FERAL, Josette PDF
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o t e a t rroo p e r f o r m a t i v o
J osette Fral
M
eu objetivo hoje apresentar os concei- Minha abordagem ser feita em trs mo-
tos de performance e performatividade, mentos: por um lado, tentarei delimitar as no-
amplamente utilizados nos Estados Uni- es em vigor, traando um mapa dos princi-
dos h duas dcadas, e que gostaria de pais sentidos que lhe so atribudos; em seguida,
utilizar para redefinir o teatro que se faz tentarei estabelecer algumas das caractersticas
hoje e carrega em seu cerne estas duas da performatividade e, enfim, por meio de
noes. Esse teatro, que chamarei de tea- exemplos e excertos de peas, tentarei mostrar
tro performativo, existe em todos os pal- como alguns dos espetculos evocados so pro-
cos, mas foi definido como teatro ps-dramti- priamente performativos.
co a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,
publicado em 2005, ou como teatro ps-mo-
derno. Gostaria de lembrar aqui que seria mais Por uma potica da performatividade:
justo chamar este teatro de performativo, pois o teatr
teatroo performativo
a noo de performatividade est no centro de
seu funcionamento. A performance poderia ser hoje um
Para realizar este objetivo, uma incurso ponto nevrlgico do contemporneo.1
em direo noo de performance se impe,
performance concebida aqui como forma arts- Existe, desde sempre, entre a performance e o
tica (a performance art) e a performance conce- teatro, uma desconfiana recproca que no pa-
bida como ferramenta terica de conceituao rou de se desenvolver ao longo dos anos, uma
do fenmeno teatral, conceito popularizado por desconfiana que Michael Fried resume nestas
Richard Schechner, particularmente nos Esta- palavras lapidares, freqentemente evocadas:
dos Unidos, e que constitui a base principal so- A arte degenera medida em que se aproxima
bre a qual se estruturam os Estudos da Perfor- do teatro ou ainda O sucesso, ou mesmo a
mance nos pases anglo-saxes. sobrevivncia das artes, comea crescentemente
Josette Feral professorada Universidade do Quebc. Traduo: Lgia Borges. Reviso da traduo:
Ccero Alberto de Andrade Oliveira.
1 Laurent Goumarre, Christophe Kihm. Performance contemporaine [Performane contempornea] in
Artpress, Paris, n. 7, nov-dc-janv., 2008.
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a depender de sua capacidade de negar o tea- bre o sentido (ou os diferentes sentidos) da pa-
tro2. Entretanto, se h uma arte que se benefi- lavra performance se faz necessrio. Gostaria de
ciou das aquisies da performance, certamen- faz-lo rapidamente lembrando as publicaes
te o teatro, dado que ele adotou alguns dos de duas obras fundadoras de dois eixos ao lon-
elementos fundadores que abalaram o gnero go dos quais a questo da performance seria
(transformao do ator em performer, descrio discutida no decorrer dos anos 80, duas obras
dos acontecimentos da ao cnica em detri- cujo impacto no meio acadmico literrio e ar-
mento da representao ou de um jogo de ilu- tstico seria importante. A primeira, The End of
so, espetculo centrado na imagem e na ao e Humanism de Richard Schechner (1982, PAJ
no mais sobre o texto, apelo uma receptivi- Publications)3. Ela abria de certa forma a dca-
dade do espectador de natureza essencialmente da e reunia textos publicados no decorrer dos
especular ou aos modos das percepes pr- anos precedentes por uma questo fundamen-
prias da tecnologia...). Todos esses elementos, tal: O que a performance? Ou melhor, o que
que inscrevem uma performatividade cnica, uma performance? Schechner ampliava ali a
hoje tornada freqente na maior parte das ce- noo para alm do domnio artstico para nela
nas teatrais do ocidente (Estados Unidos, Pa- incluir todos os domnios da cultura. Em sua
ses-Baixos, Blgica, Alemanha, Itlia, Reino abordagem, a performance dizia respeito tanto
Unido em particular), constituem as caracters- aos esportes quanto s diverses populares, [tan-
ticas daquilo a que gostaria de chamar de tea- to] ao jogo [quanto] ao cinema, [tanto] aos ri-
tro performativo. Desejaria discutir algumas tos dos curandeiros ou de fertilidade [quanto]
das caractersticas deste teatro e de sua evoluo aos rodeios ou cerimnias religiosas. Em seu
posicionando-o em relao s prticas artsticas sentido mais amplo, a performance era tnica
norte-americanas, mas tambm flamengas, bri- e intercultural, histrica e a-histrica, esttica e
tnicas, etc.... ritualstica, sociolgica e poltica4.
Esse trabalho de definio daquilo que
pode recobrir a noo ir se afinando mas,
***
tambm, tornando-se cada vez mais abrangente
nos livros que se seguiriam, particularmente
Primeiramente, e para contextualizar esta em Teoria da Performance 5 e em Estudos Perfor-
reflexo, parece-me que um retorno rpido so- mativos: uma introduo (2002)6. Em quadros
2 Paris in Art and objecthood, publicado inicialmente in Artforum 5, Nova York, June 1967, depois reto-
mado em Dutton. P. P. Minimal Art: A Critical Anthology. New York: Battcock, 1968, p. 139 e 145.
3 Era o segundo livro da srie Performance studies, lanado por Brooks McNamara, o primeiro sendo
aquele de Victor Turner, From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: Performance
Art Journal, 1982.
4 Proposta de Brooks McNamara e Richard Schechner no texto de apresentao da srie.
5 Publicado desde 1977, mas retomado em 1988e depois em 2003, Nova York, Routledge.
6 R. Schechner, Performance studies: an introduction, New York, Routledge, 2002, mas tambm em The
future of ritual: writings on culture and performance, New York, Routledge, 1993; By Means of
performance: intercultural studies of theatre and ritual, Cambridge, Cambridge University Press, 1990;
Between Theater and antropology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1985.
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cada vez mais inclusivos que ele desenvolver (es- Levantando os mesmos questionamentos,
boo pp. 71 e 72 e p. 245 vers fr)7, Schechner mas de um ponto de vista terico diferente (fi-
chega a incluir neles, junto noo de perfor- losfico e esttico desta vez) um segundo livro
mance, todas as formas de manifestaes teatrais, publicado alguns anos mais tarde (1986) cujo
rituais, de divertimento e toda manifestao do ttulo After the Great Divide analisa os laos
cotidiano8. Uma incluso to vasta suscita, sem entre o modernismo, cultura de massa e ps-
dvida, um problema importante. Por tanto modernismo (Modernism, Mass culture, Postmo-
querer abarcar, no nos arriscamos a diluir a no- dernism)9. Andreas Huyssen, professor em Co-
o e sua eficcia terica? Esta uma primeira lumbia, rene ali artigos que testemunham uma
questo que convm ser colocada. reflexo iniciada no fim dos anos 70 e no co-
Por trs dessa redefinio da noo de meo dos anos 80 e se empenha em mostrar,
performance e de sua inscrio no vasto dom- desta vez sob uma perspectiva puramente arts-
nio da cultura, preciso antes ver um desejo tica e no sociolgica e antropolgica , o que
poltico muito fortemente ancorado na ideo- o modernismo e no as vanguardas histri-
logia americana dos anos 80 (ideologia que per- cas que responsvel por uma ruptura entre
dura at hoje) de reinscrever a arte no dom- uma viso elitista da arte e da cultura popular e
nio do poltico, do cotidiano, qui do comum, que igualmente responsvel pelo afastamento
e de atacar a separao radical entre cultura de da arte das esferas poltica, econmica e social.
elite e cultura popular, entre cultura nobre e Huyssen lembra que as vanguardas histricas
cultura de massa. A expanso da noo de per- recusam separar a arte de sua inscrio no real.
formance sublinha portanto (ou quer sublinhar) Sua viso trata da performance no seu sentido
o fim de um certo teatro, do teatro dramtico puramente artstico e no antropolgico. Ele
particularmente e, com ele, o fim do prprio se coloca numa viso essencialmente esttica
conceito de teatro tal como praticado h algu- que continua a dominar na maior parte de
mas dcadas. Mas esse teatro est realmente nossos departamentos das artes do espetculo.
morto, apesar de todas as declaraes que afir- A performance, no seu sentido, a performance
mam seu fim? A questo permanece atual mes- arte, uma arte que abalou nossa viso de arte
mo nos Estados Unidos. Esta a segunda ques- nas dcadas de 70 e 80. (Tratarei das caracters-
to que gostaramos de levantar. ticas dessa arte um pouco mais adiante).
7 Ver quadro p. 71 (3.1 Overlaping circles) e 72 (3.2 Theater can be considered a specialezed kind of
performance [o teatro pode ser considerado uma forma especializada de performance]) da edio 2003
de Performance theory, Nova York, Routledge, 2003 e o quadro p. 245 (2.2 La boucle infinie [A volta
infinita] ref. do croquis na verso inglesa: p. 68 de Performance studies, an introduction). A volta
infinita ilustra a positividade da dinmica de intercmbio [troca]. Os dramas sociais afetam os dramas
estticos e vice-versa. As aes visveis de um dado drama social so sustentadas moldadas, condicio-
nadas, guiadas por processos estticos subjacentes e tcnicas teatrais/retricas especficas. De maneira
recproca, a esttica teatral numa dada cultura sustentada moldada, condicionada, guiada por
processos de interao social subjacentes in R. Schechner, Performance (trad. Mari Percorari), p. 245.
8 O que Elizabeth Burns e Erving Goffmann j haviam feito antes dele. Burns tinha, assim, mostrado
que a teatralidade impregna o cotidiano. Ver E. Burns, Theatricality, Londres, Longman, 1973; E.
Goffman, La mise em scne de la vie quotidienne [ A colocao em cena da vida cotidiana], Paris, ditions
de Minuit, 1973 [1959].
9 Andreas Huyssen, Blommington, Indiana, Univ Press, 1986.
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Meu objetivo aqui no o de favorecer ria preciso destacar tambm, mais profunda-
uma viso mais que outra, mas de enfatizar que mente, essa filiao que opera uma ruptura
emergem, por meio destas duas vises de epistemolgica nos termos e adotar a expresso
performance uma herdada da vanguarda e da teatro performativo.
arte da performance (a de Huyssen e de tudo
que poderei chamar, para ser breve, de tradio
***
europia dos pases latinos), a outra herdada de
uma viso antropolgica e intercultural com a
Performer, quer seja num sentido primei-
qual Schechner contribui fortemente para sua
ro de superar ou ultrapassar os limites de um
difuso os dois grandes eixos a partir dos quais
padro ou ainda no [sentido] de de se engajar
podemos pensar o teatro e, mais amplamen-
num espetculo, um jogo ou um ritual, impli-
te, as artes hoje.
ca ao menos em trs operaes, diz Schechner.
A concepo de Schechner dominante
nos pases anglo-saxes; a de Huyssen em cer-
1. ser/estar10 (being), ou seja, se comportar
tos pases europeus (Frana), ou Canad, em
(to behave);
nossas universidades, nas escolas de formao
2. fazer (doing). a atividade de tudo o que
que buscam preservar uma viso puramente es-
existe, dos quarks11 aos seres humanos;
ttica da arte.
3. mostrar o que faz (showing doing, ligado
O interesse da evocao desses dois eixos
natureza dos comportamentos humanos). Este
(performance como arte e performance como
consiste em dar-se em espetculo, em mostrar
experincia e competncia) vem do fato de que
(ou se mostrar).
emerge, no cruzamento deles, uma grande par-
te do teatro atual, um teatro cuja diversidade
Estes verbos (que representam aes), que
das caractersticas atuais Hans-Thies Lehmann
todo o artista reconhece em seu processo de
analisou com preciso e que ele definiu como
criao, esto em jogo em qualquer performan-
ps-dramticas, mas para o qual eu gostaria de
ce. Por vezes separados, por outras combinados,
propor a denominao teatro performativo,
eles no se excluem jamais. Muito pelo contr-
que me parece mais exata e mais de acordo com
rio, eles interagem com freqncia no processo
as questes atuais.
cnico. Performer, no seu sentido schechneriano,
De fato, se evidente que a performance
evoca a noo de performatividade (antes mes-
redefiniu os parmetros permitindo-nos pensar
mo da de teatralidade) utilizada por Schechner
a arte hoje, evidente tambm que a prtica da
e por toda a escola americana12. Mais recente
performance teve uma incidncia radical sobre
que a de teatralidade, e de uso quase exclusiva-
prtica teatral como um todo. Dessa forma, se-
mente norte-americano (mesmo se Lyotard uti-
10 Em francs, bem como no ingls, o verbo tre tem a ambivalncia de ser e estar e, dentro do
contexto, ambas definies parecem apropriadas (N. T.).
11 Quarks: subpartculas atmicas, formadoras das menores partes de um tomo.
12 Schechner, com certeza, que esteve no centro desta mutao lingstica e epistemolgica e na origem
da onda dos Performance studies nos Estados Unidos, que ele contribuiu fortemente para implementar
nos estudos tericos sobre as artes do espetculo), mas tambm Philip Auslander, Michael Benamou,
Judith Butler, Marvin Carlson, Dwight Conqueergood, Barbara Kirshenblatt-Gmblett, Bill Worthen e
vrios outros que contriburam igualmente na reflexo coletiva sobre o assunto.
200
liza o termo), sua origem poderia ser retraada ento no parou de rodar pela Europa e pela
nas pesquisas lingsticas de Austin e Searle, que Amrica do Norte, mas tambm pela sia (Seul,
foram os primeiros a impor o conceito pelo vis 2007) e pela Amrica Latina (Bogot, 2008),
dos verbos performativos que executam uma e um outro excerto de Dortoir (Dormitrio) de
ao. Eis uma primeira considerao. um encenador do Quebc, Gilles Maheu.
Essa noo valoriza a ao em si, mais que
seu valor de representao, no sentido mimtico
do termo. O teatro est inexoravelmente ligado O quarto de Isabella
representao de um sentido, passe ele pela
palavra ou pela imagem. O espetculo nele se- a histria de uma mulher velha e cega que
gue uma narrativa [rcit], uma fico. Ele pro- conta a histria de sua vida, de 1910 aos dias
jeta ali um sentido, um significado. Essa liga- atuais. Mas ela no a conta sozinha. Todos aque-
o com a representao que Artaud recolocou les que tiveram importncia para ela contam a
em questo na seqncia das grandes correntes histria consigo: os numerosos mortos de sua
artsticas do incio do sculo XX, deixou igual- vida: Anna e Arthur, seus amantes Alexander e
mente sua marca no teatro, ainda que mais tar- Frank. E juntos, no apenas contam a histria
diamente. No reconstituirei aqui toda a hist- de Isabella, como a cantam tambm. No a
ria da evoluo da prtica artstica no decorrer primeira vez que a msica tocada ao vivo e
do sculo XX, mas possvel dizer que diversos que os atores cantam em cena em um espetcu-
autores e encenadores buscaram criar essa dis- lo de Juan Lauwers, mas isso nunca havia sido
sociao unvoca entre um discurso (verbal ou feito de uma maneira to aberta e convidativa
visual) e um sentido dado. Logo, quando quanto aqui. Rapidamente, entretanto, perce-
Schechner menciona a importncia da execu- be-se que a vida de Isabella dominada por uma
o de uma ao na noo de performer, ele, mentira. Seus pais adotivos, Arthur e Anna, que
na realidade, no faz seno insistir neste ponto moram juntos num farol, numa ilha, onde
nevrlgico de toda performance cnica, do fa- Arthur o vigia, fizeram-lhe acreditar que
zer. evidente que esse fazer est presente em filha de um prncipe do deserto que desapare-
toda forma teatral que se d em cena. A dife- ceu na ocasio de uma expedio. Isabella parte
rena aqui no teatro performativo vem do em busca desse pai e essa viagem leva-a no
fato de que esse fazer se torna primordial e um frica, mas a um quarto em Paris, cheio de ob-
dos aspectos fundamentais pressupostos na per- jetos antropolgicos e etnolgicos13. Essa his-
formance. Para ilustrar essa importncia, gosta- tria comporta alguns episdios diretamente
ria de tomar dois exemplos que exprimem bem inspirados na vida do prprio Lauwers. De fato,
essa argumentao, esse enquadramento po- ele conta que quando seu pai faleceu deixou-
der-se-ia dizer, para retomar a expresso de lhe de herana em torno de 5800 objetos etno-
Turner, do fazer. Trata-se de um excerto de La lgicos e arqueolgicos. Seu pai era mdico, mas
Chambre dIsabella (O Quarto de Isabella), espe- nas horas livres tambm era etngrafo amador.
tculo de Juan Lauwers apresentado, pela pri- Quando criana isso nunca despertou questio-
meira vez, em Avignon em 2004 e que desde namentos em sua casa e ele cresceu entre esses
201
objetos... Tendo falecido seu pai, ele se viu com performatividade dos atores toma o primeiro
essa coleo nos braos. Foi-lhe necessrio de- lugar e termina por veicular como um excesso,
cidir o que fazer com aquilo. Era igualmente um demais pleno, uma clera, uma frustrao
uma questo tica, j que alguns daqueles ob- da qual podemos facilmente imaginar que foi
jetos tinham, sem dvida, sido roubados da- aquela do prprio Lauwers, de quando confron-
queles que os haviam feito. Donde a histria tado com essa coleo legada por seu pai como
que Lauwers concebeu. Ela contada por uma herana. Estamos bem inseridos na performati-
mulher, Isabella Morandi que, na realidade, ja- vidade do ator (e fora de um personagem),
mais existiu.14 aquela da ao que se executa. O espectador
Primeiro excerto: o quarto de Isabella, confrontado com este fazer, com estas aes
Juan Lauwers. O incio da narrao postas [colocadas], das quais s lhe resta, a si
prprio, encontrar o sentido.
O segundo excerto vem do espetculo
Primeir
Primeiroo excerto: o quarto de Isabela Le Dortoir (O Dormitrio), que j um pouco
mais antigo, j que ele foi criado em meados
Esse excerto sublinha de maneira muito clara a dos anos 80. Todavia, parece-me que ele ofere-
colocao em primeiro plano da execuo das ce um exemplo quase perfeito desse teatro que
aes por parte dos performers, que cantam, Hans-Thies Lehmann chamou de teatro ps-
danam, contam, s vezes encarnam o persona- dramtico e que desejaria, de preferncia, defi-
gem, mas que na seqncia saem dele comple- nir como teatro performativo.
tamente. O ator aparece a, antes de tudo, como
um performer. Seu corpo, seu jogo, suas compe- Le Dortoir, um pouco imagem de La
tncias tcnicas so colocadas na frente. O es- Chambre dIsabella, uma viagem pela me-
pectador entra e sai da narrativa, navegando mria (um quarto de memria diria Kantor),
segundo as imagens oferecidas ao seu olhar. memria da vida de um dormitrio nos anos
O sentido a no redutivo. A narrativa incita a 60, na poca da morte de Kennedy. Trata-se,
uma viagem no imaginrio que o canto e a dan- portanto, da vida de um grupo, realizando
a amplificam. Os arabescos do ator, a elasti- aes rotineiras (todas estilizadas sob a forma
cidade de seu corpo, a sinuosidade das formas de coreografias) ligadas a uma vida numa es-
que solicitam o olhar do espectador em primei- cola dirigida por religiosas. Mas nesse casulo,
ro plano, esto no domnio do desempenho. aparentemente fechado, se apresentam todas
O espectador, longe de buscar um sentido para a atualidade do momento, principalmente a
a imagem, deixa-se levar por esta performativi- morte de John Fitzgerald Kennedy. Gilles
dade em ao. Ele performa. Maheu um encenador do Qubc, forma-
do em mmica, que fundou em 1968 Les
enfants du paradis (As crianas do paraso)
Segundo excerto: a coleo que em 1981 tornou-se Carbone 14 (Carbo-
no 14) e que evoluiu gradativamente na di-
O interesse deste excerto que para alm da reo do teatro corporal, e na seqncia per-
descrio exata dos objetos mencionados que formativo e em direo dana-teatro, sem
fazem parte da coleo do pai de Isabella, a realmente deixar o teatro.15
202
Este excerto me parece eloqente na me- tividade na medida em que ele afirma que a ao
dida em que apresenta, de forma cristalina, nu- contida no enunciado performativo pode ou
merosas caractersticas desse teatro performati- no ser efetiva. Portanto, na medida em que essa
vo que ocupa as cenas teatrais. observao se torna um real princpio inerente
De fato, no cerne da noo de performan- prpria natureza dessa categoria de locuo, o
ce reside uma segunda considerao, a de que valor do risco, o malogro tornam-se consti-
as obras performativas no so verdadeiras, nem tutivos da performatividade e devem ser consi-
falsas. Elas simplesmente sobrevm. As play derados como lei. Insistiremos, portanto, nesse
acts, performative are not true or false, right carter de descrio de eventos que se torna,
or wrong, they happen disse Schechner dessa maneira, uma caracterstica fundamental
(2002, p. 127). Essa uma segunda considera- da performatividade17.
o. Insistiremos, portanto, nesse carter de des- Se seguirmos nosso primeiro impulso,
crio dos eventos16 que se torna, assim, uma duas fortes idias esto no centro da obra per-
caracterstica fundamental da performance (it formativa: De um lado, seu carter de descrio
happens, disse Schechner). A esse respeito, os dos fatos. Por outro, as aes que o performer
textos falam de eventness. Ela coloca em cena, ali realiza. A performance toma lugar no real e
com esse fim, o processo. Ela amplifica, portan- enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve
to, o aspecto ldico dos eventos bem como o as- desconstruindo-a, jogando com os cdigos e as
pecto ldico daqueles que dele participam capacidades do espectador (como pode fazer
(performers, objetos ou mquinas). Existe um Guy Cassier, Jan Lauwers, Heiner Goebbels,
risco real para o performer. Marianne Weems ou a Societas Raffaelo Sanzio,
Derrida ser o primeiro a prolongar esta de maneiras diversas). Essa desconstruo passa
noo introduzindo nela um fator importante, por um jogo com os signos que se tornam inst-
o de sucesso ou malogro. Mesmo se o essencial veis, fluidos forando o olhar do espectador a se
da reflexo deste ltimo recaia sobre a escrita adaptar incessantemente, a migrar de uma refe-
enquanto obra performativa por excelncia, ele rncia outra, de um sistema de representao
afirmar que a obra, para ser realmente perfor- a outro, inscrevendo sempre a cena no ldico e
mativa, pode ou no atingir os objetivos visados. tentando por a escapar da representao mim-
A reflexo de Derrida marca um redirecio- tica. O performer instala a ambigidade de sig-
namento na evoluo do conceito de performa- nificaes, o deslocamento dos cdigos, os desli-
16 Evnementiel (vocbulo do qual provavelmente vnementialit tenha derivado) utilizado para desig-
nar aquilo que apenas descreve os acontecimentos; dessa forma, histoire vnementielle seria aquela
que apenas descreve os grandes fatos histricos (guerras conquistas, etc). Em seu estudo Entre points
dentres et points de ruptures pistmologique(s): lvnementialit architecturale...en question (que
pode ser acessado em http://www.afscet.asso.fr/resSystemica/Paris05/ismail.pdf ), Maldiney faz algu-
mas reflexes sobre o sentido que a vnementialit que nos parecem pertinentes: [...] O evento
[lvnement] freqentemente considerado como sinnimo de referncia [repre] ou de desconti-
nuidade, ou seja, de ruptura de continuidade (...). O ponto de partida epistemolgico da questo da
vnementialit cria um espao de reflexo e de emergncia de e sobre o conhecimento; ele se inscreve,
no entanto, neste duplo movimento: como referncia [repre] temporal e como significante (parmetro
agindo) de uma ruptura produtora de sentido [...].
17 assim que Derrida consegue fazer a performatividade sair de sua aporia austiniana, permitindo-lhe
tornar-se uma verdadeira ferramenta terica transfervel a outros campos alm do da lingstica.
203
zes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir luo dos modos de narrao, dos modos de
a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem. percepo e compreenso do mundo. No se
Tomemos um terceiro exemplo, empres- pode mais fazer o mesmo teatro seno pelo pas-
tado dessa vez de Robert Lepage. Em 1994, sado, mesmo se no fundo so sempre as mes-
Lepage funda sua prpria companhia, Ex Ma- mas histrias que nele so contadas.
china, aps ter sido membro do Thatre Repre O performer confunde o sentido unvoco
de 80 a 86. Seu objetivo o de favorecer a per- de uma imagem ou de um texto a unidade
meabilidade das disciplinas e a multidiscipli- de uma viso nica e institui a pluralidade, a
naridade em cena. Portanto, de renovar o tea- ambigidade, o deslize do sentido talvez dos
tro por meio das outras artes. Ele quer fazer um sentidos na cena. Esse teatro procede por meio
teatro em sintonia com nossa poca. Ele vai de- da fragmentao, paradoxo, sobreposio de
senvolver uma potica tecnolgica na qual as significados (Hotel pro forma), por colagens-
tecnologias esto a servio da arte do teatro.18 montagens (Big Art Group), intertextualidade
O interesse dessa passagem o de ver na obra a (Wooster Group), citaes, ready-mades
maneira pela qual Lepage desenvolve a narrati- (Weems, Lepage). Encontramos as noes de
va, imbrica as narraes em jogo nos espaos desconstruo, disseminao e deslocamento,
(interior/exterior) encaixando-as, invertendo-as. de Derrida20. A escrita cnica no a mais hie-
Como ele escreveu, o teatro uma arte da rrquica e ordenada; ela desconstruda e ca-
transformao em todos os nveis.19 Lepage vai, tica, ela introduz o evento21 [vnement], reco-
portanto, buscar novas maneiras de contar e nhece o risco. Mais que o teatro dramtico, e
criar uma expatriao. Ele poetisa o banal. como a arte da performance, o processo, ainda
a tecnologia que o leva a transformar em po- mais que produto, que o teatro performativo
esia este cotidiano. Onde sentimos, com certe- coloca em cena: Kantor praticava j esta anteci-
za, a influncia do cinema (cortes ntidos; fuses pao da obra sendo feita. Lepage a coloca no
encadeadas; mudanas de foco). uma arte da centro de sua conduta de criador.
metfora que permite a estratificao do senti- Meu quarto exemplo a partir de Eraritja-
do (dos sentidos) a partir de um mesmo ele- ritjakat-muse des phrases 22 de Heiner Goebbels.
mento, de um mesmo objeto (uma escotilha). Heiner Goebbels, compositor e ence-
Para Lepage, com intuito de estar de acordo nador, monta essa pea em 2004 no Thtre
com sua poca, o teatro deve dar conta da evo- Vidy de Lausanne. baseada na obra de Elias
18 Excertos: Lepage, La face cahe de la lune (A face oculta da lua) (2000): la machime laver devenue
cosmonaute (A mquina de lavar tornada cosmonauta). (NOTA) Extrait: Kentridge. Woyzech.
19 Perelli-Contos, Irene e Chantal Hbert, La tempte Robert Lepage, em Nuit Blanche, no. 55, Prima-
vera de 1994, p. 64 entrevista).
20 Quanto aos signos, necessariamente presentes pois impossvel escapar a qualquer representao
estes permanecem decodificveis, mais seu sentido freqentemente tributrio da relao cnica bem
mais que de um referente pr-existente. A fico em si, assim que est presente, no constitui necessari-
amente o corao da obra. Ela est ali como um dos componentes de uma forma em que a colagem das
formas e dos gneros, a justaposio das aes domina. Performativa, no sentido de Derrida, ela preco-
niza a disseminao escapando ao horizonte da unidade do sentido.
21 A etimologia da palavra vnement [evento, acontecimento], segundo Henry Maldiney, remeteria quilo
que acontece e talvez da venha a sua associao com a palavra avnement [advento].
22 O ttulo da pea remete a uma palavra australiana que significa esperar [esprer] algo perdido.
204
Canetti, romancista alemo de origem blgara como a msica pode ser visvel24. A segunda
(dirio e anotaes, aforismos) e foi interpreta- parte que escutaremos tocada ao mesmo tem-
da por Andr Wilms e o Mondrian String po em que o ator descasca cebolas, bate um
Quartett no Teatro Vidy de Lausanne. Canetti omelete no mesmo ritmo que o pizzicato do
nela explora as maneiras como um artista per- Quarteto de Ravel.
cebe e absorve o mundo. Sabemos pouco, ob-
serva Goebbels, apenas que Canetti preencheu
5 ou 6 cadernetas com observaes feitas coti- Excerto complementar de Goebbels.
dianamente durante seus passeios, olhando pela O banal do cotidiano
janela, lendo os jornais e olhando as pessoas no
metr ou no trem [tramways]. a partir destas Trata-se precisamente de um jogo com os siste-
anotaes e aforismos que se constri a pea, mas de representao, um jogo de iluso em que
como uma longa meditao interior por parte o real e a fico se interpenetram. Ali onde o
do personagem principal que atravessa o mun- espectador cr estar no real, ele descobre que ti-
do. Essa entrada no esprito de um indivduo nha sido enganado e que o que era dado como
agrada Goebbels particularmente, pois isto per- real, era apenas iluso. Essa cmera ao vivo, que
mite tornar visvel o invisvel23. Trata-se de um surge no interior do teatro, somente iluso.
gnero no dramtico na medida em que ne- Houve, ao mesmo tempo, precisamente uma
nhuma narrativa linear mantm os elementos derrota [mise en chec] do real e da representa-
unidos. Fato importante, a msica ocupa um o. Ao invs de perceber o real mediado pela
lugar to relevante quanto os do ator e do tex- tela, ele descobre um efeito de real, e o teatro
to. Estabelece-se entre os trs um dilogo que o retoma todos os seus direitos. Acrescento que
espectador acompanha com fascnio e prazer. A nas colocaes em situao [mises en situation]
msica de uma grande variedade emprestada que os espetculos performativos instalam, a
de diferentes compositores, de Bryars, Kurtag inter-relao, conectando o performer, os obje-
(Crumbs Black Angel), e Scelsi, a Bach (Lart tos e os corpos, que primordial. O objetivo
de la fugue), passando por Shostakovich e do performer no absolutamente o de cons-
Ravel. A pea comea pelo 8. Quarteto de cor- truir ali signos cujo sentido definido de uma
das de Shostakovich. vez por todas, mas de instalar a ambigidade das
significaes, o deslocamento dos cdigos, o
deslizamento de sentido. Ele joga ali com os sig-
Quarto excerto: nos, transforma-os, atribui-lhes um outro sig-
Eraritjaritjakat-muse des phrases: nificado (Lepage criando o foguete a partir de
aforismos em msica um pacote de salgadinho em La face cache de
la lune, o Big Art Group em House of no more
Goebbels afirmava: Como a msica pode ser criando os objetos cnicos por meio de uma
visvel? Isso algo que experimento em Eraritja- bricolagem de natureza cinematogrfica a par-
ritjakat: no apenas como a mente pode ser vi- tir de simples truques de luz). O que o especta-
svel de maneira muito divertida, mas tambm dor olha, e aquilo pelo que ele se deixa seduzir,
23 What I love so much in this genre of non dramatic literature is that you can attend somebodys thinking.
I try to make it visible or audible. Site de Gobbels na internet.
24 How can be music be visible? Thats something I try in Eraritjaritjaka: not only how the mind can be
visible in a very entertaining way but also how music can be visible Site de Goebbels.
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precisamente esta arte da esquiva, da falsa apa- subterfgio seja desvendado. Apenas seu barco
rncia, do jogo em que ele est precisamente abandonado encontrado25.
num lugar onde no sabia que estava. Ele des- O que comum a todos esses excertos,
cobre assim a fora da iluso. um jogo com a representao. Uma forma de re-
O ltimo exemplo proveniente de presentao que se nega a si mesma (ele age
Marianne Weems que fundou em 1994 a com- como se estivesse na dianteira e encena sua vi-
panhia Builders Association, aps ter sido dra- tria). Escrevemos bastante sobre a fuga da re-
maturga e assistente de Elizabeth Lecompte do presentao ou a desconstruo que colocava
Wooster Group. Trata-se de um teatro que alia em xeque o teatro atual, tentando por vezes ope-
tecnologia, performance e arquitetura. Seus tra- rar nos limites do simblico, na descrio pura
balhos gostam de colocar em paralelo as ima- das aes (Annie Sprinkle, Laurie Anderson),
gens do real com o real reproduzido pelo vdeo. ou na falta de referencialidade por trs dele.26
Ela tambm deseja modificar as modalidades precisamente esta falta de referencialidade
atuais de narrao, buscando criar na cena um que Jet Lag encena. O personagem se contenta
mundo que reflita a cultura contempornea. em nos fazer crer que ele est onde no est.
A obra de Weems questiona o uso da tecnolo- E Weems nos mostra, graas tecnologia, esse
gia em sua relao com o homem. sua ma- jogo de iluso. Mas, ao nos mostrar o procedi-
neira, ela procura aumentar as fronteiras do te- mento, ela dissipa o jogo da iluso, mantendo
atro. Como ela mesma afirma, a tecnologia o ao mesmo tempo vista do espectador a iluso
personagem principal de suas peas e os per- (ele est no mar) e sua enganao (vemos sua
formers devem aprender a compor com ela, no instalao rudimentar). Estamos aqui diante de
a sentindo como um perigo, mas como uma uma performatividade da tecnologia que des-
cmplice. Jet Lag foi criada em 1998, Alladeen monta habilmente a teatralidade do processo
em 2003. para trazer luz sua performatividade.
Jet Lag relata dois excertos da vida extra- O segundo trecho baseado em Alladeen,
dos de fatos vividos. Um, conta a histria de um joga para ainda mais longe o sistema, centrando,
eletricista que empreende uma corrida ao redor dessa vez, toda a performatividade sobre os pro-
do mundo num veleiro, patrocinado pela BBC. cedimentos tecnolgicos que no apenas permi-
Vendo que no conseguir, ele usa um estrata- tem o jogo da iluso mas que o desmontam do
gema que consiste em fazer crer, por meio de avesso, na medida em que assistimos constru-
uma instalao tecnolgica que est ganhando o do cenrio (que fortemente realista). Mas
a corrida. Ele transmite as imagens de sua corri- ao colocar em primeiro plano o processo,
da por satlite, enviando dados falsos que o co- Weems coloca em xeque a teatralidade, colocan-
locam na dianteira. Ele desaparece antes que o do a performatividade tanto a dos performers
25 Trechos, Weems, Jet Lag. A segunda narrativa de Jet Lag trata de uma viagem em alta velocidade de
uma mulher que foge para salvar seu neto da internao. Os dois encontram-se como prisioneiros dos
aeroportos fazendo 167 vezes a ida e volta Amsterd-Nova Yorque. A av no sobreviver a esta experi-
ncia e morrer de jet lag [cansao extremo ocasionado pelo excesso de viagens].
26 [...] o performativo no tem seu referente [...] fora dele ou, em todo caso, antes dele e diante dele. Ele
no descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela. Ele produz ou transforma uma situao, ele
opera; e si podemos dizer que um enunciado constativo efetua tambm algo e sempre transforma uma
situao, no se pode dizer que isso constitui sua estrutura interna, sua funo ou seu destino manifes-
tos [...]. J. Derrida, Marges de la Philosophie, Minuit, 1972.
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quanto a das mquinas no centro da cena. mesmo pelo artista. Os textos evocam a vivaci-
o que demonstra essa passagem de Alladeen. dade (liveness) dos performers, de uma presena
fortemente afirmada que pode ir at uma situa-
Alladeen conta a histria verdica de curan- o de risco real e implica em um gosto pelo
deiros indianos engajados em atender aos te- risco (veja-se o excerto de Jan Lauwers que mos-
lefonemas dos clientes, americanos, que se tramos anteriormente).
encontram nos Estados Unidos. As exignci- Poderamos tentar aqui uma anlise mais
as da profisso fazem com que eles tenham aprofundada dessas duas caractersticas do tea-
que ter um sotaque americano, o que far os tro performativo, mostrando os grandes princ-
clientes acreditarem que eles no esto longe, pios e a diversidade das prticas que fazem par-
e que eles so mesmo americanos. Assistimos, te dele, do Thtre de Reza Abdoh ao de Robert
portanto, a uma lio de cultura americana Wilson, das encenaes de Wajdi Mouawad s
que tende pouco a pouco a modificar seus de Ivo van Hove, dos espetculos de Karen
referentes culturais e os faz adentrar em um Finley aos de Anne Bogart, dos do Big Art
universo, do qual so, a priori, excludos.27 Group s performances de Annie Sprinkle. Se-
ria muito longo para faz-lo nos limites dessa
O ato performativo se inscreveria assim comunicao, mas necessrio insistir no pa-
contra a teatralidade que cria sistemas, do sen- norama bastante diversificado das prticas que
tido e que remete memria. L onde a teatra- se inscrevem nele, com a performatividade pe-
lidade est mais ligada ao drama, estrutura netrando em todas as formas de teatro, incluin-
narrativa, fico e iluso cnica que a distan- do as mais tradicionais, assim como o drama
cia do real, a performatividade (e o teatro per- impregna todas as formas ps-dramticas.
formativo) insiste mais no aspecto ldico do Quanto ao espectador, ele est, assim
discurso sob suas mltiplas formas (visuais ou como o performer, situado na intimidade da
verbais: as do perfromer, do texto, das imagens ao, absorvido por seu imediatismo ou pelos
ou das coisas). Ela os faz dialogar em conjunto, riscos implicados no jogo (Le Dortoir, de Gilles
completarem-se e se contradizerem ao mesmo Maheu). Mas ele pode tambm ficar no exterior
tempo, como nos espetculos de A. Platel ou da ao, gravar com frieza as aes que se de-
nos de Gmez Pena e Coco Fusco. Mas real- senrolam diante dele28, mantendo um direito
mente possvel escapar de toda a referenciali- de olhar que permanece exterior, como ele o faz
dade e, assim, representao? A questo per- diante de certas performances. Sua maneira de
manece aberta. percepo, portanto, nem sempre implica a ab-
Eu dizia que havia duas idias principais soro na obra. Ele pode tambm sustentar um
no cerne da obra performativa. A segunda con- direito de olhar que permanece exterior.
siste no engajamento total do artista colocando Vale ainda dizer que nas outras formas te-
em cena o desgaste que caracteriza suas aes atrais (particularmente as dramticas), o teatro
(Nadj, Fabre). No se trata necessariamente de performativo toca na subjetividade do performer.
uma intensidade energtica do corpo no mode- Para alm dos personagens evocados, ele impe
lo grotowskiano, mas de um investimento de si o dilogo dos corpos, dos gestos e toca na den-
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29 Termo que nos parece mais adequado que teatro ps-dramtico, cuja definio dada par Lehmann a
seguinte: O teatro ps-dramtico um teatro que exige um evento [acontecimento] cnico que seria ,
a tal ponto, pura representao, pura presentificao do teatro, que ele apagaria toda idia de reprodu-
o, de repetio do real in Sarrazac, Critique du thtre (2000, p. 63), citado pelo prprio Lehman
(14). evidente que no pode existir pura representao do teatro, no mais no teatro ps-dramtico
que no teatro performativo. A tese de Lehmann de que a profunda ruptura das vanguardas nos
arredores de 1900 a [...] continuou a preservar o essencial do teatro dramtico, em despeito de todas
as inovaes revolucionrias. As formas teatrais que surgiram ento, continuaram a servir representa-
o, a partir de ento modernizada com universos textuais (28). Estas mesmas vanguardas s coloca-
vam em questo o modo transmitido da representao e da comunicao teatral de maneira limitada,
permanecendo, finalmente, fiis ao princpio de uma mmesis, de uma ao no palco (28). na estei-
ra do desenvolvimento, seguido da onipresena das mdias na vida cotidiana desde os anos 1970, [que]
surge uma prtica do discurso teatral nova e diversificada, aquela a que Lehmann qualifica de teatro
ps-dramtico (28). O epteto ps-dramtico aplica-se a um teatro levado a operar para alm do dra-
ma; isto , que o drama nele subsiste como estrutura do teatro normal, numa estrutura, enfraquecida e
em perda de crdito: como espera de uma grande parte de seu pblico, como base de inmeras de suas
formas de representao, enquanto norma de dramaturgia funcionando automaticamente (35). Ser
preciso esperar os anos 80, fato ainda observado por Lehmann, para que o teatro obrigue, para tomar
os termos de Michael Kirby, a considerar que uma ao abstrata, um teatro formalista em que o proces-
so real da performance substitua o mimetic acting, um teatro com textos poticos nos quais pratica-
mente nenhuma ao seja ilustrada, no define mais somente um extremo, mas uma dimenso pri-
mordial da nova realidade do teatro (49). O teatro ps-dramtico tem certo parentesco com a idia
desenvolvida por J. F. Lyotard de teatro energtico que no ser sobremaneira teatro da significao,
mas teatro das foras, das intensidades, das pulses em sua presena [...]. Um teatro energtico existi-
ria para alm da representao o que, certamente, no quer simplesmente dizer sem representao,
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francesas e do Quebc, por exemplo, permane- nece ali desconhecido ou subestimado), como
cem, uma e outra, claramente, mais teatrais. j havia sido com a performance arte. A viso
permanece definitivamente esttica.
3. Se a arte da performance se dispersou nas nu-
merosas prticas performativas atuais, ela o fez 5. No teatro performativo, o ator chamado a
em maior grau do lado americano, anglo-saxo, fazer (doing), a estar presente, a assumir os
dever-se-ia dizer, mas, tambm, flamengo, bel- riscos e a mostrar o fazer (showing the doing),
ga, britnico, italiano, suo e alemo. Uma das em outras palavras, a afirmar a performatividade
principais caractersticas desse teatro que ele do processo. A ateno do espectador se coloca
coloca em jogo o processo sendo feito, processo na execuo do gesto, na criao da forma, na
esse que tem maior importncia do que a produ- dissoluo dos signos e em sua reconstruo per-
o final. Mesmo que essa seja meticulosamente manente. Uma esttica da presena se instaura (se
programada e ritmada, assim como na perfor- met en place).
mance, o desenrolar da ao e a experincia que
ela traz por parte do espectador so bem mais 6. Nesta forma artstica, que d lugar perfor-
importantes do que o resultado final obtido. mance em seu sentido antropolgico, o teatro as-
pira a produzir evento, acontecimento, reencon-
4. A diferena entre as duas abordagens igual- trando o presente, mesmo que esse carter de
mente perceptvel no nvel dos discursos teri- descrio das aes no possa ser atingido. A pea
cos e das abordagens analticas, os universitrios no existe seno por sua lgica interna que lhe
americanos tendo preferido desenvolver o con- d sentido, liberando-a, com freqncia, de toda
ceito de performance em seu sentido antro- dependncia, exterior a uma mmesis precisa, a
polgico, multicultural e multidisciplinar, abar- uma fico narrativa construda de maneira li-
cando pelo fato em si toda a imensidade do real near. O teatro se distanciou da representao.
e perdendo, nesta empreitada, a especificidade
da obra artstica em si. Do lado francs, a resis- Mas, ele se distanciou, de fato, da teatra-
tncia ao conceito grande (o conceito perma- lidade? A questo merece ser colocada.
mas antes no sujeito sua lgica (52). E de acrescentar, somente quando os meios teatrais alm da
lngua forem colocados no mesmo nvel que o texto e pensveis mesmo sem o texto, que poder se
falar de teatro ps-dramtico (81). A ao tende a desaparecer, assim como o comeo de processos
fictcios (105); desaparece tambm a descrio e narratividade fabuladora do mundo. Esta definio de
Lehmann deve, certamente, ser nuanada, como ele mesmo faz. Ela constitui um horizonte de espera
mais que uma realidade, na medida em que impossvel para uma forma teatral, qualquer que ela seja,
de escapar narratividade e, de fato, representao. In Hans-Thies Lehmann, O teatro ps-dramtico.
Paris, LArche, 2002.
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