Mirian Tavares - Surrealismo PDF
Mirian Tavares - Surrealismo PDF
Mirian Tavares - Surrealismo PDF
Mirian Tavares
1
`Transformer le monde a dit Marx ;
`Changer la vie a dit Rimbaud :
ces deux mots dordre pour nous nen font quun.
Andr Breton
Para falarmos do Surrealismo necessrio conhecer o contexto do seu
nascimento e que papel ele ocupou dentro das vanguardas e da arte do sculo XX.
No seria exagerado afirmar que o novo sculo definitivamente novo. Assentar
esta novidade, entre outras, numa profunda modificao da viso do mundo,
cristalizada a partir de constantes relativizaes na relao entre o homem e a sua
apreenso da realidade, no sendo menos importante, para esta reapreciao, as
inmeras manifestaes artsticas. Mesmo que suas razes estivessem fincadas no
sc. XIX, o seu limiar arrasta consigo um outro homem, construdo de fragmentos e
espelhos, o homem das passagens de Paris, como descreveu Baudelaire, o homem
das imagens
2
fotogrficas e cinematogrficas que vieram para alterar
definitivamente a nossa percepo do mundo.
1
Mirian Tavares professora auxiliar na Universidade do Algarve, onde coordena o Mestrado em
Comunicao, Cultura e Artes. E-mail: mtavares@ualg.pt
2
Jacques Aumont, em seu livro A imagem, refere a dificuldade de falar sobre um tema que pertence ao
vasto e diversificado domnio da atividade humana. Por isso que decidi delimitar o conceito de imagem
ao qual irei recorrer ao longo deste trabalho. Assim sendo, o termo imagem, para mim, corresponder a
definio de Aumont, a saber, falarei da imagem visual como uma modalidade particular da imagem em
geral, dando prioridade s imagens concretas, e dentre estas, privilegiando as imagens artsticas.
(Jacques Aumont, A imagem. 2 ed., Campinas, Papirus, 1995, passim). Por outro lado, em alguns
momentos, quando for necessrio ampliar esse conceito, acredito que, conforme Gillo Dorfles, "existe
uma vasta gama de imagens, a que poderemos - racional e no metaforicamente - chamar imagens
musicais, poticas, plsticas, e que considero como embries formais ainda no completamente
encarnados e espera de se traduzirem em obra de arte, mas em todo o caso, ainda desprovidos de
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
2
O fim do sculo XIX deixou no ar questes de f, razo e lgica. Deixou
tambm o desejo de re-ordenar o olhar sobre as coisas e sobre a prpria
humanidade. Das perguntas lanadas no fim do sculo passado, de uma guerra
que os obrigava a todos a reagir de alguma maneira, surgem os movimentos de
vanguarda. Se o termo avant-garde tem origens militares, a existncia dos
movimentos est exatamente compreendida no perodo anterior e imediatamente
posterior s duas Grandes Guerras.
O que as vanguardas pretendiam era fazer explodir as formas de expresso
at ento conhecidas e expressar a angstia de um tempo que se iniciava sob os
escombros de uma Guerra Mundial, da qual eles no queriam participar. Foram
desertores de uma batalha que no reconheciam como deles. A sua luta era no
campo das idias, inclusive para combater idias devido ao seu efeito gerador do
caos da guerra.
Vrios foram os movimentos de vanguarda. Alguns deles eram
profundamente antitticos, mas carregando consigo a noo de um conflito que
pertencia a todos: qual seria a nova concepo do Homem e da Histria? Qual
seria a melhor maneira de acordar um mundo chocado com a misria e a
destruio, ao mesmo tempo em que se entrava num perodo onde o
desenvolvimento tecnolgico atingia propores at ento nunca imaginadas?
Surge o fascnio pela mquina, que se tornou definitivamente uma intermediria
entre o homem e o mundo.
O papel fundamental das vanguardas ser ento o de construir um olhar,
transformar a percepo, lanar a todos num espao novo que exigia uma
mudana radical de ponto de vista. Segundo Ortega y Gasset: "Para ver un objeto
tenemos que acomodar de una cierta manera nuestro aparato ocular. Si nuestra
acomodacin visual es inadecuada no veremos el objeto o lo veremos mal.
3
Para
este filsofo espanhol o que as vanguardas fizeram, dentre outras coisas, foi
obrigar-nos a mudar a direo do nosso olhar: antes o que interessava era o
jardim (referncia a um certo realismo presente nas obras anteriores s
vanguardas), que podia ser visto atravs do vidro da janela. Agora, o que
realmente importa, o prprio vidro (ou seja, o objeto em si e no o que ele
representa) e os reflexos que ele absorve e devolve para o mundo
4
.
O deslocamento do olhar seria um regresso para a prpria arte, fugindo da
necessidade intrnseca, provocada por certas correntes artsticas do sc. XIX, de
reproduzir o mundo. O que interessava para as vanguardas no eram as histrias
muitos atributos da obra definitiva. (Gillo Dorfles, O devir das artes. 3 ed., Lisboa, Publicaes Dom
Quixote, p. 19).
3
Jos Ortega y Gasset, La deshumanizacin del arte y otros ensayos de estetica. 11 ed., Madrid,
Ediciones de la Revista de occidente, 1976, p. 20.
4
Op. cit., pp.20-1.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
3
e possveis identificaes que elas pudessem promover, mas, pelo contrrio, o
efeito de estranhamento, procurando dirigir o olhar para o objeto, para sua
construo, para sua possibilidade de instaurar um desvio no texto da vida. Mais
que a aceitao, buscavam a provocao, e mesmo o escndalo.
O paradoxo do fim do sculo passado, a tenso entre o desprezo solene dos
valores burgueses e o usufruto de suas benesses, entre a recusa do mercado
cultural e a formao do mesmo que vai, a partir de agora, gerir o mundo das
artes, atravessa as fronteiras do sculo XX, obrigando os artistas a uma tomada de
posio: ou aceitam fabricar produtos culturais como mercadorias, ou rompem com
o ciclo que os leva irremediavelmente a coadunar-se com valores que eles desejam
combater. Eis as palavras de Jean-Franois Dupuis a este respeito:
"No h artista, na primeira metade do sculo XIX, que no baseie a sua obra
no desprezo dos valores burgueses e do valor mercantil (isso de forma alguma
o impede de se conduzir como um burgus e de procurar o dinheiro onde h - o
caso de Flaubert). O estetismo apresenta-se como a ideologia do antivalor
mercantil que torna o mundo vivel e detm, por isso, o segredo dum certo
estilo de vida, duma certa valorizao do ser, oposto ao ser reduzido ao ter, que
do capitalista.
5
.
Para Walter Benjamin, os grandes perodos histricos provocam uma
reorganizao no nosso modo de perceber o mundo.
6
A era da reprodutibilidade
tcnica traz-nos uma outra relao com a arte, que no mais a contemplao
seno o choque. As vanguardas buscam no a aceitao ou a compreenso, pois
sabem que concorrem com algo - a guerra - mais grandioso sua volta. Precisam
retirar a arte de um cotidiano sufocante, para torn-la, de fato, participante de
seu prprio tempo, simultaneamente traduzindo-o e antecipando o porvir.
A arte distancia-se da natureza e cria um novo mundo. Alterando a estrutura
espacial utilizada no renascimento, busca formas novas de traduzir um outro
espao. A perspectiva renascentista e seu desejo de reproduzir o mundo o mais
fielmente possvel, ser relegado para dentro das objetivas das cmeras
fotogrficas e cinematogrficas. Liberadas de uma certa funo reprodutora e
identificatria, as artes plsticas ficam mais prximas das letras e da poesia, com
toda a possibilidade de criar imagens que estas possuem: "A arte ps-
impressionista no pode mais ser considerada, em qualquer sentido, uma
reproduo da natureza; sua relao com a natureza de violao. Podemos falar,
no mximo, de uma espcie de naturalismo mgico, da produo de objetos que
existem a par da realidade mas no desejam tomar o lugar desta.
7
5
Julius Franois Dupuis, Histria desenvolta do surrealismo. Lisboa, Antgona, 1979, p. 14.
6
Op. cit., p. 80.
7
Arnold Hauser, Histria social da arte e da literatura. So Paulo, Martins Fontes, 1995 p. 961.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
4
Ao renunciar reproduo do mundo, as vanguardas renunciam tambm
aos conceitos que guiavam at ento a criao de um objeto artstico. A noo de
belo, presente nas obras de arte e nos estudos que vo acompanh-las ao longo
dos sculos, no pode ser mais utilizada agora. Segundo Hauser, a arte moderna
"fundamentalmente uma arte feia
8
, que no busca o deleite, mas privilegia o
intelecto, renunciando ao hedonismo e aos excessos sentimentais cometidos por
alguns dos seus artfices do passado.
O Movimento surrealista
O Primeiro manifesto do surrealismo, escrito por Andr Breton em 1924,
antes de mais nada uma verdadeira profisso de f. Iremos aos poucos descobrir
porque a crena to importante para Breton e seus seguidores e porque este
primeiro manifesto no apenas uma pea literria, mas uma reflexo profunda
sobre a situao do homem no mundo naquele instante e, ousamos dizer, uma
condio que atravessa todo o sculo.
"(...) o Surrealismo nunca se props como um fim, mas justamente, como
um ponto de partida para o homem, para o humano no mundo e diante dele, para
o homem entre os homens e diante do outro, numa afirmao dialtica incessante e
permanente, guiado pelo conhecimento sensvel das analogias e no das teorias.
9
Desde o primeiro manifesto que Breton aponta para o sensvel como forma de
apreenso do mundo. No simplesmente esquecermo-nos da razo e da lgica,
mas tentarmos buscar uma outra lgica que no est presente nos meios
convencionais.
Ao analisar as vanguardas, Ortega y Gasset afirma que "Lo importante es
que existe en el mundo el hecho indubitable de una nueva sensibilidad esttica.
10
Sensibilidade esta que provoca uma "desumanizao da arte, sendo vrios os
motivos que levam a este caminho. O principal deles , sem dvida, o fato do olhar
do artista no tentar mimeticamente reproduzir a natureza, mas procurar, de vrias
formas, ultrapass-la. Para Ortega y Gasset, os artistas caminham em direo ao
objeto humano. No a figura do homem, mas de um homem transfigurado e no
calcado totalmente no real.
Ultrapassar o real, escolher um caminho diferente das possibilidades
cotidianas de mostrar o mundo, no uma escolha fcil. "Cree el vulgo que es cosa
fcil huir de la realidad, cuando es el ms difcil del mundo. (...) La realidad
8
Ibidem.
9
Srgio Lima, A aventura surrealista. So Paulo, Vozes, 1995, p. 23.
10
Jos Ortega y Gasset, La deshumanizacin del arte y otros ensayos de esttica. 11 ed., Madrid,
Ediciones de la Revista de Occidente, 1976, p.30.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
5
acecha constantemente el artista para impedir su evasin.
11
Poderamos afirmar
at que, mais que fugir da realidade ou mesmo ultrapass-la, o que os artistas
queriam era ultrapassar, isso sim, um modo de representao do mundo.
Os surrealistas, como a vanguarda da poca, buscavam tambm uma forma
diferente de estar no mundo, de re(a)present-lo. Mas eles no tinham a inteno
de fugir realidade. Pelo contrrio, eles gostariam de penetr-la to a fundo ao
ponto de expor suas entranhas e tudo aquilo que (quase) sempre fora relegado por
uma cultura classicizante. Temos a tendncia de entender o termo surrealismo
como algo fora da realidade
12
, enquanto o que de fato eles buscavam, era um
mergulho at ento no ousado, no que havia de mais profundo desta realidade: o
espao do inconsciente e dos sonhos.
Em seu ensaio La deshumanizacin del arte, Ortega y Gasset traz-nos uma
imagem que, se para ele traduz toda a vanguarda, acredito que se aplica de forma
muito particular ao Surrealismo
13
: ele imagina que a fuga da realidade proposta
pelas vanguardas seria como a histria de Ulisses ao contrrio - ao invs de buscar
sua Penlope cotidiana, ele navega em direo bruxaria de Circe. O desejo da
humanidade pela ordem segura do cotidiano subvertido pelo desejo do
desassossego e do abismo. O surrealismo prope a vertigem.
11
Op. cit., pp. 33-4.
12
"Sei que o termo surralisme resultou de uma condensao obtida a partir da fuso de sur com
ralisme. O primeiro componente da combinatria se reporta a significados espaciais que a traduo
portuguesa, de certa maneira, altera: sur significa sobre e tem origem numa preposio grega que, com
o tempo, veio a se confundir com abreviaes da partcula latina super ou supra. Sei que, alm desse
contedo consagrado pelo hbito, a preposio sur significa tambm daprs (...). (Eduardo Peuela
Caizal, Surrealismo. 2 ed., So Paulo, Atual, 1987, p.9).
13
No indiferente a esta constatao as incurses no surrealismo dos poetas espanhis. Por sua vez o
"esprito surrealista j pairava na vanguarda hispnica.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
6
" - tige, vers quel litige? (...) Une monstrueuse aberration fait
croire aux hommes que le langage est n pour faciliter leurs relations mutuelles.
14
Michel Leiris, ao longo dos nmeros da revista La rvolution surraliste, propunha
um glossrio que desestruturava as palavras, recriando o seu sentido atravs de
um jogo de desmontagem. A linguagem no serve apenas para facilitar as relaes,
mas para ser tambm perscrutada em busca de novos sentidos, ou velhos sentidos
j esquecidos, devidamente ocultados pelo uso comum. A proposta de Leiris para a
liguagem era a proposta de todo o grupo para a arte, e consequentemente, para os
sentidos cristalizados do mundo.
Para os surrealistas, era preciso (e urgente) sair do lugar-comum, procurar
caminhos alternativos que ressuscitassem a crena na vida. Para Leiris, "dissecar
palavras no era um simples jogo, mas uma tentativa de desvendar os seus
segredos para que a linguagem fosse transformada em um "(...) oracle et nous
avons l (si tnu quil soit) un fil pour nous guider, dans la Babel de notre esprit.
15
A origem do surrealismo est ligada ao romantismo, "segundo Baudelaire,
Victor Hugo teve o mrito de sugerir o mistrio da vida
16
. O romantismo, ao
sugerir o mistrio da vida, permite que a poesia seja mais que o seu sentido
inteligvel. Assim os surrealistas aprofundaram este mistrio e buscaram tambm,
segundo Duplessis, "uma obscuridade reveladora de um outro universo. Passando
por Rimbaud
17
e Lautramont, os surrealistas acreditavam no universo do sensvel
como a possibilidade do mltiplo e do plural, pois o mundo permite vrias leituras.
Vejamos um exemplo tirado dos jogos surrealistas:
N. Quest-ce quun parapluie?
Q. Lappareil de reproduction chez les gastropodes.
18
Desnaturalizar o mundo, torn-lo estranho, para que, contraditoriamente,
ele pudesse ser novamente conhecido, eis a proposta. Surge uma esttica que
extrai o belo do absurdo:
"Max Ernst explica-nos por que que o belo pode nascer, segundo a frmula de
Isidore Ducasse, do encontro de uma mesa de dissecao de uma mquina de
cozer e de um chapu-de-chuva. Com efeito, uma realidade completamente
acabada, cujo ingnuo destino parece ter sido fixado de uma vez por todas (um
14
Michel Leiris, "Glossaire: jy serre mes gloses, La rvolution surraliste, n. 3, 15 de abril de 1925,
p.7. Citarei esta revista a partir da edio facsimilada publicada por dition Jean-Michel Place, em Paris
(1975).
15
Ibidem.
16
Yvonne Duplessis, O Surrealismo. Lisboa, Inqurito, 1983, p.13.
17
Segundo Breton, "Rimbaud limitou-se a exprimir, com um vigor surpreendente, uma perturbao que
sem dvida milhares de geraes no conseguiram evitar... Em rarssimos intervalos que o
antecederam, acreditamos poder surpreender no lamento de um sbio, na defesa de um criminoso, na
desorientao de um filsofo, a conscincia dessa terrvel dualidade que a ferida maravilhosa em que
ele ps os dedos. (Apud Yvonne Duplessis, op.cit., p. 13).
18
Louis Aragon et Andr Breton, "Le dialogue en 1928, La rvolution surraliste, n11, 15 de maro de
1928, p. 7.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
7
chapu-de-chuva), ao encontrar-se em presena de uma outra realidade muito
distante e no menos absurda (uma mquina de cozer), num lugar onde ambos
se devem sentir fora do stio (sobre uma mesa de dissecao), escapar
exactamente por isso ao seu ingnuo destino e sua identidade, passar do seu
falso absoluto, pelo desvio de uma relao, a um absoluto novo, verdadeiro e
potico.
19
O Surrealismo est profundamente inserido em seu tempo. Mais que
pertencer a um perodo, ele funcionou como um instntaneo de uma poca
marcada por acontecimentos que iriam definir a Histria do sculo. As idias do
surrealismo ultrapassaram o prprio movimento
20
. Em um primeiro momento irei
concentrar-me no movimento em si, que pode ser enquadrado, segundo Maurice
Nadeau
21
, entre duas datas - 1918-1939, ou seja, coincide mais ou menos com o
19
Yvonne Duplessis, op. cit., pp. 30-1.
20
"El espritu surrealista, o, mejor dicho, el comportamiento surrealista, es eterno. (Maurice Nadeau,
Historia del surrealismo. Montevideo, Altamira, 1993, p.11).
21
Op. cit., p. 17.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
8
fim da I Guerra e o incio da segunda. E coincide precisamente com o "Fracaso
universal de una civilizacin que se vuelve contra s misma para devorarse.
22
O fracasso da civilizao inspirou o nascimento das vanguardas que no
conseguiam mais ver a arte como uma camuflagem para a crise pela qual passava
a humanidade. A arte precisava sair do lugar-comum e dar continuidade a
movimentos que, mesmo no sculo anterior, j se revoltavam contra a ordem
estabelecida. Desde sempre encontramos pessoas e/ou movimentos que iam de
encontro quilo que era estabelecido pela ordem vigente. Arcimboldi, por exemplo,
considerado um ancestral dos surrealistas, deu vazo aos seus retratos fantsticos
construdos com frutas, vegetais ou flores, em pleno Renascimento. Da mesma
forma, os romnticos, sculos mais tarde, lutaram contra a tirania da ordem neo-
classicizante.
Para tericos como Maurice Nadeau e Gatan Picon, a primeira fase do
movimento comea mais ou menos em 1919, estendendo-se at 1924, ano de
publicao do I Manifesto. Para Franco Fortini, esta fase compreendida entre 1919-
1925 o momento de ruptura entre os surrealistas e movimentos anlogos, onde
so desenvolvidas as tcnicas e lanados os fundamentos tericos.
23
Fortini
considera ainda que o grande mestre de todos vem a ser Apollinaire, que em seu
manifesto de 1917 (o esprito novo) prope "sublevar liricamente o mundo.
24
O surrealismo, como movimento de vanguarda, surge ento no momento de
exploso da forma vigente de se apresentar o mundo atravs da arte. Apesar de
oficialmente ter-se iniciado em 1924, dois anos aps o colapso do dadasmo, a sua
origem remete-nos morte de Apollinaire: "Le 11 novembre 1918, 202 boulevard
Saint-Germain, quelques amis veillent le corps de Guillaume Apollinaire. Um dia
antes, "(...) Breton avait crit en PS une lettre-collage:
Mais Guillaume
APOLLINAIRE
vient de
mourir.
25
Alguns precursores
Morto Apollinaire, fica o termo com o qual ele designou a pea de sua
autoria, Les Mamelles de Tirsias, um drama "surrealista. Em sua homenagem,
Breton, Aragon e Soupault adotam o termo surrealismo. "Apollinaire vient de
mourir. Le surralisme peut natre - et ce nest pas trop dire puisque le premier
22
Op. cit., p 18.
23
Franco Fortini, O movimento surrealista. Lisboa, Presena, 1980, p. 15.
24
Op. cit., p. 16.
25
Philippe Audoin, Les surralistes. Paris, Seuil, 1995, p. 10.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
9
texte automatique, Les Champs magntiques, fuit crit six mois aprs.
26
Para o
triunvirato do surrealismo, Apollinaire era um deus que os havia fustigado com suas
idias de um esprito novo,
27
esprito este capaz de lan-los em busca de novas
experincias. "Un pauelo que cae puede ser para el poeta la palanca con la cual
levantar todo un universo...
28
Para Breton (que conhece Apollinaire em 1916, aps um perodo em que
trocavam correspondncia), Guillaume Apollinaire era:
"(...) uma personagem de vulto, como no encontrei mais nenhuma depois.
verdade que um tanto aloucada. O lirismo em pessoa. Arrastava atrs de si o
cortejo de Orfeu.
29
Um homem pleno de contradies, que ao lado da figura de
Paul Valry
30
, vai exercer enorme influncia no pensamento de Breton. Por um
lado, Apollinaire projectava-se para o futuro enquanto isso Valry rompia o
silncio de anos com os versos alexandrinos de La jeune parque.
31
Apesar de atirar-se para o futuro, de ter sido um dos primeiros a reconhecer
o gnio de Henri Rousseau, de ser um homem de seu tempo, capaz de detectar o
"pintor da vida moderna, como o fizera Baudelaire, faltava em Apollinaire uma
dose de desafio e desapego que Breton vai encontrar em Jacques Vach. Diante da
guerra
32
, Apollinaire, segundo Breton, apesar de alistar-se no exrcito, no toma
conscincia do que se passa: "Perante o horrvel facto que a guerra era, Apollinaire
reagiu por uma vontade de imerso na infncia (...).
33
A poesia no vencera a
provao da guerra, da a importncia de algum como Vach, um desafiador, que
se no desertou em tempos de guerra, mostrou a sua insubmisso "(...) quon
pourrait appeler la dsertion lintrieur de soi-mme.
34
Vach aparece como uma figura quase mtica, capaz de executar aes que
mais tarde transformam-se em "literatura nas mos de Breton. O grande
enfrentamento dos dois estilos antagnicos, Apollinaire e Vach, acontece na
estria da pea do primeiro, Les Mamelles Tirsias. A apresentao medocre, o
que provoca uma grande agitao no pblico presente, agitao esta que aumenta
com o aparecimento de uma figura vestida com o uniforme do exrcito ingls,
empunhando um revlver e disposto a descarreg-lo ao acaso. "El eco de este
recuerdo lo encontramos, diez aos despus, en el Segundo manifiesto del
26
Op. cit, p. 11.
27
Maurice Nadeau, op. cit., p. 26.
28
Ibidem.
29
Andr Breton, Entrevistas. Lisboa, Salamandra, 1994, p. 33.
30
Quando Andr Parinaud pergunta a Breton se existia algum homem capaz de assegurar a ligao
entre o sculo XIX e o sculo XX, ele responde prontamente: Paul Valry. (Op. cit., pp. 24-5).
31
Breton, de certa forma, no perdoa o que considera uma traio de Valry, desonrar o respeitoso
silncio literrio com uma obra que, para Breton, era injustificvel: "Valera a pena ocultar-se tanto
tempo para reaparecer nesta figura? (Op. cit., p. 50).
32
Para Breton, a guerra de 1914 "vinha arrancar a todas as suas (de alguns jovens, incluindo ele)
aspiraes para precipit-los numa cloaca de sangue, lama e estupidez. (Op. cit., p. 31).
33
Op. cit., p. 35.
34
A. Breton, Anthologie de lhumour noir. Paris, Le Livre de Poche, 1995, p. 376.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
10
surrealismo, donde Breton declara que "el acto surrealista ms simple consiste en
empuar los revlveres y descrgalos al azar sobre la multitud.
35
Em Lettres de guerre, nica obra publicada de Vach
36
, este deixava vir
tona suas opinies sobre o mundo e principalmente sobre a arte: "(...) LART
nexiste pas, sans doute(...).
37
Um poeta que nunca escreveu uma linha de poesia,
mas que, para Breton, viveu-a intensamente, vindo a suicidar-se em 1919. As
cartas de guerra so o seu legado para jovens como Breton ou Aragon: "As suas
cartas tinham o efeito de um orculo, cuja particularidade era ser inesgotvel.
38
A figura de Arthur Cravan, no menos mtica que a de Vach, vai impor sua
presena na alma de Breton e dos surrealistas de primeira hora (Aragon, Soupault).
Desertor de dezessete naes, como ele mesmo se proclamava, Cravan, ex-boxeur,
publicou entre 1912-1915 uma revista intitulada Maintenant, impressa em papel de
embrulho e vendida pelo prprio Cravan que empurrava pelas ruas um carrinho de
vendedor ambulante de frutas e hortalias. Nele possvel encontrar elementos
35
Maurice Nadeau, op. cit.,p. 27.
36
Breton publica Lettres de guerre em 1919 na revista Littrature, dirigida por ele, aps o choque do
suicdio de Vach. (Cf. Gatan Picon, Le surralisme. Genve, Skira, 1995, p. 21).
37
Jacques Vach apud Andr Breton, Anthologie de lhumour noir, p.380.
38
Andr Breton, Entrevistas, pp. 54-5.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
11
que o tornam um precursor do Dadasmo, apesar de que "(...) la solution au
malaise intellectuel soit ici cherche dun tout autre ct.
39
Alm de Apollinaire, Vach e Cravan, Alfred Jarry, com o humor que
impregna sua obra, deixou tambm marcas no caminho em direo ao Surrealismo:
"Au-dessus de lironie romantique sur ce monde, de lesthtisme dmiurgique et
illusoire, il a lhumour de pousser jusque dans les dernires consquences de la
parfaite absurdit les valeurs et spculations de lhumanit.
40
O humor, pedra
fundamental na construo artstica do grupo, na vida de Jarry, segundo Duplessis,
"(...) no passou de uma constante provocao a todas as convenes
burguesas.
41
A lista de influncias do Surrealismo muito grande, porque, alm dos
contemporneos, Breton e seu grupo no renegaram figuras que a Histria tratou
de deixar em segundo plano, como Isidore Ducasse, conde de Lautramont, que
segundo Breton: "Tout ce qui, durant des sicles, se pensera et sentreprendra de
plus audacieux a trouv ici se formuler par avance dans sa loi magique.
42
Os
Surrealistas no ocultam suas influncias, pelo contrrio, reconhecem publicamente
suas dvidas, maiores ou menores com todos aqueles que, de alguma forma,
iluminaram o movimento
43
. No possvel, porm, esquecer Rimbaud "(...) que
viveu tragicamente este conflito de uma alma simultaneamente apaixonada pelo
absoluto e prisioneiro no inferno terrestre.
44
De Rimbaud a Vach, de Lautremont a Apollinaire, passando por
Baudelaire, Poe, Reverdy e ainda por Mallarm que vai influenciar os primeiros
poemas de Breton
45
, chegamos ao Dadasmo, que vai ser to importante para o
movimento que alguns autores iro apontar o surrealismo como uma continuao
da aventura de Tristan Tzara e seu grupo do qual Breton tomou parte ativa. Em
1915, em Nova Iorque, M. Duchamp inicia um processo de ridicularizao da arte
39
Andr Breton, Anthologie de lhumour noir, p. 323.
40
G. Durozoi et B. Lecherbonnier, Le surralisme. Paris, Larousse, 1972, p. 26.
41
Yvonne Duplessis, op. cit., p. 15.
42
Andr Breton, Anthologie de lhumour noir, p.176.
43
"O Manifesto do Surrealismo enunciar muitos deles, tais como Young (autor de Noites), Swift,
Chateaubriand, Hugo, Aloysius Bertrand, Germain Noveau, Raymond Roussel (...) So aqui lembrados
apenas para constar que o surrealismo jamais fez mistrio do que podia alimentar suas razes. (Andr
Breton, Entrevistas, p. 101).
44
Yvonne Duplessis, op. cit., p. 13.
45
"On sait que les premiers pomes de Breton taient mallarmens (...) (G. Durozoi et B.
Lecherbonnier, op. cit., p. 25). Alm da influncia clara de Mallarm, Breton recorre ainda aos
simbolistas. Falando sobre seu primeiro livro de poemas, Gatan Picon afirma que "(...) leur diversit est
pourtant assume par lauteur, qui laisse imprimer les uns et les autres. Picon vai adiante mostrando
que a colagem de elementos descontnuos constituinte da prpria obra. (Gatan Picon, op. cit.,p. 14).
A tentativa de "colar elementos descontnuos e mesmo antinmicos estar presente em todo o
movimento e j aparece na revista Littrature, de 1919. Os seis primeiros nmeros, classificados por
Breton de "trs sages et de bonne tenue, colocam lado a lado os ltimos simbolistas, os poetas que
"gravitavam em torno de Apollinaire, alm de jovens escritores. "Un tel ressemblement sera plus tard
qualifi de tentative de synthse impossible entre des lments dont le rapprochement satisfait le sens
de la qualit, mais qui nauront jamais rien faire les uns avec les autres. (G. Durozoi et B.
Lercherbonnier, Le surralisme. Paris, Larousse, 1972, p. 28).
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
12
"normal - apresenta objetos manufaturados, que ao serem selecionados por ele,
passam a ser considerados "obras de arte, so os ready-made. Ao mesmo tempo,
tambm em Nova Iorque, Francis Picabia, na luta contra o "esteticismo inaugura
seu perodo mecnico, imitando, em seus desenhos, mecanismos de verdade que
parecem tirados de um livro tcnico. Mas apenas em 1916, em Zurique, que tem
incio o dadasmo.
O Dada e o surrealismo
O movimento anunciado por Tzara e o seu nome, Dada, "(...)
volontairement non-signifiant, indique lui seul la volont nihiliste.
46
Se a
admirao de Breton por Vach e Cravan vinha do fato de ambos, apesar das
diferenas, nutrirem uma atitude niilista diante da vida
47
, com provocaes e
escndalos que iro remeter-nos aos atos dadastas, a sua seduo pelo grupo de
Tzara no tardou a acontecer. Breton e seus amigos, Aragon e Soupault, que at
1919 no conheciam muito das atividades dadastas, vo encontrar em seu
manifesto de 1918 "une inquitude semblable la leur et partageront sa conviction
de la ncessit dun grand travail ngatif accomplir.
48
46
G. Durozoi et B. Lercherbonnier, op. cit., p. 29.
47
Maurice Nadeau, em sua Histria do surrealismo, vai encontrar os pontos que haviam em comum
entre Vach e o dadasmo. Vach no chegou a conhecer o movimento, mas, em suas Cartas de guerra,
encontramos passagens que se encaixam perfeitamente nas idias propagadas pelo grupo de Tzara: "No
queremos ni al arte ni a los artistas (!abajo Apollinaire)... Desconocemos Mallarm, sin ningn odio, pero
est muerto. (Maurice Nadeau, op. cit, p. 31). Breton amava Mallarm e Apollinaire, mas no deixava
de amar profundamente seu amigo Vach: "La rencontre avec Jacques Vach a sans doute dtermin
ladhsion de Breton Dada dont lattrait du vide pour le vide correspondait apparentement lattitude
la fois hautaine, indiffrent, dissonante et isole sous le couvert dune acceptation de pure forme
pousse trs loin. (Op. cit., p. 27).
48
Ibidem.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
13
A revista Littrature, dirigida por Breton, Aragon e Soupault, que de incio
apresentava textos dos mais variados autores que tinham prestgio junto ao grupo,
sempre com a preocupao de explicar a criao artstica e compreender o papel do
artista no mundo, realiza um clebre questionamento: "Por que voc escreve? A
pergunta reflete a preocupao dos diretores com o impulso que levava ao ato da
criao literria. Se as respostas no foram satisfatrias
49
, no fez com que o grupo
desistisse de fazer pesquisas e avanar nas suas investigaes que os levaria ao
surrealismo. Nesta poca comeam a ser difundidos os trabalhos de Sigmund Freud
que vai impression-los largamente, pois ele "parece tener la clave de un
misterioso escondite que el tro dirigente de Littrature est ansioso de explorar.
50
Em busca da chave de suas investigaes, Breton e seus amigos publicam
as Posies de Lautramont e um indito de Rimbaud, Les Mains de Jeanne-Marie,
penetrando ainda mais fundo nos mistrios da poesia e na busca das razes que
fazem parte de seu processo de construo. Apesar da atrao pelo niilismo,
herdada de Vach
51
, entre outros, o grupo de Littrature no se movimentava por
49
"Las respuestas desconcertantes, cnicas o desprovidas de inters fueran clasificadas en el orden de su
mayor valor por los jvenes directores de Littrature (...). (Maurice Nadeau, op. cit.,p. 32).
50
Op. cit., p. 33.
51
"(...) Vach, mestre na arte de dar a tudo muito pouca importncia, foi o smbolo daquele
derrotismo integral que se encontra na origem do dadasmo e do surrealismo. (Franco Fortini, op. cit.,
p. 81.) Vach admirava um nico poeta, Jarry, e sua nica crena era no UMOR (que ele grafava sem o
H). Mas, mesmo acreditando no humor e em Jarry, no por acaso, mestre do humor negro, a impotncia
de Vach revela-se atravs desta declarao: "el humor no debe producir. (Apud Maurice Nadeau, op.
cit., p. 31).
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
14
vias to radicais; seus princpios de reflexo sobre a poesia separavam-no de uma
prtica Dada. Mesmo com a chegada de Tzara, Breton, Aragon e Soupault,
prosseguiram suas investigaes que forosamente conduziram-nos a delimitao
de um outro ismo.
A chegada de Tzara a Paris fundamental para amplificar as tendncias
revolucionrias j presentes no grupo de Littrature. Em seu livro de 1924, Les pas
perdus, Breton, ao falar sobre as caractersticas da evoluo moderna, afirma que
"Toutes ces considrations sur les ides et sur les hommes me conduisent,
messieurs, vous prsenter Dada comme linvitable explosion quappelait cette
atmosphre surcharge.
52
O dadasmo era uma inevitvel exploso que encontrou
um campo frtil para expandir-se junto a Breton e seu grupo, que desde sempre
estiveram interessados no que havia de novo e explosivo em termos de criao
artstica e literria.
53
Dada aparece na reunio de Littrature de janeiro de 1920. Aps uma srie
de leituras de poesias pouco "artsticas (mscaras que recitam de maneira
desarticulada poemas de Breton, Tzara lendo artigos de jornais ao som de
campainhas e matracas), estabelece-se o caos que ser a ordem do dia do
movimento. A reao do pblico, j esperada, de unir-se ao caos com gritos e
assobios. Para Breton, um pouco mais tarde, o grande problema de Tzara foi nunca
ter ultrapassado a barreira dos escndalos em suas manifestaes. E os escndalos
foram, paulatinamente, tornando-se lugar comum. Mas esta uma reflexo
posterior pois Breton, Aragon e Eluard, nomes fundamentais do surrealismo,
assinam junto com Duchamp, Picabia e Tzara, entre outros, o Boletim Dada.
54
52
A. Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard, 1969, p. 169.
53
Para Maurice Nadeau, Tzara "(...) puso tudo en tela de juicio. Alm de chegar precedido de uma fama
enorme, "(...) va a representar el papel de catalizador de las tendencias revolucionarias que animaban al
grupo Littrature y sobre el cual influy. (Op. cit.,p. 33).
54
"El ambiente est creado. El Bulletin Dada de febrero rene los nombres de Picabia, Tzara, Aragon,
Breton, Ribemont-Dessaignes, Eluard, Duchamp, Derme y Cravan, y proclama: "Los verdaderos
dadastas estn contra Dada. Todo el mundo es director de Dada. (Ibidem).
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
15
O trio de diretores de Littrature no s participa ativamente do movimento
de Tzara, como a prpria revista torna-se uma espcie de rgo oficial do Dada:
"Les gens de Littrature ne sy tromprent pas, et la rvue, sous une couverture
blanche ilustre des faces et attrapes graphiques de Picabia, devint lorgane officiel
et presque unique de Dada. Por dois ou trs anos, "Ses directeurs se firent
incontinent dadas
55
. Mas a idia de um outro movimento, que j estava presente
nos primeiros nmeros da revista, no foi sufocada pela fora do dadasmo, porque
se, por um lado, era o que havia de mais revolucionrio e que empreendeu uma
luta de certa maneira eficaz contra a literatura e arte oficiais, por outro, esgotou-se
em suas prprias frmulas que encaminhavam a todos para o grande nada
56
. Um
nada que j no levava a lugar algum.
O surrealismo j estava presente e convivia lado a lado com o dadasmo. ",
portanto, inexacto e cronologicamente abusivo apresentar o surrealismo como um
movimento sado de Dad ou ver nele uma espcie de reorientao do Dad no
plano construtivo.
57
Estas so palavras de Breton, em uma srie de entrevistas
concedidas Andr Paurinad entre maro e junho de 1952. Alm de negar uma
55
Philippe Audoin, op. cit., p. 27.
56
Em Paris, aps o lanamento do Boletim Dada, prosseguem os atos pblicos. No dia 5 de fevereiro de
1920, no Salo do Independentes, trinta e oito conferencistas so mobilizados para lerem os manifestos
dadastas. (No haviam tantos manifestos assim, pois o de Picabia foi lido dez vezes e o de Ribemont-
Dessaignes, nove). Maurice Nadeau extraiu de um deles algumas linhas que so, efetivamente, o
verdadeiro programa do Dada: "Nada de pintores, nada de literatos, nada de msicos, nada de
escultores, nada de republicanos, nada de realistas, nada de imperialistas, nada de anarquistas, nada de
socialistas, nada de bolcheviques, nada de polticos, nada de proletarios, nada de demcratas, nada de
burgueses, nada de aristcratas, nada de ejrcitos, nada de polica, nada de patrias, en fin, basta de
todas esas imbecilidades, no ms nada, no ms nada. Nada, nada, nada. (Op. cit., pp. 33-4).
57
Andr Breton, Entrevistas, p. 66.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
16
filiao direta do surrealismo ao Dada, Breton lembra ainda que Champs
magntiques, primeiro texto surrealista, escrito por ele e Soupault, foi publicado
em Littrature, entre outubro e dezembro de 1919. Assim, mesmo com a invaso
Dada, as experincias que levariam ao manifesto de 1924 continuaram a existir nas
pginas da revista.
inegvel, porm, a influncia exercida por Tzara, Picabia e,
principalmente, o fascnio que Duchamp possua sobre Breton e seu grupo. As
provocaes dadastas foram levadas a cabo entusiaticamente por todos que
queriam desestabilizar o mundo das artes, tirando-a de uma oficiosidade que
acabava por sufoc-la. O problema que se o dadasmo abriu as portas de par em
par, segundo Breton "acaba-se por descobrir que essas portas do para um
corredor que serpenteia sem sair do mesmo stio.
58
Um movimento que surge
contra toda a forma de consagrao, acaba por ser consagrado por um texto de
Jacques Rivire, publicado em agosto de 1920, na Nouvelle rvue franaise. Para
Breton, "Reconnaissance a Dada, texto de Rivire, pe o dadasmo beira da
consagrao literria.
O Dada no era uma simples busca, o Dada alimentava-se das hostilidades a
ele dirigidas. Como provocar escndalos se houvesse quaisquer formas de simpatia
ou aceitao? Alm de estar a um passo da consagrao, o movimento esgotou-se
por causa das idias que estavam em sua gnese: a busca do nada no sobrevive
atos de criao. O rompimento definitivo do grupo de Breton com o dadasmo,
surge aps o famoso "Processo Barrs. Os espetculos dadastas estavam beira
de um esgotamento; quase nada de realmente novo ou provocador era lanado ao
pblico. Aragon e Breton assumem o controle de uma manifestao que, a
princpio, ainda era Dada, mas que j fugia completamente do programa de Tzara.
58
Op. cit., p. 69.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
17
Como vimos anteriormente, antes da entrada de Tzara e seu grupo, a
Littrature estava empenhada em empreender buscas para questes to
importantes como, por que voc escreve? As pesquisas do grupo de Breton
dirigiam-nos a uma incessante procura de respostas que recolocassem em
evidncia no s poetas esquecidos, marginalizados, mas tambm escritores
oficiais, ou que se perderam ao longo do percurso de suas vidas. Era o caso de
Maurice Barrs
59
. Como podia o autor de Un homme livre transformar-se num
traidor capaz de escrever o propagandista Lcho de Paris? Assim, Barrs acusado
de crime contra a segurana do esprito. O problema foi que, enquanto Breton
levava o processo srio, queria de fato discutir o crime, Tzara imbudo do puro
esprito Dada, passou o processo dizendo disparates e chistes que no condiziam
com o interesse de Breton.
60
59
"Barrs era o anarquista literrio do culto do eu convertido em cantor do fascnio nacionalista, o
mesmo dizer, o smbolo perfeito dessa intelligentsia fim de sculo reconciliada com a poesia do clarim,
e que justificava a contrario os paladinos de uma cultura sem mancha de sangue intelectual. (Jules
Franois Dupuis, op. cit., p. 24).
60
No irei alongar-me mais sobre o "Processo Barrs, que j foi largamente estudado em obras como,
entre outros: M. Nadeau, Historia del surrealismo. Montevideo, Altamira, 1993; G. Picon, Le surralisme.
Genve, Skira, 1995; G. Durozoi et B. Lecherbonnier, Le surralisme. Paris, Larousse, 1972.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
18
Foi montado um tribunal que iria proceder ao julgamento. Tzara, convocado
como testemunha disse: "Vous conviendrez avec moi, M. le Prsident, que nous ne
sommes tous quune band de salauds et par consquent, les petites diffrences,
salauds plus grands ou salauds plus petits, nont aucune importance. Ao que o
presidente Breton contesta: "Le tmoin tient-il passer pour un parfait imbcile, ou
cherche-t-il se faire interner?
61
Para Tzara era mais um jogo Dada, para Breton,
havia implicaes morais e estticas que sero de suma importncia em todo o
movimento surrealista.
No era s Breton que detectava o declnio do Dada. J em 1921, o
movimento foi perdendo nomes importantes como o de Picabia. A ruptura definitiva
de Breton com o Dada e, sem dvida, o grande salto em direo ao surrealismo,
acontece no Congrs international pour la dtermination et la dfense des
tendances de lesprit moderne, convocado por ele em Paris em 1922. Os principais
diretores das revistas de vanguarda so chamados a participar de um congresso
que tinha a inteno de "dfinir une attitude de large convergence autour de
certaines propositions. Tzara recusa-se a participar, pois "entre la ngativit
dogmatique de Dada et cette tentative de conciliation positive, on voit labme...
62
O congresso idealizado por Breton fracassou, pois seria impossvel conceber
um congresso para estabelecer as diretivas da arte moderna, sem a presena
Dada
63
. Se, por um lado, o congresso fracassou, por outro ajudou a constituir o
grupo que iria estar ligado mais diretamente ao surrealismo. O ltimo episdio que
marcou definitivamente a separao entre Breton e seu grupo e o Dada, foi quando
da representao de Couer gaz de Tzara. Breton, Eluard e Pret (que ento
estavam j ligados aos princpios da experincias surrealistas), foram maltratados
durante a representao, reagindo como o pblico convencional dos espetculos
Dada. Tzara chamou a polcia e apontou os trs como perturbadores. "Como se ve,
Tzara no gustaba mucho, cuando se ejercan contra l, de procedimientos que l
mismo contribuy a crear.
64
A aventura surrealista: os primeiros passos
Segundo Maurice Nadeau
65
, foi com certo alvio que o grupo ligado a Breton,
abandonou o dadasmo. J h muito tempo que suas pesquisas e produes
estavam longe dos ideais de Tzara e prximo daquilo que vai ser oficializado a
partir de I Manifesto. Como j foi dito, o termo surrealismo, herana direta de
61
Apud Gatan Picon, op. cit., p. 39.
62
Ibidem.
63
Para Tzara a idia do congresso era algo j superado. Como poderia participar de um evento sobre
arte moderna se ele havia dito: "Dad no moderno.? (Apud Maurice Nadeau, op. cit., p. 37).
64
Ibidem.
65
Ibidem.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
19
Apollinaire - sua pea, Les mamelles de Tirsias, de 1917. Em 1919 surge Les
champs magntiques, de Breton e Soupault - o primeiro texto feito a partir da
escrita automtica: "Prisonniers des gouttes deau, nous ne sommes que des
animaux perptuels. Nous courons dans la ville sans bruits et les affiches
enchantes ne nous touchent plus.
66
Assim comea a verdadeira aventura
surrealista. Encontramos neste texto, que Philippe Audoin, em 1971, considera "un
livre de jeunesse,
67
vrias indicaes que nos levam s questes que sero
exploradas pelos surrealistas ao longo do tempo.
Les champs magntiques, texto de "jeunesse ou "jouvence, como quer
Audoin, deixa brotar a voz automtica, que anuncia o porvir, j a partir do prprio
ttulo, mas que est entranhado na mais profunda tradio de Isidore Ducasse e
seus Cantos de Maldoror, escrito em conjunto por Breton e Soupault (desejo de
Breton presente no I Manifesto - a poesia como um ato de criao coletiva) e
evoca, segundo ainda Audoin, um tempo mtico, surgindo como um paradigma que
estar presente em todo o surrealismo, especialmente no idealizado por Breton,
que o de deixar vir tona o inconsciente, o puro automatismo, cercando-o,
porm, de uma aplicao e um sentido cientfico de pesquisa e experimentao
68
.
Ao seguirmos Les champs magntiques vamos encontrando pistas que sero
depois aprofundadas nos textos, sejam visuais ou escritos, das obras posteriores do
surrealismo. Temos a presena dos sonhos: "Nous touchons du doigt ces toiles
tendres qui peuplaient nos rves; da janela, como uma possibilidade de abertura
para dentro: "La fentre dans notre chair souvre sur notre cur; do
desconhecido que habita a nossa memria e convive com nossos olhos
cotidianamente domesticados: "Il ny a plus que des reflets dans ces bois repeupls
danimaux absurdes, de plantes connues.
69
Continuaramos exaustivamente a
seguir os primeiros passos de Breton, e no s, pois estavam surgindo nesta
mesma poca os textos automticos de Aragon, para mostrarmos que o
surrealismo j existia antes da aproximao com o Dada, e que, de certa forma, o
que foi feito mais tarde - o manifesto -, surgiu de forma inevitvel, pois o grupo
que iria constitui-lo, j havia criado, de fato, o que ser conhecido como movimento
surrealista.
66
Andr Breton et P. Soupault, Les champs magntiques. 3. ed., Paris, Gallimard, 1996, p. 27.
67
Extraio esta referncia a partir do prefcio de Ph. Audoin a Les champs magntiques, citado na nota
anterior.
68
"Cette volont de rigueur est avant tout dordre exprimental. Ennemies du vague et de leffusion, les
sductions de la science dalors (qui poursuit le recensement et les mensurations des ondes, des forces,
des rayonnements qui sous-tendent linvisible) comme aussi la formation et la pratique mdicales de
Breton, vont concourir orienter la disponibilit des deux auteurs vers une enterprise sans prcdent.
(Ph. Audoin, op. cit., p. 13).
69
Op. cit., pp. 28- 33.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
20
A poesia de Les champs magntiques introduzida pela presena de um
animal que diz: Les sentiments sont gratuits. O pagure, que est no incio dos
poemas de Breton e Soupault, definido por Audoin como "animal-totem, um
crustceo que vive em conchas abandonadas, ou seja, vive em casas emprestadas
por animais que morreram, sendo conhecido ainda como bernard-lermite. "Outre le
chapitre intitul Le pagure dit, Les Champs contiennent une description analogique
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
21
de cet animal admirable (selon que Breton le notera plus tard en marge).
70
No
captulo de Les champs magntiques intitulado "Gants blancs, um viajante diz a
seu companheiro: "Jai march devant moi et jai compris la fatalit des courses
perptuelles et des orgies solitaires. O viajante , antes de mais nada, um
forasteiro. No texto, aparece como algum cuja alma, outrora, estava "ouverte
tous vents est maintenant si bien obstrue quils ne donnent plus prise malheur.
Agora ele ser julgado "sur un habit qui ne leur appartient pas.
71
O viajante perde-se nas viagens. Hoje, habita uma roupa que no ,
realmente, sua. Para Audoin, o pagure "a pour caractristique dhabiter une
carapace qui nest pas la sienne.
72
Constitui-se assim num "hbrido simulado, que
lana a importante pergunta: quem sou eu? Quem o outro? A imbricao do eu e
o outro, do fora e dentro na mesma carapaa, aparece como paradigma mximo
das antteses que Breton, mais tarde, tentar conciliar.
Podemos considerar Les champs magntiques o mergulho no maravilhoso -
palavra de ordem do manifesto surrealista: "(...) le merveilleux est toujours beau,
nimporte quel merveilleux est beau, il ny a mme que le merveilleux qui soit
beau.
73
O maravilhoso deve persistir contra um embotamento cotidiano dos
sentidos. Da mesma forma que o que os atraiu a Rimbaud foi o fato do poeta ser,
antes de tudo, algum que "pretendeu ir alm das fronteiras da literatura
74
, o que
os surrealistas pretendiam era ir alm das fronteiras do puramente racional e
deixar transbordar as franjas do inconsciente. Enquanto Freud desvendava para o
mundo das cincias o que possuimos de mais recndito, os surrealistas
desvendavam o inconsciente para o mundo das artes, ou mesmo, para o mundo.
Apesar de empreender uma luta contra o racionalismo, "O Surrealismo no
o irracionalismo.
75
Para Lima, o Surrealismo uma experincia "do/e/no real de
uma mais conscincia da Poesia e dos questionamentos do ser como um querer
humano. Surgido em um momento de crise da cultura
76
, o esprito surrealista vai
animar grande parte do sculo XX, em fases diferentes, mas carregando os
mesmos componentes que estavam presentes desde o I Manifesto: vontade de
expresso do inconsciente, intuito de unificao do homem, negao da ordem
social
77
, compromisso tico-poltico.
70
Op. cit., p. 18.
71
Op. cit., p. 90.
72
Op. cit., p. 18.
73
Andr Breton, Manifestes du surralisme. Paris, Gallimard, 1972, p. 24.
74
Franco Fortini, op. cit., p. 57.
75
Srgio Lima, op. cit., p. 47.
76
"O Surrealismo pertence a uma das fases terminais da crise da cultura. (Jules-Franois Dupuis, op.
cit., p. 11).
77
"Lhomme propose et dispose. Il ne tient qu lui de sappartenir tout entier, cest --dire de mantenir
ltat anarchique la bande chaque jour plus redoutable de ses dsirs.. (Andr Breton, Manifestes du
Surralisme, p. 28).
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
22
O surrealismo constri uma operao dialtica entre o racional/irracional. Ao
mesmo tempo que "poneva larte come irrazionalit assoluta, como afirma Argan
em um ensaio sobre o sublime em Max Ernst
78
(considerado por ele, "il pi
surrealista degli artisti surrealisti), o movimento no nega a sua insero na
sociedade, pois Breton sempre buscou uma ao poltica efetiva para construir a
sua Revoluo
79
. Talvez os surrealistas tenham conseguido encontrar um equilbrio
entre as duas formas de se estar no mundo, racional/irracional, jogando com suas
antteses. Estendemos ao restante do grupo uma afirmao sobre Ernst feita por
Argan: "Desmistifica el Diavolo-inconscio, ma per desmistificare bisogna essere uno
scaltro mistificatore, sapere giocare con le contradizzioni.
80
O prazer do jogo
surrealista consiste exatamente em ir at s profundezas do inconsciente e retornar
com matria suficiente para fazer um poema.
"Tant va la croyance la vie, ce que la vie a du plus prcaire, la vie relle
sentend, qua la fin cette croyance se perds, assim comea Andr Breton o I
Manifesto do Surrealismo. interessante o uso da palavra crena, logo no incio,
porque mais que um simples movimento de vanguarda, o Surrealismo constituiu-se
numa profisso de f: no homem, no amor, no maravilhoso, no humor e na
78
Giulio Carlo Argan, "Il sublime subliminale di Max Ernst, in G. C. Argan et alii, Studi sul surrealismo,
Roma, Officina Edizioni, 1977, pp. 13-25.
79
No pretendo aqui analisar ou mesmo questionar mais profundamente a relao entre o Surrealismo e
a Poltica. Vrios so os livros que tratam do assunto (ver, entre muitos outros, os j mencionados
Maurice Nadeau, Historia del surrealismo. Montevideo, Altamira, 1993 e Gatan Picon, Le Surralisme.
2 ed., Genve, Skira, 1995). Ressalto apenas esta relao para mostrar o quo dentro da realidade
estava o movimento. Mesmo que por vias no convencionais, eles atuavam SOBRE a realidade.
80
Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 106.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
23
possibilidade - real- de promover-se uma verdadeira Revoluo, alm das filiaes
polticas (tentada vrias vezes pelo grupo e incompreendida por uma esquerda
ortodoxa, incapaz de ver na ousadia das propostas surrealistas um ponto de
convergncia com seu iderio stalinista). Breton encerra o Manifesto dizendo: "Le
surralisme, tel que je lenvisage, dclare assez notre non-conformisme absolu
pour quil ne puisse tre question de le traduire, au procs du monde rel, comme
tmoin dcharge. (...). Cest vivre et cesser de vivre qui sont des solutions
imaginaires. Lexistence est ailleurs.
81
Se a existncia est alm, preciso descobrir os meios que levam ao seu
encontro. Desta forma, o surrealismo ir propor tcnicas
82
como a escrita
automtica, o cadavre exquis, o sonho, a loucura, atravessados pelo humor. Tudo
isto no intuito de fugir da solidez quotidiana (navegar para os braos de Circe).
83
O importante perceber que o movimento surrealista prope-se a invadir a
vida cotidiana, e no permanecer afastado, como se fosse outra esfera da
existncia, ou mesmo, como se fosse algo alheio vida, que estivesse ali apenas
como uma ilustrao. Breton e seus amigos desejaram muito mais. Sua inteno
no era apenas fazer poesia, mas conseguir que esta poesia invadisse o dia-a-dia;
alis, em nenhum momento foi declaradamente a sua inteno fazer literatura, pelo
menos no aquela que merecesse a aprovao de todos (traos constantes das
vanguardas, principalmente do Dada). Tanto que quando algum, como por
exemplo, Eluard, deixou-se encantar pela prpria escrita, transformando-se num
grande poeta, respeitado e lido, estava assinando a sua carta de ruptura com o
movimento.
81
Andr Breton, Manifestes du surralisme, p. 11.
82
As tcnicas surrealistas, so, antes de mais nada, um processo de auto-ironia. J no I Manifesto,
Breton "revela os segredos da arte mgica surrealista, afirmando que, entre outras coisas, estes
segredos podem ajud-lo a escrever falsas novelas e a no se deixar aborrecer em companhia de outras
pessoas.
83
O cineasta e surrealista Luis Buuel, antes de aventurar-se pelo cinema, construiu poemas utilizando
as tcnicas propostas por Breton, como podemos constatar em No me parece bem, no me parece mal,
poema do livro no publicado, O Co Andaluz: (publicado em Juan Francisco Aranda, Os poemas de Luis
Buuel, Lisboa, Assrio e Alvim, 1996, p. 100)
Eu creio que por vezes nos contemplam
nossa frente atrs de ns ao nosso lado
uns olhos rancorosos de galinha
mais temveis do que a gua podre das grutas
incestuosos como olhos da me
que morreu no patbulo
pegajoso como um coito
como a gelatina que os abutres engolem
Creio que hei-de morrer
de mos espetadas na lama dos caminhos
Creio que se me nascesse um filho
ele quedar-se-ia eternamente a olhar
as bestas que copulam ao entardecer.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
24
Em seu livro, Philosophie du surralisme, Ferdinand Alqui ao analisar
detidamente o projeto surrealista, diz: "Le surralisme est vie. Il ne lui importe pas
de faire luvre littraire, mais dexterioriser des forces humaines, daimer,
desprer et dcouvrir.
84
No primeiro manifesto, Breton vai apontando para as
possibilidades de interveno no cotidiano, chegando mesmo a mostrar que o
surrealismo como um vcio, no se pode entrar e sair dele com tanta facilidade,
depois de se compreender que a racionalidade empobrece o discurso, quando
elementos de desordem entram na escrita e na fala, como se fossem tomados por
um estado de loucura e a partir da surge a criao sem amarras e sem
preocupaes dialticas; o dilogo no deve pretender montar uma tese, mas
oferecer-se como "tremplins lesprit de celui qui coute.
85
As palavras e seu uso (da mesma forma que as imagens) so a matria
bsica do surrealismo. Claro que de qualquer movimento artstico, mas a
importncia de cada palavra, a busca de seu significado intrnseco, foi um dos
motores do movimento. Vimos como Leiris brincava com os significados
("Acadmie - macadam pour les mites
86
), como os dilogos surrealistas
desordenavam uma sequncia de sentidos ("P. Pourquoi les chiens aboient-ils la
lune? B. Parce que les chemines dusines sont rouges
87
) e como os cadavre
exquis construam imagens a partir de termos colocados lado a lado sem que
nenhuma sequncia lgica pudesse justific-los ("La vapeur aile sduit loiseau
ferm a cl
88
). As tcnicas surrealistas foram largamente divulgadas por seus
criadores e/ou usurios, sendo mesmo constitudo um Bureau de recherches, que
teve a sua atividade explicada por Artaud em um nmero de La rvolution
surraliste
89
. A inteno era fazer com que o maior nmero de pessoas participasse
desta aventura.
As tcnicas surrealistas
Yvonne Duplessis, em O surrealismo, descreve o que ela considera como
sendo "as tcnicas surrealistas: o humor, o maravilhoso, o sonho, a loucura, o
cadavre exquis e a escrita automtica. No I Manifesto Breton revela os "segredos
da arte mgica surrealista, aqui ele ensina como fazer um texto surrealista e qual
pode vir a ser a utilidade de ser-se mestre em tal ofcio. O que Breton faz,
84
Ferdinand Alqui, Philosophie du Surralisme, Paris, Flammarion, 1955, p. 29.
85
Andr Breton, Manifestes du surralisme, p. 49.
86
M. Leiris, "Glossaire: jy serre mes gloses, La rvolution surraliste, n. 6, maro de 1926, p. 20.
87
Dilogos entre Breton e Pret, publicados no n. 15 da La rvolution surraliste de maro de 1928, p.
8.
88
La rvolution surraliste, outubro de 1927, p.11.
89
Antonin Artaud, em um texto publicado no n. 3 de La rvolution surraliste, de abril de 1925,
explicava o que era e a importncia de um espao onde pudessem ser desenvolvidas as pesquisas
surrealistas: "Le bureau central des recherches surralistes sapplique de toutes ses forces ce
reclassement de la vie. (p. 31).
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
25
ironicamente, no s uma crtica literatura de um modo geral, como tambm,
utiliza de uma de suas tcnicas, o humor, para melhor se fazer entender. Assim
sendo, vemos o surrealismo a ser construdo a partir dos autores de eleio do
grupo (como j vimos anteriormente) e de modos de trabalhar a palavra e/ou a
imagem fugindo do lugar comum.
Sobre o humor, j vimos que tanto Jarry quanto Cravan e, principalmente,
Jacques Vach, possuam uma noo muito especial do humor (que para ele era o
UMOR) e como todos foram importantes influncias para Breton e para o
surrealismo de um modo geral. Em 1905, Freud escreve um tratado sobre o
"chiste, que segundo ele, merecia um estudo mais aprofundado e uma melhor
anlise que o recolocasse em seu devido lugar, no sendo apenas uma subdiviso
do Cmico, mas tendo inclusive diferenas fundamentais de conceito. Em 1939,
Breton escreve Anthologie de lhumour noir, ressaltando, no prefcio, comentrios
de Freud que afirmavam a importncia do humor como fonte de libertao. E
exatamente esta sentido de libertao e busca do prazer intrnsecos a certo tipo de
humor, que vai encantar aos surrealistas.
Alm do humor, como elemento capaz de desestabilizar o cotidiano, os
surrealistas buscaram outras formas de criar, escapando das teias da racionalidade.
Vrias foram as experincias executadas pelo grupo (quando surge o I Manifesto, j
trazia atrs de si cinco anos de experimentaes), passando pela escrita
automtica, revelao dos sonhos, hipnose, jogos, tudo que os levasse aos estados
segundos, que, para Breton: "O que neles apaixonadamente nos interessou foi a
possibilidade que nos davam de escapar aos constrangimentos que pesam sobre o
pensamento vigiado.
90
Os surrealistas possuam o que Breton chama de apetite do maravilhoso, um
maravilhoso irrecupervel, presente apenas na infncia. O que eles tentavam era
agarrar o impossvel, ou pelo menos, recri-lo. Outro elemento fundamental para o
surrealismo era o amor, um amor total, idealizado principalmente por Breton. Como
tudo no movimento, o amor ideal flertava com Sade, sem contudo perder um
sentido tico de tentativa de salvao do mundo. "Se o surrealismo levou ao znite
o sentido desse amor corts de que geralmente se faz partir a tradio dos
ctaros, tambm frequentemente se debruou com angstia sobre o seu nadir e
foram essas diligncias poticas que lhe impuseram o resplendor do gnio de Sade,
maneira de um sol negro.
91
90
Andr Breton, Entrevistas, pp. 88-9.
91
Op. cit., p. 144.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
26
O movimento surrealista teve data de nascimento e morte de alguma
maneira precisos
92
, mas o esprito surrealista pode-se considerar eterno. J existia
antes do movimento e perdura at os nossos dias
93
. Em 1932, Breton escreve em
Les vases communicants:
"Le pote venir surmontera lide dprimante du divorce irrparable de
laction et du rve. Il tendra le fruit magnifique de larbre aux racines
enchevtres et saura persuader ceux qui le gotent quil na rien damer. (...)
Ils seront dj dehors, mls aux autres en plein soleil et nauront pas un
regard plus complice et plus intime queux pour la vrit lorsquelle viendra
secouer sa chevelure ruisselante de lumire leur fentre noire.
94
Era mais que uma definio de um poeta do futuro, mas uma clara descrio do
que fez o movimento e de seu legado.
Referncias Bibliogrficas
ALQUI, Ferdinand. Philosophie du Surralisme. Paris, Flammarion, 1955.
ARAGON, Louis. "Fragmnts dune Confrence, La Rvolution surraliste, n 4, 15
de julho, 1925, pp.23-5.
ARGAN, Giulio Carlo. "Il sublime subliminale di Max Ernst in G. C. Argan et alii,
Studi sul surrealismo, Roma, Officina Edizioni, 1977, pp. 13-25.
ARNALDO, Javier (ed.). Fragmentos para una teora romntica del arte. 2 ed.,
Madrid, Tecnos, 1994.
AUDOIN, Philippe. Les surralistes. Paris, Seuil, 1995.
AUMONT, Jacques. A imagem. 2 ed., Campinas, Papirus, 1995.
BACHELARD, Gaston, La terre et les rveries de la volont. Paris, Gallimard, 1976.
BATAILLE, Georges. "Le jeu lugubre, Documents, n 7, dezembro de 1929, pp.
369-372.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
BENJAMIN, Walter "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica in Sobre
arte, tcnica, linguagem e poltica, Lisboa, Relgio Dgua, 1992, pp. 71-
1113.
BRECHON, Robert. Le surralisme. 2 ed., Paris, Armand Colin, 1971.
BRETON, Andr. Anthologie de lhumour noir. Paris, Le Livre de Poche, 1995.
BRETON, Andr. Entrevistas. Lisboa, Salamandra, 1994.
BRETON, Andr. Entretiens. Paris, Gallimard, 1952.
BRETON, Andr. Les pas perdus. Paris, Gallimard, 1969.
BRETON, Andr. Manifestes du surralisme. Paris, Gallimard, 1972.
BRETON, Andr. Manifestos do surrealismo. 4 ed., Lisboa, Salamandra, 1993.
BRETON, Andr. Les vases communicants. Paris, Gallimard, 1955.
BRETON, Andr et SOUPAULT Phillippe. Les champs magntiques. 3 ed., Paris,
Gallimard, 1996.
CAIZAL, Eduardo Peuela. Surrealismo. 2 ed., So Paulo, Atual, 1987.
CLEBERT, Jean-Paul. Dictionnaire du surralisme. Paris, Seuil, 1996.
DESNOS, Robert. "Cinma davant-garde, Documents, n 7, dezembro, 1929, pp.
385-7.
92
"O movimento surrealista viveu um perodo bem preciso: dos anos ps-Primeira Guerra Mundial,
quando nasceu, at 1969, data de sua dissoluo. (R. Ponge, "Mais Luz!, in Robert Ponge (org.), O
surrealismo, Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1991, p. 26.
93
"Em funo desta dupla realidade - de um lado, a dissoluo do surrealismo enquanto grupo
organizado; por outro lado, a permanncia e antigidade das idias-fora que o surrealismo defendeu -
que se passou a distinguir o "surrealismo histrico (c. 1922-1969) do "surrealismo eterno (conforme
terminologia adotada por Jean Schuster no manifesto de dissoluo, O quarto canto). (Op. cit., p. 29).
94
Andr Breton, Les vases communicants. Paris, Gallimard, 1955, p. 170.
Surrealismo: a revoluo pela arte Intermdias 9
www.intermidias.com
27
DESNOS, Robert. "La mort: la muraille de chne, La rvolution surraliste, n 2,
15 de janeiro de 1925, p. 22.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe. Paris, Macula, 1995.
DORFLES, Gillo. O devir das artes. 3 ed., Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1988.
DUPLESSIS, Yvonne. O Surrealismo. Lisboa, Inqurito, 1983.
DUPUIS, Jules Franois. Histria desenvolta do surrealismo. Lisboa, Antgona, 1979.
DUROZOI, Grard et LECHERBONNIER. Bernard, Le surralisme. Paris, Larousse,
1972.
FORTINI, Franco. O movimento surrealista. Lisboa, Presena, 1980.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. So Paulo, Martins Fontes, 1990.
FREUD, Sigmund. "El chiste y su relacin con el inconsciente in Obras completas,
Tomo 3, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1997, pp. 1029-1167.
FREUD, Sigmund. Los sueos. Madrid, Alianza Cien, 1995.
FRONTN, Jos Luis Gimnez. Movimentos literrios de vanguarda. Rio de Janeiro,
Salvat Editora do Brasil, 1979.
HAUSER, Arnold. Histria social da arte e da literatura. So Paulo, Martins Fontes,
1995.
HUYGHE, Ren. O poder da imagem. Lisboa, Edies 70, 1998.
LAUTRAMONT. Cantos de Maldoror. So Paulo, Max Limonad, 1986.
LEIRIS, M. "Glossaire: jy serre mes gloses, La rvolution surraliste, n 3, 15 de
abril de 1925, pp. 6-7 e N 6, 1 de maro de 1926, pp. 20-1.
LIEVRE-CROSSON, lisabeth. Du Cubisme au Surralisme. Toulouse, ditions Milan,
1995.
LIMA, Srgio. A aventura surrealista. So Paulo, Vozes, 1995.
NADEAU, Maurice. Historia del surrealismo. Montevideo, Altamira, 1993.
ORTEGA Y GASSET, Jos. La deshumanizacin del arte y otros ensayos de esttica.
11 ed., Madrid, Ediciones de la Revista de Occidente, 1976.
PARIENTE, ngel. Diccionario temtico del surrealismo. Madrid, Alianza Editorial,
1996.
PAZ, Octavio. "Estrella de tres puntas: El surrealismo in Estrella de tres puntas.
Andr Breton y el surrealismo, Mxico, Vuelta, 1996, pp.13-33.
PAZ, Octavio. Las cosas en su stio. Mxico, Finisterre, 1971.
PICON, Gatan. Le Surralisme. 2 ed., Genve, Skira, 1995.
PONGE, Robert (org.). O surrealismo. Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS,
1991.
SERS, Philippe. Sur dada - essai sur lexperince dadaste de limage. Entretiens
avec Hans Richter. Nmes, d. Jacqueline Chambon, 1997.
TORRE, Guillermo de. Qu es el superrealismo. 3 ed., Buenos Aires, Editorial
Columba, 1967.