Um Conto Amazonico de Euclides Da Cunha Por Lais Peres Rodrigues
Um Conto Amazonico de Euclides Da Cunha Por Lais Peres Rodrigues
Um Conto Amazonico de Euclides Da Cunha Por Lais Peres Rodrigues
O narrador do conto que, como vimos nas passagens anteriores, conduz o leitor,
atravs de intensas reflexes, at a degradante histria dos seringueiros, tambm parcela
sua narrao em uma sofisticada ironia. Ou seja, o mesmo trabalho de desmembramento do
narrador realizado por Euclides em Os sertes, ocorre em Judas Ahsverus. Nesse caso,
seu narrador multiperspectivado assume um olhar reflexivo e outro irnico.
O narrador irnico de Euclides se incomoda com o abandono dos trabalhadores da
regio e satiriza o desmazelo da terra de ningum em que nem Deus consegue alcanar.
O Deus dos sertanejos apresentado pelo narrador com uma imagem humana, toma forma
de um homem que feliz por ter seu filho, Jesus Cristo, ao seu lado e no entre os homens,
na terra.
As crticas irnicas a Deus se repetem vrias vezes, como por exemplo ao insinuar
que a Amaznia um territrio capaz de afastar sua presena: [o seringueiro] um
excomungado pela prpria distncia que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus
no podem descer at queles brejais, manchando-se. Ou seja, para esse narrador, Deus
grandioso demais para estar presente entre os seringueiros e ali o poder dele no existe,
alis, nada existe l, s os seringais, os seringueiros e uma imensa floresta. A nica lei a
da sobrevivncia.
A lenda do judeu errante possui vrios desdobramentos, mas sua verso mais
comum diz respeito a um sapateiro que vivia na poca de Jesus Cristo. Segundo a histria,
Cristo, no dia de sua crucificao, teria parado para descansar em frente porta do
sapateiro Ahsverus, que de forma rspida gritou: Caminha!. Naquele momento, Jesus
teria dito ao sapateiro que a sua caminhada estava chegando ao fim, mas que a do sapateiro
seria infinita. Segundo a lenda, o judeu caminha errante at hoje, esperando a segunda
vinda de Cristo para finalmente se livrar de seu castigo.
O Judas Ahsverus de Euclides alcana dois desdobramentos de significado
distintos, ora um traidor como Judas, j que foi trado por sua prpria ambio, ora um
judeu errante, condenado a uma triste sina em meio ao trabalho sem repouso. A
concentrao desses dois tipos histricos num s personagem, o seringueiro, a marca de
quo desumana a sua vida.
Apontamos tambm outro dado irnico dessa narrativa euclidiana. Durante o
apedrejamento do boneco, os sertanejos clamam: - Caminha, desgraado! (CUNHA,
apud LUCCHESI, 2011, p.126). Os trabalhadores, presos nos seringais, descontam toda
sua revolta de uma vida amarga naquele boneco e tristemente o comandam a caminhar,
quando o caminhar no pode ser feito por eles, escravos de suas prprias ambies, presos
na floresta.
Tematicamente, o conto dividido em trs partes, demarcadas pelo sinal de
asterisco pelo prprio Euclides. Na primeira, o narrador conta o drama dos trabalhadores e
seu abandono; na segunda, o narrador toma conscincia de seu reflexo no boneco feito por
ele; na terceira, reflete sobre a misria daquele povo e seus desdobramentos.
Texto polido
Pode-se dizer que Judas Ahsverus representa uma diferenciao na esttica
textual euclidiana, visto que o texto apresenta uma forma mais simples de comunicao a
partir da escolha de vocbulos de uso corriqueiro, porm ainda consegue ser incisivo no
pathos impresso na passagem de informao para o leitor. Euclides abandona nesse texto o
vocabulrio requintado e o excesso de adjetivos, mas estiliza sua escritura de tal forma que
consegue manter o pathos de sua potica textual.
Percebemos que ainda existe na construo da narrativa euclidiana a estratgia
fundada em Os sertes: o tropel lingustico seguido do clarim solitrio, expresses
usadas por Secchin j referidas anteriormente. Veja como se configura essa estrutura no
trecho abaixo de Judas Ahsverus:
Mas no se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revs do italiano
artista, no abusa da bondade de seus desmandando-se em convcios. mais
forte; mais digno. Resignou-se desdita. No murmura. No reza. As preces
ansiosas sobem por vezes ao cu, levando disfaradamente o travo de um
ressentimento contra a divindade; e ele no se queixa. Tem a noo prtica,
tangvel, sem raciocnios, sem diluies metafsicas, macia e inexorvel um
grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida da fatalidade; e submeter-se a
ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria
um esforo intil. Domina-lhe o critrio rudimentar uma convico talvez
Referncias:
ARRUDA, Maria Olvia Ribeiro de. O mecanismo vitimrio em Judas Ahsverus. In:
Informativo tcnico-cientfico Espao. n.32. Rio de Janeiro: INES, 2009. p.29-33.
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