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Fernando Gazoni A Poetica de Aristoteles

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A Poética de Aristóteles: tradução e


comentários

Fernando Maciel Gazoni

São Paulo
2006
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A Poética de Aristóteles: tradução e comentários

Fernando Maciel Gazoni

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em
Filosofia .

Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio de Ávila Zingano

São Paulo
2006
FOLHA DE APROVAÇÃO

Fernando Maciel Gazoni


A Poética de Aristóteles: tradução e comentários

Dissertação apresentada à Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de Mestre. Área de concentração:
Filosofia

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr.:
Insituição:
Assinatura:

Prof. Dr.:
Insituição:
Assinatura:

Prof. Dr.:
Insituição:
Assinatura:
DEDICATÓRIA

A meus pais, Walter (in memoriam ) e Sossó. Ele,


que de tanto repetir quousque tandem, Catilina,
abutere patientia nostra, despertou em mim a
curiosidade das letras clássicas, e ela, que me
ensinou a estudar quando eu tinha 7 anos.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Marco Zingano, cujo exemplo e generosidade permitiram que se


expressasse em mim o que antes era uma mal resolvida vontade filosófica.

Aos Profs. Drs. Lucas Angioni e Paula da Cunha Corrêa, cujas argüições
foram tão importantes para dar forma a meu trabalho.

A meu amigo Sérgio Righini, com quem constantemente troquei idéias sobre
estética, tragédia, beleza, e com quem discuti alguns pontos a respeito do texto
dessa Dissertação.

Ao Paulo Ferreira, que gentilmente se propôs a ler a tradução e os


comentários.

A todos meus familiares, mas especialmente a minha mãe, minha tia Cizinha,
meus irmãos, minha irmã, meus sobrinhos, sobrinha e cunhadas.

À Fernanda, pelo amor e paciência.


RESUMO

Este trabalho é uma tradução da Poética de Aristóteles (com exceção dos


capítulos 19 a 22, que não são discutidos aqui) acompanhada de comentários. A
intenção dele é estabelecer um texto que leve em conta as várias contribuições
dadas pelas principais traduções francesas, inglesas, italianas e portuguesas, e
situar, por meio dos comentários, a Poética dentro do corpus da filosofia aristotélica,
especialmente a ética de Aristóteles e sua teoria da ação.

Palavras-chave: Poética, Aristóteles, filosofia antiga, ética aristotélica, teoria da


ação.

ABSTRACT

This paper is a translation into Portuguese of Aristotle’s Poetics (with the


exception of chapters 19 trough 22, which are not discussed here), with
accompanying commentaries. Its intention views the establishment of a text that
takes into account several contributions given by the main French, English, Italian
and Portuguese translations. The commenta ries consider Poetics as a part of the
Aristotelian philosophy teachings, especially Aristotle’s ethics and his action theory.

Key words: Poetics, Aristotle, ancient philosophy, Aristotelian ethics, action theory.
SUMÁRIO

Esclarecimento . . . . . . . . . 7

Apresentação . . . . . . . . . 8

Introdução . . . . . . . . . 10

Tradução e comentários

- capítulo 1 . . . . . . . . . 30
- capítulo 2 . . . . . . . . . 35
- capítulo 3 . . . . . . . . . 38
- capítulo 4 . . . . . . . . . 40
- capítulo 5 . . . . . . . . . 46
- capítulo 6 . . . . . . . . . 50
- capítulo 7 . . . . . . . . . 60
- capítulo 8 . . . . . . . . . 64
- capítulo 9 . . . . . . . . . 67
- capítulo 10 . . . . . . . . . 73
- capítulo 11 . . . . . . . . . 74
- capítulo 12 . . . . . . . . . 80
- capítulo 13 . . . . . . . . . 82
- capítulo 14 . . . . . . . . . 86
- capítulo 15 . . . . . . . . . 91
- capítulo 16 . . . . . . . . . 95
- capítulo 17 . . . . . . . . . 99
- capítulo 18 . . . . . . . . . 104
- capítulo 23 . . . . . . . . . 108
- capítulo 24 . . . . . . . . . 112
- capítulo 25 . . . . . . . . . 117
- capítulo 26 . . . . . . . . . 123

Referências Bibliográficas . . . . . . . 128


7

ESCLARECIMENTO

Como este é um trabalho acadêmico que envolve a tradução de um texto


clássico, já vertido e comentado inúmeras vezes em diversas línguas, ele deve
naturalmente recorrer a algumas dessas várias traduções, analisá-las e comparar as
diferentes soluções propostas. Mas fazer a indicação da citação dessas diferentes
soluções, quando elas são agrupadas, poderia sobrecarregar o texto. Então, quando
se faz a citação de um exemplo tomado entre um dos tradutores, a indicação é
completa, no sistema autor-data. Mas quando se comparam as traduções e elas são
agrupadas de acordo com suas semelhanças, fazer a indicação de cada uma
tornaria a leitura cansativa. Nesse caso, o expediente adotado foi indicar apenas os
nomes dos tradutores. Entenda-se que a indicação bibliográfica ausente remeteria à
tradução cujo autor está listado, no mesmo local da Poética que é objeto do
comentário. Veja-se, por exemplo, a nota 2 do capítulo 18:

Parece-nos equivocado o comentário de Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES,


1980, p. 291) ao justificarem sua opção de ligar o advérbio pollakis a enia tôn
esôthen, de tal forma que sua tradução resulta (idem, p. 97): “le nouement
comprend les événements extérieurs à l’histoire et souvent une partie des
événements intérieurs” (“o nó compreende os eventos externos à história e
freqüentemente uma parte dos eventos internos”). É equivocado não pelas razões
gramaticais que eles apresentam, que são plausíveis, mas porque seria estranho
que, como parte da tragédia, o entrelaçamento pudesse ficar totalmente fora dela.
Essa, entretanto, é a versão da grande maioria das traduções consultadas
(Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Bywater, Else, Halliwell, Rostagni, Gallavotti,
além de Dupont-Roc e Lallot, é claro). Como se explicaria, também, a menção à
parte (meros) a partir da qual começa o desenlace se o entrelaçamento fosse
totalmente externo? A opção mais razoável parece considerar pollakis ligado à
frase como um todo, como fazem Hardy, Bruna e como sugere Lucas
(ARISTÓTELES, 1998b, p. 183).

Deve-se observar, também, que, como os comentários são feitos em notas de


rodapé, que já usam uma fonte menor que a fonte do texto e têm espaçamento de
uma linha, as citações longas, ao contrário do que se recomenda, não têm nem
espaçamento nem tamanho de fonte menores do que os das notas de rodapé em
que elas se inserem.
8

APRESENTAÇÃO

Esta é uma tradução comentada da Poética de Aristóteles para o português,


excetuados os capítulos 19, 20, 21 e 22. Essa lacuna se explica pelo escopo do
trabalho. Minha intenção foi traduzir e comentar a Poética como uma obra dentro do
corpus aristotélico, relacionando-a principalmente com sua ética, o que me parecia
fundamental para procurar entendê-la a contento. Para esse tipo de comentário, a
tradução dos capítulos 19 a 22 não é imprescindível, pois eles pouco ou nada
acrescentam ao que me parece ser o principal: a definição da tragédia como mímese
de uma ação, o que a coloca no centro da moral aristotélica. Os preceitos
aristotélicos quanto à ordem, extensão e beleza da tragédia, a ponderação de que a
poesia é mais filosófica que a história, a exata compreensão dos motivos da
primazia do enredo frente ao caráter e da exata relação que subsiste entre eles, o
entendimento da importância da peripécia, do reconhecimento e dos eventos
patéticos para a finalidade da tragédia, a relação entre necessidade (ou
probabilidade), enredo, surpresa e acaso, todos esses pontos não são
compreensíveis sem referência a categorias da filosofia aristotélica, e mais
especificamente de sua ética. Espero que meus comentários tornem esses pontos
inteligíveis.
Antes da tradução e dos comentários há uma introdução, que não pretende
mais do que situar a questão da catarse sob a visada teórica da ética aristotélica.
Para tanto, o texto faz um apanhado de pontos do corpus aristotélico aparentemente
desconexos, sem relação uns com os outros, mas que depois se aglutinam e
mostram sua pertinência na análise da tragédia.
Acho que a fantasia inicial de quem se propõe comentar a Poética é chegar a
uma conclusão definitiva do que seja a catarse. No meu caso, essa fantasia se viu
logo esvaziada por uma espécie de dúvida cética, suscitada pela enorme quantidade
de interpretações disponíveis a respeito dela. A variedade é tamanha que o foco de
atenção logo se desvia da pergunta ‘o que é, afinal, a catarse?’ para a questão, ‘mas
por que, afinal, não se chega a um consenso do que é a catarse?’. Essa é dúvida de
fundo que orienta a introdução.
9

A tradução foi feita diretamente do texto grego, editado por Kassel (1988),
mas confrontei, quanto possível, diferentes versões, não só porque a Poética é
sabidamente um texto elíptico e lacunar, mas também para flagrar as divergências
entre os tradutores e situar minha versão dentro da tradição. Fiz uso das traduções
mais reputadas em inglês (Bywater, Butcher, Else e, mais recentemente, Halliwell),
francês (Hardy, Dupont-Roc e Lallot), italiano (Rostagni, que, a rigor, não é uma
tradução, mas um comentário linha a linha) e português (Eudoro de Sousa e Jaime
Bruna). Ao lado dessas traduções, devo citar também a de Michel Magnien e a de
Barbara Gernez, ambas francesas, a de Gallavotti (italiana), e a recente tradução
para o português de Pietro Nassetti, que, apesar de não gozarem do crédito das
outras, por vezes oferecem soluções bastante interessantes. Essas traduções foram
consultadas compulsivamente, comparadas e anotadas. A esses estudiosos falta
acrescentar os comentários de Lucas, cujos pontos de vista, quase sempre sucintos
e pertinentes, procurei incorporar, quando me pareciam apropriados, a meus
próprios comentários.
10

INTRODUÇÃO

La controverse de la catharsis des cent cinquante


dernières années a été marquée de la part de plusieurs
interprètes, à un degré dont il est difficile de trouver un
parallè le dans les études classiques, par un étalage de
confiance en soi qui était pratiquement en proportion
inverse de la qualité des témoignages à notre disposition
sur le sujet.1

to\ kalo\n e)n mege/qei kai\ ta/cei e)stin. 2

h( me\n ou)= kata\ th\ n te/xnhn kalli/sth trag%di/a


3
e)k tau/thj th=j susta/sew/j e)sti.

i. Ordem e extensão

A afirmação aristotélica a respeito do belo (to kalon), que serve de epígrafe

para essa Introdução, encontra paralelo em outras partes do corpus aristotélico que

não somente a Poética. Assim, por exemplo, a Ética Nicomaquéia afirma, ao

examinar a virtude da magnanimidade (megalopsukhia), que “... o belo (to kalon)

está na extensão do corpo, pois as pessoas pequenas podem ser graciosas (asteioi)

e bem proporcionadas (summetroi), mas não são belas” 4, ou os Tópicos, ao se

referirem ao corpo, “o belo parece ser uma certa simetria dos membros” 5. Também

1
(HALLIWELL, 2003, p. 500). “A controvérsia a respeito da catarse dos últimos cento e cinqüenta anos foi
marcada, da parte de muitos intérpretes, em um nível que dificilmente encontra paralelo nos estudos clássicos,
por uma demonstração de confiança em si que estava praticamente na proporção inversa da qualidade dos
testemunhos sobre o assunto à nossa disposição”. (tradução nossa)
2
´O belo está na extensão e na ordem’ (Poética, 1450 b 37).
3
‘Assim sendo, a mais bela tragédia segundo as regras da arte se faz com essa composição’ (Poética, 1453 a 22)
4
Ética Nicomaquéia, 1123 b 7.
5
Tópicos, 116 b 21-22
11

no livro M da Metafísica, encontramos o belo relacionado à extensão e à ordem e

articulado às ciências matemáticas:

aqueles que sustentam que as ciências matemáticas nada dizem a respeito


do belo ou do bom, enganam-se, pois elas discorrem a respeito deles e os
demonstram no mais alto grau. Pois, ainda que não nomeiem seus efeitos e
princípios ao demonstrá-los, disso não se segue que não discorram a
respeito deles. As principais espécies do belo são a ordem (taxis), a simetria
(summetria), e a definição (to horismenon), o que, nas ciências matemáti-
6
cas, é demonstrado no mais alto grau.

Essas citações permitem inferir que o belo, ligado à simetria e à ordem, não é

um conceito exclusivo da Poética, mas um postulado geral disperso no corpus

aristotélico. Na Poética, entretanto, ele encontra sua expressão na tragédia. Ordem

e extensão são explicitamente mencionadas no capítulo 7, e fundamentam certas

características importantes do enredo. A ordem, identificada à completude da ação

trágica, dá origem ao preceito da unidade da ação trágica e da necessidade de

seqüência lógica entre partes. Da análise da extensão resultará que a tragédia deve

ter um tamanho tal que possa para ser ‘apreendida na sua totalidade pela memória’7

e suficiente para a reversão de fortuna do herói trágico8.

ii. Ação e caráter

A eleição do enredo (o arranjo das ações) como o ‘princípio e como que a

alma da tragédia’9, em detrimento do caráter, pode parecer um contra-senso a

alguns. Essa impressão às vezes nasce de um ponto de vista anacrônico do teatro e

da literatura, de modo geral, uma vez que nosso hábito estético entende os

personagens como possuidores de um caráter peculiar, por vezes patológico, e o


6
Metafísica, 1078 a 33-b 2 (tradução nossa).
7
Poética, 1451 a 5.
8
Cf. nota 3 do capítulo 7.
9
1450 a 38.
12

enredo, como a trama em que essa idiossincrasia se expressa. É assim com

Shakespeare (como entender Othelo senão como alguém dominado por um ciúme

doentio instigado por um ressentido Iago?), é assim com Dostoievsky, é assim com

Nélson Rodrigues. Talvez seja assim também com Medéia, mas para Aristóteles é a

ação o principal. Entretanto, mesmo sem levar em conta essa visão anacrônica, que

revela mais sobre nós que sobre Aristóteles, a impressão de que primazia do enredo

é um contra-senso pode nascer também de uma leitura atenta do próprio texto.

Quem leia a Poética com zelo percebe que a palavra ‘ação’ ocorre apenas uma vez

antes da definição de tragédia dada no início do capítulo 6. Essa única ocorrência,

em 1447 a 28, é casual: Aristóteles, ao tratar dos meios em que se realiza a

mímese, diz que a dança faz uso apenas do ritmo. De fato, os bailarinos, segue o

texto, ‘dando forma figurada aos ritmos, mimetizam caráter, afecções e ações’. Essa

menção a ações, dessa forma e nesse momento do tratado, é claramente

insuficiente para fundamentar a definição de tragédia como imitação de uma ação 10.

No entanto, seria de se esperar que todos os elementos presentes na definição de

tragédia tivessem sido abordados de maneira suficiente nos capítulos anteriores,

uma vez que a definição se faz preceder de um anúncio que explicita essa ordem de

coisas: ‘falemos da tragédia, tomando dela a definição de sua essência que deriva

do que foi dito’11. Se há um momento em que a ação é abordada antes do capítulo 6,

ela é abordada de maneira indireta, por meio dos agentes. Eles são citados no início

do capítulo 2, onde é o caráter de quem age (e não a ação) que fundamenta a

distinção entre tragédia (caráter elevado) e comédia (caráter baixo). Mas é a ação

que se protagoniza na definição da tragédia e entre as partes que a compõem, e não

o agente (e seu caráter).

10
Essa não parece ser, entretanto, a opinião de Rostagni (ARISÓTELES, 1945, p. 32).
11
1449 b 22-24. A respeito desse assunto, veja-se a nota 4 do capítulo 6.
13

Esse movimento não é casual, uma vez que Aristóteles afirma explicitamente

a primazia do enredo sobre o caráter: ‘a tragédia é mímese não de homens, mas de

uma ação e da vida ... segundo o caráter os homens possuem determinadas

qualidades, mas é segundo suas ações que eles são felizes (eudaimones) ou o

não’12. Pode-se buscar a justificativa para a primazia dada ao enredo e à ação em

detrimento do agente (e seu caráter) na ética aristotélica, onde talvez encontremos

na dinâmica que se estabelece entre ação e caráter fundamentos que permitam (ou

não) esclarecer esse ponto da Poética. Esse parece ser o caminho de análise mais

natural. Os resultados, entretanto, serão divergentes conforme seja o entendimento

dos pontos da ética relevantes para o assunto. Para citar um exemplo (ou um contra-

exemplo), Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 196) entenderam que na

ética aristotélica o caráter é primordial e prevalece sobre as ações:

Du point de vue de l'éthique (cf., par exemple, Éth. à Nic., II, 1105 a 30 sq.),
une action humaine ne peut recevoir de qualification morale qu'en référence
aux dispositions éthiques du sujet qui l'accomplit, et notamment au choix
délibéré (proairesis; cf. Poét., 50 b 9), fruit du caractère (èthos) et de la
13
pensée (dianoia), que cette action manifeste.

Eles são obrigados, então, a postular uma inversão dos pontos de vista entre a ética

e a Poética de forma a justificar a primazia dada às ações pela última:

Mais, à y regarder de près, on voit que, si les données fondamentales de


l'éthique sont effectivement prises en compte ici, la perspective où elles

12
1450 a 16-20.
13
“Do ponto de vista da ética (cf., por exemplo, Ética Nicomaquéia, II, 1105 a 30 et seq.), uma ação humana não
pode receber qualificação moral a não ser em referência às disposições éticas do sujeito que a realiza, e
notadamente à escolha deliberada (proaiseris; cf. Poética, 50 b 9), fruto do caráter (ethos) e do pensamento, que
esta ação manifesta.” (tradução nossa)
14

apparaissent est originale [...] Ce qui est au premier plan ici, c'est non plus
14
l'agent, mais l’action...

Entretanto, na passagem da Ética Nicomaquéia a que eles se referem, não se afirma

que a ação humana só pode ser qualificada em decorrência do caráter de quem a

realiza. Uma análise do trecho citado da Ética Nicomaquéia deixará isso claro.

Aristóteles entende o processo de formação das disposições éticas do

indivíduo como um processo acumulativo, em que a repetição de ações de mesma

qualidade torna o indivíduo cada vez mais apto a realizar esse tipo de ação e

conseqüentemente mais senhor da virtude relativa a ela. É realizando ações

corajosas que nos tornamos corajosos, é realizando ações justa que nos tornamos

justos. Mas essa doutrina tem uma objeção imediata (à qual Aristóteles responde no

trecho citado por Dupont-Roc e Lallot): se o indivíduo, para se tornar justo,deve

realizar ações justas, realizá-las desse modo já não implica o domínio da própria

justiça? Já não implica ser justo? Aristóteles responde a essa objeção traçando um

paralelo entre o âmbito técnico e o âmbito ético. No primeiro, a qualidade do produto

final pode ser independente da qualidade de quem lhe deu origem (um mau oleiro às

vezes faz bons vasos, que são bons apesar dele). A qualidade do produto está no

próprio produto. Mas isso não quer dizer, e talvez venha daí o erro de Dupont-Roc e

Lallot, que o contrário é o que vale no escopo ético, não quer dizer que a relação

entre a ação ética e seu agente seja tão estreita a ponto de a primeira só de deixar

qualificar unicamente em função da qualidade do segundo. De fato, Aristóteles não

chega a postular essa relação de identidade entre a qualidade da ação e do agente,

e são óbvias as suas razões para não proceder assim: se só o justo fosse capaz de

realizar ações justas, só o temperante as temperantes, só o corajoso etc, estaríamos

14
“Mas, observando mais de perto, vê-se que, se os dados fundamentais da ética são efetivamente levados em
conta aqui, a perspectiva em que eles aparecem é original [...] O que está em primeiro plano aqui é não mais o
agente, mas a ação” (tradução nossa)
15

todos restritos e fadados às virtudes que trazemos por natureza. Não haveria

aquisição das virtudes, nem conflito moral, o que é justamente o contrário do que ele

propõe. Aristóteles não pode ser tão exigente quanto aos critérios de qualificação de

uma ação, sob pena de ver sua ética engessada. Os requisitos que ele propõe são

menos rigorosos. Uma ação, para ter determinada qualidade: a. deve ser realizada

por um agente que tem conhecimento do que faz; b. o agente deve ter escolhido a

ação, e ela deve ter sido escolhida por ela mesma; c. o agente deve tê -la escolhido

de maneira estável e segura 15.

Com isso, Aristóteles pretende ter solucionado a possível objeção a sua

doutrina de aquisição das virtudes. O agente tem uma margem de liberdade para

sua ação. Ela decorre certamente de seu caráter, que será tão mais estável e seguro

quanto mais acumulativo tiver sido o processo que o consolidou, mas isso não

significa que o conflito moral deixa de existir para ele. Um homem corajoso, que é

tão mais corajoso quanto mais realizou ações corajosas, pode eventualmente ter um

ato covarde, e muitos atos covardes anularão a coragem que ele adquirira. A ação

tem prevalência sobre a disposição, que pode ser engendrada, mas também

corrompida, por várias ações de mesma qualidade16.

Assim sendo, as virtudes, e portanto o caráter do agente, na dinâmica que se

estabelece na ética aristotélica entre caráter e ação, representam um pólo de maior

inércia, que se movimenta, se modifica e se constrói com mais dificuldade. Mas, por

isso mesmo, é o pólo mais estável. A ação, ao contrário, é o pólo mais dinâmico.

15
Esses pontos estão todos determinados no capítulo 4 do livro II da Ética Nicomaquéia (1105 a 17 - b 18)
16
EN, 1103 b 7-8: “... toda virtude engendra-se a partir e corrompe-se por meio das mesmas coisas.” (tradução
de Marco Zingano, em texto ainda inédito)
16

Essa, em certo sentido, decorre do caráter, que é uma das causas da ação17, mas a

o caráter, em certo sentido, decorre da ação: das várias ações que o consolidaram.

iii. Sabedoria prática

Mas isso ainda não diz tudo a respeito da relação entre ação e virtude dentro

da ética aristotélica. O assunto não estará suficientemente exposto, no que diz

respeito a esta Introdução, se não nos referirmos à sabedoria prática, ou prudência

(phronêsis), a virtude intelectual que opera em meio às virtudes éticas.

A virtude, nos diz a Ética Nicomaquéia, é dupla: há a virtude intelectual e há a

virtude ética18. Essa divisão da virtude, por sua vez, decorre de certas características

da própria alma. No capítulo 13 do livro I da Ética Nicomaquéia, Aristóteles analisa

as virtudes a partir das divisões da alma. Há nela uma parte irracional (alogon) e

uma parte dotada de razão (logon ekhon). Essa divisão fica clara quando se pensa

em seus extremos: a alma, segundo a doutrina aristotélica, é responsável, por

exemplo, pelo crescimento, e a parte da alma responsável por isso em nada

participa da razão; mas a alma também é responsável pela apreensão dos objetos

matemáticos, e essa parte da alma é inteiramente racional. Entre os dois extremos,

há uma parte que parece ser irracional, responsável pelos apetites e pelos desejos,

mas que obedece à razão, pois um certo desejo ou apetite pode ser moderado pela

reta razão. Essa parte, Aristóteles não vê motivos em incorporá-la definitivamente à

parte racional (e, nesse caso, a parte racional da alma seria dupla: uma responsável

pela apreensão dos objetos matemáticos, outra responsável pelos apetites e

desejos) ou à parte irracional (e nesse caso, seria a parte irracional que deveria ser

17
Cf. Poética, 1450 a 1-2.
18
EN, 1103 a 14.
17

dupla: uma que em nada participa da razão e outra que de certa forma, participa da

razão). Essa falta de definição é afirmada pelo próprio Aristóteles de maneira clara:

É manifesto, assim, que a parte irracional é dupla: a parte vegetativa em


nada participa da razão; a parte apetitiva e, em geral, desiderativa participa
de certo modo da razão, na medida em que a escuta e lhe obedece, assim
como dizemos do pai e dos amigos que têm razão, e não como na
matemática [...] Se for preciso dizer que ela é racional, então também a
parte racional será dupla: uma propriamente em si racional, a outra como
em certa medida obediente ao pai. Também a virtude é dividida segundo
19
essa diferença, pois dizemos que umas são intelectuais e outras morais.

Para os propósitos da ética, o importante é que ela, não sendo totalmente

redutível à razão (ao contrário da ética socrática, que considera a virtude como

sabedoria), entretanto é sensível a ela. Essa parte da alma é o âmbito por

excelência das virtudes morais. Também é, como ve remos, o âmbito por excelência

da tragédia.

Entretanto, se a parte apetitiva e desiderativa da alma é capaz de ouvir a

razão, deve haver uma virtude intelectual capaz de persuadi-la. A própria definição

de virtude ética deixa isso claro:

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e


consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é
determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de
20
sabedoria prática.

A sabedoria prática ou prudência (phronêsis) é assim fundamental para a

ação moral e para a virtude ética.

19
Ética Nicomaquéia, 1102 b 29-1103 a 15, tradução ainda inédita de Marco Zingano.
20
Ética a Nicômaco, 1106 b 36-1107 a 2, tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, coleção Os
Pensadores.
18

iv. A catarse musical

Um outro ponto do corpus aristotélico em que a catarse é mencionada é o

livro VIII a Política, que, entre outros temas, aborda a questão da educação musical.

Há ali referências à catarse musical, e o trecho tem sido considerado importante

como guia para tentar ao menos delinear um possível entendimento do que seria a

catarse poética. O trecho que nos interessa começa em 1342 a 4 e segue até 1342

a 16.

A algumas almas sucede serem tomadas de forte emoção. Isso acontece,


em maior ou menor grau, a todas. São tomadas, por exemplo, de piedade e
de temor, além de entusiasmo. Sob influência dessas emoções, alguns são
possuídos, e nós os vemos, sob influência de melodias sacras, quando
fazem uso das melodias que colocam a alma fora de si, restabelecidos
como se tivessem recebido tratamento medicinal e purgação (catarse). O
mesmo deve afetar os piedosos e os temerosos e, de maneira geral, os
emotivos, na medida em que a cada um sobrevêm essas coisas; e para
todos se faz certa purgação e são aliviados por meio do prazer. Da mesma
forma, as melodias práticas proporcionam um prazer inofensivo aos
21
homens.

O trecho foi visto por Bernays como uma evidência de que a catarse tem um

fim puramente medicinal. Esse ponto de vista já foi bastante criticado22, uma vez que

a ótica médica não é exclusiva, e o texto é claro: ‘o mesmo deve afetar os piedosos

e temerosos ... e para todos se faz certa purgação’. Mas deve-se observar que a

ênfase da passagem é nas emoções que o processo, tal como descrito, põem em

jogo. Tal leitura da catarse, se transposta à Poética, certamente deve relegar a

segundo plano mecanismos que se utilizem de ordem e simetria para produzir o

belo.

Interessante notar, ainda, que a música, na tragédia, é citada apenas como

um ornamento e não chega efetivamente a se integrar à estrutura do enredo. Se a

Política expressamente cita os "tratados sobre poesia" como o lugar em que a noção

21
Tradução nossa.
22
Para uma crítica recente, veja-se Halliwell (2003, p. 500).
19

de catarse será esclarecida 23 (esclarecimento que, supõe-se, deveria estar no

hipotético segundo livro, perdido, da Poética), o que permite inferir que a catarse

trágica compartilha algo com a catarse musical, a posição secundária dada à música

entre as partes da tragédia permite igualmente supor que a catarse trágica talvez

não se identifique totalmente à musical.

v. Teorias da catarse

Halliwell, no seu livro publicado em 1988 a respeito da Poética de Aristóteles,

faz um apanhado geral das teorias a respeito da catarse e, feitas as ressalvas de

praxe em relação a esse tipo de agrupamento (desrespeito às sutilezas de cada

intérprete, etc), dividiu-as em seis grupos: o grupo que tem uma visão moralista-

didática da catarse (de acordo com a qual a tragédia “ensina a audiência por meio

de exemplos – ou contra-exemplos – a controlar suas emoções e os erros que elas

podem causar”24), os que vêem a catarse como meio de aquisição de força moral

(para quem “a Tragédia nos ajuda a nos tornar habituados ao infortúnio e assim mais

aptos a tolerá-lo”25), aqueles que vêem a catarse relacionada de alguma forma à

noção aristotélica de meio termo26, os que consideram a catarse uma descarga

emocional (“uma maneira inofensiva e prazerosa de consumir emoções acumuladas

e excessivas” 27), os que vêem na catarse um processo intelectual (a catarse é

23
1341 b 38
24
Halliwell, 1988, p. 350.
25
Idem, p. 351.
26
“O principal fator ... nessa escola de interpretação é o conceito aristotélico de habituação: o princípio de que
nossas ações e experiências ajudam a formar nossas capacidades futuras para as mesmas ações e experiências. O
despertar da piedade e do medo, por meio dos melhores recursos trágicos, torna-nos acostumados a sentir essas
emoções da maneira correta e com a intensidade correta”. (HALLIWELL, 1988, p. 352)
27
Idem, p. 353.
20

entendida como uma espécie de “clarificação intelectual”28), e um último grupo cujo

representante mais eminente no século XX seria Else, que considera a catarse como

“ a purificação da ação trágica por meio da demonstração que seu motivo não é

miaron [moralmente repelente]” 29.

Essa divisão de Halliwell, entretanto, pode ser reagrupada se notarmos que

os três primeiros grupos relacionam a catarse, de alguma forma, a questões éticas.

Ao lado desses, poderíamos colocar o quarto grupo (que a considera dentro de um

âmbito emocional) se lembrarmos que, para a ética aristotélica, “virtudes dizem

respeito a ações e emoções” 30. Halliwell, entretanto, neste quarto grupo, quer reunir

aqueles que, como Bernays, apartaram a dimensão emocional de qualquer

consideração ética31, mas não necessariamente a tese da descarga emocional deve

ser apartada de um componente ético. Dentro desse quarto grupo, então,

poderíamos considerar um subgrupo que considera a descarga emocional de

maneira patológica e outro subgrupo que a vê por um prisma ético. O quinto dos

grupos de Halliwell se distingue claramente dos anteriores pela preponderância do

componente intelectual. Quanto ao sexto grupo, não parece convincente considerar

a purificação (catarse) como algo que tem como objeto o ato trágico. Não parece

razoável considerar que catarse seja a elucidação sobre a verdadeira natureza do

ao trágico. Halliwell (1988, p. 356) apresenta outros motivos para que se

desconsidere essa tese.

28
Idem, p. 354. Halliwell considera ainda um segundo tipo de abordagem intelectual (cujo representante seria
Nicev, mas ao qual ele próprio não parece dar muita importância (idem, p. 355))
29
Else, 1957, citado por Halliwell (1988, p. 356) (colchetes de Halliwell). Não é convincente, entretanto,
considerar a purificação (catarse) como algo que opera sobre o ato trágico. Halliwell (1988, p. 356) apresenta
outros motivos para que se desconsidere a tese defendida pelos representantes desse grupo.
30
Ética Nicomaquéia, 1109 b 30.
31
“O ponto crítico é que Bernays e outros enfatizaram esta analogia [i.e., a analogia medicinal] de maneira a dar
à katharsis um sentido exclusivo de alívio terapêutico ou quase-terapêutico, e excluir qualquer questão a respeito
de uma dimensão ética da experiência” (HALLIWELL, 1988, p. 353).
21

Essa classificação, assim reagrupada, revela suas linhas de força principais32.

A catarse pode ser vista como preponderantemente ética, como

preponderantemente estética / intelectualista ou como uma certa terapia medicinal.

No grupo que a vê como predominantemente ética, pode-se postular ainda uma

outra divisão: os que a vêem como uma descarga emocional (sem que essa

descarga emocional tenha fins exclusivamente terapêuticos) e os que a vêem como

um aprendizado das virtudes. O aprendizado das virtudes, ainda, pode ter sua

ênfase colocada no “sentir as emoções da maneira correta e com a intensidade

correta” 33 (uma espécie de ‘educação sentimental’) ou nas relações que se

estabelecem entre os apetites, desejos e emoções e as razões que os ponderam,

deliberam e escolhem. Esse último grupo, por dar mais peso à razão deliberativa,

aproxima-se bastante dos que enxergam na catarse apenas um esclarecimento

intelectual. Por sua vez, aqueles que enxergam a catarse como uma certa terapia

medicinal devem reter dela apenas o suscitar e aliviar emoções, desprezando

qualquer tipo de ponderação ou de raciocínio ligado a esse processo.

Assim, grosso modo, podemos enxergar um continuum que vai desde a pura

presença de estados emocionais, de onde se ausenta a razão (a tese medicinal), até

a preponderância da razão, que não se confunde com sua pura presença porque a

tragédia não trata das ciências matemáticas.

Essas leituras, para se constituírem, entretanto, não utilizam apenas o pano

de fundo das teses aristotélicas. Elas devem se referir ao texto da própria Poética.

32
A classificação de Halliwell pode ser comparada com a de Pierre Destrée (2003, p. 433-434), que propõe:
catarse moral, catarse medicinal, catarse estética e a catarse ética. Destrée, entretanto, não dá detalhes a respeito
da teoria da catarse moral, de modo que não podemos analisar em que essa rubrica se diferencia da catarse ética.
Pode-se postular uma identidade de fundo entre as listas dos dois autores pela menção aos autores representantes
de cada grupo. Halliwell, por exemplo, cita Bernays como expoente dos que consideram a catarse uma espécie
de descarga emocional, o que corresponde, na lista de Destrée, à catarse medicinal. Golden, para Destrée, é
representante da linha estética, mas Halliwell o coloca no grupo da catarse intelectual.
33
(HALLIWELL, 1988, p. 352).
22

vi. A própria Poética: catarse intelectual

Munidos dos conceitos apresentados nas seções i. a iv. (o belo referido à

ordem e à simetria, a teoria ética das virtudes e da ação, o papel da sabedoria

prática na escolha deliberada, a catarse musical tal como ela se apresenta na

Política), poderíamos examinar, de início, como a Poética enxerga o tratamento que

a tragédia dá à extensão e à ordem de forma a fazer aparecer o belo. A tarefa, à

primeira vista, não parece difícil: ordem e extensão (nessa seqüência) são

explicitamente examinadas no capítulo 7 da Poética, justamente o capítulo que inicia

o exame mais minucioso do enredo e que segue até o capítulo 14.

A localização desse capítulo, logo após a definição de tragédia, determinação

e hierarquização de suas partes, já diz de sua importância, mas bastaria sua frase

inicial para ilustrá-lo: “discriminados esses elementos [as partes da tragédia],

falemos, depois deles, das características que deve ter o arranjo das ações [o

enredo] uma vez que essa é, da tragédia, a parte primeira e mais importante”34. Não

escapa da atenção dos comentadores a importância da seção da Poética dedicada

ao enredo. Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 168), por exemplo, afirma:

Os capítulos VII, VIII, IX e XXIII formam um conjunto homogêneo, que


poderia ser designado como o núcleo de toda a Arte Poética, pois, como
"teoria do mito", a doutrina vale, não só para a tragédia e a epopéia, como
para a comédia e o jambo, por conseguinte, para a poesia imitativa — toda
a poesia, em suma. O mito — elemento mais importante, entre todos os que
constituem a imitação com arte poética— vem agora a ser determinado
como uma totalidade (cap. VII) e como uma unidade (cap. VIII) e, sendo
totalidade e unidade, vem a ser "coisa mais filosófica" do que a história (cap.
IX): entre duas formas de apreensão do real-agente, o intermediário que
mais participa da universalidade, que é objecto próprio da Filosofia, do que
da particularidade, à qual se cingiria a atenção indagadora da história.

34
1450 b 22-24.
23

ou Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 98):

Aristotle now embarks on one of the most important and exacting sections of
his argument. In expounding his criteria of form, scale and unity in poetry, he
allows us to see the way in which his thinking about the art rests on the
35
foundations of a wider philosophical system.

O critério de ordem se explicita, na tragédia, inicialmente na seqüê ncia de

suas partes. Ela deve ter começo, meio e fim. A afirmação, em si mesma, seria um

truísmo, na medida em que de tudo se pode postular começo, meio e fim, se não

fossem as relações de necessidade ou probabilidade que devem subsistir entre as

partes36. Ao começo deve seguir-se o meio, mas não qualquer meio, e sim o meio

que decorre necessariamente ou provavelmente do começo, ao meio deve seguir-se

o fim, mas não qualquer fim etc. Mas notemos que, tal como se apresenta, esse é

um critério formal vazio, puramente relacional. O começo se define por referência ao

meio, que se define por referência ao começo e ao fim, que se define etc. A

necessidade (ou probabilidade) que deve organizar essa seqüência, necessidade e

probabilidade cuja importância Aristóteles sempre frisa como critérios que devem

orientar o arranjo do enredo, não se consubstancia se não se explicitar do que é

esse começo, do que é esse meio, do que é esse fim. Ela não se revela se não ficar

claro qual é o objeto que preenche essa forma vazia. Esse objeto é a ação, e a

necessidade ou probabilidade que deve governar a seqüência começo, meio, fim,

enseja a unidade da ação trágica. Esse ponto já está dado na definição de tragédia

(mímese de uma ação completa), mas é desenvolvido com mais detalhe no capítulo

35
“Aristóteles agora dá início a uma das seções mais importantes e exatas de seu argumento. Ao expor seus
critérios de forma, escala e unidade na poesia, ele permite que nós vejamos a maneira como seu pensamento
sobre a arte se alicerça nas fundações de um sistema filosófico mais amplo.” (tradução nossa).
36
Cf. nota 5 do capítulo 7.
24

8. O critério da ordem se explicita, então, no preceito da unidade da ação trágica: os

incidentes devem se seguir uns aos outros de maneira necessária ou provável.

O critério da extensão, por sua vez, não se deixa explicitar de maneira tão

clara quando aplicado à tragédia. A metáfora que Aristóteles utiliza para desenvolver

o tema é facilmente inteligível em si mesma (um animal, para ser belo, não pode ser

extremamente pequeno, porque sua percepção pelos sentidos seria confusa, nem

muito grande, pois sua extensão não se deixa abranger por um único olhar), mas

quando transposta para o caso da tragédia perde nitidez, notadamente em relação

ao limite inferior de extensão preceituado. Essa falta de nitidez não é uma questão

importante em se tratando do que se expõe aqui, mas notemos que ordem e

extensão são categorias espaciais, afins à visão, enquanto a tragédia é temporal. Se

o preceito relativo à ordem transita com desenvoltura de um domínio a outro, uma

vez que uma disposição espacial ordenada (ou seja, que mantém entre suas partes

certas relações de proporção e simetria) transforma-se em uma seqüência temporal

ordenada (ou seja, que mantém entre suas partes certas relações de probabilidade

ou necessidade), essa transitividade é vacilante quanto ao preceito de extensão.

Aquilo que apreende a extensão no espaço, a visão, tem os limites inferior e superior

claros: um objeto muito pequeno não é visto com nitidez, um objeto muito grande

não é visto no seu todo. Mas esse limite, aplicado à memória, que é responsável

pela apreensão da extensão no tempo, é claudicante: se algo muito longo, a

exemplo de algo muito extenso, não consegue ser retido pela memória, o que seria

algo tão curto a ponto de não poder ser lembrado? Esse lapso do texto, entretanto,

não só ganha uma versão mais clara no capítulo 23, quando se fala da extensão da

épica37, como o limite inferior de apreensão do belo é de pouca importância prática,

37
Cf. nota 8 do capítulo 23
25

uma vez que se preceituará, quanto à extensão da tragédia, que o melhor é o maior

limite possível até onde permitir a clareza do todo38. Surpreendentemente 39,

entretanto, esse preceito quanto à extensão se transforma, sem aviso prévio, em

outro: ‘terá um limite suficiente a extensão na qual se dê [...] a mudança do infortúnio

para a fortuna, ou da fortuna para o infortúnio’40. Essa transformação, ao agregar a

um preceito puramente formal um certo tipo de ação (não por acaso, um tipo de

ação capaz de suscitar temor e piedade), parece depor contra a suficiência de

características formais (ordem e extensão) para dar conta do belo na tragédia 41.

Desconsiderando esse pormenor, temos como resultado que o belo, na

tragédia, está ligado à unidade da ação trágica e a uma certa extensão que lhe é

própria. Mas como a unidade de ação trágica chega a constituir o belo?

Para entender esse ponto, devemos recorrer ao paradigma da pintura tal

como a Poética o apresenta. Ele é utilizado já no terceiro parágrafo do texto (1447 a

18-19), mas também, em 1448 a 5, 1448 b 9, 1450 a 26, 1450 b 1, 1454 b 9, 1460 b

9. O trecho em 1448 b 9, no capítulo 4, é especialmente fértil em comentários, pois

nesse ponto a análise de Aristóteles se desenvolve por algumas linhas e se articula

ao que parece ser uma teoria geral da mímese e ao prazer que ela provoca. De

acordo com essa doutrina, a mímese é prazerosa porque, de alguma forma, ela

permite ao espectador aprender alguma coisa a respeito da realidade, e aprender,

ainda de acordo com o texto, é prazeroso. Esse prazer, que é mais acentuado para

os filósofos, mas não exclusivo deles, também está ligado ao reconhecimento de

uma forma já vista, e, em menor grau, aos elementos materiais da pintura, à


38
1451 a 10-11.
39
Cf. nota 15 do capítulo 7.
40
Poética, 1451 a 12-15
41
Entretanto, o capítulo 23 parece fazer derivar o prazer próprio da épica da observância da unidade de ação
(1459 a 21). Mas, a esse respeito, veja-se a nota 3 desse capítulo.
26

realização da obra, às cores, etc. Se a passagem for articulada com uma outra, no

capítulo 1542 (a partir de 1454 a 7), outro trecho em que o paradigma da pintura se

apresenta forte, teremos um quadro que descreve a mímese trágica como um

processo que, partindo de uma ação real, extrai dela as relações de necessidade ou

probabilidade que regem suas partes, depurando-a de todo elemento casual e

acessório, próprios não da poesia, mas da história, para devolvê-la à realidade sob

forma de tragédia, colocada para a avaliação e intelecção de sábios espectadores

capazes de apreciar o real depurado de suas contingências e a estrutura necessária

ou provável que o rege. A ordem e a extensão (ou, nesse caso, a necessidade e a

probabilidade), criam o belo por retirar do real qualquer elemento que atrapalhe sua

simetria, por depurá-lo de qualquer elemento que não esteja subordinado à

necessidade ou probabilidade que o rege. Tal interpretação da mímese encontra

apoio nas passagens do corpus aristotélico citadas, notadamente nas que se

referem à ordem e à extensão como propiciadores do belo. Temor e piedade entram

na tragédia apenas como sentimentos cuja estrutura será deslindada e a catarse

deve ser entendida como um processo de depuração intelectual, um processo que

permite uma visão mais clara da estrutura dessa ação temerosa e piedosa. Aprender

a estrutura dessa ação é prazeroso .

Um exemplo dessa interpretação de catarse é fornecido por Dupont-Roc e

Lallot. Para eles,

colocado na presença de uma história (muthos) onde ele reconhece as


formas, sabiamente elaboradas pelo poeta, que definem a essência do
piedoso e do temível, o espectador prova ele mesmo o medo, mas sob uma
forma quintessenciada, e a emoção depurada que o toma então, e que nós
43
qualificaríamos como estética, se faz acompanhar de prazer.

42
‘... os bons pintores ... restituindo a forma própria [do modelo], ao retratarem semelhantes, pintam-nos mais
belos’. Para a leitura intelectualista / estética, a ênfase do processo recai em tomar da realidade uma certa forma
e restituí-la no quadro como forma própria.
43
(ARISTÓTELES, 1980, p. 190) (tradução nossa).
27

vii. A própria Poética: catarse emocional

Entretanto, uma ação pode se organizar segundo o provável ou o necessário,

pode ter uma certa extensão, mas não chegar a provocar temor ou piedade. Se o

retratista pode extrair de qualquer face sua forma própria ao retratá-la, e isso é

suficiente para sua arte, não é qualquer ação que serve à tragédia: essa ação deve

provocar medo e piedade. A insistência nessas duas emoções (ou ainda outras, se

postularmos que a tragédia não se restringe a elas) parece fazer da tragédia algo

que não prescinde de um certo âmbito emocional. Há quatro pontos44 da Poética em

que Aristóteles faz menção ao mais belo enredo ou à mais bela tragédia, e em todos

esses lugares essa beleza está ligada a eventos capazes de suscitar temor ou

piedade. Significativamente, três deles estão no capítulo 13, que analisa a

configuração de enredo mais capaz de fazer a tragédia atingir seu efeito. Esse

enredo não está analisado quanto à ordem ou à extensão (ou à necessidade ou

probabilidade), mas sim quanto à reversão da fortuna e ao caráter do herói, e, em

ambos os casos, são eleitos a reversão e o caráter mais apropriados a suscitar

temor e piedade.

Enxergar na tragédia um artefato para apenas provocar medo e piedade,

entretanto, esvaziando-a de qualquer consideração ética mais importante, é

aproximá-la da interpretação medicinal proposta por Bernays ou rebaixá -la a um

patamar puramente hedonista, que se esgota, em um caso, no sucesso da terapia,

em outro, no prazer que ela provoca. Halliwell (2003) discute longamente a

adequação ou não do conceito de catarse musical apresentado em Política VIII à

catarse trágica. Ele defende que os dois trechos do corpus não são incompatíveis, e

44
1452 a 11, 1453 a 23, 1452 b 31 e 1453 a 19.
28

que a catarse musical, tal como tratada na Política, ainda que suas propriedades

não possam ser transferidas ipsis litteris à tragédia, não obstante não devem ser

desprezadas em se tratando da catarse trágica. Não deixa de ser interessante notar,

entretanto, que a melodia (canto) esteja mal integrada à estrutura da tragédia,

destino similar ao do espetáculo. A melodia é classificada como um hedusma,

palavra traduzida como ‘ornamento’, mas que tem a mesma raiz de ‘prazer’ e seria

vertida mais propriamente como ‘tempero’ 45. A ela cabe, na Poética, um destino

similar ao do espetáculo. O prazer que ela proporciona, assim como o prazer ligado

a efeitos cênicos, deve dar lugar ao prazer próprio da tragédia, aquele que provoca o

medo e a piedade por meio da mímese, e que deve estar ligado às ações46.

viii. Conclusão

É possível enxergar, na Poética, fundamentos para uma tese intelectualista

da catarse. É possível, também, enxergar fundamentos para uma tese puramente

emocional. Mas tanto um extremo quanto o outro só se constituem relegando a

posições secundárias elementos aos quais o próprio texto parece atribuir relevância.

À tragédia, assim, resta um âmbito que concilie essas duas vertentes.

Como conciliá-las é uma questão que permanece aberta. Mas é curioso notar,

sem que essa observação nos faça chegar a uma resposta definitiva da questão,

que, em três pontos importantes do tratado, o temor e a piedade (ou elementos aos

quais eles estão ligados) são acrescentados ao texto, eles não surgem com

naturalidade da discussão que os precede. É assim, por exemplo, na definição de

tragédia. Temor e piedade não se contavam entre os elementos analisados nos

45
Como será dito na nota 7 do capítulo 6.
46
Poética, capítulo 14, 1453 8-14.
29

capítulos anteriores 47. É assim no caso da determinação do tamanho ideal da

tragédia: nada da discussão a respeito da extensão permitiria prever que a extensão

ideal faria referência à reversão de fortuna do herói trágico, que é um elemento

propiciador de piedade48. É assim no final do capítulo 9, em que a mais bela

tragédia, surpreendentemente, não é aquela que tem a ordem e a extensão mais

perfeitas, mas é aquela que, sendo completa (ou seja, preenchendo os requisitos de

ordem e extensão), é capaz de fazer surgir com mais surpresa (sem, entretanto,

deixar ser regida pelo provável ou pelo necessário) o temor e a piedade49. Essa

mesma ordem de apresentação organiza a seção do tratado dedicada ao muthos

(capítulos 7-14), que começa por analisar os elementos formais do enredo

(completude, unidade, ordem, extensão – capítulos 7-10) para então definir os tipos

de enredo mais eficazes para suscitar medo e piedade (capítulos 11, 13 e 14). Não

seria essa mais uma evidência de que o enredo que suscita temor e piedade não

permite que se derivem todas suas propriedades da análise da extensão e da

ordem? Por sua vez, só temor e piedade não são suficientes para o prazer próprio

da tragédia, eles devem estar integrados a uma estrutura una, em que as partes se

relacionem segundo o necessário ou o provável.

Mas também não é esse o âmbito próprio da ação moral? Também ela se

encontra a meio caminho entre a irracionalidade vegetativa e a razão matemática.

Se Aristóteles não vê razões para colocar a parte apetitiva e desiderativa da alma

junto à parte racional ou à parte irracional, essa ambivalência encontra paralelo

também no estatuto que devemos dar à catarse. Em última instância, é a ética que

delimita as fronteiras onde devemos procurá-la.

47
Cf. nota 6 do capítulo 6.
48
Cf. nota 15 do capítulo 7.
49
Cf. nota 13 do capítulo 9.
30

ARISTÓTELES – POÉTICA

Falemos da arte 50 poética, dela mesma51 e de suas espécies, que


capacidade52 cada espécie tem, do arranjo 53 que devem ter os enredos se há de ser

50
‘Arte’, aqui, traduz o termo technê, não explicitado no texto grego, mas certamente subentendido, seja pela
presença do adjetivo substantivado poiêtikê, ao qual ele se ligaria, seja pelo tratamento semelhante que recebe,
no corpus aristotélico, a retórica, também ela, na verdade, uma “arte retórica”. O começo da Retórica, de
Aristóteles, como aqui, também não explicita “tekhnê rhêtorikê” (‘arte retórica’), mas diz apenas “rhêtorikê”
(‘retórica’) (1354 a 1). Chantraine (1990), no seu Dictionnaire étymologique de la langue grécque, no verbete
sobre o verbo poieô, faz constar como palavra derivada poiêtike, acrescenta entre colchetes [tekhnê] e iguala o
conjunto a “l’art poétique”. Importa notar, sobretudo, que dentro da tripartição usual do conhecimento atribuída
a Aristóteles (conhecimento científico/teórico, conhecimento prático/ético, conhecimento produtivo/técnico), a
Poética ocuparia lugar dentro do conhecimento produtivo/técnico. Isso, como notou Sophie Klimis, coloca um
problema para os intérpretes que querem ver a Póetica dentro de um paradigma ético; “a interpretação ético-
política se choca então com uma aporia grande, visto que a ética e a política pertencem ao âmbito conceitual da
ação, enquanto a tragédia pertence ao da produção. Além disso, no interior do âmbito poético, a análise não se
centra na ação (praxis), mas na representação ficcional (mimesis praxeôs). São as regras técnicas que permitem
essa estilização do real que ocupam a boca de cena” (KLIMIS, 2003, p. 466) (tradução nossa). Entretanto, não se
pode deixar de notar que a mímese da ação pode e deve ser entendida dentro do quadro conceitual da ação
mesma, ainda que a poética, sendo arte, tem um escopo que não se deixa apreender somente pelas categorias
éticas (a esse respeito, veja-se, por exemplo, a nota 23 do capítulo 6).
51
Aqui importa não exagerar o sentido do autês (‘dela mesma’). Não se trata de falar da poética kath´auto, ou
seja, segundo sua essência, por oposição ao falar dela kata sumbebekos, que implicaria falar da poética segundo
seus acidentes. Falar da arte poética, ‘dela mesma’, é uma expressão que restringe o âmbito do tratado (não se
fala, por exemplo, da poesia como educação ou como lazer, como é o caso da música no capítulo VIII da
Política – 1339 a 17-26) ao mesmo tempo em que o organiza, por oposição ao “falar de suas espécies”: falemos
dela em geral, como gênero, para então tratarmos de suas manifestações particulares, suas espécies. Isso posto,
parece excessivo o comentário de Rostagni à passagem (ARISTÓTELES, 1945, p. 3), ao considerar que
Aristóteles busca a essência da arte poética e identifica essa essência na mímese. Halliwell, que também como
Rostagni, procura ver a mímese como o fundamento de uma estética aristotélica, não chega a considerar esse
autês com a mesma ênfase que Rostagni. Halliwell busca antes no sentido da expressão que termina esse
parágrafo inicial (ver nota 6) a fundamentação de sua tese (a nosso ver, equivocada).
52
‘Capacidade’ traduz o grego dunamis, palavra do vocabulário aristotélico que recebeu as mais diversas
traduções. Para o português, Eudoro de Sousa verteu como ‘efetividade’, explicando, em nota, que
“potencialidade” seria um termo igualmente válido, e acrescentou: “potencialidade, que, uma vez actualizada em
cada uma das espécies de poesia, vem a constituir o érgon, ou o “efeito” que lhe é próprio; na tragédia, este será
o prazer resultante da imitação de casos que suscitam terror piedade (53 a 1)” (ARISTÓTELES, 1998a, p. 149).
53
‘arranjo’ traduz um termo importante para o tratado, uma vez que o enredo, visto como o arranjo dos feitos, é a
parte mais importante da tragédia. O termo será retomado várias vezes ao longo dos capítulos subseqüentes. Por
vezes, em vez de ‘arranjo’, adotamos ‘composição’. A frase foi vertida por Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES,
1998a, p. 103) como “da composição que se deve dar aos mitos”. Sua solução é preferível ao uso do verbo
“compor”, que a maioria das traduções adota (Hardy, Bruna, Rostagni, Dupont-Roc e Lallot, Gernez) e que pode
fazer supor que se trata de compor no mesmo sentido que inventar, como quando dizemos que Beethoven
compôs sinfonias. Ainda que, ao contrário da composição musical, não usemos o verbo ‘compor’ no caso da
invenção literária, importaria, ainda assim, evitar alguma anacrônica semelhança com o paradigma romântico de
criação artística.
31

exitosa a produção poética54, e ainda de quantas e quais são as partes dela, assim
como de tudo mais que diga respeito à mesma pesquisa, começando, conforme à
natureza, primeiro pelas coisas primeiras 55.

54
‘produção poética’ traduz poiêsis, que traduziríamos mais imediatamente como ‘poesia’ (Dupont-Roc e
Lallot), ou como ‘poema’ (Eudoro de Sousa, Bruna, Bywater), ou ainda como ‘composição poética’ (Hardy,
Halliwell). Exceção feita a Dupont-Roc e Lallot, todos os tradutores mencionados centram-se no produto da
produção poética, o poema. A opção por ‘produção poética’ explica-se principalmente por uma questão de fundo
lexical: poiêsis é o substantivo grego derivado do verbo poieô (fazer, produzir) por meio do sufixo –sis, que
corresponde ao português –ção, e indica o ato de realizar a idéia expressa pela raiz verbal: de ‘produzir’ vem
‘produ-ção’. Acrescente-se a isso o fato de que a frase é construída pela perífrase verbal mellô+infinitivo futuro,
que indica um ato a ser realizado, ou que se pretende que seja realizado. Tudo parece indicar que estamos no
âmbito daquilo que está para ser feito, não no âmbito da coisa realizada. Mas a questão é de pormenor, se
notarmos que a produção poética exitosa se identifica ao poema exitoso. E mesmo a Poética, em outros trechos,
parece oscilar entre considerar poiêsis como produção poética ou como o produto final (como produto final, por
exemplo, 1447 a 14, b 26, como produção, 1448 b 23, 24, ...).
55
A expressão arxamenoi kata phusin prôton apo tôn prôtôn (‘...começando, conforme à natureza, primeiro
pelas coisas primeiras’) tem um repertório particular de interpretações, que variam de acordo com cada tradutor.
Entende-se: a Poética é extremamente concisa e truncada, talvez mais do que costumam ser os textos
aristotélicos, e essas expressões de caráter auto-referente, em que o filósofo se refere não ao objeto de sua
pesquisa, mas à maneira como essa pesquisa está sendo organizada, ao revelarem o olhar do filósofo sobre a
própria obra, parecem capazes de fornecer informações importantes. Tome-se por exemplo o kata phusin
(‘conforme à natureza’) da expressão citada: Dupont-Roc e Lallot, no seu comentário, leram aqui um Aristóteles
naturalista. “Aplicando à poética o método de classificação do naturalista (“seguindo a ordem natural”, 47 a 12),
Aristóteles, tratando a arte poética como gênero, distinguirá nela as espécies (eidê)” (ARISTÓTELES, 1980, p.
143) (tradução e grifo nossos). Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 3) comenta que o kata phusin faria
referência a uma “ordem natural”, ou seja, do geral para o particular, e cita, como apoio a seu ponto de vista não
o Aristóteles naturalista, mas o Aristóteles da Metafísica e dos Segundos Analíticos. De mesma opinião é
Gallavotti (ARISTÓTELES, 1999, p. 121, nota 5). Já Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 149)
comenta o ‘começando...pelas coisas primeiras’ dizendo que esta é “expressão quase formular em Aristóteles
(Gudeman, pág. 78): a indagação (m ethodos) procede naturalmente do geral para o particular”. Halliwell
(ARISTÓTELES, 1987, p. 31) traduz o trecho de forma a ver aqui o anúncio do que seriam os primeiros
princípios da poética, certamente levado a isso pelo prôton apo tôn prôtôn (‘primeiro pelas coisas primeiras’).
De maneira geral, todos os comentários, por díspares que sejam, são unânimes em ver na reunião dos diversos
gêneros citados no início do parágrafo seguinte, sob o selo da mímese, a definição de um caráter geral que os
unifica. Os comentários diferem em que, uns, consideram a mímese a definição de uma essência da arte poética
(Rostagni e Gallavotti explicitamente, mas Halliwell também), outros, apenas vêem nela um caráter geral, sem,
entretanto, se comprometerem com uma tese essencialista (Dupont-Roc e Lallot, Eudoro de Sousa). Qualquer
que seja o comentário, nenhum deles contradiz a organização do tratado. Realmente ele caminha do geral para o
particular. Entretanto a expressão arxamenoi ... prôton apo tôn prôtôn (‘comçando ... pelas coisas primeiras’), ou
alguma variante muito próxima, tem outras ocorrências em Aristóteles (As Partes dos Animais, 646 a 3, 655 b
28, Ética Eudêmia, 1217 a 18, Geração dos Animais, 737 b 25), sendo que ela aparece de maneira bastante
análoga a esse trecho da Poética nas Refutações Sofísticas: arxamenoi kata phusin apo tôn prôtôn (‘começando,
conforme à natureza, pelas coisas primeiras’) (164 a 22), onde a retirada do advérbio prôton (‘primeiro’) não a
afeta significativamente. Ora, nas Refutações Sofísticas não se procede do geral para o particular, nem essa
expressão parece introduzir alguma definição essencial. No trecho que se segue, o modo de apresentação do
assunto parece ser o da evidência: “Oti m•n oân oƒ m•n e„sˆ sullogismo…, oƒ d' oÙk Ôntej dokoàsi, fanerÒn.
ésper g¦r kaˆ ™pˆ tîn ¥llwn toàto g…netai di£ tinoj ÐmoiÒthtoj, kaˆ ™pˆ tîn lÒgwn æsaÚtwj œcei
(164 a 23-26). “Que uns são silogismos, ao passo que outros, não sendo, parecem, é evidente. Pois assim como
em outros âmbitos isso acontece por causa de uma certa semelhança, também nos raciocínio isso se dá da mesma
forma” (tradução nossa). Essa maneira de proceder não está em desacordo com a filosofia aristotélica. Veja-se, a
esse respeito, o começo do Livro I, da Física (184 a 16 et seq.):

pšfuke d• ™k tîn gnwrimwtšrwn ¹m‹n ¹ ÐdÕj kaˆ safestšrwn ™pˆ t¦


safšstera tÍ fÚsei kaˆ gnwrimètera: oÙ g¦r taÙt¦ ¹m‹n te gnèrima kaˆ
32

De fato 56, a composição épica, bem como a composição da tragédia, e ainda


a comédia, a arte do ditirambo e a maior parte da aulética e da citarística57, todas

¡plîj. diÒper ¢n£gkh tÕn trÒpon toàton pro£gein ™k tîn ¢safestšrwn m•n
tÍ fÚsei ¹m‹n d• safestšrwn ™pˆ t¦ safšstera tÍ fÚsei kaˆ gnwrimètera.

“E o percurso vai desde o mais cognoscível e mais claro para nós em direção ao
mais claro e mais cognoscível por natureza: pois não são as mesmas coisas que são
cognoscíveis para nós e cognoscíveis simplesmente sem mais. Por isso é necessário,
desse modo, proceder a partir dos que, apesar de serem menos claros por natureza,
são mais claros para nós, em direção aos mais claros e mais cognoscíveis por
natureza” (Tradução de Lucas Angioni (ARISTÓTELES, 2002, p. 13)).

Se esse exemplo é válido como paradigma para a Poética (uma conclusão análoga adviria do trecho citado da
Ética Eudêmia), seria forçoso concluir que a unificação da epopéia, da tragédia, da comédia, do ditirambo, da
maior parte da aulética e da citarística sob a égide da mímese se dá também sob o signo da evidência. Se isso não
é evidente para nós, talvez o fosse para o público da época, como sugerem Dupont-Roc e Lallot na nota 4 do
capítulo 1 (ARISTÓTELES, 1980, p. 144-145). Esse comentário bastaria quanto às evidências internas ao
corpus aristotélico do sentido da expressão. Mas há ainda evidências externas. Andrea Rotstein, ao analisar o
conjunto das artes mimética arroladas no início do parágrafo seguinte e compará-las com inscrições epigráficas,
afirma que “... the six branches of poetic art mentioned here correspond to categories of competition at the major
Athenian festivals, namely the City Dionisia and the Great Panathenaia” (ROTSTEIN, 2004, p. 40) (itálico do
original). Ela conclui:

“... correspondence between all items in our passage [i.e., o início do parágrafo
seguinte: ‘De fato...’] and categories of competition at the internationally renowned
fourth century Athenian Musical Contests suggests that the list simply names the
most conspicuous examples of mimesis, those that were prominent enough to lay a
foundation for the general concept of mimesis.” (ROTSTEIN, 2004, p. 42).

56
Esse ‘de fato’, que traduz a partícula grega dê (negligenciada pela grande maioria dos tradutores: Eudoro de
Sousa, Jaime Bruna, Rostagni, Gallavotti, Dupont-Roc e Lallot, Nassetti, Bywater; não negligenciada por
Halliwell e Gernez, mas traduzida com outro significado) vem corroborar a conjectura de que Aristóteles arrola
esses gêneros como miméticos sob o signo da evidência (ver nota anterior).
57
Não há consenso entre os intérpretes por que apenas a maior parte da aulética (a arte de tocar o aulo, que se
aproxima mais da clarineta que da flauta, ainda que ‘flauta’ seja a tradução mais usual entre as edições da
Poética) e da citarística (arte de tocar a cítara) seria considerada mímese. Que parte dessas artes seria não-
mimética? Dado que Aristóteles em nenhum ponto de seu extenso corpus que chegou até nós tratou
suficientemente do conceito de mímese, forçoso é reconstruí-lo a partir da maneira como ele se apresenta. Nesse
sentido, qualquer reconstituição que se queira válida deve explicar por que a aulética e a citarística são
miméticas, e deve também explicar por que elas são miméticas, mas não no seu todo. Gallavotti
(ARISTÓTELES, 1999, p. 122-123) exclui da mímese musical a música entusiástica, dentro da tripartição
musical aristotélica proposta na Política (música entusiástica, música ética, música prática, qualificações de
tradução tão mais incerta quanto menos sabemos da música grega e de seu caráter) e centra sua atenção na
música prática (que faria a mímese de ações, segundo ele) como candidato ideal a música mimética. Dupont-Roc
e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 144, nota 2) consideram a hipótese de Gallavotti arbitrária. De fato, em
Política VIII, 6, Aristóteles afirma que “há imitações ... no ritmo e na melodia, da cólera e da doçura, da
coragem e da prudência, e de todas [as afecções] contrárias a essas, e dos outros tipos de caráter” (1340 a 18-21).
(œsti d• Ðmoièmata ... ™n to‹j r )uqmo‹j kaˆ to‹j mšlesin ÑrgÁj kaˆ praÒthtoj, œti d' ¢ndre…aj kaˆ
swfrosÚnhj kaˆ p£ntwn tîn ™nant…wn toÚtoij kaˆ tîn ¥llwn ºqîn). Poder-se-ia objetar que o termo aqui
usado não é mímesis, mas omoiômata (traduzido como ‘imitação’). Mas logo adiante, em 1340 a 38-39,
Aristóteles escreve: ™n d• to‹j mšlesin aÙto‹j œsti mim»mata tîn ºqîn (“nas melodias mesmas há imitações
do caráter”), fazendo uso do termo mimemata, correlato de mímesis. Importa notar, objetando Gallavotti, que
nesse ponto do texto da Política, Aristóteles ainda não distinguiu música ética, prática ou entusiástica, e a música
como um todo é dita ‘mimética’.
33

são, no geral, mímeses58. Diferem entre si de três maneiras, ou por realizar a


mímese em meios diferentes, ou por realizar a mímese de coisas diferentes, ou por
realizá-la diferentemente, isto é, não do mesmo modo 59.
Pois assim como uns mimetizam muitas coisas colocando-as em imagem por
meio de cores e figuras (uns por técnica, outros por hábito), e outros por meio da
voz, assim também se dá nas artes mencionadas: todas efetuam a mímese por meio
do ritmo, da palavra e da melodia, usados separadamente ou misturados. Por
exemplo, fazem uso apenas da melodia e do ritmo a aulética e a citarística, e alguma
outra que seja assim quanto à potência, como a arte da siringe 60, enquanto a arte
dos dançarinos imita por meio do ritmo mesmo, separado da melodia (pois eles, de
fato, dando forma figurada aos ritmos, mimetizam caráter, afecções e ações 61).
A arte que faz uso da palavra desacompanhada, ou do metro
desacompanhado62 (sejam esses misturados entre si ou de um único gênero), não
tem nome até agora. Pois não teríamos um nome comum para nomear os Mimos de
58
Há grande controvérsia quanto ao sentido de mímese em Aristóteles, o que se reflete nas escolhas para a
tradução do termo. As edições mais antigas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Bruna, Gallavotti) vertem o
termo por ‘imitação’. Dupont-Roc e Lallot (cujo livro sobre a Poética é de 1980) chamaram atenção para a
inconveniência dessa tradução e optaram por ‘representação’. Há ainda a possibilidade de deixar o termo como
no original, ‘mímese’. Halliwell procede assim e essa é a solução adotada aqui, ainda que isso deixe o texto
pouco fluente quando é o caso de traduzir o verbo correlato: ‘mimetizar’ não é do português corrente, e ‘realizar
a mímese’, outra opção possível, torna a leitura carregada. A solução não compromete o tradutor com nenhuma
tese a respeito do que seria mímese, o que é uma estratégia escrupulosa em se tratando de um termo controverso.
59
Nenhum dos tradutores consultados chega a colocar em questão se esta frase final do parágrafo (‘não do
mesmo modo’, em grego, mê ton auton tropon) se refere apenas ao último dos três critérios de diferenciação das
artes miméticas ou a todos eles; todos traduzem da forma proposta aqui, o que parece mais natural, dado que o
último dos três critérios é apresentado por meio de um advérbio (heterôs) e a frase tem também um caráter
adverbial. Nada impediria, porém, que o modo da mímese englobasse os meios, os objetos e o...modo de
mímese, ainda que disso resultasse uma desconfortável polivalência terminológica, o que não é raro em
Aristóteles. Como cada um dos três critérios de diferenciação é abordado na seqüência do texto, esta passagem
não chega a gerar dúvidas. Rostagni fala, a respeito da frase toda (heterôs kai mê ton auton tropon) de uma “não
inútil abundância verbal, típica de Aristóteles: cf. exemplos similares em XV, 54 a 30, XXVI [sic], 60 a 11-12;
16” (ARISTÓTELES, 1945, p. 4) (tradução nossa). Talvez Aristóteles tenha considerado que o advérbio heterôs
poderia se prestar a confusões, já que ele pode ter como sentido também ‘de uma ou de outra maneira’ (por
oposição a amphoterôs, ‘de ambas as maneiras’). Conservou-o, para respeitar o paralelismo com os outros
critérios de diferenciação, também eles apresentados por palavras da mesma família de heterôs, e resolveu
explicitá-lo por meio de uma frase explicativa introduzida por kai. Esta é a hipótese que fundamenta a tradução
apresentada.
60
Flauta de Pã.
61
“Caráter, afecções e ações” são conceitos importantes da ética aristotélica. Esse é o primeiro momento, na
Poética, em que conceitos éticos relevantes são mencionados. O ponto antecipa e anuncia o capítulo 2, que trata
dos objetos da mímese, e prenuncia um tema importante do tratado, as relações entre a poesia e a ética, que
culminam na definição da tragédia como a imitação de uma ação e no arrolamento do caráter e do pensamento
como partes da tragédia.
62
Desacompanhados de música, entenda-se
34

Sófron e Xenarco e os diálogos socráticos63 nem se a mímese fosse feita em


trímetros, ou dísticos elegíacos, ou em algum outro esquema métrico, exceto porque
os homens, unindo o fazer ao metro, chamam uns de poetas elegíacos, outros de
poetas épicos, declarando-os poetas não a partir da mímese realizada, mas de
acordo com o metro usado. Pois mesmo se fosse publicada matéria médica ou
fisiológica em metro, o costume é chamá-los assim. Mas nada de comum há entre
Homero e Empédocles, exceto o metro. Por isso a um costuma-se chamar com
justiça poeta e, ao outro, antes naturalista que poeta. O mesmo se daria se alguém
realizasse a mímese misturando todos os metros, exatamente como Querémon fez
em Centauro, uma rapsódia mista de todos os metros: também ele deve ser
declarado poeta 64.
Seja esse assunto, então, dado por definido dessa maneira. Mas há algumas
artes que fazem uso de todos esses meios mencionados, quero dizer, fazem uso do
ritmo, da melodia e do metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos65, ou a
comédia e a tragédia: diferenciam-se, porém, porque aquelas fazem uso de todos os
meios ao mesmo tempo, mas essas fazem uso deles por partes.
Essas são, então, as diferenças entre as artes quanto aos meios em que se
realiza a mímese.

63
Há referência aos diálogos socráticos também na Retórica, em 1417 a 21. Talvez se trate não dos diálogos
escritos por Platão, mas de um gênero literário.
64
Aristóteles dá um caráter essencialista à mímese realizada e um caráter acidental ao metro utilizado.
65
Segundo West ([1994], p. 215-217) O termo ‘nomos’ tem uma ampla gama de significados: pode ser usado,
em um contexto não técnico, para qualquer tipo de melodia. Aqui, entretanto, provavelmente refere-se às
composições com acompanhamento de cítara (já que a ambiência do texto é ateniense) usadas em ocasiões
formais, como sacrifícios, funerais, festivais, etc...
35

Uma vez que aqueles que realizam a mímese realizam a mímese66 de


pessoas que agem67, 68
, e essas forçosamente são virtuosas ou viciosas (pois o
caráter quase sempre segue apenas estes registros: pois todos se diferenciam
quanto ao caráter pelo vício e pela virtude69), ou melhores que nós, ou piores, ou tais
quais (exatamente como os pintores: Polignoto figurou melhores; Pausânias, piores;
Dionísio, iguais), é evidente que cada uma das mímeses mencionadas terá essas
diferenças 70, 71, e será diferente por, dessa maneira, mimetizar coisas diferentes.

66
A repetição existe também no original grego, só que de forma mais elegante, pelo uso do particípio presente
junto ao verbo conjugado. Em português, o trecho destoa, situação agravada pela opção de usar a perífrase
‘realizar a mímese’, que o sobrecarrega (ver nota 9 do capítulo 1).
67
‘pessoas que agem’ é a perífrase em português do particípio presente grego práttontas. Preferiu-se a perífrase
ao substantivo ‘agentes’, ele próprio na sua raiz também um particípio presente latino, mas ao qual o uso
agregou outros significados que acrescentariam à frase outros possíveis sentidos alheios a ela.
68
Aqui se diz que a mímese tem por objeto “pessoas que agem”, ao passo que, na definição de tragédia,
apresentada no início do capítulo 6 (1449 b 24-28), diz-se que ela, a tragédia, é a imitação de uma ação. A
questão não é de pouca importância, uma vez que a ação, identificada ao mito, é a parte mais importante da
tragédia, “seu princípio e como que sua alma” (1450 a 38). Acrescente-se a isso o fato de que o mito tem o
primeiro lugar em detrimento mesmo do caráter dos personagens, como afirma expressamente Aristóteles em
1450 a 16: ‘A tragédia é mímese não de homens, mas de uma ação e da vida’. Cabe chamar a atenção para o que
parece ser uma divergência entre o capítulo 2 (a mímese é uma mímese de pessoas que agem, e essas, as pessoas,
são virtuosas ou viciosas) e o capítulo 6 (a tragédia é a mímese de uma ação virtuosa – ou, conforme propomos,
‘mímese de uma ação em que a virtude está implicada’ (cf. nota 5 do capítulo VI) – o que, para a tragédia, é mais
importante que o caráter de quem age). Primeiro devemos nos acautelar contra uma possível objeção: o
particípio presente grego práttontas, traduzido pela perífrase ‘pessoas que agem’ (ver nota 2) não permite que se
escolha de forma inequívoca qual a sua ênfase, se no sujeito da ação (as pessoas que agem) ou se na ação
propriamente dita (as pessoas que agem) e, na segunda hipótese (se ele se centra na ação), não haveria grande
distância entre os capítulos 2 e 6: se trata, nos dois casos, de privilegiar a ação. Entretanto, a seqüência do
capítulo 2 não deixa dúvidas: os agentes é que são ditos virtuosos ou viciosos, é do caráter deles que o tratado se
vale para distinguir as diferentes artes miméticas. Se há um propósito em focar o agente, isso só pode ser
entendido como um meio mais adequado para chegar à finalidade do capítulo, que é distinguir as diferentes artes
miméticas, notadamente a tragédia da comédia. É mais evidente que os homens são virtuosos ou viciosos. Essa
forma de apresentar o assunto está de acordo com o trecho da Física citado na nota 6 do capítulo 1 (Física I - 184
a 16 et seq.): o percurso do conhecimento se faz a partir do que é mais cognoscível e claro para nós em direção
ao que é mais cognoscível e claro por natureza. Também não se deve excluir a hipótese de que, ainda que a
tragédia seja a mímese de ações, e que nela a ação ocupe um lugar de destaque, o mesmo não necessariamente se
dá nas outras artes miméticas: no início do capítulo 5 se diz que a comédia é a mímese de homens viciosos, sem
que se privilegie a ação. E é ainda uma questão em aberto saber até que ponto a música pode mimetizar ações.
Ela parece mimetizar antes caracteres (Política - VIII, 6, 1340 a 18-39). O capítulo 2, abrangendo sem distinção
todas as artes miméticas, deve centrar-se no que é mais comum a todas.
69
Vício e virtude são conceitos éticos que aqui entram sem mais detalhes e que não fazem jus, pela sua simples
menção, às nuances da psicologia moral aristotélica. Entretanto, são suficientes para diferenciar a tragédia da
comédia.
70
O esquema sintático que a tradução adota foi usado por Dupont-Roc e Lallot e é defendido por Lucas
(ARISTÓTELES, 1998b, p. 63), que afirma que também Gudeman e Sykutris utilizaram-no em suas edições.
Mas esse não é o ponto de vista de outras traduções consultadas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Gallavotti,
Halliwell, Gernez) e do comentário de Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 10, nota à linha 1448 a 4), todos
36

unânimes em considerar ‘certamente ou melhores que nós, ou piores, ou tais quais’ como a oração principal do
período, tendo como subordinadas a ela as orações “uma vez que aqueles que realizam a mímese realizam a
mímese de pessoas que agem” e “essas forçosamente são virtuosas ou viciosas”. Se observarmos a conexão
lógica entre as frases,

1. quem mimetiza mimetiza pessoas em ação


2. pessoas são necessariamente virtuosas ou viciosas
3. quem mimetiza mimetiza pessoas que são melhores, piores ou iguais a nós,

veremo s que 3 é antes uma espécie de truísmo, além de não ser conclusão lógica natural de 1 e 2. Muito mais
adequado parece o seguinte esquema:

1. quem mimetiza mimetiza pessoas em ação


2. pessoas são necessariamente virtuosas ou viciosas
3. (são ou melhores que nós, ou piores, ou semelhantes)
4. é evidente que cada uma das mímeses mencionadas terá essas diferenças,

Neste caso, 3 aparece como uma explicitação de 2 e 4 apresenta-se como a verdadeira conclusão, de valor
relevante inclusive para o objetivo anunciado no capítulo 1: diferenciar as artes miméticas quanto ao objeto do
qual se faz a mímese. As diferentes opções de tradução não chegam a obscurecer o ponto 4, de modo que a
objeção que aqui se levanta contra as outras traduções não chega a comprometer o entendimento que elas
oferecem do assunto. Mas se poderia objetar que 4, para servir como apódose, como conclusão do raciocínio,
não poderia ter associada a ela a partícula de, na expressão dêlon de hoti (‘é evidente que’). Não é usual, de fato,
que uma apódose seja introduzida assim. Mas Denniston (1954, p. 180) dá um exemplo de apódose com de na
Retórica (1355 a 2-14, sendo que a apódose está em 1355 a 10), em um trecho, assim como na Poética, cuja
prótase se inicia como epei de (‘uma vez que’), é seguida de outras prótases introduzidas com de para finalmente
chegar a uma apódose que se inicial com dêlon de hoti (‘é evidente que’).
Dessa passagem Jaime Bruna tem uma outra tradução ainda, que, apesar de, a nosso ver, ser equivocada, merece
análise. Ele traduz: “Como aqueles que imitam imitam pessoas em ação, estas são necessariamente ou boas ou
más...” (ARISTÓTELES, 1997, p. 20). Ou seja, para Bruna, 2 é a oração principal, conclusão lógica de 1. Quem
age necessariamente é bom ou mau. Como sua tradução não tem notas, não é possível saber seus reais motivos,
mas é interessante observar que ela estaria de acordo com uma análise da Poética que desse ao termo grego
práxis, ação, um sentido estritamente ético: segundo tal ponto de vista, a práxis não seria uma ação qualquer,
mas uma ação de caráter moral relevante, uma ação na qual certamente haveria uma escolha deliberada entre
dois extremos, sendo que essa ação seria virtuosa quando escolhe o meio entre os extremos, e viciosa quando
erra essa meio. Na Poética é possível ler, por vezes, a práxis nessa chave, inclusive quando o termo aparece de
par com energéin, que significaria uma ação desprovida de relevância moral (por exemplo, em 1448 a 23).
71
Ainda em relação a esse primeiro parágrafo, seria pertinente perguntarmo -nos como uma divisão binária
(virtude/vício) pode dar origem à tripartição ‘melhores que nós/iguais/piores que nós’. Colocando a questão de
outra maneira, como se explica a relação entre as frases 2 e 3 (numeradas na nota anterior)? Else
(ARISTÓTELES, 1994, p. 83, notas 18 e 20), para contornar essa dificuldade, sugeriu que a menção a pessoas
“tais quais”, bem como a menção, entre os pintores, a Dionísio, fosse uma interpolação. Baseava-se ele no fato
de que não há, no restante da Poética, menção à parte da doutrina que deveria tratar da imitação de homens “tais
quais nós”. No entanto, os manuscritos não autorizam a hipótese. Mesmo se adotássemos a hipótese de Else, a
dificuldade da relação entre 2 e 3 não estaria totalmente resolvida. Ela surge do fato que 2, ao fazer referência a
conceitos éticos, parece prescindir de uma referência explícita a um termo de comparação. Um homem é dito
virtuoso não em relação a seus pares, mas por possuir uma disposição deliberativa relativa a uma mediedade (a
virtude é definida assim, na Ética Nicomaquéia, em 1106 b 36). Como então 3 faz surgir ex abrupto uma
referência a um genérico “nós”? Isso não parece um lapso, uma vez que a frase final do capítulo (“homens piores
que os de agora”) reforça a idéia de um referencial externo. Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 157-
158, nota 4), na tentativa de resolver a questão, fazem intervir aqui um distanciamento entre o plano da
realidade, em que os homens são ditos virtuosos ou viciosos, e o plano da representação. A mímese opera no
sentido de transformar seu modelo (que participa de uma lógica binária fundamentada na realidade – virtude e
vício) em um objeto representado (que participa de uma lógica ternária – igual, melhor ou pior que nós). É
função daquele que realiza a mímese “transformar acentuando a qualificação ética em direção seja do pólo nobre
(beltionas, “melhores”), seja do pólo baixo (k heironas, “piores”), seja conservando “tal qual” (t oioutos)”
(ARISTÓTELES, 1980, p. 157). E acrescentam:
37

De fato, também na dança, na aulética e na citarística pode haver tais


dessemelhanças 72, bem como nos gêneros sem metrificação e nos metros
desacompanhados. Homero, por exemplo, fez homens melhores, Cleofonte os fez
semelhantes e Hegemon, de Tasos, o primeiro a fazer paródias, e Nicócares, que
fez a Deilíada73, piores. O mesmo se dá a respeito dos ditirambos e dos nomos 74,
pois alguém poderia realizar mímeses assim como Timóteo e Filoxeno fizeram os
Cíclopes.
A mesma diferença separa a tragédia da comédia: esta quer fazer a mímese
de homens piores que os de agora; aquela, de melhores.

Esta transformação – positiva, negativa ou nula – de ordem propriamente ética, tem


por função distribuir as produções das diferentes artes representativas (pintura,
dança, música acompanhada de canto) entre diferentes gêneros: a tríade Polignoto,
Pausânias, Dionísio ilustra essa repartição na pintura (ARISTÓTELES, 1980, p.
157) (tradução nossa).

A hipótese encontra apoio no texto da Poética, notadamente em 1454 b 8 et seq., onde se diz que o poeta, ao
realizar a mímese trágica, deve moldar seus personagens, a exemplo dos pintores (a menção à pintura se repete),
de maneira a fazê-los parecer bons. Dupon-Roc e Lallot seguem:

Mas deve-se tomar cuidado que a transformação de ordem ética não é, de direito,
constitutiva da mímesis: senão, como poderíamos conceder o estatuto mimético a um
produto resultante de uma transformação nula (“tais quais nós”), ou seja, em pintura,
às obras de Dionísio? Dos capítulos 4 (48 b 10 et seq.) e 15 (54 b 8 et seq.) resultará
que o caráter verdadeiramente constitutivo do processo de representação (mímesis) é
a abstração da “forma própria” (idia morphè) e sua restituição (cf. apodidontes, 54 b
10) na obra produzida. A variação ética vem somar-se a esta atividade fundamental
para diferenciar os produtos dela (ARISTÓTELES, 1980, p. 158) (itálicos originais,
tradução nossa).

O ponto de Dupont-Roc e Lallot, no que se refere ao caráter, é interessante e parece oferecer uma descrição
coerente do processo de mímese quanto a esse elementos da tragédia. Podemos representar Dioniso de forma
nobre, como fez Eurípides, em As Bacantes, ou de forma baixa, como fez Aristófanes, em As Rãs. Para a
classificação dos gêneros interessa menos o caráter do modelo que sofre a mímese que o caráter do objeto
produto da mímese. Entretanto, como descrição do processo geral de mímese baseada nessa leitura dos capítulos
IV e XV, vejam-se as restrições discutidas na Introdução.
72
O texto no original grego tem a mesma afirmação atenuada que a tradução: na dança, na aulética e na
citarística pode haver tais dessemelhanças. Como dessas três artes, ao contrário das outras que aparecem em
seqüência, não há exemplos citados, a atenuação se mantém e é tentador supor que nelas tais diferenças são
menos notáveis, o que estaria de acordo com nossa experiência moderna. De fato, é difícil, para nossa
sensibilidade, conceber que a música possa mimetizar, de maneira inequívoca, um caráter imoral, por exemplo.
Entretanto, no caso da dança, o texto da Poética é mais explícito: ela pode mimetizar caráter, afecções e ações
(1447 a 28).
73
A Deilíada, pelo que o nome indica (deilos + ilíada) seria uma paródia da Ilíada, uma Ilíada de covardes
(deilos significa ‘medroso).
74
A respeito dos nomos, veja-se nota 16 do capítulo 1.
38

Além dessas, há uma terceira diferença: a maneira como 75 alguém poderia


realizar a mímese de cada um desses objetos. De fato, é possível mimetizar com os
mesmos meios e as mesmas coisas tanto recitando (seja se fazendo passar por
algum outro, como faz Homero, seja sem se transformar e permanecendo o mesmo)
quanto fazendo todos76 os que realizam a mímese como que agir e atuar77, 78

75
Aristóteles segue o plano traçado em 1447 a 17: depois de ter tratado dos meios de realizar a mímese (capítulo
1) e dos objetos da mímese (capítulo 2), ele passa a tratar dos modos de mímese (como ela é realizada).
76
Há aqui um lapso conceitual apontado por inúmeros comentadores: Aristóteles passa, sem aviso, da mímese
realizada pelo poeta à mímese executada pelos atores.
77
Há duas passagens textuais que devem ser confrontadas com essa. A primeira é da própria Poética, mais
exatamente no capítulo 24, em 1460 a 5-10, onde se diz que Homero deve ser louvado por ser “o único entre os
poetas a não desconhecer como o próprio poeta deve colocar-se no poema. Pois o poeta deve ele mesmo falar o
mínimo possível, pois não realiza a mímese agindo assim” (ou seja, falando em nome próprio). Essa passagem
parece excluir do domínio da mímese aquele que recita “sem se transformar e permanecendo o mesmo” e está
em conflito com o capítulo 3. Entretanto, o texto de 1460 a 5-10 parece estar em sintonia com o trecho da
República, de Platão, em que Sócrates discute com Adimanto se os poetas devem ou não ser permitidos na
cidade ideal (392-396, a segunda passagem textual mencionada) . De acordo com a distinção socrática, há a
narração simples (haple diegesis), há a narração em que intervém também a mímese (caso de Homero) e há a
arte toda ela mimética (caso das tragédias e comédias). Ora, Aristóteles parece distanciar-se de Platão primeiro
porque dá à mímese um valor positivo, considerando-a inclusive mais filosófica e virtuosa que a história (1451 b
5-6) e depois porque parece ampliar o domínio da mímese, de forma a que ela passe a conter, se nos ativermos a
esse capítulo 3, também o que Platão considerava não ser mimético, no caso a narração simp les (aquela que o
poeta realiza permanecendo ele mesmo, sem mudar). Como não há no corpus aristotélico uma definição
intensiva de mímese, forçoso é buscar reconstituir o que seria sua teoria de forma extensiva, ou seja, a partir da
maneira como ele faz uso do termo nas diversas passagens em que ele aparece. Assim sendo, torna-se importante
dar um sentido ao conflito que há entre os capítulos 3 (o poeta que recita permanecendo ele mesmo realiza uma
mímese) e o capítulo 24 (o poeta não realiza a mímese a não ser quando deixa de falar ele mesmo). Claro está
que os trechos, tomados ao pé da letra, são inconciliáveis. Halliwell, por exemplo, dedica todo um capítulo de
seu livro à mímese, e propõe que, em Aristóteles, a mímese vale como um ‘enactment’, termo que traduziríamos
por ‘personificação’ (HALLIWELL, 1998, p. 109-137). A seu ver, a discrepância entre os capítulos 3 e 24 “é
apenas o mais óbvio sintoma de uma tensão subjacente no tratamento que Aristóteles dá à mímese”
(HALLIWELL, 1998, p. 127). Se há essa tensão, forçoso é reconhecer, entretanto, que ela não se resolve.
Woodruff considera a posição de Halliwell quanto à mímese equivocada e pretende que o trecho do capítulo 24
seja o único momento, da Poética, em que a “mímese está confinada à personificação no modelo estreito de
República III” (WOODRUFF, 1992, p. 79). Para Woodruff, “não temos razão para duvidar que uma teoria
aristotélica unificada da mímese possa ser conseguida” (WOODRUFF, 1992, p. 82). De qualquer forma, os
requisitos para uma teoria aristotélica da mímese devem levar em conta três aspectos a serem relacionados
(talvez até compatibilizados) entre si: a mímese musical, a mímese na pintura e a mímese ‘literária’, por assim
dizer. Woodruff, no seu artigo, consegue unificá-los, ainda que a mímese musical dependa de uma interpretação
bastante particular. Halliwell vê nesses três aspectos, notadamente entre a mímese na pintura e a mímese
‘literária’, tensões que indicariam uma tentativa de Aristóteles de dar à teoria da mímese uma abrangência que
ela não encontra em Platão. A mímese, em Aristóteles, de acordo com Halliwell, seria um fundamento das artes
em geral. Não é à toa que ele traduz 1447 a 12-13 da seguinte forma: “começando, de maneira natural, dos
primeiros princípios”. A mímese é, para Halliwell, um ‘primeiro princípio’ da arte poética, e mesmo das artes em
geral, com toda a carga conceitual que essa expressão tem no vocabulário aristotélico. Se, no entanto,
entendermos 1447 a 12-13 de uma outra maneira, sem toda essa carga conceitual (cf. nota 6 do capítulo 1),
talvez possamos supor que Aristóteles usa o termo mímese de uma maneira não necessariamente unificada, nem
talvez conceitualmente forte. Mas isso é apenas uma sugestão de encaminhamento do tema. Resolver a
controvérsia da mímese no espaço de uma nota de rodapé (ainda que longa) certamente não é nossa pretensão.
39

nessas três diferenças que se faz a mímese, conforme dissemos desde o início: nos
meios, nos objetos e no modo. De modo que, de uma maneira, Sófocles faz a
mímese assim como Homero, pois ambos mimetizam pessoas virtuosas, mas, de
outra maneira, Sófocles seria como Aristófanes, pois ambos mimetizam pessoas que
agem e que fazem algo (drontas) 79.
É por esse motivo que alguns sus tentam que as peças se chamam ‘dramas’,
porque os poetas imitam pessoas que agem (drontas). Por isso, também, os dóricos
arrogam a si a tragédia e a comédia (a comédia, arrogam-na a si os megarenses,
não só os megarenses daqui 80, dizendo que ela surgiu no tempo em que havia
democracia entre eles, como também os da Sicília, pois de lá era o poeta Epicarno,
de muito tempo anterior a Quionide e a Magnes; a tragédia, arrogam-na a si alguns
peloponésios), tomando os nomes como evidência: pois eles alegam que chamam
os arredores de suas cidades de ‘komas’, o que os atenienses chamam ‘demos’,
recebendo os comediantes esse nome não do ‘komázein’81, mas do perambular
pelos ‘komas’, sendo desprezados na cidade. E também alegam chamar o ‘fazer’ de
‘dran’, ao passo que os atenienses chamam de ‘prattein’82.
A respeito, então, das diferenças da mímese, quantas e quais são, eis o que
havia a ser dito.

78
‘Agir’ e ‘atuar’ não devem ser considerados aqui termos sinônimos, justapostos apenas por conveniência de
ênfase. O ‘agir’ (prattein) tem uma abrangência bem mais ampla que o ‘atuar’ (energein) e, sozinho, não
deixaria claro que o texto faz referência à atuação teatral. Detalhes como esses reforçam a tese de que, em se
tratando da Poética, deve-se sempre procurar ler praxis (‘ação’), e seus correlatos, como o verbo prattein
(‘agir’), com uma ressonância moral.
79
A Poética, até esse momento, usou o verbo prattô (fazer, agir) para se referir à ação dramática. Nesse ponto,
Aristóteles introduz um outro verbo, draô (origem do particípio drontas e do substantivo drama), que tem o
mesmo sentido, mas serve como pretexto para que ele reporte discussões a respeito da origem dos gêneros.
80
Há duas cidades com o nome de Mégara, uma a oeste de Atenas e de Salamina, outra na Sicília. Como nota
Magnien (ARISTÓTELES, 1990, p. 155), o advérbio usado permite supor que a Poética foi feita em Atenas.
81
Verbo que significa ‘passear com grupos festivos, festejar com cantos e danças’ (WARTELLE, 1985, p. 87)
82
O parágrafo, aduzindo comentários filológicos e históricos quanto à origem da comédia e da tragédia, escapa
do tema das diferenciações entre as artes miméticas e parece anunciar os capítulos 4, que fala das origens
naturais da poesia, e 5, que trata da evolução da comédia e da epopéia.
40

Duas causas parecem ter dado origem à arte poética como um todo83, e todas
as duas naturais84. O mimetizar é natural85 no homem desde a infância – e nisso
difere dos outros animais, porque é o mais propenso à mímese, e os primeiros
ensinamentos são feitos por meio da mímese – e todos se comprazem com as
mímeses realizadas.

83
Tendo realizado a distinção entre as diferentes artes miméticas, Aristóteles passa a analisar as causas da poesia
e suas transformações. Conforme notou Halliwell, entretanto, o enfoque adotado por Aristóteles é teorético, e
não histórico (ARISTÓTELES, 1987, p. 79). Mesmo quando ele aponta para fatos históricos, como a diminuição
do papel do coro por Ésquilo, ou a introdução de um terceiro ator, por Sófocles, suas observações se orientam
antes no sentido de mostrar como a forma, no caso a forma da tragédia, evoluiu até o estágio que ele conhece.
Uma evolução teleológica, e não necessariamente cronológica. Devem ser entendidas nesse sentido as
suposições a respeito dos inícios da comédia e da tragédia.
84
Aspásio, em comentário à Ética Nicomaquéia, distingue quatro sentidos do termo phusei, ‘por natureza’, que
não é o mesmo termo usado aqui (phusikos – ‘natural’), mas suas observações podem ser tomadas como pontos
de partida para comentarmos o trecho:

(i) o que sempre ocorre para algo, como o pesado, que se move sempre para
baixo;
(ii) o que não existe desde o início, mas que, com o tempo, ocorre nas mais das
vezes, como o surgimento de dentes;
(iii) aquilo de que somos receptivos, como a saúde e a doença, contrários
quanto ao corpo, e
(iv) aquilo de que somos receptivos e para o qual temos uma propensão, como a
saúde, em relação à qual a doença é contrária à natureza
(38, 9-20, tradução de Marco Zingano, em comentário inédito da Ética
Nicomaquéia).

Segundo Aspásio, a virtude não é natural ao homem no sentido (i), mas o é no sentido (iii) e (iv). Note-se,
entretanto, que todos os exemplos de Aspásio têm uma base fisiológica, e a mímese parece que se enquadra mal
nesse esquema. Ainda que também a virtude também não tenha base fisiológica, a comparação de Aspásio cabe,
visto que o próprio Aristóteles chega a comparar o desenvolvimento das virtudes com a aquisição da saúde
(Ética Nicomaquéia, II, 2). Em se tratando da mímese, parece mais apropriado reter o sentido de ‘natural’ que
Aristóteles usa quando fala da música, em Política VIII, 1340 a 3-5:

œcei g¦r ¹ mousik» tin' ¹don¾n fusik»n, diÕ p£saij ¹lik…aij kaˆ p©sin
½qesin ¹ crÁsij aÙtÁj ™sti prosfil»j

“A música tem certo prazer natural, por isso o uso dela é agradável a todas as idades
e a todos os tipos de caráter” (tradução nossa).

O ‘ser natural’ aqui não é mais que um ‘ser comum’, ou, como sugere Lucas no seu comentário à Poética, “an
integral part of the human nature” (ARISTÓTETELS, 1998b, p. 71). Lucas sugere ainda que a noção se repete
no sumphuton (cf. a próxima nota) e que haveria aqui uma negação das teorias de inspiração divina.
85
‘natural’ aqui traduz sumphuton, ao passo que na frase anterior traduzia phusikai (feminino plura de phusikos).
Os dois termos têm a mesma raiz etimológica. Lucas (ARISTÓTETELS, 1998b, p. 71) considera-os equivalentes
(veja-se a nota anterior).
41

Um sinal disto é o que ocorre na prática: pois das coisas que olhamos com
aflição, as imagens, (mesmo) as mais exatas possíveis 86, contemplamos com
prazer, por exemplo, as figuras das feras mais sórdidas e dos cadáveres. A causa
disto é que aprender é prazeroso não apenas para os filósofos, mas também, de
modo semelhante, para os outros, ainda que participem disso em menor grau. Por
isso comprazem-se olhando as imagens, porque ocorre que, ao contemplá-las,

86
O ‘sinal’ de que trata o trecho tem, segundo parece, um caráter concessivo, ou seja: a prova de que todos se
comprazem com a mímese é o fato de que, mesmo aquilo que nos é mais abjeto na realidade (um cadáver ou uma
fera), ainda assim é prazeroso quando mimetizado, até quando é mimetizado de maneira precisa. Alguns
tradutores mascaram esse caráter concessivo (que, de resto, não está explícito na letra mesma do texto) e
traduzem a frase como se fosse uma oração comparativa, e.g., Jaime Bruna: “das coisas cuja visão é penosa
temos prazer em contemplar a imagem quanto mais perfeita” (ARISTÓTELES, 1997, p. 22). Essa observação
lexical tem um rendimento filosófico. Muitos comentadores avaliam que nesse trecho estaria condensada uma
possível teoria da mímese em Aristóteles, e que o processo mimético operaria a transformação daquilo que na
realidade é penoso em um prazer. Isso seria importante na tragédia, já que as duas emoções explicitamente
envolvidas nela, o temor e a piedade, são penosas, mas se transformam em prazeres quando representadas. Se
lermos a frase como Jaime Bruna (‘maior será o prazer quanto maior for a precisão do objeto representado’),
estaremos inclinados a pensar que o processo mimético será tão mais prazeroso quanto mais informações ele nos
trouxer acerca do objeto representado. A equação que resume esse ponto de vista é: prazer = informação. Se
lermos a frase com um sentido concessivo (a mímese proporciona prazer ainda que a representação do objeto
seja muito fiel a seu modelo real), o prazer da mímese não necessariamente estará vinculado à quantidade de
informação que ela traz. O próprio Aristóteles, na seqüência do capítulo, parece propenso à primeira hipótese, ao
afirmar que ‘a causa disto [do prazer da mímese] é que aprender é prazeroso’. Mas o que aprendemos quando se
trata não da representação de uma imagem, mas de uma ação? Aprendemos as virtudes? Estaria aí embutida
alguma resposta de Aristóteles à clássica pergunta socrática ‘a virtude é ensinável’? Parece um exagero admitir
essa hipótese nos termos em que ela está formulada aqui, mas alguns intérpretes se inclinam considerar a
tragédia ligada a algum processo de aquisição ou aperfeiçoamento das disposições morais. Não se pode negar,
entretanto, que o prazer da tragédia, tal como concebido na Poética, está ligado a certos tipos de ação apenas:
deve haver uma mudança de fortuna, e será melhor que essa mudança ocorra de maneira imprevista, contra as
expectativas, mas ainda dentro de um quadro regido pela necessidade ou pela probabilidade (vejam-se os
capítulos centrais do tratado, do 7 ao 14, mas especialmente os capítulos 9, 11, 13 e 14). Como conciliar essas
exigências com o aprendizado das virtudes? Em que ações assim são mais apropriadas como ensinamento que
outras? Deve-se ainda observar que o processo mimético não necessariamente segue o caminho da dor ao prazer.
Veja -se, por exemplo, o que se diz da observação de figuras em Política VIII:

Ð d' ™n to‹j Ðmo…oij ™qismÕj toà lupe‹sqai kaˆ ca…rein ™ggÚj ™sti tù prÕj
t¾n ¢l»qeian tÕn aÙtÕn œcein trÒpon (oŒon e‡ tij ca…rei t¾n e„kÒna tinÕj
qeèmenoj m¾ di' ¥llhn a„t…an ¢ll¦ di¦ t¾n morf¾n aÙt»n, ¢nagka‹on toÚtJ
kaˆ aÙtoà ™ke…nou t¾n qewr…an, oá t¾n e„kÒna qewre‹, ¹de‹an e•nai). (1340 a
23-28)

“O uso de sofrer ou de alegrar-se com representações é próximo do comportar-se da


mesma maneira diante da realidade (por exemplo, se alguém goza a visão da
imagem de alguém não por outro motivo mas pela forma mesmo, forçosamente a
visão da própria coisa, cuja imagem vê, é prazerosa)” (tradução nossa).

Essas observações parecem nos desobrigar de considerar que todo processo mimético deve necessariamente ser
avaliado nos termos estritos com que ele é apresentado aqui. (Para uma discussão mais detalhada desse assunto,
veja-se a Inrodução).
42

aprendem e montam raciocínios do que é cada coisa, por exemplo, este é aquele 87,
visto que se é o caso de não terem olhado o objeto de antemão, não é a mímese
realizada que provocará prazer 88, mas a execução da obra, ou o colorido, ou outra
causa de tal tipo.
Sendo natural para nós o mimetizar, bem como a harmonia e o ritmo 89, 90

(pois é evidente que os metros são parte do ritmo), de início os naturalmente melhor
dispostos a isso, fazendo-a avançar pouco a pouco, deram origem à poesia a partir
de improvisos. A poesia diversificou-se segundo o caráter próprio (dos poetas). Pois
os mais graves realizaram mímeses de belas ações e de ações de pessoas desse
tipo, ao passo que os mais levianos, de pessoas viciosas, primeiro fazendo
vitupérios, assim como aqueles fizeram primeiro hinos e encômios 91.
Não podemos citar um poema desse tipo92 de ninguém antes de Homero,
embora seja provável que tenha havido muitos, mas há a partir de Homero, por
exemplo, o Margites dele e outros do mesmo tipo, nos quais veio a se encaixar o
metro iâmbico – por isso agora é chamado iambo, porque nesse metro eles
vituperavam 93 entre si. Entre os antigos, uns se tornaram poetas heróicos, outros,
poetas iâmbicos.

87
Ou seja, ‘este’ (que está desenhado) ‘é aquele’ (que eu já tinha visto anteriormente).
88
O prazer, nessa passagem específica, parece estar relacionado ao reconhecimento do objeto conhecido
anteriormente. Seria excessivo, entretanto, ligar esse prazer ao prazer do reconhecimento considerado como uma
das partes do enredo (e definido no capítulo 11).
89
Sobre o caráter natural do ritmo e da harmonia, veja -se a passagem da Política citada na nota 2.
90
Dupont-Roc e Lallot consideram que a naturalidade da harmonia e do ritmo seria a segunda das causas
naturais mencionadas no início do capítulo (ARISTÓTELES, 1980, p. 166-167, nota 5). Halliwell traduz como a
maioria: considera que as duas causas são a naturalidade da mímese e o prazer que ela provoca, e comenta
quanto à outra alternativa: “I do not think the point is ultimately important, since Ar. regarded melody and
rhythm as themselves mimetic at root” (ARISTÓTELES, 1987, p. 79, nota de rodapé).
91
Note-se que o par ‘vitupério’/ ‘encômio’ faz eco a outros pares de opostos quanto a características éticas,
como o ‘virtuoso’/ ‘vicioso’ (capítulo 2) ou o ‘graves’/ ‘levianos’ deste capítulo mesmo. Interessante que na
Ética Nicomaquéia, no capítulo 1 do livro III, Aristóteles diz que os atos voluntários são dignos de censura ou de
louvor. ‘Censura’ e ‘vitupério’ são a tradução da mesma palavra grega (‘psogon’), e o encômio nada mais é a
que a forma literária do louvor. A sobreposição vocabular entre a ética aristotélica e a Poética é mais um sinal da
afinidade entre os temas.
92
Ou seja, do tipo do vitupério.
93
‘Vituperar’ se diz, em grego, ‘iambizein’, de mesma raiz que ‘iambo’. É difícil dizer qual dos termos é o
primitivo e qual o derivado (quanto ao termo ‘iambo’, veja-se o comentário de Dupont-Roc e Lallot
(ARISTÓTELES, 1980, p. 168, nota 7)).
43

Assim como Homero foi o supremo poeta em relação às ações virtuosas (pois
foi o único que não apenas realizou bem a mímese, mas também a realizou de
forma dramática 94), também foi o primeiro a propor as linhas gerais da comédia,
tendo colocado em forma dramática não o vitupério, mas o cômico. Pois para o
Margites vale a analogia: como a Ilíada e a Odisséia estão para a tragédia, assim ele
está para a comédia95.
Tendo surgido então a tragédia e a comédia, os que, segundo sua natureza
própria, fazem a poesia seguir em direção a cada uma delas, uns, em vez de
iambos, tornaram-se comediógrafos, outros, em vez de poemas épicos, tornaram-se
tragediógrafos, por serem esses gêneros mais amplos e mais estimados que
aqueles.
Quanto a examinar se a tragédia já atingiu um estágio suficiente quanto a
suas espécies96 ou não, julgar isso em si mesmo ou no que diz respeito às
apresentações, isso seria parte de outro tratado.
Tendo nascido então de começos improvisados – não só a tragédia mesma,
mas também a comédia, uma a partir dos que conduziam o ditirambo, outra a partir
dos que conduziam os cantos fálicos, que até hoje permanecem em uso em muitas
cidades – cresceu pouco a pouco fazendo avançar tudo quanto se tornava evidente

94
A princípio pode parecer estranho o uso do adjetivo ‘dramático’ aplicado a Homero. No entanto, Aristóteles
considera que a épica tem os mesmo elementos que a tragédia e considera Homero o primeiro a ter feito uso
desses elementos de maneira taxativa (cf. 1459 b 12). Dentro da evolução da poesia tal como a considera
Aristóteles, Homero é o precursor das formas dramáticas.
95
Qual o verdadeiro teor da comparação entre Homero autor elevado e Homero autor cômico? À primeira vista o
trecho parece ter uma inconsistência: ser excelente como autor elevado não é o mesmo que ser o primeiro a dar
os esboços da comédia. Ser excelente cozinheiro de massas não tem nada a ver com ser o primeiro a propor
sobremesas. A comparação, nos dois casos, não encaixa. Mas essa aparente inconsistência é justamente
compatibilizada pelo parêntese: a excelência de Homero no gênero elevado se deve não apenas a ter feito boas
imitações, mas também a ter dado a essas imitações um caráter dramático, fazendo-as próprias para o teatro,
assim como fez próprio para o teatro o gênero cômico ao dramatizar não a censura, mas o ridículo. Nesse
sentido, então, a Ilíada e a Odisséia estão para a tragédia assim como o Margites está para a comédia: como
origem de um esquema formal, o que é condizente com o assunto do capítulo, pois se trata justamente de um
capítulo sobre as origens e a evolução da poesia.
96
O trecho tem tradução difícil, principalmente porque deve ser compatível com a afirmação, feita logo a seguir,
de que a tragédia parou quando teve posse de sua natureza (¹ tragJd…a ™paÚsato, ™peˆ œsce t¾n aØtÁj
fÚsin – 1449 a 14-15). Os tradutores apostam no sentido que poderia ter to‹j e‡desin, e divergem. Uns
consideram que Aristóteles propõe saber se as espécies de tragédia – simples, complexa, patética e ética, cf.
capítulo 18 – atingiram seu pleno desenvolvimento (Bruna, Dupont-Roc e Lallot, Halliwell, Gernez) outros, se
seus elementos constitutivos já atingiram a maturidade (Rostagni, Hardy, Bywater). Eudoro traduz: “Examinar,
depois, se as formas trágicas [a poesia austera] atingem ou não a perfeição [do gênero]...” (ARISTÓTELES,
1998a, p. 108); Gallavotti: “Um outro argumento a considerar seria se a tragédia, no que diz respeito a outras
formas de arte, já atingiu a completude” (ARISTÓTELES, 1999, p. 13); Nassetti: “Verificar se a tragédia já
revestiu todas a suas formas possíveis ou não...” (ARISTÓTELES, 2003, p. 31). Cf. nota 7 do capítulo 26.
44

nela, e tendo sofrido muitas mudanças, a tragédia parou quando atingiu sua
natureza própria97. Ésquilo foi o primeiro a levar o número de atores de um para
dois, bem como diminuiu a parte relativa ao coro e fez da palavra o protagonista;
mas foi Sófocles quem introduziu três atores e a cenografia. Ainda, quanto à
importância: de pequenas histórias e elocução própria ao ridículo, por ter se formado
a partir de elementos satíricos, tardiamente conquistou majestade, e o metro de
tetrâmetro se fez iâmbico. Pois primeiro fez-se uso do tetrâmetro, por ser a poesia
satírica e mais própria para a dança, mas quando a fala se impôs, a natureza
mesma encontrou o metro próprio, pois o iambo é o metro mais apropriado à fala;
prova disso: a maioria das vezes dizemos iambos quando conversamos, e poucas
vezes dizemos hexâmetros, saindo da cadência 98 da conversa.

97
Essa expressão, como bem notaram Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 171, nota 13), se
esclarece a partir de um exemplo da Física:

tÕ g¦r dun£mei s¦rx À Ñstoàn oÜt' œcei pw t¾n ˜autoà fÚsin, prˆn ¨n l£bV
tÕ e•doj tÕ kat¦ tÕn lÒgon, ú ÐrizÒmenoi lšgomen t… ™sti s¦rx À Ñstoàn,
oÜte fÚsei ™st…n (193 a 36 – b 3)

“a carne e o osso em potência não têm ainda sua natureza própria, nem são por
natureza, antes de assumir a forma, a que é conforme o enunciado pelo qual
dizemos, ao defini-los, o quê é carne ou osso”. (tradução de Lucas Angioni
(ARISTÓTELES, 2002, p. 61))

Aristóteles, no desenvolvimento da tragédia, vê um momento no qual ela atingiu sua natureza própria.
98
A maioria das traduções verte o termo – harmonia – não por ‘cadência’, mas por ‘tom’. A tradução é sugestiva
a aproveita uma coincidência vocabular. Harmonia, como termo musical, também se diz, nas línguas latinas,
tom. O original grego diz, literalmente, ‘harmonia que convém à fala’, que pode ser traduzido, na tentativa de
não se afastar muito do sentido original, como ‘tom da fala’, ‘tom da conversa’. No entanto ‘harmonia’, na sua
origem, não é propriamente um termo musical, mas um termo de carpintaria, que significa ‘ajuste’, ‘encaixe’ de
peças. É lícito supor que o termo passou a ter um significado musical porque, para afinar a cítara, por exemplo,
era necessário ‘ajustar’ as cravelhas, que, devidamente ‘ajustadas’ de certa maneira, constituíam um tom. Veja-
se, por exemplo, essa descrição de Corrêa (2003, p. 28); “Antes de cada performance, os músicos esticavam as
cordas de seus instrumentos e, com cavilhas, ajustavam-nas a intervalos específicos, a uma determinada
afinação”. Como na Poética se trata antes do ritmo da fala, e de como o iambo e o hexâmetro se ‘encaixam’
melhor ou não na conversa, o termo ‘cadência’ parece mais apropriado. Gallavotti é o único, entre os tradutores
consultados, a propor uma solução parecida: “... nel nostro discorrere giornaliero ci capita di pronunziare
trimetro molto spesso, ma esametri molto poco, e sentiamo di uscire dal ritmo prosastico”. (ARISTÓTELES,
1975, p. 15). Compare-se esta com a tradução de Eudoro: “demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos
jambos na conversação, e só raramente hexâmetros, quando nos elevamos acima do tom comum”.
(ARISTÓTELES, 1998a, p. 108). A versão de Eudoro pode dar a entender que o hexâmetro seria usado para
ocasiões mais solenes. Aliás, essa interpretação é a que a maioria das traduções adota. Mas ela não é a única
possível, o próprio texto grego, usando um particípio presente, não deixa clara a escolha entre a traduação de
Gallavotti – que poderia ser parafraseada como ‘quando, por acaso, produzimos hexâmetros, sentimos que
estamos fora do ritmo da fala” – ou a de Eudoro – “usamos hexâmetros para sairmos do tom coloquial”.
Preferimos conservar a ambivalência do original ao verter a frase por meio de uma oração adverbial reduzida de
gerúndio.
45

Quanto à quantidade de episódios e às outras coisas, como se diz que cada


uma delas foi ordenada, seja suficiente o que está dito por nós: pois seria muito
trabalhoso discorrer em detalhe sobre cada uma.
46

A comédia é, como dissemos, mímese de homens inferiores99, não,


entretanto, segundo todo 100 vício, mas o cômico é uma parte do vergonhoso 101. Pois
o cômico é certo erro e uma vergonha que não causam dor ou dano 102; um exemplo
imediato: a máscara cômica é algo vergonhosa103 e disforme, mas sem dor 104.

99
A rigor, Aristóteles não disse que a comédia é a mímese de homens inferiores (phauloterôn), mas sim que
aqueles que imitam imitam homens que agem, e estes são virtuosos (spoudaioi) ou viciosos (phauloi) (cap. 2,
1448 a 1-2). Ao pé da letra, a tradução seria “A comédia é, como dissemos, mímese de homens mais viciosos”.
O uso do adjetivo comparativo talvez se justifique na medida em que já está incorporada à exposição do assunto
a comparação entre o objeto mimetizado e o genérico “nós”, apresentada no mesmo capítulo 2.
100
Importaria definir aqui se esse ‘todo’ é usado com o objetivo de restringir o domínio da comédia a alguns
entre os vícios (a tradução resultante seria “A comédia é, como dissemos, mímese de homens inferiores, não,
entretanto, segundo todas as espécies de vícios”) ou se ele é usado com vistas a restringir a extensão do vício
representado de forma a não fazê-lo causar dor ou dano (e a tradução seria “A comédia é, como dissemos,
mímese de homens inferiores, não entretanto segundo o vício considerado em toda sua intensidade”). Pelo
contexto, a segunda hipótese parece ser a mais correta.
101
Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 87) considera a seqüência men...ou mentoi...alla (‘não entretanto...mas’)
muito elíptica, talvez por que não considere o pasan (‘todo’) de pasan kakian (‘todo vício’) como intensivo (ver
nota anterior). O alla (‘mas’) explica o sentido de pasan (‘todo’): ‘... não, entretanto segundo todo o vício, mas
(i.e., ‘visto que’) o cômico é apenas parte do vergonhoso’.
102
Essa afirmação a respeito do cômico (to geloion) remete, por seu conteúdo, a outra, a respeito do pathos
(evento patético), que é ao lado da peripécia e do reconhecimento, uma das partes do enredo: ‘o evento patético
... é uma ação destrutiva ou dolorosa, como as mortes, os sofrimentos e ferimentos em cena e tudo quanto seja
desse tipo’ (1452 b 11). Observemos, também, que é mais trágico o enredo que leva o herói, por um erro, da
felicidade ao infortúnio (cf. capítulo 13), percurso em que certamente há dor e dano. Parece, então, que se pode
propor uma diferença adicional entre a comédia e a tragédia que não somente uma diferença de objeto. Não basta
uma abarcar ações virtuosas e a outra, viciosas, é necessário que o vício considerado não seja apresentado de
maneira dolorosa ou danosa. Entretanto é difícil dizer se essa diferença adicional constitui realmente um critério
de definição da comédia ou se é apenas um critério de avaliação da qualidade do cômico. Dentro do escasso
quadro geral da evolução da comédia apresentado, parece que Aristóteles considera decisivo o momento em que
a comédia abandona o vitupério, por meio do Margites, equivocadamente atribuído a Homero, e vai em direção
ao cômico colocado sob forma dramática (1448 b 34 – 49 a 2). Esse ponto é reafirmado dentro do próprio
capítulo 5, quando se diz que Crates, ao abandonar forma iâmbica, foi o primeiro a fazer tramas e enredos
(muthos kai logos) gerais (katholou). A semelhança entre as duas passagens existe na medida em que elas
mostram a comédia evoluindo a partir daquilo que é dito a respeito alguém específico para aquilo que é dito sob
o signo do geral. Também o capítulo 9 reafirma essa tese, a dizer que, diferentemente dos poetas cômicos, os
poetas iâmbicos compõem sobre casos ou indivíduos particulares (kath´hekaston). Interessante seria nos
questionarmos se essa evolução do particular ao geral se deu ao mesmo tempo que uma depuração do cômico de
forma a torná-lo não danoso. No capítulo 8 do livro IV da Ética Nicomaquéia (1127 b 33 – 1128 b 9),
Aristóteles, focalizando sua atenção sobre a vida social, analisa o excesso, a falta e a mediedade em relação ao
riso e censura aqueles que procuram fazer rir a todo custo, não se importando se o que dizem fere aquele que eles
tomam como objeto de seus gracejos. É saudável o riso que não necessita vexar o outro para fazer rir. A
diferença entre o riso saudável e o danoso Aristóteles vê existir também entre a comédia antiga e a recente: para
uma, o cômico derivava das palavras injuriosas, para outra, das alusões (to‹j m•n g¦r Ãn gelo‹on ¹
a„scrolog…a, to‹j d• m©llon ¹ ØpÒnoia – 1128 a 23-24). De qualquer forma, mesmo que essa evolução não
se tenha dado pari passu, parece importante para a avaliação da comédia, talvez até mesmo para sua definição,
enquadrar-se nos preceitos éticos do riso. Esse é um indício adicional de que a Poética deve ser lida dentro do
escopo geral da ética aristotélica, ainda que seus fundamentos e conceitos não estejam completamente
subordinados a ela.
103
Os tradutores consultados são unânimes em traduzir esse termo (‘aiskhron’) por ‘feio’ (Halliwell, Bywater:
“ugly”; Gernez, Hardy: “laid”; Eudoro, Nassetti, Bruna: “feia”; Gallavotti: “brutto”), mesmo os que traduziram
47

As modificações pelas quais passou a tragédia e os autores por meio de


quem elas se deram não ficaram sem registro. As da comédia, porém, porque de
início ela não gozava de boa reputação, não têm registro. De fato, só tardiamente o
arconte forneceu o coro de comediantes, que antes 105 eram voluntários 106. Somente
tendo ela já certa forma 107 é que começa a haver registro 108 dos chamados autores
cômicos. Desconhece-se quem deu a ela a máscara, o prólogo, o número de atores
e tudo o mais. Mas o fazer enredos é de Epicarmo e Fórmis109. Essa prática, no

nas linhas imediatamente precendentes o mesmo termo com conotação moral. Parece haver, de um modo geral,
uma oscilação entre traduzir certos vocábulos nestas primeiras linhas com sentido estético ou com sentido ético,
que, ademais, têm essa ambivalência de sentido, mesmo em português. Nesta útima frase do parágrafo,
entretanto, como o sentido estético parece estar coberto pelo ‘disforme’ (diestramenon), é razoável reservar ao
aiskhron um valor ético. Traduzi-lo por ‘feio’ também implicaria imputar a Aristóteles uma relação de similitude
entre o feio moral e o feio estético, que não está ausente da cultura grega (basta lembrar os termos com que é
descrito Tersites na Ilíada) nem da ética aristotélica (basta lembrar que certa boa condição física é requisito para
a eudaimonia – sobre eudaimonia, ver nota 18 do capítulo 6), mas que não parece ser o caso aqui.
104
Dupont-Roc e Lallot se perguntam se este início do capítulo pode ser considerado uma definição de comédia,
e respondem: a rigor, sim (ARISTÓTELES, 1980, p. 178, nota 2). Na seqüência do comentário, não deixam de
notar, porém, que a definição dada não chega a esgotar aquilo que constituiria a ousia (essência) da comédia. Há
certo paralelismo na forma como é apresentada esta definição e a definição de tragédia dada no início do capítulo
6: ambas retomam elementos já abordados (cf. a frase ésper e‡pomen no in ício deste capítulo – 1449 a 32 – e
frase perˆ d• tragJd…aj lšgwmen ¢polabÒntej aÙtÁj ™k tîn e„rhmšnwn tÕn ginÒmenon Óron tÁj oÙs…aj,
do início do capítulo 6 – 1449 b 22-24) e acrescentam e detalham elementos novos. Quanto à comédia,
especifica-se que a mí mese realizada não comporta todo vício (oÙ mšntoi kat¦ p©san kak…an), mas apenas a
parte do vício que não causa dor ou dano.
105
O ‘antes’ não está explicitado no texto, mas sua presença é legítima para recuperar o sentido do alla presente
nos códices.
106
O contexto não permite decidir se a frase “de fato, só tardiamente...eram voluntários” funciona como uma
evidência de que a comédia não era tida em boa reputação ou se funciona como uma justificativa para a falta de
registro a respeito da comédia. Deve-se supor, para dar razoabilidade a essa segunda hipótese, que o fato de
haver um coro oficialmente patrocinado implicaria também alguma forma de registro das comédias, o que é
plausível, uma vez que “fornecer o coro”, tarefa do arconte, não significa apenas indicar um corifeu para
contratar os atores, o coro e fornecer o cenário, mas admitir oficialmente a própria comédia nos festivais (cf. a
primeira nota do capítulo 5 da tradução de Gallavotti (ARISTÓTELES, 1999, p. 133) e a nota 25 da tradução de
Gernez (ARISTÓTELES, 2001, p. 18)).
107
‘uma certa forma’ traduz sc»mat£ tina. Deve-se observar que scÁma, o nominativo de sc»mat£, foi usado
por Aristóteles com referência à gênese do esquema cômico presente no Margites, que ele equivocadamente
atribui a Homero. Disse Aristóteles, no capítulo 4, que Homero, no Margites, foi o primeiro a propor as linhas
gerais (scÁma) da comédia. Parece haver um conflito entre as duas passagens, uma vez que, se desde Homero já
existe o scÁma da comédia, como se pode sustentar que este scÁma apareceu ainda incompleto (sc»mat£ tina)
em um ponto posterior da evolução do gênero? Talvez os dois termos não sejam usados com o mesmo sentido.
Na capítulo 4 talvez se faça referência à gênese de uma certa estrutura cômica, quando pela primeira vez se faz
uso do cômico, e não do vitupério, para provocar o riso, ao passo que no capítulo 5 talvez se faça referência a um
certo estágio evolutivo da forma da comédia, núme ro de atores, prólogo, etc...
108
As traduções se dividem entre dar a mnhmoneÚontai um sentido de registro oficial ou um sentido de memória
guardada pela tradição.
109
Susemihl sugere excluir a menção a Epicarmo e a Fórmis, no que é seguido por Bywater. Entre as traduções
consultadas, somente a de Halliwell é de mesma opinião (ARISTÓTELES, 1987, p. 36).
48

princípio, veio da Sicília. Entre os atenienses, Crates foi o primeiro a abandonar o


gênero iâmbico e passar a fazer enredos e histórias de caráter geral110.
A epopéia se assemelha à tragédia na medida em que é a mímese
metrificada de homens virtuosos: mas, por ser metrificada uniformemente e por ser

110
Halliwell, no comentário que faz ao capítulo 5 (ARISTÓTELES, 1987, p. 84 et seq.), observa que Aristóteles
parece identificar a evolução da tragédia à depuração do caráter iâmbico que havia em poetas como Arquíloco,
em que a invectiva mordaz contra particulares (kath´hekaston, cf. capítulo 9, 1451 b 14) predominava. Essa
circunscrição do domínio da comédia à “torpeza anódina e inocente” (na solução usada por Eudoro de Sousa
para verter a passagem) está de acordo com o preceito aristotélico para o riso e os gracejos em sociedade,
apresentados no capítulo 8 do livro IV da Ética Nicomaquéia, como nota Halliwell (ver também nota 4).
Também para o riso e para os gracejos há uma falta e um excesso, sendo que o excesso caracteriza-se pelo querer
fazer rir a qualquer custo, sem se preocupar em dizer o que é conveniente ou sem se preocupar em não provocar
dor em quem é objeto dos gracejos:

oƒ m•n oân tù gelo…J Øperb£llontej bwmolÒcoi dokoàsin e•nai kaˆ fortiko…,


glicÒmenoi p£ntwj toà gelo…ou, kaˆ m©llon stocazÒmenoi toà gšlwta
poiÁsai À toà lšgein eÙsc»mona kaˆ m¾ lupe‹n tÕn skwptÒmenon (1128 a 4-7)

“Os que levam a jocosidade ao excesso são considerados farsantes vulgares que
procuram ser espirituosos a qualquer custo e, na sua ânsia de fazer rir, não se
preocupam com a propriedade do que dizem nem em poupar a suscetibilidade
daqueles que tomam para objeto de seus chistes.” (tradução de Leonel Vallandro e
Gerd Bornheim (ARISTÓTELES, 1973, p. 315)).

A similitude entre a abordagem da Ética e da Poética, por sua coerência, dá força argumentativa à interpretação
proposta por Halliwell: o preceito poético de não mimetizar segundo todo vício se explica pelo preceito ético de
não levar a invectiva a escancarar ao ridículo o vício daquele que é objeto do vitupério. Seguido esse preceito, o
cômico aparece, pois não chega a vexar dolorosamente aquele de quem se graceja (não causa dor ou dano), e se
identifica com a virtude quanto ao riso em sociedade, um meio termo entre o gracejo insolente (o riso excessivo)
e a rudeza (a falta do riso). O critério do riso virtuoso é, então, o quanto o objeto da troça se sente incomodado
ou não com ela. Halliwel considera, por exemplo, que Aristófanes não estaria incluído entre os adeptos do riso
virtuoso, pois faz de cenas de dor física motivo de riso. Halliwell não cita, mas não se pode esquecer que
personalidades da vida ateniense eram objeto de zombaria em suas comédias, sendo o caso mais exemplar
Sócrates, mas também, entre outros, Agatão (nas Tesmofórias), Eurípedes e Ésquilo (em As Rãs). Assim a
comédia se vê colocada dentro da visada teórica da ética aristotélica, pois os preceitos quanto ao cômico
transitam com facilidade de um domínio a outro. Não se pode, entretanto, deixar de notar que o caráter não
doloroso ou não danoso do cômico pode ser entendido não como certa qualidade da resposta a certo gracejo
particular, mas sim como uma propriedade da estrutura do enredo. Aristóteles diz que é próprio da comédia que
o final não seja como o final trágico: na comédia, inimigos terminam amigos e ninguém mata ninguém: este é o
prazer próprio da comédia (cf. 1453 a 53 et seq.). O preceito ‘mimetizar não segundo todo o vício’, nesse caso,
se explicita em ‘mimetizar sem que o resultado (final) seja danoso ou doloroso’, ou seja, sem que, do vício,
sejam apresentadas suas conseqüências nefastas. A comédia, então, deixa de ser leve para se tornar leviana e
escapa completamente das categorias éticas aristotélicas. Essa hipótese é pouco provável, pois, se assim fosse,
Aristóteles não teria feito o elogio da comédia nova frente à comédia aristofânica (veja-se a nota 4). Mas o tema,
colocado nesses termos, serve como introdução para que nos questionemos a respeito da relevância moral da
comédia. Teria a comédia uma finalidade recreativa, servindo apenas aos momentos de lazer, ou, pelo contrário,
poderiámos reivindicar para ela, do mesmo modo como alguns fazem para a tragédia, uma finalidade formativa?
Se este é o caso, teríamos que relacionar esta finalidade formativa a uma protagonização da vergonha. Mostrar
situações vergonhosas (o que, em larga medida, implica colocar em cena ações nas quais o vício está implicado),
ainda que não danosas, não deixa de ser uma forma de acentuar (talvez purificar?) o sentimento de vergonha de
cada espectador. Mas, essa pretensão ética, ver-se-ia ela mitigada pelo happy end de que fala Aristóteles? Que a
comédia tem pretensões éticas, atestam-no bem certas parábases de Aristófanes. A própria forma da parábase,
entretanto, em que a ação mimética é abandonada e o coro se dirige diretamente ao público, parece antes atestar
que a comédia, enquanto comédia, é insuficiente para o propósito ético que Aristófanes pretende. Mas talvez
tivesse, para Aristóteles, a depender do que seria dito da comédia no provável livro II da Poética, um escopo
ético relevante.
49

recitada, difere dela. E ainda, pela extensão: enquanto a tragédia se esforça, o mais
possível, para dar-se dentro de um único período solar, ou pouco se distinguir
disso111, a epopéia é indefinida quanto ao tempo, e por isto difere. Entretanto, no
princípio procedia-se de maneira semelhante nas tragédias e nas epopéias.
E as partes são, por um lado, as mesmas, por outro, privativas da tragédia112.
Por isso, aquele que sabe julgar se uma tragédia é boa ou ruim, sabe fazê -lo
também quanto à epopéia, já que está contido na tragédia aquilo que a epopéia tem,
mas o que a tragédia tem, nem tudo está contido na epopéia.

111
Não se pode defender, contra toda argumentação, que a frase tenha o caráter prescritivo rígido que quis ver
nela o Renascimento. Vários comentadores (Halliwell, Dupont-Roc e Lallot, Gernez) chamam a atenção para
este fato. Deve-se dizer, entretanto, a favor da leitura renascentista, que a presença do ‘mais possível’ (hoti
malista) e do ‘se esforça’ (peiratai) podem induzir a tal intepretação.
112
Das seis partes da tragédia a serem enumeradas no capítulo 6, não pertencem à épica o espetáculo (opsis) e o
canto (melopoiia).
50

A respeito da mímese 113 em hexâmetros e da comédia falaremos depois114.


Falemos agora115 da tragédia, tomando 116 dela a definição de sua essência que
deriva do que foi dito.

113
A rigor, o texto grego menciona não a mímese (mímesis), mas a (arte) mimética ((technê) mimêtikê). A
tradução ao pé da letra, entretanto, resultaria um tanto carregada: A respeito da arte mimética em hexâmetros...
Optou-se por deixar a tradução mais leve, sem o risco, a nosso ver, de fazê-la leviana. Analisando os outros
trechos da Poética em que mimêtikos ocorre (1451 a 30, 1452 b 33, 1459 a 17), a substituição dele por mimêsis
não parece adequada principalmente em 51 a 30, mas também em 59 a 17. Em 52 b 33, ao contrário, a
substituição até parece necessária. De modo geral, talvez seja inútil procurar na seleção e uso do termo
mimêtikos, em vez de mímêsis, a expressão de alguma diferença filosófica importante dentro do contexto da
Poética. De qualquer forma, no trecho em questão, seja qual for a tradução adotada, não há dificuldade em
entender que a expressão se refere à epopéia.
114
Fala-se da epopéia (isto é, da mímese em hexâmetros) principalmente nos capítulos 23 e 24. Da comédia,
imagina-se que ela seria abordada em um suposto segundo livro – perdido – da Poética. De fato, no manuscrito
B (Riccardianus 46, do século XIV), segundo a nota crítica de Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p. 49), após as
últimas palavras do texto, seguem-se ainda peri de e alguns sinais de leitura difícil, das quais se pode propor
como reconstrução iambôn kai kômôidias (a tradução seria: ‘a respeito dos iambos e da comédia’). Kassel cita
ainda o fato de que Eustrátio, em seu comentário à Ética Nicomaquéia, fazendo referência ao Margites,
mencione um primeiro livro da Poética (en tôi prôtôi peri poiêtikês), o que faz supor que ele pensasse (ou
soubesse) haver dois livros.. Há ainda menção a dois livros da Poética no Index librorum Aristotelis, de
Diógenes Laércio (5, 24, (83)). Paul Moraux, comentando a lista de Diógenes Laércio (MORAUX, 1951 p. 102),
dá como certo o fato de que a Poética contasse com dois livros. Por fim, um dos manuscritos latinos da Poética
traz como inscrição primus aristotilis de arte poetica liber explicit.
115
No grego, há a partícula de, que foi considerada como um contraponto ao men oun, da frase anterior. Segundo
Smyth ([1984], p. 655, § 2901, c), no par men oun as partículas podem conservar cada uma suas próprias
características, sendo que, nesse caso, elas indicam “a transição para um novo assunto. Assim, men aponta para
uma antítese que se segue e é indicada por de, alla, mentoi, enquanto o oun (inferencial) faz a conexão com o
que precede”. Esse uso é corrente na Poética: o par men oun ocorre 38 vezes e em 31 delas ele é seguido por um
de antitético. Para uma análise mais detalhada, mas essencialmente a mesma, veja -se a nota 1 do capítulo 14.
116
Os manuscritos têm, todos, o particípio apolabontes, que foi corrigido para analabontes por Bernays. A
correção teria o propósito de evidenciar que a definição seria apenas uma síntese recapitulativa dos pontos
abordados nos capítulos anteriores, especialmente os capítulos 1, 2 e 3. Se não levarmos em conta o caso da
catarse, isso de fato ocorre (vejam-se as notas 6 e 9), mas não sob a forma de uma síntese recapitulativa. A
definição retoma, sim, os elementos que foram abordados nos capítulos iniciais, mas os coloca sob nova
perspectiva, como é o caso especialmente do objeto de imitação: no capítulo 2, o objeto de imitação era o agente,
a pessoa que age (prattontas – 1448 a 1). Na definição que está para ser apresentada, o objeto de imitação não
será mais a pessoa que age, mas a própria ação. Essa diferença não se explicaria por uma suposta equivalência
entre os termos,visto que a ênfase na ação, e não nos agentes, é defendida pelo próprio Aristóteles em vários
pontos do tratado (especialmente 1450 a 15 et seq.). Pode-se mesmo falar de uma protagonização da ação em
detrimento dos agentes, protagonização essa que levará à primazia do enredo (muthos) sobre o caráter (êthos).
Esse movimento não é gratuito nem sem conseqüências. Dupont-Roc e Lallot, analisando (e rejeitando) a
correção proposta por Bernays, sugerem que o valor do prefixo apo- em apolabontes indique

“menos a simples ‘retomada’ recapitulativa dos elementos da definição – este, ao


contrário, é o sentido de ana- – que o ‘apartar’, a posição da definição como um
enunciado destacado, que poderá, por sua vez, ser retomado e analisado em detalhe
na seqüência do texto” (ARISTÓTELES, 1980, p. 186), (tradução nossa).

Dessa forma, eles traduzem: “tratemos agora da tragédia, após haver isolado a definição de sua essência tal qual
ela resulta disto que nós dissemos” (idem, p. 53). A tradução é sugestiva. Entretanto, a decisão de verter o
51

A tragédia é a mímese de uma ação em que a virtude está implicada117, ação


que é completa, de certa extensão, em linguagem ornamentada, com cada uma das
espécies de ornamento diversamente distribuída entre as partes, mímese realizada
por personagens em cena, e não por meio de uma narração, e que, por meio da
piedade e do temor, realiza a catarse de tais emoções118.

particípio aoristo por uma subordinada temporal que indica anterioridade em relação à oração do verbo principal
traz ao texto uma precisão que talvez excessiva em relação ao original. O particípio aoristo não necessariamente
indica ação anterior à ação do verbo principal: ela é “às vezes coincidente ou próxima, quando ela define, ou é
idêntica, à do verbo principal, e a ação subordinada é apenas uma modificação da ação principal” (SMYTH,
[1984], p. 420, § 1872 c) (tradução nossa).
117
A tradução de spoudaias, termo que seria vertido simplesmente por ‘virtuosa’, ou ‘nobre’ (ver mais abaixo),
por ‘que implica virtude’ certamente é excessiva, mas, a nosso ver, o sintagma mimêsis praxeôs spoudaias pode
e deve ser lido em chave ética. Quando Aristóteles diz mimêsis praxeôs ele não se refere ao fato de que na
tragédia os atores se apresentam agindo diante do público (o que está contemplado logo adiante no texto e
constitui o modo da mímese trágica). Aqui se trata do objeto da mímese e a ação em questão não é uma ação
qualquer, mas uma ação moralmente relevante. Quanto ao termo spoudaias, deve-se notar que, nas Categorias,
mas precisamente em 10 a 26 – b 11, Aristóteles diz que algumas qualificações (por exemplo, ‘pálido’, ‘justo’)
recebem seu nome paronimicamente da qualidade à qual se ligam (no caso, ‘palidez’ e ‘justiça’,
respectivamente), ao passo que outras qualificações, como por exemplo, ‘virtuoso’ (spoudaios) recebem seu
nome não da qualidade à que se ligam (no caso, ‘virtude’, que em grego se diz aretê): hoion apo tês aretês ho
spoudaios: tôi gar aretên ekhein spoudaios legetai, all’ou parônumôs apo tês aretês (“por exemplo, a partir da
virtude [se denomina] o virtuoso: pois por ter virtude ele é dito virtuoso, mas não paronimicamente a partir da
virtude” – 10 b 7-9; em português a frase perde sentido, já que ‘virtuoso’ tem a mesma raiz que ‘virtude’). Ora,
spoudaias pode ser traduzido de diversas maneiras, e as traduções o vertem às vezes por ‘sério’(Butcher, Else,
Haliwell, Bywater, Gallavotti), às vezes por ‘nobre’ (Dupont-Roc e Lallot, Gernez, Magnien), às vezes por ‘de
caráter elevado’ (Hardy, Eudoro) e Bruna, por ‘grave’. Todas as traduções esvaziam o termo de suas
ressonâncias éticas mais importantes. Traduzi-lo por ‘ação virtuosa’ seria legítimo tendo-se em vista a
observação das Categorias, mas tal tradução poderia levar a crer que se trata de uma ação que perfaz o meio
termo aristotélico, regra da virtude. Ora, as ações trágicas estão longe de serem virtuosas nesse sentido (ainda
que o meio termo seja, via de regra, o alvo da ação trágica). Trazer à cena a mímese de uma ação que fosse o
exemplo do meio termo seria fazer da tragédia uma fábula rasamente didática. Optou-se então pela perífrase
adotada.

118
A definição de tragédia retoma, com modificações maiores ou menores (vejam-se as notas 4 e 9), os itens
abordados nos capítulos 1, 2 e 3 e que servem de critérios de diferenciação entre as artes miméticas (cf. 1447 a
16: diapherousi de allêlôn trisin). Os meios (capítulo 1) em que se faz a mímese trágica são a palavra, o ritmo e
a harmonia, apresentados pela fórmula sintética ‘linguagem ornamentada’, que também os hierarquiza: o
principal é a palavra, a linguagem, secundada pelos ornamentos do ritmo e da harmonia; o objeto da mímese
(capítulo 2) é a ação, qualificada como virtuosa, completa e de certa extensão; o modo da mímese (capítulo 3) é
a apresentação direta dos fatos, e não sua narração. A catarse, entretanto, surge ex abrupto, acompanhada de
maneira igualmente não anunciada pelo temor e pela piedade. Deixando de lado a controversa questão de seu
significado, qual seria, enfim, deve-se observar que, ainda que a forma como ela é introduzida no texto seja
enigmática, quando mais se contrastada com a maneira ordenada com que os itens dos capítulos 1, 2 e 3 são
apresentados e retomados, não se pode deixar de notar que a definição de tragédia, ao lado de seus elementos de
diferenciação, faz constar também sua finalidade, seu telos. Isso não é surpreendente. Física II, 9 fornece
argumentos para que a definição contenha o telos do objeto que está sendo definido. A respeito da catarse, ainda,
deve-se notar que o livro VIII da Política aborda a questão da catarse musical, e diz que tratará do assunto mais
pormenorizadamente na Poética (Política, 1341 b 38). Como o assunto é ausente na Poética tal como ela chegou
até nós, supõe-se que ele faria parte do suposto segundo livro. Isso constitui mais um argumento em favor de que
a Poética originalmente seria composta de dois livros (ver nota 2). A respeito da catarse, veja-se a Introdução.
52

Por ‘linguagem ornamentada’ quero dizer aquela que tem ritmo, harmonia e
canto 119; por ‘espécies diversamente distribuídas’ quero dizer que algumas partes
são levadas a termo somente por meio dos diversos metros, e outras, por sua vez ,
por meio do canto 120, 121.
Uma vez que são personagens agindo que realizam a mímese, primeiro 122
uma parte da tragédia será necessariamente o arranjo do espetáculo; em seguida, o
canto e a elocução, pois é com esses meios que os personagens realizam a
mímese. Por ‘elocução’ entendo o arranjo das palavras nos esquemas métricos; por
‘canto’ entendo aquilo cujo efeito é todo evidente 123.
Uma vez que a mímese é mímese de uma ação, e essa é realizada por
personagens que agem, os quais necessariamente são qualificados segundo o

119
A presença de harmonian kai melos (‘harmonia e melodia’, expressão que a tradução escolhida – ‘harmonia e
canto’ – mascara) juntos é algo que intriga os comentadores, uma vez que, ao contrário da conceituação
moderna, em que harmonia e melodia designam campos diferentes da música, na antigüidade os termos eram
quase sinônimos. Vettori, em uma excisão que as edições fazem constar, sugeriu que se retirasse do texto
original a melodia (melos), o que Halliwell aceita em sua tradução (ARISTÓTELES, 1987, p. 37). Lallot, Hardy
e Gernez traduzem por “melodia e canto”, sendo que Dupont-Roc Lallot fazem notar a redundância e a explica
supondo que Aristóteles, pela presença desse termo, prepara a introdução da melopéia (melopoiia, em grego,
com a mesma raiz de melos) como uma das partes da tragédia (ARISTÓTELES, 1980, p. 193-194). É de se
perguntar por que Aristóteles, se era seu intento preparar o campo para a melopéia, não poderia simplesmente
suprimir ‘harmonia’ da tríade ‘ritmo, harmonia e melodia’ e deixar só ‘ritmo e melodia’, ainda mais porque, em
1447 b 24, ao falar do ditirambo, do nomo, da tragédia e da comédia, ele usa ritmo e melodia (melos) juntos, sem
mencionar a harmonia. Rostagni apresenta outra solução. Segundo ele, “a(rmonia/n kai\ me/loj são a mesma
coisa, mas considerada primeiro abstratamente depois concretamente” (ARISTÓTELES, 1945, p. 33) (tradução
nossa). A solução nos parece um tanto arbitrária. Quanto a essa redundância, não se pode esquecer de confrontá-
la com o trecho em 1447 b 24, onde são o ritmo e o metro que aparecem como par pleonástico (ainda mais
porque em 1448 b 21 é o próprio texto que afirma que o metro é uma parte do ritmo). A chave para a
compreensão desses pequenos desajustes textuais parece estar em uma observação de Dupont-Roc e Lallot: o
principal meio de mímese, em se tratando da tragédia, da comédia e da epopéia, é a palavra (logos). Ritmo e
canto fazem o papel de ornamentos (o termo grego é mais sugestivo e preciso: temperos). Nesse sentido, são
secundários e o texto pode utilizá -los de forma não tão precisa.
120
Uma observação semelhante já havia sido feita em 1447 b 28.
121
O texto é cuidadoso em explicitar o que se quer dizer por ‘linguagem ornamentada’, uma vez que o termo não
havia surgido exatamente assim nos capítulos iniciais. Entretanto, o ‘espécies diversamente distribuídas’ já havia
sido abordado em 1447 b 28, ainda que de forma ligeiramente diferente. Quanto à ação ‘completa e de certa
extensão’, cuja qualificação também está ausente do trecho inicial do tratado, o assunto será objeto dos capítulos
7 e 8. A catarse, por sua vez, não será abordada, a não ser no hipotético segundo livro. Se existe uma causa para
esse tratamento heterogêneo de elementos que, na economia do tratado, são similares (afinal, todos são partes da
definição e teriam sido introduzidos, à parte a catarse, como elementos de diferenciação entre as artes miméticas)
ela pode estar na análise de um suposto método aristotélico de apresentação do seu objeto de estudo. O tema
pode ser fértil, mas foge dos limites do que aqui se pretende.
122
Esse ‘primeiro’ não se deve a nenhuma prevalência hierárquica ou temporal. Trata-se apenas daquilo que é
evidente.
123
A frase é um tanto enigmática, mas, dentro do contexto, só pode significar que Aristóteles se exime da
obrigação de definir o que seja canto.
53

caráter e o pensamento 124 (pois por meio deles qualificamos também as ações – por
natureza duas são as causas das ações: pensamento e caráter – e segundo as
ações todos são bem sucedidos ou mal sucedidos)125, e enredo é a mímese da ação
(pois a isto, o arranjo das ações, denomino enredo), ao passo que caráter denomino
aquilo segundo o que atribuímos certas qualificações àqueles que agem 126, e
pensamento, tudo quanto dizem os personagens para demonstrar algo ou também
enunciar uma máxima, é necessário então serem seis as partes da tragédia,
segundo as quais ela é qualificada127. Essas são o enredo, os caracteres, a

124
O binômio caráter/pensamento parece indicar mais um vínculo entre a Poética e a ética aristotélica.
Aristóteles, ao abordar as virtudes, na Ética Nicomaquéia, divide-as em virtudes éticas (êthikê aretê) – coragem,
liberalidade, etc... – e virtudes intelectuais ou dianoéticas (dianoethikê aretê) – temperança, sabedoria, etc...,
divisão em que se baseia também o binômio caráter/pensamento. Mas se na ética é uma virtude intelectual, a
temperança, que opera sobre as virtudes éticas, na Poética a equação é um tanto diferente, como notou Blundell
(1992): a temperança, na tragédia, não ocupa o primeiro plano e dá lugar às virtudes éticas. Não é à toa que o
caráter é, na tragédia, uma parte mais importante que o pensamento.
125
Alguns tradutores suprimem a frase “por natureza duas são as causas das ações: pensamento e caráter” (Else e
Halliwell, por exemplo) talvez por considerá-la uma glosa posterior. Dupont-Roc e Lallot, que não a suprimem,
comentam que ela pode ser tomada como uma “explicação incidente” (ARISTÓTELES, 1980, p. 195-196). O
que poucos notam, entretanto, é o caráter um tanto circular raciocínio que se fecha com a primeira frase do
parêntese. Senão, vejamos:

a. a mímese é mímese de uma ação


b. se há a ação, há o agente
c. o agente será tal ou tal de acordo com o caráter e o pensamento POIS
d. as ações também são tais ou tais de acordo com o caráter e o pensamento

Talvez esse ‘lapso’ não se deva a uma desatenção dos comentadores, mas a um certo entendimento da relação
entre ação e agente dentro da ética aristotélica. O assunto é controverso. Dupont-Roc e Lallot, por exemplo,
longe de considerarem que haja uma certa circularidade no raciocínio, sustentam que, no domínio da Poética, há
uma inversão de prioridade entre agente e ação em relação ao domínio da ética. Eles tomam o ‘pois’ da frase c
como um ‘pois’ explicativo forte, após terem comentado que “do ponto de vista da ética...uma ação humana não
pode receber qualificação moral senão em relação às disposições éticas do sujeito que a realiza”
(ARISTÓTELES, 1980, p. 196). Para afirmarem isso, tomam como prova o trecho que se inicia em 1105 a 30 do
livro II da Ética Nicomaquéia. Nesse trecho Aristóteles estabelece as diferenças entre a virtude técnica e a
virtude ética. Na técnica, argumenta ele, a virtude está inteira no resultado da ação: se o resultado é bom, a ação
foi boa. Na ética, por sua vez, não basta o resultado ser bom: ele deve ser atingido por alguém que sabia o que
estava fazendo, que o fez tendo escolhido o fim desejado e que agiu de maneira segura e firme. De maneira
alguma o texto sustenta que a ação é justa somente se foi praticada por um homem justo, ou corajosa somente se
praticada por um homem corajoso. Se fosse assim, ao homem corajoso, por exemplo, não caberia outra ação
senão a ação corajosa. Tanto a covardia como a temeridade estariam interditadas a ele, o que enfim suprimiria
nele o conflito ético e, paradoxalmente, a própria virtude. Feitas essas considerações, não têm razão Dupont-Roc
e Lallot quando defendem, entre Poética e ética aristotélica, uma inversão de prioridades nos papéis do agente e
da ação (para uma análise mais pormenorizada do tema, veja-se a Introdução).
126
A definição de ‘caráter’ na Poética (ta de êthê (legô) kath’ho poious tinas einai phamen tous prattontas –
1450 a 5) deve ser confrontada com a definição de ‘qualidade’ nas Categorias: poiotêta de legô kath’hên poioi
tines legontai (8 b 25). Ou seja, no vocabulário aristotélico, ‘justiça’ é uma qualidade, ao passo que ‘justo’ é uma
qualificação. Isso fundamenta a escolha de verter poius tinas por ‘certas qualificações’. Essa norma foi
observada quando possível.

127
É controverso o arranjo sintático do trecho que se inicia com “Uma vez que a mímese é mímese de uma
ação...”. A dificuldade se deve à determinação de qual seria a oração principal cuja subordinada se inicia com
54

‘uma vez que’. O fato é abordado por Dupont-Roc e Lallot no seu comentário à passagem (ARISTÓTELES,
1980, p. 197-198, nota 8). Três são as orações que poderiam fazer o papel de oração principal: “por natureza
duas são as causas das ações: pensamento e caráter” (solução adotada por Hardy, Gernez, Bruna e Eudoro), “o
enredo é a mímese da ação” (solução adotada por Dupont-Roc e Lallot, seguindo sugestão de Rostagni, e por
Halliwell) e “é necessário então serem seis as partes da tragédia” (solução adotada por Else, Kassel, Lucas). Há
ainda a solução de Gallavotti, que Dupont-Roc e Lallot não chegam a considerar: a frase principal seria “os quais
necessariamente são qualificados segundo o caráter e o pensamento”. Dupont-Roc e Lallot rejeitam a solução de
Hardy, que, segundo eles, equivaleria a atribuir a Aristóteles uma petição de princípio. Por outro lado,
consideram válida a solução de Else, Kassel e Lucas, ainda que prefiram a proposta de Rostagni. Eles não
negam, entretanto, que qualquer das duas pode ser alvo de objeções. Se se adota “o enredo é a mímese da ação”
como frase principal não se pode deixar de notar uma certa circularidade entre prótase e apódose: “uma vez que
a mímese é a mímese de uma ação ... o enredo é a mímese da ação”. A essa objeção eles respondem que a
distância entre prótase e apódose, com várias orações intercaladas, levou Aristóteles a

sublinhar, com uma repetição, que a existência da história (enredo) como parte da
tragédia se deduz da primeira causal somente; por outro lado, a repetição coloca em
evidência, o que não é sem importância, que a história (enredo) se define nos
mesmos termos que a tragédia: “representação de ação” – não haverá surpresa então
em notar em seguida que a história (enredo) é a parte ‘mais importante’ (50 a 15) e
‘como que a alma da tragédia’ (50 a 38). (idem, ibidem).

Se se adota “é necessário então serem seis as partes da tragédia” como oração principal, nota-se

que o conteúdo dessa principal – a necessidade de seis partes da tragédia – excede o


que implicam logicamente as causais que a preparam, a saber, a possibilidade de
deduzir três partes correspondentes aos objetos de representação: história (enredo),
caráter e pensamento. Ainda que essa objeção não seja talvez dirimente (Aristóteles
poderia eventualmente ter empilhado dedução lógica e recapitulação) ela nos faz
preferir a solução de Rostagni. (idem, ib.).

Analisando o próprio texto, deve-se observar que esse parágrafo e o precedente faze m a passagem, dentro do
capítulo 6 da Poética, dos elementos pelos quais diferem as diversas artes miméticas, elementos anunciados já
nas primeiras linhas do tratado e desenvolvidos nos capítulos 1, 2 e 3 – os meios de imitação, a coisa imitada e o
modo de imitação – para as seis partes da tragédia enunciadas sob forma de conclusão/recapitulação, ao fim dos
parágrafos em questão. Essa passagem tem o caráter de uma dedução, sendo esses dois parágrafos são iniciados
justamente da mesma forma, com a conjunção explicativa e)pei\ de/ (‘uma vez que’). Examinando o primeiro
parágrafo mais atentamente, podemos dividi-lo em uma prótase (“uma vez que são pessoas agindo que realizam
a mímese”), sua apódose (“uma parte da tragédia será necessariamente o arranjo do espetáculo”) seguida de um
acréscimo (“depois o canto e a elocução”) que não se deixa apreender pela mesma necessidade apodíctica com
que se estabelece o arranjo do espetáculo como parte da tragédia. Que o canto e a elocução não decorrem
necessariamente do fato de que são pessoas agindo que realizam a mímese, a exemplo do espetáculo, demonstra-
o o caso da dança: nessa, há pessoas agindo, mas não há nem canto nem elocução (visto que a dança se utiliza
apenas do ritmo; cf. 1447 a 26-28). Esse fato justifica a conjunção com que se articulam os membros da frase
(prîton m•n...e•ta, como se se tratasse de uma enumeração – cf. Le Grand Bailly, dictionnaire grec-français,
verbete e•ta) e a necessidade da explicativa: ‘pois é com esses meios que os personagens’. Em seguida, o texto
esclarece o que se entende por elocução e por canto. Esquematicamente, teríamos:

Prótase: ™peˆ d• pr£ttontej poioàntai t¾n m…mhsin,


Apódose: prîton m•n ™x ¢n£gkhj ¨n e‡h ti mÒrion tragJd…aj Ð tÁj Ôyewj kÒsmoj:
Acréscimo: e•ta melopoi…a kaˆ lšxij,
Explicativa do acréscimo: ™n toÚtoij g¦r poioàntai t¾n m…mhsin.
Definições: lšgw d• lšxin m•n aÙt¾n t¾n tîn mštrwn sÚnqesin, melopoi…an d• Ö t¾n
dÚnamin faner¦n œcei p©san.

Ora, o segundo parágrafo tem estrutura semelhante exceto pelo fato de que as prótases são duas e as três partes
da tragédia que são introduzidas se deixam deduzir dos elementos que as precedem. Vejamos:
55

elocução, o pensamento, o espetáculo e o canto. Duas são as parte que servem


como meio para a mímese, uma é o modo e três são os objetos de mímese. Além
dessas não há nenhuma outra. Dessas partes, todos, como se diz, fizeram uso, pois
todas as tragédias têm igualmente espetáculo, caracteres, enredo, elocução, canto e
pensamento 128.
O mais importante 129 entre essas partes é o arranjo das ações, pois a tragédia
é mímese não de homens, mas de uma ação e da vida, e a felicidade130 e a

Prótase 1: ™peˆ d• pr£xeèj ™sti m…mhsij

Prótase 2: pr£ttetai d• ØpÕ tinîn prattÒntwn

Introdução do caráter e do pensamento: oÞj ¢n£gkh poioÚj tinaj e•nai kat£ te tÕ Ãqoj kaˆ
t¾n di£noian

Explicação do que vem a ser enredo: œstin d• tÁj m•n pr£xewj Ð màqoj ¹ m…mhsij

Definições: lšgw g¦r màqon toàton t¾n sÚnqesin tîn pragm£twn,


t¦ d• ½qh, kaq' Ö poioÚj tinaj e•na… famen
toÝj pr£ttontaj, di£noian dš, ™n Ósoij lšgontej
¢podeiknÚas…n ti À kaˆ ¢pofa…nontai gnèmhn

Apódose: ¢n£gkh oân p£shj tÁj tragJd…aj mšrh e•nai ›x.

A introdução do enredo (œstin d• tÁj m•n pr£xewj Ð màqoj ¹ m…mhsij) não necessariamente tem que ser
entendida como apódose da prótase 1. Observe-se que Ãqoj e di£ noia já estão dados no texto, ligados às pessoas
que agem, mas o enredo, não: ele, de certa forma, deve ser ‘forçado’ a entrar no texto, e é essa a função da frase
que o introduz. Tanto que ela é seguida imediatamente de uma explicativa. Algo que se poderia objetar contra
essa reconstrução seria a articulação dos pares m•n... d•. Eles poderiam sugerir uma ligação entre as frase
diferente da que consta na tradução. Ora, se os pares m•n... d• articulassem as frases œstin d• tÁj m•n pr£xewj
Ð màqoj ¹ m…mhsij / t¦ d• ½qh, kaq' Ö poioÚj tinaj e•na… famen toÝj pr£ttontaj e di£noian dš, ™n Ósoij
lšgontej ¢podeiknÚas…n ti À kaˆ ¢pofa…nontai gnèmhn, haveria a necessidade de se corrigir di£noian para
di£noia (que é a versão do manuscrito B), o que efetivamente fazem os editores que adotam œstin d• tÁj m•n
pr£xewj Ð màqoj ¹ m…mhsij como apódose. Se não, deve-se inferir que o m•n da frase œstin d• tÁj m•n
pr£xewj Ð màqoj ¹ m…mhsij na verdade contamina a sua explicativa lšgw g¦r màqon toàton t¾n sÚnqesin
tîn pragm£twn. É a tese que defendemos.

128
Esse período final (‘Dessas partes ... canto e pensamento’) só tem lógica se for emendado. A versão dos
manuscritos não tem sentido (a respeito dessas dificuldades, veja-se o comentário de Lucas (ARISTÓTELES,
1998b, p.101)).
129
O texto, após ter inferido da definição as partes da tragédia, passa a hierarquizá-las, dando especial atenção ao
enredo (muthos). Ele será tratado, por hora, dando-se destaque para sua relação com o caráter (êthos), até 1450 a
39, que resume sua importância qualificando-o como o ‘princípio e como que a alma da tragédia’. A relação
entre enredo e caráter, por sua vez, parece encontrar sua fórmula definitiva em 1450 b 3-4: “a tragédia é mímese
de uma ação e é sobretudo por causa da ação que ela é mímese dos agentes”. O êthos ainda será objeto de uma
outra abordagem nesse capítulo, em 1450 b 8 – 12.
130
“Felicidade” é a tradução usual de eudaimonia. Eudaimonia, entretanto, tem pouco para Aristóteles de um
estado de espírito ou de uma sensação de euforia. A eudaimonia é o fim último (o telos) da vida ética, é aquele
bem que todos desejam por ele mesmo, sendo tudo o mais desejado em virtude dele. Conforme nota Hardy, “a
idéia de que a felicidade é uma atividade ... é familiar a Aristóteles. Cfr. Física, 197 b 4 h( de\ eu)daimoni/a
pra/cij tij: eu)praci/a ga/r; e Política 1325 a 32, Ética Nicomaquéia, 1098 a 16, b 21” (ARISTÓTELES, 1995b,
p. 38). A respeito da eudaimonia e sua importância para a ética, veja-se especialmente o capítulo 1 da Ética
Nicomaquéia.
56

infelicidade131 encontram-se no agir, e a finalidade da vida132 é uma certa


atividade133, não uma qualidade. Segundo o caráter os homens possuem
determinadas qualidades, mas é segundo suas ações que eles são felizes ou o
contrário. Então, os personagens não realizam ações com o intuito de mimetizar um
caráter, mas adquirem 134 o caráter ao mesmo tempo que e graças às ações. De

131
A tradução não adota a emenda proposta por Vahlen, que alguns editores aceitam (Hardy, por exemplo
(ARISTÓTELES, 1995b. p. 38)). Qualquer que seja a versão que se adote, o entendimento da passagem deve
fundamentar-se na relação que a ética aristotélica estabelece entre ação, caráter, felicidade (ou infelicidade) e
finalidade da vida (ver notas 12 e 18)
132
O adjunto ‘da vida’ não se encontra no original. Deixa-se facilmente deduzir, entretanto, se tivermos em
mente o conceito de eudaimonia (ver notas 18 e 21). Rostagni também emenda a frase dasse maneira
(ARISTÓTELES, 1945, p. 37).
133
Que a finalidade da vida seja uma certa atividade é algo que se explica também recorrendo-se ao conceito de
eudaimonia (ver nota 18).
134
‘Adquirem’ não é a tradução mais adequada para o verbo grego sumperilambanô. Essa nota pretende suprir a
deficiência da tradução e tecer um comentário a respeito da relação entre ação/enredo/muthos e caráter. Para que
se posse apreender a especificidade do verbo usado, note-se, de início, que há um manuscrito que não traz
sumperilambanousi, mas uma variante, sumparalambanousin. Butcher, na sua edição do texto, adota essa
variante e a traduz coerentemente com sua escolha: “character comes in as subsidiary to the actions”
(ARISTÓTELES, s.d., p. 27). O mesmo verbo aparece no seguinte trecho da Retórica, no qual Aristóteles
analisa os gêneros de discurso:

tšloj d• ˜k£stoij toÚtwn ›terÒn ™sti, kaˆ trisˆn oâsi tr…a, tù m•n
sumbouleÚonti tÕ sumfšron kaˆ blaberÒn· Ð m•n g¦r protršpwn æj bšltion
sumbouleÚei, Ð d• ¢potršpwn æj ce…ronoj ¢potršpei, t¦ d' ¥lla prÕj toàto
sumparalamb£nei, À d…kaion À ¥dikon, À kalÕn À a„scrÒn· to‹j d•
dikazomšnoij tÕ d…kaion kaˆ tÕ ¥dikon, t¦ d' ¥lla kaˆ oátoi
sumparalamb£nousi prÕj taàta. (1358 b 20-27)

Cada um destes gêneros tem um fim diferente e, como são três os gêneros, três são
também os fins. Para o que delibera, o fim é o conveniente ou o prejudicial; pois o
que aconselha recomenda-o como o melhor, o que desaconselha dissuade-o como o
pior, e todo o resto – como o justo ou o injusto, o belo ou o feio – o acrescenta como
complemento. Para os que falam em tribunal, o fim é o justo e o injusto, e o resto
também estes o acrescentam como acessório. (ARISTÓTELES, 1998c, p. 56)

O verbo sumparalambanô tem nesse trecho a função de marcar algo acessório. Ou subsidiário, como Butcher
traduziu. Mas o caráter, como parte da tragédia, frente ao enredo, não parecer ter um caráter acessório. Tanto que
a ele é dado o segundo lugar em importância frente aos outros elementos. Também é significativa em relação a
esse assunto a ênfase com que o texto trata o tema. Boa parte do trecho central do capítulo 6 é dedicada a
escrutinar a relação entre enredo e caráter como partes da tragédia e estabelecer a primazia do primeiro. Esse
parece ser um ponto delicado no texto, e com razão: como defender a supremacia da ação (que, na economia da
tragédia, se faz representar pelo enredo) sobre o agente (que é quem tem o caráter; note-se que tanto no capítulo
6, em 1449 b 37-38, como no capítulo 2, em 1448 a 1-2, o caráter é sempre referido ao agente, e não à ação) se
um implica necessariamente o outro? No corpus aristotélico há outras três ocorrências do verbo
sumperilambanô. Em duas delas ele é usado para descrever ações físicas (História dos Animais, 549 a 32 et seq.
e Meteorologica, 358 a 32 et seq.) e em outra, para descrever uma relação lógica (Tópicos, 142 a 29 et seq.). As
descrições físicas nos ajudam a entender o prefixo sun- como tendo um valor temporal, ao passo que o prefixo
peri- tem o mesmo valor que no verbo perilambanô: em volta de, como um todo. Por sua vez, a passagem nos
Tópicos parece descrever uma relação semelhante à que existe entre o agente e a ação. Discorrendo a respeito
dos opostos, o texto diz:
57

forma que as ações e o enredo são a finalidade da tragédia, e a finalidade é, de


tudo, o mais importante 135.
Além disso, sem ação não se faria uma tragédia, mas sem caráter 136, sim. De
fato 137, as tragédias da maioria dos autores recentes são desprovidas de caráter, e
em geral muitos poetas são assim, como, por exemplo, entre os pintores, Zêuxis
frente a Polignoto: pois Polignoto é um bom pintor do caráter, enquanto as pinturas
de Zêuxis não têm caráter alg um.
Além disso, se alguém colocar em seqüência falas de caráter ético, ainda que
bem realizadas quanto à elocução e ao pensamento, não levará a tragédia a realizar

ést' ¢dÚnaton ¥neu qatšrou q£teron gnwr…zein: diÒper ¢nagka‹on ™n tù toà


˜tšrou lÒgJ sumperieilÁfqai kaˆ q£teron. (142 a 29-31)

“de forma que é impossível conhecer um sem o outro: por isso, é necessário na
definição de um estar compreendido ao mesmo tempo o outro” (tradução nossa)

A relação entre o agente e a ação dentro da tragédia parece ter o mesmo grau de implicação recíproca. Por que,
então, a ênfase na ação? Há duas prováveis explicações para isso. Uma tem os olhos voltados para a tragédia,
outra, para a ética. Em primeiro lugar, o ergon da tragédia se faz pela mímese de casos que suscitam temor e
piedade. As duas emoções, conforme definidas na Retórica, podem estar ligadas a uma reversão de fortuna (a
respeito do temor, veja-se a nota 13 do capítulo 9). Essa reversão se dá na ação trágica, e não no caráter dos
personagens. Em segundo lugar, há na ética aristotélica uma clara prevalência das ações sobre o caráter. São as
ações que moldam o caráter, que, por sua vez, motiva as ações. Mas cabe às ações o papel flexível nessa relação,
são elas que estão sempre abertas aos contrários. E é justamente essa flexibilidade das ações que permite a elas
estar a serviço do ergon da tragédia.
135
A frase final do parágrafo e a inicial têm o mesmo teor ao afirmarem a primazia do enredo frente às outras
partes da tragédia (ainda que só se mencione, entre as outras partes, o caráter; tudo se passa como se o caráter
fosse o único candidato com reais possibilidades de rivalizar com o enredo). Na frase final, porém,
diferentemente da inicial, a supremacia das ações e do enredo é justificada por serem eles a finalidade da
tragédia. O conceito de finalidade, por sua vez, foi introduzido por meio da eudaimonia (felicidade), que é a
finalidade da vida. Estaríamos tentados, como leitores, a considerar o fato de que i. a finalidade da vida é uma
ação como a justificativa para o fato de que ii. a finalidade da tragédia é o enredo (que é o arranjo das ações).
Isso é verdade (ainda que se considerem as opiniões de Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 102)), mas deve-se
notar, entretanto, que a tragédia, para cumprir sua finalidade, não pode se limitar à mímese da eudaimonia, ela
deve apresentar também a mudança de fortuna, de preferência da boa para a má fortuna (capítulo 13), em
eventos que se dêem contra as expectativas, ainda que em decorrência uns dos outros (capítulo 9, 1452 a 3-4).
Esse complemento necessário delimita o escopo da arte poética que não se deixa apreender recorrendo-se apenas
aos conceitos da ética. Se ela é uma técnica (tekhnê), esse é o escopo próprio de suas habilidades.
136
Para que o texto não entre em conflito consigo mesmo, não se pode dar um sentido extremado à expressão
‘sem caráter’. De fato, o capítulo 2 (1448 a 1-2) é explícito ao afirmar que o agente necessariamente tem
determinado caráter ao agir. A expressão deve ser atenuada. A tragédia ‘sem caráter’ talvez ‘deficiente em
caráter’, como sugere Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 103), o que talvez signifique (mas Lucas não
especifica) que o caráter dos personagens não respeita os preceitos enunciados no capítulo 15.
137
A conjunção gar, que está no original, pode ser tanto uma conjunção causal quanto um advérbio de
confirmação (SMYTH, [1984], p. 637, § 2803). A relação que se estabelece entre as frases faz optar pelo
advérbio. Traduzem dessa forma Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gallavotti e Magnien. Omitem-na, o que também
é uma opção válida, Butcher, Bywater, Bruna e Eudoro. Halliwell opta pelo valor causal e a traduz por ‘for´, o
que, a nosso ver, é equivocado: um fato acidental, as tragédias dos autores recentes serem desprovidas de caráter,
não pode sustentar uma afirmação de caráter geral.
58

o que é sua função. Muito melhor sucedida será a tragédia que faça um uso inferior
dessas partes, mas que tenha enredo e arranjo das ações. Além do mais, os
principais elementos pelos quais a tragédia move os ânimos são partes do enredo:
as peripécias e os reconhecimentos.
Além disso, ainda138, dá testemunho da primazia do enredo o fato de que os
que empreendem poetar 139 são capazes primeiro de exatidão quanto à elocução e
aos caracteres que de arranjar as ações, como por exemplo também é o caso de
quase todos os primeiros poetas.
O enredo é, então, o princípio e como que a alma da tragédia, enquanto os
caracteres vêm em segundo lugar. Algo semelhante, com efeito, se passa na
pintura: pois se alguém aplicasse as mais belas tintas sem ordem não agradaria
tanto quanto se desenhasse uma imagem de contornos nítidos 140. A tragédia é
mímese de uma ação e é sobretudo por causa da ação que ela é mímese dos
agentes.
Em terceiro lugar vem o pensamento. Este é a capacidade de dizer o que é
pertinente e adequado, o que, nos discursos, é tarefa da política e da retórica. De

138
Há no original um kai que pode ser entendido de três maneiras: ou bem ele reforça o eti do início do
parágrafo, ou ele acompanha o semêion, ou ele forma com o kai de de 1450 a 7 um par correspondente kai...kai
(DENNISTON, 1954, p. 323) que relaciona os poetas que ‘empreendem poetar’ aos ‘primeiros poetas’ do final
do parágrafo. A posição semelhante do kai, antes dos respectivos sujeitos das frases, reforça essa suposição. Na
primeira hipótese, a escolhida para a tradução, pode-se objetar que a posição do kai, depois do hoti que inicia a
subordinada, não é a mais adequada. A segunda hipótese (da qual resultaria a tradução: ‘Além disso, dá também
testemunho...’) traz consigo, além da objeção quanto à posição da partícula, o inconveniente de transformar os
outros argumentos relativos à primazia do enrede também em sêmeion, o que é discutível. A terceira hipótese
teria por resultado uma correspondência entre poetas aparentemente tão díspares quanto os que ‘empreendem
poetar’ e os primeiros poetas. Mas pode ser que a disparidade entre eles seja na verdade só aparente. No que
concerne ao enredo, ambos estão em posição de não dominá-lo completamente, ainda que, na evolução do
gênero, Aristóteles só faça referência explícita à introdução do muthos quanto à comédia (1449 b 5 et seq.). Mas
não há por que não admitir como razoável que o mesmo tenha se dado em relação à tragédia. Dupont-Roc e
Lallot, no seu comentário ao parágrafo (ARISTÓTELES, 1980, p. 206 – nota 13), chamam a atenção para esse
fato. Poder-se-ia propor a seguinte tradução que realçasse o paralelismo entre os dois grupos: “Além disso, dá
testemunho da primazia do enredo o fato de que não só os que empreendem poetar são capazes primeiro de
exatidão quanto à elocução e ao caráter que de arranjar as ações, como também, por exemplo, o mesmo se passa
com quase todos os primeiros poetas”. A tradução, entretanto, seria caso único entre as traduções consultadas.
Fique registrada em nota.
139
“empreendem poetar” é a tradução proposta por Jaime Bruna (ARISTÓTELES, 1997, p. 26), caso quase
único entre as traduções e comentários consultados (Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gernez, Magnien, Eudoro de
Sousa, Butcher, Bywater, Else, Halliwell, Rostagni, Gallavotti). Todos traduzem o trecho recorrendo à idéia de
‘poetas novatos’ ou ‘iniciantes’, idéia que não está ausente do contexto. Mas deve-se objetar que, a rigor, o verbo
encheirô não traz em seu bojo a conotação de que o sujeito verbal seja inexperiente ou debutante.
140
O texto grego é mais sugestivo: opõe o ato de cobrir uma superfície de matérias viscosas (de várias cores) que
a impregnam ao ato de ‘desenhar em branco’ (leukographein) uma imagem (Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p.
105) sugere que o termo pode significar tanto desenhar em branco contra uma superfície preta quanto o
contrário). Os comentadores geralmente associam o primeiro ao caráter, o segundo ao enredo.
59

fato, os antigos poetas faziam os personagens falarem à maneira política, enquanto


os de agora os fazem falar à maneira retórica. Caráter é a qualidade que evidencia
qual é a escolha 141. Por isso os discursos em que não está presente, de maneira
geral, o que se escolhe ou se evita não têm caráter. O pensamento, por sua vez, é
aquilo em que se mostra que algo é ou não é o caso, ou se afirma algo de caráter
geral.
Em quarto, entre os elementos que concernem à palavra 142, vem a elocução.
A elocução é, conforme foi dito antes, a comunicação por meio das palavras, o que
tem o mesmo efeito em gêneros metrificados ou em discursos 143.
Entre os elementos restantes, o canto é o principal dos ornamentos. O
espetáculo se, por um lado, é bastante capaz de mover os ânimos, por outro é a
parte menos artística e guarda pouca relação com a arte poética. De fato, o efeito da
tragédia subsiste mesmo sem a representação teatral e sem os atores. Além disso, a
arte do encenador, no tocante à realização dos elementos cênicos, é mais
importante que a do poeta.

141
A relação entre caráter e escolha é comum em Aristóteles, mas essa frase parece estar em conflito com 1454 a
17-19 e com outros pontos do corpus aristotélico. Na Retórica, por exemplo (1395 b 13), afirma-se que 'têm
caráter os discursos nos quais é evidente a escolha', e, na Ética Nicomaquéia (1417 a 19), diz-se que 'os discursos
matemáticos não têm caráter porque neles não está presente a escolha'. Em qualquer dos casos, é a escolha que
evidencia o caráter, o que está de acordo com a primazia dada ao enredo (já que a es colha é sempre uma escolha
que define a ação) entre as partes da tragédia. O conflito poderia ser solucionado se fosse considerada a frase que
Bekker omitiu (excisão confirmada pelo manuscrito árabe e adotada por alguns dos editores consultados -
Dupont-Roc e Lallot, Lucas, Kassel - mas não por Butcher, Gallavotti ou Rostagni): en hois ouk esti dêlon ê
proireitai ê pheugei. Com esse complemento teríamos, por exemplo, a tradução de Hardy: "le caractère est ce qui
montre la ligne de conduite, le parti que, le cas étant douteux, on adopte de préférence ou évite"
(ARISTÓTELES, 1995b, p. 39). O caráter, aplicada essa restrição, passa a ser aquilo que torna a escolha clara
quando, por algum motivo, ela não está evidente. Mas é de se estranhar que uma definição de caráter apresente-o
de forma parcial, definindo-o apenas no caso em que a escolha não é clara. E resta problemática a função do
dioper que liga a frase à seguinte, que, de resto, ao reafirmar a doutrina aristotélica quanto a êthos e proairêsis, é
problemática mesmo que se adote a excisão de Bekker. A tradução apresentada opta por manter o texto de
Bekker e apontar a incongruência da frase.
142
A expressão ‘entre os elementos que concernem à palavra’ não consta do manuscrito árabe e é omitida por
alguns editores. Ainda que ela não seja original, é bastante apropriada e delimita, entre as partes da tragédia, as
que vão receber alguma atenção (mesmo que seja mínima, como no caso do pensamento) dentro da Poética.
143
A elocução foi definida em 1449 b 34 como ‘o próprio arranjo dos metros’ (autên tên tôn methrôn sunthêsin),
expressão traduzida por ‘o arranjo das palavras nos esquemas métricos’. A tradução, que pode parecer excessiva,
baseia-se no comentário de Lucas. Segundo ele, tanto em 1449 b 34 como aqui, a elocução diz respeito ao
“processo de combinar as palavras em uma seqüência inteligível” (ARISTÓTELES, 1998b, p. 109) (tradução
nossa), só que, em 1449 b 34, esse processo estava subordinado ao esquema métrico próprio do poema. Aqui, a
definição engloba também a prosa. O comentário de Lucas tem o mérito de compatibilizar dois trechos que
muitos comentadores consideram conflituosos. A respeito da tradução de hermêneias por ‘comunicação’, veja-se
também Partes dos Animais, 660 a 35.
60

Discriminados esses elementos, falemos, depois deles, das características


que deve ter o arranjo das ações, uma vez que essa é, da tragédia, a parte primeira
e mais importante 144. Ficou estabelecido por nós que a tragédia é a mímese de uma
ação completa, inteira 145 e que tem certa extensão – pois pode existir aquilo que é
inteiro e não tem extensão alguma 146. Inteiro é o que tem começo, meio e fim.
Começo é aquilo que, considerado em si mesmo, não tem antecedente necessário,
mas que antecede naturalmente algo que é ou vem a ser; fim, ao contrário, é aquilo
que, considerado em si mesmo, por natureza tem antecedente, ou de maneira
necessária ou no mais das vezes 147, mas a que nada se segue; meio é aquilo que,
considerado em si mesmo, não só tem antecedente como também antecede algo148.

144
O arranjo das ações, que é o enredo (muthos), será assunto até o capítulo 14, que se fecha com uma frase que
lembra essa frase inicial. Ao tema também foi feita referência no sumário que abre a Poética (pôs dei
sunistasthai tous muthous – ‘que arranjo devem ter os enredos’, 1447 a 9). Esse período com que começa o
capítulo 7 tem uma amplitude bem maior que os limites do capítulo, portanto (cf. nota 15 do capítulo 14).
145
É infrutífera a tentativa de estabelecer, no texto, alguma distinção importante entre completa (teleia) e inteira
(holê). Rostagni assinala a equivalência entre os termos: “‘e inteira’ é acrescentado como esclarecimento de
telei/aj [completa]. De fato, é então o conceito de o(/lon [inteiro] aquele sobre o qual se insiste como mais
inclusivo e exato” (ARISTÓTELES, 1945, p. 43, nota à linha 25).
146
A frase ‘pois pode existir aquilo que é inteiro mas não tem extensão alguma’ só se justificaria na medida em
que fosse necessário marcar ‘inteiro’ e ‘extenso’ como qualificações distintas, com a primeira não implicando
necessariamente a segunda. A definição de ‘inteiro’ dada logo a seguir, entretanto, parece conflitar com a
pretendida pudicícia das qualificações: se o inteiro tem começo, meio e fim então necessariamente ele terá uma
certa extensão (pouco importando que a recíproca não seja verdadeira: nem tudo que tem extensão terá começo,
meio e fim). Isso parece revelar um certo descompasso na marcha inicial do capítulo, se examinado à luz de um
rigor lógico estrito. Mas se, por outro lado, considerarmos essa introdução como uma ante-sala conceitual
definidora de critérios que serão aplicados ao caso concreto da tragédia (ou seja, os critérios apresentados não
devem ser tomados em absoluto, mas sim com vistas ao objeto a que se aplicarão), as colocações do texto
procedem: no âmbito da metáfora com que Aristóteles articula o conceito, existe aquilo que é inteiro mas não
tem extensão, como o animal muito pequeno (ainda que seja exagerado dizer que ele não tem extensão alguma).
Ainda, no caso da tragédia, se justifica a necessidade de marcar ‘inteiro’ e ‘extenso’ como qualificações
distintas, na medida em que, da análise delas, separadamente consideradas, surgem distintas características do
enredo. Da análise da inteireza virá a necessidade da seqüência lógica das partes (articuladas segundo o
necessário ou o provável – veja-se a nota 5), da análise da extensão virá o preceito do tamanho tal que possibilite
à tragédia ser abarcada pela memória e suficiente para a reversão da fortuna. Aplicadas à tragédia, as
qualificações guardam sua castidade e sua razão de ser. Isso posto, não parece incorreto atribuir um certo caráter
ad hoc à argumentação inicial do capítulo. O fato não deve ser desprezado como um simples lapso textual, mas
talvez deva ser atribuído a certas idiossincrasias do methodos aristotélico. Significativamente, deve-se notar que
‘completa’ e ‘inteira’ foram qualificações que não surgiram no texto senão na própria definição de tragédia, a
partir de 1449 b 24. E ‘extensão’ – megethos – ainda que incidentalmente tenha sido usado em 1449 a 19, não
foi, assim como também não o foram teleia e holê, um conceito discutido entre os elementos pelos quais se
diferenciam as artes miméticas (meios nos quais se dá a mímese, objetos, modos). A matriz usada para
diferenciar as artes miméticas entre si não é suficiente para caracterizá-las por completo.
147
‘de maneira necessária ou no mais das vezes’ traduz ex anankês ê hôs epi to polu, que parece ser a primeira
forma de uma expressão que se tornará formular na Poética: kata to anankaion ê kara to eikos (‘segundo o
61

Os que dão bom arranjo aos enredos não devem, portanto, nem começar de
um ponto ao acaso, nem finalizar onde quer que seja, mas sim fazer uso desses
conceitos mencionados.
Além disso, uma vez que 149 o que é belo, seja um animal, seja qualquer coisa
que se compõe de partes150, não apenas deve tê-las ordenadas como também seu
tamanho não deve ser ao acaso 151 (pois o belo se encontra na extensão e na

necessário ou o provável’). Rostagni, Dupont-Roc e Lallot explicitamente fazem comentários nesse sentido. De
fato, na Retórica, em 1357 a 34, o eikos (‘provável’) é definido como to hôs epi to polu ginomenon (‘o que
acontece o mais das vezes’; cf. também Segundos Analíticos, 70 a 4). Dessa forma, a tradução mais adequada
para eikos não seria o ‘verossímil’ consagrado pela tradição das línguas neolatinas, mas ‘provável’, ou ainda,
‘freqüente’. As traduções para o inglês consultadas (Bywater, Butcher, Else, Halliwell) são unânimes em traduzir
eikos como ‘probable’, mas nas línguas neolatinas parece que o ‘verossímil’ está consolidado. ‘Verossímil’,
entretanto, é um termo que se presta a mal-entendidos, primeiro porque recobre uma área semântica já abarcada
pelo conceito de mímese. Depois, motivo fundamental, porque mascara a aplicação na Poética dos conceitos de
necessário, no mais das vezes e por acaso. Considerações a respeito dessa tríade são importantes para a tragédia
(ver, por exemplo, notas 1 e 2 do capítulo 11).
148
Na definição de começo, meio e fim interessa menos observar a maneira como o texto apresenta a seqüência
das partes (um anódino jogo combinatório entre aquilo que antecede – ou não – algo e aquilo que se faz
anteceder – ou não – de algo) que o caráter necessário que deve ordená-las. Para a inteireza de algo, interessa
menos ter começo, meio e fim que tê-los seqüenciados segundo o necessário ou segundo o que ocorre no mais
das vezes. De fato, pode-se postular começo, meio e fim de um bode-cervo, ou, para permanecer no âmbito da
Poética, começo, meio e fim de discursos éticos enfileirados uns atrás dos outros (cf. 1450 a 29), mas não se
pode postular tal seqüência articulada segundo o necessário ou segundo o que ocorre no mais das vezes. Dessa
maneira de apresentar a inteireza surgirá o preceito da unidade da ação trágica .
149
A prótase que se inicia com ‘uma vez que’ (epei – 1450 b 35), depois de um período cheio de parêntese, tem
sua apódose substituída por uma oração que se inicia com hôste (1451 a 3). Hardy e Rostagni mencionam isso.
Fato semelhante se dá no capítulo 9, em que a prótase (com epei) se inicia em 1452 a 1 e a apódose (com hôste)
está em 1451 a 10. No entanto, há um manuscrito (Marcianus 215) que traz, nesse capítulo 7, epi no lugar de
epei (1450 b 35) e tetagmenôs no lugar de tetagmena (1450 b 36), o que torna mais natural a sintaxe do verbo
huparxhein em 1450 b 37 (ver nota 8)
150
Else, em nota a essa passagem, sugere que “these two phrases seem to designate animate creatures and
inanimate (created) structures respectively”. Resta definir se esses dois conjuntos devem seu agrupamento à
característica comum que os une (ser composto de partes) ou se essa característica se aplica apenas ao segundo
grupo, de modo a restringir sua extensão. Gernez, na sua tradução, aposta na primeira hipótese e a torna
explícita: “De plus, puisque une belle chose composé de parties – qu´il s´agisse d´un animal ou de tout outre
chose...” (ARISTÓTELES, 2001, p. 29). As outras traduções, entretanto, conservam as indefinições do original.
Para sistematizar a questão, seja A o conjunto dos animais, seja B o conjunto definido pela frase ‘qualquer coisa
que se compõe de partes’. Ou B é um conjunto que contém A (e a frase ‘qualquer coisa que se compõe de partes’
se dá no sentido de explicitar a que classe de coisas se aplica a qualificação ‘belo’) – hipótese reforçada pela
presença de hapan no sintagma hapan pragma, traduzido como ‘qualquer coisa’ – , ou B é um conjunto que não
tem nenhum elemento comum com A (e a frase ‘qualquer coisa que se compõe de partes’ se dá no sentido de
justapor a A uma outra classe e às duas se pode aplicar a qualificação ‘belo’) – hipótese reforçada pela conjunção
que coordena os sintagmas: kai ... kai. No primeiro caso, teríamos como tradução “... seja um animal e, em geral,
qualquer coisa que se compõe de partes”. No segundo caso, teríamos “... seja não só um animal, mas também
qualquer outra coisa que se compõe de partes”. Como se vê, a diferença é sutil, e a ambigüidade não prejudica o
entendimento do capítulo.
151
É pouco usual que o verbo huparxhein tenha complemento no acusativo. Além disso, o verbo ekhein, que
serviria mais apropriadamente ao sentido da frase, foi usado na frase imediatamente precedente. Por que não
deixá -lo subentendido, procedimento tão comum em Aristóteles? O manuscrito Marcianus 215 traz uma versão
62

ordem152, por isso nem um animal muito pequeno poderia ser belo 153 – pois a sua
observação, ocorrendo em um tempo próximo do imperceptível, é confusa – nem um
extremamente grande – pois sua observação não se faz em um mesmo tempo, mas
escapa da observação, para os que observam, sua unidade e inteireza, como se o
animal tivesse um tamanho de mil estádios) segue-se que, assim como a respeito
dos corpos e dos animais, esses devem ter um certo tamanho e esse deve ser tal
que possa ser totalmente abrangido por um único olhar, assim também é necessário
que, a respeito dos enredos, esses devem ter uma certa extensão e essa deve ser
tal que possa ser apreendida na sua totalidade pela memória.
O limite de extensão relativo aos concursos dramáticos e à percepção do
público 154 não diz respeito à arte poética: pois se fosse preciso fazer competir cem
tragédias, elas competiriam contra a clepsidra155, como se diz vez ou outra 156.

em que a sintaxe do período tem um caráter mais usual. O período completo, desde 1450 b 35, seria (estão
sublinhados os termos que diferem da edição de Bekker):

œti d' ™pˆ tÕ kalÕn kaˆ zùon kaˆ ¤pan pr©gma Ö sunšsthken ™k tinîn oÙ mÒnon taàta tetagmšnîj de‹
œcein ¢ll¦ kaˆ mšgeqoj Øp£rcein m¾ tÕ tucÒn
152
Há outros pontos do corpus aristotélico em que se articulam o tamanho e a ordem na configuração do belo.
Veja -se, por exemplo, Metafísica, 1078 a 36, Ética Nicomaquéia, 1123 b 7 e Tópicos, 116 b 20 (Cf. Introdução).
153
A respeito desse exemplo, veja-se a nota 8 do capítulo 23.
154
‘Percepção’ é versão direta do grego aisthêsis, que os tradutores geralmente ligam a algum tipo de
sensibilidade do público (o original, entretanto, não tem o termo ‘do público’) e que determinaria a extensão das
tragédias apresentadas em concursos. É difícil precisar o que se quer dizer exatamente com isso, tanto mais que é
justamente por uma restrição imposta pela percepção do espectador que se fixa um limite superior ao tamanho da
tragédia (ela deve poder ser abarcada inteira pela me mória – eumnêmoneuton – ou ser tão grande quanto permita
a clareza do todo – sundêlos). Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 215), que apontam esse conflito,
resolvem-no supondo a existência dos espectadores reais e de espectadores ideais, e seria em relação a esses
últimos que o texto define o limite da tragédia segundo a natureza mesma do assunto. Else e Halliwell, sem
examinar explicitamente a questão, traduzem aisthêsin como se se tratasse de uma referência à capacidade de
concentração do público. Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 45-46) sugere que o termo faça alusão ao que ele
conceitua como elementos externos à arte poética (o espetáculo, o canto e a elocução), mas tanto a conceituação
desses elementos como elementos externos quanto a alusão que o termo aisthêsin faria a eles nos parecem
arbitrárias.
155
Difícil determinar em que sentido a figuração de uma situação hipotética (uma competição entre cem
tragédias) auxilia a evidenciar que uma situação real (o limite de extensão relativo aos concursos e à percepção
do público) tem suas normas determinadas de forma alheia à arte poética. Isso não quer dizer que não se consiga
extrair um sentido geral da comparação: a extensão relativa aos concursos é alheia à técnica assim como seria o
tempo reservado a cada tragédia no caso de uma competição entre cem delas. Mas o fato de que em uma
competição de cem tragédias o tempo de cada uma é determinado tendo em vista restrições outras que não as
restrições impostas pela arte poética mesma não implica necessariamente que o limite usado (ou o limite a ser
determinado) seja alheio às regras da arte. O que se objeta com essa observação é o caráter pouco demonstrativo
da frase que se inicia com ‘pois se’ (e i gar). O trecho geralmente é confrontado com o capítulo 67 da
Constituição de Atenas, em que Aristóteles, tratando das normas dos tribunais, diz que o tempo dos oradores era
medido pela clepsidra (a expressão pros klepsidras, ‘diante da clepsidra’, no entanto não ocorre) e variava de
acordo com a importância da causa a ser julgada. Quanto ao uso da hipérbole como estratégia de convencimento,
o procedimento também é adotado no caso do ‘animal de mil estádios’ (em que, ao contrário desse, a estratégia
63

Segundo a própria natureza do assunto, é mais belo, segundo a extensão, sempre o


maior limite possível até onde permitir a clareza do todo157. Para definir de uma
maneira simples, terá um limite suficiente a extensão na qual se dê, em eventos
ocorrendo sem solução de descontinuidade segundo o necessário ou o provável, a
mudança do infortúnio para a fortuna, ou da fortuna para o infortúnio 158.

tem um rendimento efetivo e claro: evidenciar a existência, em se tratando do tamanho de um animal, de um


limite superior a partir do qual ele deixará de ser apreciado como belo).
156
A menção a um tempo que em se competia diante da clepsidra (pros klepsidras), um relógio d´água, é
obscura e não encontra explicação que satisfaça os comentadores. O trecho geralmente é confrontado com o
capítulo 67 da Constituição de Atenas (cf. nota anterior). Não parece ser possível chegar a conclusão segura a
partir dessa confrontação.
157
A tradução da frase mekhri tou sundêlos einai por ‘até onde permitir a clareza do todo’ pode parecer
excessiva se examinada em si mesma. O contexto, entretanto, principalmente em relação ao que foi dito do
‘animal de mil estádios’, parece permitir a tradução. Veja-se também o capítulo 23, que se faz o elogio de
Homero por não ter contado a guerra do Tróia inteira, o que resultaria em um enredo muito grande (1459 a 30 et
seq.)
158
A ‘definição simples’ (haplôs diorisantas) que o texto dá supera em alguns pontos as premissas da discussão
a respeito da extensão apropriada para a tragédia. Primeiro deve-se notar que a cláusula ‘em eventos ocorrendo
sem solução de descontinuidade segundo o necessário ou o provável’ não diz respeito à extensão, mas sim à
inteireza, sendo que os termos usados, ainda que possam ser relacionados sem grandes dificuldades aos tópicos
discutidos no início do capítulo, são diferentes. O salto de um ponto a outro se dá sem grandes explicações,
entretanto. Isso não causa surpresa: mesmo a definição de tragédia não decorre inteiramente das discussões feitas
nos capítulos que a preparam (ver notas 4, 6 e 9 do capítulo 6). Em relação à extensão propriamente dita, à
primeira vista parece difícil explicar como o preceito sobre a extensão formulado algumas linhas antes (mais
bela é a extensão maior possível até onde permitir a clareza do todo) se transformou em ‘extensão conveniente
para a reversão da fortuna’. Entretanto, deve-se admitir que, para que seja eficiente em termos trágicos, a
reversão da fortuna deve ter uma certa extensão, a qual não pode ser muito pequena (porque não chegaria a se
configurar a situação que será revertida), nem muito grande (pois o enredo deixaria de ser eumnêmoneuton –
‘apreensível na sua totalidade pela memória’). Novamente, como no caso da nota 3 desse capítulo, parece haver
um certo descompasso na argumentação, mas a conclusão a que se chega aplica-se muito bem à tragédia.
64

O enredo é uno não por ser construído, como pensam alguns, em torno de
um único indivíduo. Pois muitas coisas, e mesmo um número indefinido delas,
acontecem a um único indivíduo que não perfazem, algumas, nada de uno. Assim
também, muitas são as ações de um único indivíduo que não perfazem uma ação
una 159,160. Por isso, parecem errar tantos poetas quantos fizeram uma Heracleida ou

159
Essas primeiras frases do capítulo 8 são exemplares em relação a certas dificuldades do texto da Poética e a
variedade das traduções é indício disso. Não que o objetivo em vista seja obscuro, pelo contrário: defende-se que
a unidade da tragédia deve estar fundamentada na unidade da ação representada e não na unicidade do herói
trágico. O ponto é simples e desenvolve uma idéia já mencionada no capítulo 6 (“a tragédia é mímese não de um
homem, mas de uma ação” – 1450 a 16), mas a argumentação que leva a ele parece deixar os tradutores e
comentadores em dificuldades. Primeiro deve-se considerar duas traduções possíveis para o período polla gar
kai apeira tôi heni sumbainei ex hôn eniôn oudein estin hen conforme se dê um caráter explicativo ou restritivo à
frase ex hôn eniôn ouden estin hen (‘[de algumas] das quais nada é uno’). O caráter restritivo parece ser mais
natural: ‘pois muitas coisas, e mesmo um número indefinido delas, acontecem a um indivíduo de algumas quais
nada é uno’. A tradução para o português, tão literal quanto possível, soa estranha entre outros motivos porque
faz o pronome relativo ser antecedido de um pronome indefinido, mas o que se quer dizer é claro, tanto quanto
permite o original: sendo A um subconjunto do conjunto P da totalidade de ações relativas a um indivíduo, nada
garante que as ações de A constituam uma ação unitária, como também nada garante que as ações de A deixem
de constituir uma ação unitária. Elas podem ou não ser unitárias (o eniôn (‘de algumas´) serve justamente para
deixar essa bivalência clara). O ponto assim determinado é suficiente para argumentar contra os que pretendem
constituir a unidade de seus poemas a partir da mímese da totalidade dos eventos relativos a um herói, já que a
totalidade dos eventos legados pela tradição relativos a um herói certamente é um subconjunto da totalidade das
ações desse herói. Nada garante que esse subconjunto de ações constitua uma ação unitária. Mas se pode tomar a
frase ex hôn ouden estin hen (‘[de algumas] das quais nada é uno’) como tendo caráter explicativo,
principalmente se, como sugeriu Spengel, é feita a excisão do eniôn, excisão que a edição de Hardy
(ARISTÓTELES, 1995, p. 41) faz constar entre colchetes. A excisão talvez tenha sua razão de ser, uma vez que
há uma divergência entre os manuscritos nesse ponto (o manuscrito B tem, em vez de eniôn, eni), mas às custas
de um enfraquecimento na argumentação. Nesse caso, a tradução seria ‘pois muitas coisas, e mesmo um número
indefinido delas, acontecem a um indivíduo, das quais nada é uno’. O que se afirma, nesse caso, é a falta de
unidade do conjunto P, o conjunto da totalidade das ações relativas a um indivíduo. Vejam-se, por exemplo, as
traduções de Eudoro de Sousa e de Barbara Gernez:

... pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só


indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma (Trad. Eudoro
de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 51)).

... car il se passe un grand nombre voire une infinité de choses dans la vie d’un
homme, et de ces choses ne se distingue aucune unité (Trad. Barbara Gernez
(ARISTÓTELES, 2001, p. 31)).

Ora, não é verdade que não se pode extrair unidade nenhuma da totalidade dos acontecimentos relativos a um
indivíduo: de alguns desses acontecimentos há que resultar, por vezes, unidade, senão nem mesmo a unidade
trágica segundo o necessário ou o provável se sustentaria. O ponto assim determinado não serve como
argumento contra os que pretendem constituir a unidade de seus poemas a partir da mímese da totalidade dos
eventos relativos a um herói, a não ser que se atribua à argumentação não um caráter lógico estrito, mas o caráter
de uma evidência. No caso da tradução que ora se apresenta, optou-se por traduzir as orações adjetivas iniciadas
por ex hôn por meio de orações substantivas iniciadas por conjunção integrante.
Outro ponto sensível, mas não problemático para a compreensão do todo, é a relação que se estabelece entre as
frases polla gar kai apeira tôi heni sumbainei ex hôn eniôn oudein estin hen (‘Pois muitas coisas, e mesmo um
número indefinido delas, acontecem a um único indivíduo que não perfazem, algumas, nada de uno’ – frase I) e
houtôs de kai praxeis henos pollai eisin, ex hôn mia oudemia ginetai praxis (‘Assim também, muitas são as
65

uma Teseida e poemas como tais: pois pensaram, uma vez que Héracles é um, que
também o enredo chegaria a ser uno. (Mas) Homero, assim como se diferencia
quanto ao resto, também isto parece ter visto com acerto, seja por dominar sua arte,
seja por natureza. Pois, fazendo a Odisséia, não narrou tudo quanto aconteceu a
Ulisses, como por exemplo o ter sido ferido no Parnaso161, o ter se fingido de louco
no acampamento das tropas, eventos que, realizando-se um, em nada era
necessário ou provável que o outro se realizasse, mas em torno de uma ação una,
tal como a dizemos, compôs a Odisséia, e do mesmo modo a Ilíada.

ações de um único indivíduo que não perfazem uma ação una’ – frase II). Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.
48) considerou que as duas frases se articulariam em torno do par pathos / praxis: respectivamente, aquilo que
acontece ao indivíduo (tôi heni sumbainei) e suas ações (kai praxeis henos). Nada garante, entretanto, que o
verbo sumbainô (‘acontecer’) refira-se exclusivamente a eventos em que o indivíduo tem função passiva. Nesse
mesmo capítulo, em 1451 a 25, entre os eventos que aconteceram (sunebê) a Ulisses, contam-se o ter sido ferido
no Parnaso (Ulisses sofre a ação) e o ter-se fingido de louco (Ulisses pratica a ação). Se sumbainô, então,
comporta tanto pathê quanto praxeis, poderia se dar que a frase I englobasse ambas as categorias para, dela,
inferir-se a frase II. A inferência, entretanto, poderia ser questionada, pois não é logicamente necessária: poderia
ser o caso que, das inúmeras coisas que acontecem a um indivíduo, as ações formassem uma classe especial que
tivesse unidade. Quanto a esse ponto, Halliwell parece apostar que o verbo sumbainô de alguma forma faça
referência ao que acontece por acidente (kata sumbebêkos) a um ente particular. A hipótese não é absurda, e há
mesmo uma passagem da Física bastante semalhante à frase I: to de kata sumbebêkos aoriston: apeira gar an tôi
heni sumbaiê (‘o que acontece por acidente é indefinido: pois são infinitas as coisas que acontecem a um
indivíduo’ – 196 b 28). Sendo assim, Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 40) traduz:

For just as a particular thing may have many random properties, some of which do
not combine to make a single entity, so a particular character may perform many
actions which do not yield a single ‘action’.

A tradução, a nosso ver, acrescenta ao texto mais do que o original permite. Assim, na relação que se estabelece
entre I e II, I realmente faz referência a um contexto mais amplo que II, mas sem que se possa dizer que II é um
caso particular de I. Há entre elas um paralelismo e talvez II se explique porque seja necessário, já que a tragédia
é mímese de ações (fato que o capítulo lembra logo adiante – cf.1451 a 31), que as ações sejam explicitamente
referidas.
160
Em relação à unidade de ação, há um comentário que deveria ser feito tendo como pano de fundo a teoria da
ação da ética aristotélica e que é negligenciado pelos comentadores. Afinal, as ações de um indivíduo têm uma
certa unidade. Ela é garantida não pelo fato de emanarem da mesma pessoa, mas pelo fato de elas, ainda que
subordinadas umas às outras, convergirem para um determinado fim: o bem. Ainda que esse requisito de unidade
das ações porventura observado na Ética Nicomaquéia – visar o bem – seja bem menos exigente que o requisito
de unidade das ações exigido pela Poética – seguirem-se umas às outras segundo o necessário ou o provável –
talvez pudesse ser o caso que a unidade longínqua exigida pela ética se convertesse, de alguma forma, na
unidade rigorosa da Poética. A mais bela tragédia, se esse fosse o caso, seria a que colocasse em cena o homem
prudente rumo a sua eudaimonia. Que isso não seja assim é mais uma evidência de que a Poética, apesar de
haurir alguns de seus princípios da ética aristotélica, não se submete a eles e tem um campo de manifestação que
guarda sua autonomia própria.
161
Na verdade, a ferida que Ulisses ganhou no Parnaso é referida na Odisséia, em uma clássica cena de
reconhecimento (anagnôrisis). Aristóteles parece referir-se ao fato de que o fato não forma um episódio mais
extenso na Odisséia.
66

É necessário então, assim como nas outras artes miméticas162 é una a


mímese de um objeto uno, também o enredo, já que é mímese de uma ação, que
seja mímese de uma ação una e que este seja inteira, e é necessário compor as
partes de forma a, transposta uma parte ou retirada, diferir e mover-se o todo: pois
aquilo cujo acréscimo ou supressão não traz alteração visível não é parte do todo.

162
Rostagni sustenta que ‘outras artes miméticas’ seja referência principalmente às artes pictóricas, exemplo de
que a Poética faz uso constante.
67

Também 163 é claro, a partir do que foi dito 163, que a função do poeta não é
dizer aquilo que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, aquilo que é possível
segundo o provável ou o necessário. Pois não diferem o historiador e o poeta por
fazer uso, ou não, da metrificação (seria o caso de metrificar os relatos de Heródoto;
nem por isso deixariam de ser, com ou sem metro, algum tipo164 de história), mas
diferem por isto, por dizer, um, o que aconteceu, outro, o que poderia acontecer. Por
isso a poesia é mais filosófica e também mais virtuosa165 que a história. Pois a

163
Algumas entre as traduções consultadas omitem o kai, que vertemos por ‘também’. Ainda que ele não seja
essencial, ele explicita a ligação entre esse capítulo e os capítulos 7 e 8, aos quais faz referência a frase ‘a partir
do que foi dito’.
164
tis: o termo é negligenciado pela maioria das traduções consultadas. No entanto, ele tem uma função clara: ele
é o tributo que Aristóteles paga ao costume. A história, tal como era escrita na época, não é um gênero
metrificado, mas, ainda que fosse, não deixaria de ser, de certa forma (tis), história (cf. nota 20 do capítulo 16).
165
Halliwell tem razão ao apontar a importância para a Poética dos conceitos apresentados no capítulo 9
(ARISTÓTELES, 1987, p. 105) e de suas conseqüências. Entre essas conseqüências uma das mais célebres,
senão a mais célebre, é a do estatuto da poesia frente à história. A afirmação de que a poesia é mais filosófica e
virtuosa que a história ganha importância, entre outros motivos, porque parece responder à crítica platônica
dirigida aos poetas, especialmente nos livros III e X da República, e vários comentadores se deixam polarizar por
essa polêmica. Mas não é só isso. A frase também coroa, mostrando seus resultados e sua pertinência, o esforço
teórico dos capítulos 7 e 8 em estabecer os critérios de unidade do poema e, ainda segundo Halliwell, “nos
mostra Aristóteles usando sua inteligência filosófica para a formulação de alguns de seus mais esclarecedores e
mais fundamentais insights relativos ao status da poesia” (idem, ibidem). A consideração da poesia como mais
filosófica que a história é justificada localmente pelo fato de a poesia referir-se antes ao geral (“universals”, na
tradução de Halliwell), enquanto a história refere-se ao particular. O ponto não comporta grande dificuldade de
apreensão: o universal na poesia aparece na medida em que o enredo deve se articular segundo o provável ou o
necessário, vale dizer, segundo o que acontece no mais das vezes (hôs epi to polu) ou sempre (aei) (cf. nota 4 do
capítulo 7) e se opõe ao mosaico desarticulado de eventos de que trata a história (ta genomena – 1451 b 4). A
transparência desse resultado ‘local’ (quer dizer, considerado dentro do âmbito dos capítulos 7, 8 e 9) mascara,
entretanto, uma dificuldade de fundo da Poética. Como defender que um enredo peculiar e altamente
improvável, como, por exemplo, o de Édipo, possa ser apreendido em sua inteireza apenas com os conceitos de
probabilidade e de necessidade? Ou, em outras palavras, em que sentido os enredos trágicos podem ser ditos
realmente ‘universais’? Essa dificuldade de fundo se manifesta de diversas maneiras nos diferentes
comentadores, sempre com objeções sérias, bem articuladas e aparentemente consistentes. Halliwell, por
exemplo, objeta que o requisito de unidade preceituado por Aristóteles não é capaz de “lidar com os obscuros
eventos cujas causas subjacentes podem não ser acessíveis a nossa capacidade ordinária de compreensão”
(ARISTÓTELES, 1987, p. 111). Dupont-Roc e Lallot, por sua vez, recorrem à solução que aparentemente é a do
próprio Aristóteles, quando, no capítulo 18, cita Agatão: ‘é provável que muitas coisas aconteçam mesmo contra
a probabilidade’ (1456 a 24). A solução parece ser capaz de conservar a tragédia inteiramente dentro dos limites
do provável e do necessário. A abordagem desse problema escapa dos limites dessa nota e será feita em outros
pontos da Poética que tratam mais especificamente da peripécia (uma vez que é justamente na peripécia que se
revela o caráter espantoso das ações trágicas) e particularmente da relação entre peripécia, probabilidade,
necessidade e acaso (ver especialmente notas 1 e 2 do capítulo 11). De qualquer forma, mesmo dentro do âmbito
restrito dos capítulos 7, 8 e 9, a questão da universalidade relativa da poesia pode ser investigada de maneira
mais cuidadosa de forma a revelar seus limites. Chama a atenção (ainda que o ponto não seja abordado por
nenhum dos comentadores consultados) a definição de katholou (´geral’) proposta. O termo é vertido, nas
traduções de Bywater, Butcher, Else e Halliwell para o inglês, por ‘universal’ ou ‘universals’, mas a definição
dada (‘geral é que tipo de coisa cabe a uma pessoa de determinada qualidade dizer ou fazer segundo o provável
ou o necessário’) parece valer antes dentro do contexto da ação humana. Certamente ela não se aplica à
68

poesia diz antes o que é geral, enquanto a história, o que é particular. Geral é que
tipo de coisa cabe a uma pessoa de determinada qualidade dizer ou fazer 166
segundo o provável ou o necessário, o que visa a poesia na maneira como atribui os
nomes 167. O particular é aquilo que Alcibíades fez ou sofreu.

universalidade da soma dos ângulos internos de um triângulo. Observado isso, parece exagerada a tradução de ta
katholou por ‘universal’ (para que se faça justiça, é necessário dizer que Else introduziu no texto uma restrição:
“‘universal’, in this case, is what kind of person...” (ARISTÓTELES, p. 33, grifo meu)). Por isso optamos por
traduzir o termo não por ‘universal’ mas por ‘geral’. Deve-se observar também que definição proposta implica
no seu bojo alguns entre os seis elementos que compõem a tragédia: alguém de determinada qualidade (ethos),
age e fala de determinada maneira (lexis, dianoia, praxis) segundo o provável ou o necessário. Essa definição de
katholou, entretanto, diz respeito antes à complementaridade que deve existir entre o caráter do herói e suas
ações e falas que à seqüência necessária ou provável que deve orientar o arranjo dos fatos. O geral que se
depreende da definição parece dizer respeito antes ao ethos que ao muthos. Prova disso é o que o capítulo 15,
que trata justamente do ethos, ao preceituar que o caráter do personagem deve se deixar regrar pelo provável ou
pelo necessário, o faz com termos bastante semelhantes aos usados nesse definição de katholou ora apresentada
(hôste ton toiouton ta toiauta legein ê prattein ê anankaion ê eikos – 1454 a 35). Se essas observações são
pertinentes, deve-se objetar que há uma sensível e significativa diferença entre o provável e o necessário tais
como usados na definição de ‘geral’ do início do capítulo 9 e tais como usados nos capítulos 7 e 8. Ali o
provável e o necessário diziam respeito principalmente à articulação entre as partes, o começo, o meio, o fim, os
episódios seguirem-se uns aos outros de maneira conexa (capítulo 7). Dizia respeito também ao caráter unificado
da ação trágica que deve resultar do arranjo das ações pontuais do herói (capítulo 8). Nessa definição de geral do
início do capítulo 9, a ênfase é deslocada do requisito de unidade do enredo e recai sobre a complementaridade
que deve subsistir entre ações (onde se incluem certamente as ações do personagem, mas onde não se vê
contemplada a ação una do enredo como um todo), caráter, pensamento e elocução. O texto desliza de um
contexto a outro sem maiores ressalvas, como se eles se equivalessem, como se o fato de o herói trágico agir e
falar de acordo com seu caráter fosse suficiente para garantir a unidade da ação como um todo. Que isso não é
assim, basta para prová-lo um exemplo do próprio texto: o Ulisses que se fingiu de louco no acampamento das
tropas é o mesmo Ulisses que se feriu no Parnaso, mas uma ação não se segue à outra segundo o provável ou o
necessário (1451 a 25-28). Entretanto, o início do capítulo 9 parece usar os conceitos de provável e necessário de
maneria mais afim à usada nos capítulos 7 e 8. Diz-se, em 1451 a 36-37, que a função do poeta é dizer ‘aquilo
que poderia acontecer, aquilo que é possível segundo o provável ou o necessário’. Esse parece ser um contexto
mais amplo que o da definição de katholou. E o capítulo 23, que volta ao tema da diferença entre poesia e
história, é mais claro na crítica que endereça à última: no relato histórico os fatos se seguem uns aos outros ao
acaso. A que se deve atribruir, então, essa definição de katholou que parece não fazer jus ao caráter mais
filosófico da poesia frente à história? Talvez a resposta esteja em observar que no texto a validação da poesia
frente à história se dá em duas frentes distintas: a poesia é não só (kai...) mais filosófica (philosophôteron) que a
história mas também (...kai) mais virtuosa (spoudaioteron) que ela. O conectivo empregado (kai...kai) reforça a
tese de que as duas qualificações são irredutíveis uma à outra. Esse ponto escapa, sem exceção, a todas as
traduções consultadas, que não comentam o fato e vertem spoudaioteron por termos anódinos: “caractére plus
élevé” (Hardy), “plus noble” (Dupont-Roc e Lallot, Magnien), “qui a plus de valeur” (Gernez), “mais sério”
(Eudoro de Sousa), “que tem mais elevação” (Bruna), “of graver import” (Bywater), “higher thing” (Butcher),
“serious” (Else e Halliwell), “nobile” (Rostagni), “elevata” (Gallavotti). Os termos usados deixam claro que os
tradutores parecem considerar que o fato de a poesia ser considerada mais virtuosa que a história é apenas um
desdobramento do fato de ela ser mais filosófica. Mas há um outro sentido em que ela pode ser dita mais virtuosa
que a história, na medida em que o geral a que a poesia se refere articula o caráter, as ações, a fala e o
pensamento do herói trágico. Ele é mostrado como sujeito de suas virtudes e suas ações se constroem
intimamente ligadas a elas.
166
O texto retoma elementos que foram definidos como partes da tragédia: caráter, elocução, pensamento, ação
(que é parte do enredo). Ver nota anterior.
167
Onomata epitithêmenê (‘atribuindo nomes’) é uma expressão bastante controversa, pois ‘dar nomes’ é
particularizar, o que certamente é conflituoso em relação ao caráter geral apontado na poesia. Algumas traduções
resolvem o problema torcendo a letra do orginal e transformando a oração reduzida de particípio em uma oração
concessiva. A tradução resulta em algo como ‘...o que visa a poesia, apesar de dar nomes’. Essa solução,
questionável do ponto de vista lingüístico, é antes sinal das dificuldades do trecho que da inépcia dos tradutores.
69

No que diz respeito à comédia, isso já está evidente, pois é só após terem
feito a composição do enredo segundo o provável que os autores atribuem os
nomes, tomando-os ao acaso, e não como os iambógrafos, que constroem seus
poemas a respeito de um indivíduo particular. Com respeito à tragédia, entretanto,
os autores se limitam aos nomes existentes. A causa é que o possível é crível. Ainda
não acreditamos ser possível o que não aconteceu, enquanto o que aconteceu é
claro que é possível (de fato, não teria acontecido se fosse impossível) 168. Não
obstante, mesmo nas tragédias, em algumas apenas um ou dois dos nomes são
conhecidos, e os outros são ficcionais; em outras, nenhum nome é conhecido, como
por exemplo, no Anthos, de Agatão. De fato, nessa tragédia são igualmente
ficcionais os nomes e as ações; nem por isso agrada menos. De forma que não é
absolutamente necessário se limitar aos mitos 169 legados pela tradição, em torno dos
quais as tragédias são feitas. Seria até risível proceder assim, visto que mesmo as
coisas conhecidas são conhecidas de poucos, e ainda assim agradam a todos 170.

Outra solução seria considerar que a expressão faz referência à maneira como os nomes devem ser aplicados aos
personagens, só depois que a ação esteja delineada e caracterizada segundo o provável ou o necessário. De fato,
a referência à comédia, no parágrafo seguinte e a maneira com que Aristóteles trata o enredo de Ifigênia e da
Odisséia no capítulo 17, fazendo primeiro uma exposição geral da ação para só então colocar os nomes
(hupothenta ta onomata – 1455 b 12) e acrescentar os episódios, parecem convidar a interpretar a expressão
dessa forma. A tradução proposta, que também não respeita na sua inteireza a letra do original, baseia-se nessas
considerações.
168
O texto estaria conferindo realidade histórica aos mitos tradicionais? Não necessariamente. Como afirma
Halliwell, é razoável supor que “Aristóteles está se referindo, sem que isso queira dizer que ele a aceita, à crença
comum entre os gregos de que relatos tradicionais como a guerra de Tróia de fato preservam eventos históricos”
(ARISTÓTELES, 1987, p. 105, nota de rodapé).
169
Ainda que o original tenha o termo muthos, que, quando se refere a uma das seis partes da tragédia,
preferimos traduzir por ‘enredo’, não parece obrigatório supor que aqui Aristóteles use o vocábulo com seu
sentido técnico. Pelo contrário, o contexto, ao fazer referência também aos nomes tradicionais, supõe um escopo
amplo para muthos. As traduções de Eudoro de Sousa e de Jaime Bruna, ao verterem o termo técnico por mito e
fábula, respectivamente, não têm por que hesitar em usar esses mesmos vocábulos, que também são adequados
para se referir ao legado da tradição, na tradução desse trecho. A sinonímia entre os termos que favorece Eudoro
e Bruna é regra também nas traduções para o francês consultadas (Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gernez,
Magnien), mas não nas traduções para o inglês. Nessas, o termo escolhido para verter muthos como uma das
partes da tragédia é, sem exceção, plot (em Halliwell, plot-structure), que, apesar de nos parecer inadequado para
esse trecho, é ainda assim o escolhido por Else e Halliwell. Bywater usa traditional stories e Butcher, received
legends.
170
Essa observação de Aristóteles parece conflitar com um certo elitismo que lhe é imputado. De fato, quando
Aristóteles constata a existência de diferentes públicos (como no livro VIII da Política, 1342 a 19, ou mesmo no
capítulo 26 da própria Poética) geralmente reserva suas observações para as manifestações direcionadas ao
público educado. Nesse trecho, que uma parte do público não conheça o legado da tradição não inspira nenhum
preceito restritivo, ao contrário: o preceito se faz no sentido de contemplar também a parte menos instruída do
público. Isso talvez se deva a que o ergon da tragédia é atingido de qualquer modo, com enredos tradicionais ou
não, o que talvez não fosse o caso de manifestações artísticas, por assim dizer, ‘inferiores’. Isso posto, talvez seja
apropriado moderar o suposto elitismo de Aristóteles atribuindo-o não a um arraigado preconceito de classe, mas
sim à constatação que diferentes públicos reagem diferentemente e procuram prazeres diversos.
70

É evidente, então, em vista dessas consideraçãoes, que o poeta deve ser


antes um artífice de enredos que um versificador, tanto quanto ele é poeta segundo
a mímese, e realiza a mímese de ações. E ainda que ele venha a ser poeta de fatos
ocorridos, não menos poeta ele será: pois nada impede que, dentre os fatos
ocorridos, alguns venham a ser prováveis e possíveis, em virtude do que ele será
poeta deles.
Dos171 enredos e ações simples, as episódicas172 são as piores. Digo ser
episódico o enredo em que os episódios se seguem uns aos outros sem que entre
eles haja nexo provável ou necessário. Tais ações são elaboradas pelos maus
poetas por culpa deles mesmos, e pelos bons poetas por culpa dos atores 173: pois
ao elaborar partes declamatórias e estender 174 o enredo além de sua capacidade,
muitas vezes são forçados a deformar o nexo dos fatos.

171
Essa parágrafo provoca uma série de controvérsias entre os comentadores qunato a seu exato ponto de
inserção no texto. Ele parece deslocado, antecipando o conteúdo do capítulo seguinte, o que gerou algumas
propostas de emendas (anotadas no aparato crítico de certas edições). Apontam esse fato, entre outros, Dupont-
Roc e Lallot, Rostagni e Halliwell, mas os dois primeiros ressalvam que, tendo Aristóteles estabelecido a
distinção entre história e poesia, não seria inesperado que ele fizesse referência ao tipo de tragédia que, por
manter um nexo fraco entre suas partes, mais se aproximasse de um relato como o histórico. Else, por sua vez,
aponta que não é incomum na Poética certos conceitos serem antecipados e conclui peremptório: “nothing is out
of order here” (ARISTÓTELES, 1994, p. 93, nota 77).
172
A tradução conserva a hesitação do original em relação ao gênero do adjetivo que se refere a ‘enredos’
(muthos, como no português, um substantivo masculino) e ‘ações’ (praxis, como no português, um substantivo
feminino). Observe-se que a hesitação prossegue no trecho, pois na frase seguinte Aristóteles privilegia muthos
para, na posterior, retornar a praxis.
173
Pode-se es pecular em que consistiria mais exatamente essa concessão feita aos atores pelos poetas
confrontando esse trecho com o início do livro III da Retórica, onde Aristóteles, ao abordar a hupokrisis retórica,
afirma que, nos concursos dramáticos, aqueles que sabem dominar o volume de voz, a entonação e o ritmo
(megethos, harmonia, rhuthmos – 1403 b 31) ganham quase todos os prêmios. Trata-se, naturalmente, de atores.
Em seguida, acrescenta que, nas tragédias, “os atores agora podem mais que os poetas” (meizon dunantai nun
tôn poiêtôn hoi hupokritai- 1403 b 33). Rostagni, aludindo a esse fato, sugere, como tradução de agônismata
(1451 b 37), “partes declamatórias ou histriônicas ... que resultavam em um não natural prolongamento do mito e
uma interrupção da ‘continuidade’” (ARISTÓTELES, 1945, p. 57). Agônismata (que, acatando o comentário de
Rostagni, foi traduzido por ‘partes declamatórias’) seriam então trechos em que os atores poderiam, com um
texto apropriado, demonstrar sua performance oratória. Como notaram Dupont-Roc e Lallot, essa hipótese está
de acordo com o que o texto da Poética afirma no final do capítulo 24, em 1460 b 2-5.
174
O verbo grego parateinô (usado no particípio presente parateinontes) deve ter seu sentido esclarecido através
da comparação com seu uso no capítulo 17, onde Aristóteles, ao dar indicações práticas a respeito de como
realizar a composição do enredo, diz que, tendo feito uma exposição geral do tema, deve-se ‘então introduzir
episódios e estender a obra’ (eith’houtôs epeisodioun kai parateinein – 1455 b 2). O verbo, em si, não tem
necessariamente o caráter pejorativo que lhe emprestam algumas traduções (Eudoro de Sousa: “chegam a forçar
a fábula para além dos próprios limites”; Bruna: “dilatando a fábula”; Bywater, Butcher e Else usam o verbo
stretch, Halliwell usa strain, as traduções francesas usam étirer ou étendre, etc...). O problema não está em
estender o enredo, mas em estendê-lo além de sua capacidade.
71

Uma vez que a mímese não é apenas mímese de uma ação completa, mas
também de casos que inspiram temor e piedade e esses surgem principalmente
quando se produzem contra as expectativas 175 e uns por causa dos outros (pois

175
Deve-se notar, como efetivamente notaram alguns comentadores, que não é senão depois de estabelecer com
certo detalhamento os requisitos de unidade, completude, inteireza, extensão e após ter ter qualificado o nexo
entre as ações como provável ou necessário (ou seja, após estabelecer certos requisitos do enredo que
poderíamos chamar, lato sensu, requisitos formais), o que, por sua vez, dá origem à conhecida legitimação da
poesia frente à história e principalmente frente à crítica platônica, por esta destacar-se como mais filosófica e
virtuosa que a crônica dos fatos ocorridos, que Aristóteles introduz, como se fosse um complemento, a
necessidade da mímese de fatos que geram medo e piedade. Essa adição, talvez tardia (mas bastante similar, em
seu caráter de apêndice, à maneira como o temor e a piedade são introduzidos após a definição de tragédia no
capítulo 6 – cf. nota 6 do capítulo 6 e a Introdução), parece, entretanto, ser fundamental para o ergon da tragédia,
pois repetidas vezes o texto enfatiza a importância dessas emoções (1452 a 38, 1452 b 29-30, 1453 a 22-23, 1453
b 12, 1456 a 20, 1460 b 25, 1462 b 13), e não menos porque, no próprio final desse parágrafo, se afirma que ‘tais
são os enredos mais belos’. Talvez seja o caso de escrutinar, nesse ponto, um certo conflito entre isso que
chamamos de requisitos ‘formais’ do enredo e o conteúdo das ações, que deve gerar medo e piedade. Uma
aparente incompatibilidade entre eles parece evidenciar-se se notarmos que, ao lado de um enredo articulado
segundo o provável ou o necessário (isto é, segundo aquilo que ocorre o mais das vezes ou segundo aquilo que
não pode ser de outra forma – trata-se de um enredo certamente previsível), os eventos que geram medo e
piedade devem ocorrer para tên doxan (´contra as expectativas’), para que sejam espantosos (vale dizer,
imprevisíveis), sem que, entretanto, eles possam ser referidos àquilo que acontece espontaneamete e por acaso
(apo tou automatou kai tês tukhês). Essa aparente incompatibilidade, ao ser radicalizada, pode gerar a hipertrofia
de um dos lados da equação, de forma a fazer ele prevalecer sobre o outro. É o que acontece com todos os que,
privilegiando os aspectos analíticos do enredo e chamando em seu auxílio uma certa leitura do início do capítulo
4, de forma a fazer da mímese um instrumento de conhecimento do real, vêem na tragédia o resultado das
pesquisas do tragediógrafo a respeito do nexo causal das ações humanas. Poeta, segundo essa visão, é aquele
capaz de extrair da matéria caótica dos fatos o nexo causal que os rege, de forma a expô-los para proveito do
público. Ora, se a tragédia fosse isso, o mais belo enredo teria por título algo como “A vida de Péricles, o
prudente”, em que o poeta faria a exposição das ações relevantes desse homem reconhecidamente virtuoso. Uma
tal leitura poderia ainda encontrar apoio em vários pontos do corpus aristotélico: ora, não é a própria Metafísica
que afirma que a filosofia nasce do espanto (to thaumazein 982 b 12-13)? Não estaria aí a chave para entender
que a necessidade desse mesmo espanto no enredo trágico tem por função algum tipo de conhecimento
filosófico, o que privilegiaria uma leitura intelectualista de tragédia? Não é a própria Ética Nicomaquéia que
identifica, no seu livro X, a vida virtuosa à vida contemplativa? Não estaria aí, na contemplação da ação humana,
a razão de atribuir à tragédia relevância ética? Não é a própria reputação de Aristóteles como fundador da lógica
que nos convida a enxergar, na sua apreciação do nexo causal que deve reger o enredo, uma extensão do nexo
causal que rege o silogismo? No entanto, parecem ser necessários à tragédia o medo e a piedade. Isso não nos
obriga a radicalizar a questão no sentido contrário, de forma a, ao incorporar o medo e a piedade, descaracterizar
a necessidade de nexo lógico entre as ações, pelo contrário: se formos à Retórica procurar a definição de medo,
se tornará evidente que uma certa previsibilidade nos eventos é necessária para constituir essa pathos:

estô dê ho phobos lupê tis hê tarakhê ek phantasias mellontos kakou phthartikou ê


lupêrou (1382 a 21)

‘Seja o medo uma certa dor ou perturbação (surgidas) da figuração de um mal


destrutivo e doloroso iminente’.

O mal que a tragédia põe em cena, então, não pode surgir ex abrupto, mas deve ser indiciado pelos eventos que o
antecedem. Nesse sentido, um enredo que tenha nexos entre suas ações constituídos segundo o provável ou o
necessário será um enredo mais adequado para propiciar temor e piedade. Mas não parece também ser o caso de
radicalizar essa outra (mais uma...) interpretação e subordinar os requisitos estéticos relacionados à necessidade
de nexo causal entre os eventos (aqui dito ‘requisitos estéticos’ em um sentido bem particular, porque dizem
respeito à ordem e à extensão – cf. 1450 b 37) aos requisitos éticos ‘provocar medo e piedade’ (‘éticos’ também
em um sentido particular, porque dizem respeito a ações e emoções – cf. Ética Nicomaquéia, 1109 b 30), de
forma a sugerir que o nexo causal entre os eventos só existe com a finalidade de criar a expectativa do mal
iminente. De qualquer forma, como foi defendido na Introdução, parece evidente que características estéticas e
72

assim o espantoso dar-se-á mais que se ocorresse arbitrariamente ou por acaso,


uma vez que, mesmo entre as coisas que acontecem por acaso, são consideradas
mais espantosas todas as que parecem ter acontecido de propósito, como, por
exemplo, a estátua de Mitos, em Argos, ter matado quem causou a morte de Mitos,
caindo sobre este enquanto ele a observava) – de forma que 176 necessariamente
tais são os enredos mais belos.

éticas (nos sentidos usados aqui) devem ser compatibilizadas para uma adequada interpretação da teoria da
tragédia.
176
A exemplo do capítulo 7 (1451 a 3), a apódose é substituída por uma proposição consecutiva (mas vejam-se
as notas 6 e 8 do capítulo 7).
73

10

Dos enredos, uns são simples 177, outros são complexos, pois também as
ações, de que os enredos são mímese, vêm a ser assim diretamente 178. Chamo
simples a ação que, constituindo-se, conforme definido, de maneira contínua 179 e
una, a mudança de fortuna 180 se faz sem peripécia ou reconhecimento; complexa, a
ação em que a mudança se faz com reconhecimento ou peripécia, ou ambos. Esses
eventos devem constituir-se a partir da própria composição do enredo, de forma que
decorram dos fatos que os antecedem segundo o provável ou o necessário. Pois é
grande a diferença entre ocorrer uma coisa por causa de outra e ocorrer uma coisa
depois de outra 181.

177
‘Simples’ parece ser uma tradução melhor que o ‘linear’ adotado por alguns. De fato, além do par ‘simples /
complexo’ preservar a oposição etimológica que existe entre ‘haplos’ / ‘peplegmenos’ (preserva inclusive a
mesma raiz), o enredo simples não é linear, uma vez que comporta a mudança de fortuna.
178
A tradução proposta aproveita o comentário de Rostagni: “u(pa/rxousin eu)qu\j ou)=sai..., ‘sono tali
direttamente’, perchè i mu=qoi, da copie o imitazioni che sono, non sono tali se non in via indiretta, riflessa. Cfr.
V, 49a, 34” (ARISTÓTELES, 1945, p. 59)
179
‘Contínua’ traduz sunekhês e é mais um termo a ser adicionado à lista com a qual Aristóteles qualifica o
continuum do enredo ou da ação: teleia, holê, mias, ephexes, sunekhês (cf. nota 2 do capítulo 7).
180
O termo grego é metabasis e seu conceito foi introduzido pelo verbo metaballein, em 1451 a 14. Esse verbo,
entretanto, tem como substantivo derivado por regressão metabolê que, a rigor, deveria ser o usado aqui. Mas a
Poética certamente não se pauta por uma estrita coesão lexical.
181
Cf. capítulo 15, 1454 a 36.
74

11

A peripécia é a mudança dos acontecimentos no seu contrário da maneira


que dissemos, e isso, como preceituamos, segundo o provável ou o necessário 182.

182
Como a mudança de fortuna se dá tanto no enredo simples como no enredo complexo, mas a peripécia é
exclusiva do segundo, forçoso é reconhecer que “a mudança dos acontecimentos no seu contrário” não se refere
à passagem da fortuna (eutukhia) para o infortúnio (dustukhia) ou vice-versa, preceituada no final do capítulo 7.
Como a frase he eis to enantion tôn prattomenôn metabolê (‘a mudança dos acontecimentos no seu contrário’) é
genérica o bastante para comportar também a mudança de fortuna, faz-se necessário entender kathaper eiretai
(‘da maneira como dissemos’) como uma restrição que limita seu alcance. As traduções, então, ligam o kathaper
eiretai não ao final do capítulo 7 (1451 a 12-15), mas ao trecho final do capítulo 9, mais precisamente a 1452 a
2-4. Se essa hipótese é correta, como parece, à peripécia sempre estará associado um elemento inesperado (para
tên doxan ...) mas que conserva um caráter causal (...di’allêla – 1452 a 4). Disso resultará o espantoso (to gar
thaumaston houtôs exei – 1452 a 4-5). Uma passagem relacionando o espantoso à peripécica pode ser encontrada
também na Retórica (1371 b 10-11). Isso coloca um problema para os comentadores, na medida em que o mais
belo enredo (1452 a 10), que, não esqueçamos, é o princípio e a alma da tragédia (1450 a 37), deve articular-se
segundo o provável ou o necessário mas ter, ao mesmo tempo, um caráter paradoxal (cf. nota 13 do capítulo 9).
O problema se torna mais evidente quando, recorrendo aos Primeiros Analíticos, encontramos a definição de
eikos oferecida no capítulo 27 do livro II (70 a 2-5):

eikos de kai sêmeion ou tauton estin, alla to men eikos esti protasis endoxos: ho gar
hôs epi to polu isasin houto ginomenon ê mê ginomenos ê on ê mê on, tout’estin
eiko,s hoion to misein tous phthonountas ê to philein tous erômenous

o ‘provável’ e a evidência não são a mesma coisa. O ‘provável’ é uma proposição de


conteúdo aceito: pois aquilo que sabemos que, no mais das vezes, acontece (ou não
acontece) de determinada maneira, ou aquilo que, no mais das vezes, é (ou não é) de
determinada forma, isso é o provável, como, por exemplo, ‘os invejosos têm raiva’,
ou ‘os que são amados, amam’.

A definição dos Primeiros Analíticos afirma que o eikos (provável) é uma proposição aceita, ou uma proposição
cujo conteúdo é uma opinião aceita (protasis endoxos). O conflito é evidente: como se pode sustentar que o
enredo deve se articular segundo o provável ou o necessário, vale dizer, segundo o que é opinião aceita ou
segundo o necessário e conter, ao mesmo tempo, algo que é contrário à opinião? Se foi realmente dada uma
solução para esse problema no corpo da Poética, deve-se admitir que ela parece tão simples quanto elegante. Na
capítulo 18, retornando à questão da peripécia, Aristóteles diz: estin de touto kai eikos hôsper Agathôn legei,
eikos gar ginesthai polla kai para to eikos (1456 a 23-25). “E isto (i.e., alguém sábio ser enganado, ou alguém
corajoso ser vencido) também é provável, no sentido em que Agatão diz: pois é provável muitas coisas
acontecerem mesmo contra a probabilidade”. A frase tem uma elegância de estilo que parece honrar a reputação
de Agatão. Mas se deixarmos de lado a elegância do estilo e nos perguntarmos se a proposição resolve o conflito
entre a articulação do enredo e a peripécia, que escapa à lógica do provável ou necessário que rege o primeiro,
veremos que a questão não é simples. Examinado o ponto de uma maneira puramente estatística, parece razoável
dizer que é provável que muitas coisas ocorram contra a probalidade. De fato, considerando um conjunto
composto de um grande número de eventos, muitos desses escapam ao que seria esperado. Mas o número dos
eventos inesperados é muitas ordens de grandeza inferior ao número total de eventos. Basta pensar em jogos de
azar. No mais das vezes, aquele que joga na roleta, perde. Isso não impede que seja provável que haja
ganhadores. É até necessário haver ganhadores se todas as casas forem preenchidas com pelo menos uma ficha.
Mas é muito pouco provável que determinado jogador ganhe, ou ainda, é pouco provável que a banca, na
somatória das apostas, perca (cassinos, afinal, são empresas lucrativas). Se a frase que Aristóteles atribui a
Agatão faz referência a eventos desse tipo, ela é claramente insatisfatória para dar conta do caráter paradoxal da
peripécia. Aliás, é o próprio Aristóteles, em uma passagem da Retórica que analisa os silogismos aparentes
(phainomenos sullogismos– 1402 a 5 et seq.), quem classifica o raciocínio de Agatão como falacioso, por
confundir aquilo que é provável em sentido absoluto (haplôs eikos) com o que é provável em sentido particular
(ti eikos). A falácia de Agatão, nos diz ainda a Retórica, tem o mesmo caráter da falácia que consiste em afirmar
que aquilo-que-não-é é, na medida em que ele é aquilo-que-não-é (loc. cit.). A reação dos comentadores a esse
75

Como, por exemplo, no Édipo: o mensageiro, tendo vindo para tranqüilizar Édipo e
afastá-lo do temor em relação a sua mãe, ao ter revelado quem Édipo era, fez o
contrário183. Também é o caso do Linceu: sendo este levado para morrer, ao passo

conflito é, como não poderia deixar de ser, variada. Dupont-Roc e Lallot valem-se explicitamente da ‘solução de
Agatão’:

“Ainsi, le coup de théâtre, probablement unique ... est moins un moment du


“reversement” tragique (metabasis) que la forme spécifique qu´il revêt parfois: ce
point extrême du vraisemblable où l´enchaînement des faits se produit contre toute
attente (c´est “le vraisemblable qui se produit contre le vraisemblable”, chap. 18, 56
a 25), et provoque le vif plaisir de la surprise”. (ARISTÓTELES, 1980, p. 232, nota
1 do capítulo 11 – grifo nosso: a frase sublinhada é a frase de Agatão).

Dizer que a peripécia é o “ponto extremo do verossímil” é fazer o conflito disfarçar-se por trás do significado
pouco preciso do termo ‘verossímil’, contra cujo uso já nos colocamos (cf. nota 4 do capítulo 7). Halliwell
(ARISTÓTELES, 1987, p. 111), por sua vez, reconhece o conflito que emerge da passagem final do capítulo 9

The final point of importance in ch. 9 is the observation that a specifically tragic
drama can best arouse a sense of wonder, and also the tragic emotions of pity and
fear, by paradoxical but nonetheless causally coherent events. We can get a glimpse
here of one of the points at which Ar.'s understanding of unity does come under
some strain

mas sua objeção não se centra na aparente incompatibilidade entre o caráter da peripécia e o nexo provável ou
necessário das ações, ainda que tenha o mesmo teor. Aos olhos de Halliwell, os requisitos de probabilidade e
necessidade que organizam o enredo são insuficientes para dar conta da ação trágica em todos seus aspectos.

As a general doctrine of dramatic 'logic', the view of unity which chs. 7 and 8 set
forth has obvious enough merits. But by equating unity of plot-structure with unity
of action, Ar. presupposes that poetic drama can always afford to present an
internally perspicuous and intelligible sequence of events. Tragedy can pose a
challenge for such an assumption by dealing with obscure events whose underlying
causes may not be accessible to our ordinary powers of comprehension. (idem,
ibidem)

Essa objeção leva-o a questionar a ausência do divino na análise da tragédia tal como a Poética nos apresenta:

But in both the Oedipus and the Iphigeneia there is a prominent divine
context and background to all that is shown in the plays, and we do not have
to assume that Ar.'s neglect of it would have been matched by the original
audiences of these works. (idem, p. 119)

Em vários comentadores essa passagem, ou outras de mesmo teor, causa uma certa perplexidade que, para dizê-
lo de uma maneira geral, nasce do privilégio concedido ao provável e ao necessário na ação trágica, o que parece
excluir do domínio da Poética o contingente. Entretanto, toda ação trágica tem uma conjunção bastante
improvável de eventos e o destino do herói trágico parece não poder prescindir do recurso ao contingente para
ser apreendido na sua inteireza. Uma resposta a tais questões deve nascer de uma análise do necessário, do
provável e do acaso dentro da tragédia. Veja-se a nota seguinte.
183
O trecho do corpus aristotélico em que existe uma abordagem mais extensa a respeito do acaso (tukhê) é o
livro II da Física, mais especificamente os capítulos 4, 5 e 6 desse livro. Aristóteles, após ter exposto sua teoria
das quatro causas (causa formal, causa final, causa eficiente, causa material) se pergunta em que sentido o acaso
(e o espontâneo – to automaton) pode ser também considerado causa de algo. A questão é importante em se
tratando da Poética, e não menos porque é o próprio Aristóteles que afirma, usando uma terminologia que se
encontra também na Poética (cf., por exemplo, a presença do hôs epi to polu - ‘no mais das vezes ‘ e do ex
anankês – ‘necessariamente’):
76

Prôton men oun, epeidê horômen ta men aei hôsautôs gignomena ta de hôs epi to
polu, phaneron hoti oudeterôu toutôn aitia hê tukhe legetai oude to apo tukhês, oute
tou ex anankês kai aiei oute hôs epi to polu. all’epeidê estin ha gignetai kai para
tauta, kai tauta pantes phasin einai apo tukhês, phaneron hoti esti ti hê tukhê kai to
automaton: ta te gar toiauta apo tukhês kai ta apo tukhês toiauta onta ismen (196 b
10-17)

Primeiramente, então, uma vez que vemos algumas coisas vindo a ser da mesma
maneira sempre, outras, no mais das vezes, é manifesto que o acaso e aquilo que é a
partir de acaso não se denominam causa de nenhuma delas, nem daquilo que é por
necessidade e sempre, nem daquilo que é no mais das vezes. Mas uma vez que, além
dessas, há também outras coisas que vêm a ser a partir do acaso, é manifesto que o
espontâneo e o acaso são algo; pois reconhecemos as coisas desse tipo como sendo a
partir do acaso e as coisas a partir do acaso como sendo desse tipo. (Trad. Lucas
Angioni (ARISTÓTELES, 2002, p. 77-79))

Se formos ao início do capítulo 7, encontraremos, presidindo a composição do enredo, os mesmos conceito de


‘necessário’ (ex anankês) e de ‘no mais das vezes’ (hôs epi to polu), que, por sua vez, se nossa suposição é
correta, dá origem ao conceito de ‘provável’ (kata to eikos– ver nota 4 do capítulo 7). E ainda mais, o necessário
e o provável devem presidir não apenas a seqüência das ações e a articulação dos episódios, mas também a
própria caracterização dos personagens (1445 a 33 – 36). O acaso, então, não pode ser considerado causa de
nenhuma ação trágica. Na Física Aristóteles define o acaso como causa acidental operando no domínio daquilo
que pode ser objeto de escolha (proairesis) e daquilo que é em vista de algo. Façamos uso do exemplo que ele
próprio dá para ilustrar esse conceito. Se alguém vai ao mercado com uma certa intenção (ou seja, há uma causa
final que explicita o por quê de ele ir ao mercado: por que esse sujeito foi ao mercado? Para comprar peixe, por
exemplo) mas nesse mesmo mercado encontra alguém que lhe deve dinheiro e recupera essa quantia, esse é um
evento que se deve ao acaso. A ação e sua causa final (ir ao mercado para comprar peixe) tornam-se causa
acidental de ele recuperar o dinheiro (ou de ele se encontrar com quem lhe devia o dinheiro, pouco importa –
veja-se, a respeito das controvérsias desse exemplo, Charlton, (ARISTÓTELES, 1992, p. 107-108)). Se é assim
o acaso, é surpreendente que os efeitos da fala do mensageiro de Corinto, no Édipo Rei, por exemplo, não sejam,
de alguma forma, referidos por Aristóteles também ao acaso. Afinal, era intenção do mensageiro afastar Édipo
dos temores que o atormentavam em relação à mãe, mas essa intenção inicial se transformou em causa acidental
de Édipo descobrir quem ele era. Não caberia aqui ao menos uma semelhança com os eventos que levam alguém
a recuperar por acaso um dinheiro que se lhe era devido tendo ido ao mercado com outra intenção? Mas parece
haver uma diferença, talvez fundamental: o mensageiro fez o contrário do que pretendia (tounantion epoiêsen –
1452 a 26). Essa característica também é uma característica da peripécia (ela é ‘a mudança dos acontecimentos
no seu contrário’ – hê eis to enantion tôn prattomenôn metabolê – 1452 a 22). Seria isso suficiente para banir
esse evento do domínio do acaso? Se sim, tanto melhor, porque dessa forma a própria peripécia estaria fora dos
domínios do acaso e em nada ela contrariaria os ditames do enredo. Mas ‘fazer o contrário’ ainda não é o
suficiente. Pensemos, por exemplo, que o sujeito que recuperou o dinheiro no mercado, ao invés de ter ido lá
para comprar peixe, tivesse ido para pedir um empréstimo. Se ele tivesse encontrado seu devedor antes de pedir
o empréstimo e tivesse recuperado desse devedor uma quantia tal que não apenas o livrasse da necessidade do
empréstimo mas ainda lhe deixasse com dinheiro suficiente para emprestar mais dinheiro e isso efetivamente
ocorresse, a ida ao mercado teria tido um efeito contrário ao prentendido, mas o processo todo ainda poderia ser
descrito como tendo ocorrido ‘por acaso’. Os eventos relativos ao mensageiro, entretanto, ainda têm algo a mais
que os diferencia claramente desse exemplo último: para afastar completamente Édipo dos temores em relação a
sua mãe necessariamente deve-se revelar quem ele é, e essa revelação necessariamente produz o efeito contrário
do pretendido. O ato de revelar a identidade de Édipo necessariamente anula a intenção que o preside, ele é
contraditório em si mesmo. A ida ao mercado redundando no efeito contrátio ao pretendido não é contraditória
nesse sentido descrito. A ida ao mercado não implica necessariamente que o efeito contrário será atingido. Mas,
ainda mais uma vez, o fato de a revelação ser contraditória em si mesma quanto aos efeitos pretendido e efetivo é
suficiente para que a definição de acaso dada por Aristóteles na Física não se aplique a esse caso? Voltemos ao
caso de ir ao mercado para comprar peixe. Há uma causa própria da ida ao mercado: comprar peixe. Ela é causa
própria na medida em que o sujeito da ação ‘ir ao mercado’ planejou essa ação em vista dessa causa e na medida
em que, para essa ação com essa causa, cabe a rubrica ‘no mais das vezes’. A recuperação do dinheiro,
entretanto, não estava nos planos do agente. Isso é importante para que o evento possa ser descrito como ‘devido
ao acaso’. Aristóteles é, nesse ponto, explícito:
77

que Dânao seguia para matá-lo, aconteceu, a partir dos próprios fatos, que este
morreu, e aquele se salvou.
O reconhecimento, por sua vez184, como o próprio significado do termo 185
evidencia, é a mudança da ignorância para o conhecimento, levando ou à amizade

é assim, nessas condições que ao menos se diz que veio a partir do acaso; no
entanto, se ele veio [ao mercado] depois de escolher e em vista daquilo [i.e., da
cobrança], ou se ele freqüenta o lugar sempre ou no mais das vezes <fazendo
cobranças>, não se diz “a part ir do acaso” (Física, 197 a 2-5, tradução de Lucas
Angioni (ARISTÓTELES, 2002, p. 81), com esclarecimentos entre colchetes).

A relação que existe, então, entre ‘ir ao mercado’ e ‘recuperar o dinheiro’ não é uma relação que possa ser
colocada sob a rubrica ‘sempre’ ou ‘no mais das vezes’. A relação que existe entre ‘revelar a identidade de
Édipo’ e ‘atemorizá -lo quanto a seu destino’, no entanto, é uma relação necessária, assim como parecia
necessária ao mensageiro a relação entre ‘acalmar Édipo quanto a seu destino’ e ‘revelar sua identidade’. Assim
sendo, a peripécia parece livre da pecha de ‘ser ao acaso’, pelo menos no que diz respeito ao acaso tal como
Aristóteles conceitua na Física. Em relação ao caráter extraordinário da peripécia, resta ainda tecer algumas
considerações sobres as estruturas de enredo que permitem que um evento como a peripécia se dê. Afinal, que
tipo de trama de fatos, que constelação de eventos é tal que permite que um fato tão peculiar quanto a peripécia
(qual seja, um ato que anula necessariamente a intenção que o preside) aconteça, seja provável ou necessário e,
por isso mesmo, paradoxal? Nesses termos, a peripécia confina com a incomensurabilidade da diagonal do
quadrado em relação aos lados, fato ele também causador de espanto, necessário, mas paradoxal (cf. Metafísica,
983 a 15). Ora, basta olhar os enredos das tragédias: quem poderia imaginar algo como um filho que, sem saber,
mata o pai e casa com a mãe, como no Édipo Rei? Quem pode imaginar uma irmã que, sem saber, está
encarregada do sacrifício do irmão, como em Ifigênia em Áulis? No entanto, aceitamos esses enredos
improváveis porque não só (aí sim, cabe a frase de Agatão) é provável que haja fatos improváveis como também
há uma lógica que os ordena. Se há algo que é fora do comum da tragédia, não é a peripécia, é o extraordinário
dos eventos trágicos. A peripécia não contraria a lógica causal do enredo e não está em desacordo com ela, pelo
contrário: a peripécia revela a lógica profunda que rege o enredo e que escapava à doxa dos personagens e/ou
dos espectadores. Afinal, essa mesma doxa certamento sustentaria que Édipo não matou o próprio pai nem casou
com sua mãe. Ela é paradoxal (para tên doxan) nesse sentido. O que é surpreendente, portanto, não é que a
peripécia esteja fora do ordenamento causal que preside o enredo, mas que ela, na verdade, seja o próprio
elemento que revela a causalidade latente dos fatos.
Talvez se objete, com certa razão, que esse tipo de peripécia analisada aqui serve muito bem para enredos como
ÉdipoRei e Ifigênia em Áulis, mas toda peripécia é assim? Talvez não, e provavelmente nem mesmo a Poética
considere o termo com todo o rigor que propomos. Veja -se, por exemplo, que a cena do banho, na Odisséia, é
descrita como uma cena em que há um reconhecimento com peripécia, mas a análise da cena não se encaixa bem
nesse esquema lógico (veja-se nota 9 do capítulo 16). De qualquer forma, a análise da peripécia tal como
sugerimos parece permitir, dentro da Poética, uma articulação mais clara, sem pontos cegos, entre acaso,
surpresa, necessidade e probalidade como propiciadores de piedade, de temor e, conseqüentemente, do ergon da
tragédia.
184
No texto grego há um par men ... de que algumas traduções omitem mas que é importante para evidenciar a
maneira correlata com que Aristóteles considera a peripécia e o reconhecimento. De fato, em qualquer dos casos
se trata de uma mudança (metabolê) engendrada dentro do próprio enredo. O reconhecimento, entretanto, parece
ter um caráter mais flexível que a peripécia (cf. Halliwell, (ARISTÓTELES, 1987, p. 118): “...but Ar. seems to
aknowledge that the latter – i.e., o reconhecimento – is a more adaptable dramatic device”) na medida em que
esta requer uma conjunção de fatores bastante peculiar. Entende-se, assim, por que há vários tipos de
reconhecimento, que serão objeto do capítulo 16.
185
Em grego, o comentário ‘como o próprio significado do termo evidencia’ é mais pertinente na medida em que
os vocábulos que foram traduzidos por ‘reconhecimento’, ‘ignorância’ e ‘conhecimento’ são todos cognatos
(anagnôrisis, agnoia e gnôsis, respectivamente) e o prefixo que forma o primeiro (ana- em anagnôrisis) parece
ter sido entendido por Aristóteles como indicando a passagem de um estado (‘desconhecimento’ – agnoia) a
outro (‘conhecimento’ – gnôsis) .
78

ou à inimizade, que se dá entre os que tinham um status definido em relação à


fortuna ou ao infortúnio 186.
Mais belo é o reconhecimento quando se dá ao mesmo tempo que a
peripécia, como é o caso em Édipo. Há também outros tipos de reconhecimento,
pois mesmo quanto a seres inanimados e quanto ao que ocorre por acaso é possível
que se dê como foi dito, e é possível haver reconhecimento mesmo quanto a se
alguém fez algo ou não. Mas o reconhecimento mais apropriado ao enredo e às
ações é o que foi dito. Pois um tal reconhecimento com peripécia suscitará piedade
ou temor (e de ações desse tipo estabelecemos que a tragédia é mímese); além
disso, a eventos de tal tipo seguir-se-á a o ser bem sucedido ou mal sucedido.
Uma vez que o reconhecimento é reconhecimento de pessoas 187, há
reconhecimentos que são apenas de um em relação ao outro, quando é evidente

186
A tradução se baseia na tradução de Else (“And recognition is ... a shift from ignorance to awareness ... of
people who have previously been in a clearly marked state of happiness or unhappiness” (ARISTÓTELES, 1994,
p. 36)) e nos seus comentários quanto ao verbo horizein. Ele sustenta (citado por Eudoro de Sousa
(ARISTÓTELES 1998a, p. 173-174)) que esse verbo, seguido da preposição pros, não tem nenhuma ocorrência
em Aristóteles que permita traduzi-lo como ‘destinado a’, opção preferencial da maioria das traduções.
Interessante notar que Eudoro de Sousa, mesmo dando razão a Else em nota (ARISTÓTELES, 1998a, p. 173-
174, comentário ao § 61), traduz de maneira diversa: “...que se faz para a amizade ou inimizade das personagens
que estão destinadas para a dita ou para a desdita” (Eudoro de Sousa, idem, p. 118, grifo nosso). Dupont-Roc e
Lallot, que citam o argumento de Else para opor-se a ele, adotam como tradução “entre ceux qui sont désignés
pour le bonheur ou le malheur” (ARISTÓTELES, 1980, p. 71) e se justificam com o seguinte comentário:

Il nous semble plus juste, eu égard au mouvement de la phrase et à la reprise plus


loin des termes de « bonheur et malheur » comme points d'aboutissement (t o
atukhein kai to eutukhein sumbèsetai, 52 b 2), de choisir le sens courant de «
désigner pour », tout en soulignant fortement qu'il n'est absolument pas question ici
d'un destin d'ordre métaphysique, mais de la fin nécessaire à laquelle conduit la
succession des faits agencés par le poète (idem, p. 233, nota 2 do capítulo 11).

Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, deve-se dizer que o trecho citado por Dupont-Roc e Lallot (1452 b 2)
não faz referência somente ao reconhecimento, mas ao melhor reconhecimento, ou seja, aquele que se dá ao
mesmo tempo que a peripécia. Se essa última está envolvida, pode-se supor que a frase citada pela dupla de
estudiosos franceses (to atukhein kai to eutukhein sumbèsetai) seja devida antes à peripécia que ao
reconhecimento. Como argumento favorável à tradução de Else, ainda, pode-se dizer que a situação final dos
personagens já está contemplada pela frase ê eis philian ê eis ekhthran, e que, em se tratando de uma mudança
(metabolê), a situação inicial deles talvez devesse ser também mencionada. Rostagni tem ainda uma terceira
solução: na passagem não se trata nem de se fazer referência ao estado inicial dos personagens, nem ao estado
final, mas sim de indicar a mudança operada por meio do reconhecimento. Comentando tôn hôrismenôn, ele
escreve: “ “fra i personaggi que così sono destinati alla felicità o all´infelicità”, e che, cioè, conducono alla
soluzione felice o infelice del dramma”. (ARISTÓTELES, 1945, p. 61, comentário às linhas 31 e 32, itálico do
original). Pode-se objetar a solução de Rostagni nos mesmo termos já usados.
187
Alguns comentadores vêem aqui um descarte, por parte de Aristóteles, dos outros tipos de reconhecimento
mencionados no parágrafo anterior (‘há também outros tipos de reconhecimento...’) a fim de marcar que o
reconhecimento por excelência é o reconhecimento que se dá entre pessoas. Rostagni, por exemplo, traduz em
nota e comenta:
79

quem é o outro, mas por vezes é preciso haver reconhecimento por ambas as
partes. Por exemplo, Ifigênia foi reconhecida por Orestes pelo envio da carta, mas
para ele ser reconhecido por ela foi preciso um outro reconhecimento 188.
Duas partes do enredo, então, são essas, a peripécia e o reconhecimento.
Mas há uma terceira, o evento patético. Desses, a peripécia e o reconhecimento
foram abordados; o evento patético, por sua vez, é uma ação destrutiva ou dolorosa,
como as mortes, os sofrimentos e ferimentos em cena e tudo quanto seja desse tipo.

“ ‘epei dê ... tinôn estin anagnôrisis’, ‘poichè il riconoscimento è riconoscimento di


persone’, essendo ormai inteso che questo è il solo que conti: gli altri, di cose ecc.,
sono rimasti esclusi...” (ARISTÓTELES, 1945, p. 63, comentário à linha 3).

Mas a polaridade que o parágrafo anterior parece estabelecer é entre o reconhecimento acompanhado de
peripécia e outros tipos de reconhecimento. Se há o descarte de um dos pólos da dupla, é estranho que o que
prevaleça seja não o outro pólo (‘reconhecimento acompanhado de peripécia’) mas um terceiro termo
(‘reconhecimento entre pessoas’) que não parece ter equivalência com o segundo. Aliás, o trecho todo que se
refere ao reconhecimento tem reconstrução bastante problemática, a começar da própria definição de
reconhecimento, que parece partir de um escopo amplo, baseado em um evidência etimológica (ver nota 4) para
imediatamento restringi-lo de uma forma um tanto arbitrária e especificada particularmente com vistas à tragédia
(ê eis philian ê eis exhthran), sendo que há ainda um terceiro componente sobre o qual se disputa (tôn pros
eutuxhian ê dustuxhian hôrismenôn – ver nota 5). Desse escopo amplo, restringido por uma especificação ad
hoc, vem juntar-se ainda uma restrição ainda maior, o do melhor reconhecimento, aquele acompanhado de
peripécia. Dessa forma, quando o texto diz hôsper eirêtai (1452 a 35) e hê eirêmenê estin (1542 a 38) não se
consegue precisar com clareza se o texto se refere ao reconhecimento em geral, ao reconhecimento restringido
pela especifição ‘ê eis philian ê eis exhthran’ ou ao melhor reconhecimento. Dessa dificuldade deriva uma
indecisão quanto a se a frase ‘mais belo é o reconhecimento quando se dá ao mesmo tempo que a peripécia,
como é o caso de Édipo’ deva ser colocada no final do parágrafo anterior ou no início do seguinte, como está
colocada. Seja como for, talvez se possa considerar como mais adequado que a frase epei dê hê anagnôrisis
tinôn estin anagnôrisis tenha como função não circunscrever o reconhecimento entre pessoas como o
reconhecimento por excelência, mas sim indicar que, como em geral o reconhecimento na tragédia se dá entre
pessoas, e como há sempre pelo menos dois indivíduos envolvidos, é necessário que um reconheça o outro e que
esse último reconheça o primeiro, a não ser quando é evidente quem um deles é. O ‘tinôn’ da frase tem sua
ênfase deslocada da semântica (não se trata de referir ‘indivíduos’, como se fosse o caso de estebelecer uma
fronteria desse com outros tipos de reconhecimento) para a morfologia (se trata de um plural, ou seja, há pelo
menos dois personagens que se reconhecem) ao mesmo tempo em que a frase deixa de ser considerada
recapitulativa para se tornar prospectiva.
188
A respeito dos fatos dessa peça, veja-se a nota 12 do capítulo 16.
80

12 189

Tratamos anteriormente das partes qualitativas 190 da tragédia de que se deve


fazer uso, mas as partes segundo a quantidade e nas quais a tragédia, ao ser

189
É grande a controvérsia quanto à autenticidade desse capítulo 12. Os que se posicionam a favor de seu caráter
espúrio têm dois argumentos principais: o capítulo interrompe, com assunto diverso, uma bem articulada
exposição a respeito do enredo, que continua no capítulo 13 (veja-se a nota 2 do capítulo 13 quanto a evidências
lingüísticas dessa articulação), e a descrição que ele dá das partes quantitativas da tragédia corresponde mal ao
material que chegou até nós. Os que se posicionam a favor de sua autenticidade enfatizam seu estilo, bastante
próximo do aristotélico, e contra-argumentam que, se a posição em que ele se encontra parece interromper o
discurso a respeito do enredo, a verdade é que Aristóteles efetivamente se propôs analisar a arte poética em suas
partes, consideradas segundo a quantidade e a qualidade (1447 a 10-11). Ritter foi o primeiro a considerá-lo
como uma interpolação (cf. Hardy (ARISTÓTELES, 1995, p. 9) e Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p. 18, aparato
crítico)). Hardy pensa se tratar de um trecho legitimamente aristotélico, ainda que acrescentado posteriormente
(idem, ibidem). Entre os que objetam as definições dadas às partes da tragédia, Else é o mais enfático:

The root of the matter, aside from the stupidity of the author, is that he no longer has
any conception of the difference, in the drama, between speech and song. For him
the dialogue and the song parts are both simply pieces of text, partly distinguished
by metrical differences — which however, he does not understand. It is significant
that we find close parallels between this farrago and certain passages in the
Tractatus Coislinianus and Tze-tzes' verse treatise peri\ tragikh=j poih/sewj. In all
three places what we have is, undoubtedly, a reflection of late-antique or Byzantine
grammatical knowledge (Else, citado por Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a,
p. 175))

Else, entretanto, conserva o início do capítulo e o emenda diretamente com o início do capítulo 13, em uma
solução bastante engenhosa, ainda que um tanto arbitrária (ARISTÓTELES, 1994, p. 37). Mas dessa forma não
se conservam, por exemplo, certos torneios verbais que parecem tipicamente aristotélicos, como a frase eis ha
diaireitai, também presente em contextos em que se trata da divisão de algo, como em De juventute et
senectute... (triôn de merôn ontôn eis ha diaireitai, 468 a 13 – ‘sendo três as partes nas quais se divide”) e em
Historia animalium (megista men oun esti tade tôn merôn eis ha diaireitai to sôma to sunolon, kephalê, aukhên,
thôrax, brakhiones duo, skelê duo, 491 a 27 – ‘são essas as principais partes do corpo nas quais ele se divide
como um todo: cabeça, pescoço, tórax, dois braços, duas pernas’). Também é tipicamente aristotélico referir-se à
divisão quantitativa como divisão kata to poson, o que também ficaria de fora com a excisão de Else.
190
O uso do termo eidos (traduzido como ‘partes qualitativas’) aqui geralmente é confrontado com o uso do
mesmo termo em 1450 a 13. Em ambos os casos Aristóteles se refere às partes da tragédia definidas no capítulo
6 (enredo, caráter, pensamento, elocução, canto e espetáculo), partes segundo as quais se diz de que tipo é a
tragédia (kath’ha poia tis estin hê tragôidia – 1450 a 8). Tanto no capítulo 6 quanto aqui, eidos parece se referir
não à divisão gênero / espécie, que é típica da filosofia aristotélica, mas sim a essas partes qualitativas da
tragédia. Isso soa bastante estranho e deu origem a uma tentativa, por parte de Dupont-Roc e Lallot, de
compatibilizar os dois usos. Segundo Dupont-Roc e Lallot, as partes (merê) da tragédia dariam origem às
espécies (eidê) da tragédia, explicitadas no capítulo 18 (1455 b 33 et seq.), ao se tornarem preponderantes umas
em relação às outras. A tentativa parece ser frutífera, ainda mais se levarmos em conta não só que o trecho citado
articula as expressões hôs eidesi e kata to poson por um par men...de, o que evidencia seu caráter correlato, como
também o fato de que o próprio par kata to poson / kata to poion se converte, em alguns trechos do corpus
aristotélico, em kato to poson / kata to eidos (cf. Met. 999 a 1 e 1053 a 14). A tradução proposta adota esse ponto
de vista, que parece ser o mesmo de Halliwell, por exemplo, que traduz: “Having earlier given the parts of
tragedy which determine its qualities...” (ARISTÓTELES, 1987, p. 43). No entanto, há uma série de problemas
que devem ser contornados, como, por exemplo, o fato de que seis são as partes (merê) da tragédia, e quatro são
suas espécies. Se efetivamente há uma correspondência entre merê e eidê, certamente essa correspondência não é
biunívoca. A compatibilização entre os termos deve ser uma solução de compromisso. Ainda, o trecho do
capítulo 18 em que se fala das espécies de tragédia é bastante truncado e geralmente se o considera como
corrompido. (Cf. notas 5 e 7 do capítulo 18) .
81

decupada, se divide, são essas: prólogo, episódio, êxodo e partes corais. Das partes
corais, umas ocorrem como párodo e outras como estásimo, sendo que essas são
comuns a todas as tragédias, e são próprias apenas a algumas os cantos de atores
em cena 191 e os kommoi 192.
O prólogo é a parte inteira da tragédia que vem antes do párodo do coro;
episódio é a parte inteira da tragédia que se dá entre partes corais inteiras; êxodo é
a parte inteira da tragédia depois da qual não há canto coral; do coro, o párodo é a
primeira fala inteira, o estásimo é o canto do coro sem anapesto e sem troqueu; o
kommos é um lamento comum ao coro e aos atores em cena.
Tratamos anteriormente das partes qualitativas da tragédia de que se deve
fazer uso, mas as partes segundo a quantidade e nas quais a tragédia, ao ser
decupada, se divide, são essas193.

191
Que a expressão apo tês skênês se refira a uma parte da tragédia devida exclusivamente aos atores é o que se
infere a partir dos Problemas, mais especificamente no problema apresentado a partir de 918 b 13 (a expressão
em si ocorre em 918 b 26).
192
A própria Poética define kommos logo abaixo. Rostagni menciona, a respeito desse trecho, “dúvidas e
questões infinitas que foram levantadas” (ARISTÓTELES, 1945, p. 66, nota à linha 16). As discussões que
houve não chegaram até os comentários e traduções consultadas, mas a principal divergência é relativa à
abrangência do tauta (‘essas’) da linha 1452 b 18. Ele se refere a todas as partes mencionadas ou apenas ao
párodo e estásimo corais? Se ele recupera apenas as partes corais, resulta a incongruência de se fazer do canto
dos atores também uma parte coral. A esse problema, Rostagni responde que, se o nome ‘parte coral’ não cabe
com precisão aos cantos de atores em cena e aos kommos, tampouco caberia colocá-los ao lado do prólogo, do
episódio e do êxodo, que são partes recitadas. O canto dos atores faz parte do melos (‘canto’)e é em razão disso
que ele está aí incluído, ainda que não sem alguma imprecisão. Adotam essa postura Rostagni, Gallavotti,
Halliwell e Else. Mas Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Jaime Bruna, Bywater e
Butcher traduzem tauta como se fizesse referência a todas as partes mencionadas. A tradução proposta opta pela
posição de Rostagni, sem ter, entretanto, nenhuma pretensão de solucionar a questão.
193
O parágrafo final é obviamente uma cópia do inicial, o que depõe contra a autenticidade senão do texto, pelo
menos de sua localização.
82

13

O que deve visar 194 e o que deve evitar aquele que compõe o enredo e por
quais meios se obterá o efeito próprio da tragédia é o que é195 necessário dizer em
seguida ao que já foi dito 196.
Uma vez que a composição da mais bela tragédia deve ser não simples, mas
complexa, e esta deve ser mimética de casos que inspiram temor e piedade197 (pois
isso é próprio da mímese desse tipo), primeiro é evidente que não se deve mostrar

194
O verbo stokhazesthai (‘almejar’, ‘visar’, ‘ter como alvo’) pode ser lido em chave anódina, como a tradução
sugere, ou pode-se sugerir para ele um sentido mais preciso recorrendo-se, por exemplo, ao uso que Aristóteles
faz de um termo cognato na Ética Nicomaquéia. Lá se diz que a virtude é stokhastikê em relação à mediedade,
visto que é possível errar de muitas maneiras, mas o acerto, quando se trata da virtude ou da arte, é raro (Ética
Nicomaquéia, 1106 b 14 et seq.). Assim, pode-se ler nesse verbo que quem faz o enredo visa algo difícil de ser
atingido. Pode-se levar a sugestão mais longe e propor que, em relação ao par visar / evitar, observa-se a mesma
dinâmica que há entre o acerto ético (a virtude) e o erro ético (o vício). Como a relação entre o acerto e o erro
éticos não é uma relação simétrica, talvez se possa ir mais longe ainda e propor que a correção que existe em
apenas um dos manuscritos, que troca o hôs (‘como’) que inicia o capítulo por hôn (‘o que’), correção
amplamente aceita pelas edições modernas e que parece se basear sobretudo no paralelismo entre hôn
stoxhazesthai e ha eulabeisthai, deve ser rejeitada na medida em que entre o erro e acerto éticos a relação
subsistente não é uma relação de paralelismo. A observação não modifica fundamentalmente o caráter do trecho
(com hôs a tradução seria ‘como deve visar...’), mas tem o mérito de ver razão na tradição dos manuscritos
contra uma emenda que talvez seja arbitrária.
195
Das traduções consultadas, Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 44) parece ser o único a apostar fortemente
no caráter condicional do optativo (an eiê lekteon), traduzindo “It follows from my earlier argument that I should
define...”. Esse comentário pode parecer de menor importância, mas, se analisarmos outros trechos do corpus
aristotélico em que a expressão eiê lekteon ocorre (Retórica, 1363 b 6, Primeiros Analíticos, 68 b 13, Ética
Eudêmia, 1247 a 38, De generatione animalium 770 a 6, De partibus animalium 640 b 27), quando ela aparece
indicando que rumo o texto deve seguir (Retórica e Primeiros Analíticos) ela se apresenta sempre em meio a um
raciocínio que, argumentando a respeito do que já foi feito, propõe um caminho a seguir. Ou seja, a expressão
articula solidariamente partes do texto, e o optativo parece antes atenuar um possível caráter assertivo que
expressar uma condicionalidade de fato. Nesse sentido, seria de se esperar que a frase solidarizasse o início desse
capítulo com o que imediatamente o precedesse. Como o capítulo 13 é muito mais naturalmente seqüência do
capítulo 11 que do capítulo 12, isso fornece um argumento a mais a favor do caráter interpolado desse último
(ver nota 1 do capítulo 12).
196
A expressão parece se referir não ao capítulo 12, imediatamente anterior, (veja-se a nota 2) nem ao todo da
Poética, mas aos capítulos que se demoram mais detidamente no enredo até aqui (capítulo VII a XI) e, entre
esse, menos aos capítulos que se referem a aspectos estruturais do enredo (capítulos VII, VIII e IX) e mais aos
capítulos X e XI, onde o tema da mudança da fortuna é mais presente. Outro ponto a considerar em relação a
esse primeiro parágrafo é a cesura apontada por Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p.131) na frase inicial deste
capítulo, cesura que aponta uma divisão clara entre os capítulos 13 e 14. A frase pothen estai to tes tragoidias
ergon (‘por quais meios se obterá o efeito próprio da tragédia’ – 1452 b 29) faria referência ao capítulo 14.
197
As p remissas apresentadas são duas, mas não podemos considerar que o enredo complexo esteja contemplado
no que se segue imediatamente, senão teríamos que admitir que a peripécia é a reversão de fortuna, o que
absolutamanente não é o caso (cf. nota 1 do capítulo 11). Entretanto, Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.69,
comentário à linha 31) considera assim. Como a peripécia e o reconhecimento são assunto mais afim ao que é
tratado no capítulo 14, parece razoável supor que essas duas premissas não fazem alusão exclusivamente ao que
se segue de imediato, mas sim ao ao contexto geral dos capítulos 13 e 14, inclusive de acordo com a cesura
apontada por Halliwell no primeiro parágrafo (ver nota anterior).
83

homens de grande virtude mudando da fortuna para o infortúnio (pois isso não
inspira nem temor nem piedade, mas é repulsivo), nem homens perversos mudando
do infortúnio para a fortuna, pois esse é o menos trágico de todos os casos (pois não
tem nada do que deve: de fato, não desperta o sentimento de humanidade198, nem é
piedoso ou temível), nem, por sua vez, o homem extremamente mau caindo da boa
fortuna para o infortúnio (pois uma tal composição teria o sentimento de
humanidade, mas não a piedade nem o temor, pois um diz respeito àquele que é
desafortunado sem merecê-lo, o outro diz respeito àquele que é semelhante a nós,
isto é, a piedade se dá em relação ao que não merece, o temor em relação ao
semelhante, de forma que o que ocorre não provocará nem piedade nem temor) 199.

198
‘Sentimento de humanidade’ traduz ‘philanthrôpon’ termo que ocorre apenas três vezes na Poética, duas
neste parágrafo e uma em 1456 a 21. A escolha da tradução se baseia no uso do vocábulo feito em um trecho da
Retórica e em outro da Ética Nicomaquéia. No primeiro tratado, quando Aristóteles analisa a piedade, diz-se que
os idosos são piedosos por um motivo diferente que os jovens. Enquanto os mais velhos são piedosos por
fraqueza, o que os faz se compadecerem do mal alheio porque, sendo fracos, não se sentem a salvo de um mal
semelhante, os jovens são piedosos por philantropia (1390 a 18 et seq.). Ainda na Retórica, em 1389 b 8 diz-se
que os jovens são piedosos "porque consideram que todos são bons (khrestoi) e melhores (beltious)". Na Ética
Nicomaquéia o termo aparece na análise da philia e se liga ao sentimento de empatia que os homens sentem
mesmo pelo semelhante mais afastado, com o qual não existe nenhum laço senão o sentimento de pertencimento
ao gênero humano (1155 a 20 et seq.). Pode-se cogitar que esse sentimento de comunidade se vê ameaçado toda
vez que alguém que não gostaríamos de reconhecer como humano (alguém extremamente perverso, por
exemplo) triunfa, e se vê reforçado toda vez que uma pessoa como tal acaba em infortúnio.
199
Aristóteles, para chegar ao enredo ideal, procede a uma análise dos tipos de enredo que devem ser evitados. A
análise é feita por exclusão e leva em conta o caráter do herói (se bom ou mau, ou seja, se ele é virtuoso ou não –
cf. capítulo 2) e qual o sentido do enredo, se da boa fortuna para o infortúnio ou contrário. Dessa análise, duas
são as questões que intrigam: porque o primeiro caso é rejeitado, uma vez que ele parece ser capaz de provocar
medo e piedade (a essa questão está relacionada outra: qual o significado de miaron, termo que aparece aqui,
mas também – com o mesmo sentido? – no capítulo 14, em 1453 b 39 e 1454 a 3) e porque, entre os casos
possíveis (quais sejam: 1. o homem virtuoso que passa da boa fortuna para o infortúnio; 2. o homem virtuoso que
passa do infortúnio para a boa fortuna; 3. o homem perverso que passa do infortúnio para a boa fortuna; 4. o
homem perverso que passa da boa fortuna para o infortúnio), Aristóteles deixa de analisar o caso 2? Quanto à
primeira questão, a resposta de Dupont-Roc e Lallot parece ser a mais consistente (ARISTÓTELES, 1980, p.
238-244, nota 2 do capítulo 13): segundo eles, é necessário ler a expressão epieikês anêr (‘homens de grande
virtude’ – 1452 b 34) como se referindo a um homem de qualidade ética superior, tal como ele é apresentado,
pelo mesmo termo, na Ética Nicomaquéia (1137 b 2). Mostrar um tal homem caindo em desgraça seria miaron,
que optamos por traduzir por ‘repulsivo’. O termo como usado aqui não tem a mesma acepção específica do
capítulo 14 (onde ele qualifica a deliberação de matar alguém sabendo-se das circunstâncias – no caso, a philia
que une agente e vítima), mas nos dois casos há uma situação igualmente condenável do ponto de vista ético.
Além disso, a mudança de fortuna do herói epieikês não suscitaria temor porque o temor diz respeito ‘a quem
nos é semelhante’ (1453 a 4 e 5) e esse não é o caso do homem de excelência ética. De fato, a situação ideal
elege como protagonista aquele que tem uma situação intermediária (ho metaxu – 1453 a 7) entre o perverso e o
de grande virtude. A solução tem seus méritos, entre eles está articular o trecho em questão com a teoria ética de
Aristóteles e propiciar uma leitura coerente do capítulo 13 e deste com o 14. Mas há certos problemas, como não
poderia deixar de ser. O primeiro é dar um sentido bastante específico a um termo (epieikês) que tem outras
ocorrência na Poética nas quais essa especificidade não se aplica (1454 b 13 e 1462 a 2, por exemplo). Dupont-
Roc e Lallot reconhecem o problema, mas argumentam:

Même si epieikès est susceptible d’emplois plus vagues, plus flous, où il dénote la
qualité d’ “homme (de) bien” (par exemple en 54 b 13 ou 62 a 2), il n’est pas interdit
84

Resta, então, o homem em posição intermediária entre esses, do seguinte


tipo: aquele que nem se destaca pela virtude ou pela justiça, nem cai no infortúnio
pelo vício ou pela perversidade200, mas por algum erro, dentre os homens que
gozam de grande reputação e boa fortuna, como Édipo e Tiestes, e os homens
ilustres de famílias semelhantes.
É necessário então que o enredo exitoso seja antes simples que, como
alguns dizem, duplo 201 e efetue a mudança não para a fortuna a partir do infortúnio,
mas o contrário: da fortuna para o infortúnio, não por uma perversidade, mas por um
grande erro de alguém que é como foi dito, ou melhor, de preferência a pior. Um
sinal disso é o que acontece: primeiro os poetas contavam enredos202 encontrados
ao acaso, mas agora as mais belas tragédias são compostas em torno de poucas
linhagens, por exemplo, em torno de Alcmena, Édipo, Orestes, Meleagro, Tiestes ou
Télefo, e tantos outros quantos vieram a fazer ou sofrer coisas terríveis.

de penser que, dans le contexte nettement éthique du chapitre 13, il a le sens fort de
“(suprêmmement) juste”. (ARISTÓTELES, 1980, p. 241-242)

Outro problema, de solução mais difícil, é conciliar o fato de que a tragédia representa homens “melhores que
nós” (capítulo 2, capítulo 15) mas ‘não tão melhores assim’. Esse ponto não chegou a ser considerado por
Dupont-Roc e Lallot. Halliwell aborda a questão no seu comentário ao capítulo 13 (ARISTÓTELES, 1987, p.
124-125). Segundo ele, seria necessário distinguir as virtudes dos heróis trágicos tais como elas são celebrizadas
nos mitos tradicionais e tais como elas seriam consideradas dentro da ética aristotélica. No contexto do capítulo
13, o caráter do herói deve ser considerado dentro dos critérios da ética aristotélica (não nos esqueçamos que o
geral, a que a poesia faz referência, diz que tipo de coisa compete a um certo tipo de homem falar ou fazer – cf.
capítulo 9, nota 3), mas quando Aristóteles diz que a tragédia realiza a mímese de homens ‘melhores que nós’ele
faz referência aos heróis tais como eles aparecem nos mitos tradicionais. Quanto à segunda questão levantada a
respeito do trecho (por que Aristóteles deixa de analisar o caso 2: o homem virtuoso que passa do infortúnio para
a boa fortuna) claro está que essa situação seria descartada por não suscitar nem temor nem piedade. Por que
Aristóteles não torna isso explícito é uma questão cuja resposta dificilmente escaparia ao terreno das hipóteses.
200
Deve-se manter a polaridade da construção sintática (mête diaferôn ... mête metaballôn), que, a nosso ver, é
sucedâneo do caráter intermediário (ho metaxu) do caso em questão. Traduzir o trecho como muitos fazem
(Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa), considerando que a frase principal é a que
tem o particípio metaballôn, mascara essa característica.
201
‘Enredo simples’ aqui se opõe a ‘enredo duplo’ e deduz-se, por oposição ao que é dito do enredo duplo, que é
o enredo que tem solução única. O termo não tem o mesmo sentido que quando usado no par ‘enredo simples /
enredo complexo’ (capítulo 10). A cesura ‘enredo simples / enredo duplo’ não constava como premissa do
argumento e portanto causa estranheza que faça parte da conclusão. Mas Aristóteles parece se referir a algo que
talvez fosse voz corrente na teorização sobre a tragédia (o contexto do trecho é cheio de referências opiniões
alheias: ‘como alguns dizem’, 1453 a 13; ‘erram os que censuram Eurípedes’, 1453 a 19; ‘em segundo lugar vem
a tragédia considerada como primeira por alguns’, 1453 a 30-31) e esse ambiente ‘dialógico’, por assim dizer,
que nos escapa em seus detalhes e motivos, talvez justifique essa aparição ex abrupto de conceitos não
explicitados anteriormente.
202
‘Enredos’ traduz, como de costume, muthos, mas aqui muthos parece se referir antes às histórias do estoque
da tradição que ao enredo como uma das seis partes da tragédia. Como aqui se diz que os poetas contavam esses
enredos, preferiu-se manter a tradução de muthos por ‘enredo’, ao contrário do capítulo 9 (ver nota 7 do capítulo
9).
85

Assim sendo, a mais bela tragédia segundo as regras da arte se faz com essa
composição. Por isso, erram os que censuram isso mesmo em Eurípedes, por
proceder assim em suas tragédias e muitas delas terminarem em infortúnio. Pois isto
é, como foi dito, correto, e uma grande prova é que, em cena e nos concursos, tais
tragédias, se bem realizadas, revelam-se as mais trágicas, e Eurípedes, se não
organiza bem o resto, mostra-se, entretanto, como o mais trágico dos poetas.
Em segundo lugar vem a tragédia considerada como primeira por alguns, a
que tem composição dupla, como a Odisséia, e que termina de maneira contrária
para os bons e para os maus. É considerada a primeira por causa da pobreza de
espírito dos espectadores, pois os poetas procuram realizar o desejo desses agindo
assim. Mas esse não é o prazer próprio da tragédia, senão o da comédia. Pois
aqueles que no mito são inimigos, como Orestes e Egisto, terminam como amigos, e
ninguém é morto por ninguém.
86

14

É possível203 que o temível e o piedoso nasçam do espetáculo, mas também


é possível que eles nasçam do próprio arranjo das ações, o que é preferível e
próprio do melhor poeta. De fato, deve -se compor o enredo de forma a que, mesmo
sem olhar, quem ouve as ações que se desenrolam se arrepie e sinta piedade do
que acontece, justamente afecções que experimentaria alguém ouvindo o enredo de
Édipo. Provocar isso por meio do espetáculo é algo menos afim à arte poética e que
necessita antes de recursos materiais204. Aqueles que provocam por meio do
espetáculo não o temível, mas somente o monstruoso205, não realizam trabalho

203
Há no original as partículas men oun cuja função não é evidente no trecho. Várias dessas partículas,
articuladas como par, estão presentes por todo o texto da Poética em uma variedade de situações, por vezes
usadas com um caráter definido e canônico, outras vezes não tão claramente empregadas. Segundo Smyth
([1984], p. 655, § 2901), o par tem um valor distinto segundo as partículas sejam usadas de maneira composta
(ou seja, as características individuais de cada uma cedem lugar a um valor de conjunto), caso em que elas
marcam, em réplicas, por exemplo, a certeza da asserção (panu men oun – ‘sim, com certeza’) ou ainda
funcionam como uma correção, ou sejam usadas cada uma conservando seu valor “especialmente onde men oun
indica a transição para um novo assunto. Nesse caso, men aponta uma antítese que vai se seguir à frente, e que é
indicada por de, alla, mentoi, enquanto o oun (inferencial) faz a conexão com o que precede” (idem, ibidem).
Esse segundo caso, de transição para um novo assunto, está claramente caracterizado na Poética em 1449 b 21,
1454 a 13, 1456 a 33, 1459 a 15 e talvez em 1462 b 16, onde a presença de men oun pode ser considerada uma
evidência de que a Poética continuaria seu assunto em um segundo livro. Não seria, entretanto, uma evidência
conclusiva, pois há casos em que men oun apenas indica o fim de uma seção, sem que haja algum de a indicar a
transição para uma nova. É o caso de 1447 b 23, 1447 b 28 e 1448 b 2. Por vezes as partículas men oun ... de não
indicam uma transição, mas apenas a conclusão ou a finalização polarizada de um argumento ou de uma seção,
como em 1450 a 38, 1453 a 22 e 1461 b 22. Há outros usos menos típicos e de análise menos característica,
como 1452 a 33 e a passagem a que se refere essa nota, dois trechos bastante próximos quanto ao emprego de
men oun ... de. Nos dois casos parece ser necessário supor que a Poética se ambienta em um contexto dialógico,
o men oun introduziria uma possível objeção (no caso, ‘é possível que o temível e o piedoso nasçam do
espetáculo...’) e o de reafirmaria a doutrina aristotélica (‘...mas também é possível que eles nasçam do próprio
arranjo das ações’). Se essa descrição desses dois trechos corresponde a uma realidade de fato do texto, então é
razoável supor que o capítulo 13, ao analisar e propor tipos de reversão de fortuna mais propiciadores de temor e
piedade, suscitaria na seqüência a questão do temor e da piedade oriundos do espetáculo, ou seja, oriundos de
elementos próprios da encenação da tragédia (não necessariamente elementos visuais: veja-se por exemplo, em
Os sete contra Tebas, de Ésquilo, o barulho das tropas inimigas cercando a cidade, o que provoca a reação
apavorada do coro: não seria esse, à parte a polêmica que existe quanto ao trecho – veja-se Hutchinson
(ÉSQUILO, 1987, p. 57) –, um exemplo de temor surgido de efeitos cênicos?). Se é assim, não cabe razão a
Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998, p. 177, nota aos parágrafos 74 e 75) quando diz que o início do
capítulo 14 continua o desvio do texto configurado pela menção à tragédia dupla no final do capítulo 13 e que o
texto só retomará sua seqüência normal quando volta a analisar a “teoria do mito trágico”, em 1453 b 14.
204
Quanto à tradução de koregias por ‘recursos materiais’, veja-se a nota de Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p.
150).
205
Quanto ao uso do espetáculo como meio para o terrível, veja -se, na nota anterior, o trecho que se refere a Os
sete contra Tebas. Lucas, entretanto (ARISTÓTELES, 1998b, p. 149), ainda que não dê um caráter definitivo a
suas observações, considera que o espetáculo concentra seus efeitos em elementos visuais. Else
(ARISTÓTELES, 1994, p. 40) é de mesma opinião, pois traduz opsis (‘espetáculo’) por “actor´s appearence” ou
por “masks and costumes”.
87

próprio da tragédia. Pois se deve procurar tirar da tragédia não qualquer prazer, mas
aquele que lhe é próprio. Uma vez que o poeta deve provocar o prazer que decorre
da piedade e do temor por meio da mímese, é evidente que isso deve estar inscrito
nas próprias ações.
Apreendamos, então, entre os eventos, quais se mostram terríveis, quais se
mostram dignos de piedade206.
É necessário certamente que tais ações se passem ou entre pessoas que
mantêm algum laço fraterno ou de sangue recíproco, ou entre inimigos, ou entre
pessoas que não se encaixam em nenhum desses dois casos. Se se trata, então, de
um inimigo frente a outro, não haverá nada de piedoso, nem se ele realizar a ação,
nem se chegar quase a realizá -la, exceto o próprio evento patético207. O mesmo se
dá quando se trata de pessoas que não se encaixam em nenhum dos dois casos
mencionados. Mas sempre que essas afecções surjam entre pessoas que mantêm
relações fraternas ou de sangue, como por exemplo, um irmão mata ou está a ponto

206
Se Aristóteles faz referência aqui ao temor e a piedade, como parece, fá-lo não com os usuais phobos
(‘temor’) e eleos (‘piedade’), ou seus cognatos, presentes na definição de tragédia, em 1449 b 24. As palavras do
original grego aqui são um tanto divergentes: deinos e oiktros. A segunda tem apenas essa ocorrência na Poética,
sendo portanto difícil extrair dessa única ocorrência um padrão de uso que permitisse lançar luz sobre alguma
nuance semântica, mas a primeira ocorre outras quatro vezes (1453 a 22, 1453 b 30, 1454 a 23 e 1456 b 3) sendo
que, do total de cinco ocorrências, três se apresentam nos capítulos 13 e 14. Talvez daí se possa sugerir que, ao
usual phobos, deinos acrescenta um certo matiz de surpresa, talvez mesmo de algo terrível, e os capítulo 13 e
principalmente o 14 (ver nota 6 do capítulo 13), ao abordarem justamente as relações entre os protagonistas,
relações que, quando descobertas por meio do reconhecimento apropriado, farão surgir o thaumaston, são o lugar
propício para que ao temor seja sobreposto esse elemento de surpresa. Butcher e Bywater não passam por cima
desse pormenor em suas traduções. O primeiro verte “let us determine what are the circumstances which strike
us as terrible and pitiful”, o segundo “let us see, then, what kinds of incident strike one as horrible, or rather as
piteous” (grifos nossos). As outras traduções, entretanto, passam ao largo. Magnien (ARISTÓTELES, 1990, p.
168, nota 5), por exemplo, chega a considerar, quanto a esses termos, que “Aristote a déjà défini d’une manière
générale du chapitre 13 (1453 a 4-6) à quoi s’adressent la pitié et la crainte”, Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.
77, nota à linha 14) explicitamente identifica o par phobos ê eleos ao par deinos ê oiktros e Dupont-Roc e Lallot
consideram os pares como sinônimos (ARISTÓTELES, 1980, p. 254, nota 4).
207
‘Evento patético’ traduz pathos, que foi definido como uma das partes do enredo no capítulo 11. A definição,
entretanto, parecia restringir o evento patético às ações danosas efetivamente realizadas, e aqui esse âmbito
estende-se também às ações ‘quase realizadas’. Ou bem se entende que o termo não é usado nesse trecho com
seu sentido técnico estrito, ou se adota a hipótese por trás tradução de Else (ARISTÓTELES, 1994, p. 41), que
verte: “But when an enemy attacks an ennemy there is nothing pathetic about either the intention or the deed,
except in the actual pain suffered by the victim” (‘mas quando um inimigo ataca um inimigo, não há nada
patético nem na intenção, nem no ato, exceto no caso da dor efetivamente sofrida pela vítima’). Para Else, o
evento patético existe no caso de haver uma vítima de fato.
88

de matar outro, ou um filho ao pai, ou uma mãe a um filho, ou um filho à mãe, essas
situações é que é necessário procurar 208.
Não se pode, então, desfazer os mitos recebidos da tradição209 (por exemplo,
Clitemnestra sendo morta por Orestes, Eurífila por Alcméon), mas deve o poeta criar
fazendo bom uso do que foi legado pela tradição. Falemos mais claramente o que se
quer dizer por ‘fazer bom uso’.
É possível que a ação ocorra assim como os antigos faziam seus
personagens agirem, cientes e conhecedores210 do que praticavam, como também

208
A tradução mantém o anacoluto do original, não por fidelidade estilística, mas porque o trecho, de caráter
extremamente sintético, é de difícil tradução. O anacoluto aparece como solução se não se deseja uma perífrase
distante do original.
209
O preceito parece conflitar com o que o próprio Aristóteles afirmou em 1451 b 23 (capítulo 9):

... não é absolutamente necessário se limitar aos mitos legados pela tradição, em
torno dos quais as tragédias são feitas. Seria até risível proceder assim, visto que
mesmo as coisas conhecidas são conhecidas de poucos, e ainda assim agradam a
todos.

Mas o conflito talvez seja apenas aparente. O preceito Aristotélico aqui vai no sentido de que não se deve
amenizar a carga trágica dos mitos legados pela tradição, fazendo com que Orestes deixe de matar Clitemnestra,
por exemplo. Nesse sentido, o preceito tem o mesmo teor da observação que desqualificava a tragédia dupla e da
qualificação de Eurípides como o mais trágico dos poetas (ambas do final do capítulo 13). A interpretação da
passagem nessa chave esclarece o men oun (‘então’) que introduz o preceito, ao fazê-lo decorrer de maneira mais
evidente do parágrafo que o precede, e matiza o verbo luein (‘desfazer’, ‘dissolver’) usado no trecho: luein tous
pareilêmenous muthous (‘desfazer os mitos recebidos da tradição’) significa dissolver sua força trágica.
210
eidotas kai gignôskontas: os particípios são usados como sinônimos, e sua justaposição apenas cria um efeito
de acumulação, ou cada um deles tem uma razão autônoma de ser e um escopo semântico próprio? Se há
distinção entre eles, deve-se reconhecer que ela não é de todo evidente no trecho em questão. Mas pode-se
especular recorrendo-se ao uso que se faz dos verbos, por exemplo, na Ética Nicomaquéia. No livro II, capítulo
4, Aristóteles, ao analisar a diferença que há entre o ato ético e o ato técnico (cf. Introdução), diz que o primeiro,
para ter determinado caráter, ao contrário do segundo, que tem seu caráter garantido tão somente pela qualidade
do resultado obtido, deve proceder de que alguém que age sabendo (eidôs), que age tendo escolhido sua ação em
virtude dela mesma e que age de maneira firme e imutável. Por outro lado, no capítulo 2 do livro III, ao analisar
os atos voluntários e involuntários, o conhecimento das circunstâncias da ação é referido de preferência com
cognatos do verbo gignôskô. Com base nesses usos, talvez se possa sugerir que eidotas tenha um escopo mais
amplo que gignôskontas, que, por sua vez, faria referência ao conhecimento das circunstâncias da ação, e, mais
especificamente, em se tratando da tragédia, ao conhecimento da pessoa que é objeto da ação ensejada. Note-se
que o ato se qualifica como involuntário na medida em que seu princípio não está no agente ou há o
desconhecimento de alguma das circunstâncias em que ele ocorre (EN, 1111 a 22-23) e que, sendo involuntário,
ele é “objeto de perdão e por vezes também de piedade” (tradução de Marco Zingano, ainda inédita, 1109 b 32).
Dentre as várias maneiras pelas quais um ato pode ser involuntário, a tragédia deve privilegiar, segundo
Aristóteles, aquela que recai sobre a ignorância de quem é a pessoa objeto da ação trágica. Por quê? Há nesse
preceito influência, sem dúvida, do que é usual nas tragédias: Aristóteles parte do material que ele tem em mãos,
material que ele considera, aliás, como resultado de um processo de depuração (cf. capítulo IV ou o final desse
mesmo capítulo 14). Mas não de deve deixar de considerar que a ignorância dessa circunstância particular leva
por sua vez ao reconhecimento (anagnôrisis) do laço de união que há entre os personagens. O efeito que isso
provoca, concentrando em um único momento um esclarecimento tão radical da situção sob o pano de fundo de
relações de philia, portadores de uma ampla gama de afecções, parece não poder ser propiciado pelo
desconhecimento de outras circunstâncias da ação. A relevância do desconhecimento dessa circunstância
particular é diretamente proporcional à piedade que sua anagnôrisis é capaz de suscitar.
89

Eurípedes fez Medéia matar os filhos. Mas é possível agir ignorando que se pratica
algo terrível e depois reconhecer 211 o laço fraterno ou de sangue, como o Édipo de
Sófocles. Nesse caso isso ocorre fora do entrecho dramático, mas pode ocorrer na
própria tragédia, como por exemplo o Alcmêon de Astidamas ou Telégono em
Ulisses Ferido. Além dessas há uma terceira possibilidade: ter-se prontificado a fazer
algo irreparável por desconhecimento e reconhecer antes de fazê-lo. Além desses,
não há outro modo. Pois necessariamente age ou não, e ciente ou não ciente.
Desses, o pior caso é aquele em que o agente, tendo conhecimento das
circunstâncias, se prontifica a agir mas não chega a realizar a ação; tal caso é o pior
por ser repugnante 212 e não é trágico213, visto que não tem o evento patético. Por
isso nenhum poeta usa situação semelhante, a não ser raramente, como, na
Antígona, é o caso de Hêmon frente a Creonte. Menos pior é o caso em que o
agente realiza a ação. Melhor é, desconhecendo as circunstâncias, realizar a ação
e, tendo realizado, reconhecer: pois assim o repugnante não se faz presente e o
reconhecimento é surpreendente . Mas o melhor é este último, por exemplo, em
Cresfonte, Mérope se prontifica a matar o filho, mas não o mata e sim o reconhece,

211
‘Reconhcer’, aqui, como também logo mais adiante, em 1453 b 35, tem o sentido técnico do termo, tal qual
definido no capítulo 11.
212
Há um sentido peculiar para miaron? As acepções dicionarizadas do termo são: 1. maculado de sangue /
maculado por um homicídio 2. impuro (usado com um sentido próximo a akathartos) 3. repugnante (em sentido
próprio ou em sentido moral) (Le Grand Bailly, dictionnaire grec-français, ad locum). O dicionário dá o sentido
usado no capítulo 13 (1452 b 36) como exemplo de ‘repugnante’ em sentido moral. A maioria das traduções
verte o termo por ‘repulsivo’ ou ‘repugnante’, o que é correto, mas uma análise mais detalhado do trecho talvez
permita trazer maior precisão ao termo. O miaron se apresenta nos casos em que há o conhecimento das
circunstâncias, pouco importando se a ação é levada ou não a termo. Ele não se liga portanto à realização ou não
do ato terrível, mas à escolha (proairesis) de realizá -lo. Essa observação não altera a escolha de tradução do
termo em si, mas propicia que as formas verbais de mellô (mellêsai – 1453 b 38, mellei – 1454 a 6, e mellôn –
1454 a 8) sejam entendidas não tanto como ‘estar a ponto de’ mas antes ‘ter decidido realizar’. A diferença
talvez seja sutil, mas significativa: quando se verte mellô por ‘estar a ponto de’, dá-se a entender que o efeito
dramático da ação deriva da pequena distância que separa o agente do irreversível (como nos filmes em que há
uma bomba relógio, tão mais façanhosos quanto mais perto da explosão se dá o desarme), mas, na economia do
trecho, interessa menos a proximidade com o ato terrível (ainda que ela não esteja ausente como efeito) que a
decisão tomada. Nesse sentido, o ideal para traduzir mellô parece ser ‘prontificar-se a’, que conjuga, em um só
termo, a idéia da prontidão e da decisão tomada.
213
A nosso ver, a tradução de Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 36) para esse trecho (“destes casos, o
pior é o do sabedor que se apresta a agir e não age; é repugnante e não trágico, por que sem catástrofe”) é
equivocada na medida em que faz do repugnante um substituto do trágico, como se a presença do primeiro fosse
causa da ausência do segundo. Eudoro parece ter considerado que a frase completa seria ‘to te gar miaron ekhei,
kai ou tragikon (ekhei)’, quando nada impediria que fosse ‘to te gar miaron ekhei, kai ou tragikon (estin)’. Na
verdade, a segunda reconstrução parece a preferível, visto que miaron e tragikon, do que se deduz do caso
‘menos pior’ (que é, ao que tudo indica, repugnante e trágico), não são qualificações mutuamente excludentes.
90

e em Ifigênia, o que se passa com a irmã em relação ao irmão, e em Helas, o filho,


prontificando-se a entregar a mãe, reconheceu-a 214.
Por isso215, como há pouco foi dito 216, não são muitas as famílias em torno
das quais as tragédias versam. De fato, os poetas, ao procurarem, encontraram a
maneira de fornecer a seus enredos tais eventos não por arte, mas por acaso, e
estão assim restritos a essas linhagens, a tantas quantas padeceram tais
sofrimentos.
A respeito então do arranjo das ações e de que qualidade devem ter os
enredos 217, foi dito o suficiente.

214
É patente o conflito entre as classificações propostas nos capítulo 13 e 14. Naquele, o enredo mais apropriado
era semelhante ao de Édipo, neste o melhor enredo (kratiston – 1454 a 4) seria como o de Ifigênia em Áulis. As
soluções propostas para o conflito são as mais variadas. Pode-se questionar a autenticidade de um dos dois
trechos ou pode-se tentar compatibilizá -los das mais diversas maneiras. Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES,
1980, p. 258-259) argumentam que os requisitos teóricos apresentados por Aristóteles compõem um horizonte
ideal nunca atingido de fato pelas tragédias particulares e que, entre as tragédias que chegam perto desse ideal,
há uma certa variedade nos enredos. Essa diversidade, existente mesmo quando se considera tragédias
excelentes, explicaria as hesitações da Poética entre um ou outro caso. Gernez tem uma solução mais simples:
ela considera que o conflito se explica quando se levam em conta os diferentes enfoques entre os capítulos:

Cette nouvelle classification n'est pas en accord avec celle du chapitre 13 dans
lequel était préférée l'issue malheureuse d'un acte pathétique dont l'auteur ignorait la
teneur (le cas d'Œdipe). Sans doute faut-il voir dans ce bouleversement hiérarchique
la conséquence d'un changement de point de vue : le chapitre 13 cherchait à définir
un agencement qui produise la crainte et la pitié et concluait logiquement en
accordant la préférence à l'issue malheureuse. Le chapitre 14 se propose de préciser
la manière dont le pathétique doit s'intégrer à l'ensemble de l'intrigue pour susciter
tragiquement et non spectaculairement la pitié et la crainte. Ce faisant, il accorde la
préférence aux tra gédies au sein desquelles le pathétique ne risque pas de dériver
vers le spectaculaire, puisqu'il reste à l'état de projet (ARISTÓTELES, 2001, p. 54,
nota 78).

O comentário é elegante e tem o mérito de evidenciar a coerência possível entre os capítulos.


215
A grande maioria das traduções considera que o dia touto (‘por isso’) tem valor catafórico, ou seja, aponta
uma explicação que vai ser dada na seqüência. Nesse caso, teríamos como causa do pouco número de famílias
apropriadas ao enredo ideal o fato de os poetas, na evolução do gênero, terem procurado seus enredos não por
arte, mas por acaso. Ora, o estoque de mitos da tradição é definido e não se modifica se se os procura com arte
ou por qualquer outro meio que seja. Esse parece um motivo bastante forte para entender o dia touto não como
uma catáfora, mas como uma anáfora: é porque os critérios exigidos do enredo são restritivos que as ‘famílias
trágicas’ são poucas. Rostagni, o único entre os comentadores a adotar esse ponto de vista, diz: “in omaggio alle
norme testè esposte pochi possono essere i miti tradizionali veramente adatti alla tragedia” (ARISTÓTELES,
1945, p. 81, comentário à linha 9). A leitura é semelhante à do trecho do capítulo XIII (1453 a 19) a que se faz
referência em seguida.
216
Em 1453 a 19
217
Esse parágrafo final ecoa claramente o início do capítulo VII (1450 b 22-23). Parece razoável supor que esses
capítulos, do VII ao XIV, com a possível exceção do capítulo XII, formam um bloco coeso cujo assunto é
principalmente o enredo (cf. nota 1 do capítulo 7).
91

15

Quanto ao caráter, quatro são os pontos que devem ser visados. Em primeiro
lugar, deve -se cuidar para que sejam bons 218. Terá caráter se, como foi dito, as
palavras ou ações deixarem evidente qual é a escolha 219. O caráter será bom se a
escolha for boa. Isso é possível para cada gênero, pois mesmo a mulher pode ser
boa, e o escravo, ainda que, desses, talvez, o caráter dela seja inferior e o do
escravo, em geral, ruim.
Em segundo lugar, o caráter deve ser apropriado. Há o caráter corajoso, mas
não é próprio de uma mulher ser corajosa assim, ou terrível.
Em terceiro lugar, a semelhança, pois isso é diferente de fazer o caráter bom
ou apropriado com o sentido que já definimos 220.
Em quarto, está a coerência. Mesmo que seja incoerente o personagem que
fornece matéria para a mímese e que se tome um tal caráter como objeto, ele deve,
ainda assim, ser coerentemente incoerente.
Um exemplo de perversidade não necessária é o caráter de Menelau221, em
Orestes; de inadequação e impropriedade222, o lamento de Ulisses, em Cila223, e o

218
'Bons' traduz khrêsta, que, segundo Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 157) tem o mesmo âmbito que
spoudiaios ou epieikês (‘virtuoso’, em geral, termos usados, o primeiro, por exemplo, no capítulo 2, o segundo,
no capítulo 13 (cf. nota 6 do capítulo 13)), mas é mais geral. A exigência de que o caráter do herói seja bom está
ligada à finalidade da tragédia. Dificilmente poderia despertar piedade ou temor um caráter perverso.
219
Foi dito em 1450 b 8. Veja-se nota 29 do capítulo VI.
220
O preceito da semelhança como requisito para o personagem parece ser necessário à teoria da tragédia com o
propósito de fazer frente a uma dificuldade patente na Poética: sendo a tragédia mímese de homens superiores a
nós (cf. capítulo II, 1448 a 1 et seq.), eles não devem, entretanto, ser tão formidáveis a ponto de não possibilitar a
empatia necessária para despertar temor e piedade (cf. nota 6 do capítulo 13). Essa é a interpretação que se deduz
de 1455 b 8 et seq.: o poeta deve imitar os bons pintores, que, retratando semelhantes (homoious poiountes),
pintam-nos mais belos (kallious graphousin). A semelhança, assim entendida, permite a necessária identificação
entre personagem e público. Mas há também uma outra interpretação do preceito: os personagens devem guardar
semelhança com seus modelos míticos, mas essa interpretação, apesar de poder ser admitida, não encontra eco na
doutrina da Poética.
221
O exemplo é repetido em 1461 b 21, onde se considera correto censurar a peça por perversidade.
222
Como a semelhança é o único dos requisitos do caráter que não recebe uma definição explícita, seria tentador
supor que aprepous (inadequado) fizesse referência a ele. Nesse caso, a 'falta de semelhança' estaria no fato de
que Ulisses lamenta a morte dos companheiros, o que não acontece na Odisséia (pelo menos, não com um canto
de luto), e seríamos levados a entender a semelhança como semelhança com o estoque da tradição. Mas, além
dos motivos apresentados na nota 3, seria estranho que Aristóteles, após afirmar que o preceito da semelhança
quanto ao caráter é diferente do preceito da propriedade, apresentasse os dois misturados no mesmo exemplo.
223
Cila, supõe-se com bastante propriedade, seria um ditirambo de Timóteo de Mileto, obra também citada em
1462 b 32. Cila é o monstro marinho que devora seis dos companheiros de Ulisses e seu lamento talvez seja em
92

discurso de Melanipa; de incoerência, a Ifigênia em Áulis: pois a Ifigênia que suplica


em nada parece a Ifigênia que se apresenta depois224.
É preciso, quanto ao caráter dos personagens, como também no arranjo das
ações, procurar o necessário ou o provável, de forma a que alguém de certa
qualidade diga ou faça coisas de certa qualidade necessariamente ou
provavelmente 225, e que os incidentes se sigam uns aos outros necessariamente ou
provavelmente 226.
É evidente, então, que os desenlaces 227 dos enredos devem decorrer do
próprio enredo, e não do artifício da mêchanê, como na Medéia228, e, na Ilíada, os
incidentes em torno do reembarque 229. Mas se deve fazer uso da mêchanê no que

decorrência disso. Não é próprio de Ulisses chorar assim como não é próprio de uma mulher ser corajosa ou de
Melanipa ser sábia.
224
Aristóteles provavelmente se refere a dois grandes trechos de Ifigênia, o primeiro, de 1211 a 1252, em que ela
suplica por sua vida, e o segundo, de 1368 a 1401, em que ele se mostra corajosa e resignada de enfrentar seu
destino.
225
Cf. 1451 b 8-9 e nota 3 do capítulo 9.
226
Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 161) considera que a frase kai toûton meta toûto tem o mesmo significado
que em 1452 a 21 (final do capítulo 10) mas adverte que ela pode se referir à complementaridade que deve
existir entre caráter, falas e ações, reforçando o que foi dito na frase precedente. Além da razão semântica que o
próprio Lucas aponta para que se prefira a primeira hipótese, um dos pontos abordados no capítulo será a
consistência dos enredos, o que é introduzido logo em seguida. Traduzir a frase como fizemos prepara a entrada
desse assunto, ainda que alguns tradutores e comentadores considerem espúria a presença desse tema em um
capítulo dedicado ao caráter (cf. nota 15).
227
‘Desenlace’ (lusis) é um termo que receberá definição apropriada no capítulo 18. Sua presença aqui é mais
um motivo para que alguns queiram ver esse capítulo transposto, de forma a tornar mais coerente a seqüência do
text o. Para um apanhado das sugestões de transposição, veja-se o comentário de Eudoro de Sousa
(ARISTÓTELES, 1998a, p. 179).
228
1317 et seq.. Medéia aparece em uma carruagem do Sol, com os corpos dos dois filhos, de onde trava um
diálogo com Jasão.
229
Trata-se do episódio da falsa partida de Tróia, Ilíada, II, 110-206. A menção à mêchanê (uma espécie de grua
que colocava os atores sobre a cena) nesse episódio da Ilíada traz alguma dificuldade aos comentadores. Ou bem
é necessário entender mêchanê em um sentido abstrato, de tal forma que qualquer intervenção divina possa ser
classificada como tal, e nesse caso a aparição de Atena a Ulisses em 166-181 é a passagem que Aristóteles
critica, ou bem é necessário emendar o texto, e então vale a erudição e a criatividade dos comentadores. Else
(ARISTÓTELES, 1994, p. 99-100, nota 110), no lugar de iliadi propõe aulidi, fazendo o texto se remeter ao
episódio da Ifigênia em Áulis em que Ártemis tem uma intervenção desse tipo. Mas não seria a Ifigênia em Áulis
que chegou até nós, e sim uma outra, perdida, à qual Aristóteles teria tido acesso. Eudoro de Sousa, citando o
Else de Aristotle’s Poetics: the argument, reporta que se teria aventado a hipótese de o texto original ser en têi
<mikrai> iliadi (‘na pequena Ilíada’), e o episódio seria o “do aparecimento do ‘espírito’ de Aquiles, por ocasião
da partida dos Gregos após a ruína de Tróia, reclamando o sacrifício de Políxena” (ARISTÓTELES, 1998a, p.
180). De qualquer forma, se for considerado o texto tal como está nos manuscritos, deve-se concordar com
Magnien (ARISTÓTELES, 1990, p. 173, notas 9 e 10): os episódios escolhidos para ilustrar o uso da mêchanê
não chegam a apresentar desenlaces (luseis) da trama. Na Medéia, o expediente parece antes ser desenhado para
aumentar a carga de piedade da tragédia, confrontando a protagonista e Jasão após a morte dos filhos. Na Ilíada,
a aparição de Atena é um episódio menor. Magnien teria preferido, como paradigma do uso da mêchanê, o final
93

diz respeito ao que se passa fora de cena, seja o que ocorreu antes dos incidentes
mostrados, que não é possível ao homem saber 230, seja o que é posterior e que
necessita de uma predição e de um anúncio, pois aos deuses concedemos tudo
verem. Nada deve haver de ilógico na ação, exceto fora da tragédia, como por
exemplo no Édipo de Sófocles 231, 232.
Uma vez que a tragédia é mímese de homens melhores que nós, é
necessário imitar os bons pintores, pois esses, restituindo a forma própria, ao
retratarem semelhantes, pintam-nos mais belos233. Assim também o poeta, ao
realizar a mímese de homens irascíveis, desleixados e possuidores de outras
características como essas, devem fazê-los, quando são assim, bons. Um exemplo
de dureza de caráter: Homero e Agatão quanto a Aquiles.

de Orestes, de Eurípedes. Talvez seja necessário entender luseis, em 1454 a 37, não como o lance que resolve
toda a trama, nem com o sentido que vai ser definido no capítulo 18 (‘desenlace é o trecho que principia na
mudança (sc. para a boa fortuna ou para o infortúnio) e segue até o fim’), mas simplesmente como uma situação
que comporta algum conflito localizado que deve ser resolvido. O fato de lusis estar no plural (luseis, 1454 a 37),
embora não seja um argumento definitivo, reforça essa tese. Se for assim, se vê enfraquecida, entre outros
motivos, a necessidade de transpor esse parágrafo (cf. notas 10 e 15).
230
Algumas peças de Eurípedes começam com um deus na mêchanê, como Hipólito. Outro exemplo é o Ájax, de
Sófocles.
231
No capítulo 24, Aristóteles considera ilógico que Édipo não soubesse das circunstâncias da morte de Laio
(1460 a 30)
232
Alguns comentadores se questionam a respeito da localização espúria desse parágrafo. Como acontece em
muitas passagens controversas da Poética, parece vão tentar encontrar argumentos definitivos que ponham fim
às polêmicas. O caráter espúrio do parágrafo está na menção a elementos que pertencem tipicamente ao enredo
em um capítulo dedicado ao caráter. Mas, por outro lado, pode-se deduzir que todas as falhas quanto ao caráter
apresentadas (a perversidade de Menelau, o lamento de Ulisses, o discurso de Melanipa, a incoerência de
Ifigênia) ensejam também falhas no enredo. Para ficar no exemplo de Ifigênia, sua incoerência só se apresenta
como tal porque não encontra justificativa no enredo. Se o enredo apresentasse motivos para sua mudança de
atitude, a incoerência desapareceria. O caráter bem construído parece ser condição necessária para o sucesso de
enredo. Nesse sentido, a menção a elementos do enredo não é totalmente estranha ao assunto (cf. também notas
10 e 12).
233
A frase foi entendida por alguns (Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, passim), por exemplo) como
uma espécie de fundamentação do processo mimético como um todo. A mímese, tomando como objeto o real,
devolve-o na obra restituído em sua forma própria, depurado do acidental que, se presente, aproximaria a poesia
da história. Como exemplo dado se refere à pintura, que é paradigma em vários pontos da Poética, são
necessárias as devidas adaptações. Assim como a pintura descobre relações de simetria, proporção, tamanho,
ordem, relações predominantemente espaciais, para resgatá-las do acidental e tornar o objeto mais belo, digno de
sua forma própria, a poesia deve encontrar relações de necessidade ou probabilidade entre ações, escolhas e
caráter para expô-las à luz da lógica que as preside. A tese, entretanto, subsiste sem integrar no seu bojo
características importantes da tragédia, o que significa que ela é parcial. Ela não responde, por exemplo, por que
heróis apenas de um determinado caráter são apropriados. Podem-se encontrar relações de necessidade ou
probabilidade entre ações, escolhas e caráter de quaisquer tipos. O personagem extremamente perverso tem uma
lógica que o preside, ainda que seja uma lógica perversa, bem como o personagem de uma virtude inabalável.
Mas suas ações não valem uma tragédia, elas não necessariamente engendram mudança de fortuna, piedade,
temor, peripécia, reconhecimento, elementos essenciais para que a tragédia atinja seu ergon. Uma tese que
pretenda dar conta da mímese como um todo não pode passar ao largo desses elementos (cf. Introdução).
94

É necessário observar essas coisas com cuidado e, além delas, as que se


inscrevem necessariamente nas sensações que acompanham a Poética234, pois
também quanto a elas é possível errar muitas vezes. Mas elas foram
suficientemente analisadas nos escritos que vieram a público.

234
A frase é considerada obscura pelos comentadores (por exemplo, Hardy (ARISTÓTELES, 1995b, p. 52, nota
1) e Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 166)) que não encontram nela um nexo plausível com o resto do capítulo.
Lucas afirma, o que é aceitável, que o assunto parece mais próprio ao início do capítulo 17, o que evidenciaria o
caráter intrusivo do capítulo 16 (idem, ibidem).
95

16

O que é o reconhecimento já foi dito 235, mas não as espécies de


reconhecimento. O primeiro236, o menos artístico de todos, ainda que dele se faça
uso farto por falta de expediente 237, é o reconhecimento por meio de sinais. Desses,
uns são congênitos, por exemplo ‘o dardo que carregam os filhos da terra’238, ou as
‘estrelas’, como no Tiestes de Carcino 239, outros são adquiridos, e desses últimos,
ainda, uns são sinais corporais, como as cicatrizes, outros não, por exemplo, os
colares e também a cesta por meio da qual se dá reconhecimento em Tiro 240. Mas
mesmo desses sinais é possível fazer um uso melhor ou pior. Assim, Ulisses foi
reconhecido por meio da cicatriz de uma maneira pela ama e de outra maneira pelos
porqueiros 241,242. De fato, esses reconhecimentos, e todos que são como eles, são
pouco artísticos por causa da prova que deve ser apresentada, mas os que
envolvem peripécia, como na cena do banho, são melhores 243.

235
A definição de reconhecimento fo i dada no capítulo 11, em 1452 a 29-32.
236
Aqui, ao contrário de outras enumerações da Poética, o primeiro elemento citado é o menos importante.
237
‘Por falta de expediente’ traduz o grego di’aporian, literalmente ‘por falta de saída’. Alguns tradutores
preferem verter o termo como se se tratasse de uma falta de habilidade dos poetas: Dupont-Roc e Lallot,
“indigence”, Eudoro de Sousa, “incapacidade (inventiva do poeta)”, Bruna, “incapacidade”, Bywater, “mere lack
of invention”, Butcher, “poverty of wit”, Else, “lack of imagination”, Rostagni, “per difetto di spirito creativo”,
mas não necessariamente esse é o caso, ainda que possa sê-lo. A tradução proposta pretende conservar a
ambivalência do original.
238
Por se tratar de um trímetro iâmbico, supõe-se que seja o trecho de uma peça desconhecida. O "dardo que
carregam os filhos da terra" seria uma mancha que teriam os progenitores de Tebas, nascidos dos dentes do
dragão semeados por Cadmo. Teria sido por meio desse sinal que Egisto reconhecera os filhos de Hêmon, na
Antígona, peça perdida de Eurípedes.
239
Trata-se de uma peça perdida. As estrelas seriam os sinais congênitos que tinham nas costas os descendentes
de Pélops, como lembrança das costas de mármore que este teria ganhado quando fora reconstituído pelos
deuses. Magnien (ARISTÓTELES, 1990, p. 174, nota 3) sugere que esse sinal distintivo teria sido o meio pelo
qual Tiestes teria reconhecido as carnes de seus filhos servidas ao próprio pai por Atreu, em banquete.
240
Há duas tragédias de Sófocles com esse nome, uma de Astidamas e outra de Cárcino. Tiro deu à luz dois
filhos gêmeos de Posídon e jogou-os no mar em uma cesta. Eles foram recolhidos por um pastor. A cesta deve
ter servido para o reconhecimento deles pela mãe.
241
O original traz ‘porqueiros’ (subotôn), no plural, ainda que, dos personagens em questão (Filécio e Eumeu),
Filécio seja, na verdade, quem cuida dos bois. Somente Eumeu é porqueiro.
242
Trata-se dos reconhecimentos efetuados por Euricléia, ama de Ulisses, que nota sua cicatriz enquanto lhe dá
banho (Odisséia, XIX, 386 e 465-480) e do reconhecimento por parte de Filécio e Eumeu (Odisséia, XXI, 205-
225), a quem Ulisses apresenta a cicatriz como prova de que é Ulisses.
243
A classificação desses reconhecimentos (um pior, outro melhor) causa certas dificuldades de interpretação na
medida em que os critérios que os classificam parecem se aplicar tão bem a um quanto a outro caso: i. se o
96

Em segundo lugar estão os reconhecimentos forjados pelo poeta, e por isso


não artísticos244. Por exemplo, Orestes, na Ifigênia, se fez reconhecer 245 como

reconhecimento efetuado pelos porqueiros é pisteôs heneka (literalmente ‘por causa da confiança’ ou ‘por causa
da prova’, expressão que as traduções devem desenvolver para se tornar inteligível, como foi o caso aqui: ‘por
causa da prova que deve ser apresentada’), o reconhecimento efetuado pela ama também envolve uma relação de
confiança e uma prova (a diferença é que não foi Ulisses quem apresentou o prova, diferença que, aliás, orienta a
tradução do lacônico pisteôs heneka); ii. diz-se, do reconhecimento realizado por Euricléia, que ele envolve uma
peripécia; mas que ‘mudança dos acontecimentos no seu contrátrio’ (conforme a definição de peripécia, no
capítulo 11) houve nesse reconhecimento para permitir classificá-lo como dotado de peripécia? Se entendermos
que essa ‘mudança no seu contrário’ se refere à mudança de fortuna de Euricléia que a chegada de Ulisses
permite prever, não menos o reconhecimento dos porqueiros também envolveria peripécia. Para resolver o
impasse, poderíamos adotar a sugestão de Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 90), que sustenta que o ek
peripeteias se refere ao modo ‘imprevisto e dramático’ da cena entre Ulisses e Euricléia. Claro está, como já foi
dito, que essa peripécia não tem o sentido restrito que já propusemos (qual seja, um ato que, ao se realizar,
necessariamente anula a intenção que o preside – cf. nota 2 do capítulo 11). Por que esse reconhecimento, é,
então, mais artístico? Para os que pretendem que as regras da arte poética sejam orientadas e configuradas com
vistas a revelar a essência da ação humana, a eleição do reconhecimento da cena do banho como o mais
apropriado entre os dois tem o ar de um contra-senso, pois é justamente no reconhecimento dos porqueiros que a
ação de Ulisses preenche com mais clareza os requisitos de uma ação humana exemplar: há uma finalidade clara
em vista (recuperar a condição de senhor de suas terras, sua esposa e seu filho por meio da expulsão dos
pretendentes), há a deliberação na escolha dos meios (entre os quais está averiguar e garantir a fidelidade e a
ajuda de Eumeu e Filécio), há o momento certo de revelar sua identidade, para as pessoas certas e da maneira
certa, há uma série de virtudes de Ulisses em jogo, entre as quais contam-se astúcia, coragem e amizade. Diante
desse quadro, que se descreve tão detalhadamente com recurso às categorias éticas aristotélicas, a cena do banho,
com seu caráter casual e imprevisto, empalidece. Louva-se nela, como virtude, apenas a presteza e sagacidade
com que Ulisses faz calar Euricléia e a amizade entre ambos. No entanto, essa cena é mais representativa da arte
poética que a anterior. Por quê? Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 270-272, nota 2) analisam a
questão escrutinando, na Poética, em que sentido se diz que algo é conforme às regras da arte (tekhnos) ou não
(atekhnos). Sua análise conclui que é impróprio às regras da arte todo elemento material mal integrado à
estrutura do enredo (por exemplo, e principalmente, o espetáculo) e é próprio da arte poética tudo que decorre do
enredo. A conclusão, entretanto, não chega a explicar por que o elemento material (no caso, a cicatriz) está mais
integrado ao enredo no caso de Euricléia que no caso dos porqueiros. A diferença entre os reconhecimentos
reside em que, em se tratando da cena do banho, a cicatriz enseja o reconhecimento a despeito da vontade dos
personagens, ao passo que, na cena com os porqueiros, ela é apresentada como prova (pisteôs heneka) por
deliberação de Ulisses. Há um elemento de surpresa na cena do banho, menos presente no outro caso. Isso só
pode acontecer pela aparição de algo imprevisto, com um certo ar de acaso (como no final do capítulo 9 – para
tên doxan – 1452 a 4), mas que não altera a estrutura causal do enredo (di’allêla – ibidem). É nesse sentido que
se deve ler tês ekplêxeôs ginomenês di’eikotôn (‘com a surpresa surgindo com plausibilidade’ – 1455 a 17), no
final deste capítulo 16. Dando razão a Rostagni, citado acima, ainda que, pela brevidade de seu comentário, não
é possível deduzir se suas razões são as mesmas que as nossas, não parece ser casual o fato de que, ainda que não
se possa dizer que a cena do banho seja uma peripécia stricto sensu, Aristóteles use o termo para se referir a ela.
244
‘Forjados pelo poeta’ traduz pepoiêmena hupo tou poiêtou. Como notaram Dupont-Roc e Lallot
(ARISTÓTELES, 1980, p. 272, nota 4), não deixa de ser curioso notar que poieô, por excelência o verbo usado
para designar a criação poética, esteja aqui referido a uma criação que é, paradoxalmente, pouco artística,
contrária às regras da própria arte poética. Isso reforça a impressão de que é inútil procurar na Poética um
vocabulário rigoroso que seja a expressão direta de conceitos filosóficos definidos. Os conceitos estão no texto,
mas o vocabulário que os expressa por vezes está longe de ter a precisão que desassombraria o intérprete.
245
O verbo anegnôrisen (1454 b 32, traduzido por ‘se fez reconhecer’) é alvo de disputa entre os comentadores e
mesmo entre os manuscritos. O manuscrito B omite o que seria o sujeito do verbo, Orestês, na linha anterior, o
que torna mais plausível supor que o sujeito seja Ifigênia, a heroína da história. Mas a presença do sujeito
Orestês no manuscrito A obriga a considerar que o verbo anegnôrisen tenha um sentido factitivo (fez
reconhecer), reforçado pela repetição do sujeito no objeto. Essa é a tese mais aceita (Hardy, Dupont-Roc e
Lallot, Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Bruna, Bywater, Butcher e Halliwell), ainda mais porque o verbo
factitivo parece descrever melhor o reconhecimento de Orestes por Ifigênia. Há outros trechos na Poética, menos
conturbados quanto às versões dos manuscritos, em que o verbo forçosamente deve ser entendido como factitivo.
Vejam-se, por exemplo, 1455 b 9, 1455 b 21. Mas Rostagni e Else optam pela versão do manuscrito B.
97

Orestes; Ifigênia foi reconhecida por causa da carta, mas ele diz o que quer o poeta
e não o que exige o enredo246. Por isso esse erro está, de certa forma, perto do erro
mencionado acima, pois também seria possível que ele carregasse objetos que
servissem ao reconhecimento 247. Também em Tereu, de Sófocles, esse é o caso da
‘voz da lançadeira’248.
O terceiro reconhecimento é o que se dá pela lembrança, quando alguém traz
à mente alguma situação por ter visto algo, como nos Cipriotas, de Diceógenes, pois
o personagem, quando vê o quadro, chora 249, ou na narrativa a Alcino, quando
Ulisses ouve o citarista e se lembra, derrama-se em lágrimas 250, e por meio disso
foram reconhecidos.
O quarto reconhecimento é o que decorre de um silogismo, como nas
Coéforas: porque alguém semelhante chegou e ninguém é semelhante senão
Orestes, então foi Orestes quem chegou251. Também o reconhecimento proposto por
Polido, o sofista, a respeito de Ifigênia. Ele disse ser plausível que Orestes montasse
o seguinte silogismo: assim como minha irmã foi sacrificada, também a mim cabe
ser sacrificado. Também no Tideu de Teodectes 252, que, tendo vindo para encontrar

246
Esse reconhecimento já fora referido em 1455 a 18-19. Ifigênia tem por função, em Táuride, realizar o
sacrifício de qualquer estrangeiro que ali chegue. Orestes, seu irmão, acompanhado de Pilades, vem a Táuride
para tomar a estátua do templo de Ártemis a fim de a levar para a Grécia e assim se ver purificado do crime de
matricídio. Mas os dois são presos e devem, como estrangeiros, ser sacrificados. Assim que Ifigênia sabe que
deverá sacrificar estrangeiros de sua terra natal, tenta obter do rei a permissão de sacrificar apenas um deles para
que o outro possa levar a Argos uma carta a seu irmão. Quando Ifigênia revela o conteúdo da carta, é
reconhecida pelo irmão, mas se recusa a reconhecê-lo, o que só acontece quando Orestes descreve certos objetos
que ela possuía em Argos. O erro desse reconhecimento, referido logo na próxima linha, é semelhante ao erro do
reconhecimento de Ulisses pelos porqueiros (ambos são pisteôs heneka, reconhecimentos efetuados por meio de
uma prova apresentada).
247
A tradução proposta para a frase é bastante interpretativa e não respeita a letra do original. No entanto, essa
parece ser a idéia que o trecho expressa (ver nota 12).
248
Peça perdida de Sófocles. Filomela teve a língua cortada por Tereu, seu cunhado, para que não revelasse à
esposa desse, Procne, sua irmã, a violação que sofrera por parte dele. Mas ela teria informado à irmã da situação
por meio de alguns sinais feitos em um bordado (a ‘voz da lançadeira’).
249
Pouco se sabe dessa peça.
250
Na corte de Alcino, no canto VIII da Odisséia, Ulisses chora ao ouvir Demódoco, o citarista citado, cantar o
episódio do cavalo de Tróia, do qual o próprio Ulisses participara.
251
Reconhecimento de Orestes por Electra, nas Coéforas, de Ésquilo (vv. 166-234). Na verdade, a cena completa
de reconhecimento envolve outras etapas: há os cabelos, há as pegadas, há o próprio discurso de Orestes na
tentativa de se fazer reconhecer por Electra. Interessante notar que esse reconhecimento, tido como o segundo
melhor por Aristóteles, foi criticado por Eurípedes em uma cena de sua Electra (vv. 520 e seguintes.).
252
Pouco se sabe sobre essa obra e seu autor.
98

o filho, ele próprio perece. Também é o caso do reconhecimento nas Fineidas: tendo
visto o lugar, deduziram sua sorte, porque naquele lugar estavam consagradas a
morrer, pois foram expostas ali 253. Há também um certo 254 reconhecimento que se
faz por meio de um paralogismo (falso raciocínio) por parte dos espectadores, por
exemplo, no Odisseu Falso Mensageiro. Pois o fato de que ninguém senão Ulisses
pudesse retesar o arco é algo forjado pelo poeta e aceito como hipótese, mesmo se
Ulisses disse conhecer o arco que não tinha visto. Mas fazer o reconhecimento por
esse motivo, como se o motivo fosse ele reconhecer, eis aí o paralogismo 255.
Desses todos, o melhor é o reconhecimento que decorre das ações mesmas,
com a surpresa surgindo com plausibilidade256, como no Édipo, de Sófocles, e na
Ifigênia, pois é provável que ela quisesse encarregar alguém da carta 257. São os
únicos reconhecimentos que não precisam de sinais258 forjados e de colares. Em
segundo lugar, estão os reconhecimentos que decorrem de um silogismo.

253
Pouco se sabe sobre essa obra.
254
Ainda estamos no âmbito do reconhecimento por silogismo, só que não se trata de um silogismo no sentido
estrito do termo, mas de um paralogismo. Isso explica o tis, traduzido por ‘um certo reconhecimento’. O
pronome foi usado de maneira análoga no capítulo 9, em 1451 b 3 (veja-se a nota 2 daquele capítulo).
255
A respeito do paralogismo na Poética, veja-se o capítulo 24 e respectiva nota 16. Pouco se sabe sobre Ulisses
Falso Mensageiro. A reconstrução do trecho é extremamente difícil e não encontra acordo entre os tradutores.
Há também grande divergência entre os manuscritos.
256
A respeito dessa frase, veja-se a nota 9.
257
Ver nota 12.
258
‘Sinais’ (sêmeia) é o mesmo termo usado no capítulo 26, em 1462 a 6, para recriminar o rapsodo que
gesticula demais, atitude comparada à do ator que, supondo o público ignorante, gesticula muito para se fazer
entender (1462 b 29-32). Em todos esses casos, parece haver uma intencionalidade no sinal alheia ao que seria
uma certa naturalidade do enredo. São elementos acrescentados.
99

17

É necessário arranjar o enredo e completá-lo 259 por meio da elocução


colocando o mais possível a cena diante dos olhos 260 (pois assim, vendo as coisas o
mais possível concretizadas, como se estivesse junto aos próprios incidentes, o
poeta encontraria o que é adequado e escapar-lhe-ia minimamente o que há de
contraditório – sinal disso é que se censurava a Carcino: pois Anfiarau subia vindo
do templo 261, o que escapava ao espectador 262 que não visse, mas no palco o erro,

259
Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 97) sugere têi lexei sunapergazesthai (tôn prattontôn), “immedesimarsi
nel discorso dei personaggi”, baseado em uma interpretação semelhante do mesmo verbo em uma passagem da
Retórica (... anagkê tous sunapergazomenous skhêmasi kai phônais kai esthêsi kai holôs en hupokrisei
eleeinoterous einai – 1386 a 31) análoga à da Poética. De fato, nos dois casos (trata-se dos dois únicos trechos
do corpus aristotélico em que o verbo ocorre) temos, sintaticamente, ou o complemento no dativo (Rostagni), ou
um dativo instrumental com objeto subentendido (na Poética, (tous muthous) têi lexei sunapergazesthai, como
faz a maioria dos tradutores; na Retórica, anagkê tous sunapergazomenous (tous logous) skhêmasi kai phônais
kai esthêsi kai holôs en hupokrisei eleeinoterous einai) e, semanticamente, a proposta de que o poeta ou o retor
identifiquem-se a seus respectivos objetos com os meios citados (Rostagni) ou completem sua obra com esses
meios. A sugestão não fez escola, ainda que a idéia de identificar-se ou de unir-se (“immedesimarsi”) à fala ou
aos gestos dos personagens esteja presente no parágrafo. Parece, entretanto, excessivo concentrá-la no verbo.
Também pesa contra Rostagni o fato de que a frase dei de tous muthous sunistanai refere-se obviamente ao telos
do processo de criação do poeta, o enredo (cf. 1450 a 22: ho muthos telos tês tragôidias), ao passo que kai têi
lexei sunapergazesthai, se traduzida com o sentido que ele propõe, não tem o mesmo alcance, o que contraria o
paralelismo sintático (os dois infinitivos, sunistanai e sunapergazesthai, ligados por kai, estão subordinados ao
mesmo verbo, dei) que ambas têm. Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 173) entende o prefixo sun- em sun-
apergazesthai como ‘enfático’. Talvez o prefixo não tanto enfatize o verbo quanto lhe acrescente antes um
sentido de finalização, como propõe Smyth ([1984], § 1648, § 1680) ao analisar sun em geral.
260
A expressão ‘diante dos olhos’ também ocorre na Retórica (1386 a 34, 1405 b12, 1411 b 4, 5, 8, 23), ainda
que o verbo usado seja, de preferência, poieô. A expressão é particularmente aplicada à metáfora. Uma metáfora
que ‘faz (a cena) diante dos olhos’ é aquela que ‘significa (as coisas) em ato’ (energounta sêmainei). Os
exemplos que Aristóteles dá são elucidativos: pode-se dizer, por metáfora, de um homem bom, que ele é um
quadrado, porque ambos são perfeitos, mas isso não é dizer a coisa em ato. Mas dizer ‘possuidor de um vigor
que floresce’ é dizer em ato (Retórica, 1411 b 24 et seq.). Fica como sugestão para a Poética o verbo energounta
(Retórica, 1411 b 25), já que os manuscritos oscilam entre enargestata e energestata, em 1455 a 24. Dupont-Roc
e Lallot, ao contrário de Hardy, Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Jaime Bruna, Bywater, Butcher, Else,
Halliwell, Rostagni, Gallavotti, Kassel e Lucas, usam energestata. A opção entre um ou outro não é capital, mas
os paralelos entre os textos (uma análise de 1386 a 34 levaria à mesma conclusão) permitem que se considere
energestata mais adequado. Não se entende, entretanto, a opção de Dupont-Roc e Lallot de ligar energestata
adverbialmente a euriskoi.
261
Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 90) menciona dois tragediógrafos que têm por nome Carcino, avô e neto:
Carcino, o Velho e Carcino, o Novo. Não se sabe quem efetivamente teria sido o autor, como também quase
nada se sabe da peça. Os comentários são pouco mais que especulativos. Hardy (ARISTÓTELES, 1995b, p. 84),
por exemplo, supõe que a incongruência seria fazer Anfiarau sair da terra, já que seu santuário (o templo) era
uma gruta, quando se esperava que um deus (ou, no caso, um herói divinizado) na verdade descesse sobre a terra.
Magnien (ARISTÓTELES, 1990, p. 177) tem um comentário semelhente. Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.
98) supõe que o absurdo seria ter feito Anfiarau aparecer em cena, uma vez que, tendo se escondido para não
tomar parte na guerra dos sete contra Tebas, mas tendo sua localização revelada pela traição da mulher, ele
deveria ainda assim permanecer escondido. Rostagni (idem, ib.) ainda sustenta, dessa vez com mais convicção,
que a peça talvez tenha sido satirizada no Anfiarau de Aristófanes, dado que “as comédias que têm por título
nomes de heróis são em geral paródias de tragédias homônimas” (tradução nossa). Se esse é caso, conclui ele,
então o Carcino citado seria Carcino, o Velho.
100

por ter desagrado os espectadores, fez a tragédia fracassar263) e, tanto quanto se


pode, completa ndo-o recorrendo à gesticulação 264. Pois são mais convincentes,
entre os dotados de mesma natureza, os que se envolvem com as paixões: quem se
deixa atormentar atormentando-se e se deixa encolerizar irritando-se o mais
verdadeiramente 265. Por isso, a poética é própria de quem é naturalmente dotado ou

262
Algumas edições críticas e traduções, talvez considerando incongruente que o texto se refira a um espectador
que não vê (o que etimologicamente seria um erro), eliminam-no do texto (cf. comentário semelhante de
Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 280)), outras substituem-no por ton poiêten, seguindo uma
sugestão que Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p. 27) atribui a Butcher, mas que o próprio Butcher
(ARISTÓTELES, s.d., p. 60) não adota, fazendo-a constar apenas em nota crítica, atribuindo-a a Dacier. O
problema da sugestão de Dacier, como apontam Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 280) e Lucas
(ARISTÓTELES, 1998b, p. 174) seria a negação mê diante do particípio, que dá à frase “um sentido condicional
ou genérico” (idem, ibidem) (tradução nossa) que a tradução de Else (ARISTÓTELES, 1994, p. 47-48), por
exemplo (que adota o texto de Dacier) não respeita: "Amphiaraus was discovered coming back from the
sanctuary, a circumstance which the poet failed to notice because he was not visualizing the action". Mas nada
impediria que se traduzisse o texto conservando o valor da negação mê: “Anfiarau foi descoberto voltando do
santuário, uma circunstância que escaparia a qualquer poeta que não visualizasse a cena” (ou seja, que não
procedesse como o preceituado, colocando os incidentes diante dos olhos). A outra justificativa apresentada por
Dupont-Roc e Lallot para não aceitar a tradução de Else (a necessidade de que os verbos horaô em 1455 a 24 e
1455 a 27 tenham sujeitos diferentes, a fim de que o olhar do poeta, no primeiro, seja confirmado - ou não - pelo
olhar do espectador no segundo) não se sustenta diante da constatação de que a mudança de olhares pode se
efetivar pela apresentação da peça em cena (epi de tês skênês). A tradução proposta é fiel ao texto dos
manuscritos. Não há, a nosso ver, nenhum problema textual grave que justifique uma emenda. Para que a
incongruência textual citada fosse efetiva seria necessário supor que em theatês ainda ressoasse muito
claramente um sentido etimológico, o que talvez não seja o caso.
263
Segundo Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 175), o verbo exepesen, de ekpiptô, provavelmente tem um
sentido técnico, ‘não vencer a competição’, tanto em se tratando de teatro quanto de atletismo. É natural, então,
supor que o sujeito do verbo seja 'tragédia', como traduzem todas a versões consultadas, menos Eudoro de Sousa
(ARISTÓTELES, 1998a, p. 127), que omite a frase. Esse sentido técnico se repete em 1456 a 18 e em 1459 b 31.
264
O conselho aristotélico pode parecer excêntrico, mas encontra ecos seja na comédia aristofânica (em que
Eurípedes, por exemplo, ou Agatão, são retratados no ato de criação de suas personagens vestidos e agindo como
elas - cf. Acarnenses, 412, Tesmofórias, 148) seja na maneira como Cícero, como observa Rostagni
(ARISTÓTELES, 1945, p. 99) descreve o método da escola peripatética de retórica (Tusculanas, IV, 19). O
poeta deve recorrer aos gestos que seriam os do personagem (talvez com o mesmo tipo de elocução) para se
colocar no mesmo estado que seria o dele e assim conseguir caracterizá -lo de maneira mais convincente (cf.
pithanôtatoi). Não deixa de ser surpreendente, em um tratado que considera a poesia como mímese, em que a
realidade aparece filtrada por meio da necessidade e da probabilidade, que se aconselhe ao poeta colocar-se no
mesmo estado que o personagem, para ser mais convincente e deixar-se envolver pelas afecções (en tois
pathesin) de maneira mais verdadeira (alêthinôtata). Isso certamente dificulta uma interpretação excessivamente
intelectualista da mímese. As emoções devem ser levadas em conta em todos seus aspectos, e não apenas em
seus componentes intelectuais. Quanto às outras possibilidades de interpretação de tois schêmasin (notadamente
a proposta por Else (ARISTÓTELES, 1994, p. 48), com respectivo comentário), elas devem ser rejeitadas (veja-
se Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 175)).
265
A frase tem diferentes traduções conforme seja o sentido dado à expressão apo tês autês phuseôs e conforme
se tomem os verbos ativos kheimainei e khalepainei como transitivos ou intransitivos. As traduções consultadas
variam bastante. Alguns, por exemplo, tomam a expressão citada como se referindo a uma mesma natureza
compartilhada por poetas e espectadores (por exemplo, Hardy (ARISTÓTELES, 1995b, p. 54): "... du fait que
les poètes sont de même nature que nous..." e Jaime Bruna (ARISTÓTELES, 1997, p. 37)), outros, como se
referindo à mesma natureza de poetas e personagens (Butcher (ARISTÓTELES, s.d., p. 63) "...through the
natural sympathy with the characters they represent" e Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 127)).
Quanto aos verbos, a grande maioria os considera transitivos, como se o trecho significasse que os poetas, ao se
101

de quem é exaltado, pois desses, os primeiros se deixam amoldar com facilidade e


os outros são aptos a saírem de si.
Quanto aos argumentos, tenham eles já sido compostos 266, esteja o próprio
poeta compondo-os, é necessário expô-los no geral, e só então introduzir
episódios267 e estender a obra. Entendo que se poderia contemplar o argumento no

agitarem, também agitam outros (e esse 'outros' pode ser tanto inespecífico – Eudoro de Sousa, Bruna, Else,
Butcher – quanto se referir aos espectadores - Rostagni) ou como se significasse que os poetas, tomados da
paixão, são capazes de melhor representá-las. A tradução proposta concorda, em essência, com as de Gernez
(ARISTÓTELES, 2001, p. 65) e Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 50). Esse trecho especificamente foi
analisado por Sanborn (1938, p. 321-335), que compilou nada menos que 40 traduções, das quais apenas 11
tratavam os verbos como intransitivos. A análise de Sanborn mostra que o trecho pode ter conseqüências
importantes para o que seria uma estética aristotélica. De fato, se a simpatia (tomada a palavra no seu sentido
etimológico, sun-pathos, co-afecção) é um elemento importante, seja no ato de criação, como é o caso da
tradução proposta, seja no ato de encenação, como querem alguns, então as afecções envolvidas na Poética não
devem ser consideradas apenas em sua dimensão intelectual, há que se ponderar também o estado emocional que
as acompanha.
266
Em outros pontos da Poética, o verbo poieô no perfeito é usado para se referir àquilo que o próprio poeta faz.
Esse é o caso em 1451 b 20 e 22 (onde, ao nome ou às ações já conhecidos, estão opostos respectivamente o
nome ou as ações forjadas (pelo poeta)), em 1454 b30 (onde se menciona o reconhecimento forjado pelo poeta,
mas não requerido pelo enredo) e em 1455 a 21. Talvez se devesse esperar aqui o mesmo significado, mas esse,
se mantido, criaria um conflito com o auton poiounta (‘esteja o próprio poeta compondo-os’) da linha seguinte.
É de se esperar que os dois sintagmas formem em par antitético. Vahlen propôs que se corrigisse o texto (cf. nota
crítica de Kassel (ARISTÓTELES, 1988, ad loc.)) e que, no lugar de pepoiêmenous, se colocasse pareilêmenous,
de forma a fazer referêcia ao legado da tradição, como em 1453 b 22. Há as solucões de Gudeman e Sykutris
(citadas por Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 179)), que tomam logous (‘argumentos’) como se referindo aos
mitos tradicionais, de forma que pepoiêmenous pode reter um significado coerente com seus outros usos na
Poética. Mas isso envolve considerar o segundo kai, que introduz auton poiounta, como enfático, o que, segundo
Lucas (idem, ibidem) “is awkward greek”. De fato, as partículas te...kai...kai sugerem outra construção, senão
também se poderia propor que esse segundo kai fosse expletivo (como um 'isto é'), de forma a desfazer a antítese
que parece naturalmente existir. Quase a totalidade das traduções consultadas entende que, aqui, o verbo não
confirma o sentido que tem em outros trechos da Poética, e vertem o par como 'enredos prontos' ou 'enredos
tradicionais' / 'enredos que o poeta mesmo faz'. As exceções ficam por conta de Rostagni (“mesmo os enredos
inventados” (tradução nossa), mas Rostagni não traduz o segundo termo da sentença, de forma que não podemos
averiguar como ele teria tratado auton poiounta (ARISTÓTELES, 1945, p. 100)) e Gallavotti (ARISTÓTELES,
1999, ad loc.): "quanto alla trama dei racconti, anche quelli inventati, bisogna que il poeta se stesso, quando li
costruisce...". Mas a solução dada por Gallavotti é pouco usual quanto ao sentido do segundo kai. A tradução
apresentada adota a solução sugerida por Gomperz (citada por Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 179)).
267
Podem-se escrutinar dois sentidos para epeisodion - e seus correlatos - na Poética. Um é o sentido técnico
pelo qual se faz referência a uma das partes da tragédia, definida no capítulo 12 (1452 b 20-21), capítulo que,
lembremos, é considerado espúrio por alguns, o outro, que não tem uma definição localizada, é o sentido ao qual
se liga, às vezes, uma certa conotação pejorativa (como em 1451 b 35), às vezes pode-se considerá-lo neutro
(como em 1449 a 28), mas que, no geral, se refere a “uma seção mais ou menos coerente de uma peça ou de uma
epopéia que não é essencial e que pode ser inteiramente supérflua” (Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 180)).
Uma vez que o escopo geral do capítulo é a passagem do material bruto para a tragédia acabada, e como a
exposição geral do argumento ainda não contempla a seqüência dos eventos tal como será apresentada em cena,
seria natural supor que o próximo passo fosse passar do argumento linear, que, em si mesmo, não é capaz de
cumprir do ergon da tragédia, para o enredo, ou seja, esperar-se-ia que o texto preceituasse agora a composição
(ou ‘arranjo’, como preferimos) dos fatos (sunthesis tôn pragmatôn) e essa seria a função do epeisodioun. Mas
não parece ser esse o caso. A seqüência do texto, ao afirmar que os episódiso devem ser próprios (deixando no
ar, como contra-parte da afirmação, a hipótese de que eles podem ser impróprios, o que não seria o caso se
epeisodioûn significasse repartir o argumento em episódios) e ao terminar o capítulo dizendo, quanto à Odisséia,
que 'o resto são episódios', parece deixar claro que epeisodioûn (‘episodiar’) não é montar o enredo.
102

geral desta forma, por exemplo, em Ifigênia: certa donzela 268, tendo sido votada a
um sacrifício, sumiu sem ser vista pelos que iriam sacrificá-la, estabeleceu-se em
outro país, no qual era tradição sacrificar os estrangeiros à deusa e lá foi incumbida
desse sacerdócio. Em um momento posterior, deu-se que seu irmão aí chegou. Por
que o deus teria prescrito que ele fosse lá e o motivo da ida são eventos alheios ao
enredo. Chegado, foi preso, e quando estava prestes a ser sacrificado, deu-se seu
reconhecimento, seja como fez Eurípedes, seja como Polido, fazendo Oreste dizer,
como seria provável, que, enfim, não apenas sua irmã, mas também ele próprio
deveria ser sacrificado, e daí fez-se a salvação. Depois disso, já atribuídos os
nomes 269, devem-se introduzir os episódios, mas deve-se cuidar para que eles
sejam apropriados, como, no caso de Orestes, a loucura, motivo de sua prisão, e a
salvação a pretexto da purificação270.
Nas tragédias, os episódios são breves, mas a epopéia alonga-se por meio
deles. De fato, não é longo o argumento da Odisséia: alguém passa longos anos
longe de casa, vigiado por Posídon, só; além disso, a situação em sua casa é tal que
seus bens estão sendo dilapidados pelos pretendentes 271 e seu filho é alvo de uma
conspiração; após enfrentar tormentas 272, chega e, dando a se conhecer de alguns,
ataca; ele se salva e extermina os inimigos. Isso é o que é próprio 273, o resto são
episódios.

268
Tanto aqui, como no argumento da Odisséia, os heróis não são nomeados (cf. nota 5 da capítulo IX).
269
Cf. nota 5 do capítulo 9.
270
A loucura de Orestes está relatada nos versos 260-335 da Ifigência em Táuris. Orestes teria atacado um
rebanho acreditando tratar-se das Erínias. O episódio da salvação, em 1327-1419. A pretexto de realizar a
purificação da estátua de Ártemis, maculada pela presença de um matricida, Ifigênia diz ser necessário banhá-la
na água do mar, o que serve de expediente para a fuga.
271
Os pretendentes de Penélope, entenda-se.
272
O verbo kheimanô tanto pode se referir a uma tempestade como fenômeno climático quanto se referir a um
estado de espírito atormentado (da mesma forma como ‘atormentado’ tem a mesma raiz de ‘tormenta’). As
traduções então oscilam entre um sentido e outro, o que também é permitido pelo enredo da Odisséia: pode-se
dizer que Ulisses chega perturbado a Ítaca, pode-se dizer que o verbo faz referência às tempestades que
enfrentou. Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 50) chega mesmo a traduzir por “survives shipwreck”.
273
Essa frase dá testemunho das dificuldades por que passa conceituação de episódio do texto da Poética. No
parágrafo anterior, Aristóteles diz que ‘deve-se cuidar para que os episódios sejam apropriados’, onde
‘apropriados’ traduz oikeion. Aqui, o final do parágrafo, dá a entender que ‘próprio’ é o só o que pertence
estritamente ao argumento, e ‘o resto são episódios’. ‘Próprio’ traduz idion. É de se esperar que haja alguma
nuance semântica entre oikeion e idion, de forma a fundamentar que um episódio possa ser oikeion (apropriado),
mas não idion (próprio). O restanto do texto da Poética, entretanto, parece desautorizar uma tal diferenciação,
por sutil que seja. Não resta ao tradutor senão tentar respeitar essa distinção particular, localizada apenas nesses
parágrafos. Não parece ser o caso, tampouco, de propor que o episódio apropriado, na tragédia, seja
103

essencialmente diferente do episódio da epopéia. A solução de Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 101-102),


que sugere “oikeia (tois onomasi)”, ‘que os episódios sejam ‘apropriados aos nomes dos personagens’’, é pouco
convincente.
104

18

Toda tragédia tem entrelaçamento e desenlace 274, sendo que o


entrelaçamento geralmente 275 é constituído de partes que são externas ao entrecho
dramático e de algumas das internas, e o resto é desenlace. Chamo entrelaçamento
o que vai do princípio 276 até a parte limite a partir da qual se dá a mudança para a
boa fortuna ou para o infortúnio, desenlace é o trecho que principia na mudança e
segue até o fim. Por exemplo, no Linceu, de Teodecto: o entrelaçamento
compreende os atos anteriores à peça, o rapto do garoto e então suas ...277 o
desenlace vai desde a causa da morte até o fim.
Quatro são as espécies de tragédia (pois também esse foi o número de partes
mencionadas278): complexa, cujo todo é composto de peripécia e reconhecimento,

274
Else (ARISTÓTELES, 1994, p. 103) chama a atenção para a importância de traduzir o par antinômico desis /
lusis conservando a oposição dos termos. Em português, Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 128)
traduziu por nó / desenlace e Jaime Bruna (ARISTÓTELES, 1997, p. 37) por enredo / desfecho, mas tanto desis
quanto lusis têm o sufixo –sis, indicativo de ação, processo, o que desqualifica ‘nó’, ‘desenlace’ e ‘desfecho’
como opções, visto que esses termos se referem mais a pontos específicos do enredo que aos processos de que
eles são partes. No entanto, conservamos ‘desenlace’ por ter a mesma raiz de ‘entrelaçamento’ e bem delinear a
oposição entre eles. Talvez não seja a opção mais elegante, mas se espera que seja funcional.
275
Parece-nos equivocado o comentário de Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 291) ao justificarem
sua opção de ligar o advérbio pollakis a enia tôn esôthen, de tal forma que sua tradução resulta (idem, p. 97): “le
nouement comprend les événements extérieurs à l’histoire et souvent une partie des événements intérieurs” (“o
nó compreende os eventos externos à história e freqüentemente uma parte dos eventos internos”). É equivocado
não pelas razões gramaticais que eles apresentam, que são plausíveis, mas porque seria estranho que, como parte
da tragédia, o entrelaçamento pudesse ficar totalmente fora dela. Essa, entretanto, é a versão da grande maioria
das traduções consultadas (Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Bywater, Else, Halliwell, Rostagni, Gallavotti,
além de Dupont-Roc e Lallot, é claro). Como se explicaria, também, a menção à parte (meros) a partir da qual
começa o desenlace se o entrelaçamento fosse totalmente externo? A opção mais razoável parece considerar
pollakis ligado à frase como um todo, como fazem Hardy, Bruna e como sugere Lucas (ARISTÓTELES, 1998b,
p. 183).
276
´Princípio’, nesse caso, não tem o mesmo significado que no capítulo 7 (1450 b 28), uma vez que, aqui, o
princípio pode estar fora da tragédia (ver nota anterior) e no capítulo 7 ele parece marcar o início da cena. De
resto, é um tanto embaraçoso que a a fórmula tripartite do capítulo 7 (começo, meio e fim) seja transformada no
binômio entrelaçamento / desenlace deste capítulo.
277
Há uma lacuna nos manuscritos. Parte da ação de que trata a peça foi exposta em 1452 a 27-29 (capítulo 11).
278
Esse parêntese coloca em dificuldades todos os comentadores, uma vez que o número de partes da tragédia
foi explicitamente mencionado (são seis – 1450 a 8) e elas foram listadas e analisadas suficientemente no
capítulo 6. Todos os manuscritos têm o parêntese, de forma que, se ele é um acréscimo posterior, no mínimo o
acréscimo é mais antigo que todos os manuscritos que chegaram até nós. A hipótese mais razoável para
compatibilizar o trecho com o resto da Poética se baseia na homologia que o texto afirma existir entre as
espécies de tragédia e suas partes. De fato, as quatro espécies de tragédia enumeradas (cuja lista completa se
deduz da lista análoga apresentada no capítulo 24 - veja-se a nota 6) parecem distinguir-se segundo o maior ou
menor peso dado a alguma das partes da tragédia (veja-se nota 7). Deve-se notar, também, que em muitos
trechos da Poética parece haver uma miscibilidade entre meros (‘parte’) e eidos (‘espécie’) (o que, a propósito,
talvez tenha levado Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 113) a propor verter eidos por “elementos
105

patética, como as tragédias sobre Ájax ou sobre Íxion, ética, como as tragédias
sobre os ftiótidas ou sobre Peleu; o quarto tipo, ...279, como as tragédias sobre os
fórcidas ou sobre Prometeu, e tantas quantas se passam no Hades 280.
Deve-se, o mais possível, esforçar-se por dominar todas as espécies, se não,
pelo menos as mais importantes e a maior parte delas, sobretudo tendo em vista as
críticas dirigidas281 aos poetas: tendo havido poetas que se destacaram em cada
parte, julga-se que um único deva superar cada um na qualidade que lhe foi
particular. Mas para afirmar se uma tragédia é diferente ou igual a outra, nenhum
elemento leva a um julgamento mais justo que o enredo: são iguais quando o

constitutivos”). Veja-se, por exemplo, 1450 a 7-8, onde as partes da tragédia são consideradas matrizes das
diferenças qualitativas entre as tragédia, 1450 a 13, onde seria mais natural esperar meressin no lugar de eidesin,
(esse parece ser o caso também em 1456 a 6), 1452 b 14 e 1462 a 16. Veja-se também a nota 2 do capítulo 12.
Essas considerações podem ainda jogar luz sobre a variante textual em 1456 a 33 (que faz parte do capítulo 19 e
portanto não consta deste trabalho). Talvez se deva ler, contra a maioria das edições críticas, eidôn em vez de
êdê.
279
Os editores consideram haver uma lacuna nesse trecho, preenchida de maneiras as mais variadas. Os
manuscritos trazem hoês ou oês (termos que não têm significado). Bywater (cf. aparato crítico da edição de
Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p. 29)) sugere que o original teria, no lugar, opsis (‘espetáculo’), e que as
tragédias desse quarto tipo teriam seus efeitos centrados no espetáculo. A sugestão é aceita por Rostagni
(ARISTÓTELES, 1945, p. 107), que alega "razões paleográficas convincentíssimas" (tradução nossa) e por
Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 97). Hardy (ARISTÓTELES, 1995b, p. 56) aceita outra
sugestão, a de Schrader, que ele faz constar em seu aparato crítico, e substitui tetarton (‘quarto’), em 1456 a 2,
por teratôdes (‘extraordinário’, ‘prodigioso’): o quarto tipo de tragédia seria baseado no presença do monstruoso
(cf. capítulo 14). Eudoro de Sousa (ARISTÓTELES, 1998a, p. 184), citando Else, propõe que o quarto tipo seja
a tragédia episódica. Mas, em todas essas possibilidades, resta o problema de compatibilizá -las com a lista de
espécies de epopéia apresentadas no capítulo 24 (1459 b 9-10). O mais simples, que, no caso, não é senão mais
uma entre tantas possibilidades tão engenhosas (mas lhe resta, ao menos, o vago consolo de ser a mais modesta),
é aceitar a lista apresentada no capítulo 24 e considerar que o quarto tipo de tragédia é a tragédia simples, por
oposição, inclusive, à complexa. Como simples e complexa são categorias antitéticas, a presença de uma parece
implicar a presença da outra. A tradução de Halliwell (ARISTÓTELES, 1987, p. 51) adota essa solução.
280
A única solução que parece compatibilizar a afirmação de que a tragédia tem o mesmo número de espécies
(4) que suas partes (4) é considerar que as partes da tragédia são na verdade partes do enredo (peripécia,
reconhecimento, eventos patéticos) mais o caráter. Dessas quatro partes assim consideradas, a presença ou não
de peripécias e reconhecimento dá origem às tragédias simples e complexa, a presença marcante de eventos
patéticos dá origem à tragédia patética e a forte expressão do caráter dos personagens dá origem à tragédia ética.
As espécies não são excludentes (a não ser o par simples/complexa), como bem atestam as classificações da
Ilíada (simples e patética) e da Odisséia (complexa e ética) no capítulo 24 (1459 b 14-16). Mas essa solução está
em conflito com a enumeração das seis partes da tragédia no capítulo 6 (1450 a 7-10). Entretanto, o próprio
capítulo 6 já classifica o canto e o espetáculo como ornamentos, e o tratado não lhes dedica maior atenção. E por
vezes o texto se refere ao pensamento e à elocução como se fossem acessórios (cf. notas 3 e 7 do capítulo 24),
ainda que no período final do capítulo 24 é apenas a elocução que se apresenta como acessória, não o
pensamento. Para uma solução diferente, veja -se Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 292-298).
281
Vários tradutores enfatizam a dureza do verbo sukophantousi, não apenas ‘dirigir críticas’, como traduzido,
mas “caluniar” (Magnien), “assacar aleivosias” (Bruna), “unfair criticism” (Bywater), “cavilling criticism”
(Butcher). Talvez Aristóteles impute aos críticos um certo excesso, pois o procedimento que lhes é atribuído
(julgar que cada poeta deve superar o que houve de melhor em cada domínio particular) não parece sensato. Mas
como a crítica, se bem dosada, seria até justa, uma vez que o preceito é razoável (observe-se, por exemplo, o
elogio dirigido a Homero a partir de 1459 b 12, bem como a respectiva nota 4 do capítulo 24), não
necessariamente o verbo deve ser lido assim.
106

entrelaçamento 282 e o desenlace são os mesmos. Muitos entrelaçam bem, mas


desenlaçam mal. Deve-se conciliar ambas as partes.
É necessário lembrar o que foi dito muitas vezes 283 e não fazer da tragédia
uma composição épica – chamo de épica a composição que se utiliza de muitos
mitos – como, por exemplo, se alguém fizesse um enredo do todo da Ilíada. Na
epopéia, por sua extensão, as partes assumem o tamanho adequado, mas nos
dramas esse procedimento resulta muito inferior à pretensão. Um sinal disso é que
tantos quantos colocaram em poema toda a queda de Tróia e não apenas partes
dela, como Eurípedes, ou que não fizeram como Ésquilo procedeu em relação a
Níobe, ou fracassaram ou foram mal nos concursos. Mesmo Agatão fracassou
apenas nesse aspecto. Mas 284 nas peripécias e mesmo nas ações simples285 os
poetas atingem seu intento de maneira admirável. Pois é trágica e afim ao
sentimento de humanidade286 a situação em que alguém que tem sabedoria, mas é
perverso, é enganado, como Sísifo, ou o homem corajoso, mas injusto, é vencido 287.

282
‘Entrelaçamento’, aqui, traduz plokê, cujo significado, segundo Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 190), não
deve ser diferenciado do significada do desis, palavra usada no início do capítulo e para a qual também se adotou
‘entrelaçamento’ como tradução.
283
A afirmação não foi explicitada nesses termos em nenhum outro ponto, mas não está em desacordo com a
doutrina dos capítulos 7 ou 17.
284
Algumas traduções consideram que o trecho que se inicia com ‘mas’ e vai até ‘mesmo contra a probabilidade’
constitui um parágrafo isolado. Nas versões para o português, particularmente, Jaime Bruna e Eudoro de Sousa
procedem assim, mas também Hardy, Gernez, Magnien, Halliwell, Rostagni, Gallavotti. Entretanto, parece
razoável supor uma certa conexão entre esse trecho e o que o precede imediatamente, nos seguintes termos: a
tragédia atinge seus objetivos com os enredos comp lexos, que têm peripécia, ou até com os simples, sem precisar
recorrer à composição épica (o assunto das linhas anteriores). Algumas traduções, ainda que destaquem esse
trecho em parágrafo, marcam claramente essa articulação, outras, nem tanto. A favor dessas últimas, pode-se
argumentar que, no capítulo 18, a argumentação não parece seguir uma linha de orientação clara.
285
Alguns editores fazem a excisão da frase ‘e mesmo nas ações simples’, como Hardy (ARISTÓTELES, 1995b,
p. 57), que aponta, no aparato crítico, a ausência do trecho na versão árabe. Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p.
29), entretanto, não menciona essa ausência em seu aparato crítico. Ela seria bem-vinda, na medida em que os
enredos que se seguem parecem ser enredos complexos, em que há peripécia (ver nota 14). Parece haver um
certo desencontro no texto, que a tradução mantém, ainda que suavizado pelo entendimento do kai, em 1456 a
19, como uma partícula concessiva (‘mas nas peripécias e mesmo nas ações simples...’).
286
Considerou-se que o touto (1456 a 21) seria catafórico, perfazendo a mesma intenção da correção de
Susemihl, que colocou a frase tragikon...philantrôpon (‘pois é trágica ... humanidade’) após êttêthêi (‘é vencido’)
(cf. aparato crítico da edição de Kassel (ARISTÓTELES, 1988, ad loc.)).
287
Há conflito com o caráter ideal apresentado no capítulo 13? Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 192) tenta
compatibilizar os trechos afirmando ser plausível que o herói seja, no caso, quem engana Sísifo ou quem vence o
homem corajoso, mas injusto. Mas deve-se admitir que essa solução só se impõe às custas de criar um outro
problema: essas tragédias não terminam em infortúnio do herói, nem parece haver hamartia da parte dele (pelo
contrário, há êxito). Gernez (ARISTÓTELES, 2001, p. 102) afirma que os casos não são idênticos aos do
capítulo 13. Esses apresentados aqui conjugam a um só tempo a mudança de fortuna e a surpresa trágica. A
citação de Agatão reforça essa tese.
107

E também isso é provável, no sentido em que Agatão diz: é provável que muitas
coisas aconteçam mesmo contra a probabilidade288.
O coro deve ser considerado como um dos atores, que ele seja parte do
todo289 e que atue efetivamente 290, não como em Eurípedes, mas como em
Sófocles. Nos restantes 291, os trechos cantados são tanto parte do enredo quanto
parte de qualquer outra tragédia. Por isso passou-se a cantar interlúdios 292, sendo
Agatão o primeiro a introduzir esse tipo coisa. Entretanto, em que difere cantar um
interlúdio ou adaptar de um lugar a outro uma fala ou um episódio inteiro?

288
A respeito dessa frase, ver as notas 1 e 2 do capítulo 11.
289
A frase parece ser desdobramento direto de 1451 a 34-35 (capítulo 8: ‘aquilo cujo acréscimo ou supressão não
traz alteração visível não é parte do todo’). À integração do coro no todo da tragédia, entretanto, Aristóteles dá
pouca atenção. Veja-se a nota seguinte.
290
Boa parte das traduções consultadas (Hardy, Dupont-Roc e Lallot, Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Jaime
Bruna, Bywater, Butcher, Gallavotti) verte o verbo sunagônizesthai como “tomar parte na ação”. Mas a que ação
estão se referindo? À ação completa da peça, com começo, meio e fim articulados segundo o provável ou o
necessário? À ação de um determinado personagem, que decorre de sua escolha e que implica seu caráter? Ou o
preceito aristotélico é apenas, por oposição ao que se segue, ‘as partes corais não devem ser destacáveis, devem
estar inseridas em seus respectivos contextos’? Pelo contexto geral da Poética, com sua ênfase nos critérios de
unidade do enredo, somos levados a considerar a primeira dessas três opções. Se esse é o caso, deve-se admitir,
que Aristóteles poderia ter dado um tratamento mais extenso ao papel do coro. Entretanto, esse ‘esquecimento’
está de acordo com a pouca importância dada ao canto como uma das partes da tragédia. Seria esse o momento
em que o tratado, ao conceder importância ao coro no arranjo dos fatos, se redime? Não parece ser esse o caso.
Nem o sentido canônico do verbo sunagônizesthai ajuda a fundamentar a tradução adotada pela maioria.
Sunagônizesthai, como notou Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 193), tem o sentido de ‘ajudar a ganhar’. Esse
sentido ressoa aqui, e inclusive explica o uso do dativo nos nomes de Eurípedes e Sófocles (que a maioria
entende como locativos – ‘não como nas peças de Eurípedes e sim como nas de Sófocles’ – mas a Poética,
nesses casos, usa a preposição en), mas não a ponto de justificar a tradução de Else (ARISTÓTELES, 1994, p.
51): “The chorus ... should be a part of the whole and contribute its share to succes in the competitive efort...”.
Lucas (idem, ib.) sugere para o termo “make a positive contribution to the play”. Halliwell (ARISTÓTELES,
1987, p. 52) traduz de maneira semelhante: “The chorus ... should be actively involved”.
291
Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.112) e Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 194) sugerem que a menção é a
poetas posteriores a Eurípedes e que essa progressiva autonomização das partes cantadas atinge seu ápice com a
introdução de interlúdios por Agatão.
292
Interlúdios (embolima) seriam trechos escritos não para uma peça particular e enxertados de uma peça a outra
(cf. Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p.112) e Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 194)).
108

23

A respeito da mímese narrativa e em versos 293,294, é evidente que se devem


compor os enredos como nas tragédias: dramáticos e em torno de uma ação una,
inteira e completa que tenha começo, meio e fim, para que, como um animal uno e
inteiro, ela produza o prazer próprio295 do gênero, e não como na composição dos

293
Nessa primeira frase do capítulo 23, tal como traduzida, falta a partícula que a conectaria mais claramente
com a frase que a precede, a última do capítulo 22. As duas formam um período coordenado pelas conjunções
men oun ... de (um uso análogo ao analisado na nota 3 do capítulo 6; a respeito de men oun...de em geral, veja-se
a nota 1 do capítulo 14; outra análise das partículas está na nota 3 do capítulo 11). Aristóteles, tendo terminado
pela análise da elocução (lexis) a parte do tratado referente à tragédia, passa à epopéia. O período completo, com
a frase final do capítulo anterior e a primeira deste, seria: “A respeito então da tragédia e da mímese por meio da
ação, é suficiente o que foi dito por nós; a respeito, por sua vez, da arte mimética narrativa e em versos...".
294
Há variantes textuais entre os manuscritos nesse trecho, e ainda correções propostas por diversos editores.
Mas nenhuma das variantes satisfaz completamente aos comentadores na medida em que, todos concordando
que aqui se trata de epopéia, uns consideram que não haveria por que acrescentar, tendo o texto já dito que se
trata de uma arte narrativa, que ela é, além disso, em versos, já que Aristóteles não faz menção a uma arte
narrativa em prosa (Dupont-Roc e Lallot (ARISTÓTELES, 1980, p. 370), que são dessa opinião – “cette
précision, redondante dans la mesure où Aristote ne mentionne jamais l´existence de récits mimétiques em prose,
n´a pas de fonction diacritique” – atribuem o acréscimo a um exagero de precisão por parte de Aristóteles), ao
passo que outros consideram o acréscimo importante. É o caso de Rostagni, que argumenta:

Credo invece che qui ad Arist. importi differenziare l´Epop. non già dalla Trag. ma
da un altro genere: dalle narrazioni in prosa, dagli a)/neu me/trou
memuqologhme/na (cfr. Plat., Resp. II, 380 c), che egli ha pur considerati come
mimesi (I, 47 a 25 sgg., cfr. fr. 72 R.: lo/goi kai\ mimh/seij...ou)de\ e)/mmetroi), e
coi quali l´Epop. a chiamarla semplicem. dihghmatikh/, si conconfonderebbe:
quindi la dice ‘narrativa’ sì, ma ‘in versi’. (ARISTÓTELES, 1945, p. 139)

Creio que a Aristóteles importe diferenciar a Epopéia não da Tragédia, mas de um


outro gênero: da narração em prosa, da aneu metrou memuthologêmena (cf. Platão,
República, II, 380 c), que ele também considerou como mímese (I, 47 a 25 et seq.,
cf. fr. 72 R.: logoi kai mimêsis ... oude emmetroi) e com a qual a epopéia, se ele a
chamasse simplesmente diêgêmatikê (narrativa) se confundiria: então a declara
‘narrativa’, sim, mas ‘em verso’. (tradução nossa).

De qualquer forma, como é consenso que nesse ponto Aristóteles se refere à epopéia, a questão tem pouco a
acrescentar ao entendimento da Poética mesma.
295
Os pontos são retomados dos capítulos 7 e 8: unidade de ação (capítulo 8 de um modo geral), inteireza,
completude, presença de começo, meio e fim, comparação com animais (capítulo 7). O que causa certa surpresa
é o fato de o prazer próprio da tragédia não aparecer explicitamente articulado aos critérios de unidade nos
capítulos 7 e 8, ao passo que neste trecho o prazer próprio aparece como a finalidade deles. Se analisarmos
outros pontos em que o prazer próprio da tragédia é mencionado, encontrá-lo-emos claramente articulado não
aos critérios de unidade, mas ao movimento da ação trágica e ao temor e à piedade decorrentes (cf. Introdução).
É assim no capítulo 13 (1453 a 35), em que o final duplo de algumas tragédias é associado ao prazer próprio da
comédia, por oposição ao final simples, ou seja, o final em infortúnio, característico de Eurípedes, ‘o mais
trágico dos poetas’. É assim no capítulo 14 (1453 b 10), em que se preceitua extrair da tragédia não qualquer tipo
de prazer (referência ao prazer advindo do espetáculo ou do monstruoso), mas o prazer que decorre da piedade e
do temor por meio da mímese. Quando se menciona, por sua vez, o efeito (ergon) da tragédia, ou sua finalidade
(telos), que são naturalmente ligado ao seu prazer próprio, tampouco o contexto diz respeito à unidade do enredo
109

relatos históricos, nos quais forçosamente é apresentada não uma ação una, mas
um tempo único, e, nele, tudo quanto aconteceu a um indivíduo ou a vários, sendo
que cada um desses eventos se relaciona com os outros ao acaso. Pois assim como
em um mesmo tempo se deu a batalha naval em Salamina e a batalha dos
cartagineses na Sicília 296, que não visam ambas o mesmo fim, também em tempos
consecutivos por vezes acontece uma coisa depois de outra, das quais não se
constitui um fim único 297. A maioria dos poetas age dessa forma.

(veja-se, quanto ao ergon, 1450 a 31, 1452 b 29 e 1462 b 12; quanto ao telos, 1460 b 25-27 e também 1462 b
12). Por que, então, nesse trecho, Aristóteles parece fazer derivar o prazer próprio da tragédia de sua unidade?
Há algumas hipóteses a considerar: 1. pode ser que Aristóteles tenha conectado, na sua recapitulação do enredo
trágico, preceitos que no contexto original não estavam relacionados uns com os outros e a relação que ora se
estabelece se deve menos a uma causalidade de fato que a uma recapitulação um tanto congestionada; 2. poder-
se-ia argumentar, contra todas as evidências, que as unidades de enredo e de ação implicam temor e piedade;
mas o argumento é ruim: basta pensar, por exemplo, em um enredo que fosse a vida de um homem virtuoso
rumo a sua felicidade, sem peripécias, sem reconhecimentos, sem sem eventos patéticos, sem mudança de
fortuna; 3. mas, se a unidade de ação não é condição suficiente para que o enredo enseje temor e piedade, ela é,
entretanto, condição necessária, e justamente a condição que a epopéia cíclica não tem; talvez seja sua falta de
unidade, o principal defeito contra o qual Aristóteles se coloca nesse capítulo (também essa parece ser a opinião
de Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 142); cf. também a nota 5), que explique a ênfase com que Aristóteles
relaciona o prazer próprio do gênero a uma sólida unidade de ação.

296
Rostagni sugere que talvez Aristóteles tenha em mente o relato de Heródoto (VII, 168) que situava no mesmo
dia os dois eventos (ARISTÓTELES, 1945, p. 140).
297
A caracterização da história ganha contornos mais nítidos em relação ao que foi apresentado no capítulo 9. Lá
se disse apenas que ela relata ‘o que aconteceu’ (ta genomena), que ela é menos filosófica e virtuosa que a poesia
e que relata fatos particulares, ou seja, o que Alcibíades fez ou sofreu (1451 a 36-b 11). Aqui, por sua vez,
coloca-se em relevo a sua maneira de se organizar, não em torno de uma ação una, mas de um período único,
agrupando, desse período, vários eventos que se relacionam arbitrariamente e que não se norteiam pelo mesmo
fim. Em se tratando de uma recapitulação do que foi dito a respeito da tragédia, estranha-se tal riqueza de
análise. A causa provavelmente é a frase final do parágrafo: ‘a maioria dos poetas age assim’. Uma melhor
caracterização da história permite uma crítica mais clara aos poetas que não respeitam o preceito da unidade de
ação, seja construindo os poemas em torno de um único indivíduo, seja construindo-os a respeito de um tempo
único.
110

Assim, como já dissemos298, 299


, também por essa razão Homero se
destacaria como divino confrontado com os outros poetas, por não pretender colocar
no seu poema a guerra inteira, ainda que ela tenha começo e fim: pois o enredo teria
resultado grande em demasia e não poderia ser abarcado prontamente em uma
visada única, ou, moderando-o em tamanho, ele resultaria intrincado pela
variedade300. Tendo então retido uma parte, fez uso de muitas outras como
episódios, pelos quais diversificou301 sua poesia.
Mas os outros compõem, seja em torno de um único indivíduo, seja em torno
de um tempo único, uma ação de muitas partes 302, como fez quem compôs os

298
Os comentadores, via de regra, remetem esse 'como já disemos' ao capítulo 8, mais especificamente a 1451 a
19-22, onde também se faz o elogio de Homero por construir seus enredos de maneira una. Deve-se observar,
entretanto, uma pequena diferença entre o elogio do capítulo 8 e esse do capítulo 23, o que talvez explique o
'também' da frase 'também por essa razão' como um acréscimo em relação ao elogio anterior. No capítulo 8, a
excelência de Homero estava ligada a ele ter selecionado, entre as ações de Ulisses, aquelas que propiciariam
uma sequência provável ou necessária de feitos (1451 a 27-28). No caso da guerra de Tróia, Aristóteles afirma
que ela tem começo e fim e é inteira. Tudo indica que ela, colocada em poema no seu todo, respeitaria os
preceitos de unidade. Mas, contada por completo, ela resultaria demasiado grande. Contrariamente ao capítulo 8,
é antes o preceito relativo à extensão que é elogiável nesse caso.
299
Alguém poderia se questionar a respeito da conexão entre os dois primeiros parágrafos do capítulo nos da
seguinte maneira: i. o preceito da extensão, pelo qual Homero é elogiado no segundo parágrafo (cf. nota
anterior), não está entre os tópicos retomados no primeiro (a não ser que se entenda a referência aos animais, por
meio do que os preceitos de extensão foram introduzidos, no capítulo 7, como o elemento que efetiva essa
retomada; a referência aos animais no primeiro parágrafo, entretanto, parece antes cumprir a função de resumir
em um único elemento todas as características mencionadas que de retomar o preceito da extensão) ii. a
expressão usual para fazer referência à extensão (megethos exoûsa), presente tanto na definição de tragédia
(1449 b 25) quanto no início do capítulo 7 (1450 b 26), está ausente aqui. Como então se pode entender o ‘assim’
(dio) que inicia o segundo parágrafo, que dá a entender que o primeiro parágrafo serve como fundamento para
suas afirmações? Isso colocaria um problema para quem quisesse enxergar entre eles uma articulação
extremamente sólida e coesa. Para nós,entretanto, basta observar que o que está em jogo é a unidade da Ilíada e
da Odisséia frente à falta de unidade dos poemas cíclicos ou dos relatos históricos. Isso parece ser suficiente para
proporcionar à argumentação um ambiente tão coeso quanto o necessário para estabelecer a necessidade dos
critérios de unidade e extensão nesse caso.
300
O original grego (tôi megethei metriazonta katapeplegmenon têi poikiliai) apresenta sintaxe intrincada, mas o
sentido é claro e, aliás, apresenta restrição que pode ser aproximada da restrição relativa à observação do animal
muito pequeno no capítulo 7, em 1450 b 39-40. Se lá a visão do animal minúsculo era confusa, aqui as partes de
um enredo longo, amontoadas em uma extensão menor que a adequada, tornam-no 'intrincado pela variedade'.
Isso parece dar sentido ao exemplo do animal muito pequeno, que, de fato, se aplicava mal ao enredo: o que seria
um enredo tão pequeno a ponto de sua observação se dar em um tempo ‘próximo do imperceptível’?
301
O trecho em 1459 b 30 (capítulo 24: ‘pois o que é uniforme, saciando rapidamente, faz as tragédias
fracassarem’) sugere essa tradução para o verbo dialambanô.
302
A frase apresenta algumas divergências entre os tradutores. A maioria opta por coordenar seus três termos
(peri hena, peri hena chronon e mias praxin polumerê) por conjunções alternativas (ou...ou...ou...), como se se
tratasse de três opções igualmente (in)válidas de que fazem uso os poetas que não respeitam a unidade do
enredo. Traduzem assim Hardy, Eudoro de Sousa, Bruna, Bywater, Butcher, Halliwell. Nesse caso, deve-se
considerar que mian praxin não faz referência à ação una tal como preceituada por Aristóteles ou que, sendo a
ação una, ela é no entanto polumerê (‘de várias partes’), o que compromete sua possível unidade. Outros,
provavelmente levados pela ausêcia do peri imediatamente antes de mian praxin polumerê, consideram que esse
é o candidato natural a complemento do verbo poioûsi. É o caso de Gernez, que traduz: "les outres poètes, au
111

Cantos Cíprios ou a Pequena Ilíada. Por isso, da Ilíada e da Odisséia se faz, de


cada uma, uma tragédia ou duas apenas, mas dos Cantos Cíprios, fazem-se muitas,
e da Pequena Ilíada, mais de oito, por exemplo: O Julgamento das Armas, Filocteto,
Neoptólemo, Eurípilo, Mendicância, Lacedemonianas, Queda de Tróia, Partida,
Sínon e Troianas 303.

contraire, composent, au sujet d'un individu et d'une période unique, une seule action à plusiers parties"
(ARISTÓTELES, 2001, p. 95). Else considera que o terceiro termo seria um complemento explicativo dos dois
primeiros: "The other poets compose their work around a single person or a single period, that is, a single acion
of many parts" (ARISTÓTELES, 1994, p. 62). Dupont-Roc e Lallot adotam o texto da versão árabe, em que não
consta a expressão mian praxin. Qualquer que seja a tradução adotada, e parece mesmo difícil argumentar de
maneira definitiva a favor de uma ou outra, o sentido do trecho já está determinado pela oposição entre Homero
e os outros (hoi d’alloi), que se explicita na oposição entre o enredo de ação una e o de ação de várias partes
(polumerê).
303
Por que o texto fala em ‘mais de oito (tragédias)’ em vez de dizer ‘dez’ diretamente? Não há acordo entre os
comentadores. Else (ARISTÓTELES, 1994, p. 109-110, nota 157) considera todo o trecho, desde ‘mais de oito’
até o fim do parágrafo, interpolado, e duplamente interpolado. Após a primeira interpolação teria havido uma
outra, que teria acrescentado as palavras ‘mais de’ antes de ‘oito’ e as duas tragédias do final da lista. A versão
árabe não traz Eurípilo e Lacedemonianas. Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 143), por sua vez, considera
todo o trecho original
112

24

Além disso304, a epopéia deve ter as mesmas espécies que a tragédia (de
fato, ela é simples, complexa, ética ou patética; também as partes, excetuadas o
canto e o espetáculo, são as mesmas), pois também é necessário que haja não só
peripécias, como também reconhecimentos e eventos patéticos305. Além disso306,
deve haver beleza na elocução e nos pensamentos. De todos esses elementos,
Homero fez uso primeiro e de maneira taxativa 307. De fato, de cada um de seus
poemas, compôs a Ilíada simples e patética e a Odisséia, complexa (pois é inteira

304
A rigor, não existe uma descontinuidade entre os capítulos 23 e 24, como bem evidencia esse ‘além disso’
inicial. O assunto é o mesmo: as características da poesia épica em comparação com a tragédia. Else
(ARISTÓTELES, 1994, ad loc.), que por vezes propõe uma capitulação divergente da tradicional, desloca o
início do capítulo 24 para 1459 b 16 (‘A epopéia difere na extensão da composição e no metro usado...’), quando
o texto passa a tratar das diferenças entre os gêneros.
305
A semelhança entre a épica e a poesia dramática pode ser considerada como uma realidade de fato, como a
maioria das traduções entende: a epopéia e a tragédia têm as mesmas espécies – simples, complexa, ética,
patética – e também as mesmas partes, exceto o canto e o espetáculo. Que as partes mencionadas – peripécia,
reconhecimento, evento patético – não sejam partes da tragédia, mas antes partes do enredo, é um problema que
os comentários apontam e resolvem basicamente de duas maneiras: ou suprimem a referência ao canto e ao
espetáculo, de forma que se possa entender a menção às partes comuns como se referindo às partes do enredo
(Else, por exemplo), ou supõem que a menção às partes do enredo (peripécia, reconhecimento, eventos patéticos)
de alguma forma implique as partes da tragédia que faltam (enredo e caráter, sendo que elocução e pensamento
são incluídos como acréscimo na seqüência do texto). Mas se pode ler o trecho de uma outra maneira, com
implicações mais interessantes. A semelhança entre a épica e a poesia dramática é uma realidade de fato, mas
apenas porque essa realidade de fato tem uma forte justificativa teórica: ambas têm, na prática, as mesmas partes
e visam o mesmo fim, por meio dos mesmos elementos - peripécia, reconhecimento e eventos patéticos. A
sintaxe da frase permite a sustentação dessa tese. Deve-se considerar o gar, em 1459 b 9 como adverbial, o kai
em 1459 b 10 como introduzindo um outro elemento de semelhança entre a épica e a poesia dramática e o kai
gar em 1459 b 11 como a efetiva justificativa de serem as mesmas as espécies da épica e da tragédia (assim,
inclusive, ganha um significado mais preciso a repetição enfática do kai em 1459 b 11: kai gar...kai...kai).
Halliwell traduz assim, mas não chega a comentar sua escolha. Para uma visão divergente da nossa a respeito
dos mesmos pontos, veja-se Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 219-220).
306
Esse ‘além disso’ (eti) para introduzir a elocução e os pensamentos e ainda o fato de a excelência deles estar
desvinculada dos tipos de epopéia (eles devem apenas ser belos em si mesmos) parece confirmar a hipótese de
que as espécies comuns à tragédia e ao poema épico têm como fundamento de seus gêneros características
ligadas ao enredo ou ao caráter (ver nota 7 do capítulo 18).
307
A seqüência do texto deixa claro que Homero dominou os quatro gêneros de épica e ainda superou a todos na
elocução e no pensamento. O advérbio hikanôs, que traduzimos pela perífrase ‘de maneira taxativa’ (alguns
manuscritos trazem não o advérbio, mas o adjetivo hikanos), talvez seja um eco do preceito apresentado no
capítulo 18 (1456 a 3): ‘deve-se, o mais possível, esforçar-se por dominar todas as espécies, se não, pelo menos
as mais importantes e a maior parte delas’. Se essa hipótese é correta, o advérbio parece significar menos que ele
dominou todos os gêneros (ou partes) perfeitamente, como muitos traduzem (por exemplo, Gernez
(ARISTÓTELES, 2001, p. 95): “toutes choses qu’Homère a utilisées le premier et à la perfection”) mas sim que
ele os dominou conforme indicado no capítulo 18.
113

reconhecimento 308) e ética309. Além do mais 310, supera a todos na elocução e no


pensamento 311.
A epopéia difere na extensão da composição e no metro usado. Quanto à
extensão, é suficiente o limite que foi dito 312, pois é necessário poder chegar ao fim
da narrativa sem ter perdido de vista o começo. Essa seria o caso se as
composições fossem menores que as antigas e se equivalessem à quantidade de
tragédias apresentadas em uma única audição313. A epopéia tem uma característica

308
Pode ser proveitoso especular se o sentido da frase entre parênteses não seria outro diferente do sentido
canônico que lhe dão as traduções. De fato, todas as traduções consultadas vertem o parêntese como se ele
fizesse referência à grande quantidade de reconhecimentos que há na Odisséia. Hardy (Rostagni também) chega
mesmo a listá-los:

Télémaque est reconnu de Nestor, de Ménélas, d'Hélène; Ulysse est reconnu du


Cyclope, des Phéaciens, d'Euryclée, des porchers, de Télémaque, des prétendants, do
Pénélope, enfin de son père. (ARISTÓTELES, 1995b, p. 86)

Telêmaco é reconhecido por Nestor, por Menelau, por Helena ; Ulisses é


reconhecido pelo Cíclope, pelos Feácios, por Euricléia, pelos porqueiros, por
Telêmaco, pelos pretendentes, por Penélope e enfim por seu pai. (tradução nossa)

Assim, todas as traduções aceitam a idéia por trás da emenda que Christ introduziu no texto (que consta no
aparato crítico das edições de Butcher, Hardy, Rostagni e Kassel), trocando anagnôrisis (‘reconhecimento’) pelo
seu plural, anagnôriseis, ainda que a emenda permaneça apenas em nota de rodapé, não sendo adotada no
próprio corpo da Poética. De fato, o espírito da solução de Christ é uma das possibilidades de leitura do grego
original e permanece mesmo que não se lhe adote a letra. Essas traduções certamente são autorizadas pelo
sentido de diolou, mas pode-se propor para o termo, em vez do sentido espacial (para o qual para ser preferido o
di’holou, cf. 1460 a 8), um sentido intensivo, o que aliás, é mais consonante com seu significado usual
(conforme o verbete em Le Grand Bailly, Dictionnaire Grec-Français). Aceita essa hipótese, o parêntese diz não
que há vários reconhecimentos espalhados por toda a Odisséia, mas que seu enredo é centrado principalmente no
reconhecimento de Ulisses. Quando Aristóteles, no capítulo 17, apresenta um resumo do enredo da Odisséia, é
de Ulisses o único reconhecimento que se menciona.
309
Else, citado por Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 186-187), defende que a Odisséia seja ética porque, no
final, os pretendentes são punidos, enquanto Ulisses e os que foram fiéis a ele são recompensados. Se essa noção
de ética é afim ao pensamento aristotélico, seria estranho que a tragédia de fim duplo (capítulo 14, 1453 a 30-35)
não fosse elogiada por isso. Pelo contrário, é até criticada. Parece mais razoável considerar que a epopéia (ou a
tragédia) ética seria a que tem forte expressão do caráter de seus personagens. Esse sentido seria consonante ao
que existe na Retórica, em 1413 b 8-10, onde se afirma que o discurso ético é aquele que expressa caráter, sem
que haja nenhum indício que permita relacioná-lo à punição dos maus e à recompensa dos bons.
310
Cf. nota 3.
311
Os manuscritos trazem duas versões: ou bem “(Homero) supera a todos (os outros poetas) na elocução e no
pensamento”, ou bem “(A Ilíada e a Odisséia) superam a todos (os outros poemas) na elocução e no
pensamento”. A diferença não é significativa para o argumento do trecho.
312
A questão foi analisada no final do capítulo 7 (1450 b 35 et seq.) e retomada no capítulo 23 (1459 a 32 et
seq.).
313
Em uma audição nos concursos eram apresentadas três tragédias e um drama satírico.
114

bastante peculiar quanto à possibilidade de se alongar sua extensão, pois na


tragédia não é possível efetuar a mímese de muitas partes acontecendo ao mesmo
tempo, mas apenas da parte que está em cena e que cabe aos atores. Mas na
epopéia, por ser uma narração, é possível realizar muitas partes ao mesmo tempo e
por meio delas, se são adequadas, aumenta -se a amplidão do poema, de forma que
nesse o belo pode ser levado à magnificência, faz-se possível variar o interesse do
ouvinte e inserir episódios os mais diversos. Pois o que é uniforme, saciando
rapidamente, faz as tragédias fracassarem.
Quanto ao metro, a experiência mostrou ser o metro heróico o mais ajustado.
Se alguém fizesse uma mímese narrativa com algum outro metro, ou com vários,
isso se revelaria inadequado. Pois o heróico é, dos metros, o mais estável e
amplo 314 (por isso ele é o que melhor aceita termos raros e metáforas: também por
isso a mímese narrativa é, entre todas, grandiosa), ao passo que o iambo e o
tetrâmetro são movimentados, sendo este próprio à dança, aquele, adequado à
ação315. Seria mais estranho ainda se alguém os misturasse, como fez Quéremon.
Por isso ninguém pôs em poema uma composição de vulto em outro metro que não
o heróico, mas, como dissemos, a própria natureza ensina a escolher o que se
ajusta a ela 316.
Homero é digno de ser elogiado por muitas outras coisas, mas principalmente
porque é o único entre os poetas a não desconhecer como o próprio poeta deve
colocar-se no poema. Pois o poeta deve ele mesmo falar o mínimo possível, pois
não realiza a mímese agindo assim317. De fato, os outros poetas se colocam em
cena por toda parte e realizam a mímese de poucas coisas e poucas vezes. Mas
Homero, após um breve preâmbulo, imediatamente introduz um homem ou uma
mulher, ou algum outro caráter, e ninguém descaracterizado, mas sim possuidor de
caráter.

314
Na Retórica (1408 b 32) se diz que o ritmo heróico (do hexâmetro, portanto) é solene (semnos).
315
A respeito dos ritmos, veja-se o capítulo 4 (1449 a 21-28).
316
O parágrafo como um todo defende a adequação do metro heróico (o hexâmetro datílico) à épica com
argumentos bastante semelhantes aos usados no capítulo 4 para explicar o desenvolvimento dos gêneros:
sucessivas experiências, bem sucedidas ou não, revelam e fixam a natureza própria do objeto e dos componentes
que lhe são adequados. No caso, o metro heróico se revelou o mais adequado à natureza da épica.
317
Cf. nota 3 do capítulo 3.
115

Na tragédia é necessário produzir o espantoso, mas o irracional, principal


fonte do espantoso, é mais bem admitido na epopéia, porque não se têm os olhos
sobre os agentes. Os fatos que envolvem a perseguição de Heitor pareceriam
ridículos em cena – os guerreiros gregos parados, sem o perseguir, Aquiles que lhes
acena com a cabeça318 – mas na épica isso passa despercebido. E o espantoso é
agradável. Uma prova disso é que todos, quando narram, acrescentam algo para
agradar.
Foi principalmente Homero quem ensinou os outros poetas a dizer mentiras
como se deve. Trata-se do paralogismo (falso raciocínio). Pois quando a um certo
evento segue-se sempre outro, se este outro ocorre, os homens pensam que o
primeiro também ocorreu. Mas isso é falso. Por isso, se o primeiro é falso mas, se
fosse verdadeiro, necessariamente o outro também seria, deve-se explicitamente
afirmar esse segundo, pois, sabendo-o verdadeiro, nossa mente raciocina em falso
que o primeiro também é 319. Exemplo disso é a cena do banho 320.

318
Ilíada, XXII, v.206 et seq.. O mesmo trecho é apresentado no capítulo 25 (1460 b 27)
319
O trecho é de sintaxe bastante intrincada e apresenta várias versões entre os tradutores, e mesmo várias
versões entre as edições críticas. Todas concordam, entretanto, quanto à reconstrução do argumento, que a
versão proposta respeita em sua integridade. As dúvidas que o trecho poderia suscitar devem ser dirimidas com o
recurso às Refutações Sofísticas. Nessa obra Aristóteles enumera sete tipos de paralogismo (falso raciocínio –
166 b 21), sendo que o quarto tipo (paralogismo quanto ao conseqüente) é o de que se trata aqui na Poética.
Compare-se, por exemplo, a descrição desse paralogismo em 167 b 2-3 e em 1460 a 20-22:

Refutações Sofísticas
Ótan g¦r toàde Ôntoj ™x ¢n£gkhj tÒde Ï, kaˆ toàde Ôntoj o‡ontai kaˆ
q£teron e•nai ™x ¢n£gkhj

...sempre que, quando A existe, B necessariamente também existe, imaginam que,


existindo B, A também deve necessariamente existir. (tradução de Leonel Vallandro
e Gerd Bornheim (ARISTÓTELES, 1973, p. 166)).

Poética
o‡ontai g¦r oƒ ¥nqrwpoi, Ótan toudˆ Ôntoj todˆ Ï À ginomšnou g…nhtai, e„ tÕ
Ûsteron œstin, kaˆ tÕ prÒteron e•nai À g…nesqai

Pois quando a um certo evento segue-se sempre outro, se este outro ocorre, os
homens pensam que o primeiro também ocorreu

Os exemplos dados nas Refutações são claros: se chover, a grama ficará molhada, mas isso não quer dizer que,
se a grama está molhada, choveu. São eventos desse tipo que devem ser procurados na “cena do banho” (ver nota
seguinte).
320
Os comentadores divergem bastante quanto a qual trecho da Odisséia se refere o texto (visto que, como
afirma Hardy (ARISTÓTELES, 1995b, p. 87), “a cena do banho” não se refere somente ao banho de Ulisses,
mas a todo o capítulo 19) e quanto à interpretação desse trecho à luz do que foi dito a respeito do paralogismo.
Alguns se inclinam pelo episódio do estrangeiro cretense, na verdade o próprio Ulisses, que se apresenta a
116

Deve-se escolher de preferência o que é impossível mas plausível ao que é


possível mas não persuasivo; não se devem compor os argumentos com partes
irracionais – sobretudo não deve haver nada irracional. Se não for possível evitá-lo,
ele deve ser colocado fora do entrecho dramático, como, por exemplo, Édipo não
saber como Laio morreu, e nunca na própria ação, como, em Electra, os
mensageiros que narram os jogos Píticos, ou, nos Mísios, aquele que, chegando da
Tegéia à Mísia, nada diz. Dizer que sem isso o enredo teria sido arruinado é ridículo,
pois não se devem compô-los assim já do princípio. Mas se o poeta colocar coisas
absurdas no texto e fazê-lo de forma a que isso pareça razoável, admite-se até o
que é fora de propósito, uma vez que os absurdos da Odisséia relacionados ao
desembarque de Ulisses não seriam toleráveis e se tornariam gritantes se um mau
poeta os colocasse em poema. Mas o poeta no caso, por meio de outras belezas,
dissimula o absurdo e agrada. Mas é necessário se esmerar na elocução apenas
nas partes em que não há ação e que são desprovidas de caráter e de pensamento,
pois, do contrário, uma elocução muito brilhante ofusca caráter e
pensamentos 321,322,323.

Penélope, outros pela cena em que Euricléia dá banho em Ulisses e o reconhece pela cicatriz. Parece mais
natural considerar que o paralogismo se dê no segundo caso: se é Ulisses, tem a cicatriz, e o paralogismo
acontece justamente porque Euricléia raciocina o inverso, o que não é correto: se tem a cicatriz, é Ulisses. Mas o
episódio do estrangeiro cretense também é elegível. No entanto, no capítulo 16, quando se fala de um
reconhecimento por paralogismo (1455 a 12-17), alude-se também à “cena do banho”, e ali certamente a
referência é à cena de Euricléia. Ainda que seja plausível, nada obriga, porém, a considerar que a cena
mencionada no capítulo 16 seja a mesma mencionada aqui. O argumento decisivo talvez seja considerar que o
trecho fala de mentiras contadas pelo poeta que não chegam a comprometer a lógica da narrativa. No caso do
cretense, quem é enganada é antes Penélope e a estrutura da narração não exige que o público se deixe enganar
com ela, pede apenas, se percebido o paralogismo, que ele seja atribuído a Penélope. Mas no caso de Euricléia, o
paralogismo faz parte da própria estrutura da narrativa.
321
Uma recomendação semelhante foi feita aos oradores na Retórica (1418 a 13 et seq.), mas lá não se tratava de
opor elocução a ação, caráter e pensamento, mas sim de recomendar não fazer uso de entimemas em partes que
procurassem despertar os sentimentos dos ouvintes ou em que fosse necessário fazer uma caracterização ética.
Mas os motivos apresentados na Retórica para a não concorrência entre entimemas, sentimentos e caráter são
igualmente válidos aqui: todos os movimentos simultâneos tendem a se cancelar mutuamente, parcial ou
completamente (1418 a 14-15). É significativo que o verbo aphanizô (‘ofusca’) seja usado tanto na Retórica
(1418 a 15) quanto aqui, em 1460 b 1.
322
É bastante razoável a hipótese de certas traduções, que articulam claramente esse último período (‘Mas é
necessário se esmerar...’) com o final do anterior. O desembarque de Ulisses talvez seja um exemplo de esmero
na elocução justamente para valorizar um trecho que, do contrário, teria seu caráter absurdo muito mais
evidenciado. Se for isso, o verbo hêdunô, em 1460 b 2 (‘agrada’), tem um sentido preciso: o poeta faz uso
daquela, entre as partes da épica, que é considerada um ornamento. Como a épica não tem nem a melopoiia
(canto) nem a opsis (espetáculo), considerados como ornamentos no capítulo 6, resta fazer uso da elocução
(lexis), que lhe garante a linguagem ornamentada.
323
A respeito desse preceito final, veja-se a nota 11 do capítulo 9.
117

25324

A respeito dos problemas e de suas soluções, quantas e quais são suas


espécies, o assunto se tornaria claro a quem o examinasse da forma que se segue.
Uma vez que o poeta realiza a mímese assim como o pintor ou qualquer outro
artista de imagens 325, é necessário que ele a realize sempre de uma destas três
maneiras: ou ele realiza a mímese das coisas tais como elas eram ou são, ou das
coisas tais como dizem que elas são e é opinião geral que sejam 326, ou das coisas
tais como elas deveriam ser. E isso é proferido por meio de uma elocução na qual há
termos raros, metáforas e diversas afecções da linguagem 327, pois concedemos isso
aos poetas. Além desses pontos, deve-se considerar que a correção na arte poética
não é a mesma que na arte política, ou em qualquer outra arte. Da própria arte
poética, dois são os erros: há o erro segundo ela mesma e há o erro por acidente.
Se o poeta escolheu corretamente o objeto de sua mímese e não a realizou bem por
incapacidade, o erro é da arte poética. Mas se a escolha não foi correta e foi feita a
mímese de um cavalo com ambas as patas direitas lançadas à frente, o erro diz

324
Esse longo capítulo, a respeito dos problemas e de suas soluções, é considerado pelos comentadores um
resumo do que seria uma obra maior, em seis livros, de Aristóteles, as Dificuldades Homéricas (aporêmatôn
homerikôn, na lista de Diógenes Laércio). Daí seu caráter truncado, por vezes de difícil tradução, dada a maneira
extremamente concisa e elíptica dos argumentos. Segundo Moraux (1951, p. 114-115), as Dificuldades
Homéricas seriam “um trabalho literário e filológico, uma espécie de comentário às passagens difíceis da obra de
Homero” (tradução nossa).
325
Da forma como o texto se apresenta, principalmente pelos pronomes tis allos (‘algum outro’, ou ‘qualquer
outro’, como traduzido) colocados antes de eikonopoios (‘artista de imagens’), é lícito supor que esse termo seja
um caso geral do qual zôgraphos (‘pintor’) seria um caso particular. A passagem de zôgraphos a eikonopoios
seria uma espécie de amplificação, o que, inclusive, dá consistência lógica ao trecho, situando a comparação
entre o poeta e o pintor em um âmbito mais geral. Entretanto, a tradução mais direta de eikonopoios é
‘estatuário’. ‘Artista de imagens’ é um termo que surge de uma leitura excessivamente etimológica. Todas as
traduções consultadas adotam essa leitura etimológica, sem exceção. Algumas até extrapolam: Bywater, por
exemplo, verte o termo por “maker of likenesses” (ARISTÓTELES, 1995a, p. 2336).
326
A segunda das possbilidades de mímese consegue constituir maior unidade entre seus membros (hoia phasin:
‘dizem que são’, por um lado, e dokei: ‘é opinião geral’ ou ‘parece que é’, por outro) se se considera dokei como
se referindo à opinião geral, à doxa, e não à aparência que a coisa tem (que é outro sentido possível para o verbo
dokeô). Nem todas as traduções, entretanto, consideram assim, e vertem dokei por “semblent” (Hardy, Lallot,
Gernez, Magnien), “parecem” (Bruna e Eudoro de Sousa). As traduções para o inglês consultadas, sem exceção,
não incorrem em tal erro e vertem o termo por “thought to be” (Bywater, Butcher e Else) ou “think to be the
case” (Halliwell). De fato, o restante do capítulo nunca faz referência à aparência, seja como origem da crítica,
seja como sua solução, mas a doxa é explicitamente citada em 1461 b 10.
327
A tradução é literal: pathê tês lexeôs. A expressão poderia comportar alguma dificuldade, mas a seqüência do
capítulo traz, após se referir aos termos raros e à metáfora, problemas de prosódia, diérese (traduzido como
‘correta divisão’), anfibolia (duplicidade de sentido) e caráter da elocução. Essas seriam algumas das afecções de
que o texto trata.
118

respeito a cada arte particular, como por exemplo à medicina, ou a outra arte
qualquer 328, e não à própria arte poética. Assim sendo, é necessário solucionar as
censuras contidas nos problemas examinando-as tendo em vista essas
considerações.
Primeiro, aquilo que diz respeito à própria arte. Se coisas impossíveis foram
colocadas em poema, houve erro. Mas o procedimento é correto se atinge a
finalidade própria da arte (a finalidade já foi dita 329), se assim essa parte da obra, ou
outra, se torna mais surpreendente 330. Um exemplo é a perseguição de Heitor. Se,
entretanto, fosse possível que a finalidade subsistisse também de acordo com as
regras da arte em questão, o procedimento não seria correto. Pois, se possível, não
se deve errar de maneira nenhuma. Além de se poder responder dessa maneira,
deve-se observar de que classe é o erro: é dos que dizem respeito à arte ou é dos
que dizem respeito a algo acidental? Pois desconhecer que o cervo fêmea não tem
cornos é menos importante que pintá -lo de maneira não mimética.
Se, além desses pontos, se censurar que o que foi mimetizado não é
verdadeiro, deve-se solucionar a questão dizendo que o objeto foi mimetizado como
ele deveria ser, tais como os homens que o próprio Sófocles dizia colocar em
poema, enquanto Eurípedes dizia colocá-los tais quais são. Se nenhuma dessas
duas maneiras servir, deve-se solucionar a questão afirmando ‘dizem que é assim’,
como no caso das coisas a respeito dos deuses. Pois provavelmente não adianta
dizer que é melhor, nem que é verdade, mas, se a questão for como é para
Xenófanes 331, deve-se recorrer ao ‘dizem que é assim’. Outras críticas, talvez,
devem ser respondidas dizendo-se não que os objetos estão mais bem
representados, mas que era assim, como por exemplo, a questão a respeito das
armas, “ e)/gxea de/ sfin o)/rq` e)pi\ saurwth=roj” 332, pois esse era o costume, como
ainda hoje, entre os Ilírios.

328
Foi adotada a excisão de Duentzer.
329
Cf. capítulos 6 (1449 b 26, 1450 a 30-31), 14 (1454 a 4), 16 (1455 a 17) e 24 (1460 a 12, 1460 a 17).
330
O termo tem o mesmo sentido que em 1454 a 4 e em 1455 a 19, onde ele aparece ligado ao efeito de surpresa
que acompanha e peripécia e / ou o reconhecimento. É mais um momento do tratado em que se relaciona a
surpresa à finalidade da tragédia (ou da epopéia).
331
Xenófanes é conhecido por seu ceticismo quanta às coisas divinas.
332
Ilíada, X, 152-153. Literalmente ‘lanças (fincadas) retas sobre a base de ferro’.
119

Quanto a considerar se algo foi dito por alguém ou uma ação foi praticada
com acerto ou não, não se deve examinar a questão tendo em vista apenas a ação
ou a fala em si mesmos, observando se há virtude ou vício, mas deve-se ter um vista
também quem realizou a ação ou disse algo, em relação a que, ou quando, ou para
quem, ou com que finalidade, por exemplo, se ação ou a fala têm por finalidade
ensejar um grande bem ou evitar um grande mal333.
Quanto ao que diz respeito à elocução, é necessário a quem examina
solucionar, por exemplo, por meio de um termo raro o “ou)rh=aj me\n prw=ton” 334:
provavelmente não se quer dizer ‘os mulos’, mas ‘os guardas’335; também o que se
diz com respeito a Dólon, “ o(/j r(`h)= toi ei)=doj e)/hn kako/j” 336, não se quer dizer
que ele tem o corpo disforme, mas que a face é feia, pois os cretenses chamam ‘de
boa figura’ aos que têm a face bem proporcionada 337. Também é o caso do
“zwro/teron de\ ke/raie” 338: não se quer dizer para servir o vinho sem mistura, como
se fosse para um beberrão, mas servi-lo rapidamente.
Diz-se por metáfora, por exemplo, “todos, deuses e homens, dormiam a noite
toda”, e, ao mesmo tempo, se afirma: “quando lança os olhos para a planície de

333
O parágrafo se situa em contexto eminentemente ético e ecoa os preceitos do particularismo moral
aristotélico: a ação deve ser examinada tendo em vista as circunstâncias em que ela ocorre. Alguns tradutores,
equivocadamente, a nosso ver, deixam-se desviar pelo kalôs de 1461 a 4 e vertem a primeira frase como se ela se
referisse a um certo escopo estético. Por exemplo, Butcher (“Again, in examining whether what has been said or
done by some one is poetically right or not” (ARISTÓTELES, s.d., ad loc.)) e Else (“In considering whether
something has been artistically said or done by somebody” (ARISTÓTELES, 1994, ad loc.)).
334
Ilíada, I, 50. Na tradução de Carlos Alberto Nunes (HOMERO, 1996, p. 44): “primeiramente [Apolo] investiu
contra os mulos e os cães velocíssimos”.
335
Rostagni (em quem nos baseamos para os comentários desse trecho relativo à elocução) reconstrói qual teria
sido o problema: “por que Apolo, devendo vingar o ultraje feito pelos gregos a Crise, começou propriamente a
atacar as mulas? (significado normal de oureus?)” (ARISTÓTELES, 1945, p. 160-161, comentário às linhas 9-
15) (tradução nossa). O estudioso italiano considera que a resposta de Aristóteles é combatida com razão em um
dos escólios da Ilíada, e que poderia ser mais bem aproveitada como resposta a X, 84 (“andas atrás de algum
mulo, ou, quiçá, de um dos teus camaradas?”, tradução de Carlos Alberto Nunes (HOMERO, 1996, p. 170)),
onde o termo aparece novamente. Mas ressalva que X, 84 é um verso talvez espúrio.
336
Ilíada, X, 316: “certamente feio quanto à figura, porém velocíssimo”. O trecho citado é apenas “certamente
feio quanto à figura”.
337
O problema se coloca quando se tem a frase inteira, transcrita na nota anterior: como Dólon pode ser
velocíssimo se tinha a ‘figura’ feia? Para um ateniense, ‘figura’ (eidos) diz respeito principalmente ao corpo. A
solução se dá quando se retém, para eidos, o sentido que lhe atribuem os cretenses: eidos seria, no caso, face, e
não corpo. Dólon teria a face feia, e não o corpo.
338
Ilíada, IX, 203. Aquiles manda que Pátroclo prepare o vinho para os convidados: “Pátroclo, põe sobre a mesa
uma cratera e prepara vinho bem forte; depois, uma taça a cada um oferece” (tradução de Carlos Alberto Nunes
(HOMERO, 1984, P. 156)). A tradução de Carlos Alberto Nunes não faz conta da sugestão de Aristóteles.
120

Tróia, [admira-se] do som das siringes”339, pois ‘todos’ foi dito, por metáfora, no lugar
de ‘muitos’, visto que o ‘todos’ é uma espécie de ‘muitos’. Também o “é a única” está
dito por metáfora, pois aquilo que é mais notório é único 340.
Segundo prosódia se resolve, como Hípias de Taso fez, o “di/domen de\ oi(
eu)=xoj a)re/sqai ” [“dar-te-emos ganhar glória imensa]341 e o “to\ me\n ou(=
katapu/qetai o)/mbr%” [“que a chuva estragar não consegue”] 342. Por meio de uma
correta divisão se resolve a frase de Empédocles “ai=)ya de\ qnh/t` efu/onto, ta\ pri\n
ma/qon a)qa/nat` ei)=nai, zwra/ te pri\n ke/krhto” [‘depressa nascem mortais os que
antes haviam aprendido a ser imortais e puros antes de serem misturados’]343. Por
anfibolia se resolve o “decorreu a maior parte da noite”, pois ‘a maior parte’ é
ambíguo 344. Por referência ao uso da linguagem: ao vinho misturado chamam vinho,
por isso se diz “cnêmides de recém forjado estanho”. Também os que trabalham o
ferro são chamados de forjadores de bronze, por isso se diz que Ganimedes serve
vinho aos deuses, sendo que esses não bebem vinho. Mas isso também poderia ser
segundo metáfora.
É necessário, sempre que um termo pareça significar algo de contraditório,
examinar quantos poderiam ser seus significados na frase em questão. Por exemplo,
em “por ela foi retida a lança de bronze” 345, quantos são os significados possíveis

339
Aristóteles parece ter feito uma pequena confusão, pois, no lugar dos primeiros versos do capítulo X, colocou
os primeiros versos do capítulo II e confrontou-os com os versos 10 e 11 do capítulo X. O lapso não compromete
o entendimento da questão. O problema é: como, se todos dormiam, podia haver música em Tróia?
340
A frase completa, presente tanto na Ilíada (XVIII, 489) quanto na Odisséia (V, 275), seria, segundo a
tradução de Carlos Alberto Nunes, “e que entre todas é a única que não se banha no oceano” (HOMERO, 1997,
p. 83). Faz referência à Ursa Maior. Deve-se observar a analogia com o exemplo anterior para entender a
questão: assim como no exemplo anterior o ‘todos’ é uma espécie de ‘muitos’, aqui o ‘única’ é uma espécie de
‘mais notória’.
341
Trata-se do verso 297 do capítulo XXI da Ilíada. A tradução é de Carlos Alberto Nunes (HOMERO, 1996,
p.324). Rostagni (ARISTÓTELES, 1945, p. 162) considera que o verso, na versão da Ilíada de que Aristóteles e
Hípias dispunham, estaria no princípio do capítulo II, na passagem do sonho enganador de Zeus. Seria um
problema para os críticos moralistas admitir que Zeus pudesse ser enganador, e a solução seria, em vez de ler
didomen (‘dar-te-emos’), acentuado sobre a primeira sílaba, que se lesse didomen, acentuando-se a segunda, de
forma a que a responsabilidade pelo caráter enganador do sonho recaísse sobre o próprio sonho, e não mais sobre
Zeus.
342
Ilíada, XXIII, 328, tradução de Carlos Alberto Nunes (HOMERO, 1996, p. 350). A passagem é obscura. A
suposição mais aceita seria mudar o ou(= (pronome relativo) para ou) (advérbio de negação).
343
Aqui se trata de decidir a qual parte da frase se liga o vocábulo zôra, ou seja, em qual ponto a frase se divide.
344
Ilíada, X, 252.
345
Ilíada, XX, 272 (os códices, entretanto, trazem lança ‘de freixo’, e não ‘de bronze’, o que não altera a
natureza do comentário aristotélico). A lança de Enéas teria perfurado duas das camadas do escudo de Aquiles,
121

para a frase ‘ser impedida por ela’, como alguém compreenderia de preferência a
passagem, de um certo modo ou de outro. É o contrário do que diz Glauco: alguns,
sem lógica alguma, partem de um juízo pré-concebido, argumentam após terem
condenado e, como se o poeta tivesse dito o que a eles parece, censuram se é o
contrário do que pensam. Este é o caso quanto a Icário. Presume-se que ele é
lacedemônio: é então absurdo que Telêmaco, tendo ido à Lacedemônia, não o tenha
encontrado 346. Mas provavelmente o caso é como os Cefalênios dizem: eles
sustentam que Odisseu contraiu núpcias junto a eles, e que é Icádio, e não Icário.
Esse problema se dá provavelmente por um erro.
De maneira geral, o impossível deve ser justificado tendo-se em vista a
poesia, ou o melhor, ou a opinião geral. Tendo-se em vista a poesia, é preferível o
impossível convincente ao possível que não convence. * *347 serem tais como Zêuxis
os pintou, mas ele os fez melhores 348, pois o paradigma deve superar. As coisas
irracionais têm sua justificativa na opinião aceita: assim se pode até dizer, por vezes,
que não são irracionais: pois é provável que ocorram coisas contra a probabilidade.
Se algo foi dito de maneira contraditória, deve-se examiná-lo assim como nas
refutações sofísticas: observar se a afirmação tem o mesmo teor, se foi dita em
relação ao mesmo objeto e da mesma maneira, de forma a examinar se o poeta
entrou em contradição em relação ao que ele mesmo disse ou em relação ao que
diria um homem sensato 349.

tendo parado na terceira. Mas o trecho diz que ela foi retida pela camada de ouro, a mais externa. Como poderia
ter parado na terceira e ter sido detida pela primeira? Esse é o problema que se coloca. Aristóteles sugere que a
solução esteja em considerar os vários significados para ‘reter’: a lança pode ter efetivamente parado no terceira
camada, mais teve seu ímpeto amortecido (esse seria o significado de ‘reter’ que tornaria o trecho coerente)
principalmente pela primeira.
346
Icário é o pai de Penélope, e portanto avô de Telêmaco. Como Telêmaco pode ter ido à Lacedemônia e não
ter encontrado o próprio avô materno? Aristóteles assume a solução que se segue.
347
Nesse ponto os editores vêem uma lacuna no texto, para a qual Gomperz (cf. aparato crítico da edição de
Kassel (ARISTÓTELES, 1988, p. 46)) sugeriu, a partir da versão árabe, kai isôs adunaton. A tradução resultaria
‘e talvez seja impossível que os homens sejam tais como Zêuxis...’.
348
O texto não coaduna com 1450 a 27 (capítulo 6), onde se diz que a pintura de Zêuxis, comparada à de
Polignoto, não tem caráter.
349
O homem virtuoso – spoudaios (que se confunde com o homem prudente – phronimos), na ética aristotélica, é
o cânon e a medida dos atos éticos (Ética Nicomaquéia, 1113 a 33). Poder-se-ia querer enxergar nessa passagem
talvez um eco dessa doutrina, mas não parece ser o caso. O phronimos entra aqui apenas como alguém dotado de
um certo bom senso, que não procede tal como Glauco descreve (1461 b 1-3). A tradução do termo por ‘sensato’
evita carregar o texto de ressonâncias éticas. A grande parte das traduções adota esse ponto de vista. Halliwell
diverge, mas por outros motivos. Os manuscritos trazem phronimon em vem de phronimos, termo que não
122

Mas é correta a censura por irracionalidade ou por perversidade quando, não


sendo de maneira nenhuma necessário, se fizer uso do irracional – como Eurípedes,
em Egeu – ou de crueldade – como, no Orestes, a crueldade de Menelau.
As censuras, então, se reportam a cinco espécies, pois supõem ou coisas
impossíveis, ou coisas irracionais, ou coisas malévolas, ou coisas contraditórias ou
coisas contrárias à correção da arte. E as soluções devem ser procuradas nos itens
elencados. São doze.

aparece senão em uma versão mais recente do manuscrito A e na versão Árabe. Halliwell mantém a tradição dos
manuscritos e traduz “something that can be sensibly assumed” (ARISTÓTELES, 1987, p. 63).
123

26

Alguém poderia se questionar qual das duas, a mímese épica ou a mímese


trágica, é a melhor350. Se a menos vulgar é a melhor, e é menos vulgar a que se
dirige aos melhores espectadores, é evidente 351 que aquela que mimetiza tudo 352 é
vulgar353. De fato, é por supor que os espectadores não seriam capazes de
compreender se os atores não enfatizarem o ponto que esses se agitam em

350
A nosso ver, é equivocado o comentário de Eudoro de Sousa:

O problema, a que Aristóteles dedica o último capítulo da Poética, já fora de certo modo
enunciado no cap. IV (49 a 6, § 19): ‘Examinar, depois, se nas formas trágicas (a poesia
austera (= tragédia + epopéia)) atinge ou não atinge a perfeição (do gênero) .... isso seria
outra questão’. Por outras palavras: no gênero ‘poesia austera’, qual é a espécie melhor e
mais perfeita? Tragédia ou epopéia? (ARISTÓTELES, 1998a, p. 193).

O trecho a que Eudoro remete (1449 a 6) diz respeito apenas e especificamente à tragédia. Sua versão do
tragôidias de 1449 a 7 por “formas trágicas” e a assunção de que a expressão se refira à “poesia austera”
extrapolam, com boa dose de certeza, o sentido do original.
351
Algumas edições adotam a emenda de Vahlen para o trecho. Em 1461 b 28, no lugar onde os manuscritos
trazem um obscuro deilian, Vahlen propôs aei, lian. Os advérbios, entretanto, encaixam-se mal na estrutura da
argumentação, principalmente o segundo. Parece difícil aceitar que uma expressão controversa como hapanta
mimuomenê (‘que mimetiza tudo’) possa trazer algum esclarecimento ‘bastante evidente’ (lian dêlon).
Confronte-se, por exemplo, o caráter assertivo que a adoção da emenda introduz no trecho com o cuidado com
que é feita a última afirmação do parágrafo, com o verbo apropriadamente no optativo. As edições que adotam a
correção de Vahlen fazem, então, o advérbio referir-se a phortikê, o que tampouco parece plausível. A tradução
proposta omite os advérbios.
352
‘Tudo mimetiza’ traduz hapanta mimoumênê, expressão que traz alguma dificuldade de interpretação.
Rostagni, em nota, traduz por “aquela que imita tudo” e acrescenta: “isto é, não apenas a ação (como a rigor
deve fazer a poesia, enquanto é mimêsis praxeôs), mas os elementos materiais, gesto, voz, aspecto, etc...”
(ARISTÓTELES, 1945, p. 171) (tradução nossa). O comentário de Rostagni não encontra apoio, entretanto, na
seqüência do texto, nem na doutrina da Poética em geral. Dupont-Roc e Lallot, por sua vez, se questionam como
um tratado que propõe ser a mímese o elemento unificador das artes pode dirigir uma objeção ao fato de que
uma determinada manifestação artística ‘mimetiza tudo’. Para os dois estudiosos franceses, o paradoxo se
explica se supusermos para o verbo mimeisthai, aqui, um sentido próximo ao que seria seu sentido originário,
‘imitar pelo gesto’ (ARISTÓTELES, 1980, p. 406, nota 3). ‘Imitar tudo’ seria, então, gesticular com exagero ou
figurar em demasia aspectos da cena. O que é importante notar é que o excesso de mise-en-scène dos atores é
imputado à falta de perspicácia do público e não a uma suposta falha intrínseca da atuação. O ponto central da
questão não é imitar tudo, gesticular demais, mas fazê -lo na suposição de que o público, sem esses exageros, não
entenderia de todo o que se passa no palco. No parágrafo seguinte, quando se argumenta contra a crítica, esse
ponto parece ser esquecido (cf. nota 7).
353
Da forma como é apresentado, o silogismo causa certa estranheza. A conclusão mais natural seria:
1. a menos vulgar é a melhor
2. a menos vulgar se dirige aos melhores espectadores
3. a melhor se dirige aos melhores espectadores
A conclusão, entretanto, é outra: aquela que tudo mimetiza é a vulgar. Essa conclusão só se apresentaria como
necessária e como fecho natural do silogismo à custa de outra premissa, que se deve supor implícita no texto,
(pois só assim seria possível entender o dêlon hoti (‘é evidente que’) que introduz a apódose): aquela que tudo
mimetiza se dirige um público vulgar. De fato, essa premissa se explicita no exemplo do flautista, apresentado
como paradigma para os maus atores, mas está dada a posteriori. A argumentação como um todo, entretanto, não
parece se deixar objetar por esse encaminhamento um tanto oblíquo.
124

demasia – como por exemplo os flautistas medíocres, rodopiando se é caso de


imitarem um disco, ou empurrando o corifeu quando tocam Cila354. Se esse é o caso,
então desse tipo é a tragédia, a exemplo inclusive de como os primeiros atores
tinham em consideração os posteriores a eles (de fato, Minisco chamava Calípedes,
que exagerava, de macaco, e essa era a opinião também a respeito de Píndaro).
Estes últimos estão para aqueles assim como a arte da tragédia como um todo
estaria para a epopéia. Diz-se, então, que a epopéia é para os espectadores
distintos, que não precisam dessas figurações, enquanto a tragédia seria para os
medíocres. Assim, se é vulgar, é evidente que seria a pior 355.
Primeiro, a acusação não alcança a arte poética, mas a arte do ator, visto que
também o rapsodo pode sobrecarregar a gesticulação, como é o caso de Sosístrato,
mesmo participando de concursos, algo que Mnasíteo de Oponte fazia. Depois, nem
toda movimentação deve ser rejeitada (se não, nem haveria a dança), mas somente
a dos atores medíocres, justamente o que era censurado não somente em
Calípedes, mas também em outros, atores contemporâneos, como se imitassem
mulheres não livres. Além disso, mesmo sem encenação a tragédia perfaz o que lhe
é próprio, assim como a epopéia. De fato, suas qualidades evidenciam-se por meio
de uma simples leitura 356. Se a tragédia, então, quanto aos outros aspectos, é
melhor, não necessariamente deve-se atribuir esse defeito a ela.

354
Cila, provavelmente, é o ditirambo citado em 1454 a 30 (veja-se a nota 6 do capítulo 15) em que Ulisses
lamenta a perda dos companheiros. Supõe-se que o flautista (na verdade, o auleta, instrumentista do aulos, não
tanto parecido com a flauta, mas antes com a clarineta), para imitar Cila, o monstro marinho, empurrasse o
corifeu.
355
A questão a respeito da superioridade da tragédia ou da epopéia é abordada primeiro com a menção à crítica
que se dirige à primeira. A questão já havia sido abordada por Platão (Leis, 658 et seq.), mas, no caso, a epopéia
foi considerada superior. Um ponto de contato entre a crítica que Aristóteles rejeita e a tese platônica é a
assunção de que a qualidade do gênero depende, de alguma forma, da qualidade do público que o assiste. De
fato, em Platão, imagina-se uma competição aberta entre todos os gêneros para decidir qual deles proporcionaria
o maior prazer, e o Ateniense sustenta que o prêmio dependeria do público. Se fosse um público infantil, a
preferência seria para o teatro de marionetes; se fosse um público composto de crianças já de certa idade,
ganharia a comédia; a tragédia ganharia entre os jovens, as mulheres educadas e entre a maioria do público; a
epopéia, representada pela Ilíada, pela Odisséia e por Hesíodo, ganharia entre os mais velhos. E qual seria o
ganhador de fato, pergunta-se o Ateniense, e responde: o gênero escolhido pelos mais velhos, não só porque
esses têm mais experiência, mas também porque não basta que o gênero proporcione prazer a qualquer um, ele
deve proporcionar prazer a quem se conta entre os melhores, é educado e possui a virtude. Aristóteles, na crítica
que pretende rejeitar, incorpora a identificação entre a qualidade do gênero e a qualidade do público, e é
sugestivo pensar que ele tenha em mente Platão, ainda que isso não esteja explícito no texto. Esteja a questão
referida ou não a seu mestre, o importante é saber como Aristóteles responde a ela e se essa resposta é efetiva.
Veja -se a nota seguinte.
356
Os três argumentos apresentados no parágrafo (a. a censura não atinge a tragédia, mas o ator; b. nem toda
gesticulação deve ser recriminada, mas somente a dos atores medíocres e c. a tragédia não precisa da encenação
para atingir seu fim e mostrar suas qualidades, apenas a leitura basta) pretendem-se soluções para a crítica
125

Em seguida, porque tem tudo quanto tem a epopéia (é possível inclusive fazer
uso do mesmo metro) e tem ainda uma parte de não pouca importância, a música e
o espetáculo 357, que fazem os prazeres mais vivos. Além disso, ela também tem
vivacidade tanto na leitura, quanto em cena. Além do mais, atinge a finalidade da
mímese em uma extensão menor (pois o prazer é mais concentrado que o prazer
diluído em um tempo muito longo; por exemplo, se o Édipo, de Sófocles, fosse
colocado em tantas palavras quanto a Ilíada358). Além do mais, a mímese épica é

dirigida à tragédia, mas apenas c. é efetivamente dirimente, porque desfaz a crítica em seu ponto crucial, a
qualificação do gênero baseada na qualidade do público. O texto parece esquecer que o exemplo dos atores foi
introduzido no texto, ao que tudo indica, apenas como evidência da falta de compreensão (e conseqüentemente,
da vulgaridade) do público: hôs gar ouk aisthanomenôn an mê autos prosthêi, pollên kinêsin kinountai (‘De fato,
é por supor que os espectadores não seriam capazes de compreender se os atores não enfatizarem o ponto que
esses se agitam em demasia’ – 1461 b 29-30; cf. nota 3). Se os atores, por obra do acaso, deixassem de fazer os
gestos exagerados, nem por isso o público deixaria de ser vulgar. Ainda que se pesem algumas opiniões
contrárias (veja-se, por exemplo, Dupont-Roc e Lallot, que consideram que Aristóteles responde à clássica
questão da superioridade da tragédia em comparação à epopéia da forma “tão rigorosa quanto possível”
(ARISTÓTELES, 1980, p. 405)), o argumento aqui, como em outros pontos da Poética, não se deixa apreender
com toda a transparência que seria desejável. Além disso, a resposta de Aristóteles à crítica dirigida à tragédia
(que talvez seja uma resposta à argumentação platônica nas Leis – veja-se nota anterior), ao se basear no fato de
que a atuação não faz parta da essência da tragédia, deixa de considerar que a evolução do gênero talvez tenha
incorporado à sua constituição concessões feitas ao público e essas concessões, se incorporadas, legitimariam a
crítica baseada na vulgaridade do público. Que o olhar do espectador, de alguma forma, influencia a composição
trágica não é algo alheio às teses aristotélicas. Veja-se, por exemplo, que alguns poetas procuram fazer tragédias
de fim duplo com o intuito de agradar os espectadores (capítulo XIII, 1453 a 30-39), bem como o limite de
extensão das tragédias parece levar em conta, na prática, a percepção do público (capítulo VII, 1451 a 7; cf.
também a nota 11 do mesmo capítulo). Claro que nesse dois momentos do texto não se diz que a influência do
público chegou a ser significativa, pelo contrário: Aristóteles rejeita a tragédia de fim duplo, bem como qualquer
preceito relativo à extensão que seja alheio à própria natureza da ação. Entretanto, Aristóteles não chega a
considerar a hipótese de que a tragédia não tenha conseguido se desenvolver até onde permitiria sua natureza (ou
pior, teria se desvirtuado) por concessões feitas ao público. Colocar a questão nesses termos certamente
desautorizaria o contra-argumento aristotélico tal como ele se apresenta e levaria a crítica à tragédia a um outro
âmbito: se o público é vulgar, isso pode estar de alguma forma incorporado à própria configuração do gênero, e
não bastaria dizer que a crítica se dirige aos atores, e não à tragédia, para reabilitá-la. É claro que essa outra
crítica também pode ser dissolvida recorrendo-se não à distinção entre o que é essencial (a tragédia, com seu
enredo) e que é acidental (a encenação), mas recorrendo-se a distinção entre o que está em potência (a tragédia é
potencialmente melhor que a epopéia) o que está em ato (a tragédia, tal como ela se configurou, é vulgar).
Aristóteles, entretanto, não procede assim. Essas considerações talvez sirvam como sugestão de esclarecimento
de um ponto obscuro do capítulo IV, em que Aristóteles se pergunta se a tragédia já atingiu a maturidade quanto
a suas espécies. Segundo ele, essa maturidade poderia ser julgada ‘em si mesma ou no que diz respeito às
apresentações’ (1449 a 7-9; cf. nota 14 do capítulo 4). Parece razoável supor que esses dois pontos da Poética se
situem em um mesmo âmbito de discussão, âmbito que talvez seja o mesmo da questão colocada por Platão nas
Leis.
357
É de Spengel a sugestão de se retirar kai tas opseis (‘e o espetáculo’) de 1462 a 16. Há razões para tanto, já
que boa parte da introdução do capítulo foi dedicada a resolver a crítica à qualidade da tragédia por meio de se
atribuir à encenação um caráter não necessário. Também há razões gramaticais: ‘parte’, em ‘parte de não pouca
importância’ (tradução de ‘meros’) está no singular (mas a incongruência se resolve se considerarmos o termo
sem seu sentido técnico) e o mesmo ocorre com o pronome relativo hês, em 1462 a 16. Mas canto e espetáculo
foram mencionados em conjunto no final do capítulo 6 (1450 b 16-21) como elementos que acrescentam
prazeres à tragédia. Parece ser o mesmo caso aqui.
358
Aqui parece haver um conflito com o preceito a respeito da extensão apresentado no capítulo 7: ‘é mais belo,
segundo a extensão, sempre o maior limite possível até onde permitir a clareza do todo’. Deve-se observar,
entretanto, que, mesmo no capítulo 7, o preceito final a respeito da extensão da tragédia (‘Para definir de uma
126

menos unitária (um sinal disso é que, qualquer que seja a épica, dela surgem
numerosas tragédias), de forma que, tendo sido feito um enredo uno, ou ele é
exposto brevemente e se mostrará mesquinho, ou ele acompanha a amplidão do
metro 359 e se mostrará ralo 360. Quero dizer, por exemplo, se a épica fosse composta
de muitas ações, tantas quantas são as partes tais quais tem a Ilíada ou a Odisséia,
partes que têm, elas mesmas, certa extensão. Entretanto esses poemas foram
compostos tão bem quanto se pode, e são, tanto quanto possível, mímese de uma
ação una 361.
Se então por todos esses itens a tragédia se distingue, e também, além disso,
por sua eficácia como arte (pois é necessário que elas proporcionem não um prazer
qualquer, mas o que foi mencionado), é evidente que, atingindo melhor seu fim, é
superior à epopéia.
A respeito então da tragédia e da epopéia, delas mesmas, das espécies e das
partes (quantas são), por que diferem, e a respeito das causas de serem bem

maneira simples, terá um limite suficiente a extensão na qual se dê, em eventos ocorrendo sem solução de
descontinuidade segundo o necessário ou o provável, a mudança do infortúnio para a fortuna, ou da fortuna para
o infortúnio’) parecia extrapolar o domínio de validade da expressão ‘sempre o maior limite possível até onde
permitir a clareza do todo’ (veja-se nota 15 do capítulo 7)
359
Ou seja, é tão amplo, como enredo, quanto o hexâmetro é amplo comparado a outros metros (cf. capítulo 24,
1459 b 34-35).
360
Lucas (ARISTÓTELES, 1998b, p. 256) chama a atenção para o fato de que esse termo, junto com o ‘diluído’
logo antes (kekramenon, 1462 b 1), provavelmente é uma metáfora da diluição do vinho tal como era costume os
gregos realizarem. A tradução proposta procura manter a metáfora.
361
Para essa parte final do parágrafo, vale o comentário de Lucas:

“At this point A. seems to have become aware that he had said things not easy to reconcile
with his previous praise of Homer's unity (59b 2), and he tries to escape from the
inconsistency by claiming that, though the Iliad and Odyssey contain many pra/ceij, they
represent what is essentially a single pra=cij. The root of the trouble is that it is impossible
to draw a firm line between the me/roj which is a subordinate episode and the me/roj
which is a potential pra=cij”. (ARISTÓTELES, 1998b, p. 256).

Neste ponto Aristóteles parece ter-se dado conta que disse coisas difíceis de conciliar com
seu precedente elogio da unidade em Homero (59 b 2), e ele tenta escapar da inconsistência
alegando que, embora a Ilíada e a Odisséia contenham muitas praxeis (ações), elas
representam o que essencialmente é uma praxis (ação) única. A raiz do problema é que é
impossível delinear uma fronteira segura entre o meros (parte) que é um episódio
subordinado e o meros (parte) que é uma praxis (ação) em potencial. (tradução nossa)
127

sucedidas ou não, e também a respeito das críticas e suas soluções, seja suficiente
o que foi dito 362.

362
A respeito de um possível segundo livro da Poética, que versaria sobre a comédia e o iambo, veja-se a nota 2
do capítulo 6.
128

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