Vivendo A Arte
Vivendo A Arte
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Ttulo original:
Pragmatist aesthetics
VIVENDO A ARTE
O pensamento pragmatista e a esttica pop1tl ,11
15
Reviso tcnica:
Magn lia Costa
21
Reviso:
Bruno Lins da Costa Borges
59
99
4. A ARTE DO RAP
143
195
Apndice
atalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro
(Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)
~'14v
Shusterman, Richard
Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a
esttica popular I Richard Shusterman; traduo de
;isela Domschke. - So Paulo: Ed . 34, 1998
272 p. (Coleo TRANS)
ISllN 85-7326- 099-8
CDD -191
SITUANDO O PRAGMATISMO
229
Vivendo a Arte
Um dos objetivos desta traduo o de introduzir a esttica pragmatista de Dewey elaborada nos anos 30, e o de possibilitar, atravs
da confrontao do pragmatismo e da filosofia analtica da arte, uma
compreenso mais exata das filosofias estticas americanas contemporneas. Meu projeto, no entanto, no se resume a isso. Pretendo nesta
obra dar continuidade filosofia esttica pragmatista e desenvolver
seu potencial democrtico e progressista, a fim de considerar as formas de expresso artstica que hoje dominam nosso mundo, quer dizer, as artes populares da mdia, quase sempre ignoradas pelas filosofias tradicionais da arte .
A forte presena internacional da cultura popular norte-americana tem provocado um interesse conside.r vel nas ltimas dcadas ainda que, para muitos intelectuais, esse interesse se limite a um olhar
inquieto ou mesmo desgostoso. A questo da cultura popular americana e de sua importao por outros pases um tema maior, eu diria
at urgente. Infelizmente, os debates realizados em torno da arte e da
esttica populares permanecem, no entanto, confinados a colunas de
revi stas e jornais. Resultam, normalmente, mais em exaltaes do que
em esclarecimentos. Um tratamento filosfico rigoroso deste tpico tem
se apresentado extremamente raro (nos Estados Unidos assim como
em outros pases); alm disso, as estratgias filosficas tradicionais me
parecem mal aparelhadas para oferecer uma compreenso real neste
campo. No apenas a prtica acadmica da filosofia , em geral, abstrata demais e cega para as formas concretas da arte popular, como
tambm suas perspectivas padronizadas da esttica so radicalmente
hostis aos objetivos, s ideologias e s realidades socioculturais que
motivam essas formas populares. O dualismo cartesiano e a esttica
kantiana, por exemplo, no so decerto a forma adequada para julgar o rap, seja ele francs, alemo ou brasileiro.
O fato de propor uma teoria esttica baseada na filosofia norteamericana como um meio melhor para a compreenso da cultura popular norte-americana (e de seu sucesso internacional) pode ser malinterpretado como uma expresso de imperialismo cultural e o pior
dos chauvinismos . Na fuso do pragmatismo com o funk afro-americano, minha teoria pode ser ainda caricaturada como a vingana dos
oprimidos, aps sculos de dominao cultural eurocentralizadora.
Mas podemos tambm ver a um reconhecimento filosfico mais modesto da diferena cultural, que implica uma abordagem pragmatista
contextual, no s das formas artsticas e suas teorias, como tambm
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
sa ri amente ao tratamento mais tcnico destas questes dentro da filosofia da linguagem e da hermenutica, tampouco s disputas sectrias presentes na recente filosofia da arte anglo-americana. Os filsofos que se interessarem pelos captulos omitidos podero se remeter
verso inglesa, ao passo que os leitores no-especialistas interessados
na questo esttica no sero desencorajados pela necessidade de enfrentar uma armad ura de debates tcnicos sobre interpretao e metafsica da unidade e da identidade.
Curiosamente, a forma abreviada desta ed io pode ser vista
como reflexo do tema central de se u contedo: a legitimao da cultura popular. De fato, ela pode ser condenada, ao lado de seu contedo, por corrupta popularizao. No existiria a uma analogia incmoda entre a necessidade de simplificar um livro para despertar o interesse de um maior nmero de leitores e a conhecida acusao de que
a arte popular precisa ter se u nvel reduzido ao mais baixo denominador comum a fim de garantir os benefcios de um grande pblico?
Estaria a publicao filosfica se reduzindo, por presses ps-modernas (e pela atitude de acadmicos desprezveis), a um ramo da execrvel
indstria cultural mercenria ?
Seria ingnuo ignorar as presses econmicas editoriais sobre a
forma de meu livro. Seus editores europeus estavam interessados em
produzir um livro mais curto e acessvel, por diferentes fatores econmicos qu e estruturam os mercados de livros acadmicos na Europa e nos Estados Unidos (como por exemplo, o nmero de estudantes, universidades e livrarias institucionais). Porm, arriscando fazer
de uma necessidade econmica uma virtude editorial, confesso que
minha inteno ao cortar esses captulos no fo i a de aumentar o lucro (que , de qualquer forma, um tanto desprezvel nestes gneros
literrios), mas sim a de aumentar o nmero de leitores que poderiam
apreciar este livro, e com ele aprender. Tentei, em outras palavras, fazer
um livro melhor para um nmero de leitores maior.
Segundo minha viso pragmatista, livros so instrumentos para
serem usados e aproveitados, no objetos de fetiche. Enquanto instrumentos va liosos, eles merecem nossa ateno e nosso respeito. Mas no
h nada de errado em alterar sua forma, adaptando-os a diferentes
contextos de leitura, a fim de torn-los instrumentos efetivos de edificao e prazer, especialmente quando as verses originais so acessveis queles que as preferem. Para o contexto geral da esttica e da
teoria cultural, a forma reduzida deste livro , a meu ver, mais positi-
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Ri chard Shusterman
1 1 n:i o apenas do ponto de vista prtico como tambm estct- 1 ~ p , e> q111
r lt perde em termos de diversidade e detalhamento filo s ficos, g.111li ,1
1 111 tcrmos de poder de concentrao e desobstruo.
Ainda neste esprito de contextualizao, penso que seria inlt
1issa nte posicionar minha opinio so bre a esttica de Adorno, dada :i
1nnsidervel importncia da Escola de Frankfurt dentro da prti c;1
1il osfica brasileira. Fonte de uma das mais poderosas crticas filos l 1 ~;i s da cultura popular, especialmente por sua formulao coerciva ,
,1 teoria esttica de Adorno constitui, como o leitor ver, uma imporu nte inspirao para meu trabalho. As ntidas diferenas existentes
111tre o meu pragmatismo e a teoria esttica de Adorno ficaro evidentes
no decorrer do livro, mas elas no devem ofuscar as profundas afinidades existentes entre a esttica pragmatista e a da Escola de Frankfurt.
Adorno, que exalta Dewey como "um pensador verdadeiramente
emancipado", compartilha a nfase que o pragmatismo coloca na dimenso dinmica e experiencial da arte, rejeitando sua concepo
L:nquanto fetiche. Concorda ainda com a nfase pragmatista na essncia
social da arte e seu culposo reflexo da injustia social. Participa, por
fim, da valorizao que o pragmatismo promove da dimenso comunicativa e cognitiva da arte e de seu ideal poltico-social, expresso atra,vs de sua forma e de sua unidade dinmica. Mas Adorno recusa o forte
reconhecimento pragmatista da funcionalidade artstica e seu intuito
de integrar a arte e a vida de maneira mais prxima, no sentido de
estimular a melhoria de ambas. Ele insiste, cautelosamente, que a arte
permanea separada da vida e da funcionalidade, mantendo sua sagrada, ainda que culposa, autonomia, assim como sua estreita identificao com a cultura erudita. Evitando a contaminao causada pelo
mundo corrupto, ele sustenta assim uma crtica mais pura desta realidade repugnante.
O pragmatismo reconhece, claro, que existem perigos na integrao da arte com a vida, assim como reconhece que as artes popu lares podem ser exploradas precisamente com objetivos de manipuh
o e de dominao social (como muitas vezes o caso na televis;io) .
Minha posio pragmatista em relao arte popular , portanto, o
que eu chamo de meliorismo: reconheo suas falhas estticas e ~ t 11 ~
abusos polticos, assim como seu potencial esttico e sua gra n<.k t .1p.i
cidade de comunicao para uma prxis progressista. Insisto 11.1 111
cessidade de uma crtica constante das artes populares, 111 ;1s 1l'Jl'll ' .t
resposta tipicamente adorniana de condenao total de suns p111dt1 l111 11
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Mais otimista e aventuroso que Adorno, o pragmatismo considera que o conceito de arte deve ser repensado democraticamente como
p1 rte de uma reforma social. A necessidade e a urgncia dessa reforma um ponto que vale ser salientado. Ao oferecer uma legitimao
esttica e terica da arte popular, no estou afirmando (como alguns
leitores europeus e americanos insistiram) que isto constitua em si uma
legitimao adequada dessa arte na realidade do mundo social. Entretanto, insisto que a legitimao terica pode ajudar a mudar as atitudes que, por sua vez, podem mudar os fatos sociais reais. Supor o
contrrio implica o estabelecimento de uma diviso intil e no convincente entre teoria e prtica, totalmente estrangeira ao esprito do
pragmatismo.
Embora este livro tenha sido escrito no gnero filosfico, ele teve
a felicidade de ser examinado por muitos leitores de cincias sociais.
Apesar de sua reao ter sido bastante estimulante, alguns argumentaram que meu tratamento da arte popular continua filosfico demais,
pois se concentra principalmente na anlise esttica de obras de arte,
no fornecendo detalhes empricos suficientes sobre as condies e as
prticas sociais efetivas pelas quais tal arte produzida e consumida
por seu pblico variado. Estou mais que disposto a admitir as tendncias e limitaes filo sfic as de meu estudo, e aproveito a oportunidade para encorajar estudos mais empricos e etnogrficos da cultura
popular, sem os quais tal cultura nunca poder receber o entendimento
completo que merece.
Gostaria de insistir, no entanto, que a anlise esttica continua
a ser um instrumento essencial para a compreenso e a legitimao da
arte popular, assim como a experincia esttica constitui uma dimenso crucial de nosso encontro com ela. Sem a anlise esttica no podemos examinar como a arte popular, na sua melhor expresso, consegue recompensar a ateno de muitos de ns, incluindo inmeros
jovens intelectuais, cujos gostos comportam os clssicos das artes maiores. Por que no, ento, proporcionar arte popular tal ateno esttica, uma vez que ela tambm demonstra ser recompensadora? Tratar da arte popular meramente atravs da etnografia emprica implica o risco de trat-la simplesmente como amostra de uma populao
cientificamente objetivada, e por isso distanciada, uma cultura externa de indgenas primitivos, dos quais ns, observadores cientficos e
intelectuais, nos mantemos de certa forma afastados e superiores. Um
tratamento exclusivo desse tipo (mesmo que inclua intelectuais entre
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Richard Shusterman
.11.1
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"
Quantos ainda deveramos citar para fazer jus a todos aqueles que,
atravs de suas criaes, aproximaram o esttico de sua realidade cotidiana, refletindo uma prxis de vida. Quantos tambm, embora tenham ficado incgnitos na histria da cultura popular brasileira, fizeram de sua arte, para muitos, uma experincia esttica singular.
A forte influncia das artes da mdia - atravs de meios como o
rdio, o cinema e a televiso - constitui tambm um importante domnio para a aplicao da crtica meliorista deste livro. A grande capacidade comunicativa desses meios oferece um forte potencial democrtico a essas formas artsticas, ainda que elas sejam suscetveis de uma
explorao por parte de foras repressoras. Uma reflexo filosfica
sobre esses meios e su<\ complexidade constitui o melhor caminho para
o desenvolvimento de sua prxis progressista, apesar de sempre existir o risco de sua manipulao abusiva.
Para terminar, agradeo a Gisela Domschke por esta traduo,
fruto de seu interesse pela arte e pela esttica. Meu reconhecimento
ainda a Eric Alliez, pela ateno dada ao meu trabalho, enquanto diretor desta coleo filosfica.
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Richard Shusterman
111u 1Ai
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t) 111 ul o deste livro pode fazer com que algumas sobrancelhas c"e cl',a m, pois a noo de esttica pragmatista parece, primei1,1 \"'" ' ' bastante paradoxal. O pragmtico, claro, imperativamente
lg.tdn .1 idia do prtico, idia qual o esttico tradicionalmente
1ql!'.to , quando definido pela ausncia de finalidade e interesse. Um
, j,.., ob jetivos deste livro resolver esse paradoxo, desafiando a opo11, 111 tradicional entre prtica e esttica e ampliando nossa concepo
1111 1~ 1 tico para alm dos limites estreitos que a ideologia dominante
1l.1 ltlosofia e da economia cultural lhe designou. A esttica torna-se
111111to mais central e significativa quando admitimos que, ao abranp,1 1 o prtico, ao refletir e informar sobre a prxis da vida, ela tamlw111 diz respeito ao social e ao poltico. A ampliao e a emancipao
do esttico envolve, do mesmo modo, uma reconsiderao da arte, lili1r:111do-a do claustro que a separa da vida e das formas mais popul.1rcs de expresso cultural. Arte, vida e cultura popular sofrem hoje
destas divises fortificadas e da conseqente identificao restritiva da
,11' Lc com as belas-artes. Minha defesa da legitimidade esttica da arte
popular e meu estudo da tica como uma arte de viver visam ambos a
11rna redefinio mais democrtica e expansiva da arte.
Ao repensar a arte e o esttico, o pragmatismo tambm repensa
o papel da filosofia. No mais visando a representao fiel dos coneitos que examina, a filosofia torna-se ativamente engajada em remodel-los para nosso maior proveito. A tarefa da teoria esttica no
, ento, capturar a verdade de nossa compreenso comum da arte,
mas sim repensar a arte, de maneira a enriquecer seu papel e sua apreciao; o objetivo ltimo no o conhecimento, mas a experincia
aperfeioada, embora a verdade e o conhecimento sejam, claro, in dispensveis para sua realizao. Do mesmo modo o pragmatismo, caso
deseje realmente se diferenciar, embora no deva ignorar os proble
mas tradicionais da filosofia da arte, no pode limitar-se aos vd h1 '"
debates muitas vezes puramente acadmicos, mas deve tratar de qu r"
tes atuais da esttica e de novas formas artsticas. Assim, :ip<'1~ Lllli " '
' ' 1.
Vivendo a Arte
ICl
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
concludo se no tivesse sido dispensado de minhas obrigaes universitrias. Gostaria de agradecer a Temple University por ter me concedido uma licena de estudos, e a National Endowment of Humanities
pela bolsa de pesquisa que me permitiu dedicar todo o ano de 1990
pesquisa e escrita.
Como minhas reflexes pragmatistas me pareciam muito americanas, pensei que deveria aplic-las numa perspectiva maior e testar
sua fora e interesse no exterior. Que lugar poderia ser melhor para
faz-lo do que Paris? Sou eternamente grato a Pierre Bourdieu e cole
des Hautes tud,es en Sciences Sociales, por terem me convidado como
"directeur d'tudes associ", assim como ao College International de
Philosophie, por ter me oferecido a oportunidade de dirigir um seminrio em que pude experimentar as idias deste livro com um pblico
estrangeiro e numa lngua estrangeira. Entre meus colegas parisienses,
gostaria de agradecer Franoise Gaillard, Grard Genette, Louis Marin,
Louis Pinto, Jacques Poulain e Rainer Rochlitz pela leitura atenta que
fizeram de alguns captulos deste livro; e sobretudo Catherine Durand
e Christine Noille, por terem me ajudado a traduzi-los em bom francs.
Quando retornei a Filadlfia, Joseph Margolis e Chuck Dyke,
meus colegas na Temple University, tiveram a gentileza de ler integralmente meu manuscrito e expuseram-me algumas inestimveis crticas
de ltima hora, como tambm o fez Arthur Danto. Outros colegas e
amigos leram partes deste livro e, generosamente, ofereceram-me comentrios. Lamentando no poder citar todos, mas devo ao menos
mencionar Houston Baker, Richard Bernstein, Jim Bohman, Noel
Carroll, Reed Dasenbrook, Terry Diffey, George Downing, Edrie
Ferdun, Jtidy Genova, Lydia Goehr, Judith Goldstein, David Hiley,
Michael Krausz, Jerry Levinson, Paul Mattick, Brian McHale, Dan
O'Hara, Paul Roth e Gianni Vattimo. No devo esquecer o trabalho
de Nadia Kravchenko, que conseguiu compor um manuscrito coerente
com os diversos textos enviados de Paris. Muitas pessoas e experincias exteriores ao mundo acadmico enriqueceram meus conhecimentos
da msica popular, mas gostaria de agradecer especialmente o crtico
de rock Tom Moon, que me forneceu informaes particularmente proveitosas e algumas boas gravaes. Devo, por fim, demonstrar meu
reconhecimento a Stephan Chambers, da Basil Blackwell, por seu interesse neste projeto e por seu contnuo estmulo a meu trabalho.
Algumas proposies deste livro j foram publicadas em verses
mai s incompletas e imperfeitas, e gostaria ainda de agradecer os dire-
IH
Richard Shusterman
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1 11
11 ,\
2 O termo "popular" tem muito mais conotaes positiva s, c nq11:in10 " 111 :1s
sa" sugere um agregado indiferenciado e caractersticamente desum nno. P.1r,1 111 3is
deta lhes sobre esse debate terminolgico, ver Herbert J. (;311s, Po/mlrtr r111d high
culture: An analysis and evaluation of taste, Nova York, B3 sic Book s, 1974, p. 10,
abreviado infra: PH.
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Richard Shusterman
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L1111bm a suspeitar fortemente de toda diviso essencial e irred1111vi.:l cstabelecida entre seus produtos e aqueles da arte popular. A
pr(>pria histria nos mostra claramente que o divertimento popular de
uma cultura (o teatro grego ou mesmo elisabetano, por exemplo) pode
tornar-se o grande clssico de outra poca. Na verdade, at mesmo
dentro do mesmo perodo cultural, uma mesma obra pode funcionar
tanto como arte popular quanto como arte maior, dependendo da
maneira com que interpretada e apropriada pelo pblico. Na Amrica do Norte do sculo XIX, Shakespeare fazia parte do teatro nobre
assim como do vaudeville 3 .
Como as fronteiras entre as artes maiores e a arte popular no
so claras nem incontestveis (muitos filmes, por exemplo, aparentemente se enquadram nas duas classificaes), falar sobre elas da maneira simples e genrica com que pretendo faz-lo implica uma boa abstrao e simplificao filosfica. Mas sendo as condenaes globais
da arte popular feitas com os mesmos termos binrios e simplistas,
sinto-me autorizado ao utiliz-los para a sua defesa, esperando que tal
defesa alcance a dissoluo da dicotomia entre artes maiores e arte popular, dirigindo-nos para anlises mais apuradas e concretas das diversas artes e de suas diferentes formas de apropriao 4 .
Mas a razo mais urgente e profunda para defender a arte popular a satisfao esttica que ela nos oferece (mesmo a ns, intelectuais), forte demais para que toleremos as crticas globais feitas sua
degradao, desumanidade e ilegitimidade esttica. Conden-la por
convir apenas ao gosto grosseiro e ao esprito rude das massas ignorantes e manipuladas equivale a nos colocar no s contra o resto de
nossa comunidade, mas tambm contra ns mesmos. Somos levados
a desprezar as coisas que nos do prazer e a sentir vergonha desse
prazer. Enquanto as crticas conservadoras e marxistas lamentam permanentemente a fragmentao contempornea da sociedade e dos
t n1110
3 Ver Lawrence W. Levine, Highbrow/lowbrow: The emergence of cultural hierarchy in America, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1988, pp. 13-81.
4 Se fssemos obrigados a definir a distino entre arte popular e artes maiores, seria melhor faz-lo no apenas pela diferenciao de seus objetos, mas tambm de seus modos de recepo ou de uso. O uso "popular" contrasta com o uso
" nobre ou erudito" por ser mais prximo da experincia e menos estruturado e
regulado por normas escolares impostas pelo sistema de educao formal e de instituies intelectuais dominantes.
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tend ncia acentuada para fazer uma apologia de seus defeitos estticos.
Aceitando sem discernimento a ideologia esttica das artes maiores e
a crtica esttica da cultura popular, eles defendem a arte popular fazendo apelo s "circunstncias atenuantes" das necessidades sociais e dos
princpios democrticos, em lugar de afirmar sua validade esttica. Assim, Herbert Gans, um dos defensores mais ardentes da cultura popular, admite sua relativa pobreza e inferioridade esttica em relao
cultura elevada. As artes maiores proporcionam "uma satisfao esttica maior e talvez mais duradoura" por causa de sua "inovao" criativa, sua "experimentao de formas", sua explorao de "questes
sociais, polticas e filosficas" profundas e sua capacidade de "compreender em vrios nveis" - caractersticas estticas que a cultura popular no desfruta (PH, 76-9, 125). No entanto, Herbert Gans afirma
que, uma vez que as classes inferiores "no se beneficiam das oportunidades socioeconmicas e educacionais necessrias para escolher as formas
de cultura superior", elas no podem ser condenadas por apreciar os
nicos produtos culturais que so capazes de apreciar; um a sociedade
que no consegue lhes fornecer educao e lazer adequados cultura
superior "deve permitir a criao de contedos culturais que encontrem
(... ]suas necessidades e seus critrios de gosto" reais (PH, 128 e 129).
Embora admiravelm ente humanitria, essa defesa da arte popular no nos convm. Ela consiste numa desculpa somente para aqueles cuja falta de educao e lazer impede a apreciao da cultura superior. Ganz deixa claro que "deveramos escolher o contedo (cultural] que corresponde ao [nosso] nvel de educao", sob pena de
sermos censurados "caso escolhamos freqentemente abaixo desse
nvel", mas elogiados se acima (PH, 126-7). A cultura popular, ento,
boa apenas para os que no podem fazer melhor; no algo em que
as diferentes classes sociais (e faculdades humanas) podem se unir pelo
prazer esttico. No deve ser celebrada, mas simplesmente tolerada at
que possamos fornecer recursos educacionais suficientes "que permitam a todos escolher formas culturais de gosto mais sofisticado" (PH,
128). Tais apologias arte popular aniquilam sua legtima defesa, uma
vez que perpetuam o mesmo mito da pobreza esttica miservel apresentado pelos crticos aos quais elas se opem, assim como favorecem
o mesmo tipo de fragmentao social e individual.
3. Uma defesa mais eficaz da arte popular exige sua justificao
esttica, mas uma terceira razo, que torna este projeto to .improvve l, que ns tendemos a considerar as artes maiores somente a par-
Ver Pierre Bourdieu, op. cit., V, pp. 33, 42, 59-60, abreviado infra: D.Roge r
Taylor comete um erro semelhante ao concluir que desde que nosso conceito de arte
foi criado para servir a uma elite aristocrtica opressiva, ele continuar sempre li gado aos poderes elitistas e, por isso, permanecer inimigo do povo. Taylor tambm apresenta uma inverso interessante da crtica habitual segundo a qual a cultura popular corrompe as artes maiores, argumentando, em oposio, que a pro
pria idia de arte, devido a seu carter essencialmente elitista, representa uma " influ 0n
eia corruptvel sobre a cultura popular" (ver Roger Taylor, Art, an enemy u/ 1/n
people, Atlantic Highlands, N.J., Humanities Press, 1978, esp. pp. 40-58 , 89 1'i \ )
Jl)l
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M::is se u uso no mais assim to restrito. Basta considerar as inmeras escolas de moda e os sales de cosmticos que so chamados d~
"sales de esttica" e "institutos de beleza'', e cujos profissionais so
denominados "esteticistas". Alm disso, predicados estticos tradicionais, tais como "graa", "elegncia", "unidade" e "estilo" so apli cados regularmente aos produtos da arte popular, sem equvoco apa rente. Ningum aprecia mais que Bourdieu os interesses poltico-sociais
maiores de termos classificatrios to prezados como "arte" e "esttica", de forma que surpreendente, at mesmo embaraosa, sua disposio de entreg-los posse exclusiva da cultura superior. Faz-se
necessrio, ento, mais do que nunca, liber-los desse monoplio pela
defesa da legitimidade esttica da arte popular. .
Para possibilitar tal defesa, serei obrigado a reagir s principais
acusaes estticas contra a arte popular; e como no posso pretender
tratar de toda a arte popular, focalizarei aqui o rock e, mais particularmente, o gnero funk inspirado na cultura afro-americana. Meu estudo
se tornar ainda mais especfico, mas tambm mais concreto, no captulo seguinte, dedicado esttica do rap e anlise de uma de suas
obras. Estes dois captulos juntos visam a demonstrar, atravs de uma
combinao de argumentos gerais e anlises concretas e detalhadas,
que a arte popular no somente pode satisfazer os critrios mais importantes de nossa tradio esttica, como tambm tem o poder de enriquecer e remodelar nosso conceito tradicional de esttica, liberando-o de
sua associao alienada a temas como privilgio de classe, inrcia poltico-social e negao asctica da vida. Mas antes de empreender a defesa
esttica da arte popular, um problema mais geral deve ser considerado.
II
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111 \
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de doutrin ao cultural, pois a cultura superior sempre se imps desta form a (quer vindo da Corte, da Igreja, da Academia ou dos poderosos santurios consagrados ao mundo da arte). A acusao real aqui
que tal imposio no vlida pelo fato de os produtos impostos no
terem valor - mais uma vez, trata-se de um ponto de vista esttico.
2. O segundo grupo de acusaes socioculturais contra a cultura popular concerne a "seus efeitos negativos sobre a cultura superior"
(PH, 19), e pode ser reduzido, segundo Gans, a duas crticas bsicas:
"que a cultura popular empresta o contedo da cultura superior, degradando-o, e que, oferecendo incentivos econmicos, a cultura popular capaz de desviar os criadores potenciais do domnio da cultura superior, diminuindo assim a qualidade desta" (PH, 27). Mais uma
vez, embora no se dirijam explicitamente ao valor esttico da cultura popular, tais condenaes baseiam-se em sua negao. Admitindo
a inferioridade esttica da arte popular, Ganz obrigado a responder
a essas acusaes, argumentando que os casos de emprstimo no produziram, de fato, "uma degradao da cultura superior per se, ou de
sua vitalidade", e que o mercado para as artes maiores muito pequeno
para acomodar todos os criadores potenciais, seduzidos economicamente pela arte popular (PH, 28-9). O argumento bsico de Gans
de que a cultura popular deve ser tolerada, uma vez que "no representa uma verdadeira ameaa cultura superior e a seus criadores"
(PH, 51). Essa afirmao, um tanto duvidosa, nega o poder da cultura popular, e trata de devaneio paranico a reao de defesa da cultura superior. Podemos responder de maneira mais radical a essas acusaes, colocando em questo seus postulados estticos. Podemos at
mesmo admitir que o emprstimo de temas e criadores seja um desafio cultura superior, e que isso talvez diminua seu poder, mas ento
devemos ir mais alm e insistir que a arte popular, por outro lado,
possui valor esttico prprio.
Primeiro, ns devemos compreender que, no domnio cultural,
no h nada de intrinsecamente errado em emprestar contedo. Na
esfera artstica da cultura superior, o contedo sempre foi emprestado, e muitas vezes de fontes populares 8. Tal emprstimo proporcio-
Basta pensar, por exemplo, na predileo da pintura impressionista e psimpressionista pelo divertimento popular: cabars, carnavais, danas, etc. Mesmo
um modernista austero como Mondrian salienta sua dvida em relao cultura
popular na realizao de obras como Broadway Boogie Woogie. De fato, pode-se
1Oc)
111, l' ll1 parte, o sentido de interconexo que enriquece a tradio cul1111.il . claro que aquilo que legitima o emprstimo da cultura supe1111 1 o fato de suas obras terem mrito esttico, ao passo que a arte
l'llJl ul ar supostamente no apresenta nenhum. Do mesmo modo, a acus.t~.10 de que a arte popular atrai os talentos criativos, afastando -os
l 1 produo das artes maiores, deriva seu poder recriminador da pre11msa segundo a qual tais talentos so mal-aproveitados, visto que a
11 ll' popular no tem valor esttico algum quando comparada cul111r:1 nobre, tampouco qualquer outro valor compensatrio.
3. A suposta ausncia de valor esttico da arte popular sustenta
11 llTCeiro grupo de crticas socioculturais, que concernem aos "efei1.11 ~ negativos da cultura popular sobre seu pblico" (PH, 19). Gans
1111niu aqui as acusaes que especificam trs efeitos: "a cultura popu la r emocionalmente destrutiva, pois produz uma satisfao fict t. 1 1... ] ela intelectualmente destrutiva, j que oferece um contedo
r v.1sivo que inibe a capacidade das pessoas de enfrentar a realidade e
1 .. J ela culturalmente destrutiva, enfraquecendo a capacidade das peso .is de participar da esfera da cultura superior" (PH, 30). Tais crti . 1 ~, rejeitadas por Gans pelo fato de no serem confirmadas por evi1lt-ncias empricas conclusivas, apiam-se na suposta pobreza esttica
d.1 arte popular. A condenao da satisfao ilusria sugere uma in' .1pacidade de produzir prazer esttico autntico. Porm, no se pode
tl11.er que a satisfao seja uma mera substituta sublimada de praze, ,-~ mais diretos ou primitivos, pois tal acusao aplica-se melhor aos
prazeres refinados das artes maiores. Da mesma forma, dizer que a arte
pnp ular s pode divertir com temas evasivos presume uma impotn' 1;:i esttica de nos tocar com uma forma significativa e um contedo
t ln lista . E a crtica de que a arte popular arruina a inteligncia e cor1om pe nossa capacidade de atingir uma verdadeira cultura pressupe
1.1rn bm que ela n o tem a sutileza necessria para estimular e compensar nossa ateno esttica e intelectual. Todas essas afirmaes sobre
11 carter intrinsecamente negativo da arte popular podem ser contest.1das, o que faremos ao longo deste captulo.
Richard Shusterman
1;
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107
4. Por fim, o ltimo grupo de acusaes "no-estticas" concer"efeitos negativos da cultura popular na sociedade" - mais
pn.:cisamente, "no apenas o fato de ela reduzir o nvel da cultura o u da civilizao - da sociedade, mas tambm o de estimular o tota litarismo, criando um pblico passivo, particularmente receptivo s tcnicas de persuaso de massa" (PH, 19). Gans reage primeira acusa o, evidenciando sua falta de prova emprica e argumentando que,
pelo menos em termos estatsticos de consumao, houve um aumen to de interesse pela cultura superior (provavelmente como conseqncia
da melhoria na educao), desde o aparecimento da arte popular divulgada pela mdia (PH, 45). Mas ele tambm insiste, mais adiante,
que a liberdade e o prazer das pessoas so mais importantes que as
"qualidades culturais" per se, "que o nvel global do gosto dentro de
uma sociedade no to significativo quanto o bem estar de seus membros como critrio para julgar sobre a virtude dessa sociedade" (PH,
130). Quanto segunda acusao, Gans nega que a cultura popular
tenha o poder de promover uma ditadura ou o dever de "ser uma fortaleza contra perigos tais como o totalitarismo". Ambas as negaes
so contestveis, assim como o a afirmao segundo a qual a mdia
simplesmente reage opinio pblica, contribuindo, no mximo, para
"reforar as tendncias sociais j existentes", ao invs de form-las ou
transform-las (PH, 46-7) 9 .
Se achamos a defesa de Gans inadequada, podemos mais uma vez
encontrar uma resposta alternativa, colocando a nu os pressupostos
estticos que servem de base para as duas acusaes. A idia de que a
qualidade cultural da sociedade deve cair pela presena da cultura
popular (ao invs de ser reforada e enriquecida pela introduo de
uma variedade esttica e cultural) supe pura e simplesmente que os
produtos da cultura popular tm, invariavelmente, um valor esttico
negativo e, assim, "baixam( ... ) o nvel geral do gosto da sociedade" e
sua qualidade cultural (PH, 43-4). Mas por que aceitar um tal afirJIL' :1os
Todd Gitlin, adotando uma posio mediana entre esses dois extremos de
manipulao e transparncia ingnua, afirma, com maior preciso, que se por um
lado a mdia no pode, por razes comerciais, ignorar as atitudes existentes, ela
com certeza pode, por outro, modul-las, canaliz-las e, de certa forma, transforml~ s. Ver Todd Gitlin, "Television's screens: hegemony in transition'', Donald Lazere
(org.), American media and mass culture: Left perspectives, Berkeley, University of
}ili fo rni a Press, 1978, pp. 240-65.
IO H
Richard Shusterman
1p11 .1 motivam?
Vivendo a Arte
lll 'l
III
1. O protesto essencial contra a arte popular de que ela no consegue oferecer nenhuma satisfao esttica. claro, at os crticos mais
hostis sabem que o cinema diverte milhes de espectadores e que o rock
faz um pblico considervel danar e vibrar de prazer. Mas esses fatos, evidentes e incmodos, so claramente deixados de lado, sob o
pretexto de que essas satisfaes no so autnticas. Os prazeres, as
sensaes e as experincias que a arte popular oferece so rejeitados
como falsos e enganosos, enquanto as artes maiores so, ao contrrio, tidas como fonte de algo autntico.
Leo Lowenthal, por exemplo, associa "as diferenas entre a cultura
popular e a [verdadeira] arte" diferena existente "entre uma satisfao ilusria e uma experincia autntica"; Clement Greenberg condena igualmente as artes populares (as quais ele tacha coletivamente de
"kitsch") por fornecerem apenas "uma experincia de substituio e
sensaes ilusrias".11 Adorno, que tambm ataca as satisfaes "exauri11
" fol sas" da arte popular, explica que somente "sendo as ma ~ "' ~
prazer verdadeiro, elas, por ressentimento, deliciam -se co111
,,i1,.,1itutos que aparecem em seu caminho'', apresentados pela "anr
11.l111,1ria " e pelo "divertimento" 12 . Alm disso, crticos como Bernard
lt11 .111bcrg e Ernest van den Haag salientam que os pseudo-prazeres e
1' ... 1ti sfaes substitutas" da "indstria de divertimento" nos impc111 11 1de atingir "uma experincia realmente satisfatria", pois a "diver111" que eles nos oferecem "nos distrai da vida e do prazer real" 13 .
Um exame minucioso dessas citaes revelar que o entusiasmo
, 111 rec usar arte popular qualquer coisa positiva, como o prazer, le' 1111se us crticos no s a negar que as experincias e os divertimenlq , q ue proporcionam sejam esteticamente legtimos, como a negar,
111. 1is radicalmente, sua prpria realidade. Enfim, a presuno de fal.id;1de, uma estratgia do imperialismo intelectual, implica que a elite
111l tural no apenas tenha o poder de determinar, contra a opinio pop1tl ar, os limites da legitimidade esttica, mas tambm de decretar,
1 ontra a evidncia emprica, o que pode ser chamado de experincia
1111 prazer reais. Mas o que pode fundamentar to radical presuno?
N::i verdade ela no fundamentada, mas sustentada pela autoridade
de seus proponentes e pela aparente ausncia de oposio. comprel' llSvel que ela no enfrente um grande desafio por parte dos intelec1uais adulados por ela, ou por parte dos no-intelectuais, que no tm
.1 fora ou o interesse de contest-la, preferindo ignor-la como "besteira abstrata", sem efeito prtico sobre seu mundo.
O que, de fato, se pretende ao afirmar que "as satisfaes oferecidas pela cultura popular so ilegtimas", e quais argumentos suporta m essa suposio 14 ? Seria apenas um gesto retrico o de negar a legitimidade e o valor dessas satisfaes pelo dasafio de sua realidade?
Talvez a interpretao mais honesta dessa acusao de ilegitimidade
seja que os prazeres da arte popular no so reais por no serem sentidos profundamente, e que so falsos por serem simples "sensaes
r'
12
11()
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
111
15 Ver Allan Bloom, The closing of the american mind, Nova York, Simon
e Schuster, 1987, pp. 76 e 79.
16
d .1 ~ .1111:h
ni.1 1mcs. A leitura de um soneto ou a contemplao de uma d11 1.1.1 dt
! l.1 ~ nos oferece uma satisfao permanente e duradoura? O c 11a11 1
11 1 .~:igeiro dessas satisfaes implica que sejam imp ostoras? De modo
11 n 1hum, pois um dos traos positivos do prazer esttico autntico e
q11c, ao agradar, tambm estimula o desejo por ele. Se o prazer est6t i
, 11 que voc experimenta por um objeto no o deixa desejando mais,
r ir- provavelmente no o agradou em nada 17 . Na verdade, a exign' 1,1 ele uma satisfao durvel deve ser questionada. Ela parece muito
11nlgica e espiritual. Em nosso mundo de desejo e mudana contnuos,
11.111 existem satisfaes permanentes, e o nico fim para a transitorir d::i cle do prazer e para o desejo in.:;acivel a morte.
Outra variao dessa acusao de efemeridade que normalmen11 se faz arte popular no se refere fugacidade dos prazeres obtidos, mas brevidade de sua capacidade de agradar. Obras da arte poplll ar no resistem prova do tempo . Elas podem chegar a ser um hit
por um perodo, mas rapidamente perdem seu poder de nos distrair,
L .lindo no esquecimento; seus charmes e prazeres revelam-se assim ilu,<'1rios. As artes maiores, por outro lado, mantm seu poder de agradar. As obras de Homero e o teatro da Grcia antiga demonstram a
kgitimidade das satisfaes que podem nos proporcionar, pelo fato
de as terem proporcionado a multides durante sculos e de continuarem a faz-lo ainda hoje - eis aqui um argumento bem freqente. No
h nada na arte popular que possa ser comparado com essa histria
de durabilidade, nem mesmo os clssicos do cinema e as grandes "pa-
11 1
11
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
d" l'issicos das artes maiores foram originalmente produzid o~ l" ~ 1111
'l t111id os como arte popular. O teatro grego era um evento ex1n111 .1
111111tc popular, assim como o teatro elisabetano; e muitos ro1wrn1. r "
.111 ~culo passado (como O morro dos ventos uivantes), hoj e estima
.lo.,, eram publicados primeiramente em jornais difamados como li xo
, 11111crcial sensacionalista, do mesmo modo que os filmes, a TV ou P
, , 11~ k tm sido condenados em pocas mais recentes. Negar a sobrevi11 11cia de obras da arte popular, ignorando as origens populares da s
q11c foram consagradas mais do que um erro inocente. Constitui uma
r'<p lorao e uma apropriao dos recursos culturais da maioria suhordinada por uma elite dominante. Afinal, uma vez que essas obras
"' reclassificadas como artes maiores, seu modo de recepo re1 ld inido de maneira a reserv-las essencialmente para o distinto dele ite da elite cultural, desprezando sua apreciao popular.
Por fim, mesmo que reconheamos que as obras da arte popular
,c jam transitrias e que seu poder de agradar seja relativamente breve,
isso no significa que no tenham valor nem que seus prazeres sejam
irreais. Supor isso seria confundir prazer ou valor com permanncia.
Mas existe valor em coisas efmeras, e na verdade, s vezes na sua prpria
demeridade. Encontros passageiros podem, s vezes, ser mais agradveis do que relaes durveis. Rejeitar o valor do efmero tornou-se um
preconceito efetivo de nossa cultura intelectual, preconceito que talvez
fosse de utilidade em condies passadas, onde a sobrevivncia era to
incerta que a ateno e o valor deviam fixar-se no mais resistente. Mas
se trata de um preconceito, ainda assim, que frustra e desalenta nossos
prazeres. Preconceito que, com efeito, chega at a impedir um caminho
maior para uma vida mais solidamente gratificante. Pois uma vez que
os prazeres efmeros so desmerecidos enquanto algo sem valor e importncia, uma reflexo sria sobre como podem ser alcanados e melhor
integrados na vida torna-se impossvel. E, portanto, tais prazeres e seus
efeitos, s vezes contundentes sobre a vida, so deixados aos caprichos
do acaso, do desejo cego e das presses da publicidade.
Ilusrias, as satisfaes da arte popular ainda podem ser num
outro sentido: como meras substitutas de prazeres que so, de algum
modo, mais reais ou essenciais. Adorno, que denuncia com justia as
condies sociais que nos negam uma "real satisfao na esfera da
experincia sensvel imediata", deplora que a arte popular forne n
substituies ilusrias de prazer, numa forma de escapismo, como ;1
droga. "Sendo as massas privadas do prazer verdadeiro, el as , po r n"
11 4
Richard Shusterrnan
Vivendo a Arte
1 1'
sentimento, deliciam-se com os substitutos que aparecem em seu ca minho" (AT, 19, 340). Mas os prazeres das artes maiores, como Adorno reconhece, no so mais imediatos nem mais prximos da vida real,
podendo tambm servir a fins evasivos.
Mais uma vez, a acusao de substituio situa o prazer legtimo no definitivo, e no no imediato, numa satisfao demorada e, por
conseqncia, mais completa. Comparando explicitamente a arte popular masturbao, por oferecer uma mera descarga de tenso ao
invs de uma real satisfao, Van den Haag a condena por nos saturar de prazeres de substituio que sugam nossa energia, "incapacitando o indivduo de alcanar verdadeiras [satisfaes]" e privandonos, assim, de uma "satisfao suprema" 19 . No mesmo estilo de insinuaes sexuais, AJJan Bloom insinua que os prazeres proporcionados pelo rock so to ilusrios quanto o prazer sexual precoce: "O rock
oferece um xtase prematuro" a crianas e adolescentes, "como se eles
estivessem prontos a gozar uma satisfao final e completa " 2 .
verdade que a resistncia e o adiamento podem aumentar o
prazer, mas onde encontrar uma satisfao "final e completa"? Dificilmente neste mundo, que no conhece limite nenhum para o desejo.
A satisfao real relegada a algum domnio transcendental - para
Bloom, o reino das idias platnicas; para Adorno, a utopia marxista; e para Van den Haag, o mundo do alm-cristo. Os nicos prazeres que eles parecem querer legitimar so aqueles que no podemos
alcanar, ao menos no neste mundo. At os prazeres estticos das artes
maiores no so poupados de crtica: "num mundo falso", Adorno
constata amargamente, "toda hedone falsa. O mesmo vale para o
prazer esttico". E Van den Haag entoa gravem ente a mesma mensagem angustiosa: "Quanto aos prazeres da vida, eles no valem a pena
2
de serem buscados" 1. Assim, criticar a arte popular por oferecer apenas prazeres ilegtimos menos uma defesa do prazer real do que uma
mscara para a negao global de todo prazer mundano, uma estratgia adotada por mentes ascticas que temem o prazer como um desvio
de seus objetivos transcendentais, ou simplesmente como uma amea a incmoda para sua moral fundamentalmente asctica.
19
20
21
Ver Adorno, AT, 18; e Van den Haag, op. cit., p. 536.
116
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
11
[... ]o prazer se cristaliza no tdio porque, para continuar sendo prazer, ele no deve exigir esforo algum, movendo-se assim rigorosamente nas velhas trilhas da associao. Nenhum pensamento independente deve ser esperado
por parte do pblico: o produto prescreve toda reao: no
pela sua forma natural (que no resiste reflexo), mas por
sinais. Toda conexo lgica que implique esforo mental
escrupulosamente evitada. 24
Boa parte das produes da arte popular enquadram-se realmente
nesta anlise de Horkheimer e Adorno. Mas o que tambm emerge de
sua crtica a confuso simplista que existe entre atividade legtima e
pensamento srio, entre "qualquer esforo" e "esforo mental" do
intelecto. As crticas da arte popular recusam-se a reconhecer que existem atividades fora do esforo intel~ctual que so gratificantes do ponto
de vista esttico e vlidas do ponto de vista humano. Assim, mesmo
que toda arte e todo prazer esttico reclamem algum esforo ativo ou
a superao de uma certa resistncia, no se pode concluir da que eles
exijam o esforo de um "pensamento independente" . Existem outras
formas , mais somticas, de esforo, resistncia e satisfao.
O rock tipicamente apreciado pelo mover-se, pelo danar, pelo
cantar junto com a msica, num esforo to vigoroso, que suamos,
beiramos a exa usto . E tais esforos, como nota Dewey, envolvem a
superao de resistncias como "embarao, medo, falta de jeito, constrangimento, [e] falta de vitalidade" 25 . claro que, no nvel somtico,
h muito mais atividade e esforo na apreciao do rock do que na
msica erudita, cujos concertos nos foram a ficar sentados num silncio imvel que induz, muitas vezes, no apenas passividade mas tambm ao ronco. O termo "funk", usado para caracterizar e elogiar muitas
msicas de rock, deriva de uma palavra africana que significa "suor
positivo" e expressa uma esttica africana de engajamento vigoroso e
24
Dewey, AE, 162. Isto no quer dizer que o rock no seja muitas vezes
escutado passivamente, sem movimento, e a televiso e o vdeo podem talvez acentuar essa tendncia.
26
11 8
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
11 1_1
! ) ()
Richard Shusterman
hlemas reais mais importantes"; em particular, seus traba lh o" " 1111p1
dcm as massas de se tornarem mais conscientes de suas ncccss1d ,1dr\
rcais" 28. A arte popular, explica Dwight MacDonald, obrigada .1 w.
norar ou "evitar [... ] as realidades profundas (sexo, morte, fr;:i c:1 ~~0 .
1..-agdia), [... ] visto que seriam reais demais [... ] para induzir 1.. 1 :1
:1ceitao narctica" que busca 29 . Mas isto supe, mais uma vez, que
o objetivo da arte popular sempre um estupor letrgico semelhanw
ao ocasionado pela droga; enquanto os fatos provam justamente o
contrrio. Bem antes de Woodstock, o rock j era uma voz de protesto estridente e mobilizadora; e recentemente, por meio de concertos
de rock tais como Live Aid, Farm Aid, e Human Rights Now, tem provado ser uma fonte real de colaborao e ao socia l em favor da causas
humanitrias e polticas importantes.
Van den Haag apresenta o argumento mais comum para explicar por que os produtos da mdia evitam lidar com a realidade. A arte
popular deve atrair um pblico mais amplo do que o pblico intelectual, e precisa modelar seus produtos em relao compreenso desse pblico mais vasto. Mas isto, segundo Van den Haag e outros esno bes da cultura, significa ajust-los a moldes muito restritos para
envolver qualquer questo sria ou experincia significativa .
Eles precisam deixar de lado toda experincia humana
que possa ser mal-compreendida - toda experincia e expresso cujo significado no seja aceito de forma evidente.
O que equivale a dizer que a mdia no pode abordar as experincias que so objeto da arte, da filosofia e da literatura:
uma experincia humana importante ou significativa representada numa forma importante e significativa. Pois tal experincia geralmente nova, indeterminada, difcil, talvez ofensiva e, em todo caso, mal-compreendida[ ... ] [Por isso} a mdia
[... ]no pode abordar problemas reais nem solues reais.30
30
Vivendo a Arte
1.' I
Ao menos duas falcias bsicas invalidam esse argumento. Primeiro, a pressuposio incorreta de que a arte popular no pode ser
popular, a no ser que sua forma e seu contedo sejam totalmente
transparentes e aprovados. Nenhuma justificao pode ser dada para
essa viso, a no ser a afirmao, igualmente errnea, de que os consumidores da arte popular so muito estpidos para entender mais do
que o bvio e muito imaturos do ponto de vista psicolgico para apreciar a apresentao de vises com as quais no concordam. Estudos
recentes das sries televisivas mostram que a audincia da mdia pode
ter uma atitude complexa e crtica em relao aos "heris" e aos pontos de vista apresentados 31 ; outra evidncia sobre este ponto so os
entusiastas do rock, que escutam com prazer msicas que descrevem
experincias de droga e violncia, ao passo que desaprovam tais comportamentos na realidade. Alm do mais, mesmo admitindo que sua
audincia seja realmente estpida, ns no podemos concluir a partir
da que o contedo da arte popular deva ser bvio e aprazvel para
agradar, pois ainda existe a possibilidade de agradar, mesmo que ele
seja apenas parcialmente compreendido, ou mesmo totalmente incompreendido. claro que os jovens brancos de classe mdia que tiveram uma primeira Inclinao pelo rock no entendiam nada das letras
que os excitavam, muitas das palavras tendo uma significado oculto
do lxico afro-americano, como o termo "rock' n' roll", que significa
"foder".
Alm disso, o argumento de Van den Haag associa "o relevante
e o significativo" da experincia humana ao novo e difcil. Nenhum
fundamento apresentado para a associao de noes to claramente
distintas. Ela refutada cotidianamente pelas experincias mais fami liares, dentro das formas mais tradicionais (por exemplo, apaixonarse, beijar as crianas para dizer boa-noite, reunir-se nos dias de festa)
presentes em nossas vidas de maneira significativa. Van den Haag e
todos os outros so induzidos a essa confuso pela obedincia cega
esttica modernista e vanguardista da originalidade e da dificuldade,
que inconscientemente transformaram em critrio geral de importncia e significao da experincia. Mais grave ainda, ela se torna o cri
trio do "real", de modo que os problemas ordinrios tratados pela
arte popular - frustraes amorosas, misria, conflitos familiares, alie-
29.
11
33
l11 .. 1 ri a
1
31 Ver,
Bruce Springsteen, "Spare parts". Alm dessas falcias lgicas, o argum enro
.11 Va n den Haag tem uma base emprica muito questionvel. Se considerarmos n
das artes maiores anterior ao perodo romntico ou moderno, veremos q11l'
11 nv idade experimental e a dificuldade de compreenso no constituam co ndi
!} '\
1 1l
Richard Shusterm~11
39
t lt ulos de
o T.S. Eliot, "Tradition and the individual talent", em Selected essays, Lon-
4
35
36
38
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43
Ver, por exemplo, Rosenberg, op. cit., p. 12, que acusa a " tecnologia
moderna" como "a causa necessria e suficiente da cultura de massa" e de sua
barbrie. Lowenthal, op. cit., p. 55, tambm denuncia o "declnio do indivduo
na mecanizao do trabalho", prprio sociedade tecnolgica moderna.
44
45
126
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J r_f
47 Van den Haag, op. cit., pp. 517 e 529. Para express>es mais recentes desse
tipo de argumento, ver Ariel Dorfman, que nota qu e "a inds;tria cultural, moldada
para responder s necessidades simultneas de enormes gru1pos de pessoas, nivela
suas mensagens pelo dito denominador comum, criando apenais aquilo que todo mundo pode compreender sem esforo. Esse denominador comUJm (como se tem afirmado muitas vezes) fundado sobre - o que mais poderia ser? - o mais puro homem
comum norte-americano, canonizado como a medida unive1rsal para a humanidade " (Ariel Dorfman, The empire's o/d clothes: What the Lome Ranger, Babar, and
other innocent heroes do to our minds, Nova York, Pantheom Books, 1983, p. 199).
Ver Fiske, op. cit., pp. 71-2, 163-4, 320 e passim .. A necessidade de um
programa homogneo e simplista para alcanar popularidmde faz sentido apenas
48
128
Richard Shusterman
se assumirmos que o significado de uma obra e o seu modo de recepo so ap resentados para os seus leitores de maneira fixa e uniforme, sendo seu sentido firmemente controlado pelo autor, negando-se a possibilidade de um produto que
varie conforme sua interao com outros textos ou com outros leitores de outros
meios sociais e histricos.
49
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J .l'J
lO lll
Ver Stuart Hall, "The rediscovery of ideology: The return of the repressed'', M. Gurevitch (org.), Culture, society and media, Londres, Methuen,
1982, pp . 56-90.
5. A questo da conformidade s normas gerais do pblico introduz a quinta condenao esttica feita arte popular: falta de autonomia esttica e resistncia. Os tericos da esttica consideram a
autonomia como "um aspecto irrevogvel da arte" (AT, 1) e essencial para seu valor. Mesmo Adorno e Bourdieu, que reconhecem que
essa autonomia o produto de fatores scio-histricos e serve a um
programa social de di stin o de classe, ressaltam que ela essencial
legitimidade esttica e prpria noo de apreciao. Para ser criada
e apreciada enquanto arte, e no como algo diverso, a arte exige, segundo Bourdieu, " um campo a utno mo de produo artstica [... ]
capaz de impor sua s prprias norm as na produo assim como na
consumao de se us produtos" e de recusar fun es exte rn as ou "qualquer outra necessidade que no esteja inscrita em [... ] [sua] tradio
especfica" (D, III). No corao dessas normas autnomas, a primazia dada "quilo do qual o artista mestre, isto , a forma, a maneira, o estil o, mais do que o "tema", referente externo por onde se introd uz a subordinao s funes - mesmo a mais elementar, a de
representar, significar, dizer alguma co isa" (D, IV). Do mesmo modo,
para Adorno, as normas da arte no tm outra funo seno estar a
servio da prpria arte. A arte " no deve exercer um papel til'', devendo ev itar at mesmo "a noo imatura de querer ser uma fonte de
prazer", de forma que "a obra de arte autnoma[ ... ] s se ja funcional em relao a si mesma" (AT, 89, 136, 281). A arte popular, ao
contrrio, perde sua validade esttica simplesmente pelo dese jo de
divertir e servir a necessidades humanas ordinrias, no lugar de fins
puramente artsticos. Mas por qu e a funcionalidade ocasiona a ilegitimidade esttica e artstica?
Afinal, estas concluses se apiam sobre uma definio da arte
e da esttica que as ope essencialmente realidade ou vida. Para
Adorno, embora a arte seja enraizada no real e informada pela vida
material e social, ela se define e se justifica apenas pelo fato de "se
diferenciar da realidade perversa" de nosso mundo e separar-se de su:1s
exigncias prticas e funcionais. Afirmando a liberdade de se u pn'>pri11
1.10
Vivendo a Arte
50
Ver, por exemplo, T.S. Eliot, The use of poetry and the use of criticisrn,
pp. 152-3.
51
Richard Shusterman
1 11
132
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53 Ver Alexander Nehamas, "Plato and the mass media", Monist, 71, 1988,
p. 223: "As peas no eram encenadas diante de um auditrio polido. A multido
densa podia assobiar [... ] e o teatro ressoava com seus 'barulhos grosseiros' [... ]
Plato expressa profundo desgosto pelo tumulto, pelo qual o pblico, no teatro e
em todo lugar, exprimia sua aprovao ou seu descontentamento (A Repblica,
492c) [... ]Parte de sua comida era arremessada contra os atores que no lhes agrn davam, que, muitas vezes, eram literalmente expulsos do palco".
Vivendo a Arte
1'll
56
escapismo irreal. Adorno parece reconhecer isso em outra parte, mas condena a ::i rt r
popular por no ser adequadamente escapista, de form a a constituir uma resistnci.1 .
"Os filmes escapistas no so repugnantes pelo fato de darem as costas ex is1C11, i11
arruinada, mas por no o fazerem com a energia suficiente", Minima Mora /ia, p. 2.(i il
1 )4
Vivendo a Arte
Richard Shusterman
1 1~
i11r11 ,1is e livros, mas tambm na mdia, funciona claramente como uma
lorm a de discurso de legitimao; e ela emprega o mesmo tipo de predicados estticos aplicados s artes maiores - embora tambm utili/.c termos novos, como "funky", por exemplo. Essa utilizao comum
de predicados no implica sua submisso s artes maiores, a menos
que se suponha que estas tenham o controle exclusivo da legitimidade do uso do discurso esttico; e isso j nos obriga a recolocar a questo do monoplio esttico, que a arte popular justamente contesta.
Do mesmo modo, errado supor que a aparente ausncia de uma
teoria esttica na arte popular exclua, de alguma forma, sua legitimidade esttica. A legitimao possui outras formas mais poderosas que
a teoria filosfica; a arte popular pode ser legitimada esteticamente
Pelas experincias que ela fornece, pela audio, pela viso e pelas
Prticas crticas que engendra. Alm do mais, assim como errado
confundir legitimao com legitimao filosfica, tambm contestvel confinar a legitimidade esttica tal como aceita socialmente quela que recon hecida pela comunidade intelectual, um tanto marginalizada soc ialm ente. Certamente ns, norte-americanos, no levamos
a filosofia nem a hegemonia cultural dos intelectuais to a srio quanto
os franceses o u os outros europeus. Essa atitude despreocupada e rebelde, encarnada na cultura norte-americana, constitui, a meu ver, boa
Parte de seu valor e de seu carter atraente junto aos europeus, especialmente no que diz respeito aos jovens e aos culturalmente dominados. Pois ela proporciona um instrumento inestimvel para se liberar
de uma dominao cultural sufocante, enraizada na tradio incorporal
da filosofia intelectualista e das belas-artes aristocrticas.
Ao criticar a afirmao de Bourdieu, invocando a diferena da
cultura norte-americana, estou apenas, no entanto, reforando sua
Viso mais geral, segundo a qual a arte e a esttica no so essncias
Universais, intemporais, mas produtos culturais essencialmente inforlllados e transformados por condies scio-histricas. Pois alguns
fatores histricos podem explicar muito bem por que artes populares
se desenvolveram mais na Amrica do Norte que em outras partes,
Conseguindo combater o entrave das artes maiores na legitimidade
esttica e cultural. Demonstrar adequadamente e situar esses fatores
exigiria uma pesquisa detalhada que excederia o alcance deste captulo. Mas os pontos que se seguem parecem ser os mais determinantes.
Primeiramente, embora os Estados Unidos estejam longe de ter uma
sociedade sem classes, sua estrutura social tem sido, sem dvida, mais
136
Richard Shusterman
Carl Boggs e Ray Pratt, "The blues tradition: Poetic revolt or cultural
impasse?", Lazare (org.), op. cit., p. 279, sustentam uma idia semelhante: "
medida que o blues se formou em condies sociais agrrias, pr-capitalistas eracistas, a msica existiu primeiramente fora do sistema econmico e social dominante". Para maiores detalhes sobre a cultura negra como um refgio contra a
dominao branca sociocultural, ver Eugene D. G\!novese, Roll Jordan, roll: The
world the slaves made, Nova York, Pantheon, 1974, e Lawrence W. Levine, Black
culture and black consciousness, Nova York, Oxford University Press, 1977.
Vivendo a Arte
117
ma teria apenas um papel secundrio, no chegando nunca a se expressar de maneira adequada, nem. a ser tematizada.
Os argumentos contra a adequao formal da arte popular apresentam-se de vrias maneiras. Tanto a unidade como a complexidade
de sua estrutura foma! tm sido estritamente negadas. Para MacDonald
e para Adorno, as obras populares no possuem unidade formal apenas por serem produes coletivas, ao invs de criaes individuais autnomas, mas tambm por serem destinadas a um pblico retrgrado
de indivduos desintegrados que perderam a capacidade de apreender
" a unidade plural" das obras de arte autnticas. Em vez de forma, elas
apresentam apenas frmulas simplistas, que servem apenas como suporte para efeitos individuais provocativos e superficiais6 2 .
Com mais freqncia, no a unidade mas a complexidade formal que se nega s obras populares, para distingui-las da arte autntica. Bourdieu, que define a atitude esttica como a capacidade de ver
as coisas enquanto "forma e no enquanto funo'', considera essa atitude de desprendimento ou de distanciamento em re lao realidade
como a chave da realizao da "complexidade formal" das artes maiores. apenas atravs dessa atitude que podemos alcanar - "como a
etapa final da conquista da autonomia" - "a produo de uma 'obra
aberta', intrnseca e deliberadamente polissmica" (D, III, 37, 221).
Para Bourdieu, a maior conexo da arte popular com o contedo da
vida "implica uma subordinao de forma funo" e, conseqentemente, a impossibilidade de atingir uma complexidade formal. Na arte
popular ns nos envolvemos, de maneira mais im ed iata, com o contedo ou com a substncia da obra; e isso, afirma Bourdieu, incompatvel com uma apreciao esttica autntica, "dada a oposio bsica entre forma e substncia" (D, 221). A legitimidade esttica s
59 Ver, por exemplo, Taylor, Art, enemy of the people, p. 43, e Arnold Hauser,
The social history of art, Nova York, Knopf, 1951, p. 438 em diante.
60
13 8
Richard Shusterman
62 "As formas das hit parades so to padronizadas[ ... ] que nenhuma forma especfica pode aparecer em parte alguma". Essa "emancipao das partes em
relao a sua coeso [numa unidade formal] [... ] inaugura o desvio do interesse
musical em direo atrao particular e sensvel" (Adorno, "On the fetish character in music and the regression of li stening", op. cit., p. 32; ver tambm
MacDonald, "A theory of mass culture", op. cit., p. 65: "A unidade essenci::i l n:i
arte; ela no pode ser alcanada por uma linha de produo de especia li stas, pm
mais competentes que sejam".
Vivendo a Arte
l \'I
63
No apenas as platias apreciam as complexidades formais,>, tais como ruptura de narrativa ou fragmentao do contedo - como nos videooclipes ou no seriado Miami Vice (cmera estilizada e interldios musicais e visuais~) -como tambm o espectador capaz de engendrar produtos formalmente compplexos por meio
da segmentao e da combinao de produtos da arte popular, vis;sando criao
de seus prprios textos originais. Isto pode ser feito pela prtica 1 sistemtica do
zapping, pela gravao e edio de vdeos, ou, como no rap, pelo s,sampling e pela
~ ntese de diferentes discos. Ver Fiske, op. cit., pp. 103-4, 238, 250-1-62, para o que
concerne a esses pontos sobre a TV; e o captulo seguinte para o r<rap.
110
Richar1rd Shusterman
Vivendo a Arte
l 11
66
Fiske, op. cit., p. 238. Ver tambm a discusso sobre o estilo auto-reflexivo da televiso, a complexidade forma l e a intertextualidade voluntria na anlise de Alexander Nehamas sobre St. Elsewhere em "Serious watching", David
Hiley, James Bohman e Richard Shusterman (orgs.), The interpretive turn: Philosophy, science, culture, Ithaca, Cornell University Press, 1991, pp. 260-81.
142
Richard Shusterman
4. A ARTE DO RAP
O rap um dos gneros de msica popular que mais se desenvolve atualmente, mas tambm um dos mais perseguidos e condenados. Sua pretenso ao status artstico submerge numa inurdao de
crticas abusivas, atos de censura e recuperaes comerciais~ Isto no
de se surpreender. Pois as razes culturais do rap e seus primeiros
adeptos pertencem classe baixa da sociedade negra nortcamericana; seu orgulho negro militante e sua temtica da experincia do gueto representam uma ameaa para o status quo complacent<- da sociedade. Dado esse incentivo poltico, fcil encontrar as razes estticas para desacreditar o rap enquanto forma legtima de arte Suas canes no so nem mesmo cantadas, mas faladas ou recitada;. Elas no
empregam msicos nem msica original; a trilha sonora , ent vez disso,
composta de vrios cortes, ou samples, de discos geralmen1e conhecidos. Por fim, as letras parecem grosseiras e primrias, a Jico corrompida, o ritmo duro, repetitivo e muitas vezes libidinoso. Mas como
1 "[ ... ]Poesia
(N. da T.).
2 A censura exercida sobre o rap tornou-se notcia nacional no vrro de 1990,
quando o grupo The 2 Live Crew foi proibido e preso na Flrida. )ara maiores
detalhes sobre as primeiras tentativas para reprimir o rap, ver o panfl~to You gota
right to rock: Don't let them take it away, redigido pelos editores de Fock and Roll
Confidential e publicado por Duke and Duchess Ventures, Inc., Nova Y.Jrk, Setembro
de 1989. Os shows censurados e os discos colocados em lista negra (prtica vigorosamente adotada pelo Parents Musical Resource Center) so freqentemente temas das letras do rap e relacionados a questes de liberdade de expt-esso poltica
e esttica, como por exemplo em "Freedom of speech" de Jce-T, e - embora con;
muito menos estilo e humor - em "Banned in th e U.S.A." de The 2 Live Crew. E
claro, o rap mais recente tem provado ser muito popular para no se:r recuperado,
em suas formas mais amenas, pelo establishment e pela mdi a. Seus ritmos e estilos
foram adotados pelas principais publicidades da mdi a, e Fres h Prince, um rapper
afvel, faz seu prprio programa de televiso num dos hor rios de m~ior audincia.
143
Vivendo a Arte
" 1111tl11 ,Jt- ~ t <.: ca ptulo sugere, essas mesmas canes celebram com
1mp,1rncia o status potico e artstico do rap 3 .
Eu gostaria de examinar mais atentamente a esttica do rap ou
h1p hop (como os cognoscenti normalmente o nomeiam) 4 . Como eu
gosto desse gnero de msica, tenho um interesse pessoal em defend1: r sua legitimidade esttica 5 . Mas as questes culturais e as implicaes estticas so muito maiores. Pois penso que o rap uma arte
popular ps-moderna que desafia algumas das convenes estticas
mais incutidas, que pertencem no somente ao modernismo como estilo
artstico e como ideologia, mas doutrina filosfica da modernidade
e diferenciao aguda entre as esferas culturais. No entanto, embora desafie tais convenes, o rap ainda satisfaz, a meu ver, as normas
estabelecidas mais decisivas em matria de legitimidade esttica, normalmente negadas arte popular. Ele afronta assim qualquer distino rgida entre artes maiores e arte popular fundada em critrios puramente estticos, assim como coloca em questo a prpria noo de
tais critrios. Para sustentar essas afirmaes, vamos primeiro considerar o rap em termos de esttica ps-moderna. Mas, dado que a le3 Tomei o ttulo da letra de um rap de Ice-T, "Hit the deck", qu e visa a "demonstrar que o rap uma arte" . Existem inmeros outros raps que ressaltam o status
potico e artstico do rap; entre os mais veementes esto: "Talkin' ali that jazz" de
Stetsasonic, "l'm still # 1", " Ya slippin ", " Guetto music" e "Hip hop rules " de BDP,
e "The best" de Kool Moe Dee.
4 O termo "hip hop" na verdade designa um conjunto cultural mais amplo que
o rap. Ele inclui o break, o graffiti e tambm um estilo casual de roupa, em que o tnis
cano-longo foi adotado como moda. A msica rap d o ritmo para os danarinos de
break; alguns rappers afirmam j ter feito graffiti; e a moda hip hop celebrada em
muitos raps, como por exemplo "My Adidas" de Run-DMC. Para um estudo sobre
o graffiti, ver Susan Stewart, " Ceei tuera cela: Graffiti as crime and art", John Fekete
(org.), Life after postmodernism, Nova York, St Martin's Press, 1987, pp. 161-80.
5 Como judeu branco de classe mdia, compreendo que meu interesse pelo
rap pode ser criticado como explorador e "politicamente incorreto", que eu no tenho
direito algum de defender ou estudar uma forma cultural da qual no possuo a experincia formativa de gueto. Mas embora as razes do rap sejam profundamente
esta belecidas no gueto negro urbano, o rap visa a um pblico mais amplo, como
veremos adiante; seu protesto contra a pobreza, a perseguio e o preconceito racia 1 pode ser incorporado por outros grupos ou indivduos que experimentaram essas
i. it unes fora do gueto negro. De toda forma, penso ser politicamente mais incorreto
ig1111 r:ir a importncia do rap para a cultura e a esttica contemporneas, recusando 1n t a co nsider-lo simplesmente em nome de origens raciais e socioeconmicas.
lil I
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
lI
111111 l1n111 ncia coloca em evidncia sua performance sexual, seu sul t".~ co111crcial e seus prprios bens, mas esses sinais de status so apre'l' 11t.1dos como secundrios e derivados de seu poder verbal.
Pode ser difcil, para certos brancos, imaginar que a habilidade verha I seja to apreciada no gueto africano urbano. Mas um estudo sociolgico revela o quanto ela estimada, e uma pesquisa antropolgica mostra
que afirmar uma posio social superior pelo poder verbal uma tradio
negra profundamente enraizada, que remonta aos griots da frica ocidental, tendo sido sustentada por muito tempo no Novo Mundo atravs
de concursos e jogos verbais convencionais, tais como "signifying" [significar] ou "the dozens" [as dziasf. A incapacidade de reconhecer as
figuras de linguagem tradicionais, as convenes estilsticas e as complexidades impostas na criao verbal do ingls afro-americano (tais
como a inverso semntica, o discurso indireto, a simplicidade simulada
e a pardia oculta - todas originalmente designadas para esconder da
hostilidade dos ouvintes brancos o significado real das palavras) 8 induziu
crena de que as letras do rap so superficiais e montonas, seno at
7
Ver, por exemplo, Roger Abrahams, Deep down in the jungle, Chicago,
Aldine Press, 1970, cujo estudo sobre um gueto da Filadlfia revela qu a habilidade
para falar "confere um status social elevado", e que mesmo entre os jovens a "habilidade com as palavras to considerada quanto a fora fsica" (pp. 39 e 59). Estudos sobre guetos de Washington e Chicago confirmam essa observao. Ver Ulf
Hannerz, Soulside, Nova York, Columbia University Press, 1969, pp. 84-5, que
observa que a habilidade verbal era "amplamente apreciada entre os homens do
gueto" no apenas em prticas competitivas, como tambm enquanto um "valor
de espetculo"; e Thomas Kochman, "Toward an etnography of black american
speech behavior", Thomas Kochman (org.), Rappin' and stylin' out, Urbana, University of Illinois Press, 1972, pp. 241-64. Alm da sua utilizao restrita para
designar a prtica tradicional estilizada do insulto verbal, a "significao" dos
negros tem um sentido mais genrico de comunicao codificada ou indireta que
se apia fortemente no fundo cultural e no contexto particular dos comunicantes.
Para uma anlise mais complexa e aprofundada do ponto de vista terico da "significao" enquanto figura de linguagem genrica e de sua utilizao " nos textos
negros como tema explcito, estratgia retrica implcita e princpio de histria literria" , ver Henry Louis Gates, Jr., The signifying monkey: A theory of afro-american
!iterary criticism, Oxford, Oxford University Press, 1988, citao da p. 89.
8 Tais estratgias lingsticas de evaso e de discurso indireto (shucking,
to111111ing, marking e loud-talking), assim como as noes mais gerais de inverso
t de significao, so amplamente discutidas em Kochman, "Toward an etnograph y"; Cr~ cc Simms Holt, "Inversion' in black communication"; e Claudia Mitchell1,ri 11.111 , "Signifying, loud-talking, and marking'', Kochman (org.), op. cit.
llh
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
Jil
Esta tcnica chamada scratching mixing no apenas por que o deslocamento manual da agulha sobre as faixas arranha os discos, mas tambm pelo fato
de o DJ ouvir o arranhar da agulha no fone de ouvidos ao selecionar a faixa, antes
ele realmente adicion-la ao som do outro disco que j estsa.indo nos alto-falantes.
118
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
1I ''
9
Ver David Toop, The rap attack: African jive to Netv York hip hop, Boston,
South End Press, 1984, p. 14.
10
Esta tcnica chamada scratching mixing no apenas por que o deslocamanual da agulha sobre as faixas arranha os discos, mas tambm pelo fato
de o D.J ouvir o arranhar da agulha no fone de ouvidos ao selecionar a faixa , antes
1Ir rr:1lm ~ nte adicion-la ao som do outro disco que j est saindo nos alto-falantes.
111 cn l"O
liK
Richard Shusterman
12 O historiador do rap David Tood (op. cit., p. 105) d um sentido a t"SS <'
ecletismo selvagem: "Bambaataa mixava calipso, msica eletrnica japoncsn t'
europia, a 'Quinta Sinfonia' de Bethoven e grupos de rock como Montain ; Kool
D] Herc intercala os Doobie Brothers com os Isley Brothers; Grandrnastcr Fl.1 , lt
sobrepe registros de discursos e efeitos sonoros a The Last Poets; Sy111pho111 l li
Boys Mixx recorra a msica clssica em cinco toca-discos diferentes " . Vrr t.1111
bm pp. 149 e 153.
Vivendo a Arte
l lfl
..
MONTAGEM E TEMPORALIDADE
rn
Richard Shusterman
feitamente unificado cuja modificao de qualquer de suas partes destruiria a coeso. Alm disso, a ideologia do romantismo e da "arte pela
arte" reforou nosso hbito de tratar as obra s de arte como um fim
em si mesmo, transcendentes e virtualm ente sagradas, cuja integridade deveramos respeitar e jamais violar. Em conrrn ste com essa esttica da unidade orgnica, a montagem e o sainplini do r;1p refl etem a
"fragmentao esquizofrnica" e o "efeito de co lagem" cara ctersti cos da esttica ps-moderna 14 . Opondo-se esttica do cu 1to dcvocional obra fixa, intocvel, o hip hop oferece os prazeres da a rte
desconstrutiva - a beleza vibrante de desmembrar obr_as antigas para
criar outras novas, transformando o pr-fabricado e o familiar em algo
diferente e estimulante.
O sampling do DJ e o rap do MC tambm colocam em evidncia o fato de a aparente unidade da obra de arte original ser, muitas
vezes, construda artificialmente, ao menos na msica popular contempornea, onde o processo de produo normalmente bem fragmentado: uma trilha instrumental gravada em Memphis, combinada com
um fundo vocal de Nova York e uma voz solo de Los Angeles. O rap
simplesmente d continuidade a esse processo de composio artstica por sobreposio de diferentes camadas, desestruturando e recompondo de maneira diversa produtos musicais pr-fabricados, sobrepondo a isso a letra do MC e produzindo assim uma nova obra. Mas o
rap faz isso sem a pretenso de que sua prpria obra seja inviolvel,
de que o processo artstico seja finalizado e que seu produto seja fetichizado, no podendo ser de modo algum submetido a uma apropriao ou a uma transfigurao. Ao contrrio, o sampling do rap implica que a integridade de uma obra de arte enquanto objeto jam~is deve
ter mais importncia que as possibilidades de prosseguir a criao pela
reutilizao desse objeto. Sua esttica sugere, assim, a mensagem de
Dewey, segundo a qual a arte essencialmente mais um processo do
que um produto acabado, uma mensagem de boas-vindas a nossa cultura, cuja tendncia para reificartoda expresso artstica to forte
que o prprio rap prejudicado por esta tendncia, ainda que proteste audaciosamente contra ela.
Ao rejeitar a integridade fetichizada das obras de arte, o raptam14 Ver Jameson, op. cit., pp. 73 e 75. Isto no quer dizer que o r ap no atin ja unidade nem coerncia formal alguma; ver infra meu estudo sobre "Talkin' a li
that jazz".
Vivendo a Arte
1~ 1
15
T.S. Eliot, "Tradition and the individual talent'', em Selected essays, p.
15. Para uma crtica so bre essa concepo inicial de Eliot e um a explicao so bre
as razes pelas quais ele a abandona posteriormente em sua teoria da tradio, ver
Richard Shusterman, T.S. Eliot and the philosophy of criticism, pp. 156-67.
17 Da mesma forma, penso que minha presente anlise do rap vlida, ainda que possa logo se tornar desatualizada em razo de novos desenvolvimentos
no gnero.
mente locais 19 .
Embora a localizao possa ser um aspecto saliente da ruptura psmoderna do estilo internacional modernista, sua forte presena dentro
do rap provavelmente um produto de suas origens nos conflitos e nas
rivalidades dos bairros. Como Toop observa, o hip hop ajudou a transformar violentas rivalidades entre gangues locais atravs de competies verbais e musicais entre grupos de rap 20 . Mas difcil apontar
18 Existem discos de rap de grupos brancos corno Blondie, Tom Tom Club,
Beastie Boys, 3rd Bass, e tambm o solista branco Vanilla Ice.
19 Ver, por exemplo, o alburn franc s Rapattitudes, no qual os rappers precisam os bairros especficos de Paris em que habitam, seus problemas de morad ia
e de integrao social. O rap francs, embora apresente um esprito autntico,
continua muito prximo de sua fonte norte-americana.
2 Toop, op. cit., pp. 14-5, 70-1. Pode-se afirmar que o hip hop proporciona um campo esttico onde a violncia fsica e a agresso so traduzidos em form as simblicas. Certamente, a rivalidade brutal e a competio agressiva so essenciais para a esttica do rap. Talvez o tema mais comum de suas letras seja o da
superioridade do rapper em encontrar-rimas e sua capacidade de agitar o pblico;
como ele aceita os de safios de outros rappers que o criticam; como os ridiculariza, caso pretendam enfrent-lo no rap. Este duelo freqentemente descrito com
termos extremamente violentos, nos mesmos moldes da s competies tradicionais
de insultos verbais como "as dzias" e "significar" (ver as fontes citadas na nota
7). No entanto, ao lado da pretenso polmica de ser o melhor, o rapper tambm
exprime em suas letras solidariedade com os outros artistas de rap que partilham
1~ \
ISl
Richard Shusterrnan
Vivendo a Arte
22
23
1 ~ . ,
Richard Shusterman
Vivendo a Arte
ili lf ; 1., trnu.1 social e de mudana. Sem tais sistemas, o rap no pode1 u 1c 1 .1k.111:1do sua "penetrao no corao da nao" (Ice-T) ou sua
11 p1111u11idad c de "ensinar os burgueses" (Public Enemy) 24 . Domes11111 modo , foi apenas atravs da mdia que o hip hop conseguiu atin1.i r :1m::i artstica e fortuna. Seu sucesso comercial, fonte inegvel de
orgulho da cultura negra, permitiu investimentos artsticos renovados.
O rap no repousa apenas sobre as tcnicas e as tecnologias da
mdia, mas empresta muito de seu contedo e de suas imagens da cultura de massa. Os shows de TV, as vedetes do esporte, os produtos de
marcas conhecidas (por exemplo, os tnis Adidas) so freqentemente citados em suas letras, e seus temas musicais ou jingles so muitas
vezes incorporados em suas criaes. Esses elementos da cultura de massa fornecem o fundo cultural necessrio criao artstica e comunicao numa sociedade em que a tradio da cultura clssica geralmente ignorada ou julgada pouco atraente, para no dizer alienadora
e exclusivista.
Mas apesar desses dons incontestveis, a mdia no oferece uma
aliana confivel, e apresenta muitas ambigidades. Ela o foco de
desconfiana profunda e de crticas severas. Os rappers recriminam
sua evaso fictcia e superficial, seu contedo comercialmente padronizado, seu distantanciamento da realidade e sua brutalidade. "Falsa
mdia, ns no precisamos dela, precisamos? Tudo nela fingido" declara Public Enemy 2.S:, que tambm lamenta (em "She watch channel
zero") o quanto os programas estandartizados na TV destrem a inteligncia, o senso de responsabilidade e as razes culturais da mulher
negra. Os rappers esto constantemente atacando as estaes de rdio por recusarem a divulgar seus raps politicamente mais engajados
ou os sexualmente mais explcitos, levando ao ar "papas comerciais"
(BDP). "Os putos da rdio nunca me tocam", deplora Public Enemy.
Este verso foi "sampleado" com punch phrasing na realizao de um
rap de Ice-T, em que as estaes de rdio e o Federal Communication
Commission so condenados como responsveis por uma censura que
nega tanto a liberdade de expresso como a dura realidade da vida,
fazendo com que a mdia no apresente "nada mais que lixo comer-
26 Ver BDP, "Ghetto music", Public Enemy, "Rebel without a pause" e lceT, "Radio suckers". No entanto', como estes rappers reconhecem, existem algumas emissoras que difundem (normalmente t.arde da noite) o "som da crua realidade". (A estrofe do Public Enemy no original "Radio suckers never play me" .]
27 "Esto fazendo rdio sacana, as pessoas tm que livrar a cara/ Mas mesmo se eu for cortado, vou vender um milho de fitas" (lce-T, "Radio suckers").
[No original: "They're makin' radio wack, people have ro scape/ Bur even if I'm
24
25
Em "Don't believe the hype". [No original: "False media, we don't need
ir, do we? It's fake" .]
1 )6
Richard Shusterman
Ver Public Enemy, "Black steel in the hour of chaos" . [No original: "Here
is a land that never gave a damn about a brother like me[ ... ] but the suckers had
authority" .] Sobre essa temtica da explorao dos negros pela sociedade branca, ve r
tambm "Who protects us from you?" de BDP e "Squeeze the trigger" de lce-T .
Vivendo a Arte
1~
para o pblico do gueto, ao qual ardentemente afirmam sua solidariedade e fidelidade. Do mesmo modo, alguns rappers, que se autodenominam underground, denunciam a comercializao como uma
prostituio artstica e poltica e, no entanto, glorificam seu prprio
sucesso comercial, tomando-o como indicativo de seu poder artstico 29.
Tais paradoxos refletem, na verdade, contradies fundamentais do
campo sociocultural da vida do gueto e da arte dita no-comercial3.
Na cultura afro-americana certamente existe tal conexo entre
expresso independente e realizao econmica, que levaria mesmo
os rappers no-comerciais a conquistar sucesso comercial e financeiro. De fato, como to bem demonstra Houston Baker, os artistas afroamericanos precisam sempre, consciente ou inconscientemente, conviver com a histria da escravido e da explorao comercial que forma
a base da experincia negra e de sua expresso 31. Assim como os
negros, ao serem escravizados, eram transformados de seres humanos independentes em propriedade, tambm sua maneira de reconquistar a independncia era adquirir propriedade suficiente para comprar sua liberdade (como na tradicional hi stria da libertao de Frederick Douglass). Tendo sido ignorados, durante tanto tempo, pelo
fato de serem propriedades, os afro-americanos concluram, com razo, "que somente a propriedade possibilita a expresso" 32 . Assim,
para os rappers underground, o sucesso comercial e sua s ostentaes
podem funcionar essencia lmente como sinais de uma independncia
econmica, a qual possibilita livre expresso poltica e artstica, ao
mesmo tempo que possibilitada por essa mesma expresso. Uma di-
29
Para exemplos que ilustrem a primeira contradio, ver "High rollers",
"Drama'', "6'N rhe mornin"' e "Somebody gorra do ir (Pimpin' ain'r easy !) " de
Ice-T, e "Another victory" de Big Daddy Kane; sobre o segundo para doxo, ver
" Radio suckers" de Ice-Te "Blueprint" de BDP. Uma outra contradio problemtica que, apesar da condenao que o rap faz da explorao e opresso da
minoria negra, freqentemente adota o pimpin' style, que consiste em horrveis
celebraes machistas da (mu itas vezes violenta) explorao da mulher.
30
Pierre Bourdieu em op. cit., expe perfeitamente a lgica oculta dos interesses de classe, os mecanismos materiais e comerciais que possibilitam a arte dita
pura e no-comercial e que permitem consider-la erro neamente como tal.
31
Houston Baker, Blues, ideology, and afro-american literature: A vernacular theory, Chicago, University of Chicago Press, 1984, pp. 34-63.
32
158
AUTONOMIA E DISTNCIA
33
Richard Shusterman
Ver, por exemplo, "Rhyme pays" de Ice-T, e "They want rnoney" e "The
Ibid., p. 57.
Vivendo a Arte
1 ~1
Ver "My philosophy" e "Gimme dat (woy)" de BDP. As letras de seu rap
ideolgico "Who protects us from you?" descrevem-no como "um apelo pblico
lanado a vocs rodos pelos cientistas da Boogie Down Productions".
37 Ver "I'm still # 1 ".No que diz respeito ao ataque de BDP contra a histria oficial, mdia e seus esteretipos, ver sobretudo "My philosophy", "You must
learn" e "What is that?".
38
Essa noo o tema central de disco de Kool Moe Dee, "Do you know
what time is ir?", e encontra uma expresso no vesturio de Flavor Flav, do Public
Enemy: um imenso relgio que ele usa como colar.
160
Richard Shusterman
39 O melhor exemplo Gary Byrd, um DJ de rdio que desenvolve um programa literrio baseado no rap. Para maiores detalhes, ver Toop, op. cit., pp. 45-6.
40
op. cit., pp. 85, 87, 88 e 89. A expresso de Adorno encontrada em T.W. Adorno, AT, p. 322.
Vivendo a Arte
1'rndo destrudo a fortaleza da autonomia artstica e adotado com en111si;1smo o contedo da vida comercial e ordinria, a arte ps-moderna
p:lrcce no possuir a "distncia esttica mnima" necessria arte para
se manter "fora do Ser massivo do capital" e representar uma alternativa para aquilo que Adorno chama de "cruel realidade". Embora
aqueles sintonizados com Public Enemy, BDP e Ice-T dificilmente duvidem da autenticidade e do poder de sua oposio, a acusao de que
todas as "formas contemporneas de resistncia cultural so secretamente desarmadas e reabsorvidas por um sistema do qual elas prprias
podem ser consideradas uma parte" pode muito bem ser aplicado ao
rap. Afinal, enquanto condena os esteretipos da mdia, a violncia e
a busca de uma vida luxuosa, o rap, com a mesma freqncia, cuida
de explor-los e glorific-los. Mesmo as letras underground do rap,
apesar de denunciar a viso comercial e o sistema capitalista, celebram
seu prprio sucesso comercial e histrias financeiras (algumas letras,
por exemplo, descrevem e justificam a mudana de gravadora feita pelo
rapper por razes comerciais) 4 1.
O hip hop no se encontra fora daquilo que Jameson (numa afirmao organicista questionvel) v como o "espao global e totalizador
do novo sistema mundial" do capitalismo multinacional-como se os
eventos contigentes e os processos caticos de nosso mundo pudessem
ser totalizados num s espao ou sistema! Mas supondo tal sistema que
existe, por que as implicaes lucrativas do rap com alguns dos aspectos
desse sistema deveria anular seu poder de crtica social? Ns devemos
estar completamente de fora para poder critic-lo de fato? A crtica descentralizada que o ps-modernismo e o ps-estruturalismo fazem contra as fronteiras definitivas, fundadas ontologicamente, no coloca seriamente em questo a prpria noo de estar "totalmente fora"?
Ao lado da contestao da existncia de uma dicotomia clara entre
dentro/fora, tambm devemos nos perguntar por que a atitude esttica tradicional requer a contemplao distanciada de um sujeito sen-
~atamente
43 Ver Queen Latifa, "Dance for me", e Ice-T, " Hit the deck" . Tambm no
que concerne possesso e ao poder movente (tanto espiritual como fsico) do rap
sobre o pblico assim como so bre o rapper, ver Kool Moe Dee, "Rock steady" e
"The best" .
Ver, por exemplo, "409" de Ice-Te "Nervous" de BDP. Vale notar que
mesmo estes artistas, que se autodenominam no-comerciais, portam nomes que
sugerem o mundo dos negcios. O grupo de Ice-T se chama "Rhyme Syndicate
Productions" e BDP uma a breviao de "Boogie Down Productions". O raps
comerciais apresentam-se flagrantemente como tal, quando, por exemplo, as letras fazem propaganda dos discos do artista ou d e seu dinheiro, dando o nmero
de telefone comercial (como em "1 -900-LL Coo]]'', de LL Coll J).
44 Ver on de Plato, onde este ponto explicitado. Mas em "Get the picture"
de Kool Moe Dee, direo a va lorizao dessa corrente de arrebatamento" divino sutilmente invertida. Seu rap hipntico identificado com "saber" e "dizer a
voc a verdade'', que leva o pblico possudo do rapper s alturas dos deuses, desafiando sua supremacia e cativando-os da mesma forma: "Eu comeo a flutuar/
nas rimas que escrevi/ subindo ao nvel dos deuses e eu carrego/ fardos e montes
de gente/ Assim que eles chegam altura/ a festa fica a meia milha do paraso/ E
eu sou a atrao./ Os deuses ficaro fascinados/ saindo de seus bolsos para que eu
agite/ e agindo/ como se eles nunca tivessem se divertido./ Eles tentam atuar divi namente, mas no conseguem resistir./[ ... ]/ E Vnus vai exultar com cada palavra
que eu disser,/ Zeus vai se deixar levar/ Totalmente induzido./ Eu vou fazer as ri mas de Apo lo soar como Mame Gan so./ No fim da noite, Mercrio vai es ta r to
162
Vivendo a Arte
41
Richard Shusterman
1(,\
d:.i possesso divina do corpo nos lembra o vodu e a metaf. 1l . 1 d D n.: li gio africana, sob os traos da qual a esttica da msica afro.1111nica na se baseia45.
O que poderia ser mais distante do projeto de racionalizao e
de secularizao, mais estrangeiro esttica racional, incorprea e
formalista do modernismo? No surpreende que a esttica modernista estabelecida seja to hostil ao rap e ao rock em geral. Se existe um
espao vivel entre uma esttica racional modernista e outra totalmente
irracional, cujo excesso dionisaco corrompe as pretenses cognitivas,
didticas e polticas, este o espao reservado a uma esttica ps-moderna. Creio que a arte do rap habita este espao, e espero que continue a crescer dentro dele.
II
At aqui apresentei o rap como um desafio s convenes artsticas tradicionais. Por que ainda cham-lo de arte? As letras de rap
afirmam orgulhosamente que ele uma arte: auto-afirmao performtica, que um meio eficaz para alcanar tal status. Mas a mera
auto-afirmao no suficiente para estabelecer a qualidade artstica ou o carter esttico de uma forma de expresso; a pretenso deve
ser justificada. Num primeiro nvel, claro, a convico vem da experincia; devemos sentir o poder artstico e esttico de uma obra impressionar nossos sentidos e nossa inteligncia. Um reconhecimento
deslumbrado/ Que vai espalhar a nova de que tem um deus do microfone/ cativando todos os outros deuses/ pelas massas,/ Descrito como um irmo de culos e
pele escura". [No original: I star to float/ On the rhymes I wrote/ Ascending to a
levei with the gods and I tote/ Loads and mounds of peoplel As they reach new
heightsl A half a mile from heaven is the party site/ And I'm the attraction./ The
gods will be packed inl Coming out of their packets for me to rock itl And acting/
Like they've never ever been entertained.I They try to act godly but they can't
maintain./ [... ]/ And Venus would get loose/ Fu lly induced./ I'll make Apollo's
rhymes sound like Motherl Goose./ By nigth's end Mercury isso hyped! He'd spread
the word that there's a god of the mikel Captivating ali the other gods! By the
masses,/ Described as a dark-skinned brother in glasses.]
Ver, por exemplo, Michael Ventura, Shadow dancing in the USA, Los
/\ 11gd cs, J.P. Tarcher, 1986; e Robert Farris Thompson, Flash of the spirit, Nova
Yo rk, Vintage, 1984.
1(, ,,
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1f, 'i
::
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[pique,
(intervalo musical)
A. COMPLEXIDADE
primeira vista essa letra parece bastante simples, talvez simples
demais para merecer ateno esttica. Faltam-lhe as ciladas e os artif-
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11,IJ
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17 1
d.1d l' quanto a arte - uma pretenso que "Talkin' ali that jazz" sus1(.' lll ;l virtuosamente, por meio de seu mtodo engenhoso de inverso
e de antfrase 51 .
Embora a complexidade semntica e as sutilidades de argumentao estejam inegavelmente presentes aqui, pode-se negar que elas sejam realmente destinadas ou que existam para o verdadeiro pblico
do rap. Talvez sejam um mero produto de nossa maneira acadmica
de ler - ou mesmo de torturar - os textos para a encontrar ambigidades. Essa leitura complexa do rap no respeitaria, pode-se dizer, a espontaneidade e a simplicidade do gnero e de seu pblico. Alm
disso, a sugesto de que respostas mais simples envolvem menos significaes serviria para expropriar a arte de seu uso popular e de seu
pblico . Tal processo, em que modos de aproprio intelectual so
usados para tra nsformar a arte popular em arte de elite, bem comum
na histria cultural52.
Essa linh a de objeo minha leitura forte o bastante para
merecer uma resposta imediata. Em primeiro lugar, rio h nenhuma
razo imperativa para limitar o sentido do rap s intenes explcitas
do autor, pois sua significao tambm uma funo de sua linguagem e de seus leitores, um produto social que escapa ao controle determinante do autor individu al. As ambigid ades da palavra "jazz" e
os conflitos culturais que ela incorpora j esto presentes na linguagem pelo meio da qual o autor deve falar, quer tenha ou no a inteno. Em segundo lugar, visto que a arte pode ser apreciada de diversas maneiras e em vrios nveis, novos modos de apreciao experimentados por outro pblico no suprimem necessariamente os do p5 1 Tal a leitura dominante da letra. Mas dadas as am bigidades e inverses, leituras a lternativas e at mesmo contrrias so possveis. Um crtico de direita poderia dizer que o status musical da letra enquanto "talkin' jazz", assim como
sua pretenso de ser no apenas arte a utntica como ta mbm verdade real, confirmam pateticamente seu status enquanto puro "papo furado" [talkin' jazz], no
sentido de verborragia pretenciosa, vazia e sem sentido. A leitura de um ativista
negro poderia ver o protesto artstico contra a opresso sociocultural dos negros
como implicando uma falsa reduo do poltico esttica, sugerindo que o rap
um simples "papo furado" por oferecer um protesto meramente esttico, ao invs
de uma real ao poltica.
52
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blico original. Isso acontece apenas quando as novas form as intelectualizadas insistem em se impr como as nicas legtimas. O rap pod e
muito bem ser apreciado simplesmente pela dana, o que no quer dizer
que seu pblico tpico o aprecie apenas desse modo restrito e antiintelectual. Na verdade, qualquer que seja nossa viso da iluso intencional e da primazia do pblico, penso que as ambigidades e inverses so muito evidentes para no serem intencionais; e o pblico primeiro do rap suficientemente bem preparado para compreend-las:
esse tipo de art'ibigidade e antfrase , precisamente, bsico para a comunidade lingstica negra.
O ingls afro-americano fortemente ambguo. Por exemplo,
enquanto "nigger" em ingls branco um insulto, no discurso negro
"uma forma de afeio, admirao, aprovao"53. As razes dessa
inverso so claras: "os escravos negros eram levados a criar um a lngua verncula semi-clandestina" para exprimir seus desejos e, ao mesmo tempo, disfar-los da investigao hostil de seus superiores, e fizeram isso dando s palavras inglesas comuns significaes negras
especficas 54 . Uma das formas mais eficazes de multiplicar os sentidos
era o da inverso. Como a linguagem incorpora, bem como sustenta,
as relaes de poder no interior de uma sociedade, o mtodo de inverso particularmente significativo, tanto como fonte de protesto
quanto como fonte de habilidade lingstica extremamente sutil. Co-
5 3 Ver
54
Claude Brown, "The language of sou!", em Kochm an (org.), op. cit., p. 135.
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173
Dessa forma, a comunidade negra tornou-se especialmente familiar e adepta da codificao e da decodificao de mensagens ambguas e inversas. Os fs do rap conquistaram, por meio de seu exerccio lingstico comum, uma habilidade de se comunicar indiretamente e com perspiccia, vista por pesquisadores como "uma forma de arte
5
verbal" 6. Esse fato que lhes permite compreender rapidamente textos de grande complexidade semntica, caso o contedo seja relevante para sua experincia. Assim, os jogos de inverso e de ambigidade de Stetsasonic sobre a noo de "talkin' jazz" no so inacessveis
a seu pblico, ainda que sejam menos bvias do que a outra inverso
presente no texto, hoje extremamente comum, em que a palavra "ruim"
[em ingls: bad] significa "bom" ("Por ser to ruim, a gente tem orespeito que vocs nunca tiveram").
A frase "os jogos bobos/ Para abraar minha msica, de forma
que ningum a use" ["silly games/ To embrace my music so no one
use it"] apresenta uma ambigi.iidade muito mais complexa. Enquanto
o verbo "abraar" [to embrace] tem o sentido positivo de aceitar ou
de adotar, aqui parece que o sentido secundrio de circundar, cercar,
conter, privilegiado, de maneira a impedir o uso da msica . Podemos, no entanto, obter uma significao satisfatria da expresso com
o primeiro sentido, interpretando-a como um protesto contra o jogo
bobo de aceitar a msica como simples divertimento, destitudo de
qualquer uso artstico ou poltico real. Por fim, existe ainda o restrito
sentido legal do verbo to embrace: "tentar influenciar um juiz por
55
56
Ver Claudia Mitche11-Kernan, "Signifying [... ]'', op. cit., pp. 326-7. Esta
forma de arte verbal est, dentro dos moldes de Dewey, em continuidade com a
vida ordinria. No devemos esquecer que o rap era um estilo lingstico antes de
ser uma arte musical, e este sentido da palavra "rap" continua, claro, presente.
B.
CONTEDO FILOSFICO
Gostaria agora de defender a idia de que o rap pode ser recompensador do ponto de vista intelectual, no s pela sua estimulante complexidade polissmica, como tambm por suas percepes filosficas.
Afinal, do mesmo modo que a arte popular tem sido condenada como
superficial, em razo de suas estruturas semnticas simp listas, ela tambm tem sido acusada de no possuir um contedo profundo.
Como a utilizao de clichs pela arte popular muitas vezes considerada a causa primeira de sua falta de profundid ade, algo deve ser
57
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dito a respeito dos clichs presentes em "Talkin' ali that jazz". A letra
inclui, na verdade, algumas das expresses mais populares do ingls:
"falar barato", "a beleza superficial", "voc no pode ter o bolo e
j<l t-lo comido", "voc colhe aquilo que voc planta". No entanto,
dentro do contexto especfico deste rap, esses provrbios adquirem novos
significados que no apenas se distanciam dos clichs culturais, como
desafiam o pensamento que incorporam. Na verdade, pelo seu prprio
uso como argumentos contra o clich cultural de que o rap no uma
arte, esses provrbios perdem um pouco de seu carter banal. Alm disso,
sua utilizao esteticamente justificvel como um contrapeso verbal
do mtodo de apropriao do sampling, que constitui o tema maior do
rap. Do mesmo modo que os DJs canibalizam frases musicais conhecidas
para criar um som original, mudando seu contexto, os MCs tambm
podem se apropriar de velhos provrbios, dando-lhes uma nova significao por meio de sua aplicao dentro do novo contexto de seu rap.
Consideremos os dois primeiros clichs sobre a verdade e a beleza, que formam juntos um dstico: "Falar, falar barato/ Bem, como a
beleza, a palavra superficial". Assim reunidos neste contexto especfico,
esses clichs so tudo, menos simplistas ou triviais em seu significado.
Em vez disso, eles destrem com sua ambigidade as verdades ordinrias que exprimem de maneira padronizada, sugerindo, ao mesmo tempo,
teses filosficas sobre a natureza da linguagem, da beleza e do juzo
esttico que divergem dos dogmas comuns, colocando-os em questo.
claro, "falar barato" pode ser entendido aqui no sentido corriqueiro: no custa nada e no necessrio esforo, conhecimento nem
talento para arrasar o rap com crticas ignorantes. Esse tipo de "papo
furado" no vale nada. O sentido habitual do provrbio sugere tambm uma oposio familiar entre a simples palavra (que barata, mas
no resulta em nada) e a ao verdadeira, que no somente reclama
um esforo, mas realmente faz alguma coisa. Os Stetsasonic sugerem
este sentido na oposio que fazem entre os crticos "bitolado[ s] ", sem
"pique" para criar arte, que se contentam em falar sobre e "julg-la"
e, por outro lado, os artistas do rap que so "fortes", "talentosos" e
no hesitam em criar e agir, ao invs de ficar simplesmente "especulando" com esse "papo furado".
No entanto, para alm e contra esses sentidos vulgares, o contedo do contexto deste rap evidencia que o dito papo furado, de que
falar no caro, no to barato assim. Na verdade, bem caro. Em
primeiro lugar, a difamao crtica do rap engana o pblico, insulta e
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elevada e desinteressada contemplao da forma, tal como normalmente definido. Ele , ao contrrio, profundamente condicionado egovernado por interesses e preconceitos poltico-sociais (inclusive raciais).
Assim, em contraste ao clich, segundo o qual a verdade e a beleza
independem do poder, este rap enfatiza as diferentes relaes de poder envolvidas na determinao da verdade e da legitimidade esttica. Duas fontes de autoridade discursiva so apontadas. A primeira
o poder poltico-social, tal como exercido, por exemplo, no controle da mdia e das instituies polticas. Embora desinformados e tendenciosos, os crticos anti-rap anunciam seu veredito por intermdio
do persuasivo meio do rdio. Sua condenao de que o rap destitudo de mrito esttico e indigno do status artstico pode assim passar
por verdade, medida que veiculada com o aval da mdia dominante, o que confere uma aura de expertise e autoridade que recobrem as
vises difundidas pelas estaes privilegiadas da comunicao de massa.
Quanto aos rappers, particularmente aqueles com uma mensagem
poltica, eles no tm acesso ao rdio para apresentar e defender sua
arte. Verdade e status artstico so, assim, em grande parte, uma questo de controle poltico-social.
A letra de Stetasonic refora essa mensagem quando associa a denncia artstica do rap, pronunciada na mdia, ao erro dos polticos que
desvalorizam e subjugam a comunidade negra. Numa epistemologia
pragmatista implcita, que no leva em conta as verdades sociais nas
quais ningum acredita, nem o status artstico que ningum reconhece,
a letra deste rap reconhece que a verdade do status artstico do rap no
algo independente, a ser descoberto um dia, mas algo a ser construdo, e que s pode s-lo quando se desafiar e dominar a verdade instituda
pelo sistema, segundo a qual o rap ilegtimo do ponto de vista artstico. A letra representa, ao mesmo tempo, um estmulo e um exemplo
para esse desafio. Considerando os grandes interesses e implicaes
poltico-sociais envolvidos na luta pela legitimao artstica, os rappers
no ignoram que se trata de um combate violento; e, para defender o
hip hop contra os crticos da mdia, esto prontos a usar de violncia:
"Voc diz que no arte/ Ento agora a gente vai te estraalhar". Esta
ameaa de violncia pensada, pois repetida adiante, para alertar aquele
que praguejar contra o rap: "Voc pode at se ferir, meu amigo" 59 .
19
A violncia desta luta ultrapassa muitas vezes o estado simblico. Para
alm da crtica e da anticrtica, o sistema exerce uma violncia real pela censura e
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comunitrio.
6! Ver Jon Pareies, "How rap moves to television's beat", New York Times,
domingo, 14 de janeiro de 1990, seo 2, "Arts & Leisure", pp. 1 e 28. A MTV
realmente faz um trabalho melhor do que o das rdios comerciais ou da rede de TV
ao apresentar o rap, mas eles ainda privilegiam o som comercial, numa progr1m1
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1merk11nas, qut' muitas vezes apresentam maioria negra, a popularidade do rap inegvel. Sua dominncia crescente nas ruas pode ser
notada sem dificuldade, ressoando alto nos rdios dos carros e nos
guetto hlasters. Sua popularidade em termos de shows e venda de discos (apesar da dificuldade criada pela censura) j enorme, e continua crescendo numa proporo bem maior do que o reconhecimento
cultural que lhe dado. Se a audincia de hip hop ainda no representa a maioria nas rdios das metrpoles, ela constitui um grupo
t'Xtremamente grande, mal-servido com o tratamento que as rdios do
ao rap.
"Talkin' ali that jazz" no somente faz apelo base do poder
majoritrio do rap dentro dos guetos urbanos, mas por sua prpria
polmica busca mobilizar e expandir o suporte popular. Uma das estratgias de persuaso se apia, na verdade, sobre o jogo dos pronomes pessoais. Toda a letra estruturada pela oposio entre "voc" e
"ns". Literalmente, o "ns" designa apenas Stetasonic, o grupo hip
hop que est cantando o rap. Ordinariamente, isto poderia sugerir que
o "voc" remete platia. No entanto, como se trata de um protesto
vigoroso, a letra toma o cuidado de no tratar a platia por "voc",
para distingui-la do(s) crtico(s) anti-rap do rdio, aos quais a mensa-
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6
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Esse apelo implcito a um pblico mais amplo, e branco, desenvolvido na ltima estrofe, quando so evocados "The family stone",
n quem os Stetsasonic se identificam explicitamente. Sly Stone, que
debutou como D] em So Francisco, reconhecido, ao lado de James
Brown, como uma das principais fontes de inspirao do hip hop.
Porm, ao contrrio do ltimo, de quem ele emprestou os temas, mas
cuja msica e personalidade tm um carter mais exclusivamente negro, Sly elaborou um estilo que, ainda que enraizado na msica negra
e engajado na defesa da honra negra, conquistou completamente o
pblico branco do rock, beneficiando-se da aceitao sociocultural que
oferecia. A ruptura de barreiras raciais (e sexistas) que Sly ocasionou
exemplificada de maneira notvel na composio de seu grupo "The
family", que inclui brancos e negros, mulheres e homens. Como observa Grei! Marcus, foi Sly que quebrou a uniformidade da cor em
Woodstock, "aparecendo como a maior sensao do festival" 6 2. Alm
disso, foi Sly quem teve a coragem cultural de reclamar status artstico para suas canes, descrevendo-se como "poeta " 63 , mostrando o
caminho a Stetsasonic e outros rappers para insistir que o rap seja
reconhecido como arte e poesia, afirmando que essas manifestaes
estticas e seus protestos socioculturais podem ser feitos pelas canes.
Seu hit "Stand" encoraja, com insistncia, os oprimidos e os submetidos a lutar por suas crenas, seus direitos e sua cultura; a "defender
as coisas que vocs sabem que so direitas" 64 . Ele adverte profeticamente os futuros rappers: as autoridades opressivas vo "tentar derrubar vocs", quando virem que "o que vocs esto falando tem sentido"; mas ele os encoraja, assim mesmo, a lutar, visto que "aquele
baixinho" pode ajudar a derrubar "o gigante ao lado dele que est prestes a cair". Por um efeito sutil de intertextualidade, a msica de Sly
citada por Stetsasonic, que retoma a expresso "defender" [stand up ],
integrando-a completamente em seu texto, ainda que distinguindo-a
pelo ritmo e pelo esquema de rimas: "Stetsasonic, o grupo hip hop,/
62
Grei! Marcus, Mystery train: Images of America in rock' n' roll music,
Nova York, Dalton, 1982. O livro contm um excelente captulo dedicado carreira de Sly Stone.
Assim como Sly and the Family Stone,/ A gente vai defender/ A msi
ca que a gente vive e toca/ A msica que a gente canta hoje". Com a
mesma sutileza, essas linhas exprimem simultaneamente, pela invoca
o de Sly, a atitude de abertura ao pblico branco, ao lado do esprito resoluto em afirmar a honra e a revolta dos negros.
Entre essas duas referncias musicais de Sly e do rythm' n' blues, encontra-se uma terceira estratgia para tornar o rap mais aceitvel a um pblico geral: a garantia de que a pretenso do rap a uma
legitimidade artstica no uma demanda de hegemonia. Prometendo
que "a gente no est tentando ser um patro pra voc", os Stetsasonic
garantem aos ouvintes no-convertidos ao hip hop que sua inteno
apenas serem ouvidos, e no silenciar os outros, mesmo que estejam
prontos para "ferir" aqueles cujo "papo" busque censurar o rap. Ao
propor um ideal de coexistncia pluralista e pacfica (que se ope
situao "perdida" do violento combate cultural), os rappers invocam
um dos valores mais amplamente partilhados e mais queridos da sociedade norte-americana: a liberdade da tolerncia pluralista. Se ficamos tentados a recusar este ideal como fruto de uma ideologia burguesa, ele se mantm vlido como argumento para aqueles que partilham dessa ideologia; e seu alcance realmente bem maior. Pois ele
reaparece tambm em vises utpicas de marxistas como Adorno, cujo
ideal poltico-social (e esttico) um ideal de diferena sem dominao. A defesa de tais ideais, claro, vem acrescentar um outro aspecto ao rico contedo filosfico desta cano.
Concluamos a discusso sobre esse ponto, fazendo uma breve
referncia segunda fonte de autoridade esttica e discursiva reconhecida na letra. Trata-se da autoridade carismtica do poder artstico e
retrico. Se a verdade e o status artstico dependem da estrutura do
poder sociocultural, ento essa estrutura no imutvel, mas constitui um campo de lutas em constante transformao. E uma maneira
de transformar as crenas e os gostos de uma populao por meio
do poder expressivo do discurso ou da arte que lhe so apresentados,
embora, claro, sua apreciao desse poder sempre dependa de crenas e de gostos anteriores 65 . Assim, como sugere a letra deste rap, ns,
63
Ver a cano "The poet'', em seu lbum Riot, onde ele canta "I'm a songwriter, oh yeh, a poet" ["eu sou um compositor, oh yeh, um poeta"].
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A auto-afirmao reflexiva do status artstico tem uma importncia maior do que pode parecer, pois considerada por muitos filsofos como uma caracterstica essencial da arte6 7. Uma das justificativas apresentadas para explicar o motivo pelo qual as artes populares tm seu status artstico recusado o fato de no o reivindicarem.
Elas nem sequer "pretendem ser arte", afirmam Horkheimer e Adorno, mas aceitam, ao contrrio, seu status de indstria do divertimento.
Elas no insistem em sua prpria legitimidade esttica, afirma Bourdieu,
mas se submetem esttica das artes maiores, que as nega de maneira
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69 Sobre este ponto da tradio, ver meu livro T. S. Eliot and the philosophy
of critcism, pp. 157-64, 170-90.
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il
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Estes dois traos podem ser ligados ao carter de oposio como requisito da arte. Pois a exigncia criativa do novo implica uma oposio ao antigo e
familiar, ao passo que a atitude de privilegiar mais a forma do que o contedo parece ir contra nossos interesses cognitivos e prticos (e constitui para muitos a especificidade da atitude esttica).
deve ser tradicional para ser renovada), de que impossvel conformar-se com tradio artstica, resignando-se a ela, visto que essa uma
tradio de novidade e alterao da conformidade.
O rap refuta o dogma de que o interesse pela forma e pela experimentao formal no pode ser encontrado na arte popular. Alm disso,
rematiza a ateno dada ao material e ao mtodo artsticos, freqentemente considerados a marca distintiva da arte contempornea. O
sampling no apenas constitui a inovao formal mais radical do rap
(visto que anteriormente algumas msicas pop tambm experimentaram o discurso no lugar da cano), como tambm a mais relacionada com seu material artstico - a msica gravada. E no surpreende que seja extremamente contestado, no tribunal de justia como tambm no tribunal da cultura. A defesa esttica do sampling constitui o
motivo condutor de "Talkin' ali that jazz", que desde os primeiros
versos associa a questo da legitimidade artstica do rap ao seu mtodo de sampling.
Bom, a coisa comeou assim:
Te escutei na rdio
Falando sobre rap,
Dizendo toda essa besteira
De como a gente faz sampling.
D um exemplo.
Acha que a gente vai deixar barato?
Voc critica nosso mtodo
De como a gente faz os discos
Voc disse que no arte
Ento agora a gente vai te estraalhar.
Para sustentar a pretenso do rap ao status de arte criativa,
preciso defender o sampling da acusao evidente e plausvel de que
se trata de roubo ou cpia de msicas j existentes. Tal defesa possvel, se consideramos que no rap o sampling no constitui um fim em
si, uma tentativa de reproduzir ou imitar discos j populares. Tratase, na verdade, de uma tcnica formal, ou um "mtodo" de transformar fragmentos antigos em novas canes, com um "novo formato"
pela manipulao inovadora de tcnicas da indstria do disco. Como
para todo mtodo artstico ou todo "instrumento", a significao esttica ou o valor do sampling dependem de como ele usado ("S
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Pareies, "How rap moves", em op. cit., p. 1. Muitas msicas de rap, particularmente as que traam e celebram a histria do hip hop, ostentam de maneira mais explcita o sucesso surpreendente do rap e sua capacidade de sobreviver
morte precoce tantas vezes predita pelos crticos; assim, essa fora de resistncia
vista como exemplo de seu rico potencial criativo. Ver, por exemplo, "Hip hop
rules" de BDP.
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Aqui, mais uma vez, encontramos a juno do esttico e do poltico. A luta pela legitimidade esttica (um sintoma de outras lutas so
ciais mais gerais) s pode vir a ser de um debate refinado e cuidadoso
sobre a forma quando a segurana da escuta mtua for alcanada. Os
rappers ainda lutam para se fazer escutar, e para isto, os Stetsasonic ainda
precisam "por enquanto" usar um discurso mais urgente e violento, portanto, menos formal. Se o desmerecimento e a censura da voz do rap
incita, ao invs de doces juzos estticos, um protesto violento, os inimigos
do rap so os prprios responsveis ("voc colhe aquilo que planta").
Fazer-se ouvir antes de entrar num debate formal e assegurar uma
legitimidade de expresso antes de se concentrar em complexidades
sobre a forma so prioridades que podem ser interpretadas como um
comentrio crtico, mas defensivo, sobre o prprio status formal desta cano; o que levanta uma importante questo formal que o rap deve
enfrentar. Pois, se por um lado "Talkin' ali that jazz" alcana unidade formal e coerncia lgica, por outro lado ele , do ponto de vista
formal, mais simples e tradicional do que os outros raps que discursam muito menos sobre o sampling, mas o aplicam de uma forma bem
mais ampla, complexa e acentuada (por exemplo, "The adventures of
grandmaster flash on the wheels of steel"). Mas enquanto essas canes apresentam uma "forma" radicalmente mais nova, elas parecem
mais suscetveis em relao acusao de incoerncia formal feita por
Pareies. Isso nos sugere uma tenso existente entre a pretenso de inovao formal do rap e sua satisfao de uma coerncia formal requerida
pela arte. Afinal, a inovao artstica do rap, particularmente sua tcnica de sampling, estreitamente ligada a elementos de fragmentao,
deslocamento e ruptura de formas 73.
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