A Morta, Guy de Maupassant
A Morta, Guy de Maupassant
A Morta, Guy de Maupassant
Guy de Maupassant
Como? Não sei, não sei mais. Voltou toda molhada, nutria noite de
chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana
e ficou de cama.
Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio,
mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto
o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho
- toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso,
espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as
torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os
reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que
passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição,
no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem
querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo
singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi
amada, e morreu."
Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite
se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante
desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a
última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam.
Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos
desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado
da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas,
de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo
tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o
pão das planícies.
Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses
caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos!
Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha
volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia
mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu
coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso,
indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite
impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres
humanos? Olhei à minha volta!
Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo.
E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por
entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo
de que logo a encontraria.