A Poesia de Álvaro de Campos PDF
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SEQUÊNCIA 1
loucura, chegou mesmo a autodiagnosticar-se (através da leitura de um dos tais livros de psiquia-
tria) um acesso ligeiro de “loucura psicasténica” e a encarar internar-se para se tratar. Dir-se-ia
que Campos funcionou como seu abcesso de fixação e que, quando exclamou, como quem põe
2 Expressões • Português • 12.° ano Textos Informativos Complementares
o dedo na ferida: “Cá está ela! Tenho a loucura exatamente na cabeça!”, estava a localizar o seu
fúria”. Curiosamente, as outras Odes desta primeira fase já fogem a esse cenário. Assim, a Ode
Marítima invoca (mais do que evoca) os rudes marinheiros da era das Descobertas, “a antiga vida
dos mares”, para que essa energia o acorde da sua “vida sentada”, o liberte do seu “traje de civi-
lizado” e transforme o “poeta decadente” que diz ser num homem novo. A Ode Marcial apresenta
a originalidade de não ser uma exaltação da guerra, à maneira dos Futuristas, mas a sua condena-
ção. A Passagem das Horas foi concebida para ter um ritmo solar, como a Ode Marítima, que nos faz
assistir ao crescendo das emoções desde o seu despontar até ao seu clímax e, depois, ao seu cre-
puscular decrescer. Mas dela – como aliás de todas as outras odes, com exceção da Triunfal e da
Marítima, que cuidou para publicar no Orpheu – Pessoa só deixou fragmentos que têm, contudo,
uma certa unidade, porque correspondem a momentos de escrita. […] Mas também esta admirá-
vel Passagem das Horas não faz a futurista exaltação da era das máquinas, traduz antes o anseio, a
“raiva panteísta” de fazer corpo com todos e tudo, de “sentir tudo de todas as maneiras”. A invo-
cação da noite, o momento final da ode, tem a mesma lancinante beleza crepuscular dos “dois
excertos de odes” escritos no mesmo mês de junho da apoteótica Ode Triunfal.
Segundo a “evolução” (termo por Pessoa usado) da ficção “vida e obras do Engenheiro” por
ele prevista, Campos teria passado do “poeta decadente, estupidamente pretensioso” que tinha
sido antes de conhecer Caeiro, e de que Pessoa tentou dar a imagem ao escrever Opiário, já depois
da Ode Triunfal, ao “engenheiro sensacionista”, autor das vibrantes odes que o deram a conhecer.
Mas, como o próprio Pessoa fez notar, o poeta sensacionista não deixa de ser decadente porque
esse excessivo entusiasmo pela saúde já é doença. Em Opiário, onde se confessa “doente e fraco”,
diz que “gostava de ser as coisas fortes”. E confessa a Walt Whitman, na sua Saudação: “Decaden-
tes, meu velho, decadentes é que nós somos…”
Este Campos de amplo fôlego vai contudo calar-se pouco depois do desaparecimento de Sá-
-Carneiro, em 1916. O Sensacionismo tinha nascido da amizade dos dois, como Pessoa precisou,
e morreu com o seu grande instigador. Mas Álvaro de Campos não desaparece: manifestar-se-á
frequentemente nas cartas de Pessoa a Ofélia, em 1920, com “saídas” paradoxais, bem ao seu
jeito, que Pessoa lhe atribui, acrescentando, entre parênteses: “A. de Campos”. Na penúltima
carta, de 15-10-1920, já de adeus, depois de comunicar a Ofélia que pensa internar-se numa casa
de saúde para se submeter a um tratamento psiquiátrico que lhe permita “resistir à onda negra
que [lhe] está caindo sobre o espírito”, Pessoa exclama: “Afinal o que foi? Trocaram-me pelo
Álvaro de Campos!”.
Em verso, só temos poemas datados e por ele assinados a partir de 1923, com Lisbon Revisited
e uma nova passagem da Passagem das Horas. Com estes poemas se inicia uma nova fase, de
Campos adulto, chamei-lhe […] “Metafísico”. Acabaram-se as gesticulações histéricas, os espa-
lhafatos verbais desse ser de palco que foi o “Engenheiro Sensacionista”, com modelos estrangei-
ros no horizonte que ele tentava superar. Temos agora o grande Campos da grande Tabacaria – a
que um francês, Rémy Hourcade, chamou “o mais belo poema do mundo”.
A partir do segundo poema intitulado Lisbon Revisited, de 1926 (escrito no mesmo dia, 26 de
abril, do magnífico poema “Se te queres matar” – curiosamente décimo aniversário do suicídio da
Sá-Carneiro). Pessoa desembarca de todas as aventuras marítimas (muitos dos anteriores poemas
situam-se num barco ou num cais) e anda a pé pela cidade, de elétrico, vai a Tavira, de comboio,
a Sintra, num chevrolet emprestado. Já não temos o Campos voltado para o exterior, na sua fúria
de encontrar “um caminho para a vida” mas uma personagem a sós consigo, encerrada nas qua-
tro paredes de si própria, muitas vezes à janela, como em Tabacaria e em muitos outros poemas.
Nesta fase “metafísica”, Campos despreocupa-se inteiramente de ser moderno. Desembarca
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de todas as viagens e fixa-se em Lisboa, afinal seu “lar” – como para Pessoa e Bernardo Soares.
A sua linguagem perde o amplo fôlego marítimo das grandes odes mas torna-se mais íntima, mais
intensa e adquire toda a dramaticidade que faz dele o protagonista do “drama em gente”. […]
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Campos sensacionista exclamou: “Sou um surdo-mudo berrando em voz alta os seus gestos”,
mas essa linguagem moldada pelo gesto será uma característica de todas as fases. Noutro poema,
pergunta-se: “Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?”. Na fase sensacionista a gesticulação
é mais intensa, histérica, por vezes, mas o gesto não deixa de estar presente nas duas últimas
fases, só que é um gesto não convexo mas côncavo, por assim dizer, pois não é inexistente –
“Qualquer coisa como um grito por dar” que contudo se insinua para dentro do peito e aí abre
uma concavidade. Em todas as fases o Engenheiro nos pega pelos ombros e nos abana com suas
interjeições (“Arre!” é a mais constante) e impropérios. Por vezes a linguagem cola-se ao ritmo do
caminhar, mas não só do caminhar em frente, também do “andar parado” do transeunte de si
próprio que afirma ser, ou acompanha a marcha da escrita. […]
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Para que o pensar não se cruzasse com o sentir, Campos suplica: “Para, meu coração! Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!”. Mas o coração, ou a cabeça, não lhe obedecem. E exclama:
“Que náusea no estômago real que é a alma consciente!”.