Mistérios Da Inquisição Vol 1
Mistérios Da Inquisição Vol 1
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Mysterios da Inquisição
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F. GOMES DA SILVA
Mysterios da Inquisição
ILLUSTRADO A CORES
I VOLUME
Lisboa
Secção Editorial da Companhia Nacional Editora
Adm. — Justino Guedes
5o — Largo do Conde Babão — 5o
1900
^f
PRIMEIRA PARTE
Os christãos novos
o massacre
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
que o luxo mais dispendioso da épocha era o dos creados. A dama mais
recatada e joven fazia-se acompanhar de pagem bem garrido ou de donas
de edade avançada. As mulheres de Lisboa tinham então a fama de serem
as mais bellas da Península; pena era que, por influencia da moda hes-
panhola, para melhor accentuarem a diflerença de raça da gente mourisca
e hebrêa, tivessem, o mau sestro de pintar de ouro menos polido as tran-
trados e nas dos populares mais rudes apparecia uma invocação ou uma
referencia em que a Virgem, e o Céo, e Jesus Christo eram prodigamente
contemplados.
Não faltava n'este centro da população lisbonense a mescla de dia-
lectos e de idiomas, que affirmava a notável influencia dos nossos des-
cobrimentos marítimos e o grande movimento commercial do nosso porto.
Era frequente ouvir a nossa linguagem trabalhada difficilmente na accen-
tuação hespanhola e italiana.
7
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
juro, mestre e amigo, que não serei eu o vencedor. . . E' necessário que
lhe fique vontade de voltar. .
— Não, Deborah.
foi
— Bem; assim devia ser; ás vezes vale mais um leigo que um padre.
— Quando o padre não é mestre Ignacio, acudiu lisonjeiro o chris-
tão do corro de Sant'Anna. E, em seguida, como se se tivesse lembrado
d'algum coisa a que ligasse pouca importância
—-Já falaste a el-rei a meu respeito?
— Ainda não; el-rei não tem necessidade de conhecer os nossos negó-
cios. Depois das noticias que espero de Itália, trataremos d'esse assumpto.
— Quereis que escreva Henrique Nunes a ? E' astuto e valente. .
-—Para mim não, que, em gastando o pouco que me resta, posso con-
tar com o hospício dos Palmeiros; mas para os peregrinos, meus futuros
camaradas, acceito.
— Toma, disse Ignacio; entregou-lhe algumas moedas de ouro.
e
— Reparae, mestre Ignacio, advertiu em voz baixa, quando estava e já
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
mundo externo é todo luz; ha outras em que é todo idéas. Sarah via ape-
nas; sua irmã pensava já. . . Aquelle grupo parecia uma roseira, em que
o velho Lopo tinha a forma e o tom d'um tronco recurvado, escuro, mus-
goso, e as filhas a de um botão que mal recurva as pétalas, e a d'uma
rosa que abre o cálix ás gôttas de orvalho e aos raios do sol.
Como numa familia — sexos, edades, cores, caracteres, tudo tão di-
verso, tudo tão differente, sabem manter aquelle qiitd, que se distingue,
e que se não aponta, que não está nem nas linhas do rosto, nem na côr
dos olhos, nem nas formas do vulto, mas que está em tudo isso, no sor-
do mesmo aftecto
O sorriso de Sarah era alegre, mas havia nelle o que poderia cha-
mar-se meiguice, e que era talvez um pouco de sombra que lhe vinha
signado, e, quem sabe ? até festivo, que lhe vinha das filhas, quando ellas
lam as aguas do rio com os thesouros que \inham por elle acima. Foi a
heresia que os afundou para sempre. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
salga á porta, que, mal a gente a pisa, logo tem engulhos, que são mesmo
do inferno. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
as alca-
adorável estátua! Os padres pareciam deitados de bruços sobre
tifas persas da mysteriosa capella.
percorria o templo o
Restabelecera-se quasi o silencio, porque apenas
e dos
cicio, o murmúrio da reza em segredo, que é própria dos crentes
medrosos, quando se convertem em energúmenos.
Pòde-se então distinguir a voz do velho Lopo:
— Aquietae-vos, boa gente, que os mysterios do Cco não estão ao al-
porque vem do
cance dos nossos olhos. E' celeste aquella luz, e é divina,
sol, brilha sobre a terra e a fecunda com o seu calor.
que Os raios aben-
pedrarias
çoados do grande astro multiplicam-se naturalmente sobre as
transparência crys-
do relicário. Tivesse a minha calva de marfim aquella
aquellas arestas de lapidagem, e ella rellectiria tão
maravilhosa-
tallina e
mente sobre este sacrário da minha razão. Oremos a Deus, mas sem ter-
— um emissário do inferno
E' !
Sarah, que vira desapparecer sua irmã, busca, como se tivesse azas,
soltar o vôo por cima destas hordas ferozes, para seguir o corpo de seu
pae, cujas formas mal se distinguem e cujos restos volteiam ás aggres-
sões do populacho, sobre as pedras da calçada. O seu vôo não seria mais
que uma queda mortal, no meio d'aquelle torvelinho de feras, se uma
voz Iresca e suave lhe não segredasse
— Siga-me, Sarah
— Quero morrer, gritou ella,
. ! .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E minha irmã ?
— Roubada . .
Sarah.
— Vingae-me então, senhor, disse Sarah cambaleando.
— Pela minha o mouro do corro de Sant-Anna será
fé! christão a
que não mendigam, operários que não trabalham; gente que se aninha
nas pocilgas e tavolagens, que veste farrapos que foram galas e tem
na fronte o estigma dos tribunaes. Parece que caem do espaço como aero-
lithos, ou que surgem do exgôtto como os miasmas. E' umíi colónia sub-
terrânea que presente os terremotos e sobem á luz das cidades suppon-
do que os descobrem; é um enxame e do que rebenta do cortiço do vicio
crime. E' povo? Não;
que se levanta e incommoda quando a so-
é pó,
ciedade mora! passa sobre elle, ou quando o vento da desordem o sopra
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
por acaso. Não é povo, são corvos, que sentem, ao longe, nos seus es-
conderijos, o cheiro da carne morta.
Toda esta gente, sentindo o crepitar das fogueiras, veiu esvoaçar em
redor d'ellas, soltando gritos
— Morram os judeus!
Como se poderá descrever o que então se passou nas ruas de Lisboa?
A rua ? quem pode definir este campo immenso das mais extraordinárias
aventuras ?
ma-se fúria.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
testasse, ou fugia ou cahia varado uma judia era uma judia, um mouro
;
era um mouro ; se aquella levava uma creança nos braços, nem por isso
era mãe — matava-se, primeiro a mulher, seguia-se depois a prole.
Ainda era dia claro e, como por encanto, se tinham accendido mil
cundo !
Nessa noite infernal^ matança não desanimou nem até mesmo á hora
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
res punhaes, e, como uma fera agachada que espera a presa, dobrou um
joelho no sobrado, e, levantando os olhos, exclamou :
—
Sou Ruy Vasques, o vosso discípulo da Carreira, que vos tem por
mouro como parceiro, mas que sabe quanto tendes de christão. Abri,
Pedro.
— Se és meu amigo, acudiu Pedro, defende essa porta, de onde es-
tás, para que ella não estale nem salte dos couces, que eu me defenderei
n'este logar.
três, que venho cm companhia do mais santo dos frades d'esta terra. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 23
—
Morra o hereje !
gressiva.
— Tua mãe, Sarah Não e ? é assim ?
24 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Ao fogo ao fogo! !
manda em seu logar o prior do Crato e o barão d' Alvito. Dois Diogos . .
2(5
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
de justiça.
do msuccesso,
El-rei, movido mais por pudor que por desconfiança
desrespeito pelas suas
adeantou-se até Setúbal, e dalli, para castigar o
ou na terra, ou no ar —
despojos sangrentos que escaparam ao fogo--
levanta e dispersa, pensemos as feridas dos
que mais
cinzas que o vento
o desespero e
soffrem, porque durante muito tempo sentirão a saudade,
a vergonha . .
acceleram.
Ha punhaladas que fazem parar o coração; ha outras que o
anesthesiam o corpo para os golpes do
Ha mortes que consolam, porque
mundo e para as mordeduras do tempo. São as melhores
ção de nosso peito e o calor de nossos lábios, cujos ouvidos eram o ins-
se o amor nos foge, isto é, se as sombras do lucto nos vestem a alma com
uma mortalha negra, e nos velam os olhos com as cataractas da abstrac-
ção, de maneira que andamos sem saber por onde, que vivemos sem nos
importar a vida, indifterentes ás tristezas e alegrias dos outros, que he-
diondo cadáver é o nosso corpo vivo ?
pupilla as imagens mais formosas — a luz do Céo, o canto das aves, o aro-
ma das flores, os beijos da viração — tudo que nos cerca, nos aquece,
nos affaga ; e nós nada sentimos !
Ah mas
! o peor de tudo isto são as estátuas de dòr, inteiras, erectas,
automáticas, com o olhar vago, a razão oscillante, o anceio indefinível,
d'essas creaturas que são pães, filhos, amantes desses montões de carne
c de ossos, informes, podres, cremados !
Sim, morreram muitas mil pessoas, mas já não vale a pena choral-as.
Trata agora el-rci de ser a Vingança, já que não pôde ser a Pro-
videncia.
A Historia elogia o monarcha c os mortos arrumam-se, longe da nossa
vista, entre torrões de argilla, sob o pó do esquecimento.
Os algozes irão em grande numero fazer-lhes companhia, ou já, que
não ha perigo de que as victimas os reconheçam, ou mais tarde, quando
o cutello physiologico lhes rematar a existência.
Imaginemos, portanto, como encontrámos o coração de Sarah
E como estará o de sua irmã, que vimos arrastada no templo á hora
do seu lucto, e que talvez nos represente n'esta galeria de victimas, que
definem a grande tragedia manuelina, uma das espécies que mais nitida-
mente explica o cannibalismo humano.
Procuremol-a.
As denuncias feitas em Aviz logo apontaram como maiores responsá-
veis dois padres de S. Domingos; o principal — Bernardo Aragonez.
28 MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO
rei de que era impossível adiar a creação d"um tribunal, que julgasse
principalmente todos os crimes de heresia. A ausência d'el-rci, a peste, d
fome •
O coração ':
O coração que o reserve ella para quem se contente com
ião pouco . .
mento.
Já conscguii^a insinuar-se no animo dalguns fidalgos, e chegou a sonhar
MYSTERIOS I>.V INQIISI l AO. \ Ol . 4. TOL. £•
:
3o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
com uma viagem a Roma, na companhia de João Sotii, que toi mais tarde
bispo de Saphim.
Ao planear-se a matança de S. Domingos, elle declarou a João-
Moucho:
—A família do judeu novo ha de ser dividida em partes eguaes. Tu
tomas conta do velho Lopo, que a casa d'elle é farta de jóias e do-
cumentos; Ignacio, de Sarah, visto querer apoderar-se de Pedro, e eu fica-
abstracção tão grave! parecia viver sem pensar e sem sentir, os braços
cabidos, cabeça inclinada, olhar errante e vago. . . Um \erdadeiro cadáver
\\\o.
— Não sei.
— Está viva, porque lhe senti o coração palpitar junto do meu peito..
— Mas, então?
. e partio pela Íngreme ladeir>i
: :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Pai'ece
• dormir quasi sempre... ou pelo menos não quer vêr-me,
porque poucas vezes abriu os olhos. .,
— Por esta!. . . disse Ruy, fazendo uma cruz com os dedos e chegan-
do-os á bòcca; juro que me contentei com o abraço ensarilhado nas rédeas
•do governo.
— Bem, pane, c, haja o que houver, é certo que ha quinze dias m.e não
falas nem me vcs.
— Temol-a travada, frei Bei^nardo?
—^E' bom esperar tudo... Deus nem sempre agradece a quem o
serve. . .
MYSTERIOS DA INOinSICAO
feitio para fazer a corte a estas creaturas tentadoras, que só querem can-
tigas de menestréis e requebros de cortezãos. . . Ora adeus, os homens
são todos eguaes. .
A rapariga abriu mais os seus grandes olhos, que brilharam com ex-
tranha scintiilação por entre as sombras do quarto.
O Aragonez ia a approximar-se do leito para que ella o reconhe-
cesse. .
MYSTKRIOS DA IN(Ji;iSl(;ÁO 33
Teria medo da pobre ..louca ? Não, decerto, que nesse dia maldito,
no meio de tantas tragedias, muitos desgraçados perderam a razão,
olhando os cadáveres dos seus, e ao serem envolvidos no fumo das to-
i;ueiras !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
uo amor e no ódio!
seus, como Deus, por vezes, fizera aos Ímpios com os raios celestes
Tinha a certeza de que ella o odiava, por elle ter sido o assassino do
velho Lopo, e ella confundia-o com o assassinado ! . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
,Mas, se não era sincero nesse pedido, como poderia elle encanar a
Deus ?
Todos estes pensamentos o assaltavam, o agitavam; tremia por fora
e por dentro !
mas o olhar parecia litar um objecto próximo e vèr uma estrella muito ao
longe. .
— 1^' preciso acabar com isto, pensou elle ; terrores pueris são a ver-
gonha da minha raça!
\\ limpou com a manga do habito o suor que lhe corria na fronte.
Encheu-se de coragem e, com voz trémula, dirigiu-se áquelle extraor
dinario espectro:
— Deborah, não tem medo de mim?
Não obteve resposta; d pobre louca \'oara o espirito por momentos,
para as afastadas regiões dos sonhos, e repetia baixinho os nomes do pae
e da irmã. .
feras.
! : . -
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
O
.
confiado, da louca
O Aragonez approximou-se então, mais calmo e
vagamente, e chegou-lhe aos lábios a cruz mar-
que o fitava absorta,
e amarellada imagem de
chetada a que estava presa uma pequena
Christo.
Dehorah o seu olhar, de vago e rutilante, tornou-se
fitou a relíquia, e
que' as lagrimas lhe cahiram dos olhos, deslizando pelas faces como pela
tVeste hymeneu, que não chegam até aqui os clarões piedosos da ci-
já
dade.
Voltando, foi-se ajoelhar junto do leito.
— Beija, Deborah, beija o Deus da minha e da tua fé, que não tenho
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3;
por bandos de miseráveis nas arcas das famílias — assaltos ás portas e ja-
38 MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO
pécie.
Não quererá a Lua, que assistiu á profanação, contar o que viu. E até
provável que ella, de espanto e horror, velasse o rosto pallido com algu-
vagem e brutal.
castidade : ! . .
Sahir do berço tão pura como a mãe de Deus, e guardar essa pureza
com recato e zelo, através da infância e da adolescência. . . sentir a alvo-
rada do amor guardado e defendido, pelo pudor, que é a sentinella natu-
ral, e pela educação, que é a sentinella da sociedade... ser virgem no
corpo c no espirito — no corpo convertido em sacrário, no espirito, en-
volto na confiança innocente. . . não poder aifrontar um olhar cubiçoso, sem
que os olhos se cerrem ou se desviem . . . sonhar mvsterios que a rubori-
sam quando desperta, como se os próprios sonhos fossem uma ameaça á
honestidade... pedir aos linhos do enxoval e aoS estofos dos vestidos a
defesa das próprias graças, o segredo dos próprios encantos. . .
gens é aquella força vibratil que esconde Suzana entre as plantas d'um
lago e arremessa ás aguas as nymphas de Camões !
!
iMYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3o
se lance o seu corpo delicado sobre o bi-azeiro ardente : mas o lei-ro náo
poilue, mas o fogo não insulta ! . . .
Ter medo, ter pejo, ter nojo, e não saber defender-se com os pés, com
as mãos, com os dentes!. .. E presa, e maguada, e afflicta, pedindo soc-
corro que não vem, pedindo piedade que não se conhece, ora gritando com
\igor, ora chorando com desalento, emquanto o verdugo, que parece que-
rer matal-a, lhe diz palavras roucas, que são insultos, e a criva de beijos,
meiro I
ques.
— Kntão, ainda agora, frei Bernardo :
mal, esquecido aqui toda a noite, quando la por baixo havia tanto que ver
e que gosar
—O movimento segue :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Bem, dize.
— Era conveniente que sahisse de Lisboa o mais depressa possível.
Observei na cidade, esta noite, alguma coisa que não deve tranquillisal-o.
—-Depressa. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
O frade empallideceu.
— E gente armada.
— De chuços ?
— Não, disse Bernardo saltando rápido para o cavallo, são lanças 1...
— Que tentaes fazer, frei Bernardo? As lanças que enxergues rodeiam
o muro da arrifana, e estão perfeitamente dispostas para o assalto. Aquella
porta, por onde pretendeis sahir, vae ficar ouriçada de ferro inimigo.
— Conheço a situação, mas não sou homem para hesitações. Quando
o cerco é apertado, torna-se inevitável a sortida. Como estamos sendo vi-
giados, entra em casa, apodera-te de Deborah, e foge com ella pelo cami-
nho da mina.
Entre a gente d'armas não ha cavalleiros, e o teu baio não é christão
novo; sabe cumprir o seu dever.
— E a mina estiver fechada para
se o lado dos trigaes :
— Sua alteza assim o quer, não para vos embaraçar, mas para vos
defender, respondeu um dos guerreiros, approximando-se do frade e pos-
dado cargo especial a seus legados de velar por minha pessoa, quando
\'ou acolher-me ao mosteiro da minha ordem.. .
MYSTERIOS DA /NQUISIÇAO
bem cedo inutílísado. estavam alli para olVerecer o seu concurso e a sua
dedicação!
\ creadagem das casas mais nobres, armada por seus amos, organí-
sava troços de guerreiros e envia\ a ao go\ ernador as suas improvisadas
bandeiras. Os operários da Ribeira, commandados por seus mestres, e
armados de ferramentas de seus olficios, acclamavam D. Manuel e \ inham
pedir barcos que os transportassem á outra margem do Tejo para irem
em busca do rei.
clamou
— A' morte, á morte! ao íogo o assassino!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Abriu-se então uma das adufas do andar nobre e Avres da Silva, de-
bruçando-se:
— Povo de Lisboa! Tranquillisae-vos. Vae começar a justiça d'el-reil...
Acclamando novamente D. .Manuel, a multidão dispersou, justificando
com aquella esperança o cançaço e o desânimo dos algozes e das victi-
mas
Que terrivel mysterio c a alma popular Como ella se iníiamma, e I
como ella se gelai Como ella nega num momento factos que vê, e acre-
dita e acceita, em seguida, promessas que mentem 1
Para se avaliar a
promptidão das providencias adoptadas pela Coroa,
bastará citar, que as cartas régias, que a ellas se referem, teem
a data de
24 e 27 d'abnl de i5o6, o que se pode verificar consultando o Appeiuiix
a alçada do Porto; pela sedição de 1757. São ambas datadas
de Évora,
isto é, foram escriptas quando el-rei vinha de .Aviz para Setúbal. A ma- . .
E' certo que a negligencia d^ellas foi castigada. .Mas, que castigo me-
recia o afovlwiado rei que, sendo absoluto, tão
mal sabia centralisar os
poderes, ou tão mal os delegava, quando os seus
interesses o afastavam
da corte, onde as suas fanáticas ordenações haviam
de fomentar taes
crimes e taes revoltas? E, comtudo, o povo acclamava-o,
porque el-rei ia
fazer justiça d"alli a oito dias, mandando encerrar os padres facínoras na
torre de .\lconchel.
Os terrores esmoreceram, quando o clero e a plebe se cancaram da
tacanha, e o vento foi espalhando, pelas ruas e pelo ar, as cinzas das fo-
gueiras. A Inquisição estava estabelecida no animo publico, e el-rei D. Ma-
nuel, que legou a D. João III as responsabilidades de tão negra instituição,
pode bem honrar a sua memoria com o titulo de Pnmcn-o Inauhidor de
Portuixal.
El-rei D. Manuel tinha então 37 annos de
edade e já contava 1 1 de
reinado. Estava na força da vida devia ter a experiência necessária para
e-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
A sua boa estrella irradiara sempre, sobre a coroa que elle recebera
das mãos de seu cunhado, a luz que mais a fazia brilhar e resplandecer,
4G MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
"\'eiu dclle Pêro, conde de Idanha, que não logrou corrigir o fanatismo
brutal do yq\ piedoso; mas elle, omestre e oguia áo grande ve\, donde veiu?
MISTÉRIOS DA INQUISIÇÃO
padas, das que commetteram crimes e das que não souberam punil-os. . .
— Pouco mais ou menos. Digo cem. porque quero que trinta sejam
inulheres. . .
judeus. A guerra a cUes, quero eu fazer, que sou senhor e juiz do que ao
reino é mais propicio. Depois, nestes negocio.s de religião, apraz-me sem-
pi-e regrar meus actos pelos interesses da egreja e do Santo Padre. La-
vrarás uma carta régia mandando que a dcxassa seja enviada para K\oi\i.
ao provincial da Ordem de S. Domingos, afim de que elle proceda, com
rigor, e segundo os costumes, para com os frades qiie D. Aharo en\iai'
a presença delle.
— E, senhor, nada pensaes a respeito dos mosteiros ? Notae, senhor,
que. por mais errado que seja o caminho do povo. está provado, que os fra-
des abusam da sua inikiencia sobre elle. K' meu parecer, e, em \osso
.
48 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
caso, seria minha acção, que a devassa deveria começar pelos frades do-
minicos, decretando-se. desde já, a interdicção do templo. Vossa Alteza
com taes aíTcctos acolhe ao seio as viboras, que mordem no reino e na
Sania Sé. Podeis e deveis ouvir Pedro Correia, que é homem de bom
aviso e muito sabedor de factos e intenções. .
deverão ser punidos primeiramente. K" bom que se saiba que poucos são
diçfles e \ crgonhas. Os christãos novos são obra vossa ; de\ eis conscrval-a
e defcndel-a. Acautelae essa gente de novas crueldades. Deveis lembrar-
vos dos pedidos que vos fez a fa\or desses desgraçados. Missa mãe c
— Falo como um \assalIo, e]ue tem a \erdadc para sen amo como me-
lhor lisonja e mais leal submissão.
— A que tramas referes, que tanto abalam confundem:
te te e
senhores.
— Ias, pois, dizendo r . . .
5o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
MYSTERIOS DA INÍJLISIÇAO
— Quero cem. pelo menos, não esquecendo as mulheres, pois sei que
também cilas enti^aram nos malefícios...
— Senhor, \im a vossos pés pedir-vos mercê de justiça para mim.
que me \\ desprovido de gente e de força para evitar tamanho damno.
— Descança; far-te-hci justiça, como é mister, logo que tenhaes cum-
prido as minhas ordens de hontem. .
— Quasi tenho notas sobre o desfòi"ço, que pode ser uma razoável
\ingança e que ha de consolar as \ictimas, senhor.
— Achas poucii: I
MYSTERI05 DA INQUISIÇÃO
isto:
«... e lhe promettc não fazer mais, contra elles, algumas ordenações
como sobre gente distincta c apartada.»
Estás satisfeito agora?
— Senhor, por vós, por elles e por mim \os agradeço, disse António
Carneiro, beijando a mão del-rei.
E el-rei, intencionalmente:
— Por mim, em primeiro logar, que não esqueci o teu conselho e pre-
^enção. Não quero que o aliar fique mais alto que o throno. .
mos sós, como fomos á Africa e á índia. .\ Por isso conto com o governo
de Roma, que, para salvação dos logarcs santos, reunirá os príncipes chris-
tãos em tão generoso empenho.
. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
taleza.
— Abracaes o mundo num só olhar I Quantos pontos da terra \os fi-
carão occultos Acabae o vosso castello e deixae Jerusalém, que não po-
I
dereis ir lá com Diogo dAzambuja, para erguer novo forte, nem com Gar-
cia de Mello, que, apesar de capitão das galés do mar, não conhece os
segredos das terras do crescente.
E depois, com modo humilde :
— Mas, meu senhor, por que, em vez de deixar o espirito nesses de-
vaneios, não o concentraes nos graves problemas que tão de perto nos
ameaçam ? E' tão grande o nosso império d'além mar, que precisaes pen-
sar n'elle a todos os momentos.
— N"isso me occupo, como sabeis, e peKjs melhores capitães deste
século tenho espalhado meus cuidados.
— Grandes, sim, elles são e dos maiores, e, comtudo. nem sempre
teem logrado a vossa confiança e estima. Quanto mais alargardes as em-
presas, mais sentireis a mingua de bons capitães.
— E' rica esta nação de gente fera na guerra e sábia no amanho das
províncias, acudiu D. Manuel.
— E. comtudo, vossa alteza a vae gastando mais depi^essa do que
poderá desejar a \ossa brilhante esii-el!a. Digo-vos, senhor, que deveis
lirmai' as vossas conquistas e os vossos planos, como firmaes as \ ossas
fortalezas . .
— Tens razão para queixumes, tu, António Carneiro, que sempre ou-
viste minhas confidencias e a quem sempre attendo ralhos e conselhos ?
— Não falo por mim, senhor, que, acima de meus talentos, me tendes
dado estima e valimento; falo por Vasco da Gama, por Duarte Pacheco,
por Francisco d'Almeida, por Atfonso dWlbuquerque. gi^andes servidores
de Portugal e vossos, c de quem tantas \ezes vos tendes inju^•t.^mente
arreceado.
El-rci carregou o sobrViJho e puxou com fòi^ca as melenas, cujas ex-
tremidades mordeu . .
54 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
colho e pago para serviço da religião e do throno, mas nem a uns nem a
outros mantenho ou quero, quando a sua influencia e valor podem ser um
perigo para a integridade do meu poder. . . A esses que referiste não cas-
sachar, por causa das raizes impróprias, a terra dos meus dominios. Cha-
mas a isto ingratidão ?
que, apesar do trato fidalgo do soberano para com ellc, era possível al-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 53
— Não; quero lembrar-vos que cidade tem razões para estar a descoii-
moral e a religião.
l-^l-rei ia relirar-se. .
Pela porta opposta aquella por onde saliiu D. AUinuel. entrou Ru\' Vas-
ques, com passo largo e rápido, e, depois de ler percorrido com os olhos
todo o salão, encaminhoLi-se para o ministro de D. Manuel e cumprimen-
tou-') com um mo\ imento de cabeça.
\i\()
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Nem uma coisa nen^i outra; quero simplesmente notar que pouco
imporia a ascendência, quando ser\imos a causa do po\"o.
— Do povo de Lisboa ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5/
— Parecc-vos pouco :
— Diz-se christão Pedro Soares, mas ninguém o cre de tal fé. Todos
os corredores que se aprestam para o ser\ico del-rei em terras de gente
moura o viram xolteai' de preferencia em afans de moui"os, e não de fieis.
mos projectos. Pedro Soares, não contente com a posse de Sarah, andou,
cm guisa de cspiãf). nos ai^redores do impro\ isado abrigo. Pela mina que
abre nos trigaes d^i ("iraca. e que vae ter a uma casa da arrifana próxi-
ma, logrou chegar até Deborah, a quem roubou. . .
58 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Diga-mc, Ru\ Vasques, não foi nessa an^ilana que a frente de D. Al-
\aro afincou, com inesperada \isita, frei Be)"nafdo Aragonez ...
— Tal ouvi dizer, mas não dei fé . . .
— Está bom, está bom. Fizestes bem em vir, porque inteirastes a his-
toria m3'steriosa da fuga dessa donzella... Dizeis, pois, que Pedro Soa-
res foi quem pôz a salvo a rilha de Lopo... Faltou este avisamento na
missiva de Pêro Esteves. . . Vou devohel-a para que clle a inteire. . . Es-
perae um momento.
Ru\' não comprehendia bem o que se esta\ a passando.
António Carneii^o \ibrou uma forte pancada niima lamina preciosa, bu-
rilada nos cantos de bastiães de alto la\or, e logo. á porta do salão, sur-
giu o pagem do costume.
— Diga a esse homem que acompanhou este /?\íi7/<í'o que \enha aqui
para negocio urgente.
— Perdão, senhor secretario de estado, eu \\m sósinho...
— Não me chameis secretario; n'cste momento sou apenas escri\'ão de
puridade. . .
fino,voou nos braços de Pedro Soares. E' ladino o rapaz, e tanto que,
melhor cpe os teus aguazis, descobriu uma bella entrada que Ruy Vas-
ques tinha destinado para sabida.
E, apontando para Ru}-, disse a Pêro
— Acompanha-o, hoje mesmo, até E\-ora, e entrega-o, da minha par-
te, ao licenciado Manuel Affonso, do desembargo d'cl-rei, c dize a este
que, desejando auxilial-o, lhe envio e recommendo um por conta dos cem
que a justiça del-rei julgou necessai-ios para dcsaggra\o do seu poder e
da honra do reino.
Pêro Esteves, voltando-se para a porta por onde entrara, gritou :
— Gente I
MISTÉRIOS DA INQUISIÇÃO Sq
saz o recommendam.
—E ás filhas de Lopo, lembrou o ministro, que destino lhes havemos
de dar : jVplacar ódios é de boa arte em quem governa. Se ellas, para
curarem as desgraças que soIlVem, qui/essem retirar-se a qualquer mos-
teiro. .
e proceda com relação a christãos no\()s, mas que não perca o meio de
evitar conjuras contra o poder d'el-ix'i. Em maio deve liquidar-se o traba-
lho da justiça em Évora. El-rei precisa de voltar a sua attenção para os
negócios do Oriente. Aftbnso de Albuquerque vae mostrar seu brio e seu
valor. Vae, pois, Pero Esteves, e volta cedo, que, se a corte se demorar
em Setúbal, terei necessidade de ir a Lisboa para prevenir novos confli-
ctos e novas rebeldias.
Pcrcj Esteves cortejou e sahiu.
6o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 6i
firmes que a luz da lâmpada, mais triste que a cidade ás escuras, a re-
O coração sorve quasi sempre as nossas próprias lagrimas para que ellas
não provoquem, ao mostrarem-se, as lagrimas dos outros.
.\quellc silencio vinha d'essa dedicação.
Todos estavam calados c todos conversavam com vivacidade... lá
dentro, na consciência, onde a voz é muda, a luz sem reflexo, a dor sem
pranto . . . Por isso, ellas ficavam tantas vezes, paradas as mãos, parado
o olhar, quasi parada a respiração, a fitar a chamma da candeia ou a ima-
gem do oratório ! E, ao despertarem d'esse sonho de momentos, repre-
hendiam a sua abstracção egoista, e logo procuravam o olhar das compa-
nheiras, para lhes enviar um sorriso, e para dizerem qualquer expressão
consoladora.
Pretexto havia sempre para se dizer alguma coisa; mas era só um,
sempre o mesmo, e a todas três acudia. .
fn MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
gem. . .
— Sim, sim, ainda hontem, já bem tarde, sahiu de casa, e foi. com
gente sua, emboscar-se no olival próximo.
—O que elle nos tem recommendado é que não abramos a porta, se-
tão meiga ? ! Conheço-lhe os passos, quando elle vem muito ao longe ! En-
xergo-lhe o vulto no meio das mores sombras . .
—E tu, Deborah ?
— Eu, senhora, ouço-o sempre, até quando elle não fala! Posso en-
ganar-me, sim, posso enganar-me, que até já muitas vezes tenho sido vi-
MYSTERIOS DA INQDISIÇAO 63
— Não nunca
; I
— Queres dizer ?
nos mortos . .
— Tens um segredo ?
para amar. .
— Tens visto, Sarah, nos cactos da tua açotéa. fulgurar, á luz do sol,
uma flor \'ermelha como o pudor das virgens, de pétalas fortes como
pontas de lança, e, num momento, um sopro, uma geada, dobral-a na
haste, escurecer-lhe a côr, e arremessal-a sob as estevas do almargem ?
64 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Porque vieste tão tarde, Pedro? Não te lembras que estamos re-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 65
a Oriana, formosa
Oriana, minh'alma c tua
mais da lua,
que assim te creou donosa:
. . .. . . . .
66 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 67
Pedro continuou
—O miserável confessou todos os seus crimes. . .
— Muita !
E Sarah insistiu
— Roubou tanto, que elle não pode restituir, c não se pode ganhar
novamente ?
68 MYSTERIOS DA ÍNQUISIÇAO
infamante ?
)á estavas perdida. .
E
Pe4fo, cançado de pensar, adormeceu já de madrugada, tendo-se
esquecido de sonhar com sua mãe, como era seu velho costume sonhando ;
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 69
tidamente aos ouvidos d'elle ! A's vezes, havia silencio absoluto, mas elle
apprchensivo. .
Por isso, elle se levantava, e com passo subtil percorria o seu alber-
gue, escutava ás portas, examinava a rua, e voltava de novo, mais tran-
quillo, a cerrar os olhos e a recomeçar os sonhos!
Em algumas noites levava mais longe as suas precauções — accendia
um archote e subia ao terraço, e lá de cima, agitando a chamma no ar, o
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. O.
: . .
70 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Por que ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
zas, mas ficavam os outros dois algozes, para quem não ha sentenças que
os anniquilem: —a sociedade, que mata com os seus preconceitos; a con-
sciência, que mata com os seus escrúpulos!. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
d'esse segredo ?
pensando:
— Vae morrer, minha Deborah, aquelle que te roubou o corpo, e eu
quero viver para te ganhar o coração. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 73
estudar as pessoas com quem vivia, que lhe minguavam as forças para
profundar o próprio coração.
Por momentos se julgava feliz, sem mesmo saber por que; e, logo
uma nuvem de tristeza o envolvia, como se tivesse os mais negros pre-
sentimentos.
Eira novo, sim; mas era um homem — braço e cérebro lhe bastavam
para as luctas da vida, contra os crimes do homem, e contra as brutali-
Que affecto era esse que a innocente Sarah lhe estava dedicando com
tanto mimo ?
Pedro tinha uma alma piedosa, e Deborah era a mais infeliz das três
creaturinhas que o rodeavam. Teria elle mais compaixão por Deborah, e
74 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Por que o amava demais para se lhe offerecer tão infeliz, ou por que,
effectivamente, a gratidão, que é um dever, não se pode confundir com
o amor, que é uma devoção ?
Para haver orgulho, nada ha como ser muito feliz, ou muito desgra-
çado !
— São basta
tuas, e . .
Não te zangas ? De Deborah. Isto não quer dizer que não goste muito
d'ella, e que não te agradeça as flores que lhe dás.. mas preferia que .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
—-Isso não; Deborah é muito tua amiga. . . Ku bem o sei! Não por
. . .
— Alegria ? Pois não é certo que Deborah está sempre triste, quer eu
chegue, quer eu me ausente.
— A alegria não se descobre em sorrisos. . . nem só em sorrisos, nem
só em lagrimas. . . Quantas vezes eu sorrio, e brinco, tendo o coração tão
oppresso... Acredita, Pedro; nas lagrimas d'uma mulher ha muitas ve-
zes intimo prazer. .
amor que nos rodeia, os carinhos da nossa casa, a tua bondade, Pedro,
como se eu tomasse o mais benéfico elixir, me dão saúde e ânimo, espe-
ranças c alegria . .
—-E' que Deborah. Eu não sei se digo uma creancice . c que De-
. . . .
borah, ou ama alguém que morreu, ou alguém que não existe, ou alguém
que lhe foge . .
— Pois bem ;
promettes guardar segredo ?
.. . . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Prometto.
— Deborah ama. .
— A quem ?
— A Deus!
— Foi que disse
ella te ?
— E tu comprehender-me-hias ?
— Experimenta. .
— Que offende
ella Deus, por a não querer amar os homens ... in-
terrompeu Sarah.
— Sim, tens razão — dize-lhe isso, e ainda. . .
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 77
ladino dos fracos e dos bons — uma grande alma de trovador, um forte
braço de athleta, cujo olhar supplica e manda, cujos lábios sabem insultar
78 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
que hei de conhecer, reserva para Deus o amor que tem a esse ho-
mem.
— Acabemos com isto, Sarah, e desçamos para tomar a nossa taça
de leit<e, fresco como a tua mocidade, branco como a tua alma.. . disse
Pedro, levantando-se.
—
Não, Pedro. Peço-te um momento só. Não dormi toda a noite, e,^
se pouco dormi, muito sonhei. Purificou-se-me o espirito n"esses sonhos.
Resolvi aproveitar estas horas da manhã para vir dizer-te, a ti! Pedro,
eu! Pedro, que é preciso salvar, pela segunda vez, a nossa querida irmã.
Conheço a tua bella alma, meu irmão, e sei de quanto és capaz. . . Em-
bora faças um sacrifício, tu, que já a salvaste do inferno, salva-a agora do-
Céo. Deborah pertence-nos, e ella vae fugir-nos para o Céo, pelo portal
sombrio d'um mosteiro. Pedro, pelo affecto que me tens, pela vida de
tua mãe, pela alma de meu pae, por tudo que mais respeitas e queres,,
pelo teu futuro, pela tua gloria, de joelhos te peço: ama Deborah!
E Sarah ajoelhava deante de Pedro.
— E pedes-me que a ame.''. . . Tu, Sarah?!
— Eu, sim; Deus, que e lê no meu coração, está vendo, n'este mo-
mento, quanto me orgulho d'esta empresa!. . .
amava, mas a admiração por aquella nobre creaturinha, que lhe falava
daquelle modo, dominava-o a ponto de ficar sem alegria, sem tristeza e
sem resposta.
Passados curtos momentos, que Pedro aproveitou acariciando a ca-
beça de Sarah, disse-lhe elle, aconchegando-a a si:
Deborah não acceitaria o meu amor — não quereria ser minha mu-
. . . . . .
— Não me digas isso, Pedro, que me affliges. Pois é possivel que haja
alguma mulher que não acceitasse, alegre, radiante, a confissão do teu
amor ?
— Todas as mulheres se julgariam felizes? perguntou Pedro, collocando
Sarah bem de frente.
— Todas: menos eu, emendou, baixando os olhos... Quero-te para
meu companheiro n'esta gloriosa tarefa de salvar uma infeliz. Depois,
quando forem muito felizes, eu sel-o-hei também.
—
Bem, minha adorada irmã; cuidarás commigo na sorte de Deborah.
Vigial-a-has, de dia e de noite, e de tudo que vires e ouvires só a mim
darás parte. Precisava de alguém que acceitasse essa tarefa, e julgava-te
moça de mais para tão melindroso mester. Nem eu queria inquietar a pla-
cidez da tua alma. Agora o caso é outro; estás uma mulherzinha com
todos os encantos e virtudes. .
que te olfereci ha pouco, fresco como o teu rosto e branco como a tua
alma. .
So MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Sarah, disse Pedro, serenamente, não pode avaliar com rigor o al-
cance das tuas palavras. Eu, sim. Terei, pois, de te dar alguns conselhos,
que me parecem conformes ás difficuldades da tua situação. Promette-me,
pois, minha irmã, que nada resolverás nem farás, emquanto eu não vol-
E partiram . .
íMvsterios da inquisição
— Pois bem vou ser muito parco ; em palavras e muito frisante nas
perguntas. Promettes responder-me com a voz do teu coração ?
— Juro-o . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Mas, juraste-me. .
Se algum terno sentimento habita meu peito, não pode ser amor é re- —
ligião.
dos os anceios da sua alma. Fica, pois, sabendo, meu irmão, que a nin-
guém amo, nem quero. .
—
Mas se alguém te amasse, Deborah; se alguém, conhecendo a tua
vida e o teu coração, te dissesse, sincera, apaixonadamente, que te queria
para sua mulher ?
I
. : . : . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 83
E partiu. .
!
III
sando os corpos vencidos dos nossos soldados e villões! A' idéa da inde-
pendência se associa, na historia da princeza alemtejana, a idéa das liber-
O nome hespanhol dado a essa torre é indicio de que ella devia ter
sido construída cm tempos em que toda a Península esteve sob o dominio
do mesmo povo invasor. . .
86 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
des tivessem sido presos n'uma das torres que fazem parte do palácio an-
nexo ao convento dos Loyos, fundado pelo i." conde de Olivença D. Ro-
drigo Aftonso de Mello. Este fidalgo viveu no tempo de D. Affonso V, de
quem foi guarda-mór e de quem recebeu também a mercê de governador de
Tanger. O conde de Olivença falleceu em fins do século xv, e deu ori-
Pêro P^steves, que de Setúbal partira para Évora, com instrucçóes es-
peciaes del-rei, entrou naquella cidade, com a sua gente e os dois capti-
vos, ao principio da noite.
O calor e a poeira fatigara demais, durante a jornada, a sombria ca-
ravana.
Era indispensável ultimar aquella grave missão sem esperar o dia se-
guinte. Os frades tinham pressa de entrar na sua prisão. Affligia-os os . .
nham ao caminho vel-os passar, ou que se debruçavam dos muros para lhes
arremessar pedras ou mãos cheias de terra. O Aragonez affrontava a inso-
lência, e chispava o olhar sobre os aggressores.
%^
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 87
— Beba, disse Pero, mas com cuidado, que tenho de encregar-vos in-
teiro e vivo, e sois pesado de mais para irdes sobre as lanças, em guisa
de liteira.
— Hontem talvez que tivésseis razão; hoje, porém, muda o caso de fi-
gura. . . Ides ser conliado aos cuidados de Manuel Aftbnso, que anda com
alçada mór n'esta comarca... Elle que depois vos de o destino que lhe
aprouver.
Frei João Moucho, mal entrou na cidade, ergueu a cabeça, como se
— Para ver o que? se a noite está escura, que nem o Arco de Sertó-
rio serias capaz de ver desenhado no fundo negro do firmamento.
— Assim — tu nada vês, mas
é eu vejo. Vejo, ou adivinho, esta nesga
de céo, a primeira que meu olhar alcançou, logo que nasci. Olha, acolá,
e indicava com o dedo uma luz distante, deve ainda existir a casa de meus
pães, velha, feita em ruinas, no meio d'algumas cabanas, a cujo fogo me
aqueci tantas vezes! Ai! Aragonez! parece-me que ainda estou na minha
infância, a dois passps do meu berço!. . .
— Pois, meu caro Moucho, se sabes onde fica o cemitério, olha antes
para clle... E's bem feliz! vens acabar onde principiaste... Fica-me muito
longe o Aragão! Não te \erei a cabana, porque nos espera a torre, mas
. . .
88 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Tenho, sim.
— Não blasphemes, desgraçado, que a culpa nossa.. foi .
— Nossa, por que, imbecil Não tivessem faltado os que se diziam de-
?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 89
boa. Tal fizestes por vontade própria, ou por mando de vossos superio-
res :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
escada muito nobre, embora estreita e íngreme, que desce para o terraço
interior. Ora, cá estamos!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
mal rompe a manhã. Pelo que diz Manuel AtTonso, estão aqui estão nas
profundas do inferno. .
martyrio.
Durante alguns momentos ainda se ouviram, na escada e no terraço,
vozes que se afastavam; depois o mais completo silencio, apenas inter-
rompido pelos passos das atalaias.
O Aragonez espreitou por um^a das frestas e viu que a cidade dormia.
O arco de Sertório erguia-se, como as torres dos mosteiros, diim
grande mar de sombras . .
A' outra fresta, voltada para outro lado, foi o Moucho encostar a fronte
encandescida. Ambos avistavam a praça onde estava o nicho de Nossa
vSenhora, que presidira á execução do duque.
Ambos se detiveram a fixar a luz da lâmpada, que se balouçava n"esse
sinistro logar!
Um julgava estar vendo, nas sombras projectadas por essa luz, as- tá-
93 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
era de esperar. Essa raça, que nos persegue, é tão boa como a que per-
seguimos.
— Nós não matámos a sangue frio, de vagar . . Foi uma vertigem I
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 9^
sua cella.
pois de ter, com o habito que despiu, tapado a fresta mais próxima. O
cárcere continuava agreste.
—-Não durmas em pé, desgraçado; fazc como eu, e livra-me dessa
lançada fria que me faz tintar.
— Também eu estou tremendo, mas não é por causa do ar da noite. .
q4 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Oh, caia-te, cala-te — juro que estarei mudo, até que o sol afugente
estes terrores.
— Não podemos salvar a vida. Isso está assente; devemos attenuar o
martyrio, percebeste ?
então que depois nos apertassem o arrocho ou nos torrassem os toros, que
nada soffreriamos, talvez. .
— Já esse supplicio?
viste
— Quantas vezes! aqui, em Santarém, em Lisboa; em Hespanha, na
Itália. .
— Que horror
— Horror porque que nos espera; mas deves lembrar-te de
é a sorte
nalha devoram-se
— Sim, tens razão: nós fomos instrumentos de tortura e agora despe-
daçam-nos... E' justo.
— Vamos ao que importa; tudo me diz que teremos a pena mais
. . :
grave, porque nos concedem as maiores honras. Pretendem fazer nos che-
fes d'esse movimento. Se a tua vaidade não sotVre, resignemos tal cele-
rei que mal avisado andou ao firmar, contra o conselho do seu secretario,
as prescripçÕes da provisão de 97. E' necessário que a intriga alastre, e
que os superiores da nossa ordem sejam envolvidos também nas culpas de
que nos accusam. E" melhor pensar n estas coisas que tremer de medo
em face do patíbulo. Defcnde-te e defende-me. .
lho, a scintillar lá fora, elles ainda tinham os olhos pregados n"essas fen-
das abertas nas paredes daquelle sepulcro.
Quando soaram na torre da Sé as quatro horas, os dois miseráveis
adormeceram, afinal.
Que terriveis sonhos deviam ter sido aquelles que estavam tah ez a repro-
— Larga-me, Lopo, larga-me, dizia cUc — que não fui eu quem te quei-
mou.
O Aragonez dormia mais tranquilio, e, como se falasse em segredo,
fernal. . . Foi sonho, foi. . . O calor que eu sentia nos pés e o clarão que
me enchia o craneo, vinham daquelle disco celeste, que afugenta o frio da
morte e os espectros da noite. Foi sonho, foi. . . E quem me diz que não
c um sonho tudo isto que se tem passado ? ! Se este sol fosse uma benção
do Céo, um perdão de Deus ? ! Um raio de luz é o que mais deve pare-
cer-se com um raio de esperança. Por que não ha de o Céo estar contente
com a minha obra? Pois se Jesus é o filho de Deus, ha de o empyreo
condemnar quem perseguiu os que negam Jesus ? Sim, continuou elle,
nunca! Mór iniquidade seria que um povo ficasse impune, o povo que ma-
tou e pilhou, vidas e fortunas, e só eu seja punido pelo meu ódio contra
os infiéis.
gioso expulsou os christãos novos das terras do seu reino ! O que signifi-
cou isto? a guerra em nome da religião, o pregão legal, de que o meu foi
A luz que o sol me trouxe é mais que a luz dos olhos — é a luz do
meu espirito, sombrio, estúpido, acobardado. Se as minhas palavras não
tivessem a eloquência da razão, como havia de tanta gente comprchen-
del-as e obedecer-lhes ? Quem inventou o ódio contra a mouramia e a ju-
! .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
A's vezes parecia não ver claro no enredo d'um ]-aciocinio, c então,
Que o Aragonez, um vicioso, que até das paixões mais sagradas tirou
proveito para os appetites carnaes e para os prazeres mundanos, tenha a
sorte dos hypocritas contumazes, admiite-se ; mas eu, que sirvo a minha
fé, alentada pelas licções dos mestres da Egreja, e o meu ódio incendiado
nas prédicas da gente santa ! eu hei de ser perseguido e mutilado, como
se estivéssemos em pleno paganismo:!
Velho, doente, enfraquecido por vigílias e abstinências, com o corpo
macerado pelos cilícios, passo a vida a adorar Jesus, e sou, afinal, con-
gg MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
alcovas de reis portuguezes, não valem mais que esta fada dos meus so-
nhos.
E, depois, attentando no companheiro:
— Que estás tu fazendo, frade, piegas e poltrão?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Por traz d'ellc havia dois ou mais frades que de seu amo ficaram se-
dade me convidaes. á face de Deus vos affirmo, que julgo ter cumprido
meu dever, em serviço da Egreja e em obediência a meus superiores.
— Frei Aragonez, começaes por oftender o Céo e calumniar a vossa
ordem. Onde ouvistes ordens ou conselhos, com ou sem restricções men-
taes, que vos auctorisassem a sacrificar a vida de christãos novos e velhos.
—
Sabei, senhor Provincial, que estes dois frades, eu e o Moucho, nada
mais fizemos que obedecer ás indicações, já que não quereis que diga-
mos ordens, das mais altas categorias da nossa congregação. Foi-nos di-
cto, nos termos mais suasórios, que era indispensável fazer explodir o
ódio contra os christãos-novos, para que el-rei obedecesse, emfim, aos
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
n'esta visita, para que a vossa cynica indiscrcção não prejudique a ordem
que representa e que deseja acatar o poder del-rei.
— Nada vos levo, por isso, irmão; já contava com o vosso cuidado em
destruir verdades que irritariam o throno e a tiara.
— Vejo que sois contumaz no crime de que vos accusam, e que até
vos permittistes a liberdade de reprehender bulias e intentos de Sua San-
tidade.
— El-rei, disse o Aragonez, tem intelligencia fácil com a corte de
Roma... Que o diga o rescripto Papal que outorga a dispensa de casti-
dade perpétua ás ordens militares. . . Que o cardeal D. Jorge da Costa,
e que o embaixador Pedro Correia expliquem, já que não pode ser Ale-
xandre VI, nem Pio III, que viveu a vida das rosas, a Júlio II, que, de-
mais sabe manejos das ordens religiosas em Portugal, como a condemna-
ção do Aragonez e do Moucho podem parecer um adiamento ardiloso do
estabelecimento da Inquisição. Nego tudo de que me accusam, eu, que
. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
esta sentença:
— Manda frei Álvaro, provincial da ordem de S. Domingos, em virtude
dos poderes que lhe assistem, que amanhã, sobre o cadafalso que alli fòr
— Ruy Vasques, disse o insultado, que está preso, não sei onde, mas
próximo de nós, tudo contou por miúdos, para que a vida lhe fosse pou-
pada, e Pedro Soares tem o favor e o valimento de Ayres da Silva, o re-
gedor das justiças. Agora, que o desembargo vae tomar conta de nós, essa
tua façanha será averiguada e punida.
—•E's ladino, velhaco, queres suicidar-te com as minhas mãos. . . disse
o Aragonez. Assim fugirás ao mart3'rio e morrerás com a vingança a sor-
rir-te na máxima pena que me reservam! Pois enganas-te, bandido: dei-
xar-te-hei barafustar na calumnia, e, como prejuro, serás julgado, quando
não tiveres provas que me confundam.
— Provas de sobra virão do teu cúmplice e de tuas missivas planeando
o alcive. . .
— Sim, tu, não satisfeito com a morte do pae, violentaste a filha, n'uma
fúria de paixão bestial, e são os teus abraços selvagens que nos apertam
o garrote, que, por termos defendido a religião catholica, ninguém nos le-
varia ao cadafalso. . .
antes da sentença lh'as roubar! Ora vamos, muito juizo e alguma espe-
rança.
— Ignacio! exclamou o Aragonez, para que vem falar de esperança,
quem nos instigou e perdeu?
— Ninguém vos compelliu a exaggerar a aventura. Tolos, para que
foram mais dominicanos que a Ordem de S. Domingos 1
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
bulo.
— E tendes recui\sos para a empresa ?
adeus... o garrote deixa-os de bôcca aberta, mas sem falar... Que extra-
gioso, tão fanático, que tanto reclamava a extincção dos judeus, pudesse
consentir que dois servidores da Egreja fossem sacrificados aos intci-csses
dos marranos, como dizia a plebe.
No seu intimo el-rei desejava limpar o reino dos herejes que fugiam
de Castella. As suas ordenações agora eram apenas formalidades...
O partido inquísítorial era grande no reino, a rainha estava com elle,
berdade e honrarias.
Por \ezes applica\am o ouvido, por lhes parecer que ja ha^'ia choques
de lanças nas ruas dEvora.
Pouco depois das q horas, ou\iram etTectivamente um ruido de vozes,
que devia ser feito por uma multidão.
— Não ouves disse o Aragonez. ?
— E' d'este lado, é d'este lado, çrritou muito alegre o outro frade, es-
preitando por sua vez.
O Aragonez correu para o pé do companheiro.
— E verdade na praça. ; é
— E grande a multidão.
— E lanças Não vês muitas lanças
! ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Oiço, não sei o que, que lembra o martellar. O povo anda também
na faina; repara bem. .
secular.
Durante o caminho o Aragonez perguntou cautelosamente ao seu com-
panheiro :
gredo ? . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Para que ?
animadamente.
Ao chegarem á Torre, os exauctorados viram que Pedro se encami-
nhava com o licenciado para o Alcácer d'01ivença.
— Não ha dúvida, pensou o Aragonez, a devassa vae começar e De-
borah é o meu verdugo
O Aragonez começava a cançar. Fingira acreditar na morte, mas a ver-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Sim, vim ao vosso cárcere, como poderia uma vir a jaula de leões...
— E' corajosa a empresa. .
— A compaixão.
— Não é por vós que aqui venho. .
— Então ?
— Quereis vingal-a ?
— Que dúvida ?
— Também; mas do meu zelo pelo falo nome e pela honra de De-
borah . .
— Não nego. — Se isso vos alTronta, direi de outro modo — não venho
racdir-me com um bandido.
. . . . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Uma transacção.
— E confiaes em mim ?
— Então perdoaes-me ?
— repetiu o Aragonez.
Sei,
— E o vosso nome mancha o presente e o futuro da pobre menina.
— Deve ser assim. .
além da sepultura. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Ora, eu quero que eila seja minha, porque, Aragonez, nem lhe rou-
— Ainda não.
— Comprehendercis tudo; falemos, porém, em voz baixa para que o
Moucho não desperte. Isto deve licar entre nós. Morto este segredo en-
tre nós ambos, eu e Deborah seremos sós, depois da vossa morte, a
guardal-o.
— E' certo. . .
. — Mas, se a justiça vos accusar, como espero, não por denuncia mi-
nha, mas pela de Ruy Vasques, que pagará com a vida a traição que vos
fez, Deborah ficará perdida, e eu sem Deborah, porque cila, que corres-
ponde ao meu amor, repelle briosamente a minha generosidade. . .
— Não vos inquieteis com isso. Eu tenho um criminoso que vos sub-
stitue. Accusae-o, e elle confessará.
— Um de n()s, Pedro, perdeu a razão. . . A quem poderei eu accusar,
que logo não me confunda e esmague ?
— A quem A mim ? !
da mina, ao nascer do dia, e depois fugi com ella, levando-a para minha
casa. . . Eu amo hoje Deborah. Porque não a amaria já n"essa noite mal-
dita .'
Recordae-vos bem, Aragonez, estaes innocente, perfeitamente inno-
cente. . .
1
14 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
parar o vosso crime. Eu posso ! Sou novo, sou livre, e amo Deborah com
todas as veras de minha alma.
— E Deborah consentirá em que sejaes accusado r
— Deborah será forçada a ter por criminoso quem a justiça lhe indi-
car. Perante a sociedade, a honra d'ella fica-me confiada. Só eu poderei
restituir-lh'a . . .
— E vós tudo
fazeis isso contando com a minha morte ?
— Sim, conto. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E" verdade. .
— Está prompto?
— Está — vede.
— Perfeitamente ...
— Ficaes com essa prova?
— Fico; descançae, porém. . .
boa, e, pelo caminho ia pensando nas duas orphãs, que tanto desvelo lhe
mereciam.
— O que eu fiz deve surprehender, mas salvar Deborah. Nem poderá
agora recusar o meu amor, que isso seria perder-.se e perder-me ! A sua
honra está dependente da reparação que eu vou offerecer-lhe ; a minha
liberdade delia acceitar essa reparação. A denuncia do Aragonez e a mi-
nha confissão, são provas esmagadoras. Sc ella as desmentir ninguém a
acreditará. ¥. verdade que no espirito delia ficará eternamente a sombra
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
ella me ama, e como ella se sacrifica ' O tempo cura todas as chagas, e
a pobre menina é já mulher amoravel, mas não é ainda a mulher amante.
E um coração que desperta, e que ainda não teve tempo de fixar o seu
anceio. Ama-me bastante para que seja sacrificio ceder-me a sua irmã,
mas não ama menos Deborah, a quem sacrifica o seu amor por mim!
Está ainda no periodo em que a mulher é principalmente um anjo...
Também as aves, quando nascem, trazem azas, mas ainda não voam. O
coração de Sarah está perfeito para amar quem fór digno delia; Deus,
seu pae, sua irmã, eu, a velha Joanna, e a cr^eatura que amanha surgir
c a comprehender, seremos todos por ella amados com muito afíecto e
muita candura! Quem sabe que amor ella me consagra;! Pode ser o de
irmão, pois não pode ? O seu espirito vivaz faz-lhe resignado o coração.
Se não tivesse alguém a quem acariciasse, morreria de dôr ; mas, emquanto
tiver, viverá para amar com thesouros de meiguice. A alma da pobre crea-
tura ainda não tem sexo; como a das creanças, que ainda não
é decerto
tras riquezas —
quando não é nosso, só os maus o invejam, Dois ou . . .
três annos mais e Sarah encontrará algum garboso e honesto moço que
lhe admire as virtudes e lhe prenda o coração. Assim será, disse Pedro, . .
IV
o lobo no aprisco
cipitada do filho, foi ha pouco para Évora, onde foi chamado pelos ne-
gócios da justiça. . . Se quizesseis dizer quem sois. .
que é vossa gloria e inveja justificada dos melhores fidalgos d'este reino...
— Senhor, disse Joanna, por que não entraes? Modesta, como é, a casa
do Pedro Soares pode ser pobre e triste, mas é honesta e respeitadora...
— A quem o dizeis!: Nem eu correra o risco, n"aquella tarde maldita,
de me expor á fúria popular, se não soubesse que defendia a familia do in-
feliz Lopo e a vossa, nobre senhora, que sois modelo de virtudes christãs.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. l5.
. : . :
vidade e gloria.
—O meu sonho consiste em vel-o bem empregado na casa da índia,
ou em outro mester egualmente honroso e lucrativo. Pedro é o meu único
amparo. A tença, que meu marido me legou, é pequena e incerta, e o po-
bre rapaz tem de trabalhar muito nas suas licções para manter isto que
vedes, e que bem modesto é.
— António
^ Carneiro, foi dizendo o padre, com voz doce e sorriso af-
favel, descobriu, através da minha informação, que vosso filho, minha se-
nhora, serve para mais que aquillo que pedis. Pedro é homem de grandes
qualidades para qualquer missão guerreira, ou diplomática, e, como sa-
beis, nunca, como agora, o reino precisou tanto de bons capitães, e de in-
telligentes negociadores.
— N'esse caso, Pedro teria de deixar Lisboa ? perguntou Sarah.
— Sem duvida, boa menina, e mais que Lisboa ; teria de sahir da corte,
e até do reino. Quem sabe uma viagem a Roma, ou uma campanha
? no
Sudão, fal-o-hia um homem de valimento e independência. . .
— Preferia que elle fosse modesto e pobre, mas a nosso lado. . . disse
timidamente Deborah.
— Comprehende-se esse egoísmo... E, de facto, não vão os tempos
para abandonar damas de taes encantos expostas ás paixões que por ahi
se amotinam. .
rigentes hão de, em breve, fazer renascer novos e mais graves contlictos.
O judeu e o mouro são cada vez' mais antipathicos ao nosso povo, e a
questão religiosa está cada vez mais tensa e perigosa . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Ai! que horror, senhor padre Ignacio ! Pois nós ainda havemos de
ter tão cruel instituição ? . .
— Entendeis, então, senhor, que quem ama sem esperança deve aco-
Iber-se ao seio de Deus ? perguntou a mais velha das irmãs.
— Bem entendido. Onde se pode encontrar mais tranquillidade e con-
solo ? Os tristes principalmente ... O que fazem elles na meio d'um mundo
de alegres e felizes ? Os tristes e os desgraçados, que só encontram no
mundo profano quem os acolha por generosidade e os offenda com os seus
prazeres ?
! .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E' certo, pois, insistiu Deborah, que lá dentro todas as dores encon-
tram dores eguaes, todas as faltas perdão, e premio todo o martyrio ?
— Mas, atalhou Ignacio, para que estamos a falar nestas cousas? Não
são ellas que nos interessam. Deborah e Sarah teem os seus amores e es-
peram ser felizes. A Egreja as abençoará. O nosso interesse deve consis-
tir em afastar Pedro das tramas dos contrários.
— Diga-me, senhor, Pedro corre algum perigo ? Diga-o francamente,
senhor Ignacio. Quem sabe se a sua visita teve por fim annunciar-nos al-
gum revés ?
— Não, boa senhora, nada sei de vosso filho ^ e, se elle partiu para
Évora, como dizeis, é possível que eu lá me encontre com elle.
zei-o depressa, que sua mãe e Sarah morrem de saudades por elle. .
— Não sejas má, Deborah, reprehendeu Sarah; dize que todos nós o
esperamos anciosamente.
— Tenciono voltar em poucos dias. Vou apenas para trocar duas pa-
lavras com os frades que estão na torre.
—E que sorte os espera, sabeis?
—A que espera sempre os grandes criminosos; principalmente o Ara-
gonez, contra o qual ha a accusação de um crime peoi que morte de ho-
mem.
— Peor ? perguntou Sarah.
Deborah escutava apenas.
— Muito peori
—E foi ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
/ ^. -^
.
os acceitaria. . .
não tinha azas, trepava aos hombros dos distrahidos, dos tolos e dos ingé-
nuos. Quasi que se podia dizer que ellenem tempera-
não tinha carácter
niento — só tinha vontade. Não tinha physionomia; tinha uma máscara au-
tomática. Estava na edade em que não se é nem velho nem novo. Não era
feio nem bonito — ás vezes era sympathico, outras parecia o contrário.
Nesses momentos sorria-se, como se, com uma das mãos, tivesse pu-
xado, por linhas occultas, o sorriso de diversos tons, desde o mais irónico
até o mais cariciadór. Era capaz, muito capaz,, de fazer coisas úteis- e de
defender gente de bem; até fazia isso de preferencia. Esse processo es-
tava no seu programma. Quando chegava a occasião de fazer mal, não
era elle quem o fazia, mas quem a isso arrastara.
O carácter doshypocritas ainda não está' definido.
Hypocrita, com cara de hypocrisia, não passa d'um ingénuo, timbrado
de sinceridade. O verdadeiro, o genuino hypocrita, a si próprio se en-
gana, chegando até a convencerse de que é sincero e prima em leal-
dade.
Ignacio tinha- momentos na sua vida em que estava convencido de que
não possuia os defeitos e os vicios, que na verdade tinha, e que tão habil-
mente occultava.
A observação prova o phenomeno: — ha mentirosos, que, á força de
repetirem a mentira, chegam a convencer-se de que falam verdade. A si
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO «5
rem victimas.
Ignacio, ao passar pela casa de Pedro Soares, só pretendeu deixar
uma impressão leve, mal firmada, quasi esvanecida —
uma impressão que
deixasse dúvidas, para que lhe não chamassem tão bom que parecesse
hypocrita, nem tão máu que parecesse modesto, nem tão innocente que
parecesse banal.
Assim, tinha dicto palavras que lisonjeavam, idéas que se discutiam;
tivera olhares que eram interrogações.
E não se enganara.
— Repararam, disse Joanna, depois d elle sahir, como elle esteve sem-
pre mirando as flores do oratório ?
Deborah, com a sua consciência, ainda notou que elle lhe falara, com
tanta franqueza, delia e de Pedro, que bem mostrara nada conhecer dos
segredos da familia.
Sarah, que se arreceava de que elle procurasse seduzir Deborah com
os prazeres do claustro, notou, com agrado, que só a ella, Sarah, elle ti-
zes, logo depois das Trindades, passou por baixo do terraço de Pedro
Soares.
— Boa noite, disse elle avistando Sarah a um canto da açotéa; como
passa vossa mãe e minha senhora ?
cias do filho.
pedidas. .
— Bebe um gole, e come um doce. . . Dá-me esse açafate que está so-
bre a ucha, Sarah.
Sarah trouxe o açafate e Ignacio retirou d"elle um suspiro damen-
doa.
— Bem, então vamos ouvir, disse Deborah, pondo os cotovellos sobre
a mesa, e deixando os seus grandes olhos curiosos quasi a crestarem-se
á luz da lâmpada.
— Esperem, esperem, deixem que o sr. padre Ignacio acabe de sabo-
rear o seu doce. .
— Estou prompto.
— Bem, não interrompam. . .
Ignacio, n'esta altura, fez uma pequena pausa, tirou do açafate um ou-
tro doce, todo ovos, e depois perguntou:
— Qual delias julgaes, senhoras, que resignou primeiro o seu amor ?
—E perguntou Deborah.
elle ?
«O amor fez ambas generosas ? Pois bem, espera que o ciúme decida.
O ciúme mais forte deve estar com o amor mais verdadeiro.»
— E depois ?
— disse que
El-rei amor era amizade. tal .
— El-rei não mentiu, disse Deborah, mas enganou-se. Não ha leis ab-
solutas que regulem o coração da mulher. . . Imagine, senhor padre Igna-
cio, que uma d'essas creaturas, que resignaram a ventura do amor, tinha
na sua alma um mysterio, uma dôr, um sentimento, um juramento, que
pertencia á sua honra e ao seu Deus ? ! Poderia o ciúme, em taes casos,
desvirtuar o amor ? . .
— Não c esse o caso de que se trata. Essa historia não seria um ga-
lanteio, mas uma desgraça.
— Mas, n'esse caso?
— N'esse caso, esse amor seria um martyrio ideal, sagrado, só curavel
no seio de Deus.
—E o que fez a resignada ? perguntou ainda Sarah, com os olhos la-
crimosos.
— Foi a resignar-se para Lorvão . . . onde viveu e morreu alegre e . .
esquecida.
:. . .
— Mas que idéa Por que pensa ! Pedro está a chegar. n'isso ? .
— Por amor.
— E foge-lhe ?
— Por ciúme . . .
— E a resposta ?
— Fugir-lhe-hia.
— Sem o consultar ?
— Assim preciso.
é
— Admiro resignação.
a
— Diga antes o desespero.
Foi das mais penosas e mal dormidas aquella noite. . . Deborah pas-
sou-a em sobresaltos.
Sentia mais vivo que nunca o seu amor por Pedro, que a salvara, c
que agora a perdia. E ia perdel-a, porque ella, se não o amasse, pode-
ria viver em qualquer parte, do próprio trabalho, ou da generosidade de
Joanna. Amando-o, a elle, que era tão apaixonadamente amado por sua
irmã, via-se obrigada a sacrifício maior que o de abandonar a casa — o de
se enclausurar para o resto da sua vida.
Quanto mais generosa sua irmã se mostrava, mais generosidade lhe
aconselhava e impunha. Sarah tinha só o amor fraternal a indicar-lhe o
sacrifício; ella tinha mais — os dois amores lhe diziam que fugisse. Por
. .
causa de Sarah e por causa de Pedro. Era possível que Pedro a amasse
de preferencia. . . sim. . . chegava até a estar convencida disso, mas desde
que elia não merecia Pedro, nada mais facil que converter-se o amor em
compaixão. O accòrdo entre Pedro e Sarah, para o casamento que lhe
offereciam, era uma prova de que ambos se compadeciam da sua des-
graça, mas não de que um a amasse, e de que a outra não soffresse o
ciúme.
O padre Ignacio bem o dissera —o ciúme sopra a braza do amor.. .
que era como um prazer que vem d'um vicio — um veneno que faz so-
nhar e morrer.
Pedro ia chegar, e repetir-lhe-hia os seus protestos damor — ouvil-os
era apunhalar o coração de sua irmã, e era enganal-o, a elle, tão bom e
tão leal ! Era enganal-o, não porque ella o não amasse. Deus bem o sabia,
mas por que nunca consentiria em ser sua mulher. .
Alli poderia ser que Pedro a esquecesse e até lhe abençoasse a resolu-
ção. Elle iria pela estrada illuminada da sua vida no alvorecer, e ella fica-
ria nas trevas densas da sua vida" de saudades! Quem tem uma luz forte
a bater-lhe no rosto, não pode distinguir quem se recolhe na penumbra. .
tar. Não tenho mãe nem pae ; Pedro, desde que o amo, já não pode ser
meu irmão; Sarah, para ser feliz, precisa do meu sacrifício. . . Acabemos
com isto.
«Pensei toda a noite no pedido que vos fiz. A luz da manhã trouxe-me
o melhor conselho. Quero deixar immediatamente esta casa. Pedro pode
vir, d'um momento para o outro, e é mister que elle me não encontre.
Soffro muito, e quero que Sarah seja feliz.»
— E'.
— Eu vou, senhora minha.
— Repara, não tem resposta, mas se alguma der, é só para mim. te .
Entendeste ?
— Sim, menina. .
tregou? Só isto?
— Só.
— Para levares ?. .
Traria elle algum plano secreto?... Mas qual? E' um homem tão res-
peitado, que não pode deixar de ser respeitável
Tinha-se passado pouco mais duma hora, e já Zaira estava de volta.
— Trazes resposta ?
«Senhora
— Pois seja. . .
— Fiz justiça, apenas. Pedro tem todas as condições para ser um cor-
tezão leal e dedicado. . .
nos dia. . .
— El-rei tanto deseja acertar que hesita umas vezes, avança muitas e
quasi sempre recua. . .
— Então, a rainha ?
—E o secretario ?
— E das melhores! Cabeça tão bem organisada, que até consegue mo-
ver o braço del-rei. .
— Então o sceptro ?
— Não parece, e é ; tanto conhece seu amo e senhor, que está sempre
a movel-o a novas empresas. Como é bom timoneiro, não deixa parar el-
rei, para que elle não balouce muito!. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
foi, como de costume, cortado por phrases de saudade inspiradas pela au-
sência de Pedro. .
e não ella, quem ha de ir curar uma doença do coração, fora do seu ni-
nho, para que a minha dor me não atraiçoe e eu não possa escurecer com
a minha tristeza, o sol do seu paraiso. . . Se é bom amar, não é peor ser
generosa. . . Depois, mais tarde, voltarei, feita mulher de juizo, e um dia,
—
Do Desembargo ?
— Sim, menina; disso mesmo.
— Valha-me Nossa Senhora Que ! prcsentimentos ! . .
. . . . :
— A Pedro Soares?
— Não, minha senhora, d menina Deborah, filha do infeliz Lopo, fal-
lecido. .
— Deborah
•
? E para que ?
'i
/ )
. » : . . . : ..
— Perdoae-me, senhora, se vos faço esta pergunta : fostes vós que dis-
— Fui . . .
faias do seu culto a Deus e aos seus amores ! e entregoii-o a Zaira, que
foi depol-o na liteira.
d'esta casa até que chegue o dia do teu casamento. Pedro consente, e.
mas.
— Está bem, disse Sarah,Deus não me abandona. Pedro encontrará
minha irmã; e, se a ordem do Desembargo vier a ser cumprida, Deborah,
ao entrar em Lorvão, alli encontrará quem a vigie e defenda. .
A liteira partiu.
— Não; não desejo ser vista por esta boa gente da vizinhança.
E tinha razão: Joanna e Deborah, que desciam as escadas do adro, ao
verem a liteira, detiveram-se e ficaram-se a olhar para ella ! E, comtudo,
nada mais vulgar que a passagem d'uma liteira no caminho de S. Vicente
para Villa Nova
Quando poderão os espiritualistas e os positivistas definir, ou explicar,
estes sobresaltos do coração a que o povo, na sua sublime intuição, chama
presentimentos
E a liteira desappareceu numa volta do caminho, e Joanna e Deborah
encaminharara-se, a passo lento, para casa.
Ainda estavam um pouco distantes e já levavam os olhos pregados no
balcão do terraço, e Deborah, ergundo muito a cabeça, parecia querer de-
vassar todos os recantos da solitária açotéa,
O medo, ou grita muito, ou emmudece ... O de Deborah movia-lhe
muito o olhar, mas não lhe inspirava uma só palavra.
Joanna foi quem quebrou o silencio.
— Sarah calculou mal o tempo da missa, porque ainda nos não es-
pera. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
^- Quiz rezar hoje mais por causa da demora do Pedro ! . . . antes ti-
nos ao caminho. . .
tecera.
Razão não havia, mas o habito da desgraça faz pensar constantemente
nella. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
E começou a lêr:
— Minha querida Deborali :
cegavam-na.
— Então? disse Joanna, minha talvez não seja coisa de
lè, lilha, affligir.
deu Zaira.
— Por que a deixaste sahir?
— Tenho ordem do sr. Pedro para obedecer cegamente ás ordens da
menina . . .
—E foi por minha causa que ella se sacrificou, ella. por quem daria
a minha vida, a minha felicidade inteira!
— Mas socega, Deborah, socega. .
— Ouviu-nos Deus, minha mãe! E' Pedro! Não ouvis a voz deile ?
depoz-lhe na testa e nas faces muitos beijos tão ruidosos, como o estalar
duma girandola.
— Que sede desta bebida eu tive, pelo caminho, minha boa velhinha.
E, como ella mitiga as saudades d um filho ausente, inquieto e receoso!
Joanna reclinou a fronte no hombro do ti lho, para que ellc não visse
as lagrimas que lhe borbulhavam. ..
— Sarah .-
disse Joanna, erguendo o rosto, a nossa Sarah. . . não está
cá. . . sahiu. . . mas volta. . . não pode demorar-se. .
minha mãe, não chorastes por eu chegar, mas por alguém ter partido. . .
MYSTERIOS DA INQUISiÇAO
ctar.
— Sarah, disse Joanna, mais animada ao vèr a coragem varonil de seu
—O padre Ignacio? Mas não foi com elle que Sarah partiu? Não é
assim?
—
Oh, não, disse Deborah. Ignacio, como poderei provar-te, é um dos
homens bons do clero secular. Tenho d isso provas.
— Então com quem ?
Elle seria para toda a gente o algoz de Deborah; algoz primeiro, que
horrível coisa! salvador depois, que delicioso enlevo!
Deborah tinha-lhe perguntado a propósito de salvação: 'fambeiii a
honra'.' E elle respondera — Tambcm a honra!
E dissera a verdade.
A honra de Deborah tinha-a elle. alli. junlo do peito, na denuncia duma
inlamia de que elle era incapaz, e que lhe fora attribuida. a elle, por um
bandido, a pedido delle, um namorado!
Deborah, na fidalguia do seu caracter, recusava-se a Pedro, por causa
do Aragonez, e Pedro ia ser accusado aos olhos da sociedade e da justi-
ça, de dever a Deborah a felicidade que lhe tinham roubado!
. ;
Já não tinha que pedir a ella que o deixasse livral-a duma desgraça
tinha que lhe pedir que o livrasse do cadafalso!
Estavam agora invertidas as situações de ambos, c invertidas irreme-
fortúnio.
— E crés nesse Pedro? dia.
— A quem Pedro
preferis. r
tece e magoa.
— Penso exactamente o contrário, minha querida Deborah. Julgo até
chegado e azado o momento de te dizer, mui singellarnente, o que é in-
— E tu
— Eu não posso; o teu amor uma esmola, que eu não devia nem seria
devo acceitar.
— E se eu pedisse te essa esmola ?
^
— Dir-te-hia — Deus : te ajude. . .
dos amigos ? Pois não comprehendes que a adoro com a amizade mais
fraternal e que para ti reservo os encantos duma paixão de noivo egoista,
enlevado nos teus encantos de mulher? Deborah, minha querida Deborah!
não sabes, desgraçada, que eu leio no teu coração, e que não podes occul-
tar o aftecto que me confessarias, se não fora a desgraça que te feriu? Não
queres dar-me a esmola do teu amor e queres que tua irmã mendigue o
que eu para ti reservo desde o dia primeiro em que te vi sorrir, e, o que
é mais puro e sincero, desde aquelle em que te vi chorar ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
As tuas palavras são um canto, que me encanta, mas eú não tenho voz!. .
Vejo o teu olhar, e não me atrevo a fitar-te. Ouço-te, e não sei que diga...
— Mas cala-te, e olha-me, disse Pedro, erguendo-lhe o rosto, como se
faz a uma creança para se lhe vér a côr dos olhos; caia-te, e escuta-me,
que o teu silencio me basta para que eu saiba que me comprehendes.
Deborah, tu amas-mc, e tanto como eu te amo. Para que nos havemos de
enganar? Por acaso podes tu, boa amiga, substituir os teus sonhos, des-
viar os teus olhos, apagar as tuas saudades, esquecer o meu nome ? Que
culpa tens d'isso, Deborah? Que culpa tenho eu? Se és formosa, e se és
boa, como poderás transformar-te ? Quem nos approximou, depois de tan-
tas desgraças nos separarem?. .. Não vês o destino, com a sua mão de
ferro, a inclinar para o meu o teu olhar, a estreitar nas minhas as tuas
mãos? Vè se podes fugir-me, ainda que eu te solte! ^'amos, Deborah —
fecha os olhos para me não veres, retira as tuas mãos de entre as minhas,
tapa os ouvidos para me não escutares. . . Anda, foge-me, deixa-me, con-
demna-me !. . . Tu, que adoras a minha alegria, entristece-me; tu que me
espreitas, apaga a minha imagem ; tu, que me escutas, emmudece os meus
lábios! Que me importa que te cales, se falam por ti a luz de teus olhos,
a côr do teu rosto, o embaraço da tua voz! Quem te pede que me con-
fesses o teu amor, se tu consentes que eu te adore ? Eu sei quanto pen-
sas, quanto caias e quanto dizes ! Não sabes responder-me ? Melhor, que
está n'isso a prova da tua innocencia e do teu amor. Perguntei-te se me
arhavas, e não me respondeste. Pois bem; não pergunto aftlrmo — — De-
borah, eu amo te, e quero-te. . . ^'ès, nem um protesto; baixaste os olhos
e soltaste um sorriso por entre a tristeza que te envolve. . . Sabes o que
isso significa? Que te agradou o écho da minha voz e a essência da minha
confissão. Tu também me amas, Deborah, e a prova não está no que me
dizes, mas no que não podes negar. O amor só reflecte em almas amo-
rosas... Vês como trocamos a imagem do nosso amor? Se eu te beijar
MYSTEKIOS UA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOI- l'l.
. . ! . .
— Pedro, fala ainda, que nunca senti, desde que a desgraça me visi-
•
— Que não o acceitasse ; as sombras do meu passado fazem o eclipse
do nosso futuro . . .
— E'.
— Pois bem, minha noiva orgulhosa, vou dar-te uma de humil- licção
dade. Deborah — a minha vida está nas tuas mãos. Ou consentes em ser
minha mulher, ou eu sou entregue ás justiças d'el-rei.
!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
giarão a distancia.
-Irres da Silrj.»
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Não. Conto com António Carneiro, a quem deverei talar com toda
a urgência.
—E eu deverei esperar as novas que me enviares ?
— Sei, c é por isso mesmo que eu vos peço, senhor, já que estou im-
pedido de o fazer, que peçaes a el-rei licença para eu desposar Deborah. . .
— E se recusar
ella
— Pois ficae sabendo que o conceito que de vós faço vem das boas
ausências que vos faz o padre Ignacio, de S. Domingos. Conheceis-lo bem,
não c assim?
— Muito pouco, senhor; não esqueço, porém, que cu e os meus lhe
devemos a vida.
— Consentireis, portanto, que vos apresente ao secretario clle d'el-rei?
— Sem dúvida —Deborah não me pertence preciso de obter a graça e
real.
— Ha apenas um embaraço. . .
— Farei
•
o que me indicardes.
— Daes-me a vossa palavra de homem de bem de que comparecereis
na minha presença sempre que eu \os reclame?
— Juro-o, pela minha honra.
— l"'rometteis mais — que não perturbareis o espirito de Deborah, que
eu fiz recolher ao mosteiro de Lorvão, até que el-rei vos perdoe o que não
fizeste e vos conceda o que lhe ides pedir.
— Juroo, pela liberdade que me otTereceis.
— Está dicto, dae-me a vossa mão, estaes livre.
. . .
— Sarah, para salvar sua irmã d'uma pena que antevia, tomou o logar
d'ella, e vós a enviastes para o mosteiro.
— Não tenho remédio senão o de canonisar todos os crim.inosos da
vossa casa. E' certo, porém, que Sarah comprometteu a minha reputação
de magistrado. .
— Quero dizer que começastes por ser meu captivo e acabastes por
me prender. .
— Nesse caso, senhor, não serei tão generoso como vós — não vos
concedo a menor homenagem, e hei de, com o meu reconhecimento e
brio, prender-vos mais á minha estima e ao meu respeito.
E Pedro cortejou e sahiu.
^U
VI
o Mosteiro de Lorvão
culo XVI. Muito pequena, muito alegre e muito asseada, nas proximidades
de Penacova. O solo, tortuoso e accidentado, ostenta montes e valles quasi
cultos.
Cada escriptor lhe assigna, nas certidões da edade, uma data differente,
Vrcl Bernardo de Brito, por exemplo, afhrma ter lido, nos documentos
do archivo do mosteiro, notas que o dão coevo de S. Bento : Domiis iios-
E' bom que tudo se saiba, e saber-se o que, sob o manto da mais ha-
bilidosa h3'pocrisia, se passou nos áureos tempos da fé religiosa, nesses
centros em que o amor dos homens prevalecia ao amor de Deus, edifica
o nosso espirito e explica as arrojadas heresias.
Lorvão estava no seu auge de influencia e de celebridade.
Em cavalgadas vistosas vinham de Coimbra fidalgos e cavalleiros em
busca de seus amores, e, se alguns se contentavam em passear nas mar-
gens da ribeira oppostas ao convento, para verem, por entre as grades do
mosteiro, as damas dos seus sonhos, outros, mais ricos e felizes, logravam
chegar, á hora da noite, á rótula do parlatorio, e passar depois, em ga-
lanteios e subtilezas, para as cellas das monjas amorosas.
Lorvão era uma formosa estancia, em que a fé e o amor tinham er-
guido o seu templo dentro das feias muralhas que os séculos escureceram.
De pagens enamorados, de cavalleiros ciumentos, de damas esquivas,
de consortes infiéis e barregãs sem pudor, se coalhava o velho mosteiro,
triste melodia d'um miserere, pela adufa illuminada duma cella distante
lanceies duma poesia alegre e fresca, e que tinham sido compostos nos
serões do mosteiro, faziam a volta do paiz e desciam aos lábios populares,
com a recommendação do olympo de Lorvão, e o nome da monja que os
inspirara Danças requebradas, importadas de
! Castella, vinham de Coim-
bra a Lorvão, e da ribeira ao mosteiro, com tanta frequência, que já pelas
abobadas sombrias andavam de mistura vozes de cantochão e estalar de
castanholas.
Nas festas do orago, que n'esse tempo talvez já fosse Nossa Senhora
da Expectação, ouvia-se, pela noite alta, os repiques e as rezas, que rema-
tavam ao nascer da aurora com os minuetes primitivos, cheios de mesu-
ras, entre hábitos e gibões, ou com danças campezinas de donzellas da
terra, cingidas pela cintura, na vasta sacristia, ou nos corredores das cel-
ção de Roma, mas já com grande rol de milagres entre as monjas vivas,
mais graves e piedosas.
Das freiras, então actuaes, uma parte nascera no mosteiro. Suas mães,
:
De ter beneficiado com encantos e virtudes, que ella nunca teve e que
os livros não rezam, se arrependeu talvez o nosso Garrett, ao escrever a
sua D. Branca.
A infanta D. Branca, filha de Aftbnso III e da rainha D. Brites, foi
fanta.
Tantas vezes vimos abrir aquella porta para dar entrada e sabida a vul-
tos tão extranhos e romanescos, que sentimos tentações de entrar.
Vá feito! Entremos.
Pela porta da egreja, ou pela do mosteiro?
Não é fácil escolher, que muitas outras portas existem, mais ou menos
encobertas e disfarçadas, desde o muro da fachada, até a brecha da cerca,
no desfiladeiro da serra. Se fôr necessário subiremos á torre, ou, suspen-
sos dos ramos das arvores, nos balouçaremos até cahir sobre os milharaes,
E, como não havia de entrar alli tanta gente da mais illustre do reino,
se, como acabámos de lêr n'um estudo a que já nos referimos, os cargos
da casa, e principalmente o abbadessado, tinham-se convertido em apa-
nágio das famílias que formavam partido e organisavam sequazes, e as
quaes soccorriam com as rendas das communidades, punham e dispunham
dos bens, viviam fora e dentro da clausura, emcohabitação de mancebia
com fidalgos, clérigos, monges e até gente da baixa plebe. .
— Parece que nem uma, nem outra coisa. Ouvi apenas falar em aban-
dono por desapparecimento da familia, no dia da matança.
— E' então uma christã-nova?! Pobre victima I Trazem-n'a para aqui.
e já outros cavalleiros se apeavam
Ainda Jacob não tinha Jesapparecido
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 167
de seu olhar.
— Mécia, disse Philippa, dirigindo-se a uma das monjas, ordenae que
sejam cerradas todas as portas do mosteiro, e que Rodrigo não deixe que
venha até nós quem se não tiver previamente annunciado.
Mécia sahiu, com tão desembaraçados movimentos, que muito contras-
tavam com a molleza piedosa, que até então usara . . .
tima festa.
— Minha, e de Clara, que nada mais faz que ouvir-vos quando nar-
raes. E vós, D. José? Contamos com o vosso auxilio?
— Tinha umas canções novas, que dediquei á senhora abbadessa, mas,
como sabeis, Alice abandonou-me, e o ciúme roubou-me a voz e a ale-
gria...
—- Vingae-vos, D. José, que é assim que fazem os cavalleiros. Bem,
resta-me a esperança de que frei João do Espirito Santo trará novas de
Cellas, e frei João Padilha das nossas irmãs d' Arouca.
— Nada ha que valha registo fora do mosteiro de Lorvão. Se me per-
mittirdes, senhora, dar-vos-hei d' Arouca o que os seus doces merecerem.
— Bem, disse a abbadessa, a noite vae-se adeantando e os meus acha-
ques começam a impacientar-me. . . Que Deus me perdoe . . . Ajudem-me.
Philippa e outra freira ergueram Margarida, e todos os assistentes vie-
ram de novo beijar-lhe a mão ?
hensivo.
— Coitada, acudiu Philippa, ainda está com medo do Desembargo! Bem
sabes que és bonita, e porque o és, aqui estás... Quer parecer a filha
mais nova da Magdalena! . .
—
A culpa foi vossa, senhor morgado. Para que insististes ?
. . ! .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
frade capellão. .
— Que idéa Philippa Hesito, para que vos não perturbe a saudade
! ?
de Jacob . . .
— Já o esqueci
— Mas elle ainda vos ama, e por vossa culpa. .
esqueças ?
— Juro-o . . .
— No céo!
— E fizeste-me passar pelo calvário?
^cí^^
.
VII
Jacob Adibe
A's vezes lhe tinham falado na h}'pocrisia do claustro, mas alli não ha-
via hypocrisia, .havia despejo. As mulheres riam com grande ruido, des-
compostas, abrindo muito a bôcca e deitando a cabeça para traz ! Surpre-
hendera entre as companheiras phrases maliciosas, e algumas andavam
nos corredores lendo, em voz alta, missivas d'amor!
Por entre os rosários contavam-se historias maliciosas. Discutiam-se
alli a plástica e a graça dos homens, com mais liberdade que entre rapa-
rigas, sem educação, nos arraiaes e romarias.
Havia alli endiabradas que trepavam aos altares para fazer cócegas nos
pés das imagens dos santos, e depois aíRrmavam, rindo muito, que os
santos lhes piscavam os olhos! Os namorados tinham alcunhas e os em-
pregados da casa também. Ao chaj>eiro, ou claviculario, como se diria me-
lhor — isto é, ao que fingia guardar as chaves do mosteiro, chamavam
S. Pedro; a um frade muito timido, que dizia amabilidades, mas nunca
descruzava os braços, chamavam S. Francisco!
Que e.xtranha gente, que extranha linguagem!
. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
fora. Quando
. . a festa acabasse entraria tudo na regra mais austera. .
Toda a noite sentira gente nos corredores, e ouvira falar nas ccllas
pro.ximas. Ate lhe parecera ouvir chorar uma creança!... Provavelmente
gente que a abbadessa protegia... algum sobrinho que viera visital-a...
E, por mais que fizesse diligencia para dormir, Sarah continuava pen-
sando.
Tinham-lhe dicto que as monjas eram espos;is de Deus, e que renun-
ciavam ao amor dos homens. Mas alli era o contrário! Algumas das mon-
jas diziam duma ou outra noviça — a minha pequena!. .
Disseram-lhc que poucos dias antes uma freira morrera por se ter lan-
Sarah fechou muito os olhos para assim adormecer mais depressa mas,
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. I. FOI.. 22.
.
.
que devia acautelar-se, e explicou. . . ora, como foi que ella explicou?. .
Se a religião necessitava d'aquelles abysmos, então não era ella o que Sarah
sabia, por lhe terem ensinado. Antes moura, ou judia, que catholica em
tal meio. . . E o caso é que ella estava alli á mercê de tudo e de todos..
Quem havia de defendel-a? Aquelles frades eram libertinos, aquelles fi-
creveu:
«Meu bom Pedro
«Ha duas noites que não durmo. O que aqui se passa causa-me horror.
Defende Deborah deste abysmo, e, se puderes, vem vèr-me depressa..
Preciso de matar o medo e as saudades. — Tua irmã
Sarah.»
vendo!. .
—O que não impede que me defenda do ruido d uma festa, onde não
poderei estar a meu grado.
— Só mais tarde tereis o direito de reclamação. Por agora tendes ape-
nas o dever da obediência.
— Dizei, então, a D. Philippa que fui dispensada esta noite de me afas-
tar da minha cella.
— Então, insistis?
E adormeceu.
E as danças e os cantares continuaram por alta noite
A sala do capitulo! esplendida sala pelo tamanho, na sua superfície,,
na sua altura, na profusão de luzes, nos mesmos tons, isto é, nas som-
bras oscillantes e transparentes, que vinham dos móveis negros e da mo-
bilidade das chammas das velas de cera!
Sobre os espaldares das cadeiras, que formavam um grande rosário
em volta do salão, havia capellas de flores campestres, e grinaldas que
cahiam negligentemente. . .
beças de leão. Aqui e alli, sobre grandes uchas de páu santo, marchetadas
nos gavetões com argollas de prata, immensas salvas cheias dos doces
mais finos, e de crystaes, onde os licores, rosa e verde, scintillavam como
lanternetas irisadas.
Aos cantos do salão, e á roda de candelabros collocados sobre a alca-
so, que lhes expõe os dentes alvos como o leite e lhes regaça os lábios,
com a graça com que podiam regaçar a saia num passo de dança ágil, ou
dengosa
N'este firmamento estrellado, os grandes focos, como se fossem o Sol
e a Lua, irradiam luz que alcança todos os recantos ; e ainda, n'um acom-
. ! . . .
Por vezes se ouve o ciciar d um riso muito discreto, e logo uma excla-
mação ruidosa como o saltar de rolha de garrafa escumante, e em seguida
o estralejar d'um coro de gargalhadas francas, sem dique, isto é, sem
pudor...
No chão, de pernas cruzadas, aos pés de monjas bonitas, ha frades de
hábitos negros e faces inHammadas. Alguns empunham taças elegantes e
brindam em latim, e outros passeiam em volta do salão, improvisando ri-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
çova e Roma
— Roma vae parar a Carthago e a Alcáçova relaxa-se ao Soldão do
Egjfpto, disse cambaleando um frade gordo e vermelho.
— Tendes aqui, ao vosso dispor, a futura corte de D. João, a magis-
tratura ecclesiastica e os povos d'estes sitios ! exclamou, de peito arqueado
e mão na espada, um moço capitão, que beijou a mão de Philippa com os
requebros d'um cortezão deante d'uma rainha.
— Uma mulher bonita é o melhor esteio da reliç^ião catholica. Não ha
. !
O Senhor c coiiwosco?
— Mas não o vosso, disse Jacob, que esse saltava ha pouco o mura
da cerca, depois de ter sabido pela porta secreta dos aposentos da futura
abbadessa.
— Que lhe preste, disse Philippa. Não fizestes o mesmo? E o castigo
dos que chegam tarde . . . entram pela torre, e não teem repiques de sinos.
— Socegae, que vou dar- vos estro bastante nos olhos duma noviça. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
com este . . .
— Não vedes, senhora, que vos arremessou a minha elle injuria clara
e directa ? Insultae-o em paga, que elle já está affeito a insultos de mulhe-
res . . .
/ Li
:
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Que vos importa ? Sabei que a vós se deve este escândalo. Andaes
depressa! Ha dois dias apenas. .
— Eu senhora
!
— Sim, agradecei a Jacob Adibc, que vae ser posto fora deste mos-
meus servos e guardas, a galhardia com que vos desaffrontou.
teiro pelos
Se não fora a ordem do Desembargo, com elie iríeis ver romper o dia
para os campos de Lorvão. .
— Já me não odiaes?
— Parece que não! Até vos estimo e agradeço.
Pedro não vinha vél-a, Deborah não era ainda sua companheira.
. . .
Sarah sentia que aquella gente sabia mais que ella, mas não valia
mais; faltava ás outras alguma cousa que ella não podia explicar, mas
que abria um abysmo entre a sua timidez e a vivacidade das suas com-
panheiras. Sentia nas monjas do Lorvão uma superioridade que não in-
vejava.
Não as odiava, não, que as irmãs, afinal, não eram más algumas ;
Aquella, por exemplo, que se matara, devia ser uma pobre rapariga. .
Matou-se por ser má, ou por ser boa? Talvez por vergonha. . . Amava
um homem, e a familia, em vez de a defender, abandonou-a ;
que, afinal,
metter uma rapariga n'uma casa d'aquellas, era o mesmo que abando-
nal-a. . .
sonja! . . .
aurora de pudor!
E, sem saber poríjue, Sarah começou a rezar, muito reconhecida, a
Nossa Senhora, por não ser Philippa mais bella que Deborah. . .
feitório.
Sarah viera de Lisboa, Jacob nunca a vira, e tanto que até estava
apaixonado por Philippa . . . Como fora então provocar o morgado por
causa de uns olhos que nunca fitara ?
— Comam e estejam caladas, que ao altar da mesa não são cabidas tagare-
lices e risadas, dizia a abbadessa, a da direita, sentada na cebeceira da mesa.
— Ainda não estão fartas de galhofa ? O que lá vae, lá vae ! Só lhes
•digo que tenho saudades de Jacob. Judeu ou christão-novo, valia bem
. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
mais que todos os peraltas que por ahi andavam. . . Pelo menos era um
rapaz de coragem, era um homem. , .
juro solennemente que para tanto me poderá servir a corte que me faz
D. Pedro de Mascarenhas.
— Não pensas n'outra coisa ! Melhor andarias pensando mais nas mon-
jas que partem e não voltam !
vez aos encantos de mulher mais nova e mais formosa que eu. . .
— Não, senhora minha, ouvi e disse o que me aprouve, mas notei que
o ser clérigo não impedia o desforço quando Jacob nos insultou. Se Christo
teve um azorrague para os vendilhões, não era muito que um padre ti-
— Estás muito atrazada, Margarida; talvez que ura dia se chame mus-
culo ao coração; por agora chama-se-lhe apenas — sentimento.
^ Ora, con-
sulta Paracelso.
— N'cssas questões não consulto os physicos, mas a irmã Martha, que
faz maravilhosas descobertas.
— Que descobriu ella então ?
— Pois não vistes, senhora, a egreja deserta, apenas com Jacob, atra-
vessando com o olhar os quadradinhos da rotula ?
lippa.
— Não sou d'esse aviso, senhora, disse Martha, com palavra vivaz c
olhar intelligente. O ciúme e o despeito são fructos do amor que já flo-
— Senhoras, disse esta, nada vos digo, por que tanto me dizeis?...
— Porque haveis de ter a gloria que vos pertence Hontem, na . . . re-
— Sarah é boa rapariga, disse Mariana, c, decerto, não tem culpa das
conquistas que faz.
— Que ella não se illuda com os fachos que se apagam, fogos fátuos
que ha séculos illuminam as grades deste mosteiro e que dão o abandono
e as sombras de que vcem tantas lagrimas, disse Martha, sentenciosamente.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — \01.. '.
FOL. 24.
.
a branca abbadessa.
— Minhas filhas, antes que o sol aperte, dêem uma voka na cerca, que
ha muito depois que dirigir no asseio e amanho do que a folia de hontem
enxovalhou e destruiu.
E todas aquellas raparigas e mulheres, em grupos de três e quatro,
desceram á cerca, onde havia sol a bater nas leiras, e sombra fresca de-
teus amores, que os deves ter, dize-me, que idéa fazes de mim ?
— Quanto posso I
Sim, conheço.
— Pois bem; eu sou Martha de nome Maria do Evangelho! e
— Amei-o.
— E' natural.
— Natural evangélico; amei-o,
e morreu.. e elle
— Como Jesus ?
— Muito.
— E que para o esquecer
fizeste ?
— E conseguiste-o ?
lho...
— Que horror ! disse Sarah, largando o braço de Martha.
E depois dirigindo-se a Mariana:
—E tu, minha irmã, não me contas a tua historia?
— E' simples: atraiçoei meu marido.
— E elle?
— Perdoou-me por causa do mundo,
e, mettcu-me aqui, e aqui vem
trazer-me o perdão. .
— Sim, coisas da vida, que eu conto em segredo para que não tranr
spirem.
— F>a então perigoso ?
— Isso então era outra coisa. . . Nem elle deslustrava o seu nome nem
eu escandalisava o mosteiro...
— Extraordinário mundo este! pensou Sarah, e foi sentar se ao lado
d'uma velha monja, por lhe parecer não encontrar alli surpresas para o
seu espirito.
— Estaes aqui tão só, madre (kiiomar, porque não seguis e vigiaes
tantas de nós, que somos novas e ignorantes ?
— Escuto-as eu; podeis fazel-as; tanto amor tenho ouvido d' falar, que
já me apraz escutar lamentos dos esquecidos. Dizem-me que sois modelo
de piedade e sacrifício. . . falae, senhora. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
arvores.
Apesar disso, quando Sarah estava mais absorta nas suas meditações,
os ramos da oliveira a que se abrigara moveram-se como se tivesse pas-
sado uma lufada rija. . . Sarah estremeceu e olhou a ramaria verde escura
que vinha de cima do muro como um docel . .
— Não se mexa, disse uma voz fresca; não se mexa nem olhe para
cima.
— Quem está ? perguntou Sarah, obedecendo.
— Quasi ninguém; Pepe, ou José, se achar melhor — sou o mais novo
dos pastores da serra. Não ouvis os chocalhos das ovelhas E' que andam ?
— Qual ! Ganhar cinco maravedis, que são uma fortuna com que hei
— Teu amo
— Sim, que são meus amos todos que pagam para algum serviço ho-
nesto, que a outros não me presto. .
Depois socegou.
E' verdade, dera-lhe um recado para seu irmão. Era natural que lhe
mandasse resposta...
E em voz mais alta
— Meu amo é um pastor como cu, mas de gado mais fino. E' um pas-
tor a valer. . . Eu fujo quando vejo os lobos a namorarem-me o rebanho,
— Dize depressa. .
— Quem está ahi dentro está sempre em perigo. Se fizessem como eu,
que ponho á parte o gado com gafeira. .
— Vamos, Pepe . .
— Ora o senhor Jacob não entra ahi quando não quer. Quando elle
gua da serra, por trepar uma oliveira ! . . . Faz mesmo gosto ! Não é ver-
dade, menina Sarah ?
— Estou.
— Bem, o ramo de á noite uma
dia, e luz.
— E quem verá esse signal ?
canta em Coimbra.
— E quando dormires ?
— Render-me-hei. Meu pae também tem rebanho de rapazes. Havendo
necessidade, cahimos lá dentro como se fôssemos assaltar terras de mou-
ros.
— Obrigada, Pepe.
— Lá darei o agradecimento, que para mim não é. Olhe, menina,
como o tempo está quente e de luar e os pastos por aqui estão na conta,
todas estas noites trarei a rede para junto do muro. E haveis de sentir a
tilintar, que estas malditas nunca estão quietas I E que Deus vos faça ab-
badessa d'outro mosteiro.
E Pepe desappareceu.
— A Providencia vela por mim! Sinto-me mais forte e animada!
E, envolvendo-se na multidão das companheiras, Sarah entrou no mos-
teiro.
VIII
As duas irmãs
Pepe contou lhe a sua historia, e, ao contal-a, chorou tão sincera e affli-
— Teu pae vae erguer-se, que o sol já se annuncia. Que farás, pe-
Desde esse momento, Jacob Adibe teve ao seu serviço dois cães, que
se lhe rojavam aos pés e o fitavam com o olhar a trasbordar meiguice —
eram Pepe e o Frade. .
cou-se muito.
Deixou de assobiar aos pássaros, de brincar com os juncos e canniços,
Sempre que entrava na sua cella enviava o olhar para aquelle horizonte
de vigilância e salvação, e á noite, depois das Trindades, quando as som-
bras do valle já envolviam o cume da serra, via que estava sempre cstrel-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Como estou falando comvosco, sr. Jacob. Como ella é bonita ! Pa-
recia mesmo uma imagem
—E disseste-llie . . .
— Disse-lhe tudo. . . E ouvi-lhe a voz tão doce, tão meiga, que dava
mesmo vontade de estar empoleirado a cantar-lhe lá de cima, cantigas
que a alegrassem. . . Pareceu-me tão triste a pobre noviça
— Nada te contou do que se passara até aquella hora ?
— Nada, sr. Jacob. Notei apenas que estremeceu quando lhe disse o
nome de meu amo. Nessa occasião esqueceu-se do que eu lhe recommen-
dara, e olhou para mim. Pareceu-me ver os olhos meigos e húmidos
d'uma gazella !. .
— Para que
•
me fala em paga ? Pago estou eu e de sobra, que só com
a vida se paga a salvação da nossa vida. .
—
Como os meus dedos. Salvo se fôr verdade o que me disseram ?
querda.
— Reconhecelo-has, apesar disso, sempre que elle se avizinhe do mos-
teiro. E' indispensável não o perder de vista. Se elle lá entrar de noite,
e isso lhe será fácil, não rondes extra-muros, salta, embosca-te, escuta,
espreita. Os cães conhecem-te a voz e tu conheces as sacristãs. Es pe-
queno, em qualquer canto te escondes. . . Nas medas de lenha, nas uchas
do vestiário, nas bancadas das galerias, nos telhados, junto ás adufas aber-
tas, nas pregas dos reposteiros, sob a mesa do comedouro, nas escadas
. das serventias particulares, na torre dos sinos, em qualquer parte, emfim,
onde possas espreitar e ouvir, esconde-te. . . E's forte e ágil, e, quem pra-
tica o bem, não tem medo de surpresas. O crime é a atmosphera dos
cobardes... Se fôr necessário, aluga, corrompe, compra, ameaça, lucta
e morre . . . Offereceste-me a tua vida ; não a quero ; mas, se foste sin-
cero, offerece-a, dedica-a, sacrifica-a a essa pobre creatura, que veiu en-
sinar-me para que serve a vida e deter-me no caminho da prodigalidade
e do vicio, em que eu ia a embrenhar-me, sem consciência, sem rumo, sem
esperança. .
.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
nheiro, e deu-lhe uma bolsa, para luctares com os fracos ; aqui tens uma
arma, e entregou-lhe um punhal pequeno e afiado, para venceres os maus
e os fortes. . . A' tua intelligencia e ao teu coração confio a lucta com os
bons.
Pepe guardou tudo, soffregamente, como se receasse que alguém esti-
vesse a espreital-o.
— Eu já tinha afiado a minha faca na pedra da lareira e experimen-
tado o seu golpe nas piteiras dos vallados, mas isto é melhor, disse
ellc, affagando o cinto, e, sobretudo, o dinheiro, que envenena, fere e in-
sulta. .
— Pedi a teu pae guarida por alguns dias. . . Ao primeiro alarme, irei
— Perfeitamente . . .
— Para Lisboa ? ! dizia clle, fitando o céo ao acaso, por não saber para
que lado ficava a formosa cidade. Para Lisboa ! e vou apprender a escre-
ver, e a falar bem, e a desenhar os campos da minha terra, e a ganhar o
pão dos meus pequenos ? ! Ah ! senhor Jacob, que eu não precisava disso
para vos amar, mas sinto que vos amarei tanto, tanto, como amo o Sol,
que me aquece de inverno, e a Lua, que me guarda de noite.
— Estás apparelhado e prompto. Vae, Pepe, e que Deus te inspire e
encaminhe.
Pepe subiu até as oliveiras, que coroavam a serra, e depois desceu até
o pequeno que o substituirá.
— Ha alguma novidade, João ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Dizes então que não ha novidade ? ! Nada a teus olhos, é tudo aos
meus. Ora, desce á estrada e vê se os avistas no portal ou na egreja. .
zerem enganar não te faças esperto, mas tolo. Tudo isto antes da noite e
longe das mãos d'elles. Se bem andares, conta commigo. Antes das sete
horas quero-te aqui.
João, depois de ter ficado alguns momentos a olhar para o irmão, á
espera que elle se lembrasse de mais alguma coisa, fez tinir o dinheiro,
metteu-o depois no peito e foi-se aos saltos, por cima dos sulcos, como
um coelho bravo fugindo dos batedores. .
Quando João chegou á estrada, os dois maltezes, como elle lhe cha-
mava, mas que eram dois verdadeiros ciganos, com modos e atavios de
alquiladores, escoavam-se pela ribeira em direcção á venda do Judeu.
Chegados alli, pediram um cântaro de vinho e azeitonas e abancaram,
ao fundo da casa, batendo com os chicotes sobre a mesa grosseira e suja. -
João, que ensaiara o aspecto mais alvar e a voz mais timida, ache-
gou-se a elles pedindo um ceitil.
— Abriu de manhã cedo para as orações das monjas, mas não appa-
receu ninguém . . . Ninguém é um modo de dizer. Appareceram pobres
como eu, que é o mesmo que não apparecer ninguém. . . ou peor ainda.
.
— Então não perdes o dia. O morgado apparece por ahi hoje c ainda
— Ora, mas a que horas virá elle ? Eu tenho -que partir de Eorvão ao
principio da noite e já não o apanho.
— Com certeza que não; o senhor morgado não é homem que passe
antes da meia noite, e então perde as esperanças. Dize-nos cá, rapazola,
costumas ir ao convento ?
— Sim, é para esse lado que dão as frestas das cellas, mas o corredor
que lhes dá entrada é do lado opposto e communica com a escada que
vem á sala do capitulo e que desce pelo refeitório até a escada, onde está
a serventia, junto ao portai.
— Conheces bem a casa, não tem dúvida, o que tu não sabes é q'ue
na sala do capitulo se ouve tudo que se passa e diz nas cellas das novi-
ças. . .
— Sei que não se ouve nada. A escada vem á galeria onde está a porta
da sala, mas não é necessário atravessar o capitulo para entrar no refei-
tório.
Vae, João, traze e dispõe os nossos rapazes todos, que temos esta
noite caçada ás raposas. A que horas chega o morgado ?
muito amigo. El-rei acolheu-o com todo o favor, e pensa mandal-o á Africa,
n'uma commissão de serviço muito honrosa e lucrativa. O tempo da sua
ausência será o que havemos de passar juntas.
«António Carneiro protege francamente o nosso Pedro, e, por motivos
que tu desconheces, mas que um dia te explicarei, condemna-o a casar
com uma de nós 1 Não sei por que, escolheu-me. Pedro afiançou-me . .
«Pedro é homem para alcançar essa victoria. Para ambas, nota bem
isto, para ambas. Se visses como elle fala de ti, com todo o amor d'um
bom irmão! Sarah, Sarah, já me não fazes ciúmes!. .. E que eu cheguei
a convencer-me de que tu, se o amaste, terás muitos rapazes que te quei-
dade do pae.
«Adeus, Sarah, até breve. Ahi vae um beijo da tua
Deborah.v
Sarah leu esta missiva de sua irmã, e ficou muito tempo com ella sobre
os joelhos, a pensar. . .
de quem recebera amizade, outro a quem pedira amizade e que lhe offe-
recia amor!
Sua irmã taes palavras ouvira a Pedro, que já não tinha ciúmes, e
ella, conhecendo a felicidade de sua irmã, ainda lhe tinha inveja
. . . . . . . .
E a prova?
A prova era que Sarah, meditando muito sobre as palavras de sua
irmã, a si própria perguntou :
oNão comprehendes tudo isto que eu te digo, minha irmã? Pois vem,
e conhecerás este m\'sterio.
«Como num conto de fadas, eu tenho dois talismans, duas varinhas
magicas com que posso chamar em meu soccorro. . .»
E Sarah deteve-se. .
Quem era Jacob ? um adónis expulso pelas monjas, por causa d"uma
noviça sem protecção ? . .
Sarah ficou perplexa. Era verdade não lhe ter ainda occorrido seme-
lhante idca!... Por que lhe inspirava tanta confiança Jacob, a ella, que
tão pouco o conhecia ?
Pois, era natural tanta dedicação por uma rapariga que elle vira apenas
num momento?
Não seria aquelle mosteiro um reguengo por onde aqueile caçador
andava na pista de caça nova ?
Farto de mulheres levianas, era muito possível que Jacob, talvez mal
educado, mas fidalgo nos intentos, notasse a difterença profunda entre Sa-
rah e as suas companheiras. . . Talvez que até, conhecendo os perigos a
que ella estava exposta, a quizesse salvar de qualquer trama urdida pela
abbadessa e por sua filha. .
Receando uma vingança, era possível que aquellas mulheres, não po-
dendo exercel-a contra Jacob, a planeassem contra ella. . . Que afinal era
— Senhora. .
—Mas, senhora, não sei a que vos estaes referindo. Creio que ninguém
poderá attribuir-me semelhante propósito. Juro-vos, senhora, que estou in-
nocente.
— Não duvido; o meu dever, porém, é prevenir-te de que se mallo-
graria qualquer tentativa, e de que a punição te seria muito incómmoda.
: . . .
c não achámos nada fácil chegar ás cellas das noviças, sem risco de ser-
— Que importa?te Os meus cães não são ciganos; teem brial, capa-
cete e lança. .
— Jacob Adibe.
— Zampa ajudou o morgado a montar, e, quando o cavalleiro já ia dis-
tante, gritou da porta da venda, de forma que fosse ouvido por tod'os os
bebedores
— Até á vista, senhor Jacob, até á vista !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
conder-se no juncal.
Zampa, escondendo o corpo dos raios do luar, espreitou attenta-
mente:
— Não ha dúvida, disse elle, vi luzir uma lança. .
— Quaes outros ?
feitiços.
— Quem vem la ! Nós é que devemos perguntar : quem está ahi atra-
vessado no caminho, a dormir como um cochino ?
— Ah ! o pastor
sois ?
1 1/
. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Só se estiver dentro da cerca, mas não que entrasse por este lado.
— Seria bom observar. .
— Podeis subir e ver. A oliveira tem degraus como o throno, mas so-
be-se melhor por ella.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Pois, seja assim, disse Jacob. Estou ás vossas ordens, senhor capitão.
Peço-vos, todavia, me isoleis d'esse homem, a quem, só por deferência a
vós e aos vossos, eu dou este nome.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
peitar. . .
— Juro-o, senhora ; e mais vos juro que estou convencida de que Jacob
'isava a defender-me de quem me ameaçara na vossa presença, e não a
perseguir-me ou roubar-me.
— São graves as insinuações que fazes. Desculpo ou explico a tua in-
gratidão para o senhor morgado, que tão solícito foi em defender-te, e para
D. Pedro, que tão prompto auxilio nos prestou; mas não tolero que assim
calumnies teus bemfeitores.
— Não me interrogueis então, senhora. Não posso, entre os cobardes
que me insultam e os fidalgos que me desallVontam, ser por aquelles e
accusar estes.
— Retira-te, disse Philippa com voz soberana, farei superiormente as
communicações relativas ao vosso irregular procedimento.
— F^azei o que vos aprouver, senhora, que só muito instigada direi
quanto tenho visto em Lorvão... Muito agradará ao Desembargo de el-
honra das orphãs, que devia proteger. Quem é fidalga por bastardia, monja
por leviandade e abbadessa por corrupção, faz o que vós fazeis — expulsa
os amantes de que se abhorrece, insulta a honestidade de que se divorciou,
e defendé-se com os rufiões que a exploram. Jacob é incapaz de uma vil-
tudes com que aqui se entra, aqui se perdem. V^icia-nos até o ar que res-
piramos. Hei de contar a Pedro Soares, que é valido de el-rei, como n'esta
casa se adora a Deus com o ritual das saturnaes pagãs, e como numa
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. 27.
! . . ! ;
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
turo . .
Obrio não tem sexo, e ás vezes até não tem moral. . . Mas aquella
mulher não tinha nem uma nem outra coisa
. . 5
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 21
— Disse, sim.
— Eile frequenta a Alcáçova, conversa com D. Manuel, ouve-lhe as
suas confidencias, dá-lhe os seus conselhos ?
acaso, que eu amo os homens. Que illusão Os que faço cahir a meus pés ?
ao serviço do rei! Já sou esposa do Rei dos Judeus, por que não serei
amante do rei dos chrisíãos-novos ?. . . Na galeria das abbadessas de Lor-
vão ha fidalgas de raça, princezas e infantas, beatas e santas... Querei
excedel-as, quero collaborar com el-rei no exercício do seu poder. . . Sarah,
ínsulta-me, se te apraz. Vejo que me conheces, mas faze mais : faze com
que, aos empurrões de Pedro, ou nos braços d"elle, eu suba os degraus
do throno real, ou que el-rei venha orar de joelhos no meu altar ! . . .
aos innocentes, mas a outra onde o engenho tem o seu Onde podes
altar.
junto das creanças, das virgens e dos contrictos? Quem havia alli de com-
prehendel-os e amal-os ? . . . Crê, Sarah, ha no mundo bugigangas que só
valem aos olhos dos idiotas. Quando a natureza fez uma mulher bella,
impoz-lhe o dever de utilisar essa qualidade em proveito d'uma causa,
tamos. Um rei nos braços de uma mulher é utn homem como qualquer
outro; ás vezes até lhe é inferior. . . Bem presinto a tempestade que pode
erguer-se contra mim, e é por isso que me defendo. A'manhã, quando
vagar o logar de abbadessa, o reino votará contra mim, mas a Rota, mas
a corte de Roma defender-me-hão. Vencer sem luctar, fatiga menos. Sa-
rah, tu és formosa como eu, não sei se tanto ou se menos um pouco, em
veiros d'amores, mas viveiros occultos. E o amor, crê tu, Sarah, é noctí-
vago; vè melhor de noite, na sombra, a occultas. Ha homens que são como
os pavões, porque as fêmeas fazem ninho nos logares mais secretos. Desde
que se inventou o preceito da castidade, tornou-se indispensável o mos-
teiro para attender ás reclamações da natureza. A sociedade estúpida poz
entraves ao seu desenvolvimento. Emnome de Deus? Mente, que Deus
manda amar. Entre os seres da Creação, qual é o que se prende com as
regras que esterilisam n'uma vida inteira as suas formas e anceios ? De-
ves ter visto as flores?. . . Como nós as adoramos, e como ellas se amam
e multiplicam ! Ouves as aves ? Calcula que de segredos vão nos seus ni-
trando no mundo por esta porta, que é a mais sombria e discreta, coUo-
ca-te a meu lado, completa o arsenal com que combato, e eu juro-te que
Philippa estava mais bella que nunca! A sua cabeça parecia duma leoa,
Sarah, graças á vivacidade com que Phiilippa lhe falava, não compre-
hendera todo o alcance das suas palavras. Parecia-lhe que estava ouvindo
uma possessa... Mas ia ouvindo-a... E depois quiz interrompel-a, mas
foi prevenida por uma sacristã que annunciava:
—A noviça Deborah, que a senhora abbadessa m.anda apresentar para
que lhe sejam indicados os seus aposentos.
— Deborah! disse Sarah, e lançou-se muito commovida nos braços de
sua irmã.
— Sarah, minha querida Sarah, perdòa-me a surpresa que te fiz. Ainda
não me esperavas, não é assim ?
— Escreveste-me, dizendo...
— Sim, mas essa carta só foi expedida de Lisboa, depois da minha
sabida... Emfim! eis-nos de novo juntas...
Deborah notou a presença de Philippa.
— Sarah, esta senhora é?. .
braços de Philippa. . .
zade.
— Sarah, disse Deborah, em tom reprehensivo. .
darei o veneno mais violento; mas se não queres desmaiar o teu pudor,
nem macular a tua honestidade, não ouças essa mulher, nem d'ella te
— Pois então, disse Sarah, pondo a mão nos olhos de Deborah — fa-
tes dias muitos annos de vida. Não me encaneceu o espirito, mas tenho
já na minha alma de creança os sulcos profundos da experiência e das des-
illusÕes. Ah! Não podes imaginar, minha irmã, o que se pensa, se diz e
. .
—o Christo não teria altar que o não estremecesse, prece que o não in-
famasse, culto que o não fizesse corar na cruz. Deborah, eu não sei o que
é ser mouro ou judeu, nem por que se accendem no mundo as fogueiras
contra os que communicam com o céo, por intermédio d"outros deuses,
porque, se para alguém ser christão é necessário ser cúmplice de tantas
vergonhas catholicas, eu prefiro o mouro na sua mesquita e o judeu na
sua synagoga a estes hypocritas sem pudor, n'estas tavolagens do vicio e
da fé. Jacob, o judeu, parece-me o melhor christão, e estes christãos, que o
perseguem, judeus de peor raça, os verdadeiros, os únicos, que crucifica-
ram Jesus. . . São estes os mesmos que ainda hoje o lanceiam com as suas
profanações e sacrilégios.
— Não me fales assim, Sarah. A lei de nossos pães. .
— Pois, dahi é que vem a sua santidade; é por ser d'elles, e não por
ser da Egreja, que faz do celibato a mancebia, do amor um vicio, da fé
cerra os olhos a este mundo, que c todo mais que uma fraqueza, uma ver-
gonha. A turba é ignara e os outros são maldosos.
— Cuidado Sarah, cuidado; paira sobre nós a trovoada da intolerân-
cia, e pode fulminar-te o raio da perseguição. Ainda tenho nos ouvidos o
crepitar das fogueiras, e vem de Hespanha, a todo o momento, o écho de
mil gemidos. Nas fogueiras de S. Domingos reflectiram-se os clarões da
inquisição hespanhola. . . Cuidado, Sarah, cuidado! Lembra-te de que
dorme no leito d'el-rci a filha de Fernando e Izabel... A peste está em
contacto comnosco... não a absorvamos... Sc a onda vem alta e im-
. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
A corte de D. Manuel
mava, nas suas muralhas gigantes, e nos seus coruchéos polidos e multi-
«Das suas janellas estreitas e de ajimez, dos seus eirados como que sus-
pensos de tamanha altura, gosava-se, em cheio, a mais esplendida vista
do rio, cidade e campo. Em volta, uma cova funda, defendia de incursões
inimigas aquelles paredões históricos. A entrada, tal como ainda lá se vê,
estreita e tortuosa, aberta sobre uma atarracada porta de volta redonda,
ennegrecida dos invernos, conduzia, por uma ponte levadiça, a um pateo
interior, desafogado e espaçoso.
«Sobre o pateo, ou recebimento^ cahia em roda uma varanda de arcarias
cobertas, apoiadas em columnellos, á maneira de claustro. Para essa va-
randa, adornada de vasos e jarrões de Talavera, em que viçavam plantas
que iam enlaçar-se, aqui, além, na verga rendilhada, dava ingresso, a um
canto, uma escada de pedra, não larga, abafada de alcatifa da Pérsia, e
forrada de magníficos azulejos miidejar em relevo. A entrada da escada-
ria, em baixo, perfilavam-se as guardas em vistosos trajos que lembravam
o Oriente.
«Da mencionada varanda penetrava-se, por uma porta pequena, mas
muito trabalhada de laçarias, para os aposentos d"el-rei.
Havia apenas meia dúzia de annos que el-rei contrahira este segundo-
matrimonio, porque fora curta e ephemera a vida da rainha D. Jzabel. e
e já sobre as alcatifas da Alcáçova brincavam, além do príncipe D. João,
apenas com quatro annos de edade, as formosas infantas D. Izabel e D. Bea-
triz, que contavam três e dois annos, e os infantes, ainda de collo, D. Luiz
e D. F^ernando.
Como se vê, D. Manuel para em tudo ser afortunado, não só no mar
e na guerra ganhava notáveis victorias, não só na escolha dos seus capi-
tães, para a descoberta do mundo e governo das colónias, mostrava o fa-
Isto mesmo, porém, era por vezes attenuado pelo espirito aristocrático,
já brilhantemente litterario, que pairava n'aquelles salões onde os trovistas.
Andava a graça alhada á etiqueta de tal arte, que não teria as honras
de cortezão quem não alliasse á elegância da mesura o espirito lisonjeiro
da phrase.
Saudava-se alli um conceito e uma trova com o mesmo ardor com
que se acolhia a noticia d'um feito d armas em paizes longínquos.
Das filhas dos reis catholicos foi a rainha de Portugal D. Maria, a que
mais se retrahiu na inHucncia e mando, e mais se contentou em ser esposa
€ mãe.
I""oram rainhas todas as quatro filhas de Fernando \'1I. I). Izabel e
D. Maria, de Portugal, por D. Manuel; D. Joanna, a pobre louca, por Phi-
lippe. Formoso; e D. Catharina, que se sentou no throno de Inglaterra,
ao lado de (iuilherme Vlil.
A mais feliz foi, decerto, também esta, a cujos serões teremos de as-
por egoismo, dos bons conselhos dos seus secretários. Tinha vaidade na
sua fortuna e nos seus cabellos castanhos.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
iniquos firmans contra os judeus, para que elle logo parecesse um lacaio
de Fernando o Catholico. . .
Como a rainha D. Maria não ia tão longe no preço dos seus affagos,
logo se entregou á prudente direcção de António Carneiro.
Uma intriga mesquinha, sem provas, sem indícios, sem auctoridade,
bastou para que elle deixasse esmagado pela mais cruel ingratidão o grande
tuara a essas palestras a que o levava seu pae, para lhe tornar conhecidos
os mais notáveis segredos do convivio com príncipes e cortezãos.
Menestréis havia sempre para os intervallos das trovas e da conversa-
ção, e que tangiam violões, e violas darco, com muito garbo e esmero.
Dispensava-se el-rei, para tão intimas diversões, de cingir a cabaça com
a sua coifa de rede d'ouro, nem punha a chamarra de setim sobre o pel-
lote de damasco.
A rainha D. Maria, como se estivesse apenas com as aias e damas, pre-
sidia ao serão trabalhando nos seus lavores, ou vigiando os lilhos, ou re-
zando. . .
2 28 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
quem beijou a mão, sendo imitado por António Carneiro, e com um ges-
to de ã pontade para o movimento de respeito geral com que fora aco-
lhido.
— Sois então de parecer, meu caro António, que os negócios da hidia
Yoltam de novo a ser contingentes e embaraçosos?
— Sim, meu senhor, se é possível o embaraço á vossa vontade e re-
solução.
— Gosto de ti assim, sem medo, mas prevenido. Dize-me, então, Ço-
falla agita-se de novo ?
capitão.
— Não lh"a nego, mas quizera que, pelo menos, tivesse dado menos
azo á male\olencia. A calumnia, meu caro António, é um achaque —e
. .
— Para vencer, meu senhor. A guerra não se faz sempre com a guerra.
Muitas vezes tenho dicto a vossa alteza que o domínio da índia vae mais
assegurado com favor e geito, que com força e violência. E' muito grande
a índia, e para a fazer portugueza é mais necessário convencel-a, que es-
magal-a.
— Se o thesouro pudesse esperar. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
pidos vassallos! Grande gloria deve ser a de um rei que preside a taes
actos de coragem e valentia!
— Mas, afinal, meu caro António, disse el-rei sentando-se n'um fofo
divan, olhando o espelho fronteiro, e emquanto sacudia vaidosamente os
cabellos castanhos, luzidios — afinal, perdem-se todas essas glorias e toda
essa forte gente, porque um louco suprou as cinzas do apagado ódio de
Mafoma!
— Já concordaes commigo, meu senhor?
— Concordo algumas vezes, concordaria e agora se tivesses acudido
a tempo com reforços a tão apertada situação.
— Podeis concordar comvosco, meu senhor, porque já concordastes
commigo na expedição da armada de Tristão da Cunha. . .
—
Ah! disse D. Manuel, vendo os dentes n'um pequeno espelho que
trazia no cinto; sim, a esquadra de Tristão pode chegar a tempo...
Oxalá elle veja a urgência. . .
— E o recurso bastante
é ?
— Ou para a vingar. .
em coisas de tão longe . . . Não vos bonda a hora do sol para os negócios
do Oriente?... Ora vinde, vinde, meu senhor, ver os lavores que vos
preparo para o vosso real bergantim. .. Pudera eu bordar as chagas de
Christo n'esta cruz, que é d'elle !
D. João.
O pequeno príncipe correu a lançar a cabeça no regaço de sua mãe,
que o afagou ternamente. A loura cabeça do futuro rei de Portugual pou-
sou sobre a cruz vermelha do estandarte.
— Meu senhor, disse D. Maria a D. Manuel, vede a obra do acaso:
como fica bem o ouro d'esta cabeça sobre o vermelho desta insígnia
E a rainha beijou repetidas vezes a cabeça de seu filho, como se qui-
zesse fundil-a ao calor dos seus lábios. . .
paros, quando muito, por ver, que lhe fica tSo impressa a doutrina da
Egreja, e tão apagadas as regras da nossa lingua.
— Tudo será corrigido, que em promessas a Nossa Senhora ponho
todo o empenho em lhe abrir o entendimento. Vereis, Gonçalo Figueira,
como, ao fim da minha novena, o príncipe ha de honrar os mestres, sem
esquecer o culto da religião.
— Tenho essa fé, senhora minha, e auxiliarei vosso empenho, impe-
dindo privanças com mentores, sem resguardo, nem methodo, que andam
enchendo a cabecinha de meu am.o com factos e idéas impróprios da sua
edade.
— Explicae-vos, Oonçalo, disse D. Manuel; entreguei-vos a educação
do príncipe, e se de vós a fiei, defendei-a de más licções e conselhos.
— Não basta a minha vigilância, que andam mentores na corte, com
mais auctoridade e poder. .
—E desconfiaes? . .
— De
•
ninguém; mas vejo cedo de mais idcas tristes e escuras em
cabecinha tão nova e loira.
— Meu pobre D. João, disse a rainha, pondo-o em pé, entre ella e
el-rei. Que podes tu saber, além do que vês e do que te ensinam teus
mestres?
— Vamos, Gonçalo, desterra meus receios. Se ha n"elle revelações,
só podem vir de Deus.
— Quereis, senhores meus, que eu interrogue?
— Seja, disse D. Manuel.
— E vulgar a adivinhação nas creanças, disse António Carneiro, ap-
proximando-se do grupo. Temos o nosso príncipe entre os doutores da
Egreja.
— Meu senhor, disse Gonçalo, vergando o joelho sobre a almofada
que estava próxima de D. João, como se escreve o vosso nome ?
nham feito
João olhou para el-rei, depois para António Carneiro, fez um movi-
mento de impaciência, e, afinal, fa/endo um signal a Luiz da Silveira, gritou:
—O Luiz, dize tu. .
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Como me chamo eu ?
gro pensa em voz alta, e o écho d'esse pensamento chega a estes muros,
em que vivo. Gonçalo Figueira, leve o príncipe e guarde-o, e vigie-o de
maneira que ninguém lhe fale, ou que eu saiba quem lhe fala assim.
— Também me privaes de conversar a sós com o príncipe ? perguntou
resentida a rainha.
— Eu próprio me privarei, para que vingue a minha ordem e a nin-
guém ella ofienda.
— Mas, meu senhor, onde poderá elle ter conselho mais amigo e licções
mais proveitosas?
— Deixae-me, senhora, poupar vosso filho á exploração de hypocntas
e intrigantes. Castella não me dá licções de fé. E' vasta a terra de meu
sogro; que elle a governe com o seu engenho, que eu governarei Portugal
com o favor de Deus e de Roma.
I
Porque elle é muito amigo de Deus e do Papa, e da Santa Inquisição
^'
^ )
. ;
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
D. Manuel continuou:
— Estou novo, e novo está o meu reinado, c, se em tão pouco tempo
me veiu arrependimento de minhas resoluções, foi por ter nellas, alguma
vez, mais escutado aíleições que argumentos. Levae o principe, (lonçalo
Figueira, vigiae-o, vigiae os mestres, a vós próprio deveis vigiar, a mim e
melhor pensar nas questões, mas ainda para não revelar a familiares e
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
resistência. .
Quando António Carneiro via el-rei hesitante, fazia mais que aconse-
lhar, explicava, e, se o plano não era efficaz, recorria ás prophecias pavo-
rosas sobre desastres para os interesses do reino, ou, em recurso extremo,
desconsolo para a alma do monarcha.
A matança de S. Domingos ficou arma poderosa na dialéctica do se-
cretario. El-rei fora victima da sua primeira mulher D. Izabel ; mas An-
tónio Carneiro não accusava as rainhas; pelo contrario, defendia-as — eram
victimas de seus pães, isto é, do throno hespanhol.
D. Manuel não sabia explicar bem a causa da sua irritação n"aquelle
momento. O que ouvira a seu filho contrariava-o, porque não estava bem
convencido de que seguia o melhor caminho.
A opinião pública era contra os judeus, e abhorrecia os christãos-
novos.
Quem estaria illudido? elle, ou a opinião do seu reino:
Conviria resistir, ou transigir?
Se havia conspiração contra a sua politica tolerante, nas veias dos
conspiradores corria o seu próprio sangue.
El-rei fez-se acompanhar de António Carneiro até a sala do despacho,
mas, chegado alli, não ousou interrogal-o. . .
lencioso. .
mas d"ellas. — São sempre tão atilados os vossos pensamentos, que co-
nhecel-os é dever de quem tem de executal-os.
— Tenho sido tolerante de mais, António. .
tiça.
. . .
turo. Mas, é porque tendes uma estrella propicia, que vos norteia, que julgo
necessário que não vos transvieis por fogos que saltam, incertos e fugiti-
vos, como os fogachos do mar. .
mento ? julgaes isso útil ao vosso reino e ao vosso poder ? Pois bem, n'esse
caso, respeitae de novo a bulia Pessimum geuus, arrancae outra vez os
filhos aos judeus contumazes, mettei mais vinte mil desgraçados nos aca-
nhados Estáos, fixae uma só hora e uma só praia para a fuga dos infiéis,
sequestrae-lhes os bens, e açoutac-os na praça pública, lisonjeae Torque-
«YSTKKIOS DA INQLISIÇÃO. — VOl.. I. FOI_ 3o.
k
! !
mada e Deza, seu successor, laçando no vosso reino os fugitivos das tor-
Os reis devem ter uma opinião e uma acção. Vosso cunhado, o senhor
rei D. João II, resistiu sempre a Castella e a Roma, que lhe exigiam a
entrega e o castigo dos judeus internados. Não pensaes que fez bem? Pois
fazei o contrário. Tendes deante de vós o fogo da impiedade; soprae-.o
rija, violentamente, e apagae-o de vez.
— E as matanças. António Carneiro? . .
— São obra vossa, senhor, porque animastes o ódio que devia ter sido
jectar nos muros d'este castello o clarão das fogueiras, e a rainha de Por-
tugal encheria das mais gratas caricias a vossa alcova real
—E tu, António Carneiro, o que dirias ?
de Portugal ! . .
. .
Os serões
— Bem os adivinho, meus senhores. Não vedes que sua alteza está
preoccupada com a ausência d'el-rei ? Ella bem sabe que António Car-
neiro não é homem que perca tempo a estas horas da noite. Despacho em
serão não dá ordenações, dá intrigas. . .
a dentro.
— Mas, senhor, o christão novo judaisa quando o deixam, e a vossa
bondade vae até a liberdade de viver christámente e hão chega á licença
de ter orgulho público da judiaria. Se sois catholico, senhor, defendei a
vossa fé, que não pode ser rei, á face do mundo christão, quem se faz
cúmplice de mouros ou judeus. Transijo comvosco, continuou a mansa e
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 243
tas ? Que esperaes? Dar licções ao mundo? Poderão os reis catholicos gas-
tar seu esforço na punição dos infiéis, tendo nós ns fronteiras abertas aos
que fogem á justa punição? Quereis contar com Roma, amesquinhando o
poder papal ? Meu senhor, pensae, no que resolveis. Os secretários pas-
sam, e a crença fica. Quando a guerra explodir, com quem contaes? Com
António Carneiro? E' pouco. Consultae Miguel da Silva, que escuta a opi-
nião da corte de Roma. O que faz e o que diz elle ? Que Roma vê com
maus olhos a vossa generosidade.
— Senhora minha, disse António Carneiro, para contrariar a vossa
avisada opinião não posso manter-me nos conselhos d'el-rei. Teem as
damas, perdoae-me, o prestigio dos seus nomes e a influencia das suas
virtudes e dos seus «ncantos, mas nem sempre, por maiores que sejam
seus talentos, podem alcançar as previsões duma politica internacional
eivada de interesses contrários, e mesquinharias intrigantes. Não pode
vossa alteza lembrar, a meu rei e senhor, que a corte de Roma, traba-
.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Ihada por uma nova e forte opinião religiosa, não deseja em Portugal a
perseguição dos judeus. Tente, vossa alteza, meu senhor, arrancar, a Sua
Santidade, bulias para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, e nada
conseguirá. .
— Essa influencia não tem o fanatismo dos frades peninsulares; pelo con-
trário, promove com muito cuidado, o desenvolvimento dos interesses
materiaes que podem enriquecer o mundo e dar-lhe riquezas e preponde-
rância.
— Continua, António Carneiro, disse el-rei, já esquecido da proclama-
rão de sua mulher.
— E' uma nova doutrina, que vae começar a dominar o mundo, que
reclama braços, iniciativa, trabalho e riquezas ! O novo padre não é um
fanático — é um traficante. Presidido por Jesus, falo mestre da sua obra,
incentivo do seu progresso, fecundador do solo, cultor das artes, sophisti-
cador da sua doutrina, reproductor do seu capital. Apodera-se de Roma
com o seu intuito mundano, e leva na sua frente Jesus, antes do Calvário,
quando andava separando Deus de César, e a ambos prestando obediên-
cia e culto. Júlio III está a esta hora escutando essa gente e ensurdece á
voz do Senhor. E' uma nova phase religiosa, uma nova theocracia que
se explica e adopta. O que c o judeu ? Já pensastes nisso, senhor ? Ja lhe
medistes o valor e o alcance ? O judeu não é rigorosamente uma seita —
é uma raça — forte no corpo c forte no animo — que trabalha muito, que
economisa, que guarda, que enriquece —é
•
uma colónia vigorosa de obrei-
ros, embutida n'uma civilisação anciosa de prazeres e recheada de vicios.
O judeu não vem de Moisés, ou se vem, não é disso que enferma; vem do
paganismo, que adorava o bezerro de ouro. — E' mundano, egoista, on- é é
quecern os reis, que é peor ainda. Vede, senhor, a classe média; percor-
rei as boticas da cidade, fazei appellos ás urgências do Estado, creae novos
tributos. . . A quem visaes, a quem tributaes, de quem recebeis, a quem
pedis, e quem vos serve ? Os christãos, entretidos na cavallaria, empenha-
dos na guerra, adormecidos nos prazeres? Não, os judeus, firmes nos seus
balcões, vigilantes sobre as suas uchas, garantidos na sua usura, preve-
nidos nos seus cálculos, e invencíveis no seu esforço. . . Julgareis, talvez,
meu senhor, que o iesuita, trepando a escada da fé, desde a missão orien-
tal até o throno do Papa, quererá esmagar, em vez de aproveitar, essa
gente, essa seita, essa raça, essa caravana, que deixa na sua passagem
sulcos de ouro e que forma no espaço nuvens de pedrarias ? Enganaes-vos,
senhor, e vós, senhora, também. Com a vossa gente de armas dominaes
a Africa e a índia, com os vossos mareantes sulcaes e venceis os mares.
Estão traçadas as linhas do planeta, meu senhor...
E estará finda a vossa obra? Vede o reino. Está pobre, desorganisado,
limitado ao commercio das suas possessões... Começam agora o culto
das sciencias e o exercício das artes, raros almargens irrompem pelos
matagaes, affirmando a riqueza e o lavor da vida rústica; definham as
industrias pequenas nos recantos dos bairros mouriscos, fecham-se de car-
dos e silvas os caminhos feudacs, caem envelhecidos os castellos das villas,
cundidade d'este solo. O judeu não deve ser odiado como uma seita, mas
aproveitado como uma raça. .
conselheiro. Será o que Deus quizer, e que esse Deus me inspire, já que
tantas coisas contrárias vejo e não distingo. O Desembargo que diga de
sua justiça a respeito de Jacob e quejandos. . .
— Sim, é bem melhor, senhor, pedir ao Céo conselho, que aos homens
lettrados, disse a rainha ironicamente.
— Senhor, disse António Carneiro, fingindo não ter ouvido o remoque
de sua alteza, — os vossos parceiros aguardam que vos digneis. .
Menino Jesus.
— Estaes muito piedoso, senhor secretario. .
— Meu senhor, vim para distrair maguas, que me vieram dos queixu-
mes do infeliz Gomes d' Abreu.
E el-rei, seguido de António Carneiro, sahiu por entre as alas dos seus
convidados e familiares.
— Senhor, disse António Carneiro, ides concertar negócios, a esta hora,
relativos a frades dominicanos?
— Que queres, António? pediste-me que recebesse esse moço, a quem
tanto elogiaste valor e brio, e é meu dever animal-o no empenho de fazer
carreira pelas armas, ou na diplomacia. Sobram-me capitães valorosos
. .
— E quanto Ignacio a ?
— Com quê?
— Com a espada de Pedro.
— Comprehendo — tendes então, uma esperança ?
— Na cruz da espada . .
— E essa cousa é ? Senhor, dizei, pela vossa leal estima para commigo,
o mais sincero dos vossos vassallos.
El-rei e o secretario tinham chegado á porta do salão do conselho.
António Carneiro ia abril a. . .
— Espera, lhe disse el-rei. Vou dizer-te meu plano. Consiste cm pouco:
ganhar tempo.
— Como, meu senhor ?
— Sim, então
e ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
me negar o que meu sogro de mim reclama. Assim direi que estava prom-
pto a ceder, mas que não posso. . .
missão que o trouxe até mim, receoso de que a outras mãos fosse o en-
cargo. .
— E de enganar. Concordas ?
tica da Europa com os enredos e embustes que não estão nas suas tradi-
ções. Se tal fizerdes, perdereis no conceito do Papa e no dos reis catho-
El-rei afastou-se.
commodar el-rei á mesma hora em que o sr. padre Ignacio vinha por sua
alteza. Tendo de conduzir com urgência, por ordem de Ayres da Silva, a
sar, afim de poder confiar minha noiva á guarda e aos cuidados de mi-
nha santa mãe.
— Ficae descançado. El-rei auctorisou-me a deferir as vossas preten-
ções. Só partireis depois dos esponsaes. .
— Obrigado, senhor. Mas isto não á tudo. Sendo Deborah minha mu-
lher, ficará sui júris, isto é, apta para se administrar e, portanto, para
iniciar sua irmã mais nova. . . Desejava, pois, senhor, que Sarah fosse re-
tirada de Lorvão, antes da minha sahida. .
cáçova.
— Que Deus vos pague o bem que me fazeis.
— Voltareis por aqui, Pedro Soares, antes de partirdes para Lorvão.
El-rei deseja ainda receber-vos, e talvez imcumbir-vos de tarefa menos
molesta que a de combater os mouros de Cananor. Tereis embaraço em
ir a Roma em missão secreta junto da corte de Júlio II ?
— Honra proveito. e .
— Basta-me a primeira. . .
— Frequentes vezes.
— Os amigos do Papa ?
,
— E o paiz ?
— Incondicionalmente ?
zendo mentalmente
Coração não me repousa
Com desejar uma cousa
. .
— Então? perguntou el-rei.
—E uma reconsideração. .
j — Mas não official. Imagina, António, que Jacob Adibe fugia de nós,
e se internava em Castelia ?
— Uma traição. . .
— Bem sei: prejuro~e traidor. E' bem certo que os filhos não teem as
eulpas dos pães ; nota porém, que nunca vi brancos filhos de pretos — os
mais felizes são pardos.
— Noto, senhor, que á roda da rainha, minha senhora, saltitam e
. . : :
— Não vos escuseis d minha custa, Ruy Gonçalves. Onde esta Diogo
Brandão nenhum de nós deve invocar as musas sem afinar o metro com
a musica. . .
— Não haja ralhos por tão pouco, disse el-rei; ouviremos Diogo Bran-
dão... Senhoras, ditae um mote.
—O mote será meu, disse D. Guiomar de Menezes, mulher de pere-
grina belleza e razoável vaidade.
— Perdão -— Maria Cardosa. Já tivestes, senhora, resposta de António
Carneiro. Abraçaes o céo e a terra I Deixae agora D. Margarida de
Ataíde . .
dens.
—^E
•
guardae uma cópia para Resende, disse Ruy da Gama, que faz
provisão do seu e do trabalho alheio. .
— Ha um, senhor, entre nós, que esplende como o sol, e de quem to-
dos dizem mal por não saberem dizer melhor o bem que elle merece,
disse Castello Branco.
— Falaes do Gil?
: !
Uma grande arte, uma nova musica, vinha deliciar o ouvido e commover
o coração. Ainda não se comprehendia bem o que aquillo era, tuas já se
do Cuidar e suspirar. Gil, que lançou a nossa lingua nos moldes mais
elogiados por João de Barros e Fernão d'01iveira, que democratisou a lit-
á influencia d'esses crochets-poeúcos. Fez obra sua, que foi até a funda-
lismo.
Os seus versos, recitados por elle, pareciam que tinham sido escriptos
a cores, e não a tinta preta sobre amarellado pergaminho. Era um poeta
que sentia, um versejador correcto, e um actor com voz, com figura e
com alma I
— Jacob Adibe. . .
— Mas vós ? . .
deu a taes instancias de Castella, respondo-te, Gil, com o mote que te dei;
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E, se o amor o detiver ?
— Pela minha honra — juro com egual confiança na vossa palavra, se-
D. Manuel corou.
António Carneiro, que se approximara:
— Começa a punição mais cedo que o crime!. .
pera a miude . . . disse el-rei. Que o vosso amigo vos inspire um auto como
sabeis fazer ...
E Gil Vicente recuando, de cabeça baixa, sahiu do salão. . .
VIII
Em ferros d'El-rei
pção; Quinaria hirris Hercúlea fundata matiu, mandada fazer por D. Fer-
nando I, e que tícava junto á capella do Bom Jesus.
Ainda não existia a velha rua da Sophia, tão conhecida hoje, e que
constitue a parte principal da cidade baixa.
.\ guarda dirigiu-se ao castello. e alli entregou o preso, que foi reco-
lhido numa camarata, húmida e sombria.
! . . .
— Não, bom homem, parece-me até excellente mas, ; como julgo dif-
ficil passar uma noite sentado, e tão mal sentado, pergunto-vos : não ha
no castello uma enxerga, um catre, uma taboa, uma esteira, para que eu
não tenha que descançar os ossos na terra húmida ?
— Mas se ceasses ?. .
— Dizei, meu fidalgo ; no que pedirdes, sem prejuízo dos meus deve-
res, podereis contar commigc.
—E bem pouco: preciso de escrever algumas palavras, e depois fa-
zel-as chegar ao seu destino.
— Diabo, diabo, disse o guerreiro, tudo isto não vale nada. Podereis
escrever quanto vos aprouver. . . O peor é expedir a missiva. . .
O guarda ia a sahir.
— Por que dizeis isso? El-rei não entrega a Castella judeus refugiados
em Portugal ! A sua promessa . .
gue^es de ouro, quantos judeus teem dormido n'este castello nas vésperas
de serem enviados clandestinamente á fronteira, c alli entregues aos es-
birros do Santo Officio.
Jacob estremeceu.
— Bem, disse, depois de ter serenado, os judeus pagam melhor. Acre-
ditae que matei e roubei e não me julgueis da lei de Mo3sés. Sou christão,
como vós, embora baptisado á porta da egreja. .
não tendes. Os judeus não emprestam, senão com juro, e vós até daes
com generosidade.
— Bem, trazei-me o que pedi. . .
rel, que parecem inventados para cama de príncipes . . . Não os tem me-
lhor el-rei na sua Alcáçova. . . \o\x por elles.
Poucos momentos depois, o guarda reentrou munido do que promet-
tera, e tudo dispòz nos seus respectivos logares.
— Quereis mais alguma coisa, meu fidalgo?
: .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Perdi a liberdade por vos defender, e talvez perca a vida por me evi-
denciar. Que importa tudo isso ? l'm só pensamento me sobresalta :
—
se vós, senhora, me julgaes capaz do que aleivosamente me assacam.
«Disseram-me que estáveis em perigo, depois de vos ter visto. Antes
desta felicidade, injuriei um homem ; depois delia, desafiaria o meu e
o \osso Deus.
«Não sei quem sois, e quem sou. Não' obstante, os nos-
vós não sabeis
sos olhos reconheceram-se ; meu coração.
reconheceu-vos o
«Não quero dizer-vos nem uma banalidade, nem uma injuria — que se-
ria banal dizer-vos o que sinto, injuria prometter-vos o que não vale.
«Não sei se sois livre, e sei que estou captivo.
«Não posso libertar-me nem prender-vos. .
MYSTERIOS DA IM'^U1S1ÇA0 267
E Jacob ficou muito tempo a pensar se devia escrever quanto lhe acu-
dia ao pensamento, e, depois, bruscamente dobrou a escripta, e a sellou
— Aqui tens meu recado para o mosteiro ; se fordes leal dobrarei a pa-
rada.
— Ficae descançado que jd arranjei um escudeiro capaz de chegar ás
profundas do inferno, sem crestar os cabellos.
— E' da vossa confiança?
— E da vossa, pelo que vejo: c um rapazote que hoje chegou a Coim-
bra e que está dormindo como um cão, no portal do C^astello.
— E' de Coimbra :
— Não; de Lorvão.é
—^'Perguntae-lhe o nome.
— Jd o disse — Pepe. é
— Pepe exclamou Jacob; e
! apresentando ao guarda uma nova moeda
de prata -^ se elle viesse até aqui?...
— Diabo, diabo! só depois de passar a ronda...
— E' um momento ; falando com elle, explico melhor o que a escrever
gastava muito tempo.
— Pois seja, que o rapaz é vivo, fala depressa e anda ligeiro.
E, ainda bem não tinha dicto isto, e já com a agilidade dum reptil tre-
— Meu
bom rapaz, disse Jacob, approximando-se da grade e passan-
do-lhe amão pela cabeça, como se afagasse um cão, ou uma creança.
Pepe, ao sentir-se acariciado pela mão de Jacob, baixou a cabeça e
fechou os olhos, como costuma fazer o animal mais amigo do homem,
(juando o dono o afaga.
— Para que vieste, Pepe, tão longe e a pé, deixando sós as tuas ove-
lhas e cheia de cuidados tua familia ?
— Quiz saber para onde vos levavam, e vim por montes e atalhos, es-
preitando a escolta. . .
— Que sou como o meu rebanho : á força de viver com elle, adivinho
o bom e o mau tempo.
— Então agora, que tempo annuncias?
—O peor de todos, o que se annuncia.
E Pepe, tendo dicto:
— Até á vista, sr. Jacob.
Guardou no peito a carta para Sarah, c sahiu do castello, esqueccndo-se
de saudar a sentiaella.
—
Vaes macambúzio como um frade, meu rapaz. Parece que te mor-
deu a tarântula, ou apanhaste febre quarta ! . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Sarah veiu mostrar-lhe o engano. O amor era aquillo que ella lhe ins-
pirara; não pensava em beijal-a, e precisava de a adorar de joelhos.
Até alli fora todo egoísmo, agora era todo abnegação. Sentia-se mais
casto depois das suas aventuras da mocidade, que antes dos seus sonhos
de innocente
Até alli as mulheres tinham seio ; agora tinham azas 1 . . .
Jacob quiz adormecer novamente; mas não pôde. Amava tanto a vida,
que já linha medo de perdel-a.
Se pudesse fugir? Dinheiro tinha que bastasse para corromper um ho-
mem, mas alli havia muitos a guardal-o. . .
E fugir para onde? Para longe de Sarah? E de Sarah, que elle jul-
gava em perigo ?
Jacob estava n'uma terrível indecisão — ora tinha uma esperança que
o resignava, ora o desespero que lhe amargurara o pensamento.
Assim se passou a noite — alguns momentos dormitou, e durante elles
a noviça lhe apparecia nas sombras da prisão, como uma imagem celeste
em um nimbo miraculoso.
MYSTKRIOS DA INQUISIÇÃO 371
P>, emquanto ella lhe sorria, Jacob não despertava... Tinha o êxtase
dos abstractos, via-a nitidamente! a mesma figura, a mesma voz... Elle
queria então dizer-lhe muitas palavras, fazcr-lhe muitas confidencias, in-
ventar respeitosos galanteios, elle ! que os fizera sempre com a grande elo-
quência fria dos que náu falam sinceramente... c ficava mudo! Tinha
vergonha de lhe dizer o que tantas vezes dissera a outras mulheres. Pare-
cia-lhe que ella o reprehendia,' não pelas palavras que elle não ousava
pronunciar, mas pelos pensamentos que o assaltavam.
O amor é sempre supersticioso; e por isso Jacob começava attri-
Não era innocente. mas casta, duma castidade consciente, como a pro-
! . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
A sua historia devia ter sido curta — era apenas a historia d'uma in-
uma irmã, mas já com o tino de uma esposa. Mulher para a sorte mais
feliz, que ella saberia dourar com as magnificências da sua educação ou
intuição delicada e artistica; mulher para a desventura, que ella saberia
dulcificar com a sua corajosa resignação, e o seu carinho angelical! Como
havia de ser feliz o homem que a tivesse por companheira?! Honesta,
meiga, forte, dócil e altiva
Ella ia dizer-lhe que era grata e fazia justiça ao caracter d'ellc, mas
não diria mais. . . Nem devia dizer mais. Se ella o não conhecia! E n'essa
incerteza, para que desejava elle a liberdade?
Havia de voltar ao mundo, para não mais pensar em Sarah!
Jacob queria, e não queria. Esperava ancioso uma resposta . . em que
transparecesse uma esperança, mas temia que ella lhe mandasse uma cer-
teza. A certeza lhe tinham enviado as outras a quem elle requestara; Sarah
só podia mandar-lhe um agradecimento.
Ha coisas que não se dizem, adivinham-se ... O amor fala principal-
Talvez que ella, áquella hora, na sua pequena cella, orando á Mrgem,
accordada ou em sonhos,também estivesse a vêl-o, a elle, e a pensar o
que elle pensava, n'um mundo de aspirações, de incertezas, de esperan-
ças. .
O que elle sentia, se era uma grande saudade, era sem dúvida um
grande amor.
Onde estava a arrogância do seu temperamento, a rigidez do seu ca-
racter, a sua desdenhosa compaixão para com affectos pueris, que se não
traduzissem em satisfação de desejos e em glorias de conquista? Parecia
tivesse accesa aquella lâmpada, se elle próprio não pudesse ver tal fra-
queza —a sua vontade era chorar por aquella viva, com aquella uncção
religiosa com que se chora por um morto
E se ella o visse!
Mas qile doença esta, meu Ueus, disse .lacob, que terrível doença!
E' febre, é delirio, c loucura!. . -
IX
Céo toldado
— Pois não seria melhor vigiar Jacob que levar declarações de amor
á pobre Sarah ? Se não fosse Sarah, meu amo não estaria preso, e Deus
sabe exposto a quantos perigos !
— Meu pobre amo! como serias feliz se esta lua te alumiasse agora,
em vez da lâmpada triste do teu cárcere ? ! Como tu havias de aspirar
esta briza fresca e perfumada, que desce do Espinhaço I . .
Sem saber por que, talvez por imaginar que o cavalleiro viesse de Lor-
vão, levantou-se, pegou no cajado, c lançou-se a passo pela estrada fora,
ao encontro do inesperado viajante.
Áquella hora, por aquelle caminho, e a galope, só andava gente ex-
Tranha áquelles logares. A campo viaja com vagar. E o cavallo
gente do
era fino. . . e o cavallo é sempre uma feição do cavalleiro. .
Se Jacob não estivesse preso, aquelle cavalleiro, que tão bem montava
e que tão veloz corria, devia ser .lacob. Mesmo de longe, notara como
elle descera o morro fronteiro e saltara alguns barrancos no valle. Era um
valente calção, e uma mão de rédea egual, ou superior, a poucos que já
admirara no corro de Coimbra.
Para dar na vista, chegou-se mais para o meio da estrada e procurou
em cheio a faixa do luar.
Emfim o cavalleiro passou-lhe próximo, e Pepe parou, para lhe admi-
rar a carreira, e principalmente lhe espreitar o rosto.
Impossível
Uma nuvem de poeira envolvia cavallo e cavalleiro, como se a terra
—E teu amigo ?
— Já vol-o disse; e dos melhores. Eu até devia estar preso com elle ;
•^Nem que me matásseis! Sei o que ella diz apesar de não a ter
lido...
— Então o que é ?
como os outros ; mas eu sei quanto gosta da menina Sarah. . . Até o aju-
M^STEIÍlOS DA INQUISIÇÃO
— Vou.
— Não o deixeis, emquanto eu não voltar ; receio que o mudem de pri-
são . .
— Não podias ser outro. O pastor que vigiou minha irmã devia pare-
ccr-se comtigo, meu valente rapaz.
— Sabeis, senhor, que me lembraes o Jacob sr. ?
— Por que ?
— Consolar o preso ?
reita.
—E ella ?
— Bem vedes a difficuldade. Por mar, como sabeis, não é fácil a sa-
bida.
— Inventarei um asylo em Portugal, bem secreto, bem occulto, onde
não chegue o faro dos aguazis. O melhor esconderijo seria em Lisboa.
Entretanto, a situação mudará talvez . .
—
El-rei tem vigiado com cuidado todo o nosso littoral, e no mar os
guez a um tribunal estrangeiro, para ser condemnado por factos niío pu-
— E no caso contrário?
— No caso contrário, devemos empregar o outro recurso, vericel-os
pela força . .
ria das vossas pupillas, se lhes faltásseis? Deborah deve ser vossa mulher.
e Sarah fugir d'aquelle abysmo. Não acceito tanta dedicação, Pedro
Soares. Deixae-me no meu propósito, esperarei. Só acceito um tavor, que
me fará profundamente grato. Se permittis?. . .
I
.
— Dizei; que poderei eu negar- vos, depois de vos ter offerecido a mi-
nha vida?
— Bem; peço-\os que, se eu não reconquistar em breve a liberdade,
se houver de cahir nas garras dos esbirros do Santo Oificio. permittireis
E Gil Vicente, envolto n'um grande manto, e com farto gorro de plu-
mas a descançarem no hombro, entrou na prisão, e, batendo com o peito
no de Jacob, abraçando-o, envolveu o seu amigo nas pregas amplas do
seu manto escuro.
— Homem, disse (iil ; tens o rosto pallido e os olhos vermelhos ;
pa-
reces uma mulher. Judeu duma figa, comtigo mesmo estás judiando.
— Esperava-te, Gil. Preciso do teu conselho e da tua amizade. . .
— Ainda bem que não precisas do meu dinheiro. O meu conselho não
presta, a minha amizade não vale — preferi trazer-te, neste cantil, o né-
ctar dos deuses, capaz de dar coragem a um velho cheio de maleitas ; e,
n'esta capa e n'este gorro, a liberdade que estavas pedindo aos arcos
d'estas abobadas moucas, e malcreadas.
— Disseste a liberdade :
— Vamos por ordem. . . o que eu disse primeiro foi este iicclai', refe-
E Gil levou á bòcca de Jacob uma pequena cabaça que trazia a tira-
— Tanto a ama, que vae livrar-te d'ella. El-rei é atilado e sabe, por-
tanto, que amar a justiça c poupal-a ás injustiças que ella pratica.
. . ! :
— Ainda duvidas ?
darei . .
— Tens razão, Gil. O mundo é muito maior que esta prisão ; mas o
mundo também tem muros, sentinelias, sombras, traições... Trazes-me
a liberdade dos. pássaros, que se apanham com a mão, e se soltam n'uma
gaiola. Tenho a liberdade de dois poleiros. O meu paiz gradeado pelo
oceano e por Castella.
— Ingrato
— Sou o que quizeres, mas vejo. Ver n"estas sombras não é ser in-
— Se me julga innocente,
el-rei porque não ordena que me absolvam
de faltas' que não commetti, e não responde a Castella que c sagrado o
meu asylo ?
—
O tempo não c de mais para discussões bysantinas. Queres defen-
der-te ao ar livre, ou aqui sob as lanças da justiça ?
— Trata-se, então, de ti ? . . .
— Ora, Gil Vicente, mudo, é pouco mais ou menos Jacob Adibe. Me-
nos judeu, mas estatura approximada. A natureza tem destas aberrações.
Debaixo d'este manto e deste gorro, o í\'po christão do poeta confunde-se
com o poeta judeu. Rimamos, por um acaso providencial, na estatura e
no passo. .
— Vae andando. .
— Em proveito d'elle ?
— Gil Vicente, disse Gil a Jacob, que estava rebuçado no manto e ti-
deixe :
— Que vás para o diabo, e não voltes aqui, onde hei de ficar penando
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 285
como senhor por entre esses esbirros imbecis. Na primeira estalagem onde
descançares não te esqueças de beber á saúde d'el-rei, e á minha. . .
Jacob sahiu com passo largo, e, durante alguns momentos, Gil, sen-
E o outro senhor?. .
— E' um bom amigo, como tu, um rapaz, que tomou o meu logar.
o, teu posto, fazendo crer que ainda estou preso. Preciso de tempo para
me afastar. A' cabana de teu pae mandarei recado. Obrigado, Pepe.
Jacob metteu esporas no cavallo, e partiu a galope.
Pepe voltou para o recanto do castello, mas ainda lá náo chegara, vi-
rou-se rapidamente, julgando que Jacob voltara para lhe fazer alguma nova
recommendação.
Enganava-se; não era seu amo, era outro cavalleiro que surgira de um
massiço de arvoredo e que seguira, também a galope, a direcção que to-
mara o moço christão-novo.
—
Deve ser algum servo de Gil Vicente, que vae enganado; pensando
seguir o bondoso fidalgo. Antes assim. será guia e companheiro do
. . . .
— Venho de Poiares...
— De Poiares Então não ? ha grande razão de queixa. Bem se vê que
não sois destes sities. .
— Vinha ; e, se não fosse eu, a esta hora estaria em P^oz d'Arouce, Sem
saber o que havia de fazer á sua vida. Esta noite parece que toda a gente
anda perdida ...
. . . . . :
— Tendes razão.
— E por isso foi que eu vos perguntei donde vínheis. Como vindes
de Poiares, não sois o mesmo. .
— Decerto. . .
despertava.
— De Lorvão, sim; parece que houve coisa séria no mosteiro. Tam- . .
bém quando será que alli passe uma semana sem grande escândalo?
—
Vamos então para onde vos aprouver. O que eu preciso é de uma
cama para mim e um estabulo para este valente animal.
E Jacob, dando a esquerda ao pobre aldeão, que montava uma aze-
mola, carregada com o cavalleiro, os alforges e uma cabeçada cheia de
guizos, foi arripiando o caminho que fizera nas ultimas horas da madrugada.
— Dizeis, então, bom homem, que esse tal cavalleiro sabia de qual-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E acertastes?
— Como se tivesse visto.
— Deixemos lá gosar a vida ao pobre morgado. As mulheres inventa-
ram-se para serem roubadas, não é verdade? As que casam também são
roubadas aos pães: é o roubo que os pães approvam á força.
— Em chegando a Ceira deve haver melhores informações. Talvez
seja alguma pequena da corte, ou de alguma família illustre das Beiras.
As mais finas são as que fogem mais, e as mais ricas as que teem mais
quem fuja com ellas.
— Mas, dissestes rapto, e o rapto c ;is vezes contra \^ontade das mu-
llieres.
— Quem acredita nisso? Quando uma mulher não quer é porque não
quer. Eu, pelo menos, lá cm casa, por mais que faça para fazer calar a
companheira, não o consigo. . . Mesmo tapando-lhe a bòcca ella grita mais
que eu. .
E onde estaria elle agora com a sua victima ? Tendo muito ouro para
distribuir, em qualquer parte havia de encontrar cúmplices activos e dis-
cretos.
sempre accordada, e ella sabe o caminho tão bem como eu. Quando a
monto digo-lhe ao ouvido para onde vou, e, depois, se é preciso dormir,
dorme-se á vontade. .
— Longos, mas menos perigosos. Ainda não ha muito tempo uma fu-
gitiva de Santa Clara foi parar a Cilleros, uma pequena aldeia onde as
justiças portuguezas não puderam chegar.
— Que povoação é aquella, disse Jacob, apontando para um monte
de casinhas brancas.
— E' que nós
alli quatro iremos descançar.
— Por Deus, que já não posso conter-me com somno. Vou lá esperar-
vos. Este passo mata-me.
E Jacob partiu rapidamente pela estrada.
O guia endireitou o busto, rnetteu esporas no animal, que, arrebitando
as orelhas se largoutambém atraz do fugitivo de Coimbra.
Quando Jacob chegou á povoação, mal teve tempo para se apear.
I
.
ção. . .
rigindo-se a dois novos freguezes ; ora ainda bem que não faltaram
Chegaram agora, ou já estavam de hontem á noite :
—
Chegámos agora mesmo, e vimos moidos que nem saccos de farinha.
Os recem-chegados tinham o typo de recoveiros homens fortes, re- —
queimados, de altas polainas e gibões de pelles.
— Quereis almoçar, não verdade é :
de barro.
— E o mais interessante é que encontrado no logar d"elle... foi
— E tu ? perguntaram os recoveiros.
— Eu irei seguindo-lhe as pisadas, para ter a certeza de que não re-
considera . . .
— Ainda receias ?
— Sempre. Imagina que alguém lhe diz que Sarah ainda está em Lorvão ?
cava, isso não! Sarah ainda lhe não tinha dicto que o amava, mas dera-lhe
a certeza de que não queria pertencer ao fidalgo de Travanca. .
Logo, o seu dever era libertar Sarah das mãos do seu algoz. Sarah
era para elle mais que uma mulher — era um idolo que lhe dera uma re-
ligião, que elle não tinha. Porque elle, atinai, não era judeu nem christão
nunca fòra um sectário como seu pae. E tanto que se resignara ao baptismo
catholicosem violência, sem ódio fizera-se christão para ficar em Portu- ;
Sarah era uma rapariga muito nova e muito bonita... mas, se não
fosse tudo isso, elle poderia não amal-a, mas havia de defendel-a. Aquillo
era um dos predicados da sua indolc.
Vira uma só vez Pedro Soares, mas, como formara delle uma idéá
lisonjeira, se alguém o atVrontasse, Jacob esbofetearia o insolente. .
quem queria zelar ; de que corria atraz d'uma sombra, que não era a dos
fugitivos, mas apenas uma miragem da sua exaltada imaginação; e o peor
de tudo — de que entrando em Castella, entrava em terra inimiga. . . De
nada se lembrava Jacob !
Que certeza tinha elle dos factos que lhe contaram ? Quem eram esses
homens, que lhe tinham perturbado o espirito com taes novas ?
Por que não havia o algoz de voltar a perseguir a sua victima, depois
de afastados tão sérios obstáculos ?
I
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 297
Jacob quiz erguer-se, mas já não pôde; duas mãos vigorosas lhe car-
regaram nos hombros, fazendo-o cahir de bruços ; e logo outras lhe pren-
deram as pernas.
Eram quatro homens vestidos de negro — negros o fato e os rostos,
que traziam cobertos com mascaras.
— Segurem-n'o bem — disse um d elies em puro castelhano, e passem- y
lhe já as laçadas. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
marrando é perigoso.
—E que Moysés tinha d'isso na cabeça. .
mina! Tão bôa que até brilha á luz das estrellas. Do que nós nos livrá-
mos! Se elle tivesse tido tempo para se coçar, lá se ia pelo Tejo abaixo
todo o preço da nossa façanha.
— Deixa-te de lamurias, poltrão, e dá-me essa arma.
Garrovilia ao entregar o punhal passou-lhe a mão peio cabo e sentiu,
sob os dedos, o relevo de duas iniciaes.
— Reparae, senhor, que ha lettras n'essa prenda.
O chefe passou também os dedos sobre o cabo, e disse cm voz alta,
—K tem razão para isso. . . ver-se assim atraiçoado pelo seu rei e
pelo seu amigo I
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
vilha. Eia, rapazes, é raetter ao rio, a passo, para não entornar a carga...
Jacob, na tortuosa posição, sentia-se cheio de dores e de desespero
levando a cabeça pendida, ia olhando o céo, de fundo escuro, mas pro-
fundamente estrellado, como um manto de velludo recamado de brilhan-
tes; e, abrindo muito os olhos. n'um lamento intimo, que faria chorar quem
o adivinhasse, ia pensando :
Sevilha
Crê-se bem não haver no mundo terra mais alegre e exquisita, mais
cheia de arte, de sol, de perfumes e de sorrisos ! A graça feminina e a
quente verbosidade dos homens, o matiz deslumbrante do vestuário da
população, a musica popular rebentando a toda a hora das ruas, dos ca-
fés, dos palácios... As flores debruçadas das janellas, dos balcões, e a
surgirem por entre as tranças negras das hespanholas —a pandeireta e a
castanhola estrugindo em todos os recantos da velha cidade árabe, o tor-
velinho industrial de gentis raparigas, que enxameiam nas fabricas de ta-
bacos e de faianças ! . . .
negra da morte, o lucto que veiu d"um dos maiores crimes da humanidade,
commettido em nome de Deus e de Jesus
E que admira que hoje Sevilha seja a feição mais pronunciada na vi-
eram perseguidas por isso, como as mais ricas pelos seus thesouros, e,
em vez de fabricas cheias de operários servindo a terra e o Céo com o
seu trabalho, havia cárceres cheios de miseráveis, captivos como os cães,
afflictos como os antigos martyres do christianísmo, tão desesperados de
justiça, tão desvairados com o softrimento, tão esquecidos do seu e do
Deus alheio, que os que não succumbíam na loucura, não acreditavam em
Deus, nem na Egreja, nem na moral, á hora extrema
A aragem do formoso rio parecia quente, como as línguas de fogo dos
autos de fé, e as aguas que jorravam das velhas fontes mouriscas pare-
ciam brotar vermelhas como o sangue de tantas víctimas.
Andavam rubros os olhos dos velhos por causa dos filhos, e das
creanças por causa dos pães, e o orvalho, o único que então refrescava a
gente n'aquella desgraçada terra, eram lagrimas, que faziam sulcos pro-
fundos nos rostos emmagrecidos. Havia no ar um denso nevoeiro de
hypocrisia, e, em vez das canções alegres, características da alegre gente
andaluza, apenas se ouvia entoar sinistramente o Benedictus e o De pro-
fundis . . .
triga chegara ao seu auge, o ódio ao seu fastígio ; só o amor tinha o seu
tormento ! O frade era o senhor da terra, que em vez de fecundar esteri-
lísava. A liberdade, nem na alcova mais escusa, nem no sacrário mais in-
timo, se julgava segura ! A vida era tão contingente como se uma grande
peste estivesse assolando aquelles bairros, outr"ora ruidosos e festivos.
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3o3
tões das sacadas, aquelle aspecto rico e alegre, que não prejudica a uncção
religiosa de taes festividades.
ficado, balouçando-se nos hombros dos lieis, sob uma chuva immensa de
pétalas de rosas e cravos, não tem a apparencia dum martyr, justiçado,
. . !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
como homem, pela injustiça dos judeus, mas o d'i.im Deus, que para me-
lhor subir ao Céo, e velar pela humanidade, subiu o Calvário, e abriu os
mente nos séculos xvi e xvii, a mão de ferro e o facho ardente da terrí-
vel Inquisição!
— Então, também r
— K' certo.
— Pois o meu condemnado por amar teu pae.
foi . .
— E asora ?
. . . . .. . . . .
— Esperemos . .
— Então confessa . . .
— Morreremos de fome . .
— Que horror!
— Não digas isso... estavam deitando chumbo derretido nos pés do
miserável . .
— Ha muito tempo!
— E a sentença?
— Bateram-lhe com um chicote, desmaiar. até ella
E o transeunte deu-lhe uma esmola.
— Ouve, rapaz: não digas a ninguém que tive dó de ti, percebeste?
. . : : . .
— Coisa grave ?
— Nada mais, nada menos que tirar o cebo e a gordura da carne que
comprou para o jantar, e, não contente com isso, purificou-a na agua e
dessangrou-a ! . .
— E suspeita
é i'elu'»!ciile. .
— Pobre Joann.a I
— E a segunda delação
já ?
Pablo, que já se não lembrava de que fora judeu, foi a passeio com
uma formosa' rapariga. . . Não se lembrou de que era um sabbado, e ves-
tiu camisa lavada e fato novo... Elle ia alegre, e ella mais bonita que
nunca. . . Ao passar á porta de Jerez foi preso, foram presos ambos ! Um
rival de Pablo utilisara o artigo 4.° do édito inquisitorial I
saltam, foi tão grave o que disse o bispo de Córdova, são taes os attenta-
dos de Lucero, que Deza terá de se recolher ao nosso arcebispado. .
recair a diligencia.
Começa a lenta, a disfarçada dispersão, e faz-se o silencio na rua, ou
na praça.
De súbito, dois ou quatro aguazis envolvem um homem só, e levam-no
para o carro especial, puxado por machos, com as patas forradas de peile
de búfalo, e atacadas com correias. Dahi o nome de hoi-eixiiim dado ao
vehiculo traiçoeiro.
Se o captivo não resiste, o iii/tio cscorredi\o não vem á acção ; no caso
! : — : . . !
— Já.
— Então vá ver o Quemadero?
— O Quemadero. O que isso é ?
Ou então
— Teu irmão era tão fraco, tão doente! que, quando o subiram na'
corda, chamou por mim, e morreu ! . . .
— Judia. .
— E que mais ?
— Christã.
— Teu pae ?
— Morreu na Tablada.
— E tua mãe ?
— Ouço-os gemer
gritar edentro; alli e apontava. .
— Roubaram-m'a.
— E o que fazes ?
i
.
E bem certo que todas as instituições politicas são filhas dos povos que
as toleram.
N'aquelles tempos malditos, deixem-nos empregar este vocábulo absurdo
e odiento, a ignorância era tanta, que a maldade instinctiva e o fanatismo
contrahido em séculos de obscurantismo faziam dos povos os collaborado-
res da tyrannia de que estes foram victimas.
Affirmava-se, naturalmente, na evolução do espirito, que c tão natural
como o movimento da Terra, aquella transformação, que aperfeiçoa, escla-
rece, humanisa. Os cérebros abriam-se como os cálices das Hôres, que
nascem pelos campos, sem canteiros, sem cultivos, apenas com a seiva
da terra, o calor do sol c o orvalho da noite !
Foi por isso que ella começou, como Lisboa, pedindo o fogo da terra
para os que desafiavam o fogo do Céo, e foi por isso que ella ia, dia a
XI
A Inquisição
Hespanha.
Para se avaliar os terrores d'essa instituição seria necessário espreitar
Madrid, Valência, Murcia, Toledo, Granada, Valladolid. . .
rei catholico. A rainha Izabel era de caracter mais brando, mas duma
cega piedade, que a fazia escrava da sua escrava consciência.
AUi por 1460 estava Castella limpa dos horrores, que depois soffreu
pelo espaço de tresentos e trinta e nove annos, e até frei Alonso Espina
arguia Henrique IV do abandono em que vivia a religião catholica, maltra-
Era tal a irritação e o zelo de Espina que este se deu ao pesado incóm-
modo de andar offerecendo-se a diversos bispos para syndicar as heresias
e denunciar os heréticos. Parece que este franciscano não logrou o seu
intuito, apesar de ter andado pelas dioceses a espionar a vida de mouros,
judeus e christãos-novos, que discutiam os dogmas do catholicismo. .
I
.
3 14 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Mal passou, pois, o. dia de Anno Bom do anno de 1481, foi promul-
gado um édito inquisitorial, no qual se dizia
(I . . . Tendo chegado ao seu conhecimento a mudança de domicilio dos
ordenam ao marquez de Cadiz, ao conde dos Arcos, e a
christãos-novos,
todos os mais senhores dos reinos de Castella, que, no prazo de quinze
dias, prendam e enviem a Sevilha todos os fugitivos, e lhes sequestrem
«Permitta Deus que dure até o fim do mundo, para defesa e augmento
da Fé.
«Ergue-te, senhor, e julga a tua própria causa. Entregae-nos as raposas.»
Não permittiu Deus que ella durasse para além da grande revolução
que, no fim do século passado, abalou o mundo e. libertou a consciência
humana.
Cabe-nos agora, no gôso duma liberdade immorredoura, afugentar as
modernas raposas, ensinando ao povo a historia velha e feia.
Dado o primeiro passo, o segundo torna-se fácil.
! ! !
MYSTERIOS DA INQUISIÇxVO
Era uma villissima rede armada aos crédulos pela traça dos inquisido-
res. E tanto que só lograram perdão, dos muitos que confessaram, os
poucos que se prestaram a denunciar os que não confessaram as próprias
culpas
Que honrada gente 1
MY3TERI05 DA INQUISIÇÃO
cárcere perpétuo!
Em Hespanha, a Inquisição enluciou e arruinou mais de vinte mil ta-
milias!
V.m Sevilha, a mortandade attingiu taes proporções que foi necessário
construir o célebre Quemadero, na Tablada, em que os condemnados
eram queimados em turmas de quatro, em estatuas de gesso I
Inquisição.
Para esse tribunal foi nomeado, pelo breve de 17 de outubro d"esse
mesmo anno, chefe geral, o célebre Torquemada, que também foi inqui-
I
! !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
a denunciantes.
Referiam-se a toda a Hespanha — única dilTerença entre elles c os já
publicados.
No sexto artigo começava a cahir a máscara — a ganância substituia-se
á íé.
bililação.
pelas testemunhas.
As torturas assistia sempre, pelo menos, um inquisidor, para tomar
nota das confissões.
O ausente, sem prazo determinado, não comparecendo, era julgado
e condemnado como hereje convicto.
Não havia tempo nem sequer para tomar conhecimento da accusação!
A heresia, verificada depois da morte do hereje, auctorisava a confis-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
MYSTERrOS DA /NQUISIÇAO 32
fogueira.
soa, e seis mil oitocentos e sessenta, em effigie, por terem fugido, e con-
demnados noveiita e sete mil tresentas e rinte uma a diversas peniten-
e sob o docel do seu throno, cada uma no seu período de caricias e sug-
gestões, três formosas e fanaticis princezas de Castella
O reflexo da Hespanha ameaçava a todo momento incendiar a terra
portugueza !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
apenas 97:^21 I
inquisidores de Valência I
'lí
! ! !
A causa allegada n"este processo foi haver a pobre dama, sempre tida
como boa catholica, praticado, quando maça, actos suspeitos de judaísmo !
Foi o bastante.
Fm Murcia, morreu, atormentado nos cárceres secretos, um mouro,
porque fora surprehendido a ler livros árabes da seita de Mahomet
Em Granada, sobre o estrado em chammas, morreu, abraçada a duas
tilhas, uma cigana, cujas lagrimas tanto commoveram os inquisidores, que
lhes fizeram a graça de as queimar juntas I. . .
Desde 'a perseguição dos judeus até a expulsão dos mouros, desde os
reis catholicos até o Demónio do meio-dia, a lucta foi constante até chegar
o momento em que, á força de martyrios, se realisou a unidade religiosa
na Hespanha.
Foi então, no- desabar das synagogas e mesquitas, que as terras de
Hespanha mais se coalharam de conventos.
N'esse piedoso século xvi chegou a haver em Hespanha nove mil con-
ventos, com mais de noventa mil frades, trinta e quatro mil freiras, e
Por isso a população baixou a seis milhões, ella que atiingira quinze
milhões antes da expulsão dos mouros I No bispado de Calahorra, com
sessenta mil habitantes, chegou a existir quatorze mil clérigos 1 Sevilha ex-
cedia em gente sagrada a prodigalidade de Calahorra, e em nove mil casas,
com que se enriquecia, sete mil pertenciam a conventos e egrejas.
A Inquisição deu todos estes bellos resultados : o deserto nos campos
e nas cidades, a fome, as luctas civis, a perda da marinha, do exercito, de
Nápoles, da Sardenha, da Sicilia e dos Paizes-Baixos I
Foi por este caminho que irrompeu a heresia entre o clero, e a con-
sciência humana começou a revoltar-se fazendo a critica dos costumes e
da moral.
Sopravam com mais força os catholicos orthodoxos da Hespanha as
fogueiras da sua vingança.
Morreram, então, os martyres da reforma com o mesmo estoicismo
com que tinham morrido os martyres da religião christá.
A Hespanha fazia-se precursora da AUemanha, e as criticas de Fran-
cisco de Osuna e de Paulo de Leão evidenciavam a corrupção dos ser-
Phenix
cácer sem gelosias e sem luz, ôco rochedo onde os açoutes de vendaval
faziam écho prolongado e sinistro !
Era aquella uma das velhas bastilhas do mundo nos tempos trium-
phaes da txrannia, que os séculos e as revoluções fizeram desabar, como
se a civillsação se tornasse incompatível com ellas.
Nivíla-se com a rua o portão da entrada, para dar accesso aos frades
de sandálias e aos machos de borzeguins, e a grade de grandes varões
de ferro mal se avista no fundo da afunilada abertura, em arcadas enne-
grecidas, feita na parte mais saliente do bojo da fortaleza.
A' flor da rua, sobre a arcada maior e illuminada por uma lâmpada,
espalma-se uma grande cruz, sem imagem, liza, negra I
Das excrescências dos muros, das hervas do terraço, das ogivas esbu-
Negocio grave devia ser o daquella noite para que Sevilha tivesse tão
honrosa visita !
— —
Ah! já sei é uma Pheni.x. V. verdade que em Murcia se dá esse
nome aos que vêem offerecer o corpo fogueira que lhe queimou o es- ;i
pantalho.
— Alli, em baixo, disseramme que \iera hontem de Portugal um ju
— Isso não pode ser. Ha quanto tempo estão elles a fugir para França
e para Portugal, e por lá se ficam, por muitos annos e bons ! . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 33
— Talvez . . .
— E promettes obedecer:. . .
— Prometto. .
— Pela tua fé ?
culdade e dôr.
novo observou que, pela galeria e pela escada, em cada arco da abobada
e em cada patamar, ha\ia um grande crucifixo, ou pintado, ou em re-
levo.
ção.
Ao lado do inquisidor, e de pé, montões de monges, fazendo-lhe corte,
e a distancia, perfilados junto das paredes, fila de familiares, de mãos es-
condidas nos hábitos, e altos capuzes na cabeça com máscaras negras,
que consistiam apenas num toldo cabido, de panno preto, aberturas nos
logares dos olhos e da bòcca. . .
-7 ^^
MYSTERIOS DA INQUISlÇAfJ 333
— Sei que !ui victima d'uma vil traição do vosso e do meu rei, e que,
emquanto eu viver, amaldiçoarei, de todo o coração, a cobardia de Manuel I,
— Hssa liberdade era sincera até a linha da fronteira. Por que a ultra-
passaste?
— Porque me disseram que uma mulher, que eu amo, a transpuzera
antes de mim.
MYSTEKIOS DA INQUISUlÁO. — VOL. I. FOL. J.2.
. .
— O ódio!
— E como chama essa mulher?
se
— Amor!
— Estás, então, no propósito de não responder ao Santo Oificio, que
não admitte segredos em quem julga e condemna?
— Ides raatar-me — abri-me depois o coração.
— E' certo que estás condemnado morte; mas repara: á a pena maior
traz a morte, mas ha outras que trazem a vida a morrer. Pede a Deus
conselho, serve a Egreja e a justiça,' e salva a tua alma. desgraçado.
— Não me insulteis com a vossa piedade . .
— Meu pae é um crente, não é um pensador. Cré enn Deus, por causa
do seu Deus. E' um sectário, e eu sou um philosopho. A minha divindade
reflecte-se em todas as religiões, mas não depende d'ellas. Não confundo
o divino com o profano, e as religiões que se convertem em poder tem-
. :
— Ainda uma vez, Jacob ; o tribunal da Inquisição não pode, não deve,
n;'o ha de prescindir da tua abjuração. Escrevel-a-has no teu cárcere, e,
n;. egreja, deante do sacrário, sobre um /sstrado, para que todos te vejam,
has de lel-a, beijando o crucifixo e os Evangelhos. Se tudo fizeres volun-
uriamente, verás Sarah, que virá pedir-te antes, ou agradecer-te depois
— aiiás, definharás incommunicavel no teu cárcere, minado pelas sauda-
des!... Só consentiremos que os teus inimigos te visitem e escarne-
çam. .
Estava pensando
— Quem sabe se, depois de morto, a minha alma poderá andar no
mundo, acariciando e defendendo Sarah ?. .
— Espero isso em Deus, mas não confio demasiado. . . Que dizes a isto,
Frei Rodrigo de Sagarra ? Olhae que tendes n'esta empresa ensejo para
perder ou firmar o vosso cargo. . .
— E' grosseiro esse pensar, frei Ilodrigo. Não se trata de João Mves,
com pública synagoga. . . Sabe o povo que os judeus não teem direito á
vida. . . Outra religião não se admitte. E' como uma invasão estrangeira.
Moisés não pode dominar em terras catholicas de Hespanha. .
de almas que nos temem, começam jd a apparecer centenas que nos dis-
cutem? E' preciso ter cuidado com a heresia em nome de Christo. Não-
esqueçaes que as antigas feitiçarias, magias e superstições, inventadas para
punição da ralé, já não podem ir além dos ignorantes e rudes, e dos doentes
energúmenos. Os bispos já começaram a judaizar, dizemos nós, mas a
verdade é que começaram a obra da revolta. Lembrem-se de D. Joãa
Ávila, o bispo de Segóvia. . . A onda cresce. E' preciso queimar com as
Bíblias, muitos livros que por ahi começam a surgir, cheios de tactos e
critica.
— Prefiro, por agora, esse recurso. Devo até explicar-vos que te-
compaixão e a prudência !
— Contra Deza ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Tu, Ocana, toma conta de Jacob, que está numa camará de mi-
sericórdia ; eu e Segarra vamos esperar que monsenhor accorde para lhe
lembrar que o bispo de Catania pode, d'um para outro momento, despejar
os cárceres e apagar as fogueiras. Jacob está em nossas mãos — ha de em-
mudecer e falar, quando nos aprouver. Para que se inventou a mordaça
e o fogo ? Para Phiiippe I ser apenas o Bello? Reis bonitos e rainhas ciu-
mentas importam-se, acaso, com os perigos da Egreja ? ! Veremos se a
revotta triumpha ! Se temos aqui fechada a mão da Providencia !
Um amiffo
Jacob foi recolhido n"uma d'estas camarás. Para elle a cella estava es-
pecialmente preparada com emblemas religiosos, livros sagrados e quadros
que representavam autos de fé. Havia alli mappas de geographia nascente,
caravelas portuguezas e hespanholas, tudo encimado pela apparição de an-
jos entre nuvens e de Christos, aureolados em sarças ardentes. Havia
também, pelas paredes, quadros bíblicos, do novo e velho testamentos,
desde o peccado original até a resurreição de Jesus, desde a serpente do
Paraiso até o purgatório, onde as almas estavam representadas, por bus-
. . .
tos de gente gorda e corada que parecia tomar banho de fogo, com phos-
phorescencias amarellas ! Não faltava até a oração do Horto e o beijo de
ia reconstituindo o passado.
Antes de abrir os olhos ouvira distinctamente:
— Vamo-nos, deixemol-o só.^O socègo poderá salval-õ.
ros gemidos. .
— E' contra a ordem, dissera uma voz áspera; o vosso logar é no vosso
cárcere; demais tendes abusado da nossa complacência. .
minha consciência, pelo martyrio dos meus, victimas innocentes d esta In-
quisição maldita, vos juro, sr. Jacob, que tremi nos poucos momentos em.
que estivestes entre a vida e a morte. .
— Só. E' possível que também tivesse notado que Baccho como
tinha,
Moisés, dois raios de luz sobre a fronte, e que Baccho e Josué mandaram
parar o Sol'. .
J
. . .
Antes de terem sido salvos Noé com sua familia, não salvaram os anti-
— Também eu disse isso, também disse, sr. Jacob ! Até lembrei que
Hercules aos pés de Omphale era copiado servilmente por Sansão aos
pés de Dalila. .
— Quanto poderi^imos dizer, meu amigo, sobre taes coisas, tão evi-
dentes quanto perigosas! O que elles vos fariam se lhes ensinásseis que
P^oê, deus da China, nasceu de uma virgem fecundada por um raio de
— Oh! se ha! sr. Jacob. Milhões de forças! Tantas coisas nos dizem,
taes torturas nos fazem, que, por mais que a razão nos diga o que é ló-
gico, acabamos, afinal, por acceitar o absurdo... Quantas vezes tenho
dito, a sós, nas horas das minhas meditações : Quem sabe : Talvez elles
tenham razão
— Que diriam elles então se nós lhes disséssemos que, ao fazerem a
sua religião, nem ao menos tiveram o dom da originalidade Não crearam ?
— Sim, sou judeu, como poderia ser christão. O meu defeito vem do
meu baptismo, não da minha consciência. Quasi não distingo, tão pouco
fanático me fez a leitura de bons livros ! Os livros judeus são a base da
religião christã. .
car junto de vós, uma noite, uma um momento, o bastante para ma-
hora,
tar as saudades que tinha de ouvir um homem, um verdadeiro homem
Um homem, como eu imagino que hão de ser aquelles que um dia hão de
fazer saltar estes muros, e deixar livre o pensamento ! . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Sei, senhor, infelizmente. Sei que a morte nos espera, com todos os
seus iiorrores, mas sei também que o mundo está cheio de surpresas.
faço a catechese cathoiica com todo o calor d' uma artificiosa argumenta-
ção?!
— Que sacrificio deves fazer?!... Ora, ahi está um supplicio que lá
fora não é conhecido : ensinar aos outros o que temos por falso e erró-
neo!. .
— Sim, disse isso, mas não disse mais, que não sabia explicar a posi-
disse o mesmo, sem revelação divina ? Confúcio também disse egual con-
selho. Fa:{e cios outros o que quiseres que te façatu, disse Zoroastro. Je-
sus, por outras palavras, disse isto mesmo mais tarde . . . E a eucharis-
tia ? . . .
. : .
sestes . .
var. . . Esses idiotas eram os mais hábeis rafeiros á caça de segredos. Quem
havia de recear a percepção de taes monstros ?
que a semelhança do delicto era indicio de que elle conhecia algum novo
accusado.
Ou o desgraçado soflria essas torturas, ou acceitava a tarefa de arran-.
car confissões, utilisando n"esse empenho, o seu ódio contra a Inquisição,
a sua fé religiosa, e até a sua compaixão pela nova victima.
N'esse caso, por mais sinceridade com que acompanhasse as contissões
do atraiçoado, nunca isso lhe seria levado em conta. .
apurava o traidor. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
apertaram no potro; mas alinal, tinham-ihe posto na alma todos esses hor-
ríveis apparelhos
Cahiam-lhe da testa bagas geladas de suor, e dos olhos lagrimas quen-
tes como o fogo Parecia-lhe que lhe parara a circulação tremia por
! ;
dentro com calafrios, e por fora a pelle se ouriçava, e as pernas não o sus-
tinham '
E que isto a que nós chamamos espirito, matéria intangível que nos
abala como uma rajada de vento, e que nos faz sinistros vendavaes no
mar de sangue que nos palpita no peito, tem uma harpa delicadíssima, de
nervos tão sensíveis, tão contrácteis, que ao roçar por ella o sopro d'uma
idca, triste ou vergonhosa, se abala e vibra, e se despedaça !
tudando n'elle, que o fitava com carícioso terror, um dos mais sombrios e
mais horríveis m3'sterios d'aquelle tribunal da Egreja. .
Que poderia Jacob soffrer nos cárceres e nas torturas, que pudesse
comparar-se áquelle martyrio ? O remorso era o fogo mais impiedoso com
que se podia martyrísar o cérebro daquella victima !
Via bem Jacob que o seu espião, n'aquelle momento, desejava arden-
temente ou a morte ou a loucura.
E o moço christão-novo, esquecido de si próprio, fez um signal a
Paço para que se approximasse do leito.
martyrio. Não te quero mal por tão pouco. . . Tens soflrído muito, não c
verdade r
. .
Mais tarde queimaram-me os pés com estanho fundido. . . Agora cedi 1...
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Perdes o teu tempo, que a força ainda não está constituída em Direito, e
— Que te peço ? . .
homens, nem de vinte frades, mas duma sociedade inteira. Aqui até o or-
gulho dos reis e dos príncipes tem sido eficazmente abatido. Se não sou
vosso amigo, admiro vos... A admiração faz parte da estima. E" quasi sem-
pre por ella que se começa. Quero dar-vos um conselho: não rebaixeis
essa fidalga altanaria! A muitos orgulhosos tem aconselhado a humildade,
para lhes evitar humilhações; a ti recommendoa para que não amesqui-
nhes o teu brio. Onde cederes, não haverá violência. Ora, sejamos razoá-
veis; ninguém põe em dúvida o teu denodo. E' necessário que ninguém
se convença de que podes ser submettido pela força brutal. Comprehen-
des o meu raciocínio r
e fazer-se ludibrio dos fracos irreverentes, tenho pena, tenho sincera pena...
— Estou prevenido contra todos os teus ardis; mas é verdade que acho
lógica n'esses raciocinios. . . Es, sem dúvida, um velhaco refece. á altura
dos teus companheiros, mas tens razão, porque me estás convencendo.
— Tudo isso é prova de que és tão valente, quanto razoável. Se que-
res que te matem, e se aqui houvesse quem te quizessc matar, prezo tanto
a tua dignidade, que não hesitaria em aconsclhar-te a que te não sub-
mettesses. Em poucos segundos cahirias para ahi atravessado por uma lan-
ça, ou esmagado sob os pés dos esbirros. . . Mas não; acredita, poupar-te-
XIV
Quem ha que não descreva o Emp3'reo? Quem não pinta o scenario do In-
ferno ? E comtudo, nada mais diflicil que desenhar o sonho mais poético,
luminoso, florido, cheio de cherubins e de harmonias, em que o Céo se
apresenta ao espirito religioso dos christáos!
Vela-se o Infinito, com uma abobada azul, e nada vemos através delia
senão com os olhos do espirito, esse immenso telescópio que devassa to-
dos os segredos do espaço I
Fala-se nas chammas infernaes, cujas línguas teem a forma das que
lambem a resteva nos campos, mas ignora-se a maneira de as descrever
na sua impetuosidade sibilante
Como é mais formosa que todas as outras a nossa aldeia natal ! Que de
perfeições inimitáveis nos filhos do nosso amor! E' dos nossos olhos, que
vêem a côr, o tamanho e a forma
Quem pretende descrever a forca? O algoz? EUa é apenas um pórtico
isolado, singello, nu, sobre um tablado vulgar. O condemnado? Elle é um
monstro esquelético, cujos braços semelham os da Morte, e onde o baraço,
a balouçar-se no espaço e a desenhar-se no céo, parece mais um látego
movido pela mão de Deus, que erguido da terra pela justiça dos ho-
mens!
A sala das torturas! Como havemo? de fital-a e descrevel-a? Com os
olhos do nosso século civilisado e brando, mais amoravel que forte, mais
tolerante que convicto, em que vi\em o perdão e o scepticísmo em vez da
fé e da intolerância?
Com o olhar frio do historiador, que se transporta á épocha e ao meio
que critica, e alli pormenorisa o aspecto vulgar dum covil de homens cheios
de ferocidade e ódio:
MYSTERiOS DA INQUISIÇÃO
Umas vezes este trabalho era apenas uma aleivosia profissional, outras,
tura, e, taes respostas deu, que deixou de chorar afflicto, e, a rir alvar-
mente, denunciou duas filhas suas ! A Inquisição, para tirar partido desta
monstruosidade, como se o episodio de Abrahão e Isaac pudesse justifi-
Quem nos diz de que era feito o chão d'essa masmorra ? Aqui parece
o fundo d' uma cisterna, limoso, enxarcado, coberto de detrictos e de ver-
mes ; alli, ha madeira apodrecida embebida no lodo : mais longe, cano de
exgôtto obturado e infecto. . .
.\ando, apenas, á espera que o vento as arraste também, cinzas leves, com
uma só còr e uma só forma !
Na sala das torturas não estava Deus ; não podia estar I Aquellas cru-
. . !
zes eram falsas, falsas as imagens, falsas as preces que alli se rezavam. A
justiça não podia morar onde só a força se impunha. . .
E fala-se com horror da cova dos leões, para celebrar o milagre de Daniel ?
i
:
Jacob parou n'uma das voltas, e, fitando o inquisidor, disse com appa-
rente serenidade:
—Não; salvo se o inquisidor permittir que essa abjuração seja acom-
panhada da declaração de que fui obrigado a abjurar.
—Não gracejes com assumptos de tanta gravidade, que o prazo da
tolerância e do emprego dos meios suasórios é curto, e deve findar bre-
vemente.
— Já te disse; faze de mim o que te aprouver.
— Acompanha-me, pois, que preciso de te instruir sobre a sorte que
teem de sotírer aquelles que se não submettem á vontade do Santo Of-
ficio.
Jacob collocou-se, sem hesitação, entre aquella gente, que lhe poz as
algemas, com a rapidez e facilidade que denotavam longa prática profis-
sional.
dias ! . . .
batia serenamente . . .
Era dia, mas, apesar disso, esta scena era apenas allumiada pela
chamma d um sujo lampeão pendurado na abobada que intervallava a pri-
fadiga o levou a tomar uma attitude contrafeita, que fazia com que o des-
graçado não estivesse nem sentado, nem de joelhos, nem acocorado. Era
uma posição insustentax cl durante um minuto ! Kra um minuto de des-
canço !
— Piedade:
E apesar de não a ter repetido o mouro, o écho da arcaria, ouvindo-a
lá no fundo, repetiu sinistramente — Piedade !
cadas que estavam á direita da mesa do escrivão. Este tomou o seu logar,
e, levantando um pouco a máscara negra, para poder fazer leitura do pro-
cesso, bateu com a mão sobre o manuscripto para chamar a attenção dos
ajudantes.
O frade, que marcara uma folha no livro das orações, dispoz-se também
para a leitura. Os carrascos, bem velados, coUocaram-se junto do potro,
emquanto dois esbirros musculosos se punham de sentinella junto do
mouro acorrentado. Um servo de vestes seculares, de joelhos, junto do
brazeiro, soprava com um folie, que a custo se movia... Jacob ficou de
— Levantem-no. . .
Mal tocou com os lábios a taça que lhe apresentaram, o mouro abriu
mais os olhos mostrando rcanimar-se.
O physico tomou o pulso da victima, deitou a cabeça sobre o peito,
no sitio do coração, e demorou-se auscultando-o.
— Pode começar o interrogatório, disse o tcchnico, afastando-se in-
difterentemente. . .
--Oxalá!
— Olha que não ha falta de vontade. . .
— Nem de phariseus
— Qual o teu Deus
c ?
— E' o nosso . . .
— Como se chama ?
— Deus do Céol
— Dize commigo: .lesus Chn^to.
. .
— Foi mental.
— Que o digas. VJ preciso que digas o que pensas.
— Se eu não penso o que digol . . .
movido pela mão d um dos carrascos, lhe estalava numa face, dcixando-
O secretario escreveu.
— Onde nasceste?
— Em Tanger.
— E's hespanhol!
— Fui.
— Porque dizes, fui?
— Porque não nossa pátria é a que nos persegue c Hagella.
— Teu pae?
— Morreu.
— Tua mãe?
— Seguiu-o.
— Onde morreram ?
— Na Inquisição.
— Queimados ?
— Não apodrecidos
•, ...
— De que foram accusados ?
— De innocentes. . .
— Tens irmãos!
.
— O Santo Officio não ignora que elles viviam em. tua companhia, e
oravam em mesquita secreta. Sabes onde elles estão?
-
— Não sei.
— A'è se recordas. te
,
— Kra minha.
— Quem ta deu, para lhe chamares assim?
•
— Deu-se ella.
— Meu filho, disse o frade das consolações, salvae aquelles que vos
amam. Nós os faremos arrepender e elles ganharão o Céo.
—E vós, que me daes taes conselhos, como esperaes salvar-vos do
inferno ?
Um dos juizes fez um rápido signal aos negros carrascos, e logo elles
se precipitaram sobre Samuel. Emquanto um lhe passava uma correia so-
bre o peito para o segurar ao catre, o outro lhe prendia os pés, com
muitas voltas de corda delgada.
Depois, um desses terríveis ajudantes collocou-se ao lado da cabeça,
tendo na mão um grande vaso cheio d'agua e com um longo rebordo
cahido.
— Então, Samuel, perguntou o frade das orações, para que nos obri-
gas a estas dores? Responde, meu filho, antes do sacrifício a que nos
obriga o nosso zelo pela fé catholica: onde estão teus irmãos e a tua con-
cubina :
e por algum tempo, um jorro d'agua. Esta operação, além de muito at-
ração, quer nos pulmões, e até por vezes com a syncope e a congestão
cerebral.
Kstamos, pois, eín face dum occulto cadafalso, em que a pena de
morte se divertia com os condemnados, e em que a tyrannia, convertida
cm justiça, barbara e estupidamente, se arriscava, no empenho de fazer
falar as suas victimas, a emmudecel-as para sempre !
O secretario, por sua vez, deu também alguma ordem, que dois iami-
liures sahiram a cumprir com toda a presteza.
Reinou então naquellc recinto o mais extraordinário silencio.
E' que a vida lhe parecia agora mais preciosa que nunca, e porque,
na verdade, verifica\a a sua grande fraqueza, que o expunha aos insultos
de qualquer daquelles cobardes. Quem sabe se elle, ainda um dia, po-
Quem sabe, pensava, talvez que toda aquella tolerância havida para
com elle significasse já a inlluencia do novo soberano ? K Icmbrava-se
também de que, sendo portuguez, seria possível que a diplomacia dos
agentes de D. Manuel lhe poupasse a vida. . . Não era a primeira vez que
tal succedia . . . H recordava-se de que um dia o rei de Portugal entregara
á Hespanha alguns foragidos hcspanhoes, e puzera a condição de que ellcs
não seriam nem mortos nem martyrisados !. . .
nebroso ! . . .
— Suzana Fernandez.
Ouvindo este nome, Samuel soltou um gemido, que parecia o urro
dum leão, ao cahir da tarde.
Suzana voltou a cabeça, mas viu apenas os vultos dos carrascos que
se tinham collocado atraz delia.
— De quem és filha?
— Não sei.
— Só isso ?
'
— Cahiu no Guadalquivir. .
— Matou-se, impia a ?
— E se um morrer?
— Morrerá o outro.
— E's christã ?
— Avisar os irmãos de que deviam fugir. Bem sabes que . . voltei de-
— Nunca!
— Para que recusas? Samuel já o disse.
— Mentes, ainda. Samuel nada sabe. . . Para o dizer tinha de mentir,
e elle nunca mentiu. Se soubesse tinha de atraiçoar um segredo, e elle
nunca foi traidor
— Torturámol-o, e vencido. elle foi
— Como ?
— I'erguntando-lh'o.
— E onde esperas falar com elle :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
em cinzas ?. . .
Suzana estremeceu . . .
que se reflectirem.
— E o vento, depois, confundirá as nossas cinzas I. . .
— Nada confessas ?
Antes assim fosse! Mas era o contrário; era o começo de uma vida.
de dores, cheia de contracções e agonias, que poderia rematar pela morte,
mas também pela vida mais afflictiva e incompleta.
Vieram, então, dois frades collocar-se — um junto de Suzana, outro
junto de Samuel, provocando confissões com rezas a Deus e súpplicas aos
pacientes!
K tudo isto para arrancar a duas creaturas de religiosa lealdade a
denuncia do logar em que duas victimas futuras tinham procurado refu-
giar-se!
Samuel sabia que Suzana, a sua amante, bella como uma rainha e fiel
como umi mulher de bem, por causa d'elle, e para morrer junto d'elle,
gritos: uma era a do amor que tinha a Suzana, a outra era a do amor que
tinha a seus irmãos.
\] ambas, bradando ao mesmo tempo, n'aquella perturbada consciên-
cia, formavam o grito do dever, que é superior ás fraquezas do coração!
E os frades, argutos, subtis, hypocritas, cheios de dialéctica natural,
que vae ao encontro de todas as incertezas, que baralha e confunde todas
as dores, que vira e revira toda a justiça; os frades, falando da vida do
corpo e da vida do espirito, dos deuses e dos homens, do que se vê e do
que se conjectura, falando e rezando sempre, debruçados sobre as victi-
mas, ora lhes davam esperanças, ora lhes produziam o desespero; sempre,
sempre, com a persistência de um mosquito que sibilla e ameaça morder
— a dizerem aos'ouvidos de um e de outro:
— Confessa confessa confessa
! 1 ! . .
Era horrível
K umdos algozes, entornando o jarro sobre a bòcca de Suzana, que
não podia respirar, que engulia, estando cheia, que soluçava engasgando-se,
que não podia erguer-se, nem gritar, nem chorar, nem morrer! E Samuel
! . :
— Um moço, que terá uns dezesete annos, e que fala com demasiada
vivacidade.
— Onde estava elie r
— Parece que sim, e parece que não. Em todo caso diz conhecer
Samuel e Suzana, e prestar-se entregar os irmãos fugitivos. . .
— Isso c dilHcil.
— Por que ?
— Porque o rapaz parece idiota: diz coisas sem nexo, por entre
muitas certas e verdadeiras.
— Diabo, diabo disse o inquisidor, sempre contrariedades
! ! . . .
— Só isso
— E com as lagrimas solta estridulas gargalhadas I
— Diz pois
elle. ?
acceito ?
XV
Um familiar
Suzana não mediu todo o alcance daquella ameaça, mas adivinhou, in-
mos uma ameaça contra Samuel ! Serás vencida á voz do teu amor quando
ouvires estalar os ossos do mouro teu apaixonado. . .
i
.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
—E tu, Samuel, por que não aconselhas tua mulher a que não te
sacrifique estupidamente ? . . -
do Suzana quizer. Que ella seja juiz e carrasco do seu amante, e que
todas as dores que elle solírer e todo o sangue que clie derramar vão á
conta d'ella na liquidação final.
— Senhores, disse ella, confesso que elles fugiram para Portugal, e que
as noticias que recebi os davam internados. . . Dae-me tempo e eu alcan-
çarei informações mais certas e seguras. Repito-vos que Samuel nada
sabe, e que eu nada mais sei do que aquillo que confesso.
— Conheço o ardil, acudiu o presidente. Queres ganhar tempo. . . Pois
bem, fica sabendo que, por cada interrupção inútil, isto é, que não seja
ctivo foi tão difficil e desordenado que lhe causou a queda abandonada
sobre o corpo da victima.
Não alterou este episodio a attitude dos assistentes.
— Levantem esses homens, limitou-se a dizer o presidente.
Os esbirros cumpriram esta ordem.
Houve um momento em que o rosto do mouro quasi tocou o de Jacob.
Samuel aproveitou-o:
—
Nas margens do rio, junto da ponte, ao norte, está o meu thesouro...
vinga Suzana.
Jacob foi reposto no seu logar. A queda e o segredo chamaram á razão
o christão-novo.
Tendo serenado, Jacob repetiu, para bem as decorar, as palavras do
mouro. Era uma indicação completa, clara, precisai
dade do pastor era triste, e o olhar, sempre brilhante, ora tinha uma fixi-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 38
cidez.
Passava esse s\mptoma de saúde no olhar de Pepe, como passa no
céo o meteoro mais veloz. Como uma estrella cadente, que deixa um rasto
de luz, que só depois d'ellã se apaga, no céo escuro, assim, depois d'es-
ses lampejos, ficava um sorriso de intelligencia nos lábios do pastor, um
pouco depois de se apagar o olhar vivo, intencional. . .
tas do Céo! E o meu Frade? Esse havia de ladrar como o rafeiro mais
Ímpio, que não conhece estes primores das casas sagradas. Só os cães
não são catholicos n'esta terra feliz das Hespanhas. Todos os outros ani-
maes teem essa fé, que tudo quanto é bicho anda de bem com o Céo e
com a religião christã. E' ver a grande ninhada da arca de Noé, o cor-
deiro paschal, o pombo do Espirito Santo e a mula de Nossa Senhora.
Ah! é verdade, esqueciam-me ainda duas espécies — os mouros e os ju-
Jacob, e, num relance, trocou com elle um olhar que valeu por um dis-
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Havia, por excepção, uma ou outra victima que tudo soffria em silen-
o anjo da esperança, quantas vezes temos perguntado que lei cruel e fatal
não suspende a execução da sentença iniqua que nos rouba uma vida ne-
cessária e amada?! E, quando a esperança é só visivel para o agonisante,
quantas vezes n'uma prece bem intima, pedimos o termo d'essa existência,
E não vemos a mão que flagella o doente, nem o veneno que lhe cir-
E' a lei fatal que cria e transforma o universo, que não pode preoc-
cupar-se com os pequenos pormenores da sua fatalidade. Desconhecer essa
força dá resignação aos que morrem e aos que vêem morrer!
Mas ter o corpo são, a mente lúcida, e assistir á destruição d'essa saúde,
com os olhos que ainda vêem, e com o cérebro que ainda pensa, ver a mão
brutal que está fazendo tudo e julgar o estúpido motivo da crueldade, sem
poder defender-se, sem poder vingar-se
E ouvir, porque a miserável victima ainda ouve, que, para evitar a
morte do corpo, já aleijado, já mutilado, ja inútil, lhe pedem que renegue
a sua fé, que é também a sua única esperança, e que avilte o seu caracter,
que é também o seu único consolo, é mil vezes peor que morrer da mais
cruel das enfermidades, na edade dos grandes desejos, deixando as mais
pungentes recordações.
Imagine-se, portanto, o que softVeu, physica e moralmente, o inteliz
mouro, cujo futuro estava ha muito alumiado pela fogueira que havia de
ser accesa numa praça pública!
A' terceira queda, o desgraçado já parecia insensível, e Suzana, com
! .
OS olhos n'elle, se por vezes fazia signal para falar, logo se arrependia, e,
fechando os, deixava seguir o siipplicio.
— Pepe — por mim — Pepe Gonçalves, por meu pae, Pepe Gonza-" e
lez,por minha mãe, que Deus haja — D'esta mistura de meu pae com mi-
nha mãe — resultou Pepe Gonçalves y Gonzalez! Que grande luxo! Lem-
brava assim o nome d'um secretario de cl-rei, nosso senhor. Pareccu-me
de mais, principalmente tendo ficado em guardador de gado. . . Resolvi-
me, então, a cortar o Gonçalves e o Gonzalez, e a chamar-me simples-
mente — Pepe, Ordinariamente, na rua, ninguém me chama senão aquellc;
mas, como em minha casa todos me chamam Pepe, é assim que desejo
chamar-me.
— Bem, interrompeu o secretario, já não são necessárias tantas ex-
plicações, (^hamas-te Pepe Gonzalez.
— Peço perdão, m^eu senhor, isso não vale — eu sou Gonçalves } Gon-
zalez, ou apenas Pepe. Tenho pae e tive mãe, e por isso quero a certi-
— Onde nasceste ?
— E' por isso que eu não seibem de que terra sou, nem a qual dos
reinos da Península pertenço. N'um dia em que minha mãe foi passear
com meu pae á fronteira, nasci eu
— Sendo teu pae portuguez, c tendo tu sido baptisado em Portugal,
és portuguez.
— Pois serei : não digo que não ; que eu amo egualmente as terras
dos meus velhos.
k
. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Pepe.
— Estás, então, resolvido dizer que a a vieste r
— A Sevilha?
— Primeiro quero saber para que Hespanha vieste a ?
D. Philippa, que é uma dama que tem prestado muitos serviços á Egreja...
E eu ajudo-a muitas vezes.
— Serviços em Portugal ? ! resmungou o secretario.
— Serviços, sim, senhor. Alli o que nos falta é a Inquisição, que geme
beata e de fé ha bastante. Mas ainda havemos de tel-a, que a terra está
toda cheia de mouros e de judeus, e ainda d uma raça peor — a dos chris-
tãos-novos.
— E que serviços tens prestado ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Se o visses, conhecial-o :
Por acaso, encontrei-me com dois mouros, que, sabendo que eu era por-
tuguez, me pediram para os guiar. Prometti-lhes que sim, mas que pre- . .
—E onde
ellesesperam te ?
mas eu jurei-lhes pela minha honra, pela minha l'é, pelas cinco chagas de
Christo, que não os atraiçoava, e elles confiaram. . .
á corda, abandonado. .
fazer daria tempo aos fugitivos para realisarem o plano que Suzana lhes
fornecera.
Todas as b3'potheses admittiam os inquisidores, e a que alegrara Su-
zana não deixou de ser acceita por elles.
— Talvez.
'
— Mas se os nossos esbirros tomaram todas as sahidas de Se\ilha,
como lograram elles ir tão longe ?
—
Tinham bons cavallos que eu própria lhes forneci. . .
como este, o fim de produzir graves lesões nas partes molles e nas cos-
tellas da base do thorax, ou nas pleuras e na base dos pulmões, mas não
era menos afflictivo.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
por e formigueiro, depois de dores violentas, nas mãos, nos pés e nos
pontos onde as cordas actuavam por constricção.
Quando estes meios não subjugavam o paciente, era augmentado o
peso do corpo, e, portanto, aggravados os soffrimcntos, por meio de pe-
sos suspensos duma corda, previamente passada em volta da cintura.
Samuel tinha os olhos abertos, mas não via licava mudo quando o
;
Klla, que havia já tanto tempo não fazia senão chorar de dòr e de raiva,
e até sem influencia d'essas causas, mas da acção nervosa, tão frequente
nas mulheres hystericas, como hoje se diria, chorava ainda !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
fessar, nem em negar, o que lhe perguntavam ! Com a dos olhos, já lhe
bruxeleava a luz da razão, e, como a vida é formada por um circulo de
Não havia a menor dúvida. . Samuel e Suzana eram duas vidas per-
didas ! O que houvesse de seguir na escala dos tormentos nem já tinha o
pretexto da investigação — era apenas uma vingança exercida contra a re-
sistência invencível.
o reverso da medalha
MYSTERIOS D\ INQUISIÇÃO
Náo se creia, porém, que não havia, nos tempos que descrevemos, a^
grandes e generosas paixões que affirmavam a humanidade como a obr..
Antes de partir, pediu a um dos inquisidores que lhe deixasse ver Jacob.
Pepe estava prestando serviços e, portanto, fizeram-lhe a vontade, e
levaram-no á camará de misericórdia, onde se achava o christão-novo por-
tuguez.
Além de que, havia-se formado um plano : o de aproveitar a abbadessi
de Lorvão, para haver Sarah, e, d custa d"ella, arrancar a Jacob a dese-
jada apostasia.
Ainda o sol estava a levantar-se no horizonte e já na camará de Jacob
entrava Pepe, acompanhado dum agente do Santo Officio.
— E' este? perguntou o frade.
Jacob estava encostado a uma mesa, com a cabeça descançada na.^
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3.,.5
—A correr, meu senhor, disse l^epe: uma mueda de prata, que para
iiiin \ale mais que um pininiiiw:; de ouro.
E, dando um salto, abraçou o frade, que ficou junto da porta.
— Vae o sol a subir depressa e temos que andar ate Las Brozas. ^'a
mos á caça dos infiéis, e viva a Santa Inquisição!
Jacob encostou novamente a cabeça' nas mãos, mas logo que a porta
^c fechou, olhou em redor a camará, e perguntou mentalmente:
— Quantos olhos estão espreitando-me ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Que lhe diria ella? Que o amava, ou que elle devia esquecel-a:
Que afinal todas as mulheres honestas amam os homens com quem
podem casar-se, e Jacob era um condemnado! Esperava o perdão:
Talvez. Mas esperava principalmente uma petja que lhe não poupasse
o nome ao estigma daquelle tribunal e a sua pequena fortuna ao seques-
tro infallivel! Amar um homem, quando a vida d'elle se lhe escurece em
tem os que nós amamos. Se assim não fossem, como poderíamos acre-
. .
«Senhor:
«Disse-me Pepe, o nosso dedicado amigo, que vós, senhor, por minha
causa, sem dúvida, ou por minha maléfica influencia, que não tenho nem
dou felicidade, estáveis no tribunal do Santo Officio, por coisa que vos
condemna, mas não vos envergonha. Pelo contrário, permitti-me a fran-
queza, vos exalta a meus olhos e vos mostra mais innocente e leal.
des nas mãos de vossos inimigos; mas, se ella pode atíançar-vos maior re-
salvar-vos a vida. . . E' talvez a vossa vida a única que a Providencia po-
deria, para me indemnisar do esquecimento de que me queixo, associar á
minha, n'este mundo tão feio e tão triste
«Não me conheceis bastante, meu nobre paladino, que me vistes ape-
nas alguns momentos, com os olhos da mocidade carinhosa; se me co-
nhecêsseis bastante, fiaríeis d'esta mulher, já duramente martyrisada, o
que só vos é permittido esperar dum moço cavalleiro, que tivesse o vigor
do vosso braço e a dedicação do vosso peito.
Jacob, pela primeira vez na sua vida, levou aos lábios uma carta de
A mãe dos Gracchos devia ter falado assim aos dezoito annos! Nas luctas
moraes aquella mulher era uma luctadora, angelical, lendária; de capa-
cete e lança, montada no seu cavallo branco, não era mais bella, nem
mais maravilhosa, a donzella de Orléansl
Como ella falava a um homem com a hombridade duma compa-
nheira, a um desgraçado com os soccorros da esperança, a um amante
com a promessa mais desinteressada e incondicional!
Que de castidade n'aquella franqueza! que de reconhecimento naquel-
las recordações! que de sacrifícios n' aquellas promessas!
Que ofterecia ella? Offerecia-se E não! falava em paixão, nem sequer
em amor I Entregava-se a um homem, que a merecia, como se entregava
a Deus, cuja existência conjecturava apenas ! E tudo isto, que parecia tal-
paixão são duas palavras muito eguaes; por que não hão de também
approximar-se os sentimentos que ellas determinam?
Sarah era uma mulher de juizo, e a sua experiência precoce vinha da
precocidade dos seus soffrimentos. — Na desgraça começa-se a viver mais
cedo, e aproveita-se mais tempo. Quanto adeantaria na vida a pobre creança,
n'aquella scena de cannibaes em que fora testemunha e victima? Não era
ella uma simples e ignorada rapariga, occulta e feliz nos bairros modestos
de Lisboa; era uma orpha posta em evidencia por uma scena trágica da
capital, eque tivera de chorar desgraças, próprias e alheias, desde a sua
casinha da Nova Gibraltar até o immoral mosteiro de Lorvão.
N'uma vida assim, cada dia corresponde a um século.
Jacob ia pensando e relendo e, quanto mais assim se entretinha, mais
se esquecia da sua melindrosa situação.
A carta de Sarah produzira este maravilhoso effeito — dera-lhe espe-
Jacob já não amava Sarah como a uma mulher; mas adoravaa como
! . !
dade, que o seu martyrio seria o melhor estimulo para o amor daquella
creatura ! Já preferia chorar com ella, a sorrir vulgarmente, como os ou-
tros amantes, n"um materialismo sensual, feliz, sujeito a todos os esmore-
cimentos e transformações próprios da vida mundana.
E Jacob lia aquellas palavras, primeiro, ao acaso — um trecho a'^ui,
outro alli; depois só o principio, e quando lia o fim, ficava triste, como se
lhe tivesse fugido dos olhos a vista que lhe dera tanto encanto e prazer
val que coroava o monte, onde elle algumas vezes, ao nascer do sol, ou
ao subir da lua, se collocara, para lhe vigiar o somno n'uma doce piedade
fraternal
E, quando a vista se cançava de tão applicada leitura, licava, de cabeça
erguida, absorto, a desenhar na imaginação a figurinha de Sarah, elegante
e distincta, de curvas pequenas e gentis, trança abundante, olhos vivos e
meigos, vivacidade de creança, palavra duma castidade audaciosa, répli-
cas de conceituoso orgulho e de fidalga altivez !
Pois, era muito para extranhar que Sarah, que lhe estava enchendo o
cérebro e os olhos, andasse por alli a esvoaçar envolta n'aquelles raios de
luz, que lhe vinham illuminar a fronte emmagrecida e pallida ?
tão cedo.
— Ouvistes-me, então ? . .
— Falar em Sarah. Ouvi, sim. Talvez alguma . . judia. Tens hoje duas,
cujos seios brancos de neve vão tingir-se de sangue... se não jurarem
respeito e fé á Religião e ao Santo Officio
— Oh ! meu Deus que terrível despertar
! !
— Não...
— Toma cuidado, que ha já muitas horas que não comes, e hoje tens
espectáculo que fatiga.
— Estou doente. .
tigo.
— Antes morrer. .
— Oxalá ! . .
pendimento. .
— Arrepender-me de que?
— De não leres por única \'erdadeira a religião catholica.
— Julgo-as assim todas, a nenhuma... a e Se isso é crime; quero
soffrer a pena . . .
turas? Nunca viste queimar com chumbo derretido os pés dos pacientes?
Nem apertar-lhc nem em-
nas pernas os borzeguins revestidos de picos,
! ! ! ! .
— Estás livre, por hoje, disse o frade a Jacob. Podes sonhar á von-
tade e chamar a visão dos teus sonhos. Ha novidade, e grande novidade
! . . . .
— Sim, aquelle sino diz, badalando tão fortemente, que o dia vae ser
exclusivamente consagrado a cerimonias do ritual. Em taes dias, não ha
torturas ; os presos não são perseguidos . .
— Nem lembrados ? . .
— Tal qual.
— N'esse caso, o tormento. . .?
— E se fôr el-rei ?
Jacob, mal ficou só, voltou á sua leitura predilecta. — E, de cada vez
que lia, encontrava uma nova interpretação e uma nova virtude.
Lá fora, os sinos repicavam festivos, como se a realidade estivesse, com
aquelle pormenor, a completar o sonho do prisioneiro. . .
Pena de Talliâo
gumas que denunciavam, pelos jaezes das mulas e pelo vestuário dos la-
nocentes nas matanças!... Ora adeus! Aquillo foi manobra dirigida por
todos.
— Ainda se matassem só mouros c judeus, vá, que essa raça tem en-
chido o reino de desgraças ;]mas o peor foi que mataram muitos christãos
dos melhores, só para lhes saquearem as casas. .
— Bravo, que luxo! disse o pequenito dando um salto para ver uma
grada personagem que entrava a porta. Como este vem guapo!
— E traz uma cruz sobre o peito. .
— Não é explicou o
tal, mal ^villão, humorado, aquillo é a cruz de
Christo.
— Você conheçe-o?
— Se o conheço! Também já o vi no cadafalso da praça. E' o licen-
ciado Manuel Atfonso, do Desembargo d"el-rei.
— Vem assistir?. .
. . .
— Pudera não, se foi elle quem lavrou a sentença, por andar ha mezes
com mór alçada nesta comarca!
— Você conhece a sentença, homemzinho, perguntou uma rapariga
—
Está visto que sim. Hão de ser queimados, ao mesmo tempo, em
cima d'aquella fogueira.
E o informador apontava para o centro do ferregial.
— Mas queimam-n'os vivos, como na Inquisição de Hespanha? se faz
— Em Hespanha, como aqui, queimam-se mortos e vivos. Estes são
mais felizes, serão primeiro garrotados e depois é que passam para a fo-
gueira.
— Deus queira que possamos vêr tudo isso... Se vem muita gente
com elles e nos tapam a vista ! . . . lamentava a rapariga alegre, como se
se tratasse d'algum casamento na ermida da sua aldeia.
— Eu trouxe o meu pequeno, porque elle nunca viu isto, e é bom que
saiba como se castigam os maus. Quem com ferro mata, com ferro mor-
re. .
— Era só o que faltava ver : era os christãos a rezarem por gente ladra
e assassina, exclamava, com ar enfastiado, uma velha beata, de rosto es-
condido em escura mantilha.
— Não merecem essas injurias os desgraçados, acudiu outra de egual
aspecto — que desde elles abril que softrem e se arrependem... Lá pelo
castello, toda a gente conta que elles estão santificados á força de rezas e
abstinências. Até o Aragonez, que era o mais duro de coração, tem pas-
sado todos os dias a beijar a imagem de Jesus e a castigar o corpo com
cilícios.
. . !
solta, ricos, bem vestidos, em passeios para Roma. . . rabujava outra ainda
mais velha e mais mal encarada.
— Olhe, menina, que bonito cavalleiro vae a entrar a cidade I Aquelle
é de Lisboa, com certeza, e é já capitão de boa gente ! Como lhe tica bem
o elmo e o arnez
— É já a segunda vez que passa por aqui. Ouvi que lhe chamavam
Pedro Soares. .
— Virá el-rei ?
— Não, que D. Manuel não como é D. João II. Esse é que ficava no
alcácer, emquanto cortavam a cabeça ao duque, seu parente.
— E' verdade, D. Manuel manda matar os frades, mas fica-se em Se-
túbal. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
E O frade
— Dize, dize commigo : poeniíet, poenitet . . .
— Pois sim; e dize, depois, a esse povo, que beijei o meu cúmplice,
e não o meu juiz.
gueira.
O Aragonez subiu sósinho a escada do cadafalso, e, lá de cima, fitou
culosos.
E o povo portuguez, graças á seh'ajaria dirigente das classes nobres,
como o das Hespanhas, da Iialia e da Inglaterra, mostrava-se bem disposto
a applaudir os planos dos seus príncipes.
Era assim que Horescia entre nós o catholicismo!
A multidão, ao sahir do ferregial, entrou pela porta de Machede e diri-
l'>llc e Deborah poderiam \oar nas azas do amor por todos os recan-
tos da serra, que, do Aragonez, estavam extinctos os últimos vestígios.
O que descera ao carneiro de S. Francisco eram apenas cinzas de
toros humanos, mas misturadas com as dos toros de arvores velhas e inno-
centes. que tinham alimentado o brazeiro.
1^ do coi^açáo de Pedro brotaxa a mais franca alegria!
la galopando, e a briza que o açoutava, abria o seu melhor sorriso.
MYSTKKIOS n.\ INiinsiÇÂO. — VOI.. I. FOL. 5z.
. !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
mal, que passara na terra e a aggredira ferozmente. Para não haver dú-
vida de que se não trata\'a dum homem bastava saber-se que esse animal
fora reduzido a carvão!
Agora ciúmes, de quem ? ^'ingança, contra quem ':
sua; tão sua como se se tratasse d'uma viuva, que houvesse casado á for-
ça, e que nunca tivesse, amado, senão a elle, o seu primeiro e único amor.
A virgindade na mulher está principalmente na sua alma... e a alma
d'ell£ tinha todos os efHuvios da pureza.
Ha casos em que as mulheres hcam virgens, como ficou a mãe de
Jesus!... O espirito infernal, que toca o corpo duma virgem, deve ser
menos oftensivo que o Espirito Santo, que o fecunda I . .
Depois a situação era clara: fora vencida, sem saber que luctara! O
pudor enlouquecera-a, a fraqueza entregara-a, a brutalidade polluira-a
Era por acaso menos honesta, menos casta, menos pura, que todas as
outras mulheres poupadas ao vandalismo bestial d'aquelle monstro? Com-
parara-a com uma viuva? Loucura! Nem a isso era ella comparável...
A mordedura d'um insecto nem sempre deixa vestígios; mas se deixa,
e elle morre espalmado depois do damno, que tem com issc a sorte do
mordido ?
XVIII
Vicios e virtudes
como as de Pedro.
Andavam ligados, estreitamente ligados, aquelles dois espíritos, palpi-
tavam da mesma forma aquelles dois corações, sentiam as mesmas do-
res, e sorriam-se, fitando-se ao mesmo tempo I
de Sarah- um mosteiro ! . . .
— Não, minha Sarah, só queria que não velasses tanto o teu coração
recheado de thesouros e de segredos, e me deixasses penetral-o com todos
os desvelos do meu amor
. . ;
— Julgas-me então mais fraca que tu, mais fraca c mais limida, ou
mais innocente ?
fraca com maior estatura ; mais sensivel com maiur coração, mais mulher
com maiores encantos I Pedro, que nos conhece, encarregou-me de velar
por ti me conservasse na petulância dos meus poucos annos, na
. . . Se
frivolidade do meu sexo, como poderia, inspirar-te confiança Não ouves ?
— Ao nobre capitão Pedro Soares, que estas horas a anda pelos re-
41 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Confio agora em ti, mais que nunca . . . Nem sei por que ! .
. . Talvez
porque julgo o teu coração captivo doutro affecto. . . Eu não sei se digar
Doutro aftecto, que parece o desdobramento daquelle que Pedro foi ca-
paz de inspirar! Dize-me, minha Sarah, mas dize-m"o sem reservas, não é
verdade que, assjm como é fácil confundir o teu com o meu livro de missa,
a mesmacapa, os mesmos caracteres, o mesmo vermelho sobre as folhas,
as mesmas orações e signaes, se poderia confundir o meu Pedro com o
teu Jacob: Quantas vezes me tem succedido o engano! Se não fosse uma
flor sêcca que metti em certa folha, ou um pequeno geito que dei aos fe-
chos de prata!. . . quantas vezes eu não leria com a mesma devoção e fé.
dação.
— Colhe outra, Sarah, arranca-lhe o pé, espalma-a sobre a tua prece
predilecta, fecha bem o teu livro, e deixa-a seccar... Agora abre-o, c
vè. . . Se é um amor perfeito, como podes distinguil o do meu, se elle tem
o mesmo velludo escuro e a mesma côr . . .
—
Minha querida Deborah, estás, innocente, provocando uma explica-
ção, ou melhor, uma confidencia, que eu tenho guardado tão cuidadosa-
mente, como se fosse um indicio da minha constância, ou da minha in-
sensibilidade!
— Sarah, não
F^ala, eu tua melhor amiga? serei a
— Pois bem. Sinto que, pelo menos, chegado o momento de é falar com
franqueza. . .
dade futura. .
— Pois bem; nunca fui tão generosa, que para ti cubicasse compa-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 41.1
nheiro superior ao que para mim desejava.. . Se era até por mim, que
eu avaliava o que poderia fazer-te feliz. . . Sabes em que moldes dispuz o
meu Nos da cópia. Fica tu com o original, e eu contentar-me-hei
espirito?
com a reproducção. Tens tu a pessoa pois bem, eu ficarei com a im.a- ?
se o amo; sei o que lhe devo. Se o meu espirito e o meu corpo hão-
de pertencer a alguém, nmguem ha, livre como elle, a quem eu deva per-
tencer . .
mas juro que não pertencerei a outro, que não ha na terra quem mais di-
dade do seu animo, excitada pelo amor que eu, sem querer, lhe inspi-
rei! ! . . .
quena fresta que olhava para o monte, por onde Pepe costumava guardar
as suas ovelhas.
Deborah, com a fronte reclinada n'uma das mãos, junto do genutlexo-
rio, não despregava o olhar de sua irmã.
Sarah parecia abstracta. . . Olhava o monte e o vaile, com tanta tris-
teza e fixidez que nem parecia ver aquillo para que olhava ! . . .
giavam com tanto zelo, ou esperando que alguém viesse pela ribeira na
direcção do mosteiro ?
Não dormira, verdade seja; mas não era só da insomnia tamanho dam-
no. . . Com certeza ella sonhara accordada. .
— O a beijar o monte
sol c as o\elhas a procurarem a sombra. .
— Tão pouco ! ?
— Não Pepe. ;
— Disse. . .
— Não comprehendo. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E OS marUTÍos ?
— A ver esse homem, para lhe reforçar o ânimo. Quero que elle me
veja no dia em que o soltarem, ou á hora em que elle succumbir!
— E a esse ponto me esqueces?
— Não esqueço, Deborah, e hei
te de estar junto de ti, emquanto não
tiveres o braço de Pedro para te defender. . .
— Mas Pedro, logo que eu seja.. sua mulher, partirá para a índia, onde
Albuquerque o espera. . . E eu? com quem ficarei durante essa longa e
perigosa ausência ?
—Por que não hei de crer? Vaes pertencer ao homem a quem amas,
e eu nasci para nem sequer pertencer a mim mesma!
—Como te illudes, minha Sarah Como te illudes Também eu, al- I !
gum tempo me illudi, mas essa illusão vae a desvanecer-se. Olha para
mim, Sarah, vê bem os meus olhos. Pois não adivinhas, pelo que elles . .
espelham, que a minha alma chora cá dentro, com as dores d'um grande
mvsterio ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
gir; se elle me faia, parece-me ouvir o écho das suas palavras repetido por
algum monstro, que se abrigasse nas cavernas do meu seio!. . .
— Enlouqueceste, Deborah?
— Talvez, minha irmã; mas tu, que não possues o meu segredo, não
podes julgar a minha razão. .
palpita? Não: isso que sentes não é a vida que circula, são os soluços e
os gemidos que ahi tenho guardados, para que tu os não ouças!
— Valha-te Deus, creança. Para que recordas o passado? A vida é
como o céo. . . já o viste mais escuro na primavera, por causa das nuvens
do inverno? O tempo e a melhor nortada — \arre nuvens e desgraças. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
beira.
— Preciso de Sarah; juras-me que não vaes abandonar-me?
ti,
— Juro, sim, disse Sarah alegremente, sem olhar para sua irmã.
— Elle vem! lá vem! depois, n'uma vivacidade
elle lá gritou, infantil. .
E, continuando a atfirmar-se:
— E' elle, não ha dúvida; vem do lado do casal, e vae já descendo a
encosta... Queres vel-o, Deborah?
— Quem que vem? Pepe?
é
— Não; respondeu-lhe a irmã, sem desviar o olhar do monte.
— Pois, será possível? E' o teu Jacob, minha Sarah?
— Não, Deborah; anda ver. . .
mente.
— Enganavame a tua alegria, minha irmã. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 42 =
miada pelos raios de sol, que entravam pelas altas gelosias abertas na
abobada.
peito côr de leite, davam, no seu rolar e carpir, uma idéa da vida con-
. !
nicas 1. . .
E Deborah, depois de ter olhado para Sarah, que via enu^egue á sua
faina de jardineira de amores, títou Pedro, tão triste, tão meiga e tão pie-
bom, tão generoso, tão amoravel, que, ao veres-me desgraçada, não aos
olhos de Deus, mas aos meus próprios olhos, como quem lança um cabo
a um como quem dá luz. a um cego, me olVereceste os teus me-
naufrago,
lhores thesouros —
o teu braço, o teu amor, e o teu nome O mesmo raio !
que fulminou meu pae, te aureolou a meus olhos Ainda bem me não ti- !
ver. Não te offereço o meu coração; reclamo o teu. Como poderias tu de-
ver-me a existência, se eu vivo do teu viver Que me deves tu Protec- ? ?
acaso, que a vida é sopro que anima um coração apaixonado A vida com ?
— Vens hoje (deixa-me falar-te com toda a franqueza) com toda a lu-
cidez do teu espirito, com todo o fogo da tua paixão, zeloso da tua e da
minha honra, dizer- me que estás disposto, mais que disposto, votado á
dietas a esta hora, tendo Deus por testemunha; a esta hora em que tanto
posso dizer- te — «serei tua mulher» como posso subir áquella torre e d'ella
me lançar sobre esta terra que pisamos. . . Quero que me jures, com as
tuas mãos entre as minhas, como se as tivéssemos sobre os nossos cora-
ções, pela memoria de teus pães, pela tua honra de cavalleiro, pela tua fé
christã, pelo teu amor, pela vida de Sarah, e até pela gloria da tua ban-
deira de soldado, que sob as lousas de S. Francisco e com as cinzas do
Aragonez fe Deborah, ao pronunciar este nome, baixou os olhos) ficaram
esquecidas todas as minhas desventuras, e nada accordará no teu animo o
sentimento do ódio, da vingança e do ciúme
—-Deborah, Pedro levantando-se e batendo com a mão nos co-
disse
pos da sua espada de cavalleiro, sobre esta cruz que representa a minha
religião, o meu dever, a minha gloria, o nosso futuro, a memoria de meu
Os sonhos de Philippa
Passaram se alguns dias, e l'epe sem voltar a Lorvão! Isso não impe-
diu que de Sevilha chegassem noticias ao mosteiro, não trazidas pelo pas-
tor, mas morgado de Travanca, que sahira do reino em missão de con-
pelo
Hespanhas e arcebispo daquella cidade;
fiança junto do inquisidor-gcral das
não para Sarah, que as pedira com tanto interesse, mas para a lilha da
abbadessa, que apenas ambicionava obter alliados, em Hespanha e cm
Roma, para inutilisar a guerra que já lhe movia a corte de Portugal, ir-
ritada com os escândalos de que Philippa era a principal responsável.
N'um ponto, porém, se pareciam as noticias trazidas pelo morgado
com as que traria mais tarde o-alegre rapazito —
rio que se referia a .Jacob.
vertidas, e das pervertidas que enchiam Lorvão, por alli pairavam a miude,
religiosos ou seculares, em volta de seus amores.
Além de que, Philippa era mulher de peregrina bclleza, e a fama dos
seus encantos chegara a todos os pontos do reino, onde a imaginação da
mocidade sonhadora e os appetites viris creavam uma lenda, que era o
iman mais enérgico para attrahir galanteadores dos mais ricos em dinheiro
e em aventuras.
Jacob tora a primeira presa, e boa presa, e dava garantias de que po-
dia ser a primeira de uma série ha muito cubicada pelo poder theocratico
hespanhol.
Eram frequentes as apresentações em Lorvão, de ricos christãos no-
vos, ou judeus e mouros contumazes, que confiavam demasiado na poli-
MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO
— Kcpaiaste. meu caro morgado, que vos saudei pelo vosso nome de
baptismo
— Sim ; e, nisso \'i mais uma pro\a de que me anda a sorrir a cstrella
— Mostrastes-lhe
o meu recado ?
que elle faz alarde, e que estão gerando na Allemanha uma tal revolução
que ja chegam até nos os échos dos seus clamores. Como sabeis, a here-
sia começa a invadir o espirito de muitos padres da Egreja, e o scisma
vae ja inventando os seus apóstolos. Kssa revolta, minha formosa prin-
ceza. é mil vezes peor que os erros do judaísmo. Moisés e Mahomet não
. -
— Vejo que não comprehendeis estas Sempre vos digo, entre- coisas.
ligentes. Além de que, Sarah está aqui, sob as vossas ordens, ama Jacob...
Mas, para que estou eu ensinando o Padre-Nosso? . . .
— K quem ha de acompanhal-a :
— Ella escolherá.
— Será prudente isso ?. .
-.
Até que cmlim, ca está o lio axul ; o ciúme nf.o pode ser senão de Ja-
. . . .
— E o ultimo, D. Philippa?. .
imagina.
— Então não temos dificuldade. A súpplica de Jacob apparecerá mis-
teriosamente na cella das duas irmãs, ou alguma noviça a levantará na
cerca, se alguém a tivesse atirado por cima do muro. E' mais ro-
como
manesco, tem muitos precedentes na historia do mosteiro.
e
— Estão notadas todas as ordens. Agora a paga, minha querida Phi-
lippa?
— Heijae-me as duas faces. . .
— Não sei; creio, porém, que mui brevemente. Pedro deve ir a Lisboa
pedir a auctorisação d'el rei, e, quando voltar realisará o seu feliz projecto.
— E Sarah, quando casas?
tu, te
vez o ciúme . . .
— \'os ? . . .
— Sim, eu. ,Vs mulheres, atinai, são sempre generosas para os que
amam. Tens nas tuas mãos a \-ida de Jacob.
. . .
e que vale porque nós o aspiramos. Aspirae Jacob, e elle levantará o vosso
peito.
— Que devo, pois, fazer?
— Pensaes n'elle ?
— Penso. .
— E's-lhe grata?
— Quanto a Deus!
— E por que não ides vel-o?
— Já pensei nisso. .
ções mentaes?
— Tudo, menos cobardia vergonha.
a e a
—E o mesmo?
tu farias
— O mesmo.
— Então, se visses Jacob sacrificado no potro, na roda, no borzeguim,
queimado com o fogo, asphyxiado na agua, rasgada a pelle, macerada a
palavra quente!. . . Poi' isso fostes, ou quizestes ser sua amante! Compre-
hende-se. Admirastes nelle o homem externo, por isso o querieis vivo, por
todo o preço, como um bom corredor quer agii e sadio o seu corcel, de
cabeça fina, mãos bem lançadas, cauda abundante, forte e rinchão. Não . .
é assim, senhora ?
dácia, essa independência, que para vós é rebeldia. Aquella dignidade que
o fortalece, aquella altanaria, que o faz indomável, aquella Hrmeza, que
o faz invencível, é o que eu admiro, amo e adoro! Se elle pode viver or-
nado com todos esses dotes que o distinguem entre os outros homens, para
que elle viva, não hesitarei em ofterecer a minha vida; mas se elle hesita,
sível que eu \á dar-lhe alento e coragem; mas nunca para lhe debilitar a
— Tendes remorsos:
UYSTKKIOS D.* 1NQI!ISIÇÃ0. — VOI.. I. FOI.. Í>.
. . . . .
438 '
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Ainda o amaes ?
dim, senti cahir uma pedra que alguém arremessara por cima do muro.
Olhei e vi que presa a ella vinha esta missiva. .
— Não, porque vem fechada com cei\i e timbrada com duas iniciaes,
-
— E' possível que tenhaes. Conlieceis esse sinete r
«Senhora.
ção contra vós ou contra mim, ou contra ambos Não allio ás vossas, as ?
minhas responsabilidades. Sabeis quanto vos amo e, por isso, que não
. .
vos afaste deste logar, que tendes desmoralisado e pervertido. Sei que es-
peráveis ter, em vez deste conselho de Jacob, que hoje me trouxe Pepe,
. :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
lhes abhorrecem. Logo que Deborah seja mulher de Pedro, minha irmã
assumirá a minha tutela e eu irei para onde me aprouver, no propósito de
salvar Jacob e de explicar a todos os vossos alliados quem sois e como
vos conduzis. .
encarcerado.
— Não vos temo, ijue nada valeis nas regiões onde se governa o reino
e se administra justiça . . . Tenho do meu lado o valimento de Pedro, que
priva com o secretario de Estado, e o de Gil Vicente, que é protegido da
rainha. . . Elles arrancarão aos martyrios de Deza o innocente portuguez...
— Nada disso te pode valer, que valho mais que todos esses, e sobre
todos elles posso triumphar. Vós todos estaes na minha mão, que o meu
poder se consolida, dia a dia. Duvidas?
— Duvido. Irei ter com el-rei...
— Pois bem, vaes \ er.
Sarah estremeceu.
— Fale Pedro a António Carneiro, Gil á rainha. São as tuas armas. . .
Sarah ? Vaes ser vencida. Eu sou mais que tudo isso sou a amante do —
reil e a alliada do Papa!
E Philippa abriu a porta secreta carregando no cravo dos pés de Jesus;
e Sarah, quando ia a retirar-se, ainda pôde ver lá dentro, mirando num
espelho de crystal as melenas cabidas e luzidias, o príncipe afortunado I
XX
o pastor
e aíllicto, como se lhe perigasse a vida com a delonga. Deixo-os sós, que
lá me demorasse. .
— Viste Jacob
— ou melhor
\'i, olhei para elle, que olhar sem ver afflige menos. O
sr. Jacob não parece o mesmo 1 Fugiram-lhe os olhos pela caveira dentro,
apagou-se-lhe a còr das faces.. . Até parece menos moreno. .. E a vida,
aquella vida que parecia dançar-lhe no rosto, está lá ainda, não ha dúvida,
mas está deitada, ou desfallecida, sobre aquelle aspecto de saúde e vigor,
que lhe começava no cabello negro e revolto e acabava nos lábios verme-
lhos e risonhos. . .
— Não se trata de mim, menina Sarah, que nada sou e nada valho...
. . .
Eu venho fatigado, eis tudo. . . Fiz uma longa viagem, na terra, e em so-
nhos... Andei léguas, impeliido pelo dever, voei outras tantas fugido á
perseguição... Vivi muito n'estes últimos tempos, menina Sarah, que se
vive sempre muito mais quando se vè softVer, do que quando se acompa-
nha gente feliz . . .
— Pobre Pepe ! . . .
— Como a porta não se abria, bati a ella. Queria entrar como anjo
consolador, e não me deixaram. Alli ninguém entra por sua vontade.. .
tão como victima. Tanto disse, tanto fiz, tanto andei, que, ao segundo
dia da minha chegada a Sevilha, já se falava em mim, e ao terceiro era
preso. Alli só andam em liberdade os que não teem nome, ou não são
denunciantes. .
— Então entraste ?
tonha curiosidade. . .
tra, e as estremece. Corredores sem hm, salas sem tectos, paredes sem
. .
me não lembro bem como aquilio c. Nem aquillo se vè a seguir; vê-se aos
ha bramidos!
Sarah ouvia a pinturesca nari-acão de l'cpe, c sentia-se acommettida
duma viva sensação de curiosidade.
— Muita, menina Sarah, muita! iúiiquanto lá andei, ri, gritei, não sei
porque, nem o que — provavelmente para não ter medo — ou para que
me acreditassem inoftensivo; mas, a verdade c que, cá por dentro, andei
gelado, alllicto, sem poder respirar, como se tivesse engulido aquella herva
que ha pouco appareceu em Hespanha, a herva de Fernão Cortez
— K' grande a egreja? altas as abobadas dos claustros?
— Talvez, menina, talvez; mas eu não sei! De dia e de noite via-se,
num espaço escuro, ou a luz d'uma adufa ou d'uma lanterna. Kssa luz
não passava d'ahi, que logo morria apagada em ondas negras que vinham
de todos os lados. A egreja era pequena, e parecia um carneiro. Poucos
anjos nos dóceis c nos altares, e muitas caveiras em todas as columnatas.
As cruzes todas negras como as oliveiras, em noites de dezembro, e as
imagens de Christo, com a cabeça tão pendida e o peito tão chagado, que
parecia mesmo um crivo feito pelos judeus. O sacrário não brilha, as jar-
ras não teem ílores, e os tocheiros immensos vomitam chammas azues,
que não illuminam, como lentejoulas em manto de feiticeiro. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Tristes, sim, mas não d"uma tristeza que mettc medo. Dizia minha
mãe que o Céo era uma aldeia, sempre verde e Horida como um jardim:
que o sol lá em cima era ainda mais claro e mais doce que aquelle que
adormece á tarde, alli, sobre o monte ;
que a vida era lá toda de risos, de
beijos e de canções!.. . Não tinha razão minha mãe? Eu julgo que sim.
E a prova era o oratório d'ella, láem casa: era uma capellinha de dois
palmos, coberta com um vco como o das noviças quando professam, e por
dentro pintado de a;iul, claro como o do Cco verdadeiro. Ao fundo, a cruz
feita d'um tronco musgoso, com peanha de riscos dourados e raios de sol
— E" então horrível estar n'essa casa, que se diz de religião e de jus-
tiça ?
— Eu sei lá se elle vive 1 Allí não se pode viver. . . Alli morre-se de vêr
morrer os outros, sotVre-se de vêr sofirer. . . O sr. Jacob ainda não come-
çou o seu martvrio e é já um martyr! Se não fosse a vigilância que o
rodeia, e talvez alguma esperança que o anima, elle, com certeza, já teria
menina Sarah, mas até me faz mal estar recordando estas coisas... Mas
eu tenho tanta necessidade de dizer o que se passou, de pintar o que vi. .
tua narração. Es da nossa família —-porque ella está formada, não pelos
laços do sangue, mas pelos da amizade e da dedicação.
E Sarah conduziu Pepe á presença de Deborah, que andava no jardim
ouvindo protestos de Pedro e fazendo prophecias d'um futuro tranquillo
e feliz.
— Deborah — Pedro — aqui lhes trago, para que o ouçam, o meu leal e
— Aqui está um poeta, que era capaz de inspirar um auto a Gil Vi-
cente . . . disse Pedro, sorrindo á sua noiva e a Sarah.
•
— Por vezes cantei, sem' ser menestrel,, mas não cantei sempre ..
Não tanto, é verdade, para não provocar suspeitas, que aos miseráveis
nem é dado gosar o que lhes dão! Parecem sempre roubados os prazeres
dos infelizes e dos pequenos! Dorrni nas arribanas, quando as encontrava^
ao acaso, e contentava-me com as covas das serras quando a fadiga me
obrigava a parar. No verão o céo é melhor lençol. Os pastores são como
as suas ovelhas: consola-os o relento. O nosso habito é o habito; deu-nos
a natureza esse fato, como deu a lã aos nossos rebanhos. . . Algumas ve-
zes tive banquetes, que me alegravam o espirito, e bebi pelo cântaro dos
recoveiros que andavam ganhando, e de judeus que emigravam em cara-
vanas. Encontrei famílias inteiras de gente tímida, que vinha de Hespanha,
magra, faminta, gafeira e assustada. Era gente que, fugindo, olhava cons-
tantemente para traz, como se ouvisse passos de inquisidores e ainda sen-
tisse o calor das fogueiras. Um mouro, com três filhos, arrastava-se como
um doido pelas portas das cabanas, que se lhe fechavam, como se elle
trouxesse a peste no seio das creancinhas! Deu-me esmola, que não pedi,,
um fidalgo christão-novo, que trazia, ás costas dos servos, as jóias que sal-
vara do confisco dos christãos. Comeu do meu bornal, mal fornecido, uma
louca, que vira queimar a mãe n'um auto de fé, e que tapava os olhos
afflícta, quando olhava para o céo, por confundir o sol com o fogo do
Santo Officio! Pelos campos e pelas aldeias contei mendigos aos milha-
res, que agradeciam a esmola com um gesto, para não invocarem o seu
Deusl De repente, a terra mostrou maiores torrões e as pedras maiores
arestas ! Tinham-se acabado as piteiras dos vallados, e as ermidas escure-
ciam as suas fachadas, passando de brancas como o leite a pardas como
a resteva. . .
.
— Mas, quando chegaste a Sevilha, creaste uma alma nova, não é ver-
dade, Pepe ?
— Sim, senhor Pedro. Sevilha c uma bella cidade! Quando a vi, creei
uma alma nova, tão nova que até me esqueci da fadiga e da tristeza...
Nem sequer notei quando ella estava triste!... Andei pela margem do
rio, que corria preguiçoso, e depois deixei-me arrastar pelas ondas do povo
do bairro de Triana. O que eu ouvi então, santo Deus, o que eu vi! Anda-
vam os frades por entre aquella gente como o escalracho em terras de se-
meadura. . . parecia uma praga de gafanhotos n'uma ceara amadurecida!
Fui ver a Inquisição, por fora, na esperança de a atravessar com os
olhos e descobrir lá dentro o sr. Jacob. Perguntei como poderia entrar
alli, e disseram-me que não querendo entrar. . . Não percebi, e perguntei
mais longe, e, então, offereceram-me três chaves : a heresia contra a Fé,
a injuria contra a Inquisição, e a denuncia contra os judeus! As duas pri-
fechando-os, que elle não podia tapal-os, porque tinha algemas nos pulsos.
— Infeliz Jacob murmurou Pedro.
!
gnação ?
— Olhe,
menina Sarah, eu vi-o a soffrer tanto, tanto, tão pallido, tão
trémulo, ora irado como um homem, ora commovido como uma creança,
que pensei commigo: se o insultam, se o torturam na minha presença, eu,
que estou livre, mato-o. . •
E Pepe, ao dizer isto, tinha tanto brilho nos olhos e tanto calor na
palavra I . . . fez o gesto tão rápido e tão enérgico, que Sarah, que o escu-
tava anciada e se movia com a declamação do pastor, quando elle disse
— Pois não verdade, menina é Sarah? Não é melhor morrer que sof-
frer assim?. . . Dores, ainda, ainda. . . mas insultos, mas vergonhas, mas
violências?!... é de mais!
— Tens razão, Pepe, disse Pedro; pensas como um homem!
— E Jacob, sem poder fugir a esse martyrio I
logravas os algozes ! . .
— E depois? depois? Pepe? Anda, conta, dize... Que viste? que ou-
viste? que disse elle? que pensa Jacob no meio de tanta desgraça ?
cheios de espinhos, que penetram nas carnes! Que ouvi? Soluços, gemi-
dos, súpplicas e pragas ! Que disse elle ? Tudo o que o olhar pode dizer,
tudo o que se adivinha e não se ouve, tudo que traduz saudade e deses-
pero, amor e ódio! Em que pensava elle? Nos infelizes que soffriam, na
vingança, que não podia gosar, em vos, menina Sarah, em vós, com cer-
teza, que eu bem vi, na alegria com que me olhava, que não era a mim
que via. .
— Em Hespanha ?
— De Philippa d'Eça?
— Exactamente; de Philippa d'Eça; não para a servir, mas para a
espionar. Deza, o grande inquisidor, tem allianças terriveis com frades e
freiras de Portugal. Philippa está ao serviço delle . . O homem quer apro-
veital-a, mas primeiro conhecel-a. Emquanto Philippa descobre segredos do
rei e entrega judeus de Hespanha, eu devo vigiar Philippa, para que ella
— Não te demoras ?
cado aos frades dominicanos, que já estão outra vez no mosteiro de S. Do-
mingos. . . E depois hei de voltar a Sevilha, onde tenho um negocio muito
importante a tratar. . . Como vedes, já pareço alguém! e, a respeito de di-
nheiro, é isto, nem mais nem menos.
E Pepe tirou do cinto uma pequena bolsa, que agitou, para que se
— Que bella carga de consolações vou levar a meu amo e senhor ! Até
dá vontade de chorar, ver tanta gente boa neste mundo tão máu! Agora
vou por casa, a ver os meus pequenos... Salve-as Deus, meninas, e a
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 45
e por isso ellas andam no espaço. Mas, dentro de nós, não haverá alguma
. .
coisa tão leve como os pássaros, que saia de nós mesmos, e suba, e suba
por ahi acima? Será isso a que os frades chamam alma? Aquella gente,
que soffre na Inquisição e morre nos autos de fé, viria ao mundo só para
viver assim, victima da outra gente que é dona d'isto tudo, porque tem
quanto quer, faz o que deseja, e tudo obriga a todos, trabalho, logar e
pensamento? Por que será que na terra ha tantas religiões, e por que será
que entre ellas uma religião persegue e destróe as outras ? Aquelles mouros
e judeus, que vejo por ahi fora, são gente que oftende a Deus, mas, afinal,
é gente que não faz mal —e a outra até faz chorar!. . . Se eu pudesse
voar, ia lá acima fazer queixa d'isto tudo a Nosso Senhor!. . . Pois Deus
é tão bom, tão forte, tão poderoso, e deixa fazer o mal na terra, e deixa
o Diabo quem anda no mundo a prender gente para o seu reino de fogo! . .
Deus desculpar-se de lhe não ter acudido ? Não comprehendo bem o que
é ser judeu, nem o que é ser mouro. . . Sei apenas que os judeus são fi-
lhos d' outros judeus, e os mouros filhos d'outros mouros! Ora, se Deus
deixou que os pães vivessem, para que deixa agora que matem os filhos ?
meus pássaros, que havia tanta gente perseguida por não rezar como eu?
Eu nem quem tinha razão! Acertei por acaso! Quem me
sabia que era eu
diria que o sr. bom a valer, generoso como poucos, amando
Jacob, sendo
como os outros homens, sorrindo como elles, protegendo-me por eu ser
pobre, defendendo me por eu ser fraco, aconselhando-me a que amasse
meu pae e meus irmãos, não era filho de Deus! Mas que differença ha
então? Serei também judeu ou mouro? Se o que vejo fazer, em nome do
Céo, é Deus que o quer, parece-me que tenho mais medo do meu que do
Deus dos infiéis ! . . . E eu nunca havia pensado n'isto I E quando tinha de
soccorrer alguém não pensava nesta differença ! Quantos judeus terei eu
soccorrido e amado? Isto deve ser heresia... Nem pode ser outra coisa...
amada pelos christãos Por que me não adverte o Deus, que tenho em
!
homens!. Bem sei isso! mas sei que ja não foi no meu tempo que isso
. .
succedeu, e que havia já muitos annos que não existia cruz nenhuma!
Tinham-me dicto que os que roubavam ficavam captivos e pobres, que os
que matavam morriam, porque a força, a gente toda, o mundo, não queria
que se roubasse nem matasse ! E, ao sahir d'aqui, ao atravessar as terras
mais ricas, mais bellas, onde está a justiça, a religião, a auctoridade, os
mestres, os que governam e mandam, não vi que se matasse e roubasse
ás escondidas ! Pelo contrário, vi que os alguazis roubam, que os padres
matam, isto é, que a justiça é criminosa, e que a religião não é moral!
Por aqui dava-se caça aos lobos e malfeitores; por lá succede o contrá-
rio Entre essa gente toda que sabe, que pode, que manda, que gover-
!
Eu sou christão pela graça de Deus; mas se, para ser christáo, é necessá-
como os frades de Christo, então, antes quero ser judeu e mouro. Pelo que
vi, Jesus não passa dum christão-novo, que ficou sempre judeu ! . . . Ora,
aqui está uma bella obra a que um rapaz como eu se poderia entregar
Não me sae dos olhos aquella moura desgraçada, aquella pobre Suzana,
que assistiu ao supplicio do seu amante ! Se meu amo se perder e me cou-
ber a tarefa de devassar o segredo que me foi confiado, com certeza m^e
farei homem, e talvez possa ser homem rico- . . Por este sol que me allu-
mia, hei de vender cara a minha vida, e hei de castigar, por conta de
Deus, todos estes crimes de Satanaz ! Desde muito creança me habituei
a affrontar as violências do céo... Ainda não trepava bem estas escar-
pas e já me tinha habituado aos vendavaes mais furiosos. Os relâmpagos
não me faziam voltar a cara, a trovoada não me ensurdecia, e os raios,
que tanta vez se cruzaram por cima da minha cabeça, preferiram sem-
pre a cruz do campanário.. . Se cheguei a não temer os céos, por que
não hei de chegar a não temer os homens? Decididamente preciso de ser
útil. Quando eu julgava que o mundo era só isto, percorri e dominei isto
tudo. . . Agora, que sei o que está para lá d'estes montes, por que não irei
— Já não me conheces?
— Agora mais que nunca. Jocob Adibe assignou-lhe o rosto com ru-
brica e guarda!. .
— Como um morgado . .
— Tens graça!
— Achaes graça!
— Sem dúvida; era mesmo que tencionava offerecer-te.
isso
— Já vejo que máu negocio. Estou capaz de pedir mais.
fiz
— Dize ainda. . .
gada. •
— Bem; amanhã,
el-rei vira ao mosteiro. a noite,
— Temos o mosteiro alcáçova feito ?
— Subirás escada da
a depois entrar. torre, d'elle . .
—E da etiqueta. . .
—E se me surprehenderem ?
— E' uma patifaria, mas está-lhe nos hábitos. Está apostado. Man-
dae-me amanhã gibão, borzeguim, gorro, dinheiro e chave. .
— Por vós, meu senhor, que por mim, bem o sabeis, nem temo a lucta,
a que estou aíFeito.
quena capella, viu que a luz se movera rapidamente, como se fosse a apa-
gar-se com uma forte corrente d'ar. Voltou-se e viu então que a porta, que
eile deixara fechada, se fechava de novo. Apesar da escuridão, distinguiu,
um vulto no principio da escada.
— Quem está ahi ?
armada, expor a vida, praticar uma acção boa, e não contra vós.
As palavras de Pepe tmham um tom tão suave e sincero, que el-rei
começou a tranquillisar-se. Affirmou-se mais D. Manuel e viu que, na ver-
dade, tinha na sua frente um pobre rapaz, um adolescente, cuja apparição
não sabia ainda explicar, mas já não temia.
— Estás só ?
— Approxima-te então.
— Pepe subiu alguns degraus, quando a e, luz já lhe batia no rosto,
parou e poz os joelhos no degrau superior.
— Perdoae-me, senhor, mas sou portuguez, amo o meu rei e tenho que
pedir-lhe a vida dum dos homens mais honrados que existem no vosso
reino.
— De quem falas ?
— Fala depressa.
— Leia, vossa alteza, estas provas; são documentos que trago de Deza,
e pelos quaes ficareis sabendo que estaes rodeado de agentes hespanhoes.
. .
— Dize, pois. .
Bastará uma palavra vossa, senhor, para que esse leal christão-novo seja
posto em liberdade . . . Mandae-o, depois, se isso vos aprouver, para a
índia, onde elle poderá honrar o vosso nome, ou fazei-o emigrar para
qualquer parte do mundo onde elle não incommode a Inquisição, nem a
Inquisição o persiga. Não imaginaes, senhor, quanto elle vale!... Que
bello coração! que excellenté alma! Fazei-o pagem ou cavalleiro, que elle
pto por um alvará de vossa alteza. Mandae que elle vos defenda, e elle
morrerá por vós! Não tendes no vosso reino vassallo mais dedicado! Sal-
vae-o,meu senhor, salvae-o, pela gloria de Deus! . .
Pepe deu mais um passo, e a porta, mal elle passou o limiar, girou
novamente, e fechou-se.
nheceis, senhoria?. . .
merecer a honra de penetrar n'este eco aberto, diria eu, se se não tra-
— Que tu roubaste ?
— Que ideal não tenho edadc para roubar, nem um beijo, sequer-..
— Trazes recado del-rei?
— D'el-reil Kntáo eu sou gente que conheça gente? Não, senhora tal
minha. Venho da parte do sr.- morgado, para vos participar que el-rei não
pode hoje vir ao mosteiro. . .
Até estás bonito! Fica-te bem esse gibão. Tens a figura mais distincta
que muitos fidalgos da corte. Só agora reparo, Pepe, nos anneis do teu
cabello. . . Tens uma bella cabeça!
E Philippa mirou o falso pagem com grande attenção, e, durante o
exame, a physionomia, ordinariamente carregada e dura, se animou com
o seu melhor sorriso.
— E, de Cysneiros, disse tens algumas novas? ella,
— Porque são raros em Portugal tal feitio, côr e brilho. São olhos an-
daluzes.
— São de minha mãe. .
— Diz meu pae que tão formosa como ella, só conheceu a sr.* abba-
dessa D. Maria d'Eça. .
— E' notável que eu nunca tivesse olhado bem para ti. E' o fato que
te fez bonito. Pois hei de cuidar no teu adorno, visto deixares de ser pastor.
— Ficaes sabendo, senhora, que não deveis contar hoje com el-rei...
— Faz-me faltai
— Se o amaes. .
— Bravo, bravo! as tuas falas são já mais garridas que o teu gibão!
Vamos, senta-te aqui. El-rei não vem? Melhor! Chamaste-me pastora? Pois
seja; pastor, dá-me um beijo por conta d'el-rei, que te enviou. .
Pepe ficou perplexo. . . Dar o beijo que lhe pedia Philippa seria o seu
desejo, mas el-rei estava vendo-o e escutando-o. . . Dar um beijo na amante
do rei! Era uma falta de respeito. . . Mas recusar, também lhe parecia gros-
Quem sabia explicar-lhe se aquelle beijo pedido era pedido a el-rei? Mas,
nesse caso, era atrevimento seu acceitar um beijo que ia para tão alta
personagem
. . . . . .
Philippa estava mais bella que nunca. Olhal-a, era vêl-a, e vêl-a toda!
Estava vestida de nudez, que é um habito tentador! Esperava o rei, seu
amante, e não o pastor, seu serviçal. .
Quem podia explicar o que vestia Philippa? Tudo que poderia mostrar-
Ihe as formas e a graça.
Todo o corpo estava velado, mas como? De transparências. .
A cintura tinha a carne a rosar o tecido da túnica, tão fina, tão cruel,
que parecia molhada. .
Pepe, n'um relance, tinha visto tudo isto, e tinha adivinhado o resto. .
Aquelle espectáculo era novo para elle, completamente novo. Sabia o que
era amor, mas ignorava o que a arte podia melhoral-o. Não era um inno-
cente, era um inculto. O que tinha deante dos olhos era mais que uma vi-
são, era um deslumbramento. Aquillo não era uma mulher, era uma mulher
demónio!
Ao mesmo tempo que o attrahia, o repellia com violência. Puxava por
:. . . . ! !
elle e arremessava-o para longe. Se lhe desse um beijo, quantos lhe daria
depois? Antes do convite acceito, lembrava-se de que el-rei o espreitava,
mas depois?
Podiam estar alli todos os reis do mundo e todos os deuses do céo,
que elle não deixaria de matar a sede n'aquella fonte crystallina
Não lhe chegavam os olhos para abraçar, n'um relance, a visão que o
perturbava. Ora fixava o olhar nas ondas do cabello, ora no movimento
frenético da sandália... E pelo caminho demorava-se. .
meu lado. .
— Não era el-rei capaz d'esse galanteio, meu querido Pepe. . . El-rei,
que apenas me fala do seu poder absoluto e do valor das suas jóias ! Ah
que se as mulheres soubessem onde o amor guarda as suas aljavas...
Quem o pintou na figura d'uma creança bem soube o que fez Es I . . .
Pepe voltou a cabeça e viu, por entre as ondas, a sahir, o busto de Vé-
nus, e Cupido, com azas pequeninas, beijando sua mãe.
— Imagina, Pepe, disse Philippa, que estes estofos, em que me reclino,
são ondas do mar, que estas rendas, que me envolvera, são d'essas ondas . .
.
esquece o teu gibão, e abre as tuas azas... Copia aquelle quadro, meu
rústico poeta ! . . .
— Meu filho, abraça tua mãe, disse Philippa abrindo os braços e exten-
dendo-os a Pepe, com tal vivacidade que o manto de todo a abandonou,
e o vulto gracioso e elegante se mostrou, com todo o encanto das suas li-
— Senhora, el rei, vosso amante, não pôde vir hoje, mas virá ama-
nhã. .
dade imbecil e da semsaboria real, e tu vales mais que tudo isso. . . Sou
nova, sou formosa e sou rica, e, na agencia, que me dá força e auctori-
dade, terei mais influencia no rei de Portugal que a filha dos reis catholi-
cos. Senta-te aqui, Pepe ... Já que o acaso te enviou a meus pés, adora-
me, tu que me trazes a nova sensação d'um corpo virgem e d'uma alma
apaixonada. . .
-^
6^'
. . .
— El-rei.
— Estou perdido! pensou Pepe.
'^'
— Traição ! murmurou Philippa.
El-rei fez-se esperar; mas, afinal appareceu, solenne na posição, mas
alegre na physionomia. O manto aberto, a mão sobre a espada, a cabeça
bem erguida, e coberta com o seu gorro de disfarce.
— Boa noite, Philippa, minha carinhosa amiga, trago-vos uma boa
nova : ides passear até outro mosteiro, emquanto não determino a succes-
são de D. Maria d"Eça. Podereis escolher o sitio mais bucólico, vista a
mar o mosteiro . .
MYSTERIOS D\ INQUISIÇÃO
cebispo de Coimbra.
Fechou-se sobre el-rei o grande circulo de luzes, e D. César e Pepe
seguiram a pequena distancia el-rei, que, vagarosamente e traçando o
manto, desappareceu na vasta galeria do mosteiro.
— Cara me pagarás a villania, rei de Portugal, disse Philippa, ao ficar
só. Veremos quem vence... Felizmente ainda o throno não vale tanto
como o altar. Querem luctar ? Luctarei. O abbadessado é electivo, e Roma
ha de sanccionar a eleição!
E ficou recostada no divan, com os olhos fixos nas velas de cera dum
grande lampeão, a pensar na desforra . .
.
XXI
Os noivos
Alguns dias depois, voltava de Lisboa Pedro Soares, mais alegre que
nunca. Remoçara o gentil cavalleiro n'esta ultima viagem.
Trouxera em sua companhia Gil Vicente, e no cinto, bem guardada,
a auctorisação d'el-rei para desposar Deborah. Antes de partir dispuzera
tudo para a cerimonia, e, durante o pouco tempo que se demorara em Lis-
boa, preparara, em sua casa de Villa Nova, o futuro ninho dos seus amores.
A velha Joanna encarregara-se d'essa tarefa.
Como ella estava saudosa das suas queridas filhas, e bem contristada
com as ausências frequentes do seu Pedro! Levantava-se muito cedo e logo
SC empenhava em alindar os quartos dos noivos. Como tudo estava tão
asseado e elegante ! Pobrezinho, sim, mas d'uma singelleza artistica, em
que era aproveitada toda a luz. . . O enxoval era um mimo, que ella pre-
parava com. o próprio trabalho e com o trabalho de Sarah, que constan-
temente lhe estava enviando rendas, frioleiras, fitas, fronhas e bordados I .
da pregaria nas juntas do couro ; mas Joanna, por tal forma a ataviara,
é que eu tenho pena de estar tão velha! Gostava de viver muito tempo
assim . . .
— Ainda
• falta a noite de hoje, o dia de amanhã, depois o outro, o ou-
tro, o outro. . . Ainda falta tanto, meu Deus! O que eu queria era ador-
mecer agora e só accordar quando elles me apparecessem, a correr, a cha-
mar por mim, muito risonhos, a beijarem-se, e a beijarem-me! . . Em que
hei de entreter todos estes dias? Depois Lorvão fica tão longe! Se lhes
succede alguma desgraça pelo caminho?! Deus não ha de querer seme-
lhante cousa. . . E' verdade que já nos teem succedido tantas desgraças. .
Pois é por isso mesmo. . . agora acabou -se todo o nosso infortúnio. Se eu
tenho pedido tanto a Nossa Senhora!. . . Emquanto elles não vierem, hei
de ter sempre a lâmpada accesa, de dia e de noite. . .
E depois d'este monólogo, ora alegre, ora triste, passeava pela casa,
e, insensivelmente, ia parar á porta da alcova dos noivos, e espreitava.
— Está pobre, mas está bonita. .
Foi n'essas disposições de espirito que Pedro deixou sua mãe c che-
gou a Lorvão.
Também elle ia radiante, cheio de saudades e de esperanças ! Dois dias
mais e Deborah seria sua mulher! e logo partiria com ella e com Sarah,
em caminho de Goimbra e de Lisboa! Ao lado da sua noiva passaria um
. ! . . .
Só quando elle ergueu a cabeça para lhe ler nos olhos a alegria que
devia causar-lhe a noticia de que vinha, emfim, buscala e dar-lhe o seu
nome e a sua vida, é que reparou no aspecto doentio da pobre creaturi-
nha.
— Que tens, tu, Deborah ? Estás doente ?
os olhos, que o espelho tudo denuncia; mas, afinal, passados alguns mo-
mentos, reanimo-me, aqueço-me e esqueço-me. .
— Não é nada, disse ella, passando o lenço de rendas pela fronte suada
e fria. Trovoadas de maio. . . Descança, Pedro, continuou, abrindo um sor-
riso contrafeito, já vem o sol a romper!. . .
— E se eu morrer?
— Quem em morrer
fala ?
na hora derradeira. .
— Fala, Deborah. . .
— Sempre a mesma idéa, pobre amiga; para que falas de tua irmã,
casarei com Sarah, ou com quem tu quizeres. Mas mais tarde tratare- . .
limpa os olhos, e vae para o lado de tua irmã, que te adora, e que seria
a primeira a maguar-se se soubesse quanto és injusta para com ella.
— Principalmente comtigo I . . .
— Então desprezal-os-hias ? . . .
— Tu não vês na plumagem das aves as cores dos pães e das mães
que os geraram em seus ninhos. Não vês negros os filhos de negros ? ban-
didos os filhos dos bandidos ?
MYSIEKIOS DA INQUISIÇÃO
nho a este episodio da minha vida ! Feliz por mim e por eila. Desde que
comecei a sonhar com este amor, que temo despertar antes de associar
ao meu destino o dessa infehz menina, tão virtuosa e tão perseguida pela
•desventura ! Quero eu ser a sua boa estrella, e escudal-a com o meu peito
para a defender das injustiças do mundo.
— E" formosa a tua noiva. \"\-a de relance, comtudo ílxei-lhe os encan-
tos. . .
—E aquella tristeza :
— E de tal forma carinhosas' para commigo, que Deborah tem por mim
todas as dedicações d'uma irmã, e Sarah todos os zelos de uma amante'
Chego ás vezes a perguntar a mim mesmo. . . .Mas falemos noutra coisa.
Conto com a felicidade, porque vou. emtim. alegrar a vida de Deborah.
e. se n'esse empenho, houver de me entristecer, espero que Sarah me
.conforte e alegre. . . Em conclusão, caso com as duas.
— Esplendida bigamia, auctorisada pelo teu bello coração . .
— O que ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Do outro nada havia a temer: esse tora bem reduzido a cinzas. Entre-
tanto a coincidência contrariava Pedro... Uma recordação triste é sem-
pre desagradável num dia de festa. Nos espíritos fortes ha sempre um
lado fraco — é desse lado que moram os preconceitos, os agouros, os-
lhe arrancara do peito a flor de laranjeira, como lhe puzera deante dos
pés o mendigo daquelle nome, que le\'ara Pedro a falar em phenomenos
de herança, ou atávicos.
Pedro não pensava assim; mas sentia, pouco mais ou menos. Não-
acreditava na alma do Aragonez, notava apenas que tudo aquiilo parecia
eflectivamente obra de uma alma. . .
Por que não cahiu do vestido de Sarah algum dos adornos que lhe
regaçavam a saia, algumas das pedras que lhe scintillavam no cinto, as.
res!. . . Eramo sem que nenhuma das pessoas que poderiam entre-
cahiu o
gal-o mudas, o visse cahir, e o entregasse sem recommendação. Que
extraordinário acaso o fez cahir por forma, e em tal momento, que só Gil
o viu e o apanhou! K era tão natural que Gil o entregasse, fazendo uma
vénia ! Mas, por acaso, tudo por acaso, lembrou se de fazer o elogio da
rtòr da virgindade, á pobre Deborah, que daria toda a sua existência por
um dia em que esquecesse não ter direito áquelle symbolo. . .
E tanto pensou nisto que chegou até a dizer, muito a dentro da sua
consciência: que estúpido agouro!
Os sinos c que não paravam... Ksses cada vez repicavam com mais
torça... Dir-se-hia que a alegria dos noivos voara d elles e f(~)ra pousar
nas torres da egreja! . .
E não admirava que Dcborali, uma creança, uma mulher, iVaca, su-
persticiosa, se abalasse por tal forma; também elle, sem querer, se estava
lembrando de que aquella creança que elle amava, e que a Egreja lhe ia
entregar, já fora d'outro. . . Kra verdade que esse outro fora castigado. . .
Bem sabia que não era a alma do Aragonez que andava alli a entriste-
cel-o; mas a verdade c que a nossa memoria se parece muitas veze.s.
A pergunta foi repetida; e então Deborah fitou o seu noivo, como que
ii consultal-o se elle tinha coragem para luctar com um espectro, e am-
bos, em unisono, apertando as mãos sob o estofo sagrado, responderam,
com assustada vivacidade
— Sim, sim
Então o sacerdote fez em portuguez uma pequena pratica do ritual
monia. .
— E Pedro
tu, ?
Tu, que tanto amaste e choraste, faze com que elles sejam felizes, e
abre-me este coração a outro amor, ou a outro sacrifício. . .
XXII
o partido da rainha
gimen de cobrança.
A alguns destes perpétuos perseguidos, sem que as solicitassem, eram
dadas mercês e distincções. . . Pediram-nas os partidários da rainha — os
mesmos que depois faziam percorrer as boticas, e outros centros de con-
versação, os commentarios mais acerbos, sobre esses favores del-rei.
D. Manuel não tinha o bom senso necessário para se manter no justo
meio — entre a perseguição brutal e o favor irritante.
— Então, que queres que julgue? Pois tu não vês? Aqui tenho um
novo pedido para o velho Pedro, que ha um mez foi feito corregedorl. .
— Meu senhor, tantas vezes vos tenho dicto, que ha muitos perigos em
todas as politicas extremas. E' possível que estejamos atravessando um
período de attenuação. . . periodo curto, mas emfim de attenuação. . . O
que nos convinha, meu senhor, não era lisonjear os judeus — era esque-
cel-os, isto é, não os fazer lembrados. .
vésseis cedido ao partido da rainha ; como não cedestes, será feita contra
vossa vontade. Não a fará o vosso governo, mas o vosso povo... Ora,
para que o povo a faça é indispensável que volte o velho ódio adorme-
cido. A sedição trouxe o dó ; a vossa protecção pode trazer perseguições.
Estaes sendo um instrumento dócil na mão de politicos habilidosos.
— Mas, se eu tenho os partidos da corte e o agradecimento dos judeus,
como não hei de ter força para sufíbcar uma revolta :
—
Não se trata duma revolta contra o vosso poder, mas contra os
marranos. Será a repetição da que tanto vos magoou. . .
— Recusaria . .
— Sua alteza concluirá apenas que sois o rei de Portugal, que podeis
fazer o que vos aprouver, mas que não quereis fazer senão o que m lis
de judeus e christãos-novos ? . .
— Reparae, porém, meu senhor, que ha entre ellas algumas que são
actos de justiça, c não de favor.
— Pois não serão perigosos esses actos de justiça? Não me disseste
que era necessário fazel-os esquecidos, a esses marranos que tanto pedem?
— E' necessário distinguir. Não fazer justiça, é perseguição — fazer
mais do que isso, í favor. . .
— Seja o que tu quizeres. Alinal tu sabes mais disso que eu. \'è tudo
e resolve. Assignarei o que me apresentares; com uma condição, porém
— has de entender-te com a rainha... Sabes, ,'\ntonio, ti\e hontem
uma esplendida caçada!. . .
— Folgo com isso, meu senhor. Cxalá que vossa alteza procure dis-
trair o espirito, porque, quanto menos preoccupado o trouxerdes, melhor
podereis ouvir noticias do governo da índia e das guerras d'Africa.
— Amanhã falaremos n isso, c então me lembrarás um negocio que
desejo ver com urgência resolvido.
— O ^ue é urgente começa-sc hoje. .
— E' urgente, mas não tanto. Quero que seja transferida de Lorvão a
filha da abbadessa. . .
nha, que lhe punha as mãos com beata correcção, o principe ia repetindo
quantas orações lhe eram habituaes, e sempre alguma nova, apprcndida na
véspera nos lábios do confessor.
K o pequeno não se mostrava contrariado; pelo contrário, ao findar
tão modesto exercício, elle próprio pedia anciosamente que lhe ensinassem
outros pedidos ao Céo, e até, por sua conta, apresentava apontamentos, ou
memoriaes, para novas pretensões I . .
L'm dia a rainha, depois das longas rezas, em que o principe perdera
. . . . . .
tasis, revolta o povo contra o poder real. e vos obriga, senhora, a assumir
a regência ? I
— Não sejas tonto, meu]João, não vão tão longe os perigos da fraqueza
d'el-rei. . . Tenhamos confiança em Deus, e os judeus hão de submetter-se
-para sempre, deixar as terras do reino. .
— Isso pergunta-seP! Mais que o pão de cada dial Sem pão vive- se
muito tempo, sem perdão de Deus é que se não vive. O meu confessor
fez-me promessa egual. Assim, se juntarmos o teu premio ao meu, sere-
mos os mais zelosos defensores da religião e da paz!. .
! ! .! .
queno. . .
ção tão sublinhada, que bem se via que, se a condição não fosse acceita,
elle não desistia do pedido.
— Deves vir a ser um grande reli disse a rainha, beijando novamente
o filho.
Mãos de creança, mãos do tamanho das dos anjos, que formam as nu-
vens da Virgem, postas em súpplica de crueldades e de tiagicios I
til que estava a gerar-se a fúria fanática e bestial do rei que estabeleceu
a Inquisição em Portugal, que destruiu milhares de vidas, que perseguiu
milhões de consciências, que atrazou séculos a obra da civilisação
Pobres creaturas, essas duas imperfeitas, que se moviam a um aceno
de dois confessores hypocritas e brutaes 1 E era sobre tanta ignorância,
ou innocencia, que pairava a aza negra da reacção, todo um passado de
barbaria, todo um futuro de selvajaria... Era sobre essas duas frontes
illuminadas de graça e de placidez que todo o poder rancoroso de Cas-
tella e toda a intriga sórdida de Roma esvoaçavam impertinentemente I
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
neno.
E' tão difficil dizer — não — á mulher que se ama!
A mulher que nos enlaça em seus braços, envolve-nos nas suas cren-
ças, arrasta-nos no seu caminho, abysma-nos nos seus erros ! . . . D. Manuel
sorria-se do exaggerado beaterio de sua esposa, explicava-o depois, passava
mesmo a desculpai-o, e, porfim, transigia, e adoptava-o. A rainha para
el-rei era um príncipe infante, já de coroa na fronte. . . participava da sua
auctoridade e do seu poder! Era ella que se sentava a seu lado, no throno,
era ella que representava a alliança de Castella, era ella que gerava os
filhos no seio. . . Como homem, e como rei, tinha de a respeitar. .
Depois o povo era outra creança, como o príncipe e como a rainha. Elle
rezava com fé, elle blasphema va sem saber o que fazia, elle reclamava o
que não era justo 1
Ora, D. Manuel não era rei de António Carneiro, nem de meia duzía
de phílosophos, que andavam planeando divisões da Egreja ; era rei dessa
rainha, d'esse príncipe e d'esse povo! . .
— Que mór respeito vos devo, senhora, que vos não tenha pago, por
affecto e por dever ?
— Sou má esposa ?
— E mãe ?
com elle. E' o vosso erro; não educaes vosso filho, submetteis-vos a elle.
Bem sei que o meu príncipe será o vosso rei, quando o sr. D. Manuel des-
cançar da tarefa de reinar, mas por agora sois vós a rainha d'elle — deveis
governal-o.
— E queres-me mal por tudo isto?
— Que me confundis com tão amáveis receios ! Não é para condemnar
os extremos do vosso coração de mãe que assim vos falo; é só para vos
advertir de que o joven principe ainda não tem. responsabilidade nas pala-
vras que diz. . .
— Sim, acredito — nas boas, que vêem de Deus, e não nas outras que
vêem de interesses inconfessáveis. .
— Não digo isso, António Carneiro, mas as intenções d'esses, que con-
demnas, poderão ser tão boas como as tuas.
— Permitti-me a vaidade. Fala por mim a lista de serviços prestados
aos negócios do Estado e a coragem com que tenho affrontado os murmú-
rios da corte. Nunca por meus conselhos el-rei se perdeu, e até por elles se
tem salvo de liames de intrigas e de confessadas traições.
— Não me envolves n'esse empenho?. .
no reino, para que elle possa melhor e mais rijamente conquistar e civi-
lisar as terras do gentio. Náo pode a attenção d'el-rei dividir-se por tal
— Quero dizer — sem tribunal que julgue, sem cadafalso que castigue?
— Olhae, senhora, para os reinos de Hespanha, onde o fogo alastra,
devorando infiéis, e onde os infiéis resurgem das próprias cinzas. Castella
sopra o fogo da heresia para o apagar, e ainda mais o inflamma.
— Mas ha de vencer um dia.
— Ou ser vencida. . .
— N'esse caso, dir-vos-hei, senhora, que sois a mais bondosa das mu-
lheres e a mais perigosa das rainhas. . . Conspiraes contra vosso rei e
— Mas, quando uma mulher julga mal encaminhado o rei a que per-
tence e ama, não será seu dever aconselhal-o?. .
do que a fama de que elle se acha coacto por influencias extranhas. O po-
der pessoal do sr. D. Manuel tem de ostentar-se livre de pressões, ou de con-
selhos. O poder real, que a turba julga infallivel, não pode ser attribuido a
coberta dos mares e continentes, não é mais que solicitação de Deus para
que castiguemos os seus inimigos. Pois acreditas, António Carneiro, que
não exista Deus ?
doareis, senhora, aos animaes — que são atheus? — se esse nome cabe ás
creaturas que não seguem a nossa religião? E comtudo elles vivem, e não
crêem com a nossa fé, atfirmam, com a própria existência, as maravilhas
da Creação. .
— Quantas vezes eu tremo por el-rei, por mim e por meu filho? Já
que as condições do nosso nascimento nos fizeram dirigentes e responsá-
veis,como havemos de ser absolvidos do peccado grave de tolerar que se
affirme como verdade o que temos por mentira ? Tenho medo, António !
Carneiro, que sobre a cabeça del-rei, meu muito amado, e de meu filho,
a minha vida, caia castigo do Céo, se não esmagarmos os infiéis.
—E julgaes assim agradar a Deus? Não vos lembraes que entre essa
horda de perseguidos ha amores, ha maridos, ha filhas que não teem um
palmo de terra amiga que lhes seja berço e sepultura?
— Também as feras teem ninhos nos seus covis, e vos, homens supe-
riores e fortes, lhes daes caça a toda a hora ! . .
— E, se eu tentar?
— Resistir-vos-hei. .
— E eu vencer?
se
— Retirar-rae-hei da corte e voltarei a fazer villancetes para entreter
o espirito, emquanto vós haveis de lacerar o coração de pomba, vendo
sacrificar todos os dias milhares de existências. O remorso será o vosso
futuro; eu dormirei com a consciência tranquilla. Quando morrer terei a
graça de Deus, que os rernorsos, por defender a fé, são obra do demónio,
de que Deus me compensará. .
— Pois nós não o servimos, levando o império da Cruz aos povos sel-
— Sem fé. .
perigosa.
— Pois ahi tens a difficuidade. . .
e convertia.
— A' moda de Fernando V
— Por que não?
— Porque sou Manuel I.
do principe. .
resistir-lhe?. .
—E que não entregaes, apesar dos escândalos com que elles abusam
da vossa piedade, ou fraqueza.
— Dizeis bem — fraqueza — que, não sabendo resistir ao conselho sá-
bio de António Carneiro, para não contrariar meu sogro, recorro á trai-
ção contra meus súbditos e os relaxo cobardemente ao poder da Hespa-
nha. .
— Estou tranquillo.
—E nosso filho? Pois não receaes que caia sobre a cabeça do inno-
cente a maldição que provocamos ? Eu sou mãe, meu senhor, e tenho medo
de que a vossa tolerância prepare a mais severa excommunhão para o her-
deiro do vosso nome e do vosso poder.
— Faço e prometto fazer o mais que posso, e irei até onde as circum-
stancias me arrastarem. Ir ao encontro dos acontecimentos não vou. Te-
nho, talvez, os vossos receios, mas falta-me talvez o vosso ódio.
— Julgaes-me então escrava de paixões ruins?
— Não disse ruins, mas posso dizer paixões.
— Que teem o fogo de Deus
— Mas são cruéis como os conselhos do inferno.
— Credo! que heresia!
E a rainha persignou-se rapidamente.
— Ora, dizei-me, senhora, vós que sois tão boa e tão religiosa, tão
christã e amoravel, como conciliaes as branduras do vosso coração com a
crueldade do vosso conselho?
— Não será a justiça obra de Deus ? E não serão bons os que castigam
os maus?
. !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
zasse, contra elle próprio reclamaria justiça. Era signal de que Deus o
abandonara e Satanaz lhe comprara ou roubara a alma. Sim, tenho dó,
muito dó de mouros e judeus, como tenho dos tristes que Deus dementou.
Para taes doentes, que não passam de possessos, é que a Inquisição tem
cárceres que isolam. .
— E as torturas?
— Não fazem o mesmo os physicos e os cirurgiões? Deixareis morrer
de maleitas uma creatura só para não a fazer soffrer com vesicatórios ?
dade.
E extendeu a fronte para el-rei, que a beijou meigamente.
— Bem, disse ella, sorrindo, quereis dar-me uma nova prova do vosso
amor, uma prova de que o tempo não arrefeceu os nossos corações?
— Quero, dizei. . .
— Novos
^
privilégios porá a Ordem de Christo?
— Não — o tribunal da Fé.
— E só n'isso pensaes, rainha, esposa e mãe I
— Sim. Rainha d'um grande povo, esposa do melhor dos reis, mãe do
príncipe mais catholico — só penso na felicidade de todos três, n'esta vida
povo, pelo rei e pelo príncipe. Não vos cabem responsabilidades, e con-
tentae-vos com isso. .
Mas a rainha não disistia das suas instancias, e, como conhecia bem
el-rei, deixava de pedir com tanta insistência, e apenas o entretinha com
os seus afagos e recordações, e, quando D. Manuel, já esquecido dos
grandes problemas do Estado, reclinava a cabeça no regaço de sua mu-
lher, ella, penteando-lhe com os dedos a macia cabelleira, ia beijando-o
na testa, e ao ouvido segredando
— Meu querido senhor, pelo nosso amor, purificae o reino de mouros
e judeus!- . . Amar-vos-hei mais, muito mais!. . .
ziam uns.
— Já os dominicanos voltaram ao mosteiro de S. Domingos, diziam
outros.
— Conspira-se em S. Roque contra a nossa segurança! diziam todos.
— O que é feito de António Carneiro ? dizia um frade a um se-
cular.
— Foi roubado da Alcáçova pela alma do aragonez. . .
!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
novo.
— D. Maria Manuel, respondia este, mordazmente.
E tudo isto se dizia, porque na praça pública se escutavam os beijos
e as súpplicas, com que a rainha acariciava o monarcha nos salões da
Alccácova
XXIII
o coração da mulher
Quando não rezava com seu filho, ou não discutia com o secretario do
— Sabeis, meu senhor, o que o povo anda por ahi dizendo, chocarrei-
ramente, por entre sorrisos desdenhosos ? . .
— Resistências, sim, que sua alteza soube vencer, para vos deixar o
poder desembaraçadamente da rebeldia dos castellões. N essa lucta por-
fiada em que sempre vencedor, havia o profundo respeito pelos
elle foi
ças ? Oxalá que o futuro não vos traga surpresas lamentáveis. Perguntae
a vossa irmã sr/ D. Leonor, se algum dia ella foi escutada no conselho
d'Estado. . . O forte rei, em cuja cabeça se firmava a coroa de Portugal,
procedia por seu próprio alvedrio; quando dava a morte mettia um pu-
nhal no peito d'um e a coroa na fronte de outro, que a bondosa rainha
tanto amava e defendia 1
espada de D. Manuel.
—
Se os ouvísseis! Julgaríeis que elles vos lisonjeavam e que só que-
riam servir-vos o poder e a alma. Elles só dizem palavras mansas, e só
fazem protestos de dedicação; mas é assim que pÕem em evidencia a vossa
fraqueza e vos tornam antypathico á opinjáo popular. Falam pela bôcca
innocente da rainha, minha senhora. O confessionário e o serão são as
duas lareiras em que elles aquecem as suas esperanças partidárias ! Apo-
deram-se de vós, affeiçoando aos interesses que defendem a esposa e o
filho, que amaes. E murmuram e escrevem, dentro do reino e para fora
d'el!e, affirmando que hão de vencer-vos, porque não tendes nem opinião
nem vontade próprias . . . Meu senhor, o povo a tudo prefere um rei forte,
audacioso, independente.
— E o povo acha-me fraco ?
capitães. Feito vosso, só vosso, que a Historia possa registar, por não vir
do esforço ingente dos filhos do mestre d'Aviz, não será o descobrimento
dos mares, nem mas a pacificação das
o domínio dos novos continentes,
consciências e a paz e a ordem em todas as provincias do reino e da admi-
nistração. Mettei na ordem fidalgos e frades e deixae que D. Manuel go-
verne Portugal com toda a altivez e independência. Amae a Hespanha,
que já não é necessário batalhar contra ella, mas não consintaes, emquanto
houver portuguezes que nos governem, que o que ella não logra por con-
quista, possa lograr por amor. Enviae a Hespanha vistosos embaixadores,
enriquecei com os thesouros do oriente todos os papas de Roma, mas não
consintaes que elles invadam Portugal com as forças do seu ódio e os hor-
rores dos seus martyrios. Ponde, senhor, a vossa cabeça gentil na galeria
dos grandes homens do século XVf. Já vedes que não vos quebranto, nem
intimido, e que faço justiça á vossa energia de homem e de rei!
D. Manuel ouvia o seu leal amigo, com tão fixa attenção, que, quando
António Carneiro acabou de falar, ainda ficou a meditar nas suas ultimas
palavras.
Depois, ergueu-se, bateu no hombro do secretario, como a prometter-
Ihc o que a elle lhe pedira, e recolheu-se aos seus aposentos, vagarosa-
Intrigas e ódios
Tinha a rainha que luctar contra este synhedrio, que, em sua teimosia
c eloquência, a todos os momentos conspirava a favor da politica de tole-
5 IO MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
teimosia.
—E tendes razão, António Carneiro, os talentos do vosso herdeiro
dão-nos esperanças de que a nossa obra ha de ter continuadores.
— Lisonjeaes-me, escrivão, e podeis fazer-me vaidoso.. .
voluntarioso. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Que tão grande a achei, que para a cumprir preciso do vosso au-
xilio. . .
— Sim, meu querido conde, mas á rainha coube encargo não menos
pesado e urgente.
— Dizei o vosso, meu senhor, que a vosso serviço estamos todos...
— Ainda bem que foste o primeiro a offerecereste, meu António Car-
neiro. Deume sua cininencia a penitencia de copiar a bulia de Xisto IV,
com a data 1478.
— Perdeu-se, meu senhor, o original.
— A rainha tem-n'a na memoria. . .
mentam . .
— Bem vedes que a diíficuldade não está em vos aconselhar essa có-
pia, mas em reunir todas as emendas. Bem sabeis que o breve de 20 de
janeiro de 1482 declarou errada essa bulia, por engano da dataria aposto
liça. Depois, temos a de 2 de agosto de i4<S3, que também foi feita com
precipitação. E ainda tendes o breve de 1482, e depois outro breve, e
ainda outra bulia, a emendarem-se constantemente — tudo por engano e
precipitação. Ides ter muito trabalho de escripta, meu senhor. . .
des e feias dos homens que vos aconselham com seu juizo, tão dedicada e
lealmente, como poderiam fazel-o com as suas espadas.
—
E entendeis, pois, que não devo cumprir a penitencia que me im-
puzeram ? Que dizes, conde de Villa Nova ?
— Que tão grande peccado não pode remir as vossas pequenas faltas.
— E vós, D. Álvaro da Costa ?
-—Que melhor fora não conquistar o Céo. que tel-o por tal preço.
— E vós, D. António de Noronha
— Que teria de me penitenciar com mór damno, se tal aleivosia vos
aconselhasse.
—E tu, teimoso António Carneiro ?
gueira da Inquisição.
: :
— Está bem. Já que assim o quereis, irei a S. Domingos remir com ou-
tras pesadas devoções o meu desrespeito pelo conselho da Egreja.
— Explicae melhor a Deus: pelo conselho da ordem de S. Domingos.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Eram tudo traições que el-rei sabia inventar, e que depois, por fra-
queza, e não por contricção, buscava remediar.
Com tal caracter, D. Manuel só pensava em enganar quem o servia,
mosa, e uma mulher formosa tem sempre grande influencia sobre as pes-
soas que a escutam.
N'aquelle tempo, como no de agora, o amor tinha o mesmo valor, que
o amor é eterno, é como Deus-, bem pode dizer-se delle, que nunca teve
principio nem jamais terá fim.
Não era o amor dos amantes, que as virtudes da rainha provocavam
respeito em todo o reino, e a sua formosura correspondia á sua casti-
Todas estas damas e todos estes fidalgos falavam na pureza da fé, sem
que isso muito lhes interessasse, mas só para lisonjear a vontade real.
vassemos esses mysterios, porque elles não passaram d'isso. O que de-
vemos rejeitar é a viva sympathia (attenuemos o termo) que Luiz da Sil-
veira tinha pela rainha, que n'elle encontrara um dos mais denodados
campeões das suas idéas e desejos.
tancia um do outro.
Luiz da Silveira era vivo, alegre, intelligente e . . . persuasivo.
Via a imagem da rainha através do espelho do filho. Apoderara-se de
D. João e só lhe dizia e ensinava o que a sua mãe poderia agradar.
Deante da rainha beijava o príncipe com enternecimento, e elogiava-lhe
o sorriso, o olhar e as palavras. E, sempre que dava liberdade á sua admi-
ração, olhava a rainha,como a confrontar com ella as palavras, e o mais...
Apiedava-se a miude, o hábil cortezão, da sorte de sua alteza, que não
era comprehendida, e do futuro do príncipe, que estava sempre compro-
mettido. . .
Pela manhã cedo sahia a passeio com D. João, por forma que, ao
voltar á Alcáçova, pudesse elle também ser dos primeiros a saudar a for-
mosa princeza.
Evitava o convívio com D. Manuel, e quando a rainha lhe extranhava
tal abstenção, embaraçava-se calculadamente, baixava os olhos, e dizia
lamentoso:
— El-rei não gosta de mim!. . .
Quando a rainha sahia a passeio, por que eila levava o príncipe em sua
companhia, Luiz da Silveira não faltava. .
—Quanto vos deve el-rei, meu caro amigo. Emquanto os outros fidal-
gos andam por montes e valles, em convívio alegre e em aventuras gra-
ciosas, preferis acompanhar minhas tristezas e abstracções! Quanto vos
deve el-rei
dissesse não. Não é palavra feia. O melhor é não a ouvir. Para isso o
expediente é conhecido — é não interrogar.
Quando um homem não interroga uma mulher, ella responde quasi
sempre. Não responde sim, nem não; mas responde coisas a que não
mede bem o alcance.
Se perguntarmos a uma mulher se nos ama, ella, ainda que queira
responder sim, nada responderá; se quizer dizer não, dirá que sim, ale-
gremente., com um leve tom de ironia. O que ella nunca fará, decidida-
mente, é dar um desengano. Rejeita-se muitas vezes o amor, mas, como
elle lisonjeia, nunca se rejeita completamente.
Fazer a corte a uma mulher
por forma que ella a comprehenda, mas
que não possa protestar contra ella, é a grande táctica dos homens hábeis.
As meias palavras são os grandes escudos. Quem recua, cobrindo sempre
o peito com ellas, tica sempre habilitado a avançar.
Luiz da Silveira andava sempre escudado. . .
Sabemos de que soffres, e és feliz
! : ! :
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Assim, devia chefiar aos ouvidos da rainha o que elle não julgava pru-
dente revelar-ihc.
O mundo, bem o disse l'xhegaray, é o grande Galeoto. Km elle que-
rendo que exista o que não existe, é como se existisse; e desde que toda
a gente diga que é, não vale a pena teimar em não deixar ser.
Luiz da Silveira não dizia á rainha que a amava, mas diziao a toda a
mulher d'el-rei
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Talvez . . .
— Pois não attentaes n'ellas!? Das mais formosas e das mais nobres!
É vêl-as n'um serão a que assista Gil Vicente. - .
— Será por isso, senhora minha; esses astros enchemse tanto de luz,,
no seu olhar triste, triste, como se visse a partir o seu coração, sobre as
ondas, pelo mar fora. . .
Queria isto dizer que ella apenas pensasse n'um aulico, n'um partidá-
rio, n'um defensor:
Exclusivamente não, mas principalmente, sim. São coisas bem differentes.
A honestidade da rainha tinha o limite de todas as honestidades. . .
Felizmente, cm amor não se pecca pelas formas diversas de que nos fala
o catecismo christão, — por pensamentos, palavras e obras.
Quantas infidelidades faz o pensamento? Mais que as palavras e as
obras! No amor não ha policia preventiva.
Se os sonhos d'algumas virgens passassem do silencio da alcova, que de
prostituição por esse mundo!
O amor, quando precipita as suas victimas, embriaga-as primeiramente,
envenena-lhes a atmosphera, dá-lhes, depois, o pensamento secreto, que
ellas, coitadas! julgam actos seus voluntários; depois persegue-as em so-
nhos!. . . Uma mulher, quando accorda, é um palácio encantado! Que de
poemas e idyiios por alli esvoaçaram, durante uma noite immensa, em que
toda a gente poderia vel-a serenamente reclinada, fechados os olhos, calma
a respiração, os braços extendidos como os dos mortos, ou a mão sob a
face, como a das creanças?
Só quem nunca viu uma mulher dormente é que não calcula o ab}'smo
que está por traz n'aquelle sorriso que lhe regaça levemente os lábios!
Aquella bôcca a entreabrir-se é o addito d'um grande inferno, ou dum
grande céo!
Os sonhos dos homens são sempre reflexos da sua vida real, são échos
do que ouviram, imagens do que admiraram. Os das mulheres castas e
honestas são sonhos de sonhos. . . São temíveis! São mais, são revelações.
Os sonhos dizem á mulher, quando ella dorme, o que ella não comprehen-
deu accordada!
O que ella soffre de dia, diagnostica-lhe o sonho á noite!
A mulher, ás vezes, quando entristece, pergunta mentalmente, a si
Não era d'ella, porque uma rainha precisa dalguem que a acompanhe; e
uma rainha, que não abandona seu filho, não pode andar longe do aio
que el-rei escolheu. Delle não era também, que tinha o dever de a seguir
e defender. Era Luiz da Silveira mais dedicado que outro qualquer corte-
zão ! . . . Isso era razão para o preferir, por ella, pelo príncipe e pelo rei . .
nha não sabia ! Em latim era um portento, e tanto que o pequeno D. João,
de longe e rapidamente, traduzia a Biblia, como se fosse escripta em cas-
telhano I
Na corte, a rainha bem o sabia, era por cila.Lá isso era. .. Quem
delia murmurasse, com elle se havia de entender. Porque era valente,
. .
Havia damas no Paço que faziam a corte a el-rei. . . Tinha elle culpa
d'isso? Quçm poderia accusal-a porque a olhava com tanto affecto o moço
fidalgo da sua casa ?
casto, desinteressado ? . .
Se nada mais que aquillo havia entre ambos, o que viesse a dizer-se
grande injustiça! Como procederia elle então, para com uma mulher que
tivesse um Uma mulher chega bem para se defender. Luiz da
amante? . .
Silveira era um homem, e continha-se; logo ella, que era uma mulher, não
tinha que se preoccupar com isso. . . Aquillo não passava d'alli. . .
Podiam morder-lhe, isso era verdade; mas desde que lhe mordiam sem
motivo, tanto o fariam a propósito de Luiz da Silveira, como de outro
qualquer, que ella tratasse de mais perto.
E, depois, quem a mordia? A gente da corte de el-rei, as damas que
nhor. N'um mosteiro estaria ao abrigo da gente ma, que procurava con-
fundil-a com as fidalgas amorosas, que esqueciam o marido e os filhos.
Deus e a fé I
Era até isso o melhor que tinha a fazer. Mais tarde que voltasse. .
XXV
o sonho
pses de Sol, gritos que se não ouvem, movimentos que se não mexem!
Um sonho é das coisas mais difljceis de descrever. Não se sabe bem
se assistimos a elle, como actores ou como espectadores, se estamos de
pé ou deitados, se vestidos, se nús. Um sonho é um delírio. N'e.lle anda-
mos a voar e de rastos ;
precipitamo-nos de telhados e subimos pelos po-
ços acima I Estamos a falar com uma pessoa, e essa se transforma noutra.
— Era uma mulher, e transforma-se n'um homem !.
No meio d' uma situação inuito dramática vem uma situação muito
cómica. Estamos a rir e a chorar! As vezes recebemos uma facada, e foi
apenas a unha d'um dedo que cravámos n'uma perna ! Quantas vezes
os bandidos nos afogam, n'uma estrada sem luz. . . é que tínhamos um
braço sobre o peito, ou pesávamos com força sobre o coração. .
tudo, tudo ! Abre-se como a bôcca dum crente aos pés d'um confessor, e
fala alto, como n'um monologo de theatro, e explica-nos por que andamos
tristes, porque andamos, como diz Camões :
Diz-nos tudo.
Quanto o pudor emmudeceu fala em liberdade, quanto a phantasia so-
nhou se torna realidade em sonho I . .
Christo sorrio, e Luiz falava. Mas que coisas que este dizia!
Já não era o tímido fidalgo que pisava a sombra da rainha, que lhe
apanhava o lenço cahido sobre a relva do jardim. . . Era um príncipe loquaz
e ardente, que dizia á rainha — mata-me se quizeres, mas a verdade é que
te amo !
. . . .
E a rainha fitava-lhe o olhar, que era tão parecido com o outro, hu-
milde, reservado e triste I
E a rainha, alHicta, queria accordar, que lhe não era permittido ouvir
aquillo tudo!
Mas, em vez de accordar, cerrava mais as pálpebras era o movimento —
instinctivo dos que dormem e querem agarrar-se ao sonho que os de-
licia . . .
E elle explicava-lhe:
— Sabes, minha pobre louca, o que esse sonho significa? Que me
amas, como eu te amo, e que este segredo, que nos faz tristes e desgra-
nhar toda a noite ! E apenas n'um instante o cérebro nos pintou todos esses
quadros, que se apagam de repente, parecendo haver defeito no apparelho
que os produz
Quando a rainha acordou do seu primeiro somno, julgou que dormira
muitas horas. . . Fizera apenas a sua primeira viagem, veloz como a ele-
ctricidade, através do mundo da phantasia I
Mas não pôde fitar por muito tempo as estrellas... Ellas brilhavam
tanto, tinham tantas scintillações, que não podia resistir d sua acção hy-
pnotica ! . . . Começou por cerrar as pálpebras e acabou por adormecer de
novo.
Cahir n'um somno não é cahir, é levantar o vôo !. .
Mal a rainha adormeceu, foi logo por ares e nuvens, ouvindo harmo-
nias celestes, entre uma multidão de anjos vestidos de gaze, sobre que
incidiam projecções de diversos cambiantes. . .
. . : .
Mas os anjos elevaram á bôcca, com a mão que tinham livre, a grande
tuba dourada, e, no espaço, ouviu-se um écho immenso cheio de melodia . .
que parasse! . .
xas, que pareciam feitas de luz, e ella sentia-se subir cada vez mais rapi-
damente emquanto os cabellos lhe esvoaçavam movidos por uma briza
muito suave, muito fresca . . .
Ouviu então a rainha pronunciar o seu nome, que sahiu das tubas dos
anjos, e que foi échoando pelas regiões do Infinito, fazendo iris phantas-
ticos nas vibrações das nuvens!
Fluctuavam as roupagens dos deuses no sopro tépido daquelia região,
e rebentavam hymnos e cânticos por toda a immensidade, invocando o
nome da princeza de Castelia e rainha de Portugal!
Mas, por cima do ruido das nuvens que se chocavam alegres, e do
som das businas, e das vozes dos anjos, e dos cânticos sagrados, que re-
bentavam de mil órgãos occultos n'aquella encantadora cathedral, a voz
do fidalgo perseguidor ouvia-se sempre, e, ora parecia o allegro de uma
jaculatória, ora o grave entristecedor de um miserere.
E quando a rainha se voltava para ver se estava em perigo de ser al-
Enganara-se ! não fora o sol que lhe aquecera o rosto, mas um beijo
apaixonado do seu companheiro da Alcáçova !
susta. Vae alto o sol, as corças já andam aos saltos na matta, e os cysnes
banham se alegres nos lagos do jardim.
— Ah ! és tu, meu querido filho ? . .
— Ainda não. E hoje não hei de rezar nem por el-rci, nem por mim,
nem pelos padres da Egreja. .
— Pois bem, meu querido príncipe, reza por mim, que bem preciso
das tuas orações. .
XXVI
Casamento politico
O casamento muitas vezes não tem contratos com o amor. E' desta
circumstancia que resulta, quasi exclusivamente, o adultério.
Dizemos quasi, porque o adultério também nem sempre é fructo do
amor. Assim como o casamento pode ser apenas um contrato feito pelo
interesse, também a infidelidade conjugal pode ser fructo, não d'um sen-
timento aífectuoso, mas d'uma reclamação viciosa. Ha exemplo para as
diversas hypotheses. Dumas fez um menos vulgar
romance sobre o a —
adultério casual, consequência d'um caso pathologico, momentâneo e trans-
itório, praticado por uma mulher que adora o marido e detesta o amante
Le roman d' une femme é uma excepção espantosa! Assim como um
cadáver tem diversas exhalações venenosas, assim o casamento produz
adultérios de diversa responsabilidade, porque é fácil averiguar que o adul-
tério é apenas um producto venenoso d'um casamento em decomposição.
O logar do amor é no casamento; mas o amor enche o mundo, e os
samentos que nos dão a impressão do mesmo erro : parecem ninhos que
nascem para os amores que vêem depois I. . .
Succede, ás vezes, que o amor anda por alli a esvoaçar, e aproveita esses
á porta dos paços reaes á espera de ver entrar alguém que o conheça e o
apresente. Depois de ter entrado, apresenta-se elle. . . Se o conheceu uma
dama apresenta-o ao noivo, e logo ella addiciona, aos seus titulos de no-
breza, o de favorita — se é um fidalgo, a apresentação é feita á noiva, e
Como não quizeram que elle assignasse o contrato, fez dos amantes
eternos paranymphos
Nos casamentos dos príncipes não se apertam duas mãos, approxi-
mam-se duas nacionalidades; não ha troca de allianças de ouro — ha uma
alliança de coroas de ferro —a estola que os envolve são as bandeiras dos
seus paizes — deitam-Ihes as bênçãos, em vez dos sacerdotes, os estadis-
tas, e ficam os noivos tão mal ligados como as nações alhadas — com uma
fronteira de permeio'.
Elle nunca viu a sua noiva; ella não lhe conhece o coração!
Caminharam um para o outro, levados pel-i mão das chancellarias, e
encontraram-se, aos pés dos altares, como dois generaes se encontram,
para parlamentar, no campo de batalha ! Falam linguas dilíerentes, ves-
tem-se de São m^is que extranhos um para o outro
modo diverso! são —
até extrangeiros! Namoram-se oito dias antes por cartas dos seus minis-
tros.Não vão para o thalamo, vão para o throno Não vão ter filhos para !
mas reis para o povo. A essas creanças não chamam fructos do seu
elles,
mesma solennidade com que bate a primeira cavilha d'um barco, ou com
que lança o primeiro cimento no pedestal duma estatua!
Um rei não escolhe uma mulher, mas uma rainha. Por outra forma,
nomeia a sua collaboradora dynastica.
Escolhendo, se lhe é permittido escolher, pouco se importa com os
olhos d'ella, mas com a vastidão territorial de seu pae. Que tenha sorriso
meigo, alma innocente, figura esbelta, importa um pouco, porque é preciso
tutelas.
Não era o amor do pae, nem o do marido; era outro, para ella tão
novo e surprehendente como lhe foram as dores da maternidade !
Foi então que ella comprehendeu que o casamento nem sempre tem
contratos com o amor.
Luiz da Silveira não era um audacioso; era um hábil, e as conquistas
Se elle tivesse tido uma audácia teria quebrado todo o encanto, accor-
dado de todos os sonhos, dispersado todas as esperanças.
Ha uma grande quantidade de cousas que nós todos desprezaríamos
se lhe citássemos, ou soubéssemos os nomes.
Os euphemismos são a peor invenção litteraria de todos os mundos
São elles o ouro que doura a pillula venenosa, de máu sabor, e ás vezes
. . .
Assim, n'aquella dúbia situação, Luiz sabia que amava e que era ama-
do. . . Toda a gente o invejava e ninguém podia accusal-o. . . Parecia ser
o amante da rainha, e, em tal caso, o parecer já é inuito, mas sentia-se
Nos amores prohibidos, quando não ha nada, ha tudo; ha, pelo menos,
o principal.
Elles não diziam amor, mas olhavam amor. Olhavam e pensavam e
— olhavam pensando, e pensavam olhando.
Ambos tinham d'isso a certeza. Sim, bem sabiam que, quando sonha-
vam, sonhavam ao mesmo tempo, diziam as mesmas palavras.
Ter os corpos separados não é o mesmo que separar as almas, isto é,
que separar o pensamento, que nos amantes coincide sempre, porque é
sempre o mesmo.
Está até averiguado que a melhor quadra do amor é aquella em que
os amantes se comprehendem, sem se explicarem... Quando elles se
adivinham é que se comprehendem. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Quem lhe devassasse o peito havia de admiral-a mais ainda! Ser casta
quando se não ama é vulgar, mas amar, mas resistir, mas vencer, c he-
lembram de que um coração que arde suffoca de fumo toda n geme que
o rodeia ! . .
A's vezes parece uma creança a dizer inconveniências entre dois na-
morados. Quando os namorados não teem junto de si uma creança indis-
creta, que diga o que elles calam, a phrase banal toma o logar da creança.
Por isso, quando a rainha se encontrou com Luiz da Silveira, depois
— Sonhos dourados'
— Não, azues!
— A còr do céo!
— E do manto da Virgem. .
—E el-rei?
^Não; ha tempo já que não sonho com el-rei. E vos, Luiz da Silveira ?
como o impossível
— O impossível em sonhos? Não creio. . .
— Não agradeceis ao Céo as venturas que vos concede ? Não c bom ser
— Porque vos não mereço, senhora. Não quantas quci.xas me sei faz
prezo e respeito, que tremo com medo de que vossa alteza me condemne
por ser, junto de \ós, mais reser\ado que um cortezão, ou mais sincero
que um lldalgo.
— Alegra-me a vossa tristeza, Luiz; não temaes molestar-me com ella,
Mais triste ando em cada dia que passa, e agrada-me, quando vos avisto,
que não andeis risonho como a outra gente da corte- .
— !?' que eu não sou da corte: sou vosso. . . e de vosso filho. Não me
accuseis, senhora, de vos dizer assim; mas, a verdade, é que no dia em
que se apagasse o vosso olhai\ fecharia os olhos para sempre 1 Falo-vos
muito por aftecto mas muito mais por lealdade. . .
— Tão alto! Se ella vos guia, por que não poderá amar-vos ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— E' que VÓS sois irmã d'esses astros formosos I Sempre que em sonhos
a vejo e a procuro — quero subir, e arrasto-me, quero chamal-a, e cmmu-
deço, quero fital-a, e cego!
— Mas, se podesseis, voarieis?
— Sim, como o vento que lodos escutara, e ninguém vê. . .
— Vós?
— Sim, eu. Perdoae-me a indiscreção. Velo- vos de noite o pensa-
mento, como vos sigo de dia o vulto e a sombra. . . Até quando vos saúdo.^
senhora, á hora da manhã, logo vos adivinho no rosto as canceiras dessas
viagens.
— Sabeis então por onde ando á hora do silencio?
— Sei, por divina inspiração, que andaes por entre os anjos a contar as
vossas máguas. Ainda em a noite que passou vos vi partir tão triste e tão só I
— Tão só!. . . acudiu a rainha, como se acreditasse ter sido vista nos
voos da sua phantasia.
— Entre azas de dois anjos, que andam pelo ar ao ser\iço dos crentes
e dos tristes. . .
—
E quem vos acompanhava?
— Dois génios, dos que alentam pagens, sagrados pela dedicação e
pelo respeito. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Como o sabeis ?
minha alcova . .
ditara ? Só fora falso, pensei eu, que o sol me tivesse enxugado o pranto...
— Por que? interrogou a rainha, olhando já muito anciosa para Luiz
da Silveira.
— Porque senti nos olhos, a sombra da minha lâmpada, as lagrimas
que eu chorava. .
— Dizeis bem, Luiz, santo esse que vae sacrifício celebrar-se no altar
da capella.
— São santos todos os porque são prova de que existe sacrifícios, o
amor — summula das três grandes virtudes— a que vos fortalece, fc a es-
tuiu á terra.
— Vivereis, vós, senhora, que sois del-rei e do principe. . . Eu não. . .
Kra isto n'aquella épocina, que Gonçalo Çacoto descrevia nesta quinti-
lha, que licou célebre, e vem citada nas Amantes de D. João \'
ração.
A tristeza era symptoma de m\sticismo, e não de paixão amorosa.
Se a rainha cada vez mais entristecia e rezava evidentemente, andava
mais preoccupada com as tentativas diplomáticas de Fernando \ que com
o olhar enamorado dalgum lidalgo, ou menestrel.
Affirmava-se até que D. Luiz da Silveira não lograra favores da rainha,
e que apenas se aproveitava de tão excepcional convivência, para se apo-
O zelo dos agentes seculares, isto é, dos que andavam fora da vida
monacal a trabalhar pela Egreja, precisava de ser constantemente vigiado.
Se a rainha se apaixonasse a valer pelo aio de seu filho, corriam os frades
tado latente. ..
disse de vós:
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Reparae, D. Luiz, que nada vos contei, e que, portanto, não vos
devo explicações do meu proceder.
— Nem vol as peço — commento a indiscreção, que tem o caracter de
aleive.
— Estaes falando com um tidalgo. . .
—O que disse, senhores, foi que faz menos damno a um homem uma
aventura de claustro, que a uma mulher a perseguição d um apaixonado.
D. Luiz da Silveira levou a mão á espada. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Que a vossa consciência vos responda, se, por acaso, ainda tendes
d'isso.
,
— Em guarda ! villão I gritou Luiz da Silveira.
E, rompendo violentam.ente por entre o grupo que o embaraçava, ia a
cahir a fundo sobre o peito de D. Gonçalo, quando viu que elle não
desembainhara a espada. . .
Recuou então. .
mão, lhe tocava os copos, como se tivesse sido movido por uma nova idéa:
— Guardae-a, por agora, D. Luiz, se não para defender a honra do
vosso rei, que ninguém, eu sei, ainda ousou atacar, ao menos para que
possaes ensinar o príncipe a esgrimir commigo, quando tiver pulso para a
suster. . .
mir contra vós, mas para que possa defender seu pae, conlo eu defendo
o meu rei, de dia e de noite, nos campos da batalha, nos salões das alcá-
çovas, ou nos centros da intriga, que devassa intenções dos homens e
categoria ?
mesmo quiz que vossa alteza visse de perto quanto os prazeres, com pre-
juízo da devoção, andavam por alli aninhando-se ousadamente. Commigo
entrastes, e commigo sahistes entre brandões que reclamámos, para que
ninguém envenenasse os intuitos da nossa travessia. Sabei, pois, meu se-
—E essa accusação ? . . .
— Dizia, que não o respeito por vossa alteza, mas o meu amor por
Philippa d Eça, alli me tinha levado e exposto á vossa censura e desagrado.
— E quem affirmou tal ? . . .
— Está bem, está bem'. .lá vejo que ninguém aqui se entretém com o
uso que faço da minha liberdade e dos meus poderes. E' caso entre vós,
que tereis de liquidar, com as armas que vos pedi. Eicae ambos com ellas.
— E sua alteza ?
— A rainha ?
— Este fraco. é
. .
— Um conflicto na Alcáçova !
— Diz-se então ?. . .
—E Philippa d'P3ça?
— Ficará perdida.
— Com o Papa do seu lado ?
— Ainda assim.
— Expulso — aos olhos da rainha, minha senhora. Luiz da Silveira
deixará mais em saudades que levará em amor. O martyrio delle e a vossa
infidelidade são demasiados estímulos num coração de mulher. Prudência,
meu senhor. A compaixão é uma doença que ataca os grandes corações.
No vosso caso, antes de afastar Luiz da Silveira da corte, afastal-o-hia da
rainha.
— como?
li
Seria o ciúme que o fez ser tão inflexível com o seu amável cortezão?
Quem sabe? Talvez. O orgulho toma, ás vezes, o logar do amor, e faz o
papel deste com toda a correcção. Elle amava a rainha? Impossível!
a uma mulher que se cubica, mas esquecia-a, como uma mulher que já
a
possuíra. Também amara D. Izabel, e essa era mais mulher, que é como
quem diz mais homem. Uma morrera cedo, e apesar disso quasi não lhe
deixara saudades!
F^òra mais seu ministro que sua esposa. Cahira, como, nos tempos
modernos, pode cahir um governo.
Casara novamente, e não estava arrependido; tanto que, se fosse ne-
cessário, casaria outra vez.
Ciúmes não tinha, que a piedade da princeza hespanhola não lhe dei-
xava tempo para pensar nos galanteios dos cortezaos. . . Por muito novos
e gentis que fossem, nenhum d'elles era rei Ser rei dá privilégios em
toda a parte, até no coração das mulheres.
Elle tinha esse privilegio.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 55;
— Andaes sempre tão triste e devota que, para vos não contrariar, vos
tenho deixado vagar e tempo para as vossas devoções espirituaes e para
os cuidados constantes que vos merece o nosso querido principe.
— Porque sou mãe carinhosa junto de meu filho, não deixaes de ser
o meu senhor. .
— E' certo, porém, que a minha presença já vos não faz sorrir, como
outr'ora, e receio que tenhaes motivo de queixa do meu proceder des-
attento.
—A minha tarefa, creio eu, tem sido bem cumprida. Se, nobre como
sois, andaes desattento para os cuidados do coração, é que, outros, sem
dúvida, que mais interessam um rei, vos chamam e conservam longe de
mim . .
— Não, castigo. . .
— por
¥. o castigastes
isso ?
— Que elle seja brigão, por vossa causa, senhora, comprehendo. Não
pode uma dama desaffrontar-se de apreciações menos gentis, nem soffrer
allusões á preferencia dos seus servidores. Por vós está bem, visto como
sois vós que o expondes aos epigrammas da corte ; mas, por mim, que
lhe não dou valimento ?
vor e premio, que é fidalgo de Se vos disseram que elle delinquiu, lei. . .
iniquidade; se elle feriu, foi para castigar a villania; se elle roubou, foi
tel o, vós, que lhe deveis, como rei e como homem, a educação do prín-
cipe e o respeito da rainhii ! Não foi a elle que castigastes, não; foi a vosso
filho, aos nossos mais fortes alliados, a mim, emfim, a mim, que vos
trouxe a coroa de Castella, e a tiara de Roma, isto é, a salvação do vosso
reino e da vossa alma I
çoou aj,sua missão, e vós aggravaes a injuria contra elle com a vergonha
contra nós ambos! Que nova moral vem agora aos palácios reaes? A mo-
ral do coração, a vulgar, a que acceita a peonagera na sua modesta e amo-
ravel existência? ou a moral principesca, que inclue allianças de sexos nas
allianças politicas? Que mulher julgaes vós que eu sou? Capaz de não
manter minhas promessas, de falsear meus tratados, de ennegrecer a vossa
coroa, que brilha entre as de Fernando -e de Philippe? Que pedistes, se-
nhor? A minha mão? A mim? Para que? se eu não podia negal-a! Pe-
diste-a a quem podia dar-vol-a, e acceitastel-a, sem reparar, talvez, que
estava fria, n'esse momento solenne, porque me affluira ao coração e ao
rosto todo o sangue que poderia aquecel-a!. . .E que fiz eu? Passada a
primeira surpresa — mulher, joven, saudosa da minha terra, longe dos
meus primeiros affectos, fiz mais que entregar-me — amei-vos. Tendes a
certeza d'isso, senhor... A minha mão aqueceu entre as vossas, e a vossa
imagem, que me habituei a fitar, encheu-me os olhos e veiu fixar-se no meu
coração. . . Mas um rei é um rei —e a rainha uma mulher que elle apre-
senta ao povo e á corte num dos tamboretes do seu throno. ^'ivemos
separados — diversos aposentos, diversa servidão, corte bem distincta, in-
mento, entre nós tem sido apenas um alvará firmado pela politica penin-
sular. Oífereci a Deus o meu coração, e elle acceitou-o. Se Deus o abriu
deve ter encontrado lá dentro a vossa imagem e a de meu filho. Sou de-
positaria do vosso nome e das vossas glorias — guardo-os com todo o
cuidado e zelo... Que mais quereis? Que me deixe aviltar com os vos-
sos resentimentos, que n'outras condições se chamariam ciúmes? Julgaes
que tenho corrido perigos? Por que me não tendes defendido delles? Jul-
zeis a espada, que nunca vos esquece e que sempre ostentaes? Quantos
filhos quizerdes para gloria da casa de Aviz e para aftirmação da raça
procreadora de Castella, eu vos darei, senhor. Espero-vos aqui, no meu
. .
— Acabastes, senhora?
— Que fizestes de D. Luiz da Silveira?
— Coisa simples, repito mandei que se I retirasse da corte... Não o
tiz por injuriar-vos: fil-o por vos servir. . .
viu que ia alta e limpida a lua, que o espreitava. Abriu a adufa, e olhou o
arvoredo, que trepava lu.Kuriante e aromático...
Em baixo, n'uma pequena clareira, um grupo de homens movia-se
quasi mudo.
Ouvia-se apenas o tinir de espadas.
O luar, por momentos, esclareceu o vulto dos adversários.
— Senhora, disse el-rei. quereis ver como Luiz da Silveira procura averbar
a minha ordem de deportação com um salvo-conducto para a eternidade ?
— E são ? . .
poderemos gosar tão garbosa lucta entre fidalgos bem armados.. . Vede
senhora, como rimam com tanto geito as voltas afiadas daquelles menes-
tréis. . . Senhora, repito o meu pedido: dae-me o vosso beijo, que o mo-
mento e a scena tomam mais desejado.
— Sim, meu senhor, eu vos beijo com todo o amor; mas, por Deus, se
não gritaes, fal-o-hei eu, que se me aperta o coração. . .
— Jesus!
— Deixae-me beijar-vos a trança, senhora da minha vidai Lá cahiu a
fundo. . . Ah! patife, que fugiste a tempo. . .
os olhos.
O ruido das espadas obrigou-a a attentar de novo. .
— Triumphará D. Luiz ?
— Não o creio.
— Tem menos braço ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Não seria peor. Mas não tciihaes cuidado, são ambos destros no
— Não foi nada. Foi a lamina de Silveira que se amolgou no fio. Sal-
Conheço-lhe o jogo... Vistes aquelle circulo que lhe fez a espada mais
luminosa? aquillo é um trabalho de fascinação!... A velha raposa até o
luar aproveita. . . Ora, ainda bem ! . . .
— Ferido?
— Não, pelo contrário; foi Silveira quem acommctteu e alcançou o
braço de D. Gonçalo. Até que emfim !
— Chiton, segredou el-rei, terei que vos tapar a bòcca com os meus
lábios, se por tal forma vos interessaes pela lucta. A vingança dos reis
parece-se com a vingança dos deuses
Tendo ouvido aquelle grito, D. Luiz ficou perplexo. . .
— Por el-rei
— Senhora, disse el-rei, tentando erguer a cabeça que sua mulher dei-
xara cahir sobre o peito, recomecemos a nossa noite de núpcias I Amo-vos,
Maria, minha adorada esposa ! . . .
E D. Manuel adormeceu.
3<x^'-^í>c::
Sentiu-se baquoor um corpo
.
XXXVII
A despedida
No dia seguinte, bem cedo, sahiu el-rei a passeio com a sua habitual
cavalgada. Foi pelo caminho do valle da Ameixoeira, até os campos de
Odivellas.
Entre a gente do seu cortejo falava-se em voz baixa da aventura da
véspera.
D. Luiz de .Menezes era dos mais interrogados, porque assistira ao
combate.
— Coisa de pouca monta o resultado, mas a lucta encarniçada e hábil.
Sãojdignos um do outro em coragem e destreza I
— El-rei em deportal-o?
insiste
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Não importa. .
— E ides sósinha ?
— Mais
•
nada?
— Espera. Leva-lhe também esta medalha — é um amoleto que o Papa
me enviou ha dois dias. — Cura feridas profundas. .
os olhos tão cheios de dor e beatitude, que mais parecia, o moço fidalgo,
mas sei, que nunca mais vos acompanharei, ouvindo os vossos suspiros,
calmando os vossos queixumes. Ficam a rodear-vos a fímbria do manto, . .
— Sim, é isso que adoro ! Por vos conservar pura e santa aos olhos
— Luiz, por que não falamos da vossa fenda e do vosso futuro ? Sa-
beis que me estaes maguando. . . Por acaso posso eu responder ás vossas
virtude que exaltaes, se uma paixão mundana, das que nos afastam do
dever, e nos afastam de Deus, me confundisse com as mulheres vencidas
pela lisonja, ou desorientadas pela imaginação? Chamastes-me vossa irmã...
Fizestes bem. Sinto que vos amo, sem oflender o Céo. Tenho no cora- .
ção o vosso nome e elle não apaga nenhuma das inscripções sagradas que
o tempo aqui gravou. . . Ajudae-me, meu pobre Luiz, a completar a minha
obra de regeneração me chamastes irmã, ja vos
e santidade. Depois que
olho sem corar nem tremer. N'este momento nem o olhar de meus filhos
. .
mal, dizme a Religião que anceio pela conquista do olhar de Deus. . . Re-
ceio até tornar-me impia, porque me engano quando rezo, e ha tempo já
que não sonho com os anjos. Nunca experimentei taes achaques, e não sei
a razão por que os ganhei. Preciso de uma alma boa, generosa, irmã,
.
franco, que vos comprchendesse . . . E' que vos atHige um segredo, não c
assim? Somos tão virtuosos, e afinal desconfiamos sempre dos sentimen-
tos que nos dominam. Minha boa irmã, quereis abrir o vosso coração para
que eu leia nelle o vendaval que o agita?
—E morrerá comnosco o segredo que n'elle encontrardes?. .
e depois fixamente.
Por vezes abriam os lábios para falar, mas arrependiam-se, e as pala-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Soffreis muito, não é verdade, I.uiz? disse a rainha, para dizer al-
guma coisa.
— Não sinto a ferida do combate, mas os espinhos da saudade. Em
breve vos deixarei, senhora. . .
— Assim é já; mas não foi assim. Quando muito vos amei, nada vos
dizia e a pouco me resignava; agora demais vos amo, para que vos occulte
meu sentir e me não resigne ás penas que me impõem.
— Pois não me amaes agora da mesma maneira ?
— Não ; amei-vos menos, ou mais, como quizerdes, mas talvez por forma
diversa. Nem eu me atreveria a dizervol-o se se não tratasse de um sen-
timento passado. . .
— Para que vos enganar? Não, não era... Tinheis, então, encantos
que me faziam criminoso a meus próprios olhos ! O que hoje me acalma
e corrige, então me aquecia e desconcertava ! Parecieisme mulher, como
as outras, apenas mais formosa e gentil... Minha boa irmã! perdoae-me
tem de peccaminosa e ousada. Como até hoje
a confidencia, que já nada
nenhuma imagem de mulher se enquadrara no meu coração, puz n'elle
uma grande galeria em que só o vosso rosto e o vosso vulto figuravam I
—E por que ?
. . . !
Para vós não posso ser um homem; mas que importa is.sor. . . Também
um tigre vos faria fugir de medo, e comtudo. tendelos aqui, quedos e re-
signados, talvez felizes, como eu estaria, se vos agradasse calcar o meu gi-
E continuou:
— Seguia a vossa .sombra, como o criminoso que vos roubasse com a
vista cada um dos vossos encantos. Em cada dama da Alcáçova bus-
. .
cava descobrir dotes eguaes aos \'ossos — e eram todas tão differentes
Nenhuma pisava com o vosso andar senhoril Inenhuma erguia a cabeça
com tanta elegância e nobreza I . . . Quando deslizáveis na sala do throno,
nos cortejos solennes, fazieis lembrar um cysne de plumagem variada,
sobre a superficie d'um lago!
— Então, Luiz. . . prefiro que faleis do meu coração. . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Como não vos perdoarei eu, que tudo isso adivinhei, e que a tudo
isso correspondi? Agora já posso abrir-vos o coração, meu bom irmão...
K, olhando em torno de si, receosa, depois de ter olhado, de mãos
postas, para um crucifixo suspenso da parede, em voz baixa e bai.xo o
olhar, disse a Luiz da Silveira:
— Também eu, Luiz, cheguei a ter medo de mim. de nós ambos. . .
Que pensamentos tive, que sonhos! Via-vos sem vos aftrontar, lidava de
dia e noite com o vosso nome no pensamento e nos lábios... Quando
não apparecieis, tinha vontade de chorar. . . Se chorava, tinha vergonha...
e desejava que não voltásseis . . . Não desejava tal. . porque, não podendo
vêr-vos, a ninguém mais queria vêr. Eram bem innocentes os meus se-
gredos ! Por que não havia eu de vos amar Que mal faria isso O que eu
? ?
não sabia explicar era que tudo isto era um affecto de irmã, d'uma pobre
mulher com marido e sem confidente! Os meus filhos são ainda tão
pequeninos. . . os frades gelam o coração, porque só nos falam de coisas
tristes. . . E vós não. . . vós entretinheis tanto com o vosso dizer! adivi-
nháveis tantos mysterios do meu peito. . • Olhae, Luiz, vós faláveis por
mim; as vossas palavras pareciam ser échos da minha consciência...
Ainda ha poucos dias tivestes um sonho egual ao que eu tivera. . . Andá-
mos quando accordeil Mas
juntos a divagar pelo céo! Fiquei tão triste
cheguei a ter medo... porque eu sou uma mulher casada, e aquiilo
ficava-me mal ... Se alguém me adivinhasse, como poderia eu defcnder-
me ? Quem me acreditaria, quando eu explicasse que vos amava, como
ao melhor dos amigos, como a um confessor mais novo e mais gentil que
o outro, mas tão nobre e tão leal como elle Olhae, Luiz, cheguei a enver-
!
penso, nem vós julgareis mal da minha virtude. Sc eu vos amasse de outra
forma, que triste idéa farieis de mim, meu bom amigo! Cheguei até a
suppôr que já não amava el-rei! E, quando percebi que tínheis d elle
MYSTKKIOS LiA INQUISIÇÃO. — VOL. 1. fOI.. 7:.
!
ouvem a voz dos filhos que ellas sempre amam seus maridos . . Pois não
é verdade ?
tro!
E de novo se ficavam a olhar os dois irmãos. .
cusara a minha mão, e preferira para sua esposa minha irmã D. Izabel,
viuva recente do infeliz D. Aftbnso. Não me magoei; pelo contrário — mi-
nha irmã era tão boa e digna de ser feliz! Eu não conhecia el-rei de Por-
tugal. . . Talvez não gostasse d'elle. Explicaram-me então, que altos inte-
MYSIERIOS DA INQUISIÇÃO
o meu coração de mulher! E, comtudo, estava tão triste, tão triste, como
se tivesse faltado um passo na minha vida, um affecto, uma illusão, talvez
e por tal forma me perturbei comvosco, que até um dia, ao espelho, pela
primeira vez na minha vida, notei que era nova, tão nova como aquellas
damas da minha corte, que tinham escolhido seus maridos, ou que eram
requestadas pelos que as pretendiam para esposas. Assim tenho vivido,
mal conhecendo a vida, e tão ignorante dos aífectos que a tantas mulhe-
res entreteem e enlevam, que só, porque vos quiz muito, me assustei
tanto! . .
de provincia, quer parta a batalhar no Oriente, por Deus vos juro que a
vossa imagem será a minha estrella, e o vosso nome a minha prece . .
mosa, e tão meiga como vós, como vós tão casta e tão pura. . .
— Meu Deus! que disse eu! Por que não haveis de amar uma mulher,
se eu sou apenas vossa irmã ?
— Eu não. .
:;>c^-i>c
XXX VIII
A Gardunha
Era uma quadrilha fortemente associada e que ajudava nas suas ex-
plorações o tribunal da Inquisição. Era uma succursal illegal e secreta do
grande partido catholico que explorava a Hespanha.
Havia crimes que a Inquisição não se atrevia a praticar. . .
fluencia era como uma epidemia que se propagava pelo contagio, atacando
príncipes c povos, fidalgos e villanagem, cavallciros e peões ; empobre-
cendo uns, enriquecendo outros, assassinando alguns, não raras vezes, e
apaixonando outros pelos prazeres e pelos vicios !
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
Todo o amor alli ia parar; tinha a belleza das mulheres alli a sua co-
tação, e o pudor era lá que melhor se transformava em desvergonha
A Gardunha era um appendice da Inquisição, uma delegação secreta
servida por gente de todas as classes, edades, sexos e índoles. Havia alli
a mãe que vendia as filhas e a filha que se entregava para salvar a mãe.
Os jogadores perdidos em palácios e tavolagens lá iam empenhar a
alma e a honra.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Foi a Gardunha ! . . .
Dizia-se isto com a mesma indillerença com que hoje se pode dizer do
desapparecimento dalgumas aves das capoeiras aldeãs : Foi a raposa.
A Gardunha era a grande raposa de Sevilha
Ao seu serviço estavam os esbirros do Santo OfVicio
Não arcava com ella o governo da Hespanha I
Tinha uma casa, um palácio, por signal ; mas não se via entrar nem
sahir gente. Aquella habitação só recebia hospedes a horas mortas — e
Era com ella que se intimidavam as creanças para as corrigir nas suas
travessuras.
Gardunha era synonymo de liagcllo!
Não diz a Historia quem fundou essa sociedade e quem tão brilhante-
mente a regulamentou, embora lhe assignale a cores tenebrosas a sua
existência e lhe attribua a mais notável influencia.
P^eréal cita, muito a propósito, as referencias de Cervantes a esses ope-
rários do mal, nas suas interessantes novellas.
A Gardunha do século xvi, em hespanhol Gardi/íia, tinha quasi um
século de edade na épocha a que nos estamos referindo. Era uma conf)\i-
ronl.. . Este bandido chegou tão alto, graças aos crimes que praticou e
dirigiu e que lhe deram a intiuencia do duque de Lerma, e do célebre ie-
E diz mais:
O grupo mais notável d'este bando era formado pelos iruapos, homens
novos, (ortes, destros, jogando bem a navalha e esgrimindo a espada com
excepcional perícia. Provocadores e aggressivos de profissão, conhecendo
o segredo de traições e com artes e traças para graduar os golpes, desde
o que faz apenas escoriações até o que atravessa órgãos essenciaes na vida
do adversário.
Também lhe chamavam pi/nleadores.
Eram estes os que davam golpes de ferro, depois de armados os con-
flictos pelos fhi-eadores, uma cáfila, de lingua forte e pulso fraco, fugida
,
Os chiratos prestavam excellente serviço, praticando roubos sem valor,
e empresas ágeis.
O grupo mais luzido, e que mantinha a receita ordinária da exploração,
era o formado pelas serenas.
Era o iman que attrahia os adoradores aos logares mais próprios para
serem explorados. Ciganas cheias de encantos, comediantes por instincto,
sava-se distante.
Os forasteiros, ao sahirem das estalagens, eram logo prevenidos de que
deviam percorrer Sevilha em todas as direcções, menos n'aquella.
K, comtudo, se o povo de Sevilha quizesse espreitar aquelle sitio, veria
como elle era frequentado por .íiguazis, escrivães, procuradores, frades,
cónegos e até inquisidores! Toda esta gente era auxiliar d'aquelle impor-
tante estabelecimento. . .
respeito de bons olhos e bons ouvidos, não seria fácil imital-a, quanto mais
excedel-a I
E' alto, forte, de pesados borzeguins, com )}iorijs de còr viva, polai-
nas, calção, gibão de velludo — um ma/o, no sentido mais verdadeiro da
palavra — um verdadeiro andaluz, um pouco fidalgo e um pouco barbeiro,
mais barbeiro no fato, mais fidalgo no porte. Conhece cl ctichillo, d piiual
e d albacde. Dança com graça a gere\ana e o fandango. Um majo á
D. Juan de baixa esphera e mais constante que o eterno conquistador.
Pródigo principalmente, e brigão por amor, ou por orgulho. Castiga um
baratero e farpeia um touro. Tem os movimentos rápidos e atrevidos. Na
Gardunha só pode ter um dos primeiros graus.
Era, com certeza, um guapo.
Chegando á porta, sem desmanchar a capa, e sem olhar para o guarda,
disse em aoz alta:
. . . .
K entrou.
A um canto, junto dum dos brandões, sentado n um escabello, estava
— Pietro.
— Vae então em italiano? Pois seja, mestre Pietro, é necessário resol-
— Morreu . .
— E bem guardado I . .
— Saberá Inquisição?
d'elle a
— Qual resto ?
— Tem mais coração que Fernando, e não tem a seu lado a formosa
Izabel. Tens razão.
— E ainda escuta Joanna, que morre de amores por elle.. .
— Diabo, diabo ! Uma serena bem educada poderia talvez fazer o mi-
lagre. O rei é meigo, e apaixona-se com facilidade. Se lhe lançássemos,
no caminho, uma parceira no jogo da pella, e que se deixasse adorar. .
muito novo. E' certo que os prazeres lhe encurtarão a vida... Mais dois
annos que elle viva será mais que o bastante para derrubar todo o nosso
castello de plano e ambições. . .
— Agora c que podemos avaliar asfalta que nos fez Torqucmada. Vi-
vesse elle, e a estas horas já a apaixonada Joanna teria n seu lado um
confessor de confiança.
— Já é tarde. Joanna só pensa nas infidelidades do marido. E" a sua
idéa fixa. Que se importa ella com o Céo ou com o reino? Namora a mo-
cidade de Philippe e anda accordada sonhando sempre que o vento .lh'o
rouba . .
sas não estão boas. Ora, repara : D. Manuel I, D. Philippe I e Luiz XII
— K' uma trindade para temer. .
— Nem de cabeça.
— be até recorrem á dardunha para uma manobra que poderiam
elles
— Bem, o que tem de ser, seja. A empresa c difllcil, mas pode ser
— Ha um. . .
— Quem o recommenda ?
— O Santo Officio.
'
viço na sua elevada categoria de guapo. Vós todos o conheceis. E' aquelle
que, pela sua táctica politica e pelos seus especiaes conhecimentos dos ne-
gócios das diversas cortes, mais apto consideramos para as empresas mais
nobres da nossa confraria. Será elle um digno successor de Camilludo, e
conta com tão altas protecções, que da sua iníluencia dependerá, por mui-
tos annos, a impunidade da Gardunha. Não sabeis como elle se chama r
Nem eu! Tem tido vinte nomes e com todos, em pouco tempo, tem
honrado e servido os nossos interesses. Approvaes, vós todos que me
ouvis ?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
— Obedecer e esperar .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO
nada ...
—E junto ás traves da ponte ?
por alli está alguma coisa escondida, foram os moiros doutras eras que
se deram a esse trabalho. Gente do nosso tempo não fez por alli excava-
çÕes. ^
— E são de valor?
— Um chivato não tem competência... Se eu achasse coisa que luzisse,
•
— N'aquelle sitio a ponte é muito frequentada, e elle pode deitar-se á
agua ....
— N'esse caso, uma serena amorosa, ou pedinte, que lhe tire a más-
cara. .
Para dentes novos nada ha como os fructos verdes. Pagem bem vestido,
que passeia a horas mortas, não mata o tempo — aproveita-o. Esperam
hoje a ciganita
— Deve vir pelos maravedis do salário vencido... Isto é, deve vir
— Seria bom ouvir uma cohertc)\i. Se Eva não mendiga e não canta,
morrerá de fome. Bem sabes que a Gardunha não pode dar-lhe mais que
seis maravedis por cada pcscía com que ella entre no cofre.
— I-cmbrae-vos de que tem direito ao gòso exclusivo das prendas que
lhe derem os nobres e os nhi/os de Sevilha?. . . E' dos estatutos I. . .
— Veremos como ella conclue esta empresa. Veste mal e tem lagrimas
a propósito. Está na conta. . . Sabes aonde poderás encontral-a ?
— E o marido?
— Não appareceu. Dei.xei por lá vestígios de sobra de que alli passara
a noite um homem que não era da familia.
. . . ! . . . . . .
— Voltas hoje ?
—O que ha de Jacob ?
—
E D. Maria não resiste
— Não resiste ? ! Então a sua piedade ?
— Tenho medo dos poetas. Fala-se muito por lá n'um célebre menes-
trel, chamado Gil Vicente, que anda a envenenar de rimas lutheranas a
philosophia dos fidalgos. .
! . . . . .
— Perdemos todos. .
—
Tendes razão. A cpocha é de crise. Sc não afogamos o século .\vi
Que, afinal, isto aqui é mais seguro, porque não respeita alvarás e orde-
nações. . . E' uma força c um Estado... Mas, não percamos tempo, e
segui a vossa fiscalisação. .
— Esse vive . . .
Agora retirem-se todos, disse elle em voz alta, e apaguem esses bran-
dões. . . Cada um por seu lado. O que divisar caso extranlio volte a an-
nunciar. Eu vou para a galeria, na bancada do silvado que se debruça
sobre o fosso. Ha brandões no céo, sem mau cheiro e sem fumo. . . Va-
mos, depressa. . . andam no ar os morcegos; cosam-se com a terra, como
os reptis. Não se deixemmordam sempre que possam.
pisar, e .
biam e entravam pelas fendas dos altos paredões, julgando o velho gar-
dunho seu companheiro e alliado, não lhe fugiam ouvindo-o murmurar:
Maria 'Puríssima
Aj'é, . . . cheia de graça . .