Prevenção e Responsabilidade Ou Punição e Culpa?
Prevenção e Responsabilidade Ou Punição e Culpa?
Prevenção e Responsabilidade Ou Punição e Culpa?
TEXTO No. 2
PREVENO E RESPONSABILIDADE OU PUNIO E CULPA?
Uma discusso sobre alguns reflexos da ambigidade de nossos modelos de
controle social e produo da verdade na administrao da burocracia oficial
brasileira.8
Roberto Kant de Lima9
Recentemente, a mdia nos tem bombardeado com inmeros casos de denncias
de corrupo, envolvendo agentes do governo e empresrios. claro que a corrupo
existe, sempre existiu e sempre existir mas, aparentemente, os mecanismos da
sociedade incumbidos de puni-la esto se mostrando mais visveis.
No entanto, como aperfeioar esses mecanismos ou, mesmo, faz-los abandonar
a nfase em seu feitio repressivo e torn-los mais preventivos? Por que no se pensa
mais em formas de promover a internalizao de regras de comportamento dos
funcionrios pblicos capazes de dot-los de uma tica burocrtica que no esteja
fundada na apropriao particularizada de recursos pblicos, mas em sua apropriao
universalizada pela coletividade? Como promover esta internalizao?
Este artigo discute alguns aspectos de nosso sistema de controle das atividades
burocrticas estatais, que apresenta afinidades e coerncias com a organizao da
produo de verdades judicirias em nossa sociedade. A exposio faz uso de resultados
de pesquisas realizadas pelo autor com sistemas judicirios do Brasil e dos Estados
Unidos, sob a orientao do mtodo comparativo, prprio da perspectiva antropolgica
contempornea.
Meu objetivo aqui discutir uma possvel correlao positiva entre a igualdade
jurdica formal, os processos acusatoriais de produo da verdade jurdica e a liberdade
de optar pela convenincia de a autoridade atuar princpio da oportunidade, ou
discretion, em ingls e a possibilidade de controle dos agentes pblicos atravs do
acompanhamento, avaliao e responsabilizao - accountability, em ingls de suas
opes; e, de outro, a desigualdade jurdica formal, processos inquisitoriais de produo
da verdade jurdica, a obrigatoriedade de atuar de determinada forma imposta aos
rgos do Estado e a possibilidade de culpabilizao dos agentes pblicos em funo de
seus erros ou omisses que possam ter contrariado essas obrigaes.
Decorre da que as estratgias repressivas de controle social prprias das
sociedade de desiguais - em que as regras, por definio, no representam a proteo
8
Agradeo a leitura atenta e as alteraes sugeridas por Regina Lcia Teixeira Mendes.
Algumas das idias aqui expostas foram previamente discutidas em Amorim, Maria Stella, Kant
de Lima, Roberto e Teixeira Mendes, Regina Lcia. Introduo. In Ensaios sobre a igualdade
jurdica: acesso justia criminal e direitos de cidadania no Brasil, no prelo.
9
Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense
Pesquisador de Produtividade CNPq e FAPERJ
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para todos, mas encontram-se externalizadas, isto , exteriores aos sujeitos - ensejam
justificativas aparentemente consistentes para sua violao sistemtica pelos indivduos,
enquanto as estratgias preventivas, prprias das sociedades de iguais, em que o
controle se faz pela internalizao das regras pelos indivduos, ensejam justificativas
consistentes para sua obedincia.
Em conseqncia, a punio das infraes nos sistemas repressivos, embora
amplamente desejada, deve ocorrer, de preferncia, em relao aos outros, desiguais,
enquanto que nos sistemas disciplinares ou preventivos, anuncia-se como fundamental a
imposio do cumprimento de regras para toda a coletividade de iguais, devendo ser
exemplarmente punido aquele que, sendo igual, a ela no quer se submeter como o
fazem seus pares.
Tambm meu intuito, guisa de exemplo, discutir o fato de que, do ponto de
vista do ethos da instituio policial - cujo surgimento geralmente apontado como
ponto de inflexo e passagem de modelos de controle social, na sociedade
contempornea, das estratgias jurdicas repressivas para aquelas preventivas - a
presena de estruturas funcionais e organizacionais internas fundadas na desigualdade
explcita, aliada predominncia de formas de controle social repressivo que lhes so
imposta internamente, constitui um paradoxo. Esta estrutura, tal como se reproduz nas
polcias brasileiras, tem conseqncias relevantes para a eficincia dos mecanismos de
controle da atividade policial, colaborando para que no sejam internalizados
positivamente os efeitos da punio dos agentes e autoridades policiais que incorrem em
faltas funcionais, usualmente denominadas como desvio de conduta.
Iniciarei a discusso explicitando um contraste clssico, mas persistentemente
encoberto por nossas tradies jurdicas: de um lado, a associao entre a igualdade
formal dos cidados, garantida pelo conjunto das liberdades pblicas existentes na
Constituio e pelo acesso universal aos tribunais, para defend-las os direitos civis
e a desigualdade oriunda da participao no mercado, prpria das sociedades capitalistas
contemporneas; e, de outro, a desigualdade formal imposta a segmentos de uma
sociedade aristocrtica e a conseqente inexistncia de um mercado onde os membros
da sociedade possam competir livremente, prpria das sociedades ocidentais anteriores
s revolues liberais.
H diferenas, do ponto de vista dos fundamentos da desigualdade, nos dois
contextos: no Antigo Regime, a igualdade se estabelecia entre os membros do mesmo
grupo (estamento) e a desigualdade, entre grupos, estava fundamentada moral e
juridicamente no status, afirmando-se jurdica e politicamente um modelo social de
cunho piramidal no qual, sendo a base maior do que o topo, a desigualdade est
naturalizada; na sociedade republicana, em que se garantiu a igualdade jurdica a todos
os cidados, vai-se justificar a desigualdade pelas diferenas de performance entre os
cidados no mercado, j que, terica e juridicamente, esto dispostos inicialmente na
mesma posio, como se todos ocupassem a base de um paraleleppedo, cuja dimenso
a mesma do seu topo. claro que esta representao tem por efeito naturalizar a
igualdade.
Assim, a igualdade jurdica diante da lei e dos tribunais, que vai fornecer a
justificativa moral para a desigualdade econmica, poltica e social na sociedade cujo
modelo jurdico-poltico pode ser representado por um paraleleppedo: a idia de
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igualdade diante da lei e dos tribunais justifica a desigualdade de classes nas esferas
econmica, poltica e social, inerente ao mercado.
Nas palavras de um autor consagrado da rea:
No obstante, a verdade que a cidadania, mesmo em suas formas iniciais,
constituiu um princpio de igualdade, e que, durante aquele perodo, era uma instituio
em desenvolvimento. Comeando do ponto no qual todos os homens eram livres, em
teoria, capazes de gozar de direitos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento do
conjunto de direitos de que eram capazes de gozar. Mas esses direitos no estavam em
conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao contrrio, necessrios
para a manuteno daquela determinada forma de desigualdade. A explicao reside no
fato de que a cidadania, nesta fase, se compunha de direitos civis. E os direitos civis
eram indispensveis a uma economia de mercado competitivo. Davam a cada homem,
como parte de seu status individual, o poder de participar, como uma unidade
independente, na concorrncia econmica, e tornaram possvel negar-lhes a proteo
social com base na suposio de que o homem estava capacitado a proteger a si
mesmo. 10
Alm disso, a sociedade de mercado representada, nesse formato, como uma
sociedade contratual, cujo contrato substituiu uma outra forma de contrato:
O contrato moderno no nasceu do contrato feudal; assinala um novo
desenvolvimento a cujo progresso o feudalismo foi um obstculo que teve que ser
afastado. Pois o contrato moderno essencialmente um acordo entre homens que so
livres e iguais em status, embora no necessariamente em poder. O status no foi
eliminado do sistema social. O status diferencial, associado com classe, funo e
famlia, foi substitudo pelo nico status uniforme de cidadania, que ofereceu o
fundamento da igualdade sobre a qual a estrutura da desigualdade foi edificada. 11
A definio de sociedade como um contrato entre indivduos livres traz
conseqncias para os modelos de controle social propostos para administrar seus
conflitos. Enquanto na sociedade composta de segmentos desiguais estamentos a
nfase do modelo de controle social estava na represso - uma vez que as regras, no
sendo iguais para todos, certamente teriam que ser impostas queles segmentos a quem
prejudicassem - na sociedade de indivduos livres e iguais, onde as regras valem,
igualmente, para todos, e por isso consistem em sua proteo contra o abuso de alguns
e, sobretudo, contra o abuso do Estado, a nfase estar na internalizao das regras por
todos, produzindo-se, em conseqncia, sua disciplinarizao ou normalizao, como
querem alguns autores. Outra conseqncia desta transformao do modelo de
sociedade que surge, com a idia de mercado, a possibilidade de escolha entre as
opes por ele oferecidas, que podem levar a resultados diferenciados as aes de seus
componentes.
Ora, sabe-se que a desigualdade um dos princpios organizadores da sociedade
brasileira, oriundo da sociedade tradicional dos tempos coloniais que, entranhado na
10
Marshall, Thomas .H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp.
79.
11
Marshall, Thomas H., op. cit., pp. 79-80, grifos meus).
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estrutura social, organiza, com freqncia, as relaes nas instituies. No por acaso
que o argumento sobre a igualdade, proferido em discurso de Ruy Barbosa do incio do
sculo XX, freqentemente citado para justificar a existncia de institutos jurdicos
legitimadores da desigualdade jurdica em um sistema que se diz republicano e
democrtico:
A parte da natureza varia ao infinito. No h, no universo, duas coisas iguais.
Muitas se parecem umas s outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma
s rvore, as folhas da mesma planta, os traos da polpa de um dedo humano, as gotas
do mesmo fluido, os argueiros do mesmo p, as raias do espectro de um s raio solar ou
estelar.Tudo assim, desde os astros, no cu, at aos aljfares do rocio na relva dos
prados.
A regra da igualdade no consiste seno em quinhoar desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada
desigualdade natural, que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais so
desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a
desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e no igualdade real. Os apetites
humanos conceberam inverter a norma universal da criao, pretendendo, no dar a
cada um, na razo do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se
equivalessem. Esta blasfmia contra a razo e a f, contra a civilizao e a humanidade,
a filosofia da misria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada,
no faria seno inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organizao da
misria."12
Este discurso, repetido exausto pela maioria de nossos juristas, desde sua
enunciao pblica, claramente opera uma transformao da diversidade da natureza em
desigualdade da sociedade para, em seguida, rotular esta desigualdade de natural. Os
ideais do princpio de igualdade formal ficam assim neutralizados em nossa cultura
jurdica, expressa na prtica de profissionais do direito. A situao paradoxal de
vivermos em uma sociedade onde o mercado produz constantes desigualdades
econmicas, que esto em tenso contnua com o princpio basilar da igualdade de todos
perante a lei, no lhes desperta inquietaes, porque tal situao de desigualdade
percebida como natural, devendo o mundo do direito reproduzir essa desigualdade para,
eventualmente, distribuir tambm desigualmente o acesso aos bens jurdicos para,
assim, fazer justia. Desta forma, pretende-se resolver esse paradoxo, como se isto fosse
possvel. Temos bons exemplos no processo penal deste fenmeno, onde privilgios
esto a desigualar o tratamento concedido a autores e co-autores dos mesmos delitos
tipificados no Cdigo Penal.
Conseqentemente, neste modelo, na ausncia de demarcao definida e
estruturada em torno de eixos explcitos de legitimao da desigualdade, como em uma
sociedade aristocrtica, cabe a todos, mas, principalmente, s instituies encarregadas
de administrar conflitos no espao pblico, em cada caso, aplicar de maneira particular
as regras disponveis - sempre gerais, nunca locais - de acordo com o status de cada um,
sob pena de estar cometendo injustia irreparvel ao no se adequar desigualdade
social imposta e implicitamente reconhecida. Desigualdade jurdica esta inconcebvel
em qualquer Repblica constitucional, mas cuja existncia, nesse contexto de
12
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Mendes de Almeida Jr., Joo O Processo criminal Brazilairo. Rio de janeiro, Typografia
Baptista de Souza, 1920, 2 vols.
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verdade real, ou material, por oposio verdade formal do processo civil, que consiste
em admitir como verdadeiro aquilo que o juiz seleciona do que lhe foi levado pelas partes.
No sistema que privilegia verdade real, ao contrrio, os juzes podem e devem tomar a
iniciativa de trazer aos autos tudo o que pensarem interessar ao processo, para formar o seu
livre convencimento examinando a prova dos autos. Assim tambm, todos os elementos
que se encontram registrados, por escrito, nos volumes que formam os processos judiciais incluindo os inquritos policiais, de carter inquisitorial - podem ganhar consistncia para
a formulao da sentena final. Neste sistema o juiz pode, at, discordar de fatos
considerados incontroversos pela acusao e pela defesa, de acdordo com autora
consagrada da rea:
O princpio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para
a liberdade absoluta do juiz e para a utilizao de poderes ilimitados na busca da prova,
significa hoje simplesmente a tendncia a uma certeza prxima da verdade judicial: uma
verdade subtrada exclusiva influncia das partes pelos poderes instrutrios do juiz e
uma verdade tica, constitucional e processualmente vlida. Isso para os dois tipos de
processo, penal e no-penal. E ainda, agora exclusivamente para o processo penal
tradicional, uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem
incontroversos.17
Assim, vemos que o modelo de espao pblico e de esfera pblica da sociedade
brasileira uma mistura explcita de dois modelos para a sociedade, aos quais
correspondem, tambm, dois modelos jurdicos de controle social. O primeiro
assemelha-se social e juridicamente a um paraleleppedo, no qual a sociedade se
representa como composta de elementos individuais, juridicamente iguais, mas
diferentes de fato, que se ope permanentemente na disputa por recursos escassos, que
esto disponveis a todos, em princpio. A diferena de posio que cada indivduo
apresenta na estrutura do paraleleppedo no decorre de uma distoro do sistema, mas
de sua habilidade diferenciada para utilizar eficazmente os recursos disponveis. As
palavras chaves, aqui, so: a igualdade de oportunidades e as escolhas acertadas. Elas
que determinaro os mritos individuais. necessrio, portanto, garantir o acesso
universal, isto , de todos informao. Sendo assim, s tem validade a informao que
est disponvel a todos, da mesma forma, em pblico. A informao universalizada,
ento, um mecanismo de normalizao da sociedade. Por esta razo, a exigncia da
publicidade para sua validade representa a garantia de que no haver abusos que
privilegiaro uns ou outros, punindo-se severamente a sua utilizao de forma
privilegiada.
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evidence, fact, proof - tudo, literalmente, pode ser alegado em defesa, ou em acusao.
Este mtodo de produo de verdade jurdica produz uma parafernlia de meros indcios,
tanto mais ampla, quanto mais abundantes forem os recursos do acusado e dos acusadores.
Finalmente, ao assegurar, constitucionalmente, o direito do acusado no se auto-incriminar
(direito ao silncio), no Brasil no se criminaliza, como no direito anglo-americano, a
mentira dita pelo ru em sua defesa, o que implica no haver a possibilidade de acusao e
condenao por perjury, mas somente por falsidade de declarao por testemunha: o
crime de falso testemunho.
Abaixo da Constituio, tem-se o Cdigo de Processo Penal, que regula trs
formas de produo da verdade: a policial, a judicial e a do Tribunal do Jri. Tais formas
encontram-se hierarquizadas no Cdigo da seguinte maneira: (a) o inqurito policial, onde
o procedimento da polcia judiciria e, no, processo - sempre foi, oficialmente,
administrativo, no judicial; o artifcio de passar a consider-lo juridicamente um
procedimento e no um processo administrativo permite que continue a ser inquisitorial,
no se regendo pelo princpio do contraditrio, consagrado pela Constituio 18 para todos
os processos, tanto administrativos como judiciais; (b) o processo judicial, aplicado
maioria dos crimes e que se inicia, obrigatoriamente, quando h indcios suficientes de que
um delito grave foi cometido (materialidade) e que sua autoria presumida, com a
denncia feita exclusivamente pelo Ministrio Pblico19. Esta denncia, formulada pelo
promotor, baseia-se nas informaes registradas no cartrio da polcia, nos autos do
inqurito policial inquisitorial que, assim, adquirem f pblica. Valem, portanto, contra
terceiros e foram produzidas sem se ouvir previamente o acusado ou seu advogado O
processo iniciado e s ento aparece a oportunidade de defesa. Este processo regulado
pelo princpio do contraditrio, at a sentena do juiz, que exprime seu convencimento
justificado pelo exame do contedo dos autos; (c) no julgamento pelo Tribunal do Jri,
procedimento que se aplica apenas aos crimes intencionais contra a vida humana e que se
inicia por uma sentena judicial proferida por um juiz (pronncia), aps a realizao de
nova produo de informaes, indcios e provas, que se soma quelas do inqurito
policial e da instruo judicial, comum a todos os processos judiciais criminais e tambm
regido pelo contraditrio e pela ampla defesa. Este processo exige a presena do ru, inclui
um prolongado debate oral, que termina pelo veredito dos jurados, que no podem se
comunicar entre si para que no influenciem uns aos outros nas suas tomadas de deciso.
Entretanto, como se v, devido necessria busca da verdade real, nosso direito
constitucional e processual, seguindo a tradio de transformar direitos em deveres
como fez com o alistamento militar e com o direito de voto, entre muitos outros
tambm faz do jri, no um direito do acusado, renuncivel por definio pela lgica do
sistema anglo-americano, por exemplo, mas um poder-dever do Estado, ao qual o rucidado tem que se sujeitar, querendo ou no. Uma vez indiciado, denunciado e
pronunciado em certos tipos penais todos envolvendo crimes intencionais contra a
vida humana o ru deve, obrigatoriamente, submeter-se ao julgamento pelo Tribunal
do Jri.
Esta busca da verdade real tambm responsvel pelo princpio da
obrigatoriedade da persecuo penal, a que esto submetidos tanto a Polcia como o
Ministrio Pblico, conforme determinao constitucional contida no art. 129, I, uma vez
que o mesmo deve atuar sempre que houver suporte probatrio mnimo da materialidade
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do fato criminoso e de sua autoria, como est prescrito nos artigos 24, 42 e 43 do Cdigo
de Processo Penal brasileiro.
Acresce a este contraste um outro, referente seleo excludente, no
universal, que no se assemelha ao sistema norte-americano, daqueles que podem ser
jurados no Brasil. Os critrios adotados variaram no tempo, indo desde aqueles que se
baseavam na renda, at o que se funda no status social, definido atravs da
fidedignidade conhecida, ou supostamente afirmada diante do juiz. Os jurados que, no
sistema dos Estados Unidos, cumprem o seu dever cidado participando dos
julgamentos, no Brasil, ganham privilgios jurdicos em funo de servios prestados ao
Estado-juiz, como direito priso especial e preferncia em concorrncias pblicas.
Aquilo que, no sistema norte-americano, um direito do cidado acusado e dever do
cidado jurado, atualizado, no direito brasileiro, por um lado, como um dever do
acusado de submeter-se, em inapelvel sujeio, ao julgamento imposto pelo Estado, no
qual este assume o papel de persecutor da verdade real e, por outro lado, converte-se
em um privilgio de alguns poucos escolhidos jurados de julgarem seus concidados.
Resumindo, no sistema brasileiro, sob a gide de preceitos constitucionais
dignos das sociedades igualitrias, articula-se no processo de produo da verdade
judiciria, especialmente no processo penal, a pressuposio da desigualdade social,
com procedimentos e princpios inquisitoriais de produo da verdade. Tais
procedimentos tambm se caracterizam por uma incorporao bastante flexvel de
argumentos e dados ao processo, que deixa a deciso sobre sua valorao ao chamado
livre convencimento do juiz. Fcil concluir que no sistema processual criminal
brasileiro no h processo de formulao consensual de verdade, pois os fatos descritos
no so construdos pelo acordo sistemtico entre as partes litigantes, mas so fruto das
representaes obrigatoriamente contraditrias delas, registradas nos autos atravs das
interpretaes que as autoridades judicirias fazem a partir da perspectiva dos
participantes - operadores jurdicos, partes ou testemunhas quando reduzem a termo
os atos processuais. Assim, sempre uma tese (posio) perde e a outra ganha: no pode
haver consenso. Como a comprovar, lingisticamente, esta relevante distino, usual,
entre ns, dizer-se que se vai apurar a verdade dos fatos, expresso que no pode ser
vertida, por exemplo, para o ingls, uma vez que nesta lngua e nesta cultura, a noo de
fato j implica a noo de verdade construda consensualmente.
O sistema brasileiro atualiza as garantias do acusado no devido processo legal
como garantias do Estado, indisponveis para o cidado, portanto, para apurar a verdade
dos fatos e atribuir culpa e responsabilidade. A forma brasileira de entender a garantia
do direito ao processo acaba por retirar da lei seu carter eminentemente definidor e
garantidor dos direitos civis, para transform-la em instrumento implacvel de
descoberta da verdade. Esta representao jurdica brasileira do instituto processual se
justifica pela pretensa promoo de uma tutela jurdica aos segmentos inferiorizados e
debilitados da sociedade, a ser exercida pelo Estado, que tem a funo de compensar as
desigualdades que so inevitveis e naturais numa sociedade de desiguais e autoencarregado de manter a ordem e de assegurar o cumprimento da lei.
Numa sociedade que concebida como composta de segmentos
juridicamente desiguais e complementares, decorre tornar-se legtima, tambm, a
aplicao desigual da lei aos mesmos, para que, como se costuma argir, no se
cometam injustias. Como conseqncia, entre ns no se enfatiza, no mbito do
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processo penal, a aplicao universal da lei da mesma forma para todos e para cada
um. Afastamo-nos assim do cerne do processo social de internalizao da lei, cujo
resultado seria a normalizao da populao, ou seja, sua socializao igualitria
perante as leis, o direito e os tribunais. Assim, leis, regras e normas so vistas pela
sociedade brasileira como algo externo aos indivduos que, longe de os protegerem, os
ameaam, pois sua aplicao depende de interpretao particularizada, cujos resultados
so sempre imprevisveis, porque so distribudos formalmente de maneira desigual.
Como se v, a nfase est depositada no interesse pblico, identificado como aquele
definido pelos funcionrios do Estado e o processo tem a funo de increment-lo, acima
dos interesses individuais e/ou coletivos, atravs do mtodo inquisitorial.
Alm disso, o chamado sistema judicial criminal brasileiro se organiza de
maneira a sobrepor distintos sistemas de produo da verdade jurdica, que obedecem a
princpios distintos e, portanto, desqualificam mutuamente seus produtos, as verdades
judicirias neles produzidas: a prova do inqurito policial deve ser refeita no processo
judicial, assim como a da instruo judicial deve ser repetida no Tribunal do Jri, por
exemplo. Assim sendo, em cada etapa do processo judicial pode ser conhecida uma
verdade diferente da anterior.
A esses procedimentos se juntam outros, institudos pela Lei 9.099/95, que
instituiu os Juizados Especiais Criminais, constitucionalmente previstos pela
Constituio da Repblica de 1988. Esta instncia tem competncia para julgar as
infraes penais que tiverem pena inicialmente prevista de, no mximo, um ano agora,
de dois anos. So as contravenes penais e os crimes de pequeno potencial ofensivo.
Em trabalho recente, divulgam-se dados de pesquisa qualitativa, em que se observa
elevado nmero de renncias das partes ao processo, estimuladas pelos conciliadores, o
que parece confirmar a tradio da conciliao, que opera no sentido de abafar os
conflitos, no de solucion-los ou resolv-los 20.
Aspecto especfico e peculiar do processo penal brasileiro poderia ser enfrentado,
a partir da ambigidade do status jurdico referente atuao da polcia judiciria no
inqurito policial, orientada pelos princpios da discricionariedade do direito
administrativo, e da obrigatoriedade do processo penal. Nesta matria, so freqentes as
confuses entre os operadores do sistema sobre o que seja o poder de polcia, atribudo a
todos os agentes administrativos do Estado incumbidos da vigilncia da sociedade e do
cumprimento das normas, e o que se constitui no poder da polcia, associado ao
monoplio do uso legtimo e comedido da fora fsica, substantivado no uso de armas
compatveis com essa tarefa. Confunde-se, com freqncia, a discretion atribuda aos
policiais e District Atorneys, que so os rgos acusadores no processo criminal dos
Estados Unidos da Amrica, onde entendida como a faculdade de decidir sobre a
oportunidade da propositura da acusao penal, com a discricionariedade brasileira que,
neste mbito, no existe, uma vez que a Polcia e o Ministrio Pblico, no que tange aos
crimes de ao pblica, esto obrigados a agir, instaurando o inqurito policial ou
propondo a ao penal, pelo princpio da obrigatoriedade, como j mencionei.
A associao do princpio da obrigatoriedade ao princpio da verdade real no
admite negociaes em torno da verdade, que no ser construda consensualmente. No
outro sistema, que est baseado na associao entre o princpio da oportunidade e da
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Amorim, Maria Stella, Kant de Lima, Roberto e Burgos, Marcelo. Juizados Especiais
Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niteri, Intertexto,
2003
38
21
Ferreira, Marco Aurlio Gonalves. O Devido Processo Legal: um estudo comparado. Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2004.
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Teixeira Mendes, Regina Lcia. Princpio da Igualdade brasileira: cidadania como instituto
jurdico no Brasil. In Revista de Estudos Criminais Ano 4, no. 13. Porto Alegre, !TEC, 2004,
pp.81-98
40