gramtica dos meios expressivos e construtivos, bem como das tcnicas mais gerais das artes figurativas, a bem de uma estruturao arquitetnica global do meio ambiente, ou seja, da obra de arte total (Gesamtkunstwerk). "No futuro diz Van Doesburg a realizao figurativa da expresso pura na realidade tangvel de nosso ambiente substituir a obra de arte"14. Nos primeiros projetos de casa de Malevitch e Oud pode-se observar como a relao experimental com os meios de configurao leva a criaes do tipo da arquitetura funcionalista da Bauhaus. Em 1922, Van Doesburg muda-se para Weimar, onde polemiza com os professores da Bauhaus, reivindicando os fundamentos construtivistas da arquitetura e da criao funcionalistas. Apesar das controvrsias, a linha evolutiva clara, pois tambm Gropius aspira "nova unidade de arte e tcnica". J no slogan de Bruno Taut "o que funciona bem tem boa aparncia" se perde o vis esttico do funcionalismo, que nas construes do prprio Taut se expressa to claramente. Embora o movimento moderno reconhea o desafio das carncias qualitativamente novas e das novas possibilidades tcnicas de criao, e em princpio lhes responda bem, o mesmo no se d quando em face da dependncia sistmica dos imperativos da administrao planejada e do mercado, onde a sua resposta inerme. Ponto 3: o conceito ampliado de arquitetura, que inspirou o movimento moderno desde William Morris e encorajou a superao do pluralismo estilstico desligado da realidade cotidiana, no foi to-somente uma bno. certo que chamou a ateno paSETEMBRO DE 1987

13 T.W. Adorno, Aesthetis-

che Theorie, Ges. Werke 7. Frankfurt, 1970, p. 96.

14 L. Benevolo, Geschichte der Architektur, ed. cit., vol. 2, p. 34.

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15 Ibid., p. 506.

ra as importantes conexes entre o desenho industrial, a decorao, a arquitetura residencial e o planejamento urbano; contudo este conceito serviu tambm de padrinho quando os tericos da Nova Construo quiseram ver estilos e formas de vida subordinados na totalidade aos ditames de sua tarefa de criadores. Mas as totalidades desta ordem escapam interveno do planejador. Quando Le Corbusier pde finalmente realizar seu projeto para uma unit d'habitation, quando pde dar forma concreta idia de uma cit jardin verticale, justo as instalaes comunitrias no foram utilizadas ou foram suprimidas. A utopia de uma forma de vida pr-concebida, que j inspirara os projetos de Owen e Fourier, no se pde encher de vida. E isto no apenas por causa da apreciao irremediavelmente subestimada da multiplicidade, complexidade e mutabilidade dos modernos mundos da vida, mas tambm porque as sociedades modernizadas, com suas conexes sistmicas, excedem a dimenso que a fantasia do planejador acaso pudesse medir. As manifestaes hoje evidentes de crise na arquitetura moderna remontam menos a uma crise dela prpria e, mais, ao fato de que ela se deixou voluntariamente sobrecarregar. Alm do que, os pontos obscuros da ideologia funcionalista deixavam a arquitetura moderna mal armada diante dos perigos que a reconstruo aps a II Guerra Mundial perodo em que o estilo internacional se imps em grande escala trouxe consigo. certo que Gropius sempre sublinhou o entrelaamento ntimo de arquitetura e urbanismo com a indstria, a economia, o transporte, a poltica e a administrao. Ele davase conta tambm da natureza processual do planejamento. No marco da Bauhaus, contudo, estes problemas apareciam em formato adequado a fins didticos. E os xitos do movimento moderno induziram os pioneiros infundada expectativa de que a "unidade de cultura e produo" se pudesse estabelecer tambm num outro sentido: as limitaes econmicas e poltico-administrativas a que a remodelao do meio ambiente est sujeita aparecem, por este prisma idealizante, como mera questo de organizao. Quando, em 1949, a associao dos arquitetos americanos quis incorporar ao seu estatuto a determinao de que os arquitetos no deveriam atuar como empreiteiros, Gropius protestou, no contra a ineficcia do recurso, mas contra o propsito e o fundamento da moo. Ele persistia em seu credo: "A arte, transformada em fator geral de educao, saber conferir ao meio social a unidade que constitui a base autntica de uma cultura, a qual abarca todo e qualquer objeto, desde uma simples cadeira a uma casa de oraes"15. Nesta grande sntese desaparecem as contradies que caracterizam a modernizao capitalista justamente no mbito da planificao urbana contradies entre, por um lado, as necessidades de um mundo da vida formado, e, por outro, os imperativos cujos meios so o dinheiro e o poder. Acrescenta-se a isto um mal-entendido lingstico, ou melhor, um erro categorial. Denominamos "funcionais" os meios apropriados a um fim. neste sentido que se entende o funcionalismo quando pretende construir edificaes conforme os fins dos usurios. Contudo, dizemos tambm "funcionais" as decises que estabilizam uma conexo annima de resultados de aes, sem que a existncia deste sistema fosse desejada ou sequer considerada por qualquer um dos participantes. O que neste sentido funcional do ponto de vista sistmico para a economia e a administrao por exemplo, o adensamento do centro da cidade com aumento de preo dos terrenos e elevao da tributao comprova-se como "nada funcional" do ponto de vista do mundo da vida tanto dos habitantes quanto da vizinhana. Os problemas do planejamento urbano no so primariamente de organizao espacial, mas de insuficincia gestionria, de represamento e orientao de imperativos sistmicos annimos, que interferem nos mundos da vida citadinos e ameaam-lhes consumir a substncia urbana. Hoje a reflexo sobre a cidade europia antiga est na boca de todos. Mas Camillo Sitte, um dos primeiros a comparar a cidade medieval moderna, j advertia, em 1889, contra as naturalidades foradas: "Pode-se assim pergunta ele inventar, planejar e
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construir as mesmas casualidades que a histria produziu ao longo dos sculos? possvel o prazer real e sincero diante de uma tal ingenuidade mentirosa, ou de semelhante naturalidade artificial?"16. Sitte parte da idia do restabelecimento da urbanidade. Mas depois de um sculo de crtica cidade grande, depois de um sculo de inumerveis e sempre frustradas tentativas de manter a urbe em equilbrio, de salvar o centro, de organizar os espaos urbanos em quarteires residenciais e em quarteires comerciais, em instalaes industriais e rea verde, de articular os mbitos privado e pblico, de construir cidades-satlite habitveis, de sanear cortios, de canalizar razoavelmente o trfego etc., impe-se perguntar se o prprio conceito de cidade no est ultrapassado. As marcas da cidade ocidental, como Max Weber a descreveu, da cidade burguesa na alta Idade Mdia europia, da nobreza urbana na Itlia do Norte renascentista, da capital dos principados, reformada pelos arquitetos barrocos da casa real, estas marcas histricas confluram em nossas cabeas at formarem um conceito difuso e multiestratificado. Este pertence ao tipo identificado por Wittgenstein como parte dos hbitos e da autocompreenso da prtica cotidiana: nosso conceito de cidade liga-se a uma forma de vida. Esta contudo se transformou a tal ponto que o conceito dela derivado j no logra alcan-la. Enquanto um mundo abarcvel, a cidade pde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funes sociais da vida urbana, poltica e econmica, privada e pblica, da representao cultural e eclesistica, do trabalho, do morar, da recreao e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funes de utilizao temporalmente regulada dos espaos configurados. Contudo, no sculo XIX ao mais tardar, a cidade torna-se ponto de interseco de relaes funcionais de outra espcie. Ela inserida em sistemas abstratos que, enquanto tais, no podem mais alcanar uma presena esteticamente apreensvel. As grandes exposies industriais, projetadas entre meados do sculo e final da dcada de 80 como eventos arquitetnicos extraordinrios, revelam um impulso que hoje faz sorrir e que as Olimpadas recordam. Os governos organizavam mostras internacionais dos produtos da indstria, arranjados festivamente em espaos grandiosos, com vistas na opinio pblica: tratava-se literalmente de encenar o mercado mundial e recuper-lo para as dimenses de um mundo da vida. Mas as prprias estaes ferrovirias j no conseguiam tornar palpvel para os passageiros a rede de trfego a que davam acesso; nada que se comparasse clareza com que outrora os portes da cidade sugeriam as ligaes concretas com as vilas adjacentes e a cidade mais prxima. Alm de que os aeroportos, por bons motivos, hoje ficam longe das cidades. Os edifcios de escritrios, sem face definida, que dominam o centro, os bancos e os ministrios, os tribunais e as corporaes administrativas, as editoras e a imprensa, as burocracias pblica e privada, todos enfeixam conexes funcionais, a que entretanto no do visibilidade. O desenho das marcas comerciais e do reclame luminoso mostra que as diferenciaes tm de se realizar em um meio outro, que no o da linguagem formal da arquitetura. As conseqncias disto foram tiradas por Venturi com os "chals decorados", com as duck-houses ao longo da autopista erigidas em programa, que escarnecem da unidade de interior e exterior, beleza e utilidade, preconizada pela arquitetura moderna. Outro indcio de que o mundo da vida urbano se encontra cada vez mais mediatizado por conexes sistmicas no confgurveis o malogro do mais ambicioso dos projetos da Nova Construo: at hoje, fbricas e conjuntos habitacionais de cunho social no puderam ser integrados cidade. As aglomeraes urbanas emanciparam-se do velho conceito de cidade, ao qual no entanto se apega o nosso corao. Este no um fracasso da arquitetura, moderna ou outra. Ponto 4: se este diagnstico no estiver errado, ele primeiramente confirma a perplexidade dominante e a necessidade de se buscarem novas solues. Ele faz duvidar tambm das reaes suscitadas pelo desastre da Nova Construo, com a sua arquitetura ao mesmo tempo sobrecarregada e instrumentalizada. Para me orientar pelo menos proSETEMBRO DE 1987

16 C. Sitte, Der Stadtebau, Leipzig, 1889.

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ARQUITETURA MODERNA E PS-MODERNA

17 V.M. Lampugnari, Theorie und Architektur in den USA, in Architekt 5 1980, p. 252 ss.

18 W. Pohl, Plaedoyer fuer eine Unbefriedete Tradition, in Bauwelt 19/20, 1981, p. 768 ss.

19 L. Kroll, Stadtteilplanung mit den Bewohnern, in Blomeyer, Tietze, In Opposition zur Moderne, ed. cit, p. 160 ss.

Novos Estudos CEBRAP n. 18, setembro 87 pp. 115-124

visoriamente no nebuloso terreno das contracorrentes, introduzi uma tipologia, certamente simplificadora, distinguindo trs tendncias que tm uma coisa em comum: em oposio continuao autocrtica do modernismo, que esta exposio veladamente defende, elas levam ruptura o estilo moderno, na medida em que desvinculam a linguagem formal vanguardista e o fundamento funcionalista intransigente. Do ponto de vista programtico, forma e funo voltam a se separar. De modo trivial isto verdade para o neo-historicismo, que transforma um conjunto de lojas numa rua medieval, ou o poo de ventilao do metr em uma vila paladiana com as dimenses de um livro de bolso. Este retorno ao ecletismo oitocentista deve-se, como naquele tempo, a necessidades compensatrias. Este tradicionalismo conforma-se ao modelo do neoconservadorismo poltico na medida em que redefine, como sendo questes de estilo, problemas que se localizam em outro plano, com o que os subtrai conscincia pblica. A reao evasiva ligase a tendncias afirmativas: tudo mais deve permanecer como est. A separao de forma e funo se aplica tambm ao movimento ps-moderno, na acepo de Charles Jencks, esta perfeitamente livre de nostalgia seja que Eisemann e Grave autonomizem artisticamente o repertrio formal dos anos 20, seja que Hollein e Venturi utilizem os meios de criao modernos maneira de um cengrafo surrealista, para extrair efeitos pictricos da mescla agressiva de estilos17. A linguagem desta arquitetura de efeitos cnicos entrega-se a uma retrica, a qual tenta expressar, ainda que cifradamente, as conexes sistmicas a que a configurao arquitetnica j no tem mais acesso. Finalmente, a unidade de forma e funo tambm rompida por aquela arquitetura alternativa que parte das questes da ecologia e da preservao de setores urbanos historicamente sedimentados. Estas aspiraes, ocasionalmente caracterizadas como "vitalistas"18, visam em primeira linha conectar de mais perto a configurao arquitetnica a contextos espaciais, culturais e histricos imediatos. Algo a se conserva, embora em verso defensiva, das inspiraes do movimento moderno. So dignas de ateno, sobretudo, as iniciativas visando a uma arquitetura comunitria, as quais invocam e no se trata apenas de retrica os diretamente interessados em participar do processo de planejamento, e tratam de planificar setores inteiros da cidade em dilogo com os clientes19. Se no planejamento urbano os mecanismos do mercado e da administrao funcionam de maneira a trazer conseqncias disfuncionais para o mundo da vida dos afetados cancelando o "funcionalismo" originalmente visado , mera prova da conseqncia fazer que o dilogo entre os participantes, bem como a vontade que se forma a partir dele, entre em concorrncia com as esferas do dinheiro e do poder. A nostalgia de formas de vida menos diferenciadas s vezes confere a estas tendncias a tintura do antimodernismo. Nestes casos elas se combinam ao culto da tradio local e venerao da banalidade. Esta ideologia da infracomplexidade renega o potencial racional e o sentido especfico da modernidade cultural. O elogio da construo annima e da arquitetura sem arquitetos o preo que este vitalismo se dispe a pagar pela sua crtica ao sistema, ainda que tenha em mente um esprito do povo diverso daquele cujas idealizaes no passado complementavam perfeio o monumentalismo da arquitetura dos Grandes Lderes (Fuehrerarchitektur). Esta oposio ao moderno encerra uma boa dose de verdade: ela acolhe problemas irresolvidos que colocaram a arquitetura moderna em posio dbia penso na colonizao do mundo da vida pelos imperativos de sistemas econmicos e administrativos autonomizados. Contudo, estas oposies todas nos ensinaro alguma coisa somente se no esquecermos o principal. Num momento feliz, a arquitetura moderna permitiu que se unissem livremente o vis esttico do construtivismo e a vinculao a finalidades do funcionalismo estrito. A tradio viva depende de momentos como este, do qual vive tambm o que na perspectiva desta exposio de Munique se apresenta como "a outra" tradio.
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