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A Escrita Academica - Marcos Villela Pereira

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A ESCRITA ACADMICA DO EXCESSIVO AO RAZOVEL


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Marcos Villela Pereira

Minha contribuio com este ensaio no pretende muito mais do que ajudar a colocar
em questo um aspecto muito particular da escrita: a relatividade do valor de verdade no
mbito da escrita acadmica. Longe de esgotar a questo, vou me inscrever em um debate
interminvel sobre o poder da palavra. E, para isso, vou tambm me servir da palavra: a
palavra para tratar da palavra. E essa circularidade vai contribuir para fazer aparecer em
nosso caminho um sem nmero de armadilhas que, na maior parte das vezes, vou apenas
mencionar e deixar vir tona. Vou comear pela indicao de dois extremos e, a partir disso,
chafurdar em algumas possibilidades que surgem nesse infinito campo, limitado por esses
extremos.
Em um extremo, a palavra representa a priso do pensamento. Violncia contra o
movimento infinito e intensivo que o fluxo da conscincia, ela fixa, demarca, regula e
constrange o pensamento. Se o exerccio do pensar da ordem do ensaio e da criao, a
palavra surge a como a marca de uma positividade castradora, o exerccio do limite. Nesse
caso, parto do suposto de que nenhuma palavra basta, ou seja, nenhuma palavra bastante
para dizer tudo aquilo (na extenso e na intensidade) que ela pretende dizer. A palavra, nesse
caso, uma cornucpia ao contrrio: tenta-se colocar dentro dela, em sua forma limitada, o
infinito de significaes e sentidos que provm da vida e do mundo.
Em outro extremo, a palavra representa a liberdade do pensamento. A palavra d vida,
a palavra faz ver, a palavra cria. A palavra d corpo ao conceito, ao pensamento, sensao,
emoo, inveno. A palavra substrato para a verdade, porto-seguro para evitar o
deslizamento contnuo do tempo. A palavra, nesse caso, o prprio tempo, o mundo
encarnado. A palavra faz existir. S existe aquilo que se pode dizer, como em um arremedo
da criao divina. A palavra o cerne da linguagem e a linguagem a casa do ser.
Entre esses dois extremos, um infinito conjunto de possibilidades e, justamente por
isso, impossvel de ser contido em um arranjo definitivo, um postulado universal. Justamente
por isso, a necessidade da negociao. Negociao de significados, negociao de sentidos,
negociao de verdades. Tanto faz se falamos de cincia, de conversa, de poesia ou de
literatura: a palavra , ao mesmo tempo, uma arena poltica, uma arma e um efeito da
negociao.
Neste ensaio, pretendo pontuar uma forma de expresso da palavra: a palavra escrita.
Mais que isso, a escrita no mbito do ambiente acadmico. Escrita de tese, de artigo, de
ensaio, de dissertao. Escrita propositalmente arranjada para produzir efeitos de verdade. Se
bem que toda escrita mesmo a ficcional, a potica, ou a mtica sempre produz efeitos de
verdade. Porque ela sempre verdadeira enquanto enunciado, enquanto significante de algo.
Qui, no mximo, possamos colocar em questo a veracidade do seu referente. Mas no
podemos colocar em questo a condio positiva da verdade, ainda que contingente, da
escrita. Mas, enfim, no esse o meu propsito aqui. Antes, pretendo me pautar pela
demanda que a vida acadmica impe sobre os sujeitos que a constituem e a vivem.
Para quem se escreve, na academia? A resposta a essa pergunta est condicionada
funo primria e operacional da escrita. A escrita pode ser um relato, uma comunicao, um
ensaio, um postulado, uma reflexo, uma instruo ou um debate entre tantas outras
possibilidades. Cada um desses tipos de escrita acaba se configurando em funo de um

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Este ensaio se inscreve no mbito da pesquisa Implicaes da prtica e da experincia da formao de professores,
financiada pelo CNPq. Agradeo as contribuies de Maria do Carmo Galiazzi, Federico Gariglio, Diogo Franco Rios e
Cynthia Farina, primeiros leitores deste escrito. Uma verso reduzida foi apresentada na Sesso Especial Escritas de
educao: entre a esttica e a cincia? E para quem?, durante a 34. Reunio Anual da ANPEd.
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interlocutor diferente. O para quem da escrita constituinte da prpria escrita. O
destinatrio da escrita , ao mesmo tempo, um sujeito realmente existente e um sujeito
possvel. Realmente existente porque toda escrita dessa natureza pressupe um leitor, e esse
leitor deve ser tomado como referncia para o endereamento das ideias. Suas caractersticas,
repertrio e posio, so indicadores para a escolha de estratgias enunciativas e para a
escolha do vocabulrio. Mas tambm um sujeito possvel no sentido de se considerar que a
escrita deve atravessar o tempo e durar. Portanto, vale investir em um sujeito que ainda-no
est l para ler, tanto no sentido de algum que ainda-no existe porque no nasceu como
algum que ainda-no chegou ao campo ou no acedeu quele lugar de interlocutor desse
texto.
No podemos desconsiderar que, ao escrever, tambm escrevemos para ns mesmos.
No nosso cotidiano, levamos a efeito, s vezes, enormes batalhas conceituais que necessitam
ser colocadas em palavras para tomar corpo e se constituir em saberes em condies de
novamente entrar na arena do interminvel debate das ideias. Nesse sentido, escrevemos para
ns mesmos, escrevemos para dar passagem a ideias e movimentos que, ao serem escritas,
vo nos constituindo academicamente.
Em sntese, posso dizer que a escrita um campo de negociao do qual participam
escritor e leitor, ambos em permanente exerccio de negociao e deslocamento no ato
articulado (embora diacrnico) de escrever e ler. Diacrnico porque o leitor no l ao mesmo
tempo que o escritor escreve: existe um significativo intervalo de tempo entre a escrita e a
leitura que dever ser compensado com esses exerccios de negociao a que me refiro.
Quando escreve, para dar consistncia escrita, o autor deve negociar. Negociar com
o campo emprico, j que a verdade pretendida no , de modo geral, uma condio objetiva
que existe fora do discurso. Negociar com seu prprio repertrio, j que a escrita emerge e
articula arranjamentos possveis entre o que j se sabe, o que j se conhece e o que se est em
vias de dizer muitas vezes a escrita vem para dizer algo que ainda no sabemos, ela vem
justamente para constituir um saber que, at ser escrito, era mero movimento do pensamento.
E negociar com o leitor, qualquer que seja a sua condio, como explorei algumas linhas
acima.
Para aquecer esse tema da negociao, vou me permitir uma digresso, fazendo
referncia ao fenmeno da traduo. Muitos de ns, que fazemos a academia, estamos
limitados no apenas pelas palavras da prpria lngua, mas, igualmente, pelas tradues que,
no limite, so efeitos do contexto do tradutor e das ferramentas que ele tem para realizar seu
trabalho. Nesse caso, no h garantia a priori de uma melhor leitura, mesmo sendo
poliglotas. Podemos nos perguntar: quo melhor (como objeto de leitura) um original em
relao traduo que dele pode fazer um outro? Estamos defronte a um problema de
movimento circular perptuo que supera as questes de compreenso e interpretao;
estamos, talvez, defronte ao problema do irredutvel (porque toda traduo, mesmo para o
poliglota para o outro que ele mesmo representa uma perda inegvel). Ento, por
exemplo, para aquela pessoa que apenas tem rudimentos de Ingls, The Rainbow, de D.H.
Lawrence, s pode ser O arco-ris? Ou seja, se o leitor no tem acesso ao contedo original
(porque no consegue ler e pensar na lngua na qual foi escrito e portanto no consegue
entrar na cultura do autor), podemos pensar que, para esse leitor, o original nem existe?; ou
que existe mais de um original?; ou que existem originais com diferentes valores e
hierarquias? Certamente penso que para ns leitores crticos existem tradues com
diferentes nveis de validade; mas, o que acontece com a palavra e a ideia originais s quais
nem todos tm acesso? Enfim, no busco uma resposta para isso, mas posso afirmar que uma
das virtudes de se conhecer diversas lnguas consiste, qui, em deixar de ver um texto
escrito em idioma estrangeiro como um objeto fechado ou inacessvel, como um cone
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misterioso ou um fetiche. Encerro aqui a minha digresso e retorno ao curso do que vinha
trabalhando.
A escrita se produz no limiar do prprio sujeito, no limiar do que existe, na delicada e
sutil faixa entre o pensamento e a palavra. Ao escrever, articulamos indissociavelmente trs
dimenses: a lngua, a linguagem e o dizvel. A lngua, com suas condies, regras,
operaes, protocolos, correspondncias, fazendo as vezes de substrato para o pensamento
poder aderir e se desenvolver. A linguagem, aqui entendida como o arranjo estratgico do
discurso em funcionamento, o modo de dizer, proferir, enunciar, narrar, interpelar, proclamar,
persuadir, sugerir, induzir, etc. E o dizvel, por fim, efeito do entrelaamento entre a palavra e
o olhar, aquilo que porque possvel ser visto e pensado, possvel ser dito ou, ao
contrrio, porque possvel ser dito, possvel ser visto e pensado.
Enfim. Como prembulo para a minha reflexo, fao questo de reafirmar a ideia de
que a escrita um campo de turbulncia, por sua prpria natureza. Escrever resulta de um
movimento dinmico de disputa e luta no qual muitas vezes sei como comear mas, porque
escrevo negociando com diferentes condies (inclusive com o vazio da escrita ainda-no
produzida a tela em branco ou a folha em branco), no sei ao certo onde vou chegar. No
mximo, at posso saber onde quero chegar, mas a suscetibilidade em que me projeto quando
escrevo, muitas vezes, faz abrir insuspeitadas vertentes de escrita durante o escrever que, se
no desviarem o curso do exerccio, pelo menos permanecero como apelos reclamantes por
novos e posteriores movimentos de escrita.

A escrita das cincias

A escrita cientfica fundamental para a constituio da cincia. Para alm de uma
forma da prtica e da relao com o mundo, na constituio de verdades, a cincia se ancora
em uma certa performance discursiva que constitui campos de validade. A escrita cientfica
busca dar corpo interpretao objetiva da realidade, superando o imediatismo da opinio e
do senso comum, buscando expedientes de universalizao e generalidade. Em grande parte,
o que distingue a cincia das demais naturezas de saber justamente forma da escrita
cientfica. Para se constituir como tal, a cincia precisa romper com as evidncias simples e
com alguns cdigos primrios de leitura do real, propondo uma nova forma de expresso,
articulando novas proposies e uma outra perspectiva conceitual (Santos, 1989, p. 32). Nem
sempre a verdade cientfica reside na formulao de novas definies mas, via de regra, em
novas formas de relao entre conceitos j existentes. Esses novos mapas conceituais que
vo dar consistncia s novas proposies cientficas. A linguagem cientfica o dispositivo
que permite o controle e estabelecimento de um conjunto de regras segundo as quais se
distingue o verdadeiro do falso (Foucault, 1993, p. 13). A constituio dos campos est
fortemente ancorada em um certo tipo de discurso que funciona como um atrator, uma rede
de sentidos que viabiliza caminhos argumentativos e compreensivos de modo a dar
sustentao aos enunciados vlidos.
Historicamente, as cincias procuraram produzir regras de enunciao que contribuem
para que essa linguagem aparea de maneira neutra e impessoal. E essa impessoalidade opera
como um artifcio que tenta afastar o sujeito da linguagem, como se o texto cientfico pudesse
se elevar para alm do mundo e da histria. A neutralidade pretendida pelo discurso
cientfico, ao longo dos sculos, contribuiu para disseminar a ideia acerca da possibilidade de
uma verdade universal que, na mesma esteira da linguagem que a enuncia, existe fora do
mundo e da histria.
O subjetivo e o histrico tornaram-se exemplo da particularidade da qual a cincia
procurou se ver livre por muito tempo e, portanto, passaram a ser tomados como indutores de
enganos, erros e falsidades. O mundo da cincia fez disseminar a ideia de que ramos capazes
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de controlar a verdade por intermdio do controle do discurso: apoiados na pretenso de
controlar o discurso e sua origem, os cientistas desconsideravam que a gnese da linguagem,
do discurso e da escrita a prpria histria. Ora, a contingncia histrica representa o
conjunto de condies de possibilidade da emergncia de uma certa linguagem, de um certo
discurso, de uma certa gramtica e de uma certa semntica.
A cincia, como estatuto estruturante da universidade e do campo acadmico, pouco a
pouco foi conseguindo suplantar a filosofia. No tempo de Schopenhauer, por exemplo, ficava
clara a importncia que o saber filosfico tinha sobre o saber cientfico. Seu propsito,
quando postulava a ideia de pensar por si mesmo, estava ancorado no exerccio filosfico e
na reflexo, se apropriando e dominando o prprio saber (Schopenhauer, 2005). A cincia,
nessa circunstncia, representava ainda antes um efeito da combinao de discursos pr-
existentes. A filosofia tinha autorizao para falar em primeira pessoa; o discurso filosfico
sem perder a clareza, a conciso, a consistncia e o rigor argumentativo era um discurso
autoral, proferido em primeira pessoa por aquele que o formulava. A cincia, de outro modo,
caminhava na direo da universalidade e, portanto, no podia admitir um discurso que
deixasse ver quem o enunciava. A objetividade era o principal dispositivo de garantia do
rigor e a pretensa neutralidade era seu principal efeito.
A forma hegemnica da escrita acadmica, ento, aderiu esses preceitos e a utilizao
do modo indicativo (especialmente nos seus tempos presente, pretrito perfeito e futuro do
presente) e da terceira pessoa (na forma impessoal do pensa-se, afirma-se, sabe-se,
etc.) tornaram-se expedientes exemplares para as proposies discursivas da cincia. O
subjuntivo (ou condicional por exemplo se isso... ou quando aquilo...) passa a fazer
parte apenas da enunciao do corolrio e da argumentao, reabilitando a forma clssica do
silogismo. A primeira pessoa (o eu que fala) e as formas nominais (notadamente o
particpio e o gerndio por exemplo tem sido... ou vem sendo...) so sumariamente
excludos, uma vez que representam uma abertura para o particular e para o relativo. Teses,
dissertaes e artigos, se quisessem assegurar a pertinncia e a validade, precisaram, por
muito tempo, ser escritos em conformidade com essa norma.
O efeito dessa condio fazer com que se tenha produzido um crculo de submisso
entre a lngua e a realidade, de modo que a imagem que se fabrica do real tenha o mais
possvel a aparncia do real a que se refere. Ou seja, o efeito a manipulao da palavra com
vistas manipulao das ideias.
Manipular entrar de assalto ou furtivamente na mentalidade de algum para ali
alojar uma opinio, sem que fique evidente que houve essa invaso (Breton, 1999, p. 21).
Desse modo, se consegue paralisar o julgamento e fazer com que o sujeito receptor (o leitor,
o aluno, a platia) baixe a guarda e a resistncia contra um pensamento que de outro modo
no seria aprovado (idem, p. 64). As figuras de estilo contribuem para que a comunicao
seja unvoca e desvie de formulaes ambguas, duvidosas ou equvocas. Figuras de
linguagem, intertextualidade, citaes, referncias, um sem-nmero de ferramentas podem
ser utilizadas com vistas a produzir um efeito de seduo que capture o receptor e o aprisione
em um regime lgico ao qual ele dever aderir. como se o texto, nesse caso, pudesse ser
colocado acima de qualquer questo. O texto deve convencer; as notas, as citaes e as
referncias devem provar (Grafton, 1998, p. 25).
No caso da comunicao cientfica, o que se quer que o leitor, a banca examinadora
ou o comit cientfico que faz a avaliao do trabalho para publicao ou apresentao sejam
convencidos, persuadidos de que o que se diz verdade. E a verdade, nesse caso, se ancora
na resistncia que o discurso pode oferecer contestao e ao questionamento. Mais do que
colocar em questo a abordagem ou a empiria apresentados, trata-se de colocar em anlise a
matria discursiva, o corpo retrico do texto. Cada palavra no seu lugar, cada ideia em sua
cadeia de coeso, cada argumento em sua posio. O jogo cientfico se assemelha ao embate
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retrico muito comum no campo jurdico: vence aquele que conseguir provar que sua
verdade mais resistente que a do outro.
E a j podemos verificar uma sorte de excessos: textos cuja estrutura sobrevm ao
sujeito e ao mundo. Textos que se arvoram a uma condio universal. Textos refratrios a
qualquer forma de questionamento. Imposturas que se apresentam como supostas perfeies
lingusticas tentam inverter a posio e, ao invs de servir a algum para disseminar uma
ideia, ao contrrio, submetem um pensamento a uma determinada constrio. Tentativas de
dessubjetivao, desistoricizao e despersonalizao. Como ilustrao desse aspecto, vale
mencionar pelo menos trs ocorrncias.
Uma delas, talvez a mais freqente, aparece no mbito da escrita cientfica e tcnica,
em artigos oriundos especialmente das reas ditas duras, de fora das cincias humanas.
Tomando-se, por exemplo, as revistas Science ou Nature, a tnica dominante nos artigos l
predominantes a abordagem de objetos (casos, problemas ou experimentos) muito
particulares em que sua apresentao e anlise, por fora da necessidade de demonstrar uma
verdade pontual, redunda em escritos nos quais predomina a forma seca da gramtica e da
sintaxe, quase sem utilizao de figuras nem exerccios de estilo: as frases so objetivas e
escritas de forma direta, induzindo o leitor a percorrer um raciocnio inequvoco. Essa crueza
um recurso utilizado para fazer da escritura apenas um veculo, um instrumento de
comunicao de uma ideia, ela mesma tentando ser inequvoca. A escrita no pode aparecer.
O leitor deve ler sem ler. As palavras e a estrutura do texto devem servir quase to-somente
para promover a compreenso do objeto de que tratam.
Outra ocorrncia se d em textos e livros de auto-ajuda, em manuais para atingir o
sucesso e similares. o tipo de material que se costuma encontrar em livrarias de aeroporto.
Os primeiros, de modo geral, so conjuntos de instrues para atingir estados plenos de bem-
estar pessoal, para criar bem os filhos, para superar dramas cotidianos e outros problemas.
No raro, se servem de referncias espiritualistas ou de recursos universalistas, abusando das
generalizaes e das figuras caricatas. Os segundos so corruptelas de manuais de educao
corporativa que anunciam frmulas mgicas e estratgias milagrosas para obter sucesso nas
vendas, na gesto e na carreira profissional. Frteis em simplificaes e apresentando o
mundo como um ambiente bvio e previsvel, ensinam a atingir os objetivos como num passe
de mgica. Uns e outros so exemplares na arte da persuaso e da promessa de efeitos sem
maiores conseqncias, comprometendo a seriedade encontrada em seus modelos originrios,
o espiritualismo e a teoria corporativa.
A terceira ocorre em alguns exemplares de textos pretensamente filosficos que, na
maioria das vezes no passam de exerccios de uma escrita fundamentalista com exagero de
sofismas que prescindem da ponderao e da contingncia. Neologismos, construes frasais
barrocas e hermticas e cadeias argumentativas ancoradas em particularismos elevados
condio universal, esses textos costumam seduzir pelo exotismo e pelo ar vanguardista que,
via de regra, favorecem uma arrogncia que afasta tanto quanto uma soberba que diminui o
leitor.

Relativizando a verdade na escrita subjetiva

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua 'poltica geral' de verdade; isto , os
tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, nos diz Foucault (1993,
p. 12). Portanto, a verdade no simplesmente um caso de correspondncia entre os fatos e
as palavras que os descrevem e os interpretam. A verdade o efeito de um exerccio de
negociao ante a realidade.
Ao adentrar no sculo XX, tendo atravessado a crise da cincia europia e tendo
vivido a experincia da incompletude, da relatividade e da incerteza, chegamos ao
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entendimento de que um discurso verdadeiro atende correspondncia entre uma certa
compreenso e uma determinada proposio. Para cada sujeito, o mundo um conjunto de
significaes e de valores e, portanto, no h uma concepo originria, universal ou absoluta
de mundo. Portanto, em se considerando a verdade como um objeto imanente, ela uma
construo singular e histrica. Nenhuma interpretao , a priori, melhor ou pior.
E se essa discusso chegou a ser exclusividade das cincias humanas, chegamos ao
final do sculo XX admitindo que toda cincia humana e que essas classificaes servem
quando muito para organizar catlogos de bibliotecas ou linhas de financiamento nas
agncias. No domnio das cincias humanas, por exemplo, a verdade nunca um ndice de si
mesma, j que seu objeto, constitudo pelas diferentes possibilidades de entendimento do ser
humano, lhe escapa constantemente.
Desse modo e aqui pretendo radicalizar um pouco as consideraes o que
devemos tomar em considerao que a realidade no tem uma consistncia que assegure,
em si, a sua permanncia conceitual. No existe uma objetividade essencial ou transcendental
que sustente uma idia acerca de uma verdade incondicional sobre o que existe.
Rigorosamente, a realidade um estado da experincia. O que a define o tanto de realidade
que aquele que a experimenta traz consigo como repertrio de sentido ou como esquema de
representao (Pereira, 2009). Portanto, quero dizer que a realidade tal como a conhecemos
um efeito objetivo de uma experincia subjetiva. Obviamente, no estou afirmando que o real
no existe ou que todo real racional nem vice-versa. O que pretendo considerar que o
discurso que recobre o real, com o propsito de verdade, depende de uma estratgia de
negociao. Que os fatos empricos existem e so o que so, isso inegvel. Mas a cincia
no um exerccio de numere a segunda coluna de acordo com a primeira ou um jogo de
ligue os pontos, mas um exerccio de compreenso da realidade num determinado contexto,
com um certo propsito e em uma dada contingncia, cuja validao deriva da negociao
com o campo emprico. Atentando para a fronteira existente entre as condies de ser do
sujeito e do objeto, vale pensar que impossvel atravessar uma fronteira sem ser, ao mesmo
tempo, atravessado por ela.
A rigor, todo discurso deve ter a pretenso de dizer sempre a verdade. Falar ipso
facto levantar uma pretenso de validade; qualquer pessoa que realiza um ato de fala
obrigada a exprimir pretenses universais validade e de se supor que possvel honr-las
(Habermas apud Pegoraro, 2006). O discurso uma espcie de negociao, na qual no
permitido excluir ou diminuir ningum e em que o que vale so os argumentos e no as
imposturas retricas. Um enunciado nunca proferido ou pronunciado por um nico
indivduo, mas consiste no alinhamento de todos os implicados (Foucault, 1996; Habermas,
1987).
Refiro-me aqui ideia de ao comunicativa, uma ao voltada para o entendimento:
processo cooperativo de interpretao, no qual os participantes se referem simultaneamente a
aes no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo. Esse tipo de arranjo
permite que as pessoas formulem seu entendimento em comum acordo, sob uma situao em
comum, de modo que se reduza ao mximo o risco de mal-entendido. "Os atores buscam
entender-se sobre uma situao prtica para poder coordenar de comum acordo seus planos
de ao e com isto suas aes. O conceito central aqui, o conceito de interpretao, refere-se
primordialmente negociao sobre qual a verdadeira situao suscetvel de consenso."
(Habermas, 1987, p. 124)
O processo da comunicao no reproduz o mundo da vida de forma mecnica; essa
reproduo sempre reinterpretada contextualmente pelas pessoas, sempre sujeita a receber
um sim/no por parte dos participantes. A velocidade impressa ao cotidiano pela eficincia
requerida pelo mundo da comunicao instantnea nos leva a uma demanda por performances
cada vez mais elaboradas em termos de agilidade de raciocnio e rapidez de resposta. A
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reproduo surge no curso de processos cooperativos de interpretao, em que os sujeitos so
forados a negociar, caso-a-caso, as situaes previamente definidas pelas estruturas de
sentido deste mundo. As pessoas so dotadas de uma competncia comunicativa que testa
sem parar estas estruturas, conferindo pragmaticamente se o consenso obtido nessas
estruturas continua vlido ou precisa ser modificado, por meio do reconhecimento recproco
de determinadas pretenses de validade no decorrer da ao comunicativa (Rdiger, s/d). E a
verdade, nesse caso, se afasta daquela ideia de universal incontestvel e se aproxima do
plausvel.
O que se pode dizer sobre a verdade acerca de uma experincia, do ponto de vista
formal, que de um dado conjunto de proposies possvel derivar (ou no) alguma
proposio dada. Um argumento bom deve ter premissas mais plausveis do que a concluso
(Murcho, 2006). A argumentao ou persuaso racional o processo atravs do qual se
procura estabelecer uma dada concluso, com base num dado conjunto de premissas. A
funo de um argumento persuadir um sujeito da verdade ou plausibilidade da concluso
em causa, por isso tem de se partir de algo que o sujeito considere mais plausvel do que a
concluso. Na negociao, os sujeitos entram em embate e tm de ser compelidos
racionalmente a aceitar a concluso por verem que impossvel ou muito improvvel que a
concluso seja falsa, dadas as premissas apresentadas (idem); por isso os sujeitos devem fazer
com que as premissas sejam tanto ou mais plausveis do que a concluso, caso contrrio
recusaro o argumento (recusando pelo menos uma das premissas) e no vo alcanar uma
concluso.
Enfim. Atravessamos o sculo XIX pensando que a verdade era uma verdade. No
sculo XX alcanamos ver que a Razo era uma forma de racionalidade e que o homem no
tem nenhuma essncia que o preceda. Portanto, o ato de conhecimento, longe de se constituir
como o desvelamento ou o acesso verdade, a experincia de construo de uma verdade.
Temos diante de ns uma realidade que resulta de um sentido que lhe atribudo pelo sujeito
que a experimenta. No mais uma nica forma de racionalidade, uma razo universal, mas
uma realidade que se produz na prpria experincia do sujeito que, ao existir, fabrica
diferentes formas de racionalidade (Pereira, 2009).
Estruturas da racionalidade so sempre associadas com prticas culturalmente
compartilhadas e, inversamente, culturas podem ser concebidas como formas de
racionalidade (Welsch, 2007, p. 251). Diferentes culturas correspondem a diferentes formas
de racionalidade, a diferentes paradigmas. Paradigmas no so construes abstratas alheias
condio histrica ou poltica, no so pressupostos universais ou princpios absolutos. Antes,
paradigmas so formas de racionalidade cultural, histrica e politicamente construdas. No
existe mais nenhuma pergunta que no seria respondida de forma diferente por diferentes
paradigmas. A validade das constataes feitas no interior de uma verso de mundo
relativa s premissas dessa verso: no contexto das premissas escolhidas, as afirmaes
fazem sentido; no contexto de outras premissas, no (id., ibid.).
Uma mesma ideia pode ser verdadeira em um certo contexto e ser falsa em outro
contexto. Ante essa condio pluralista, emerge o desconforto e a insegurana e somos
tentados a sobrepor realidade uma impossvel aparncia invarivel. Porm, o exerccio da
hermenutica crtica nos permite escapar dessa iluso e compreender diferentes formas de
racionalidade possveis implicadas na nossa experincia do mundo.
a plausibilidade que explica como podem os seres humanos, epistemicamente
finitos e falveis, avaliar os argumentos e admitir a pluralizao dos paradigmas. E isso no
significa um relativismo liberal em que tudo pode. Se cada existncia uma situao
histrica e cultural que constitui um paradigma especfico, por sua vez, ela determina
singularmente uma forma de racionalidade. Ento, tudo plausvel se consideramos que essa
plausibilidade est ancorada em um regime de verdade produzido no contexto e na
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contingncia de um paradigma. Como no existe um metaparadigma que possa abarcar
todos os paradigmas, ento resulta aquilo que podemos chamar de relativismo crtico.
Diferentes paradigmas s podem ser reunidos entre si em um debate crtico, mas no
reduzidos, organizados, ou submetidos uns ao juzo dos outros (Welsch, 2007, p. 250), sob
pena de se converterem em sintagmas, segmentos argumentativos relacionados com outros
enunciados dentro do mesmo contexto. Um relativismo crtico , talvez, a forma de
racionalidade mais plausvel se quisermos ser coerentes com o que temos em termos de
realidade subjetiva. Obviamente, sempre corremos o risco de resvalar em um particularismo
ou em uma totalidade em que no possvel negociar: no particularismo, a negociao no
possvel porque o que vale a especificidade do particular; na totalidade, porque o sentido da
totalizao justamente no conceber que nada tenha lugar fora dela.
E essa ideia de que a verdade sobre o mundo corresponde a um sentido produzido no
contexto de uma certa experincia nos leva a uma condio de relativizao que nada tem de
permissiva ou leviana. Diferentemente, essa relativizao exige de ns um debate crtico
rigoroso que nos coloque frente a frente com a nossa prpria experincia, nossa prpria
histria e nosso prprio exerccio de racionalizao. Ao contrrio de nos levar na direo de
um relativismo absoluto (isso, alis, uma contradio, figura prpria de um campo
sintagmtico esse que critiquei logo acima e que tambm pode produzir tautologias,
repeties e superfluidades), queremos ir na direo de um relativismo esclarecido, um
exerccio de crtica e auto-crtica no interior de uma realidade partilhada que poder ser
compreendida e interpretada em termos de verossimilhana ou inferncia (id., ibid.).

O excesso e os abusos na escrita acadmica

Porm, inegvel que essa flexibilizao suscetibilizou uma srie de abusos contra a
cincia e a filosofia, no mbito da cincia e da filosofia. Creio que conhecido de todos
aquele episdio de impostura cientfica no qual, em 1996, o fsico Alan Sokal enviou Social
Text, uma importante revista acadmica, um artigo criticando os cnones da matemtica
burguesa e apresentando a teoria da relatividade de Einstein como uma teoria libertria, na
qual a prpria ideia de constante era derrubada. O artigo com 41 pginas doze de texto e
o restante de notas e referncias bibliogrficas foi submetido avaliao e publicado. Em
seguida, Sokal publicou um ps-escrito em que afirmava que seu texto anterior era um
amontoado de impropriedades sem sentido, apesar das referncias bibliogrficas verdadeiras.
Sokal, dizendo-se preocupado com os caminhos ps-modernos que a esquerda norte-
americana estava seguindo e com o relativismo que se espalhava no ambiente acadmico. Ele
apelou para falsos argumentos de autoridade e, utilizando artifcios lgicos pautados na ideia
do postulado de premissas plausveis para sustentar inverdades, confundiu propositalmente
termos conceituais com seus usos vulgares.
Esse caso exemplar uma ilustrao dos abusos e aberraes que a falta de rigor
possibilita. Uma onda inter-trans-multidisciplinar acrtica e permissiva possibilitou que
aparecessem vnculos nunca antes imaginados entre campos epistemolgicos dos mais
heterogneos. Assistimos uma naturalizao do alinhamento, em um mesmo texto, de
elementos oriundos da ecologia com a gerncia empresarial, por exemplo; ou da nova histria
com a mecnica quntica; ou da qualidade total com a teoria da complexidade; e tudo
recoberto de estilo e retrica, de modo a impressionar e intimidar qualquer leitor.
bem verdade que algumas dessas composies proporcionaram a ampliao do
espectro de leitura e compreenso da realidade, oportunizando o aparecimento de novas
estratgias de ao e interveno, mas tambm contriburam para legitimar uma certa
permissividade irresponsvel, algumas anlises levianas e equivocadas, algumas iniciativas
nada adequadas para a interpretao e gesto dos processos nos quais nos vemos envolvidos.
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Por exemplo, o prestgio das narrativas associadas crescente valorizao das fontes
primrias e sua ampla difuso nos espaos educativos, tendo como correlata a proliferao
das escritas autorreferentes, das biografias e histrias de vida de um modo geral (Ratto e
Henning, 2011), fortalecem a emergncia de imposturas que se disfaram atrs dos preceitos
da liberdade de estilo ou das singularidades. Longe de assumir uma posio denuncista, me
importa apontar o fato de que a fronteira entre os estudos e pesquisas com histrias de vida e
as biografias de modo geral tnue. Se no atentarmos para as medidas de rigor que a anlise
costuma oferecer, correm o risco de se converter em crnicas ou narrativas que, a despeito de
serem bem escritas e interessantes, deixam de corresponder ao status da escrita acadmica.
Neste caso, podemos nos reportar crtica dos anos 1980 e 1990 feita proliferao dos
supostos estudos de cunho etnogrfico em educao que, em grande parte, se resumiam a
extensas e minuciosas descries sem o devido aporte reflexivo e analtico que os converteria
em material de interesse acadmico.
Tambm aparecem em grande nmero textos em que se multiplicam frmulas
brilhantes, aproximaes gratuitas, analogias dispensveis e desnecessrias, resumos rpidos
demais, snteses fceis demais (Bouveresse, 2005, p. xix), confirmando a tendncia a cometer
excessos que se instaura no interior da academia. Se a comparao e a analogia so recursos
vlidos no campo da escrita acadmica, isso no quer dizer que seu uso possa ser feito de
maneira indiscriminada. Seu uso s produtivo quando submetido a medidas de rigor,
precaues e restries que assegurem, por um lado, a sua necessidade e, por outro, a sua
pertinncia. No raras vezes, o que se verifica o abuso de referncias cruzadas que
agenciam obras literrias, teorias cientficas, formulaes filosficas e ensaios personalistas
cuja redao final, feita com a utilizao de vocabulrio especfico e estilo hermtico,
impressiona o leitor fazendo-o crer que aquela formulao to sria s pode ser pertinente.
Se autores como Gilles Deleuze afirmaram que escrever sempre um caso de devir,
sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se (1997, p. 11) ou que devemos escrever para
inventar um povo que falta (idem, p. 14), ou que devemos operar como estrangeiros em
nossa prpria lngua (idem, p. 16), eles se referiam muito propriamente escrita literria. Seu
propsito foi justamente descolar a escrita formal (seja a definio de um conceito, na
filosofia, seja o enunciado de uma proposio, na cincia) da escrita literria (a passagem de
afectos e perceptos para a materialidade da lngua) (Deleuze e Guattari, 1992). S que isso
proporcionou um alastramento incontido de escritos que buscaram, pela analogia entre a
literatura, a filosofia e a cincia, transpor modos de escrita de um campo a outro. E com o
empunhamento de um linguajar muito caracterstico em que os fluxos, os territrios, os
incompossveis, a disrupo e os agenciamentos encharcam os textos criando uma
ciso entre os iniciados ou entendidos e os no-iniciados ou no-entendidos. De fato, um
exerccio de soberba acadmica que, antes de mais nada, afugenta qualquer interessado mais
srio e atrai cada vez mais leitores incautos.
Em que pese o risco da deselegncia, tomo a liberdade de recorrer a mim mesmo
como exemplo desse tipo de movimento. A seguir, recorto um fragmento de minha tese de
doutoramento que, julgo, bem ilustra o que estou pretendendo qualificar como um
hermetismo que favorece a arrogncia e a soberba:

Contedo e expresso so as duas variveis de uma funo de estratificao, dizem os autores.
Ou seja, a matria pura informada, se adensa, se intensifica e gera um estrato. Essa
estratificao responde a uma dupla articulao: por um lado, em funo das conexes entre as
foras, alguns pontos singulares so ativados, num ato de diferenciao. So pulsares, pontos
de potncia mxima (aquelas unidades quase moleculares metaestveis) que se alinham em
uma curva integral, uma linha de atualizao, uma linha de devir (aquela ordem estatstica de
ligaes e sucesses). Dessa maneira, produz-se o contedo de um estrato. Simultaneamente,
essa integralizao demanda uma dobra, ou seja, demanda um adensamento relativamente
estvel (aquela instaurao de estruturas compactas e funcionais) para possibilitar a
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atualizao, a molarizao, a institucionalizao dessas estruturas (aqueles compostos molares
onde as estruturas se atualizam). Enfim, constitui-se a expresso do estrato. (PEREIRA, 1996,
p. 14)

Esse fragmento buscava, no seu contexto de origem, retomar uma analogia feita por
Deleuze e Guattari (1995, p. 54) acerca do postulado de Hjelmslev sobre a funo sgnica,
projetando-a sob a forma de metfora (a lagosta, com sua dupla articulao de pinas). O
fragmento um incontestvel exemplo de hermetismo abusivo que afronta o leitor. O fascnio
pelo linguajar hermtico e o alinhamento a autores cultuados tambm leva, de maneira
inconteste, s demonstraes de propriedade nas adjacncias: a biblioteca de Deleuze ou de
Foucault passam a ser frequentadas como se no houvesse muita coisa alm daqueles autores
lidos por eles. Ou como se fosse inadmissvel para um acadmico contemporneo
desconhecer Franz Kafka, Marcel Proust, Hermann Melville, Marqus de Sade, Maurice
Blanchot, Von Kleist, Friedrich Nietzsche, Lewis Carroll e outros tantos. Sem falar em
Clarice Lispector, Fernando Pessoa e Manoel de Barros, que facilmente foram absorvidos por
esse campo atrator de elevada cultura e iniciao.
O recurso comumente utilizado , ao tratar de um tema qualquer (a sala de aula da
educao infantil, o cotidiano de uma comunidade de pescadores no sculo XIX, a
importncia do ensino de fsica) invocar a analogia com uma teoria filosfica ou formulao
cientfica que possa representar uma contribuio revolucionria ou um efeito controvertido,
de preferncia de autoria de um autor extico e impressionante. Logo depois, algumas linhas
adiante, reiterar que o uso feito dessa teoria ou desse autor apenas metafrico e no deve ser
tomado ao p da letra pelo leitor (Bouveresse, 2005).
No que a metfora ou a analogia no tenham valor. Evidentemente, tm. Aquilo a
que me refiro, aqui, necessidade de sermos honestos no trato do conhecimento. Uma
metfora implica em que o termo empregado deve conservar, no campo em que for
empregado, todas as relaes formais que tinha com os termos no campo original. Qualquer
digresso ou deriva j resvala para a alegoria, em que predomina o valor (digamos) potico
aqui tomado no sentido da permissividade criativa. Mas essa licena potica exige uma
medida de rigor muito mais firme, de modo que a univocidade do postulado no se perca em
ambiguidades e equvocos de interpretao. O problema desses excessos so as confuses
que proliferam, mais atrapalhando do que ajudando a produzir-se um entendimento razovel
acerca do objeto que se est estudando.
Uma das autoras criticadas por Sokal e Bricmont, Julia Kristeva, nos diz que a
cincia das cincias humanas nunca foi pura. Ela introduz uma subjetividade mais prxima da
literatura que da cincia. (Kristeva apud Bouveresse, 2005, p. 105). Bem apontado, j que a
subjetividade duplicada do sujeito e do objeto suscita uma condio compreensiva que bem
justifica a reabilitao do estilo ensastico inaugurado por Montaigne e abre espao para a
escrita livre dos preceitos formais da cincia positiva. Entretanto, dizer que a subjetividade se
coloca mais prxima da literatura do que da cincia no quer dizer que se troca uma coisa
pela outra.
A literatura continua sendo literatura e a cincia continua sendo cincia. O recurso
metafrico no deve suplantar o exerccio de uma inteleco conceitual (no caso da filosofia)
ou proposicional (no caso da cincia). indispensvel o exerccio do juzo e da
argumentao, ainda que no tanto pelo que se julga (porque um ensaio) mas pelo exerccio
do juzo e do argumento. Como instncia de produo de conhecimento, o ensaio acadmico
necessariamente deve articular pensamento e escrita, enunciando um problema e, em seguida,
exercitando o juzo de modo a explorar ponderaes, posies possveis e concluses
plausveis. O movimento argumentativo ser o recurso pelo qual o autor vai estabelecer a
negociao com seu leitor. O que no admissvel uma postura arrogante que tome como
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ferramenta slogans cientficos ou filosficos, frases feitas e palavras de ordem como
argumento de autoridade intimidadores do leitor.
Por fim, quero destacar os efeitos que podemos verificar quando um escrito
acadmico, em favor de uma estilizao ou estetizao superficial (Welsch, 1995), se afasta
daquilo que seria seu propsito original. Quando se torna mais importante demonstrar o
domnio do vocabulrio ou a performance do estilo, em detrimento do contedo ou das
normas epistmicas, alcanamos um estado equivalente ao cinismo em moral (Bouveresse,
2005, p. 132). Pretender que textos cientficos ou filosficos sejam avaliados antes pelo
prazer quase-literrio que proporcionam apostar na demagogia, reforando a falsa
impresso de que a cincia e a filosofia em sua formulao mais tradicional so elitistas e que
a escrita literria mais popular. A escrita acadmica deixa de ser acadmica se for descolada
dos regimes de verdade que a sustentam. O expediente da representao, ainda que exija ser
sempre colocado em questo, imprescindvel quando se trata da filosofia e da cincia.
Deleuze e Foucault, no clebre debate Os intelectuais e o poder, repetem incansavelmente
que uma teoria uma caixa de ferramentas, isto , preciso que sirva, preciso que funcione
(Foucault, 1993, p. 71). Uma teoria no deve ser meramente um enfileiramento de termos que
querem dizer alguma coisa. Um texto no tem por que ser um exerccio de ventriloquismo ou
mimetismo acadmico, mas de outro modo, um exerccio analtico e argumentativo que
permita que o autor fale por si. Ou seja, falar em primeira pessoa, nesse caso, no tem nada a
ver com fazer da escrita um confessionrio nem um palco narcsico, mas um equipamento de
enunciaes, ponderaes, postulados e argumentos que, em ltima anlise, atualizam uma
negociao com o leitor.

Concluindo: a recuperao do razovel

Enfim, torno a dizer que meu propsito no desencadear uma patrulha contra a
soberba acadmica, mas ponderar algumas concepes que em muito comprometem e
atrapalham um dos principais propsitos do conhecimento acadmico: disseminar a felicidade
atravs do conhecimento. Se queremos uma humanidade com melhores condies de vida,
com uma existncia mais digna e com maiores ndices de felicidade, cumpre-nos prestar
ateno para que nosso trabalho cotidiano no interior da academia de fato conduza para
alguns arranjos que viabilizem as condies necessrias para isso. Se nos ativermos a
exerccios meramente retricos, se continuarmos permitindo o alastramento de produes
fundamentalistas, estaremos andando na contra-mo desse objetivo.
Tambm quero me alinhar necessidade de fortalecermos a liberdade de pensamento
(aqui entendida como a condio possvel daquele que faz escolhas por pensar desta ou
daquela maneira) e a crtica (aqui entendida como a abertura para compreender que o modo
de pensar de outrem, desde que plausvel, uma forma de pensar razovel). Costumo tomar a
crtica como sendo a posio de entendermos toda forma de racionalidade como uma forma
possvel. Tomo a crtica como o entendimento de que as coisas sempre poderiam ser
pensadas, entendidas e ditas de outro modo. O outro, em sua maneira de viver e interpretar o
mundo, representa sempre uma forma de existncia plausvel. Portanto, reduzir a crtica ao
ataque liberdade de pensamento representa um abuso inadmissvel no contexto da academia
contempornea. Assim como a tolerncia ilimitada tambm o .
Se queremos escapar dos exageros, no se trata de perseguir os exageradores
cometendo novos abusos e exageros por patrulhamento, controle e perseguio. O que
postulo no que se coba o uso de metforas ou de certos vocabulrios ou certos estilos na
escrita acadmica. O que postulo que se empregue as metforas, os vocabulrios e os estilos
com rigor, honestidade e responsabilidade. Que o razovel se produza como efeito de um
12

exerccio maduro de negociao. Negociao de significados, negociao de sentidos e
negociao de estilos.

Referncias

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sugestes. In: Educao. Porto Alegre/RS, ano XXX, n.2 (62), pp. 237-258, mai/ago 2007.



A ESCRITA ACADMICA DO EXCESSIVO AO RAZOVEL
RESUMO: O artigo prope uma reflexo pontual sobre a natureza da escrita, colocando em
anlise procedimentos argumentativos, enunciativos e dispositivos de produo de regimes de
13

verdade no interior de textos acadmicos. Discute a tenso entre escritor e leitor, constituindo
a escrita como um campo turbulento de disputa e negociao de sentidos e significados de
modo que a mtua interpelao produza deslocamentos na direo da constituio do sujeito
escritor e do sujeito leitor. Apresenta uma reviso de estilos de escrita acadmica, apontando
potencialidades e fragilidades, destacando-se os riscos que o exagero e o excesso podem
produzir nos efeitos de apreenso e compreenso do contedo. Prope, a modo conclusivo, a
ponderao e a plausibilidade como estratgias de estabelecimento de uma medida do que
seja o razovel no interior da cultura acadmica.
PALAVRAS-CHAVE: Escrita, ponderao, plausibilidade, subjetivao, cultura acadmica

ACADEMIC WRITING FROM EXCESSIVE TO REASONABLE
ABSTRACT: The paper presents a punctual reflection about the nature of writing, putting on
analysis argumentative procedures, enunciative devices and the production of truth regimes
within academic texts. Discusses the tension between writer and reader, and propose
understand writing as a turbulent field of dispute and negotiation of meanings and senses, in
what the mutual interpellation produce shifts toward the constitution of the writer and reader
subjectivity. So, presents a review of academic writing styles, pointing out its strengths and
weaknesses, highlighting the risks that the hype and excesses can produce in the
apprehension and comprehension effects of content. As a conclusive way, proposes the
weighting and the plausibility as strategies for establishing as a measure of what constitutes
the reasonable within the academic culture.
KEY-WORDS: Writing, weighting, plausibility, subjectivation, academic culture

MARCOS VILLELA PEREIRA Doutor em Educao, pesquisador do CNPq, Professor
Titular do Programa de Ps Graduao em Educao da PUCRS Pontifcia Universidade
Catlica do Rio Grande do Sul. marcos.villela@yahoo.com.br

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