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Nas Cercanias Da Memoria

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2a Edio

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Jos Carlos Carles de Souza


Reitor

Rosani Sgari

Vice-Reitora de Graduao

Leonardo Jos Gil Barcellos

Vice-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao

Bernadete Maria Dalmolin

Vice-Reitora de Extenso e Assuntos Comunitrios

Agenor Dias de Meira Junior


Vice-Reitor Administrativo

UPF Editora

Karen Beltrame Becker Fritz


Editora

CONSELHO EDITORIAL

Alvaro Della Bona


Carme Regina Schons
Cleci Teresinha Werner da Rosa
Denize Grzybovski
Elci Lotar Dickel
Giovani Corralo
Joo Carlos Tedesco
Jurema Schons
Leonardo Jos Gil Barcellos
Luciane Maria Colla
Paulo Roberto Reichert
Rosimar Serena Siqueira Esquinsani
Telisa Furlanetto Graeff

CORPO FUNCIONAL

Cinara Sabadin Dagneze


Revisora-chefe

Daniela Cardoso
Revisora de textos

Graziela Thais Baggio Pivetta


Revisora de textos

Sirlete Regina da Silva


Design grfico

Rubia Bedin Rizzi


Diagramadora

Carlos Gabriel Scheleder


Auxiliar administrativo

NEMEC - Ncleo de Estudos sobre Memria e Cultura


2a Edio
2014

Copyright do autor

Cinara Sabadin Dagneze


Daniela Cardoso
Graziela Thais Baggio Pivetta
Reviso de textos e reviso de emendas
Sirlete Regina da Silva
Projeto grfico e produo da capa
Rubia Bedin Rizzi
Diagramao

Este livro, no todo ou em parte, conforme determinao legal, no pode ser reproduzido por qualquer
meio sem autorizao expressa e por escrito do(s) autor(es). A exatido das informaes e dos conceitos
e opinies emitidas, as imagens, as tabelas, os quadros e as figuras so de exclusiva responsabilidade
do(s) autor(es).

UPF EDITORA
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Fone: (54) 3316-8374
CEP 99052-900 - Passo Fundo - RS - Brasil
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E-mail: editora@upf.br
Editora UPF afiliada

Associao Brasileira
das Editoras Universitrias

Agradecimentos
Universidade degli Studi di Verona, pela infraestrutura
colocada gentilmente disposio, em particular ao
Departamento de Disciplinas Histricas, Artsticas e Geogrficas.
Aos professores Dr. Emilio Franzina e Federica Betagna pelo
acompanhamento, disponibilidade e zelo acadmico
gratido e reconhecimento.
Universidade de Passo Fundo, em especial ao
Programa de Mestrado em Histria, por ter me propiciado o
estgio de ps-doutoramento.

Sumrio
Apresentao............................................................................................ 10
Consideraes iniciais............................................................................. 20

Nossas intenes............................................................................................. 20

Primeira parte
As cercanias da memria: conceitos, noes e campos afins / 27
CAPTULO 1
Uma guinada historiogrfica?................................................................ 28

Passado e presente intencionalizados.......................................................... 32

Captulo 2
Memria e lembrana.............................................................................. 37

Memria como fragmento histrico-social.................................................. 40

Captulo 3
A memria no cotidiano.......................................................................... 44
Captulo 4
A dimenso fenomenolgica da memria............................................ 50

Memria e experincia de percepo........................................................... 57


Memria e vida cotidiana na perspectiva da fenomenologia................... 60

Captulo 5
Memria, modernidade e mudana social........................................... 62
Captulo 6
Memria e ps-modernidade................................................................. 71
Captulo 7
Memria e patrimnio............................................................................. 81

Monumento/documento................................................................................ 83
Sociedade, tradio e suas simbologias....................................................... 91
Mobilirio social.............................................................................................. 95

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

Captulo 8
Tempo, espao e experincia da memria.......................................... 101

Memria e identidade.................................................................................. 103


O tempo na memria.................................................................................... 105
Memria e experincia................................................................................. 109
Memria, tempo e poder.............................................................................. 118

Captulo 9
Memria e oralidade: intenes, problemas e expectativas............. 122

Buscar a totalidade........................................................................................ 123


Sua base histrica.......................................................................................... 123
Pressupostos tericos.................................................................................... 125
Os pressupostos da narrao....................................................................... 128
Dimenticare per vivere Intencionalidades pessoais e histricas................ 133
Lembrar e esquecer: dinmicas dialetizadas............................................. 135
A conscincia histrica, social e individual se reconstri sob
um fundo de esquecimento......................................................................... 138
Selecionar memrias..................................................................................... 140
Memria e histria........................................................................................ 142
Algumas precaues..................................................................................... 147
O manuseio e a concepo de documento oral......................................... 150
Humanizar a histria?.................................................................................. 158

SEGUNDA parte
Tempos, espaos e signos:a correlao entre memria coletiva e
individual no processo de lembrana / 162
Captulo 10
A natureza social do pensar e do relembrar....................................... 163

Premissas........................................................................................................ 163
A dimenso coletiva de memria em Halbwachs.................................... 165
A linguagem como manifestao do coletivo........................................... 168
O entourage sociale e a dependncia da memria individual................... 174
Contratualidade cultural e histrico-social............................................... 178
O encontro/desencontro entre memria social e coletiva....................... 182
Memria e o quadro familiar....................................................................... 189
Espaos e tempos do quadro coletivo........................................................ 192

Joo Carlos Tedesco

Captulo 11
Memria e velhice (fragmentos de empiria)...................................... 195

A afetividade na memria............................................................................ 198

Captulo 12
Ambiguidade de memria: o laudatrio, o ufanismo e os
ressentimentos........................................................................................ 201

O sentimento do vivido em temporalidades entrecruzadas................... 205

Captulo 13
A objetualidade de memria grupal................................................... 208

Memrias de quadros simblicos............................................................... 210


A genealogia de um passado coletivo........................................................ 211
Exteriorizao pblica e local de memrias coletivas e individuais..... 214
Temporalidades contnuas........................................................................... 216
Desejo de transmisso, de experincia e de visibilidade........................ 219
Fidelidade, experincia e filiao de memria.......................................... 229

Captulo 14
Filtragem de memria........................................................................... 235

Dialtica entre memria, esquecimento e silncio................................... 236


Memria como valor de uso e o uso como valor simblico.................... 240

TERCEIRA parte
Ressignificao de memrias / 247
Captulo 15
Memria, cultura e identidade tnica................................................. 248

O cenrio emprico: fonte e base de memria de idosos......................... 256

Captulo 16
Ritualizao verbal e no verbal da cultura na memria................. 275

Memria e etnia............................................................................................. 276


A centralidade da famlia............................................................................. 280
O mundo do trabalho................................................................................... 282
O ambiente de vida social e o espao construdo..................................... 284
A fora do simblico..................................................................................... 287

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

Os tempos, sua fragmentao, heterogeneidade e hierarquia................ 291


O espao e o momento do ldico................................................................ 293
O papel da narrao na vida cotidiana...................................................... 295

Captulo 17
Estragos e reconstrues do tempo na memria / 299
A importncia e a necessidade de transmitir............................................. 299
Marcos de referncia de mudana.............................................................. 308
Lembrana de afazeres, fazeres e saberes.................................................. 314
Memria da migrao para o urbano......................................................... 321
Memria de gnero....................................................................................... 330

Consideraes finais
Referncias.............................................................................................. 344
Idosos entrevistados.............................................................................. 357

Apresentao
O livro do professor Joo Carlos Tedesco, que ora apresentamos, traz em si a tessitura das redes sociais pelas quais
a cultura, como um texto do passado, tem sua dimenso mais
dinmica e, ao mesmo tempo, mais complexa para o trabalho
do pesquisador. A sua incurso nessa rede apresentada por
meio de uma tentativa de cercamento monitorado da memria. Noes como lembranas, esquecimentos, identidades
so discutidas de forma peculiar, lastreadas em larga reviso
de literatura, para demonstrar que existe um sentido quase
clandestino na produo simblica do passado.
A pergunta que o autor apresenta no livro diz respeito busca desse sentido clandestino: como possvel de ser
reconstitudo o sentido da memria, no da memria em si,
mas, sobretudo, as atribuies e as tarefas dela no presente?
Para ir ao encontro de respostas, Tedesco organiza um magnfico canteiro de obras, no qual os materiais bsicos so a memria como passado, a experincia como o fazer e o refazer e o
significado como sentido. Para o autor, esses materiais bsicos
so apenas um primeiro passo heurstico e estruturante, formando, assim, os sistemas de referncia dos contedos passveis de
serem reconstitudos. O segundo passo envolver tais noes com
categorias como espao, tempo e movimento, que, por sua vez,
lhes emprestam a dimenso fenomenolgica e a possibilidade da
mudana social no horizonte das expectativas do tempo presente,
cujo pano de fundo uma reviso dos pressupostos da obra de
Halbwachs.
Assim, entre as formas mais sublimes do conhecimento
est aquela que possibilita conectar passado-presente por meio
de vestgios. Nesse processo, as cincias humanas podem reve-

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

11

lar a condio humana naquilo que ela tem de mais fascinante


e de mais temeroso.1 entrar com o perdo do vcio para
dentro do pianssimo mais ntimo do cotidiano das pessoas
e l encontrar o sentido e o significado da ao, como diria
Max Weber.
Nessa perspectiva, a noo de experincia assume condio especial nos estudos histricos. No basta apenas a conscincia daquilo que esteja mudando e que fora condenado s
trevas pela razo histrica moderna; de que estamos vivendo
num tempo de experincias multiculturais, multitemporais
e de interesses pluriorientados em termos de contedos, os
quais nos podem deixar perplexos frente aos nossos desgastados modelos explicativos.
Essa tentativa de caracterizao da cultura historiogrfica uma marca cultural contempornea, identificada aqui
como modernidade tardia. certo que tais movimentos tem
ampla receptividade nas disciplinas sociais, e nem poderia
ser diferente. Entretanto, j entendemos que o conhecimento
do passado como meio de redeno do homem no futuro produziu monstros terrveis, e o Sculo XX exemplar, bem como
silenciador da utopia. Talvez o passado s exista mesmo como
experincia, como imaginao e como afetividade presentista,
cujas leituras so aquelas que nos remetem para o seu fundamento metodolgico do como possvel ser reconstitudo tal
sentido clandestino.
Dessa forma, entendemos que esse o momento ou tempo de experincias que podem possibilitar a problematizao
do presente pelo passado no sentido de reconstituirmos as
ideias de futuro no passado e, sobretudo, de compreend-las
como os argumentos para uma cultura da mudana. Nessa
orientao, a cultura como texto representativo das experin
A busca desse sentido o propsito central da obra de DOSSE, Franois. O
imprio do sentido: a humanizao das cincias humanas. Bauru: Edusc, 2003.

12

Joo Carlos Tedesco

cias humanas somente se deixa explicar e compreender a partir de trs funes especficas. Vejamos:
a) cultura como o processo de generalizaes de motivos,
de aes e de representaes de perspectivas de futuro
no sentido de orientaes dos objetivos individuais e
coletivos para o futuro agir;
b) cultura a soma de aes orientadas em modelos de
explicao da experincia, integrando os aspectos pertinentes multiplicidade, heterogeneidade da conduta
de vida e s relaes sociais;
c) cultura a representao exemplar de critrios de
regulamentao de experincias que, por sua vez,
sedimentam e estabilizam a construo de modelos
legtimos e normativos da prxis social.
Essas trs possibilidades, como potencialidades da experincia histrica, podem agora ser diferenciadas em um
nmero extraordinrio de funes especficas da cultura propriamente dita, dentre as quais podemos destacar as de motivao, de orientao, de satisfao, de disciplinao, de diferenciao, de recrutamento, de estratificao, de legitimao,
de integrao e, finalmente, de significao.
Metodologicamente, essas funes envolvem um amplo espectro de leituras das experincias. Pois bem, em que
podemos perceber o envolvimento da experincia? Segundo
a leitura de Tedesco, podemos perceber o envolvimento no
apenas na materialidade da experincia, mas, sim, em estruturas de representao, tais como a lembrana, a memria,
a tradio, o simblico, o imaginrio, o psicolgico, o local da
cultura e, no caso da historiografia, em textos como resultado
da racionalizao e estetizao das experincias.
De outra forma, no desprezvel que a situao atual
mostre que a saturao de perspectivas seja concebida como
a condio maior de produo de sentidos. De forma que os

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

13

custos da modernizao seletiva no seriam mais percebidos


como obstculos metodolgicos, mas como recursos, como a
prpria matria-prima para sua (re)utilizao por meio dos
esforos da metanarrativa, da metafico ou, ainda, da intertextualidade.
Portanto, o tempo de experincias presentes, percebido
atravs da fascinao histrica e do envolvido tanto pela esttica como pelas funes do conhecimento histrico, um campo frtil, mas tambm traz consigo alguns desafios, tais como:
a analogia entre a reconstruo da biografia e a interpretao crtica feita por esta s estruturas simblicas; a cincia
no desempenharia mais seu papel de motor do pensamento,
pois essa funo estaria ocupada pela poltica; a histria com
plausibilidade cientfica no pode ter mais a funo de propor
identidades, pois a historiografia o resultado de racionalizaes metodolgicas; a histria, para poder dar conta dessa busca de significaes sobre experincias, precisa ampliar
seus lastros de contedos.
Esses desafios so os pontos com os quais o autor se debate na segunda parte do livro, chamando ateno para a
ambiguidade da memria, os filtros, os signos vinculados a
questes como a velhice, a identidade tnica e a linguagem.
Tais desafios orientariam as possibilidades de reconstituio
do passado, primeiramente, sob a chancela do tal como deveria ter sido. Essa perspectiva traz consigo o sentido de uma
leitura de significado romntico de como queramos que fosse.
Entretanto, ns j compreendemos que esse passado nunca
existiu nessa forma a no ser na afetividade mais subjetiva.
Portanto, resta-nos a leitura do passado, que nos remete para
o sentido metodolgico do como possvel ser reconstitudo.
Ficam, para o(a) historiador(a) de hoje, os desafios impostos pela economia poltica dos significados ante aquilo que
Walter Benjamin referia sobre o conceito de histria: o que

14

Joo Carlos Tedesco

chamamos de progresso essa tempestade. No entanto, fica a


conscincia de que aquilo que denominamos de conhecimento
histrico est situado entre o fascnio da esttica e o temor de
suas respectivas funes no contexto de crise da razo, quando no de sua ausncia dentre os critrios de plausibilidade.
Essas so algumas das razes pelas quais a leitura do
livro profcua. Entretanto, torna-se necessrio que tal noo
tipolgica de cultura precise ser construda em debate permanente com o seu objeto de estudos. Isso, no sentido metodolgico, pode excitar o problema que geralmente aparece com o
uso de modelos. Dito de forma mais evidente, isso quer dizer
da facilidade de cairmos na vala do reducionismo ou ficarmos
presos nos picos do relativismo.
Assim, o contedo perspectivado no livro forma, simultaneamente, os elementos da constituio da metodologia com
a sua respectiva aplicabilidade. A utilizao dessa orientao
e de suas respectivas funes, em seu conjunto, est exatamente no fato de elas conjugarem, por um lado, a ampliao
do horizonte analtico do que seja seu objeto e, por outro, disciplinarem as concepes interpretativas dentro dos parmetros de plausibilidade do conhecimento.
Ento, desde j preciso desvincular a concepo simplista de modelo e de que este modelo a reviso de Halbwachs poderia ser um guia pelo qual se deveria pautar e
encaixar uma determinada realidade. Alm disso, devemos
eliminar a concepo de modelo que possa configurar-se em
um modelo da realidade, tornado agora objeto de estudo. Descartada essa crtica inicial, a ideia de modelo a ser utilizada aqui entendida como um instrumento de trabalho que,
orientado teoricamente, capaz de estabelecer significados
entre dados.2
2

Conforme FONTES, Virgnia. Histria e modelos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domnios da histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 355-356.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

15

Tomando-a dessa forma, ela possibilita uma dupla operao cognitiva: por um lado, tm-se os procedimentos heursticos necessrios para a construo do prprio modelo atravs
da constelao de contedos; por outro, mas que est relacionado a este, o modelo deve ter implcitos os critrios bsicos de sua prpria aplicao.3 A segunda parte do livro um
exerccio, por excelncia, da postura metodolgica do autor.
Com essa orientao, argumentamos a favor do fato de que
o trabalho metodolgico, com uma ou mais revises, sempre
deve apresentar esses dois aspectos vinculados para que, por
meio dele(s), se consiga estabelecer as diferentes articulaes
de um ou de um grupo de fenmenos. E, mesmo nesse caso,
a utilizao de modelos ainda no garantia para resultados
eficazes.
Assim, a questo pertinente do conhecimento precisa ser inserida numa problemtica mais ampla que lhe d
legitimidade frente a outras questes relevantes no estudo
do passado. No temos dvidas de que a problemtica deve
partir de questionamentos e debates atuais, que, ao nosso
ver, esto situados num cenrio de polmicas. A primeira engendra os elementos da constelao de fatores oriundos de
debates sobre a histria desde a sua constituio como disciplina, mas que, no tempo presente, assume importncia
fundamental no mapeamento do debate pela sua dimenso
cultural.4 Tais fatores podem ser apresentados com as seguintes formulaes: o que estou fazendo quando escrevo
histria?;5 devemos fazer tbua rasa do passado?;6 a hist-

Idem, p. 356.

Este debate est dimensionado por vrios autores em CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (Org.). Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999.
5
CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
6
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tbua rasa do passado? So Paulo: tica,
1995.
4

16

Joo Carlos Tedesco

ria tem um sentido?7 ou, ainda, com Josep Fontana, quando


ele discute a histria depois do fim da histria.8
bem verdade que tais perguntas so fceis de serem
formuladas em nossa poca, caracterizada por um certo descrdito da razo instrumental , quando no de sua ausncia. Mas so perguntas de difcil debate na tentativa de se
vislumbrar solues metodolgicas mesmo que provisrias.
Mesmo com contedos e posturas tericas diferentes, todas
essas formulaes carregam em si uma crtica contundente,
a qual toca no nervo epistemolgico-metodolgico das nossas
disciplinas, causando alguns tremores, por um lado.
Por outro, tambm no basta apenas a conscincia de vivermos numa poca de profundas mudanas socioestruturais,
de novas configuraes nos significados do conhecimento, de
experincias (multi)culturais e de pluralidade de tempos histricos combinados. Esse aspecto, num primeiro momento,
nos deixa perplexos ante a incapacidade de explicao de nossos modelos analticos.
A poca de revigoramento do significado esttico cultural e de insero hermenutica e fenomenolgica na compreenso de aes do passado atravs da nova histria cultural.9
Dessa forma, est sendo rompido o exclusivismo de uma verdade cientfica sobre o passado. Alis, na argumentao de
Hans-Ulrich Wehler, caracterizando o pensamento histrico
na virada do sculo, a nova histria cultural apontaria para
um dficit terico, e essa seria uma tendncia impregnada de

BODEI, Remo. A histria tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001.


FONTANA, Josep. Histria: anlise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.
p. 267s; Idem. Histria depois do fim da histria. Bauru: Edusc, 1998.
9
Em termos gerais, tais aspectos so discutidos em diversas perspectivas, as
quais carregam em si a caracterstica propositiva. Ver SEMPRINI, Andrea.
Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999; CUCHE, Denys. A noo de cultura nas
cincias sociais. Bauru: Edusc, 1999; WARNIER, Jean-Pierre. A mundializao
da cultura. Bauru: Edusc, 2000.
7
8

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

17

abstinncia poltica.10 Tal afirmao dura, porm, se colocada em confronto com as possibilidades de diferentes leituras
a partir da memria, pode ser relativizada.
Mas se, por um lado, existe uma crtica severa nova histria cultural pela perda de sentido, por outro, esto surgindo, na comunidade de pesquisadores, posturas de contraponto
a esses questionamentos. Tais posturas buscam exatamente
construir sentido l onde ele foi criticado como inexistente, surgindo, primeiramente, perspectivas propositivas para a construo de sentidos novos ante a crise da razo histrica.11
A segunda perspectiva est vinculada prpria dinmica das mudanas paradigmticas, provocadas pela crise da
razo civilizatria-iluminista e que so passveis de serem observadas nos ltimos anos por meio da historiografia.12
Pelas colocaes apresentadas para introduzir a leitura
do livro, possvel, em tese, afirmar que estamos vivenciando um locus de luta entre as noes de espao e tempo, cuja
compreenso precisa de uma topoanlise diferenciada.13 A categoria espao est cada vez mais presente na textura das experincias atuais em detrimento da perspectiva do progresso
cumulativo e do tempo linear.
WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts.
Gttingen: Wallstein Verlag, 2001. p. 69-86.
11
So exemplos dessas posturas propositivas, em termos de busca de sentido, os
trabalhos de DOSSE, Franois. A histria prova do tempo: da histria em
migalhas ao resgate do sentido. So Paulo: Ed. da Unesp, 2002; RSEN, Jrn.
Perda de sentido e construo de sentido no pensamento histrico na virada
do milnio. Revista Histria: Debates e Tendncias, Passo Fundo, v. 2, n. 2,
p. 9-22, dez. 2001.
12
Em termos gerais, essas mudanas ainda podem ser conectadas s posturas
de KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 2. ed. So Paulo:
Perspectiva, 1987. Na histria esse debate est em CARDOSO, Ciro Flamarion.
Histria e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Org.).
Domnios da histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
13
O termo topoanlise de BACHELARD, Gaston. A potica do espao. So
Paulo: Martins Fontes, 1996. Essa anlise tambm pode percorrer os caminhos
da cultura e identidade. Ver ento MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru: Edusc, 2002. Ou, ainda, pela globalizao e meios de
comunicao, ver MATTELART, Armand. A globalizao da comunicao. Bauru:
Edusc, 2000; SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televiso e ps-pensamento.
Bauru: Edusc, 2001.
10

18

Joo Carlos Tedesco

Na afirmao de Bachelard, o teatro do passado seria o


da memria, ao passo que a funo do espao reter o tempo
numa espcie de cmara de compresso. Nesse sentido, o calendrio temporal s poderia ser estabelecido em seu processo
produtor de imagens.14 O espao agora seria tudo, pois o tempo no animaria mais a memria,15 o que, em outros termos,
garante para a noo experincia um locus especial no debate
dentro das cincias humanas numa espcie de revanche da
experincia (antropolgica) sobre a anlise estrutural e do local da cultura sobre a explicao.16
Como resultado da delimitao do local da cultura temos a fascinao histrica do pertencimento, cuja forma de
exposio poderia ser a identidade, a funo da experincia e
sua respectiva representao sob a forma de narrativa. Nessa
perspectiva, a descrio densa das experincias do passado
enfatiza extraordinariamente as representaes discursivas,
porm, agora, sem a dinmica do tempo projetado futuro
numa espcie de cincia do tempo passado.17
Essas duas perspectivas na cultura historiogrfica so
marcas do movimento turbinal da cultura contempornea,
identificado como Sptzeit.18
certo que tais movimentos possuem receptividade na
histria como disciplina e influncia no pensamento histrico pelo presentismo, e nem poderia ser diferente. Entretanto, ns j entendemos que o passado nunca existiu de forma
A produo de imagens na atualidade objetivo do livro de KELLNER, Douglas.
A cultura da mdia. Bauru: Edusc, 2001.
15
Idem, p. 21-29. Para uma anlise diferenciada, ver JAMESON, Fredric. As
sementes do tempo. So Paulo: tica, 1997.
16
Discutimos isso recentemente em DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao. Bauru: Edusc, 2002.
17
O termo descrio densa de GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. Ver debate em KUPER, Adam.
Cultura: a viso dos antroplogos. Bauru: Edusc, 2002, p. 105-159.
18
Conforme MOSER, Walter. Sptzeit. In: MIRANDA, Wander (Org.). Narrativas
da modernidade. Belo Horizonte: Autntica, 1999. p. 33-54.
14

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

19

estruturada, a no ser como experincia, como imaginao e


como afetividade contemporaneizada. E, nesse sentido, a leitura possvel aquela que remete para a fascinao histrica
subjetiva do querer compreender o passado nas suas mltiplas possibilidades peculiares e, de outro modo, remete para
o sentido metodolgico do como possvel de ser reconstrudo.
Nessa perspectiva, entendemos que o tempo da fascinao sobre a memria pode possibilitar a problematizao do
passado pelo presente com base em dois vetores principais:
primeiro, o sentido de reconstituirmos ideias de futuro no
passado e, segundo, compreend-las como estrutura narrativa de argumentos para uma cultura da mudana.
Para finalizar, queremos enfatizar mais uma vez que
Joo Carlos Tedesco, em seu livro, no elege respostas fceis,
mas nos ajuda a compreender a especificidade da cultura naquilo que se denominou de sentido clandestino.
Astor Antnio Diehl
Primavera de 2003

Consideraes iniciais
Explorar o passado significa descobrir o que se
dissimula na profundidade do ser.
J. P. Vernant

Nossas intenes
O tema memria vem cada vez mais instigando analistas das reas de cincias humanas e sociais; suas abordagens
so variadas e seus campos de investigao adentram para
inmeras esferas do campo social, do poltico, do cultural,
dos imaginrios e das representaes. Inserida nesse cenrio
de anlise sociocultural e histrico, a presente reflexo quer
tentar dar um singelo contributo sobre alguns elementos que
compem essa preocupao toda das reas humanas e sociais
nos estudos sobre memria.
Na primeira e segunda partes, analisaremos aspectos em
torno da importncia, da conceituao e de alguns pressupostos terico-metodolgicos na anlise da memria na perspectiva socio-histrica e, em parte, antropolgica. Tentaremos identificar elementos e focos de anlise que justificam e explicam
a importncia e a disseminao de estudos sobre memria na
atualidade. Em ambas as partes, ainda que de uma forma
muito fragmentada e sem um ncleo temtico central, buscamos trazer sempre presente aspectos empricos de fragmentos de lembranas de idosos, segunda e terceira gerao de
imigrantes italianos, e tambm anlises de cunho cultural
presentes numa vasta literatura j produzida sobre cultura e
etnia italiana no sul do Brasil.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

21

Faremos uma reviso de literatura sobre o campo da memria, dando nfase ao horizonte dos smbolos, do papel da
narrao, da lembrana, da experincia, da temporalidade e
dos espaos, na tentativa de compreender processos que permitiram a reconstituio de fragmentos de memria expressos por idosos que permanecem no meio rural e de alguns que
migraram h mais de quarenta anos no meio urbano.19
Centraremos nossa anlise em trs dimenses da memria, ou seja, a abordagem social, a coletiva e a individual;
adentraremos pela histria social e cultural; pincelaremos
um pouco de memria e antropologia do campesinato em uma
discusso centrada no grupo familiar, no trabalho e nos vnculos sociais e cotidianos. Apresentaremos, tambm, uma reviso de literatura sobre memria oral e biogrfica no sentido
de mostrar sua importncia para a anlise das questes de
memria na atualidade.
Na terceira parte, descreveremos e analisaremos alguns
fragmentos de memria, fruto de pesquisa de campo que fizemos em um estudo realizado no meio rural sobre memrias
de famlia, memrias genealgicas e memria de vnculos comunitrios e religiosos com descendentes diretos de imigrantes italianos num pequeno espao da regio colonial do Rio
Grande do Sul. A ideia central dessa parte tentar entender
o contedo da memria e da cultura tnica italiana expresso
em vozes e anlises.
Este estudo sobre memria e histria regional, sob o veio
dos relatos orais de idosos, foi iniciado no ano de 1999 na regio do Alto Taquari, mais especificamente na chamada Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul. Naquele
momento, tnhamos a preocupao de analisar a relao entre
Nosso espao de pesquisa foi a regio da Encosta Superior do Nordeste do
Rio Grande do Sul, mais especificamente os municpios de Veranpolis, Nova
Bassano, Nova Prata, Guapor e Serafina Corra.

19

22

Joo Carlos Tedesco

colonos, carreteiros e comerciantes do final do Sculo XIX at


a dcada de 1950.20 Procuramos reconstituir memrias de idosos localizados no meio rural da referida regio e correlacion-las com a cultura camponesa e com os novos formatos de
famlia que se constituram no meio rural ps-dcada de 1980.
Outra parte do material foi analisada nesse momento
e complementada com novas histrias de vida, depoimentos
orais e anlises contextuais com 18 famlias de colonos que
tem idosos (todos com mais de 78 anos) em suas residncias,
em coabitao no meio rural, e 12 famlias de urbanas que
coabitam com idosos que migraram do meio rural da regio
para cidade. So 12 idosos, dos quais quatro so vivos, e 18
idosas, entre as quais h trs vivas.21 Os contatos foram feitos direta e informalmente a partir de um vnculo de conhecimento que se desenvolve h mais de quatro anos com essas
famlias e com outras tambm da regio. Por isso, no nos
preocupamos com representatividade, muito menos com aspectos de ordem formal da entrevistas. Nossos contatos foram
os mais abertos e despojados possveis de referenciais metodolgicos. Informaes acumuladas em outras anlises, resduos e fragmentos de memria, narrativas aleatrias, ilustraes (fotos, objetos, visitas em pores, abertura de antigos
bas) foram nos revelando aspectos da experincia de idosos,
atribuindo significados e sentimentos do passado de uma forma bastante espontnea, pouco ou nada programada; a inteno era sempre deixar falar, ainda que entendssemos que,
para os idosos, o simples fato de falar j era uma conquista de
nossa parte e uma bela oportunidade de torn-los agentes e
De parte desse material, surgiram dois livros, um deles intitulado Colonos,
carreteiros e comerciantes. O Alto Taquari no final do sculo XIX e incio do
Sculo XX. Porto Alegre: EST, 2000; o outro, Memria e cultura. Porto Alegre:
EST, 2002.
21
Ver a relao de alguns deles, os que mais estivemos em contato, no final, aps
a bibliografia geral.
20

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

23

sujeitos de suas vivncias, permitindo que pudessem se presentificar pelo passado por intenes transtemporais.
Os relatos orais foram feitos diretamente, em momentos
alternados e em situaes tambm diferenciadas, individualmente, nos espaos comunitrios, com a presena da famlia,
caminhando e olhando aquilo que os idosos gostam de mostrar, com a presena coletiva de alguns deles em momentos
de jogo de carta no salo da capela, situaes em que algumas idosas cuidavam dos netos/as, dentre outras. Tentamos
fazer uma etnografia de alguns aspectos de seu cotidiano sociocultural.
O objetivo dessa anlise emprica era perceber um ethos,
um universo cultural e estrutural em conflito/tenso, que se
manifesta, basicamente, na forma oral pelos idosos22 e sentido no confronto de temporalidades e espacialidades que se
alteram e se alternam nos vividos correspondentes.
A ideia central do trabalho emprico fundamenta-se na
tentativa de compreenso das reinvenes, das reinterpretaes e das permanncias de modos de vida, historicizados e
institucionalizados, culturalmente, pelo ritmo da vida cotidiana, presente, passada e projetiva dos idosos.
Para tanto, reconstrumos memrias de (i)migrantes na
forma de fragmentos de histrias de vida e de memria pessoal. Buscamos perceber a presena ou no de representaes do
ser imigrante em espaos e tempos diferenciados e a relao
entre memria individual e coletiva. O que queramos era compreender como os idosos reinterpretam e inventam as experincias vividas no lugar rural e no lugar urbano, num tempo
vivido entre a dcada de 1920 at perodos atuais, com especial
Quando no especificamos, diferencialmente, em termos de gnero, estamos
entendendo idosos no masculino e no feminino. Obedecemos, com isso,
oralidade de muitos de nossos entrevistados, que geralmente se referiam aos
nonos contemplando os cnjuges.

22

24

Joo Carlos Tedesco

ateno para as dcadas de 1960 e 1970, perodo de intensa


alterao nos quadros da organizao da vida rural e de fluxos
migratrios para regies rurais e urbanas do sul do Brasil.
Nesse sentido, pretendemos, com a presente anlise
numa abordagem socio-histrica e cultural, contribuir para a
compreenso dos imaginrios23 e representaes que se constituem por meio da presena e da ausncia de idosos em espaos diferenciados, em famlias de descendentes de imigrantes
italianos na dimenso das particularidades e totalidades, dos
liames das histrias particulares na problemtica coletiva
(tnico-cultural e espacial).
Nesse sentido, o presente estudo busca refletir sobre
alguns significados simblicos que permeiam os universos
culturais, sobre a mobilidade social, sobre as permanncias
e as alteraes nas diferentes fronteiras espaciotemporais,
no caso, mais especificamente, os vnculos do campons/idoso
nos meios rural e urbano. Acreditamos, como uma das hipteses norteadoras de nosso trabalho, que os valores culturais,
superpostos em mltiplas camadas de tempos histricos e
culturais e de espao so representaes por meio das quais
os idosos de segunda/terceira geraes de imigrantes percebem a resistncia, a mudana, a reinveno cultural e a possibilidade de pluralidade identitria.
No espao urbano, por exemplo, mesclam-se resduos
de diferentes espaos e diferentes tempos, prticas culturais
apreendidas no mundo rural e outras incorporadas no urbano. O estudo dos lugares24 encontra-se no confronto da espa Falando sobre a questo do imaginrio, bom j dizer que o entendemos como
um conjunto de representaes que vo alm dos limites dados pela experincia
e pelas associaes que resultam. A realidade de cada um, de cada grupo, de
cada sociedade produz, possui, convive e dinamiza imaginrios, crenas, curiosidades, sonhos, desconhecidos, desejos, represses, utopias, imagens abstratas,
fantasmas, construes mticas, sistemas de representao. O imaginrio uma
espcie de contato que os homens estabelecem entre o visvel e o invisvel.
24
CERTEAU, M. A inveno do cotidiano (Artes de fazer). Petrpolis: Vozes, 1994.
23

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

25

cialidade-temporalidade e da subjetividade-objetividade, da
memria individual e coletiva. por isso que, para o grande
estudioso da memria Pierre Nora, os lugares so lugares
mistos, hbridos e mutantes, intimamente entrelaados de
vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do
coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imvel e
do mvel.25
Falando empiricamente de lugares, sabemos que, da dcada de 1960 at a de 1980, junto com o processo modernizante da agricultura, com o cenrio visvel e atrativo da urbanizao, com a necessria alterao dos processos produtivos
tradicionais, com a redefinio da ordem moral e vivencial
da famlia, dentre outras, muitas famlias foram deslocadas
para o meio urbano, ou, ento, permaneciam prximas a algum filho, porm no mais coabitando.
Sabemos que o deslocamento no significa meramente
uma alterao espacial; altera-se muita coisa e, acima de
tudo, alteram-se os referenciais de memria. Na dcada de
1990, e com mais intensidade nos seus ltimos anos, constata-se uma certa alterao dessa trajetria, ou seja, h uma
certa reduo da intensidade do fluxo migratrio para a cidade e apresenta-se uma maior possibilidade de coabitao de
idosos nas famlias.
Vrios fatores esto contribuindo para essa possvel presena de idosos nas famlias: recursos financeiros provenientes da aposentadoria, possibilidade de cuidar de filhos liberando mulheres/esposas para atividades promotoras de remunerao financeira, uma maior conscincia de valorizao do
espao e das alteraes provenientes do horizonte cotidiano
dos idosos. Com isso, reestruturam-se a memria e o contedo
da lembrana no seio familiar pela presena dos idosos.
NORA, P. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria,
So Paulo: Educ, n. 10, 1993. p. 22.

25

26

Joo Carlos Tedesco

O cenrio emprico motivou-nos a lanar mo das noes


de pertencimento, enquadramento, de integrao grupal e comunitria, de famlia como unidade de trabalho, de convvio
e de parentesco, de etnia, de ethos, de reciprocidade, de tradio e modernidade, de cotidiano e de temporalidades entrecruzadas, de experincia, de ressentimentos, de imaginrios
sociais e culturais, de modernidade e de tradio. So esses
alguns dos temas que procuraremos, em correlao com o cenrio emprico e com o que trabalhamos nos dois livros j indicados, tematizar no presente estudo.

Pr i mei r a pa r t e
As cercanias da memria:
conceitos, noes e
campos afins

CAPTULO 1
Uma guinada historiogrfica?
Porque no s a vida dos santos e dos mrtires,
mas tambm as histrias dos novios, com as
suas fraquezas podiam servir de ensinamento.
Foucault

Na verdade, preocupaes e anlises sobre memria sempre se fizeram presentes no campo social e das cincias humanas. O campo da memria envolve noes de temporalidades,
lembrana, oralidades, subjetividades, factualidades, espacialidades, instrumentalidade objetal, etc. Suas tcnicas e
seus instrumentos analticos e metodolgicos que no foram
problematizados como esto sendo contemporaneamente.
nesse sentido que se manifesta, a partir da dcada de 1970,
uma grande tendncia da historiografia, mais voltada para o
campo da cultura e do social e, mesmo das cincias sociais em
geral e da antropologia social, interessada em adentrar para
anlises da memria, do cotidiano, no mais tanto de povos
e de agrupamentos societais tradicionais, mas das chamadas
sociedades complexas em geral e da experincia de vida de
grupos em espao de mudanas socioculturais.
Como diz Passerini, essa guinada analtica, se que houve, manifesta-se na tendncia de estudar menos os outros, o
distante, o excepcional e mais de assuntar-se naquilo que
vizinho, cotidiano, normal; se exprime nas tentativas dos movimentos polticos para reencontrar suas prprias razes histricas e culturais, como fizeram os movimentos de libertao

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

29

nacional e racial, os movimentos das mulheres, o movimento


operrio, as minorias tnicas e lingusticas.26
Atualmente, a memria est no centro de um grande debate terico. Para alm das snteses totalizantes da histria,
existem memrias diversas, algumas contraditrias entre si,
que radicam reconhecimento social. Sua persistncia, fascinao, nos ltimos anos, parece ser expresso de um entrecruzamento de diversos caminhos, os quais problematizam
campos do conhecimento e contradies no interior das prprias disciplinas.27 Percebemos que cada vez mais os elementos mediadores da memria, sejam objetais, de conscincia
coletiva e individual, de polticas de lembrana e de esquecimento, etc., servem de suporte cultura, identidade social e tnica, tradio, possibilidade de materializao de
formas simblicas da vida cotidiana, bem como aos dramas e
tramas histricos.
O interesse das cincias sociais pela memria deve-se
ao reconhecimento da importncia da dimenso temporal
nos fenmenos humanos, na reflexo de que tanto a continuidade quanto a descontinuidade da vida em sociedade est
implicada em mecanismos de lembrana e de esquecimentos,
de seleo e de elaborao daquilo que o passado deixa para
trs de si mesmo. No fundo, diramos que a memria est
presente mais ou menos em todas as manifestaes da vida
Essa tendncia no esteve, at, ento, ausente de profundas
polmicas, embates, refutaes, ingenuidades e aceitaes,
tanto no que se refere anlise propriamente dita quanto ao

PASSERINI, L. Storia e soggettivit: le fonti orali, la memoria. Bologna: La


Nouva Italia, 1988. Ver, tambm, da autora Storia orale. Torino: Rosenberg &
Sellier, 1978.
27
PASSERINI, op. cit.
26

30

Joo Carlos Tedesco

campo historiogrfico e metodolgico na apreenso dos seus


contedos.28
A abordagem acerca da memria, por exemplo, continua
controversa mesmo aps inmeros escritos, debates e confrontaes tericas, em suas dimenses analticas, metodolgicas, epistemolgicas, envolvendo a questo das tcnicas de
apreenso, das temporalidades que se cruzam e/ou se anulam, dos espaos e dos contextos de lembrana, dos sujeitos
que recordam, dentre outras. Como diz Bourdieu, a pluralidade de expectativas e de memria o inevitvel corolrio da
existncia de uma pluralidade de mundos e de uma pluralidade de tempos sociais.29
Discutir memria nas suas vrias dimenses, seja individual, coletiva e social, suas relaes com a histria, suas
manifestaes orais e materiais, seus lugares institucionais,
informais e circunstanciais, suas dimenses epistemolgicas,
seus silncios temporais, suas formas de enquadramento etc.,
algo mais do que desafiador e, como j dissemos, est ganhando cada vez mais lugar nas anlises e nos debates do
campo social e antropolgico. Os estudos de memria, especificamente, esto auxiliando tanto as anlises acerca do vivido
presente/cotidiano quanto de fatos e tempos passados; esto
se apresentando, em sua maior parte, como uma forma de
fazer o tempo passado se presentificar analtica e oralmente;
de construir e reconstruir o social de vividos; de entender for Como diz Jedlowski e tambm Le Goff, os homens no recordaram sempre
do mesmo jeito, no atriburam memria o mesmo significado, no tiveram
disposio os mesmos instrumentos para auxiliar na lembrana. Isso importante para poder constituir uma histria social da memria que tanto Le
Goff quanto Nora, Rossi e outros desenvolveram. A passagem de sociedades
de cultura oral para a de escrita, a difuso
29
BOURDIEU, P. apud PESAVENTO, S. J. Fronteiras do milnio. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 2001. Ver JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi
della sociologia della memoria nel XX secolo. Rassegna Italiana di Sociologia,
ano XLII, n. 3, lug./set., 2001. p. 373-392. Ver, tambm, do mesmo autor Il
sapere dellesperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.
28

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

31

mas e representaes simblicas histricas e educacionais; de


compreender tempos e espaos que necessitam de valores e
significados culturais nem sempre em harmonia entre vividos
e concebidos, expressos nas condies de existncia passadas,
atuais e projetivas.30
evidente que tudo isso faz parte de um cenrio, de uma
realidade que determinados ramos das cincias esto problematizando em razo de novos valores, de novas alteraes
culturais, econmicas, geogrficas, da possibilidade de instrumentalizar novos recursos de anlise, sejam eles do arcabouo tcnico (informtica, internet, por exemplo), na esfera
da oralidade, da narrao, da abertura de arquivos, de novos
valores democrticos e de cidadania social e de subjetiva/individual.31
nesse sentido que localizar o novo campo de discusso requer no esquecer que, em meio a um amontoado de
informaes cotidianas e imagens de passados socio-histricos, a memria, a lembrana e o esquecimento esto cada vez
mais sendo abalados, num contexto de alteraes profundas,
de desintegraes de valores e representaes que ligavam os
indivduos ao processo social, o presente com o passado, as
categorias sociais que configuram a memria social. Entendemos ser fundamental a reconstituio da memria, porque a
sociedade da informao, da tcnica e da racionalidade econmico-consumista faz o tempo andar mais rpido, permite dar
funcionalidades diversas aos espaos e s coisas; os objetos
perdem significados mais depressa e tm reduzido seu tempo
de durao e de significao.

ROSSI, P. Il passato, la memoria, loblio. Bologna: Il Mulino, 1991.


Ver JEDLOSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1,
mar. 1997, p. 135-147.

30
31

32

Joo Carlos Tedesco

A esfera da memria e dos depoimentos orais, genealgicos e biogrficos32 est contribuindo, em muito, para o campo
de anlise histrica, ligando temporalidades, fazendo-as se
entrecruzar, bem como resgatando atores sociais silenciados,
dimenses do real muito pouco visveis. nesse sentido que a
proliferao de estudos em torno do campo de anlise da memria revela um olhar das cincias humanas, sociais, histricas e pedaggicas sobre si mesmas; um olhar crtico, inovador,
problematizador e projetivo do passado e do futuro.

Passado e presente intencionalizados


A memria um campo de batalhas.
A. Thomson

Leroi-Gourhan registra que, na nossa sociedade, e em especial nas sociedades sem escrita, h sempre especialistas de
memria, homens-memria, sejam eles genealogistas, tradicionalistas, sacerdotes, pais de famlia, intelectuais, idosos,
portadores de ideologias histricas, dentre outros, os quais
tm a funo importante de manter a coeso do grupo, de garantir futuro ao passado e o significado no presente.33
Le Goff j dizia que a memria desenvolvia um papel
importante no mundo social, cultural, junto aos escolsticos e
O campo de anlise biogrfica muito intenso na historiografia atual. H uma
vontade manifesta pelos vrios estudos (histricos, jornalsticos, empresariais,
miditicos etc.) de contar a vida de personagens marcantes em vrios campos da
sociedade, muitos deles com objetivos de expresso personalista, autocentrista
(self-made-man); outros, com a inteno de prestar contas sociedade; outros,
ainda, intencionando servir de fonte histrica. H os que, aps um tempo de
silncio, publicam fatos, envolvimentos pessoais, como forma de romper com
silncios, ressentimentos e ms interpretaes. A indstria cultural, no caso
brasileiro, dinamiza esse horizonte e transcreve-o para os meios miditicos e
jornalsticos, obtendo grande aceitao do pblico consumidor.
33
LEROI-GOURHAN. Il gesto e la parola. Milano: Mondadori, 1978. Tomo II.
32

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

33

nas formas rudimentares de historiografia do mundo medieval ocidental. Diz ele que, nesse perodo, os velhos eram venerados sobretudo porque se viam neles homens-memria,
prestigiosos e teis. A unidade da memria reside na intencionalidade das aquisies, das transformaes e recuperao
das recordaes e esquecimentos. Diz Le Goff que so as pessoas que escolhem os elementos destinados a se transformar
em recordao.34 No h dvidas de que o passado condiciona
caractersticas das lembranas futuras; no se sobrepe ao
presente para permitir meramente a sua identificao, mas,
sim, para permitir a escolha e a intencionalidade do que melhor lhe interessa armazenar na memria.
A noo de intencionalidade fundamental para entender a fenomenologia da memria. Com efeito, em cada singular momento, a experincia disponvel exprime a energia da
conscincia presente. A vida da conscincia embasada em
um quadro intencional que projeta ao redor do nosso passado,
o futuro, o ambiente humano, a situao fsica, ideolgica e
moral. O arco intencional o elemento constituinte da unidade dos sentidos. A memria no a conscincia basilar do
passado, mas um esforo para reabrir o tempo a partir da
implicao do presente.35
A memria , desse modo, a capacidade de conservar
determinadas informaes com auxlio de funes psquicas,
sendo essas capazes de atualizar impresses passadas, que
se representam como tal.36 O passado condiciona o presente e vice-versa. Sabemos que muitos dos esquecimentos no
so atribudos aos problemas biolgicos de memria, mas
aos subjetivamente intencionais. As noes de interesse, de
LE GOFF, J. Memoria. Enciclopedia Einaudi. Torino: Einaudi, 1979.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia della percepzione. Milano: Il Saggiatore,
1987. p. 157 e 217.
36
LE GOFF, J. Op. cit., p. 1068.
34
35

34

Joo Carlos Tedesco

intencionalidade perceptiva, de funcionalidade, de possibilidade de livre-escolha, de experincias prvias, como veremos


adiante, so muito caras fenomenologia aplicada memria
em suas vrias abordagens.
Lidar com memria mexer com gente, com interpretaes presentificadas e, por que no dizer, intencionalizadas;
com representaes sociais e fatos histricos naturalizados e/
ou pouco explicados em termos de origem, objetivo, intencionalidades, manifestas em condies de existncia do passado,
na atualidade e com intenes projetivas. No obstante as
suas questes de ordem metodolgica e de processos tcnicos
de investigao, poderamos avanar mais e indicar inmeras
outras dimenses que o campo da memria revela, fundamentalmente, na esfera dos atores sociais e polticos, fatos histricos, identitrios, de imaginrios sociais cristalizados ou
em processo.37 No se pode perder de vista a longa durao,
a tradio na modernidade e vice-versa, bem como estruturaes sociais que, aparentemente, manifestam-se presentistas (conjunturais e fugidias), dilemas da modernidade e seus
valores projetivos na esfera tica e histrica sob o veio das
temporalidades e factualidades entrecruzadas, silenciadas,
ilustradas por representaes e imaginrios sociais de longa
data e pouco visveis, pouco explicados e/ou histrica e politicamente condicionados ao esquecimento. Sabemos que
comum, no processo histrico e social, a produo do esquecimento ou do silncio alter/auto-imposto para ajustar o passado com as intenes e ressentimentos ainda consequentes do
presente e das perspectivas futuras.
Ajustar ciclos e tempos histricos de aes, de sociabilidades e de desenvolvimento social tambm funo da memria poltica e coletiva/grupal. Com isso, no significa com Ver ARIS, Ph. I segretti della memoria. Firenze: La Nuova Italia, 1996; ver,
tambm, TADIE, J. Y.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000.

37

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

35

pleta supresso de lembranas. Sabemos tambm que, nos


processos histricos e polticos das sociedades, em diversas
temporalidades, sempre se fizeram presentes memrias condicionadas, reprimidas, no enquadradas e no lembradas no
coletivo histrico.38 A memria coletiva pode ser induzida a
esquecer e/ou a no ser justiciada pela lembrana e por aes
de ordem poltica, jurdica, criminal e ideolgica do tempo
presente e no do tempo memorizado.
Battini nos descreve, por exemplo, como os processos de
desconstruo, seleo, esquecimento e adaptao funcional
da memria aos diferentes projetos polticos e sociais do presente foram importantes para a modificao das sentenas,
da deciso judicial de quem culpabilizar (noo de relatividade de culpabilidade) e a quem conceder indulgncias histricas no ps-Segunda Guerra Mundial pelos pases aliados.39
Nesse sentido, no se sabe qual ser o destino e o uso
da memria. O que se sabe que seu carter contraditrio.
Atualmente, no s a tradio e o passado em geral perdem
o carter normativo para o futuro que tinha em precedncia,
mas a prpria vida social, cultural e identitria colocada
Ver sobre isso um excelente texto de A. THOMSON, Quando a memria um
campo de batalha. Entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e polticos
com o passado do Exrcito Nacional. Projeto Histria, So Paulo: PUC, n. 3, 1998.
39
O autor mostra como o contexto europeu dos primeiros anos ps-guerra foi
fundamental para que no fosse posto em prtica os processos de crime de
guerra de Noremberg, principalmente para os comandantes fascistas italianos
e parte de nazistas alemes. O autor mostra como foi possvel relativizar as
indulgncias, cristalizar uma lembrana unilateral distorcida e parcial da tragdia, construir uma memria funcional ao cenrio da restaurao europeia e
hegemonia americana em meio ao cinismo, a injustias e falsa conscincia
(inclusive contra os responsveis pela limpeza tnica colocada em prtica nos
territrios polons, sovitico, do Leste europeu... contra centenas de milhares de
alemes no ps-guerra). A Europa do ps-guerra se arbitrou logo a distinguir
e a separar as novas formas de violncia e de limpeza tnica ps-blica realizada pelos alemes daquela perpetrada pelos nazistas nos anos precedentes,
predispondo-se a conviver com duas memrias: aquela dos crimes cometidos
pelos nazistas durante a guerra e aquela dos alemes culpados coletivamente. BATTINI, M. Peccati di memoria: la mancata Norimberga italiana. Bari:
Laterza, 2003. p. 151-152.
38

36

Joo Carlos Tedesco

em discusso; por isso, as grandes questes contemporneas


giravam em torno da esfera cultural, identitria, de modernidade, tradio, subjetividade, dentre outras.
A subvalorizao do passado so, ao mesmo tempo o revigoramento da nostalgia, de novos sentimentos (co-presena,
pertencimento e identificao tnica), o incremento turstico e
cultural dos espaos, lugares, tempos e templos de memria,
tais como museus, restauros, antiqurios (esses muito desenvolvidos em sociedades mais antigas, principalmente na Europa), atestam esse carter contraditrio e a indefinio do
destino da memria.
Pensamos como Jedlowski quando diz que a memria
ainda aquilo que fornece aos indivduos o sentido da prpria
colocao no tempo, interligando o passado, o presente e o
futuro numa rede de afetos, de reflexo e de esperana, ainda
que sabedores de que, na realidade, o passado no permanece mais idntico a si mesmo; ao contrrio, incorporado
seletivamente e reformulado constantemente, com base nas
alteraes das exigncias da vida.40

JEDLOWSKI, op. cit., 1997. p. 144.

40

Captulo 2

Memria e lembrana
A memria coletiva o que resta do passado no
vivido dos grupos, ou, ento, o que esses grupos
fazem do passado.
P. Nora

possvel entender a memria como a capacidade de um


sistema complexo, seja ele vivente ou artificial, de armazenar
informaes, de modificar, com base nessa, a prpria estrutura, de modo que cada tratamento sucessivo de novas informaes seja influenciado pelas aquisies precedentes. Num
sentido comum, por memria entende-se a faculdade humana
de conservar traos de experincias passadas e, pelo menos
em parte, ter acesso a essas pelo veio da lembrana. nesse
sentido que a memria parece fazer referncia a uma ideia
de persistncia ou de reinvocao de uma realidade e de uma
maneira intacta e contnua.41
Para Baddley, a memria a capacidade de armazenar
informaes e de ter acesso a essas. Sem a memria, seramos
incapazes de ver, de escutar ou de pensar; no teramos uma
linguagem e, de fato, nem mesmo um sentido de nossa identidade de pessoas. Diz o autor que, sem memria, seramos
vegetais e, intelectualmente, mortos.42
A lembrana recoloca a esperana na capacidade de recuperar alguma coisa que se possua, um tempo que se esqueceu.

JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1,


gen./marz. 1997. p. 135-146.
42
BADDLEY, A. La memoria. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 3.
41

38

Joo Carlos Tedesco

Nesse sentido, a memria precede cronologicamente a lembrana e pertence mesma parte da alma a que pertence a imaginao. Ela passa a ser uma coleo ou recolhimento de imagens
com o acrscimo de uma referncia temporal. Nesse sentido, a
reminiscncia no algo passivo, mas sempre uma tentativa
de recuperao de um conhecimento ou sensao j existente
anteriormente. por isso que relembrar implica um esforo
deliberado da mente, uma espcie de escavao ou de voluntria busca entre os contedos da conscincia, seja numa perspectiva racional ou irracional, micro ou macro, genrica ou
especfica, ou, ento, como expresso individual ou coletiva.43
A memria coletiva, por meio da narrao, reafirma sua
fora de transmisso, pois, para continuar a recordar, necessrio que cada gerao transmita o fato passado para que
possa se inserir nova vida em uma tradio comum. Desse
modo, o acolhimento do contedo narrativo e a necessidade de
record-lo tornam-se um dever.44 O ato narrativo, na medida
em que possvel sua elaborao e apropriao, constri um
sentimento de identidade coletiva do grupo e um sentido de
pertencimento dos indivduos, ajuda a conhecer o grupo e a
organizar as prprias relaes internas.
Sentir e contar histrias em comum significa dar possibilidade de criao e de fortalecimento comunitrio.45 Os
idosos por ns entrevistados determinam um tempo de pertencimento, que no o de hoje, tempo esse de criao e de
participao ativa no seio comunitrio, de identificao de um
sentimento de um agir regido pela profunda autodeterminao de si. Para Benjamin, na modernidade, a memria no
ROSSI, P. Il passato, la memoria, loblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
Il Mulino, 1991.
44
NORA apud MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social. Roma: Carocci,
2000. p. 173.
45
JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 78-79.
43

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

39

foi silenciada, mas desvirtuada. A mediao da narrao foi


fragilizada:
como se fssemos privados de uma faculdade que parecia
inalienvel, mas mais certa e segura de todas: a capacidade de
trocar experincias. Uma causa desse fenmeno torna-se evidente, ou seja, as aes da experincia caram. E, pode-se dizer que
continuam a cair sem limites.46

Nora diz que a memria um quadro de interpretaes


mais do que um contedo, um embate, um conjunto de estratgias, um smbolo em movimento com tendncias conservao. Essa tendncia se apresenta pela sua possibilidade
ameaante de desaparecer, de ser selecionada e de ser herdeira seletiva de uma herana coletiva de identificao histrica
vazia e de smbolos semiapagados. Entendendo a dimenso
do movimento de memria e suas consequncias, diz que o
representativo, o simblico, o interpretativo tm seus acontecimentos, sua cronologia, sua erudio, sua prpria condio
de possibilidade, sobretudo quando sob influncia epistemolgica e analtica da histria.47
O grande terico da microistria, Ginzburg, mostra como
possvel articular na lembrana um ncleo racional/irracional e expressa-lo numa possvel viso de razo articulada.48
Segundo o autor, possvel fazer correlao e avanar do indcio generalizao, reconhecer que o particular convive com
o geral, que possvel partir do efmero para fazer uma geologia profunda no qual esse efmero se constri e se insere.49
Ginzburg analisa e retrata a possibilidade de o tempo
e a histria serem pesquisados no s atravs dos grandes
BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976. p. 248.
NORA, P. (Sous la direction de). Les lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1997.
v. I. p. 20-22.
48
Sobre essa questo, ver BLOCH, M. Apologia della storia. Torino: Einaudi,
1969.
49
Ver O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.
46
47

40

Joo Carlos Tedesco

acontecimentos, das modificaes institucionais e das descobertas tcnico-cientficas, mas, tambm, das coisas mnimas,
dos resduos (lembrar Pareto e Simmel!); porm, essas coisas minmas devem ser tomadas com a devida considerao.
As pequenas coisas podem ser indcios, traos, sinais, ritmos
mltiplos, mentalidades, imaginrios, sentimentos coletivos
de atividades prticas e do pensamento.50
Ligando a questo da memria com o ncleo racional/irracional, em concordncia com Lazzarin, entendemos que o ato objetivo/subjetivo de recordar os processos vividos que cada um de
ns organiza e reinvoca no passado, do ponto de observao do
presente, possui a capacidade de estruturar a experincia num
patrimnio utilizvel para si e comunicvel aos outros. Porm,
entendemos no ser essa a nica dimenso da memria, aquela
pode ser entendida como estrutura de interiorizao e exteriorizao de fatos, circunstncias e vividos organizados, espacial
e temporalmente, para transmitir ao externo a representao
pessoal e/ou coletiva da prpria histria ou da de outrem.

Memria como fragmento histrico-social


Cada um de ns carrega sempre consigo e dentro
de si uma quantidade de pessoas distintas.
Halbwachs

Aps revisarmos um conjunto de obras sobre memria


(histrica, social, cultural, miditica...) e intencionarmos trabalhar com memrias de idosos, temos a convico de que o
A anlise do moleiro que enfrenta e desafia a significao e a veracidade de
alguns dogmas do catolicismo um exemplo dessa correlao entre atividade
cotidiana (da cultura camponesa do norte da Itlia do Sculo XVI) e fragmentos de escritos de dogmtica religiosa. Ginzburg exalta a dimenso do vivido
como veculo por meio do qual fora os segredos, o ethos cultural e a dimenso
escondida, muitas vezes, dissimulada. Segundo o autor, para fazer fluir essas
dimenses, necessrio penetrar nos interstcios, servir-se do marginal e interrogar os silncios.

50

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

41

campo da memria nos auxilia na percepo de mecanismos,


de smbolos e processos macro que provocaram as prprias alteraes no tempo e no tempo de nossos idosos entrevistados.
Entendemos tambm que se, atualmente, encontramos
s resduos, fragmentos e partes do passado, no futuro poderemos, com um pouco de esforo, habilidade, conhecimento
histrico, cultural e social, reconstituir o todo pelos fragmentos; poderemos lhe dar corporalidade. Essa a esperana e a
inteno de grande parte dos estudos sobre memria e de sua
intensa dinmica no meio acadmico, jornalstico e miditico.
Fragmentos podem no ser meramente sobras; podem, sim,
tornar-se totalidades, plausveis e passveis de identidade, de
juno/unificao e de arqueologia socio e histrico-cultural.
Malgrado o j consolidado campo de anlise da memria,
continuamos, ainda, com uma grande dificuldade em unir memria e histria; o mesmo podemos dizer de memria e tcnica moderna, de esquecimentos (ressentimentos) e ufanismos
de memria, da relao entre bens simblicos (valores de uso e
usos de valor esse muito presente nos objetos e patrimnios
de memria e de expresso cultural) com a mercantilizao
de bens e patrimnios pblicos, sociais, culturais e histricos,
entre o vivido e o institucional, entre simbologia e funcionalidade de objetos de memria, entre o considerado velho e o que
se julga novo. Esses elementos todos no devem ser causas de
desmotivao heurstica e hermenutica da memria, muito
menos de uma viso dicotmica da realidade; devem servir,
sim, como elemento problematizador do real presente, das
temporalidades e de seus processos sociais.
Relembrar o passado, como fizeram os nossos idosos entrevistados, no significa apenas recordao verbalizada e
fragmentada. Alm da questo do conhecimento histrico-cultural, memria cidadania. Fazer aflorar a lembrana e a sociabilidade dos simples fazer aparecer formas de vivncias

42

Joo Carlos Tedesco

determinadas pelo lugar social e pelos referenciais significativos e imaginrios de um determinado grupo tnico-social em
perodos histricos e espaos variados.
Nesse sentido, as memrias podem ser convergentes,
contrastadas, mltiplas, as quais incorporam variadas experincias tanto pessoais quanto coletivas; podem ou no estar
em movimento, construir redes simblicas, invisveis, prticas objetivadas circunstancialmente, como o caso do espao
do trabalho, da dimenso da f, da alimentao (comida), da
etnia e suas correspondncias culturais, espaciais e temporais,51 nas demarcaes entre o pblico e o privado, entre o
histrico e o vivido, entre o social (institucional) e o cultural.
Acreditamos que a memria permite romper naturalizaes e inevitabilidades na histria; pode fazer dimensionar a
esfera da construo, do vivido, do histrico e cultural ainda
que entendidos na sua constante redefinio.52 Pblico/privado, temporal/espacial, domstico/cultural, moderno/tradicional, famlia/trabalho, dentre outras aparentes polaridades
ou fronteiras, foram demarcadas distintamente no tempo e
no espao; portanto, no so universais, nem estveis, nem
produzidas num movimento progressivo. Se assim o fizermos,
correremos o risco da reificao e da dimenso a-histrica da
cultura e da sociedade, ocultando origens, tenses, fronteiras,
heterogeneidades, continuidades, redefinies, criticidade e
complexidade.
possvel transformar tudo isso num momento heurstico e hermenutico, valorizar os tempos, subjetividades,
entender contextos, conflitos e enquadramentos sociais, bem
como ligar lembranas com silncios (perguntar-nos por que
Ver BOSI, E. Memria e sociedade: lembrana de velhos. So Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
52
VEYNE, P. (Org.). Histria da vida privada: do Imprio Romano ao ano mil.
So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
51

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

43

alguns ou algumas coisas so lembradas e outras no; por que


e por quem foram documentados os eventos; quem os guardou), cruzar os fatos documentais com oralidades possveis,
dar dimenses de temporalidades e espacialidades totalizantes aos fatos aparentemente insignificantes, pequenos, locais
e cotidianos.53

BOSI, E., op. cit.

53

Captulo 3
A memria no cotidiano
Estudos do cotidiano esto contribuindo para a renovao temtica e metodolgica das cincias sociais, para ampliar e reorientar noes tradicionais, abstratas e genricas
em vrios campos das cincias sociais, histricas e pedaggicas. A chamada crise de paradigmas, crise de identidade
da histria, crise da modernidade, etc. produziu essa grande
tendncia de adentramento por esse campo, ao mesmo tempo
em que se realimentou pelo aparecimento da construo de
um campo de anlise social do cotidiano.
A histria social, a cultural, a pedagogia histrico-crtica,
a microssociologia, a Nova Histria, a Escola dos Annales,54
a ps-modernidade, a antropologia cultural e do cotidiano...
descobriram novas perspectivas de estudo, fundamentalmente ps-dcada de 1980. Os temas so variados, mltiplos,
transversais, inter e multidisciplinares, agrupados, em grande parte, na esfera do cotidiano, do gnero, na cultura, dos
atores sociais, na noo de resistncia, no privado, na politizao social, etc.55 Segundo Matos,
[...] essas novas perspectivas e influncias possibilitaram a reorientao do enfoque histrico, com o desmoronamento da continuidade,
o questionamento de abordagens globalizantes do real [...], permitindo tambm o questionamento da universalidade do discurso
histrico; tiveram como preocupao abrir trilhas renovadoras,
DOSSE, F. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. So Paulo:
Ensaio, 1992; ver, tambm, LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne.
Paris: L Arche, 1981. v. III.
55
PASSERINI, L. (a cura di). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale
delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978.
54

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

45

desimpedidas de cadeias sistmicas e de explicaes causais, criar


possibilidade de articulao e inter-relao, recuperar diferentes
verdades e sensaes, promover a descentralizao dos sujeitos
histricos e a descoberta das histrias de gente sem histria, procurando articular experincias e aspiraes de agentes, aos quais
se negou lugar e voz dentro do discurso histrico convencional.56

Os estudos do cotidiano multiplicaram-se, especialmente na dcada de 1990, e tornaram-se, malgrado suas bases
epistemolgicas e suas interpretaes temporais, uma grande possibilidade de recuperar outras experincias, o mundo
de experincias comuns e subjetividades; de problematizar
e criticizar o prprio vivido e concebido cotidiano temporal,
os valores sociais cristalizados, a institucionalizao cultural
e histrica; de recuperar resistncias, figuras ocultas, diferentes dimenses da experincia, indo alm dos dualismos,
fragmentaes e formas de dominaes tradicionais,57 fazendo aflorar a trama da multidimensionalidade que constitui o
social, a heterogeneidade, a complexidade, as descontinuidades, as multiplicidades, a transitoriedade dos conceitos, do social, da histria, do conhecimento, das perspectivas, do tempo
e do espao,58 da historicidade inerente ao processo de conhecimento. Muitos dos estudos do cotidiano recuperaram vozes,
redimensionaram o campo da linguagem falada, escrita, da
cultura popular e folclorista, das memrias, dos dirios, das
biografias, das iconografias, dos jornais, etc.

MATOS, M. Z. S. de. Cotidiano e cultura: histria, cidade e trabalho. Bauru:


Edusc, 2002. p. 24.
57
HELLER, A. O cotidiano e a histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Sobre
os vrios paradigmas, no campo social, que compem os estudos do cotidiano,
ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano. Introduo constituio de um
campo de anlise social. Passo Fundo/Santa Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002,
2. ed.; ver, tambm, JEDLOWSKI, P. Il tempo dellesperienza. Milano: Franco
Angeli, 1986; ver BRAUDEL, F. Le struture del quotidiano. Torino: Einaudi,
1982.
58
THOMPSON, P. A voz do passado: histria oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992; ARIS, Ph. O tempo da histria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
56

46

Joo Carlos Tedesco

Para Matos, o historiador tem dificuldades de entender o


oculto no emaranhado fragmentado das informaes; de perceber o implcito; de fazer aflorar as estruturas do cotidiano;
de mostrar que o cotidiano parte integrante da histria e
que, alm de descrito, pode ser analisado, correlacionado e
articulado conjuntural e estruturalmente; de fornecer a reinveno da totalidade histrica no espao e no tempo (de)limitado do objeto em questo.59 Quanto mais interpretamos e
valorizamos os fatos da vida cotidiana, tanto mais enxergamos e compreendemos o bvio, mais forte se torna a nossa
capacidade terica. [...]. No nascemos apenas histricos, mas
tambm tericos.60
Para Simmel, a sociedade representa, globalmente, a
ao recproca dos indivduos que a compem. O homem, em
sua forma pessoal, interior, desenvolve-se visivelmente na interao com sua forma social, que evolui ao seu redor entre o
princpio de individualizao e o princpio de sociao. Nessa
ideia do princpio de sociao, surge a noo de organismo
impessoal. Simmel coloca que a interao, mesmo a mais elementar, no tem significao sociolgica alm da imediaticidade das aes recprocas. As formas participativas de viver
manifestam-se pelo surgimento da objetividade social na subjetividade do vivido, na sua imediatez. Das formas participativas que vem a noo de sociedade, que, para Simmel,
resultado do contrato social, que no termina e que permite
que o indivduo exista. As formas de socializao dos contatos
sociais caracterizam-se por meios particulares de orientaes
recprocas, segundo as quais os indivduos estabelecem uma
ligao social. A memria pode ser um elemento mediador
dessa ligao social dos grupos.61
MATOS, M. I. S. de., op. cit.
HELLER, A. Teoria della storia. Roma: Editori Riuniti, 1983. p. 84.
61
SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995.
59
60

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

47

A realidade social constituda atravs de processos de


interao, que so processos de socializao, os quais abrem
sempre novas vias em direo socialidade. Essas vias so
mltiplas, produto de inveno dos indivduos que as percorrem, buscando constantemente novos espaos em via de
afirmao de sua personalidade e de constituio de novos
grupos.
No possvel estabelecer a anlise da realidade social
sobre a base da oposio entre indivduo e sociedade, pois
esta ltima no seno uma representao na qual o indivduo vive em uma rede de processos de interao e leva nele
a conscincia de socializar ou de estar socializado. O homem
que conhece, age e se representa desenhado por Simmel no
interior dos processos de interao.
No que diz respeito vida cotidiana, que o que nos interessa, Norbert Elias claro ao demonstrar que a construo
dos costumes e das aes reflete de maneira exata a estrutura
do quadro englobante do conjunto dos indivduos que a habitam. A vida coletiva dos homens um aspecto de sua vida
cotidiana. Desse modo, a estrutura da vida cotidiana parte
integrante da estrutura de tal ou qual camada social, na medida em que essa camada no seja vista de maneira isolada
das estruturas de poder da sociedade global.62
Criticando a concepo de autonomia da esfera da vida
cotidiana, Elias defende a indissociabilidade entre vida cotidiana e as mudanas estruturais da sociedade, a diviso do
trabalho e aos processos que envolvem as orientaes estatais. Coloca em evidncia a comparao precisa entre o comportamento e a experincia dos homens e as fases diferentes
da evoluo social; inclusive as mudanas de personalidade
podem ser correlatas com as mudanas da estrutura social
ELIAS, N. O processo civilizador (uma histria dos costumes). Rio de Janeiro:
Zahar, 1984.

62

48

Joo Carlos Tedesco

sob seus diversos aspectos, como, por exemplo, a crescente


diferenciao social, o aumento dos canais de interdependncia, a centralizao, os controles sociais, etc. O autor diz claramente que o cotidiano um dado societal, cuja anlise no
pode estar desvinculada das estruturas societais globais de
poder; um locus por excelncia de interface da natureza e
da cultura. A vida cotidiana dos homens continua a ser produzida a partir de dados culturais, como lugar da produo e
da reproduo dos ritmos socioculturais e de sua articulao
com os ritmos siderais.
Para compreender de dentro a vida cotidiana, necessrio ter presentes algumas caractersticas que lhe so essenciais: ambivalncia, complexidade, duplicidade, polissemia,
localidade, banalidade e insignificncia. Esse relativismo
compreensivo perspectiva o real, pluraliza os pontos de vista
e as razes, as conexes causais, as regras internas, os finalismos e os conceptualismos. O conhecimento sensvel, pela
experincia, quer compreender o dado social que d acesso
socialidade (empatia comunalizada) e s experincias comuns
dos homens, considerando que a banalidade cotidiana, o
vivido comum, fundamentos da trama societal, que esto na
origem dos movimentos de massa.63
Simmel deixa claro como as sociedades nascem a partir
de pequenos grupos estreitamente unidos, nos quais as formas de socializao no se objetivam unicamente em formas
uniformes como a famlia e o Estado. Da a ateno especial
de Simmel para os fenmenos microssociais e uma concepo
relativista frente ao desenvolvimento histrico. A sociologia,
para o autor, tem o objetivo de descrever, analisar, explicar

DURAND, J. P.; WEIL, R. Sociologie contemporaine. Paris: Vigot, 1989.

63

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

49

as formas de interao social, da socializao, independentemente do contedo dessas formas.64


Desse modo, o formismo apresenta-se como condio de
possibilidade, como fundante de uma sensibilidade relativista
de mtodos e teorias (advoga a produo de teses locais); prope uma sociologia como ponto de vista (anticontedos sistemticos), pesquisas simples enraizadas nos modos de ser populares (do j dito bom senso comum, do discurso do social em
vez de s sobre o social, se que, maneira de Baudrillard, o
social ainda existe!), com obsesso ao rigor. A sociologia deve
adentrar para as dimenses qualitativas e fenomenolgicas
da sociabilidade. o que veremos a seguir.

WATIER, P. La sociologie et les rpresentations de lactivit sociale. Paris:


Meridiens Klincksieck, 1996.

64

Captulo 4
A dimenso fenomenolgica da memria
Se esquecer trair, recordar significa condenarse memria da dor.
Proust

Como vimos, o campo fenomenolgico65 adentra em


cheio no horizonte da vida cotidiana e do senso comum. Essas duas dimenses se diferenciam, mas, ao mesmo tempo,
alimentam-se, complementam e fornecem as bases para o
campo da fenomenologia, tanto da memria quanto do campo
social.
Vimos que comum dizer que a vida cotidiana possui uma
estrutura de repetio, que difcil imaginar a vida humana em
geral sem os ritmos habituais, sem as rotinas que constituem
a esfera individual e a existncia social. comum, na anlise
da fenomenologia, a afirmao da impossibilidade do ser e do
agir social sem as operaes pr-reflexivas ou pr-refletidas em
comum, sem um mundo dado j por conhecido, socializado, tcito e tenaz, que muda, porm conservando-se, ou se alterando,
lenta e silenciosamente. comum, tambm, perceber a esfera
do cotidiano como o horizonte do bvio, da carncia do extraordinrio, do ser convencional sem ser demais interrogado (e
nem possua as condies para tanto), do ser pragmtico, ou
seja, que resolva, d conta das exigncias, necessidades e dese Aqui no faremos mais do que uma simples sntese de alguns dos pressupostos
bsicos do campo em questo com o objetivo de indicar alguns elementos que
podero ser interessantes quando do estudo sobre memria e, principalmente,
de memria social e cultural de idosos. Os autores bsicos que revisamos foram
Henri Bergson, Peter Berger e Schutz (detalhes na bibliografia).

65

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

51

jos subjetivos, bem como nos possibilite conhecer as coisas que


nos rodeiam e os comportamentos das outras pessoas.66
No obstante, entendemos que a esfera do senso comum
uma espcie de base terica de compreenso, de saber, de
ateno em relao ao que fazemos, aos papis que cumprimos, ao que se apresenta na forma repetitiva na vida cotidiana, ao que se mostra como natural, que descarta (e no
motiva) a dvida, ao que dividido com os outros e annimo.
Poderamos dizer que o senso comum se funda num pensamento comum, a priori dado como consentido, suposto e de
difcil demonstrao, e que tambm no tudo nem s o que o
homem pensa ou poder pensar na vida cotidiana.
O senso comum no impede ainda que no motive, nem,
consequentemente, dificulte o ponto de vista, a subjetividade,
a expresso da experincia individual e configurada, particularmente, ao horizonte do possvel e no s do dado.67 Porm,
no h dvidas de que, na multiplicidade do agir social e individual, em correlao com o senso comum, ao selecionar,
dentre os infinitos objetivos e intenes possveis, o senso comum apresenta aes que so plausveis no mbito da nossa
cultura, fornecendo um quadro de instruo que favorea a
organizao da conduta, a possibilidade de atingir objetivos
(pragmatismo) que se pressupe serem os mais sensatos em
termos de resultados.
As noes de pr-juzo (pressupostos e juzos passados e
preventivos), de tipificao (abstrao da qualidade especfica
de algo, representao da realidade, conduo do particular ao
geral...), de memria social e de conscincia prtica (tradio
existente nos confins de uma comunidade que se transmite
Para uma anlise mais aprofundada sobre os autores e as abordagens do campo
da fenomenologia do cotidiano, ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano.
Introduo constituio de um campo de anlise social. Passo Fundo/Santa
Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002, 2. ed.
67
JEDLOWSKI, P. Il sapere dellesperienza. Milano: Franco Angeli, 1991.
66

52

Joo Carlos Tedesco

por geraes sucessivas), de pr-cientfico (pr-compreenso


do mundo da qual partem significados atribudos antecipadamente e intersubjetivamente), de memria coletiva e conscincia ordinria (conhecimento partilhado e pressuposto, o
qual permite a interao e a familiaridade das interaes dos
membros), de experincia e pertencimento (adeso, significados vividos na histria, nos grupos sociais, inteligibilidade e
intersubjetividade e que possui historicidade), dentre outras,
so caras fenomenologia que aborda o senso comum e a memria.43
O senso comum deixa evidente que existe uma trama de
pressupostos que regula implicitamente a nossa vida e cuja
ruptura poder nos deixar no caos. Porm, s margens de
incertezas, um algo mais, um etectera, a dvida, podem se
apresentar como contraposio, ruptura e estratgia frente
s ideias de objetivao, de naturalizao, de pressuposto, de
fato social, de experincia de socializao e de obviedade, to
comuns nas abordagens clssicas sobre senso comum e vida
cotidiana.
O senso comum deve ser percebido como dinmica, como
processo varivel, histrico e contextual, como sistema de expectativas e como experincia. Esta ltima importante frisar,
pois um vivido e um saber caracterizado na sua singularidade.
Na noo de experincia est implcita a ideia de diferena, pois expresso de seus sentidos. Senso comum e experincia no se excluem, no so um externo e um interno
ao indivduo; so, sim, a dialtica que permite e que constitui
a vida cotidiana. A experincia permite questionar o bvio, o
comum, o acordo intersubjetivo e desenvolvido como natural e
reconhecido por todos; permite resgatar a dvida, distanciarse do bvio e valorizar as questes que o senso comum quer
evitar; permite pensar por dentro e por fora do senso comum,
dando novos significados e funes vida cotidiana.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

53

Diz Jedlowski que a experincia um confronto com o risco; algo como uma viagem e seu movimento complexo, ou
seja, move-se do senso comum, nega-lhe a imediatez e denomina novamente as coisas. Nesse sentido, o indivduo apropria-se
do vivido e sintetiza-o,68 fornece uma nova orientao para a
vida, como via de acesso sabedoria. Benjamin diz que a experincia um fato de tradio, tanto na vida privada quanto na coletiva. Ela no consiste tanto de singulares eventos
exatamente fixados na lembrana, mas, sim, de dados acumulados, frequentemente inconscientes, que se apresentam
na memria.69
Se pensarmos nas simbologias da vida cotidiana atual,
veremos que, para o idoso campons, a fotografia parece evocar um sentimento maior de vida e de realidade;70 possui uma
fora evocadora de microexperincias de vida e de morte, ao
mesmo tempo na qual se possibilita que a memria se auto-alimente. A memria necessita de imagens. Desse modo,
o esquecimento dificultado. Nesse caso, a memria parte
de uma conscincia simblica, um sentir mais profundo da
vida, do tempo e da identidade.
A fotografia, como veremos na segunda parte, permite
reconstituir e reparar, reconhecer e proteger fatos, identidades, lugares, tempos, objetos; um suporte de sentimentos,
presentificao de ausentes, mensagem visual e produtora de
realidades; faz parar a vida como diz Barthes,71 mas tambm revela a conscincia da sua passagem e da sua transformao. por isso que os smbolos so linguagens; linguagens
de conscincia e de formulao dessa.
JEDLOWSKI, P. op. cit. p. 66.
BENJAMIN, W. Di alcuni motivi in Baudelaire. Torino: Einaudi, 1962. p. 88.
70
SARTRIANI, M. L. Memoria e autorappresentazioni nello scambio de immagini
fra nuclei familiari di immigranti italiani allestero. In: PITTO, C. (a cura di). Per
una storia della memoria. Antropologia e storia dei processi migratori. Calabria:
Jonica, 1980. p. 159-201.
71
BARTHES, R. La camera chiara. Nota sulla fotografia. Torino: Einaudi, 1980.
68
69

54

Joo Carlos Tedesco

Para a fenomenologia, principalmente a husserliana,


toda a conscincia conscincia de algo. Essa dimenso objetal tem implicaes no plano da memria, pois a lembrana
de alguma coisa imediatamente lembrar-se de si, ou seja, o
sujeito, a conscincia, a experincia so passveis de intencionalidade, de presena, de correlao entre atos e correlatos.
Para a fenomenologia, o que deixa lugar para quem; uma
espcie de olhar interior que demanda intersubjetividade, impresses, retenes, estratgias de exteriorizao, fluxos de
tempos subjetivos e atualidade de apario.72
Halbwachs atribui memria um olhar exterior, uma
entidade coletiva que nomeia grupo ou sociedade. Para se
lembrar, temos necessidades de outros. Essa a frase paradigmtica do autor, que coloca em evidncia a ideia de que a
experincia individual pertence a um grupo. Noes de reconhecimento, testemunho, lembranas intercambiadas, membro/pertencimento, engajamento, unidade interna da conscincia, representaes coletivas e influncia social so fundamentais para a compreenso do olhar externo da memria em
Halbwachs. Cada memria individual um ponto de vista
sobre a memria coletiva, diz o autor.73
A experincia, como j vimos, uma sntese, um passado
sintetizado e tornado disponvel no presente, como uma tradio, porm que no reproduz apenas na singularidade do
indivduo. Diz Jedlowski74 que a experincia uma sntese
na qual os contedos da memria individual se fundam com
aqueles da memria coletiva, memria essa tanto material
quanto simblica, que se radica em uma ordem prtica, habitual, cognitiva, fundada de elementos objetivos e subjetivos e

Ver RICOEUR, P. La mmoire, lhistoire, loubli. Paris: Seuil, 2000. p. 115-146.


HALBWACHS, M. A memria coletiva, p. 94.
JEDLOWSKI, P. Op. Cit, p. 83.

72
73
74

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

55

que permite um conjunto peculiar de modalidade de percepo, de sensibilidade e de enfrentamento prtico e psicolgico.
A experincia na memria permite, como diz Simmel,
incorporao de sentidos aos objetos e reconhecimentos dos
elementos recorrentes do prprio ambiente cotidiano.75
A tradio fenomenolgica (principalmente em Berger e
Luckmann) defende que a anlise da vida cotidiana deve se
abster de toda hiptese causal e genrica. Essa viso entende
os atores, em si mesmos, como ponto de partida da observao.
Schutz76 defende a ideia de que a linguagem cotidiana esconde uma riqueza de vises tipificadas e previamente construdas, j elaboradas nas aes mais ordinrias. As
referidas aes guardam contedos inexplorados, ou seja, h
uma reciprocidade de perspectivas que estrutura socialmente
o mundo da vida do indivduo. A ideia central de Schutz que
toda a ao humana repousa sobre um conjunto de informaes que nos so, em seu sentido amplo, fornecidas pelos outros. Essas informaes so socialmente determinadas e revelam-se sempre incompletas para interpretar o mundo. Nessa
tica, o sujeito pensante opera seus percursos sociais com a
ajuda de um stock de conhecimento mais ou menos preciso,
mais ou menos aplicvel no mundo da vida, em que ele entra
em interao com os outros sujeitos, gerando seus percursos
da mesma maneira. O homem encontra na sua vida cotidiana a todo momento um stock de conhecimento disponvel que
lhe serve de esquema de interpretao de suas experincias

SIMMEL, G. La metropoli e la vita spirituale. In: MALDONADO, T. (a cura


di). Tecnica e cultura. Milano: Feltrini, 1979.
76
Para Schutz, o mundo social e o natural so bem diferentes. A noo de compreenso envolve mtodo, epistemologia e vivido experienciado no conhecimento
cotidiano, permite compreender as aes do ser humano em correlao e em
situao (o ator e seus problemas) com o mundo social. Uma anlise nesse
sentido encontra-se em JUAN, S. Les formes lmentaires de la vie quotidienne.
Paris: PUF, 1996.
75

56

Joo Carlos Tedesco

passadas e presentes e determina tambm antecipaes das


coisas futuras.77
A realidade social vista por Schutz como produto de
interaes, do somatrio de objetos e fatos da vida cultural e
social que o senso comum experiencia nas (inter)aes. A intercomunicao e a linguagem manifestam e exteriorizam esse
mundo nos seus fins prticos. Os mundos do indivduo (privado) podem ser intercambiados, estar em consonncia com o
mundo dos outros e ser transcendidos a um ncleo comum. As
idealizaes permitem encontros e manuteno de um mundo
comum. H um saber social, segundo Schutz, que se desenvolve nas aes humanas (interaes) e que no pode ficar de fora.
Schutz expressa claramente que a significao no
inerente natureza enquanto tal, mas o resultado de uma
atitude seletiva e interpretativa do homem na natureza. A observao dos fatos, dos dados e dos acontecimentos, nas suas
interaes, vai criando estruturas internas prprias de significao e de pertinncia para os indivduos que, nesse mundo,
vivem e pensam. O papel do cientista social est em atribuir
significados conceituais quilo que os indivduos produzem
em sua (inter)ao cotidiana.
[...] deixado a si mesmo, o senso comum conservador e pode
legitimar prepotncias, mas interpenetrado do conhecimento
cientfico pode estar na origem de uma nova racionalidade, uma
racionalidade feita de racionalidades [...]. O conhecimento cientfico ps-moderno s se realiza enquanto tal na medida em que se
converte em senso comum.78

Esse mundo pr-selecionado e pr-interpretado por


uma srie de construes prprias ao senso comum, portanto
sobre uma realidade cotidiana; so os objetos de pensamen SCHUTZ, A. Fenomenologia del mondo social. Buenos Aires: Paids, 1972.
p. 142.
78
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as cincias. Porto: Afrontamento, 1987.
p. 56-57.
77

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

57

to que determinam o comportamento, que definem o objeto


de ao, enfim que ajudam a encontrar o ambiente natural e
social.
As representaes comuns e as tipificaes estruturam
atividades e significaes que modelam o mundo do conhecimento comum. Mais bem desenvolvida por Simmel, a noo
de tipificao permite situar os indviduos na sociedade. O
conhecimento que os indivduos tm e podem ter de uns e
outros uma condio da vida social, mas tambm do saber
sociolgico.
Em correspondncia com Schutz, significa dizer que todo
o conceito que toma lugar num modelo de agir humano deve
ser construdo de tal maneira que uma ao produzida por
um indivduo no seio do mundo vivido e de acordo com a construo tpica seja compreensvel tanto para o indivduo quanto para seus semelhantes e que esteja no quadro do pensado
cotidiano.79 Satisfazer esse postulado garante a consistncia
das construes do socilogo em relao s construes formuladas pela realidade social em seu pensar cotidiano.

Memria e experincia de percepo


Os homens e a sociedade no tm recordado do
mesmo jeito nem tm tido disposio os mesmos
instrumentos para recordar.
Matera e Fabietti

Falamos algo sobre fenomenologia social por ser ela


passvel de aplicao ao horizonte da memria, por buscar
entender a dimenso subjetiva da memria, descrever como
os fenmenos se apresentam conscincia (motivaes e ra PAIXO, L. A. A etnometodologia e o estudo do poder: notas preliminares.
Anlise e Conjuntura, Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, v. 1, n. 2, maio/
ago. 1986. p. 93-110.

79

58

Joo Carlos Tedesco

cionalidades subjacentes s interaes sociais), entender as


concepes que os indivduos carregam quando constroem o
mundo social em que vivem.80
A fenomenologia uma espcie de psicologia social interessada nas formas de comportamento pblico (intencionalidades expressivas), na interao, na co-presena (a aceitao
ou no de regras, a comunicao, a manifestao visual e oral,
a postura e o movimento do corpo, o espontneo, a roupa...);
pode auxiliar tambm na compreenso de situaes de face
a face numa entrevista, por exemplo, entender as inmeras
estratgias de manipulao e interferncia da subjetividade e
da identidade individual e social.
Para a fenomenologia, a interao manifestao de indivduos em representao, requerendo que esses se transformem em personagens. desse modo que os imponderveis
da vida social (resduos) aparecem, estruturam-se na (situ)
ao e ocasio social. A fenomenologia quer interpretar a realidade social atrs dos olhos do ator, realidade essa fundada
em aes espontneas, mescladas s atividades que se sobrepem (temporalidade vivida e sua consequente experincia,
escolaridade, profisses, ganhos, classes, etnias...), propiciando ao sujeito a competncia e a defesa para atuar nos espaos
interativos (pensar nos estigmas sociais, nos ressentimentos
e nos ufanismos na anlise de memria de algum fato). Encontramos muito isso em nossa anlise emprica, como veremos melhor na terceira parte do trabalho.
A aplicao da fenomenologia anlise da memria busca subjetivar os elementos da lembrana. Bergson diz que a
Simmel nos faz pensar no dinheiro como articulador de formas sociais de interao cotidiana, como categoria abrangente da viso de mundo. Para o autor,
o dinheiro envolve desejo, frustrao, prazer esttico, sacrifcio, troca, riscos,
preciso, expectativas racionais e simblicas, otimismo, segurana, dentre outros;
revela o tecido normativo e ambivalente da modernidade (desejo/frustrao,
liberdade/alienao, etc.).

80

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

59

memria uma espcie de auto-anlise da imagem presente


referenciada ao passado, representao de signos de conscincia, representao que precisa enfrentar o espao e o tempo.
Mesmo que haja estgios de memria (infra e inconsciente),
o passado no morre, vive em estado de potencialidade e latncia.81
Bergson localiza-se no cenrio revolucionrio das cincias sociais do fim do Sculo XIX e incio do XX. Segundo o
autor, fazendo uma correlao entre matria e memria, essa
ltima comea da sensao, ou seja, um objeto estimula as
fibras sensitivas, os aparatos sensoriais e se converte em imagem consciente. Desse modo, a memria permitir reproduzir
tal imagem ainda que o objeto no se encontre mais no campo da percepo. A conscincia tem a capacidade de escolher
atentamente quais so as percepes que se deseja conservar.
A percepo e a memria possuem um objetivo instrumental
e intencional; da que a memria se torna, ento, aquilo que
comunica percepo o seu carter subjetivo.
Bergson afronta o problema do reconhecimento, ou seja,
vai buscar no passado as representaes mais condizentes
para inserir-se nas situaes presentes; diferencia memria
-hbito (a qual possui um carter de repetio de algo at se
tornar hbito) de memria-imagem (o registro que fica impresso, est radicada no presente e objetiva o futuro, movida pela vontade, pela imaginao). Para o autor, a memria
no um fenmeno coletivo, nem social, mas um estatuto espiritual, como memria em si mesma.82
A dimenso material e pragmtica da memria, sua exigncia de exterioridade atrapalha e, muitas vezes, bloqueia o
curso da memria. Os graus de importncia dos fatos de memria vo denotando as lembranas e os esquecimentos. Na
Ver BOSI, E. Memria e sociedade.
BERGSON, H. Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes, 1990.

81
82

60

Joo Carlos Tedesco

verdade, perpassa a ideia de que h sempre uma experincia


da percepo dos fatos, do mundo externo, do que resulta o
papel mediador da imagem na/da memria. A memria uma
espcie de autoanlise da imagem presente referenciada ao
passado; representao de signos de conscincia; representao essa que precisa enfrentar o espao e o tempo (lembrar do
corpo, da fora fsica, da ligao entre corpo e atividade, corpo
e capacidade de lembrar, velhice...).
A memria corporifica-se no presente e interfere na formao das representaes presentes; por isso, a diferena entre a memria-hbito (utilidade, repetio/ao, socializao,
enquadramentos...) e a memria-lembrana (sonho, singularidades, evocaes, individualizado, esprito livre...).83 A memria seria o lado subjetivo de nosso conhecimento acerca das
coisas, daria segurana, pois levaria o sujeito a reproduzir
formas de comportamento que j deram certo; teria a funo
prtica de limitar a indeterminao.

Memria e vida cotidiana na


perspectiva da fenomenologia
Como falamos, Bergson compreende que na vida cotidiana se faz mais presente a memria-hbito, ou seja, a repetio de gestos e palavras, exigncias de socializao, ao e
conhecimentos teis ao trabalho e s exigncias sociais e ao
adestramento cultural. O cotidiano social caracteriza-se pela
inteligncia imediata, sentimento de presena imediata no
mundo, um cenrio institudo que se funda sobre a base de
uma racionalizao do mundo e do domnio tcnico da natureza.
BERGSON, Matria e memria.

83

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

61

O cotidiano constitui-se de sistemas simblicos, de tcnicas, regras de comportamentos, papis, representaes sociais, linguagens diversas, que normatizam formas de agir,
de se entender como moderno, de interagir com o tempo e nos
espaos variados em que cotidianamente nos inserimos, de,
no limite, sermos sociveis.
No entanto, racionalidades adaptativas fazem-se presentes; a tradio, a integridade e as continuidades que resistem
ao contratempo da mudana, as lgicas prticas, os resduos/
fragmentos, os imponderveis e os sistemas de valores podem
se manifestar. desse modo que, para a fenomenologia, o
passado no morre; esquecido, porm, em estado de potencialidade. O que decreta a reduo da possibilidade de memria a dimenso material e pragmtica da vida. A memria
estaria guardada por inteiro como ela foi para quem a vivenciou, como pginas impressas em nosso esprito (inconsciente); por isso, seria a possibilidade de reapario, de despertar,
de reconhecer as lembranas.84
Bosi, fazendo uma anlise muito interessante de memria de idosos italianos que viveram o perodo varguista da
dcada de 1940 no Brasil, afirma que a memria tem a funo social de guardar o tesouro espiritual da comunidade, da
famlia, da tradio e da honra. A perda da narrao, de dar
conselhos, de trocar experincias (em virtude do triunfo da
informao e da pressa) reduz o potencial social, subjetivo e
fenomenolgico da memria. Situada nesse horizonte, a conscincia presente e cotidiana induzida a no acolh-la mais,
a bloquear o seu curso temporal.85

BOSI, E. Memria e sociedade.

84
85

Id. ibid

Captulo 5
Memria, modernidade e
mudana social
O debate atual sobre modernidade entrecruza-se com
o desenvolvimento do campo de discusso sobre a memria.
Esse cruzamento sublinha seu carter dinmico, plural, ambivalente, conflitual, d nfase passagem do coletivo ao individual e cultura miditica que prepondera em ambas.
Modernidade e memria tematizam projeo, projeto
vontade de durao no tempo, um carter ambivalente, de
significados partilhados, de tenses de uma contaminao
cultural, de uma humanidade sempre mais mvel e interdependente [...] de incertezas, fragmentaes, precariedades, de
tempos breves e incapazes de projeo e de narrao de um
tempo longo.86
Memria e modernidade possuem razes sociais e culturais comuns, surgem de um mundo em transformao profunda e que provoca reduo de valores tradicionais e gera descontinuidades recorrentes, que oferece instrumentos tcnicos
cada vez mais sofisticados na exteriorizao da capacidade
humana de recordar.
Na modernidade, a memria no aparece mais como um
depsito, mas como uma pluralidade de funes, uma complexa rede de atividades de seleo, de filtragem, na reestruturao em correspondncia com as necessidades e as demandas

RAMPAZI, M. Presentazione. Rassegna Italiana de Sociologia, a. XLII, n. 3,


lug./set. 2001. p. 368.

86

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

63

do presente tanto em nvel individual quanto ao social.87 Presente e passado so passveis de interferncia e de filtragem
social e humana.
H sempre, em Halbwachs, a ideia da seleo, de sntese
e de reconstruo da memria coletiva em razo dos interesses do presente. Ela um fator de identidade do indivduo/
grupo, mas tambm sua expresso e manifestao do momento presente.
Em correlao com essas proposies, so as interpretaes da memria como lugar de conflitos entre verses diversas do passado e,
enfim, observao da capacidade de memria de institucionalizarse em prticas sociais de comemorao, de escrita, de arquivao,
que consentem em determinar verses do passado, de fixar-se e
eventualmente de impor-se sobre o outro.88

Para Halbwachs, determinados eventos continuam a ganhar espao de lembrana porque continuam a significar para
os grupos sociais. Portanto, poder haver uma reconstruo ou
no coletiva do passado, at porque as memrias coletivas so
plurais. Existem diversos grupos numa sociedade, do que resulta que, para o autor, muita coisa vai depender do contexto
e da capacidade de poder dos grupos em fornecer explicao
plausvel a determinados fatos e processos da realidade.
A ideia de moderno pressupe uma ideia de futuro, de
transtemporalidade. O que moderno hoje pode tornar-se
antigo amanh. A cultura ocidental moderna pensou a cultura em si como um vir-a-ser, por isso, a contraposio das
culturas tradicionais e das modernas. Essa dimenso produz
implicaes para a memria, pois as dimenses temporais
se alteram. A tradio constitui-se nesse horizonte do velho/
JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi della sociologia della memoria nel
XX secolo. Rassegna Italiana de Sociologia, p. 373-391. Ver, tambm, ROSA,
A. et al. Tracce. Studi sulla memoria collettiva. Napoli: Liguori, 2001.
88
JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna italiana di sociologia, XXXVIII, n.1, p.13547, mar. 1997, p. 52.
87

64

Joo Carlos Tedesco

novo. Para a memria, a ideia de passado ganha dimenso de


presente; no entanto, para a conscincia histrica, o passado
passado.
Segundo Le Goff, o desejo de conservao do passado caminha na mesma intensidade com a qual se distancia.89 Porm, o moderno transformao incessante; o que caracteriza
a modernidade sua capacidade de, principalmente no horizonte material, superao e de alterao.90 Nesse sentido, o
processo mercantil no capitalismo, a racionalizao e a diviso do trabalho foram muito bem analisados por Marx, Weber
e Durkheim, respectivamente, ambos modernos, crticos da
modernidade.
No que pudemos entender, a tese bsica de Halbwachs
de que a memria, tanto no plano individual quanto no coletivo, constitui-se como processo de reconstruo. Ela no
um depsito (como o era em Bergson), mas algo que comporta um aspecto social ineliminvel, que conserva tanto os
processos de sedimentao dos acontecimentos passados na
conscincia quanto os de sua conservao e de seu reconhecimento.
Em Les cadres..., Halbwachs mostra como as categorias
sociais da linguagem, das representaes do tempo e do espao constituem a fixao e o reconhecimento das recordaes
individuais. Na memria, portanto, o passado no est sempre acessvel em modo direto e no est conservado em modo
definitivo. A mediao com o presente o constitui de volta em
forma diversa.91 por isso que a memria, em Halbwachs,
precisa ser entendida como manifestao de um conjunto dinmico, espao no s de seleo, mas de reinterpretao e re LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia, v. VIII, Torino: Einaudi, 1979.
BERMAN, M. Tudo o que solido desmancha no ar. So Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
91
JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernit: memorie e societ nel XX
secolo. Milano: Franco Angeli, 1989. p. 47.
89
90

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

65

formulao do passado, portanto, em transformao/renovao de sentido. Sua funo est mais ligada em preservar os
elementos do passado que garantem aos sujeitos sua prpria
continuidade e sua afirmao identitria, do que propriamente fornecer uma imagem fiel do passado.
J dissemos que a mudana a norma institucionalizada
nas sociedades modernas, nas quais o que legitima o contedo
da tradio a racionalidade; da a dificuldade, segundo Weber, de manuteno da tradio.
Se existe algo que constitui, de modo unvoco, o sentido da memria na modernidade, a percepo da passagem do tempo.
Em outros termos, a relao que essa possui com a percepo
da transitoriedade da existncia humana. Frente passagem do
tempo, frente percepo da radicalidade da morte num mundo
privo de horizontes transcendentes, frente viso de mudana e
do carter definitivamente passado do que passado, a memria
uma faculdade ambivalente.92

Benjamin, citando Baudelaire, j dizia que, no capitalismo ocidental, a cidade se transforma mais rapidamente do
que o corao de um homem, ou seja, as mudanas so tantas
e com um ritmo de velocidade que o indivduo, em meio a isso
tudo, sente-se imvel, e aquilo que aprendeu a amar tem a
sensao e a objetividade de andar em runas, principalmente
o mundo em que sua existncia se constituiu. Nas palavras
pouco animadoras de Benjamin, o progresso um anjo que
procede no futuro com o olhar atnito voltado para trs a contemplar acmulos de runas.93
desse horizonte de anlise que advm as noes de
tempo perdido, de nostalgia em Benjamin e, mesmo, em Simmel, noes essas importantes para as anlises de memria

JEDLOWSKI, P., op. cit., 1989. p. 91.


BENJAMIN, W. Immagini di citt. Torino: Einaudi, 1971. p. 84; ver, tambm,
do autor Sul concetto di storia. Torino: Einaudi, 1997.

92
93

66

Joo Carlos Tedesco

narrativa de idosos.94 Isso evidente ao nvel da passagem


das geraes. Pois o mundo muda, as categorias com as quais
as geraes passadas definiram o prprio mundo tornam-se
obsoletas pelas geraes que as seguem.95 As reflexes de
Simmel sobre a modernidade fundamentam-se na questo
do surgimento da grande metrpole e da economia monetria madura e suas repercusses sobre outras esferas da vida,
principalmente no campo dos sentimentos e da experincia
subjetiva.
Metrpole e monetarizao expressariam a concentrao, intensificao, difuso e extenso da modernidade; ambas provocariam um aumento da troca, do consumo, da diferenciao social, incremento da funcionalidade das relaes
sociais. A experincia torna-se, a partir da, diferenciada e
descontnua (fragmentada). A cultura transforma-se em cultura de coisas e de objetos; produz-se reificada, autonomizada, dissociada e distanciada socialmente.
Na sociedade moderna, segundo crticos da modernidade, os valores perdem seu carter relacional, deixando lugar
para a teleologia meio-fim, para a quantidade, para o aumento do individualismo e da funcionalidade das relaes sociais.
No obstante a vasta literatura sobre a crise da durao, que caracteriza a
modernidade, h tambm uma vasta bibliografia que analisa a possibilidade
de convivncia, em conflito, entre a chamada tradio e a sua consequente
modernidade. No h dvida sobre as profundas transformaes que se operam
na vida cotidiana, no campo tecnolgico, nas formas de organizao social, no
progresso industrial, ou seja, alteraes no mundo objetivo. Porm, na esfera
da subjetividade, os processos no andam com a mesma velocidade. Famlia,
etnia, moralidade, tradio, religio, tica social, parentesco [...] aglutinam-se
dimenso objetiva da transformao para, ainda que em grau menor, encontrar
espaos de atuao, estratgias de convivncia. Nesse sentido, percebemos que
modernidade e tradio no se excluem, mas se retroalimentam, em sinergia,
ainda que movidos, em grande parte, pelos pressupostos da primeira. No mbito da memria, no h dvidas de que a perda da faculdade de narrar, de
intercambiar experincias produziu a crise da continuidade. A intelectualizao
da experincia promoveu a racionalizao e a burocratizao da memria e seu
resguardo em lugares institucionalizados social, poltica e culturalmente, como
bem observou e analisou Pierre Nora.
95
JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 71.
94

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

67

Nesse cenrio, os valores pessoais reduzem-se a valores monetrios e o estilo de vida torna-se um contraposto de elementos estanques e fragmentrios. Diz Adorno que experincia
a continuidade da conscincia, na qual perdura o que no est
mais presente, na qual o exerccio e a associao criam no indivduo a tradio. O conceito de experincia, na perspectiva
sociolgica, necessita das noes de durao, de sedimentao, de tradio e de nostalgia.96
A ideia de experincia torna-se problemtica com a modernidade; a experincia da modernidade, como j vimos,
uma experincia de mudana contnua, de tempo acelerado,
de eventos que transcorrem rapidamente e se sucedem, de ausncia de correspondncia de um antes, o qual um peso de
que necessrio se desvincular para construir um novo real;
requer um cenrio do imprevisvel, do incerto, de eventos, de
acelerao da histria, da no incorporao do passado como
orientao e atribuio de sentido experincia presente, da
perda da mediao dos quadros culturais na constituio da
identidade individual; produz uma continuidade fundada na
capacidade pessoal, da autonomizao, na impossibilidade
de sedimentar uma experincia maturada. Exige um homem
cuja memria foi educada a no lembrar, seno por breve
tempo, at que outra coisa mais importante se imponha
sua ateno e roube a recordao precendente; o intensificar
da vida nervosa como resposta aos estmulos nervosos e contraditrios, como coloca Simmel.97

ADORNO, T. W. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco


Angeli, 2001. p. 39.
97
SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995. p.
36. O autor fala da hipertrofia da conscincia, do indivduo a-histrico, do
aventureiro, da pobreza de experincia, da intelectualizao da experincia,
da distncia do mundo, etc., como expresses fortes da realidade produzida
pelos referenciais econmicos, culturais e sociais da modernidade na sociedade
capitalista.
96

68

Joo Carlos Tedesco

Halbwachs j dizia que um pensamento s toma consistncia quando possui uma durao suficiente.98 Os excessos
de eventos produzem novos tempos, novas identidades, novas experincias passageiras e novas invenes, dificultando
a possibilidade de sedimentar a memria. Para Benjamin, o
papel da mdia fundamental na construo desse tempo acelerado na modernidade. Para o autor, a economia produziu
a racionalidade econmica do tempo. A banalizao da exteriorizao da memria pelos meios de comunicao retirou o
potencial mediador da narrao, da expresso do patrimnio
comunitrio.
Nesse cenrio, a tradio substituda pela informao pontual, substituvel e efmera, rompendo o potencial
e o exerccio de associao, da continuidade da conscincia
(tradio), tornando o indivduo o nico testemunho de sua
identidade. Benjamin diz que o olhar autobiogrfico torna-se
o nico capaz de fornecer ao indivduo o horizonte da prpria
continuidade.99
Na anlise de Weber, e tambm de Simmel, est claro
que, quanto mais a experincia moderna assume os traos
de uma experincia intelectual, mais os aspectos no instrumentais da memria tendem a ser deixados de lado; com isso,
traumatiza-se e privatiza-se a esfera dos valores e dos significados culturais mais profundos da sociedade.
Segundo Simmel, a essncia da experincia moderna
est no aventureiro, que o exemplo extremo do individualismo a-histrico, do que vive no presente: A essncia da aventura de ser cortada fora do resto da vida e da sua continuidade.100 Os eventos seguem, sem se sedimentar, de forma que
HALBWACHS, M. A memria coletiva
JEDLOWSKI, P. Il testimone e leroe. La societ della memoria. In._______;
RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 21.
100
JEDLOWSKI, P. op. cit., p. 80.
98
99

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

69

cada fato novo aparece como independente do que lhe precedeu; desse modo, desenvolvem-se as noes de descontinuidades, de autonomia entre passado e futuro, to em evidncia
entre os ps-modernos.101
No podemos esquecer que as anlises sobre modernidade colocam em evidncia as diferenas nas condies de vida
do homem contemporneo em relao a contextos sociais e
histricos anteriores. O crescimento da cultura objetiva caminhar em correlao com o atrofiamento do saber individual,
com sua fragmentao e especializao. Desse modo, a identidade individual torna-se frgil, havendo sempre mais necessidade de uma reconstruo de uma biografia pessoal por
meio da retomada do passado.
Com essa atrofia da experincia, segundo Benjamin, os
nexos que ligavam os vividos individuais memria no tempo foram irremediavelmente perdidos. Essa subtrao da experincia faz com que sua comunicao caia no anonimato.
Segundo o autor, a imensa quantidade de aes que se sucedem de forma automtica e que produzem uma cotidianidade
induzem uma srie de experincias no realmente assimiladas, mas registradas no nvel de uma conscincia superficial.
Com isso, no amontoado de informaes incessantes e num
mundo de temporalidade incerta, memria no mais dada
a funo de continuidade da identidade, e, sim, de descontinuidade, de estranheza temporal da prpria temporalidade,
tempo esse artificial, que vive de uma exterritorialidade sem
participar de alguma relao temporal, diz Benjamin.102

A ps-modernidade, principalmente com Maffesoli, vai utilizar muitas noes


da crtica modernidade de Simmel para constituir seu arcabouo terico. As
noes de efmero, presentismo, proximia, fugacidade e transitrio so suas
peas-chave.
102
TRAPINO, A. Sentimenti del passato. La dimensione esistenziale del lavoro
storico. Firenze: La Nuova Italia, 1997. p. 249.
101

70

Joo Carlos Tedesco

Isso tudo tem profundas implicaes no campo da memria e das responsabilidades sociais e, mesmo, perante a
histria e a cultura, pois um indivduo que perde o sentido da
relao com o prprio passado perde tambm um elemento
fundante de sua identidade, ou seja, a capacidade de perceber sua prpria continuidade, de se reconhecer como mesmo
no decorrer do tempo. Sem essa percepo, no pode haver
responsabilidade. As responsabilidades na histria na vida
do indivduo no se resumem ao presente. A memria histrica e a memria poltica fazem reconstituir responsabilidades
(lembrar o nazismo, o fascismo, a resistncia, a escravido, o
racismo, a degradao ambiental, dentre outras).
Marcuse dizia que a memria, malgrado sua reduo funcional e simblica com a modernidade, pode tambm ser um
reservatrio de fora subversiva. Os ressentimentos histricos,
tnicos, afetivos, raciais, dentre outros, atestam isso. O pensamento utpico e revolucionrio em Marcuse constitui-se justamente nessa capacidade de tomar distncia do presente.
Tanto Benjamin quanto Marcuse e Weber analisaram
muito bem o quanto a referncia ao crescimento do saber
cientfico de um tipo de saber que consome as suas prprias
ideias reduz o potencial da importncia da memria e disso se
alimenta e cresce continuamente.
No mundo em que vivemos, o problema a enfrentar no mais s
o do declnio da memria coletiva e a sempre menor conscincia
do prprio passado, mas a distoro deliberada dos testemunhos
histricos, a inveno de um passado mtico construdo para servir
os poderes. Somente o historiador, com sua rigorosa paixo pelos
fatos, pelas provas e testemunhos, pode realmente montar guarda
contra os agentes do esquecimento, contra os assassinos da memria,
contra os conspiradores do silncio.103

YERUSHALMI, Y. H. Riflessioni sulloblio. Parma: Pratiche Editrice, 1990.


p. 23-24.

103

Captulo 6

Memria e ps-modernidade
A ps-modernidade social104 move-se baseada em alguns
conceitos bsicos, entre os quais diversidade de interpretao, flexibilidade e liberdade de manifestao, importncia da
localizao e da identificao dos atores em seu contexto, o
cuidado com a emotividade, a subjetividade e a aproximao.
Para a ps-modernidade, ainda que ns pensemos estar buscando a objetividade do conhecimento acerca do real,
estaremos assumindo uma postura relativista. Em outras
palavras, estaremos fazendo leituras do real. Por isso, sua
tendncia de defesa do antigrande relato, da antitradio, a
defesa das tradues, em vez de tradies contemporaneizadas. Nessa perspectiva, a memria entra em cheio!
A ps-modernidade defende a chamada destruio criadora das identidades; seus princpios bsicos so a reduo da
identidade subjetividade, pluralidade e transitoriedade.
As identidades sociais so feitas e refeitas a partir das novidades culturais e das mudanas sociais. Nesse processo, esto
em constante confronto o velho e o novo, em reelaborao os
critrios de autovalidao pblica dos sujeitos, estes, variveis de acordo com a multiplicidade de situaes sociais do
cotidiano e com as transformaes econmicas e culturais que
caracterizam as sociedades contemporneas e que proporcionam um contnuo reajustamento das matrizes identitrias
dos sujeitos (por isso, um fato qualquer pode ganhar significa Ver Lyotard e Maffesoli, dentre outros. Sobre o campo da ps-modernidade
social, ver o terceiro captulo de nosso livro Paradigmas do cotidiano.

104

72

Joo Carlos Tedesco

o e fatos tradicionais podem cair no esquecimento; poder


haver, inclusive, contraposies temporais e ambivalncias do
mesmo fato). A memria presente apresenta muitas dessas
ambivalncias temporais de significados sobretudo no campo
ideolgico-poltico (nazismo, resistncia, militarismo no Brasil... so alguns exemplos disso).105
Para a ps-modernidade, h uma busca narcsica nos indivduos no tempo histrico e social para a autossatisfao,
um descentramento do mundo (em relao s utopias, finalismo, racionalizao...) e um recentramento dos sujeitos pautados pela valorizao de novos signos culturais106 (consumo,
lazer, corpo, a esttica, o cio [o chamado cio produtivo do
italiano De Masi, o qual muito est servindo para essa viso],
o virtual, o maquinismo de um lado e o naturismo do outro).
Ao que nos parece, a ps-modernidade cristaliza-se num
desejo de viver em hibridismo (de estar no meio e entre as
coisas, objetos e natureza, de agregar-se em torno de questes sensveis e pouco estruturais da sociedade, como, por
exemplo, no global, o pace italiano), numa grande descrena
das ideologias de Welfare State, de segurana social, poltica,
econmica e tica, tornando claro que essas se fragilizaram,
instaurando uma espcie de fico na vida coletiva, com presumveis efeitos sobre o modo como os indivduos se vem,
apresentam e avaliam a si prprios e, igualmente, o modo
como vem, apresentam e avaliam os outros (aqui o papel da
velhice entraria em cheio, a simbologia das ditas coisas antigas, do passado em geral).
No podemos esquecer que a ps-modenidade no est
to interessada em usar o presente para dar garantia de futuro ao passado. Essa nova estrutura de sentimentos (Ben FORTUNA, C. As cidades e as identidades. Narrativas, patrimnios e memria.
RBCS, a. 12, n. 33, 1997. p. 126-141.
106
Id. ibid.
105

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

73

jamin) dos indivduos implica uma deslocao das nossas metodologias de anlise das genealogias e das relaes sociais
fixas e formais para uma compreenso do carter mais fluido,
fugidio, movedio e presentista da sociedade, do tempo e das
coisas/fatos no tempo.
Na ps-modernidade, espao e tempo ganham cdigos
diferentes. O espao e o tempo institucional perdem espao
para o que agrega subjetividades e interaes. A cidade, por
exemplo, produz estranhamento e anonimato, porm permite
a exploso de espaos, de culturas, de tempos variados, da heterogeneidade. Nela h uma deslocalizao/transferncia no
olhar de sentido, h uma temporalidade do olhar, uma mercadorizao do tempo e da memria. Os sentidos e significados
passam hoje pela epistemologia estilizada, parcelar, transitria, ambivalente e descontextual.107
O cotidiano dos sujeitos marcado por prticas liminares (vm e se vo), por novas concepes de tempo e da memria, por reconceptualizaes do espao, da esttica e da moral.
H uma aceitao radical da vulnerabilidade.
A tradio necessita da rememorao, de um fato importante vivido por uma ou por vrias pessoas para ganhar corpo
e continuidade no tempo. A reconstituio de uma tradio
geralmente feita com recursos mediadores dos ritos e dos
smbolos. As pessoas ou grupos que recorrem tradio normalmente o fazem com a inteno de dar sentido ao presente,
objetivando responder s provocaes do tempo presente.108 O
campo da memria est sempre cheio de reflexes pessoais e
de lembranas familiares, e a lembrana uma imagem inserida dentro de outras imagens, uma imagem genrica transportada ao passado.
FORTUNA, op. cit.
RIVERS, D. P. B. Tradio, memria e ps-modernidade: implicaes nos fatos
religiosos. Estudos de Religio, ano XII, n. 15, dez. 1998. p. 50-61.

107
108

74

Joo Carlos Tedesco

Como toda a experincia humana, a lembrana tambm uma experincia continuamente interpretada, porque
toda percepo se faz dentro de um quadro interpretativo,
corrigido e transformado pelas novas experincias. Assim,
experincia e interpretao relacionam-se dialeticamente.
Noes comuns pertencentes a um grupo so fundamentais
para reconstruir o evento passado atravs da lembrana. Porm, nas sociedades atuais, a memria coletiva, segundo Rivers, est muito enfraquecida, pois no est mais totalmente
regida pela tradio ou pelo religioso. A informao contnua
e a eternidade do presente anulando toda a referncia ao passado imediato e mediato levam a que o indivduo esteja cada
vez menos dependente de grupos sociais. Tanto a memria
quanto o indivduo apresentam-se fragmentados em muitos
espaos, tempos e grupos.109
No fundo, a dificuldade est em saber pressentir o que se
presentifica; est, muitas vezes, na insensibilidade frente s
possveis consequncias das mudanas em curso. O conflito
est entre o atropelo dos fatos e a amarrao a referenciais
que insistimos em manter, o que muitas vezes nos cega frente
complexidade do mundo e faz das cincias sociais um campo
de anlise limitado.
Por isso, falar em epistemologia ps-moderna hoje, para
muitos, pode soar ambguo. Para alguns, significa estar na
moda, exorcizar demnios, ser sensvel a uma nova esttica
civilizacional e reencantar o mundo; para outros, nada mais
do que uma inveno de marketing societal, ou seja, readaptar
o social ao presentismo consumista, fugidio e fragmentrio
de uma chamada economia de escopo, que anula o passado e
fornece as bases no presente para um incipiente perspectivar
do futuro.
RIUERS, op. cit., p. 56.

109

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

75

Para os crticos afoitos chamada ps-modernidade, tanto


no campo da cincia quanto no social e no simblico, essa nova
tica, travestida em esttica, importante na medida em que
permite e induz uma autocrtica da modernidade, sobretudo
em suas bases epistmicas mais histricas e generalizadoras.
A modernidade foi vista como presente, como racionalizao da civilizao ocidental que objetivava a modernizao
social sob a consolidao da economia e sociedade capitalistas.
A fora de trabalho livre, o Estado moderno, a organizao racional da produo, a profissionalizao da atividade poltica
e burocrtica, a autonomizao e emancipao da cincia, da
arte, da esfera moral, do polissemismo cultural, o crescimento
das foras produtivas, dentre outras, foram racionalizaes
de uma modernizao social.
As cincias sociais avanaram modernamente na ligao
homem e sociedade. Profundas discusses no campo da cultura, da dissoluo do senso comum, da tradio, da memria,
etc.; suas grandes narrativas, muitas at bem legitimadas,
seu campo discursivo no mbito da identidade, do progresso,
da revoluo, da histria, enfim, de um homem capaz de decidir sobre a sociedade, de projetar, de garantir sua imortalidade sobre a terra, sobre a natureza fsica.110
A modernidade produziu contra-revolues, produziu
reencantamentos, subjetividades, a des-no-anti-razo, a
ps-anti-transbaixa-alta modernidade, o cotidiano, o vivido,
as existncias coletivas sem conduo predeterminada, os
micropoderes, os microespaos, as micropartculas societais,
as diferenas, as pluralidades, as crises conceituais, dentre
outras.
Com a chamada crise das epistemologias da modernidade, as cincias sociais se vem desafiadas a adotar novos
RIUERS, op. cit.

110

76

Joo Carlos Tedesco

mtodos, novos pressupostos, a produzir novos conceitos, a


fazer parcerias multi e transdisciplinares, a flexibilizar norteamentos, a produzir e/ou revigorar novos clssicos, novas
bases tericas, que possam dar conta do imperativo do deciframento do presente. Isso tudo consolida-se como uma exigncia das mltiplas formas de lutas e de conflitos sociais, de
convivncia multicultural e alm-fronteira (mundializao) e
do capitalismo na sua verso neoliberal como roupagem nova
de um mesmo processo civilizatrio.
As cincias sociais sempre tiveram preocupaes epistemolgicas ligadas s suas fronteiras, porm mantendo sempre o esprito deslizante (interdisciplinariedade) uma vez que
inmeros objetos so comuns. A angstia de compreender os
rumos da modernidade, bem como o imperativo de captar o
social, contemporaneizando velhas questes com novas abordagens, sempre esteve no mago dos vrios campos do conhecimento social.111
Na chamada fenomenologia compreensiva de Maffesoli,
h uma crtica profunda s abordagens sociolgicas que reduzem o mundo social ao mundo da produo, principalmente
de cunho marxista e funcionalista. Ele tenta resgatar o lado
de sombra do social baseado em minsculas situaes do cotidiano, no imaginrio, na utopia e no no racional, em ltima
instncia, no senso comum. O autor no acredita que o conhecimento cientfico possa dar conta da complexidade do social
(influncia weberiana) e de seu antagonismo; prope, ento,
uma vigilncia respirao social, experincia do mundo vivido coletivamente, ao imaginal, ao pluralismo da vida, longe
dos mitos da razo, do progressismo e da institucionalizao
do intelectual.
TAVARES DOS SANTOS, J. V. A aventura sociolgica na contemporaneidade. In:
ADORNO, S. (Org.). A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade.
Porto Alegre: Editora da Universidade, 1995. p. 73-84.

111

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

77

A tica da esttica que o autor defende pressupe exteriorizao e transcendncia, desejo de viscosidade, o coletivo,
o estar-junto. por isso que se pode logo dizer que h gozo
esttico na vida cotidiana, no imaginrio grupal, em todas as
fuses pontuais j referidas musicais, esportivas, religiosas
que fazem da vida uma obra de arte. A nfase na busca do
qualitativo, a ambincia hedonista, a insistncia na erotizao da existncia, a epifanizao do corpo e a importncia da
aparncia, eis, entre outros, os indcios mais seguros de tal
vontade de arte. Essa vontade de arte no se reivindica, nem
mesmo se reconhece como tal, mas causa e efeito de um
esprito do tempo que no mais futurista, mas se dedica a
valorizar um inegvel gozo no presente.112
O autor, ironicamente, chama de imoralismo tico a
slida e subterrnea conscincia que o corpo coletivo tem de
si mesmo. A noo de tica contraposta de moral. Essa,
sinteticamente, segundo o autor, baseia-se no dever-ser, nas
normas e padres de comportamento social. A tica manifesta
o querer-viver, traduz continuidade e responsabilidade para
com o conjunto social; remete ao equilbrio e relativizao
recproca de um conjunto social: [...] o imoralismo tico da
massa conserva, com o passar do tempo, e de uma maneira
astuta e encarniada, uma multiplicidade de atitudes consideradas aberrantes pela moral indicada.113
A ruptura epistemolgica provocada pelos ps-modernos
reconhecida por alguns que se intitulam autocrticos da modernidade como fragilizao dos modernos. Reconhecem, no
entanto, que os ps-modernos so precisos em apontar a ambiguidade nas metanarrativas da emancipao da humanidade, da unidade da razo, da experincia histrica da modernizao como projeto central iluminista. A razo que mergulha MAFFESOLI, M. No fundo das aparncias. Petrpolis: Vozes, 1996.
MAFFESOLI, M. Dinmica da violncia. So Paulo: Vrtice, 1987. p. 128.

112
113

78

Joo Carlos Tedesco

va na racionalizao e na secularizao, manifesta no interior


da modernizao, aparece como potencial contraditrio para
alguns modernistas; encontra agora um outro sujeito, um
outro projeto, sem identidade histrica, sem fronteira para o
social e para o indivduo. Consumir e consumir por consumir;
sem cu, sem histria, sem revoluo, sem projetos culturais
e sociais previamente conexos e unificados nos moldes da j
consolidada civilizao industrial. Viver o cotidiano, o ecletismo, o pacifismo, esperar a prxima novidade, enfim, viver a
espontaneidade e a seduo.
Contra o historicismo radical e a utopia social e linearista, os ps-modernos pensam nas atitudes invariantes do
presente e da condio humana. Noes de civilizao, de
racionalizao, perspectivas de longa durao so completamente rejeitadas nos cnones da ps-modernidade. Da que
brotam tambm as maiores crticas. Outras crticas nascem
de sua concepo esttica ou, mais precisamente, de sua sinergia com a tica. Segundo alguns crticos, ao defender a
ideia de que, na base de qualquer representao ou ao, h
sempre uma sensibilidade coletiva extralgica que serve de
fundamento existncia social, Maffesoli corre o risco de um
excesso de esteticismo, levando o ato esttico para alm da
tica. Sua concepo de morte ao indivduo em prol do coletivo, do ns-fusional e da comunalizao, segundo alguns crticos, alm de inutiliz-lo e de abstra-lo em prol da massa,
despersonifica o sentido esttico da existncia coletiva.
Outra crtica profunda que Maffesoli recebe no tocante
falta de relao entre o micro e o macroestrutural, o cotidiano e as estruturaes sociais. O fato de no reduzir o mundo
social esfera da produo no significa absolutizar o cotidiano como esfera que se basta a si mesma, como nico espao em que se pode apreender a socialidade. Para o autor, o
presente que merece ateno; ao devir histrico, d poucas

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

79

perspectivas. O presente precisa ser vivido ao mximo, intensa e qualitativamente. O autor, em vrias obras, continua se
defendendo dizendo que seu presentismo radical no significa
ausentar a histria, pois essa influi sobre o cotidiano; o que
o autor quer negar os projetos da histria, os mitos de vida
eterna profanados como motor da vida social.
Para o autor, os conceitos so relativos. Ele recusa sua
definio operatria, pois quer descrever os fenmenos humanos tais como so: na sua diversidade, descrio e imaginao. Tambm recusa a tradio determinista ou positivista
que considera irracional a esfera da imaginao (imagem), da
intuio, da experincia e do sentimento; o que quer aceitar
a multicausalidade na compreenso dos fenmenos humanos,
opondo-se s conexes causais concretas.
No h dvidas de que a modernidade se associa racionalizao da sociedade em vrios de seus nveis, privilegiando
aspectos de mobilidade, funcionalidade, transtemporalidade
(desencaixe), transcendendo as particularidades locais ou nacionais. No entanto, isso no significa que tenhamos de entender o real no seu lado oposto, ou seja, pela razo interna,
sensvel, presentista e localista, como se a modernidade estivesse superada e os modernistas no se tivessem dado conta
de que o mundo ou as transformaes em curso foram e esto
sendo negligenciadas.
O que podemos dizer, em linhas gerais, que, para os
ps-modernos, vivemos num contexto no qual a metalinguagem, a grande teoria, um hors-sol; a pluralidade de regras e
comportamentos (os tribalismos na aldeia global), a atomizao do social, o pluralismo descentralizado, as variedades de
inclinaes e de julgamentos no tm lugar na centralidade
dos mitos, dos universos ideolgicos universais.114
GIDDENS, A. As consequncias da modernidade, So Paulo: Unesp, 1991,
aumenta mais a polmica caracterizando o perodo atual como sendo de uma

114

80

Joo Carlos Tedesco

De certa forma, os ps-modernos, nas suas abordagens,


pelo menos, colaboram para nos fazer reconhecer as transformaes e algumas das especificidades em curso. No entanto, a
ideia de ps muito forte, anuladora; d ideia de um radical
antes e depois. Isso faz perder a dimenso do processo, de
continuidade com superao e preservao que se constri a
partir dela no mbito do conflito e das contradies.
A razo instrumental, a colonizao do cotidiano, a possibilidade de emancipao pela razo, as novas lutas de classes,
o mundo do trabalho, com suas novas formas de alienao
e de mais-valia global, a sociedade do mercado e do capital,
dentre outras questes, desafiam-nos para a compreenso
menos presentista e localista da vida social. Porm, segundo
Diehl, a expresso ps-modernidade revela o ambiente fragmentrio e saturado do mundo atual, como sintoma cultural
ingnuo da revolta contempornea [...], porm, tambm como
rejeio ou desmistificao dos fragmentos ou metanarrativas epistemolgicas do moderno [...], ou seja, deixa de lado a
capacidade de pensar o utpico.115

Alta Modernidade, expressando, com isso, continuidade com especificidades,


radicalizadas, construdas a partir dela.
115
DIEHL, A. A. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao.
Bauru: Edusc, 2002. p. 145, 148 e 152.

Captulo 7

Memria e patrimnio
As imagens do passado em cada poca se correspondem com os pensamentos dominantes.
Halbwachs

Em teoria, e no plano antropolgico da memria coletiva,


cada sociedade tende, necessariamente, a conservar seu prprio patrimnio cultural e a transmiti-lo de gerao a gerao
aos seus membros. Conservar, transmitir, sobreviver, difundir-se e rememorizar so elementos da esfera biolgica que
pertencem tambm ao horizonte antropolgico e que podem
servir de base para a anlise histrica do social. A memria
patrimonial pode ter uma dimenso coletiva, no sentido de
patrimnio cultural, artstico, lingustico e de normas de convivncia.116
Desse modo, a memria coletiva tende a estar em consonncia com o conjunto das representaes de formas de vividos temporais que cada grupo social produz, institucionaliza,
pratica e transmite por meio de formas variadas de socializao e de interao entre os membros e, desses, com outros.
Diferentemente do que a ps-modernidade pensa e analisa, nesse contexto de mercantilizao da cultura, percebe-se
a necessidade de construir uma biografia, uma histria da
prpria vida que esteja com possibilidade de fornecer, ainda
que limitadamente, um senso de continuidade do tempo num
contexto de fragmentao. A memria patrimonial, indepen Ver BARTELETT, F. La memoria. Milano: Angeli, 1974.

116

82

Joo Carlos Tedesco

dentemente do fato de para quem esteja servindo, possui essa


caracterstica.
Percebe-se, pelas anlises de histria social e cultural e,
mesmo, poltica, ainda que em contraposio ao movimento
forte na sociedade em direo ao esquecimento e indiferena
para com o passado, uma necessidade manifesta de sentir-se
pertencente a uma coletividade mediante o intercmbio de
valores. As comemoraes, os monumentos de memria podem auxiliar na formao de uma identidade individual no
sentido coletivo do pertencimento, enquanto testemunho concreto de um passado pessoal e familiar.117
Historiadores confirmam que a memria patrimonial
sempre esteve, historicamente, ligada aristocracia e Igreja. O iluminismo pensou-a como de interesse na instruo
pblica, como exerccio da cidadania e propriedade da nao
(constituio de Estados nacionais, justificativa ideolgica
para a construo de uma identidade nacional).
Com o tempo ps-Revoluo Industrial, com a racionalizao e intelectualizao social e econmica da sociedade,
a dimenso fenomnica do patrimnio social perdeu grande
parte de seu significado. por isso que a memria patrimonial passou a ser entendida e relacionada com a seleo e
atribuio de determinados valores, que passam a se tornar
representao social e histrica, ou seja uma relao estabelecida entre um objeto material/simblico ou imagem presente e algo ausente. Sua significao no est apenas nas suas
caractersticas fsicas e morfolgicas, mas no que passar a
representar, como a identidade de determinado grupo, cidade
nao, etnia, agrupamento cultural, determinado evento, perodo histrico ao qual pertenceu.118
Ver na Revista Cincias & Letras, Porto Alegre, n. 31 e 32, 2001, vrios textos
sobre educao patrimonial.
118
LE GOFF, J. Memoria...
117

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

83

Entendemos ser a memria patrimonial uma construo


social, da qual se disputam seus enunciados discursivos, sua
atribuio de valor, suas prticas, as quais assegurem sua preservao e inviolabilidade. Existe um campo de disputas119 por
significados e pela legitimao e hegemonia do mesmo inserido num campo entre classes, etnias e grupos em luta material
e simblica.
A ideia de institucionalizar a memria de determinado
grupo, o que implica reconhecimento e interesse em manter
como sua memria. Segundo Gourarier, as estruturas materiais, uma vez institudas como patrimnio, passam a dispor
do estatuto de inviolabilidade, adquirindo carter de verdade
a ser reproduzida para toda a sociedade, podendo ser comparvel a objetos sagrados.120

Monumento/documento
A memria torna-se sempre suspeita para a
histria: a histria a deslegitimao do passado vivido.
Nora

Le Goff distingue monumento e herana do passado de


documento. Na sua viso, a funo dos primeiros est ligada
memria, perpetuao do passado, com o atributo de evocar;
do segundo, provar e testemunhar, atingindo seu triunfo
com a escrita.
Segundo o autor, a histria possui um papel importante
na esfera da memria patrimonial principalmente na atribui Bourdieu nos oferece um quadro interessante desse horizonte do campo das
disputas pela legitimidade discursiva dos objetos simblicos. Ver, do autor, A
economia das trocas simblicas. So Paulo: Perspectiva, 1974.
120
GOURARIER, Z. Le muse entre le monde de morts et celui des vivants.
Ethnologie Franaise, n. 1, t. 14, jan. 1984. p. 67-76.
119

84

Joo Carlos Tedesco

o de valor histrico ou documental a determinado bem,


podendo haver, porm, restaurao interpretativa na determinao do valor de uso poltico, ideolgico, econmico e
cultural (a esto presentes os conflitos no campo da propriedade, do imobilirio urbano quando da justificao discursiva
em torno de preservao e de tombamentos).
Outro aspecto que o historiador aborda no sentido de
compreender como e por que aquela sociedade definiu tal patrimnio como significativo. A ideia mostrar como as sociedades
lidam com seu passado e sua memria e como o patrimnio demonstra a percepo do tempo histrico e da historicidade dos
processos sociais, ainda que, em grande parte, conservados em
lugares pouco visveis, em termos populares, e muito ainda institucionalizados em termos de interpretao e de possibilidade
de compreenso significativa pela grande maioria da populao,
ou, ento, pela intensificao da velocidade do tempo e das coisas no tempo.
Pensar nos objetos passados e do passado deixar o tempo presente se esvair sem significado, ou seja, vazio. Le Goff
diz que possvel que a memria patrimonial seja o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da histria,
da poca, das sociedades que a tem produzido [...], o resultado
de um esforo produzido [...] para impor a prpria imagem de
si.121
J vimos que Le Goff diferencia e, ao mesmo tempo, correlaciona documento e monumento: o primeiro como sendo
escolha do historiador; o segundo, como herana do passado.
A caracterstica deste que lhe dada a capacidade, voluntria, ou no, de perpetuar sociedades histricas, serve de testemunho histrico e de matria-prima para a histria. Diz
Febvre que a histria se faz com os documentos escritos, cer LE GOFF, J. Documento/Monumento. In: Enciclopedia Einaudi. Torino:
Einaudi, 1981.

121

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

85

tamente. Quando existirem. Mas se pode faz-la, se deve faz-la sem documentos escritos se no existirem.122Continua
o historiador dizendo que o analista social deve produzir seu
mel mesmo que no existiram flores; deve usar a palavra, os
sinais, as paisagens... enfim, com tudo aquilo que pode haver
correlao, dependncia e importncia para os homens.
Para Le Goff, o documento no incuo, mas o resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente da histria da
poca da sociedade que o produziu, mas tambm das pocas
sucessivas em que um se fez presente e teve significado, durante as quais continuou a ser manipulado, quem sabe com
o silncio.
Na anlise do autor, a histria a (re)constituio cientfica da memria coletiva.123 Desse modo, o que se apresenta, e
composto simbolicamente (pela escrita e/ou pelo objeto monumental), o resultado de uma escolha resultante das foras que operam nesse cenrio, entre as quais esto os historiadores. Na noo de monumento (herana do passado) e de
documento (escolha do historiador) est presente a ideia de
continuidade, de durao, de significao atemporal. nesse
sentido que um documento pode se tornar um monumento. O
critrio para isso o esforo de anlise crtica, contextual, memorial e relacional do material/objeto. Lucien Febvre j dizia
que a engenhosidade do historiador est em fazer as coisas
mudas falar dos homens, do contexto social, tornar transparente os meios que produziram o objeto material.124
FEBVRE, L. apud LE GOFF, J. Documento/monumento, p. 41.
Ver LE GOFF, J. Documento...; ver BARTHES, R. La camera chiara. Torino:
Einaudi, 1980. Uma anlise sobre os monumentos imagticos e sobre especificamente a fotografia na histria; ver DAUTILIA, G. Lindizio e la prova:
la storia nella fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001.
124
FEBVRE, L. por Le Goff, J., op. cit., 1981. p. 41. Febvre insiste na anlise
crtica do documento como monumento, na necessidade de perceber as condies de sua produo histrica, sua(s) intencionalidade(s), a mentalidade
que o gerou, a percepo de uma memria coletiva cristalizada ou projetiva,
a desmistificao de sua significao aparente, de desmembrar os tempos
122
123

86

Joo Carlos Tedesco

Benjamin foi um dos primeiros cientistas sociais a analisar o papel social, cultural e econmico da produo imagtica, ou seja, seu potencial persuasivo, sua onipresena possvel e cotidiana de cada ser social, seu cenrio na era da eprodutibilidade tcnica e funcional o capitalismo e da chamada
indstria cultural a qual permite acesso do objeto de arte ao
pblico (sociedade de massa).
A dimenso coletiva e individual da memria patrimonial no pode ser entendida como um conjunto homogneo e
coerente de representao do passado.
Halbwachs j dizia que a memria coletiva deve ser pensada como uma dinmica em tenso contnua, num jogo de conflitos, selees, interpretaes do passado (lembrar aqui a ambiguidade de muitas comemoraes no campo poltico, na ambivalncia na significao da Semana Farroupilha para os gachos),
suas relaes com o poder, com a poltica, com os mecanismos
de esquecimento pblico de fatos, de formas de gerir o social,
a identidade,125 com a responsabilidade nos confrontos com a
histria.
A ideia de monumento memria est ligada ao possvel ceticismo sobre a possibilidade de materializao de uma
passado, presente e futuro do contedo ilustrado que no s humano, mas
temporal e espacial.
125
Halbwachs analisou muito bem, em A memria coletiva, o carter de
construo que tpico da memria coletiva, quanto sua relao
estreita com a construo da chamada identidade coletiva, os confrontos
e a reconstruo do passado no cenrio da pluralidade de memrias coletivas
que vivem no interior da sociedade. Tanto em nvel individual, como j falamos,
quanto ao nvel coletivo, a memria uma funo da identidade. No entanto,
estreitar demais a ligao entre memria e identidade pode fazer esquecer que
a memria tambm poder romper ou contradizer a identidade que estabelece
num determinado tempo. No plano individual e subjetivo, a psicanlise mostrou
amplamente como um dos motivos de interesse da memria est mesmo na sua
capacidade de conservar traos que tenham encontrado espao na conscincia
e que, portanto, podem no fazer parte do horizonte identitrio. Por isso,
como diz Halbwachs, a memria podem ter tambm um carter crtico e
desestabilizante. Isso tambm vale para o plano coletivo. Desejos, traumas,
ressentimentos, aspiraes... podem provocar a desfetichizao da memria
e de identidades variadas e interessadas no presente.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

87

forma simblica que est implcita na utilizao de um lugar


preciso, que, como tal, antes ou depois, perde sua fora de
atrao.126Os monumentos so sempre mediadores de memria. Glria, fama, alegoria, valor cultural, social e poltico, histrico, controle social, poder, regionalismo, aspiraes
polticas... so algumas das expresses mediadas pelo monumento de memria.127
Os espaos de memria podem ser mveis ou imveis.
Arquivos, dirios, romances, textos culturais (poesias), a narrao oral... servem de memria funcional, de memria-arquivo, como modalidades de recordaes. A memria patrimonial sempre uma tentativa de legitimar/desligitimar. A
aliana entre memria e poder exprime-se na elaborao de
forma estruturada do conhecimento histrico. Os poderosos
hegemonizam no s o passado, mas tambm o futuro: querem ser recordados e, para esse fim, erguem monumentos em
lembrana de suas atividades, fazem-no de modo a que essas
venham a ser lembradas, cantadas pelos poetas, eternizadas
em monumentos e arquivadas. O poder legitima-se retrospectivamente e perpetua-se em modo prospectivo.128
A memria patrimonial evita e, ao mesmo tempo, congela a memria; produz barreiras que evitam a comunicao
crtica, alternativa, relativizada; pode produzir um fundamentalismo de memria (lembrar o culto s personalidades
de Stalin, Hitler, Mussulini, Saddam...).

GARBINATTO, V. O historiador e as imagens. Cincias & Letras, n. 31, p.


273-283. Ver tambm em outros volumes da referida revista excelentes anlises sobre educao patrimonial, sobre o papel dos smbolos de memria, da
educao para a memria, etc.
127
ASSMANN, A. Ricordare. Forme e mutamenti della memoria cultural. Bologna:
Il Mulino, 2001.
128
ASSMANN, A., op. cit.
126

88

Joo Carlos Tedesco

Congelar o tempo num lugar ou um lugar


congelado no tempo?
A histria a representao sempre problemtica e incompleta do que aconteceu.

Nora

Pierre Nora j dizia que a tendncia caracterstica do


mundo moderno a acelerao da histria, ou seja, o sentimento de ruptura com o passado. Da a ideia de deixar vestgios, de lugares de memria, de congelar o tempo de algo.
A memria patrimonial e monumental presta-se para
tanto.129Os lugares de memria seriam expresso de uma
busca desenfreada pelas chamadas identidades ameaadas,
memrias enfraquecidas, tempos lineares, imagens da perda.
Muitas vezes, prdios e monumentos de grande importncia
cultural, segundo os valores definidos por um nmero limitado de agentes, so totalmente desconhecidos e negligenciados
por sua comunidade mais prxima.130 Os objetos de memria
so objetivaes das recordaes, de um passado que no se
quer esquecer, que deve conviver com a lgica de uma sociedade de consumo a qual se funda sobre a rpida deteriorao
dos valores comunicativos dos bens e sobre sua rpida substituio.
H objetos que assumem no imaginrio coletivo um enorme valor simblico (veremos isso melhor na segunda parte,
quando da anlise da vida camponesa, bem como da vida urbana ressignificada pelos valores do urbano em conjunto com
estratgias de reconstruo da memria da vida rural). A pr CHARTIER, R. O mundo como representao. Estudos Avanados, n. 11,
v. 5, 1991. p. 173-191.
130
LUPORINI, T. J. Educao patrimonial: projetos para a educao bsica.
Cincias & Letras, n. 32, p. 325-338.
129

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

89

tica social e cultural da memria reenvia a capacidade da memria de exteriorizar-se e objetivar-se, isso , de tomar forma e
sedimentar as representaes sociais de um certo passado em
determinados objetos, smbolos, artefatos culturais e comunitrios.
Os objetos de memria, subjetiva e objetivamente, dependendo do contexto, dos grupos e significados em questo,
tem um poder evocativo, ao mesmo tempo em relao de reciprocidade.
Os objetos do uma certeza que advm de sua materialidade, do
fato que quando queremos relembrar eles esto prontos, como
passivos recipientes da nossa projeo, das nossas interpretaes
dos eventos passado. Se pode, portanto, sublinhar que os objetos
so dotados de um poder de memria que lhes rende significados.
Esse poder, obviamente, no deriva do objeto enquanto tal, mas
do fato que ele incorpora e projeta significados importantes para a
pessoa que o adquiriu, recebeu ou encontrou em uma situao ou
contexto particular que se quer recordar. atravs desses objetos
que se cria uma continuidade entre passado e presente, e atravs
deles que se mantm viva a lembrana do passado.131

Em geral, os lugares que para cada um so significativos


representam eventos de memria, possibilitam ligar a prpria
memria aos fatos. As recordaes culturais servem a uma comunidade porque possibilitam radicar a prpria existncia no
passado e reforar a identidade presente. O papel das datas,
dos lugares, dos objetos simblicos, dos smbolos externos...
justamente este: garantir a continuidade, a legitimidade, o
enraizamento espaciotemporal e confirmar a prpria identidade dos grupos. Dizem Fabietti e Matera que, sob o plano
temporal, a memria reinvoca eventos que ela mesma coloca
em qualquer ponto no espao, lugares de memria sobre os

JEDLOWSKI, P. Il senso del passato. Milano: Angeli, 1991. p. 55.

131

90

Joo Carlos Tedesco

quais a identidade projeta e da qual retira a prpria histria,


as vicissitudes que lhe pertencem.132
Os lugares de memria so a ocasio da exteriorizao
da memria; so ncoras de suporte externo para se fixar na
memria dos grupos; condensam a imagem de um passado;
so pontos de visibilidades evocativos, senso de pertencimento de indivduos a um determinado grupo; construo de memria coletiva, radicamento e sobrevivncia da tradio e de
suas crenas; produo poltica e religiosa da memria,133 representao pblica e objetiva da memria. Enfim, os lugares
so produtos materiais da atividade humana que adquirem
um alto valor simblico pelo fato de condensarem algumas
representaes cruciais do passado da comunidade.134
Os objetos significativos esto sempre em relao com
a identidade em construo. A lembrana ganha corpo nos
objetos significativos, que gestionam a memria. Os objetos
so portadores de significados simblicos que os indivduos
podem reconhecer a partir de seu pertencimento a uma comunidade e as consequentes possibilidades de se inserir na
memria coletiva da referida comunidade.135 Desse modo,
sempre a memria coletiva que atribui significados a esses.
No dizer de Halbwachs, os grupos religiosos necessitam
apoiar-se em algum objeto, em qualquer coisa que dure. A religio exprime-se, assim, em forma simblica. Lugares e objetos de memria tm necessidade de suportes, de testemunhas
para poder existir. A linguagem e a simbologia do objeto expressas pela oralidade (narrao) e a escrita podem fornecer
esse suporte.
FABIETTI, U.; MATERA, V. Memorie e identit. Roma: Meltemi, 1999. p. 35.
Halbwachs faz referencia a isso em seu livro sobre as Memorie di Terrassanta
quando analisa a reconstruo e o reconhecimento dos lugares tornados
sagrados em Jerusalm.
134
Id. ibid., p. 63-64.
135
Apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001.
p. 37.
132
133

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

91

Sociedade, tradio e suas simbologias


Para poder relembrar, necessita-se tambm
saber esquecer.
Wiehl

No existe sociedade sem tradio, assim como no existem contedos culturais e estruturais que caracterizam a
dinmica histrica que no se manifestam como interseco
perenemente mutvel entre o patrimnio passado e as constantes exigncias de inovaes da vida coletiva. Desse modo,
a tradio configura-se como o percurso de um caminho j
traado, como ritualizao, e que encontra no passado a sua
legitimao. esse passado que possui certo direito e que determina, ainda que inconscientemente, em larga medida, as
nossas posies e nossos comportamentos.136
importante ter presente que, entre o presente e o passado, apresentam-se traos, vestgios, smbolos mediante os
quais se pode compreender o passado; trata-se de recordaes,
imagens, relquias... Porm, esses elementos so imperfeitos,
pois o passado no pode, em nenhuma situao, ser reconstitudo na sua forma integral e qualquer que seja sua reconstituio ser sempre duvidosa. Imagens, fantasias, sonhos e
projetos expressam subjetividades, ou, ento, so suportes de
memria coletiva que, em termos temporais e transgeracionais, podem se alterar ou no serem passveis, na totalidade,
de expresso simblica e objetal.
A memria no s se exterioriza num objeto, mas se condensa, se sintetiza, assumindo um grande valor simblico.
por isso que a destruio de um objeto da memria torna-se
um ato de destruio do passado e do que a memria quer
PRANDI, C. Tradizioni. Enciclopdia Einaudi. Torino: Einaudi, 1981.

136

92

Joo Carlos Tedesco

representar. Existem conflitos entre o funcional e o simblico


dos objetos de memria: um se legitima em aes concretas
e presentes; outro, no passado, com implicaes simblicas
para o presente. Intervir sobre o objeto simblico intervir
sobre a forma cultural vivida daquela memria: Memria coletiva, esquecimento e identidade esto ligados entre si e, todos os trs agem segundo processos de carter reconstrutivo.
O desafio cotidiano da convivncia entre grupos se reduz, em
definitivo, ao bom uso da relao que esses grupos realizam
com a memria e de sua identidade.137
A memria patrimonial possui sua expresso nos mais
variados processos sociais, simblicos, objetais etc. A linguagem, a documentao, o conhecimento elaborado e o senso comum, o artesanato, a cultura de grupos, os monumentos, os
templos, os obeliscos, as obras de arte, os artefatos, os espaos,
dentre outros, manifestam essa infinidade de circunstncias
e ambientes construdos que sintetizam um mobilirio social
e histrico, cristalizao material de significados histricos e
vividos pessoais, ou seja, uma herana cultural de cada povo.
A tradio possui sempre uma dimenso cultural que
transmitida de gerao a gerao enquanto lhe for atribudo
valor. Sabemos que tanto a sociedade como seus indivduos
so dotados da capacidade de esquecer e de reinventar significados; s assim podem enfrentam com os meios mais adequados os novos problemas que em geral se apresentam.138 As
transformaes rpidas e improvisadas da sociedade reduzem
significativamente as velhas tradies. Porm, paradoxalmente, impe-se, como contraposio a isso, um recurso a um
passado mtico, para reconstruir um sentido de continuidade
de persistncia de sua existncia no tempo, num processo de
BETTINI, L. Il perdono storico. Dono, identit, memoria, oblio. Il Mulino,
a. XLIX, n. 389, mag./giu. 2000. p. 425.
138
Ver, nesse sentido, vrios textos do nmero 31, da revista Cincias & Letras.
137

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

93

tenso do vnculo societrio e de transformao social. Nesse


sentido, manipular a memria poder significar manipular a
histria e vice-versa.139
Numa sociedade e poca como a atual, de inovaes contnuas e de mudanas nas prticas cotidianas, o sentido de
continuidade, elemento importante na manuteno do fluxo
de estabilidade de elementos identitrios, no pode simplesmente repetir processos espontneos e automticos dos modelos e significados tradicionais. Jedlowski refere que a tradio e a memria podem tornar-se objetos de ao consciente
e intencional ao evitar que as mudanas se tornem, pelo esquecimento do passado, um regresso a modos primitivos de
organizao social e de civilizao.140
Hoje, principalmente na Europa, notadamente em nome
da indstria do turismo e da padronizao esttica do ambiente urbano construdo, restaura-se muito, porm dificilmente o restauro conserva a linguagem simblica original e
raramente se consegue restabelecer uma interpretao perdida. Autores acreditam que a concepo de que um monumento possua uma linguagem nica e tenha um sentido original
j se esvaiu. A interpretao que prepondera, em correspondncia com a obra de arte, que mltiplos significados so
justapostos no curso de sua existncia histrica, por isso seu
carter aberto, suas vrias leituras possveis e parciais, suas
alteraes e sua viso hermenutica das interpretaes no intervalo de tempo que separa o presente de sua origem.
J vimos que os monumentos so suportes materiais
de memria coletiva e transgeracional. desse modo que se
abrem para reinterpretaes, colocando em circulao o con-

Ver excelente contribuio, nesse sentido, na obra de GREGORY, T. (a cura


di). Leclisse delle memorie. Roma: Laterza, 1994; ver, tambm, CHIARETTI,
G. et al. Conversazioni, storie, discorsi. Roma: Carroci, 2001.
140
JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernit.
139

94

Joo Carlos Tedesco

tedo da memria e expressando tambm sua possvel vulnerabilidade. Da a importncia dos rituais, das reinvenes,
ressignificaes constantes no tempo presente e na capacidade de projeo de vida futura dos homens e dos objetos/smbolos significativos.141 A funo do monumento como expresso
de memria patrimonial vai perdendo e/ou alterando seu significado ao longo do tempo; perdendo sua funo memorial,
sobretudo com o desenvolvimento de outros dispositivos de
memria, como a escrita e a fotografia. Le Goff refere que a
funo do monumento sempre permitir vestgios pblicos de
fatos e de personagens histricas, ainda que isso possa servir
para apagar a real dimenso do vivido e esconder contedos
de memria.
Porm, segundo Passerini, h um contraste entre silncio e monumento lembrana. Na opinio da autora, isso manifesta uma marca do nosso tempo, ou seja, a memria necessita, especialmente no campo poltico, de um certo tempo
de silncio para depois ser lembrada, geralmente por meio de
sinais pblicos, sejam eles monumentos, escritos, literatura,
etc. Os genocdios da Segunda Guerra, a literatura sobre o
acontecimento, sobre o fascismo, sobre a colonizao na Amrica Latina, regimes totalitrios como os existentes em vrios
pases da ex-Unio Sovitica, na Espanha, no Brasil, dentre
muitos outros, expressam esse silncio como represso da memria e amnsia imposta.142

SCHONEN, S. La mmoire: connaissance active du pass. Paris: Mouton,


1974.
142
PASSERINI, L. Memoria e utopia. Il primato dellintersoggettivit. Milano:
Il Saggiatore, 2003.
141

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

95

Mobilirio social
A noo de patrimnio que aqui queremos desenvolver
d a ideia de Pater, de vnculo, de transferncia de herana
material, espiritual e institucional. A memria patrimonial
revela relaes sociais que nela se engendraram; h uma
ideia implcita de deixar vestgios num tempo linear. Porm,
necessrio fazer uma anlise crtica das escolhas do que foi,
do que e ser preservado (o dito e o no dito).143
Como j dissemos, no horizonte do patrimnio cultural
esto presentes bens e valores materiais e imateriais, transmitidos por herana, de gerao a gerao, na trajetria de
uma comunidade. Sendo assim, um processo contnuo de
transmisso de valores e crenas, de saberes e modos de fazer
e de viver que caracterizam um grupo social; uma marca
que identifica, que adquiriu um sentido comum e compartilhado.
desse modo que as ideias de velho e de novo devem
ser entendidas em suas contradies temporais e espaciais,
em consonncia com o imaginrio da populao, de determinados grupos, da fora social presente no contexto especfico
em questo. Sem essa compreenso prvia, no teremos condies de entender por que os idosos que entrevistamos tanto
do meio rural quanto do urbano relativizam o novo, ou algo do
novo, como sendo apenas uma simples alterao de processos,
conhecimentos, formas do velho, ou seja, algo j, em parte,
experienciado por eles.
Canclini afirma que h uma certa desconexo hoje entre
neoliberalismo, memria histria e patrimonial. O primeiro
manifesta centralizao e funcionalidade do mercado e dos
LUPORINI, T. J. Educao patrimonial: projetos para a educao bsica.
Cincias & Letras, n. 31.

143

96

Joo Carlos Tedesco

bens simblicos, o esquecimento da histria das lutas sociais


e das tradies; prega a homogeneizao cultural, o internacional popular (patrimonial), a midializao (midiao) dos
espaos patrimoniais (grandes museus, espaos tursticos e
burocratizados...); enfim, uma tendncia de apagamento de
memria e de reconstruo seletiva da mesma.144 A participao social na definio patrimonial indica a possibilidade
educativa no formal (dimenses da organizao poltica, da
cultura poltica e espaciotemporal), da histrica local da percepo de costumes, ideias, mentalidades vigentes na poca
de sua produo.145
Cientistas sociais brasileiros, tais como Pesavento e Ianni, relatam que todas as sociedades, ao longo de sua histria,
elaboram para si um sistema articulado de ideias e imagens
de representao coletiva, por meio do qual constroem sua
identidade. Articula-se, assim, todo um imaginrio social,
que inclui uma viso sobre o passado, a construo de personagens-smbolos e a atribuio de valores, caractersticas e
hbitos a povos que habitam uma determinada regio.146 Esse
processo implica a construo idealizada de identidades, smbolos de referncia regional que lhes dem carter distinto
(lembrar aqui a cultura do regionalismo no Rio Grande do Sul
e do nordeste brasileiro, a Liga Norte na Itlia e suas linguagens simblicas de cunho regional em mbitos espaciais, tnicos e culturais, dentre outros); implica recortar, selecionar,
inventar, criar, manipular vivncias e fatos, reconstituindo o
passado segundo determinados fins, manipulando a memria
coletiva. Nesse horizonte, a produo discursiva fundamen CANCLINI, N. G. O patrimnio cultural e a construo imaginria do social.
Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Braslia, n, 23, 1994. p.
95-111.
145
JEUDY, H. Memria social. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
146
PESAVENTO, S. J. Gacho: a integrao do mltiplo. In: KERN, A. et al. Rio
Grande do Sul. Continente mltiplo. Porto Alegre: Riocell, 1993. Ver IANNI,
O. Teorias da globalizao. Petrpolis: Vozes, 2000.
144

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

97

tal na criao de imagens e sentidos na ligao entre linguagem e mundo (imaginrio).


A memria patrimonial favorece simblica e objetivamente a inveno das tradies e seus ritualismos. Hobsbawm147
refere que por tradio inventada entende-se todo um conjunto de prticas normalmente reguladas por regras tcitas
ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simblica, as
quais visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs de repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado. Alis, sempre
que possvel, tenta-se estabelecer uma continuidade com um
passado apropriado. Esse processo implica funes polticas e
sociais da tradio, sua manipulao por determinados grupos.148 Esse mobilirio social constitudo de memria individual, coletiva, grupal, tnica; composto por ideias, formas
visuais, sentimentos, gostos, trocas lingusticas, cria teias de
conexes e relaes.
As noes de cultura, de comunidade, de grupo social, de
sentimento de pertencimento, de autoestima, de percepes
comuns, de integrao, que so experincias compartilhadas
localmente, tendem a fortalecer e so fundamentais para a
dimenso da tradio.149
O patrimnio cultural ajuda a promover a intensidade
da integrao cultural, enriquece a memria, refora a auto-estima e a apropriao da herana cultural por comuni HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1997.
148
LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranas de migrantes.
Belo Horizonte: Arte e Cincia, 1999.
149
Um exemplo desse processo o Monumento ao Carreteiro da localidade de
Otvio Rocha, municpio de Flores da Cunha no Rio Grande do Sul. A carreta
na regio colonial do Rio Grande do Sul foi um instrumento que propiciou
a chegada dos imigrantes a essa regio; auxiliou, por mais de meio sculo,
na mobilidade dos produtos; ligou espaos, pessoas, mercadorias, inovaes;
constituiu profisses (carreteiro, madeireiro, muladeiro, ferreiro, seleiro, marceneiro, carpinteiro, dono de casas de pasto, comerciantes, dentre inmeras
outras).
147

98

Joo Carlos Tedesco

dades ameaadas pelo esquecimento.150 Anlises histricas


demonstram que h uma tendncia muito grande de a memria histrica tradicional referendar o patrimnio consolidado, de difundir seu pertencimento coletivo e social, bem como
representado a todos indistintamente e apresentado como
inquestionvel. Em geral, existe muito pouco envolvimento
de grande parte das pessoas na construo dos significados
e objetos patrimoniais. Da tambm sua grande negligncia/
esquecimento, desconhecimento e abertura de caminho para
a tirania do saber histrico e/ou de alguns especialistas.151
Percebe-se, pela reviso de literatura feita, que os aspectos mais dinmicos na preservao patrimonial so a famlia
e suas genealogias (em geral de imigrantes e os que enriqueceram), de instituies (empresas), dos caminhos, das praas
e jardins, das antigas fbricas, estaes ferrovirias desativadas, das festas e comemoraes, dos prdios e monumentos
(castelos, igrejas, obras de arte como representao da nobreza, do religioso e do esttico...). Acreditamos que sejam todas
tentativas de representar o passado, de fornecer pistas, indcios, rastros, metforas ou no de uma temporalidade funcional ou no ao presente. As condies do imagtico estendemse para alm da materialidade; so fenomenolgicas, sociais,
histricas, culturais, polticas, etc. Da o fato de historiadores
terem presente a ideia de crtica das fontes (pensar nas fotos,
nos dispositivos hoje geradores de evidncia. A fotografia
um instante congelado da realidade?).
No obstante, a carreta pode significar, para alguns, possibilidade e facilidade de
extrao de sobretrabalho do colono, para outros, manifesta labuta, sacrifcio,
dominao. Os significados da memria, assim como do esquecimento, refletem
fatores biolgicos, sociais, objetais e imateriais profundamente imbricados.
Uma anlise sobre o significado simblico e material da carreta em meio aos
imigrantes italianos ver nosso livro, Colonos, carreteiros e comerciantes. Porto
Alegre: EST, 2001.
151
Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranas de migrantes. Belo Horizonte: Arte e Cincia, 1999.
150

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

99

Na anlise de Le Goff, de Nora e de outros, imagens


no falam e, sim, mostram, materializam e simbolizam; do
corpo, forma e cor imaginao; podem ser manifestao interior composta de representaes e signos, manipuladas, enquadradas, pensadas, de modo que uma anlise com exagero
de objetivao pode no dar conta de seus significados.
Nora observa que a memria coletiva, como expresso do
que resta de vividos de grupos ou do que os grupos fazem do
passado, pode opor-se memria histrica. Diz o autor que a
histria, nos ltimos tempos, escreve muito no sobre o que
restou da memria coletiva, mas sobre as memrias coletivas, renunciando a uma temporalidade linear e adentrando
em tempos vividos radicados no social e no coletivo (lingustico, demogrfico, econmico, cultural...). A histria move-se
e analisa os lugares de memria; lugares topogrficos, como
arquivos, bibliotecas e museus; lugares monumentais, como
os cemitrios ou a arquitetura; lugares simblicos, como as
comemoraes, as peregrinaes, os aniversrios; os lugares
funcionais como os manuais, as autobiografias... bem como
os lugares e os atores criadores e dominadores da memria
coletiva, os diversos usos feitos da memria.152
No obstante, esse mobilirio social, segundo Le Goff,
continua sendo um reservatrio mvel da histria, um dos
elementos mais importantes da sociedade em desenvolvimento e desenvolvidas, das classes dominantes e dominadas, todas em luta pelo poder ou pela sobrevivncia.
Falando em tradio como memria coletiva, Leroi-Gourhan diz que indispensvel espcie humana, fundamental para sua reproduo, para o que se convencionou chamar
identidade individual e coletiva; um instrumento de poder,
poder pelo domnio da lembrana, da tradio, da sua prpria
Ver revista Cincia & Letras, vrios autores.

152

100

Joo Carlos Tedesco

manipulao, de retorno ao passado para servir o presente e


o futuro.153
Temos claro que o mobilirio social uma construo,
est em constante luta pelo reconhecimento (campo de foras), representao social, ligao com a burocracia pblica,
identificao grupal com tendncia generalizante, reproduo, conservao, esquecimento...
Essa a dialtica social e histrica dessa construo. A
anlise da relao entre memria, tempo e espao, como complemento dessa, poder nos auxiliar na compreenso do tema
patrimnio.

NORA, P. Mmoire collective. In: LE GOFF, J. (a cura di). La nouvelle histoire.


Paris: Retz, 1978. p. 399.

153

Captulo 8
Tempo, espao e experincia da memria
A memria a sntese fundamental do tempo
que constitui o ser do passado, o que faz passar
o presente.
Deleuze

De certa maneira, j vimos que, para Nora, a crise da


memria manifesta a desconexo do presente em relao ao
passado. O autor fala em progressiva decadncia em um passado irrevogavelmente morto, uma desconexo daquilo que
o vivido ainda se radicava no calor da tradio, no silncio dos
costumes e na repetio do passado. Para o autor, h uma
onda subterrnea de historicidade, ou seja, o que se v da
memria a sua fuga no fogo da histria.154
No obstante, acreditamos que a memria seja o espao
no qual se produz uma sntese entre o cotidiano e a experincia vivida. Sem acesso aos materiais de memria, faltar a
possibilidade de autorreflexo por meio da qual tomam forma
as escolhas de comportamento. J vimos que o cotidiano o
espao por excelncia dos materiais de memria.155 Memria
e ao esto estritamente interligados, uma no pode existir
sem a outra. A relao entre memria e ao permite-nos dizer que o tempo da memria no s o passado. A projeo ao
passado baseia-se nos critrios de leitura a partir do que se

LEROI-GOURHAN, A. op., cit., p. 269.


NORA, P. Entre mmoire et histoire. In:_______ (a cura di). Les lieux de
Mmoire, 1991. v. I, p. XVII-XLII.

154
155

102

Joo Carlos Tedesco

e do que se est fazendo no presente, com base tambm no


que se entende ser ou fazer no futuro.
Bachelard j nos dizia que,
[...] quando queremos narrar o nosso passado [...], a nossa histria
pessoal aquela que, conscientemente, queremos dar-lhe durao,
uma continuidade atravs da razo, no atravs da durao. Assim,
a nossa experincia da nossa prpria vida passada apoiada sobre
atos racionais em tempo recorrente.156

Os atos racionais de que fala Bachelard nada mais so do


que a significao identitria de fatos aos quais a recordao
se remete e seleciona. Esses juzos de fatos representam os
parmetros de uma racionalizao ex post, os quais produzem
deformaes e selees das recordaes no decorrer do tempo e
respondem s exigncias de estabelecimento da continuidade
da vida, uma conexo de atos de vida em uma linha contnua
e coerente com um projeto de futuro social e pessoal.157
desse modo que interessante acentuar e diferenciar
a temporalidade da memria e a temporalidade que entra na
memria:
Seja para os indivduos, seja para os grupos sociais, a histria
(individual ou coletiva) toma o caminho dos materiais da memria
atravs do esforo de reconstruir uma durao da experincia densa
de significados, os quais so eliminados os interventos mortos, os
rotineiros.158

Nessa dimenso da durao da experincia, tempo e


espao so carregados de valores, de smbolos socialmente
definidos, disseminados pelos grupos dos quais os indivduos
participam. A dimenso do tempo como processo social constitui-se numa referncia indispensvel para normatizar as
formas de memria de grupos e para o agir humano em geral.
RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memria. In: ________; BELLONI, M. C.
Tempo, spazio, attore sociale. Milano: Franco Angeli, 1999.
157
BACHELARD, G. La dialectique de la dure. Paris: PUF, 1950. p. 34.
158
Ver LUCENA, C. T., op. cit.
156

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

103

Segundo Halbwachs, nosso tempo derivado do pertencimento aos grupos, e esse envolvimento refora o sentimento
de co-participao. O indivduo isolado teria dificuldade de
mensurar e de ter a conscincia do tempo; poderia, inclusive,
ignorar a passagem desse. O indivduo necessita de referncias, de representaes sociais do tempo, de testemunhos, de
discurso coletivo que o sustente, memrias e experincias de
outros, de influncia social, de narraes, de smbolos compreensveis e cdigos de percepo comum para poder se guiar no
tempo e no espao e para constituir categorias comuns que
consentem conhecer e comunicar tempos passados, recordaes singulares e formas grupais de memria dessa.
Tempo e interesse grupal pelas formas desse esto em estreita correlao. Esquecer ou lembrar tempos passados, segundo
Halbwachs, depende do interesse e da resposta ocupao dos
grupos. Quando h uma vibrao de conscincia, uma comunho afetiva, uma congruncia com os valores e as perspectivas
cognitivas, sempre possvel constituir experincia e reproduzi-la
grupalmente. Diz o autor que
[...] os quadros sociais da memria no so simples formas vazias, nas
quais as recordaes, vindas de fora, se inserem, mas os quadros so, ao
contrrio, os instrumentos dos quais a memria coletiva se serve para
recompor uma imagem do passado que em cada poca est em acordo
com os pensamentos dominantes da sociedade.159

Memria e identidade
Diz Ferrarotti que, pelo acmulo das lembranas, a memria constri a pessoa como conjunto de ideias e valores com
tendncia de coerncia, ou seja, como a personalidade da pessoa. A identidade no dada de uma vez por todas; no , nun BACHELARD, G., op. cit., p. 243.

159

104

Joo Carlos Tedesco

ca, uma aquisio permanente, assim como no a memria


um bem frgil e precrio. A identidade se faz pouco a pouco,
com base na experincia vivida, rememorada, retida anteriormente. Nesse sentido, a memria o componente essencial
para a identidade do indivduo e sua integrao social. Para
o autor, a memria dinmica por excelncia, possui funes
de conservar, recriar, garantir futuro, selecionar, transformar,
reclamar, evocar, ocultar, porm tambm uma faculdade de
esquecer.160
A identidade altera-se com a continuidade das transformaes, bem como as produz. Blondel afirma que, no entrecruzamento entre memria e identidade,
[...] num certo sentido, a memria est na origem da identidade,
mas, no fundo, a identidade que est na origem da memria. Ns
no somos a soma das nossas recordaes, mas aquilo que somos
determina o conjunto das nossas recordaes.161

Na relao entre memria e identidade esto presentes


as noes de construo, de seleo, de registrao, de significado, de criao e de conscincia subjetiva. A memria
constituda por uma dimenso dinmica, um esforo de significao, no s de seleo, mas de reinterpretao sucessiva
do passado. A imagem que o indivduo tem de si mesmo ,
portanto, o produto da sua experincia social e das formas de
mediao simblica dessa experincia.
A memria, diz Jedlowski, um conjunto mvel de processos e de representaes que produzem autopercepes.
Nessa mobilidade de processos, selees de elementos, filtros culturais mutantes em relao ao presente, mltiplas
diferenas e identidades coletivas,162 produzem-se diversos
pertencimentos e diversas relaes com a memria.
HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.
FERRAROTTI, F. LItalia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997.
162
BLONDEL, C. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco
160
161

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

105

A lembrana do indivduo se forma no contato social


com outros mais ou menos significativos no mbito das relaes formais ou informais por meio de mediaes comunicativas lingusticas e culturais diversas.163

O tempo na memria
Quem tem experincia sabe aconselhar, narrar
e escutar.
Benjamin

A experincia do tempo a que d o carter temporal aos


eventos e aos fatos; da a importncia do uso oral das fontes
no sentido de buscar decifrar a experincia do tempo vivido
em relao ao objeto descrito pelo sujeito narrante. Segundo Bachelard, dessa experincia do tempo que possvel
definir a sua durao ou no; a permanncia, a sucesso e a
simultaneidade so modos e relaes de tempo. Por consequncia, do mesmo modo que no podemos mais definir o tempo
pela sucesso, no podemos definir o espao pela coexistncia;
ser necessrio que cada um, espao e tempo, encontre determinaes inteiramente novas. Tudo o que se move e muda
est no tempo, mas o tempo, ele mesmo, no muda, no se
move, muito menos eterno; ele a forma de tudo o que muda
e se move, mas uma forma imutvel e imvel.164
O tempo no uma realidade objetiva, mas uma objetivao convencionalmente construda sobre a qual se rege, em
grande parte, a vida das formas culturais e dos fatos histricos.
O tempo no algo externo ao homem; sempre reproduo
convencional, em formas diversas, nas suas vrias dimenses
Angeli, 2001. p. 14.
JEDLOWSKI, P. Storie comuni.
164
CARRERA, L. Il futuro della memoria... p. 29.
163

106

Joo Carlos Tedesco

e pocas. Cada cultura atribui ao tempo determinados valores e tem constitudo uma especfica experincia do tempo.
Segundo Mongardini, foi s com a modernidade que o tempo
adquiriu uma importncia central nos valores culturais.165
Na anlise de Luhmann e de Simmel, em correlao com o
dinheiro, o tempo um dos maiores elementos reguladores da
sociedade moderna.166 A estrutura mercantil urbana, tcnica
e de trabalho produz a excelncia do tempo quantitativo e a
reduo insignificante do tempo como experincia.167 A segmentao do tempo na sociedade moderna produz, tambm,
significaes, percepes, ritmos, conflitos, diferenciao de
tempos sociais, individuais, subjetivos, formais e estruturais/
abstratos, tanto no mbito cotidiano,168 da cultura, quanto no
da histria.
As exigncias de racionalizao que, com a industrializao, se
consolidam nos diversos setores da sociedade moderna, as novas
exigncias de previsibilidade, de organizao e de programao de
atividades sempre mais complexas e entrecruzadas, demandam
progressivamente uma estandartizao da medida do tempo
sobre a base cada vez mais rgida em relao quelas fornecidas
pelos calendrios.169

No de hoje que o nosso mundo foi invadido pelas imagens tcnicas e que o real mudou de lugar ou foi substitudo por outra coisa, seja pelos prprios signos que deveriam
represent-lo e que, ento, se impem, ou melhor, se apresentam em seu lugar, seja pela proliferao incontrolvel da
imagerie ou, ainda, pelos jogos de linguagem regulados pela
ciberntica.170 Segundo Benjamin, como j vimos, os meios
DELEUZE, G. Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 46.
MONGARDINI, C. Il problema del tempo nella societ contemporanea. In:
BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 35.
167
LUHMANN apud MONGARDINI, C., op. cit., p. 35.
168
JEDLOWSKI, P. Il tempo dellesperienza. Milano: Franco Angeli, 1986.
169
GROSSI, W. Les temps de la vie quotidienne. Paris: Mouton, 1974.
170
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dellesperienza. In: BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 138.
165
166

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

107

tcnicos de nossa poca promovem a caa ao esquecimento; h


uma acumulao e uma circulao incontrolvel e instantnea das imagens (que leva sua morte precoce, seu desgaste
imediato, sua existncia sem durao), atingindo rapidamente a sua saturao, a inrcia, a entropia de sentido. Saturado
o esquecimento, diminuda sua potncia, a memria reduz-se
a uma m repetio, incapaz de gerar diferena. Guardamos
tudo para que possamos esquecer tudo instantnea e absolutamente, sem resto ou vestgio.171
O passado no se conserva inteiro no decorrer do tempo
nem com a totalidade da conscincia do espao, como analisou
Bergson, mas se constri e se reconstri a partir de faltas, de
ausncias. Esse processo nos faz admitir que o gesto de se
debruar sobre o que j se foi implica um gesto de edificar o
que ainda no , o que vir a ser.172 Por isso, a possibilidade de
dimensionar cronologias mltiplas e entrecruzadas.
Modernidade e tradio, como j dissemos, na prtica,
no so totalmente excludentes; uma no resduo da existncia da outra no decorrer do tempo, ou mera cicatriz marcada num instante qualquer da durao ou da dinmica da
ruptura ou do fazer seu aparecimento.173 Segundo Guimares,
por sua prpria natureza, memria caberia a tarefa de realizar um retorno quilo que cada vez se distancia mais e mais.
Porm, exausta de proceder a repetio, sem foras para suportar o que lhe destinado, incapaz de suportar o fracasso
fundador de sua busca, a memria procura fixar-se em alguma cicatriz, corte, descontinuidade ilusria, capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo incessante da origem.174
GUIMARES, C. Imagens da memria: entre o legvel e o invisvel. Belo
Horizonte: Ed. UFGM, 1997. p. 46.
172
BENJAMIN, W. Il Narratore...
173
CASTELLO BRANCO apud GUIMARES, op. cit.
174
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 1990.
p. 347.
171

108

Joo Carlos Tedesco

Na anlise do autor, a memria constituda por uma textura


de imagens. Retratos, inscries, cenas, composies, enfim,
signos ou conjuntos de signos, que compem uma imagem ou
conjunto de imagens, so os suportes nos quais a memria se
inscreve, formando mltiplas formas.
nesse sentido que h na lembrana rememoraes e vazios. A memria marcada pela descontinuidade dos registros
de tempo e pela heterogeneidade dos nveis que a compem.
nessa dimenso do tempo no espao e o espao cultural no
tempo da memria que muitas tradies, como j vimos, so,
ou podem ser, inventadas e/ou redefinidas. Alis, como diz Lucena, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histrico apropriado. Contudo, na medida em
que h referncia a um passado histrico, as tradies inventadas caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Isso porque toda a tradio inventada, na medida do possvel, utiliza a histria como legitimadora
das aes e como cimento da coeso grupal.175
Os tempos e os ritmos sociais, biolgicos, individuais e
coletivos ganham, na vida cotidiana, significados de durao,
de dados, de organizadores das atividades e relaes, os quais
os indivduos interiorizam como pr-condies no s para a
ao, mas para o prprio constituir-se como indivduo situado
socialmente, como habitus social, como condio de pertencer
a uma dada sociedade.176 Porm, o tempo e o espao da memria so uma tentativa de racionalizao ordenada ou no,
subjetiva e objetivamente, com referncia aos significados
atribudos lembrana.
Rampazi define esse tempo significativo como um tempo especializado da memria ao qual se busca dar sentido e
coerncia. Desse modo, o passado no um tempo estanque,
GUIMARES, C., op. cit., p. 21-37.
LUCENA, op. cit., p. 9, 10-21.

175
176

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

109

mas um campo de possibilidade auferida ao presente sobre o


passado.
Nessa fase de reflexo, a distncia temporal entre eventos se
anula: passado e futuro vm relacionados ao presente. A memria
perde profundidade temporal, torna-se uma espcie de contexto
espacial, o territrio da experincia que est sedimentada no
permite responder com eficcia os problemas que as reflexes
atuais colocam.177

Halbwachs deixa claro em Les cadres... que o que importante preservar do passado est conexo aos valores simblicos que o presente projeta para o futuro dos elementos vividos significativos para o indivduo como expresso de grupos.
Lynch diz que ns preservamos os sinais presentes do passado e controlamos o presente em funo das nossas imagens
do futuro.178

Memria e experincia
O invisvel pode tornar-se visvel por meio do
discurso.
Bachelard

O conceito de experincia complexo:179 pode estar envolto na ideia do que se vive (s em parte consciente), no
processo por meio do qual o sujeito se apropria do vivido e o
sintetiza, no exerccio controlado, repetitivo, subjetivamente
depurado, na via de acesso ou ter um dote de sabedoria, no
exerccio e na aquisio da capacidade de elaborao, no vivido, particularmente significativo e carregado de expectativas
de competncia,
ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986.
RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memoria. In: _______; BELLONI, C. op.
cit., p. 247.
179
LYNCH, K. apud RAMPAZZI, op. cit., p. 247.
177
178

110

Joo Carlos Tedesco

[...] que, em qualquer modo, no entra nas nossas expectativas de


rotinas, e as modifica, seja para compreender o processo com o qual,
na prtica repetida, determinadas competncias e expectativas se
consolidam e do lugar a uma capacidade comprovada de responder
s circunstncias de modo apropriado.180

Fala-se em experincia como passado presente, no qual


eventos podem ser recordados; incorpora-se algo do passado
no presente, como faculdade de conter os diversos vividos
numa continuidade dotada de sentido.
Benjamin fala que a modernidade181 apresenta uma
grande caracterstica atrofiadora da experincia. A experincia um fato ligado s tradies, tanto na vida privada quanto na coletiva: Essa no consiste tanto de singulares eventos
exatamente fixados na lembrana, mas de dados acumulados,
frequentemente inconscientes, que se apresentam na memria.182 Na compreenso do autor, a realidade da poca moderna parece ser caracterizada pela ideia de que na vida cotidiana se tem menos experincia de alguma coisa. Somos cada
vez mais informados, porm ser informado no sinnimo de
haver experincia.183 Benjamin fala da experincia como algo
que possvel ter, no como algo possudo, mas como qua Sabedores de sua complexidade, no vamos aqui nos alongar muito nem tentar
fazer uma anlise hermenutica dos significados variados de experincia. Nem
para isso teramos condies. Aqui a indicamos apenas no sentido de relacionar
com o vivido histrico, seja pessoal, seja grupal/coletivo e que fornece matria-prima para os relatos significativos de memria. No a entendemos em
seu sentido pragmtico, mas, sim, em seu universo simblico e significativo
de vivido que quer e adota estratgias de reproduo num cenrio de limites
de lembrana. Segundo Gadamer, em Verit e metodo, (p. 68), a verdade das
experincias contm sempre uma referncia a novas experincias. Por isso,
aquilo que chamamos de especialista no s o que conseguiu ser atravs
das experincias feitas, mas quem est ainda aberto a outras experincias.
181
JEDLOWSKI, P. Il sapere dellesperienza... p. 82.
182
O cenrio da modernidade comea com o final do sculo XVIII quando do
surgimento da grande indstria, da mercadoria, do novo e sempre idntico.
Benjamin diz que nenhum perodo histrico conheceu a reproduo do idntico
como o promovido pela indstria. A alma da modernidade a indstria; o
mercado seu rgo sensorial mais importante; a mercadoria seu ambiente
construdo.
183
BENJAMIN, W. Di alcuni... p. 88.
180

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

111

lidade humana. A noo de experincia em Benjamin e em


Adorno est intimamente relacionada com a de memria. A
experincia a continuidade da conscincia, na qual perdura
o que no est mais presente, diz Adorno.
A experincia est intimamente em conexo com a memria. Na noo comum de experincia esto presentes elementos como repetio, vivido, passado, relao entre ambiente
objetivo e conscincia individual, diferena em relao ao que
se sabe. Adorno dizia que a experincia a continuidade da
conscincia, na qual perdura o que no est mais presente,
na qual a repetio e a associao criam no indivduo a tradio. Para Benjamin, na ideia de experincia est presente
a noo de tradio, dados cumulativos que confluem na memria. Tanto Adorno quanto Benjamin analisam o conceito
de experincia num cenrio histrico de profunda reduo do
potencial da experincia, da narrao e de autoconscincia.
Memria, esquecimento e recordao convivem, (re)presentam-se, pois a funo da memria [...] a proteo as impresses.
A recordao tende a dissolv-las. A memria essencialmente
conservadora, a recordao destrutiva.184
A ausncia de ritos de tradio, de simbologias e dos valores materiais e simblicos dos cultos conduz a que se percam os materiais da memria; provoca, concomitantemente, a
degradao dessa, o abandono pelos indivduos dos contedos
de sua prpria memria. As modificaes no ambiente objetivo so registradas na experincia na medida em que vm a
constituir o fundo histrico mutvel sobre a qual se sedimentam. Esse processo problematiza a memria e introduz modi No livro Di alcuni..., Benjamin desenvolve as anlises sobre a experincia na
modernidade. Esse livro um de seus ltimos escritos, fruto de sua passagem
por Paris; contm inmeras correspondncias trocadas com Adorno nas quais
desenvolve e contextualiza o cenrio e os processos consequentes da atrofia
da experincia na modernidade, alis esse tema o foco central de grande
parte de sua obra.

184

112

Joo Carlos Tedesco

ficaes no aparato sensitivo do indivduo, um fechamento da


memria profunda ao acesso aos objetos do vivido cotidiano
familiar.
A vista, o ouvido, o tato, so os sentidos que o nascimento da
metrpole modifica em modo mais forte. Mas tambm o olfato e o
gosto devem adequar-se a um modo perceptivo modificado. Sobretudo, aquilo que permanece imune de transformao radical a
sensibilidade interna do indivduo, relativa ao conjunto do prprio
corpo. Todas essas modificaes so sintetizadas a uma geral considerao das modificaes nos ritmos que a vida humana vivida
nas cidades.185

Na anlise benjaminiana de experincia est presente uma dialtica de proximidade e de distncia. O autor diz
que, na sociedade mercantil, quanto maior a vizinhana e a
aproximao com os objetos, maior e mais profundo ser seu
distanciamento. O papel dos jornais tem uma profunda implicao no processo, no horizonte da reprodutibilidade tcnica
e de mundo da superfcie da experincia midiatizada.
Como j dissemos, a vida cotidiana fornece os materiais
de cada experincia, porm h sempre uma dialtica entre
cotidianidade e experincia. Segundo Jedlowski, quando
h cotidianidade, no h experincia. No possvel haver
experincia de tudo.186 por isso que a experincia, para
Benjamin, um passado em sntese, tornado disponvel no
presente como tradio; no um passado como manifestao
individual, mas inserido numa memria coletiva, numa cultura que se manifesta por uma linguagem e por smbolos codificados, ritualizados pela tradio.187 esse o processo que
se esvai com a modernidade e seus valores econmicos, ideolgicos, polticos e culturais do capitalismo, segundo Benjamin.
BENJAMIN, W. Lopera darte nellepoca della sua reproducibilit tecnica.
Torino: Einaudi, 1966.
186
BENJAMIN apud JEDLOWSKI, P. Il tempo dellesperienza. Milano: Franco
Angeli, 1986. p. 108.
187
JEDLOSKI.P. Il tempo...
185

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

113

O moderno tornou-se uma perptua transformao, um


sempre novo, uma acelerao do tempo sem precedente. Na
anlise crtica de Benjamin, com isso, concretiza-se uma abreviao dos espaos da experincia; cada objeto da experincia
se torna fugidio, voltil, transitrio; h uma impossibilidade
de sedimentar experincia, de encontrar sentidos, de constituir memria coletiva, de dar contedo cultural aos fatos, de
se apropriar individualmente de quadros coletivos vividos e
de incorpor-los num horizonte de sentido.
A modernidade transformou o tempo num recurso escasso. A dimenso temporal da sociedade industrial moderna
caracterizada fortemente pela subsuno do tempo ao universo
mercantil. A reificao do tempo, como durao abstrata, independentemente de seu contedo, constitui a base sobre a qual se
apoiam os dois grandes processos que acompanham o nascimento e o desenvolvimento da sociedade capitalista: a mercantilizao do trabalho e do seu produto. Nesse sentido, desenvolvemse o produtivismo, que domina o agir da sociedade industrial
moderna, a subsuno do tempo ao universo dos recursos
econmicos, a quantificao progressiva e a maximizao da
produtividade. A racionalidade econmica submete e funcionaliza o agir social sua lgica: A reificao da dimenso
temporal provoca assim a tendencial derrota de todos aqueles
empenhos do tempo que no possam ser considerados produtivos nos termos da racionalidade econmica.188 Esse cenrio
de economia do tempo, do trabalho e do mercado produz o que
Benjamin e, posteriormente, Lefebvre chamaram de economizao da vida, ou seja, uma representao do tempo como
entidade cuja existncia aparece como independente da experincia que dela se tem.

JEDCOSKI, op cit.

188

114

Joo Carlos Tedesco

A anlise de cunho marxista frtil no sentido de clarear as questes de ordem temporal presentes no capitalismo,
ou seja, este pertence ordem econmica e cada economia se
resolve com a economia do tempo. Nessa lgica econmica busca-se produzir uma maior quantidade de tempo, pois cada vez
lhe mais necessrio e cada vez lhe falta mais. O avano tecnolgico, em tese, reduziria o tempo necessrio para o desenvolvimento e a produo de algo, bem como para a mobilidade
fsica, da informao e da mercadoria. No entanto, esse o
paradoxo: quanto mais se poupa, mais se precisa; alis, poupa-se, reduz-se o consumo porque justamente mais se precisa.
Lefebvre diz que vivemos numa sociedade produtora do tempo,189 do que a velocidade uma manifestao. Criaram-se e
desenvolveram-se um imaginrio e uma representao social
de que a quantidade de tempo de que dispomos no suficiente e inadequada para dar conta das exigncias cotidianas.
A disponibilidade de tempo passa a ser sinal e sintoma
de desqualificao social: quem ou quer ser alguma coisa na
vida no tem tempo; s tm tempo as pessoas no importantes, os membros de estratos marginais. De qualquer modo,
sua homogeneidade simblica atinge a todos, ganha um valor
formal e orientador da vida comum dos indivduos que participam da subsuno e da reificao do tempo forma mercantil
de cada aspecto da vida social. Os dispositivos cotidianamente experimentados para poupar tempo parecem colocar em
evidncia um mecanismo de contrafinalidade: mais se ganha
tempo, mais esse se reduz. A racionalizao e a economizao
da vida que legitima o tempo tm estragado a cronocracia e

DUPUY, J. P. Valeur sociale et encombrement du temps. Paris: CNRS, 1980.


p. 228; ver, tambm, sobre isso PAOLUCCI, G. Una figura della temporalit
moderna: la scarsit di tempo. In: BELLONI, C.; RAMPAZZI, M., op. cit.

189

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

115

produzido o seu contrrio: a colonizao do tempo provoca a


morte do tempo.190
A modificao no ambiente, no tempo social (sua acelerao), a intensa presena da tcnica em cada aspecto da vida
cotidiana promovem uma ruptura na cultura subjetiva e um
crescente desenvolvimento da cultura objetiva, como analisou
Simmel (outro moderno e grande crtico da forma moderna
de gerir a vida cotidiana). A cultura objetiva, para Simmel,
aquela objetivada nos produtos humanos, nas realizaes
tcnicas; aquela feita coisa. A cultura subjetiva depende
desta ltima pela simples razo de que o homem se torna culto quando se apropria pessoalmente dos contedos da outra,
como patrimnio de um indivduo de algo tornado culturalmente coisa.191
O aventureiro a figura emblemtica da anlise da modernidade em Simmel, a qual contraria a noo de experincia
pela fragmentao, descontinuidade, diferenciao, intelectualizao e racionalidade tcnica, do dinheiro e do progresso
e, cada vez menos, pelo sentimento atravs do corpo (mos),
pelas experincias vividas (lembrar da significativa figura do
blas to bem desenvolvida pelo autor!), da crtica unilateralidade do intelecto e da racionalidade da tcnica. Nesse
horizonte, a experincia se retrai e passa a ter uma funo e
uma realidade/permanncia crtica.
nessa perspectiva que cabe experincia crtica promover a elaborao de sentido; resta sempre algo de sentido
ainda que num cenrio no qual se reduziu a capacidade de
elaborar o conjunto dos prprios vividos e de incorpor-los a
um desenho coerente com o tempo, com a histria e com as
necessidades presentes e futuras.
LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne. Paris: LArche, 1981. v. III.
PAOLUCCI, G. Una figura della temporalit moderna: la scarsit di tempo.
In: BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 169.

190
191

116

Joo Carlos Tedesco

Benjamin diz que a experincia comporta trs momentos distintos, mas que se complementam: a familiaridade (o
hbito, a frequncia), a profundidade (essa, segundo o autor,
foi afetada pela cultura urbana e mercantil, que produziu a
facilidade do esquecimento) e a autoconscincia, a qual produz a biografia.192
Na anlise de Jedlowski, a vida cotidiana a que fornece
os materiais para a experincia coletiva e individual, porm
ambas se correlacionam numa perspectiva dialtica. O tempo
do cotidiano e o tempo da experincia se conjugam na considerao de um particular tempo vivido, o tempo da memria.193
Se localizarmos Thompson na discusso sobe experincia
e memria, veremos que o autor lhe atribui grande importncia para o campo da interpretao histrica. Thompson
analisa a plebe inglesa do sculo XVIII, utilizando a noo
de cultura como foco de anlise e como base para o estudo
das lutas sociais. A sua concepo de cultura est correlacionada com a ideia de experincia, com formas de ao da
experincia humana. Nesse horizonte, a dimenso moral do
campesinato ingls do final do sculo XVIII expressa como
densidade simblica e de resistncia constituda pelos costumes, pelo parentesco, pelos impulsos milenaristas. Esses elementos, na anlise do autor, forneciam as bases para as lutas
e rebeldias, para a valorizao da cultura tradicional, para
a contraposio expropriao de direitos e da ruptura dos
valores tradicionais do trabalho e do descanso. Desse modo,
o autor descreve a dinmica da vida social com suas normas,
valores, tabus, crenas e obrigaes, movida pela experincia
dos homens, sujeitos e construtores do futuro.194
SIMMEL apud Jedlowski, 1986, op. cit., p. 94.
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dellesperienza. In: BELLONI,
C.; RAMPAZI, M. op. cit.; ver, tambm, BRAUDEL, F. Le strutture del quotidiano. Torino: Einaudi, 1982.
194
BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976.
192
193

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

117

Para Thompson, os homens constroem a histria e as estruturas. Os indivduos so portadores de experincias, fruto
de sua situao passada, presente e intencional, resultante,
tambm, de suas relaes de produo.
As experincias, no horizonte cultural, fornecem as bases
para o trabalho da conscincia social. A experincia , para
Thompson, um vivido experimentado como sentimento, como
constituinte da vida cotidiana, como constitutiva de um conjunto de valores implcitos e incorporados na cultura. Thompson reconstitui a noo de subjetividade da histria, recolocando a questo da tradio, do ser social e da conscincia social,
do papel ativo e da racionalidade dos sujeitos que atuam na
histria, da capacidade de tornar inteligveis aspectos obscuros
do passado, como a economia moral dos pobres, a racionalidade
de suas prticas ldicas, de reconstituio das tradies populares do sculo XVIII, as quais constituem matria-prima e/ou
substrato para a conformao de sujeito das classes.
A noo de sentido um conjunto de prticas e de valores que sofreram influncia de represso econmica e poltica.
Esse processo visto como elemento ativo, ou seja, sentimentos e valores que assumem um carter poltico de combate s
novas racionalidades econmicas que rearticulam o trabalho,
a comida, a caa, a propriedade, os rituais tradicionais de cultura, do direito consuetudinrio etc.
No tocante memria, na interpretao de Thompson,
esta serve de objeto da histria, pois a reconstituio de uma
racionalidade interna aos grupos reconhece a existncia de
uma tradio clandestina, de uma experincia histrica,
de uma conscincia dos costumes, como espaos de lutas,
um campo de trocas, um marco de cultura tradicional rebelde. Thompson, na anlise do campo da memria e da sua
ligao com a histria, fornece perspectivas de recuperao do
imperativo da memria, o qual possibilita resgatar os sujeitos

118

Joo Carlos Tedesco

que viveram, fizeram e sofreram a histria; permite recuperar uma variedade de experincias que transcendem o horizonte das classes, como o caso do gnero, das identidades,
da cultura, dos modos de vista, da cotidianidade, etc.195

Memria, tempo e poder


Pelo fato de os processos de memria se constiturem
numa seleo, numa construo, abre-se um grande espao
para as estratgias de poder, para a construo de uma identidade til ao poder e legitimao desse. A relao entre
memria e poder coloca em evidncia a natureza da construo da memria, bem como a questo dos limites da prpria
memria. Esse processo nos diz que poder haver uma pluralidade de memria em correspondncia multiplicidade dos
grupos que se constituem. Com isso,
[...] faz emergir que a memria no s a sede dos processos de
seleo dos eventos do passado teis a consolidao da identidade
adotada e funcional ao poder do momento, mas tambm o lugar no
qual permanecem os traos dos eventos que no foram selecionados
da memria ao poder.196

Assim como a memria, pela sua dimenso de origem,


de provenincia histrica passada, pode servir para produzir,
justificar, legitimar e reproduzir o poder, pode tambm servir
para destitu-lo; pode servir para recuperar significados que
possam colocar em xeque a estrutura do poder atual, desligitimar aes, crenas e tradies que o significam. Regimes ditatoriais, monarquias e dinastias dos tempos atuais so expresso dessa tentativa de fazer entender, em nome da memria,
SORGENTINI, H. Reflexin sobre la memria y autorreflexin de la historia.
Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 23, n. 45, 2003. p. 103-128.
196
Ver THOMPSON, E, P. Senhores e caadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987; ver, tambm, A misria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
195

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

119

que a histria parou, que a origem divina, dinstica, ou seja


o que for, consolida-a pela passagem do tempo.197 Os rituais
de memria so importantes para dificultar a possibilidade
dialtica entre recordao e esquecimento, entre o que precisa
ser mostrado e lembrado (funcional ao poder) e o que poderia
lhe causar crise interna, o que lhe d legitimidade hoje e lhe
permite prospectivar (desejo de ser recordado no futuro).
nesse sentido que a memria pode permitir a articulao entre alternncia, continuidade e descontinuidade, distanciamento e proximidade ao poder no tempo e no espao.
Linearizar o tempo e centralizar o espao so formas de dar
sentido a um presente com referncia a um passado; , como
diz Weber, dar legitimidade do passado do tempo. evidente
que no se pode s reduzir a falta de tempo sua dimenso
econmico-quantitativa, como pura calculabilidade. Autores
como Sev referem que a necessidade do tempo pertence
mesma categoria de necessidades que derivam da posio do
indivduo no sistema de relaes sociais. Da entrarem nesse
horizonte projetos de vida, finalidades e desejos individuais,
a conscincia de que o tempo disposio de cada um finito,
levando a que algumas exigncias e aspiraes intensifiquem
a realizao de projetos e programas e escolhas relativas
alocao do tempo.
De qualquer forma, continua a imposio de uma viso
utilitarista do tempo, aquilo que Heller chamou de futurizao do tempo presente,198 ou seja, de reduzir o presente a um
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 122.
O retorno Itlia dos Savias, sua representao, aceitao e repulso social
atual na sociedade italiana, expresso disso, bem como a discusso sobre o
fim das dinastias, dos reinados em vrios pases, principalmente na Inglaterra.
As monarquias fixam sua legitimidade no tempo passado, porm os regimes
ditatoriais e totalitrios temem a memria, buscam suspender a temporalidade,
aliam-se ao esquecimento, fundam-se num eterno presente, dando futuro
continuidade. O mundo passa a ser um dado, natural e imutvel, elaborado
pela viso de mundo, que est e quer permanecer no poder. As comemoraes, a obsesso pela ritualidade presente so tentativas de frear a passagem
do tempo. Para o ditador no h necessidade de passado; passado e futuro

197
198

120

Joo Carlos Tedesco

projetual, a um mero instrumento de realizao de um ulterior distante, o que acaba impondo tambm uma acelerao
do tempo a um futuro antecipado, a uma instrumentalizao
do presente em razo de realizaes projetadas nos mltiplos
domnios do cotidiano, empobrecendo a experincia desse. O
tempo considerado como mximo rendimento acaba tambm
por monetizar virtual ou realmente a experincia, por subordinar e instrumentalizar o agora em funo de um depois, o
presente quilo que deve ser feito. O paradigma do tempoquantidade, malgrado a desigualdade na sua distribuio e
aproveitamento social, adentra para as necessidades subjetivas, para os desejos da prpria experincia cotidiana dos
indivduos. A necessidade do tempo expresso do desejo de
dispor do prprio tempo para viver.
Desse modo, poder existir, e tendencialmente existe,
uma forte correlao do sistema motivacional do indivduo
(os horizontes de expectativas) com a alocao do tempo que
a gesto da vida cotidiana impe, ou seja, a heterogeneidade
e a fragmentao do agir, que, num determinado momento,
homogeiniza a experincia comum e dificulta a possibilidade
do indivduo de criar uma hierarquia autnoma de deciso e
de opo.199 Esse fenmeno tem o poder de anestesiar a ideia
mesma de tempo, de sincronizar, espacial e temporalmente,
a riqueza do vivido diacrnico, a capacidade de sedimentar a
experincia nas conexes de tempo e de memria.
na vida cotidiana que isso se processa, mas tambm
nessa que possvel recuperar elementos histricos, processuais e de continuidade com o passado; tambm as formas de
subjetividades e intersubjetividades e a razo da existncia,

apresentam risco para a ditadura. Desse modo, como diz Jedlowski (1990), a
memria tem sempre uma dimenso crtica que pode ser desestabilizante.
HELLER, A. O cotidiano e a histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

199

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

121

da fantasia,200 a conscincia como conscincia contnua e no


residual. desse modo que os mltiplos vnculos entre tempos e espaos individuais e intersubjetivos parecem permitir
a capacidade de salvaguardar aspectos da dimenso da experincia e da conscincia da mutabilidade, da instabilidade e
da contraditoriedade do universo sociocultural. Desse modo,
a noo experincia, malgrado seu contexto de reduo pragmtica e/ou de limite significativo, carrega consigo a ideia de
resposta, de processo ativo, de adequamento ao ambiente, situao determinante do sucesso ou do fracasso na resoluo do problema que o ambiente coloca, dos fins que se entende perseguir.
por isso que insistimos no fato de que a experincia no
um dado, mas um objeto, um produto de uma atividade, um
processo ativo que possui sentido e continuidade de escolha:
No podemos nos esquecer que essa escolha estava implcita
no projeto cultural originrio da modernidade, no qual a experincia, desvinculada dos liames com a tradio, propunhase como caminho individual de realizao e de descoberta de
si.201 A memria oral esse exerccio individual, essa descoberta de si mesmo, reflexo e exteriorizao da experincia,
bem como um correlacionar constante entre tempo presente e
tempo passado. A seguir, veremos melhor isso e atentaremos
para as implicaes contextuais, analticas, metodolgicas e
de expresso oral.

SEVO, L. Marxismo e teoria della personalit. Torino: Einaudi, 1977.


DURAND diz que a fantasia uma reserva infinita de eternidade contra o
tempo. Ver, do autor, Les structures antrhopologiques de limaginaire. Paris:
PUF, 1960

200
201

Captulo 9
Memria e oralidade:
intenes, problemas e expectativas
Quem comanda a narrao no a voz, o
ouvido.
I. Calvino

Adentramos na questo da memria e da oralidade porque a utilizamos muito para entender aspectos da memria
familiar, o papel da famlia na transmisso da memria e as
diferenas percebidas entre gnero e geraes, por entendermos que a histria oral202 fornece oportunidade de reconstruir
aspectos de personalidades individuais inscritas na existncia coletiva e, tambm, pelo fato de as fontes orais dizerem
respeito memria e essa ser um fato individual mediado,
moldurado, pressionado, influenciado pelas condies do
meio.203
Matos diz que explorar as relaes entre memria e histria colocar em evidncia atores de sua prpria identidade, reconhecer que as lembranas so as artes do indivduo,
que redimensionam as relaes entre passado e presente. O
passado tambm construdo segundo as necessidades do
presente; por isso, importante ter presente os usos polticos
desse mesmo passado e como ele se expressa.204

JEDLOWSKI, 1986, op. cit., p. 162.


Muitos autores no utilizam mais a expresso histria oral e, sim, fonte
oral, por ser aquela excludente de outro tipo de fazer histria. No entanto,
devido ao seu uso comum, continua seu emprego, ressalva-se, porm, seu
sentido de no exclusividade.
204
MATOS, op. cit., ver tambm LUCENA, op. cit.
202
203

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

123

Buscar a totalidade
Passerini coloca em ressalva o fato de que no porque
esse campo se voltou mais para os oprimidos, os esquecidos e
escondidos, os marginalizados que sua legitimidade se funda.
Para a autora, corre-se o risco de tornar uma ideologia populista exaltadora do passado e justificadora da ideologia do
presente.
O novo papel que ela introduz na histria so discursos, os quais as
referncias realidade podem ser mltiplas e devem ser decifrados. A histria oral no trata s do discurso escolhido, mas tem a
ambio de afrontar a linguagem na sua totalidade, no s aquela
dos homens ilustres, mas aquela da gente comum, no s as lnguas
cultas, mas os dialetos, no s a expresso explcita, mas os cdigos
no-articulados de qualquer um que no tem voz oficial e que essa
o impede de falar e de deixar testemunho de s e da prpria vida. 205

Segundo a autora, a histria oral no deve se privar de


buscar a totalidade: No possa fazer menos de atuar em uma
reinterpretao poltica e simblica do passado, uma retotalizao da histria que a reconhea como autoproduo dotada
de um sentido.206

Sua base histrica


Memria e esquecimento tornam-se condies de
possibilidades de um para o outro.
Nora

O papel do testemunho como fonte de conhecimento histrico, como fonte confivel e autntica, desde a Antiguidade, sempre foi objeto de discusso. Herdoto, por exemplo dizia que o
FERREIRA, M. de M. Histria oral e tempo presente. In: BOMMEIHY, I. E.
(Org.). (Re)introduzindo a histria oral no Brasil. So Paulo: USP, 1996. p. 16.
206
PASSERINI, L. Storia e soggettivit. Firenzi: La Nuova Italia, 1988. p. 33.
205

124

Joo Carlos Tedesco

testemunho se esgotaria na terceira gerao, ou seja, em algum


que escutou de algum que escutou de quem viu. O que no era
visto no poderia mais ser relatado. Tucdides, corroborando a
ideia, fragilizava e desconfiava da memria, dizendo que seria
incapaz de garantir fidelidade do relato realidade. Para ele, os
documentos escritos seriam fundamentais em substituio aos
depoimentos orais. Muitos historiadores do Sculo XIX diziam
que a histria s seria possvel com documentos escritos, o que
levou Fvre a rebater, com j vimos, a dizer: quando eles existem. Isso porque, se no os possuirmos, devemos ser capazes
de fabricar o mel mesmo na ausncia das flores habituais.207
Segundo Passerini, a histria oral existiu muito antes,
de modo subterrneo, antes mesmo da inveno do gravador, quando de transcries de memria, de testemunhos,
de conversas feitas por historiadores. Em muitos estudos de
historiadores, antroplogos e socilogos sobre a frica foram
abundantemente utilizados os recursos de fontes e materiais
orais, porm sem haver uma maior problematizao no campo historiogrfico e sem a pretenso da mesma de seu direito
de cidadania na/como anlise histrica.208
Foi a partir de 1960, principalmente na Inglaterra e,
posteriormente, nos Estados Unidos,209 que a histria e os depoimentos orais ganharam corpo. As crianas, os loucos, as
minorias sociais, raciais, sexuais, oprimidas etc. passaram, a
partir da, a ganhar voz; emergiu o apelo da vivncia, do indivduo cotidiano, da famlia, da sexualidade, do nascimento
e da morte, que iriam resultar na busca de identidade e na

PASSERINI, op. cit., 1988. p. 48.


FREITAS DUTRA, E, de. Para uma sociologia histrica dos testemunhos:
consideraes preliminares. Locus. Revista de Histria, v. 6, n. 2, Juiz de
Fora: EDUFJF, 2000. p. 75-82.
209
PASSERINI, L. (a cura de). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale
delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. Ver tambm VANSINA, J. La tradizione orale. Roma: Officina, 1977.
207
208

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

125

nostalgia passadista, na moda do biogrfico e no retorno s


razes.210
Na anlise de Ferreira, uma histria bem-feita, sem fontes orais, uma histria incompleta. A fonte oral uma fonte
viva, inacabada, parcial. A histria que produz tambm uma
histria inacabada. A fonte oral, por ser viva, parcial; exige
confronto com o outro, diferenas e unidade, dilogo, entrevistas, processo de aprendizado, conversas, enfim, subjetividades, no bem vistas por algumas correntes mais tradicionais
do campo da histria e de algumas filosofias e metodologias
da cincia de base cartesiana e adeptas ortodoxia. Pensamos
que o desafio maior est em saber delimitar a fronteira entre
o descrever e o entender. Diversidade, flexibilidade, liberdade
so caractersticas do uso da histria oral; a sua identificao
ao ps-moderno se d pela sua imprevisibilidade, flexibilidade e elasticidade metodolgica e analtica.

Pressupostos tericos
O uso do termo histria oral indica um conjunto de pesquisas e de debates sobre a crtica histrica especfica que se
pode aplicar s fontes orais na sua possibilidade de ampliao
cientfica e democratizao (alargamento no s da gama de
objetos histricos considerados, mas tambm do pblico que a
histria pode abarcar) e o uso, tipo e tendncias de fontes so
mais adaptadas.211

Ver tambm PASSERINI, L., 1977, op. cit., uma anlise histrica da histria
oral, suas implicaes, preocupaes, focos de anlise, tendncia e polmicas.
Em A. Portelli e F. Ferrarotti, tambm possvel encontrar anlises nesse
sentido, bem como estudos de casos com referenciais de uso da oralidade como
fonte histrica.
211
FERREIRA, M. M. Histria oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro:
Diadorim, 1994. p. 32.
210

126

Joo Carlos Tedesco

A mediao simblica e a experincia de vida expressamse nas narraes, na interpretao do mundo e no conferimento dos significados. Reconhecer esses processos e trabalhar no sentido de melhor utilizar esse dados com a pesquisa
histrica e social um dos grandes desafios da histria oral.
Tratar as fontes orais de modo adequado com essa sua caracterstica significa reconhecer o universo da tradio, do cotidiano, da cultura poltica, da memria, que radica suas bases
e sua possibilidade de lembrana na experincia cotidiana e
na linguagem comum.212
Segundo Passerini, a histria oral no inovadora porque trata da oralidade, mas por desenvolver, num cenrio e
num contexto das cincias humanas e, em especial, da histria, uma crtica ao positivismo, dimenso histrica da sociedade regulada por leis de caractersticas fsicas ou biolgicas
quantitativas e mensurveis; por desenvolver, tambm, uma
crtica complementar ao evolucionismo linear e inconcluso,
desconexo, em muitos casos, com a realidade dos fatos; por
desenvolver, ainda, uma crtica s interpretaes da antropologia cultural organicista e estruturalista, a qual isolou e
reduziu o papel do indivduo e da histria, em grande parte,
como processo e como autoproduo.
A histria oral uma fonte, um documento diferente, que
pode ser uma entrevista gravada, a qual necessita de localizao, de identificao dos atores em seu contexto (seu trabalho,
seu mundo, os acontecimentos com os quais participou), de
emotividade, de subjetividade, de aproximao do entrevistador com o objeto (entender o ator por dentro, no cerne de sua
cultura poltica). Para especialistas nessa questo, como o
caso de Janaina Amado e Marieta Ferreira, malgrado as inmeras polmicas que ambas apresentam em torno da questo
VANSINA, J. La tradizione orale. Saggio di metodologia storica. Roma: Officina
Edizioni, 1977.

212

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

127

da histria oral, a histria oral pode ser vista como disciplina


que possui tcnicas especficas de pesquisa, procedimentos
metodolgicos singulares e um conjunto prprio de conceitos.
No entanto, a histria oral pode ser vista, e isso que as
autoras defendem, como metodologia, ou seja, no como uma
simples tcnica nem como simples ordenamento de procedimentos de trabalho.213 Para essas autoras, a histria oral
um espao de contato e influncia interdisciplinares; consideraes no mbito social (histrico-social), subjetivo; registra
indivduos sem voz. Fatos pinados aqui e ali nas histrias
de vida do ensejo a percepes de como um modo de entender
o passado construdo, processado e integra a vida de uma
pessoa.
Influenciados por Bourdieu, Ginzburg, Thompson e outros membros da corrente da histria social e cultural, muitos defensores da histria oral buscam dar centralidade ao
indivduo, mostrando que os sujeitos lutam para, no mnimo,
ter uma margem de liberdade em suas aes, as quais no podem ser vistas como irrelevantes ou no pertinentes. As aes
suscitam mudanas sociais. Bourdieu diz que interessante
ter presente a noo de trajetria, de deslocamento e de acontecimentos sucessivos, bem como o habitus social, cultural e
econmico que conduz a expresso lingustica da memria.

Ver PASSERINI, L. Sette punti sulla memoria per linterpretazione delle fonti
orali. In: Italia Contemporanea, 1981. n. 143. p. 83-92; ver, tambm, nesse
sentido, PORTELLI, S. La memoria e levento. Senso critico, n. 4, 1980.

213

128

Joo Carlos Tedesco

Os pressupostos da narrao
A minha presena, as minhas perguntas, podem
fazer ver de um outro ponto de vista.
Bermani

Segundo Miranda,214 uma das tendncias da historiografia contempornea o desenvolvimento de uma ressubjetividade, rememorizao, ressimbolizao dos sentidos culturais
sob o veio das compensaes do passado. Nesse sentido, memria e identidade ganham contornos analticos e so mediadas pelo veio da ressignificao da lembrana no horizonte do tempo, do espao e do movimento das representaes
socioculturais. Tempo, espao e experincia, ambos sofrendo
e produzindo elementos inovadores e corrosivos, integraes/
desintegraes, fragmentos e contextos, possuem a capacidade de socializao de memria e de identidade, sejam elas
mentalidades coletivas (grupos, tradio, representaes sociais) ou individuais.
A narrao de memria, por ser uma linguagem localizada no
trip tempo, espao e experincia, tem a caracterstica de poder se
desgastar, ressignificar, deslinearizar tempos (sejam eles sociais,
histricos, culturais e econmicos), de poder perder velocidade
(aqui no sentido de dinamismo), fora, informao, transparncia na sucesso temporal. Os rituais, os smbolos, os mitos,
as comemoraes e os contos so linguagens refrescadoras
do tempo da memria, do tempo histrico, do tempo passvel de receber ressignificao. Esses elementos narrativos do
tempo, do espao e da experincia (os quais ligam memria
com identidade) tm o poder de entrecruzar temporalidades,

AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. Usos e abusos da histria oral. Rio de


Janeiro: FGV, 1998. p. 156.

214

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

129

de dialetizar presena/ausncia,215 de contextualizar a interpretao histrica, de projetar, problematizar, temporalizar o


futuro (perspectivar), a memria narrada.
A narrativa, segundo Le Goff, sempre um relato aberto,
no um mero recordar, mas um horizonte do refazer, da
inveno, do autoconvencimento; passa a ser experincia.
Recordao no significa que o que havia sido estava retornando; e,
sim: o que havia sido, mostrava ao retornar, o seu lugar. Quando eu
recordava, eu descobria, que foi assim que se passou, exatamente
assim. s com isso, ento, que a experincia passa a tornar-se-me
consciente, definvel, verbalizvel, traduzvel em palavras. Por isso
a recordao, para mim, no um mero relembrar, mas estar com as
mos na obra e a obra da recordao atribui vivncia o lugar que
lhe compete na sequncia que a manter viva. A narrao sempre
poder passar para o relato aberto, para a vida maior, a inveno.216

O narrador, ao contar sua vida, sua presena em fatos


histricos, sociais; ao se apoderar de conhecimentos vividos
(experincia); ao relatar situaes de co-presena, torna-se,
ento, um decifrador dos sinais visveis, os da natureza e os
da histria, cravados menos no mundo externo do que na linguagem que o designa.217
A fonte oral importante no esclarecimento das trajetrias individuais e da orientao dada aos fatos histricos;218
permite articular o passado no presente, desenvolver a arte
dialgica entre entrevistado e entrevistador, desenvolver no
entrevistado a arte de ouvir. A fonte oral uma fonte viva,
inacabada, nunca exaurida; interpreta suas experincias e
seus costumes inventados, recriados e vivenciados em diferentes camadas de tempo e de espao, o enfoque das temporalidades, das invenes e subjetividades.
MIRANDA, W. (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autntica,
1999.
216
LEFEBVRE, H. La presence et labsence. Paris: Casterman, 1980.
217
HANDKE apud GUIMARES, C., p. 61.
218
GUIMARES, C., op. cit.
215

130

Joo Carlos Tedesco

As memrias so compostas da multiplicidade de imagens que constituem vrios passados, vo e vm, atendendo
s solicitaes do presente.219 Essa relao capaz de estabelecer contemporaneidade com o passado pela voz do narrador;
dessa forma, o passado restaurado no presente.220 s vrias
geraes transmitem-se tradies pelo veio da oralidade, imprimindo subjetividades, contextualizaes, reapropriaes
de representaes passadas e presentes, ajustadas e compartilhadas s atuais identidades individuais e grupais.
Segundo Portelli, a verdade pessoal passa a coincidir com
a imaginao compartilhada.221 desse modo que, ao narrar,
a memria se faz ao, porm uma ao contextualizada, passvel de modificao pela prpria ao; torna-se um sujeito
que reflete sobre esse mesmo contexto e sobre si mesmo, que
busca, escolhe estratgias adequadas, escolhe fatos, situaes
e raciocina sobre o melhor tempo adequado para a lembrana,
o tempo mais significativo e mais carregado de subjetividade.
Na narrao de memria, os interlocutores buscam fazer
uma hermenutica do contedo de linguagem. Na estrutura
do discurso, anterior a produo textual, h um processo de
seleo, reelaborao, traduo da linguagem simblica interiorizada em linguagem acessvel ao interlocutor.222 H, na
lembrana narrada, segundo Passerini, dois plos, o da mediao simblica e o da experincia de vida. por isso que as
fontes orais exigem ser tratadas como forma de narrao, de
interpretao do mundo, de conferimento de significados.223
O contedo da manifestao da lembrana selecionado,
um alternar-se contnuo de recordao e esquecimento como
PORTELLI, A. Sonhos ucrnios: memria e possveis mundos dos trabalhadores. Projeto Histria, So Paulo: PUC, n. 10, 1993. p. 41.
220
LUCENA, op. cit.
221
MATOS, op. cit., p. 24-26.
222
PORTELLI, A. A morte de Luigi Trastulli e outras histrias: forma e significado da histria oral. So Paulo: PUC, 1995. Texto.
223
RAMPAZI, M. Memria e biografia. In: _______. p. 129.
219

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

131

consequncia de um juzo de significao, portanto suscetvel


de modificao ou de transformao no tempo, em consonncia tambm com o nvel da experincia do indivduo em relao ao objeto de lembrana.224
Na anlise de Matos, tem-se presente que a histria oral
revela subjetividade, identidades e diferentes experincias de
vida. A recordao poder variar de acordo com a mudana de
identidade pessoal, que leva a novas interpretaes do passado.225 Halbwachs entende memria como um ato narrativo.226
No momento em que narro eventos da minha vida transcorrida,
no posso fazer menos de fazer uso da linguagem e das formas
lingusticas que so prprias dos grupos os quais perteno e fao
referncia. Na narrao, os meus diversos pertencimentos se exprimem em palavras e em modos narrativos que se mostram como
fragmentos. Se verdade que o momento presente o momento
no qual narro que organiza a seleo do material e a sua ordem,
ento, nas palavras que uso, nos juzos, nas frase feitas que uso, o
meu ser social se exprime e expe para ser analisado.227

Halbwachs deixa claro que uma memria coletiva no


feita de recordaes, mas de uma linguagem na qual essas passam a ser transmitidas. A noo de linguagem em Halbwachs
pressupe intersignificao prvia e a posteriori (dialtica e
reconstruo de lembranas a partir da fora e presena/ausncia do coletivo/grupo). A importncia da significao e da
intercambialidade que d narrao seu significado temporal dos fatos, do objeto lembrado, sua (re)vivificao.
A narrao oral permite a percepo de diferenciaes de
gnero, de idade, classes, valores, locais; permite recuperar
histrias de vida e identidades, pois o depoente (re)constri
PASSERINI, L. Vita quotidiana e potere nella ricerca storica. Padova: Marsilio,
1983. p. 100. Ver tambm sobre essa questo MACIOTI, M. Biografia, storia
e societ. Napoli: Ligouri, 1985.
225
RAMPAZI, M., op. cit.
226
THOMSON, A. Desconstruindo a memria: questes sobre as relaes da
histria oral e da recordao. So Paulo: PUC, 1995. Texto.
227
Ver PASSERINI, L. Storia e soggettivit. Firenze: La Nouva Italia, 1988.
224

132

Joo Carlos Tedesco

sua identidade medida que narra sua histria de vida. Ao


contar sua trajetria de vida e expor suas opinies, ao conferir
sentido aos gestos, o ator se torna sujeito dos seus prprios
atos e percebe seu papel singular na totalidade social em que
est inserido.228
Inseparvel uma da outra, memria, temporalidade e experincia se recriam cada vez que se pem a imaginar aquilo que aconteceu no passado. Ao contrrio de Bergson, Janet
chega a dizer que as recordaes no tm data.229 A narrao
uma construo literria (com alto grau de simbolizao,
imaginao, intenes subjetivas e signos) feita lentamente
ou no (atualmente, parece que anda mais rpido!) por meio
de aperfeioamentos graduais, diz Valery.230
O homem reescreve a histria reconsiderando os sentidos sobre a base de sua experincia, reestruturando os pensamentos que nutriu sobre algo, sobre objetos pessoais ou fatos do passado. Aquisio e expresso de memria, ou seja,
a narrao da recordao, produzem-se nas modificaes de
sentido, nas formas, nos momentos e nas (situ)aes de sua
manifestao e absoro. A atualizao das lembranas manifesta-se atravs de diversos mecanismos que frequentemente percorrem o caminho inverso a respeito daquele de sua
aquisio.231
Associaes, estmulos externos e graus de afetividade
so importantes para reformular os caminhos da significao
da narrao de lembrana. As fotos, por exemplo, de pessoas
ausentes e com grau de afetividade intensa ganham importncia maior do que quando de sua presena; h uma me JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 59
JANOTTI, M. L. M. O desafio da histria oral. Cincia Hoje, v. 8, n. 48, 1988.
p. 32.
230
JANET, P. Evolution de la mmoire et de la notion de temps. Paris: Descle
de Bourvier, 1978. p. 69.
231
VALERY, P. apud TADIE; TADIE, op. cit.
228
229

133

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

mria implcita (que comumente cotidiana, hbito e reproduo); outra que explcita, manifesta em momentos de
imprevistos, de extraordinrio.
Paul Valery diz que no nos recordamos dos atos elementares, ou seja, aquilo que funcional no passado. Por isso, a
memria reclama lembrana e, por sua vez, narrao/expresso, quando se v ameaada, quando se sente esquecida. Um
exemplo disso o desejo expresso por grande parte dos idosos
entrevistados de querer se fazer ouvir, de no serem vozes esquecidas e de reivindicar a continuidade da memria implcita
e voluntria (aquela a que se recorre no cotidiano para resolver
as situaes confrontadas e que seja funcional), de uma memria-ao (aquela vivida no meu tempo como eles dizem).
Memria-reflexa, memria-implcita, memria-hbito,
memria-experincia... so funes de base da vida cotidiana.
As lembranas que foram armazenadas constituem o patrimnio pessoal da memria do trabalho, da vida cotidiana e da
cultura232 e necessitam de espao/tempo, significao e vivido
para a narrao.

Dimenticare per vivere


Intencionalidades pessoais e histricas
A histria o jogo do desvelamento e do encobrimento, de manifestao e de ocultamento.
Heidegger

A memria coletiva pode ser induzida a esquecer e/ou a


no ser justiciada pela lembrana, ou, ento, por aes polticas, jurdicas e ideolgicas do tempo presente e no do tempo
memorizado.
TADIE; TADIE, op. cit., p. 141.

232

134

Joo Carlos Tedesco

Como veremos mais adiante, comum na histria a produo do esquecimento ou do silncio alter/auto-imposto para
ajustar o passado com as intenes/ressentimentos ainda consequentes do presente e das perspectivas futuras. Ajustar ciclos e tempos histricos de aes, de sociabilidades e de desenvolvimento social funo da memria poltica e coletiva. Isso
no significa completa supresso de lembrana; o que existe
uma memria condicionada, reprimida, no enquadrada, no
lembrada no coletivo histrico.233
Michael Pollak contundente ao afirmar que as memrias subterrneas prosseguem seu trabalho de subverso no
silncio e de maneira quase imperceptvel; afloram em momentos de crise, com sobressaltos bruscos e exacerbados, querendo
ganhar espaos de desvelamento no presente.234 Pollak refere
que a esfera do silncio da memria mais consciente.
Evitar falar, poupar algum de ter a conscincia de estar
em meio a lembranas pouco edificantes, como o caso, por
exemplo de memrias envergonhadas de uma famlia, de um
sobrenome, de uma opo por um movimento histrico que
ganhou ambivalncia histrico-temporal, como o nazismo, o
fascismo etc., no algo incomum no universo da memria,
sobretudo na sua dimenso histrica e cultural. O que est
em jogo a busca da eliminao do estigma da vergonha pela
esfera do silncio e da passagem do tempo. H uma noo de
temporalidade que se ordena com o no dito e se confia em
seu esquecimento.
TADIE; TADIE, op. cit. p. 146.
Ver sobre isso o excelente texto de THOMSON, A. Quando a memria um
campo de batalhas: entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e polticos com o passado do Exrcito Nacional, Projeto Historia, So Paulo: PUC,
1998. J falamos que o livro de BATTINI , tambm, muito representativo
dos processos de desconstruo, seleo, esquecimento, adaptao funcionalidade aos diferentes projetos polticos e sociais do presente, da luta pela
modificao das sentenas (noo de relatividade histrica da culpabilidade)
e das indulgncias histricas que a memria pode promover. Ver BATTINI,
M. Peccati di memoria. La mancata Norimberga italiana. Bari: Laterza, 2003.

233
234

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

135

Sabemos que o que esquecido no some, mas permanece no profundo, espera de ocasio capaz de desocult-lo.
A memria possui uma estranha condio: o passado deixa traos
e, s vezes, so traos indelveis, mas, porm, o presente que
lembra, e o passado se veste, em boa medida, como ao presente
agrada. O testemunho faz a mediao entre o ontem e o hoje, leva
o passado entre o presente, entretanto, dentro daquilo que nesse
chamamos de passado.235

Lembrar e esquecer: dinmicas dialetizadas


O conjunto de nossas recordaes faz de ns aquilo
que somos, mas aquilo que somos determina o
conjunto de nossas recordaes.
Carrera

Diz Gadamer que


[...] memria no , portanto, memria em geral e para qualquer
coisa. H memria para alguma coisa, para outra no. Existem coisas que se quer conservar na memria, outras que se quer esquecer.
[...]. A relao de conservar-relembrar pertence [...] ao fenmeno do
esquecer, o qual no s perda ou ausncia, mas uma condio da
vida do esprito. S atravs do esquecimento o esprito conserva a
possibilidade de renovao total, a capacidade de ver tudo de novo
com olhos novos, de maneira a fundar uma articulada unidade com
o que familiar, com o que novamente lhe parece.236

Gadamer afirma que o desmedido desenvolvimento tcnico aplicado informao coloca em perigo a memria, pois
dificulta a capacidade de esquecer.

POLLAK, M. Memria, esquecimento, silncio. Estudos Histricos, Rio de


Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 3-15.
236
JADLOWSKI, P. Il testimone e leroe: la socialit della memoria. In:_______,
op. cit., p. 27.
235

136

Joo Carlos Tedesco

So todas as informaes de que se tem necessidade, sbito obtidas;


no seria melhor porm se eu esquecesse alguma coisa, e a devo
procurar de novo, e encontro, quem sabe, alguma coisa outra da
que buscava? Isso significa propriamente buscar: colocar perguntas,
que levam a mais perguntas que no estavam previstas [...]. Pensamos somente em saudar o milagre de esquecer, e a iluminante
fora mgica do recordar.237 Para o autor, entre o esquecimento e
a memria, os limites no so nunca definitivos; ao contrrio, por
meio de ambos, entrecruzam-se apelos recprocos, um dilogo que
transforma, renova, redefine a memria em si mesma.238

Afirma Le Goff que


[...] a memria coletiva constituiu um importante lugar na disputa
pelo poder conduzida por foras sociais. Apoderar-se da memria e
do esquecimento uma das mximas preocupaes das classes, dos
grupos dos indivduos que dominaram e dominam as sociedades
histricas. Os esquecimentos, os silncios da histria so reveladores desses mecanismos de manipulao da memria coletiva.239

Alguns grupos tnicos possuem uma tradio de memria; possuem uma memria por excelncia. Como diz Le
Goff, alguns grupos possuem a obrigao de lembrar ( o
caso do povo hebreu e de muulmanos); outros necessitam esquecer (exemplo das vtimas do nazismo ou de seus adeptos,
escravocratas e vtimas da escravido...).
Porm, a tradio de memria, a qual constri o tempo
e o pertencimento cultural no permite a aceitao da ambivalncia do esquecimento, ou seja, ao mesmo tempo, perda e
possibilidade de salvaguardar a prpria identidade coletiva; a
ambivalncia se d tambm no desejo de expresso (exemplo
da experincia nazista no Dirio de Anne Frank e de muitos
outros) e no sentimento negativo da mesma. Segundo Oliviero, as sociedades e os indivduos produzem um certo equilbrio entre lembrar e esquecer, entre as memrias que agre GADAMER, H. G. Verit e metodo. Milano: Bompiani, 1983. p. 38-39.
Idem, p. 93.
239
MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social, p. 182.
237
238

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

137

gam e que esto na base da coeso social e pelas quais necessrio velar, ou deixar de lado, por serem desagregadoras.
Desse modo, memria e esquecimento no se anulam, nem se
excluem, mas entrecruzam-se e podem at se compensar.240
evidente que, por mais sofrvel, incompreensvel e indesejvel que seja, o esquecimento possui uma funo social,
assim como o possui a memria como expresso de uma histria comum, de garantir uma identidade coletiva, superando
ressentimentos, os quais eternizam dios e impedem a projeo no tempo. Memria e esquecimento precisam ser dosados
com sabedoria e equilbrio. Cada povo, para saber viver, diz
Todorov, precisa saber recordar e saber esquecer. Querer sempre recuperar fatos, coisas perdidas, pode trazer o risco de ser
nostlgico e melanclico, de erigir um culto memria pela
memria, sacralizando-a; uma outra forma de torn-la estril. O trabalho de luto, a realidade da perda, ajuda o indivduo
a liberar-se da angstia, possibilita-lhe sadas e libera-o da
dominao da lembrana.241
A narrao importante no s pelo intercmbio da bagagem de conhecimento, mas pela capacidade de elaborao,
de reconstruo, da importncia do coletivo, do ser dizvel,
recordvel e comunicvel, de vividos individuais em comunicao coletiva atravs da memria, permitindo objetivaes,
tradies, reenquadramentos, experincias de elaborao e
assimilao na memria.242

LE GOFF, J. Memoria. Enciclopdia Einaudi, p. 1070.


OLIVIERO, A. Ricordi individuali, memoria collettiva. Torino: Einaudi, 1994.
242
TODOROV, S. Les abus de la mmoire. Paris: Arla, 1995. p. 46-47.
240
241

138

Joo Carlos Tedesco

A conscincia histrica, social e individual se


reconstri sob um fundo de esquecimento
A luta do homem contra o poder torna-se a luta
da memria contra o esquecimento.
M. Kundera

O passado no pode ser inteiramente recordado, porm


tambm no pode ser inteiramente esquecido (nesse sentido,
Freud nos auxiliou muito!). Remover algo significa tambm
escolher o que lembrar, colocar parte os contedos dolorosos. Em algumas circunstncias interessante esquecer de
ter esquecido alguma coisa. A conscincia histrica reconstri-se sob um fundo de esquecimento e poderia se tornar infrtil se mantivesse viva na memria a totalidade dos terrveis acontecimentos.
Ao mesmo tempo, como coloca Jedlowski, a narrao do
sofrimento, do horror, pode se tornar o ponto de chegada de
um delicado processo de elaborao da lembrana e da funo social da memria, bem como um processo de libertao
da recordao. Narrar, escrever, enfim, poder ser tambm a
estrada para o esquecimento; colocar as lembranas na forma
narrativa pode ser tambm um ato de distanciar-se delas.
Ao contrrio, como j vimos, Todorov243 fala da possibilidade de fundar uma tica da memria que se assenta em duas
maneiras de narrar. A primeira seria a recuperao literal,
ou seja, que no queira ser totalmente real, da lembrana.
Essa criaria uma certa vinculao entre passado e presente
de modo que o primeiro estenda sua consequncia ao segundo
sem que esse possa super-lo ou reelabor-lo; seria uma espcie de dependncia do segundo ao primeiro. Pode ser tambm
JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza...

243

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

139

tornar eterno o sentimento traumtico. A outra forma seria a


recuperao exemplar da recordao.
Nesse horizonte, os eventos vm recuperados em sua
dimenso histrica, sem que seja reduzida ou relativizada a
dramaticidade do fato. Os fatos podem se tornar exemplos,
modelos sobre os quais se constri o futuro; o passado torna-se
princpio de ao para o presente. Desse modo, h um acordo
com o passado, no vem recordado de uma forma obssessiva, nem esquecido; que saiba ser um guia do presente sem
que esse permanea sufocado ou paralisado.244
Como j falamos, tanto o esquecimento quanto a recordao possuem uma estreita correlao com o poder. Regular, esconder, esquecer, lembrar, comemorar, produzir verses
(oficiais, geralmente), tradies... fazem parte da estratgia poltica e cultural de quem manipula a memria. O poder de criar e estabilizar a memria sinal de poder em geral
em todos os nveis de organizao social.245
A exteriorizao da memria possui uma ligao com o
poder na medida em que esse produz o tempo, produz referenciais temporais, calendrios oficiais, tempos que refletem
pblica e individualmente eventos que so necessrios serem
redcordados, que bisogna fare festa.246 Quanto mais o presente privo de uma referncia slida no passado, tanto mais
se torna necessrio criar momentos comuns de comemorao
que incutam o sentido do recordar juntos.247
As vontades de memria so de ajustamento para o poder, em geral objeto de seleo, de pertencimento social. O
totalitarismo geralmente destri referenciais tradicionais de
pertencimento (famlia, igrejas, sindicatos...) para impedir a
TODOROV, S. op. cit.
CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001. p. 66.
246
CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,
P.; RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 34.
247
ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986. p. 67.
244
245

140

Joo Carlos Tedesco

constituio selecionada de um senso comum, de critrios de


referncias que orientam a experincia da vida cotidiana. Esses regimes tm necessidade de um passado e de um presente
que estabelea uma relao de recproca convenincia, que se
reaviva nos contatos sociais, nas comemoraes e nos rituais
lingusticos de conservao e de esquecimento.
Entretanto, a memria no possui uma unidimensionalidade; possui, sim, um carter plural. Essa pluralidade recupera sua dimenso complexa: de um lado, apresenta seu
carter seletivo de reconstruo do passado; de outro, lembranas alternativas podem produzir desestabilizao, criticidade aos processos seletivos, univocidade da memria
do poder, das estratgias de memria. Esses fragmentos de
memria248 possibilitam descobrir os traos ocultos legitimadores da falsa linearidade da histria institucional. Recordar
o passado pode dar origem a instituies perigosas, e a sociedade estabelecida parece temer os contedos subversivos da
memria.249
Os agentes do esquecimento, os conspiradores do silncio, os destruidores de memria, os fabricadores da tradio...
temem, expressam e tentam anular a possibilidade subversiva da memria.

Selecionar memrias
Depois da guerra civil tiveram direito de ter
memria s aqueles que venceram.
J. Semprun

Segundo Namer, muito comum na histria e na biografia haver um processo de seleo de memria. Existem os
produtores de memria, os transmissores e os destinatrios.
CARRERA, L. op. cit., p. 69.
JEDLOWSKI, Memoria, esperienza e modernit.

248
249

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

141

Ambos determinam critrios de valor e no so independentes da estrutura de poder envolta no grupo ou na sociedade.
Em cada um desses trs nveis se verificam processos de seleo.
Os produtores de memria selecionam aquilo que vale a pena ser
memorizado. Desse modo, apresentam uma inteno ou uma vontade de memria. Os transmissores de memria selecionam aquilo
que vale a pena ser transmitido. E, finalmente, os destinatrios
escolhem entre aquilo que foi transmitido e aquilo que verdadeiramente ser ativado. Produtores, mediadores e destinatrios so
indivduos inseridos nos grupos sociais e seus critrios, so, portanto, sempre sociais. Sobre esses critrios pode existir consenso,
porm, geralmente, se do sob a tica do conflito, negociao e
compromisso. Os critrios de seleo possam ser mais ou menos
estveis, mais ou menos implcitos, organizados em maneira mais
ou menos hierrquica.250

Existem mediadores de memria, os quais tornam possvel seu acesso. Seleo, filtragem, critrios se do em correspondncia com o destinatrio. H uma funcionalidade da
memria em razo de intencionalidades e capacidades de assimilao e de necessidade da mesma.
Como vimos antes, o trabalho de enquadramento de memria, ou seja, de fazer referncia ao passado para manter a
coeso grupal, para legitimar aes desses e/ou de instituies
ou, ento, para evitar oposies irredutveis, define fronteiras
grupais, possibilidades ou no de alterao pelos materiais
que a histria dispe. Fabietti defende a ideia de que as dimenses da memria e do esquecimento so relevantes no s
quando h um encontro entre culturas, mas tambm quando
esse assume um carter de etnocdio.
Os esquecimentos deliberados so comuns nos processos
de filtragem e de subjetividade de memria.

MARCUSE apud CARRERA, L., op. cit., p. 71.

250

142

Joo Carlos Tedesco

A histria de nosso sculo, como sabemos bem ainda quando buscamos esquecer, cheia de censuras, cancelamentos, ocultamentos,
desaparies, condenaes, retraes pblicas e confisses, traies,
declaraes de culpabilidade e de vergonha. Muitas obras histricas
foram reescritas cancelando os nomes dos heris de um tempo,
catlogos editoriais foram mutilados, foram reeditados livros com
concluses diferentes daquelas originais... Primeiramente foram
queimados livros, depois se fizeram desaparecer bibliotecas na
tentativa de negar os fatos, de obstaculizar a reconstruo dos eventos, de impedir de contar as vtimas, de impedir as lembranas.251

Memria e histria
Uma vez registrada, a palavra se destaca da fonte e ganha vida prpria na mo do pesquisador.
A. Portelli

Halbwachs no parte de um ponto de vista histricocultural. O seu interesse perceber os processos de coeso
grupal das lembranas coletivas; no so s as lembranas
a estabelecer o grupo, mas tambm o grupo a estabelecer as
lembranas enquanto tal. A memria coletiva demonstra que
sua estabilidade est ligada estruturao e estabilidade
do grupo. Na concepo funcionalista e construtivista da memria no h espao para lembranas fragmentrias e disfuncionais.252
Para Nora, existe uma memria social com seus sistemas de sinais e smbolos. Por meio dos smbolos comuns, os
indivduos participam de uma memria comum e de uma
comum identidade. Os portadores dessa memria no tm
necessidade de se conhecer para pertencer e reconhecer sua
comum identidade. A nao um exemplo disso, pois realiza
CAVALLI, A., op. cit., p. 34.
ROSSI, P. Il passato, la memoria, loblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
Il Mulino, 1991. p. 26.

251
252

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

143

sua unidade por meio de uma simbologia poltica. A memria


coletiva e a anlise historiogrfica no a histria esto em
disputa e em processo de excluso, o que, no final, acaba por
destruir a primeira.
Hoje entendemos que a memria e a histria no so sinnimos,
mas de fato opostos [...]. A memria um fenmeno atual, a cultura vivida sempre no presente. A histria, ao contrrio, uma
representao do passado. [...]. A memria reconduz a lembrana
sua socialidade, a histria a distancia disso: o seu objetivo a
dismistificao. A memria vive no interior de um grupo, do qual
funda a sua coeso; a histria, ao contrrio, pertence a todos e a
ningum e assim se torna universal.253

Tanto Nora quanto Halbwachs sublinham o carter construtivo da identidade que a lembrana possui. Ambos promovem uma oposio entre memria vivida e memria abstrata,
esta ltima identificada com a histria, com a objetividade,
portanto neutra para a identidade.254
Sabe-se que, com o passar do tempo, as oposies entre
histria e memria tornam-se sempre menos significativas.
Sabe-se que narraes histricas so reconstrues baseadas
na memria, porm ligadas s condies de interpretao, de
parcialidade e de identidade. Alguns autores defendem que
memria e histria so duas modalidades de recordar, as
quais no necessariamente precisam se excluir.
Assmann prope definir memria funcional como memria vivente, com caractersticas tais como ser inerente ao
grupo, ser seletiva, possuir eticidade e orientao em direo ao futuro. As disciplinas histricas interessam-se por
um segundo tipo de memria: uma espcie de memria das
memrias, uma memria-arquivo, a qual no deixaria cair
no esquecimento conhecimentos e experincias de vida uma
vez que fossem importantes. Vividos tornados objetos sem
ASSMANN, A. op. cit., p. 146.
NORA, P. Les lieux...

253
254

proprietrios podem ser reelaborados e reincorporados a uma


memria funcional.255
A memria funcional atribui significados experincia,
modela a vida e as relaes; pode permanecer sem histria,
sem ser verbalizada ou expressa; permanece amorfa e desestruturada. A memria-arquivo, ao contrrio, so recordaes
no organizadas e no utilizadas que permanecem fora da
memria funcional. A memria-arquivo pode ser a base da
memria funcional e, portanto, no ser dualstica, mas prospectiva, cooperativa e associativa. A memria-arquivo pode
fazer com que as memrias funcionais existentes possam ser
relativizadas criticamente, renovadas ou modificadas.
A memria-arquivo conserva, em nvel coletivo, o utilizvel, o diverso, o anacrnico e o saber especialstico neutro para a identidade,
mas tambm o repertrio das ocasies perdidas e das opes alternativas e das oportunidades no utilizadas. A memria funcional ao
contrrio, uma memria estruturada de um processo de escolha,
de ligao, de construo de sentido; sempre ligada a um sujeito
que se constitui como seu portador. A memria-arquivo no se funda na identidade, mas tem uma funo no menos importante na
recepo de um nmero de datas e de qualidades diversas daquilo
que encontra acesso na memria funcional.256

Outros autores evitam contrapor histria e memria; ao


contrrio, identificam a memria como um novo paradigma
historiogrfico. Segundo Niethammer, a memria que serve
para orientar a histria possui duas faces, definidas como
tradio e resduo. A primeira seria a memria consciente
e voluntria; a segunda, uma memria involuntria, no ainda ou no mais capaz de aflorar conscincia. Nesse sentido,
a histria (do ponto de vista da historiografia crtica) o pro-

ASSMANN, A., op. cit., p. 148.


Ibidem.

255
256

duto de um processo de diferenciao cultural e se desenvolve


atravs da emancipao da memria.257
Para De Certeau, a histria uma narrao, na qual espao e tempo se cruzam, produzindo novos tempos e novos
espaos. Nesse cruzamento no existe univocidade nem estabilidade. A narrao um movimento lingustico de espao/tempo
criativo, sem fronteiras, topolgico para usar um termo seu
sempre enunciador. Desse modo, a histria ser reduzida
a espao lingustico, a uma experincia narrativa de eventos
intercruzados sobre uma base mvel de tempos.258
Alguns autores, dentre os quais Halbwachs, j visto, expressam que difcil aproximar histria de memria em virtude da racionalidade e da distncia crtica de uma e da participao emotiva, fragmentada, incompleta e presentificada
de outra. No entanto, Philipe Aris defende a tese de uma
necessria e possvel integrao, de uma espcie de dialtica
entre histria e memria, na qual o recurso memria coletiva e s memrias privadas permite aos historiadores abandonarem o terreno dos eventos pblicos, da cronologia oficial
para fixar-se no mundo da vida privada, nas mentalidades,
na histria local, as quais, segundo o autor, foram submetidas
e derrotadas no momento do triunfo da histria sobre a memria, sobretudo a memria cultural.259
O encontro entre culturas, geralmente, foi representado
de forma dramtica, como evento traumtico responsvel por
modificar a memria histrica, cultural e identitria. Porm,
isso no basta. As culturas so hoje complexas, no so entidades homogneas, definidas e descritas em sua totalidade.
As culturas no param; h processos escondidos, silenciados
e imperceptveis que, todavia, provocam consistentes derive
Idem, p. 153.
Apud ASSMANN, A., op. cit., p. 158-159.
259
Ver DE CERTEAU, M. L criture de lhistoire. Paris: Gallimard, 1975.
257
258

146

Joo Carlos Tedesco

di memoria nos indivduos e na comunidade.260 Nessa discusso do papel da histria, Nora ainda mais polmico. Para
ele, a memria verdadeira est na mente dos vivos, por isso,
no necessita do suporte da histria: A memria sempre
suspeita para a Histria, cuja verdadeira misso destru-la
e a repelir. A Histria deslegitimao do passado vivido.261
Pelo fato de manifestar um vivido no significa que tenhamos de pensar a memria como fonte documental, ou, ento, que essa esteja isenta de um processo crtico ou de um
tratamento terico-metodolgico que requer todo trabalho
com qualquer forma de registro acerca do passado. H, segundo, Fabietti, uma circularidade hermenutica que se instaura entre o presente, o vivido e a lembrana do passado, um
processo em movimento, foras impessoais da histria e do
destino humano, as quais contribuem para a reformulao da
identidade individual e coletiva.262
A coerncia nos discursos, os ritos mediadores personificados nos guardies da memria, a referncia constante
experincia vivida (ao passado simplesmente) e a fidelidade
nas reconstrues a posteriori colaboram para (re)enquadrar
os fatos no horizonte temporal e evitar seus desvios. Porm,
sabemos que nem sempre isso possvel. A dialeticidade da
memria precisa ser levada em conta. H uma construo,
desconstruo e reconstruo da memria; a histria biogrfi-

A ideia e/ou imagem de uma histria que sufoca e destri os vividos, as memrias privadas e locais exercer uma seduo imensa, uma difuso e persistente
clima de polmica entre memria e histria, no campo da literatura comparada
e da narrativa, da histria oral, da histria das mentalidades. Aris uma
grande referncia nesse campo de discusso. Ver ARIS, Ph. Historia da vida
privada III. Da Renascena aos Sculos das Luzes. So Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
261
FABIETTI, U., op. cit.
262
MONTENEGRO. A. T. Histria oral e interdisciplinaridade. A inveno do
olhar. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os desafios contemporneos da histria
oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 197-212.
260

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

147

ca ou de vida em geral assim o atesta, ordena acontecimentos


que balizaram uma existncia.
Thompson diz que cada vez que uma tradio articulada tem de lhe ser dado um significado apropriado ao contexto,
ou ao gnero em que foi articulada. Essa necessidade de reinterpretao est muitas vezes por trs das transformaes no
seio da prpria tradio. A tradio oral combina, mais do que
separa, mitologia, genealogia e histria narrativa. A capacidade de uma sociedade para transmitir a sua memria social sob uma forma lgica e articulada no depende, portanto,
tambm do domnio da escrita.
A transmisso da memria articulada depende, num sentido mais geral, da maneira como uma cultura representa a linguagem; vai depender do modo como uma sociedade/comunidade
utiliza a linguagem como veculo de expresso e comunicao sem
ficar totalmente dependente do contexto social imediato.263 Com
isso, no significa dizer que se deva relaxar na tentativa (nem
sempre fcil!) da compreenso dos distintos contextos histricos que abarcam a produo da memria e da lembrana.
Recuperar o contexto, perceber os macrointeresses em jogo,
os conflitos e contradies que significaram o perodo e a experincia relatada, um imperativo para os que utilizam o
recurso dos depoimentos orais.

Algumas precaues!
H algumas precaues que praticamente todos os estudiosos do assunto que revisamos levam em considerao, as
quais giram em torno da confiabilidade da memria, da necessidade de confront-la com outras fontes de informao e
AUGE, M. Le forme delloblio. Dimenticare per vivere. Milano: Il Saggiatore,
1998.

263

148

Joo Carlos Tedesco

outros depoentes, da sensibilidade, abertura e pacincia para


localizar/contextualizar e ouvir mais de uma vez a fonte oral,
ou seja, promover mais de um encontro; da necessidade de
retornar ao sujeito da informao e lhe apresentar a anlise
produzida pelo pesquisador, dentre outras.
Utilizao do gravador, de recursos de filmagens e outras
fontes de informaes (objetos, iconografias...) requer, segundo alguns analistas do tema, sensibilidade na percepo de
sua riqueza, de seus limites e da aceitao do sujeito da lembrana. Hobsbawn j dizia que a memria no um mecanismo de gravao, mas de seleo, que constantemente sofre
alteraes, portanto, oralidade e subjetividade esto muito
prximas; ao mesmo tempo, fazer histria sem pressupor esses ingredientes cair numa anlise ingnua.
As fontes orais permitem, no pela anulao, mas pela
complementaridade recproca, dar base para as fontes escritas guardadas nos arquivos. Ao incorporar a linguagem oral,
incorpora indivduos e/ou coletividades muitas vezes esquecidas, pouco valorizadas ou, ento, excludas do processo histrico pela histria, principalmente as ligadas s classes populares, s minorias tnicas e aos agrupamentos sociais, s
questes de gnero, etc.264
Thompson, segundo anlises revisadas, foi um dos que melhor usou, inovou,
problematizou e confiou na utilizao da fonte oral. Seu estudo clssico sobre
os Eduardianos, no primeiro decnio do Sculo XX, na Gr-Bretanha, busca,
de um ponto de vista da histria social, incluir a experincia dos indivduos
comuns. O autor serve-se da histria, da antropologia e da sociologia para
fazer um estudo comparativo entre cidade e campo, diferenciaes de gnero,
de idade e de classes sociais na anlise das entrevistas. O objetivo do autor,
com isso, era mostrar de que modo os indivduos, diferencialmente classificados, vivem os grandes processos histricos de mudana social. O uso da
histria de vida abundante em sua obra com a inteno de perceber como
os personagens, representantes de estratos sociais, viveram as mudanas
culturais da emigrao, a vida familiar e comunitria dos bairros perifricos,
etc. O autor combina, abundantemente, dados empricos com fontes literrias,
estatsticas demogrficas, observaes de contemporneos e da historiografia
sobre o tema. O autor retrata a cotidianidade da sociedade eduardiana, da
passagem da economia moral (esse o foco central) ao livre comrcio, da
religio ao crime, da agitao operria ao feminismo, dentre outras.

264

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

149

Confrontar fontes orais com documentos, bases escritas


e/ou demais evidncias do passado, quando possvel, um
bom recurso metodolgico e que pode ampliar o referencial
cientfico da investigao. Muitos autores, crticos ou no da
histria oral, defendem a questo da subjetividade, ou para
mostrar os limites da histria oral, ou para defend-la. No
entanto, a subjetividade no s do depoente e de quem interpreta, mas tambm de quem pergunta e faz os registros.265
H uma rearrumao de vrias lembranas na tentativa
de dar lgicas a discursos dispersos no tempo (ter presente
o mtodo indicirio de Ginzburg), tempo esse que pode ser
longnquo. Quem depe repensa e constri seu discurso. Por
isso, segundo a autora aqui indicada, o mais importante na
entrevista de histria oral o fenmeno de estruturao dos
fatos de memria. Nele atuam mecanismos extremamente
sutis, que esto relacionados construo da identidade pessoal. Memria e identidade esto intimamente ligadas.266 O
informante no expe apenas informaes e dados soltos, ele
constri e expressa um discurso. Nesse discurso podem estar
no ditos, emaranhados, intencionalidades pouco visveis (expressas), porm que ganham significao dentro de um contexto de ligaes de fatos e situaes.
O historiador, ao possibilitar a fala, torna-se tambm
parte de uma cumplicidade de emoo, ainda que o que est
sendo dito no seja de seu agrado, seja o oposto ao que ele,
como profissional, pensa.267
Portelli fala em evitar nossos pressupostos ou projetos
tericos que podero comprometer o contedo dos depoimentos. importante saber o contexto, que se tenha uma viso

ALBERTI, V. Histria oral: a experincia do CPDOC. Rio de Janeiro: CPDHC,


1989.
266
AUGRAS, M. Histria oral e subjetividade. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os
desafios contemporneos da histria oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 27-36.
267
AUGRAS, op. cit., p. 29.
265

150

Joo Carlos Tedesco

global do assunto, formular hipteses e problematizar.268


por isso que rememorar no o mesmo que viver novamente
o passado; depende da leitura do sujeito que a produz numa
sociedade que se diferencia daquela qual se refere lembrana.269 De Certeau j dizia que a memria produz num lugar
que no lhe prprio, como os pssaros que pem seus ovos
no ninho de outras espcies.270
Portelli um dos que insistem na possibilidade e na necessidade de juno entre memria e histria; fala que a informao histrica escrita e a oral no se excluem; possuem
caractersticas comuns, caractersticas autnomas e especficas, funes que s uma ou outra pode resolver (ou que
uma absorve e resolve melhor do que a outra) e demandam
instrumentos autnomos de interpretao.O autor insiste na
valorizao da linguagem popular do informante, no desafio
do pesqu Idem, p. 224. isador em entender esse horizonte, que
pode ser gramaticalmente pobre, mas rico de significados, de
entonaes, de sinais no visveis...271

O manuseio e a concepo de documento oral


A memria vive graas comunicao; quando
cessa a comunicao, cessa a memria e tem-se
o esquecimento.
Halbwachs

Como vimos, o trato com o documento oral muito importante, implica imaginao, saber que a subjetividade e a oralidade so tambm seus elementos constitutivos; saber que
FLIX, L. O.; GRIJ, L. A. Histrias de vida: entrevistas e depoimentos de
magistrados gachos. Porto Alegre: Tribunal de Justia do Estado do Rio
Grande do Sul, 1999.
269
BRAND, A. Histria oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade
em culturas orais. In: Histria Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 195-227.
270
LUCENA, op. cit.
271
PORTELLI, A. Problemi di metodo: sulla diversit della storia orale. In:
BERMANI, C. Introduzione alla storia orale. Toma: Odradek, 1999. v. I.
p. 150.
268

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

151

h um sentimento do vivido, que o movimento da memria


continuamente se aproxima e se afasta da objetividade durante o ato da rememorao, de que as lembranas pessoais
so dotadas de preceitos de comportamentos, de apresentao
de imagens; de que h um conjunto de intenes conscientes
e inconscientes que selecionam e elegem o que importante,
significativo e dizvel.272
por isso que o papel do historiador e do cientista social
no trato com a histria oral requer conhecimentos prvios dos
contedos em questo, das tcnicas lanadas para a obteno
de dados (pelo menos em parte e as mais comuns); requer
recolher a palavra falada; criar, de algum modo, seu prprio
arquivo; garantir a segura conservao do seu material muito
mais do que o uso que possa fazer imediatamente, pois, quem
sabe, amanh aquilo que se tornou irrelevante hoje poder
servir para outro pesquisador; zelar pela integridade do original registrado e das transcries e evitar manipulaes.273
A histria oral poder dar os seus melhores resultados
quando se colocar a questo claramente de sua finalidade e
de seu significado. A expectativa com relao histria oral
que, segundo Passerini, reaviva-se a esperana de contribuir
atravs dela na resposta s exigncias que hoje se acentuam, de reconstruir uma viso no mutilada da realidade humana.274 A histria oral poder, assim, contribuir na efetiva
descoberta e dinmica entre passado e presente, poder colaborar no sentido de colocar as premissas de uma cultura que
no seja mais s formalmente, mas substancialmente de to-

Portelli afirma que a fonte oral mais caracterizada em espaos e sujeitos


que no possuem a hegemonia da escrita, em estratos socioculturais centrados
na tradio narrativa popular, nas quais a capacidade de se informar e de se
significar intersubjetivamente mais desenvolvida.
273
MATOS, op. cit., p. 82; ver tambm LUCENA, op. cit.
274
PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura
de). Tempo, memoria, identit. Firenze: La Nuova Italia, 1986.
272

152

Joo Carlos Tedesco

dos, sem perder a herana da referida cultura precedente.275


Falando sobre a biografia e contendo a noo de trajetria
como srie de posies sucessivas, Giovanni Levi,276 citando
Bourdieu, refere que
[...] a histria de vida, no privilgio concedido sucesso longitudinal dos acontecimentos constitutivos da vida, considerada como
histria em relao ao espao social no qual eles se realizam, no
em si mesma um fim. Ela conduz construo da noo de trajetria
como srie de posies sucessivamente ocupadas por um mesmo
agente (ou um mesmo grupo) num espao que ele prprio um devir,
estando sujeito a incessantes transformaes. Tentar compreender
uma vida como uma srie nica e por si suficiente de acontecimentos
sucessivos, sem outro vnculo que no a associao a um sujeito
cuja constncia certamente no seno aquela de um nome prprio,
quase to absurdo quanto tentar explicar a razo de um trajeto de
metr sem levar em conta a estrutura da rede, isto , a matriz das
relaes objetivas entre as diferentes estaes. Os acontecimentos
biogrficos se definem como colocaes e deslocamentos no espao
social, isto , mais precisamente nos diferentes estados sucessivos
da estrutura da distribuio das diferentes espcies de capital que
esto em jogo no campo considerado.277

Memria sempre uma reconstruo psquica e intelectual, porm seletiva do passado, de um indivduo inserido
num contexto familiar, social, nacional. Portanto, toda memria , por definio, coletiva. Seu atributo mais imediato
garantir a continuidade do tempo e permitir a alteridade,
ao tempo que muda, as rupturas que so o destino de toda
vida humana; em suma, constitui um elemento essencial da
identidade, da percepo de si e dos outros. No entanto, no
h uma representao e presena do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade.278

PASSERINI, L., 1986, op. cit., p. 65.


Idem, p. 66.
277
LEVI, G. Usos da biografia. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M., op. cit.,
p. 167-182.
278
LEVI. G. Usos da biografia, p. 169.
275
276

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

153

preciso admitir que a memria tem uma histria que


preciso compreender. Para Rousso, um dos vrios problemas
da relao entre histria e memria que existe na histria
da memria uma discrepncia entre o que essa histria erudita (a dos historiadores) possa dizer de um acontecimento passado e as percepes que prevalecem no mesmo momento no
seio de uma sociedade, num tempo e num local determinados,
e que certamente tm peso infinitamente maior.279
Segundo Portelli, exatamente porque as experincias
so incontveis, mas devem ser contadas, que os narradores
so apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem, da
narrativa, do ambiente social, da religio e da poltica. As
narrativas resultantes no s podem como devem ser entendidas criticamente.280
Para o autor, o documento escrito dotado de uma forma
imutvel e preexiste ao seu uso; a fonte oral, ao contrrio,
uma fonte potencial at no ser acionada pelo entrevistador, dependendo da forma de questionamento, do dilogo, da
inter-relao que se constitui, de pr-noes/preconceitos de
ambos (entrevistado e entrevistador), do que ambos, talvez
diferenciadamente, consideram como relevante.281 A comunicao funciona sempre em vrias direes, e o entrevistador,
em qualquer modo, busca sempre estudar o entrevistado.
por isso que a entrevista um produto de ambos, porm manifestado na forma que transparece ser um fluxo contnuo de
narrao sem perguntas e respostas, e, o que mais importante, segundo Portelli, raramente o contedo do testemunho
oral ser o mesmo duas vezes seguido; modifica-se a relao
interpessoal, h um maior conhecimento recproco e clareza
ROUSSO. H. A memria no mais o que era. In: AMADO, J.; FERREIRA.
M. de M., op. cit., p. 93-101, cit., p. 94-95.
280
Idem, op. cit., p. 97.
281
PORTELLI. A. O massacre de Civitella Val di Chiana: mito e poltica, luto
e senso comum. In: AMADO, J.; FERREIRA. M. de M., ob. cit., p. 108.
279

154

Joo Carlos Tedesco

sobre o objeto da pesquisa.282 Com isso, Portelli enfatiza a importncia da conscincia da infinitude da memria-histria,
da necessidade de repetir, retornar, comparar entrevistas e
contedos. Para o autor, grande parte do contedo informado
ser resultado de uma seleo produzida pelo momento e pela
relao que se constitui. No entanto, bom constatar que Portelli salienta que essa potencial parcialidade das fontes orais
se reflete sobre todas as ordens de fontes, a histria oral comunga a prpria parcialidade de toda a pesquisa histrica.283
Afirma Portelli que o narrador de hoje diferente do de
antigamente: ele l, tem condies de se informar, escreve, comunica-se, sua conscincia subjetiva e sua condio material
esto mais evoludas, fato que, por haver reduzido a prtica do
conhecimento pela via da tradio oral, poder alterar o juzo
e o significado da forma narrativa, da alterao do significado
da memria. Porm, ao mesmo tempo, o narrador pode reconstruir significados, opinies, juzos sobre o contedo narrado.
As fontes orais so objetivas. Isso naturalmente vale para todas as fontes, ainda se muitas vezes a sacralidade da escrita
PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 160.
Numa coletnea chamada Introduzione alla storia oral, organziada por
Cesare Bermani, v. II, Roma: Odradek, 2001, Portelli desenvolve um texto
belssimo intitulado La memoria e levento: luccisione di Luigi Tratelli,
Terni 17 mar. 1949. No texto encontra-se uma anlise muito interessante
de memria operria e de como essa memria coletiva foi reconstruda e
expressa pela tica da manipulao, de invenes, de falsificaes em razo
da luta e de domnio das classes envolvidas, do momento poltico vivido pela
Itlia no perodo recente ao ps-Grande Guerra. O uso da fonte oral revela,
num cenrio de interpretao manipulada, um contexto de conflito poltico,
de conflito no interior do prprio movimento operrio, a correlao de foras
sociais, a forma de interpretao periodizada dos tempos correlatos com os
fatos socioistricos sem sequncia temporal e, sim, personificada (antes,
depois da guerra, como partegiano, como militar, membro do partido). O
autor mostra que a memria coletiva dos fatos ativa, a histria da histria que se produziu como uma memria coletiva, simblica, psicolgica e
formal, objetivando racionalizar um contexto de lutas sociais, de memrias
ressentidas, de tenses na relao entre capital e trabalho (e no interior de
cada uma dessas esferas). As incertezas e manipulaes sobre o fato da morte
de Luiggi Trastelli refletem as incertezas, ambiguidades e ambivalncias da
sociedade italiana no recente ps-guerra.

282
283

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

155

induza a isso esquecer. Todavia a no objetividade um dado


caracterizante e constitutivo das fontes orais, enquanto fontes contemporneas pesquisa, mais do que ao evento.284
J falamos acerca de alguns dos inmeros problemas e
das muitas implicaes que envolvem o uso e as tcnicas das
fontes orais. Thompson nos alerta para um outro fato: a questo da presena de outras pessoas no momento da entrevista
e o espao considerado mais adequado para a obteno de resposta e as possveis alteraes de linguagem correspondente. Segundo Thompson, frequentemente se percebe tambm
que os antigos grupos tendem a dar uma imagem comum do
passado, mas entrevistados individualmente fornecem um
quadro diferente e diverso.285 Tendo presente essas inmeras
questes, reconhecer essas dificuldades, ser vigilante em termos epistemolgicos e metodolgicos, introduzir estratgias
para controlar e corrigir possveis elementos a priori promotores de distores j um bom caminho para dar sequncia
ao mtodo da histria oral.286
Thomspon deixa claro que no existe uma separao entre o micro e o macro no horizonte da histria, quando na
busca da fonte oral; que existe uma interconexo dialtica.
Nenhum tema da histria intrinsecamente micro ou macro,
principal ou marginal, grande ou pequeno. Tudo depende do modo
pelo qual estudado. O estudo local pode pecar por miopia, mas
possvel tambm que a eternidade seja um gro de areia [...]. Devemos ter a capacidade de perguntar em cada evento que significado
teve na vida da gente comum.287


286

287

284
285

PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 162.


PORTELLI, op. cit., 1999. p. 159.
THOMPSON, P. op. cit., p. 48.
Um grande estudo que se tornou polmico no campo historiogrfico dos anos
1970, pelo uso e crtica histrica das fontes orais encontra-se em JOUTARD. P.
Trata-se do livro Lgende des Camisards. O autor prope um uso rigoroso das
fontes orais no sentido de estabelecer objetividade na anlise. O livro retrata
o movimento dos Camisards contra Luis XIV pela defesa de sua forma de
expresso religiosa protestante. O autor defende a ideia da concomitncia da
oralidade com o documento, com a pesquisa arquivstica e uma etnologia no

156

Joo Carlos Tedesco

Ainda no campo das polmicas, alguns autores dizem que


o uso das tcnicas da histria oral deve se restringir produo de histria de vida. Alguns propem, inclusive, modalidades de histria oral. A primeira, histria de vida, centrada em
um personagem; a segunda, histria temtica, voltada para
esclarecer um tema; terceira, tradio oral, de carter mais
coletivo (mitos, festas, rituais...). Thompson fala da necessidade de evitar a imposio de uma entrevista a quem no se
dispe para tanto, bem como evitar o risco de gravar apenas
depoimentos dos que ele chama de especialmente seguros e
bem articulados; defende a ideia de que a singularidade das
amostras aleatrias e padronizadas de informao seja substituda pelo mtodo de amostragem estratgica. Os critrios
a serem seguidos dependem do tipo de pesquisa em curso.
possvel desencadear-se uma rede de informantes. No h
uma grande concordncia no uso de questionrios previamente elaborados. Alguns defendem que haja apenas uma pauta prvia orientadora. Thompson insiste na importncia das
perguntas historicamente relevantes, o que exige conhecer
as prticas e terminologias locais.288
Existem os que defendem a inevitabilidade dos confrontos com arquivos e testemunhos, documentos escritos, comparao crtica com outras informaes existentes sobre o assunto em questo. Para alguns, sem essas possibilidades, o relato
oral de memria ficar comprometido. Acrescentam-se a isso
a leitura do contexto, o uso de fontes mltiplas, convergentes
campo/espao do ocorrido; defende a necessidade de diferenciar e classificar
as entrevistas segundo idade, provenincia geogrfica, origem sociocultural,
sexo, religio de origem; a necessidade de ulteriores pesquisas e retorno ao
campo antes de fazer generalizaes e resultados dessa mesma; insiste na busca
da conscincia coletiva do fato; introduz uma discusso sobre representao
coletiva e identidade cultural do grupo analisado, bem como o papel ativo da
memria na reinterpretao da histria. Ver JOUTARD, Ph. La lgende des
camisards. Une sensibilit au pass. Paris: Gallimard, 1977.
288
THOMPSON, P. op., cit., p. 105.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

157

e divergentes, confrontando-as. Para Thompson, impossvel


afastar o vis subjetivo presente nos depoimentos; eliminar
significa expurgar o carter humano do depoimento.289
De tudo o que j dissemos, no podemos esquecer que
a histria oral no uma mera recuperao de reminiscncias descomprometidas; , sim, uma reconstituio do vivido, um contextualizar e ressignificar fragmentos de vida no
tempo vivido e percebido. O prprio Halbwachs afirmou que
a memria no um mecanismo de gravao, mas de seleo,
o que implica significados de oralidade, das estruturas mediadoras da linguagem, do ambiente social, da subjetividade,
bem como dos silncios das (des)(re)construes de significados dialetizados entre vividos, concebidos e percebidos em
temporalidades diferentes, entrecruzadas ou no.
O novo que introduz na histria so os discursos, nos quais as
referncias realidade podem ser mltiplas e devem ser decifradas. A histria oral no trata de discursos escolhidos, mas tem a
ambio de afrontar a linguagem na sua totalidade. A exigncia
a de afrontar o estudo dos seres humanos no s a respeito do
poder poltico, das estruturas econmicas, das organizaes sociais,
mas tambm os comportamentos interpessoais, os mecanismos
psicolgicos e cognoscitivos, as ideias, as imagens que esto na
cabea dos indivduos.290

BRAND, A. Histria oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade


em culturas orais. Histria Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 205.
290
BRAND, op. cit., p. 208.
289

158

Joo Carlos Tedesco

Humanizar a histria?
Quem controla o passado, controla o futuro;
quem controla o presente, controla o passado.
G. Orwell

O desafio do uso da linguagem, que, por si s, j uma


totalidade-em-ato, se expressa nas relaes no s polticas,
estruturais e organizacionais econmicas e socialmente, mas
nos interpessoais, nos mecanismos psicolgicos e cognitivos
idealizados e imaginados na conscincia dos indivduos que
a expressam.
A histria oral sempre uma construo contnua de
suas fontes, de seus recursos, de aes diretivas, de preparao para entrevistas. Esto presentes nesse processo, constantemente, duas subjetividades, a do entrevistador e a do
entrevistado, algo no muito diferente da histria documental e das fontes escritas.291
A psicologia tem nos ensinado que a memria humana
no reproduo exata do passado; ao contrrio, frequente
reinveno de um passado ou fuga desse. Porm, por isso mesmo, recordar, segundo Passerini, uma atividade de intensa
criao, com os outros, de espaos comuns de compreenso e
interpretao do mundo.
A atividade de relembrar procede de longe a um duplo
movimento: de um lado, retornar sempre mais para trs no
passado; de outro, atualizar a experincia vivida, fazendose parte do presente. A memria deve tornar-se produo de
significados. O processo de recordar desafia a histria oral
em fazer um esforo de reelaborao e transmisso de sig PASSERINI, L. Conoscenza storica e storia orale: sullutilit e il danno delle
fonti orali per la storia. In:_______ Storia orale (Org.). Torino: Rosenberg e
Sellier, 1978. p. VIII.

291

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

159

nificados do passado para o presente. Passerini entende que


a memria deva ser um ato narrante na tentativa de conferir significados condivisveis a certos eventos ou aspectos do
mundo; entende que a narrao, no mesmo tempo-memria,
sempre autobiogrfica, constitui transmisso de uma experincia de vida e traduo, isto , reformulao e inovao de
alguma coisa que se recebeu de geraes precedentes e que se
quer passar s geraes futuras.
Portelli292 alerta-nos para o fato de que, com a fonte oral,
no nos encontramos frente a um objeto, mas frente a uma
fase, a um processo. A fonte oral uma fonte construda interpessoalmente, no sentido de que produto de um ato lingustico no qual so duas pessoas que falam.293 A proposta de
trabalho com fontes orais deve ser expresso de um esforo
em percorrer uma estrada, no de mo nica nem cumulativa
no tempo, mas numa perspectiva de inter-relao entre o que
se considera individual e coletivo, local e nacional, marginal
e central, privado e pblico. O objeto da histria o singular,
um acontecimento, uma sucesso de acontecimentos, de personagens que no se produzem seno uma vez s, porm seu
objetivo de colher, em geral, o regular.294
Inmeras tenses so constantes no horizonte da anlise
das tradies tanto escritas quanto orais; alm dessas duas
Paul Thompson analisa muito bem as implicaes crticas atribudas histria
oral, como tambm presentes ou passveis de presena na histria escrita/
documental sobre suas possveis deformaes, sobre a pretendida veracidade
da quantificao estatstica, da autobiografia, do uso de jornais, de dados
censitrios, etc. Ver THOMPSON, P. Problemi di metodo nella storia orale.
In: PASSERINI, L. Storia orale. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. p. 31-68.
Portelli diz que necessrio deixar de lado a ideia de que a narrao individual seja uma ilha e que os grandes fatos coletivos no tenham comunicao
com isso. Ginzburg trabalha com a noo de cultura popular na esfera da
circularidade com a cultura hegemnica, numa perspectiva que pode estar em
diferenciao, mas tambm uma constante relao de troca e de interpretao.
293
PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura
di). Tempo, memoria, identit. Firenze: La Nuova Italia, 1986. p. 136.
294
Ver tambm GRIBAUD, M. Storia orale e struttura del racconto autobiografico.
Quaderni Storici, n. 39, 1978.
292

160

Joo Carlos Tedesco

h aquela entre comportamento e narrao, entre a particularidade e o genrico, como e onde procurar as fontes mais
certas, quais as questes mais pertinentes e quais as circunstncias, os significados mais explcitos na narrao... No
nosso caso especfico, poderamos nos perguntar se os idosos
so testemunhas fortes e de forte personalidade na narrao?
Nas palavras de Passerini, os ancios narradores no se deixam impor modelos, frequentemente ignoram as perguntas,
subordinando o entrevistador, deixando-o em situao de contra-interrogatrio ou em uma situao embaraosa.295
Autores nos alertam de que devemos ter cuidado para
no cair numa moda vulgar e consumista, sem responsabilidade de traduo de suas exigncias metodolgicas e cientficas, como o caso, no Brasil, de muitas ditas biografias e/
ou autobiografias miditicas, feitas em geral por jornalistas
afoitos pela mercantilizao e pela temporalidade do marketing da figura biografada. Halbwachs, por exemplo, refere a
dificuldade de ordenar e integrar um com o outro os inmeros
fragmentos de memria correspondentes participao de indivduos em grupos diferentes no decorrer do tempo.296
A tentativa da histria oral, segundo Thompson e tambm Passerini, de permitir a humanizao da histria,
atravs da linguagem narrativa de protagonistas ou no, da
conscincia social de que, sem as atividades dos indivduos
concretos (como diria Marx), no h produo de histria.297 A
grande questo de fundo a de sempre: quem faz a histria?
A ideia fazer um esforo de interpretao do sentido poltico
e psicolgico dos testemunhos e das testemunhanas, considerar a sociedade na sua complexidade e o indivduo tambm

LE GOFF, J. Storia. In: Enciclopedia Einaudi, Torino: Einaudi, 1981. p. 1055.


PASSERINI, L., op. cit., 1978. p. 113.
297
Ver BERMANI, C. La storia orale. Roma: Odradek, 2000.
295
296

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

161

nesse horizonte, ainda que se esteja descrevendo aspectos especficos de uma realidade micro/local.
Enfim, entendemos que o papel do historiador e de todo
e qualquer cientista social interessado nos estudos de memria fundamental. As implicaes metodolgicas que cercam
o objeto de anlise de histria oral, da histria documental
e biogrfica alertam-nos para a vigilncia dos instrumentos
utilizados para a interdisciplinaridade, para o engajamento
analtico, para a transcendncia e problematicidade do tempo
e do contedo do discurso. Isso tudo, em meio a outras questes, revela-nos a importncia e a finalidade social e humana/
cidad da histria oral.
Temos a convico de que lembrar um reviver, um
reinscrever-se no momento, no contexto; um imprimir-se.
Por ser tudo isso e por utilizar a narrao, o recurso oral
passvel de ser documentado, acreditamos que a lembrana,
principalmente na forma de narrao, poder ocasionar mudanas na produo do conhecimento histrico, na localizao
espaciotemporal e cidad de indivduos, grupos e categorias
sociais, bem como promover um acerto de contas desses com a
histria, com a responsabilidade tico-social, to necessrios
nos dias de hoje.

SEGU N D A pa r t e
Tempos, espaos e signos:
a correlao entre memria
coletiva e individual no
processo de lembrana

Captulo 10
A natureza social do pensar e do relembrar
O social no s a origem, mas a salvaguarda
ltima da recordao.
Halbwachs

Premissas
O objetivo, nesta parte, fazer uma reviso das obras de
Halbwachs, analisando aspectos correlatos a sua abordagem
sobre memria, tais como coletivo, grupo, biografia, quadro
familiar, experincia, tradio, modernidade, histria, narrao, simbologia, etc. Lanamos mo dessas anlises por consider-las importantes na fundamentao de nossa anlise
emprica (da terceira parte) sobre a memria de idosos, em
suas lembranas, seus quadros de significao, suas estratgias, simbologias e representaes sociais, bem como sua
experincia de vida cotidiana em tempos e espaos variados.
Analisar Halbwachs uma empreitada um tanto difcil, pois
suas obras so complexas, seus comentadores so poucos; o
contato com suas obras ainda no acessvel ao pblico em
geral visto que ainda no so todas traduzidas para o portugus.298
Grande pesquisador, ativista poltico, Halbwachs deixou
uma vasta obra multidisciplinar. pouco conhecido fora da Fran Ao que vem ao nosso conhecimento, nenhum livro de Halbwachs foi ainda
traduzido para o portugus brasileiro. H uma traduo portuguesa de A
memria coletiva. Para a nossa anlise, utilizamos essa traduo e a italiana
da mesma obra, bem como a verso em francs das demais.

298

164

Joo Carlos Tedesco

a, malgrado esteja havendo um grande interesse na traduo de


suas obras em vrios pases, como o caso dos ltimos anos na
Itlia e na Espanha. No Brasil, ainda, em grande parte, desconhecido. O autor desenvolveu estudos sobre estatstica, demografia, sociologia, psicologia social, metodologia e epistemologia das
cincias sociais; realizou pesquisas na rea da psicologia social
tematizando questes como agregao, socializao, morfologia
social, necessidades, intersubjetividade, institucionalizao, o
problema do suicdio, da conscincia e da memria coletiva.299 No
entanto, sua maior influncia apresenta-se nos estudos sobre a memria e os quadros sociais da mesma; seguidor de
Drkheim, objetivava constituir um programa de expanso
de sua sociologia.300
A instrumentalidade na obteno dos relatos de memria, seja esta nos mbitos coletivos, individuais e/ou biogrficos, vai nos dizer da atualidade ou no do pensamento de
Halbwachs, bem como oferecer a base da mediao necessria
e confivel para os estudos de lembrana, de resgates temporais, do papel da oralidade em seus vnculos sociais.

Suas obras mais conhecidas so: La classe ouvrire et les niveaux di vie; La
morphologie sociale; La topographie lgendaire des Evangiles en Terre Sainte;
Les cadres sociaux de la mmoire; La mmoire collective (ver melhor indicao
na bibliografia final).
300
Parisiense, filho de professor, nasceu em 1877; desde cedo seguiu a profisso
de seu pai ensinando em liceus; ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar
em Berlim. Aps uma breve estada em Berlim, retornou Frana e passou
a lecionar em grandes universidades, como o caso da Universidade de
Strasbourg, na Sorbonne e no Collge de France, neste ltimo na ctedra
de Psicologia Social. Grande ativista poltico, foi, logo no incio da Segunda
Guerra Mundial, alvo da Gestapo, tendo sido preso e deportado para o campo
de concentrao de Buchenwald, local onde veio a falecer meses antes do
trmino do conflito mundial.
299

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

165

A dimenso coletiva de memria em Halbwachs


No estamos nunca sozinhos.
Halbwachs

Comecemos ento dizendo que, para o autor, as lembranas de cada um se confirmam, se modificam ou se perdem no
interior de um sistema de inter-relao. Desse modo, o autor
em questo no faz uma verdadeira sociologia da memria,
mas, antes, uma sociologia da recordao, ou melhor do recordar-se.301 Seu ponto de partida a memria individual e sua
tese fundamental que a memria individual uma construo social.
Pelo que entendemos da anlise de Halbwachs, rememorar, reconstruir, alterar, localizar, racionalizar e dar lgica
lembrana depender do domnio individual das noes familiares do grupo de pertencimento, dos pontos de reparo, do nvel
de interao com os fatos no vivido individual/grupal, da morfologia do grupo, da sucesso de quadros diferentes, das modificaes e descontinuidades dos grupos (entrada/sada de indivduos), da utilidade/interesse da lembrana para o grupo (nveis
de lembrana e de esquecimento conscientes e inconscientes).
A ideia de memria coletiva identifica um singular grupo, ou, no limite, toda a sociedade. A dimenso social da memria manifesta uma pluralidade de memrias coletivas; a
memria social incorpora uma multiplicidade de memrias
coletivas. O social prevalece sobre a memria coletiva, considerada a submemria de um grupo que parte de um vasto
social, ou seja, da sociedade global.302
JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M. (a cura de). Il senso del passato. Milano:
Franco Angeli, 1991.
302
NAMER, G. Mmoire et socit. Paris: Mridiens-Klincksieck, 1986; ver,
tambm, FERRAROTTI, F. La storia e il quotidiano. Roma-Bari: Sagittari
Laterza, 1986.
301

166

Joo Carlos Tedesco

Halbwachs busca refutar a tese de Bergson segundo a


qual o indivduo dispe de uma memria individual no reduzida memria social.303 A sua tese bsica a de que o indivduo se apropria dos elementos de sua memria das lembranas atravs de seu pertencimento e interao a um grupo com o qual compartilha as suas lembranas. A passagem
da memria individual coletiva necessita da mediao dos
quadros sociais de memria. Desse modo, indivduos e grupos
compartilham as mesmas lembranas e os mesmos princpios
organizativos da memria. Para Halbwachs, o movimento de
memria sempre uma tentativa de reconstruo do passado
a partir da inteligncia individual e da sociedade, dos meios
que nos esto fixados e dispostos como categorias de inteligncia e de memria (o lugar, a forma, o nome, a reflexo, o
tempo, os smbolos...).
Os quadros de memria se constituem a partir dessa experincia, desse interesse, dessa significao e dessa identidade que se constitui coletivamente, se identifica, se agrupa,
se diferencia, se altera, se consolida e se correlaciona com as
dimenses passadas e presentes do tempo e dos vividos. Nesse ambiente terico, possvel dizer que o passado no se conserva no todo, intacto, mas se reconstri. A memria coletiva
no ressurreio ou um reviver puro do passado enquanto
tal, mas, sim, reconstruo em funo do presente.
O autor refletiu profundamente sobre a possibilidade da
lembrana de corresponder e ritualizar a memria de um grupo social de pertencimento atual ou no passado. Nesse sentido, a memria torna-se complexa, pois ser fruto da multiplicidade dos agrupamentos sociais. A memria o resultado de
um trabalho permanente no decorrer do tempo, no qual seus
CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,
P.; RAMPAZI, M. (a cura di). Il senso del passato. Milano: Franco Angeli,
1991.

303

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

167

contedos so, de tempos em tempos, conservados ou abandonados por grupos humanos concretos. O afrouxamento ou
o fortalecimento de um implica o mesmo resultado no outro,
ainda que possa essa relao se dar pela tica do conflito, da
tenso entre memria individual e memria coletiva.
Se o passado se conserva, se conserva na vida dos homens na forma
objetiva de sua existncia e nas formas de conscincia que a esses
corresponde. Recordar uma ao que se processa no presente e, do
presente, depende. A reconstruo do passado corresponde aos interesses, aos modos de pensar e as necessidades da sociedade presente.304

O papel da memria coletiva sustentar em nvel cognitivo e simblico o sentido de identidade coletiva. A memria
coletiva pode assumir uma veste mais ou menos institucionalizada, objetivando-se em prticas especficas, em lugares de
cultos ou em coisas/objetos significativos, mas a sua origem
e a sua reproduo se situam no nvel das prticas comunicativas; sua funo principal favorecer a coeso do grupo
social e garantir sua identidade.305 No curso desse processo,
verificam-se mecanismos de seleo do passado relevante e
que possam basear-se em critrios consensuais ou, ento, ser
objeto de conflito,
[...] pois qual seja o critrio de seleo, representa, no fim, uma
atribuio de valor [...], no so jamais independentes da estrutura
de poder que, de tempos em tempos, caracteriza o grupo ou a sociedade. O poder de criar e de estabilizar a memria , com efeito,
sinal de poder em geral a todos os nveis da organizao social.306

Na anlise de Namer, a memria coletiva carrega as


diferentes contraposies e contradies dos fenmenos que
reiteravam memrias precedentes e que puderam se suceder
JEDLOWSKI, P. Introduzione (traduo italiana de La memoria collettiva).
Milano: Unicopli, 2001. p. 31.
305
JEDLOWSKI, op. cit.
306
CAVALLI, A. Lineamento di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,
P.; RAMPAZI, M. op. cit., p. 34.
304

168

Joo Carlos Tedesco

no tempo. A importncia dessas memrias no presente vai depender da forma como vm transmitidas e ritualizadas. Da o
papel da democracia, da mistificao, da reinveno, da difuso e da mass-mdia, da capacidade de reiterao, das revolues, etc. Para o autor, a mdia produz uma memria coletiva
annima, potente e sem regras, que legitima o excesso e a
passividade. Hoje a televiso legitima qualquer terrorista,
pois o mundo inteiro pode v-lo e admir-lo. [...]. A memria
comum televisiva substitui a memria coletiva.307
Ora, dessas afirmaes deriva uma concepo de memria no como algo dado, mas passvel de modificaes e
de usos pelos grupos no poder dominante e seus rituais de
conservao; a memria pode ser reconstruda a partir das
exigncias dos grupos sociais ativos, dinmica e conflituosa, produtora e produto de tempos sociais e de fatos histricos. com base nesses pressupostos que desenvolveremos e
desmembraremos uma anlise de suas ideias principais e de
como essas podero auxiliar nos estudos de memria de idosos, objeto da terceira parte.

A linguagem como manifestao do coletivo


Uma importante condio para lembrar nossa
capacidade de esquecer.
Whitrow

A linguagem um elemento fundamental na organizao


da memria, o elemento fundante da identificao social da
memria individual. A lembrana um produto da interao
lingustica que lhe d ordem e compreenso num fluxo comple NAMER, G. Memoria collettiva e democrazia. Rassegna Italiana de Sociologia,
p. 399.

307

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

169

xo de operaes. Namer j dizia, interpretando Halbwachs,308


que a memria se manifesta como prtica narrativa; da a
importncia das vozes, das fontes orais, de descobrir as fontes
mais legtimas para exteriorizar experincias e conhecimentos, de fazer sua experincia um potencial de narrao.309
Segundo Passerini, as anlises de Halbwachs vm mostrar como a memria compartilhada, atravs do tempo e do espao, apresenta funes de identidade cultural em constante
mudana, no como fidelidade ao acontecido, mas como intensa vontade de viver o presente e o futuro. Nesse ajustamento,
no necessariamente h aspectos de reduo e empobrecimento, mas, sim, a reelaborao das lembranas abre os olhos sobre seu significado do passado que no tinha sido evidenciado
anteriormente, e o passado prolonga-se em tradio de longa
durao. A linguagem, desse modo, torna-se o elemento dessa
transtemporalidade da tradio. importante ter presente
que, dessa concepo, no se retira a originria conflitualidade, nem a obra de seleo e de formao que preside a lembrana, sobretudo no que tange dimenso do poder formal e
do difuso subterrneo das relaes interpessoais.310
Halbwachs problematiza a ideia de identidade individual fazendo uma diferena entre autobiografia e memria social (coletiva). Diz o autor que
[...] a memria individual, para confirmar uma lembrana, ou
para precis-la, ou para suprir alguma lacuna, pode basear-se
sobre a memria coletiva, inserir-se, confundir-se com ela por um
momento, tem, todavia, uma vida prpria, e cada relao externa
assimilada e incorporada progressivamente na sua base. E, por
sua vez, a memria coletiva, abarca a memria individual, mas
no se confunde com ela.
Ou seja, Memria coletiva, Les cadres sociaux de la mmoire e Memoria di
Terrasanta (indicamos o ttulo na traduo que revisamos. Ver na bibliografia
final a indicao completa dessas obras).
309
Ver sua Introduo edio francesa de La mmoire collective...
310
PASSERINI, L. Postfazione (da traduo em italiano de La memoria collettiva).
Milano: Unicopli, 2001.
308

170

Joo Carlos Tedesco

As lembranas coletivas frequentemente se oferecem


como ponto de referncia nos quais as lembranas individuais possam ser reconhecidas e colocadas com mais certeza.311
A memria individual apoia-se na coletiva seja pela sua
estrutura de sentido, seja, tambm, pelo contedo lingustico
que vem confirmado, no qual o indivduo inserido. As recordaes que nos so mais pessoais so o resultado de um
complexo processo de interseo de intfluncia de grupos diversos, cada um tendo um tipo de influncia especfica sobre
o resultado final.312
Os indivduos participam de vrios grupos em sua existncia, seja contemporaneamente, seja na sucesso do tempo; cada um desses grupos portador de valores, linguagens,
culturas diferentes. Essa comunho do olhar sobre o mundo
, ao mesmo tempo, consequncia e pressuposto de pertencimento ao grupo. Interiorizao, socializao, representao
da realidade, interpretao dos eventos, reconhecimento como
portador de uma prpria memria coletiva so alguns dos
pressupostos para ser sentido e se sentir parte dos grupos.
A relao entre memria coletiva e memria individual,
em Halbwachs, possui um sentido circular, no meramente
de causa/efeito. Cada indivduo sintetiza diversas memrias
coletivas dos grupos a que pertence.313 Para os adeptos da memria coletiva e de seus quadros sociais e coletivos, uma das
primeiras caractersticas de toda memria est na sua dupla
natureza: alm de ser um conjunto de lembranas e de imagens, pode ser tambm considerada um conjunto de representaes associadas a valores e normas de comportamento.
Nesse sentido, ela se liga com a histria pblica, com os sistemas sociais socializadores que constituem, linguisticamente,
CARRERA, L., op. cit., p. 17.
Ibidem.
313
HALBWACHS, M. Les cadres...
311
312

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

171

os modos de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivduos e


dotados de um poder coercitivo (pensar nas instituies, na
memria nacional e poltica).
Pelas representaes coletivas, as imagens do passado
tomam forma lentamente na conscincia no mais do indivduo, mas do social, sedimentadas no longo decorrer da existncia. As representaes coletivas funcionam como elemento
de correspondncia entre a experincia do indivduo e a dos
grupos; constituem a esfera de confluncia dos valores, das
crenas, dos modelos de comportamento, interiorizadas no
longo percurso secular da durao.314
A base social/coletiva da memria constitui-se na famlia, nas classes, nos grupos de referncia (escola, empresa,
partido, etnia, raa, nao...), na religio, na tradio, dentre
outras, as quais, institucionalmente, formam o sujeito e auxiliam na determinao de sua viso de mundo.
O sentido social da memria coloca a dimenso do tempo na lembrana: o tempo presente. Nesse sentido, as noes
de refazer, reconstituir, repensar fazem, em grande parte,
excluir a identidade entre imagens de um tempo e de outro.
Ver a crtica de M. BLOCH concepo de tempo em Halbwachs quando do
aparecimento do livro Les cadres sociaux de la mmoire, em seu livro Histoire
et historiens. Paris: Colin, 1985. Sobre essa questo do tempo, da longa durao, ver BRAUDEL, F. Capitalismo e civilt materiale. I, Torino: Einaudi,
1977. Nesse livro, Braudel faz um inventrio da vida cotidiana de populaes
do passado (Sc. XVI-XVIII), dos elementos do imaginrio, das necessidades
concretas e dos objetos de sua satisfao: a comida, o corpo, o convvio e a dependncia de animais, seus significados, dentre outros. O autor refletiu sobre
a imobilidade do tempo e a temporalidade da natureza. Para o autor, o papel
do imaginrio cotidiano era fundamental para manter essa imutabilidade do
tempo; diz que, com efeito, no estamos, nesse caso, s no mbito das coisas,
mas, sim, no das coisas e das palavras, entendendo esse ltimo termo alm de
seu sentido ordinrio. Trata-se de linguagem, com tudo o que disso o homem
carrega, insinua, rendendo-se inconscientemente prisioneiro frente ao seu
prato de arroz ou ao pedao de po cotidiano. Joga com tudo isso a civilizao.
Estranho conjunto de bens, de smbolos, de iluses, de fantasia, de esquemas
intelectuais. Enfim, at no mais profundo da vida material se instaura uma
ordem de tendncias, de presses insconscientes da economia, da sociedade e
de civilizao (p. 249).

314

172

Joo Carlos Tedesco

O elemento socializador da memria a linguagem, suas representaes, sua temporalidade, suas convenes, suas diferenciaes em termos de significados e smbolos. H uma
(re)construo social da memria, a qual implica filtragem,
enquadramentos e convencionalizao.315
Halbwachs diz que as convenes verbais constituem o
quadro mais estvel e mais elementar da memria coletiva;
as recordaes se fazem cada vez mais de palavras, ou melhor, de vrios fragmentos da memria que vm silenciados e
que so relacionados ao mundo da fala.316 A categoria sociocultural da linguagem e a representao do tempo e do espao
so formas a priori nas quais os contedos das memrias individuais se depositam. por isso que os limites da linguagem
denotam os limites do mundo, da compreenso e na expresso
dos indivduos. Atravs da linguagem possvel estabelecer
relaes com o mundo, possvel comunicar experincias,
fundar tradies comuns, subjetivar experincias, intercambiar e se apropriar de smbolos e de memrias coletivas.
A pessoa recebe do passado no s dados da histria escrita; mergulha suas razes na histria vivida, sobrevivida
das pessoas. A verdadeira socializao se d no concreto, no
cotidiano, no interior; h correntes do passado que s desaparecem na aparncia e que podem reviver numa rua, numa
sala, em certas pessoas, no jeito de falar, na alimentao etc.;
so resqucios de outras pocas, fragmentos do tempo.317
A memria, sem o trabalho de reflexo e de localizao,
seria uma imagem fugidia; o sentimento precisa acompanh
-la para que ela no seja uma repetio do estado antigo, mas
A noo de convencionalizao permite-nos entender os mecanismos de
adaptao da memria e sua linguagem em relao ao universo cultural e
ideolgico em questo. uma espcie de modelagem no ato de transferncia
de uma situao evocada para os que a evocam. Ver Bosi, op. cit.
316
HALBWACHS, M. A memria coletiva, p. 114.
317
BOSI, E., op. cit.
315

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

173

uma reapario. A memria concentra-se mais em pontos em


que a significao da vida se concentra (s realmente fica o
que significa); h tempos vazios (tempo de trabalho para muitos), tempos sociais que absorvem tempos individuais, formas
heterogneas de viver e conceber o tempo; no meu tempo,
como diziam muitos dos nossos idosos entrevistados (tempo
de realizao de seu saber e de sua implicao no real), a
poca que pertence aos homens mais jovens que nela se realizam por suas atividades.
Enfim, a funo social da memria seria a de lembrar, a
de ser memria da famlia, do grupo, da instituio, da sociedade. A memria coletiva de determinado grupo uma memria estruturada, a qual possui hierarquia e classificao (diz
o que comum a um grupo e o que o diferencia), bem como
as fronteiras socioculturais que articulam os sentimentos de
pertencimento. Sendo o homem um ser social, sua memria
s pode ter sentido no quadro coletivo. A relatividade da memria ser condizente com os quadros sociais e temporais que
o indivduo viver em sociedade. Os mediadores so bens simblicos, assim como os objetos que representam status elevado na hierarquia social, objetos transferveis de uma gerao
para outra (sobrenome e heranas). Esses elementos do a
ideia de um tempo cclico (pensar na relao dos avs com os
netos, relao essa de continuidade, de desejo de deixar presa
sua presena, de serem testemunhos de existncia de pessoas, de lugares, de paisagens, de (situ)aes de pertencimento,
de emblemas quase sagrados, enfim, fragmentos do tempo, de
linguagens dos sentidos e de emoes).

174

Joo Carlos Tedesco

O entourage sociale e a dependncia da


memria individual
O estudo da memria nos ensina que todas as
fontes histricas esto desde o princpio banhadas de subjetividade.
J. Vansina

No que se refere memria coletiva, Halbwachs diz que


exprime, em vez de um conhecimento positivo do passado,
uma mediao entre os contedos do passado disponveis e as
necessidades ideais dos grupos.318 Nesse sentido, a memria
diferencia-se da histria.
Se, de fato, enquanto projeto consciente de conhecimento do passado, a memria no pode fazer menos de que adequar-se ao problema
da objetividade dos fatos histricos e de sua cronologia. No entanto,
a memria no est tanto interessada no conhecimento e, sim, na
prtica. Do passado no conserva imagens fiis, mas imagens que
servem ao presente e so significativas para continuidade da vida
de um grupo. Se a histria a interpretao dos eventos passados
que se coloca em algum modo sempre do externo, de um ponto de
vista que concebido como presente prprio, enquanto distinto do
passado, a memria , ao contrrio, a continuidade do passado num
presente que dura. Nessa continuidade, as imagens do passado
so constantemente remodeladas e selecionadas de novo com as
exigncias de adequao s necessidades do hoje.319

Para Halbwachs, a memria coletiva no estanque, nem


pura ou isenta de interesses. Numa sociedade estratificada
que luta por espaos, a memria no passa margem disso
tudo. O campo da memria um espao de conflito/tenso de
estratificao, de fragmentos diversos de memria, de traos
ocultos, de testemunhos, os quais sobrevivem em imagens do
Essa obra foi publicada em 1950 como obra pstuma, aps o autor ter escrito,
em 1941, Topografie lgendaire des Evangelis en Terre Sainte, no qual havia
recolhido anlises empricas que alimentariam a tese da memria coletiva.
319
LE GOFF, J., op. cit., p. 212.
318

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

175

passado. Essas se apresentam num jogo, cuja legitimao est


em sua capacidade de justificar a ordem das coisas presentes
da legitimidade e a tradio, que almejam presentificar no futuro. por isso que a memria coletiva manifesta um conjunto
de representaes do passado que permanecem conservadas e
transmitidas entre seus membros, pela sua funo prtica de
integrao.
Que se trate de sua famlia ou de sua igreja, de seu partido ou da
minoria tnica a qual pertence, o indivduo est imbudo do afeto e
dos interesses que o ligam a qualquer um desses grupos a compartilhar lembranas, a forjar interpretaes comuns, a compartilhar
o sentido daquilo que memorvel.320

Apesar de sua complexidade e ambiguidade, a memria


social apresentada pelo autor como um resduo de memria
coletiva, como uma lembrana de memria coletiva dispersa
na mente de quem, no passado, havia feito parte do grupo.
uma memria na sociedade sem o suporte de algum grupo.
Halbwachs claro ao afirmar que, em todo o pano de fundo
de sua anlise, a memria individual depende do entourage
sociale. Este ambiente caracterizado pela sua lngua. [...],
o aspecto da gente e os lugares, os costumes, aquilo que
familiar.321 Porm, a memria social tambm, como mbito
material e espiritual, condiciona o indivduo. a memria
dos outros em geral que nos circunda e que conserva nossas
lembranas. Ns completamos as nossas lembranas, ajudando-nos, ao menos em parte, com o mximo dos outros. A
memria social aquela de um ambiente geral da linguagem,
a forma e o esquema geral do tempo e do espao.322
Em termos de influncia sobre e no indivduo, a memria
social est num nvel mais baixo do que a memria coletiva;
JEDLOWSKI, P., op. cit. p. 51.
HALBWACHS, M. Les cadres..., p. XV.
322
HALBWACHS, M. Les cadres..., p. 23.
320
321

176

Joo Carlos Tedesco

uma memria imediata, no estruturada, porm necessria para a construo da lembrana histrica, da tradio,
do pensamento e do significado moral. A memria coletiva
normativa, possui um efeito moral na sociedade e no grupo;
a memria do dom, do emprstimo, da dvida que deve ser
paga; a memria social uma obrigao tcnica, no portadora de moralidade.323
Passerini enfatiza que existir sempre uma separao
maior entre a estrutura da memria coletiva evidenciada com
a expanso das recorrncias memria individual. No obstante, Halbwachs claro nos Les cadres... ao dizer que h
um anel que liga, que permite a busca da memria, ou seja,
sem a base comum do grupo, ou, no limite, da espcie, no se
desenvolve a memria individual. Segundo o autor, sem a memria individual, no possvel a compreenso da intersubjetividade, da empatia, consequentemente, da transmisso e
da tradio.
Passerini insiste na ideia de que o historiador no poder indagar sobre o papel do indivduo na histria sem ter
presente, de uma maneira ou de outra, o modo das agregaes
sociais, ainda que no plano da subjetividade.
A reorganizao da memria coletiva de que falava Halbwachs,
, em ltima anlise, trabalho de individuao. Os contributos da
individualidade vo cercados, no tanto na matria da lembrana,
mas no modo no qual reinventa a prpria posio na histria e a
relao entre indivduos e os outros. Do ponto de vista da pesquisa
histrica, interessa-nos os pontos de encontro e de frico entre as
duas formas de memria, ou melhor, entre os aspectos diversos de
uma mesma memria. Esperamos que as reflexes e o acmulo
de trabalhos cientficos sobre a memria coletiva tenham aberto o
caminho sobre a memria individual.324

NAMER, G. Laffectivit du temps de la mmoire. In: L Homme et la socit.


Paris: LHarmattan, 1989.
324
PASSERINI, op. cit., 2001. p. 264.
323

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

177

A memria social dinamiza e/ou traz presentes os chamados subterrneos da memria. A histria e a memria
oral so duas dinmicas que provocam e resgatam os conflitos da memria, retomando o silncio, remexendo feridas, denncias, as zonas de sombra e os resduos.325 As memrias
subterrneas fazem seu trabalho de subverso no/do silncio
muito calmamente. Os momentos de crise, de exacerbao
do estigma, de alteraes temporais, so frteis para romper
com as zonas de silncio, com as fronteiras entre o dizvel e o
indizvel.326
Nesse sentido que se revela a importncia de analisar
os ressentimentos e ufanismos de memria como representantes de quadros sociais, culturais, tnicos, polticos. Alguns
autores dizem que impossvel memria escapar contemporaneamente dos procedimentos histricos. Esse movimento
inexorvel e sem volta; toda memria, atualmente, uma
memria exilada, que busca refgio na histria; restam-lhe,
assim, os lugares de memria.
Muitas tradies so inventadas; fazem parte dos processos de ritualizao e formalizao de prticas polticas
na sociedade moderna; fundamentam-se numa releitura de
fragmentos culturais de longa durao; direcionam-se para
smbolos, festejos, celebraes que lhe do visibilidade; exerceram grande influncia na vida da nao, revestindo-se de
forte carga emotiva, de sinais de identidade, de soberania nacional. As tradies inventadas recriaram e transformaram
a histria da nao, instituindo saberes e memria a partir
dos quais se selecionaram, se institucionalizaram e se propagaram rituais, prticas e representaes que conformaram a
constituio subjetiva da nacionalidade.327
Ver TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de memria.
Ver BOSI, op. cit.
327
Ver HOBSBAWM, E.; RANGER, J. T. A inveno das tradies...
325
326

178

Joo Carlos Tedesco

A histria fornece o alimento para o enquadramento ou


no da memria, por meio de interpretaes, de coerncias
discursivas, de ordenao de fatos, construindo mitos, figuras
centrais, referncias culturais. Ao que nos parece, o objetivo
dar, mesmo em meio s tenses de memria, um sentido ou
no de perenidade, de cristalizao e de continuidade. Nesse
sentido, os ritos e sua simbologia, so fundamentais; o famoso non dimenticare, muito presente em rituais de lembrana
pblica poltica, possui uma carga histrico-simblica muito
forte e uma eficcia pedaggico-social.

Contratualidade cultural e histrico-social


Halbwachs faz sempre referncia alteridade, presena do eu sob o olhar do outro.
Veremos que, na maior parte dos casos, ns fazemos recurso a
nossa memria s para responder s perguntas que nos so feitas
pelos outros, que suponhamos que esses poderiam nos fazer [...],
colocamo-nos em seus pontos de vista, considerando-nos como
integrantes de um ou mais grupos como eles.328

Esto sempre presentes o recurso lingustico e o elemento social na lembrana. Na maior parte dos casos, se eu lembro alguma coisa, porque os outros me incitam a lembrar;
a memria dos outros que vem em socorro da minha; a
minha que se apoia na deles.329 por isso que a viso do
coletivo, do outro, da experincia coletiva constitui, para Halbwachs, aquilo que se convencionou chamar de comunidade
do olhar.330
HALBWACS, M. A memria coletiva. p. 16.
Idem., p. 26.
330
NISIO, F. V. Comunit dello sguardo: la sociologia ethica di Maurice Halbwachs. Rassegna Italiana di Sociologia, a. XLI, n. 3, lug./set., 2000. p. 323-360.
Sobre o pensamento de Halbwachs, ver, tambm, AMIOT, M. Le systme de
328
329

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

179

Reconhecimento, localizao, sentimento de familiaridade comum e social, linguagem, imagem, percepo, experincia, proximidade fsica e de pensamento so elementos constantes na anlise dos quadros de memria em Halbwachs.331
Pertencer d ideia de uma ressonncia moral, de vizinhana,
de compartilhar do mesmo sangue, do mesmo espao, de uma
contratualidade cultural e simblica, acima de tudo, de cooperao solidria, afetiva e parental, memria e identidade
coletiva, genealgica (parentesco, biografia e consanguinidade), poltica (Estados nacionais atravs da lngua, da origem,
da cultura...).
A ideia de pertencimento carrega consigo a necessidade de ancorar o grupo/comunidade a algo que d garantia de
continuidade, de eternidade tanto para o futuro quanto para
o passado, ainda que esse processo possua uma base histrico-temporal de curta durao e uma tradio no de base
comum. O pertencer pode se dar pela simples identificao
identitria, cultural, imaginria e sua temporalidade altera-se, renova-se e entrecruza-se, porm h sempre interao
de uma situao de contemporaneidade (no caso em questo, ser idoso, ser descendente de italiano, falar o dialeto, enfrentar os mesmos desafios culturais e fsicos, migrar sem
nada, trouxemos de l muito do que temos aqui). por isso
que sentir-se pertencendo carrega uma simbologia que une
indivduo a uma totalidade histrico-cultural e temporal. Os
nomes, por exemplo, associam-se a tradies, a moralidades,
ao elemento continuidade. O nome, o bom nome da famlia,
uma categoria totalizante que desafia a linearidade do tempo, assim como o a famlia. Ambos desafiam o limite de vida
de seus membros constituintes.332 Diz Halbwachs que
pense de Maurice Halbwachs. Revue de Synthse, v. 2, n. 6, 1992.
HALBWACHS, M. Les cadres...
332
Ver uma excelente anlise sobre isso em LINS de BARROS, M. M. Autoridade
e afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
331

180

Joo Carlos Tedesco

nada d melhor a ideias desse gnero de lembranas que os nomes, que


no so nem noes gerais, nem imagens individuais, e que entretanto
designam, ao mesmo tempo, uma relao de parentesco, e uma pessoa.
Os nomes se assemelham aos sobrenomes dos quais a gente se serve
para representar os objetos no que eles supem um acordo entre membros do grupo [...]. Eu sinto, ento, que me ser suficiente pronunciar
este nome em presena de outros parentes para que cada um deles
saiba do que eu falo, e se prepare em comunicar tudo o que ele sabe a
esse respeito. Importa pouco, alis, que eu no proceda efetivamente
a esta sondagem: o essencial que eu saiba que ela possvel, ou seja,
que eu fique em contanto com os membros da minha famlia [...]. H,
pois, bem atrs do nome, as imagens que seriam possveis, em certas
condies de faz-las reaparecer, mas esta possibilidade resulta da
existncia de nosso grupo, de sua persistncia e de sua integridade.333

Natureza e cultura imbricam-se nesse processo. No


s a memria familiar, a qual, acima de tudo, envolve nomes
e sobrenomes, que conta nesse processo, mas tambm a linguagem (o dialeto, a lngua me), a moradia, o territrio, a
posio social, aspiraes e valores sociais, vises de mundo,
comportamentos, parentesco, etc., disso resultando um condensar de experincias caractersticas de grupos sociais particulares.334 As prprias histrias individuais de vida incorporam as histrias de famlias, e essas so uma forma de memria coletiva.335 As noes de comunidade e de proximidade so
importantes para tornar legtimo o espao da memria.
No interior das cidades, os homens se cruzam e, na maior parte dos
casos, ignoram-se. A massa dos homens que circulam nas estradas
de nossas grandes cidades representa uma sociedade desintegrada
e um pouco mecanizada. As imagens das estradas passam sobre
ns sem deixar traos duradouros, e assim sucede tambm maior
parte das impresses e das lembranas que no se vinculam com a
parte mais importante da nossa vida social. [...]. A nossa vida social
pressupe a existncia de grupos contnuos, com os quais fizemos
ou fazemos sempre presena.336
HALBWACHS, M. Les cadres. p. 165-166.
THOMPSON, P. A transmisso cultural entre geraes dentro das famlias:
uma abordagem centrada em histrias de vida. Cincias Sociais Hoje, Anpocs/Hucitec, 1993. p. 9-19; ver, tambm, do mesmo autor, A voz do passado:
histria oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
335
LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memria, trajetria e projeto de
vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.
336
LINS DE BARROS, op. cit., p. 139.
333
334

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

181

Os ditos quadros de referncia, em Halbwachs, fornecem comunicabilidade s recordaes, so expresso da sobrevivncia de grupos sociais que constituem na vida cotidiana os pontos de referncia familiares para o sujeito. Todavia,
possam tornar objeto de reflexo consciente, na medida em
que o indivduo se encontra de frente a situaes que colocam
em discusso o seu pertencimento ao grupo ou a sobrevivncia do grupo mesmo.337
Os quadros sociais da memria agem no indivduo por
meio de uma estrutura de plausibilidade, a qual permite definir a veracidade do que se retm, do que pode e deve permanecer na memria; atuam ao nvel da estrutura cognitiva que
o indivduo intercambia com os grupos nos quais vive. desse
modo que a identidade do indivduo produzida junto com a
sua memria com aquela dos outros.
Os quadros da memria, em Halbwachs, so dotados de
uma forte normatividade, so modelares, exemplares, encorajamentos e advertncia, so uma cadeia de ideais e de juzos
que fornecem indicaes acerca do presente e do futuro.
Mas os quadros da memria coletiva possuem uma outra importante
caracterstica: no so nunca, por definio, annimos, vivificam
nomes, vultos, histrias, aos quais estamos intimamente ligados,
que suscitam em ns sentimentos e emoes inconfundveis, transmitem vividos e testemunhos de experincia.338

Os quadros coletivos da memria funcionam como filtros


que selecionam os aspectos do passado que o grupo deve recordar para poder manter viva no presente a prpria identidade.
A memria coletiva importante para manter a integridade e a sobrevivncia do grupo no tempo. Desse modo, a
memria coletiva caracterizada por um intenso componente
RAMPAZI, M. Memria e biografia. In:_______, op. cit., p. 140.
LECCARDI, C. Memoria collettiva e gratitudine. In: JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 73.

337
338

182

Joo Carlos Tedesco

afetivo, que nasce da estreita interao e do seu consequente intercmbio de experincias entre os membros do grupo.
Desse modo, fortalece-se o carter normativo da memria339
e reduz-se a potencialidade do indivduo na determinao da
lembrana. Diz Halbwachs que, de resto, ainda que eu no
caminhasse ao lado, bastaria que eu tivesse lido as descries da cidade, ou, ainda mais simplesmente, que estudasse
o mapa da cidade.340

O encontro/desencontro entre memria


social e coletiva341
Criticando a viso de Halbwachs no sentido da dependncia do indivduo ao seu habitus social, Fentres e Wickham342
dizem que o autor concedeu um destaque talvez excessivo
natureza coletiva da conscincia social e um relativo desprezo
questo do relacionamento entre a conscincia individual e
as coletividades que esses indivduos efetivamente constituram. Muitas crticas ao autor brotam nesse sentido.
Na viso desses autores, Halbwachs teria feito do indivduo uma espcie de autmato condicionado e obediente
vontade coletiva interiorizada. Nesse sentido, os autores referem que recordar no apenas recordar conhecimento, mas
tambm sensaes. A memria, com efeito, penetra em todos
os aspectos da nossa vida mental, dos mais abstratos e cognitivos aos mais fsicos e inconscientes. A memria est sempre
operante em nosso esprito, o que significa que devemos situar os grupos em relao s suas prprias tradies, descobrir
LECCARDI, op. cit., p. 74.
HALBWACHS, M. La memoria collettiva. Milano: Unicopoli, 1987. p. 3.
341
Aprofundamos melhor esse item em nosso livro Memria e cultura.
342
FENTRES, J.; WICKHAM, C. Memria social: novas perspectivas sobre o
passado. Lisboa: Teorema, 1994.
339
340

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

183

como interpretam os seus prprios fantasmas e como os utilizam no sentido de servir de fonte para o conhecimento.343
Para Halbwachs, em Les cadres..., a origem social da memria deve-se ao esforo de compreender a forma atual das
circunstncias das lembranas (um presente impessoal e em
exterioridade) em direo a um passado pessoal que reconstitudo antes de se deixar reviver. Quando ns nos lembramos, ns partimos do presente, de um sistema de ideias gerais que est sempre nossa disposio.344 A nossa memria
tem tambm origem social pelo fato de que todas as recordaes, mesmo aqueles sentimentos no expressos, esto em
relao com todo um conjunto de noes que nos precedem.
Desse modo, pertinente dizer que nossa memria individual
social porque utiliza noes que esto presentes nos grupos atuais e nos passados de nossa existncia. Da que toda a
lembrana est em relao com a vida material e moral das
sociedades, as quais ns fazemos ou fizemos parte.345 Para o
autor, nossa memria possui tambm uma origem social devido ao fato de nos recolocar numa totalizao de um grande
nmero de memrias coletivas, sem ter capacidade de reflexo, de compreenso, como o caso dos sonhos, da linguagem, da noo de espao e tempo sem definio, porm com
sentimento de pertencimento e como manifestao de que a
sociedade se faz sentir tambm de outras formas.346
Nessa interpretao, possvel dizer que a nossa memria social uma virtualidade de memria coletiva devida ainda ao fato de que o que resta de uma ou muitas memrias
coletivas passadas quando a coeso e a presso do grupo desapareceram, pois entendemos que a experincia se perde na


345

346

343
344

Id. ibid., p. 42.


HALBWACHS, M. Les cadres... p. 25.
Idem, p. 38.
NAMER, G. Mmoire et socit. p. 23.

184

Joo Carlos Tedesco

falta de contato, pela impossibilidade de nossa capacidade de


compreender o ponto de vista do outro e da sociedade (como
memria e inteligncia impessoal, simbolismo convencional,
de refrencia local da recordao), de refletir, de usar a inteligncia e os sistemas de ideias que nos rodeiam, das significaes sociais. A noo de dilogo fundamental na ideia de
memria em Halbwachs, para quem so os outros que, frequentemente, nos incitam a relembrar. O entorno, o meio, o
engajamento, as condies objetivas so fundamentais e dialgicos na construo e reconstruo da memria individual.
desse dilogo que se produzem/reproduzem costumes,
tradies, representaes, smbolos coletivos, mentalidades, o
popular, a identificao entre pensamento coletivo e memria
coletiva (grupo). So esses elementos os mecanismos mentais
e materiais dos quais se servem os indivduos e grupos para
se recordar. Os quadros coletivos da memria [...] so [...] os
instrumentos de que a memria coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que se correlaciona a cada poca
com os pensamentos dominantes da sociedade.347
Conceptualizar e recontextualizar tornam-se uma necessidade para a memria social. Mitos, genealogias, contos populares,
tradio oral so manifestaes de criaes de contextualizaes.
H necessidade histrica de recontextualizaes como processo
geral da memria social para ganhar significados mais amplos. A
prpria tradio articulada e necessita de um significado apropriado ao contexto. Autores mencionam que essa necessidade de
reinterpretao est no seio da prpria tradio.348 Fazer histria da memria social tambm construir uma histria de
sua transmisso, dos processos que conduzem, no tempo, o
relembrar. possvel, ento, perceber o pragmatismo de certas tradies e/ou tradues (pensar em Hobsbawm no seu A
HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.
HALBWACHS, op. cit., p. 109.

347
348

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

185

inveno das tradies) e sua utilizao presente para certos


grupos.
H autores que defendem as prticas interativas dos indivduos, que, ao mesmo tempo em que modificam, fazem uso
das estruturas sociais. Da a noo de dualidade de estrutura
de Giddens, da circularidade dialtica em Ginzburg, da interao dialgica de Habermas, do habitus em Bourdieu e da
conscincia em Thompson. Para alguns autores,349 a criatividade social exercida por meio de interaes variavelmente
descentradas, incluindo redes de amizade, famlias, organizaes, movimentos sociais, naes e civilizaes. A relao
entre indivduo e memria algo polmico.
A memria social, como vimos, responsvel pela estruturao dos sistemas sociais, ou seja, pelo estabelecimento
e manuteno de padres interativos (tradio) e institucionais, subjazendo tambm a operaes tcnicas e cientficas;
inclui reminiscncias, atitudes e sentimentos, regras sociais
e normas, padres cognitivos, assumindo formas ideais e materiais que se encontram concretamente imbricadas e que podem ser separadas apenas analiticamente. A memria social
prov os padres para a estruturao do imaginrio, isto ,
para a dimenso expressiva, cognitiva e normativa da vida
social, para o desenvolvimento das relaes sociais e para o
intercmbio material dos sistemas sociais com a natureza.
Fornece tambm os padres para a estruturao de sua dimenso espaciotemporal, sua configurao (coeso mais demarcao) e ritmos (de reproduo e mudana).350 Com isso,
no significa dizer que a memria social seja homognea em
sua construo, distribuio e demanda.

DOMINGUES, J. M. Sociologia da cultura, memria e criatividade social.


Dados, Rio de Janeiro, n. 2, 1999. p. 303-339.
350
Idem, p. 308.
349

186

Joo Carlos Tedesco

Nossos estoques de conhecimento so diferenciados; cada indivduo tem graus variados de claridade, distino e preciso que
surgem dos sistemas de relevncia determinados por sua biografia.
Por isso a importncia em levar em conta os atores individuais e
subjetividades coletivas variavelmente descentradas, ou melhor,
levar em conta criatividades sociais.351

O grupo social reconstri as lembranas, tornando-as fenmenos sociais. Da a importncia de o pesquisador conhecer
os smbolos e suas significaes no tempo, seu intercmbio e a
forma como construda a dimenso social das memrias individuais. A relatividade da memria ser condizente com os
quadros sociais e temporais que o indivduo viver em sociedade, os quais, segundo ele, no so poucos; esto presentes
em todas as fases da vida, algumas mais intensas (famlia,
religio, para muitos, as classes), outras menos marcantes.
Halbwachs diz que, no desenvolvimento contnuo da memria coletiva, no h linhas de separao nitidamente traadas, como na histria, mas somente limites irregulares e
incertos. A memria de uma sociedade estende-se at onde
pode, quer dizer, at onde atinge a memria dos grupos dos
quais ela composta. Para o autor, h muitas memrias coletivas, porm no pode haver muitas histrias. No fundo,
a ideia de que a memria coletiva o grupo visto de dentro.
A histria examina os grupos de fora e abrange uma durao
bastante longa. A memria coletiva apresenta ao grupo um
quadro de si mesmo que, sem dvida, se desenrola no tempo,
j que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele
se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas.57 Na
concepo de Halbwachs possvel ligar modernidade e tradio na esfera do cotidiano, do horizonte do vivido.

DOMINGUES, op. cit., p. 329.

351

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

187

O passado deixou muitos traos [...], se percebe tambm na expresso


dos rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e
de sentir inconscientemente conservados e reproduzidos por tais
pessoas e dentro de tais ambientes, nem nos apercebemos disto,
geralmente. Mas basta que a ateno se volte para esse lado para
que nos apercebamos que os costumes modernos repousam sobre
antigas camadas que afloram em mais de um lugar. Algumas vezes,
preciso ir muito longe para descobrir ilhas de passado conservadas,
parece, tais e quais, de tal modo que nos sentssemos subitamente
transportados a cinquenta ou sessenta anos atrs.352

Nesse sentido, Halbwachs claro ao analisar o fato de


que quem faz o tempo da memria coletiva o grupo. Tal
questo acaba relativizando o tempo e o limite de vida memria, pois, se o grupo acabar, acaba a memria. Por isso, a
importncia da formao e do desenvolvimento da identidade do grupo, de sua memria comum e de seus traos fundamentais, bem como de seus vnculos e ritos tradicionais.
Isso leva a que mudanas sociais no sejam sinnimas pura e
simplesmente de causa de desintegrao. Os mediadores so
fundamentais; so elos vivos entre geraes so mensageiros da historicizao (famlia, festas de famlia, escola, Igreja,
grupos culturais, retratos, figuras antigas, patriarcas, genealogia, compadrio, sobrenome, consanguinidade etc.).
Os mediadores atuam como bens simblicos, assim como
os objetos que representam status elevado na hierarquia social
so objetos transferveis de uma gerao para outra. O trabalho da memria , ento, ao mesmo tempo, de reconstruo e
de esquecimento; tudo vai depender da temporalidade de memria (do grupo particular). Nesse horizonte do esquecimento
e da reconstruo grupal da memria, apresentam-se conflitos
de memria e conflitos no trabalho da hierarquizao e legitimao das memrias. A entra a importncia do simblico (religioso, histrico, social...) na determinao de memria domi DOMINGUES, op. cit., p. 68.

352

188

Joo Carlos Tedesco

nantes/dominadas, de memrias (re)inseridas e expulsas, da


valorizao e desvalorizao de memria (seu contedo moral,
temporal, de sua aptido...). O autor deixa clara a necessidade
social e psquica de uma comunidade afetiva.
Para que nossa memria se auxilie com a dos outros, no basta que
eles nos tragam seus depoimentos: necessrio ainda que ela no
tenha cessado de concordar com suas memrias e que haja muitos
pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrana
que nos recordam possa ser reconstruda sobre um fundamento
comum. No suficiente reconstituir pea por pea a imagem de
um acontecimento do passado para se obter uma lembrana.
necessrio que esta reconstruo se opere a partir de dados ou de
noes comuns que se encontram tanto no nosso esprito como no
dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele
reciprocamente, o que s possvel se fizeram e continuam a fazer
parte de uma mesma sociedade.353

A memria do grupo evolui tambm sob influncia do ambiente. As memrias coletivas metamorfoseiam-se ao adotar
novas ideias e ao habilit-las de novas representaes. No
significa dizer que as memrias coletivas rejeitam totalmente
seu passado; elas o reinterpretam e o reordenam nos quadros
de suas novas noes, enfim, os novos quadros coletivos devem se adaptar s novas condies de existncia.354
A memria um fenmeno social, possui um carter social,
uma linguagem coletiva e uma comunho de noes que compartilhamos com os participantes do grupo social.355 Existem
quadros sociais que servem de ponto de referncia, os quais
possuem uma localizao espacial e temporal, o que propicia
a localizao da memria num espao social. A famlia a
grande expresso desses quadros sociais, como veremos melhor a seguir.
HALBWACHS, M. A memria coletiva. p. 34.
COENEN-HUTHER, J. La mmoire familiale: un travail de reconstruction
du pass. Paris: LHarmattan, 1994. p. 16.
355
LINS DE BARROS, M. M. Memria e famlia. Estudos Avanados, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 29-42.
353
354

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

189

Memria e o quadro familiar


s preocupaes familiares se mescla a maior
parte das nossas preocupaes.
Halbwachs

Na base do grupo familiar existe um fondo comune de


memria, por meio do qual se manifesta a atitude geral do
grupo e da qual derivam os seus tratos distintos.356 por
isso que a memria familiar expressa regramento, exemplo
e modelao, assim como debilidade grupal. No obstante,
o espao por excelncia da tradio. Em virtude da forte dimenso afetiva, de gratido e da fidelidade que a alimenta,
a memria familiar garante integrao, continuidade e sobrevivncia do grupo no tempo. A memria familiar garante
aos membros mais jovens um importante recurso para a sua
definio.
Guia para o futuro bem como lio sobre o passado, a histria de
vida que a memria familiar transmite, torna-se um escudo protetivo para os jovens, obrigados a confrontar-se com um futuro vago,
seja contra o desconhecimento, seja contra os eventuais acidentes
de percurso na luta pelo identificao.357

O passado, os fatos singulares, o pensamento comum fortalecem e ritualizam a esfera social e particular da famlia.
No dizer de Halbwachs, a memria da famlia, ainda que se
transforme, retm, em grande parte, algo que comum, algo
do grupo.
O que se transforma na memria da famlia? [...]. Do momento em
que ela encara do ponto de vista dos outros, assim como do seu,
os acontecimentos bastante notveis para que ela os retenha e os
reproduza frequentemente, ela os traduz em termos gerais [...]. Mas
ns o temos dito, o quadro da memria familiar feito de noes,
HALBWACHS, M. La memoria collettiva, p. 151.
LECCARDI, C., op. cit., p. 86.

356
357

190

Joo Carlos Tedesco

noes de pessoas e noes singulares e histricas [...], mas que tm,


alm, disso, todos os caracteres de pensamento comum a todo um
grupo, e mesmo a vrios.358

A passagem da memria individual para a coletiva se d


nesse horizonte da experincia do vivido de exterioridade, de
anterioridade e de superioridade. A memria coletiva familiar
um exemplo disso.
De qualquer maneira, quando a gente entra em uma famlia [...].
fazemos parte de um grupo onde no so nossos sentimentos pessoais, mas as regras e costumes que no dependem de ns, que
existiam antes de ns, que fixam nosso lugar.359

A memria coletiva possui mecanismos mediadores. No


caso especfico da memria coletiva da famlia do colono, to
evidenciada por idosos, a funo do sobrenome e da parentela
promove a ao mediadora. A reiterao comemorativa, os ritmos cclicos das histrias sagradas do a noo mediadora da
eternidade da memria religiosa. Ambas as tipologias de memria coletiva apresentam seus mediadores, seus notveis,
seus guardies, seus interlocutores, quem melhor propiciam
seus contatos.
Halbwachs analisa de modo especial o papel dos velhos.
Diz ele que o velho no
[...] se contenta em esperar passivamente que as lembranas se
despertem: ele busca precis-las [...]. As sociedades, ao atribuir aos
velhos a funo de conservar os traos de seu passado, os encoraja,
estimula a empregar tudo o que lhe resta de energia espiritual a
lembrar-se.360

O fato de existirem notveis e/ou mediadores porque


existe a possibilidade da mudana, do esquecimento, da
transgresso, do multifacelamento dos quadros de memria.
HALBWACHS, M. La memoria collettiva... p. 177.
HALBWACHS, op. cit., p. 147.
360
Id. ibid., p. 107.
358
359

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

191

A memria precisa ser trabalhada. A construo da reconstruo parte inerente na memria coletiva. O autor utiliza
com propriedade o exemplo da releitura de um antigo livro de
infncia para mostrar a esfera da mudana dos quadros de
memria e suas noes coletivas de referncias das experincias vividas.
Segundo Halbwachs, no seio do grupo familiar que poder preponderar certa complementaridade entre lembrana
coletiva e individual. graas a esta memria que o grupo
familiar pode sobreviver coeso no curso do tempo e no obstante as mudanas que o cercam, no acabar o sentimento da
prpria unidade.361 Habitam na famlia o carter afetivo, a
capacidade de coeso, o senso de cumplicidade, o comum patrimnio dos segredos, a normatividade da memria, o compromisso, a continuidade entre geraes.362 Isso tudo ficou
bem visvel para ns nas entrevistas que fizemos com idosos.
Pareceu-nos que, para eles, as famlias perdem o sentido econmico e ganham um sentido de ncleo afetivo, de parentesco,
de aproximao, de consanguinidade, de valorizao dos quadros de compadrio. Talvez esse processo todo se d em razo
das grandes perdas desses referenciais vividos no tempo e da
necessidade dos idosos de se afirmar pblica e grupalmente
retomando e reconstituindo esses horizontes.
por isso que a memria familiar, enquanto quadro, d
garantia de uma memria de identidade, de valor grupal, de
uma lgica genealgica, de um tempo vivido em grupo, de
imagem de uma afetividade particular e normativa, de uma
propriedade psquica, simblica e moral inerente ao grupo.
A memria familiar compe um quadro que ela tende a conservar
intacto, a qual constitui a armadura tradicional da famlia e a
natureza das noes coletivas que a procuram dominar o curso do
LECCARDI, op. cit., p. 75.
Id. ibid., p. 78.

361
362

192

Joo Carlos Tedesco

tempo. [...]. , ao mesmo tempo, imagem e noo, capacidade de


reconstruir a imagem das pessoas e dos fatos.363

A famlia, como expresso mxima dos quadros de memria, possibilita assegurar lembranas, ordens do tempo
pelas imagens e ordem dos sentidos pelas ideias; propicia a
mediao de imagens vividas em uma sucesso temporal em
relao significao, aos smbolos, s lgicas de sentido. A
famlia possui um poder unificador tanto do quadro quanto
da memria; enfrenta com maior fora o problema da anomia,
da tendncia individualizante, de pluralidade de memrias,
da decomposio e reconstruo social, pelo fato de ser o grupo familiar um vivido histrico, hierrquico, afetivo, simblico, tico, religioso, moral, sexual e de poder diferenciado.364

Espaos e tempos do quadro coletivo


No cansamos de dizer que a memria coletiva est inserida num espao e num tempo. O espao uma realidade
que dura [...].; no h, com efeito, grupo, nem gnero de atividade coletiva, que no tenha relao com um lugar, isto , com
uma parte do espao. Porm, o espao de que Halbwachs fala
no s fsico, mas tambm as imagens, as cores, os smbolos, as formas mentais coletivas e sensveis desse espao. H
tantas maneiras de representar o espao quantos sejam os
grupos.365 A seiva da memria retirada de lugares. A comunidade um lugar privilegiado na produo desse alimento,
uma totalidade estruturada que ganha sentido de uma identidade, mesmo em meio a conflitos e tenses.
HALBWACHS, M. Les cadres... p. 152-153.
Ver NAMER, G., op. cit., 1986; ver, tambm, FARRUGIA, F. La crise du lien
social. Essai de sociologie critique. Paris: LHarmattan, 1993.
365
Id. ibid., p. 136 e 159.
363
364

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

193

comum, junto aos idosos, a referncia ao passado como


recurso lingustico argumentativo e legitimador de algum
tipo de ao, de luta e de confronto. A memria vida, sempre carregada de grupos vivos e, nesse sentido, ela est em
permanente evoluo. Para idosos entrevistados, lembrana,
esquecimento, usos e manipulaes, latncias e revitalizaes
fazem parte da dialtica da memria. Pierre Nora nos diz
que a memria um fenmeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente; a memria emerge de um grupo que ela
une, o que quer dizer que h tantas memrias quantos grupos
existem; que ela , por natureza, mltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada.366
No podemos esquecer que a vida cotidiana est na histria e produz histria. Espaos comunitrios, a famlia, as
ruas, as praas, os viadutos, os monumentos por onde passamos, o lembrar e o esquecer, o mostrar e o esconder, o deixar
vestgios e o jogar fora etc. fazem parte da dialtica do cotidiano. Lembrar, recordar, memorizar nem sempre so possveis, nem sempre so fceis e nem sempre so apreciados; h
momentos que podem causar constrangimentos. Em alguns
momentos, banalizam-se e pragmatizam-se os smbolos, os
objetos materiais, para que no caiam no esquecimento. Produzir imagem de um objeto e histori-lo, dar-lhe significados
coletivizadores no nada fcil, especialmente nos tempos
atuais, quando parece que a ps-modernidade ganha contornos de legitimidade acadmica!
Os lugares e os grupos so objetos de lembrana que originam fluxos de memria e que denotam expresses de identidades sociais do informante. Atravs da memria, tempo e
espao permanecem, so colocados disposio. A mudana
do tempo, do espao e do lugar/local (vivido) carrega e tam Id. ibid., p. 9.

366

194

Joo Carlos Tedesco

bm perde lembranas. A populao pobre tambm no se


deixa deslocar sem resistncia, sem ressentimentos, e mesmo
quando cede, deixa para trs muitos traos de si mesma.367
Os quadros intelectuais, por exemplo, fornecem as informaes histricas e a reconstruo de categorias de inteligncia (o lugar, o nome, a reflexo) para a rememorao. O quadro transforma as lembranas, as quais mudam concomitantemente alterao dos nossos quadros sociais de memria.
A noo de proximidade do tempo, de familiaridade, de vivido,
de impresso, de sucesso do mesmo fato (recorrncia), de estabilidade relativa, de utilidade grupal e efeito social que
vai determinar o nvel e a continuidade da memria social no
horizonte coletivo.

HALBWACHS, M. La memoria... p. 138

367

Captulo 11

Memria e velhice
(fragmentos de empiria)
comum, nas anlises da dimenso biolgica, psquica
e social da memria, a afirmao de que os idosos relembram
mais, tm mais presente em sua lembrana coisas do passado e menos coisas do presente.
As pessoas idosas, se sabe, passam quantidade sempre maior de
tempo falando e pensando no passado. Parece natural que sendo
e/ou sentindo-se excludos do andar das coisas, sua vida se torna
mais gratificante e prazerosa, nos quais os eventos possuam um
impacto mais profundo. Quando o futuro parece pouco promissor,
e o pensar , inevitavelmente, acompanhado da ideia de morte,
os interesses regridem em direo aos anos passados. A pessoa
torna-se incapaz de lembrar eventos recentes e vive sempre mais
em um remoto passado como se uma sombra fosse colada sobre os
eventos recentes.368

J falamos bastante sobre a correlao existente entre recordao e esquecimento. Porm, bom termos presente que
esse processo no meramente biolgico. A dificuldade de situar a recordao de maneira precisa no tempo, de localizar um
ponto de referncia das coisas, o sentir-se distante no tempo
(cronologia extensiva) passado e tambm no do presente conduz a que o esquecimento se intensifique. Contudo, no podemos esquecer a correlao entre memria e esquecimento deliberado (consciente e intencional, externa ou internamente).

LIDZ, 1986, apud COLEMAN, P. Linvecchiamento e i processi della memoria.


Roma: Armando, 2000. p. 22.

368

196

Joo Carlos Tedesco

Para muitas pessoas, ou fatos histricos, fugir do passado


em termos espaciais e de memria ajuda a viver e progredir;
assim como h um desejo de memria, h tambm um dio
pela memria. O esquecimento permite a criao; indispensvel ao presente como o a recordao. Sem esquecimento
no haver futuro. Na ausncia de memria, o esquecimento
define o homem da mesma forma que define a lembrana.369
Diz Valery que a mente s existe graas desordem da memria: Graas a essa desordem, da ruptura da ligao cronolgica, para o homem, so possveis novas disposies.
No campo poltico e no existencial (individual, grupal,
tnico e religioso), assim como a recordao pode ter uma parte de liberdade, o esquecimento tambm. Autores dizem que
muito dificil esquecer aquilo que se desejaria no lembrar
mais. Dizer que no se deseja esquecer algo ou algum significa, na realidade, estar recordando, imprimindo na memria
a imagem do que se pretende esquecer.
No h nada mais que se imprime em nossa memria do que algo
que se queira esquecer. Valery, P. Quaderni. Milano: Adelphi, 1988.
p. 497. Algumas lembranas se tornam ideias fixas e possuem uma
tenacidade corrosiva das doenas incurveis. Uma vez entradas na
alma, a devoram, no a deixam mais livre de pensar em nada, de
tomar gosto por qualquer outra coisa.370

evidente que o recordar no algo automtico e mecnico para ningum, independentemente da idade; requer
capacidade de percepo, de ateno, repetio, associao,
emoo, personalidade, sentimentos, utilidade, capacidade
dos rgos sensitivos, dentre outros aspectos.371 No obstante
a sua temporalidade, temos a convico de que a lembrana,
TADIE, J, I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000. p. 213.
MONTPASSANT, G. apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 215.
371
Uma excelente anlise fenomenolgica sobre a correlao entre tempo e memria est em PROUST, M. Alla ricerca del tempo perduto. Torino: Einaudi,
1981.
369
370

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

197

ao atualizar a memria, faz dessa a representao da vida dos


sujeitos.372
A memria est relacionada aos aspectos que do dinamicidade vida social e pessoal. Lins de Barros373 diz que
se deve falar em reconstruo do passado, no em resgate. A
complexidade da vida urbana, a insero social mltipla do
indivduo em vrias subculturas, as situaes e condies de
classe e gnero apresentam-se nas reconstrues do trajeto de
vida de cada indivduo, que, dependendo de onde fala, define
um cdigo de linguagem da narrativa da memria, determina
o seu lugar social e suas relaes com o grupo domstico.
Nas histrias de vida que tentamos fazer, percebemos
que os relatos se adensam nos momentos em que as pessoas
se recordam das mudanas na trajetria de suas vidas (casamentos, mortes, nascimentos, memria de valores familiares
e de trabalho, seus papis e lugares). Desse modo, no temos
dvida de que so as histrias de vida em geral carregadas
de emoo que melhor ressaltam os contedos sociais da memria familiar, permitindo descobrir as normas e os valores
transmitidos, os lugares de vida e as relaes familiares.
Pela pesquisa de campo, percebemos que as funes paternas/maternas dos idosos, acrescidas da financeira,374 demarcam novas fronteiras funcionais dos idosos na famlia.375
Talvez at justifique a alterao de trajetria: ao invs de
sair, ficar. nessa cumplicidade entre geraes que se estabe LUCENA, op. cit.
LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memria, trajetria e projeto de
vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.
374
No exagero afirmar que, em muitas famlias de colonos por ns visitadas,
a aposentadoria dos idosos a maior receita da unidade, mesmo que gire em
torno de um salrio mnimo. A aposentadoria e/ou penso pela morte de um
dos cnjuges redefiniu relaes de co-presena e obrigaes entre pais, filhos
e netos no agrupamento familiar do colono. O pragmatismo de sua presena
reveste-se tambm para os nonos na perspectiva da autoridade, do poder,
de adotar estratgias para se fazer sentir e valer.
375
Ver nosso livro Memria e cultura...
372
373

198

Joo Carlos Tedesco

lecem utilidades, poderes, autoridades, afeies, invases, intervenes, assumindo papis de socializao. No fundo, o que
est em jogo o lugar da famlia nos novos papis familiares
no meio rural. Lins de Barros diz que so muitos anos de vida
que representam vida vivida, pensada, mudada, projetada
durante anos. Da a ideia mesmo de vivncia no sentido de
conhecer o viver.

A afetividade na memria
Se pode sorrir, se pode sofrer, se pode morrer de
uma recordao.
Moustaki

A vida dos indivduos est em relao contnua com os


objetos; h sempre uma ligao afetiva com esses, a qual pode
ser de atrao, de indiferena ou de repulso. Um fato, um
ser, um objeto que induza uma reao afetiva ter maior probabilidade de memorizao. Os bens simblicos lembrados,
guardados, eternizados e narrados possuem uma dimenso
afetiva muito mais do que seu carter objetal, a qual se manifesta em alegria, ou sofrimento, em felicidade ou tristeza,
muitas vezes, numa dimenso dialtica.
Alguns idosos recordam mais facilmente as situaes de
dor em correspondncia/correlao aos momentos de alegria.
Diz Ribot que uma recordao me torna triste num momento
de felicidade; uma lembrana alegre no me torna, de fato,
feliz em um momento de sofrimento.376
Os sentimentos afetivos de memria expressam-se em
associao dialtica. Tornou-se comum quando comentvamos com os idosos sobre suas boas condies econmicas,
suas facilidades no espao do trabalho na lavoura, o fato de
RIBOT, Th. apud TADIE, J. I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari:
Dedalo, 2000. p. 161.

376

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

199

estarem, para os migrados, descansando na cidade, estar


sempre presente a expresso da negatividade: , mas se tu
soubesse o que trabalhei eu; o quanto sofri!; isso eu guardo
(enxada, arado, serrote etc.) pra mostrar pra eles (netos) o
quanto as coisas hoje so fceis e que, non se tribula mai, no!
A memria afetiva um sentimento, uma impresso e
uma sensao manifesta quando se reinvoca uma recordao.
Intensidade, autenticidade, circunstncias, distines, imaginaes, sentimentos e sensaes expressam as caractersticas
e formas da memria afetiva se recordar.
Em geral, os idosos entrevistados expressam afetividade
romntica em termos de memria de objetos; fazem correlaes temporais com ambientes, tempos e vividos alterados de
bom para pior e vice-versa. Pensamos que a negao do sentimento expresso de memria legtima e justifica o sentido da
recordao (o bem-estar faz referncia ausncia de dinheiro.
Os objetos tcnicos trator, uso de veneno relembram e contrapem o sacrifcio das aes manuais no trabalho).
Essa negao carrega consigo tambm ambiguidades,
ambivalncias e contraditoriedades. A passagem do imaginrio negativo para o positivo (em termos de registro de vividos
e aes na natureza pelo trabalho, pela vida familiar e social)
no significa uma etapa de mera comparao na tica da excluso, da dicotomia, da histria cumulativa. Ao dizer que se
est descansando na cidade, faz-se referncia imagem do
trabalho pesado e contumaz no meio rural, mas, ao mesmo
tempo, reconstituem-se aspectos que esse descansar no preenche, as negatividades que provoca no vivido de idoso. Quando falavam que agora estavam descansando, as formas mais
em evidncia de racionalizao, para muitos idosos, eram: tu
non sabe o quanto trabalhei na vida, quanto tribulato io.
Pareceu-nos que a forma de legitimar o descanso se d pela
sua negao e/ou contraposio. A correlao com tempos e

200

Joo Carlos Tedesco

aes diversos ganha repercusso, na conscincia no idoso, na


perspectiva do sacrifcio redentor de sua situao atual.
A recordao pode carregar consigo a sensao de passado, mas tambm produzir uma lembrana do passado emotivo novo no presente. Entendemos que a rememorao pode
produzir uma emoo presente. O desejo de querer esquecer,
a emoo provada no presente de fatos passados (melancolia,
romantismos, ufanismos, expresses laudatrias, ressentidas, etc., expressam isso!), no mais uma recordao imaginada da sensao que se provou no passado.377
Poderamos fazer agrupamentos de lembranas expressas por idosos na tica de um passado de autodeterminao,
de enfrentamento de circunstncia, no s do trabalho, mas,
tambm, aquelas que limitaram a identidade pessoal e social. Sobretudo as idosas, quando indagadas sobre algumas
estratgias utilizadas para se contrapor, para fazer valer pblica e domesticamente sua importncia, diziam que os espaos eram muito restritos e limitados; ainda que existissem,
segundo elas, no rompiam com o essencial, que a esfera
cultural. Tinham claro que isso tudo fruto de elementos
socializadores a partir da forma patriarcal de organizao
da famlia, da necessidade da maternidade (que, ao mesmo
tempo, libertava e oprimia), expressas tambm nos espaos
previamente definidos do trabalho, o qual contribua para alimentar a trajetria histrica de subservincia. Pareceu-nos
clara a existncia de um discurso de submisso acompanhada
de princpios de estratgias e racionalidades internas, porm
com pouco resultado objetivo, pois, como dizem algumas idosas, pouca importncia elas tinham nos recursos (econmicos)
da famlia.

Apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 174.

377

Captulo 12
Ambiguidade de memria:
o laudatrio, o ufanismo e os ressentimentos
Identidade e memria coletiva so representaes de uma
origem e pertencimento grupal, espacial e, em parte, sanguneo
(dimenso cultural e, muito pouco, biolgica!), lingustico e culturalmente diferente. A dimenso reificada desse processo pode
se dar tanto interna quanto externamente. Esse externo pode
ser manifesto pela exacerbao da diferena, como prpria de
um certo grupo que viveu em determinado tempo e lugar. O processo interno representa a absoro de uma srie de prticas, de
crenas, significados compartilhados e creditados ao grupo, os
quais transcendem o fluxo da histria e da mudana.
Para poder subsistir no tempo, a identidade deve ser transpassada
com os anos e com as geraes. Por quanto possa parecer paradoxal,
as identidades mudam. A identidade muda porque se transformam as
representaes de seu contedo, porm permanece idntico o sentido
de pertencimento, ainda se, num certo momento em diante, se pode
comear a conceber a prpria identidade como diferente daquela dos
outros com os quais se pensava de ter uma identidade comum. Isso
, no muda o sentido ou a necessidade de reconhecer-se como parte
de uma comunidade.378

Nesse processo de naturalizao da identidade tnica, a


memria exerce um papel importante por meio da manifestao de smbolos evocativos de pertencimento (lembrar a simbologia do germanismo na construo da ideologia nazista),
de seleo, de esquecimento, ou melhor, de uma construo
de memria em questo, de representaes que so ativadas
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 154.

378

202

Joo Carlos Tedesco

e provocadas num cenrio em que existem simbologias de etnicidade e vontades manifestas de estabelecer diferenas.379
A dimenso pica e ufanista da memria tnica colabora para
fortalecer essas representaes de suporte interno.380
As lembranas culturais servem a um grupo ou a uma
comunidade para radicar a sua prpria existncia no passado
e fortalecer, desse modo, a identidade presente. Nesse sentido, a construo que o presente faz do passado passa a ser importante. H, sem dvida, retrospectiva e prospectivamente,
um uso e um abuso cultural da memria, os quais podem justificar aes agressivas ou de aceitao de grupos e indivduos
(lembrar as guerras, os massacres tnicos, o anti-semitismo,
o conflito entre rabes e judeus, catlicos e protestantes na
Irlanda, sulistas e nortistas na Itlia). possvel, porm, recordando, afrontar as razes.381
Nos relatos de memria biogrfica e/ou genealgica, bem
como de depoimentos orais, comum, na literatura sobre imigrao italiana, a viso um tanto laudatria da vida da colnia e do empreendimento colonial como um todo.
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 155. Os autores definiram alguns
elementos que contribuem para a compreenso do complexo simblico que age
sobre a imaginao de um grupo e que o faz se autoperceber-se como tnico.
So eles: a transfigurao da memria histrica como celebrao do passado
comum, a sacralizao do complexo institucional e normativo (religioso e tico),
que a base de uma solidariedade comum e social, a lngua; as relaes de
descendncia comuns, o territrio mitologizado da origem e da identificao
do mesmo com o grupo.
380
Lembrar a representao literria e narrativa que grande parte dos italianos
imigrantes no Brasil construiu em relao ao negro, ao caboclo e ao ndio.
Esse processo nos faz lembrar, nesse momento, que estamos escrevendo isso
na Itlia, da italianizao da antinegatividade social, ou seja, grande parte
dos fatos negativos que envergonham os italianos e a Itlia, como alguns
italianos mais idosos dizem, so atribudos aos estrangeiros (geralmente africanos e do Leste europeu) como o caso de roubos, sequestros, assassinatos,
prostituio, pobreza, sujeira nas ruas e mendicncia. Esse processo tende
a reforar a ritualizao da etnicidade, criando diferenas, discriminaes,
dios, indiferenas, represso, temor de perda da identidade. Esse processo
no representa uma ao gratuita e meramente simblica, pois essa provoca
e induz a aes polticas concretas e diferenciadas, etnicamente, em termos
de consequncia e de aplicabilidade.
381
JEDLOWSKI. In:_______; RAMPAZI, M., op. cit., 1990. p. 27.
379

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

203

O tempo da famlia e sua dimenso cclica renovam-se


pelos nomes. Na anlise de Eckcert,382 a disposio em transmitir aos filhos e netos o prenome e o nome de famlia no
satisfaz, apenas, a um culto de uma tradio familiar, mas
est tambm diretamente referida insero da famlia em
sociedade. atravs do sobrenome que se estabelece a relao da famlia com o domnio pblico da vida social. Porm,
o trabalho coliga-se com a dimenso histrica do nome. A esfera do trabalho (sacrifcio, o ganho econmico e a redeno
social como decorrentes deste), da mobilidade espacial, da
vida familiar, do progressismo e dos vnculos comunitrios,
envolvendo neste mbito a dimenso religiosa, solidria e parental, criou uma espcie de pr-destinao tnica para a modernidade produtiva e econmica que se implantava no pas.
Em nosso material emprico, armazenamos inmeras passagens reveladoras dessa dimenso progressista, desse enquadramento tnico pelo vis do pioneirismo, do desbravador, do
vazio para o preenchimento econmico e social, da vida ordenada, do trabalho contumaz, da racionalizao e maximizao de
fatores e de saberes ligados terra, aos investimentos, s inovaes tcnicas, ao domnio da natureza e sobreposio tnica.
Sem dvida, as falas dimensionadas por esses vieses precisam ser localizadas numa compreenso mais ampla, as quais
constituem, estruturam e dinamizam a vida camponesa, seu
ethos, sua busca de equilbrio em meio a uma natureza de
pouca sobredeterminao humana, suas relaes e seus desafios perante o novo, as novas exigncias espaciais, econmicas
e de convvio, a passagem do tempo e suas relaes sociais
constituintes.
A compreenso dos discursos precisa estar em correlao
com universos prprios do contexto e dos elementos que iden ECKERT, C. Saudade em festa e a tica da lembrana. Estudos Feministas,
n. 1, 1997. p. 182-192.

382

204

Joo Carlos Tedesco

tificam uma cultura em mudana e interconexo e entrecruzamentos espaciais e temporais, ou seja, a especificidade de
relaes de um grupo social que se diferencia pelo seu contato
(con)sequente com a terra, com o tempo cclico, com o grupo
familiar, e uma estrutura moral que luta por se preservar secularmente, com valores de reciprocidade, hierarquia, o uso
como um valor, etc. O discurso precisa ser visto num conjunto
de relaes que prima pela complementaridade entre cultura/
sociedade, natureza fsica (terra)/trabalho, num horizonte de
relaes induzidas e produzidas localmente.
Com isso, no estamos dizendo que a anlise da oralidade deve ser meramente acoplada e justificada pelos seus
referenciais culturais; precisa, sem dvida, ser problematizada na medida em que dimensiona excludncia, discriminao,
centralizao, enquadramentos, vanguarda e projeo pessoal
e/ou tnica, as quais fazem perder de vista processos sociais,
atores e situaes, contradies e conflitos que se constituem
a partir da cultura de contato. Essa tendncia ufanista, segundo o vis do progressismo e do sacrifcio, alerta-nos para a
necessidade de problematizar essa representao contida no
relato de memria. Sabemos que, no relato oral, o significado
no se autocontm, ou melhor, a realidade no se apresenta a
si prpria; ela possui um contedo de narrativa que preexiste,
que contextualizado, complementado, problematizado. As
lembranas e os esquecimentos podero, assim, atribuir significados memria na medida em que possamos fazer associaes temporais e espaciais, envolvendo formas de conduo
da vida, de estilos pessoais, de estratgias e conflitos.
Na viso de Maestri,383 utilizar a memria como dado
histrico, nesse sentido, significa ir alm desse enquadra MAESTRI, M. A travessia e a mata: memria, mito e histria na imigrao
italiana para o Rio Grande do Sul. In: SULIANI, A. (Org.). Etnias & carisma.
Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 761-781.

383

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

205

mento ufanista e parcial da conscincia de alguns indivduos


(depoentes) e de alguns analistas. importante localizar a
memria num contexto histrico mais complexo e relacional
de aes e de significados. No fundo, h o desejo de uma manifestao de um aprendizado de vida, anos de vida vivida, de
desejo de conhecer o viver e o vivido vivenciado, de no se deixar levar pela dimenso atual do movimento rpido das coisas e de sua superao, alterao, fragmentao e descarte.
A corrente de memria, seja na tica da nostalgia, do ufanismo, seja da dimenso religiosa, do sacrifcio etc., contribui
para engajar um ethos no agir social e cotidiano presente, assim como para redefinir e cristalizar laos sociais internos e
externos, juntando-se ao surgimento de injunes sociais reconstitudas pelas novas dinmicas. Porm, trabalho e vida
familiar so centralidades que, mesmo redefinidas, permanecem como smbolo social e como racionalizaes de estratgias
tico-morais e econmicas.

O sentimento do vivido em temporalidades


entrecruzadas
Acreditamos que existam tempos em que a cultura, atravs da mediao do trabalho, incorpora na natureza e apresenta-se social e grupalmente. Os dias santos hoje reduzidos , o tempo de colheita, de caa, o perodo certo de matar
porco para que o salame no estrague, de podar as parreiras,
as roseiras, o desvio ou a adaptao de tempos de plantas e de
colheitas em relao aos perodos de maior chuva ou de sol,
dentre outros, demonstram que o mundo natural, para idosos
colonos, possui variaes de tempo. No podemos nos esquecer de que a vida do colono guiada essencialmente pela sua
relao com a natureza, com as estaes, com a mutao dos

206

Joo Carlos Tedesco

tempos e seu sentido cclico, com as horas dos dias e parte da


noite. A criao de animais e a produo agrcola exigem uma
viso cclica do tempo. Esse processo auxilia na constituio
de um imaginrio de reproduo em seu vivido: reproduo
de culturas produtivas e de cultura tnica, de reproduo de
saberes e da propriedade da terra, da famlia e das geraes
sucessivas, de patrimnios e de linhagens. O seu ethos constitui-se nessa dimenso de tempo natural e cultura social.
desse modo que os idosos reconstroem suas vidas, relembrando a trajetria familiar e estabelecendo na lembrana o espao, a representao e as relaes internas da famlia.
Ambos sofrem a marca do tempo. Reconstroem a histria do
modelo familiar por meio de caminhos j marcados por lembranas suas e de seu grupo familiar.384
nesse sentido que a memria de tempos vividos, a tradio, os costumes antigos, a sua preservao e origem passam a ser elementos antropolgicos presentes no universo de
relaes e de imaginrio dos colonos. Essas dimenses podem
organizar a reproduo do patrimnio, a transmisso da propriedade, a maneira de pensar a famlia, a casa, a roa, o
tempo e o espao. Muitas vezes, esses processos apresentam,
como diz Bourdieu, uma estratgia ou uma transgresso de
princpios ordenadores da modernidade presente, ou, ento,
apresentam-se como uma recriao normativa e atualizada
da tradio para fazer frente s condies sociais de produo
e reproduo.385
O passado cultural importante, alm de outros aspectos,
para definir espaos, autoestima, reafirmao social tanto no
espao regional quanto no local, no com a intencionalidade
LINS DE BARROS, M, M. Memria e famlia. Estudos Histricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 35.
385
CARNEIRO, M. Memria, esquecimento e etnicidade na transmisso do patrimnio familiar. In:_______ et al. Campo aberto. O rural no estado do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. p. 273-293.
384

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

207

de restaurao sociocultural, o que seria cair numa alteridade


unidimensional ou numa homogeneidade sem conceber a diversidade e a multiplicidade de elementos intervenientes, mas
de reencontrar valores que promoveram atitudes, projetos de
vida, integraes, configurando padres de vida, traumatismos
culturais frutos de mudanas significativas no grupo, alterando o mundo da vida e a ordem dos valores existentes.

Captulo 13
A objetualidade de memria grupal
Muitos objetos esto unidos inseparavelmente memria, cuja durao , em geral, o tempo de uma vida. No repassados a outras geraes, tais objetos perdem sua razo se
desvinculados de seus possuidores. Valores sentimentais esto unidos memria, ligados a uma figura familiar a quem
originalmente pertenceu o objeto; ambos se mesclam com valores sociais que os classificam como indicadores de distino
e refinamento. Atravessando geraes e cruzando temporalidades, os objetos de memria vo adquirindo outros sentidos
na sucesso temporal, mantendo, no entanto, a referncia
constante sua origem.386
Os objetos evocam um passado e promovem uma correspondncia desse passado com um espao. O espao de casa,
das atividades agrcolas e seus instrumentos, considerados
no tempo ultrapassados mas que ainda so guardados , e
utenslios de uso comum nas atividades cotidianas formam
uma espcie de museu de famlia; so guardados, geralmente, no poro da casa, no galpo e/ou no quarto do idoso. Em
geral, so objetos ricos de significados, pois expressam noes
de sacrifcio, propriedade, bonana, modernizao..., sempre
em correlao temporal entre o perodo de existncia/utilidade com o tempo presente de inexistncia e, portanto, de substituio. Da realidade material, esses objetos deixam lugar
realidade imaterial, imaginria; transportam, com o tempo e
com as correlaes do presente, novos valores e significados,
MAZUCCHI FERREIRA, op. cit.; ver, tambm, LUCENA, op. cit.

386

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

209

dependendo das formas, das possibilidades e das funes significativas que lhes possam ser impressas.
No h dvida de que, ao lembrar, o sujeito refaz o passado no presente, d novas molduraes s memrias e as faz
interagir espaciotemporalmente. Na viso de Mazzuchi Ferreira, justamente essa moldura social que trazida cena na
rememorao, seja nas casas de outrora, seja em imagens fotogrficas ou em artefatos rememorveis. Esses elementos circulam em ritmos que cadenciam a vida humana e no podem ser
vistos como um corpo em si, mas sempre situacionalmente. Esses vestgios passam a ser importantes porque revelam vividos
prticos, nexos e significados, funcionando como armas contra
a desfigurao social dos velhos, contra as fortes alteraes do
novo, do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente.
As imagens espaciais desempenham um papel na memria
coletiva. O lugar ocupado por um grupo no como um quadro
negro sobre o qual escrevemos, depois apagamos os nmeros e
figuras. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo
tem um sentido que inteligvel apenas para os membros do
grupo. Seguindo com as ideias de Halbwachs, ele nos diz que
imveis apenas o so aparentemente, j que as preferncias e os
hbitos sociais se transformam e, se nos cansamos de um mvel
ou de um quarto, como se os prprios objetos envelhecessem.
verdade que, durante perodos muito longos, a impresso de
imobilidade que predomina e que se explica, ao mesmo tempo,
pela natureza inerte das coisas fsicas, pela estabilidade relativa dos deslocamentos ou das mudanas de lugar, e as modificaes importantes introduzidas em certas datas na instalao e na moblia de um apartamento assinalam tantas pocas
na histria da famlia.387

MAZUCCHI FERREIRA, op. cit., p. 132.

387

210

Joo Carlos Tedesco

Memrias de quadros simblicos


Os objetos de memria so os produtos materiais da atividade humana que adquirem um alto valor simblico pelo
fato de condensarem algumas representaes importantes
para o passado individual, grupal, comunitrio, tnico
A noo de pertencer est presente no significado do objeto de memria; concreta a identidade coletiva com as dimenses espacial e temporal, testemunho de uma histria
pessoal ou coletiva de significao intensa.
J falamos que muitos dos nossos entrevistados revelam
um passado de profundos vnculos materiais e simblicos com
o religioso. O padre, sua presena presente ou sua pouca presente presena, fez surgir formas de manifestao do credo
religioso, muitas delas prprias do ambiente vivido de ser colono, dos limites fsicos e da no completa ingerncia sobre
os processos naturais que envolvem os produtos produzidos,
sobre a vida e sobre a morte de homens, bichos e animais.388
muito comum encontrar na literatura sobre imigrao,
principalmente na que enfoca memrias biogrficas, fragmentos de lembranas de um tempo e um espao no alm
-mar, como se, nesse espao, o misterioso e outros imaginrios
e simbologias normalmente negativas se fizessem presentes.
O mar, a floresta mata virgem , os bichos, os humanos (ndios e negros), a mistura entre regies da prpria ptria-me
e de outras etnias j vindas, a propriedade da terra etc., tudo
produzia imaginrios, que hoje so reproduzidos pela esfera
da epopeia, do enfrentamento, de uma marca histrica e genealgica.

RASIA, J. M. et al. Representao da morte entre agricultores da Colnia


Santo Antnio de Iju (RS). Humanas, Curitiba: UFPR, n. 4, 1995. p. 73-118.

388

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

211

A genealogia de um passado coletivo


A memria social do grupo constitui-se num potencial que,
medida que acionada, substancializa-se em matria-prima com que so constitudas e atualizadas as prticas do
parentesco, as quais, por sua vez, so as responsveis pela
seletividade da memria, bem como pelas suas diferenas de
gnero na lembrana.
A genealogia uma rvore plantada em determinado
tempo, lembrada segundo uma referncia temporal em que
possvel uma lgica na qual tal referncia seja no s contada,
mas provada pelos vnculos temporais e pelos marcos significativos.389
Segundo alguns analistas, as mulheres humanizam
a memria genealgica, por meio da necessidade emocional,
sentimentos e ligaes entre as pessoas (compadrio, parentesco), affaire familiales, relaes interpessoais, preferncias
para o vivido e a atemporalidade (reflete certa ausncia de
noo de tempo); oscilam entre esposas/mes e seus papis
profissionais; manifestam conflitos entre o que elas interiorizam em seu quadro de atividade fora do lar e o que lhes foi
inculcado no curso de sua socializao primria.390
No ethos de colono da regio, a diferenciao prtica e
simblica entre gneros no pode ser entendida meramente
em termos dicotmicos; d-se na esfera da complementaridade. Aquilo que parece ser dicotmico, no fundo, numa anlise
mais apurada, poderia ser percebido pelo vis da integrao.
Lembrar fatos e situaes especficas de seu espao de gnero no significa que as relaes entre si, na famlia, estejam
desintegradas. O que h uma unidade na diferenciao que
WOORTMANN, E. rvore da memria. Anurio Antropolgico, n. 92, 1994.
p. 113-131.
390
GIRON, L. S. Da memria nasce a histria. In: A memria e o ensino de
histria Anpuh, Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.
389

212

Joo Carlos Tedesco

promove uma complementaridade hierrquica. Fragmentar


para unir prprio da vida camponesa; alguns precisam sair
para permitir o fortalecimento da unidade e de sua caracterstica bsica: ser colono.
A casa o elo integrador. Ela e os seus objetos internos e
externos ligam-se noo de enraizamento, de pertencimento, de rede de reciprocidade e sociabilidade, num mundo de
vida cotidiana, de convivncia, de cenrio dos ritmos onde a
lgica e a simblica da terra, no caso para os camponeses,
interligam-se formando uma totalidade identitria de vida
rural. As casas so testemunhos edificados do grupo familiar
de sua dimenso mais ntima, dos ritmos dirios e dos rituais,
das rupturas e descontinuidades e da sucesso de geraes.
Entendida como espao simblico, a casa passa a ser integrada ao indivduo atravs de suas vivncias, sendo elemento
importante na manuteno da identidade social do idoso.
Halbwachs j dizia que a memria tem a caracterstica de operar quando ligada e referida a aspectos concretos,
como, por exemplo, objetos, lugares, pessoas, aspectos esses
passveis de transfigurao significativa e simblica, ou seja,
ser ou servir de testemunho, de figuras-chave do processo de
reconstruo do passado. Os eventos de memria, apesar de
suas implicaes temporais significativas no horizonte dos rituais e das narrativas (como j visto na relao entre memria e narrao), so ou podem tornar-se figuras de lembrana,
pontos de referncia nos quais o presente se legitima, reinvocam sua existncia e temporalidade passada.
Os eventos de memria so figuras, smbolos, representaes culturais da lembrana que possuem eficcia, capacidade de evocao e de coeso. As festas de famlia, ainda que
fragmentadas temporalmente, as festas de cunho religioso,
os rituais culturais (alimentao, vestimenta, vida familiar,
de expresso dialetal lembro aqui a Semana Italiana de

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

213

Serafina Corra, na qual todos devem, cotidianamente, falar


o talian), dentre inmeras outras, so expresses disso. O
poder evocativo e simblico do evento de memria no se d
no sentido da representao do passado, mas do/no que pode
produzir temporal, cotidiana, cultural e significativamente
no presente.
Assumir sentido no presente, exprimir a dimenso temporal passada e (re)significar o presente individual e coletivo
o papel dos eventos de memria; sua transtemporalidade e
multitemporalidade justificam-se enquanto for capaz de produzir pertencimento social e cultural aos seus membros. Halbwachs j dizia que a permanncia da memria, de grupos
s se efetiva quando for capaz de transmitir/produzir significado(s) ao coletivo. Os eventos necessitam de histria e de
simbologia para alimentar e se fazer significativos.
As festas de famlias (de sobrenomes) necessitam mostrar uma genealogia comum, ainda que fragmentada e rompida temporalmente (o limite do para trs e uma histria
espaciotemporal tambm comum, no caso da Itlia para o
Brasil para descendentes de italianos). Os eventos necessitam de narrao, do recontar. A presena das pessoas nas
festas de famlias, as geraes diferentes, os vnculos sociais,
econmicos e polticos diferenciados narram processos sociais
e temporalidades que, ainda que dispersas, possuem significados aproximativos; dimenses temporais, ainda que no
explcitas, transformam-se em eventos de memria coletiva.
A homenagem costura simbolicamente discursos, objetos,
tempos e espaos que simbolizam uma trajetria e sintonizam
um mito fundador que reafirma os valores do grupo. Agregar,
unir, religar, reestruturar a lembrana, descontinuar, relembrar trajetrias, dramatizar as transformaes e mudanas,
tudo isso forma de atualizar a memria do tempo do grupo.

214

Joo Carlos Tedesco

Eckert391 diz que a emoo em torno da saudade, construda como um smbolo, manifesta a coexistncia alhures de um
grupo com valores comuns, reordenados como ideais num desejo de continuidade. A festa nasce motivada pelo desejo da
sociabilidade, realimentando o trabalho de memria coletiva,
num jogo de reciprocidade pertencente a um tempo cclico.
No temos dvida em afirmar que, para os idosos entrevistados, a famlia vista como um monumento simblico
e, ao mesmo tempo, possui seus micromonumentos na esfera
do lugar/local, do vivido, dos sentimentos e das pertenas. O
sobrenome, a terra para o imigrante, a reproduo domstica, a casa, os objetos sagrados, ou seja, aquilo que marcou
presena contnua no tempo vivido e que pressiona para a
conservao em meio grande tendncia de esquecimento e
de alterao.392

Exteriorizao pblica e local de memrias


coletivas e individuais
A fotografia no pode suscitar outra coisa que no
uma devoo alimentada da sua funo social.
Bourdieu

Halbwachs estudou a relao espaciotemporal que faz


aparecer a memria e, especialmente, a memria coletiva.
Afirma que, do ponto de vista temporal, a memria reinvoca
um fato que coloca em algum ponto do espao. Os lugares de
memria so espaos que, como diz Nora, se condensam s
imagens de um passado carregado de significados.
ECKERT, C. Saudade em festa... p. 182-192.
Numa perspectiva mais ampla, tanto Le Goff quanto Nora afirmam que a
histria se v pressionada em preservar a memria coletiva, havendo como
que uma histeria social que apela pela sua preservao.

391
392

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

215

Os lugares de memria podem ser tanto reais quanto


imaginrios. No caso do primeiro, quando h uma identificao espacial, necessita de algo que ocorreu; o segundo fruto
de uma inveno, de uma atividade imaginria do pensamento coletivo.393 Os lugares de memria so pontos, espaos fsicos de significados totais, evocativos de sentido de pertencimento dos indivduos a um determinado grupo, sobretudo
espaos de memria representativos da autoridade e do poder
de algum ou de grupos sociais.
A acelerao da histria, como diz Nora, ainda mais na
contemporaneidade, com as tendncias homogeneizadoras e
massificantes da globalizao, obriga a registrar, a guardar, a
refugiar a memria. Para o autor, a intelectualizao da memria pela histria precisa resgatar o vivido em sua dimenso
material, funcional e simblica. Entrelaadas, essas dimenses institudas pela histria buscam resgatar as origens, os
sentidos e intenes que moveram determinados atores, as
estratgias, as condies de vida, os resduos, as trajetrias
de agrupamentos familiares, os sentimentos ntimos ritualizados em comum.394
A histria local, resgatada pela memria, pode se servir
da evidncia local viva, manifesta oralmente, para possibilitar a compreenso de normas sociais, de costumes e tradies;
permite contrapor referenciais j existentes, unir informaes
dispersas, valorizar o vivido, conservar, criticar e socializar
formas do pensado passado.
Os idosos entrevistados recordam algo de seu espao original na colnia-velha, espao-me de sua fonte migratria;
Halbwachs estudou os lugares santos na Palestina e, por correspondncia, a
sua gnese no imaginrio cristo e medieval. O autor relata que muitos lugares
foram adaptados depois das Cruzadas para responder s expectativas que
se haviam criado em sculos anteriores. Ver HALBWACHS, M. Memoria di
Terrasanta. Venezia: Arsenale, 1988.
394
Ver DE DECCA, E. Memria e cidadania. In: O direito memria: patrimnio
histrico e cidadania. So Paulo: SMC, 1992.
393

216

Joo Carlos Tedesco

no dizem quase nada do que ouviam falar de seus pais e/ou


avs sobre a Itlia. A fonte de sua memria o espao onde
viveram. Aspectos desse vivido manifestam-se como produto
desse espao e como manipulao e presena de objetos, fatos
e representaes desses no vivido em famlia, no trabalho e
nas atividades de visualizao e de contato pblico, processos esses reconstrutores do passado e capazes de justificar, na
histria, sua presena e seu vivido extemporneo ao presente.
A rememorao de alguns fatos, relegando outros ao insignificante e/ou esquecimento, cria imagens e produz sentidos que podem ser ideologizados, particularizados, manipulados pelas circunstncias, enquadrados pelo material fornecido
e, geralmente, legitimados no vivido, por meio da experincia.

Temporalidades contnuas
A memria a continuidade do passado num
presente que dura.
Ferrarotti

O tempo histrico e o contexto social encontram-se, reelaboram e resgatam significados de identidade cultural a partir das exigncias e necessidades do presente. A no imutabilidade da tradio no passado e no presente, sua transmisso
ou seu esquecimento inter ou intrageraes podem ser relativizadas em termos de significados por diferentes ou por idnticos grupos sociais. O caso, por exemplo, do dialeto vneto
ou de outro qualquer, dos nomes que balizavam as diferenas
regionais entre italianos e entre esses e os brasiliani, elementos que sempre foram marcas de etnicidade, so acionados
por alguns e, por outros, completamente esquecidos. assim
que Halbwachs fala de lembrana como reconstruo do passado, realizada com a ajuda de dados tomados do presente e

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

217

elaborados em outros lugares, em outras circunstncias, por


outras reconstrues feitas em pocas anteriores, nas quais a
imagem do tempo antigo j algo bem alterado.
Em correspondncia a isso que idosos entrevistados
fragmentam a memria relembrando o feixe de trajetria
familiar e estabelecendo, na lembrana, o espao familiar, a
representao da famlia e suas relaes internas marcadas
pelo tempo. H uma escolha e uma percepo de relaes que
integram e de outras que desintegram, incluindo nesse horizonte netos ou, at mesmo, algum filho.395 Estar no centro ou
na periferia do grupo domstico depende da trajetria pessoal
no seio familiar. Esses processos todos esto presentes nos
relatos, definindo a centralidade ou a periferia dos idosos no
grupo domstico, bem como sendo referenciados, em muito,
na orientao interna dos fatores de herana material de um
passado no muito longnquo e do mais recente.
Ferrarotti, falando sobre temporalidades, insiste na questo da ligao entre cotidiano, experincia e memria. Diz o autor que palavras, narraes, autobiografias, comportamentos
cotidianos no possuem s valores prticos e instrumentais,
e, sim, um grande valor afetivo. O abandono da importncia
das prticas cotidianas, o fato de deixar cair insignificncia,
poder ocasionar no indivduo a perda da capacidade de reconhecimento no tempo e tambm de sua identidade e de sua
tradio.396
Para Ferrarotti, a funo social da memria, atualmente, est seriamente comprometida. As transformaes sociais
parecem querer cortar as razes dos indivduos e dos grupos
para poderem se firmar. A racionalizao da vida parece reclamar, como condio essencial, a liquidao dos valores comunitrios da tradio, considerados como meros resduos
LINS DE BARROS, M. M., op. cit., 1989.
FERRAROTTI, F. LItalia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997. p. 25.

395
396

218

Joo Carlos Tedesco

do idiotismo rural.397 Na anlise crtica do autor, a memria


est em perigo; o fio da tradio est se rompendo; a situao
do cotidiano do mundo contemporneo est imersa numa condio de estranheza com o prprio passado, uma situao em
que, no presente, no valorizada nenhuma correspondncia
com formas de vida anteriores. A memria est em perigo porque no consegue dar continuidade s duas dimenses temporais passado e presente, porque o passado foi racionalizado
pela histria, foi alojado nos textos de histria e nos museus;
porque perdeu a ligao vital com a prtica da vida cotidiana
e est sendo transformada em conhecimento cientfico do passado, como realidade externa.
A cultura de pertencimento quer fazer frente tendncia
da memria de ser sempre menos ligada ao passado e sempre mais distorcida e insignificada no presente. As dimenses planetrias das imagens, o instantneo na informao,
a maior individualizao do destino (como fala Canclini), a
necessidade constante de se inventar outras relaes com a
realidade reduzem o potencial de pertencimento que a memria poderia apresentar e ser recurso e critrio para pensar o presente e colocam em conflito os elementos bsicos que
articulam as relaes entre memria e identidade: o espao
e o tempo. Pois que as condies contemporneas parecem
romper com os liames entre memria e identidade, nos coloca
defronte ao espectro de uma humanidade sem memria e sem
identidade.398
Na vida cotidiana de idosos no meio rural, os espaos
da natureza revelam polaridades e sociabilidades convencionadas por tradio/modernidade, num jogo de opostos entre
saberes, valores, significados, sensibilidades. Percebemos
que bens simblicos se transmitem, acima de tudo, pela co
FERRAROTTI, op. cit., p. 33.
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 31-32.

397
398

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

219

-presena. Os idosos querem ser e estar no vivido de geraes


posteriores. A ida para a cidade dificulta os vnculos da possvel transmisso; uma histria que fica reduzida apenas
dimenso da consanguinidade.

Desejo de transmisso, de experincia


e de visibilidade
Reemergir de um passado que foi apagado
muito mais difcil que lembrar coisas esquecidas.
Le Goff

Marc Aug nos diz que o espao coletivo tambm temporalizado, pois carregado de valores simblicos; portador
de identidade, pela qual os indivduos se reconhecem e se definem (ideia de Halbwachs); de relaes que vinculam indivduos e histria, pois seus membros se encontram ou expressam traos do passado. Desse modo, o espao coletivo trs
vezes simblico: o das relaes de cada um consigo mesmo,
com os outros e com um passado comum.399
Malgrado a possibilidade de memria comunicativa, singular e cotidiana informal do indivduo, uma exigncia da
sociedade institucionalizar normas, valores e recordaes que
tenham como base a narrao sacra, mitolgica e a fonte documental (histrica). Simbologia e racionalidade, nesse horizonte, unem-se e fornecem as bases para a memria histrica,
cultural e societal.
J falamos que h uma estreita correlao entre memria e experincia. Esta ltima, ou daria para dizer ambas, na
concepo de Benjamin, faz parte de sociedades com maior
Ver AUG, M. Storie del presente. Per una antropologia dei modi contemporanei. Milano: Il Saggiatore, 1994.

399

220

Joo Carlos Tedesco

conscincia coletiva e pertencimento, tpicas da pr-modernidade (como bem analisou tambm Drkheim). Benjamin utiliza o termo vivncia para substituir a noo de experincia
e sua desterritorializao na sociedade capitalista. Como j
vimos, segundo Benjamin, as vivncias so frgeis, cristalizam uma reproduo do tempo e das aes sobre/no mesmo
veio do automatismo e da ausncia de temporalidade (portanto, aistrica) e de evocao. As cincias sociais e humanas
so instigadas a compreender esses processos, a produzir conhecimento histrico-social de uma memria/vivncia (e causadora dessa), de uma memria-desesperana, uma fruio
intensa em termos narrativos e de reproduo histrica.400
Diz Mazzucchi Ferreira401 que na vida cotidiana, no vivido, que as identidades se constroem e se afirmam, e das
coisas e das relaes do passado que os velhos se nutrem.
nesse vivido, nessa trajetria social vivida com os prximos
que se constitui o eu individualizado, fruto dos papis sociais assumidos. A identidade social da famlia fundamenta-se nas ideias de desempenho e de esforo pessoal para o
estabelecimento de sua histria. Em ambas as situaes, o
importante a ideia de transmisso de bens simblicos s
geraes seguintes, procurando-se, em ambos os casos, situar
na famlia o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e, ao mesmo tempo, o veculo da preservao dos
valores familiares.402

As narrativas de memria poderiam ser incorporadas ao discurso das cincias sociais e humanas no sentido da anlise discursiva (hermenutica), da
substituio do contedo, da localizao temporal (contexto) da(s) viso(es)
de mundo e da comunicao, das ordens dos tempos (mudana e durao das
formas de existncia social).
401
MAZZUCCHI FERREIRA, M. L. Memria e velhice: do lugar da lembrana.
In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos antropolgicos sobre identidade, memria e poltica. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
p. 209-221.
402
Idem.
400

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

221

Ligar os tempos, as geraes e chamar para o presente


mundos congregados e personificados alimenta a importncia
de que um pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no
mundo dos netos; manifesta o tempo cclico (prprio do mundo do colono), uma referncia temporal que, mesmo alterada,
circula sobre si mesmo, completa-se e continua. A imagem
fornece o caminho da memria, a imagem de como era uma
vez, as vestes, os penteados, o lugar e a posio social de cada
um, da paisagem, do que ainda tinha.403
As fotos dizem o que de verdade, afirmam a realidade
do passado e documentam a maneira de olhar o mundo. Os netos solicitam a presena dos nonos para serem fotografados;
querem mostrar aos seus no futuro que fizeram parte de um
tempo, de uma histria comum, de uma lembrana familiar.
A criana, mais que qualquer outro personagem, sintetiza na sua
imagem a imagem da famlia. Das poses demoradas das fotos
antigas, s tentativas modernas de captura do instantneo das
emoes, a criana aparece sempre como um marco de referncia
familiar. ela o centro e a razo de ser da famlia. Atravs dela,
fala-se de tradio e de renovao, de laos de sangue e de afeto.404

Temos a convico, pelas informaes obtidas nos contatos com idosos, de que a foto, em seu cotidiano, passa a ser um
agente sociocultural de transformao que ocorre no espao
familiar, expresso da constituio de ambientes, espaos e
funes novas. No h dvidas de que h sempre um forte
No nos interessamos aqui pela questo da veracidade, objetividade/subjetividade das fotos, mas, sim, tentamos refletir sobre sua comunicao simblica, os
sentimentos no vivido dos nonos; manifestaes essas, em geral, direcionadas
vida camponesa, que se articula com a terra, com a sociabilidade dos seus
(os camponeses) na comunidade (nos momentos de festas e de rituais religiosos
pblicos) na famlia (sentido de agrupamento dos membros reunidos e seus
rituais alimentares). Trabalho, famlia e sociabilidade, fragmentados e unidos,
em vrias dimenses e aes, constituem o trip expressivo, comunicativo da
ilustrao fotogrfica. Atualmente, encontram-se fotos de nonos com netos/
bisnetos pequenos. Esse processo revelador de co-presena, coabitao e de
redefinies de funes dos primeiros nos agrupamentos familiares.
404
LINS DE BARROS, 1989, op. cit., p. 40.
403

222

Joo Carlos Tedesco

envolvimento subjetivo do sujeito fotografado, do fotgrafo


e dos observadores. desse modo que tanto Le Goff quanto Bourdieu405 e Barthes, que analisaram as dimenses socioculturais e seu uso socio-histrico, seja como documento/
monumento, seja como bem simblico e seu uso como valor
de classe, colocam a ineliminvel ambiguidade, indecifrabilidade e impossibilidade da onipresena e da significao nica
da imagem, do contedo e da intencionalidade fotogrfica e
fotografada.
Alguns autores vinculam a foto a um rito social, a um
instrumento de poder, uma relao simblica funcional, nostlgica, comovente, romntica com o passado, uma espcie
de analgsico moral, de extemporneas emoes, algo que
permite a canalizao e a democratizao da imagem lgica do consumo, dialtica satisfao/necessidades de novas
imagens (simulacros e substituies da realidade). A capacidade da mquina fotogrfica de transformar a realidade em
alguma coisa de belo provm da sua relativa fragilidade como
meio para transmitir a verdade.406
J falamos que, nas nossas entrevistas, era muito frequente a necessidade dos idosos de recorrer ao auxlio externo
para melhor dimensionar a recordao, para dar-lhe localizao espaciotemporal e ressignific-la. As fotos so expresso
Bourdieu, analisando esse processo nos anos 1960, fala no uso e na reproduo
de massa da fotografia, vinculando-a a um sistema de disposio inconsciente,
histrico e significativo (habitus) de classe. O autor aprofunda e identifica
possveis motivaes psicolgicas da fotografia: proteo contra a angstia da
passagem do tempo e de suas consequncias corporais; possibilitar relaes
afetivas e comunicativas com os outros; transferir prestgio pessoal (registro
de viagens, rituais de passagem sociais, culturais matrimoniais, vitrias)
e distrao. Para alm das motivaes psicolgicas, os mbitos econmico/
sociais e culturais esto presentes no uso instrumental da fotografia. Bourdieu
desenvolve essa questo junto a operrios, camponeses, profisses mdias
variadas e conclui que a fotografia expresso de um ethos de classe, um
smbolo e objeto material representante da pequena e mdia burguesia.
406
SONTAG, Sulla apud DAUTILIA, G. Lindizio e la prova: la storia nella
fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001. p. 145.
405

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

223

desse auxlio; as biografias tambm esto sempre correlacionadas a objetos, a fatos e a circunstncias temporais e materiais. Diz Bergson que necessrio que o passado seja colocado em movimento pela matria e imaginado pela mente.407
A reconstruo do passado necessita de suportes, de testemunhos e de associaes externas para recordar momentos e reviver fragmentos do passado. Por isso, a necessidade
manifesta dos idosos que residem no meio rural de quererem
mostrar coisas antigas que fizeram (casa, moinhos, arados,
comrcio...), as quais so expresses de sua presena na histria.
Alguns idosos que habitam a cidade manifestam desejo
(e o praticam) de retornar ao meio rural, sua antiga propriedade, espao esse que foi desenhado tambm pela sua
presena. Algumas das desiluses culturais e econmicas dos
idosos devem-se justamente aos contratempos e s aes que
se desenvolvem no cotidiano. O desejo dos idosos de refazer
o passado e de reviv-lo do mesmo modo como j se desenvolveu, pois assim podem narrar sua experincia e faz-la significativa aos ouvintes pela expresso de sua conscincia significativa. Os instrumentos significativos tendem a cristalizar,
objetal e simbolicamente, a significao vivida/experienciada.
desse modo que a fotografia possui sempre um indcio
verbal. Sua ligao com a fonte oral manifesta-se no horizonte da subjetividade. Os argumentos, os cenrios, os fatos, a
personificao, a objetividade/subjetividade, a ativao da
memria, as correspondncias temporais, as descries, a auto-representao (principalmente quando de fotos de famlia)
etc. intensificavam-se e a relao entre entrevistador e entrevistado manifesta-se de forma mais dinamica se auxiliada
pelas fotos.
BERGSON, H. Matire et... p. 187.

407

224

Joo Carlos Tedesco

Entendemos ser a foto, para os idosos entrevistados, um


instrumento de conhecimento e de conservao da memria
(seja ela individual ou coletiva), de registro, o qual permite esquecer, representar e auto-representar, auto-significar
(permitir individualizaes) e extra-significar, redimensionar
significaes, servir de uso pblico e de uso privado e permitir
sua fruio ativa ou passiva (hoje mais ativa do que passiva),
o que possibilitado pelo domnio comum desse processo. 408
A foto de famlia ganha uma temporalidade presente, de
longa durao, por conservar e transmitir memria, dialogar
intergeracionalmente, conviver e dimensionar significados no
tempo. Nesse cenrio, o papel feminino e de gnero fundamental. So, geralmente, as idosas que guardam as fotos. Algumas criticam seus companheiros por no terem permitido
tirar mais e registrar momentos significativos, pois quanto
no seria bom ter para ver agora!
Os homens relembram, materialmente, os momentos de
trabalho, de pesca e caa, da carreta carregada puxada por
mulas, do caminho que conseguiram comprar, de rituais pblicos e religiosos (casamento, batizado, crisma, ao lado de
algum, na poca, famoso). comum os homens permitirem
fotografar-se tendo objetos inovadores externos ou algo que
expressa bem-estar e/ou riqueza circunscritos no cenrio rural e um pouco tambm urbano, manifestaes de valorizao
individual (sentados ao redor de uma mesa farta, apresentarem-se bem vestidos, ao redor ou dentro do carro ou montado
num trator, num cavalo bem encilhado etc.). O fazer-se notar,
Sua fruio (mais ativa ou no) depende, alm dos significados, de sua capacidade de inovao e de reprodutibilidade. As fotos de casamento so aquelas
que no se olha sempre; os quadros de santos nas paredes (to comuns nas
casas e especialmente nos quartos onde residem pessoas idosas no meio rural)
no possuem tanta fruio; os membros falecidos da famlia no possuem
substituio, so imagens e representaes de uma ausncia (exorcizam o
sentimento de perda e de uma realidade de co-presena, ao mesmo tempo
configura uma luta contra o tempo, contra a morte).

408

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

225

o orgulho, a valorizao individual (beleza, riqueza etc.), a


unidade familiar, o poder masculino, a sociabilidade e a interao cultural, a superao dos limites econmicos para o
viver, dentre outras expresses, demonstram o carter evocativo das imagens.
As fotos de famlia e os lbuns que as contm representam uma seleo de objetos significativos consentidos aos
tempos presentes e futuros; representam tambm significados e selees externas de que, como, onde e por que estavam
presentes e foram registrados.409 Lanzardo analisa o fato de
que a foto no se reduz ao dado ilustrativo e imagtico em si,
mas carrega sempre dados, indcios, indicaes, mensagens
declaradas ou no. O autor sustenta que o sentido da imagem
se obtm unificando texto e contexto, rompendo a ideia de
autonomia do documento visivo. Na viso do autor, na fotografia, unem-se o fotgrafo, o fotografado e os recursos tcnicos; essa unio pode no se dar em termos de significados
conscientes.410
Todos os idosos entrevistados manifestavam interesse
em preservar as raras fotos que possuem, em guard-las muito bem em gavetas e em espaos de suas determinaes. Em
inmeras situaes, no tivemos necessidade de solicit-las,
pois eles as ofereciam espontaneamente, porm tnhamos dificuldades na sua liberao para serem reproduzidas. Parecia
que elas significavam para aos idosos uma relquia que deve Bourdieu e Aris j analisaram a ausncia de crianas nas fotos de tempos
passados, os rituais sazonais que as legitimavam e demandavam, a relutncia
camponesa de seu uso e o significado burgus a elas atribudas, os momentos
de unidade e de reforo de conscincia de grupo, o prestgio social muito mais
do que a individualidade que deve servir de memria, a comunicao simblica
da famlia nuclear... Enfim, um instrumento para contar histria. Ver BOURDIEU, P. (a cura di). La fotografia. Uso e funzioni sociali di unarte media.
Rimini: Guaraldi, 1972; ver, tambm, ARIS, Ph. Padri e figli nellEuropa
medievale e moderna. Roma-Bari: Laterza, 1991.
410
LANZARO, L. Note sulluso delle fotografie nella ricerca storica. Italia Contemporanea, n. 228, set. 2002. p. 523-532.
409

226

Joo Carlos Tedesco

ria ficar em seu patrimnio, como marca de um vivido, com


significados subjetivos e pouco intercambiveis. O medo de
que fossem extraviadas, o desejo de sua eternidade, mesmo
na sua ausncia ps-morte , a marca de um passado e sua
presena nesse tempo representam desejo de fixao, bem
como revelam a esperana de que um dia sejam de importncia para os de hoje. Os teros antigos, os livros de histrias
de santos, algumas vestes ntimas de antigamente, o dialeto
vneto, instrumentos antigos de trabalho, as tcnicas de criar
porcos, de plantar e colher milho, o fato de muitos no saberem ler nem escrever etc. manifestam esse desejo.
O lbum de famlia e os ritos de integrao que a famlia produz representam/exprimem a verdade da lembrana
social, da memria social; expressam, evocam e transmitem
a lembrana dos eventos merecedores de serem conservados.
A famlia v, nesses momentos, a personificao temporal do
passado e a confirmao da integrao e da unidade no presente. Segundo Le Goff, a me que, frequentemente, solicita
e viabiliza a recordao/registro via fotografia. Para o autor,
essa realidade expressa um vestgio da funo de conservao
da lembrana atribuda a ela, ou, ento, pode ser expresso
de uma conquista da memria do grupo por parte do gnero
feminino.411
Entendemos que objetos simblicos, no caso, por excelncia, as fotos, respondem a uma necessidade social de identidade, de autocelebrao e de conservao de uma imagem
de si; servem para tornar perene a recordao de algo ou de
uma pessoa significativa e a exaltao do indivduo; smbolo
por meio do qual os membros de uma classe social se tornam
visveis e tomam conscincia de si e de seu vnculo cultural
(habitus de classe, diria Bourdieu), afirmao e legitimao
LE GOFF, J. Memoria, Enciclopedia Einaudi. p. 1097.

411

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

227

social, registro de conquistas, valorizao da existncia, colocando em desafio o futuro e a sobrevivncia do passado numa
imagem.412
Alm da questo da identidade, da subjetividade da histria, segundo Bourdieu, o desenvolvimento e a necessidade
da fotografia advm da emergncia da democratizao da memria, do controle do poder, de instrumento de integrao e
controle da memria coletiva; significa apoderar-se da memria e do esquecimento, das representaes e autorepresentaes, seja da informao, seja do ocultamento. Diz Le Goff que
aquilo que a fotografia oculta mais do que o que ela diz e aquilo
que ela conserva uma mensagem carregada de implicaes sociais
que frequentemente tendemos a esquecer. [...]. Os esquecimentos
e os silncios da histria so reveladores destes mecanismos de
manipulao da memria coletiva.413

Segundo Sega, a fotografia, sendo uma imagem, no possui


uma ordem racional (lgico-narrativo), nem pode ser totalmente
decodificada. Ela deixa espao a interpretaes subjetivas e a
uma fruio emotiva que no implica o intervento da razo.
A fotografia funciona, na nossa poca, como arte de memria (memria de lugares, memria de fatos e memria de pessoas), no,
todavia, como instrumento externo No geral, funciona como memria intencional e ativa: vontade de deixar vestgios e de existir
na recordao [...]. A fotografia nos d mais do que uma simples
documentao visiva, nos d o modo no qual uma dada realidade
vem interpretada no momento mesmo em que ocorre e organizada
pelo seu conhecimento futuro. Em alguns casos, a fotografia mais
interessante para a modalidade de representao que pelo contedo
documentado.414
Antigamente, a memria histrica era privilgio s dos poderosos, expressa em
memria escrita, arquivos, bibliotecas, monumentos, genealogias, na forma de
retratos, esculturas, pinturas, etc. Com o avano da burguesia, ampliou-se a
possibilidade de memria e a sua necessidade como expresso da afirmao de
identidade. Ver sobre isso, LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia Einaudi...
Ver BOURDIEU, P. La fotografia...
413
LE GOFF, J. Memoria. Op. cit., p. 1070.
414
SEGA, M. T. Lo specchio dotato di memoria: la fotografia. In: LAZZARIN,
G. (a cura di), op. cit., p. 187-189. Encontramos em DE LUNA, G. et al. (a
412

228

Joo Carlos Tedesco

nesse sentido que, nas lembranas orais e objetais de


idosas entrevistadas, a ambivalncia parece ser a tnica: elas
presentificam a crtica de muitas relaes passadas e, ao mesmo tempo, relembram-nas e manifestam-nas como forma de
mostrar sua obedincia, as suas estratgias limitadas e seu
vnculo pragmtico na famlia e no meio comunitrio. As recordaes mais ambivalentes aparecem na relao entre desejo e pecado, entre rir e mostrar-se sria, entre idealizaes
e prticas de opresso, entre a liberalizao e a rigidez das
normas acrescidas ao sentimento de culpa, entre fantasia e
realismo com base no vazio, entre liberdade pessoal e vigilncia paterna e comunitria, entre separao com necessidade
de suportar o casamento em nome da construo de uma boa
famlia (a base religiosa disso tudo), entre esclarecer-se (estudar, trabalhar com referenciais tcnico-mecnicos...) e ter de
deixar o homem decidir (tasi ti, non sai niente).
Voltamos a dizer que, para idosos, a lembrana da famlia apresenta-se como um complexo de referncias simblicas, imaginadas e representadas na esfera da integrao, da
ameaa de desintegrao, de recordao, de espaos de felicidade, de horizonte de profundos desgostos, de desempenho
moral e de honra (honrar o nome da famlia), de pertena e
de identidade com possveis descontinuidades. Observamos
e escutamos por intermdio de relatos, e isso tudo se manifesta em rituais prticos (nascimentos, casamentos, mortes,
hierarquias no vivido familiar e social, incorporao do nome/
cura di). Introduzione alla storia contempornea. Firenze: La Nuova Italia,
1984, excelente discusso sobre a fotografia como documento histrico e suas
vrias questes, dentre elas a da durao (sequncia temporal), da linguagem
fotogrfica, do seu uso social e suas ambiguidades, a fotografia como sistema
de sinais, a historicizao da imagem, a histria da cultura fotogrfica, a
fotografia e o ritual, o uso poltico da mesma. A anlise faz um apanhado
histrico da historiografia sobre a fotografia e seu uso nesse campo, refletindo
principalmente sobre a abordagem do tema em Benjamin, Barthes, McLuhan,
Sontag e outros.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

229

sobrenome...), em espaos materiais (casa, roa, poro...), na


propriedade (da terra, dos frutos da terra, dos frutos do trabalho na terra, dos meios de trabalho...) e na esfera simblico-religiosa (oraes em famlia, batizados, matrimnio religioso, o
sentido teolgico da famlia, da gerao da vida, da morte...).
A casa o ponto de referncia, a casa da famlia tal, territrio de redes, da vida cotidiana por excelncia, de um tempo de (con)vivncias; indica nuclearizao, estendida, geralmente, a vizinhana, o parentesco e o compadrio. Como espao de memria, a casa imprime os ritos de passagem (entrada,
sada, retorno, permanncia, desvnculo e deslocamento).415
Atravessando geraes e cruzando temporalidades, os
objetos da memria vo adquirindo outros sentidos na sucesso temporal, mantendo, no entanto, a referncia constante
sua origem. Nessa perspectiva, o tradicional no apenas
sobrevive; no o resduo, o que resta, e, sim, o que luta e desafia o moderno; busca encontrar espaos de significncia no
presente, no meramente como tradio, mas como presentificao, como pertencimento, em outras palavras, como til
ao que o moderno apresenta como importante hoje. Porm,
a leitura do passado e de suas aes no feita com os pressupostos do moderno e do presente, ou seja, como decorrente;
so racionalidades internas, resgatadas no tempo para preencher vazios do tempo atual.416

Fidelidade, experincia e filiao de memria


Diz Halbwachs que a experincia da memria coletiva
uma experincia concreta de ligao com a sociedade, com
a memria dos outros, com a fidelidade de memria, com a
LUCENA, op. cit.
Ibidem.

415
416

230

Joo Carlos Tedesco

dimenso afetiva, significativa, coesa, de interioridade e exterioridade, de sentimentos pessoais, regras e costumes vividos por eles e por outros que ajudam a fixar nosso lugar,
nossa forma de pensar. Na anlise do autor, a experincia
expresso individual de uma memria de totalidade que se
completa em nossa lembrana individual. A experincia da
memria familiar, por exemplo, no s a memria de um
grupo particular, mas de regras incorporadas de formas de
vida, de parentesco, de princpios organizadores, de hbitos
em concretude.
A experincia de uma memria coletiva organizada por
um vivido em correspondncia com lgicas sociais de significao que ligam as recordaes. A experincia de uma memria coletiva possui atributos normativos, smbolos de exterioridade temporal, de diferenciaes de noes sociais que possibilitam a passagem da imagem ao conceito, de tipologias de
diacronia, de tradio e costumes em referncia a experin
cias vividas de grupos, da histria oral, dos mecanismos de
memria (reiterao de smbolos, comemorao, dos ritmos
cclicos naturais, das histrias sagradas fundadores de iluso de eternidade), dos mediadores e notveis417 de memria,
internos e externos aos grupos, de sua funo nostlgica e de
sentimentos desejados em relao ao presente, da valorizao
e da legitimao da memria dos grupos particulares.
A mudana e a conservao, a recordao e o esquecimento, como dinmicas que se excluem, se complementam,
se retroalimentam e se conflituam, so fundamentais para
a conservao, a ruptura e a redefinio da experincia de
memria e da memria como experincia. O progresso, a ambivalncia de significados de fatos temporais na histria, os
Diz Halbwachs que as sociedades, ao atribuir aos velhos a funo de conservar
os traos de seu passado, os encoraja a consagrar tudo o que a eles pertence
como energia espiritual a recordar (Les cadres... p. 107).

417

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

231

mitos e smbolos de agregao/ruptura e a continuidade social, as novas formas de interao (experincia individual e
espontnea, automtica e livre de referenciais coercitivos e de
integrao), de novos saberes e domnios cientficos e projetivos (futuro e virtual) da realidade social so, tambm, legitimadores da dinmica, algumas vezes dialtica, entre experincia recordada e esquecimento.
Segundo Halbwachs, o trabalho de construo do esquecimento pelos grupos fundamental porque se trata da
eliminao de lembranas individuais que aos grupos no
interessam mais. Segundo o autor, existe, naturalmente, nos
quadros, uma estrutura do esquecimento, meio-espontnea e
meio-voluntria. O esquecimento apresenta-se, desse modo,
como manifestao de uma experincia coletiva da morfologia
grupal (interesse, afetividade, estabilidade, reaes internas
e externas, mudanas individuais...), de finalidade e poder do
grupo, de temporalidades, etc.
O autor deixa claro que o trabalho de memria pode ser,
ao mesmo tempo, de esquecimento e de reconstruo, de hierarquizao temporal de memria (trabalho simblico para
integrar os grupos, exemplo disso a memria de classe, a religiosa e a familiar), das memrias que se tornam dominantes
e das dominadas, dos rituais e dos nveis de legitimao, bem
como das antigas crenas e da qualidade moral dos grupos e
suas temporalidades em redefinio. Por isso, a experincia
de memria possui uma dimenso estratgica de racionalidade adaptativa e, muitas vezes, instrumental.
O passado, o presente e o virtual exprimem linguagens e
sensibilidades sociais, bem como correntes de pensamentos e
ritmos de vida social, que do dinamismo hierarquia, inten-

232

Joo Carlos Tedesco

sidade e presena da experincia na memria cotidiana dos


indivduos.418
A memria coletiva, para Halbwachs, , ao menos, a memria de um grupo que conserva sua unidade porque representa um tempo que passa como um presente que dura; o grupo reconstri a diversidade de suas experincias em uma unidade de si, uma sedimentao de lembranas de um sujeito
coletivo a sociedade que ns formamos com ns-mesmos,
o ponto de vista do grupo, uma afetividade, uma viso e
uma psicologia de interesse de grupo, princpio de reciprocidade diz Halbwachs.
O festejar, o comemorar, o reencontrar memrias vividas
exemplificam experincias temporais em interao, identidades valorizadas. Segundo Namer, a partir da necessidades
de ritos, de smbolos e de vivncias de memrias coletivas que
possvel imaginar uma tica e uma poltica de memria coletiva que tem na experincia sua mediao.419
Simmel420 diz que a experincia a conjuno no individual de dados ambientais com uma certa sensibilidade,
ou um certo modo de se referenciar ao mundo. Para o autor,
os indivduos no fazem experincias somente num sentido
passivo (em adequao com as condies atuais da vida cotidiana), e, sim, estabelecem com as coisas, uma certa reapropriao consciente e de sua finalidade, ou seja, quem tem

Sobre a noo de corrente de pensamento (como histria escrita e vivida) e


sua lgica de lembrana e de reproduo pelos grupos, ver o texto de Halbwachs La mmoire collective chez les musiciens, em La mmoire collective.
Nesse texto, a noo de traos do passado de fundamental importncia
para histria oral, da conservao e exteriorizao das correntes de memria
dominantes, de como determinados quadros sociais lanam mo de formas
que permitem a reconstruo do passado e fortalecimento da tradio e da
vontade de hegemonia de determinados grupos e dos conflitos entre grupos
e suas memrias.
419
NAMER, G. Mmoire et... p. 239.
420
SIMMEL, op. cit.
418

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

233

experincia tem expectativas e competncia para enfrentar


os desafios, as exigncias e obrigaes.
Para Gadamer,421 a experincia possui sempre uma certa duplicidade, ou seja, de um lado ter adquirido disposio
em relao s experincias em virtude da funcionalidade e do
exerccio; de outro, fazer experincia aceitar colocar em xeque a prpria disposio adquirida. Autenticidade e momentos de negatividade fazem parte da dialtica da experincia. A
experincia , portanto, processo, mudana (assim como o so
os significados e as culturas), criao, construo, exerccio,
seleo, disposio limitada de um campo de possveis, incorporao, memria, percepo e um reexaminamento de um
mundo que, aparentemente, dado por conhecido e adequado.
Halbwachs conferiu memria um estatuto social; atribuiu ao tempo uma dimenso sociolgica especificada em
complexas e mltiplas operaes de rememorao constitutivas de identidade ao mesmo tempo individual e coletiva. O
tempo permite (re)construir o real porque j um constructo
social, uma herana e uma tradio. O autor conectou memria e sociedade, posicionou a memria no centro do processo
social; conferiu uma definio de tempos mltiplos em contraposio a uma viso nica, homognea e esttica do tempo,
pensado como uma estrutura fixa, como um determinante a
priori das representaes e da vida social.422
GADAMER, op. cit., HUSSERL, op. cit., ao falar de experincia desenvolve
a noo de epoch e de mundo da vida. A primeira significa suspender os
juzos, colocar entre parnteses os significados e as categorias com os quais
cotidianamente se compreende o mundo; colocar em suspenso aquilo que
me parece saber j. O mundo da vida d ideia de uma esfera vital na qual
o sujeito est inserido irrefletidamente, porm sensvel e praticamente, pois
envolve o vivido, a experincia, a subjetividade; a esfera que precede as
categorizaes da realidade, do pensamento reflexivo, da cincia..., porm
que no pode ser descrito exaustivamente, pois envolve tambm sentidos.
Ver HUSSERL, La crisi delle scienze europee. In: JEDLOWSKI, P. Il sapere
dellesperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.
422
FARRUGIA, F. Une brve histoire des temps sociaux: Durkheim, Halbwachs,
Gurvitch. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. CVI, 1999. p. 101.
421

234

Joo Carlos Tedesco

Nessa concepo, a memria possui uma dimenso criadora e recriadora de suscitar e ressuscitar imagens, palavras
(vozes), situaes, pessoas e ns-mesmos. Nesse sentido, o
tempo presente importante e indispensvel, pois permite
oferecer uma perspectiva sobre o passado e confere-lhe sentido, intencionalidade, incertezas quanto ao seu valor objetivo
em razo das mltiplas reconstrues subjetivas.423
Na anlise de Halbwachs, como j vimos, a sociedade
presente s retm do passado aquilo que corresponde a suas
dinmicas atuais e que pode se enquadrar nas mltiplas intencionalidades do atual.

Ibidem.

423

Captulo 14
Filtragem de memria
J desenvolvemos bastante a ideia de que a memria no
um dado natural, mas uma construo socio-histrica e cultural.
Nesse sentido, a intercorrelao entre lembrana e esquecimento
o que marca a presena nessa construo. Para tanto, os mtodos de registro ou de conservao so importantes. A narrao,
o texto escrito, outros tipos antigos em madeira, pedras, tecidos,
papel, barro, folhas, chips de computador, gravador, filmadora,
fotografia, pintura, escultura etc. so suportes de que necessita a memria para poder se presentificar e se futuricizar.
Autores afirmam que a possibilidade de seleo e de filtragem
da memria se fez mais intensa justamente pela ligao entre
memria e poder, memria e comunidade, memria e grandes
e pequenas tradies.424
No podemos esquecer que a lembrana e o esquecimento esto na base de cada forma de memria. Memria oral
e memria escrita no se excluem, podem andar separadas,
mas, ao mesmo tempo, podem se fusionar, se alterar. Mitos
populares, identidades fabricadas, genealogias, constituio de grupos identitrios, dentre outros, so ou podero ter
sido expresses dessa conexo de smbolos grficos e de linguagem oral, os quais contriburam para estabelecer conexes simblicas e identitrias entre passado e presente, entre
sociedade e indivduo, o que, em ltima instncia, a funo
da memria.

MATERA, V.; FABIETTI, U. op. cit., p. 15.

424

236

Joo Carlos Tedesco

A identidade, por exemplo, como dizem Matera e Fabietti, tem origem nos processos seletivos e de remoes da histria; desse modo, pode se perpetuar reproduzindo ou reformulando-se pela via dos mecanismos de representao cultural
(memria coletiva para Halbwachs), os quais entram em relao dialtica com a realidade.
A memria pode ser definida, ento, como a sede dos
processos de seleo, remoo, interpretao, elaborao de
situaes passadas. Nesse cenrio, entram o indivduo, o coletivo, o recurso linguagem, aos ritos, s vises de mundo
presentificadas e contemporaneizadas, os modos concretos
nos quais se realizam a memria, poder e valores dominantes
e/ou socioculturais.

Dialtica entre memria, esquecimento e silncio


Sobre a mesa branca e redonda, o silncio revestia o seu real valor, que o de acumular potncia.
Campo (Sotto falso nome)

Para Passerini, o silncio imposto memria pode se dar


na dimenso burocrtica, pblica, oficial e coletiva; no entanto, na esfera do cotidiano, do indivduo, do informal, esse processo no to eficaz. O papel do indivduo fundamental
no restabelecimento de um sentido coletivo ao passado e importante, tambm, para as complexas relaes entre silncio,
memria e esquecimento. Ele reconstitui uma memria subterrnea, ou um silncio relativo, no absoluto; rompe pactos
de amnsia coletiva em nome de reconstituies sociais, polticas, democrticas, econmicas etc., de memrias traumticas e de ressentimentos coletivos.425
PASSERINI, L., op. cit., 2003.

425

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

237

Segundo Ferretti,426 no campo poltico, prevalece o uso do


silncio, ligado muitas vezes ao temor quase supersticioso de
repetir os mesmos erros. Nesse sentido, ainda que implicasse uma srie de frustraes, o silncio contribui para fundar
uma dialtica democrtica sobretudo no sentido de evitar o
uso do passado como arma de batalha poltica. O dito tempo
do silncio permite e tem a funo pblica de tomar uma
certa distncia do passado, mas no para esquec-lo no todo.
Voltamos a dizer, no horizonte do vivido, dos ressentimentos
ou sentimentos privados, pessoais e cotidianos, os processos
de memria continuam. No h um terreno plano e, sim, acidentado entre memria, indivduo e recordaes coletivas.
Segundo Passerini, s vezes, necessrio fora para manter
um silncio que permite meditar e refletir, absorver o significado do ambiente e do projetar-se no futuro.427
possvel ver a memria sem a expresso oral. Essa
mais difcil de fazer esquecer, como o caso da culinria,
do corpo (seus traumas e prazeres), dos nomes aos neonatos,
das fotografias, das cartas etc. So memrias encarnadas
que ganham visibilidade, lembrana e forma nas relaes intersubjetivas. Isso tudo, no temos a menor dvida, os idosos
entrevistados apresentaram atravs de suas experincias em
diversos tempos e lugares. difcil perceber, mas a memria,
para idosos, , talvez, mais do que a palavra. O silncio durante as entrevistas pode conter apelos, exaltaes de aes
em positivo ou negativo, ressentimentos, dentre outros aspectos, um desejo de uma nova maneira de escutar, ou melhor,
de se fazer escutar. O silncio revela a forma fragmentada
e esfacelada da memria, seus traos e destroos, os limites do dizvel, tanto no horizonte do vivido quanto no cam FERRETTI, M. La memoria mutilata. La Russia ricorda. Milano: Corbaccio,
1993.
427
PASSERINI, L., op. cit., 2003. p. 39.
426

238

Joo Carlos Tedesco

po analtico, no caso da historiografia, da memria poltica e


contornada pela esfera pblica, sobretudo quando envolve
sentimento de culpa.
Consideramos significativa a afirmao de Passerini
quando diz que os silncios, os esquecimentos e as memrias
so aspectos do mesmo processo e que a arte da memria no
pode no ser, tambm, a arte do esquecimento por meio da
mediao do silncio.428 No obstante, a filtragem de memria, os silncios e os enquadramentos tambm podem funcionar como estratgias e racionalidades adaptativas dos que
lembram, ocorrendo, muitas vezes, at mesmo compls no interior do grupo. Na anlise de Giron, a memria revelada ou
coletiva guarda com detalhes os xitos e as vitrias pessoais,
o trabalho e os velhos costumes trazidos de longe. A memria
oculta esconde o fracasso, os vcios, os defeitos e o luto. Os
imigrantes, que haviam sofrido com a perda de sua ptria, na
nova terra rejeitam o seu passado pobre. A misria e o luto
pela perda da terra natal, dos pais e da prpria identidade
so sentimentos recalcados.429
Ricouer analisa o fato de que comum, na sociedade, a
manipulao da memria e do esquecimento pelos detentores
do poder. Tanto a memria quanto o esquecimento podem ser
instrumentalizados, tornar-se razo estratgica (Habermas)
em oposio razo comunicacional. Nesse sentido, abusos
de memria so, tambm, abusos do esquecimento. Geralmente, a memria mobilizada para legitimar identidades;
logo, a fragilidade dessas expressa a fragilidade da memria. Legitimidade, carisma, ideologia, manipulao, mediao
simblica, disseminao, credibilidade... so elementos de in PASSERINI, L. Soggettivit e intersoggettivit in sperimentazioni universitarie di didattica e formazione. In: CIRIO, P. (a cura di). Individui, soggetti
e storia. Milano: Mondadori, 1991.
429
GIRON, L. S. Da memria nasce a histria. In: A memria e o ensino da
histria. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.
428

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

239

tegrao identitria que, constantemente, demandam auxlio


memria.430
Muitas memorizaes forjadas se ajustam a comemoraes convenientes, processo que produz aquilo que Todorov
chama de frenesi contemporneo de comemoraes, com
seus cortejos de ritos e de mitos, cotidianamente ligados aos
acontecimentos fundadores evocados ao instante.431 Segundo
Todorov, h um dever de memria que envolve tambm o
trabalho do historiador, o qual se utiliza de referenciais do
passado para no somente estabelecer fatos, mas escolher alguns dentre eles como sendo mais importantes e significativos. Esse trabalho de seleo e de combinao expressa, tambm, o abuso de memria e a sua pertinncia.
Para Ricouer, essa a hermenutica da condio histrica da memria, de seu corpo poltico, de sua dimenso conflitual, de seu engajamento histrico, como matriz histrica (a
memria reduzida a um simples objeto da histria) e de sua
manipulao.432
Nora, em seu texto que fecha o terceiro volume da srie
Les lieux de mmoire Les France sob o ttulo de Lre des
commmorations, fala de uma obsesso, de uma bulimia comemorativa, de uma tirania de memria na formao de um
Estado-nao soberano francs. Para isso acontecer, segundo
o autor, tornou-se necessrio recuperar tradies, memorizar,
comemorar, pertencer a certas pocas, de um dever de mem-

RICOEUR, P. La mmoire...
TODOROV, T. Les abus de la mmoire. Paris: Arla, 1995. p. 13 e 150.
432
Ver RICOEUR, P. La mmoire, lhistoire, loubli (p. 108). Para uma anlise
interessante sobre o uso ideolgico do discurso como forma de manipulao
do poder, do dever de memria, em nome da justia das vtimas de abusos
de ideologias repressivas, ver RICOUER, P. op., cit., na discusso que o autor
faz do livro de ROUSSO, H. Le syndrome de Vichy, de 1944 nos jours. Paris:
Seuil, 1987.
430
431

240

Joo Carlos Tedesco

ria como base moral, como evocao identitria, como cruzada contra o esquecimento.433
J vimos que o esquecimento impede a tomada de conscincia de um acontecimento traumtico, porm a psicanlise
explica que o trauma permanece mesmo quando inacessvel
e indisponvel.434 O esquecimento, segundo Ricoeur, interpretando Freud, necessita de fenmenos de substituio, sintomas que mascaram traumas. Nesse ponto, tanto Freud quanto Bergson so defensores do inesquecvel, ainda que cada um
interprete o inconsciente a seu modo.
Para Ricoeur, o esquecimento pode ser uma estratgia
de fuga, possui uma dimenso ambgua (ativa e passiva, na
tica da negligncia, da omisso, da imprudncia). A prpria
memria pode se revelar como uma organizao e exaltao
do esquecimento. Narrar um drama pode significar esquecer
outro, diz Ricoeur.435

Memria como valor de uso e o


uso como valor simblico
Sabemos que a identidade construda simbolicamente e que, para sobreviver, reproduzir-se e redefinir-se, assim
como se perder, deve ter, entre outros fundamentos, a mem-

NORA, P. (Dir.). Les lieux de mmoire (III Les France). Paris: Gallimard,
1986.
434
Ver, nesse sentido, ROSSI-DORIA, A. Memoria e storia: il caso della deportazione. Soveria: Rubbettino, 1998.
435
RICOEUR, P. La mmoire, lhistoire, loubli, p. 584. Nessa obra (p. 536-589),
o autor faz uma excelente anlise sobre a manipulao da memria, sobre
o esquecimento comandado principalmente durante a ocupao alem na
Frana, sobre os movimentos de liberao, o anti-semitismo, a estrutura
poltica do pas no perodo, a desmistificao do resistencialismo posterior, a
exortao ao esquecimento, omisso, cegueira, ao perdo, anistia (essa
como esquecimento institucional e disseminado), poltica de tolerncia em
nome da unidade nacional e a uma amnesia comandada e privada da carga
traumtica, um quadro de terapia social guiado pelo esprito do perdo.
433

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

241

ria. Tanto a identidade individual quanto a coletiva necessitam disso. desse modo que no cansamos de dizer que a
memria no um dado natural, um pensamento social (ou
uma forma de seleo social da matria cultural e histrica).
Halbwachs foi um dos primeiros autores, ps-dcada de
20 do sculo XX, a relacionar memria, identidade e cultura.
O autor afirma que a memria coletiva, ou o passado partilhado, s pode existir em presena de trs fatores que lhe so inerentes: o referimento s coordenadas espaciais e temporais, a
uma correlao simblica do/no grupo e a uma reconstruo
contnua da memria mesma. A correlao espaciotemporal
fundamental para a lembrana, alis, esta sempre situada
nessas duas esferas; quando se fala em traos de memria,
so os sinais/significados que eventos deixaram no espao e
no tempo. Segundo Halbwachs, os traos de memria produzem, no obstante o fato de serem representao, ritos ou
simples objeto, uma imagem de permanncia e estabilidade.
J falamos que entendemos a noo de memria em Halbwachs como uma forma de seleo social da recordao, de
construo social dos eventos, de produo de representaes
que so construdas a partir de um trabalho de seleo, o qual
engloba ou exclui outras representaes. Por isso, entendemos memria como possibilidade de se ter uma viso sobre o
passado. Nesse sentido, a memria apresenta uma dimenso
poltica, a qual pode exercer influncia histrica, pedaggica, cidad; pode construir, conscientemente ou no, objetivos
determinados; pode fornecer representaes de significados e/
ou para nos dizer por que uma sociedade, uma cultura, uma
identidade o que no presente.
A correlao entre memria, antropologia e historiografia pode se tornar importante no s para dizer por que uma
cultura, uma sociedade e uma identidade so o que so no
presente, mas para dizer o que no so, o que poderiam ter

242

Joo Carlos Tedesco

sido, o que so outras sociedades, outras culturas.436 A seletividade da lembrana est em correspondncia com a possibilidade de constituir mltiplas formas de identidade coletiva.
desse modo que a memria no um simples e fiel registro do passado como queria Bergson e que tanto Marx,
Freud e Halbwachs, se esforaram para negar mas uma representao do passado movida e dialetizada na correlao
entre lembranas e esquecimento.
A filtragem de memria e os esquecimentos podem tambm ser manifestao de uma racionalidade interna que quer
fazer-se ouvir pelo caminho do ethos. Geralmente, as tradies s se mantm onde so possveis justificaes discursivas e dilogo aberto com tradies outras, mas, tambm, com
modos alternativos de fazer as coisas. E esse alternativo e
essa outra possibilidade que confronta mundos, discrimina,
em parte, o passado e torna pretritas determinadas relaes,
funes, aes e sujeitos. Quando se tem a sociedade local e
algum momento de sua histria como foco de anlise, necessrio considerar sua estrutura social e as relaes sociais da
decorrentes. com esse pensamento que estamos tentando
refletir sobre a mudana social, que no meramente sinnimo de inovao, ainda que se saiba que toda a mudana implica graus de inovao. O importante perceber as mltiplas
operaes de traduo que se efetuam entre as pluralidades
de espaos particulares de formulao e de tratamento dos
problemas pertinentes, especialmente entre geraes.
H a necessidade de perceber a relao entre as potencialidades tcnico-cientficas e as lgicas prticas (Habermas
fala muito sobre isso). Essa articulao vai no sentido de uma
normatizao de atividades de produo ou, ento, no sentido
de uma complexidade recproca de prticas dos sujeitos envol MATERA, V.; FABIETTI, U. Memoria e identit. Simboli e strategie del ricordo.
Roma: Meltemi Editore, 1999.

436

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

243

vidos. As tcnicas mais cotidianas possveis, aquelas do lar e


da cozinha, bem como a distino, os gostos, o habitus de classe, de estilo de famlia, da (dis)posio culinria das idosas,
dos saberes alimentares, da interiorizao das geraes subsequentes (socializao e aquisio de habitus) etc., passam
atravs das geraes, independentemente da funcionalidade
do sistema de objetos tcnicos do lar em termos de reduo de
tempo, de economia de mo de obra e de busca de tempo livre
e de ocupaes internamente desejveis.
As sociedades modernas so paradoxais: atribuem uma
autonomia em relao tcnica e, na superfcie, enchem a
vida cotidiana de tcnicas. O que podemos dizer que existe,
na sociedade, em profundidade, uma vida que se vive no dia a
dia, fundada sobre a emoo, a inteligncia imediata e sobre o
sentimento de presena imediata do mundo e, em aparncia,
nossa frente, uma histria e instituies que se fundam sobre a base de uma racionalizao do mundo e de um domnio
tcnico da natureza.
Nessa viso, no podemos esquecer que os sistemas
simblicos normatizam formas de agir; formam uma unidade heterognea constitutiva de um modo de vida particular,
que estabelece, simultaneamente, relaes de exteriorizao/
objetivao com processos que traduzem padres de comportamento e controle da sociedade em geral, bem como representaes em transio, o que faz com que surjam inmeras
estratgias adaptativas. nesse sentido que as condies sociais e as estratgias adaptativas no contexto da produo,
do trabalho e da famlia dos idosos devem ser entendidas e
inseridas no processo de elaborao e de materializao das
representaes sociais no espao da interao de tempos no
mesmo espao (e com ampliao de seus vnculos externos),
como imagens construdas sobre o real.

244

Joo Carlos Tedesco

Partimos do pressuposto de que o cotidiano o espao


onde o econmico, a tcnica e a cultura se relacionam. Essa
cultura tcnica do colono, em plena modernidade, torna-se
um elemento de singularidade que imprime sua marca no
mundo rural. As novas tecnologias perpassam o cotidiano, encontrando nesse um dilogo de materializao e objetividade.
A experincia global da modernidade, do novo, vincula-se
presena das instituies modernas nos atos cotidianos.
As experincias do vivido cotidiano refletem o papel da
tradio em constante mutao. Giddens437 entende tradio
como uma orientao para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influncia, ou, mais precisamente,
constitudo para ter uma pesada influncia sobre o presente.
Nesse processo, o futuro no est ausente, pois as prticas
estabelecidas so utilizadas como uma maneira de organizar
o tempo do amanh. Em outras palavras, a tradio entendida como integridade e continuidade que resiste ao contratempo da mudana; est ligada memria, ao passado reconstrudo, tendo o presente como base e como reelaborao
referencial. A tradio um processo ativo no s individual,
mas, fundamentalmente, social e coletivo, no simplesmente
identificado com lembrana.438
Velocidade, reduo do tempo, papis femininos, principalmente no espao domstico, esto envolvidos num esprito do ser moderno, porm se personificam nas tecnologias do
cotidiano (refrigerador, congelador, aspirador, mquinas de
GIDDENS, A. A vida em uma sociedade ps-industrial. In: BECK, U. (Org.).
Modernizao reflexiva: poltica, tradio e esttica na ordem social moderna.
So Paulo: Unesp, 1997. p.73-113.
438
GIDDENS (p. 112) tematiza o papel do ritual na preservao, garantia e
prtica da tradio, no seu carter moral, como medida de segurana. O
ritualismo existe onde as atividades rituais esto ligadas a noes msticas.
A ritualizao das relaes sociais existe onde a interao social tem uma
forma padronizada adotada como modo de definio dos papis que as pessoas
representam em ocasies cerimoniais.
437

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

245

lavar, microondas, lavadora de louas etc.), em processos tcnicos envolvidos em torno de identidades de gneros no trabalho, os quais implicam cada vez mais o saber-fazer.
A adoo de um aparato tcnico no universo familiar
de trabalho vem ao encontro de prticas e cotidianos no vivido, construtores de um habitus comum. Padres culturais
perduram quando h uma conservao de elementos que lhe
manifestam origem, ou quando mudam as significaes para
resolver os desafios cotidianos. A tradio aqui entendida
como orientao valorativa de significados passados, mas que
se manifestam comumente em momentos e em situaes de
rupturas e/ou redefinies de processos sociais locais.
Uma outra questo importante que precisa ser entendida que a manifestao oral da memria da luta e das estratgias de idosos, independentemente de sexo, para encontrar
espaos internos de significao e de preservao do e no grupo familiar, revela o desejo de jogar para longe a dependncia
e o peso da velhice para si e para os do grupo. Possibilitar
uma face externa diferenciada de seu papel uma forma de
no deixar cair tudo, como uma idosa comentou. A noo de
queda na velhice algo de significado e sensibilidade profunda, porm no deixar cair significados de co-presena, o que
fundamental para os idosos.
Agregar trabalho como valor de uso (insistimos na ideia
do uso como valor), bem como propiciar uma receita financeira para o grupo familiar, via aposentadoria, permitir uma
maior liberao da mulher das atividades educativas, morais
e de vigilncia externa, bem como aproveitar esses momentos e relaes para o resgate do passado e desejar cristalizar
relaes futuras (mesmo que no possam mais v-las amanh!), contribuem, segundo os entrevistados, para legitimar
sua presena no ncleo familiar. A mobilidade de grupo, as
mudanas pessoais e coletivas, as rupturas so importantes

246

Joo Carlos Tedesco

referenciais nas representaes sobre os espaos e tempos vividos.439


Enfim, no podemos fechar o captulo sem dizer que entendemos ser importante partir da memria para estruturar
a identidade (enquanto processo/projeto), porque a trajetria
da histria pessoal histria coletiva o momento da lembrana entre a percepo subjetiva do espao e do tempo e dos
instrumentos para o seu conhecimento.

ECKERT, C., op. cit., p. 182.

439

TER C E IRA pa r t e
Ressignificao de memrias
O relembrar uma atividade mental que no
exercitamos com frequncia porque desgastante ou embaraosa.
N. Bobbio

Captulo 15
Memria, cultura e identidade tnica
No sabemos o que seria de uma cultura na qual no
se saiba mais o que significa narrar.
P. Ricouer

Nesta parte, como j mencionamos, e tambm esporadicamente j fizemos referncia no decorrer de todo o texto, reconstituiremos e analisaremos alguns fragmentos de memria
de um grupo de idosos que convivem com parte de suas famlias no meio rural e urbano da regio colonial do Rio Grande
do Sul, mais especificamente nos municpios de Veranpolis,
Nova Prata e Guapor, procurando dar nfase aos elementos
socio-histricos e culturais que compem o tempo do espao
original e o tempo do espao do incio do novo, ou seja, o incio da nova colnia atravs do processo migratrio interno e
das trajetrias migratrias para as cidades da regio.
Intentamos analisar e perceber a ressignificao de
universos culturais, econmicos e sociais em conflito/tenso,
ambiguidades e ambivalncias expressas no horizonte da famlia, no trabalho, no religioso, na convivncia comunitria,
dentre outros aspectos.440 Teremos presente, no decorrer da
anlise, algo da produo socioantropolgica do campesina Como j mencionamos, muito desse material emprico e muitas descries de
falas esto nos estudos que antecederam o presente, tais como Terra, trabalho
e famlia; Memria e cultura e Um pequeno grande mundo: a famlia italiana no meio rural (ver referncia mais completa na bibliografia). Aqui, parte
desse material ser analisada com o objetivo de aprofundar os significados de
memrias, as reconstrues das formas de pensar e de viver, seja no horizonte
da fala, seja no mbito do cotidiano vivido e no significado cultural para os
grupos de pertencimento tnico.

440

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

249

to na regio colonial com o objetivo de perceber e confrontar


oralidades com anlises j constitudas no campo da memria
sobre esse.
Organizamos nossas indagaes e conversas informais
com idosos em torno de variveis como enquadramento social,
religioso e familiar, patrimnio cultural e histrico, o horizonte da narrao, locais, objetos e fatos de memria, experincias e mudanas sociais e fsicas.
Buscamos ter sempre presente um cenrio em que o tempo, as coisas no tempo, o sentido da narrao, a flexibilidade
cultural e social, a informao voltada para o prognstico,
para o futuro, para a previso, e no para o passado, em que
locais de memria, de certa forma, fetichizam o passado e se
transformam em espaos de circulao mercantil do tempo e
dos objetos; em que os idosos no so mais tanto os guardies
de memria (como diz Halbwachs), mas indivduos de pouca
significao tnica, social e econmica; em que o vivido est
fortemente ganhando espaos de liberdade dos elementos
normativos da famlia e da comunidade, porm intensamente influenciado em outros horizontes pela mass media, dentre
outras questes. Tendo isso presente, buscamos expressar algumas angstias e tenses vividas pelos idosos como expressivas de uma trajetria de adaptao ntima entre o homem e
o seu meio, mediada pela terra, pela famlia, pelo trabalho e
pelo saber-fazer, ou seja, elementos camponeses constituintes
da cultura de grande parte dos idosos entrevistados.
Orientamos nossa anlise atravs de algumas variveis
e de alguns temas que foram expressivos durante as entrevistas e os contatos informais. No deixamos de lado a tentativa de idosos de tentar reconstituir, ainda que fragmentada
e localizada em pontos de referncia considerados por eles de
maior importncia, a histria pessoal uma incipiente histria de vida , buscando perceber as memrias pessoais, que

250

Joo Carlos Tedesco

mais livremente os idosos tinham vontade de expressar.


Tentamos nunca esquecer a memria que idosos possuam
do ser migrante, em grande parte, descendentes diretos de
imigrantes italianos e que viveram ou vivem ainda na e com
a colnia, da vida no meio rural e, nesse tema, a centralidade do trabalho, da famlia e da terra. No cenrio do espao
urbano, centramos a anlise em torno de temas da vida no
meio urbano, como famlia, novas sociabilidades e trabalho.
A inteno era sempre ter presente a forma como os idosos
reinterpretam, narram e inventam as experincias vividas
em correlao a tempos e espaos diferentes, os liames entre
origem, trajetrias e situao atual.
Sabemos que a recordao acontece, em grande parte, por
associao (importncia dos smbolos, fotos, objetos...). Ao longo
da vida, vamos organizando ideias e experincias, das quais as
que envolvem mais paixo so as mais fortes, enfticas e frequentes. O recordar/revisar implica muitas vezes a ampliao, a
interpretao a partir de referenciais subsequentes, de mbitos
instrumentais e presentistas. nesse sentido que percebemos
que os idosos revisam suas lembranas, tornam-nas amadurecidas como sua vida, sua experincia e seus contatos reduzidos.
Conforme as geraes se distanciam, repositrios de lembranas
se associam aos seus sucessores, segmentos de tempos vo se
conectando com lembranas mais antigas, os mortos anexam
os vivos, que se tornam suas rplicas e sucessores.441 Por isso,
interessante compreender a memria como funo no de
preservao, mas de adaptao, reconstruo, seleo, alterao de cdigos e percepes etc., os quais classificam o mundo
e imprimem significados existncia passada e presente.
Diz Lucena que interessante indagar sobre os significados simblicos que permeiam os universos culturais e refletir
HALBWACHS, M. A memria coletiva, p. 68.

441

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

251

sobre a mobilidade social, levando em considerao as representaes442 do rural e do urbano.


Como vimos, o cotidiano o espao por excelncia de percepo das formas, do significado e das redefinies da historicidade e da dinmica das representaes sociais que norteiam a vida de idosos. As tarefas cotidianas so ritualsticas,
seu grau de repetio correspondente ao estgio de conhecimento, aceitao e repercusso ou influncia das representaes sociais do objeto ou da ao.443 Os valores da cultura s
podem ser analisados nos signos (sinais) que manifestam esses valores, os quais, normalmente, so refeitos e reinterpretados constantemente. Os valores ticos, estticos, prticos
(do fazer) e tcnicos podem estar presentes e agrupados num
conjunto de representaes que, no caso dos idosos, so vivenciadas, cotidianamente, em seu plano de exteriorizao e/ou
narrao das experincias, na releitura narrativa de aspectos
das representaes mais universalizantes. No conjunto das
representaes sociais, h um processo de filtragem na ordem
do vivido do idoso, ou seja, filtra-se o percebido que no afeta
(rompe) a ordem cultural do vivido, que ocorre na tica do
procedimento.
No universo epistemolgico da representao social,
as experincias humanas afetivas, morais e culturais esto
presentes; o processo social como um todo no se fundamenta unicamente em causas econmicas. H experincias diferenciadas nas quais a representao social constitui uma
experincia social fundada nos costumes, nos processos e nas
instituies. Thompson nos auxilia na medida em que aglu As representaes simbolizam traos de memria, reconstruo coletiva ou
individual, substituio e identificao objetal e simblica de uma presena
ausente produzida na memria e passvel de se fazer identificar. Nesse sentido,
ver CHARTIER, R. A histria cultural entre prticas e representaes. Rio de
Janeiro: Bertrand, 1990.
443
RASIA, op. cit.
442

252

Joo Carlos Tedesco

tina a vida material e sua estruturao classista com experincias do vivido na constituio do pensamento e dos procedimentos dos atores sociais. Isso no significa dar autonomia
e determinao aos processos histrico-estruturais nem aos
indivduos.444 H um horizonte de experincias e sentimentos coordenadas de sua cultura, como normas, obrigaes
e reciprocidades familiares e de parentesco ou mediante
formas mais elaboradas como experincias artsticas e religiosas.445 Valores e razo esto imbricados num campo de
lutas,446 de escolhas, de situaes e adeses em confronto e/ou
conformidade com o patrimnio cultural (habitus)447 e a conscincia afetiva e moral dos atores em questo.
Por mais que as representaes da sociedade moderna
tendam a focalizar as prticas sociais derivadas da existncia primeira dos indivduos ou do somatrio desses, resduos
e imaginaes irredutveis brotam das prprias relaes de
poder, as quais, porm, escapam do poder. A noo de habitus familiar de colono, ligada noo de experincia, resgata
aes do sujeito como determinado/determinante, no restrito
ao universo da classe, mas esfera da cultura, conscincia
social do agente, incluindo a suas representaes, experin-

THOMPSON, E. P. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de


Janeiro: Zahar, 1981.
445
Idem., 1981. p. 263.
446
A noo de campo perpassa inmeros trabalhos de Bourdieu, referindo-se,
sinteticamente, ao espao de disposies dos agentes em lutas e conflitos por
posies, recursos, legitimidades, status, delimitados por esferas possveis de
ao, nas quais atuam de acordo com os interesses em jogo. Portanto, um
espao de disputas de interesses de posies e correlaes de classes, reforador
de legitimidade da estrutura social.
447
O habitus o sistema de disposies durveis e transponveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto ,
enquanto princpios geradores e organizadores de prticas e representaes
[...]; ele assegura a presena ativa das experincias passadas que, depositadas
em cada organismo, sob a forma de esquemas de percepo, de pensamento
e de ao tendem, mais seguramente que as regras formais [...] a garantir a
conformidade das prticas e sua constncia no tempo. Ver BOURDIEU, P.
O poder simblico. Rio de Janeiro: Difel, 1989. p. 91.
444

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

253

cias socialmente demarcadas, passadas e presentes, confrontadas, em conflito e tenso com seus limites.448
Thompson enfatiza os elementos culturais sobre os de
natureza socioeconmica, salientando a importncia de se decodificar o comportamento e de se desvendar normas invisveis de ao, sem esquecer a estrutura das relaes de classe.
O interesse de Thompson pelas formas de existncia e pelas
atitudes, no tanto pela transformao e pela causalidade,
postulando a interao dialtica entre experincia e conscincia social. Demonstrar a motivao racional, autnoma e
coerente dos ativistas populares equivale a mostrar, em outra
esfera determinante, que os inferiores representaram um
importante papel na configurao de sua prpria histria,449
o que, para o nosso caso, significa resgatar os resduos histricos constitutivos de relaes em torno da famlia, configuradores do ethos de colono.
Como j vimos, a experincia aciona e influencia a cultura
e os valores, articula aes sobre outras atividades. A experincia, para Thompson, gerada na vida material, localizando o
ser no social e formando tambm sua conscincia social, porm
a previsibilidade das aes no totalmente determinada.
por isso que reconstituir espaos, smbolos e permitir
ressignificaes orais e objetais de uma cultura que possui
horizontes populares, que, mesmo no sendo conscientemente trabalhada, reflete processos histricos e culturais de longa data, como o caso da camponesa, , no mnimo, reverter
Ver RASIA, op. cit.
As descries e anlises de Thompson sobre as rebelies pela falta de alimentos na Inglaterra do Sculo XVIII mostram-nos como os aldees, movidos
por uma economia moral, impunham a coleta e a venda de gros conforme a
tradicional economia moral, o que fez a pequena nobreza rever seus conceitos sobre o papel do ativismo coletivo, bem como manter alguns aspectos do
modelo paternalista. O papel de uma economia moral compartilhada tornase associado a questes de poder, identidade e imbricao aos horizontes da
estrutura social, demonstrando, assim, a importncia dos fatores culturais e
comunitrios na motivao dos sujeitos para construir sua prpria histria.

448
449

254

Joo Carlos Tedesco

um pouco o vetor da memria patrimonial tradicional, ainda


mais quando se fala de sujeitos que, estruturalmente, esto
em processo de esquecimento e de desvalorizao, como o
caso dos idosos na contemporaneidade.
Pensamos que possvel perceber temporalidades de
conceitos, possibilidades de apreenso de experincias vividas, de uma hermenutica do cotidiano do passado vivido e
significado, que tanto a temporalidade quanto a linguagem
que a fundamenta so possibilidade de acesso informao,
que possvel interpretar vestgios, o aparentemente imperceptvel, as adaptaes e os impulsos de denncia. Significa
permitir vozes da dignidade, at porque se sabe que muitas
lembranas so guardadas na perspectiva de membros de
grupos (famlia, etnia, colonos, sobrenomes etc.).
Os idosos, sem haver deliberao, so encarregados de
guardar as lembranas do passado dos grupos; devem tambm trabalhar, no presente, a transmisso de gerao a gerao, conservar objetos materiais importantes, promover cerimnias que representem os percursos vividos por eles e que
sejam transmitidos aos de hoje.
Rituais religiosos na comunidade e na famlia (reza do
tero, ascoltar la messa, receber a santinha e convidar a
vizinhana), acervos de culinria, utilizao de objetos e
ferramentas de trabalho, saberes cristalizados e considerados eficazes, regramentos morais e ticos so estratgias e
tentativas de materializao de reatualizao de aes e de
horizontes memorizveis que idosos imprimem. O fato de
muitos idosos permanecerem por mais tempo e adquirirem
maiores responsabilidade educativas informais com os netos
talvez auxilie no processo de transmisso da memria. Palavras, gestos, rituais de iniciao, apropriao dialetal, usos
de objetos, etc. podero, nesse processo de contato, demarcar
fronteiras entre o visvel e o invisvel, de um passado visvel
num presente invisvel, fora do tempo, como se fizesse parte

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

255

de um domnio substrato em relao s mudanas consideradas irreversveis. Desse modo, imagens e vises de mundo,
duram mais e podem passar de gerao a gerao; tornam
possvel a operacionalidade de sinais de memria coletiva, de
reencarnao de personagens e formas de vida passada: ou
seja, poder acontecer, na prtica, uma tendncia de os idosos
transmitirem aos mais jovens contedos mais importantes da
experincia vital das geraes precedentes.450
Poderamos dizer que esse um trabalho submerso, mas
real, de idosos nas famlias e no seu estreito mundo social
existente; uma tentativa de reconstruo incessante do fio
incerto da tradio familiar, a trama invisvel que sustenta
o ciclo da continuidade com as mudanas culturais. Temos
a convico de que as narraes intergeracionais, principalmente em famlia de mais co-presena e pertencimento como
aquelas do meio rural da regio de pesquisa, fazem-se sempre
intermitentes atravs do peso da experincia e do acervo
lingustico. Diz Paoli que importante recriar a memria dos
que perderam no s o poder,
[...] mas tambm a visibilidade de suas aes, resistncias e projetos.
Ela pressupe que a tarefa principal a ser contemplada em uma poltica de preservao e produo do patrimnio coletivo que repouse no
reconhecimento do direito ao passado enquanto dimenso bsica da
cidadania, resgatar estas aes e mesmo suas utopias no realizadas,
fazendo-as emergir ao lado da memria do poder e em contestao
ao seu triunfalismo. Aposta, portanto, na existncia de memrias
coletivas que, mesmo heterogneas, so fortes referenciais do grupo
mesmo quando tenham um fraco nexo com a histria instituda.
exatamente a que se encontra um dos maiores desafios: fazer com que
experincias silenciadas, suprimidas ou privatizadas da populao se
reencontrem com a dimenso histrica.451

Ver algo nesse sentido em KRZYSZTOF, P. De lhistoire la mmoire. Revue


de Mtaphysique et de Morale, Paris: CNRS, n. 1, jan./mar. 1998. p. 63-110.
451
PAOLI, M. C. Histria e cidadania: o direito ao passado. In: Secretaria Municipal da Cultura/PMSP. O direito memria: patrimnio histrico e cidadania.
DPH, So Paulo, 1991. p. 27.
450

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Joo Carlos Tedesco

Os valores culturais superpostos e as histrias contadas pelos migrantes aparecem carregados de subjetividade;
no so exatamente as representaes do passado porque so
adaptadas s situaes atuais, ou seja, ajustadas s identidades no presente. Nas narrativas histricas misturam-se
sonhos, imaginao e realidade; imaginaes compartilhadas
entre os habitantes dos espaos em mltiplas camadas de
tempo e de espao, representaes dinmicas pelas quais os
migrantes percebem e confrontam mudanas nas suas condies de existncia na interseco de culturas.452

O cenrio emprico: fonte e base de


memria de idosos
Relembrar mais do que se deslocar para o
passado e deslocar para o presente fatos vividos.
Lucena

A agricultura foi o elemento aglutinador e formador do


espao de vida e de sociabilidade do imigrante que chegou
regio colonial no final do Sculo XIX e incio do Sculo XX e
do que migrou para as Colnias Novas nas primeiras dcadas
do sculo XX. Viver da terra, com a terra e para a terra, no horizonte do trabalho e da interao entre dominao/explorao e resultados produtivos, foi sempre a marca da identidade
camponesa de colonos da referida regio.
Os idosos entrevistados e que migraram para os espaos
urbanos indicados tambm carregam as marcas no corpo, na
experincia de vida, em grande parte das relaes cotidianas
na famlia e no meio social, de um tempo de vida vivido na
relao com a terra. A cultura urbana, nas cidades indicadas,
LUCENA, C. T. Artes de lembrar...

452

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

257

constituiu-se em uma mescla de valores e tradies culturais


do colono com as novas dinmicas de vida urbana da modernidade social e instrumental do cotidiano. Por isso, a noo de
reconstituio cultural de sujeitos em espaos diferenciados e
que se produz na e com a produo do espao fundamental.
A ideia de reconstituio, ou de reinveno, em meio a
perdas e ganhos, um fator de anlise importante para entender estratgias, preocupaes, lembranas de espaos e de
fatos vividos pelos idosos.
Anderson fala de uma comunidade imaginria,453 ou
seja, sentidos que o presente d, imagens coletivas que a contemporaneidade produz em relao ao passado e que esse no
possua quando determinadas situaes ocorriam. desse
modo que a histria pode ser frtil na determinao de sentidos de temporalidades, fundindo referncias e textualidades,
refazendo itinerrios de significados, conectando episdios
que, em termos de memria, estavam fragmentados e soltos.
Porm, no se pode esquecer que a dita comunidade imaginria, em geral, uma produo da histria, uma construo de memria e no da memria; compreende, no presente,
uma imagem mental do passado.
Pinto afirma que a memria mais do que uma pura representao; ela assegura permanncias, manifestaes sobreviventes de um passado muitas vezes sepultado, sempre
isolado do presente pelas muitas transformaes, pelos cortes
que fragmentam o tempo. Memria como lugar de persistncia,
de continuidade, de capacidade de viver o hoje inexistente.454
Em termos empricos, a derrubada da mata, a rotao de
culturas tanto de subsistncia quanto de carter comercial ,
a reconstituio da fertilidade do solo, a depredao para cons Ver ANDERSON, B. Nao e conscincia nacional. So Paulo: tica, 1982.
PINTO, J. P. Os muitos tempos da memria. Projeto Histria, So Paulo, n.
17, 1998. p. 207.

453
454

258

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tituir a roa, o plantio de culturas nativas (mandioca, milho,


feijo) associadas s europeias (trigo, batata, cevada) etc., produziram, reproduziram e esgotaram o espao previamente delimitado, porm solidificaram, reproduziram e redefiniram um
modo de vida e uma estrutura familiar que se redefinem com a
contemporaneidade, independentes, porm influenciados, contituidos por espaos de co-presena de idosos e que guardam
marcas em espaos e tempos variados e de longa data na regio,
provocando deslocamentos e reorganizao da vida no espao.
A organizao do sistema de economia agrcola na colnia, com o passar das dcadas, passou a sofrer e explicitar
pontos de estrangulamentos que giravam em torno da infra-estrutura de comrcio e de transporte, da depreciao e
baixssimo valor dos produtos, do esgotamento do solo e da
impossibilidade de aquisio de novas reas prximas. A policultura comercial comeou a ceder parte de seu espao para a
produo de sunos e seus derivados, especialmente a banha.
O solo frtil e a alta produtividade do milho da decorrente
fizeram da produo de sunos o elemento de convergncia
de relaes de produo e de comercializao embasadas na
agricultura familiar do colono.
Idosos lembram, com nostalgia e um certo ufanismo, a
chiqueirada de porco que se vendia [...], as roas de milho
que no inverno se dobrava pra depois, com o tempo e conforme ia tendo lugar no paiol, quebrar e guardar. Se consumia
paiol e paiol de milho, tudo se transformava em carne naquela poca, viu. Se tribulava que guai, ma se descansava mais
do que agora.
Os integrantes da unidade domstica e de convivncia no
meio rural (re)definem uma determinada organizao de seus
processos de trabalho e de relaes, estabelecendo acordos
bsicos relacionados com a composio da famlia, com necessidades econmicas, distribuio da fora de trabalho, das

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

259

variveis demogrfica e etria e do seu grau de dependncia


com os circuitos comerciais e (agro)industriais. Isso implica
esquemas de percepo, de pensamento, de organizao de tarefas, de uso do tempo e de recursos referidos continuidade
e reproduo do grupo familiar.
O forte vnculo que existia entre produo, consumo, comercializao, trabalho e famlia, renda e nmero de filhos
reorienta-se com as transformaes na vida domstica, com
o crescente envolvimento da mulher na fora de trabalho no
especificamente agrcola.
As relaes sociais de gnero, a organizao patriarcal,
a hierarquia em termos de idade, os espaos de trabalho, do
pblico, do lar etc. sempre marcaram e definiram a conduta
e o contato do agir cotidiano dos indivduos na famlia e nas
aes sociais como um todo, por mais que suas intensidades
e repercusses tenham sido variadas. A profunda interao
entre famlia, terra e trabalho sempre definiu, e define ainda
hoje, as obrigaes, os espaos, o poder, a submisso, os investimentos, a prole, a sada e a permanncia de elementos no
ncleo familiar.
A reproduo, a fragmentao e ampliao do patrimnio, das responsabilidades etc. constroem o imaginrio das
representaes sociais definidoras dos papis, sejam esses de
submisso, sejam complementaridade hierarquizada entre
seus membros, o que no quer dizer que no haja tenses,
conflitos, aceitaes, normatividades, visibilidades e invisibilidades de importncia, incorporadas ou ideologicamente expressas em convivncias de afirmao de autoridade e de poder. Enquanto representao social de gnero, no h dvida
de que, at bem pouco tempo, talvez at com mais atraso no
meio rural (pelas especificidades polticas, culturais, econmicas...), as tarefas femininas situavam-se na tica do secundrio, da incapacidade, sendo responsabilizadas mais por fra-

260

Joo Carlos Tedesco

cassos do que pelo sucesso tanto do marido quanto da famlia.


A ideia de que a agricultura uma atividade da famlia, no
uma atividade individual, est bem presente na memria de
idosos, tanto dos que migraram para a cidade quanto dos que
permanecem no ncleo familiar rural
A memria da terra, correlacionada sempre com a produo e com o trabalho na tica do sacrifcio, no descuida da
presena e da centralidade da famlia. Nessa, como j vimos, a
casa ponto focal, porm casa sem comida como se o elemento que a justifica no se fizesse presente. Comida abundante
como fruto da natureza e do trabalho das pessoas podia no
ter outra coisa, dinheiro, luxo, mas comida era a primeira preocupao, se fazia de tudo pela comida. As plantaes davam
a comida, n, carne se tinha em abundncia [...].
A expanso da ocupao do territrio, definido por vrias
formas de colonizao, deu-se muito rapidamente, comeando pela periferia das antigas colnias, seguindo por toda a
margem meridional do Planalto, alcanando os Aparados da
Serra, o vale do rio Uruguai, estendendo-se pelo Oeste catarinense e paranaense. A regio que realmente delimitou as
trajetrias de migraes internas foi a direo noroeste.
Vrios fatores contriburam para que houvesse o deslocamento de colonos de um espao previamente definido para
outro. Fatores de ordem estrutural e conjuntural, ligados
famlia, terra, demografia, herana/matrimnio, ao nmero elevado de filhos na famlia original, s promessas no
cumpridas dos agentes de imigrao/colonizao (pblica e/ou
particular), aos conflitos com os nativos e os de sua nacionalidade, diferena em termos regionais e dialetais, heterogeneidade cultural, a sentimentos nacionais (principalmente do
pas de origem), foram tambm determinantes, pelo menos,
foram tambm elementos assim referidos pelos nossos informantes que ainda se lembram. Disse-nos um nono migra-

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

261

do para uma nova colnia e, na dcada de 70, para a cidade de


Nova Prata: Meu pai disse:
Olha no d mais pra ficar todos aqui, eu, o Pedro e as moas vamos
mais pra frente, pra Serafina (hoje Serafina Corra), o Toni fica, se
casa e se vira sozinho aqui agora. E foi o que fizemos. Vuto qu? A
terra era poca, tinha de tent onde ainda era possvel fazer futuro.
Me lembro bem que no levamos muita coisa porque deixamos
quase tudo pro meu irmo. [...]. Comeamos tudo de novo. [...].
Depois, quando tava colocado, nis (cnjuges) que fomos para a
cidade e os filhos ficaram em Serafina e um depois foi pra Casca
e se fizeram. Mas sei que no foi fcil pro meu pai, no, eu ainda,
graas a Deus, casei bem, a mulher era filha nica e pegou um
bom pedao de terra, foi isso que me deixou bem. [...]. Vontade de
trabalhar sempre tive. O exemplo do pai ficou bem firme em toda a
famlia. Mas no foram todos assim no, muitos que tinham pouca
vontade de trabalhar venderam fora tudo, italiano tambm, sim.

Os imigrantes e seus descendentes viam com certa hostilidade e desprezo o modo de vida principalmente dos negros e caboclos que habitavam a regio. A produo agrcola dos caboclos,
prioritariamente voltada para o autoconsumo, seu isolamento e
no-fixao por muito tempo num local, a forma como produziam, a pouca importncia dada apropriao da propriedade
privada, dentre outras, como caractersticas da sua organizao e do desenvolvimento socioeconmico, promoveu diferenciaes entre os estratos socioculturais no espao agrcola.
A estruturao da propriedade pela determinao da
legislao, pelas condies econmicas dos colonos-migrantes, pelo seu carter tradicional de relao com a terra e com
determinados tipos de produtos, pela topografia, em grande
parte muito montanhosa, pela expanso e facilidades naturais e infraestruturais (rios, estradas) etc., sem dicotomizar
e/ou reificar a chamada vocao empresarial, fez da regio
colonial um espao de economia dinmica.455
Ver ROCHE, J. A imigrao alem no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1969. v. I.

455

262

Joo Carlos Tedesco

O trabalho artesanal na confeco de tecidos, na produo de inmeros produtos coloniais, os moinhos, as atividades
artesanais profissionais,456 mesmo sendo de mbito local, serviam como complemento de renda para o colono, como recurso de subsistncia, como fonte alimentar e como suprimento
de instrumentos domsticos e/ou domiciliares.457 Essas atividades e esses domnios tcnicos emigraram com os colonos
at as Colnias Velhas e, dessas, para os novos espaos de
deslocamento; apenas se adaptaram s condies espaciais
e objetivas das colnias. Esse processo aglutinava as foras
plenas da famlia, bem como as marginais (no caso, crianas
e idosos).
A dimenso da racionalidade e da tica do trabalho que
a alimenta e, ao mesmo tempo, promove o acmulo de capital
fez-nos entender tambm que, na concepo dos sujeitos da
pesquisa, progresso no se fazia sem sacrifcio, alis, sacrifcio e progresso, para a tica do colono, so dimenses complementares: o sacrifcio era e continua sendo promotor do
progresso; com esse, o progresso vinha naturalmente.
As prticas de herana eram pensadas com o sentido de
evitar a fragmentao das unidades de produo. O direito
costumeiro e as vrias formas do sistema de partilha, quando
havia, eram acionadas para determinar as regras de herana.
O problema da escassez de terra e da pouca perspectiva de
ter na terra possibilidade de reproduo econmica, a existncia hoje de um mercado de trabalho fora da agricultura, em
atividades que no requerem tanta qualificao profissional,
facilitaram os arranjos e esto tornando menos problemtica
Ibidem.
SCHNEIDER, S. Os colonos da indstria caladista: expanso industrial e
as transformaes da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. Dissertao (Mestrado) - Unicamp, Campinas, 1994; ver, tambm, do mesmo autor
Agricultura familiar e pluriatividade. Tese (doutorado) - Ufrgs, Porto Alegre,
1999.

456
457

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

263

a concorrncia interna pelas fatias de terra no mbito das


famlias.
As condies de produo, a varivel demogrfica e de
gnero, o nvel de influncia do direito formal, em contraposio aos arranjos internos, entre outros, foram definindo momentos, decises e lgicas internas do processo de transmisso do patrimnio. A preocupao dos filhos e/ou do possvel
herdeiro com o retardamento, o desejo dos pais em preservar
a autoridade (na posio de proprietrio), a falta de dilogo
interno sobre isso, a impensada e indesejada (interna e comunitariamente) apelao para o direito formal ou a contraposio aberta desigualdade etc. so conflitos e preocupaes
(re)veladas. Percebemos que as solues encontradas eram
vrias e variveis, contingenciais e pouco normativas; dependiam de inmeros fatores, inclusive da conjuntura socioeconmica, das condies objetivas (econmicas) e simblicas
possveis e disponveis nas unidades familiares; possvel dizer, com toda a firmeza, que faziam parte das racionalidades
adaptativas em razo das condies objetivas existentes.
A reproduo social do agricultor familiar estava intimamente relacionada produo e reproduo das unidades
domsticas e dos indivduos nelas, mediante estratificaes
individuais e cooperativas, o que implicava certa tenso interna. Assim como as estratgias matrimoniais, os processos
de herana eram flexveis, o que no necessariamente quer
dizer que no podiam seguir normas costumeiras e, muito
menos, do sistema jurdico. Os vrios tipos, modelos e desvios de herana (indivisa, igualitria, divisvel, diversidade
de bens etc.) no seguiam normas claras; enfim, eram adaptaes de estratgias familiares num jogo em que se combinavam elementos internos e externos. Essa era a riqueza e a
diversidade de aes que envolviam o agricultor familiar.

264

Joo Carlos Tedesco

A infraestrutura para o escoamento e a comercializao,


o ritmo dos nichos de mercado, a disponibilidade monetria
do colono, o papel do Estado em termos de garantia do mnimo
de sobrevivncia fizeram com que o espao regional tambm
apresentasse dinmicas econmicas heterogneas em termos
de atividades e temporalidades.
Trabalhamos muito nas estradas, era a forma mais segura de
fazer dinheiro. Lembro que meu pai ficava at semanas fora, ou
trabalhando em construo, n, ou em estradas e abrindo picada.
Naquele tempo, era as carroas que passavam, mas logo, logo,
chegou o caminho tambm aqui, viu e essas estradas tinham de
ser alargadas e melhoradas. Asfalto aqui veio s, acho, l pelos
anos 70, final de 70. Tinha comrcio aqui que s pra ver, iam pra
Muum, atravessavam as Anta (Rio) e iam pra Caxias, pra So
Sebastio do Ca, at Porto Alegre muitos iam de carroa lev
produto. Meu pai fez muito isso. Quando viemos para Nova Prata,
comeamos tambm com um pequeno comrcio. [...]. Foi l por 76.
[...]. Conservamos a tradio de comerciante.

O crescimento urbano e a formao de uma rede urbana


influenciaram, sobremaneira, a determinao do comrcio na
regio de colonizao. Esse processo, em alguns momentos,
provocou a pulverizao de recursos entre colonos; em outros,
foi indutor de pequenas indstrias subsidirias, desenvolvidas a partir de atividades artesanais. De outro modo, a mecanizao, os insumos, a tecnologia, a topografia montanhosa,
a reduo da fora de trabalho da unidade familiar, a manipulao gentica, os herbicidas, o baixo preo dos produtos, a
falta de tradio em relao a determinadas culturas, entre
outras questes, fizeram com que as trajetrias migratrias,
o espao urbano, novas estratgias de sobrevivncia se fizessem presentes.458
As vrias formas de variao da produo dos colonos
da regio eram expresses tambm das condies econmicas
SCHNEIDER, op. cit.

458

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

265

diferenciadas entre ambos, dos tipos de solos, da disponibilidade de mo de obra e do acervo tcnico disponvel, da prpria
dinmica e interao entre as unidades familiares, do mercado de insumo e de subsdios tcnicos para a agricultura, do
conhecimento de tcnicas e recursos internos, etc.459
Os vnculos de vizinhana, honestidade e reciprocidade,
bem como uma contabilidade do tempo no muito racional e
formal, eram alguns dos requisitos que materializavam essa
prtica histrica em meio aos colonos. A entreajuda situavase numa dimenso bilateralmente acordada em funo de vrias questes. A proximidade familiar e fsica, a preciso e
a solidariedade tradicional, como elementos constituintes do
ethos de colono, criaram formas de deciso.
Havia um saber incorporado e historicizado em funo
das adaptabilidades temporais e econmicas, sobretudo mais
recentemente, quando essa atividade passou a ser uma variao bem mais econmica do que agrcola. As estratgias
defensivas para dominar, prtica e simbolicamente, o risco e
as perdas esto no mbito do conhecimento, porm os idosos
no cansam de dizer que, quanto mais melhoram tecnicamente na produo, mais sutilezas, mais debilidades e cuidados
aparecem; a vigilncia e o saber emprico-tcnico precisam
ser mais intensos e rapidamente acionados.
A forma integrada de produtos, processos, tempos, saberes e fora de trabalho agrega valores de uma atividade e de
um produto a outro, o que faz o resultado global a corrente
ser, em alguns momentos, positivo; so articulaes agregadas, integradas, subordinadas ou no ao conjunto de fatores
e estratgias adaptativas de que os colonos dispunham e com
os quais se aventuraram em razo de necessidades, de carncias, de processos globais, acumulaes, presentes e ausentes,
Idem.

459

266

Joo Carlos Tedesco

formadoras e reprodutoras do ethos de colono e da sua organizao da vida econmica e familiar.


A sada de pessoas (filhos) e ou de ncleos de famlias recm formados para os novos espaos viabilizava a no diviso
do patrimnio da casa no espao-me. O matrimnio, a migrao e a propriedade eram partes de um mesmo modelo de
organizao interna. Alguns tomaram outros rumos para
que o rumo de at ento se reproduzisse e se solidificasse.
Os projetos de reproduo social e de patrimnio passam por
vieses no mais aglutinadores da colnia-me; os grupos vo
formando identidades redefinidas e os graus de parentesco
vo se tornando mais tnues.460
Por mais que a estratgia dos que migraram tenha sido
de estruturar-se em grupos, mesmo com diferenas tnicas e
regionais, os limites objetivos e estruturais, bem como afetivos, obrigaram-nos a dimensionar certa solidariedade e vnculo vicinal.461 A busca de formao de grupos permitiu que,
mesmo traumatizada pela imigrao/migrao, certa homogeneidade cultural no interior das colnias se consolidasse,
preservando, assim, certo patrimnio cultural e social.
As condies materiais de produo, associadas ao meio
e s relaes sociais que se constroem a partir disso, asseguravam processos sociais nucleados em torno da famlia,
da organizao do trabalho, da comunidade, da vizinhana e
do parentesco, do mundo exterior, da sua organizao social
para a sobrevivncia, para a sociabilidade, para o domnio da
natureza e para a construo da individualidade.
A ordem social do colono fundava-se na ligao entre propriedade, famlia e trabalho, este com sentido alm do econ SCHNEIDER, op. cit.
SEYFERTH, G. Camponeses ou operrios? O significado da categoria colono
numa situao de mudana. Revista do Museu Paulista, So Paulo, v. XXIX,
1984. p. 72-96.

460
461

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

267

mico. O trabalho como obrigao, dedicao, dever moral, superao, virtude, acesso riqueza e promoo da exaltao
do homem etc., ligado propriedade, formaria o espao social
e a trajetria sequencial das estratgias de reproduo familiar e organizao da individualidade do colono.
Compreender o feixe de relaes que se aglutinam e se
anulam num processo de migrao e localizao num determinado lugar no tarefa fcil. A relao homem/natureza
foi resolvida pelo domnio daquele sobre esta (a ideia de desbravar, de pioneiro, de derrubar, de mexer com a terra, de
construir, perpassa muitos desses textos). As relaes sociais
na produo so pouco ou nada inseridas ou at desconsideradas, ou, ento, vistas s do prisma da produo, do econmico
e/ou do cultural. O social apresenta-se segundo o olhar dos
grupos que se sobressaram, que cresceram, que assumiram o
poder poltico; ao mesmo tempo, so exemplos de moralidade
e de vida em famlia. No so poucos os que misturam essas
questes com a dimenso da poupana, do trabalho penoso,
do desejo de fazer capital ou futuro, como dimenses geradoras da riqueza para alguns.
muito comum nos depoimentos de idosos aparecer a dimenso do tempo histrico como mitificado e mistificado pela
presena, em determinadas regies, de uma cultura imbuda
de esprito empreendedor recm que chegamos... era puro
mato. [...]. Naqueles perau s trabalha quem tem coragem e
disposio mesmo.
A construo de um espao de colnia deu-se sob o signo da propriedade da terra, localizando, desde o incio, nesse espao, o imigrante vinculado ao mundo da mercadoria. A
grandiosidade de ser o pioneiro, o sentido simblico disso, a
transcrio oral da natureza rude e ngreme transferem para
o homem uma realizao do rudimentar ao domnio do natural pelo trabalho; a dimenso do nada cede lugar forma, ao

268

Joo Carlos Tedesco

formato, adaptao. O iderio de pioneiro ignora a temporalidade anterior ou minimiza o papel e a importncia, pelo
menos econmica, dos instalados anteriormente a sua chegada. A memria das picadas e dos travesses memoriza a espacialidade e define os limites do espao vazio e do ocupado.
A forma de pensar o tempo est baseada na agricultura, no
progresso, na sua participao no espao.
Nesse horizonte da preservao da histria e da memria
da famlia, importante que se diga que, no relato de grande
parte dos idosos, o que reflexo e expresso como constitutivo
da conservao da rvore o lado masculino do parentesco.
A recriao de representaes simblicas e de prticas
sociais de um passado de trabalho penoso proporciona significados e valorizaes s suas vidas. Ao resgatarem e reinventarem seu passado imediato no presente, ao conceberem
duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na comunidade,
entre idosos e jovens, esses idosos (homens e mulheres) adaptam-se, resistem imerso em universos da modernizao e
da racionalidade individual no seio familiar.462
visvel a correlao entre o ethos do imigrante com a
terra e com os animais. Esse processo se alimenta e se ritualiza, em parte, ainda hoje, pelas falas dialetais, na economia familiar, no trabalho como riqueza e na unidade moral
da famlia traduzida em fora de trabalho, na dialtica da
vida cotidiana baseada na esperana e no medo (esperana de
sade, colheita, trabalho, medo de desgraas fsicas, morais e
produtivas), na preocupao em comprar terra para os filhos
em fazer capital para melhor coloc-los, na produo de cereais e na criao de animais, na intercomunicabilidade vicinal e comunitria atravs de festas, fils, visitas, mutires,
solidariedades aleatrias etc.
SEYFERTH, op. cit.

462

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

269

As representaes que a sociabilidade moderna produz e


reproduz no social, dando destaque diviso, aos ritmos e s
garantias da quantidade do tempo empregado, acabam por
redefinir o aproveitamento do que deu certo da experincia
passada. A absolutizao do agora, do ganhar tempo, da adequao individual ao tempo como imperativo social penetra
no cotidiano da vida social dos idosos. O acento utilitarista,
linear e quantitativo do tempo centrado na eficincia dicotomiza passado e presente, relegando quele certo estigma de
extemporneo e atrasado. O papel dos idosos e a (re)construo do ethos de colono vivenciam e integram esse processo, o
que no significa que tudo morreu e/ou se transformou.
Os processos em redefinio que aconteceram ps-dcadas 50/60 so expressivos de trajetrias temporais (localizadas e contextualizadas), mas que no omitem o resgate. O
cotidiano do colono um complexo inter-relacional de temporalidades e de significados em conflito. A memria caminha
junto com esses tempos que se redefinem.
Os significados das pocas passadas e as formas pelas
quais as experincias so vividas, lembradas e contadas
tambm se alteram no decorrer do tempo. Coisas que no se
falavam antigamente, pode-se falar agora e vice-versa. Era
comum ouvirmos depoimentos de idosas falando sobre a vida
sexual dos jovens, as formas de matrimnio alteradas, sobre
os negros sem o peso explcito do racismo, dentre outras.
At bem pouco tempo, as famlias eram numerosas por
necessidade de mo de obra; hoje, com a mudana da base
tcnica e mecnica da produo agrcola, com o controle da
natalidade e com a redefinio do papel da mulher, esse processo ganha novos contornos. Mas essas no so as causas
primeiras da reduo de filhos, e, sim, o problema da propriedade e de sua real fragmentao.

270

Joo Carlos Tedesco

As prprias histrias representam a constante evoluo


dos modos pelos quais os migrantes constroem suas vidas
atravs de suas histrias. As histrias orais dos migrantes
proporcionam evidncias tanto sobre a experincia passada
quanto sobre as histrias de vida que so uma parte importante e material da sua experincia.463
Se tomarmos, por exemplo, o discurso e as prticas religiosas, sobretudo da Igreja Catlica, sabemos que tiveram
grande repercusso na forma de aceitao, contraposio, de
racionalidades internas, de estratgias racionalizadas em razo dos limites, da ignorncia e do saber campons. Nem tudo
foi absorvido pacientemente e sem conflitos. Sabemos que as
sociedades camponesas relativizam, em muito, pregaes de
regramento moral. Muitas prticas de cunho sexual so, no
seio campons, norteadas por fatores de ordem cultural ligados famlia, terra, racionalizadas a partir de estratgias
e adaptaes internas. Todos sabemos das razes econmicas,
simblicas e sociais do discurso pr-natalista institudo pela
Igreja e amparado pelo Estado, da demonizao do desejo sexual, associado unicamente ao matrimnio com procriao.
Esse contexto desenvolveu a representao social, tornouse parte constituinte da cultura camponesa, o orgulho para
a mulher em ter muitos filhos como forma de produzir mo
de obra, de ter garantia de amparo na velhice (agora com os
netos), destacando os fatores de herana, a ligao entre a
casa, e a prtica de ter filhos ai de quem, principalmente a
mulher, no os tivesse , tudo vinculado ao trabalho e construo de capital para deixar mais para os outros do que
se recebeu.
Ter e cuidar de filhos sempre foi uma orientao tica
bsica da cultura camponesa da regio colonial. S o casa THOMSON, Alistair. Histrias (co)movedoras: histria oral e estudos de migrao. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 22, n. 44, 2002. p. 359.

463

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

271

mento daria essas condies e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, promoveria certa autonomia dos filhos em relao
aos pais. A migrao para novas colnias, a urbanizao do
rural e a migrao e/ou contato com o urbano tambm libertaram e abriram os olhos da gente em relao autoridade
patriarcal e mesmo dos padres. [...]. A televiso depois ajudou tambm e as escolas, as novelas....
Segundo Costa e tambm Vannini, afetividade, sensualidade, sexo, desvios de conduta nesse campo no eram objeto
de muito dilogo e abertura no seio familiar. Algumas idosas, principalmente, ainda hoje comentam isso.464 Quando se
entra nesse campo, as narrativas so carregadas de contraposio; ao mesmo tempo, ainda produzem desgostos, tabus,
ignorncia, vergonha, subterfgios, desconhecimento, mitos,
medo, conservadorismo; e revelam a existncia de aes alm
ou aqum do institudo e orientado. A cultura camponesa,
com seus valores, representaes, suas relaes sociais, produziu racionalidades e racionalizaes internas adaptativas, hierarquizadas e complementares ao seu mundo, ainda
que isso tudo seja produzido no encanto individual, escondido, alternativo, resignado e, talvez, submisso publicamente a
uma proteo moral.
O olhar vigilante da Igreja, personificado na figura e
presena-ausncia do padre, por meio de linguagens e significados de represso, normatizaes e transgresses, produziu
uma tica sexual sentida, vivida, observada (levada em conta), transgredida, sublimada, racionalizada a partir dos horizontes (em geral, limitantes) da cultura camponesa, a qual se
reproduz e se redefine com os contextos, historiciza-se com as
dinmicas e exigncias sociais e culturais do grupo de perten Sobre esse tema, ver VANNINI, I. A. O sexo, o vinho e o diabo: demografia
e sexualidade na colonizao italiana no RS (1906-1970). Passo Fundo: UPF
Editora, 2003; ver, tambm, COSTA, R.; BATTISTEL, A. Assim vivem os
italianos. Caxias do Sul: Ediucs, 1982.

464

272

Joo Carlos Tedesco

cimento. Estratgias internas, ainda que pouco visveis publicamente, recriminadas e estigmatizadas (principalmente
quando tinham como foco negativo a mulher), apareciam, desenvolviam-se. Nas falas, principalmente de idosas que esto
no meio urbano, produzem-se representaes de desejo e prazer em contraposio s moralidades representadas e imaginadas, seletivamente, por influncias externas, demonizadas
por uma ideologia sexofbica, pela cultura do silncio e pelas
linguagens orais repressivas.
Na cultura camponesa, ainda hoje, incorporao e transmisso de saberes e de ideais levam muito em conta universos de seu conjunto cultural, os limites e possibilidades da
unidade familiar. A transmisso de saberes para o trabalho,
malgrado as interferncias tcnicas, acontece no prprio trabalho; um saber-fazer que transmitido pela famlia, como
temporalidades que se cruzam (via de regra o pai, que o
representante do fazer-aprender-saber-transmitir).
A transmisso e incorporao de saberes sempre foram
mais do que uma transmisso de tcnicas; eram expresso de
valores, construo de papis, estrutura social, reproduo do
grupo etc. A produo e a reproduo dos bens simblicos caminhavam juntas, ou, ento, antecediam a produo de mercadorias. Havia uma produo de bens que era socializada
antes de socializar mercantilmente alguma coisa, dimenso
essa revestida de valores de uso e do uso como valor. Antes de
produzir cultivos, o trabalho produzia cultura; havia encadeamentos de aes tcnicas e de aes simblicas, tornando um
processo ritual e cotidiano que era o trabalho.465
O trabalho continua sendo hoje uma categoria cultural
ou ideolgica e tem mltiplos significados; expressa, acima de
tudo, uma tica (essa ligada terra, famlia e ao gnero).
Ver WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. So Paulo: Hucitec,
1995; ver, tambm, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da
terra: a lgica e a simblica da lavoura camponesa. Braslia: UnB, 1997.

465

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

273

Aprender a lidar com a terra e as plantas aprender a lidar


com o ordenamento do mundo/natureza.466 Portanto, romper
com a prtica da agricultura significa romper com toda uma
viso de mundo, pois o campons no aprende s a prtica
agrcola, mas, sim, todo um ordenamento de mundo mais
complexo. Por mais que os processos materiais e racionais modernos tendam a alterar essa lgica interna; por mais que os
valores no sejam imutveis, o campons reserva para si um
horizonte que resiste em se romper. O desafio est em perceber dialeticamente as mudanas, seus conflitos/tenses e suas
reaes, quem so seus promotores, aonde se quer chegar.
A dinamicidade da cultura (difuso, contato, mudana)
correspondente dinmica dos processos sociais, temporais,
tcnicos, simblicos e significativos que do unidade s relaes e aos modos de comportamentos sociais.467 As condies
de existncia do campons, pelo seu trabalho, pelas prticas
sociais etc. vo criando um saber social cotidiano que coletivo, hierarquizado, lgico, e que objetiva dar conta das aes e
processos relacionais, necessrios (pragmticos) ao seu mundo vivido. Esse saber social coloca questes nas vrias dimenses simblicas e materiais, como instrumento do agir social.
A sua lgica funda-se na ordenao, nas previses, na difuso,
na regularidade, na classificao das aes cotidianas. importante que se articulem os saberes, que sejam priorizados e
valorizados, como ponto de partida, os conhecimentos e prticas de quem verdadeiramente o sujeito da ao educativa.468
O que nos parece que, com a modernizao da base tcnica da produo, cidade e campo tornam-se espaos que se
complementam, conservando-se especificidades ecolgicas,
Ver WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K., op. cit.
DAMASCENO, M. N. A construo do saber social pelo campons na sua
prtica produtiva e poltica. In:_______ (Org.). Educao e escola no campo.
Campinas: Papirus, 1993.
468
Idem.
466
467

274

Joo Carlos Tedesco

sociais e culturais. No entanto, existe uma espacialidade socioeconmica e cultural que se articula em razo de necessidades essenciais de um processo mais amplo, o qual no se
funda totalmente nas decises racionais e/ou cientficas.
As famlias buscam utilizar mecanismos, at com resqucios de tradio, para melhor adaptar seus interesses aos
projetos individuais. A ida da nora para a casa do sogro ou
do marido e seu dote, estipulado num pedao de terra ou no
seu valor monetrio (o que vai ser apropriado pelo marido); a
tentativa de fazer permanecer um nico filho nas terras da
famlia, levando a que as dos outros sejam adquiridas pelo
herdeiro, inclusive com a ajuda dos pais; a liberao de membros para outras atividades e para o estudo; as dribladas nas
partilhas em relao s mulheres (lote na cidade, estudo de
2 grau, parte em dinheiro...), dentre outros, so princpios de
manuteno da unidade da terra cultivvel e da perpetuao
do patrimnio, os quais definem estratgias de partilha.

Captulo 16
Ritualizao verbal e no verbal da
cultura na memria
As formas das histrias de vida so to importantes
quanto os fatos que elas contm.
Bertaux-Wiame

J vimos que o testemunho oral fundamental para perceber aspectos do interior dos processos de migrao, de resistncia cotidiana dos que ficam e dos que saem, das posies
diferenciadas entre gnero e entre membros familiares sobre
esses mesmos processos. O depoimento oral geralmente propicia a exteriorizao de conscincia vivida e significativa do
momento de sua materializao e da capacidade e importncia dos atos de lembrana do tempo vivido de antigamente.
O depoimento oral pode ser til na percepo de uma
alterao espacial que no signifique meramente um desenraizamento, mas um transplante cultural e espacial, cujas estratgias de sobrevivncia se baseiam nos mesmos processos
que qualificam e identificam o ethos campons, tais como a famlia, o parentesco, a vida comunitria e o trabalho centrado
na dimenso do ncleo coletivo como forma de enfrentamento
das novas demandas e das novas ordens de sociabilidade.469
Sabemos que em todas as culturas e etnias existem sempre prticas mais ou menos ritualizadas com as quais cada

THOMSON, op. cit.

469

276

Joo Carlos Tedesco

grupo social ensina aos seus membros a arte da exteriorizao da memria.470


Costuma-se dizer que as narraes imitam a vida, mas,
no fundo, a vida que imita as narraes. As narraes formam esquemas que permitem entender a realidade e que auxiliam na produo da percepo do mundo.
Narrar a viva voz alguma coisa a qualquer um significa instaurar
uma relao e produzir efeitos reais, e, ao mesmo tempo, real
ouvir algum. Possamos faz-lo ou no, se o fizermos, alguma coisa sucede. [...]. (O narrador) quando conta uma histria, cria um
mundo cuja imaginao se desprende [...], se situa no mundo das
aes e das relaes.471

Veremos nesse item alguns elementos que identificam


uma memria de uma cultura tnica, independentemente de
sua ligao com o meio urbano e/ou rural.472

Memria e etnia
A memria dos lugares pode ser diferente dos
lugares de memria.
Lucena

A memria e a cultura tnica localizam-se num cenrio


presente de grande dinamismo presentista, porm de cunho
nostlgico, ufanista e de revalorizao de prticas, aes, di-

YEATS, F. Larte della memoria. Torino: Einaudi, 1972.


JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 60.
472
A anlise contida nesse item baseia-se em estudos anteriores, j informados,
bem como na literatura sobre imigrao que aborda fatores de ordem simblica, de formas de organizao da vida do grupo tnico em questo, bem como
de projees miditicas recentes sobre determinados aspectos da cultura e
etnia italiana. A bibliografia aqui muito vasta. Independentemente de suas
formas de abordagem, h aqui uma produo, acadmica ou no, de grande
envergadura.
470
471

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

277

menses e simbologias da tradio; podem servir de tradio,


traduo, acomodao, crtica e redefinio.
No especfico relacionado cultura tnica, percebemos
que h muito pouco contedo expresso oralmente pelos idosos referentes colnia-me, escassa identificao da comunidade com a ptria-me, porm h um certo pertencimento
vneto que se embasa na presena do componente familiar,
do parentesco e da importncia do fenmeno religioso, de sua
ideologizao em torno do regramento da vida, porm com
sentimento de culpa pelo desregramento efetivo existente
nesse aspecto no seio familiar, individual e comunitrio.
Grande parte desses processos, ainda que em redefinio, mantm-se. Como j falamos, recordam-se muito a capacidade de resistncia em relao ao trabalho duro, as dificuldades do ambiente e da natureza, a presena e necessidade de
muitos filhos, o fato de se casarem cedo e, por isso, terem mais
tempo de fecundidade, os conflitos com caboclos, a centralidade do fenmeno religioso e da Igreja, o ufanismo da noo
do desbravador, o primeiro que chegou aqui, o progressismo
sem a percepo de processos macro no campo poltico, social
e econmico.
Acreditamos que a memria e a cultura tnica devam
ser entendidas, acima de tudo, como prtica e fenmeno socioeconmico, que possuem ligao com a indstria cultural,
com instituies sociais, no caso especfico, especialmente a
famlia, a religio e a comunidade, com os discursos e narraes socio-histricas produzidas por instituies e conservadas ainda hoje, as quais produziram representaes sociais
slidas e que permitem a manuteno, ainda que redefinida,
de um horizonte de pertencimento.
Pensar a questo da memria, da famlia e da etnia cultural muito mais do que buscar cruzar temporalidades;
ser testemunho da histria; localizar no tempo e no espao

278

Joo Carlos Tedesco

razes e aes que o presente e o passado remoto desvalorizaram, como o caso do parentesco, da consanguinidade, de
compadrios, de famlias extensivas, de ressentimentos, de
aes significativas no tempo. nesse sentido que a memria faz referncia a uma ideia de persistncia ou reinvocao
de uma realidade de uma maneira intacta e contnua.473 A
lembrana recoloca a esperana na capacidade de recuperar
alguma coisa que se possua, um tempo que se esqueceu.
Segundo Guimares, por sua prpria natureza, memria caberia a tarefa de realizar um retorno quilo que a cada
vez se distancia mais e mais. Porm, exausta de repetir a repetio, sem foras para suportar o que lhe destinado, incapaz de suportar o fracasso fundador de sua busca, a memria
procura fixar-se em alguma cicatriz, corte, descontinuidade
ilusria, capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo
incessante da origem.474 nesse sentido que h rememoraes e vazios.
A memria cultural e tnica marcada pela descontinuidade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos nveis
que a compem. nessa dimenso do tempo no espao e do
espao cultural no tempo da memria que muitas tradies
so ou podem ser inventadas e/ou redefinidas. Alis, sempre
que possvel, comum, na sociedade atual, tentar estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado, redefinido, transtemporalizado. Contudo, na medida em que h
referncia a um passado histrico, as tradies inventadas
caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade
bastante artificial. Isso porque toda a tradio inventada, na

JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, v. XXXVIII, n. 1,


gen./marz. 1997. p. 135-146.
474
GUIMARES, C. Imagens de memria: entre o legvel e o invisvel. Belo
Horizonte: UFMG, 1997. p. 21 e 37.
473

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

279

medida do possvel, utiliza a histria como legitimadora das


aes e como cimento da coeso grupal.475
Fala-se muito que o tempo anda mais depressa e que as
pessoas vo junto com esse tempo. Vivemos apressados, querendo fazer tudo logo porque amanh h outras coisas para
fazer, e assim sucessivamente. Benjamin j analisou o fato de
que recebemos muitas informaes a todo o momento, no nos
fixando em nada, pois o conjunto de informaes recebidas
ser logo substitudo. a chamada dimenso presentista do
tempo fugidio, do obsoleto, do escopo, da tica dos instantes,
do tempo real etc.
Paradoxalmente, como forma de compensao e/ou satisfao tambm momentnea ou atestado de no aceitao da
dimenso presentista, desenvolvem-se saudosismos, nostalgias,
ufanismos; desvelam-se ressentimentos, estratgias, racionalidades internas e adpatativas; rompem-se silncios, no
ditos, etc. Muito do que se produziu sobre memria da etnia
italiana est repleto dessa ambiguidade.
Biografias (principalmente de pessoas famosas na esfera
poltica, empresarial e miditica), genealogias, festas de famlias, espaos do patrimnio pblico (ruas, praas, arquitetura...), cenrios tursticos etc. so acionados para materializar
(situ)aes e fatos de memria cultural e tnica. H uma profunda relao entre memria e cotidiano, que desafia as descontinuidades do tempo pela manifestao de rituais prticos,
de vividos no tempo e que so traduzidos no presente.
J vimos na segunda parte de nosso trabalho que na memria tnica geralmente se apresentam dimenses idealizantes em torno de vrias esferas do cotidiano vivido presente.
Vejamos algumas delas que se apresentam em nossa pesquisa
de campo e que sero discutidas melhor posteriormente.
LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranas de migrantes.
Belo Horizonte: Arte e Cincia, 1999. p. 9, 10 e 21.

475

280

Joo Carlos Tedesco

A centralidade da famlia
O saber que vem de longe encontra hoje menos
ouvintes que a informao sobre acontecimentos
prximos.
Benjamin

A famlia dimensionada por uma composio formada


pelo parentesco prximo, o compadrio, o sobrenome, a rvore genealgica etc.; representa o dimensionamento de uma
memria coletiva, grupal. A famlia e sua dimenso cclica
renovam-se pelos nomes, pois est presente a a noo de
transmisso, de culto a uma tradio temporal e familiar, o
domnio pblico da vida social e, em geral, econmica. No
h dvida de que o nome/sobrenome possui uma valorizao
simblica na dimenso tnica da cultura. por isso que a memria da famlia se apresenta como um complexo de referncias simblicas imaginadas na esfera da integrao/desintegrao, felicidade/desgosto, continuidade/descontinuidades.
Atravs de contatos informais com idosos, percebemos a
dimenso ambgua da ideia do alerta (da pedagogia do alerta)
no sentido da necessidade de reproduo do passado e das
transformaes do presente; do espelho do passado e da ideo
logizao de um devir coletivo que deve se manter, porm reproduzindo formas de vida e valores societais do passado no
presente.
Percebemos que existe uma certa congruncia entre as
maneiras pelas quais os nossos informantes conceituam o
passado e como, na poca, experimentaram o passado e reagiram ao ambiente social. A famlia aparece sempre sob o
veio da centralidade paterna, sendo comum essa dimenso
expressa por ambos os sexos; h um reconhecimento da moralidade severa, da obedincia e submisso feminina ao homem,

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

281

do domnio fsico e econmico da natureza fsica e produtiva


(terra e matas) pelo homem, do trabalho rude reservado ao
homem, bem como sua visibilidade e importncia pblica,
prpria dos mecanismos de represso de uma organizao familiar patriarcal, patrifocal e patrilinear.
As noes de forte e fraco, leve e pesado, para dentro e
para fora ganham conotaes expressivas de normalidade e
funcionalidade nas diferenciaes, pois foram vividas assim,
foram sedimentadas no cotidiano atravs de rituais temporais e culturais e na tica da permanncia e/ou com pouca
redefinio.476
Famlia e afetividade, para o ethos do colono, possuam
vnculos de dimenses coletivas; pensava-se a famlia primeiro, por ser o centro nevrlgico que orienta aes individuais.
Por isso, quando falvamos sobre afetividade com idosas, a
tnica que se fazia presente era a correlao negativa, o contraponto de tempos e as implicaes disso para o horizonte da
famlia. A afetividade aparece sempre relacionada com as mudanas atuais, com a falta de vigilncia, de controle e responsabilidade dos pais e com o exagero de autonomia dos filhos,
das filhas principalmente. As lembranas do campo afetivo
vm carregadas e manifestas em aes de represso externa
e de algumas poucas situaes estratgicas, porm sempre
de respeito autoridade paterna. No entanto, idosas do meio
urbano revelam que, se estivessem na cidade na poca, tal
rigidez teria sido afrouxada, assim como hoje. No campo das
idealizaes aparece o estudo como quase completa ausncia,
o fato de ser um elemento mediador para o trabalho fora da
agricultura, esse est em profunda contraposio, se comparado atualidade.

Ver WOORTMANN, E., op. cit., 1995.

476

282

Joo Carlos Tedesco

A subjetividade um elemento forte na determinao da


elaborao da representao dos lugares, das coisas do espao
que possui sua marca, do movimento das memrias/lembranas, do testemunho privado,477 das imagens, do personificado antigamente, eu..., dos tempos e dos espaos que, no
presente, se entrecruzam e se reencontram.
Como diz Lucena, na conscincia dos migrantes, os lugares e os tempos vo e vm, a lembrana oscila entre o passado
e o presente em mltiplas camadas vividas e intercambiadas
no decorrer da existncia.478

O mundo do trabalho
J se foi o tempo em que o tempo no contava.
P. Valry

A esfera do trabalho, em geral, representada na forma


de memrias de ofcios, de sacrifcios, de despojamento e rudeza da vida. Nesse horizonte, h uma produo discursiva
muito extensa que busca valorizar o imigrante como branco,
civilizado e trabalhador, discurso esse produzido e incorporado pela memria tnica e que no recebeu ainda total ateno
no campo analtico, no sentido de fazer aflorar contradies
nesse processo todo.
A memria do trabalho de idosos entrevistados organiza-se em torno da terra da famlia; articula-se com herana,
com peso, esforo, luta, o corpo como objeto e instrumento de
trabalho, o reforo da vizinhana e de compadres, a diferena

MALUF, M. Rudos de memria. So Paulo: Siciliano, 1995.


LUCENA, C. T. Memrias de famlias migrantes: imagens do lugar de origem.
Projeto Histria, So Paulo, n. 17, 1998. p. 397-413.

477
478

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

283

de trabalhos na tica do gnero e da importncia relativa aos


horizontes temporais e espaciais.
As idosas, especialmente, e com mais veemncia as do
meio urbano, moviam-se atravs da rede familiar para encontrar trabalho, ou, ento, muitas vezes, utilizavam-se da capacidade de trabalho (lavar, passar, fazer limpeza etc.) para
encontrar famlias.479 Famlia e trabalho mesclam-se em horizontes espaciais variados e so manifestos constantemente
nos relatos de memria. Foi comum ouvir depoimentos informais de que o horizonte cultural do trabalho no espao urbano foi mais disseminado pelo homem, porm esferas que
articulam valores culturais e simblicos foram conservadas e
reproduzidas pelas mulheres, como o caso da culinria, da
lngua dialetal, das vestimentas, das formas de organizao
dos objetos e dos ornamentos dentro de casa, do esprito religioso e do convvio vicinal.
Os idosos reconhecem certo descuido com essas questes, porm identificam o maior envolvimento externo, seu
pragmatismo econmico e a busca de trabalhos externos e,
muitas vezes, desvinculados de seu horizonte de saber e de
cultura, como fatores que provocaram rompimentos com processos histricos de vida e de sociabilidade familiar e comunitria. O dialeto um deles, pois no podia ser desenvolvido
em espaos de trabalho alheios ao seu horizonte prprio, que
era o meio rural.
Nas entrevistas, era lugar-comum a utilizao, pelos
idosos, de formas e/ou palavras dialetais para tentar explicar ou comentar algo, principalmente quando se referiam a
alguma dimenso muito significativa vivida em tempos mais
distantes, em geral no horizonte do sacrifcio no trabalho e
nas dificuldades econmicas. O referencial dialetal buscava
LUCENA, op. cit.

479

284

Joo Carlos Tedesco

preservar significados de contedo lingustico passvel de ser


expresso com o fundo identitrio, porm tambm manifestava
a marginalidade atual de sua importncia, de seu deslocamento temporal e social.
Entendemos que as formas lingusticas, seja pelo silncio, seja pelos seus padres e suas metforas, so importantes
na definio significativa das coisas a lembrar; revelam horizontes de possibilidades que, sem o desejo de generalizao,
enfocam significados e implicaes do movimento temporal
dos contedos de memria e do alimento de muitas formas de
narrao sem que, necessariamente, necessitem ser de passados longnquos.480

O ambiente de vida social e o espao construdo


O passado o que voc lembra, imagina que
lembra, convence a si mesmo que lembra, ou
finge lembrar.
H. Pinter

O cenrio da vida social representa a memria do espao,


da mobilidade fsica e econmica, presentificada por trajetrias em cenrios variados, sob o manto do pioneirismo e do
evolucionismo econmico (progressismo), mesclada ao horizonte de memria da sociabilidade, da solidariedade, dos conflitos tnicos e intratnicos.
Os lugares e os espaos marcam e recebem as marcas dos
que chegam e dos que saem. Essas marcas podem ser fsicas,
na paisagem, no ambiente construdo, no adornamento dos
ambientes, porm podem se constituir e se fixar nas imagens,

LUCENA, C. T., op. cit., 1999.

480

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

285

na rememorao, nos laos afetivos, na ligao com o mesmo


ambiente, nos contatos familiares.481
A lembrana, por exemplo, pode fazer desencadear espaos, reencontrar tempos e lig-los aos ambientes fsicos, simblicos e mentais. na memria que os instantes do tempo e as
especificidades do espao encontram-se; ela que faz viajar pelos tempos e pelos espaos significativos. Os relatos de coisas
simples, comumente de algo construdo pela mo dos idosos
em tempos atrs, transformam-se em imagens significativas de um tempo sobreposto, de uma capacidade temporal
perdida e no mais reconhecida cotidianamente, ou seja, que
se transformou em relquia para quem a significou. Percebe-se que os idosos tm necessidade de transferir temporalmente smbolos e de lhes dar significados num tempo perdido
como se fossem indicadores de sua passagem pelo espao e
pelo tempo passado.482
A memria dos lugares fixa-se em um lugar preciso do
qual no se pode separar; os lugares da memria caracterizam-se pela sua capacidade de transmisso.483 Ao ter presente, por exemplo, os lugares comemorativos, veremos que, em
geral, expressam sofrimento exemplar (perseguio, morte,
humilhao, derrotas...); passam a ser fundamentais para
os valores de memria histrica e nacional. Existem lugares
que manifestam traumas, traos de sangue das vtimas do
passado, diz Benjamin. Por isso, produzir lugares de memria tambm produzir a possibilidade do protesto contra o
sofrimento e as injustias da histria (lembrar os campos de
concentrao).
Os lugares no possuem uma memria imanente, porm
so muito importantes para a construo do espao cultural
LUCENA, op. cit.
Id. ibid.
483
ASSMANN, op. cit.
481
482

286

Joo Carlos Tedesco

da lembrana.484 Os lugares encarnam e expressam uma memria vivida e co-participada dos indivduos (a casa, o poro,
a praa, a roa, a terra, a comunidade etc.), mas tambm smbolos que os transcendem. H, sem dvida, uma profunda ligao entre os lugares de memria e a histria familiar dos
indivduos. Por isso, podemos dizer que os lugares no se limitam a fixar as lembranas e a certific-las dando-lhes uma
localizao territorial, mas encarnam uma continuidade de
tempo que vai alm da dos indivduos, das pocas etc.
Os tempos e os espaos confundem-se na lembrana dos
que migram. Contexto e temporalidade situam o migrante,
representam memrias, momentos, (situ)aes, deslocamentos etc.485 A memria desloca-se do tempo para o espao, do
espao para o espao, ao mesmo tempo que os unifica. O rural e o urbano no podem ser vistos separadamente, pois as
representaes se entrelaam nos espaos. Os idosos entrevistados manifestam fatos e circunstncias da vida na cidade, no bairro e nos vrios espaos significativos de trabalho.
Percebemos que diferentes espaos constituem seu cotidiano,
sejam pblicos, sejam individualizados, coletivos e privados
(as festas comunitrias, a culinria, o trabalho variado e diferente daquele do meio rural, a participao na Igreja etc.).
Ficamos com a certeza de que os espaos so narrados
mais pelo mbito da fronteira, da separao sociocultural e
tambm simblica. Rural e urbano, periferia e centro, casa e
trabalho, aparecem bastante polarizados em alguns momentos; em outros, complementam-se e/ou cruzam-se.
Os tempos e os espaos diversos no so percebidos pelos
idosos totalmente na perspectiva do diverso, pois ambos se
confundem e se mesclam nas imagens lembradas. Diz Lucena
que o tempo memria, diferencial, o situar-se no passa LUCENA, 1999, op. cit.
LUCENA, op. cit.

484
485

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

287

do: O espao, por sua vez, o situar-se no contexto. Os dois


contextos (cidade/periferia e roa) no podem ser entendidos
separadamente, pois os migrantes possuem representaes
de seus respectivos espaos, que se entrelaam.486 E para
Certeau, a memria produz um lugar que no lhe prprio.
[...]. A memria se desloca de um espao a outro, e no espao
que se encontram os testemunhos de uma durao.487

A fora do simblico
Nossos braos e pernas esto cheios de lembranas entorpecidas.
Proust

Esse mbito representa, no limite maior, o horizonte do


religioso, a memria do regramento, da honra, da moral da
vida, do transcendente, dos limites da vida humana e da necessidade da presena divina no cotidiano, a importncia das
rezas, do padre, das estratgias de desregramento do contedo
significativo e ideologizado dos discursos institucionalizados e
pouco eficientes eficcia da vida cotidiana do campons.
O espao da religiosidade, nos primeiros anos de migrao, concentrava-se no capitel, nos espaos de maior pertencimento e identificao ritualstica. O espao simples e pouco
institucionalizado do capitel manifestava o modo campons
de hospitalidade fsica ao sagrado e de prtica de sua religio.
A presena mais intensa do padre, as condies econmicas
dos colonos um pouco melhores e o aumento do nmero de
habitantes no vilarejo levaram a que as igrejas fossem construdas. No entanto, os capitis, ainda que reduzida sua im Id. ibid, p. 80.
CERTEAU, M. de. A inveno do cotidiano, p. 163.

486
487

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portncia e participao de fiis, continuaram, inclusive hospedando santos e representando formas populares e simples
de materializar o sagrado na vida cotidiana.
A religio era, e continua sendo, importante para o homem que vivia, e vive, do cultivo da terra e faz do seu uso
um espao vital. O sacro torna-se um elemento dinmico da
cultura, seja como imaginrio (mito), seja como organizao
comportamental da vida, dos valores morais e dos rituais cotidianos. O espao do sagrado lembrado como uma unidade que liga vida e morte, como constitutivos de um conjunto
nico. A religio busca ensinar a viver para melhor morrer.488
Vida e morte interligam-se no cotidiano dos colonos como possibilidades e ausncias, imaginrios e conhecimentos no horizonte do vivido. Os smbolos e as suas significaes, para os
idosos, podem ser reconhecidos nos ritos, nas manifestaes,
nos valores, nos costumes e na religiosidade. Esse processo
simblico fundamental para a luta pela definio e/ou redefinio da identidade social e cultural desses.
Os objetos que, ritualizados, tornam-se relquias, podem
revelar comportamentos e convices, motivos do passado,
pensamentos, aes, momentos suspensos no tempo, vitalidade histrica, vestgios palpveis. Os objetos significativos
revelam a vida comum dos idosos, significados objetais e expresses da vida cotidiana; so fragmentos fsicos, concretude
existencial: passei por uma porta pela qual Shakespeare havia passado, e entrei num bar que ele conhecera. Sentamos
mesa [...] e encostei minha cabea contra a mesma parede que
a cabea de Shakespeare havia tocado, e foi uma sensao
indescritvel.489 Os lugares, os objetos e as imagens ajudam a
ZONABEND, F. La memoria lunga. I giorni della storia. Milano: Armando,
2000.
489
HANFF apud LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto Histria,
So Paulo, n. 17, 1998. p. 161.
488

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

289

transportar pessoas, sensaes, lugares dos tempos atuais de


volta no tempo. Trajes, runas, escritas esto em fluxo, envelhecendo e correlacionando-se com situaes, com interesses
do presente e desenvolvendo conscincia do passado, estmulos memria, recordaes, ajustamentos s nossas necessidades. Como o passado parece afastar-se de ns, procuramos
evoc-lo novamente multiplicando a parafernlia que o cerca
lembranas, mementos, romances histricos, velhas fotos
e tambm preservando e reabilitando suas relquias.490
Na anlise de Vygotski, para aprender e apreender a memria, so fundamentais as mediaes, a ajuda de sinais; por
isso, constroem-se deliberadamente monumentos para no
esquecer. O autor refere que ns podemos controlar a memorizao produzindo autonomamente estmulos que se ajuntam queles produzidos pelo ambiente e que so capazes de
guiar nossas lembranas. Nesse sentido, so fundamentais
os estmulos mentais, formando cadeias de significados, imagens, linguagens (associaes de palavras). Vygotski insiste
no uso do objeto externo (smbolo construdo) produzido para
expressar bagagens culturais, polticas, exemplos de vida etc.
Desse modo, a memria potencializa o pensamento social, a
conscincia coletiva como uma corrente (unindo tempos). Os
museus, os lugares de comemorao, as cerimnias, os smbolos objetais, de uma forma ou de outra, so potencializadores
de memria.491
Pierre Nora no verbete mmoire collective, contido no
livro La nouvelle histoire, registra que h uma proliferao
de memrias coletivas, a qual se funda num cenrio de transformaes e rupturas que os meios miditicos ocasionam nas
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto Histria, So Paulo,
n. 17, 1998. p. 180.
491
VYGOTSKI, L. apud LEONE, G. I confini della memoria. I ricordi como
risorse sociali nascoste. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 48-55.
490

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memrias coletivas, sobretudo naquelas que enrazam culturas, que produzem tradies, desenvolvem conscincia nacional e tnica. Essa proliferao produzida por uma memria
social e histrica, que intenciona reproduzir, analtica e objetualmente, formas de organizao de vida coletiva ajustadas
aos novos formatos de vida social, sentimentos do passado e
possibilidades de inventariar lugares para a percepo visual
e histrica de memrias.
Sobre isso, Nora diz que possvel, pela institucionalizao de lugares, indivduos, famlias, naes e etnias encontrar
suas lembranas e reconstituir sua personalidade.
Lugares topogrficos como arquivos, as bibliotecas e os museus;
lugares monumentais como os cemitrios e as arquiteturas; lugares
simblicos, como as comemoraes, as peregrinaes [...].; lugares
funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associaes:
esses memoriais tm sua histria. [...]. A anlise das memrias
coletivas deve e pode tornar-se a ponta de lana de uma histria
que se v contempornea.492

Esse processo auxilia na (re)constituio da identidade. A lembrana do passado auxilia-nos na autoidentificao


identitria: Saber o que fomos confirma o que somos, diz
Lowenthal. A ausncia de memria faz perder sentimentos,
destri a personalidade e deixa a vida vazia de significados.
A identidade assegura e amarra a realidade do passado, confirma-a, inspira confiana pela possibilidade de testemunho,
ainda que se faam presentes o campo do provvel, o carter
pessoal e a mutabilidade.
Toda a memria transmuta experincias, destila o passado em
vez de simplesmente refleti-lo. Assim a memria filtra novamente
o que a percepo j havia filtrado, deixando-nos somente fragmentos do que inicialmente estava exposto.493

NORA, P. Mmoire collective. In: LE GOFF, P.; CHARTIER, R.; LADURIE,


Le Roy. La nouvelle histoire. Paris: CEPL, 1978. p. 401.
493
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. p. 94.
492

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

291

por isso que os lugares de memria ganham concretude


pela sua simbologia, que lhes d materialidade e permanncia, porm esse processo depende muito da construo terico-explicativa, dos significados e rituais impressos e expressos no conjunto das estratgias de lembrana/esquecimento,
eficcia e instrumentalidade da memria.
nesse sentido que possvel interligar o uso da histria com a memria e vice-versa, como forma de visualizao,
acessibilidade, alargamento e formalizao das possibilidades de compreender e ritualizar a memria e o passado. Diz
Nora que o sentimento de desvanecimento rpido e definitivo combina-se com a inquietude do presente e a incerteza do
futuro, dando ao mais simples dos testemunhos a dignidade
virtual do memorvel.494 Da advm a importncia da memria patrimonial, monumental, arquivstica, espacial, enfim, de lugares e objetos passveis de registro e identificao
memorial. Os lugares esto no entrecruzamento da histria
com a memria, servindo de visualizao, vestgio, resduos,
que possibilitam constituir memrias, fragmentos do passado
passveis de anlise, de ressignificao e reconstituio.

Os tempos, sua fragmentao, heterogeneidade


e hierarquia
Os tempos manifestam as rupturas e as redefinies, bem
como as continuidades, memria dos contrastes, do meu tempo e do tempo dos de hoje, das mudanas no cotidiano familiar, social, cultural e no trabalho. Os tempos rompem-se porque as coisas do tempo se alteram, sofrem modificaes e/ou
NORA, P. apud BREFE, A. C. F.; NORA, Pierre. Da histria do presente aos
lugares de memria uma trajetria intelectual. Histria. Questes & Debates,
Curitiba, v. 13, n. 24, jan./dez. 1996. p. 119.

494

292

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redefinies; reordenando as coisas, reordena-se a concepo


do tempo: ou fica para trs, ou anda depressa demais, ou jogado para frente negativa ou positivamente vais ver daqui
a uns tempos!, hoje se tem muito mais facilidade pra tudo.
Os idosos reconstituem tempos em razo do que d pra
lembrar, das concepes de mundo existentes no passado e
no presente e das presentificadas do passado. Porm, percebemos que o tempo, para os idosos, no possui tanto a dimenso da ruptura. Vimos que eles se queixam das mudanas
sociais, das inovaes, de seu espao social restrito, de sua
aposentadoria minguada, de sua parca utilizao social e de
valorizao de sua experincia, porm no concebem as alteraes do tempo em termos de positividade nem de substancialidade, ou seja, acreditam no retorno de muitos aspectos da
vida cotidiana do passado. No fundo, no seria bem um retorno, mas uma maior valorizao de formas de convivncia, de
contato com a terra, da alimentao sadia, de vnculos familiares etc., pois, para muitos deles, os males da sociedade atual so provenientes do rompimento das formas tradicionais
de convivncia e, no caso da colnia, das formas modernas de
produzir, malgrado tenham tornado o trabalho mais leve.
Os tempos exigem movimentos, dinamismos de adaptao e de percepo do futuro, porm sem se desvincular completamente do passado. Os tempos exigem estratgias tanto
no enfrentamento biolgico do indivduo quanto nos processos
de adaptao s mudanas sociais. Percebemos que os idosos
entrevistados no pararam no tempo. Malgrado a tendncia
histrica de marginalidade social e cultural, alm da econmica, as racionalidades adaptativas, sejam no campo das atividades que der pra fazer, sejam no inferior da unidade familiar nas tomadas de deciso ou de expresso de formas de
poder interno (mais bem legitimadas pela utilidade material
da aposentadoria, da possibilidade de cuidar de netos/bisne-

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

293

tos e da necessria e funcional coabitao) e de processos de


adequao de formas modernas de pensar e de trabalhar, tais
como, no caso do meio rural, cobrar arrendamento pelo uso
da terra por algum filho utilizar sementes transgnicas para
evitar a capina e, com isso, deixar sua terra sem ervas daninhas, etc.
No caso de idosas que cuidam de netos, comum a possibilidade de opinio, de definio de aes no cotidiano da
casa e das formas de interao social de seus dependentes.
A recriao de formas de poder e de utilidade familiar e social de idosos revela processos de alterao social, estratgias
reconstrutivas, hierrquicas e complementares em relao a
novas formas que espaos e tempos sociais imprimem na vida
contempornea.

O espao e o momento do ldico


Espao e momento do ldico so elementos que expressam a memria da emoo em torno da saudade, dos smbolos
que manifestam a coexistncia temporal e espacial de tempos passados, de valores, ideais, desejos de continuidade.495
As festas de famlia, as homenagens presentes em situaes
de recordao costuram, simbolicamente, objetos, discursos,
tempos, espaos, fatos etc., que manifestam trajetrias, mitos
fundadores, valorizaes de grupos, sobrenomes etc.
Podemos afirmar, com toda a certeza, que o cenrio da
festa muito resgatado e/ou reconstitudo na memria tnica. Refaz-se, com isso, a eficcia da simbologia do vivido, da
saudade, do tempo e do espao do trabalho e do no trabalho,
porm como fruto e culminncia de uma reatualizao da so LUCENA, op. cit.

495

294

Joo Carlos Tedesco

ciabilidade comunitria, da conscincia de que algo se esvaiu


no e com o tempo.
As festas e os encontros comunitrios, de famlias, de
jovens, de terceira idade, os festejos paroquiais, a festa do
padroeiro etc. so fatos que se desenvolvem em horizontes
pblicos, de sociabilidade, de engajamento, de compadrio, de
responsabilidades e de hierarquias complementares (diretoria da capela e/ou do bairro ou da parquia e paroquianos
em geral). So espao/tempo de manifestao externa local
das diferenciaes pblicas de atividades e funes de gnero, agregao e congregao inter e intracomunitria, ponto
de referncia do intercmbio de falas, de existncia social,
da obrigao de gastar um pouco e se divertir mais, no ?
Quando a festa do padroeiro, questa non perco mai.
A festa permitia, e permite ainda, a visualizao local
de algo novo adquirido pelos participantes: um caminho,
um trator, um carro, uma roupa, enfim, algo que manifeste
progresso e evoluo social, momento tambm para negociar
e, para alguns, de acertar contas. Nos primeiros tempos da
colnia, a festa religiosa reconciliava as relaes dos homens,
seu trabalho, sua vida pessoal, as colheitas, os problemas cotidianos etc. com o sobrenatural, o sagrado, com a tradio
comunitria, mas, acima de tudo, religiosa.
[...] festa sem o religioso, sem uma boa missa, no era e no festa.
Por isso, a missa vem ainda hoje sempre antes da carne: primeiro
o lado espiritual, n, depois, da sim, o lado material. Hoje, nas
promoes dos jovens, nem mais missa tem!

A festa fazia parte do horizonte da cultura local, da cultura de origem popular, a qual permite inovar ritos, porm
sem perverter por completo a dimenso da repetio/tradio,
do sempre foi assim. No meio urbano, a festa no tem o
mesmo sentido e gosto do meio rural, no h aquela vivncia.
Ns mesmos cansamos de ir pra fora nas festas. As lembran-

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

295

as de idosos revelam os festejos comunitrios como pontos


de referncia pblica, como espao e momento/ocasio do ldico, do religioso, do social, do fortalecimento do interconhecimento, da afetividade e amizade momentos de alegria, mas
tambm de envolvimento de todo mundo.

O papel da narrao na vida cotidiana


Para tornar-se narrador preciso aprender a ler
a marcha do tempo e interpretar os vestgios que
este deixa na natureza e no mundo histrico.
M. Aug

O processo de relatar representa a continuidade e transmisso, manifesta o fato de os idosos quererem ser os guardies da memria, os mediadores da tradio. Nessa dimenso,
est muito presente o saudosismo, o altrusmo, a personificao e a presentificao. Os idosos sentem a obrigao de
lembrar, querem permitir vestgios pelos lugares de memria
e pela memria viva; eles tm conscincia da perda da narrao, de espao da fala na famlia e nos convvios sociais.
nesse sentido que se tornam importantes vozes, momentos e
smbolos ilustrativos de memria, sejam eles as fotos, os ambientes construdos, as mobilidades espaciais e o conjunto da
famlia (presena nas geraes).
Sabemos que o motor da narrao o desejo de habitar
no mundo que a narrao abriu e sua imaginao de que alguma coisa fique para a experincia dos outros; de se fazer
sentir; de ser entendido e aceito; de dar significado vida; de,
atravs da narrao, produzir uma relao social, pois quem
escuta convidado tambm a participar do dilogo: Uma
narrao um discurso a propsito de certos fatos, mas, na

296

Joo Carlos Tedesco

medida em que se manifesta numa narrao, transita entre


um sujeito e um outro, se revela no interior de uma relao e
contribui a cri-la.496
Narrar, contar histrias, j dizia Brgson, manifesta
uma reao contra a finitude, uma compensao com respeito
depresso que provoca em ns a conscincia da caduquice,
dos limites da realidade, uma sada racionalidade dos discursos, pois mescla realidade com fantasia, uma abertura de
mundos possveis, uma expresso de coisas vividas ou coisas escutadas, pode ser expresso de um mundo em tenso.
Percebemos que idosos por ns entrevistados repetem
muito as mesmas histrias, porm suas narraes no so essencialmente orais, contam sobre a prpria memria; em alguns momentos, utilizam a mediao dos referenciais objetais,
principalmente os que expressam suas marcas e presenas.
Pareceu-nos claro que, como diz Jedlowski, a sua narrao se
coloca entre fluxos de conversao nos quais do incio ao fim de
cada histria so colocadas menos exigncias da histria em
si mesma que aquela da prpria situao.497 Os idosos falam
com o corpo, com o silncio, com o tempo, com a voz. Por isso,
a narrao, como j vimos, uma mediao simblica, um
incessante trabalho de transformar algo natural (ou sobrenatural) num universo de sentido (ligao entre fenmenos
naturais, chuva com formas de viver em sociedade, seus regramentos, sua tica social etc.), de sentido de integrao, de
emoo que se abre imaginao. Acreditamos que, no mnimo, essa realidade expressa que a vida mais perfeita, mais
satisfatria e mais inteligente daquela como conduzimos nossa existncia.498

JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:


Mondadori, 2000. p. 25.
497
JEDLOWSKI, P. Storie comuni... p. 44.
498
Ibidem.
496

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

297

Os idosos sentem curiosidade pela vida, lem histrias


de vida de santos centenas de vezes e no gostariam que fosse uma experincia solitria (eles levavam para roa, para
o parreiral, contam como derrubaram o mato, dentre outras
coisas que manifestam dificuldade, sofrimento e rompimento
com o presente. Os urbanos caminham pelo bairro e mostram
como era antigamente, o que mudou, como est hoje, como
gostariam que fosse; a vida urbana disciplinada e, ao mesmo tempo, sem controle, catica e sem valores tradicionais no
mbito familiar, comunitrio, afetivo e de vizinhana.
No querer narrar alguma coisa, ainda que seja a forma
como foi feito determinado objeto de uso pessoal, que j foi
substitudo e agora apenas materializa o saber de uma poca, demonstra que h uma vida escondida, uma vida cotidiana, uma opacidade, algo no vivido expressamente.499
Contar aos outros as nossas lembranas uma escolha
importante porque um modo de oferecer o conhecimento de
uma parte precisa de ns, um prolongamento de ns mesmos,
do que fomos, somos e pensamos, enfim, de nossas verdades
e fantasias.500
Ficamos com a conscincia de que h muitas contradies, conflitos e centralidades nas manifestaes de memria,
principalmente por idosos. Suas lembranas orais e objetais
so, em grande parte, manifestao de ambivalncias, pois
personificam a crtica de muitas relaes no passado, ao mesmo tempo em que demonstram sua obedincia e submisso,
suas estratgias limitadas e problemticas, ainda que se tenham constitudo (em torno do casamento, do que se considerava pecado, da liberdade, da diferenciao de papis de
gnero etc.). Nesse horizonte, a dita memria de gnero
ECO, U. Sei passeggiate nei boschi narrativi. Milano: Bompiani, 1994. p. 111.
LEONE, G. I confini della memria. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 11. Ver
algo nesse sentido em BOBBIO, N. O tempo da memria. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.

499
500

298

Joo Carlos Tedesco

muito forte, revela processos diferenciadores, tempos e espaos de excludncia, principalmente no horizonte da cultura,
do vivido familiar, da ordem econmica e da sexualidade pblica. As contradies apresentam-se, tambm, na dimenso
laudatria e ufanista, nos ressentimentos e enquadramentos,
na ideia de sacrifcio com crescimento econmico.
O ltimo aspecto, o econmico/progressista, como j vimos, a
esfera miditica utiliza muito, ou seja, dimensiona a simbologia
evolutiva que une sacrifcio com mesa farta, do mato lavoura, da
ruralizao urbanizao, da tradio modernidade, do regramento e vigilncia ao pluralismo, da flexibilidade e da liberdade.
Enfim, a memria tnica possui valores que se reproduzem e so traduzidos, trazidos e tradicionalizados no tempo
presente como significativos e fornecedores de sentidos e representaes histrico-culturais. Porm, utilizam-se a memria e a cultura tnica para mostrar contrapontos, permitir fazer aflorar resduos e vozes de vividos e de aes que contrapuseram formas institucionalizadas de regramento da vida.
No obstante, formas hegemnicas, alimentadas por certas
abordagens tericas, ideolgicas e miditicas, so fortalecidas
e buscam imprimir o passado no presente, perdendo de vista
a historicidade dos tempos, dos lugares e dos valores sociais
em movimento na contemporaneidade.501

Ver BOBBIO, N. O tempo da...

501

Captulo 17
Estragos e reconstrues do tempo
na memria
A importncia e a necessidade de transmitir
O tempo nunca esconde seus estragos.
Guimares

Ao fazer escavaes (como diz Benjamin), a memria


remove um terreno com solo frtil de possveis achados, sensaes, emoes, objetos e cheiros. A memria um meio, um
meio onde se deu a vivncia, assim como o solo o meio no
qual as antigas cidades esto soterradas. Quem pretende se
aproximar do prprio passado soterrado deve agir como um
homem que escava.502
Com o desejo de preservao da histria local e da memria, importante que se diga que o relato de grande parte
dos idosos reflexo e expressivo de uma totalidade que se
manifesta no contexto tnico ligado ao modo do ser colono, de
uma forma coletiva, na qual dimenses sociais econmicas e
psicolgicas acham-se interligadas, bem como em correlao
com processos produzidos espacialmente, seja na relao com
o urbano, seja com o rural. A ideia de transmisso perpassa os
relatos de memria. Para transmitir a propriedade, passar
adiante, o conhecimento entre geraes, deveria, segundo
alguns idosos entrevistados, haver regras, ordens definidas,
BENJAMIN, W. Obras escolhidas II. So Paulo: Brasiliense, 1987. p. 239.

502

300

Joo Carlos Tedesco

uma famlia slida que estruturasse relaes interpessoais,


mantendo pressupostos do passado (fidelidade com a famlia,
com a tradio, saber que o que bom pra famlia bom pra
todos, o grupo).
Como vimos, Halbwachs enfatiza que, na ideia de transmisso, fazem-se necessrios pontos de referncia, os quais
estruturam nossa memria e formam uma memria coletiva, o sentimento de pertencimento, delimitando as fronteiras
socioculturais. As referncias, sejam objetais ou simblicas,
so sempre significativas, positiva ou negativamente, quando
relatadas na lembrana e referidas ao tempo e aos fatos. Segundo Lucena,
[...] a rememorao do passado e o trabalho com as imagens do
lugar de origem so um ato estritamente vivo, pois o grupo possui
laos afetivos, laos familiares e ligaes com o mesmo ambiente
material, no s devido s lembranas, mas tambm pelos contatos
com familiares que ainda vivem l. [...]. E na memria que se
encontra a relao tempo e espao. O mundo da memria intervm
no momento oportuno e produz modificaes no espao. A sequncia
da composio de lugar inicial, mundo da memria e modificaes
no espao, produz uma sequncia que tem por comeo e fim uma
organizao espacial. O tempo fica como espao organizado espacial. O tempo fica como espao intermedirio. [...]. A memria se
estabelece em forma de viagem por espaos vividos pelo grupo e
as imagens das lembranas so construdas pelo material que os
depoentes tm disposio. [...]. A transferncia de smbolos e a
inveno de ritos passam a ser indicadores da memria do grupo.503

No desejo de transmitir, a concepo de tempo, na memria dos idosos, aparece carregada de uma dimenso ambgua
e contraditria, dos de ontem e dos de agora. A simbologia
do pioneirismo imprimiu progresso na regio e, atualmente, o
lugar diferente, pois

LUCENA, C. T., 1999. p. 83-85.

503

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

301

[...] naquele tempo se fazia dinheiro, hoje se faz dvida, se trabalhava e se sofria, os de hoje no querem mais trabalhar e as coisas
so tudo bem mais fcil. Falar de sacrifcio hoje no que nem antigamente. Se eu disser pros meus netos o que passei aqui quando
era puro mato, o que comia, o sacrifcio pra ter gua, o tempo que se
levava pra ir comprar alguma coisa, querosene que luz no tinha,
n , fsforo, sal e os mantimentos, n, nem presta, no acreditam,
alm do mais nem do bola.

Um idoso entrevistado diz que, quando falava que era a


famlia mais importante no lugar, era s falar dos Palma que
no tinha um na redondeza que no conhecia. Agora, coitado,
mora sozinho, anda de cadeira de rodas e l, vcio e sensa
pol moverse.
Na memria de colonos idosos, o tempo e o espao, suas
relaes locais, alteraram-se muito; as temporalidades cruzam-se, contrariando-se, ou, ento, com pouca concordncia.
O presente permite vestgios, a velocidade do tempo impressa
nas relaes globais e locais e a consequente perda de referncias espaciotemporais e afetivas.504 desse modo que a forma
de pensar o tempo e o espao que alguns idosos exteriorizam
pelo veio da memria presentifica, ideologicamente, uma dimenso da tradio que os legitima como sofredores, por isso
heris, exemplares, constituidores de famlia e de boa famlia,
esta que est no centro dos referenciais de transmisso.
Os idosos, ainda que sejam pouco reconhecidos, so a
lembrana e a trajetria dessa referncia institucional, material, cultural, econmica e simblica que a famlia na
reconstruo do passado. As reminiscncias, os desejos de
reconstruir os modelos (de famlia, de trabalho, de gerador/
geradora de filhos, presena e futuro/continuidade), os bens
simblicos (poder patriarcal, a fora moral, as hierarquias sociais), os sofrimentos e as transformaes so cristalizaes

LUCENA, op. cit.

504

302

Joo Carlos Tedesco

de memria muito presentes na vida, nos espaos e nos relatos ouvidos e presenciados.
A famlia constitui e d continuidade dimenso da parentela, da genealogia, da terminologia dos nomes, de uma
coletividade e de uma rede genealgica organizada numa dimenso espaciotemporal na qual se correlacionam passado e
presente (geraes).
A conservao da terra da famlia (patrimnio econmico,
histrico e cultural), a importncia de ter filhos, o papel dos
parentes na cuidado dos filhos em situaes de infortnio dos
pais, a vida comunitria com sua discrio e vigilncia interna,
os comportamentos sociais, os objetos de censura do grupo, o
controle da qualidade e da quantidade das aquisies etc. so
formas de ligar lembranas da famlia com a memria e com
as estrutura do prprio passado, com eventos que assinalam o
tempo vivido na prpria unidade cultural, econmica e parental.
Os fatos histricos vm filtrados atravs da famlia, em
relao aos tempos da famlia. Cada famlia elabora em seu
calendrio particular, no restrito universo da comunidade,
onde cada um se conhece. Esse processo correlaciona aspectos concretos do mbito familiar para indicar o tempo, o ciclo
dos trabalhos e da produo agrcola, os quais do ritmo ao
calendrio anual. Inverno, vero, festas santos etc. estabelecem correlao no vivido com a terra, com o trabalho, os quais
no precisam ser relacionados na esfera da linearidade e da
continuidade; so tempos que, em sua cclica repetio, vm
transmitidos e vividos em sua base quase imutvel dos retornos das estaes e das sries de geraes, e se harmonizam
com as exigncias da natureza e da existncia, confiados
memria, reatualizao, consanguinidade e conscincia
de afinidades.505
ZONABEND, F. La memoria lunga...

505

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

303

A vida rural expressa por idosos como sendo uma dinmica que segue o curso linear entre vida e morte, mediada por
rituais sociais, tnicos, identitrios, religiosos e de trabalho. Esses rituais agregavam pessoas; produziam relaes de compadrio, aproximavam parentes, uns mais, outros menos; dividiam,
uniam, retiravam e agregavam propriedades, patrimnios,
espaos, pessoas e cenrios especficos. As identidades e coisas ameaadas possuem referncias a espaos, como que organizando referenciais que permitem se agarrar a tempos e
lugares mveis, existncia de um vivido anterior e interior.
O ser privado de lugar encontra-se num universo, sem lar,
sem eira nem beira. No est, por assim dizer, em parte alguma ou, antes, est em qualquer lugar, como destroos, flutuando no vazio do espao.506
Para os idosos, a casa esse horizonte de referncia profunda, que no os deixa flutuar no vazio do espao, ou serem
seres dispersos, como diz Bachelard. O autor diz que
[...] graas a casa que um nmero de nossas lembranas esto
guardadas: quando a casa se complica um pouco, quando tem um
poro e um sto, cantos e corredores, nossas lembranas tm
refgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos
durante toda a vida em nossos devaneios.507

A casa representa o ncleo da lembrana cotidiana, da representao do espao, do sentido e da forma de famlia; nela
se mesclam passado e presente, referncia famlia, vizinhana, ao parentesco, ao convvio interno. Casa e famlia representam o centro da vida do grupo que migra; ambas manifestam com mais intensidade o velho e o novo no horizonte dos
papis, no jeito de ser famlia, tanto no urbano quanto no rural.

POULET, G. O espao proustiano. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 18.


BACHELARD, G. A potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 1988.
p. 27-28.

506
507

304

Joo Carlos Tedesco

Famlia, no ethos de colono, vai alm da consanguinidade; reflete segurana, proteo econmica, garantia e obrigao de alimentao, transmisso de habilidades, moralidade,
conhecimentos, cultura, relaes sociais, controles afetivos,
contratos matrimoniais, centralidade de poderes, hierarquias,
papis internos e externos, vizinhana, compadrios funcionais e simblicos, vnculos e identidades comunitrias.508
Algumas idosas se lembram de sua vida na infncia fazendo comparaes com a de suas netas e/ou bisnetas; lembram-se de quando crianas, dos rituais religiosos (Primeira
Eucaristia, Crisma...), dos poucos e marcantes passeios que
faziam com seus pais ou avs, da lngua dialetal, do cuidado
com seus irmos, da narrao de histrias, dos componentes
culturais e tnicos dessas, da participao e da diviso dos
trabalhos, do corpo e do fator de obedincia com o passar dos
anos, das aprendizagens, com seus pais e/ou nonos, da socializao, da pedagogia do olhar, da severidade dos pais, do controle das crianas, do desejo de estudar e da escola que no
existia, da vigilncia social e familiar, do trabalho pesado em
substituio aos brinquedos e s atividades ldicas, etc.509
As idosas no se cansam de fazer comparaes entre a
sua infncia e juventude com as de atualmente; cruzam temporalidades, ou as excluem; falam das novas tcnicas, dos novos espaos para mulher, do cuidado dos netos, do estudo e
suas mudanas internas, do pouco dilogo entre geraes, da
escola, agora como promoo social, do urbano, da ausncia
de severidade com as crianas, da ausncia da disciplina coercitiva de uma vez.

Ver LUCENA, 1999, op. cit.


Uma brilhante anlise da relao entre crianas e idosos no mundo rural,
ver em MOSCOVICI, M. La personalit de lenfant em milieu rural. tudes
Rurales, I, 1961.

508
509

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

305

Nona Justina (nona Tina, como conhecida) relembra


dos seus 13 ou 14 anos (no lembra bem), quando saiu de
casa para estudar em colgio de freira; retornou depois de
dois anos, sob protesto dos pais e, como castigo, ficou em casa,
sem estudar. Narra as dificuldades que teve para enfrentar
os servios domsticos, a readaptao na vida familiar, a
aprendizagem dos mistrios do prprio corpo, sua adolescncia conturbada por uma paixo escondida, o aprendizado do
artesanato que sua me que viera da Itlia , desenvolvia,
sua constante dependncia econmica e moral em relao aos
pais, principalmente do pai. Lembra os bailes vigiados, o namoro mantido em segredo, o dia em que comeou a frequentar
a casa do outro namorado e a aceitao dos pais sem maiores
objees; conta causos de desvios de conduta sexual de homens e raramente de mulheres mas existiam tambm, oh
se existiam, porque se contava menos do que os homens,
mas se sabia, e quanti, guai! Lembra que ela mesma foi rbitro no jogo matrimonial de suas filhas e de um filho; faz
questo de dar nfase ao fato de que hoje isso ainda bem que
se perdeu, porque quem sai perdendo sempre a mulher.
Honra e prestgio sempre fizeram parte da famlia de
dona Tina; por isso, no podia exigir tanta flexibilidade dos
pais:
[...] eu ainda era a mais reclamona, pois tinha estudado fora. Minhas irms aguentavam caladas, minha me ficou sempre do nosso
lado, mas na hora de as coisas serem decididas, ficava ao lado do
pai. [...]. Muitos pensavam que eu, por ter estudado em colgio de
freira, deveria dar exemplo moral e de obedincia, e no inculcar
ideias contrrias.

Capital simblico e capital econmico, segundo Bourdieu,510 em geral se equivaliam na relao cultural entre fa Ver sobre essa anlise do capital simblico que envolve reputao, respeitabilidade, papel familiar, dentre outras, em BOURDIEU, P. Esquise dune thorie

510

306

Joo Carlos Tedesco

mlias, sobretudo no meio rural. Por isso, eram importantes a


visibilidade e a fidelidade pblica na troca dos de bens simblicos e materiais, dos vnculos entre famlias, dos laos de solidariedade e entreajuda (era comum o rapaz ir ajudar o sogro
nos trabalhos da lavoura e a moa auxiliar a futura sogra em
perodos de necessidade).511
Nesse horizonte, havia a preocupao em torno do enxoval, da casa, dos mveis, do quarto, da festa, do cerimonial
religioso, comunitrio e familiar, dos rituais antigos da sociedade rural, principalmente em torno da retribuio a convites, dos vnculos e envolvimentos comunitrios, rituais de
recordao (fotos, por exemplo), de compromisso pblico (no
caso, poderamos identificar os padrinhos e os compadres).
Nona Tina lembra com um pouco de ressentimento, a
vida que teve como recm casada, em virtude do contato, da
transferncia e convivncia com os sogros; o problema enfrentado logo no incio do casamento em torno da questo da herana entre os cunhados, os conflitos a gerados, as divises,
responsabilidade, poderes, espaos domsticos, de poder e de
trabalho, vigilncia, utilidades, intruso, auxlios, segurana,
companhia, responsabilidade econmica, transferncia de autoridade sobre todos os membros da famlia, diviso de sexo
no trabalho (oposies, complementaridades hierrquicas entre o dentro e o fora), domnio, subalternidade, possesses,
prestgio, responsabilidades variadas e tambm hierrquicas,
controle econmico, financeiro e contbil, dentre outros.
Esses processos todos remarcam vividos anteriormente
nas famlias-mes, atualizadas, alteradas e/ou redefinidas em
razo das condies objetivas, subjetivas (projetos de vida) e
de la pratique. Genebra: Droz, 1972.
Vrios autores enfatizam o fato de o casamento ser o cumprimento do destino
feminino. Ser casada, tornar-se me expresso de um desejo de socializao
sentida pela mulher no meio rural. Por isso, o casamento se realizava, em
sua maioria, com idade entre 16 e 21 anos para as mulheres.

511

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

307

afetivas da nova situao. Na narrao da informante, so todos processos vividos, harmonizados, acomodados, em latentes conflitos e constantes atritos no espao de coabitao;512
enfrentamentos recprocos entre sogra/nora, sogro/genro, entre cunhados, entre desejos contidos e expressos no campo da
afetividade, da sensualidade, da sexualidade, dos desvios de
conduta, da incorporao dos conhecimentos normatizadores
da vida camponesa, social, familiar e individual, bem como do
peso histrico dos costumes e das tradies tnicas.
A recriao de representaes simblicas e prticas sociais de um passado de trabalho penoso proporciona significados e valorizaes s suas vidas. Ao resgatarem, reconstiturem e reinventarem seu passado imediato no presente; ao
conceberem duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na
comunidade, entre idosos e jovens, os primeiros adaptam-se,
resistem imerso em universos da modernizao e da racionalidade individual no seio familiar.513
A absolutizao dos de agora em relao ao tempo de
agora, do ganhar tempo, da adequao individual ao tempo como imperativo social penetra no cotidiano da vida social
onde esto imersos os idosos. O acento utilitarista, linear e
quantitativo do tempo centrado na eficincia dicotomiza passado e presente, constituindo diferenas e redefinies. Desse
modo, na transmisso, a referncia ao tempo de antes e ao
tempo de agora importante para a percepo da negatividade e da positividade das mudanas das coisas no tempo. Da a necessidade da integrao dos idosos no tempo pela
narrao e pela possibilidade de lembrana.
Os idosos estiveram e esto integrados nesse todo e vivenciam-no, ainda que, em boa parte, crtica e negativamen LVI-STRAUSS, C. j dizia que cada matrimnio compromete o equilbrio
do grupo social. Ver Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1976. p. 334.
513
Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar...
512

308

Joo Carlos Tedesco

te; lutam, ainda que de uma forma incipiente (com as parcas


armas que possuem, uma delas a memria), para preservar,
em meio s alteraes, formatos de vida vivida e que, segundo
eles, faz sentido reviver no presente.
Atualmente, os processos em redefinio so expressivos de trajetrias temporais (localizadas e contextualizadas),
mas que no omitem a reconstituio. O cotidiano do idoso
continua sendo um complexo inter-relacional de temporalidades e de significados em conflito. E a memria expresso
localizada temporalmente disso tudo.

Marcos de referncia de mudana


Quanto mais se acelera a velocidade na captao
das imagens, mais o olhar se paralisa.
Benjamin

A sociedade brasileira em geral e o meio rural em particular passaram, entre a dcada de 1950 e o final da dcada de
1960, por profundas transformaes sociais. Foi um perodo
por excelncia em que a sociedade foi induzida a se modernizar em vrios mbitos produtivos, de convivncia social e
familiar, de concepes de vida e de sociedade. Nesse perodo,
o meio rural foi induzido a se modernizar tcnica e socialmente, a racionalidade e a ingerncia do dinheiro nas relaes
sociais se fizeram sentir com mais intensidade, justificando
processos de migrao interna para espaos novos tanto no
meio rural quanto no urbano.
O universo da cidade ganhou ares de liberdade; o trator e o
carro foram os grandes instrumentos tcnicos que viabilizaram
alteraes e concepes variadas de tempos, espaos, distncias,
contatos com pessoas, com a terra, com a economia e com a identidade pessoal dos que os possuam e dos que no os possuam.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

309

A partir desse perodo, a ideia de um Brasil, de um povo,


de um urbano e de uma agricultura moderna se desenvolveu
com mais intensidade, passando a servir de marco de referncia nesse perodo. No caso especfico em questo, esse perodo o marco de referncia de grande parte das migraes das
Colnias Velhas para as novas e, para muitos, dessas para a
cidade.
O veio da temporalidade alterada, das invenes, da subjetividade faz-se sentir com maior fora narrativa nos relatos
de memria dos idosos tendo como referncia marcante esse
perodo. Expectativas, entusiasmos, enfrentamentos, mudanas e adaptaes so expresses que se misturam nos relatos
em razo do que se esperava, do que aconteceu, do que se
tem condies de dizer agora, da intensidade do sofrimento,
das angstias, encantos e positividades.
As imagens do tempo e das coisas do tempo alimentam
as narrativas dos idosos, carregadas de imagens e de experincias, comumente de situaes de dificuldades (atrasado,
difcil, pobre e pesado, tendo a cidade como contrrio de muito
disso), produtos da memria, de uma linguagem expressa no
cenrio da tradio familiar, tnica, cultural e de gnero, as
quais ancoram, produzem e diferenciam significaes.
O gnero est envolvido nesse processo de diferenciao
de lembrana. Percebemos que as idosas manifestam com
mais veemncia as repercusses de um cenrio de mudana
e o desejo de adaptao, tm entusiasmo no enfrentamento e
mais desejo de permanecer pra mim ficaria sempre onde
sempre estive; ele era o que sempre queria sair. Os homens,
ao que nos pareceu, misturam mais ressentimentos e sentimentos de perda com o ufanismo da conquista e da superao, com o fato de ter se dado bem ainda que com muito mais
sacrifcio; manifestam com fora a negatividade das alteraes que a vida no espao urbano e as novas modernidades

310

Joo Carlos Tedesco

no meio rural produziram nas relaes de poder dentro da


famlia, pelo enfraquecimento da autoridade masculina, no
obstante permanea ainda a centralidade, talvez um pouco
flexibilizada, da autoridade patriarcal.
Como nos diz Lucena, os homens e as mulheres que migraram adultos so responsveis pela recriao de prticas
sociais do passado rural na colnia-me e tambm, na cidade,
pela recriao de prticas rurais.514
A migrao do rural para a cidade, ou, mesmo, do rural
para outro rural, aparece ambiguamente nos relatos como soluo e recriao de tenses econmicas, culturais, tnicas,
de expectativas novas, como qualificao, educao, sade,
promoo e progresso pessoal; processos que so resultado de
uma apropriao simblica do real adaptada s atuais e s
passadas identidades e expectativas.
A famlia est no centro da ideia e da prtica migratria.
Trabalho mais leve ou mais pesado (assalariado, ou comear tudo de novo num lugar que nem gente tinha ainda), a
questo da sade, da educao e da profisso, no espao que
agora da gente, de menos sofrimento e desgaste do corpo,
mais conforto e facilidade, melhor adaptao, status, maiores
intervalos entre tempos de trabalho e de descanso, como o
caso do meio rural e do uso das tcnicas modernas nesse espao, etc., produzem diferenciaes, mltiplas interpretaes
e representaes; reformulam experincias e concepes sobre a realidade vivida e imaginada e esto muito interligadas
com a esfera familiar.
Alguns idosos demonstram claramente que eram vocacionados para trabalhar na terra. Gosto de ver o milho assim,
dessa altura, verde como est, declarou um idoso que nos levou a uma roa de milho de meio ciclo em solo adubado por
LUCENA, C. T. Artes de inventar...

514

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

311

cama de avirio esse adubo que d a diferena, faz vingar,


tem uma fora a mais do que o outro. Antigamente, o milho
vinha sem adubo, agora o esterco de galinha muito bom.
O colono sentia-se potencializador da fora da natureza,
dava-lhe maior poder de fertilidade; era um trabalho sobre e
com um ser vivo que cresce com e como natureza, transferindo-se para a identidade de colono. O colono sabe que sua ao
se d com as foras vivas, algumas vivificadas pela mo (por
meio do trabalho). Nesse sentido, h uma apropriao/objetivao, uma interao movida por saberes, sensibilidades,
mos, animais e bichos, acrescidos de um artfice divino (extremamente valorizado), pelo menos para os mais velhos,
no tanto para os de hoje.
por isso que a concepo de natureza, no cotidiano dos
idosos entrevistados, ganha contornos diferenciados daqueles
dos de hoje. A natureza aproprivel (roa, mata, rio, gua,
chuva, sol, morro...) vista por alguns idosos na tica de espaos contextualizados de significados positivos e negativos
(chuva, seca, perodos de pesca, caa...). Os de hoje adentram para uma exuberante tecnologia, que controla o mundo
cotidiano natural, funcionando como cdigos externos que,
para os idosos, invade e interdita a vida rural; so novas regras de controle e domnio humano sobre o espao de vida e
de trabalho, bem como do ambiente natural.
Os idosos querem que seus rastros no se apaguem, principalmente os que produziram frutos. O rastro, como identificao com a memria, carrega consigo a ideia do esquecimento e da tendncia a se apagar.
A ideia de rastro significativa no campo da memria
e nos remete a uma passagem marcante pelo tempo e pelo
espao passvel de se apagar, expressiva de sua fragilidade
interna, de sua ausncia e desejo de plenitude num cenrio de
poucas possibilidades de volta. Os idosos, quando nos levam

312

Joo Carlos Tedesco

para mostrar algo que possui sua marca, sua presena e sua
importncia, dinamizam essa dialtica da presena-ausncia
que reflete a ideia de rastro.
O rastro um signo inscrito (significado) e escrito (marca
material e visvel), narrvel ainda porque, para os idosos, tem
visibilidade e existncia. Os idosos querem lhe dar um lugar;
querem, conscientemente, lhe propiciar uma digna sepultura
diante da ameaa do esquecimento e, consequentemente, de
sua insignificncia. Uma idosa nos disse que chorou dias e
dias quando viu um vizinho que comprou uma chcara demolir
o moinho que seu finado esposo levou mais de dois anos para
fazer h cinquenta anos, pois, alm de no funcionar mais, a
construo era feita de madeiras nobres, comercializveis.
O rastro consciente e intencionalmente passvel de esquecimento, anulando sua existncia, ou, desejoso de subsistir. Nessas duas dimenses entram critrios de verificao
e falsificao de experincias, enraizamento e esquecimento
de referncias, sujeitos, fatos e objetos. No fundo, o que sempre se reivindica a presena da ausncia ausente ou da ausncia da presena; o que est em jogo sempre a conscincia
do poder da morte, ou para no ser mais lembrado, ou para
reconhecer sua vida e lhe permitir rastros de existncia.
A apropriao humana da natureza pela mediao tcnica, e no pelas foras tradicionais e formas artesanais dos idosos, deixa-os receosos, amedrontados, profticos, apocalpticos
e um pouco negativistas. Com a mecanizao da agricultura,
nem os homens, nem os animais tinham mais necessidade
de suar como antes; os cavalos e mulas foram eliminados da
agricultura e menos homens agora trabalham. A tcnica s
quer tirar e, qualquer dia, esgota, em nome da racionalidade
do lucro, da reduo do ciclo produtivo e de engorda, do aumento da produtividade e da diminuio do trabalho manual
e rstico.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

313

Alguns idosos no tm dvida de que o uso exacerbado


de referenciais tcnicos humaniza muito pouco o mundo natural que interage com o colono e com as formas de organizao
social urbana, essa em razo da poluio, do perigo de andar
na rua, da valorizao do objeto tcnico mais do que devia,
dos altos custos para suas aquisies e manutenes, o que
demanda mais e mais trabalho e menos convivncia social,
vicinal e comunitria.
No interior, nas comunidades pra fora, tu no encontra mais ningum nos domingos, no porque no tem gente, tem gente, sim. Todos
vo trabalhar. Um perodo porque tem de colher, outro porque tem
de plantar, outro porque querem fazer uma coisa e outra. Um pensa
assim e o outro tambm, no fim, ningum mais vai na comunidade.
Tu no acha quatro pra jogar um quatrilho, bocha ento nem se fala.
Mas, olha, me acredite, tu no arruma um vivente.

Como j vimos, nas trajetrias migratrias dos idosos,


que para a grande maioria se deu entre espaos rurais, imagens do passado permanecem vivas, geralmente na tica do
sacrifcio e do novo que tiveram de enfrentar. As noes de
enfrentamento do desconhecido, do diferente, dos confrontos,
das novas necessidades, dos novos signos e novas imagens, da
aventura, do medo, das rupturas no grupo familiar esto presentes nos relatos. Os tempos cotidianos e os instrumentais
ganham novas roupagens e novos significados.
O tempo regido pela natureza (seus ciclos) no meio rural
rompe-se quando da migrao para o urbano. Nesse espao o
tempo outro: o do trabalho, da fbrica, do relgio, do dia e
da noite, tempo do compromisso definido pelos outros,515 portanto, um tempo que depende muito pouco da determinao
do indivduo. Se chegava alguma visita, se dava pra atender,
tudo bem, seno ia embora, porque o horrio de trabalho era
aquele e deu.
LUCENA, C. T., op. cit.

515

314

Joo Carlos Tedesco

O espao urbano aparece nos relatos como envolto na redefinio, quando no na ruptura, pois a habitao, a convivncia, os encontros, a solidariedade, a proximidade, o parentesco, o trabalho... desespacializam-se. A migrao de mais
famlias conhecidas, a oportunidade de retornar ao meio rural para rever seu antigo espao, para fazer alguma coisa,
para visitar filhos e netos, recompem, em parte, aspectos do
lugar de origem, bem como reinventam novas aes, com novos suportes afetivos e de interconhecimento.

Lembrana de afazeres, fazeres e saberes


Sem as mincias das lembranas dos pais e
avs, teramos que inventar a maior parte de
ns mesmos.
J. Anderson

Os idosos deixam claro que as lembranas esto em fluxo


contnuo, algumas so acrescidas, outras esquecidas, umas
emergindo, outras submergindo, etc., porm tendem a se ampliar com o avano dos anos, com o transcorrer das experincias. Incluem sentimentos, singularidades, detalhes, intimidades; publicizam acontecimentos e experincias pessoais,
modos de ser.
Na verdade, precisamos das lembranas de outras pessoas tanto
para confirmar as nossas prprias, quanto para lhes dar continuidade. Ao contrrio dos sonhos, que so absolutamente particulares, as
lembranas so continuamente complementadas pelas dos outros.
Partilhar e validar lembranas [...] estimulam sua emergncia.
Acontecimentos que somente ns conhecemos so evocados com
menos segurana e mais dificuldade.516

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto Histria, So Paulo,


n. 17, 1998. p. 81.

516

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

315

Os idosos gostam de se lembrar de suas aes cotidianas,


buscam no cotidiano algo que lhes foi extraordinrio; seus referenciais no vo muito alm do que a rotina do dia a dia e
seus desafios lhes impunham. Por isso, os pontos de convergncia das lembranas eram a casa, a roa, a famlia, o trabalho, a comunidade, ou seja, cenrios impressos com conotao
coletiva. Partilhar esses referenciais de tempo e de aes impressas pelos mesmos pareceu-nos ser quase que uma exigncia dos novos tempos, como uma cidadania do vivido.
A casa e a roa tem linguagens mltiplas na vida do colono; ambas obedecem aos ritmos que o tempo marca e solidifica, bem como aquele das alteraes promovidas por fatores externos e as grandes situaes marcantes do cotidiano
(mortes, nascimentos, colheita farta, casamentos, conflitos,
temores etc.); dimensionam a visualizao do que pblico e
do que privado; so espaos que se interpenetram atravs
de trocas que vo se intercambiando, trocas essas materiais,
simblicas, mais e menos significativas em termos financeiros, contbeis e de reconhecimento.
A linguagem domstica obedece ao ritmo. Contam-se as geraes,
as estaes, o juzo e a loucura. A narrao faz rimar o incio e o
fim, cicatrizar as interrupes. Cada um na casa encontra o seu
lugar e o seu nome, e os episdios anexos. O seu nascimento e morte
tambm se inscrevem, iro inscrever-se no crculo das coisas e das
almas consigo prprias.517

J vimos que a casa lembrada como o espao que correspondia ao abrigo e ao aconchego domstico, mas tambm
correlacionado e diviso com as necessidades da roa. Desse
modo, poderia servir para guardar comida, cereais; no poro,
ou embaixo da casa, quando possvel, guardavam-se a carroa, as pipas de vinho, a graspa, o salame, o cesto com o po,
LYOTARD, F. O inumano; consideraes sobre o tempo. Lisboa: Estampa,
1989. Ver, tambm, sobre isso AUG, M. Le forme delloblio. Dimenticare
per vivere. Milano: Il Saggiatore, 2000.

517

316

Joo Carlos Tedesco

as ferramentas as coisas que no se usa mais se enfiava


tudo no poro. O que necessitava de um olhar mais prximo
e vigilante era (res)guardado nos domnios da casa. No entanto, pelo que pudemos entender, a casa possui um sentido
subalterno em relao terra e aos trabalhos agrcolas. Diz
um ditado contado por um idoso que uma casa de quatro tole
bastava, mas de tera prendere quanti ti pu di piu aver.
Malgrado sua concepo importante, mas secundada em
correlao terra, a casa possua uma funo instrumental
com o seu entorno: a estrebaria, o galpo, o chiqueiro, a horta,
o pomar, o galinheiro etc., tudo deveria estar em correspondncia com a casa. Em geral, as casas eram simples, rsticas
e pobres. O espao mais importante era a cozinha, em sua
funcionalidade com o fogo, com a comida, com o aquecimento, com o contato coletivo etc.; em continuidade de importncia estavam os quartos espao de domnio mais individualizado, ainda que em muitas circunstncias fosse coletivo. A
sala, quando havia, era secundada pela cozinha, espao de
visitas no to ntimas (pois essas poderiam ser realizadas na
cozinha) e/ou comumente masculinas.
Pudemos perceber pelas entrevistas que, no obstante ter havido melhores condies em relao aos primeiros
tempos da colnia-me, pouco se alterou nos tempos da colnia-migrada; a casa continuou a representar a continuidade
da famlia no tempo; sua historicidade cultural sedimentada
com o sentido e a representao de um espao funcional
vida camponesa e s condies econmicas obtidas na roa.
Diz uma idosa que casa bonita e pouca terra no eram
um bom sinal, pois isso no fazia parte da racionalidade econmica camponesa nem de seu ethos cultural. A alterao da
casa, quando ocorria, deveria de ser realmente uma manifestao da evoluo econmica, que demandava melhores condies de aparncia e de bem-estar.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

317

Na cultura camponesa do imigrante italiano de segunda e terceira geraes, o conceito de trabalho acompanhou as
exigncias da vida, era condio para viver: Se te vol cagar,
bisogna laorar, no le mia? Esse processo era socializado em
famlia, e desde cedo.518
A casa era o espao de um trabalho de no trabalho. Trabalho o que transcende o espao da casa. Desse horizonte,
reproduzem-se e derivam regras de comportamento, de educao e de trabalho comumente aprendidas dos pais. Divises, diferenciaes, espacializaes, especializaes, gostos,
obrigaes e interesses nascem e se desenvolvem no conjunto interligado entre casa e roa, mediado por outros espaos/
atividades funcionais, culturais e de gnero de menor importncia. Cuidar da casa e da roa era um dever de todos, mas
mais dos pais, n. Cada um tinha clara essa responsabilidade
e sabia o que devia fazer, apesar de que na roa a gente ajudava tambm e eles (marido e filhos homens) em casa muito
pouco, para no dizer nada, declara uma idosa migrada para
o espao urbano de Nova Prata.
O tempo da casa e o da roa dependem dos ciclos de vida
e de cultura dos produtos, e esses, de sua natureza biolgica e climtica. No entanto, como nos disseram alguns idosos,
sempre havia o que fazer; sabiam fazer combinaes e consorciamentos hierrquicos e complementares entre trabalho, produtos e clima, o que lhes permitia controlar, ocupar e
correlacionar tempos, espaos e atividades. Alguns produtos
sempre manifestaram o ethos de colono italiano: milho, trigo,
uva foram os mais citados con pan e vin vive el contadin
e so expresses de agregao cultural.
Comidas tradicionais da vida camponesa ganham temporalidades longas (po, queijo, polenta, salame, carne de
ZONABEND, F. La memoria lunga...

518

318

Joo Carlos Tedesco

porco, acrescidos de feijo brasileira). A ideia de que comer


era um valor social, uma expresso e justificao da laboriosidade povere, ma la tola piena. A polenta no podia faltar,
como est presente ainda nas famlias do colono, inclusive
nos mais abonados. Sua combinao com o queijo e o salame
evidenciava-se no caf e na janta como condio sine qua non,
aleatoriamente no almoo (presente, mas como combinao
secundria).519 Pode engordar um pouco, todos podiam, disse uma idosa. Ento, a garantia de combinao estava dada
qui non p copar un porco vive tuto lano con el mus storto.
A casa sem a horta seria como um corpo debilitado pela
ausncia de algum rgo que comprometia o seu funcionamento. A horta subsidiava a casa com verduras, temperos,
alimentos ocasionais (batatinha, amendoim, pipoca...), que
no podiam tomar o lugar da roa. Nos comentrios de idosas, havia pouca inovao no cardpio dirio. A comida camponesa sempre foi pesada, forte e repetida, sem muitas invenes, nem se tinha tempo para isso.
O ciclo agrcola aparece como organizao, como estrutura e sucesso ininterrupta de tempos, de trabalhos a fazer em
funo das estaes, do desenvolvimento dos produtos e da
ecologia da unidade familiar. Era comum ouvirmos de informantes idosos e de meia-idade que, no vero, iriam fazer tal
coisa; no inverno, outra; depois da safra, aquilo; quando chovesse, em tal lugar, etc. Inovao, conhecimento acumulado
por geraes precedentes, membros familiares e de vizinhana, introduo de variedades, dentre outras, (re)estruturam
aes (no s naturais/biolgicas) cotidianamente associadas
a uma cincia prtica.
Parece-nos que havia uma convivncia carregada de
significaes e smbolos, os quais, por si s, obedecem a uma
ZONABEND, op. cit.

519

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

319

racionalidade espontnea, interessada na experincia do trabalho produtivo e na convivncia. O espao construdo pelo
esforo, pelo sacrifcio e no sem conflitos, formando uma totalidade social que norteia as relaes sociais e de produo.
A ideologia da famlia ou do vnculo do parentesco legitima a
configurao do prprio trabalho familiar enquanto relao
de famlia. Nem todas as famlias conseguem se reproduzir
enquanto tal; alguns filhos, ao se casarem, buscam outras alternativas, deixando grande parte dos frutos de seu trabalho
para os outros membros da famlia.
Saber organizar o processo de trabalho, seus instrumentos, seu saber emprico e tcnico, saber compreender o
dinamismo da natureza na tica do equilbrio etc. so combinaes a priori construdas no ethos de colono, porm que
se atualizam, se renovam e se governam no prprio fazer. O
saber/fazer, enquanto dinmica construtiva, material e simblica, atualiza-se e transmite-se envolvendo valores e diferenciaes de papis e de hierarquias
O controle tcnico dos meios de produo, do processo
de trabalho e da natureza faz parte de um saber, de uma tecnologia do colono (que preferimos chamar de racionalidades
adaptativas) que norteiam aes, funes e estratgias. O
prazer, a alegria do lazer e do trabalho, da sociabilidade comunitria e catlica, jogos diversos e o contato cotidiano com
a bodega, todos so dinamizados nas narrativas pelos idosos,
o que expressa que havia um conjunto de fatores que propiciam a integrao intensa de momentos de prazer corporal.
A constante orientao aos filhos sobre o estudo e as
opes de trabalho diferentes, a dificuldade que os pais tm
de motivar todos os filhos para o trabalho pesado na roa, a
busca de trabalhos pra fora por parte de algumas mulheres
e, esporadicamente, por alguns homens, dentre outros, reduzem os braos em casa, fazendo aumentar a intensidade do

320

Joo Carlos Tedesco

envolvimento com atividades que reduzem o tempo de lazer,


principalmente dos cnjuges.
As marcas e os sinais da natureza, do estilo de trabalho e
da cultura identificam o corpo, o qual, ainda que seja o espelho
e a manifestao da individualidade, constri-se no que faz, no
trabalho. Os colonos julgam-se os que mais se judiam e mais
gastam precocemente o corpo; a intensidade desse gasto
se d pela dinmica e pelo impulso no trabalho e em suas
variaes. A busca de trabalho leve se d em razo tambm
do gasto do corpo, nem sempre unicamente pela varivel
remunerao. A ao do tempo nesse gasto, tende a ser intensificada pela ao do trabalho, e do trabalho rude. Cuidado, trato, gasto, marcas, vestimentas, o andar, o movimentar
e descansar, o se expor, as manifestaes externas do corpo
etc, expressam tambm tenses e vnculos, intensos ou no,
com o trabalho da roa; porm, orientam-se nos horizontes da
gestualidade, de intenes, decncias, exibies, rudeza (machismo), desejos e razes, recatos, posturas, invejas, tramas,
desejo narcsico, demonstraes (aparecer), espacializao
de gnero, modernizao/tradio, o que vem do corao, do
erotismo, o que de (e da) famlia etc.520 So todos processos
de significados mltiplos e complexos que interagem no campo da identidade espacial e cultural do colono e que se imbricam com a famlia, com a terra e com o trabalho na intensa
vinculao s dinmicas da sociedade envolvente.
Na memria de idosos do meio rural, a questo da sucesso fundamental; a transmisso do patrimnio, para
eles, tematiza uma vinculao com a consanguinidade, com a
proximidade fsica, parentesco, pertencimento, como resposta
e materializao a um processo de adaptao de interesses
econmicos (integridade do patrimnio familiar) e de geren WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. So Paulo: Hucitec, 1995;
ver, tambm, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a
lgica e a simblica da lavoura camponesa. Braslia: UnB, 1997.

520

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

321

ciamento da tradio e da famlia. Nas primeiras dcadas do


Sculo XX, as Colnias Novas exerciam a descarga de tenses
no seio da famlia quando essa questo vinha tona. Inmeros espaos de fronteira agrcola ps-dcada de 1950 tambm foram determinantes para definir trajetrias individuais
aglutinadas em interesses coletivos.
As representaes simblicas e as prticas associadas ao
passado no podem ser interpretadas como mera nostalgia
no por nada que a maioria dos idosos que permanece
na colnia prefere se envolver com as parreiras. So camadas mltiplas de tempo e espao que supem significados e
valores culturais em conflito, representaes dinmicas percebidas e confrontadas com as formas do vivido e concebido,
expressas nas condies de existncia atuais.

Memria da migrao para o urbano


Os lugares vo e vm, podem nos abandonar, mas
tambm retornar e tomar seu lugar primitivo.
Proust

Lucena diz que a memria familiar no homognea,


mas resultado de circunstncias, de reavaliaes e momentos do grupo e/ou de indivduos isolados.
Do ponto de vista da mobilidade social, as histrias de famlia
fornecem meios para analisar as influncias intergeracionais entre
homens e mulheres e um cruzamento de significados e valores culturais dos diferentes espaos vividos pelos migrantes. As prticas
culturais dos migrantes esto sempre vinculadas aos princpios
familiares. As experincias de vida nos lugares de origem so
vinculadas terra e famlia.521

LUCENA, op. cit., 1999. p. 54.

521

322

Joo Carlos Tedesco

Nas imagens de memria, as representaes sobre o lugar de origem e o de destino no so unvocas para os migrantes: O espao social pode estar carregado de mltiplas
interpretaes contraditrias [...] O que parece comum que
a cidade o espao onde se encontra a soluo para os problemas da roa.522
Para alguns idosos, a imagem da cidade vem carregada da significao de violncia, de movimento contnuo e que
no pra, dos gastos elevados para viver, de lugar do desconhecido, de ressocializao no trabalho e na vida familiar e
social, nos hbitos (comida, higiene, fala etc.) e na aprendizagem, de ausncia e de novas dificuldades da vida em relao
ao espao da roa.
Malgrado isso, a cidade ofereceu, tambm, para as idosas
maior possibilidade de descanso. O trabalho, ainda que tenha
continuado na tica dos gneros, ficou mais leve para elas,
possibilitando-lhes incorporar valores de classe mdia, especialmente quanto arrumao da casa, a utenslios utilizados, vestimenta etc.:
Possibilitou que a gente pudesse se realizar melhor. [...]. Outros
vieram tambm, vizinhos, gente da roa que nem ns, e da a gente
se ajudou bastante e foi criando aqui quando a vila comeou, quase
que uma comunidade rural.

Nas imagens da memria dos primeiros tempos de cidade, manifestam-se representaes construdas no meio rural,
ou seja, a ideia de fazer capital, o sacrifcio, a doena (a necessidade de estarem prximos dos mdicos e das condies de
sade, realidade essa que o rural no oferecia), as facilidades,
os sonhos e os desejos de novos cdigos de vida, a adaptao
s novas mensagens sociais e culturais, muito presentes nas
dcadas de 1950 e 1960, de modernizao social e pessoal.
Idem, p. 55.

522

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

323

A migrao para a cidade de famlias que entrevistamos


necessitou do auxlio de novos migrantes e tambm favoreceu os posteriores, principalmente no campo do trabalho, na
continuidade da identificao da vida rural, na fortificao da
identidade do antes no momento da alterao do momento.523
Durhan diz que a migrao sucessiva de membros de famlias do mesmo local de origem possui a vantagem de favorecer
a posio anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova
identidade, uma nova posio no contexto novo.524
Alguns idosos nos disseram que, nos primeiros tempos,
a cidade no se apresentou to distante assim; ficou mais
difcil, sim, com o passar dos anos, pelas suas alteraes nos
estilos e formas de vida.
Se conhecia pouco a cidade naquela poca, eu mesma nunca tinha
ido porque, tu sabe, era s o pai que ia quando precisasse. Ou,
ento, se tivesse que i no mdico, mas s nessas horas, n. Mas
hoje eu lembro que estranhei, oh se estranhei [...]. Se tu vai ver,
no fundo, aqui nessa vila era quase todo mundo vindo da roa [...],
ficou muito do que se fazia l.

Nos primeiros tempos, permaneciam coesos o ambiente


familiar, a hospitalidade, o sentimento de proximidade, o sotaque dialetal do vneto, um certo sentimento de localidade;
com o tempo, alguns desses elementos foram sendo alterados
em razo das mudanas, de ambies, individualismos, fragmentaes familiares e de maior socializao no universo da
cidade e seus valores.
Segundo Lucena, possvel que o migrado do rural para
o urbano recrie a imagem da cidade em correspondncia ou
apoiado na experincia e na memria.525 As idosas que migraram para a cidade manifestam sua preocupao inicial com
LUCENA, op. cit.
DURHAN E. R. A caminho da cidade: vida rural e migrao para So Paulo.
So Paulo: Perspectiva, 1978. p. 130.
525
LUCENA, op. cit., 1999.
523
524

324

Joo Carlos Tedesco

o aspecto econmico, com o conforto da casa, com a possibilidade de educao dos filhos. A cidade representou, e ainda
representa, desejos, medos, traio das pessoas, conforto, regras impessoais, lugar desconhecido e do desconhecido, angstia das mudanas profundas que ocorrem no mbito familiar, social e cultural.
A cidade representa o horizonte espacial dos ganhos e
das perdas: ganhos de novas aprendizagens, de novas relaes
no de total dependncia patriarcal, de novas sociabilidades,
confortos e adaptaes sociais; perdas referentes ao tempo e
ao espao tradicionais vividos nos tempos da roa regidos pela
natureza; pela desespacializao social,526 dos vnculos comunitrios, do suporte afetivo da famlia que transcende para o
horizonte do compadrio, do parentesco e da vizinhana.
Nas informaes de idosas migradas para o urbano, sempre houve dificuldade em constituir uma vida comunitria na
cidade. Na cidade vive-se mais agitado, com medo,
[...] eu mesma quando fiquei sozinha, que morreu meu marido,
nunca conseguia mais dormir sozinha, no tive mais coragem de
ficar uma noite sem ningum, era sempre aquela folia e ficava
sempre nervosa. Agora me toca dormir sozinha porque sempre
aquela incomadao seno, n, um dia vem um, outro dia tem de
vir outro. Tenho vontade de voltar pra fora e morar perto, no
junto, com minha filha casada, s que acho que no vou mais me
acostumar l, pelo menos teria algum conhecido e que fique mais
responsvel por perto.

Algumas idosas que migraram para a cidade com a famlia expressam que a mobilidade no foi, no incio, desejada
por elas em razo do desconhecido, da dificuldade de entrar
no ritmo da cidade, de suas novas exigncias, dos seus temores, ainda que Nova Prata no era bem uma cidade daria
pra dizer. No entanto, Nova Prata, ainda que pequena, era
LUCENA, op. cit., 1999.

526

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

325

difcil pra gente se acostumar, porque a cidade outra coisa.


[...]. No se tava acostumado. [...]. Tudo ficou diferente. Uma
entrevistada nos disse que, depois de migrada para Veranpolis, deu-se conta do quanto a cidade alterara a vida, o ritmo
anterior de organizao do cotidiano, trazendo o conflito explcito de geraes, a necessidade de reinventar novas formas
e experincias, de adapt-las ao ritmo da cidade e no mais
da colnia.
Percebemos, pela narrao de algumas idosas, que as experincias reinventadas se do na esfera do cotidiano da casa, da
participao e organizao comunitria, da vida religiosa, dos
contatos com a vizinhana, ou seja, nos espaos que ainda conservam relaes de pertencimento e identificao tnico-cultural. No exteriorizam tanto a dimenso econmica, o fato de sua
famlia ter acumulado capital ou no. O horizonte da lembrana e dos referenciais cotidianos caminha mais pelas dimenses
simblicas, afetivas, vicinais, da casa, das perdas de significados
considerados importantes para o passado e teis para o presente. A vida comunitria, ainda que bastante redefinida, guarda,
conserva e dinamizada pela presena de idosos e idosas.
No fundo, segundo a opinio de vrias idosas indagadas
sobre isso, elas mudaram de espao, porm no se desfizeram totalmente de suas formas de organizao do espao,
principalmente o do cotidiano vivido na famlia e na comunidade; j o do trabalho sofreu profundas alteraes em razo
das atividades e dos espaos variados. Pelo que percebemos
nos relatos, o novo e o velho, em determinadas circunstncias, mesclam-se, redefinem-se, excluem-se e readaptam-se.
Observamos que, em espaos urbanos onde as formas de
sociabilidade assumem carter tnico, como o caso de Nova
Prata e Veranpolis, determinadas relaes transcendem espacialidades principalmente no campo de maior identificao
cultural, como o caso da famlia e da vida comunitria e

326

Joo Carlos Tedesco

social. Desse modo, foi possvel para muitos migrantes rurais


das dcadas de 1950 e 1960 mesclarem prticas transferidas
desse espao e adapt-las ou reinvent-las no urbano. A mudana de espao no significa, na totalidade, alterao cultural, completa ressocializao; costumes, tradies, vises de
mundo, sociabilidades, coisas simples do cotidiano resistem
em se alterar e se cristalizaram no vivido caminham juntas.527
O passado, para idosos entrevistados que migraram para
a cidade, transfere-se no horizonte da coeso, do fortalecimento dos laos sociais e familiares de espaos no do presente.
Isso percebido quando, no urbano, limitam-se as fronteiras
desse processo e a forma de vida anterior migrao acionada para facilitar a vida no novo lugar. Da a importncia da
memria, da experincia na construo do novo. Diz Halbwachs que, ainda que nem tudo fique para trs, muita coisa se
perde: A populao pobre tambm no se deixa deslocar sem
resistncia, sem ressentimentos, e mesmo quando cede, deixa
para trs muitos traos de si mesma.528
A comunidade representava uma integrao fundamental para a estrutura do conjunto social e para o desenvolvimento do homem no meio rural; ela tendia a promover a conscincia em relao aos outros, desenvolvendo-se e operando
em concomitncia com a conscincia individualista. Era na
comunidade que a lgica das ligaes sociais se processava,
que a compreenso e a difuso da tambm lgica do espao relacional e suas significaes se viabilizavam. As vestimentas,
as festas, os causos, os de dentro, os de fora, os de mais fora,
os da cidade, a conscincia de localidade, de estar e ser de um
lugar, da convivncia, da ajuda mtua, da participao, da
religiosidade, da individualidade e dos individualismos delineavam a configurao dos lugares mais acessveis, menos
LUCENA, 1999.
HALBWACHS, M. A memoria... p. 138.

527
528

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

327

confortantes e de obrigatoriedades. A sede da comunidade


sempre serviu como espao de convergncia, de manifestao
do sagrado, do ldico, de fuga da solido, da transmisso e
intercmbio da saudade, das notcias, da vida social etc.
Duas idosas nos disseram que, pelo menos, a vida comunitria na cidade tem muito a ver com a do meio rural. A festa comunitria um exemplo disso, por envolver obrigaes comuns
entre famlias, costumes e memrias locais. Diz Lucena que,
[...] na cidade, a identidade do migrante reinventada e reinterpretada em cada gerao. Seus valores antigos no so abandonados, nem os novos simplesmente sobrepostos, mas reconstrudos
e reinventados a partir de representaes simblicas e prticas
combinatrias indissociveis do patrimnio cultural adquirido.
[...]. Embora o migrante passe pelo processo de ruptura com a
infra-estrutura material de sua terra, possui em seu imaginrio
lembranas, imagens, cdigos de um repertrio cultural dotado
de fora que lhe permitem recriar artes de inventar necessrias
para sua insero na cidade desconhecida. Os migrantes se reconhecem, percebem as mudanas, os novos valores adquiridos,
contm elementos de explicao da mudana e dos conflitos e no
apenas elementos de justificao do passado. O conhecimento que
o migrante tem da aventura de sua mudana est associado aos
momentos de outrora, aos contratempos da chegada, vida no
cotidiano do bairro perifrico e luta pela sobrevivncia. [...]. No
seu cotidiano, em sua trajetria, o migrante se defronta com uma
pluralidade cultural, com oportunidades de mesclar as fronteiras
culturais e simblicas, de fazer interagir as caractersticas rurais
e urbanas e criar condies de vida, dentro de uma perspectiva de
interseo de culturas.529

Na memria de colonos idosos, o local da capela, sua escolha, era sinal de prestgio, pois em torno dela se formava
um pequeno conglomerado de casas, a escola, o cemitrio,
a bodega, a casa de comrcio, a igreja etc. Na cidade, muito
disso se alterou, porm idosos fazem questo de dizer e de
mostrar algo que, nesses horizontes, seja expresso com os referenciais que o prprio urbano apresenta e que foi fruto da
HALBWACHS, p. 168 e 170.

529

328

Joo Carlos Tedesco

sua ao em correspondncia com o que existia l fora e que


manifesta deslocao de formas de vida pretritas e presentes
em redefinio.
Algumas aes, mesmo que reguladas por um certo
habitus religioso definidor de dogmas, da doutrina e das formas litrgicas e culturais, podem, em certo sentido, revestirse de distintos significados nas suas modulaes locais. So os
antigos ritos de expresso comunitria ou individual, de certa
forma, com a cumplicidade de procos de origens camponesas
e/ou de prolongado convvio e insero no meio.
O ritualismo, os sacramentos (como nicos mediadores da
salvao), o pecado, os santos, a converso, o movimento no espao e no tempo as peregrinaes, romarias, procisses, as palavras sagradas em latim, os componentes mmicos e gestuais,
o contato com os mortos etc. so todas expresses e identificaes em grande parte ainda presentes, como valores religiosos
e a sua normatividade no local/lugar do vivido do espao rural,
principalmente dos mais tradicionais de regies onde a dimenso do pertencimento, do campesinato e da famlia como unidade agregadora da vida e da casa do colono perdura.
Segundo Lucena, na memria mesclam-se resduos de
diferentes espaos e diferentes tempos; misturam-se prticas culturais e transferidas do rural com as novas prticas
aprendidas no urbano. O migrante muda de espao, porm
seus costumes acompanham-no por toda a vida, assim como a
lembrana das paisagens, as datas, as tradies, a msica e a
culinria. Se a passagem vida urbana um processo lento,
o migrante introduz no novo espao os conhecimentos adquiridos, o habitus,530 ou seja, os conhecimentos incorporados da
famlia, do grupo social ou de sociedade. So experincias,
modos de vida que passam de uma gerao a outra, e o deslo BOURDIEU, P. O poder simblico...

530

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

329

camento de um grupo de uma regio a outra no representa a


perda desse conhecimento adquirido.531
Na viso da autora, na cidade, os idosos reinventavam
tradies e prticas cotidianas. Os mundos rural e urbano
viviam numa dialtica de incluso e excluso, de insero e
reincorporao de cdigos diversos, de representaes variadas e dinmicas, de inveno de tradies e de processos que
produzem ancoragem social. Nesse sentido, h a possibilidade de o migrante reinventar na cidade processos vividos e
cristalizados no espao de origem; h, na cidade, tambm novos tempos, novas experincias de trabalho, aprendizagens,
esquecimentos de outros, principalmente em razo de que o
trabalho, nas situaes atuais, reduz, consideravelmente, os
momentos da famlia. O indivduo da cidade obtm um emarranhado de signos que so elementos de referncia do espao urbano em nvel individual. A ideia de que a mulher no
trabalha vai sumindo na cidade. Para as mulheres, mais do
que para os homens, coexistem aprendizados do passado e do
presente, porm, evidente, necessitam de novas ressocializaes, de hbitos, postura do corpo, vestimentas. Os homens
tambm tm a necessidade de se urbanizar, de entender novos conceitos, novas condutas, novas regras etc. Esses processos todos, para os idosos que viveram outra poca, expressam conflitos, confrontos, novos valores culturais, como
resultado da multiplicidade de tempo e de espao vivenciados
em sua histria de vida.532
No obstante, no cansamos de dizer que aspectos do
novo se juntam com o velho e vice-versa; ambos reordenam
novos smbolos, imagens e adaptaes; refazem identidades
e espaos, bem como temporalidades entrecruzadas e excludentes.
LUCENA, op. cit., p. 78.
LUCENA, p. 139-140.

531
532

330

Joo Carlos Tedesco

Novas experincias, novos ritmos, novos trabalhos, novos valores, novas imagens e imaginrios, novas representaes. Esse todo novo se mescla e se referencia com o velho
deixado, trazido, incorporado, resistente, alterado dos lugares
e da cultura. Imagens do passado presentificam-se pela resistncia individual do idoso, pela recordao, pelo sentimento
e pela percepo da convivncia cotidiana com a mudana.
Nesse conflito aberto e velado, algumas coisas so revigoradas, outras so dispersas e outras se perdem; seleciona-se o
que pode ficar e o que, ainda contra a vontade, deve morrer.533
Magnani diz que a cultura, mais que uma soma de produtos,
um processo de sua constante recriao, num espao socialmente determinado.534

Memria de gnero
A memria reescreve a realidade vivida.
Lucena

A realidade vivida no mbito do gnero representa a subjetividade e a construo de representaes sociais, fases da
vida social, individual e familiar, classificaes econmicas
(de trabalho), religiosas, sociais. Alguns autores dizem que
so as mulheres que humanizam a memria genealgica, pois
lhe do funo expressiva, de necessidade emocional, sentimentos e ligaes entre pessoas; refletem certa ausncia da
noo de tempo. Nos homens, as lembranas so mais articuladas em torno do trabalho e dos smbolos materiais (casa,
empresa, ofcios...).535
Ibidem.
MAGNANI, J. G. C. Festa no pedao: cultura popular e lazer na cidade. So
Paulo: Brasiliense, 1984. p. 18-19.
535
LUCENA, C. T., op. cit.
533
534

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

331

Idosas lembram de que muito cedo as crianas eram introduzidas, socializadas e ritualizadas cronolgica e culturalmente na idade adulta, atravs do trabalho domstico, cozinhando, lavando, passando e cuidando dos irmos menores.
A ritualizao dos trabalhos e sua constituda naturalizao
manifestam a conscincia de sua pouca importncia, de sua
possibilidade de ser feito por qualquer um desde que fosse
mulher.
Matos diz que as funes reconhecidamente femininas
ou em que as mulheres penetraram eram progressivamente
deserdadas pelos homens, desvalorizadas monetria e socialmente desprestigiadas.536 Esse processo, segundo algumas
idosas, no se alterou muito no meio rural. No urbano, alterou-se em parte nas famlias em que, logo ou depois a migrao, a mulher e filhas optaram pelo trabalho fora, remunerado e com horrios estabelecidos. Porm, sempre houve uma
dinmica entre conflito/acomodao e naturalizao histrica
das aes.
No meio rural, esse processo de gnero do trabalho e seu
significado no foram alterados significativamente. Alteraram-se mais profundamente, a partir da dcada de 1990, com
a presena maior de idosos nas famlias, em coabitao, com
a possibilidade de mulheres atuarem em espaos de pluriatividade no ramo de confeco txtil no meio rural na forma
de atelis ou de atividades a domiclio. No entanto, as idosas
so unnimes em dizer e reafirmar a experincia histrica da
continuidade da diferena de gnero nesse processo como algo
normal, comum, eficaz e eficiente em termos de diferenciao.
As fronteiras materiais e simblicas entre o mundo do
trabalho e o da vida privada no eram muito ntidas, pois
entre esses dois mundos havia uma relao de complementa PINTO, M. I. M. B. Cotidiano e sobrevivncia: a vida do trabalhador pobre
na cidade de So Paulo (1890-1914). So Paulo: Edusp, 1995.

536

332

Joo Carlos Tedesco

ridade ainda que hierrquica. Casa e roa, casa e rua fazem


parte no horizonte familiar do colono e do migrado, respectivamente. Ainda que seus personagens principais sejam vistos
e concebidos diferencialmente, constituem espaos que se interpenetram numa totalidade em ato, em constante reconstruo/manuteno.
comum, por exemplo, na literatura sobre a histria de
mulheres camponesas descendentes de imigrantes italianos,
migradas para vrias regies do sul do Brasil, a dimenso do
incessante trabalho e sua mistura simblica e material com
sofrimento, silncio, capacidade de sobrevivncia e de contribuir para a naturalizao de sua situao histrico-cultural e
tnica. O casamento, por exemplo, ao invs de alterar, ressignificava e fortalecia a situao; materializava o desejo contido
e a reproduo histrica da reconstituio, do novo, que nada
mais era do que uma atualizao do velho processo cotidiano
de vida.
Segundo algumas idosas, a migrao para a cidade era
idealizada pelas jovens (filhas) e por esposas como possibilidade de alterao do processo desde que houvesse oportunidade
de trabalho. O problema , como nos diz uma delas: Quem
que lavaria a roupa, quem que ia fazer a comida e arrumar a casa, lavar os lenis? Pagar algum no tinha sentido.
Esperar por eles (os homens), podia esperar sentada! Sua
utilidade era acrescida no unicamente pela possibilidade e
efetivao do trabalho externo e sua consequente remunerao, mas por poder conciliar ambos, e sem reclamar. O que
acontecia, segundo depoimentos, que os homens,
[...] te valorizavam mais, gabavam as mulheres que faziam tudo,
diziam que no tinham mais os bichos pra tratar. [...], te tratavam
com um pouco mais de ternura e sem muita brutalidade como o
era na roa. Talvez com isso a gente tambm reclamava menos.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

333

Como nos diz Lucena, paternalismo e explorao so ambivalentes; podem se dar ao mesmo tempo, um alimentando
o outro, no se excluindo, pois podem implicar concesses que
caracterizavam as relaes desses protagonistas histricos
no cotidiano dos domiclios; as prticas paternalistas mesclavam-se com medidas repressivas, constituindo estratgias de
um processo de enfrentamento e dominao, relaes essas
negadoras de conflito, alimentando-se em imagens de cooperao. No espao externo de trabalhos nas casas e, mesmo,
em espaos variados do meio urbano, as idosas entrevistadas
foram unnimes em dizer que a imagem de patro se substanciava e alimentava por linguagens e imagens j conhecidas na sua identificao de poder e do trabalho como extenso
da casa, de um horizonte que se externaliza e se complementa
reproduzindo-se quase que unilinearmente.537
Relatando sobre os momentos da migrao para o atual
local, uma idosa nos disse que o trabalho era o alvio do sofrimento, da insegurana: Trabalhando se esquecia tudo, porque
esse era o desejo de se estar aqui. O trabalho era visto como
o elemento por excelncia da redeno da vida e, para muitas
mulheres, tambm como resignao frente a sua situao, assim
como, pela dependncia dos homens em relao s atividades
femininas, poderia tornar-se um horizonte de poder e de contraposio estratgica em relao organizao patriarcal e aos
processos de represso afetiva, sensual e sexual.
A entrega ao trabalho dava-se com extremo despojamento e tenacidade. Os imigrantes construram laos de solidariedade tnica, atravs de rica rede de parentela e amizade, algo
que muito valorizado nas lembranas e, ao mesmo tempo,
extremamente sentido e criticado pela sua negligncia e alteraes atuais.538
LUCENA, op. cit.
MATOS, op. cit., p. 47.

537
538

334

Joo Carlos Tedesco

A simbologia do trabalho na estrutura familiar est na


base da lembrana do trabalho. Com ela, seus limites, necessidades, carncias e projetos agregam noes de adversidade,
superao, enfrentamento (luta), coragem, divises e especializaes. Espaos e atribuies respectivas faziam parte do
elenco simblico/prtico do cotidiano do trabalho.
As mulheres eram (deveriam ser) boas donas de casa,
econmicas, trabalhadeiras, educadoras (socializadoras) dos
filhos, mantenedoras da tradio, da honra, dos conhecimentos e das adaptaes aos/dos novos conhecimentos e habilidades.539
Cabia a elas definir, destacar, singularizar, tipificar e
recriar, num novo espao, tradies e a partir de uma nova
experincia cotidiana de convivncia e trabalho. O trabalho
perpassava essencialmente a vida de homens e mulheres imigrantes; junto com a famlia e a religio, criava identificao tnica e se tornava fator de socializao e solidariedade
dentro do grupo. Atravs do trabalho e de suas relaes, manifestavam-se claramente no s amizade, apoio, lealdade e
afabilidade entre os recm-chegados, mas tambm explorao
e abusos.540
O envolvimento com o comrcio de vendas de miudezas e
de excedentes, com caractersticas totalmente mercantis, registra a memria da diferenciao de gnero no trabalho, ressignificando relaes agrupadas na renda familiar, na obrigao feminina, alm dos encargos familiares. Esse processo de
diferenciao de trabalhos e de gnero nos produtos do trabalho e suas finalidades passava por uma racionalidade interna
e por um balano entre oferta e consumo, entre necessidade e
oferta (do produto e dos recursos financeiros), entre carncia

Ver MATOS, op. cit; tambm LUCENA, op. cit.


MATOS, op. cit., p. 49.

539
540

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

335

e projetos familiares, entre o preo de venda no momento e a


possibilidade do preo de compra num futuro prximo.541
Encontrar trabalhos alternativos sempre foi o desejo
de algumas idosas. Se pudesse desviar da roa, mesmo sabendo da preciso, n, era melhor. Costurar era o desejo e a
alternativa de muitas delas, pois poderiam receber recursos
financeiros, reduzir o tempo de obrigao na roa, alm de
terem uma profisso ser colona, nunca foi uma profisso
para mim, declarou uma entrevistada. Atualmente, o trabalho nos atelis de costura industrial localizados no meio rural,
sob o manto da racionalidade mercantil, favorece e, ao mesmo
tempo, precariza a vida e o trabalho de muitas mulheres que
se vinculam a essa atividade.542
O trabalho, a domiclio, de costura tambm, ainda que
desejado por vrias mulheres, estava condicionado pela disponibilidade de mo de obra e por fatores de ordem institucional e sociocultural, porm apresentava-se como uma das
as possveis estratgias de sobrevivncia criadas e recriadas
no cotidiano feminino; delineava, ainda, uma interconexo
e interpenetrao entre o pblico e o privado, vinculado ao
ciclo sociocultural dos tempos e dos espaos das atividades
femininas, j desenvolvidas nos horizontes domsticos (lavar,
cozinhar, costurar, bordar).543
Esse saber cristalizado e que definia a identidade de esposa e me era identificado durante um perodo da vida das
mulheres, comumente ps-casamento, pois era a que havia
a possibilidade de concatenar o ritmo, o espao e o tempo do
trabalho domstico com uma atividade remunerada e com horrios flexveis. O trabalho domiciliar, em contraposio ao
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. So Paulo: Companhia das Letras,
1999.
542
TEDESCO, J. C. Atelis industriais no meio rural: racionalidades empresariais
e dinmicas familiares. Passo Fundo: Clio Livros e Mritos Editora, 2003.
543
VERDIER, I. apud LUCENA, op. cit.
541

336

Joo Carlos Tedesco

trabalho externo, possibilitava flexibilidade de horrio, ideia


de autonomia, fuga dos domnios totais do poder hierrquico e
patriarcal; contudo, no as desobrigava de outras atividades do
lar e no trato com os animais. Exigncias, obrigaes, formas
de controle do tempo e das atividades faziam-se presentes.
Envolvidas tambm na obrigao de levar dinheiro para
casa, as mulheres aumentavam seu tempo de trabalho e adentravam em atividades estratgicas propiciadoras de certa
remunerao, comumente atividades extensivas em relao
s j desenvolvidas e conhecidas no mbito domstico e socialmente pouco reconhecidas e valorizadas. Desse modo, o
espao domiciliar no produzia tantas fronteiras na relao
com os espaos externos, pois interpenetravam-se e complementavam-se, hierarquicamente, no horizonte dinmico entre produo e reproduo.
As idosas migradas falam, com veemncia, das alteraes no cotidiano da vida familiar e social produzidas pelas
novas geraes, provocadas pelo estudo, pelo trabalho, pelas
facilidades que os jovens tm de viver na cidade; da alimentao (seu tempo, condies, qualidade e presena familiar); da
presena da mulher no espao de trabalho; das relaes de poder entre sexo, da continuidade da responsabilidade da mulher por quase tudo o que lhe correspondia na diviso interna
de gnero antes da insero no mercado de trabalho; do fato
de o trabalho e o estudo facilitarem a reduo da autoridade
paterna das escolhas afetiva, matrimonial; das amizades, do
lazer das etc. Muito disso no foi possvel para as idosas.
As narrativas de idosas, ao que nos parece, fortalecem a
ideia de pertencimento a um ncleo familiar, e isso dito com
grande nfase; seus vnculos comunitrios (nas festas e nos
espaos e rituais religiosos e de caridade pblica) representam um poder identificador com valores de solidariedade e em

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

337

torno de formas possveis de convivncia comunitria e pelas


trocas de experincia que isso possibilita.
As histrias narradas servem tambm para contar a
histria do espao de vida comunitrio e a dimenso local da
existncia e da sociabilidade. Os homens contam explicitando alguns tipos de valores; as mulheres o fazem relativizando
aspectos narrados pelos homens; ambos explicitam projetos,
efetivao ou no de valores, julgamentos e comportamentos.
Desse modo, produzem-se representaes e auto-identificao,
personalizao e participao no espao e na histria local.
As lembranas vividas e narradas so expressas quase
sempre como comprometimento, como referenciais ticos em
torno de objetivos comuns, desejveis e que podem ser realizveis e mediados pela memria atravs de relaes de geraes. Nesse mbito e, em muitos outros, o papel da memria,
da experincia e da narrao do e para o idoso fundamental.

Consideraes finais
No decorrer deste trabalho trouxemos um conjunto de
obras que versam sobre o tema memria, dando uma maior
centralidade anlise social e histrico-cultural. Nosso interesse maior foi tentar interpretar a noo de memria coletiva em Halbwachs. Buscamos analisar a memria e os atos de
lembrar como algo em construo, em dinamismo e que possui esferas em vrios horizontes do real, o qual ganha maiores contornos no campo cultural e poltico, mbitos esses de
maior uso e inteno dessa.
Diz Lowenthal que nenhum relato histrico consegue
recuperar a totalidade de qualquer acontecimento passado;
em razo de seu contedo ser virtualmente infinito, assimila
apenas uma frao mnima at mesmo do que foi considerado mais relevante do passado. Diz o autor que nem tudo o
que passou foi registrado e pouco do passado foi relatado.544 O
historiador no possui a totalidade do que aconteceu, mas relatos dos fatos. Levi-Strauss diz que o fato histrico no tem
realidade objetiva, existe apenas como reconstruo retrospectiva.545
A passagem do tempo tende a desgastar o passado, a filtr-lo com o olhar do presente, reduzindo a capacidade compreensiva da comunicao.
Explicar o passado no presente significa lidar no apenas com
percepes, valores e linguagens que mudam, mas tambm com
acontecimentos ocorridos aps a poca examinada. [...]. Conhecer
o futuro do passado fora o historiador a moldar a sua narrativa de
modo a faz-la entrar em acordo com o ocorrido. [...]. Assim como a
memria, a histria combina, comprime e exagera; momentos raros
do passado sobressaem, uniformidades e detalhes desaparecem.546
LOWENTHAL, D., op. cit.
LVI-STRAUSS, C. apud LOWENTHAL, D., op. cit., p. 112.
546
LOWENTHAL, D., op. cit., p. 116-117.
544
545

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

339

por isso que, no campo material, simblico, comportamental, fenomenolgico, social e epistemolgico, o tema
memria vem recebendo ateno. Estudar modernidade,
tradio, patrimnio, imaginrios e representaes sociais,
velhice, simbologia, narrao, comemorao, esquecimento,
dentre outros determina que o tema memria esteja no foco
da anlise. A questo da memria est no eixo central de uma
nova percepo do mundo e de cotidianidade que se constitui
em razo da busca de significados perdidos, reconstitudos, do
real que muda numa velocidade intensa, de comportamentos
que se alteram e, consequentemente, de vises de mundo, o
que aponta para novas atribuies ao social.
As referncias em torno da cidadania social, a maior credibilidade do papel das vozes e das narraes como base de
compreenso e anlise socio-histrica, os impasses do conhecimento histrico e os valores da modernidade (ou da ps-modernidade para alguns), as fragmentaes utpicas, as desconstrues do conhecimento e das formas de controle e de
vida social, o avano da tcnica aplicada e da midiologia, a
capacidade de armazenar e de guardar memrias que esta
ltima nos oferece, as reconstituies histricas e sociais de
fatos e situaes polticas, biogrficas e genealgicas esquecidas, ou, ento, administradas em termos de visualizao coletiva, dentre uma srie de outros elementos, permitem-nos
dizer que o campo de anlise da memria uma grande arma
que possumos, que est sempre atual, ainda que, aparentemente, parea ser o contrrio.
Repensar a memria, na contemporaneidade, implica ter
um olhar mais sensvel, perceber outros espaos, outras vozes
e outros caminhos (talvez, em meio aos oficiais e consolidados),
como possibilidade de construir histria e de legitimar ou no
referenciais culturais muitos desses no to lineares como
aparentam ser pouco evocativos e que se constroem como

340

Joo Carlos Tedesco

possibilidades e estratgias de sobrevivncia pessoal, social


e poltica.
Perceber os processos que fazem com que determinadas
memrias sejam expressas, desenvolvidas, e outras no
tambm possibilitar a percepo de sujeitos da histria, de
identidades firmadas e construdas em razo de imaginrios
sociais, de vnculos de poder, de sentimentos sociais, individuais e biogrficos. A memria ajuda-nos a identificar sujeitos
histricos e a entender esquecimentos, a revigorar smbolos e
a reconstruir histrias de vida.
nesse sentido que buscamos, ainda que de uma forma pouco ou nada organizada e muitssimo fragmentada, reconstituir processos, vozes, intenes, smbolos, utopias, encantos, desejos, ressentimentos, idealizaes, negatividades,
em torno de memrias e lembranas de vidas familiares e de
histrias de vida de idosos, com caminhos e trajetrias temporais e espaciais marcadas por lembranas suas e de seu grupo
familiar.
Valores sentimentais esto unidos memria, ligados a
uma figura familiar a quem originalmente pertenceu o objeto; ambos se mesclam com valores sociais que os classificam
como indicadores de importncia e de identificao. Atravessando geraes e cruzando temporalidades, os objetos de memria vo adquirindo outros sentidos na sucesso temporal,
mantendo, em alguns casos, a referncia original.
Buscamos analisar aspectos que cadenciam a vida de idosos e que, vistos contextualmente, inseridos no horizonte da
cultura camponesa, revelam vividos prticos, nexos e significados, funcionando como armas contra a desfigurao e a pouca
importncia social, contra as fortes alteraes do presente e
do considerado novo, do presente sobre o passado e do futuro
sobre o presente, ou da falta ou garantia do futuro do passado
no presente.

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

341

Partimos do pressuposto de que so as histrias de vida,


em geral carregadas de emoo, as que melhor ressaltam os
contedos sociais da memria e que nos do uma melhor clareza das normas e dos valores narrados, expressos e transmitidos como lugares de vida e de relaes institucionalizadas,
como as familiares, as comunitrias e as de pertencimento
tnico. Nesse sentido, os idosos so os atores por excelncia
desses contedos sociais de pertencimento e de normas e valores enquadrados em seu cotidiano. A partir disso, a memria permite dar garantia de continuidade ao tempo bem como
sua alteridade, ao tempo que muda, s rupturas que so o
destino de toda vida humana; em suma, constitui um elemento essencial da identidade, da percepo de si e dos outros.
O tempo histrico e o contexto social encontram-se, reelaboram e resgatam significados de identidade cultural a partir
das exigncias e das necessidades do presente. A no imutabilidade da tradio no passado e no presente, sua transmisso
ou esquecimento inter ou intrageraes podem ser relativizados em termos de significados por diferentes ou por idnticos
grupos sociais. Ligar os tempos e as geraes, chamar para o
presente vividos personificados e experienciados no tempo e
em determinados espaos alimenta a importncia de que um
pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no mundo dos netos e no espao que permite suas marcas; manifesta o tempo
cclico, uma referncia temporal que, mesmo alterada, circula
sobre si mesma, completa-se e sequencial.
nesse sentido que lembranas orais e objetais dos idosos trazem ao presente a crtica de muitas relaes passadas
ao mesmo tempo em que relembram e as manifestam como
forma de mostrar sua obedincia, suas estratgias limitadas
e seu vnculo pragmtico na famlia e no meio comunitrio.
A lembrana da famlia apresenta-se como um complexo de
referncias simblicas, imaginadas e representadas na esfera

342

Joo Carlos Tedesco

da integrao, da ameaa de desintegrao, de recordao, de


espaos de felicidade, de horizontes de profundos desgostos,
de desempenho moral e de honra, de pertena e identidade
com possveis descontinuidades.
Existem objetos que nos identificam, que representam
a personificao de experincias vividas; que possuem cara,
nomes, costumes, afeies, continuidades, individualidades,
segredos, faces, olhos...; so seres, pois falam, simbolizam,
unificam e permitem a criticidade. Nessa perspectiva, o tradicional no apenas sobrevive; no um resduo, ou, ento,
o que resta, mas o que luta e desafia o moderno, que busca
encontrar espaos referenciais no presente, no meramente
como tradio, mas como presentificao, como pertencimento, em outras palavras, como til ao que o moderno apresenta
como importante.
Percebemos que existem racionalidades internas que so
resgatadas e reconstitudas no tempo para preencher vazios
da contemporaneidade, contrapor ressentimentos, desenvolver encantos e utopias, dinamizar, em espaos variados, formas de vida e de sociabilidades reconstrudas coletivamente
no seio familiar e/ou comunitrio. Ao fazermos um esforo
para perceber prticas socioculturais de idosos, vimos que h
um processo endgeno de formao por meio da imitao e da
experincia do trabalho e do vivido familiar e social. desse
modo que os idosos, pelo vis da memria oral e dos/nos objetos elaborados por eles, sentem sua participao, ainda que
reduzida, como de fundamental importncia.
Entendemos que a narrao de memria dos idosos contribui grandemente para o enriquecimento da percepo e
dos caminhos do destino da sociedade. O sofrimento to em
evidncia nos relatos em relao ao passado e ao presente ,
as regras de ordenamento da vida, os vcios, a conscincia da
experincia, todos aparecem nos relatos orais e nos significa-

Nas cercanias da memria: temporalidade, experincia e narrao

343

dos objetais como fora subjetiva ao mesmo tempo profunda e


ativa; carregam consigo elementos de base para a construo
da prpria personalidade e da conscincia.
Os idosos, pela lembrana narrada, evocam uma experincia sensvel, muitas vezes carregada de resignao, de
revolta, de nostalgia e de esperana. Por meio desse ato, conseguem dar temporalidade e espacialidade ao fenmeno da
existncia; produzir intersubjetividades temporais e conscincias de mundo, verdades locais ancoradas no curso da
histria e das culturas; emancipar o social, emancipando-se
como sujeitos mais do que conscientes de seus pertencimentos
e de sua utilidade social. A memria, nesse sentido, fornece o
instrumental necessrio.

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Idosos entrevistados
Antnio Girardi (82 anos), residente no espao urbano do Municpio
de Marau.
Raimundo Damo (70 anos), residente no meio rural do municpio de
Marau.
Ernesto Castelani (91 anos), residente no meio urbano do municpio
de Nova Prata.
Germina Fochesato (78 anos), residente no meio rural do municpio
de Veranpolis.
Luza Tebaldi (86 anos), residente no meio rural do municpio de
Serrafina Corra.
Ernestina Confortim, (89 anos), residente no meio rural do municpio
de Guapor.
Jos Borsa (86 anos), residia na meio rural do municpio de Casca.
Ademir Casagrande (87 anos), reside no meio urbano do municpio
de Guapor.
Jos Palma (96 anos), residia no meio urbano do municpio de Santo
Antnio Palma.
Jacob Bassani (91 anos), residente no meio urbano do municpio de
Muum.
Artrio Perin (86 anos), residente no meio urbano de So Domingos
do Sul.
Otvio Busato (86 anos), residente no meio urbano do municpio de
Casca.
Juvite DallaMea (93 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Santina Coldebella (79 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Olvio Ciodelli (80 anos), residente no meio urbano de Santo Antnio
Palma.
GiustinaTomasi (84 anos), residente no meio urbano de Veranpolis.
Rovlio Trs (91 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Luiza Di Domenico (89 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Valdenir Deon (78 anos), residente no meio rural do municpio de
Antnio Prado.

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