Somos Contemporâneos Do Impossível
Somos Contemporâneos Do Impossível
Somos Contemporâneos Do Impossível
do Impossível – Uma
apresentação
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 27 DEZ 2017
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PARTILHAR
S omos contemporâneos do Impossível desdobra-se em quatro grandes
Nada já existe como era. O eu passado foi-se para sempre e com ele todos os
que tratamos por tu. A entidade “nós” é irrecuperável como foi. Tudo se
desmorona continuamente, existindo como ruínas, sob a acção (e na
dependência) de uma memória afectiva e uma protensão de futuro que se
projectam entre nós e o presente, resultante de uma incapacidade real para se
poder ser, nos aguentarmos, conseguirmos estar vivos.
da infância
pendurado
na memória de um lugar
(17)
Os primeiros instantes não são biológicos. São oníricos como todo o passado
recuperado por uma memória afectiva e não cognitiva. Melhor, recuperados
por uma memória simbólica:
(15)
Numa tensão com a possibilidade de não vir a ser ou, sendo já, com a
possibilidade de vir iminentemente a deixar de ser:
(Ibid.)
repetido
deixa de pertencer”
(Ibid.)
O tempo da visita à casa sc. à infância escoa do lado de fora para o lado de
dentro. É um fluir contínuo e discreto. Cada nascimento pode ser
compreendido como cada visitação possível ao passado, pela chegada do
passado até nós. Como pode ser entendida a compatibilidade do esquema da
existência em geral com o facto de cada um de nós ter só uma vida e esta ser
individual, singular? Cada ser humano encerra em si a marca do ser da vida e,
por outro lado, é individual, único, singular. Cada um de nós existe desde
sempre num escoar de fora para dentro e de novo de dentro para fora. A vida
dá definição aos contornos dos corpos, em movimentos basculantes,
oscilatórios, como um baloiçar sobre o posso do abismo. O escoamento, a
infiltração, fomentam fantasmas negros. O envelhecimento é o tempo em que
nos sobrevivemos a nós próprios. Ao envelhecemos, compreendemos que
sobrevivermos a nós próprios. Tudo o resto fica alagado por esse significado
do tempo inescapável.
e espírito ao chão
dentro do homem
numa só respiração
frágil e determinada
infância:
lugar que esquece o sobrevivente
sem se fechar
(18-19)
Na lógica dos dias, sábado é o dia partilhado com a família, mas que é sempre
diferente de domingo. O domingo é antes de segunda-feira. A segunda-feira já
exerce pressão sobre nós. Sábado, pelo contrário, vem depois de sexta-feira e
faz corpo com ela. É um dia com tempo. Está ligado ao verão da infância ou
da primeira juventude:
(21)
(21).
As portas não são metáforas para entrar ou sair, prender ou soltar. São os
operadores activos que coincidem e estão sincronizados com o acesso. É
complexa a condição para a lucidez despertar o haver sido, o ser e o haver de
ser no horizonte da significação, do sentido. Não se trata aqui de
possibilidades físicos que nos permitem transitar para espaços contíguos em
geometrias simples. São portais que dão para dimensões de significação que
não estão disponíveis para um olhar desprevenido ou ingénuo. E ao falar de
canais devemos entender não a simples sintonização de um posto de rádio ou
canal de TV, mas um meio de transporte telepático que encosta a nós
dimensões mediúnicas que nos fazem entrar em transe, numa êxtase
compreensiva sem nos fazer perder inteiramente na loucura da
ininteligibilidade.
(22)
a casa pedindo
(24)
depois da tempestade
numa só madrugada
agora
(25-27)
“Já não é uma casa”, “as divisões não são as mesmas”, “as horas que
compunham o conteúdo dos dias perderam o seu significado”, “paredes
trespassadas pelo seu próprio esquecimento”, “casa sem definição”, “antes
casa, agora outro lugar”, “materais despidos de uma realidade que
desapareceu”. Agora/ há uma porta que se abre para nada. A conclusão
preparada pelas premissas Nocturnum I e II vem agora sem apelo nem agravo,
a realidade pura e dura da atmosfera peculiar que habitamos em
NOCTURNUM III:
sem parar”
(28)
O Futuro existe, mas aparentemente trancado, sem conteúdos inovadores ou
sem a possibilidade deles. Não há vasos comunicantes nem um canal de
sintonização que permita compreender que a cada instante a realidade do facto
puro e duro, em bruto, é a única coisa que estará presente no futuro a haver.
Mas, nesse futuro, as paredes não falarão connosco. Serão paredes habitadas
por outras pessoas, gente estranha, que nunca poderá perceber como é que
dentro de paredes as histórias falam para quem as olha mas são diferentes
quando outras gentes as habitam.
(29)
(31)
“aí nesse sítio onde ainda era verão
da chama”
(32)
ainda rodopia
a minha entrada
para a impedir”
(34)
a fonte semântica
de todas as coisas”
(40)
“uma porta
uma chave para abrir
por dentro
a colher o homem
repetição interminável
de um corpo irrepetível
irreversível”
(41)
PARTILHAR
querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o
que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que
entroncam numa dimensão a haver.
A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa
consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio.
É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber
onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança
prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver
num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita,
proibida.
o poema
(42)
contornos
que apodrece
sombra
um gesto visível
para quando
(43)
Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:
(44)
(Ibid.)
(44)
(45)
O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de
puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com
todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que
irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:
“o poema é só
na parede do problema”
(47)
e existia
a algum sítio
por acabar”
(48)
(48)
“todos os livros
o único possível?
(49)
(53)
a chamar de paixão”
(54)
(continua)
PARTILHAR
(60)
(Ibid.)
60
de desistir”
(62)
recortada e familiar
(63)
não estávamos lá
depois do resto
e consciência de nós
(68)
que lhe dá
e ganha vida
da contemplação
72
O que temos um do outro dos que são nossos, nos constituem o âmago do
nosso ser, sem os quais não seríamos nós, a não ser outros insuspeitados?
Somos sombras uns para os outros. O que quer dizer que não temos nem
relativamente a esses coincidentes connosco acesso à pessoa ou ao si mesmo
deles. Temos não apenas a fachada, o rosto e os seus infinitos cambiantes,
expressões e jogos faciais, o corpo trabalhado pelo tempo desde a infância até
à velhice, os estados de alma, a maneira de ser, o jeito, a forma, a
personalidade e tudo isso é ainda sombra perante o abismo do outro quando se
converte em mistério. Até quando existe como agente de fascinação e
encantamento, o outro é sombra, projecção do exercício do fascinante e do
encantamento que se abate sobre mim.
86-87
“escapar, apenas
para descobrir
que a sua verdadeira
prisão
é a impossibilidade
de regressar”
136
Na odisseia que é a descoberta de si, de onde se zarpa e onde ser aporta, como
“loci” da poesia dependem da viagem. Uma viagem nunca é uma deslocação
no espaço. Podemos também nunca sair de uma mesma localidade e sermos
no fim da vida mutantes do que fomos no princípio.
ao mesmo tempo
(126)
Um dos riscos corridos na odisseia que depende da abertura do próprio
horizonte de sentido ou, antes, do origem e fonte do próprio sentido, é a
descoberta da totalidade a perder de vista da essência das coisas (DE RERUM
NATURA )
(142)
sou eu
e não tu”
(145)
que me chegue
apenas a profundidade implacável
de um movimento
inexistente”
(120)
e do vento
só existe presente
(125)
A inexorável caminhada em demanda pela saciedade da fome que constitui o
humano compreende a possibilidade que a morte traz como sossego ou ainda
como a antecipação misteriosa que se projecta além da vida, como espera pela
próxima fome:
isto:
esperar
121
De nada em nada, de falta que se fez sentir em falta que se faz sentir, projecta-
se o ser da ausência. A presença da ausência é o ponto de fuga da existência.
Só se sente a substituição da miséria, precariedade, precisão, necessidade.
Numa situação de insatisfação, na inquietude complexa da relação de si
consigo e de si com outrem, a vida não assenta bem. A ânsia pode ter como
objecto outros percursos existenciais, outras biografias, com outros
personagens, outras vidas, outros próprios. A vibração que se constitui não é
já a de uma hipertrofia que resulta do nosso lance de antemão para uma versão
cada vez mais melhorada de nós próprios, uma optimização superlativa do que
é já a forma do nosso encaminhamento.
Faz parte desta outra ânsia complexa ser outro, porque não somos como
gostávamos de ter sido e acabamos por nunca ter vindo a ser como
gostaríamos de ter sido. O mesmo é dizer gostaríamos que a vida no seu ser a
ser fosse radicalmente diferente daquela que é. Ou na formulação da primeira
forma da sabedoria de Sileno: o melhor de tudo era acabar já. Ou, talvez,
ainda de forma mais extrema, na segunda forma da sabedoria de Sileno: o
melhor era nunca ter vindo a ser (Sófocles, Nietzsche).
do impossível”
124
rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez,
mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor
no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário.
Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou
lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão
fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que
motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas.
Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação.
Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de
continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa
zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe
disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um
terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes
sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados
estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem
mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada
tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças,
pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que
sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos
em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde
regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos
e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio
completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da
abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo
tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e
voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa.
Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa
situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência
ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem
das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas
memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo
“cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que
vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com
os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua
totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua
forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de
nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é
casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos
dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas
vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças,
mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o
profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte
integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá
em cima” (Rimbaud).
E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente.
São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não
esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é
configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a
falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não
podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as
saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não
sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como
podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se
tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e
agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser
irrepetível?
Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como
sou.
Amnésia
ANTÓNIO DE CASTRO CAEIRO - 1 DEZ 2017
198
PARTILHAR
Se nos perguntarem pela banda sonora das nossas vidas, podemos recordar
muitos nomes de canções, mas não nos lembramos da esmagadora maioria, o
mesmo se passando para os livros das nossas vidas, pessoas que conhecemos,
modulações disposicionais, vivências afectivas, estados emocionais, etc., etc..
É assim que pode surgir toda uma época da vida, décadas até, a primeira
juventude de coração selvagem. E, contudo, nem na altura tínhamos qualquer
hipótese de percepção de uma presença contínua da vida na dependência e sob
presença do fascinante que propulsionava futuro, abertura, possibilidade.
Podemos perder memória de todos os conteúdos como quem não sabe dar-lhes
um nome próprio e, ainda assim, sabemos quem somos.