Nas Cercanias Da Memoria
Nas Cercanias Da Memoria
Nas Cercanias Da Memoria
Rosani Sgari
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Daniela Cardoso
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Agradecimentos
Universidade degli Studi di Verona, pela infraestrutura
colocada gentilmente disposio, em particular ao
Departamento de Disciplinas Histricas, Artsticas e Geogrficas.
Aos professores Dr. Emilio Franzina e Federica Betagna pelo
acompanhamento, disponibilidade e zelo acadmico
gratido e reconhecimento.
Universidade de Passo Fundo, em especial ao
Programa de Mestrado em Histria, por ter me propiciado o
estgio de ps-doutoramento.
Sumrio
Apresentao............................................................................................ 10
Consideraes iniciais............................................................................. 20
Nossas intenes............................................................................................. 20
Primeira parte
As cercanias da memria: conceitos, noes e campos afins / 27
CAPTULO 1
Uma guinada historiogrfica?................................................................ 28
Captulo 2
Memria e lembrana.............................................................................. 37
Captulo 3
A memria no cotidiano.......................................................................... 44
Captulo 4
A dimenso fenomenolgica da memria............................................ 50
Captulo 5
Memria, modernidade e mudana social........................................... 62
Captulo 6
Memria e ps-modernidade................................................................. 71
Captulo 7
Memria e patrimnio............................................................................. 81
Monumento/documento................................................................................ 83
Sociedade, tradio e suas simbologias....................................................... 91
Mobilirio social.............................................................................................. 95
Captulo 8
Tempo, espao e experincia da memria.......................................... 101
Captulo 9
Memria e oralidade: intenes, problemas e expectativas............. 122
SEGUNDA parte
Tempos, espaos e signos:a correlao entre memria coletiva e
individual no processo de lembrana / 162
Captulo 10
A natureza social do pensar e do relembrar....................................... 163
Premissas........................................................................................................ 163
A dimenso coletiva de memria em Halbwachs.................................... 165
A linguagem como manifestao do coletivo........................................... 168
O entourage sociale e a dependncia da memria individual................... 174
Contratualidade cultural e histrico-social............................................... 178
O encontro/desencontro entre memria social e coletiva....................... 182
Memria e o quadro familiar....................................................................... 189
Espaos e tempos do quadro coletivo........................................................ 192
Captulo 11
Memria e velhice (fragmentos de empiria)...................................... 195
Captulo 12
Ambiguidade de memria: o laudatrio, o ufanismo e os
ressentimentos........................................................................................ 201
Captulo 13
A objetualidade de memria grupal................................................... 208
Captulo 14
Filtragem de memria........................................................................... 235
TERCEIRA parte
Ressignificao de memrias / 247
Captulo 15
Memria, cultura e identidade tnica................................................. 248
Captulo 16
Ritualizao verbal e no verbal da cultura na memria................. 275
Captulo 17
Estragos e reconstrues do tempo na memria / 299
A importncia e a necessidade de transmitir............................................. 299
Marcos de referncia de mudana.............................................................. 308
Lembrana de afazeres, fazeres e saberes.................................................. 314
Memria da migrao para o urbano......................................................... 321
Memria de gnero....................................................................................... 330
Consideraes finais
Referncias.............................................................................................. 344
Idosos entrevistados.............................................................................. 357
Apresentao
O livro do professor Joo Carlos Tedesco, que ora apresentamos, traz em si a tessitura das redes sociais pelas quais
a cultura, como um texto do passado, tem sua dimenso mais
dinmica e, ao mesmo tempo, mais complexa para o trabalho
do pesquisador. A sua incurso nessa rede apresentada por
meio de uma tentativa de cercamento monitorado da memria. Noes como lembranas, esquecimentos, identidades
so discutidas de forma peculiar, lastreadas em larga reviso
de literatura, para demonstrar que existe um sentido quase
clandestino na produo simblica do passado.
A pergunta que o autor apresenta no livro diz respeito busca desse sentido clandestino: como possvel de ser
reconstitudo o sentido da memria, no da memria em si,
mas, sobretudo, as atribuies e as tarefas dela no presente?
Para ir ao encontro de respostas, Tedesco organiza um magnfico canteiro de obras, no qual os materiais bsicos so a memria como passado, a experincia como o fazer e o refazer e o
significado como sentido. Para o autor, esses materiais bsicos
so apenas um primeiro passo heurstico e estruturante, formando, assim, os sistemas de referncia dos contedos passveis de
serem reconstitudos. O segundo passo envolver tais noes com
categorias como espao, tempo e movimento, que, por sua vez,
lhes emprestam a dimenso fenomenolgica e a possibilidade da
mudana social no horizonte das expectativas do tempo presente,
cujo pano de fundo uma reviso dos pressupostos da obra de
Halbwachs.
Assim, entre as formas mais sublimes do conhecimento
est aquela que possibilita conectar passado-presente por meio
de vestgios. Nesse processo, as cincias humanas podem reve-
11
12
cias humanas somente se deixa explicar e compreender a partir de trs funes especficas. Vejamos:
a) cultura como o processo de generalizaes de motivos,
de aes e de representaes de perspectivas de futuro
no sentido de orientaes dos objetivos individuais e
coletivos para o futuro agir;
b) cultura a soma de aes orientadas em modelos de
explicao da experincia, integrando os aspectos pertinentes multiplicidade, heterogeneidade da conduta
de vida e s relaes sociais;
c) cultura a representao exemplar de critrios de
regulamentao de experincias que, por sua vez,
sedimentam e estabilizam a construo de modelos
legtimos e normativos da prxis social.
Essas trs possibilidades, como potencialidades da experincia histrica, podem agora ser diferenciadas em um
nmero extraordinrio de funes especficas da cultura propriamente dita, dentre as quais podemos destacar as de motivao, de orientao, de satisfao, de disciplinao, de diferenciao, de recrutamento, de estratificao, de legitimao,
de integrao e, finalmente, de significao.
Metodologicamente, essas funes envolvem um amplo espectro de leituras das experincias. Pois bem, em que
podemos perceber o envolvimento da experincia? Segundo
a leitura de Tedesco, podemos perceber o envolvimento no
apenas na materialidade da experincia, mas, sim, em estruturas de representao, tais como a lembrana, a memria,
a tradio, o simblico, o imaginrio, o psicolgico, o local da
cultura e, no caso da historiografia, em textos como resultado
da racionalizao e estetizao das experincias.
De outra forma, no desprezvel que a situao atual
mostre que a saturao de perspectivas seja concebida como
a condio maior de produo de sentidos. De forma que os
13
14
Conforme FONTES, Virgnia. Histria e modelos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domnios da histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 355-356.
15
Tomando-a dessa forma, ela possibilita uma dupla operao cognitiva: por um lado, tm-se os procedimentos heursticos necessrios para a construo do prprio modelo atravs
da constelao de contedos; por outro, mas que est relacionado a este, o modelo deve ter implcitos os critrios bsicos de sua prpria aplicao.3 A segunda parte do livro um
exerccio, por excelncia, da postura metodolgica do autor.
Com essa orientao, argumentamos a favor do fato de que
o trabalho metodolgico, com uma ou mais revises, sempre
deve apresentar esses dois aspectos vinculados para que, por
meio dele(s), se consiga estabelecer as diferentes articulaes
de um ou de um grupo de fenmenos. E, mesmo nesse caso,
a utilizao de modelos ainda no garantia para resultados
eficazes.
Assim, a questo pertinente do conhecimento precisa ser inserida numa problemtica mais ampla que lhe d
legitimidade frente a outras questes relevantes no estudo
do passado. No temos dvidas de que a problemtica deve
partir de questionamentos e debates atuais, que, ao nosso
ver, esto situados num cenrio de polmicas. A primeira engendra os elementos da constelao de fatores oriundos de
debates sobre a histria desde a sua constituio como disciplina, mas que, no tempo presente, assume importncia
fundamental no mapeamento do debate pela sua dimenso
cultural.4 Tais fatores podem ser apresentados com as seguintes formulaes: o que estou fazendo quando escrevo
histria?;5 devemos fazer tbua rasa do passado?;6 a hist-
Idem, p. 356.
Este debate est dimensionado por vrios autores em CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (Org.). Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999.
5
CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
6
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tbua rasa do passado? So Paulo: tica,
1995.
4
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abstinncia poltica.10 Tal afirmao dura, porm, se colocada em confronto com as possibilidades de diferentes leituras
a partir da memria, pode ser relativizada.
Mas se, por um lado, existe uma crtica severa nova histria cultural pela perda de sentido, por outro, esto surgindo, na comunidade de pesquisadores, posturas de contraponto
a esses questionamentos. Tais posturas buscam exatamente
construir sentido l onde ele foi criticado como inexistente, surgindo, primeiramente, perspectivas propositivas para a construo de sentidos novos ante a crise da razo histrica.11
A segunda perspectiva est vinculada prpria dinmica das mudanas paradigmticas, provocadas pela crise da
razo civilizatria-iluminista e que so passveis de serem observadas nos ltimos anos por meio da historiografia.12
Pelas colocaes apresentadas para introduzir a leitura
do livro, possvel, em tese, afirmar que estamos vivenciando um locus de luta entre as noes de espao e tempo, cuja
compreenso precisa de uma topoanlise diferenciada.13 A categoria espao est cada vez mais presente na textura das experincias atuais em detrimento da perspectiva do progresso
cumulativo e do tempo linear.
WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts.
Gttingen: Wallstein Verlag, 2001. p. 69-86.
11
So exemplos dessas posturas propositivas, em termos de busca de sentido, os
trabalhos de DOSSE, Franois. A histria prova do tempo: da histria em
migalhas ao resgate do sentido. So Paulo: Ed. da Unesp, 2002; RSEN, Jrn.
Perda de sentido e construo de sentido no pensamento histrico na virada
do milnio. Revista Histria: Debates e Tendncias, Passo Fundo, v. 2, n. 2,
p. 9-22, dez. 2001.
12
Em termos gerais, essas mudanas ainda podem ser conectadas s posturas
de KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 2. ed. So Paulo:
Perspectiva, 1987. Na histria esse debate est em CARDOSO, Ciro Flamarion.
Histria e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Org.).
Domnios da histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
13
O termo topoanlise de BACHELARD, Gaston. A potica do espao. So
Paulo: Martins Fontes, 1996. Essa anlise tambm pode percorrer os caminhos
da cultura e identidade. Ver ento MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru: Edusc, 2002. Ou, ainda, pela globalizao e meios de
comunicao, ver MATTELART, Armand. A globalizao da comunicao. Bauru:
Edusc, 2000; SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televiso e ps-pensamento.
Bauru: Edusc, 2001.
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Consideraes iniciais
Explorar o passado significa descobrir o que se
dissimula na profundidade do ser.
J. P. Vernant
Nossas intenes
O tema memria vem cada vez mais instigando analistas das reas de cincias humanas e sociais; suas abordagens
so variadas e seus campos de investigao adentram para
inmeras esferas do campo social, do poltico, do cultural,
dos imaginrios e das representaes. Inserida nesse cenrio
de anlise sociocultural e histrico, a presente reflexo quer
tentar dar um singelo contributo sobre alguns elementos que
compem essa preocupao toda das reas humanas e sociais
nos estudos sobre memria.
Na primeira e segunda partes, analisaremos aspectos em
torno da importncia, da conceituao e de alguns pressupostos terico-metodolgicos na anlise da memria na perspectiva socio-histrica e, em parte, antropolgica. Tentaremos identificar elementos e focos de anlise que justificam e explicam
a importncia e a disseminao de estudos sobre memria na
atualidade. Em ambas as partes, ainda que de uma forma
muito fragmentada e sem um ncleo temtico central, buscamos trazer sempre presente aspectos empricos de fragmentos de lembranas de idosos, segunda e terceira gerao de
imigrantes italianos, e tambm anlises de cunho cultural
presentes numa vasta literatura j produzida sobre cultura e
etnia italiana no sul do Brasil.
21
Faremos uma reviso de literatura sobre o campo da memria, dando nfase ao horizonte dos smbolos, do papel da
narrao, da lembrana, da experincia, da temporalidade e
dos espaos, na tentativa de compreender processos que permitiram a reconstituio de fragmentos de memria expressos por idosos que permanecem no meio rural e de alguns que
migraram h mais de quarenta anos no meio urbano.19
Centraremos nossa anlise em trs dimenses da memria, ou seja, a abordagem social, a coletiva e a individual;
adentraremos pela histria social e cultural; pincelaremos
um pouco de memria e antropologia do campesinato em uma
discusso centrada no grupo familiar, no trabalho e nos vnculos sociais e cotidianos. Apresentaremos, tambm, uma reviso de literatura sobre memria oral e biogrfica no sentido
de mostrar sua importncia para a anlise das questes de
memria na atualidade.
Na terceira parte, descreveremos e analisaremos alguns
fragmentos de memria, fruto de pesquisa de campo que fizemos em um estudo realizado no meio rural sobre memrias
de famlia, memrias genealgicas e memria de vnculos comunitrios e religiosos com descendentes diretos de imigrantes italianos num pequeno espao da regio colonial do Rio
Grande do Sul. A ideia central dessa parte tentar entender
o contedo da memria e da cultura tnica italiana expresso
em vozes e anlises.
Este estudo sobre memria e histria regional, sob o veio
dos relatos orais de idosos, foi iniciado no ano de 1999 na regio do Alto Taquari, mais especificamente na chamada Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul. Naquele
momento, tnhamos a preocupao de analisar a relao entre
Nosso espao de pesquisa foi a regio da Encosta Superior do Nordeste do
Rio Grande do Sul, mais especificamente os municpios de Veranpolis, Nova
Bassano, Nova Prata, Guapor e Serafina Corra.
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sujeitos de suas vivncias, permitindo que pudessem se presentificar pelo passado por intenes transtemporais.
Os relatos orais foram feitos diretamente, em momentos
alternados e em situaes tambm diferenciadas, individualmente, nos espaos comunitrios, com a presena da famlia,
caminhando e olhando aquilo que os idosos gostam de mostrar, com a presena coletiva de alguns deles em momentos
de jogo de carta no salo da capela, situaes em que algumas idosas cuidavam dos netos/as, dentre outras. Tentamos
fazer uma etnografia de alguns aspectos de seu cotidiano sociocultural.
O objetivo dessa anlise emprica era perceber um ethos,
um universo cultural e estrutural em conflito/tenso, que se
manifesta, basicamente, na forma oral pelos idosos22 e sentido no confronto de temporalidades e espacialidades que se
alteram e se alternam nos vividos correspondentes.
A ideia central do trabalho emprico fundamenta-se na
tentativa de compreenso das reinvenes, das reinterpretaes e das permanncias de modos de vida, historicizados e
institucionalizados, culturalmente, pelo ritmo da vida cotidiana, presente, passada e projetiva dos idosos.
Para tanto, reconstrumos memrias de (i)migrantes na
forma de fragmentos de histrias de vida e de memria pessoal. Buscamos perceber a presena ou no de representaes do
ser imigrante em espaos e tempos diferenciados e a relao
entre memria individual e coletiva. O que queramos era compreender como os idosos reinterpretam e inventam as experincias vividas no lugar rural e no lugar urbano, num tempo
vivido entre a dcada de 1920 at perodos atuais, com especial
Quando no especificamos, diferencialmente, em termos de gnero, estamos
entendendo idosos no masculino e no feminino. Obedecemos, com isso,
oralidade de muitos de nossos entrevistados, que geralmente se referiam aos
nonos contemplando os cnjuges.
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cialidade-temporalidade e da subjetividade-objetividade, da
memria individual e coletiva. por isso que, para o grande
estudioso da memria Pierre Nora, os lugares so lugares
mistos, hbridos e mutantes, intimamente entrelaados de
vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do
coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imvel e
do mvel.25
Falando empiricamente de lugares, sabemos que, da dcada de 1960 at a de 1980, junto com o processo modernizante da agricultura, com o cenrio visvel e atrativo da urbanizao, com a necessria alterao dos processos produtivos
tradicionais, com a redefinio da ordem moral e vivencial
da famlia, dentre outras, muitas famlias foram deslocadas
para o meio urbano, ou, ento, permaneciam prximas a algum filho, porm no mais coabitando.
Sabemos que o deslocamento no significa meramente
uma alterao espacial; altera-se muita coisa e, acima de
tudo, alteram-se os referenciais de memria. Na dcada de
1990, e com mais intensidade nos seus ltimos anos, constata-se uma certa alterao dessa trajetria, ou seja, h uma
certa reduo da intensidade do fluxo migratrio para a cidade e apresenta-se uma maior possibilidade de coabitao de
idosos nas famlias.
Vrios fatores esto contribuindo para essa possvel presena de idosos nas famlias: recursos financeiros provenientes da aposentadoria, possibilidade de cuidar de filhos liberando mulheres/esposas para atividades promotoras de remunerao financeira, uma maior conscincia de valorizao do
espao e das alteraes provenientes do horizonte cotidiano
dos idosos. Com isso, reestruturam-se a memria e o contedo
da lembrana no seio familiar pela presena dos idosos.
NORA, P. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria,
So Paulo: Educ, n. 10, 1993. p. 22.
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Pr i mei r a pa r t e
As cercanias da memria:
conceitos, noes e
campos afins
CAPTULO 1
Uma guinada historiogrfica?
Porque no s a vida dos santos e dos mrtires,
mas tambm as histrias dos novios, com as
suas fraquezas podiam servir de ensinamento.
Foucault
Na verdade, preocupaes e anlises sobre memria sempre se fizeram presentes no campo social e das cincias humanas. O campo da memria envolve noes de temporalidades,
lembrana, oralidades, subjetividades, factualidades, espacialidades, instrumentalidade objetal, etc. Suas tcnicas e
seus instrumentos analticos e metodolgicos que no foram
problematizados como esto sendo contemporaneamente.
nesse sentido que se manifesta, a partir da dcada de 1970,
uma grande tendncia da historiografia, mais voltada para o
campo da cultura e do social e, mesmo das cincias sociais em
geral e da antropologia social, interessada em adentrar para
anlises da memria, do cotidiano, no mais tanto de povos
e de agrupamentos societais tradicionais, mas das chamadas
sociedades complexas em geral e da experincia de vida de
grupos em espao de mudanas socioculturais.
Como diz Passerini, essa guinada analtica, se que houve, manifesta-se na tendncia de estudar menos os outros, o
distante, o excepcional e mais de assuntar-se naquilo que
vizinho, cotidiano, normal; se exprime nas tentativas dos movimentos polticos para reencontrar suas prprias razes histricas e culturais, como fizeram os movimentos de libertao
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A esfera da memria e dos depoimentos orais, genealgicos e biogrficos32 est contribuindo, em muito, para o campo
de anlise histrica, ligando temporalidades, fazendo-as se
entrecruzar, bem como resgatando atores sociais silenciados,
dimenses do real muito pouco visveis. nesse sentido que a
proliferao de estudos em torno do campo de anlise da memria revela um olhar das cincias humanas, sociais, histricas e pedaggicas sobre si mesmas; um olhar crtico, inovador,
problematizador e projetivo do passado e do futuro.
Leroi-Gourhan registra que, na nossa sociedade, e em especial nas sociedades sem escrita, h sempre especialistas de
memria, homens-memria, sejam eles genealogistas, tradicionalistas, sacerdotes, pais de famlia, intelectuais, idosos,
portadores de ideologias histricas, dentre outros, os quais
tm a funo importante de manter a coeso do grupo, de garantir futuro ao passado e o significado no presente.33
Le Goff j dizia que a memria desenvolvia um papel
importante no mundo social, cultural, junto aos escolsticos e
O campo de anlise biogrfica muito intenso na historiografia atual. H uma
vontade manifesta pelos vrios estudos (histricos, jornalsticos, empresariais,
miditicos etc.) de contar a vida de personagens marcantes em vrios campos da
sociedade, muitos deles com objetivos de expresso personalista, autocentrista
(self-made-man); outros, com a inteno de prestar contas sociedade; outros,
ainda, intencionando servir de fonte histrica. H os que, aps um tempo de
silncio, publicam fatos, envolvimentos pessoais, como forma de romper com
silncios, ressentimentos e ms interpretaes. A indstria cultural, no caso
brasileiro, dinamiza esse horizonte e transcreve-o para os meios miditicos e
jornalsticos, obtendo grande aceitao do pblico consumidor.
33
LEROI-GOURHAN. Il gesto e la parola. Milano: Mondadori, 1978. Tomo II.
32
33
nas formas rudimentares de historiografia do mundo medieval ocidental. Diz ele que, nesse perodo, os velhos eram venerados sobretudo porque se viam neles homens-memria,
prestigiosos e teis. A unidade da memria reside na intencionalidade das aquisies, das transformaes e recuperao
das recordaes e esquecimentos. Diz Le Goff que so as pessoas que escolhem os elementos destinados a se transformar
em recordao.34 No h dvidas de que o passado condiciona
caractersticas das lembranas futuras; no se sobrepe ao
presente para permitir meramente a sua identificao, mas,
sim, para permitir a escolha e a intencionalidade do que melhor lhe interessa armazenar na memria.
A noo de intencionalidade fundamental para entender a fenomenologia da memria. Com efeito, em cada singular momento, a experincia disponvel exprime a energia da
conscincia presente. A vida da conscincia embasada em
um quadro intencional que projeta ao redor do nosso passado,
o futuro, o ambiente humano, a situao fsica, ideolgica e
moral. O arco intencional o elemento constituinte da unidade dos sentidos. A memria no a conscincia basilar do
passado, mas um esforo para reabrir o tempo a partir da
implicao do presente.35
A memria , desse modo, a capacidade de conservar
determinadas informaes com auxlio de funes psquicas,
sendo essas capazes de atualizar impresses passadas, que
se representam como tal.36 O passado condiciona o presente e vice-versa. Sabemos que muitos dos esquecimentos no
so atribudos aos problemas biolgicos de memria, mas
aos subjetivamente intencionais. As noes de interesse, de
LE GOFF, J. Memoria. Enciclopedia Einaudi. Torino: Einaudi, 1979.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia della percepzione. Milano: Il Saggiatore,
1987. p. 157 e 217.
36
LE GOFF, J. Op. cit., p. 1068.
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Captulo 2
Memria e lembrana
A memria coletiva o que resta do passado no
vivido dos grupos, ou, ento, o que esses grupos
fazem do passado.
P. Nora
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Nesse sentido, a memria precede cronologicamente a lembrana e pertence mesma parte da alma a que pertence a imaginao. Ela passa a ser uma coleo ou recolhimento de imagens
com o acrscimo de uma referncia temporal. Nesse sentido, a
reminiscncia no algo passivo, mas sempre uma tentativa
de recuperao de um conhecimento ou sensao j existente
anteriormente. por isso que relembrar implica um esforo
deliberado da mente, uma espcie de escavao ou de voluntria busca entre os contedos da conscincia, seja numa perspectiva racional ou irracional, micro ou macro, genrica ou
especfica, ou, ento, como expresso individual ou coletiva.43
A memria coletiva, por meio da narrao, reafirma sua
fora de transmisso, pois, para continuar a recordar, necessrio que cada gerao transmita o fato passado para que
possa se inserir nova vida em uma tradio comum. Desse
modo, o acolhimento do contedo narrativo e a necessidade de
record-lo tornam-se um dever.44 O ato narrativo, na medida
em que possvel sua elaborao e apropriao, constri um
sentimento de identidade coletiva do grupo e um sentido de
pertencimento dos indivduos, ajuda a conhecer o grupo e a
organizar as prprias relaes internas.
Sentir e contar histrias em comum significa dar possibilidade de criao e de fortalecimento comunitrio.45 Os
idosos por ns entrevistados determinam um tempo de pertencimento, que no o de hoje, tempo esse de criao e de
participao ativa no seio comunitrio, de identificao de um
sentimento de um agir regido pela profunda autodeterminao de si. Para Benjamin, na modernidade, a memria no
ROSSI, P. Il passato, la memoria, loblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
Il Mulino, 1991.
44
NORA apud MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social. Roma: Carocci,
2000. p. 173.
45
JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 78-79.
43
39
40
acontecimentos, das modificaes institucionais e das descobertas tcnico-cientficas, mas, tambm, das coisas mnimas,
dos resduos (lembrar Pareto e Simmel!); porm, essas coisas minmas devem ser tomadas com a devida considerao.
As pequenas coisas podem ser indcios, traos, sinais, ritmos
mltiplos, mentalidades, imaginrios, sentimentos coletivos
de atividades prticas e do pensamento.50
Ligando a questo da memria com o ncleo racional/irracional, em concordncia com Lazzarin, entendemos que o ato objetivo/subjetivo de recordar os processos vividos que cada um de
ns organiza e reinvoca no passado, do ponto de observao do
presente, possui a capacidade de estruturar a experincia num
patrimnio utilizvel para si e comunicvel aos outros. Porm,
entendemos no ser essa a nica dimenso da memria, aquela
pode ser entendida como estrutura de interiorizao e exteriorizao de fatos, circunstncias e vividos organizados, espacial
e temporalmente, para transmitir ao externo a representao
pessoal e/ou coletiva da prpria histria ou da de outrem.
50
41
42
determinadas pelo lugar social e pelos referenciais significativos e imaginrios de um determinado grupo tnico-social em
perodos histricos e espaos variados.
Nesse sentido, as memrias podem ser convergentes,
contrastadas, mltiplas, as quais incorporam variadas experincias tanto pessoais quanto coletivas; podem ou no estar
em movimento, construir redes simblicas, invisveis, prticas objetivadas circunstancialmente, como o caso do espao
do trabalho, da dimenso da f, da alimentao (comida), da
etnia e suas correspondncias culturais, espaciais e temporais,51 nas demarcaes entre o pblico e o privado, entre o
histrico e o vivido, entre o social (institucional) e o cultural.
Acreditamos que a memria permite romper naturalizaes e inevitabilidades na histria; pode fazer dimensionar a
esfera da construo, do vivido, do histrico e cultural ainda
que entendidos na sua constante redefinio.52 Pblico/privado, temporal/espacial, domstico/cultural, moderno/tradicional, famlia/trabalho, dentre outras aparentes polaridades
ou fronteiras, foram demarcadas distintamente no tempo e
no espao; portanto, no so universais, nem estveis, nem
produzidas num movimento progressivo. Se assim o fizermos,
correremos o risco da reificao e da dimenso a-histrica da
cultura e da sociedade, ocultando origens, tenses, fronteiras,
heterogeneidades, continuidades, redefinies, criticidade e
complexidade.
possvel transformar tudo isso num momento heurstico e hermenutico, valorizar os tempos, subjetividades,
entender contextos, conflitos e enquadramentos sociais, bem
como ligar lembranas com silncios (perguntar-nos por que
Ver BOSI, E. Memria e sociedade: lembrana de velhos. So Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
52
VEYNE, P. (Org.). Histria da vida privada: do Imprio Romano ao ano mil.
So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
51
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53
Captulo 3
A memria no cotidiano
Estudos do cotidiano esto contribuindo para a renovao temtica e metodolgica das cincias sociais, para ampliar e reorientar noes tradicionais, abstratas e genricas
em vrios campos das cincias sociais, histricas e pedaggicas. A chamada crise de paradigmas, crise de identidade
da histria, crise da modernidade, etc. produziu essa grande
tendncia de adentramento por esse campo, ao mesmo tempo
em que se realimentou pelo aparecimento da construo de
um campo de anlise social do cotidiano.
A histria social, a cultural, a pedagogia histrico-crtica,
a microssociologia, a Nova Histria, a Escola dos Annales,54
a ps-modernidade, a antropologia cultural e do cotidiano...
descobriram novas perspectivas de estudo, fundamentalmente ps-dcada de 1980. Os temas so variados, mltiplos,
transversais, inter e multidisciplinares, agrupados, em grande parte, na esfera do cotidiano, do gnero, na cultura, dos
atores sociais, na noo de resistncia, no privado, na politizao social, etc.55 Segundo Matos,
[...] essas novas perspectivas e influncias possibilitaram a reorientao do enfoque histrico, com o desmoronamento da continuidade,
o questionamento de abordagens globalizantes do real [...], permitindo tambm o questionamento da universalidade do discurso
histrico; tiveram como preocupao abrir trilhas renovadoras,
DOSSE, F. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. So Paulo:
Ensaio, 1992; ver, tambm, LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne.
Paris: L Arche, 1981. v. III.
55
PASSERINI, L. (a cura di). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale
delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978.
54
45
Os estudos do cotidiano multiplicaram-se, especialmente na dcada de 1990, e tornaram-se, malgrado suas bases
epistemolgicas e suas interpretaes temporais, uma grande possibilidade de recuperar outras experincias, o mundo
de experincias comuns e subjetividades; de problematizar
e criticizar o prprio vivido e concebido cotidiano temporal,
os valores sociais cristalizados, a institucionalizao cultural
e histrica; de recuperar resistncias, figuras ocultas, diferentes dimenses da experincia, indo alm dos dualismos,
fragmentaes e formas de dominaes tradicionais,57 fazendo aflorar a trama da multidimensionalidade que constitui o
social, a heterogeneidade, a complexidade, as descontinuidades, as multiplicidades, a transitoriedade dos conceitos, do social, da histria, do conhecimento, das perspectivas, do tempo
e do espao,58 da historicidade inerente ao processo de conhecimento. Muitos dos estudos do cotidiano recuperaram vozes,
redimensionaram o campo da linguagem falada, escrita, da
cultura popular e folclorista, das memrias, dos dirios, das
biografias, das iconografias, dos jornais, etc.
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Captulo 4
A dimenso fenomenolgica da memria
Se esquecer trair, recordar significa condenarse memria da dor.
Proust
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Diz Jedlowski que a experincia um confronto com o risco; algo como uma viagem e seu movimento complexo, ou
seja, move-se do senso comum, nega-lhe a imediatez e denomina novamente as coisas. Nesse sentido, o indivduo apropria-se
do vivido e sintetiza-o,68 fornece uma nova orientao para a
vida, como via de acesso sabedoria. Benjamin diz que a experincia um fato de tradio, tanto na vida privada quanto na coletiva. Ela no consiste tanto de singulares eventos
exatamente fixados na lembrana, mas, sim, de dados acumulados, frequentemente inconscientes, que se apresentam
na memria.69
Se pensarmos nas simbologias da vida cotidiana atual,
veremos que, para o idoso campons, a fotografia parece evocar um sentimento maior de vida e de realidade;70 possui uma
fora evocadora de microexperincias de vida e de morte, ao
mesmo tempo na qual se possibilita que a memria se auto-alimente. A memria necessita de imagens. Desse modo,
o esquecimento dificultado. Nesse caso, a memria parte
de uma conscincia simblica, um sentir mais profundo da
vida, do tempo e da identidade.
A fotografia, como veremos na segunda parte, permite
reconstituir e reparar, reconhecer e proteger fatos, identidades, lugares, tempos, objetos; um suporte de sentimentos,
presentificao de ausentes, mensagem visual e produtora de
realidades; faz parar a vida como diz Barthes,71 mas tambm revela a conscincia da sua passagem e da sua transformao. por isso que os smbolos so linguagens; linguagens
de conscincia e de formulao dessa.
JEDLOWSKI, P. op. cit. p. 66.
BENJAMIN, W. Di alcuni motivi in Baudelaire. Torino: Einaudi, 1962. p. 88.
70
SARTRIANI, M. L. Memoria e autorappresentazioni nello scambio de immagini
fra nuclei familiari di immigranti italiani allestero. In: PITTO, C. (a cura di). Per
una storia della memoria. Antropologia e storia dei processi migratori. Calabria:
Jonica, 1980. p. 159-201.
71
BARTHES, R. La camera chiara. Nota sulla fotografia. Torino: Einaudi, 1980.
68
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55
que permite um conjunto peculiar de modalidade de percepo, de sensibilidade e de enfrentamento prtico e psicolgico.
A experincia na memria permite, como diz Simmel,
incorporao de sentidos aos objetos e reconhecimentos dos
elementos recorrentes do prprio ambiente cotidiano.75
A tradio fenomenolgica (principalmente em Berger e
Luckmann) defende que a anlise da vida cotidiana deve se
abster de toda hiptese causal e genrica. Essa viso entende
os atores, em si mesmos, como ponto de partida da observao.
Schutz76 defende a ideia de que a linguagem cotidiana esconde uma riqueza de vises tipificadas e previamente construdas, j elaboradas nas aes mais ordinrias. As
referidas aes guardam contedos inexplorados, ou seja, h
uma reciprocidade de perspectivas que estrutura socialmente
o mundo da vida do indivduo. A ideia central de Schutz que
toda a ao humana repousa sobre um conjunto de informaes que nos so, em seu sentido amplo, fornecidas pelos outros. Essas informaes so socialmente determinadas e revelam-se sempre incompletas para interpretar o mundo. Nessa
tica, o sujeito pensante opera seus percursos sociais com a
ajuda de um stock de conhecimento mais ou menos preciso,
mais ou menos aplicvel no mundo da vida, em que ele entra
em interao com os outros sujeitos, gerando seus percursos
da mesma maneira. O homem encontra na sua vida cotidiana a todo momento um stock de conhecimento disponvel que
lhe serve de esquema de interpretao de suas experincias
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O cotidiano constitui-se de sistemas simblicos, de tcnicas, regras de comportamentos, papis, representaes sociais, linguagens diversas, que normatizam formas de agir,
de se entender como moderno, de interagir com o tempo e nos
espaos variados em que cotidianamente nos inserimos, de,
no limite, sermos sociveis.
No entanto, racionalidades adaptativas fazem-se presentes; a tradio, a integridade e as continuidades que resistem
ao contratempo da mudana, as lgicas prticas, os resduos/
fragmentos, os imponderveis e os sistemas de valores podem
se manifestar. desse modo que, para a fenomenologia, o
passado no morre; esquecido, porm, em estado de potencialidade. O que decreta a reduo da possibilidade de memria a dimenso material e pragmtica da vida. A memria
estaria guardada por inteiro como ela foi para quem a vivenciou, como pginas impressas em nosso esprito (inconsciente); por isso, seria a possibilidade de reapario, de despertar,
de reconhecer as lembranas.84
Bosi, fazendo uma anlise muito interessante de memria de idosos italianos que viveram o perodo varguista da
dcada de 1940 no Brasil, afirma que a memria tem a funo social de guardar o tesouro espiritual da comunidade, da
famlia, da tradio e da honra. A perda da narrao, de dar
conselhos, de trocar experincias (em virtude do triunfo da
informao e da pressa) reduz o potencial social, subjetivo e
fenomenolgico da memria. Situada nesse horizonte, a conscincia presente e cotidiana induzida a no acolh-la mais,
a bloquear o seu curso temporal.85
84
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Id. ibid
Captulo 5
Memria, modernidade e
mudana social
O debate atual sobre modernidade entrecruza-se com
o desenvolvimento do campo de discusso sobre a memria.
Esse cruzamento sublinha seu carter dinmico, plural, ambivalente, conflitual, d nfase passagem do coletivo ao individual e cultura miditica que prepondera em ambas.
Modernidade e memria tematizam projeo, projeto
vontade de durao no tempo, um carter ambivalente, de
significados partilhados, de tenses de uma contaminao
cultural, de uma humanidade sempre mais mvel e interdependente [...] de incertezas, fragmentaes, precariedades, de
tempos breves e incapazes de projeo e de narrao de um
tempo longo.86
Memria e modernidade possuem razes sociais e culturais comuns, surgem de um mundo em transformao profunda e que provoca reduo de valores tradicionais e gera descontinuidades recorrentes, que oferece instrumentos tcnicos
cada vez mais sofisticados na exteriorizao da capacidade
humana de recordar.
Na modernidade, a memria no aparece mais como um
depsito, mas como uma pluralidade de funes, uma complexa rede de atividades de seleo, de filtragem, na reestruturao em correspondncia com as necessidades e as demandas
86
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do presente tanto em nvel individual quanto ao social.87 Presente e passado so passveis de interferncia e de filtragem
social e humana.
H sempre, em Halbwachs, a ideia da seleo, de sntese
e de reconstruo da memria coletiva em razo dos interesses do presente. Ela um fator de identidade do indivduo/
grupo, mas tambm sua expresso e manifestao do momento presente.
Em correlao com essas proposies, so as interpretaes da memria como lugar de conflitos entre verses diversas do passado e,
enfim, observao da capacidade de memria de institucionalizarse em prticas sociais de comemorao, de escrita, de arquivao,
que consentem em determinar verses do passado, de fixar-se e
eventualmente de impor-se sobre o outro.88
Para Halbwachs, determinados eventos continuam a ganhar espao de lembrana porque continuam a significar para
os grupos sociais. Portanto, poder haver uma reconstruo ou
no coletiva do passado, at porque as memrias coletivas so
plurais. Existem diversos grupos numa sociedade, do que resulta que, para o autor, muita coisa vai depender do contexto
e da capacidade de poder dos grupos em fornecer explicao
plausvel a determinados fatos e processos da realidade.
A ideia de moderno pressupe uma ideia de futuro, de
transtemporalidade. O que moderno hoje pode tornar-se
antigo amanh. A cultura ocidental moderna pensou a cultura em si como um vir-a-ser, por isso, a contraposio das
culturas tradicionais e das modernas. Essa dimenso produz
implicaes para a memria, pois as dimenses temporais
se alteram. A tradio constitui-se nesse horizonte do velho/
JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi della sociologia della memoria nel
XX secolo. Rassegna Italiana de Sociologia, p. 373-391. Ver, tambm, ROSA,
A. et al. Tracce. Studi sulla memoria collettiva. Napoli: Liguori, 2001.
88
JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna italiana di sociologia, XXXVIII, n.1, p.13547, mar. 1997, p. 52.
87
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65
formulao do passado, portanto, em transformao/renovao de sentido. Sua funo est mais ligada em preservar os
elementos do passado que garantem aos sujeitos sua prpria
continuidade e sua afirmao identitria, do que propriamente fornecer uma imagem fiel do passado.
J dissemos que a mudana a norma institucionalizada
nas sociedades modernas, nas quais o que legitima o contedo
da tradio a racionalidade; da a dificuldade, segundo Weber, de manuteno da tradio.
Se existe algo que constitui, de modo unvoco, o sentido da memria na modernidade, a percepo da passagem do tempo.
Em outros termos, a relao que essa possui com a percepo
da transitoriedade da existncia humana. Frente passagem do
tempo, frente percepo da radicalidade da morte num mundo
privo de horizontes transcendentes, frente viso de mudana e
do carter definitivamente passado do que passado, a memria
uma faculdade ambivalente.92
Benjamin, citando Baudelaire, j dizia que, no capitalismo ocidental, a cidade se transforma mais rapidamente do
que o corao de um homem, ou seja, as mudanas so tantas
e com um ritmo de velocidade que o indivduo, em meio a isso
tudo, sente-se imvel, e aquilo que aprendeu a amar tem a
sensao e a objetividade de andar em runas, principalmente
o mundo em que sua existncia se constituiu. Nas palavras
pouco animadoras de Benjamin, o progresso um anjo que
procede no futuro com o olhar atnito voltado para trs a contemplar acmulos de runas.93
desse horizonte de anlise que advm as noes de
tempo perdido, de nostalgia em Benjamin e, mesmo, em Simmel, noes essas importantes para as anlises de memria
92
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67
Nesse cenrio, os valores pessoais reduzem-se a valores monetrios e o estilo de vida torna-se um contraposto de elementos estanques e fragmentrios. Diz Adorno que experincia
a continuidade da conscincia, na qual perdura o que no est
mais presente, na qual o exerccio e a associao criam no indivduo a tradio. O conceito de experincia, na perspectiva
sociolgica, necessita das noes de durao, de sedimentao, de tradio e de nostalgia.96
A ideia de experincia torna-se problemtica com a modernidade; a experincia da modernidade, como j vimos,
uma experincia de mudana contnua, de tempo acelerado,
de eventos que transcorrem rapidamente e se sucedem, de ausncia de correspondncia de um antes, o qual um peso de
que necessrio se desvincular para construir um novo real;
requer um cenrio do imprevisvel, do incerto, de eventos, de
acelerao da histria, da no incorporao do passado como
orientao e atribuio de sentido experincia presente, da
perda da mediao dos quadros culturais na constituio da
identidade individual; produz uma continuidade fundada na
capacidade pessoal, da autonomizao, na impossibilidade
de sedimentar uma experincia maturada. Exige um homem
cuja memria foi educada a no lembrar, seno por breve
tempo, at que outra coisa mais importante se imponha
sua ateno e roube a recordao precendente; o intensificar
da vida nervosa como resposta aos estmulos nervosos e contraditrios, como coloca Simmel.97
68
Halbwachs j dizia que um pensamento s toma consistncia quando possui uma durao suficiente.98 Os excessos
de eventos produzem novos tempos, novas identidades, novas experincias passageiras e novas invenes, dificultando
a possibilidade de sedimentar a memria. Para Benjamin, o
papel da mdia fundamental na construo desse tempo acelerado na modernidade. Para o autor, a economia produziu
a racionalidade econmica do tempo. A banalizao da exteriorizao da memria pelos meios de comunicao retirou o
potencial mediador da narrao, da expresso do patrimnio
comunitrio.
Nesse cenrio, a tradio substituda pela informao pontual, substituvel e efmera, rompendo o potencial
e o exerccio de associao, da continuidade da conscincia
(tradio), tornando o indivduo o nico testemunho de sua
identidade. Benjamin diz que o olhar autobiogrfico torna-se
o nico capaz de fornecer ao indivduo o horizonte da prpria
continuidade.99
Na anlise de Weber, e tambm de Simmel, est claro
que, quanto mais a experincia moderna assume os traos
de uma experincia intelectual, mais os aspectos no instrumentais da memria tendem a ser deixados de lado; com isso,
traumatiza-se e privatiza-se a esfera dos valores e dos significados culturais mais profundos da sociedade.
Segundo Simmel, a essncia da experincia moderna
est no aventureiro, que o exemplo extremo do individualismo a-histrico, do que vive no presente: A essncia da aventura de ser cortada fora do resto da vida e da sua continuidade.100 Os eventos seguem, sem se sedimentar, de forma que
HALBWACHS, M. A memria coletiva
JEDLOWSKI, P. Il testimone e leroe. La societ della memoria. In._______;
RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 21.
100
JEDLOWSKI, P. op. cit., p. 80.
98
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69
cada fato novo aparece como independente do que lhe precedeu; desse modo, desenvolvem-se as noes de descontinuidades, de autonomia entre passado e futuro, to em evidncia
entre os ps-modernos.101
No podemos esquecer que as anlises sobre modernidade colocam em evidncia as diferenas nas condies de vida
do homem contemporneo em relao a contextos sociais e
histricos anteriores. O crescimento da cultura objetiva caminhar em correlao com o atrofiamento do saber individual,
com sua fragmentao e especializao. Desse modo, a identidade individual torna-se frgil, havendo sempre mais necessidade de uma reconstruo de uma biografia pessoal por
meio da retomada do passado.
Com essa atrofia da experincia, segundo Benjamin, os
nexos que ligavam os vividos individuais memria no tempo foram irremediavelmente perdidos. Essa subtrao da experincia faz com que sua comunicao caia no anonimato.
Segundo o autor, a imensa quantidade de aes que se sucedem de forma automtica e que produzem uma cotidianidade
induzem uma srie de experincias no realmente assimiladas, mas registradas no nvel de uma conscincia superficial.
Com isso, no amontoado de informaes incessantes e num
mundo de temporalidade incerta, memria no mais dada
a funo de continuidade da identidade, e, sim, de descontinuidade, de estranheza temporal da prpria temporalidade,
tempo esse artificial, que vive de uma exterritorialidade sem
participar de alguma relao temporal, diz Benjamin.102
70
Isso tudo tem profundas implicaes no campo da memria e das responsabilidades sociais e, mesmo, perante a
histria e a cultura, pois um indivduo que perde o sentido da
relao com o prprio passado perde tambm um elemento
fundante de sua identidade, ou seja, a capacidade de perceber sua prpria continuidade, de se reconhecer como mesmo
no decorrer do tempo. Sem essa percepo, no pode haver
responsabilidade. As responsabilidades na histria na vida
do indivduo no se resumem ao presente. A memria histrica e a memria poltica fazem reconstituir responsabilidades
(lembrar o nazismo, o fascismo, a resistncia, a escravido, o
racismo, a degradao ambiental, dentre outras).
Marcuse dizia que a memria, malgrado sua reduo funcional e simblica com a modernidade, pode tambm ser um
reservatrio de fora subversiva. Os ressentimentos histricos,
tnicos, afetivos, raciais, dentre outros, atestam isso. O pensamento utpico e revolucionrio em Marcuse constitui-se justamente nessa capacidade de tomar distncia do presente.
Tanto Benjamin quanto Marcuse e Weber analisaram
muito bem o quanto a referncia ao crescimento do saber
cientfico de um tipo de saber que consome as suas prprias
ideias reduz o potencial da importncia da memria e disso se
alimenta e cresce continuamente.
No mundo em que vivemos, o problema a enfrentar no mais s
o do declnio da memria coletiva e a sempre menor conscincia
do prprio passado, mas a distoro deliberada dos testemunhos
histricos, a inveno de um passado mtico construdo para servir
os poderes. Somente o historiador, com sua rigorosa paixo pelos
fatos, pelas provas e testemunhos, pode realmente montar guarda
contra os agentes do esquecimento, contra os assassinos da memria,
contra os conspiradores do silncio.103
103
Captulo 6
Memria e ps-modernidade
A ps-modernidade social104 move-se baseada em alguns
conceitos bsicos, entre os quais diversidade de interpretao, flexibilidade e liberdade de manifestao, importncia da
localizao e da identificao dos atores em seu contexto, o
cuidado com a emotividade, a subjetividade e a aproximao.
Para a ps-modernidade, ainda que ns pensemos estar buscando a objetividade do conhecimento acerca do real,
estaremos assumindo uma postura relativista. Em outras
palavras, estaremos fazendo leituras do real. Por isso, sua
tendncia de defesa do antigrande relato, da antitradio, a
defesa das tradues, em vez de tradies contemporaneizadas. Nessa perspectiva, a memria entra em cheio!
A ps-modernidade defende a chamada destruio criadora das identidades; seus princpios bsicos so a reduo da
identidade subjetividade, pluralidade e transitoriedade.
As identidades sociais so feitas e refeitas a partir das novidades culturais e das mudanas sociais. Nesse processo, esto
em constante confronto o velho e o novo, em reelaborao os
critrios de autovalidao pblica dos sujeitos, estes, variveis de acordo com a multiplicidade de situaes sociais do
cotidiano e com as transformaes econmicas e culturais que
caracterizam as sociedades contemporneas e que proporcionam um contnuo reajustamento das matrizes identitrias
dos sujeitos (por isso, um fato qualquer pode ganhar significa Ver Lyotard e Maffesoli, dentre outros. Sobre o campo da ps-modernidade
social, ver o terceiro captulo de nosso livro Paradigmas do cotidiano.
104
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jamin) dos indivduos implica uma deslocao das nossas metodologias de anlise das genealogias e das relaes sociais
fixas e formais para uma compreenso do carter mais fluido,
fugidio, movedio e presentista da sociedade, do tempo e das
coisas/fatos no tempo.
Na ps-modernidade, espao e tempo ganham cdigos
diferentes. O espao e o tempo institucional perdem espao
para o que agrega subjetividades e interaes. A cidade, por
exemplo, produz estranhamento e anonimato, porm permite
a exploso de espaos, de culturas, de tempos variados, da heterogeneidade. Nela h uma deslocalizao/transferncia no
olhar de sentido, h uma temporalidade do olhar, uma mercadorizao do tempo e da memria. Os sentidos e significados
passam hoje pela epistemologia estilizada, parcelar, transitria, ambivalente e descontextual.107
O cotidiano dos sujeitos marcado por prticas liminares (vm e se vo), por novas concepes de tempo e da memria, por reconceptualizaes do espao, da esttica e da moral.
H uma aceitao radical da vulnerabilidade.
A tradio necessita da rememorao, de um fato importante vivido por uma ou por vrias pessoas para ganhar corpo
e continuidade no tempo. A reconstituio de uma tradio
geralmente feita com recursos mediadores dos ritos e dos
smbolos. As pessoas ou grupos que recorrem tradio normalmente o fazem com a inteno de dar sentido ao presente,
objetivando responder s provocaes do tempo presente.108 O
campo da memria est sempre cheio de reflexes pessoais e
de lembranas familiares, e a lembrana uma imagem inserida dentro de outras imagens, uma imagem genrica transportada ao passado.
FORTUNA, op. cit.
RIVERS, D. P. B. Tradio, memria e ps-modernidade: implicaes nos fatos
religiosos. Estudos de Religio, ano XII, n. 15, dez. 1998. p. 50-61.
107
108
74
Como toda a experincia humana, a lembrana tambm uma experincia continuamente interpretada, porque
toda percepo se faz dentro de um quadro interpretativo,
corrigido e transformado pelas novas experincias. Assim,
experincia e interpretao relacionam-se dialeticamente.
Noes comuns pertencentes a um grupo so fundamentais
para reconstruir o evento passado atravs da lembrana. Porm, nas sociedades atuais, a memria coletiva, segundo Rivers, est muito enfraquecida, pois no est mais totalmente
regida pela tradio ou pelo religioso. A informao contnua
e a eternidade do presente anulando toda a referncia ao passado imediato e mediato levam a que o indivduo esteja cada
vez menos dependente de grupos sociais. Tanto a memria
quanto o indivduo apresentam-se fragmentados em muitos
espaos, tempos e grupos.109
No fundo, a dificuldade est em saber pressentir o que se
presentifica; est, muitas vezes, na insensibilidade frente s
possveis consequncias das mudanas em curso. O conflito
est entre o atropelo dos fatos e a amarrao a referenciais
que insistimos em manter, o que muitas vezes nos cega frente
complexidade do mundo e faz das cincias sociais um campo
de anlise limitado.
Por isso, falar em epistemologia ps-moderna hoje, para
muitos, pode soar ambguo. Para alguns, significa estar na
moda, exorcizar demnios, ser sensvel a uma nova esttica
civilizacional e reencantar o mundo; para outros, nada mais
do que uma inveno de marketing societal, ou seja, readaptar
o social ao presentismo consumista, fugidio e fragmentrio
de uma chamada economia de escopo, que anula o passado e
fornece as bases no presente para um incipiente perspectivar
do futuro.
RIUERS, op. cit., p. 56.
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A tica da esttica que o autor defende pressupe exteriorizao e transcendncia, desejo de viscosidade, o coletivo,
o estar-junto. por isso que se pode logo dizer que h gozo
esttico na vida cotidiana, no imaginrio grupal, em todas as
fuses pontuais j referidas musicais, esportivas, religiosas
que fazem da vida uma obra de arte. A nfase na busca do
qualitativo, a ambincia hedonista, a insistncia na erotizao da existncia, a epifanizao do corpo e a importncia da
aparncia, eis, entre outros, os indcios mais seguros de tal
vontade de arte. Essa vontade de arte no se reivindica, nem
mesmo se reconhece como tal, mas causa e efeito de um
esprito do tempo que no mais futurista, mas se dedica a
valorizar um inegvel gozo no presente.112
O autor, ironicamente, chama de imoralismo tico a
slida e subterrnea conscincia que o corpo coletivo tem de
si mesmo. A noo de tica contraposta de moral. Essa,
sinteticamente, segundo o autor, baseia-se no dever-ser, nas
normas e padres de comportamento social. A tica manifesta
o querer-viver, traduz continuidade e responsabilidade para
com o conjunto social; remete ao equilbrio e relativizao
recproca de um conjunto social: [...] o imoralismo tico da
massa conserva, com o passar do tempo, e de uma maneira
astuta e encarniada, uma multiplicidade de atitudes consideradas aberrantes pela moral indicada.113
A ruptura epistemolgica provocada pelos ps-modernos
reconhecida por alguns que se intitulam autocrticos da modernidade como fragilizao dos modernos. Reconhecem, no
entanto, que os ps-modernos so precisos em apontar a ambiguidade nas metanarrativas da emancipao da humanidade, da unidade da razo, da experincia histrica da modernizao como projeto central iluminista. A razo que mergulha MAFFESOLI, M. No fundo das aparncias. Petrpolis: Vozes, 1996.
MAFFESOLI, M. Dinmica da violncia. So Paulo: Vrtice, 1987. p. 128.
112
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79
perspectivas. O presente precisa ser vivido ao mximo, intensa e qualitativamente. O autor, em vrias obras, continua se
defendendo dizendo que seu presentismo radical no significa
ausentar a histria, pois essa influi sobre o cotidiano; o que
o autor quer negar os projetos da histria, os mitos de vida
eterna profanados como motor da vida social.
Para o autor, os conceitos so relativos. Ele recusa sua
definio operatria, pois quer descrever os fenmenos humanos tais como so: na sua diversidade, descrio e imaginao. Tambm recusa a tradio determinista ou positivista
que considera irracional a esfera da imaginao (imagem), da
intuio, da experincia e do sentimento; o que quer aceitar
a multicausalidade na compreenso dos fenmenos humanos,
opondo-se s conexes causais concretas.
No h dvidas de que a modernidade se associa racionalizao da sociedade em vrios de seus nveis, privilegiando
aspectos de mobilidade, funcionalidade, transtemporalidade
(desencaixe), transcendendo as particularidades locais ou nacionais. No entanto, isso no significa que tenhamos de entender o real no seu lado oposto, ou seja, pela razo interna,
sensvel, presentista e localista, como se a modernidade estivesse superada e os modernistas no se tivessem dado conta
de que o mundo ou as transformaes em curso foram e esto
sendo negligenciadas.
O que podemos dizer, em linhas gerais, que, para os
ps-modernos, vivemos num contexto no qual a metalinguagem, a grande teoria, um hors-sol; a pluralidade de regras e
comportamentos (os tribalismos na aldeia global), a atomizao do social, o pluralismo descentralizado, as variedades de
inclinaes e de julgamentos no tm lugar na centralidade
dos mitos, dos universos ideolgicos universais.114
GIDDENS, A. As consequncias da modernidade, So Paulo: Unesp, 1991,
aumenta mais a polmica caracterizando o perodo atual como sendo de uma
114
80
Captulo 7
Memria e patrimnio
As imagens do passado em cada poca se correspondem com os pensamentos dominantes.
Halbwachs
116
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Monumento/documento
A memria torna-se sempre suspeita para a
histria: a histria a deslegitimao do passado vivido.
Nora
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tamente. Quando existirem. Mas se pode faz-la, se deve faz-la sem documentos escritos se no existirem.122Continua
o historiador dizendo que o analista social deve produzir seu
mel mesmo que no existiram flores; deve usar a palavra, os
sinais, as paisagens... enfim, com tudo aquilo que pode haver
correlao, dependncia e importncia para os homens.
Para Le Goff, o documento no incuo, mas o resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente da histria da
poca da sociedade que o produziu, mas tambm das pocas
sucessivas em que um se fez presente e teve significado, durante as quais continuou a ser manipulado, quem sabe com
o silncio.
Na anlise do autor, a histria a (re)constituio cientfica da memria coletiva.123 Desse modo, o que se apresenta, e
composto simbolicamente (pela escrita e/ou pelo objeto monumental), o resultado de uma escolha resultante das foras que operam nesse cenrio, entre as quais esto os historiadores. Na noo de monumento (herana do passado) e de
documento (escolha do historiador) est presente a ideia de
continuidade, de durao, de significao atemporal. nesse
sentido que um documento pode se tornar um monumento. O
critrio para isso o esforo de anlise crtica, contextual, memorial e relacional do material/objeto. Lucien Febvre j dizia
que a engenhosidade do historiador est em fazer as coisas
mudas falar dos homens, do contexto social, tornar transparente os meios que produziram o objeto material.124
FEBVRE, L. apud LE GOFF, J. Documento/monumento, p. 41.
Ver LE GOFF, J. Documento...; ver BARTHES, R. La camera chiara. Torino:
Einaudi, 1980. Uma anlise sobre os monumentos imagticos e sobre especificamente a fotografia na histria; ver DAUTILIA, G. Lindizio e la prova:
la storia nella fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001.
124
FEBVRE, L. por Le Goff, J., op. cit., 1981. p. 41. Febvre insiste na anlise
crtica do documento como monumento, na necessidade de perceber as condies de sua produo histrica, sua(s) intencionalidade(s), a mentalidade
que o gerou, a percepo de uma memria coletiva cristalizada ou projetiva,
a desmistificao de sua significao aparente, de desmembrar os tempos
122
123
86
Benjamin foi um dos primeiros cientistas sociais a analisar o papel social, cultural e econmico da produo imagtica, ou seja, seu potencial persuasivo, sua onipresena possvel e cotidiana de cada ser social, seu cenrio na era da eprodutibilidade tcnica e funcional o capitalismo e da chamada
indstria cultural a qual permite acesso do objeto de arte ao
pblico (sociedade de massa).
A dimenso coletiva e individual da memria patrimonial no pode ser entendida como um conjunto homogneo e
coerente de representao do passado.
Halbwachs j dizia que a memria coletiva deve ser pensada como uma dinmica em tenso contnua, num jogo de conflitos, selees, interpretaes do passado (lembrar aqui a ambiguidade de muitas comemoraes no campo poltico, na ambivalncia na significao da Semana Farroupilha para os gachos),
suas relaes com o poder, com a poltica, com os mecanismos
de esquecimento pblico de fatos, de formas de gerir o social,
a identidade,125 com a responsabilidade nos confrontos com a
histria.
A ideia de monumento memria est ligada ao possvel ceticismo sobre a possibilidade de materializao de uma
passado, presente e futuro do contedo ilustrado que no s humano, mas
temporal e espacial.
125
Halbwachs analisou muito bem, em A memria coletiva, o carter de
construo que tpico da memria coletiva, quanto sua relao
estreita com a construo da chamada identidade coletiva, os confrontos
e a reconstruo do passado no cenrio da pluralidade de memrias coletivas
que vivem no interior da sociedade. Tanto em nvel individual, como j falamos,
quanto ao nvel coletivo, a memria uma funo da identidade. No entanto,
estreitar demais a ligao entre memria e identidade pode fazer esquecer que
a memria tambm poder romper ou contradizer a identidade que estabelece
num determinado tempo. No plano individual e subjetivo, a psicanlise mostrou
amplamente como um dos motivos de interesse da memria est mesmo na sua
capacidade de conservar traos que tenham encontrado espao na conscincia
e que, portanto, podem no fazer parte do horizonte identitrio. Por isso,
como diz Halbwachs, a memria podem ter tambm um carter crtico e
desestabilizante. Isso tambm vale para o plano coletivo. Desejos, traumas,
ressentimentos, aspiraes... podem provocar a desfetichizao da memria
e de identidades variadas e interessadas no presente.
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tica social e cultural da memria reenvia a capacidade da memria de exteriorizar-se e objetivar-se, isso , de tomar forma e
sedimentar as representaes sociais de um certo passado em
determinados objetos, smbolos, artefatos culturais e comunitrios.
Os objetos de memria, subjetiva e objetivamente, dependendo do contexto, dos grupos e significados em questo,
tem um poder evocativo, ao mesmo tempo em relao de reciprocidade.
Os objetos do uma certeza que advm de sua materialidade, do
fato que quando queremos relembrar eles esto prontos, como
passivos recipientes da nossa projeo, das nossas interpretaes
dos eventos passado. Se pode, portanto, sublinhar que os objetos
so dotados de um poder de memria que lhes rende significados.
Esse poder, obviamente, no deriva do objeto enquanto tal, mas
do fato que ele incorpora e projeta significados importantes para a
pessoa que o adquiriu, recebeu ou encontrou em uma situao ou
contexto particular que se quer recordar. atravs desses objetos
que se cria uma continuidade entre passado e presente, e atravs
deles que se mantm viva a lembrana do passado.131
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No existe sociedade sem tradio, assim como no existem contedos culturais e estruturais que caracterizam a
dinmica histrica que no se manifestam como interseco
perenemente mutvel entre o patrimnio passado e as constantes exigncias de inovaes da vida coletiva. Desse modo,
a tradio configura-se como o percurso de um caminho j
traado, como ritualizao, e que encontra no passado a sua
legitimao. esse passado que possui certo direito e que determina, ainda que inconscientemente, em larga medida, as
nossas posies e nossos comportamentos.136
importante ter presente que, entre o presente e o passado, apresentam-se traos, vestgios, smbolos mediante os
quais se pode compreender o passado; trata-se de recordaes,
imagens, relquias... Porm, esses elementos so imperfeitos,
pois o passado no pode, em nenhuma situao, ser reconstitudo na sua forma integral e qualquer que seja sua reconstituio ser sempre duvidosa. Imagens, fantasias, sonhos e
projetos expressam subjetividades, ou, ento, so suportes de
memria coletiva que, em termos temporais e transgeracionais, podem se alterar ou no serem passveis, na totalidade,
de expresso simblica e objetal.
A memria no s se exterioriza num objeto, mas se condensa, se sintetiza, assumindo um grande valor simblico.
por isso que a destruio de um objeto da memria torna-se
um ato de destruio do passado e do que a memria quer
PRANDI, C. Tradizioni. Enciclopdia Einaudi. Torino: Einaudi, 1981.
136
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tedo da memria e expressando tambm sua possvel vulnerabilidade. Da a importncia dos rituais, das reinvenes,
ressignificaes constantes no tempo presente e na capacidade de projeo de vida futura dos homens e dos objetos/smbolos significativos.141 A funo do monumento como expresso
de memria patrimonial vai perdendo e/ou alterando seu significado ao longo do tempo; perdendo sua funo memorial,
sobretudo com o desenvolvimento de outros dispositivos de
memria, como a escrita e a fotografia. Le Goff refere que a
funo do monumento sempre permitir vestgios pblicos de
fatos e de personagens histricas, ainda que isso possa servir
para apagar a real dimenso do vivido e esconder contedos
de memria.
Porm, segundo Passerini, h um contraste entre silncio e monumento lembrana. Na opinio da autora, isso manifesta uma marca do nosso tempo, ou seja, a memria necessita, especialmente no campo poltico, de um certo tempo
de silncio para depois ser lembrada, geralmente por meio de
sinais pblicos, sejam eles monumentos, escritos, literatura,
etc. Os genocdios da Segunda Guerra, a literatura sobre o
acontecimento, sobre o fascismo, sobre a colonizao na Amrica Latina, regimes totalitrios como os existentes em vrios
pases da ex-Unio Sovitica, na Espanha, no Brasil, dentre
muitos outros, expressam esse silncio como represso da memria e amnsia imposta.142
95
Mobilirio social
A noo de patrimnio que aqui queremos desenvolver
d a ideia de Pater, de vnculo, de transferncia de herana
material, espiritual e institucional. A memria patrimonial
revela relaes sociais que nela se engendraram; h uma
ideia implcita de deixar vestgios num tempo linear. Porm,
necessrio fazer uma anlise crtica das escolhas do que foi,
do que e ser preservado (o dito e o no dito).143
Como j dissemos, no horizonte do patrimnio cultural
esto presentes bens e valores materiais e imateriais, transmitidos por herana, de gerao a gerao, na trajetria de
uma comunidade. Sendo assim, um processo contnuo de
transmisso de valores e crenas, de saberes e modos de fazer
e de viver que caracterizam um grupo social; uma marca
que identifica, que adquiriu um sentido comum e compartilhado.
desse modo que as ideias de velho e de novo devem
ser entendidas em suas contradies temporais e espaciais,
em consonncia com o imaginrio da populao, de determinados grupos, da fora social presente no contexto especfico
em questo. Sem essa compreenso prvia, no teremos condies de entender por que os idosos que entrevistamos tanto
do meio rural quanto do urbano relativizam o novo, ou algo do
novo, como sendo apenas uma simples alterao de processos,
conhecimentos, formas do velho, ou seja, algo j, em parte,
experienciado por eles.
Canclini afirma que h uma certa desconexo hoje entre
neoliberalismo, memria histria e patrimonial. O primeiro
manifesta centralizao e funcionalidade do mercado e dos
LUPORINI, T. J. Educao patrimonial: projetos para a educao bsica.
Cincias & Letras, n. 31.
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Captulo 8
Tempo, espao e experincia da memria
A memria a sntese fundamental do tempo
que constitui o ser do passado, o que faz passar
o presente.
Deleuze
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Segundo Halbwachs, nosso tempo derivado do pertencimento aos grupos, e esse envolvimento refora o sentimento
de co-participao. O indivduo isolado teria dificuldade de
mensurar e de ter a conscincia do tempo; poderia, inclusive,
ignorar a passagem desse. O indivduo necessita de referncias, de representaes sociais do tempo, de testemunhos, de
discurso coletivo que o sustente, memrias e experincias de
outros, de influncia social, de narraes, de smbolos compreensveis e cdigos de percepo comum para poder se guiar no
tempo e no espao e para constituir categorias comuns que
consentem conhecer e comunicar tempos passados, recordaes singulares e formas grupais de memria dessa.
Tempo e interesse grupal pelas formas desse esto em estreita correlao. Esquecer ou lembrar tempos passados, segundo
Halbwachs, depende do interesse e da resposta ocupao dos
grupos. Quando h uma vibrao de conscincia, uma comunho afetiva, uma congruncia com os valores e as perspectivas
cognitivas, sempre possvel constituir experincia e reproduzi-la
grupalmente. Diz o autor que
[...] os quadros sociais da memria no so simples formas vazias, nas
quais as recordaes, vindas de fora, se inserem, mas os quadros so, ao
contrrio, os instrumentos dos quais a memria coletiva se serve para
recompor uma imagem do passado que em cada poca est em acordo
com os pensamentos dominantes da sociedade.159
Memria e identidade
Diz Ferrarotti que, pelo acmulo das lembranas, a memria constri a pessoa como conjunto de ideias e valores com
tendncia de coerncia, ou seja, como a personalidade da pessoa. A identidade no dada de uma vez por todas; no , nun BACHELARD, G., op. cit., p. 243.
159
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O tempo na memria
Quem tem experincia sabe aconselhar, narrar
e escutar.
Benjamin
106
e pocas. Cada cultura atribui ao tempo determinados valores e tem constitudo uma especfica experincia do tempo.
Segundo Mongardini, foi s com a modernidade que o tempo
adquiriu uma importncia central nos valores culturais.165
Na anlise de Luhmann e de Simmel, em correlao com o
dinheiro, o tempo um dos maiores elementos reguladores da
sociedade moderna.166 A estrutura mercantil urbana, tcnica
e de trabalho produz a excelncia do tempo quantitativo e a
reduo insignificante do tempo como experincia.167 A segmentao do tempo na sociedade moderna produz, tambm,
significaes, percepes, ritmos, conflitos, diferenciao de
tempos sociais, individuais, subjetivos, formais e estruturais/
abstratos, tanto no mbito cotidiano,168 da cultura, quanto no
da histria.
As exigncias de racionalizao que, com a industrializao, se
consolidam nos diversos setores da sociedade moderna, as novas
exigncias de previsibilidade, de organizao e de programao de
atividades sempre mais complexas e entrecruzadas, demandam
progressivamente uma estandartizao da medida do tempo
sobre a base cada vez mais rgida em relao quelas fornecidas
pelos calendrios.169
No de hoje que o nosso mundo foi invadido pelas imagens tcnicas e que o real mudou de lugar ou foi substitudo por outra coisa, seja pelos prprios signos que deveriam
represent-lo e que, ento, se impem, ou melhor, se apresentam em seu lugar, seja pela proliferao incontrolvel da
imagerie ou, ainda, pelos jogos de linguagem regulados pela
ciberntica.170 Segundo Benjamin, como j vimos, os meios
DELEUZE, G. Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 46.
MONGARDINI, C. Il problema del tempo nella societ contemporanea. In:
BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 35.
167
LUHMANN apud MONGARDINI, C., op. cit., p. 35.
168
JEDLOWSKI, P. Il tempo dellesperienza. Milano: Franco Angeli, 1986.
169
GROSSI, W. Les temps de la vie quotidienne. Paris: Mouton, 1974.
170
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dellesperienza. In: BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 138.
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Halbwachs deixa claro em Les cadres... que o que importante preservar do passado est conexo aos valores simblicos que o presente projeta para o futuro dos elementos vividos significativos para o indivduo como expresso de grupos.
Lynch diz que ns preservamos os sinais presentes do passado e controlamos o presente em funo das nossas imagens
do futuro.178
Memria e experincia
O invisvel pode tornar-se visvel por meio do
discurso.
Bachelard
O conceito de experincia complexo:179 pode estar envolto na ideia do que se vive (s em parte consciente), no
processo por meio do qual o sujeito se apropria do vivido e o
sintetiza, no exerccio controlado, repetitivo, subjetivamente
depurado, na via de acesso ou ter um dote de sabedoria, no
exerccio e na aquisio da capacidade de elaborao, no vivido, particularmente significativo e carregado de expectativas
de competncia,
ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986.
RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memoria. In: _______; BELLONI, C. op.
cit., p. 247.
179
LYNCH, K. apud RAMPAZZI, op. cit., p. 247.
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Na anlise benjaminiana de experincia est presente uma dialtica de proximidade e de distncia. O autor diz
que, na sociedade mercantil, quanto maior a vizinhana e a
aproximao com os objetos, maior e mais profundo ser seu
distanciamento. O papel dos jornais tem uma profunda implicao no processo, no horizonte da reprodutibilidade tcnica
e de mundo da superfcie da experincia midiatizada.
Como j dissemos, a vida cotidiana fornece os materiais
de cada experincia, porm h sempre uma dialtica entre
cotidianidade e experincia. Segundo Jedlowski, quando
h cotidianidade, no h experincia. No possvel haver
experincia de tudo.186 por isso que a experincia, para
Benjamin, um passado em sntese, tornado disponvel no
presente como tradio; no um passado como manifestao
individual, mas inserido numa memria coletiva, numa cultura que se manifesta por uma linguagem e por smbolos codificados, ritualizados pela tradio.187 esse o processo que
se esvai com a modernidade e seus valores econmicos, ideolgicos, polticos e culturais do capitalismo, segundo Benjamin.
BENJAMIN, W. Lopera darte nellepoca della sua reproducibilit tecnica.
Torino: Einaudi, 1966.
186
BENJAMIN apud JEDLOWSKI, P. Il tempo dellesperienza. Milano: Franco
Angeli, 1986. p. 108.
187
JEDLOSKI.P. Il tempo...
185
113
JEDCOSKI, op cit.
188
114
A anlise de cunho marxista frtil no sentido de clarear as questes de ordem temporal presentes no capitalismo,
ou seja, este pertence ordem econmica e cada economia se
resolve com a economia do tempo. Nessa lgica econmica busca-se produzir uma maior quantidade de tempo, pois cada vez
lhe mais necessrio e cada vez lhe falta mais. O avano tecnolgico, em tese, reduziria o tempo necessrio para o desenvolvimento e a produo de algo, bem como para a mobilidade
fsica, da informao e da mercadoria. No entanto, esse o
paradoxo: quanto mais se poupa, mais se precisa; alis, poupa-se, reduz-se o consumo porque justamente mais se precisa.
Lefebvre diz que vivemos numa sociedade produtora do tempo,189 do que a velocidade uma manifestao. Criaram-se e
desenvolveram-se um imaginrio e uma representao social
de que a quantidade de tempo de que dispomos no suficiente e inadequada para dar conta das exigncias cotidianas.
A disponibilidade de tempo passa a ser sinal e sintoma
de desqualificao social: quem ou quer ser alguma coisa na
vida no tem tempo; s tm tempo as pessoas no importantes, os membros de estratos marginais. De qualquer modo,
sua homogeneidade simblica atinge a todos, ganha um valor
formal e orientador da vida comum dos indivduos que participam da subsuno e da reificao do tempo forma mercantil
de cada aspecto da vida social. Os dispositivos cotidianamente experimentados para poupar tempo parecem colocar em
evidncia um mecanismo de contrafinalidade: mais se ganha
tempo, mais esse se reduz. A racionalizao e a economizao
da vida que legitima o tempo tm estragado a cronocracia e
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Benjamin diz que a experincia comporta trs momentos distintos, mas que se complementam: a familiaridade (o
hbito, a frequncia), a profundidade (essa, segundo o autor,
foi afetada pela cultura urbana e mercantil, que produziu a
facilidade do esquecimento) e a autoconscincia, a qual produz a biografia.192
Na anlise de Jedlowski, a vida cotidiana a que fornece
os materiais para a experincia coletiva e individual, porm
ambas se correlacionam numa perspectiva dialtica. O tempo
do cotidiano e o tempo da experincia se conjugam na considerao de um particular tempo vivido, o tempo da memria.193
Se localizarmos Thompson na discusso sobe experincia
e memria, veremos que o autor lhe atribui grande importncia para o campo da interpretao histrica. Thompson
analisa a plebe inglesa do sculo XVIII, utilizando a noo
de cultura como foco de anlise e como base para o estudo
das lutas sociais. A sua concepo de cultura est correlacionada com a ideia de experincia, com formas de ao da
experincia humana. Nesse horizonte, a dimenso moral do
campesinato ingls do final do sculo XVIII expressa como
densidade simblica e de resistncia constituda pelos costumes, pelo parentesco, pelos impulsos milenaristas. Esses elementos, na anlise do autor, forneciam as bases para as lutas
e rebeldias, para a valorizao da cultura tradicional, para
a contraposio expropriao de direitos e da ruptura dos
valores tradicionais do trabalho e do descanso. Desse modo,
o autor descreve a dinmica da vida social com suas normas,
valores, tabus, crenas e obrigaes, movida pela experincia
dos homens, sujeitos e construtores do futuro.194
SIMMEL apud Jedlowski, 1986, op. cit., p. 94.
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dellesperienza. In: BELLONI,
C.; RAMPAZI, M. op. cit.; ver, tambm, BRAUDEL, F. Le strutture del quotidiano. Torino: Einaudi, 1982.
194
BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976.
192
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Para Thompson, os homens constroem a histria e as estruturas. Os indivduos so portadores de experincias, fruto
de sua situao passada, presente e intencional, resultante,
tambm, de suas relaes de produo.
As experincias, no horizonte cultural, fornecem as bases
para o trabalho da conscincia social. A experincia , para
Thompson, um vivido experimentado como sentimento, como
constituinte da vida cotidiana, como constitutiva de um conjunto de valores implcitos e incorporados na cultura. Thompson reconstitui a noo de subjetividade da histria, recolocando a questo da tradio, do ser social e da conscincia social,
do papel ativo e da racionalidade dos sujeitos que atuam na
histria, da capacidade de tornar inteligveis aspectos obscuros
do passado, como a economia moral dos pobres, a racionalidade
de suas prticas ldicas, de reconstituio das tradies populares do sculo XVIII, as quais constituem matria-prima e/ou
substrato para a conformao de sujeito das classes.
A noo de sentido um conjunto de prticas e de valores que sofreram influncia de represso econmica e poltica.
Esse processo visto como elemento ativo, ou seja, sentimentos e valores que assumem um carter poltico de combate s
novas racionalidades econmicas que rearticulam o trabalho,
a comida, a caa, a propriedade, os rituais tradicionais de cultura, do direito consuetudinrio etc.
No tocante memria, na interpretao de Thompson,
esta serve de objeto da histria, pois a reconstituio de uma
racionalidade interna aos grupos reconhece a existncia de
uma tradio clandestina, de uma experincia histrica,
de uma conscincia dos costumes, como espaos de lutas,
um campo de trocas, um marco de cultura tradicional rebelde. Thompson, na anlise do campo da memria e da sua
ligao com a histria, fornece perspectivas de recuperao do
imperativo da memria, o qual possibilita resgatar os sujeitos
118
que viveram, fizeram e sofreram a histria; permite recuperar uma variedade de experincias que transcendem o horizonte das classes, como o caso do gnero, das identidades,
da cultura, dos modos de vista, da cotidianidade, etc.195
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projetual, a um mero instrumento de realizao de um ulterior distante, o que acaba impondo tambm uma acelerao
do tempo a um futuro antecipado, a uma instrumentalizao
do presente em razo de realizaes projetadas nos mltiplos
domnios do cotidiano, empobrecendo a experincia desse. O
tempo considerado como mximo rendimento acaba tambm
por monetizar virtual ou realmente a experincia, por subordinar e instrumentalizar o agora em funo de um depois, o
presente quilo que deve ser feito. O paradigma do tempoquantidade, malgrado a desigualdade na sua distribuio e
aproveitamento social, adentra para as necessidades subjetivas, para os desejos da prpria experincia cotidiana dos
indivduos. A necessidade do tempo expresso do desejo de
dispor do prprio tempo para viver.
Desse modo, poder existir, e tendencialmente existe,
uma forte correlao do sistema motivacional do indivduo
(os horizontes de expectativas) com a alocao do tempo que
a gesto da vida cotidiana impe, ou seja, a heterogeneidade
e a fragmentao do agir, que, num determinado momento,
homogeiniza a experincia comum e dificulta a possibilidade
do indivduo de criar uma hierarquia autnoma de deciso e
de opo.199 Esse fenmeno tem o poder de anestesiar a ideia
mesma de tempo, de sincronizar, espacial e temporalmente,
a riqueza do vivido diacrnico, a capacidade de sedimentar a
experincia nas conexes de tempo e de memria.
na vida cotidiana que isso se processa, mas tambm
nessa que possvel recuperar elementos histricos, processuais e de continuidade com o passado; tambm as formas de
subjetividades e intersubjetividades e a razo da existncia,
apresentam risco para a ditadura. Desse modo, como diz Jedlowski (1990), a
memria tem sempre uma dimenso crtica que pode ser desestabilizante.
HELLER, A. O cotidiano e a histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
199
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201
Captulo 9
Memria e oralidade:
intenes, problemas e expectativas
Quem comanda a narrao no a voz, o
ouvido.
I. Calvino
Adentramos na questo da memria e da oralidade porque a utilizamos muito para entender aspectos da memria
familiar, o papel da famlia na transmisso da memria e as
diferenas percebidas entre gnero e geraes, por entendermos que a histria oral202 fornece oportunidade de reconstruir
aspectos de personalidades individuais inscritas na existncia coletiva e, tambm, pelo fato de as fontes orais dizerem
respeito memria e essa ser um fato individual mediado,
moldurado, pressionado, influenciado pelas condies do
meio.203
Matos diz que explorar as relaes entre memria e histria colocar em evidncia atores de sua prpria identidade, reconhecer que as lembranas so as artes do indivduo,
que redimensionam as relaes entre passado e presente. O
passado tambm construdo segundo as necessidades do
presente; por isso, importante ter presente os usos polticos
desse mesmo passado e como ele se expressa.204
123
Buscar a totalidade
Passerini coloca em ressalva o fato de que no porque
esse campo se voltou mais para os oprimidos, os esquecidos e
escondidos, os marginalizados que sua legitimidade se funda.
Para a autora, corre-se o risco de tornar uma ideologia populista exaltadora do passado e justificadora da ideologia do
presente.
O novo papel que ela introduz na histria so discursos, os quais as
referncias realidade podem ser mltiplas e devem ser decifrados. A histria oral no trata s do discurso escolhido, mas tem a
ambio de afrontar a linguagem na sua totalidade, no s aquela
dos homens ilustres, mas aquela da gente comum, no s as lnguas
cultas, mas os dialetos, no s a expresso explcita, mas os cdigos
no-articulados de qualquer um que no tem voz oficial e que essa
o impede de falar e de deixar testemunho de s e da prpria vida. 205
O papel do testemunho como fonte de conhecimento histrico, como fonte confivel e autntica, desde a Antiguidade, sempre foi objeto de discusso. Herdoto, por exemplo dizia que o
FERREIRA, M. de M. Histria oral e tempo presente. In: BOMMEIHY, I. E.
(Org.). (Re)introduzindo a histria oral no Brasil. So Paulo: USP, 1996. p. 16.
206
PASSERINI, L. Storia e soggettivit. Firenzi: La Nuova Italia, 1988. p. 33.
205
124
125
Pressupostos tericos
O uso do termo histria oral indica um conjunto de pesquisas e de debates sobre a crtica histrica especfica que se
pode aplicar s fontes orais na sua possibilidade de ampliao
cientfica e democratizao (alargamento no s da gama de
objetos histricos considerados, mas tambm do pblico que a
histria pode abarcar) e o uso, tipo e tendncias de fontes so
mais adaptadas.211
Ver tambm PASSERINI, L., 1977, op. cit., uma anlise histrica da histria
oral, suas implicaes, preocupaes, focos de anlise, tendncia e polmicas.
Em A. Portelli e F. Ferrarotti, tambm possvel encontrar anlises nesse
sentido, bem como estudos de casos com referenciais de uso da oralidade como
fonte histrica.
211
FERREIRA, M. M. Histria oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro:
Diadorim, 1994. p. 32.
210
126
A mediao simblica e a experincia de vida expressamse nas narraes, na interpretao do mundo e no conferimento dos significados. Reconhecer esses processos e trabalhar no sentido de melhor utilizar esse dados com a pesquisa
histrica e social um dos grandes desafios da histria oral.
Tratar as fontes orais de modo adequado com essa sua caracterstica significa reconhecer o universo da tradio, do cotidiano, da cultura poltica, da memria, que radica suas bases
e sua possibilidade de lembrana na experincia cotidiana e
na linguagem comum.212
Segundo Passerini, a histria oral no inovadora porque trata da oralidade, mas por desenvolver, num cenrio e
num contexto das cincias humanas e, em especial, da histria, uma crtica ao positivismo, dimenso histrica da sociedade regulada por leis de caractersticas fsicas ou biolgicas
quantitativas e mensurveis; por desenvolver, tambm, uma
crtica complementar ao evolucionismo linear e inconcluso,
desconexo, em muitos casos, com a realidade dos fatos; por
desenvolver, ainda, uma crtica s interpretaes da antropologia cultural organicista e estruturalista, a qual isolou e
reduziu o papel do indivduo e da histria, em grande parte,
como processo e como autoproduo.
A histria oral uma fonte, um documento diferente, que
pode ser uma entrevista gravada, a qual necessita de localizao, de identificao dos atores em seu contexto (seu trabalho,
seu mundo, os acontecimentos com os quais participou), de
emotividade, de subjetividade, de aproximao do entrevistador com o objeto (entender o ator por dentro, no cerne de sua
cultura poltica). Para especialistas nessa questo, como o
caso de Janaina Amado e Marieta Ferreira, malgrado as inmeras polmicas que ambas apresentam em torno da questo
VANSINA, J. La tradizione orale. Saggio di metodologia storica. Roma: Officina
Edizioni, 1977.
212
127
Ver PASSERINI, L. Sette punti sulla memoria per linterpretazione delle fonti
orali. In: Italia Contemporanea, 1981. n. 143. p. 83-92; ver, tambm, nesse
sentido, PORTELLI, S. La memoria e levento. Senso critico, n. 4, 1980.
213
128
Os pressupostos da narrao
A minha presena, as minhas perguntas, podem
fazer ver de um outro ponto de vista.
Bermani
Segundo Miranda,214 uma das tendncias da historiografia contempornea o desenvolvimento de uma ressubjetividade, rememorizao, ressimbolizao dos sentidos culturais
sob o veio das compensaes do passado. Nesse sentido, memria e identidade ganham contornos analticos e so mediadas pelo veio da ressignificao da lembrana no horizonte do tempo, do espao e do movimento das representaes
socioculturais. Tempo, espao e experincia, ambos sofrendo
e produzindo elementos inovadores e corrosivos, integraes/
desintegraes, fragmentos e contextos, possuem a capacidade de socializao de memria e de identidade, sejam elas
mentalidades coletivas (grupos, tradio, representaes sociais) ou individuais.
A narrao de memria, por ser uma linguagem localizada no
trip tempo, espao e experincia, tem a caracterstica de poder se
desgastar, ressignificar, deslinearizar tempos (sejam eles sociais,
histricos, culturais e econmicos), de poder perder velocidade
(aqui no sentido de dinamismo), fora, informao, transparncia na sucesso temporal. Os rituais, os smbolos, os mitos,
as comemoraes e os contos so linguagens refrescadoras
do tempo da memria, do tempo histrico, do tempo passvel de receber ressignificao. Esses elementos narrativos do
tempo, do espao e da experincia (os quais ligam memria
com identidade) tm o poder de entrecruzar temporalidades,
214
129
130
As memrias so compostas da multiplicidade de imagens que constituem vrios passados, vo e vm, atendendo
s solicitaes do presente.219 Essa relao capaz de estabelecer contemporaneidade com o passado pela voz do narrador;
dessa forma, o passado restaurado no presente.220 s vrias
geraes transmitem-se tradies pelo veio da oralidade, imprimindo subjetividades, contextualizaes, reapropriaes
de representaes passadas e presentes, ajustadas e compartilhadas s atuais identidades individuais e grupais.
Segundo Portelli, a verdade pessoal passa a coincidir com
a imaginao compartilhada.221 desse modo que, ao narrar,
a memria se faz ao, porm uma ao contextualizada, passvel de modificao pela prpria ao; torna-se um sujeito
que reflete sobre esse mesmo contexto e sobre si mesmo, que
busca, escolhe estratgias adequadas, escolhe fatos, situaes
e raciocina sobre o melhor tempo adequado para a lembrana,
o tempo mais significativo e mais carregado de subjetividade.
Na narrao de memria, os interlocutores buscam fazer
uma hermenutica do contedo de linguagem. Na estrutura
do discurso, anterior a produo textual, h um processo de
seleo, reelaborao, traduo da linguagem simblica interiorizada em linguagem acessvel ao interlocutor.222 H, na
lembrana narrada, segundo Passerini, dois plos, o da mediao simblica e o da experincia de vida. por isso que as
fontes orais exigem ser tratadas como forma de narrao, de
interpretao do mundo, de conferimento de significados.223
O contedo da manifestao da lembrana selecionado,
um alternar-se contnuo de recordao e esquecimento como
PORTELLI, A. Sonhos ucrnios: memria e possveis mundos dos trabalhadores. Projeto Histria, So Paulo: PUC, n. 10, 1993. p. 41.
220
LUCENA, op. cit.
221
MATOS, op. cit., p. 24-26.
222
PORTELLI, A. A morte de Luigi Trastulli e outras histrias: forma e significado da histria oral. So Paulo: PUC, 1995. Texto.
223
RAMPAZI, M. Memria e biografia. In: _______. p. 129.
219
131
132
133
mria implcita (que comumente cotidiana, hbito e reproduo); outra que explcita, manifesta em momentos de
imprevistos, de extraordinrio.
Paul Valery diz que no nos recordamos dos atos elementares, ou seja, aquilo que funcional no passado. Por isso, a
memria reclama lembrana e, por sua vez, narrao/expresso, quando se v ameaada, quando se sente esquecida. Um
exemplo disso o desejo expresso por grande parte dos idosos
entrevistados de querer se fazer ouvir, de no serem vozes esquecidas e de reivindicar a continuidade da memria implcita
e voluntria (aquela a que se recorre no cotidiano para resolver
as situaes confrontadas e que seja funcional), de uma memria-ao (aquela vivida no meu tempo como eles dizem).
Memria-reflexa, memria-implcita, memria-hbito,
memria-experincia... so funes de base da vida cotidiana.
As lembranas que foram armazenadas constituem o patrimnio pessoal da memria do trabalho, da vida cotidiana e da
cultura232 e necessitam de espao/tempo, significao e vivido
para a narrao.
232
134
Como veremos mais adiante, comum na histria a produo do esquecimento ou do silncio alter/auto-imposto para
ajustar o passado com as intenes/ressentimentos ainda consequentes do presente e das perspectivas futuras. Ajustar ciclos e tempos histricos de aes, de sociabilidades e de desenvolvimento social funo da memria poltica e coletiva. Isso
no significa completa supresso de lembrana; o que existe
uma memria condicionada, reprimida, no enquadrada, no
lembrada no coletivo histrico.233
Michael Pollak contundente ao afirmar que as memrias subterrneas prosseguem seu trabalho de subverso no
silncio e de maneira quase imperceptvel; afloram em momentos de crise, com sobressaltos bruscos e exacerbados, querendo
ganhar espaos de desvelamento no presente.234 Pollak refere
que a esfera do silncio da memria mais consciente.
Evitar falar, poupar algum de ter a conscincia de estar
em meio a lembranas pouco edificantes, como o caso, por
exemplo de memrias envergonhadas de uma famlia, de um
sobrenome, de uma opo por um movimento histrico que
ganhou ambivalncia histrico-temporal, como o nazismo, o
fascismo etc., no algo incomum no universo da memria,
sobretudo na sua dimenso histrica e cultural. O que est
em jogo a busca da eliminao do estigma da vergonha pela
esfera do silncio e da passagem do tempo. H uma noo de
temporalidade que se ordena com o no dito e se confia em
seu esquecimento.
TADIE; TADIE, op. cit. p. 146.
Ver sobre isso o excelente texto de THOMSON, A. Quando a memria um
campo de batalhas: entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e polticos com o passado do Exrcito Nacional, Projeto Historia, So Paulo: PUC,
1998. J falamos que o livro de BATTINI , tambm, muito representativo
dos processos de desconstruo, seleo, esquecimento, adaptao funcionalidade aos diferentes projetos polticos e sociais do presente, da luta pela
modificao das sentenas (noo de relatividade histrica da culpabilidade)
e das indulgncias histricas que a memria pode promover. Ver BATTINI,
M. Peccati di memoria. La mancata Norimberga italiana. Bari: Laterza, 2003.
233
234
135
Sabemos que o que esquecido no some, mas permanece no profundo, espera de ocasio capaz de desocult-lo.
A memria possui uma estranha condio: o passado deixa traos
e, s vezes, so traos indelveis, mas, porm, o presente que
lembra, e o passado se veste, em boa medida, como ao presente
agrada. O testemunho faz a mediao entre o ontem e o hoje, leva
o passado entre o presente, entretanto, dentro daquilo que nesse
chamamos de passado.235
Gadamer afirma que o desmedido desenvolvimento tcnico aplicado informao coloca em perigo a memria, pois
dificulta a capacidade de esquecer.
136
Alguns grupos tnicos possuem uma tradio de memria; possuem uma memria por excelncia. Como diz Le
Goff, alguns grupos possuem a obrigao de lembrar ( o
caso do povo hebreu e de muulmanos); outros necessitam esquecer (exemplo das vtimas do nazismo ou de seus adeptos,
escravocratas e vtimas da escravido...).
Porm, a tradio de memria, a qual constri o tempo
e o pertencimento cultural no permite a aceitao da ambivalncia do esquecimento, ou seja, ao mesmo tempo, perda e
possibilidade de salvaguardar a prpria identidade coletiva; a
ambivalncia se d tambm no desejo de expresso (exemplo
da experincia nazista no Dirio de Anne Frank e de muitos
outros) e no sentimento negativo da mesma. Segundo Oliviero, as sociedades e os indivduos produzem um certo equilbrio entre lembrar e esquecer, entre as memrias que agre GADAMER, H. G. Verit e metodo. Milano: Bompiani, 1983. p. 38-39.
Idem, p. 93.
239
MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social, p. 182.
237
238
137
gam e que esto na base da coeso social e pelas quais necessrio velar, ou deixar de lado, por serem desagregadoras.
Desse modo, memria e esquecimento no se anulam, nem se
excluem, mas entrecruzam-se e podem at se compensar.240
evidente que, por mais sofrvel, incompreensvel e indesejvel que seja, o esquecimento possui uma funo social,
assim como o possui a memria como expresso de uma histria comum, de garantir uma identidade coletiva, superando
ressentimentos, os quais eternizam dios e impedem a projeo no tempo. Memria e esquecimento precisam ser dosados
com sabedoria e equilbrio. Cada povo, para saber viver, diz
Todorov, precisa saber recordar e saber esquecer. Querer sempre recuperar fatos, coisas perdidas, pode trazer o risco de ser
nostlgico e melanclico, de erigir um culto memria pela
memria, sacralizando-a; uma outra forma de torn-la estril. O trabalho de luto, a realidade da perda, ajuda o indivduo
a liberar-se da angstia, possibilita-lhe sadas e libera-o da
dominao da lembrana.241
A narrao importante no s pelo intercmbio da bagagem de conhecimento, mas pela capacidade de elaborao,
de reconstruo, da importncia do coletivo, do ser dizvel,
recordvel e comunicvel, de vividos individuais em comunicao coletiva atravs da memria, permitindo objetivaes,
tradies, reenquadramentos, experincias de elaborao e
assimilao na memria.242
138
243
139
140
Selecionar memrias
Depois da guerra civil tiveram direito de ter
memria s aqueles que venceram.
J. Semprun
Segundo Namer, muito comum na histria e na biografia haver um processo de seleo de memria. Existem os
produtores de memria, os transmissores e os destinatrios.
CARRERA, L. op. cit., p. 69.
JEDLOWSKI, Memoria, esperienza e modernit.
248
249
141
Ambos determinam critrios de valor e no so independentes da estrutura de poder envolta no grupo ou na sociedade.
Em cada um desses trs nveis se verificam processos de seleo.
Os produtores de memria selecionam aquilo que vale a pena ser
memorizado. Desse modo, apresentam uma inteno ou uma vontade de memria. Os transmissores de memria selecionam aquilo
que vale a pena ser transmitido. E, finalmente, os destinatrios
escolhem entre aquilo que foi transmitido e aquilo que verdadeiramente ser ativado. Produtores, mediadores e destinatrios so
indivduos inseridos nos grupos sociais e seus critrios, so, portanto, sempre sociais. Sobre esses critrios pode existir consenso,
porm, geralmente, se do sob a tica do conflito, negociao e
compromisso. Os critrios de seleo possam ser mais ou menos
estveis, mais ou menos implcitos, organizados em maneira mais
ou menos hierrquica.250
Existem mediadores de memria, os quais tornam possvel seu acesso. Seleo, filtragem, critrios se do em correspondncia com o destinatrio. H uma funcionalidade da
memria em razo de intencionalidades e capacidades de assimilao e de necessidade da mesma.
Como vimos antes, o trabalho de enquadramento de memria, ou seja, de fazer referncia ao passado para manter a
coeso grupal, para legitimar aes desses e/ou de instituies
ou, ento, para evitar oposies irredutveis, define fronteiras
grupais, possibilidades ou no de alterao pelos materiais
que a histria dispe. Fabietti defende a ideia de que as dimenses da memria e do esquecimento so relevantes no s
quando h um encontro entre culturas, mas tambm quando
esse assume um carter de etnocdio.
Os esquecimentos deliberados so comuns nos processos
de filtragem e de subjetividade de memria.
250
142
A histria de nosso sculo, como sabemos bem ainda quando buscamos esquecer, cheia de censuras, cancelamentos, ocultamentos,
desaparies, condenaes, retraes pblicas e confisses, traies,
declaraes de culpabilidade e de vergonha. Muitas obras histricas
foram reescritas cancelando os nomes dos heris de um tempo,
catlogos editoriais foram mutilados, foram reeditados livros com
concluses diferentes daquelas originais... Primeiramente foram
queimados livros, depois se fizeram desaparecer bibliotecas na
tentativa de negar os fatos, de obstaculizar a reconstruo dos eventos, de impedir de contar as vtimas, de impedir as lembranas.251
Memria e histria
Uma vez registrada, a palavra se destaca da fonte e ganha vida prpria na mo do pesquisador.
A. Portelli
Halbwachs no parte de um ponto de vista histricocultural. O seu interesse perceber os processos de coeso
grupal das lembranas coletivas; no so s as lembranas
a estabelecer o grupo, mas tambm o grupo a estabelecer as
lembranas enquanto tal. A memria coletiva demonstra que
sua estabilidade est ligada estruturao e estabilidade
do grupo. Na concepo funcionalista e construtivista da memria no h espao para lembranas fragmentrias e disfuncionais.252
Para Nora, existe uma memria social com seus sistemas de sinais e smbolos. Por meio dos smbolos comuns, os
indivduos participam de uma memria comum e de uma
comum identidade. Os portadores dessa memria no tm
necessidade de se conhecer para pertencer e reconhecer sua
comum identidade. A nao um exemplo disso, pois realiza
CAVALLI, A., op. cit., p. 34.
ROSSI, P. Il passato, la memoria, loblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
Il Mulino, 1991. p. 26.
251
252
143
Tanto Nora quanto Halbwachs sublinham o carter construtivo da identidade que a lembrana possui. Ambos promovem uma oposio entre memria vivida e memria abstrata,
esta ltima identificada com a histria, com a objetividade,
portanto neutra para a identidade.254
Sabe-se que, com o passar do tempo, as oposies entre
histria e memria tornam-se sempre menos significativas.
Sabe-se que narraes histricas so reconstrues baseadas
na memria, porm ligadas s condies de interpretao, de
parcialidade e de identidade. Alguns autores defendem que
memria e histria so duas modalidades de recordar, as
quais no necessariamente precisam se excluir.
Assmann prope definir memria funcional como memria vivente, com caractersticas tais como ser inerente ao
grupo, ser seletiva, possuir eticidade e orientao em direo ao futuro. As disciplinas histricas interessam-se por
um segundo tipo de memria: uma espcie de memria das
memrias, uma memria-arquivo, a qual no deixaria cair
no esquecimento conhecimentos e experincias de vida uma
vez que fossem importantes. Vividos tornados objetos sem
ASSMANN, A. op. cit., p. 146.
NORA, P. Les lieux...
253
254
255
256
146
di memoria nos indivduos e na comunidade.260 Nessa discusso do papel da histria, Nora ainda mais polmico. Para
ele, a memria verdadeira est na mente dos vivos, por isso,
no necessita do suporte da histria: A memria sempre
suspeita para a Histria, cuja verdadeira misso destru-la
e a repelir. A Histria deslegitimao do passado vivido.261
Pelo fato de manifestar um vivido no significa que tenhamos de pensar a memria como fonte documental, ou, ento, que essa esteja isenta de um processo crtico ou de um
tratamento terico-metodolgico que requer todo trabalho
com qualquer forma de registro acerca do passado. H, segundo, Fabietti, uma circularidade hermenutica que se instaura entre o presente, o vivido e a lembrana do passado, um
processo em movimento, foras impessoais da histria e do
destino humano, as quais contribuem para a reformulao da
identidade individual e coletiva.262
A coerncia nos discursos, os ritos mediadores personificados nos guardies da memria, a referncia constante
experincia vivida (ao passado simplesmente) e a fidelidade
nas reconstrues a posteriori colaboram para (re)enquadrar
os fatos no horizonte temporal e evitar seus desvios. Porm,
sabemos que nem sempre isso possvel. A dialeticidade da
memria precisa ser levada em conta. H uma construo,
desconstruo e reconstruo da memria; a histria biogrfi-
A ideia e/ou imagem de uma histria que sufoca e destri os vividos, as memrias privadas e locais exercer uma seduo imensa, uma difuso e persistente
clima de polmica entre memria e histria, no campo da literatura comparada
e da narrativa, da histria oral, da histria das mentalidades. Aris uma
grande referncia nesse campo de discusso. Ver ARIS, Ph. Historia da vida
privada III. Da Renascena aos Sculos das Luzes. So Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
261
FABIETTI, U., op. cit.
262
MONTENEGRO. A. T. Histria oral e interdisciplinaridade. A inveno do
olhar. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os desafios contemporneos da histria
oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 197-212.
260
147
Algumas precaues!
H algumas precaues que praticamente todos os estudiosos do assunto que revisamos levam em considerao, as
quais giram em torno da confiabilidade da memria, da necessidade de confront-la com outras fontes de informao e
AUGE, M. Le forme delloblio. Dimenticare per vivere. Milano: Il Saggiatore,
1998.
263
148
264
149
150
Como vimos, o trato com o documento oral muito importante, implica imaginao, saber que a subjetividade e a oralidade so tambm seus elementos constitutivos; saber que
FLIX, L. O.; GRIJ, L. A. Histrias de vida: entrevistas e depoimentos de
magistrados gachos. Porto Alegre: Tribunal de Justia do Estado do Rio
Grande do Sul, 1999.
269
BRAND, A. Histria oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade
em culturas orais. In: Histria Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 195-227.
270
LUCENA, op. cit.
271
PORTELLI, A. Problemi di metodo: sulla diversit della storia orale. In:
BERMANI, C. Introduzione alla storia orale. Toma: Odradek, 1999. v. I.
p. 150.
268
151
152
Memria sempre uma reconstruo psquica e intelectual, porm seletiva do passado, de um indivduo inserido
num contexto familiar, social, nacional. Portanto, toda memria , por definio, coletiva. Seu atributo mais imediato
garantir a continuidade do tempo e permitir a alteridade,
ao tempo que muda, as rupturas que so o destino de toda
vida humana; em suma, constitui um elemento essencial da
identidade, da percepo de si e dos outros. No entanto, no
h uma representao e presena do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade.278
153
154
sobre o objeto da pesquisa.282 Com isso, Portelli enfatiza a importncia da conscincia da infinitude da memria-histria,
da necessidade de repetir, retornar, comparar entrevistas e
contedos. Para o autor, grande parte do contedo informado
ser resultado de uma seleo produzida pelo momento e pela
relao que se constitui. No entanto, bom constatar que Portelli salienta que essa potencial parcialidade das fontes orais
se reflete sobre todas as ordens de fontes, a histria oral comunga a prpria parcialidade de toda a pesquisa histrica.283
Afirma Portelli que o narrador de hoje diferente do de
antigamente: ele l, tem condies de se informar, escreve, comunica-se, sua conscincia subjetiva e sua condio material
esto mais evoludas, fato que, por haver reduzido a prtica do
conhecimento pela via da tradio oral, poder alterar o juzo
e o significado da forma narrativa, da alterao do significado
da memria. Porm, ao mesmo tempo, o narrador pode reconstruir significados, opinies, juzos sobre o contedo narrado.
As fontes orais so objetivas. Isso naturalmente vale para todas as fontes, ainda se muitas vezes a sacralidade da escrita
PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 160.
Numa coletnea chamada Introduzione alla storia oral, organziada por
Cesare Bermani, v. II, Roma: Odradek, 2001, Portelli desenvolve um texto
belssimo intitulado La memoria e levento: luccisione di Luigi Tratelli,
Terni 17 mar. 1949. No texto encontra-se uma anlise muito interessante
de memria operria e de como essa memria coletiva foi reconstruda e
expressa pela tica da manipulao, de invenes, de falsificaes em razo
da luta e de domnio das classes envolvidas, do momento poltico vivido pela
Itlia no perodo recente ao ps-Grande Guerra. O uso da fonte oral revela,
num cenrio de interpretao manipulada, um contexto de conflito poltico,
de conflito no interior do prprio movimento operrio, a correlao de foras
sociais, a forma de interpretao periodizada dos tempos correlatos com os
fatos socioistricos sem sequncia temporal e, sim, personificada (antes,
depois da guerra, como partegiano, como militar, membro do partido). O
autor mostra que a memria coletiva dos fatos ativa, a histria da histria que se produziu como uma memria coletiva, simblica, psicolgica e
formal, objetivando racionalizar um contexto de lutas sociais, de memrias
ressentidas, de tenses na relao entre capital e trabalho (e no interior de
cada uma dessas esferas). As incertezas e manipulaes sobre o fato da morte
de Luiggi Trastelli refletem as incertezas, ambiguidades e ambivalncias da
sociedade italiana no recente ps-guerra.
282
283
155
156
157
158
Humanizar a histria?
Quem controla o passado, controla o futuro;
quem controla o presente, controla o passado.
G. Orwell
291
159
160
h aquela entre comportamento e narrao, entre a particularidade e o genrico, como e onde procurar as fontes mais
certas, quais as questes mais pertinentes e quais as circunstncias, os significados mais explcitos na narrao... No
nosso caso especfico, poderamos nos perguntar se os idosos
so testemunhas fortes e de forte personalidade na narrao?
Nas palavras de Passerini, os ancios narradores no se deixam impor modelos, frequentemente ignoram as perguntas,
subordinando o entrevistador, deixando-o em situao de contra-interrogatrio ou em uma situao embaraosa.295
Autores nos alertam de que devemos ter cuidado para
no cair numa moda vulgar e consumista, sem responsabilidade de traduo de suas exigncias metodolgicas e cientficas, como o caso, no Brasil, de muitas ditas biografias e/
ou autobiografias miditicas, feitas em geral por jornalistas
afoitos pela mercantilizao e pela temporalidade do marketing da figura biografada. Halbwachs, por exemplo, refere a
dificuldade de ordenar e integrar um com o outro os inmeros
fragmentos de memria correspondentes participao de indivduos em grupos diferentes no decorrer do tempo.296
A tentativa da histria oral, segundo Thompson e tambm Passerini, de permitir a humanizao da histria,
atravs da linguagem narrativa de protagonistas ou no, da
conscincia social de que, sem as atividades dos indivduos
concretos (como diria Marx), no h produo de histria.297 A
grande questo de fundo a de sempre: quem faz a histria?
A ideia fazer um esforo de interpretao do sentido poltico
e psicolgico dos testemunhos e das testemunhanas, considerar a sociedade na sua complexidade e o indivduo tambm
161
nesse horizonte, ainda que se esteja descrevendo aspectos especficos de uma realidade micro/local.
Enfim, entendemos que o papel do historiador e de todo
e qualquer cientista social interessado nos estudos de memria fundamental. As implicaes metodolgicas que cercam
o objeto de anlise de histria oral, da histria documental
e biogrfica alertam-nos para a vigilncia dos instrumentos
utilizados para a interdisciplinaridade, para o engajamento
analtico, para a transcendncia e problematicidade do tempo
e do contedo do discurso. Isso tudo, em meio a outras questes, revela-nos a importncia e a finalidade social e humana/
cidad da histria oral.
Temos a convico de que lembrar um reviver, um
reinscrever-se no momento, no contexto; um imprimir-se.
Por ser tudo isso e por utilizar a narrao, o recurso oral
passvel de ser documentado, acreditamos que a lembrana,
principalmente na forma de narrao, poder ocasionar mudanas na produo do conhecimento histrico, na localizao
espaciotemporal e cidad de indivduos, grupos e categorias
sociais, bem como promover um acerto de contas desses com a
histria, com a responsabilidade tico-social, to necessrios
nos dias de hoje.
SEGU N D A pa r t e
Tempos, espaos e signos:
a correlao entre memria
coletiva e individual no
processo de lembrana
Captulo 10
A natureza social do pensar e do relembrar
O social no s a origem, mas a salvaguarda
ltima da recordao.
Halbwachs
Premissas
O objetivo, nesta parte, fazer uma reviso das obras de
Halbwachs, analisando aspectos correlatos a sua abordagem
sobre memria, tais como coletivo, grupo, biografia, quadro
familiar, experincia, tradio, modernidade, histria, narrao, simbologia, etc. Lanamos mo dessas anlises por consider-las importantes na fundamentao de nossa anlise
emprica (da terceira parte) sobre a memria de idosos, em
suas lembranas, seus quadros de significao, suas estratgias, simbologias e representaes sociais, bem como sua
experincia de vida cotidiana em tempos e espaos variados.
Analisar Halbwachs uma empreitada um tanto difcil, pois
suas obras so complexas, seus comentadores so poucos; o
contato com suas obras ainda no acessvel ao pblico em
geral visto que ainda no so todas traduzidas para o portugus.298
Grande pesquisador, ativista poltico, Halbwachs deixou
uma vasta obra multidisciplinar. pouco conhecido fora da Fran Ao que vem ao nosso conhecimento, nenhum livro de Halbwachs foi ainda
traduzido para o portugus brasileiro. H uma traduo portuguesa de A
memria coletiva. Para a nossa anlise, utilizamos essa traduo e a italiana
da mesma obra, bem como a verso em francs das demais.
298
164
Suas obras mais conhecidas so: La classe ouvrire et les niveaux di vie; La
morphologie sociale; La topographie lgendaire des Evangiles en Terre Sainte;
Les cadres sociaux de la mmoire; La mmoire collective (ver melhor indicao
na bibliografia final).
300
Parisiense, filho de professor, nasceu em 1877; desde cedo seguiu a profisso
de seu pai ensinando em liceus; ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar
em Berlim. Aps uma breve estada em Berlim, retornou Frana e passou
a lecionar em grandes universidades, como o caso da Universidade de
Strasbourg, na Sorbonne e no Collge de France, neste ltimo na ctedra
de Psicologia Social. Grande ativista poltico, foi, logo no incio da Segunda
Guerra Mundial, alvo da Gestapo, tendo sido preso e deportado para o campo
de concentrao de Buchenwald, local onde veio a falecer meses antes do
trmino do conflito mundial.
299
165
Comecemos ento dizendo que, para o autor, as lembranas de cada um se confirmam, se modificam ou se perdem no
interior de um sistema de inter-relao. Desse modo, o autor
em questo no faz uma verdadeira sociologia da memria,
mas, antes, uma sociologia da recordao, ou melhor do recordar-se.301 Seu ponto de partida a memria individual e sua
tese fundamental que a memria individual uma construo social.
Pelo que entendemos da anlise de Halbwachs, rememorar, reconstruir, alterar, localizar, racionalizar e dar lgica
lembrana depender do domnio individual das noes familiares do grupo de pertencimento, dos pontos de reparo, do nvel
de interao com os fatos no vivido individual/grupal, da morfologia do grupo, da sucesso de quadros diferentes, das modificaes e descontinuidades dos grupos (entrada/sada de indivduos), da utilidade/interesse da lembrana para o grupo (nveis
de lembrana e de esquecimento conscientes e inconscientes).
A ideia de memria coletiva identifica um singular grupo, ou, no limite, toda a sociedade. A dimenso social da memria manifesta uma pluralidade de memrias coletivas; a
memria social incorpora uma multiplicidade de memrias
coletivas. O social prevalece sobre a memria coletiva, considerada a submemria de um grupo que parte de um vasto
social, ou seja, da sociedade global.302
JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M. (a cura de). Il senso del passato. Milano:
Franco Angeli, 1991.
302
NAMER, G. Mmoire et socit. Paris: Mridiens-Klincksieck, 1986; ver,
tambm, FERRAROTTI, F. La storia e il quotidiano. Roma-Bari: Sagittari
Laterza, 1986.
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167
contedos so, de tempos em tempos, conservados ou abandonados por grupos humanos concretos. O afrouxamento ou
o fortalecimento de um implica o mesmo resultado no outro,
ainda que possa essa relao se dar pela tica do conflito, da
tenso entre memria individual e memria coletiva.
Se o passado se conserva, se conserva na vida dos homens na forma
objetiva de sua existncia e nas formas de conscincia que a esses
corresponde. Recordar uma ao que se processa no presente e, do
presente, depende. A reconstruo do passado corresponde aos interesses, aos modos de pensar e as necessidades da sociedade presente.304
O papel da memria coletiva sustentar em nvel cognitivo e simblico o sentido de identidade coletiva. A memria
coletiva pode assumir uma veste mais ou menos institucionalizada, objetivando-se em prticas especficas, em lugares de
cultos ou em coisas/objetos significativos, mas a sua origem
e a sua reproduo se situam no nvel das prticas comunicativas; sua funo principal favorecer a coeso do grupo
social e garantir sua identidade.305 No curso desse processo,
verificam-se mecanismos de seleo do passado relevante e
que possam basear-se em critrios consensuais ou, ento, ser
objeto de conflito,
[...] pois qual seja o critrio de seleo, representa, no fim, uma
atribuio de valor [...], no so jamais independentes da estrutura
de poder que, de tempos em tempos, caracteriza o grupo ou a sociedade. O poder de criar e de estabilizar a memria , com efeito,
sinal de poder em geral a todos os nveis da organizao social.306
168
no tempo. A importncia dessas memrias no presente vai depender da forma como vm transmitidas e ritualizadas. Da o
papel da democracia, da mistificao, da reinveno, da difuso e da mass-mdia, da capacidade de reiterao, das revolues, etc. Para o autor, a mdia produz uma memria coletiva
annima, potente e sem regras, que legitima o excesso e a
passividade. Hoje a televiso legitima qualquer terrorista,
pois o mundo inteiro pode v-lo e admir-lo. [...]. A memria
comum televisiva substitui a memria coletiva.307
Ora, dessas afirmaes deriva uma concepo de memria no como algo dado, mas passvel de modificaes e
de usos pelos grupos no poder dominante e seus rituais de
conservao; a memria pode ser reconstruda a partir das
exigncias dos grupos sociais ativos, dinmica e conflituosa, produtora e produto de tempos sociais e de fatos histricos. com base nesses pressupostos que desenvolveremos e
desmembraremos uma anlise de suas ideias principais e de
como essas podero auxiliar nos estudos de memria de idosos, objeto da terceira parte.
307
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171
314
172
O elemento socializador da memria a linguagem, suas representaes, sua temporalidade, suas convenes, suas diferenciaes em termos de significados e smbolos. H uma
(re)construo social da memria, a qual implica filtragem,
enquadramentos e convencionalizao.315
Halbwachs diz que as convenes verbais constituem o
quadro mais estvel e mais elementar da memria coletiva;
as recordaes se fazem cada vez mais de palavras, ou melhor, de vrios fragmentos da memria que vm silenciados e
que so relacionados ao mundo da fala.316 A categoria sociocultural da linguagem e a representao do tempo e do espao
so formas a priori nas quais os contedos das memrias individuais se depositam. por isso que os limites da linguagem
denotam os limites do mundo, da compreenso e na expresso
dos indivduos. Atravs da linguagem possvel estabelecer
relaes com o mundo, possvel comunicar experincias,
fundar tradies comuns, subjetivar experincias, intercambiar e se apropriar de smbolos e de memrias coletivas.
A pessoa recebe do passado no s dados da histria escrita; mergulha suas razes na histria vivida, sobrevivida
das pessoas. A verdadeira socializao se d no concreto, no
cotidiano, no interior; h correntes do passado que s desaparecem na aparncia e que podem reviver numa rua, numa
sala, em certas pessoas, no jeito de falar, na alimentao etc.;
so resqucios de outras pocas, fragmentos do tempo.317
A memria, sem o trabalho de reflexo e de localizao,
seria uma imagem fugidia; o sentimento precisa acompanh
-la para que ela no seja uma repetio do estado antigo, mas
A noo de convencionalizao permite-nos entender os mecanismos de
adaptao da memria e sua linguagem em relao ao universo cultural e
ideolgico em questo. uma espcie de modelagem no ato de transferncia
de uma situao evocada para os que a evocam. Ver Bosi, op. cit.
316
HALBWACHS, M. A memria coletiva, p. 114.
317
BOSI, E., op. cit.
315
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176
uma memria imediata, no estruturada, porm necessria para a construo da lembrana histrica, da tradio,
do pensamento e do significado moral. A memria coletiva
normativa, possui um efeito moral na sociedade e no grupo;
a memria do dom, do emprstimo, da dvida que deve ser
paga; a memria social uma obrigao tcnica, no portadora de moralidade.323
Passerini enfatiza que existir sempre uma separao
maior entre a estrutura da memria coletiva evidenciada com
a expanso das recorrncias memria individual. No obstante, Halbwachs claro nos Les cadres... ao dizer que h
um anel que liga, que permite a busca da memria, ou seja,
sem a base comum do grupo, ou, no limite, da espcie, no se
desenvolve a memria individual. Segundo o autor, sem a memria individual, no possvel a compreenso da intersubjetividade, da empatia, consequentemente, da transmisso e
da tradio.
Passerini insiste na ideia de que o historiador no poder indagar sobre o papel do indivduo na histria sem ter
presente, de uma maneira ou de outra, o modo das agregaes
sociais, ainda que no plano da subjetividade.
A reorganizao da memria coletiva de que falava Halbwachs,
, em ltima anlise, trabalho de individuao. Os contributos da
individualidade vo cercados, no tanto na matria da lembrana,
mas no modo no qual reinventa a prpria posio na histria e a
relao entre indivduos e os outros. Do ponto de vista da pesquisa
histrica, interessa-nos os pontos de encontro e de frico entre as
duas formas de memria, ou melhor, entre os aspectos diversos de
uma mesma memria. Esperamos que as reflexes e o acmulo
de trabalhos cientficos sobre a memria coletiva tenham aberto o
caminho sobre a memria individual.324
177
A memria social dinamiza e/ou traz presentes os chamados subterrneos da memria. A histria e a memria
oral so duas dinmicas que provocam e resgatam os conflitos da memria, retomando o silncio, remexendo feridas, denncias, as zonas de sombra e os resduos.325 As memrias
subterrneas fazem seu trabalho de subverso no/do silncio
muito calmamente. Os momentos de crise, de exacerbao
do estigma, de alteraes temporais, so frteis para romper
com as zonas de silncio, com as fronteiras entre o dizvel e o
indizvel.326
Nesse sentido que se revela a importncia de analisar
os ressentimentos e ufanismos de memria como representantes de quadros sociais, culturais, tnicos, polticos. Alguns
autores dizem que impossvel memria escapar contemporaneamente dos procedimentos histricos. Esse movimento
inexorvel e sem volta; toda memria, atualmente, uma
memria exilada, que busca refgio na histria; restam-lhe,
assim, os lugares de memria.
Muitas tradies so inventadas; fazem parte dos processos de ritualizao e formalizao de prticas polticas
na sociedade moderna; fundamentam-se numa releitura de
fragmentos culturais de longa durao; direcionam-se para
smbolos, festejos, celebraes que lhe do visibilidade; exerceram grande influncia na vida da nao, revestindo-se de
forte carga emotiva, de sinais de identidade, de soberania nacional. As tradies inventadas recriaram e transformaram
a histria da nao, instituindo saberes e memria a partir
dos quais se selecionaram, se institucionalizaram e se propagaram rituais, prticas e representaes que conformaram a
constituio subjetiva da nacionalidade.327
Ver TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de memria.
Ver BOSI, op. cit.
327
Ver HOBSBAWM, E.; RANGER, J. T. A inveno das tradies...
325
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Esto sempre presentes o recurso lingustico e o elemento social na lembrana. Na maior parte dos casos, se eu lembro alguma coisa, porque os outros me incitam a lembrar;
a memria dos outros que vem em socorro da minha; a
minha que se apoia na deles.329 por isso que a viso do
coletivo, do outro, da experincia coletiva constitui, para Halbwachs, aquilo que se convencionou chamar de comunidade
do olhar.330
HALBWACS, M. A memria coletiva. p. 16.
Idem., p. 26.
330
NISIO, F. V. Comunit dello sguardo: la sociologia ethica di Maurice Halbwachs. Rassegna Italiana di Sociologia, a. XLI, n. 3, lug./set., 2000. p. 323-360.
Sobre o pensamento de Halbwachs, ver, tambm, AMIOT, M. Le systme de
328
329
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Reconhecimento, localizao, sentimento de familiaridade comum e social, linguagem, imagem, percepo, experincia, proximidade fsica e de pensamento so elementos constantes na anlise dos quadros de memria em Halbwachs.331
Pertencer d ideia de uma ressonncia moral, de vizinhana,
de compartilhar do mesmo sangue, do mesmo espao, de uma
contratualidade cultural e simblica, acima de tudo, de cooperao solidria, afetiva e parental, memria e identidade
coletiva, genealgica (parentesco, biografia e consanguinidade), poltica (Estados nacionais atravs da lngua, da origem,
da cultura...).
A ideia de pertencimento carrega consigo a necessidade de ancorar o grupo/comunidade a algo que d garantia de
continuidade, de eternidade tanto para o futuro quanto para
o passado, ainda que esse processo possua uma base histrico-temporal de curta durao e uma tradio no de base
comum. O pertencer pode se dar pela simples identificao
identitria, cultural, imaginria e sua temporalidade altera-se, renova-se e entrecruza-se, porm h sempre interao
de uma situao de contemporaneidade (no caso em questo, ser idoso, ser descendente de italiano, falar o dialeto, enfrentar os mesmos desafios culturais e fsicos, migrar sem
nada, trouxemos de l muito do que temos aqui). por isso
que sentir-se pertencendo carrega uma simbologia que une
indivduo a uma totalidade histrico-cultural e temporal. Os
nomes, por exemplo, associam-se a tradies, a moralidades,
ao elemento continuidade. O nome, o bom nome da famlia,
uma categoria totalizante que desafia a linearidade do tempo, assim como o a famlia. Ambos desafiam o limite de vida
de seus membros constituintes.332 Diz Halbwachs que
pense de Maurice Halbwachs. Revue de Synthse, v. 2, n. 6, 1992.
HALBWACHS, M. Les cadres...
332
Ver uma excelente anlise sobre isso em LINS de BARROS, M. M. Autoridade
e afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
331
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181
Os ditos quadros de referncia, em Halbwachs, fornecem comunicabilidade s recordaes, so expresso da sobrevivncia de grupos sociais que constituem na vida cotidiana os pontos de referncia familiares para o sujeito. Todavia,
possam tornar objeto de reflexo consciente, na medida em
que o indivduo se encontra de frente a situaes que colocam
em discusso o seu pertencimento ao grupo ou a sobrevivncia do grupo mesmo.337
Os quadros sociais da memria agem no indivduo por
meio de uma estrutura de plausibilidade, a qual permite definir a veracidade do que se retm, do que pode e deve permanecer na memria; atuam ao nvel da estrutura cognitiva que
o indivduo intercambia com os grupos nos quais vive. desse
modo que a identidade do indivduo produzida junto com a
sua memria com aquela dos outros.
Os quadros da memria, em Halbwachs, so dotados de
uma forte normatividade, so modelares, exemplares, encorajamentos e advertncia, so uma cadeia de ideais e de juzos
que fornecem indicaes acerca do presente e do futuro.
Mas os quadros da memria coletiva possuem uma outra importante
caracterstica: no so nunca, por definio, annimos, vivificam
nomes, vultos, histrias, aos quais estamos intimamente ligados,
que suscitam em ns sentimentos e emoes inconfundveis, transmitem vividos e testemunhos de experincia.338
337
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afetivo, que nasce da estreita interao e do seu consequente intercmbio de experincias entre os membros do grupo.
Desse modo, fortalece-se o carter normativo da memria339
e reduz-se a potencialidade do indivduo na determinao da
lembrana. Diz Halbwachs que, de resto, ainda que eu no
caminhasse ao lado, bastaria que eu tivesse lido as descries da cidade, ou, ainda mais simplesmente, que estudasse
o mapa da cidade.340
183
como interpretam os seus prprios fantasmas e como os utilizam no sentido de servir de fonte para o conhecimento.343
Para Halbwachs, em Les cadres..., a origem social da memria deve-se ao esforo de compreender a forma atual das
circunstncias das lembranas (um presente impessoal e em
exterioridade) em direo a um passado pessoal que reconstitudo antes de se deixar reviver. Quando ns nos lembramos, ns partimos do presente, de um sistema de ideias gerais que est sempre nossa disposio.344 A nossa memria
tem tambm origem social pelo fato de que todas as recordaes, mesmo aqueles sentimentos no expressos, esto em
relao com todo um conjunto de noes que nos precedem.
Desse modo, pertinente dizer que nossa memria individual
social porque utiliza noes que esto presentes nos grupos atuais e nos passados de nossa existncia. Da que toda a
lembrana est em relao com a vida material e moral das
sociedades, as quais ns fazemos ou fizemos parte.345 Para o
autor, nossa memria possui tambm uma origem social devido ao fato de nos recolocar numa totalizao de um grande
nmero de memrias coletivas, sem ter capacidade de reflexo, de compreenso, como o caso dos sonhos, da linguagem, da noo de espao e tempo sem definio, porm com
sentimento de pertencimento e como manifestao de que a
sociedade se faz sentir tambm de outras formas.346
Nessa interpretao, possvel dizer que a nossa memria social uma virtualidade de memria coletiva devida ainda ao fato de que o que resta de uma ou muitas memrias
coletivas passadas quando a coeso e a presso do grupo desapareceram, pois entendemos que a experincia se perde na
345
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Nossos estoques de conhecimento so diferenciados; cada indivduo tem graus variados de claridade, distino e preciso que
surgem dos sistemas de relevncia determinados por sua biografia.
Por isso a importncia em levar em conta os atores individuais e
subjetividades coletivas variavelmente descentradas, ou melhor,
levar em conta criatividades sociais.351
O grupo social reconstri as lembranas, tornando-as fenmenos sociais. Da a importncia de o pesquisador conhecer
os smbolos e suas significaes no tempo, seu intercmbio e a
forma como construda a dimenso social das memrias individuais. A relatividade da memria ser condizente com os
quadros sociais e temporais que o indivduo viver em sociedade, os quais, segundo ele, no so poucos; esto presentes
em todas as fases da vida, algumas mais intensas (famlia,
religio, para muitos, as classes), outras menos marcantes.
Halbwachs diz que, no desenvolvimento contnuo da memria coletiva, no h linhas de separao nitidamente traadas, como na histria, mas somente limites irregulares e
incertos. A memria de uma sociedade estende-se at onde
pode, quer dizer, at onde atinge a memria dos grupos dos
quais ela composta. Para o autor, h muitas memrias coletivas, porm no pode haver muitas histrias. No fundo,
a ideia de que a memria coletiva o grupo visto de dentro.
A histria examina os grupos de fora e abrange uma durao
bastante longa. A memria coletiva apresenta ao grupo um
quadro de si mesmo que, sem dvida, se desenrola no tempo,
j que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele
se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas.57 Na
concepo de Halbwachs possvel ligar modernidade e tradio na esfera do cotidiano, do horizonte do vivido.
351
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A memria do grupo evolui tambm sob influncia do ambiente. As memrias coletivas metamorfoseiam-se ao adotar
novas ideias e ao habilit-las de novas representaes. No
significa dizer que as memrias coletivas rejeitam totalmente
seu passado; elas o reinterpretam e o reordenam nos quadros
de suas novas noes, enfim, os novos quadros coletivos devem se adaptar s novas condies de existncia.354
A memria um fenmeno social, possui um carter social,
uma linguagem coletiva e uma comunho de noes que compartilhamos com os participantes do grupo social.355 Existem
quadros sociais que servem de ponto de referncia, os quais
possuem uma localizao espacial e temporal, o que propicia
a localizao da memria num espao social. A famlia a
grande expresso desses quadros sociais, como veremos melhor a seguir.
HALBWACHS, M. A memria coletiva. p. 34.
COENEN-HUTHER, J. La mmoire familiale: un travail de reconstruction
du pass. Paris: LHarmattan, 1994. p. 16.
355
LINS DE BARROS, M. M. Memria e famlia. Estudos Avanados, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 29-42.
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O passado, os fatos singulares, o pensamento comum fortalecem e ritualizam a esfera social e particular da famlia.
No dizer de Halbwachs, a memria da famlia, ainda que se
transforme, retm, em grande parte, algo que comum, algo
do grupo.
O que se transforma na memria da famlia? [...]. Do momento em
que ela encara do ponto de vista dos outros, assim como do seu,
os acontecimentos bastante notveis para que ela os retenha e os
reproduza frequentemente, ela os traduz em termos gerais [...]. Mas
ns o temos dito, o quadro da memria familiar feito de noes,
HALBWACHS, M. La memoria collettiva, p. 151.
LECCARDI, C., op. cit., p. 86.
356
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A memria precisa ser trabalhada. A construo da reconstruo parte inerente na memria coletiva. O autor utiliza
com propriedade o exemplo da releitura de um antigo livro de
infncia para mostrar a esfera da mudana dos quadros de
memria e suas noes coletivas de referncias das experincias vividas.
Segundo Halbwachs, no seio do grupo familiar que poder preponderar certa complementaridade entre lembrana
coletiva e individual. graas a esta memria que o grupo
familiar pode sobreviver coeso no curso do tempo e no obstante as mudanas que o cercam, no acabar o sentimento da
prpria unidade.361 Habitam na famlia o carter afetivo, a
capacidade de coeso, o senso de cumplicidade, o comum patrimnio dos segredos, a normatividade da memria, o compromisso, a continuidade entre geraes.362 Isso tudo ficou
bem visvel para ns nas entrevistas que fizemos com idosos.
Pareceu-nos que, para eles, as famlias perdem o sentido econmico e ganham um sentido de ncleo afetivo, de parentesco,
de aproximao, de consanguinidade, de valorizao dos quadros de compadrio. Talvez esse processo todo se d em razo
das grandes perdas desses referenciais vividos no tempo e da
necessidade dos idosos de se afirmar pblica e grupalmente
retomando e reconstituindo esses horizontes.
por isso que a memria familiar, enquanto quadro, d
garantia de uma memria de identidade, de valor grupal, de
uma lgica genealgica, de um tempo vivido em grupo, de
imagem de uma afetividade particular e normativa, de uma
propriedade psquica, simblica e moral inerente ao grupo.
A memria familiar compe um quadro que ela tende a conservar
intacto, a qual constitui a armadura tradicional da famlia e a
natureza das noes coletivas que a procuram dominar o curso do
LECCARDI, op. cit., p. 75.
Id. ibid., p. 78.
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A famlia, como expresso mxima dos quadros de memria, possibilita assegurar lembranas, ordens do tempo
pelas imagens e ordem dos sentidos pelas ideias; propicia a
mediao de imagens vividas em uma sucesso temporal em
relao significao, aos smbolos, s lgicas de sentido. A
famlia possui um poder unificador tanto do quadro quanto
da memria; enfrenta com maior fora o problema da anomia,
da tendncia individualizante, de pluralidade de memrias,
da decomposio e reconstruo social, pelo fato de ser o grupo familiar um vivido histrico, hierrquico, afetivo, simblico, tico, religioso, moral, sexual e de poder diferenciado.364
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366
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367
Captulo 11
Memria e velhice
(fragmentos de empiria)
comum, nas anlises da dimenso biolgica, psquica
e social da memria, a afirmao de que os idosos relembram
mais, tm mais presente em sua lembrana coisas do passado e menos coisas do presente.
As pessoas idosas, se sabe, passam quantidade sempre maior de
tempo falando e pensando no passado. Parece natural que sendo
e/ou sentindo-se excludos do andar das coisas, sua vida se torna
mais gratificante e prazerosa, nos quais os eventos possuam um
impacto mais profundo. Quando o futuro parece pouco promissor,
e o pensar , inevitavelmente, acompanhado da ideia de morte,
os interesses regridem em direo aos anos passados. A pessoa
torna-se incapaz de lembrar eventos recentes e vive sempre mais
em um remoto passado como se uma sombra fosse colada sobre os
eventos recentes.368
J falamos bastante sobre a correlao existente entre recordao e esquecimento. Porm, bom termos presente que
esse processo no meramente biolgico. A dificuldade de situar a recordao de maneira precisa no tempo, de localizar um
ponto de referncia das coisas, o sentir-se distante no tempo
(cronologia extensiva) passado e tambm no do presente conduz a que o esquecimento se intensifique. Contudo, no podemos esquecer a correlao entre memria e esquecimento deliberado (consciente e intencional, externa ou internamente).
368
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evidente que o recordar no algo automtico e mecnico para ningum, independentemente da idade; requer
capacidade de percepo, de ateno, repetio, associao,
emoo, personalidade, sentimentos, utilidade, capacidade
dos rgos sensitivos, dentre outros aspectos.371 No obstante
a sua temporalidade, temos a convico de que a lembrana,
TADIE, J, I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000. p. 213.
MONTPASSANT, G. apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 215.
371
Uma excelente anlise fenomenolgica sobre a correlao entre tempo e memria est em PROUST, M. Alla ricerca del tempo perduto. Torino: Einaudi,
1981.
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370
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198
lecem utilidades, poderes, autoridades, afeies, invases, intervenes, assumindo papis de socializao. No fundo, o que
est em jogo o lugar da famlia nos novos papis familiares
no meio rural. Lins de Barros diz que so muitos anos de vida
que representam vida vivida, pensada, mudada, projetada
durante anos. Da a ideia mesmo de vivncia no sentido de
conhecer o viver.
A afetividade na memria
Se pode sorrir, se pode sofrer, se pode morrer de
uma recordao.
Moustaki
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Captulo 12
Ambiguidade de memria:
o laudatrio, o ufanismo e os ressentimentos
Identidade e memria coletiva so representaes de uma
origem e pertencimento grupal, espacial e, em parte, sanguneo
(dimenso cultural e, muito pouco, biolgica!), lingustico e culturalmente diferente. A dimenso reificada desse processo pode
se dar tanto interna quanto externamente. Esse externo pode
ser manifesto pela exacerbao da diferena, como prpria de
um certo grupo que viveu em determinado tempo e lugar. O processo interno representa a absoro de uma srie de prticas, de
crenas, significados compartilhados e creditados ao grupo, os
quais transcendem o fluxo da histria e da mudana.
Para poder subsistir no tempo, a identidade deve ser transpassada
com os anos e com as geraes. Por quanto possa parecer paradoxal,
as identidades mudam. A identidade muda porque se transformam as
representaes de seu contedo, porm permanece idntico o sentido
de pertencimento, ainda se, num certo momento em diante, se pode
comear a conceber a prpria identidade como diferente daquela dos
outros com os quais se pensava de ter uma identidade comum. Isso
, no muda o sentido ou a necessidade de reconhecer-se como parte
de uma comunidade.378
378
202
e provocadas num cenrio em que existem simbologias de etnicidade e vontades manifestas de estabelecer diferenas.379
A dimenso pica e ufanista da memria tnica colabora para
fortalecer essas representaes de suporte interno.380
As lembranas culturais servem a um grupo ou a uma
comunidade para radicar a sua prpria existncia no passado
e fortalecer, desse modo, a identidade presente. Nesse sentido, a construo que o presente faz do passado passa a ser importante. H, sem dvida, retrospectiva e prospectivamente,
um uso e um abuso cultural da memria, os quais podem justificar aes agressivas ou de aceitao de grupos e indivduos
(lembrar as guerras, os massacres tnicos, o anti-semitismo,
o conflito entre rabes e judeus, catlicos e protestantes na
Irlanda, sulistas e nortistas na Itlia). possvel, porm, recordando, afrontar as razes.381
Nos relatos de memria biogrfica e/ou genealgica, bem
como de depoimentos orais, comum, na literatura sobre imigrao italiana, a viso um tanto laudatria da vida da colnia e do empreendimento colonial como um todo.
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 155. Os autores definiram alguns
elementos que contribuem para a compreenso do complexo simblico que age
sobre a imaginao de um grupo e que o faz se autoperceber-se como tnico.
So eles: a transfigurao da memria histrica como celebrao do passado
comum, a sacralizao do complexo institucional e normativo (religioso e tico),
que a base de uma solidariedade comum e social, a lngua; as relaes de
descendncia comuns, o territrio mitologizado da origem e da identificao
do mesmo com o grupo.
380
Lembrar a representao literria e narrativa que grande parte dos italianos
imigrantes no Brasil construiu em relao ao negro, ao caboclo e ao ndio.
Esse processo nos faz lembrar, nesse momento, que estamos escrevendo isso
na Itlia, da italianizao da antinegatividade social, ou seja, grande parte
dos fatos negativos que envergonham os italianos e a Itlia, como alguns
italianos mais idosos dizem, so atribudos aos estrangeiros (geralmente africanos e do Leste europeu) como o caso de roubos, sequestros, assassinatos,
prostituio, pobreza, sujeira nas ruas e mendicncia. Esse processo tende
a reforar a ritualizao da etnicidade, criando diferenas, discriminaes,
dios, indiferenas, represso, temor de perda da identidade. Esse processo
no representa uma ao gratuita e meramente simblica, pois essa provoca
e induz a aes polticas concretas e diferenciadas, etnicamente, em termos
de consequncia e de aplicabilidade.
381
JEDLOWSKI. In:_______; RAMPAZI, M., op. cit., 1990. p. 27.
379
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204
tificam uma cultura em mudana e interconexo e entrecruzamentos espaciais e temporais, ou seja, a especificidade de
relaes de um grupo social que se diferencia pelo seu contato
(con)sequente com a terra, com o tempo cclico, com o grupo
familiar, e uma estrutura moral que luta por se preservar secularmente, com valores de reciprocidade, hierarquia, o uso
como um valor, etc. O discurso precisa ser visto num conjunto
de relaes que prima pela complementaridade entre cultura/
sociedade, natureza fsica (terra)/trabalho, num horizonte de
relaes induzidas e produzidas localmente.
Com isso, no estamos dizendo que a anlise da oralidade deve ser meramente acoplada e justificada pelos seus
referenciais culturais; precisa, sem dvida, ser problematizada na medida em que dimensiona excludncia, discriminao,
centralizao, enquadramentos, vanguarda e projeo pessoal
e/ou tnica, as quais fazem perder de vista processos sociais,
atores e situaes, contradies e conflitos que se constituem
a partir da cultura de contato. Essa tendncia ufanista, segundo o vis do progressismo e do sacrifcio, alerta-nos para a
necessidade de problematizar essa representao contida no
relato de memria. Sabemos que, no relato oral, o significado
no se autocontm, ou melhor, a realidade no se apresenta a
si prpria; ela possui um contedo de narrativa que preexiste,
que contextualizado, complementado, problematizado. As
lembranas e os esquecimentos podero, assim, atribuir significados memria na medida em que possamos fazer associaes temporais e espaciais, envolvendo formas de conduo
da vida, de estilos pessoais, de estratgias e conflitos.
Na viso de Maestri,383 utilizar a memria como dado
histrico, nesse sentido, significa ir alm desse enquadra MAESTRI, M. A travessia e a mata: memria, mito e histria na imigrao
italiana para o Rio Grande do Sul. In: SULIANI, A. (Org.). Etnias & carisma.
Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 761-781.
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Captulo 13
A objetualidade de memria grupal
Muitos objetos esto unidos inseparavelmente memria, cuja durao , em geral, o tempo de uma vida. No repassados a outras geraes, tais objetos perdem sua razo se
desvinculados de seus possuidores. Valores sentimentais esto unidos memria, ligados a uma figura familiar a quem
originalmente pertenceu o objeto; ambos se mesclam com valores sociais que os classificam como indicadores de distino
e refinamento. Atravessando geraes e cruzando temporalidades, os objetos de memria vo adquirindo outros sentidos
na sucesso temporal, mantendo, no entanto, a referncia
constante sua origem.386
Os objetos evocam um passado e promovem uma correspondncia desse passado com um espao. O espao de casa,
das atividades agrcolas e seus instrumentos, considerados
no tempo ultrapassados mas que ainda so guardados , e
utenslios de uso comum nas atividades cotidianas formam
uma espcie de museu de famlia; so guardados, geralmente, no poro da casa, no galpo e/ou no quarto do idoso. Em
geral, so objetos ricos de significados, pois expressam noes
de sacrifcio, propriedade, bonana, modernizao..., sempre
em correlao temporal entre o perodo de existncia/utilidade com o tempo presente de inexistncia e, portanto, de substituio. Da realidade material, esses objetos deixam lugar
realidade imaterial, imaginria; transportam, com o tempo e
com as correlaes do presente, novos valores e significados,
MAZUCCHI FERREIRA, op. cit.; ver, tambm, LUCENA, op. cit.
386
209
dependendo das formas, das possibilidades e das funes significativas que lhes possam ser impressas.
No h dvida de que, ao lembrar, o sujeito refaz o passado no presente, d novas molduraes s memrias e as faz
interagir espaciotemporalmente. Na viso de Mazzuchi Ferreira, justamente essa moldura social que trazida cena na
rememorao, seja nas casas de outrora, seja em imagens fotogrficas ou em artefatos rememorveis. Esses elementos circulam em ritmos que cadenciam a vida humana e no podem ser
vistos como um corpo em si, mas sempre situacionalmente. Esses vestgios passam a ser importantes porque revelam vividos
prticos, nexos e significados, funcionando como armas contra
a desfigurao social dos velhos, contra as fortes alteraes do
novo, do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente.
As imagens espaciais desempenham um papel na memria
coletiva. O lugar ocupado por um grupo no como um quadro
negro sobre o qual escrevemos, depois apagamos os nmeros e
figuras. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo
tem um sentido que inteligvel apenas para os membros do
grupo. Seguindo com as ideias de Halbwachs, ele nos diz que
imveis apenas o so aparentemente, j que as preferncias e os
hbitos sociais se transformam e, se nos cansamos de um mvel
ou de um quarto, como se os prprios objetos envelhecessem.
verdade que, durante perodos muito longos, a impresso de
imobilidade que predomina e que se explica, ao mesmo tempo,
pela natureza inerte das coisas fsicas, pela estabilidade relativa dos deslocamentos ou das mudanas de lugar, e as modificaes importantes introduzidas em certas datas na instalao e na moblia de um apartamento assinalam tantas pocas
na histria da famlia.387
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Eckert391 diz que a emoo em torno da saudade, construda como um smbolo, manifesta a coexistncia alhures de um
grupo com valores comuns, reordenados como ideais num desejo de continuidade. A festa nasce motivada pelo desejo da
sociabilidade, realimentando o trabalho de memria coletiva,
num jogo de reciprocidade pertencente a um tempo cclico.
No temos dvida em afirmar que, para os idosos entrevistados, a famlia vista como um monumento simblico
e, ao mesmo tempo, possui seus micromonumentos na esfera
do lugar/local, do vivido, dos sentimentos e das pertenas. O
sobrenome, a terra para o imigrante, a reproduo domstica, a casa, os objetos sagrados, ou seja, aquilo que marcou
presena contnua no tempo vivido e que pressiona para a
conservao em meio grande tendncia de esquecimento e
de alterao.392
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Temporalidades contnuas
A memria a continuidade do passado num
presente que dura.
Ferrarotti
O tempo histrico e o contexto social encontram-se, reelaboram e resgatam significados de identidade cultural a partir das exigncias e necessidades do presente. A no imutabilidade da tradio no passado e no presente, sua transmisso
ou seu esquecimento inter ou intrageraes podem ser relativizadas em termos de significados por diferentes ou por idnticos grupos sociais. O caso, por exemplo, do dialeto vneto
ou de outro qualquer, dos nomes que balizavam as diferenas
regionais entre italianos e entre esses e os brasiliani, elementos que sempre foram marcas de etnicidade, so acionados
por alguns e, por outros, completamente esquecidos. assim
que Halbwachs fala de lembrana como reconstruo do passado, realizada com a ajuda de dados tomados do presente e
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Marc Aug nos diz que o espao coletivo tambm temporalizado, pois carregado de valores simblicos; portador
de identidade, pela qual os indivduos se reconhecem e se definem (ideia de Halbwachs); de relaes que vinculam indivduos e histria, pois seus membros se encontram ou expressam traos do passado. Desse modo, o espao coletivo trs
vezes simblico: o das relaes de cada um consigo mesmo,
com os outros e com um passado comum.399
Malgrado a possibilidade de memria comunicativa, singular e cotidiana informal do indivduo, uma exigncia da
sociedade institucionalizar normas, valores e recordaes que
tenham como base a narrao sacra, mitolgica e a fonte documental (histrica). Simbologia e racionalidade, nesse horizonte, unem-se e fornecem as bases para a memria histrica,
cultural e societal.
J falamos que h uma estreita correlao entre memria e experincia. Esta ltima, ou daria para dizer ambas, na
concepo de Benjamin, faz parte de sociedades com maior
Ver AUG, M. Storie del presente. Per una antropologia dei modi contemporanei. Milano: Il Saggiatore, 1994.
399
220
conscincia coletiva e pertencimento, tpicas da pr-modernidade (como bem analisou tambm Drkheim). Benjamin utiliza o termo vivncia para substituir a noo de experincia
e sua desterritorializao na sociedade capitalista. Como j
vimos, segundo Benjamin, as vivncias so frgeis, cristalizam uma reproduo do tempo e das aes sobre/no mesmo
veio do automatismo e da ausncia de temporalidade (portanto, aistrica) e de evocao. As cincias sociais e humanas
so instigadas a compreender esses processos, a produzir conhecimento histrico-social de uma memria/vivncia (e causadora dessa), de uma memria-desesperana, uma fruio
intensa em termos narrativos e de reproduo histrica.400
Diz Mazzucchi Ferreira401 que na vida cotidiana, no vivido, que as identidades se constroem e se afirmam, e das
coisas e das relaes do passado que os velhos se nutrem.
nesse vivido, nessa trajetria social vivida com os prximos
que se constitui o eu individualizado, fruto dos papis sociais assumidos. A identidade social da famlia fundamenta-se nas ideias de desempenho e de esforo pessoal para o
estabelecimento de sua histria. Em ambas as situaes, o
importante a ideia de transmisso de bens simblicos s
geraes seguintes, procurando-se, em ambos os casos, situar
na famlia o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e, ao mesmo tempo, o veculo da preservao dos
valores familiares.402
As narrativas de memria poderiam ser incorporadas ao discurso das cincias sociais e humanas no sentido da anlise discursiva (hermenutica), da
substituio do contedo, da localizao temporal (contexto) da(s) viso(es)
de mundo e da comunicao, das ordens dos tempos (mudana e durao das
formas de existncia social).
401
MAZZUCCHI FERREIRA, M. L. Memria e velhice: do lugar da lembrana.
In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos antropolgicos sobre identidade, memria e poltica. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
p. 209-221.
402
Idem.
400
221
Temos a convico, pelas informaes obtidas nos contatos com idosos, de que a foto, em seu cotidiano, passa a ser um
agente sociocultural de transformao que ocorre no espao
familiar, expresso da constituio de ambientes, espaos e
funes novas. No h dvidas de que h sempre um forte
No nos interessamos aqui pela questo da veracidade, objetividade/subjetividade das fotos, mas, sim, tentamos refletir sobre sua comunicao simblica, os
sentimentos no vivido dos nonos; manifestaes essas, em geral, direcionadas
vida camponesa, que se articula com a terra, com a sociabilidade dos seus
(os camponeses) na comunidade (nos momentos de festas e de rituais religiosos
pblicos) na famlia (sentido de agrupamento dos membros reunidos e seus
rituais alimentares). Trabalho, famlia e sociabilidade, fragmentados e unidos,
em vrias dimenses e aes, constituem o trip expressivo, comunicativo da
ilustrao fotogrfica. Atualmente, encontram-se fotos de nonos com netos/
bisnetos pequenos. Esse processo revelador de co-presena, coabitao e de
redefinies de funes dos primeiros nos agrupamentos familiares.
404
LINS DE BARROS, 1989, op. cit., p. 40.
403
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223
desse auxlio; as biografias tambm esto sempre correlacionadas a objetos, a fatos e a circunstncias temporais e materiais. Diz Bergson que necessrio que o passado seja colocado em movimento pela matria e imaginado pela mente.407
A reconstruo do passado necessita de suportes, de testemunhos e de associaes externas para recordar momentos e reviver fragmentos do passado. Por isso, a necessidade
manifesta dos idosos que residem no meio rural de quererem
mostrar coisas antigas que fizeram (casa, moinhos, arados,
comrcio...), as quais so expresses de sua presena na histria.
Alguns idosos que habitam a cidade manifestam desejo
(e o praticam) de retornar ao meio rural, sua antiga propriedade, espao esse que foi desenhado tambm pela sua
presena. Algumas das desiluses culturais e econmicas dos
idosos devem-se justamente aos contratempos e s aes que
se desenvolvem no cotidiano. O desejo dos idosos de refazer
o passado e de reviv-lo do mesmo modo como j se desenvolveu, pois assim podem narrar sua experincia e faz-la significativa aos ouvintes pela expresso de sua conscincia significativa. Os instrumentos significativos tendem a cristalizar,
objetal e simbolicamente, a significao vivida/experienciada.
desse modo que a fotografia possui sempre um indcio
verbal. Sua ligao com a fonte oral manifesta-se no horizonte da subjetividade. Os argumentos, os cenrios, os fatos, a
personificao, a objetividade/subjetividade, a ativao da
memria, as correspondncias temporais, as descries, a auto-representao (principalmente quando de fotos de famlia)
etc. intensificavam-se e a relao entre entrevistador e entrevistado manifesta-se de forma mais dinamica se auxiliada
pelas fotos.
BERGSON, H. Matire et... p. 187.
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social, registro de conquistas, valorizao da existncia, colocando em desafio o futuro e a sobrevivncia do passado numa
imagem.412
Alm da questo da identidade, da subjetividade da histria, segundo Bourdieu, o desenvolvimento e a necessidade
da fotografia advm da emergncia da democratizao da memria, do controle do poder, de instrumento de integrao e
controle da memria coletiva; significa apoderar-se da memria e do esquecimento, das representaes e autorepresentaes, seja da informao, seja do ocultamento. Diz Le Goff que
aquilo que a fotografia oculta mais do que o que ela diz e aquilo
que ela conserva uma mensagem carregada de implicaes sociais
que frequentemente tendemos a esquecer. [...]. Os esquecimentos
e os silncios da histria so reveladores destes mecanismos de
manipulao da memria coletiva.413
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415
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230
dimenso afetiva, significativa, coesa, de interioridade e exterioridade, de sentimentos pessoais, regras e costumes vividos por eles e por outros que ajudam a fixar nosso lugar,
nossa forma de pensar. Na anlise do autor, a experincia
expresso individual de uma memria de totalidade que se
completa em nossa lembrana individual. A experincia da
memria familiar, por exemplo, no s a memria de um
grupo particular, mas de regras incorporadas de formas de
vida, de parentesco, de princpios organizadores, de hbitos
em concretude.
A experincia de uma memria coletiva organizada por
um vivido em correspondncia com lgicas sociais de significao que ligam as recordaes. A experincia de uma memria coletiva possui atributos normativos, smbolos de exterioridade temporal, de diferenciaes de noes sociais que possibilitam a passagem da imagem ao conceito, de tipologias de
diacronia, de tradio e costumes em referncia a experin
cias vividas de grupos, da histria oral, dos mecanismos de
memria (reiterao de smbolos, comemorao, dos ritmos
cclicos naturais, das histrias sagradas fundadores de iluso de eternidade), dos mediadores e notveis417 de memria,
internos e externos aos grupos, de sua funo nostlgica e de
sentimentos desejados em relao ao presente, da valorizao
e da legitimao da memria dos grupos particulares.
A mudana e a conservao, a recordao e o esquecimento, como dinmicas que se excluem, se complementam,
se retroalimentam e se conflituam, so fundamentais para
a conservao, a ruptura e a redefinio da experincia de
memria e da memria como experincia. O progresso, a ambivalncia de significados de fatos temporais na histria, os
Diz Halbwachs que as sociedades, ao atribuir aos velhos a funo de conservar
os traos de seu passado, os encoraja a consagrar tudo o que a eles pertence
como energia espiritual a recordar (Les cadres... p. 107).
417
231
mitos e smbolos de agregao/ruptura e a continuidade social, as novas formas de interao (experincia individual e
espontnea, automtica e livre de referenciais coercitivos e de
integrao), de novos saberes e domnios cientficos e projetivos (futuro e virtual) da realidade social so, tambm, legitimadores da dinmica, algumas vezes dialtica, entre experincia recordada e esquecimento.
Segundo Halbwachs, o trabalho de construo do esquecimento pelos grupos fundamental porque se trata da
eliminao de lembranas individuais que aos grupos no
interessam mais. Segundo o autor, existe, naturalmente, nos
quadros, uma estrutura do esquecimento, meio-espontnea e
meio-voluntria. O esquecimento apresenta-se, desse modo,
como manifestao de uma experincia coletiva da morfologia
grupal (interesse, afetividade, estabilidade, reaes internas
e externas, mudanas individuais...), de finalidade e poder do
grupo, de temporalidades, etc.
O autor deixa claro que o trabalho de memria pode ser,
ao mesmo tempo, de esquecimento e de reconstruo, de hierarquizao temporal de memria (trabalho simblico para
integrar os grupos, exemplo disso a memria de classe, a religiosa e a familiar), das memrias que se tornam dominantes
e das dominadas, dos rituais e dos nveis de legitimao, bem
como das antigas crenas e da qualidade moral dos grupos e
suas temporalidades em redefinio. Por isso, a experincia
de memria possui uma dimenso estratgica de racionalidade adaptativa e, muitas vezes, instrumental.
O passado, o presente e o virtual exprimem linguagens e
sensibilidades sociais, bem como correntes de pensamentos e
ritmos de vida social, que do dinamismo hierarquia, inten-
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234
Nessa concepo, a memria possui uma dimenso criadora e recriadora de suscitar e ressuscitar imagens, palavras
(vozes), situaes, pessoas e ns-mesmos. Nesse sentido, o
tempo presente importante e indispensvel, pois permite
oferecer uma perspectiva sobre o passado e confere-lhe sentido, intencionalidade, incertezas quanto ao seu valor objetivo
em razo das mltiplas reconstrues subjetivas.423
Na anlise de Halbwachs, como j vimos, a sociedade
presente s retm do passado aquilo que corresponde a suas
dinmicas atuais e que pode se enquadrar nas mltiplas intencionalidades do atual.
Ibidem.
423
Captulo 14
Filtragem de memria
J desenvolvemos bastante a ideia de que a memria no
um dado natural, mas uma construo socio-histrica e cultural.
Nesse sentido, a intercorrelao entre lembrana e esquecimento
o que marca a presena nessa construo. Para tanto, os mtodos de registro ou de conservao so importantes. A narrao,
o texto escrito, outros tipos antigos em madeira, pedras, tecidos,
papel, barro, folhas, chips de computador, gravador, filmadora,
fotografia, pintura, escultura etc. so suportes de que necessita a memria para poder se presentificar e se futuricizar.
Autores afirmam que a possibilidade de seleo e de filtragem
da memria se fez mais intensa justamente pela ligao entre
memria e poder, memria e comunidade, memria e grandes
e pequenas tradies.424
No podemos esquecer que a lembrana e o esquecimento esto na base de cada forma de memria. Memria oral
e memria escrita no se excluem, podem andar separadas,
mas, ao mesmo tempo, podem se fusionar, se alterar. Mitos
populares, identidades fabricadas, genealogias, constituio de grupos identitrios, dentre outros, so ou podero ter
sido expresses dessa conexo de smbolos grficos e de linguagem oral, os quais contriburam para estabelecer conexes simblicas e identitrias entre passado e presente, entre
sociedade e indivduo, o que, em ltima instncia, a funo
da memria.
424
236
A identidade, por exemplo, como dizem Matera e Fabietti, tem origem nos processos seletivos e de remoes da histria; desse modo, pode se perpetuar reproduzindo ou reformulando-se pela via dos mecanismos de representao cultural
(memria coletiva para Halbwachs), os quais entram em relao dialtica com a realidade.
A memria pode ser definida, ento, como a sede dos
processos de seleo, remoo, interpretao, elaborao de
situaes passadas. Nesse cenrio, entram o indivduo, o coletivo, o recurso linguagem, aos ritos, s vises de mundo
presentificadas e contemporaneizadas, os modos concretos
nos quais se realizam a memria, poder e valores dominantes
e/ou socioculturais.
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239
RICOEUR, P. La mmoire...
TODOROV, T. Les abus de la mmoire. Paris: Arla, 1995. p. 13 e 150.
432
Ver RICOEUR, P. La mmoire, lhistoire, loubli (p. 108). Para uma anlise
interessante sobre o uso ideolgico do discurso como forma de manipulao
do poder, do dever de memria, em nome da justia das vtimas de abusos
de ideologias repressivas, ver RICOUER, P. op., cit., na discusso que o autor
faz do livro de ROUSSO, H. Le syndrome de Vichy, de 1944 nos jours. Paris:
Seuil, 1987.
430
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240
ria como base moral, como evocao identitria, como cruzada contra o esquecimento.433
J vimos que o esquecimento impede a tomada de conscincia de um acontecimento traumtico, porm a psicanlise
explica que o trauma permanece mesmo quando inacessvel
e indisponvel.434 O esquecimento, segundo Ricoeur, interpretando Freud, necessita de fenmenos de substituio, sintomas que mascaram traumas. Nesse ponto, tanto Freud quanto Bergson so defensores do inesquecvel, ainda que cada um
interprete o inconsciente a seu modo.
Para Ricoeur, o esquecimento pode ser uma estratgia
de fuga, possui uma dimenso ambgua (ativa e passiva, na
tica da negligncia, da omisso, da imprudncia). A prpria
memria pode se revelar como uma organizao e exaltao
do esquecimento. Narrar um drama pode significar esquecer
outro, diz Ricoeur.435
NORA, P. (Dir.). Les lieux de mmoire (III Les France). Paris: Gallimard,
1986.
434
Ver, nesse sentido, ROSSI-DORIA, A. Memoria e storia: il caso della deportazione. Soveria: Rubbettino, 1998.
435
RICOEUR, P. La mmoire, lhistoire, loubli, p. 584. Nessa obra (p. 536-589),
o autor faz uma excelente anlise sobre a manipulao da memria, sobre
o esquecimento comandado principalmente durante a ocupao alem na
Frana, sobre os movimentos de liberao, o anti-semitismo, a estrutura
poltica do pas no perodo, a desmistificao do resistencialismo posterior, a
exortao ao esquecimento, omisso, cegueira, ao perdo, anistia (essa
como esquecimento institucional e disseminado), poltica de tolerncia em
nome da unidade nacional e a uma amnesia comandada e privada da carga
traumtica, um quadro de terapia social guiado pelo esprito do perdo.
433
241
ria. Tanto a identidade individual quanto a coletiva necessitam disso. desse modo que no cansamos de dizer que a
memria no um dado natural, um pensamento social (ou
uma forma de seleo social da matria cultural e histrica).
Halbwachs foi um dos primeiros autores, ps-dcada de
20 do sculo XX, a relacionar memria, identidade e cultura.
O autor afirma que a memria coletiva, ou o passado partilhado, s pode existir em presena de trs fatores que lhe so inerentes: o referimento s coordenadas espaciais e temporais, a
uma correlao simblica do/no grupo e a uma reconstruo
contnua da memria mesma. A correlao espaciotemporal
fundamental para a lembrana, alis, esta sempre situada
nessas duas esferas; quando se fala em traos de memria,
so os sinais/significados que eventos deixaram no espao e
no tempo. Segundo Halbwachs, os traos de memria produzem, no obstante o fato de serem representao, ritos ou
simples objeto, uma imagem de permanncia e estabilidade.
J falamos que entendemos a noo de memria em Halbwachs como uma forma de seleo social da recordao, de
construo social dos eventos, de produo de representaes
que so construdas a partir de um trabalho de seleo, o qual
engloba ou exclui outras representaes. Por isso, entendemos memria como possibilidade de se ter uma viso sobre o
passado. Nesse sentido, a memria apresenta uma dimenso
poltica, a qual pode exercer influncia histrica, pedaggica, cidad; pode construir, conscientemente ou no, objetivos
determinados; pode fornecer representaes de significados e/
ou para nos dizer por que uma sociedade, uma cultura, uma
identidade o que no presente.
A correlao entre memria, antropologia e historiografia pode se tornar importante no s para dizer por que uma
cultura, uma sociedade e uma identidade so o que so no
presente, mas para dizer o que no so, o que poderiam ter
242
sido, o que so outras sociedades, outras culturas.436 A seletividade da lembrana est em correspondncia com a possibilidade de constituir mltiplas formas de identidade coletiva.
desse modo que a memria no um simples e fiel registro do passado como queria Bergson e que tanto Marx,
Freud e Halbwachs, se esforaram para negar mas uma representao do passado movida e dialetizada na correlao
entre lembranas e esquecimento.
A filtragem de memria e os esquecimentos podem tambm ser manifestao de uma racionalidade interna que quer
fazer-se ouvir pelo caminho do ethos. Geralmente, as tradies s se mantm onde so possveis justificaes discursivas e dilogo aberto com tradies outras, mas, tambm, com
modos alternativos de fazer as coisas. E esse alternativo e
essa outra possibilidade que confronta mundos, discrimina,
em parte, o passado e torna pretritas determinadas relaes,
funes, aes e sujeitos. Quando se tem a sociedade local e
algum momento de sua histria como foco de anlise, necessrio considerar sua estrutura social e as relaes sociais da
decorrentes. com esse pensamento que estamos tentando
refletir sobre a mudana social, que no meramente sinnimo de inovao, ainda que se saiba que toda a mudana implica graus de inovao. O importante perceber as mltiplas
operaes de traduo que se efetuam entre as pluralidades
de espaos particulares de formulao e de tratamento dos
problemas pertinentes, especialmente entre geraes.
H a necessidade de perceber a relao entre as potencialidades tcnico-cientficas e as lgicas prticas (Habermas
fala muito sobre isso). Essa articulao vai no sentido de uma
normatizao de atividades de produo ou, ento, no sentido
de uma complexidade recproca de prticas dos sujeitos envol MATERA, V.; FABIETTI, U. Memoria e identit. Simboli e strategie del ricordo.
Roma: Meltemi Editore, 1999.
436
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245
lavar, microondas, lavadora de louas etc.), em processos tcnicos envolvidos em torno de identidades de gneros no trabalho, os quais implicam cada vez mais o saber-fazer.
A adoo de um aparato tcnico no universo familiar
de trabalho vem ao encontro de prticas e cotidianos no vivido, construtores de um habitus comum. Padres culturais
perduram quando h uma conservao de elementos que lhe
manifestam origem, ou quando mudam as significaes para
resolver os desafios cotidianos. A tradio aqui entendida
como orientao valorativa de significados passados, mas que
se manifestam comumente em momentos e em situaes de
rupturas e/ou redefinies de processos sociais locais.
Uma outra questo importante que precisa ser entendida que a manifestao oral da memria da luta e das estratgias de idosos, independentemente de sexo, para encontrar
espaos internos de significao e de preservao do e no grupo familiar, revela o desejo de jogar para longe a dependncia
e o peso da velhice para si e para os do grupo. Possibilitar
uma face externa diferenciada de seu papel uma forma de
no deixar cair tudo, como uma idosa comentou. A noo de
queda na velhice algo de significado e sensibilidade profunda, porm no deixar cair significados de co-presena, o que
fundamental para os idosos.
Agregar trabalho como valor de uso (insistimos na ideia
do uso como valor), bem como propiciar uma receita financeira para o grupo familiar, via aposentadoria, permitir uma
maior liberao da mulher das atividades educativas, morais
e de vigilncia externa, bem como aproveitar esses momentos e relaes para o resgate do passado e desejar cristalizar
relaes futuras (mesmo que no possam mais v-las amanh!), contribuem, segundo os entrevistados, para legitimar
sua presena no ncleo familiar. A mobilidade de grupo, as
mudanas pessoais e coletivas, as rupturas so importantes
246
439
TER C E IRA pa r t e
Ressignificao de memrias
O relembrar uma atividade mental que no
exercitamos com frequncia porque desgastante ou embaraosa.
N. Bobbio
Captulo 15
Memria, cultura e identidade tnica
No sabemos o que seria de uma cultura na qual no
se saiba mais o que significa narrar.
P. Ricouer
Nesta parte, como j mencionamos, e tambm esporadicamente j fizemos referncia no decorrer de todo o texto, reconstituiremos e analisaremos alguns fragmentos de memria
de um grupo de idosos que convivem com parte de suas famlias no meio rural e urbano da regio colonial do Rio Grande
do Sul, mais especificamente nos municpios de Veranpolis,
Nova Prata e Guapor, procurando dar nfase aos elementos
socio-histricos e culturais que compem o tempo do espao
original e o tempo do espao do incio do novo, ou seja, o incio da nova colnia atravs do processo migratrio interno e
das trajetrias migratrias para as cidades da regio.
Intentamos analisar e perceber a ressignificao de
universos culturais, econmicos e sociais em conflito/tenso,
ambiguidades e ambivalncias expressas no horizonte da famlia, no trabalho, no religioso, na convivncia comunitria,
dentre outros aspectos.440 Teremos presente, no decorrer da
anlise, algo da produo socioantropolgica do campesina Como j mencionamos, muito desse material emprico e muitas descries de
falas esto nos estudos que antecederam o presente, tais como Terra, trabalho
e famlia; Memria e cultura e Um pequeno grande mundo: a famlia italiana no meio rural (ver referncia mais completa na bibliografia). Aqui, parte
desse material ser analisada com o objetivo de aprofundar os significados de
memrias, as reconstrues das formas de pensar e de viver, seja no horizonte
da fala, seja no mbito do cotidiano vivido e no significado cultural para os
grupos de pertencimento tnico.
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tina a vida material e sua estruturao classista com experincias do vivido na constituio do pensamento e dos procedimentos dos atores sociais. Isso no significa dar autonomia
e determinao aos processos histrico-estruturais nem aos
indivduos.444 H um horizonte de experincias e sentimentos coordenadas de sua cultura, como normas, obrigaes
e reciprocidades familiares e de parentesco ou mediante
formas mais elaboradas como experincias artsticas e religiosas.445 Valores e razo esto imbricados num campo de
lutas,446 de escolhas, de situaes e adeses em confronto e/ou
conformidade com o patrimnio cultural (habitus)447 e a conscincia afetiva e moral dos atores em questo.
Por mais que as representaes da sociedade moderna
tendam a focalizar as prticas sociais derivadas da existncia primeira dos indivduos ou do somatrio desses, resduos
e imaginaes irredutveis brotam das prprias relaes de
poder, as quais, porm, escapam do poder. A noo de habitus familiar de colono, ligada noo de experincia, resgata
aes do sujeito como determinado/determinante, no restrito
ao universo da classe, mas esfera da cultura, conscincia
social do agente, incluindo a suas representaes, experin-
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cias socialmente demarcadas, passadas e presentes, confrontadas, em conflito e tenso com seus limites.448
Thompson enfatiza os elementos culturais sobre os de
natureza socioeconmica, salientando a importncia de se decodificar o comportamento e de se desvendar normas invisveis de ao, sem esquecer a estrutura das relaes de classe.
O interesse de Thompson pelas formas de existncia e pelas
atitudes, no tanto pela transformao e pela causalidade,
postulando a interao dialtica entre experincia e conscincia social. Demonstrar a motivao racional, autnoma e
coerente dos ativistas populares equivale a mostrar, em outra
esfera determinante, que os inferiores representaram um
importante papel na configurao de sua prpria histria,449
o que, para o nosso caso, significa resgatar os resduos histricos constitutivos de relaes em torno da famlia, configuradores do ethos de colono.
Como j vimos, a experincia aciona e influencia a cultura
e os valores, articula aes sobre outras atividades. A experincia, para Thompson, gerada na vida material, localizando o
ser no social e formando tambm sua conscincia social, porm
a previsibilidade das aes no totalmente determinada.
por isso que reconstituir espaos, smbolos e permitir
ressignificaes orais e objetais de uma cultura que possui
horizontes populares, que, mesmo no sendo conscientemente trabalhada, reflete processos histricos e culturais de longa data, como o caso da camponesa, , no mnimo, reverter
Ver RASIA, op. cit.
As descries e anlises de Thompson sobre as rebelies pela falta de alimentos na Inglaterra do Sculo XVIII mostram-nos como os aldees, movidos
por uma economia moral, impunham a coleta e a venda de gros conforme a
tradicional economia moral, o que fez a pequena nobreza rever seus conceitos sobre o papel do ativismo coletivo, bem como manter alguns aspectos do
modelo paternalista. O papel de uma economia moral compartilhada tornase associado a questes de poder, identidade e imbricao aos horizontes da
estrutura social, demonstrando, assim, a importncia dos fatores culturais e
comunitrios na motivao dos sujeitos para construir sua prpria histria.
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de um domnio substrato em relao s mudanas consideradas irreversveis. Desse modo, imagens e vises de mundo,
duram mais e podem passar de gerao a gerao; tornam
possvel a operacionalidade de sinais de memria coletiva, de
reencarnao de personagens e formas de vida passada: ou
seja, poder acontecer, na prtica, uma tendncia de os idosos
transmitirem aos mais jovens contedos mais importantes da
experincia vital das geraes precedentes.450
Poderamos dizer que esse um trabalho submerso, mas
real, de idosos nas famlias e no seu estreito mundo social
existente; uma tentativa de reconstruo incessante do fio
incerto da tradio familiar, a trama invisvel que sustenta
o ciclo da continuidade com as mudanas culturais. Temos
a convico de que as narraes intergeracionais, principalmente em famlia de mais co-presena e pertencimento como
aquelas do meio rural da regio de pesquisa, fazem-se sempre
intermitentes atravs do peso da experincia e do acervo
lingustico. Diz Paoli que importante recriar a memria dos
que perderam no s o poder,
[...] mas tambm a visibilidade de suas aes, resistncias e projetos.
Ela pressupe que a tarefa principal a ser contemplada em uma poltica de preservao e produo do patrimnio coletivo que repouse no
reconhecimento do direito ao passado enquanto dimenso bsica da
cidadania, resgatar estas aes e mesmo suas utopias no realizadas,
fazendo-as emergir ao lado da memria do poder e em contestao
ao seu triunfalismo. Aposta, portanto, na existncia de memrias
coletivas que, mesmo heterogneas, so fortes referenciais do grupo
mesmo quando tenham um fraco nexo com a histria instituda.
exatamente a que se encontra um dos maiores desafios: fazer com que
experincias silenciadas, suprimidas ou privatizadas da populao se
reencontrem com a dimenso histrica.451
256
Os valores culturais superpostos e as histrias contadas pelos migrantes aparecem carregados de subjetividade;
no so exatamente as representaes do passado porque so
adaptadas s situaes atuais, ou seja, ajustadas s identidades no presente. Nas narrativas histricas misturam-se
sonhos, imaginao e realidade; imaginaes compartilhadas
entre os habitantes dos espaos em mltiplas camadas de
tempo e de espao, representaes dinmicas pelas quais os
migrantes percebem e confrontam mudanas nas suas condies de existncia na interseco de culturas.452
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Os imigrantes e seus descendentes viam com certa hostilidade e desprezo o modo de vida principalmente dos negros e caboclos que habitavam a regio. A produo agrcola dos caboclos,
prioritariamente voltada para o autoconsumo, seu isolamento e
no-fixao por muito tempo num local, a forma como produziam, a pouca importncia dada apropriao da propriedade
privada, dentre outras, como caractersticas da sua organizao e do desenvolvimento socioeconmico, promoveu diferenciaes entre os estratos socioculturais no espao agrcola.
A estruturao da propriedade pela determinao da
legislao, pelas condies econmicas dos colonos-migrantes, pelo seu carter tradicional de relao com a terra e com
determinados tipos de produtos, pela topografia, em grande
parte muito montanhosa, pela expanso e facilidades naturais e infraestruturais (rios, estradas) etc., sem dicotomizar
e/ou reificar a chamada vocao empresarial, fez da regio
colonial um espao de economia dinmica.455
Ver ROCHE, J. A imigrao alem no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1969. v. I.
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O trabalho artesanal na confeco de tecidos, na produo de inmeros produtos coloniais, os moinhos, as atividades
artesanais profissionais,456 mesmo sendo de mbito local, serviam como complemento de renda para o colono, como recurso de subsistncia, como fonte alimentar e como suprimento
de instrumentos domsticos e/ou domiciliares.457 Essas atividades e esses domnios tcnicos emigraram com os colonos
at as Colnias Velhas e, dessas, para os novos espaos de
deslocamento; apenas se adaptaram s condies espaciais
e objetivas das colnias. Esse processo aglutinava as foras
plenas da famlia, bem como as marginais (no caso, crianas
e idosos).
A dimenso da racionalidade e da tica do trabalho que
a alimenta e, ao mesmo tempo, promove o acmulo de capital
fez-nos entender tambm que, na concepo dos sujeitos da
pesquisa, progresso no se fazia sem sacrifcio, alis, sacrifcio e progresso, para a tica do colono, so dimenses complementares: o sacrifcio era e continua sendo promotor do
progresso; com esse, o progresso vinha naturalmente.
As prticas de herana eram pensadas com o sentido de
evitar a fragmentao das unidades de produo. O direito
costumeiro e as vrias formas do sistema de partilha, quando
havia, eram acionadas para determinar as regras de herana.
O problema da escassez de terra e da pouca perspectiva de
ter na terra possibilidade de reproduo econmica, a existncia hoje de um mercado de trabalho fora da agricultura, em
atividades que no requerem tanta qualificao profissional,
facilitaram os arranjos e esto tornando menos problemtica
Ibidem.
SCHNEIDER, S. Os colonos da indstria caladista: expanso industrial e
as transformaes da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. Dissertao (Mestrado) - Unicamp, Campinas, 1994; ver, tambm, do mesmo autor
Agricultura familiar e pluriatividade. Tese (doutorado) - Ufrgs, Porto Alegre,
1999.
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diferenciadas entre ambos, dos tipos de solos, da disponibilidade de mo de obra e do acervo tcnico disponvel, da prpria
dinmica e interao entre as unidades familiares, do mercado de insumo e de subsdios tcnicos para a agricultura, do
conhecimento de tcnicas e recursos internos, etc.459
Os vnculos de vizinhana, honestidade e reciprocidade,
bem como uma contabilidade do tempo no muito racional e
formal, eram alguns dos requisitos que materializavam essa
prtica histrica em meio aos colonos. A entreajuda situavase numa dimenso bilateralmente acordada em funo de vrias questes. A proximidade familiar e fsica, a preciso e
a solidariedade tradicional, como elementos constituintes do
ethos de colono, criaram formas de deciso.
Havia um saber incorporado e historicizado em funo
das adaptabilidades temporais e econmicas, sobretudo mais
recentemente, quando essa atividade passou a ser uma variao bem mais econmica do que agrcola. As estratgias
defensivas para dominar, prtica e simbolicamente, o risco e
as perdas esto no mbito do conhecimento, porm os idosos
no cansam de dizer que, quanto mais melhoram tecnicamente na produo, mais sutilezas, mais debilidades e cuidados
aparecem; a vigilncia e o saber emprico-tcnico precisam
ser mais intensos e rapidamente acionados.
A forma integrada de produtos, processos, tempos, saberes e fora de trabalho agrega valores de uma atividade e de
um produto a outro, o que faz o resultado global a corrente
ser, em alguns momentos, positivo; so articulaes agregadas, integradas, subordinadas ou no ao conjunto de fatores
e estratgias adaptativas de que os colonos dispunham e com
os quais se aventuraram em razo de necessidades, de carncias, de processos globais, acumulaes, presentes e ausentes,
Idem.
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mico. O trabalho como obrigao, dedicao, dever moral, superao, virtude, acesso riqueza e promoo da exaltao
do homem etc., ligado propriedade, formaria o espao social
e a trajetria sequencial das estratgias de reproduo familiar e organizao da individualidade do colono.
Compreender o feixe de relaes que se aglutinam e se
anulam num processo de migrao e localizao num determinado lugar no tarefa fcil. A relao homem/natureza
foi resolvida pelo domnio daquele sobre esta (a ideia de desbravar, de pioneiro, de derrubar, de mexer com a terra, de
construir, perpassa muitos desses textos). As relaes sociais
na produo so pouco ou nada inseridas ou at desconsideradas, ou, ento, vistas s do prisma da produo, do econmico
e/ou do cultural. O social apresenta-se segundo o olhar dos
grupos que se sobressaram, que cresceram, que assumiram o
poder poltico; ao mesmo tempo, so exemplos de moralidade
e de vida em famlia. No so poucos os que misturam essas
questes com a dimenso da poupana, do trabalho penoso,
do desejo de fazer capital ou futuro, como dimenses geradoras da riqueza para alguns.
muito comum nos depoimentos de idosos aparecer a dimenso do tempo histrico como mitificado e mistificado pela
presena, em determinadas regies, de uma cultura imbuda
de esprito empreendedor recm que chegamos... era puro
mato. [...]. Naqueles perau s trabalha quem tem coragem e
disposio mesmo.
A construo de um espao de colnia deu-se sob o signo da propriedade da terra, localizando, desde o incio, nesse espao, o imigrante vinculado ao mundo da mercadoria. A
grandiosidade de ser o pioneiro, o sentido simblico disso, a
transcrio oral da natureza rude e ngreme transferem para
o homem uma realizao do rudimentar ao domnio do natural pelo trabalho; a dimenso do nada cede lugar forma, ao
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formato, adaptao. O iderio de pioneiro ignora a temporalidade anterior ou minimiza o papel e a importncia, pelo
menos econmica, dos instalados anteriormente a sua chegada. A memria das picadas e dos travesses memoriza a espacialidade e define os limites do espao vazio e do ocupado.
A forma de pensar o tempo est baseada na agricultura, no
progresso, na sua participao no espao.
Nesse horizonte da preservao da histria e da memria
da famlia, importante que se diga que, no relato de grande
parte dos idosos, o que reflexo e expresso como constitutivo
da conservao da rvore o lado masculino do parentesco.
A recriao de representaes simblicas e de prticas
sociais de um passado de trabalho penoso proporciona significados e valorizaes s suas vidas. Ao resgatarem e reinventarem seu passado imediato no presente, ao conceberem
duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na comunidade,
entre idosos e jovens, esses idosos (homens e mulheres) adaptam-se, resistem imerso em universos da modernizao e
da racionalidade individual no seio familiar.462
visvel a correlao entre o ethos do imigrante com a
terra e com os animais. Esse processo se alimenta e se ritualiza, em parte, ainda hoje, pelas falas dialetais, na economia familiar, no trabalho como riqueza e na unidade moral
da famlia traduzida em fora de trabalho, na dialtica da
vida cotidiana baseada na esperana e no medo (esperana de
sade, colheita, trabalho, medo de desgraas fsicas, morais e
produtivas), na preocupao em comprar terra para os filhos
em fazer capital para melhor coloc-los, na produo de cereais e na criao de animais, na intercomunicabilidade vicinal e comunitria atravs de festas, fils, visitas, mutires,
solidariedades aleatrias etc.
SEYFERTH, op. cit.
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mento daria essas condies e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, promoveria certa autonomia dos filhos em relao
aos pais. A migrao para novas colnias, a urbanizao do
rural e a migrao e/ou contato com o urbano tambm libertaram e abriram os olhos da gente em relao autoridade
patriarcal e mesmo dos padres. [...]. A televiso depois ajudou tambm e as escolas, as novelas....
Segundo Costa e tambm Vannini, afetividade, sensualidade, sexo, desvios de conduta nesse campo no eram objeto
de muito dilogo e abertura no seio familiar. Algumas idosas, principalmente, ainda hoje comentam isso.464 Quando se
entra nesse campo, as narrativas so carregadas de contraposio; ao mesmo tempo, ainda produzem desgostos, tabus,
ignorncia, vergonha, subterfgios, desconhecimento, mitos,
medo, conservadorismo; e revelam a existncia de aes alm
ou aqum do institudo e orientado. A cultura camponesa,
com seus valores, representaes, suas relaes sociais, produziu racionalidades e racionalizaes internas adaptativas, hierarquizadas e complementares ao seu mundo, ainda
que isso tudo seja produzido no encanto individual, escondido, alternativo, resignado e, talvez, submisso publicamente a
uma proteo moral.
O olhar vigilante da Igreja, personificado na figura e
presena-ausncia do padre, por meio de linguagens e significados de represso, normatizaes e transgresses, produziu
uma tica sexual sentida, vivida, observada (levada em conta), transgredida, sublimada, racionalizada a partir dos horizontes (em geral, limitantes) da cultura camponesa, a qual se
reproduz e se redefine com os contextos, historiciza-se com as
dinmicas e exigncias sociais e culturais do grupo de perten Sobre esse tema, ver VANNINI, I. A. O sexo, o vinho e o diabo: demografia
e sexualidade na colonizao italiana no RS (1906-1970). Passo Fundo: UPF
Editora, 2003; ver, tambm, COSTA, R.; BATTISTEL, A. Assim vivem os
italianos. Caxias do Sul: Ediucs, 1982.
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cimento. Estratgias internas, ainda que pouco visveis publicamente, recriminadas e estigmatizadas (principalmente
quando tinham como foco negativo a mulher), apareciam, desenvolviam-se. Nas falas, principalmente de idosas que esto
no meio urbano, produzem-se representaes de desejo e prazer em contraposio s moralidades representadas e imaginadas, seletivamente, por influncias externas, demonizadas
por uma ideologia sexofbica, pela cultura do silncio e pelas
linguagens orais repressivas.
Na cultura camponesa, ainda hoje, incorporao e transmisso de saberes e de ideais levam muito em conta universos de seu conjunto cultural, os limites e possibilidades da
unidade familiar. A transmisso de saberes para o trabalho,
malgrado as interferncias tcnicas, acontece no prprio trabalho; um saber-fazer que transmitido pela famlia, como
temporalidades que se cruzam (via de regra o pai, que o
representante do fazer-aprender-saber-transmitir).
A transmisso e incorporao de saberes sempre foram
mais do que uma transmisso de tcnicas; eram expresso de
valores, construo de papis, estrutura social, reproduo do
grupo etc. A produo e a reproduo dos bens simblicos caminhavam juntas, ou, ento, antecediam a produo de mercadorias. Havia uma produo de bens que era socializada
antes de socializar mercantilmente alguma coisa, dimenso
essa revestida de valores de uso e do uso como valor. Antes de
produzir cultivos, o trabalho produzia cultura; havia encadeamentos de aes tcnicas e de aes simblicas, tornando um
processo ritual e cotidiano que era o trabalho.465
O trabalho continua sendo hoje uma categoria cultural
ou ideolgica e tem mltiplos significados; expressa, acima de
tudo, uma tica (essa ligada terra, famlia e ao gnero).
Ver WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. So Paulo: Hucitec,
1995; ver, tambm, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da
terra: a lgica e a simblica da lavoura camponesa. Braslia: UnB, 1997.
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sociais e culturais. No entanto, existe uma espacialidade socioeconmica e cultural que se articula em razo de necessidades essenciais de um processo mais amplo, o qual no se
funda totalmente nas decises racionais e/ou cientficas.
As famlias buscam utilizar mecanismos, at com resqucios de tradio, para melhor adaptar seus interesses aos
projetos individuais. A ida da nora para a casa do sogro ou
do marido e seu dote, estipulado num pedao de terra ou no
seu valor monetrio (o que vai ser apropriado pelo marido); a
tentativa de fazer permanecer um nico filho nas terras da
famlia, levando a que as dos outros sejam adquiridas pelo
herdeiro, inclusive com a ajuda dos pais; a liberao de membros para outras atividades e para o estudo; as dribladas nas
partilhas em relao s mulheres (lote na cidade, estudo de
2 grau, parte em dinheiro...), dentre outros, so princpios de
manuteno da unidade da terra cultivvel e da perpetuao
do patrimnio, os quais definem estratgias de partilha.
Captulo 16
Ritualizao verbal e no verbal da
cultura na memria
As formas das histrias de vida so to importantes
quanto os fatos que elas contm.
Bertaux-Wiame
J vimos que o testemunho oral fundamental para perceber aspectos do interior dos processos de migrao, de resistncia cotidiana dos que ficam e dos que saem, das posies
diferenciadas entre gnero e entre membros familiares sobre
esses mesmos processos. O depoimento oral geralmente propicia a exteriorizao de conscincia vivida e significativa do
momento de sua materializao e da capacidade e importncia dos atos de lembrana do tempo vivido de antigamente.
O depoimento oral pode ser til na percepo de uma
alterao espacial que no signifique meramente um desenraizamento, mas um transplante cultural e espacial, cujas estratgias de sobrevivncia se baseiam nos mesmos processos
que qualificam e identificam o ethos campons, tais como a famlia, o parentesco, a vida comunitria e o trabalho centrado
na dimenso do ncleo coletivo como forma de enfrentamento
das novas demandas e das novas ordens de sociabilidade.469
Sabemos que em todas as culturas e etnias existem sempre prticas mais ou menos ritualizadas com as quais cada
469
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Memria e etnia
A memria dos lugares pode ser diferente dos
lugares de memria.
Lucena
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razes e aes que o presente e o passado remoto desvalorizaram, como o caso do parentesco, da consanguinidade, de
compadrios, de famlias extensivas, de ressentimentos, de
aes significativas no tempo. nesse sentido que a memria faz referncia a uma ideia de persistncia ou reinvocao
de uma realidade de uma maneira intacta e contnua.473 A
lembrana recoloca a esperana na capacidade de recuperar
alguma coisa que se possua, um tempo que se esqueceu.
Segundo Guimares, por sua prpria natureza, memria caberia a tarefa de realizar um retorno quilo que a cada
vez se distancia mais e mais. Porm, exausta de repetir a repetio, sem foras para suportar o que lhe destinado, incapaz de suportar o fracasso fundador de sua busca, a memria
procura fixar-se em alguma cicatriz, corte, descontinuidade
ilusria, capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo
incessante da origem.474 nesse sentido que h rememoraes e vazios.
A memria cultural e tnica marcada pela descontinuidade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos nveis
que a compem. nessa dimenso do tempo no espao e do
espao cultural no tempo da memria que muitas tradies
so ou podem ser inventadas e/ou redefinidas. Alis, sempre
que possvel, comum, na sociedade atual, tentar estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado, redefinido, transtemporalizado. Contudo, na medida em que h
referncia a um passado histrico, as tradies inventadas
caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade
bastante artificial. Isso porque toda a tradio inventada, na
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A centralidade da famlia
O saber que vem de longe encontra hoje menos
ouvintes que a informao sobre acontecimentos
prximos.
Benjamin
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O mundo do trabalho
J se foi o tempo em que o tempo no contava.
P. Valry
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da lembrana.484 Os lugares encarnam e expressam uma memria vivida e co-participada dos indivduos (a casa, o poro,
a praa, a roa, a terra, a comunidade etc.), mas tambm smbolos que os transcendem. H, sem dvida, uma profunda ligao entre os lugares de memria e a histria familiar dos
indivduos. Por isso, podemos dizer que os lugares no se limitam a fixar as lembranas e a certific-las dando-lhes uma
localizao territorial, mas encarnam uma continuidade de
tempo que vai alm da dos indivduos, das pocas etc.
Os tempos e os espaos confundem-se na lembrana dos
que migram. Contexto e temporalidade situam o migrante,
representam memrias, momentos, (situ)aes, deslocamentos etc.485 A memria desloca-se do tempo para o espao, do
espao para o espao, ao mesmo tempo que os unifica. O rural e o urbano no podem ser vistos separadamente, pois as
representaes se entrelaam nos espaos. Os idosos entrevistados manifestam fatos e circunstncias da vida na cidade, no bairro e nos vrios espaos significativos de trabalho.
Percebemos que diferentes espaos constituem seu cotidiano,
sejam pblicos, sejam individualizados, coletivos e privados
(as festas comunitrias, a culinria, o trabalho variado e diferente daquele do meio rural, a participao na Igreja etc.).
Ficamos com a certeza de que os espaos so narrados
mais pelo mbito da fronteira, da separao sociocultural e
tambm simblica. Rural e urbano, periferia e centro, casa e
trabalho, aparecem bastante polarizados em alguns momentos; em outros, complementam-se e/ou cruzam-se.
Os tempos e os espaos diversos no so percebidos pelos
idosos totalmente na perspectiva do diverso, pois ambos se
confundem e se mesclam nas imagens lembradas. Diz Lucena
que o tempo memria, diferencial, o situar-se no passa LUCENA, 1999, op. cit.
LUCENA, op. cit.
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A fora do simblico
Nossos braos e pernas esto cheios de lembranas entorpecidas.
Proust
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portncia e participao de fiis, continuaram, inclusive hospedando santos e representando formas populares e simples
de materializar o sagrado na vida cotidiana.
A religio era, e continua sendo, importante para o homem que vivia, e vive, do cultivo da terra e faz do seu uso
um espao vital. O sacro torna-se um elemento dinmico da
cultura, seja como imaginrio (mito), seja como organizao
comportamental da vida, dos valores morais e dos rituais cotidianos. O espao do sagrado lembrado como uma unidade que liga vida e morte, como constitutivos de um conjunto
nico. A religio busca ensinar a viver para melhor morrer.488
Vida e morte interligam-se no cotidiano dos colonos como possibilidades e ausncias, imaginrios e conhecimentos no horizonte do vivido. Os smbolos e as suas significaes, para os
idosos, podem ser reconhecidos nos ritos, nas manifestaes,
nos valores, nos costumes e na religiosidade. Esse processo
simblico fundamental para a luta pela definio e/ou redefinio da identidade social e cultural desses.
Os objetos que, ritualizados, tornam-se relquias, podem
revelar comportamentos e convices, motivos do passado,
pensamentos, aes, momentos suspensos no tempo, vitalidade histrica, vestgios palpveis. Os objetos significativos
revelam a vida comum dos idosos, significados objetais e expresses da vida cotidiana; so fragmentos fsicos, concretude
existencial: passei por uma porta pela qual Shakespeare havia passado, e entrei num bar que ele conhecera. Sentamos
mesa [...] e encostei minha cabea contra a mesma parede que
a cabea de Shakespeare havia tocado, e foi uma sensao
indescritvel.489 Os lugares, os objetos e as imagens ajudam a
ZONABEND, F. La memoria lunga. I giorni della storia. Milano: Armando,
2000.
489
HANFF apud LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto Histria,
So Paulo, n. 17, 1998. p. 161.
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memrias coletivas, sobretudo naquelas que enrazam culturas, que produzem tradies, desenvolvem conscincia nacional e tnica. Essa proliferao produzida por uma memria
social e histrica, que intenciona reproduzir, analtica e objetualmente, formas de organizao de vida coletiva ajustadas
aos novos formatos de vida social, sentimentos do passado e
possibilidades de inventariar lugares para a percepo visual
e histrica de memrias.
Sobre isso, Nora diz que possvel, pela institucionalizao de lugares, indivduos, famlias, naes e etnias encontrar
suas lembranas e reconstituir sua personalidade.
Lugares topogrficos como arquivos, as bibliotecas e os museus;
lugares monumentais como os cemitrios e as arquiteturas; lugares
simblicos, como as comemoraes, as peregrinaes [...].; lugares
funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associaes:
esses memoriais tm sua histria. [...]. A anlise das memrias
coletivas deve e pode tornar-se a ponta de lana de uma histria
que se v contempornea.492
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A festa fazia parte do horizonte da cultura local, da cultura de origem popular, a qual permite inovar ritos, porm
sem perverter por completo a dimenso da repetio/tradio,
do sempre foi assim. No meio urbano, a festa no tem o
mesmo sentido e gosto do meio rural, no h aquela vivncia.
Ns mesmos cansamos de ir pra fora nas festas. As lembran-
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O processo de relatar representa a continuidade e transmisso, manifesta o fato de os idosos quererem ser os guardies da memria, os mediadores da tradio. Nessa dimenso,
est muito presente o saudosismo, o altrusmo, a personificao e a presentificao. Os idosos sentem a obrigao de
lembrar, querem permitir vestgios pelos lugares de memria
e pela memria viva; eles tm conscincia da perda da narrao, de espao da fala na famlia e nos convvios sociais.
nesse sentido que se tornam importantes vozes, momentos e
smbolos ilustrativos de memria, sejam eles as fotos, os ambientes construdos, as mobilidades espaciais e o conjunto da
famlia (presena nas geraes).
Sabemos que o motor da narrao o desejo de habitar
no mundo que a narrao abriu e sua imaginao de que alguma coisa fique para a experincia dos outros; de se fazer
sentir; de ser entendido e aceito; de dar significado vida; de,
atravs da narrao, produzir uma relao social, pois quem
escuta convidado tambm a participar do dilogo: Uma
narrao um discurso a propsito de certos fatos, mas, na
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muito forte, revela processos diferenciadores, tempos e espaos de excludncia, principalmente no horizonte da cultura,
do vivido familiar, da ordem econmica e da sexualidade pblica. As contradies apresentam-se, tambm, na dimenso
laudatria e ufanista, nos ressentimentos e enquadramentos,
na ideia de sacrifcio com crescimento econmico.
O ltimo aspecto, o econmico/progressista, como j vimos, a
esfera miditica utiliza muito, ou seja, dimensiona a simbologia
evolutiva que une sacrifcio com mesa farta, do mato lavoura, da
ruralizao urbanizao, da tradio modernidade, do regramento e vigilncia ao pluralismo, da flexibilidade e da liberdade.
Enfim, a memria tnica possui valores que se reproduzem e so traduzidos, trazidos e tradicionalizados no tempo
presente como significativos e fornecedores de sentidos e representaes histrico-culturais. Porm, utilizam-se a memria e a cultura tnica para mostrar contrapontos, permitir fazer aflorar resduos e vozes de vividos e de aes que contrapuseram formas institucionalizadas de regramento da vida.
No obstante, formas hegemnicas, alimentadas por certas
abordagens tericas, ideolgicas e miditicas, so fortalecidas
e buscam imprimir o passado no presente, perdendo de vista
a historicidade dos tempos, dos lugares e dos valores sociais
em movimento na contemporaneidade.501
501
Captulo 17
Estragos e reconstrues do tempo
na memria
A importncia e a necessidade de transmitir
O tempo nunca esconde seus estragos.
Guimares
502
300
No desejo de transmitir, a concepo de tempo, na memria dos idosos, aparece carregada de uma dimenso ambgua
e contraditria, dos de ontem e dos de agora. A simbologia
do pioneirismo imprimiu progresso na regio e, atualmente, o
lugar diferente, pois
503
301
[...] naquele tempo se fazia dinheiro, hoje se faz dvida, se trabalhava e se sofria, os de hoje no querem mais trabalhar e as coisas
so tudo bem mais fcil. Falar de sacrifcio hoje no que nem antigamente. Se eu disser pros meus netos o que passei aqui quando
era puro mato, o que comia, o sacrifcio pra ter gua, o tempo que se
levava pra ir comprar alguma coisa, querosene que luz no tinha,
n , fsforo, sal e os mantimentos, n, nem presta, no acreditam,
alm do mais nem do bola.
504
302
de memria muito presentes na vida, nos espaos e nos relatos ouvidos e presenciados.
A famlia constitui e d continuidade dimenso da parentela, da genealogia, da terminologia dos nomes, de uma
coletividade e de uma rede genealgica organizada numa dimenso espaciotemporal na qual se correlacionam passado e
presente (geraes).
A conservao da terra da famlia (patrimnio econmico,
histrico e cultural), a importncia de ter filhos, o papel dos
parentes na cuidado dos filhos em situaes de infortnio dos
pais, a vida comunitria com sua discrio e vigilncia interna,
os comportamentos sociais, os objetos de censura do grupo, o
controle da qualidade e da quantidade das aquisies etc. so
formas de ligar lembranas da famlia com a memria e com
as estrutura do prprio passado, com eventos que assinalam o
tempo vivido na prpria unidade cultural, econmica e parental.
Os fatos histricos vm filtrados atravs da famlia, em
relao aos tempos da famlia. Cada famlia elabora em seu
calendrio particular, no restrito universo da comunidade,
onde cada um se conhece. Esse processo correlaciona aspectos concretos do mbito familiar para indicar o tempo, o ciclo
dos trabalhos e da produo agrcola, os quais do ritmo ao
calendrio anual. Inverno, vero, festas santos etc. estabelecem correlao no vivido com a terra, com o trabalho, os quais
no precisam ser relacionados na esfera da linearidade e da
continuidade; so tempos que, em sua cclica repetio, vm
transmitidos e vividos em sua base quase imutvel dos retornos das estaes e das sries de geraes, e se harmonizam
com as exigncias da natureza e da existncia, confiados
memria, reatualizao, consanguinidade e conscincia
de afinidades.505
ZONABEND, F. La memoria lunga...
505
303
A vida rural expressa por idosos como sendo uma dinmica que segue o curso linear entre vida e morte, mediada por
rituais sociais, tnicos, identitrios, religiosos e de trabalho. Esses rituais agregavam pessoas; produziam relaes de compadrio, aproximavam parentes, uns mais, outros menos; dividiam,
uniam, retiravam e agregavam propriedades, patrimnios,
espaos, pessoas e cenrios especficos. As identidades e coisas ameaadas possuem referncias a espaos, como que organizando referenciais que permitem se agarrar a tempos e
lugares mveis, existncia de um vivido anterior e interior.
O ser privado de lugar encontra-se num universo, sem lar,
sem eira nem beira. No est, por assim dizer, em parte alguma ou, antes, est em qualquer lugar, como destroos, flutuando no vazio do espao.506
Para os idosos, a casa esse horizonte de referncia profunda, que no os deixa flutuar no vazio do espao, ou serem
seres dispersos, como diz Bachelard. O autor diz que
[...] graas a casa que um nmero de nossas lembranas esto
guardadas: quando a casa se complica um pouco, quando tem um
poro e um sto, cantos e corredores, nossas lembranas tm
refgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos
durante toda a vida em nossos devaneios.507
A casa representa o ncleo da lembrana cotidiana, da representao do espao, do sentido e da forma de famlia; nela
se mesclam passado e presente, referncia famlia, vizinhana, ao parentesco, ao convvio interno. Casa e famlia representam o centro da vida do grupo que migra; ambas manifestam com mais intensidade o velho e o novo no horizonte dos
papis, no jeito de ser famlia, tanto no urbano quanto no rural.
506
507
304
Famlia, no ethos de colono, vai alm da consanguinidade; reflete segurana, proteo econmica, garantia e obrigao de alimentao, transmisso de habilidades, moralidade,
conhecimentos, cultura, relaes sociais, controles afetivos,
contratos matrimoniais, centralidade de poderes, hierarquias,
papis internos e externos, vizinhana, compadrios funcionais e simblicos, vnculos e identidades comunitrias.508
Algumas idosas se lembram de sua vida na infncia fazendo comparaes com a de suas netas e/ou bisnetas; lembram-se de quando crianas, dos rituais religiosos (Primeira
Eucaristia, Crisma...), dos poucos e marcantes passeios que
faziam com seus pais ou avs, da lngua dialetal, do cuidado
com seus irmos, da narrao de histrias, dos componentes
culturais e tnicos dessas, da participao e da diviso dos
trabalhos, do corpo e do fator de obedincia com o passar dos
anos, das aprendizagens, com seus pais e/ou nonos, da socializao, da pedagogia do olhar, da severidade dos pais, do controle das crianas, do desejo de estudar e da escola que no
existia, da vigilncia social e familiar, do trabalho pesado em
substituio aos brinquedos e s atividades ldicas, etc.509
As idosas no se cansam de fazer comparaes entre a
sua infncia e juventude com as de atualmente; cruzam temporalidades, ou as excluem; falam das novas tcnicas, dos novos espaos para mulher, do cuidado dos netos, do estudo e
suas mudanas internas, do pouco dilogo entre geraes, da
escola, agora como promoo social, do urbano, da ausncia
de severidade com as crianas, da ausncia da disciplina coercitiva de uma vez.
508
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Capital simblico e capital econmico, segundo Bourdieu,510 em geral se equivaliam na relao cultural entre fa Ver sobre essa anlise do capital simblico que envolve reputao, respeitabilidade, papel familiar, dentre outras, em BOURDIEU, P. Esquise dune thorie
510
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afetivas da nova situao. Na narrao da informante, so todos processos vividos, harmonizados, acomodados, em latentes conflitos e constantes atritos no espao de coabitao;512
enfrentamentos recprocos entre sogra/nora, sogro/genro, entre cunhados, entre desejos contidos e expressos no campo da
afetividade, da sensualidade, da sexualidade, dos desvios de
conduta, da incorporao dos conhecimentos normatizadores
da vida camponesa, social, familiar e individual, bem como do
peso histrico dos costumes e das tradies tnicas.
A recriao de representaes simblicas e prticas sociais de um passado de trabalho penoso proporciona significados e valorizaes s suas vidas. Ao resgatarem, reconstiturem e reinventarem seu passado imediato no presente; ao
conceberem duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na
comunidade, entre idosos e jovens, os primeiros adaptam-se,
resistem imerso em universos da modernizao e da racionalidade individual no seio familiar.513
A absolutizao dos de agora em relao ao tempo de
agora, do ganhar tempo, da adequao individual ao tempo como imperativo social penetra no cotidiano da vida social
onde esto imersos os idosos. O acento utilitarista, linear e
quantitativo do tempo centrado na eficincia dicotomiza passado e presente, constituindo diferenas e redefinies. Desse
modo, na transmisso, a referncia ao tempo de antes e ao
tempo de agora importante para a percepo da negatividade e da positividade das mudanas das coisas no tempo. Da a necessidade da integrao dos idosos no tempo pela
narrao e pela possibilidade de lembrana.
Os idosos estiveram e esto integrados nesse todo e vivenciam-no, ainda que, em boa parte, crtica e negativamen LVI-STRAUSS, C. j dizia que cada matrimnio compromete o equilbrio
do grupo social. Ver Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1976. p. 334.
513
Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar...
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A sociedade brasileira em geral e o meio rural em particular passaram, entre a dcada de 1950 e o final da dcada de
1960, por profundas transformaes sociais. Foi um perodo
por excelncia em que a sociedade foi induzida a se modernizar em vrios mbitos produtivos, de convivncia social e
familiar, de concepes de vida e de sociedade. Nesse perodo,
o meio rural foi induzido a se modernizar tcnica e socialmente, a racionalidade e a ingerncia do dinheiro nas relaes
sociais se fizeram sentir com mais intensidade, justificando
processos de migrao interna para espaos novos tanto no
meio rural quanto no urbano.
O universo da cidade ganhou ares de liberdade; o trator e o
carro foram os grandes instrumentos tcnicos que viabilizaram
alteraes e concepes variadas de tempos, espaos, distncias,
contatos com pessoas, com a terra, com a economia e com a identidade pessoal dos que os possuam e dos que no os possuam.
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para mostrar algo que possui sua marca, sua presena e sua
importncia, dinamizam essa dialtica da presena-ausncia
que reflete a ideia de rastro.
O rastro um signo inscrito (significado) e escrito (marca
material e visvel), narrvel ainda porque, para os idosos, tem
visibilidade e existncia. Os idosos querem lhe dar um lugar;
querem, conscientemente, lhe propiciar uma digna sepultura
diante da ameaa do esquecimento e, consequentemente, de
sua insignificncia. Uma idosa nos disse que chorou dias e
dias quando viu um vizinho que comprou uma chcara demolir
o moinho que seu finado esposo levou mais de dois anos para
fazer h cinquenta anos, pois, alm de no funcionar mais, a
construo era feita de madeiras nobres, comercializveis.
O rastro consciente e intencionalmente passvel de esquecimento, anulando sua existncia, ou, desejoso de subsistir. Nessas duas dimenses entram critrios de verificao
e falsificao de experincias, enraizamento e esquecimento
de referncias, sujeitos, fatos e objetos. No fundo, o que sempre se reivindica a presena da ausncia ausente ou da ausncia da presena; o que est em jogo sempre a conscincia
do poder da morte, ou para no ser mais lembrado, ou para
reconhecer sua vida e lhe permitir rastros de existncia.
A apropriao humana da natureza pela mediao tcnica, e no pelas foras tradicionais e formas artesanais dos idosos, deixa-os receosos, amedrontados, profticos, apocalpticos
e um pouco negativistas. Com a mecanizao da agricultura,
nem os homens, nem os animais tinham mais necessidade
de suar como antes; os cavalos e mulas foram eliminados da
agricultura e menos homens agora trabalham. A tcnica s
quer tirar e, qualquer dia, esgota, em nome da racionalidade
do lucro, da reduo do ciclo produtivo e de engorda, do aumento da produtividade e da diminuio do trabalho manual
e rstico.
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O espao urbano aparece nos relatos como envolto na redefinio, quando no na ruptura, pois a habitao, a convivncia, os encontros, a solidariedade, a proximidade, o parentesco, o trabalho... desespacializam-se. A migrao de mais
famlias conhecidas, a oportunidade de retornar ao meio rural para rever seu antigo espao, para fazer alguma coisa,
para visitar filhos e netos, recompem, em parte, aspectos do
lugar de origem, bem como reinventam novas aes, com novos suportes afetivos e de interconhecimento.
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J vimos que a casa lembrada como o espao que correspondia ao abrigo e ao aconchego domstico, mas tambm
correlacionado e diviso com as necessidades da roa. Desse
modo, poderia servir para guardar comida, cereais; no poro,
ou embaixo da casa, quando possvel, guardavam-se a carroa, as pipas de vinho, a graspa, o salame, o cesto com o po,
LYOTARD, F. O inumano; consideraes sobre o tempo. Lisboa: Estampa,
1989. Ver, tambm, sobre isso AUG, M. Le forme delloblio. Dimenticare
per vivere. Milano: Il Saggiatore, 2000.
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Na cultura camponesa do imigrante italiano de segunda e terceira geraes, o conceito de trabalho acompanhou as
exigncias da vida, era condio para viver: Se te vol cagar,
bisogna laorar, no le mia? Esse processo era socializado em
famlia, e desde cedo.518
A casa era o espao de um trabalho de no trabalho. Trabalho o que transcende o espao da casa. Desse horizonte,
reproduzem-se e derivam regras de comportamento, de educao e de trabalho comumente aprendidas dos pais. Divises, diferenciaes, espacializaes, especializaes, gostos,
obrigaes e interesses nascem e se desenvolvem no conjunto interligado entre casa e roa, mediado por outros espaos/
atividades funcionais, culturais e de gnero de menor importncia. Cuidar da casa e da roa era um dever de todos, mas
mais dos pais, n. Cada um tinha clara essa responsabilidade
e sabia o que devia fazer, apesar de que na roa a gente ajudava tambm e eles (marido e filhos homens) em casa muito
pouco, para no dizer nada, declara uma idosa migrada para
o espao urbano de Nova Prata.
O tempo da casa e o da roa dependem dos ciclos de vida
e de cultura dos produtos, e esses, de sua natureza biolgica e climtica. No entanto, como nos disseram alguns idosos,
sempre havia o que fazer; sabiam fazer combinaes e consorciamentos hierrquicos e complementares entre trabalho, produtos e clima, o que lhes permitia controlar, ocupar e
correlacionar tempos, espaos e atividades. Alguns produtos
sempre manifestaram o ethos de colono italiano: milho, trigo,
uva foram os mais citados con pan e vin vive el contadin
e so expresses de agregao cultural.
Comidas tradicionais da vida camponesa ganham temporalidades longas (po, queijo, polenta, salame, carne de
ZONABEND, F. La memoria lunga...
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racionalidade espontnea, interessada na experincia do trabalho produtivo e na convivncia. O espao construdo pelo
esforo, pelo sacrifcio e no sem conflitos, formando uma totalidade social que norteia as relaes sociais e de produo.
A ideologia da famlia ou do vnculo do parentesco legitima a
configurao do prprio trabalho familiar enquanto relao
de famlia. Nem todas as famlias conseguem se reproduzir
enquanto tal; alguns filhos, ao se casarem, buscam outras alternativas, deixando grande parte dos frutos de seu trabalho
para os outros membros da famlia.
Saber organizar o processo de trabalho, seus instrumentos, seu saber emprico e tcnico, saber compreender o
dinamismo da natureza na tica do equilbrio etc. so combinaes a priori construdas no ethos de colono, porm que
se atualizam, se renovam e se governam no prprio fazer. O
saber/fazer, enquanto dinmica construtiva, material e simblica, atualiza-se e transmite-se envolvendo valores e diferenciaes de papis e de hierarquias
O controle tcnico dos meios de produo, do processo
de trabalho e da natureza faz parte de um saber, de uma tecnologia do colono (que preferimos chamar de racionalidades
adaptativas) que norteiam aes, funes e estratgias. O
prazer, a alegria do lazer e do trabalho, da sociabilidade comunitria e catlica, jogos diversos e o contato cotidiano com
a bodega, todos so dinamizados nas narrativas pelos idosos,
o que expressa que havia um conjunto de fatores que propiciam a integrao intensa de momentos de prazer corporal.
A constante orientao aos filhos sobre o estudo e as
opes de trabalho diferentes, a dificuldade que os pais tm
de motivar todos os filhos para o trabalho pesado na roa, a
busca de trabalhos pra fora por parte de algumas mulheres
e, esporadicamente, por alguns homens, dentre outros, reduzem os braos em casa, fazendo aumentar a intensidade do
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Nas imagens de memria, as representaes sobre o lugar de origem e o de destino no so unvocas para os migrantes: O espao social pode estar carregado de mltiplas
interpretaes contraditrias [...] O que parece comum que
a cidade o espao onde se encontra a soluo para os problemas da roa.522
Para alguns idosos, a imagem da cidade vem carregada da significao de violncia, de movimento contnuo e que
no pra, dos gastos elevados para viver, de lugar do desconhecido, de ressocializao no trabalho e na vida familiar e
social, nos hbitos (comida, higiene, fala etc.) e na aprendizagem, de ausncia e de novas dificuldades da vida em relao
ao espao da roa.
Malgrado isso, a cidade ofereceu, tambm, para as idosas
maior possibilidade de descanso. O trabalho, ainda que tenha
continuado na tica dos gneros, ficou mais leve para elas,
possibilitando-lhes incorporar valores de classe mdia, especialmente quanto arrumao da casa, a utenslios utilizados, vestimenta etc.:
Possibilitou que a gente pudesse se realizar melhor. [...]. Outros
vieram tambm, vizinhos, gente da roa que nem ns, e da a gente
se ajudou bastante e foi criando aqui quando a vila comeou, quase
que uma comunidade rural.
Nas imagens da memria dos primeiros tempos de cidade, manifestam-se representaes construdas no meio rural,
ou seja, a ideia de fazer capital, o sacrifcio, a doena (a necessidade de estarem prximos dos mdicos e das condies de
sade, realidade essa que o rural no oferecia), as facilidades,
os sonhos e os desejos de novos cdigos de vida, a adaptao
s novas mensagens sociais e culturais, muito presentes nas
dcadas de 1950 e 1960, de modernizao social e pessoal.
Idem, p. 55.
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o aspecto econmico, com o conforto da casa, com a possibilidade de educao dos filhos. A cidade representou, e ainda
representa, desejos, medos, traio das pessoas, conforto, regras impessoais, lugar desconhecido e do desconhecido, angstia das mudanas profundas que ocorrem no mbito familiar, social e cultural.
A cidade representa o horizonte espacial dos ganhos e
das perdas: ganhos de novas aprendizagens, de novas relaes
no de total dependncia patriarcal, de novas sociabilidades,
confortos e adaptaes sociais; perdas referentes ao tempo e
ao espao tradicionais vividos nos tempos da roa regidos pela
natureza; pela desespacializao social,526 dos vnculos comunitrios, do suporte afetivo da famlia que transcende para o
horizonte do compadrio, do parentesco e da vizinhana.
Nas informaes de idosas migradas para o urbano, sempre houve dificuldade em constituir uma vida comunitria na
cidade. Na cidade vive-se mais agitado, com medo,
[...] eu mesma quando fiquei sozinha, que morreu meu marido,
nunca conseguia mais dormir sozinha, no tive mais coragem de
ficar uma noite sem ningum, era sempre aquela folia e ficava
sempre nervosa. Agora me toca dormir sozinha porque sempre
aquela incomadao seno, n, um dia vem um, outro dia tem de
vir outro. Tenho vontade de voltar pra fora e morar perto, no
junto, com minha filha casada, s que acho que no vou mais me
acostumar l, pelo menos teria algum conhecido e que fique mais
responsvel por perto.
Algumas idosas que migraram para a cidade com a famlia expressam que a mobilidade no foi, no incio, desejada
por elas em razo do desconhecido, da dificuldade de entrar
no ritmo da cidade, de suas novas exigncias, dos seus temores, ainda que Nova Prata no era bem uma cidade daria
pra dizer. No entanto, Nova Prata, ainda que pequena, era
LUCENA, op. cit., 1999.
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Na memria de colonos idosos, o local da capela, sua escolha, era sinal de prestgio, pois em torno dela se formava
um pequeno conglomerado de casas, a escola, o cemitrio,
a bodega, a casa de comrcio, a igreja etc. Na cidade, muito
disso se alterou, porm idosos fazem questo de dizer e de
mostrar algo que, nesses horizontes, seja expresso com os referenciais que o prprio urbano apresenta e que foi fruto da
HALBWACHS, p. 168 e 170.
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Novas experincias, novos ritmos, novos trabalhos, novos valores, novas imagens e imaginrios, novas representaes. Esse todo novo se mescla e se referencia com o velho
deixado, trazido, incorporado, resistente, alterado dos lugares
e da cultura. Imagens do passado presentificam-se pela resistncia individual do idoso, pela recordao, pelo sentimento
e pela percepo da convivncia cotidiana com a mudana.
Nesse conflito aberto e velado, algumas coisas so revigoradas, outras so dispersas e outras se perdem; seleciona-se o
que pode ficar e o que, ainda contra a vontade, deve morrer.533
Magnani diz que a cultura, mais que uma soma de produtos,
um processo de sua constante recriao, num espao socialmente determinado.534
Memria de gnero
A memria reescreve a realidade vivida.
Lucena
A realidade vivida no mbito do gnero representa a subjetividade e a construo de representaes sociais, fases da
vida social, individual e familiar, classificaes econmicas
(de trabalho), religiosas, sociais. Alguns autores dizem que
so as mulheres que humanizam a memria genealgica, pois
lhe do funo expressiva, de necessidade emocional, sentimentos e ligaes entre pessoas; refletem certa ausncia da
noo de tempo. Nos homens, as lembranas so mais articuladas em torno do trabalho e dos smbolos materiais (casa,
empresa, ofcios...).535
Ibidem.
MAGNANI, J. G. C. Festa no pedao: cultura popular e lazer na cidade. So
Paulo: Brasiliense, 1984. p. 18-19.
535
LUCENA, C. T., op. cit.
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Idosas lembram de que muito cedo as crianas eram introduzidas, socializadas e ritualizadas cronolgica e culturalmente na idade adulta, atravs do trabalho domstico, cozinhando, lavando, passando e cuidando dos irmos menores.
A ritualizao dos trabalhos e sua constituda naturalizao
manifestam a conscincia de sua pouca importncia, de sua
possibilidade de ser feito por qualquer um desde que fosse
mulher.
Matos diz que as funes reconhecidamente femininas
ou em que as mulheres penetraram eram progressivamente
deserdadas pelos homens, desvalorizadas monetria e socialmente desprestigiadas.536 Esse processo, segundo algumas
idosas, no se alterou muito no meio rural. No urbano, alterou-se em parte nas famlias em que, logo ou depois a migrao, a mulher e filhas optaram pelo trabalho fora, remunerado e com horrios estabelecidos. Porm, sempre houve uma
dinmica entre conflito/acomodao e naturalizao histrica
das aes.
No meio rural, esse processo de gnero do trabalho e seu
significado no foram alterados significativamente. Alteraram-se mais profundamente, a partir da dcada de 1990, com
a presena maior de idosos nas famlias, em coabitao, com
a possibilidade de mulheres atuarem em espaos de pluriatividade no ramo de confeco txtil no meio rural na forma
de atelis ou de atividades a domiclio. No entanto, as idosas
so unnimes em dizer e reafirmar a experincia histrica da
continuidade da diferena de gnero nesse processo como algo
normal, comum, eficaz e eficiente em termos de diferenciao.
As fronteiras materiais e simblicas entre o mundo do
trabalho e o da vida privada no eram muito ntidas, pois
entre esses dois mundos havia uma relao de complementa PINTO, M. I. M. B. Cotidiano e sobrevivncia: a vida do trabalhador pobre
na cidade de So Paulo (1890-1914). So Paulo: Edusp, 1995.
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Como nos diz Lucena, paternalismo e explorao so ambivalentes; podem se dar ao mesmo tempo, um alimentando
o outro, no se excluindo, pois podem implicar concesses que
caracterizavam as relaes desses protagonistas histricos
no cotidiano dos domiclios; as prticas paternalistas mesclavam-se com medidas repressivas, constituindo estratgias de
um processo de enfrentamento e dominao, relaes essas
negadoras de conflito, alimentando-se em imagens de cooperao. No espao externo de trabalhos nas casas e, mesmo,
em espaos variados do meio urbano, as idosas entrevistadas
foram unnimes em dizer que a imagem de patro se substanciava e alimentava por linguagens e imagens j conhecidas na sua identificao de poder e do trabalho como extenso
da casa, de um horizonte que se externaliza e se complementa
reproduzindo-se quase que unilinearmente.537
Relatando sobre os momentos da migrao para o atual
local, uma idosa nos disse que o trabalho era o alvio do sofrimento, da insegurana: Trabalhando se esquecia tudo, porque
esse era o desejo de se estar aqui. O trabalho era visto como
o elemento por excelncia da redeno da vida e, para muitas
mulheres, tambm como resignao frente a sua situao, assim
como, pela dependncia dos homens em relao s atividades
femininas, poderia tornar-se um horizonte de poder e de contraposio estratgica em relao organizao patriarcal e aos
processos de represso afetiva, sensual e sexual.
A entrega ao trabalho dava-se com extremo despojamento e tenacidade. Os imigrantes construram laos de solidariedade tnica, atravs de rica rede de parentela e amizade, algo
que muito valorizado nas lembranas e, ao mesmo tempo,
extremamente sentido e criticado pela sua negligncia e alteraes atuais.538
LUCENA, op. cit.
MATOS, op. cit., p. 47.
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Consideraes finais
No decorrer deste trabalho trouxemos um conjunto de
obras que versam sobre o tema memria, dando uma maior
centralidade anlise social e histrico-cultural. Nosso interesse maior foi tentar interpretar a noo de memria coletiva em Halbwachs. Buscamos analisar a memria e os atos de
lembrar como algo em construo, em dinamismo e que possui esferas em vrios horizontes do real, o qual ganha maiores contornos no campo cultural e poltico, mbitos esses de
maior uso e inteno dessa.
Diz Lowenthal que nenhum relato histrico consegue
recuperar a totalidade de qualquer acontecimento passado;
em razo de seu contedo ser virtualmente infinito, assimila
apenas uma frao mnima at mesmo do que foi considerado mais relevante do passado. Diz o autor que nem tudo o
que passou foi registrado e pouco do passado foi relatado.544 O
historiador no possui a totalidade do que aconteceu, mas relatos dos fatos. Levi-Strauss diz que o fato histrico no tem
realidade objetiva, existe apenas como reconstruo retrospectiva.545
A passagem do tempo tende a desgastar o passado, a filtr-lo com o olhar do presente, reduzindo a capacidade compreensiva da comunicao.
Explicar o passado no presente significa lidar no apenas com
percepes, valores e linguagens que mudam, mas tambm com
acontecimentos ocorridos aps a poca examinada. [...]. Conhecer
o futuro do passado fora o historiador a moldar a sua narrativa de
modo a faz-la entrar em acordo com o ocorrido. [...]. Assim como a
memria, a histria combina, comprime e exagera; momentos raros
do passado sobressaem, uniformidades e detalhes desaparecem.546
LOWENTHAL, D., op. cit.
LVI-STRAUSS, C. apud LOWENTHAL, D., op. cit., p. 112.
546
LOWENTHAL, D., op. cit., p. 116-117.
544
545
339
por isso que, no campo material, simblico, comportamental, fenomenolgico, social e epistemolgico, o tema
memria vem recebendo ateno. Estudar modernidade,
tradio, patrimnio, imaginrios e representaes sociais,
velhice, simbologia, narrao, comemorao, esquecimento,
dentre outros determina que o tema memria esteja no foco
da anlise. A questo da memria est no eixo central de uma
nova percepo do mundo e de cotidianidade que se constitui
em razo da busca de significados perdidos, reconstitudos, do
real que muda numa velocidade intensa, de comportamentos
que se alteram e, consequentemente, de vises de mundo, o
que aponta para novas atribuies ao social.
As referncias em torno da cidadania social, a maior credibilidade do papel das vozes e das narraes como base de
compreenso e anlise socio-histrica, os impasses do conhecimento histrico e os valores da modernidade (ou da ps-modernidade para alguns), as fragmentaes utpicas, as desconstrues do conhecimento e das formas de controle e de
vida social, o avano da tcnica aplicada e da midiologia, a
capacidade de armazenar e de guardar memrias que esta
ltima nos oferece, as reconstituies histricas e sociais de
fatos e situaes polticas, biogrficas e genealgicas esquecidas, ou, ento, administradas em termos de visualizao coletiva, dentre uma srie de outros elementos, permitem-nos
dizer que o campo de anlise da memria uma grande arma
que possumos, que est sempre atual, ainda que, aparentemente, parea ser o contrrio.
Repensar a memria, na contemporaneidade, implica ter
um olhar mais sensvel, perceber outros espaos, outras vozes
e outros caminhos (talvez, em meio aos oficiais e consolidados),
como possibilidade de construir histria e de legitimar ou no
referenciais culturais muitos desses no to lineares como
aparentam ser pouco evocativos e que se constroem como
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Idosos entrevistados
Antnio Girardi (82 anos), residente no espao urbano do Municpio
de Marau.
Raimundo Damo (70 anos), residente no meio rural do municpio de
Marau.
Ernesto Castelani (91 anos), residente no meio urbano do municpio
de Nova Prata.
Germina Fochesato (78 anos), residente no meio rural do municpio
de Veranpolis.
Luza Tebaldi (86 anos), residente no meio rural do municpio de
Serrafina Corra.
Ernestina Confortim, (89 anos), residente no meio rural do municpio
de Guapor.
Jos Borsa (86 anos), residia na meio rural do municpio de Casca.
Ademir Casagrande (87 anos), reside no meio urbano do municpio
de Guapor.
Jos Palma (96 anos), residia no meio urbano do municpio de Santo
Antnio Palma.
Jacob Bassani (91 anos), residente no meio urbano do municpio de
Muum.
Artrio Perin (86 anos), residente no meio urbano de So Domingos
do Sul.
Otvio Busato (86 anos), residente no meio urbano do municpio de
Casca.
Juvite DallaMea (93 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Santina Coldebella (79 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Olvio Ciodelli (80 anos), residente no meio urbano de Santo Antnio
Palma.
GiustinaTomasi (84 anos), residente no meio urbano de Veranpolis.
Rovlio Trs (91 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Luiza Di Domenico (89 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Valdenir Deon (78 anos), residente no meio rural do municpio de
Antnio Prado.