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Somos Contemporâneos Do Impossível

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Somos Contemporâneos

do Impossível – Uma
apresentação
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 27 DEZ 2017
80

PARTILHAR



S omos contemporâneos do Impossível desdobra-se em quatro grandes

frentes: I. Uma casa no Mar, II. A habitação do gesto, III. Fundamentos do


Eco e IV. Corpo em queda. Cada uma destas partes faz sistema com um todo
orgânico. Neste todo orgânico, há um espírito que aí encarna, que aí se
incorpora, e o dota de uma alma que habita a forma especial deste corpo
existir. A geografia peculiar do sentido de José Anjos raras vezes é directa,
nem é de compreensão simples ou imediata. O mundo que lhe serve de
referente não é “real” nem primária nem o mais das vezes. Não o é, pelo
menos, numa primeira leitura, que se quisesse rápida ou desatenta.
Não o é também, porque a própria realidade objectiva, material, visada de
modo literal, no indicativo, é já uma construção complexa resultante de
despojamento, abandono, desaparecimento, morte.

O horizonte poético de Somos Contemporâneos do Impossível abre-se numa


dimensão extrema da vida, onde tudo é radicalmente problemático.
Tendencialmente, o ser do sou eu é extremo e vive a fazer espargata entre o
horizonte de um passado havido (que não é já habitável) e o horizonte de um
futuro por haver (que não está ainda à nossa disposição). Ambos fixam-se em
projecções. O passado deixa uma marca indelével em nós. Não o recuperamos
tal como terá acontecido. Tem uma vida independente no nosso espírito. As
impressões que foram no passado deixadas em nós permanecem, mesmo
adormecidas, à espera de nós na hora da nossa morte. São mutantes e
metamorfoseiam-se. O futuro resulta muitas vezes da nossa capacidade de
imaginação e fantasia para criar ficções, fora do âmbito da realidade, onde
viver poderá ser possível.

Entre os escombros da memória e a fantasmagoria do futuro: real, onírico,


ficcionado, o “si mesmo” procura um protagonismo que parece só ter de facto,
mas não de iure. Todas as formas, outrora salientadas do plano de fundo da
vida, encontram-se assim, imersas, latentes. Um acontecimento do passado
pode durar uma véspera, a véspera de Natal, por exemplo. E, contudo, é
trabalhado pelo olhar interior e ciclópico da vida, acabando por transformar o
que quer que tenha acontecido: descobertas, invenções, modos de ser nossos e
dos outros.

Ao passado só podemos aceder por processos complexos de melancolização


de horizonte, exumação da existência das pessoas que aí estiveram connosco,
reinvenção de cidades inteiras, antes vivas e, agora, fantasma. Os referentes
podem ser os mesmos, mas o seu sentido, a sua conotação, é produzido pelo
ser poético que os revisita, ou antes, que os recria, dando-lhes significação.

Nada já existe como era. O eu passado foi-se para sempre e com ele todos os
que tratamos por tu. A entidade “nós” é irrecuperável como foi. Tudo se
desmorona continuamente, existindo como ruínas, sob a acção (e na
dependência) de uma memória afectiva e uma protensão de futuro que se
projectam entre nós e o presente, resultante de uma incapacidade real para se
poder ser, nos aguentarmos, conseguirmos estar vivos.

A constituição do presente, do passado e do futuro implica assim uma abertura


a um horizonte que neutraliza, tanto quanto tal é possível, o facto da realidade
e afirma exclusivamente a existência de significados. O referente existe em
face da presença de espírito do poeta e, enquanto tal, parece existir de forma
ainda mais presente do que todas as actualidades para o ponto de vista natural
que lida apenas com realidades: situações, circunstâncias, conjunturas: coisas,
pessoas, os próprios, as geografias das nossas vidas reais, o passado, futuro e
o presente como achamos que são na realidade.

Mas este referente implica-se totalmente num (está absolutamente dependente


de) um sentido. A exploração poética, a criação de um poema, é a produção
do único horizonte de habitabilidade num mundo de escombros, num presente
que lhe é devedor, num futuro que se perspectiva, no limite, como o lado
negativo de um diapositivo em que a vida foi visivelmente a ponta de um
iceberg, mas com uma base invisível, que é forma e fundo de todas as
possibilidades não encaradas, muito menos concretizadas.
Em UMA CASA NO MAR, José Anjos abre o jogo. Lemos a descrição do
tempo. Os verbos de movimento representam o ser. Topamos com as
geografias complexas da superfície e da profundidade, constituídas em
significado. Aqui, o regresso é apenas mental. Dá-se conta da sua
irreversibilidade temporal. Identificamos a primeira ligação entre carne e
espírito, corpo e alma.

Em Ecologia Fenomenal, a casa onde o tempo nasceu, podemos compreender


como a lógica corresponde a uma tentativa de criar uma compreensão do
sentido, no interior do habitáculo do humano, no seu nicho ecológico, no seu
habitat natural. Mas também aqui se esboçam formas de compreensão para
comportamentos e relações humanas que existem em prol de uma agenda que
é tudo menos pragmática. A luta diária esforça-se por ser um combate contra a
possibilidade da ininteligibilidade e, por vezes, da loucura. Os tópicos são
para Anjos operatórios e não apenas paisagens descritivas da sua poesia.

Em causa está a criação de uma semiologia, de uma regra simbólica, que


permita, ao mesmo tempo que está a ser inventada, descrever a própria
realidade embebida em horizontes complexos de significação. O tempo é a
dimensão em que cada um de nós nasce. É cada um de nós na sua
singularidade individual. O tempo não é de um “eu” em que cada um caiba.
Sou crónica e definitivamente temporal. Sou tempo. O tempo não é geral e
universal no sentido em que é uma sequência a perder de vista para todo o
sempre: a noite do passado, o presente, a noite do futuro. Antes, o tempo em
que cada um nasce, a poder dizer “sou eu”, mergulha em si a casa onde se
nasceu e na verdade é à escala mundial. Não apenas existe espalhado pelo
mapa da sua existência. Ou antes, existe à escala universal. Este tempo de que
cada um “sou” é portador tem como atmosfera inaugural a infância. A sua
sequência é a da passagem. Ora toda a passagem é irrepetível, porque é
irreversível. Nada é ultrapassável.
“no lago submerso

da infância

há uma casa habitada

pelo tempo que ficou

pendurado

na memória de um lugar

infinito sob os degraus”

(17)

Os primeiros instantes não são biológicos. São oníricos como todo o passado
recuperado por uma memória afectiva e não cognitiva. Melhor, recuperados
por uma memória simbólica:

“voo inaugural do sonho e

do corpo itinerante da cidade

empurrado pelo pulso de um remo

nas águas proibidas”

(15)
Numa tensão com a possibilidade de não vir a ser ou, sendo já, com a
possibilidade de vir iminentemente a deixar de ser:

“depois do terror de quase ter desaparecido

sem ter perdido a lucidez”

(Ibid.)

Todo este espectro de sentido é um excesso relativamente ao que muitas vezes


surge designado por “paredes”. A realidade material de uma casa é tão
diferente, quando é tornada tão própria pela nossa habitação e partilha dela
com outros. E é tão estranha, quando comparamos essa mesma casa habitada
por nós com a casa que agora é: outra, alienada, estranha. Basta estar à venda
e ser visitada por estranhos, ser habitada por outras pessoas ou já só um andar
em ruínas:

“são memórias que transbordam como terra de um vaso

forçado à entrada do futuro em visita

ao seu próprio nascimento

repetido

discreto, vezes sem conta

– escoando pelas horas para dentro da casa


de onde nasce e ao mesmo tempo

deixa de pertencer”

(Ibid.)

O tempo da visita à casa sc. à infância escoa do lado de fora para o lado de
dentro. É um fluir contínuo e discreto. Cada nascimento pode ser
compreendido como cada visitação possível ao passado, pela chegada do
passado até nós. Como pode ser entendida a compatibilidade do esquema da
existência em geral com o facto de cada um de nós ter só uma vida e esta ser
individual, singular? Cada ser humano encerra em si a marca do ser da vida e,
por outro lado, é individual, único, singular. Cada um de nós existe desde
sempre num escoar de fora para dentro e de novo de dentro para fora. A vida
dá definição aos contornos dos corpos, em movimentos basculantes,
oscilatórios, como um baloiçar sobre o posso do abismo. O escoamento, a
infiltração, fomentam fantasmas negros. O envelhecimento é o tempo em que
nos sobrevivemos a nós próprios. Ao envelhecemos, compreendemos que
sobrevivermos a nós próprios. Tudo o resto fica alagado por esse significado
do tempo inescapável.

“a cada nascimento produz-se um som tão definido

como o contorno de um corpo que perde volume

entra e sai da casa

como um baloiço sobre o poço (cada vez mais visível)

dos anos que se infiltram através das paredes


um fantasma negro

um bolor que cresce na carne até ser só carne e peso

e corpo que já não sabe ser corpo e que atira o corpo

e espírito ao chão

o tempo envelhece a casa

dentro do homem

como um visitante irreversível

até que nas paredes esboroadas

se abrem janelas lençóis esvoaçantes

por onde a vida inteira sai disparada

numa só respiração

frágil e determinada

como a flecha que o vento roubou das mãos de uma criança

para ir morrer dentro da árvore

infância:
lugar que esquece o sobrevivente

sem se fechar

nem o deixar sair”

(18-19)

Se o poema inaugural marca o princípio do fim, em PALÁCIO descreve-se,


de alguma maneira, um desses momentos em que caio em mim à lupa: “entrar
para dentro de mim” é ganhar a “nitidez dos contornos que se habituam/ à
escuridão”, “devolver à luz baça da cozinha o seu amor pelas manhãs de
sábado”, “as manhãs violentas e doces assim – com a sede/ à boca do leite e
da manteiga” (20).

Na lógica dos dias, sábado é o dia partilhado com a família, mas que é sempre
diferente de domingo. O domingo é antes de segunda-feira. A segunda-feira já
exerce pressão sobre nós. Sábado, pelo contrário, vem depois de sexta-feira e
faz corpo com ela. É um dia com tempo. Está ligado ao verão da infância ou
da primeira juventude:

“sinto a fragrância quente da tarde a tentar morder a penumbra

do meu quarto no verão”

(21)

As partes do dia de sábado são entidades complexas que fazem um sistema


orgânico e com um sentido de tempo que nos constitui. O acesso a esse
passado, não necessariamente o acesso a essas memórias (porque as memórias
despertam quando o passado se acende, intrometendo-se entre nós e a
actualidade real) resulta de uma canalização, de uma sintonização, com o
havido de mim naquelas situações e circunstâncias. É como se ficassem
acesos ou iluminados dias e dias de sábado da minha infância e juventude,
perdidos para a escuridão:

“que penetro sem dor

sou como se respirasse uma leve brisa

que se acende e me faz entrar

por portas sublimes

até descobrir os sítios onde não sou

mas ainda consigo estar”

(21).

As portas não são metáforas para entrar ou sair, prender ou soltar. São os
operadores activos que coincidem e estão sincronizados com o acesso. É
complexa a condição para a lucidez despertar o haver sido, o ser e o haver de
ser no horizonte da significação, do sentido. Não se trata aqui de
possibilidades físicos que nos permitem transitar para espaços contíguos em
geometrias simples. São portais que dão para dimensões de significação que
não estão disponíveis para um olhar desprevenido ou ingénuo. E ao falar de
canais devemos entender não a simples sintonização de um posto de rádio ou
canal de TV, mas um meio de transporte telepático que encosta a nós
dimensões mediúnicas que nos fazem entrar em transe, numa êxtase
compreensiva sem nos fazer perder inteiramente na loucura da
ininteligibilidade.

Em A ESTE VERÃO lê-se uma descrição desta êxtase centrífuga inteligível:

“há uma criança que corre pelos campos

deixa-se levar pelo tempo

como uma gazela caça o caminho

foi um lugar que me esqueceu

mas é impossível reduzir a produção do sol

a uma janela só”

(22)

Tal como em EXPLICAÇÃO DE UMA TEMPESTADE, há uma cristalização


do domingo obtida por uma revisitação da cadência própria, do ritmo
entediante de Domingo:

“bátegas que embatem contra

a parede lenta de domingo

desfazendo-se com a brevidade


de um pássaro acabado de voltar

a casa pedindo

para entrar no texto

como o vácuo pelo ar”.

(24)

Nos três NOCTURNA, identificamos a contradição paradoxal que anima o


significado que se projecta sobre a realidade objectiva, existência em e por
si que não é independente da realidade da subjectividade poética. Antes,
depende inteiramente dela para dizer a impossibilidade da habitação: o peso
do desaparecimento, a plenitude da morte.

A estratégia poética é a de alterar campos sensoriais e campos semânticos com


um referente complexo já na rede de sentidos e significados, onde não há
factos nem realidade. Um facto só existe pela anulação e neutralização
paradoxal do que é já acamado num sentido. Um facto esvaziado de sentido
tem ainda sentido, no limite é irredutível para um sujeito. É possível obter esta
nudez de todo o revestimento de sentido a respeito de tudo quanto acontece a
cada uma das nossas vidas. Mesmo até quando há diferentes pessoas a viver
na mesma casa e a partilhar as mesmas horas, o sentido de “a mesma casa”,
“partilhar as mesmas horas” pode ser intradutível por cada pessoa para cada
outra pessoa. Sobretudo, quando a diferença é apurada no ser que faz de cada
sou uma singularidade absoluta, expressa, por exemplo, em formulações como
“morada exacta do tempo” (30) ou o próprio título do poema JANELA
IRREVERSÍVEL (31).

Em NOCTURNUM, declara-se essa atmosfera:


“há um silêncio dentro desta casa que rasga

o manto de tranquilidade que deixaste para trás

nesse silêncio a casa resume-se ao sonho

de uma escuridão exterior – como se não tivesse portas

mas medo em vez delas

só uma réstia de luz derrama ainda

a consciência infinita de uma infância sonhada

entre estas quatro paredes

que agora se fecham nos meus pulmões

uma penumbra irreal desmaia

esmagada pelo peso da tua mitologia

é um silêncio inflamável, tempestuoso, que traz a aridez líquida

de um quadro pintado há muito tempo

escuro como a noite que nasceu do teu leito

e cai agora ao meu lado estremecendo

já sem qualquer espanto”


(25)

“Silêncio”, “manto de tranquilidade”, “sonho”, “escuridão exterior”, “sem


portas”, “réstia de luz”, “quatro paredes fechadas”, “penumbra irreal”,
“desmaio”, “esmagamento”, “mitologia”, “aridez líquida”, “noite”, “já sem
qualquer espanto”. A ambiência gótica pode despegar-se da casa em que nos
encontramos agora, por poder ser a mesma da infância. É a casa abandonada
pelas pessoas que lá viviam, por mim que lá esteve. Agora que aquelas
pessoas já não vivem e eu já não sou quem sou. Quem assoma o horizonte é
outro e sou eu. Pode ser uma memória que emerge no horizonte e visitamos
uma casa sem ninguém que era a nossa casa de infância. A casa e o prédio, a
rua e o bairro surgem mergulhados neste halo onírico que nos transforma
estruturalmente durante o tempo em que todo esse mundo perdido vem à
memória e nós vivemos efectivamente a memória. Perdemos a percepção da
própria realidade, ainda que possamos sentir frio ou calor conforme seja o
caso. Mas estamos completamente metidos numa dimensão estruturante do
passado que nos trabalha a partir do seu interior.

Em NOCTURNUM II lemos claramente:

“já não é uma casa

as divisões não são as mesmas

dentro delas o tempo sangra parado sobre mim

como uma recordação ferida

as horas que compunham o conteúdo dos dias


perderam o seu significado

por entre paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento

a casa perdeu a sua definição

onde antes era casa é agora outro lugar

embora com feições semelhantes e ainda a mesma

regra de tijolo, madeira e linho

materiais despidos de uma realidade que desapareceu

cofres de memórias apenas visíveis pela sua ausência

nos interiores demasiado amplos, demasiado obsoletos

para conter o deserto que agora esvazia a casa por dentro

como uma nuvem ardendo

depois da tempestade

a casa onde nasci era um ventre que se fechou

numa só madrugada

agora

há uma porta que se abre


para nada”

(25-27)

“Já não é uma casa”, “as divisões não são as mesmas”, “as horas que
compunham o conteúdo dos dias perderam o seu significado”, “paredes
trespassadas pelo seu próprio esquecimento”, “casa sem definição”, “antes
casa, agora outro lugar”, “materais despidos de uma realidade que
desapareceu”. Agora/ há uma porta que se abre para nada. A conclusão
preparada pelas premissas Nocturnum I e II vem agora sem apelo nem agravo,
a realidade pura e dura da atmosfera peculiar que habitamos em
NOCTURNUM III:

“este lugar só agora existe

no futuro, é uma ruína

este lugar não existirá e será

para sempre uma casa

que o tempo trancou

chovendo à sua volta

sem parar”

(28)
O Futuro existe, mas aparentemente trancado, sem conteúdos inovadores ou
sem a possibilidade deles. Não há vasos comunicantes nem um canal de
sintonização que permita compreender que a cada instante a realidade do facto
puro e duro, em bruto, é a única coisa que estará presente no futuro a haver.
Mas, nesse futuro, as paredes não falarão connosco. Serão paredes habitadas
por outras pessoas, gente estranha, que nunca poderá perceber como é que
dentro de paredes as histórias falam para quem as olha mas são diferentes
quando outras gentes as habitam.

Quando lemos UM COPO DE VINHO DA CASA, estamos já no universo


poético onde há só sentido, significação, e o que possam ser factos ou a
própria realidade só podem ser detectados a partir do esforço de cair na
própria realidade ou então quando o sortilégio poético nos abandona e
desaparece, fechando a sua dimensão.

Perdemos a sintonização. Quem aparece como gente surge a um ponto de


vista dissociativo.

“e inundaram as praças de gente provisória e outras só casacos

ainda rígidos pelo repouso da obrigação

gente em cujo movimento fresco habitei contigo a vontade

– que tomei de empréstimo –

de descobrir o que sou sem saber qual a direcção

gente aos magotes toda unida (nós também)

na reinvenção diária da escolha


que tínhamos conquistado por direito e por dinheiro

Quem é esta gente?”

(29)

“Gente provisória” como eu que habitei a “vontade que tomei de


empréstimo”. A descoberta de quem se é dá-se à custa de não se saber “qual a
direcção”. “[G]ente aos magotes”- não em conjunto- a reinventar diariamente
“a escolha conquistada por direito e por dinheiro”, ou seja, por tudo aquilo
que não permite, genuína e autenticamente, fazer escolhas ou tomar opções.
Esta gente não consegue sequer vislumbrar a hipótese hermenêutica que na
verdade se constitui como um processo ou um encaminhamento que está
plasmado em DE UMA JANELA IRREVERSÍVEL:

“A infância como possibilidade a perda da infância é a perda de possibilidade.

queria poder dar-te uma escada

para inverter o pensamento

tornar mais alta a distância

abreviar a infância inacabada

e o desaparecimento de todas as possibilidades”

(31)
“aí nesse sítio onde ainda era verão

vivias como um lugar sem lugar

como o silêncio vive por baixo

da chama”

(32)

A gente é adulta e não é já criança. A vida que perdeu a infância perdeu a


possibilidade. Viver é ver desaparecer todas as possibilidades. Não esquecê-
las, porque expor-se a elas é estar “nesse sítio onde ainda era verão” (32). A
infância descrita em O HOMEM ACRESCENTADO é uma praesentia in
absentia: a “morte uma longa irmã” (33). A casa da infância:

“um cristal de tempo

repetia-se todos os dias, rodopiando centrípeta

para dentro das supremíssimas cabeças

das crianças que conheceram o fortúnio – o tão legítimo fortúnio

de serem crianças sem o saber

ainda rodopia

talvez a tentar mudar


talvez a tentar fugir

talvez apenas eu já só force

a minha entrada

para a impedir”

(34)

Em II, na A HABITAÇÃO DO GESTO lemos uma meditação poética sobre a


expressão do sentido ou do horizonte de significação que é a própria
atmosfera que filtra a realidade. Esta parte analisa o sentido da semântica, a
relação complexa entre palavras e coisas, entre poema como constituição do
sentido e a realidade como o seu referente. em fingerspitzengefühl, lê-se

“procuro a porta a palavra

a fonte semântica

de todas as coisas”

(40)

E abre-se a porta à EXPLICAÇÃO DO POEMA que ainda não existe

“uma porta
uma chave para abrir

e outra para fechar

por dentro

a semente contínua de um gesto

a colher o homem

por fora, o eco

repetição interminável

de um corpo irrepetível

e o sonho de um gato depois de morrer

guardam a sua natureza

irreversível”

(41)

JOSÉ ANJOS (2017). Somos Contemporâneos do Impossível. Lisboa.


Abysmo. http://www.abysmo.pt/livros/94-somos-contemporâneos-do-
imposs%C3%ADvel
Somos contemporâneos
do impossível (Parte II)
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 28 DEZ 2017
46

PARTILHAR


O futuro é narrativo, não no sentido em que narrativa quer dizer pode

querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o
que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que
entroncam numa dimensão a haver.
A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa
consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio.
É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber
onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança
prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver
num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita,
proibida.

As narrativas da possibilidade projectam-se no próprio interior do poema em


construção, não são a sua formulação gráfica na escrita, na palavra dita. São a
própria constituição, concepção, produção poéticas. O narrar-se a si, o dizer-se
a si como é consigo, o contar o que se passou consigo são situações que
projectam cada si a quem lhe acontece ser na dimensão latente, não
descoberta, da profundidade da experiência fáctica da vida. Não se trata de
adivinhas interpretativas, estocásticas. É o próprio sentido da possibilidade
que está a assomar o horizonte. A narrativa da realidade é meramente
indicativa, usa o enunciado declarativo como meio de expressão. O seu
mundo pode existir sem ninguém. Pode resultar de um esforço, de uma
concentração, de uma atenção: técnica, teórica ou estética. Mas o narrar-se a si
que diz de si como é consigo no que se passou exprime a abertura activa e
espontânea da exposição possível à cadência e à vibração, ao ritmo e à
melodia no interior dos quais o significado ganha corpo de conteúdo.

Como se lê em A DESTRUIÇÃO DO GESTO

“é preciso pensar o poema sem pensar

o poema

já acabado sem ter existido

a vida só existe no seu próprio revestimento

para isso é preciso vestir o poema antes do poema”

(42)

Em DIÁRIO DE UM CORPO MENOR lê-se a forma específica em que o


poema é dado à luz. Espírito e o corpo da letra são o resultado de um debate:
“tento definir os seus breves contornos” (43). Os contornos do poema são
breves não porque tenha um corpo mínimo a ocupar espaço, mas porque a sua
dimensão é temporal e dura um abrir e fechar de olhos, um piscar de olhos
“até chover a sua própria carne” (Ibid).
“a nuvem escura de um poema

paira à minha frente

como uma pulga crepitando

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves

contornos

entre a certeza de cada salto

que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre

sombra

mordendo mordendo sempre

até chover a sua própria carne

um gesto visível

para quando

cair sobre a luz”

(43)
Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:

“o poema nasce da colisão

entre o projéctil tatuado por gestos e lugares

e o peito voluntário que lhe serve de alimento

fosse ele o seu momento seminal”

(44)

O poema numa das suas actividades possíveis:

“o poema fere mata desvela”

(Ibid.)

O poema descrito na sua camuflagem e dificuldade de ser agarrado:

“é difícil apanhar o poema no rasto do gato

que ainda vive em transgressão

ao seu mal intrínseco”


(Ibid.)

É existência dependente do leitor como o é do seu inventor:

“se o poema tem de morrer que não seja por dúvida

que seja por culpa e sentença de quem o lê”

(44)

É no poema que eu compreendo o haver sido abismal da noite eterna do


passado:

“sou a impossibilidade de olhar para trás

a distância toda antes do nascimento”

(45)

O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de
puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com
todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que
irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:
“o poema é só

uma face possível de veludo

na parede do problema”

(47)

“O poema nasce da colisão”, “o poema fere, mata desvela”, “anda no rasto de


um gato”, “se o poema tem de morrer que não seja por dúvida, que seja por
culpa e sentença de quem o lê”, porque quem o escreve diz na primeira pessoa
do singular: “sou a impossibilidade de olhar para trás a distância toda antes do
nascimento” e é quem tem, por isso, a consciência de finitude: “o poema é só/
uma face possível de veludo/ na parede do problema”. Não tem lugar, porque
o seu elemento é a viagem, depende de um pensamento que nos é oferecido,
líquido, fluído ou não. Servirá se “chegar a algum sítio”.

“um lugar sem lugar é o sítio onde acordei

a querer estar como se pertencesse

e existia

agora a minha cabeça explode como um barco no rio

afinal, o pensamento líquido só serve se para chegar

a algum sítio

foi tão bela a viagem mas temo que me tenha afogado


e o meu coração é agora um planeta, tantos são

os oceanos onde deixei viagens

por acabar”

(48)

O poema não é um conjunto de versos ou uma composição de um só verso,


numa formulação sintaticamente bem formada. Pode ser uma só palavra, pode
ser um verso, pode ser um conjunto de versos que procuram fazer sentido.
Mas um poema é sempre uma versão da realidade, uma versão de veludo que
é forma de um plano de fundo complexo. Como se todos os momentos auto-
biográficos de uma vida pudessem ser expressos por um poema do qual temos
apenas poemas avulso, episódicos, sem um fio condutor. Mais, como se cada
vida humana, em todas as gerações passadas, presentes e futuras tivesse um
único poema composto caleidoscopicamente de poemas avulsos, episódicos
sem fazer sentido nem composição, para além do que compreendemos deles:
serem dados auto-biográficos de uma narrativa de futuro a haver sem
concretização real.

“sei que tudo é pontual

mas tem de haver uma frase para se chegar ao ponto

o que pressupõe sempre a construção de um texto:

dos pontos usufrui-se a percepção da viagem

o seu sentido pleno


sem frases não haveria pontos

e é impossível ler para trás

isso seria a própria definição de peso”

(48)

“todos os livros

sejam viagens sólidas por acabar

talvez seja essa a proposta que me resta navegar:

a construção de um sentido líquido

o único possível?

para conquistar um porto não definitivo

o resto resolve-se em conjunto”

(49)

Em III, sob designação de FUNDAMENTOS DO ECO, symposium ou a


invenção da distância, encontramos uma expansão dos elementos
fundamentais de I e II, o mundo próprio e a vida, por um lado, e a expressão
desse mundo e dessa vida tal como a semiótica e a significância os conotam.
O referente não existe em si, mas sob a dependência do horizonte poético. Um
poema é a unidade mínima não apenas da expressão ou da descrição do que
acontece, mas fundamentalmente do próprio sentido. A realidade é uma
parede, um fundo superficial ou profundo, com uma topologia complexa.

Tudo existe alicerçado no tempo irreversível da existência.

Sem poema, não há realidade poética. Sem realidade poética, há factos. A


realidade pura e dura depende de um mundo criado por um irreducionismo
sem ponto de vista. A vida sem poesia é dada a ver para um ponto de vista que
tudo perspectiva a partir de nenhures (Thomas Nagel) ou é uma vida pensada
por ninguém (Husserl). A narrativa resulta da reconstrução ou da prefiguração
que dá forma às figuras do passado e do presente, num lance que se projecta
em antecipação como realidade possível e nunca como facto. Habitamos a
possibilidade e, por isso, é que há impossíveis. Nunca há a realidade do modo
indicativo, tendencialmente desprovida de possibilidade, simplesmente
objectiva.

“é preciso regressar ao fundo do abysmo

sem o deixar ganhar

até onde vamos para entender o desaparecimento?”

(53)

Agora aparece uma possibilidade extrema de nos relacionarmos com outro,


num sistema complexo de antecipação que paira em suspenso sobre o vazio,
onde as falas são inventadas a cada instante, as conversas requeridas por dois
a serem um com o outro como possibilidades e não realidades. Esta
possibilidade de ser um com outro é a que inventa um futuro, porquanto o
próprio si está encerrado na cápsula do seu tempo e, quando muito, reage
como reflexo ao reflexo da realidade dos outros, que existem apenas como
impressões. Ora as impressões, mesmo que indeléveis, são impressões. Foram
deixadas em nós. Podem ser alimentadas com a nossa imaginação e fantasia
ficcionais.

“sim, o futuro existiu na distância percorrida de um para o outro

entre o gesto e o eco que o espelho devolvia secretamente

carregado de partículas geradas por essa impossibilidade

que os anos, morrendo à distância, vieram ridículos

a chamar de paixão”

(54)

A distância percorrida de um para o outro: gesto, eco, são fundidos como


reflexos de quem gesticula ou de quem fala, sempre para outro. O próprio
reage ao gesto ou ao eco do outro como reflexos num espelho que nunca é
visto como espelho, mas como a própria realidade. A reacção ao que aparece
no espelho é uma reacção ao próprio e nunca a um reflexo. Na paixão, como a
descreve Platão, é por nós que estamos apaixonados. Não é pelo outro. Isso é
imperceptível a quem olha. Não percebemos que somos nós lá plasmados no
outro.[1]

(continua)

[1] Shakespeare na Comedy of Errors, põe Antifolo de Siracusa a dizer: “Call


thyself sister, sweet, for I am thee. Thee will I love and with thee lead my life:
Thou hast no husband yet nor I no wife. Give me thy hand.”
Somos Contemporâneos
do Impossível (Parte III)
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 29 DEZ 2017
34

PARTILHAR


E m VASOS DE GUERRA “homens como nós” são descritos como

“nascidos do que perdemos/ e ficámos – guardadores de lugares/ calados por


dentro”” (55) e em RETRATO PÓSTUMO lê-se “tudo morre, só o nada é/
para sempre” (58).
O título MELANCOLIA DA CATÁSTROFE expande o próprio conceito
“melancolia”. A ambiguidade da expressão não permite decidir inteiramente
se é a catástrofe o objecto da melancolia ou se é o seu sujeito. É o carácter
paradoxal da formulação extrema a possibilidade de melancolia. Podíamos,
numa primeira aproximação, achar que a melancolia é uma lembrança de bons
tempos, de uma doce saudade do que já passou. Mas faz parte da própria
melancolia a compreensão de que o pior de tudo por que passamos, com a
distância do tempo, fica filtrado de tal maneira que é doce a sua memória.
Sentimos saudades do que passamos. Assim também acontece aqui com a
catástrofe. A perda da esperança é a perda de
“uma cobra esguia

o tempo irrelevante para a pedra que cai”

(60)

A esperança tem vários motivos. Um dos mais poderosos na vida humana é a


chegada do outro com quem nos encontramos. Tu que:

“representavas a esperança de uma possibilidade de passado

o afecto que abre as portas ao comércio

na cidade que ainda acredita”

(Ibid.)

A melancolia é a esperança de uma possibilidade de passado, um passado que


é invocável pela memória cognitiva. Podemos até ter documentos e
testemunhos desse passado, mas não sabemos regressar a ele sem o esconjurar
na vibração modal que nos canaliza para lá, que nos abre o portal de acesso
afectivo e emocional para a sua dimensão característica. A possibilidade não
havida angustia. Vivemos entre um passado a que não acedemos na sua
dimensão modal, vibrante, afectiva, emocional, um presente que é prefigurado
por esse haver sido, e um futuro que não admite tal como não admite o
passado nem o presente qualquer conteúdo que não o da angústia.
“angustiado por essa memória de uma possibilidade

de uma só possibilidade, antes de morrer”

60

Em MIMESIS, em face dessa impossibilitação, o outro afinal não apresenta


nenhuma abertura, nem representa, na verdade, nada do tudo que
primariamente prometia. A esperança do passado é a esperança do presente e
a esperança do futuro. O outro dá sentido à vida por representar tudo. Mas o
outro, objecto e agente do amor, apenas é visto no que foi, quando já não está
connosco, quando é perfil sem conteúdo, horizonte vazio, projectado na, e
pela, distância.

“invenção da distância única definição de amor

que alguma vez consegui compreender

Uma distância que exprime o tempo irreversível da anulação da própria


distância, porquanto a realidade retira todo o carácter onírico ao objecto da
falta sentida, do desiderium daquilo mesmo que é a única coisa que quero ter.
Quando se aproxima, aproxima-se da realidade e afasta-se da sua
impossibilidade onírica, do sonho de amor. A realidade mata todo o amor.

e assim te dei por completo


e sem forma

de desistir”

(62)

Ou na formulação de DISCRONIA DE UM ENCONTRO:

“sentámo-nos na mesa toda iluminada de um só canto

acolhidos inesperadamente pela tua silhueta

recortada e familiar

mas só te vim a reconhecer muito mais tarde”

(63)

Só reconhecemos o outro num amor infeliz, perdido, ausente, irrecuperável.


Desse amor, não tendo nós a certeza de haver outro, não se recupera, não se
fica imune nem incólume a um coração desfeito. Mas simultaneamente há
uma diferença entre ter havido esse amor nas nossas vidas e não ter havido
esse amor nas nossas vidas, porque não somos os mesmos, apesar de virmos a
encontrar-nos na solidão de uma forma mais espessa e com contornos muito
mais definidos do que alguma vez conhecemos. A esperança da possibilidade
dá um sentido, direcção e orientação, que nos faz ser por aí além. Há futuro
escancarado, um futuro que transcende o longo prazo e por maioria de razão o
médio e o curto. Este futuro aberto pela esperança é simplesmente
possibilitante.

A mais completa descrição da melancolia da catástrofe lê-se n’O TERCEIRO


PASSO

“dantes não era assim

não havia esta proximidade

não estávamos lá

mas havia caminho

um caminho em tempo discreto perecível

o terceiro passo é o que já lá estava


do que ficou no fim

depois do resto

o próprio fim desaparecer

não temos consciência dele

só ele tem noção do seu próprio mistério

e consciência de nós

é passo paralelo contínuo impossível

nem é possível habitá-lo

não é caminho que percorras

mas que te percorre a ti

como se dele nascesses”

(68)

A proximidade de que se trata aqui não é o oposto da distância referida há


pouco. Esta proximidade é a tangência do fim, a aproximação “inexorável” de
quem habita a zona mortal na expectativa iminente de um impacto letal.
Agora, não há caminho, quando “havia caminho”, ainda que em tempo
discreto, episódico e perecível. O terceiro passo é o passo final, na contagem,
o momento do princípio do fim, do desaparecimento.
“Só ele tem noção do seu próprio mistério” (68), só ele “tem consciência de
nós” (Ibid.). Ou seja, não razão nenhuma para se pensar que só começa a
acontecer a partir de determinada altura da vida e não que esteja desde sempre
já a acontecer, lá desde o fundo da infância. Ainda que nós não tivéssemos
tido noção dele ou não tivéssemos pensado na noção que pudéssemos ter tido
dele, é ele que nos tem a nós, que radioscopa e radiografa a nossa vida.
Caímos na consciência do fim, porque ela nos é dispensada pelo seu próprio
mistério.

A configuração deste ser no encaminhamento do desaparecimento não é


exclusiva da subjectividade poética, nem é particular ou individual. Constitui
o nosso sermos uns com outros. A acção deste ser, a sua particular actividade,
que nos implica desde sempre nos outros não é anulável e tem características
complexas. Elas estão expostas em SUBROGAÇÃO DAS SOMBRAS:

“o predador de sombras é também refém

da vida projectada dos outros

o estranho que se detém perante a fotografia abandonada

que lhe dá

e ganha vida

enquanto novo sujeito no destino aleatório

da contemplação

alguns objectos representam


a vida no seu sentido adjectivo

sendo da mais elementar ciência que a vida é o único

absoluto substantivo que não perde a sua qualidade

quando tornada objecto

perante o homem ilustrador”

72

O que temos um do outro dos que são nossos, nos constituem o âmago do
nosso ser, sem os quais não seríamos nós, a não ser outros insuspeitados?

Somos sombras uns para os outros. O que quer dizer que não temos nem
relativamente a esses coincidentes connosco acesso à pessoa ou ao si mesmo
deles. Temos não apenas a fachada, o rosto e os seus infinitos cambiantes,
expressões e jogos faciais, o corpo trabalhado pelo tempo desde a infância até
à velhice, os estados de alma, a maneira de ser, o jeito, a forma, a
personalidade e tudo isso é ainda sombra perante o abismo do outro quando se
converte em mistério. Até quando existe como agente de fascinação e
encantamento, o outro é sombra, projecção do exercício do fascinante e do
encantamento que se abate sobre mim.

Podemos ser agentes provocadores de fascínio, impressão e encantamento no


outro e o outro é o sujeito metamorfoseado no seu interior. Mas nas
possibilidades extremas da fraternidade, da amizade, da filiação e da
paternidade, nos mais diversos graus de parentesco, há sempre esta projecção
de nós sobre os outros e dos outros sobre nós a maquilhar as personalidades,
os protagonistas, destas afecções. Tudo não é senão qualidades, modificações,
alterações, transformações da vida em nós.

É a vida de que somos portadores quem é o grande protagonista, o destino, a


sorte, o sujeito dos sujeitos do próprio e do outro, da intersubjectividade
contemporânea e entre gerações. Este mega sujeito produz sujeitos e, neles, a
consistência permanente do tempo sequencial, transitório, irreversível da
passagem.

“talvez a repetição seja a nossa grande criação”

86-87

IV CORPO EM QUEDA, a identificação da dificuldade de ser, quando não se


aguenta, não se é capaz e não pode, projecta outras possibilidades ou então
somente a possiblidade de não ser impossível. Mas o que une as sombras
substitutas é a sua relação recíproca de sub-rogação e cada um é substituto de
si próprio e há substitutos dos outros para o próprio.

“escapar, apenas

para descobrir
que a sua verdadeira

prisão

é a impossibilidade

de regressar”

136

Na odisseia que é a descoberta de si, de onde se zarpa e onde ser aporta, como
“loci” da poesia dependem da viagem. Uma viagem nunca é uma deslocação
no espaço. Podemos também nunca sair de uma mesma localidade e sermos
no fim da vida mutantes do que fomos no princípio.

“na invenção da distância a morte

foi disparada à nascença

para se percorrer em várias direcções

ao mesmo tempo

fio e caminho tenso esticado

vibrando toda no rombo do passo”

(126)
Um dos riscos corridos na odisseia que depende da abertura do próprio
horizonte de sentido ou, antes, do origem e fonte do próprio sentido, é a
descoberta da totalidade a perder de vista da essência das coisas (DE RERUM
NATURA )

“comecei por escrever o que se passava comigo e terminei

a escrever o que não se passava

uma forma de descobrir a verdade

onde ela já não existia

(142)

Conhecer-se a si próprio é a realização do poema escrito como descrição da


antecipação e invenção da possibilidade ou da sobrevivência à
impossibilidade. A única vida possível é a acrobacia sobre um arame que está
a ser tramado e esticado e ao mesmo tempo percorrido. A vida é assim,
sempre, a descrição do fecho, da impossibilidade de regresso à infância onde
localizamos temporalmente quem fomos no princípio e com a possibilidade
que o princípio oferece. Agora, a vida dá a compreender o fecho ao presente e
ao futuro.

Neles só nos instalamos extaticamente na dimensão do tempo dimensionado


no sonho. O poema é o produto do sentido, da conotação, do significado. Eu
convertido em conteúdo de poema sob pena de não obter compreensão para
mim. A verdade é produzida pelo sentido e não é um facto, ainda que se faça a
experiência da não anulabilidade desta experiência de sentido. A verdade só
vibra na melancolia da catástrofe.

“não antecipei a tua morte

sou eu

aquele que devia ter desaparecido

e não tu”

(145)

Será sempre a vida abortada por ausência de outrem?

O ostracismo é o sentido ao pé da letra da navegação figurada. Não se sai de


onde se está, ainda que nos possamos deslocar no espaço. Nunca se regressa,
porque somos diferentes e os outros e os sítios distinguem-se pela
metamorfose do tempo. E se nunca sairmos do mesmo sítio, a imobilidade
transmuta-nos, ainda. A motivação é uma ânsia pela eterna saciedade, uma
saciedade indeterminada quanto ao seu conteúdo ou nunca satisfeita com o
mesmo conteúdo nem com a sua própria variação.

“navego pela eterna saciedade

não há lugar no mundo

que me chegue
apenas a profundidade implacável

de um movimento

inexistente”

(120)

O movimento descrito não é uma deslocação espacial. É óbvio. É um ir. Um ir


na demanda, em frente. Coincide com movimentos de rotação e translação, o
percurso dos astros no cosmos, o cosmos no universo, a passagem das horas e
dos dias, a passagem das estações do ano e a transfiguração que operam nas
“costas da terra”. O único eixo do movimento certa tudo: “as constelações das
coisas”:

“tudo anda em frente

um único eixo de movimento

gera as constelações das coisas

e do vento

só existe presente

só um campo corre pelo rio”

(125)
A inexorável caminhada em demanda pela saciedade da fome que constitui o
humano compreende a possibilidade que a morte traz como sossego ou ainda
como a antecipação misteriosa que se projecta além da vida, como espera pela
próxima fome:

no fim a vida foi só

isto:

esperar

pela próxima fome

121

De nada em nada, de falta que se fez sentir em falta que se faz sentir, projecta-
se o ser da ausência. A presença da ausência é o ponto de fuga da existência.
Só se sente a substituição da miséria, precariedade, precisão, necessidade.
Numa situação de insatisfação, na inquietude complexa da relação de si
consigo e de si com outrem, a vida não assenta bem. A ânsia pode ter como
objecto outros percursos existenciais, outras biografias, com outros
personagens, outras vidas, outros próprios. A vibração que se constitui não é
já a de uma hipertrofia que resulta do nosso lance de antemão para uma versão
cada vez mais melhorada de nós próprios, uma optimização superlativa do que
é já a forma do nosso encaminhamento.

Faz parte desta outra ânsia complexa ser outro, porque não somos como
gostávamos de ter sido e acabamos por nunca ter vindo a ser como
gostaríamos de ter sido. O mesmo é dizer gostaríamos que a vida no seu ser a
ser fosse radicalmente diferente daquela que é. Ou na formulação da primeira
forma da sabedoria de Sileno: o melhor de tudo era acabar já. Ou, talvez,
ainda de forma mais extrema, na segunda forma da sabedoria de Sileno: o
melhor era nunca ter vindo a ser (Sófocles, Nietzsche).

“queria ser outro

o homem do futuro talvez

morar nas tuas mãos, tanto que fomos

ah, tanto que somos contemporâneos

do impossível”

124

O passado atravessa-se-nos. Já não é como dantes. Outrora, as memórias

rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez,
mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor
no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário.
Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou
lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão
fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que
motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas.
Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação.
Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de
continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa
zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe
disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um
terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes
sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados
estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem
mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada
tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças,
pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que
sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos
em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde
regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos
e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio
completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da
abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo
tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e
voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa.
Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa
situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência
ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem
das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas
memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo
“cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que
vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com
os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua
totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua
forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de
nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é
casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos
dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas
vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças,
mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o
profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte
integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá
em cima” (Rimbaud).
E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente.
São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não
esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é
configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a
falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não
podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as
saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não
sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como
podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se
tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e
agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser
irrepetível?

Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como
sou.

Amnésia
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 1 DEZ 2017
198

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A vida tal como nos encontramos nela é espontaneamente metafísica.

Tendemos a “produzir doutrina” sobre a vida. Temos opiniões fortes sobre o


que é. Em cada situação em que nos encontramos, há tentativas e desistências
de interpretação do que nos acontece, se estamos bem ou mal, se vamos indo,
qual o estado em que nos encontramos, que impressão temos de todo e
qualquer conteúdo. Não nos é indiferente percebermos ou não percebermos o
que se passa, como se estivéssemos sob uma pressão contínua de saber que se
manifesta de forma mais evidente, quando sofremos de incompreensão, não
conseguimos perceber o que se está a passar.
É o caso, por exemplo, quando não nos conseguimos lembrar de “certas
coisas”, de conteúdos específicos como nomes próprios de alguém ou, quando
esquecemos “coisas”, tanto e de tal forma que nem percebemos como ficou
“apagado da memória”, obliterado, desaparecido. O paradoxo da lucidez
humana é que não podemos equacionar logicamente o que é e o que não é
com o que existe e o que não existe ou com o que está presente e o que está
ausente. Há coisas que nos escapam, sem dúvida, e não nos apercebemos de
que nos escapam, pelo menos durante algum tempo. De outro modo, não
falaríamos delas. Aparecem num estádio ulterior da vida e percebemos que
estiveram inertes e inactivas num qualquer “lugar” da mente. Mas há situações
que estão ausentes como um buraco negro visível, tangível.

A indeterminação determinável de um nome que não nos lembramos ou da


presença emocional com que vivemos um momento do passado. Podemos
perceber que nos esquecemos do que acontece não apenas quando fazemos a
experiência desagradável de não nos lembrarmos de um conteúdo específico.
O meu esquecimento do nome de alguém é o esquecimento inequívoco do
nome dessa pessoa e não de outra coisa a respeito dela nem do nome próprio
de outra pessoa. Mas o que acontece o mais das vezes é que o presente que se
activa na actualidade transita para um reino da alma ou do passado, e esta
transição é contínua.

A esmagadora maioria dos conteúdos de vida transitam da expectativa mais


ou menos activa do futuro para o presente e da vivência mais ou menos atenta
do presente para o passado. E no passado moram a esmagadora maioria dos
conteúdos vividos, todos os momentos da nossa vida até agora, sem que
estejam explicitamente lembrados, em pormenor, isolados uns dos outros,
vistos no seu começo, meio e fim.

Se nos perguntarem pela banda sonora das nossas vidas, podemos recordar
muitos nomes de canções, mas não nos lembramos da esmagadora maioria, o
mesmo se passando para os livros das nossas vidas, pessoas que conhecemos,
modulações disposicionais, vivências afectivas, estados emocionais, etc., etc..

A perda de actualidade do presente faz que o passado absorva e sugue todas as


nossas vivências e a lupa do presente altamente sensível cria o núcleo duro do
sentido e deixa tudo o resto para a sua periferia. Assim é quando há
dissociação entre o rosto de alguém, outrora agente do fascínio e
encantamento e esse rosto fora do sortilégio e do enfeitiçamento. Pode
também acontecer que nos lembremos de todo o sortilégio, feitiço,
encantamento e fascinação, mas sem rostos.

É assim que pode surgir toda uma época da vida, décadas até, a primeira
juventude de coração selvagem. E, contudo, nem na altura tínhamos qualquer
hipótese de percepção de uma presença contínua da vida na dependência e sob
presença do fascinante que propulsionava futuro, abertura, possibilidade.

De caminho, há momentos em que nos surpreendemos a ser com o sentido


indespedível da actualidade presente. Como foi que a vida veio a dar até esta
orla? O que a transformou? Quem eu era e quem eu sou? Vultos do passado
ficaram congelados num tempo sem tempo. Aparecem, às vezes, no sonho
acordado nas tardes passadas ao largo, como fantasmas que quererão dizer
alguma coisa, mas nem sabemos o que por eles sentimos e, por isso, também
não percebemos o sentido das suas aparições. Rostos conhecidos e com nomes
mas como se fossem completamente desconhecidos.

Uma pessoa é a sua aura afectiva, o halo que descontinua o ambiente


específico da nossa vida e o altera, a mudança do clima afetivo em que nos
conhecemos. E desconhecemo-nos como se tivéssemos sido vítimas de um
ataque de amnésia. Não se trata de um apagamento das memórias de longo
prazo, dos seus conteúdos. Na verdade, podemos lembrar-nos de tudo, mas
como num sobrevoo em que vemos “assim como ninguém quer a coisa” toda
a nossa vida e todos os seus conteúdos, mas como se tivesse acontecido a
outro, como se não fosse a nossa vida, como se nós fossemos alheios de nós
próprios, sem saber verdadeiramente quem somos.

Podemos perder memória de todos os conteúdos como quem não sabe dar-lhes
um nome próprio e, ainda assim, sabemos quem somos.

Saber quem se é, é saber-se como se é, do que se é capaz em situações


extremas. É estar exposto à atmosfera rarefeita mas translúcida do sentimento
que nos faz sentir ser quem somos. Muitas vezes esse sentimento existencial
diz-nos da desorientação e do desnorte, da desistência da espera, de quem não
somos quem supostamente éramos para ter sido.

A necessidade de memória não dá a entender apenas a necessidade de


recuperar o tempo havido. Sem recuperar o que foi, não há orientação possível
para o futuro, para o trânsito. A lembrança do passado traz consigo a
possibilidade da abertura ao futuro. A presença do passado ausente erige uma
possibilidade onde se pode vir a ser.

A invocação do passado não é uma invocação do conteúdo vivido, do dado


auto-biográfico, mas uma edificação do possibilitante, da esperança sóbria que
é dada pela onda espontânea que nos sintoniza a nós no nosso tom, onde
aparece o que os outros representam para nós e como eles definem as nossas
vidas, a nossa disponibilidade para existirmos com eles no espectro
disposicional onde a vida aumenta a sua potência, onde há futuro e não apenas
a passagem do tempo de quem ficou para morrer.

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