Bitter, Daniel. Comida, Trabalho e Patrimônio - Notas Sobre o Ofício Das Baianas de Acarejé e Das Tacazeiras
Bitter, Daniel. Comida, Trabalho e Patrimônio - Notas Sobre o Ofício Das Baianas de Acarejé e Das Tacazeiras
Bitter, Daniel. Comida, Trabalho e Patrimônio - Notas Sobre o Ofício Das Baianas de Acarejé e Das Tacazeiras
Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 213-236, jul./dez. 2012
Comida, trabalho e patrimnio
COMIDA, TRABALHO E PATRIMNIO. NOTAS SOBRE O OFCIO
DAS BAIANAS DE ACARAJ E DAS TACACAZEIRAS
*
Daniel Bitter
Universidade Federal Fluminense Brasil
Nina Pinheiro Bitar
**
Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil
Resumo: Este artigo examina o ofcio das baianas de acaraj e das tacacazeiras, no
contexto de seu processo de patrimonializao e salvaguarda pelo Iphan. Ao colocar
uma lente sobre a produo e consumo do acaraj e do tacac, luz da noo de
sistemas culinrios, os autores revelam que distintas concepes de patrimnio
circulam entre essas prossionais, seus clientes e agentes estatais, o que vem, mui-
tas vezes, ocasionar conitos em torno dos usos do espao urbano por parte dessas
prossionais. As descries etnogrcas apresentadas revelam como essas formas
especcas de comida ocupam um lugar central na formao de vnculos sociais e
cosmolgicos, bem como de subjetividades individuais e coletivas. objetivo tam-
bm dos autores colocar em foco as mltiplas representaes e apropriaes que se
fazem do acaraj e do tacac, quando podem aparecer como comidas tpicas, de
rua ou de santo, nos processos de diferenciao e constituio de pertencimen-
tos sociais.
Palavras-chave: comida, patrimnio, sociabilidades urbanas, trabalho.
* Somos extremamente gratos pelas interlocues estabelecidas com Luciana Carvalho, Maria Dina
Nogueira Pinto e Jos Reginaldo Gonalves, que enriqueceram as discusses aqui trazidas. A pesquisa
de campo sobre as baianas de acaraj foi desenvolvida por Bitar (2011) no perodo de 2008 a 2010 na
cidade do Rio de Janeiro e esporadicamente em Salvador. Os dados empricos relativos ao ofcio de ta-
cacazeira foram obtidos atravs de trabalho de campo realizado na cidade de Belm, em janeiro de 2008,
complementado por informaes contidas no Inventrio Nacional de Referncias Culturais: Tacac em
Belm (Pinto, 2005). Daniel Bitter esteve envolvido com o processo de encaminhamento do pedido de
registro do ofcio de tacacazeira ao Iphan no perodo de 2007 a 2008.
** Doutoranda em Sociologia e Antropologia.
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Daniel Bitter e Nina Pinheiro Bitar
Abstract: This paper examines the craft of baianas de acaraj and tacacazeiras in the
context of Iphans heritage and safeguarding process. Focusing on the production and
consumption of acaraj and tacac and using the concept of culinary systems, the
authors show that different conceptions of heritage circulate among these profes-
sionals, their clients and state agents, which has often lead to conicts about the uses
of urban space by these professionals. The ethnographic descriptions presented re-
veal how these specics forms of foods occupy a central role in the formation of social
and cosmological ties as well as of individual and collective subjectivities. The aim
of the authors is to focus on the multiple representations and appropriations that are
made of acaraj and tacac when these foods may appear as typical, street food
or holy food in the processes of differentiation and formation of social belonging.
Keywords: food, heritage, urban sociability, work.
O acaraj e o tacac so comidas altamente elaboradas e apreciadas nas
ruas de certas cidades do Brasil em seus diversos pontos de venda. Ambos so
percebidos de forma distinta da maior parte das demais comidas de rua por
seus produtores e consumidores, e isso parece se dever ao fato de ocuparem
um lugar central na produo e manuteno de intensas e signicativas socia-
bilidades. H muitas semelhanas e diferenas entre o acaraj e o tacac e en-
tre os sistemas culinrios
1
nos quais esto integrados, mas o que os tornam
igualmente importantes para certas pessoas o fato de serem capazes de me-
diar diversos domnios sociais e cosmolgicos, tais como natureza e cultura,
homens e mulheres, casa e rua, pessoas e divindades, sujeitos e objetos, corpo
e alma, e assim por diante.
O acaraj basicamente um bolinho feito a partir do feijo fradinho, frito
em azeite de dend e servido juntamente com vatap, caruru e camaro, alm
da pimenta. preparado pelas chamadas baianas de acaraj, personagens
ligados cidade de Salvador, na Bahia, mas encontradas tambm em outras
cidades, como no Rio de Janeiro.
1
A perspectiva de sistema insiste sobre a interdependncia e pluralidade de seus elementos constituintes,
os quais vo desde a classicao e obteno do alimento (quem compra e com quem, o que considera-
do um bom ingrediente para ser consumido, ou seja, como so feitas essas escolhas), a disposio de seus
restos como fechado esse ciclo e reiniciado (Mahias, 1991; Verdier, 1969). Os sistemas culinrios
so conjuntos de prticas e representaes fortemente integrados a determinadas cosmologias, que unem
pessoa, sociedade e universo (Gonalves, 2002).
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O tacac um prato culinrio produzido e consumido em diversas regi-
es da Amaznia brasileira. Trata-se de uma iguaria constituda por subpro-
dutos da mandioca, entre os quais o tucupi e a goma, alm de camaro seco,
jambu e diversos temperos. preparado e servido pelas tacacazeiras nos espa-
os pblicos de certas cidades amaznicas.
Quando se nota o rduo e complexo processo envolvido na feitura dessas
iguarias de paladar altamente valorizado, a forma ritualizada com que so
produzidos e consumidos, os tabus, de que ocasionalmente so objeto, somos
levados a reconhecer que difcil aceitar a tese de que os alimentos visam uni-
camente atender a necessidades humanas objetivas, seguindo a lgica da ma-
ximizao meios-ns, de acordo com uma razo prtica. Contrariamente,
os dados etnogrcos apontam para uma compreenso da produo, circu-
lao e consumo dessas comidas na perspectiva de uma outra lgica, a que
Sahlins (2003) chamou de razo cultural ou simblica. Como bem sina-
lizou o autor, a cultura que constitui as necessidades e utilidades humanas.
O foco aqui no est, portanto, no contedo nutricional do alimento, ou nas
formas de apropriao e transformao de recursos naturais, mas no paladar
(Gonalves, 2002) de comidas que, muitas vezes, ocupam um lugar central
como mediadoras de relaes sociais.
O ofcio das baianas de acaraj foi registrado como patrimnio imaterial
brasileiro em 2004 pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(Iphan) e o pedido de registro do ofcio das tacacazeiras, por sua vez, est sen-
do avaliado pelo conselho consultivo dessa instituio. O processo de patrimo-
nializao desses ofcios aponta, antes de tudo, para o fato de que as baianas
de acaraj e as tacacazeiras, bem como sua rede de clientes, percebem que es-
sas prticas so dotadas de um valor social e cosmolgico particular. Pode-se
talvez dizer que, antes mesmo do reconhecimento dessas prticas como patri-
mnio no sentido estritamente jurdico e ideolgico, essas mulheres vm h
geraes transmitindo seus saberes e dando continuidade a prticas sociais e
culturais singulares. Patrimnio, aqui, assume outros contornos semnticos,
revelando-se indissociavelmente ligado ao corpo, alma, s relaes sociais,
a certos lugares, ao modo com que essas comidas so servidas e consumidas,
sua esttica, e assim por diante. As baianas e as tacacazeiras no so apenas
cozinheiras capazes de produzir com competncia certas comidas, so atores
sociais que veiculam concepes de mundo. Ser baiana ou tacacazeira uma
forma especca de ser, estar e agir no mundo.
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Alm de responderem s necessidades do paladar essas comidas no se
conguram exclusivamente como demarcadores identitrios, embora possam
vir a cumprir essa funo tambm. Entretanto, no se trata de escolhas cons-
cientes dos alimentos que vo nos representar coletivamente, pois a comida
possui uma dimenso constitutiva. Assim, pode-se dizer que na verdade no
somos ns que escolhemos os alimentos; so os alimentos que nos escolhem
(Gonalves, 2002, p. 9), pois quando os selecionamos, j estamos operando
dentro de um dado sistema culinrio com princpios e regras inconscientes, as
quais nos constituem social e culturalmente.
As muitas aproximaes que se podem fazer entre as baianas de acaraj e
as tacacazeiras nos motivaram a explorar as especicidades dessas comidas e
de seus contextos, considerando seus mltiplos signicados, tendo como pano
de fundo a ideia de que os patrimnios so, anal, constitudos, reconstrudos
e transformados cotidianamente por meio da ao das baianas de acaraj, ta-
cacazeiras e clientes que se juntam ao redor de seus pontos de venda, como
tambm pela ao de instituies patrimoniais e polticas culturais. Estamos
convencidos de que os processos de patrimonializao so processos extrema-
mente complexos que envolvem foras e interesses diversos.
nosso objetivo tambm colocar em foco as mltiplas representaes
e apropriaes que se fazem do acaraj e do tacac. O acaraj e o tacac po-
dem aparecer como comidas tpicas, de rua ou de santo, por exemplo,
e podem ser vistos tambm na perspectiva dos processos de negociao de
diversos tipos de pertencimentos sociais, regionais, religiosos, etc., envolven-
do, muitas vezes, disputas e conitos. O acaraj frequentemente associado
a origens africanas ou afro-brasileiras, como tambm Bahia e a seus terrei-
ros de candombl. O tacac, por sua vez, uma comida emblemtica, ora da
Amaznia, ora de regies especcas do Norte do Brasil, referenciada como
uma receita de origem indgena.
Partindo de nossas observaes etnogrcas, mostramo-nos igualmente
sensveis aos problemas enfrentados por baianas e tacacazeiras relativamente
ao uso do espao urbano, particularmente no que diz respeito autorizao
para a instalao do ponto de venda. Nesse sentido, propomos pensar os mo-
dos como esses prossionais percebem o processo de patrimonializao como
uma possibilidade de sensibilizar o poder pblico para a singularidade de suas
prticas. Neste trabalho procuramos mostrar que os pontos de venda so cons-
trudos por meio de vnculos sociais fundamentais. A relao entre as baianas
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e tacacazeiras e seus clientes marcada por uma certa proximidade e inti-
midade. Os espaos onde se xam tornam-se lugares eivados de vida, sendo
extremamente problemtico para essas pessoas serem obrigadas a se deslocar
para outros espaos em consequncia de polticas pblicas direcionadas a le-
galizao de tais ofcios.
O caso das baianas de acaraj
As baianas de acaraj so guras fortemente associadas Bahia; entre-
tanto, elas tambm se fazem presentes em diversas cidades do Brasil e exterior.
Conforme o contexto, o acaraj pensado a partir de diferentes perspectivas.
Um bolinho de santo, uma comida tpica, um quitute baiano, um meio de
sobrevivncia, uma comida africana, uma comida de rua. Nem almoo, nem
jantar, pode-se dizer que o acaraj situa-se numa posio liminar.
Dessa forma, podemos pensar quais so os mltiplos signicados das
baianas e dos objetos, e compreender como agem. Concebendo os objetos no
como suportes identitrios ou representantes de algo, mas enquanto mediado-
res e constituidores da vida social, pode-se dizer que no so separados dos
sujeitos.
Atravs desse vis, o acaraj aparece como relevante no sentido de bus-
car entender qual o motivo pelo qual essa comida, e no outra, escolhida e,
com isso, qual o valor que assume. Pode-se dizer que h uma extensa rede
social e simblica envolvendo as baianas de acaraj, em que os objetos que as
constituem no podem ser separados de sua noo de pessoa.
Alm disso, a compreenso se torna mais abrangente ao pensarmos o
que comida de rua, associada a uma sociabilidade especca. Deve-se
compreender quem consome, como consome e por qual razo consome o aca-
raj. interessante observar que o acaraj no uma comida formal, uma
refeio; nem almoo, nem jantar, articula um tipo especco de sociabilidade.
Os horrios de consumo so bem variados, mas geralmente consumido ao
nal da tarde, depois do trabalho, congurando-se tambm como um ponto
de encontro de grupos, que usam esse espao e essa comensalidade de forma
especca, propiciando algumas redes de relaes.
Em geral, o preparo do acaraj dura cerca de dois dias. Em casa fei-
ta a massa de feijo fradinho do acaraj e os complementos (vatap, caruru,
camaro seco e salada de tomate). Cada baiana tem uma receita para esses
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complementos, porm, o que invariavelmente aparece em todas as receitas
o dend em grandes doses.
So quatro etapas para o preparo da massa: a primeira lavar o feijo fra-
dinho; a segunda triturar o feijo e deixar de molho em torno de trs horas; a
terceira etapa retirar a casca que envolve o gro; a ltima moer esses gros
com o auxlio de um processador, formando uma massa branca compacta. A
massa ca com uma textura de uma pasta grossa. Coloca-se a massa em sacos
plsticos e ela guardada no freezer, caso no seja consumida no mesmo dia.
Somente na esfera da rua a massa ser batida e frita. L a baiana monta
o acaraj com os seus complementos. Elas levam para o seu ponto o botijo,
o tacho, o fogareiro e dois isopores (num isopor, as comidas massa de acaraj,
cebola ralada, sal, vatap, caruru e pimenta separadas em sacos e em potes de
plstico; e, no outro, as bebidas). Tambm equipam o ponto com uma pequena
estrutura de atendimento, com bancos de plstico, toldo e tabuleiro. Logo que
chegam, arrumam o botijo e o fogareiro e montam o tabuleiro. Sobre ele,
apoiam uma ga de madeira ou uma carranca. Arrumam as comidas em quatro
panelas, uma para cada: vatap, caruru, camaro e salada, e mais um potinho
com pimenta. Fritam os sete bolinhos pequenos: comea a venda de acaraj.
A forma como as baianas lidam com os clientes tambm especca.
Fry, ao comentar sobre o trabalho de Vivaldo da Costa Lima (cf. Rial, 2005,
p. 10), sublinha que este, quando compara a relao das baianas de acaraj
com seus clientes e o comportamento em restaurantes, observa que, diferente-
mente do que ocorre nos restaurantes, na venda do acaraj quem se curva o
cliente, ao contrrio do garom, uma inverso que indica quase reverncia do
cliente baiana de acaraj, ao se inclinar a ela. Vale acrescentar que comum
os clientes abraarem ou beijarem a mo da baiana pedindo bno. No caso
de baianas ligadas esfera religiosa afro-brasileira essa relao com os clien-
tes mais marcada, elas do conselhos para um pblico que se torna cativo.
Contudo, deve-se compreender que tipo de cliente esse e como estabelece
sua relao com as baianas e com o acaraj.
Embora o acaraj tambm possa ser consumido de forma rpida, sem que
haja necessariamente uma ligao entre os clientes e a baiana, muitos deles
tornam-se seus amigos, tm respeito por ela. Quando a baiana faz parte das
religies afro-brasileiras muitas delas so iniciadas no candombl e lhas
de Ians eles se chamam mutuamente de me, pai, etc. Sempre que seus
clientes vo embora, elas dizem: que Ians lhe proteja, muito ax.
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Segundo a baiana Cia, que trabalha no Rio de Janeiro, a sua relao com
os clientes e com a rua pensada da seguinte forma:
Aqui voc tem que dar amor, voc tem que ouvir. Chega um e conta as choradei-
ras no seu ombro, voc ouve e voc no pode falar. A baiana igual padre pior
do que o padre, porque o padre, o que voc fala com o padre, ele usa de sermo
e ningum sabe de quem a histria, no ? E a baiana no pode fazer isso, a
baiana tem que ouvir e levar para si. A baiana no pode falar. O que voc falar
com uma baiana, vai morrer com ela. Porque se ela falar, no uma baiana. A
baiana tem que manter segredo, pior do que ba: morre, mas no fala. E ela
sofre muito, porque ela participa da vida de todo mundo, no pode falar nada
para ningum. Tem que morrer dentro dela. s vezes ela tem resposta para dar,
s vezes ela no pode falar nada, porque se ela falar, vai lhe aborrecer, ento ela
no pode se meter, ela engole, ca para si. Bota voc no colo, at nina para voc
se calar. Acalenta, mas no pode falar nada. Eu me sinto bem com o meu papel.
(Entrevista concedida em novembro de 2009, em seu ponto).
H uma certa regra conduta, segundo ela, para ser baiana de acaraj. Uma
postura de me, ou de me de santo, aconselhando e confortando amigos
e clientes que lhe pedem ajuda. Ela aponta no poder comentar sobre a vida
das pessoas que conaram seus segredos a ela pois o tabuleiro ponto de en-
contro de diversas redes sociais. Segundo ela, o comportamento indiscreto de
comentar sobre a vida alheia no condiz com a atitude que uma baiana deve ter.
curioso notar que a relao das baianas com o povo da rua tambm
especca. As baianas tm um grande respeito pelos moradores de rua, pessoas
que para elas so os donos da rua. Segundo algumas baianas, ao trabalharem
no espao pblico, esto trabalhando na casa deles e, por isso, devem respei-
to a eles. J as baianas que so ligadas s religies afro-brasileiras associam
esses moradores de rua entidades como Exu, tambm considerado como o
protetor das encruzilhadas local por excelncia escolhido pelas baianas para
fazer o seu ponto. Segundo Martini (2007), Exu, por ser um mensageiro, uma
entidade do domnio das ruas e tambm do fogo, um dos deuses patronos da
atividade de venda de acaraj. No contexto do candombl, de uma forma ge-
ral, o primeiro a ser saudado e alimentado. Por esse motivo, muitas baianas
oferecem os primeiros bolinhos a ele.
Fazer o ponto signica estabelecer uma clientela especca, que se tor-
na cativa. A legalizao do ponto um processo difcil, que implica requerer
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autorizao junto prefeitura local para o exerccio do trabalho. A relao com
o candombl pode aparecer tambm com a apropriao do espao pblico pe-
las baianas. No caso da baiana Cia, por exemplo, ela conseguiu a legalizao
do seu ponto a partir de uma promessa para os santos Cosme e Damio. Ela
conta que eles falaram para ela descer do nibus e ir at onde hoje seu ponto
de venda. Eles guiaram Cia para esse local, mostrando por onde ir. Ela era
recm-chegada da Bahia, no conhecia nada, mas eles mostraram o caminho,
segundo conta. Seguiu na direo que indicavam e encontrou o lugar onde hoje
tem o ponto. Quando chegou na esquina, olhou para o local e disse que iria ser
ali o seu ponto de venda de acaraj. Para conseguir a licena da prefeitura, a
baiana falou para Cosme e Damio irem na frente para amansar, preparar a
mulher responsvel pela licena com a qual iria conversar.
2
Segundo ela:
Eu passei ali de nibus, quinta-feira. Eu vi do nibus este ponto. Vinha eu e meu
marido. Perguntei: Tem ponto [de nibus] aqui?, ele disse: Tem, ali. Eu
falei: Desce, Para qu?, respondi: Eu quero ver o ponto. Ele: Que ponto,
menina?! Eu desci doida, aquele prdio [Bolsa de Valores] ainda estava no
cho, no tinha nada ali, tinha uns mendigos, sei l o que foi. E eu olhando para
um lado e para outro. Ele disse: O que que voc quer? Respondi: Quero
esse ponto. Ele falou: Mas no tem nada aqui, o ponto est morto. Falei: A
gente ressuscita ele, ele riu. Ressuscitei ou no ressuscitei? Aqui no parava
quase ningum, eu tinha quatro banquinhos. Esse prdio no tinha. Eu chegava
aqui onze horas do dia, saa daqui oito horas da noite. s vezes vendia tudo, s
vezes no vendia, porque eu estava fazendo o ponto. (Entrevista concedida em
novembro de 2009, em seu ponto).
na rua que a categoria baiana de acaraj se constitui. E por isso a im-
portncia dos trajes para exercer o seu trabalho. Pode-se dizer que os trajes e
as comidas compem essas baianas, so parte de sua cosmologia. Usar deter-
minadas roupas, com suas guias, toros, saias, batas, sandlias, o que chamam
de baianas nome que do aos trajes que usam , construir a si prprias.
interessante observar que o mesmo nome de sua roupa tambm o de seu
ofcio: baiana.
2
Em agradecimento e obrigao, Cia faz todo ano o Caruru de Cosme e Damio no dia 27 de setembro
para o seu povo da rua, no centro do Rio de Janeiro.
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A presidente da Associao das Baianas de Acaraj e Mingau do Estado
da Bahia (Abam)
3
apontou que h uma reivindicao das baianas para serem
consideradas uma categoria prossional: baianas de acaraj. Ela exps que, ao
tirar passaporte, no queria preencher o campo prosso como cozinheira,
mas sim como baiana de acaraj, pois, segundo a presidente, cozinheiro
cozinha em casa. Desse modo, revela que a caracterstica constituidora da
categoria baiana de acaraj diretamente ligada ao espao pblico, esfera da
rua, j que ela no seria baiana de acaraj dentro de uma cozinha domstica.
Tal concepo nos leva a pensar que na esfera da casa no aparece a concep-
o baiana de acaraj, mas de cozinheira. Enm, h um tipo de reivindi-
cao de reconhecimento prossional atravs de sua concepo de rua.
O registro do ofcio das baianas de acaraj pelo Iphan como bem ima-
terial foi tambm uma forma de valorizao prossional das baianas de acara-
j. Ele teve como proponentes a Associao das Baianas de Acaraj e Mingau
do Estado da Bahia, o Terreiro Il Ax Op Afonj e o Centro de Estudos Afro
Orientais da Universidade Federal da Bahia. Foi inscrito no Livro dos Saberes
do Patrimnio Imaterial como patrimnio cultural brasileiro em 2004.
A principal argumentao para o registro foi pela a relao conituosa
entre as baianas de acaraj e os evanglicos com o seu acaraj de Jesus,
pois tais evanglicos estariam descaracterizando o acaraj ao associ-lo a
Jesus e Igreja Evanglica, opondo-se esfera religiosa do candombl. Nesse
contexto, o acaraj ressignicado, objeto de rivalidade entre as baianas que
concebem a origem do acaraj nos terreiros e aquelas da Igreja Evanglica.
Elas apontam que os evanglicos no usam, por exemplo, os trajes e
guias para a comercializao do acaraj por serem associados s religies afro-
-brasileiras. A presidente da associao frequentemente scaliza se as baianas
esto trabalhando com os trajes adequados, pois, segundo ela, tambm foram
tombados.
4
Entretanto, os evanglicos, por reconhecerem os signicados a
que esses objetos remetem, no os utilizariam. Os trajes aparecem de forma
3
Vdeo do Seminrio de Avaliao do Projeto Celebraes e Saberes da Cultura (26/01/2007). Disponvel
no Museu do Folclore Edson Carneiro, Rio de Janeiro.
4
Vale ressaltar que no decreto n 12.175 de 25 de novembro de 1998, da Prefeitura Municipal de Salvador,
anterior ao registro, institua que As baianas de acaraj, no exerccio de suas atividades em logradouro
pblico, utilizaro vestimenta tpica de acordo com a tradio da cultura afro-brasileira; j a baiana de
mingau tem como caracterstica exclusiva a comercializao de mingau, bolos e pamonhas, utilizando
como traje tpico guarda-p e torso (Salvador, 1998).
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recorrente para a construo de uma particularidade das baianas de acaraj,
buscando diferenciar-se dos chamados ambulantes.
Em fevereiro de 2002 uma reportagem que a Rede Globo exibiu no
Fantstico denunciou as baixas condies higinico-sanitrias em 100%
dos acarajs produzidos no estado da Bahia.
5
Como resultado, o Senac Bahia
criou o programa Acaraj 10, cujo objetivo era promover a capacitao das
baianas de acaraj atravs de seminrios de sensibilizao das vendedoras
ambulantes, de cursos de noes bsicas de segurana alimentar, de anlises
microbiolgicas de amostras dos alimentos vendidos nas ruas e da certicao
prossional, propriamente dita (Baianas do Acaraj 10..., 2003). Alm do
curso, foram feitas provas e visitas da vigilncia sanitria na casa dos vende-
dores. Caso fossem aprovadas, as baianas receberiam o certicado e o selo
Acaraj 10. No entanto, como arma Elizabete Mendona,
6
a maioria das
baianas no conseguiu o certicado, ou por no passarem na prova de ml-
tipla escolha, ou por no possurem as suas cozinhas equipadas segundo as
especicaes da higiene sanitria.
Cerca de mil baianas participaram do curso, entretanto, o grau de apro-
vao foi baixo, sendo reprovada, inclusive, a presidente da Abam. Muitas das
baianas com quem conversamos foram contra a metodologia do curso.
As solicitaes alvo de crticas das baianas foram: panelas de alumnio
para armazenar o vatap e caruru, ao invs de potes de barro ou de plstico;
vericao da temperatura dessas comidas com termmetro; revestimento da
cozinha com azulejos (o que endividou muitas baianas); utilizao de luvas.
J a utilizao de touca pde ser substituda pelo toro.
O baiano de acaraj Jay recebeu o que chama de certicado de quali-
dade, o selo Acaraj 10, por ter sido aprovado no programa. Para ele, foi
fundamental ter feito o curso e arma buscar sempre fazer o acaraj conforme
essas regras. Entretanto, vale ressaltar que, apesar de ter o certicado, ele
foi o nico baiano de acaraj do perodo da pesquisa que no tinha o seu pon-
to legalizado pela Prefeitura no Rio de Janeiro.
7
5
Cf. Acaraj 10 (2005).
6
Na palestra Comida a palavra, realizada pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular em julho
de 2008, Rio de Janeiro.
7
Atualmente ele possui o seu ponto legalizado em Copacabana, Rio de Janeiro. As atuais polticas imple-
mentadas pela prefeitura da cidade so de criao de um curso similar ao Acaraj 10, o qual poder ser
pr-requisito para a concesso do ponto.
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Comida, trabalho e patrimnio
As baianas de acaraj frequentemente fazem uso do registro do ofcio
das baianas de acaraj como uma forma de legitimar o seu trabalho. Ser reco-
nhecida como patrimnio repercutiu de forma positiva para elas, j que isso
facilita a legalizao de seu ponto.
8
Entretanto, podemos dizer que as baianas
concebem a patrimonializao de seu saber como um processo construdo por
elas, anterior ao registro. Diferentemente da categoria jurdica patrimnio,
expressa pelo ofcio, h uma multiplicidade de fatores que constituem as
baianas e os seu acaraj.
Podemos pensar o evento do registro do ocio das baianas de acaraj
realizado pelo Iphan, em 2004, como parte de uma estrutura (Sahlins, 2004),
sendo o resultado de ao dessa instituio e, sobretudo, fruto da atuao das
baianas de acaraj. Assim, o registro pode ser apreendido como um evento
histrico gerado pelas baianas, alm de ser um resultado de polticas pblicas.
interessante compreender o que entendem pela categoria patrimnio imate-
rial e qual a utilizao que elas fazem disso. O que podemos armar que o
registro desse bem imaterial se congurou como uma demarcao de fron-
teiras entre as baianas e os seus outros: os ambulantes e os evanglicos. Para
elas, tornar-se patrimnio, signicou marcar uma alteridade, ora associando o
acaraj s religies afro-brasileiras, ora tradio afro-brasileira. Para alm
da demarcao de uma alteridade, torna-se interessante pensar como esse pa-
trimnio incorporado em seu sistema cosmolgico, atravs da relao de
ddiva e contraddiva (Mauss, 2003) estabelecida pelas baianas atravs da sua
apropriao do espao pblico.
O caso do ofcio de tacacazeira
Caminhando pelas ruas e praas de Belm, Santarm, Rio Branco,
Manaus, Porto Velho e outras cidades da regio Norte do Brasil, somos sur-
preendidos pelo movimento de gente que se rene aos ns das tardes em
torno das barracas das tacacazeiras. O tacac se tornou uma comida de rua,
8
O prefeito da cidade vem reconhecendo publicamente o registro como uma legitimao do trabalho
das baianas, permitindo a legalizao do ponto de venda de acaraj nas ruas. Entretanto, existem novas
regras para a legalizao de tal ofcio. O ponto concedido apenas para as baianas que so liadas
Associao das Baianas de Acaraj do Rio de Janeiro e que participaram do curso de manipulao de ali-
mentos promovido pelo Senac Rio. Muitas baianas discordam desse processo, armando j desenvolver
por longo tempo sua atividade sem ter que atender a essas exigncias.
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fortemente associada a identidades e pertencimentos sociais, e essas repre-
sentaes parecem ter sido construdas com base em sua relevncia cultural e
social, mas tambm em sua suposta antiguidade e origem indgena.
O tacac pode estar ligado a costumes de povos indgenas, fato esse rei-
terado por algumas tacacazeiras, mas o prato que se toma hoje nas cidades
da regio Norte , sem dvida, produto de contatos entre diversas categorias
sociais e trocas culturais. Como costumam relatar as tacacazeiras, o tacac foi
inventado pelos ndios, mas aperfeioado por elas. Embora tambm seja feito
em casa, para consumo domstico, especialmente em datas comemorativas, o
tacac sobretudo uma comida de rua, consumida nos nais das tardes, aps
as chuvas, nos pontos de venda espalhados em algumas das grandes e peque-
nas cidades do Norte do Brasil. As mulheres que o preparam e comercializam
tiram desse ofcio o sustento ou o complemento da renda familiar. As tacaca-
zeiras so encontradas em bairros nobres e populares, em pontos tursticos, nas
proximidades dos mercados, nas praas, largos e em certas esquinas. Em torno
das barracas, quiosques, carrinhos e restaurantes caseiros juntam-se pessoas de
diversos extratos sociais, quando se rearmam relaes sociais e vnculos afe-
tivos, ainda que se verique tambm alguma segmentao da clientela distribu-
da pelos diversos pontos de venda, que oferecem o produto a preos variados.
Os saberes envolvidos no preparo do tacac vm sendo transmitidos en-
tre geraes e atualizados segundo particularidades regionais. As tacacazeiras
de hoje, na maioria, aprenderam o ofcio com suas mes e avs ou com outras
mulheres. Muitas delas migraram de reas rurais e zeram do tacac seu meio
de trabalho em espao urbano, pelo qual se fazem conhecidas da clientela.
Algumas tacacazeiras, entretanto, aprenderam o ofcio por conta prpria, par-
tindo da observao e experimentao continuada.
O preparo do tacac envolve uma sequncia extremamente complexa e
demorada de etapas. Vale ressaltar que o tacac, assim como outros pratos
amaznicos, tem como um dos ingredientes principais o tucupi (manipuei-
ra), um caldo extrado da mandioca brava, conhecida como ouro preto, que,
por conter alto teor de cido ciandrico, precisa passar por um processo de
preparao para se tornar comestvel.
9
Maria Eunice Maciel (2001), a este
9
O tucupi tambm produzido por tacacazeiras para terceiros, uma vez que esse produto utilizado em
vrios pratos amaznicos.
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Comida, trabalho e patrimnio
propsito, sugere que a noo de perigo se liga s noes de estranho e
extico e que estas dizem respeito ao modo como as distintas sociedades
diferenciam entre o que e o que no comestvel. Ao mencionar o caso
extremo do fugu, peixe venenoso consumido no Japo como uma iguaria, a
autora chama a ateno para o desao do nutrir-se (manter a vida) ligado
ao perigo (a possibilidade da morte) de maneira explcita, vida e morte num
nico prato (Maciel, 2001, p. 148). A interessante sugesto de Maciel a
de que essa dimenso da periculosidade estaria, de certo modo, presente na
alimentao, de uma forma geral, acenando para os diversos cuidados que
se deve tomar com os alimentos, de modo a se manter a vida. Contestando
a tese da razo prtica, portanto, perguntaramos o que leva um grupo hu-
mano a escolher como componente de um prato como o tacac um produ-
to natural no comestvel, como a mandioca brava? O mesmo poder-se-ia
perguntar a respeito de outro prato amaznico como a manioba, feito das
folhas da mesma mandioca brava e que precisa passar por um longo processo
de cozimento para a neutralizao do cido ciandrico. O que esses aspectos
parecem indicar que no necessariamente os recursos naturais e tcnicos
mais facilmente disponveis so eleitos prioritariamente na denio dos pa-
dres alimentares.
O preparo do tacac passa por uma srie de etapas que incluem descascar
e ralar a mandioca, extrair o tucupi
10
e separar a goma, lavar o jambu, entre
outras. Depois de preparados, os ingredientes goma, tucupi, camaro e jam-
bu so colocados, separadamente, em vasilhas apropriadas e transportados
para o ponto de venda. O transporte feito, de modo geral, em Kombi ou outro
carro, prprio ou alugado. As barracas costumam ser guardadas em algum
local prximo ao ponto de venda e, assim, precisam ser montadas e desmonta-
das diariamente. Em alguns casos, as tacacazeiras levam pequenos carrinhos
que podem ser empurrados atravs do trajeto da casa at o ponto. As tacaca-
zeiras iniciam cedo o dia de trabalho, em geral na cozinha e, em seguida, nas
barracas, onde permanecem at a noite. Os produtos so dispostos na banca,
cada um em seu lugar prprio, de um modo que facilite o seu manuseio. A
goma e o tucupi cam permanentemente aquecidos e o tacac preparado na
10
A extrao do tucupi ainda feita por muitas tacacazeiras com intermdio do tipiti, artefato de origem
indgena feito de bras de guarim.
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hora em que o cliente chega, quando ento se mistura, numa cuia, a goma, o
tucupi, o jambu e o camaro, permitindo dosagens personalizadas ao gosto do
consumidor.
O tacac se singulariza tambm pelo fato de ser servido em cuias con-
feccionadas a partir do fruto da cuieira, bem como de ser consumido de modo
a dispensar talheres, evidenciando uma intimidade particular com o alimento.
uma comida que demanda modos especcos de ser servido e consumido,
assim como determinadas tcnicas do corpo (Mauss, 2003). Est presente
tambm em representaes imaginrias, poemas e letras de msica, ou at
mesmo na forma de ex-votos oferecidos Nossa Senhora de Nazar, por oca-
sio do Crio, maior festa popular de Belm.
Do cultivo e aquisio de ingredientes culinrios, passando por seu de-
morado preparo at o consumo, o tacac atravessa e liga diferentes domnios
da vida social. Em torno do tacac se articulam diversas atividades como a
agricultura familiar dos produtos utilizados em seu preparo, o comrcio des-
ses produtos em feiras e mercados populares e nalmente a sua venda pelas
tacacazeiras. Nessa extensa cadeia que liga a produo ao consumo, o tacac
torna-se parte de um sistema de elementos que se relacionam entre si. Nesse
sistema a populao, a cidade, os marcos edicados, os mercados populares,
a natureza, o tempo, o espao, os ingredientes, os saberes ancestrais, etc., no
podem mais ser percebidos isoladamente.
Por tudo isso, o tacac muito mais que um alimento, inscrevendo-se
num vasto e complexo sistema culinrio (Mahias, 1991). Por estarem inse-
ridos num sistema altamente estruturado, os modos de preparo e consumo do
tacac tendem a ser perenes, pois assumem um valor fundamental na cons-
tituio de subjetividades e na manuteno de formas de sociabilidade e do
sentimento de pertencimento.
O tacac integra a vida cotidiana de numerosas pessoas, acompanhando
o processo de formao de uma sociedade urbana amaznica. Guardadas as
variaes regionais do tacac, os modos de se preparar e consumir esse prato
so fundamentalmente os mesmos ao longo de uma grande extenso territorial
na qual convivem populaes muito heterogneas. A Amaznia caracteriza-se
por apresentar uma grande diversidade de paisagens, modos de vida e cosmo-
vises, e o tacac se difundiu nesse cenrio, em meio a intensos e contnuos
contatos que marcam a regio desde antes mesmo da chegada dos coloniza-
dores europeus.
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Comida, trabalho e patrimnio
As prosses de rua, entre as quais se encontra o ofcio de tacacazei-
ra, se estabelecem num cenrio de acentuado crescimento e industrializa-
o das cidades. Com o declnio da produo do ltex, muitos seringueiros
e suas famlias buscaram novos meios de vida nas cidades emergentes que
se desenvolveram a partir de entrepostos comerciais ou antigas forticaes
(Machado, 1999).
A crescente prossionalizao dessa prtica contribuiu para a diferen-
ciao das tacacazeiras em relao s cozinheiras que tambm preparam esse
prato culinrio no interior das residncias, no mbito privado. Os saberes en-
volvidos no preparo de um tacac so, em parte, compartilhados por ambas,
mas, no caso das tacacazeiras, seu contato quase dirio com o universo do
tacac e da culinria regional constitui um papel social muito marcado. O
tacac e tudo que a ele se liga organiza a vida das tacacazeiras, estruturando-
-a e invadindo esferas privadas e pblicas, domnios pessoais e prossionais.
As tacacazeiras, com suas barracas, quiosques e carrinhos espalhados
pela cidade so parte da paisagem urbana, acompanhando o ritmo de seu de-
senvolvimento histrico e econmico. Essas mulheres constituem seu ofcio
por meio de uma ntima relao com o espao pblico e sua clientela, trans-
formando o primeiro em um lugar onde se tecem intensas e signicativas
sociabilidades.
O tacac, assim como outros pratos regionais preparados e comercia-
lizados pelas tacacazeiras, integram um extenso circuito comercial. Seu
preparo constitui intensa atividade produtora, oferecendo oportunidade de
trabalho para numerosas pessoas. Grande parte dos clientes dos principais
mercados populares, como o Ver-o-Peso em Belm, ou o Mercado Municipal
de Manaus, beira do Rio Negro, por exemplo, so as tacacazeiras, movi-
mentando uma signicativa economia de gneros variados, desde os ingre-
dientes aos artefatos artesanais necessrios ao preparo do tacac e de outros
pratos culinrios.
Frequentemente as tacacazeiras comercializam outros pratos alm do ta-
cac. Em Belm, Macap e outras cidades amaznicas, o vatap, o caruru e
a manioba costumam fazer parte do cardpio oferecido aos clientes. Esses
pratos so muito populares, mas no desempenham o papel central que o taca-
c, por sua vez, cumpre na constituio de subjetividades e do sentimento de
pertencimento. Por outro lado, o tacac, e no os outros pratos, que nomeia
o ofcio e os pontos de venda, como se observa nas placas que os identicam.
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Atualmente, muitos homens trabalham nesse ofcio, nas suas diversas eta-
pas, embora apenas ocasionalmente cheguem a servir o tacac, tarefa esta ainda
fortemente associada mulher, imagem da tacacazeira, maneira graciosa de
servir o tacac. So os nomes das mulheres que, de modo geral, batizam os pon-
tos de venda: o Tacac da Dona Maria, o Tacac da Paixo, o Tacac da J, etc.
Adenor Guedes Jnior, hoje dono do restaurante caseiro Tacac 474,
onde serve comida paraense, conta como entrou no ofcio:
Eu trabalhava com a parte administrativa de um hotel. A depois eu resolvi mon-
tar uma outra coisa. A eu tive a ideia de trabalhar com comidas tpicas, porque
era s em pontos de barracas. Ento eu resolvi montar um espao mais agradvel
pros clientes, mais aconchegante A resolvi passar pra tacac. Depois foi ma-
nioba, vatap, caruru. (Entrevista em 24/01/07, Belm do Par).
O tacac apresenta grande variao no seu paladar, que se deve qua-
lidade dos produtos utilizados assim como das tcnicas adotadas no preparo
dos ingredientes, produzindo sabores diferenciados. As tacacazeiras valori-
zam sua receita particular como um segredo. Desse modo, a variedade de pa-
ladares atende tambm s preferncias dos consumidores que, de modo geral,
mantm uma relao de delidade com a tacacazeira de sua preferncia. Essa
variedade no paladar e nos modos de se preparar o tacac assume tambm pa-
pel importante no delineamento discursivo de identidades regionais. muito
frequente ouvir o paraense de Belm, por exemplo, armar que o paladar do
tucupi de sua regio se caracteriza por ser meio cido, diferindo do encontrado
no Acre. Essas diferenas, ocasionalmente, podem se dar em meio a tenses
que so prprias aos processos de negociao de pertencimentos em suas es-
pecicidades scio-histricas.
Um dos aspectos que caracteriza a culinria amaznica o fato de ela ser
no apenas preparada e consumida no interior das casas, na esfera domstica,
mas tambm em tabuleiros, barracas e quiosques por toda parte. Na cidade de
Belm, o tacac consumido no interior das residncias, como na rua, servido
pelas tacacazeiras. Nas casas, o tacac, bem como outros pratos regionais,
preparado de forma ocasional, quando se espera a visita de amigos ou parentes
distantes ou quando se encontra no tempo das festas populares, especialmente
as do ciclo junino. O que torna, porm, o tacac um produto cotidiano, ntimo
e emblemtico para signicativa parcela da populao, seu consumo em
certos lugares da cidade.
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Comida, trabalho e patrimnio
Transitando entre o pblico e o privado, o tacac materializa lembranas
e atualiza relaes sociais. Como diz Aldrin Figueiredo, historiador e profes-
sor da UFPA:
Essas comidas ligadas ao tucupi foram muito ritualizadas no espao urbano.
[] O tacac acabou virando uma bebida ritual do paraense, no somente o pato
no tucupi. O tacac, que esse tomado a tantas horas da tarde. [] tomado
sempre na cuia, no se usa colher. Algumas pessoas abominam o uso de palito e
a sucessivamente vo entrar vrios elementos como o gestual, o ritual de servir
o tacac. (Entrevista em 25/01/2008, em Belm do Par).
As palavras de Eliseu da Silva, tacacazeiro, conrmam esse carter ritu-
alizado do tacac.
Eu, sempre quando eu posso, que eu tenho um tempinho assim de sair, eu sem-
pre tomo um tacac, naquela horinha, que aquela hora sagrada, tardinha.
Quatro horas, cinco horas, assim, no cair da tarde, que a hora sagrada de tomar
tacac. (Entrevista em 25/01/2008, Belm do Par).
Nos dias da semana, homens e mulheres costumam sair do trabalho e pas-
sar em algum ponto de tacac, antes de irem para casa. Alguns desses pontos
se tornaram famosos, como o Tacac da Jurdica, instalado nas proximidades
da Faculdade de Direito, em Belm, ou o Tacac da Gisele, localizado nas
imediaes do Teatro Amazonas, em Manaus. O tacac tambm servido em
extenses de residncias, pequenos estabelecimentos comercias, restaurantes e
mais recentemente em shopping centers, como caso do Amazonas Shopping
e do Cecomiz, em Manaus. Contudo, sua presena se d de forma predominan-
te nas diversas barracas e quiosques espalhadas pelas ruas das cidades.
Embora o tacac seja, de fato, consumido entre os mais diversos es-
tratos sociais, verica-se que h certa segmentao dos clientes em relao
aos diversos pontos de comrcio. O tacac e outros pratos oferecidos pelas
tacacazeiras apresentam uma considervel variao de preo, decorrente da
localizao do ponto de comrcio e do perl socioeconmico do consumi-
dor. Vericou-se uma variao compreendida entre R$ 3,00 e R$ 7,00 na
rea central da cidade de Belm, em janeiro de 2008. Do mesmo modo, em
Manaus, os preos tendem a se elevar quando servido nos shoppings e em
pontos tursticos como o Teatro Amazonas. Algumas tacacazeiras oferecem
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Daniel Bitter e Nina Pinheiro Bitar
camares maiores e de melhor qualidade, o que tambm onera o custo do
produto, restringindo seu acesso parcela da populao com maior poder
aquisitivo. A maior parte das tacacazeiras, porm, praticam preos mais aces-
sveis atendendo parcelas menos favorecidas da populao. O tacac pode ser
encontrado tambm no cardpio de restaurantes sosticados, como caso do
restaurante L em Casa, localizado nas Docas em Belm. Neste restaurante o
tacac servido por uma tacacazeira especialmente contratada para preparar
e servir o prato. curioso observar que a tacacazeira em questo se apresenta
tal qual as representaes mais antigas que se fazem desse ofcio. Na entrada
do restaurante v-se a tacacazeira com trajes
11
especcos referenciados no
carimb,
12
atrs de um tabuleiro sobre o qual esto dispostos panelas, cuias,
paneiros e outros instrumentos. Essa cena aponta para as formas com que o
tacac tem sido apropriado e representado, de forma a agregar valor a um pro-
duto singularizado. Representar a tacacazeira do passado no presente uma
forma de realar seus aspectos histricos e supostamente tradicionais ofe-
recendo aos seus clientes uma experincia completa, simultaneamente para o
paladar e para os olhos.
13
A situao das tacacazeiras hoje relativamente estvel, permitindo que
elas tenham rendimentos nanceiros considerveis, embora muito variveis,
apesar das altas despesas implicadas na produo. Mesmo as tacacazeiras com
estrutura mais precria conseguem dar continuidade ao seu ofcio e, muitas
vezes, com ele sustentar toda uma famlia. Verica-se que a transmissibilidade
dos saberes ligados ao ofcio tem trilhado caminhos diversos, no dependen-
do inteiramente das relaes de parentesco. Assim, numerosas tacacazeiras
revelam que assumiram o ofcio por interesse pessoal, aprendendo os seus
segredos pela observao e experimentao continuada.
A concorrncia comercial entre as tacacazeiras tem estabelecido preos
e segmentado, de certo modo, a clientela, sem gerar maiores conitos. J a
11
As tacacazeiras no utilizam um uniforme padronizado de trabalho.
12
Gnero musical e dana de roda encontrada principalmente no estado do Par.
13
Em um estudo etnogrco sobre o patrimnio alimentar na Quebrada de Humahuaca, Argentina, Marcelo
Alvarez e Glria Sammartino argumentam que a indstria do turismo associada s polticas de desen-
volvimento local v-se envolvida com a valorizao de festas, rituais, artesanato e comidas, entre outras
prticas enraizadas na histria da populao local, de forma a convert-los em produtos de consumo. No
caso das comidas tpicas do noroeste argentino, estas so representadas em sua suposta tradicionalida-
de e autenticidade, como uma forma de oferecer ao pblico uma verdadeira experincia do extico.
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Comida, trabalho e patrimnio
disputa de mercado entre as tacacazeiras e os outros vendedores de comida
em alguns locais das cidades tem implicado em maiores tenses. Essa situao
tem inspirado maior preocupao, gerando algum risco potencial das primei-
ras se apagarem em meio variada e crescente oferta que se evidencia na
presena de numerosas barracas de comida e estabelecimentos formais. Ainda
assim, as tacacazeiras tm conseguido garantir uma clientela el que procura
algo mais do que simplesmente saciar a fome.
[] porque, como ns entraremos no corredor do turismo, seria interessante
que tivesse aquela caracterizao, ali uma barraquinha de tacac, porque
ns somos vrios tipos de vendedores, no todo mundo que vende comida
tpica, outros vendem comida caseira o pessoal vai pra rua e vende outro tipo
de comida vende pozinho, doces, bolos quer dizer, mistura um pouco, h
uma mistura [] as pessoas vm aqui e perguntam: Tem isto, tem aquilo?
Elas no sabem que uma barraca de tacac. Sabem que uma barraquinha de
comida, mas no sabem se s tacac ou se comida caseira. (Entrevista com
Eliseu da Silva, 18/02/2006, em Belm do Par).
Outro problema que aige algumas tacacazeiras em determinadas reas
a instabilidade da permanncia de seu ponto devido s polticas de ocupa-
o do espao urbano. Algumas delas tm enfrentado diculdades para obter
autorizao das prefeituras para se estabelecerem, e reclamam que so muitas
vezes confundidas com outros ambulantes. Essas tacacazeiras sentem-se ame-
aadas e temem perderem o ponto, em funo da clientela ali estabelecida.
O eventual deslocamento das tacacazeiras de um lugar para outro pode ser
particularmente dramtico em funo do fato de que o ponto de venda ,
s vezes, constitudo ao longo de uma vida. Isso signica que uma clientela
denida a partir da estabilidade do ponto. Chama-se, portanto, a ateno
para o fato de que a relao das tacacazeiras e da clientela com o espao, o
ponto, no uma relao abstrata. Trata-se de lugares, muitas vezes, totali-
zados numa forte moral, onde as trocas comerciais caminham lado a lado com
uma economia do dom (Caill, 2000). Em outras palavras, as relaes entre
tacacazeiras e seus clientes so, muitas vezes, marcadas por um sentimento de
delidade e conana e, at mesmo, de amizade.
O problema da ocupao do espao urbano, entre outros, tm levado um
grupo de tacacazeiras de Belm do Par a se interessar em investir no empre-
endimento e melhorar suas condies de trabalho, apontando a necessidade de
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Daniel Bitter e Nina Pinheiro Bitar
distinguir com maior clareza sua atividade e seus produtos dos demais tipos
de comidas de rua.
Outro aspecto que tem mobilizado as tacacazeiras em torno do pedido
de registro de seu ofcio como patrimnio diz respeito s ocasionais ameaas
que sofrem por parte da Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) no
sentido de impedir suas atividades, por supostamente no atenderem aos re-
quisitos de higiene estipulados por este rgo, ligado ao Ministrio da Sade.
A crescente visibilidade que as tacacazeiras vm ganhando tem chamado a
ateno de instituies dedicadas a normalizar certos procedimentos tcnicos
para controle da produo e de suas formas de comercializao. Nesse contex-
to, a instruo normativa 001/2008 promulgada pela Secretaria de Estado de
Agricultura do Par em 2008, estabelecendo regulamentao tcnica ao criar
o Padro de Identidade e Qualidade do Tucupi para sua comercializao no
Estado do Par, tem ocasionado forte questionamento por parte das tacacazei-
ras, tendo em vista a maneira invasiva como intervm no sistema culinrio do
tacac, impondo uma srie de exigncias que interferem de forma crtica no
modo de produo estabelecido. Essas normas referem-se a inmeros aspec-
tos, entre os quais: adoo de uniforme, procedimentos de higiene pessoal,
especicaes quanto a embalagem e rtulo do produto, condies do prdio
onde a produo se realiza, e assim por diante. Muitas dessas normas talvez
possam ser aplicadas com mais justeza aos produtores de mdio porte de tu-
cupi, mas muito dicilmente pequena produo de muitas tacacazeiras que
trabalham de forma artesanal.
Por outro lado, as tacacazeiras esperam que uma maior visibilidade do
valor patrimonial desse ofcio venha sensibilizar os diversos setores da socie-
dade quanto necessidade de se garantir a integridade das condies de re-
produo dos saberes e prticas nele envolvidos. As tacacazeiras vislumbram
a possibilidade de que o registro deste ofcio venha a comprometer o Estado
com a salvaguarda desses conhecimentos e com a formulao de polticas p-
blicas que venham garantir o direito dessas mulheres de ocupar determinados
lugares da cidade. Se a patrimonializao desse ofcio contribuir para a ela-
borao de polticas pblicas mais inclusivas e para a melhoria das condies
de trabalho dessas mulheres, s se poder saber no futuro. Neste texto limita-
mo-nos a apontar alguns problemas relevantes que emergem da interface entre
comida, patrimnio e relaes sociais.
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Comida, trabalho e patrimnio
Consideraes finais
Os casos das baianas de acaraj e tacacazeiras possuem diversos pontos
em comum. Podemos explorar inicialmente a comparao relativa demar-
cao de uma alteridade de tais agentes atravs da categoria tradio. Essas
baianas e tacacazeiras se diferenciam, primordialmente, dos ambulantes atra-
vs de tal categoria. As baianas de acaraj buscam ainda uma diferenciao
dos evanglicos, com o seu acaraj de Jesus, objeto de conito de disputas
religiosas.
Entretanto, interessante observar como essa noo de tradio apare-
ce nos dois casos. No caso das tacacazeiras h uma preocupao em demons-
trar que esse trabalho vinculado a tradies de famlias. interessante notar
que a suposta origem indgena do tacac mais valorizada pelas instituies
e agentes patrimoniais do que pelas prprias tacacazeiras. J as baianas rei-
vindicam ora uma ligao com a famlia, ora com as religies afro-brasileiras,
ora com as origens africanas. As baianas tambm fazem uso dos trajes para
se diferenciar dos demais ambulantes. No mbito do tacac enquanto comida
tpica, os trajes aparecem vinculados ao carimb, mas geralmente no h
uma preocupao com uma roupa tpica para ser usada na rua.
Podemos perceber tambm uma tentativa de diferenciao das baianas
e tacacazeiras com as cozinheiras. A cozinheira, para a baiana, cozinha em
casa, o acaraj para ser servido na rua; o tacac , para as tacacazeiras,
comida tpica e no caseira. Assim, podemos perceber que elas operam de
uma forma especca com as categorias casa e rua.
H uma apropriao do espao pblico por essas mulheres e agora al-
guns homens, como vimos em certos casos. frequente observarmos a forma-
o de um pblico cativo, com o qual se estabelecem laos de amizade. Assim,
a necessidade de um ponto xo e de se fazer esse ponto, torna-se evidente
para a manuteno de tais vnculos os quais, no caso das baianas de acaraj,
so tanto sociais quanto religiosos.
A diculdade para se obter o ponto tambm observada. As tacacazeiras
e baianas so alvo de polticas pblicas de vigilncia sanitria que scali-
zam e regulamentam tal trabalho, como nos casos do Padro de Identidade
e Qualidade do Tucupi e Acaraj 10. Tanto o tacac quanto o acaraj so
vistos como comidas perigosas, um pelo dend e ingredientes altamente
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Daniel Bitter e Nina Pinheiro Bitar
perecveis e o outro pela mandioca brava, a partir da qual produz-se o tucupi.
As tacacazeiras e baianas de acaraj geralmente fazem segredo de sua receita
particular. E tal receita quase completamente realizada no mbito privado.
Aqui a tradio tambm aparece em contraste com as normas de vigilncia
sanitria.
Assim, podemos pensar que tais comidas esto articulando esferas seme-
lhantes de busca por legitimao do trabalho atravs das diferentes cosmolo-
gias de baianas e tacacazeiras. interessante observar como as tacacazeiras e
baianas de acaraj realizam apropriaes especcas do espao pblico que,
muitas vezes, se chocam com as polticas estatais de ocupao desse espao,
expressando tambm diferentes formas de conceber o seu patrimnio.
O instrumento do registro de patrimnio imaterial pelo Iphan foi facil-
mente manipulado pelas baianas de acaraj, as quais j possuam uma asso-
ciao formada. A Abam, proponente do registro, de alguma forma organiza
as baianas tanto em termos prticos como em termos da construo de um
imaginrio do que ser uma baiana de acaraj. J no caso das tacacazeiras,
no parece haver uma unidade na conformao desse imaginrio. Vemos, en-
tretanto, que elas esto tambm com o desejo de se reunir em torno da criao
de uma associao de classe.
Assim, podemos pensar o patrimnio para alm de uma expres-
so emblemtica de um grupo social, tnico ou mesmo de uma nao,
por meio do mecanismo de patrimonializao de bens imateriais, mas
como um processo de construo e reconstruo atravs das experin-
cias sensveis individuais e coletivas (Gonalves, 2003). Procuramos mos-
trar como o acaraj e o tacac so, de certo modo, comidas liminares,
no sendo possvel classic-las dentro das categorias de senso comum.
Para isso, expusemos aos leitores, sumariamente, os contextos, as cosmo-
logias, enm os sistemas culinrios nos quais esto inseridos, revelan-
do como estes so atravessados por mltiplas dimenses da vida social.
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Referncias
ACARAJ 10. Riachao.com, 30 abr. 2005. Disponvel em: <http://www.
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Recebido em: 28/02/2012
Aprovado em: 30/07/2012