Bordieu - A Casa Ou o Mundo Invertido PDF
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OU O MUNDO S AVESSAS76
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tear
moinho
thaddukant
Estbulo
thigejdith
kanun
thigejdith
1
addukan
cntaros
3
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manjedoura
arado
bas
soleira
1. forragem verde; 2. jarros com legumes secos, figos; 3. jarros com gros;
4. lmpadas, vasilhas; 5. grande jarro
de reserva d'gua
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votos de que ele seja a viga mestra da casa e quando ele termina o
ritual do jejum pela primeira vez, sua primeira refeio feita no
telhado, isto , sobre a viga central (para que ele possa, diz-se,
transportar vigas).
Vrias adivinhaes e ditados identificam explicitamente a mulher ao
pilar central: a mulher o pilar central. Para a recm casada se diz:
que Deus faa de ti o pilar solidamente plantado no meio da casa. Uma
adivinhao : ela fica em p e no tem ps. Forquilha aberta para o
alto e no apoiada sobre seus ps, ela a natureza feminina, fecunda, ou
melhor, fecundvel.91 Contra o pilar central que so amontoados os
odres cheios de gros de hiji e que consumado o casamento.92 Assim,
resumo simblico da casa, a unio de asalas e de thigejdith, que
estende sua proteo fecundante sobre todo o casamento humano, de
certa maneira o casamento primordial, casamento de ancestrais que
tambm, como a lavoura, o casamento do cu e da terra. A mulher, so
as fundaes, o homem a viga central, diz um outro provrbio. Asalas,
que uma adivinhao define como nascido na terra e enterrado no cu,
fecunda thigejdith, plantada na terra, lugar dos ancestrais, senhores de
toda fecundidade, e aberta em direo ao cu.93
A casa se organiza, assim, conforme um conjunto de oposies
homlogas: fogo : gua :: cozido : cru :: alto : baixo :: luz : sombra :: dia :
noite :: masculino : feminino :: nif : hurma :: fecundante : fecundvel ::
Da recm casada que se adapta bem nova casa, diz-se tha'mmar, isto , entre
outros sentidos (cf. a nota 30), ela plena e ela enche.
92 Entre os berberes de Aurs, a consumao do casamento se d na segunda-feira,
na quinta-feira ou no sbado, dias propcios. Na vspera, as moas da seo da noiva empilham, contra o pilar central, hiji, seis odres tingidos de vermelho, verde,
amarelo e violeta (representando a noiva) e um stimo branco (o noivo), todos cheios de gros. Ao p de hiji, uma velha joga sal para espantar os gnios do mal, espeta uma agulha no cho para aumentar a virilidade do marido e pe uma esteira,
voltada para o leste, que servir de cama para os recm casados durante uma semana. As mulheres da parentela do noivo perfumam hiji e sua me joga, como se
faz durante o plantio, uma chuva de tmaras disputadas pelas crianas. No dia
seguinte, a noiva levada para o p de hiji por um parente prximo do noivo e a
me joga outra vez farinha, tmaras, trigo estufado, acar e mel.
93 Em certas regies, coloca-se a relha do arado na forquilha do pilar central, com a
ponta voltada para a porta.
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dvida uma das mais simples e mais potentes que um sistema mticoritual pode utilizar, j que ela no pode opor sem, ao mesmo tempo, unir,
sendo capaz de integrar numa ordem nica um nmero infinito de dados,
pela simples aplicao indefinidamente reiterada do mesmo princpio de
diviso. Segue-se, tambm, que cada uma das partes da casa (e, do
mesmo modo, cada um dos objetos ai guardados e cada uma das
atividades a realizadas) , de certa maneira, qualificada em dois graus,
seja primeiramente como feminina (noturna, obscura, etc.) enquanto
participa do universo da casa e secundariamente como masculina ou
feminina como integrante de uma ou outra das divises desse universo.
Assim, por exemplo, quando o provrbio diz o homem a lmpada de
fora, a mulher a lmpada de dentro, deve-se entender que o homem a
verdadeira luz, a do dia, e a mulher a luz da obscuridade, a obscura
claridade; e tambm sabemos que ela est para a lua assim como o
homem est para o sol. Do mesmo modo, atravs do trabalho com a l, a
mulher produz a proteo benfica da tecelagem, cuja brancura simboliza
a felicidade,101 o tear, instrumento por excelncia da atividade feminina,
posto de frente para o leste, como o arado, seu homlogo, ao mesmo
tempo o leste do espao interior, de modo que, no interior do sistema da
casa, h um valor masculino como smbolo de proteo. Do mesmo modo o
fogo, umbigo da casa (ela prpria identificada ao ventre materno), onde
dormita a brasa, fogo secreto, dissimulado, feminino, domnio da
mulher, investida de toda autoridade no que diz respeito cozinha e
gesto das reservas;102 perto do fogo que ela faz suas refeies,
enquanto que o homem, voltado para fora, come no meio da sala ou no
ptio. Apesar disso, em todos os ritos nos quais intervm, o fogo e as
pedras que o cercam derivam sua eficcia mgica da participao da
ordem do fogo, do seco e do calor solar, 103 seja no caso de proteo do
Os dias brancos designam os dias felizes. Uma das funes dos ritos de casamento tornar a mulher branca (asperso de leite, etc.).
102 O ferreiro o homem que, como a mulher, passa todo seu dia no interior, perto
do fogo.
103 O fogo o centro de um certo nmero de ritos e objetos interditos que o tornam
o oposto da parte obscura. Por exemplo, proibido tocar nas cinzas durante a noite;
cuspir no fogo, deixar cair gua ou lacrimejar sobre ele (Maunier). Do mesmo modo, os ritos destinados a mudar o tempo, fundados numa inverso, utilizam a oposi101
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fora, o ventre que, como a terra, acolhe a semente que o homem a faz
penetrar e, inversamente, de contrariar a ao de todas as foras
centrfugas, capazes de desapropriar a casa do depsito que lhe foi
confiado. Assim, por exemplo, proibido dar fogo no dia do nascimento de
uma criana ou de um vitelo ou, ainda, na poca das primeiras
semeaduras,107 depois de batido o trigo, ningum deve sair de casa e a
mulher traz de volta todos os objetos emprestados; o leite dos trs dias
seguintes quele em que a vaca deu cria no deve sair da casa; a recm
casada no pode cruzar a soleira antes do stimo dia depois do
casamento; a parturiente no deve deixar a casa antes de quarenta dias;
o beb no deve sair antes do Aid Seghir, o moinho manual nunca deve
ser emprestado e deix-lo vazio atrair a fome para casa; no se deve
levar para fora o tecido antes de estar completo; proibido emprestar
fogo e proibido varrer, ato de expulso, durante os quatro primeiros
dias de semeadura; a sada do morto facilitada, de modo que ele no
leve com ele a prosperidade,108 as primeiras sadas, por exemplo, da
vaca, quatro dias depois de dar cria, ou do seu leite, so marcadas por
sacrifcios.109 O vazio pode resultar de um ato de expulso; pode
tambm introduzir-se com alguns objetos como o arado, que no pode
entrar na casa entre duas jornadas de cultivo da terra, ou os sapatos do
trabalhador (arkassen), associados lakhla, ao espao vazio, ou a
algumas pessoas, como as velhas, porque elas trazem consigo a
Ao contrrio, a entrada na casa de novas pedras para o fogo, em momentos
inaugurais, preenchimento, chegada do bom e do bem; as provises feitas nessas
circunstncias tambm trazem prosperidade e fecundidade: se se encontra um
verme branco sob uma das pedras, um nascimento deve ocorrer durante o ano; uma
erva verde, uma boa colheita; formigas, um rebanho ampliado; um lagarto, novas
cabeas de gado.
108 Para consolar algum, diz-se: ele te deixar a baraka, se se trata de um personagem importante, ou baraka no saiu da casa, se se trata de um beb. O morto colocado perto da porta, a cabea voltada para a porta; a gua aquecida do
lado do estbulo e a lavagem feita na entrada do estbulo; os ties e as cinzas
desse fogo so espalhados fora de casa; a prancha que serviu para lavar o morto
fica, durante trs dias, em frente porta: depois do enterro. prega-se trs pregos na
porta, da sexta-feira at o sbado seguinte.
109 A vaca deve passar sobre uma faca e pe-se favas na soleira; derrama-se gotas
de leite sobre o fogo e a soleira.
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ainda est sentada sobre o burro que a trouxe da casa de seu pai, recebe
gua, gros de trigo, figos, nozes, ovos cozidos ou empanados, todas coisas
(sejam quais forem as variantes locais) associadas fecundidade
feminina e da terra, e ela as atira em direo casa, fazendo-se assim, de
certa forma, preceder pela fecundidade e a plenitude que deve trazer
casa.111 Ela cruza a soleira nas costas de um parente do marido, ou s
vezes, segundo Maunier, nas costas de um negro (em qualquer caso,
nunca nas costas do marido) e este, se interpondo, intercepta as foras do
mal, capazes de afetar sua fecundidade da qual a soleira, ponto de
encontro entre dois mundos opostos, a sede: uma mulher nunca deve
sentar-se na soleira com seu filho no colo; a criana pequena e a recm
casada no devem pisar nela com freqncia.
Assim, a mulher, atravs de quem a fecundidade chega casa,
contribui com sua parte para a fecundidade do mundo agrrio: votada ao
mundo de dentro, ela age tambm fora, assegurando a plenitude interna
ao controlar, a ttulo de guardi da soleira, essas trocas sem
contrapartida que apenas a lgica da magia pode conceber e atravs das
quais cada uma das partes do universo espera receber da outra a
plenitude apenas pela oferta do vazio.112
Mas um ou outro dos dois sistemas de oposio que definem a casa, seja
em sua organizao interna, seja em sua relao com o mundo exterior,
ocupar o primeiro plano conforme consideremos a casa do ponto de vista
masculino ou do ponto de vista feminino: enquanto que para o homem a
casa menos um lugar onde se entra do que um lugar de onde se sai, a
mulher no pode deixar de atribuir a esses dois deslocamentos e s
diferentes definies da casa, que so solidrias, uma importncia e uma
significao inversas, j que o movimento em direo ao exterior consiste
antes de tudo, para ela, em atos de expulso e que o movimento em direo
ao interior, isto , da soleira em direo ao fogo o que propriamente lhe
cabe. V-se muito bem o significado do movimento em direo ao exterior
Pode-se tambm aspergi-la com gua ou faz-la beber gua e leite.
Na porta so dependurados vrios objetos que tem em comum o fato de expressarem a dupla funo da soleira, barreira seletiva, encarregada de evitar o vazio e o
mal, deixando entrar o pleno e o bem e predispondo fecundidade e prosperidade
todos os que franqueiam a soleira em direo ao exterior.
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no rito que a me cumpre, sete dias depois de dar luz, para que seu filho
seja corajoso: passando a perna sobre a soleira, ela pe o p direito sobre o
pente de cardar e simula uma luta com o primeiro menino que encontra. A
sada o movimento propriamente masculino, que leva em direo aos
outros homens, e portanto em direo aos perigos e s provas aos quais
importante fazer frente, como um homem, to spero como as pontas do
pente de cardar, quando se trata da honra.113 Sair, ou mais exatamente,
abrir (fatah) eqivale a estar na manh (sebah). O homem que se d o
respeito deve sair da casa logo que o dia desponta, a manh sendo o dia do
dia e a sada de casa, pela manh, um nascimento: da a importncia das
coisas que se encontra e que auguram todo o dia, de modo que melhor, em
caso de um mau encontro (com o ferreiro, com uma mulher carregando um
odre vazio, com gritos ou brigas, com um ser disforme), refazer sua
manh ou sua sada.
Percebemos logo a importncia atribuda orientao da casa: a
fachada da casa principal, a que abriga o chefe de famlia e que tem o
estbulo, quase sempre orientada na direo do leste, a porta principal
por oposio porta estreita e baixa, reservada s mulheres, que se
abre sobre o jardim nos fundos da casa comumente chamada a porta
do leste (thabburth tchacherqith), ou porta da rua, porta do alto, porta
grande.114 Dada a exposio das aldeias e a posio inferior do estbulo, a
parte alta da casa, com o fogo, fica ao norte, o estbulo ao sul e a parede
do tear a oeste. Segue-se que o movimento feito por algum que se dirige
casa para entrar, orienta-se do leste para o oeste, por oposio ao
movimento que se faz para sair, de acordo com a orientao por
Enquanto que a menina, quando nasce, envolvida num leno de seda, macio e
flexvel, o menino enrolado em panos duros e speros que servem para abrigar os
feixes da colheita.
114 claro que uma orientao inversa (que se percebe observando o plano da casa
numa transparncia) possvel, ainda que seja rara. Diz-se explicitamente que
tudo o que vem do oeste traz m sorte e uma porta voltada para esta direo s
pode receber obscuridade e esterilidade. De fato, se o plano inverso ao plano ideal
raro, , primeiro, porque as casas secundrias, que so dispostas em ngulo reto
em torno do ptio, so freqentemente simples quartos de estar, sem cozinha e sem
estbulo, e o ptio freqentemente fechado, do lado oposto fachada da casa
principal, pelos fundos da casa vizinha, ela prpria com a frente voltada para o leste.
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OESTE
leste
primavera
SUL
seco
norte baixo
inverno
alto sul
vero
esquerda
NORTE
outono
oeste
mido
LESTE
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Paris, 1963-1964
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