Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Competência Social, Inclusão Escolar e Autismo: Revisão Crítica Da Literatura

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

Psicologia & Sociedade

ISSN: 0102-7182
revistapsisoc@gmail.com
Associação Brasileira de Psicologia Social
Brasil

Höher Camargo, Síglia Pimentel; Alves Bosa, Cleonice


COMPETÊNCIA SOCIAL, INCLUSÃO ESCOLAR E AUTISMO: REVISÃO CRÍTICA DA LITERATURA
Psicologia & Sociedade, vol. 21, núm. 1, enero-abril, 2009, pp. 65-74
Associação Brasileira de Psicologia Social
Minas Gerais, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=309326582008

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Psicologia & Sociedade; 21 (1): 65-74, 2009

COMPETÊNCIA SOCIAL, INCLUSÃO ESCOLAR E AUTISMO:


REVISÃO CRÍTICA DA LITERATURA1

Síglia Pimentel Höher Camargo e Cleonice Alves Bosa


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

RESUMO: O autismo se caracteriza pela presença de um desenvolvimento acentuadamente atípico na intera-


ção social e comunicação, assim como pelo repertório marcadamente restrito de atividades e interesses. Estas
características podem levar a um isolamento contínuo da criança e sua família. Entretanto, acredita-se que a
inclusão escolar pode proporcionar a essas crianças oportunidades de convivência com outras da mesma faixa
etária, constituindo-se num espaço de aprendizagem e de desenvolvimento da competência social. O objetivo
deste estudo foi revisar criticamente a literatura a respeito do conceito de competência social e dos estudos
atualmente existentes na área de autismo e inclusão escolar. Identificaram-se poucos estudos sobre este tema,
os quais apresentam limitações metodológicas. Este panorama aponta para a necessidade de investigações que
demonstrem as potencialidades interativas de crianças com autismo e a possibilidade de sua inclusão no ensino
comum, desde a educação infantil.
PALAVRAS-CHAVE: competência social; autismo; inclusão escolar.

SOCIAL COMPETENCE, SCHOOL INCLUSION AND AUTISM: CRITICAL LITERATURE REVIEW


ABSTRACT: Autism is a condition characterized by an atypical development in the social interaction and com-
munication, and by a remarkably restricted repertoire of activities and interests. These characteristics can lead the
child and her family to a continuous isolation. However, it is believed that the school inclusion can provide these
children opportunities to be with others of the same age group, allowing the development of the social competence
and learning. The aim of this study was to critically review the literature on the concept of social competence
and school inclusion in the area of autism. Few studies were identified about this topic, but with methodological
limitations. This situation points to the need of studies that demonstrate the autistic children’s interactive poten-
tialities and the possibility of their inclusion in the mainstream school, since early education.
KEYWORDS: social competence; autism; school inclusion.

O interesse nas questões da interação social e as gênese do eu humano no processo da interação social.
reflexões sobre a sua importância para o comportamento Na abordagem denominada por seus seguidores de
humano surgiram no século passado. Entre 1830 e 1930 interacionismo simbólico, Mead (1934/1972) foi um
já era possível encontrar uma ampla e variada produção dos fundadores da sociologia empírica e sistemática,
que pressupunha que as relações sociais interpessoais sendo um dos primeiros a descrever a socialização
se encontravam entre os principais determinantes da como construção de uma identidade social na e pela in-
natureza humana, sendo passíveis de investigação teração com os outros (Dubar, 1999). Para esse teórico,
científica (Aranha, 1993; Dessen & Aranha, 1994). Já o centro do processo de socialização é a comunicação
naquela época, apontava-se, inclusive, para a impor- pelo gesto, que constitui uma adaptação à reação do
tância da experiência social com pares (Hartup, 1983). outro. Tais gestos são atos parciais dirigidos a outros,
Entretanto, as ideias geradas naquele período possuíam os quais devem receber e responder a eles. Assim, o
um caráter mais especulativo, pois ainda não havia sido gesto é uma ação incompleta, cuja complementação
construída uma base empírica consistente e métodos e sentido são construídos apenas na interação com
sistemáticos para a coleta dos dados nessa área. Foi os outros. Esses “outros”, a quem Mead chamou de
somente a partir da década de 30 que se desenvolveram “outros significativos”, são os agentes da socializa-
métodos e técnicas de observação de grupo, em especial ção, constituídos pelos indivíduos que possuem uma
os instrumentos sociométricos. importância significativa na adaptação da criança ao
Igualmente envolvido com a temática das rela- mundo em que ela vive. Desse modo, o processo de
ções entre indivíduo e sociedade no mesmo período, socialização está na base da construção do Eu, dada
George Herbert Mead dedicou-se à investigação da pela mediação dos outros e suas respostas.

65
Camargo, S. P. H. e Bosa, C. A. “Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura”

A partir dos anos 30, entretanto, estudos sobre base fundamental para o autoconhecimento e para a
as questões da interação social são praticamente ine- compreensão do “self”. Uma das premissas básicas das
xistentes, sendo retomados somente após a Segunda ideias de Hartup é de que a competência social é, em sua
Guerra Mundial, com uma notável ênfase na relação maior parte, aprendida com os companheiros.
mãe-criança. Conforme Pedrosa e Carvalho (2005), o A interação com outras crianças da mesma faixa
estudo da interação entre pares foi relegado até a década etária proporciona contextos sociais que permitem vi-
de 70 e, dada a centralidade na interação pais-filhos, venciar experiências que dão origem à troca de ideias, de
grande parte dos psicólogos considerava o relaciona- papéis e o compartilhamento de atividades que exigem
mento entre iguais como menos importante. Na década negociação interpessoal e discussão para a resolução
de 70, portanto, a retomada pelo interesse no estudo das de conflitos. No grupo de pares emergem as regras que
relações sociais gera a produção de diversos trabalhos estruturam as atividades de cooperação e competição.
e propostas teóricas quanto a sua natureza e função. Desse modo, a qualidade das interações com iguais e
Nesse sentido, “no estudo do desenvolvimento huma- a competência social influenciam-se mutuamente. É,
no, a interação social tem ocupado diferentes espaços, sobretudo, através da investigação sobre as relações
dependendo da função a ela atribuída por diferentes entre pares que se evidenciam as diferenças individuais
abordagens teóricas” (Aranha, 1993, p.19). Entretanto, na competência social (Almeida, 1997). Dessa forma,
parece haver um consenso entre elas no sentido de que o os companheiros representam uma fonte de relações
sucesso da constituição psíquica do indivíduo depende, imprescindível, provendo um contexto adicional único
primordialmente, do processo de socialização. É no e poderoso que influencia as diferenças individuais
contexto das relações sociais que emergem a lingua- durante o desenvolvimento social de qualquer criança
gem, o desenvolvimento cognitivo (Moura, 1993), o (Castro, Melo, & Silvares, 2003).
autoconhecimento e o conhecimento do outro. Além O conceito de competência social tem sido fre-
de proporcionar outros conhecimentos sobre o mundo, quentemente utilizado como sinônimo de habilidades
a interação social atua como precursora de relaciona- sociais. Embora sejam conceitos intimamente relaciona-
mentos subsequentes (conjugal e parental). dos, Del Prette e Del Prette (1996, 1999) fazem a distin-
Na área da Psicologia do Desenvolvimento, Har- ção entre ambos. Para esses autores, a habilidade social
tup (1989) aprofunda-se no estudo das interações sociais possui um caráter descritivo, o qual se refere à totalidade
com pares, influenciado pelos paradigmas da cognição dos desempenhos do indivíduo perante as demandas de
social (Piaget), aprendizagem social (Bandura) e as te- uma situação em sentido amplo. Já a competência social
orias sociogenéticas de Baldwin e Vigotsky. Esse autor é entendida como um julgamento sobre a qualidade da
sugere que toda criança necessita vivenciar dois tipos performance individual em uma determinada situação.
de relacionamentos: vertical e horizontal. O primeiro Assim, é possível afirmar que crianças com maiores
se caracteriza por relacionamentos complementares habilidades sociais sejam consideradas socialmente
que envolvem apego a uma pessoa com maior poder mais competentes. Nesse sentido, a competência social
social ou conhecimento, como os pais, a professora é, de um modo geral, um construto psicológico que
ou um irmão mais velho. Por outro lado, os relaciona- reflete múltiplas facetas do funcionamento cognitivo,
mentos horizontais são recíprocos e igualitários, pois emocional e comportamental. Trata-se, portanto, não de
envolvem companheiros da mesma idade, cujo poder um traço global da personalidade, mas um conjunto de
social e comportamento mútuo se originam de um comportamentos aprendidos no decurso das interações
mesmo repertório de experiências. Esses dois tipos sociais, sobretudo, na interação com pares. Almeida
de relacionamento exercem funções diferentes para a (1997) afirma que o desenvolvimento da competência
criança e são necessários para o desenvolvimento de social, numa perspectiva do desenvolvimento organi-
habilidades sociais efetivas. Enquanto a relação vertical zacional e relacional (Waters & Sroufe, 1983), pretende
proporciona segurança e proteção, cria modelos internos enfatizar a diversidade de soluções adaptativas que
básicos e desenvolve habilidades sociais fundamentais, permitem à criança desenvolver-se socialmente, numa
a relação horizontal desenvolve habilidades sociais que variedade de contextos e situações. Nesse sentido, as
só podem ser experienciadas no relacionamento entre expressões da competência social podem assumir for-
iguais: formas específicas de cooperação, competição mas bastantes “impopulares”, e o aparente desajuste
e intimidade (Hartup, 1989, 1992). pode não ser visto apenas como um déficit de aptidões,
Almeida (1997), ao estudar a relação entre crian- mas a necessidade de uma adequação ao contexto. As-
ças em idade escolar a partir da perspectiva de Hartup, sim, uma concepção da competência social, enquanto
afirma que a interação com pares não fornece apenas construto desenvolvimental, deve enfatizar em que
as experiências necessárias ao desenvolvimento de medida os comportamentos manifestos pela criança,
competências sociocognitivas, mas constitui-se em uma num determinado período e contexto, representam

66
Psicologia & Sociedade; 21 (1): 65-74, 2009

soluções adaptativas do ponto de vista do seu nível de proveem uma importante janela para o funcionamento
desenvolvimento. Esse princípio organizador estabelece social das crianças e são experiências críticas, ao longo
que a avaliação da competência social se deva reportar da infância e da adolescência, no desenvolvimento de
a estes indicadores desenvolvimentais. comportamentos adaptativos.
Na literatura encontram-se diversas perspectivas Desse modo, pode-se perceber uma tendência nos
teóricas que privilegiam diferentes facetas bastante últimos anos em atribuir à interação social um papel
específicas da competência social. Entretanto, a prin- importante no desenvolvimento da criança, enquanto
cipal crítica apontada à maioria dessas definições é que via de formação de relações sociais (Dessen & Aranha,
elas privilegiam a dimensão exteriorizável do compor- 1994). Ao longo desses anos, as teorias do desenvolvi-
tamento social, desconsiderando o valor adaptativo mento social (etológica, piagetiana, da aprendizagem
do comportamento no ciclo de vida. Nesse sentido, social, sistemas dinâmicos, sociointeracionista, sócio-
Almeida (1997) chama a atenção para a importância histórica, dentre outros), apesar das diversidades na
de se compreender a competência social numa pers- abordagem teórica e metodológica, são unânimes em
pectiva desenvolvimental e contextualizada no seu reiterar que a interação social é a condição de construção
espaço sociocultural. Segundo Waters e Sroufe (1983), do indivíduo e base do desenvolvimento do ser humano.
a competência social é a capacidade de utilizar os re- Além disso, diversos estudos identificam a importância
cursos ambientais e pessoais para conseguir um “bom da interação com pares para o desenvolvimento da
resultado desenvolvimental” em longo prazo, ou seja, criança pré-escolar e de sua competência social (Al-
a capacidade de ajustamento e saúde mental na idade meida, 1997; Hartup, 1996). Estudos desenvolvidos por
adulta. Em curto prazo, os resultados são avaliados pelas Lordelo e Carvalho (1998) e Oliveira e Rosseti-Ferreira
consequências positivas que a criança retira do funcio- (1993) com crianças pequenas em creche identificaram
namento adequado aos parâmetros estabelecidos para notáveis ganhos no desenvolvivento social dessas
cada nível desenvolvimental, bem como a preparação crianças, a partir da oportunidade de interação com
para as tarefas desenvolvimentais do nível seguinte. pares, proporcionada pelo ambiente. Corsaro (1997), a
Assim, a importância que assume a relação entre pares, partir da noção da reprodução interpretativa, na área da
dada a sua intensidade e permanência ao longo do de- sociologia, também aponta a importância dos relacio-
senvolvimento, torna inseparáveis o desenvolvimento namentos sociais para a criança. Para o autor, culturas
da competência social e o das relações interpessoais. infantis emergem na medida em que as crianças, intera-
Visto que os relacionamentos entre crianças da gindo com os adultos e com seus pares, tentam atribuir
mesma idade desempenham um papel fundamental sentido ao mundo em que vivem. A cultura de pares é
no desenvolvimento das habilidades sociais, a quali- fundamental para a criança, pois lhe permite apropriar,
dade da convivência com estes “outros significativos” reinventar e reproduzir o mundo que a rodeia.
afeta positiva ou negativamente as diversas aquisi- Entretanto, o desenvolvimento social de algumas
ções que delas se originam (Del Prette & Del Prette, crianças já se encontra em risco desde os primeiros anos
2006; Hartup, 1996; Pepler & Craig, 1998). Segundo de vida, sendo o autismo o protótipo desses casos. Nesse
Shaffer (1996), diversos estudos têm demonstrado as sentido, a escola possui papel fundamental nos esforços
consequências “indesejáveis”, resultantes da falta de para ultrapassar os déficits sociais dessas crianças, ao
amizade ou dificuldades nas relações com pares, tais possibilitar o alargamento progressivo das experiências
como maior probabilidade de desenvolver problemas socializadoras, permitindo o desenvolvimento de novos
emocionais, ser menos sociável, apresentar ajustamento conhecimentos e comportamentos.
escolar mais pobre, obter menos ganhos educacionais,
ser menos altruísta, entre outros. Além disso, evidências Autismo e Inclusão escolar
empíricas a partir de estudos longitudinais demonstram
que há uma correlação entre dificuldades precocemente O autismo é classificado pelo DSM-IV-TR (As-
identificadas nas relações entre pares durante a infância sociação Psiquiátrica Americana [APA], 2002) como
e comportamento antissocial, abandono escolar (Gron- um transtorno global do desenvolvimento, que se ca-
lund & Holmlund, 1958; Parker & Asher, 1987) e, até racteriza pelo desenvolvimento acentuadamente atípico
mesmo, comportamentos delinquentes na adolescência na interação social e comunicação e pela presença de
e idade adulta (Farrington, Gallagher, Morley, Ledger, um repertório marcadamente restrito de atividades e
& West, 1986; Olwes, 1980). Conforme Almeida interesses. Os comprometimentos nessas áreas estão
(1997), crianças que são rejeitadas por seus pares, em presentes antes dos três anos de idade, quando os pais,
comparação àquelas que são bem aceitas no grupo, em geral, já percebem e preocupam-se com as limi-
têm maior probabilidade de desenvolver dificuldades tações observadas, cada vez mais aparentes ao longo
socioemocionais. Assim, os relacionamentos entre pares do desenvolvimento. Desse modo, observa-se uma

67
Camargo, S. P. H. e Bosa, C. A. “Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura”

dificuldade qualitativa de relacionar-se e comunicar-se mento social das crianças com autismo não resultaria
de maneira usual com as pessoas, desde cedo na vida. da falta de oportunidades oferecidas, mais do que algo
Estudos epidemiológicos apresentam uma prevalência inerente à própria síndrome. Almeida (1997) parte da
de aproximadamente 1 em cada 200 indivíduos (Klin, noção de que o ser humano está inatamente programado
2006), sendo esta quatro vezes maior em meninos para estabelecer vínculos sociais, mas que o desenvolvi-
do que em meninas. Somente no Brasil, embora não mento social só se constrói na sequência de interações,
existam dados epidemiológicos estatísticos, é estimado em qualquer estágio da vida. Conforme Cairns (1986),
pela Associação Brasileira de Autismo que aproxima- a trajetória individual não é determinada somente pelos
damente 600 mil pessoas apresentam essa síndrome componentes genéticos, nem somente nos primeiros
(Bosa & Callias, 2000), sem contar aqueles que não se anos de vida (embora seja este um período crítico para
enquadram em sua forma típica. o desenvolvimento). É, sobretudo, determinada pelas
Quanto à etiologia, desde as primeiras considera- condições em que se desenrola o desenvolvimento, in-
ções feitas por Kanner, em 1943, muitas reformulações cluindo as mudanças biológicas esperadas, os sistemas
nos mecanismos explicativos foram realizadas, sem, de relações sociais que envolvem a criança, as condições
entretanto, chegar-se a conclusões consistentes. Isso dos ambientes que circula, o nível cognitivo da criança,
pode ser observado nas diversas abordagens que histo- entre outros. Isso quer dizer que não se pode afirmar
ricamente tentaram estabelecer um lugar na dicotomia que no nível da intervenção não se possa minimizar as
inato x ambiental de onde se possa definir o autismo. dificuldades que caracterizam qualquer síndrome. Um
No entanto, a tendência atual na definição de autismo é exemplo clássico é o caso de Victor, o menino “selva-
a de conceituá-lo como uma síndrome comportamental, gem” capturado nas florestas do sul da França, há cerca
de etiologias múltiplas, com intensas implicações para de 200 anos. Avaliado em Paris pelo célebre psiquiatra
o desenvolvimento global infantil (Volkmar, Lord, Pinel, foi por ele prognosticado como incapaz de se be-
Bailey, Schultz, & Klin, 2004). Embora ainda não haja neficiar de qualquer intervenção educativa. Entretanto, o
um marcador biológico definitivo, alguns achados têm jovem médico Jean Itard, hoje considerado o precursor
demonstrado particularidades nas áreas da genética e do da educação especial, questionou as afirmações de Pinel
funcionamento cerebral (Gupta & State, 2006). e apostou nas potencialidades educativas de Victor,
O autismo pode ocorrer em qualquer classe social, desenvolvendo um programa educativo com a ajuda
raça ou cultura, sendo que cerca de 65 a 90% dos casos do governo francês. Itard não conseguiu fazer com
estão associados à deficiência mental (Gadia, Tuchman, que Victor falasse, entretanto, contrariando o saber da
& Rotta, 2004). Essa incidência vem contra a noção época, conseguiu provar, com os primeiros resultados
estereotipada, derivada das descrições clássicas, de que obtidos, que Victor não era um “imbecil sem esperança”.
crianças autistas possuem uma inteligência secreta e Segundo Baptista e Oliveira (2002), o desenvolvimento
superior. Crianças com autismo de alto funcionamento das habilidades de Victor, a partir da convivência com
(perfil cognitivo diferenciado em algumas das áreas de outras pessoas, minimizava parte de uma limitação
testes padronizados) representam apenas 30% dos casos associada à sua educação: o isolamento social.
diagnosticados (Bosa, 2002). Desse modo, é possível Da mesma forma, proporcionar às crianças com
perceber a notável variação na expressão de “sintomas” autismo oportunidades de conviver com outras da
do autismo. Crianças com funcionamento cognitivo mesma faixa etária possibilita o estímulo às suas capa-
mais baixo geralmente tendem a ser mudas e isoladas. cidades interativas, impedindo o isolamento contínuo.
Em outro nível, a criança pode aceitar passivamente a Além disso, subjacente ao conceito de competência
interação, mas raramente a procura, enquanto em um social está a noção de que as habilidades sociais são
funcionamento mais alto é possível que a criança se passíveis de serem adquiridas pelas trocas que aconte-
interesse pela interação, mas o faz de modo bizarro cem no processo de aprendizagem social. Entretanto,
(Klin, 2006). De qualquer modo, destaca-se que a noção esse processo requer respeito às singularidades de cada
de uma criança não-comunicativa, isolada e incapaz de criança. Diante dessas considerações, fica evidente que
mostrar afeto não corresponde às observações atualmen- crianças com desenvolvimento típico fornecem, entre
te realizadas. De acordo com Bosa (2002), a ausência outros aspectos, modelos de interação para as crianças
de respostas das crianças autistas deve-se, muitas ve- com autismo, ainda que a compreensão social destas
zes, à falta de compreensão do que está sendo exigido últimas seja difícil. A oportunidade de interação com
dela, ao invés de uma atitude de isolamento e recusa pares é a base para o seu desenvolvimento, como para o
proposital. Nesse sentido, julgar que a criança é alheia de qualquer outra criança. Desse modo, acredita-se que
ao que acontece ao seu redor restringe a motivação a convivência compartilhada da criança com autismo
para investir na sua potencialidade para interagir. Lord na escola, a partir da sua inclusão no ensino comum,
e Magil (1989) já questionavam até que ponto o retrai- possa oportunizar os contatos sociais e favorecer não

68
Psicologia & Sociedade; 21 (1): 65-74, 2009

só o seu desenvolvimento, mas o das outras crianças, Especificamente sobre a questão do autismo, em
na medida em que estas últimas convivam e aprendam seu estudo, Jordan (2005) também aponta a necessidade
com as diferenças. Em uma revisão da literatura sobre de orientação aos professores, pois é a falta de conheci-
as diferentes intervenções que têm sido recentemente mento a respeito dos transtornos autísticos que os impe-
utilizadas no tratamento do autismo, Bosa (2006) des- de de identificar corretamente as necessidades de seus
taca as evidências de que a provisão precoce de edu- alunos com autismo. Na medida em que o sujeito é visto
cação formal, a partir dos dois aos quatro anos, aliada somente sob o ângulo de suas limitações, a crença na
à integração de todos os profissionais envolvidos, tem sua educabilidade e possibilidades de desenvolvimento
obtido bons resultados. estará associada à impossibilidade de permanência deste
No entanto, conforme Tezzari e Baptista (2002), sujeito em espaços como o ensino comum.
a possibilidade de inclusão de crianças deficientes De fato, um estudo exploratório sobre as expecta-
lamentavelmente ainda está associada àquelas que não tivas dos professores frente à possibilidade de inclusão
implicam uma forte reestruturação e adaptação da esco- de alunos com autismo em suas classes (Goldberg, Pi-
la. Nesse sentido, crianças com prejuízos e déficits cog- nheiro, & Bosa, 2005) demonstrou que os professores
nitivos acentuados, como psicóticos e autistas, não são manifestaram uma tendência a centralizar suas preocu-
consideradas em suas habilidades educativas (Baptista pações em fatores pessoais como, por exemplo, medo e
& Oliveira, 2002). O fato de existirem poucos estudos ansiedade frente à sintomatologia mais do que à criança
sobre inclusão de crianças autistas na rede comum de em si. O interessante é que entre os principais temores
ensino parece refletir esta realidade, isto é, a de que exis- estava a dúvida em como lidar com a agressividade
tem poucas crianças incluídas, se comparadas àquelas dos alunos. Esse resultado é intrigante, uma vez que
com outras deficiências. A literatura tem demonstrado a agressividade não é um comportamento prototípico
que isso se deve, em grande parte, à falta de preparo de autismo, aparecendo em uma variedade de outras
de escolas e professores para atender à demanda da condições. Resultado semelhante foi obtido no estudo
inclusão. Kristen, Brandt e Connie (2003) examinaram de Baptista, Vasques e Rublescki (2003) sobre a edu-
o relacionamento entre professores de escola comum cação de crianças com transtornos de desenvolvimento,
e 12 alunos com autismo de segunda e terceira séries concluindo que muitos educadores resistem ao trabalho
e observaram que, nos casos em que os professores com crianças autistas devido a temores em não saber
percebiam mais positivamente seu relacionamento com lidar com a agressividade delas – aliás, um aspecto que
os alunos com autismo, o índice de problemas de com- não é necessariamente característico desta condição.
portamento dessas crianças foi menor, e elas foram mais Os resultados dos estudos sobre autismo demons-
socialmente incluídas na sala de aula. Nesse sentido, a tram que os professores apresentam ideias distorcidas
atuação junto ao professor é fundamental para que a a respeito do mesmo, principalmente quanto à (in)
inclusão escolar aconteça de forma satisfatória (Beyer, capacidade de comunicação. Não surpreendentemen-
2005). Sobre esse aspecto, Cacciari, Lima e Bernardi te, essas concepções parecem influenciar as práticas
(2005) afirmam que, no processo de inclusão, a insti- pedagógicas e as expectativas acerca da educabilidade
tuição e os professores demandam tanta atenção quanto desses alunos. As dificuldades dos professores, de um
a criança. De fato, Sant’Ana (2005) investigou, através modo geral, se apresentaram na forma de ansiedade e
de entrevistas, as concepções de 10 professores e 6 dire- conflito ao lidar com o “diferente”. Por exemplo, no
tores de escolas públicas do Ensino Fundamental sobre estudo de Goldberg, Pinheiro e Bosa (2005) houve a
a experiência de inclusão. Foram identificadas diversas tendência de o professor adotar estratégias que, de certa
dificuldades apontadas pelos professores, tais como a forma, inibem a expressão dos “sintomas autistas” (e.g.,
falta de orientação, estrutura e recursos pedagógicos. “manter o aluno ocupado”). Tal estratégia era utilizada
Além disso, foi verificado que os professores tendem a mais como uma tentativa de “dominar” a própria an-
confundir os princípios de inclusão e integração. Embo- siedade do que como uma prática pedagógica, calcada
ra em alguns países os vocábulos integração e inclusão nas necessidades do aluno. Ideias preconcebidas e
sejam considerados sinônimos, no Brasil há uma ten- caricaturizadas sobre o autismo, principalmente a par-
dência a diferenciá-los (Mantoan, 1998; Sassaki, 1998). tir da mídia, influenciam as expectativas do professor
Enquanto na integração investe-se na possibilidade de sobre o desempenho de seus alunos, afetando a eficácia
indivíduos com deficiência frequentarem escolas co- de suas ações quanto à promoção de habilidades. O
muns de ensino, cujos currículo e método pedagógicos trabalho pedagógico integrador transforma limitações
estão voltados para crianças consideradas “normais”, em um desafio para todos, através de uma postura de
na inclusão muda-se o foco do indivíduo para a escola. confiança na capacidade de mudança do aluno, em si-
Neste caso, é o sistema educacional e social que deve tuações de confronto (Baptista, 2002). Alguns estudos
adaptar-se para receber a criança deficiente. têm demonstrado que, quando isso ocorre e os profes-

69
Camargo, S. P. H. e Bosa, C. A. “Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura”

sores estão adequadamente envolvidos no processo de a possibilidade de ganhos no desenvolvimento cede


inclusão, é possível verificar importantes ganhos para o lugar ao prejuízo para todas as crianças. Isso aponta
desenvolvimento de crianças com autismo incluídas no para a necessidade de reestruturação geral do sistema
ensino comum. Um exemplo disto é o estudo realizado social e escolar para que a inclusão se efetive.
por Serra (2004), no qual buscou verificar os efeitos Desse modo, Karagiannis, Stainback e Stainback
da inclusão em escola comum nos comportamentos (1999) referem que, diante de uma inclusão adequada,
de um menino de sete anos com autismo. Os resul- mesmo que uma criança apresente deficiências cogni-
tados obtidos através de uma avaliação da dinâmica tivas importantes e apresente dificuldades em relação
familiar e escolar e da própria criança mostraram que aos conteúdos do currículo da educação comum, como
a inclusão trouxe benefícios para ela. Por exemplo, a pode ser o caso do autismo, ela pode beneficiar-se das
criança apresentou melhora significativa da concentra- experiências sociais. O objetivo do aprendizado de
ção nas atividades propostas, bom estabelecimento de coisas simples do dia-a-dia (e.g., conhecer-se, estabe-
relacionamentos com os colegas e no comportamento lecer relações) seria o de as tornarem mais autônomas e
de atender a ordens. Constataram-se, ainda, efeitos independentes possíveis, podendo conquistar seu lugar
positivos da inclusão, na família, em função do maior na família, na escola e na sociedade. Desse modo, “na
investimento desta na aprendizagem da criança e um medida em que esses ‘conteúdos’ vão sendo desenvol-
aumento na credibilidade nas potencialidades do filho. vidos e ‘aprendidos’ por esses alunos, torna-se possível
A partir da análise qualitativa de uma entrevista, outro a entrada de outros conteúdos, da alfabetização, da
estudo (Li, 2002) investigou a perspectiva de cinco pais matemática, etc.” (Zilmer, 2003, p. 30). Com a educa-
de crianças com autismo quanto ao sucesso da inclusão ção de todas as crianças conjuntamente, aquelas que
escolar. Verificou-se que os pais observaram aumento possuem alguma necessidade educativa especial, seja
de benefícios da inclusão na escola comum comparados qual for, têm a oportunidade de preparar-se para a vida
aos da educação especial e o aumento das habilidades em comunidade, sendo que os professores melhoram
cognitivas, sociais e de comunicação, embora com suas habilidades profissionais e a sociedade funciona
dificuldades de generalização dessas habilidades para de acordo com o valor da igualdade de direitos para
outros contextos. De forma similar, Yang, Wolfberg, Wu todas as pessoas. Em relação à inclusão de crianças com
e Kwu (2003) verificaram em Taiwan notáveis ganhos autismo, os estudos encontrados apontam os ganhos que
na interação social recíproca e simbólica de crianças essas crianças possuem diante das oportunidades de
com autismo que participaram de jogos e brincadeiras interação com pares em settings inclusivos. Entretanto,
em grupo, sendo que o convívio escolar proporcionou algumas limitações metodológicas como, por exem-
essas oportunidades. Por outro lado, segundo Cham- plo, a amostra selecionada e o delineamento utilizado
berlain (2002), um processo de inclusão malsucedido ainda deixam lacunas relativas às suas potencialidades
pode aumentar os riscos de isolamento, rejeição dos interativas e a sua possibilidade de inclusão no ensino
pares e baixa qualidade de amizades. Em seu estudo, comum, desde a educação infantil.
métodos de agrupamento de rede social foram utilizados A revisão da literatura mostrou que, entre os
para caracterizar o envolvimento de 14 crianças com raros estudos encontrados na área da psicologia sobre
autismo de “alto funcionamento” (sem deficiência a inclusão escolar de crianças com autismo, o foco
mental associada) nas estruturas sociais da sala de principal é a percepção de pais e professores quanto a
aula de turmas de segunda a quarta séries. As medidas esta possibilidade e nos seus efeitos familiares e esco-
dos agrupamentos de pares indicaram que, embora as lares (Baptista et al., 2003; Goldberg, 2002; Goldberg,
crianças com autismo não tenham sido ativamente Pinheiro, & Bosa, 2005; Kristen et al., 2003; Li, 2002).
rejeitadas, elas foram menos proeminentes que seus Este também tende a ser o foco em alguns estudos na
pares sem autismo na rede social e apresentaram área da educação, investigando, por exemplo, aspectos
menores níveis de aceitação, companhia e amizade relacionados a questões institucionais de gestão escolar
recíproca que as demais crianças. frente à inclusão (Rublescki, 2004) e à investigação das
Sobre os efeitos de eventuais rejeições à criança concepções de professores acerca de seu preparo para
com autismo por seus pares, um estudo envolvendo o trabalho com crianças autistas (Lira, 2004; Oliveira,
observações etnográficas de 16 crianças com autismo 2002). Desse modo, tais estudos privilegiam a investi-
de alto funcionamento e idades entre 8 e 12 anos (Ochs, gação das concepções de pais e professores, através de
Kremer-Sadlik, Solomon, & Sirota, 2001) indicou que análise de conteúdo de entrevistas, sem investigar dire-
elas demonstraram uma gama de reações à rejeição e tamente o comportamento social da criança na escola.
desprezo, apesar das dificuldades na interpretação das Charman, Howlin, Berry e Prince (2004) demonstraram,
intenções e sentimentos dos mesmos. Quando não há através de entrevista com 125 pais de crianças com
ambiente apropriado e condições adequadas à inclusão, autismo (57 das quais foram refeitas após um ano de

70
Psicologia & Sociedade; 21 (1): 65-74, 2009

inclusão de seus filhos), os progressos no desenvolvi- amplamente considerados, a observação direta dessas
mento de crianças, tais como mudanças positivas nas crianças no contexto de inclusão escolar e a avaliação
habilidades de socialização e comunicação. da qualidade de suas interações com seus pares em uma
Outros estudos investigaram as interações sociais abordagem desenvolvimentalista (Lampreia, 2007) é
de crianças autistas na escola, porém o foco principal um aspecto metodológico importante, não encontrado
foi o impacto de diferentes programas de intervenção, na maioria dos estudos nesta área.
previamente estruturados. Owen-DeSchryver, Carr, Uma das poucas exceções foi o estudo desenvol-
Cale e Blakeley-Smith (2008) investigaram os efeitos vido por Ochs et al. (2001) que, através da observação
da inclusão em crianças com autismo, de segunda e etnográfica, estudou o cotidiano das crianças autistas,
quarta séries, a partir da intervenção social. Para cada no pátio e na sala de aula, e identificou as reações das
uma das três crianças com autismo investigadas havia mesmas frente aos sinais de rejeição dos pares. Entre-
de duas a quatro crianças com desenvolvimento típico tanto, desconsiderou o comportamento manifesto das
instruídas em sessões de treinamento, que objetivaram demais crianças em relação a elas, numa perspectiva
o aumento das interações sociais entre elas e seus pares interacionista. Do mesmo modo, Rotheram-Fuller
com autismo. Os dados coletados na hora do lanche (2006) estudou o comportamento social de 33 crianças
das crianças na escola demonstraram aumento das do jardim de infância, segunda e quinta séries com
iniciações interativas tanto dos pares treinados quanto seus pares típicos e comparou as diferenças entre os
das crianças com autismo. De forma semelhante, Kok, três níveis escolares, onde encontrou que as crianças
Kong e Bernard-Opitz (2002) compararam os efeitos de mais jovens são menos rejeitadas, porém menos conec-
abordagens com jogos estruturados na comunicação e tadas com seus pares que as crianças das séries mais
comportamento de jogo de crianças pré-escolares com avançadas. Nesse caso, o estudo não explora aspectos
autismo e seus pares. Foi demonstrado que elas apre- comparativos entre as crianças com autismo e seus pares
sentam maior frequência de comportamento de jogo e com desenvolvimento típico.
iniciações comunicativas nesse tipo de situação. Outro Chamberlaim (2002), ao investigar a rede social
estudo envolvendo intervenção no contexto escolar foi e o envolvimento de crianças com autismo de alto fun-
realizado em Taiwan por Yang, 1-Iuang, Schaller e Tsai cionamento cognitivo e seus pares na escola, considerou
(2003). Eles compararam o efeito generalizado de um apenas uma amostra de crianças de segunda a quarta
treinamento de habilidades socioemocionais em dois séries. Portanto, como essa realidade ocorre em crianças
meninos e duas meninas com autismo, comparados a menores (pré-escolares) e com deficiência mental asso-
casos-controle, buscando promover o comportamento ciada, que representa a maioria dos casos de autismo,
social no ambiente escolar de ensino comum. Os re- ainda é desconhecida. Percebe-se, sobretudo na área da
sultados da análise de regressão mostraram que todos psicologia, a carência de estudos relacionados à inclusão
os participantes do grupo experimental aumentaram a da criança autista em escola comum, focando a interação
sequência de comportamentos sociais sobre o tempo, dessa criança com as demais e a caracterização de suas
em relação ao grupo controle. Ainda sobre o compor- possíveis potencialidades interativas.
tamento social, Zercher, Hunt, Schuler e Webmaster
(2001) investigaram os efeitos da participação em jogos Considerações Finais
integrados de dois irmãos gêmeos de 6 anos (autistas)
comparados a três meninas com desenvolvimento A análise dos poucos estudos na área de inclusão
típico de 5, 9 e 11 anos, respectivamente. Os resulta- escolar e autismo apontam para a identificação de compe-
dos também indicaram que a participação de crianças tência social nessas crianças, neste contexto. Entretanto,
autistas em jogos integrados com crianças com DT, essa é uma habilidade que depende de um conjunto de
programados e estruturados de acordo com o seu nível medidas como, por exemplo, a qualificação dos profes-
de desenvolvimento, produziu aumento significativo sores, apoio e valorização do seu trabalho. Mostrar que a
na atenção compartilhada de objetos, jogo simbólico escola pode ser, de fato, um espaço de desenvolvimento
e expressão verbal. Cabe ressaltar, no entanto, que o da competência social para crianças autistas é ainda um
estudo não foi desenvolvido no ambiente escolar, e em grande desafio para os pesquisadores desta área.
algumas etapas do estudo houve a intervenção de um Torna-se, portanto, de grande relevância novas
adulto com e sem coação das interações. O mesmo pode pesquisas no campo da psicologia para atender a essa
ser dito em relação ao estudo desenvolvido na Grécia necessidade. São urgentes as investigações com crian-
(Gena, 2006) que encontrou aumento nas iniciações ças pré-escolares, visto que nessa época as crianças
sociais com pares de quatro crianças pré-escolares com defrontam-se com as primeiras experiências com outras
autismo, a partir do reforço de um professor. Embora crianças, fora do contexto familiar e recreativo. De acor-
tais estudos utilizem delineamentos e coletas de dados do com Barbosa (2007), a educação infantil se configura

71
Camargo, S. P. H. e Bosa, C. A. “Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura”

em um dos espaços contemporâneos de socialização e culturas familiares: as socializações e a escolarização


das crianças desde tenra idade, permitindo às mesmas no entretecer destas culturas. Educação e Sociedade, 28,
1059-1083.
a interiorização de normas, valores, funções cognitivas,
Beyer, H. O. (2005). Inclusão e avaliação na escola de alunos
conhecimentos e práticas, pela convivência com novos com necessidades educacionais especiais. Porto Alegre:
sujeitos de interação. Dessa forma, a qualidade dessas Meditação.
primeiras experiências provavelmente influirá na adap- Bosa, C. A. (2002). Autismo: atuais interpretações para antigas
tação social nos anos escolares subsequentes. observações. In C. R. Baptista & C. A. Bosa (Orgs.), Autismo
A minimização das crenças distorcidas sobre a e educação: reflexões e propostas de intervenção (pp. 21-39).
Porto Alegre: Artmed.
(in)capacidade interativa das crianças autistas também
Bosa, C. A. (2006). Autismo: intervenções psicoeducacionais.
pode ser conseguida através de delineamentos de pes- Revista Brasileira de Psiquiatria, 28, 47-53.
quisa desenvolvidos com esta finalidade. Por exemplo, Bosa, C. A. & Callias, M. (2000). Autismo: breve revisão de
a utilização de “caso-controle” com crianças “típicas” diferentes abordagens. Psicologia, Reflexão e Crítica, 13,
em estudos observacionais permitiria não somente a 167 - 177.
identificação de áreas socialmente “deficitárias” na Cacciari, F. R., Lima, F. T., & Bernardi, M. R. (2005). Ressigni-
ficando a prática: um caminho para a inclusão. Construção
criança com autismo, mas em que aspectos ela se as-
Psicopedagógica, 13, 13-28.
semelha a outras crianças da mesma faixa etária, com Cairns, R. B. (1986). A contemporary perspective on social
desenvolvimento típico. Os estudos devem, portanto, development. In P. S. Strain, M. Guralnick, & H. M. Walker
focalizar não apenas a ocorrência de determinados (Orgs.), Children´s social behavior. Development, assessment,
comportamentos, mas a sua frequência e intensidade. and modification (pp. 3-47). Orlando: Academic Press.
Dessa forma, talvez seja possível mostrar que as dife- Castro, R. E. F., Melo, M. H. S., & Silvares, E. F. M. (2003). O
julgamento de pares de crianças com dificuldades interativas
renças nos comportamentos sociais sejam qualitativas
após um modelo ampliado de intervenção. Psicologia: Re-
e que mesmo a sua baixa frequência não é equivalente flexão e Crítica, 16, 309-318.
à sua ausência. Estudos que investiguem esses aspectos Chamberlain, B. O. (2002). Isolation or involvement? The social
poderão contribuir para a dissolução de diversos mitos networks of children with Autism included in regular classes.
em torno da educabilidade de crianças com autismo, Dissertation Abstracts International, 62 (8-A), 2680. (UMI
fornecendo evidências de que é possível o investimento No.AAI3024149)
Charman, T., Howlin, P., Berry, B., & Prince, E. (2004). Measur-
em um espaço que, acima de tudo, é um direito.
ing developmental progress of children with autism spectrum
disorder on school entry using parent report. Autism, 8,
Nota 89-100.
Corsaro, W. A. (1997). The sociology of childhood. Thousand
1
Agradecemos à Profa. Dra. Ana Almeida (Universidade do Oaks, CA: Pine Forge Press.
Minho, Portugal) pelas contribuições a este trabalho e à Del Prette, Z. A. P. & Del Prette, A. (1996). Habilidades sociais:
CAPES pelo apoio financeiro. uma área em desenvolvimento. Psicologia Reflexão e Crítica,
9, 233 -255.
Del Prette, Z. A. P. & Del Prette, A. (1999). Psicologia das habi-
Referências bibliográficas lidades sociais: terapia e educação. Petrópolis, RJ: Vozes.
Del Prette, Z. A. P. & Del Prette, A. (2006). Avaliação multimodal
de habilidades sociais em crianças: procedimentos, instru-
Almeida, A. (1997). As relações entre pares em idade escolar. Um
mentos e indicadores. In M. Bandeira, Z. A. P. Del Prette,
estudo de avaliação da competência social pelo método Q-
& A. Del Prette (Orgs.), Estudos sobre habilidades sociais e
sort. Tese de Doutorado, Universidade do Minho, Portugal.
relacionamento interpessoal (pp. 47 - 68). São Paulo: Casa
Aranha, M. S. L. F. (1993). A interação social e o desenvolvi-
do Psicólogo.
mento humano. Temas em Psicologia, 3, 19-28.
Dessen, M. A. & Aranha, M. S. L. F. (1994). Padrões de interação
Associação Psiquiátrica Americana (2002). Manual diagnóstico
social nos contextos familiar e escolar: análise e reflexões sob
e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artes
a perspectiva do desenvolvimento. Temas em Psicologia, 3,
Médicas
73 - 90.
Baptista, C. R. (2002). Integração e autismo: análise de um
Dubar, C. (1999).  La socialisation: Construction des identités
percurso integrado. In C. R. Baptista & C. A. Bosa (Orgs.),
sociales et professionnelle. Paris: A. Colin.
Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção
Farrington, D. P., Gallagher, B., Morley, L. St., Ledger, R. J., &
(pp. 127-139). Porto Alegre: Artmed.
West, D. J. (1986). Unemployment, school leaving, and crime.
Baptista, C. R. & Oliveira, A. C. (2002). Lobos e médicos: pri-
British Journal of Criminology, 26, 335-356.
mórdios na educação dos “diferentes”. In C. R. Baptista & C.
Gadia, C.; Tuchman, R., & Rotta, N. (2004). Autismo e doen-
A. Bosa (Orgs.), Autismo e educação: reflexões e propostas
ças invasivas do desenvolvimento. Jornal de Pediatria, 80,
de intervenção (pp. 93-109). Porto Alegre: Artmed.
583 - 594.
Baptista, C. R., Vasques, C. K., & Rublescki, A. F. (2003). Edu-
Gena, A. (2006). The effects of prompting and social reinforce-
cação e transtornos globais do desenvolvimento: em busca de
ment on establishing social interactions with peers during the
possibilidades. Cadernos da APPOA, 114, 31-36.
inclusion of four children with autism in preschool. Interna-
Barbosa, M. C. (2007). Culturas escolares, culturas de infância
tional Journal of Psychology, 41(6), 541-554.

72
Psicologia & Sociedade; 21 (1): 65-74, 2009

Goldberg, K. (2002). A percepção do professor acerca do seu Mead, G. H. (1972). Mind, self and society: From the standpoint
trabalho com crianças portadoras de autismo e síndrome de of a social behaviorist. Chicago: University of Chicago (Tra-
Down: um estudo comparativo. Dissertação de Mestrado, balho original publicado em 1934).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Moura, M. A. S. (1993). A interação social e solução de pro-
Goldberg, K., Pinheiro, L. R. S., & Bosa, C. A. (2005). A opção blemas por crianças: questões metodológicas, resultados
do professor pela área de educação especial e sua visão acerca empíricos e implicações educacionais. Temas em Psicologia,
de um trabalho inclusivo. Perspectiva, 107, 59 - 68. 3, 39 - 47.
Gronlund, N. E. & Holmlund, W. S. (1958). The value of elemen- Ochs, E., Kremer-Sadlik, T., Solomon, O., & Sirota, K. G. (2001).
tary school sociometric status scores for predicting pupil’s Inclusion as social practice: Views of children with Autism.
adjustment in high school. Educational Administration and Social Development. 10, 399 - 419.
Supervision, 44, 225-260. Oliveira, A. C. (2002). O autismo e as “crianças-selvagens”:
Gupta, A. & State, M. (2006). Autismo: genética. Revista Bra- da prática da exposição às possibilidades educativas. Dis-
sileira de Psiquiatria, 28, 29-38. sertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande
Hartup, W. W. (1983). Peer relations. In P. H. Mussen & J. do Sul.
Carmichael (Orgs.), Handbook of child psychology: Vol. Oliveira, Z. M. R. & Rossetti-Ferreira, M. C. (1993). O valor
4. Socialization, personality, and social development. (pp. da interação criança-criança em creches no desenvolvimento
103-196). New York: John Wiley and Sons. infantil. Cadernos de Pesquisa, 87, 62-70.
Hartup, W. W. (1989). Social relationships and their developmen- Olwes, D. (1980). Familial and temperamental determinants
tal significance. American Psychologist, 44, 120-126. of aggression behavior in adolescents - A causal analysis.
Hartup, W. W. (1992). Friendships and their developmental Developmental Psychology, 16, 644 - 660.
significance. In H. McGurk (Org.), Childhood social develop- Owen-DeSchryver, J. S., Carr, E. G., Cale, S. I., & Blakeley-
ment (pp. 175-205). Gove: Erlbaum. Smith, A. (2008).Promoting social interactions between
Hartup, W. W. (1996). The company they keep: Friendships students with autism spectrum disorders and their peers in
and their developmental significance. Child Development, inclusive school settings. Focus on Autism and Other Devel-
67, 1-13. opmental Disabilities, 23(1), 15-28.
Jordan, R. (2005). Managing Autism and Asperger’s syndrome Parker, J. G. & Asher, S. R. (1987). Peer relationships and
in current educational provision. Pediatric Rehabilittion, 8, later personal adjustment: Are low-accepted children at risk?
104 – 112. Psychological Bulletin, 102, 357 - 389.
Kanner, L. (1943). Affective disturbances of affective contact. Pedrosa, M. & Carvalho, A. M. A. (2005). Análise qualitativa de
The Nervous Child, 2, 217 - 250. episódios de interação: uma reflexão sobre procedimentos e
Karagiannis, A., Stainback, S., & Stainback, W. (1999). Funda- formas de uso. Psicologia Reflexão e Crítica, 18, 431 - 442.
mentos do ensino inclusivo. In S. Stainback & W. Stainback Pepler, D. J. & Craig, W. M. (1998). Assessing children’s peer
(Orgs.), Inclusão - Um guia para educadores (M. Lopes, relationsships. Child Psychology & Psychiatry Review, 3,
Trad., pp. 21-34). Porto Alegre: Artmed. 176 - 182.
Klin, A. (2006). Autismo e síndrome de Asperger: uma visão Rotheram-Fuller, E. J. (2006). Age-related changes in the social
geral. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28, 3 - 11. inclusion of children with autism in general education class-
Kok, A. J., Kong, T. Y., & Bernard-Opitz, V. (2002). A com- rooms. Dissertation Abstracts International, 66 (7-A), 2493.
parison of the effects of structured play and facilitated play (UMI No. AAI3181739)
approaches on preschoolers with autism: a case study. Autism, Rublescki, A. F. (2004). A caminho da escola... Um estudo sobre
6, 181- 196. a educação integrada de crianças com autismo e psicose
 Kristen, R., Brandt, C., & Connie, K. (2003). General educa- infantil. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do
tion teachers’ relationships with included students with Rio Grande do Sul.
Autism. Journal of Autism and developmental disor- Sant’Ana, I. M. (2005). Educação inclusiva: concepções de pro-
ders, 33, 123-130. fessores e diretores. Psicologia em Estudo, 10, 227 - 234.
Lampreia, C. (2007). A perspectiva desenvolvimentista para Sassaki, R. K. (1998). Integração e inclusão: do que estamos
a intervenção precoce no autismo. Estudos de Psicologia, falando? Temas sobre desenvolvimento, 39, 45 - 47.
24(1), 105-114. Serra, D. C. G. (2004). A inclusão de uma criança com autismo na
Li, M. M. L. (2002). Factors leading to success in full inclusion escola regular: desafios e processos. Dissertação de Mestrado,
placements for students with Autism. Dissertation Abstracts Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
International, 63 (5-B) 2591. (UMI No. AAI3052995) Shaffer, H. R. (1996). Social development. Cambridge: Blackwell
Lira, S. M. de (2004). Escolarização de alunos com transtorno Publisher.
autista: histórias de sala de aula. Dissertação de Mestrado, Tezzari, M. & Baptista, C. R. (2002). Vamos brincar de Giovani?
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A integração escolar e o desafio da psicose. In C. R. Baptista &
Lord, C. & Magil, J. (1989). Methodological end theoretical C. A. Bosa (Orgs.), Autismo e educação: reflexões e proposta
issues in studying peer-directed behavior and Autism. In G. de intervenção (pp.145-156). Porto Alegre: ArtMed.
Dawson (Org.), Autism: Nature, diagnosis & treatment. (p. Volkmar, F., Lord, C., Bailey, A., Schultz, R. & Klin, A. (2004).
327-345). New York: Guilford. Autism and pervasive developmental disorders. Journal of
Lordelo, E. R. & Carvalho, A. M. A. (1998). Creche como con- Child Psychology and Psychiatry, 45, 135 - 170.
texto de desenvolvimento: parcerias adulto-criança e criança- Waters, E. & Sroufe, L. A. (1983). Social competence as a devel-
criança. Temas de Psicologia, Ribeirão Preto, 6, 117-128. opmental construct. Developmental Review, 3, 79 - 97.
Mantoan, M. T. E. (1998). Integração x Inclusão – Educação Yang, N. K., 1-Iuang, T., Schaller, J. L., & Tsai, M. H. W. S.
para todos. Pátio, 5, 48 - 51. (2003). Enhancing appropriate social behaviors for children
with autism in general education classrooms: An analysis of

73
Camargo, S. P. H. e Bosa, C. A. “Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura”

six cases. Education and Training in Developmental Dis-


abilities, 38(4), 405-416.
Yang, T. R., Wolfberg, P. J., Wu, S. C., & Hwu, P. Y. (2003).
Supporting children on the autism spectrum in peer play at
home and school: Piloting the integrated play groups model
in Taiwan. Autism, 7, 437 – 453.
Zercher, C., Hunt, P., Schuler, A., & Webmaster, J. (2001).
Increasing joint attention, play and language trough peer
supported play. Autism, 5, 374-398.
Zilmer P. (2003). Reflexões sobre a prática: Escola ou clínica? In
M. S. Charczuk & M. N. Folberg (Orgs.), Crianças psicóticas
e autistas: a construção de uma escola (pp. 27-38). Porto
Alegre: Mediação.

Síglia Pimentel Höher Camargo é Psicóloga pela UFSM e


Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS.
Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia
–UFRGS. Rua Ramiro Bracelos 2600, sala 110. Bairro
Santa Cecília. Porto Alegre-RS. CEP:90035-003.
E-mail: sigliahoher@yahoo.com.br

Cleonice Alves Bosa é Profa. Dra. do Programa de Pós-


graduação em Psicologia da UFRGS.
Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia
– UFRGS. Rua Ramiro Barcellos, 2600, Sala 110. Bairo
Santa Cecília – Porto Alegre –RS. CEP: 90035-003.
E-mail: cleobosa@uol.com.br

Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão


crítica da literatura
Síglia Pimentel Höher Camargo e Cleonice Alves Bosa

Recebido: 26/02/2008
1ª. Revisão: 09/06/2008
Aceite final: 13/06/2008

74

Você também pode gostar