Pearl S. Buck - O Ano Novo PDF
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BUCK
O ANO NOVO
ROMANCE
Traduo de OCTAVIO MENDES CAJADO
2.a EDIO
EDIES MELHORAMENTOS
XI-1972
A autora agradece cordialmente a cortesia de The World Publishing Company,
permitindo a incluso de uma passagem do livro
Man's Most Dangerous Myth, de Ashley Montagu.
FICHA CATALOGRFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogao-na-fonte,
Cmara Brasileira do Livro, SP)
I. Ttulo.
71-0021 CDD-813.5
Laura estava deitada quando ouviu uma batida porta, uma batida
hesitante, de quem experimenta. Abriu os olhos e no se levantou. Sentia-se
cansadssima, e embora no tivesse relao alguma com o corpo, a fadiga do
esprito, difundindo-se, tornara-a indiferente. Repetiu-se a batida, desta feita,
mais clara. Ergueu-se e enfiou o chambre. L estava o menino. Ainda que
tivesse tentado adivinhar uma centena de vezes, no teria podido imaginar
que fosse ele. O garoto olhava mudamente para ela, trazendo naquela manh
a camisa e os cales costumeiros, as pernas nuas, os ps metidos em
sandlias de palha.
Entre, Kim Christopher, disse ela, incerta e surpreendida.
Ele entrou e relanceou os olhos sua volta.
Tenha a bondade de sentar-se.
Ela sentou-se numa poltrona e ele, na outra. A luz da janela incidia sobre
o rosto do menino e, em suas faces, ela percebeu as linhas levemente
vermelhas de um golpe. Que aconteceu com o seu rosto? perguntou.
Minha me... Ele ergueu a mo direita e imitou a bofetada.
Oh, no, arquejou ela. Ergueu-se impulsivamente da poltrona em
que estava sentada, aproximou-se dele e, estendendo a mo, alisou-lhe o
rosto. A pele era fina e suave. Este era o seu lado coreano, pensou. Por
que foi que ela se zangou?
Ele no sabia ao certo at onde iria o seu ingls. Mas fez um esforo.
Minha me... Ela... Ela... fala que eu fico com ela.
Voc quer dizer, na Casa das Flores?
Ele assentiu com a cabea.
Trabalho.
E voc quer trabalhar l?
No.
Ela contemplou-lhe o rosto tentando adivinhar-lhe os pensamentos.
Voc gosta de sua me?
Ele, obviamente, compreendia mais do que conseguia falar.
s vezes.
s vezes, repetiu ela. Ela boa para voc? Ele hesitou.
No escola.
E sua av? boa?
Ele ergueu-se de um salto e imitou uma srie de bofetadas.
Ela faz isso para mim.
O menino tornou a sentar-se e cruzou as mos sobre os jovens joelhos
ossudos. Cravou os olhos no cho, o rosto impassvel, os longos clios retos
e pretos pousados sobre as faces. Como era parecido com Chris e como era
diferente! Que seria feito dele?
E se eu o mandar aqui para a escola, Kim Christopher? tornou ela.
Ele sacudiu a cabea sua maneira decidida.
No?
Ele ergueu os longos clios.
Amrica, disse, simplesmente.
Laura suspirou, pensando no enigma daquela criana nascida demasiado
cedo para o mundo.
Meu pai, por favor, disse ele.
Eu sei, voltou ela. Eu sei, eu sei.
Levantou-se, desassossegada, e, encaminhando-se para a janela, quedou-
se a contemplar a cidade estranha. Sim, mas aquela no era uma questo que
pudesse ser resolvida por uma criana. Urgia pensar em Chris, para no falar
em si mesma. Bem, ela poderia ser posta de lado, pois em sua vida alheada
de cientista, as pessoas ficavam alm do horizonte e, em sua outra vida, em
sua vida com Chris, o que as pessoas pensavam no tinha importncia
alguma. Mas Chris, cuja vida e cuja carreira dependiam dos caprichos, dos
preconceitos, das acanhadas simpatias e antipatias de um eleitorado... que
diria este se ela levasse para casa um rapaz suficientemente parecido com ele
para iniciar uma onda de mexericos pelo Estado inteiro no, por toda a
nao! Essa onda poderia destru-lo e liquidar-lhe a vida. De todos, apenas a
criana era totalmente inocente.
Voltou-se impulsivamente, correu para ele, tomou-lhe a mo. Como
parecia pobrezinho naquelas tristes roupas que usava! Precisava arrumar-lhe
alguma coisa decente para usar. Em seguida, lev-lo-ia para almoar e lhe
daria urna boa refeio. Debaixo da pele viam-se-lhe os ossos, as costelas
perfeitamente assinaladas, recobertas apenas pela pele maravilhosa, suave,
de uma palidez de creme ddiva da sia.
Kim Christopher, vamos comprar umas roupas novas para voc.
Mostre-me uma loja.
Ela apontou o dedo para a camisa dele, sacudindo a cabea, numa
expresso desaprovativa.
Ah, exclamou o menino, iluminando-se. Empolgou-lhe a mo,
conduziu-a escada abaixo e mostrou um ponto qualquer da rua.
Roupas? perguntou ela.
Sim, sim, tornou ele com veemncia. Uma hora depois, j estava
aparelhado, com trs mudas de tudo e uma blusa carmesim para os dias de
frio.
Ponha isso, disse ela e, depois que o viu vestido, pegou as roupas
que ele usara, segurando-as com dois dedos, e atirou-as para um lado.
Isto acabou-se, disse. So trapos.
Percebeu que ele estava chocado, mas foi intransigente, e levou-o em
triunfo, orgulhosa de sua aparncia. Se Chris pudesse v-lo agora! Reportou-
se. No devia deixar-se arrebatar pelo prprio entusiasmo. verdade que ele
era belo. Mas isso era de se esperar, sendo Chris o pai e, sim, cumpria-lhe
ser generosa, sendo Soonya a me. Ali se operara, sem dvida, alguma
alquimia especial, pois ainda no vira crianas coreanas to belas como
aquela, nem sequer as crianas de sua prpria cidade natal, com as quais
crescera. No se tratava apenas de traos e de cores. Havia ainda uma graa
acrescentada, uma combinao talvez de graa e fora. Kim Christopher era
mais gracioso do que a criana americana, e mais forte do que a criana
coreana. Pensou nas suas plantas marinhas, criaturas que faziam as vezes de
pontes, na delicadeza das frondes ondulantes das algas e que, de certo modo,
se aproximavam da vida vigorosa do animal.
Ela tornou em si. Tranqilo e paciente, Kim Christopher esperava sua
frente, aguardando-lhe o julgamento.
Muito bem, disse ela. Agora voc est bonito.
Americano? perguntou ele, esperanoso.
Sim, disse ela, sincera e insincera. Muito americano aqui na Coria
mas, quando o levasse para a sua terra se chegasse a lev-lo sabia que
ele pareceria asitico. Onde, onde era o seu pas?
Vamos voltar para o hotel e almoar, decidiu.
Percebeu, no instante em que entrou na sala de jantar, que o Sr. Choe l
estava, na mesa do costume, ao p da janela. Sorriu, acenou-lhe com a mo
e, em seguida, escolheu outra mesa, onde pudesse estar a ss com Kim
Christopher. Tendo-se sentado e fazendo-o sentar-se, divertiu-se com os
olhares francamente interessados que o Sr. Choe lhes dirigia. Nem era ele o
nico. Turistas, americanos e europeus, observavam-nos, e ela quase lhes
ouvia a conversao, feita de perguntas e conjeturas. Sentia at um prazer
vagamente maternal no belo menino sentado sua frente mesinha; mas ele
no dava tento dos olhares, preocupadssimo em acompanhar-lhe os
movimentos com a faca e o garfo. O guardanapo confundiu-o at que a viu
desdobrar o seu e lev-lo aos lbios. Com efeito, ele copiava cada um dos
gestos que ela fazia, to decidido a faz-los corretamente que ela se sentiu
tocada.
Quando o Sr. Choe acabou de comer, no pde conter a curiosidade por
mais tempo e deu um jeito de passar pela mesa deles. Ali se deteve.
Como est passando hoje, minha senhora? perguntou com a
polidez habitual.
Muito bem, obrigada, disse ela. Estive ocupada numa
expedio de compras com Christopher.
Era a primeira vez que usara o nome do menino sem o sobrenome Kim, e
ficou surpreendida por hav-lo feito. Um vu desceu sobre os olhos
penetrantes do Sr. Choe.
Ah, sim... muito bem. Ele est muito bonito, quase parece um menino
americano. Vai lev-lo consigo para a Amrica?
Ela sorriu para Christopher.
Vou?
Por favor, pediu ele, num sussurro.
A me precisa dar o seu consentimento, no precisa? indagou o Sr.
Choe.
Espero que o d, respondeu Laura, e ficou ainda mais surpreendida
consigo mesma. No cuidava que houvesse tomado alguma deciso, mas
qualquer coisa na voz e no olhar do Sr. Choe, por assim dizer, a compelia.
. Esperemos que sim, tornou, delicado, o Sr. Choe e afastou-se.
A tranqila certeza dos modos dele a perturbou e animou. Concluda a
refeio, depois de Christopher haver comido um prato macio de sorvete
para rematar os pratos preliminares, ela achou difcil deix-lo ir-se. No
entanto, que faria com ele ali? Ainda havia muita coisa para decidir e depois
para fazer.
Volte amanh, Christopher, disse-lhe, no saguo. Deu-lhe a caixa
com as roupas novas e demorou-se. Volte amanh cedo, acrescentou.
Sim, senhora, prometeu ele.
E ela ia dizer, no me chame senhora, mas como poderia chamar-lhe o
menino? Sra. Winters era demasiado frio, Laura demasiado ntimo. Ele j
tinha sua me, e o emprego desse nome s serviria de confundi-lo. Era
melhor deixar como estava, pensou. Isso dependeria, finalmente, do que
ficasse resolvido.
At logo, disse, por fim, refreando o impulso para beijar-lhe o
rosto.
Quando voltou ao quarto, encontrou uma longa carta de Chris, a primeira
que recebia. Estava em Seul havia apenas alguns dias, que, no entanto, lhe
pareciam semanas. Apanhando a carta, deixou-se cair numa cadeira e
esqueceu tudo o mais. Ele comeava:
"Adorado e nico Amor:
Sua carta curta demais..."
Sim, querido, mas eu ainda no tinha nada para dizer, murmurou.
"Simplesmente me deixou alucinado. Eu teria largado tudo e tomado o
primeiro avio se no soubesse que teria apenas criado um novo problema
para voc. A esta altura voc j deve ter visto o menino".
Oh, eu quisera que voc tambm o tivesse visto, pensou ela. Isto teria
facilitado tanto a deciso! Ou no? Talvez fosse at mais difcil se Chris o
tivesse visto.
"Espero que a mulher no lhe esteja dando trabalho".
Essas poucas linhas bastavam a ele para aludir aos problemas que ela
enfrentava sozinha. Em seguida, mergulhava num relato entusistico da
campanha. Ela via-o correr de uma reunio a outra, falar na televiso ele
era extravagantemente fotognico. Seus olhos percorreram, pressa, as
pginas. As letras brotavam aos milhares. No obstante, a velha guarda lhe
fazia oposio ferrenha. Pusera em campo detetives particulares que lhe
esquadrinhavam o passado, examinando cada um de seus atos desde os
tempos de garoto. Negcio sujo, mas era uma luta de vida ou morte. A
mocidade dele ajudava.
E sua beleza extraordinria, meu querido, murmurou ela.
"Henry Allen tem sido uma rocha", escrevia ele. "Tem uma posio
indestrutvel, no s no Estado mas em todo o pas. O fato de ter-lhe o nome
ao meu lado tudo para mim. claro que compreendo a responsabilidade
que assumi de no lhe fraudar a expectativa. Preciso realizar uma campanha
cem por cento limpa. Mas eu o teria feito de qualquer maneira. Odiar-me-ia
se no o fizesse".
Naturalmente, pensou ela com orgulho. Beijou a carta, dobrou-a e p-la
no seio. Em seguida, deu-se ao luxo de pensar no marido. Recostou-se no
espaldar da poltrona, cerrou os olhos e pensou nele. Numa poca em que o
amor era amesquinhado e o sexo mundano exaltado, como tivera ela a
felicidade de encontrar um homem que compreendia o amor? Capaz de amar
e que ama uma mulher como eu, e que me quer como sou e no como
simples apndice dele, como ele tambm no poderia ser um mero apndice
meu? Uma felicidade to rara no devia ser estragada por uma criana
nascida do outro lado do mundo, uma criana que no pertencia a parte
alguma, filho do acaso uma criana adorvel, linda, mas que nem por isso
se poderia permitir viesse a arruinar uma vida esplndida, uma vida que seria
til a milhares, a milhes de pessoas, a milhes, se Chris no fosse detido em
sua carreira por uns poucos inimigos egostas, que pensavam exclusivamente
nas prprias finalidades e no tinham o menor interesse pela moralidade que
professavam. Lembrou-se de Henry Allen com sbita consternao. Deveria
Chris contar-lhe, ou no? Se no lhe contasse, seria o silncio inteiramente
digno? Oh, as assustadoras exigncias da honra!
"Querido", escreveu com sua letra grande e clara. Acha que devia
falar com Henry Allen a respeito de Christopher? to difcil, no mesmo,
no ser apenas um cidado comum, para o qual o menino fosse um problema
particular e que no tivesse de preocupar-se com o que os outros pensam!
Pois, naturalmente, h milhares de crianas nascidas como ele, e poderamos
simplesmente lev-lo para casa, dizer que adotamos um rfo de guerra
coreano e deixar que os outros pensassem o que quisessem. Isso no seria da
conta de ningum. Mas agora, com todo o seu brilhante futuro diante de
voc, a gente no sabe o que fazer e no posso consentir em que voc abra
mo do futuro, positivamente no posso, por causa de um erro ". Riscou a
palavra erro to completamente que ele no poderia ver o que ela escrevera,
substituindo-a por experincia e prosseguiu.
" difcil desejar que ele no tivesse nascido, pois um belo menino,
parecidssimo com voc, mas sem ser voc ele mesmo, creio eu. No
consigo descobrir o que ele pensa da me, e s sei que deseja muito ir ter
com voc. Hoje lhe comprei roupas novas ".
S depois de concluir a carta viu o quanto escrevera a respeito de Kim
Christopher, cinco pginas cheias. No imaginara saber tanta coisa a respeito
dele. Selou a carta e mandou-a por via area. A seguir, sentiu uma saudade
to doda de Chris que se atirou na cama e ps-se a chorar.
E chorou no s por Chris, mas tambm pela casa e Pela vida que
conhecia e amava. Via a casa, que se erguia na rua tranqila, ao p da praa,
a casa espaosa, com a frontaria de mrmore branco e, l dentro, o frio
vestbulo de mrmore que ligava um pavimento a outro. Muito tempo atrs,
um antepassado da famlia dos Winters apaixonara-se por uma dama na
Frana. Esta, porm, se recusara a deixar o seu castelo enquanto ele no lhe
prometera modificar o prprio corao de sua casa americana e dar-lhe um
corao francs, como o do castelo dela. Com enormes despesas, cujo
volume aumentava a cada gerao que contava a histria, ele desmanchara o
interior da casa e reconstrura-o exatamente como o castelo francs... Estou
com saudades da casa, pensou Laura, e da rua orlada de rvores sim, at
dos vizinhos aos quais dava to pouca ateno quando estava l, pois no
era, infelizmente, criatura que se preocupasse com vizinhos, com a cabea
sempre cheia de planos e trabalho; e, noite, ela e Chris preferiam estar ss
ou, pelo menos, receber as visitas que eles mesmos escolhessem.
Agora, a milhares de quilmetros... num hotel estranho, numa cidade
asitica, a casa parecia um sonho, com a diferena de que Chris l estava e
ela precisava apressar-se a voltar. Em poucas horas chegaria. Ele insistira em
que ela trouxesse sempre consigo, na bolsa, com o passaporte e os cheques
de viagem, uma passagem de volta.
Nunca se sabe, declarara. No se esquea de que Seul fica a
pouco mais de 100 quilmetros da fronteira inimiga. Voc precisa estar
pronta para partir a qualquer momento.
Sentia uma tentao quase irresistvel de partir naquele mesmo instante.
Sim, bastava-lhe descer a escada, tomar um txi, chegar ao aeroporto e
embarcar no primeiro avio a jato. Imaginava-se a fazer exatamente isso e,
ao mesmo tempo, conhecia que no poderia faz-lo. No era pessoa de fugir
no meio de uma tarefa. Cumpria-lhe pura e simplesmente pensar no que faria
em seguida e, como se respondesse sua pergunta, o telefone tocou.
Sim? disse ela com o receptor na mo.
Sra. Winters? era a voz vibrante do Tenente Brown. Estvamos
imaginando, Jim e eu, se a senhora no gostaria de dar um passeio e ir at
Walker Hill, talvez jantar e danar um pouco.
Gostaria, sim, disse ela, num desespero.
Muito bem, tornou a voz. Estaremos daqui a meia hora no
saguo.
Est bem, assentiu ela.
Caa uma leve chuva de vero, restos de tempestade, quando ela apeou
do txi e entrou no saguo do edifcio das Torres. J estava comeando a
acostumar-se quilo, quela reunio de mulheres em seus abrigos seletos,
naquele dia o enorme apartamento da Sra. Henry Allen. J no sentia medo e
quase no se constrangia. Gostava do velho Henry Allen, no s
pessoalmente mas tambm pelo que ele estava fazendo por Chris. Sentia nele
a fora de uma rocha ao lado de Chris; e, para ela, era tambm um amigo,
em quem poderia confiar, embora nada lhe contasse. Ele gostava dela e
tratava-a com cortesia, com a terna e delicada cortesia que teria dispensado a
uma filha, se a tivesse. Mas tinha seis filhos, e nenhuma filha e, se bem fosse
leal s esposas de seus filhos, sentia falta de uma filha. Ela dava-se bem com
ele, percebendo-lhe a profunda capacidade de compreenso, que talvez no
sentira em mais ningum, que no sentira por certo no pai, professor
universitrio da velha escola, bondoso, mas esquecido dos filhos, cujo
interesse pela literatura terminava na poca elisabetana. Havia conforto na
retido de Henry Allen. Com ele, no corria o risco das carcias furtivas de
um velho!
Entrou no elevador e subiu ao dcimo oitavo andar. Abriu-se a porta e l
estava Henry Allen para receb-la.
Entre, Laura, disse ele. Esto todas aqui... toda a velha guarda,
as esposas dos banqueiros, as esposas dos quacres hereditrios como eu, dos
guardadores do ouro. No daro um ceitil, a menos que se vejam obrigadas a
faz-lo, e ns precisamos obrig-las. Voc sabe disso. Precisa mostrar-lhes
como um novo conservador, um homem dinmico e inteligente como Chris,
poder salvar-lhes o pas das coisas que as assustam... De todas as coisas que
elas chamam o abjeto comunismo. E voc saber faz-lo. Elas abriro o
corao e a bolsa aos jovens da direita, dos quais seu marido um
representante to superior, to avanado. A velha senhora debaixo daquele
chapu que parece uma torre de prpura... poderia subscrever toda a
campanha do jantar, se o quisesse. E quero que ela o faa para poder aplicar
meus caramingus nas excurses de Chris... Uma volta pelo Estado, os
lavradores e o resto... Todas as sedes de municpios, voc sabe... Depois,
talvez, uma viagem volta do mundo, para dar-lhe base. Todo homem
precisa disso, hoje em dia.
Ela acompanhou-o at a opulenta sala de estar onde, em pequeninas
poltronas douradas, esperava, sentada, uma centena de senhoras. Enfrentou-
lhes com calma os olhos avaliadores, sorrindo apenas o suficiente. De fato, a
experincia como modelo ajudava-a bastante. Postura, distncia, pose,
presena, de tudo se utilizou com graa experiente. E conhecia as mulheres.
No devia despertar-lhes a inveja mostrando-se excessivamente segura de si.
Precisava aproximar-se delas com jovem e fascinante modstia, precisava
estar disposta a falar sobre si mesma apenas como esposa de um poltico em
ascenso, precisava estar pronta, no fim do breve discurso, pois sabia que
no devia estender-se em demasia, para deixar tempo s perguntas pois
aprendera a expor ento os seus argumentos. Slida e afvel, vestida de seda
cor de cinza, a Sra. Allen levantou-se para apresent-la.
Ns, mulheres, queremos sempre saber como a esposa de um
candidato, no queremos? E no sempre que essas esposas so to
agradveis de se apresentarem como a que temos hoje conosco, a Sra. Chris
Winters. Vocs viram o retrato dela inmeras vezes nos jornais, pois uma
jovem muito atarefada, que acompanha o marido a toda a parte. Mas a
maioria das pessoas presentes a v agora, pessoalmente, pela primeira vez.
Diplomaticamente, omitiu toda e qualquer referncia ao modelo Laura de
Witt. Havia o que quer que fosse no muito slido acerca do glamour.
E assim, aqui est ela, nossa futura primeira dama.
Laura levantou-se, com um sorriso encabulado, e sua timidez no era
simulada.
Estou apenas fingindo ter-me acostumado a esta espcie de coisas,
disse ela. Mas a verdade que no me acostumei. Vivo sossegadamente.
Alis, vivemos os dois, e aqui estou apenas porque meu marido me pediu
que viesse em seu lugar, pois ele anda ocupado em outra parte. Por
conseguinte, estou apenas tentando substitu-lo. Ele teria gostado de estar
aqui, se tivesse podido vir! Nem sei direito como comear... O melhor talvez
seja apresent-lo s senhoras. Como ele? Bem, tem um metro e oitenta de
altura e olhos azuis, que ficam muito brilhantes quando se interessa pelo que
est dizendo ou quando se zanga. Joga tnis muito bem, excelente
esquiador e bom cavaleiro. Gostamos de equitao. Ele gosta de golfe mas
eu no gosto. Fez o curso de economia em Harvard e formou-se com
distino e louvor. Seu primeiro emprego teve-o num grande banco de Nova
York, onde ficou at achar que compreendia o dinheiro, a maneira de us-lo,
a maneira de geri-lo, a maneira de emprest-lo como crdito a casas
comerciais. Depois voltou a Harvard para formar-se em Direito. Completou
o servio militar na Coria e, depois disso, bem... pertence a uma antiga
firma de advocacia aqui da cidade. Assim ele por fora. Em casa, ...
Hesitou, a cabea inclinada em atitude pensativa. A seguir, ergueu-a e
sorriu para as circunstantes.
Como poderia dizer-lhes o que ele em casa? No temos filhos.
Gostaramos de t-los. Tenho a certeza de que ele seria um bom pai.
rigoroso em matria de disciplina... Conservador, lgico, mas justo. Sempre
justo.
Tornou a fazer uma pausa. Diante dela, como que sada da atmosfera,
desenhou-se a imagem de Kim Christopher. No, no, no devia pensar nele
agora. Gaguejou, mas logo prosseguiu, falando depressa.
Politicamente, representa o que de melhor existe entre os Jovens
Republicanos... Pelo menos o que acho, e muita gente boa pensa como eu.
E prosseguiu, ardilosa na sua ausncia de ardis, e conheceu que as
mulheres a ouviam com simpatia. Estava sendo sincera, queria ser
completamente sincera, e desejava poder falar-lhes sobre Kim Christopher,
mas sabia que no tinha o direito de dizer o que o prprio Chris no diria.
Logo concluiu a sua arengazinha e, em seguida, enfrentou-lhes as
indagaes com pacincia e alguma admirao. Pois as perguntas revelavam
que aquelas mulheres eram astutas, embora tivessem vivido abroqueladas
toda a sua vida. Conheciam a sua cidade e o seu Estado e, quando lhes
chegasse a ocasio de expandir o seu conhecimento do pas e do mundo,
seriam capazes de aprender. Fosse como fosse, lembrou-lhe uma histria que
o pai lhe contara, havia muito tempo, ao regressar de um ano de estudos na
China.
Aqueles campnios chineses, dissera ele, no sabem ler nem
escrever, mas so civilizados e tm experincia da vida. No faz muitos
anos, no conheciam, em matria de transportes, mais do que carroas e
carrinhos de mo. Nisso, construram-se as primeiras estradas de ferro e,
com a maior facilidade e segurana total, eles entraram nos trens com os
seus produtos guardados em cestas, que pendiam de varas de bambu. Agora
esto conhecendo os avies. E sem surpresa nem vacilaes entram-lhes no
bojo, como vi fazer um velho, com meia dzia de galinhas amarradas pelos
ps. Subimos ao ar e ele fumava o pito de bambu com fornilho de lata e
olhava pela janela como se tivesse andado de avio a vida inteira. E o
intrprete me contou que era a sua primeira viagem em alguma coisa um
pouco mais rpida que o lombo de um burro. Nem a estrada de ferro chegara
parte da China em que ele morava.
Ela imaginava aquelas senhoras rolias, de cabelos brancos, bem
vestidas, cujo mundo era a cidade confortvel e opulenta em que haviam
nascido e onde viviam, entrando no mundo a que seu marido tencionava
presidir um dia com a mesma espcie de aceitao.
E isso, disse ela, concluindo, uma hora depois, me traz ao fim
desta tarde. Apreciei-a tanto! Aprendi muitssimo com as suas perguntas...
Muito obrigada.
Voltou-se e fez meno de sentar-se, quando a Sra. Allen ps a mo em
seu brao.
Espere um minuto, meu bem, quero apresent-la outra vez. Minhas
amigas, apresentei-lhes a Sra. Christopher Winters, esposa do nosso futuro
governador... Sim, sim, tenho certeza, meu bem... Mas agora desejo
apresentar-lhes outra jovem. Esta tambm a Dra. Laura de Witt, distinta e
jovem cientista, que trabalha com dois dos nossos maiores cientistas no
campo da farmacologia marinha. E se no sabem o que isso, no se vexem,
que eu tambm no sabia. Precisei procurar no dicionrio. qualquer coisa
com a busca de novos remdios em plantas e animais do mar. Est certo,
meu bem?
Foi Laura quem se sentiu vexada, mas as senhoras bateram palmas
calorosas e levantaram-se procura de ch e coquetis. Ningum lhe
perguntou o que era realmente a farmacologia marinha, e ela evitou
habilidosamente o assunto, enquanto equilibrava uma chvena de ch sobre
o joelho e comia um sanduche de caviar.
Entretanto, fez uma pausa porta, no momento de despedir-se.
Como foi que a senhora fez isso? murmurou, em tom de censura,
dirigindo-se Sra. Allen. Acho que agora elas no vo gostar de mim.
Meu bem, tornou, resoluta, a Sra. Allen, j tempo de ns,
mulheres, nos orgulharmos das mulheres inteligentes.
Dizendo isso, beijou-lhe o rosto, abriu a porta e deixou-a sair.
"Querido Pai", escreveu Kim Christopher. "Na semana que vem ser o
Quatro de Julho. Grande feriado e os pais viro, e tambm as mes. o que
fiquei sabendo. Por favor venha ver os foguetes. Seu filho amoroso,
Christopher Winters".
Ela estendeu a carta a Chris em silncio. Ele leu-a.
Chegou hoje?
Chegou. Preparo um coquetel para voc?
Por favor. Est claro que no poderemos ir no dia quatro. Vou fazer
aquele discurso importante na capital. a noite do jantar de cem dlares o
talher. Voc precisar estar l comigo. Que negcio de "foguetes" esse?
U, foguetrio... fogos de artifcio.
Ah, sim. pena, mas... eu disse que iramos pelo Natal.
Aqui est o seu coquetel.
O Natal fica muito longe de julho para qualquer criana, pensou ela, mas
agora j estava habituada quilo ou pelo menos supunha estar. A campanha
se achava em pleno andamento e ela admirava Chris com o corao e o
esprito, abafando a duvidazinha intolervel com frentica atividade. Ele
fazia um discurso brilhante depois do outro. As pessoas esperavam dele
coisas cada vez melhores. Chamavam-lhe "um homem de coragem".
Enfrentava questes no resolvidas, procurava resposta para os grandes
problemas, estudava, aprendia uma poro de coisas at sobre pases
remotos como os da sia, onde principiavam a surgir quase todos os
verdadeiros problemas. Ningum sabia, nem sequer o prprio Chris, com
quanto desespero desejava ela que ele enfrentasse tambm as questes
particulares no resolvidas, e lhe serenasse a alma naquele momento to
infeliz, mostrando ser de fato um homem de coragem. Cutucando-lhe a
memria l estava a histria de Grover Cleveland, que, ao disputar a
Presidncia, dissera "Contem a verdade", a respeito do desditoso rapaz que
ele sustentava havia anos. Seria Chris menos homem do que Grover
Cleveland? Toda a vida dela dependia de que ele no o fosse... e a vida dele
tambm.
Algum dia, depois das eleies, terei de fazer uma viagem ao redor do
mundo, dizia Chris. Talvez durante os feriados do Natal. um perodo
morto. Voc e eu.
Mas no no dia de Natal. Estaremos com Kim Christopher nesse dia.
Estaremos. Eu j disse que sim.
O esprito dela fazia planos enquanto ele falava. Faltavam dez dias para
o quatro de julho. O Dr. Wilton rogara-lhe que fosse ao laboratrio a fim de
examinar um novo microrganismo marinho, que conseguira cultivar em seus
tanques experimentais.
Estou precisando dos seus olhos penetrantes e da sua mente rpida,
escreveu ele. O bichinho... bichinho?... um verdadeiro comedor, que se
move por conta prpria. Ao mesmo tempo... ser vegetal?... contm cloro-
fila e realiza a fotossntese. Pode ser um novo dispositivo para filtrar agentes
anticancergenos o que espero e para o que rezo!"
Chris, disse ela ento, enquanto bebericavam os coquetis, voc
no se incomoda que eu tire uns dias agora para ir ao laboratrio? Wilton
supe realmente ter encontrado algo novo.
claro que no, respondeu ele, com to rpida generosidade que
ela no formulou a segunda pergunta.
E voc no se incomoda, ia perguntar, que eu me demore mais um ou
dois dias e v visitar Christopher, j que no podemos ir l no dia quatro?
No, era melhor no falar nisso. Talvez, quando estivesse no laboratrio,
inclinada sobre o microscpio, aquilo no lhe parecesse to urgente.
Obrigada, Chris.
Pequena retribuio, replicou ele. De fato muito pequena.
Henry Allen me disse que voc conquistou as mulheres no outro dia. Elas
gostaram de voc, querida. So mais inteligentes do que eu as supunha.
Acercou-se da mulher, inclinou-se sobre ela e beijou-a longa e
profundamente. O seu beijo ainda era emocionante.
Uma semana depois, ela passou dois dias no laboratrio, gozando, aps
tantos meses, as delcias da comunho com espritos semelhantes ao seu. E
ficou ainda mais satisfeita porque, debaixo do microscpio, foi capaz de
reconhecer o novo organismo como um dos dinoflagelados que vira, de uma
feita, mas no analisara, numa massa de plancto retirado do Mar de Sargao.
Seu crebro impiedoso, grunhira o Dr. Wilton. claro que
haveria de lembrar-se de ter visto a maldita coisa... Provavelmente em sua
primeira infncia! Voc nunca se esquece de nada?
Mais velho do que ela, era um homem esguio, de culos, sem nenhum
colorido especial, mas ela suspeitava que fosse um homem msculo. Por isso
mesmo, limitou-se a sorrir. Entretanto, na manh seguinte, enquanto dirigia
o carro pela estrada que conduzia a New Hampshire, ocorreu-lhe que uma de
suas dificuldades talvez derivasse do fato de que nunca, realmente, se
esquecia. Assim, era-lhe impossvel olvidar um nico momento sequer das
horas que passara com Kim Christopher, como tambm no conseguia
esquecer as mutveis expresses que lhe vira no rosto demasiado expressivo,
sua decepo ao verificar que no ficaria junto do pai, seu corajoso silncio e
o brilho das lgrimas nos olhos. No, o mergulho no trabalho daqueles dois
ltimos dias no a fizera esquecer a urgente necessidade do garoto. E, no a
esquecendo, pela primeira vez na vida enganara consciente e
deliberadamente o marido.
Chris, dissera, na vspera, noite, pelo telefone. No voltarei
para casa amanh, como havia planejado. Ficarei mais dois ou trs dias.
Chegar atrasada para o dia quatro! exclamou ele.
No, no chegarei. No chegarei um momento sequer depois da meia-
noite do dia trs, talvez at do dia dois.
E estar exausta no dia seguinte!
No estarei exausta no dia seguinte.
Ele acabara cedendo ao seu inexorvel bom humor, e eles se haviam
despedido com as palavras habituais de amor.
O acerto de sua deciso surgia-lhe agora claramente depois do longo e
calmo dia em que dirigira sozinha. Rematara sua tarefa no laboratrio,
deixando com os colegas uma breve e clara exposio de suas concluses, e
com o esprito em paz, a paz que s o trabalho completado, bem feito,
poderia trazer-lhe, voltara sua ntima ateno para Kim Christopher.
Lentamente, maneira que passavam as horas, chegara concluso de que
no era possvel permitir que aquela situao se prolongasse. O menino
precisava juntar-se a eles como filho de Chris, ou ela o levaria de volta para
a Coria e para a me, isto , se lograsse persuadir o marido a consenti-lo.
Tranquilizou-se-lhe o esprito por haver chegado pelo menos a essa deciso
e, logo depois, ao pr do sol, avistava a Escola Waite para Meninos.
Propositadamente no anunciara que iria. Queria ver Christopher tal e qual
este se encontrava, sem a excitao preliminar da expectativa da sua
chegada. Queria encontr-lo onde acertasse de estar, brincando ou fazendo a
refeio da noite. Deteve-se diante do edifcio principal, estrutura colonial de
madeira, pintada de branco com venezianas verdes nas janelas, e tocou a
campainha. Um menino mais velho atendeu-lhe ao chamado.
O Dr. Bartlett est? perguntou.
Acho que ainda est no escritrio, mas deve estar-se preparando para
sair.
Veja se o alcana para mim por favor, pediu ela. Diga-lhe que
a Sra. Chris Winters.
Fazia poucos instantes que estava no vestbulo quando viu o Dr. Bartlett
encaminhar-se, rpido, para ela, estugando o passo largo, a surpresa
estampada no rosto.
Sra. Winters! exclamou. Aconteceu alguma coisa?
No, explicou ela, apenas achei que devia dar um pulo at aqui
para ver como vai indo Christopher.
Muito bem, muito bem, disse ele, entre. Vou mandar cham-lo.
No posso ir ter com ele? Gostaria de v-lo no local, por assim dizer.
Encontraram-no na biblioteca, alis vazia quela hora. Sentado ao p da
janela, aproveitando as ltimas claridades da tarde, lia um grande livro
colocado sobre o peitoril.
Christopher, aqui est uma surpresa para voc, disse o diretor.
Ele ergueu o rosto. Ela viu imediatamente que ele estava mais magro,
muito mais magro. Mas quando se ps em p, de um salto, viu tambm que
ele estava muito mais alto.
A senhora veio ver-me! murmurou o menino. Para horror dela,
Christopher hesitou e, em seguida, encostando a cabea no seu ombro, abriu
a chorar. Ela conchegou-o de si e, abraada com ele, dirigiu um olhar de
censura ao surpreendido Dr. Bartlett.
Ele tem-se sentido infeliz?
O menino respondeu por si mesmo. Ergueu a cabea e sorriu, atravs das
lgrimas que lhe molhavam o rosto.
Agora estou feliz, exclamou. A senhora veio ver-me. Obrigado.
Ele tem andado feliz, disse o Dr. Bartlett. Houve, naturalmente,
alguma depresso. Afinal de contas, um pas estranho para ele e, de certo
modo, a senhora e o Sr. Winters ainda lhe so estranhos tambm.
No lhe haviam dito quem era o menino e, embora isso devesse ter
saltado aos olhos de um diretor atilado, nenhuma pergunta se fizera e, por
isso mesmo, nenhuma resposta fora necessria. Deveria ela contar-lhe a
verdade, mais tarde, quando a ss? Ele continuava falando.
No leve muito a srio essas lgrimas, Sra. Winters. Estive vrias
vezes na sia e, na verdade, passei meses no Japo durante a Ocupao. Na
sia, se bem me lembro, o chorar no motivo de vergonha para um
homem. Ao contrrio, considera-se sinal de sensibilidade e sentimento e,
segundo descobri, o nosso Christopher possui ambos esses atributos.
possvel, naturalmente, que tenha tambm os seus problemas.
Discutiremos o assunto, acudiu ela, resoluta. Por enquanto, o
senhor poderia hospedar-me por esta noite?
Naturalmente, em nosso melhor quarto de hspedes. Christopher,
leve-a ao Quarto do Leste e traga-a depois para jantar com voc. Mandarei
que levem sua mala para o quarto, Sra. Winters, e agora vou deix-la com o
seu menino. Afinal de contas, foi a ele que a senhora veio visitar.
O Dr. Bartlett afastou-se e ela se sentiu tocada ao perceber que
Christopher no se julgava demasiado velho para segurar-lhe a mo
enquanto cruzavam o vestbulo, cheio de rapazes. Entrando por um corredor
orientado para leste, ele abriu uma porta e entrou depois dela no quarto,
recanto agradvel, todo enfeitado de algodo estampado e organdi branco.
Ela sentou-se numa poltrona e, estendendo a mo, puxou o menino para
junto de si.
Agora deixe-me v-lo, disse. Voc est alto, est magro. Come
bastante?
Ele fez que sim com a cabea, subitamente tmido. Surpresa, ela notou
que os olhos dele voltavam a encher-se de lgrimas. No disse nada,
compreendendo a tenso ntima, a insegurana, que mantinha as lgrimas to
prximas da superfcie. Isto no pode continuar assim, pensou.
Quando vir meu pai? perguntou ele.
Ele vir, respondeu Laura com resoluta jovialidade. E com
certeza viremos para o Natal. Voc conhece o Natal?
Ele assentiu com a cabea.
Sim, no Natal, repetiu ela. Agora diga-me... Uma idia
acudiu-lhe mente. Soltou-lhe a mo e fez-lhe sinal para que se sentasse na
poltrona vizinha. Voc sabe esquiar?
Sei o que , disse ele, sentando-se. Mas no sei como .
Ento precisa aprender, voltou ela. Seu pai timo esquiador.
o esporte predileto dele. Quando viermos no Natal, haver neve no cho e
ele querer levar voc para esquiar naquela montanha. Aposto que todos os
meninos aqui sabem esquiar. E voc ser bom esquiador, como seu pai. Isso
o far feliz?
Ele tornou a assentir com a cabea, os olhos brilhantes, e ela se alegrou.
Laura continuou.
Providenciarei para que voc tenha um bom professor de esqui, e
deixarei instrues para que lhe dem esquis e tudo o que for preciso.
A senhora esquia tambm?
Esquio, mas no to bem como seu pai.
E continuaram conversando assim, at que, uma hora depois, soou o
gongo chamando para o jantar e eles se enderearam ao refeitrio. E, de
repente, mesa, vendo Christopher sentado com outros meninos,
conversando com eles e comendo com apetite, decidiu no desvelar o
segredo que Chris desejava ocultar. Pois como poderia explicar? Sua
lealdade ao marido vinha em primeiro lugar.
Naquela noite, em companhia de Christopher, assistiu a uma pea da
escola, uma comdia sobre a vida escolar representada por meninos, e
despediu-se dele, mais tarde, porta do quarto. Lembrando-se da freqncia
das suas gargalhadas, desejou-lhe alegremente boa noite.
Amanh tomaremos o desjejum, disse ela, e, depois, precisarei
voltar para junto de seu pai.
Dissipou-se-lhe o brilho do rosto.
Boa noite, Me, disse ele e, aps breve inclinao, afastou-se.
Ela viu-o caminhar pelo corredor e, quando o perdeu de vista, fechou a
porta.
Eu simplesmente achei que precisava ver o menino e descobrir, por
mim mesma, se ele era feliz... Isto , suficientemente feliz para que minha
conscincia pudesse descansar, pelo menos por enquanto, pois no
solucionamos coisa alguma. Voc sabe disso, Chris!
Era no dia seguinte. Ela chegara tarde a casa, quase meia-noite, e Chris
a esperara na sala de estar, cercado de jornais. Agora, depois de um banho,
com o chambre de seda cor-de-rosa, restaurada por uma bebida gelada que o
marido lhe trouxera, ela sentara-se com ele no balco do segundo andar, em
espreguiadeiras, luz do luar.
No sei como interpretar a sua sada assim, sozinha, disse ele,
conturbado, como ela pde perceber-lhe pelo timbre da voz. Voc poderia
ter sofrido um acidente na estrada e eu no teria tido a menor idia do lugar
onde a encontraria. Provavelmente nem deixou recado no laboratrio. Sei
que no deixou, pois o Dr. Wilton telefonou hoje cedo, querendo falar com
voc. Se ele houvesse telefonado ontem noite, antes da sua chamada, eu
teria ficado louco de medo. Essas coisas hoje acontecem, Laura, e voc no
tem o direito de fazer isso!
Eu sei que devia ter dito a voc que ia l mas, de qualquer maneira,
tinha de ir sozinha. Precisava v-lo.
Por qu?
No conseguia esquec-lo.
E agora consegue?
No de todo, enquanto no tivermos respondido pergunta
fundamental: que vamos fazer com ele?
Chris despediu um profundo suspiro.
Se ele ao menos no fosse parecido comigo!
Ele parecido com voc. E mais cedo ou mais tarde a verdade nos
alcanar. Isso vai e deve acontecer.
Laura, mais tarde, quando eu tiver ganho esta parada...
Mais tarde ser pior. O governador? Um escndalo! O Presidente? O
escndalo do sculo! Chris, voc no pode assobiar e chupar cana ao mesmo
tempo. No pode guardar esse menino na geladeira para sempre. Ter de
decidir, um dia, se a fama tem mais valor para voc do que um filho.
E se tiver, ajuntou entre si, presa de muda angstia, voc menos
homem do que eu o supunha. No pode acreditar realmente no que diz sobre
os valores humanos e viver esse tipo de mentira.
Ele sentiu-se aguilhoado.
No essa a alternativa, retrucou. claro que quero um filho.
Sempre o quis. No a viu encolher-se, ferida, e prosseguiu, sem perceber
quo impiedosamente o fazia. Em circunstncias comuns, se eu fosse um
homem comum, tomaria o filho... este filho... e declararia minha paternidade
perante o mundo. Fama? No troco uma coisa pela outra. Estalou os
dedos. Qualquer idiota pode t-la hoje em dia. Dispa-se e ficar famosa.
Voltou-se, encarou com ela por um momento e Laura conheceu que a
clera dele se avolumava. Ser possvel que voc, minha prpria esposa,
no me compreenda?
Voc deseja o poder, Chris, volveu ela, suavemente, claro que
o deseja, e que saber us-lo. Sei disso melhor do que ningum. E voc
tambm o apreciar. Tampouco h mal nisso. s que...
Laura! bradou ele, agitando a mo com impacincia. Terei,
acaso, de explicar a voc, entre todas as pessoas? Quero ser governador
deste Estado porque quero ser um bom governador para o povo do Estado.
No por mim, mas porque vejo os erros que tenho a conscincia de saber
endireitar. Se for possvel, e pretendo torn-lo possvel, serei um dia
Presidente dos Estados Unidos, e tambm no o serei por amor da fama, mas
porque vejo erros no pas que acredito poder corrigir. Digo-o humildemente,
e precisarei da ajuda de muita gente... a principiar por voc, Laura. A nota
spera reapareceu, e a ela pareceu difcil suport-la; em seguida, diluiu-se
num momento de silncio, antes que ele prosseguisse, com voz intensa e
rouca. Acredito em mim. Sei que os meus motivos so bons. Quero
deixar a marca da grandeza no meu tempo... Sim, e hei de deix-la. Porque
entendo que encontrei alguns remdios, algumas solues. Pois bem, repito,
devo atirar fora tudo isso, atirar fora a mim mesmo, atirar fora tudo o que
posso fazer pelo pas, porque cometi um erro quando era menino na Coria?
Ele dobrou as longas pernas e sentou-se de lado na espreguiadeira
procurando os olhos de Laura luz da lua. Mas ela conservava o rosto entre
as mos e mantinha o olhar apartado dele. Estremeceu, medida que a voz
maravilhosa continuava, ainda rouca de sentimento, mas falando agora para
ela, s para ela.
Eu pensei que fosse morrer, Laura. Uma coisa dessas nos separa de
tudo o que deixamos para trs. E me vi cercado pela misria humana. Voc
estava distncia de um mundo e de uma vida. Eu precisava
desesperadamente de algum perto de mim... De algum calor humano,
simples, feliz. Nisso no era diferente de todos os outros jovens americanos,
apenas tentei manter-me afastado de todas as mulheres baratas que
enxameavam ao redor dos outros. Se no tivesse conhecido Soonya, teria
continuado s. Ela tambm estava s. E embora eu a tivesse conhecido
naquele salo de danas, no era uma moa barata de bar. Pelo que voc me
disse, ainda no o , a despeito da maneira pela qual ganha a vida. Voc
mesma percebeu-lhe a qualidade. Ela me amava, Laura, e precisava de mim
como eu precisava dela. A voz era agora quase um sussurro. E no era
barato o meu sentimento por Soonya. Era tudo muito jovem, muito sem
razes, superficial, irresponsvel, mas no era barato. No era nada,
absolutamente nada, em comparao com o que sinto por voc.
Ela fez um sinal afirmativo com a cabea, em silncio. Disso tivera a
certeza desde o princpio, e essa convico sempre lhe parecera
reconfortante. Mas ainda assim no podia encarar com ele, pois o tumulto
que lhe agitava o corao deixava-a totalmente confusa.
Bem, e assim nasceu a criana. Era a ltima coisa que eu desejava.
Foi terrvel o que senti. Senti-me assustado e culpado. Admito que, por um
momento, me pareceu maravilhoso haver gerado um filho. No entanto,
nunca pensei nele como sendo realmente meu. Nunca sonhei traz-lo para
c. Ele nascera na Coria, pertencia Coria. E depois pensei... talvez
apenas para atenuar meu sentimento de culpa... que era bom que Soonya
tivesse algum a quem se dedicar, porque eu estava prestes a deix-la e a
voltar para casa.
Durante um longo momento nenhum dos dois falou. Em seguida, Chris
prosseguiu, calmamente:
Seria uma perversidade pedir a outra mulher que compreendesse uma
coisa dessas, minha Laura. Por isso no pude contar a voc quando voltei
para casa. E eu a amava tanto, amava tanto a minha extraordinria esposa,
cuja beleza, cuja inteligncia e cuja nobreza eram superiores s de qualquer
pessoa, que a moa coreana e o filho se esfumaram na irrealidade. Eu no
lhe prometera nada. O que ela me dera eu tambm lhe dera, o passado era o
passado. E quando, alguma vez, eu pensava no filho dela, pensava nele como
se fosse exclusivamente dela. Como poderia saber que ela o julgava meu,
que, de acordo com a lei coreana, ele me pertencia?
Mas o nosso povo jamais compreenderia tudo isso I num homem que
quer ser governador e, algum dia, Presidente dos Estados Unidos. O povo
cruel. Eu sei o quanto pode ser cruel e o quanto pode ser injusto. Devo,
acaso, atirar fora toda a utilidade da minha vida dando ensejo crueldade e
injustia dele? No pretendo colocar-me em seu poder. No pretendo
arruinar a vida para mim pois, nesse caso, estaria arruinando minha vida para
ele tambm. Vaidade? No. Dedicao.
Ela o ouvia agora com ateno. Mas sabia que ele j no falava s para
ela. Estava defendendo o seu caso diante de algum tribunal, que ela no
podia ver, diante do povo, da nao, do mundo, da prpria vida.
Compreendeu e no replicou, nem poderia ter replicado. Ao invs disso,
levantou-se, aproximou-se dele e, pondo-se de joelhos ao seu lado, inclinou
a cabea sobre o peito dele. Debaixo do rosto sentiu que o corao de Chris
pulsava duro e forte.