CALÁVIA SÁEZ, Oscar. O Lugar e o Tempo Do Objeto Etnográgico
CALÁVIA SÁEZ, Oscar. O Lugar e o Tempo Do Objeto Etnográgico
CALÁVIA SÁEZ, Oscar. O Lugar e o Tempo Do Objeto Etnográgico
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O lugar e o tempo
do objeto etnogrfico
Oscar Calavia Sez
De um lado, o da epistemologia, um nome pomposo para algo muito cotidiano com que todos aqui, estudantes e professores, devem lidar a toda
hora. De outro, o da etnologia amaznica, um terreno mais extico. Tratarei
deles alternadamente ou em unssono; o que direi sobre a etnologia amaznica
enseja dar volume ao pouco que direi sobre a epistemologia, que ser aqui
minha principal preocupao.
Quanto etnologia amaznica, vou fazer o que habitualmente se faz ante
plateias para as quais esse assunto mais ou menos arcano que so a maior
parte das plateias. Isto , um panorama parcial do estado da arte, me referindo
a algumas das suas tendncias atuais, luz da minha prpria experincia como
pesquisador e como orientador de pesquisadores. Quanto epistemologia,
esboarei um manifesto em prol de um certo fundamentalismo etnogrfico.
Devo confessar que o ttulo original desta conferncia era mais bombstico
ou qui mais derrotista, podem escolher: Da etnografia como fracasso metdico. Foi, em tempo, substitudo por outro, entendo que com bom critrio:
talvez sejam necessrios muitos anos para apreciar os atrativos de um fracasso
metdico, e sabiamente a universidade evita anunciar um lema que no serviria de incentivo aos seus alunos.
a primeira vez na minha vida que dou uma conferncia com nome. Neste
caso, a Aula Ernesto Veiga de Oliveira.1 Nestes casos, costume comear com
1
A Aula Ernesto Veiga de Oliveira anualmente promovida pelo Departamento de Antropologia
do ISCTE-IUL, Escola de Cincias Sociais e Humanas, Lisboa. Este texto corresponde edio do ano
letivo de 2010 / 2011.
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acabarei fazendo essa espcie de elogio da etnografia muito comum na antropologia brasileira.
Tenho uma j longa experincia como orientador de pesquisas de doutorado,
mestrado e graduao. Uma das minhas obrigaes ajudar os alunos a fazer
um projeto, e a que dentro desse projeto definam um objeto de pesquisa. Nem
sempre fcil convencer os alunos de que os objetos no esto a fora, ou de
que no mais esto a fora, como no tempo de Veiga de Oliveira. Habitualmente
essa tarefa passa por algumas noes rudimentares de filosofia da cincia, epistemologia e assim por diante, incluindo um destilado de noes popperianas
que nos indica que o objeto da cincia encontra-se na interseo entre o reino
do saber estabelecido e esse territrio do no conhecido, por definio informe
e infinito. Isso significa sabem-no bem todos os professores, e no deixam de
repeti-lo aos alunos que nenhuma pesquisa pode ser feita sem conhecimento
da literatura geral e especializada. Nada pode se trazer do campo se, como
pretendiam alguns empiristas ingnuos, vai-se a ele de mos vazias. O que , de
resto, impossvel: como humanos, temos noes sobre tudo quanto humano,
e as temos desde antes de saber formul-las. Conhec-las e reconhec-las detalhada e explicitamente no apenas a melhor opo, quase a nica.
Os alunos aprenderam bem disso, e estudam muito para elaborar o seu projeto. Com grande esforo, elaboram um objeto de pesquisa no qual, tomando
como exemplo o caso da etnologia, tm um papel quase indispensvel teorias
como as que citamos acima: o perspectivismo amerndio, a domesticao indgena das invenes do homem branco; h muitos outros, mas esses raramente
faltam.
Os projetos, melhores ou piores, abrem o caminho para o trabalho de campo,
e a partir desse momento os jovens pesquisadores se dividem em dois grandes
grupos como se cassem sobre um telhado de duas guas: fadados ao sucesso
e fadados ao fracasso. No me refiro previsvel diferena de habilidades ou
sorte, mas a uma outra diferena que no nova mas que no atual sistema de
produo da cincia costuma ter uma consagrao imediata. Os fadados ao
sucesso so aqueles cujo projeto mostra uma extrema eficincia: os pesquisadores vo a campo e se dirigem em linha reta (to reta quanto for possvel)
ao seu objeto. O captam, o descrevem, o enriquecem ou alteram na medida
necessria. Em boa parte, esse sucesso se deve a uma precauo: a de escolher
bem o lugar onde a pesquisa ser realizada, ou seja, um campo adequado ao
projeto, s vezes j devidamente explorado por um snior em outros tempos, e
com nativos qualificados e experientes. Eventualmente isso pode exigir que se
descartem campos inadequados, at achar aquele que preencha os requisitos
do projeto. Em geral, esse modo de proceder conduz felicidade geral: o pesquisador acaba sua pesquisa em tempo hbil (muito importante!), obtm boa
nota, seu orientador o parabeniza e se parabeniza pelo sucesso, e o trabalho
passa a ocupar um lugar mais ou menos relevante na bibliografia a respeito.
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H uma grande quantidade de trabalhos desse tipo, que gozam de um reconhecimento geral, e eu pessoalmente acho alguns deles soberbos. Nem todos,
porque esse sucesso reserva tambm um lugar importantssimo para a replicao da doutrina.
Pelo outro lado, h os que desde muito cedo parecem fadados ao fracasso.
A escolha de campo se revela imprudente, ou se torna inadequada por motivos
diversos, e o projeto passa a ser no um roteiro, mas uma espcie de carga da
qual o pesquisador ter sorte se conseguir se desvencilhar a tempo. O objeto da
pesquisa revela-se um objeto sem objeto, e os infelizes pesquisadores se lamentam de que no encontram no campo nada daquilo que l os fez ir. Com frequncia, isso vem acompanhado de peripcias alarmantes: mudana de tema,
mudana de orientador, mudana de curso. s vezes, o desassossego ultrapassa
o terreno acadmico e acaba em divrcios, doenas ou tratamento psiquitrico.
No necessrio dizer que o resultado disso tudo o exato oposto do anterior:
trabalhos que jamais chegam a concluir, arranjos mais ou menos tolerveis
para salvar a pesquisa. Ou, tambm, trabalhos que alcanam algum tipo de
redeno final. Se pelo menos chegam a termo, alinham-se nas bibliotecas
universitrias nas mesmas prateleiras em que se encontram os sucessos. Entre
eles, como poderia se esperar, abundam os absolutamente descartveis, ou s
parcialmente interessantes. Mas h tambm trabalhos excelentes, embora dificilmente cheguem a obter o grau de reconhecimento que obtm os da primeira
categoria. Pessoalmente, considero que nesses ltimos trabalhos onde podemos encontrar a verdadeira razo de ser da antropologia.
Isso pode parecer uma declarao irresponsvel; o , quase sem dvida, para
as instituies educativas e cientficas do Estado, que vm dando antropologia um crdito cada vez maior. Como pode sequer se sugerir algo desse tipo,
quando h tanto investimento pblico num sistema de produo do conhecimento que requer previso, planejamento, prazos? E quando a demanda de
conhecimento antropolgico cresce exponencialmente? Nunca antes na histria desta disciplina, desde que felizmente foram descartadas as teorias higienistas e racistas de uma certa antropologia cem anos atrs, tinha estado a
antropologia em condies de disputar a hegemonia das cincias humanas
histria, psicologia ou sociologia. Agora est: os cursos de ps-graduao
em antropologia se multiplicam e atraem uma grande quantidade de alunos; o
sucesso tanto que comearam a proliferar tambm os cursos de graduao em
antropologia. Eu, particularmente, olho esse sucesso com muita desconfiana.
No me parece mal, em si, que tenhamos muitos alunos e nos outorguem bolsas, financiamento de projetos, etc. Mas como harmonizar isso com o que me
parece ser a razo de ser da antropologia, isto , aquilo que acabou por fazer de
mim um antroplogo e no alguma outra coisa?
Temos repetido at a saciedade, mas com um jbilo nunca esmorecido, que
a antropologia uma disciplina indisciplinada, e no uma cincia normal, no
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se tornou uma espcie de superstio positivista ou empirista. Mas o construtivismo, por sua vez, se converte com demasiada facilidade em academicismo,
reduzindo a experincia ilustrao de alguma hiptese j consagrada nas
obras em voga. Talvez o objeto em si, esse campo que tem a ltima palavra
nas nossas pesquisas, seja uma superstio, mas uma superstio cuja fora
pode quebrar o monoplio das ideias estabelecidas. Talvez o vigor da etnologia
indgena tenha a ver com isso. Em pginas anteriores sugeri que ela no est
livre da tendncia comum de replicar um esquema que j conta com dignidade
acadmica e eficcia social. Mas esse mesmo fetichismo do primitivo ao qual
a prpria antropologia no infensa, por muito que o exorcize tem tambm
a virtude de predispor o pesquisador a uma experincia que altere seus pressupostos.
Com as premissas anteriores, oferecer minha prpria pesquisa de doutorado como exemplo de fracasso metdico (no como fracasso sem mais, afinal
foi ela que me tornou doutor, foi publicada e indiretamente me garantiu um
posto universitrio) pode ser muito autocomplacente. Mas no poderia tomar
a liberdade de aplicar esse rtulo a muitas outras pesquisas contemporneas
que, apesar de terem trazido novidades que contrariavam seriamente os seus
pressupostos de pesquisa, preferem reformul-los a posteriori para apresentar o
trabalho como dotado de uma maior coerncia de incio. Estou aqui a insistir
sobre uns bastidores da pesquisa que nem sempre precisam estar mostra.
A minha pesquisa sobre os Yaminawa comeou impulsionada por algumas
ideias obsoletas sobre a sua primitividade putativa. Os Yaminawa eram um
povo de contato relativamente recente, tinham se integrado muito precariamente na sociedade regional e por isso mesmo quase no tinham sido objeto
de pesquisa. Eu no era, no entanto, ingnuo, no buscava um mundo perdido: de acordo com a literatura estudada, estava preparado para encontrar um
universo hbrido onde os nativos acomodassem a experincia recente a suas
demandas estruturais.
Mas de caminho ao meu campo fui ouvindo uma srie de vozes agourentas: os Yaminawa eram um povo conflitivo, difcil de pesquisar, um povo sem
cultura, que deixou de lado a sua cultura. Pior, um povo anmico. O grave
dessas advertncias era que em boa parte procediam precisamente nesses
termos dos prprios porta-vozes dos Yaminawa com os quais negociei minha
pesquisa.
Nenhuma dessas advertncias era totalmente injustificada: os Yaminawa
no cultivavam marcas de identidade, no celebravam rituais nem enunciavam
teorias sobre a formao da pessoa nem outras exegeses sobre quaisquer outros
temas. O que diziam sobre si mesmos e sobre as suas normas de aliana no
permitia inferir um sistema de parentesco, ou, pior ainda, permitia inferi-los
todos. Uma ciso conflitiva a cada cinco anos no mximo, constantes idas e
voltas da aldeia cidade e de uma aldeia a outra com uma vida rala em cada
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sem dvida, relacionado com a estrutura, ou, se quisermos, com a antiestrutura tradicional dos Yaminawa, mas tinha vida prpria.
A vida dos povos indgenas no Brasil est densamente ocupada por esses
novos objetos que derivam, com certeza, de esquemas sociocosmolgicos anteriores, como derivam tambm das prprias teorias e dos conceitos antropolgicos que surgiram de etnografias anteriores, e que por muitos caminhos voltam
para fazer parte da vida do nativo. Do mesmo modo, e para dar um exemplo
muito frtil, as novas tecnologias de reproduo possibilitam na metrpole
configuraes de parentesco que so, de um lado, tributrias de padres tradicionais, e, de outro, da reflexo crtica que se realizou a respeito destes, mas
que, surgindo dessas fontes, andam j pelos prprios ps. Se a antropologia
quer ser algo alm de uma doutrina, no poder se limitar a enquadrar essas
novidades dentro de um quadro terico que tende a dar voltas sobre si mesmo:
ter que sair caa de um objeto permanentemente selvagem.
The place and the time of the ethnographic object Oscar Calavia Sez Programa de PsGraduao em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil occs@uol.
com.br.