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13-37

O COMPLEXO DO CAJU E A CULTURA


ALIMENTAR NORDESTINA
desafios para as políticas culturais

THE CASHEW COMPLEX AND NORTHEAST FOOD CULTURE:


CHALLENGES FOR CULTURAL POLICIES

Flavia Fernandes1

1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do


Ceará (PPGS-UECE), Bolsista CNPq. E-mail: flaviacientista@gmail.com

Pol. Cult. Rev., Salvador, v. 16, n. 2, p. 13-37, jul./dez. 2023 13


RESUMO
O objetivo desse artigo é analisar como o caju, espécie endêmica do nordeste com ampla
representação simbólica e cultural desde o período colonial, foco de ações pioneiras
de patrimonialização na década de 1970, atualmente representa uma perda de 90%
no campo. A abordagem teórica utilizada considera o conceito de cultura alimentar da
antropologia em diálogo com a sociologia da cultura e da alimentação. Ao problematizar
a crise oriunda da padronização dos hábitos alimentares, que também reflete uma crise
identitária, conclui-se que a efetividade políticas culturais no âmbito da cultura alimentar
exigem uma construção multidisciplinar e interinstitucional, que considere a complexa
rede de relações na qual as práticas, saberes e fazeres se inserem. No âmbito da cajucultura,
sobretudo da agricultura familiar, essas ações têm caráter de urgência.
Palavras-chave: Cultura alimentar; Cajucultura; Políticas Culturais.

ABSTRACT
The objective of this article is to analyze how cashew, an endemic species of northeastern
Brazil with a wide registered and cultural representation since the colonial period, the
focus of pioneering heritage actions in the 1970s, currently represents a loss of 90%
in the field. A theoretical approach used considers the concept of food culture from
anthropology in dialogue with the sociology of culture and food. By problematizing the
crisis arising from the standardization of eating habits, which also reflects an identity crisis,
it is concluded that cultural policies within the scope of food culture have developed a
multidisciplinary and inter-institutional construction, which considers a complex network
of relationships in the quality of practices, knowledge and doings fall into place. In the
context of cashew farming, especially family farming, these actions are urgent.
Keywords: Food culture; Cashew culture; Cultural Policies.

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Introdução

N
as últimas cinco décadas, observa-se em escala mundial
uma tendência crescente de padronização de hábitos
alimentares. No Brasil, esse processo ocorre de forma
acentuada sobretudo em áreas de vulnerabilidade social, com
ampla incidência de alimentos processados, de pouco valor nutri-
cional, baixo custo e publicidade intensiva. Essas transformações
ocorrem em diálogo com as mudanças culturais do último século,
que refletem a crescente urbanização, a ampliação da oferta de
produtos industrializados e a rotina de trabalho associada à escassez
de tempo — que tende a valorizar alimentos prontos ou fáceis de
preparar. Em um passado recente, o acesso a novos e diferentes
alimentos estava atrelado a intercâmbios culturais entre populações
de outras regiões ou países. A evolução nas comunicações e na
logística de transporte possibilitou o acesso a produtos de regiões
mais distantes, oferecendo novos alimentos antes inacessíveis. Esse
processo de homogeneização de hábitos alimentares está vinculado
a fatores econômicos e sociais, bem como a participação determi-
nante da comunicação de massa. Dentre as consequências dessas
transformações, observa-se o impacto no patrimônio que repre-
senta a cultura alimentar brasileira.

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A cultura alimentar é constituída por práticas, princípios, represen-
tações simbólicas, valores sociais, e representa um processo histórico
e cultural presente no cotidiano de um povo:

As formas de se alimentar, os produtos consumidos e a


forma de cozinhá-los estão relacionadas com os recursos
locais, com as características do clima e dos solos, ou seja,
com o território, com as formas de produção, com a agri-
cultura e com a pecuária; e, também, com as formas de
abastecimento e com o comércio. Também estão rela-
cionadas com os sabores, com os conhecimentos, com as
práticas culturais, inscritos em um contexto socioeconô-
mico específico (CONTRERAS; GRACIA, 2011, p. 448).

A cultura alimentar passa a figurar nas políticas públicas culturais no


contexto de preservação e memória, no âmbito do reconhecimento
como patrimônio imaterial de modos de criar, fazer e viver, expressos em
rituais e celebrações que constituem a identidade brasileira. O Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tem atuado na
patrimonialização de práticas no contexto da cultura alimentar, são
exemplos a cajuína no Piauí e o acarajé na Bahia. Apesar dessas ações
serem de extrema importância, quando isoladas não produzem, de fato,
a salvaguarda das expressões e das representações da cultura alimentar.
Neste sentido, é fundamental que as políticas culturais ampliem seu
espectro de ação e contribuam para ações formativas e de difusão que
permitam que a sociedade tome conhecimento da história agrícola e
alimentar de sua região e do país, valorizando a cultura alimentar que
traduz a identidade brasileira. Ações mais enfáticas têm sido registradas
a partir de 2006 via Ministério da Cultura, com ações de fomento e
reconhecimento dessas práticas culturais. Em 2021, foi sancionada no
Ceará a lei nº17.608, que institui a política estadual da gastrono­mia e da
cultura alimentar, e cria o pro­grama ceará gastronomia, que representa
um passo relevante para o contexto cearense.
A cultura alimentar tem um caráter plural e multidisciplinar, pois
articula uma complexa cadeia produtiva que inclui diferentes campos,

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como agricultura, educação, economia e saúde. Logo, as políticas
culturais neste contexto requerem uma articulação interinstitucional
que leve em conta a complexidade e a relevância do tema dentro do
contexto global. Concomitante a essas ações, as pesquisas acadê-
micas em torno da cultura alimentar contribuem para aprofundar
os aspectos do patrimônio cultural acumulado pelo país, além de
problematizar e divulgar questões que contribuam para a elaboração
de políticas públicas para cultura alimentar nos diversos âmbitos já
citados: econômico, social, cultural e educacional.
A cajucultura ilustra um exemplo singular no que toca ao entrelaça-
mento de história, patrimônio e políticas culturais. O cajueiro é um
elemento presente no Brasil desde a colonização. Seu fruto garantiu
a permanência dos colonos, por meio dos seus usos para alimentação
e saúde, como também foi elemento socializador entre os indígenas e
europeus. Essa espécie endêmica do Nordeste, entranhada na cultura
brasileira e sobretudo nordestina, viria a protagonizar um dos primeiros
projetos do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC). O arranjo
interinstitucional que configura o CNRC é singular no que toca à articu-
lação entre diferentes esferas de poder público, pois envolveu institui-
ções como a Secretaria de Planejamento da Presidência da República,
a Caixa Econômica Federal, o Ministério da Indústria e do Comércio, o
Ministério da Educação e Cultura, o Ministério do Interior, o Ministério
das Relações Exteriores, a Fundação Universidade de Brasília, Fundação
Cultural do Distrito Federal, o Banco do Brasil e o Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Encabeçado por Aloísio Magalhães em 1975, O CNRC surge com
uma característica interinstitucional e descentralizadora das políticas
culturais, o que, segundo Miceli (1984), possibilitou certa autonomia
de ação, contemplando manifestações culturais de populações margi-
nalizadas, como nordestinos e indígenas.
O CNRC tinha como objetivo identificar, estudar e documentar as
formas de vida e as atividades pré-industriais em um país em pleno
desenvolvimento, ao passo que buscava criar mecanismos para a

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dinamização, valorização e a conservação dessas práticas culturais
regionais (MAGALHÃES, 1997). As metodologias eram de cunho
multidisciplinar e primavam pelo contato direto com os envolvidos
nos processos de produção, circulação e consumo dos bens culturais,
reconhecendo e reposicionando os atores envolvidos nessas práticas
como legítimos detentores de um saber cultural relevante.
O Estudo Multidisciplinar do Caju foi um projeto piloto do CNRC,
que contou com a contribuição de Gilberto Freyre e teve conside-
ráveis desdobramentos e ecos institucionais, com destaque para o
tombamento, em 1984, da fábrica de vinhos de caju “Tito Silva”, em
João Pessoa (Paraíba), e o reconhecimento como patrimônio cultural
imaterial da “Produção tradicional e práticas socioculturais asso-
ciadas à Cajuína no Piauí”, registrado no livro dos Saberes, em 2014
pelo IPHAN.

As discussões e discursos antropológicos e sociológicos


apresentados no relatório expressam o caju como símbolo
de cultura e identidade brasileiras, propondo-se temas de
estudo como ‘o caju como complexo brasileiro de cultura’,
‘o caju ou a castanha como símbolo entre os brasileiros’,
‘o sentido de tempo do indígena, contado por safras de
cajueiro, projetado sobre a cultura popular brasileira’, ‘o
caju no folclore brasileiro’. Já as discussões e discursos que
se direcionam às questões práticas ligam o cultivo do cajueiro
diretamente ao Nordeste, ressaltando o potencial da região
para a exploração da fruta e seus derivados. Assim, ocorrem
desde incentivos ao estudo do espaço, como ‘a elaboração
de um zoneamento geo-agrícola do Nordeste com vistas
à distribuição do caju’, até a formulação de diagnósticos
econômicos que façam um ‘estudo das propriedades e de
perspectivas quanto ao incremento do fabrico e da comer-
cialização de vinho de caju’. (LAVINAS, 2013, p. 144).

A robustez da proposta evidencia a complexidade de sentidos e


práticas em torno dos frutos sociais do caju na cultura brasileira.

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Entretanto, na atualidade, o cenário é um pouco diferente. O caju é
composto pela castanha (10%) e pelo pedúnculo (90%) parte macia
e suculenta do fruto, utilizado nos preparos de sucos, vinhos, espu-
mantes, cajuína, doces, entre outros. A castanha encontrou destino
na exportação e se tornou uma das amêndoas mais consumidas no
mundo. Já o pedúnculo não teve o mesmo êxito.
No Ceará, maior área cultivada de caju do país, a perda no campo é
estimada em 90% – a cada 100 quilos de caju, apenas 10 são aprovei-
tados para o beneficiamento artesanal e industrial. O pedúnculo tem
uma potência nutricional para a saúde e a segurança alimentar, pois
contém de três a cinco vezes mais vitamina C que a laranja, além de
cálcio, fósforo e outros nutrientes. Neste sentido, é possível associar a
esse processo de desvalorização dos insumos do caju, como parte da
crise oriunda do processo de homogeneização de hábitos alimentares
que, segundo Poulain (2013), reflete uma crise identitária, na qual
se esvazia o sentido de pertencimento e de identidade de um povo.
A maioria dos produtores da cajucultura são agricultores familiares.
Este dado, implica necessária reflexão sobre a própria cajucultura,
incluindo suas relações econômicas, sociais e culturais, o que reforça
a relevância e a urgência de políticas públicas para a sua preservação
e manutenção.
O presente artigo tem como propósito analisar como o caju passa a
figurar como elemento presente na cultura, nas artes, e sobretudo,
na socialização entre imigrantes e nativos, tendo como resultados
deste encontro a construção de novos hábitos alimentares e cultu-
rais, que culminam com as iniciativas de patrimonialização desde a
década de 1970. Para Poulain (2013), essas ações denotam um inte-
resse da sociedade em preservar e manter técnicas, ferramentas,
ideias e paisagens dos processos que traduzem a cultura local, uma
vez que patrimonializar é dar sentido à sociedade, colocando em
relevo sua memória.
Para eleger o caju como objeto simbólico, ancoramos na perspec-
tiva de Bourdieu, para quem “o cume da arte, em ciências sociais,

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está sem dúvida, em ser capaz de pôr em jogo coisas teóricas muito
importantes a respeito de objetos ditos empíricos muito precisos,
frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco
irrisórios” (BOURDIEU, 1989, p. 20). Neste aspecto, a epistemo-
logia bourdieusiana destaca o processo de construção dos objetos
científicos, a partir da transformação de problemas abstratos em
operações científicas práticas. Para tanto, a perspectiva adotada é a
relacional, onde ocorre o entrelace simbólico que impacta na cultura,
na linguagem e sobretudo no modo como se vê e se pensa o caju e
o cajueiro. Desse modo, iremos analisar a construção simbólica do
ponto de vista da alimentação e da cultura, compreendida aqui na
sua dimensão ampla e antropológica, com vistas a problematizar a
relação das práticas sociais em torno do caju e as políticas culturais
para proteção e preservação dessas práticas na atualidade.

Caju: uma árvore no coração da cultura


O ato da comensalidade (do latim comensale, comer junto), estabele-
cido entre os imigrantes e indígenas, criou a base do que chamamos
hoje de cultura alimentar brasileira. Segundo Poulain (2013), é nesse
ato que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais.
Ao se configurar como um elemento singular na formação de hábitos
culturais, o caju participa da concepção da sociedade brasileira. Com
destaque para o vinho de caju e para os doces derivados do seu benefi-
ciamento, o caju transpõe barreiras geográficas e se torna personagem
de várias transformações vividas no país ao longo dos últimos 500 anos.
Datam da metade do século XVI as primeiras menções ao Anacardium
Occidentale, nome científico do cajueiro, árvore tropical originária do
Brasil. Anacardium deriva do grego Ana (como) e kardia (coração),
devido à forma da fruta. Seu fruto, o caju, tem origem na língua tupi:
Acaiú (a- fruto + ´ác- que trava + aiú- fibroso). O Frei André Thevet
esteve em missão francesa em solo brasileiro de 1555 a 1556, quando
produziu o livro Singularidades da França Antarctica em 1557, e
fez a primeira descrição da espécie e seus usos, acompanhada da

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ilustração abaixo que apresenta um índio em cima da árvore e outros
três, que recolhem os cajus e espremem o seu suco em um recipiente.

Figura 1 - O Cajueiro - André Thevet, 1555.

Fonte: Thevet, 1944..

A descrição do caju ganha densidade nas narrativas do “descobri-


mento”, ao passo que os colonizadores passam a identificar sua varie-
dade de usos pelos indígenas: do sumo extraído do seu pedúnculo,
que ao ser fermentado se transformava em vinho de boa qualidade.
Mota (2011) conta que o preparo do vinho do caju, chamado cauim,
era motivo de grande festa nas aldeias, sempre presente nas ocasiões
especiais, que incluíam desde uma celebração até as ocasiões em que
matavam um prisioneiro de guerra para comer.
Preparado estritamente pelas mulheres indígenas, o sumo dos cajus
espremidos era fervido e posteriormente fermentado nas cabaças.

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O missionário francês Jean de Léry, na sua obra Viagem à terra do
Brasil, de 1557, descreve o preparo do cauim2:

Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com


os rabanetes, as mulheres as fervem em grandes vasilhas de
barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do
fogo e as deixam esfriar. Feito isso acocoram-se em torno
das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em
outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura,
mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido.
Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em
vasos de barro de capacidade igual a uma meia pipa de vinho
de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os
vasos e fica a bebida pronta para o uso (LERY, 1961, p. 182).

Ainda hoje, no Ceará, no ritual do Torém entre os índios Tremembé,


a bebida se faz presente, com o nome de “mocororó”. O vinho de
caju, teve um papel socializador entre indígenas e europeus. Vivendo
em um mesmo território, compartilharam sabores e saberes que iam
da bebida alcoólica a pratos típicos, que os aproximava, incluindo
o uso terapêutico para tratamento das doenças. Nesta perspectiva,
segundo Poulain (2013), o caju se configura como um protagonista
do “espaço social alimentar3”, compreendendo a alimentação como
uma dimensão estruturante da organização social.
Gabriel Soares de Sousa, na obra Tratado Descritivo do Brasil em
1587, discorre sobre as qualidades terapêuticas do caju, que por sua
natureza fria, seria indicado para febre e fastio. A resina, diluída em
água, era consumida como remédio para algumas indisposições,
sobretudo para irregularidades no período menstrual. As raízes

2 Cauim se trata da bebida derivada do processo de fermentação produzida pelos indí-


genas, podendo ser de origem do caju, mas também cauim de milho, cauim de mandioca,
entre outros.
3 Segundo Poulain (2013), o espaço social alimentar é estruturado em 7 dimensões: O espaço
do comestível, o sistema alimentar, o espaço culinário, o espaço dos hábitos de consumo,
a temporalidade alimentar, o espaço de diferenciação social. Os modelos alimentares e a
interação entre o social e o biológico.

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teriam propriedades purgativas. A infusão das folhas novas, ingerida
ou em gargarejos, seria a terapêutica ideal de avitaminoses, sendo
ideal para tratar o escorbuto que assolava os navegantes europeus.
O sumo do caju era indicado para problemas digestivos. Destaque
também para as propriedades culinárias da fruta:

Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para


se comerem logo cozidos no açúcar cobertos de canela não
têm preço. Do sumo desta fruta faz o gentio vinho, com que
se embebeda, que é de bom cheiro e saboroso. É para notar
que no olho deste pomo tão formoso cria a natureza outra
fruta, parda, a que chamamos castanha, que é da feição e
tamanho de um rim de cabrito, a qual castanha tem a casca
muito dura e de natureza quentíssima e o miolo que tem
dentro; deita essa casca um óleo tão forte que aonde toca
na carne faz empola, o qual óleo é da cor de azeite, e tem o
cheiro mui forte. Tem esta castanha o miolo branco, tamanho
como o de uma amêndoa grande, a qual é muito saborosa,
e quer arremedar no sabor aos pinhões, mas é de muita
vantagem. Destas castanhas fazem as mulheres todas as
conservas doces que costumam fazer com as amêndoas, o
que tem graça na suavidade do sabor (SOUSA, 1971, p. 187).

As castanhas, verdadeira fruta do cajueiro, eram assadas verdes


(maturi, do tupi “fruto que vem” equivalente ao fruto “de vez”) ou
maduras e consumidas nas refeições. Podiam ser ingeridas in natura
ou piladas e adicionadas à macaxeira (mandioca). Juntas, dão origem
a farinha de alto teor nutritivo, consumida pelos indígenas, e poste-
riormente adotadas nas expedições dos colonizadores.
Além dos usos terapêuticos e culinários, o cajueiro atuava também
como marcador temporal: pela floração dos cajueiros contavam
os anos, como indicativo da idade dos nativos — ao guardar uma
castanha por ano de vida. O anúncio da safra orientava a deambu-
lação das tribos, que culminaram com as “guerras do caju”, conflitos
marcados pela proteção e domínio das zonas dos cajueirais:

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A princípio, entre aquelas tribos que desciam do interior
na época da frutificação e os habitantes do litoral. Luta pelo
domínio temporário da zona dos cajueirais, no caso da vitória
dos adventícios. Pois estes se retiravam voluntariamente
quando colhiam das árvores os derradeiros frutos do ano.
[...] As chuvas do começo do verão regulam a abundância
das safras dos cajus que coincidem, em dezembro e janeiro,
com o aparecimento das piracemas nas costas nordestinas.
Inconscientes dessas migrações naturais, os indígenas imagi-
navam que os cardumes vinham comer as frutas. E então se
antecipavam na conquista das frutas e também dos supostos
bichos-papões. Cariris atacavam potiguaras e tabajaras. As
guerras do caju tinham desse modo uma causa acessória: a
pesca dos peixes do mar (MOTA, 2011, p. 37).

A ocupação holandesa no século XVII, em grande parte do Nordeste


brasileiro, reconhecia a importância dos cajueirais para usos tera-
pêuticos e nutritivos de suas tropas, que consolidaram a conquista do
território aferindo estabilidade, ao mesmo tempo em que reconhe-
ciam a relevância do fruto para provimento das tribos indígenas que ali
viviam. Na época, a luta entre os indígenas deixou de ser entre tribos,
para se transformar em uma luta contra as ocupações europeias. José
Antônio Gonsalves de Mello, no livro Tempos dos Flamengos, relata
a ocupação holandesa e as ações tomadas por Maurício de Nassau para
o estabelecimento de regras na ocupação dos territórios da Paraíba e
Pernambuco, diminuindo assim os poderes dos senhores de engenho
ali estabelecidos, subordinando-os “aos usos, ordenações e costumes
imperiais da Holanda, Zelândia e Frísia Ocidental”, impondo regras
que incluíam: a proibição de marcação e mutilação dos escravos; jogar
bagaço de cana nos rios; a obrigatoriedade no plantio da macaxeira;
com destaque para a proibição de derrubar cajueiros na deliberação
do Alto Conselho Holandês de 11 de julho de 1641:

Resolveu-se tomar pública a proibição de que nenhum


senhor de engenho, queimadores de cal, oleiros, fabricantes

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de cerveja (brouwers) ou quem quer que seja, permita-se
derrubar algum cajueiro, sob multa de cem florins por cada
árvore, visto que o seu fruto é um importante sustento dos
índios (MELLO, 2001, p. 143).

Mota (2011) pondera que a resolução adotada pelos holandeses é, de


fato, mais rígida que as adotadas pelo decreto-lei do governo republi-
cano brasileiro, mais de três séculos depois, no qual as multas eram
de valores irrisórios para a época. Embora o desejo de Maurício de
Nassau fosse preservar boa parte dos cajueiros visando o provimento
dos indígenas, Mota (2011, p. 138) sugere que o interesse do holandês
ia além: “utilizá-los nas refeições frutíferas de sua gente aqui e nas
remessas dos já famosos doces de caju pernambucanos à Holanda”.
Entre o período de 1631 e 1647, foram exportadas para a Holanda
uma quantidade considerável de doces de caju.
Dentre os alimentos consumidos pelos indígenas logo adotados pelos
europeus, Freyre (2006) afirma que o milho seria o único cereal encon-
trado no Brasil, sendo a dieta dos índios feita em grande parte de vege-
tais e raízes, como a mandioca, a batata-doce, o cará, os pinhões, o
cacau, o mindubi. Legumes não eram muito utilizados pelos indígenas,
com exceção do palmito que era consumido cru ou cozido.
Os rituais passam a ser compartilhados e costumes são fundidos a
partir da interação à mesa. Simmel (2004, p. 161) destaca que os
indígenas não mantinham uma organização tão precisa quanto aos
horários de comer: “comia-se quando se tinha fome. A comensali-
dade conduz igualmente à regularidade na hora de comer”, supe-
rando assim o naturalismo do ato de comer. DaMatta (1998, p. 56)
afirma que “o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como
também aquele que ingere”. Portanto, comer vai além da questão
da sobrevivência, configura-se também como um comportamento
político, simbólico e cultural.
A atribuição de status simbólico conferido ao alimento e ao ato de
comer, se dá pela distinção entre “comida” e “alimento”. DaMatta
(1998, p. 9) defende que toda substância nutritiva é um alimento, mas

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nem todo alimento é comida: Alimento é o que o indivíduo ingere
para se manter vivo, já a comida contribui para a configuração de
uma identidade, a definir um coletivo ou uma pessoa.
O encontro entre índios e europeus foi mediado por um espaço social
comum, mas foi também, sobretudo, em função das trocas referentes
a hábitos alimentares e terapêuticos, que garantiram a permanência
dos colonizadores em terras brasileiras. Não à toa, em todas as narra-
tivas do “descobrimento”, muitos trechos são dedicados à descrição
da fauna, da flora e da cultura alimentar local, com destaque para o
caju, que figura, junto à mandioca, como um item crucial na nutrição
dos estrangeiros.
No Brasil colonial, o caju se tornou presença obrigatória nas casas-
-grandes, com uma infinidade de usos, como descreve Mota (2011):
no acompanhamento da aguardente, de feijoadas e peixadas; como
uma boa isca para pescar aratu ou caranguejos; transformado em
vinagre ou em vinho, que se tornaram a bebida oficial, símbolo da
hospitalidade das casas-grandes. Freyre (2006, p. 200) comenta
que “a cozinha das casas-grandes nasceu debaixo dos cajueiros e os
doces de caju enchiam as mesas dos senhores de engenho”, sendo
junto com a goiabada as principais sobremesas deste período.
Freiyre (2006) coloca em relevo a transmissão de conhecimentos
dos indígenas, sobre o que ele considera o “complexo do caju”, para
os europeus: “Dos índios transmitiu-se igualmente ao europeu
o complexo do caju – com uma série de aplicações medicinais e
culinárias; destacando-se, porém, o seu uso no fabrico de um vinho
muito bom”. Em nota, Freyre (2006, p. 196) explica que o termo
“complexo” é utilizado no seu “sentido antropológico ou socioló-
gico, significando aquela série de traços ou processos que consti-
tuem uma espécie de constelação cultural”. No que toca à questão
simbólica, DaMatta (1998, p. 240) elucida que “um produto natural
deve poder ser o objeto de projeções de significados por parte do
comedor. Ele deve poder tornar-se significativo, inscrever-se numa
rede de comunicações, numa constelação imaginária, numa visão

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de mundo”, e nesta perspectiva o caju teve ampla projeção na
cultura do país.
O Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC), fundado por
Aloísio Magalhães, teve como piloto o projeto “Estudo Multidisciplinar
do Caju”, com o propósito de pesquisar e documentar as múltiplas
facetas do caju.
Para Magalhães (1997), o caju tinha relevância entre as frutas tropi-
cais, por trazer consigo uma consciência histórica – por sua presença
desde as narrativas do descobrimento; a espacialização, por estar
presente em grande parte do país; pela diversidade de usos que
a espécie propicia e reforça o componente cultural, ao destacar a
dimensão simbólica do caju:

A diversidade de usos é tal que ele já saltou para fora do


uso direto e já tem os usos simbólicos. Medidor de tempo,
divisor de espaço temporal: antes e depois da chuva do
caju. Você tem objetos de arte usando o caju; mobiliário
com trabalhos de talha feitos com caju; pintura feita com
uso do caju, poesia citando caju, literatura em torno do
caju, música em torno do caju. Enfim, ele entra numa
penetração multifacetada na comunidade que o configura
como objeto cultural (MAGALHÃES, 1997, p. 228).

Para Freyre (2006), a infinidade de usos e de produtos derivados do


caju são merecedores de um movimento de valorização e, junto à
Aloísio Magalhães, realizam o Primeiro Seminário Interdisciplinar do
Caju. No Relatório apresentado elencam as razões para empreender
o projeto:

As razões para a realização de um tal trabalho são várias,


podendo-se mencionar,entre outras, as seguintes:

a) O caju desempenha um papel importante e significativo


no contexto socioeconômico e cultural do Brasil de hoje,
especialmente no Nordeste;

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b) O caju é uma fruta originária do Brasil, utilizada pelos
aborígenes muito antes da chegada dos portugueses;

c) O caju abrange uma ampla gama de dimensões signifi-


cativas da vida socioeconômica e cultural, que vão desde
os aspectos químicos e nutricionais até os artísticos e
antropológicos;

d) O caju apresenta um potencial de utilização ainda não


totalmente compreendido;

e) Um estudo do caju, levando em consideração sua perma-


nência e importância em algumas de nossas comunidades
mais representativas, poderá oferecer uma boa oportuni-
dade de inter-relacionar dinâmicas ‘técnicas’ e ‘culturais’
(CNRC, 1977, p. 1).

Na justificativa do projeto, o caju assume o papel de símbolo da


cultura e da identidade brasileira, conforme ressalta Lavinas (2014,
p. 144), ao destacar os aspectos presentes na pesquisa: “o caju como
complexo brasileiro de cultura, o caju ou a castanha como símbolo
entre os brasileiros, o sentido de tempo do indígena, contado por
safras de cajueiro, projetado sobre a cultura popular brasileira, o
caju no folclore brasileiro”. Na aplicação prática, o projeto defende
ainda o zoneamento das áreas produtivas do Nordeste e estudos para
beneficiamento e comercialização de produtos derivados do caju,
especialmente o vinho. No artigo “O caju, o Brasil e o homem” de
1977, em introdução ao “Estudo do Caju”, Gilberto Freyre expressa
a dimensão cultural e simbólica do caju na cultura brasileira:

Tornou-se corrente entre brasileiros, a expressão pito-


resca ‘colher mais um caju’, para significar, na vida de uma
pessoa ou de uma instituição, mais um ano de existência.
O que indica quanto de existencial o caju tornou-se para
numerosa gente do Brasil já europeizado. Pois, o que há
de mais significativo na existência de um povo, que o seu
sentido de tempo? Que o modo de contá-lo?

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Ligado a esse sentido de vida-tempo é que o caju se
tornaria, no Brasil civilizado, por vezes com proje-
ções transbrasileiras, suco, refresco, doce, licor, vinho,
batida, símbolo – inclusive, na caricatura política, do
próprio segundo imperador do Brasil, Dom Pedro II
– e a castanha do caju, confeito, peça de jogo infantil e
também símbolo. Registre-se que da resina do cajueiro
se vem fazendo no Brasil cola para grudar coisas diversas;
que a flor do cajueiro há quem a considere a mais chei-
rosa das flores brasileiras do mato sendo célebres versos
a seu respeito como os que falam de ‘cajueiro pequenino
carregadinho de flor’, que a árvore, na verdade de ordi-
nário antes pequenina que imponente, cresce retorcen-
do-se, mais horizontal do que verticalmente com seus
galhos prestando-se às primeiras travessuras agrestes de
meninos ainda pequenos; que Cajueiro é, no Brasil, nome
de família; que há uma chuva, no Nordeste, que se chama
dos cajus; que há, no mesmo Nordeste, quem misture a
fruta do cajueiro, cortada em pequenas talhadas, em vez
de laranja, na muito brasileira feijoada e também quem
nela injete cachaça para chupar um caju assim misto;
que a castanha tanto apreciada quando assada de modo
rústico como sob as as formas sofisticadas de castanha,
aperitivo de mesa fina, ou de castanha confeitada...
(FREYRE apud DUTRA, 2017, p. 107).

Além dos usos terapêuticos e culinários, o caju está bem represen-


tado, tanto na cultura popular quanto na erudita (COLLARES, 1997).
A figura do caju participa de diferentes momentos da pintura brasi-
leira, desde a pintura barroca, presente sobretudo nas igrejas, como
exemplo a Basílica de Salvador, com obras que datam de 1581, nos
retábulos e tetos, onde a representação das frutas nativas como cacau
e caju se misturam às uvas e maçãs europeias e aos santos e mártires,
denotando uma iconografia tropical e brasileira.

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Figura 2 - Detalhe do corpo inferior do retábulo das Virgens Mártires, Basílica
de Salvador, c. 1657-1672.

Fonte: Fernandes, 2019.

O caju aparece também nos clássicos estudos de natureza morta de


Estevão da Silva, em 1888, onde surge em primeiro plano com outras
frutas típicas brasileiras. Também ocupa posição central na obra de
Jean Baptiste Debret, de 1987.

Figura 3 - Negra tatuada vendendo caju, Jean-Baptiste Debret, 1827.

Fonte: Mota, 2011.

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A caricatura política a que se refere Gilberto Freyre trata de Dom
Pedro II, que era conhecido também como “Pedro Caju”, uma refe-
rência a forma do seu rosto com grande queixo. Mota (2011) atribui
esse fato a uma influência francesa, que caracterizavam o Rei Luís
Felipe como uma pêra, pelo formato do seu corpo. Não tardou para
que artistas do Rio de Janeiro e de Pernambuco passassem a repre-
sentar a cabeça e a coroa de Pedro II com o formato da castanha de
caju.

Figura 4 - Transformação nas fórmulas do Brasil e seus destinos, de Raphael


Bordallo Pinheiro, publicados em Pontos nos ii, Lisboa, 05 dez. 1889.

Fonte: Fernandes, 2019.

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O caju como elemento simbólico aparece ainda nas obras de Tarsila
do Amaral, Di Cavalcanti, Carybé e com intensidade frequente na
obra de Aldemir Martins, Francisco Brennand e Cícero Dias. A
seguir um exercício de montagem com obras de arte de diferentes
momentos, onde o caju está presente:

Figura 5 - Obras de Arte com referência ao caju

A Feira II, Tarsila do Amaral, 1925 Colonos, Di Cavalcanti - 1940 Menino, Caju e Recife ao
fundo, Cícero Dias - 1970
Fonte: Fernandes, 2019.

A representação do caju na música brasileira ficou eternizada em


composições de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Alceu Valença e
Ednardo. Na literatura, está presente em obras de autores clás-
sicos, como Euclides da Cunha, Juvenal Galeno, Rachel de Queiroz,
Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Humberto de Campos, entre
outros. Mota (2011, p. 237) comenta a relevância que o cajueiro
assumiu na literatura brasileira, sobretudo a nordestina:

Raro o nordestino em cuja obra o cajueiro não entrou,


senão como tema, como paisagem para o tema. Até como
personagem. [...] Em nenhuma outra flora já foi classifi-
cada uma árvore exercendo sobre as populações cultas ou
não influência das variedades e dimensões do cajueiro no
Nordeste. É uma influência de muitas faces que se estende
a todos os grupos sociais, manifestando-se na literatura
popular e na erudita. Certa madrugada, sentindo o perfume
dos cajueiros da Boa Viagem, Assis Chateaubriand disse:

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‘Tenho um cajueiro dentro do coração’. Como nesse, em
outros corações nordestinos, o cajueiro rebenta.

Na cultura popular e no folclore, sobretudo no Nordeste, o cajueiro


está presente em uma série de atividades, como dizeres populares,
cantigas de rodas, jogos de adivinhação e brincadeiras infantis.
Mota (2011) resgata alguns destes dizeres: “Quem não come do caju
não percebe das castanhas”. “Cajueiro doce é que leva pedrada”,
“Quando você ia aos cajus, eu já voltava com as castanhas assadas”,
“Caju de beira de estrada tem ranço ou bicho”. Nas brincadeiras
infantis, as castanhas tinham valor monetário, e na época da safra
diluía a condição social entre as crianças. O status era atribuído a
quem acumulava a maior quantidade de castanhas a partir do jogo,
ou indo à busca nos sítios dos arredores.

Figura 6 - Jogo de Castanha, Bico de Pena de Manoel Bandeira. Acervo


Mauro Mota

Fonte: Mota, 2011.

A ramificação do cajueiro na vida social aprofunda as raízes no


folclore e na cultura nordestina. A seguir, a figura do vendedor
ambulante de caju com um arranjo bem peculiar e estético no modo

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de carregar e disponibilizar os cajus, presos pela castanha a uma
linha. Essa imagem habita a memória social, de modo que também
foi traduzida por Manoel Bandeira.

Figura 7 - O vendedor de caju, bico de pena de Manoel Bandeira. Acervo


Mauro Mota.

Fonte: Mota, 2011.

A cajucultura perpassa de várias maneiras a cultura nordestina,


do folclore à literatura, da música às artes visuais, dos ditos popu-
lares à cultura alimentar. É um elemento fundante, presente nos
primórdios da cultura brasileira, que se desdobrou para outros países
mundo afora. Por ser um alimento, é agente da configuração de um
espaço social alimentar, que segundo Poulain (2013), é também um
espaço para a produção simbólica, constituído pela representação
do alimento, reforçando a diferença entre o que é local e o que é de
fora, entrelaçando origem e memória social.
Fica evidente a potencialidade do caju e seus usos que demarcam um
papel singular na cultura nordestina, entretanto com a globalização e

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a homogeneização de hábitos alimentares, o que se observa na atua-
lidade é o enfraquecimento de sua participação na cultura alimentar:
atualmente 90% do pedúnculo do caju apodrece no campo.
No Ceará, a cajucultura está presente em 152 dos 184 municípios,
distribuídos em 269.829 hectares de área destinada à cajucultura,
que representa 63,24% da área total cultivada no Brasil. A cadeia
produtiva do caju gera anualmente cerca de 250 mil empregos diretos
e indiretos, em período que coincide com a entressafra das culturas
anuais de subsistência, o que reduz a sazonalidade da mão de obra
e o êxodo para as cidades.
Segundo Serrano e Pessoa (2016), a cajucultura é praticada por cerca
de 195 mil produtores, destes 75% são agricultores familiares, com
áreas inferiores a 20 hectares. O elevado desperdício do pedúnculo
contribui de forma decisiva para o baixo valor de produção da caju-
cultura no Nordeste. É unânime entre os estudiosos da cajucultura
que o aproveitamento e a comercialização do pedúnculo poderia ser
mais rentável para o produtor rural do que a castanha para expor-
tação, o que poderia representar um um incremento relevante na
renda do agricultor familiar. Esse cenário implica em uma necessária
reflexão sobre a própria cajucultura, incluindo suas relações com o
mercado e as políticas públicas.
No contexto das políticas culturais, é urgente a retomada de ações
de reconhecimento e de valorização dos produtos oriundos do caju,
o que passa pela valorização da agricultura familiar, da comerciali-
zação, circulação e consumo desses produtos.

Conclusões
Como um alimento de alto valor nutricional e fundante da cultura
brasileira, presente em ações de patrimonialização pioneiras no país,
pode estar atualmente perecendo no campo? Conclui-se que o reco-
nhecimento e a patrimonialização são de extrema importância, mas
de forma isolada são insuficientes para a salvaguarda das práticas
culturais na cultura alimentar, o que sugere que ações que contem

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com uma articulação interinstitucional de setores públicos e privados,
tendem a ser mais efetivas por ter maior força e espectro de ação.
A atual tendência de fortalecimento e valorização da cultura regional
possibilita ações enfáticas para que o caju e seus insumos voltem a
ocupar seu espaço na cultura alimentar nordestina. O que pressupõe
o envolvimento de todos os atores que participam da complexa rede
na qual o caju se insere: no suporte, fomento e ações de capaci-
tação na agricultura familiar, garantindo aos produtores a manu-
tenção de sua atividade de cultivo e beneficiamento, escoamento
de sua produção no âmbito do comércio justo, reconhecimento de
seus saberes e fazeres a partir de ações de comunicação e educação;
na difusão cultural de suas práticas, fazeres e saberes, por meio de
ações educativas e de fruição; na aquisição e inclusão dos produtos
oriundos do caju na merenda escolar e em ações de segurança
alimentar; na realização de ações de divulgação dos aspectos nutri-
cionais do caju; na inclusão e divulgação dos produtos da agricultura
familiar e de práticas culturais de beneficiamento artesanal do caju
em programas de turismo; no incentivo à produção de pesquisas que
possam contribuir para a compreensão do complexo do caju e do
conceito de cultura alimentar de modo amplo e profundo.
Assim como o entendimento da cultura passa por uma dimensão
antropológica que amplia seu campo de compreensão, as políticas
culturais devem acompanhar essa perspectiva, de modo a garantir
que a cultura alimentar possa ser foco de ações que considerem sua
complexidade e relevância na construção e manutenção da identi-
dade de uma nação.

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