Albert Camus - Fenomenologia E Absurdo PDF
Albert Camus - Fenomenologia E Absurdo PDF
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Introduo
tese normalmente aceita pelos mais variados autores que as questes fundamentais do pensamento moderno so, seno introduzidas, pelo menos representadas na Histria da Filosofia, por Im-
manuel Kant. No cabe aqui analisar a crtica kantiana, apenas ressaltar que as questes levantadas na obra de Kant subjazem o mtodo fenomenolgico
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de Edmund Husserl e, portanto, aos conceitos camusianos. Kant estabelece, como sabido, os limites do conhecimento racional. Com isso, ele introduz na modernidade a questo fundamental da separao entre o homem e a natureza. Desde os mitos, passando pelas religies e por toda a histria do pensamento, essa ciso foi pensada a partir da capacidade humana de cognio, ou seja, o homem se separa da natureza pois capaz de estabelecer conhecimento sobre ela, criando assim uma segunda realidade conceitual. Ao longo da histria, boa parte dos pensadores se dedicaram, implcita ou explicitamente, a resolver essa separao.1 Kant inaugura a modernidade afirmando justamente essa ciso atravs da sua teoria do conhecimento2. Ele une empirismo e racionalismo a partir da separao entre a realidade (como as coisas so nelas mesmas) e a forma como a conhecemos (como as coisas aparecem para ns). Para Kant, nosso conhecimento se d a partir da ordenao de nossas intuies nas categorias do entendimento. As intuies s seriam possveis nos conceitos puros de nossa sensibilidade, a saber: o espao e o tempo. Eles dariam a forma em que algo experimentado. J as categorias, seriam os conceitos puros, ou melhor, aquilo que permitiria conceitos em geral. Elas dariam a forma de como algo pensado e seriam, portanto,
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condies de toda experincia, pois permitiriam a sntese do mltiplo. Isso incluiria o prprio sujeito que experimenta, pois seriam regras pelas quais identificaramos o diverso na unidade. Assim, Kant faz o conhecimento objetivo depender igualmente dos dados sensveis e da razo, refutando tanto o ceticismo (j que o conhecimento objetivo possvel), quanto o dogmatismo (j que ele no d conta de uma ontologia da realidade). O preo desse milagre talvez seja o primeiro desespero moderno (nos termos de Camus, o absurdo): aquilo que o homem conhece (fenmeno) no o mundo em si mesmo (noumenon). Para alguns, o fim da metafsica; para outros, uma nova faceta da mesma. da separao entre conhecimento e mundo, que tambm uma separao entre o abstrato e o sensvel, a mente e o corpo, 3 que o pensamento precisar dar conta a partir de ento. Foi a isso que Nietzsche chamou A Morte de Deus, ou, nas palavras do romntico Friedrich Hlderlin, O Afastamento Categrico: virada de costas mtua entre homens e deuses. nessa impossibilidade de metafsica que o afastamento entre homem e mundo provoca, nesse vazio deixado por uma epistemologia que torna ausente a possibilidade de critrios absolutos para nosso saber, que surge o Mtodo Fenomenolgico
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Posteriormente a Kant, podemos ressaltar o Romantismo Alemo como um bom exemplo dessa tentativa de sntese atravs da experincia esttica. 2 Pode-se a apontar a prpria obra de Kant resolues para essa ciso. Afinal, ela seria, em certo sentido, cognitiva mas no ontolgica. No entanto, no cabe aqui nos aprofundarmos nessa questo.
Kant no prope essa separao, pois a prpria intuio sensvel abstracta. No entanto, essa seria mais uma afirmao da referida ciso, afinal, no homem, mesmo o sensvel seria abstracto.
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e, posteriormente, o Existencialismo. Nesse ltimo, como veremos, fundamentalmente na existncia do indivduo que esse vazio ser retratado.
O Mtodo
Edmund Husserl considerado o precursor do Mtodo Fenomenolgico, uma proposta epistmica que precisa dar conta da demanda kantiana, pretendendo rigor cientfico e abrangncia ontolgica. Ou seja, Husserl quer um saber objetivo que fornea a realidade do conhecido, em certo sentido, um fenmeno que seja noumenon. Dito de outro modo: Husserl precisa que a aparncia Seja. Esse o princpio fundamental da Fenomenologia: a quebra da separao entre aparncia e coisa em si, que prope unir novamente o mundo e o homem. Para Husserl, o Ser essencial do mundo s pode ser descoberto a partir da sua relao com o Eu. Isso porque, partindo das idias de Brentano4, Husserl considera a intencionalidade como caracterstica fundamental da conscincia. Ou seja, a conscincia sempre conscincia de alguma coisa. Atravs desta noo, Husserl pretende superar a ciso entre abstrato (homem) e sensvel (mundo). Para tanto, seria necessrio, em um primeiro momento, a chamada reduo fenomenolgica: suspenso da crena em uma realidade objetiva independente do sujeito cog4
noscente (epoch)5. Para a Fenomenologia, no existe nenhuma realidade se escondendo atrs dos fenmenos. Isso no significa que a aparncia seja a realidade. Nem to pouco um idealismo subjetivista. Afinal, para Husserl, necessrio se chegar s essncias dos fenmenos (eidos) e essas essncias so objetivas, so para todos. Isso significa que os fenmenos revelam a realidade e que as essncias so, elas mesmas, fenmenos. Segundo Husserl, a relao cognitiva possui um plo intencional e um plo objetivo. O primeiro, o plo da conscincia, s existe em relao com o segundo, o objeto. Por outro lado, a prpria conscincia possibilidade de apario desse objeto. Pode-se-ia dizer, ento, que a conscincia e o fenmeno esto em relao de bicondicionalidade, ou seja, implicamse mtua e necessariamente, sendo, portanto, equivalentes. O objeto seria, em sua essncia, uma apario. E essa essncia-apario, esse fenmeno-noumenon, que a Fenomenologia pretende enfocar. A conscincia seria o fundamento da possibilidade do objeto, ou seja, da apario. No entanto, como vimos, por ser intencional, a conscincia tambm requer como possibilidade um objeto independente dela. O plo intencional condio de sua prpria condio, a saber, o plo objetivo. Nesse sentido, ela implica uma realidade objetiva, enquanto apario que se revela imediatamente a ela, na intuio das essncias. O plo objetivo nada mais
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Filsofo e psiclogo alemo do final do sculo XVIII. Brentano reintroduziu na filosofia a noo medieval de que a intencionalidade o aspecto fundamental da conscincia. Foi considerado por isso o precursor da Fenomenologia.
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do que o termo objetivo da conscincia intencional. A conscincia, em seus diferentes modos, d diferentes sentidos s coisas. No entanto, o sentido tem de existir independente de ser constatado pela intuio das essncias. Para a Fenomenologia, conscincia e fenmeno (nos termos de Sartre: o Para-Si e o Em-Si) so equivalentes. Mas, embora dependam um do outro, no podem colapsar totalmente. Ao longo de sua teoria, Husserl acaba retomando o conflito pr-crtico entre idealismo e realismo. Afirmando t-lo superado, Husserl o mantm no privilgio ora do aspecto subjetivo, ora do aspecto objetivo dessa condicionalidade mtua.
Na introduo de O Ser e o Nada6, Sartre comenta a identificao de um objeto a partir de uma essncia (eidos) que , ela mesma, fenmeno (embora, um outro tipo de fenmeno). Sartre chama a ateno para o fato de que permanecendo sempre no nvel da aparncia, poderamos procurar infinitamente a essncia da essncia da essncia. para identificlas como essncias. Justamente por isso, a essncia precisaria se revelar de maneira imediata, atravs de uma intuio O sujeito intencional precisaria transcender a srie de aparies individuais (srie infinita que jamais aparece completamente) rumo a essncia intuda (finita e que aparece). Segundo Sartre, haveria um fenmeno do Ser e um Ser do fenmeno. O primeiro, enquanto fenmeno, teria ele mesmo um Ser com base no qual apareceria: o Ser do fenmeno do Ser (no haveria nisso uma progresso ao infinito porque o Ser seria imediato e somente um). Por outro lado, o Ser do fenmeno jamais poderia se reduzir ao fenmeno do Ser, pois necessita da transfenomenalidade para fundamentar a condio fenomnica. O percebido se remeteria quele que percebe. Haveria portanto um Ser do perceber, que no estaria no percebido e que seria a conscincia intencional, o qual Sartre chamou Ser-Para-Si. E haveria um Ser do percebido, que no estaria no perceber e que seria macio, fechado e pleno, o qual Sartre chamou Ser-EmSi. Temos ento o seguinte esquema:
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SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenolgica. Trad.: Paulo Perdigo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.
JOURDAN. Camila. Albert Camus: Fenomenologia e Absurdo SERSER-PARA-SI (conscincia)Ser do fenmeno do Ser-Para-Si SER-EM-SI (macio) Ser do fenmeno do SerEm-Si fenmeno do Ser-Para-Si
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fenmeno do Ser-Em-Si
O Ser-Para-Si da conscincia, segundo Sartre, seria completamente voltado para fora, para o outro. Ele seria o que no e no seria o que , j que seria auto-constitutivo de seu sentido a partir do objeto que intencional. J o Ser-Em-Si, seria o outro necessrio intencionalidade. Como ele jamais se revela conscincia, destitudo de sentido. Seria essa separao entre Em-si e Para-Si a absurdidade da existncia, a to mencionada separao entre homem e mundo. A partir dessa separao surgiria o Nada. O Nada surge conscincia como seu fundamento na medida em que ela se identifica como no sendo o outro que intenciona. Ora, se ela, como vimos no o que , pois se volta para fora, mas tambm no pode ser o que intenciona, justamente por intencion-lo, a conscincia encontra-se nadificada. A nadificao seria a impossibilidade da conscincia ser objeto de si mesma, nessa nadificao surgiria a liberdade e a angstia de um fazer-se separado de si. Por outro lado, essa nadificao permitiria a relao entre homem e mundo, j que qualquer relao pressupe no se ser aquilo com o que nos relacionamos, ou seja, a
separao sujeito/objeto. Se ela no nos permite sermos o mundo, nos permite conhec-lo. No Nada, se daria o dilogo homem/mundo. Assim, o homem forneceria sentido ao mundo e a si mesmo. Mas o Em-si, jamais seria afetado, nem pelo Nada, nem pela intencionalidade. A nadificao seria sempre entre Para-Si e ParaSi.7 O Ser do Para-Si justamente essa impossibilidade de coincidir-se com si mesmo (como j foi dito, sendo o que no e no sendo o que ). A realidade humana, marcada pela carncia, busca incessantemente coincidir-se consigo, sem jamais conseguir. O homem s livre por essa separao nadificante entre Para-Si e Em-Si. Entretanto, essa mesma liberdade ontolgica do homem termina os unindo novamente na doao de sentido. Aquilo que era afundamento, torna-se o prprio fundamento a partir da liberdade. Ser a isso que, como veremos, Camus chamar suicdio filosfico.
Albert Camus
Albert Camus um literato, um artista da palavra. Mas tambm um filsofo, um pensador. Camus formou-se em filosofia na Universidade de Argel, mas, ao invs de utilizar o discurso argumentativo e sistemtico, usou a dramaturgia, os ensaios literrios e as narrativas romanescas para expressar seu pensamento. Essa escolha pela forma artstica no acon7
possvel se fazer a seguinte crtica Sartre: se o Para-Si no afeta o Em-Si, como ento o plo objetivo da conscincia poderia ser afetado? Ou seja, como a conscincia poderia realmente se criar?
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tece por acaso: talvez seja o prprio contedo do pensamento camusiano que a determina. Uma idia que parece perpassar todas as obras de Camus a de que uma certa experincia da beleza rene no sensvel, o abstrato. Toda a sua obra pode ser lida a partir dessa revelao do abstrato no prprio sensvel. Melhor dizendo, o abstrato, normalmente associado ao conceitual, em Camus, a partir de uma concepo esttica-mstica de mundo, aparece na sensibilidade. No entanto, em Camus, a sensibilidade se diferencia da experimentao. Para ele, no a experincia que pode levar ao abstrato, no a experincia que pode tornar algum sbio. Camus se refere a uma forma de sensibilidade que, em termos platnicos, se relaciona muito mais com a contemplao das idias (s que em Camus essa contemplao um certo modo de estar no prprio mundo), do que com a experimentao.8 Esta seria uma sensibilidade fora do tempo, onde no h mais o sujeito que experimenta, nem o objeto experimentado.9 Essa total lucidez diante da falta de sentido do mundo s seria possvel na transcendncia do sujeito, afinal o
Como ele afirma: Ver, e ver sobre a terra - como esquecer essa lio? Aos mistrios de Elusis bastava contempl-los. Idem, p.10. E ainda: Em Tipasa, ver eqivale a crer e no me obstino em negar aquilo que minha mo pode tocar e que meus lbios podem acariciar. CAMUS, Albert. Npcias, O vero. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. So Paulo: Crculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Npcias e 1954 por O vero, p.12. 9 Ou seja: Antes de entrarmos no reino das runas somos espectadores pela ltima vez. Ou: No, no era eu que importava, nem o mundo, mas apenas a harmonia e o silncio que, vindo dele at a mim, fazia nascer o amor. Idem, p.8 e p.14.
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sujeito sempre tem histria, convices e perspectivas que ele no pode ver, j que interpreta a existncia atravs deles. Podemos resumir a tese fundamental do pensamento camusiano da seguinte forma: a sensibilidade absurda da separao entre homem e mundo indizvel, trgica e silenciosa porque uma sensibilidade abstrata, que une na prpria separao o homem e o mundo.10 Esse vazio no nega a certeza da morte e est diretamente associado felicidade.11 por isso que se pode falar de npcias entre o homem e o mundo atravs do prprio silncio absurdo entre os dois. Se o homem e o mundo no podem se comunicar, a vida no faz sentido e o suicdio legtimo. Mas a sensibilidade do absurdo cria a beleza, possibilita a revolta e a sabedoria. Nessa sensibilidade, homem e mundo se complementam. Ento, o absurdo no absurdo, ele se supera e a vida vale a pena. Mas preciso que essa vida seja afirmada, preciso que eu faa uma escolha no absurdo, ou seja, preciso que eu me revolte. E, para haver revolta, preciso que no haja esperanas. Para Camus, a esperana realmente o pior dos males a sair da caixa de Pandora, pois ela impede a revolta ao negar o
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E, diante do vo pesado dos grandes pssaros no cu de Djemila, justamente um peso de vida que reclamo e obtenho. Entregar-me por completo a essa paixo passiva: o resto j no mais me pertence. Possuo juventude demais dentro de mim para poder falar da morte. Mas parece-me que, se tivesse que faz-lo, aqui que encontraria a palavra exata para exprimir, entre o horror e o silncio, a certeza consciente de uma morte sem esperana. Idem, p.18. 11 Conf.: Idem, pp.13-14.
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absurdo. E essa revolta diante do mundo, as prprias npcias com o mundo, a felicidade. O absurdo um ponto de partida e no de chegada, a partir dele que eu supero o prprio absurdo. Talvez por isso Camus utilize uma forma artstica para expressar conceitos. ela que nos possibilita falar de uma felicidade (abstrata) que sensvel. Essa idia est diretamente ligada com a esttica, no sentido grego de sensibilidade diante do belo (e no de obra de arte).12 Camus se volta para a Grcia Clssica e afirma uma experincia mstica-trgica do mundo, experincia que une princpios opostos na prpria separao.13
Essa uma idia tambm presente no Idealismo romntico alemo. Esse movimento filosfico props, a partir da dialtica, superar a separao kantiano entre noumenon e fenmeno. Essa superao se daria na experincia esttica trgica. Foi tambm na Antigidade Clssica grega que os autores dessa escola, incluindo o Nietzsche de O Nascimento da Tragdia, buscaram inspirao para tal experincia fundamental, capaz de unir dialeticamente (em certo sentido, na prpria separao) homem e natureza (em Nietzsche, Apolo e Dioniso). No podemos aqui analisar profundamente em que sentido se aproximariam e em que sentido se distanciariam de Camus essas correntes filosficas sob pena de nos afastarmos do tema desse trabalho que, afinal, a Fenomenologia. Podemos aqui apenas apontar que os dois partem da mesma questo: a separao entre homem e mundo. No pretendemos com isso aproximar Camus dessas escolas, afinal praticamente toda a histria da filosofia pode ser lida a partir dessa questo moderna (embora essa separao seja vista como um aspecto da condio humana independente da poca, ela assim formulada na Modernidade). Pretendemos apenas ilustrar melhor o tema que estamos tratando em Camus. 13 Reencontrava, assim, uma vida em estado puro, redescobria um paraso que dado apenas aos animais dotados de maior ou menor inteligncia. Naquele ponto em que o esprito nega o esprito, ele alcana sua verdade e com ela sua glria e seu amor extremo. CAMUS, Albert. A morte feliz.
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na afirmao e na negao, ou seja, na revolta, que o absurdo do mundo (separao entre o homem e a natureza) superado.14 Camus um utpico, para ele, a natureza supera o tempo, a histria, aquilo que passa. Mas Camus no seria propriamente um romntico, pois a sua natureza no idealizada, ela absurda, trgica. Nem, to pouco, um dialtico, no sentido que conhecemos. A contradio do homem absurdo no resolvida atravs de uma sntese dialtica, ela mantida. A sua revolta antes de tudo afirmativa, ela nega para afirmar algo alm do que est negando. menos uma sntese do que uma superao.15 A separao
Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997, p.116. 14 Em seguida preciso quebrar os jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si prprio. (...) O absurdo, assim como a dvida metdica, fez tabula rasa. Ele nos deixa sem sada. Mas, como a dvida, ao desdizer-se, ele pode orientar uma nova busca. Com o raciocnio acontece o mesmo. Proclamo que no creio em nada e que tudo absurdo, mas no posso duvidar de minha prpria proclamao e tenho de, no mnimo, acreditar em meu protesto. A primeira e nica evidncia que assim me dada, no mbito da experincia absurda, a revolta. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.20. 15 Que um homem revoltado? Um homem que dlz no. Mas, se ele recusa, no renuncia: tambm um homem que diz sim desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitvel um novo comando. Qual o significado desse no? Significa, por exemplo, as coisas j duraram demais, at a, sim ; a partir da, no; assim j demais, e, ainda, h um limite que voc no vai ultrapassar. Em suma, este no afirma a existncia de uma fronteira. Idem, p.25. O mesmo que Camus j havia dito no Npcias: Pouca gente compreende que existe um recusa que nada tem haver com renncia. Que significam aqui as palavras que falam de futuro, de maior bem estar, de situao? Que significa o progresso do corao? Se rejeito obstinadamente todos os mais
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entre o homem e o mundo (o absurdo, a morte) no negada. Para Camus, o absurdo no absurdo, por isso ele pode ser superado em uma experincia esttica. E essa experincia esttica, situada entre a esperana e o desespero, , de certa forma, a experincia da revolta, experincia que nega e afirma, experincia da felicidade. A felicidade , portanto, o nico dever do homem, revelado na transvalorao do absurdo. Sendo feliz, o homem d sentido a vida e supera o absurdo, afirmando a sua condio. O que Camus parece nos dizer que h sofrimento na vida e que afirmar a vida inclui afirmar esse sofrimento, inclusive a morte.
O Existencialismo Absurdo
A partir dessas consideraes podemos notar o quanto Camus se distancia do enfoque existencialista mencionado. Camus rompe com o existencialismo em 1951, com a publicao de O homem revoltado. No entanto, como vimos, em A morte feliz e Npcias (escritos no final da dcada de trinta, quando ele sequer tinha tido ainda contato direto com o existencialismo), j possvel notar claramente grandes divergncias com essa corrente. Camus no defende um filosofia do sujeito. A liberdade camusiana, no a do sujeito que escolhe, a liberdade que nasce da contemplao do absurdo, ou seja,
tardes do mundo, porque se trata, da mesma forma, de no renunciar minha riqueza presente. No me agrada acreditar que a morte se abre para uma outra vida. CAMUS, Albert. Npcias, O vero. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. So Paulo: Crculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Npcias e 1954 por O vero, p.18.
da infinita distncia entre o mundo e o homem.16 somente na constatao dessa separao que o homem revoltado pode super-la. A felicidade em Camus realmente advm de uma escolha consciente: a revolta diante da injustia do absurdo.17 Mas, dentro dessa escolha existe a vontade de felicidade, que fundamental e que nega essa conscincia atravs do esquecimento que permite a inocncia.18 Ou seja, a felicidade no ser responsvel, justamente o oposto da proposta existencialista. Para Camus, escolher seria o problema, escolher seria no ser livre.19 O sujeito no responsvel ou culpado pelos seus atos porque ele esquece de si. preciso que se faa uma escolha, mas preciso que se esquea essa escolha. No livro O Mito de Ssifo20, Camus analisa os principais autores fenomenlogos e existencialistas. Como vimos, ele parte das mesmas questes que esses autores. Segundo Camus, a questo fundamental da filosofia, a
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Por sentir-se to longe de tudo e at mesmo de sua febre, por experimentar to claramente o que h de absurdo e de miservel na mago das vidas mais ordenadas, nesse quarto erguia-se diante dele a imagem vergonhosa e secreta de uma espcie de liberdade que nasce da dvida e da fraude. CAMUS, Albert. A morte feliz. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997, p.67. 17 Conf.: Idem, p.113. 18 Conf.: Idem, p.109. 19 O erro, minha pequena Catherine, acreditar que preciso escolher, que preciso fazer aquilo que se quer e que existem condies para a felicidade. A nica coisa que conta a vontade de felicidade, uma espcie de enorme conscincia sempre presente. Idem, p.121. 20 CAMUS, Albert. O Mito de Ssifo - Ensaio Sobre o Absurdo com um Estudo Sobre Franz Kafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros do Brasil, s/data.
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nica questo verdadeiramente sria, saber se vale a pena viver diante da constatao dessa absurda separao entre homem e mundo e da injustia que se torna vida nessas condies. preciso saber se existe algo que justifique a vida, pois, se no houver, eu posso me matar e eu posso matar o outro.21 O homem que faz isso o homem absurdo, ou seja, aquele que mata a arte e a revolta22, matando as possibilidades de superao do absurdo. No entanto, o homem revoltado afirma o absurdo na beleza da vida. Ele aquele que, a partir do absurdo, nega e afirma atravs da revolta. Sendo assim, este homem no pode negar, com o suicdio ou com o assassinato, o prprio absurdo que a permite.23 Ele o recusa, porm no renuncia. Como j foi dito, preciso haver absurdo para se superar o absurdo. Eu no me mato, no me acovardo diante do absurdo e, portanto, tambm no mato o outro, afinal, o absurdo da vida universal, para todos. Pode-se afirmar que o prprio Camus utiliza o mtodo fenomenolgico em sua obra e em suas anlises. Ou seja, ele suspende a crena na existncia de uma realidade objetiva e pressupe a separao entre Em-Si e Para-Si. Camus elogia a Fenomeno21
logia Existencialista por ser uma filosofia, pelo menos em princpio, sem esperanas, que parte da negao de uma essncia por trs das aparncias. Mas, para ele, a Fenomenologia deve ir alm de si mesma. A noo de absurdo existencialista nasce de um sentimento do absurdo, e esse sentimento que deve permanecer fundamental. Por isso, Camus, ao contrrio dos autores fenomenlogos, se recusa a considerar a aparncia como essncia. O Mtodo Fenomenolgico, para ele, acabaria fundando uma metafsica, embora uma metafsica da aparncia. Alis, como qualquer mtodo, ele pressuporia uma metafsica como fundamento.24 Para Camus, nenhum conhecimento verdadeiro. Sua reduo do mundo s aparncias no as tornam essncias. O nico conhecimento verdadeiro seria justamente o dessa impossibilidade, ou seja, a j mencionada sensibilidade do absurdo. Como vimos, essa sensibilidade no se d racionalmente, mas esteticamente. Ela, segundo Camus, ilumina o mundo a uma luz que lhe prpria, possibilitando a superao do absurdo. Diante do absurdo, podemos ter atitudes afirmativas ou negativas, podermos revoltar-nos ou suicidar-nos. Camus ope duas atitudes diante desse mesmo ponto de partida. Para ele, tanto a Antigidade, quanto a
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Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.16. 22 CAMUS, Albert. Npcias, O vero. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. So Paulo: Crculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Npcias e 1954 por O vero, p.139. 23 Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.34.
CAMUS, Albert. O Mito de Ssifo - Ensaio Sobre o Absurdo com um Estudo Sobre Franz Kafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros do Brasil, s/data, p.23.
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Modernidade partem da mesma constatao do absurdo. Na Antigidade, a atitude trgica grega seria uma possibilidade de posicionamento afirmativo diante dessa constatao. J a esperana do cristianismo nascente seria uma atitude negativa diante da mesma. Na Modernidade, o pensamento que parte do absurdo o Existencialismo. No entanto, Camus constata nos autores dessa escola a mesma esperana crist que acaba negando o absurdo. Talvez por isso ele proponha um resgate moderno do pensamento grego como posio afirmativa diante desse sentimento. Para Camus, a anlise que Sartre faz da conscincia, como separada de si, bem como seu reconhecimento do mundo enquanto inumano, seriam constataes da absurdidade da existncia: essa estranheza diante de ns e da natureza, essa certeza da morte. O absurdo nasce desse conflito entre carncia de sentido (ParaSi) e ausncia de sentido (Em-Si). Ele pressupe ento tanto um, quanto outro. Porm, para Camus, diante disso, no necessrio se suicidar ou ter esperanas, no necessrio ser existencialista ou cristo. Antes, preciso manter-se no absurdo e torn-lo seu prprio sentido na Revolta Esttica. Se o absurdo est tanto no homem, quanto no mundo, ele os une. No entanto, isso no o nega, isso o mantm. A revolta, como vimos, recusa mas no renuncia. O Existencialismo fenomenolgico, ao contrrio, no recusa, mas renuncia a seus pressupostos (o sentimento do absurdo), justamente nes-
sa ausncia de recusa, nessa quebra de tenso (Para-Si/Em-Si). Os existencialistas divinizam o absurdo, afirmando um Ser da experincia e um sentido para a vida. Sem a recusa do absurdo, na aceitao do mesmo como fenmeno, os existencialistas acabam o negando. Pois, com isso, acaba-se a caracterstica essencial do absurdo que a contradio. Os existencialistas fenomenlogos privilegiam sempre um lado da tenso. A colocao da essncia na aparncia nega a carncia de sentido necessria ao absurdo. J Camus, com a revolta, pretende tirar do absurdo um princpio que o ultrapasse sem neglo. Esse princpio justamente a ausncia de princpios metafsicos ou racionais. preciso manter a tenso entre uma razo limitada e um irracional recorrente. Nenhum dos dois pode ser negado, nenhum dos dois pode ser privilegiado. interessante notar como se d a presena dos pressupostos kantianos em Camus, no que podemos chamar de uma dialtica sem sntese. Primeiramente, a natureza se recusa atravs da razo, mas a razo no renuncia a ela, ou seja, continua sendo natural. Aps, razo se recusa atravs do absurdo, nascido do conflito desta com a natureza, mas o absurdo continua sendo racional. Finalmente, o absurdo se recusa atravs da revolta, nascida do conflito deste com a razo, mas a revolta continua sendo absurda. Portanto, para Camus, a existncia humana : 1) natural; 2) racional; 3) absurda; 4) revoltada. No silncio da natureza diante da racionalidade, surge o ab-
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surdo. Nessa sntese que mantm a tenso, temos ento uma nova anttese, a revolta. Essa anttese continua mantendo a tenso na afirmao e negao da tese. E essa tenso seria a prpria vida. O salto existencialista, segundo Camus, est justamente em fazer fundamento o que a-fundamento. Por isso o religare camusiano sem esperanas, ele mantm tanto a razo do homem, quanto a irracionalidade do mundo e a tenso absurda entre os dois. Ou seja, um religare no sentido literal do termo, ou seja, no pretende deixar nada separado. Camus quer um religare que manteReferncias Bibliogrficas
nha inclusive a tenso. Esse religare paradoxal deve ser, portanto, artstico. Como vimos, em Sartre, o salto existencialista se d no dilogo entre homem e mundo, que o Nada gerado pela prpria separao acaba permitindo atravs da liberdade. No entanto, para Camus, a liberdade igualmente absurda, no h sentido nem na conscincia, nem no Em-Si. H apenas a tenso entre os dois, que afirma o absurdo como condio de si mesma. Assim, o dilogo entre homem e mundo se d trgica e esteticamente na separao absoluta.
KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura. Trad.: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo 4. ed.- Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997. HUSSERL, Edmund. Meditaes Cartesianas Introduo Fenomenologia . Trad.: Maria Gorete Lopes e Sousa, Porto: Rs-Editora, s/data. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenolgica. Trad.: Paulo Perdigo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997. CAMUS, Albert. Npcias, O vero. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. So Paulo: Crculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Npcias e 1954 por O vero.. _______________. A morte feliz. Trad.: Valerie Rumjanek. 4. ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997. _______________. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. 4. ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999. _______________. O Mito de Ssifo - Ensaio Sobre o Absurdo com um Estudo Sobre Franz Kafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros do Brasil, s/data.