PAULA, Elder Andrade, Seringueiros e Sindicatos - Um Povo de Floresta em Busca de Liberdade, Rio Branco-Acre Nepan Editora 2016
PAULA, Elder Andrade, Seringueiros e Sindicatos - Um Povo de Floresta em Busca de Liberdade, Rio Branco-Acre Nepan Editora 2016
PAULA, Elder Andrade, Seringueiros e Sindicatos - Um Povo de Floresta em Busca de Liberdade, Rio Branco-Acre Nepan Editora 2016
em busca de liberdade
Nepan Editora
Rio Branco, Acre
2016
Arte de capa: Ana Patrícia C. Ferreira
Projeto Gráfico: Raquel Alves Ishii
Diagramação: Marcelo Alves Ishii
Revisão: João Batista de Souza
Foto de capa: Jornal Varadouro Ano II - Número 16
Rio Branco - Acre- Outubro de 79
Matéria intitulada “O grande mutirão contra a jagunçada”
https://goo.gl/Rg4U6M
Conselho Editorial
Agenor Sarraf Pacheco - UFPA Livia Reis - UFF
Ana Pizarro - Universidade Santiago/Chile Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro - UFAM
Carlos André Alexandre de Melo - UFAC Marcela Orellana - Universidade Santiago/
Elder Andrade de Paula - UFAC Chile
Francemilda Lopes do Nascimento - UFAC Marcia Paraquett - UFBA
Francielle Maria Modesto Mendes - UFAC Maria Antonieta Antonacci - PUC/SP
Francisco Bento da Silva - UFAC Maria Chavarria - Universidad San Marcos
Francisco de Moura Pinheiro - UFAC Maria Cristina Lobregat - IFAC
Gerson Rodrigues de Albuquerque - UFAC Maria Nazaré Cavalcante de Souza - UFAC
Hélio Rodrigues da Rocha - UNIR Miguel Nenevê - UNIR
Hideraldo Lima da Costa - UFAM Raquel Alves Ishii - UFAC
João Carlos de Souza Ribeiro - UFAC Sérgio Roberto Gomes Souza - UFAC
Jones Dari Goettert - UFGD Sidney da Silva Lobato - Unifap
Leopoldo Bernucci - Universidade da Tânia Mara Rezende Machado - UFAC
Califórnia
CDD 331.88098112
Apresentação
Introdução
Capítulo I
Capítulo 2
Capítulo 3
3.2 O acirramento dos conflitos de terra e das disputas políticas entre Igreja e
o governo estadual
4.4 O “empate”
Capítulo 5
Conclusão
Posfácio
Prefácio
7 Sumário
talação no estado de uma delegacia sindical da Confederação Nacio-
nal dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), então empenhada em
reconstituir ou criar a rede sindical onde ela ainda não existia. Nesse
contexto, as ações isoladas se organizaram e começaram a surgir os
empates, que mais tarde se tornarão reconhecidos como uma forma de
ação coletiva particular dos seringueiros, visando suspender as derru-
badas da floresta que ameaçavam o seu modo de vida. É por meio dos
empates que se consolida a identidade social e política desse segmento,
não a partir de um viés estritamente profissional, mas na defesa de um
território e de um modo de vida (embora não sejam exatamente essas
as categorias usadas por Elder de Paula). As mobilizações dos serin-
gueiros também encontravam voz nos jornais alternativos, como é o
caso do Varadouro e, por esses caminhos, tornavam-se nacionalmente
reconhecidas.
Ao mesmo tempo em que as lutas se espraiavam, consoli-
davam-se lideranças que logo seriam atingidas pela violência. O estu-
do dá destaque à figura de Wilson Pinheiro, presidente do sindicato
de Brasileia, ao seu assassinato e às repercussões nacionais desse fato.
Não por acaso, ao ato de repúdio à violência que atingiu o líder serin-
gueiro, em Rio Branco, compareceram não só o presidente da Contag,
mas também sindicalistas paulistas, entre eles o então líder das famo-
sas greves do ABC paulista, Luis Inácio da Silva, o Lula, sendo todos
enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Como o autor bem mos-
tra, já nesse momento a organização dos seringueiros buscava novos
caminhos que os tirassem de um fatal isolamento e tecia alianças com
outras que emergiam em diversos pontos de país, contribuindo decisi-
vamente para o processo que implicou o fim da ditadura.
Um dos pontos fortes do trabalho é justamente mostrar as
articulações das lideranças dos seringueiros com o emergente sindi-
calismo cutista e com partidos quer já consolidados, apesar de terem
vivido um longo período de clandestinidade, como é o caso do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), quer emergentes e portadores de novas
propostas políticas, como é o caso do Partido dos Trabalhadores (PT).
Discute ainda o papel da Igreja, sua importância no apoio às lutas dos
seringueiros em alguns locais, opondo-se a elas em outros. Aos pou-
Sumário 8
cos, o livro faz emergir toda a complexidade dos conflitos que cresciam
nessa parte longínqua do Brasil, mas que, enfatizamos, longe de ser
isolada, articulava-se em múltiplas redes que a projetaram nacional e
internacionalmente e atraíram solidariedades, mas também adversá-
rios.
Esse tipo de abordagem, faz com que não seja a figura de
Chico Mendes o centro do trabalho. Apesar de se projetar internacio-
nalmente em meados dos anos 1980 e passar a ser reconhecido pela
defesa de causas ambientais, no estudo em pauta ele aparece de outra
forma, como produto de lutas várias. Dessa perspectiva, Elder de Pau-
la opta por apresentar Chico Mendes como liderança dos seringueiros,
dirigente sindical e militante partidário, envolvido em disputas várias,
locais e extralocais. Assim, desloca o foco de análise para as resistên-
cias e esforço organizativo que envolveram múltiplos atores.
Inspirado nos estudos do historiador inglês Edward Thomp-
son, o trabalho vai nos mostrando como se constitui a identidade de se-
ringueiros, em meio a experiências diversas, onde a mediação estatal,
por meio do Incra, teve um papel chave. Tentando aplicar aos seringais
conflagrados uma concepção que se firmou por meio do Estatuto da
Terra para responder ao perfil dos conflitos disseminados no Brasil,
essa instituição leu os seringueiros como posseiros, desapropriou algu-
mas terras e os alocou nos chamados projetos de assentamento dirigi-
do, em lotes que ignoraram a experiência anterior desse grupo social
e a lógica que presidia o uso do território por meio das colocações, que
implicavam a abertura de caminhos em busca das árvores de seringa
dentro de uma extensão que podia ser alcançada pelo seringueiro. Um
costume que não comportava delimitação formal de propriedade, mas
que tinha suas regras de uso fortemente enraizadas no grupo. Foi a
partir dessas experiências que os seringueiros assumiram a importân-
cia da floresta na sua vida. Não seringueiros em geral, mas aqueles
que deixaram de pagar renda aos seringalistas, romperam com as re-
gras de dominação impostas anteriormente e, agindo como donos de
suas colocações, organizavam seu processo produtivo e escolhiam a
quem vender a seringa. Foi ainda com base nessas experiências que se
fortaleceu a organização político-partidária. Como enfatiza o autor,
9 Sumário
a criação do PT no Acre se fez por meio dessas lutas, já no início dos
anos 1980, mostrando o quão eles eram articulados com o centro sul
do país, mais visível na mídia.
Ao longo do livro, são ainda apresentadas as disputas no
interior do sindicalismo de trabalhadores rurais no Acre, fruto das di-
vergências entre as orientações políticas do sindicalismo contaguiano
e o cutista, com a qual as lideranças do Acre logo se alinharam, entre
elas Chico Mendes. Também são contempladas as vicissitudes do PT
no estado, com as disputas entre diferentes correntes, bem como com
o PMDB.
Paralelamente ao crescimento da organização dos serin-
gueiros, o livro mostra as diferentes formas de reação patronal, recor-
rendo à força e à violência (como ilustram os assassinatos de Wilson
Pinheiro e Chico Mendes) e, em algumas situações, à justiça para re-
cuperar suas terras.
Desses embates e novas figurações, como nos ensina Elias,
também emergem “invenções”, como é o caso da criação das reservas
extrativistas (uma longa batalha de Chico Mendes) e uma organiza-
ção própria, o Conselho Nacional dos Seringueiros, independente das
amarras legais próprias ao sindicalismo e que buscava uma representa-
ção centrada na especificidade de um grupo social. Abrindo as portas
para ribeirinhos e outros grupos extrativistas, certamente o CNS teve
um papel importante na construção social e política de outras identida-
des de grupos que se pautam por uma relação particular com a floresta.
Sem dúvida, a pesquisa conduzida por Elder Paula lança
luzes sobre um momento histórico que merece ser recuperado por ân-
gulos diversos. O estudo não só ilumina resistências em um contexto
adverso, como o da ditadura e seu projeto modernizador, como tam-
bém mostra as inúmeras articulações que se faziam e que foram fun-
damentais para a produção desse ator social que foi ponto de partida
para a eclosão de inúmeras demandas de grupos que hoje aparecem
designados sob a rubrica de “populações tradicionais”. Leitura funda-
mental para os que querem conhecer melhor as diferentes faces não só
Sumário 10
da ruralidade no Brasil, mas também da capacidade de determinados
segmentos se produzirem como atores e construir caminhos para esca-
par da dominação, seja dos patrões, seja do Estado. Os desdobramen-
tos dessas lutas, as vicissitudes dos projetos das reservas extrativistas
ainda não eram visíveis no recorte temporal escolhido, mas desafiam o
leitor a pensar a história para além de qualquer linearidade e a produ-
ção dos atores como um processo constante.
11 Sumário
Apresentação
O subtítulo da dissertação agora publicada no formato de
livro – “um povo da floresta em busca da liberdade” – parecia-nos sin-
tetizar de forma bastante eloquente o sentido das lutas e da trajetória
de resistência dos seringueiros: da libertação do “cativeiro” rumo à
conquista das Reservas Extrativistas (RESEX) como possibilidade con-
creta de afirmação da tão sonhada “autonomia”. Aí estaria a grandeza
daquela epopeia protagonizada por aquele contingente de homens e
mulheres que pareciam condenados a sucumbir “à margem da Histó-
ria”, tal como vaticinou Euclides da Cunha no início do século XX.
Desafortunadamente, após três décadas, podemos asseve-
rar que aquela busca da liberdade entendida enquanto afirmação de
“autonomia” nos seus territórios foi duramente golpeada e interditada.
As restrições e condicionamentos à permanência dos seringueiros nas
RESEX – bem como das demais categorias identificadas como “popu-
lações tradicionais” que vivem nas unidades de conservação e Terras
Indígenas – podem ser considerados como um tipo de atualização do
cativeiro. Sob a ideologia do “desenvolvimento sustentável”, as formas
contemporâneas de espoliação do capital na Amazônia estabeleceram
um tipo de controle mais rigoroso e complexo desses territórios que
tem implicado na aniquilação sistemática daquela relativa “autono-
mia” outrora conquistada.
Ironia da História? O movimento que se notabilizou inter-
nacionalmente por associar a luta pela terra à questão ambiental, pa-
deceria três décadas depois dos efeitos da sua ousadia e imaginação?
Sumário 12
Entre outras, essas indagações nos motivaram a publicar na forma de
livro essa dissertação apresentada em 1991. Decidimos manter o texto
original com suas possíveis virtudes e lacunas pelas razões pontuadas
a seguir.
Formulada no momento dramático do imediato pós-assas-
sinato de Chico Mendes e às vésperas da “Rio 92” (Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento), a re-
ferida dissertação aporta um registro de significativo valor histórico.
Tal registro concorre para aclarar os meandros do apagamento de uma
proposta original e sua substituição pela cópia das políticas emanadas
dos “acordos verdes globais” pactuados no âmbito da ONU.
Como mostra Hirsch1 (2001), a padronização das políticas
ambientais em escala mundial emerge como necessidade do novo pa-
drão de acumulação pós--fordista. De acordo com Hirsch (2001, 7), “o
capitalismo pós-fordista é caracterizado por um novo processo de acu-
mulação primitiva ou original, que não se refere mais à apropriação da
terra, como descreveu Marx, mas à apropriação de conhecimento no
sentido mais amplo”. Uma das consequências daí advindas segundo o
referido autor é que a regulamentação política além de transcender a
esfera dos Estados nacionais,
(...) aborda, também, e ao mesmo tempo, as relações en-
tre os Estados-nação e as entidades locais/regionais, tais
como as comunidades autóctones que, com seus métodos
específicos de agricultura, cultivo e criação, contribuem
substancialmente para a geração e conservação da biodi-
versidade (HIRSCH,2001,6).
13 Sumário
por Gramsci, 1978) em torno da ideologia do desenvolvimento susten-
tável. No posfácio deste livro apresentamos uma análise das repercus-
sões desse processo na trajetória desse sindicalismo.
Da sua grandeza tratada no corpo do livro a sua decadên-
cia analisada no Posfácio, o sindicalismo rural no Acre, mormente
aquele notabilizado na luta dos seringueiros, tem muito a nos dizer
sobre os dilemas contemporâneos relacionados com o enfrentamento
da crise ecológica e espoliação capitalista.
Finalmente, gostaríamos de reiterar nossos agradecimentos
a todos que contribuíram conosco nos tortuosos e venturosos cami-
nhos percorridos para concluir esta dissertação agora publicada no
formato de livro. Notadamente aos professores do CPDA/UFRRJ e
colegas da 9ª Turma, pela inestimável contribuição teórica que nos
proporcionaram em dois anos de agradável convivência. A Leonilde
Sérvolo de Medeiros, minha orientadora, pela dedicação incomum e
o grande empenho no acompanhamento da realização deste trabalho.
A todos os entrevistados que dedicaram seu tempo e gentil-
mente me cederam valiosas e imprescindíveis informações.
Ao amigo Pedro Costa Sobrinho (in memoriam), expresso
minha gratidão por ter colocado a minha disposição seu material de
pesquisa e, fundamentalmente, por ter dedicado parte de seu tempo a
decifrar meus rascunhos iniciais, indicando-me valiosas sugestões. A
Helenice, por tudo.
A Benedita Esteves, pelo apoio e companheirismo no de-
correr do curso e da pesquisa. A Romulo Andrade e Marísia pela aco-
lhida em Niterói. Ao Moby e Dilma, pela leitura crítica e sugestões.
Ao Luiz Roberto pela digitação. Aos bibliotecários e funcionários dos
arquivos consultados, que gentilmente ofereceram ajuda. À CAPES e
à FAPERJ, pelo apoio à pesquisa, através de bolsa para integralização
dos créditos e durante a realização do trabalho de campo.
Agradeço, finalmente, aos professores Gerson Rodrigues
Albuquerque e Raquel Ishii (UFAC) pelo apoio e incentivo a esta pu-
blicação, e ao Professor João Batista, pela revisão.
Sumário 14
MAPA DO ACRE (2012)
15 Sumário
Introdução
O objetivo deste livro é analisar a trajetória do sindicalismo
rural no estado do Acre, com destaque para o papel exercido pelos se-
ringueiros enquanto principais protagonistas desse processo. A nossa
opção deve-se fundamentalmente ao significado desse movimento no
contexto regional e às novidades que ele traz no quadro mais geral do
sindicalismo no Brasil. Esperamos contribuir para o resgate de uma
parte da memória das lutas de resistência que notabilizaram interna-
cionalmente esse sindicalismo no último quarto do Século XX.
O interesse pelo tema é resultado de uma experiência pesso-
al de participação no sindicalismo acreano durante quatro anos (1984-
1988), dois dos quais como dirigente da Central Única dos Trabalha-
dores (CUT-AC). Nesse período, tive a oportunidade de conviver com
diversas lideranças sindicais na região, discutir problemas e propostas
para esse sindicalismo e participar de sua organização e de suas lutas.
O Problema
Uma das nossas preocupações iniciais de pesquisa foi in-
vestigar na bibliografia existente sobre a região, como havia sido ana-
lisado, até aquele momento (1990), o seringueiro e a sua organização
social. Euclides da Cunha foi um dos primeiros a se preocupar com
as condições sociais de vida dos seringueiros. No início do século, ele
fez uma viagem à Amazônia para observar de perto o funcionamento
de um seringal, ficando indignado com o sistema de exploração a que
estavam submetidos os seringueiros, o que o levou a retratá-lo em um
livro intitulado À Margem da História. Nesse livro, Euclides da Cunha
Sumário 16
descreve o seringueiro como uma vítima de um sistema de dominação
que o condenou a uma exploração semelhante a escravidão, isolado
do convívio social, despossuído de qualquer tipo de assistência oficial
e sujeito às mais variadas formas de atrocidades e violências por parte
dos patrões seringalistas (CUNHA, 1967).
Essa forma de pensar os seringueiros exerceu grande in-
fluência na produção historiográfica sobre a região Amazônica. Na
maioria dos estudos realizados posteriormente, as referências aos se-
ringueiros aparecem numa abordagem semelhante à de Euclides da
Cunha. A exceção é o estudo de Martinello (1988). Esse autor, ao ana-
lisar a reativação do extrativismo da borracha no início da década de
1940, aponta diversas situações que evidenciam diferentes formas de
reação dos seringueiros às condições de exploração a que estavam sub-
metidos. Isso demonstra que não havia um conformismo generalizado
entre esses trabalhadores. Partindo da forma quase consensual de ver
o seringueiro na história, como elemento passivo, alguns autores (PIN-
TO, 1979; SILVA, 1982; DUARTE, 1985) referem-se à emergência do
sindicalismo rural no Acre como o momento em que ocorreu a ruptura
desse segmento social com o seu legado histórico. As mudanças estru-
turais iniciadas na região da década de 1970, via processo de expansão
da fronteira agrícola, provocaram uma brusca substituição das relações
mercantis por relações de produção capitalistas no campo, gerando
inúmeros conflitos que impulsionariam a organização sindical.
Nessas condições, o surgimento e a evolução da organiza-
ção sindical aparecem como resultado da ação de classe no confronto
com a nova estrutura. A conquista da autonomia dos seringueiros em
relação aos patrões, quando mencionada, aparece como produto estri-
tamente da luta sindical.
Merece destaque o estudo de Duarte. Este autor analisa as
transformações nas formas de posse e uso da terra e os conflitos entre
seringueiros e fazendeiros que elas produziram na região de Xapuri,
contextualizando-as no processo mais geral de modernização da agri-
cultura iniciado no Brasil após o Golpe Militar de 1964. Para ele, “(...)
17 Sumário
as lutas dos seringueiros, ao combater a propriedade capitalista da ter-
ra, assumiram características anticapitalistas, portanto de luta de clas-
ses” (DUARTE, 1985: 09).
Com essa afirmativa, Duarte mantém, por um lado, a ideia
presente nos outros trabalhos citados que associam à luta de classes
as mudanças estruturais, e por outro, atribui à luta de resistência dos
seringueiros de Xapuri um caráter anticapitalista, aproximando-se da
posição de José de Souza Martins2. No decorrer deste livro, dialoga-
mos com essa posição de forma permanente.
Logo após o assassinato do presidente do STR de Xapuri,
Chico Mendes, em 1988, e com as repercussões deste fato na imprensa
mundial, o Acre transforma-se em alvo de inúmeras atenções. A partir
desse momento, revela-se uma mudança radical nos enfoques dados
anteriormente à luta de resistência dos seringueiros, que passam a ser
analisados sob a ótica ambientalista.
Embora destituídas de preocupações acadêmicas, publica-
ções como as de Souza (1990) e Revkin (1990) ilustram claramente
essa mudança de enfoque. A figura de um líder (Chico Mendes) e suas
supostas paixões pela ecologia constituem-se em elementos centrais
para a abordagem das lutas de resistência dos seringueiros. Com isso,
realiza-se uma inversão na ordem dos valores na análise dessas lutas.
Os seus aspectos particulares (as relações com as lutas ambientalistas
mais gerais e a proeminência das virtudes de um de seus líderes) pas-
saram a constituir-se em elementos explicativos e fundamentais. Da
mesma forma, seus aspectos centrais (a natureza política do confronto)
passam a ser tratados como particularidades dessas lutas.
Na concepção teórica que orienta nossa análise, a luta de
resistência dos seringueiros não é entendida somente a partir das mu-
danças estruturais ocorridas na década de 1970. Partimos do pressu-
posto de que a luta de classes é um processo iniciado anteriormente
nos interstícios da empresa extrativista. Os conflitos diversos nas rela-
2
Segundo Martins, “Já não há como separar o que o próprio capitalismo unificou: a terra e
o capital; já não há como fazer para que a luta pela terra não seja uma luta contra o capital,
contra a expropriação e a exploração que estão na sua essência”. (MARTINS, 1981:177)
Sumário 18
ções entre seringueiros e patrões, embora se expressassem na maioria
das vezes de forma individualizada, possuíam um conteúdo de classe.
Segundo Thompson (1979), tem se prestado uma atenção
teórica às classes, na maioria das vezes numa referência a-histórica,
e pouquíssima atenção à luta de classes. Ao analisar a formação da
classe operária inglesa, esse autor afirma que ela não teria surgido num
determinado momento, mas no seu próprio “fazer-se” através de suas
lutas e experiências comuns. No sentido que lhe é dado por Thompson,
as experiências não são determinadas exclusivamente pelas relações de
produção, mas também pela forma como são tratadas em tempos cul-
turais, “encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas
institucionais.” (TOMPSON,1987:10)
Além da historicidade, Thompson destaca ainda o caráter
relacional das classes; segundo o autor,
A classe acontece quando alguns homens, como resul-
tado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas),
sentem e articulam a identidade de seus interesses entre
si, e contra os outros homens cujos interesses diferem (
e geralmente se opõe) dos seus. A experiência de classe
é determinada, em grande medida, pelas relações de pro-
dução em que os homens nasceram – ou entraram invo-
luntariamente. A consciência de classe é a forma como
essas experiências são tratadas em termos culturais: en-
carnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e for-
mas institucionais. Se a experiência aparece como deter-
minada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe
(THOMPSON, 1987:10).
19 Sumário
a um único sindicato, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri,
apresentar-se como organizador e representante de uma “vontade co-
letiva”, no sentido atribuído por Gramsci3. Isto é, agregar aspirações
aparentemente dispersas em torno de um objetivo comum: a conquista
da terra segundo a forma de posse e uso adotada pelos seringueiros.
No curso da construção dessa “vontade coletiva”, impulsionou-se a
formação de uma identidade política, a proposta de Reservas Extrati-
vistas, o Conselho Nacional dos Seringueiros e a impulsão da partici-
pação ativa na política partidária via Partido dos Trabalhadores.
Esse processo é analisado em um quadro mais complexo
de relações que compõem a luta de resistência dos seringueiros e a
forma como são trabalhados interna e externamente pelo sindicato. O
SRT Xapuri não limitou suas reivindicações, no que se refere à ques-
tão fundiária, aos preceitos da legislação, via Estatuto da Terra, como
fazia anteriormente a Delegacia Regional da CONTAG. O sindicato
procurou incorporar as demandas que estavam postas pela maioria de
sua base de representação, os seringueiros, através da articulação de
seus interesses mais imediatos – permanência da floresta – e os inte-
resses futuros. Notadamente soluções definitivas para a questão fundi-
ária, vinculando-as às lutas pela Reforma Agrária no Brasil e às lutas
dos trabalhadores em geral contra a exploração. Construiu assim uma
estreita relação com a política partidária e com outros movimentos
sociais na esfera da sociedade civil.
Sob este ângulo, analisamos a atuação de diversos media-
dores nesse sindicalismo: Igreja Católica, CONTAG, partidos políti-
cos e organizações clandestinas de esquerda, bem como os conflitos
e tensões gerados nesse movimento. Procurou-se ainda situar a ação
sindical como elemento propulsor da formação da identidade política
“seringueiro”.
Ao longo de sua histórica no Acre, o seringueiro recebeu
3
Para Gramsci (1984), o termo vontade coletiva indica uma ação consciente de classe em
torno de um projeto de revolução social. O organizador dessa “vontade coletiva”, segundo o
autor, seria o partido. Ao nos apropriarmos dessa terminologia, fazemo-lo num sentido mais
restrito, que indica a formação de um grupo social, articulado em torno de determinados
interesses, cuja natureza não indica necessariamente uma ruptura revolucionaria.
Sumário 20
diversas denominações por parte da classe dominante. Quando migrou
do Nordeste para a Amazônia, no século passado, ficou conhecido
como o “brabo”. Em seguida, já habituado ao regime de trabalho no
seringal, ele é o “manso”. Na década de 1940, ele reapareceu como
o arigó, o migrante nordestino que se integrou como “voluntário na
guerra” naquilo que ficou conhecido como a “batalha da borracha”.
No início da década de 1970, ele é o “acreano”, posseiro expulso dos
seringais vendidos para os “paulistas” (ALLEGRETTI,1979:09)
Posteriormente, nos anos 1980, a denominação “seringuei-
ro” deixou de indicar apenas uma atividade funcional e passou a cons-
tituir-se, no processo de lutas, em uma identidade política. Essa iden-
tidade política é constituída a partir da unificação dos interesses dos
seringueiros de Xapuri (garantir a floresta como meio de reprodução
social) em oposição ao seu inimigo em comum, os fazendeiros. Essa
identidade marca também a diferença de seus interesses em relação
aos de seus aliados, os “posseiros”, “trabalhadores rurais”, “colonos”
e outros segmentos das classes subalternas.
Rambaud (1984) analisa o processo de formação da iden-
tidade dos agricultores poloneses que mantiveram sua reprodução so-
cial com base na exploração familiar em propriedade privada da terra.
Segundo o autor, isso fazia com que esses agricultores tivessem por
parte do Estado um tratamento diferenciado daquele dispensado aos
trabalhadores das fazendas estatais e das cooperativas. O Estado, ain-
da segundo Rambaud, atribuía um valor fundamental ao trabalho,
mas quando este era exercido coletivamente, na forma de proprieda-
de social. Como os agricultores não se enquadravam nesse esquema,
eram considerados “cidadãos de segunda categoria” (RAMBAUD,
1984:209)
Contra essa situação, esses agricultores reagem, lutam e
nesse processo conquistam o direito à sindicalização – via Sindica-
to Solidarność – constroem uma “identidade coletiva”, que indica
a busca de um tratamento igualitário por parte do Estado (RAM-
BAUD,1984:237). A partir dessa análise, Rambaud afirma que “a iden-
tidade de um grupo social é construída pelas relações que eles mantêm
21 Sumário
com sua própria história, com sua coesão ou suas tensões internas,
com a sociedade que o reconhece ou o cria, às vezes combatendo-o”.
(RAMBAUD,1984:217)
A adoção da categoria “identidade política” deve-se à efi-
cácia e à objetividade que ela traduz para o processo que estudamos.
O uso dessa categoria não é apropriado aqui no sentido voluntarista,
que a percebe como um produto final, muitas vezes aparecendo como
substituto a categoria “classe para si”. Na maneira como a compre-
endemos, a identidade é mutável, podendo “cristalizar-se e descrista-
lizar-se” como nos mostra Novaes (1988), em função de conjunturas
especificas das lutas.
No curso da luta de classes, poderá ou não afirmar-se um
projeto que unifique os interesses diversos e articule as diferentes
identidades que se produziram nesse processo. Dessa forma, pode-se
configurar numa situação especial de conjuntura, a formação de uma
identidade de classes com um projeto de transformação social. Esse
processo supõe, entretanto, a ação indispensável de um sujeito político
(o partido) que seja reconhecido como portador desse projeto e unifi-
cador da classe.
Ao adotarmos essa opção teórica interpretativa, não o fa-
zemos sob uma perspectiva que vislumbrou no conceito de classe for-
mulado por Thompson, a “tabua de salvação” para essa problemática,
mas sim como um caminho possível para pensarmos essa questão. Re-
conhecemos, por um lado, as críticas a Thompson no sentido de que,
ao substituir as categorias “classe em sí” e “classe para si” por uma
categoria explicativa nova, a de “experiência de classe”, ele estaria
admitindo que não haja classe onde não existe consciência de classe,
tornando-a, portanto, um elemento subjetivo e conjuntural. Por outro
lado, a dicotomia “classe em si” e “classe para si”, da forma como foi
tratada originalmente por Marx (1984), sugere certo evolucionismo ao
indicar a passagem de um estágio para o outro – da “classe em si à
classe para si” – como expressão de um devir histórico da classe ope-
rária.
Sumário 22
Assim, nossa opção não foi determinada a priori, ela se
construiu e tomou contorno definido no curso da elaboração da disser-
tação, agora transformada em livro. Em outras palavras, foi a necessi-
dade de analisarmos elementos até então poucos explorados – como as
experiências acumuladas pelos seringueiros – que nos levou a optar por
esse referencial teórico. Optamos ainda por adotar o termo seringuei-
ro como uma denominação única ao longo do trabalho. No capítulo
inicial ele indica uma atividade funcional; nos capítulos subsequentes,
além de uma função, passará a indicar também a conquista de uma
identidade política e de um lugar na sociedade.
Sobre a pesquisa
Durante a pesquisa, a maior dificuldade que encontramos
foi a escassez de bibliografia nas questões relacionadas às experiências
vividas pelos seringueiros. Na maior parte da historiografia regional,
não encontramos referências a essa questão. Isso se explica porque as
atenções estiveram voltadas sempre para os aspectos econômicos es-
truturais da economia da borracha. Para tratar dessa questão, tivemos
que recorrer a interpretações dos poucos autores que se preocuparam
em situar esses aspectos, bem como depoimentos de seringueiros, in-
telectuais e antigos patrões seringalistas.
Na coleção do Jornal Varadouro – um periódico da impren-
sa alternativa que circulou no Acre no período de 1977 a 1981, com
vinte e quatro edições – encontramos valiosas informações que nos
ajudaram a reconstruir o quadro mais geral dos conflitos de terras no
Acre. Através desse periódico conseguimos compreender maiores de-
talhes do contexto em que foi gestada a organização sindical na região.
Nos arquivos da CPT-Acre consultamos as publicações e
documentações produzidas por essa pastoral e pela Prelazia do Acre
e Purus, recortes de Jornais da imprensa local e nacional sobre os con-
flitos na região, dissertações de mestrado e outros documentos. Nos
arquivos do Museu da Borracha encontramos todos os jornais publica-
dos no Acre no período de 1970 a 1986. Nos arquivos do STR Xapuri
e do Conselho Nacional dos Seringueiros, consultamos livros, atas, pu-
23 Sumário
blicações e documentos produzidos por estas e outras entidades. Nos
arquivos do jornal O Globo encontramos recortes de grandes jornais
de circulação nacional sobre os conflitos de terras e a ação sindical do
Acre.
Na biblioteca da FASE encontramos o “Dossiê Chico Men-
des”, a coleção de cadernos do CEAS e os boletins nacionais da CPT.
Na biblioteca da ABI consultamos as coleções dos jornais Varadouro e
Movimento, este último por ter sido, entre os jornais de imprensa alter-
nativa de circulação nacional, o que deu maior cobertura aos conflitos
de terra.
Realizamos ainda quinze entrevistas4, no período de abril
a outubro de 1990. Entre os entrevistados figuram o então presidente
da CONTAG, José Francisco da Silva, ex-coordenador da Delegacia
Regional da CONTAG-AC, João Maia, assessores sindicais, advoga-
do, jornalista, lideranças sindicais e seringueiros de base do STR de
Xapuri, lideranças do CNS, religiosos, militantes de organizações po-
líticas de esquerda e do PT, antigos patrões seringalistas e técnicos do
IBAMA.
Nessas entrevistas procuramos confrontar as informações
de que dispúnhamos através das fontes secundárias a fim de obter
maiores detalhes sobre cada questão específica. Esses depoimentos fo-
ram fundamentais para reconstituirmos a trajetória dos seringueiros
no Acre, os variados aspectos das relações de dominação nos seringais,
a formação do sindicalismo, as disputas políticas, etc. Contém ainda
muitas informações e interpretações resultantes de nossa vivência nes-
se sindicalismo.
4
Foram citadas nominalmente apenas aquelas pessoas que já têm uma posição conhecida
publicamente e que, pelo papel que desempenharam, não poderiam simplesmente aparecer
através de seu lugar no movimento. Para preservarmos a segurança e, de certa forma,
resguarda-las de eventuais explorações políticas nas disputas internas do movimento, optamos
por omitir no texto os nomes das lideranças, assessores e outros entrevistados que ainda
tinham envolvimento direto com as lutas sindicais no estado do Acre (as duas vezes em que
aparecem são na forma de citações de matérias publicadas em jornais). Deve-se destacar
ainda que neste período havia várias lideranças sindicais ameaçadas de morte, notadamente
Osmarino Amâncio Rodrigues, líder da oposição sindical em Brasileia e dirigente do CNS.
Quanto à referência às correntes que disputavam a hegemonia no movimento em Xapuri, além
de ser um tema amplamente divulgado na imprensa acreana (e as vezes na imprensa nacional),
trata-se de uma situação conjuntural, que não reflete mais a realidade do movimento.
Sumário 24
O livro está organizado em cinco capítulos, conclusões e
posfácio. No Capítulo 1 procuramos resgatar experiências vividas pe-
los seringueiros ao longo de um século de história do extrativismo da
borracha (1870 – 1970). Para isso, apontamos algumas dimensões das
relações de classes, os aspectos ligados ao trabalho, religião e cultura
presentes nas formas de dominação. Realçamos ainda as sucessivas
mudanças e conquistas ocorridas ao longo do tempo, bases para que
os seringueiros efetivassem posteriormente a conquista de sua “auto-
nomia” em relação aos “patrões” seringalistas.
No capítulo 2, analisamos o processo inicial de formação
do sindicalismo rural acreano e as modificações que ele produz nas
relações tradicionais de dominação nos seringais. No capítulo 3, deti-
vemo-nos na abordagem da conjuntura que propiciou a construção de
um “modelo” de sindicalismo no Acre. Nesta perspectiva, destaca-se o
papel exercido pelas diversas forças que atuaram nos conflitos de terra,
como a Delegacia Regional da CONTAG, Igreja católica, Governo
estadual e Jornal Varadouro.
No capítulo 4, analisamos as condições gerais que propicia-
ram a gestação e a efetivação da ruptura no sindicalismo rural acreano.
Destacamos também a emergência de um novo modelo sindical em
Xapuri, através da luta de resistência dos seringueiros. No capítulo 5,
preocupamo-nos em situar a formação do Conselho Nacional dos Se-
ringueiros no quadro mais geral da conjuntura nacional e analisamos
a natureza dessa organização e suas relações com a estrutura sindical.
Nas conclusões, colocamos em destaque elementos que singularizam
a formação do sindicalismo rural acreano, bem como algumas consi-
derações gerais sobre possíveis desdobramentos em sua trajetória. Fi-
nalmente, no Posfácio, apresentamos uma análise dos (des) caminhos
desse movimento social sob a batuta dos “mercadores da natureza”.
25 Sumário
Capítulo I
Sumário 26
ocupação do território pela empresa extrativista como centro das suas
atividades econômicas e políticas. Nela localizaram-se os principais
portos; os conflitos fronteiriços que culminaram com a anexação do
Acre ao Brasil em 1903; o principal contingente de migrantes nordes-
tinos; o processo inicial de abertura de rodovias na década de 1960;
os maiores conflitos pela posse da terra a partir da década de 1970; o
início da formação sindical e os principais momentos do sindicalismo
rural no Acre.
Resumidamente, pode-se dizer que a região do Acre e Pu-
rus foi e continua sendo o polo mais dinâmico do estado do Acre e
por isso mesmo, teve em relação à região do Vale do Juruá uma maior
“aceleração do seu tempo histórico”, produzindo transformações mais
rápidas e profundas. Enquanto os seringueiros do Acre e Purus co-
meçaram a legitimar sua “autonomia” na década de 1970, no vale do
Juruá esse processo só ocorreria na década de 1980, após a criação do
Conselho Nacional dos Seringueiros.
Até 1870, o território formado atualmente pelo estado do
Acre estava ocupado basicamente pelos povos indígenas5. Registrava-
se ainda a presença de algumas centenas de peruanos que exploravam
o caucho na região do Alto Purus e bolivianos que iniciavam a explo-
ração da borracha natural no vale do rio Acre. Essa parte da Amazônia
ocidental fazia então parte dos territórios boliviano e peruano.
A partir de 1877, inicia-se um forte movimento migrató-
rio de brasileiros, oriundos do sertão nordestino, para essa região. Tal
migração foi motivada pela descoberta de novos usos para a borracha
natural pelas indústrias europeias e estadunidense, que passam a de-
mandar em escala crescente a importação dessa matéria-prima, cuja
única fonte era a Amazônia. Para atender as exigências do mercado
externo, era preciso recrutar força de trabalho em outras regiões, uma
vez que a existente no local era insuficiente. (SANTOS,1980).
Roberto Santos aponta seis fatores para explicar o desloca-
5
Estima-se que existiam nesse território cerca de cinquenta povos indígenas com um
contingente populacional de aproximadamente 150 mil pessoas.
27 Sumário
mento da força de trabalho nordestina para a Amazônia: o preconceito
do trabalhador nordestino em relação ao trabalho nos cafezais no Sul
do país (considerado escravo) e o desejo de tornar-se, na Amazônia,
“empreiteiro de si mesmo, seringueiro autônomo, não sujeito sequer
a regime salarial, pois o látex que vendesse lhe pertencia”; as ilusões
de enriquecimento rápido que a extração da borracha oferecia; o forte
esquema de propaganda realizada pelos prepostos dos seringalistas em
Fortaleza, Recife e Natal; os subsídios oferecidos pelos governos do
Pará e Amazonas ao transporte de migrantes para as áreas de coloniza-
ção agrícola, mas que acabariam revertendo-se em seringais; existência
de maiores facilidades de transporte até o porto de Belém; a quebra da
resistência dos senhores de terra nordestinos à saída de homens, num
período de crises de seca na região (SANTOS,1980:106). No Acre,
continua o referido autor,
(...) a onda migratória nordestina tomou duas direções
distintas. Uma subindo o Aquirí, chocando-se com a re-
sistência boliviana, dando origem à epopeia de Plácido de
Castro. A outra, continuando a subida do Purus, foi en-
contrar os caucheiros peruanos com quem manteve vio-
lentas refregas pela posse das terras no atual município de
Sena Madureira.
Sumário 28
do Pará que se deslocou para o território acreano em 1870 e iniciou
a abertura de seringais nas margens do rio Purus6. Isso foi possível
porque ele possuía conhecimentos e relações pessoais com os comer-
ciantes de Belém, que facilitavam o aviamento de mercadorias para a
sua empresa. Existiam também aqueles de origem estrangeira, como é
o caso do português Caetano Monteiro da Silva, um dos pioneiros do
Alto Purus (LOUREIRO, 1986:46)
Os patrões seringalistas subiam os rios à procura de áreas
com maior concentração de árvores de seringa. A quantidade de terras
não interessava, mas sim a sua cobertura, ou seja, a densidade de ár-
vores de seringa (hevea brasiliensis) denominada como seringueiras. Ao
encontrar a área que mais lhes convinha, dava-se início à organização
do seringal para montar a empresa extrativista. Com isso, passavam a
adquirir direitos sobre as terras que ficavam sob seu domínio. Tratava-
se de um domínio meramente formal, pois não existia, inicialmente,
titulação da propriedade da terra. A presença do seringalista e o con-
junto de regras que estabelecia para o funcionamento da empresa ex-
trativista faziam com que fosse reconhecido pelos seringueiros como o
“patrão”, a autoridade suprema naquela faixa da floresta.
Diversos conflitos marcaram a ocupação do território acre-
ano desde o início da expansão da empresa extrativista. Os seringuei-
ros vivenciaram esses conflitos, participaram deles e foram utilizados
pelos “patrões” seringalistas para exterminar os povos indígenas atra-
vés das denominadas “correrias” 7; expulsar os caucheiros peruanos
das margens peruanas do Alto Purus; formarem ainda o principal
contingente de um exército liderado por Plácido de Castro no início
do século XX para expulsar os bolivianos do território, na chamada
“Revolução Acreana”.
6
Esses dados nos foram gentilmente fornecidos pelo então professor e pesquisador da
Universidade Federal do Acre (UFAC), Pedro Vicente Costa Sobrinho. Pedro estava concluindo
uma pesquisa sobre o início das organizações pré sindicais no Acre, a ser apresentada como
dissertação de mestrado ao Departamento de Sociologia da PUC –SP, sob orientação do Prof.
Otavio Ianni.
7
Denominação dada às expedições criminosas organizadas pelos patrões seringalistas no final
do século XIX e início do século XX. Elas tinham como objetivo “limpar o território” através
do extermínio dos povos indígenas e ou captura para escravização da sua força de trabalho nos
seringais, como mostra Aquino (1976).
29 Sumário
Denominada pelos bolivianos como “La guerra del Acre”,
o dito conflito resultou na anexação de uma porção do território boli-
viano ao Brasil. Teve como uma das suas principais motivações decla-
radas pelos seringalistas, impedir que se efetivasse a execução de um
acordo de exploração da borracha no território acreano. Esse acordo
foi firmado entre o governo boliviano e o Bolivian Syndicate,
(...) uma organização privada de financistas e homens de
negócios que, ao modo clássico do capitalismo europeu
na Ásia e na África, iria ocupar-se da administração civil
e fiscal do Acre, podendo manter polícia, exército e esqua-
dra (...). A primeira insurreição dos acreanos se dera em
maio de 1899. Mas a fase decisiva da revolução visando
estabelecer um estado independente do Acre – para pedir
a ulterior anexação ao Brasil – transcorreu entre agosto de
1902 e janeiro de 1903, com a vitória total dos brasileiros
(SANTOS, 1980: 203,204).
Sumário 30
de seus inimigos externos ( bolivianos e peruanos) e internos (os povos
indígenas). Dessa forma, dissimulavam-se as contradições e os confli-
tos dos interesses de classes presentes.
Esse artifício foi habilmente instrumentalizado pelos pa-
trões seringalistas. Combinado a um forte esquema coercitivo, consti-
tui-se no principal sustentáculo do regime de dominação engendrado
no território acreano, na primeira fase da ocupação econômica.
No interior do seringal não havia circulação de moeda. O
sistema era comandado pelas relações mercantis8 conhecidas regional-
mente como “sistema de aviamento”, que funcionava com base em
um endividamento prévio e continuado do seringueiro com relação ao
seringalista. Este endividamento começava com os gastos da viagem
(no caso dos migrantes nordestinos) e os primeiros adiantamentos para
comprar no barracão o material necessário ao início dos trabalhos de
extração do látex (SANTOS, 1980).
É interessante observar que esse tipo de relação de traba-
lho social não constitui uma particularidade da empresa extrativista na
Amazônia. Em são Paulo, nas áreas produtoras de café, os trabalha-
dores eram submetidos a formas de relações similares a essa, que fica-
ram conhecidas como “colonato” (MARTINS, 1986). No Nordeste
acontecia o mesmo com o sistema de “morada” (PALMEIRA, 1977).
O “sistema de aviamento” estabelecia laços múltiplos de
dependência, formando uma cadeia de dominação assim representada
por Santos (1980):
8
Para Marx, “o capital mercantil é capital que só funciona na esfera da circulação. O processo
de circulação é uma fase do processo global de reprodução. Mas, no processo de circulação
não produz valor, nem mais-valia, portanto, (...) Diretamente, o capital mercantil não cria
valor nem mais-valia. Ao concorrer para abreviar o tempo de circulação, pode indiretamente
contribuir para aumentar a mais-valia produzida pelo capitalista industrial. Ao contribuir para
ampliar o mercado e ao propiciar a divisão do trabalho entre os capitais, capacitando, portanto
o capital a operar em escala maior, favorece a atividade do capital industrial e a respectiva
acumulação. Ao encurtar o tempo de circulação, aumenta a proporção da mais-valia com
o capital adiantado, portanto a taxa de lucros. Ao reter na esfera da circulação parte menor
do capital-dinheiro, aumenta a parte do capital aplicado diretamente na produção” (MARX,
s.d.:323).
31 Sumário
Mercado internacional
bos↑ ↓pe
Seringalistas
bos↑ ↓pe
Seringueiros
bos↑ ↓pe
Bos: bens de consumo, instrumento de trabalho, dinheiro.
Pe: produção extrativa (SANTOS, 1880, p. 160)
Sumário 32
produtivo no seringal. Na “margem”, geralmente localizada à beira
dos rios, onde se instalava um pequeno porto com a casa do seringa-
lista ou se preposto (gerente), existiam pequenas casas habitadas pelos
trabalhadores envolvidos nos afazeres diversos, tais como embarque e
desembarque de produtos e mercadorias, “aviamento” de mercadorias
para os seringueiros e algumas atividades agrícolas. O “barracão” era
o centro nervoso da empresa extrativista, ele determinava o ritmo da
vida e trabalho no seringal.
No “centro”, um lugar distanciado da “margem”, reali-
zava-se a atividade extrativa nas diversas “colocações”, denominação
atribuída às unidades individualizadas de produção de borracha. A
“colocação” é uma pequena clareira aberta no centro da floresta, onde
se instalava o abrigo do seringueiro – uma pequena palhoça – e todo o
material necessário à extração e defumação do látex. As “colocações”
geralmente são bem distantes entre si e estão interligadas por um “va-
radouro” (caminho utilizado para transporte de mercadorias e produ-
tos). Cada uma delas era ocupada por um seringueiro e sua função era
produzir borracha, realizando todas as tarefas necessárias a este fim: a
limpeza das “estradas” (traçado geométrico que liga um determinado
número de seringueiras), o corte, a coleta do látex e a defumação.
Apesar da existência de um sistema rigoroso de fiscalização
dessas atividades por parte do patrão seringalista, o seringueiro pos-
suía uma relativa autonomia na organização de sua produção, poden-
do optar por horários e, de certa forma, pela organização de sua jor-
nada de trabalho. A empresa extrativista, como qualquer outra, exigia
certa especialização da força de trabalho. Além dos produtores diretos
(seringueiros) e dos trabalhadores da margem (carregadores, trabalha-
dores agrícolas, caixeiro, guarda-livros, gerentes), havia os “mateiros”
e “toqueiros”, cujas funções eram, respectivamente, identificar as ár-
vores de seringa e fazer os piques entre elas, para posteriormente abrir
as “estradas”.
Havia, ainda, os “fiscais de corte” (função muitas vezes
exercida pelos próprios “mateiros”), encarregados de verificar se os
“fregueses” (seringueiros) estavam seguindo os sistemas de corte es-
33 Sumário
tabelecidos pelos “patrões”; os “noteiros”, circulavam no “centro”,
passando em cada “colocação” e fazendo as anotações dos pedidos de
mercadorias dos seringueiros e, finalmente , o “comboieiro”, indivíduo
que conduzia o “comboio” (tropa de burros de carga) do barracão para
o centro, entregando as mercadorias nas “colocações” e recolhendo a
produção de borracha dos seringueiros.
O seringal representava um mundo à parte, onde as leis
(regras do sistema) eram determinadas pelo “patrão” seringalista. É
provável que essas regras abrangessem desde a regulamentação das re-
lações sociais no interior dos seringais, até aquelas ligadas estritamente
ao processo produtivo. Em nossas fontes de pesquisa, só foi possível
identificar as últimas, que se referem basicamente à proibição rigorosa
da dispersão do trabalho do seringueiro em outras atividades (agrícolas
e extrativistas) que não estivessem diretamente ligadas ao fabrico de
borracha, do estabelecimento de relações comerciais fora do barracão
a que estava subordinado e de sair do seringal sem a permissão do pa-
trão. (RANCY, 1980:19)
O patrão seringalista detinha plenos poderes na vastidão
das florestas que estava sob seus domínios, podendo tanto premiar
como castigar seus “fregueses”. Seu objetivo era obter a maior produ-
ção possível de borracha; não lhe interessava o dispêndio de tempo e
energia do seringueiro em outra atividade que não fosse a extração e
defumação do látex. Era proibida a agricultura de subsistência. Com
isso, o patrão assegurava, por um lado, maior volume na produção de
borracha e, por outro lado, garantia a manutenção dos laços de de-
pendência do seringueiro, uma vez que todos os gêneros necessários
a sua sobrevivência tinham que ser adquiridos no “barracão”, sempre
a preços exorbitantes, o que o mantinha eternamente endividado, sem
poder sair do seringal (SILVA, 1982).
Até 1910, os gêneros alimentícios consumidos no serin-
gal eram adquiridos pelos patrões seringalistas nas casas aviadoras de
Belém e Manaus a preço extremamente elevado. Isso fez com que, a
partir desse período, alguns seringalistas passassem a desenvolver na
Sumário 34
“margem” algumas atividades ligadas a agricultura e pecuária, visan-
do ao abastecimento da empresa a um custo menor, garantindo, assim,
a elevação de suas taxas de lucro (COSTA SOBRINHO, s.d).
35 Sumário
ticar a agricultura de subsistência. Segundo Donald Sawyer (s.d.), esse
período teria marcado o surgimento da pequena produção no Acre. É
com esse segmento social, conhecido posteriormente como “possei-
ros”, que ocorrerão os primeiros conflitos pela posse de terra no Acre
na década de 1970.
Outro meio encontrado pelos patrões seringalistas para re-
sistir à crise foi a intensificação da caça de animais silvestres, visando
ao comercio de peles no mercado internacional. Esses produtos alcan-
çavam elevados preços naquele período. Iniciava-se também, a partir
da década de 1920, a coleta da Castanha-do-Brasil ( Bertholletia excelsa),
que chegou a obter bons preços no mercado de exportação.
O comércio da Castanha-do-Brasil obteve tanto resultado
que, no município de Xapuri – uma das áreas de maior concentração
de castanheiras da região – chegou a ser instalada uma usina de bene-
ficiamento do produto. Era exportada diretamente através da “Limita-
da”, uma forte empresa transportadora sediada no município que ope-
rou por muito tempo nessa região. É preciso ressaltar, porém, que essa
atividade atingiu uma faixa restrita do território acreano e era incapaz
de oferecer uma solução para a crise.
Ao analisar a crise no primeiro ciclo da borracha na região,
Oliveira (1980) afirma que:
A resultante desse processo (endividamento dos seringa-
listas com a decadência da borracha) reveste-se até certo
ponto de aspectos contraditórios. Por um lado registrou-se
uma re-concentração de terras, visto que dezenas de casas
aviadoras de Manaus e Belém apossaram-se de inúme-
ros seringais, como forma de ressarcimento das dívidas.
No entanto, a contrapartida é que face ao desestimulo à
produção extrativa, cessaram também os estímulos para a
continuidade das formas de repressão e sujeição da força
de trabalho e os seringueiros puderam experimentar fases
prolongadas de quebra da rigidez nas relações internas
dos seringais (OLIVEIRA, 1980:45)
Sumário 36
interior dos seringais, no período de 1920 a 1940 (auge da crise do
monoextrativismo da borracha) tiveram um relevante significado his-
tórico para os seringueiros. Constituíram-se em um dos pilares para
a diversificação de atividades produtivas voltadas para assegurar uma
produção destinada ao autoconsumo.
Desse modo, reduziram parcialmente sua dependência em
relação à produção de borracha e todo o sistema de controle dele ema-
nado pela empresa extrativista. Ademais, recriam e fortalecem laços de
sociabilidade entre si e o estabelecimento de vínculos pessoais e comer-
ciais com outros agentes sociais, os “regatões”9. Em outras palavras,
nesse período o “barracão” deixou de ser o único lugar de organização
e comando da produção e da vida social dos seringueiros.
A “libertação do cativeiro” significava a possibilidade de o
seringueiro se desvencilhar dos laços de compromisso e dependência
que o atavam ao patrão seringalista. Possibilitava, assim, exercer certa
autonomia que lhe assegurava tanto o poder de optar pelas formas de
uso das suas “colocações” quanto por agentes comerciais intermediá-
rios que melhor lhe conviesse.
Afinal, parte majoritária desses seringueiros havia se deslo-
cado de suas regiões de origem para a Amazônia na tentativa de con-
quistar a condição de “produtores autônomos”. Ao que tudo indica,
essa ideia não havia submergido nas agruras do cativeiro. Apesar de
se confrontarem com condições completamente adversas, a ideia de
liberdade continuava ainda viva na memória de muitos deles.
É interessante observarmos que, num dado momento, os
“adjuntos” (uma forma de mutirão organizado pelos seringueiros para
derrubar capoeiras, fazer “roçados”, colheitas, etc...) passaram a cons-
tituir-se, em algumas áreas da região do Acre e Purus, como uma prá-
tica frequente. Não temos informações precisas de quando e como se
realizaram os primeiros “adjuntos”. É provável que a desarticulação
da empresa extrativista e o abandono de alguns seringais pelos patrões
9
Denominação atribuída aos agentes que praticavam o comércio ambulante em uma
embarcação ao longo dos rios e igarapés na Amazônia.
37 Sumário
seringalistas tenham contribuído para que os seringueiros buscassem
entre eles próprios forma de garantir a sua sobrevivência na floresta.
Muitos deles, apesar da exploração a que estavam submetidos no se-
ringal, não pretendiam voltar para a sua terra de origem, o Nordeste,
sinônimo de seca, de miséria e fome. No território acreano, pelo menos
eles tinham o que comer: podiam caçar, pescar e, mais recentemente,
até plantar seus “roçados”.
A prática do “adjunto”, o estreitamento das relações com
os “regatões” e a instalação física da Igreja Católica na região em 1919
(Loureiro, 1986:139) para levar a mensagem religiosa a essas popu-
lações, implicaram modificações substanciais nas regras de sociabi-
lidade nos seringais. Em seu conjunto, propiciaram condições para
que se rompesse o isolamento habitual a que os seringueiros estavam
submetidos, intensificando as formas de intercâmbio social entre eles.
Há certa dificuldade em analisar esse período em face de
precariedade de informações existentes nos arquivos e na bibliografia
disponível. Talvez porque as atenções e preocupações estivessem sem-
pre voltadas para os momentos de maior destaque da região, seja no
cenário econômico (ciclos da economia da borracha), seja no cenário
político, mormente os conflitos de fronteira com a Bolívia e Peru.
Sumário 38
medidas de impacto. A primeira delas foi a criação do SEMTA – Servi-
ço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia – para organizar
o deslocamento de novo contingente de migrantes do Nordeste para a
Amazônia. Uma das estratégias utilizadas para atrair os nordestinos
foi oferecer-lhes o alistamento como voluntário de guerra para atuar
numa frente diferente: a extração da borracha na Amazônia, ficando
conhecidos, por isso, como o “exército da borracha”. Seus integrantes
receberam a dominação de “soldados da borracha”11. A composição
social desse novo contingente de migrantes nordestinos era muito di-
ferente da anterior, composta basicamente por uma massa de “despos-
suídos” do sertão.
Havia desde pequenos proprietários rurais, os “corum-
bas” , até trabalhadores urbanos, estes em grande número, da cons-
12
11
Uma das vantagens de esse “alistamento” seria a possibilidade desses indivíduos receberem,
após o final da guerra, o mesmo tratamento destinado àqueles que lutaram no front (pensões,
bonificações e outros tipos de “benefícios”).
12
Os “corumbas” eram pequenos proprietários do sertão e do agreste nordestinos que, na época
do corte da cana, deslocavam-se de suas terras (seus afazeres ficavam sob a responsabilidade
das mulheres, crianças, etc...) para trabalharem como assalariados nos engenhos.
39 Sumário
mas básicas para a regulação das relações de trabalho nos seringais, e
determinava o cumprimento dessas medidas através de exigência, pelo
Banco de Crédito da Borracha, de um contrato-padrão, para regular as
operações financeiras e comerciais com os patrões seringalistas.
Em linhas gerais, as cláusulas desse contrato-padrão asse-
guravam ao seringueiro determinados direitos e obrigações. Quanto
aos direitos, ele era considerado um arrendatário e receberia 60% da
sua produção de borracha a um preço correspondente àqueles prati-
cados nas praças de Belém e Manaus. Garantia-se ainda, um hectare
de terra para plantio, além da pesca, caça e venda de peles de animais.
Quanto às obrigações, ficava estabelecida a exclusividade da venda da
borracha para o patrão seringalista contratante. O não cumprimen-
to dessas cláusulas implicava fraude, sujeita a ação penal (MARTI-
NELLO, 1988:253).
É necessário tecermos duas considerações gerais em relação
à instituição desse contrato padrão. A primeira refere-se ao momento
político do país, pois os trabalhadores urbanos já haviam conquistado
direitos trabalhistas e sindicais. O governo Vargas tomava algumas ini-
ciativas para estender minimamente alguns desses direitos aos traba-
lhadores do campo (STEIN, 1983). Nesse mesmo período, as relações
de trabalho na zona canavieira passaram a ser reguladas por um tipo
de mecanismo muito semelhante ao que passou a vigorar nos seringais
da Amazônia. Os trabalhadores dos canaviais obtiveram, entre outros,
o direito de cultivar um “sítio”, pequeno lote de terras ao redor de
suas moradias que ficava livre para esses trabalhadores fazerem suas
roças (PALMEIRA, 1977). Não é por acaso que esse tipo de contrato
aparece nas áreas de produção de açúcar e borracha, pois esses dois
produtos tinham grande peso nas exportações do país.
A segunda observação está ligada à natureza desse contra-
to-padrão. Apesar de, no essencial, preservar as relações mercantis,
ele consagra algumas conquistas anteriores dos seringueiros (direito
ao plantio das roças, a pesca, à caça e à venda de peles de animais sil-
vestres) e estabelece as bases da remuneração dessa força de trabalho.
Sumário 40
Anteriormente, isso não era estabelecido: os patrões seringalistas arbi-
travam a forma e os valores da remuneração.
Ao comentar a reação dos patrões seringalistas ante a ins-
tituição do contrato-padrão, Martinello (1986) afirma que eles teriam
exercido uma forte pressão no sentido de impedir sua efetivação, pois
o consideravam uma
Insensatez da mudança do regime do trabalho nos se-
ringais e o perigo de que os mesmos representavam para
o secular arcabouço econômico da região tão “séria” e
“justamente” construído pelas gerações passadas e que
agora se achava ameaçada pelas instruções que vinham
no bojo de uma emergência de guerra (MARTINELLO,
1988:256)
41 Sumário
A presença entre os migrantes de pessoas alfabetizadas13,
conhecedoras de seus direitos expressos nas cláusulas contratuais, aju-
da a compreendermos as reações esboçadas por esse segmento social.
Mesmo não sendo cumprida, a existência de um contrato de trabalho
modifica a situação anterior. Ele regula minimamente as relações so-
ciais de trabalho no seringal, o que passava a ser cobrado, especialmen-
te pelos novos migrantes, que não aceitavam ser “ludibriados” pelos
patrões seringalistas. Passavam a exigir aquilo que lhes havia sido pro-
metido ao embarcarem para a região amazônica.
A década de 1940 foi marcada ainda por uma forte campa-
nha ideológica promovida pelo governo e pelos patrões seringalistas.
Essa campanha primou pela exaltação de ideias nacionalistas que enal-
teciam o espírito de luta e a bravura dos “soldados da borracha” no
interior da floresta 14. A nova produção iria garantir o abastecimento de
borracha para a indústria bélica. Assim, eles estavam ajudando o Brasil
e os “países aliados” na Guerra contra os “países do eixo”.
Entretanto, apesar de todo esse aparato e da permanência
da rigidez do sistema de dominação nos seringais, não se conseguiu
reeditar nesse período o mesmo sistema de dominação da época do pri-
meiro ciclo da borracha. Martinello (1988) relata dois fatos ocorridos
na década de 1940 que evidenciam o agravamento dos conflitos nas re-
lações de classes, envolvendo seringueiros e patrões na região do Acre
e Purus. O primeiro teria ocorrido em um seringal nas proximidades
de Rio Branco, quando,
(...) duas centenas de seringueiros ‘arigós’, revoltados
com as péssimas condições de vida e de trabalho a que
estavam submetidos, passaram a fazer um abaixo-assi-
nado endereçado ao interventor do Estado. Por ocasião
da festa de São Sebastião, pediram a ajuda de dois pa-
dres e fizeram o documento, encaminhando-o a seguir.
13
Alguns até mesmo com certa experiência de participação em movimentos reivindicatórios
nas capitais nordestinas.
14
Diferente daquele nacionalismo despertado no início do século XX, que tinha como base
a ideia da conquista do território acreano da Bolívia e sua incorporação à nação brasileira;
na década de 1940 as motivações são outras. Elas tem como referente a Segunda Guerra
Mundial, a necessidade imperiosa de derrotar os “países do eixo”.
Sumário 42
Indignado com a audácia e os temos do documento, o
coronel interventor teria chamado um dos padres ao seu
gabinete, ameaçando entrega-los as autoridades da Re-
publica, de onde seria encaminhado à Corte Marcial por
sabotar ‘os esforços de guerra do Brasil’. Para acalmar os
exaltados ânimos criados pelo fato, a Igreja transferiu os
dois religiosos para o sul do país e as autoridades locais
reprimiram violentamente os seringueiros envolvidos no
episódio (MARTINELLO, 1988:265).
43 Sumário
juntamente com outros colegas armou uma cilada a João
Arthur e alguns de seus capangas, tocaiando-os na passa-
gem por um igarapé (MARTINELLO, 1988:264).”
Sumário 44
patrões, uma vez que ela possuía grande influência sobre os seringuei-
ros, particularmente, os de origem nordestina, portadores de uma tra-
dição cristã muito forte. Sua mensagem religiosa é dirigida no sentido
de reforçar e legitimar, no plano subjetivo, a submissão e o conformis-
mo. Uma vez por ano, os padres subiam e desciam os rios para fazer as
“desobrigas” 17 nos seringais. Esses padres se hospedavam na casa dos
patrões seringalistas e celebravam a missa na “margem”. Nesta oca-
sião, aproveitavam para fazer batizados e casamentos. Nas reuniões,
faziam abertos elogios à generosidade dos patrões e à sua fé cristã. (Cf.
depoimento de um ex-padre da região).
Com a ação da Igreja Católica, ainda de acordo com o mes-
mo ex-padre, a figura do patão seringalista é recoberta de novos signi-
ficados. Além de ser o viabilizador das condições materiais de vida da
população nos seringais, ele passa a representar também o elo com a
vida espiritual, pois é ele quem convida e hospeda os sacerdotes em sua
casa, sendo que alguns chegavam ate a construir capelas na “margem”.
Essa mesma pessoa nos informou ainda sobre a importân-
cia do papel da mulher do seringalista no reforço da estrutura de do-
minação nos seringais. Ela fazia caridades, ouvia as reclamações e às
vezes era gentil com os trabalhadores em sua casa. Muitas delas, ape-
sar dos maus tratos praticados por seus maridos contra os seringueiros,
passavam a ser veneradas nos seringais. Algumas chegaram mesmo a
se transformar em santas populares.
Havia ainda outros expedientes utilizados pelos patrões
seringalistas, como a proibição de escolas nos seringais, a difusão do
medo através de lendas que foram se incorporando ao folclore popu-
lar da região. Uma liderança do Conselho Nacional dos Seringueiros
(CNS) nos disse o seguinte a respeito do uso desses instrumentos pelos
patrões seringalistas:
Quando começam a se espalhar boatos nos seringais
17
Em um dos mandamentos do catolicismo, os cristãos são obrigados a se confessar pelo
menos uma vez no ano. O termo “desobrigar” significa, portanto, a desobrigação desse
compromisso, que é substituído pela missa celebrada anualmente por um padre em cada
seringal (Cf. depoimentos de um ex-padre da região).
45 Sumário
anunciando a presença de ‘MAPINGUARI, LOBISO-
MEM, CAVALO DE TROIA e BURRA DE PADRE’ é
porque os seringalistas estão querendo botar o “freguês”
para correr, pois eles ficam com medo de entrar na mata,
de cortar. Tudo isso é armação dos patrões.
Sumário 46
verno do Território Federal do Acre foi distribuir pequenos lotes de
terras (as chamadas “colônias agrícolas”, cujas dimensões variavam de
25 a 40 hectares) nas proximidades de algumas zonas urbanas. O ob-
jetivo dessas “colônias” era abrigar os seringueiros que abandonavam
os seringais e, ao mesmo tempo, criar condições para produzir inter-
namente os alimentos necessários ao consumo da população acreana
(COSTA SOBRINHO, s.d.). Com isso, seria possível suportar a “nova
crise” do extrativismo da borracha.
Segundo Silva, a solução para a crise de superprodução vi-
ria com a organização da indústria nacional de artefatos de borracha.
O processo de industrialização, via substituição de importações, que
se verificou no centro-sul do país nos anos 50, iria possibilitar o apro-
veitamento pelo mercado interno de toda a produção de borracha da
Amazônia. A partir de 1951, essa produção torna-se insuficiente para
abastecer as crescentes demandas da indústria nacional, e o Brasil co-
meça a importar borracha (SILVA,1982).
Ao analisar os efeitos da intervenção do Banco de Crédito
da Borracha na região, Silva afirma que a presença dessa instituição
financeira em nada alterou as condições do extrativismo. Teria servido,
porém, para reanimar o debilitado sistema de aviamento, restabelecen-
do as mesmas relações de produção que vigoravam no “boom” da bor-
racha, reorientando as forças produtivas para o extrativismo. O banco
passou a fazer a intermediação que antes era feita pelas casas aviadoras
e casa exportadora, permanecendo, no fundamental, inalterada a de-
pendência da economia extrativista. (SILVA, 1982).
No período de 1950 a 1970, ocorreram alguns fatos de im-
portância para o aprofundamento das contradições e aumento dos con-
flitos nas relações de classe na empresa extrativista. Com a expansão
do rádio como bem de consumo de massa no Brasil no final dos anos
1950, alguns seringueiros, de melhor condição financeira, passaram a
ter acesso a esses aparelhos. Dessa forma, os noticiários nacionais e in-
ternacionais começaram a ter maior difusão no interior dos seringais.
Através do rádio, os seringueiros passam a ter informações atualizadas
47 Sumário
sobre a tabela oficial do preço da borracha e a exigir com maior frequ-
ência e intensidade o seu cumprimento por parte dos patrões. Nesse
período, uma das principais disputas entre os seringueiros e seringalis-
tas passa a se dar em torno dos preços da borracha (ALLEGRETTI,
1978).
Allegretti cita a ocorrência de dois conflitos dessa natureza
no seringal Alagoas. O primeiro teria ocorrido em 1964, com “uma
greve de seringueiros com o objetivo de aumentar o preço da borra-
cha”. Uma greve no seringal significa “não deixar baixar a borracha”.
Em 1966, os seringueiros decidiram parar de cortar a seringa para con-
seguir um aumento de preços.
“Reuniram-se e foram fazer a proposta ao patrão (...) ou
pagava mil cruzeiros o quilo da borracha, ou dava des-
conto de 20% nas mercadorias vendidas no barracão.
Depois de falarem que se essa proposta não fosse aceita
abandonariam o seringal, o patrão concordou e pagou a
borracha a mil cruzeiros o quilo” (ALLEGRETTI, 1978:
130 a 133).
Sumário 48
Em entrevista com um ex-seringalista arrendatário da re-
gião de Xapuri, aparece a informação de que os seringueiros haviam
começado a mudar a partir de 1942, “com a lei do Governo Getúlio
Vargas”, e que, nos anos 1960, era comum eles irem ao Banco denun-
ciar o patrão que não cumpriu a tabela oficial de preços da borracha
fixada pelo Governo Federal. Segundo ele, o Banco exercia uma rígida
fiscalização sobre os financiamentos e sua aplicação pelos seringalis-
tas.
Falando sobre suas operações bancarias, este mesmo ex-se-
ringalista declarou que dos sete milhões financiados a ele pelo Banco
em 1963, um milhão e quinhentos mil cruzeiros foram destinados a
pagamentos de saldo dos seringueiros. Esse dado é revelador para o
esclarecimento das modificações operadas no sistema de dominação
neste período.
Para os seringueiros que, em períodos anteriores, haviam
sempre estado endividados no barracão, o fato de obterem saldo teve
dois significados da maior importância. Em primeiro lugar, suas lutas
de resistência, embora dispersas, haviam logrado uma relativa diminui-
ção da exploração de sua força de trabalho. Em segundo, com saldo,
além de possuir opções de compra fora do barracão, o que diminui sua
dependência em relação ao “patrão”, ele também conquista sua “liber-
dade”, porquanto não existe mais a prisão por dívida. Teoricamente,
suas opções nesse período eram muito maiores do que anteriormente.
Outro fato importante que deve ser destacado é o início da
abertura de rodovias nos anos 1960, facilitando o acesso às vias de
comunicação em algumas áreas. Com as rodovias, surge outro agen-
te social no campo, que irá ocupar o lugar dos “regatões”. Trata-se
do “marreteiro” (intermediário), que passa a estabelecer um comércio
ambulante com os seringueiros, comprando sua produção de borracha
e vendendo-lhes mercadorias diversas. Com isso, torna-se cada vez
mais difícil para o seringalista manter o controle da força de trabalho
nos moldes anteriores.
Por isso, os “patrões” reclamavam da abertura de estradas.
49 Sumário
Segundo eles, a concorrência que enfrentavam era desleal, pois, en-
quanto arcavam com todos os custos operacionais da manutenção da
empresa extrativista, os “marreteiros”, liberados de qualquer compro-
misso dessa natureza, encontravam-se em uma posição privilegiada
(Cf. Jornal O Rio Branco 04/05/1978).
Essas novas vias de comunicação facilitavam a maior in-
tegração dos seringueiros com outros agentes sociais, como os “mar-
reteiros”. Há um questionamento cada vez maior às “verdades” dos
seringalistas, uma vez que os primeiros passam a receber um volume
maior de informações. Além do mais, interessava aos “marreteiros”
desgastar ao máximo possível a figura dos patrões (acusando-os de la-
drões, mentirosos, entre outros), para afastar o seringueiro do “barra-
cão” e atraí-lo para estabelecer relações comerciais consigo. Esse é um
dos fatores que podem ajudar a explicar o aumento de conflitos nas
relações de classe nesse período.
Com o golpe militar de 1964, há um redirecionamento do
Estado no sentido de orientar a modernização da economia, colocan-
do em marcha, sob o comando da burguesia internacionalizada e de
uma tecnocracia civil-militar, um novo padrão de acumulação capita-
lista no país, sustentado pelo que Cardoso (1975) denominou de “mo-
delo de desenvolvimento dependente e associado”.
O Estado passa a atuar decisivamente não só nas condições
externas de acumulação, como também de forma ativa no processo
interno de reprodução do capital.
Afirma-se o Estado empresarial, com a multiplicação das
empresas públicas, pautadas sob a ética do lucro capita-
lista e a associação das empresas públicas com as corpo-
rações nacionais e multinacionais, através das quais o
Estado assegura os suportes para o desenvolvimento de-
pendente. Ao mesmo tempo isola e reprime as manifesta-
ções que, ainda que não políticas, possam significar riscos
aos padrões de crescimento (SANT’ANNA, 1988:53).
Sumário 50
frações hegemônicas da classe dominante que, através da instrumenta-
lização do aparelho estatal, direciona uma série de políticas com esta
finalidade. Nesse período, a Amazônia constitui-se em alvo de cobiça
do capital internacional. Surgiram diversas propostas de exploração
da região, como a “construção da carretera Boliviana Marginal de La
Selva e a proposta do Instituto Hudson de construção de grandes lagos
submergindo a Amazônia” (BECKER, 1990:13). As implicações geo-
políticas, que estas questões traziam, provocavam uma intensificação
dos esforços da ditadura militar para “ocupar” e garantir a “soberania
nacional” na região.
A ocupação da Amazônia se torna prioridade máxima
após o golpe militar de 1964, quando fundamentado na
doutrina de segurança nacional, o objetivo básico do go-
verno militar torna-se a implantação de um projeto de
modernização nacional (...) (BECKER, 1990:12).
Coube ao Estado
(...) a tarefa de quebrar o isolamento e o imobilismo da
região e, por outro lado, de motivar os agentes internos
e externos capazes de operar mudanças significativas da
vida econômica e social. Nem se poderia pensar em ou-
tro modo, face a (sic) condição retardatária de industria-
lização nacional e a própria natureza da aliança da ação
do Estado moderno: ele se encontra à frente de todas as
iniciativas de envergadura de desenvolvimento, seja por
razão de sua visão projetiva, prerrogativa, de adminis-
trar recursos coletivos (a mais-valia social), faculdade de
intermediar interesses opostos e contraditórios, papel de
criação de uma infraestrutura básica ao desenvolvimento,
seja, enfim, pelo seu peso direto no ciclo de reprodução
do capital” (SANT’ANA, 1988:53).
51 Sumário
vestimento de capitais na região. As ações e propósitos do governo se
acham definidos no Plano de Valorização Econômica da Amazônia,
orientado para promover o desenvolvimento autossustentado da eco-
nomia e o bem-estar social da região, de forma harmônica e integrada
na economia nacional (SANT’ANA, 1988).
Coube à SUDAM o papel preponderante de comandar as
ações federais na região, definindo as prioridades dos projetos ou em-
preendimentos privados na Amazônia. Ao BASA, ficaram reservadas
as funções de execução da política de créditos do governo e de agente
financeiro da SUDAM na aprovação de recursos destinados à inicia-
tiva privada. Os incentivos fiscais foram, contudo, “um dos elementos
mais eficazes para atrair a iniciativa privada nacional e estrangeira para
a região, pois ofereciam desde a isenção do imposto de renda para
pessoas jurídicas até a isenção total de taxas sobre importação de má-
quinas e equipamentos” (SANT’ANA, 1988: 53).
Este conjunto de medidas transformou a Amazônia em
alvo de múltiplos interesses de grandes grupos industriais e financeiros
a partir do final dos anos 1960. Nessa conjuntura, não há mais espaço
para a sobrevivência da empresa seringalista tradicional, pois não inte-
ressava ao Estado preservar ou amparar um setor extremamente atra-
sado da economia, incompatível com o “novo modelo” de acumulação
capitalista em curso no país.
A posição do Estado em relação aos seringais nativos fica
bem clara no parecer elaborado por um grupo de trabalho criado pelo
governo em 1965 para proceder ao exame da política nacional da borra-
cha. Este parecer condena a coleta extrativista “por julgá-la ineficiente
para atender o marcado a preços de concorrência, e lembrava o regime
antieconômico e antissocial do extrativismo silvestre. Condenava seus
custos excessivos, sua medíocre produtividade” (MEIRA, 1984:43).
Segundo Meira, este relatório indicava ainda em tom glo-
rioso a expansão dos seringais de cultivo fora da Amazônia, fazendo
referência às áreas de plantio de seringueiras no estado da Bahia. Com
isso, ficaram claras as opções de investimentos futuros em seringais de
Sumário 52
cultivo, cujas exigências tecnológicas e eficiência produtiva coaduna-
va-se com a política modernizante do país.
Não é por acaso que, a partir de 1965, os preços dos elastô-
meros nacionais passam a cair sensivelmente. Enquanto o IGP – índice
geral dos preços – registrou, em 1965, 34,52%, o preço da borracha
não sofreu nenhum reajuste. Em 1966, o IGP foi 38,3% e o preço da
borracha foi reajustado em 6,1% e em 16,1% em 1967 contra um IGP
de 25% (MEIRA, 1984:71).
A revogação do monopólio estatal da borracha, feita atra-
vés da lei 5.227, de 18 de janeiro de 1957, atingiu violentamente a
já debilitada economia extrativista. Além de uma redução drástica do
volume de créditos para o setor, os preços seriam diretamente afetados.
“Em nome da livre concorrência” e do “realismo econômico”, dever-
se-iam “extinguir as distorções provocadas pela garantia de preços da
borracha vegetal” (MEIRA, 1984:71).
Meira (1984) reporta a reação no Parlamento de um grupo
de deputados ligados aos interesses da empresa seringalista. Segundo
ele, a pressão exercida por estes parlamentares teria obtido como resul-
tado a aprovação da lei nº5.459, de 21 de junho de 1968. Esta lei deter-
minava que os preços do produto importado seriam equivalentes aos
fixado para os oriundos da produção nacional e estabelecia a Taxa de
Organização e Regulamentação do Mercado da Borracha (TORMB)
sobre todas as borrachas importadas.
Apesar de não resolver um dos problemas cruciais da em-
presa seringalista, a garantia de crédito e financiamento para o setor,
a lei 5.459 garantia pelo menos a estabilização de preços da borracha.
Segundo Alves Pinto, a aplicação rigorosa da Lei 5.227 aniquilaria por
completo o extrativismo da borracha, caso não tivesse sido aprovado
este atenuante da lei 5459 (ALVES PINTO, 1980:145)
A empresa seringalista chega ao final dos anos 1960 mergu-
lhada em uma nova crise. Em estado de falência e endividados com o
banco, centenas de seringalistas iniciam o processo de transferência de
suas terras para investidores do centro-sul do país, produzindo mudan-
ças estruturais na região amazônica.
53 Sumário
Para os seringueiros, teoricamente o elo mais fraco da ca-
deia de dominação mercantil, as consequências dessa crise seriam
dramáticas. Diferentemente dos períodos de crise anteriores, quando
podiam permanecer nos seringais, criando e recriando formas variadas
de sobrevivência, a situação desse momento é outra e sua permanência
no seringal estava ameaçada. Aos “novos” proprietários da terra não
interessava a extração da borracha, e sim a derrubada da floresta. Era
a substituição do extrativismo pelos projetos agropecuários e, com eles,
a expulsão em massa da força de trabalho dos seringais.
É nesse quadro de crise que, em meados da década de 1970,
a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CON-
TAG), com o apoio ostensivo da Igreja Católica, inicia a formação de
sindicatos no Acre. A partir desse momento, a resistência dos serin-
gueiros passa a ter como principal expressão as suas ações coletivas via
movimento sindical.
Sumário 54
Capítulo 2
55 Sumário
pação econômica da região amazônica. Essas diretrizes pautavam-se
no pressuposto de que a economia extrativista estava esgotada e que
o caminho da modernização se daria através dos incentivos oficiais
para que os grandes grupos de capitais passassem a investir em projetos
agropecuários de grande porte. Assim, de acordo com SANT’ANA,
(...) as possibilidades de desenvolvimento do Acre, por
conseguinte, ficaram condicionadas à introdução na or-
dem local de elementos capazes de promover o aprovei-
tamento racional e produtivo dos abundantes recursos da
área, acelerando as transformações econômicas e mudan-
ça social. A indigência do estado em material de recur-
sos financeiros, capacidade empreendedora, tecnologia
de produção, infra-estrutura e demais pressupostos da
impulsão modernizante, governo e empresários forâneos
no papel de figuras axiais do projeto de desenvolvimento.
Para atrair empresários das áreas mais distantes, o gover-
no retoca a legislação de incentivos fiscais, ampliando fa-
vores a quem investir na Amazônia Ocidental e nas “Fai-
xas de Fronteiras” (...). Outras importantes formas de
atuação do Governo Federal relacionam-se ao pavimento
e melhoria da infraestrutura econômica e social, teleco-
municações, energia e estradas. (SANT’ANA, 1988:163)
Sumário 56
ra metade da década de 1970. Cerca de cinco milhões de hectares de
terras, equivalentes a um terço da extensão territorial do estado, foram
adquiridos por estes investidores forâneos, os “paulistas”, denomina-
ção utilizada naquele período para identificar os novos proprietários de
terras no Acre, pois eles eram, em sua maioria, oriundos do estado de
São Paulo (SILVA, 1982).
Aos seringalistas, em sua maioria falidos e endividados com
o BASA, não restava alternativa senão a venda dos seringais para sal-
dar seus débitos. Pode-se dizer que inicialmente eles foram incapazes,
enquanto classe dominante regional, de reagir às mudanças que se ope-
ravam regionalmente sob o comando de frações de capitais forâneos.
Em 1973, a economia internacional foi duramente afeta-
da pela elevação repentina dos preços do petróleo, provocando uma
crise de proporções mundiais. A partir desse período, o Estado bra-
sileiro passa a adotar uma série de medidas no sentido de diminuir
a dependência da economia interna com relação à importação dessa
matéria-prima. Uma delas foi a adoção de um programa de incentivos
à produção de borracha, o PROBOR, criado pelo Governo Federal e
sem indícios visíveis de pressões por parte dos seringalistas.
Entre 1973 e meados da década de 1980, este programa
passou por três fases:
a. PROBOR I: estabelecia como metas prioritárias a recu-
peração de dez mil colocações de seringa na Amazônia e a instalação
de onze usinas de beneficiamento da borracha nos centros de produ-
ção, sendo nove na região amazônica e duas na Bahia;
b. PROBOR II: previa a recuperação de dez mil coloca-
ções de seringa e abertura de cinco mil novas colocações na Amazônia,
além do financiamento de látex e borracha;
c. PROBOR III: implantação de cinco mil colocações de
seringa, quinhentas miniusinas e quatro usinas de beneficiamento de
borracha.
Sobre essas iniciativas, comenta Cordeiro:
57 Sumário
Partindo-se do pressuposto de que esse programa tem fi-
nanciamento a juros subsidiados e levando-se em consi-
deração suas metas, pode-se perceber com mais clareza
o quanto o Estado está interessado em aumentar a pro-
dução interna, no sentido do abastecimento do parque
industrial brasileiro (CORDEIRO, 1982:50).
Sumário 58
são de fronteiras no curso de acumulação de capitais18, este artigo nos
revela ainda dois dados interessantes. O primeiro a afirmação de que
“o seringueiro não tem terra”. Com esse argumento, os “novos” pro-
prietários rurais desqualificam as possíveis reivindicações pelo direito
a terra, que já se manifestam no seio desse segmento das classes su-
balternas. Dessa forma, garantia-se por um lado a implantação de um
modelo de desenvolvimento baseado na grande propriedade fundiária
e, por outro, assegurava-se uma reserva de força de trabalho abundante
para ser absorvida nos eventuais trabalhos no campo na implantação
de grandes projetos agropecuários.
O segundo aspecto refere-se ao “recado” dirigido aos serin-
galistas, quando afirma, categoricamente que eles só possuíam duas
opções: “unir-se aos investidores que chegam ou abandonar o campo
de luta”. Esta afirmativa indica que os seringalistas estavam oferecen-
do uma certa resistência às mudanças em curso na região e, também,
a disposição dos pecuaristas em viabilizar a execução de seus projetos
iniciados nesse movimento de expansão da fronteira19.
Para os seringueiros e demais “posseiros”20, os efeitos das
transformações estruturais que se operavam nesse período – que mo-
dificavam radicalmente a forma de posse e uso da terra num processo
de extrema violência – resultaram em dramáticas consequências so-
18
Para Marx, “A primeira condição da produção capitalista é que a propriedade do solo já esteja
arrancada das mãos da massa (...). A suprema beleza da produção capitalista consiste em que
não somente ela reproduz constantemente o assalariado, mas também que, proporcionalmente
à acumulação do capital, forma sempre assalariados extranumerários” (MARX, 1981: 128-
130). Essa afirmativa de Marx já foi exaustivamente contestada por inúmeros teóricos marxistas
(Kautsky foi um dos primeiros, ainda no século XIX, em A Questão Agrária), ao analisarem
as diferentes formas que o processo de expansão das fronteiras pode assumir no curso da
acumulação capitalista. Uma delas seria a preservação da pequena propriedade, através da
sua subordinação a grande propriedade industrial ou a indústria capitalista do campo. Ao
fazermos referência a essa afirmativa de Marx, o fazemo-lo consciente da sua limitação, que,
entretanto, não a invalidam para explicar o processo inicial de expansão de fronteiras para o
Acre, onde a expropriação de terra e a especulação e a implantação da pecuária extensiva não
deixam margem de dúvida quanto a essa forma indicada por Marx.
19
Essas disputas entre seringalistas e pecuaristas tiveram maior expressão durante o período
do governo Mesquita, época de uma atuação marcada pelo direcionamento de esforços no
sentido de defender os interesses econômicos das oligarquias regionais.
20
Parcela do campesinato dedicada a uma agricultura de subsistência em pequenas áreas sem
título de posse. Nesse período, a maioria desses posseiros vivia nas proximidades e ou nas
margens dos rios.
59 Sumário
ciais. Os novos proprietários dos seringais desencadearam uma ação
avassaladora para expulsar os seus antigos ocupantes, promovendo a
“limpeza” da área. Nesse processo, foram usados os seguintes expe-
dientes: obstrução de estradas e varadouros, proibição dos cultivos, in-
timidações da polícia e pistoleiros que “visitavam” constantemente as
famílias de seringueiro e “posseiros”. “Foi criado um clima de terror
de guerra psicológica mesmo, em que os seringueiros ficaram aterrori-
zados”21.
Para ter-se uma ideia do impacto social dessas ações, basta
observarmos que, por volta de 1970, nada menos que 98,4% das pro-
priedades existentes no Acre possuíam áreas acima de dois mil hecta-
res, dando ao estado um lugar destacado em termos da concentração
da propriedade fundiária. De acordo com o IBGE, 85,3% das famílias
que viviam no campo eram de não proprietários (IBGE, 1971)22.
Segundo o jornalista Elson Martins, a substituição violen-
ta do extrativismo pela pecuária provocou um profundo desequilíbrio
econômico na região:
Em 1974, ano ouro da especulação de terras no Estado,
o Acre praticamente parou, a borracha alcançou o nível
de produção mais baixo da sua história (...). Outra con-
sequência dessa transformação produtiva do estado foi a
desativação da economia de subsistência, que apesar de
modesta, abastecia o mercado local. Hoje o Acre vê-se
obrigado a importar quase todos os gêneros alimentícios
do sul do país (MARTINS, JORNAL VARADOURO, nº
1, dez./77).
Sumário 60
terras e migrando para as periferias urbanas (especialmente as da capi-
tal do estado, Rio Branco); outros passaram a migrar para os seringais
bolivianos (Jornal O Rio Branco, 02/07/1974). Outra parcela desse
segmento social passou a reagir contra os “paulistas”, iniciando uma
longa jornada de lutas de resistência pela posse da terra na região.
Segundo Duarte (1985), teria ocorrido no seringal Catuaba,
em Rio Branco, um dos primeiros conflitos de maiores proporções.
Nessa ocasião, o “posseiro” Raul Veras matou a tiros de espingarda o
gerente do seringal e feriu um fiscal, quando ambos tentavam expul-
sá-los de suas terras. Essa era uma área tradicionalmente ocupada por
“posseiros” desde a primeira crise do extrativismo da borracha.
É importante ressaltar que os primeiros conflitos de terras
no estado do Acre se dão entre os “posseiros” e os “paulistas”. A re-
ação dos seringueiros é posterior, e marca uma mudança de fundo na
natureza dos conflitos anteriores, entre seringueiros e patrões seringa-
listas. A disputa pela terra passa a ocupar o lugar central desses con-
flitos.
Nesse novo momento, seringueiros e posseiros contavam
inicialmente com o apoio da Prelazia do Acre e do Purus que, a partir
da década de 70, havia optado por uma linha de ação pastoral identifi-
cada com as orientações da ala mais progressista do clero na América
Latina. Através das Comunidade Eclesiais de Base (CEBs), a Igreja
passa a defender no campo a ideia da resistência na terra, constituindo-
se, naquele tempo, no único canal de expressão desses trabalhadores,
na sua grande maioria analfabetos, ignorantes de seus direitos e sem
qualquer organização ou entidade que os defendesse. À prelazia do
Acre e Purus estavam ligadas as paroquias dos seguintes municípios:
Rio Branco, Xapuri, Brasileia, Sena Madureira, e a de um município
amazonense, Boca do Acre. A exceção da paróquia de Xapuri, todos
os outros estavam identificados, com diferentes níveis de compromis-
so, à linha progressista assumida pela Prelazia do Acre e do Purus.
Novaes afirma que “diferentes correntes sempre conviveram e convi-
vem no interior da Igreja e podem divergir, no tempo e no espaço, em
61 Sumário
termos de interpretações e ações concretas” (NOVAES, s.d.:11). Essas
divergências, contudo, segundo a autora, “não atingem sua unidade no
plano da ortodoxia doutrinária” (NOVAES, s.d.:12)
A Prelazia do Acre e Purus, seguindo as orientações do
Concílio Vaticano II (1965) e a II Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano (Medellín, 1968), faz uma “opção pelos pobres e
oprimidos” e inicia um trabalho de conscientização nas periferias ur-
banas e junto à população rural. A Igreja a que nos referimos é aquela
definida por Regina Novaes como:
(...) hierarquia da Igreja Católica, ou seja, agentes pas-
torais e trabalhadores evangelizados que – movidos por
determinadas concepções da ação pastoral e empenhados
na construção alternativa Igreja/povo de Deus – tornam-
se atores desse movimento (NOVAES, 1985:210)
Sumário 62
qualidade de vida das pessoas e das comunidades e na sua
ligação orgânica com a natureza, interessa principalmente
aos índios, aos seringueiros, aos ribeirinhos, aos pequenos
lavradores, aos milhares de nordestinos que se desloca-
ram a essa área a partir do século passado e, finalmente
aos milhões de imigrantes que, nos últimos anos, buscam
na Amazônia a última chance de uma vida com o mí-
nimo de condições humanas (...). Um desenvolvimento
integral também interessa com trágica urgência, aos mi-
lhões de moradores da periferia das cidades amazônicas,
todas elas ‘inchadas’ pela violenta migração das popu-
lações camponesas. A Igreja, procurando ser fiel à men-
sagem evangélica de libertação integral do homem e de
todos os homens, interessa-se por esse desenvolvimento
verdadeiro e apoia as aspirações, exigências e lutas de to-
dos esses homens da região amazônica para conquistar
o que necessitam (VARADOURO, nº 7, ano 2, dez/79).
23
No passado, a Igreja exerceu (não só no Acre como também em outras regiões do mundo)
um papel preponderante para garantir a preservação dos interesses da classe dominante. Sua
mensagem junto às classes subordinadas era centrada na resignação e no conformismo diante
das injustiças do mundo. Os que agora sofriam teriam uma “recompensa divina” após a morte.
Para maiores informações sobre essas questões ver NOVAES, 1988.
63 Sumário
falavam da posse da terra, só davam razão e elogiavam os
patrões. (VARADOURO, nº 23, ano 4, ago/1981).
Sumário 64
contém, nas marcas da sociedade local, um significado
político relevante. Seu significado político mais elevado
consiste no fato de que na sua origem, ser (sic) a principal
responsável pela emergência de um sujeito popular. Esse
novo sujeito enquanto ator social vai quebrando a hege-
monia absoluta da oligarquia, na sua condição de classe
dirigente da sociedade (MOURÃO, 1987:178).
65 Sumário
Terra – CPT, em 1975. Em seu boletim de março de 1976, no editorial
intitulado “O Povo Precisa de Sindicatos Livres”, a CPT critica a estru-
tura sindical atrelada ao governo via Ministério do Trabalho e defende
sindicatos livres.
Somos pela liberdade de organização sindical, somos fa-
voráveis a um sindicalismo que represente só o esforço
de defesa dos trabalhadores. Um sindicato apadrinhado
e controlado assim pelo governo, ou por dirigentes vendi-
dos, pelegos, não é um sindicato verdadeiro (...) Defende-
mos o direito que os trabalhadores têm de se organizarem
em defesa de seus interesses sem a tutela e o controle de
ninguém. Tanto é assim que não defendemos a criação
de frentes cristãs de promoção sindical, como algumas ve-
zes tem feito a Igreja Católica (...). É preciso que tenham
diretorias formadas por companheiros sinceros, para que
então haja boas federações e boa confederação (Boletim
da CPT, mar e abr./1976).
24
Essa relação “amistosa” entre a Igreja e a CONTAG no Acre é uma exceção à regra na
região Norte. Em outros estados, como o Pará, por exemplo, havia acirradas disputas entre
a CPT e os sindicatos ligados à CONTAG. Isso porque nessas regiões o “sindicalismo da
CONTAG” pautava suas ações por uma linha sindical eminentemente assistencialista, oposta,
portanto àquela defendida pela CPT.
Sumário 66
gueiros a comercializar com os marreteiros em prejuízo
dos barracões (O Rio Branco, 13/08/78)25
67 Sumário
A nomeação de um governador com esse perfil deve-se à re-
articulação das forças internas da classe dominante local, capitaneada
pelas oligarquias ligadas ao comercio e extrativismo da borracha, que
viam em Mesquita o nome mais adequado para orientar as políticas do
estado em defesa de seus interesses, ligados basicamente ao revigora-
mento da produção de borracha na região.
O comportamento hostil de Mesquita em relação aos “pau-
listas” pode ser ainda explicado, por um lado, pela situação explosiva
em que vivia o Acre, tanto em relação à violência no campo, com a
generalização dos conflitos sociais pela posse da terra, como também
pelo estupendo aumento da miséria e do inchamento da periferia urba-
na na capital, Rio Branco, provocado pelo êxodo rural.
Por outro lado, Mesquita vinculava-se a um antigo grupo
político denominado como “acreanistas”, surgido em Rio Branco na
década de 1950. Esse grupo se opunha aos coronéis e às pessoas que
“vinham de fora mandar’” no território. O grupo defendia o Acre para
os acreanos, entendendo como acreano aquele que estivesse radicado
há tempo na região e/ou fizesse oposição política aos coronéis Oscar
Passos (PTB) e Guiomard Santos (PSD), exemplos de lideranças polí-
ticas “de fora”26.
Fiel a sua origem e aos seus compromissos, Mesquita fez
diversas restrições à desativação do extrativismo da borracha e da cas-
tanha, utilizando inclusive a sua influência política junto aos agentes
financeiros federais, para tentar reter ou suspender os financiamentos
de projetos voltados para a implantação da pecuária extensiva. Isso
contribuiu muito para certa moderação nos negócios da terra, “esfrian-
do” um pouco a corrida dos “paulistas” para o Acre.
Caso a expansão da pecuária extensiva de corte mantivesse
seu ritmo inicial no Acre, suas consequências econômicas, políticas,
26
Esses dois coronéis foram para o Acre nomeados pelo Governo Federal, para exercerem
o cargo de governadores de território. Os “acreanistas”, além de pleitearem o governo para
um “acreano”, lutaram também pela autonomia do território, a sua transformação em
estado, o que viria ocorrer somente no início da década de 1960, quando então a população
acreana elegeria seu primeiro governador, o acreano José Augusto. Sobre os “acreanistas”, ver
VARADOURO, nº6, ano 1, dez/77.
Sumário 68
sociais e ambientais seriam ainda mais desastrosas. Uma vez que esse
tipo de atividade pressupõe a utilização de vastas extensões territoriais,
com pouca absorção de força-de-trabalho, potencializaria ainda mais
a pressão sobre os movimentos migratórios do campo para as periferias
urbanas. Essa foi uma das razões que levaram Mesquita a adotar um
modelo de modernização garantindo a preservação do extrativismo.
Outra decisão política importante do governo Geraldo
Mesquita foi baixar uma portaria proibindo o envolvimento da polícia
em conflitos sociais pela posse da terra. Com esse ato, reduzia-se o
poder de pressão dos fazendeiros sobre os seringueiros e demais pos-
seiros. Embora nem sempre essa determinação fosse cumprida por de-
legados e agentes policiais, a existência de uma portaria dessa natureza
oferecia certas garantias a esses trabalhadores.
Mesquita tomou ainda a iniciativa para promover o assen-
tamento, em projetos de colonização, de uma parcela das famílias que
foram expropriadas da terra. Pretendia, com essa medida, minimizar o
agravamento da já explosiva questão agrária no estado. Na área econô-
mica, foi promovida a modernização no equipamento do Estado, para
fazer frente às crescentes demandas de uma produção mais diversifica-
da, condicionada pelo modelo de desenvolvimento em curso no país.
Evidentemente, o apoio ostensivo da Igreja Católica aos
seringueiros e “posseiros” nos conflitos de terra produziu influências
decisivas na orientação dos políticos estaduais. Pressionado pelo poder
da instituição religiosa, o governo estadual foi forçado a tomar algu-
mas medidas favoráveis aos trabalhadores do campo.
No que se refere à instalação da Delegacia Regional da
CONTAG em Rio Branco (maio de 1975), o seu objetivo era fundar
sindicatos e organizar a luta de resistência pela terra na região. Segun-
do José Francisco da Silva, presidente da CONTAG nesse período, a
decisão de instalar uma delegacia da entidade no estado foi tomada
porque a direção sentiu que “estava na hora” de organizar os sindica-
tos naquela região, que atravessava um momento de extrema violência:
“às vezes vinham até delegações de trabalhadores a Brasília, sem orga-
nização nenhuma27.
27
Sobre a decisão de instalar uma delegacia regional da CONTAG no Acre, José Francisco
69 Sumário
Por esse depoimento, podemos perceber que a decisão da
direção da CONTAG em abrir uma delegacia regional no Acre teria
tido como uma de suas motivações o agravamento dos conflitos de
terra na região. Além do mais, nesse momento há certa aproximação
entre o trabalho da Igreja e o da CONTAG em diversos pontos do país.
Isso não implica dizer que não houvesse entre ambas uma disputa de
espaços políticos junto aos trabalhadores do campo. A dinâmica dessa
aproximação e disputas é que torna possível entender a ida da CON-
TAG, em 1975, para o Acre.
João Maia Filho foi o nome indicado pela CONTAG para
organizar essa delegacia.28Ele pertencia à equipe de assessores da en-
tidade dedicada à formação de lideranças e já havia percorrido todo
o país realizando esse trabalho. Segundo José Francisco da Silva, a
indicação se deu a pedido do próprio João Maia, que já estava muito
envolvido com as regiões de conflito do Norte do país.
O ano de 1975 marcou, portanto, o início de uma nova eta-
pa no processo de desenvolvimento da região. O seu traço marcante foi
a presença ativa dos trabalhadores – seringueiros e posseiros – no ce-
nário político acreano via organização sindical. A partir daí, passaram
a influir decisivamente na redefinição da questão fundiária no estado.
da Silva nos informou ainda que a Confederação tinha todo um planejamento para criar
federações em todos os estados. “De 1968 até 1975, a gente estava praticamente com o país
todo coberto, por isso decidimos criar uma delegacia no Acre com abrangência em Rondônia,
que ainda era território” ( José Francisco da Silva, entrevista concedida ao autor na sede da
CONTAG em Brasília, abril de 1990).
28
João Maia Filho nasceu e estudou no estado de São Paulo e começou a assessorar a
CONTAG no final dos anos 1960, sob a indicação, segundo ele, de José Gomes da Silva.
Sumário 70
CONTAG no movimento sindical do Brasil29. Interessa-nos resgatar
a intervenção dessa entidade no contexto específico do sindicalismo
rural no Acre.
A CONTAG instala a sua delegacia no Acre no momento
em que o campo atravessa uma situação explosiva, com conflitos so-
ciais pela posse de terras generalizados em todo o estado. Esses con-
flitos refletem a violência do novo modelo de ocupação econômica da
região, ao expropriaram em massa milhares de seringueiros e demais
posseiros.
É necessário ressaltar que no estado do Acre não está ocor-
rendo somente uma luta de resistência pela terra. Trata-se de um con-
fronto com uma nova estrutura que começa a ser implantada na região,
portadora de novas relações sociais de trabalho, de novos padrões, cul-
turais, morais, etc, e sobretudo de um novo conceito de propriedade
que entra em choque frontal com o tipo de relação que essa população
estabeleceu secularmente com a terra e a natureza. Diz Elson Mar-
tins30:
Na cobertura desses conflitos se ouviam muitas queixas
dos seringueiros dizendo que antes dos “paulistas” chega-
rem, eles podiam entrar no quintal do vizinho, tirar laran-
ja, banana, etc. Depois que os “paulistas” tomaram conta,
metiam cerca e eles não podiam entrar, porque tinha um
aviso proibindo a passagem. Então havia uma mudança,
pois esse conceito de propriedade não existia de forma tão
nítida dentro da acreanidade, na organização seringalista
extrativista (...) No confronto os argumentos marcavam a
diferença cultural, de visão.
71 Sumário
ocupar um lugar central na luta de classes. É no confronto que se forjam
estas identidades, que se definem uma em relação à outra (AQUINO,
1975). Os “paulistas” são os “novos colonizadores do Acre” que, em
nome do progresso e com o apoio de parte da classe dominante local
(seringalistas e comerciantes), expulsam o homem do campo, devas-
tam as florestas e subjugam a cultura regional. Os “acreanos” são os
seringueiros e “posseiros” que se revoltam com a invasão de suas terras
e buscam a afirmação de seus valores morais e culturais para reverter a
ofensiva do inimigo31.
É nesse contexto que o sindicalismo rural entra no Acre.
Para buscar soluções para os conflitos de terras, a Delegacia da CON-
TAG iniciou um trabalho de conscientização e organização para “jun-
tar o pessoal” e, como veremos adiante, forjar nesse processo a criação
de uma identidade de “posseiros”, de “trabalhadores rurais”.
É com esse propósito básico de fundar sindicatos para
organizar a luta de resistência pela terra que se iniciam as ações da
Delegacia da CONTAG no Acre. Diz João Maia na entrevista que nos
concedeu32:
O objetivo da CONTAG é em primeiro lugar fundar
sindicatos para os trabalhadores. O sindicato deve ser a
organização dos trabalhadores rurais, que compreende
seringueiros, posseiros, peões de agricultura e de certa
forma pequenos proprietários. Uma vez fundado o sindi-
cato, é feito um acompanhamento para que realmente o
sindicato defenda os interesses e resolva o problema des-
ses trabalhadores filiados. Uma vez fundado o sindicato,
a Delegacia da CONTAG tem a função de coordenar o
movimento.
Sumário 72
per a atitude manifestada pelos “posseiros” que pensavam ou queriam
que esta entidade assumisse por eles a defesa de seus direitos. Esse
comportamento deve ser entendido enquanto um reflexo das relações
de dominação engendradas nos seringais, um tipo de “paternalismo”
extremado que reservava aos “patrões” a incumbência de resolver os
mais variados e diversos problemas dos seus fregueses (os seringuei-
ros).
Entre 1975 e 1977 foram fundados, conforme depoimento
de João Maia, com o apoio da Igreja, sindicatos em sete municípios,
obedecendo à seguinte ordem: Sena Madureira e Brasileia (1975), Rio
Branco, Cruzeiro do Sul e Tarauacá (1976); Xapuri e Feijó (1977). A
maioria das assembleias de fundação dos sindicatos foi realizada nos
salões paroquiais. Em todos os municípios a organização sindical teve
como força propulsora a luta de resistência pela posse da terra.
Era também necessário que se levantassem bandeiras de
luta capazes de unificar as aspirações desse segmento social das classes
subalternas, o que constituiu num dos complicadores para a delegacia
da CONTAG. Além do desconhecimento da realidade regional, essa
entidade de âmbito nacional não tinha propostas objetivas para a reso-
lução desse tipo de conflito.
Era difícil identificar um anseio comum, que unificasse
os trabalhadores. Alguns queriam permanecer nos seringais, outros
se manifestavam a favor da venda de suas colocações. Segundo João
Maia, foi um momento de muita indefinição. Diante desse quadro, a
delegacia da CONTAG, seguindo o eixo de lutas que norteava a linha
mais geral de ação da CONTAG em nível nacional, passou a ter como
referência para a elaboração de suas reivindicações o Estatuto da Terra.
Como a categoria seringueiro não existia, a CONTAG pro-
curou uma forma de enquadrá-la judicialmente no Estatuto da Terra
como “posseiros”. Isso lhes assegurava, entre outros, o direito a reivin-
dicação de posse da terra. Com isso, a CONTAG forjou a formação
da identidade “posseiro”, aceita inicialmente por muitos seringueiros.
Dessa maneira, as bandeiras de lutas do movimento local passaram a
73 Sumário
ser construídas na perspectiva mais geral da CONTAG para os “pos-
seiros”, ou seja, a luta pela desapropriação e divisão da terra. A partir
dessas definições, a CONTAG indicou duas orientações básicas para o
que ela passou a chamar de “posseiros”.
A primeira aconselhava que eles permanecessem na terra,
não se deixando intimidar pelos latifundiários e seus pistoleiros, e que
procurassem o sindicato assim que fossem ameaçados, pois eles conta-
vam com o amparo da lei nº 4.504, Estatuto da Terra, que garantia o
direito de posse àquelas pessoas que ocupavam a terra por mais de um
ano e um dia consecutivos33. Recomendavam ainda que plantassem
bens de raiz, como árvores frutíferas ou mandioca, para demonstrar
que tinham benfeitorias, pois, no caso de opção por um acordo, a inde-
nização seria calculada com base nessas benfeitorias.
A segunda orientação era para que os seringueiros paras-
sem de pagar a renda aos “patrões”, porque esse pagamento implicava
o reconhecimento do patrão e de seu direito de propriedade, o que
transformava os seringueiros em simples inquilinos, arrendatários sem
direito, portanto, de reivindicar a posse da terra. Segundo o depoimen-
to de Arquilau de Castro Melo34, advogado da Delegacia da CONTA-
G-AC no período de 1982 – 1983:
Talvez esta tenha sido a luta jurídica mais importante da
CONTAG no Acre, pois ela acabou com os pagamentos
de renda na região. Os seringalistas diziam que o fim do
pagamento da renda acabou com os seringais.
33
Segundo Medeiros (1989), a partir de 1968 “O ponto de partida que passa a reger a pratica
da CONTAG era o de que os direitos existiam mas não eram respeitados. O referencial legal
era o Estatuto do Trabalhador Rural, regulador das ações do Capital e Trabalho, e o Estatuto
da Terra, que disciplinava tanto as relações entre parceiros, como as condições que tornavam
possíveis as desapropriações para fins de reforma agraria.” (MEDEIROS, 1989:92).
34
Cf. entrevista de Arquilau de Castro Melo concedida ao autor em setembro de 1990 em Rio
Branco-AC
Sumário 74
um tributo dos seringueiros pela exploração das áreas que estavam sob
seus domínios. No entanto, os patrões não fizeram isso por duas razões
essenciais. A primeira delas é que a crise do extrativismo tinha origens
estruturais e não era causada simplesmente pela recusa do pagamento
de rendas por uma única parcela de seringueiros. A segunda é que eles
estavam extremamente enfraquecidos políticamente, incapazes, por-
tanto, de exercer pressão suficientemente forte junto ao poder central
para promover a reversão desse quadro.
Com o fim do pagamento da renda, os seringueiros con-
quistaram, enfim, a sua autonomia em relação aos “patrões”. São
“autônomos” aqueles seringueiros que deixaram de pagar a renda ao
seringalista e romperam radicalmente com o barracão e as regras de
dominação impostas anteriormente pelo regime do “cativeiro”. Esses
trabalhadores passaram a ser os donos de suas colocações, adquirindo
liberdade para organizar o processo produtivo, escolher seus agentes
comerciais – “marreteiros” – e, principalmente, para optarem pelas for-
mas de organização social que melhor lhes conviesse.
Essa nova situação efetivou-se em lugares em que havia
três condições básicas: existência de uma organização sindical capaz
de respaldar essa decisão; os efeitos da crise da empresa extrativista
eram mais profundos e a presença de uma vasta rede de intermediação,
de “marreteiros”, atuando nos seringais, estabelecendo, por um lado,
uma forte concorrência com os “barracões” e, por outro, tornando-os
desnecessários para garantir a sobrevivência dos seringueiros nas suas
colocações.
Essas condições expressaram-se com maior evidência no
eixo Rio Branco-Xapuri-Brasileia, pelas razoes que expusemos ante-
riormente. Trata-se da área de maiores conflitos sociais pela posse da
terra. Era, ainda, o principal polo de atividade econômica e política do
território nos tempos áureos da borracha, a região mais cobiçada pelos
paulistas no processo de expansão da fronteira agrícola na década de
1970.
Em Xapuri, praticamente a totalidade dos seringueiros con-
75 Sumário
quistou sua “autonomia”. O mesmo, porém, não aconteceu em outras
regiões do estado, em especial no Vale do Juruá e em algumas áreas do
Purus, onde a maioria permaneceu ainda sob o domínio do “patrão”
no “cativeiro”. Assim, passam a existir no Acre, a partir do final da
década de 1970, duas categorias de seringueiros: os “autônomos” (ou
“libertos”) e os “cativos”.
A conquista da “autonomia” dos seringueiros resultaria na
extinção da figura do seringalista, incapaz de sobreviver nessa nova
conjuntura, uma vez que perdera o que havia de fundamental para a
sustentação do regime de dominação engendrado pela empresa extra-
tivista: o rígido controle da força-de-trabalho. Com isso, modifica-se
novamente a cadeia de intermediação na região, que passa a funcionar
da seguinte forma:
Indústria
↑
venda do produto beneficiado
Usineiro
↑
venda do produto
Intermediário
venda de produtos↑ ↓ compra de mercadorias
Sumário 76
anterior é a ausência do barracão, do “cativeiro”, do “patrão” seringa-
lista e, consequentemente, do conjunto de regras por eles estabelecidas.
As novas regras criadas são mais maleáveis (elas não pressupõem o
controle direto da força-de-trabalho), baseadas em compromisso in-
formal entre seringueiro e “marreteiro”, em que o primeiro paga com
sua produção as mercadorias ou empréstimos em dinheiro adquiridos
junto ao segundo.
O não cumprimento das “obrigações” com o “marreteiro”
pode levar o seringueiro à prisão, ou então, provocar a inviabilização
de sua permanência no seringal, pois ele fica “marcado” com os outros
“marreteiros” que não se arriscam a confiar-lhe mercadorias. É óbvio
que também existe uma grande concorrência entre os “marreteiros”,
para despertar as simpatias e possibilitar a formação de uma “boa fre-
guesia”. Eles, a exemplo de alguns seringalistas, adotavam práticas pa-
ternalistas, procurando sempre estar atentos para resolver problemas
de seus “fregueses”, tais como levar um doente para a cidade, provi-
denciar algum documento, emprestar dinheiro, etc.
No entanto, diferentemente do sistema anterior, os serin-
gueiros passam a ter maiores opções na escolha de seus parceiros co-
merciais e, o que é mais importante, sentem-se homens livres, inclusive
com direito de associar-se e atuar no sindicato. Nesse momento ini-
cial de “libertação” dos seringueiros, não há ocorrência de conflitos
entre sindicatos e “marreteiros”. Pelo contrário, a existência dos dois
contribui efetivamente para a realização de seus interesses imediatos:
eliminar a figura do seringalista.
A legislação que obrigava o seringueiro a pagar rendas aos
patrões seringalistas em tempos anteriores, nesse momento, perde sua
força disciplinadora e passa a ser ignorada. Em uma situação de rup-
tura radical com as suas relações tradicionais de dominação, os serin-
gueiros, com a força de organização sindical, são capazes de neutrali-
zar a lei, ou até mesmo de buscar nas suas “entrelinhas” os elementos
contraditórios que o possam favorecer. Indicaremos, no capítulo se-
guinte, ao analisarmos a formação de um “modelo” de sindicalismo
no Acre, alguns exemplos dessa natureza.
77 Sumário
Capítulo 3
A construção de um “modelo” de
sindicalismo no Acre
35
Pedro Marques era cearense e havia ido ao Acre em 1974 fazer um concurso para juiz.
Pelos dados obtidos na pesquisa, parece-nos que sua reprovação no referido concurso foi de
forma irregular. Assim, ele permaneceu no Acre e, com a chegada da CONTAG, ingressou
no departamento jurídico da entidade. As pessoas que o conheceram, como Arquilau e Elson
Martins, afirmam que ele não possuía qualquer vínculo político com grupos ou organizações
de esquerda; era um “liberal”. Contudo, com a organização do Partido dos Trabalhadores
no Acre, Pedro Marques filiou-se a ele e foi indicado como candidato a governador em 1982.
Depois de uma tentativa de assassinato contra ele, teve que abandonar a candidatura e o Acre,
regressou a sua terra natal em 1982.
36
Cf. entrevista citada.
Sumário 78
ele respeita muito a palavra escrita. Isto foi utilizado pelos advogados
dos proprietários rurais, que chegavam à área, mostravam a escritura
da posse e diziam que aquelas terras tinham novo dono, que seu traba-
lho não era preciso e, portanto, deveriam desocupar a área. Logo a se-
guir, chegavam os “jagunços”, para completar o “serviço”, intimidan-
do ainda mais estes trabalhadores e suas famílias. Diz Elson Martins37:
O Pedro Marques invertia essa situação. Ele chegava na
área, reunia o pessoal e dizia: olha, você está dizendo que
chegou o jagunço lá na sua casa, mexeu com tua mulher,
ela desmaiou, teus filhos ficaram chorando... pois olhe,
tem um artigo na Constituição que diz o seguinte: se isso
acontecer, você pode pegar uma arma e dar um tiro, se
defender, você pode matar, isso é invasão domiciliar. Ago-
ra, eu não posso defender tua mulher não, a minha eu
defendo, lá em casa ninguém entra, porque se entrar dou
um tiro. Agora, se o jagunço chegar na sua casa, eu sou
pago pela CONTAG para te defender diante da lei. Você
está certo, isso aí é lei, vai agir legalmente.
79 Sumário
ça39 e o conteúdo dos seus discursos para os seringueiros e posseiros.
Marques não alimentava ilusões em relação ao Judiciário: falava dos
seus limites e afirmava sempre que só se conquistaria alguma coisa
com a pressão de um movimento forte e organizado.
Para dar uma ideia da importância desse advogado para a
formação desse movimento, basta apenas um exemplo. Em 1977, um
grupo de seringueiros do seringal Nova Empresa realizou uma em-
boscada e executou a tiros Carlos Sérgio, gerente de uma fazenda que
ameaçava expulsar todas as famílias da área. Este ato foi configurado
pela Justiça como um crime de tocaia. Mesmo assim, Pedro Marques
conseguiu libertar da prisão todos os seringueiros envolvidos no caso.
Diz Elson Martins40:
Ele foi um cara que resolveu muito mais coisas nesse sen-
tido que o João Maia. O pessoal sentia segurança no Pe-
dro, porque sabiam que podiam avançar na luta que ele
garantia o direito deles, e isso foi muito importante para
o movimento.
39
Na entrevista que nos concedeu, Arquilau Melo, disse o seguinte: “O Pedro Marques entrava
no Fórum, nos tribunais dos municípios e intimidava todo o mundo e ia logo perguntando: Na
entrevista que nos concedeu, está o juiz? Por que ele não esta aqui trabalhando? Ele impunha
muito respeito nessas instancias jurídicas”.
40
Cf. entrevista citada.
41
Cf. entrevista citada.
Sumário 80
onde a figura do advogado viesse a substituir o movimento.
Pedro Marques afastou-se da CONTAG em 198242. O seu
substituto foi Arquilau de Castro Melo, que manteve uma linha de ação
semelhante à de seu antecessor, no que se refere a valorização atribuída
à combinação das mobilizações coletivas com a luta legal.
Segundo Arquilau Melo, a definição jurídica do seringuei-
ro sempre foi muito confusa para os advogados e isto, de certa forma,
facilitou a defesa dos trabalhadores. Do ponto de vista das ações judi-
ciais, diz Arquilau, os advogados da CONTAG adotavam dois tipos
de comportamentos:
Se os patrões davam entrada na Justiça dizendo que o
seringueiro era posseiro, a gente contestava dizendo que
era arrendatário. Se diziam que era arrendatário, a gente
dizia que era posseiro. É uma questão que nunca ficou
definida judicialmente.
81 Sumário
meados de 1977, quando o presidente do STR de Brasileia começara a
se afirmar e projetar-se regionalmente como um dos principais líderes
desse sindicalismo.
Em segundo lugar, é necessário lembrar que o personalis-
mo constitui-se numa marca não só do sindicalismo, como também de
outro movimento no Brasil em que algumas figuras alcançam maior
projeção e acabam exercendo um papel extremamente centralizador e
às vezes autoritário nas suas relações com as bases44. Isso gera não só
uma grande dependência do movimento em relação a essas figuras e as
suas decisões, como também, via de regra, acaba restringindo o espaço
para o surgimento de novas lideranças.
A linha de orientação adotada pela CONTAG, somada a
uma presença ostensiva da Igreja Católica, na formação desse movi-
mento na região do Acre e Purus, acabaria por definir o perfil desse
sindicalismo nesta primeira fase de sua história, que se evidencia nota-
damente nesse poema de um seringueiro da região:
Está aqui, meu povo, o sindicato que veio nos ajudar
Que veio mandado por Deus para nos libertar
Estão aí também os companheiros de nossa união
Que deram o primeiro passo na libertação
Nos libertou a borracha e nos livrou do patrão
Da cadeia e da prisão
Assim, meu povo, companheiros, e meus irmãos,
Vamos todos seguindo a ele com o nosso aperto de mão
Sempre rogando a Deus para uma graduação
Que luta para nos tirar da boca do gavião
Dos “paulistas” e dos “patrões”
É crianças, é mulher, é cidadão,
Sem nunca ter direito a uma libertação,
44
O fenômeno de lideranças centralizadoras pode ter ocorrido já em outros momentos da
história do país. É o caso, por exemplo, do final da década de 50 e início dos anos 60, quando
o advogado Francisco Julião tornou-se uma das principais expressões do movimento das
ligas camponesas no Nordeste. Maiores informações sobre a questão, ver: BASTOS (1984);
NOVAES (1988) e MEDEIROS (1983).
Sumário 82
Assim vamos seguindo meus irmãos,
Com toda a nossa união
Sempre pedindo a Deus e a Virgem da Conceição
Por aquele que mais trabalha pela nossa libertação
Viva o sindicato, meu povo
Que nos deu o direito e nos livrou dos “paulistas” e dos
“patrões”
Vamos lutar pela terra, com toda a nossa união.
(VARADOURO, nº13, ano 2, dez/78).
45
Ao analisar os reflexos da celebração de convênios entre FUNRURAL e as entidades de
classe a partir de 1971, Medeiros (1989:97) afirma que “em diversos locais, os sindicatos se
tornaram apenas uma agência assistencial, espaço de arregimentação de votos e favores, numa
reedição do clientelismo”.
83 Sumário
Para uma melhor caracterização desse “modelo” de ação
sindical, construído na luta dos trabalhadores no estado do Acre, to-
maremos como referência o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Brasileia, por ter expressado de uma forma mais “pura” esse sindica-
lismo na sua fase inicial. Antes, porém, situaremos a ação política dos
diferentes interesses organizados envolvidos na disputa pela terra nesse
período.
Sumário 84
A intervenção do Governo Federal nos conflitos de terras
do Acre seguiu exatamente a política mais geral de ação fundiária do
Estado na Amazônia. Isto é, “o governo procurou ajustar o proble-
ma da terra aos objetivos de desenvolvimento econômico e, ao mesmo
tempo, aos objetivos da segurança nacional” (MARTINS, 1984:33).
Com a edição do Decreto-lei nº 1.164, de 1º de abril de
1971, foi transferido dos governos estaduais para o Governo Federal o
controle das terras devolutas situadas numa faixa de cem quilômetros
de largura em cada margem dos eixos das rodovias já construídas, em
construção ou em projeto na Amazônia legal (MARTINS, 1984). O
Conselho de Segurança Nacional passou a centralizar todas as deci-
sões relativas à posse e ao uso dessa faixa de terra. No caso do Acre,
esta medida transferiu para o poder central o controle quase absoluto
de suas terras devolutas, uma vez que havia rodovias federais em cons-
trução ou projetadas cortando todo o estado.
Em 1972, o Governo Federal já havia instalado no Acre
uma delegacia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-
ria (INCRA), sob a direção da Coordenadoria Regional localizada em
Goiânia, a mais de três mil quilômetros de distância. Trabalhavam nes-
sa delegacia apenas seis funcionários, em uma sede provisória instala-
da em Rio Branco47.
De acordo com Back (1987), entre 1972 e 1974, o INCRA
-AC expediu “apenas 82 títulos de posse, correspondente a 7.737 hec-
tares, o equivalente a 0,5% dos cincos milhões de hectares de terras
transferidos para investidores do centro-sul do país” (BACK, 1987:50).
Diante do aumento dos conflitos de terras e do agravamen-
to do clima de tensão social na região, o Governo Federal criou uma
Coordenadoria Regional do INCRA, em 1974, para o Acre e Rondô-
nia, sediada em Rio Branco. Uma das medidas imediatamente adota-
47
O INCRA foi criado em 1970 pelo Governo Federal para substituir os antigos órgãos que
atuavam na regularização fundiária: o IBRA – INDA. “Enquanto o IBRA que o novo órgão
substituirá estava subordinado ao próprio presidente e tivera praticamente nível de ministério, o
Incra foi criado como autarquia subordinado ao Ministério da Agricultura. Isso fez da questão
fundiária uma questão setorial (...) Com a redução do Incra a uma autarquia do Ministério
da Agricultura, a questão agrária passou a ser tratada como questão menor” (MARTINS,
1984:44)
85 Sumário
das foi a criação de uma Comissão de Discriminação da Terra do Acre,
cujo objetivo era identificar a legitimidade das posses. Entretanto, até
1981 haviam sido expedidos somente 8.514 títulos, equivalentes a 3%
da extensão territorial do estado48.
Cabe observar que esses resultados refletem em parte o po-
der de pressão exercido por grupos empresariais e grandes proprietários
de terra, em geral contra a intervenção do órgão na questão fundiária.
Uma matéria publicada no jornal o Rio Branco, no dia 20 de agosto de
1974, faz severas críticas à atuação do INCRA no Acre, “agitando o
seringal Nictheroy e estendendo-se a todo o estado”. Informa também
que através dos proprietários rurais da região, o advogado João Tezza,
foi encaminhada uma denúncia contra a delegacia do INCRA-AC, aos
Ministérios da Agricultura e da Justiça e a todos os órgãos de informa-
ções pelo país. Esse fato revela-nos os desentendimentos entre os pro-
prietários rurais e a delegacia do INCRA, como também as pressões
que passam a ser exercidas sobre esse órgão na região49.
É necessário observar também que a decisão do Governo
Federal de instalar uma delegacia regional do INCRA no Acre teve
como principal objetivo a realização dos interesses dos novos proprie-
tários rurais. Eles precisavam da presença dessa instituição governa-
mental na região para legalizar suas terras recém-adquiridas dos serin-
galistas. A titulação das terras era fundamental não só para resguardar
seus direitos, mas para negociar com maior facilidade no mercado de
terras e também para pleitear os famigerados incentivos fiscais.
No entanto, a titulação das terras pelo INCRA deveria obe-
decer à legislação e ao Estatuto da Terra, e isso implicava o reconhe-
cimento da posse dos ocupantes históricos das áreas: seringueiros e
posseiros. Com isso, revelava-se a natureza contraditória do INCRA
que, ao buscar a realização dos interesses da classe dominante, encon-
48
INCRA-AC – Relatório da Coordenadoria Regional – CR 14, Rio Branco.
49
Os dados pesquisados nos revelam que, até 1975, a direção geral do Incra tinha manifestado
certo interesse em regularizar a situação fundiária do estado e, por isso mesmo, for substituída
diversas vezes. A partir de 1976, com a nomeação de um coronel “linha dura” para a direção
do órgão, a situação se modifica e o Incra passa a assumir uma postura mais favorável aos
interesses dos latifundiários.
Sumário 86
trava obstáculos na legislação criada por essa mesma classe, dificultan-
do suas ações de forma tão parcial a seu favor. Era preciso reconhecer
os direitos que a lei assegurava às classes subalternas, como, no caso do
Acre, os seringueiros e demais posseiros. Ao analisar esse aspecto con-
traditório da lei na Inglaterra do século XVII, Thompson afirma que:
(...) a lei tornou-se um magnífico instrumento pelo qual
esses dominantes podiam impor suas definições de pro-
priedade, para proveito próprio ainda maior (...). Por ou-
tro lado, a lei mediava essas relações de classe através de
formas legais, que continuamente impunham restrições
às ações dos dominantes (...). E não só os dominantes
(na verdade a classe dominante como um todo) estavam
restringidos por suas próprias regras jurídicas contra o
exercício da força direta e sem mediações (THOMPSON,
1987:356).
87 Sumário
conflitos de terra em diversas regiões do país e a necessidade de estabe-
lecer o controle do Estado sobre eles, seja trazendo essas disputas para
serem resolvidas pelo poder Judiciário, seja através de algumas tenta-
tivas de se resolverem essas questões isoladamente. Isto é, por meio de
decretos de desapropriação em áreas de maiores conflitos, e também
através da implantação de mais projetos de Assentamentos Dirigidos,
pelo INCRA.
No plano estadual, o governador Geraldo Mesquita man-
tem uma política restritiva à expansão da pecuária na região. Segundo
depoimento de Elson Martins, na entrevista citada (set/1990):
O governador Mesquita possuía boas relações pessoais
com o Geisel e isso teria facilitado muito seu trânsito na
esfera do poder central. Esse espaço foi muito bem utili-
zado pelo governador, no sentido de criar obstáculos a
liberação de financiamento e incentivos fiscais para a ex-
pansão de projetos ligados à pecuária extensiva na região.
52
Cf. entrevista citada (set/1990)
Sumário 88
Em 1976, o governador suspendeu um programa da Igreja
transmitido por uma emissora de rádio do estado. Essa atitude teria
representado, segundo depoimento de Elson Martins, uma medida
cautelar de Mesquita para preservar o seu espaço político, que estava
sendo “roubado” pela Igreja.
Essa atitude do governo estadual foi duramente criticada
pelo Bispo D. Moacyr Greechi e por diversos padres em seus sermões,
que denunciavam o cancelamento do programa da Igreja como um ato
arbitrário do governador. É provável que outras autoridades da Igreja
do Brasil tenham manifestado sua solidariedade à Prelazia do Acre e
Purus. Entretanto, apesar das pressões, Mesquita manteve-se irredutí-
vel em sua decisão.
Em 1979, Joaquim Falcão Macedo, com apoio de setores
majoritários da classe dominante local, é nomeado governador do es-
tado do Acre. Em relação às diretrizes econômicas pra o desenvolvi-
mento do estado do Acre, há certa continuidade em relação àquelas
traçadas no governo anterior.
O vice-governador de Macedo, José Fernandes do Rego,
sintetiza da seguinte formas essas diretrizes:
Manutenção do seringal nativo onde ainda for produti-
vo, diversificação das atividades primárias no vale do rio
Acre (área de maior conflito) com a agricultura de produ-
tos de mercado (café, cacau, pimenta e dendê) na base de
propriedades familiares e média empresa agrícola (...). A
pecuária de corte está fora, é predatória, ocupa grandes
áreas e isso implica em (sic) desmatamento descontro-
lados, ocupa pouca mão-de-obra e seria um desperdício
gastar solos de alta fertilidade com pastagens (O Estado
de São Paulo, 20/08/1980).
89 Sumário
Quase todas as áreas dos antigos seringais, apesar de não
possuírem titulação original, estão escudadas por escritu-
ras resultantes do livro de registro de imóveis. Uma cadeia
dominial confusa que (...) coloca para o INCRA o pro-
blema de reconhecer ou não escrituras antigas e irregula-
res. Como órgão responsável pela organização fundiária,
o INCRA só aceita três tipos de títulos de propriedade
como válidos no Acre: expedidos pelo então estado do
Amazona, pela Bolívia ou pelo governo independente de
Plácido de Castro (SILVA, 1982:48).
Sumário 90
A proposta de formação de uma “classe média rural” excluía os serin-
gueiros que viviam em suas “colocações” como possíveis beneficiários.
Somente aqueles que aceitassem se transferir para as áreas de assenta-
mento poderiam ter possibilidades de acesso a essa política de estado.
No plano político, diferentemente de seu antecessor, o go-
verno Macedo adotou um comportamento mais “amistoso” em rela-
ção aos “paulistas”. Com isso, os pecuaristas intensificaram mais a
violência no campo para “limpar” as áreas, gerando mais e maiores
conflitos na região.
91 Sumário
lizados e conscientizar a população sobre o que ela estava
passando, a violência que estava sofrendo.
Sumário 92
governo via políticas de incentivo do setor, possibilitando assim a reor-
ganização dos seringais nativos” (VARADOURO, n4, ano 1, nov./77).
A terceira concepção partia do instrumental teórico mar-
xista para formular as linhas gerais de uma proposta de desenvolvi-
mento para a região. Essa concepção foi elaborada de uma forma mais
clara por Césare Galvan, professor do Mestrado em Economia da Uni-
versidade Federal do Ceará ( UFCE). Galvan critica o que denominou
como “romantismo” da proposta alternativa para o desenvolvimento
da Amazônia formulada por Warwick Keer e o “legalismo” da propos-
ta defendida por Mário Lima, argumentando que é no movimento das
classes que se pode pensar a modificação dos rumos e acontecimentos:
(...) as culturas locais não podem impedir uma invasão
capitalista, mesmo sendo ela destruidora, desarrumadora
da economia e da própria cultura como um todo. Podem,
isto sim, gerar elos de memórias históricas, assim como
movimentos geradores de alternativas. O capitalismo não
se pode impedir: pode-se, porém, superar. Essa supera-
ção, é bom que se diga, não se faz no casulo das culturas
isoladas, e sim na interação participativa em todas as
classes. Será preciso – continua - gerar uma contribuição
local, que se articule com outras, diferentes, de outros lu-
gares até tornar possível a proposta alternativa no sistema
vigente. Não nos iludamos: tal proposta não pode ser uni-
camente, de hoje (um momento no tempo que passa) nem
só daqui (um lugar como muitos outros). Estamos dentro
de um sistema, que primeiro vence o tempo e o espaço,
o capitalismo: será, portanto, necessária uma inserção a
esse nível, se quisermos preparar terreno a sua superação.
Repito: não seu simples impedimento (VARADOURO,
nº7, ano1, 1977).
93 Sumário
dicalismo acreano. Havia nessa época uma grande influência da pri-
meira concepção nos meios intelectuais e setores vinculados à Igreja
católica que defendiam a preservação do estado dos “acreanos”, con-
tra as mazelas do capitalismo voraz. Essa concepção lembra a posição
defendida pelos integrantes dos Narodniks, movimento revolucioná-
rio iniciado na Rússia no século XIX. Eles se recusavam a admitir a
inexorabilidade da expansão capitalista como determinação histórica
que antecederia o socialismo. Julgavam possível adotar um tipo de de-
senvolvimento original, com base nas comunas camponesas, capaz de
fazer a transição para o socialismo (BERLIN,1988).
O Varadouro obteve uma fantástica penetração nos meios
populares. Todos os sindicatos recebiam suas edições. A CONTAG e a
Igreja tinham interesse e ajudavam nesse trabalho de distribuição. Fa-
lando sobre a repercussão desse jornal, Elson Martins afirma que “era
impressionante, todas as categorias liam o jornal, parecia assim que o
povo estava esperando há muitos anos surgisse alguém ou um órgão
para dizer aquelas coisas que estavam entaladas em todo o mundo”.
Para se ter uma ideia da aceitação do Varadouro, basta ob-
servar que a sua tiragem chegou até 7.000 exemplares por edição. Atu-
almente (1990), o diário mais vendido do estado do Acre tem uma ti-
ragem de aproximadamente 5.000 exemplares. Além dos aspectos que
destacamos em relação ao Varadouro, existe um que consideramos de
maior importância: o estabelecimento de um vínculo mais estreito, de
uma aproximação maior de alguns intelectuais com a luta de resistên-
cia no campo. Para além de um mero instrumento de divulgação, esse
jornal se constituiu em um importante elo entre pratica e teoria.
Obviamente, não pretendemos afirmar com isso que o Va-
radouro tenha substituído uma organização política, ou mesmo se
caracterizado enquanto tal. O que estamos tentando assinalar é que
contribuiu ativamente para ampliar o universo da luta de resistência
pela terra no Acre, tirando-a de sua particularidade, de seu localismo,
para articulá-la com as questões mais gerais, de caráter estrutural da
sociedade capitalista.
Sumário 94
Em 1981, o jornal VARADOURO lançaria sua última edi-
ção. Além do acirramento das divergências políticas internas do grupo
que o dirigia, o jornal enfrentava sérios problemas financeiros, pois já
não contava mais com o apoio financeiro da Igreja e de outros cola-
boradores54. Além do mais, nesse momento já se verifica uma maior
abertura na grande imprensa, a censura já não era tão severa quanto
a praticada no auge da repressão da ditadura militar. Desse modo, a
imprensa alternativa que havia surgido para ocupar um espaço de de-
núncia do regime e de divulgação de ideias oposicionistas, acaba se
esvaziando, pois a grande imprensa começa a dar cobertura às lutas
sociais. Os movimentos sociais e as lutas políticas em curso na so-
ciedade passavam a obter certos espaços em alguns jornais de grande
circulação nacional. Deve ser lembrado que o ano de 1981 marca o fim
de outro jornal de grande destaque na imprensa alternativa: o Jornal
Movimento.
95 Sumário
aproximadamente mil trabalhadores. A CONTAG havia realizado
todo um trabalho de preparação, promovendo cursos sobre sindicato
que tinham por objetivo oferecer noções mínimas sobre esse tipo de or-
ganização: suas normas legais de funcionamento, as questões adminis-
trativas mais gerais e sua importância para os trabalhadores agrupando
pessoas que mais se destacassem para assumir a direção da entidade.
Nessa assembleia foi eleita uma diretoria provisória para o
sindicato, com Elias Roseno na presidência, Raimundo Maranhão, na
tesouraria, Chico Mendes56 na secretaria geral e outras lideranças que
compuseram a totalidade da direção.
A primeira ação de impacto desse sindicato ocorreu em
março de 1976, no seringal Carmem, quando um fazendeiro amea-
çou expulsar os seringueiros da área e eles se recusaram a sair. A for-
ma encontrada por esses trabalhadores e pela direção do sindicato foi
organizar um grupo de homens para se concentrarem na área onde
estava se iniciando a primeira etapa dos trabalhos de desmatamento,
para impedir que os peões prosseguissem com o seu trabalho. Reali-
zou-se, assim, o primeiro de uma série de “empates”, como veremos
mais detalhadamente adiante. Essa se tornou uma nova forma de luta
desenvolvida pelos seringueiros do Are, com o objetivo de impedir os
desmatamentos nos seringais por eles ocupados, garantindo assim a
preservação de sua principal fonte de sobrevivência: a floresta.
56
Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, nasceu dia 15 de dezembro de 1946.
Acreano, nascido no seringal Porto Rico, em Xapuri, começou ainda menino a trabalhar como
seringueiro com seu pai. Em seu depoimento que consta no livro organizado por Cândido
Grzybowsky, o Testamento do Homem da Floresta: Chico Mendes por ele mesmo, ele conta
que seu interesse pelo sindicato e pela política começou quando ele ainda era criança. Isso
porque ele teve a oportunidade de encontrar no seringal o militante comunista Euclides
Fernandes Távora, que estava refugiado naquela região no início da década de 1960. Chico
Mendes se interessou pelos relatos e pela afabilidade de Távora, passando a estabelecer com
ele um contato mais frequente. Apesar de seu interesse pelo sindicato, Chico Mendes teve
sua formação política nos partidos políticos. Em 1976, concorreu a uma vaga na Câmara
Municipal de Xapuri pelo MDB, para a qual, com o apoio dos seringueiros, consegue eleger-
se. No final da década, ligou-se a uma organização clandestina de esquerda, o PC do B,
passando a integrar a “Tendência Popular do PMDB” (denominação de uma corrente de
esquerda do PMDB). Pouco tempo depois, rompeu com o PC do B e ingressaria no Partido
dos Trabalhadores participando ativamente de sua organização no Acre. Mais tarde, em 1983,
ao assumir a presidência do STR de Xapuri, Chico Mendes já possuía uma experiência e um
forte engajamento na luta política.
Sumário 96
Esse “empate” representou um passo importantíssimo para
a luta dos seringueiros, na medida em que afirmou a eficácia da ação
coletiva como forma de pressão para conquistar seus direitos, ao mes-
mo tempo, inaugurou a adoção de uma outra linha de ação pelo sindi-
calismo emergente na região. Durante três dias, cerca de 60 seringuei-
ros (armados com suas espingardas de caça) mantiveram cercado o
acampamento dos peões. Diante do conflito, segundo depoimento de
João Maia, a delegacia regional da CONTAG encaminhou relatórios
ao Conselho de Segurança Nacional, à Secretaria de Segurança Públi-
ca e ao INCRA solicitando urgente solução para o problema.
É possível que esse tipo de expediente tenha surtido efeito
no sentido de preservar a segurança da CONTAG. Esse procedimento
é reflexo da concepção legalista que norteava as ações dessa entidade
em âmbito nacional. O objetivo da Delegacia da CONTAG no Acre
era reafirmar os propósitos de agir em conformidade com a lei.
Para os seringueiros, a orientação dada pela Delegacia Re-
gional da CONTAG em relação aos “empates”, era para que eles as-
sumissem a responsabilidade. “Não tem cabeças”, diz João Maia57,
“somos nós que decidimos ‘empatar’. Com isso, evitavam-se maiores
‘complicações’ para os sindicatos e para a própria CONTAG”.
Para solucionar o conflito no seringal Carmem, realizou-
se uma reunião entre seringueiros, dirigentes do sindicato, delegacia
da CONTAG e o fazendeiro. Como resultado, foi celebrado um acor-
do entre as partes, no qual os seringueiros concordaram em trocar as
suas colocações por lotes individualizados de 25 hectares cada um.
Segundo Chico Mendes58, ao acertarem esse acordo, tanto a direção
do sindicato como os seringueiros não estavam bem certos do que pre-
tendiam; não possuíam uma noção clara do que representava esse tipo
de solução.
Pelos depoimentos de Chico Mendes e do próprio João
Maia, fica claro que o “empate”, enquanto forma de resistência, foi
gestado no conflito, nas discussões entre os seringueiros e as lideranças
57
Cf. entrevista citada (set/1990).
58
Cf. Chico Mendes, entrevista concedida a Costa Sobrinho, nov./88.
97 Sumário
sindicais. Apesar do êxito nas mobilizações, havia problemas na dire-
ção desse sindicato, ligados basicamente ao descontentamento da base
com determinadas atitudes pessoais do presidente da entidade. Diante
dessa situação, decidiu-se, em meados de 1977, em uma Assembleia
Geral extraordinária, pela substituição da executiva da entidade. Wil-
son Pinheiro, que já havia se projetado como principal liderança sindi-
cal desse movimento, foi eleito para a presidência (Cf. livro de Atas do
STR de Brasileia).
Segundo os depoimentos de Elson Martins, Wilson Pinhei-
ro era amazonense, da região do Careiro em Manaus, já havia par-
ticipado de sindicatos urbanos. Ele não tinha origem de seringueiro,
começou a vida na cidade e vivia numa condição social precária em
Manaus. Por isso resolveu arranjar outros meios para sobreviver, des-
locou-se para a região de Brasileia e instalou-se lá no seringal Sacado.
Quando os pecuaristas começaram o processo de expulsão, Wilson Pi-
nheiro estava nesse seringal. Esta foi uma área de muitos conflitos e ele
participou de uma das primeiras reuniões da CONTAG no Km 80, na
estrada de Assis Brasil.
Com Wilson Pinheiro na presidência do Sindicato, os se-
ringueiros e posseiros passaram a depositar mais confiança na entida-
de. Com isso houve um fortalecimento na luta de resistência a alguns
acordos com os fazendeiros. Nesses acordos, segundo depoimento de
João Maia, o sindicato passou a estabelecer como base da negociação
uma indenização justa para posse, que poderia ser paga em dinheiro ou
em lote de terra, dependendo da vontade do seringueiro ou posseiro. O
sindicato aconselhava sempre a opção pela terra. Neste caso, exigia-se
uma área mínima de 50 a 100 hectares.
Entre 1979 e 1980, o Sindicato de Brasileia organizou deze-
nas de empates para interditar a ofensiva dos pecuaristas. Agravou-se
substancialmente a tensão social nessa região, transformando-a numa
das áreas de maiores conflitos de terras no país. As ações do STR de
Brasileia chegaram a ocupar espaço na grande imprensa nacional, es-
pecialmente no jornal O Estado de São Paulo.
Três ações espetaculares marcaram as lutas sindicais no
Sumário 98
Acre em 1979, todas elas dirigidas pelo Sindicato de Brasileia. A pri-
meira foi no mês de junho, com realização de um empate na região
de Assis Brasil que envolveu 85 seringueiros. Ao tomar conhecimento
da entrada dos peões no seringal para dar início aos desmatamentos,
o delegado sindical da área comunicou o fato à direção do sindicato e
logo em seguida foi convocada uma reunião com os seringueiros, que
decidiram por unanimidade pela realização do empate. A participação
de um grande número de seringueiros e a determinação de “botar para
fora peões e fazendeiro” acabou dando grande repercussão a esse con-
flito na imprensa nacional. O desmatamento foi suspenso.
O segundo foi um mutirão de 300 homens liderados por
Wilson Pinheiro, que se dirigiram para o município amazonense de
Boca do Acre, localizado na fronteira entre Amazonas e Acre. O obje-
tivo foi apoiar os posseiros de uma área localizada às margens da BR-
317 na luta contra um grupo de jagunços comandados por um grileiro
que os ameaçava de expulsão da terra (Cf. entrevista citada de João
Maia – set/1990).
Antes desse mutirão, todos os meios legais haviam sido
acionados pela CONTAG e o Sindicato de Boca do Acre para resol-
ver a situação de 36 famílias de posseiros. Relatórios com denúncias
foram encaminhados ao INCRA, ao governo do estado do Amazonas,
ao 4º Batalhão Especial de Fronteira – BEF. Na justiça, os “posseiros”
ganharam, com a revogação de uma ação de despejo. Assim, os traba-
lhadores estavam, portanto, respaldados legalmente59. As armas apre-
endidas dos jagunços foram levadas para Rio Branco e entregues ao
comando do exército. Esse fato irritou o comandante da corporação,
que acusou os trabalhadores de tentarem “transformar o Acre numa
nova Cuba60”.
59
Numa matéria intitulada “Na floresta, um conflito iminente”, o jornal O Estado de São
Paulo noticiou assim o fato: “O pecuarista Francisco de Lima, que trocou o centro-oeste
pelo norte do Acre, reuniu, na semana passada, 30 diaristas para iniciar o desmatamento
dos primeiros dez mil hectares de floresta e transformá-los em pastos para o gado. Quando o
trabalho estava sendo iniciado, Joaquim recebeu a ‘visita’ de 85 seringueiros que, fortemente
armados, ‘aconselharam-no’ a desistir da derrubada. Ele fez uma rápida avaliação do potencial
de fogo dos dois grupos e, imediatamente, decidiu aceitar o ‘conselho’”. (O ESTADO DE
SÃO PAULO. 16/09/79).
60
Esse fato também mereceu destaque no jornal O Estado de São Paulo, em 04/09/1979.
99 Sumário
Finalmente, no mês de novembro, ocorreu o que o jornal
Varadouro denominou de “Operação pega Fazendeiro”, uma ação re-
alizada por 104 seringueiros no seringal Guanabara, no município de
Assis Brasil. De acordo com a matéria publicada no Varadouro,
Os seringueiros avisaram o sindicato e foram à 4ª Com-
panhia, em Assis Brasil. Falaram claro ‘estão invadindo
nossa terra e fazendo derribada. A 4º Companhia deu au-
torização e ordem para trazer os responsáveis. Não era
para fazer cerimonia (...). Partiram os seringueiros de As-
sis Brasil para o seringal Guanabara, no caminho foram
“arrebanhando” mais gente e ao final eram 104 homens
armados, entre os quais três delegados sindicais (...). As-
sim foi, enquanto quatro homens foram falar com Chi-
co Vieira, os 100 ficaram a distância (...). O fazendeiro
parece que não estava muito disposto a um acordo, que
negócio é esse de ir a 4º Companhia? Mas quando soube
que por perto estava uma centena de homens armados
(...) mudou de ideia e se dirigiu para a 4º Companhia (...).
Na reunião na 4º Companhia, ficou decidido que os fa-
zendeiros iam respeitar as ‘colocações’ dos seringueiros.
(VARADOURO, nº16, ano 2, out/79).
Sumário 100
atiraram contra Wilson Pinheiro e mais dois membros da diretoria,
pelas costas. Wilson Pinheiro morreu na hora. No dia 23, foi realizado
o enterro e um ato público de protesto contra a violência, que contou
com a participação de mais de dois mil trabalhadores e com a presença
de lideranças sindicais nacionais como Lula, Jacó Bittar, respectiva-
mente presidente e secretário-geral do PT, José Francisco, presidente
da CONTAG, dirigentes locais do PT e do PMDB e outros sindicalis-
tas, que apontaram os latifundiários da região como os responsáveis
pelo crime.
Dois dias depois, trinta seringueiros, armados com espin-
gardas de caça, vingaram a morte do presidente do sindicato, matando
a tiros, no Km 70 da estrada Brasileia-Assis Brasil, o fazendeiro Nilo
Sérgio, um dos principais suspeitos pelo assassinato de Wilson Pinhei-
ro. Os seringueiros decidiram fazer “justiça” com as próprias mãos
porque as autoridades policiais não haviam tomado nenhuma provi-
dência para esclarecer o crime e punir os culpados. Talvez esperando
passar o tempo para que o caso fosse esquecido. Entretanto, após a
reação dos seringueiros, a ação policial foi imediata e em poucas horas
foram presos dez suspeitos de envolvimento na morte do fazendeiro.
A Polícia Federal abriu, imediatamente, inquérito indician-
do na Lei de Segurança Nacional Lula, José Francisco, João Maia e
Chico Mendes (na época vereador e presidente da Comissão Regional
do PT), sob a acusação de “incentivarem a luta de classe na região”.
(MOVIMENTO, nº 226, ago/1980). A grande repercussão desses epi-
sódios em Brasileia na imprensa nacional e o deslocamento de expres-
sivas lideranças sindicais para participar do protesto contra o assassi-
nato de Wilson Pinheiro revelam-nos que esse sindicalismo já havia
conquistado um espaço político significativo no movimento sindical
brasileiro.
É preciso lembrar que diversas lideranças de trabalhadores
já haviam sido assassinadas no campo e que, entretanto, nenhum desses
crimes repercutiu tanto quanto o assassinato de Wilson Pinheiro. O
impacto do assassinato de sua principal liderança (Wilson Pinheiro) e
101 Sumário
a concessão de títulos de posse de terra na área de maior conflito de-
sarticularam por um longo tempo o STR de Brasileia.
Sumário 102
preços mais baixos a essa população. Em uma entrevista concedida ao
Jornal Folha do Acre, João Maia avalia as repercussões dessas ações
governamentais,
Inicialmente quem tinha presença entre o homem do
campo no Acre era a Igreja e o Sindicato (...) A nova pre-
sença do governo no campo através do INCRA, Cobal e
SUDHEVEA, para João Maia criou condições para que
os novos sindicatos, sobretudo de Brasileia e Rio Branco,
ficassem satisfeitos. Com isso, eles deram uma cochilada
e não se deram conta da nova realidade. (FOLHA DO
ACRE, 20/01/84).
61
Essa Comissão foi criada e composta pelos seguintes membros: “Dois representantes do
governo do estado, o vice-governador, José F. Rego, e o chefe da casa Civil, Elias Mansur; pelo
delegado da CONTAG, João Maia Filho; o presidente do STR de Rio Branco, Josias Garcia;
o representante da Prelazia do Acre-Purus, Padre André Picarelli; o presidente da Federação
de Agricultura do Estado do Acre, Francisco Diógenes; o representante do Incra, Antônio
Carbone; dos pecuaristas, João Celestino e editores dos três jornais de Rio Branco, Gazeta do
Acre, O Rio Branco e o Jornal”(JORNAL DO BRASIL, 24/08/80).
103 Sumário
são, os fazendeiros deveriam indenizar os ocupantes sempre em terras.
A indenização apenas em dinheiro só poderia ocorrer quando todas
as alternativas fossem inviabilizadas. O governo do estado e o INCRA
teriam sua participação no acordo através da garantia de assistência
técnica, financeira e para a comercialização da produção de gêneros
alimentícios (feijão, arroz, mandioca, milho, entre outros); ficou acer-
tado também que as autoridades governamentais garantiriam a abertu-
ra de estradas vicinais (Cf. Jornal do Brasil, 24/08/80).
É necessário destacar que esta proposta de acordo
interessava aos pecuaristas no plano mais objetivo e imediato, à me-
dida que facilitava a remoção dos obstáculos à implantação de seus
projetos de pecuária de corte. Era de interesse da CONTAG porque
atendia a sua proposta mais geral de reforma agrária, formulada segun-
do uma perspectiva distributivista da propriedade da terra. Atendia,
finalmente, aos interesses governamentais porque representava uma
possiblidade efetiva de desarticular os conflitos e conter o avanço da
luta de classes e a organização dos trabalhadores da região.
Há indicativos, porém, de que essa proposta não interessa-
va a uma parcela significativa dos seringueiros. Eles não pretendiam
transformou-se em “colonos”62. Mesmo desprovidos de uma proposta
alternativa, já manifestavam o interesse de permanecer na floresta e
manter a integralidade de suas colocações. Esse momento é extrema-
mente importante, pois marca o início das tensões que irão permear as
relações entre Delegacia Regional da CONTAG e algumas lideranças
dos seringueiros. Não há uma mediação entre a proposta mais geral
de reforma agrária da CONTAG e essas aspirações que emanavam no
calor da luta dos seringueiros.
Muitos seringueiros que haviam participado desses acordos
com os fazendeiros estavam abandonando seus lotes de terras, suas
“colônias”, e migrando em direção às periferias urbanas ou para os
seringais da Bolívia. Quais os motivos desse abandono? Por que a ideia
62
Denominação regional atribuída a pequenos agricultores nas áreas de colonização oficial,
ou em pequenos lotes de terra (25 a 30 ha) titulados. Boa parte desses lotes haviam sido
adquiridos em negociações dos sindicatos com os grandes proprietários rurais.
Sumário 104
de transformar o seringueiro em “colono” não estava dando resulta-
dos? Em primeiro lugar, ao sair dos seringais, esses trabalhadores, além
de serem expropriados do plano material, objetivo – a perda das colo-
cações -, sofreram também uma expropriação subjetiva, que é a do seu
saber, pois tudo o que haviam aprendido, através de experiências pró-
prias ou herdadas de seus antepassados, para sobreviverem na floresta
– tanto no domínio do trabalho, voltado para atividades predominan-
temente extrativistas, até as relações sociais e culturais forjadas nesse
meio em mais de um século de história –, pouco ou quase nada lhes
servia para enfrentar os desafios de uma forma de reprodução social
tão diferente.
Na “colônia”, passaram a dedicar-se integralmente à agri-
cultura, produzindo basicamente arroz, feijão, milho e mandioca. A
realização dessa produção era muito difícil, pois além de serem produ-
tos altamente perecíveis exigiam condições de transporte inexistentes
na região, dificultando ainda mais o processo de comercialização. Isso
teria contribuído efetivamente para desestimular esses seringueiros
convertidos em “colonos”, uma vez que chegavam ao final da safra
sem conseguir obter praticamente nenhum resultado econômico.
Pelo contrário, constatavam que as condições haviam pio-
rado em relação àquela a que estavam habituados na “colocação”.
Além disso, muitos deles não conseguiam se adaptar a uma nova dis-
tribuição espacial, que, além de confiná-los em pequenas áreas de 25 a
50 ha, obrigava-os a conviver com uma vizinhança mais próxima e, por
conseguinte, com relações sociais diferentes daquelas a que haviam se
habituado nos seringais.
As experiências dos seringueiros nas “colônias” estavam
sendo dramáticas. Desprovidos de condições mínimas para a produ-
ção como assistência técnica e crédito; para a comercialização, dada
a inexistência de estradas vicinais para o escoamento da produção, de
estrutura de armazéns e garantia de preços mínimos, a maioria des-
ses ex-seringueiros abandonava suas “colônias”. Era preciso, portanto,
que o sindicalismo pensasse em outras alternativas que pudessem res-
105 Sumário
ponder às necessidades e aspirações desse segmento social que, naque-
le momento, resumia-se basicamente a uma questão: garantir a floresta
como meio de sua reprodução social.
Algumas lideranças dos seringueiros começavam a ques-
tionar os acordos realizados pelos sindicatos, sob a orientação da
CONTAG, para solucionar os conflitos de terras na região. Embora
João Maia afirme, em seu depoimento63, que nesta época a Delega-
cia Regional da CONTAG já manifestasse preocupações com a ques-
tão particular dos seringueiros (começava-se a pensar em reivindicar
a desapropriação dos seringais onde houvesse conflitos e legalizar as
posses dos seringueiros conforme sua ocupação original), tudo indica
que a CONTAG tenha se mantido presa a sua proposta original, base-
ada num modelo distributivista da terra, onde a pequena propriedade
com base no trabalho familiar era vista como a melhor solução para a
questão agrária do país. Além disso, ao enquadrar os seringueiros na
mesma identidade de “posseiros”, a CONTAG não estaria levando em
conta as demandas específicas desse segmento social, uma vez que aos
“posseiros” interessava basicamente um lote de terra.
Com relação à Igreja católica, nesse momento suas posi-
ções em relação aos conflitos de terras passaram a expressar-se via
Comissão Pastoral da Terra (CPT). A proposta de reforma agrária da
CPT não apresentava diferenças significativas em relação à da CON-
TAG. Também na CPT não houve espaço para a incorporação das
aspirações que já se manifestavam na luta dos seringueiros.
Nesse período, houve também um maior agravamento das
tensões entre a Delegacia Regional e a direção nacional da CONTAG.
Apesar do III Congresso da CONTAG ter aprovado as mobilizações
coletivas como forma de luta e de pressão para a conquista das reivin-
dicações dos trabalhadores rurais, o tipo de mobilização que se fazia
no Acre, pelo seu nível de radicalização, não agradava à direção nacio-
nal da CONTAG64. Segundo um dos nossos entrevistados, Arquilau
Sumário 106
Melo, “os sindicalistas do Acre não eram bem aceitos pela CONTAG,
Francisco Urbano deixava isso bem claro”.
Mas não era somente o nível de radicalização das mobili-
zações no Acre que preocupava a direção nacional da CONTAG. Ou-
tra preocupação desses dirigentes era com o engajamento na política
partidária (via Partido dos Trabalhadores) das principais lideranças
sindicais do estado do Acre, inclusive João Maia, que havia assumido
o compromisso de organizar o PT na região. Essa questão, entretanto,
será analisada mais detidamente no próximo capítulo.
Durante a pesquisa, indagamo-nos por que esse “modelo
sindical” no Acre teria logrado maiores êxitos no STR de Brasileia e
não em outro sindicato qualquer da região. O nível de radicalização
dos conflitos de terra e do confronto com os latifundiários não nos
pareceu suficiente para responder a essa questão, pois em municípios
como Rio Branco e Xapuri as situações, no que diz respeito aos con-
frontos, eram idênticas. Entretanto, os seus respectivos sindicatos, que
também atuaram sob a orientação da CONTAG, não obtiveram os
mesmos resultados, não se projetando como o de Brasileia, notada-
mente o de Xapuri, até então muito pouco expressivo no cenário regio-
nal das lutas de resistência.
Pelas entrevistas realizadas, percebemos um consenso em
relação a essa indagação: O STR de Brasileia teria obtido maiores êxi-
tos porque contava com um grupo de líderes mais arrojados, particu-
larmente Wilson Pinheiro, que presidiu o sindicato a partir de 1977. É
preciso observar, porém, que a concentração da expansão da pecuária
se dá no sentido Rio Branco-Xapuri-Brasileia. Portanto, ao chegar a
último município, já havia decorrido um espaço suficiente para que os
afirmação das mobilizações coletivas, como forma legítima de luta pelos direitos, daria uma
nova configuração às lutas sociais no campo, inaugurada poucos meses depois do Congresso,
com a greve dos canavieiros em Pernambuco, que mobilizou mais de 20 mil trabalhadores.
É preciso lembrar, entretanto, que, no âmbito das lutas internas no estado do Acre, essas
resoluções do III Congresso não produziram modificações substanciais. Como demostramos,
as mobilizações coletivas na região são anteriores a essa decisão; elas nasceram praticamente
juntas com o sindicalismo em meados da década de 1970, através dos “empates”. A presença
dos seringueiros armados nos ”empates” e ações como a Operação “Pega Fazendeiro” eram
tidas como radicais pela CONTAG.
107 Sumário
seringueiros e “posseiros” dessa região tomassem conhecimento dos
“estragos” que haviam ficado por onde passaram as “patas de bois”.
Além disso, em Brasileia, diferentemente do que ocorreu
em Xapuri, a Igreja apoiou o movimento desde a sua formação inicial.
Em Rio Branco, o sindicato não havia atuado mais por estar, segundo
João Maia, à “sombra” da delegacia da CONTAG, aí sediada, o que
fazia com que as atenções gerais se voltassem mais sobre a CONTAG
do que para o sindicato.
Com o assassinato de Wilson Pinheiro e a intervenção mais
ativa do Estado na questão fundiária das áreas de maior conflito de
terra, desarticulou-se o movimento de resistência liderado pelo STR
de Brasileia, considerado, até então, a principal referência do sindica-
lismo rural do estado do Acre. Assim, o movimento sindical da região
entrou no que chamamos “período de transição”, que foi marcado, de
um lado, pela submissão de grande parcela dos trabalhadores localiza-
dos nas áreas de maior conflito de terras às ações promovidas pelo Go-
verno, como desapropriação e loteamento de terras, e, por outro lado,
pela movimentação interna de algumas lideranças dos seringueiros de
Xapuri na busca de redefinições para o sindicalismo na região65.
Ao avaliarmos que a conjugação do assassinato de Wilson
Pinheiro com as ações desapropriatórias do Governo teriam sido ca-
pazes de desarticular o que aparentava ser um vigoroso sindicalismo,
no sentimos no dever de levantar alguns questionamentos em relação
a ele.
Os impactos dessas ações sobre o movimento sindical nos
revelam de certa forma a limitações da bandeira mais geral da luta
da CONTAG – incorporada pelo movimento sindical no Acre – cujo
centro era a reivindicação da regularização da posse da terra junto ao
65
Entre 1980 e 1983, o Governo Federal, através do INCRA assentou em seis Projetos de
Assentamento Dirigido (PAD) cerca de 6.000 famílias, entre as quais estavam ex-seringueiros,
ex-proprietários de terras do centro sul do país, ex-metalúrgicos desempregados de São Paulo,
etc. O maior desses projetos – com capacidade para 4.000 famílias – o PAD Pedro Peixoto
abrangia áreas de três municípios: Rio Branco, Plácido de Castro e Senador Guiomard. Os
outros projetos estão localizados nos municípios de Brasileia, Sena Madureira e Cruzeiro do
Sul.
Sumário 108
Estado. Atendida essa reivindicação nas áreas de maior conflito e mo-
bilização sindical, as lideranças do movimento ficaram “desorienta-
das” temporariamente, não sabendo o que fazer para manter os traba-
lhadores mobilizados. Estes, por sua vez, julgavam que seus problemas
haviam sido resolvidos com a conquista da posse da terra sentindo-se,
a partir disso, mais “acomodados” diante do sindicato.
109 Sumário
Capítulo 4
Sumário 110
de Rio Branco, a região de Xapuri entra em franca decadência. Su-
põe-se que o abandono e o arrendamento dos seringais a terceiros –se-
ringalistas arrendatários – tenha sido maior nesse período. Isso teria,
inclusive, segundo depoimento de seringalistas, seringueiros, dirigen-
tes sindicais e pesquisadores, propiciado uma significativa rotatividade
dos “patrões” nos seringais xapurienses.
Esse quadro de decadência da economia tradicional, soma-
do à excelente localização geográfica de Xapuri, situada a apenas 180
Km de Rio Branco, capital do estado, no eixo rodoviário projetado
para ligar o estado do Acre ao oceano Pacifico, mais precisamente ao
Porto de Illo no Peru, transformariam essa região numa das mais co-
biçadas para os pecuaristas, especuladores e grileiros que começam a
deslocar-se para o território acreano na década de 1970.
O mercado de Xapuri foi extremamente movimentado. Já
a partir de 1969 começam a ocorrer diversos leilões de terras. O alto
nível da especulação acabaria provocando um maior fracionamento
da propriedade rural na região. Duarte (1985:103) dá como exemplo
dessa especulação de terras em Xapuri a aquisição de um seringal por
um investidor de São Paulo em 1972, que, em apenas dois anos, o
fracionou em várias propriedades e o transferiu a outros proprietários
também do estado de São Paulo. Os lucros exorbitantes dessas transa-
ções demonstram, segundo o autor, que a especulação no mercado de
terras tornou-se um fantástico negócio na região.
Não foram somente os grandes grupos de capitais que se
apropriaram de terras em Xapuri, mas também médios proprietários
rurais oriundos do centro-sul do país que, atraídos pelos baixos pre-
ços da terra, se deslocaram para a região Norte com a finalidade de
implantar fazendas de gado66. Esse ritmo intenso de fracionamento e
transferência dos seringais, de expropriação dos seringueiros e todas
as formas de violência que se seguiram, resultou em grandes transfor-
66
A família Alves, que teve dois de seus membros – Darli Alves e seu filho Darci Alves –
condenados a 19 anos de prisão por estarem envolvidos no assassinato de Chico Mendes em
1988, é um desses exemplos. Eles venderam suas terras no Paraná e com o dinheiro puderam
comprar uma área infinitamente superior em Xapuri.
111 Sumário
mações na estrutura produtiva da região, substituindo-se rapidamente
o extrativismo da borracha e da castanha pela pecuária extensiva de
corte67.
Além de sua desorganização política, os seringueiros de
Xapuri, ao contrário do que ocorria em Brasileia, não contavam na
época (1970-1977) com o apoio da Igreja local. O pároco Pe. José Car-
neiro era adepto da linha mais conservadora do clero no Brasil e defen-
dia abertamente os interesses dos pecuaristas e demais latifundiários,
afirmando que eles trariam o progresso para a região e melhores con-
dições de vida para a população68.
Essa postura da Igreja local teria criado, segundo Chico
Mendes (entrevista a Costa Sobrinho, nov/1988), grandes dificuldades
para o processo de organização sindical na região, tanto que o STR de
Xapuri foi um dos últimos a ser fundado pela CONTAG. Em 1977,
chegaram aos municípios os padres Destro e Cláudio Avallone, que
passaram a apoiar ostensivamente a organização sindical. Neste mes-
mo ano, o Pe. José Carneiro, por decisão da hierarquia da Igreja, foi
afastado de suas funções69. Com a chegada dos novos padres, as Co-
munidades Eclesiais de Base dessa paróquia deixaram de ter caráter
estritamente religioso e passaram a adotar uma linha de orientação
identificada com a Teologia da Libertação.
No dia 9 de maio de 1977, realizou-se no Colégio Divina
Providência a Assembleia de fundação do STR de Xapuri, com a par-
ticipação de 302 pessoas. Entre os convidados estavam o governador
67
Os mapas da FUNTAC (1989) demonstram que dos 820.000 há de floresta de Xapuri, cerca
de 114.000 ha nesse momento já tinham sido derrubadas e a maior parte nos anos 1970.
68
Cf. Chico Mendes, entrevista concedida a Costa Sobrinho, nov/1988.
69
Ao que tudo indica, no interior da Prelazia do Acre e Purus as divergências entre progressistas
e conservadores teria chegado a um limite. Há informações de que o Padre José, além de
defender abertamente os interesses da classe dominante, estava vinculado diretamente aos
aparelhos de repressão do Estado. Parece-nos que a compreensão desse fato teria pesado
decisivamente para que a hierarquia da Igreja resolvesse afastá-lo de Xapuri. Esse padre foi
proibido de celebrar missa por um determinado período. Nas eleições para governo estadual,
em 1990, o padre retornou ao Acre (estava radicado em Santa Catarina, desde seu afastamento
de Xapuri) e apoiou publicamente, nos programas eleitorais de TV, a candidatura de Rubem
Branquinho, um dos principais representantes da UDR no Acre. Não foi por acaso que o
afastamento do Padre provocou fortes reações da classe dominante, que protestou e criticou
abertamente essa decisão (Cf. depoimentos de uma liderança do CNS).
Sumário 112
do estado, Geraldo Mesquita (aclamado como presidente de honra da
reunião), o Delegado Regional do Trabalho, Humberto Albuquerque,
o prefeito do município, os padres Destro e José Carneiro, João Maia e
Pedro Marques da CONTAG, o presidente do STR de Brasileia, Elias
Rosendo.
A primeira diretoria eleita para dirigir o sindicato teve como
presidente Luiz Damião, uma liderança vinculada às Comunidades
Eclesiais de Base. Sua permanência na presidência da entidade se es-
tenderia até o dia 30 de agosto de 1981, quando foi destituído do cargo
em uma Assembleia Geral extraordinária. Segundo uma liderança sin-
dical de Xapuri, os seringueiros teriam realizado diversos “empates”
nesse período, dos quais, entretanto, o presidente do sindicato não par-
ticipava: “O Damião ‘negociava’ com os fazendeiros, dava um jeitinho,
chamava o seringueiro para negociar. No seringal Palmari chegou a ter
negociação, os seringueiros receberam uma indenização e um pedaço
de terra” (Cf. informações de uma liderança do STR Xapuri). Circula-
vam informações entre os seringueiros sobre um possível suborno do
presidente do sindicato pelos fazendeiros, para que ele “amaciasse” a
luta. Portanto, quando as lideranças afirmam que Damião “negocia-
va” com os fazendeiros, esse termo adquire a conotação de traição,
e não é considerado no sentido especifico de uma prática que busca
defender os interesses dos seringueiros através dos acordos sindicais.
O agravamento dos conflitos de terra na região e o crescen-
te descrédito da direção do sindicato entre os seringueiros fizeram com
que algumas lideranças tomassem a iniciativa de organizar um movi-
mento de oposição. No dia 31 de maio de 1981, mobilizado em torno
de uma ideia e da necessidade de impor uma outra linha ao sindicato,
o grupo oposicionista, em uma assembleia geral da entidade, exige a
renúncia de Damião. A decisão da questão, entretanto, seria poster-
gada para o dia 30 de agosto do mesmo ano, quando se efetivaria, em
assembleia extraordinária, o afastamento da direção do sindicato e a
eleição de uma nova diretoria (Cf. Livro de Atas do STR de Xapuri).70
Segundo o Jornal VARADOURO, com essa mudança “parece estar em início um novo
70
113 Sumário
Naquele momento, o sindicalismo rural do Acre deparava-
se com um grande dilema: o mesmo sindicato que incentivou o não
pagamento da renda nos seringais, criando condições favoráveis para
legitimar a conquista da “autonomia” dos seringueiros, adotava como
fórmula de resolução dos conflitos de terra a negociação com os fazen-
deiros e com autoridades governamentais e a reivindicação pelo lotea-
mento de terras (as “colônias”) para estes mesmos seringueiros. Com
isso, por um lado, o sindicato garantia a permanência dos seringueiros
na floresta em melhores condições de sobrevivência, com a extinção
do pagamento por “renda”, mas, por outro lado, negava essa conquista
ao aceitar a transferência dos seringueiros para a “colônia”.
Os seringueiros da região de Xapuri constatavam o que
ocorrera aos que trocavam suas colocações por pequenos lotes de ter-
ras conseguidos em acordos com os fazendeiros: não conseguiram
sobreviver e acabaram obrigados a vender suas terras. Isto aconteceu
porque, além de não contarem com as mínimas condições necessárias
para desenvolverem atividades produtivas, encontravam ainda imen-
sas dificuldades em se adaptar as novas condições de vida e trabalho,
bastante diversas daquelas a que se haviam habituado no interior dos
seringais71.
Este é um momento de mudanças significativas no proces-
so de lutas na região de Xapuri, pois, através da ação sindical, mesmo
debilitada, os seringueiros na região conseguiram legitimar a conquista
do direito de percepção da força de união, de avaliação de vitorias concretas conseguidas
nos últimos anos. Um sindicalismo que nasceu juntamente com o processo de liberação do
seringueiro da submissão aos patrões” (VARADOURO, nº22, ano 4).
71
O abandono das colônias não é um fenômeno isolado, restrito aos seringueiros do Acre.
Situações semelhantes foram constatadas em outros pontos do país. Santos (1985) analisa
o caso de uma área de assentamento em Barra das Garças (MT), o Projeto de Colonização
Terranova, em que grande número de pequenos agricultores assentados (desalojados de áreas
de Terra indígena nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina), ao se depararem
com condições de reprodução sociais extremamente adversas (como falta de apoio do Estado,
que se refletia na ausência de crédito, assistência técnica, escolas, assistência médica e na
inexistência de uma infraestrutura básica e de uma rede de apoio à comercialização, etc.)
abandonavam seus lotes de terras e retornavam para suas regiões de origem (...) os colonos
afirmam que nos projetos de colonização não há condições de viver, que mais valem 15 ha no
sul do que 200 ha no Mato Grosso. Ao voltarem, salientam a necessidade de união entre os
colonos para pressionar o Governo, até mesmo mediante invasões de fazendas (...). O retorno
da Amazônia lhes aparece como um direito de liberdade (SANTOS, 1985:181).
Sumário 114
de sua “libertação” e de sua “autonomia” em relação ao “barracão” e
aos “patrões” seringalistas.
Ao afirmarem que os seringueiros legitimaram sua “auto-
nomia”, estamos partindo do pressuposto de que essa luta é anterior
à ação sindical, e que ela perpassa toda a trajetória histórica desse
segmento social, expressando-se em diferentes formas na luta de
resistência no interior dos seringais. O fato novo, nesse momento, é
a existência do sindicato – que não estava presente anteriormente, e
que passa a oferecer e representar uma garantia para os seringueiros
romperem definitivamente com o sistema tradicional de dominação
nos seringais – o “cativeiro”.
Na tentativa de responder às exigências desse novo mo-
mento, a direção do STR de Xapuri passa a priorizar a organização de
base, fortalecendo as delegacias sindicais existentes e abrindo outras
em novas áreas par ampliar o trabalho de conscientização junto a essa
população.
Como a sede do sindicato fica localizada na cidade de
Xapuri, distante de muitos seringais, as delegacias sindicais ocupam
um espaço importante na organização dos seringueiros. Além de pos-
sibilitar a divulgação e as discussões da luta do sindicato no interior do
seringal (em cada seringal existe uma ou mais delegacias), elas mar-
cam a presença da entidade e passam a constituir um canal de ligação
entre as bases e a direção do sindicato, e vice-versa.
Outro fato importante para a luta dos seringueiros ocorreu
em 1981, quando um grupo de intelectuais decidiu formar o Centro de
Documentação e Pesquisa (CEDOP). Tratava-se de uma organização
não governamental que tinha como objetivo iniciar um trabalho edu-
cativo em Xapuri visando alfabetizar e conscientizar os seringueiros
via método Paulo Freire. Entre seus objetivos apareciam: preservar a
cultura e garantir a reprodução social enquanto seringueiros, apoiar a
organização sindical, esclarecer o seringueiro sobre o valor da floresta,
lutar pela implantação de escolas nos seringais, para que os seringuei-
ros não precisassem transferir-se para a cidade, e eliminar a cadeia de
intermediação através da criação de cooperativas72.
72
Entre os intelectuais que criaram o CEDOP estavam: o jornalista Elson Martins, a
115 Sumário
O CEDOP surge no contexto da luta dos seringueiros pela
permanência na floresta. Sua finalidade era contribuir para a melhoria
das condições para o processo de organização. A valorização da cul-
tura desse segmento social era uma forma de fortalecer a sua luta de
resistência contra os fazendeiros. Nesse sentido, o trabalho educativo
iniciado nos seringais revestiu-se de significados importantes para o
crescimento da organização sindical em Xapuri. O sindicato era apon-
tado como o elemento que garantia a permanência dos seringueiros na
floresta, a manutenção de suas formas de reprodução social e a afirma-
ção dos valores morais e culturais a ela inerentes73. Enfim, o resgate da
cultura no sentido de fortalecer a luta de resistência nos seringais e a
organização sindical, tiveram grande importância nos desdobramen-
tos do movimento, na formação da identidade política dos seringuei-
ros, como demonstraremos mais à frente neste capítulo.
Entre 1981 e 1983, a direção de sindicato de Xapuri seria
modificada duas vezes74. Uma delas em junho de 1982, com a subs-
tituição de dois membros, e outra em maio do ano seguinte, com a
entrada de Chico Mendes ocupando o cargo de presidente.
Sumário 116
posse da terra, deixa de ser o único polo aglutinador das lutas sociais
no campo.
É preciso lembrar, porém, que não é só no plano regional
que o sindicalismo busca redefinições no seu direcionamento. Esse
processo está em curso em todo o país, verificando-se, em diversos lu-
gares, um maior acirramento das disputas pela hegemonia na direção
das lutas sindicais pelas correntes políticas que integram o movimento
sindical.
As mobilizações grevistas iniciadas pelos metalúrgicos do
ABC paulista em 1978 inauguraram um novo momento da luta de
classes no Brasil, abrindo passagem para outros movimentos reivin-
dicatórios de norte a sul do país, no campo e nas cidades. Além do
combate ao arrocho salarial, no setor de ponta da classe operária, traz
consigo também uma forte contestação à estrutura sindical brasileira,
originária do modelo corporativista75 implantado pelo Estado a partir
da década de 1930.
Após a realização do III Congresso da CONTAG, em 1979,
as lutas no campo tomariam grande impulso, marcado pela emergên-
cia de grandes mobilizações, como as greves dos assalariados da cana-
de-açúcar na zona canavieira nordestina: os protestos dos pequenos
agricultores do Sul contra a políticas agrícola do governo, a eclosão de
novos conflitos pela posse de terra na região Norte, e outros. Entretan-
to, o crescimento da mobilização traz consigo maiores desafios, não só
para o sindicalismo rural como também para o conjunto do sindicalis-
mo brasileiro.
O início dos anos 1980 é marcado ainda pelas articulações
de diversas lideranças sindicais para a criação de uma Central Sindical
no Brasil, e pelo aprofundamento das disputas pela hegemonia no sin-
dicalismo brasileiro. As grandes mobilizações grevistas do ABC pau-
75
Philippe Schmitter define o corporativismo como: “Um sistema de representação de
interesses no qual as unidades constituintes são organizadas num número limitado de categorias
singulares, compulsórias, não competitivas e ordenadas e funcionalmente diferenciadas,
reconhecidas ou permitidas (senão criadas) pelo Estado, as quais se outorga o monopólio de
um representação deliberada no interesse das respectivas categorias em troca da observâncias
de certos controles na relação de seus líderes e na articulação de suas demandas e apoios”
(SCHMITTER, cit. In GODRIM, 1984:31).
117 Sumário
listas tiveram grande repercussão nacional e acabaram projetando uma
nova concepção sindical no país, que ficaria conhecida como o novo
sindicalismo. De acordo com Novaes (1988):
As ideias centrais do “novo sindicalismo” (combatividade
e participação) foram explicitadas no bojo do movimento
operário do polo mais avançado do capitalismo brasilei-
ro. As articulações de oposições sindicais e a organização
sindical (CUT) que daí resultaram tiveram uma “marca
metalúrgica”. Mas a realização do “novo sindicalismo”,
nas diferentes situações sociais, passou necessariamente
pelo encontro dessas ideias (e propostas organizativas)
com as contradições objetivas e subjetivas às quais esta-
vam e estão submetidos aqueles que constroem nacio-
nalmente essa nova alternativa sindical. A decolagem do
“novo sindicalismo” no campo, portanto, não se fez em
espaço vazio de relações sociais. Por um lado, as propos-
tas do “novo sindicalismo” decolaram em locais e situa-
ções onde as formas de desenvolvimento do capitalismo
no campo explicitaram conflitos e demandavam novos
meios de encaminhá-los. Por outro lado, foi o lastro de ex-
periências concretas de lutas e organizações preexistentes
que impôs para uma parcela de trabalhadores mais avan-
çados a necessidade de construir uma alternativa (oposta
ou complementar) às concepções e práticas sindicais e/
ou comunitárias existentes (NOVAES, 1989:53).
Sumário 118
no Acre. A Assembleia de lançamento do Partido foi realizada no dia
12 de março de 1980 e contou com a presença das mais expressivas
lideranças do sindicalismo rural acreano, entre os quais estavam: João
Maia, Wilson Pinheiro e Chico Mendes. Esse último exercia na época
o mandato de Vereador em Xapuri. Além destes, fizeram-se presentes
todos os presidentes dos STRs do estado. O Jornal Varadouro registrou
assim o evento,
O PT chegou ao Acre, “pegou” e o que é mais importan-
te: O PT nasce vigoroso no Acre porque está surgindo a
partir da luta dos trabalhadores dos seringais, das colô-
nias e da cidade. Uma pequena amostra foi dada no dia
12 e março, na assembleia de lançamento do PT (VARA-
DOURO, Nº19, ano 3, maio/1980).
119 Sumário
A participação de lideranças sindicais de expressão nacio-
nal, como Lula, Jacó Bittar e José Francisco, no ato público dos tra-
balhadores rurais de Brasileia em repudio ao assassinato de Wilson
Pinheiro em julho de 1980, nos dá indicativos do nível das disputas
nesse sindicalismo e a importância que ele passava a ter no cenário
político brasileiro.
Em 1982, a população brasileira reconquista o direito de
eleger governadores de estado. No Acre, criaram-se grandes expectati-
vas em torno das possibilidades do PT no pleito eleitoral. Entretanto,
o partido obteve um resultado muito abaixo do esperado, conseguindo
eleger apenas um deputado estadual, filiado recentemente ao PT, sem
nenhum vínculo direto com os movimentos sociais78.
As lideranças vinculadas ao sindicalismo rural – João Maia,
candidato, a deputado federal e Chico Mendes, candidato a deputado
estadual – foram derrotadas. O primeiro, apesar de ter obtido expres-
siva votação no meio rural, não conseguiu eleger-se porque a legenda
não atingiu o coeficiente de votos necessários para obter uma vaga na
Câmara dos deputados. O segundo obteve cerca de 70% dos seus votos
nos seringais de Xapuri, sendo os outros 30% distribuídos em outras
regiões do estado. Com esse resultado, Chico Mendes alcançaria a pri-
meira suplência do PT para a Assembleia Legislativa.
A derrota eleitoral de Chico Mendes por uma pequena
margem de votos pode ser explicada, segundo informações de algumas
lideranças sindicais de Xapuri e de opiniões veiculadas pela imprensa
local, pela forte campanha anticomunista promovida contra sua candi-
datura por uma corrente política interna do PT vinculada à Igreja cató-
lica, que fazia advertência junto às CEBs e sindicatos sobre os “riscos”
e os “perigos” de se votar em candidato comunista.
divisões para o interior da luta sindical.
78
Esse deputado, além de não possuir nenhum tipo de vínculo com os movimentos sociais,
elegeu-se com os votos da cidade de Cruzeiro do Sul, no Vale do rio Juruá, caracterizada
politicamente como uma região mais “atrasada” do estado, e marcada ainda por um rígido
controle das oligarquias tradicionais. O êxito desse parlamentar nas urnas pode ser explicado
pelo fato de que ele era oriundo de uma família numerosa e de certa projeção econômica (para
os padrões regionais) e também pela “moderação” de seu discurso durante a campanha e por
uma conduta de certa forma assistencialista junto aos eleitores. O candidato eleito obteve
cerca de 800 votos, 5% a mais que a votação alcançada por Chico Mendes
Sumário 120
O grande vitorioso nas eleições do Acre e no restante do
país foi o PMDB. Com a posse do novo governo, em março de 1983,
João Maia se afasta do PT e se aproxima do partido vitorioso, levando
consigo as principais lideranças de seis dos sete STRs existentes no
estado do Acre naquele período. Segundo ele79, o seu afastamento teria
se dado em decorrência da impossibilidade de manter uma convivên-
cia com os “radicais” do PT.
Havia no PT acreano, além de militantes “independentes”,
três correntes políticas que disputavam a hegemonia da direção parti-
dária. A primeira era composta por lideranças sindicais e comunitárias
ligadas a Igreja católica80. Na sua concepção, o PT era tido como um
dos instrumentos de luta dos “pobres e oprimidos” na sua “caminhada
de libertação” (MOURÃO, 1987:164). Entendiam eles que a política
do partido deveria ser direcionada para o combate à ditadura militar e
à dependência econômica externa do país e para a conquista de uma
mudança social capaz de colocar “o poder e a economia nas mãos do
povo organizado” (MOURÃO, 1987:166). A segunda era formada ba-
sicamente por lideranças sindicais e estudantis, conhecida inicialmente
como “Esquerda do PC do B” e, posteriormente (a partir de 1984),
como Partido Revolucionário Comunista (PRC)81. Na sua concepção
79
Cf. entrevista citada (set/1990).
80
Esse vínculo não se restringe a Igreja local. Trata-se de uma articulação nacional que envolve
diversos setores da Igreja no processo de participação da política partidária. Apesar de existir
um núcleo comum ordenador das ideias políticas que norteiam a ação dessa corrente, ela é
multifacetada nacionalmente por diferentes concepções de transformação social. Portanto, ao
mencionarmos “uma corrente política vinculada a Igreja” estamos considerando toda essa
complexidade política dessa articulação.
81
Esse agrupamento político é originado de uma dissidência política do PC do B, ocorrida
entre o final da década de 1970 e início de 1980. Essa dissidência, segundo um ex-dirigente da
organização, teria sido motivada por duas divergências básicas: as “concepções stalinistas” e
o “foquismo” que orientavam a política e a pratica do PC do B. Havia um grupo minoritário
no PC do B que se opunha às concepções de Stalin e avaliava que o movimento que deflagrou
a guerrilha do Araguaia teria sido uma precipitação da organização – considerava que o
momento era inadequado para aquele tipo de ação e propunha ainda a convocação de um
congresso do Partido para discutir essas questões. A recusa da maioria da direção do Partido
em rever a sua política e suas avaliações (a guerrilha do Araguaia era avaliada como um ato
de heroísmo revolucionário da organização, que poderia ter alcançado seus objetivos se não
tivessem ocorrido alguns imprevistos) e os encaminhamentos dados às questões acabaram
provocando o afastamento de alguns dirigentes e militantes em várias partes do país. Muitos
deles se rearticularam em torno da “Esquerda do PC do B”. Posteriormente, em 1984, essa
corrente política fundaria (juntamente com outras dissidências da esquerda clandestina) o PRC.
121 Sumário
mais geral, o PT era considerado uma “frente esquerda”, cujo papel
fundamental era o de criar canais de participação e organização polí-
tica para as massas trabalhadoras. A política do partido deveria cen-
tralizar-se no combate ao regime militar, na crítica ao capitalismo e na
defesa do socialismo como projeto alternativo para o Brasil.
A terceira corrente política, a “Organização Socialista In-
ternacional” (OSI), era integrada majoritariamente por militantes do
movimento estudantil. Para este grupo, o PT configurava-se enquanto
partido revolucionário, que dirigiria a revolução socialista no Brasil.
Além do combate à ditadura militar, o PT deveria lutar pela implanta-
ção imediata de formas socialistas de organização de produção na so-
ciedade nos locais (prefeituras e governos estaduais) onde ocorressem
vitorias eleitorais e ascensão do partido ao poder político82.
A disputa política entre essas e inúmeras outras correntes
que integram nacionalmente o PT marca a história desse partido des-
de a sua fundação. Portanto, os argumentos de João Maia não nos
parecem suficientes para explicar o seu afastamento do PT. É possível
que sua decisão tenha sido motivada por uma decepção com o fraco
desempenho eleitoral da legenda, ou mesmo por razões de ordem ide-
ológica que o levaram a uma aproximação com o governo do PMDB.
É preciso registrar também que diversos intelectuais
(professores universitários, jornalistas, entre outros) que apoiavam a
Como grande parte da esquerda brasileira, essa organização preconizava uma revolução social
inspirada na teoria formulada por Lenin, segundo a qual a revolução socialista realizar-se-ia
tendo como classes dirigentes o operariado em aliança com o campesinato. Entretanto, essa
revolução não resultaria da “espontaneidade das massas”, ela precisaria de um elemento que
desse unidade às ações dispersas dos trabalhadores e direcionasse a luta para uma perspectiva
revolucionária. Esse elemento era o Partido, formado por uma vanguarda de revolucionários
estruturada organicamente sob os princípios do “centralismo democrático”. O partido seria o
elemento consciente, que elevaria a “classe em si” para a condição de “classe para si”. Nessa
perspectiva, o sindicato era visto como um importante espaço para a organização da classe
operária (LENIN,1979). Com a dissidência do PC do B, no Acre, os seus militantes ligados ao
sindicalismo rural passam a se aproximar e/ou integrar o PRC. A partir de 1980-81, o PC do
B deixa de exercer influência direta nesse sindicalismo rural acreano pelo menos até o início
dos anos de 1990.
82
Cf. depoimento de um ex-militante da organização e dados contidos em documentos de
circulação interna do grupo. A OSI era uma das inúmeras organizações de inspiração trotskista
existentes no Brasil como em outras partes do mundo. Como outras do gênero, tinha na teoria
da “Revolução Permanente” formulada por Trotsky a maior referência para a sua elaboração
política.
Sumário 122
luta de resistência pela terra e o movimento sindical, foram cooptados
pelo governo do PMDB e passaram a ocupar diversos cargos no apa-
relho de Estado. É nesse contexto mais geral que analisamos a ruptura
do STR de Xapuri com a CONTAG.
123 Sumário
Avallone de Xapuri e o transfere para a Itália, por considerar o envol-
vimento ativo desse padre junto ao sindicato e sua aproximação com
os “militantes comunistas” prejudiciais à ação da Igreja no município.
A partir de 1983, o sindicato de Xapuri procura ampliar o processo de
organização de base, fortalecendo as delegacias sindicais, fazendo dos
“empates” a principal forma de resistência dos seringueiros.
Os seringueiros começam a ver o empate como algo vital
para a sua sobrevivência, pois já havia tido tempo suficiente para to-
mar conhecimento das frustradas experiências daqueles que trocaram
suas colocações pelas colônias, periferias urbanas ou pelos seringais
bolivianos. Afinal, eles haviam resistido às duras condições de vida
nos seringais, lutaram para libertar-se do “cativeiro” porque aspirava
à condição de “produtores autônomos”, o que, aliás, haviam acabado
de concretizar através da ação sindical. Assim, precisavam resistir para
garantir essa conquista. Do sindicato, ouviram sempre as lideranças
afirmarem que só seria possível assegurar as suas conquistas com a
luta, pois não podiam esperar que o governo o fizesse por eles.
4.4 O “empate”
Os “empates” passaram a constituir-se no centro das aten-
ções nos seringais de Xapuri, tanto para os seringueiros quanto para o
sindicato. Com isso, foi se fortalecendo a organização sindical, ao mes-
mo tempo em que novos militantes são atraídos para o movimento. Há
todo um processo de preparação dessas mobilizações, que vai desde
a denúncia da entrada dos peões numa determinada área para iniciar
os preparativos para o desmatamento, até a convocação, pela direção
sindical, dos seringueiros da zona atingida, com a finalidade de tomar
uma posição sobre o problema.
Nessas reuniões, via de regra, os representantes sindicais
passam informações mais detalhadas sobre o desmatamento, tais como
dimensões da área, finalidade, proprietário, mandante, etc. Depois se
avalia o número de colocações que seriam atingidas, direta e indire-
tamente. A seguir, discute-se a posição que os seringueiros deveriam
tomar. A decisão é sempre a de “empatar” o desmatamento, e então,
Sumário 124
os detalhes são combinados: quem irá participar as estratégias a ser
adotadas, o horário de saída para o local do acampamento dos peões,
entre outros encaminhamentos.
Ao chegar ao acampamento dos peões, os líderes do gru-
po procuravam o responsável pela “empreita”, comunicavam a deci-
são de “empatar” o desmatamento, aconselhando-os a se retirar da
área. O clima é sempre marcado por muita tensão. Quando não há
proteção policial – a polícia é quase sempre acionada pelos fazendeiros
para “proteger” os peões – os peões se retiram da área e os seringuei-
ros “apagam” os seus vestígios na mata, derrubando suas barracas de
acampamento, às vezes apreendendo motosserras e outros equipamen-
tos que são utilizados nos desmates.
A presença da polícia nos “empates” provocava o agrava-
mento do clima de tensão na área. Quando não há uma solução nego-
ciada entre as lideranças dos seringueiros e o comandante da guarni-
ção policial, acabam ocorrendo prisões de muitos seringueiros. Pouco
depois, o sindicato aciona um advogado para libertá-los da prisão, sob
a alegação de falta de provas do delito de que foram acusados.
Na maioria desses “empates”, os seringueiros comparecem
armados de suas espingardas de caça ou com terçados (um tipo de
facão de grande dimensão utilizado no trabalho dos seringueiros e de
outros trabalhadores da região), o que assustava muito os “peões”, fa-
zendo com que estes abandonassem a área. Com a intervenção da
polícia, os seringueiros procuravam esconder suas armas para evitar
que estas fossem apreendidas.
Com a evolução das lutas em Xapuri e a projeção que co-
meçaram a adquirir no cenário político nacional e internacional, os
“empates” passam a ficar mais sofisticados politicamente. Segundo
Chico Mendes:
Quando nós temos cem, duzentos companheiros na luta
de empate, enfrentamos motosserras e as foices dos pe-
ões da fazenda, ao mesmo tempo, nós temos uma equipe
para transmitir o que está acontecendo para todo o país e,
posteriormente, para o exterior (...). Daqui pra frente nós
125 Sumário
vamos ter uma equipe de resistência organizada nas áreas
do desmatamento, uma equipe aqui em Xapuri que fica
transmitindo para todo o canto do país e pra nível interna-
cional o que está acontecendo naquele momento, pedindo
solidariedade, e uma equipe trazendo, comunicando, que
fica trazendo a ligação entre o movimento de resistência
e a equipe de apoio na cidade, então essa é a luta que nós
estamos fazendo (GRZYBOWSKY, 1989:39)
Sumário 126
Os “empates” estabelecem o confronto, marcando a dife-
rença de interesses. Os seringueiros vivenciam esse fato nas suas reu-
niões, nas áreas de conflitos e no enfrentamento da polícia que, ao
defender os interesses dos fazendeiros, mostra nitidamente de que lado
está o governo. Isso politiza mais esses conflitos, criando condições
para que, no processo de lutas, eles reconheçam o seu lugar na socieda-
de, os seus aliados e os seus inimigos, contribuindo decisivamente na
formação de sua identidade política.
A identidade do seringueiro deixa, assim, de indicar apenas
uma atividade funcional (extrator de látex) e assume um significado
político, indicando oposição ao fazendeiro. Ou seja, no confronto en-
tre os dois polos de classes opostas revelam-se com maior nitidez o an-
tagonismo dos interesses em disputa e os diferentes lugares ocupados
pelos indivíduos em uma sociedade dividida em classes. Os “seringuei-
ros”, despossuídos da propriedade legal da terra, lutam para manter
suas condições de reprodução social, o que implica, fundamentalmen-
te, a preservação da floresta e a sua permanência nela. Os “fazendei-
ros”, possuidores da propriedade da terra, têm interesse em eliminar
as atividades extrativistas, substituindo-as pela pecuária extensiva de
corte, disso resultando na derrubada da floresta e, consequentemente,
na expulsão dos seringueiros.
Com isso, as identidades “acreano/paulista” forjadas na
luta pela posse da terra no momento de formação do sindicalismo no
Acre, são substituídas nessa região por esse novo par de identidades
“seringueiro/fazendeiro”. Ele passa a expressar mais claramente os
antagonismos de interesses de classes em disputa. Nas assembleias,
reuniões de delegacias sindicais e, sobretudo, nos “empates”, os se-
ringueiros começam a perceber a importância da união e a força que
possuem quando agem coletivamente. Nesse processo, o sindicato vai
se afirmando enquanto instrumento de luta, como um elemento as-
sociado do cotidiano, possibilitando a formação de uma “identidade
política”, tal como analisado por Rambaud (1984) em outro contexto.
127 Sumário
4.5 A construção do novo sindicalismo em Xapuri e as
modificações na correlação de forças do movimento sindical
acreano
O sindicato passa a orientar a luta em dois momentos dis-
tintos: aquele em que se expressava através dos “empates” para garan-
tir a permanência dos seringueiros na floresta, e outro, em que ocorre a
interpelação, junto ao poder público. Isto é, para cobrar soluções para
a questão fundiária e acoplada a ela a garantia de melhorias nas condi-
ções de vida nos seringais via construção de escolas, postos de saúde,
postos de comercialização da Cobal, entre outras.
Agindo assim, estabelece uma diferença básica em relação
ao sindicalismo anterior, que condicionava suas bandeiras de luta ao
Estatuto da Terra, ao Código Civil. Esse novo sindicalismo busca, com
a força de suas mobilizações, conquistar espaços para o atendimento
das demandas que surgiram no processo de lutas e que não estavam
presentes na legislação do país.
Mas o que aconteceu de especial para que o STR de Xapuri
se diferenciasse dos demais no Acre? Um ex-assessor85 desse sindicato
fez uma leitura interessante sobre a questão. Segundo ele,
O sindicato entra numa região de seringueiros autôno-
mos, e o que isso significa? Significa que a ausência do
barracão, do patrão seringalista e, de certa forma, daque-
las relações de compadrio engendradas anteriormente,
que de certa forma estabelece o elo entre os indivíduos
no seringal, passa a ser substituída agora pelo sindicato.
O Chico Mendes fez bem esse papel, ele resolvia conflitos
familiares, encaminhava o pessoal para o hospital, etc. O
pessoal confiava nele pela sua honestidade. Veja bem, o
Sebastião Gomes era o tesoureiro do sindicato, mas antes
disso ele trabalhou no barracão, controlando as anota-
ções de compra de produto, venda de mercadorias para os
seringueiros. Então, os dois, Chico Mendes e Sebastião,
entendiam muito bem o funcionamento do esquema no
seringal e isso facilitava essa aproximação do sindicato
com os seringueiros.
85
Cf. entrevista concedida ao autor em julho/1990 (Rio Branco-AC).
Sumário 128
O grande mérito dessas lideranças sindicais foi, entretanto,
nesse momento de restruturação do sindicato, adotar uma prática e
uma linguagem que obtiveram ressonância naquele meio social. Ao re-
presentarem uma categoria de produtores “autônomos”, onde as con-
tradições entre capital e trabalho não se expressam de forma aparente
ao nível da produção, o sindicato percebe a necessidade de atuar na
mediação dos problemas gerada no cotidiano dessas relações sociais
e fazer-se presente para além dos momentos de mobilizações coleti-
vas, para reafirmar sua legitimidade de representação. Essas lideranças
tiveram a sensibilidade de perceber esse fato, e também uma grande
habilidade para “costurar” essas relações por dentro do sindicato.
Em junho de 1984, o sindicato realizou o I Congresso dos
Trabalhadores Rurais de Xapuri, que contou com a presença de sin-
dicalistas rurais, seringueiros, Associação das Lavadoras de Brasileia,
Associação Brasileira da Reforma Agrária – ABRA Associação de
Técnicos Agrícolas do Acre – Asteca, Associação dos Docentes da
Universidade Federal do Acre – ADUFAC, CPT, entre outras86.
Com relação aos participantes deste Congresso, gostaría-
mos de ressaltar três aspectos importantes. O primeiro é a ausência
da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Acre –
FETACRE, criada em 1983, em substituição à Delegacia Regional da
CONTAG87. Identificados com a concepção sindical e as bandeiras de
luta mais gerais da CONTAG e politicamente alinhadas com o partido
governista (PMDB), os dirigentes da Federação optaram pela “nego-
ciação de gabinete” com os representantes dos proprietários rurais e
autoridades governamentais para buscar o atendimento de suas reivin-
dicações88. As mobilizações coletivas são colocadas em segundo plano.
86
Os demais convidados foram: Comissão Pro-núcleo Acreano de Defesa Ambiental (NADA),
Central Única dos Trabalhadores (CUT), EMATER – Acre, Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), Posto de Saúde de Xapuri, Sindicalistas de Brasileia, Igreja
Católica de Xapuri, Grupo de Teatro de Rio Branco – Fluir (Cf. relatório do I Congresso dos
Trabalhadores Rurais de Xapuri, jul./1984).
87
Concebida numa estrutura verticalizada de representação sindical, as Federações congregam
os sindicatos no âmbito estadual, constituindo-se no órgão máximo de representação no
estado. Nacionalmente, essas Federações se juntam e se fazem representar pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
88
Duas chapas disputam a eleição para FETACRE. Uma identificada como o “novo
129 Sumário
Sob a influência da Federação estavam todos os STRs do Acre, à ex-
ceção do STR Xapuri. Por isso, o Sindicato de Xapuri não convidou a
Federação para participar do I congresso. Havia um forte acirramento
da disputa entre essas duas concepções sindicais.
O segundo é a composição “eclética” dos convidados, en-
volvendo desde técnicos e funcionários de alguns órgãos governamen-
tais que simpatizavam ou apoiavam as lutas de resistências até grupo
de teatro. De acordo com uma liderança sindical89 de Xapuri, esse seria
um dos traços marcantes do Sindicato de Xapuri e ele havia conhecido
muitos sindicatos de outras regiões do país e em nenhum deles perce-
beu esse tipo de participação. O sindicalista diz ainda que:
O Chico Mendes tinha essa preocupação de convidar es-
sas pessoas, que eram trabalhadoras e estavam envolvidas
também em suas lutas e ao mesmo tempo apoiando o sin-
dicato. Com isso, ele mostrava para os seringueiros que
outros trabalhadores estavam lutando no Acre e no Bra-
sil, que eles não estavam sozinhos na luta, podiam contar
com o apoio desses trabalhadores.
Sumário 130
dos seringueiros; realização de uma campanha pelo sindicato para
incentivar a volta para os seringais daqueles seringueiros que haviam
sido expulsos. (Cf. Relatório do I Congresso dos Trabalhadores Rurais
de Xapuri, 1984).
Esse Congresso direciona as ações do sindicato para a ca-
tegoria mais numerosa e mobilizada: os seringueiros. Mas essa não é
uma particularidade do STR Xapuri. Situação semelhante ocorre em
outros sindicatos do país. Nas regiões canavieiras do Nordeste, São
Paulo e Rio de Janeiro, os sindicatos voltam-se para as lutas específicas
dos assalariados; no Norte para os posseiros, no Sul para determinadas
categorias de pequenos agricultores.
As preocupações dos dirigentes sindicais de Xapuri se ex-
pressam claramente nesta apresentação das resoluções de I Congresso:
Não podemos de maneira alguma ficar omisso frente aos
acontecimentos e, por considerarmos que a nossa luta não
pode ser isolada, pedimos o apoio das entidades de classe,
partidos políticos de oposição, dos agentes governamen-
tais estaduais e federais, para que analisem com toda a
seriedade a nossa situação. Acrescentamos ainda que não
estamos querendo o impossível, e sim, aquilo que um ci-
dadão deve ter numa Sociedade Democrática: o direito à
vida, à sobrevivência no presente e no futuro de sua famí-
lia, à educação, à saúde, ao transporte, à valorização de
sua produção, de seu trabalho (Relatório do I Congresso
dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, 1984).
131 Sumário
“oposições sindicais” para combater essa concepção de sindicalismo e
cria condições para mudança das direções desses sindicatos. As primei-
ras surgiram em Rio Branco e Brasileia.
No Acre, a CPT concentrou suas ações nas áreas de Projeto
de Assentamento Dirigidos do INCRA. As propostas à CPT estavam
muito ligadas às questões relativas aos problemas dos “colonos” dessas
áreas e sua atuação influenciaria diretamente a mobilização deles.
Em junho de 1984, na assembleia de fundação de um novo
sindicato no estado, o STR de Plácido de Castro, formaram-se duas
chapas para disputar a direção da entidade: uma ligada a FETACRE e
outra ligada a CPT. Saiu vencedora a segunda chapa. Como a base des-
se sindicato era formada majoritariamente pelos “colonos” do PAD
Pedro Peixoto, a sua diretoria passa a incentivar formas de mobiliza-
ções coletivas – acampamento na sede do INCRA em Rio Branco e
atos públicos – para pressionar as autoridades a tomarem providências
imediatas em relação às suas principais reivindicações: melhorias na
infraestrutura dos projetos de assentamento e adoção de políticas de
apoio à produção e comercialização de produtos agrícolas.
Dessa forma, o sindicalismo rural do Acre passa a consti-
tuir-se de dois polos de mobilizações distintas: o movimento de resis-
tência dos seringueiros liderados pelo STR de Xapuri e luta por me-
lhorias nas condições de produção e vida nos PADs, liderados pelo
STR Plácido de Castro e “oposições sindicais”. Para conter o avanço
do sindicalismo nas áreas dos PADs, o Estado passou a acionar seus
instrumentos de ação no campo (EMATER, Banco do Brasil, Secre-
taria de Desenvolvimento Agrário, COLONACRE, entre outros) para
incentivar a associação dos “colonos”.
Apenas no ano de 1985 formara-se mais de meia centena
de associação de produtores, a grande maioria no PAD Pedro Peixo-
to, onde o sindicalismo era mais atuante. Estimulados pela oferta de
caminhões para o transporte da produção, máquinas beneficiadoras
de grãos, tratores, bem como construção de estradas vicinais, escolas
e postos de saúde, os “colonos”, com orientação dos extensionistas
Sumário 132
rurais, fundavam “da noite para o dia” associações em diversos lugares
desses assentamentos.
O processo era muito simples. Bastava convocar uma reu-
nião (geralmente com a presença de um ou mais técnicos do governo)
e submeter aos “colonos” a ideia da criação de uma associação e as
vantagens que poderiam obter. Com isso, facilitava-se sua aprovação.
Os técnicos do Governo tomavam as devidas providências para preen-
cher os estatutos (já havia um modelo pronto) e registrar as referidas
associações em cartório.
Boa parte dos recursos utilizados pelo Estado nesse empre-
endimento era oriunda do Programa de Desenvolvimento Rural In-
tegrado (PDRI), financiado Pelo Banco Mundial (BIRD). O objetivo
proclamado desse Programa era “estimular o desenvolvimento rural e
elevar o nível de renda familiar dos pequenos produtores”.
Com esse tipo de ação, o governo consegue fragilizar o po-
der do sindicalismo nessas áreas. Isso foi possível, em primeiro lugar,
graças às precárias condições de vida da população, o que a tornava
vulnerável a esse tipo de ação. Em segundo lugar, o sindicato ficou “pa-
ralisado” e um tanto perplexo diante dos acontecimentos, não sabendo
o que fazer para enfrentar essa nova situação. Os “colonos” passaram
a voltar suas atenções para as associações, porque elas ofereciam-lhes
resultados concretos – máquinas e implementos agrícolas, estradas vi-
cinais, escolas – enquanto o sindicato não “trazia nada, só fazia discur-
so” (Cf. depoimentos de um “colono” do PAD Pedro Peixoto).
Teoricamente, não há uma oposição entre essas associações
e o sindicato. Aquelas podem se articular dentro do sindicalismo, nas
suas lutas mais gerais. Uma das condições para que isso ocorra, porém,
é a existência de uma “abertura” da direção sindical para incorporar
no processo de lutas as novas demandas surgidas no cotidiano de suas
bases. Mas não foi esse o procedimento do sindicalismo ligado à CPT
no Acre, que manteve inalterada a sua linha de ação e suas propostas
mais gerais para o movimento.
É importante observar que, em alguns sindicatos,
133 Sumário
especialmente os de Rio Branco, Brasileia e Sena Madureira, com um
número expressivo de seringueiros em sua base, as direções passam
a ser controladas basicamente por “colonos” e, consequentemente, a
priorizar a atuação sindical junto a essa categoria social de trabalhado-
res. Segundo o depoimento de João Maia, isso teria ocorrido (apesar
de suas inúmeras advertências aos líderes sindicais para que evitassem
esse “privilégio” de uma categoria no sindicato) não só pelo aumento
do número de “colonos”, mas também pela facilidade de acesso da
direção sindical a essas áreas de assentamento, mais próximas à cidade
e com uma concentração social extremamente superior à dos serin-
gueiros.
Ao analisarmos o perfil de certas lideranças sindicais desses
STRs nesse período, percebemos que grande parte delas era oriunda
das regiões do centro-sul do país e possuía uma noção mínima, ou mes-
mo certa experiência em lutas sindicais. Isso teria contribuído também
para que essas lideranças se empenhassem mais na defesa de reivindi-
cações ligadas aos aspectos gerais da pequena produção (a exemplo do
que ocorria em suas regiões de origem) nos projetos de colonização. A
participação dos seringueiros nesses sindicatos também era muito res-
trita nesse momento, porque houve certo arrefecimento dos conflitos
de terra em algumas dessas áreas de seringais.
Com as ações centradas na luta e na defesa das reivindi-
cações dos seringueiros, o STR de Xapuri irá consolidar-se em 1984
como a grande referência do sindicalismo rural no estado do Acre. Os
“empates” se multiplicam nos seringais xapurienses, constituindo-se
na principal forma de mobilização desses trabalhadores.
Sumário 134
O Congresso de fundação da CUT-AC contou com os se-
guintes participantes: STR de Xapuri, STR de Plácido de Castro, opo-
sição sindical de Brasileia, oposição sindical de Rio Branco, oposição
sindical de Sena Madureira, Associação dos Economistas do Estado
do Acre, Associação dos Técnicos Agrícolas do Estado do Acre, As-
sociação das Lavadeiras, Oposição da Associação dos Professores do
Acre (Cf. depoimentos de um ex-dirigente da CUT-AC).
A presença, nesse congresso, dos STRs de Xapuri e Plácido
de Castro, somada às oposições sindicais que lideravam as principais
mobilizações no campo foram fundamentais não só para a sustentação
política, como também para conferir legitimidade e representatividade
à CUT-AC. A exemplo da fundação da CUT Nacional e de outras
estaduais, a CUT-AC nasce do núcleo mais atuante e mobilizado do
sindicalismo na região.
As resoluções do I Congresso dos Trabalhadores Rurais em
Xapuri foram incorporadas integralmente às plataformas da lutas de
CUT-AC. Isso se revestiu de significados importantes para os serin-
gueiros de Xapuri; foi o momento em que tiveram oportunidade para
discutir e apresentar para uma parcela dos trabalhadores do Acre os
objetivos e plataforma da luta de resistência nos seringais.
Esse congresso representou um marco importante na histó-
ria do sindicalismo acreano. Ele possibilitou certa articulação entre as
lideranças sindicais rurais e maior aproximação com outras categorias
de trabalhadores urbanos sindicalizados. Um mês após a realização
desse congresso, a CUT promoveu uma das manifestações públicas
de maior repercussão naquele período. Mais de 500 trabalhadores do
campo, na sua maioria “colonos” dos PADs do INCRA, acamparam
em frente à agência do Banco do Brasil em Rio Branco, impedindo seu
funcionamento durante três dias em que permaneceram no local.
135 Sumário
O protesto foi realizado para reivindicar do governo a anis-
tia aos débitos desses “colonos” junto ao Banco do Brasil. As modi-
ficações operadas na política monetária e seus reflexos na política de
crédito agrícola92 repercutiram na elevação de forma astronômica da
dívida bancaria (contraída para financiar o custeio da produção) desses
“colonos”. Em alguns casos, essas dívidas superavam o valor monetá-
rio de suas terras.
Depois de uma série de negociação envolvendo as lideran-
ças sindicais (inclusive alguns da FETACRE que, depois da deflagra-
ção do movimento, sentiu-se na obrigação de participar para dispu-
tar espaço político com seus opositores da CUT), governos estadual e
federal, as reivindicações dos “colonos” seriam temporariamente aten-
didas e seus débitos bancários corrigidos, naquele ano, por uma taxa
fixa de juros, sem correção monetária.
Pode-se dizer que é em torno da CUT que irão reafirmar-se
e reproduzir-se os elementos de combatividade do sindicalismo rural
no estado do Acre. No plano político, verifica-se um estreitamento dos
laços do STR de Xapuri com o PT. Algumas lideranças sindicais pas-
saram a se envolver mais ativamente na organização partidária. Tor-
nou-se prática comum, após o encerramento de uma assembleia ou
reunião sindical, iniciar-se imediatamente, no mesmo local, a reunião
do partido. O Diretório Municipal do PT em Xapuri funcionava na
sede do Sindicato.
Com isso, as relações de representação assumem uma
maior complexidade. O cruzamento das atividades políticas e sindicais
e a centralização do seu exercício em um número reduzido de pessoas
(que podem assumir ao mesmo tempo a direção do sindicato, da CUT
e do PT e outras atribuições ligadas aos compromissos assumidos com
suas militâncias em grupos de correntes internas do PT) podem refle-
tir-se de diferentes formas no movimento.
Ao analisar as relações entre partidos e sindicatos, Rosa
92
Uma das mudanças operadas no crédito agrícola foi à inclusão da correção monetária
integral nos financiamentos para o custeio agrícola.
Sumário 136
Luxemburg (1978) faz uma distinção necessária entre essas formas de
representação, destacando que o sindicato estaria voltado para a defe-
sa dos “interesses imediatos” de um determinado grupo, enquanto ao
partido caberia a defesa dos “interesses futuros do movimento operá-
rio” (LUXEMBURGO, 1978, P. 106). Entretanto, Luxemburgo não
estabelece uma distinção mecânica entre essas duas formas de repre-
sentação, entre luta econômica e luta política. Para ela,
Não existem duas lutas diferentes da classe operária uma
economia e outra política. Existe uma única luta de classe
que tende simultaneamente a limitar a exploração capita-
lista dentro da sociedade burguesa e a suprimir a explora-
ção capitalista e ao mesmo tempo a sociedade burguesa.
(LUXEMBURGO, 1978, p106).
137 Sumário
terra, do confronto entre seringueiros e fazendeiros nos momentos de
realização dos empates e de outras ações, se vincule aos problemas
mais gerais de uma sociedade dividida em classes.
Com isso, a forma de resolução definitiva dessas questões
passa a ser vista com uma amplitude maior. Em outras palavras, uma
das contribuições do Partido é que ele ajuda a mostrar aos seringueiros
que sozinhos eles não resolvem seus problemas fundamentais; preci-
sam somar forças a outros segmentos das classes subordinadas para
criar maiores possibilidades de realização de mudanças mais profun-
das na sociedade.
Por outro lado, essa relação entre Partido e Sindicato con-
tribui também para gerar uma das situações mais contraditórias desse
movimento. Ao mesmo tempo em que a luta de resistência dos serin-
gueiros de Xapuri adquiriu uma fantástica ampliação nas suas alian-
ças externas, como veremos nas páginas subsequentes, internamente
acentuou-se uma maior centralização do movimento nas figuras de
determinados dirigentes, como era o caso de Chico Mendes. Com isso,
as possibilidades de ampliação do movimento e surgimento de novas
lideranças ficaram limitadas.
As próprias disputas políticas entre as correntes divergen-
tes do movimento passaram a ficar mais restritas a esses dirigentes.
Isso tende a aumentar a distância entre representantes e representados.
Dessa forma, é possível compreendermos por que as bases do sindicato
de Xapuri tinham dificuldades para entender as disputas internas no
movimento. O que chegava até ela normalmente é expresso em forma
de críticas pessoais. O depoimento de uma mulher seringueira94 nos dá
uma ideia dessa situação:
O Chico Mendes foi um pai para todos os seringueiros,
ele era um homem muito bondoso, não queria as coisas só
para ele, mas o bem para todos nós, então ele não podia
ser comunista como diziam por aí.
Sumário 138
tegrantes da corrente ligada à Igreja católica sempre usavam o discurso
anticomunista para combater os militantes ligados ao PRC. (Principal-
mente Chico Mendes, pela influência que exercia em todo o movimen-
to). Esse discurso era usado como uma medida cautelar para evitar que
lideranças ligadas às CEBs viessem a se aproximar ou eventualmente
integrarem-se ao PRC.
Mas o sindicato de Xapuri não se articulava somente em
nível da central sindical ou do Partido dos Trabalhadores, em busca
de uma ampliação maior na sua base de apoio externo, mantendo
contato permanente com os meios de comunicação locais e com outros
movimentos organizados da sociedade civil.
Durante os “empates” realizados, no verão de 1984, for-
mou-se, em Rio Branco, um comitê de apoio à luta dos seringueiros de
Xapuri. Este comitê tinha como objetivo ampliar a divulgação dessa
luta junto à população, através de notas, manifestações públicas, etc.,
para aumentar a pressão sobre o poder público para que este agisse fa-
voravelmente às reivindicações dos seringueiros. Esse comitê era com-
posto por diversas associações de categorias profissionais (professores,
agrônomos, comissão pró-CUT, PT, CIMI, CDDH).
O fato de algumas organizações ligadas aos movimentos
urbanos se articularem para solidarizar-se e oferecer apoio à luta dos
seringueiros de Xapuri, tem um significado da maior importância para
a ampliação do movimento. Isto é, passa a tratar esse conflito não
como uma questão meramente rural, mas sim como um problema da
sociedade em geral. Relacionava as repercussões do processo expro-
priatório no campo com as mazelas do meio urbano: aumento nos ín-
dices de desemprego e subemprego, “inchamento” das periferias urba-
nas e crescimento da criminalidade. Além do mais, a continuidade dos
desmatamentos produziria graves desequilíbrios ambientais na região.
O aumento do poder de mobilização e pressão do movi-
mento dos seringueiros faz com que a classe dominante reaja através
da adoção de outras formas de enfrentamento da luta sindical. Além
das intimidações dos pistoleiros, das ameaças de morte das lideranças
139 Sumário
sindicais, da pressão policial, utilizou-se, em 1984, de outro expedien-
te, reatualizando espaços da luta: liminar judicial que autorizava a fa-
zenda Bordon a fazer os desmatamentos. Essa liminar tinha como base
a escritura de posse daquelas terras apresentada pelos proprietários da
fazenda, o que lhes dava o direito de exercer domínio e realizar as ati-
vidades que desejassem naquela área.
Além de autorizar o desmatamento, essa liminar, concedida
pelo juiz de Xapuri, estabelecia a cobrança de uma multa no valor de
um milhão de cruzeiros por cada seringueiro que obstruísse os traba-
lhos dos peões. Pretendia-se, com essa medida, intimidar os seringuei-
ros e desarticular os “empates”. Entretanto, tal liminar foi suspensa
antes as pressões exercidas pelos trabalhadores. O sindicato fez denún-
cias na imprensa, entrou com uma ação na justiça contra a liminar e
organizou atos públicos de protesto contando com o apoio de organi-
zações solidárias ao movimento e parlamentares do PT e PMDB.
Posteriormente, a partir de 1985, as lideranças do STR de
Xapuri procuraram ampliar esse movimento de resistência para toda a
região amazônica. A criação do Conselho Nacional dos Seringueiros
(CNS) aparece como um de seus desdobramentos imediatos como se
verá no próximo capítulo.
Sumário 140
Capítulo 5
141 Sumário
criaram grandes expectativas em torno das possibilidades de realização
da reforma agrária. A primeira metade da década de 1980 foi marcada
por um extraordinário crescimento das mobilizações coletivas e da or-
ganização dos trabalhadores do campo. As ocupações de terras no sul
do país passavam a ter destaques nessa luta, denunciando a gravidade
dos conflitos gerados pela elevada concentração da posse de terra e
urgência da realização de uma reforma agrária no Brasil.
Em janeiro de 1985, o Movimento dos Sem-Terras realizou
seu primeiro congresso, com a participação de 1.500 delegados, repre-
sentando 20 estados da federação. Nesse congresso foi aprovado um
conjunto de resoluções que tinham como eixo central a proposta de
reforma agrária sob o controle dos trabalhadores (MEDEIROS, 1989,
p.107).
Com a evolução do processo das lutas no campo, aprofun-
daram-se também as divergências internas entre as duas correntes prin-
cipais do movimento sindical: uma ligada a CONTAG e outra ligada à
CUT. Em nível mais específico, essas divergências se expressavam em
concepções distintas sobre a questão sindical e sobre a proposta de re-
forma agrária. No plano mais geral, destacava-se a questão partidária.
No plano sindical, tanto a CONTAG quanto a CUT de-
fendiam a bandeira de liberdade e autonomia sindical em relação ao
Estado. As suas divergências estavam ligadas à questão da unidade
sindical. Para a CONTAG, esta unidade deveria ser, em princípio, ga-
rantida através da lei. Por isso posicionava-se contra a ratificação da
Convenção-87 da OIT. A CUT defendia esse documento, pois consi-
derava que ele abriria espaço para a emergência do pluralismo sindical
(MEDEIROS, 1989). Para a CUT, a unidade sindical era uma questão
política: caberia aos trabalhadores e não “a força de lei” uma decisão
sobre a adoção desse princípio.
Com relação à proposta de reforma agrária, os dirigentes
sindicais ligados a CONTAG apoiavam-se no Estatuto da Terra como
foram assumidos compromissos que iam desde a redemocratização do país e a resolução dos
problemas sociais urbanos até a realização de uma reforma agrária.
Sumário 142
instrumento legal possível para a execução de uma reforma agrária no
país. Para as lideranças sindicais vinculadas à CUT, contudo, “o Es-
tatuto da Terra deveria ser recusado, visto que seu objetivo maior era
combater a reforma agrária que vinha surgindo da própria ação dos
trabalhadores” (MEDEIROS 1989, p. 169).
No plano político, os dirigentes da CONTAG, ferrenhos
críticos da participação na CUT (MEDEIROS, 1989), haviam apoiado
a Aliança Democrática e defendiam o apoio do movimento sindical ao
governo da Nova República por acreditarem no seu compromisso com
a reforma agrária. Para os sindicalistas ligados à CUT, o movimento
deveria assumir uma postura de oposição ao governo da Nova Repú-
blica, pois o seu projeto político garantia a continuidade do sistema de
exploração a que estavam submetidos os trabalhadores.
É nesse clima de intensas disputas que se realiza o IV
Congresso dos Trabalhadores Rurais, em maio de 1985, em Brasília.
Participaram 4.100 delegados representando sindicatos e federações
em todo o país. Todos os sindicatos do Acre enviaram delegados
(CONTAG, 1985).
Para termos uma ideia da importância política desse IV
Congresso na conjuntura nacional, basta vermos que participaram
da sua abertura o presidente da República, José Sarney, os ministros
do trabalho e do recém-criado Ministério da Reforma Agrária. Sar-
ney aproveitou o momento para apresentar aos trabalhadores o Plano
Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Tanto o governo quanto os
dirigentes da CONTAG esperavam obter o apoio do sindicalismo rural
ao “governo da Nova República”. E o conseguiram, não na sua totali-
dade, mas da maioria que estava sob a influência da CONTAG.
Além da sua grande repercussão nacional (os jornais deram
ampla cobertura ao evento), o IV Congresso marcou também a consa-
gração da divisão no sindicalismo rural. Nas questões mais polemicas,
a proposta de unidade defendida pelos dirigentes da CONTAG saiu
vencedora. O mesmo, porém, não ocorreu com a proposta de reforma
agrária da referida Confederação. Ela teve que ser ampliada para obter
143 Sumário
a aprovação dos congressistas97. Entretanto, a partir desse momento
se tornaria visível que a CONTAG deixara de representar o conjunto
de lutas dos trabalhadores do campo. As correntes ligadas à CUT pas-
saram a intensificar sua oposição à direção da CONTAG, buscando a
ampliação e consolidação de sua representação no meio rural.
É importante observar que, nas resoluções do IV Congresso,
em que pese a sua amplitude e diversidade, não há nenhuma propos-
ta ou referência específica à categoria seringueiro, apesar de muitos
seringueiros terem participado do evento. O STR Xapuri, por exem-
plo, enviou quatro delegados entre os quais estava Chico Mendes, que
participou da comissão que discutiu a questão agrária. Suas possíveis
reivindicações aparecem diluídas nas proposições gerais da categoria
“posseiro”, como a proposição 88: “exigir demarcação das áreas ocu-
padas por posseiros, acompanhada pelas entidades de classe e que a
entrega dos títulos definitivos dessa terra seja feita no prazo de um
ano” (CONTAG, 1985:94).
No plano mais geral, a criação do Ministério da Reforma
Agrária revelou as intenções iniciais do governo da Nova República em
dar um tratamento diferenciado daquele que era dado anteriormente
pela ditadura militar a questão agrária. A nomeação de um ministro li-
gado à Igreja católica e a indicação de outros nomes reconhecidamente
compromissados com a Reforma Agrária para ocupar em postos de
direção, tanto no MIRAD como no INCRA, e a elaboração do projeto
do PNRA pareciam consagrar ditas intenções,
No que diz respeito à proposta do PNRA, de acordo com
Medeiros (1989, 175):
Mantinha-se dentro dos limites do Estatuto da Terra, atu-
alizando, no entanto, todo o seu potencial reformista.
- a desapropriação por interesse social era considerada
97
Apesar de ser uma força minoritária no IV Congresso, os congressistas ligados à CUT
exerceram grande influência nas decisões finais do evento. Mesmo mantendo o Estatuto da
Terra como referência para a reforma agrária, o teor da proposta que foi aprovada acabou
superando esse instrumento: “lutar pela reforma agrária ampla, imediata, com a participação
e controle dos trabalhadores rurais, capaz de eliminar o latifúndio” (Anais do IV Congresso,
p.16).
Sumário 144
como principal instrumento de reforma agrária. Isto dis-
tinguia a proposta e marcaria sua ruptura com todos os
planos e medidas anteriores,
- o programa básico do plano era o assentamento. A re-
gularização fundiária, a colonização e a tributação apa-
reciam como complementares, invertendo as tendências
que haviam precedido até então;
- em termos de abrangência, a proposta era de, em quinze
anos, assentar cerca de 7 milhões de trabalhadores rurais
(...)
145 Sumário
a elevação do número de assassinatos contra as lideranças sindicais
no campo e a impunidade dos seus responsáveis expressavam alguns
exemplos de atuação do novo governo na Amazônia. Apesar do clima
de euforia nacional, os conflitos de terras permaneceram na região e
no restante do país.
Nessas condições, as possibilidades de os seringueiros de
Xapuri obterem respostas favoráveis do Estado às suas reivindicações
eram muito remotas99. No início do verão de 1985, o STR de Xapuri
mobilizou um grande número de seringueiros para realizar dois “em-
pates”, um no seringal Nazaré e outro no seringal Riozinho, ambos
pertencentes à fazenda Bordon. Esses “empates” duraram mais de
duas semanas, obrigando o sindicato a fazer redobrados esforços para
garantir a sustentação do movimento, pois a permanência prolongada
dos seringueiros nessas áreas implicava uma série de problemas. Além
do dispêndio com alimentação, os seringueiros ficavam sem trabalhar
nesse período, o que lhes causava grandes prejuízos, pois estavam ini-
ciando o fabrico da borracha e precisavam saldar suas dívidas com os
“marreteiros”.
Apesar de esses empates terem conseguido impedir que a
fazenda levasse a cabo seus objetivos, desmatando uma extensa área
para a implantação de pastagem, a direção do sindicato percebeu que
o movimento teria que procurar alternativas de lutas. Somente os em-
pates não seriam capazes de exercer uma pressão suficientemente forte
para garantir soluções definitivas para os conflitos. Além do mais, a
repetição sistemática dessas mobilizações, pelos problemas que geram,
tais como o desequilíbrio da renda dos seringueiros e o próprio des-
gaste que impõe ao sindicato, poderia, com o tempo, fazer com que
perdessem sua eficácia enquanto forma de pressão.
99
Em relação ao poder local, a ascensão de um governo do PMDB ao poder executivo acreano
em 1983 não resultou em modificações no tratamento da questão fundiária no estado. Segundo
Sant’Anna, “nas diretrizes do governo Nabor Junior, primeiro governador eleito por voto
popular, após a dinastia de prepostos militares, a questão agrária está praticamente ausente
(...) A questão da terra é enfocada à semelhança dos planos federais e empresariais para a
Amazônia e o campo em geral de uma ótica modernizante, onde a necessidade imperiosa e
urgente de ‘aproveitamento racional e produtivo da terra’ aparece como a forma de redimir e
dar à população melhores condições de vida” (SANT’ANNA, 1988:245).
Sumário 146
O momento da luta exigia definições mais claras das pro-
postas gerais do movimento. Não seria possível manter o mesmo nível
de mobilização se não fossem criadas novas perspectivas de soluções
para os problemas dos seringueiros, uma proposta alternativa. Isso eles
não encontraram nem na CUT e muito menos no PT, em cujos progra-
mas aparecia uma vaga proposta de “Reforma Agrária sob o controle
dos trabalhadores” sem especificar sua natureza e conteúdo. Por outro
lado, a CONTAG insistia numa proposta de Reforma Agrária baseada
em um modelo distributivista.
Ao analisar esse período, Chico Mendes100 diz que:
Então chegou o momento em que começamos a nos pre-
ocupar, porque a gente tinha uma luta, uma resistência
contra o desmatamento, mas ao mesmo tempo não tinha
uma proposta alternativa a apresentar um argumento
mais forte para justificar por que queríamos defender a
floresta.
100
Cf. entrevista citada, concedida à Costa Sobrinho (Novembro de 1988)
101
Cf. entrevista citada de um ex-assessor do STR de Xapuri.
147 Sumário
As lideranças sindicais sabiam, pelas experiências acumu-
ladas ao longo da luta de resistência pela terra, que as reivindicações
fundiárias deveriam ser dirigidas ao Governo Federal, pois a ele cabe-
ria uma decisão sobre o problema. Brasília foi escolhida como o local
do Encontro, “por ser o centro das decisões políticas do país”102.
Diferentemente da prática habitual da CONTAG de ir a
Brasília reivindicar o cumprimento dos direitos estabelecidos pelo Es-
tatuto da Terra, o STR de Xapuri recusava o dito Estatuto como re-
ferência. Buscava novos mecanismos que garantissem a permanência
e melhoria nas condições de vida dos seringueiros nas suas “coloca-
ções”.
102
Chico Mendes, entrevista concedida a Costa Sobrinho.
103
Por divergências internas do grupo, o CEDOP se extinguiu em 1983. Para substitui-lo foi
criado por iniciativa de Mary Aleggetti o Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA), para
dar continuidade ao processo de alfabetização nos seringais. O CTA ficou praticamente como
um nome decorativo, pois o novo grupo que assumiu as escolas passou a autoidentificar-se
como integrantes do “Projeto Seringueiro”.
Sumário 148
se realizou em outubro de 1985. Foram realizados encontros prepa-
ratórios em diversos municípios para debater os problemas dos serin-
gueiros e, na medida do possível, elaborar propostas para o Encontro
Nacional.
Participariam do Encontro Nacional representantes dos
seringueiros de quatro estados da Amazônia: Acre, Rondônia, Ama-
zonas e Pará. Em todos eles foram realizados encontros preparatórios.
Entretanto, havia uma grande diferença na natureza dos conflitos no
nível de organização e mobilização dos seringueiros desses estados e
as discussões e propostas refletiram esse fato. Nos encontros realizados
em Rondônia, por exemplo, as preocupações estiveram voltadas mais
para as reivindicações em torno dos direitos dos “soldados da borra-
cha”.
O Encontro preparatório em Xapuri realizou-se nos dias 1º
e 2º outubro. Durante esse período foram discutidos os problemas dos
seringueiros. No essencial, as resoluções mantiveram como eixo do
programa de reivindicações, o que havia sido aprovado pelo I Congres-
so de Trabalhadores Rurais de Xapuri, em 1984. Destaque para a rei-
vindicação de desapropriação dos seringais e a manutenção da estru-
tura tradicional de ocupação dessas áreas pelos seringueiros. O regime
de posse deveria ser definido posteriormente, em conjunto com suas
entidades de representação. Reivindicava-se ainda o apoio à produção,
comercialização do produto e melhorias gerais nas condições de vida
nos seringais, através da construção de escolas, postos de saúde, entre
outros (Cf. Resoluções do Encontro Preparatório dos Seringueiros de
Xapuri, out/1985).
Depois da realização desses encontros preparatórios, em
outubro de 1985, reuniram-se em Brasília 130 seringueiros de toda
a região amazônica. Esse encontro contou ainda com a participação
de observadores do Brasil e de outras nações estrangeiras. Esses ob-
servadores, na sua maioria, eram ligados a ONGs ambientalistas. As
denúncias sobre os “desastres ecológicos” que o POLONOROESTE
havia provocado em Rondônia e as elevações do número de queima-
149 Sumário
das na região amazônica estavam atraindo atenção para as questões
relacionadas com a região. Além desses observadores, participaram da
abertura do Encontro: governadores de três estados da Amazônia (AC,
AM, RO), senadores da República, deputados federais, ministro da
Cultura, Reitor da UnB e diversas outras autoridades (Cf. Relatório do
I Encontro Nacional dos Seringueiros, Brasília, 1985).
Participaram do Encontro as seguintes organizações: pelo
Acre, a FETACRE e todos os STRs, à exceção do STR de Plácido
de Castro. Por Rondônia, a Associação dos Soldados da Borracha e
Seringueiros de Ariquemes, Associação dos Soldados da Borracha e
Seringueiros de Jaru e a Associação dos Soldados da Borracha e Se-
ringueiros de Ji-Paraná. Pelo Pará, o STR de São Felix do Xingu. Pelo
Amazonas, o STR de Novo Aripuanã, o STR de Carauari, o STR de
jutaí e o STR de Coari (CNS, 1985).
A presença da FETACRE e dos sindicatos vinculados a ela
pode ser explicada pela importância que havia adquirido a luta de re-
sistência dos seringueiros de Xapuri, ocupando um importante espaço
no sindicalismo acreano. Por isso, a FETACRE mobilizou os sindica-
tos para participar do Encontro, para disputar espaço político com o
sindicalismo de Xapuri. Quanto às federações do Amazonas e Pará,
não compareceram provavelmente porque a luta dos seringueiros nes-
ses estados tinha pouca expressão política.
A pauta do Encontro abordou diversos temas, como: desen-
volvimento da Amazônia; reforma agrária; política para à borracha;
política de abastecimento (referente a questões ligadas a comercializa-
ção de produtos industrializados nos seringais); saúde; educação e cul-
tura; aposentadoria e assistência para os soldados da borracha (CNS,
1985).
Em linhas gerais, as propostas aprovadas reafirmaram as
proposições do Encontro de Xapuri, incorporando a elas um leque
mais amplo de reivindicações capaz de atender os interesses comuns
dos seringueiros da Região Amazônica.
Entre os diversos resultados alcançados nesse I Encontro,
Sumário 150
destacaríamos três como fundamentais: a divulgação da luta dos se-
ringueiros pelos diversos veículos de comunicação; a formulação da
proposta de Reserva Extrativista; e a formação do Conselho Nacional
de Seringueiros (CNS).
A divulgação do Encontro e das lutas dos seringueiros foi
importante na medida em que realçou os problemas resultantes do
novo ciclo de expansão de capitais para a Amazônia a partir da década
de 1970. Para mais além da destruição ambiental, enfatizou o agrava-
mento da questão social resultante do processo de expropriação em
massa na região.
Com isso, a polêmica sobre a questão amazônica toma uma
nova dimensão: deixa de ser vista como “elucubração” acadêmica ou
“miragens” de pequenos grupos de ecologistas do centro-sul do país. O
I Encontro demonstrou que havia uma oposição interna a esse modelo
de desenvolvimento e que, além da questão indígena, havia diversos
conflitos na região e uma luta de resistência na floresta organizada
pelos seringueiros.
É preciso lembrar também que, nesse período, começava-se
a divulgar, através de alguns meios de comunicação, as consequências
políticas da implantação do POLONOROESTE em Rondônia104. En-
tre 1973 e 1985, mais de 110 mil migrantes se deslocaram para o estado
em busca de um lote de terras nos projetos de colonização do INCRA.
Entretanto, apenas 30 mil famílias conseguiram ter acesso a esses pro-
jetos (MINC, 1985:41). Cerca de 2.700.000 ha de vegetação natural
haviam sido devastados em apenas dez anos (OLIVEIRA, 1989:15).
As pressões sobre os territórios indígenas provocariam graves conflitos
contra índios e colonos na região.
104
Em 1981 foi criado no Estado de Rondônia e no Centro-oeste mato-grossense, o Programa
de Desenvolvimento Integrado do Noroeste do Brasil – POLONOROESTE, cujo objetivo
principal era o asfaltamento da BR-364, um trecho de 1.500 Km entre Cuiabá e Porto Velho.
Durante as negociações com o BID, foi constatada a necessidade de incluir no Programa
medidas que minimizassem os efeitos negativos do asfaltamento da estrada sobre o meio
ambiente e povos indígenas, ao mesmo tempo, melhorar as condições de vida dos próprios
agricultores. Porém, em meados da década de 80, verifica-se que o POLONOROESTE estava
longe de cumprir seus objetivos.
151 Sumário
A luta dos seringueiros, apesar de originária de uma ques-
tão eminentemente política, na medida em que as bases do confronto
foram estabelecidas por um modelo de desenvolvimento cuja essência
está na concentração da propriedade fundiária, na transformação ra-
dical na forma de posse e uso da terra e, sobretudo, na expropriação
da população local, passa a ser apropriada e divulgada por grupos eco-
logistas com outra “roupagem”, cujo centro estruturador passa a ser
o enfoque ambiental. A partir dessa mudança de enfoque, os serin-
gueiros passam a ser vistos por ecologistas de outras partes do mundo
como os “guardiões da floresta”, os defensores da “mãe natureza”.
Isso acabaria abrindo novos espaços para a divulgação das suas lutas.
O surgimento da proposta de criação de Reservas Extrati-
vistas deve ser entendido não só no contexto da luta dos seringueiros,
mas também pela importância política que a luta dos índios pela de-
marcação das terras indígenas havia assumido na conjuntura nacio-
nal. Ao encampar a Reserva Extrativista como bandeira de luta, os
seringueiros abriam caminho para a aproximação com o movimento
indígena, o que culmina, em abril de 1988, na formação da “Aliança
dos Povos da Floresta”, reunida em torno de um objetivo comum: a
luta pela implantação e demarcação das Reservas. Os depoimentos de
suas lideranças revelam-nos as condições políticas que permitiram a
formalização dessa Aliança:
Raimundo Barros (tesoureiro do CNS) procurou mostrar
às lideranças indígenas que os seringueiros, a exemplo do
que ocorreu com os índios, estão sendo espoliados pelo
avanço do capital e do latifúndio. A exploração irracional
da madeira, os desmates predatórios e a completa expro-
priação dos recursos existentes nas matas foram apon-
tados pelo seringueiro Raimundo como uma verdadeira
ameaça aos índios e seringueiros (...). O índio Zé Osai
afirma que o mais importante é saber que índios e serin-
gueiros hoje já estão conscientes de que vivem problemas
semelhantes (...) e se sentem muito felizes pelo falto de
seringueiro estar hoje do lado dos índios, porque em ou-
tras épocas o latifúndio se utilizou dos seringueiros para
expulsar os índios de suas terras, que depois acabaram
nas mãos dos fazendeiros (Gazeta do Acre, 17/04/88).
Sumário 152
Esses depoimentos mostram com nitidez os motivos que
levaram as lideranças do CNS e do movimento indígena a buscarem
superar as marcas dos conflitos que os enredaram no curso da coloni-
zação. No limiar do século XXI, somaram suas forças tanto na defesa
de seu único meio de sobrevivência – a floresta – como também no
enfrentamento do inimigo comum – os fazendeiros – que, apoiados
em suas ações pelo aparelho estatal, representam uma das principais
ameaças aos “Povos da Floresta”.
A proposta da Reserva Extrativista foi importante pelo seu
significado interno para o movimento, apareceu como aquela alternati-
va que faltava para os seringueiros. Externamente, pela sua contempo-
raneidade em relação à busca de alternativas capazes de assegurar um
convívio mais harmônico entre sociedade e natureza. Isto é:
A Reserva Extrativista é a reforma agrária do seringueiro.
É o reconhecimento de áreas de floresta, ocupadas tradi-
cionalmente por seringueiros e outros extrativistas, como
áreas de domínio da União, com usufruto exclusivo dos
seringueiros organizados em cooperativas ou associações.
Na REs não há títulos individuais de propriedades. Nelas
serão respeitadas as culturas e as formas tradicionais e or-
ganização de trabalho dos seringueiros, que continuarão a
realizar a extração de produtos de valor comercial como a
borracha, a castanha e muitos outros, bem como a caça e
pesca não predatória, juntamente com pequenos roçados
de subsistência em harmonia com a regeneração da mata.
As RE não serão inviáveis economicamente: garantida a
floresta, os seringueiros organizados aumentarão a pro-
dutividade, introduzindo inovações tecnológicas adequa-
das. Além disso, dará continuidade à criação de escolas,
postos de saúde e cooperativas geridas por seringueiros. A
RE não é apenas a reforma agrária dos seringueiros, mas
também uma forma de preservação da natureza e dos que
dela dependem (STR de Xapuri, CNS, CUT, 1989:16).
153 Sumário
classe dominante de que os seringueiros defendiam a manutenção do
“atraso” ao reivindicarem a manutenção do extrativismo. Ao contrá-
rio, afirmava sua recusa à preservação do extrativismo baseado em for-
mas de produção e exploração tradicionais. Propunham uma forma
de uso supostamente compatível com o desenvolvimento das forças
produtivas via incorporação de novas tecnologias e a possibilidade de
integração com mercados em escala internacional.
A referência a um “modelo compatível” não implica a
elaboração de um padrão único de exploração dos recursos naturais;
ele pressupõe a possibilidade e a necessidade da adoção de formas va-
riadas de exploração, levando-se em conta não só os aspectos estri-
tamente econômicos (potencialidade de produção das espécies, valor
comercial, mercado consumidor, entre outros), como também aquelas
ligadas aos processos sociais e culturais originários das experiências
diversas dos diferentes grupos sociais que vivem na e da floresta.
Nesse sentido, a incorporação de tecnologias modernas
está ligada a um conceito de desenvolvimento que pressupõe uma par-
tição social (associações, cooperativas, sindicatos, CNS) na sua cons-
trução. Em outras palavras, a partir do levantamento e da avaliação
das demandas sociais de um determinado grupo social, elabora-se um
programa que engloba desde a pesquisa básica até a realização da pro-
dução.
A construção da proposta de RE não deve ser analisada
enquanto produto de uma ou duas cabeças “brilhantes”, e sim como
o resultado, a expressão de um conjunto de experiências acumuladas
pelos seringueiros ao longo de suas vidas e suas lutas. Esse acúmu-
lo se fazia de várias formas: no trabalho, voltado basicamente para a
extração dos recursos múltiplos da floresta; nas relações sociais que
se estabeleceram nos seringais; na conquista de sua “autonomia” em
reação aos “patrões”; no malogro daqueles que tentaram a vida nas
“colônias”, seringais bolivianos ou nas periferias urbanas; nos “empa-
tes”, assembleias e reuniões sindicais; na sua vontade e determinação
de manter-se reproduzindo socialmente no lugar que voluntária ou in-
Sumário 154
voluntariamente escolheram para viver: a floresta; e na capacidade de
articulação desse movimento com outras organizações da sociedade
civil, tais como central sindical, partidos políticos e organizações não
governamentais.
Alguns dos pressupostos básicos da proposta da RE já se
esboçavam no Programa de lutas aprovados no I Congresso dos Traba-
lhadores Rurais de Xapuri, em 1984. Apareciam também nas discus-
sões do Encontro dos Seringueiros realizado em Xapuri nos dias 1º e 2
de outubro de 1985, quando reivindicavam o fim dos desmatamentos
nos seringais, a desapropriação respeitando as colocações de seringa,
definição do regime de posse através de discussões com os seringueiros
via sindicatos e/ou entidade de representação.
É necessário dizer ainda, para compreender a elaboração
dessa proposta, que não existia na legislação brasileira a categoria
Reserva Extrativista. As leis de proteção ambiental levavam em conta
apenas os aspectos físico-geográficos e bioecológicos da natureza para
a criação de Parques, Reservas Biológicas, Estações Ecológicas, etc.
Não estava prevista a possiblidade de criação de unidades de conserva-
ção que levassem em conta a possibilidade de manutenção de explora-
ção dessas áreas de uma forma não predatória (ALLEGRETTI, 1987).
Nestas condições, as possibilidades de regulamentação das
áreas de economia extrativista eram as seguintes,
Definição das áreas extrativistas como florestas Nacio-
nais, Estaduais ou Municipais, estabelecendo normas
específicas para sua exploração, compatíveis com o uso
tradicional feito por eles a floresta, sob a administração
o IBDF. Existem várias dificuldades de implementação
dessa proposta. Embora seja possível a exploração econô-
mica em uma floresta nacional, a legislação não prevê a
ocupação humana nesse tipo de unidade ecológica. Além
disso, as normas burocráticas para que essa exploração se
realize são totalmente incompatíveis com o modo como
o seringueiro vive na floresta (...), Definição dos seringais
como área de proteção ambiental nos quais seria regu-
lamentado o uso dos recursos florestais de acordo com
155 Sumário
critérios de sustentabilidade próprios de atividades extra-
tivistas, uma vez que essa unidade de conservação não
interfere sobre os aspectos fundiários, pouco poderia con-
tribuir para a solução do problema. No caso das empre-
sas extrativistas tradicionais, o proprietário é o primeiro
interessado em conservar a floresta, porque tira seus ren-
dimentos dela. Ele mesmo estabelece a fiscalização sobre
os seringueiros, os castanheiros e proíbe o desmatamento.
Não se adequaria, por outro lado, à situação daqueles que
reivindicam as Reservas Extrativistas, os seringueiros au-
tônomos, ao não entrar no mérito da propriedade fundiá-
ria (ALLEGRETTI, 1987, p. 52 e 53).
Sumário 156
comuns, as ações coletivas de resistência, etc... são um
conjunto de condições necessárias dos movimentos. Só
assim a tensão intrínseca das relações vira movimento.
(GRZYBOWSKY, 1987, p. 17 a 18).
157 Sumário
Em segundo lugar, para que houvesse uma centralização
das lutas dos seringueiros por dentro da estrutura sindical, seria preciso
que elas fossem encampadas pelos sindicatos, federações, CONTAG
e/ou CUT. Entretanto, esse seria um árduo caminho a ser percorrido
pelo movimento, uma vez que entrevia um vasto campo de disputas
políticas. Além disso, por ser uma categoria minoritária em termos na-
cionais, os seringueiros percebiam que tanto a CUT quanto a CON-
TAG não se empenhariam muito na defesa de suas reivindicações.
Através do movimento de resistência em Xapuri, os se-
ringueiros conseguiram obter um espaço significativo no movimento
sindical. Porém o mesmo não acontecia em outros lugares como Ron-
dônia, Amazonas e Pará, onde essa categoria era extremamente mino-
ritária e de pouca ou nenhuma influência no sindicalismo rural desses
estados. Por isso dificilmente conseguiriam mobilizar a estrutura sindi-
cal para organizar e mobilizar os seringueiros.
A identidade política de seringueiro forjada na luta de re-
sistência em Xapuri tendia a generalizar-se regionalmente, mas isso só
seria possível se encontrasse um canal que lhe desse expressão. Na es-
trutura sindical tal fato não tinha condições de ocorrer, pelo menos em
curto prazo, pois na CUT eles continuavam a ser reconhecidos como
“os rurais da CUT” e na CONTAG como “posseiros” ou “trabalha-
dores rurais”. As palavras de Chico Mendes evidenciam essa busca de
reconhecimento político:
(...) os sindicatos surgiram com uma importância muito
grande num momento muito importante. Mas os Sindi-
catos dos Trabalhadores Rurais congregam seringueiros
e, ao mesmo tempo, os agricultores, os peões, os traba-
lhadores das fazendas, os diaristas, qualquer que seja o
trabalhador rural. As outras classes todas, o seringueiro
não. Parece que já foi coisa do passado e já não existe
mais. Então, uma das razões para o CNS é fazer reco-
nhecer o seringueiro como uma classe que já deu a sua
contribuição, que luta e tem uma luta importante (GR-
ZYBOWSKY, 1989, p. 17 e 18).
Sumário 158
por isso buscavam alternativas de organização não só para defenderem
suas reivindicações especÍficas – criação das Reservas Extrativistas –,
como também para, através do CNS, construírem seu espaço político
próprio, que afirmasse sua identidade de seringueiro.
Para melhor compreendermos essa questão, é preciso lem-
brar que o distanciamento e as dificuldades de acesso aos núcleos ur-
banos, o alto índice de analfabetismo provocado pela ausência de esco-
las nos seringais, constituíam-se em fortes fatores da “exclusão social”
dos seringueiros. A grande maioria não possuía documentos pessoais,
portavam apenas o batistério (uma espécie de certidão fornecida pela
Igreja após o batismo).
Pelas entrevistas que realizamos com lideranças e serin-
gueiros de base, constatamos que eles não admitiam sua situação de
“excluídos”, queriam ser reconhecidos como cidadãos no sentido de
obter “um lugar político próprio na sociedade civil” (NOVAES,1989).
Eles usavam os meios de que dispunham para atingir esse objetivo.
Com a fundação dos sindicatos na região e a evolução polí-
tica do movimento sindical, os seringueiros passam a buscar nas suas
entidades de representação a afirmação da sua cidadania, que além de
marcar “um lugar político próprio”, busca a superação das relações
tradicionais de dominação a que foram submetidos secularmente nos
seringais.
Em terceiro lugar, a criação de uma entidade não sindical
abria maiores espaços para a articulação com determinados grupos ou
pessoas que estivessem envolvidas ou interessadas na questão ambien-
tal. A estrutura sindical pela natureza de suas relações poderia restrin-
gir não só a incorporação de determinadas contribuições individuais,
como também de algumas entidades ambientalistas que passaram a
apoiar o movimento posteriormente e a própria aproximação com o
movimento indígena que resultaria na Aliança dos Povos da Floresta.
No I Encontro Nacional dos Seringueiros foi eleita uma co-
missão provisória para a direção do CNS. Essa comissão foi composta
por diversas lideranças ligadas à CUT, com representantes de todos os
159 Sumário
estados que participaram do encontro. Até a realização do II Encontro
Nacional dos Seringueiros105, em 1989, a Comissão sofreria algumas
modificações e Chico Mendes passaria a responder até o dia de seu
assassinato (22 de dezembro de 1988) pela presidência do CNS106.
Sumário 160
b. Conselho fiscal
c. Diretoria
Art. 6º As comissões municipais são os órgãos consul-
tivos e de implementação da política do CNS em nível
municipal.
Parágrafo 1 – Cada comissão municipal é formada por
oito membros.
108
É necessário que se faça uma observação em relação ao momento e às circunstâncias em
que se deu a elaboração e aprovação deste Estatuto. O II Encontro Nacional de Seringueiros e
I Encontro dos Povos da Floresta aconteceram três meses após o assassinato de Chico Mendes,
com todas as atenções voltadas para a Amazônia. Com isso, esse Encontro foi transformado em
um grande “cenário cinematográfico” marcado pela presença de dezenas de correspondentes
da imprensa nacional e internacional, cineastas, representantes de ONGs ambientalistas,
partidos políticos, etc. Enfim, segundo algumas lideranças do CNS, esse Encontro acabou
adquirindo o caráter de uma “grande festa”, gerando uma situação extremamente confusa,
que acabou comprometendo a qualidade das discussões.
161 Sumário
uma acentuada diferença entre os propósitos formais do CNS e a ação
política de seus dirigentes.
Em segundo lugar, há uma acentuada ampliação da base de
representação do CNS. Ela passa a incluir, além dos seringueiros, os
ribeirinhos e outros trabalhadores extrativistas da Amazônia (açaizei-
ros, castanheiros, etc.,). Isso gera uma situação complexa, pois, apesar
de todos viverem do extrativismo, existem acentuadas diferenças entre
esses trabalhadores que, da mesma forma como os seringueiros, não se
reconhecem na categoria “trabalhadores rurais”. Poderá ocorrer uma
situação semelhante a que ocorreu entre o seringueiros e o sindicalis-
mo rural na relação dessas outras categorias de trabalhadores extrati-
vistas com o CNS.
Nessas condições, para que o CNS represente essas diver-
sas categorias, é necessário, além de uma prática, a adoção de uma
categoria mais universal para dialogar com suas bases. Nos documen-
tos produzidos mais recentemente pelo CNS tem aparecido com mais
frequência a categoria “trabalhadores extrativistas” quando se refere
às questões mais gerais da Amazônia. Isso indica a possibilidade de o
CNS vir a unificar sua linguagem e falar não mais somente em nome
dos seringueiros, mas em nome dos “trabalhadores extrativistas” da
Amazônia.
É preciso lembrar também que a generalização da
implantação das Reservas Extrativistas e incorporação (mesmo que
parcial) das concepções técnicas dessa proposta impliquem uma maior
diversidade da produção nos seringais, onde a extração do látex tende-
ria a tornar-se a atividade secundária e, em alguns casos, deixaria de
existir. Nessas condições, a categoria seringueiro, enquanto indicador
de uma atividade funcional, tende a generalizar-se para uma categoria
mais ampla, a de “trabalhadores extrativistas”, que melhor expresse as
novas condições matérias de reprodução dessa categoria109.
109
Segundo os dados fornecidos por um técnico do IBAMA, por volta de 1995 entrarão em
produção cerca de 200 mil ha de seringais de cultivo no Sudeste e Centro- Oeste (com maior
concentração nos estados de São Paulo e Mato Grosso) do Brasil. Com isso, estima-se uma
produção de 400 mil toneladas de borracha anuais. O consumo no país atualmente é de cerca
de 112.000 t anuais, das quais 14.000 são originárias dos seringais nativos da Amazônia,
Sumário 162
Sob esse ângulo, o CNS, que teve como um dos seus ele-
mentos formadores a busca de um espaço político para o reconheci-
mento da identidade seringueiro, passa a ampliar-se para atender aos
novos desafios gerados na dinâmica do processo de lutas. Desse modo,
apresenta como tendência a possiblidade de afirma-se de lutas e apre-
senta como tendência a possibilidade de afirmar-se enquanto entidade
de representação de interesses mais amplos, dos “trabalhadores extra-
tivistas” da Amazônia.
Em terceiro lugar, a estrutura orgânica do CNS não estabe-
lece nenhum vínculo com a estrutura sindical. As lideranças do CNS
o definem como uma entidade autônoma e, nesse sentido, recusam a
ideia de que ele possa representar uma forma de paralelismo sindical.
Entretanto, a situação não nos parece tão simples. É evidente que a
criação do CNS gerou outra ordem de complexidade no âmbito do
sindicalismo rural na Amazônia.
A partir do momento em que o CNS define suas bases de
representação, um conjunto de reivindicações próprias, e passa, através
de suas organizações de base (comissões municipais de seringueiros),
a incentivar a mobilização para lutar pelo atendimento dessas reivin-
dicações, fica difícil estabelecer as diferenças de papéis entre o CNS e
o sindicato.
Embora a ideia de criação do CNS e as posições manifes-
tadas pelas suas lideranças não revelem a intenção de estabelecer um
paralelismo sindical, a evolução dos acontecimentos tende, nas situ-
ações que mencionamos, a indicar o contrário. Não se trata, porem,
de estabelecer uma discussão de princípios em torno de paralelismo
sindical, até porque nessa perspectiva ela contribuiria pouco para a
compreensão da complexidade das novas relações que se estabelecem
nesse sindicalismo a partir da criação do CNS. Trata-se de analisar a
163 Sumário
totalidade dessas relações produzidas nesse movimento e em que as-
pectos do CNS contribuíram para se pensar não só o sindicalismo, mas
também para a reflexão sobre a possibilidade de existirem outras for-
mas de organização dos trabalhadores. Porém, o aprofundamento da
análise dessas relações foge aos propósitos deste trabalho, que tem na
criação do CNS o seu limite.
Pelo exposto nesse capítulo, a criação do CNS aparece
como um produto da luta sindical, impulsionado pelo seu núcleo mais
expressivo no Acre, o movimento de resistência dos seringueiros de
Xapuri. Entretanto, inserida no contexto analítico da totalidade desse
trabalho, é possível percebe -la de uma forma mais ampla, como a
expressão de uma luta secular dos seringueiros pela conquista de sua
autonomia em relação aos patrões seringalistas.
Sumário 164
Conclusão
165 Sumário
A luta de resistência marcou e marca a trajetória dos serin-
gueiros. Inicialmente ela se expressou na maioria das vezes de forma
individualizada no interior dos seringais, nos conflitos com os patrões
seringalistas. Posteriormente, no final dos anos 1970, ao se confron-
tarem com os fazendeiros, os seringueiros não estavam se opondo “a
priori” ao modo de produção capitalista, como afirmou Duarte (1985).
Suas aspirações não implicavam um questionamento do capitalismo, e
sim uma forma de exploração capitalista da terra via pecuária exten-
siva de corte, que colocava em risco a possibilidade de continuarem se
reproduzindo socialmente nos seringais. Sob esse ângulo, a nosso ver,
não há nada que justifique a afirmação de que a luta dos seringueiros
teria assumido um caráter anticapitalista.
Politicamente, essa luta pode ter assumido, nos momentos
de maior radicalização dos conflitos, uma feição anticapitalista, se vin-
culada a críticas aos problemas estruturais da sociedade brasileira. Esse
fato, somado a sua articulação com outros movimentos como CUT
e PT, indicaria a disposição (expressa no discurso de suas lideranças
mais expressivas) de implantar uma nova ordem, cujos princípios de
reprodução expressassem uma ruptura com as formas de dominação
vigente.
É necessário lembrarmos que, ao lutar pela afirmação de
seus interesses imediatos, o movimento dos seringueiros contraria um
conjunto de interesses e passa a interferir ativamente nas relações de
poder no âmbito regional e até mesmo nacional. Para assegurar a con-
tinuidade de seus interesses na região, grandes grupos de capitais co-
meçam, por exemplo, a incorporar um discurso ambientalista às suas
propostas e projetos de exploração econômica da Amazônia. Isso reve-
la, por um lado, a derrota de um projeto inicial de ocupação da região,
que tinha na pecuária extensiva de corte uma forma preponderante de
exploração e, por outro, a capacidade de a classe dominante se readap-
tar, em um curto espaço de tempo, às novas conjunturas.
É preciso desmitificar também a ideia romântica, veiculada
em programas especiais de TV, artigos de jornais e nas publicações
Sumário 166
mais recentes (SOUZA, 1990, e REWKIN,1990), que insinuam um
suposto desejo dos seringueiros em perpetuar suas condições atuais de
sobrevivência. Chega-se ao absurdo de afirmar, por exemplo, que as
“casinhas” dos seringueiros têm uma perfeita harmonia com o meio
ambiente (REWKIM,1990).
Os seringueiros lutam para permanecer na floresta, porém
reivindicam melhores condições de vida. Aspiram como qualquer pes-
soa ao acesso a meio de transporte, comunicação, saúde, escolas, lazer
e bens de consumo diversos. A proposta de Reservas Extrativistas, nos
seus aspectos econômicos e sociais, busca responder a essas aspirações.
No conteúdo mais geral dessa proposta não há nada que indique, em
princípio, sua incompatibilidade com o modo de produção capitalista.
Demonstramos no último capítulo que, apesar de ser uma
experiência muito recente, o CNS tem passado por inúmeras transfor-
mações que apontam possiblidade de essa entidade vir a consolidar um
espaço de representação próprio (na Reserva Extrativista Ouro Preto
em Rondônia, e no município de Pauini, no estado do Amazonas, os
seringueiros começaram a organizar-se políticamente através das co-
missões municipais do CNS, que passaram a se afirmar enquanto for-
ma de representação nessas áreas). Dessa maneira, em algumas áreas
esse tipo de organização pode se mostrar mais eficaz que o sindicato.
Concordando com Dalla Costa (1990), não se pode afirmar, a priori,
que o sindicato seja a forma mais eficiente de organização no campo.
Os trabalhadores ao longo de suas lutas podem encontrar diversas al-
ternativas.
Em algumas regiões, o sindicato poderá manter-se enquan-
to principal espaço de representação, em outras talvez isso não ocorra.
Em lugares como Xapuri, marcado tradicionalmente pela resistência
dos seringueiros através da ação sindical, uma possível solução
para os conflitos de terra via implantação das Reservas Extrativistas
poderá provocar um esvaziamento do sindicato enquanto espaço de
representação. Esse espaço tende a ser ocupado pelo Conselho Nacio-
nal dos Seringueiros e outras instâncias organizativas ligadas a organi-
zação da produção (cooperativas, associações, entre outras).
167 Sumário
Em determinado momento da história da sua luta, os se-
ringueiros de Xapuri não se resignaram aos termos da legislação, do
Estatuto da Terra, por não corresponderem às suas aspirações e a sua
“vontade”. Buscaram, na intensificação das ações coletivas e na articu-
lação com outros movimentos organizados, somar forças para garantir
a supremacia dessa vontade no confronto com a classe dominante. A
construção da proposta de Reservas Extrativistas é um produto desse
movimento, que busca responder às aspirações dessa parte da popula-
ção que vive na e da floresta.
Os seringueiros fizeram com que sua proposta de reforma
agrária, a Reserva Extrativista, se tornasse uma bandeira mais abran-
gente, capaz de conquistar o apoio de diversos movimentos organi-
zados para abrir as fronteiras nacionais. Evidentemente, isso ocorreu
numa conjuntura mundial favorável, de crescentes questionamentos
e críticas ao processo recente de ocupação econômica da Amazônia.
Entretanto, o movimento dos seringueiros conseguiu explorar esse
momento apontando uma proposta alternativa que respondesse às
questões que estavam postas, especialmente duas cruciais:
a. Resolução da questão fundiária;
b. Superação da economia tradicional sem a destruição do
meio ambiente, através de uma proposta de exploração dos recursos
naturais capaz de integrar a região à nova dinâmica do desenvolvimen-
to das forças produtivas em escala internacional.
Isso é singular no sindicalismo rural brasileiro que, até o
momento (1991), tem encontrado grandes dificuldades para elaborar
uma proposta de reforma agrária e transformá-la numa bandeira de
luta mais abrangente. Ou seja, que se articule com os problemas estru-
turais da sociedade brasileira e possa ser assumida efetivamente pelo
conjunto de trabalhadores e por outras organizações da sociedade civil.
É preciso lembrar, porém, que se de um lado os seringuei-
ros aumentaram o seu nível de organização, sua capacidade de mobili-
zação e ampliaram suas alianças e sua base de apoio, por outro, a clas-
se dominante também se rearticula e se organiza par conter o avanço
da luta de resistência na região.
Sumário 168
Na esfera do poder estadual, há, a partir de 1987, uma
mudança nas diretrizes do governo, explicitando preocupações com a
questão agrária e a intenção de promover um modelo de desenvolvi-
mento que levasse em conta os aspectos ligados à potencialidade pro-
dutiva, conservação ambiental e à identidade cultural da população
acreana. As diretrizes setoriais, segundo Sant’Anna (1988) visava defi-
nir o zoneamento agrícola, a criação de áreas de conservação ambien-
tal (florestas estaduais), o apoio à agricultura e a pecuária leiteira.
Apesar de, na maioria das vezes, essas diretrizes aparece-
rem unicamente como artifício retórico, algumas de suas intenções fo-
ram executadas, como, por exemplo, com a criação da Fundação de
Tecnologia do Acre (FUNTAC), voltada para a pesquisa do potencial
de exploração dos recursos naturais existentes no estado. Em apenas
três anos, essa instituição atingiu um nível de equipamento que vai des-
de um laboratório de análises físicas e químicas do solo até um sofisti-
cado sistema de sensoriamento remoto, utilizado para interpretação e
análise de imagens de satélites.
Há, entretanto, entre as lideranças dos seringueiros, um for-
te receio de que todo esse equipamento tenha como finalidade a explo-
ração dos recursos madeireiros da região. Essas suspeitas teriam como
um de seus fundamentos a aprovação de um projeto da FUNTAC pela
Internacional Tropical Timber Organization (ITTO). Essa organiza-
ção é sediada no Japão, composta por 45 países produtores e consumi-
dores de madeiras tropicais, cujo objetivo é regulamentar o comércio
internacional de madeira tropical. Esse projeto visa a realização de
um programa de pesquisas para a exploração dos recursos naturais da
Floresta Estadual do Antimary.
Com relação ao poder central, não se produziram altera-
ções significativas em relação às políticas oficiais para a região. A pre-
servação da política de incentivos fiscais na Amazônia, o acirramento
dos conflitos de terra e os assassinatos de lideranças sindicais, mostram
a continuidade da “modernização conservadora” alavancada pela dita-
dura militar no pós-1964.
No confronto direto entre seringueiros e fazendeiros, ve-
169 Sumário
rificou-se um acirramento nas disputas. As reações às conquistas dos
seringueiros de Xapuri foram imediatas. Os pecuaristas haviam orga-
nizado no estado do Acre a União Democrática Ruralista (UDR), no
final do ano de 1987, para atuar prioritariamente no combate à orga-
nização sindical no campo, especialmente o seu polo mais combativo,
o STR de Xapuri.
Pouco tempo depois da implantação da UDR no estado,
essa entidade deu seu primeiro “recado”, com o assassinato, em mea-
dos de 1988, de Ivair Higino de Souza, um dos líderes do movimento
em Xapuri. No final do mesmo ano, na noite do dia 22 de dezembro,
numa ação mais ousada, consumou o anunciadíssimo assassinato de
Chico Mendes, principal liderança naquele momento do movimento
dos seringueiros na Amazônia.
Pelas informações divulgadas pela grande imprensa nacio-
nal e por um jornal local, A Gazeta do Acre, havia fortes indicati-
vos que apontavam, além da UDR, outros envolvidos no crime, como
Adalberto Aragão, prefeito de Rio Branco pelo PMDB, o delegado re-
gional da Polícia Federal, Mauro Spósito, e Narciso Mendes, deputado
federal pelo PDS.
Assassinado Chico Mendes, a UDR julgava que seria pos-
sível desarticular o movimento de resistência dos seringueiros, abrindo
passagem para continuidade da expansão da pecuária extensiva na re-
gião. Ela só não esperava que a repercussão desse crime atingisse tão
elevadas proporções, provocando protestos em escala mundial.
É preciso lembrar que os problemas de devastação da Ama-
zônia estavam em evidência na conjuntura internacional. Não por
outra razão que Chico Mendes fora agraciado com o prêmio “Global
500”, concedido pela ONU em 1987. Os movimentos e organizações
ambientalistas protestavam contra essa política de exploração da re-
gião ante os riscos que ela poderia causar ao equilíbrio ambiental do
planeta. Os monopólios e as grandes potências imperialistas interes-
sam-se pela questão amazônica devido ao elevado potencial de reserva
de recursos naturais estratégicos concentrados naquela área, por isso
defendem a sua preservação para uso futuro.
Sumário 170
Isso, evidentemente, não justifica o viés “chauvinista” dos
discursos dos pretenso “guardiões da soberania nacional” de plantão
no Palácio do Planalto, Forças Armadas, UDR, entre outros. Seus
porta vozes tentam passar a ideia de que os seringueiros “estão sendo
manipulados por interesses estranhos à nação”. Fizemos essa ressalva
porque o que estamos querendo mostrar é que, em determinado mo-
mento da história da luta dos seringueiros, houve um encontro dos
mais diversos interesses: o dos seringueiros, os dos ecologistas e os de
alguns monopólios das grandes potências em torno de um objetivo
aparentemente comum: conservar a floresta amazônica.
Neste quadro, é possível entender por que o assassinato de
Chico Mendes alcançou essa fantástica repercussão, ganhando espaço
nas manchetes dos principais jornais do mundo, enquanto centenas de
assassinatos de camponeses em situação semelhante não mereceram,
até então, sequer uma breve referência. Com isso, não estamos que-
rendo tirar os méritos de Chico Mendes, um líder extremamente ca-
rismático e de rara habilidade. Capaz de fazer articulações com diver-
sos movimentos, organizações representativas e de falar com a mesma
segurança numa assembleia do sindicato ou numa sessão do Senado
estadunidense. É inquestionável sua liderança e a grande importância
do papel desempenhado por ele na luta de resistência dos seringueiros.
Sua ausência é irreparável para o movimento sindical no
Brasil. A trajetória de Chico Mendes foi muito rica em experiências e
lições que ele teve a sensibilidade de ir incorporando a sua vida. Segun-
do Lula, “ele acabou juntando numa bandeira só a luta ecológica, a
luta sindical e a luta partidária, porque sabia que elas são indissolúveis,
uma alimenta a outra no mesmo ciclo da floresta” (STR de Xapuri,
CNS, CUT, 1989).
As imagens que continuam sendo transmitidas insistente-
mente à opinião pública são as do “sindicalista e ecologista” Chico
Mendes, um homem pacifico, puro como o ar da floresta, um amante
da natureza que não hesitou em arriscar sua própria vida para defendê
-la e protegê-la. Com isso, o líder dos trabalhadores, o revolucionário,
deu lugar ao estereótipo mais apropriado para um “herói da humani-
171 Sumário
dade” naquele momento. Por trás dessa adjetivação, aparentemente
natural, oculta-se um interesse ideológico dos setores majoritários da
classe dominante em esvaziar o conteúdo de classe de uma luta cuja
natureza é essencialmente econômica, social e política.
A luta dos seringueiros é, acima de tudo, contra uma de-
terminada forma de expansão do modelo capitalista, cuja marca é a
violência que vitima líderes sindicais, que expropria milhares de serin-
gueiros e demais camponeses, povos indígenas, entre outros. De uma
forma simples e objetiva, o presidente do CNS, Júlio Barbosa, expres-
sou sua opinião em relação a essa questão:
(...) uma coisa que me deixou preocupado é que os jornais
anunciam Chico Mendes como um grande ecologista, o
sindicalista ecologista, mas o que eu vejo é o seguinte:
na história toda do Brasil nunca tinha ouvido falar que
um ecologista foi assassinado. O primeiro a ser morto
foi o Chico Mendes... Por que Chico Mendes foi mor-
to? Porque mais que um ecologista, de defender o verde,
defender o meio ambiente, defender a não poluição, ele
defendia uma coisa muito mais importante para a classe a
que ele pertencia, que era a reforma agrária para o traba-
lhador, para o seringueiro, a reserva extrativista. (STR de
Xapuri, CNS, CUT, 1989).
Sumário 172
e aventureiros refugiados do sul do país que, para o “azar” de Chico
Mendes, foram se refugiar naqueles confins do país.
Apesar de toda essa construção ideológica, não se conse-
guiu evitar a conotação eminentemente política que marcou recente-
mente o julgamento do assassino e de um dos mandantes do crime
contra Chico Mendes. A condenação dos réus marcou um fato inédito
na história da luta de resistência pela terra no Brasil. Entretanto, ape-
sar da euforia de alguns juristas e determinadas lideranças sindicais ao
apontar essa condenação como o início de um novo tempo, em que
cessaria a impunidade dos crimes cometidos pelos latifundiários, ou-
tros crimes dessa natureza continuam sendo praticados.
Na semana em que se realizava esse julgamento em Xapuri,
foi assassinado um líder sindical, na zona canavieira pernambucana.
Mais recentemente, no dia 02 de fevereiro (enquanto finalizávamos
este trabalho) foi vitimado outro líder sindical no sul do Pará: Expe-
dito de Souza, presidente do STR de Rio Maria. A ação da justiça
nesses casos, investindo na apuração de culpabilidades, revela certa
preocupação em mudar a imagem do país. No entanto, o que podemos
constatar é que os assassinatos contra lideranças camponesas seguem
sua marcha batida.
Esses crimes não nos surpreendem. Afinal, o governo de
Fernando Collor não manifestou nenhuma intenção no sentido de
modificar a estrutura fundiária do país. A reforma agrária é “palavra
morta” no seu governo. Todavia, seríamos injustos se afirmássemos
que nada foi feito em relação à questão agrária. O MIRAD foi extinto,
o INCRA foi semidesativado e passou a subordinar-se ao Ministério
da Agricultura. Este, por sua vez, tem à sua frente Antônio Cabrera,
um dos fundadores da UDR no estado de São Paulo. Esse quadro é
revelador das intenções e atos oficiais em relação à questão agrária no
governo Collor.
Por tudo isso, finalizamos este trabalho com uma amarga
revolta. A consumação de mais uma morte anunciada revela outra vez
a face mais cruel do modelo de desenvolvimento deste país e a urgente
173 Sumário
necessidade de transformá-lo. Dessa maneira, acreditamos que não só
os seringueiros, mas todos os trabalhadores que lutam pela Reforma
Agrária terão ainda pela frente uma longa jornada de lutas e confron-
tos com os grandes proprietários rurais e o Estado.
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Sumário 178
Posfácio
179 Sumário
território. Fizemos tão somente pequenos ajustes no sentido de evitar
informações recorrentes, já contidas no escopo do livro.
Introdução
O filme “Adeus Lênin” (Alemanha, 2003), dirigido por
Wolfgang Becker, mostra de forma magnífica e com refinado humor, a
manipulação de imagens com o intuito de esconder as transformações
na antiga Alemanha Oriental após a queda do muro de Berlim e fazer
crer a uma simpática sexagenária recém-saída de um estado de coma,
que nada havia mudado no país. Ao olharmos a manipulação da ima-
gem de Chico Mendes nessas duas décadas pós-assassinato parece que
assistimos ao referido filme, porém, com intenções opostas. Isto é, nes-
te caso, todos os esforços se voltam para convencer não a uma simpáti-
ca senhora apaixonada pelo socialismo, mas sim a grandes multidões,
de que tudo está mudando, quando na realidade, essencialmente nada
mudou. Embora esse “espetáculo” seja encenado num palco permea-
do pelas fumaças da devastação da exuberante floresta e contaminado
pela insalubridade do odor da degradação social produzida nesse pro-
cesso e, ainda assim, prevalece a imagem do seu oposto.
Como explicar esse fenômeno? Obviamente, se tomarmos
como referência a proeminência da imagem naquilo que Debbord
(1997) denominou como “sociedade do espetáculo”, parece não haver
grandes novidades no exame da questão proposta. Contudo, se o ana-
lisarmos por outros ângulos, tanto no que diz respeito ao lugar da en-
cenação quanto ao elenco de “atores” nela envolvidos, acreditamos na
possibilidade de escaparmos de desnecessários exercícios tautológicos.
Assim, procuramos analisar as singularidades dos usos e
manipulações da imagem de Chico Mendes e as suas repercussões
nos movimentos sociais atuantes na Amazônia brasileira. Para tanto,
a subdividimos em três partes. Na primeira, “Chico Mendes em mo-
vimento”, procuramos situar a trajetória dessa liderança; na segunda,
“Movimentos sociais com Chico Mendes”, colocamos em relevo o
conteúdo inovador das alternativas apontadas pelos movimentos so-
ciais no curso da luta de resistência pela terra; por fim, na terceira par-
Sumário 180
te, “Vinte anos sem Chico Mendes”, situamos o processo de apropria-
ção e manipulação da imagem para fins de legitimação da ideologia
do “desenvolvimento sustentável”, bem como, os sinais de reação a ela
por parte de alguns movimentos sociais, como é o caso da Via Campe-
sina. A base de dados aqui mobilizadas é resultante de um conjunto de
pesquisas relacionadas com os movimentos sociais e sua interface com
o processo de “modernização” capitalista na Amazônia Ocidental.
181 Sumário
ainda com frequência nos seringais e com a família de Chico Mendes
não foi diferente. Quando acontece um encontro que seria decisivo na
sua trajetória, ele já estava morando na “Colocação Pontão” no Serin-
gal Cachoeira, também localizado no município de Xapuri. Foi nesta
localidade que Chico Mendes relatou ter conhecido, aos dezoito anos
de idade, Euclides Fernandes Távora (COSTA SOBRINHO, 2006, p.
25), um velho militante do Partido Comunista Brasileiro refugiado nas
matas amazônicas. Depois de participar de diversos movimentos in-
surgentes no Brasil e na Bolívia, Euclides fazia-se passar por seringuei-
ro vivendo numa “colocação” no Seringal Cachoeira.
Tanto nas conversas informais com Chico Mendes quanto
na leitura de suas entrevistas transparece a ideia de um virtuoso en-
contro entre ele e Euclides, marcado por uma simpatia mútua. O jo-
vem seringueiro demonstrava curiosidade sobre “as coisas do mundo”
e vontade de aprender a ler, dado que não havia escolas nos seringais e
a esmagadora maioria da população era desprovida do conhecimento
letrado. O velho militante comunista, ao perceber o interesse que deve
ter se sobressaído em relação aos demais com que mantinha contato,
possivelmente intuiu que valeria a pena “investir politicamente” na-
quele trabalhador interessado e interessante. Assim, com o consenti-
mento do pai de Chico Mendes, Euclides iniciou o processo de sua
alfabetização. O método utilizado envolvia desde o uso de recortes de
velhos jornais que Euclides guardava consigo, até os noticiários inter-
nacionais transmitidos pelo rádio, como os veiculados pela Central de
Moscou e Voz da América. Na medida em que ia aumentando sua
confiança no “aprendiz”, Euclides revelava o que ocultara dos demais
seringueiros: a sua trajetória de militância política no Partido Comu-
nista e sua dedicação apaixonada à causa revolucionária.
Caberia aqui um breve parêntese para refletirmos sobre as
“peripécias” que os olhares de dois Euclides produziram na História.
No início do Século XX, Euclides da Cunha, informado pelo pensa-
mento positivista, lança um olhar sobre a dramática situação de ex-
ploração a que estão submetidos os seringueiros e os interpela como
pobres coitados condenados a viverem à “margem da História”. Esse
Sumário 182
tipo de olhar influenciou de forma decisiva a construção de uma his-
toriografia predominantemente caudatária dessa ideia de “ausência de
sujeitos”. Meio século depois, Euclides Távora, com as lentes do pen-
samento marxista enxerga naquele mundo de exploração os sujeitos
capazes de realizarem sua própria emancipação. Com as ferramentas
ofertadas por Euclides Távora, Chico Mendes não só aprendeu a ler e
escrever. Apreendeu, sobretudo, a paixão pelas idéias revolucionárias
de seu “velho amigo e instrutor” (forma respeitosa com que se referia
a Euclides) e ao seu modo, um método de análise da realidade que
orientou sua trajetória política e o projetou para reescrever a História
da luta de resistência de uma parcela dos segmentos sociais subalter-
nos na Amazônia brasileira. Ainda há uma enorme lacuna no que diz
respeito ao estudo dessa questão, isto é, como os ideais socialistas são
apropriados por um morador das matas e reinterpretados de forma ar-
ticulada com um “mundo estranho” à sua base de referência?
A rigor, essa apropriação/reinterpretação em contexto lati-
no-americana não expressa nenhuma novidade, como evidencia, entre
outras, as obras do revolucionário peruano José Carlos Mariátegui e do
argentino Che Guevara. O que há de efetivamente singular é o tipo de
intelectual que a catalisa, um camponês que não teve acesso à escola.
É nas palavras do próprio Chico Mendes que podemos dimensionar o
modo como ele interpretava esse fenômeno:
Sempre me perguntaram como é que cheguei a me tornar
uma liderança importante no movimento dos trabalha-
dores. Será que eu sou o melhor de todos? De repente
eu tinha uma cabeça melhor do que a de todos os outros
companheiros. Essa pergunta até bem pouco tempo me
recusava a responder. Agora posso explicar e aí é que está
o âmago da história.
183 Sumário
Os últimos contatos com Euclides foram no ano de 1965.
Nesse, suas conversas foram reveladoras. Dizia ele: Chico
nós temos pela frente duros anos de repressão, de ditadu-
ra, de linha dura, mas fique certo de que o movimento de
libertação nesse país e de qualquer lugar do mundo nunca
se acabará. Eu ficava emocionado quando ele colocava
aquilo. Falava que o ideal de liberdade iria continuar vivo.
A ditadura podia continuar, 15, 18 anos, mas não duraria
todo o tempo. O movimento de resistência iria se forta-
lecer, abrindo brechas para criação de novas associações
e sindicatos. Apesar do controle das organizações traba-
lhistas pelo governo é lá que você tem que atuar. Euclides,
meu velho amigo e instrutor, queixava-se de se encontrar
muito doente. Nesse mesmo ano, saiu de sua colocação
para Xapuri. Não voltei a encontrá-lo.
Sem rumo, feito uma cortiça no meio do mar. E daí, o que fazer?”.
Acreditamos que essa “confissão” sintetiza de forma monumental a
centralidade da figura de Euclides na formação de Chico Mendes, bem
como o modo como este apreendeu a dialética: ele havia procurado
no “amigo e instrutor” as ferramentas para compreender o mundo, de
posse delas, ficou “sem rumo, feito cortiça no meio do mar” e enten-
deu que se “acharia” na ação, foi o que fez a partir de então. Colocou
as ideias em ação e, no cotidiano dos embates políticos, teve a rara
sensibilidade de buscar nos “ensinamentos do amigo e mestre” as cer-
tezas e incertezas que permeiam a ação dos sujeitos em particular e os
eventos da História em geral.
Logo depois da partida de seu “amigo e instrutor”, Chico
Mendes relata que começou a luta organizando atos de desobediência
dos seringueiros em relação aos patrões. Tais atos consistiam basica-
mente em burlar a vigilância interna nos seringais e vender parte da
produção para os intermediários, que pagavam um preço melhor. Em
meados da década de 1970, mais precisamente em 1975, participou da
113
Ainda não foi esclarecido até o presente (2008), o destino desse grande revolucionário
brasileiro.
Sumário 184
fundação e da primeira direção do Sindicato dos Trabalhadores Ru-
rais (STR) de Brasiléia e, em 1977, da fundação do STR de Xapuri,
assumindo neste o cargo de presidente, de 1982 até o dia em que foi
assassinado, 22 de dezembro de 1988. Nesse período participou ainda
da fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), participan-
do da Direção Nacional e da CUT estadual no Acre como primeiro
presidente eleito. Liderou as articulações que resultaram na criação do
Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), em 1985.
Atuou também ativamente na política partidária, elegendo-
se vereador em 1976 pelo então MDB, partido de oposição à ditadura
militar. Ao perceber que o MDB “fazia o jogo dos patrões”, assumiu
junto com outros sindicalistas a tarefa de construir o Partido dos Tra-
balhadores (PT) no Acre, a partir de 1980. Por esse partido, concorreu
nas eleições de 1982 e de 1986 a uma vaga de deputado na Assembleia
Legislativa Estadual. Militante de uma corrente clandestina organi-
zada nos moldes do marxismo-leninismo, que atuava no interior do
PT, denominada a partir de 1984, Partido Revolucionário Comunista
(PRC), Chico Mendes enfrentou severas perseguições também no in-
terior do PT, tendo sido derrotado nas eleições de 1982 em razão da
campanha anticomunista desencadeada contra ele por uma parte da
hierarquia e da militância “petista” da Igreja Católica.
Essa rica, tensa e intensa trajetória política aqui sumariada,
nos possibilita dimensionar razoavelmente a magnitude dos desafios
enfrentados por Chico Mendes no sentido de mover-se em tantos “cam-
pos minados”: o sindicalismo rural e urbano, a militância clandestina e
a política partidária com todo o universo de conflitos inerentes a cada
um desses espaços de ação política. Como se ainda não bastasse, após
a criação do CNS, Chico Mendes se defrontou com interlocutores li-
gados ao ambientalismo internacional, com toda a complexidade da
sua linguagem e múltiplas tendências. Sobre essa novidade, o “amigo
e instrutor” Euclides, obviamente por não ter vivenciado a emergência
da “onda verde”, não o havia advertido.
As propostas inovadoras ensejadas na luta de resistência dos
seringueiros sejam na forma de organização política (CNS), sejam de
185 Sumário
reforma agrária (Reservas Extrativistas) não podem ser compreendidas
fora desse contexto. Dito de outro modo, se é verdade, como queria o
próprio Chico Mendes, que ele não poderia ser analisado “individu-
almente”, à revelia do movimento do qual era integrante, também não
é possível analisar com profundidade o referido movimento sem levar
em conta as singularidades de sua liderança mais expressiva, dado o
seu papel crucial na mediação com interlocutores diversos , tanto na
sociedade civil quanto na sociedade política, aqui interpretadas no es-
copo do “Estado ampliado” nos termos propostos por Gramsci (1979).
Sumário 186
Pará e Acre, respectivamente. O sindicato como forma de organiza-
ção política e o Estatuto da Terra como referência jurídica legal para
resolução dos conflitos fundiários, acabariam “forçando por baixo” a
contra face da homogeneização impulsionada “de cima” pelo capital.
Dito de outro modo, ao desconsiderar ou desconhecer
as formas existentes de organização das diferentes categorias desse
campesinato – tais como ribeirinhos, seringueiros, comunidades qui-
lombolas, quebradeiras de coco babaçu – e enquadrá-los no modelo
distributivista de reforma agrária previsto no Estatuto da Terra, tanto
CONTAG quanto CPT concorrem efetivamente para padronizar for-
mas de organização política e de reprodução social dessas populações
camponesas. Deve-se lembrar que a sua complexidade e diversidade foi
consideravelmente acentuada com o fluxo de migração dirigida pelo
Estado brasileiro no pós 1970, via criação de projetos de colonização
na região amazônica, que atraiu uma grande quantidade de famílias
de migrantes expropriados da terra no Centro-Sul. É nessa perspectiva
que se deve problematizar a trajetória do sindicalismo rural na Ama-
zônia brasileira, um dos movimentos mais expressivos e emblemáticos
da luta de resistência pela terra entre os anos de 1970/80. Sem essa
problematização, não se consegue perceber com “todas as cores” a im-
portância de Chico Mendes nesse movimento.
Ao analisarmos em outro lugar (PAULA, 2006) a trajetó-
ria desse sindicalismo na Amazônia Ocidental, procuramos mostrar as
nuances que concorreram para fazer com que, no Acre, uma parcela
desse sindicalismo vislumbrasse uma dupla ruptura: com a homoge-
neização imposta de “cima” pelo capital e com aquela “forçada por
baixo” pelo sindicalismo da CONTAG. Aqui reproduzimos com algu-
mas modificações um trecho síntese da referida análise. No Acre, dada
a forte resistência do campesinato e povos indígenas ao processo de
expropriação capitalista na sua fase inicial, a destruição acabou sendo
um pouco mais contida, diferentemente do que ocorreu em Rondônia.
No decorrer de apenas uma década, praticou-se um desmatamento em
larga escala, para fins de implantação de uma agropecuária “moder-
na”, deixando um rastro de destruição ambiental agravado pelo mas-
187 Sumário
sacre sistemático dos povos indígenas que viviam/vivem habitam o
território rondoniense.
Esse fato passou a ser largamente denunciado por organi-
zações e movimentos ambientalistas internacionais. Dado que o Ban-
co Mundial teve um papel ativo nesse processo, via financiamento de
obras de infraestrutura − como a pavimentação da BR 364 no trecho
Cuiabá-Porto Velho − a instituição passou a constituir-se num dos prin-
cipais focos de pressão desses movimentos. O caso de Rondônia anun-
ciava o futuro reservado às terras acreanas nesse processo intenso de
expansão da fronteira.
Diferentemente do momento de fundação do Movimento
Sindical dos Trabalhadores Rurais (MSTR) no Acre, em que havia uma
forte unidade em torno da matriz do Estatuto da Terra como marco de
referência legal para encaminhamento das reivindicações do campesi-
nato no que diz respeito à regularização da posse e uso da terra, nos
anos de 1980 essa unidade seria rompida. Seja em razão das diferentes
leituras da chamada “redemocratização do país”, interpretada em cha-
ve liberal como o retorno dos civis ao governo, seja daquelas estrita-
mente voltadas para a resolução dos problemas fundiários. Enquanto o
grupo majoritário de lideranças do MSTR ligadas à CONTAG passa a
privilegiar sua ação política na esfera institucional, ocupando espaços
abertos no âmbito do governo estadual114 a fim de viabilizar a “reforma
agrária possível”, os dirigentes do STR de Xapuri e aqueles ligados às
oposições sindicais vinculados à CPT decidem manter-se numa po-
sição de independência e apostar na intensificação das mobilizações
coletivas como principal forma de luta pela terra.
Não havia, contudo, consenso nessa dissidência do MSTR
no Acre em termos do “modelo” de reforma agrária a ser seguido.
Os sindicalistas ligados à CPT não rompem com o modelo distributi-
vista e produtivista que inspirava o Estatuto da Terra, mantendo-o, a
exemplo da CONTAG, como referência de atuação no enfrentamento
A exemplo do que ocorreu na maioria das unidades federativas, a oposição liderada pelo
114
MDB venceu no Acre as eleições para o governo estadual em 1982, acenando com a promessa
de atender diversas demandas sociais reprimidas.
Sumário 188
dos conflitos fundiários. As lideranças do STR de Xapuri, preocupadas
em atender as demandas de sua principal base social, os seringueiros,
começam a defender a ideia de que a resolução efetiva dos conflitos
passava necessariamente pelo reconhecimento de seus direitos sobre a
área total de suas colocações. A avaliação de Chico Mendes, é muito
precisa nesse sentido. De acordo com ele, além de legitimar a usurpa-
ção da terra – ao reconhecer os latifundiários como proprietários, seja
na forma de desapropriação pelo INCRA para criar projetos de colo-
nização, seja nas negociações diretas – a saída dos seringueiros para os
loteamentos havia resultado em grande fracasso (LINHARES, 1992).
A importância da liderança de Chico Mendes nesse movi-
mento nucleado em Xapuri deve-se, sobretudo, à sua formidável capa-
cidade de fazer as conexões entre o particular e o geral. Nesse processo,
tão importante quanto o seu resultado imediato – a crítica ao modelo
de modernização pautado na destruição da floresta e a elaboração da
proposta de Reservas Extrativistas como alternativa a ele – foi a difícil
construção de diálogos entre atores sociais e interlocutores diversos.
Ao contrário do que se afirma correntemente, o encontro entre a luta
de resistência dos seringueiros com organizações e movimentos am-
bientalistas não se deu de forma tão “harmônica”.
Apesar da concordância entre esses diversos atores sociais
em torno de um objetivo comum – impedir a devastação da floresta
amazônica – existiam (existem) enormes polêmicas quanto ao destino
que deveria ser dado à região. Para aquelas organizações e movimen-
tos ambientalistas inspiradas no antropocentrismo, dever-se-ia pensar
formas de uso compatíveis com a conservação do meio ambiente; para
as de inspiração ortodoxa115, o fundamental era preservar o ambiente
natural. Logo, não há uma aproximação automática com os “ambien-
talistas” quando se trata de pensar as alternativas. Imaginemos, por-
tanto, Chico Mendes buscando aliados nesse “ambiente político”! Do
mesmo modo, transitar no interior do sindicalismo e de organizações
definidos a partir das necessidades humanas; entre os ortodoxos a percepção é inversa, isto é, a
humanidade deve submeter-se aos imperativos da ordem cósmica (VINCENT, 1995).
189 Sumário
partidárias de esquerda, como fazia Chico Mendes, com idéias consi-
deradas “ambientalistas”, também não era fácil.
A formação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS)
ocorre nesse contexto. Abordada por diversos autores ─ Grzybowsky
(1987; 1989); Almeida (1989); Paula (1991; 2005); Aymone (1996);
Gonçalves (1998); Silva (2001); Silva (2005) ─ é interpretada em linhas
gerais como fenômeno social mais amplo que marca a emergência de
outros movimentos sociais no campo, como o Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST). Assim, percebem a origem do CNS
como uma organização de novo tipo. Valendo-se da experiência de
Xapuri, o CNS teria como objetivo constituir no território amazônico
vínculos identitários políticos entre os seringueiros e outras categorias
de trabalhadores extrativistas e alargar suas alianças políticas com
outros segmentos emergentes da sociedade civil em nível nacional
e internacional.
A rigor, as intenções iniciais que nortearam sua formação
pareciam bem mais modestas. Somente a partir do II Encontro Nacio-
nal, em 1989, que passa a ter a amplitude supra referida. Chico Men-
des afirma que o surgimento do CNS resultava principalmente das li-
mitações do sindicalismo rural em incorporar bandeiras de lutas de
categorias minoritárias. Ao analisar as relações dessas “unidades de
mobilização” com o sindicalismo rural, Almeida (1989, p.13) afirma
que elas “apresentam-se, pelo menos, sob dois aspectos: suplantaram-
nas na sua condução e orientação das lutas, onde elas se mostram frá-
geis e subordinaram-se ou têm sido conduzidos por elas onde se mos-
traram eficazes nas mobilizações”. Afinal, continua o referido autor,
“também nas estruturas sindicais são detectados níveis de contradição
que podem inibir ou não a capacidade mobilizatória”.
As estratégias adotadas pelo CNS para legitimar-se como
representação política na região amazônica confirmam as observações
acima. Tanto na Amazônia-acreana, quanto no Sudeste do Pará e
Maranhão, o CNS apoiou-se no sindicalismo mais mobilizado. Em
alguns municípios, articulou-se com as oposições sindicais e estabele-
ceu como meta conquistar as direções dos respectivos sindicatos. Onde
Sumário 190
não havia organização sindical, como Rondônia, ou a sua presença
era pouco expressiva, procurou estruturar outras formas organizativas
como associações de seringueiros e as comissões municipais e regio-
nais do CNS.
Ao olharmos a trajetória do CNS nessas duas décadas de
sua existência, podemos ter uma ideia das ambigüidades e indefinições
que a caracterizam. Num primeiro momento – compreendido entre o
I e II Encontro – os esforços da direção provisória concentram-se na
ampliação de sua base de apoio interna e externa. Enquanto no âm-
bito interno a estrutura sindical representou principal ponto de apoio,
externamente, diversas Organizações Não- Governamentais (ONGs) e
movimentos ambientalistas cuidaram de fazer a “ponte” com a socie-
dade civil nacional e internacional, divulgando a luta dos seringueiros.
A ideia de alternativas àquele modelo de produção destrutiva na Ama-
zônia contida no escopo da proposta de Reserva Extrativista (RESEX),
cumpriu papel decisivo, atraindo simpatias em segmentos diversos. Em
linhas gerais, propunha-se com as RESEX uma transformação radical
na lógica de apropriação dos recursos naturais e dos resultados do tra-
balho. Isto é, ao invés de ser apropriada para fins de acumulação por
parte dos capitais privados, a terra passaria a ser incorporada ao patri-
mônio nacional como um bem público, assegurando-se os direitos das
populações nela residentes de definirem coletivamente as forma de ges-
tão e uso social, mediante estabelecimento de contratos de Concessão
Real de Uso. Aí residiram formas de conquista de territórios por po-
pulações que há anos já estavam a produzir nestes espaços. Em linhas
gerais, esses são os pressupostos que deram suporte teórico à proposta
que levou à territorialização das Reservas Extrativistas.
Para viabilizar as RESEX, atribuía-se ao Estado um papel
decisivo na dotação de meios necessários para o uso sustentável dos re-
cursos naturais. Tal sustentabilidade requeria, necessariamente, a valo-
rização das práticas e saberes acumulados por essas populações na sua
interação com a natureza. Ou seja, dado que a biodiversidade era – e
continua sendo – largamente desconhecida na Amazônia, dever-se-ia,
a médio e longo prazo, desenvolver pesquisas com intuito de apropriar-
se da ciência para gerar novas tecnologias voltadas para a utilização
191 Sumário
dos diversos recursos naturais. No curto prazo, priorizar-se-ia a adoção
de incentivos (na forma de subsídios) àqueles produtos como borracha
e castanha, habitualmente exploradas pelas populações extrativistas.
Cabe ressalvar que a exploração de madeira para fins comerciais é ab-
solutamente descartada nesse esboço inicial da proposta de Reserva
Extrativista.
Compõe ainda esse conjunto de proposições iniciais, o
incentivo às populações dessas áreas para criarem ou fortalecerem
organizações destinadas a assegurar a autonomia e autogestão. Tais
objetivos traduzem-se em iniciativas do tipo cooperativista voltadas
para eliminar as práticas de exploração do trabalho engendradas sob
o contexto das relações mercantis, bem como naquelas de cunho mais
político direcionadas para coordenar a gestão nas RESEX, visando as-
segurar o máximo possível de autonomia. Ou seja, pretendia-se cons-
truir “por baixo” a sustentabilidade econômica sociocultural e política
da RESEX.
Deve-se lembrar que não se trata de um fenômeno isolado.
Iniciativas similares ocorrem em diversos países da América Latina,
conferindo novos significados “às lutas dos grupos indígenas e campo-
neses pela socialização da natureza, pela re-apropriação democrática
de seu patrimônio de recursos naturais e culturais e pela autogestão de
suas potencialidades ambientais” (LEFF, 2000, p. 345). É nessa dire-
ção que o movimento dos seringueiros marchou no “tempo de Chico
Mendes”.
Sumário 192
cada de 1990, Corumbiara em Rondônia e Eldorado dos Carajás no
Pará, que juntos somaram cerca de cinquenta assassinados e cuja reper-
cussão nem de longe se aproximou ao “caso Chico Mendes”. O Único
crime que teve repercussão internacional comparável foi o assassinato
da irmã Doroth Stang (natural dos Estados Unidos da América) em
Anapu, Pará, no ano de 2005.
Passadas duas décadas, é possível percebermos a partir dos
usos e abusos da imagem de Chico Mendes, inclusive por parte de seus
algozes, que este pode ter sido tudo, menos um evento aleatório, espon-
tâneo. É possível admitirmos a hipótese de que o chamado ambienta-
lismo internacional, nas suas diversas tendências ideológicas e inte-
resses que as consubstanciam, teria sido o principal agente de indução
desse fenômeno em escala mundial.
A monumental repercussão mundial do assassinato de Chi-
co Mendes interferiria de maneira significativa não só na trajetória do
CNS, como também, do sindicalismo rural, movimento indígena e de-
mais movimentos sociais emergentes na Amazônia brasileira. Repen-
tinamente, o CNS passou a ocupar um lugar de destaque no cenário
político regional e grande visibilidade internacional, particularmente
na Europa Ocidental e EUA. O II Encontro dos Seringueiros e I En-
contro dos Povos da Floresta, que reuniu seringueiros e indígenas em
Rio Branco, Acre, em fevereiro de 1989, foi financiado por Agências
Não-Governamentais (ANGs) internacionais através da intermedia-
ção de ONGs que exerceram forte influência na condução do Encon-
tro, inclusive na modificação do Estatuto do CNS.
Ao analisar a aproximação de organizações ambientalistas
com movimentos indígenas na América Latina, Leff (2000) afirma
que elas teriam contribuído para difundir uma cultura democrática no
continente. Neste caso analisado aqui, parece não se confirmar essa
suposta afirmação de valores democráticos por parte da maioria dessas
organizações. Ao contrário, elas estiveram – e estão – mais empenha-
das em impor uma visão sobre a questão ambiental mais conveniente a
reconfiguração do domínio de tipo neocolonial na Amazônia.
As encenações que marcaram o II Encontro Nacional dos
193 Sumário
Seringueiros e I Encontro dos Povos da Floresta em Rio Banco (1989)
parecem bastante reveladoras nesse sentido. Além de uma exploração
exaustiva de imagens do exotismo dos “povos da floresta”, diversas
ONGs e movimentos ambientalistas procuraram dar a “direção” para
o evento. As mudanças operadas no Estatuto do CNS nesse Encontro,
atribuindo maior ênfase à sua face ambientalista, bem como a forma-
lização da “Aliança dos Povos da Floresta”, que pretendia unificar os
movimentos de seringueiros e índigenas, resultou em grande medida
da interferência dessas organizações.
Entre o II e o III Encontros, um grupo de lideranças sin-
dicais e assessores diretos do CNS ligados à “CUT pela Base” procu-
ravam imprimir uma reorientação política ao CNS, apoiada em três
eixos fundamentais: 1) afirmação da autonomia do CNS frente a “tute-
la” das ONGs ligadas ao ambientalismo internacional; 2) priorização
de uma política de alianças com organizações e movimentos envol-
vidos na luta pela reforma agrária, tal com queria Chico Mendes; 3)
fortalecimento da organização sindical de base.
No III Encontro (1992) houve a consagração dessa estraté-
gia política. Diferentemente dos Encontros anteriores, em que a par-
ticipação nos debates era livre, com a palavra franqueada a todos os
participantes, neste só o faziam os delegados eleitos; e a sua condução
foi centralizada pelas principais lideranças do movimento, a exemplo
do que ocorre nos congressos da CUT e CONTAG. Foi uma espécie
de recado dirigido aos representantes de diversas ONGs e outros obser-
vadores presentes, isto é, a partir daquele momento a direção do CNS
pretendia afirmar a autonomia do movimento e assumir o controle
do processo de mediação, seja com as instituições governamentais ou
com as não-governamentais e multilaterais, diretamente, sem interme-
diações.
Essa atitude, somada ao perfil da “nova aliança” entre se-
ringueiros e trabalhadores agroextrativistas da Amazônia Oriental,
teve repercussões profundas nas relações externas do CNS. Muitas
ONGs afastaram-se e algumas agências começaram a fazer restrições
a seus projetos de financiamento. Enfim, houve uma reconfiguração
das relações instituídas até então. Procurou-se estabelecer uma apro-
Sumário 194
ximação maior com movimentos ambientalistas como o Greenpeace,
que participou ativamente da mobilização coletiva mais expressiva da
História do CNS: o “Empate Amazônico Contra a Fome e a Devasta-
ção da Floresta Amazônica”, realizado em meados de 1993116.
Face ao aumento das pressões internacionais sobre o go-
verno brasileiro e da criação das primeiras RESEX, em 1990, o CNS
passou a defrontar-se com a necessidade de apresentar propostas de
desenvolvimento “mais concretas”. No caso especifico do Acre, “terra
de Chico Mendes”, o CNS transformou-se em um dos principais cata-
lisadores dos debates sobre desenvolvimento na região – sua presença
tornou-se obrigatória em todos os eventos dessa natureza – e possibi-
litou a participação das mais variadas correntes de pensamento, que
passaram a opinar sobre as “alternativas de desenvolvimento”.
A reivindicação de políticas públicas específicas para seus
representados, articuladas com incentivos à adoção de “alternativas
de desenvolvimento” apoiadas em financiamentos externos prove-
nientes de diversas ANGs117, constitui-se na marca fundamental das
estratégias adotadas nessa fase pelo CNS. No plano institucional, as
“Diretrizes para um Programa de Reservas Extrativistas na Amazô-
nia” (1993) sintetizam em quatro eixos as demandas de sua base social:
1) Resolução dos conflitos fundiários e criação de novas RESEX; 2)
Dotação de infraestrutura social e produtiva nas áreas reformadas; 3)
Desenvolvimento de pesquisas e tecnologias apropriadas para as RE-
SEX; 4) Subsídios e garantia de mercado para borracha natural oriun-
da dos seringais nativos. Pode-se afirmar que as referidas diretrizes,
que estampa a fotografia de Chico Mendes na capa, representou nesses
últimos vinte anos a única iniciativa de maior envergadura desse movi-
mento no sentido de associar o conteúdo da luta dessa liderança à sua
imagem, tanto é que foi reproduzido também em língua inglesa.
116
A referida mobilização Teve como objetivo pressionar o governo federal para elevar os
preços da borracha natural e criar subsídios. As manifestações ocorreram em diversas capitais.
Em Brasília, a caravana de trabalhadores extrativistas bloqueou a entrada do Ministério da
Fazenda, que acabou atendendo parcialmente as reivindicações.
117
As Agências Não-Governamentais (ANGs) repassam esses financiamentos (via de regra, a
fundo perdido) através de complexos circuitos transnacionais de intermediações que envolvem
as ONGs, os movimentos sociais e/ou “comunidades locais”. Maiores informações sobre a
atuação delas no Acre, ver Paula (2005).
195 Sumário
Figura 1: Imagem da Capa das Diretrizes (1993)
Sumário 196
ciedade civil, da ideologia do “desenvolvimento sustentável” preconi-
zada pelo Banco Mundial. Assim, diferentemente do início dos anos
de 1990, caracterizado pela tentativa de reconquistar uma “autonomia
relativa” desse movimento, a partir do IV Encontro Nacional do CNS,
realizado em Brasília no ano de 1995, a política de aproximação de
forma subordinada da direção do CNS a esse ambientalismo interna-
cional se intensifica. Havia chegado a hora, diziam as principais lide-
ranças do CNS, de mudar as estratégias e apostar nos grandes projetos,
como o Projeto Reservas Extrativistas, instituído no âmbito do PPG7.
Esse movimento de cooptação ganha maior fôlego com
a vitória da “Frente Popular” no estado do Acre nas eleições para o
executivo estadual em 1998. Liderada pelo Partido dos Trabalhado-
res, essa coalizão de 13 partidos, a maioria de centro-direita, na figura
de seus principais dirigentes, Jorge Viana (governador) e Marina Silva
(senadora), aprofunda em nível a adoção das diretrizes do modelo de
“desenvolvimento sustentável” imposta pelo Banco Mundial e Banco
Interamericano de Desenvolvimento. A imagem de Chico Mendes,
que já vinha sendo “destilada” de seu conteúdo passa a ser re-significa-
da de forma mais ousada para fins de legitimação do grupo governante
e, obviamente, abre passagem para um tipo de espoliação119 consentida
pelos “de baixo” e aplaudida pelos de “cima”.
Sob a insígnia do “desenvolvimento sustentável” foram to-
madas diversas iniciativas – envolvendo empresas, governo, ONGs e
organizações comunitárias – voltadas para a satisfação dos interesses
das grandes corporações, do agronegócio, especialmente da madeira
e pecuária. Instrumentos como a concessão de florestas públicas para
exploração de madeiras por empresas privadas, instituídas através de
legislação estadual e federal (Lei estadual 1427, aprovada na Assem-
bleia Legislativa do Acre em 2001, lei 11284, aprovada pelo Congresso
Nacional e sancionada pelo presidente Lula em março de 2006), des-
119
Ao nos referirmos a ‘“espoliação” o fazemos no sentido atribuído por Harvey (2004).
De acordo com ele, a “acumulação via espoliação” é caracterizada de uma maneira geral
como uma forma de recrudescimento da “acumulação primitiva”, expressa entre outros, nas
privatizações, agravamento da destruição ambiental, supressão de direitos e intensificação da
mercantilização da natureza.
197 Sumário
regulamentação do uso das unidades de conservação como as Resex,
para fins de exploração madeireira, legalização da grilagem de terras
(MP 422/2008) linhas de crédito para a expansão da pecuária, deno-
tam uma pequena amostra dessa monumental ofensiva nessa nova es-
calada da mercantilização da natureza em território amazônico. As
imagens reproduzidas a seguir (figuras 2, 3 e 4) mostram a magnitude
dessa operação.
Sumário 198
Figura 3: Capa da Revista Referência, VIII (54), abril 2006
199 Sumário
Na figura 2, gostaríamos de chamar a atenção para quatro
aspectos essenciais: 1) a matéria está publicada numa revista de “re-
ferência” do agronegócio da madeira, cuja capa aparece na figura 3;
2) a articulação entre empresa, governo (símbolo do “governo da flo-
resta”), “organizações comunitárias” (COOPERACRE), ONG locail
(CTA) e ONG internacional (WWF) aparece de forma cristalina; 3) a
imagem de Chico Mendes é usada sem “cerimônias” por uma das ex-
pressões máximas do capitalismo predatório (exploração florestal ma-
deireira) na Amazônia e no mundo. Lembrando que a dita exploração
foi combatida intransigentemente pelo movimento liderado por esse
personagem que empenhou sua vida nessa luta. É exatamente essa ra-
dicalidade do legado de Chico Mendes que a referida imagem procura
ocultar; 4) além de usar fotografias descontextualizadas de “gentes da
floresta” para criar uma falsa sensação de aprovação da exploração flo-
restal madeireira, a organização que supostamente os representaria, a
COOPERACRE, na realidade representa os interesses empresarias, e é
para isso que ela foi criada por iniciativa do governo estadual do Acre.
Na figura 4, a manipulação e ressignificação da imagem de
Chico Mendes alcança um grau ainda mais sofisticado e inimaginável
para os que acompanharam de perto a trajetória das lutas de resistência
na Amazônia e não se converteram em “mercadores da natureza”120.
Ela tem dois componentes interessantes. O primeiro busca reforçar a
versão oficial do “governo da floresta” pautada numa reinvenção da
História de conquista do Acre. Ela passa a ser interpretada como uma
sucessão de episódios marcados pela presença de heróis que atuaram
de forma decisiva na afirmação dessa conquista.
A fotografia situada no lado esquerdo da de Chico Mendes
é a do patrão seringalista Plácido de Castro, herói da chamada “Revo-
lução Acreana”. Com esse tipo de associação de imagens, procura-se
apagar por completo a violência da conquista do território que envol-
veu não só as escaramuças com os países vizinhos (Bolívia e Peru),
Conforme expressão utilizada por Paula ( 2005). Em linhas gerais designa um conjunto de
120
Sumário 200
mas também e, sobretudo, a brutal exploração da força de trabalho
praticada pela empresa seringalista. Além da dizimação e escravização
de povos indígenas, a empresa seringalista submeteu a um regime de
semiescravidão os migrantes pobres do Nordeste brasileiro deslocados
para as matas amazônicas. É dessa linhagem de gentes exploradas que
surge o seringueiro Chico Mendes, cuja vida foi dedicada à luta pela
emancipação dessas populações e da classe trabalhadora em geral.
Portanto, não existe a linha de continuidade em relação ao gaúcho e
seringalista Plácido de Castro. Ao contrário, o legado de Chico Men-
des aponta para uma ruptura.
O segundo componente diz respeito ao lugar em que foram
estampadas as imagens, a “Feira agropecuária do Acre”. Trata-se de
uma espécie de “templo” do agronegócio da pecuária na região. O
disparo que ceifou, prematuramente, a vida de Chico Mendes, foi fei-
to por um fazendeiro pecuarista. O planejamento e financiamento do
crime teriam envolvido, segundo os noticiários, organizações represen-
tativas dos pecuaristas, como a União Democrática Ruralista (UDR).
Enfim, como num ato mágico, as imagens vão adquirindo vida e, neste
caso, servindo para negar a existência da vida do revolucionário Chico
Mendes, na forma de espetáculo. Lembrando Debord (1997, p. 18):
Quando o mundo real se transforma em simples imagens,
as simples imagens tornam-se seres reais e motivações
eficientes de um comportamento hipnótico. O espetácu-
lo como tendência a fazer ver (por diferentes mediações
especializadas) o mundo que já não se pode tocar direta-
mente, serve-se da visão como o sentido privilegiado da
pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato; o
sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, cor-
responde à abstração generalizada da sociedade atual.
Mas o espetáculo não pode ser identificado pelo simples
olhar, mesmo que este esteja acoplado à escuta. Ele esca-
pa a atividade do homem, à reconsideração e à correção
de sua obra. É o contrário do diálogo. Sempre que haja
representação independente, o espetáculo se reconstitui.
201 Sumário
maiores desafios dos movimentos sociais hoje na Amazônia é o de
escapar das imagens, do “espetáculo” que encobre esse monumental
aparato de espoliação capitalista em marcha batida também na Ama-
zônia. Trata-se de um período marcado pelo triunfo avassalador da
hegemonia neoliberal, nitidamente diferenciado daquele em que viveu
Chico Mendes.
Os efeitos do “espetáculo” sobre as lutas de resistência
camponesa e indígena na Amazônia ainda não foram suficientemente
analisados. Dito de outro modo, deslindar as imagens que compõem
o “espetáculo” na sua forma contemporânea pode nos auxiliar a com-
preender as razões que levaram a maioria dos movimentos sociais
a aderir de forma ativa a um projeto que na sua essência expressa a
negação das bandeiras de lutas empunhadas anteriormente. Estamos
nos referindo explicitamente à adesão desses movimentos à ideologia
do “desenvolvimento sustentável” preconizada pelo Banco Mundial e
demais agencias multilaterais, ANGs e ONGs.
No decorrer de uma década, naturalizou-se a ideia de que
a conservação dos bens naturais estaria sujeita às supostas “determina-
ções de mercado”. Difundiu-se, ainda, a ideia de que não fazia mais
sentido pensar em projetos “totalizantes”, dever-se-ia concentrar esfor-
ços em iniciativas de cunho local. Todo o arcabouço ideológico do “de-
senvolvimento sustentável” imposto pelo imperialismo está ancorado
nesses fundamentos que acabam de ruir com a recente crise financeira.
O mais incrível de tudo isso, é que até o momento (13 de novembro
de 2008) os “mercadores da natureza”, tão convictos das virtudes do
“mercado” como “benfeitor” da natureza, parecem manter inalteradas
suas ladainhas. É como se uma coisa não tivesse nada a ver com outra,
isto é, a crise do sistema financeiro com a doutrina neoliberal.
Finalmente, ao sucumbirem no turbilhão produzido pelo
“espetáculo”, parte substancial de importantes movimentos sociais de
outrora, como o sindicalismo rural e CNS, saíram da condição de pro-
tagonistas da luta de resistência e passaram a constituir-se em meros
fantoches do capital. Em decorrência dessa subordinação e dos efeitos
Sumário 202
dela resultantes, tornaram-se “peças decorativas na região” e atraves-
sam uma grave crise de representação.
É nesse sentido mais subjetivo, e não em face do assassinato,
que eles estão “sem Chico Mendes”. Contudo, é possível vislumbrar as
lutas de resistência que notabilizaram a trajetória de Chico Mendes
em outros movimentos emergentes, como é o caso da Via Campesina,
que podem sinalizar uma nova fase de lutas. Nela vislumbram-se, a
exemplo do que vêm ocorrendo em vários países da América Latina,
como Bolívia, Peru, Equador, Paraguai, Colômbia e México, tentati-
vas de responder à ofensiva da internacionalização do capital na região
com estratégias de resistências que se projetam para além das frontei-
ras nacionais, ancoradas em lutas concretas nessa escala. As ações pro-
tagonizadas pelo MAB/Rondônia contra as hidrelétricas do rio Ma-
deira, os encontros de povos indígenas da fronteira tri-nacional (Brasil,
Peru, Bolívia) indicam algumas dessas evidências.
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