1) A fórmula canônica do mito é uma das idéias mais fascinantes de Lévi-Strauss, surgida em 1955 e reaparecida em seus trabalhos posteriores.
2) Autores como Petitot, Scubla e Maranda interpretaram a fórmula canônica como uma descrição de narrativas individuais de mitos, enquanto Lévi-Strauss a utilizou para conectar elementos de conjuntos culturais descontínuos.
3) O artigo argumenta que a fórmula canôn
1) A fórmula canônica do mito é uma das idéias mais fascinantes de Lévi-Strauss, surgida em 1955 e reaparecida em seus trabalhos posteriores.
2) Autores como Petitot, Scubla e Maranda interpretaram a fórmula canônica como uma descrição de narrativas individuais de mitos, enquanto Lévi-Strauss a utilizou para conectar elementos de conjuntos culturais descontínuos.
3) O artigo argumenta que a fórmula canôn
Título original
A formula canonica do mito (Almeida)(Leituras Brasileiras Levi-Strauss).pdf
1) A fórmula canônica do mito é uma das idéias mais fascinantes de Lévi-Strauss, surgida em 1955 e reaparecida em seus trabalhos posteriores.
2) Autores como Petitot, Scubla e Maranda interpretaram a fórmula canônica como uma descrição de narrativas individuais de mitos, enquanto Lévi-Strauss a utilizou para conectar elementos de conjuntos culturais descontínuos.
3) O artigo argumenta que a fórmula canôn
1) A fórmula canônica do mito é uma das idéias mais fascinantes de Lévi-Strauss, surgida em 1955 e reaparecida em seus trabalhos posteriores.
2) Autores como Petitot, Scubla e Maranda interpretaram a fórmula canônica como uma descrição de narrativas individuais de mitos, enquanto Lévi-Strauss a utilizou para conectar elementos de conjuntos culturais descontínuos.
3) O artigo argumenta que a fórmula canôn
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1
MAURO WILLIAM BARBOSA DE ALMEIDA
A FRMULA CANNICADO MITO 2009
(Versao corrigida do texto publicado originalmente em Queiroz, Ruben C. de & Nobre, Renarde F. (eds.). Lvi-Strauss. Leituras Brasileiras. Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, pp. 147-182. Esta verso corresponde ao texto em italiano, no prelo e corrige erros da edio brasileira.)
A frmula cannica do mito um dos tpicos mais intratveis na obra de Lvi-Strauss, mas tambm uma das idias mais fascinantes e persistentes do grande antroplogo. Ela surgiu pela primeira vez em 1955, no artigo sobre A estrutura dos mitos (Lvi- Strauss, 1995), e foi mencionada no artigo Estrutura e dialtica do ano seguinte (Lvi-Strauss, 1958b [1956]:265), para reaparecer trinta anos depois em La Potire Jalouse (Lvi-Strauss, 1985), em Histoire de Lynx (Lvi-Strauss, 1991) e em 2001 (Lvi-Strauss, 2001a) em um ensaio sobre a arquitetura religiosa. De 1955 a 1985, a frmula cannica foi de modo geral ignorada pelos comentadores, e o prprio Lvi-Strauss manteve-se em silncio sobre ela. Seu reaparecimento na Oleira ciumenta em 1985, contudo, repercutiu fortemente. Em 1988, a revista LHomme publicou dois artigos sobre o tema, de Jean Petitot e de Bernard Mezzadri (Petitot, 1988, 1989; Mezzadri, 1988), e dez anos depois apareceu o livro de Lucien Scubla, um tour-de-force sobre o espinhoso assunto (Scubla, 1998). Em 1995, LHomme dedica frmula cannica nmero inteiro, que pode ser visto como um desdobramento das pistas indicadas nos artigos de 1988 (Ct, 1995; Dsveaux; Pouillon, 1995; Marcus, 1995, Petitot, 1995, Scubla, 1995), em particular da idia de aplicar a teoria das catstrofes modelizao da frmula. O nmero especial de LHomme teve, por sua vez, em 2001, um desdobramento importante, que foi o livro em ingls organizado por Pierre Maranda, The Double Twist (A dupla toro), que contm alguns artigos que
2 haviam aparecido em LHomme e vrios outros originais. O livro organizado por Maranda contm dois aspectos importantes para ns: o artigo em que Lvi-Strauss usa a frmula cannica a propsito da arquitetura religiosa (Japo, Java e Amrica do Sul), e um excerto de uma carta de Lvi-Strauss a Solomon Marcus sobre a frmula cannica (Maranda, 2001; Lvi-Strauss, 2001 [1994]). Aparentemente, nada restaria a dizer sobre a frmula. Mas penso que no o caso. Como se v, as publicaes sobre o assunto so intimamente ligadas entre si, a comear pela presena de Jean Petitot em todas elas. Essa continuidade no apenas superficial: ela relaciona-se com o fato de que em todas essas publicaes a frmula cannica aplicada principalmente anlise de sintagmas completos, isto , ritos e narrativas individualizadas, sendo este emprego aparentemente justificado pela formalizao baseada na teoria das catstrofes. , contudo, paradoxal que Lvi- Strauss, tanto em suas primeiras formulaes programticas quanto em seus ltimos escritos sobre a frmula (Lvi-Strauss, 2001 [1994]) tenha, ao contrrio, utilizado a frmula para conectar objetos culturais de conjuntos geogrfica e historicamente descontnuos, com a ateno em paradigmas, e, no em sintagmas individuais. Vamos confirmar essa afirmao com uma reconsiderao da anlise lvi-straussiana do mito de dipo, bem como dos mitos Pueblo tratados por Lvi-Strauss na mesma publicao (Lvi-Strauss 1958a[1955]), e tambm do mito inicial de La Potire Jalouse (Lvi-Strauss 1985). Antes disso, porm, recapitularemos brevemente o ponto de vista defendido nas publicaes de Jean Petitot e Lucien Scubla.
A INTERPRETAO SINTAGMTICA DA FRMULA CANNICA Os trabalhos de Mezzadri, Jean Petitot e Lucien Scubla, e independentemente deles, do folclorista Pierre Maranda, deram nova respeitabilidade frmula cannica. Mas cabe tambm chamar a ateno para a divergncia de pontos de vista entre esses autores e o prprio Lvi-Strauss. Na raiz dessa divergncia, est uma apreciao muito difundida acerca do estruturalismo de Lvi-Strauss, que resumida por Lucien Scubla ao atribuir a Lvi-Strauss uma viso irnica e esttica da vida social e das formas simblicas, na qual todas as oposies seriam, em ltima instncia, de tipo lgico ou fonolgico(Scubla, 1988: 288). A estratgia sugerida por Scubla para corrigir essa suposta viso irnica e esttica coincide com a que foi preconizada por Terence
3 Turner em interessante artigo de 1990, em que afirma que um uso rigoroso da noo de transformao exigiria que Lvi-Strauss centrasse o foco da anlise em sintagmas de mitos individualizados, e no em fragmentos de paradigmas (Turner, 1990). Em suma, esses autores acreditam reintroduzir a diacronia na anlise mitolgica ao valorizarem a parole e no a langue. No h dvida sobre o bom-senso de valorizar a enunciao de mitos como atos de fala. Mas, de fato, h uma grande distncia entre a perspectiva defendida por Lvi- Strauss e o uso da frmula cannica por autores como Maranda, Petitot e Scubla. A utilizao da frmula cannica como estenografia da narrativa, ou ainda como gramtica gerativa de narrativas (Maranda, 2001: 4) serve para tratar do percurso de heris que transformam uma situao inicial em uma situao final inconcilivel com a primeira. Essa via de anlise remonta essencialmente Morfologia do Conto, obra do folclorista russo Vladimir Propp, publicada em 1928 mas somente divulgada no ocidente por volta de 1960. Propp explicou as razes histricas da morfologia do conto recorrendo teoria dos ritos de passagem. Da mesma maneira, Mezzadri interpreta a frmula cannica como a modelizao de um rito, e se Scubla hesita em ler a frmula cannica como uma expresso estenogrfica de rituais de reis que so bodes expiatrios, certamente v tais rituais como a primeira ilustrao no-trivial do processo morfogentico que [a frmula] se esforava por representar (Scubla, 1998). No podemos, nesse caso, ignorar a detalhada crtica que Lvi-Strauss dirigiu a Propp (Lvi-Strauss, 1973b: 158). Nesta crtica, Lvi-Strauss insistiu numa divergncia de fundo entre os mtodos, e que residiria precisamente nas maneiras distintas de tratar a relao entre forma e contedo, ou entre estrutura e histria. Segundo Lvi-Strauss, para o formalista, forma e contedo so domnios que precisam ser mantidos separados, pois s a forma inteligvel, e o contedo no passa de um resduo destitudo de valor significante. Ao contrrio, para o estruturalista, no h de um lado o abstrato, de outro o concreto: Forma e contedo so de mesma natureza, merecedores da mesma anlise. O contedo tira sua realidade de sua estrutura, e aquilo que chamamos de forma a estruturao [mise en structure] de estruturas locais nas quais consiste o contedo (idem: 158). As observaes de Lvi-Strauss neste texto de 1960 nos foram, no mnimo, a encarar com ceticismo a afirmao de que o prprio Lvi-Strauss nem sempre sabe
4 exatamente em que consiste a frmula que ele inventou (Scubla, 1988: 287), assim como a de que a teoria das catstrofes corrobora o modelo subjacente nossa interpretao antropolgica e lhe d um status muito mais preciso (idem: 291), ou ainda a tese de que preciso escolher entre o caminho do mentalismo, com um toque de materialismo cerebral como sugerido por La pense sauvage ,() ou o caminho da teoria morfogentica investigado durante trinta anos por Ren Thom e seus seguidores (Scubla, 2001: 126). Aqui se expressa a idia de que seria preciso matemticos (como Ren Tom e Jean Petitot) para emprestar rigor anlise estrutural, e mais do que isso, para que as cincias humanas sejam includas no interior das cincias naturais de uma maneira no-redutora (idem: 126). 1
Contrariamente a essa viso, argumentei em outro artigo que Lvi-Strauss utiliza idias matemticas, com a criatividade de bricoleur, para articular reflexes originais, e no ilustrar teorias prontas, sejam elas a teoria dos grupos ou a teoria das catstrofes. Combinei essa argumentao com a tese segundo a qual o procedimento estrutural de Lvi-Strauss, longe de se reduzir busca de lgicas atemporais, envolve uma constante dialtica entre estruturas conceituais e a histria real irredutvel a ela (Almeida, 1990). Chego, assim, ao objetivo deste artigo. Ele consiste em argumentar que a frmula cannica do mito combina de maneira essencial um procedimento lgico e um procedimento heursticotranscendental. Para dizer isso de outra maneira: toda frmula cannica funciona, por um lado, como um juzo analtico, e, por outro lado, como um juzo sinttico. Ela nunca uma simples armao para descrever a lgica do mito
1 Essa pretenso realmente justificada? O espectro fsico de cores pode ser representado como sendo contnuo, e desempenha aqui o papel do substrato contnuo do paradigma cor. Se nos ativermos a uma dimenso, esse substrato pode ser representado no eixo dos x como um contnuo que vai, por exemplo, do branco ao negro. Cada cultura categoriza esse substrato contnuo em unidades discretas por exemplo, reduzindo-o a duas cores, branco e negro. Um informante, ao ser apresentado sucessivamente a partes do contnuo, em um certo ponto salta da categoria branco para a categoria negro: esse ponto de descontinuidade uma catstrofe, que nesse caso reduz-se a um ponto. Com um nmero maior de eixos, o locus da catstrofe se torna mais complexo, mas a idia tratar pontos de descontinuidade como pontos em que um actante pula de um atrator para outro. Para como isso se aplica diacronia narrativa, pensemos os segmentos da narrativa como actantes confinados a uma funo (values categorizing the continuous substratum of paradigms into discrete units, PETITOT, 2001, p. 272). Transitar entre duas funes opostas significa ento, para um actante, saltar de um confinamento para outro, e assim, superar oposies.
5 (como o seria um esquema analgico, ou de mediao de contradies), mas principalmente um guia para estabelecer conexes entre grupos de mitos distintos, ou mesmo entre planos semnticos diferentes, transpondo para isso, necessariamente, uma fronteira dada. Por isso mesmo, a frmula no se reduz nunca a um silogismo, como seria de esperar se o mito, ou cada conjunto de mitos, pudesse ser considerado como uma deduo lgica. Em vez disso, cada frmula construda a partir de um conjunto delimitado de mitos exige do leitor que busque uma ponte entre eles e outros conjuntos, ou ainda entre o cdigo em considerao e outros cdigos. Esse recurso para fazer um balano de um conjunto mtico aponta para transformaes que podem ter sido impostas pela histria, ou por outro tipo de movimento irredutvel razo analtica. Em suma, para um movimento da razo em sua capacidade para transpor abismos, e que Lvi-Strauss caracterizou como razo dialtica. Assim, aquilo que parece, primeira vista, ser um formalismo positivista , ao contrrio, um apelo para buscar algo alm do dado positivo: um esforo de imaginao capaz de, atravs de procedimentos como a inverso, a analogia, a metonmia, explicar lacunas atravs da histria e do subconsciente. A base dessa argumentao ser uma releitura do artigo de 1955, publicado em 1958, em que Lvi-Strauss apresentou uma clebre anlise dos mitos que formam em conjunto o que Lvi-Strauss chama de mito de dipo. Aqui, trata-se de certo modo de justificar o aparecimento da frmula cannica do mito como indicao de um procedimento metodolgico que, embora no esteja explcito, essencial na anlise. O raciocnio ser corroborado o uso da frmula cannica do mito em 1985, em A Oleira ciumenta.
DIPO AMERNDIA No artigo intitulado A anlise estrutural do mito, publicado originalmente em 1955 em ingls e em francs, com algumas modificaes, em 1958 (Lvi-Strauss, 1955, 1958a), Lvi-Strauss introduz a noo de que o mito constitudo por grandes unidades constitutivas (para distingui-las das unidades menores, tais como fonemas, morfemas e semantemas); essas grandes unidades constitutivas so relaes (isto , a atribuio de um predicado a um sujeito). A essa altura, Lvi-Strauss corrige a definio das grandes unidades constitutivas, afirmando que as verdadeiras
6 unidades constitutivas do mito so feixes de relaes (bundles, paquets). Tudo isso ilustrado com a clebre anlise estrutural do mito de dipo, que, na verso francesa de 1958, aparece precedida da justificativa de que se trata no de uma demonstrao, e, sim, de uma manobra de camel, que busca explicar o mais rapidamente que pode o funcionamento da maquineta que tenta vender aos transeuntes (Lvi-Strauss, 1958a: 235). As relaes com a forma de predicado-sujeito so ilustradas com proposies como as do grupo seguinte: Cadmo procura sua irm Europa, raptada por Zeus, dipo casa- se com sua me Jocasta, e Antgona enterra Polinice, seu irmo, violando a interdio. Ora, em cada uma das relaes desse feixe de relaes, o predicado um comportamento transitivo, porque supe um ator e um objeto da ao, e, em cada caso, o sujeito e o objeto da ao so parentes consangneos (irm, me, irmo). O que o feixe tem em comum exprime-se aqui com a proposio relaes de parentesco (consangneo) superestimadas, ou seja, superestimao de relaes (de consanginidade). 2 Nessa ltima forma, podem-se abreviar as proposies em questo com a notao F x (a), onde F x um predicado (superestimao de relaes) e o termo a representa um termo (parentes consangneos). 3 O segundo feixe de relaes (os [irmos] Spartoi se exterminam, dipo mata seu pai Laio, Etocles mata seu irmo Polinice) leva proposio relaes de parentesco subestimadas ou desvalorizadas, e que poderiam ser representadas como F y (a), sendo que poderamos tambm escrever F x -1 (a) para lembrar o fato de que, nesse caso, a qualidade y o oposto de x. Agora, trata-se da ao transitiva de matar que se aplica a pares de consangneos. Um terceiro feixe configura um pacote que se refere tambm a atos de assassinato, mas agora opondo um humano (sempre um homem do grupo consangneo) a um monstro autctone (um drago, e seus descendentes, os Spartoi, homens semeados, com os
2 Na verso de 1955 em ingls, a consanginidade explicitada como overrating of blood relations. A rigor, poderamos glosar assim a proposio subjacente ao feixe: comportamento exageradamente prximo, ou ultrapassando as regras sociais (entre consangneos de sexo oposto). Essa leitura de fato a primeira leitura de Lvi-Strauss: todos os incidentes reunidos na primeira coluna dizem respeito a parentes consangneos, cujas relaes de proximidade so exageradas. Lvi-Strauss tambm descreve o predicado assim: esses parentes so objeto de um tratamento mais ntimo do que as regras sociais autorizam. Ora, essa primeira formulao afirma uma endogamia real ou latente, e sugere por implicao a recusa aliana. . 3 Um termo que designa uma relao, e no um actante como na modelizao sintagmtica inspirada em Propp e Greimas.
7 dentes do drago, e nascidos da terra). Esse feixe poderia ser representado por F x -1 (b), ou seja: a desvalorizao da relao entre humanos e monstros ctnicos (de fato, na forma de assassinato). Temos at esse ponto o seguinte incio de deduo: F x (a) est para F y (a) assim como F y (b) est para? E aqui, se a lgica do mito fosse a da analogia ou de um silogismo, esperaramos uma quarta proposio com a forma F x (b), completando o seguinte esquema:
Esquema 1. A lgica do mito como esquema analgico (Grupo de Klein) F x (a) F y (a) :: F y (b) F x (b)
Onde F x (b) representa: superestimao da proximidade entre humanos e monstros, que esperaramos, por simetria com o primeiro par, que tomasse a forma de proximidade ntima ou aliana entre humanos e monstros, um grupo humano e entes ctnicos. Ora, no seria preciso esforo para encontrar episdios precisamente deste tipo nas narrativas do ciclo de dipo. Eles grassam em quase todas as geraes de descendentes de Cadmo, na forma de intercasamentos entre a linhagem agntica de Cadmo e a linhagem dos Spartoi autctones. Depois de matar o drago que guardava o local de Tebas, o adventcio Cadmo consegue, graas a um ardil, exterminar quase todos Spartoi (os guerreiros nascidos da terra, semeada com os dentes do drago). Os Spartoi sobreviventes do origem s grandes famlias de Tebas. Inicia-se um ciclo de conflito e aliana (Grimal, 1951: 72, 325 et seg.; Cfr. Bock, 1979: 907). Cadmo, Polidoro, Labdaco, Laio, dipo e Etocles so representantes de seis geraes da linhagem de estrangeiros-fundadores de Tebas. Na primeira gerao, o estrangeiro Cadmo, depois de matar o Drago, d sua filha gave como esposa a Ctnio, um dos Spartoi sobreviventes, enquanto seu filho Polidoro casa-se com a neta de Ctnio. Labdaco, filho de Polidoro, rfo e, durante sua infncia, a regncia de Tebas cabe a Nicteu (filho de Ctnio). O filho de Labdaco, Laio, tambm rfo e durante sua infncia a regncia de Tebas cabe a Lico (irmo de Nicteu, outro dos Spartoi). dipo, filho de Laio, na infncia vive exilado, enquanto a regncia de Tebas cabe a Creonte. Assim, repetidamente a tirania em Tebas alternada entre Labdcidas e Spartoi, com
8 labdcidas rfos ou crianas refugiando-se fora da cidade e reassumindo a posio de tirano na idade adulta. Ao final desse ciclo, um autctone (Creonte) condena morte um labdcida (Etocles, filho de dipo) e tambm sua irm Antgona, mas seu prprio filho Hmon se mata por amor a Antgona. Esses feixes tratam, assim, de um lado do antagonismo mas tambm da alternncia poltica entre autctones e estrangeiros, e de outro lado da aliana de casamento entre autctones e estrangeiros. Vemos assim que a oposio entre no-autoctonia e autoctonia poderia ser vista sob uma chave poltica e no csmica. Qualquer que seja a chave, o mito de dipo, por um lado, encaixa-se no esquema lgico da analogia, formalizado com o grupo de Klein; por outro lado, permitiria uma leitura no registro sociolgico do incesto, da guerra e da aliana. E h, com efeito, vrias anlises do mito que se utilizam supostamente do mtodo de Lvi-Strauss para chegar a concluses nesse registro sociolgico(Carroll, 1978; Willner, 1982; Bock, 1979), da mesma maneira como so comuns as interpretaes da estrutura do mito na forma de uma analogia (grupo de Klein), como ocorre em Greimas e em Pierre Maranda. Nada, nessa linha de raciocnio, seria estranho a Lvi-Strauss: nem a lgica da analogia (e o grupo de Klein) nem a teoria da aliana e suas implicaes polticas. Por isso mesmo, ganha relevo essencial o fato de que Lvi-Strauss introduziu como quarto mitema em vez da aliana poltica com seres autctones o carter p-inchado (ctnico) de dipo, que conectou com o carter-manco de Lbdaco e com o carter-gago de Laio. Observemos ademais que esse mitema no se apia em um feixe de aes no interior da sintaxe narrativa do mito. Em vez disso, h uma interpretao no registro filolgico, que permite a Lvi-Strauss agrupar trs predicados identificados por ele na etimologia p-inchado ou p-furado, manco, gago como tendo como ponto comum o fato de indicarem uma origem ctnica. Essa interpretao de distrbios do andar foi sugerida, talvez, a Lvi-Strauss pelo material amerndio. Ora, esse ponto foi contestado por helenistas, para quem Lvi-Strauss teria projetado sobre os gregos antigos a etnografia amerndia (onde seres ctnicos so de fato disformes). Deixemos esse ponto para depois, para reter aqui um ponto apenas: a frmula cannica do mito constitui uma receita para introduzir uma conexo entre mitos de regies geogrficas ou entre domnios histricos distintos. Poderamos tentar formular, sob esse esprito, uma nova verso do mito de dipo.
9 Esquema 2. O mito de dipo com a frmula cannica F x (a) F y (a) :: F y (b) F b -1 (x)
A frmula poderia ser lida assim: a superestimao de relaes (de parentesco) F x (a) est para a subestimao de relaes de parentesco F y (a) assim como a negao de relaes com monstros autctones F y (b) est para o carter-autctone-invertido (carter anti-autctone) da funo-exagero F b -1 (x). Nessa estenografia h uma sugesto para ir alm do que as narrativas dizem diretamente e buscar conexes em outro domnio. E o surpreendente que, mesmo deixando de lado a interpretao amerndia, o passo transcendental da deduo tem importantes conseqncias. Ele permite uma leitura como a seguinte: o incesto no grupo consangneo de estrangeiros da linhagem de Cadmo est para o parricdio/fratricdio no interior da linhagem de Cadmo assim como a guerra contra os seres ctnicos/contra autoctonia est para o carter-disforme ctonismo invertido, deslocado de tiranos. O ltimo passo leva ao tema seguinte: tiranos, que no limite negam a aliana em favor da exogamia, so assinalados pela desordem no andar e na comunicao. A dificuldade de andar direito, uma anomalia da exis, aplicase a pessoas que so tambm culpadas de abuso sexual com pessoas prximas (caso de Laio e de dipo), ou que so tiranos, com uma anomalia comunicativa, o que leva ao tema do enigma respondido e do orculo sem resposta, bem como ao tema da tirania como distoro poltica pontos tratados em detalhe por Jean-Pierre Vernant e pelo prprio Lvi- Strauss em trabalhos posteriores. Os tiranos tm a marca da no-autoctonia, revelada no andar torto, mas tambm na incapacidade de usar a fala corretamente de dar respostas para as perguntas, e de fazer as perguntas adequadas para as respostas. A autoctonia em forma humana aplica-se a comportamentos exagerados, seja sob a forma do abuso da intimidade consangnea incesto entre filho e me e exagero de intimidade entre irmo e irm , seja na forma do abuso de afastamento assassinato do pai pelo filho e do irmo pelo irmo. Ao colocarmos o fecho da frmula como um carter-distorcido de uma relao, apontamos na direo das sugestes posteriores de Lvi-Strauss (na Lio Inaugural de 1960) que associam o coxear a um distrbio da socialidade (distrbio da aliana e de dilogo), bem como na direo apontada por
10 Jean-Pierre Vernant, que enfatiza o nexo entre incesto e tirania duas formas de incapacidade de entabular relaes sociais normais. No precisamos levar demasiado a srio essa formulao cannica da anlise lvi- straussiana do mito de dipo, que deixa, sem dvida, vrios detalhes em aberto. 4 O que importa indicar que, luz da frmula cannica, percebemos melhor que a anlise inspirada na frmula cannica contrasta em dois sentidos com a anlise segundo o modelo do grupo de Klein. O primeiro contraste entre uma anlise interna, que formaliza os eventos no interior da narrativa, e uma anlise externa e paradigmtica, que leva para o exterior da narrativa; o segundo entre uma deduo por analogia, a partir dos termos da narrativa, e entre uma deduo transcendental, que aponta para a possibilidade de outros corpos mticos. A anlise lvi-straussiana do mito de dipo, portanto, no se deixa reduzir nem ao quadrado semitico maneira de Greimas (grupo de Klein) nem ao procedimento emprico-indutivo subjacente ao mtodo de Vladimir Propp. No um algoritmo algbrico-silogstico nem um resumo formalizado de uma famlia de narrativas. A dupla toro que agora fecha o esquematismo mtico uma condensao e um deslocamento contm uma hiptese subjacente e nada trivial sobre o mecanismo pelo qual os mitos se transformam, constrangidos pela exigncia de simetria de um lado, mas empurrados para quebr-la pelos acidentes da histria por outro. 5
UMA RESPOSTA SEM PERGUNTA Se nosso raciocnio est correto, o essencial da frmula cannica exigir um salto histrico ou semntico. Mas j mencionamos acima o fato de que os helenistas criticaram a inspirao em mitos de indgenas norte-americanos para explicar a mitologia grega. Ora, sabemos que a pista amerndia para encontrar a pergunta para
4 Poderamos ter lido o quadrado da Figura 2 assim: a superestimao de relaes Fx(a) de parentesco est para a subestimao de relaes com monstros autctones F y (b) assim como a subestimao de relaes F y (a) de parentesco est para a funo-monstro autctone (coxo, canhoto, ps-inchados) da superestimao de relaes. Essa leitura vertical aproxima-se mais literalmente da frmula cannica escrita por Lvi-Strauss em 1955. 5 A condensao na verso amerndia liga dipo, Laio e Labdaco (a partir de sua presumida dificuldade de andar de maneira ereta) aos Spartoi (como seres ctnios), presumivelmente porque (segundo sugestes de mitos amerndios) h uma conexo entre a origem de terra e a deformidade.
11 a qual o carter coxo seria uma resposta foi provisria, e o prprio Lvi-Strauss modificou sua posio inicial a esse respeito. Na verso inglesa do seu artigo, Lvi- Strauss j ressaltava com mais nfase do que na verso francesa o carter hipottico da especulao filolgica sobre os nomes de Labdaco, Laio e dipo (Lvi- Strauss 1955). Na verso francesa de 1958, no deixa, porm, de ressaltar que esses nomes prprios apareciam hors contexte : pois no h episdios sobre o carter coxo de Labdaco nem sobre o carter canhoto de Laios, ao passo que, no caso dos ps- inchados de dipo, no est em jogo uma origem no-humana. Jean-Pierre Vernant tinha certamente razo ao reprovar o coup de force, no qual Lvi-Strauss condensou de um lado o assassinato do drago por Cadmo e a vitria de dipo sobre Esfinge no mesmo caso semntico de uma recusa da autoctonia, e de outro o p-inchado de dipo e o coxeamento dos Labdcidas no caso inverso e simtrico de um enraizamento ctnico originrio (Vernant, 1974: 241). 6 No obstante, o mesmo Jean-Pierre Vernant afirmou em 1988, que, embora a interpretao lvi-straussiana tenha parecido inicialmente como no mnimo contestvel, modificou de maneira to radical o campo dos estudos mitolgicos que a partir dela, em Lvi-Strauss e entre outros especialistas, a reflexo sobre a lenda edipiana tomou vias novas e, creio eu, fecundas (Vernant, 1988: 54). E isso, em particular, porque , diz Vernant, "Lvi-Strauss, que eu saiba, foi o primeiro a extrair a importncia de um trao comum s trs geraes da linhagem dos Labdcidas: um desequilbrio do andar, uma falta de simetria entre os dois lados do corpo, um defeito em um dos dois ps" (idem: 55). O trao comum aqui uma resposta que pede uma pergunta. O interessante aqui que, mesmo que abandonemos a pergunta a que Lvi-Strauss chegou em 1955, os traos tortos de Labdaco/Laio/ dipo continuaram a alimentar diferentes tentativas de formular a pergunta adequada. Por exemplo: os traos tortos dos persona-gens, em sua conexo com incesto e com enigmas, apontam para a reflexo poltica ateniense cujos poetas trgicos forneciam as verses mais conhecidas por ns sobre o mito de
6 No artigo de 1958a, Lvi-Strauss havia estendido Grcia antiga a teoria pueblo que concebe a vida humana a partir do modelo do reino vegetal (emergncia da terra), justificando assim a escolha do mito de dipo como primeiro exemplo (LVI-STRAUSS, 1958, p. 252). Contudo, os helenistas afirmam que a deformidade (como o carter coxo) um trao de deuses, e no de seres ctnicos (DETIENNE; VERNANT, 1974, p. 242 .). Evidncia disso o fato de que os Spartoi, os semeados com os dentes do drago, saem da terra eretos e sem deformidade.
12 dipo sobre a tirania como forma de anormalidade da comunicao. Leituras sucessivas relacionaram o tema do desequilbrio do andar ao incesto (irmo-irm, me-filho), ao abuso da linguagem na forma do enigma, ao abuso de poder na forma da tirania. 7
Foi, enfim, Jean-Pierre Vernant quem chamou a ateno para um grupo de mitos geograficamente distanciado dos mitos de dipo, onde o carter-coxo tem papel central. Trata-se da histria de Labda, a rainha coxa de Corinto. Salta aos olhos o paralelismo estreito com o mito de dipo: em Tebas, h uma linhagem de tiranos estrangeiros que se casam fora de seu grupo consangneo ; em Corinto, h uma linhagem de tiranos endgamos. Em Tebas, o abuso sexual de um futuro tirano canhestro (Laio tem relaes sexuais com o jovem filho de seu anfitrio, que prev que a linhagem de Laio se extinguir em duas geraes) leva destruio da linhagem atravs de atos de seu filho de ps-inchados, dipo (passando por um incesto); em Corinto, um casamento exgamo de Labda, a Coxa, leva destruio da linhagem por aes de seu filho Cpselo (mas aqui so os cidados que matam o tirano). Em ambos os casos, h uma profecia oracular cuja conseqncia se busca impedir com a tentativa frustrada de assassinato de um(a) filho(a). 8 Os paralelos e simetrias continuam. 9
Destaca-se a tenso entre a endogamia da linhagem agntica (fratricdio, parricdio) e os conflitos fratricidas de um lado, e entre guerra e aliana de outro tudo isso em conexo com o tema da inviabilidade da tirania permanente. Tudo se passa, ento, como se a exagerada proximidade entre consangneos de sexo oposto (incesto) estivesse para o conflito com os consangneos do mesmo sexo (fratricdio, parricdio,
7 Jean-Pierre Vernant lembra que Terence Turner foi o primeiro a acentuar a importncia do enigma. Eis os termos de Lvi-Strauss em 1960: Como um enigma resolvido, o incesto aproxima termos destinados a permanecerem separados: o filho uni-se me, o irmo irm, assim como o faz a resposta ao conseguir, contra toda expectativa, a reunir-se sua questo(LVI-STRAUSS, [1960], 1973a, p. 34; VERNANT, 1988, p. 56.). 8 Os baquadas monopolizam o poder poltico em Corinto casando suas filhas em si (os labdcidas alternam o poder poltico em Tebas, casando-se com descendentes dos Spartoi); a endogamia de tiranos em Corinto interrompida pelo casamento exogmico de Labda (ou porque ela, sendo coxa, no conseguiu marido no interior da linhagem, ou que tornou-se coxa justamente por casar-se fora do grupo), enquanto em Tebas a aliana interrompida pelo casamento endogmico de dipo com sua me; o orculo profetiza que o filho de Labda (a coxa) assumir o poder em Corinto, mas ter apenas duas geraes de descendentes, enquanto que o orculo profetiza que dipo, o filho de Jocasta (a meincestuosa) matar seu pai (sobre o pai de dipo, culpado de incesto, paira a maldio que sua estirpe se exterminar, o que ocorre em duas geraes). Ver VERNANT, 1988, p. 77. 9 Para estes paralelos, cf. ROBEY. From Oedipus to Periander. In: ___. Oxford Readings in Greek Religion. <www.uark.edu/campus-resources/ dlevine/Oxford5.html>.
13 filicdio), assim como a aliana para com os autctones (no agnatos) estaria para a guerra com os autctones.
CONTRADIO E MEDIAO NOS MITOS PUEBLO Se estivermos na pista certa at aqui, a anlise do mito de dipo anuncia o essencial da frmula cannica. E os mitos Pueblos comentados com muito mais detalhes por Lvi- Strauss no mesmo artigo? Quando observamos a sntese inicial que Lvi-Strauss apresenta para um conjunto de mitos de origem Zuni, obtidos num intervalo de tempo de meio sculo (Lvi-Strauss, 1958a:244), notamos que est em jogo um tableau mais complexo do que o do mito de dipo. De fato, no primeiro tableau Zuni, em lugar de um conjunto de feixes de relaes cada uma delas reduzida a uma proposio , relacionadas entre si por oposies, vemos no interior dos prprios feixes de relaes (i.e. colunas de eventos) transformaes gradativas. Assim, na coluna 1, afirma-se no alto da coluna o uso de vegetais para dar vida a humanos (emergncia a partir da terra), mas esse uso modulado (passando pelo uso de vegetais para alimentar humanos) at chegar ao uso predatrio de animais para alimentar humanos, e, finalmente, ao uso predatrio de humanos na guerra. J na coluna 4, a progresso se d em sentido inverso: comea com a morte e termina com a salvao da tribo. Em suma, h oposies no interior de cada feixe, confrontando vegetal a animal, vida a morte, deuses a homens. 10 Num primeiro sumrio, Lvi-Strauss recorre s diferentes verses do mito de origem para desentranhar dos mitos o tema da emergncia, seja como resultado dos esforos dos homens para escapar sua condio miservel nas entranhas da terra (verses de Bunzel e de Cushing), seja como conseqncia de um chamado, lanado aos homens pelas potncias das regies superiores (verso de Stevenson), atravs de mediaes ambguas que conduzem a um termo contraditrio em pleno meio do processo dialtico.
10 Se considerarmos o tableaux como uma tira de papel, e colarmos suas extremidades da esquerda (progresso de cima para baixo da vida para a morte) e da direita (progresso de baixo para cima da vida para a morte), obteremos uma tira de Mebius uma figura topolgica que um dos topos recorrentes da fase mitolgica da obra de Lvi-Strauss.
14 Esquema 3. Progresso dialtica e termo contraditrio VIDA (= crescimento) ORIGEM Uso (mecnico) do reino vegetal (enquanto crescimento) COLHEITA Uso alimentar do reino vegetal (plantas silvestres) AGRICULTURA Uso alimentar do reino vegetal (plantas silvestres e cultivadas) CAA Uso alimentar do reino animal GUERRA Uso destrutivo do reino animal e do reino humano MORTE (= de-crescimento)
H, pois, transformaes mticas que, em lugar de terem o carter de inverses discretas (ou outras simetrias reversveis), introduzem pequenos afastamentos que preenchem o abismo que separa dois termos contraditrios ou pelo menos criam a aparncia de faz-lo. O que est introduzido aqui a importncia que assumem nos mitos cadeias de mediaes atravessando um percurso de variantes. A essa altura, Lvi-Strauss destaca o papel das figuras mediadoras, seja na forma de pares dioscricos (2 mensageiros divinos, 2 clowns cerimoniais, 2 deuses da guerra; ou pares de irmos, de irmo-irm, de marido-mulher, de av-neto), quer na forma do trickster, neste caso exemplificadas pelo coiote e pelo abutre: predadores ambguos porque no matam o que comem (como agricultores), mas predam animais (como caadores). O importante, porm, que esses mediadores so parte de blocos maiores de oposies paradigmticas (o coiote um intermedirio entre herbvoros e carnvoros, assim como o escalpo entre guerra e agricultura, como as roupas entre natureza e cultura, como a cinza entre o fogo de casa e o teto, e outras). Em suma, longe de serem uma mera soluo lgica para resolver uma oposio entre opostos, os discuros e tricksters so pistas heursticas para explorar transformaes mticas que levam a outros continentes espaciais e semnticos, e, nesse caso, conduzem Lvi- Strauss a paralelos entre o Ash-boy da mitologia amerndia e a Gata Borralheira europia. O uso de termos ambguos (trickster e discuros) como mediadores um primeiro exemplo das operaes lgicas do mito (Lvi-Strauss, 1958a: 241). Outra
15 caracterstica a dualidade de natureza, que caracteriza uma mesma divindade nos mitos. Lvi-Strauss exemplifica esse ponto com o seguinte esquema (idem: 251).
Esquema 4. Divindades contraditrias (Masauw: x ) (Muyingw:Masauw) (Shalako:Muyingw) (y:Masauw)
Nessa srie, apoiada em verses distintas (que Lvi-Strauss numera de 1 a 4), o deus Masauw aparece vinculado a funes que mudam conforme o lugar em que aparecem. Assim, na verso 1, Masauw socorre os homens, embora no de maneira absoluta. Isso escrito assim: Masauw: x. Lembremos que x e y representam aqui valores arbitrrios que preciso postular para as duas verses extremas (idem:252). Tendo isso em mente, poderamos expressar isso mais claramente com a frmula seguinte, lembrando que o sinal > expressa o fato de que Masauw tem a funo de socorrer humanos, mais do que outros deuses. F socorrer (Masauw > x)
Na verso 4, Masauw hostil aos homens, mas poderia s-lo ainda mais. Com a mesma notao acima, escreveramos: F hostilidade (y > Masauw) Com a mesma notao, podemos reunir as verses de 1 a 4 e reescrever assim a Frmula 4 acima:
16
Esquema 5. Uma verso quase cannica dos mitos Pueblo F socorrer (Masauw > x) : F socorrer (Shalako > Muyingw)
F socorrer (Muyingw > Masauw) : F socorrer
-1 (y > Masauw)
Nessa notao, entende-se melhor por que razo Lvi-Strauss havia anunciado, ao discutir o papel dos termos dioscricos, que a construo lgica do mito pressupe uma dupla permutao de funes (idem: 251), pois de fato preciso transformar duas vezes a primeira expresso para obter a ltima: transformar a funo F socorrer na funo F anti-socorrer , e inverter o papel de Masauw (de termo maximal numa relao a termo minimal sob a relao inversa). logo em seguida que Lvi-Strauss apresenta sua clebre frmula, que ganha sentido se a lemos luz tanto da anlise dos mitos de dipo (compare-se com o Esquema 2) como luz dos mitos Zuni de emergncia (Esquema 5 acima):
Esquema 6. A Frmula Cannica original F x (a) : Fy(b) F x (b) : F a -1 (y)
Nesse formato, destacam-se: uma simultnea inverso paradigmtica (valor a transformado no valor a -1 ), e sintagmtica (um termo convertido em predicado). Mas nos exemplos dados, essa dupla transformao se d em fronteiras: na passagem entre verses Zuni afastadas por meio sculo, e entre mitos do rei-coxo dipo em Tebas e mitos da rainha-coxa de Corinto; na passagem de cdigos da comunicao (enigmas e profecias, perguntas sem resposta e respostas sem pergunta), cdigos da sociedade (incesto e parricdio), cdigos corporais (coxos, disformes, canhestros), cdigos cosmolgicos (origem ctnica e origem vegetal da humanidade).
17 UM EXEMPLO DA OLEIRA CIUMENTA O procedimento introduzido na anlise do mito de dipo pode ser resumido assim: completar um quadrado lgico passando de uma trade autocontida e empiricamente sustentada para um quarto termo que exige um salto, que Lvi-Strauss chamar de dialtico na Antropologia estrutural (1958) e nO pensamento selvagem (1962), e de deduo transcendental em 1985 em A oleira ciumenta. No ser possvel aqui explorar a complexidade das cinco aplicaes da frmula cannica nesta ltima obra, mas tampouco ser possvel deixar de fazer referncia primeira delas, qual Lvi- Strauss dedica os captulos de 1 a 4. O programa geral assim descrito j no prefcio da obra: Partindo de um mito bem localizado, que, primeira vista, parece aproximar por capricho termos heterclitos sob todos os pontos de vista, seguirei passo a passo as observaes, as inferncias empricas, os juzos analticos e sintticos, os raciocnios explcitos e implcitos que do conta de sua ligao (Lvi-Strauss, 1985: 22). Acompanhemos alguns dos passos anunciados nesta afirmao. O mito em questo vem dos Jvaro. Na primeira verso, a narrativa conta como Sol e Lua, que viviam outrora na terra e compartilhavam a esposa Ahho, entram em conflito por cimes da esposa e deixam a casa rumo ao cu. Quando Ahho tenta seguir os maridos ao cu, levando consigo um cesto com argila, o cip que usava como escada cortado e ela cai de volta na terra, onde, transformando-se no pssaro Engolevento (Ahho), canta at hoje em noites de lua nova, saudosa do marido. Mas ao cair, Ahho espalhou sobre a terra o cesto de argila que levava consigo, e que serve hoje para fabricar os vasos para festas e cerimnias. Seguem-se sete outras verses, nas quais ora se trata de explicar a origem da argila de cermica, ora dos gerimuns cultivados, ora dos cips da floresta. Lvi-Strauss identifica os gerimuns cultivados (cucurbitcias cultivadas) a variantes combinatrias dos cips silvestres (ambos trepadeiras). A argila tem em comum com os cips a caracterstica de serem informes; tm a propriedade do contnuo em oposio ao discreto (como os bambus); em todo caso, a ocorrncia da argila um invariante em todas as verses, e entende-se que argila e cips-gerimuns possam ser identificados. A concluso do captulo 1 dA oleira ciumenta , portanto, formulada em torno de trs elementos:
18 Os mitos Jvaro colocam contudo um enigma. Eles pem em estreita conexo uma arte da civilizao, um sentimento moral, e um pssaro. Que relao pode haver entre a cermica, o cime conjugal e Engolevento? (Idem: 34). Tendo em mente esse enigma, o autor expe no captulo 2 o programa a seguir: "Nos perguntaremos primeiramente se h uma ligao entre a cermica e o cime () Em seguida, nos interrogaremos sobre a ligao entre o cime e o Engolevento. Se, nos dois casos, obtivermos um resultado positivo, seguir-se- pelo que chamei outrora de uma deduo transcendental que existe tambm uma ligao entre a cermica e Engolevento (Idem: 35)." Os captulos 2 e 3 so dedicados aos dois primeiros passos dessa demonstrao. O captulo 3 comea enfatizando a conexo entre a arte da cermica e prescries e cuidados mltiplos que beiram a obsesso (Idem: 34). Aqui Lvi-Strauss utiliza livremente dados da etnografia sul-americana e norte-americana que tratam da arte cermica, incluindo os Yurucar, os Tacana e os Jvaro do piemonte andino, os Waur do Xingu e os Urubu do Maranho, os Tanimuka do sudoeste colombiano, concluindo que em toda parte a Me terra, a Av da Argila, a Dona da Argila e das panelas de barro, a patrona da cermica uma benfeitora dos humanos, mas tem um carter ciumento e implicante, dando mostras de cime em diversas formas, chegando a exigir a castidade de ceramistas como entre os Urubu 11 . Lvi-Strauss estende essa demonstrao mitologia da Amrica do Norte, concluindo que resulta que os mitos e as crenas fazem uma ligao entre a cermica e o cime, de tal modo que a conexo entre cermica e cime um dado do pensamento amerndio (Idem: 48). No captulo 3 continua a demonstrao com seu segundo passo: a existncia do nexo entre o cime, a avidez e as desavenas conjugais, por um lado, e a figura do pssaro Engolevento (Lvi-Strauss conhece muito bem o amplo lxico brasileiro para o pssaro: Bacurau, Curiango, Urutau, Me-da-Lua, Manda-Lua, Chora-Lua). Um aparente problema o carter disparatado dos mitos americanos que tratam do Engolevento. Lvi-Strauss, contudo, os agrupa por grandes temas: (1) no primeiro grupo, o Engolevento colocado em um panteo (servidores de Lua entre os Tupi amaznicos, pssaro sagrado dos Campa cujas penas ornavam o diadema do Inca etc.),
11 Nisso a Me-da-Argila assemelha-se Me da Seringueira dos seringueiros do sudoeste amaznico.
19 ou descendentes de deidades, ou ainda associado Lua ou ao Sol, o que pe todo esse grupo de mitos em conexo com o tema mais geral de conflitos domsticos entre os astros; (2) num segundo grupo, a tnica recai sobre a conexo entre Engolevento e brigas conjugais motivadas pelo cime (Karajs, Arauak da Guiana, Mundurucu e Tenetehara); (3) um terceiro grupo de mitos liga o Engolevento avidez e gula (Quchua do noroeste da Argentina; Karib e Arauak da Guiana, Ayor do Chaco boliviano). Dessa forma, os mitos heterclitos de Engolevento, quer tratem de conflitos csmicos entre deuses ou de brigas domsticas entre humanos, aparecem como parte de um contnuo. Os captulos 2 e 3 completam, assim, os dois passos iniciais do raciocnio que consiste em estabelecer primeiro que h uma ligao entre a cermica e cime, e, em seguida, que h uma ligao entre cime e Engolevento. A primeira conexo terica: e trata-se aqui da teoria indgena segundo a qual a cermica uma das coisas que esto em jogo no conflito csmico entre potncias celestes e potncias ctnicas. J a segunda conexo, entre cime e Engolevento, resulta de uma deduo emprica apoiada na associao sensvel entre o pssaro e um carter gluto, solitrio e triste, mas que ainda confirmada pela ligao entre desavena conjugal e conflitos entre astros. Resta o terceiro passo: mostrar que tambm existe uma ligao entre a cermica e Engolevento. Mas esse terceiro passo exigir uma deduo transcendental. 12 No captulo 4, Lvi-Strauss faz o seguinte balano da situao: "Partindo de mitos Jvaro que constroem um tringulo: cime, cermica e Engolevento, mostrei que no pensamento dos ndios sul-americanos existe uma conexo entre cermica e cime de um lado, e entre cime e Engolevento de outro" (idem: 67).
12 Ao flertar com a linguagem kantiana, Lvi-Strauss est ressaltando que passos do pensamento mtico que no derivam da experincia sensvel. Lembremos que Kant explica essa noo recorrendo distino jurdica entre o que de direito (quid juris) e o que de fato (quid facti). No argumento de fato bastam exemplos empricos; mas para convencer que algo de direito preciso uma deduo a partir de princpios. Analogamente, diz Kant, no caso de conceitos empricos, podemos recorrer experincia para atribuir um sentido a eles; mas no caso de conceitos sintticos a priori, preciso uma deduo a partir de princpios: Chamo essa explicao do modo como conceitos a priori podem relacionar-se a objetos, de deduo transcendental desses conceitos, e distingo esta da deduo emprica, que indica o modo pelo qual um conceito obtido da experincia e da reflexo sobre ela...(Critica da Razo Pura, A85). LVI-STRAUSS, 1985, p. 35.
20 A essa altura, contudo, diz Lvi-Strauss, a demonstrao permanece incompleta: Se os trs termos formam um sistema, preciso que estejam unidos dois a dois. (...) Mas que relao existe entre a cermica e o Engolevento? (idem: 70). O problema pode ser exibido na forma do esquema seguinte:
Esquema 7. Um tringulo emprico-lgico cime Engolevento : ceramica ?
A coluna da esquerda formada por atributos morais e tcnicos (cime, cermica), e a coluna da direita corresponde a termos (Engolevento, ?). Lvi-Strauss se pergunta sobre a conexo entre o termo Engolevento e o atributo cermica. Essa conexo deveria aparecer mediatizada por um quarto termo que, no entanto, est ausente: como se faltasse, no raciocnio feito nos mitos Jvaro, um pssaro na linha inferior ao qual corresponda o atributo de ceramista. "Aqui se coloca um problema sobre o qual convm nos determos, pois sua soluo envolve certos princpios fundamentais da anlise estrutural dos mitos. Para demonstrar a conexo entre o Engolevento e a cermica, deveremos recorrer a um pssaro que no ocupe qualquer lugar nos mitos considerados at o presente"(idem: 70-71). Esse pssaro ser encontrado: a Maria-de-Barro (Furnarius sp.), que tem costumes diametralmente opostos aos do Engolevento: loquaz e no taciturno, constri sua casa de argila, e notvel pela harmonia conjugal, apreciando a convivncia com humanos. Eis como Lvi-Strauss justifica inicialmente a introduo do novo termo. Assim, a introduo da Maria-de-Barro se justifica de um ponto de vista lgico, pois um Engolevento ao inverso, e tambm geogrfico, pois eles provm do Chaco onde vivem os Ayor, em cujos mitos e ritos o Engolevento desempenha um papel mpar (idem: 71). O fournier, que os moradores caboclos e indgenas das florestas do alto rio Juru chamam de Maria-de-Barro, objeto, segundo Lvi-Strauss, de tratamento respeitoso
21 pelos Kaxinau que habitam as florestas da mesma regio. Esse tratamento respeitoso, alis, compartilhado pelos seringueiros e caboclos, que o estendem a outro pssaro- construtor de casa, que o Japim, que, diferena da Marias-de-Barro, no constri sua casa de barro, e, sim, de vegetais. Mas legtimo esse procedimento de fechar um ciclo de transformaes por meio de um estado que no dado nos mitos que ilustram os outros estados (idem: 77)? A primeira resposta que, mesmo que Marias-de-Barro no apaream explicitamente nos mitos Jvaro, esto presentes implicitamente neles: "No h dvida de que as Marias-de-Barro estivessem presentes no pensamento dos ndios, mesmo quando no falavam delas. E seus costumes, dos quais dei provas, no poderiam deixar de serem percebidos em oposio com os dos Engoleventos"(idem 78). Mas isso no suficiente: preciso apoiar esse passo do invisvel para o visvel em um princpio geral. aqui que o autor recorre frmula cannica de 1955, em dois passos. E aqui tomo a liberdade de manter, junto com a notao de aparncia algbrica usada por Lvi-Strauss, a notao diagramtica que utilizei mais acima no Esquema 7.
Esquema 8. A Frmula Cannica na Oleira Ciumenta: o enigma F cime (Engolevento) : F oleira (Mulher) :: F cime (Mulher) : ?
Essa primeira proposio em forma de enigma l-se assim: que relao existe entre o Engolevento que funciona como um pssaro ciumento, e uma mulher cuja funo explicar a origem da cermica? Se pensarmos no esquema com a forma de uma analogia, a resposta seria: a mesma relao que temos entre a Mulher que funciona como humano ciumento, e o Engolevento cuja funo explicar a origem da cermica. Mas o problema que essa resposta coloca que, enquanto o cime um atributo empiricamente observvel em mulheres (assim como o carter de ceramista), e o carter ciumento do Engolevento tambm um fato da experincia, o carter ceramista do Engolevento desmentido pela experincia. Em outras palavras, o raciocnio da analogia (em que, se A/B = C/D, ento AD = BC) no funciona. A resposta correta, diz Lvi-Strauss, dada pela continuao da frmula cannica, agora com uma inverso sinttica na linha inferior (permutando o papel de atributo e de termo) e uma simultnea inverso paradigmtica no termo introduo da Mariade- Barro sob uma forma invertida.
23 Esquema 9. A Frmula Cannica: uma resposta F cime (Engolevento) : F oleira (Mulher) :: F cime (Mulher) : F engolevento -1 (Oleira)
Lvi-Strauss l assim a frmula: a funo ciumenta do Engolevento est para a funo oleira da mulher assim como a funo ciumenta da mulher est para a funo Engolevento invertido da oleira (idem: 79). Na segunda parte do raciocnio, a funo-cime aplica-se Mulher, mas em lugar de a funo-oleira aplicada ao Engolevento, um Engolevento invertido (Maria-de-Barro) que, tomada como predicado, se aplicado oleira. A frmula indica que que (1) os termos Mulher e Engolevento (lado esquerda) so congruentes sob a relao de cime, e que (2) os termos Mulher e e Oleira so congruentes sob a relao oleira (aplicada mulher) e Maria-de-Barro (Engolevento invertido) 13 . Conclui Lvi-Strauss: "A funo cime do Engolevento deriva, conforme demonstrei, do que chamei em outro lugar de deduo emprica: a interpretao antropomrfica da anatomia e dos costumes observveis deste pssaro. Quanto ao Joo-de-Barro, ele no pode desempenhar o papel de termo, porque no figura como tal nos mitos de Engolevento. Ele est presente como termo apenas nos mitos que o invertem. Mas seu emprego a ttulo de funo verifica o sistema de equivalncias, por transformao em deduo emprica daquilo que de incio no era mais do que uma deduo transcendental (que o Engolevento possa, como afirma o mito, estar na origem da cermica): face experincia, o Joo- de-Barro um mestre oleiro, assim como, face experincia, o Engolevento um pssaro ciumento" (idem: 80).
13 Lembremos que, no caso do ciclo tebano de dipo, o carter coxo do Rei aparecia como um trao implcito (ou inconsciente), mas aparecia em forma explcita no ciclo corntio de Labda, que constitui uma versoinvertida do ciclo tebano de dipo.
24 Comentemos esse interessante raciocnio formulado por Lvi-Strauss com o vocabulrio kantiano. No fundo do raciocnio est expresso o pensamento mito-lgico por meio do qual (emprico e dedutivo) os mitos Jvaro associam explicitamente a origem da
25 cermica a uma mulher (que so ceramistas no tempo de hoje) e um pssaro caracterizado pelo cime, o Engolevento (um pssaro que vive solitrio e emite lamentos noturnos em noites de Lua). Por que esse pssaro, e no outro que tem uma conexo emprica com a arte da cermica, tal a Maria-de-Barro? como se o raciocnio mtico, expresso no esquema lvi-straussiano (tambm aqui no sentido kantiano), exigisse um recuo face aos dados da experincia direta, de modo a poder situar essa experincia em termos mais amplos (aqui o de conflitos csmicos entre astros). O construtor de mitos no um coletor de impresses da experincia, mas um terico. Em vez de introduzir no mito de origem da cermica um pssaro ceramista e domstico (uma espcie de imagem icnica de conjugalidade estvel), ele introduz um espelho do Joo-de-Barro, cuja conexo pela cermica, em cuja origem est presente, se d pelo trao moral que tem em comum com oleiras, o cime, e que tambm um nexo entre o uso domstico da arte da cermica e as grandes questes metafsicas que se travaram na abbada celeste no comeo do mundo. Cabe aqui, talvez, um eplogo. Para isso, reapresentamos a frmula como uma operao sobre uma fita de papel. A sugesto que o esquema de pensamento indicado pela frmula cannica tem menos a ver com lgebra do que com topologia. Para perceber isso, pensemos literalmente no Esquema 10 abaixo como dois retngulos recortados em folhas de papel. Recortamos a primeira fita e colamos as suas extremidades, juntando CIME com engolevento, e OLEIRA com mulher. O resultado um cilindro, e corresponde primeira proposio da frmula cannica. Em seguida, recortamos a segunda fita, e colamos CIME com mulher, e OLEIRA com engolevento. O resultado uma fita de Mbius, e corresponde segunda proposio da frmula. A passagem do cilindro fita de Mbius representa ento o juzo composto: o cime do engolevento est para o carter-oleira da mulher assim como o cime da mulher est para o carter Maria-de-Barro (engolevento invertido) da oleira. A demonstrao de Lvi-Strauss torna-se uma metfora topolgica. No pensamento mtico, rasgar um juzo orientado e reconect-lo atravs de um salto descontnuo, abolindo com isso a separao entre predicado e sujeito e invertendo termos, como passar de cilindro, uma superfcie orientada, para uma faixa de Mbius, superfcie no- orientvel na qual avesso e direito no tm existncia separada.
26 Esquema 10. A frmula cannica: do cilindro para uma fita de Mbius *cime engolevento* **oleira mulher** (colar as extremidades da fita unindo os asteriscos correspondentes) *cime Engolevento -1
-1oleira mulher* (colar as extremidades unindo os asteriscos correspondentes: necessria uma torso na fita)
Lembremos que, para passar de um cilindro fita de Mbius, preciso rasgar e colar, fazendo no percurso uma toro. Com essa metfora topolgica, reencontramos uma idia lvi-straussiana familiar: a de que a lgica das transformaes mticas implica em rasgar e colar, bem como uma figura familiar aos leitores das Mitolgicas. O esquema cannico uma metfora inspirada no esquematismo da matemtica: passar do cilindro para a faixa de Mbius equivale a desorientar um juzo.
PARA QUE SERVEM FRMULAS Meu objetivo foi mostrar que a frmula cannica nem um esquema para formalizar os componentes de uma narrativa, nem um esquema da lgica da analogia.. Em vez disso, indica a possibilidade de acessar um modo universal de organizar os dados da experincia sensvel (Lvi-Strauss, 1958a: 250) na fronteira entre a historicidade irredutvel e as exigncias intrnsecas ao pensamento transformador. Isso implica em uma diferena profunda entre o estruturalismo de Lvi-Strauss e a morfologia de Vladimir Propp (incluindo seus desdobramentos na teoria morfogentica das catstrofes). Se bem-sucedido, a anlise morfolgica/morfogentica levaria a uma gramtica de narrativas, capaz de dar conta de um corpus de base e capaz de produzir outras narrativas similares. O mtodo apontado por Lvi-Strauss, em vez disso, pressupe que mitos se transformam uns nos outros sujeitos a condicionamentos da histria e a exigncias de uma lgica no-orientada e assim aberta historicidade;
27 assim, guia o investigador para explorar as transformaes sintticas e paradigmticas que registram a maneira pela qual o narrador mtico coletivo elaborou teorias sobre o mundo atravs de transformaes sucessivas e abertas (Lvi-Strauss, 1958b: 260- 266). 14
A leitura cannica do mito vai do consciente para o inconsciente; ela antecipa possibilidades novas, em vez de meramente descrever aquilo que j foi atualizado: sinttica e no analtica. Ela exige do observador que transite da deduo emprica apoiada na etnografia para a deduo transcendental e desta novamente para a deduo emprica (Lvi-Strauss, 1985: 80). No ciclo tebano dos mitos de dipo, uma primeira inferncia emprica aponta o papel lxico coxo, gago e canhestro em nomes de reis masculinos de uma linhagem estrangeira exgama, mas uma deduo transcendental que remete ao termo coxo uma rainha nativa de uma linhagem nativa endgama. 15
Paramos para retomar as afirmaes do prprio Lvi-Strauss sobre o assunto, primeiramente nos artigos do perodo que vai de 1955 a 1958. Consideremos afirmaes como a seguinte: () se chegamos a ordenar uma srie completa de variantes sob a forma de um grupo de permutaes, pode-se esperar descobrir a lei do grupo. (Lvi- Strauss, 1958a: 253) Mas um grupo essencialmente uma famlia de permutaes (como no Esquema 1). Mas conclumos que a frmula cannica tem outra estrutura, que a do Esquema 2 ou
14 Compare-se essa viso com as de Carneiro da Cunha (2009[1973]), Marshall Sahlins (1981, 1985) e de Peter Gow (2001). Creio que ela convergente com a que Viveiros de Castro expressa em texto que chegou s minhas mos quando acabava de revisar o presente captulo, e do qual extraio a seguinte passagem: Com a frmula cannica, em lugar de uma oposio simples entre metaforicidade totmica e metonimicidade sacrificial, instalamo-nos imediatamente na equivalncia entre uma relao metafrica e uma metonmica, a toro que faz passar de uma metfora a uma metonmia ou vice-versa: a famosa dupla toro, a toro supranumerria, o double twist que, na verdade, transformao estrutural por excelncia. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008) 15 Um exemplo com o qual comecei a apresentao oral deste texto dado por uma anedota que est em Tutamia, de Guimares Rosa. Professora: Joozinho, d um exemplo de substantivo concreto. Joozinho: Minhas calas, professora. Professora: E de um substantivo abstrato?. Joozinho: As suas, professora. A anedota poderia ser reformulada como um enigma cujo esprito bem captado pela frmula cannica, cujo quarto termo conduz a um salto inesperado entre domnios semnticos que normalmente se encontram separados. Em vez da uma deduo lgica que levaria resposta esperada ( Minha inocncia, Professora), Joozinho transporta a oposio concreto/abstrato do cdigo gramatical para o cdigo da sexualidade, atravs de uma analogia que leva para alm dos dados imediatos do problema.
28 do Esquema 8, ou de variantes destes. A diferena pode ser exemplificada da seguinte maneira. No caso da deduo analgica (por permutao), espera-se a resposta para uma pergunta: se sabemos que 2 est para 4 assim como 3 est para x, o que x?, e sabemos que a resposta 6 (porque 2 x x = 4 x 3) sem precisar introduzir algo realmente novo. Mas no segundo caso, trata-se de achar uma pergunta para uma resposta ambgua. Se sabemos que 4 o resultado de uma transformao T aplicada a 2, qual o objeto x que est conectado a 3 por uma transformao T? Esse segundo caso tem duas incgnitas: a transformao T, e o objeto x. Mas assim como uma equao com duas incgnitas no tem soluo nica, um problema assim formulado no tem uma resposta nica, e, sim, vrias. Para escolher entre elas preciso voltar ao plano emprico e buscar entre os possveis x e as possveis transformaes T aqueles que conectam melhor os mitos entre si. O que Lvi-Strauss designa por lei do grupo tem, portanto, um significado peculiar. E vemos uma confirmao disso no captulo XII de Antropologie structurale, escrito em 1956, intitulado Estrutura e dialtica, e que um importante complemento Estrutura dos mitos: " indispensvel comparar o mito e o rito, no somente ao seio de uma mesma sociedade, mas tambm com as crenas e prticas de sociedades vizinhas. Se um certo grupo de mitos pawnee representa uma permutao, no somente de certos rituais da mesma tribo, mas tambm dos de outras populaes, no podemos nos contentar com uma anlise puramente formal: esta constitui uma etapa preliminar da pesquisa"(Lvi-Strauss, 1958b: 265-266) Nesta viagem entre mitos vizinhos e aqui est o ponto importante no buscamos a difuso de elementos de mitos, e, sim, a ao ativa do construtor de mitos coletivos, atravs de transformaes que revelam mecanismos de respostas, de desculpas ou mesmo de remorsos: "Procurei () sublinhar que a afinidade no consiste apenas na difuso, fora de sua rea de origem, de certas propriedades estruturais ou na repulso que se ope sua propagao: a afinidade pode tambm proceder por anttese, e engendrar estruturas que oferecem o carter de respostas, de desculpas ou mesmo de remorsos" (idem: 266).
29 Vemos a dois nveis: um o da forma lgica, e outro o do inconsciente, combinados como verso e anverso, e rastreados atravs de distncias geogrficas e histricas. Como insiste Lvi-Strauss, em 1958, () tudo que uma anlise estrutural do contedo do mito pode por si s obter so: regras de transformao que permitem passar de uma variante a outra (idem: 260). Uma verso do mito se transforma em outra na histria e no espao geogrfico, e essas transformaes, infletidas pela realidade, subordinam-se, ao mesmo tempo, a exigncias de teorias abrangentes sobre o mundo. 16 Vemos assim que a frmula cannica, segundo esses textos da dcada de 1950, de fato pretende remeter de um lado a operaes lgico-algbricas, e de outro a operaes histrico-psicolgicas, razo analtica e razo dialtica, deduo e fabulao. Chegamos ao final evocando um ltimo testemunho de Lvi-Strauss sobre o uso de sua frmula. Trata-se de uma carta que o antroplogo francs escreveu a Solomon Marcus em 1994, citada por Pierre Maranda em sua introduo ao volume dedicado inteiramente frmula cannica, mas com perspectivas em geral dissonantes em relao do antroplogo francs. Na carta, Lvi-Strauss pronuncia-se em tom conciliatrio a respeito do afastamento entre sua perspectiva e a dos autores do volume, que supostamente estariam introduzindo a diacroniana anlise narrativa e aplicando a frmula cannica para formalizar a evoluo temporal das aes em um mito ou em um rito particular: "You distinguish two uses of the formula, one diachronic, the other synchronic. The first one can be illustrated by Maranda and Maranda [1971] who apply it to the time-dimension within narratives whereas I use the formula in order to sort out variants from a purely formal viewpoint". (Lvi-Strauss, 2001a [1994]: 314). ["O Sr. distingue dois usos da frmula, um diacrnico, o outro sincrnico. O primeiro pode ser ilustrado por Maranda e Maranda [1971], que o aplicam
16 Terence Turner chamou a ateno para a diferena entre transformao lgica e transformao histrica ao comentar um artigo de minha autoria sobre o estruturalismo de Lvi-Strauss. Infelizmente, deixei passar o alcance desse ponto perfeitamente justificado naquela poca (ALMEIDA, 1993). Ver tambm GOW, 1991.
30 dimenso temporal interna a narrativas, ao passo que eu uso a frmula para organizar variantes de um ponto de vista puramente formal".] Mas Lvi-Strauss pe em questo essa distino, chegando questo de fundo: a natureza da diacronia. "Nonetheless, even my use of it implies a diachronic aspect. The variant that comes last (the 4th member of the formula) stems from an event that occurred in time: overriding cultural or linguistic borders, borrowing by foreign audiences, etc."(idem: 314). [No obstante, mesmo meu uso dela implica um aspecto diacrnico. A variante que vem por ltimo (o quarto membro da frmula) brota de um evento que ocorreu no tempo: a ultrapassagem de fronteiras culturais ou lingsticas, o emprstimo por uma audincia estrangeira etc.] Um exemplo final desse procedimento, alis, o artigo com o qual Lvi-Strauss contribuiu para o volume em questo, organizado por Pierre Maranda. Neste interessante captulo, Lvi-Strauss utiliza a frmula cannica para pensar a conexo entre modos de representar o cosmos em construes religiosasrituais do Japo, na ndia e na Amrica do Sul (Lvi-Strauss, 2001b [1994]: 28). Ora, a diacronia histrico- geogrfica a que se refere Lvi-Strauss aqui tem um peso material: "In the present case, it is remarkable that the double transformation illustrated by the formula is initiated by technical constraints. The passage from one material to another thus plays the same role
31 as do changes of a linguistic or cultural nature in other contexts: it always involves the crossing of a threshold" (idem: 28). [...No presente caso, notvel que a dupla transformao ilustrada pela frmula seja iniciada por restries tcnicas. A passagem de um material a outro desempenha assim o mesmo papel que mudanas de natureza lingstica ou cultural em outros contextos: ela envolve sempre o cruzamento de um limiar.] Voltando a sua carta, Lvi-Strauss continua a distinguir a diacronia da histria real de uma diacronia puramente simblica: "one may conceive of diachrony in two ways: either as inscribed in the internal time span of a specific narrative (le temps du rcit), or as the inscription of several related narratives in an external time span (le temps historique)" (Lvi-Strauss, 2001a [1994]: 314). [...pode-se conceber a diacronia de duas maneiras: quer como inscrita na durao temporal interna de uma narrativa especfica (le temps du rcit), ou como a inscrio de vrias narrativas relacionadas em uma durao temporal externa (le temps historique).] Finalmente, Lvi-Strauss especula sobre a possibilidade de uma combinao entre os dois enfoques, admitindo-se () individual minds that consciously invent narratives, and collective minds that unconsciously generate series of mythical transformations () (idem: 314). Contudo, acrescenta, possvel que esses dois procedimentos do not abide by the same constraints or do not resort to the same possibilities. Indivduos que inventam narrativas (o plano da parole) de maneira consciente, e pensamentos coletivos (ou coletividades pensantes) sujeitos a coeres da histria de longa durao, estaro sujeitos a diferentes restries que funcionam aqui como infra-estrutura do pensar: sejam materiais de construo (pedra, palha), sejam materiais de pensamento (Bacuraus e Joes-de-Barro), no tm a mesma distribuio geogrfica. Lvi-Strauss , ao mesmo tempo, um kantiano sem sujeito transcendentale um materialista histrico? Se tivermos em mente a noo de que as mentes coletivas que geram inconscientemente sries de transformaes mticas, sujeitas a coeres materiais de longa durao, as duas proposies no so to absurdas como parecem primeira vista. Na frmula cannica, o ltimo membro, aquele no qual ocorre uma
32 dupla toro, conecta narrativas relacionadas entre si na temporalidade real. As transformaes no tempo histrico no se reduzem mera diacronia simblica das estruturas de pensamento. Isso porque da mesma maneira como uma mquina pode ser vista formalmente como pura estrutura reversvel em um tempo abstrato, mas sujeita s leis da termodinmica e condenada ao aumento de entropia ao ser considerada no tempo real da histria , as formas da lgica mtica so sujeitas s injunes da infra-estrutura e capacidade revolucionria da mente humana, que consiste em poder transpor as fronteiras da experincia sensvel e se projetar rumo ao desconhecido.
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