José Carlos Reis - História e Verdade, Posições
José Carlos Reis - História e Verdade, Posições
José Carlos Reis - História e Verdade, Posições
E VERDADE
POSIES
Introduo
o COlllleO/;II'llfo Ililirko
dade?
do col/Ill'citllellfo
Ill~"lin) 1'111
ser "ob/diuo
IJI'II(a,
"7
Idl'o/I;V,
Antes de considerarmos
as vanas posloes sobre as relaes entre
!udria c lJcrdadc, no entanto, talvez seja melhor entendermos o problcllla
forlllulado. O tom dos diversos autores invariavelmente
crtico em
relao possibilidade de uma "verdade histrica". Mas, por que a
dvida em relao possibilidade de uma "verdade histrica"? O que
impediria ou dificultaria ao historiador a obteno da "objetividade"?
Os argumentos cticos em relao possibilidade de se conhecer a
histria so numerosos. Os historiadores, no entanto, geralmente, se
mantm surdos s objees que so feitas ao seu saber. Ou melhor: no
vo deixar de fazer o seu trabalho s porque alguns pensadores, exteriores at sua disciplina, lhes dizem que o que fazem ou impossvel
ou precrio quanto ao rigor do resultado; ou melhor ainda: no vo
aceitar que uma legislao exterior, feita por no historiadores, venha
arrogantemente estabelecer o que seria um conhecimento histrico legtimo. E tm razo em defenderem a autonomia do seu esforo e em
reivindicar para a prpria comunidade dos historiadores o direito e a
competncia para separar o legtimo do ilegtimo em histria. Esta
posio, que sem dvida justa e sustentvel, no entanto, no seria
incompatvel com a escuta e o dilogo com os crticos exteriores
histria. Este dilogo pode ser fecundo, desde que no leve o historiador crise ou subservincia. Consideramos que no se pode avanar
de modo consistente ignorando as objees que nos so dirigidas. Deve-
H.
Lies
1993.
ARENllT.
Dumar.
sobre
a fIlosofia
poltica
de Kant.
Rio de Janeiro:
Relume
aj'fizJ(J,
fJ
O passado basi-
J} o con/leoillenfo
IU~"'Mrico ps-gnsfico e no pn{,\nsfico - mi das
consCfltzcls s C/lllsas. lIm cOlllteClinellfo ps-ellellfo, CiJJ!sfafmior. Esfti
sUJtfo e af domlzado pelali7/dcia
'JOsf Itoc ergo propfer /IOC... '~.
k) as Il(imza{es sobre o passado so "metll(sl7s ": lweriji'fizJ'i de modo
COllc/lISillO e llemjalsetizJ'i. So llfeJprefapJes que se equivalem,'
, F. HARTOG - A. MOMIGLIANO,Historiadores
gregos, in: A. BlJRGUIERE, Dictionnaire
des sciences
historiques,
Paris:
PUF,
1986; A. MOMIGLIA],;O, Problmes
d'historiographie
ancienne et moderne,
Paris:
Gallimard,
1983.
I) alll:.,fn IIllla collstruo do sllj/o - ele recollstn5i o passado, atn!JlIilhe IIIll SCllttO, sob a injlllllCl das sllas crcllas~ cOJwiclJes, Jdts e de
slla pcrsollaltdadc.
o "conhecimento
R, KO,'iELLECK.
Paint
de vue. perspective
]'appropriation
bistoriographique
de l'histaire.
Ia ."'lIlalltique
des /elllps his/oriques.
Paris:
et temporalit,
Contribution
in: Le //ur pass, COII/rihlltioll
EHESS.
1990.
sondvel e impronuncivel
intensa e muda."
- resta
ao homem
a sua contemplao
F.
CHAn:LET,
" Ibidem.
Uma histria
1994.
Qual sena
o alcance
da verdade
histrica? Posies
Entre os historiadores,
h meta fsicos que vm a histria como a expresso da Providncia
Divina, como a objetivao do Esprito, como a
realiza,lo da Razo. A verdade histrica residiria no reconhecimento
dos desgnios da Providncia,
dos estgios do caminho do Esprito
para a liberdade, do progresso das Luzes. Mas, a partir do sculo XIX,
uma histria cientfica
no quis mais se apoiar em pressupostos
meta fsicos. A histria quis criar mtodos e tcnicas para o controle
humano do seu conhecimento.
A verdade histrica dos homens e
deste mundo. Cabe ao historiador estabelecer as bases epistemolgicas
do conhecimento
que produz. Se a verdade estabelecida
em UITla
relao sujeito-objeto, qual a atitude notica ideal que o sujeito deveria
assumir para obter a verdade do seu objeto? Como o sujeito deve admitir e assumir a sua posio na relao cognitiva e ao mesmo tempo
control-Ia? Se a verdade uma construo do sujeito e aparece em seu
discurso, como limitar o seu alcance e como definir at onde pode ir o
sujeito? Quanto ao papel do sujeito na relao cognitiva, quanto
delimitao e definio que faz do real, quanto ao controle do resultado
dessa relao, quanto s condies de possibilidade
dessa relao, os
historiadores
se dividiram
em grupos e escolas. Vamos examinar as
teses sobre a "verdade histrica" em alguns autores, que escolhemos
por terem se tornado referncias incontornveis
no passado e no pre-
Foucault,
De
Para abord-l os, criamos uma aproximao e uma diferenciao artificiais entre eles e, por isso mesmo, discutveis. Ns os dividimos artificialmente em dois grupos: 1) "rmlt:,fas IIll'faj!sicos ": Ranke, Weber, Marx,
Ricoeur e Marrou poderiam ser agrupados sob esta denominao, pois,
embora de modos bastante diferentes, referem-se a um real, universal e
conhecvel; 2) "Ilo/lllilfllt:"fas<' Foucault, De Certeau, Duby e Koselleck
representariam o grupo que combate o realismo meta fsico dos autores
anteriores. Poderiam ser denominados talvez de "J1(JI!l/iza/isfas" porque
no se referem a um real em si e no se interessam por um inatingvel
universal. Para esses, o conhecimento sempre parcial e discutvel.
Admitem e assumem o relativismo, a historicidade do objeto e da presena do sujeito. O conhecimento histrico uma construo de sujeitos
determinados,
dominados
por cdigos lingsticas,
por prticas
especializa das, por regimes de verdade, por poderes institucionais, que
so finitos e histricos. Suas teses sobre a verdade histrica sero
apresentadas
brevemente,
pois no se quer discuti-Ias separada e
aprofundadamente,
o que fugiria s dimenses de um artigo, mas criar
um "poliedro de posies", que torne visvel sua diferena de perspectiva sobre uma mesma questo. Repetimos: nosso esforo talvez nem
supere a mera contraposio de excertos, mas tem a ambio de ser um
estudo reflexivo, retrospectivo e crtico sobre o que j se pensou sobre
as relaes entre histria e verdade.
11 S. B. HOLANlJA, Ranke,
So Paulo: tica, 1979, (Grarndes
Cientistas
Sociais); CI!.
LAN(;LOIS - CH. SEIGNOBOS, Introduo
aos estudos histricos, So Paulo: Renascena,
1946.
So Paulo/Belo
11 M. WEBEH,
Metod%gia das Cincias Soeiais, 2 vols., So Paulo: Cortez, 1992:
IIlr:~I,Sobre o Conceito de Sociologia e o "sentido da conduta social", in: Conceitos
bsicos de Sociologia. So Paulo: Moraes, 1987.
demonstrativos
e cogentes, que movida pela busca da verdade, que
visa o entendimento
do real; e outra de tipo prtico e valorativo, moral,
poltico-afetiva,
que constri e organiza o real de forma voluntariosa,
segundo valores e interesses, movida pela busca do bem-estar polticoeconmico-social.
A subjetividade
lgica aspira conhecer a ordem
emprica da sociedade e no produzir imperativos
ticos. Ela no diz
o que se deve moralmente
fazer, mas estabelece tecnicamente
o que se
pode fazer. Ela oferece o conhecimento
dos meios e custos para se
atingir fins e o que age, a subjeti\'idade
voluntariosa,
poder pesar as
conseqncias
desejadas e indesejadas da sua iniciativa. Uma produz
juzos de fato; a outra, juzos de valor. Uma quer conhecer a sociedade
tal como ela se apresenta, em seu ser; a outra, busca um sentido para
a histria, reflete sobre o que esta deveria ser. A primeira se dirige ao
entendimento,
buscando o consenso, a comunicao
intersubjetiva;
a
segunda, ao sentimento, quer convencer, criar seguidores e agirl5.
Weber no prope a anulao da segunda subjetividade
para garantir
a verdade, mas sua identificao e diferenciao.
So esferas distintas,
movidas por lgicas diferenciadas.
Ambas produzem
verdade sua
maneira: uma, estabelecendo
corretamente
juzos de fato, recorrendo a
modelos, conceitos, tipos, regularidades,
compreenso
explicativa, documentao
variada e bem tratada; a outra, escolhendo
valores mais
universais e produzindo
aes eficazes que os realizem. As duas subjetividades no podem ser confundidas pelo sujeito. Sua indiferenciailo
leva perda do conhecimento objetivo e da verdade. O sujeito no pode
misturar a argumentao
cientfica com a argumentao
poltica. O erro
viria dessa indiferenciao
das suas lgicas subjetivas especficas. Na
subjetividade
cientfica, ad\'ersrios polticos podem chegar ao consenso, e diferentes culturas podem chegar aos mesmos resultados,
Utilizando categorias
lgicas, conceitos,
tipos-ideais,
a subjetividade
"transcendental"
chega a atingir verdades histricas v,lidas para todos. Ela no expressa valores particulares,
no defende interessl's, no
ataca adversrios ~ um conhecimento
emprico, universal e necess,rio, objetivo, vilido para todos. Mas ambas as esferas so "subjeti\'as",
isto , so construes,
escolhas e projetos do sujeito. E nenhuma
primeira em relao outra, a no ser em sua esfera especfica, isto ,
na esfera poltico-afetiva-moral,
a subjetividade
voluntariosa
predomina sobre a lgico-transcendental
e vice-versa I".
Como modelo, a proposta de Weber extremamente
sedutora, O sujeito
no se anula nem de fato e nem estrategicamente.
Ele admite c assume
a sua presena na construo do conhecimento
histrico. Mas procura
se autoconhecer,
diferenciando
suas intenes e modos de operao do
)", lhidem.
w lhidem.
c)
So Paulo: Martins
Fontes,
197H; M. L"wy.
Rio de ,Janeiro: Paz e Terra,
HJ78.
dele
Pargrafos
de Transio
M. F()IT("AI:I.T, Verdade
e poder Ii Nietzsche,
a genealogia
Microfsica
do Poder, Rio de Janeiro:
Graal. 1984.
e a histria,
in:
atemporal universal. At mesmo o marxismo acabou recaindo na nostalgia da metafsica da verdade universal! Para Foucault, a verdade no
expresso da "liberdade humana", no a revelao da essncia da
humanidade pelo discurso, conquistada pela reflexo intensa, concentrada, livre e solitria. A verdade histrica no uma sada ou ruptura
com a histria. Ela no existe fora do poder ou sem poder, isto , da
histria. A verdade deste mundo. Ela produzida nele e por ele em
relaes mltiplas de poder que criam linguagens, saberes, para se
auto-organizarem
e legitimarem. Cada sociedade uma rede de relaes mltiplas de poder, e cada relao cria uma linguagem que defende e consolida posies. Cada sociedade tem o seu "regime de verdade"
e seleciona os discursos que considera como verdadeiros. A distino
entre o verdadeiro e o falso no uma distino entre o essencial/
autntico e o aparente/inautntico.
Esta distino definida por mecanismos criados por relaes prticas de poder e por linguagens e rituais
ligados a esses poderes2'.
A verdade, para Foucault, o conjunto de regimes segundo os quais se
distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos de
poder. A verdade se liga a relaes de fora, a redes de poder. Para ele,
a historicidade que nos domina belicosa. uma relao de fora, e
no de sentido. O discurso no constri a liberdade humana universal,
um suposto sentido para a histria, mas consolida relaes de fora
concretas. A histria no tem um sentido em si a ser descoberto. A
inteligibilidade da histria no est no conhecimento do seu significado ltimo, da sua finalidade misteriosa; ela possui a inteligibilidade
das lutas, das estratgias. No h um sujeito que busque a conscincia
de si e para si na histria. No o sujeito que constitui a histria: ele
constitudo por tramas histricas de poder. Seguindo Nietzsche,
Foucault sustenta que no h essncia, pura identidade, imvel e anterior, interna ao acidental sucessivo. No h identidade primeira,
original, esprito que se mantm idntico a si entre as mudanas histricas. A histria no a busca da realizao universal da subjetividade humana. No h verdade solene, primeira, a ser recuperada. A
histria no a continuidade da conscincia, que nela se integra e se
reconhece. No h continuidade a partir de um princpio ou em direo
a um fim. As coisas comeam disparatadas,
ao acaso. A histria
marcada por rupturas, recomeos contnuos, definidos por lutas e relaes de fora2~.
Para Foucault, a verdade articulada por saberes, por discursos que
emergem e consolidam prticas de poder. O discurso uma construo
para legitimar um poder concreto e transitrio, e no para articular um
"J lhidem.
,4 lbidem.
M. de
problemas,
A operao histrica.
in: LE G()FFI.
Rio de Janeiro:
Francisco.
AI ves, EJ7fi.
CEHTEALX.
N()11A,
I!is!rria,
!lot'os
c)
G. LARD!lEAl;, Dilogos
sobre
a Nova
Histria,
Lisboa;
Dom
Quixote,
Ele afirma se sentir preso em uma rede e ter sua ateno sobre os
vestgios dirigida por uma certa problemtica que o ultrapassa. O que
parece incomod-Io!
como se at este controle institucional no garantisse mais a verdade
ou, pelo contrrio, restringisse ou forasse artificialmente sua existncia. Para ele, est claro que a reconstituio integral do passado
impossvel. No se pode ressuscit-Ia. Escolhemos sempre um passado.
Duby assume que no tem a pretenso de dizer a "verdade" do passado ou de ser superior quanto a ela em relao a seus predecessores.
Ningum tem o privilgio de expressar a verdade do que se passou.
Cada poca reconstri uma e sua "representao"
do passado. Tem-se
sempre uma construo imaginria do passado, mais adequada e integrada ao presente, mas no necessariamente mais verdadeira do que
as precedentes. A representao do passado atual pode ser mais fecunda, mais rica, mas no mais verdadeira. A histria cientfica uma
impossibilidade, pois a histria inevitavelmente subjetiva. O que no
quer dizer que ela no possa abordar o passado com algum rigor:
documentos, tcnicas, teorias, disciplina crtica ... Mas para a "verdade
histrica" isto no basta. preciso ainda um indivduo que sonhe,
imagine, seduza, encante o pblico, que o atinja, porque atende tambm
a seus interesses de sonho e evaso. A "verdade histrica" aquela que
toca os homens do presente, que os torna produtivos, com as "representaes" que se formulam do seu passado.
Duby parece ter cedido s presses da 1IIdl. A sua histria se aproxima da literatura e do cinema. O conhecimento histrico torna-se uma
narrativa sedutora, imaginativa, envolvente. O historiador opera como
um diretor de cinema: escolhe personagens, constri situaes, monta
uma sucesso delas, corta, agrupa cenas, acelera a narrativa, demorase em personagens,
pe ZOOJ1/, focaliza, desfoca, insere tomadas da
natureza ... A verdade histrica torna-se uma "representao" - talvez
at no sentido das artes cnicas! - que um presente faz do passado,
que atende mais aos interesses deste presente do que ao conhecimento
daquele passado; ou melhor, na relao presente-passado,
o lado
presente pesa mais e o passado passa a ser aquilo que o presente
representa dele. Na verdade, se o conhecimento
histrico no pode
deixar de ser assim, a disciplina histrica visa tambm controlar o
anacronismo,
as projees do presente no passado e garantir uma
certa di ferena / originalidade
ao passado ("verdade do passado").
Em Duby, o sonho permitido,
a imaginao
no proibida, a
subjetividade
individual desafia as regras acadmicas e o controle
tcnico e intersubjetivo
da informao. A verdade histrica, como
"representao
do passado', um sl'lltfo atribudo pelo presente ao
passado, que lhe permite evadir-se e que o torna mais estvel, mais
produtivo ... mais sonhador!
" R. K()SELLEC'K,
Point de vue, perspective
et temporalit.
Contribution
I'appropriation
historiographique
de I'histoire, in: Le futur pass. Contrilmtion
Ia s(;mantique
des temps historiques.
Paris: EHESS,
1990.
346
Sntese,
Belo Horizonte,
u. 27,
11.
89, 2000
Endereo
do Autor:
Rua Niquelina,
5H / 702
30260-}OO Belo Horizonte
Me