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Um Conto Amazonico de Euclides Da Cunha Por Lais Peres Rodrigues

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Um conto amaznico de Euclides da Cunha

por Lais Peres Rodrigues


Judas Ahsverus narra um ritual criado pelos seringueiros e realizado todos os
anos no Sbado de Aleluia, a malhao do Judas. Esse um acontecimento tradicional
realizado por cristos, durante a Semana Santa, que normalmente conta com inmeras
outras tradies, como missas solenes, procisses luxuosas, lavaps tocantes, prdicas
comovidas (CUNHA apud LUCCHESI, 2011, p.120). Porm, para o sertanejo amaznico
no h mais como acompanhar tais rituais no meio da floresta, principalmente, porque sua
vida se limita ao rduo trabalho dirio. Durante todo o ano, o dia da desforra, o dia to
esperado para todos os seringueiros o Sbado de Aleluia. Trata-se do nico dia em que
eles recebem folga. O narrador do conto se impressiona com a escolha e importncia desse
ritual pelos sertanejos, resolvendo investigar como ocorre todo o processo.
Assim como em outras regies do pas, o boneco do Judas confeccionado com
retalhos e panos velhos. Contudo, para o seringueiro, o trabalho no para. A partir do
momento em que o boneco toma forma, ele acentua o nariz, desenha as sobrancelhas e
pouco a pouco o boneco vai ganhando uma imagem bem definida que, para o narrador
reflexivo do conto, o prprio seringueiro. Ou seja, o sertanejo esculpe o boneco a sua
imagem e semelhana.
Logo depois de confeccionado, o boneco amarrado numa jangada para descer rio
abaixo. Enquanto desce, os trabalhadores, alm de lanarem ofensas, atiram nele e o
apedrejam at que percorra todo o rio.
O Judas utilizado como uma autossabotagem do sertanejo, que, por necessidade,
aceitou se mudar do serto baiano para o serto amaznico, acreditando que l encontraria
condies melhores de vida, mas acabou se vendo preso, desgraado, esquecido e
derrotado pela imensido da floresta. Nos trechos selecionados a seguir, podemos entender
como o narrador conduz a histria a esse ponto de expiao do sertanejo:
Ali seguir, impassvel e mudo, estoicamente, no grande isolamento da sua
desventura.
Alm disso, s lhe lcito punir-se da ambio maldita que o conduziu queles
lugares para entreg-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o
iludem e este pecado o seu prprio castigo, transmutando-lhe a vida numa
interminvel penitncia. (CUNHA apud LUCCHESI, 2011, p.122)
um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito sua imagem. Vinga-se de
si mesmo: pune-se, afinal, da ambio maldita que o levou aquela terra. (In:
LUCCHESI, 2011, p.124)

O narrador do conto que, como vimos nas passagens anteriores, conduz o leitor,
atravs de intensas reflexes, at a degradante histria dos seringueiros, tambm parcela
sua narrao em uma sofisticada ironia. Ou seja, o mesmo trabalho de desmembramento do
narrador realizado por Euclides em Os sertes, ocorre em Judas Ahsverus. Nesse caso,
seu narrador multiperspectivado assume um olhar reflexivo e outro irnico.
O narrador irnico de Euclides se incomoda com o abandono dos trabalhadores da
regio e satiriza o desmazelo da terra de ningum em que nem Deus consegue alcanar.
O Deus dos sertanejos apresentado pelo narrador com uma imagem humana, toma forma
de um homem que feliz por ter seu filho, Jesus Cristo, ao seu lado e no entre os homens,
na terra.

Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e


despeado das insdias humanas, sorri, complacentemente, alegria feroz que
arrebenta c embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias
tristes. (In: LUCCHESI, 2011, p.120)

As crticas irnicas a Deus se repetem vrias vezes, como por exemplo ao insinuar
que a Amaznia um territrio capaz de afastar sua presena: [o seringueiro] um
excomungado pela prpria distncia que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus
no podem descer at queles brejais, manchando-se. Ou seja, para esse narrador, Deus
grandioso demais para estar presente entre os seringueiros e ali o poder dele no existe,
alis, nada existe l, s os seringais, os seringueiros e uma imensa floresta. A nica lei a
da sobrevivncia.
A lenda do judeu errante possui vrios desdobramentos, mas sua verso mais
comum diz respeito a um sapateiro que vivia na poca de Jesus Cristo. Segundo a histria,
Cristo, no dia de sua crucificao, teria parado para descansar em frente porta do
sapateiro Ahsverus, que de forma rspida gritou: Caminha!. Naquele momento, Jesus
teria dito ao sapateiro que a sua caminhada estava chegando ao fim, mas que a do sapateiro
seria infinita. Segundo a lenda, o judeu caminha errante at hoje, esperando a segunda
vinda de Cristo para finalmente se livrar de seu castigo.
O Judas Ahsverus de Euclides alcana dois desdobramentos de significado
distintos, ora um traidor como Judas, j que foi trado por sua prpria ambio, ora um

judeu errante, condenado a uma triste sina em meio ao trabalho sem repouso. A
concentrao desses dois tipos histricos num s personagem, o seringueiro, a marca de
quo desumana a sua vida.
Apontamos tambm outro dado irnico dessa narrativa euclidiana. Durante o
apedrejamento do boneco, os sertanejos clamam: - Caminha, desgraado! (CUNHA,
apud LUCCHESI, 2011, p.126). Os trabalhadores, presos nos seringais, descontam toda
sua revolta de uma vida amarga naquele boneco e tristemente o comandam a caminhar,
quando o caminhar no pode ser feito por eles, escravos de suas prprias ambies, presos
na floresta.
Tematicamente, o conto dividido em trs partes, demarcadas pelo sinal de
asterisco pelo prprio Euclides. Na primeira, o narrador conta o drama dos trabalhadores e
seu abandono; na segunda, o narrador toma conscincia de seu reflexo no boneco feito por
ele; na terceira, reflete sobre a misria daquele povo e seus desdobramentos.

Texto polido
Pode-se dizer que Judas Ahsverus representa uma diferenciao na esttica
textual euclidiana, visto que o texto apresenta uma forma mais simples de comunicao a
partir da escolha de vocbulos de uso corriqueiro, porm ainda consegue ser incisivo no
pathos impresso na passagem de informao para o leitor. Euclides abandona nesse texto o
vocabulrio requintado e o excesso de adjetivos, mas estiliza sua escritura de tal forma que
consegue manter o pathos de sua potica textual.
Percebemos que ainda existe na construo da narrativa euclidiana a estratgia
fundada em Os sertes: o tropel lingustico seguido do clarim solitrio, expresses
usadas por Secchin j referidas anteriormente. Veja como se configura essa estrutura no
trecho abaixo de Judas Ahsverus:
Mas no se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revs do italiano
artista, no abusa da bondade de seus desmandando-se em convcios. mais
forte; mais digno. Resignou-se desdita. No murmura. No reza. As preces
ansiosas sobem por vezes ao cu, levando disfaradamente o travo de um
ressentimento contra a divindade; e ele no se queixa. Tem a noo prtica,
tangvel, sem raciocnios, sem diluies metafsicas, macia e inexorvel um
grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida da fatalidade; e submeter-se a
ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria
um esforo intil. Domina-lhe o critrio rudimentar uma convico talvez

demasiado objetiva, ou ingnua, mas irredutvel, a entrar-lhe a todo o instante


pelos olhos adentro, assombrando-o: um excomungado pela prpria distncia
que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus no podem descer at
aqueles brejais, manchando-se. No lhe vale a pena penitenciar-se, o que um
meio cauteloso de rebelar-se; reclamando uma promoo na escala indefinida da
bem-aventurana. H concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, mais
numerosos, e, o que se lhe figura mais eficaz, mais vistos, nas capelas, nas
igrejas, nas catedrais e nas cidades ricas onde se estadeia o fausto do sofrimento
uniformizado de preto, ou fulgindo na irradiao das lgrimas, e galhardeando
tristezas.
Ali seguir, impassvel e mudo, estoicamente, no grande isolamento da sua
desventura. (CUNHA apud LUCCHESI, 2011, p.121)

A forma potica de organizao textual de Euclides se mantm em Judas


Ahsverus, mas, como comentamos, o escritor atenua o uso de adjetivos, compondo um
texto linguisticamente mais sucinto, porm com a mesma fora dramtica.
Nesse caso, a linguagem de Judas Ahsverus recebe o polimento das arestas de
suas palavras em excesso ou extravagantes e, na medida certa, o drama sertanejo
empregado.

Referncias:
ARRUDA, Maria Olvia Ribeiro de. O mecanismo vitimrio em Judas Ahsverus. In:
Informativo tcnico-cientfico Espao. n.32. Rio de Janeiro: INES, 2009. p.29-33.
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA Euclides da Cunha. So Paulo: Instituto
Moreira Sales, 2002.
CUNHA, Euclides da. Euclides da Cunha - coleo melhores crnicas. LUCCHESI,
Marco (Org.). Rio de Janeiro: Global, 2011.
______. Os sertes Campanha de Canudos. So Paulo: Ateli Editorial, 2002.
______. Euclides da Cunha: poesia reunida. BERNUCCI, Leopoldo M.; HARDMAN,
Francisco Foot (Orgs.) So Paulo: Unesp, 2009.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A geopotica de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2009.
ROSSO, Mauro. Escritos de Euclides da Cunha - poltica, ecopoltica, etnopoltica. So
Paulo: Loyola, 2009.
VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha -- esboo biogrfico. In: CARVALHO, Mauro
Cesar & SANTANA, Jos Carlos Barreto. (ogs.). Retrato interrompido da vida de Euclides
da Cunha. So Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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