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Mistérios Da Inquisição Vol 1

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Mysterios da Inquisição

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F. GOMES DA SILVA

Mysterios da Inquisição
ILLUSTRADO A CORES

Manuel de Macedo e Roque Gameiro

I VOLUME

Lisboa
Secção Editorial da Companhia Nacional Editora
Adm. — Justino Guedes
5o — Largo do Conde Babão — 5o
1900
^f
PRIMEIRA PARTE

Os christãos novos

o massacre

Aos olHcios religiosos de S. Domingos, o formoso templo que ficava


junto do Hospital de Todos os Santos, affiuia sempre muita gente de to-
das as classes sociaes. Era alli que a christandade, velha e nova, ia fazer
a mais productiva ostentação da sua fé. A burguezia da rua Nova, os
operários da Ribeira, os judeus de Viila Nova de Gibraltar e os mouros
da Mouraria, todos iam ao templo do Rocio louvar o culto catholico.
Nenhuma egreja como aquella enchia mais e melhor a sua nave ap-
paratosa! Alli rezava se a Deus, sincera ou hj^pocritamente, como nos ou-
tros templos do grande outeiro da cidade; mas alli era mais fácil destruir

a intriga e a calumnia. A corte e o povo tinham a sua espionagem, e todo o


christão novo, que não fosse visto nos actos d'aquelle culto, corria os
perigos mais graves, desde o da maledicência e do desprezo até o dos
apupos e perseguições bairristas.
Era extremamente mesclada a freguezia dos fieis de S. Domingos.
Entre homens e mulheres havia a máxima variedade de mantos e gibões.

Até os fidalgos, que se apparelhavam para expedições africanas, e pas-

savam a manhã na Carreira dos Cavallos, em exercícios de equitação, vi-


nham, á hora das festas religiosas, pela ladeira que rodeava o hospital, ou
rezar com fé, ou entrevistar as damas que elles, não podendo adivinhar
pela côr dos cabellos, por causa do vasto capuz que os envolvia, adivi-
nhavam pela côr e finura dos estofos. As classes dividiam-se instinctiva-
menie na immensa na\e do convento, pelos sexos e pelos hábitos, não
em toda a parte se acotovellavam velhos e novos christãos,
pela fé, que
que em serem bem vistos estava a salvação destes no conceito publico.
Não era vulgar ver os homens acompanharem as esposas, ou as filhas,
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. I.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

que o luxo mais dispendioso da épocha era o dos creados. A dama mais
recatada e joven fazia-se acompanhar de pagem bem garrido ou de donas
de edade avançada. As mulheres de Lisboa tinham então a fama de serem
as mais bellas da Península; pena era que, por influencia da moda hes-
panhola, para melhor accentuarem a diflerença de raça da gente mourisca
e hebrêa, tivessem, o mau sestro de pintar de ouro menos polido as tran-

ças ondeadas dos seus cabellos de azeviche! A' porta do convento e no


largo onde frequentemente havia mercado de misérias e brkà-brac de
casas fallidas, os fidalgos e os plebeus faziam corte ás devotas gentis e
ás mulheres do povo, dirigindo-lhes galanteios, se não ao rosto, que mal
viam, sempre á gentileza da estatura e á elegância do andar.
Havia fidalguia nas saudações, mas sempre nas vénias dos mais let-

trados e nas dos populares mais rudes apparecia uma invocação ou uma
referencia em que a Virgem, e o Céo, e Jesus Christo eram prodigamente
contemplados.
Não faltava n'este centro da população lisbonense a mescla de dia-
lectos e de idiomas, que affirmava a notável influencia dos nossos des-
cobrimentos marítimos e o grande movimento commercial do nosso porto.
Era frequente ouvir a nossa linguagem trabalhada difficilmente na accen-
tuação hespanhola e italiana.

Entre os elegantes, a que mais tarde se chamou /'ri,7«ais, destacavam- se,


além da gente nobre e da burguezia rica, os moços cavalleiros educados
no sport da guerra, e os mancebos de boa origem, que attenuavam a de-
cadência da sua fortuna no ensino do jogo das armas.
A grande multidão convergia, de diversos pontos, sobre praça tão
animada, com destino á egreja, cortejando sem descanço os padres,
que principalmente vinham do lado do Terreiro ou da ladeira dos Mar-
tyres.

Um destes padres, de passo ágil, rosto afogueado, aspecto vulgar, mas


com olhar inquieto e vivo, e que atravessara o Rocio, corno se tivesse des-
cido do lado do convento da Trindade, foi encontrar-se com um moço ca-
vallciro, que se apeara junto á porta do hospital.
— Então? disse o padre, mal se approximou.
— Tenho esperanças, meu mestre, de cumprir vossas ordens. Venho
do corro, onde Rodrigo Velloso se comprometteu a não faltar amanhã ao
páreo, acceitando-me por competidor. .

— Não esqueceste a recommendação que te fiz?


— Per Dio! que não me esqueço dessas coisas; eu farei de Christo
e elle de Moiro ! Tive até o cuidado de lhe deixar a escolha Bom é que . . .

represente o papel, já que para elle manifesta vocação. .. E também lhe


Não vede?, alem ?

7
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

juro, mestre e amigo, que não serei eu o vencedor. . . E' necessário que
lhe fique vontade de voltar. .

— Bom; e os espectadores? Não os percas de vista, e e.xamina-lhcs


bem os enthusiasmos. Nas arrcmettidas, nas retiradas, affecta mciios se-
renidade, mas não a percas . . . Que a canalha se convença de que, alem
dos segredos da equitação, conheces as virtudes catholicas e te irritam os

volteios dos infiéis. . .

— Isso fica a meu cuidado, disse o cavalleiro, dispondo-sc a montar


novamente no seu cavallo baio, cuja rédea não largara.
— Espera; estiveste em Villa Nova?
— Estive, e tenho a certeza de que a trindade virá hoje a S. Domin-
gos; não deve tardar... O velho Lopo otíercceu alguma resistência, mas
afinal uma das filhas convenceu-o.
— Foi Sarah ?

— Não, Deborah.
foi

— Bem; assim devia ser; ás vezes vale mais um leigo que um padre.
— Quando o padre não é mestre Ignacio, acudiu lisonjeiro o chris-
tão do corro de Sant'Anna. E, em seguida, como se se tivesse lembrado
d'algum coisa a que ligasse pouca importância
—-Já falaste a el-rei a meu respeito?
— Ainda não; el-rei não tem necessidade de conhecer os nossos negó-
cios. Depois das noticias que espero de Itália, trataremos d'esse assumpto.
— Quereis que escreva Henrique Nunes a ? E' astuto e valente. .

— E' cedo de mais. Queres dinheiro ?

-—Para mim não, que, em gastando o pouco que me resta, posso con-
tar com o hospício dos Palmeiros; mas para os peregrinos, meus futuros
camaradas, acceito.
— Toma, disse Ignacio; entregou-lhe algumas moedas de ouro.
e
— Reparae, mestre Ignacio, advertiu em voz baixa, quando estava e já

em ciriía do cavallo... Vede quem lá vem, encaminhando-se para a sal-


vação. Não vedes, além? Vem, decerto, da esuoga... Se houver repeti-
ção da tempestade que serviu de parteira ao príncipe D. João, vae, sem
dúvida, para o Céo, guiado por aquelles dois anjos. . . Quereis que fique,
mestre Ignacio, quereis ?

— Não está tudo preparado, bem preparado.


; e
— O cavallo deu um partiu para Santo Antão.
salto e

Eftectivamente, do lado da rua dos Ourives, vinha caminhando, com


vagar, um grupo formado por três pessoas. O velho Lopo caminhava en-
tre as duas filhas, uma no alvorecer da adolescência, e a outra no esplen-
dor da mocidade.
! . ! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Tinha Sarah o aspecto alegre da innocencia Deborah a tristeza doce ;

dos vinte annos; em ambas o cunho indelével da meiguice e da bondade.


A edade das raparigas affirma-se, principalmente, no olhar, mais que na
grandeza do vulto e nas linhas do busto. O olhar é uma certidão das pri-

maveras das mulheres. p]mquanto a infância vae florindo, parece que os


olhos recolhem no coração as impressões que recebem ; e quando a mo-
cidade esplende, ao influxo do amor, como as rosas se abrem, aos beijos
do sol, o que a mulher olha e fita vae gravar-se nitidamente no cérebro.
E' por isso que as creanças nunca se cançam de olhar, e as mulheres
cerram por vezes os olhos e os desviam ... Ha edades na vida em que o

mundo externo é todo luz; ha outras em que é todo idéas. Sarah via ape-
nas; sua irmã pensava já. . . Aquelle grupo parecia uma roseira, em que
o velho Lopo tinha a forma e o tom d'um tronco recurvado, escuro, mus-
goso, e as filhas a de um botão que mal recurva as pétalas, e a d'uma
rosa que abre o cálix ás gôttas de orvalho e aos raios do sol.
Como numa familia — sexos, edades, cores, caracteres, tudo tão di-

verso, tudo tão differente, sabem manter aquelle qiitd, que se distingue,
e que se não aponta, que não está nem nas linhas do rosto, nem na côr
dos olhos, nem nas formas do vulto, mas que está em tudo isso, no sor-

riso, e na pupilla, e no gesto, e na voz — um sopro, um reflexo, um traço,

que envolve velhos e creanças, e em todos descobre sangue da mesma


côr, caracter do mesmo quilate, nervos da mesma sensibilidade, paixões

do mesmo aftecto

O sorriso de Sarah era alegre, mas havia nelle o que poderia cha-
mar-se meiguice, e que era talvez um pouco de sombra que lhe vinha

do sorriso triste de sua irmã. . . E no rosto do velho, triste a valer, onde


o tempo e a desgraça tinham cavado sulcos profundos, encontraríamos,
talvez, a explicação da suave tristeza de suas filhas, se ellc próprio não
tivesse, no seu fúnebre aspecto, o que quer que fosse de consolador e re-

signado, e, quem sabe ? até festivo, que lhe vinha das filhas, quando ellas

o olhavam, e quando elle olhava para ellas. .

E os três iam caminhando devagar, e a entreolharem-se sempre


Aquelle grupo, aquella familia dava a impressão d'um quadro incom-
pleto, em que algum esculptor tivesse aproveitado as figuras intactas, para
restaurar a obra quebrada d'um grande artista
Alli devia ter figurado uma mulher. . . E era verdade — figurou; mas
estalou... de dôr, essa delicada estatueta. O velho occupava agora os
dois logares; havia nelle duas tarefas e dois amores. Já que o lucto lhe
despedaçara o coração, fez d'esses pedaços dois corações. .

.\ physiologia dos affectos tem as mesmas leis da physiologia do


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

corpo humano: ouve melhor o cego, vè melhor o surdo, e, nos membros


mutilados, a natureza emenda c mantém a interrompida circulação.

Amam duplamente os filhos os pães viúvos !

O pobre Lopo era christão, mas pouco catholico, porque passara a


vida a defender os princípios da tolerância.
Estivera na Itália e fugira, estivera em Hespanha c perseguiram-n'o
cm Portugal já não contava amigos senão na Communa da Judiaria.
Por fim, já tinha vontade de protestar, e de pedir ás filhas que rezas-
sem em casa á imagem de Christo, que lá estava allumiada, de dia e de
noite. . .

As filhas, coitaditas, vendo o perigo da reclusão, pediam-lhc que o


culto fosse externo, bem externo, deanie de toda a gente. .

Recusou-se, recusou-se ; mas afinal:


—-Vamos lá; pae não devia ceder; mas cedo, em nome de tua mãe,
Deborah ! . .

Tinham chegado á porta do templo. As filhas amparam-n"o bem, elle

descobre-se, ainda no adro, e. . . ajoelharam-se os três. .

— Que hypocrita ! lhe disseram do lado.


Lopo fechou os olhos para não ver o insolente.
— Entremos, minhas filhas, Deus está mais lá dentro.
Estava-se no Domingo do Bom Pastor,em i5o6, a i de abril, se
acreditarmos Faria e Sousa, ou a lo do mesmo mez, se preferirmos Ro-
drigues Azinheiro. Schaeffer não resolveu a dúvida; nem vale a pena
demorarmo-nos n"ella.

A majestosa rotunda de S. Domingos, para empregarmos a lingua-


gem dos historiadores do principio d'este século, regorgitava de fieis.
Os sinos badalavam frequentemente, com aquelle som profundo e triste
que ainda hoje se ouve em muitas das nossas villas e cidades da província.
P>a um dos mais esplendidos dias de primavera
O céo estava azul como o manto da Virgem, e o sol, sem fogo, ruti-
*
lava a luz mais dourada sobre a casaria da cidade e sobre o arvoredo a
estalar de seiva nas collinas que a cercavam. Era n'esse dia que o preceito
christão chamava principalmente os fieis ao templo mais central e mais
opulento da formosa Lisboa.
Desde o guarda-vento até a capella-mor, havia uni mar de cabeças que
se moviam, tão compassada e coincidentemente, que lembrava a ondulação
d'um rio, quando se espreguiça num grande areal. Havia alli capuzes de
diversas cores; mas entre tantos que occultavam cabeças gentis, abunda-
vam os brancos, de grosseiros tecidos, dos mouros christianisados.
Não faltavam turbantes de faixas coloridas, c cabeças cingidas de Icn-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

COS de cores tristes, fortemente apertados nas frontes de judias de condi-


ção inferior. Prolongavam se, á direita e á esquerda, como que a formar
alas divisórias,ou guarda de honra ás capellas illuminadas, gente darmas,
de cabeça descoberta, e nobres, vestidos de velludo! Sobre o lagedo das
sepulturas, á entrada do templo, arrastavam-se, de joelhos, mulheres que
tinham deixado nos recantos do adro as amphoras grosseiras do seu mester.
Com difticuldade, e atropelando-se, bandos de homens e mulheres se
precipitavam sobre a grande bacia de mármore, de formas que lembravam
os tanques caprichosos do Pateo dos Leões, da velha Alhambra, e n'ella
mergulhavam dedos e mãos, com que espargiam, cerrando os olhos, as
testas ennegrecidas.

Levantados nos braços, e inclinados depois sobre as bordas, lizas mas


sujas, desse tanque artístico, as mães, fazendo das mãos a concha de
S. João, e, daquella agua impura, a agua do rio sagrado, de novo bapti-
savam os filhos, ou lhes amaciavam o elmo creado ao abandono sobre as
cabecinhas palpitantes.
A' porta do templo havia o fluxo e o refluxo da maré humana, impel-
lida pelo desejo de entrar e repellida pela força da multidão, que lá den-
tro, rezando e praguejando, buscava debalde ver e mostrar-se.
No cruzeiro, as classes mais selectas, matizavam com garridos atavios
o chão e as columnatas.
Como se obedecessem a este movimento e murmúrios, as lâmpadas,
cm frente dos altares, baloiiçavam-se e gemiam m.onotonamente nas gran-
des escápulas das abobadas!
Nos confessionários, no gôso de privilégios secretamente concedidos,
abrigavam-se as damas da burguezia mais protectoras do culto, e em redor
d'ellas, como um tapete dos mais macios, sentadas ou ajoelhadas, as ve-
lhas mendigas da miséria oflicial revolviara-se agitando mantos esfarrapados.
Parecia o templo na hora solenne da allelina, quando se descerram
as cortinas das adufas que se espreguiçam na abobada, e dosbalcões, re-
servados á nobreza, caem, em nuvens, as pétalas das rosas!
No altar-mor, todo coberto de seda e ouro, e onde scintillam alfaias de
metaes preciosos, e crystaes que rebrilham á luz que anda no espaço, tré-
mula e brilhante, como pyrilampos do Céo, ergue-se sobre argêntea pea-
nha uma cruz immensa, com longos braços extendidos, como para abra-
çar a multidão que se lhe approxima, e rematada, junto ao docel do mais
custoso damasco oriental, o distico pharisaico, d'uma pungente ironia.
N'essa cruz, em primorosa esculptura, o corpo de Jesus, morto, cha-
gado, por onde corria, como chuva de rubis, o sangue do Nazareno!
No rosto pallido c mesto d'csta imagem sublime paira ainda o sorriso
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

de perdão pai'a todos os peccadores, e os lábios, tão pallidos como as fa-


ces, parecem ainda recommendar á chrislandade, i.|ue o adora, como su-
prema missão de uma religião philosophica e santa — a tolerância. . .

Ao lado, e na base desse esplendido madeiro, o relicário que guardava


a Sagrada Hóstia era composto dos maiores primores artísticos, que a

ourivesaria e a joalharia do tempo tinham produzido!


Filetes de ouro polido, incrustações de prata facetada, pedrarias das
mais irisadas scintillações, tudo alli se dispunha com tal arte e brilho que
a cada pessoa, e conforme o logar d'onde o fitava, e conforme a luz que
n'elle se reflectia, apresentava diverso aspecto!
As bancadas da capella, de maravilhosa talha de madeira negra, com
assentos divisórios, onde os braços e alçados occultavam os padres, que
rezavam, lendo os seus livros de forte encadernação e com as folhas de-
bruadas de um vermelho desmaiado, forma\'am duas alas negras, que
contrastavam com os ricos e vistosos paramentos que cobriam o mármore
das paredes.
Havia em todo o templo aquelle sussurro que resulta da conversação
em segredo. E' um sussurrocomo o do m.ar; ouve-se a grandes distancias!
Algures se falava com vivacidade e fingida reserva, e com escrupuloso
cuidado e segredo em alguns recantos do adro e da egreja.
— Não é possivel entrar, dizia um homem do povo; desde que os nos-
sos templos foram cedidos aos inimigos delles, nós, que somos a escoria,

ficamos ao sol, no meio da rua.


— E' a fraqueza de el-rei que nos afasta do dever religioso. Muito
grato deve ser o Sacramento a estes inimigos de Christo e do toucinho,
dizia outro.

E logo uma mulher da feira próxima, gesticulando vivamente, se mct-


tia na conversa
—E ahi está por que temos a peste, e a terra anda a bolir comnosco.
E castigo de Deus, que teremos de softrcr emquanto fòr creança o nosso
príncipe. . .

— Assim será, boa mulher, dizia um pescador de ouro; já não scinlil-

lam as aguas do rio com os thesouros que \inham por elle acima. Foi a
heresia que os afundou para sempre. .

— Dar-lhes uma licção era remédio santo! Contra a mourama tanto


sangue derramado, e agora el-rei consente que cila lave as mãos na agua
benta, que é nossa, e muito nossa!
— Vão-se as vinhas com o mal, dá a lagarta nas hortaliças, morre-nos
o gado com maleitas, c, por essas ruas, andam christãos mais gafos, qi.e
os herejes que inventaram a gafeira.
. . . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Adejam aquelle patife que se aninhou na Casa da índia, e tem andado


a judaisar com as matronas do oriental.
— Nós todos á mingua de pão, e elles enriquecendo com a usura do
nosso suor!
— Nem já podemos chamar um medico para nossos filhos, que a morte
não venha logo de mistura com as primeiras mesinhas.
— Gente de bem, gente honrada, pode contar todos os dias com a

salga á porta, que, mal a gente a pisa, logo tem engulhos, que são mesmo
do inferno. .

E todos estes commentarios se interrompiam com o signal da cruz.


A um d'estes grupos, que mais acremente libellava contra a raça dam-
ninha, que causava morte, peste e guerra, acercou-se serenamente uma
personagem, que tanto poderia ser um aguazil, quanto um leigo disfar-

çado em perfumista de luvas:


— Não tem direito a lamentar-se, quem não sabe usar dos seus direi-
tos. Se a judiaria nos aleija, ajudemos el-rei a fazer justiça. . .

— El-rei esqueceu pedidos sagrados da bondosa rainha.



— E António Carneiro ?

— Esse anda por ahi a dizer que os judeus trabalham enriquecem, e

c que precisa d'essa gente. .

— Estaes enganados : — El-rei não deseja actos violentos a favor d"um


povo resignado. Já lhe ouvi dizer isto
— Vós? íí todos os ouvintes fitaram o intruso.
— Eu, sim. Faça o povo o seu dever, e el-rei e o Céo serão pelo povo.
— E' o que eu tenho dicto devemos ; fazer como Sanflago, que, ape-
sar de santo, não lhes perdoou os sortilégios.
Entretanto, Lopo, o judeu novo, como a si próprio chamava, chegara
aos braços do cruzeiro. .

O sol, que por alguns momentos se escondera entre nuvens, mostrou


de novo todo o seu fulgor, e através d'uma rótula da capella-mor, um
dos seus melhores raios veiu bater no ouro e nas pedras do relicário, pro-
duzindo tão luminoso e scintillante efleito, como se n'elle se houvesse
accendido o próprio sol!

Um ponto rubro e trémulo, irradiando luz como se fora uma estrella,


em milhões de reflexos, feriu o olhar d'alguns fieis. Soltando um grito, . .

crguendo-se com vivacidade, pondo nos olhos as mãos crispadas como se


aquella luz o ferisse e assombrasse, ergueu-se um popular, que tanto po-
deria ser um aguazil, ou um leigo, e exdamou: — Milaord Milaore! Oh
justiça de Deus!
E todos os olhares se fitaram n'aquella estrella de ouro, que irrompera
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

no relicário sumptuoso, como se a Sagrada Hóstia se tivesse inflammado


n'uma grande e celestial aurora
O movimento em todo o templo produziu um trovão ; taes foram
a rapidez e a violência com que aquclle povo, prostrado, se ergueu,
procurando com o olhar, vago e indeciso, a causa do clamor. O pri-
meiro movimento foi o de medo, e a multidão instinctivamente procurou
fugir.

Milagre! Milagre! era o écho da grande abobada... Christo morto


sorria piedosamente, e o sol, alegre, fusilava luz de ouro no altar, entre

velas de chamma desmaiada e fria. . .

Os gritos mais destoantes tornavam imperceptível a razão do alarme.


Havia alli gemidos de gente esmagada, gritos de terror e exclama-
ções de espasmo. A multidão que fugia encontrava-se c®m a multidão que
avançava para vèr mais de perto a maravilha. O choque podia ter dado
uma catastrophe, e deu apenas a immobilidade. A densidade tornou im-
possível o movimento.
Um momento bastou para que todos vissem que aquella luz não an-
nunciava um castigo do Céo, mas uma promessa divina. Deus sorria por
aquelle modo d christandade afflicta e súpplice Houve então um instante !

de serenidade relativa. Milhares de braços se ergueram para o altar,

apontando a milagrosa centelha. Um frade dominicano, de pé, na capclla


mór, voltado para o povo, exclamou :

Fita-nos o olhar de Deus ! Re:iemos, meus ir)}iãos ! de joelhos, puro de


Lisboa
A gente que mais perto ficava da capella prostrou-se com ruido sobre
as lageas e, baixando a cabeça exaggcradamente, batia com rapidez no
peito, rezando, em voz delirante — Perdão, Senhor, perdão!
Como por effeito d'uma corrente eléctrica, esta beatifica attitudc se
communicou, e toda a floresta de cabeças e braços erguidos, imitando o
troar irregular da fusilaria em combate, se deixou abater. . . Parecia uma
derrocada!
Da entrada do templo a gente que afHuira, ouvindo o tropel, pôde vèr,
por cima de tantos corpos de rojo, o fulvo olhar do relicário. .

Dir-se-hia que o Divino fusilara, com uma descarga bem cerrada,


aquelle desordenado exercito!
De pé, lá em cima, na cruz da nave, avistado de todos os braços do
templo, só ficara o \'clho Lopo, de cabeça erguida, mostrando que fitlava

pelo agitar convulso da barba grande e alva. As filhas, em convulsão de


choro, não ousando attVontar a scena temerosa, enrolavam com os corpos
os pés do honrado velho, como a fazerem pedestal a tão majestosa e
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. 2.
. ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

as alca-
adorável estátua! Os padres pareciam deitados de bruços sobre
tifas persas da mysteriosa capella.
percorria o templo o
Restabelecera-se quasi o silencio, porque apenas
e dos
cicio, o murmúrio da reza em segredo, que é própria dos crentes
medrosos, quando se convertem em energúmenos.
Pòde-se então distinguir a voz do velho Lopo:
— Aquietae-vos, boa gente, que os mysterios do Cco não estão ao al-

porque vem do
cance dos nossos olhos. E' celeste aquella luz, e é divina,
sol, brilha sobre a terra e a fecunda com o seu calor.
que Os raios aben-
pedrarias
çoados do grande astro multiplicam-se naturalmente sobre as
transparência crys-
do relicário. Tivesse a minha calva de marfim aquella
aquellas arestas de lapidagem, e ella rellectiria tão
maravilhosa-
tallina e

mente sobre este sacrário da minha razão. Oremos a Deus, mas sem ter-

ror, ó boa gente que deliraes ! . .

Ergueu-se tudo n\im grande turbilhão! O povo pareceu uma serpente


ofiendida no mais sensível dos seus anneis ! Os braços que se ergueram

jánão tinham mãos espalmadas, que invocam ou abençoam tinham pu- \

nhos cerrados, aggressivos como as balas, crispados como os calhaus.


— Fora o hereje, fora!
Foi o primeiro e único unisono.
Depois o alando parecia regido pela batuta de Satanaz
— A' morte o hypocrita I

— Esmaguem esse judeu !

— um emissário do inferno
E' !

— A' fogueira o bruxo maldito


— Cruzes, cruzes para esse espirito das trevas I

— Insultou Jesus e querelou do Cco, o velho lobishomem !

— A' morte á morte ! !

E a turba, de olhar desvairado, avançou de roldão, e cahiu sobre a


victima, que nem palavra logrou dizer.
No logar onde Lopo cahiu, ergueu-se um monte de gente, que o esma-
gava com os pés, com fúria de cannibaes.
A brutal aggressão, para honra da espécie humana, provocou pro-
testos.
— Bandidos, traidores! largae a vossa presa, que mentis á vossa fé!
E a lucta travou-se, braço a braço, indómita, terrível, entre os corpos
musculosos de muitos allucinados. No ar moviam-se já armas que faisca-

vam eram facas


; e punhaes.
Os mouros c judeus praguejavam, e só raros, dos mais novos e vigo-
rosos, se aventuravam ao grupo revolto.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

As mulheres cabiam, ou contorcendo-se em epilepsias, ou gritando e

chorando com vozes maguadas.


O velho Lopo, que já não respirava, foi levantado desse montão hu-
mano, e logo arremessado, coberto de sangue, com o craneo aberto, para
os braços de gente athletica, de trajos marítimos, extrangeiros, que o le-

varam aos baldões, egreja abaixo, entre apupos e vitupérios !

A' porta, na onda de gente e de terror, formava-se uma barreira de


corpos inanimados, sobre a qual os mais fortes e atrevidos passavam,
arrastando o cadáver d'um velho christão, crente e sábio

Na capella-mór fora rápida e sem pavor a debandada, e lá dentro, no


claustro do mosteiro, os frades dominicos corriam a apoderar-se do estan-
darte da Redempção e entraram com elle, ovantes, no corpo da egreja, a
envolverem-se na fera gentalha. Dois delles, onde era fácil distinguir
os chefes da sedição, vinham gritando, como possessos, contra a impiedade
dos christãos novos.
A sanha se accrescentou com reforço de tanta auctoridade, e a lucta,
cada vez mais selvagem, tomou o caracter duma sangrenta revolta. Braço
a braço, aos montões, aqui e alli, uivando como lobos, batiam-se os ho-
mens, ensanguentados os hábitos e as mãos, e a egreja offerecia o terrível

espectáculo d uma trincheira tomada á arma branca, ou d'uma abordagem


de surpresa entre indomáveis piratas.
De rastos e na direcção do claustro do mosteiro, Deborah, desmaia-
da, sumia-se, por entre a turba, aos puxões brutaes d'um sacerdote, em-
quanto Sarah, soltando gritos de ódio e desespero, buscava segurar-lhe
os vestidos, cujos farrapos lhe ficavam soltos nas suas delicadas mãos.
Um mouro, a contas com um christão velho, batia-se valentemente,
e ao sentir-se derrubar, arrancava com os dentes pedaços grandes de
carne ensanguentada das faces do seu adversário ! Batendo com a sandá-
lia no peito d'um christão, um judeu vingava-se de affronta mais grave,
e pisando o algoz, cuspia-lhe com desprezo...
Pequenos alfanges, irrompendo do manto descabido, cortavam o ar e
penetravam nas costas de alguns fugitivos.

Sarah, que vira desapparecer sua irmã, busca, como se tivesse azas,
soltar o vôo por cima destas hordas ferozes, para seguir o corpo de seu
pae, cujas formas mal se distinguem e cujos restos volteiam ás aggres-
sões do populacho, sobre as pedras da calçada. O seu vôo não seria mais
que uma queda mortal, no meio d'aquelle torvelinho de feras, se uma
voz Iresca e suave lhe não segredasse
— Siga-me, Sarah
— Quero morrer, gritou ella,
. ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Morta ou viva, ha de seguir-me.


— Salve

meu pae, senhor.
— Seu pae assassinado.
foi

— E minha irmã ?

— Roubada . .

— Siga-me, quer vingal-os.


se
— Sim, quero; sois leal e bom.
— Isso nada importa; sou a luz do sol no relicário do seu amor filial,

Sarah.
— Vingae-me então, senhor, disse Sarah cambaleando.
— Pela minha o mouro do corro de Sant-Anna será
fé! christão a

valer no corro de S. Domingos.


E não se fiando nas forças de Sarah, ergueu-a pela cintura até a lan-

çar nos hombros, como a um fardo de pennas; vergou as pernas para


dar um salto e, cahindo sobre a muralha dos luctadores, desnppareceu .

O sol apagou-se no relicário, os vivos — christãos, mouros e judeus —


foram descendo accesos na sagfada lucta, até a porta da egreja, onde os
padres assolavam a populaça, erguendo bandeiras e crucifixos ; os mortos
ficaram, de costas, de lado, de bruços, sobre as escadas dos altares, aos
pés dos confessionários, sobre as alcatifas da Pérsia, sobre as pedras das
sepulturas — judeus, christãos e mouros, homens, mulheres e creanças I

Na rua, sobre um montão de toros inílammados, carbonisa-se o cadáver


do velho Lopo. A praça e ruas estão cheias de mortos e feridos, e a fúria
da guerra santa continua ainda !

O regedor Ayres da Silva, com os seus guardas, abriga-se no alpen-


dre mais afastado; o governador D. Álvaro de Castro expede mensageiro
a D. Manuel, que fugira do contagio; o carro da Misericórdia sae do
hospital cheio de empestados
Só o Christo fica presidindo a este campo de batalha, pregado na
cruz, escorrendo sangue, e com o sorriso do perdão ! . . .

De todas as emboccaduras acorrem ao Rocio aquelles espectros vivos,


que só apparecem á luz do dia, em momento de desastre. São pobres

que não mendigam, operários que não trabalham; gente que se aninha
nas pocilgas e tavolagens, que veste farrapos que foram galas e tem
na fronte o estigma dos tribunaes. Parece que caem do espaço como aero-
lithos, ou que surgem do exgôtto como os miasmas. E' umíi colónia sub-
terrânea que presente os terremotos e sobem á luz das cidades suppon-
do que os descobrem; é um enxame e do que rebenta do cortiço do vicio
crime. E' povo? Não;
que se levanta e incommoda quando a so-
é pó,
ciedade mora! passa sobre elle, ou quando o vento da desordem o sopra
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

por acaso. Não é povo, são corvos, que sentem, ao longe, nos seus es-
conderijos, o cheiro da carne morta.
Toda esta gente, sentindo o crepitar das fogueiras, veiu esvoaçar em
redor d'ellas, soltando gritos
— Morram os judeus!
Como se poderá descrever o que então se passou nas ruas de Lisboa?
A rua ? quem pode definir este campo immenso das mais extraordinárias
aventuras ?

Esperava-se que a rua dominasse o conflicto e desarmasse a feroci-


dade. Engano ! A rua é tudo quanto ha de mais horrivel.
A guerra das ruas tem o caracter da guerra primitiva.
N'ella não ha táctica, nem armisticios, nem lealdade ! Alli a lucta cha-

ma-se fúria.

A surpresa impossibilita todos os planos ! Cada pedra de calçada se


converte n'um abysmo! levantam-se as pedras e desabam os telhados;
é um terremoto com granizo. Homens, mulheres e creanças aggridem,
gritam e cantam
O mais forte, que pode ser Golliat, cac ferido por uma pedrada,
porque sob o solo se levantaram mil Davids. A esquina é um sorvedouro;
uma valeta converte-se numa vala de cemitério.
Qualquer cobarde, n'uma batalha arruaceira, faz prodígios de heroe.
Uma porta de escada é um reducto ; os que a alcançaram rendem-se
só quando o prédio desaba ; os que não chegaram a tempo ficam esma-
gados nos batentes.
Os gavroches^ que o Hugo inventou, surgiram com a crcaçao do
mundo: em i5o6, o rapazio associa-se a todas as sedições; e o garoto
foi em todos os tempos o animal mais suggestionavel.
Se o grito da rua é generoso e bom, os rapazes só falam de perdão
e de dedicação ; falem-lhe de ódios e de represálias e elle será o princi-
pal algoz. Os rapazes de Lisboa, os grandes, que andavam na mais pe-
rigosa vadiagem, e os pequenos, que eram apprendizes vagabundos, car-
retavam lenha para as fogueiras do martyrio. N'csta faina infernal iam c
voltavam assobiando canções alegres.
Os christãos velhos eram a maioria, e as maiorias são sempre despó-
ticas e terríveis. Um mouro, velho ou moço, começava por ser insultado
e acabava, de costas, sobre a terra, cheio de sangue e com a ultima im-
precação na bôcca escancarada.
Os ladrões comprehenderam rapidamente que o saque fora decretado.
Emquanto os fanáticos feriam os vivos, os ladrões roubavam os cadá-
veres. Nem ura homem d'armas, nem um guarda da segurança, nem uma
! ! ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

auctoridade com prestigio ! A corrente era a da mortandade quem pro- ;

testasse, ou fugia ou cahia varado uma judia era uma judia, um mouro
;

era um mouro ; se aquella levava uma creança nos braços, nem por isso
era mãe — matava-se, primeiro a mulher, seguia-se depois a prole.
Ainda era dia claro e, como por encanto, se tinham accendido mil

archotes, e nos ângulos da grande praça e nos recantos da rua, de cóco-


ras, os fanáticos em delirio sopravam o fogo lançado aos ramos das ar-

vores e á lenha trazida das lojas saqueadas. No ar havia gritos e fumo


Dos bairros mouriscos e judeus chegavam ao local sinistro caravanas
de creaturas em busca dos seus. A turba recebia-as com chascos e apos-
trophes, e esmagava-as, cahindo sobre ellas. A vingança pessoal no meio
da guerra religiosa tripudiava também.
Ao lado dos judeus rolavam christãos sacrificados pelas mais sangui-
nolentas represálias. A canalha invadia os domicílios, e as mulheres,

surprehendidas, nos seus lares, morriam estranguladas debruçandose das


adufas ou precipitavam-se na rua, fugindo á ignominia.
O incêndio vinha illuminar a scena fúnebre, e, por entre as labaredas,
voavam homens de feio aspecto levando mulheres, que cubicavam, e
jóias roubadas ás arcas de cedro !

Os marinheiros francezes e allemães ajudavam a carnificina, e fugiam


depois em direcção ao Tejo a guardar a presa. As creanças cabidas dos
braços maternos eram levantadas por braços musculosos e arremessadas
ás paredes, como se fossem cachorros condemnados no canil mais fe-

cundo !

E tudo isto se fazia em nome do Céo e de Deus, e para gloria de


Jesus, que chamara a si os pequeninos
Um bandido tinha uma predilecção : picar os olhos abertos dos cadá-
veres, como se isso representasse para elle o ultimo protesto da victima,
ou uma ameaça que o enchia de terror.
Outro preferia arrastar os corpos pelos cabellos até junto das foguei-
ras, onde os frades, vermelhos e suados, gritavam descompostos :

— Extinga-se çssa raça maldita, e Deus nos agradecerá


O palco, pouco a pouco, foi tornando-se pequeno para tamanha tra-
gedia, e a turba alargou a sua acção pelo resto da cidade.
Era já noite quando ella chegou á Ribeira das Naus, e a essa hora
outro troço de malfeitores chegava, tendo ensanguentado as ruas do seu
transito, a Villa Nova de Gibraltar.
Lisboa então converteu-se nam grande inferno cheio de fogueiras, e
do firmamento apagaram-se com
as estrellas a fumarada, que subia das
margens do Tejo até o bairro do Gastello
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 19

Nessa noite infernal^ matança não desanimou nem até mesmo á hora

de cantar o gallo. Parecia que a raça de Judas andava a rondar o Horto,


com a túnica de apostolo c o ósculo traiçoeiro. Em Villa Nova e na
Mouraria o assalto e o saque foram taes, que, não havendo tempo para
matar a ferro branco, as victimas eram lançadas, por junto, ainda vivas,
sobre uma grande sarça ardente, que occupava as ruas cm grande ex-
tensão.
A ironia tomou o seu logar no llagicio : ao lado duma mulher rouba-
da á sua alcova, ardia nas labaredas batidas pela briza da madrugada
um berço e uma creança ! A uma donzella, polluida pelos cannibacs reli-

giosos, ataram o namorado que lhe vigiava a porta para a defender, c

lamberam lhes depois os corpos com as chammas, que crepitavam como


vela arriada batida pelo vento.
A cada porta, com ar sinistro, archote numa das mãos, e lamina
afiada na outra, os salteadores, commandados por frades c leigos, invo-
cavam a Virgem, em preces em latim c coros de imprecações em sujos
dialectos.

Os sinos tocavam a rebate nas torres da cidade, c 110 ar andava um


cheiro forte a carne queimada e a fumo de palha.
E' que as camas das victimas alimentavam o fogo daquella memorá-
vel redempção !

E depois da noite assassina, a luz da madrugada não fez mais que


facilitar a obra nefasta. .

Como se não cançaram e acobardaram de tão torpíssima tyrannia


aquelles homens que viam romper, doce e meiga, como é próprio da
primavera, a aurora, vestida de tantas cures brilhantes e de brizas tão
suaves ?

E' que ao alaranjar-se o horizonte, do lado do oriente, se os assassi-


nos haviam sentido fraqucjar-lhes o braço traiçoeiro, logo os padres e os
devotos lhes apontavam o Cco, com o mesmo furor hypocrita, e diziam
ás hordas enfurecidas :

— Avante, rapazes, o relicário de S. Domingos, que esplende agora


por traz da Alcáçova real, vem de novo reclamar justiça e vingança.
E o dia, que começava, continuou terrível e maldito
Sessenta e seis annos depois, graças ás intrigas de Catharina de Mc
dicis e de Henrique de Anjou, das janellas do seu palácio presidia Car-
los IX á matança dos huguenotes.
Só faltou a Portugal, para que fosse digno precursor dessa vilania
franceza, que el-rei D. Manuel viesse de \'izeu, onde a cobardia o deti-
nha, a verificar o assassínio d esses \ íiitc mil desgraçados christãos novos !
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Sarah, arrebatada nos braços do moço guerreiro, que andava a appa-

relhar-se para as guerras d'Africa no corro de Sant'Anna, foi, no mo-


mento em que a carnificina se alastrava pela cidade, conduzida a uma
pequena mas alegre vivenda, que se erguia no extremo de Villa Nova.
Era alli a morada de Pedro Soares, moço gentil e fidalgo, que afir-
mava caracter e honrava pergaminhos, acceitando constantemente brigas
á arma branca e debatendo, á luz do melhor entendimento, a favor da
tolerância para com os judeus e os mouros. Tinha vinte annos apenas,
rnas podia em tino e coragem hombrear com os mais sisudos chefes de
família. E a d'elle bem resumida estava, porque apenas tinha a seu lado
sua velha mãe, que passava a vida amparada por uma saudade e por
uma esperança — saudade do marido, esperança na fortuna próspera de
seu filho. — O marido fora morto, dez annos antes, quando combatia, em
Arzilla, contra a Mauritânia, ao lado do valente e arteiro D. João de Me-
nezes, d'esse notável portuguez que desfizera, com pouco sacrifício, a re-

beldia dos Aduares, emquanto na metrópole D. Manuel pensava nas impo-


sições africanas para beneficio do clero
As noticias chegadas a Portugal diziam que fora grande a carnificina
soffrida pelos mouros, e poupados todos os fieis; mas isso não impediu a
viuvez e a pobreza da infeliz senhora.
Pedro Soares recebera a mais aprimorada educação moral nos exem-
plos dos pães, e, por natural vocação, se fizera, em exercícios physicos,
um dos rapazes mais destros e sabedores no manejo d'armas e na arte
de equitação.
Para ganhar a vida e amparar sua doce companheira, fizera-se pro-
fessor de esgrima, e no corro mais frequentado da cidade volteava com
garbo e, não podendo ter rivaes, contentava-se em ter invejosos.
Nas suas relações com o velho Lopo, por tal forma se lhe alfeiçoara
que o tinha por pae amantíssimo, e a Sarah e a Deborah por suas irmãs.
A
traição praticada contra o seu honrado amigo, se obedecia ao plano
de excitar D. Manuel contra mouros e judeus, não foi também extranha
a uma intriga villã movida pela paixão ou pelo vicio da grei sacerdotal.
Em S. Domingos, vigiara de perto a família dos seus amigos; mas, tendo
sido agarrado e aggredido, teve de gastar tempo na própria defesa e no
justo desforço, e, assim, lograra apenas chegar a tempo de salvar Sarah.
—Minha mãe e senhora, disse elle, mal transpoz a porta de casa,
trago-vos a minha vida nesta creança, que parece morta. Entrcgo-a aos
cuidados do vosso amor, que eu bem sei os milagres de que é capaz.
— Mas... meu filho... ia a objectar a bondosa senhora, que nada
comprehcndia do que se estava passando. . .
MYSTEFílOS UA INí^UlSlÇAO

— Logo sabereis tudo. Chama-me o dever a outra parte . .

— Saiba minha boa mãe, que o diabo andou pelo ar


a a percorrer as

ruas de Lisboa, e que ha muitos anjos cabidos, a quem quebraram as


azas. .

K, depondo Sarah, desfallccida, nos braços de sua mãe, sahiu de-


pois de ter cingido o seu gibão revolto com o cinto do seu brilhante ar-
senal.

Ao chegar á rua, deteve-se um momento a pensar se devia ir imme-


diatamente em busca de Deborah, se defender os vizinhos e amigos, que
tinham partido armados de chuços para o coração da cidade, ou emfim
para os lados da Sc, onde a camará deveria estar reunida para adoptar
providencias. . .

Do lado do Terreiro vinha appro.\imando-se a enorme vozearia do po-


pulacho. . .

Um momento mais e avistou a invasão de Villa Nova... Com cgual


furor deviam ter penetrado em Roma os bárbaros do norte ! Com os ho-
mens desconcertados vinham grandes bandos de mulheres, mendigas e
prostitutas, e gente dos mercados, agitando bandeiras de farrapos, peda-
ços das vestes ensanguentadas... O rapazio mais alentado arrastava
toros de creaturas que tinham rolado das fogueiras, como saltam ao es-
talar da pelle as castanhas nos magustos alemtejanos. . .

A' frente desta caravana sinistra, ganhando o titulo execrando de


algOyfS porta-cru\, destacavam-se as figuras antypathicas, com os hábitos
regaçados e pendões erguidos, dos celebres frades de S. Domingos, frei

João Moucho, o Eborense^ e frei Bernardo Aragonez.


Pedro reflectiu :

— Meu Deus ! que vou cu fazer ?

E voltou a correr para junto de sua mãe.


Sarah voltara á vida ao calor magico dum beijo maternal; e, ao vèr
Pedro, disse-lhe serena e sinistramente, com os olhos rasos de agua :

— Repito-lhe, Pedro, quero morrer !

— E' possivel que assim succeda, Sarah. Um momento mais, . . e ve-


remos o que Deus pensa a esse respeito. . . Juro-vos, porem, minha irmã,
que morrereis depois de mim.
Pelas janellas abertas entrou na modesta habitação o écho da vozearia
popular.
Pedro desen\'oIveu então uma actividade tigrina. Impelliu bruscamente
sua mãe e Sarah para um quartu interior, correu as adufas, olhou a rua,
já cheia de gente e de clamores, fcchou-as com estrondo, arrastou alguns
móveis de encontro á porta da entrada, arrancou do cinto os seus melho*
MYSTIÍIUOS liA INQUISIÇÃO. — \0I.. I. FOL. 3.
! . : : : ! .

22 MYSTERIOh U/s (NílUISIÇAO

res punhaes, e, como uma fera agachada que espera a presa, dobrou um
joelho no sobrado, e, levantando os olhos, exclamou :

— Meu Deus! fortalece o braço da minha justiça!


— Meu pae envia-me do Céo a coragem do teu animo
! !

Entretanto, lá fora, a turba gritava feroz


— Morra o traidor Pedro Soares ! A' fogueira o amigo dos herejes
E Pedro Soares, sempre na mesma attitude, inclinando a cabeça para
ouvir todos os ruidos, e examinando com o olhar febril a porta e as ja-
nellas, continuou a sua prece :

— Escuda-me com o teu amor, ó minha mãe !

O tumulto cada vez se approximava mais ;


por baixo das janellas ou-
viam-se vozes de commando. Era evidente o assalto. . . No patim da casa
já se distinguia o tropel. .

Pedro Soares, sem se levantar, recuou um passo para junto do quarto


onde guardara o seu thesouro.
Sentiu-se então o corte d\im machado na rótula duma das adufas,
e eram mais frequentes as ameaças e as pragas. Atrás de Pedro reza-
va-se por entre soluços.
Pedro, como em segredo, consolou as afflictas
— Confiae em mim, e não façaes o menor movimento, nem solteis o
menor gemido.
Não lhe chegavam os olhos para attender, ao mesmo tempo, a todos
os pontos por onde esperava ser assaltado ! Até para o vigamento nodoso
do alto tecto da casa olhava, como se receasse que d'alli houvesse des-
abamento e invasão
A porta foi abalada violentamente, e uma voz gritou de fora
— Abri, Pedro Soares, que tendes aqui um amigo.
— Assassino, dize o teu nome, se quizeres, também o teu preço.
e,

— Abri, sem receio... as delongas estão irritando o povo, pode e


perder-se o meu esforço.
— Quem CS, perguntou vivamente Pedro, approximando-se do occulto
interlocutor.


Sou Ruy Vasques, o vosso discípulo da Carreira, que vos tem por
mouro como parceiro, mas que sabe quanto tendes de christão. Abri,
Pedro.
— Se és meu amigo, acudiu Pedro, defende essa porta, de onde es-
tás, para que ella não estale nem salte dos couces, que eu me defenderei
n'este logar.

— Seremos dois, ahi, onde tantos cuidados vos prendem ou melhor ;

três, que venho cm companhia do mais santo dos frades d'esta terra. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 23

— Comprehendo — és a guarda avançada do Moucho e do Arago-


nez. Tenho sede de justiça.
. . . . hei de beber-lhes o sangue.

Náo havia tempo para mais ; no meio de atroadora algazarra voaram


as madeiras fortes da adufa, e um montão de cabeças sinistras apparece-
ram gritando :


Morra o hereje !

Pedro cahiu sobre os primeiros assaltantes e feriu-os no peito ! Explo-


diu então em mil bôccas a terrivel ameaça.
— Ao fogo ! ao fogo
O moço christão atirou-se áquelia brecha aberta pelos assaltantes na
sua fortaleza, e sentiu-se com coragem e força para inutilisar quantos ou-
sassem subir alli. . .

De repente a porta, como elie receava, saltou dos couces, e Pedro ia

ficar entre dois bandos inimigos.


No limiar appareceram Ruy Vasques e frei Ignacio; mais atrás, Mou-
cho e Aragonez.
Pedro, que dum salto alcançara a porta interior que mais o inquieta-
va e que, junto delia, poderia defrontar-se com as duas invasões, olhou
para o padre, com olhar turvo e inquieto.
— Queres salvar, meu rapaz, a vida mãe ?
de tua
— Sim; disse Pedro com voz rouca, sem desmanchar a altitude ag-

gressiva.
— Tua mãe, Sarah Não e ? é assim ?

— Sim, sim, quero. Dizei.


— valente tens talento.
p]'s e Podes auxiliar uma obra meritória.
Pedro esperava sem comprehender.
— Meus irmãos, disse Ignacio para o bando, que, do lado da rua e
fora da porta, gritava, sem avançar, como se esperasse ordens dos seus

chefes. N'esta casa não ha mouros nem judeus... Em nome de Christo


volo juro. Os mais altos interesses do Estado e da Egreja estão depen-
dentes da inviolabilidade d'esta santa familia. Ha aqui um sagrado depo-
sito. Vão, sem perda de tempo, a casa do banqueiro Jacob, antes que elle

fuja, salvando o corpo e perdendo a alma.


Dois populares, dos mais ousados, ouvindo murmúrios de descontenta-
mento, perguntaram com altivez :

— Frei João, é isto verdade ? Nem ao menos devemos vingar a morte


dos nossos companheiros ?

O Moucho ia a fazer um gesto. .

— Ajudae-me, lhe segredou Ignacio... (".onvem-nos Pedro .. Con-


yem-nos muito, .
! . :

24 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

O Aragonez não teve hesitações.


— Ha mais que fazer no bairro; vão, meus filhos, que se el-rei chega

a Lisboa, não haverá tempo para vingar o Céo !

— Vamos, vamos, respondeu obediente a terrivei muhidão, e, afastan-

do-se, ia reanimando a ferocidade e a cobiça


— A' casa do usurário !

— Morra o máu ladrão !

— Ao fogo ao fogo! !

Estas vozes fòram-se extinguindo, e Pedro ficara attonito, de punhal


na mão, a cabeça collada á porta do quarto, para escutar a respiração
das afflictas creaturas.

— Nada me agradeças, Pedro, que me has de pagar este serviço.


E extendeu-lhe a mão.
Pedro não se moveu, nem olhou. . . pensava.
— Vamos, Ruy — para o teu posto de observação. Respondes-me com
a cabeça pelos estragos do ninho e pela fuga dos pássaros. . .

E, deitando o braço sobre o hombro de frei Bernardo, sahiu dizendo:


— Meu velho, um grande dia! E' possível que um de nós ainda che-
gue a inquisidor-mór
— Ou que ambos vamos em breve a torrar nas fogueiras que hoje
accendemos ! respondeu frei Bernardo, olhando para o companheiro.

El-rei tem medo da peste e não vem a Lisboa o peor é se elle ;

manda em seu logar o prior do Crato e o barão d' Alvito. Dois Diogos . .

com gente d'armas é caso sério. .

E lá foram atrás da procissão maldita !

Entretanto Pedro abraçava sua mãe.


—A quem devemos a nossa salvação, Pedro ? lhe perguntaram as
mulheres.
— Não sei, senhoras minhas. Sei que invoquei Deus, e acudiu-me
Satanaz.
Justiça d'el-rei

Emquanto a cobardia, ou cumplicidade, das auctoridades e classes


preponderantes, deixava extinguir- se pelo cançaço, e não pela repressão,
a sedição de Lisboa, elrei D. Manuel recebia, em Aviz, noticias do acon-
tecimento e, desejoso de o punir, já que não quizera prevenil-o e não sou-
bera terminal o, mais cuidou em pedir minúcias dos progressos da peste
que da sorte dos christãos novos.
Os reis cavalleiros da nossa velha historia dispunham com franqueza
do sangue de seus vassallos para alargar, cn". mundos novos, o prestigio
da sua coroa, mas eram cautelosos e axaros da sua saúde c de suas com-
modidades.
Nem um momento hesitara D. Manuel em arremessar, para as garras
do gentio e para as surpresas do Oceano, a Hòr da mocidade portugueza;
mas tremia de medo ao pensar nas pcstileucias que estavam envenenando
a capital c que nos seus ataques, crebos e cegos, não distinguiam o \il-

lão e o artilice dos principes e dos soberanos.

Irritouse, ao saber a nova, em taes Ímpetos de gestos e pahnras, que


os mensageiros se convenceram, por momentos, de que el-rei viria defen-

der sua real vontade á frente dos seus homens darmas.


Junto d'elle, na sua luzida comitiva, não faltavam cabos de guerra dos
mais corajosos e adestrados, que por felizes se dariam de vir em soc-
corro, não mas principalmente de suas
só da honra e da paz do reino,
famílias e bens, mais que ameaçados, compromettidos. E com a dedica-
ção d'esses contava effectivamente el-rei, e não menos com a gente, que,
voluntariamente e assoldadada, ao chegar á cidade, onde era tão grande
o incêndio das paixões, apenas teria de executar a faina do rescaldo. Não
era porém do valor e caracter dos sediciosos a peste, extranha aos pleitos
da religião e da politica, para cuja solução sobejavam recursos e auctori-
dade. .
. ! !

2(5
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Preferiu, pois, el-rei incumbir D.


Diogo d' Almeida e D. Diogo Lobo,
barão d' Alvito, que na sua
prophecia o
prior do Crato e o
o célebre
justiceira empresa.
Ara^onez adivinhara, em tão violenta e
seguidos de forças guer-
Partiram para Lisboa os dois emissários,
encontraram resistências e tiveram de trocar
reiras, que, ao chegarem, não
do braço pela diligencia e traça de officiaes
a coragem do ânimo e a força

de justiça.
do msuccesso,
El-rei, movido mais por pudor que por desconfiança
desrespeito pelas suas
adeantou-se até Setúbal, e dalli, para castigar o

intolerantes ordenações, publicou um firman roubando a Lisboa títulos,

os funccionarios, que por co-


privilégios e franquias, e demittindo todos
como el-rei ante a peste, náo podendo acastella-
bardia ante o alvoroço,
a suas casas, emquanto a desordem an-
rem-se em Aviz, se recolheram
dava á vontade nos templos e nas ruas.
assim recommendar-se
Mais uma vez o afortunado D. Manuel logrou
Historia, que essa é implacável e incorruptível,
á benevolência, não da
das
mas cujo critério estonteia ante as scintillaçÕes
d'alguns historiadores,
glorias, que os povos conquistam e com que os reis se envaidecem.

Emquanto os assassinos expiam suas culpas e os mortos desapparecem,

ou na terra, ou no ar —
despojos sangrentos que escaparam ao fogo--
levanta e dispersa, pensemos as feridas dos
que mais
cinzas que o vento
o desespero e
soffrem, porque durante muito tempo sentirão a saudade,
a vergonha . .

acceleram.
Ha punhaladas que fazem parar o coração; ha outras que o
anesthesiam o corpo para os golpes do
Ha mortes que consolam, porque
mundo e para as mordeduras do tempo. São as melhores

Cruéis, terríveis são as mortes que fazem cadáveres que


gemem, cho-

pensam que teem no seu sepulcro e vêem com ella o corpo


ram e ;
luz

a mirrar-se, e a arrefecer. Terríveis são esses cadáveres de vida apparen-


te, que só recordam e amam, e a memoria dos mortos, e em
adoram
cujos ouvidos apenas échòam vozes do passado, que mais ninguém escuta
nem comprchende
O é a vida dos tristes, dos sem esperanças, dos sau-
peor dos túmulos
dosos — dos
que andam como espectros, olham como cegos, falam como
um écho, pensam como os loucos! Peor que os cadáveres sem coração
são os corpos vivos sem amores —
porque o affecto faz mais falta que o
sangue, pois, se o sangue foge ao corpo, o espirito adormece tranquillo e
apaga-se-, — adormece e apaga-se eternamente!
Se o amor nos foge, na imagem querida de um ser, que tanto nos
enlaçou, que se confundiu çomnosco, cujos beijos foram sempre a aspira-
MYSTEFÍIOS DA INQUISIÇÃO 27

ção de nosso peito e o calor de nossos lábios, cujos ouvidos eram o ins-

trumento da nossa voz, e cujos olhos o único espelho do nosso rosto ;

se o amor nos foge, isto é, se as sombras do lucto nos vestem a alma com
uma mortalha negra, e nos velam os olhos com as cataractas da abstrac-
ção, de maneira que andamos sem saber por onde, que vivemos sem nos
importar a vida, indifterentes ás tristezas e alegrias dos outros, que he-
diondo cadáver é o nosso corpo vivo ?

Morrem em nossos ouvidos as phrascs de consolo, morrem na fixa

pupilla as imagens mais formosas — a luz do Céo, o canto das aves, o aro-
ma das flores, os beijos da viração — tudo que nos cerca, nos aquece,
nos affaga ; e nós nada sentimos !

Todos os sentidos do corpo se recolhem cá dentro onde o espirito,


essa mystica forma do pensamento, era um novo mundo formado por
tudo que passou I

E' trágico, é fúnebre, é repugnante até, o aspecto dum morto, frio,

pallido, ensanguentado, cheio de mutilações ! E' hediondo, é horrível vèr


montões de despojos — cabeças, braços, pedaços de tronco, escarnados,
negros, reduzidos a cinzas
Entristece, agonisa, indispõe, uma sepultura, um jazigo, um caixão,
um cypreste !

Ah mas
! o peor de tudo isto são as estátuas de dòr, inteiras, erectas,
automáticas, com o olhar vago, a razão oscillante, o anceio indefinível,
d'essas creaturas que são pães, filhos, amantes desses montões de carne
c de ossos, informes, podres, cremados !

Sim, morreram muitas mil pessoas, mas já não vale a pena choral-as.
Trata agora el-rci de ser a Vingança, já que não pôde ser a Pro-

videncia.
A Historia elogia o monarcha c os mortos arrumam-se, longe da nossa
vista, entre torrões de argilla, sob o pó do esquecimento.
Os algozes irão em grande numero fazer-lhes companhia, ou já, que
não ha perigo de que as victimas os reconheçam, ou mais tarde, quando
o cutello physiologico lhes rematar a existência.
Imaginemos, portanto, como encontrámos o coração de Sarah
E como estará o de sua irmã, que vimos arrastada no templo á hora
do seu lucto, e que talvez nos represente n'esta galeria de victimas, que
definem a grande tragedia manuelina, uma das espécies que mais nitida-
mente explica o cannibalismo humano.
Procuremol-a.
As denuncias feitas em Aviz logo apontaram como maiores responsá-
veis dois padres de S. Domingos; o principal — Bernardo Aragonez.
28 MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO

Frei Bernardo Aragonez, de origem hespanhola, alistara-sc a pedido


de frei João Moucho, na ordem de S. Domingos. Era moço de grosseira
educação e de caracter ruim.
Em Hespanha, chegara a desempenhar missões de confiança no Tribu-
nal da Inquisição; mas pela natural rebeldia do seu espirito e excessiva
ambição, por tal forma se indispoz que foi obrigado a transpor a fronteira
e vir a Portugal, onde contou fazer carreira junto da corte, por occasiáo
dos decretos de expulsão dos christãos novos.
Tendo vindo recommendado a frei João, este. que andava a bem da

pátria e da Egreja, em activa conspiração contra a intluencia dos conver-


sos, julgou-o homem d'acção c de coragem. O trabalho clerical era então,
em todo o reino, excepto no ponto onde dominavam algumas ordens je-

suítas, dirigido com o fim de mover cl-rei a solicitar as bulas indispensá-


veis para o estabelecimento tribunal. Em Roma, junto do Papa
do negro
Júlio II, eram de diversa natureza e origem.
as diligencias e os interesses

O Aragonez conhecia parte dos segredos da cúria c, cm Hespanha, ap-


prcndera um pouco com que poderia informar os padres de S. Domingos
sobre o estado da opinião cm Roma, e na Peninsula.
Os actos de D. Manuel eram bastante intolerantes, em matéria reli-

giosa; mas no caracter del-rei havia intermittencias, contra as quaes era


indispensável estar prevenido.
Frei Ignacio, que mantinha estreitas relações com António Carneiro,
chancellcr d'elrei, tinha a sua suggestão na corte, e o Aragonez encarre-
gara se da propaganda entre o povo.
Assentou-se definitivamente que a sedição teria pur fim convencer cl-

rei de que era impossível adiar a creação d"um tribunal, que julgasse
principalmente todos os crimes de heresia. A ausência d'el-rci, a peste, d
fome •

— tudo eram indicações da opportunidade para a empresa.


O Aragonez, porém, tinha um duplo interesse n'essa sangrenta aven-
tura.

Andando no empenho de espionar as famílias, onde o


seu miserável
culto catholico era mais raramente observado, lograra conhecer a formosa
filha do velho Lopo.
Tão ardente quanto hábil, reconheceu facilmente que Deborah não
era mulher que lhe permittisse, a elle, grosseiro e brusco e feio, ensaiar
sequer qualquer tentativa de seducção.
A sua organisação de bandido não lhe deixou perder a esperança de
que fácil seria apoderar-se de Deborah, dado o conHicto que se preparava
e as suspeitas de judaísmo que prudentemente creara contra Lopo, na
opinião pública.
MVSTERIOS l>.-\ IN()U1SI(;A0

Que me poderá faltar na conquista ? dizia elle.

O coração ':
O coração que o reserve ella para quem se contente com
ião pouco . .

O Aragonez pertencia aquciia raça de padres, que mais se confunde


com a dos ca^ixiros raontanhezes, ou com a dos guerrilheiros, sectários
MU bandidos, das serras de Hespanha. Tiniia aqueiie feitio e aquelles
modos, que deviam mais tarde assignalar. na historia da guerra civil dos
íempos de Izabel, a tigura sinistra do cura de Santa Cruz. Não era um
hypocrita, de olhar incerto, e gesto reservado: era o contrário — olhos
vivos, pequenos, scintillantes, olhar atrevido c injurioso, ventas largas,

respirando á vontade, pelas narinas dilatadas e inquietas. Musculosos os


braços e as pe!"nas, pescoço curto, beiços grossos sobre dentes ameaça-
dores. Com um capuz e umas camandulas, confundia-se com qualquer
frade nas sombras d uma adega; com um lenço vermelho atado na cabeça
•c um trabuco na mão, seria um salteador perseguido pelas justiças de
Castella. Supportava o habito, mas ha\ ia-se mal com clie, por pesado e
incommodo. Tinha mais espáduas que peito, e maiores as nádegas que o
abdómen. Nada havia n"elle do aspecto seraphico dum missionário, e,
apesar da o\v vi\ a de alcoólico, esta\a longe de se confundir com o as-
pecto bonacheirão dos h-ades gulosos, que fizeram as delicias da eschola
llamcnga.
Ksta\a na f("ii-ca da \ ida, na força das paixões, ou peor que isso, na
l('irça dos \ icios. No trato era o Aragonez irritável e aggressivo. A' frente
do popLilacho era sinistro — tinha o gesto mais ameaçador, o passo mais
ligeiro, a praga mais insolente! Arvorava o crucifixo, como quem conduz
um archote: poi' \ezes movia-o, com tanta irreverência, que só muito de
perto se notava que era uma cruz e não um cacete.
Estes exemplares de frades brigões eram vulgares na peninsula ibérica,
oios beatiticos tempos del-rei D. Manuel.
Eram. por assim dizer, um symbolo suggestivo da intolerância religiosa
e da hybrida allianca dos dois poderes, que esmagavam o mundo — o Papa
c o Rei.

Entre os frades de S. Domingos, nenhum havia mais arrojado c mais


feliz. Alguns copos de vinho capitoso, duas pragas aragonezas e o habito
regaçado, apparelhavam-no para as mais arriscadas empresas.
Muitas aventuras criminosas lhe tinham sido attribuidas. mas o gover-
nador, D. Álvaro de Castro, nunca se prestou a acreditar nas indica-
ções apaixonadas do po\o de Lisboa. -\ impunidade agucava-lhe o atrevi-

mento.
Já conscguii^a insinuar-se no animo dalguns fidalgos, e chegou a sonhar
MYSTERIOS I>.V INQIISI l AO. \ Ol . 4. TOL. £•
:

3o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

com uma viagem a Roma, na companhia de João Sotii, que toi mais tarde
bispo de Saphim.
Ao planear-se a matança de S. Domingos, elle declarou a João-

Moucho:
—A família do judeu novo ha de ser dividida em partes eguaes. Tu
tomas conta do velho Lopo, que a casa d'elle é farta de jóias e do-
cumentos; Ignacio, de Sarah, visto querer apoderar-se de Pedro, e eu fica-

reicom Deborah. Não peço muito, como se vc. As mulheres fogem de


mim, e cu preciso de mulheres.
Os sócios concordaram na partilha, e o Aragonez, mal a sedição re-

bentou, apoderou-se da pobre menina, arrastando-a para uma das depen-


dências do mosteiro, e confiou-a aos cuidados de Ruy Vasques, um des-
graçado posto a soldo da maldita seita e já a ella escravisado por segredos,
da sua vida desregrada.
Deborah, desde a scena trágica da morte de seu pae, ficou eni'

abstracção tão grave! parecia viver sem pensar e sem sentir, os braços
cabidos, cabeça inclinada, olhar errante e vago. . . Um \erdadeiro cadáver
\\\o.

Aproveitando a desordem que reinava no mosteiro e na rua, Ruy


Vasques pôde facilmente montar o seu baio, e logo que um fâmulo lhe
lançou Deborah sobre o regaço, aconchegou-a com todo o cuidado, por
causa da violência do galope, metteu esporas no cavallo e partiu pela ín-

greme ladeira que trepava pai"a a Alcáçova, encostando-se, quanto pos-


sível, ao muro roqueiro, que circumdava o \elho morro árabe.
Ruy Vasques, ao chegar lá acima, e ao passar pelo postigo da cerca,
afastou-se para o norte, e, cinco minutos depois, chegou a uma casa que-
se erguia á sombra de um olival, no extremo da melhor arrifana daquelles
sitios.

Tendo depositado o seu precioso fardo, montou de novo, e descendo


pela encosta do oriente, \'eiu até Villa Nova, a encontrar- se com o Ara-
gonez, que sahia da casa de Pedro Soares, á hora em que a turba, rea-
nimada por elle, ia em busca do usurário Jacob, cobradoí" de impostos.,

O Aragonez mal avistou o seu cúmplice:


— Tudo prompto
— Da minha parte, tudo prompto.
—E ella :-

— Não sei.

— Como, não sabes ?

— Está viva, porque lhe senti o coração palpitar junto do meu peito..
— Mas, então?
. e partio pela Íngreme ladeir>i
: :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Pai'ece
• dormir quasi sempre... ou pelo menos não quer vêr-me,
porque poucas vezes abriu os olhos. .,

—-Vamos, responde: está segura


— Como um pássaro!
— Fechaste porta? a
— Podéra não; a porta c a adufa, que ha pássaros capazes de fugir
até pelas grades da gaiola.
— Dá cá as chaves.
— Prompto,
-
aqui as tem.
mestix',

— Ru\', dize-me, suppóes que me resista?


— Com franqueza, com franqueza Parcce-me ? que não. Também eu


esperava ter um boccado de trabalho, e, aiinal, deixou-se transportar.
E accrescentou
— Agora dè-me licença, frei Bernardo; na cidade ha hoje mulheres a

nido, e o mel não se fez para os cães.


— Repara, meu villão ruim, que se lhe tocaste com um dedo sequer,
vaes parar ás fogueiras da Ribeira, que estão próximas. . .

— Por esta!. . . disse Ruy, fazendo uma cruz com os dedos e chegan-
do-os á bòcca; juro que me contentei com o abraço ensarilhado nas rédeas
•do governo.
— Bem, pane, c, haja o que houver, é certo que ha quinze dias m.e não
falas nem me vcs.
— Temol-a travada, frei Bei^nardo?
—^E' bom esperar tudo... Deus nem sempre agradece a quem o
serve. . .

— Bem, apeia-te e cede-me o cavallo.


Ruy apcoLi-se, lez uma festa nas orelhas do seu baio, e entregou as
rédeas ao Aragonez, que, ao montai', perguntou ainda:
— alguém vigiando, ou guardando
P^stá arrifana: a
— Ninguém. E" um paraiso, Adão. frei

— Que o diabo que eu levo commigo serpente.


te leve, a . .

O cavalleiro arripiou o caminho da Alcáçova, e Ruv foi ver mais de


perto o assalto, o saque e o incêndio nas casas dos judeus.
O Aragonez foi subindo e pensando:
— Emfim! As mulheres desta cahla de herejes não pertencerão ex-
clusivamente á canalha das ruas. Reserve-se o quinhão mais delicado para
os que mais se arriscam e melhor dirigem! Deborah vae ser minha, quer
ella queira, quer não. Se el-rei não fôr grato aos meus serviços e eu houver
de dançar amanhã na forca ou na fogueira, será o amor de tão formosa
rapariga a minha extrema unção. Sei que sou feio e que me não sobra
. . . :

MYSTERIOS DA INOinSICAO

feitio para fazer a corte a estas creaturas tentadoras, que só querem can-
tigas de menestréis e requebros de cortezãos. . . Ora adeus, os homens
são todos eguaes. .

A meio caminho parou, como se o tivesse assahado uma dúvida.


—E se eila me resiste: Sim, se ella prefere que eu a subjugue, em
vez de ceder. . . Estou farto de a ver fugir de mim com repugnância e
afflicção! Se me resiste, por Satanaz, que eu não tenho obrigação de ser
hoje generoso. Os que quizeram dinheiro, tiveram-n"o, os que desejavam
a vingança, vingaram-se. . . Eu quero as caricias d'uma mulher formosa
e hei de deixar espoliar-me estupidamente? Quem sabe? A gratidão...
E' certo que fui eu quem lhe salvou a vida... Eu podia tel-a deixado
até morta, ou, noutra parte, polluida poi- algum lacaio ou magarefe...
Decididamente, concluiu elle, apertando o trote, oii viva, ou morta, scra
minha!
E, passando a mão pela abertura do habito, certiticou-se de que levava,
a cintura o seu punhal de cumbatc.
Ia a tarde a declinar quando entrou na arrifana; apeou-se d porta, con-
duziu á mão o ca\allo, que prendeu a uma ar\ore, e, encaminhou-sc para
a modesta casita, toda cerrada e mysteriosa.
Abriu a porta, c parou; subiu alguns degraus, c parou ainda. . . Com.
outra chave abriu outra porta, e penetrou no quarto onde estava Dé-
bora h.
As sombras eram jd muitas, mas via-se bem a infeliz, sentada no leito,

com a cabeça inclinada. . .

— Deborah, disse o Aragonez, salvei-lhe a vida.. .

Deborah ergueu a cabeça e olhou para o frade, tranquilla, indiíTeren-


temente. .

— Deborah — amo-a e venho oííerecer-lhc o meu amor. o meu braço,


a lelicidade.. . Quer ser minha?
— Sim, respondeu Deborah, litando-o tranquilla e serenamente...
O Aragonez avançou alguns passos.
— Deborah, venho buscar os vossos beijos... Estaes em meu poder
e sereis feliz.

A rapariga abriu mais os seus grandes olhos, que brilharam com ex-
tranha scintiilação por entre as sombras do quarto.
O Aragonez ia a approximar-se do leito para que ella o reconhe-
cesse. .

— Minha querida Deborah! disse cllc.


A
pobre victima ergueu-se então, e soltando um grito, que parecia um
grande gemido a rebentar n'um sorriso, exclamou
. !

MYSTKRIOS DA IN(Ji;iSl(;ÁO 33

— Meu pae! Meu adorado pae! Dá-me um beijo. Reconheço-te,


CS tul. .

O Aragonez recuou até a porta, aterrado e cambaleante.


— Está doida! Está possessa!
E ficaram os dois a olhar um para o outro.
O bandido, se não tem encontrado a porta fechada, teria fui;ido. Tat
fui a impressão de terror que o dominou, ao vèr o aspecto des\airado de
Deborah I

Teria medo da pobre ..louca ? Não, decerto, que nesse dia maldito,
no meio de tantas tragedias, muitos desgraçados perderam a razão,
olhando os cadáveres dos seus, e ao serem envolvidos no fumo das to-

i;ueiras !

As doenças nervosas, que hoje estão sendo a principal preoccupação


da sciencia, eram muito graves e frequentes n'aquelie tempo abomina\el,
em que o fanático nnsticismo todas attribuia a influencias malignas de
espíritos diabólicos. A therapeutica bestial dos exorcismos estava no seu
auge.
O império de Claleno resistia á reforma com as investidas das artes
cabalísticas e as invas(3es demoníacas no espirito dos sábios e dos incultos.
Avizinhava-se Paracelso a fazer triumphar a sua eschola, buscando as
causas morbigenas na influencia dos Astros, de Deus, da Natureza, do
Espirito e do \'eneno! Estava-se no tempo da quintessência, e ninguém
conhecia .loão Fernel, que em França fizera alvorecer a conciliação das
doutrinas de Galeno com os progressos que vieram d chimica nas desco-
bertas de mundos novos.
Quando o mais reles eczema era combatido com rezas e magias,
isto é, quando ao mais insignificante incidente pathologico se attribuia uma

causa astral ou divina, ou melhor, religiosa ou mvstica, que terrisel m\ s-


terio envolveria as grandes crises cerebraes?
Um epiléptico era um endemoninhado! O espirito das trevas luctava
com os anjos do Céo no corpo desses doentes. Um ep\leptico era captivo
de Satanaz ; um louco era um vencido do inferno
Se os garros mereciam desprezo, os loucos causavam terror.
O fogo da Inquisição quiz ser o salvador e purificador dessas almas
perdidas. Creou-se para combater o inferno do espirito, outro inferno real
e deshumano!
Um louco era uma creatura infernal; os seus olhares, os seus movi-
mentos, as suas palavras, eram illuminados, guiados, segredados, pela
inlluencia autócrata do Espirito mãu.
O Aragonez era atrevido, forte e corajoso; não o atemorisavam os
. ! . ! ! .
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

homens valentes, nem as mulheres fracas. Acabara de dar provas da du-


reza do seu caracter e do cynismo da sua
audácia. .

Conhecia bem o mundo real e não o temia, mas


era supersticioso,
generosidade de Deus, e,
•como toda a gente do seu século. Conhecia a
aos mandatos. Habi-
por isso lhe falseava a doutrina e lhe desobedecia
tuado a toda a casta de abusos, até do Céo abusava!
Na lógica do seu
cima.
o perdão era a chuva mais torrencial que vinha de
.
.
espirito,

Mas, temia-se do Inferno! No Inferno havia essências como a delle.

um tribunal inexorável. Satana? devia ser frade, se não de


O Inferno era
queimar,
S. Domingos, com certeza d'alguma ordem capaz de matar e

principalmente os partidários de Jesus.


Fora até alli, com sangue frio, resolvido, inexorável, l'm, dois, cem
homens que lhe apparecessem a roubar-lhe a presa. . . com elles teria de
havia de
luctar. Se fosse vencido, antes de morrer dos golpes inimigos,

morrer da sua própria raiva . .

Restava-lhe esse orgulho de luctador. . .

Mas não lhe appareceram homens armados — apparecera-lhe o inlcrnu.


Satanaz chegara primeiro que elle, e, sem cavallo, sem chaves, e sem
punhal, penetrara n'aquelle quarto, numa lufada de vento que estava ge-

mendo nas arvores da arrifana.


Fora elle, decerto, que enchera de sombras aquelle recinto, elle que
entrara no seio de Deborah, elle que o espreitava com olhos de fogo, nas
orbitas roxeadas da donzella
Satanaz não era justo, mas podia trazer-lhe o castigo. . .
era seu rival

uo amor e no ódio!

Se esse rival quizesse desfazel-o, poderia conseguil-o com um raio dos

seus, como Deus, por vezes, fizera aos Ímpios com os raios celestes

Não havia dúvida. . . Deborah estava possessa. .

Esperava que ella lhe resistisse, e ella entregava-se-lhe !


.
.

Esperava que ella lhe offerecesse o supremo encanto de ter no olhar


o brilho das lagrimas, e ella tinha a ardente irradiação d' um fogo mal-
dito ! . .

Tinha a certeza de que ella o odiava, por elle ter sido o assassino do
velho Lopo, e ella confundia-o com o assassinado ! . . .

Contava com uma pequena fera que o mordesse, e achava-se em lace

duma louca que lhe sorria!


O Aragonez estava pallido, e ao juntar, n'um movimento instinctivo

de oração, as mãos trémulas, achou-as geladas


Encostou-se á parede, e procurou o coração; não o sentiu! Estaria já

morto ? Seria aquillo um pesadelo


. . . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Estava sendo victima da maior das traições! Seria aquillo o remorsO'


em que ouvia lalar? Mas o ix-morso não era para eiie. . .

Nem o remorso, nem o medo!


l-"ntão o que era aquillo ? Se pedisse pei^dáo a Deus r

,Mas, se não era sincero nesse pedido, como poderia elle encanar a

Deus ?
Todos estes pensamentos o assaltavam, o agitavam; tremia por fora

e por dentro !

Entretanto, Deboi^ah continua\'a com um sorriso di">ce e cariciador.

mas o olhar parecia litar um objecto próximo e vèr uma estrella muito ao
longe. .

O Aragone/. quiz falar, jiias a lingua, sêcca, febril, não se movia.


Aterra\'a-o o ruido da própria respiração!
Estaria também possesso? Teria já no peito, a apertar-lhe o coração,
as garras do \'ampiro:
Sacudiu a porta, que clle próprio fechara ao entrar, e a porta conti-
nuou resistindo. Roçou-se então pela parede e, alcançando a adufa, abriua.
Era noite e o luar começava a erguer-se. Fora um silencio majestoso:

apenas ramalha\am as oliveiras.

Como duas grandes estrcllas, os olhos de Dcborah continua\am scin-


tillando. .

— 1^' preciso acabar com isto, pensou elle ; terrores pueris são a ver-
gonha da minha raça!
\\ limpou com a manga do habito o suor que lhe corria na fronte.
Encheu-se de coragem e, com voz trémula, dirigiu-se áquelle extraor

dinario espectro:
— Deborah, não tem medo de mim?
Não obteve resposta; d pobre louca \'oara o espirito por momentos,
para as afastadas regiões dos sonhos, e repetia baixinho os nomes do pae
e da irmã. .

O frade avançou para ella e agitou-lhe o corpo, segurando-lhe os pulsos.


Pareceu-lhe que tocara n'um cadáver . .

De repente, teve uma idca, e, bruscamente, procurou no cinto o esty-


lete, seu companheiro inseparável ; recuou dois passos, e exclamou em voz
alta, para afastar terrores
— Se o espirito mau se apoderou do teu corpo, se a tua alma é presa
do inferno, quero rasgar esse covil da traição, e que Satanaz venha ás
mãos commigo!
E ergueu a arma com mo\imento de gladiador, em combate com as..

feras.
! : . -

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

entrava pela adufa.


punhal não brilhou á luz do cio que
.

O
.

dos seus crimes; era o crucifixo do seu mester.


Não era lamina
e outro da paz
Os companheiros, svmbolos-um da guerra
dois

dormiam sempre juntos a cintura do frade, mas a turbação e o medo


enganasse, accordando o Amor em vez do
Od.o.
fizeram que o bandido se
sanguinários, o punhal estava tinto de
sangue
-Cruzes ambos, e ambos
sangue de Jesus Chnsto! Um repre-
dos christãos novos, o crucifixo do
o perdão; aquelle v,v>a para atra-
sentava o crime, o outro representava
este para os converter e dulcificar! Na cruz do punhal
vessar corações,
brilhava a Impiedade no crucifixo a Fé!
;
Ambos alfaias para uso dos ho-
de
„iens- sagrada uma na morte de Jesus, temperada a outra na traição
Judas
primeiramente desarmado,
O Aragonez, ao notar o engano, julgou-se
se uma luz brilhante lhe tivesse
iUuminado o pensa-
c, logo depois, como
mento, julgou-se invencível I

_0 inferno é incompatível com o calvário. . . pensou elle.

confiado, da louca
O Aragonez approximou-se então, mais calmo e
vagamente, e chegou-lhe aos lábios a cruz mar-
que o fitava absorta,
e amarellada imagem de
chetada a que estava presa uma pequena
Christo.
Dehorah o seu olhar, de vago e rutilante, tornou-se
fitou a relíquia, e

lixo, sereno e triste! E, depois


d'alguns momentos de contemplação, em

que' as lagrimas lhe cahiram dos olhos, deslizando pelas faces como pela

imagem do Martyr escorregavam as gòttas de sangue, lançou-se sobre o

leito a soluçar, segurando e beijando o Redemptor.


— Estou salvo! exclamou o Aragonez. Deborah é minha! A cruz me
defendeu do inferno, e o punhal me defenderá dos homens.
a arrifana
E, depois, dirigindo-se á lua, cujo disco prateado illuminava
e se projectava sobre o leito de Deborah
— Obrigado, ó astro, pelo teu auxilio bemdito! Tu serás o
tacho

tVeste hymeneu, que não chegam até aqui os clarões piedosos da ci-

dade.
Voltando, foi-se ajoelhar junto do leito.

— Beija, Deborah, beija o Deus da minha e da tua fé, que não tenho

ciúmes do Céo, que me protege . . .

E, sempre de joelhos, foi coUando novamente o crucifixo aos lábios da


doente, dizendo-lhe baixinho:
— Se já me ouves, se já me comprehendes, screna-me o coração, que

me encheste de terror, aqucce-me o sangue que me gelaste . .


! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3;

E, assim se passaram alguns momentos: Deborah soluçando, o frade


de joelhos junto do leito, e a lua a illuminar o quarto. . .

Que monstruosa noite aquella I Kmquanto o céo esplendia com todas


as galas duma noite serena e clara de primavera, na terra, os homens
sopravam o mais hediondo vendaval. Do grande valle de Lisboa subiam
ondas de gemidos e columnas de fumo ! Lisboa convertera-se n'um grande
circo de feras. Apar das luctas ferozes travadas nas praças públicas, que
de villanias e profanações se praticavam nos recantos da capital, nos bor-
deis e alcouces, nas tavolagens e nas egrejas ! A estas se acolhiam famí-
lias, batidas em todos os bairros e perseguidas até junto dos altares, e ahi
mesmo, como nos velhos tempos pagãos, se sacrificava ao ódio e ao amori
O cannibalismo organisara as suas secções- —o saque apresentava a sua
tríplice ph\sionomia -— roubava-se cumulativamente, e em toda a parte
—o ouro, a vida e a virgindade.
O zelo da ignorância e do fanatismo deu bodo repellente a todos os
peccados mortaes.
.\ssociaram-se no quinhão a soberba c a inveja, premiou-se a preguiça
com a parte da axarcza. e a gula dos liimintos entendeu-se com a luxuria
dos viciosos ; a ira a todos estes animou e impelliu ! D'esta revolta contra
a moi"al religiosa resultou o tripudio de todos os crimes que podem enxo-
valhar uma civilisação! O homicídio, o roubo e o estupro tiveram o logar
mais distincto n'essa saturnal catholica em que os nobres, os padres e a

escoria social brindaram á pureza da Fú e á salvação da Kgreja em liba-

ções de sangue, de lagrimas e de beijos


Já vimos os mortos, já vimos os enluctados ; calculamos a rapina feita

por bandos de miseráveis nas arcas das famílias — assaltos ás portas e ja-

nellas, o despojar dos cadáveres, desde os hábitos arrancados aos peda-


ços, até os dedos mutilados com os anneis, e pulsos guarnecidos de bra-
celetes em pedrarias : as arrecadas perseguidas por pedaços de orelhas
femininas, a roupa dos leitos, os enxovaes pobresinhos, as imagens gar-
ridas dos pequenos' oratórios, os collares quebrados nos collos mais gen-
tis, as baixellas massiças dos melhores lavores ; emlim a rapina voraz
feita por milhares de miseráveis, rotos, famintos, descalços
Isto é tudo ? Não ; falta o peor, a que a historia faz sempre a menor
MYSTICRIOS DA INilUISlCÁo. — VOI.. 1. FOL. 5.
.

38 MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO

referencia, e que constitue o maior ultrage d'uma sedição de ha quatro


séculos : a violação das mulheres.
O caso do Aragone/ não c um caso singular — c exemplar d uma es-

pécie.
Não quererá a Lua, que assistiu á profanação, contar o que viu. E até

provável que ella, de espanto e horror, velasse o rosto pallido com algu-

mas nuxens, que andavam rondando no lirmamento. Devemos, porém,


presumir o que é tão difHcil de narrar.
De todos os crimes brutaes e selvagens é este do Aragoncz o mais sel-

vagem e brutal.

O que são, comparados com esta aflronta, o assassínio e o roubo :

Morrer assassinado por um bandido é como morrer na guerra perder ;

o ouro e as alfaias é valorisar, perante a nossa resignação e consciência,


os outros bens da terra : mas ser mulher, e fraca, e indefesa, e ter de sa-
crificar a uma fera indomável, insolente, feia e suja, o pudor, o orgulho, a

castidade : ! . .

Violentar uma virgem I ?

Sahir do berço tão pura como a mãe de Deus, e guardar essa pureza
com recato e zelo, através da infância e da adolescência. . . sentir a alvo-
rada do amor guardado e defendido, pelo pudor, que é a sentinella natu-
ral, e pela educação, que é a sentinella da sociedade... ser virgem no
corpo c no espirito — no corpo convertido em sacrário, no espirito, en-
volto na confiança innocente. . . não poder aifrontar um olhar cubiçoso, sem
que os olhos se cerrem ou se desviem . . . sonhar mvsterios que a rubori-
sam quando desperta, como se os próprios sonhos fossem uma ameaça á
honestidade... pedir aos linhos do enxoval e aoS estofos dos vestidos a
defesa das próprias graças, o segredo dos próprios encantos. . .

A virgindade ! Porque se não pensa na grandeza destes vandalicos at-

tentados que a Historia regista, aos milhares, nos horrores e cobardias


da guerra que ha quatro séculos a realeza e os padres inflammaram I

A pureza é um thesouro que a Providencia defende nas tre\as da noite


c no silencio da alcova !

O instincto da pureza faz contráctis os corpos virginaes. Dormindo, as


virgens são como as estatuas antigas, ás quaes uma nesga de lençol era
bastante para que não triumphasse a nudez. Move-lhe a graça os contor-
nos com arte e recato, que, se um olhar surprehender uma sombra do
collo ou um pedacito do pé, logo, com a sensibilidade das pálpebras, o pé
se retrae e as mãos se cruzam sobre as curvas O pudor das vir-
do seio !

gens é aquella força vibratil que esconde Suzana entre as plantas d'um
lago e arremessa ás aguas as nymphas de Camões !
!

iMYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3o

O pudor é o pagem cioso da viriíindade, que do próprio olhar se ar-


receia e envergonha, e que ate das imagens dum espelho teme o descré-
dito e a lisonja.

E trágico, sim, que se apunhale uina mulher, e que, viva ou niort;i,

se lance o seu corpo delicado sobre o bi-azeiro ardente : mas o lei-ro náo
poilue, mas o fogo não insulta ! . . .

j\las, ter uma mulher assim gLiardados os thesouros do corpo e da


alma, e, de repente, sentir-se enlaçar pelos braços athlcticos duma lera,

com formas de homem, desconhecido, patibular, baixa a condição e baixo

o gesto, olhos de vicioso, bòcca de ébrio, faminto de amor, sensual e bru-


tal, que ruge de prazer e blasphema na victor^a : . . .

Ter medo, ter pejo, ter nojo, e não saber defender-se com os pés, com
as mãos, com os dentes!. .. E presa, e maguada, e afflicta, pedindo soc-
corro que não vem, pedindo piedade que não se conhece, ora gritando com
\igor, ora chorando com desalento, emquanto o verdugo, que parece que-
rer matal-a, lhe diz palavras roucas, que são insultos, e a criva de beijos,

que são baba. . . Antes a morte a punhal, antes os funeraes na fogueira I

K houve d'isso aos milhares em Lisboa n'essas horas, em que el-rei

D. Manuel, no alcaçar de A\i/., se defendia da peste e beija\'a docemente


a formosa rainha sua esposa I

Assistiram pães amantíssimos, leridos ou pixsos, ao sacrifício de suas


lilhas ! assistiram á profanação de suas mulheres muitos maridos, a quem.
para cúmulo de barbaridade, não fizeram a graça de assassinar pri-

meiro I

Não precisamos de que c Céo nos conte o que se passou, naquclla


noite catholica, na pequena casa da arrifana da Graça ; demais o sabemos
pelo que se passou noutras casas, e d outios bandidos que andaram a dis-
tribuir, sem hesitações e sem medo, a miséria e a \ergonha.
Ao romper do dia, quando o Aragonez sahiu da casa misteriosa,
encontrou junto do portão o seu velho e servil companheiro Ruy ^'as-

ques.
— Kntão, ainda agora, frei Bernardo :

— Cala-te, miserável, não pronuncies o meu nome...


— Melhor cara tenha o dia de hoje ! xMais razão tinha o meu cavallo

para se zangar commigo, e acolheu-me com excellente agrado. Pobre ani-

mal, esquecido aqui toda a noite, quando la por baixo havia tanto que ver
e que gosar
—O movimento segue :

— Segue, mas os ventos vão rondando para outro quadrante.


— Álvaro de Castro fez alguma tentativa ?
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Começou a mexer-se um pouco e parece que mandou vir gente de


Santarém.
—A marinhagem continua a auxiliar-nos :

— Qual I Depois da meia noite, a pouco e pouco, foram recolhendo aos


navios.
— Diabo, diabo; faz-nos falta o auxilio dessa gente.
— Alguns ficaram ainda ; são os mais espertos. Parecem resolvidos a
desertar, porque receiam castigos severos.
—E João Moucho : . •

— KssQ teve uma idéa ;


procurar o governador com a melhor gente
da Ribeira e guardal-o bem, para que elle se não perdesse.
— Teve a idéa, mas não a executou. Melhor fora que o fizesse antes

del-rei chegar a Setúbal.


— Houve um pequeno inconveniente... uma insignificância... Foi
preso á entrada do mosteiro, por ordem de D. Álvaro. . . Mas descance,
que elle é discreto.

— Para que vieste aqui ?

— Para lhe dar um conselho.


— Não preciso dos teus conselhos.
— Olhe, não se arrependa. .

— Bem, dize.
— Era conveniente que sahisse de Lisboa o mais depressa possível.
Observei na cidade, esta noite, alguma coisa que não deve tranquillisal-o.
—-Depressa. . .

— Mestre Ignacio e Pedro Soares foram vistos a entrar para casa do


regedor Ayres da Silva.
— Uma traição ?

— Quem sabe ! Ignacio vê longe e deve ter adivinhado que António


Carneiro não é homem para deixar de aconselhar el-rei a castigar e re-
primir. Ora, Ignacio andou sempre jogando por detraz da cortina. Se elle

ajudar a repressão, poderá salvar-se.


— Não, disse o frade, depois de pensar um momento, Pedro Soares
procura Deborah, e Ignacio finge auxilial-o nas pesquisas.
— K se Pedro a descobre ?

— Por que perguntas isso :

— Porque, quando ha pouco subia a ladeira, vi, n uma sombra do pos-


tigo da cerca, um vulto, que me pareceu o d'elle.
— Alguma visita á alcáçova. Depois descerá, perdendo-nos de vista . .

Ruv Vasques ia a fazer uma objecção, mas calou-se e olhou espantado


para cima do muro do lado occidental da arrifana.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Repara, frei Bernai^do, o que é aquillo r

O frade empallideceu.
— E gente armada.
— De chuços ?

— Não, disse Bernardo saltando rápido para o cavallo, são lanças 1...
— Que tentaes fazer, frei Bernardo? As lanças que enxergues rodeiam
o muro da arrifana, e estão perfeitamente dispostas para o assalto. Aquella
porta, por onde pretendeis sahir, vae ficar ouriçada de ferro inimigo.
— Conheço a situação, mas não sou homem para hesitações. Quando
o cerco é apertado, torna-se inevitável a sortida. Como estamos sendo vi-

giados, entra em casa, apodera-te de Deborah, e foge com ella pelo cami-
nho da mina.
Entre a gente d'armas não ha cavalleiros, e o teu baio não é christão
novo; sabe cumprir o seu dever.
— E a mina estiver fechada para
se o lado dos trigaes :

— Espera que esta gente afaste se c volta pelo mesmo caminho. .

— Que Deus vos acompanhe, disse Ruy, e fazendo o signal da cruz,


escoou-se por entre o arvoredo.
— Que Deus oli o Diabo me acompanhem! e, esticando a rédea, o
Irade enterrou as rosetas douradas nos ilhaes do animal.
O cavallo deu um salto, e logo, em vez de abrir o galope, empinou-se
como com uma barreira imprevista e insuperável.
se tivesse topado

O portão fechara-se com um troço de gente, revestida de armaduras


reluzentes e picos ameaçadores como linguas de vibora.
— Que c lá issor perguntou o Aragonez. .lá o serviço de Deus c em-
baraçado por guerreiros, sem commando de capitães e adais -

— Sua alteza assim o quer, não para vos embaraçar, mas para vos
defender, respondeu um dos guerreiros, approximando-se do frade e pos-

tando-se como se estivesse na presença d'um superior.


— Não me lisonjeia a intenção de D. Álvaro, e não pode el-rei ter

dado cargo especial a seus legados de velar por minha pessoa, quando
\'ou acolher-me ao mosteiro da minha ordem.. .

— Assim será, acudiu, sempre com respeito, o inesperado interlo-


cutor. D. Álvaro de Castro julga do seu mister, cmquanto não chegam
novas e mandados del-rei, ou do seu secretario, começar uma devassa
sobre os feitos dcxd<)i)\iiitcs de velhos e novos christáos. . .

— Trazeis então alçada para me prender em guisa de mercê real?!


Está bem; aonde me levaes ? a S. Domingos?
— Não, se me permittirdes; a casa de D. Álvaro, que deseja, por
interesse próprio, e em serviço d"cl-rei, preparar-se para fazer justiça.
. . :

MYSTERIOS DA /NQUISIÇAO

— Justiça tem feito o povo, que reclama da Coroa a extincção da


heresia.
— Direis isso ao governador, que c lettrado que bonda para vos
acudir ao conceito.
— Segui-me, então, deixae passar o meu cavallo.
e
— A minha gente está fatigada, anda mal devagar... e alem disso,
o vosso cavallo pode ser menos respeitoso que vós pela alçada do gover-
nador. .

O frade, n'um brusco movimento, apeou-se.


— Quereis então conduzir-me a pé, por essas viellas, exposto ao sar-
casmo dos intieis ?

— Quem pensa em tal ! exclamou o guerreiro.


E depois, voltando-se para a sua gente
— Tragam a liteira.
A liteira tomou o logar da soldadesca, junto ao portão, e Bernardo
encaminhou-se para como quem tem pressa de acabar o episodio.
ella,

— Um momento mais, D. líernardo. Quando vos apeastes, vi luzir uma


cruz no vosso cinto. Se c um crucitixo, guardae-o, que a vós, e não a mim.
pertence de direito; se é um punhal, entregae-m'o. Seria iniuria a valentia
d esta gente contiar-vos a defesa da vossa vida.
Bernardo entregou o punhal.
— Agora, podeis entrar, e confiae em nós. Sois um deposito sagrado.
O padre subiu para a liteira, que era das mais commodas e aristocrá-
ticas e á qual estavam atrelados dois machos, pequenos e muito eguaes.
— ^ amos quarenta homens ladeiem o coche, e o resto Hque ás ordens
;

de Pêro Esteves, que dará busca a todos os recantos da casa e da arri-


fana.

Os quarenta guerreiros indicados formaram alas, com as lanças ao


hombro, gravemente, como os alabardeiros da Alcáçova faziam a sentinella
nos aposentos reaes, e o préstito poz-sea caminho.
O Aragonez, na incerteza da sorte que o esperava, não desalentara
ainda. Achava possível que Álvaro de Castro quizesse apenas interrogal-o.
Por mui ligeiras que tivessem sido as communicações feitas a el-rei.
as ordens de sua alteza só poderiam chegar com a demora de alguns dias.
Alem de que, a hesitação ou cobardia dos funccionarios aconselhavam-nos
a defender a revolta popular e a aggravar a
responsabilidade dos christuos
novos . .

Era isso. D. Álvaro precisava d'elle,


ou para se informar de minúcias,
ou para o ajudar a restabelecer a ordem.
Para que eram tantos sustos? A inMuencia dos
frades de S. Domingos
Agora, podeis entrar, e conliae cm nós
:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO a'í

era invencível... Provavelnnente el-rei aproveitaria aquelle sinistro acon-


tecimento para se entender com Roma e estabelecer a Inquisição.

Assim foi caminhando, atTeiçoando o espirito ás melhores esperanças.


Afinal a liteira estava já perto da porta do governador.
Ahi a multidão em altos gritos pedia ao magistrado civil que acudisse
á cidade.
Populares armados, mulheres desvairadas, creanças em choros, todos,
erguendo os braços para as adulas do palácio, pediam justiça, que n aquelle
inomento já não podia ser mais que uma \ingança parcial.
Kntre a turba que assim clamava, havia gente que na véspera andara
auxiliando a pilhagem e os morticínios I Muitas d'aquellas mãos supplices
estavam tintas de sangue... Os cobardes que tinham fugido espavoridos
deante da sedição, que uma resistência opportuna e bem dirigida teria

bem cedo inutílísado. estavam alli para olVerecer o seu concurso e a sua
dedicação!
\ creadagem das casas mais nobres, armada por seus amos, organí-
sava troços de guerreiros e envia\ a ao go\ ernador as suas improvisadas
bandeiras. Os operários da Ribeira, commandados por seus mestres, e
armados de ferramentas de seus olficios, acclamavam D. Manuel e \ inham
pedir barcos que os transportassem á outra margem do Tejo para irem
em busca do rei.

A casa do go\ernadi>r, poix-m, conser\ a\a-se indilíercnte a todos estes


clamores.
Quando a liteira e a guarda appareceram do lado da Sé. a multidão
irrompeu em applausos e correu a verificar o acontecimento impre\ isto.

Imaginou então o povo, que chegara el-rei, e que a elle ia dever-se o


termo de tão angustiosas scenas.
Estrugiram no ar as mais enthusiasticas acclamações.
Ao chegar a liteira, que a custo pudera caminhar, ao portal do gover-
nador, uma grande massa de povo cahiu de chofre sobre ella.

As lanças rodearam-n a, e a turba afastou-se por um momento. Abriu-se


então a portinhola, e o Aragonez, pallido, cheio de cólera e de medo, foi

arremessado para o )\\\'bi»K'nlo com tal pressa e violência, que teria


cabido sobre o lagedo, se o não acolhe, nos seus braços possantes, A\'res
da Silva, o regedor, que na véspera, ao começar o motim, fugira acobar-
dado. A porta cerrou-se com estrondo, a força armada postou-se em alti-

tude aggressiva na frente d'ella, e a multidão, n"um grito tão unisono


como o que até alli échoara sinistramente aos ouvidos de mouros e judeus,

clamou
— A' morte, á morte! ao íogo o assassino!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Abriu-se então uma das adufas do andar nobre e Avres da Silva, de-
bruçando-se:
— Povo de Lisboa! Tranquillisae-vos. Vae começar a justiça d'el-reil...
Acclamando novamente D. .Manuel, a multidão dispersou, justificando
com aquella esperança o cançaço e o desânimo dos algozes e das victi-
mas
Que terrivel mysterio c a alma popular Como ella se iníiamma, e I

como ella se gelai Como ella nega num momento factos que vê, e acre-
dita e acceita, em seguida, promessas que mentem 1

Para se avaliar a
promptidão das providencias adoptadas pela Coroa,
bastará citar, que as cartas régias, que a ellas se referem, teem
a data de
24 e 27 d'abnl de i5o6, o que se pode verificar consultando o Appeiuiix
a alçada do Porto; pela sedição de 1757. São ambas datadas
de Évora,
isto é, foram escriptas quando el-rei vinha de .Aviz para Setúbal. A ma- . .

tança foi a i() dabril; assim o di/ Christovam Acenheiro e a Hisloria c


Meiíionas da Academia das Sciencias. N'este ponto fica vencido Faria e
Sousa.
Houve, pois, um espaço de mais de oito dias, contando com o tran-
sito de Évora a Lisboa, em que esta cidade esteve sem governo, á mercê
da bandidagem desenfreada.
Como se pode, pois, acreditar que as auctoridades não tivessem ado-
'
ptado algumas providencias ':

E' certo que a negligencia d^ellas foi castigada. .Mas, que castigo me-
recia o afovlwiado rei que, sendo absoluto, tão
mal sabia centralisar os
poderes, ou tão mal os delegava, quando os seus
interesses o afastavam
da corte, onde as suas fanáticas ordenações haviam
de fomentar taes
crimes e taes revoltas? E, comtudo, o povo acclamava-o,
porque el-rei ia
fazer justiça d"alli a oito dias, mandando encerrar os padres facínoras na
torre de .\lconchel.
Os terrores esmoreceram, quando o clero e a plebe se cancaram da
tacanha, e o vento foi espalhando, pelas ruas e pelo ar, as cinzas das fo-
gueiras. A Inquisição estava estabelecida no animo publico, e el-rei D. Ma-
nuel, que legou a D. João III as responsabilidades de tão negra instituição,
pode bem honrar a sua memoria com o titulo de Pnmcn-o Inauhidor de
Portuixal.
El-rei D. Manuel tinha então 37 annos de
edade e já contava 1 1 de
reinado. Estava na força da vida devia ter a experiência necessária para
e-

vivercom os homens. Nem esse vigor phvsico, nem essa vida de


governo,
davam demasiado vigor ao seu animo, nem prompta resolução aos seus
embaraços.
r

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

A sua boa estrella irradiara sempre, sobre a coroa que elle recebera
das mãos de seu cunhado, a luz que mais a fazia brilhar e resplandecer,

e, a sorrir no horizonte do seu futuro, lhe indicava o caminho mais suave.


Assim como a fortuna vária para elle fora sempre bondosa e con-

stante, assim se lhe mantivera timido e dócil o seu caracter subalterno. O


seu espirito suggestionavel poderia ter sido o seu descrédito perante a
Historia, se as mais brandas influencias e os mais sábios conselhos não
o tivessem carinhosamente rodeado. Assim como em creança, por timidez
e fraqueza, beijara, reverente, a mão ensanguentada de D. João II, sem
o respeito e o amor que deveria merecer-lhe a memoria do duque de
Vizeu, seu irmão, assim, homem e rei, obedeceria aos mais pérfidos e aos

mais justos conselhos.


Afortunado foi, porém, ao escolher para seu amigo e confidente, para
seu inspirador e ministro, um homem, que se chamou António Carneiro.
Que nome e que caracter tão modestos teve este \assallo de atiladas
vistas e leal dedicação!

D. Manuel era apenas o braço executor da vontade, humildemente


insinuada, do prudente e atilado escri\ão da puridade.
Cançam-se os historiadores a fazer a historia da nossa terra pela car-
tilha de nomes dos principaes reinantes, c, deixam, quasi no olvido, esses
nomes de modesta gente, que despida de sccptro e de coroa, soube en-
caminhar os sobei^anos de sangue mais nobre, mas de cérebro mais im-
perfeito, pelo melhor e mais patriótico caminho.
Quem fala no modesto estadista que passou a \ida. na snmbra, a ac-

cender a aureola do grande rei ?

Perguntae, nas escholas, se a mocidade conhece esse rei. que se cha-


mou António Carneiro
Nem se lhe conhece a origem, nem se lhe assignala a sepultura. O
seu nome é apenas uma palavra na chronica. Os mais estudiosos desco-
brem-no e logo o esquecem. Era elle filho de nobre, tinha as energias da
mocidade ou a experiência da velhice? Onde adquiriu elle tanta sciencia

de governo e tanta arte de vencer?


Era elle que agitava na cabeça de D. Manuel a coroa de um grande
império; era a mão d'elle que segurava o sceptro na mão do principe que
lembra o apogeu das glorias portuguezas!
Era um valido elevado á confiança do throno, por arbítrio real ? Era
fidalgo da antiga corte a quem D. .loão II incumbira a guarda e a edu-
cação do joven duque de lieja? .\lgum guerreiro distincto em guerras
africanas e orientaes, que tivesse por premio de seus feitos a privança
nos alcaçares e alcáçovas?
MYSTEUIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI-. I. FOL. 6.
.

4G MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

"\'eiu dclle Pêro, conde de Idanha, que não logrou corrigir o fanatismo
brutal do yq\ piedoso; mas elle, omestre e oguia áo grande ve\, donde veiu?

Pertencia d corte, e cingia uma espada, ou passava despercebido entre


a creadagem cortezã? Limitava-se a ensinar administração a um rei abso-
luto,cujo nome a Europa respeitava e a AíVica, e Ásia e a Amciica te-
miam, ou accumulava tão elevadas funcções, com as de algum ataviada
hcraldo, passavante ou arauto? Guiava elle apenas a mão de rei que fir-

mava ordenações que levavam o Gama á índia, Cabral á Terra Santa,


Alíonso de Albuquerque a Ormuz e Malaca, os Cortes Reaes á Terra
Nova? Ou, quando el-rei, no orgulho imbecil pela elegância do seu talhe,

se demorava ao espelho, era elle quem lhe assentava a coifa de ouro, e


lhe aconchegava o pellote ou a chamarrar

Era António Carneiro o servo, o secretario, o confidente de el-rei, que


sempre aconselhava e vigiava, pensando, ouvindo, como se o rei, na sua
immensa grandeza, no seu absoluto poder, tivesse adquirido um cérebro
a mais para as responsabilidades do seu cargo.
António Carneiro pensava por conta de D. Manuel, e rexcUna em
voz baixa o seu pensamento.
D. Manuel interrogava-o com a majestade de um príncipe, com aquclla
majestade com que um tangedor de
satisfeita, viola acredita que é dos
próprios dedos que vem a vibração das cordas ! . .

E, António Carneiro, como se fosse apenas o fiel depositário das


idéas de seu amo, dizia-lhe o que pensava, como se ti\esse de entregar
a espada que abrilhantara com um suadeiro. ou largar sobre a alcatifa a
cauda do manto que regaçaral
O que teria sido d'esses reis magnificentes dos baralhos dvmnasticos
de Portugal, se outras mãos e outras cabeças não os tivessem guiado?
Em Setúbal, n"aquella alcáçova, onde a justiça de D. João II condem-
nara e executara uma conspiração contra a sua auctoridade e poder. n"uma
saia contigua áquclla que fora tribunal e patíbulo, passeava el-rei. que
viera apressado de Aviz, e que precisava de pensar no castigo merecido
pela cidade de Lisboa, que elle próprio desvairara, com a sua politica de
obrigatória apostasia e de obrigatório exilio dos perseguidos hebreus.
Nos momentos solennes, el-rei tinha phrases e gestos varonis e, pas-
seando no salão, ia interrogando António Carneiro, como se estivesse só-
e pensasse em voz alta.

— Raça de bandidos, a qiicm a peste não exterminou de todo para


que ainda me irritem com seus desmandos e revolta! l 'ma pagina cheia
de lama e sangue nos meus pergaminhos de glorias I Roma amanhã mal
dirá a minha impre\idencia, porque dei ensejo ao descrédito do clero I
:

MISTÉRIOS DA INQUISIÇÃO

Se não tivera o dever de poupar minha \ ida e saúde, que muito me


resta ainda fa/er para gloria do meu nome, eu propiMo iria hoje atravessar
o Tejo para enforcar nos pelouriniios da cidade, toda a cáfila de imbecis

c de súbditos rebeldes. Já que não posso i-eparar o damno, hei de ao


menos ser implacável no castigo!
António Carneiro amo com os olhos e com os passos,
ia seguindo seu
como para lhe surprehenderuma pergunta.
D. Manuel, abhorrecendo-se com a reserva do seu ministro, resolveu-se
;i interrogal-o:
— Que dizem as ultimas noticias?
— Que Lisboa se arrepende, ou se cança ; isto é, que os desvarios se

acalmam, e as auctoridadcs rccobi'am animo.


— Recobram animo! recobram animo! Tenho soldados em todo o
mundo ; mantenho as conquistas com energia, subjugf) o gentio a l'en-o e

logo, e Lisboa, permitte-se intimidar a gente a quem incumbi defesa e


i'espeito. . .

Depois, como se ti\esse tido uma idéa genial


— Preciso, pelo menf)s, que morram cem pessoas, innocentes (.)u cul-

padas, das que commetteram crimes e das que não souberam punil-os. . .

— Por que dizeis cem, meu senhor ?

— Pouco mais ou menos. Digo cem. porque quero que trinta sejam
inulheres. . .

— Senhor, não alcanço...


— Depois comprehenderás. F. necessário um exemplo. Olha. .\ntonio
(>aiMneiro, \ou acabar com a Casa dos ^'inte e Quatro. Chamarei Lopn
d Abreu e \erás o que faço.
— Parece-me, senhor, que do acerto dos \()ssos primeii"os actos de\e
resultar a indispensável serenidade. Não tendes confiança no prioi' do Crato ?

— Sem dú\ida, ncllc e no barão, mas a minha inquietação não vem


do desastre que passou, mas da perda da minha traça contra mouros e

judeus. A guerra a cUes, quero eu fazer, que sou senhor e juiz do que ao
reino é mais propicio. Depois, nestes negocio.s de religião, apraz-me sem-
pi-e regrar meus actos pelos interesses da egreja e do Santo Padre. La-
vrarás uma carta régia mandando que a dcxassa seja enviada para K\oi\i.
ao provincial da Ordem de S. Domingos, afim de que elle proceda, com
rigor, e segundo os costumes, para com os frades qiie D. Aharo en\iai'

a presença delle.
— E, senhor, nada pensaes a respeito dos mosteiros ? Notae, senhor,
que. por mais errado que seja o caminho do povo. está provado, que os fra-

des abusam da sua inikiencia sobre elle. K' meu parecer, e, em \osso
.

48 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

caso, seria minha acção, que a devassa deveria começar pelos frades do-
minicos, decretando-se. desde já, a interdicção do templo. Vossa Alteza
com taes aíTcctos acolhe ao seio as viboras, que mordem no reino e na
Sania Sé. Podeis e deveis ouvir Pedro Correia, que é homem de bom
aviso e muito sabedor de factos e intenções. .

— Os frades que vieram a terreiro como bandidos, acudiu D. ^lanuel,

deverão ser punidos primeiramente. K" bom que se saiba que poucos são

os que servem com inépcia os interesses da Fé.


— K, que pensacs, .senhor, depois do castigo : Tencionaes deixar os
infiéis expostos ás fúrias populares : Reparae bem em que os judeos são
trabalhadores, submissos, ricos, com grande pendor para o commercio e
para a industria. Protegel-os não é heresia; é habilidade. K na prudência
dos actos está o vosso mérito real. Peço-vos, senhoi", que façaes justiça
castigando como vos aprouver, mas principalmente prevenindo novas se-

diçfles e \ crgonhas. Os christãos novos são obra vossa ; de\ eis conscrval-a
e defcndel-a. Acautelae essa gente de novas crueldades. Deveis lembrar-
vos dos pedidos que vos fez a fa\or desses desgraçados. Missa mãe c

minha senhora D. Beatriz, e vossas irmãs a rainha \iuva D. Leonor e a

duqueza de Bragança D. Izabel, também senhoras minhas.


— Bem de\ es lembrar-te de que a corrente da opinião nas maiores
naç<5es do mundo é contra a influencia dessa gente que não segue a reli-

gião de nossos maiores ; e que demais tenho afastado medidas que me


apontam meus amigos e alliados.
— Com que nada tendes perdido, senhor. Prouvera a Deus que a pro-
scripção dos infiéis não tivesse sido causa dos motins que ha\eis mister
de reprimir, disse, levemente embaraçado, o ministro.
— Não vão os tempos de feição para descurar os interesses catholicos.
.\ coroa de Castella vae-se affeiçoando á fronte dos reis de Portugal, e.

assim como é piaidente não contrariar Sua Santidade, não o é menos


acompanhar i>s po\(is da Peninsula nos seus protestos contra a here-
sia.

— No mister de corrigir nossas leis e de assegurar os nossos domínios


dalém mar, melhor se atllrmam vossas canceiras e proventos, senhor.
Não vedes mais queda e confiada a Hespanha com a santa inquisição,
que Portugal com o seu roteiro, de terra e mar. ao serviço da cruz?

Assim será; mas preciso de assegurar a paz do reino para vir ás
mãos com os poxos que \amos a conquistar e civilisar.
—A paz interna pode assegurar-se aquietando os espiritos e conci
liando raças e crenças; não apaixonando-as com tramas e ardis.
— Falas como um propheta. António Carneiro.
M>STERIOS DA 1NQUIS1(;A0 49

— Falo como um \assalIo, e]ue tem a \erdadc para sen amo como me-
lhor lisonja e mais leal submissão.
— A que tramas referes, que tanto abalam confundem:
te te e

— A's que se forjam com os thuribulos de S. Dominiios de outras e

ordens arteiras, para mudar em sacristia a aicáçoxa de D. Manuel...


— Os servidores da Kgreja são meus súbditos. Disponho no reino da
coroa demeu cunhado, que submetteu a nobreza, e da tiara de Júlio II

me vem poder para governar o clero. De taes poderes me trouxeram se-

gurança o bispo do Porto e o doutor Diogo Pacheco, que é gente sisuda


e cauta.
— F. meu de\er pre\enir-\os, senhor, que o altar, isto sem olVensa da
Fé catholica, vae tendo mais degraus cjue o throno de Vo.ssa Alteza...
Mór damno vem ao Kstado da intriga dos mosteiros, n"estes \ossos dias.
que do perdão com que fizestes mercê aos descendentes do duque de
Bragança.
— Inquietas-me sem razão. .Xntonio Carneiro.
— Raivas vezes tem disso quem tem por misiér prexenir seus amos e

senhores.
— Ias, pois, dizendo r . . .

— Que, visto pensardes em en\iai- no\a embaixada a Roma, bom será


que encarregueis Duarte Pacheco, que é bem falante e atilado, de apre-

sentar taes quei"ellas, ou receios, a Sua Santidade: ,íoão Sotil, apesar do


habito que \este, dai"ã po:' bons os meus assertos.
— Queres, então, que me vá a judaisar para \'illa Nova e \igie, com
má xontade, os servidores da Egreja ?

— Senhor, não é isso que aconselho, disse António Carneiro, animan-


do-se-lhe o tilhar. \'ae apenas passada uma década depois que defendes-
tes os lilhos de As vossas mãos, ainda mal segura\am as ix-deas
Isi-ael.

do governo, e já por magnânima inspiração li\ravam de ^•exações e ty-


lannias os, perseguidores do fallecido senhor D. .loão II. Deveis lembrar-
vos, senhor, que a gratidão os aplacou a ponto de se limarem por von-
tade e se christianisarem poi- devoção.
— P'oi essa piedade i'eal que lhes deu alentos para de novo se mal-
quistarem com a Kgreja e com o povo. ix-plicou vivamente o rei.

— Influencias que descem de S. Roque ao mosteiro do Rocio e põem


o reino numa conflagração permanente. Pela minha honra vos digo, se-
nhoi", que amaes o vosso povo. mas confiaes a pérfidos conselheiros o seu
corregimento e direcção. .\ revolta, que os mosteiros sopram agora contra
os filhos de Islam e de Israel, será soprada amanhã contra vossos direitos
c soberania.
: . . : . ?

5o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Senta-te e escixve, disse el-rei. com gesto resoluto.


António Carneiro obedeceu.
l/m pagem, n'este momento, annunciou
— D. Aharo de Castro, governador de Lisboa.
— Que ^enha depressa, disse D. Manuel.
D. Álvaro appareceu á porta do vasto salão, com a cabeça inclinada,
capuz de velludo preto na mão direita c a esquerda na cruz da espada.
— Que novas D. Álvaro
trazes, ?

— Senhor, a minha magua . .

— Falaremos depois do que menos interessa... As tuas maguas são


fructo do teu desleixo ou da tua fraqueza. . . Logo que eu faça a jornada
dEvora, fai^-te-hci mercê do governo da tua casa. . . Pareces-me mais af-

feito a esse que ao governo duma cidade.


— Senho)-, se permittis . .

— Permitto, sim. que me respondas... Chegou o prior do Crato


— Senhor, D. Diogo d'Almeida chegou a Lisboa, com um forte troço
de gente armada, e foi occupar as eminências da Alcáçova, com boas
guardas e atalaias até o Tejo, e D. Diogo Lobo. cgualmente apparelhado.
está a seu geito, junto do mosteiro do Carmo, alongando gente bastante
pelos Martyres c Ferregial até a Ribeira das Naus. Pelo norte da cidade
distribui a gente que me obedece.
— Dize A cidade liça entregue aos cuidados
antes que te obedecia...
d esses capitães. Elles teem instruccões minhas. Começaram as devas-
sas
— Senhor, as devassas tornam-se inúteis; os criminosos apontam-se a
dedo e ha mingua de" meirinhos e aguazis para deter tanta gente. .

— A' cidade applicarei castigo negando-lhe foros e prerogativas-, os


moi-adores que pai-ecam innocentes, ou sobre
quem é penoso fazer devassa,
poi-terem sido remissos ou negligentes, percam para nó.s a quinta parte
de todos os seus bens e fazendas, móveis e de raiz, e. das fazendas que
couberem a suas mulheres, também a quinta parte será confiscada para
a coroa d'estes reinos.

Depois, voltando-se para António Carneiro:


— ^'ae apontando os meus dizeres, que são minha \ontade e vou fazei"
cumprii-.

— Senhor, os capitães da revolta são muitos, e assas conhecidos —


disse António Carneiro. — Não é assim, D. Álvaro?
— Tenho em meu
poder os principaes, mas muitos mais ha que não
logrei alcançar, por serem
leigos ou frades de diversas ordens, e se terem
a tempo homisiado, respondeu o go\ernadoi-.
: . .

MYSTERIOS DA INÍJLISIÇAO

— Quero cem. pelo menos, não esquecendo as mulheres, pois sei que
também cilas enti^aram nos malefícios...
— Senhor, \im a vossos pés pedir-vos mercê de justiça para mim.
que me \\ desprovido de gente e de força para evitar tamanho damno.
— Descança; far-te-hci justiça, como é mister, logo que tenhaes cum-
prido as minhas ordens de hontem. .

— No cumpi;imento delias vim principalmente, e para Évora me en-


caminho com os mais criminosos. . . dois ou três seculares e os religiosos
João Moucho e Jicrnardo Aragonez.
— Api"a/.-me tão boa presa. Serão esses os primeiros a dar contas a
Deus da sua dbra diabólica. Dois frades de S. Domingos de\em estar ú
vontade na torre de .Mconchel... Mandarei que o bispo de Marrocos e
o cónego de E\ora. na praça, e em frente de Nossa Senhora, lhes ensi-
nem a morrer afogados e a deixarcm-se queimar em fogueiras eguaes ás
que accenderam em Lisboa. Apreciarão, assim, melhor a sua obra. Dos ou-
tros a forca será pixmio dos seus feitos. . . Podes retirar-te, D. .\l\aro. e
responde por ellcs a tua gente.

D. Aharo ixcuoli até a extremidade dn salão, e chegado alli. querendo


ainda fazer qualquer pedido, começou:
— Senhor, concedei-me:
Não acabou.
Kl-rei. com um gosto intimati\(). indicuu-lhe a porta.
O governador de Lisboa inclinou~se e sahiu.

Ficando s('), el-rei disse ao seci'etario:


— Lstás satisfeiui;

— Quasi tenho notas sobre o desfòi"ço, que pode ser uma razoável
\ingança e que ha de consolar as \ictimas, senhor.
— Achas poucii: I

— Acho muito poucii, sciihoi\ Os mourt)s e judeus morrerão xingados,


mas morrerão amanhã cheios de lucto. de fome, de escra\idão. de odiol
Os que escaparam das chammas cahirão desfallecidos sobre as cinzas. .

— Bem, senta-te e escreve ainda, c do que vou dictar fiirás carta de


minha chancella, logo que entendas que a justiça tem cabimento depois
da vingança.
K el-rei, de pé. a meio do salão. le\ antando a fronte e os olhos, como
quem busca idéas e foi-ma, passando uma das mãos pelas melenas acas-
tanhadas que lhe cahiam sobre os hombros. e a outra no punho garrido da
sua espada, começou pausadamente
— Kl-i"ei, desejando fazer mercê aos christãos no\os, promette que, se
bons quizerem ser e estar cm nossos i-einos. serão por taes conhecidos,
. . . . .

MYSTERI05 DA INQUISIÇÃO

bem tratados como a christãos velhos nossos naiuracs. c receberão de el-

rei mercês. Permitte-Ihes sahir livremente do reino e senhorios, para terra


de christãos, com suas mulheres, filhos e bens. e voltar para clle sem ne-

cessidade de licença real. .

Depois approximou-se do secretario, leu o que já estava escripto e con-


tinuou, passeando:
— Também poderão livremente vender seus bens de. raiz, etc. etc...
Escreve isso, como entenderes, António Carneiro... Mas que não falte

isto:

«... e lhe promettc não fazer mais, contra elles, algumas ordenações
como sobre gente distincta c apartada.»
Estás satisfeito agora?
— Senhor, por vós, por elles e por mim \os agradeço, disse António
Carneiro, beijando a mão del-rei.

E el-rei, intencionalmente:
— Por mim, em primeiro logar, que não esqueci o teu conselho e pre-
^enção. Não quero que o aliar fique mais alto que o throno. .

— Recommende Vossa Alteza a Duarte Galvão que não diga isto ao


Papa Júlio II. .

— Duarte Galvão, disse el-rci, ha de pregoar em Roma coisas bem


diíferentes, para que o Santo Padre auxilie meus propósitos nas conquis-
tas do Oriente.
— Sempre esse sonho enganador a desviar-vos o entendimento de ques-
tões próximas e asinhas ! Vede o reino, senhor, como vae trabalhado por
queixumes de toda a ordem ! E' já immenso o mundo por onde tendes de
espalhar vossos cuidados. Para que novas aventuras e contingências ?

— Quero aproveitar a obra grandiosa que veiu até mim, do esforço e

valimento do Mestre de Aviz. Já que a fortuna me sorri e o Céo me é

propicio, hei de accrescentar jóias á minha coroa e brilho á minha fé.

— Contaes então com Sua Santidade ?

—E com Deus. Duarte Galvão falará em Roma na necessidade de


congraçar as nações christianisadas para se oppôrem ás invasões maho-
metanas. .

— Comprchendo, disse gravemente António Carneiro, continua Vossa


Alteza a olhar com amor as agulhas e miranetes de Jerusalém . . Tenho
medo, senhor, que a temeridade nos roube o que o valor nos deu . .

— Sois um tonto, António Carneiro. A tão grandiosa empresa não iría-

mos sós, como fomos á Africa e á índia. .\ Por isso conto com o governo
de Roma, que, para salvação dos logarcs santos, reunirá os príncipes chris-
tãos em tão generoso empenho.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não me parece asado o momento, meu senhor, que as cortes catho-


licasandam em negócios de maior interesse e não querem pelejas com o
soldão do Egypto. Não vos entretém de mais o vosso Castello Real ?

— Pela minha fé que o hei de levar a cabo ! O seu vulto ha de ensom-


brar a ilha do Magadoiro e fechar de torres e ameias o estreito de Gi-
braltar. Se não puder arvorar o pendão das quinas sobre o tumulo de
Christo e arrasar para sempre as mesquitas musulmanas, fecharei o mar
onde os piratas dos Xeriphes nos teem embaraçado a construcção da for-

taleza.
— Abracaes o mundo num só olhar I Quantos pontos da terra \os fi-

carão occultos Acabae o vosso castello e deixae Jerusalém, que não po-
I

dereis ir lá com Diogo dAzambuja, para erguer novo forte, nem com Gar-
cia de Mello, que, apesar de capitão das galés do mar, não conhece os
segredos das terras do crescente.
E depois, com modo humilde :

— Mas, meu senhor, por que, em vez de deixar o espirito nesses de-
vaneios, não o concentraes nos graves problemas que tão de perto nos
ameaçam ? E' tão grande o nosso império d'além mar, que precisaes pen-
sar n'elle a todos os momentos.
— N"isso me occupo, como sabeis, e peKjs melhores capitães deste
século tenho espalhado meus cuidados.
— Grandes, sim, elles são e dos maiores, e, comtudo. nem sempre
teem logrado a vossa confiança e estima. Quanto mais alargardes as em-
presas, mais sentireis a mingua de bons capitães.
— E' rica esta nação de gente fera na guerra e sábia no amanho das
províncias, acudiu D. Manuel.
— E. comtudo, vossa alteza a vae gastando mais depi^essa do que
poderá desejar a \ossa brilhante esii-el!a. Digo-vos, senhor, que deveis
lirmai' as vossas conquistas e os vossos planos, como firmaes as \ ossas
fortalezas . .

— Tens razão para queixumes, tu, António Carneiro, que sempre ou-
viste minhas confidencias e a quem sempre attendo ralhos e conselhos ?

— Não falo por mim, senhor, que, acima de meus talentos, me tendes
dado estima e valimento; falo por Vasco da Gama, por Duarte Pacheco,
por Francisco d'Almeida, por Atfonso dWlbuquerque. gi^andes servidores
de Portugal e vossos, c de quem tantas \ezes vos tendes inju^•t.^mente
arreceado.
El-rci carregou o sobrViJho e puxou com fòi^ca as melenas, cujas ex-
tremidades mordeu . .

A referencia molcstou-o. sem dii\ida. Passado um momento, rccli-

«YSTEKIOS DA INQLISn;ÃO. — VOL. I. FOI.. '


. !

54 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

nou-se num 1'íirto cochim, e cruzando as pernas como quem recobra


seix-nidade :

— Deves saber. António Carneiro, que a todos, íradcs e capitães, es-

colho e pago para serviço da religião e do throno, mas nem a uns nem a
outros mantenho ou quero, quando a sua influencia e valor podem ser um
perigo para a integridade do meu poder. . . A esses que referiste não cas-

tiguei, providenciando; não reconduzi, por previdência. A força e o pres-

tigio deitam raizes onde se demoram... O meu sceptro está affeito a

sachar, por causa das raizes impróprias, a terra dos meus dominios. Cha-
mas a isto ingratidão ?

— Ingratidão, não ouso . . . um pouco de volubilidade no conceito e no


propósito . .

— E, apesar disso, meu bom escrivão de puridade, dizes e íazes de


mim tudo quanto queres
— Sempre? Quando protegeis os christãos novos, sim.
— E quando não ?

— Quando os expatriaes, ouvis mais altos conselhos. Então, acima do


escrivão de puridade, estão Fernando e Isabel, de Castella, ou o vosso
apaixonado amor por minha fallecida rainha e senhora, a formosa prin-
ceza Isabel, que Deus guarde.
D. Manuel levantou-se e passeou agitado.
Parou duas ou três vezes, como para responder, e de novo \olteou no
salão.

António Carneiro comprehendeu que se adeantara nos seus ralhos, e

que, apesar do trato fidalgo do soberano para com ellc, era possível al-

guma phrase desabrida.


— Acreditae, senhor, que se recordei esse pacto de Burgos e Medina,
não foi para avivar pesares do coração do homem, mas os compromissos
acceitos pelo rei, apressou-se a dizer o secretario de estado.
— E' a segunda vez, disse el-rei, que me recordas a independência com
que cu resisti ao cardeal D. Jorge da Costa e confiei a resolução que vi-

nha do meu amor a uma dama e ao meu paiz, á dedicação e á estima de

D. Álvaro de Bragança. Cedi aos reis de Castella e persegui mouros e ju-


deus. . . Não foi d'esse parecer nem o povo nem o conselho que ouvi. Que
importa isso ? ahi tens agora esse povo, a quem contrariei, fazendo mais
que expatriar infiéis, matando-os e queimando-os, contra minha vontade
e ordenações.
— Deixe vossa alteza ser vário o povo; é assim de sua condição e in-

experiência; aos reis cumpre governar com firmeza e egualdade. Quando


houver noticia de que Lisboa se aquietou, deveis, mais que nunca, cuidar
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 53

• em Lisboa. Em poucos annfts duas vezes o povo se revoltou contra a au-

ctoridadc dos seus soberanos. Isto não e de bom agouro.


— Queres aconselhar-me esmagar a a capital ?

— Não; quero lembrar-vos que cidade tem razões para estar a descoii-

tente, e até irritada. De lá íugiu a corte, e a gente rica se abalou também


para diversos logares do reino, enfraquecendo o ti^abalho e o commercií).
AiVrontando a peste, que alastra nas casas e hospitaes, estão apenas os
miseráveis que não podem emigrar. A fome é cruel e incessante; foram
roubados os celeiros, e os comestíveis mais necessários são guardados pela
usura nas galés dos ancoradouros. A gente d'armas, que foi a castigal-a e

defendel-a, tem privilégios razoáveis nas ucharias da classe média e nas


boticas da rua Nova. ,Iunte-se a isto, senhor, os resultados dos motins, c
poderá \'ossa alteza calcular que terríveis desesperos alli estão minando a

moral e a religião.

— Pensemos primeií^amente na justiça a applicar... disse o príncipe.


— Duas palavras determinam justiça — salvação so se consegue com
muito trabalho, e zelo e dinheiro. Senhor, quereis pensar, resolver ? ser-

vir o throno e a fé r Deixae o sonho de .Jerusalém e as correrias intermi-

náveis de Marrocos, e applicae \()ssos talentos e poderes á sahação da


cidade.
De novo se abriu a porta do salão, e um pagem apresentou a el-rei um
r()lo de pergaminho, sobre uma salva de custosos lavores.
— Lè, António Carneii"o, e, se \'òr coisa de pouca monta, i^esponde
como se eu fòi'a ouxido.

l-^l-rei ia relirar-se. .

— Mais um momento, senhor; é uma missiva em que o corregedor de


Lisboa, cedendo a rogos de gente grada e com auctorisação do prior do
Crato, me en\ia e recommenda Lim moço ca\alleiro de nome Ru\- \'as-
ques.
— Ruy Vasques : disse D. Manuel; não me é extranho esse homem.
I^odeis recebel-o. Se trouxer novas de valor, procui-ae-me nos meus apo-
sentos, que niLiito me apraz saber como os meus vassallos emendam seus
damnos e malefícios.

Pela porta opposta aquella por onde saliiu D. AUinuel. entrou Ru\' Vas-
ques, com passo largo e rápido, e, depois de ler percorrido com os olhos
todo o salão, encaminhoLi-se para o ministro de D. Manuel e cumprimen-
tou-') com um mo\ imento de cabeça.
\i\()

Ru\ \ mas no rosto lia-sc-lhe, ora


inha pallido, um reflexo de alegria
intima, oia uma sombra de profunda angustia.
Amónio Carneiro acolheu-o benevcjlaniente :
. . . : .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Sois vós Ruv Vasques, que esta missiva me recommenda ?

— Sou. E vós o honrado secretario meu senhor d'el-rei, ?

— Dizei a que vindes, se a canceira do caminho vos embaraça a ex-


c,

posição, descançae n esse tamborete, emquanto espero.


— Aqui, fatigado ou folgado, pagem ou fidalgo, christão ou judeu...
aqui, na vossa presença... sob o tecto da casa del-rei, posso faiar sem-
pre.
— Falae, então.
— uma súpplica
¥. . .

— Dizei, sem detença.


— Preciso da justiça dei-rci.
— Pedis pouco. .

— Peço tudo — a vida, o amor a honra


: e I

— Parece-me que a tudo isso tendes direito.

— Senhor, não me conheceis, de mim pouco diz e a missiva que trou-

xe. Sou Ruy Vasques, filho dalguem. .

— Esquecestes o nome de vossos pães, ou quereis falar dos brazões


que elles usaram ?

— Nem uma coisa nen^i outra; quero simplesmente notar que pouco
imporia a ascendência, quando ser\imos a causa do po\"o.
— Do povo de Lisboa ?

— Sim, do povo de Lisboa.


— Do que se revoltou contra el-rei, matando e roubando, ou do que
morreu ultrajado pelos excessos da villanagem ':

—A causa das ^ictimas, senhor, é a que me ti-az aqui a pedir o rigor


das leis.

— Bem; podeis começar: a quem accusaes ;

—A Pedro Soares, filho de um illustre capitão que morreu em Arzil-


la, ao lado de D. João de Menezes, e que, respeitando pouco a memoria
do pae, em vez de terçar ai-mas na Mauritânia, anda no ensino de esgri-
ma por logares onde ha vicios contra os costumes e rebeldias para coni
cl-1'ei.

— E' grave o caso, murmui'ou António Carneiro...


E, em seguida, extranhando a accusação
— Por que não essas revelações a D. Diogo dAlmeida
fizestes ?

— A gente darmas procede prompta energicamente, mas não attcnta e

com cuidado na origem dos alcives e nos fios da traça. '.

— E tem alliadoS o rebelde :

— Tem; mouros judeus. c


— E as provas ?
. . : .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5/

— Tcnho-as ul^uí ; são provas encontradas cm casa do velho Lopo, o


refece fugitivo de Castella e de Itália, que, por conta da communa dos
judeus, deu causa aos motins de S. Domingos. .

— Deixae-as \èi\ disse o ministro, lendo rapidamente os pergaminiios


que Ruy tirou do peito e lhe entregou.
— Sarcasmos sobre as ordenações del-rei e calumnias bafoi^dadas so-
bre a gente das ordens i-eligiosas. . . Não sois do meu parecer? pergun-
tou Ruy.
— E' só isto ':

— Parecc-vos pouco :

— Taes pro\as são arrazoados de christão, e não heresias de judeu.


Pelo que diz da \ontade d'el-rei. mostra ter parecer egual ao do mclhcjr
conselho dado a Sua Alteza. . . Hei de examinar a meu talante a suspeita
que me trazeis . .

— Diz-se christão Pedro Soares, mas ninguém o cre de tal fé. Todos
os corredores que se aprestam para o ser\ico del-rei em terras de gente
moura o viram xolteai' de preferencia em afans de moui"os, e não de fieis.

Toda a cidade o acoima de capitão perigoso que lida contra a Egreja. .

— Pensarei nelle, e ao prioi- do Curato ixcommendarei de\assa espe-


cial, se tanto fòr mister.
E, depois duma pausa e de perscrutar a physionomia de Ru_\-

— Que zelo ^ os move em tão grave delação ? o da vida, ou o do amor,


ou o da honra r

— O da honra — de súbdito d'el-rci e de servidor de Christo.. .

— Pois contae com o favDi- real, e a pouco trecho o recebereis. Não


trebelha cl-rei em casos aleivosos. .. Mas falastes também na \ossa \ ida

c, se me não engano, também nos vossos amores.


— Assim é; o zelo pelos negócios do reino ordena que de mim fale

em ultimo logar, respondeu Ruv, baixando os olhos.


— Dizei tudo.
— Pedro Soares, aproveitando a peleja entre mouros e christãos. rou-
bou do mosteiro de S. Domingos uma tilha de l>opo. Da cobiça do villão
salvei eu a outra filha e fui pòl-a eni puridade nas immediações da Alcá-
çova. Amo Deborah. christã, apesar do nome, e delia confiei meus lídi-

mos projectos. Pedro Soares, não contente com a posse de Sarah, andou,
cm guisa de cspiãf). nos ai^redores do impro\ isado abrigo. Pela mina que
abre nos trigaes d^i ("iraca. e que vae ter a uma casa da arrifana próxi-
ma, logrou chegar até Deborah, a quem roubou. . .

António CarneiíM, emquanto Ru\' ia lalando, enlrete\e-se a re\'oher


diversos pergaminhos dispersos sobre a mesa a que se sentara.
:

58 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Diga-mc, Ru\ Vasques, não foi nessa an^ilana que a frente de D. Al-
\aro afincou, com inesperada \isita, frei Be)"nafdo Aragonez ...
— Tal ouvi dizer, mas não dei fé . . .

— Está bom, está bom. Fizestes bem em vir, porque inteirastes a his-

toria m3'steriosa da fuga dessa donzella... Dizeis, pois, que Pedro Soa-
res foi quem pôz a salvo a rilha de Lopo... Faltou este avisamento na
missiva de Pêro Esteves. . . Vou devohel-a para que clle a inteire. . . Es-
perae um momento.
Ru\' não comprehendia bem o que se esta\ a passando.
António Carneii^o \ibrou uma forte pancada niima lamina preciosa, bu-
rilada nos cantos de bastiães de alto la\or, e logo. á porta do salão, sur-
giu o pagem do costume.
— Diga a esse homem que acompanhou este /?\íi7/<í'o que \enha aqui
para negocio urgente.
— Perdão, senhor secretario de estado, eu \\m sósinho...
— Não me chameis secretario; n'cste momento sou apenas escri\'ão de
puridade. . .

A" porta appareceu Lim guerreiro, de espada nua firmada no mosaico


do salão.

— Podeis embainhar a vossa espada, Pêro Esteves.


O guerreiro obedeceu.
António Carneiro continuou :

— Fica sabendo que de cahir nas mãos deste mo-


a tua fugitiva, antes

fino,voou nos braços de Pedro Soares. E' ladino o rapaz, e tanto que,
melhor cpe os teus aguazis, descobriu uma bella entrada que Ruy Vas-
ques tinha destinado para sabida.
E, apontando para Ru}-, disse a Pêro
— Acompanha-o, hoje mesmo, até E\-ora, e entrega-o, da minha par-
te, ao licenciado Manuel Affonso, do desembargo d'cl-rei, c dize a este
que, desejando auxilial-o, lhe envio e recommendo um por conta dos cem
que a justiça del-rei julgou necessai-ios para dcsaggra\o do seu poder e
da honra do reino.
Pêro Esteves, voltando-se para a porta por onde entrara, gritou :

— Gente I

Vieram seis homens armados, que se perfilaram a porta do salão. Pêro


Esteves empurrou Ruy Vasques para junto dos seus homens.
— A caminho. Eu já vou. E' caso de trigança e zèlò.
. .

— Mas isto é uma violência exclamou Ru}' Vasques.


!

Minguem o ou\iu. Os guerreiros i-odearam-n'o e levaram-n'o para fora


do salão.
'^. ^ ^ Ali

Mas isto é uma violência! exclamou Ruy \'asques


-^
. .

MISTÉRIOS DA INQUISIÇÃO Sq

— Pero Esteves, disse António Carneiro, mal ficou com o capitão da


guaixia, convém
Pedro Soares. E' possível que arda no peito
vigiar d'clle

um appetite de vingança. E' altivo e orgulhoso e pode dar origem a no-

\^as e perigosas pelejas entre aquelles a quem desejo unir e congraçar.


— Lembix'i-me, senhoi" secretario, de o aconselhar a fazer uma jornada
:i Africa. Ha aili muito em que empregar a coragem e valentia, que as-

saz o recommendam.
—E ás filhas de Lopo, lembrou o ministro, que destino lhes havemos
de dar : jVplacar ódios é de boa arte em quem governa. Se ellas, para
curarem as desgraças que soIlVem, qui/essem retirar-se a qualquer mos-
teiro. .

— Não será difticil a empresa. Bastaria, para tanto, atfeiçoal-as aos


cuidados do padre Ignacio, que não deixaria de as frequentar, e que anda
sempj-e no afan de alliciar novas monjas para o serviço de Deus.
— Tens confiança em frei Ignacio? perguntou o ministro.
— Sim e não. Conheço o interesse que o move, e desde que o do reino
se atíeiçoe ao d"elle, fio delle a minha intenção c o meu trabalho. . .

— Rccommendo-vos cuidado e tino. Roma entende-se com el-rei, mas


icrn agentes secretos em todo o reino. Ignacio deve ser um d'elles. As
boas relações entre os príncipes christãos não impedem que vigiemos os
interesses que temos de acautelar. Di/ei ao prior do Curato que muito fale

e proceda com relação a christãos no\()s, mas que não perca o meio de
evitar conjuras contra o poder d'el-ix'i. Em maio deve liquidar-se o traba-
lho da justiça em Évora. El-rei precisa de voltar a sua attenção para os
negócios do Oriente. Aftbnso de Albuquerque vae mostrar seu brio e seu
valor. Vae, pois, Pero Esteves, e volta cedo, que, se a corte se demorar
em Setúbal, terei necessidade de ir a Lisboa para prevenir novos confli-
ctos e novas rebeldias.
Pcrcj Esteves cortejou e sahiu.

No recebimento da Alcáço\a soou um clarim, e os coi-ccis relincharam


sob as adufas do palácio.
Ia a passeio el-rei D. Manuel, pelas margens do Sado, com a gente de
sua casa, entre a c]ual figuravam tangedores de grande mérito e menes-
tréis de exquisita recitação.
El-rei montou o seu ginete de prateado selim e xairel andaluz, rojando
na terra as franjas do brocado.
Um troço de pagens, envolvidos em gente darmas, seguiam D. Ma-
nuel. .

() povo corria para ver a cavalgada trotando no areal — e, emquanto


as ondas cix'sciam alé banharem as patas dos cavallos, tis populares ar-
: :

6o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

rançavam dos gibões os seus lenços brancos e, agitando-os ao vento que


vinha do oceano, gritavam — viva el-rei 1 — viva el-rei I

António Carneiro, das torres da Alcáçova, avistava o cortejo e mur-


murava, agitando a cabeça
— Sauda-te o mar e o po\ o I Vae, \ae reinando, meu senhor, entre
esses dois abysmos !

As trombetas soaram com estrépito, e as mulheres le\ antavam nos bra-


ços os íiihos para que elles vissem bem o elmo do guerreiro e a chamarra
de príncipe, que iam a dourar-se ao sol poente.. .

E o ministro, olhando sempre por toda a extensão da praia, repetia,


como se estivesse pensando em cousas tristes
— Os dois ab}'smos, os dois abysmos !

"N^oltemos á modesta casinha de Villa Nova, melhor diríamos, dos ex-


tremos ou arrabaldes de Viila Nova, vista a distancia a que ella ficava do
bairro propriamente daquelle nome.
A casa de Pedro Soares devia avistar a communa dos judeus, mas er-
guer-se no grande e verde almargem para além do qual estava, para o
norte, a branca casaria da gente mourisca, e que vinha quasi a misturar-se

com as areias do Tejo. Tinha a casa de Pedro Soares a mesma apparen-


cia das mais distantes, apenas enriquecida com frontal da laçarias e aço-
téas ou terraços, onde se debruçavam plantas e flores dum exotismo gra-
cioso.

A mãe do nosso gentil heroe, coroado pelo diadema do amor e da de-


dicação, occupava n'aquelle recinto o que nos santuários christãos occupa
a imagem de Jesus. A boa velhinha tanto se desfazia em prantos, nos olhos
macerados, quanto abria caudal de sorrisos nos lábios, que o tempo em-
pobrecera e contrahira. Naqucllc tempo, ora se esta^a em plena Paixão,
cheia de sombras, ora em Paschoa resti\'a, com palmas \erdes e ondas
de incenso.
Dias havia em que naquella mansão se respirava o aroma sadio do
feno do presépio, e n'outros o aroma embriagante e m}'stico do rosmani-
nho do Calvário.
A velha Joanna, imagem santa do sacrifício e da resignação, quando
não labutava no amanho da casa, cheia de cuidados no bcm-estar das
suas pupillas, sentava-se n"uma velha poltrona, e, rezando num rosário
de crystal, guarnecido de relíquias e imagens de Jerusalém, adormecia, ao
cahir da noite, tendo no collo, reclinadas docemente, as cabeças de Sarah
e Deborah.
Batia-lhe então no rosto, ou a luz das estrellas, ou um raio da lua,
que do lado do Tejo lhe vinham pelas adufas mal cerradas, ou então, se
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 6i

a briza era mais fresca, esvoaçavam-lhc no rosto as claridades e as som-


bras despedidas da luz trémula da lamparina, suspensa do tecto, em
frente da virgem, muito s^arrida de seda e ouro. entre jarras de perpé-
tuas amarellas e roxas.
Passada a hora das Trindades, e, quando na cidade apenas se distin-

guia alguma luz de archote, que acompanhava dama de elevada jerarchia


ou de commoda fortuna, desmanchava-se o quadro em casa de Joanna, e
comcçav a o serão, a que presidia, ou grande candeia fumarenta e frouxa,
ou a lâmpada solenne, miniatura menos grave, mas mais illuminante c]ue
a dos fogos sagrados que as vcstaes guardavam no tempo do paganismo.
K as três mulheres, depois de se benzerem, para abençoar o trabalho,
beijavam-se carinhosamente para abençoar a alliança dos seus corações.
E vinham então a roca e o linho, a dobadoura e a meada, o ouro, o froco,

a missanga e as lantejoulas, retalhos de seda, tiras de velludo; tudo em-


fim que era necessário para o labor da silenciosa officina.
E quantos dias se passavam, horas inteiras, em que além do ruido da
agulha, ou o voltear do fuso. nada mais se escutava... Perdão — que-
brava-se a miude este silencio com um ai, com um gemido, um soluço ou
um beijo! Havia alli, n'aquellas cabecinhas — duas que ardiam em sauda-
des e phantasias, uma que arrefecia em conformidade desillusão — mais
e

firmes que a luz da lâmpada, mais triste que a cidade ás escuras, a re-

cordação das ultimas desgraças. .

E cada uma daquellas creaturas, tão lembradas, artectava esqueci-


mento, c despedia sorrisos. . . O amor tem estas sublimes delicadezas!...

O coração sorve quasi sempre as nossas próprias lagrimas para que ellas
não provoquem, ao mostrarem-se, as lagrimas dos outros.
.\quellc silencio vinha d'essa dedicação.
Todos estavam calados c todos conversavam com vivacidade... lá

dentro, na consciência, onde a voz é muda, a luz sem reflexo, a dor sem
pranto . . . Por isso, ellas ficavam tantas vezes, paradas as mãos, parado
o olhar, quasi parada a respiração, a fitar a chamma da candeia ou a ima-
gem do oratório ! E, ao despertarem d'esse sonho de momentos, repre-
hendiam a sua abstracção egoista, e logo procuravam o olhar das compa-
nheiras, para lhes enviar um sorriso, e para dizerem qualquer expressão
consoladora.
Pretexto havia sempre para se dizer alguma coisa; mas era só um,
sempre o mesmo, e a todas três acudia. .

—O Pedro demora-se hoje! murmurava Joanna.


— )uço passos na rua não ouvem Será o Pedro perguntava Sarah.
( ; ? ?

— Se Pedro nos minha mãe, o que será de nós, dizia Dcborah.


falta,

MYSTERIOS DA UNtiUISIÇÃO. — VOL. 1. . FOL. 8.


. . . . . . . .

fn MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Depois voltavam, a agulha e o fuso, ás suas tarefas, e as três mulhe-


res vergavam a cabeça sobre o collo, ou as desviavam ; e faziam bem,
que, se a luz as fitasse, havia de illuminar, pelo menos, uma lagrima em
cada olhar. .

Não faltavam também os sustos, os sobresaltos, as allucinações. O . .

medo obrigava-as a conversar ás vezes, com exaggerada vivacidade. Falar


alto é a audácia dos medrosos.
O ranger duma porta, o arrastar diurna cadeira, o vemo na janella,

um grito das sentinellas lá fora, o estalar da madeira, o crepitar da luz


— tudo as agitava bruscamente . .

E, depois de terem tremido todas três, todas três se anima\ am mu-


tuamente.
— Não tenham medo; não é nada. . . Quem ha\ia de \ir agora?. .

Felizmente ha já socègo na cidade. .

— Se houvesse perigo, Pedro estaria aqui. .-

— Lá verdade isso é ; é até provável que elle ande a vigiar o almar-

gem. . .

— Sim, sim, ainda hontem, já bem tarde, sahiu de casa, e foi. com
gente sua, emboscar-se no olival próximo.
—O que elle nos tem recommendado é que não abramos a porta, se-

não quando ouvirmos a sua voz . .

— E se alguém lhe imitasse a voz ?

— Não me enganaria, acudiu rapidamente Joanna. E tu, Sarah, co


nheces-lha bem ?
— Eu ? Não só a conheço, adivinho-a ! Quem pode tel-a tão varonil e

tão meiga ? ! Conheço-lhe os passos, quando elle vem muito ao longe ! En-
xergo-lhe o vulto no meio das mores sombras . .

—E tu, Deborah ?

— Eu, senhora, ouço-o sempre, até quando elle não fala! Posso en-
ganar-me, sim, posso enganar-me, que até já muitas vezes tenho sido vi-

ctima d'esse engano. Accordada, ou a dormir, parece-me que elle me fala,

e não verdade — sonho.


é é .

— Assim não ha perigo, e podemos estar tranquillas, concluiu a velha


.loanna ; e, com este pretexto, largou o serão, e foi sentar-se na ucha, ar-
rumada a um canto. .

Encostou a cabeça á parede, pousou os pés sobre uma almofada do


melhor velo e adormeceu. . .

As duas irmãs entreolharam-se, e, extendendo os braços sobre a mesa


de trabalho, apertaram as mãos como dois namorados poderiam fazel-o
para aproveitar a falta de vigilância.
. . . . ...

MYSTERIOS DA INQDISIÇAO 63

— Deborah! disse Sarah.


— Sarah imitou Deborah.
I

Houve um momento de silencio.


— Ainda não tens uma pequenina esperança de que \ enhas a ser feliz ?

— Não nunca
; I

— Nem o meu amor anima a esperar te ?

— A esperar, não a sim. ; ticar,

— Queres dizer ?

— Que vivo porque tu vi\cs.


— E's uma louca, Deborah também eu julgava que morria, quando. ; .

— Cala-te, Sarah, por quem Tiras-me a força de viver se me és. falas

nos mortos . .

— Perdoa, boa irmã ; eu queria dizer que c mister que amemos os


que nos amam . . .

— Ainda não podes, Sarah, ensinar-me, nem a soffrer nem a amar.

E's uma creança e não sabes o que são segredos. .

— Tens um segredo ?

— Tenho. Um? E' pouco — tenho dois. Um saber-se-ha para minha


desgraça, o outro morrerá commigo para tua felicidade. . .

—E acoimas-me de creança? Estás em erro, irmã querida. Hontem


era uma creança, mas já hoje, mais que tu, mulher, para te defender e

para amar. .

Olha. nunca te aconteceu ver, no espaço de uma noite, abrir-se, nas


trepadeiras da tua adufa, o cálix d' uma aurora roxa, e aos primeiros raios
do sol fazer-se azul, muito azul ?. .

— Sim. tenho visto. . . Disse Deborah tristemente.


— Pois assim me aconteceu. Fiz-me mulher numa noite muito, muito
negra, e, ao alvorecer, veiu o sol. . . beijou-me, e o meu coração, roxo como
as chagas de Christo, tornou-se azul, como o céo em dias de primavera. .

— Tens visto, Sarah, nos cactos da tua açotéa. fulgurar, á luz do sol,

uma flor \'ermelha como o pudor das virgens, de pétalas fortes como
pontas de lança, e, num momento, um sopro, uma geada, dobral-a na
haste, escurecer-lhe a côr, e arremessal-a sob as estevas do almargem ?

Tens visto, Sarah ?

— Sim, tenho visto, disse baixinho a gentil creança. triste e absorta. .

— Pois assim me aconteceu, minha irmã. . .

Nas \idraças da adufa brilhou o clarão dum archote.


— Que é isto. disse Sarah, Icvantando-sc rapidamente, e indo esprei-
tar pela vidraça.
— E' o teu sol. que chega, minha aurora azul. . .
: : :

64 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E' o Pedro, que vem em companhia d'alguns amigos...


E logo se ouviu na rua, é melhor dizer, no campo:
— Senhora minha mãe. Sarah, Deborah, sou eu, podeis abrir.
Joanna esfregou os olhos para despertar, Sarah correu á porta, e De-
borah ficou de pé, concertando as flores do oratório, e, quem sabe ? tal-

vez orando á confidente dos seus segredos.


Pedro entrou, e, dirigindo-se a sua mãe;
— Abençoae-me, senhora.
Depois, a Sarah, com um sorriso
— Boa noite, minha irmã.
E, por fim, beijando o cabello de Deborah, que continuava junto do ora-
tório :

— Estás melhor, minha boa Deborah ?

E logo,sem esperar resposta


— Ora, muito bem; aqui estou para as ajudar se fòr mister. Não tenho
dedos delicados para fiaduras e frioleiras, mas posso, sem jogar as armas,
nem saltar barreiras em ginetes da Arábia, alegrar estas santinhas. ..

— Porque vieste tão tarde, Pedro? Não te lembras que estamos re-

ceando desgraças e aventuras? disse Joanna, beijando o filho.

— Vae passado o vendaval, senhora do meu coração. . . E, voltando-se


para as duas irmãs, a quem beijou na testa
— E, meninas dos meus olhos. .. Não vêem como as arvores estão
quedas e as estrellas brilhantes? Não vale agora recordar o naufrágio. . .

E Pedro desapertou o cinto do gibão, e reclinou-se, affectando alegria,

na poltrona ampla e fofa.

— Por onde andastes, cavalleiro, que não trazeis novas de torneios,


nem motêtes de trovadores ? perguntou Sarah, fazendo requebro de dama
da corte.
— Por essa cidade, por onde a gente do prior anda a premiar os he-
roes de 19 d'abril, com fidalga hospedagem nas galés do porto. De trovas
e villancetes, minha graciosa irmã, já nada resta do que foi enlevo de prín-
cipes e fidalgos. Fugiu tudo batido pelos autos de Gil Mcente... Mas
vamos saber: em que passaram o serão?
— Fingindo trabalhos que não dão canceira, mas, em verdade, esperan-
do-te — que é tarefa pesada para quem te deseja, disse Joanna.
— Eternas lisonjeiras, não vedes que se me vae o mérito minguado na
vaidade que me causaes?... Preciso de vêl-as alegres e louçãs. A for-
tuna da gente bôa nem sempre ha de ser mofina. Conto com a protec-
ção d'el-rei... para vós todas, e para mim, que, se lograr a vossa feli-

cidade, irei a terras dAfrica buscar honras e proveitos.


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 65

— Dizes que seremos felizes, e falas noutras terras e n"outras em-


presas ?

— Se queres a nossa alegria, não annuncies novos temporaes aos náu-


fragos, que salvaste.
— Para nos dizeres que partias, mal fizeste em vir tão cedo. .

— Basta, basta! Já não parto. Pelo . . menos emquanto minha senhora


e mãe não der licença, Deborah estiver triste, e Sarah não tiver decorado
o Auto do vaqueiro Gil, em honra do principe D. João.
— Está dito, não partirás, que eu não consinto que deixes os mouros
de Lisboa por aquelles que em Arzilla mataram teu pae e meu senhor
— disse Joanna com emphase apaixonado.
— Assim, sim; ficarás sempre a nosso lado, porque será mais fácil

obrigar o principe a renascer, que a mim a saudar de memoria, o seu


natal em versos do grande (li).

Sarah corou ao recitar este galanteio. . .

— E tu Deborah, não me dizes nada :

— Eu? Se és sincero na promessa, não partirás emquanto eu viva f(')r.

¥Js a alegria de nós todas; mas, se a minha alegria houver de me apartar


de ti, não trocarei em sorrisos esta tristeza, que me alegra. .

— Não vedes,minha mãe, como saem elegantes os madrigaes em casa


de Pedro Soares? Não se fazem mais gentis nos serões d'el-rei, entre du-
ques e princezas. Ainda me fazem trovador estas monjas de régia estirpe.
E não era para extranhar que eu me fosse a cultivar as musas. . . Se até
António Carneiro verseja, quando não está a despacho na Alcáçova!...
— ¥. se fizesses versos, que trovas farias a tua mãe?
E Joanna esperou sorrindo.
— Um psalmo, que eu cantaria de joelhos, tangendo as cordas do meu
coração.
— E a mim? perguntou Sarah, curiosa, pondo a mão sobre o hombro
de Pedro.
—A ti? Um idyllio trinado pela garganta de Amadis. onde o teu nome,
por causa da rima, se mudasse em Oriana:

. . . Senão que .iirvo a Oriana,


a lindeza soberana
a cujo nome estremeço

a Oriana, formosa
Oriana, minh'alma c tua
mais da lua,
que assim te creou donosa:
. . .. . . . .

66 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Zombas de mim, Pedro? Isso é feio, e não t"o mereço...


E rubra, e quasi lacrimosa, abriu a gelosia e ficou a olhar as aguas do
rio, ao longe, illuminadas.
Pedro ergueu-se, e approximando-se de Deborah, corno se não tivesse
ouvido o queixume de Sarah:
—A ti, minha boa irmã, faria uma elegia, em que os anjos, teus com-
panheiros, te envolvessem n'um limbo de luz, e em que elles revelassem
ao Céo. .

Pedro baixou a voz, e por forma que só Deborah ouviu —o segredo


da tua dôr. .

— O meu segredo murmurou Deborah tremendo. ?

— Sim, o teu segredo, que meu. Coragem. já é ..

E depois, em voz alta:


— Pedir-te-hia em verso, quando os anjos te deixassem, Deborah, um
pouco de mel da tua infusa . .

— E niSso fica a tua refeição? objectou Joanna.


— E' bastante. Comi, ao cahir da noite, fructos deliciosos, em casa do
corregedor. .

— Que também tem bem amargos; deste fé, Pedro?


lá os
— Sim — são os Queres ouvir, Sarah ? Deixa as
fructos da justiça . . .

estrellas e vem reconciliar-te commigo. .

Deborah trouxe o mel que Pedro acceitou, enviando d desgraçada me-


nina um sorriso consolador.
— Sarah, á nossa amizade ! Prova este néctar antes que lhe toquem os
meus lábios. .

Sarah ergueu a infusa, com um sorriso de aftecto e reconheci-


mento.
— Agora eu, disse Pedro.
E depois de beber:
— Com a tua bôcca fizeste mais doce o mel, minha abelha deliciosa.
— Pedro, por que me tratas como a uma creança sem tino?
— Ingrata ! não vês que só os cortezãos teem a mentira no galanteio ?

Adoro-te a vivacidade e a innocencia, e não quero escurecer a tua alvo-


rada Estou perdoado ?
. . .

— Estás — ahi tens o perdão . .

E "deu-lhe um beijo na testa.


— Ia — que
ha fructos amargos em casa' do corregedor.
eu dizendo
Fructos de justiça Por exemplo, uma sentença de morte para o cé-
real.
lebre tunante sagrado que prendeu Deborah no cárcere d'onde eu a sal-
vei. .
:: ! :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 67

Deborah segurou-se a uma cadeira para não cahir. . .

— Esse homem está ainda em Lisboa? perguntou Joanna.


— Não, minha mãe, está na torre de Aiconchel, em Evora-cidade, onde,
movido pelo arrependimento, se prepara para morrer christãmente. ..

Deborah devorava Pedro com o olhar. . .

Pedro continuou
—O miserável confessou todos os seus crimes. . .

E voltando-se para Deborah, repetiu:


— Todos os seus crimes !

A martyr parecia de marfim


— Que Deus amercie da sua alma! rezou Joanna.
se
— E são muitos os malefícios os damnos que causou e elle ? pergun-
tou Sarah, que ajoelhara aos pés de Pedro para melhor ouvir a narração.
— Muitos nem pobre creança, podes avaliar quantos foram.
! tu, . .

— Matou muita gente ?

— Muita !

— Roubou muito dinheiro, muitas riquezas?


— Grandes riquezas !

— Roubou não só o que se pode readquirir com o trabalho, mas tam-


bém o que nunca mais se pode haver ? Não é assim ?

Deborah aventurou-se a dizer


— Pedro !. . .

E Sarah insistiu

— Roubou tanto, que elle não pode restituir, c não se pode ganhar
novamente ?

— Só a vida se perde para sempre, disse Pedro.


—E a honra, Pedro ?

E Deborah, ao dizer isto, tinha nos lábios a tremura da febre.


— Também a honra. . .

Deborah, ouvindo esta sentença consoladora, soltou um suspiro e cer-


rou levemente os olhos, como para gosar mais intimamente a influencia
d'aquellas palavras.
Depois reflectiu que, se o Aragonez confessara o crime, havia já muita
gente que conhecia a sua desgraçada sorte. Como se poderia rehaver a
estima e o respeito, desde que ella não fosse como as outras mulheres ?

E, se a velha Joanna descobrisse aquelle segredo ? E sua irmã ? Ella bem


sabia que não fora a culpada. Assim como a deshonraram, poderiam tel-a

assassinado . . . Que culpa teem os mortos da maldade dos assassinos ? A


Egreja só condemnava os suicídios, e ella bem sabia qué a sua castidade
fora assassinada; não se suicidara.
. .

68 MYSTERIOS DA ÍNQUISIÇAO

Logo que a sua desgraça se tornasse pública, só lhe restava morrer.


As victimas de taes crimes são victimas excepcionaes — soffrem como
victimas, e expiam como cúmplices.
Como se pode rehaver a honra que um bandido rouba a uma mulher,
quando esse bandido é padre, quando eile é um condemnado a uma pena

infamante ?

E comtudo Pedro dissera: «Também a honra!. . .»

Deborah, cm cujo cérebro passaram rapidamente estas idéas, precisava


de saber tudo.
Se a revelação foi feita a um confessor, Pedro não podia conhecer o
seu segredo; se foi feita aos magistrados da justiça, seria em breve co-
nhecido de todo o mundo.
Resolveu-se, portanto a perguntar:
—E esse homem confessou-se a Deus por intermédio dos seus minis-
tros, ou só á justiça dos homens ?

— Só a Deus, disse rapidamente Pedro.


— Então não conheces tu os crimes todos que elle praticou.
— Conheço. . .

—E quem te revelou um segredo de confessionário ?

Pedro levantou-se, foi até junto de Deborah, como para se despedir, e


disse-lhe quasi ao ouvido :

—A tua dòr e a tua paliidez ! Não me enganara. . . Quando te salvei

)á estavas perdida. .

— Deu meia noite na torre de S. Vicente. Vamos, filhas, amanhã fa-

laremos nestas coisas tão tristes.

Pouco depois havia silencio em toda a casa de Pedro Soares; uma só


luz alli brilhava —
a lâmpada da Virgem; uma só pessoa dormia n'aquella

noite — a velha Joanna.


Sarah e Deborah pensavam em Pedro — Sarah a vel-o e a sorrir-lhe,
Deborah a desviar d'elle o olhar, e a chorar.
Pedro não dormia também; reclinara-se vestido no leito, e pensava no
Aragonez.
— Se a justiça d'el-rei não o matar, matal-o-hei eu, e, logo que elle
desappareça, mandarei Deborah para as monjas de Lorvão. Sarah ficará
com minha mãe, e eu partirei para Africa em busca d'uma lança mourisca
ou d'uma setta de selvagem. Este encanto, que parece accordar um pa-
raíso, pode converter-se num inferno. .

E
Pe4fo, cançado de pensar, adormeceu já de madrugada, tendo-se
esquecido de sonhar com sua mãe, como era seu velho costume sonhando ;

a sorrir com Sarah, a quem recitou Amadis, e despertando aos pés de


. . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 69

Deborah, tendo debaixo dos joelhos o corpo ensanguentado e frio do Ara-


gonez.
Era a fúria contra o crime ?

Era a revolta do ciúme ?

Era o amor a esvoaçar. .

Pedro, dormitando, ou desperto, sonhava toda a noite, e esse so-


nho continuado, fazia-o velar o sonho de suas pupillas. A tragedia de
Lisboa trouxera-lhe ao espirito um alvoroço constante; aguardava sem-
pre o imprevisto! O seu estado era o estado de guerra. Tinha medo de
fechar os olhos; e, para não prejudicar o ouvido, raras vezes reclinava
a cabeça — firmava o cotovello sobre o leito e descançava a fronte sobre
a mão.
Era, em sua casa, um guerreiro acampado, prevenido para o alarme,
armas ao lado, ao alcance do seu braço!
Se o cançaço o prostrava, escolhia a posição mais incòmmoda, que o
accordaria a miude, como se uma dôr provocada fosse um grito de senti-
nella. F]ra desnecessária a precaução, porque o coração de Pedro, por ve-
zes, parava durante a noite, como para observar se algum perigo se avi-
zinhava ! Dentro d'elle havia um guerreiro de lança em riste, a perguntar
ao silencio — quem vem lá ?
A sua mão direita dormia sempre agarrada com força ao cabo do seu
punhal. . .

N'aquelle crepúsculo do espirito em que ainda se ouve a realidade e

já se vòa no ideal, quando as imagens dos dois mundos se confundem e


se transformam, como em quadros dissolventes, as suas mulheres, como
elle dizia, passavam da tranquillidade do lar para os horrores da sedição.
Todas as noites Pedro representava no seu espirito as scenas de S. Do-
mingos, a morte de Lopo, o rapto de Sarah, o assalto d'aquella casa, a
defesa de sua mãe, a busca e a salvação de Deborah
Sua mãe até rezava dormindo, Sarah falava sonhando, Deborah cho-
rava desperta 1 Todas estas vozes nas alcovas afastadas chegavam ni-

tidamente aos ouvidos d'elle ! A's vezes, havia silencio absoluto, mas elle

ouvia vozes, n'esse silencio.


Eram os échos que se tinham demorado no seu espirito, assustado e

apprchensivo. .

Por isso, elle se levantava, e com passo subtil percorria o seu alber-
gue, escutava ás portas, examinava a rua, e voltava de novo, mais tran-
quillo, a cerrar os olhos e a recomeçar os sonhos!
Em algumas noites levava mais longe as suas precauções — accendia
um archote e subia ao terraço, e lá de cima, agitando a chamma no ar, o
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. O.
: . .

70 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

que fazia uma chuva de faúlhas sobre a verdura do almargem, olhava ao


largo, franzindo as pálpebras, para enxergar melhor se os vultos distantes
eram homens ou eram arvores.
A inquietação que o dominava quando ouvia ruidos não era inferior á
que tinha quando nada ouvia. O ruido lembrava-lhe um assalto, mas o si-

lencio lembravalhe a morte. N"este caso, não se limitava a escutar; des-


pertava também os que dormiam.
Collava o ouvido ás portas, e, se não ouvia a respiração de suas ir-

mãs, chamava baixinho, meigamente, com a solicitude de mãe :

— Sarah, Sarah, estás dormindo! sentes-te bem?


— Quem está ahi perguntava Sarah, assustada.
?

— Não tenhas medo, sou eu. Tu não chamaste?


— Eu não! Só se foi a sonhar. . . Olha, é possível, porque estava a
sonhar comtigo.
— Bem, então dorme, e sonha com tua irmã. ..

— E tu não deitaste, Pedro te ?

— Eu estou farto de dormir ? É quasi manhã. Adeus.


A' porta de Deborah também Pedro parava algumas vezes, mas não
chamava.
Mal elle encostava o ouvido, e ou porque visse a luz da lâmpada pe-
los resquícios da porta, ou porque lhe sentisse os passos, ou lhe ouvisse
a respiração, Deborah era quem interrogava
— E's tu, Pedro?
— Sou, Deborah. Perdôa-me se te desperto... Queria dizer-te que
podias dormir tranquilla, porque está tudo em paz. .

— Obrigada, Pedro; que Deus te pague o teu cuidado e o teu cari-


nho. . . Vou dormir mais desejosa de accordar. .

— Por que ?

— Porque tenho pressa de te ver, meu bom amigo.


Ao passar pela alcova de sua mãe, Pedro, como a porta estava ape-
nas cerrada, ia, pouco a pouco, abrindo-a, e entrava, e seguia, pé ante
pé, até o leito, tendo o cuidado de esconder a lâmpada atraz do corpo, ou
cobril-a com a mão, fechada em concha.
Joanna dormia como um justo, tendo
a mão espalmada debaixo da
face.Pedro, então, inclinava a cabeça, lentamente, sobre o leito, desviando
o corpo para não abalar sua mãe, e depunha-lhe um beijo na face branca
e sêcca ...
Entretanto, de todos os lados, a luz do dia, atacava, fresca e meiga,
as adufas da casa, e espirrava, comprimida, através das frinchas, raios
que illuminavam, em faixas, o tecto e o chão.
! ! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E' dia, dizia Pedro; vem render-me o sol, meu companheiro na


guarda constante do meu ninho.
E, então, despia a roupa mais pesada, deitava a cabeça no travesseiro,
e, de costas, com os braços abertos, como se estivesse n'uma cruz, ador-
mecia, tendo por cima da cabeceira, no fundo branco da parede, outra
cruz, e outro homem, como se um fosse a sombra do outro!. .

Naquella noite, porém, em que Pedro, por bem armado estratagema,


descobrira um dos segredos de Deborah, o mais triste, o mais terrível,
como das outras vezes, andou vigiando a casa, em sonhos ou em delírio,

porque na verdade o pulso lhe batia frequente e desordenado, mas, quando


o sol entrou em casa não se deixou render.
Estava a pé depois da sua ronda habitual, e de pé ficou, passeando
no seu quarto, como se pensasse na solução do mais difficil problema da
sua vida
E era o mais difficil

De que lhe serviam n'aquelle caso a sua audácia, a sua coragem, o


vigor do braço, a perícia do seu jogo?
Para salvar Sarah bastara- lhe derrubar uma dúzia de bandidos e fugir

depois com ella, erguendo-a n'um braço e defendendo-a com o outro.


Para salvar sua mãe teria morrido no seu posto, se o acaso lhe não
tivesse poupado o sacrifício.

Buscara Deborah com a tenacidade e o faro com que um perdigueiro


busca uma perdiz, e encontrara-a e trouxera-a para alli, desmaiada, sus-
pensa nos seus braços de ferro, ás escuras, pelo caminho angustioso de
uma mina!
Fora outra solução.
Mas, agora, a lucta não era a braço, nem a lança, nem a punhal —
era a lucta do coração. Agora Deborah não era perseguida por um ban-
dido; era a victima de uma sociedade.
O algoz estava condemnado, e em breve havia de ser reduzido a cin-

zas, mas ficavam os outros dois algozes, para quem não ha sentenças que
os anniquilem: —a sociedade, que mata com os seus preconceitos; a con-
sciência, que mata com os seus escrúpulos!. .

Se a pobre menina tivesse sido assassinada, estava tudo acabado:


ficava uma saudade; mas foi vilipendiada, e ficava com ella uma ver-
gonha !

Podiam ter apunhalado o coração da victima, mas preferiram polluil-o.

Nova, formosa, casta, tinha a alma cheia de virtudes e pureza, mas


fazia lembrar a ave mais innocente. a quem o caçador tivesse poupado
a vida e quebrado as azas.
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E se ella amasse alguém?


Mentiria, negando, porque não era capaz de um aleive . .

E se ella fosse amada por alguém ? O amor fugiria ante a revelação

d'esse segredo ?

Estúpido mundo ! estúpida moral


Verdade, verdade; o segredo estava abysmado no coração de Sarah.
O Aragonez esconderia o seu crime nas cinzas do seu corpo... Quem
mais sabia de taes horrores?
— Eu, e só eu concluiu Pedro.
!

— Mas, então, se Deborah me amasse, seria de mim que estariam de-


pendentes a sua salvação e a sua felicidade ! . . .

Pedro, ao fazer taes cogitações, respirou com força, como se quizesse

disfarçar um gemido, e, limpando o suor da fronte, sahiu da sua alcova.


Em casa continuava o silencio mais profundo; apenas se levantara
Zaira, a serva, que aproveitava aquella hora para ir descalça buscar agua
á fonte próxima.
E subindo para o terraço, onde o sol fulgurava ha muito, Pedro ia

pensando:
— Vae morrer, minha Deborah, aquelle que te roubou o corpo, e eu
quero viver para te ganhar o coração. . .

— Pedro, Pedro, gritaram-lhe então; vaes colher flores ? E para quem ?

Para Deborah, ou para mim?


Era a voz de Sarah.
— Hoje são. . . para minha mãe. . . respondeu Pedro machinalmente,
como se a apparição de Sarah lhe trouxesse nova perturbação ao seu es-
pirito hesitante.

Chegando ao terraço, Pedro sentou-se n um pequeno banco de alve-


naria, aberto na grossura da muralha, entre duas plantas de vigorosa fo-
lhagem. A cidade extendia-se-lhe deante dos olhos, descendo até o Tejo,
e subindo até o majestoso templo da Trindade, do outro lado do valle do
Rocio.
Estava fresca a manhã, apesar do sol não ter nem uma nuvem a en-
sombral-o. Do norte cahia aragem branda.
Pedro sentia-se profundamente triste, e no seu espirito havia um tur-
bilhão de sentimentos, que elle próprio não sabia definir nem des-
trinçar.

Tinha vontade de fugir, e depois de estar muito longe, voltar então.


Precisava de conhecer o mal de que enfermava. Tinha feito vinte annos,
e sentia sobre os hombros a responsabilidade dos homens experimentados
nas luctas da vida. Vivera muito em pouco tempo, e tanto se cançara a
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 73

estudar as pessoas com quem vivia, que lhe minguavam as forças para
profundar o próprio coração.
Por momentos se julgava feliz, sem mesmo saber por que; e, logo
uma nuvem de tristeza o envolvia, como se tivesse os mais negros pre-
sentimentos.
Eira novo, sim; mas era um homem — braço e cérebro lhe bastavam
para as luctas da vida, contra os crimes do homem, e contra as brutali-

dades do acaso, que parecem distracções da Providencia. Consolava-o o


bem que fizera, e pensava, com orgulho, que, onde havia tanto inútil e tanta
creatura parasitaria, elle se distinguia por ser amparo de três mulheres —
três deliciosas creaturas, que o amavam e que lhe agradeciam I

O que seriam, porém, aquella preoccupação, aquelle orgulho, aquella


vaidade, que o moviam a julgar-se feliz, no meio da desgraça alheia ?

Que affecto era esse que a innocente Sarah lhe estava dedicando com
tanto mimo ?

E Deborah, seria apenas grata ?

Pedro tinha uma alma piedosa, e Deborah era a mais infeliz das três
creaturinhas que o rodeavam. Teria elle mais compaixão por Deborah, e

mais amor por Sarah ?

Sarah seria d'estas organisações infantis, que se affeiçôam a qualquer


homem, como algumas plantas que acceitam toda a terra, e podem ser
transplantadas sem perigo de se atrophiarem ou morrerem ?
Deborah parecia-lhe mais delicada e susceptível . . . Ha plantas tão sen-
síveis, que até a mão do jardineiro, ao tocar-lhes, lhes contrae as folhas...

Com o amor é perigoso devanear. .

N'aquella casa brilhava elle, como o sol no pequeno jardim da elevada


açotéa. E alli havia flores que abriam o cálix aos beijos do sol, e outras
que era necessário resguardar sob vidros fumados. O amor é como a . .

côr, que resulta sempre da luz,mas que varia conforme os corpos em


que ella se reflecte. As leis da phvsica moderna revelavam-se intuitiva-
mente na sciencia de Pedro.
Não era ainda a sciencia da luz, mas era ja o conhecimento do cora-
ção humano.
O olhar caridoso de Pedro, cahindo no olhar de Sarah, dava-lhe fulgu-
rações variadas, como o arco que se formava no céo em dias de chuva e
de sol ;
quando olhava Deborah, os olhos d'ella tinham um único tom, vivo,
fixo, quente. Parecia-lhe que, se agitasse Sarah, ella reflectiria mil cam-
biantes, e que, se o mesmo fizesse a Deborah, ella teria sempre a mesma
luz, isto é, a mesma còr.
O amor em Sarah alegrava-lhe o coração, como se tal atVecto lhe ro-
. .

74 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

casse apenas, doce e fagueiramente, á superfície dos lábios. O amor em


Deborah descia-lhe profundamente aos mais recônditos mysterios da sua
alma, e alli se enraizava. .

O amor em Sarah era uma chamma em Deborah uma braza.


; Depois
Sarah era uma eterna alma de creança; Deborah uma creança eterna-
mente mulher.
Uma tinha o orgulho da sua mocidade, a outra o da sua infelicidade.
Isso fazia com que aquella offerecesse sem rebuço o seu affecto, esta o
guardasse secretamente.
Amavam-no ambas ? talvez.

Se o perguntasse a Sarah, vel-a-hia saltar-lhe ao pescoço.


A pobre creança confundia ainda o amor com a amizade, como as
creanças mais pequenas confundem a bondade com a belleza.
Se fizesse essa pergunta a Deborah ?
Pedro estremeceu ao formular a hypothese.
Deborah responderia negativamente.
E por que ?

Por que o amava demais para se lhe offerecer tão infeliz, ou por que,
effectivamente, a gratidão, que é um dever, não se pode confundir com
o amor, que é uma devoção ?

Para haver orgulho, nada ha como ser muito feliz, ou muito desgra-
çado !

Deborah conhecera os homens ao entrar na edade do amor, como as


creanças conhecem a luz ao entrar na vida — chorando.
Que lhe ficaria d'essa surpresa ?

E Pedro ficou-se a pensar, emquanto olhava os barcos que iam Tejo


abaixo, abrindo as azas á nortada da manhã.
Veiu arrancal-o a este devaneio matutino a voz fresca e alegre de
Sarah.
— Bom dia, Pedro. Já colheste as flores para tua mãe ?

— Ainda não, Sarah...


Pois aqui as tens. Fui mesmo arrancal-as á roseira que plantei na
gelosia do meu quarto. São rosas de musgo; pequenas e vestidas de ca-
notilho verde e ló esbranquiçado. Gostas ?

— São basta
tuas, e . .

— Sabes, Pedro — de tua mãe não tenho ciúmes...


— De quem tens tu ciúmes ?

Não te zangas ? De Deborah. Isto não quer dizer que não goste muito
d'ella, e que não te agradeça as flores que lhe dás.. mas preferia que .

sempre te lembrasses de nós ambas ao mesmo tempo.


Amar é doce como o mel, alegre como o sol, risonho como os lábios dos anjos. . .
. . . . . .. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Tontinha ! Pois não compreliendes que tua irmã me estima muito


menos que tu ?

—-Isso não; Deborah é muito tua amiga. . . Ku bem o sei! Não por
. . .

que ella mo mas porque eu bem


diga, adivinho no olhar com que te es-
preita, e na alegria com que te acolhe. .

— Alegria ? Pois não é certo que Deborah está sempre triste, quer eu
chegue, quer eu me ausente.
— A alegria não se descobre em sorrisos. . . nem só em sorrisos, nem
só em lagrimas. . . Quantas vezes eu sorrio, e brinco, tendo o coração tão
oppresso... Acredita, Pedro; nas lagrimas d'uma mulher ha muitas ve-
zes intimo prazer. .

^ Estás muito adeantada em questões de coração, Sarah... D'onde


te veiu tão sabia experiência.
— Do meu e do coração de Deborah. .

— Então aquella tristeza não apenas saudade de teu pae c ?

— Talvez, disse Sarah, parando o olhar, talvez. mas também eu . . te-

nho saudades, e muitas... Tantas! que quando me lembro delle pare-


ce-me que vou morrer. afflicta. sem poder respirar. mas depois o
. . . . . .

amor que nos rodeia, os carinhos da nossa casa, a tua bondade, Pedro,
como se eu tomasse o mais benéfico elixir, me dão saúde e ânimo, espe-
ranças c alegria . .

— Entendes, que a de tua irmã nasce d'outra causa...


pois, tristeza
— Ella mojá — de dois segredos.disse eu adivinhei um. . . e . .

— Meu Deus, pensou Pedro. Que adivinhaste, Sarah?


— Adivinhei que minha irmã ama alguém. .

— Mas tu entendes que o amor faz tristeza?


— Oh! não, pelo contrário; amar doce como o mel, é alegre como o.
sol, risonho como os lábios dos anjos...
— Como explicas ?. . .

—-E' que Deborah. Eu não sei se digo uma creancice . c que De-
. . . .

borah, ou ama alguém que morreu, ou alguém que não existe, ou alguém
que lhe foge . .

Pedro segurou as mãos de Sarah, e supplicante:


— Dize, Sarah : a quem chora ella, a quem deseja, com quem sonha ? . . .

Dize-me, sim, dize, minha Sarah. .

— Santo Deus! que anciedade interesseira! Dir-se-hia que queres res-


suscitar os mortos, realisar sonhos, ou vencer rebeldes!
— Comprehendes bem, Sarah, que se trata da felicidade de tua irmã,
e o nosso dever é protegel-a, adivinhal-a. .

— Pois bem ;
promettes guardar segredo ?
.. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Prometto.
— Deborah ama. .

— A quem ?

— A Deus!
— Foi que disse
ella te ?

— Não; adivinhei que ella desejava recolher-se a um mosteiro, para


rezar por nós todos. . . até morrer. .

— Até morrer! disse Pedro sombriamente.


— Uma creancice, pois não é Pensar em deixar-nos, a nós, ? que lhe
queremos tanto! Chega a ser ingrata, ella, que é tão meiga e boa!. .

Sarah, ao dizer isto, tinha lagrimas na voz.


— Porque tu também lhe queres muito, não é assim ?
— Muito! Sarah, muito...
— Tão nova, tão bonita! Não era melhor ficar no mundo? Amar não
offende a Deus. . . não é verdade, Pedro?
— Amar é o principal mandamento do Céo ! . . . Ser mãe foi até a mais
bella missão da Virgem! Deus não adornou a mulher com tantas galas de
formosura e tantos thesouros de caricias para que ella tudo occulte e
perca nas sombras d'um claustro... Dize-lhe, Sarah, dize-Ihe que repilla
taes idéas que me entristecem, que entristecem a todos nós, que a ama-
mos com tantos zelos e dedicações.
— Serei eu capaz de a convencer? pensou Sarah. Como poderei fazer
tão peregrino milagre? Se tu lhe falasses?
— Falar-lhe? Eu? em que?
— Na da clausura,
tristeza e no amor. . .

Sarah, ao dizer isto, arrependeu-se, e corou:


— Não, Pedro, dizc tudo isso a mim, e eu lhe repetirei as tuas pala-
vras. .

— E tu comprehender-me-hias ?

— Experimenta. .

— Pois bem, dize a Deborah. .

— Que offende
ella Deus, por a não querer amar os homens ... in-

terrompeu Sarah.
— Sim, tens razão — dize-lhe isso, e ainda. . .

— Que não amar os homens é desobedecer á lei de Deus.


— Sim, também. .

— Que ella pode um dia, continuou Sarah, conhecer um rapaz, cheio

de mocidade e de talento, talento de bem querer, generoso e altivo, de


caracter tão nobre e tão distincto, de porte tão garboso quanto fidalgo,
meigo como uma creança, ousado como um cavalleiro — um denodado pa-
. !

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 77

ladino dos fracos e dos bons — uma grande alma de trovador, um forte

braço de athleta, cujo olhar supplica e manda, cujos lábios sabem insultar

os maus e beijar os bons ? Um espirito cheio de crença e fé, um entendi-

mento cheio de razão e experiência, que a fitasse como a uma estrella,


que a colhesse como a uma Hor, que a adorasse como a uma imagem
santa, que a embalasse como a uma creança, no collo
Sim, eu dir-lhe-hei que pode surgir amanhã, na vida de Deborah,
quando o lucto (òv a dcsbotar-se, um homem da tua estatura e do teu va-
lor, meu irmão. .

— Sarah, por quem és, não prosigas... A tua exaltação perturba-


me. . .

— Pois, como poderia eu convencel-a senão assim ? Onde buscar mo-


delo mais correcto, exemplo mais frisante? Quem ha ahi, nesse pequeno
mundo, que eu já conheço, onde só ha gente má, intolerante, grosseira,
cheia de vaidade, atrevida c cobarde, viciosa e torpe, gente de armas que
só pensa na guerra, gente de paz — ridículos menestréis, gente de fé, beata
c rude, fidalgos aventureiros, villões boçaes e servis — que possam compa-
rar-se comtigo, meu Pedro ! Para se arrancar do coração d'uma mulher
toda a crença religiosa que a attrae aos pés de um altar, para se fazer
companheira, serva, escrava de Jesus, só encontrando no mundo um ho-
mem a quem se ame, como se ama a Deus!
Pedro pegara nas mãos de Sarah e beija^"á-as commovido.
Sarah tinha no olhar um fulgor extranho.
Havia nas suas palavras aquella mystica eloquência dos primeiros
christãos á hora do martyrio. . .

Perdera, por momentos, aquella graciosa vivacidade de creança, e


apresentava-sc, aos olhos de Pedro, como a mais formosa heroina das
grandes batalhas do amor!
Aquelle sorriso ligeiro e petulante, que poderia revelar, na sua trans-
parência, a ignorância do mundo e a calmaria dos affectos, contrastava,
via-se agora, com o grande vendava'l de paixões que se lhe desencadeara
no peito.

Sarah, ao contrario do que succede no mar, que ruge á superticie e


dorme tranquillo nas profundidades do seu seio, tinha no' rosto a sereni-

dade dum lago, e no coração a procella dum oceano.


— E's um anjo, Sarah!
— Não; sou apenas uma mulher — e as mulheres são as sj^billas que
descobrem melhor os segredos dos tristes.

— E se Deborah não encontrar esse homem?


— Encontrou-o, sim, como eu o descreverei ; mas, por um mj-sterio
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOI.. 10.
.

78 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

que hei de conhecer, reserva para Deus o amor que tem a esse ho-

mem.
— Acabemos com isto, Sarah, e desçamos para tomar a nossa taça
de leit<e, fresco como a tua mocidade, branco como a tua alma.. . disse

Pedro, levantando-se.

Não, Pedro. Peço-te um momento só. Não dormi toda a noite, e,^
se pouco dormi, muito sonhei. Purificou-se-me o espirito n"esses sonhos.
Resolvi aproveitar estas horas da manhã para vir dizer-te, a ti! Pedro,
eu! Pedro, que é preciso salvar, pela segunda vez, a nossa querida irmã.
Conheço a tua bella alma, meu irmão, e sei de quanto és capaz. . . Em-
bora faças um sacrifício, tu, que já a salvaste do inferno, salva-a agora do-

Céo. Deborah pertence-nos, e ella vae fugir-nos para o Céo, pelo portal
sombrio d'um mosteiro. Pedro, pelo affecto que me tens, pela vida de
tua mãe, pela alma de meu pae, por tudo que mais respeitas e queres,,
pelo teu futuro, pela tua gloria, de joelhos te peço: ama Deborah!
E Sarah ajoelhava deante de Pedro.
— E pedes-me que a ame.''. . . Tu, Sarah?!
— Eu, sim; Deus, que e lê no meu coração, está vendo, n'este mo-
mento, quanto me orgulho d'esta empresa!. . .

— Mas. .. ia Pedro a dizer; Sarah, porém, tapou-lhe a bôcca com a


sua mão pequenina.
— Deborah ama-te e chora, e adoece, e foge, e morre d'esse amor!
Ouço-a, ás vezes, de noite, a pronunciar o teu nome, surprehendo-a todas
as manhãs, de joelhos, como eu agora estou, deante do oratório de tua
mãe, a rezar por ti. . . Se me affagas ella afííige-se, se lhe falas ella cora

e perturba-se! Se te demoras, o seu olhar anda inquieto, — beija a occultas


as flores que lhe dás, e, quando ellas seccam, guarda-as religiosamente
no seio. . . Pedro, disse Sarah, levantando-se, com modo resoluto, se me
amas, e fitou-o com olhar severo e húmido, ama Deborah, e pede-lhe que
seja tua mulher. .

Pedro ficou silencioso. Não estava preparado para taes surpresas e


commoções. Saltara-lhe de alegria o coração ao saber que Deborah o.

amava, mas a admiração por aquella nobre creaturinha, que lhe falava
daquelle modo, dominava-o a ponto de ficar sem alegria, sem tristeza e

sem resposta.
Passados curtos momentos, que Pedro aproveitou acariciando a ca-
beça de Sarah, disse-lhe elle, aconchegando-a a si:

— Minha querida Sarah, a vida é mais triste ainda do que a vês e


julgas.

Deborah não acceitaria o meu amor — não quereria ser minha mu-
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 7.1

Iher. O seu caracter c nobre como o teu, e na vida de Deborah ha um


mysterio, que tu nunca conhecerás e que a impede de abrir o coração a
qualquer aífecto com que tu sonharas. .

— Não me digas isso, Pedro, que me affliges. Pois é possivel que haja
alguma mulher que não acceitasse, alegre, radiante, a confissão do teu
amor ?
— Todas as mulheres se julgariam felizes? perguntou Pedro, collocando
Sarah bem de frente.
— Todas: menos eu, emendou, baixando os olhos... Quero-te para
meu companheiro n'esta gloriosa tarefa de salvar uma infeliz. Depois,
quando forem muito felizes, eu sel-o-hei também.

Bem, minha adorada irmã; cuidarás commigo na sorte de Deborah.
Vigial-a-has, de dia e de noite, e de tudo que vires e ouvires só a mim
darás parte. Precisava de alguém que acceitasse essa tarefa, e julgava-te
moça de mais para tão melindroso mester. Nem eu queria inquietar a pla-

cidez da tua alma. Agora o caso é outro; estás uma mulherzinha com
todos os encantos e virtudes. .

Deborah surgiu no terraço, trazendo numa saha de prata duas taças


de leite.

— Na ausência de Zaira, que ainda não \oltou da fonte, \ enho trazer


a meus amos, que tanto madrugaram...
— Sarah, disse Pedro, depois de beijar Deborah, aqui tens o leite

que te olfereci ha pouco, fresco como o teu rosto e branco como a tua
alma. .

— Adivinhei-lhes, pois. os pensamentos, disse Deborah.


— Não, minha irmã, os nossos pensamentos foram para ti... Pedro
só de ti me falou, e eu .só de ti falei. .

E as duas irmãs abraçaram-se.


Deborah tinha um sorriso nos lábios...
D'csta vez Sarah c que tinha lagrimas nos olhos.
E despejaram as taças.
—^F^alaram de mim? Quanto lhes agradeço, meus amigos!
— Fizemos um pacto, eu e Sarah, para, em pouco tempo, alegrar o
teu rosto, e dar-te conforto e esperanças . .

— E' uma conspiração generosa, mas inútil. Eu hei de ser alegre,


porque a felicidade começa a sorrir-me no vosso carinhoso affecto. Para
ser feliz, falta-mc apenas um pouco de esquecimento e muito de resigna-
ção. Aqui, onde deve haver muita luz, eu sou apenas uma sombra.
Meus amigos, preciso de os deixar...
— E's ingrata. Deborah. .
. . . ! .

So MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Enganas-te — a gratidão que me


é A gratidão o amor... afasta. e

— Sarah, disse Pedro, serenamente, não pode avaliar com rigor o al-

cance das tuas palavras. Eu, sim. Terei, pois, de te dar alguns conselhos,
que me parecem conformes ás difficuldades da tua situação. Promette-me,
pois, minha irmã, que nada resolverás nem farás, emquanto eu não vol-

tar d'uma pequena jornada a Évora Parto amanhã. —


— Prometto, disse Deborah.
— Antes, porém, da minha partida, preciso de te dizer duas palavras,
a sós.
— Já? perguntou Deborah, sem olhar para elle.

— Quando voltares da egreja. O teu espirito virá mais conformado e

generoso para escutar os meus conselhos.


Na torre próxima o sino chamava os ti eis. .

Sarah cingiu pela cintura a irmã . .

E partiram . .

Pedro debruçou-se do terraço para as ver passar em direcção ao tem-


plo, e assim as seguiu com a vista até que ellas subiram a escadaria do adro.
—Meu filho, disse Joanna batendo-lhe no hombro, quando estão duas
estrellas muito juntas é tão difficil saber qual d'ellas se está fixando!...
— Mas ha a certeza, minha mãe, de que se olha para o céo. .

Pedro sahiu também a fazer os seus preparativos de viagem. Preci-


sava de ir a Évora. No espirito traçara um plano de que poderia resultar
a sua e a felicidade de Deborah.
De casa do regedor da justiça, onde pouco se demorou, foi em busca
do prior do Crato, com quem esteve largo tempo. Depois deu uma volta
á cidade baixa, afim de se informar dos últimos acontecimentos. Desde
que os delegados del-rei tinham começado o seu afan justiceiro, nunca
mais dera, em sua casa, noticia do que o patibulo fizera para vingar os
christãos-novos. Muitas dezenas de fanáticos e bandidos tinham pago com
a vida, depois das mais horríveis mutilações, a sua obra de sangue e de
pilhagem.
Nos cadafalsos estavam expostos corpos a que tinham os verdugos
legaes amputado as mãos e as orelhas. muitos dos réos, por suas atte-
. .

nuantes, apenas tinham sofírido o garrote —o fogo, que a outros consu-


mira, não deixara contar o numero dos justiçados
Quasi todos os homens válidos das ultimas classes tinham sido chama-
dos ás armas, e guarneciam Lisboa, que entrara n'uma relativa serenidade.
. . !

íMvsterios da inquisição

As grandes catastrophes populares são como os grandes temporaes


— quasi sempre se mudam bruscamente em bonança. As grandes des-
graças e as grandes dores, creadas nas praças públicas, n'um momento
se recolhem e emmudeccm. O que fica de tudo isso, e que só lentamente
se extingue, não o mostra a luz do sol. .

Seria necessário, para o avaliar, andar escutando de porta em porta.

Lisboa parecia um cemitério; e, por isso mesmo, havia n'ella um si-

lencio profundo. Depois d'uma batalha, apenas se ouve, aqui e alli, um


ténue gemido, que pouco depois se apaga.
A peste declinava ;
parecia fugir envergonhada deante da obra destrui-
dora da intolerância religiosa !

Os frades andavam aterrados, os mosteiros tinham as portas cerradas,


os templos quasi desertos, o mosaismo homisiara-se, e os christãos-velhos

tinham envelhecido de medo, ou de remorsos


Apenas a plebe, diabolicamente inHuenciada pela eterna conspiração

fradesca, lançava ainda olhares de fogo sobre os marranos que passa-


vam. . . E, comtudo, porque a Natureza não veste lucto nas grandes heca-
tombes, vestia-se o arvoredo de ramaria e de fructos. Dir-se-hia que o
maio festejava a justiça e a paz !. .

Pedro, ao voltar a casa, encontrou Deborah costurando, no seu quarto


de trabalho, Joanna mourejava na cozinha, dirigindo Zaira, Sarah regava
os seus craveiros no terraço.
— Queres ouvir-me, Deborah ? disse Pedro, sentando-se ao lado de
sua irmã, e tomando-lhe as mãos.
— O meu maior prazer Pedro. !

— Pois bem vou ser muito parco ; em palavras e muito frisante nas
perguntas. Promettes responder-me com a voz do teu coração ?

— Juro-o . . .

— Deborah, amas alguém ?

A perturbação na interrogada era visivel. O sangue parecia querer re-

bentar-lhe nas faces. . . Olhou a costura, olhou o céo através da vidraça,


apertou muito, sem querer, talvez, as mãos de Pedro, e, depois de alguns
momentos :

— Porque me perguntas isso !

Não era uma resposta ; era um adiamento salvador.


— Porque o fim da jornada de amanhã depende da tua resposta, boa
amiga. Sc franca; sabes quanto te prezo e estimo, e quanto desejo, para
completar a minha obra, conhecer os mysterios do teu coração e apagar
de todo a memoria dos teus infortúnios... Dize-me — amas alguém?
— Como tu és bom, meu irmão! Quem me dera merecer-te 1 Que
. . . . . : :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Deus me tivesse defendido, como tu me defendeste, e eu te responderia


com a pureza que me resta —a do meu coração . . .

— Mas, juraste-me. .

— Sim, jurei, porque não me passara pelo espirito a menor descon-


fiança de que desejavas saber. .

— Repara — Deborali, depende da tua resposta —a tua e... a minha


felicidade.

E Pedro accentuou estas ultimas palavras.


as mãos nos olhos, como para meditar, e logo em seguida,
Deborah poz
como quem toma uma resolução inabalável

Pedro, o amor é um direito, e eu não tenho o direito de amar. . .

Se algum terno sentimento habita meu peito, não pode ser amor é re- —
ligião.

Quando uma mulher ama o impossível, ama em sonhos, aspira a um


ideal, appetece o que não existe, quer o que não lhe pertence, segue o
que não vê, ofterece o que não tem, níío deve viver como as outras mulhe-
res — espera, rezando, a vida dum outro mundo, e offerece a Deus to-

dos os anceios da sua alma. Fica, pois, sabendo, meu irmão, que a nin-
guém amo, nem quero. .


Mas se alguém te amasse, Deborah; se alguém, conhecendo a tua
vida e o teu coração, te dissesse, sincera, apaixonadamente, que te queria
para sua mulher ?

— Responderia, que o amor, que não se reflecte na pessoa amada, não


é amor, como não é luz o fogo que não illumina. . .

— Perdôa-me, se insisto, minha querida irmã, mas eu preciso de


saber a fundo o estado do teu coração... Vamos, admitte que amavas
alguém, e que esse alguém te amava e te queria... Serias sua mu-
lher :

— Não; a um homem que se ama e respeita não se entrega uma mu-


lher nas minhas condições. O segredo da minha desgraça já não é só meu . . .

— Esse segredo acompanhar-me-ha á sepultura, Deborah.


— Mas elle?. .

—A justiça de el-rei, se elle tem o seu crime escripto no coração, tudo


reduzirá a cinzas no cadafalso de Évora — coração e segredo!
— E tu vaes ? . .

— Verificar que o monstro, só na forma de um espectro, poderá reap-


parecer na minha e na tua vida.
— Pedro, tu que és tão nobre e tão leal, que pensarias de mim, se eu,
embora innocente, rasgasse, a occultas do eleito do meu coração, essa pa-
gina negra do livro da minha vida

I
. : . : . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 83

— Dir-te-hia: —>- deixa intacta essa pagina, e mostra-lh'a como prova do


teu martyrio e da tua honestidade.
— Ai! Pedro, disse Deborah, soluçando c escondendo o rosto sobre o
hombro do honrado confessor — que homem teria a nobre generosidade
de perdoar a violência e o infortúnio ?

Pedro inclinou a cabeça para o lado de Deborah, e, como se lhe dcpu-

zesse um beijo na testa, que o suor inundava, dissc-lhe em segredo, muito


cm segredo :

— Eu! minha querida Deborah.


Deborah ergueu rapidamente a cabeça, e, numa forte convulsão de

choro, beijou as mãos de Pedro.


— Amo-te, Deborah, e as tuas lagrimas respondem-me afinal — tu tam-
bém me amas. . . Pois bem, por Deus, que não quiz defender-te, tu serás
minha, purificada pelo nosso amor, pelas cinzas d'um miserável, e por es-
sas tuas bemditas lagrimas. .

Deborah não respondeu, ergueu-se rapidamente, enxugou os olhos, e


chamou afflicta

— Sarah, Sarah, vem j;i, vem depressa!


Sarah appareceu por encanto. . . dir-se-hia que tinha sahido do chão, ou
que se occultara bem perto.
— Sarah, disse Deborah, Pedro, o nosso bom amigo, tão digno, tão
honrado, nosso salvador e nosso Deus; Pedro, o mais digno e o mais hon-
rado de todos os homens, acaba de me dizer que te adora, porque és for-
mosa e pura! Vaes ser muito feliz, Sarah. . . ahi o tens. .

E em seguida Deborah, cahindo n"uma cadeira, deitou a cabeça sobre


a mesinha da costura, a soluçar, a soluçar nervosamente. .

— Minha mãe, gritou Pedro, vindo ao encontro da velha Joanna —


mande apparelhar o meu cavallo, que me leve ate o Tejo. Parto esta noite.
Depois, voltando-se para Sarah
— Vela por tua irmã, e adeus.
— Tu vaes?... perguntou a bondosa creança.
— Ver como se executa, a feiTO e a fogo, justiça de el-rei. .

E partiu. .
!

III

o purgatório dos frades

Nos séculos xv e x\i, Évora, a formosa capital do Alemtejo, teve no-


tável importância na vida da politica portugueza.
Foi n'ella que, por diversas vezes, se reuniram as cortes geraes, em
que os nossos reis, sincera ou habilidosamente, quizeram retemperar o
seu poder tradicional e absoluto, ouvindo os representantes das diversas
classes sociaes sobre assumptos menos atfectos aos interesses populares.
A' sombra do arco de Sertório e sobre as ruinas de Diana passeou
muitos dias a corte de Portugal com o seu maior luzimento, rodeada dos
fidalgos guerreiros, seus consócios no governo do reino. Foi alli também
que, antes que D. Henrique abatesse o grande arco triumphal, D. João II

mandou abater no cadafalso a cabeça fidalga do duque de Bragança e


com ella o velho poder feudal.
Nas torres ameadas dos seus palácios estiveram encerrados, pagando
o insuccesso de suas tramas e rebeldias, alguns cortezãos, cheios de orgu-
lho e petulâncias.
Não menos illustre e honrada ella foi, perante a Historia, nas aventu-
ras do século XVII... Que o diga o exercito de D. João d' Áustria, que
teve de deixal-a senhora e livre, quando a julgava esmagada e perdida
Que o digam os bravos do Ameixial, se os filhos e as muralhas d'aquelle
pedaço de terra portugueza sabiam, ou não, agradecer e aproveitar o favor
da sorte e o milagre do patriotismo.
N'aquelle museu colossal dos mais raros modelos de architectura está
escripta, em pedra ennegrecida pelos séculos, quasi a historia da humani-
dade, desde a civilisação extincta da velha Roma até o ultimo arranco da
Edade-Média E, como se tudo isso fora pouco, ainda no século xix, sobre
!

aquellas muralhas carcomidas sibilaram as balas de Napoleão, para cas-


tigar o esforço de tão honrada gente pela liberdade nacional; e, sobre as
pedras d'aquellas calçadas, andaram as patas do cavallo de Loison, pi-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 85

sando os corpos vencidos dos nossos soldados e villões! A' idéa da inde-
pendência se associa, na historia da princeza alemtejana, a idéa das liber-

dades politicas, tendo tido a gloria de receber em deposito as armas do


grande exercito legitimista, depois da batalha da Asseiceira c da convenção
de p]vora-Monte.
Justiça de João II, arrojos de Manuel I, fanatismos de João III, vanda-
lismo do cardeal-rei, sumptuosidades de João V, tudo alli se affirma nas
innumeras abobadas dos seus conventos e nas ruínas de seus majestosos
alcáceres.
Foi alli também que el-rei D. Manuel I quiz executar a sentença mais
ruidosa da sua justiça, em desaggravo dos morticinios dos christãos-novos.
Convencera-se el-rei, por informação do seu conspícuo secretario de
Estado, de que os chefes visiveis da sedição tinham sido os dois frades
dominicanos, João Moucho e Bernardo Aragonez, como também se con-
vencera de que de toda a ordem de S. Domingos partira a torpe conspi-
ração contra marranos e confessos. Por isso expatriara todos os membros
daquella ordem e entregara o mosteiro aos cuidados dos clérigos secula-
res ;
por isso isolara os dois frades dos suppliciados de Lisboa e seu termo,
e os fizera prender na torre de Alconchel.
Não é fácil determinar em terra tão coalhada de monumentos e rui-

nas, onde teria sido erguida a famosa torre de Alconchel, ante-camara do


cadafalso dos bandidos dominicanos ? Schaeffer cita, de passagem, esse
pormenor; Herculano imita-o, apesar de ter consultado os documentos
inéditos da Ajuda; Azenheiro, que até enumera com precisão o numero
dos suppliciados, não pormenorisa as execuções d'Evora, senão com o tre
cho citado por Schacrfer e que é extrahido da Chroiiica dos Senhores Reis
de Portugal.
Seria aquella torre algum monumento isolado, ou dependência dos
famosos conventos dos Loyos, Sé ou S. Francisco ? Seria algum morro
que n'essa épocha ainda recordasse a velha cidade romana ? O facto de
terem sido os dois frades enterrados no convento de S. Francisco poderia
fazer suppòr, que elles teriam estado captivos em alguma torre desse con-
vento. . .

O nome hespanhol dado a essa torre é indicio de que ella devia ter
sido construída cm tempos em que toda a Península esteve sob o dominio
do mesmo povo invasor. . .

A circumstancia de haver povoações com aquelle nome perto de Ba-


dajoz, Cuenca e Saragoça, fala-nos talvez de construcção anterior á con-
quista de Geraldo, e, portanto, devida ao trabalho de godos ou árabes,
expulsos d'aquella cidade em princípios do século xn.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. II.
. , '

86 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

De todas estas hypotheses, porém, a mais acceitavel é a de que os fra-

des tivessem sido presos n'uma das torres que fazem parte do palácio an-
nexo ao convento dos Loyos, fundado pelo i." conde de Olivença D. Ro-
drigo Aftonso de Mello. Este fidalgo viveu no tempo de D. Affonso V, de
quem foi guarda-mór e de quem recebeu também a mercê de governador de
Tanger. O conde de Olivença falleceu em fins do século xv, e deu ori-

gem, com o casamento de sua filha D. Phillippa de Mello ao tronco da


casa do Cadaval.
Não devemos também esquecer que foi numa d"essas torres que
D. João II mandou encerrar o duque de Bragança D. Fernando.

A torre de Alconchel que é hoje conhecida por esse nome, é um morro


que existe junto do castello. Não tem condições que a Historia lhe at-
tribue.

Pêro P^steves, que de Setúbal partira para Évora, com instrucçóes es-

peciaes del-rei, entrou naquella cidade, com a sua gente e os dois capti-
vos, ao principio da noite.
O calor e a poeira fatigara demais, durante a jornada, a sombria ca-
ravana.
Era indispensável ultimar aquella grave missão sem esperar o dia se-
guinte. Os frades tinham pressa de entrar na sua prisão. Affligia-os os . .

olhares da populaça, que os seguia e apupava. . .

O Moucho vinha pallido e acabrunhado, com os olhos no chão, e es-


tremecia de medo, sempre que ouvia uma apostrophe dos aldeãos que vi-

nham ao caminho vel-os passar, ou que se debruçavam dos muros para lhes
arremessar pedras ou mãos cheias de terra. O Aragonez affrontava a inso-
lência, e chispava o olhar sobre os aggressores.

As creanças, o enorme rapazio, que enxameia as ruas das povoações,


emquanto a guarda não se afastava por Ínvios caminhos, entre arrifanas
e almargens, corria adeante das lanças, alvoroçando os casaes, para que
toda a gente viesse admirar o caso extranho.
As mulheres, ao verem duas sagradas creaturas entre gente do rei,

soltavam exclamações de protesto e compaixão, e, como se estivessem as-


sistindo á conducçáo de Jesus ao pretório de Pilatos, de longe cuspian
em movimento de grosseira esconjura, sobre os soldados de Pêro.
— Judeus, marranos armados, Iscariotis de má morte, larguem os san-
tinhos!. .

Ao chegar o grupo a uma fonte, a força parou alguns momentos.


— Morro de sede ! disse frei Moucho.
Judeus, mnrranos armados, lari;uem os saniiiihos

%^
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 87

— Beba, disse Pero, mas com cuidado, que tenho de encregar-vos in-

teiro e vivo, e sois pesado de mais para irdes sobre as lanças, em guisa

de liteira.

Moucho avançou, entre dois homens, e bebeu, bebeu, como se quizesse

apagar o incêndio que lhe minava o peito.


Não o deixaram acabar; com a ponta das lanças levantaram-lhe a ca-
beça.
— E' mister não esquecer que as maleitas podem demorar a marcha.
O Aragonez bebeu também, e, com a mão, que metteu na poça, ba-
nhou os olhos vermelhos e inchados.

Quando a noite chegou, os captivos resfolegaram. Ao menos, já não


ouviam insultos d"uns e lástimas de outros, e o sol não os queimava com
tanta impiedade. . .

Depois de atravessarem apressadamente, com os hábitos regaçados,


um extenso ferregial, entraram a porta de Machede.
— A quem ides entregar-nos? perguntou o Aragonez.
— A quem mandou pela bòcca do seu secretario, respondeu
el-rei l^ero.

— Advirto-vos de ^le, emquanto vestirmos estes hábitos, pertencemos


a D. l^edro, bispo de Marrocos e cónego de Évora, e não ao desembargo
d"el-rei.

— Hontem talvez que tivésseis razão; hoje, porém, muda o caso de fi-
gura. . . Ides ser conliado aos cuidados de Manuel Aftbnso, que anda com
alçada mór n'esta comarca... Elle que depois vos de o destino que lhe

aprouver.
Frei João Moucho, mal entrou na cidade, ergueu a cabeça, como se

tivesse recuperado forças, ou esperanças.


— Ora ainda bem, poltrão, que deixas ver os olhos I disse o Aragonez
cm tom reprehensivo.
— Não os levanto para que mos vejas, mas para ver. . .

— Para ver o que? se a noite está escura, que nem o Arco de Sertó-
rio serias capaz de ver desenhado no fundo negro do firmamento.
— Assim — tu nada vês, mas
é eu vejo. Vejo, ou adivinho, esta nesga
de céo, a primeira que meu olhar alcançou, logo que nasci. Olha, acolá,
e indicava com o dedo uma luz distante, deve ainda existir a casa de meus
pães, velha, feita em ruinas, no meio d'algumas cabanas, a cujo fogo me
aqueci tantas vezes! Ai! Aragonez! parece-me que ainda estou na minha
infância, a dois passps do meu berço!. . .

— Pois, meu caro Moucho, se sabes onde fica o cemitério, olha antes
para clle... E's bem feliz! vens acabar onde principiaste... Fica-me muito
longe o Aragão! Não te \erei a cabana, porque nos espera a torre, mas
. . .

88 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

em breve matarás saudades, dormindo ao lado dos que tiveram o máu


gosto de te dar á luz n'esta maldita terra, onde morrem fidalgos e frades

ás mãos dos reis ímpios ou imbecis.


— Aragonez, não tens a minima esperança?
— De queixar-me ao inferno das injustiças
ir dos homens e de Deus ?

Tenho, sim.
— Não blasphemes, desgraçado, que a culpa nossa.. foi .

— Nossa, por que, imbecil Não tivessem faltado os que se diziam de-
?

cididos. Bem sabes que se a ordem quizesse ! . .

— P^oi uma traição.


— Esperança! quando poltronice só a aleives aconselha?
— Mas o provincial ? . . .

— Álvaro? Esse ha de arrancar-nos os


F^rei hábitos e entregar-nos clé-
rigos á justiça ecclesiastica.
— Estamos então perdidos ?

— Alto, disse Pêro, estamos chegados. Deve estar aqui o licenciado


Manuel Aftbnso. .

Moucho reconheceu o legar o convento dos Loyos e as torres do al-


:

cácer d'01ivença formavam uma sombra... As ameias, comtudo, distin-


guiam-se formando um recorte no firmamento estrellado.
—A que vindes ? perguntou um alabardeiro, ao ver a guarda estacar
em frente do portal da alcáçova, batendo com as hastes ferradas das lan-

ças no lagedo do pavimento.


— Da parte d'el-rei, com mandado do senhor secretario de Estado,
disse Pêro.
— Dae-me o que escripto trazeis, porque não posso franquear-vos a
entrada, sem ordem expressa do senhor licenciado.
^Aqui tendes, apressou-se Pêro a dizer, entregando um rolo de per-
gaminho d'onde pendia o sello do Estado.
O alabardeiro passou o documento ás mãos d'outro homem, que des-
appareceu na escadaria, apenas alumiada por um lampeão suspenso na
arcada do recebimento.
— Entretanto, disse o guarda, podeis encostar as lanças neste recanto,
que é contra a ordenação do desembargo del-rei a permanência de gente
armada neste logar, sm troca de santo e senha. .

A gente de Pêro entrou de tropel e depoz a lançaria, encostando-a ao


meio portão ainda cerrado.
O emissário não se demorou. Ainda vinha descendo e já dizia, em voz
de aguazil confiado:
—O senhor licenciado Manuel AlTonso manda que os presos, acom-
: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 89

panhados de dois homens armados c do capitão da guarda, subam com


presteza e vão á sua presença.
Assim se fez.
Pêro subiu atraz do aguazii, e os frades logo em seguida, devidamente
ladeados.
Manuel AlVonso estava no salão, que se abria na volta da escada, sen-
tado a uma grande mesa de madeira preta de talha e torceduras de notá-
vel phantasia. Allumiava-se com alto candelabro de três luzes, e tinha na
cabeça o gorro distinctivo da sua auctoridade.
Os dois guardas ficaram junto da entrada, por traz do alto reposteiro

escuro, onde se viam, em. lavores do melhor estofo, as armas de D. Ma-


nuel. O resto do salão estava cheio de sombras.
João Moucho unira as mãos e deixara-as cahir sobre a cintura ; o Ara-
gonez cruzou os braços
— Capitão, disse o magistrado, são estes os frades de S. Domingos
que cl-rei me envia ?

— Senhor — são frei João Moucho e Bernardo Aragoncz, capitães do


povo amotinado nas ruas de Lisboa, e responsáveis principaes dos malefí-
cios de 19 d abril, e que por ordem do go\'crnador D. Álvaro de Castro
persegui e fiz prender.
— Levastes estes homens a Setúbal, por ordem de D. Álvaro
— As prisões ordenadas por D. Álvaro foram mantidas por meus amos,
delegados especiaes d'el-rei. Foram estes que me enviaram a Setúbal. .

— Está bem, está bem, disse o licenciado. E em seguida:


— Frei Bernardo — accusado de terdes animado a sedição de Lis-
sois

boa. Tal fizestes por vontade própria, ou por mando de vossos superio-
res :

— Senhor licenciado, sinto-me cançado e doente. Nem corpo nem es-

pirito podem soffrer, antes d'algumas horas de descanço, esta posição e


esta devassa. Além de que, as immunidades da ordem de S. Domingos,
a que pertenço e sir\ o, dão-me o direito a, sem rebeldia, reclamar justiça
ecclesiastica, antes que a secular intervenha.
— Lembraes os direitos, que vêem desses hábitos, e não vos lembrastes
dos vossos hábitos, quando os manchastes e polluistes em damnos e sacri-
légios. Attendo os rogos que vêem de vosso cançuço e doença. .. E vós,
frei João Moucho ':

— Foram meus propósito e afan servir a Deus e á Fé catholica, e as-

sim, ao mesmo tempo, os interesses do reino. Fazei de mim o que vos


aprouver. E-me indilTerente a ordem da intervenção das justiças. . . O tri-

bunal de Deus me julgara em ultima instancia...


: . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Pois seja, rematou o licenciado.


Depois, dirigindo-se a um vulto que se movia no fundo do salão:
— Gil Gonçalo, na vossa qualidade de meirinho, recolhei estes piedosos
irmãos á cella que lhes está reservada ; e tu. Pêro, deixae parte da vossa
gente, de que proderei ter carência immediata. e parti, amanhã, para Lis-
boa com esta missiva, para frei Álvaro, que é bacharel em sacra theologia
e Provincial de S. Domingos. Quero assim attender a reclamação dos ac-
cusados.
— Vamos, disse o meirinho, fazendo um signal aos dois frades.
Na mesma disposição, e com a mesma comitiva, o Aragonez e o Mou-
cho sahiram do salão.
O meirinho, com passo vagaroso e tilintando um molho de chaves-
grandes e ferrugentas, desceu a escada principal, atravessou o vestíbulo,
e um recinto, ao ar livre, onde se ouvia o passo regular dos vigias, e se
via o brilho prateado das lanças ; entrou depois num corredor extenso e
húmido, onde a lanterna do guia mostrava bem próximo da sua cabeça a
curva da abobada.
Pelo caminho, como se falasse sósinho, Gil Gonçalo ia dizendo
— Não foi por aqui, não, que entrou o infeliz D. P^ernando ; mas por
ter entrado por melhor porta e gosado melhor guarida, não segurou me-
lhor a cabeça sobre os seus hombros fadados para manto de rei I

E continuava andando, levantando e baixando a lanterna, conforme


mais lhe convinha ver o chão, ou olhar em frente.
E Gonçalo continuou monologando
Gil
—-Ainda não ha muito tempo andei por aqui, a mostrar estas bellezas
ao novo duque D. Ja^me, que, ao voltar ao reino, quiz ver a pousada que
el-rei D. João destinou para seu pae. Coitado! Foi vendo e chorando, mas
as lagrimas seccaram, e elle sempre foi cuidando em substituir o seu
brazão d'armas! Talvez tivesse razão —
o cutello do algoz não é atavio
muito alegre e glorioso no escudo da casa de Bragança. .

— Falta muito! disse Pêro.


— Não, disse o meirinho: subir alguns degraus... Este caminho não
é usado, e até pouco conhecido da gente da alcáçova. Em chegando lá
a cima verão que a vossa cella tem frestas que olham para o céo, e uma

escada muito nobre, embora estreita e íngreme, que desce para o terraço
interior. Ora, cá estamos!

Effectivamente, no cimo duma estreita escadaria, o ríieirinho parou, e.


escolhendo e experimentando chaves n"uma grossa porta de ferro, conse-
guiu abril-a.
Os frades loram os primeiros a entrar. E' melhor dizer — os únicos.
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

por que mal transpuzeram os humbraes, o meirinho puxou novamente a


porta para si, deu a volta á chave e disse aos seus companheiros:
— Estão arrumados! Os guardas que tratem d'elles com o carinho que
cUes merecem. As setteiras dão-lhe ar fresco durante a noite, e luz forte,

mal rompe a manhã. Pelo que diz Manuel AtTonso, estão aqui estão nas
profundas do inferno. .

— E quanto tempo estarão n'este purgatório? perguntou Pêro.


— Antes do rim de julho devem ter promptas as contas de pousada.
El-rci pensa em vir para Évora em agosto, e, portanto, em breve a ci-

dade, e elles também, ouvirão os pregões da sentença. .

Fechada a porta, Moucho e Aragoncz acharam-se ás escuras, n um


quarto rectangular, com uma setteira aberta em cada face. Pelas quatro
aberturas não entrava senão uma ténue claridade; o olhar dos frades
sahindo por ellas via brilhar as estrellas. A pouco e pouco foram-se atlei-

çoando ás trc\as, e terrível contradicção! só então puderam distinguir dois

catres miseráveis, uma mesa que a elles correspondia em miséria e as-


pecto, e um cântaro. . .

Para missionários ou ascetas tal conforto estaria apropriado; mas para


frades de S. Domingos, aquellc desconforto era já principio d'um terrível

martyrio.
Durante alguns momentos ainda se ouviram, na escada e no terraço,
vozes que se afastavam; depois o mais completo silencio, apenas inter-
rompido pelos passos das atalaias.

O Aragonez espreitou por um^a das frestas e viu que a cidade dormia.
O arco de Sertório erguia-se, como as torres dos mosteiros, diim
grande mar de sombras . .

A' outra fresta, voltada para outro lado, foi o Moucho encostar a fronte
encandescida. Ambos avistavam a praça onde estava o nicho de Nossa
vSenhora, que presidira á execução do duque.
Ambos se detiveram a fixar a luz da lâmpada, que se balouçava n"esse
sinistro logar!

Um julgava estar vendo, nas sombras projectadas por essa luz, as- tá-

buas dispersas do cadafalso . . .

— Olha, Aragonez, disse Moucho, estou recordando um facto que me


fala da inflexibilidade dos reis.

E, sem se \oltar para o companheiro, respondeu o hespanhol:


—E eu também; estamos a dois passos desse logar onde foi apunha-
lado o irmão do nosso carcereiro. .

— E' verdade, replicou o outro : — Dois duques, dois principcs, dois


parentes. .. o duqiie de Vizeu c o de Bragança 1 O que será de nós.
. . ! .! :

93 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Tens medo da morte, Aragonez ?

— Não; tenho medo de morrer. .

— Também eu, também eu! Morrer, esperar a morte! ser assassinado,


sem resistir, tendo íôrça, sem levar agarrados nos dentes o algoz e os
seus mandantes! Alguém nos vingará, depois...
— E que morte teremos, Santo Deus!
— A que dêmos e aconselhámos... Ella por ella... se não é justo,

era de esperar. Essa raça, que nos persegue, é tão boa como a que per-
seguimos.
— Nós não matámos a sangue frio, de vagar . . Foi uma vertigem I

Foi como na guerra, d"onde saem ás centenas cadáveres e triumphado-


res . .

— Vê se te calas ; não estou para philosophias. Pensa e cala-te. Não


quero nas tuas palavras o écho do meu pensamento. . .

E assim, olhando o céo e a cidade, ficaram mudos novamente. Pare-


cia que tinham coUado as faces a essas aberturas do mundo, da liberdade,
da vida.
Atraz d'elles estavam o cárcere, a fome, a sede, o desespero, a morte
com todo o seu séquito de martyrios
E, quanto mais pensavam n')sso, mais extendiam o pescoço para aspi-
rar a briza da noite. la-lhes a alma n'aquelle ver e n'aquelle suspirar.. .

— Aragonez — voltou novamente o eborense, que parecia mais se


aterrar com o silencio que com os lamentos — tu crês em Deus
— Que remédio
— Mas Deus, afinal, talvez não olhe para nós, nem nos acuda...
— Tem mais que fazer. . . e nós nem ao menos somos geraes de or-
dens monásticas ; somos apenas dois miseráveis que os grandes adulam e
exploram.
— Por mesmo, Aragonez
isso ; Deus protege os miseráveis.
— Fala-lhe, então, se tens fé. Ha milhões e milhões de mundos no
universo e ha milhões e milhões de miseráveis só n'este mundo.
O Moucho, ouvindo isto, sem mesmo reparar no que fazia, murmurou:
— Meu Deus !

— Fazes bem em o chamar em voz baixa, pode o Diabo ouvir-te, e


chegar primeiro.
— Sabes o que eu queria, Aragonez ?

— Que dessem tempo para passares a


te fronteira. Isso também eu
queria. . . Ainda que a respeito de extradição Castella está muito condes-
cendente. .

— Não; queria adormecer, dormir muito, e nunca mais acordar...


. ! ..

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 9^

— Pois, enforcate e deixa-me tranquillo.


FatigoLi-se o Aragonez de olhar para a cidade, e voltou-se para ver a

sua cella.

A cabeça de Moucho continuava a desenhar-se na meia luz da setteira.

— Um cobarde murmurou o hespanhol, desdenhoso.


!

A noite começava a refrescar, e o Aragonez sentou-se no catre, de-

pois de ter, com o habito que despiu, tapado a fresta mais próxima. O
cárcere continuava agreste.
—-Não durmas em pé, desgraçado; fazc como eu, e livra-me dessa
lançada fria que me faz tintar.
— Também eu estou tremendo, mas não é por causa do ar da noite. .

— Bem — sei é de medo... Sc a populaça de Lisboa te visse agora,


não poderia reconhecer o seu chefe feroz e sanguinário. Mal sabia ella que
o onagro vestira a pellc do leão
— Cobardia é isso, Aragonez. . . Sopraste o meu ódio e agora cospes
na minha fraqueza. Tu bem sabes quem me arrastou áquella desgraça.
— Talvez queiras dizer que fui eu! Não te esqueças de dizer isso ao
provincial c ao liccnceado. .

—E possível. .., senão para salvar o corpo, ao menos para resgatar


a alma.
— Acautela-te, porém; olha que se me aggravas a situação, abro-te a
cabeça de encontro a estes muros . . .

O Moucho voltou-se rapidamente:


— Tomara eu que tal fizesses. Morreria com a certeza de que o teu
mart3'rio seria maior que o meu.
— Descança, havemos de tel-o egual. Também ha egualdade na injustiça.
— Deixemo-nos de injurias, Aragonez, que, afinal, somos dois cobar-
des — em mim o medo supplica — e em ti pragueja. E a única ditTerença.

Tu já pensaste bem na brutalidade do garrote ?

O Aragonez deu um murro sobre a mesa.


—A tua companhia já é parte da minha tortura. O peor garrote é a
buzina da tua voz lacrimosa a lembrar a agonia que ha de vir. . .

— E para entreter o tempo, Aragonez ; a noite parece-me um século. .

— Pois então senta-te.


O eborense imitou o seu companheiro : sentou-se na beira do leito.

— Queres conversar ? pois conversemos. Talvez que te cances de me


fazer perguntas. Vou embalar-te. . . Imbecil, falas apenas no garrote...
E o resto ? Ainda não te lembraste do fogo. . . ?

O Moucho estremeceu a ponto do Aragonez sentir o ranger do catre.


—O fogo, sim. Se não fosse o garrote, sentiríamos o calor da fogueira
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOI.. 12.
. ! . .. . . .

q4 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

a torrar-nos os ossos. . . Não te lembras das contorsões dos christãos no-


vos nas fogueiras de Lisboa ?

— Oh, caia-te, cala-te — juro que estarei mudo, até que o sol afugente
estes terrores.
— Não podemos salvar a vida. Isso está assente; devemos attenuar o
martyrio, percebeste ?

— Pois bem, dize o que deverei fazer...


— Podemos o fogo, depois do garrote, ou antes de tudo.
ter .

— Tens razão — melhor que venha depois.


é . .

— Mas podemos ainda o que peor que o garrote que o


ter é e fogo,,

e é isso o que me horrorisa. .

— Dize, dize, meu velho. .

—É o corte. . . as mutilações, antes do garrote e antes da fogueira...


— Meu Deus! meu Deus ! exclamou o Moucho pondo as duas mãos
sobre a enxerga, para não cahir.
—Imagina, frade, que nos decepam os pés e as mãos! Poem-nos os
membros sobre os cepos, e com um cutello afiado, e dum só golpe, vi-
brado com certeza e força, ferem pulsos e artelhos. .

—Não poderemos nós arranjar um punhal, Aragonez?


O Aragonez continuou:
— Ainda se nos amarrassem, e quatro verdugos, a uma voz, disparas-
sem os quatro golpes, com os pés e as mãos perderíamos os sentidos, e.,

então que depois nos apertassem o arrocho ou nos torrassem os toros, que
nada soffreriamos, talvez. .

— Talvez! Talvez! pensou o outro com olhar desvairado.


— Mas não — o serviço vae por partes, e lentamente. Costumam até al-

ternar—primeiramente um pé, depois a mão, depois outro pé. .

— Já esse supplicio?
viste
— Quantas vezes! aqui, em Santarém, em Lisboa; em Hespanha, na
Itália. .

— Que horror
— Horror porque que nos espera; mas deves lembrar-te de
é a sorte

horrores ainda pcores. Não viste á porta de S. Domingos, emquanto al-


cançávamos a cruz, como bandeira de guerra, a turba de christãos arran-
car aos judeos as mãos, e ás judias os seios, á ponta de lança ou de pu-
nhal? Repito — este mundo é de bandidos —O Estado, a Egreja e a ca-

nalha devoram-se
— Sim, tens razão: nós fomos instrumentos de tortura e agora despe-
daçam-nos... E' justo.
— Vamos ao que importa; tudo me diz que teremos a pena mais
. . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Ç)5

grave, porque nos concedem as maiores honras. Pretendem fazer nos che-
fes d'esse movimento. Se a tua vaidade não sotVre, resignemos tal cele-

bridade perante a Historia. . .

— ElTectivamente o verdadeiro ciíefe foste tu. . .

— Fonios os dois, não mintas... Olha que tens a cabeça no baraço


em que está a minha. Se julgas que, puxando por ella, te salvas, cnga-
nas-te; enforcas-te mais depressa.
— Pois seja como quizeres. . .

— Bem, indispensável que


c sejamos o que de facto fomos — instru-
mentos duma conspiração tramada pela ordem dos dominicanos, sob a
influencia do governo de Castella. Não te esqueças! Obedecemos a pres-
sões de gente da Alcáçova, da mesma que levou el-rei á proscripção dos
marranos. . . Toma bem nota das respostas. Falaremos com reservas fin-

gidas das ambições de D. Jayme, tanto na privança de el-rei e na dos reis

catholicosl d'aquellc que tem alcaçar de príncipe, com arautos e passa-


vantes... Tens entendido ?

— Estou entendendo, e não me esquecerei.


— Eu falarei de António Carneiro e dos seus ardis, para provar a el-

rei que mal avisado andou ao firmar, contra o conselho do seu secretario,
as prescripçÕes da provisão de 97. E' necessário que a intriga alastre, e
que os superiores da nossa ordem sejam envolvidos também nas culpas de
que nos accusam. E" melhor pensar n estas coisas que tremer de medo
em face do patíbulo. Defcnde-te e defende-me. .

— Farei quanto ordenares, Aragonez.


— Pois, então, extende-te para dorme, resigna- ahi, e te.

— Não conservas, a mais pequena esperança


pois,
— Emquanto ha vida, ha sempre esperança. O ódio aos judeus deve
ter ficado no coração da gente christã, e, dum momento para outro, o
que succedeu por conspiração de frades, poderá repetir-se por vontade do
povo. Não tem el-rei o pulso de seu cunhado. .

E os dois frades extenderam-se sobre os catres, fingindo que dormiam;


é certo, porém, que quando a estrella d"alva appareceu, com grande bri-

lho, a scintillar lá fora, elles ainda tinham os olhos pregados n"essas fen-
das abertas nas paredes daquelle sepulcro.
Quando soaram na torre da Sé as quatro horas, os dois miseráveis
adormeceram, afinal.

Que terriveis sonhos deviam ter sido aquelles que estavam tah ez a repro-

duzir o presente, que era um desespero, ou o futuro, a peor das agonias!


Dormindo inquieto, e a gemer, o Moucho parecia luctar com um ver-
dugo, ou com um espectro. . . Talvez com ambos.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Larga-me, Lopo, larga-me, dizia cUc — que não fui eu quem te quei-

mou.
O Aragonez dormia mais tranquilio, e, como se falasse em segredo,

dizia, por entre a respiração cortada:


— Deborah! Como tu estás formosa, rezando por mim a Nossa Se-
nhora !

E a luz da manhã foi entrando mansamente e batendo nos rostos pal-


lidos dos dois bandidos de S. Domingos.
Em baixo, á roda da torre, eram rendidas as sentinellas.

Os primeiros raios quentes do sol, que ia subindo, e que no horizonte


tinha o tom avermelhado dum grande incêndio, despertaram o Moucho,
que se ergueu apressada e afflictivamente. Esfregou os olhos, mais para
extinguir um sonho incómmodo, que para espreguiçar as pálpebras fatigadas.
— Que horrível pesadelo, disse elle, falando apenas com a sua con-
sciência, porque o seu companheiro continuava dormindo serenamente, es-

tava sonhando talvez a realidade de amanhã.. . Atado a um poste, sobre


um montão de madeiros e maravalhas, esperava o levantar da chamma in-

fernal. . . Foi sonho, foi. . . O calor que eu sentia nos pés e o clarão que
me enchia o craneo, vinham daquelle disco celeste, que afugenta o frio da
morte e os espectros da noite. Foi sonho, foi. . . E quem me diz que não
c um sonho tudo isto que se tem passado ? ! Se este sol fosse uma benção
do Céo, um perdão de Deus ? ! Um raio de luz é o que mais deve pare-
cer-se com um raio de esperança. Por que não ha de o Céo estar contente
com a minha obra? Pois se Jesus é o filho de Deus, ha de o empyreo
condemnar quem perseguiu os que negam Jesus ? Sim, continuou elle,

olhando para a alta e negra abobada do seu cárcere, como se estivesse em


extasi beatifico, a justiça dos homens pode ser fallivel, mas a de Deus

nunca! Mór iniquidade seria que um povo ficasse impune, o povo que ma-
tou e pilhou, vidas e fortunas, e só eu seja punido pelo meu ódio contra
os infiéis.

Quem ha de condemnar-me ? El-rei ? Mas el-rei com o seu zelo reli-

gioso expulsou os christãos novos das terras do seu reino ! O que signifi-

cou isto? a guerra em nome da religião, o pregão legal, de que o meu foi

cópia servil. . . Pois se os confessos foram expulsos, como se fossem peo-


res que a peste, e.Kpulsar judeus para outras regiões da christandade não
será maior crime, que inutilisal-os para o damno na vida de toda a terra ?!

A luz que o sol me trouxe é mais que a luz dos olhos — é a luz do
meu espirito, sombrio, estúpido, acobardado. Se as minhas palavras não
tivessem a eloquência da razão, como havia de tanta gente comprchen-
del-as e obedecer-lhes ? Quem inventou o ódio contra a mouramia e a ju-
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

diária ? Eu ? que já o encontrei iníiammado no coração da populaça, e nas


instituições mais fortes dos paizes christáos!

O frade achara o íio de considerações, que lhe enchiam o coração de


esperanças e lhe davam conforto á consciência.
Sentou-se aos pés do catre, depois de ter lançado nos hombros o ha-
bito empoeirado, pousou os cotovellos sobre os joelhos, e o queixo mir-
rado nas mãos febris, e errando o olhar, ora pelo chão terroso, ora pelas
setteiras illuminadas, ticou-se a pensar, a pensar. .

A's vezes parecia não ver claro no enredo d'um ]-aciocinio, c então,

para ver melhor, fechava os olhos. . .

— Meleticios? Sim, eu os fiz, e animei a turba a que os fizesse; mas


eu era a multidão, era a cidade, era o clero, era uma raça que até aos
judeus attribiua a peste e a fome, e todas as cóleras do Céo ! Morreram
muitos judeus e accenderam-sc muitas fogueiras 1 esse sangue e esse fogo
eram reflexos do Santo OtVicio, que mata e queima milhares de infiéis por
esse mundo todo
Roma, a cidade santa, expede bulias para os reinos seus alliados, dando
licença, em nome do Papa, para que se laça peor do que lez Lisboa, que

não inventou as torturas e fiagicios I

Se Roma manda, é que ao Céo apraz a destruição da heresia !

Pois ha de Júlio II manter na cabeça a thiara de Pedro, e, por menos


ter feito que Sua Santidade, ha de um pobre frade sentir no pescoço o
garrote infcimanie :

E, quando o meu espirito tiver voado e com elle as cinzas do meu


corpo, el-rei amanhã, ou o príncipe D. João, mais tarde, ha de, em nome
da Fé e da Justiça, destruir, a ferro e fogo, os confessos que agora esca-
param á fúria dos melhores fanáticos 1

Pois é crivei que Deus permitta prémios a Torqucmada, o omnipo-


tente, e castigo brutal ao Moucho, miserável ?

Que o Aragonez, um vicioso, que até das paixões mais sagradas tirou
proveito para os appetites carnaes e para os prazeres mundanos, tenha a
sorte dos hypocritas contumazes, admiite-se ; mas eu, que sirvo a minha
fé, alentada pelas licções dos mestres da Egreja, e o meu ódio incendiado
nas prédicas da gente santa ! eu hei de ser perseguido e mutilado, como
se estivéssemos em pleno paganismo:!
Velho, doente, enfraquecido por vigílias e abstinências, com o corpo
macerado pelos cilícios, passo a vida a adorar Jesus, e sou, afinal, con-

demnado por Judas!


E o frade balouça\ a o corpo, como se um grande \ enda\al o estivesse
agitando interiormente.
! . . .

gg MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Machinalmente procurou no habito, que descahira sobre a enxerga, o


seu rosário de galhas naturaes, e percorrendo- o,com os dedos trémulos
e descarnados, começou a rezar. .

O Aragonez continuava dormindo, e sonhando, e, por vezes, lhe asso-


mava aos lábios um sorriso de alegria, ou de triumpho.
O Moucho ia rezar:
— Avé Maria, cheia de graça. . . o Senhor é comvosco. .

E o Aragonez parecia continuar:


— Bemdita és tu, Deborah. . . entre as mulheres!
Moucho interrompia a oração para beijar o crucifixo das suas caman-
dulas, e de novo voltava á meditação e á reza. .

— Já não posso salvar a vida, pensava elle; é fatal! Fui o precursor


do grande tribunal de Deus sobre Cabe-me essa gloria Vejo
a terra . . . !

bem o futuro: sob aquellas mesmas abobadas de S. Domingos ha de trium-


phar a justiça da Fé. Aquelle sangue judeu que eu fiz derramar fecundará
aquclle solo, e as columnas do Santo Officio brotarão para suster a cúpula
da Inquisição em Portugal! Todas as grandes empresas reformadoras teem
os seus mart3Tes... Escolher-me-hia Deus ? E porque não?
Talvez...
Quem sabe se, emquanto eu blasphemo, accusando a Providencia, por me
sacrificar o corpo, não cuida Ella, no seu juizo Supremo, em me salvar
a alma ? ! Este sol que me despertou, este fogo que me aquece os mem-
bros, esta luz que me illumina o espirito. . . quem sabe se tudo isto é um
?

•aviso do Céo?!. . . Se Deus me escolheu para seu agente, na salvação da


Fé, e me reserva um logar de santo martyr, na sua corte celestial ! ? Que
tenho eu que sacrificar? Isto?
E repuxava nas mãos a pelle engelhada e sècca, e comprimia na fronte
os ossos da caveira
— Isto já não é corpo, já não é vida! Se eu fòr perdoado, em breve a
morte, sem ruido, sem brilho, sem exemplo, virá buscar-me e apodrecer-
me. .Depois do cadafalso, Roma pensará em mim, e a memoria do boçal
.

camponio será maior que a d"el-rei D. Manuel, que descobriu o mundo, e


que a do Papa Júlio, que o dirige e governa!
E o frade, n'uma grande agitação de epiléptico, cahiu de joelhos deante
da nesga de sol, que lhe batia no rosio, e pondo as mãos, emquanto nas
orbitas fundas se moviam os olhos pequenos e febris, começou a oração
dominical:
— Padre Nosso, que estaes no Céo.. .

— Amaldiçoado seja o teu nome, frade impertinente, que me roubaste


a primeira adoração sincera que tenho feito na minha vida. Sonhei com a
moça mais formosa d'estes reinos. Princezas de Gastei la enxertadas em
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 99-

alcovas de reis portuguezes, não valem mais que esta fada dos meus so-

nhos.
E, depois, attentando no companheiro:
— Que estás tu fazendo, frade, piegas e poltrão?

E o Moucho, que já vergara a cabeça até quasi beijar a terra, batia


com a mão direita fortemente no peito, murmurando:
— ... Agora e na hora da nossa morte, Jesus I

Ouviu-se o ruido de uma porta que se abria.


O Aragonez olhou e viu que a grande porta de ferro se afastava pesa-
damente dos humbraes, gemendo nos gonzos ferrugentos.
Um guarda adcantou-se e disse, annunciando:
— D. Álvaro, provincial da ordem de S. Domingos.
O Provincial, que assomou no limiar da porta, era uma grande digni-

dade da ordem de S. Domingos. A sua tigura, mais que o seu habito,


denunciavam a sua alta jerarchia ecclcsiastica. De elevada estatura, sècco,
com a cabeça levemente inclinada, olhar intelligcnte, frontal espaçoso c
distincto, orlado de cãs. Tez liza e rosada, barba irreprehensivelmente
feita, bòcca aristocrática, de contracções fidalgas. . . A bckca é um grande
symptoma revelador de educação aprimorada. Uma bòcca bem educada
nunca se descompõe por mais defeituosa que seja; e a bòcca do Provincial
era das mais correctas, de linhas vigorosas e bem lançadas. Tinha cin-
coenta annos ? Ou sessenta, ou, se quizerem, nem a cincoenta chegara
ainda.
Havia naquella fronte indícios de precocidade na velhice — dir-se-hia
que elle era um homem novo jd encanecido, ou um velho de rosto ainda
fresco e juvenil.
O habito egual no feitio aos dos outros frades da mesma ordem, mas
de estofo mais tino c de corte mais elegante. Estava n'isso a sua distinc-
ção. Superior no habito, na attitude, no olhar, no dizer ! . . . Se altas dis-

tincçÕes recebera do Estado e da Egreja, de nenhuma conservava vestígios


em bandas, fitas ou cordões. Dir-se-hia um bispo vestido de fâmulo, ou
um papa disfarçado em frade.

O aspecto insinuante e doce, o passo medido e grave, o Provincial ti-

nha o gesto seraphico, sem feminismo, e a palavra doce, sem fraqueza.


Quando olhava parecia abençoar, quando falava parecia que a voz lhe
sahia num suspiro. A mão esquerda sempre occulta na larga manga do
habito, e a direita, delgada, comprida, nua de carne e de anneis, sempre
erguida, em movimentos cruzados, como se estivesse a benzer o espaço...
Erei Álvaro entrou no cárcere, n'essa mansa attitude que commanda
e impõe.
. :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Por traz d'ellc havia dois ou mais frades que de seu amo ficaram se-

parados, pela porta que se fechou com estrondo.


Ao verem o seu nobre visitante, os dois frades compuzeram o fato e
o gesto e a elle se dirigiram, ou para beijar a máo ou a fímbria do burel.

Frei Álvaro, ao perceber o movimento, recuou serenamente, para se


esquivar á concessão mal cabida quando feita a frades interdictos, e er-
guendo a sua mão de marfim, saudou-os com olhar baixo e triste

Que Deus se compadeça das vossas almas, irmãos. .

E com um gesto soberano, em que havia mais compaixão que des-


prezo, mandou-lhes que se sentassem, emquanto elle puxava, para seu
commodo, o grosseiro escabello que alli havia.

Meus irmãos— disse frei Álvaro, por ordem do Desembargo do Paço,
tendo sido previamente ouvido o delegado de Sua Santidade, eu venho a
interrogar-vos sobre a intenção e origem de vossas culpas e peccados. A
ordem de S. Domingos, de gloriosas tradições, e sempre tão desvelada no
serviço da religião catholica, chora neste momento a impiedade dos vossos
actos, e pede a Deus perdão para culpas tão graves e desdoirentas. Sei que
a fraqueza das vossas almas deu alento ao espirito das trevas, que as con-
taminou de sua peçonha e malificios. . . Dizei de vossa justiça, irmãos, na
certeza de que, melhor reconquistará a sua salvação espiritual o que mais
culto prestar á verdade, e melhor auxiliar o trabalho da justiça. Frei Ber-

nardo, que é o mais novo, e o mais decidido em seus propósitos, dir-me-


ha, tomando o Céo por testemunha, que de vontade própria e diabólica
inrtuencia, se aventurou a desordens moraes e materiaes, contrárias ás

leis da Egreja e do Estado.


— De joelhos vos falaria, irmão, se outra posição não houvésseis orde-
nado ; mas, nesta, ou outra attitude mais humilde, já que a dizer a ver-

dade me convidaes. á face de Deus vos affirmo, que julgo ter cumprido
meu dever, em serviço da Egreja e em obediência a meus superiores.
— Frei Aragonez, começaes por oftender o Céo e calumniar a vossa
ordem. Onde ouvistes ordens ou conselhos, com ou sem restricções men-
taes, que vos auctorisassem a sacrificar a vida de christãos novos e velhos.

e a animar rebeldias contra as ordenações d'el-rei ?

Isto disse, e o Aragonez, pondo-se em attitude impertigada. com as


mãos sobre os joelhos e o busto erecto e firme, replicou :


Sabei, senhor Provincial, que estes dois frades, eu e o Moucho, nada
mais fizemos que obedecer ás indicações, já que não quereis que diga-
mos ordens, das mais altas categorias da nossa congregação. Foi-nos di-

cto, nos termos mais suasórios, que era indispensável fazer explodir o
ódio contra os christãos-novos, para que el-rei obedecesse, emfim, aos
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

pedidos da corte de Castclla, não só para perseguir os hespanhoes re-

fugiados em Portugal, mas ainda para estabelecer a Inquisição, que existe


cm Hespanha, com grande proveito da Fé catholica.
— Senhor, disse o Aragonez com maneiras altivas e vozes desemba-
raçadas, se quereis conhecer das origens d'esta trama e das vantagens
d"esta acção, que ensanguentou Lisboa, mais avisado andaríeis interro-
gando o Geral da Ordem, que os mais modestos servidores delia.
— Tendes sobeja ousadia em vossos dizeres, acudiu frei Álvaro, e isso
me prova que sois, dos dois captivos, o mais responsável e peccador.
— Assim será, meu irmão, e haveis de permittir que, como tal vos
trate, quem, em satisfação de vossos desejos, procedeu ; mas acreditae
que nós nada mais fizemos que obedecer, por nosso instincto e vontade,
ás prescripçóes da nossa augusta ordem.
— Accusaes então a Ordem de S. Domingos de ter planeado a ma-
tança dos christãos-novos ? disse frei Álvaro com ar exclamativo.
— Sem dúvida, meu irmão. Demais conheço as intrigas do vosso afan,
c nada vos quero pelo laço em que cahi; mas, á face de Deus, diz-se a
verdade, e deixa-se a hj^pocrisia para o trato com os íieis de espirito inculto
e de fé muito viva.
— Pasmo do vosso orgulho altaneiro e da vossa impenitencia, irmão
Aragonez. Ainda que, continuou frei Álvaro, cm tom conciliador, a vossa
attitude melhor disponha a minha vontade para o exercício da justiça. Es-
aes, pois, disposto, a accusar a vossa ordem ?

— Se tanto for mister. . . disse o Aragonez.


— Não será, descançae, atalhou frei Álvaro. A minha devassa ficará

n'esta visita, para que a vossa cynica indiscrcção não prejudique a ordem
que representa e que deseja acatar o poder del-rei.
— Nada vos levo, por isso, irmão; já contava com o vosso cuidado em
destruir verdades que irritariam o throno e a tiara.
— Vejo que sois contumaz no crime de que vos accusam, e que até
vos permittistes a liberdade de reprehender bulias e intentos de Sua San-
tidade.
— El-rei, disse o Aragonez, tem intelligencia fácil com a corte de
Roma... Que o diga o rescripto Papal que outorga a dispensa de casti-
dade perpétua ás ordens militares. . . Que o cardeal D. Jorge da Costa,
e que o embaixador Pedro Correia expliquem, já que não pode ser Ale-
xandre VI, nem Pio III, que viveu a vida das rosas, a Júlio II, que, de-
mais sabe manejos das ordens religiosas em Portugal, como a condemna-
ção do Aragonez e do Moucho podem parecer um adiamento ardiloso do
estabelecimento da Inquisição. Nego tudo de que me accusam, eu, que
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. 1. FOL. l3.


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

mais não fui, que executor, ingénuo e imprevidente, da conspiração da mi-


nha ordem. .

— E vós, frei Moucho, pensaes como o vosso cúmplice e companheiro ?

— Senhor, Moucho, aguardo tranquilio sentenças da terra e


disse frei

do Céo. Não confundo meus peccados com os do Aragonez, que, ao ser-


viço da Egreja alliou a defesa de suas paixões e de seus vicios.
— Está bem, disse frei Álvaro, de nada mais preciso para resolver em
conformidade com os interesses da Egreja e do Estado. Retiro-me sem vos
absolver. Encommendae a Deus as vossas almas.
E, recuando, desappareceu na porta que se abriu, e logo se fechou.
— Estamos perdidos, Aragonez, disse Moucho afHicto. E foi tua a culpa.
Tanta altivez, á beira do ab3'smo!. .

— Julgaste, então, este traidor, de vozes melliHuas e hypocritas, capaz


de nos deter na queda? Es um imbecil.
A porta abriu-se de novo, e um frade de rosto coberto, leu em voz alta

esta sentença:
— Manda frei Álvaro, provincial da ordem de S. Domingos, em virtude
dos poderes que lhe assistem, que amanhã, sobre o cadafalso que alli fòr

erguido, na praça de Évora, em frente de Nossa Senhora, D. Pedro, có-


nego d'esta cidade, prive dos hábitos sacerdotaes a frei Bernardo Arago-
nez e frei João Moucho, da mesma ordem, e os entregue á justiça secular,
em virtude de seus crimes.
— Obrigado, disse o Aragonez, extendendo-se sobre o catre miserável.
— Cumpra-se a tua vontade, disse João Moucho, ajoelhando!
— Moucho, disse o Aragonez, erguendo o busto, para melhor ser ouvi-
do, tu procuraste diminuir as tuas responsabilidades, á custa da minha pena.
— Estou disposto a dizer tudo. No 'Céo ou no Inferno, não te quero
por companheiro.
— Sabes que estou perdido, e que a vida de um frade imbecil e estú-
pido não pesará de mais na balança da minha sorte.
— Assim será; mas hei de perante a justiça secular denunciar teus
vicios . . .

— Experimenta, frade do diabo, experimenta e eu mesmo serei teu ver-


dugo antes de D. Pedro te arrancar esse habito.
— Julgas, então, que a historia de Debcrah não ha de tigurar no pro-
cesso ? Chamarei Ruy Vasques em meu auxilio e o teu mór m.aleficio será
julgado e condemnado, como fòr de justiça. . .

— Que sabes tu dessa rapariga, miserável?


— Sei que a roubaste e como os tunantes das
polluiste, ruas fizeram
ás mulheres do povo.
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO io3

— -Mentes, mentes. . . nem me viste roubal-a, nem tive de a restituir,

nem d'ella veiu queixa d ordem de S. Domingos, ou ao Desembargo Real.


E's um villão refece. .

— Ruy Vasques, disse o insultado, que está preso, não sei onde, mas
próximo de nós, tudo contou por miúdos, para que a vida lhe fosse pou-
pada, e Pedro Soares tem o favor e o valimento de Ayres da Silva, o re-
gedor das justiças. Agora, que o desembargo vae tomar conta de nós, essa
tua façanha será averiguada e punida.
—•E's ladino, velhaco, queres suicidar-te com as minhas mãos. . . disse
o Aragonez. Assim fugirás ao mart3'rio e morrerás com a vingança a sor-
rir-te na máxima pena que me reservam! Pois enganas-te, bandido: dei-
xar-te-hei barafustar na calumnia, e, como prejuro, serás julgado, quando
não tiveres provas que me confundam.
— Provas de sobra virão do teu cúmplice e de tuas missivas planeando
o alcive. . .

— Refinado hypocrita, queres passar por innocente á custa da tua cara


alvar e do teu fanatismo estúpido, e não te lembras de que tens o habito
salpicado de sangue humano.
— Humano, mas inliel, insistiu o Moucho, dando ás suas palavras todo
o acinte da provocação. Olha que o teu, Aragonez, está salpicado de san-
gue e de lama. . .

— Moucho!Moucho! ameaçou o hespanhol, batendo com o pé no chão,


por Deus, ou por Satanaz, toma cuidado com a lingua, se não queres que
eu a arranque com a tenaz dos meus dedos . . .

— Sim, tu, não satisfeito com a morte do pae, violentaste a filha, n'uma
fúria de paixão bestial, e são os teus abraços selvagens que nos apertam
o garrote, que, por termos defendido a religião catholica, ninguém nos le-

varia ao cadafalso. . .

—O Aragonez levantou do chão, n'um movimento brusco, o escabello


de madeira, e ia a descarregal-o na cabeça do companheiro. . .

O Moucho recuou até a parede e fechou os olhos.


N'este momento ouviram-se passos e vozes na escada . .

, — Anda, scelerado, completa a tua obra, que já estão ahi as testemu-


nhas . .

O Aragonez depò,^ a arma improvisada.


— Quem será... disse elle, assustado. Ouve, Moucho, continuou em
voz baixa, deve ser gente de justiça, por ordem de Manuel AfFonso: se
disseres uma palavra, uma so que seja, a respeito de Dcborah, dar-te-hei
morte mais alllictiva que aquella que nos espera.
Rangeram os gonzos, e um homem appareceu no limiar.
. : . 1 :

104 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Qne inferno é este? disse o recem-chegado. . . Perdem as cabeças

antes da sentença lh'as roubar! Ora vamos, muito juizo e alguma espe-
rança.
— Ignacio! exclamou o Aragonez, para que vem falar de esperança,
quem nos instigou e perdeu?
— Ninguém vos compelliu a exaggerar a aventura. Tolos, para que
foram mais dominicanos que a Ordem de S. Domingos 1

No rosto de Moucho passou um riso de desdém ; o Aragonez, porém,


segurou por um braço o padre Ignacio, e perguntou-lhe com anciedade
— Que novas nos trazes, padre Ignacio ?

— Poucas, mas boas, respondeu Ignacio, imaginem que el-rei expulsou


de S. Domingos os vossos companheiros.
— Então, está tudo perdido, não é assim ?

— Não é assim. A administração do mosteiro foi confiada a clérigos


seculares. Acho-me. pois, em S. Domingos, e na posse de preciosos do-
cumentos que trariam graves complicações diplomáticas entre as duas
cortes da península. Os documentos que poderiam comprometter-me fo-

ram destruídos, os outros servirão para vos salvar. .

— Para nos salvar!? exclamaram os dois frades, rodeando mais o pa-


dre.
— Sim, para vos salvar. Negociei com os partidários dos dominicanos
um levantamento popular em Évora que ha de impedir a execução da sen-
tença. .

— E teem elementos bastantes ?

— Até de sobra A occultas tem ! vindo muita gente de Lisboa, e o di-

nheiro de Castella facilita o alistamento.


— Então ? perguntou o hespanhol, teremos a liberdade e a vingança ?

— Assim o espero. Ha, porém, uma condição, que venho propor-vos


por mandado do Provincial, que finge, e finge bem, acatar as ordens de
Setúbal. Um
grande motim vos arrancará ao patíbulo, se em todas as vos-
sas declarações nem uma palavra houver que envolva os segredos da or-
dem e de todo o partido religioso.
— Acceito, disse o Aragonez.
— E Moucho? tu,

Moucho hesitou um momento, mas tendo encontrado o olhar do hes-


panhol respondeu afinal
— Acceito.
— Bem; está contratado, nem uma confissão, nem uma palavra que
vos comprometta ou comprometta os outros.
~ Deixae andar os acontecimentos. D. Manuel terá de descer morto
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

os degraus do throno, se vós não descerdes vivos os degraus do patí-

bulo.
— E tendes recui\sos para a empresa ?

— Duas mil lanças bem manejadas por gente aguerrida, e quantos


chuços encontrarmos nas villas da província. Depois, com esta gente e de
Santarém e de Lisboa, faremos uma jornada até as margens do Sado. . .

— Que Deus vá em vossa companhia, saudaram os frades.

Ignacio sahiu e, quando descia, ia pensando :

—O difficil é tapar-lhes a bôcca, emquanto forem vivos. Depois... ora

adeus... o garrote deixa-os de bôcca aberta, mas sem falar... Que extra-

ordinária mordaça é este garrote


Ao tlcarem novamente sós, os dois miseráveis procuraram reconci-
liar-se.

O desespero c o principal elemento da guerra ; a esperança a força


mais cariciadora e transígente.

Aquelle plano do padre Ignacio era muito possível... Filies mesmos


já tinham pensado n'ísso... Nem era de esperai- que um povo tão reli-

gioso, tão fanático, que tanto reclamava a extincção dos judeus, pudesse
consentir que dois servidores da Egreja fossem sacrificados aos intci-csses
dos marranos, como dizia a plebe.

E depois recordavam-se bem, apesar de tudo aquillo ter passado como


i\ nuvem d'um sonho, de que toda a gente os seguia, quando elles, em
Lisboa, pregavam o extermínio da raça maldita.
E el-rei só adoptara aquellas medidas repressivas por influencia do seu
secretario I

No seu intimo el-rei desejava limpar o reino dos herejes que fugiam
de Castella. As suas ordenações agora eram apenas formalidades...
O partido inquísítorial era grande no reino, a rainha estava com elle,

e os catholícos da corte esperavam anciosamente a maioridade do príncipe.


O duque D. Javme esta\a nas boas graças de D. Manuel e visitava,

com frequência e interesse, em terras de Hespanha. o duque de Medina,


seu sogi-(). Além de que, talvez elle ainda viesse a succeder no throno...
Muito era já o direito de fronteiro-mór de todas as terras do reino...
A empresa parecia viável.

Os dominicanos tinham muita força e ínHuencía.


Expulsos, haviam de querer a desforra. A gente de guerra andax a toda
cm correrias pela Africa e pelo Oriente. . . O que se tinha feito, sem re-
sistência contra a mourama, durante dois dias, poderia fazer-se num mo-
mento contra a justiça d'el-rei.

Os dois frades con\ersaram. muito á mão. sobre o assumpto, e, quanto


. . . !

io5 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

mais discorriam mais se animavam com a esperança de reconquistar li-

berdade e honrarias.

Chegaram quasi a reprehendei^em-se por não terem visto claro numa


questão tão simples. Em poucos dias deliam estar li\'res d aquelles conti-
nuados pesadelos. .

Se quizessem matal-os e dar com isso um grande exemplo ao povo,


tel-os-hiam conservado em Lisboa. . . Se os mandaram para Évora, ou foi

para os conser^var presos, até que os malefícios esquecessem, ou porque


se temiam da revolta . .

Chegou a noite e. quanto mais o cárcere escurecia, melhor elles viam


na historia do seu futuro.
O Aragonez nem já estava tão desabrido. O ^loucho já resignava a
gloria de martyr. Deus tinha muitas maneiras de ser\'ir os seus escolhi-
dos I

Por \ezes applica\am o ouvido, por lhes parecer que ja ha^'ia choques
de lanças nas ruas dEvora.
Pouco depois das q horas, ou\iram etTectivamente um ruido de vozes,
que devia ser feito por uma multidão.
— Não ouves disse o Aragonez. ?

— Oiço, sim. E' o povo, respondeu o Moucho.


— E se fosse já? perguntou o hespanhol com um sorriso, e abrindo
muito os olhos.
— Prouvera a Deus! Xè d"ahi, Aragonez.
A vozearia augmcnta\a. O Aragonez espreitou pela setteira que lhe
estava próxima.
— D'este lado, disse elle com desalento, nada vejo — apenas um cla-

rão, que parece de incêndio . . .

— E' d'este lado, é d'este lado, çrritou muito alegre o outro frade, es-
preitando por sua vez.
O Aragonez correu para o pé do companheiro.
— E verdade na praça. ; é

— E grande a multidão.
— E lanças Não vês muitas lanças
! ?

— E ha populares com archotes inflammados . .

— Está a nossa salvação. Não vês a gente


alli armada por entre o
pú\ o ?

— L certo. Não ha E' a cidade toda na mesma empresa.


é. lucta.
— Ai Moucho, que da nossa torre não fícará pedra sobre pedra
I

— Antes da alvorada a multidão abrir-nos-ha as portas.


— Espera: não ouves bater?
. . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Oiço, não sei o que, que lembra o martellar. O povo anda também
na faina; repara bem. .

—K é defronte de Nossa Seniiora. .

Os dois frades espreitavam com uma avidez indescriptivel. e. para


aproveitarem bem a pequena fresta, tinham os rostos collados um ao
outro.
Fusiia\a-ihes o olhar. . .

Kntão, ao Ionize, emquanto se intei^rompia o ruido da multidão, desta-


cou-se uma só voz, que parecia cantar, pausada e monotonamente. . .

Kra o pregão sinistro, que annunciava ao povo a construcção do cada-


falso.

Os dois frades cahiram de bruços nos catres miseráveis.

Na (.'hfouica dos Scníi07~es Reis de Portugal, inserta na Collecção de


Liv. Incdiíos de Hist. Porl. Tomo V. capitulo XXH', depois de se fazer
referencia á -s isita de frei Álvaro á torre dos frades, para inleri-ogar os
dominicanos Moucho e Aragonez, lè-se este lacónico pormenoi"
"... logo ao outro dia, D. Pedro, bi.spo de Marrocos e cónego d'Kvo-
ra. na praça delia, em um cadafalso deante de Nossa Senhora, os privou,
pelos dictos crimes, de suas ordens, e os remetteu ás mãos da justiça se-
cular.»
Nada mais I

A esta cerimonia de exautoração assistiram todos os frades d'l-]\ora.


e quantos dos arredores tinham sido chamados para darem imponência ao
acto. Não faltaram também alguns clérigos seculares, e o povo, sempre
ávido de espectáculos emocionantes, veiu de grande distancia, em roma-
ria, como se viesse assistir a uma festa nacional.
A praça foi prodigamente adornada com muitos infantes de lanças, e

o cadafaíso guardado e honrado com a guarda dos alabardeiros da casa


do Bispo e da alcáçova d'01ivença. Duas escadas fixas, de madeira, da\ am
accesso ao cadafalso, que apenas consistia n'um tablado de altura supe-
rior á de um homem de guerra, por forma que os ferros que estes er-
guiam, ladeando o palco da justiça, formavam á roda delle uma gradaria
Gscillante, onde o .sol se reflectia em grandes ondas.
Nas adulas da praça se debruçava gente grada da cidade, e nos recan-
tos, cm palanques construídos durante a noite, a llòr da população alcm-
tejana anima\a o espectáculo com os trajos variados.
Pouco antes do meio dia sahiu a triste comiti\a.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Abriam o préstito dois alabardeiros da alcáçova e um tangedor de cha-


ramela. Logo em seguida vinham, com as suas vestes escuras, os meiri-
nhos do Desembargo e o licenciado Manuel Affonso com o seu escrivão.
Este troço, que representava a justiça secular, fechava com uma guarda
de segurança e poucos aguazis.
Seguia-se depois o bispo de Marrocos com os seus fâmulos, entestando
duas longas columnas de frades dominicanos, com as mãos escondidas nas
largas mangas do habito.
Entre essas alas negras sobresahia a figura elevada e elegante do
Provincial da ordem.
Atraz de frei Álvaro, mas a distancia, com as mãos laçadas com os
cordões dos hábitos, iam, entre as quatro sentinellas da torre, os dois ac-
cusados.
O Moucho levava os olhos baixos e o Aragonez ia examinando a mul-
tidão, que os esperava encostada ás paredes e trepada nos portaes.
Os frades de S. Francisco e dos Loyos fechavant o préstito em montão.
As torres dos conventos e as da ermida de S. Braz dobravam como
se houvesse officios de defunctos, e o povo, uma grande mó de mulheres
e de homens com os capuzes descabidos e os gorros na mão, seguia a
passo, em attitude respeitosa.

Ao chegar a procissão d praça, houve um grande movimento em toda


a gente e aquelle sussurro que faz a curiosidade á hora de começar um
espectáculo.
O sol estava no zenith.

O cortejo deu a volta á praça, e, ao passar em frente do altar da Vir-


gem, o Bispo ajoelhou e, com elle, toda a comitiva. Passados alguns mo-
mentos de oração, de novo se pôz o préstito a caminho em direcção ao
tablado. Pela escada da direita subiu o Bispo com o clero e os captivos,
pela da esquerda o licenciado com a gente da justiça secular.
Era profundo o silencio.

Ouviu-se então o bispo de Marrocos, extendendo os braços para a mul-


tidão, em gesto de benção, pronunciar gravemente algumas palavras em
latim.

Os accusados foram postos em meio do cadafalso, e quatro frades do-


minicanos se lançaram a elles e lhes despiram os hábitos e as alfaias do
seu mister, vestindo-lhes gibões de velludo preto e lançando-lhes, sobre
os hombros, mantos de tecido escuro e delgado.
Frei Álvaro, ao terminar esta cerimonia, compelliu os criminosos a
voltarem as costas para o clero, e, pondo-lhes as mãos nos hombros, si

mulou arremessal-os para o lado de Manuel Affonso.


benção multidão
De novo o cónego de Évora lançou a á
. . . !

MYSTERIOS DA. INQUISIÇÃO 109

Logo dois meirinhos os seguraram pelos braços, e os collocaram entre


um troço de aguazis.
De novo o cónego de Évora lançou a benção á multidão, que, num
movimento rápido e uniforme, extendendo as mãos para o cadafalso, pa-
recia querer apanhal-a, como se a benção viesse dispersa pelo ar, imitando
folhas sêccas trazidas pelo vento I

De volta á torre, os frades repellidos não tiveram na sua comitiva se-


não os ofhciaes e mais agentes do desembargo do paço.
Bispo c frades sahiram da praça pelo lado opposto. O povo também se
dividiu: as mulheres seguiram a gente dos mosteiros, os homens a justiça

secular.
Durante o caminho o Aragonez perguntou cautelosamente ao seu com-
panheiro :

— Não viste aquclle homem que nos acompanhou desde a torre ao


cadafalso, e que nos segue ainda, serpenteando por entre a turba de
curiosos ?

— Aquelle que agora se approximou do licenciado, e fala em se-

gredo ? . .

— Sim, esse; não o reconheces?


— Não ; rodeia-o muita gente . . .

— E' Pedro Soares.


— A que Évora viria elle a !

— Vem acabar com minha ultima esperança. a


— Qual? Talvez que até venha para a empresa do padre Ignacio. Não
te lembras de que Ignacio lhe salvou a vida ?

— Só me lembro de que lhe roubei Deborah... Ha de querer vin-

gar-se. Mallograda a tentativa de revolta, o caso da arrifana acabará por


perder-me de todo. . .

— Pensemos em que agora vae Manuel Affonso começar a devassa.


— Não se prendem com formalidades estes licenciados de má morte.
Verás como tudo isto vae a correr
— Mas o povo ? Já não tens confiança n'elle ?

— Pois tu não viste como elle esteve socegado? Os frades desprezam-


nos, e elle esquece-nos ! . . . Raça de ingratos !

— Não te lembras, Aragonez, de ter dicto o Ignacio que viera muita


gente de Lisboa ?. . . Deve ser isto. . . Pedro Soares é um espirito rebelde
e ambicioso. .

— Pedro Soares não pode querer senão a minha morte. . . Receia um


perdão vem aggravar
e as culpas. Ah! que se eu pudesse approximar-me
d' elle um momento que fosse. .

MYSTERIOS DA INCiUISlIfÁO. — VOL. I. FOI.. I4.


! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Para que ?

— Para o matar, antes que elle realisasse o seu intento.


Pedro Soares seguia ao lado de Manuel Aífonso e conversava com elle

animadamente.
Ao chegarem á Torre, os exauctorados viram que Pedro se encami-
nhava com o licenciado para o Alcácer d'01ivença.
— Não ha dúvida, pensou o Aragonez, a devassa vae começar e De-
borah é o meu verdugo
O Aragonez começava a cançar. Fingira acreditar na morte, mas a ver-

dade é que nunca deixou de ter esperanças de vida e de liberdade. O peor


era que o tempo ia passando e as difficuldades cresciam ! A sua situação
era peor que a do seu companheiro. Moucho fora um chefe de sedição;
elle fora menos que isso — fora um criminoso vulgar.
E era Pedro Soares quem vinha agora esmagar-lhe a esperança
Logo que o povo soubesse de tal façanha, revolto, triumphante ou ven-
cido, poderia salvar o Moucho ; o Aragonez não.
Matar um judeu ou um mouro, não era caso para grandes responsabi-
lidades — sacrificar uma donzella, não era zelo pela fé catholica.. .

Quando a rua soubesse como elle sacrificara Deborah, a rua, em vez


de o roubar ao algoz, far-se-hia algoz por sua conta.
O Aragonez, que não tremeu ao ser exauctorado sobre o cadafalso,
tremeu deveras ao ver Pedro Soares.
A justiça pública perdoa e corrompe-se muita vez ; a vingança parti-

cular é implacável e incorruptível.


O Moucho, pelo contrário, alegrou-se ao ver Pedro Soares. Muita
gente de Lisboa é que elle queria ver em Évora, porque Lisboa era a
cúmplice.
Consola ver sócios no crime, ou na desgraça.
E, se Pedro não vinha á revolta, mas á accusação, o perigo era para
o hespanhol. . . N'esse caso poderia o rigor da lei cahir sobre o Aragonez.

O seu crime era de outro valor. .

E, assim pensando, recolheram ao cárcere.


O triste passeio fatigara-lhes o corpo e o espirito.
Depois de uma pobríssima refeição, gosaram o repouso da sesta em
somno leve e agitado.
O Aragonez foi o primeiro que accordou. Estava sonhando que lhe ba-
tiam no hombro.
— Quem é, disse ao despertar.
E olhou em roda.
— Sou eu, respondeu Pedro Soares, que estava de pé, junto da porta.
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Pedro Soares ? Aqui ?

— Sim, vim ao vosso cárcere, como poderia uma vir a jaula de leões...
— E' corajosa a empresa. .

— Não, que eu trago com que os domesticar. .

— Ameaçar em taes condições não passa de cobardia.


— Enganaes-vos, não abuso dos vencidos, nem temo os desespera-
dos. .

— Viestes então dar uma volta ao garrote ?

— Assim deveria ser, em nome da justiça... mas venho reduzir-vos


o martyrio, se isso vos aprouver. .

— Favores, para mim, da vossa parte?! Não vale o esmagamento?


Ainda é necessária a injuria ?

— Que vos repugna ?

— A compaixão.
— Não é por vós que aqui venho. .

— Então, vindes por vosso interesse ?

— Não acceitaria favores de origem. tal

— Então ?

— Venho por Deborah !

— Quereis vingal-a ?

— Pensei n'isso, mas ja não é necessário. Aragonez, sabeis que ides


morrer ?

O Aragonez estremeceu, mas logo, retomando serenidade:


— Calculo. Isso pouco monta. . .

— A morte, continuou Pedro, sempre má, mas, ás vezes, horrível! c é


— Não escolho.
— E a tua alma, desgraçado ?

— Vindes em nome da Egreja ?

— Não; repito: venho oíferecer-vos ensejo de abrandardes o Céo, com


uma acção nobre, e a justiça dos homens com uma mentira piedosa...
— Vós ?

— Que dúvida ?

— Em nome da vossa generosidade ?

— Não, em nome da minha dedicação.


— A Deus ?

— Também; mas do meu zelo pelo falo nome e pela honra de De-
borah . .

— Dizei antes pelo vosso amor. :

— Não nego. — Se isso vos alTronta, direi de outro modo — não venho
racdir-me com um bandido.
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Se eu pudesse, Pedro, matar-vos-hia . . .

— Nem vos deixaria


isso dizer, se não tivesse interesse na vossa vida
de hoje. . . De lioje, sim. A'manhã a vossa morte será o meu maior pra-

zer. . . e, comtudo, venho fazer-vos uma proposta que poderá aproveitar-


vos.
— Em nome do vosso amor? Dizei, afinal.

— Sim, em nome da minha paixão por Deborah, a quem, ou eu viva


ou morra, preciso de salvar.
— Vindes, propôr-me?. pois, .

— Uma transacção.
— E confiaes em mim ?

— Tenho o cadafalso que me garante a vossa palavra.


— Vieste a Évora para me accusar ?

— Enganaes-vos; vim a defender-vos. .

— Vingae-vos, sem mais injuria; é fidalgo. . .

— Pela minha — o meu amor victima supplantou o ódio ao algoz.


fé á

— Então perdoaes-me ?

— Perdoo, que Deus compadeça da vossa alma. se

O Aragonez estava assombrado. Que queria dizer tudo aquillo ?

— Explicae-vos, Pedro Soares.


— Nem me sobra o tempo para delongas: Aragonez, sabes que des-
graçastes uma mulher ?

— Sei, disse o Aragonez, baixando os olhos deante do olhar de fogo


de Pedro.
—O vosso crime pesa terrivelmente na vossa sentença. .

— repetiu o Aragonez.
Sei,
— E o vosso nome mancha o presente e o futuro da pobre menina.
— Deve ser assim. .

— Deborah, que joven e é formosa, passará o resto da sua vida no


isolamento e na vergonha. . .

— Que quereis que eu faça ?

— Ouvi: Eu amo Deborah. .

— Confidencias a mim! n'esta situação


taes, ?

— E' preciso que comprehendaes tudo. A vossa maldade não pode ir

além da sepultura. .

— Vamos, Pedro Soares.


— Quereis reparar o damno que causastes, mediante uma concessão
que poderá aproveitar-vos, talvez ao corpo, com certeza á alma ?

— Elxplicae-vos, ordenou o Aragonez, approximando-se de Pedro, mais


tranquillo e confiado.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Deborah também me ama, mas não será minha mulher em virtude


do teu crime. . . disse o mancebo.
— Comprehende-se . .

— Ora, eu quero que eila seja minha, porque, Aragonez, nem lhe rou-

bastes o coração, nem lhe deshonrastes o espirito, (^omcçaes a compre-


hendcr ?

— Ainda não.
— Comprehendercis tudo; falemos, porém, em voz baixa para que o
Moucho não desperte. Isto deve licar entre nós. Morto este segredo en-
tre nós ambos, eu e Deborah seremos sós, depois da vossa morte, a
guardal-o.
— E' certo. . .

. — Mas, se a justiça vos accusar, como espero, não por denuncia mi-
nha, mas pela de Ruy Vasques, que pagará com a vida a traição que vos
fez, Deborah ficará perdida, e eu sem Deborah, porque cila, que corres-
ponde ao meu amor, repelle briosamente a minha generosidade. . .

— Aguçaes-me a impaciência, Pedro...


— E' indispensável que negueis sempre, sempre, a accusação de Ruy
Vasques.
— Tenho negado, mas não me acreditam. . .

— Acreditar-vos-hão quando indicardes outro homem como auctor do


rapto e da violação de Deborah.
— Mas, a quem hei de eu accusar ? Seria essa a minha ultima infâ-
mia, c vós viestes falar-me de reconciliação com Deus I . -

— Não vos inquieteis com isso. Eu tenho um criminoso que vos sub-
stitue. Accusae-o, e elle confessará.
— Um de n()s, Pedro, perdeu a razão. . . A quem poderei eu accusar,
que logo não me confunda e esmague ?

— A quem A mim ? !

O Aragonez recuou atllicto.

Pedro Soares enlouquecera, sem dúvida. Pois elle queria assumir a


responsabilidade de taes malefícios praticados por outrem ?

— Sim,mim, continuou Pedro. Lembrae-vos bem. Eu, que estive


a
em S. Domingos, e que fugi salvando Sarah, evidentemente fugi com De-
borah Deborah foi guardada na arrifana, onde eu penetrei pela porta
. . .

da mina, ao nascer do dia, e depois fugi com ella, levando-a para minha
casa. . . Eu amo hoje Deborah. Porque não a amaria já n"essa noite mal-
dita .'
Recordae-vos bem, Aragonez, estaes innocente, perfeitamente inno-
cente. . .

— Sim, disse o Aragonez, ticando a pensar como se visse a aclararem-


. . .

1
14 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

se as trevas do seu espirito. Sim, podia ter sido assim. .. Eífectivaraente

nada mais natural ! Amáveis Deborah, raptastel-a, passastes cora ella

aquelia noite, fugistes de madrugada... tendes Deborah em vossa casa...


E' isso, é. O vosso raciocínio parece um grande sol a illuminar-me o cé-
rebro! Se eu o disser e vós não me desmentirdes — eu estou innocente...
Não ha dúvida, estou innocente. — Quem ousará dizer o contrário ?

— Comprehendeis bem a situação, Aragonez. Não venho pedir-vos


uma esmola, venho roubar-vos uma responsabilidade. . . Sois intelligente,
deveis comprehender-me. Deborah preferirá ser minha victima a ser vossa.
Demais, ainda que o arrependimento vos tocasse, nem vivo poderíeis re-

parar o vosso crime. Eu posso ! Sou novo, sou livre, e amo Deborah com
todas as veras de minha alma.
— E Deborah consentirá em que sejaes accusado r

— Deborah será forçada a ter por criminoso quem a justiça lhe indi-
car. Perante a sociedade, a honra d'ella fica-me confiada. Só eu poderei
restituir-lh'a . . .

— E vós tudo
fazeis isso contando com a minha morte ?

— Sim, conto. .

— Mas, essa culpa


se a menos, e ainda a impressão benévola que re-

sulta sempre d'uma calumnia abortada, favorecer a rainha causa ?

— Se viverdes, Aragonez, depois de salvar a honra de Deborah, ma-


tar-vos-hei, como se mata um lobo no povoado. . .

— Ou eu vos matarei, Pedro. .

— Não questiono. Morrerá um de nós; mas, como, além da honra, eu


quero defender também a felicidade de Deborah, por Deus que nos es-
cuta n"este raomento, pelo ódio que me tendes inspirado, pelo amor que
me inspira este sacrifício, juro que procurarei executar a sentença que ti-

ver afastado da vossa cabeça.


— Tendes fibra de homem, meu valente, e, no vigor e na decisão, pa-
receis-vos commigo. . .

Pedro voltou o rosto com ar de desprezo.


— Está dito, resolveu o Aragonez, mentirei aos homens para me re-
conciliar com Deus. . . Agora, Pedro Soares, as garantias ?

— Aqui estão, disse Pedro apresentando um documento, que o Ara


gonez examinou attentamente.
— As mil maravilhas ! Uma declaração em forma de que sois o único
auctor dos malefícios de que foi victima a formosa Deborah... com todos
os pormenores e circumstancias do crime. Não falta nada. .. Toda a carga
sobre os vossos hombros innocentes. . . Sois um heroe. Deborah merece
tudo. .
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

• - Dispenso-vos os commentarios. . . Vede bem que essa confissão re-


fere-se a uma declaração supposta c anterior feita por vós. . .

— E" verdade. .

— Pois então, escrevei. . .

Pedro conduziu o Aragonez até junto da mesa e aprescntou-lhe um


pedaço de pergaminho.
O Aragonez olhou fixamente Pedro, e, depois d'um momento de he-
sitação, escreveu. . .

«Perante a minha consciência, e. achando-me prestes a render minha


alma ao Creador, declaro, sob juramento, que estou innocente, etc.»
— Não esqueça, disse Pedro, a declaração formal de que nunca tocas-
tescom um dedo sequer, ou com a fímbria do vosso habito no corpo vir-
gem e casto de Deborah. .

— Sim, não esquecerá tudo isso.

E o Aragonez continuou escrevendo.


— Devereis fechar com a denuncia, bem clara, bem firme, de que fui

eu o criminoso, e de que até tendes em vosso poder a minha solenne con-


fissão.

E o Aragonez foi escrevendo sempre. .

— Está prompto?
— Está — vede.
— Perfeitamente ...
— Ficaes com essa prova?
— Fico; descançae, porém. . .

Pedro chegou-se á porta e bateu uma forte pancada com a mão.


A porta abriu-se e appareceu um guarda.
— Levae, disse Pedro, esta missiva ao sr. licenciado Manuel AtVonso.
E agora : adeus, Aragonez.
— Para a vida e para a morte, disse o hespanhol.
— Para a morte só!
E Pedro sahiu rapidamente.
Poucas horas depois, Pedro Soares sahia de Évora, cm direcção a Lis-

boa, e, pelo caminho ia pensando nas duas orphãs, que tanto desvelo lhe

mereciam.
— O que eu fiz deve surprehender, mas salvar Deborah. Nem poderá
agora recusar o meu amor, que isso seria perder-.se e perder-me ! A sua
honra está dependente da reparação que eu vou offerecer-lhe ; a minha
liberdade delia acceitar essa reparação. A denuncia do Aragonez e a mi-
nha confissão, são provas esmagadoras. Sc ella as desmentir ninguém a
acreditará. ¥. verdade que no espirito delia ficará eternamente a sombra
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

negra d'aquelle homem, mas apenas em sonhos a veremos, porque a esta

hora está lavrada a sentença. O Aragonez e o Moucho serão condemna-


dos á morte. Ruv Vasques, pelo menos, não vohara á liberdade, e o mundo
nunca descobrirá o segredo d'esse crime nefando! Vou, emfim, ser feliz. . .

Ficaremos vivendo na pequena casa de minha boa mãe, e Sarah far-nos-ha


a mais alegre companhia. . . Ao pronunciar o nome de Sarah, Pedro de-
teve-se no seu sonho e monologo . . .

— E" verdade, tinha-me esquecido de Sarah. Pobre rapariga! Como


. .

ella me ama, e como ella se sacrifica ' O tempo cura todas as chagas, e
a pobre menina é já mulher amoravel, mas não é ainda a mulher amante.
E um coração que desperta, e que ainda não teve tempo de fixar o seu
anceio. Ama-me bastante para que seja sacrificio ceder-me a sua irmã,
mas não ama menos Deborah, a quem sacrifica o seu amor por mim!
Está ainda no periodo em que a mulher é principalmente um anjo...
Também as aves, quando nascem, trazem azas, mas ainda não voam. O
coração de Sarah está perfeito para amar quem fór digno delia; Deus,
seu pae, sua irmã, eu, a velha Joanna, e a cr^eatura que amanha surgir
c a comprehender, seremos todos por ella amados com muito afíecto e
muita candura! Quem sabe que amor ella me consagra;! Pode ser o de
irmão, pois não pode ? O seu espirito vivaz faz-lhe resignado o coração.
Se não tivesse alguém a quem acariciasse, morreria de dôr ; mas, emquanto
tiver, viverá para amar com thesouros de meiguice. A alma da pobre crea-
tura ainda não tem sexo; como a das creanças, que ainda não
é decerto

sabem o que é a embalam no regaço as suas bonecas.


maternidade e já

Ha já muita luz n'aquella alvorada, mas ainda não appareceu o calor do


sol Ao ver sua irmã feliz, também ella o será, que o amor é como as ou-
!

tras riquezas —
quando não é nosso, só os maus o invejam, Dois ou . . .

três annos mais e Sarah encontrará algum garboso e honesto moço que
lhe admire as virtudes e lhe prenda o coração. Assim será, disse Pedro, . .

pensando mais alegremente, terei duas noivas no dia do meu casamento


—o sorriso de uma brilhará por entre a tristeza da outra.. . Depressa,
que preciso de chegar cedo. E' pequeno, mas dos mais bellos, o rebanho
de que sou pastor, e a caçada aos lobos nos matagaes de Villa Nova
ainda não afastou todos os perigos. Em poucos dias terão as cinzas dos
frades voado sobre o ferregial á porta de Machede, ou descido ao carneiro
do convento de S. Francisco, mas Lisboa ainda fica com muitos frades,
e no paiz ainda continua a invasão dos castelhanos e aragonezes.
E, mettendo esporas no cavallo, Pedro desappareceu na garganta es-
treita de uma azinhaga.
. . .

IV

o lobo no aprisco

Durante a ausência de Pedro Soares, na casa de Villa Nova, ou^me-


Ihor, dos arrabaldes de Villa Nova, alguns casos se deram dignos de men-
ção.
Ainda Pedro não tinha atravessado o Tejo e já em casa delle se tinha
apresentado o padre Ignacio, nosso conhecido, que perguntou com toda a
solicitude pelo notável professor d'armas.
— Pedro, respondeu a velha Joanna, ainda afflicta com a partida pre-

cipitada do filho, foi ha pouco para Évora, onde foi chamado pelos ne-
gócios da justiça. . . Se quizesseis dizer quem sois. .

—O padre Ignacio. EUe conhece-me, e até já me procurou para me


agradecer um modesto serviço que lhe prestei ! . .

—O padre Ignacio ! O nosso salvador ? I Fostes vós, senhor, que nos


livrastes da onda popular, naquelle dia. . .?

— Não falemos nisso ; uma insigniticancia ! Eu pouco conhecia o vosso


Pedro, senhora minha, mas tinha delle tão bondosas informações, que
logo o estimei, como a um tilho ! . .

— Favores, senhor padre Ignacio. O meu Pedro é, na verdade, um


excellente moço. . . Nem vós sabeis o que alli está. . . Bom, valente, ge-
neroso, leal, nobre. . . meu filho é o retrato vivo do pae. . .

— Bem sei, bem sei... Um bravo capitão, morto em Arzilla cm de-


fesa da bandeira nacional... Sei perfeitamente... Permitti-me, boa se-
nhora, que eu vos apresente as minhas felicitações... Tendes um filho

que é vossa gloria e inveja justificada dos melhores fidalgos d'este reino...
— Senhor, disse Joanna, por que não entraes? Modesta, como é, a casa
do Pedro Soares pode ser pobre e triste, mas é honesta e respeitadora...
— A quem o dizeis!: Nem eu correra o risco, n"aquella tarde maldita,
de me expor á fúria popular, se não soubesse que defendia a familia do in-

feliz Lopo e a vossa, nobre senhora, que sois modelo de virtudes christãs.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. l5.
. : . :

ii8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Joanna conduziu o padre Ignacio até a casinha da entrada, a pequena


officina de lavores de Sarah e Deborah.
— Permitti-me, senhor padre Ignacio, que eu vos apresente as minhas
pupillas, as desgraçadas orphãs, que tanto choram a perda do pae, e que
eu já adoro, como se fossem minhas filhas.

— Ha quantos dias peço ao Céo esta ventura, senhora minha! E, se


vim em busca de Pedro Soares, no meu intimo guardava a fagueira espe-
rança de conhecer esses dois anjos. . .

— Obrigada, senhor, disse a velha Joanna. E foi-se a chamar as pu-


pillas.

Logo que voltou


— Ides vêr, senhor, o mais notável contraste — uma, toda tristezas e
pranto, outra, toda sorrisos e alegrias. Envolve-as o mesmo lucto, mas a
orphandade reflecte n"ellas tons bem difterentes. Uma é Sarah, outra De-
borah.
O padre Ignacio dirigiu-se immediatamente a Sarah, a quem beijou a
mão, que senhorilmente lhe extendeu.
— Minha querida Sarah, disse o padre — que eu bem adivinho no vosso
aspecto que assim vos chamaes, venho trazer-vos, com a minha benção,
os protestos e os votos da minha estima.
E, depois, cerimoniosamente, dirigindo-se a Deborah:
— Senhora minha, com as bênçãos de Deus o conforto da minha fé.

Sarah, vencido o primeiro embaraço da apresentação silenciosa, que de


ambas fizera a boa Joanna, fez uma mesura e disse em tom franco e alegre
— Devemos-lhe a vida, senhor padre Ignacio, e isso é muito; mas de-
vemos-lhe, principalmente, a vida de Pedro, e isso é tudo. Para que pos-
saes dispor de nós, não é necessário que invoqueis o Céo, invocae Pedro,
e seremos vossas escravas. .

— Senhor, disse Deborah, quanto me apraz descobrir, entre tanta gente


fanática e intolerante, um homem de tino e de coração . . .

— Pareceis-me triste e doente, bondosa Deborah, e, se os conselhos


da amizade se podem alliar ás consolações da Egreja, em nome de Pedro
e de Jesus Christo, poderei ser vosso protector e conselheiro.

Por que vos não sentaes, senhor, disse Joanna, e não dizeis a que
devemos tanta honra ?
— Coisa de pouca monta. O meu interesse por Pedro levou-me a fa-
lar d'elle ao secretario de Estado, António Carneiro. E, . falei-lhe com
afinco, mais, com amor, ou melhor ainda, com enthusiasmo ; e, tanto disse,
e tanto encareci, que o secretario me pediu que o levasse á sua pre-
sença. .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 119

— Quanto vos agradecemos tanta dedicação ! Mas, dizei-me, o senhor


secretario de Estado terá em vista cuidar no futuro de Pedro, disse Joanna,

com grande interesse e reconhecimento.


— Sem dúvida. E' preciso que saibaes que Pedro não é homem para
ficar esquecido n'uma casa modesta, feito mestre e tutor de três donas.
O seu braço e o seu talento reclamam um mundo novo para a sua acti-

vidade e gloria.
—O meu sonho consiste em vel-o bem empregado na casa da índia,
ou em outro mester egualmente honroso e lucrativo. Pedro é o meu único
amparo. A tença, que meu marido me legou, é pequena e incerta, e o po-
bre rapaz tem de trabalhar muito nas suas licções para manter isto que
vedes, e que bem modesto é.

— António
^ Carneiro, foi dizendo o padre, com voz doce e sorriso af-

favel, descobriu, através da minha informação, que vosso filho, minha se-

nhora, serve para mais que aquillo que pedis. Pedro é homem de grandes
qualidades para qualquer missão guerreira, ou diplomática, e, como sa-

beis, nunca, como agora, o reino precisou tanto de bons capitães, e de in-

telligentes negociadores.
— N'esse caso, Pedro teria de deixar Lisboa ? perguntou Sarah.
— Sem duvida, boa menina, e mais que Lisboa ; teria de sahir da corte,
e até do reino. Quem sabe uma viagem a Roma, ou uma campanha
? no
Sudão, fal-o-hia um homem de valimento e independência. . .

— Preferia que elle fosse modesto e pobre, mas a nosso lado. . . disse
timidamente Deborah.
— Comprehende-se esse egoísmo... E, de facto, não vão os tempos
para abandonar damas de taes encantos expostas ás paixões que por ahi
se amotinam. .

Padre Ignacio tinha bem traçado a rota da sua conversação.


— Então, não julgaes ainda passado o perigo de novos maleficios ?

perguntou Joanna, assustada,


— Qual ? Isto foi o começo. A ignorância popular e os vicios dos di-

rigentes hão de, em breve, fazer renascer novos e mais graves contlictos.
O judeu e o mouro são cada vez' mais antipathicos ao nosso povo, e a
questão religiosa está cada vez mais tensa e perigosa . . .

— Mas el-rei?... atreveu-se a dizer Joanna.


— não pode
El-rei vontade própria. Ataca-o
ter e afflige-o a corte de
Castella, que não vê- com bons olhos, nem a heresia que campeia em Por-
tugal, nem os morticínios selvagens que mancham a nossa historia. E' ne-
cessário tirar da mão do povo a vara da justiça. Mal por mal, antes a
Inquisição, que essa, ao menos, investiga, julga e só depois castiga.
. . . . . . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Ai! que horror, senhor padre Ignacio ! Pois nós ainda havemos de
ter tão cruel instituição ? . .

— Sem dúvida, minha querida Sarah. A Inquisição não castiga senão


os herejes, e a populaça de Lisboa até sacrificou vosso pae, homem de
fé e muito temente a Deus. .

As duas orphãos olharam uma para a outra, parecendo dizer


— Lá isso é verdade ! . .

Ignacio não quiz ir mais longe.


— Mas falemos em coisas mais úteis; convém acautelar o futuro, e, se
vós, senhora, me désseis licença, voltando-se para Joanna, dir-vos-hia que
a vossa felicidade estaria no afastamento de Pedro d'estes logares onde
tem tantos inimigos.
— E minhas filhas ?

— A casa de Deus ainda é a melhor guarida. .

— Preferia senhor, decidiu vivamente Sarah. Onde estão


esta, a virtude

e o amor está Deus também. .

— Pode-se distinguir. . . Deus está eífectivamente em vossa casa, mas


principalmente onde estão aquelles que ao amor d'Elle, principal ou ex-
clusivamente, se dedicam. Não é assim, senhora Joanna ? Tendes em vossa
casa o vosso oratório e as imagens de Jesus e dos santos, mas, apesar
d'isso, não vos dispensaes de ir á egreja.
Sarah não teve resposta, e Deborah deu-se por convencida.
— Tem razão, senhor padre Ignacio; sob as abobadas dum mosteiro
não esvoaça a calumnia, como á porta de nossa casa.
— Ainda bem que concordaes commigo, Deborah. isto não quer dizer
que vossa irmã não chegue ainda a concordar também. Bem se vê que
Sarah é mais alegre e feliz. Ora, eu lhes digo, continuou Ignacio approxi-
mando-se mais das três mulheres, como se quizesse fazer alguma confi-
dencia, esta sociedade está ameaçada de mil perigos, e o mundo, fora dos
mosteiros, é bom para as donzellas que amam e teem esperança num ca-
samento feliz . . . Ora, Sarah é muito nova ainda e poderia recolher-se
até a edade em que a sua vocação se decidisse pelo claustro ou pelo
amor . .

— Entendeis, então, senhor, que quem ama sem esperança deve aco-
Iber-se ao seio de Deus ? perguntou a mais velha das irmãs.
— Bem entendido. Onde se pode encontrar mais tranquillidade e con-
solo ? Os tristes principalmente ... O que fazem elles na meio d'um mundo
de alegres e felizes ? Os tristes e os desgraçados, que só encontram no
mundo profano quem os acolha por generosidade e os offenda com os seus
prazeres ?
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E' certo, pois, insistiu Deborah, que lá dentro todas as dores encon-
tram dores eguaes, todas as faltas perdão, e premio todo o martyrio ?

— Mas, atalhou Ignacio, para que estamos a falar nestas cousas? Não
são ellas que nos interessam. Deborah e Sarah teem os seus amores e es-
peram ser felizes. A Egreja as abençoará. O nosso interesse deve consis-
tir em afastar Pedro das tramas dos contrários.
— Diga-me, senhor, Pedro corre algum perigo ? Diga-o francamente,
senhor Ignacio. Quem sabe se a sua visita teve por fim annunciar-nos al-

gum revés ?

Joanna supplicava afflicta.

— Não, boa senhora, nada sei de vosso filho ^ e, se elle partiu para
Évora, como dizeis, é possível que eu lá me encontre com elle.

— Também ides a Évora, senhor ? Então, se encontrardes Pedro, tra-

zei-o depressa, que sua mãe e Sarah morrem de saudades por elle. .

— Não sejas má, Deborah, reprehendeu Sarah; dize que todos nós o
esperamos anciosamente.
— Tenciono voltar em poucos dias. Vou apenas para trocar duas pa-
lavras com os frades que estão na torre.
—E que sorte os espera, sabeis?
—A que espera sempre os grandes criminosos; principalmente o Ara-
gonez, contra o qual ha a accusação de um crime peoi que morte de ho-
mem.
— Peor ? perguntou Sarah.
Deborah escutava apenas.
— Muito peori
—E foi ?

— A desgraça de uma mulher. Mas . . agora reparo, senhoras, que an-


daes a molestar-vos por meu prazer.
— Haveis de tomar alguma coisa, sr. padre Ignacio — uns fructos que
vos refresquem e um copo de geropiga, doce como o mel, que \os con-
sola o estômago e não vos desconcerta a cabeça.
E as três mulheres começaram a servir Ignacio, trazcndo-lhe uma o
talher, outra a fructa, outra o cântaro. . .

— Como sois amáveis, senhoras minhas, que me daes um festim de


tão delicioso aroma.
— Estes pasteis, explicava Joanna, são obra de Sarah, que apprendeu
a receita com uma monja, que morreu de saudades. . .

—E este manjar? perguntou Ignacio, apontando para um covilhete de


barro bem lizo e bem cozido.
— Este c trabalho de Deborah. — K' um primor.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Sabe a violeta. Que bella essência. . . pode bem chamar-se-ihe um


primor no gosto e na modéstia.
Ignacio pegou na taça que Deboraii llie encheu.
— Minha gentil senhora, eu bebo aos vossos amores e ao vosso futuro.
E, dirigindo-se a Joanna:
— Aqui estava uma bella e virtuosa companheira para vosso tilho, logo
.'
que el-rei o faça cavalleiro e fidalgo da sua corte. .

Deborah empallideceu e Sarah corou.


Ignacio não se deteve...
— Sarinha, á viveza do vosso gracioso espirito e ao m\'sterioso esco-
lhido do vosso coração!
— F.u não tenho quem me queira, conseguiu dizer Sarah, descerrando
a custo um sorriso.
— Emfim, a todas três brindo, invocando o nosso Pedro, que eu hei
de fazer feliz, como elle merece e é mister.
Joanna e as duas orphãs baixaram a cabeça, em agradecimento.
— Retiro-me, finalmente, e bem contrariado, que não é fácil emigrar
assim de tão honesto e amável convívio. Dizeis então que Pedro deve es-

tar de volta por estes dias ? Se me permittirdes, eu voltarei antes de ir ao


encontro d'elle. .

— Quando vos aprouver, sr. padre Ignacio, esta casa. .

— Perfeitamente; e, se de mim precisardes, não fareis mais que man-


dar-me chamar a S. Domingos, pois tenho agora a meu cargo a adminis-
tração do mosteiro. Virei ajudar-vos a vida com o mesmo zelo com que
vim a salval-a.
Ignacio sahiu sorrindo intimamente.
— Disse pouco, mas vi tudo! ia elle pensando.
Disse pouco, na verdade, porque Ignacio não era homem que perdesse
uma palavra. Quantas dizia, quantas reflectiam uma intenção reservada;
mas, se pouco falara, muito lograra conhecer da vida intima de Pedro
Soares.
Profundos sentimentos religiosos em Joanna e profundo desconsolo em
Deborah — Pedro Soares, assaltado por duas paixões, havia de fatalmente
pôr no rosto de Sarah a tristeza de sua irmã. Mettido entre os amores
que inspirara, Pedro, para se esquecer, ou para se curar, teria necessi-
dade d'uma aventura... Esse desejo havia de leval-o á alcáçova, á pre-
sença do rei, cuja volubilidade o movia constantemente a buscar novos
servidores. Alli, entre cavalleiros e fidalgos, Pedro disiinguir-se-hia e havia
de ter, pelo menos, uma influencia muito aproveitável para os interesses
da poderosa seita, que começava a governar o Santo Padre.
Ignacio pegou na taça que Deborah lhe encheu na mão

/ ^. -^
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i23

De duas uma — ou Pedro triumphava e seria um bello agente junto de


António Carneiro, ou descaliia do valimento d'el-rei c íar-se-hia um vigo-
roso elemento de rebeldia.
Quanto a Deborah, não podia haver dúvidas. . . Na impossibilidade de
acceitar o amor de Pedro, havia de recolher-se a um mosteiro. .

Pedro era um e.xcellente moço; a sua lealdade garantia-lhe a sua boa


fé. Em poucos dias se affeiçoaria a quem o tivesse roubado á sua obscuri-
dade e levantado a regiões que envaidecem e estonteiam.
Atraz de Pedro, o padre poderia apparecer e insinuar-se nas altas es-
pheras do poder e do mando.
O resto lhe viria de Roma.
O indispensável era impedir que Deborah afastasse Pedro do caminho
que lhe ia ser aberto.
A corte estava recheada de gente descontente, mas fraca. A ingratidão
do rei tinha esfriado muitas dedicações, e, á roda do pequeno príncipe
D. João, começavam a agrupar-se os lisonjeiros e os ambiciosos.
Em casa de Pedro havia de sobra quem lhe franqueasse a entrada;
nas ante-camaras reaes só elle poderia dar-lhe accesso.
Não era Pedro homem a quem se corrompesse, mas era daquelles a
quem se podia contentar.
Desde que os proventos offerecidos fossem de honesta apparencia, elle

os acceitaria. . .

A felicidade de Joanna e de suas pupillas haviam de dar-lhe a ambição


do conforto.
Ignacio, como se vê, era um homem de raciocínio frio. Pertencia áquella
raça de arteiros e subtis que se insinuam e caminham no meio a que se
dedicam, com tal brandura e taes voltas, que mais parecem um parafuso,
que se introduz e enrosca na madeira, em giro silencioso, que os arrebitos
fortemente martellados em perfuradas chapas de ferro.
A maldade de Ignacio não era grosseira; era pertinaz.
Os efteitos d"ella não fulminavam, enfraqueciam.

Se precisasse de dcsfazer-se d'alguem, iria, pouco a pouco, viciando-


Ihc a atmosphera, mas nunca lhe amordaçaria a bôcca I

Era um especialista na cultura dos venenos moraes.


Por traz d'elle estava um grande mundo de nn-sterios.
Como só tinha propósitos, não tinha paixões.
Apesar de novo, guardava a castidade sacerdotal ; apesar de luctar, não
alimentava ódios.
Queria viver, e vi^er celebrado.
Como tinha vindo muito de baixo e queria subir muito alto, porque
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

não tinha azas, trepava aos hombros dos distrahidos, dos tolos e dos ingé-
nuos. Quasi que se podia dizer que ellenem tempera-
não tinha carácter
niento — só tinha vontade. Não tinha physionomia; tinha uma máscara au-
tomática. Estava na edade em que não se é nem velho nem novo. Não era
feio nem bonito — ás vezes era sympathico, outras parecia o contrário.

Quando estava só, a máscara parava de todo e ficava apenas desenho e


sem côr e sem vida.
vulto,

Quem quizesse surprehendel-o, havia de penetrar-lhe, lá dentro, no la-

byrinthó cerebral, ou applicar o ouvido ás palpitações do peito.


A fama não o insultava; pelo contrário — quem não se atrevia a cha-
mar-lhe bom, dizia que elle não era maldoso. Citavam-se, a respeito delle,
actos de caridade, e, quando não fazia uma acção boa, citava uma razão
boa. A's vezes embrulhava um beneficio dentro de uma perfídia — se o'

accusavam, desmanchava o embrulho e convencia que fora melhor que os


que fazem bem, porque puzera a modéstia no bem-fazer e ofFerecera a
calumnia á ingratidão.
r E' verdade que não era humano, mas também não era fera; moral-

mente parecia um ser hybrido formado de duas espécies. Os que o julga-

vam tigre admiravam-lhe a mansidão; os que o reconheciam homem no-


tavam-lhe uma austeridade feroz.
D'este conjunto de contradicções resultava a fama de justo.
O seu aspecto era ordinariamente grave e sêcco, o que não impedia*
que ás vezes parecesse alegre. . .

Nesses momentos sorria-se, como se, com uma das mãos, tivesse pu-
xado, por linhas occultas, o sorriso de diversos tons, desde o mais irónico
até o mais cariciadór. Era capaz, muito capaz,, de fazer coisas úteis- e de
defender gente de bem; até fazia isso de preferencia. Esse processo es-
tava no seu programma. Quando chegava a occasião de fazer mal, não
era elle quem o fazia, mas quem a isso arrastara.
O carácter doshypocritas ainda não está' definido.
Hypocrita, com cara de hypocrisia, não passa d'um ingénuo, timbrado
de sinceridade. O verdadeiro, o genuino hypocrita, a si próprio se en-
gana, chegando até a convencerse de que é sincero e prima em leal-

dade.
Ignacio tinha- momentos na sua vida em que estava convencido de que
não possuia os defeitos e os vicios, que na verdade tinha, e que tão habil-
mente occultava.
A observação prova o phenomeno: — ha mentirosos, que, á força de
repetirem a mentira, chegam a convencer-se de que falam verdade. A si

próprios se enganam os que passam a vida a enganar os outros.


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO «5

A este numero pertencia Ignacio; votara-se a uma tarefa, talvez egoís-


ta, mas que elle appellidava de dedicada a uma causa humana e justa.
Tanto fez, que disso se convenceu, e desde então só cuidou em ado-
ptar todos os meios para conseguir os seus fins.

Homens taes nunca são algozes visiveis, e desapparecem antes de se-

rem victimas.
Ignacio, ao passar pela casa de Pedro Soares, só pretendeu deixar
uma impressão leve, mal firmada, quasi esvanecida —
uma impressão que
deixasse dúvidas, para que lhe não chamassem tão bom que parecesse
hypocrita, nem tão máu que parecesse modesto, nem tão innocente que
parecesse banal.
Assim, tinha dicto palavras que lisonjeavam, idéas que se discutiam;
tivera olhares que eram interrogações.
E não se enganara.
— Repararam, disse Joanna, depois d elle sahir, como elle esteve sem-
pre mirando as flores do oratório ?

— E parece interessar-se por Pedro, não c verdade ? reflectiu Sarah.


— Elle falou de monjas, mas não se esqueceu de falar de amores...
Conhece o mundo. . . — observou Deborah !

Deborah, com a sua consciência, ainda notou que elle lhe falara, com
tanta franqueza, delia e de Pedro, que bem mostrara nada conhecer dos
segredos da familia.
Sarah, que se arreceava de que elle procurasse seduzir Deborah com
os prazeres do claustro, notou, com agrado, que só a ella, Sarah, elle ti-

vesse recommendado o mosteiro.


—E quasi não falou no serviço que nos prestara e com que nos sal-

vou das mãos da populaça, ia dizendo Joanna.


— Bem se vê também que não é dos partidários da sedição, porque
andou a pacificar a turba. .

— Se elle não fosse contra os dominicanos não lhe tinham entregado


a administração do mosteiro. . .

— E' homem da confiança do secretario, c pode defender-nos em occa-


siões perigosas.
—E Pedro precisa muito de quem o conheça, visto ter inimigos ou
invejosos . .

— Quando elle voltar, hei de mostrar-lhe aquelle Senhor de marfim


que tenho alli guardado.
—E eu hei de offerecer-lhe algumas flores do meu terraço. . .

—E eu hei de pedir-lhe que me conte alguma historia de monja apai-


xonada.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. l6.
. . . .

,26 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Este côro annunciava o mais auspicioso acolhimento.


Ignacio adivinhou-o, e tanto, que no dia seguinte, ao accender das lu-

zes, logo depois das Trindades, passou por baixo do terraço de Pedro
Soares.
— Boa noite, disse elle avistando Sarah a um canto da açotéa; como
passa vossa mãe e minha senhora ?

— Sem novidade, senhor padre Ignacio. Não quereis descançar?


— Venho de S. Vicente e tenho de recolher cedo ao mosteiro. Sabeis ?

Tive noticias de Pedro.


— Oh ! então subi, senhor. A boa Joanna muito vos agradecerá noti-

cias do filho.

— Vou importunar vosso serão. .

— Até nos melhor companhia.


fazeis a . . Subi, senhor padre Ignacio,
que a moça irá por vós para vos conduzir.
— Já que ordenaes. .

E melhor poltrona da casa, conversou largamente até as


o padre, na
IO horas sobre coisas intimas, religiosas e do Estado, não esquecendo his-
torias de freiras, cerimonias do culto e anecdotas da Alcáçova.
Ignacio tinha de partir para Évora, afim de ter com os frades a en-
trevista que já conhecemos, e, como era de esperar, foi fazer as suas des-

pedidas. .

Foi um novo serão muito conversador e elucidativo.

Ignacio tinha o juizo formado a respeito das três mulheres da família


de Pedro Soares, e adivinhara o que ellas lhe não tinham confessado.
Deborah era uma presa boa e certa; Sarah era um agente indispensá-
vel, e Joanna era cera molle em mãos de quem lhe lisonjeasse o filho.

N'uma volta do fuso, Joanna lembrou a Ignacio:


— Aquella historia que nos prometteu, padre Ignacio... lembra-se?
d'aquella moçoila, que acabou por se recolher a Lorvão.
— Ah, sim! Já me não lembrava... E' uma historia muito simples,
com um mérito apenas —o de ser verdadeira.
— Conte, conte, senhor padre Ignacio... disse Sarah!
— Quando conta esses contos parece que está a recitar um auto....
— Favores, minhas senhoras, grandes favores. Eu conto menos mal, . .

porque sou observador. Faço a historia com toda a imparcialidade; faço


rimances, como leitor, não como personagem d'elles. Como não me apai-
xono, não falsifico. Essa historia é das mais vulgares. Ha mil eguaes, e
haverá milhões emquanto houver amores e conventos.
— Então, diga lá. .

E Ignacio puxou a cadeira, como costumava fazer nos momentos so-


. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 117

lennes, assoou-se, e, debruçando-se um pouco sobre a mesa do serão,


começou batendo com os dedos, como se esse movimento lhe fosse com-
passo para a musica da narrativa.
Pararam a dobadoura, o fuso e a agulha, e Joanna até espevitava a
lâmpada, como se com mais luz ouvisse melhor.
— Se não está ahi bem, padre Ignacio, venha para este lado. .

— Acceito, para não que voltar as costas para o vosso oratório,


ter
senhora.
Joanna tinha todos os cuidados para que a narração não fosse inter-
rompida :

—O melhor é fechar o gato lá dentro; está sempre a brincar com os


novellos. .

Sarah poz o gato fora da assembléa.


— Vamos então lá, senhor padre Ignacio?
— Não vale nada ; é uma historia muito antiga, que nunca chegará a
velha porque é de todos os tempos...
— Antes de começar, senhor padre Ignacio, não quer beber uma
gôtta ? . .

— Não tenho de cantar. . . senhora. Não é um soláu, é um conto de


fadas, mas sem feitiços. .

— Bebe um gole, e come um doce. . . Dá-me esse açafate que está so-
bre a ucha, Sarah.
Sarah trouxe o açafate e Ignacio retirou d"elle um suspiro damen-
doa.
— Bem, então vamos ouvir, disse Deborah, pondo os cotovellos sobre
a mesa, e deixando os seus grandes olhos curiosos quasi a crestarem-se
á luz da lâmpada.
— Esperem, esperem, deixem que o sr. padre Ignacio acabe de sabo-
rear o seu doce. .

— Estou prompto.
— Bem, não interrompam. . .

— Começava a governar o sr. D. João II, quando um moço caval-


leiro, dos mais fidalgos e decididos, foi amado, ao mesmo tempo com e
egual ardor, por duas formosas damas da corte. Ambas o queriam, e
tanto lhe queriam, que em vez de ciúme, sentiam o mór desejo de o ce-
derem, cada uma á sua rival. Se Salomão, que foi um sábio, houvesse de
Mas não, Salo-
sentenciar, o cavall.eiro seria partido a fio de espada...
mão não se metteu no conflicto. Foi el-rei, que não era tão sábio, cha-
mado a resolver o pleito, c mandou que, aquella que mais amasse, fosse
a primeira a esquivar-se a juras c galanteios. .
. ! . . . .

128 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ignacio, n'esta altura, fez uma pequena pausa, tirou do açafate um ou-
tro doce, todo ovos, e depois perguntou:
— Qual delias julgaes, senhoras, que resignou primeiro o seu amor ?

— A menos amada, decerto, disse Sarah.


— A vossa opinião, Deborah ?. .

— A mais senhor. infeliz, . .

— Pois ambas vos enganaes, ou melhor, ambas acertaram em parte,


o que vale dizer que ambas acertaram.
— Não comprehendemos . .

— E' bem simples. — Como ambas o amavam muito, e nenhuma que-


ria ser menos amante que a sua rival, ambas renunciaram á posse do moço
cavalleiro!. . .

— Bonita acção, acudiu Sarah. . .

—E perguntou Deborah.
elle ?

— que não queria resignar


Elle, a ambas, nem escolher uma delias,
consultou el-rei sobre a maneira de sahir da difficuldade.
— E o que disse D. João?
— Espera, meu rapaz, disse el-rei, nem elias, nem tu, saberão resol-
ver o pleito.
— Então quem? objectou o mancebo. lhe
— O amor
— Pois não o amor que aconselhou ambas sacrificarem-se
foi a ?

— Não, minha querida Sarah.


— Não percebo, pois eu julgava. .

— O amor, disse Ignacio, não jamais generoso; Quanto foi é egoista.

mais verdadeiro, e forte, e apaixonado, mais exigente, e cego. . . O amor


só a si próprio vê e ouve. A amizade sim, essa cede, condescende, resi-

gna-se. . . São coisas differentes, minhas rilhas.

— Tudo me uma confusão isso faz ! . .

— Continue, senhor padre Ignacio.


— São umas tontinhas. Ainda creanças e já querem conhecer segredos
do coração!. . . observou Joanna.
— E' natural este embaraço. Pouca experiência do mundo. Se ellas
amassem já!

Deborah e Sarah puzeram o olhar no seu trabalho.


— Sim, rainhas filhas, continuou Ignacio, o amor salta abysmos e bar-
reiras, e, quando affecta de generoso, occulta-se, reforça-se, e irrompe de-
pois, mais violento e invencível até.
— Então é o amor peor do que eu imaginava... observou a irmã mais
nova . .
. . . : . .. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 129

— Não, o amor é sempre bom e dedicado, mas a companhia. .

— A companliia, dizeis vós ?

Deborah era toda attenção.


— Sim, a companhia. . . o ciúme — esse é que, quando o amor cede,

logo o reprehende, e injuria, e instiga, como um sopro pode inflammar


uma braza que se deixa apagar.
— E depois?. . . perguntaram, avidamente, as duas orphãs.
— Então a chamma forma-se de novo . .

As duas irmãs pareciam adormecidas, fitando o padre. .

Joanna veiu quebrar a abstracção:


— Tendes-nos sobre brazas, senhor. Afinai, . . o conselho del-rei ?

— O conselho dos mais sábios


d'el-rei foi e foi até approvado pela rai-

nha D. Leonor. El-rei disse ao fidalgo da sua corte

«O amor fez ambas generosas ? Pois bem, espera que o ciúme decida.
O ciúme mais forte deve estar com o amor mais verdadeiro.»
— E depois ?

— Depois, o ciúme effectivamente fez das suas, e a que tinha cedido


primeiro foi a que primeiro reclamou.
— E a outra ?

— A outra, minha Sarah, resignou-se.


— Mas amava-o, não assim é ?

— disse que
El-rei amor era amizade. tal .

— Mentiu exclamou Sarah.


el-rei!

— Então, menina, reprehendeu a velha Joanna, isso não se diz... Per-


doe, senhor padre Ignacio. . . estas cabecinhas, estas cabecinhas. .

— El-rei não mentiu, disse Deborah, mas enganou-se. Não ha leis ab-
solutas que regulem o coração da mulher. . . Imagine, senhor padre Igna-
cio, que uma d'essas creaturas, que resignaram a ventura do amor, tinha
na sua alma um mysterio, uma dôr, um sentimento, um juramento, que
pertencia á sua honra e ao seu Deus ? ! Poderia o ciúme, em taes casos,
desvirtuar o amor ? . .

— Não c esse o caso de que se trata. Essa historia não seria um ga-
lanteio, mas uma desgraça.
— Mas, n'esse caso?
— N'esse caso, esse amor seria um martyrio ideal, sagrado, só curavel
no seio de Deus.
—E o que fez a resignada ? perguntou ainda Sarah, com os olhos la-
crimosos.
— Foi a resignar-se para Lorvão . . . onde viveu e morreu alegre e . .

esquecida.
:. . .

i3o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Deborah olhou para sua irmã e, ao examinar-lhe o olhar triste e húmi-


do, pensou — Como ella o ama !

Ouviram-se as dez horas.


Ignacio dirigiu-se á adufa para vêr se o luar já podia allumiar-lhe o ca-
minho.
Deborah foi ter com elle.

— Senhor padre Ignacio, pelo amor de Deus, salve-me. .

— Então que temos, louquinha ?

— Preciso de sahir desta casa. O senhor pode levar-me para Lorvão ?

— Mas que idéa Por que pensa ! Pedro está a chegar. n'isso ? .

— E' por mesmo.


isso .

— Então resigna o amor ?

— Por amor.
— E foge-lhe ?

— Por ciúme . . .

— Basta, disse Ignacio, pensarei. . . Senhoras minhas, até á volta.


E depois para Deborah
— Vou consultar as cinzas del-rei D. João II.

— E a resposta ?

— A'manhã mesmo. Mas se o cavalleiro escolhesse ?

— Fugir-lhe-hia.
— Sem o consultar ?

— Assim preciso.
é
— Admiro resignação.
a
— Diga antes o desespero.

Foi das mais penosas e mal dormidas aquella noite. . . Deborah pas-
sou-a em sobresaltos.
Sentia mais vivo que nunca o seu amor por Pedro, que a salvara, c
que agora a perdia. E ia perdel-a, porque ella, se não o amasse, pode-
ria viver em qualquer parte, do próprio trabalho, ou da generosidade de
Joanna. Amando-o, a elle, que era tão apaixonadamente amado por sua
irmã, via-se obrigada a sacrifício maior que o de abandonar a casa — o de
se enclausurar para o resto da sua vida.
Quanto mais generosa sua irmã se mostrava, mais generosidade lhe
aconselhava e impunha. Sarah tinha só o amor fraternal a indicar-lhe o
sacrifício; ella tinha mais — os dois amores lhe diziam que fugisse. Por
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i3i

causa de Sarah e por causa de Pedro. Era possível que Pedro a amasse
de preferencia. . . sim. . . chegava até a estar convencida disso, mas desde
que elia não merecia Pedro, nada mais facil que converter-se o amor em
compaixão. O accòrdo entre Pedro e Sarah, para o casamento que lhe
offereciam, era uma prova de que ambos se compadeciam da sua des-
graça, mas não de que um a amasse, e de que a outra não soffresse o
ciúme.
O padre Ignacio bem o dissera —o ciúme sopra a braza do amor.. .

A sua hesitação podia ser a desgraça de três pessoas.


Além de que, pensou ella, estremecendo, entre mim e Pedro ha de
sempre estar a figura sinistra do Aragonez... Elle morrerá, e a justiça,

ao condemnal-o, se lembrará de mim. Assim serei vingada, mas ficarei

diffamada... O fogo que lhe ha de consumir os ossos, abrazar-me-ha o


rosto de vergonha.
Pedro seria tão bom que me chamasse sempre a sua iiiullier? Mas o
mundo, a cidade, o meu bairro, quando ambos passarmos, apontar-me-hão
— a do Am^one:;.
O amor é um affecto precioso que se não dá, nem se vende — troca-se
— e, para que a troca se de, é indispensável a equivalência de valores. Pe-
dro era de nobre origem e nobre coração, e tinha deante de si aberta e
gloriosa a vida das armas, ou o favor d'el-rei. Vivia já honesta e honra-
damente, e chegaria a ser rico... Sarah era orphã e pobre, mas equili-

brava a balança do casamento com a sua formosura e pureza.


Entre ella e Pedro a differença era manifesta ! . . .

Decididamente só tinha um partido a tomar : fugir áquella convivência,

que era como um prazer que vem d'um vicio — um veneno que faz so-

nhar e morrer.
Pedro ia chegar, e repetir-lhe-hia os seus protestos damor — ouvil-os
era apunhalar o coração de sua irmã, e era enganal-o, a elle, tão bom e
tão leal ! Era enganal-o, não porque ella o não amasse. Deus bem o sabia,
mas por que nunca consentiria em ser sua mulher. .

Far-sehia noviça entre as monjas cistercienses, isto é, em vez de ser a


menos casta em casa de Pedro, seria a mais virtuosa no rebanho de Phi-
lippa d'Eça. Onde passara com suas máculas a infanta D. Branca, podia
estar com memoria do seu infortúnio a filha do velho Lopo.
a

Alli poderia ser que Pedro a esquecesse e até lhe abençoasse a resolu-
ção. Elle iria pela estrada illuminada da sua vida no alvorecer, e ella fica-

ria nas trevas densas da sua vida" de saudades! Quem tem uma luz forte
a bater-lhe no rosto, não pode distinguir quem se recolhe na penumbra. .

O que iria Pedro fazer a Évora ? Sem dúvida comprazer-se na morte


. . . . .

,32 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

do hespanhol. . . Por isso se via a grandeza do seu amor, a eila, e do seu


ódio, a elle ! . . . Mas assim como o amor, sob a forma de saudade, sub-
siste depois da morte da pessoa amada, assim o ódio, sob a forma do ter-
ror, fica depois da morte dos que odiamos. .

— De maneira que Pedro reconhece que, para eu lhe pertencer, é

indispensável que o outro desappareça. . . Tem razão. O peor é que a


memoria não morre, e elle veria, se vivesse a meu lado, á noite, nos

recantos sombrios da nossa casa, a diabólica figura... Não ha que hesi-

tar. Não tenho mãe nem pae ; Pedro, desde que o amo, já não pode ser
meu irmão; Sarah, para ser feliz, precisa do meu sacrifício. . . Acabemos
com isto.

E ergueu-se do leito, onde apenas se recostara vestida, durante a noi-

te, e, sentando-se a uma mesa, escreveu:

«Meu bom amigo

«Pensei toda a noite no pedido que vos fiz. A luz da manhã trouxe-me
o melhor conselho. Quero deixar immediatamente esta casa. Pedro pode
vir, d'um momento para o outro, e é mister que elle me não encontre.
Soffro muito, e quero que Sarah seja feliz.»

Deborah não assignou esta missiva, e fechou-a cuidadosamente com a


cera d'uma vela, applicando-lhe o sinete do seu pequeno annel.
— Zaira! chamou ella, abrindo a porta da alcova.
A serva appareceu rapidamente.
— Leva isto ao mosteiro de S. Domingos, e entrega ao senhor pa-
dre Ignacio.
— E' aquelle senhor que esteve cá hontem, á noite ?

— E'.
— Eu vou, senhora minha.
— Repara, não tem resposta, mas se alguma der, é só para mim. te .

Entendeste ?

— Sim, menina. .

— Viste minha irmã?


— Está ainda na sua alcova, e ha pouco dormia como uma verdadeira
santinha . .

— Vae, anda. Eu vou descançar, porque passei mal a noite.


— A minha senhora está doente?
— Não estou bem; preciso de dormir. .

Zaira sahiu, fechando a porta.


. . ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i33

— Depressa, deixa ver; disse a Zaira a irmã de Deborah. Que te en-

tregou? Só isto?
— Só.
— Para levares ?. .

— AS. Domingos, ao senhor padre Ignacio.


— Espera, disse Sarah, entrou na sua alcova. e

Alli, quebrou o sêllo da missiva, leu-a, e fechou-a de novo.


— Vac agora, Zaira, e não te esqueças das minhas reccmmendaçõcs.
Deborah, cujo espirito se fatigara toda a noite a resolver o seu pro-
blema, conseguiu adormecer.
Sarah, vigiando-a de perto, passeava no corredor como atalaia, em
tempo de guerra, nas muralhas d'um castello.
— Oxalá que Pedro se não demore ! O padre Ignacio será capaz duma
infâmia ? Auxiliar taes propósitos a occultas, sem eu saber, sem Pedro
chegar!. . . Não, não pode ser. . . Se é um hypocrita, ficaria assim des
mascarado, e Pedro castigal-o-hia. Ignacio vae, decerto, dissuadil-a d'a-
quelle propósito, e, pelo menos, aconselhal-a a que tudo resolva, de ac-
côrdo com Pedro e sua mãe. Que eu por vezes cheguei a recear delle. . .

Traria elle algum plano secreto?... Mas qual? E' um homem tão res-
peitado, que não pode deixar de ser respeitável
Tinha-se passado pouco mais duma hora, e já Zaira estava de volta.
— Trazes resposta ?

— Aqui está. Ia a sahir do mosteiro, mas escreveu essas linhas sobre o


altar de Nossa Senhora. .

Sarah arrancou febrilmente a resposta das mãos da serva, e leu:

«Senhora

«Em vez de consultar D. João II, consultei a minha lealdade. Padre,


nem vos dissuado de irdes para o serviço de Deus, nem vos aconselho a
que atraiçoeis a quem vos ama. E' boa a vossa intenção, eu sei ; mas, para
fazer o bem, ha mais regras que para fazer o mal. O que se resolve com
paciência, resolve-se melhor. Contiae em Deus, em Pedro, em Sarah, e no
vosso servo
liiiiacio.yi

— Que honrado homem! exclamou Sarah, alegre commovida. e


— Toma, Zaira; minha irmã dorme. Não a accordes. Quando ella te

chamar, entrega-lhe isso. Eu vou lá acima ver o céo e as minhas flores.

Como ellas me vão parecer agora mais bellas e delicadas

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. I7.


. . .

i34 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ignacio. ao ler a missiva de Deborah, teve um sorriso que pareceu de


protecção, e era de triumpho.
Depois de escrever a resposta, dirigiu-se a casa de Ayres da Silva, que
o recebeu immediatamente.
— Então? disse-lhe o corregedor das justiças.
—O vosso alvitre, senhor, tem o melhor acolhimento. Vede; e mos-
trou-lhe a missiva que acabara de receber.
— Por que prefere ella o mosteiro de Lorvão ? El-rei deixa-lhe o direito

de escolher. O de Cellas talvez fosse melhor. . . disse Ayres da Silva.


— Recordações das lendas em que figuram as santas rainhas Thereza
e Sancha .

— Pois seja. . .

— Sabeis que o sr. secretario tem o máximo empenho em proteger


essa menina ?

— Sei António Carneiro


; é homem de coração.
— Quando viu o processo do Aragonez e a denuncia de Ruy Vasques,
tanto se irritou que, por sua vontade, tinha mandado ordem para que os
frades fossem executados no dia da exautoração.
— E por que o não fez ?

— Por que o Manuel AfFonso disse não prescindir das confissões de


Pedro Soares. .

— Já as deve ter feito.


— Já; espero, a todo o momento, novas que expliquem a reclamação,

que vou attender.


— Parece que alguma coisa grave se passou entre Manuel Affonso e

Pedro Soares ...



Assim o julgo; e tanto que já fui convidado a vigial-o até que ve-
nham novas informações. Que idéa fazeis delle, senhor padre Ignacio ?

— A melhor possível. Pedro é um excellente mancebo: leal, valoroso,


cheio de vivacidade e talento.
— Que relações mantém elle com a infeliz Deborah?
— As mais fraternaes. . . Isto não quer dizer que não tenha a respeito
d'ella qualquer idéa... Rapazes, sabeis?... O fogo, a estopa, coisas do
mundo, forças da natureza . .

— Não tendes observado da parte de Deborah qualquer indisposição


para com elle ?

— Nunca; pelo contrário: uma adoração respeitosa, como todas as ado-


rações.
. . . . .. . . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i35

— Mas esta insistência da parte delia em querer de casa saliir ?. . .

— Talvez um boccado de vocação. E depois, como sabeis, Deborah . .

conhece a situação especial em que se encontra. . . Orgulho, capricho ou


honestidade, tudo pode ser. .

— Sim, sim, pode ser tudo isso. Kííectivamentc a situação delia é


delicada. Fizestes delle, padre Ignacio, as melhores ausências junto do
senhor secretario. .

— Fiz justiça, apenas. Pedro tem todas as condições para ser um cor-
tezão leal e dedicado. . .

— Bem se vè que sois amigo dedicado dessa familia. . .

— Quem o não fora Não imaginaes, senhor Ayres da Silva, o que


?

naquella casa existe de amor e de simplicidade. A simplicidade é um dos


melhores ornatos da virtude. . .

— Sabeis quando elle chega ?

— Não; parto hoje para Évora, afim de auxiliar a devassa começada


por Manuel AlVonso e para descobrir alguns mistérios da administração
de S. Domingos.
— Faço idéa do que por lá tereis encontrado. .

— Dizei antes o que por lá não tenho encontrado. ,

— Tereis o cuidado, padre Ignacio, de conservar bem secreto o vosso


relatório.
— Serei discreto, apesar da recommendação de António Carneiro.
—O secretario esta ancioso pelo .escândalo. mas el-rei, mais dia me-
. .

nos dia. . .

— Pensaes que el-rei será capaz de recuar. . .

— El-rei tanto deseja acertar que hesita umas vezes, avança muitas e
quasi sempre recua. . .

— Influencias da alcova real . . .

— Cuidado com a lingua, padre Ignacio — nem todas as verdades se


dizem. . -

— Então, a rainha ?

— Em poucos mezes vereis os dominicanos na posse do mosteiro


— Pena será que não perdoe também aos frades da torre. Seria a obra
completa ! . .

— Meu caro, a enxertia de Castella ha de dar excellentes resulta-


dos. .

—E o secretario ?

— Esse resiste, e tem prestigio, mas anda sempre tanto na sombra,


que mal se vê . .

— Pois, cabeça tem elle. .


. . . .

i36 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E das melhores! Cabeça tão bem organisada, que até consegue mo-
ver o braço del-rei. .

— Então o sceptro ?

— Obedece ao braço de António Carneiro, que é tão humilde que


chega a dominar... O seu conselho tem sempre a forma duma súppli-
ca. . . Tem uma passividade que actua.
— Parece a estrella feliz del-rei. .

— Não parece, e é ; tanto conhece seu amo e senhor, que está sempre
a movel-o a novas empresas. Como é bom timoneiro, não deixa parar el-
rei, para que elle não balouce muito!. .

— Esperaes, comtudo, que a corte de Castella.. .

— Reponha o partido dos frades no seu antigo dominio? Sem dúvida.


Em breve os christãos-novos hão de comprehendel-o.
— Entretanto posso continuar devassando ?

— Com todo o zelo, mas discretamente. Bem deveis comprehender-


rae. Roma governa o mundo.
— Felizmente, pensou o padre Ignacio.
— Que mais ordenaes, Ayres da Silva sr. ?

— Que vades sem trigança sem preoccupações.


e volteis, e . . Ide em
paz.
* •

Deborah, ao ler a resposta de Ignacio, não entristeceu, apesar da re-


cusa. Os deveres são quasi sempre cumpridos de má vontade. Só as de-
voções se observam com prazer. A consciência dizia-lhe que ella não tinha
a responsabilidade do que estava acontecendo. Tentara o melhor esforço,
e não tinha culpa de que elle se perdesse.
Quem havia de accusal-a ?

Desde que Ignacio se recusava a auxilial-a. via-se forçada a esperar a


volta de Pedro . . .

Havia ainda o recurso de lhe falar, franca e lealmente... Dir-lhe-hia


mesmo que tentara fugir-lhe, sem o esperar. . . Isso seria uma prova da
sinceridade do seu propósito. .

Talvez fosse melhor assim... Custava-lhe tanto partir sem tornar a


vêl-o!... E não seria o perigo maior por vêl-o mais uma vez. O que
poderia succeder?
Dizer-lhe elle que a amava? Olhando-a, não lho tinha elle dicto já
tantas vezes ?

Depois, as causas que a afastavam de Pedro não tinham desappa-


recido... Pedro seria razoável e havia de auxilial-a a sahir de tamanha
dificuldade. Elle mesmo lhe indicara o processo...
. : r .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ao almoço, as duas irmãs conservaram-se muito silenciosas. O silencio

foi, como de costume, cortado por phrases de saudade inspiradas pela au-
sência de Pedro. .

— Vou á missa das lo horas, disse Joanna. Acompanhas-me, Deborah?


— Da melhor vontade; e Sarah vae também
— Sarah em casa. Não sabemos quando vem o Pedro, e bom será
fica

que alguém o espere e receba. Rezaremos por ella, disse Joanna.


E assim se fez.

Sarah, do terraço, despediu-se de sua irmã, do mesmo logar em que


Pedro costumava saudal-as ao voltar da rua.
— Pobre irmã! pensou Sarah, quando Deborah desappareceu, como
ella imagina que ninguém lhe conhece o seu plano! Fiz a Pedro o jura-
mento de velar por ella, e hei de cumpril-o, com fadiga, mas com perti-

nácia. De noite e de dia seguil-a-hei, espreitarei todos os seus passos, adivi-


nharei todos os seus pensamentos, devassarei todos os seus sonhos ! Serei
um homem Pedro agradecer-me-ha o zêlo e a dedica-
n'esta santa tarefa, e
ção. Quando forem felizes, quando pertencerem um ao outro, serei eu,
. .

e não ella, quem ha de ir curar uma doença do coração, fora do seu ni-
nho, para que a minha dor me não atraiçoe e eu não possa escurecer com
a minha tristeza, o sol do seu paraiso. . . Se é bom amar, não é peor ser
generosa. . . Depois, mais tarde, voltarei, feita mulher de juizo, e um dia,

enchendo-me de coragem, e com o melhor dos meus sorrisos, hei de con-


tar tudo a Deborah, tudo, para que ella saiba quanto a estimo... E meu
velho pae, o nobre martvr, que tantas vezes se sorriu das minhas crean-
cices, abençoar-me-ha do Céo, pelo meu sacrifício. . .

E Sarah, pensando assim, sentou-se no varandim do terraço, enxu-


gando, com as costas das mãos, pequenas e rosadas, como se fosse
uma creança, duas lagrimas que desciam dos olhos macerados pela vigilia.

Veiu despertal-a d'este enleio, vago e triste, a voz de Zaira.


— Menina, menina Não ! sei o que ha. . .

— Que aconteceu, Zaira ? dize depressa.


— Nãt> : sei, menina, mas estão lá em bai.xo, e pedem para falar a mi-

nha ama, alguns homens que parecem gente da justiça.

— Meu Deus ! exclamou Sarah afflictissima, o que terá acontecido ?

Viste entre elles o senhor Pedro


— Não, menina. Um d"elles disse-me que não me assustasse, mas que
vinham da parte do do . . . . . .


Do Desembargo ?
— Sim, menina; disso mesmo.
— Valha-me Nossa Senhora Que ! prcsentimentos ! . .
. . . . :

i38 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E Sarah, que se levantara ao receber a noticia, sentou-se de novo,


como se tivesse medo de cahir. . .

— Que quer que eu diga, menina ':

— Nada. Eu vou; ampara-me, porém, que receio desfailecer.


Depois d'um momento:
— Agora, larga-me; arranca uma d'essas flores. . .

Zaira obedeceu e Sarah aspirou uma rosa vermelha de aroma muitc


activo, á falta doutros estimulantes para os sentidos, que lhe fugiam.
— Vamos lá, disse Sarah, fingindo serenidade e resignação. Seja o que
for. Que Deus vele por meus irmãos !

Na pequena salinha, Sarah encontrou dois homens — um meirinho, de


aspecto delicado, e um aguazil, afastado e reverente.
O meirinho, mal avistou Sarah, cortejou-a com fidalguia.
— Senhora minha — perdoae-me se vos molesto com a solennidade da
lei. Não se trata de damnos ou de castigo, mas de protecção.
— Não comprehendo, senhor. A quem procuraes . .

— E' aqui que mora Pedro Soares ?


— E', sim, mas está ausente de Lisboa. .

— Sei, senhora minha.


sei,

— Por quem senhor, dizei depressa.


sois, .

— Por mandado do corregedor das justiças e em cumprimento delle,


como se da parte del-rei eu viera, tenho de collocar sob a protecção do
Desembargo Real .

— A Pedro Soares?
— Não, minha senhora, d menina Deborah, filha do infeliz Lopo, fal-

lecido. .

— Deborah

? E para que ?

— Sabendo-se das violências de que a infeliz foi victima, dada a sua


menoridade, e tendo ficado sem parentes ou tutores legaes, pertence ao
Desembargo Real collocal-a sob a sua protecção, até julgamento final dos
auctores dos malefícios. . .

— E quereis, então, leval-a em vossa companhia ? *


— Sim, senhora minha.
— E para onde ?

— Em respeito á sua vontade, para o mosteiro de Lorvão.


— Mas, senhor, Pedro deve chegar brevemente.
—O sr. Pedro Soares não tem direitos de preferencia á tutela dos
orphãos, que recolhe em sua casa.
Sarah estava profundamente angustiada. Sua irmã ia chegar; a justiça
leval-a-hia comsigo. E Pedro? E o seu juramento ?
. .
Senhora minha, perJoae-me sí vos molesto com a solennidaJe da lei

'i
/ )
. » : . . . : ..

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO iS.j

Se a justiça devia protecção a uma, devia-a também á outra. .

No seu olhar relampejou uma idéa generosa. .

— Estou ás vossas ordens, senhor.


— Sois vós então ? . .

— A pessoa que procuraes: Deborah, do a tilha infeliz Lopo. .

— Perdoae-me, senhora, se vos faço esta pergunta : fostes vós que dis-

sestes preferir o mosteiro de Lorvão i

— Fui . . .

— A quem manifestastes esse desejo ?

— Ao padre Ignacio, de S. Domingos.


— Está bem. Dizei-me mais : tendes uma irmã ?

— Sim, tenho — Sarah. •

— Quereis despedir-vos delia ?

— Não; preciso de evitar as amarguras da separação. .

— N'esse caso, estou ás vossas ordens, senhora. Tendes lá em bai.xo

uma liteira, que vos conduzirá á presença do honesto magistrado, a quem


sirvo. Elle escolherá a pessoa mais própria para vos conduzir a Coimbra,
onde sereis entregue a uma emissária da abbadessa do mosteiro.
— Sois vós quem me acompanhará casa de Ayres da Silva a
— Sou. Se quereis, porém, senhora, que a vossa serva vos acompanhe,
esperarei o tempo de que necessitardes.
— Prefiro
partir immediatamente Peço um momento apenas para . . .

escrever duas palavras, e escolher alguma roupa.


— Não tenhaes nisso mór cuidado. Ser-vos-ha fornecido tudo de que
houverdes mingua durante a jornada . .

— Bem, esperae um momento. . .

Sarah guardou diversas bugigangas num pequeno cofre de madeira


oriental — flores sêccas, imagens de santos, rosários — tudo pequenas al-

faias do seu culto a Deus e aos seus amores ! e entregoii-o a Zaira, que
foi depol-o na liteira.

Entretanto escreveu a sua irmã


«Minha querida Deborah. — Perdôa-me a surpresa. Resolvi afastar-me

d'esta casa até que chegue o dia do teu casamento. Pedro consente, e.

por vontade minha e delle, vou acolher-me, sob o olhar de Deus, a um


mosteiro da sua escolha. Não te afllijas. Pedro deve chegar amanhã. Sou
feliz, e, se não fossem as saudades que de ti levo, iria alegremente ver
as margens do Mondego. Dá ura beijo á nossa boa Joanna, e dize-lhe que
em breve voltarei a seus braços. Pela memoria de nosso pae, e pelo
amor de Pedro. Deborah, espera, resignada, noticias minhas. Deixa-te
muitos beijos a tua — Sarah.
. : ! . . .

I40 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Nesta escripta singella e triste ficaram os vestígios dalgumas lagri-

mas.
— Está bem, disse Sarah,Deus não me abandona. Pedro encontrará
minha irmã; e, se a ordem do Desembargo vier a ser cumprida, Deborah,
ao entrar em Lorvão, alli encontrará quem a vigie e defenda. .

E depois, dirigindo-se a uma imagem da Virgem, suspensa na parede:


— Bem vedes, Senhora, que honro a memoria de meu pae, e defendo
o thesouro de meu irmão. .

— Senhor meirinho, disse ella, mal voltou á sala da entrada, estou á


vossa disposição. Deborah pede-vos que a acompanheis . .

— Senhora minha, disse o meirinho, vergando respeitosamente a ca-


beça, estaes sob a protecção del-rei.
Sarah conchegou rapidamente o manto, occultou a cabeça no amplo
capuz, e sahiu, seguida pelos dois homens.
Ao chegar á rua, disse a Zaira:
— Entrega este recado a minha 'irmã, e espera-me, que eu volto já.

A liteira partiu.

Ao passar em frente da egreja, Sarah estremeceu e puxou violenta-


mente o capuz sobre o rosto.
— Que tendes, senhora, experimentaes o menor receio ?

— Não; não desejo ser vista por esta boa gente da vizinhança.
E tinha razão: Joanna e Deborah, que desciam as escadas do adro, ao
verem a liteira, detiveram-se e ficaram-se a olhar para ella ! E, comtudo,
nada mais vulgar que a passagem d'uma liteira no caminho de S. Vicente
para Villa Nova
Quando poderão os espiritualistas e os positivistas definir, ou explicar,
estes sobresaltos do coração a que o povo, na sua sublime intuição, chama
presentimentos
E a liteira desappareceu numa volta do caminho, e Joanna e Deborah
encaminharara-se, a passo lento, para casa.
Ainda estavam um pouco distantes e já levavam os olhos pregados no
balcão do terraço, e Deborah, ergundo muito a cabeça, parecia querer de-
vassar todos os recantos da solitária açotéa,
O medo, ou grita muito, ou emmudece ... O de Deborah movia-lhe
muito o olhar, mas não lhe inspirava uma só palavra.
Joanna foi quem quebrou o silencio.
— Sarah calculou mal o tempo da missa, porque ainda nos não es-

pera. .

— Fomos nós que nos demorámos mais... Esperou... o sol está


muito quente. . . ella vae apparecer, dizia Deborah, animando-se.
. . ! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

^- Quiz rezar hoje mais por causa da demora do Pedro ! . . . antes ti-

vesse rezado em casa... disse Joanna, desculpando-se.


— OlliCj olhe, lá está ella por traz das llòres. . . está julgando^que não
a vemos. . .

A aragem bateu no canteiro aberto no muro, e os arbustos e as folhas


Jas plantas balouçaram-se desmanchando o esconderijo. .

— Ah ! não está, não está!... Talvez que o Pedro chegasse agora. .

— Nesse caso, estavam os dois á nossa espera, ou tinham vindo sahir-

nos ao caminho. . .

— Já foi como se levantou muito cedo,


sei o que ; teve somno, sen-
tou se. Vamos envergonhai a, boa Joanna
. . ?

— Vamos até mais depressa, antes que ella accorde.


E as duas mulheres, sempre tão receosas de novos infortúnios, e que
tinham estado a enganar-se mutuamente, a si próprias se enganavam.
Apressaram o passo, evidentemente para fim bem diverso do que
diziam, porque iam, não despertar Sarah, mas saber o que lhe acon-

tecera.
Razão não havia, mas o habito da desgraça faz pensar constantemente
nella. .

Entraram em casa com tal vivacidade, que nem attentaram na pallidez


da serva, que as esperava para lhes dar a má nova.
Deborah correu á alcova de Sarah. cuja porta estava apenas encos-
tada.
— Sarah, Sarah, ah! preguiçosa, que te deixaste dormir, emquanto
rezávamos por ti. . .

Ninguém lhe respondeu. .

Deborah e Joanna precipitaram-se na alcova. . .

Sarah não estava lá. As duas mulheres intcrrogaram-se com o olhar,


como se quizessem dizer:
— Que nova infelicidade é esta ?

Olharam a alcova, os móveis, as paredes, a gelosia fechada, e até se


demoraram a olhar a Virgem, como se pudessem lêr-lhe, nos olhos picr
•dosos, noticias do que se passara
Afmal Zaira foi-lhes ao encontro.
— A menina Sarah. . .

— Sim, dize, onde está ella ?

— A menina Sarah sahiu e deixou este recado.


— E' para mim.
E Deborah tirou nervosamente, das mãos de Zaira, o que ella ll:e apre-
sentava.
MYSTERIOS V).K INQUISIÇÃO. — \ 01.. I. FOL. lí^.
! . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E começou a lêr:
— Minha querida Deborali :

Não pôde continuar; as mãos tremiam-lhc o escripto. e as lagrimas

cegavam-na.
— Então? disse Joanna, minha talvez não seja coisa de
lè, lilha, affligir.

— Não posso, não posso soluçava Deborah. !

— Com quem sahiu a menina, não viste ?

— A menina sahiu numa disse que não se demorava, respon-


liteira, e

deu Zaira.
— Por que a deixaste sahir?
— Tenho ordem do sr. Pedro para obedecer cegamente ás ordens da
menina . . .

— Vamos, Deborah, lè essas palavras de tua irmã, lê. . .

Deborah fez então a leitura, frequentemente interrompida pelos solu-


ços e pelas lagrimas. A cada palavra tinha de enxugar os olhos, e de res-
pirar n"um gemido.
Ao acabar, deixou cahir das mãos a misteriosa despedida e abraçou-se,
n\im grande transporte de dôr, ao pescoço da velha Joanna.

Ah! minha boa mãe. quanto sou desgraçada!

Coragem, minha filha, a desgraça não será maior que todas que já
soft reste.

—E foi por minha causa que ella se sacrificou, ella. por quem daria
a minha vida, a minha felicidade inteira!
— Mas socega, Deborah, socega. .

— Que havemos de fazer, minha mãe?


Ouviu-se uma voz no corredor, alegre e vibrante
— Onde está o meu rebanho, que não apparece á voz do seu pastor? . .

— Ouviu-nos Deus, minha mãe! E' Pedro! Não ouvis a voz deile ?

Pedro, á porta da alcova, continuou as suas expansões:


— Por Deus! Parece que ninguém mora nesta casa! Romeiro chegado
de longa peregrinação, esperava encontrar illuminado o meu alcácer, e nem
uma voz amiga vem acolher-me ! Minha mãe e senhora, aqui me tendes
empoeirado por fora, mas limpo de consciência, que é mesmo um regalo
vêr-me e admirar-me
— Meu filho! exclamou Joanna. e correu a elle para o abraçar.
— Venham de lá esses beijos de que tão saudoso tenho andado por
essas terras alemtejanas. . . Esconder o rosto! Não consinto; beije-me, se-
nhora minha, de cabeça levantada, que, se de muitas culpas me accuso,
nenhuma delias me dcsdoira.
E agarrando com as duas mãos o rosto emmagrecido da pobre Joanna,
. : . . . .

MYSTERIOS DA INíJUISIÇAO 143

depoz-lhe na testa e nas faces muitos beijos tão ruidosos, como o estalar
duma girandola.
— Que sede desta bebida eu tive, pelo caminho, minha boa velhinha.
E, como ella mitiga as saudades d um filho ausente, inquieto e receoso!
Joanna reclinou a fronte no hombro do ti lho, para que ellc não visse
as lagrimas que lhe borbulhavam. ..

—-Lagrimas de alegria, ao abraçardes o vosso namorado, são prémios


que consolam, e afiam as lanças do combatei... Chora, minha boa mãe,
que essas lagrimas são sorrisos dos olhos I. . .

K, passando meigamente as mãos pela cabeça de sua mãe, que fechara


os olhos e lhe soluçava sobre o peito, lançou o olhar a Deborah, que,
deante delle, esperava a sua vez de o saudar.
— Minha boa Deborah, não tenhas ciúmes destas caricias; foram ellas

que me educaram o coração e me ensinaram a ler na tua alma. boa como


II dos anjos, cariciosa como os teus olhos I. .

— Pedro, disse Deborah, morríamos de .saudade I

— assim me envaidecem e enfatuam, que não trocara, pela


F] tiara dos
papas e pela corcni dos reis, este império moral em tão bellos corações!
Não invejo nem os potentados nem os ricos da terra, que não ha, por
aquella Virgem o juro. nem maior força nem maior riqueza que tudo isto
que possuo ! . .

E extendeu a mão a Deborah.


— E Sarah? Onde está essa ingrata, que não vem completar este qua-
dro que Deus pintou com o pincel da sua immensa misericórdia ?

— Sarah .-
disse Joanna, erguendo o rosto, a nossa Sarah. . . não está
cá. . . sahiu. . . mas volta. . . não pode demorar-se. .

— Mas agora reparo! tu tens os olhos vermelhos, Deborah... e vós,

minha mãe, não chorastes por eu chegar, mas por alguém ter partido. . .

— Não, Pedro, não foi isso. .

— \'amos — quero saber tudo; não c com lagrimas que se afastam as


desgraças. O que succedeu
— Pode ser muito, mas também pode não ser. . . Sarah. .

E Deborah não teve coragem de continuar. . .

— Minha mãe, falae vós. Preciso de saber o que se passou na minha


ausência. . . Se algum desastre houve em nossa casa. cumpre não perder
tempo cm lamentações. Sarah morreu;

Credo, Pedro, ninguém diz semelhante coisa!
— Bem; mas eu conheço Sarah tenho confiança nella. Fugiu; e
— Talvez, disse Joanna.
— Mas para onde, para onde; Mataes-me com as vossas reservas. Sou
.

MYSTERIOS DA INQUISiÇAO

um homem, e os homens não choranr quando é necessário proceder e lu-

ctar.
— Sarah, disse Joanna, mais animada ao vèr a coragem varonil de seu

filho, Sarah partiu para Lorvão.


— Que é isto?

E Pedro abaixou-se para levantar a missiva de Sarah a sua irmã.


— São palavras de Sarah; vou emfim saber tudo.
E leu rapidamente.
— Vejo pouco, mas já c alguma cousa — um m3'sterio c sempre me-
lhor que uma noticia má. — Sejamos calmos. E" necessário pensar. Minha
mãe, pela minha vida lhe peço que me diga a verdade toda: quem entrou
em nossa casa durante a minha ausência?
— Filho, ninguém de quem se possa suspeitar. O padre Ignacio, o teu.
o nosso salvador, veiu por ti algumas vezes. . . K ninguém mais. .

—O padre Ignacio? Mas não foi com elle que Sarah partiu? Não é
assim?

Oh, não, disse Deborah. Ignacio, como poderei provar-te, é um dos
homens bons do clero secular. Tenho d isso provas.
— Então com quem ?

— Parece que gente da justiça. . .

— Que ella viesse em busca de Deborah, comprehendia-se, mas de


Sarah?. . . meditou Pedro, como se estivesse só. E ficou com o olhar pa-
rado e vago, como .se estivesse mais pi-eoccupado que aíHicto.

E" que Pedro começava já a pensar nas consequências da sua visita á


torre d'Alconchel. A justiça poderia ter começado a operar algumas pro-
videncias que deveriam ser tomadas com relação a elle e a Deborah...
Mas Sarah? Como se achava Sarah envolvida nos crimes do Aragonez?
Que as duas fossem chamadas á tutela do Desembargo, explicava-se, mas
só aquella, que não figurava na devassa relativa aos frades?. . .

— Que pensas? perguntou Joanna a seu filho.

— Penso, minha mãe, que o mj'sterio será em breve desvendado, e


que, felizmente, não se trata dum desgraça irremediável. Vou assear-me
e revestir-me, e, em seguida, procurar Ayres da Silva, que deve conhecer
bem esta inesperada aventura. Tenho razões para vos prometter a resti-
tuição de Sarah... Juraes-me que apenas o padre Ignacio veiu n"estes
dias a esta casa?
— Juro-te, Pedro, acudiu Joanna.
— E comtudo, disse Pedro sahindo da alcova de Sarah. é mais que
certo ter entrado um lobo no meu aprisco. Pois, ai delle! que eu vou co-
meçar a caçada, e hei de obrigal-o a largar a presa.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO .45

Joanna e Deborah, mais confiadas na serena attitude de Pedro, ajoe-


lharam deante da imagem sagrada, e rezaram. . . O que? uma prece pela
felicidade de Saraii e um agradecimento pela volta de Pedro.
E, rezando, julgaram ver que a Virgem lhes sorria, e, por isso, nos
lábios de ambas, como um raio de sol, que espreita por entre nuvens,
também um. sorriso de esperança deslizou suavemente...
Sol entre nuvens

Pedro, logo que sahiii, foi informar-se do que se passara, e facilmente


reconheceu que Sarah por um nobre impulso do coração, substituirá sua
irmã. Soube mais que Sarah tão habilmente se conduzira perante o rege-
dor das justiças, que este, não tendo descoberto o engano, a fizera seguir
para Coimbra e d'alli para Lorvão.
Sarah estava, pois, sob a tuteia do Desembargo e zelosamente recom-
mendada á abbadessa do mosteiro.
Também soube que o padre Ignacio não fora extranho ao procedimento
de Ayres da Silva, mas esse zelo por Deborah correspondia, sem dúvida.
á situação especial de Pedro, depois das suas confissões compromettedo-
ras enviadas ao licenciado Manuel Affonso.
Era até de esperar que em breve houvesse qualquer resolução contra
íi liberdade do pseudo criminoso.
Essa provisão tinha sido feita, quando elle se resolveu a salvar a honra
de Deborah, á custa da própria fama.
Era indispensável que fosse compellido n reparar a sua falta.
E com quanto prazer oflereceria essa reparação I

Elle seria para toda a gente o algoz de Deborah; algoz primeiro, que
horrível coisa! salvador depois, que delicioso enlevo!
Deborah tinha-lhe perguntado a propósito de salvação: 'fambeiii a
honra'.' E elle respondera — Tambcm a honra!
E dissera a verdade.
A honra de Deborah tinha-a elle. alli. junlo do peito, na denuncia duma
inlamia de que elle era incapaz, e que lhe fora attribuida. a elle, por um
bandido, a pedido delle, um namorado!
Deborah, na fidalguia do seu caracter, recusava-se a Pedro, por causa
do Aragonez, e Pedro ia ser accusado aos olhos da sociedade e da justi-
ça, de dever a Deborah a felicidade que lhe tinham roubado!
. ;

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 147

Deborah ama\a-o. c, quando soubesse quanto ellc se sacrihcara para


a salvar e possuir, sentir-sehia arrastada a salvar a fama do próprio nome
e a vergonha do seu.
Não havendo reparação, a pena que o esperava seria pesada, afflictiva

c infamante. Assim Deborah ficava (já o estava), menos dependente da ge-


nerosidade de Pedro, que l^edro da generosidade de Deborah I

Já não tinha que pedir a ella que o deixasse livral-a duma desgraça
tinha que lhe pedir que o livrasse do cadafalso!
Estavam agora invertidas as situações de ambos, c invertidas irreme-

diavelmente. Ou seriam urn do outro, ou estariam os dois perdidos para


sempre . .

Que grande abnegação a delle perdoando á victimal Maior, muito


maior seria a d'ella, perdoando ao seu verdugo I

Pedro, porque não queria ir ao encontro dos acontecimentos, não foi

procurar Ayres da Silva.


Talvez não pudesse voltar a casa, e elle, que pensava na existência
dum lobo, precisava de se avistar com o padre Ignacio, para lhe examinar
o feitio e a ferocidade.
^'oltou. pois, a casa c socegou sua mãe e Deborah sobre o destino de
Sarah.
—E quando \olta": perguntou a irmã da fugitiva, ao ticar so, ao lado
de Pedro.
— Quando o sol da alegria brilhar por entre as nuvens do nosso in-

fortúnio.
— E crés nesse Pedro? dia.

— Creio, sim, emquanto acreditar em Deus e no meu amor. ..

— Que Sarah saberá recompensar-te . . .

— E Deborah. por que não r

— A quem Pedro
preferis. r

— Pergunta-o ao teu coração. . .

-- Fosse elle meul . . .

— A quem o deste, Deborah, para que lhe não chames teu:


— Falemos menos de nós e mais dos que amamos. . .

— Por isso falo de ti . . .

— De mim':! Bem sabes, Pedro, que é mister que me esqueças, e que


me não obrigues a fazer referencias a factos cuja recordação me entris-

tece e magoa.
— Penso exactamente o contrário, minha querida Deborah. Julgo até
chegado e azado o momento de te dizer, mui singellarnente, o que é in-

dispensável que saibas. \'ae n isso a tua e a minha tidelidades. Dizeme,


: . .

148 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

com a lealdade que te distingue, e sem receio do meu desconsolo —


Amas-me, Deborah?
— Se te amo, Pedro? não vês que a sinceridade na resposta seria uma
deslealdade para com a pobre Sarah ?

— Não é de Sarah que se trata ; é de ti. Responde-me, que a tua res-

posta a nada te obrigará. Ficarás livre depois como antes d'ella — se me


deres uma razão da tua reserva ou esquivança, nunca mais, repara bem
no que te digo, nunca mais te falarei de mim.
— Pois bem, Pedro, certo, Sarah ama-te, digna de é e é ti. .

— E tu
— Eu não posso; o teu amor uma esmola, que eu não devia nem seria

devo acceitar.
— E se eu pedisse te essa esmola ?
^
— Dir-te-hia — Deus : te ajude. . .

— Vamos, Deborah, é preciso que sejas razoável: queres que eu dè a


tua irmã, que tu tanto zelas, a esmola que me recusas 'í
Que culpa tenho
eu de que tua irmã se affeiçoasse, a mim, como ao melhor dos irmãos e

dos amigos ? Pois não comprehendes que a adoro com a amizade mais
fraternal e que para ti reservo os encantos duma paixão de noivo egoista,
enlevado nos teus encantos de mulher? Deborah, minha querida Deborah!
não sabes, desgraçada, que eu leio no teu coração, e que não podes occul-
tar o aftecto que me confessarias, se não fora a desgraça que te feriu? Não
queres dar-me a esmola do teu amor e queres que tua irmã mendigue o
que eu para ti reservo desde o dia primeiro em que te vi sorrir, e, o que
é mais puro e sincero, desde aquelle em que te vi chorar ?

— Pedro, tem do de nós ambas. .

— Deborah, és uma senhora; deves comprehender a tua situação e a


minha. Eu não quero que me pertenças, se, por acaso, ou outra razão, me
não amas ... Se não me julgas capaz de te fazer feliz ; se nada te move a
alliar o teu ao meu futuro ; se não queres ser minha companheira nas ale-

grias e tristezas da vida, dize-m'o, com franqueza... Partirei em breve


em busca do esquecimento, e continuarei, longe ou perto, a ser o teu pro-
tector e amigo. O meu amor não é a invocação dum direito; é uma con-
sequência fatal da nossa convivência e dos thesouros preciosos da tua alma.
— Pedro, estás affligindo-me. . . bem o sabes.
— Que sei eu ? Sarah affirmou me, como já o teu olhar e o teu carinho
me tinham affirmado, que tu me vias em sonhos, te alvoroçavas com a
minha presença, guardavas as minhas dadivas pobríssimas, choravas por
mim d'amor e ciúme. Se eu te não amasse muito, se tudo isso não fosse
. .

o reflexo natural das tempestades do meu coração, eu não acreditaria na


.:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

revelação generosa de Sarah, e deixar-te-hia no silencio do teu orgulho


mas não, Deborah, o que tens sentido e soffrido sinto e soffro eu! Sonhas
connmigo? Que admira isso? Se eu a essa hora é por ti que velo, mais
como mãe desvelada, que como namorado feliz Tu vcs-me quando dor- !

mes? Pois eu adormeço e desperto pronunciando o teu nome, como nas


preces mais intimas se invoca a mãe de Deus! Alegras-te quando chego?
E' tudo reflexo do prazer còm que te avisto. Longe de ti, eu vejo-te sem-
pre — até na luz das estrellas e nas flores dos jardins. Tu esperas-me e
eu procuro-te; tu vcs-me e eu adivinho-te. . . Julgas viver porque eu te
salvei, e eu sei que vivo porque tu existes.
— Pedro, se tu me adivinhasses! Eu queria responder-te, mas não sei.

As tuas palavras são um canto, que me encanta, mas eú não tenho voz!. .

Vejo o teu olhar, e não me atrevo a fitar-te. Ouço-te, e não sei que diga...
— Mas cala-te, e olha-me, disse Pedro, erguendo-lhe o rosto, como se
faz a uma creança para se lhe vér a côr dos olhos; caia-te, e escuta-me,
que o teu silencio me basta para que eu saiba que me comprehendes.
Deborah, tu amas-mc, e tanto como eu te amo. Para que nos havemos de
enganar? Por acaso podes tu, boa amiga, substituir os teus sonhos, des-
viar os teus olhos, apagar as tuas saudades, esquecer o meu nome ? Que
culpa tens d'isso, Deborah? Que culpa tenho eu? Se és formosa, e se és
boa, como poderás transformar-te ? Quem nos approximou, depois de tan-
tas desgraças nos separarem?. .. Não vês o destino, com a sua mão de
ferro, a inclinar para o meu o teu olhar, a estreitar nas minhas as tuas
mãos? Vè se podes fugir-me, ainda que eu te solte! ^'amos, Deborah —
fecha os olhos para me não veres, retira as tuas mãos de entre as minhas,
tapa os ouvidos para me não escutares. . . Anda, foge-me, deixa-me, con-
demna-me !. . . Tu, que adoras a minha alegria, entristece-me; tu que me
espreitas, apaga a minha imagem ; tu, que me escutas, emmudece os meus
lábios! Que me importa que te cales, se falam por ti a luz de teus olhos,
a côr do teu rosto, o embaraço da tua voz! Quem te pede que me con-
fesses o teu amor, se tu consentes que eu te adore ? Eu sei quanto pen-
sas, quanto caias e quanto dizes ! Não sabes responder-me ? Melhor, que
está n'isso a prova da tua innocencia e do teu amor. Perguntei-te se me
arhavas, e não me respondeste. Pois bem; não pergunto aftlrmo — — De-
borah, eu amo te, e quero-te. . . ^'ès, nem um protesto; baixaste os olhos
e soltaste um sorriso por entre a tristeza que te envolve. . . Sabes o que
isso significa? Que te agradou o écho da minha voz e a essência da minha
confissão. Tu também me amas, Deborah, e a prova não está no que me
dizes, mas no que não podes negar. O amor só reflecte em almas amo-
rosas... Vês como trocamos a imagem do nosso amor? Se eu te beijar
MYSTEKIOS UA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOI- l'l.
. . ! . .

,5o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

as mãos, não as retiras, se eu te enxugar os olhos, não os afastas, se eu


te affagar a trança, não te assustas. . . Sabes por que? disse Pedro, fazendo
quanto dizia, porque o teu espirito se identificou com o meu, e porque o
verdadeiro amor, se tem o extasi mysterioso dos sentidos, é na mocidade
que alvorece tão casto e tão religioso como o amor das creanças ! . .

— Pedro, fala ainda, que nunca senti, desde que a desgraça me visi-

tou, momentos tão felizes, sonhos tão dourados!. .

— Olha, minha Deborah, a felicidade é como a bonança, que tanto


mais bella nos parece quanto mais terrível foi o vendaval. No canto da
nossa casa, com o conforto que hei de adquirir com o meu trabalho, ao
lado um do outro, veremos, dia a dia, ir subindo e brilhando, por entre a ne-
blina da noite do nosso passado de desventuras, o matiz da nova aurora. . .

—E Sarah, Pedro, e Sarah?


— Sarah ama-nos muito, para que não seja feliz vendo-nos sorrir. A
sua alma, que desabrocha, tem ainda grande resistência para as luctas do
coração.
— Deste-me animo, meu amigo, para que lembre aquella miserável
aventura da minha vida, que será eternamente a nuvem negra a passar no
céo da nossa felicidade... Quizeste ler no meu coração, e venceste...

Não ha dúvida — eu arao-te, Pedro, com um d'estes amores com que se


vive, e de que se morre — E tu és digno d'elle; pagas-lhe tão leal e gene-
rosamente que elle, envergonhado, se retrae e foge. . . Uma d'estas noites
consultei a memoria de meu pae sobre a minha situação á face do teu sa-
crifício. . .

— E teu pae disse-te ? . .


— Que não o acceitasse ; as sombras do meu passado fazem o eclipse
do nosso futuro . . .

— Nada me lembra já, Deborah; vi erguer-se, á luz dos archotes, o


cadafalso em Évora. No dia em que n'elle fôr executada a
. . justiça d'el-

rei, tu serás minha. .

— Estará a vingança concluída, mas a reparação perante o mundo,


Pedro, quem poderá ofí'erecer-m'a
— O mundo exigil-a-ha de mim, e eu hei de offerecel-a ao mundo!
—E deverei eu consentir? Perdòa-me este orgulho, meu dedicado ir-

mão, mas não acceito.


— E' irrevogável esse teu propósito ?

— E'.
— Pois bem, minha noiva orgulhosa, vou dar-te uma de humil- licção
dade. Deborah — a minha vida está nas tuas mãos. Ou consentes em ser
minha mulher, ou eu sou entregue ás justiças d'el-rei.
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Que crime conimettcste, que possa salvar-te o meu amor?


—O crime do Aragonez.
Deborali estremeceu.
— Que queres dizer?
— Pouco o bastante — quem
e te victimou naquclla noite que enlucta
a tua mocidade e sacrifica o teu amor, não foi um bandido que te roubou,
fui eu, que te amava. Denunciou o hcspanhol a minha culpa, e confcs-
sei-a eu!
— Não sei o que estou ouvindo, Pedro; explica-me esse mysterio. ^'s
tu o accusado de tal infâmia ?

— Sim, sou eu; o frade desce ao inferno isento dessa mácula, e eu


subo ao céo do teu amor para remediar o meu damno.
— Mas eu nego, desminto tal aleive contra a tua honra, meu honesto
defensor.
— Pre\alecerá a minha confissão perante a justiça e o meu arrependi-
mento perante a minha victima. Deborah, estou nas tuas mãos — ou me
salvas accusando-me, ou me perdes defendendo-me
Zaira appareceu.
— Sr. Pedro — este recado é para vós. Quem o trouxe disse-me que
vos esperava.
Pedro leu em voz alta:

«Sr. Pedro Soares

«Ordens vindas de Évora reclamam a vossa prisão. Sois accusado, e até

já o confessastes, de terdes commettido o crime que se attribuia ao frade


Aragonez, na pessoa de Deborah. Poupo-vos a vergonha duma condução
entre gente do meu mester. Vinde apresentar-vos, que os aguazis vos vi-

giarão a distancia.
-Irres da Silrj.»

— Vês, Deborah? disse Pedro ao acabar a leitura. A minha liberdade


e a minha vida estão na tua mão! Queres, em troca da reparação que of-

fcreço á tua honra, dar-me a liberdade e a vida ?


— Oh! meu adorável algoz! disse Deborah, lançando-se ao pescoço de
Pedro, como eu te adoro!
^ Bem, disse Pedro, vou agradecer a indulgência de Ayres da Silva,
e ficar á disposição. d'elle. Tu, Deborah, farás companhia a minha mãe,
e se eu não voltar, em virtude de qualquer disposição da justiça, dir-lhe-
has que o meu crime está dependente do teu perdão.
—E não te arreceias de qualquer intriga dos teus inimigos?
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não. Conto com António Carneiro, a quem deverei talar com toda
a urgência.
—E eu deverei esperar as novas que me enviares ?

— Sim. Preciso também prevenir-te de que, independentemente da


rainha intervenção, é possível que se descubra que foi Sarah, e não Debo-
rah, a pessoa recolhida no mosteiro de Lorvão.
— Foi então Sarah occupar generosamente o meu logar? Oh! querida
irmã, como eu te pago com ingratidão o teu sacrifício. .

— Enganas-te. O acaso e a dedicação de Sarah auxiliaram os meus


planos. Se fores reclamada e houveres de partir, tua irmã estará a teu
lado. . . Eu mais tarde rehaverei as duas. . . Dize-me, Deborah, não vês
que vae a nascer o sol da tua alegria?
— Vejo, sim, mas ainda por entre as nuvens d'um passado triste...
— Que este beijo as dissipe, disse Pedro, beijando a sua noiva.

Pedro dirigiu-se á presença do regedor das justiças.


— Em cumprimento de vossas ordens, senhor, venho entregar-me ú
justiça do Desembargo, a quem, decerto, ides remetter-me.
—O dever do meu cargo impôe-me o sacrifício de vos interrogar.
— Responderei

sem hesitação, e sem temor. ..
— Pedro Soares, sabeis que o Aragonez foi condemnado ã morte, pelo
garrote ':

— Não sabia, mas não extranho.


— Provado que fosse o crime da arrifana, praticado contra Deborah,
essa pena seria aggravada com o fogo antc-niortem.
— Fez-se justiça. .

— O Aragonez, porém, jurou, não só estar innocente dessa culpa, mas


ainda que ella devia ser imputada a Pedro Soares.
— E' certo, disse Pedro serenamente.
— Surprehendeu-me a accusação, por vos não julgar merecedor d'el-

la,mas ainda mais a vossa espontânea confissão. Sou homem da justiça,

mas também sou homem do mundo... Pedro Soares, é minha opinião


que mentistes ã justiça.
— Infelizmente não mereço o conceito que de mim fazeis... Deveis
lembrar-vos de que raptei Deborah e a tenho retida èm minha casa...
— Contra a vontade d'ella
':

— Ella vos responderá, quando fòr interrogada. Mas, senhor, onde


vedes um mysterio?
; . . .

MYSTf:R10S DA INQUISIÇÃO i53

— Em acceitardes as responsabilidades d'um crime. .

— Sois homem Iino c de boas vistas. Se pensardes um pouco, deveis


comprehender, que essa responsabilidade, que acceito, perde a gravidade

que pesava sobre a cabeça do frade . . .

— A violência sempre punivel.


é .

— Quando provada, regedor sr. ; só Deborah pode fornecer essa pro-


va. Se ella affirmar que exerci uma violência. . .

— Violência ou seducção ; sabeis que uma orphã c sempre filha do


Desembargo d'cl-rei.

— Sei, c é por isso mesmo que eu vos peço, senhor, já que estou im-
pedido de o fazer, que peçaes a el-rei licença para eu desposar Deborah. . .

— E se recusar
ella

— Amamo-nos, senhor, e para realisar o nosso sonho de ventura, cila


dirá o que necessário fòr, e eu confessarei quantos crimes me aprou-
ver.
— Sois ladino e arteiro, Pedro Soares, e reconheço a honestidade do
vosso propósito. . . Quereis afastar para sempre da vida da vossa noi\'a o
nome sinistro do Aragonez? Pois seja. Sabeis que tendes amigos?
— Diz-me a consciência que deveria tel-os, mas não os conto. .

— Pois ficae sabendo que o conceito que de vós faço vem das boas
ausências que vos faz o padre Ignacio, de S. Domingos. Conheceis-lo bem,
não c assim?
— Muito pouco, senhor; não esqueço, porém, que cu e os meus lhe

devemos a vida.
— Consentireis, portanto, que vos apresente ao secretario clle d'el-rei?
— Sem dúvida —Deborah não me pertence preciso de obter a graça e

real.

— Ha apenas um embaraço. . .

—E não podereis removel-o?


— Sabeis que estaes sob a minha guarda, e que só muito condicional-
mente poderia restituir-vos á liberdade. . .

— Farei

o que me indicardes.
— Daes-me a vossa palavra de homem de bem de que comparecereis
na minha presença sempre que eu \os reclame?
— Juro-o, pela minha honra.
— l"'rometteis mais — que não perturbareis o espirito de Deborah, que
eu fiz recolher ao mosteiro de Lorvão, até que el-rei vos perdoe o que não
fizeste e vos conceda o que lhe ides pedir.
— Juroo, pela liberdade que me otTereceis.
— Está dicto, dae-me a vossa mão, estaes livre.
. . .

i54 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E Pedro apertou commovido a mão de Ayres da Silva.


— Podeis retirar-vos, tendo o cuidado de não demorar a primeira prova
da lealdade promettida.
— Assim será; vou dar-vol-a.
— Já?
— N'este momento.
— Não tanto.
exijo
— Senhor — deixastes de cumprir um dever do vosso cargo.
— Como assim?
— Recebestes ordem para recolher Deborah... Vós o dissestes.
— Sem dúvida, e isso fiz.

— Enganaes-vos. Deborah está em minha casa, ha uma hora apenas e

lhe falava eu meu amor.


do
— Mas, então, houve quem desobedecesse ás minhas ordens, ou quem
lograsse os meus agentes?
— Descançae, senhor, os vossos agentes não tiveram culpa, e quem
vos logrou obedeceu ao mais generoso impulso.
— Contae-me depressa, que urge reparar a
isso, e falta.

— Sarah, para salvar sua irmã d'uma pena que antevia, tomou o logar
d'ella, e vós a enviastes para o mosteiro.
— Não tenho remédio senão o de canonisar todos os crim.inosos da
vossa casa. E' certo, porém, que Sarah comprometteu a minha reputação
de magistrado. .

— Pelo contrário; se não fosse ella, terieis commettido um erro grave.


— Vejamos.
— Deborah está á vossa disposição. Respondo por ella... Entregar-
vol-a-hei logo que a reclamardes. A tutela d'el-rei, tratando-se das filhas
de Lopo, não pode limitar-se á mais velha. De bom aviso seria resguar-
dar as duas. .

— Tendes razão, Pedro Soares; o logro deu ensejo de corrigir uma


distracção do Desembargo. Ides, então, entregar-me Deborah?
— Quando vos aprouver.
— O mais tarde possivel.
— E' muito vago. .

— Depois da execução do Aragonez. . .

— Até julho? será muito.


— Concordo. até que obtenha o meu perdão e a licença
. . d"el-rei.
— Defiro o vosso pedido. Deveis notar, Pedro Soares, que, era pouco
tempo, invertemos as nossas posições.

Se me excedi. . .
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i5S

— Quero dizer que começastes por ser meu captivo e acabastes por
me prender. .

— Nesse caso, senhor, não serei tão generoso como vós — não vos
concedo a menor homenagem, e hei de, com o meu reconhecimento e
brio, prender-vos mais á minha estima e ao meu respeito.
E Pedro cortejou e sahiu.

Mal transpoz o limiar da porta, appareceu junto de .\yres da Silva o


padre Ignacio.
— Então ? disse o recemvindo.
— Achastes o vosso homem, meu padre! Tendes dedo para a escolha.
Agora é leval-o á Alcáçova e approximal-o d'el-rei.

—E depois virão os ciúmes de António Carneiro. .

— El-rei não gosta d'isso, e ha de impacientar-se.


— Melhor para o reino; os validos perpétuos servem apenas para des-
povoar Portugal em beneficio do Oriente e da Africa, com sacrifício de
Roma.
— Ides, pois, fazel-o cavalleiro?
— Gloria proveito: terá valimento
e e riqueza.
—E fé?
— Isso vem depois. .

^U
VI

o Mosteiro de Lorvão

Lorvão é uma povoação tamaninha, como se dizia no principio do sé-

culo XVI. Muito pequena, muito alegre e muito asseada, nas proximidades
de Penacova. O solo, tortuoso e accidentado, ostenta montes e valles quasi

sempre verdejantes, graças ás aguas da ribeira que a atravessa com as


suas margens orladas de juncos, que se debruçam, e de choupaes, que
agitam a grande ramaria.
Se, no fim do século xvni, Lorvão contava menos de quatrocentos fo-
gos, calcule-se quantas cabanas então lhe interrompiam o matiz Duas !

dezenas, talvez uma, ou menos, de casinhas dispersas nos montes e val-


les. Mas todas muito brancas, que a alvura é tradição secular em terras
portuguezas. Caminhos feitos pelo pé do viandante, estradas da largura
de duas pessoas de braço dado, abrindo clareira sobre as hervas, por en-
tre brejos e matagaes. De distancia a distancia, a grandes espaços, muros
de pedra solta a dividir as arrifanas, e debruçando-se delles, com rama-
das cheias de fructo, alguns pomares de espinho e de caroço. Pelas ver-
tentes da serra, fitas de clareira, em degraus, abrindo fáceis caminhos ás
cabras e aos chibos, e em baixo trincheiras de .silvados dispostas natu-
ralmente para amparar na queda o gado mais saltão, ou menos firme.
Aqui e alli, moitas de arbustos enlaçados, com os seus pomos silves-

tres, ou verdes ou vermelhos, doces ou amargos, a servirem de viveiro á


passarinhada mais ladina, que chilreia ao nascer e ao pôr do sol... Na
margem da ribeira, quasi a deixar que as aguas que descem dos montes
lhe beijem os pés de cantaria negra e musgosa, ergue-se o tradicional mos-
teiro, que tinha sido guarida da ordem de S. Bento, e que então abrigava
as monjas, que se tinham apaixonado pela lenda mystka de Thereza, a
filha de D. Sancho, e irmã de D. Sancho e de D. Mafalda, todas três,

beatificadas pela corte de Roma.


Já no século xvi o mosteiro de Lorvão atfirmava a sua velhice, por-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 157

que, na opinião de Leitão Ferreira, eiia já então se justificava com dez


séculos passados, depois da nomeação do primeiro abbade.
O musgo, que lhe trepa pela pedraria escura, não discute opiniões de
archeologos, mas imprime-lhe caracter vetusto, que fala dos alanos, que
por alli andaram, depois da conquista de Coimbra, a prender frades ao
arado mais grosseiro para converter em almargens os terrenos mais in-

cultos.
Cada escriptor lhe assigna, nas certidões da edade, uma data differente,
Vrcl Bernardo de Brito, por exemplo, afhrma ter lido, nos documentos
do archivo do mosteiro, notas que o dão coevo de S. Bento : Domiis iios-

Ira lurbani constructa fiiit vilmente pater íiostro Benedicto.

Outro conta que no século viii um rei mouro de Coimbra isentara de

imposto aquelle convento. Também se diz que Fernando I de Castella,


nos frades do convento, encontrara apoio material por occasião do cerco
feito aos mouros.
Seja como for, na épocha da nossa narrativa, o mosteiro debruçava-se
sobre as aguas da ribeira e abrigava nas suas muralhas, já envelhecidas,
mais de cem mulheres, na sua maior parte donas das familias mais gra-
das, dirigidas pela célebre abbadessa D. Philippa d'Eça, que de si deixou,
na historia dos mosteiros e do paiz, fama triste da sua moral e dos cos-
tumes monásticos portuguezes.
Já então n'aquelle vasto monumento se guardavam as mais preciosas
riquezas, e lá dentro tal culto se prestava aos prazeres, e até aos vicies,
que não faltavam queixas ao Santo Padre contra os desconcertos da
ordem.
Era o logar dos mais apropriados aos idyllios mundanos, que os fra-

des de S. Bento, no meio das suas riquezas, tão licenciosamente gosa-


vam, e que as monjas, que alli entraram por solicitações de D. Thereza,
continuaram e aprimoraram, como indicio de que não havia ainda os pro-
cessos de desinfecção capazes de destruir todos os contágios.
Tinha o mosteiro as duas adufas gradeadas nas muralhas sombrias,
mas lá dentro esplendia de luz e riquezas, como no melhor dos alcáceres
da corte.
Era aquelle o espirito da épocha, da grande épocha das glorias de Por-
tugal, em que a nossa bandeira andou ovante em terras longínquas, e
enfraquecida e intolerante a moral piiblica, e desmoralisada a industria
religiosa.

Até dizem, escriptores dos mais eruditos, que o mosteiro de Lorvão


chegou a estar povoado das filhas das monjas, novas e formosas, que
n'elle ganhavam o premio das suas aventuras.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl- I. FOI.. 20.
.

158 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E' bom que tudo se saiba, e saber-se o que, sob o manto da mais ha-
bilidosa h3'pocrisia, se passou nos áureos tempos da fé religiosa, nesses
centros em que o amor dos homens prevalecia ao amor de Deus, edifica
o nosso espirito e explica as arrojadas heresias.
Lorvão estava no seu auge de influencia e de celebridade.
Em cavalgadas vistosas vinham de Coimbra fidalgos e cavalleiros em
busca de seus amores, e, se alguns se contentavam em passear nas mar-
gens da ribeira oppostas ao convento, para verem, por entre as grades do
mosteiro, as damas dos seus sonhos, outros, mais ricos e felizes, logravam
chegar, á hora da noite, á rótula do parlatorio, e passar depois, em ga-
lanteios e subtilezas, para as cellas das monjas amorosas.
Lorvão era uma formosa estancia, em que a fé e o amor tinham er-
guido o seu templo dentro das feias muralhas que os séculos escureceram.
De pagens enamorados, de cavalleiros ciumentos, de damas esquivas,
de consortes infiéis e barregãs sem pudor, se coalhava o velho mosteiro,

forjando as anecdotas e as intrigas que enchiam os serões das lareiras e


das salas mais ruidosas e fidalgas.

A' noite, quando Lorvão se envolvia no seu manto de trevas, as adu-


fas do mosteiro scintillavam como castello encantado das velhas lendas
allemãs, e os menestréis afieitos a soláus da corte, e os tangedores dolo-
ridos enchiam a ribeira e as encostas da poesia mais sensual e da musica
mais dolente.
Então as monjas povoavam arcadas de laçarias e torres ameiadas, com
archotes ou lanternas, se não com as velas e tochas do culto religioso, e
respondiam, lá de cima, com vozes frescas, em psalmos e jaculatórias. .

Abriam-se então os largos portaes do mosteiro e n'elles, emquanto as


vozes iam emmudecendo e as luzes fugindo, se escoavam, tilintando es-

poras ou espadins, a flor da mocidade, ousada e galante.


Em noites de luar não era inferior o espectáculo no valle e nos mon-
tes de Lorvão. No fundo azul do firmamento se desenhava, nas suas li-

nhas vigorosas, a architectura daquelle palácio lendário, e por entre o


arvoredo se escoavam embuçados de figura gentil, imitando com a voz o
canto das aves nocturnas, para avisarem a sua chegada.
Até não era raro, e no tempo de D. João III chegou a ser vulgar, que
junto das moitas mais densas da cerca do mosteiro, ao reflexo da lua ou
das estrellas, passeassem, como phantasmas, ao lado de guerreiros bem
equipados, monjas de íiguras airosas e de passo leve ! : . .

Quantas vezes, á hora do culto, emquanto na grande nave soava a

triste melodia d'um miserere, pela adufa illuminada duma cella distante

sabiam cânticos mundanos cheios de meiguice e requebros ! Motetes e vil-


! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO iSg.

lanceies duma poesia alegre e fresca, e que tinham sido compostos nos
serões do mosteiro, faziam a volta do paiz e desciam aos lábios populares,
com a recommendação do olympo de Lorvão, e o nome da monja que os
inspirara Danças requebradas, importadas de
! Castella, vinham de Coim-
bra a Lorvão, e da ribeira ao mosteiro, com tanta frequência, que já pelas
abobadas sombrias andavam de mistura vozes de cantochão e estalar de
castanholas.
Nas festas do orago, que n'esse tempo talvez já fosse Nossa Senhora
da Expectação, ouvia-se, pela noite alta, os repiques e as rezas, que rema-
tavam ao nascer da aurora com os minuetes primitivos, cheios de mesu-
ras, entre hábitos e gibões, ou com danças campezinas de donzellas da

terra, cingidas pela cintura, na vasta sacristia, ou nos corredores das cel-

las, ou no salão da abbadessal


Nas festas de noviciado ou de profissão, depois das cerimonias da
abobada do cruzeiro, a vasta mesa
egreja, quantas vezes se extendia, sob a
d'uma eucharistia profana, onde fulguravam os crystaes, e as luzes mos-
travam mulheres reclinadas nos braços de frades e clérigos, de cavallciros
e peões, que libavam á gloria de Deus e ás conquistas do amor!
E, emquanto as monjas, os frades e os fidalgos assim realisavam, aos
olhos uns dos outros, as suas alegres saturnaes, pelos recantos escuros
estalavam, como gorgeios de pássaros, risos foliões e beijos apaixonados.
E, n'uma ou n'outra cella, em secreto convívio, qualquer fâmulo do mos-
teiro, saboreando os doces da própria fabrica, bebia pela mesma taça da
monja sua parceira.
Ao portal da entrada e no terraço do campanário, guardiões industria-
dos no mester de alcaiotes olhavam nos montes c no valle, como atalaias
vigilantes, a approximação dos inimigos. .

Andavam os livros de missa com as folhas prenhes de apaixonadas


cartas d'amor, e as flores dos amantes refrescavam os pés nos jarrões dos
altares

Num momento, se qualquer auctoridade ecclesiastica surgia para fa-

zer devassas, ou respeitar preceitos convencionaes de fiscalisação, tudo se


compunha e ageitava em tanto recolhimento e piedade, que nada mais se
via que monjas resignadas. .

P^ntretanto por falsas portas, e em maravilhosos esconderijos, se su-


miam, por arte magica, clérigos e donzeis!
Era alli que estava, á sombra da Egreja, o ninho mais fecundo da des-
moralisação dos costumes.
Estava no auge da dcsmoralisação, no principio do século xvi. aquelle

mosteiro, que tinha caminho de santidade e coió de hypocrisia.


:

i6o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

As santas rainhas dormiam nos seus túmulos, ainda sem a beatifica-

ção de Roma, mas já com grande rol de milagres entre as monjas vivas,
mais graves e piedosas.

Estava ainda longe a obra de Catharina da Silveira unindo os dois sar-

cophagos, de Thereza e Sancha, no altar da capella de Nossa Senhora do


Rosário, mas já a phantasia mystica, ou as allucinações beatas, viam pro-
vas de santidade no aroma que sahia pelas fisgas d'essas urnas, onde as
múmias estavam talvez aspergidas de sagradas essências.
Mais de annos eram já passados depois que a dynastia das Eças
vinte
dirigia a communidade por vontade da coroa e sancção da Rota, e que as
poderosas abbadessas corrompiam, com o seu religioso harém, a gente da
justiça e os vigários fiscaes.

Foi já n'esse tempo, que a poesia e o romantismo iam invadindo os


espíritos femininos : e a arte de enganar os ingénuos reunia, n'uma cum-
plicidade discreta, peccadores de diversa natureza.
Adorava-se em extasi o olhar de Deus, mas fazia-se de preferencia
versos ao Sol e á Lua, e este culto nascente pela obra da creação, levava
as poéticas monjas a preferir o dormitório nas cabanas dispersas pela
cerca, ao que a regra da ordem lhes determinava entre as grossas pare-
des das suas cellas.
Eram centros de conversação alegre e amorosa as crastas dos capítu-
los, o que não impedia que se rezasse, com tanta fé, quanto ruido, nas
capellas interiores, de celebrados thaumaturgos.
Estava a eclipsar-se o abbadessado de Margarida, e já a substituía de
facto, com promettedora vivacidade, a célebre Philippa, que alli soltara o
primeiro vagido, que o écho das abobadas tinha repetido, já habituado ao
gemer das parturientes e ao vagir dos recem-nascidos.
Parece que exaggeramos o colorido da descripçáo que estamos fazendo,
e que mais obedecemos á suggestáo de um partidarismo faccioso, que ao
respeito pela informação provada da historia...
Não proseguiremos, pois, sem que tenhamos liquidado este ponto, em
que ao romancista é permittido phantasiar com lógica, mas nunca deduzir
falsa e deslealmente.

Alexandre Herculano, que foi um inimigo de frades e freiras, como


Almeida Garrett, escreveu
«A historia de Lorvão e da sua abbadessa D. Philippa d'Eça é um dos
quadros mais característicos d'aquella épocha. Lorvão contava cento e se-
tenta freiras, entre professas, noviças e conversas. A familia d'Eça pre-
ponderava alli.

Das freiras, então actuaes, uma parte nascera no mosteiro. Suas mães,
:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i6i

não só não se envergonhavam de as crear no claustro, e para o claustro,


mas ahi mantinham também seus filhos, do sexo masculino.»
Isto era já bastante, dada a gravidade dos factos narrados e a aucto-

ridade do narrador. . . Pois, será ainda o solitário de Valle de Lobos, que


nos animará a descrever com tons carregados as scenas do prostíbulo
«Entre diversas peripécias, a mais singular foi o serem certa vez en-
contradas D. Philippa e outra freira em casa de um clérigo de Coimbra,
escondidas com a sua amante ordinária, que a justiça buscava.

«A penna recusa-se a descrever o estado em que todas três foram


achadas.
«Taes eram as devassidões e os escândalos de que vamos encontrar
memoria nos mais insuspeitos documentos.»
O grande escriptor, de cuja probidade littcraria ninguém pode duvidar,
assim refere o que eram os conventos n'esse periodo em que a maldade
dos reis, a perfídia dos cortezãos e o fanatismo dos. imbecis impunham a
fé catholica, a ferro e fogo, e só procuravam, com tão preciosos mate-
riaes, instituir e erguer o tribunal da Inquisição!
N'um livro recente de Lino d'Assumpção, que conscienciosamente re-

volveu esses preciosos documentos a que se refere Herculano, e, que


ainda d'outros dá curiosa noticia, Ic-se este interessante apontamento:
«A familia d"Eça tinha reduzido o mosteiro de Lorvão a casa de pro-
creação de bastardos das monjas daquella familia — bastardas ellas pró-

prias e outras legitimas —e a sustento e recolhimento da magna prole


legitima e illegitima d'aquella já então numerosa e antiquíssima familia,
onde de pães a fílhos, de mães a filhas, passava em legado a mais com-
pleta ausência de senso moral. Familia, completamente bestial, e vivendo
quasi unicamente pela instigação dos instinctos.»
Mas ha mais; e, quem tem documentos da cpocha de que se trata,
pode encontrar n'elles, mais pura e mais fresca a verdade que procure.
Por tal forma a desmoralisação monástica se desenvolveu no tempo
de D. Manuel, que D. João III, para corrigir tardiamente os desmandos,
sempre impunes, teve de sustentar com o poder das abbadessas, ou me-
lhor, com o da nobreza de Portugal e a corte de Roma, que as defen-
diam, demandas e solicitações, nem sempre coroadas de bom êxito.
N'uma d'essas solicitações, encarregava el-rei o doutor Balthazar de
Faria de explicar a Sua Santidade:
«... Que neste reino de Portugal, no bispado de Coimbra, está um
mosteiro de monjas da ordem de Cister, o qual é muito antigo e fundado
e dotado pelos reis destes reinos, meus antecessores, c casa de maior
renda, que n'elles ha de mulheres, que vale a renda d"clla de quatro mil
i62 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

cruzados (?) para cima, e valeria muito mais se as propriedades, quintas


e granjas d'ella se não alienaram e emprazaram pelas abbadessas que
pelo tempo foram; e que ha na dita casa cento e sessenta mulheres entre
professas, noviças e conversas, e ha sessenta ainda e mais annos (este
documento é de i543) que n'ella são abbadessas mulheres da linhagem
dos de Eça, em modo que grande parte das monjas da dita casa são da
dita linhagem, que já nasceram na dita casa.

«E do dito tempo para cá no dito mosteiro não se guardou a religião e

observância d'ella em nenhum dos votos substanciaes, como pela regra e


constituições daordem se devera fazer, antes na dita casa se viveu muito
tempo mui dissolutamente, e muitas monjas d'ellas. e. (adivinha-se) . . . .

e teem filhos e filhas; e isto é muito notório no reino, e causa de muita

infâmia da religião e escândalo do povo.»


Abonados com taes testemunhos que procedem de documentos vivos
e auctorisados pareceres, não teremos receio de calumniar a reputação do
velho mosteiro laurbanense, descrevendo as scenas que deviam entriste-
cer a face de Jesus, se não houvesse o cuidado de lhe cerrar os olhos so-
bre a cruz dos altares.
Melhor procederemos dando crédito e força á Historia, por mais que
ella prejudique as mentiras dos reaccionários, que por devaneios de poeta,
ou fraqueza de leitura, deixemos a nossa e futuras gerações ignorantes ou
illudidas.

De ter beneficiado com encantos e virtudes, que ella nunca teve e que
os livros não rezam, se arrependeu talvez o nosso Garrett, ao escrever a
sua D. Branca.
A infanta D. Branca, filha de Aftbnso III e da rainha D. Brites, foi

durante dezesete annos abbadessa de Lorvão, e apesar de ter tido a mis-


são abbacial no século xin, não deixou de concorrer para a fama desdoi-
rante do escandaloso convento... Foi-lhe juiz benévolo o escriptor por-
tuguez, mas na edição de i85o teve Garrett abalos de consciência, e es-
creveu prefaciando o formoso poema:
«... tão recatado, o pobre (o romance), que até da infanta D. Branca,
uma das mais despejadas leoas do seu tempo — fez a donzella timida e
sem malícia que ahi pintei, mentindo bem descaradamente á Historia.»
Pois, apesar da generosidade de Garrett, cahiram-lhe em cima os car-
deaes da egreja romana, por elle não ter respeitado a fama da senhora in-

fanta.

Não queremos a ingratidão para a nossa benevolência; venha antes o


protesto, ou revolta, contra a nossa imparcialidade . . .

É necessário revelar, apontando-os a dedo, os prostíbulos monásticos


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i63

que fizeram a gloria dos tempos beatos e fradescos. Andava em tão


grande esphera a ignorância do nosso povo, que a respeito de alcouces,
com mullieres de cogula preta, véos de tafetá, longas estolas franjadas, ou
calanticas em pregas, citava apenas o harém de D. João V, no formoso
valie de Odivellas!
E muito pouco.
Para se avaliar melhor o que podem ser, ou vir a ser, ninhos de bea-
lices e tonsuras, escondidos em todas as pregas e rugas da sociedade
actual, é bom perguntar á Historia o que foi isso em séculos que já lá vão...
Entrámos em Lorvão pelo alto da serra, passeámos de dia e ao luar
pelas margens da ribeira, admirámos as linhas do mosteiro desde a agulha

do zimbório até os degraus do seu portal!. .

Tantas vezes vimos abrir aquella porta para dar entrada e sabida a vul-
tos tão extranhos e romanescos, que sentimos tentações de entrar.
Vá feito! Entremos.
Pela porta da egreja, ou pela do mosteiro?
Não é fácil escolher, que muitas outras portas existem, mais ou menos
encobertas e disfarçadas, desde o muro da fachada, até a brecha da cerca,
no desfiladeiro da serra. Se fôr necessário subiremos á torre, ou, suspen-
sos dos ramos das arvores, nos balouçaremos até cahir sobre os milharaes,

que são bom leito para quedas arrojadas.


Se quizessemos, ensaiaríamos um vòo sereno e altaneiro ; mas não é ne-
cessário... Até de rastros pelas frinchas das soleiras, ou trepando pela
corda dos sinos, ou principalmente nas azas do amor, alli se entra á von-
tade, de dia e de noite, comtanto que não nos esqueçamos de guardar no
cinto do gibão, ou pendurar no telim da espada, a bolsa prenhe de /iislos,

por causa dos preceitos benedictinos e da moral religiosa...


Alli tudo se compra, desde o caseiro, que dorme á entrada da cerca,
até a abbadessa, que tem os bellos aposentos na parte mais nobre do mos-
teiro. A rodeira já estabeleceu em Coimbra o amante, que é homem com
dedo para' o commercio ; os sacristães emprestam, sobre jóias e segredos,
grossos capitães ás monjas mais velhas e dengosas, que pagam o amor
aos tunantes que as aturam, e até os cães, gordos, fortes, de pelo luzidio,
apprenderam a rosnar, a ladrar e a morder, conforme são tratados pelos
pagens e fidalgos, que a deshoras tocam a sineta do portal, mettem ga-
zuas á escadinha da torre, ou escalam o muro do lado do pomar!
Se não quizermos ser reconhecidos, nem pagar por alto preço con-
descendências de servos, nem generosidades do canil, pediremos, numa
canção graciosa, aos dois olhos que brilham como estrellas numa das
frestas da muralha, um pouco de gasalho c carinho, e logo voará, pelo es-
.

i64 MYSTERIOS DA INí^UISIÇAO

paço, um habito negro de S. Bento, que vestiremos numa sombra da ri-

beira e deante do qual se abrirão portas, corredores e cellas confortáveis!


Um pouco de mocidade, audácia que chegue, duas phrases galantes,
duas voltas bem rimadas, uma espada ágil e algumas moedas de ouro,
abrem brechas indefensáveis n"aquella fortaleza do amor.
Se tivéssemos tempo e pudéssemos esperar alguns dos mais felizes vi-
sitantes d'aquella beatifica mansão, com elles entraríamos, gosando uma
recepção brilhante. Por exemplo, Luiz da Silveira, muito conhecido na
Alcáçova, e que já andava fazendo a corte do pequeno príncipe D. João,
o conde de Portalegre, o futuro mordomo-mór, ou, o novo estribeiro-mór,
D. Pedro de Mascarenhas. . . Se esperássemos, veríamos como entravam,
muito rebuçados em seus mantos, mas sem rebuço moral, D. Álvaro da
Costa e o conde de Villa Nova, conselheiros de D. Manuel. E, uma vez . .

ou outra, o escrivão da puridade D. António de Noronha, que foi depois


conde de Linhares.
Havia já algum tempo que não apparecia, em Lorvão, Simão da Silva,

embaixador de Portugal junto dos reis africanos, mas ficara-lhe a prole, a

honrar-lhe o nome e a diplomacia.

E, como não havia de entrar alli tanta gente da mais illustre do reino,
se, como acabámos de lêr n'um estudo a que já nos referimos, os cargos
da casa, e principalmente o abbadessado, tinham-se convertido em apa-
nágio das famílias que formavam partido e organisavam sequazes, e as
quaes soccorriam com as rendas das communidades, punham e dispunham
dos bens, viviam fora e dentro da clausura, emcohabitação de mancebia
com fidalgos, clérigos, monges e até gente da baixa plebe. .

A abbadessa D. Margarida d"Eça estava adeantada em edade, mas a


joven D. Philippa fazia já admiravelmente as honras da casa, e recebia lu-

xuosamente todas as suas elevadas relações. Se ella era aparentada com


a melhor gente do reino!
As Eças vinham dos reis de Portugal — começaram em D. João, filho

de Pedro I, e através de D. Constança, filha del-rei D. Henrique, e de


D. Aftonso d' Aragão, filho de D. João e irmão del-rei D. Fernando, de
Castella, e por ahi abaixo, atravessando quarenta e dois filhos naturaes e
legítimos de D. Fernando d'Eça, appareceram em Lorvão.
Tinham, pois, na sua ascendência, reis de Castella e Portugal, um clé-

rigo, D. Duarte, a abbadessa de Cellas, D. Brites, a abbadessa D. Ca-


tharina, no seu mosteiro, e uma freira de Santa Clara, D. Maria de Por-
tugal, não contando com sua mãe D. Margarida, e o commendador de
Panoias, e, entre irmãos e irmãs, bastardos como ella, havia muitos frades
c freiras.
! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i65

Riquezas lá dentro eram em abundância. Basta dizer-se que o mosteiro


tinha herdades, prazos, foros, almoinhas, direitos de pescado e outros, em
numero de quatrocentos e cincoenta, em diversas terras do reino!
Como alli se devia passar bem
Era um estado, no estado ! E isso se provou mais tarde, quando Phi-
lippa, dispondo dos auditores da Rota e da influencia papal, levou de ven-
cida a perseguição de D. João III.

Por que não entramos?


Medo de sermos surprchendidos?
Alli so entra quem a abbadessa e as suas monjas querem. Lorvão ti-
nha privilégios seculares, e o tempo os manteve e accrescentou. Nada
tinha lá que fazer a jurisdicção episcopal. Coimbra não chegava a Lorvão,
apesar de Lorvão pertencer ao bispado; o abbade geral d' Alcobaça gaba-
va-se d'ura simulacro de poder, que não se atrevia a usar; as freiras es-
colhiam livremente os seus confessores; alli só diziam missa os frades
predilectos ; os seus capellaes não precisavam do bispo para administrar
os sacramentos; Lorvão não pagava colheitas á passagem d'el-rei; a abba-
dessa era senhora do peixe do Mondego; o seu tabellião era ofHcial pu-
blico; os seus caseiros isentos de jugadas, fintas, talhas, etc, e até da
albergagera. Até os servos tinham o direito de comprar nos mercados
primeiramente que a nobreza e o povo! Quando os gados do mosteiro
galgavam a fazenda alheia, não havia coimas a pagar ! Um verdadeiro feu-
dalismo religioso
Um dia os tribunaes condemnaram uma forneira do sitio a cozer de
graça o pão das santas monjas! Medo? vamos em muito boa companhia!
Ainda que fôssemos criminosos! Cá fora é que estávamos em perigo...
Abram-nos as freiras as porfas, ou consigamos saltar lá para dentro, e a
responsabilidade criminal fugirá de nós!
Havia pouco, D. João II, o grande inimigo dos fidalgos poderosos,
mandara restituir ao mosteiro um frade que as justiças alli tinham ido
prender I

Vigorava, com toda a energia, o couto para os homisiados.


O couto e o coito. .

Estamos n'um dia de excepcional movimento dentro e fora do mos-


teiro.Repicaram os sinos desde a madrugada, e a egreja, aberta durante
o dia, teve rezas e cantos, que chamaram os villões dos arredores. Ha
flores em bonda por todos os altares, e na capella-mór centenas de lumes.
Na pequena capclla de Santa Margarida, tudo indica especial devoção
MYSTKKIOS DA 1NQL:1SU;.\0. — VOL. 1. FOL. 21.
.

i66 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— os túmulos das rainhas santas estão cobertos de flores artificiaes e ver-


dura natural. Ha ainda na grande nave forte cheiro de incenso, e é pela
porta do templo que se faz o fidalgo movimento do mosteiro.
A tarde vae a fazer escorregar as sombras pelo declive da serra, e em
todas as direcções descem camponezes aos bandos, trazendo bandejas co-
bertas de linho alvíssimo; as raparigas sobraçam ramos de flores dos cam-
pos, e algumas regaçam, n'uma dobra do manto, um punhado de espigas
de trigo, ou louras massarocas de milho, já esfolhadas. Outras, de braço
arqueado mão na cintura, sustentam na cabeça taboleiros de pães doces,
e

de folares bem cozidos, ou de arrufadas, em grandes volutas espalmadas.


Um bando de creanças conduzem uma ovelha, de vistoso collar, com a lã
muito penteada e presos n'ella muitos lacinhos multicores...
Arrastam-se, pelas margens da ribeira, até a porta do mosteiro, men-
digos aleijados e andrajosos. Entram e sáera frades benedictinos, e ou-

ve-se ao longe o ruido de cavallos que se approximam.


São os rapazes mais ricos de Cercosa e Marmeleira, de Friunes, Tra-
vanca, Penacova e Poiares, e outros pontos dos arredores, que vêem a
cumprimentar a abbadessa de Lorvão no dia dos seus annos. Não faltam
também os de Coimbra, e os rendeiros das herdades e granjas do distri-
cto, tributários da communidade. Não deixam de vir em alforges, que car-
regam uma recua d"Arouca, caixões de docerias e licores.
O primeiro cavalleiro que chegou á porta da egreja foi immediatamente
acolhido por um creado, que o saudou respeitosamente.
— Vindes muito cedo, sr. Jacob Adibe. Ainda é grande o afan no
mosteiro por causa da gente do campo, que vem com suas dadivas.
— Venho prevenir a senhora abbadessa
de que esta noite não poderei
companhia ao serão. Dir-lhe-has que preciso de partir antes da
fazer-lhe
madrugada, para muito longe de Lorvão. Vim por vel-a e felicital-a.
— Nada quereis para D. Philippa ?

— Que lhe deixei recados do guapo moço Pedro de Mascarenhas.


— Não vem D. Pedro !

— Não; deve estar em Setúbal acalentando o joven príncipe.. .

—-Não sabeis uma novidade?


— Dize.
— Entrou
hoje no noviciado uma formosa rapariga vinda de Lisboa,
com recommendação do Desembargo . .

— Rapto de donzella, ou castigo de adultera ?

— Parece que nem uma, nem outra coisa. Ouvi apenas falar em aban-
dono por desapparecimento da familia, no dia da matança.
— E' então uma christã-nova?! Pobre victima I Trazem-n'a para aqui.
e já outros cavalleiros se apeavam
Ainda Jacob não tinha Jesapparecido
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 167

em nome da tutela ! Melhor fora que a levassem à fogueira ; o fogo puri-


fica e isto corrompe, e não mata. . . E' formosa ?

— Como os anjos! Por vae por cá um inferno de ciúmes.


isso
— Já viu o morgado de Travanca?
a
— Deve vel-a hoje.
. — Olha, Rodrigo, mudei de propósito: dize á senhora abbadessa que
eu volto esta noite.
Ainda Jacob não tinha desapparecido e já outros cavalleiros se apea-
vam e eram immediatamente introduzidos. Os creados levavam á mão os
cavallos para os estábulos da cerca.
A noite cerrou-se, emfim, lançando em trevas toda a ribeira e toda a
serra, e apenas brilhavam, á luz das tochas, que ardiam no portal do tem-
plo, os cintos dos cavalleiros e os jaezes dos cavallos.

Os moços mais distinctos entre a gente de guerra e os mais jovens e


imberbes fidalgotes dos morgadios próximos, trajando as melhores galas,
iam e vinham, como se em dia de tanta concorrência quizessem apenas
com fingida compostura, a mão da abbadessa, que dava recepção
beijar,

com modesta hypocrisia na sua cella, elegante e singclla.


N\ima farta poltrona, forrada de seda. Margarida d'Eça, com o habito
em rigor, e o sorriso atíavel, allumiada por dois grandes candelabros de
muitas luzes, extendia languidamente a mão alva e roliça a toda a gente
da sua corte mesclada.
A seu lado, em duas grandes alas, estavam as monjas mais gradua-
das, e, na parede do fundo, cm attitude recolhida, as noviças e as con-
versas.
Philippa, aos pés da abbadessa, sentada n'um immenso e rico almofa-
dão de altos lavores em setim, suspendia a mão de sua mãe e chegava-a
aos lábios dos cortczãos, que se vergavam, dizendo alguma phrase de elo-
gio á mãe e á filha.

Os frades, clérigos c monges, vergavam o joelho até tocar o solo, e,

ao beijarem a mão da abbadessa, demoravam um pouco a genuflexão.


Margarida agradecia com a gravidade d"um pontífice, abençoando clé-
rigos e seculares, e aos mais Íntimos do mosteiro fazia um signal quasi
imperceptível, para que se agrupassem á sua direita.
Na frente d'este throno e desta rainha, e apanhando, em grande al-

tura, a parede da cella, estava erecto e sombrio


grande crucifixo, onde um
apenas reverberavam as pedrarias ricas d"um grande resplendor de prata.
N'aquella revista de gente hypocrita, de gente illudida e de ignorantes
fanáticos, não havia ordem de categorias ; depois do camponio de sapata
ferrada e grosseira, passava o rico lavrador de grossa polaina abotoada, e
i68 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

logo em seguida o frade de sandália e o fidalgo cavalleiro de custoso bur-


zeguim. Depois do habito de estamenha, vinha o de mais fino estofo, e á
mão callejada do villão, e ao guante descalço de elegantes capitães, não
deixavam de súcceder os dedos finos e delgados d'um velho bispo, cujo
annel, por seu turno, também a abbadessa beijava, erguendo-se na pol-
trona.
Durou esta cerimonia perto de meia hora, e finda ella a abbadessa ti-

nha apenas no mosteiro as pessoas que distinguira com o signal especial

de seu olhar.
— Mécia, disse Philippa, dirigindo-se a uma das monjas, ordenae que
sejam cerradas todas as portas do mosteiro, e que Rodrigo não deixe que
venha até nós quem se não tiver previamente annunciado.
Mécia sahiu, com tão desembaraçados movimentos, que muito contras-
tavam com a molleza piedosa, que até então usara . . .

— Agora, minhas irmãs, disse Philippa, dirigindo-se ás freiras e novi-

ças; podeis reunir-vos na sala do capitulo, afim de festejardes o anniver-


sario da senhora abbadessa. A senhora abbadessa, por excepção, dispensa
hoje, a todos, do rigoroso cumprimento do regulamento do mosteiro. . .

— Sim, minhas filhas, tendes hoje toda a liberdade. Eu vou recolher-


me, porque estou fatigada, e porque não desejo que seja esta a minha ul-

tima festa.

— Sabeis, D. Philippa, que venho hoje prevenido para entreter-vos com


alguns dos melhores episódios da corte de D. Manuel ?

— E vós que os dizeis com tanta naturalidade e graça, D. Ruy!


— E' essa a vossa opinião ?

— Minha, e de Clara, que nada mais faz que ouvir-vos quando nar-
raes. E vós, D. José? Contamos com o vosso auxilio?
— Tinha umas canções novas, que dediquei á senhora abbadessa, mas,
como sabeis, Alice abandonou-me, e o ciúme roubou-me a voz e a ale-

gria...
—- Vingae-vos, D. José, que é assim que fazem os cavalleiros. Bem,
resta-me a esperança de que frei João do Espirito Santo trará novas de
Cellas, e frei João Padilha das nossas irmãs d' Arouca.
— Nada ha que valha registo fora do mosteiro de Lorvão. Se me per-
mittirdes, senhora, dar-vos-hei d' Arouca o que os seus doces merecerem.
— Bem, disse a abbadessa, a noite vae-se adeantando e os meus acha-
ques começam a impacientar-me. . . Que Deus me perdoe . . . Ajudem-me.
Philippa e outra freira ergueram Margarida, e todos os assistentes vie-
ram de novo beijar-lhe a mão ?

— Permittis, senhora, disse uma noviça, á abbadessa, quando chegou


. . . . .. :

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 169

a sua vez, que, agradecendo a licença que me daes, recolha á minha


cella?. .

— Ah! és tu, Sarah! Náo me agradeces então a liberdade?. .

— Agradeço, senhora abbadessa, mas sinto-me cançada. Sabeis que . .

vim hontem ainda. . . Lisboa fica tão longe. .

— Pois seja. . . Parecia-me natural que, na tua edade, antes quizesses


um pouco de poesia e conversação!. . . Já não ha raparigas. No meu tem-
po!... Ora, vejam, senhores, esta pequena, com um palminho de cara
capaz de enlouquecer um convento de frades..
— Senhora abbadessa ! . . . disse Sarah em tom envergonhado e repre-

hensivo.
— Coitada, acudiu Philippa, ainda está com medo do Desembargo! Bem
sabes que és bonita, e porque o és, aqui estás... Quer parecer a filha
mais nova da Magdalena! . .

— Não vale zangar, disse Margarida. Quer recolher-se ? Pois que se


recolha. Seremos duas fugitivas — a mais velha e a mais nova.
— Sim,
• que se recolha, disse o morgado de Travanca, com modo en-
fatuado, mas que ao menos não baixe os olhos, para que saibamos se são
bonitos.
Sarah ergueu a cabeça e fitou o atrevido.
— Eureka, que é do melhor que tenho visto! Negros! fundos e vivos!
— São olhos de judia! disseram rindo duas monjas que rodeavam o
morgado.
— Por Deus, que em defesa de taes olhos, ou apostatava como um
perro, ou matava quem m'os roubasse . . .

— Vós?! observou Sarah, com um ar de encantadora simplicidade.


— Sim, eu; não me vedes? novo, musculoso, com Ímpetos forte, e
audácia que sobejam.
— Enganei-me. então! disse Sarah, beijando as mãos da abbadessa
para se despedir.
— Enganou-se? Perdão; agora ha de dizer porque. ..

— Digo, senhora abbadessa?


— Sim; o que disseste na verdade, pede explicação. . .

Sarah voltou-se para o morgado e de novo o fitou serenamente


— Porque sempre ouvi dizer, que um homem que insulta uma mu-
lher, nem é novo nem forte —é apenas um cobarde !

As monjas soltaram uma gargalhada unisona; nos homens houve um


movimento de surpresa, e ao mesmo tempo de respeito.

Senhora abbadessa, a vossa noviça está monja professa. .


A culpa foi vossa, senhor morgado. Para que insististes ?
. . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Para ficar conhecendo a casta innocencia desta donzella.


A abbadessa retirou-se apoiada no braço de Sarah.
— E' pena, ficou dizendo o morgado de Travanca, que esta pequena
não tenha, aqui oulá fora, quem lhe assuma as responsabilidades!

Os homens não responderam.


— Olhe, morgado, disse Clara, monja de peito e rosto cheios, talvez o

frade capellão. .

—O melhor, disse Seraphina, outra monja de olhos andaluzes e figura


delicada, é o morgado bater-se ás morcellas com frei João do Espírito
Santo! . .

—O que lhes digo, senhoras monjas, é que a pequena Sarah ainda se


ha de arrepender da graça com que me injuriou.
— Basta de cerimonias do officio e de folias de creanças, já se ouve
conversação animada na sala do capitulo. Sois esperados, senhores, disse
Philippa.
E todos se encaminharam para fora da cella.

— Fique, D. Pedro, preciso de lhe fazer um pedido.


Era D. Pedro de Mascarenhas, a quem Jacob se referira.
— Notarão a nossa falta, e hoje ha profano em quem não devemos con-
fiar.

— Também vos perturbou o olhar de Sarah ?

— Que idéa Philippa Hesito, para que vos não perturbe a saudade
! ?

de Jacob . . .

— Já o esqueci
— Mas elle ainda vos ama, e por vossa culpa. .

— Que importa tudo isso ?

— Dizei-me, Pedro, tendes, na corte do príncipe, por quem me fujas e

esqueças ?

— Juro-o . . .

— N'esse caso, segue-me.


E Philippa carregou com força num dos cravos dos pés de Christo,
e a grande cruz logo se moveu.
Pedro de Mascarenhas viu deante d'elle um pequeno salão da mais ex-
quisita elegância e de luxo mais phantastico.
— Entra, disse-lhe Philippa, emquanto a porta se fechava novamente
sobre elles.

E depois, deitando-se ao pescoço do seu amante :

— Dá-me um beijo, ingrato.


— E Jacob ?

— Não tenhas medo! Guarda-nos Jesus crucificado.


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 171

E apontou para a porta.


E depois, com movimentos de leoa, arrastou comsigo Pedro de Mas-
carenhas para um soberbo coxim.
Naquelle recinto havia muita luz viva e muitos perfumes estonteantes.
— Onde estou eu, Philippa ?

— No céo!
— E fizeste-me passar pelo calvário?

^cí^^
.

VII

Jacob Adibe

Sarah não comprehendia o que se passava naquella casa.


Que vida! que linguagem! que gente! Pois aquillo era uma casa de
Deus, cheia de creaturas que, por devoção ou desgraça, renunciavam á
vida do mundo?
Mas alli estava o peor dos mundos! Aquellas mulheres eram mais
mundanas que todas as libertinas de Lisboa!
Como estavam aquelles homens alli, com liberdades de tavolagem ! ?

Ouvira falar em amores, em ciúmes, e vira, incontestavelmente vira,


as freiras trocando olhares suspeitos com os frades, e os outros... O
mundo parecia-lhe agora um mosteiro e o mosteiro o mundo, de paixões,
de vicios. .

A's vezes lhe tinham falado na h}'pocrisia do claustro, mas alli não ha-
via hypocrisia, .havia despejo. As mulheres riam com grande ruido, des-
compostas, abrindo muito a bôcca e deitando a cabeça para traz ! Surpre-
hendera entre as companheiras phrases maliciosas, e algumas andavam
nos corredores lendo, em voz alta, missivas d'amor!
Por entre os rosários contavam-se historias maliciosas. Discutiam-se

alli a plástica e a graça dos homens, com mais liberdade que entre rapa-
rigas, sem educação, nos arraiaes e romarias.
Havia alli endiabradas que trepavam aos altares para fazer cócegas nos
pés das imagens dos santos, e depois aíRrmavam, rindo muito, que os
santos lhes piscavam os olhos! Os namorados tinham alcunhas e os em-
pregados da casa também. Ao chaj>eiro, ou claviculario, como se diria me-
lhor — isto é, ao que fingia guardar as chaves do mosteiro, chamavam
S. Pedro; a um frade muito timido, que dizia amabilidades, mas nunca
descruzava os braços, chamavam S. Francisco!
Que e.xtranha gente, que extranha linguagem!
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

A abbadessa, já velha e doente, a quem ella acompanhara até o leito,


despedira-a com um gesto, e, com outro, admittira o seu confessor!
Quando entrou alli, logo a cercaram e lhe fizeram mil perguntas imper-
tinentes. Queriam que ella lhes dissesse o nome do seu amante! Que mal-
creadas! E algumas perguntaram mais — se era o primeiro! Impudentes!
Sarah precisava de arranjar uma explicação que attenuasse as conje-
cturas do seu espirito. O que aquillo lhe parecia não podia ser. . . Nem
era possível que taes coisas fossem toleradas.
Tanta gente cúmplice, era de mais!
A abbadessa dissera que dispensava o regulamento naquelle dia. Já
se via que as festas alli eram muito livres. . . eram como o Carnaval, lá

fora. Quando
. . a festa acabasse entraria tudo na regra mais austera. .

Toda a noite sentira gente nos corredores, e ouvira falar nas ccllas
pro.ximas. Ate lhe parecera ouvir chorar uma creança!... Provavelmente
gente que a abbadessa protegia... algum sobrinho que viera visital-a...
E, por mais que fizesse diligencia para dormir, Sarah continuava pen-
sando.
Tinham-lhe dicto que as monjas eram espos;is de Deus, e que renun-
ciavam ao amor dos homens. Mas alli era o contrário! Algumas das mon-
jas diziam duma ou outra noviça — a minha pequena!. .

Disseram-lhc que poucos dias antes uma freira morrera por se ter lan-

çado no poço da cerca. . . Perguntara por que fizera isso a desgraçada, e


responderam-lhc — por ter a cintura grossa!
Que vaidade!
Julgava que aquelle mosteiro não era dobrado. Ouvira dizer que havia
muitos annos que não havia d'isso... E os dobrados, como o de Santa
(^lara, tinham fortes paredes a separar os homens das mulheres. Alli havia

homens em toda a parte! A' mesa do refeitório lá estavam elles, frades e


não frades. Aquillo chegava a parecer uma estalagem... E que mesa!
Cada freira tinha acepipes diversos — fructas, doces e vinhos espumosos!
Eram presentes de famílias, mas d'essas famílias só os homens c que lá

iam assistir aos banquetes. .

Três monjas, contou-lhe uma das creadas, embriagavam-se todos os


dias, e, como Sarah se admirasse, a creada continuou: e as filhas vão pela
mesma!
Queixavam-se as creadas de que eram sempre despedidas ao nm de
pouco tempo. . . Por. que motivo? Por ciúmes das mães e por atrevimen-
tos dos meninos. Foi por isso que Sarah ficou sabendo que no mosteiro
dormiam rapazes já em edade de atrevimentos!. . .

Sarah fechou muito os olhos para assim adormecer mais depressa mas,
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. I. FOI.. 22.
.
.

174 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

perdera o tempo e o esforço. Faziam-lhe confusão as respostas m\-sterio-


sas d'aquella gente. Tratavam-na bem e mal, e ella desconfiava de todas...
Uma freira, já respeitável, abraçara-a e beijara-a muito, logo que entrou...
Ainda bem! dissera Sarah comsigo mesma. .Logo outra veiu avisal-a de
.

que devia acautelar-se, e explicou. . . ora, como foi que ella explicou?. .

ah! porque tinha o Diabo no corpo!


— Nem isso! acudiu logo outra, porque o Diabo se parece com os ho-
mens!
Sarah começava a ter medo.
Lá fora ninguém sabia o que se passava alli dentro. Aliás não manda-
vam para tal sitio gente decente.
Quanto não fora mais religiosa a casa de seu pae ? ! Casa de Deus se

podia chamar a de Pedro Soares! Nem aquillo poderia agradar ao Céo. .

Se a religião necessitava d'aquelles abysmos, então não era ella o que Sarah
sabia, por lhe terem ensinado. Antes moura, ou judia, que catholica em
tal meio. . . E o caso é que ella estava alli á mercê de tudo e de todos..
Quem havia de defendel-a? Aquelles frades eram libertinos, aquelles fi-

dalgos cobardes, aquellas freiras umas descaradas. . . Se havia excepções,


por educação ou Índole, eram fracas em numero e fracas em resistência
aos vicios que as rodeavam.
A'quella hora havia gente no mosteiro que bebia e cantava! Aquillo
era uma ameaça. Ouvia nas outras cellas constante fechar e abrir de por-
tas ! D'um para outro momento podiam abrir a d'ella. . .

Era indispensável escrever a Pedro, para que viesse buscal-a e não-


consentisse na entrada de Deborah. Sua irmã morreria de medo no meio
d'aquella gente.
Sarah ergueu-se, accendeu uma vela, porque era fraca a luz da lâm-
pada pendurada na frente do Christo, e, sentando-se a uma mesa, es-

creveu:
«Meu bom Pedro

«Ha duas noites que não durmo. O que aqui se passa causa-me horror.
Defende Deborah deste abysmo, e, se puderes, vem vèr-me depressa..
Preciso de matar o medo e as saudades. — Tua irmã
Sarah.»

Sarah, acabando de escrever, ouviu um leve ruido. Olhou e viu que . .

alguém levantara o pequeno postigo que tapava a rotula em cruz, aberta


na almofada da porta. Se alguma luz havia lá fora. era só a da sua vela,
reflectida nuns olhos que espreitavam.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 175

— Quem está ahi? perguntou a noviça.


— A irmã vigilante.
— Que desejaes, senhora?
— Como ainda não estaes recolhida, venho dizer-vos da parte de
D. Philippa, e em nome da sr.-^ abbadessa, que sois convidada a passar
um momento na sala do capitulo.
— Pedireis a D. Philippa que me desculpe, porque a minha saúde...
— Não muito má, porque a estas horas ainda estaes de pé e escre-
é

vendo!. .

—O que não impede que me defenda do ruido d uma festa, onde não
poderei estar a meu grado.
— Só mais tarde tereis o direito de reclamação. Por agora tendes ape-
nas o dever da obediência.
— Dizei, então, a D. Philippa que fui dispensada esta noite de me afas-
tar da minha cella.

— Então, insistis?

— Insisto, respeitosamente, ajuntae ao vosso recado, minha irmã.


— l^areceis-me ingrata, minha menina, para quem vos convida por vos
alegrar no convívio da gente mais grada do districto.
— Dizei então que insisto, respeitosa e reconhecidamente...
— Dá Deus as nozes. . . disse a vigilante.
E a rotula em cruz de novo desappareceu, por ter cahido o postigo.
Ao longe ouviam-se as cordas dos bandolins e o canto alegre das frei-

ras, tudo misturado com salvas de palmas e girandolas de gargalhadas.


Na torre soava compassadamente a meia noite.
Sarah apagou a vela, e de noyo foi reclinar-se sobre o leito.
A solidão, a saudade, longe dos que amava, em meio hostil e repu-
gnante, na incerteza do dia seguinte, ameaçada de muitos perigos, inde-
fesa... tudo isto entristecia a pobre noviça e dava-lhe vontade de cho-
rar... Mas não choro\i, porque precisava de se guardar e defender, e
voltou a pensar:
—K isto — esta moral, estes costumes, estas escholas, se julgam neces-
sárias para que a religião triumphe e a fé não vacille?! Para tudo isto
existir, e ser assim, ha manifesto accôrdo entre o rei, o afortunado rei! os
seus conselheiros e secretários, gente de governo e justiça, lettrados, capi-
tães, os bispos e os frades, o papa e a sua corte, os principcs de todo o
mundo, os sábios, a nobreza e o povo!
E Sarah, sentindo-se adormecer, entreabriu fracamente os olhos, e fi-

tando o pequeno cruciti.xo, murmurou com voz a e.\tinguir-se:


— Tu, meu Jesus, és o único que protesta. . .
! !

,76 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E adormeceu.
E as danças e os cantares continuaram por alta noite
A sala do capitulo! esplendida sala pelo tamanho, na sua superfície,,

na sua altura, na profusão de luzes, nos mesmos tons, isto é, nas som-
bras oscillantes e transparentes, que vinham dos móveis negros e da mo-
bilidade das chammas das velas de cera!
Sobre os espaldares das cadeiras, que formavam um grande rosário
em volta do salão, havia capellas de flores campestres, e grinaldas que
cahiam negligentemente. . .

Ao centro tamboretes de estofo custoso, onde sobresahia o amarello


vivo das araras bordadas, como esmalte de xarão em pavilhões chine-
zes... E estes tamboretes, onde se reclinavam as freiras benedictinas,

rodeavam, numa desordem elegante, as mesas de mármore, de pé cen-


tral, em columnatas caprichosas, ou em forma de tanque apoiado em ca-

beças de leão. Aqui e alli, sobre grandes uchas de páu santo, marchetadas
nos gavetões com argollas de prata, immensas salvas cheias dos doces
mais finos, e de crystaes, onde os licores, rosa e verde, scintillavam como
lanternetas irisadas.
Aos cantos do salão, e á roda de candelabros collocados sobre a alca-

tifa persa, imitando o serão de aldeãs, em torno da lareira, monjas e fra-

des offereciam, ao reflexo, vivíssimos rostos alegres.


As mulheres, cingidas pela cintura, os homens confundidos com as
mulheres, e o riso, o joven brincalhão de todas as folias, a esvoaçar rui-
dosamente, como se tivesse guizos nos lábios d'onde surgia!
Por cima de tudo isto, onde as sombras pairavam, mal se esboçavam
os quadros dos apóstolos, de grandes barbas brancas, narizes hebraicos e
calvas uniformes, lizas e limpas.
A"s portas, pendendo duma altura que se não avistava, gigantes re-

posteiros, em pregas amplas, onde avultavam a tiara do Papa e as cha-


ves de S. Pedro, n'um farto e fofo acolchoado.
Nos recantos mais sombrios, como odaliscas orientaes, freiras e mon-
jas, de rosto claro, e pé descoberto e pendente, se recostavam no peito e

no hombro de garridos cavalleiros.


Uma segreda blandícias e frioleiras no ouvido do seu par, outra con-
certa e ageita o gibão do seu amante, e todas teem nos lábios um sorri-

so, que lhes expõe os dentes alvos como o leite e lhes regaça os lábios,
com a graça com que podiam regaçar a saia num passo de dança ágil, ou
dengosa
N'este firmamento estrellado, os grandes focos, como se fossem o Sol
e a Lua, irradiam luz que alcança todos os recantos ; e ainda, n'um acom-
. ! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 177

panhamento bem harmónico dos dictos mais picantes, a nota arredondada


de beijos que parece c ruido d'uma castanhola ao longe. .

Por vezes se ouve o ciciar d um riso muito discreto, e logo uma excla-
mação ruidosa como o saltar de rolha de garrafa escumante, e em seguida
o estralejar d'um coro de gargalhadas francas, sem dique, isto é, sem
pudor...
No chão, de pernas cruzadas, aos pés de monjas bonitas, ha frades de
hábitos negros e faces inHammadas. Alguns empunham taças elegantes e
brindam em latim, e outros passeiam em volta do salão, improvisando ri-

mas e dizendo galanteios


Habituados á luz e ás sombras d'este vasto salão, poderemos desco-
brir que as freiras, algumas, desnudaram a cabeça, e já mostram, em ban-
dós luzidios, a opulência das suas jubas. Descaem, á flacidez dos cordões,
os hábitos escuros, e, sem grande esforço, se pode acompanhar, com ávido
olhar, as curvas dos decotes. .

— Mécia, disse uma das monjas á outra que volteava espevitando os


candelabros e offerecendo manjares, que é feito de D. Philippa, que nos
fugiu depois da recepção ?

— Foi, como de costume, alindar-se para o serão, como se d'isso ca-


recesse . .

— ED. Pedro? perguntou outra, com riso malicioso.


— Foi de passeio pela ribeira, á espera de luar, ou a espreitar Jacob,
que o faz arder de ciúmes.
— Falta-nos tudo, faltando-nos D. Philippa...
— Sois pouco amável, morgado de Travanca.
illustre Não vos consola
e alegra a nossa companhia ?

— Sem dúvida, senhoras, mas, como não posso a todas lisonjear,


busco a que todas representa.
— E excede, quereis dizer, não é assim ?

— Não, queria dizer apenas — e as reúne.


— E vós, Simão da Silva, disse Clara, ficaes hoje em idyllio, n'esse re-

canto, e não vindes, como as borboletas, crestar as azas nesta luz?


— Que premio me daes se trocar por vós todas os segredos da irmã
Lelia ?

—-Se não fordes muito exigente. .

— Com perdão do vosso frade, vou tanger e cantar canções da minha


terra e rimas dos meus poetas, se me derdes um beijo.
— EUe que vos escuta vos responda, que não pode haver ciúmes, onde
não ha maldade ?

— Se é um, e em nossa presença, podeis pagar-vos, Simão da Silva,


! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

acudiu um gordo monge, que, de pé, devorava os folhados dispersos n uma


das bandejas de doces.
— Então vá lá. .

E Simão caminhou para um dos grupos donde lhe viera o con-


vite.

—E eu ? disse Lélia. Não sabeis que tenho direitos especiaes sobre as


cordas do vosso bandolim ?

— Pois seja Lélia ; com um beijo resgato a liberdade de menestrel e

com outro me pago dos trabalhos de tangedor.


— Pois disse Lélia,
seja, offereceu a Simão o rosto, quee elle beijou.

— Agora, vós. Clara, com perdão do vosso confessor. .

E beijou ruidosamente a freira guapa, que desejava ouvil-o.


Simão sentou-se, junto da mesa dos leões, cruzou sobre a esquerda a
perna direita, ageitou o bandolim no regaço, e correu num preludio de
artista, com uma palheta de tartaruga, as cordas do instrumento.
Com os olhos erguidos, apesar de ter a cabeça levemente inclinada, ia

soltar a mão e a voz quando Mécia annunciou:


—A senhora D. Philippa d'Eça, regente do mosteiro de Lorvão, e sua
futura abbadessa.
Uma salva de palmas acolheu a communicação, e a recemchegada foi

recebida, estando de pé e empunhando as taças de licores, toda a gente do


mosteiro e os convidados.
— Pela abbadessa do mosteiro de Lorvão disse o coro. !

— Obrigada, senhoras senhores, em nome de minha mãe


e e senhora
D. Margarida d'Eça.
— uma prophecia.
Isto é
— E' mais, um voto. é
— Já o de facto; por que não o sereis de direito?
sois
— Se honra me couber,
tal de vossa escolha, ella virá minhas irmãs,
e_^da vossa protecção, meus senhores.
— Contae comnosco, gritaram todos, indo-lhe ao encontro.
— Não sonheis em voz alta, disse Philippa. Terei contra mim a Alcá-

çova e Roma
— Roma vae parar a Carthago e a Alcáçova relaxa-se ao Soldão do
Egjfpto, disse cambaleando um frade gordo e vermelho.
— Tendes aqui, ao vosso dispor, a futura corte de D. João, a magis-
tratura ecclesiastica e os povos d'estes sitios ! exclamou, de peito arqueado
e mão na espada, um moço capitão, que beijou a mão de Philippa com os
requebros d'um cortezão deante d'uma rainha.
— Uma mulher bonita é o melhor esteio da reliç^ião catholica. Não ha
. !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 179.

santas feias sobre os altares. No mosteiro da serapliica rainha, que um


dia ha de ser santa, a abbadessa deve ser nova, bella e amorosa
Foi esta a opinião d'um abbade, que, ao dizer isto, como se nada ti-

vesse dicto, sorveu um gole de vinho generoso.


— Estão acabadas as manifestações, disse D. Philippa, sentando-se no
logar de honra, o que era destinado á presidência do capitulo.
— leis cantar, Simão da Silva; pois não deveis interrompcr-vos. Ponde
em verso sonoroso o acolhimento destes senhores.
Simão tomou a primitiva posição, voltando o corpo e o bandolim para
Philippa, e com voz suspirada da cabeça, n'um falsete de religiosa inspira-
ção, começou:
Avè Philippa!
Cheia de graça!

No salão estoirou uma salva de palmas, que interrompeu o vate.


Quando o ruido lindou, Mécia, correndo o reposteiro, annunciou so-
lennemente:
—O sr. Jacob Adibe.
Philippa fez um movimento de impaciência e, dirigindo-se ao poeta:
— Continuae, Simão da Silva; ieis dizendo:

O Senhor c coiiwosco?

— Mas não o vosso, disse Jacob, que esse saltava ha pouco o mura
da cerca, depois de ter sabido pela porta secreta dos aposentos da futura
abbadessa.
— Que lhe preste, disse Philippa. Não fizestes o mesmo? E o castigo
dos que chegam tarde . . . entram pela torre, e não teem repiques de sinos.

Meu caro Jacob, se cantaes melhor que Simão da Silva, empunhae o-

bandolim e tangeio-o a vosso grado.


— Preciso de quem me inspire, e já não vejo n'esta casa quem possua-
tal arte. . .

— Socegae, que vou dar- vos estro bastante nos olhos duma noviça. . .

— Por minha vida, que acceito, pois, se é nova no mosteiro, talvez


que ainda seja honesta. .

—E por aqui vos perdeis, respeitável monge, que agora guardaes a


castidade de que tendes fugido ? Sou melhor que vós, e vou cumprir a
promessa: Mécia, que a vigilante convide Sarah a vir junto de nós.
— Ides ver, meu caro Adibe, o que ha de mais delicado em corpo de.

mulher e de mais grosseiro, não direi, mais petulante, em educação.


. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—A quem vos referis, senhor morgado? perguntou Jacob, franzindo


o sobr"ôllio.
— A essa virago, judia ou cliriství nova, formosa como S. Miguel, casta
como Maria, orgulliosa como el-rci, e fina como ura secretario de Estado!
— Misturaes tão habilmente o divino com o profano n'esse descretear
a propósito d'uma rapariga, que não vos requesta o morgadio, que estou
capaz de dizer que, ou desejáveis judaisar com eila, ou ella vos aggravou
a vaidade. .

— Uma ninharia, explicou Philippa ; Sarah achou de pouca valentia um


galanteio de Travanca feito aos olhos da noviça pela franqueza do morgado.
— Parece que ella não só tem bons olhos, mas também excellente golpe
de vista- .

E Jacob, que se sentara n"um pequeno tamborete, ao dizer isto, ba-


louçava o corpo, levantando um dos joelhos com ambas as mãos.
— Pois, meu caro, pareceis irritado, como se fôsseis magistrado do
desembargo, zeloso de tutela. .

— Noto que me chamaes caro, a miude, apesar de nada vos dever,


nem haver mister de vos pedir. .

— Para que pondes em riste a vossa lança de cavalleiro, virgem como


Sarah, n'estes jogos alegres dos mosteiros ? . . . Podereis quebral-a por
quem não vos mereça nem a lança, nem a liça.
— Ah ! descançae, sr. morgado, que virgem, a minha lança não ha de
enristar-se aos olhos de quem, só por vêl-a, poderia mareal-a.
— D. Philippa, disse frei João do Espirito Santo, approximandose da
lilha da abbadessa, acabe com isto, que o conflicto pode ir longe.
— Assim é necessário. Para que chamei Sarah? Preciso de que Ja-
cob não volte, e o que amanhã terá de ser com D. Pedro, que seja hoje

com este . . .

— Já percebi, abhorreceis o ciúme. .

— Porque amo a infidelidade.

O morgado, ao receber o ultimo golpe, não teve resposta fácil.

Para disfarçar o embaraço fingiu não comprehender.


— Vede, D. Philippa, já a vossos olhos não pode haver torneios. Quanto
mais subis para a alcáçova, mais desceis no mosteiro.
— E' certo o que o morgado, Jacob diz ? . .

— Não vedes, senhora, que vos arremessou a minha elle injuria clara
e directa ? Insultae-o em paga, que elle já está affeito a insultos de mulhe-
res . . .

— Antes os vossos insultos, senhora, que os dum renegado do amor


e da fé.
E precipitnu-se sobre Jacob, que não alcançou, por ter logo sido agarrado e detido
pelos braços musculosos d'alguns frades

/ Li
:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Jacob ergueu-se placidamente, endireitou o busto para respirar me-


lhor, repuxou a fivella do cinto, e começou, oliiando, ao redor da saia,
toda a gente que se movera n'um impulso de curiosidade.
— Contaram-me, ha pouco, que o morgado de Travanca fora senten-
ciado de cobarde por uma pobre rapariga orphã de um único pae, como
vós o sois dos muitos que tivestes. . .

— Insolente! disseram, levantando-se algumas monjas mais vivazes.


O morgado tinha nos lábios um sorriso escarninho... Fora d'elle o
ultimo aggravo.
Os outros convidados mostravam-se neutraes; não morriam de amores
pelo de Travanca, e temiam um escândalo áquella hora, em logar tão im-
próprio.
Jacob continuou
— Vejam como estou tranquillo. Fazei de conta que estou para vos en-
treter, contando e cantando uma lenda muito velha e muito esquecida.
la eu dizendo : esse morgado, assim descoberto por uma graciosa rapa-
riga, a quem insultara, expoz-se á irrisão dos homens e ao desprezo das
mulheres, e agora, depois de ter jogado com os homens contra uma mu-
lher, joga com as mulheres contra um homem !

Pois bem, qualquer de vós, monjas, freiras e noviças de Lorvão, Phi-


lippa, Paula, Thereza, Clara, Mariana, Sancha, Elulalia, Alice, Beatrice,

Alda —e até Mécia, e outras que amanhaes o mosteiro, e as que teem


servido de amas sèccas e de leite, assistentes de partos, paranymphas em
haptisados, hetairas, e alcaiotas — vós todas que tendes recebido beijos e
moedas do rico e velho christão, senhor da casa de Travanca, por favor
da herança, e de todo o mundo, por mingua de vergonha ; vós todas que
ouvistes o illustre varão insultar Sarah e insultar-me, a mim, acudi-lhe,
que, pela minha honra vos juro que, julgando-vos acima d'elle, se alguma
de vós repetir o que elle disse, a elle darei a honra de o esbofetear.
— E' de mais, exclamou o morgado, e precipitou-se sobre Jacob, que
não alcançou, por ter logo sido agarrado e detido pelos braços musculo-
sos d'alguns frades.
O Morgado, fingindo serenar:
— Tendes razão, senhores, a injuria ia fazendo-me esquecer os deve-
res da minha linhagem e os da minha fé. Sabei todos que, a todos pode
injuriar, sem perigo de desaggravo, o filho do judeu expulso por el-ret

D. Manuel, d'aquelle Jacob Adibe, que, emquanto seu filho atraiçoava o


seu Deus, fazendo-se falso christão, para viver nos braços duma mulher,
entregava ao duque D. Jayme a cidade de Azamor.
— Mentes, villáo ruim, o velho e honrado Jacob, depois do abandono
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — V-OL. I. FOL. 23.
. ! ! : . .

,82 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

da cidade pelos crentes armados, tal energia e eloquência empregou de


cima das muralhas, impetrando a salvação de fazendas e vidas de seus
irmãos, que ganhou a admiração dos seus e o favor do duque de Bra-
gança... Mas, por Deus, mancebas de frades e seculares, cuspi-me um
insulto, e eu salvarei a distancia que o acobarda. .

Philippa d'Eça levantou-se solennemente, e, emquanto todas as monjas


a rodeavam, como para defendel-a na contingência dum grave conflicto,
dirigiu-se a Jacob :

— Em nome de D. Margarida d'Eça, abbadessa deste mosteiro, eu,


porque considero a vossa presença uma affronta á dignidade da ordem,
e á. .

Basta, basta, é jd bastante, expulsaes-me do vosso prostibulo. Até que


emfim
Depois, olhando para o morgado, exclamou
— Por meu pae, o heroe de Azamor, que eu adoro, por Sarah, que
insultastes, e que eu não conheço, e por D. Philippa que vos honrou, in-

sultando-me, vou marcar-vos com o estigma do meu desprezo feito com


o annel do ultimo rabino da minha perdida synagoga. .

E d'um salto, sem que ninguém pudesse affrontal-o ou detel-o, cahiu


sobre o peito do morgado, que rolou com elle na alcatifa. Segurando-o
bem, tendo um joelho sobre o tronco do vencido, e a mão esquerda a
apertar-lhe o pescoço, com a direita fechada, com a pedra e engaste dum
annel que scintillava, fez um sulco profundo na face do adversário.
Tudo isto se passou n'um momento
Quando os homens acudiram em montão para livrar o de Travanca
das mãos de Jacob, já aquelle tinha uma extensa mancha de sangue na
face esquerda.
Tão rápidos foram estes movimentos que, ao sentir-se agarrado, já
estava de pé, tendo deixado o morgado extendido de costas e arquejante.
Os gritos das mulheres e o vozear acalorado dos homens, desperta-
ram toda a gente do mosteiro.
Apenas a abbadessa continuava dormindo com o seu confessor!
Sarah, mal o conflicto começou, sahiu da sua cella e veiu prevenir a
teimosia de D. Philippa, aprésentando-se na sala.
Ao chegar, porém, junto do reposteiro, ouvira tão violenta discussão
que não se atreveu a entrar.

Emquanto esperou conheceu a situação.


Ao sentir a queda dos dois corpos, entrou precipitadamente e diri-
giu-se a Philippa.
— Senhora, fizeram mal a alguma de nossas irmãs ?
! . . .

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO i83

— Que vos importa ? Sabei que a vós se deve este escândalo. Andaes
depressa! Ha dois dias apenas. .

— Eu senhora
!

— Sim, agradecei a Jacob Adibc, que vae ser posto fora deste mos-
meus servos e guardas, a galhardia com que vos desaffrontou.
teiro pelos

Se não fora a ordem do Desembargo, com elie iríeis ver romper o dia
para os campos de Lorvão. .

Jacob questionava com os outros convidados, emquanto dois frades


levantavam e compunham o morgado.
Este, mal se viu em pé e pôde falar, manchando os dedos no sangue
da face, e mostrando-os aos frades e cavalleiros:
— Meus senhores, por este sangue, juro, disse ellc, que o tilho do ju-

deu de Azamor, se Deus e el-rei quizerem, pagará nas fogueiras da Inqui-


sição, o seu ódio a Christo e aos christãos.
Jacob voltou-lhe as costas com movimento de desprezo.
N'este momento viu Sarah, que se dirigia a elle com os olhos rasos de
agua, brilhando como duas estrellas.
— Senhora, disse elle, perdoae-me. . . Quizeram que eu vos visse,

quando vou deixar de vos vèr.


— Obrigada, senhor, pela vossa fidalguia e pelo vosso sacrifício. Te-
nho um favor a pedir-vos.
— Contae commigo.
— Entregae esta missiva em Lisboa, a meu irmão, Pedro Soares.
— ou mandarei; descançae.
Irei,

— Então não partis?


— D"aqui, sim; para longe, não sei.

Os creados e guardas rodearam Jacob, que sahiu precipitadamente.


Ao chegar á porta encontrou-se com D. Pedro Mascarenhas.
— Dae-me a vossa mão, D. Pedro. .

— Já me não odiaes?
— Parece que não! Até vos estimo e agradeço.

Sarah passou o resto da noite em grande agitação. O seu espirito sof-


frera tão grandes abalos, desde que entrara no mosteiro, que já começava
a perturbar-sc.
Como havia ella de viver muitos dias em tal convivência? Era impos-
sível.

Pedro não vinha vél-a, Deborah não era ainda sua companheira.
. . .

i84 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Todos que a cercavam eram desconhecidos rodeavam-n'a galantea- —


dores sem educação, e ciumentas sem reserva. Sobre a moral do mos-
teiro já não tinha a menor dúvida. Chegou um dia a pensar em que tal-

vez no claustro houvesse alguma liberdade; em licença como aquella, se


lh'a tivessem annunciado, não acreditaria.
Sarah adivinhava o que não podia saber; tinha a respeito da maldade
aquella intuição infantil que classifica as pessoas e os factos, sem os com-
prehender. Nem d'outra forma se comprehendia o pudor, resguardandose.
Aquillo era uma gente sem moral, sem religião, sem vergonha I As
mulheres começavam a parecer-lhe homens vestidos de monjas.
Elias não olhavam, nem falavam, nem riam como as raparigas da sua
educação e da sua edade. .

Sarah sentia que aquella gente sabia mais que ella, mas não valia

mais; faltava ás outras alguma cousa que ella não podia explicar, mas
que abria um abysmo entre a sua timidez e a vivacidade das suas com-
panheiras. Sentia nas monjas do Lorvão uma superioridade que não in-

vejava.
Não as odiava, não, que as irmãs, afinal, não eram más algumas ;

eram até amoraveis e bondosas. Se não fossem monjas chamar-lhes-hia


desgraçadas, e a desgraça sempre commove e affeiçôa... Mas aquellas
libertinas vestidas com o habito com que serviam a Deus, ora lhes pare-
ciam ridículas, ora repugnantes.

Aquella, por exemplo, que se matara, devia ser uma pobre rapariga. .

Talvez desse uma excellente mãe de familia I

Matou-se por ser má, ou por ser boa? Talvez por vergonha. . . Amava
um homem, e a familia, em vez de a defender, abandonou-a ;
que, afinal,
metter uma rapariga n'uma casa d'aquellas, era o mesmo que abando-
nal-a. . .

E as outras, quando despiam o habito, eram mulheres como todas as


outras... Se estivessem em suas casas, ajudando as mães, cuidando nos
irmãos, já não podiam amar aquella vida desregrada... Algumas eram
tão novas ! Alli um homem a quem ellas respeitassem, que lhes
não havia
desse conselhos! Os homens que entravam n'aqueliã casa, eram homens
também sem mulheres e sem filhos. . . Pelo menos, se tinham d'isso, não
o diziam lá fora. Alli sim, porque eram todos cúmplices do mesmo crime.
Nada lhe parecia peor que o vêr criminosos muito de perto. Todos teem
formas humanas, e todos algumas virtudes. .

O perigo via-o ella ; estava em se demorar alli — depois da repugnância,


vem a compaixão, o perdão apparece logo em seguida. Além de que, se
tudo aquillo existia, era porque Deus se não oppunha. . . e até perdoava.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO i85

Magdalena devia ser do feitio d'aqLiella.s monjas, e Jesus perdoou-lhe. .

Já conhecia algumas lá dentro que tinham filhos, e affagavam-nos muito,


o que era divino, mas depois aiíagavam os pães, o que era infernal. Como
apparecia Deus no principio, se o Diabo apparecia no fim?. . .

Havia á roda delia mulheres nobres, da classe média, e até mulheres


do povo. Como num hospício de endemoninhados, a multidão fazia muito
bulício, mas, afinal, cada pessoa dizia coisas diversas, e muitas estavam
caladas! . . .

K também Sarah notou que, no meio de tanta libertinagem, a fé sabia


manter-se. Vira algumas companheiras rezando por seus namorados. Sa-
rah chamava-lhes assim. . . Não faltavam as lagrimas. Afinal, a doença rei-

nante não era a maldade, era o amor. . . Algumas eram verdadeiramente


irresponsáveis; tinham sido, á força, enclausuradas por causa dos seus
amores. Vergaram a cabeça e submetteram-se!. ..

O coração é que não se resignara. Honradas famílias, que se oppu-


nham a uma affeição innocente, impellíam assim as pobres raparigas para
allianças secretas, criminosas, sacrílegas! E' verdade que algumas tinham
fugido do mundo, mas muitas tinham sido expulsas d'el!e... Que tinha,
então, o mundo que lhes exprobar?
A excitiição de Sarah provinha principalmente da revolução que se es-
tava operando no seu espirito. O que ella estava sentindo seria producto
da sua bondade, ou da fraqueza das suas virtudes ? Como estava a em-
pardecer a seus olhos aquelle mundo negro, que tanto a assustara ao prin-
cipio da noite?
Talvez que a sua vaidade estivesse envenenada ao contacto da li-

sonja! . . .

Houvera um grande escândalo por causa d'ella, e um homem, que


não a conhecia, batera-se por causa da côr dos seus olhos. Coisa extraor-
dinária ! Ella, uma pobre creaturinha, sempre occulta e recatada na sua
casa de Lisboa, viera perturbar o serão do notável mosteiro e causar in-
veja a tantas mulheres requestadas! Por que seria? Por ser mais formosa
que as outras? Sarah, sem o perceber, ia asphyxiando-se com aquella vi-
ciada atmosphera . . .

A pobre menina, num lampejo de razão, conheceu o perigo, e pro-


curou mudar o fio das suas meditações, pensando em sua irmã.
A saudade trouxe-lhe bem viva a imagem de Deborah, com o seu rosto
formoso, como o de- uma imagem da Soledade. .

Comparou a fronte e o olhar de sua irmã com os de todas essas mu-


lheres, com quem cila ousara por momentos comparar-se, e então com-
prehendeu a dillcrença.
. : . .

>8G MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Aqui, minha Deborah, serias tu quem havia de triumphar, não por


seres mais formosa que ellas, mas por seres a mais casta..
E, assim, se lhe aquietou o coração, que se lhe levantara em ondas,
ao sopro da vaidade juvenil.
Soou na extensa galeria a sineta, chamando para a oração matutina.
Reuniram-se todas as reclusas e encaminharam-se, em montão, para o
coro da egreja. Ninguém diria, ao ver essas mulheres de rosário nos de-
dos, que eram as mesmas que encontrámos na sala do capitulo!
O coro era fechado por uma alta rotula de madeira, que chegava quasi
ao grande arco da abobada
As monjas ajoelharam em volta de Philippa, que ficou de pé, dominando
o grupo. .

Sarah, de soslaio, examinou-a attentamente, ainda preoccupada com o


confronto que fizera, e murmurou:
— Não ha dúvida; na belleza de Philippa já não ha o menor vestígio

de honestidade. Tem a belleza diabólica; os homens querem-n'a, mas não


podem amai- a. . .

A luz da experiência tinha no cérebro de Sarah a velocidade da ou-


tra. . . O meio, em pouco tempo, ensinara-lhe um punhado de verdades.
Jacob poderia tel-a admirado, como os artistas admiram uma bella
estatua, mas não poderia adoral-a, como um crente á Virgem do seu altar...

Philippa era, na verdade, uma esplendida estatua I

Lembraria, se tivesse o habito em maior transparência e desalinho,


aquellas figuras egypcias que assignalavam, nos tempos bíblicos, a elegân-
cia natural, que consistia nos pés descalços, na perna a espreitar por en-
tre a túnica regaçada, na anca redonda e descabida, no collo, parecendo
suspenso, a precipitar-se, no pescoço de cysne, na cabeça, pequena, ere-
cta, topetada sobre a nuca, e pequenas madeixas a deslizar pelas faces. .

Philippa, com uns leves toques de esculptor primoroso, dava-nos a il-

lusão d'essas mulheres.


Por isso ella trazia tão leve o pé e tão curto o habito, tão elegante a
cintura e tão branco o seio, tão nú o pescoço e tão cuidado o cabello!
O rosto era delgado, sem dureza, a bôcca pequena para ser bonita, os
lábios túmidos para serem sensuaes, e os olhos brilhantes, com scintilla-

ções de todas as cores, no fundo das immensas molduras de sobrancelhas


e pestanas espessas e arqueadas!

Sob a manga larga, mas de dócil tecido, adivinhava-se-lhe o braço es-


culptural, e as mãos, pequeninas, de dedos delgados, andavam sempre
erguidas e promptas para chamar com uma caricia, ou para afastar com
uma arrosancia.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 187

Ao contrário da regra imposta ás outras monjas, Piíilippa tinha a cogula


estreita a desenhar-lhe o corpo, c a cabeça livre de feias coberturas.
Sarah tinha razão; aquella mulher, que tão deslustrado papel desem-
penhou na historia do nosso paiz, e que foi a synthese da desmoralisação
monástica do século xvi, poderia ter a lisonja de alguns cortezãos, como
uma rainha, mas não adoradores apaixonados, como uma mulher.
No rosto, cheio de belleza, não havia um traço de sinceridade; no olhar
rutilante, nem uma scentelha de pureza; nunca lhe passara nas faces uma

aurora de pudor!
E, sem saber poríjue, Sarah começou a rezar, muito reconhecida, a
Nossa Senhora, por não ser Philippa mais bella que Deborah. . .

Como a innocencia se faz pérfida enganando os innccentes!


Finda a oração, ouviu-se de novo a sineta, que chamava agora ao re-

feitório.

Ergueram-se todos, e o bando precipitou-se sobre a rotula.


A egreja estava deserta.
Deserta não, que Sarah bem viu, a descer os degraus do cruzeiro, o
esquecido amante de Philippa d'Eça, o christão-novo — Jacob Adibe.
E dalli foram para o refeitório, onde a conversação, sustentada em se-

gredo, recahiu constantemente nas recordações da véspera. O morgado de


Travanca foi apreciado de diversas formas, mas todas pouco abonatorias
do seu prestigio.
Uma freira o descrevia arrogante e insolente, logo uma monja contava
como elle cahira de costas, pouco elegantemente; uma noviça, então, ria
a bom rir, lembrando a ameaça final contra o pobre rapaz, tão bom e tão ge-
neroso, que, para ficar em Coimbra com uma irmã e a avó, se fizera christão.
Jacob era um judeu, ou melhor fora um judeu, que respeitava na re-
ligião de Mo3'sés as taboas da lei e a crença dos pães. Nunca tivera Ja-
cob ódio a Jesus. Pelo que fazia e dizia, bem incapaz se mostrava de
matar a sede de Chrisio com a esponja da amargura, nem de lhe jogar a
túnica, cora os dados, sobre o tambor dos phariseus.
O que ellas não sabiam explicar era o enthusiasmo de Jacob na de-
fesa de Sarah. . .

Sarah viera de Lisboa, Jacob nunca a vira, e tanto que até estava
apaixonado por Philippa . . . Como fora então provocar o morgado por
causa de uns olhos que nunca fitara ?

— Comam e estejam caladas, que ao altar da mesa não são cabidas tagare-
lices e risadas, dizia a abbadessa, a da direita, sentada na cebeceira da mesa.
— Ainda não estão fartas de galhofa ? O que lá vae, lá vae ! Só lhes
•digo que tenho saudades de Jacob. Judeu ou christão-novo, valia bem
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

mais que todos os peraltas que por ahi andavam. . . Pelo menos era um
rapaz de coragem, era um homem. , .

— Cheio de basofias moralistas, capazes de enternecer meio mundo.


Quem nasceu para paladino de innocencias, não se aventura ao galanteio
das mulheres. .

D. Philippa pensava assim e por isso o dizia.


— Pois, melhor irias, miniia filha, com um homem que te estimasse,
que com um fidalgo que te quizesse, philosophava Margarida, mostrando
a sua experiência dos homens e do mundo.
— Vou já no caminho dos vinte, e sei melhor que vós, senhora abba-
dessa, o que me convém. Poderia ficar-me por um confessor, cheio de la-

tim e de somno, se tivesse a vossa edade e os vossos achaques. Abhorre-


ce-me a reedição de galanteios, e a mudança de auctores importa a mu-
dança de estylos.
— Repito, disse amargurada a abbadessa, não quero ouvir falar n'esse

conflicto, que pode transpirar lá fora e aggravar a nossa fama.


— Bem me importa isso ! Tomara eu salvar-me, senhora abbadessa,
no dia em que aqui ha de entrar el-rei D. Manuel.
— Dessa te livrarei eu...
— Pois ha muito que penso nessa heróica aventura. E a todas nós eu

juro solennemente que para tanto me poderá servir a corte que me faz
D. Pedro de Mascarenhas.
— Não pensas n'outra coisa ! Melhor andarias pensando mais nas mon-
jas que partem e não voltam !

— A quem vos referis, senhora?


— A' irmã Sabina, que se partiu, com licença tua, ha oito dias, e ainda
não voltou . .

— Ora, deixae-a, que não anda perdida. Achou-a o cavalleiro Reynaldo,


que a guarda em Poyares, e que ha de restituil-a mais magra e mais sabida...
— Por que choras, Maria ? perguntou a abbadessa a uma freira que es-

tava na extremidade da mesa e que nada comia nem ouvia.


— Ausências de frei Paulo Reynol, que, desde que disse a primeira
missa, não mais veiu ou escreveu. Por Cellas anda demorado, preso tal-

vez aos encantos de mulher mais nova e mais formosa que eu. . .

— Consola-te, filha, disse Margarida. Os homens são todos assim, vão


e vêem como a primavera. Deixa passar o outomno e o inverno e elle vol-

tará ao ninho, como as andorinhas. . . E tu, Antónia, desde hontem. en-


tristeceste, seguiu no interrogatório D. Philippa, fitando uma noviça alou-
rada que questionava animadamente com as companheiras, não ouviste o-

que querias, ou ouviste de mais ?


. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 189

— Não, senhora minha, ouvi e disse o que me aprouve, mas notei que

o ser clérigo não impedia o desforço quando Jacob nos insultou. Se Christo
teve um azorrague para os vendilhões, não era muito que um padre ti-

vesse mãos para um insolente.

— Estás muito atrazada, Margarida; talvez que ura dia se chame mus-
culo ao coração; por agora chama-se-lhe apenas — sentimento.
^ Ora, con-
sulta Paracelso.
— N'cssas questões não consulto os physicos, mas a irmã Martha, que
faz maravilhosas descobertas.
— Que descobriu ella então ?

— Que o amor é ao sol que melhor se affirma.


— Explica-te, por quem és.

— Pois não vistes, senhora, a egreja deserta, apenas com Jacob, atra-
vessando com o olhar os quadradinhos da rotula ?

— E que quer isso dizer ?

— Que o amor ao serão é divertimento, e de manhã é sacrifício.

— Estás muito sábia, Martha.


— E' fructo da observação. . . Quem madruga não dormiu!
— Dizes bem e provas tino, Martha. . . Então Jacob ?. .

— Ou não dormiu, ou sonhou... Quem se ergue, na mocidade, para

ver nascer o sol, é que tem a nascer-lhe no coração o sol do amor 1

— Esse milagre também pode ser do ciúme ou do despeito, disse Phi-

lippa.
— Não sou d'esse aviso, senhora, disse Martha, com palavra vivaz c
olhar intelligente. O ciúme e o despeito são fructos do amor que já flo-

resceu. Só os novos amores procuram o sol que nasce. .

— Dize-nos, pois, Martha, de que lado do coro estava hoje o oriente...


— Do lado de Sarah. .

— Senhoras, disse esta, nada vos digo, por que tanto me dizeis?...
— Porque haveis de ter a gloria que vos pertence Hontem, na . . . re-

cepção, fizestes a injuria, no serão tivestes a desforra e, logo ao amanhe-


cer, a consagração.
— E tenho culpa ? respondeu Sarah, singellamente. Bem sabeis que, se
nada vos dou, por nada ter, nada também ouso roubar-vos. Bastante desejo
eu que todas sejam felizes ! . .

— Sarah é boa rapariga, disse Mariana, c, decerto, não tem culpa das
conquistas que faz.
— Que ella não se illuda com os fachos que se apagam, fogos fátuos
que ha séculos illuminam as grades deste mosteiro e que dão o abandono
e as sombras de que vcem tantas lagrimas, disse Martha, sentenciosamente.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — \01.. '.
FOL. 24.
.

igo MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Margarida bateu três palmadas, erguendo-se, e toda a mesa se levan-


tou também.
— Graças a Deus, misericordioso! minhas irmãs.
E as monjas, em procissão, passaram na cabeceira da mesa, beijando-

a branca abbadessa.
— Minhas filhas, antes que o sol aperte, dêem uma voka na cerca, que
ha muito depois que dirigir no asseio e amanho do que a folia de hontem
enxovalhou e destruiu.
E todas aquellas raparigas e mulheres, em grupos de três e quatro,
desceram á cerca, onde havia sol a bater nas leiras, e sombra fresca de-

baixo dos pomares.


Um dos grupos era formado por Martha, Sarah e Mariana. Eoi o
mais constante, que em todos os outros as figuras se substituíam com
rara vivacidade, como se a maledicência carecesse de fáceis mutações
para ter melhor pasto e menor responsabilidade.
— Sarah! disse Martha, meigamente. Ju!gas-me uma louca perdida?
— Eu Por que o perguntas
? ?

— Tens o aspecto de boa deves julgar-me pelo que ouves. Pelos


e . .

teus amores, que os deves ter, dize-me, que idéa fazes de mim ?

— Que és uma boa e infeliz rapariga. .

— Infeliz, disseste, e acertaste.

— Não boa sois ?

— Quanto posso I

— Então receias que te não preze ?

— Sabes a historia de Maria e Martha ?

— Maria, a que adorava Jesus, e Martha, que andava no afan da casa ?

Sim, conheço.
— Pois bem; eu sou Martha de nome Maria do Evangelho! e

— Passaste a vida ajoelhada aos pés de Nazareno?


— Não; aos pés do confessor, que o representava.
— E depois ?

— Amei-o.
— E' natural.
— Natural evangélico; amei-o,
e morreu.. e elle

— Como Jesus ?

— Não, que não pôde resuscitar.


— E choraste-o ?

— Muito.
— E que para o esquecer
fizeste ?

— Nada; para o lembrar vim para aqui.


. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 191

— E conseguiste-o ?

— Ainda não; busco um homem de habito e de fé que S3 pareça com


elle. Deus prometteu-me substituil-o, mas todos que me manda são feios
e maus. .

Sarah voltou-se para a outra companheira.


— E' verdade, Mariana
isto ?

— Não; nasceu enfraquecida já e ficou dementada depois do ultimo fi-

lho...
— Que horror ! disse Sarah, largando o braço de Martha.
E depois dirigindo-se a Mariana:
—E tu, minha irmã, não me contas a tua historia?
— E' simples: atraiçoei meu marido.
— E elle?
— Perdoou-me por causa do mundo,
e, mettcu-me aqui, e aqui vem
trazer-me o perdão. .

— Então o vosso amante . . .

— E' meu marido.


— Teu marido ?

— Sim, coisas da vida, que eu conto em segredo para que não tranr
spirem.
— F>a então perigoso ?

— Decerto. João, que c um rapaz muito distincto e considerado, dei-


xaria de vir aqui. .

— E se não fosse teu marido ?

— Isso então era outra coisa. . . Nem elle deslustrava o seu nome nem
eu escandalisava o mosteiro...
— Extraordinário mundo este! pensou Sarah, e foi sentar se ao lado
d'uma velha monja, por lhe parecer não encontrar alli surpresas para o
seu espirito.
— Estaes aqui tão só, madre (kiiomar, porque não seguis e vigiaes
tantas de nós, que somos novas e ignorantes ?

— Cabecinhas loucas não toleram queixas de velhos corações. .

— Escuto-as eu; podeis fazel-as; tanto amor tenho ouvido d' falar, que
já me apraz escutar lamentos dos esquecidos. Dizem-me que sois modelo
de piedade e sacrifício. . . falae, senhora. . .

— Não estamos, minha Sarah, no mosteiro benedictino de Ferreira


d' Aves nem temos por abbadessa Philippa d"Albuqucrque.
Aqui ha muito de quem folgue e ria e pouco de quem reze e pense,
A que fòr branda de condição e santa nas acções será de todos perse-
guida e até das creadas desprezada. .
.
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Parece-me que exaggeraes. .

— Já vão os tempos de Thereza,


lá que passou a vida de joelhos, de
Guiomar da Silva, que tão devota foi que, depois de morta, pôde cantar
um Te-Deiim lanciamus, ou de Antónia da Cunha, que morreu com as
cinco chagas de Christo, ou de Maria Martins, que voou de joelhos e de
joelhos se conservou entre nuvens de perfumes ! Aqui, agora, nasce mais
gente que morre. Quasi todas essas raparigas, que para ahi vedes, viram a
luz do dia por entre as sombras do claustro ! Perguntae ás cabras, que an-
dam alli no monte, quantas bôccas infantis lhes despejaram os uberes. . -

— Mas, vós, rezaes constantemente, não é assim, madre ?

— E' o meu consolo. Deus de misericórdia, para eu não vêr a vida

d'esta casa, pôz-me nos olhos a gòtta serena.


— Agora reparo! Estaes cega? Fitaes-me de tal forma, tendes tão lím-
pido o olhar, que tal não diria. Como deve ser triste a escuridão ! disse

Sarah, pegando nas mãos de Guiomar.


— Enganaes-vos ; vejo só o que vale admirar; vejo o menino Jesus da
minha cella, tal qual como a Antónia de Sá, que, cega como eu, viu os

dois capuchos que rezavam ao pé de Bernarda Maria, quando esta estava


a expirar. . . Um dia perdi as contas, como succedeu a Maria de Figuei-
redo, e vi depois o Anjo da Guarda que veiu trazer-mas, presas nas pen-
nas brancas das suas grandes azas
E, como se tivesse esquecido Sarah, ficou a rezar, movendo os beiços
docemente.
Sarah, mais triste, sentiu-se isolada no meio de tanta gente I Quem
poderia comprehendel-a ? O bem
eram companheiros da lou-e o mal alli

cura... Umas, tinham o fanatismo que obceca, outras, as paixões mun-


danas que desmoralisam.
Aquelle mosteiro parecia o logar onde Deus e Satanaz se avistaram
para luctar. A chamma da fé parecia ter o reflexo da chamma do vicio.

E Sarah tinha razão. Alli bem o explica frei Bernardo de Brito, na


Chronica de Cister, em que narra muitos milagres na historia de Lorvão,
só as freiras dementadas invocavam tradições e faziam exercícios divinos.

A educação monástica, limitada a docerias e bordaduras cultuaes, pro-


duzia apenas mulheres levianas e mulheres tontas.
Nem tinham noções do céo nem da sociedade ! A religião era a ce-

gueira, a moral o relaxamento.


Toda a sciencia estava nas cabras que davam leite e nos altares que
faziam milagres.
As novas não tinham temor, nem de Deus nem dos homens; as ve-
lhas, desprezadas dos homens, amavam sensualmente os santos e os anjos.
. . . ! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO igS

E Sarah não tinha noticias de sua irmã


Quando chegaria, ou quando lhe enviaria novas ?

Se alguém a protegesse, teria resignação para esperar. .

E sentou-se, n'um pequeno banco de pedra, á sombra d'uma grande


oliveira, que havia fora do muro e cujos ramos formavam copa dentro da
cerca.
As monjas tinham acampado nas escadas do jardim e á roda do grande
tanque, do lado opposto. Tiravam sinas, lendo na palma da mão, e dei-
tavam cartas para conhecerem os segredos de seus amantes. Algumas
andavam á procura de trevo e outras hervas empregadas em curas e exor-
cismos. .

Perto de Sarah, só estava Guiomar, a cega, rezando, com os olhos vol-


tados para o céo. . .

O sol era ardente, c nem um sopro de viração agitava as plantas e as

arvores.
Apesar disso, quando Sarah estava mais absorta nas suas meditações,
os ramos da oliveira a que se abrigara moveram-se como se tivesse pas-

sado uma lufada rija. . . Sarah estremeceu e olhou a ramaria verde escura
que vinha de cima do muro como um docel . .

Viu então um braço nú que afastava alguns ramos... Ia a levan-


tar-se. .

— Não se mexa, disse uma voz fresca; não se mexa nem olhe para
cima.
— Quem está ? perguntou Sarah, obedecendo.
— Quasi ninguém; Pepe, ou José, se achar melhor — sou o mais novo
dos pastores da serra. Não ouvis os chocalhos das ovelhas E' que andam ?

a pastar e a chamar por mim.


— Sáe d'ahi, rapaz, que o muro é muito alto e podes cahir. .

— Cahir, nanja essa! O tronco da oliveira é mais grosso que as co-


lumnas do. altar de Nossa Senhora e tem as braçadas tão bem dispostas
que parece até escada de fidalgos para cella d'abbadessa. . .

— Vens então varejar a flor ou estragar os ramos ?. . .

— Qual ! Ganhar cinco maravedis, que são uma fortuna com que hei

de chegar a ter um porta fi;uei do finíssimo ouro do nosso rei. . .

— Para que deram esse dinheiro? te


— Para dar um recado noviça mais bonita que eu à visse na cerca do
mosteiro.
— E então ? . .

— Espreitei — e vi sois vós. . .

— Enganaste-te, com certeza. .


! . . :. . . . . . .

194 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Talvez não; quem entende d'ovelhas, entende de mulheres. Falta-


me só uma prova : chamaes-vos Sarah ?

— Sim, respondeu Sarah, conservando-se com a fronte encostada á


mão, como se estivesse meditando.
— Eu não dizia? acertei como um monge sábio. Pois, senhora mi- . .

nha, como se na Alcáçova, meu amo.


diz .

— Teu amo
— Sim, que são meus amos todos que pagam para algum serviço ho-
nesto, que a outros não me presto. .

— E quem teu amo é ?

— O senhor Jacob Adibe. .

Sarah estremeceu intimamente.


Alguma audácia I pensou ella.

Depois socegou.
E' verdade, dera-lhe um recado para seu irmão. Era natural que lhe
mandasse resposta...
E em voz mais alta

— Que diz o senhor Jacob ?

— Meu amo é um pastor como cu, mas de gado mais fino. E' um pas-
tor a valer. . . Eu fujo quando vejo os lobos a namorarem-me o rebanho,

mas elle atira-se-lhes que é uma belleza. .

— Dize depressa. .

— Então vae. O lá senhor Jacob desconfia de qualquer manobra con-


tra a menina, e, proTavelmente, como sois bonita, quer deíender-vos.
— Corro, então, algum perigo ?

— Quem está ahi dentro está sempre em perigo. Se fizessem como eu,
que ponho á parte o gado com gafeira. .

— Vamos, Pepe . .

— Ora o senhor Jacob não entra ahi quando não quer. Quando elle

quizer é um pulo... Encarrega-me, pois, o senhor Jacob... Aquillo é


que é um rapaz ás direitas! Cinco maravedis, cinco 7}uiuros, cá na lín-

gua da serra, por trepar uma oliveira ! . . . Faz mesmo gosto ! Não é ver-
dade, menina Sarah ?

— Mas dize, dize. .

— Encarrega-me de lhe dizer que, logo que se veja em risco de soífrer


algum desastre ou injuria, emfim, sempre que precise de soccorro, se for
de dia, ponha na fresta da sua cella este ramo de oliveira. .

E Pepe, dizendo isto, dei.xou cahir no regaço de Sarah o ramo em que


falava.

Sarah pegou n'elle distrahidamente.


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Está ouvindo, menina Sarah ?

— Estou.
— Bem, o ramo de á noite uma
dia, e luz.
— E quem verá esse signal ?

— Eu as minhas ovelhas, em troca duma caixa cheia de reaes pre-


e

tos, d'aquelles de D. João — que dizem — pela


II pela grej; como se lei e

canta em Coimbra.
— E quando dormires ?
— Render-me-hei. Meu pae também tem rebanho de rapazes. Havendo
necessidade, cahimos lá dentro como se fôssemos assaltar terras de mou-
ros.
— Obrigada, Pepe.
— Lá darei o agradecimento, que para mim não é. Olhe, menina,
como o tempo está quente e de luar e os pastos por aqui estão na conta,
todas estas noites trarei a rede para junto do muro. E haveis de sentir a
tilintar, que estas malditas nunca estão quietas I E que Deus vos faça ab-
badessa d'outro mosteiro.
E Pepe desappareceu.
— A Providencia vela por mim! Sinto-me mais forte e animada!
E, envolvendo-se na multidão das companheiras, Sarah entrou no mos-
teiro.

Ao chegar ao cimo da escadaria, olhou o monte em frente.

Pepe, com grande cajado ao hombro, tendo ao lado um molosso quasi


do tamanho d'elle, fazia sentinella ao seu rebanho.
—E a mim ! pensou Sarah, reconhecida.
.

VIII

As duas irmãs

Pepe o typo que poderia resultar d'um misto de andaluz e de


tinha
napolitano. Era mais vivo que os pastores das paizagens de Itália, mas
tinha, como elles, aquella artística physionomia d'um cantor que começa
por quebrar os échos da serra e acaba por mendigar, cantando, nas ruas
das cidades.
O olhar era hespanhol, mais hespanhola que portugueza a accentua-
ção guttural e sonora... O rosto alegre, d\ima alegria communicativa, e

a graça despretenciosa e picante denunciavam-lhe intelHgencia tão viva


como o olhar. Moreno, com feições delicadas, que não correspondiam á
sua modesta condição, cabellos negros, luzidios como as madeixas dos ci-

ganos, a cahirem sobre o pescoço e a emmoldurarem-lhe o rosto, peito


nú. . . dava a um pintor de raça uma cabeça de estudo, vigorosa, graciosa
e empolgante !

Teria dezeseis annos, quando muito ; mas, apesar de pequeno, apre-


sentava hombros largos e musculatura sadia. Corria como um gamo, sal-

tava como uma lebre, e, mesmo descançando, tinha aquella mobilidade


de gestos e de olhares, que abonam a saúde do corpo e do espirito...
Mesmo só, nunca estava calado — conversava animadamente comsigo
mesmo, transmittindo sensibilidade a tudo que o rodeava — pedras, ove-
lhas, arvores, pássaros, hervas e insectos ! Sentado, revolvia nas mãos o
seu cajado, arremessando-o ao ar, equilibrando-o nos dedos, castigando a
terra e os vermes, açoutando os ramos . .

Se largava o cajado, pegava em juncos e canniços, e inventava n"elles,


com a ajuda da sua faca, laços, coroas, armas d'arremesso e gaitinhas
pastoris... Conhecia todo o seu gado, e a cada cabeça dava uma al-

cunha. . . Conversava com as ovelhas, como se ellas fossem rapazes e ra-


parigas da sua edade, e inventava intrigas de família para ter pretexto de
ralhar com umas e premiar as outras. ..
. !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 197

Deitado de costas, á sombra das arvores, assobiava aos pássaros, e


com elles ao desafio, ora applaudia o que melhor cantava, ora afugenta-
va, atirando-lhes torrões, osque não respondiam, ou piavam apenas.
Trepava ás arvores para ver os ninhos, mas não os arrancava.
— E' boa vizinhança, dizia elle. São creanças, mas não dão noites más
A's vezes passava horas, de bruços, observando os formigueiros, que
comparava aos mosteiros de frades e de freiras. A's formigas mais peque-
nas e louras teimava em chamar noviças, e ás outras, grandes e negras,
monjas de Lorvão...
Calado nem um momento ;
quando não conversava com a sua pente,
assobiava e cantava.
A' beira d'um regato, lançava n'elle uma fileira de folhas seccas, a que
chamava uma armada, e soprando-a, mandava-a descobrir mundo, em
nome del-rei . . .

Nada disto lhe fazia esquecer os deveres do seu cargo. De qnando em


quando chamava o cão, o seu Frade, e mandava-o enxotar as ovelhas
para o logar em que as queria. O cão vinha alegre e obediente, e Pepe
dava-lhe instrucções, que o Frade ia cumprir, depois de lamber as mãos
do dono.
Puzera aquelle nome ao meigo animal, para ter o direito de espancar
um frade, quando fosse preciso, dizia elle.
—E vá lá com Deus, que ainda pensei em chamar-lhe Abbade geral,
disse Pepe, no dia do baptismo. .

Seu pae era rendeiro do mosteiro, e ás vezes, quando o anno ia mal,


como tinha muitos filhos, não podia pagar as rendas.
Um dia a abbadessa despediu-o, e seu pae chorou muito, e á noite
foi-se ao alto d' uma penedia para se atirar por ella abaixo.
Pepe seguiu-o, e disse-lhe com atVectada alegria :

— Pae, arranjei o dinheiro; podemos ficar nas terras.


— Onde o arranjaste, Pepe ?

— Não importe com isso; eu que


se digo que arranjei, é porque está
arranjado.
— Enganasme, Pepe.
— Por alma da mãe, pae, juro que está tudo arranjado.
E acompanhou o pae a casa, o pobre velho, que chorava en-
depois,
tão, mas de prazer. Pepe ficou como se pode imaginar. Deixou socegar

a familia, e veiu guardar as ovelhas. Andava rondando o muro da cerca,


quando viu approximar-se um homem muito embuçado, a quem o caseiro
abriu a porta e os cães não ladraram.
Não largou o seu posto.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. 25.
. . ! . . ! .

igS MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ao romper do dia o vulto ia a sahir e Pepe tomou-lhe a deanteira.

Era um mocetão, esvelto e nada feio.

Pepe contou lhe a sua historia, e, ao contal-a, chorou tão sincera e affli-

ctivamente, que o desconhecido attentou no rapaz com viva curiosidade.


— Salvaste hontem teu pae E' uma bonita acção. E agora ! ?

— Agora, senhor, se lhe não levo o dinheiro, perco a vida de meu


pae e a alma de minha mãe
— Juraste por ella ?

— Se não jurasse, elle não me acreditava. Menti ao pae e ao Céo, como


um perro, que não tem pae e que não crê no Céo. .

— Teu pae vae erguer-se, que o sol já se annuncia. Que farás, pe-

queno, se tiveres de matar a esperança com que o pobre velho adormeceu ?

Pepe ficou um momento a pensar, e depois, erguendo a cabeça, com


a majestade d'um pequeno heroe, exclamou, com as lagrimas na voz :

— Fujo a meu pae, atirando-me pela penedia que elle escolheu, e


vou ao Céo explicar a minha mãe, que foi para lhe salvar o homem e os

filhos, que eu atraiçoei a sua alma de santa.


— Admirável rapaz! murmurou o desconhecido.
—E sabendo
ella, perdoa, pois não perdoa, senhor?
isto,

— Perdoa, sim, descança. Onde tua cabana é a ?

— Do outro lado da serra logo ao descer. ;

— Quantos irmãos tens?


— Commigo, somos oito. .

— Vá disse o desconhecido, por Moysés ou por Jesus, que


feito, afinal

uma acção boa agrada sempre aos deuses.


— Senhor, eu não vos engano. Não vos oftéreço o rebanho, porque
não é meu, mas dou-vos o pastor e o seu cão ; tereis uma matilha para
vos guardar até á morte!
— Vamos lá ; acompanho-te. Olha, porém, que se me preparas alguma
armadilha, levo por fiador a tua vida.
Pepe já não ouviu estas palavras ; mal lhe disseram ramos lá, chamou
o Frade, recommendou-lhe o seu gado, e foi monte acima . .

Quando o pae de Pepe accordou, recebeu da mão do pequeno pastor,


na presença do moço cavalleiro, mais que o necessário para o pagamento
das suas rendas. .

Desde esse momento, Jacob Adibe teve ao seu serviço dois cães, que
se lhe rojavam aos pés e o fitavam com o olhar a trasbordar meiguice —
eram Pepe e o Frade. .

Imagine-se, pois, com quanto prazer o nosso pastor recebera a fidalga


incumbência de velar, de dia e de noite, pela pobre Sarah
. . ! ! .!

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 199

Era já uma prova de confiança na sua lealdade e na sua força I Cora-


gem tinha elle, e força andava desenvolvendo-a, levantando pedras no
monte e esticando os braços nas oliveiras. .

Com seus irmãos regulara os quartos de sentineila, mas elle, coitado,


só vencido pelo cançaço se deixava adormecer
Ia passar os dias e as noites com os olhos pregados nas grades do
mosteiro.
Aquella alegria infantil, que enchia a sua constante solidão, modifi-

cou-se muito.
Deixou de assobiar aos pássaros, de brincar com os juncos e canniços,

de observar os formigueiros de Lorvão, de palestrar com o seu rebanho


Afiou, com cuidado, a faca dos seus brinquedos, aguçou mais o seu
cajado nodoso, e nem já se deitava de costas ou de bruços, olhando o céo
muito azul e a terra muito parda ! . . .

Rondava o monte, como uma atalaia nas ameias d'um castello, e, de


lado, passeando lá no cimo, ou de frente, descendo até a cerca, ou ainda
descançando, sentado nas restevas, ou de pé encostado ás arvores, tinha
sempre os olhos pregados n'aquelle palmo de muralha, onde, de um mo-
mento para o outro, poderia apparecer um ramo doliveira, ou a luz d'uma
vela.

E o Frade, o dedicado companheiro, não comprehendendo a tristeza


ou a preoccupação do seu dono, sempre que podia acompanhal-o, punha-se
ao lado d'elle, com o corpo de rojo, extendidas as mãos, erguido o foci-

nho, com os olhos no ponto para onde Pepe estava olhando


Sarah, durante a noite adormecia, por vezes acalentada por aquelle

monótono tilintar das ovelhas, e, ao erguer-se, ia logo espreitar o monte. .

Sempre que entrava na sua cella enviava o olhar para aquelle horizonte
de vigilância e salvação, e á noite, depois das Trindades, quando as som-
bras do valle já envolviam o cume da serra, via que estava sempre cstrel-

lado o céo da sua existência.


Eram os olhos da matilha de Jacob que tremelluziam como estrellas,

deante d'ella, na linha do horizonte, por baixo do arvoredo, quasi junto


da terra. .

N'um dos curtos momentos em que Pepe se ausentava, deixou um


de seus irmãos no seu logar, e foi na direcção da sua casa, ao encontro
de Jacob.
— F"alaste-lhe, perguntou-lhe o christão novo.
. . ! . . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como estou falando comvosco, sr. Jacob. Como ella é bonita ! Pa-
recia mesmo uma imagem
—E disseste-llie . . .

— Disse-lhe tudo. . . E ouvi-lhe a voz tão doce, tão meiga, que dava
mesmo vontade de estar empoleirado a cantar-lhe lá de cima, cantigas
que a alegrassem. . . Pareceu-me tão triste a pobre noviça
— Nada te contou do que se passara até aquella hora ?

— Nada, sr. Jacob. Notei apenas que estremeceu quando lhe disse o
nome de meu amo. Nessa occasião esqueceu-se do que eu lhe recommen-
dara, e olhou para mim. Pareceu-me ver os olhos meigos e húmidos
d'uma gazella !. .

— Bem, Pepe, vigia-a sempre e, no caso de fazer o signal, se tiveres

tempo avisa-me, mas opera immediatamente.



Deixe isso por minha conta.
— Salva-me aquella ovelha e esse rebanho será teu. .

— Para que

me fala em paga ? Pago estou eu e de sobra, que só com
a vida se paga a salvação da nossa vida. .

— Não falemos n'isso, Pepe. Sei que és leal e dedicado. Se ás vezes


aguço appetites é porque estou farto de pagar amor, serviços e lisonjas. .

Vamos, porém, ao que importa. Conheces o morgado de Travanca ?


Como os meus dedos. Salvo se fôr verdade o que me disseram ?

— O que foi então ?

— Que o afeia e transfigura um gilvaz que lhe fizeram na face es-

querda.
— Reconhecelo-has, apesar disso, sempre que elle se avizinhe do mos-
teiro. E' indispensável não o perder de vista. Se elle lá entrar de noite,
e isso lhe será fácil, não rondes extra-muros, salta, embosca-te, escuta,
espreita. Os cães conhecem-te a voz e tu conheces as sacristãs. Es pe-
queno, em qualquer canto te escondes. . . Nas medas de lenha, nas uchas
do vestiário, nas bancadas das galerias, nos telhados, junto ás adufas aber-
tas, nas pregas dos reposteiros, sob a mesa do comedouro, nas escadas
. das serventias particulares, na torre dos sinos, em qualquer parte, emfim,
onde possas espreitar e ouvir, esconde-te. . . E's forte e ágil, e, quem pra-
tica o bem, não tem medo de surpresas. O crime é a atmosphera dos
cobardes... Se fôr necessário, aluga, corrompe, compra, ameaça, lucta
e morre . . . Offereceste-me a tua vida ; não a quero ; mas, se foste sin-
cero, offerece-a, dedica-a, sacrifica-a a essa pobre creatura, que veiu en-
sinar-me para que serve a vida e deter-me no caminho da prodigalidade
e do vicio, em que eu ia a embrenhar-me, sem consciência, sem rumo, sem
esperança. .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Basta, basta, sr. Jacob, que já comprehendi o bastante. E verá!


Hei de ser digno dessa gloriosa missão. Provarei que uma creança sabe
fazer-se um liomem, e, sempre que eu haja de proceder, hei de lembrar-me
da vida de meu pae e da alma de minha mãe.
— Bem, Pepe, bem, disse Jacob, vivamente exaltado, aqui tens di-

nheiro, e deu-lhe uma bolsa, para luctares com os fracos ; aqui tens uma
arma, e entregou-lhe um punhal pequeno e afiado, para venceres os maus
e os fortes. . . A' tua intelligencia e ao teu coração confio a lucta com os
bons.
Pepe guardou tudo, soffregamente, como se receasse que alguém esti-

vesse a espreital-o.
— Eu já tinha afiado a minha faca na pedra da lareira e experimen-
tado o seu golpe nas piteiras dos vallados, mas isto é melhor, disse
ellc, affagando o cinto, e, sobretudo, o dinheiro, que envenena, fere e in-

sulta. .

— Pedi a teu pae guarida por alguns dias. . . Ao primeiro alarme, irei

em teu soccorro, e, ainda que Lorvão tenha de ir pelos ares, hei de


salvar Sarah das garras dos seus inimigos ! . . . Tens comprehendido ?

— Perfeitamente . . .

— Já não oftcreço o rebanho; prometto levar-te commigo para Lisboa


te

e mandar-te para as Escholas Geraes e fazer de ti um homem I . . . Repara


bem — um homem I

O pastorzito ficou a pensar... Já não protestava contra a promessa


que lhe faziam. . .

— Para Lisboa ? ! dizia clle, fitando o céo ao acaso, por não saber para
que lado ficava a formosa cidade. Para Lisboa ! e vou apprender a escre-
ver, e a falar bem, e a desenhar os campos da minha terra, e a ganhar o
pão dos meus pequenos ? ! Ah ! senhor Jacob, que eu não precisava disso
para vos amar, mas sinto que vos amarei tanto, tanto, como amo o Sol,
que me aquece de inverno, e a Lua, que me guarda de noite.
— Estás apparelhado e prompto. Vae, Pepe, e que Deus te inspire e

encaminhe.
Pepe subiu até as oliveiras, que coroavam a serra, e depois desceu até
o pequeno que o substituirá.
— Ha alguma novidade, João ?

— Nada de monta, respondeu o pequenote. Apenas vi dois homens que


andaram lá em baixo olhando o muro, e depois tornearam o mosteiro.
— Era gente do sitio ?

— Não. Eram desconhecidos, l^arcciam aldeãos de Travanca, vestidos


como os maltezes que por lá acampam em dias de feira. . .
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Dizes então que não ha novidade ? ! Nada a teus olhos, é tudo aos
meus. Ora, desce á estrada e vê se os avistas no portal ou na egreja. .

Se não os encontrares desce á ribeira e entra na venda do Judeu ou na


tavolagem do Africano. Lembras-te das caras e dos fatos d'elles ?

— Eram eguaes nas barbas e nos mantéos.


— Bem, não percas tempo. Pede licença, pede esmola, ou não peças
nada, comtanto que entres onde elles estiverem e ouças o que elles dizem.
João partiu a correr. .

— Espera ainda, disse-lhe Pepe, e, com ares de nobre, tirou do cinto


alguns maravedis, que deu a seu irmão.
— Toma, se fôr preciso entra de cabeça erguida, abanca, come e bebe
e oíferece. Quem dá é tio. Come e não bebas e dá mais vinho que comi-
da. O vinho é falador, a comida reservada. Fala pouco e ouve o mais que
possas.
— Está dicto, disse João, alegre vivo. Posso partir e ?

— Espera ainda: nada perguntes, espera que digam... te Se te qui-

zerem enganar não te faças esperto, mas tolo. Tudo isto antes da noite e
longe das mãos d'elles. Se bem andares, conta commigo. Antes das sete
horas quero-te aqui.
João, depois de ter ficado alguns momentos a olhar para o irmão, á
espera que elle se lembrasse de mais alguma coisa, fez tinir o dinheiro,
metteu-o depois no peito e foi-se aos saltos, por cima dos sulcos, como
um coelho bravo fugindo dos batedores. .

Quando João chegou á estrada, os dois maltezes, como elle lhe cha-
mava, mas que eram dois verdadeiros ciganos, com modos e atavios de
alquiladores, escoavam-se pela ribeira em direcção á venda do Judeu.
Chegados alli, pediram um cântaro de vinho e azeitonas e abancaram,
ao fundo da casa, batendo com os chicotes sobre a mesa grosseira e suja. -

João, que ensaiara o aspecto mais alvar e a voz mais timida, ache-
gou-se a elles pedindo um ceitil.

— Vae-te d'aqui, rapaz, que praga!


E o outro:
— Nascem os miseráveis pela ribeira, como nascem os cogumelos
pelos montes ! Arreda, arreda.
— Maldicto dia! disse o pequeno. Nem fieis na egreja, nem caldo no
mosteiro, nem um real na estrada ! . . .

— Então hoje não abriu a egreja ?

— Abriu de manhã cedo para as orações das monjas, mas não appa-
receu ninguém . . . Ninguém é um modo de dizer. Appareceram pobres
como eu, que é o mesmo que não apparecer ninguém. . . ou peor ainda.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Jo3

— E nos outros dias ? perguntou um dos ciganos.


— Nos outros dias é outra coisa. Apparecem por lá cavalleiros e fidal-

gos bem vestidos e caridosos. . . Por exemplo: o senhor morgado de Tra-


vanca, que isso é que é um fidalgo. . .

— Então não perdes o dia. O morgado apparece por ahi hoje c ainda

poderás apanhar moeda nova e de peso. .

— Ora, mas a que horas virá elle ? Eu tenho -que partir de Eorvão ao
principio da noite e já não o apanho.
— Com certeza que não; o senhor morgado não é homem que passe
antes da meia noite, e então perde as esperanças. Dize-nos cá, rapazola,
costumas ir ao convento ?

— Algumas vezes. A senhora abbadessa metteu-me no rol dos que


teem gamella e pão.
— Deves então saber de que lado ficam as cellas das noviças...
— Se sei ! Do lado do horto e da porta da cerca. . .

— Já sei, já sei; é do lado do muro a que está encostada uma oliveira

enorme, que se debruça sobre elle.

— Sim, é para esse lado que dão as frestas das cellas, mas o corredor
que lhes dá entrada é do lado opposto e communica com a escada que
vem á sala do capitulo e que desce pelo refeitório até a escada, onde está
a serventia, junto ao portai.
— Conheces bem a casa, não tem dúvida, o que tu não sabes é q'ue

na sala do capitulo se ouve tudo que se passa e diz nas cellas das novi-
ças. . .

— Sei que não se ouve nada. A escada vem á galeria onde está a porta
da sala, mas não é necessário atravessar o capitulo para entrar no refei-
tório.

— Era o que eu dizia, disse um para o outro.


E logo em seguida:
— Dinheiro não temos, mas, se queres, bebe uma gôtta de vinho que
ha de dar-te forças para a jornada.
— Obrigado, senhores, mas não bebo.
João desceu a ribeira, torneou o mosteiro a distancia e foi parar ao
posto de seu irmão.
— Sei tudo; preparam os maldictos um assalto ao mosteiro.
— Soubeste-lhe os nomes ?

— Não; mas esperam hoje o morgado de Travanca.


— Querem o ouro da egreja ?

— Não; as das noviças.


cellas
—A maior riqueza, para um morgado rico . . .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Vae, João, traze e dispõe os nossos rapazes todos, que temos esta
noite caçada ás raposas. A que horas chega o morgado ?

— A' meia noite.


— Boa hora.
— Boa hora, para que, Pepe ?

— Não assustes, pequeno;


te á meia noite deixo o monte e vou para
as Escholas Geraes. Anda-me ligeiro, rapaz, e esse rebanho será teu.. .

E Pepe, com a mão na ilharga, apontava solennemente, ao irmão, o


caminho da cabana.
*

Sarah recebeu noticias de Deborah. Foi essa a sua única consolação


n'essa tarde.
Dizia-lhe sua irmã:
«Minha boa Sarah

«Matam a pobre Joanna as saudades que nos deixaste, e a mim, apesar


de ter sido causa da tua fuga. Em breve ter-me-has a teu lado, que a or-
dem do Desembargo não pode deixar de ser cumprida. Quatro ou cinco
dias mais, pois, como sabes, a viagem é muito demorada, e eu estarei a
teu lado, esperando que se resolvam os negócios de Pedro.
«A nossa Joanna fala muito em ti e nada pode conso!al-a da tua ausên-
cia. Pedro foi apresentado na Alcáçova, pelo padre Ignacio, de quem é

muito amigo. El-rei acolheu-o com todo o favor, e pensa mandal-o á Africa,
n'uma commissão de serviço muito honrosa e lucrativa. O tempo da sua
ausência será o que havemos de passar juntas.
«António Carneiro protege francamente o nosso Pedro, e, por motivos
que tu desconheces, mas que um dia te explicarei, condemna-o a casar
com uma de nós 1 Não sei por que, escolheu-me. Pedro afiançou-me . .

que era esse o teu desejo.


«Não imaginas quanto Pedro tem sido caricioso para mim Apesar ! do
desgosto que resulta da tua ausência, julgo-me tão feliz ! . . . Perdôas-me
esse desabafo, sim, minha boa Sarah? Para que hei de estar a fingir!...
«Já não choro tanto. . . pelo contrário, muitas vezes me sorrio com a
velha Joanna, que está muito orgulhosa por ver o filho tão requestado na
corte.
«Diz-se já que Pedro fará parte da primeira embaixada que ha de ir

a Roma... Está um fidalgo, mas sempre bom, delicado e generoso...


«Fala sempre de ti com tanto enthusiasmo !. . . Até me diz que te deve
a sua felicidade !

«Minha querida Sarah, eu nunca te falei do meu segredo? Perdòas-me,.


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 2o5

sim ? Eu amo muito o nosso Pedro ! Amei-o, sempre, e, se o não disse


mais cedo, loi porque imaginei que tu o amavas como eu Pedro fala-me
!

muitas vezes em o nosso casamento, e affirma que tu, mui brevemente te


apaixonarás por algum cavaileiro dos mais fidalgos da corte, em que am-
bas seremos apresentadas. Deus o permitta, Sarah ! Apesar de tudo que
me dizem, eu só descançarei quando tiver a certeza de que escolheste
noivo, tão bom e tão leal como o nosso Pedro.
«Ahi não te será fácil encontral-o, que sempre estás num mosteiro, mas
em tu vindo para Lisboa, como és formosa e meiga, facilmente serás amada
por qualquer brigão honrado e alegre.
«Lisboa está socegada, a peste vae a desappareccr, e o ódio entre chris-
tãos e judeus, se não pode acabar, vae pelo menos mais esmorecido.
«Os nossos serões deslizam apenas perturbados pela idéa de que Joanna
ficará só com seu filho até que chegue o dia do nosso casamento. Porque
está definitivamente ajustado esse contrato... N'esse dia, sahiremos as duas
de Lorvão, celebraremos os esponsaes e viremos a Lisboa passar alguns
dias, até que Pedro parta para Africa.
«Quanto me custa pensar n'essa separação, minha Sarah! Tanto! que
toda a minha felicidade se turva de nuvens negras, quando me lembro que
hei de passar muito tempo não escutando as palavras apaixonadas de
Pedro.
«O padre Ignacio diz que elle ha de ir longe... Até lhe prometteu que,
se elle defender algumas pretensões do senhor D. Manuel, em Roma,
terá melhor resultado que Pedro Correia, que é um hábil embaixador.
«Minha querida Sarah, temos sido muito infelizes, não é assim? Mas
quem sabe? Talvez que o Céo nos proteja e ainda tenhamos um futuro muito
alegre ? . . .

«Pedro é homem para alcançar essa victoria. Para ambas, nota bem
isto, para ambas. Se visses como elle fala de ti, com todo o amor d'um
bom irmão! Sarah, Sarah, já me não fazes ciúmes!. .. E que eu cheguei
a convencer-me de que tu, se o amaste, terás muitos rapazes que te quei-

ram, e que eu, se o perdesse, não encontraria quem o excedesse, ou pelo


menos o egualasse! . . .

«Quanto desejava ter noticias desse mosteiro! Muitas rezas, muitas


penitencias e muita ordem, não é verdade? Essas boas senhoras, que te
rodeiam, tão puras, tão religiosas, é possível que te aconselhem a odiar
o mundo e não a pensar no amor!
«Cuidado com os excessos, minha querida Sarah; não te deixes domi-
nar pela austeridade da regra, e não te beatifiques, esquecendo a familia
e teu noivo, que o has de ter —o mais elegante e arrojado.
MYSTKRIOS DA INQUISIÇÃO. — VOU. I. FOI.. 20.
! . ! .

2o5 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

«Nós, eu e Pedro, devemos partir n'um d'estes dias, acompanhados


d'um agente de Ayres da Silva. Vou emfim vêr-te, que me parece que ha
já um anno que te não vejo

«Pedro leva recommendação especial para um bello mancebo dos arre-


dores de Lorvão, de quem muito se fala aqui, por ser tilho do judeu pros-
cripto Jacob Adibe, gue acaba de prestar relevantes serviços em Africa
ao duque de Bragança, D. Jayme. Pedro leva ordem de o trazer a Setú-
bal, onde será apresentado a el-rei, que deseja recompensar no filho a leal-

dade do pae.
«Adeus, Sarah, até breve. Ahi vae um beijo da tua

Deborah.v

Sarah leu esta missiva de sua irmã, e ficou muito tempo com ella sobre
os joelhos, a pensar. . .

— Jd não tem ciúmes! disse Sarah. Coisa extraordinária, tenho eu!


Não ha dúvida; Pedro a-ma-a e vae recebel-a... Posso contar com o
seu amor de irmão. Assim devia ser! Se ella não vê senão Pedro! E tem
razão. Ninguém ha tão nobre, tão fidalgo, tão bom! Jacob parece-se um
pouco!. Parece-se mesmo muito. Não tem como Pedro a innocencia e
. .

a castidade moral, pelo menos, que fez de Pedro um homem de familia,

de juizo, de previdência... Jacob c um homem do mundo, que começa


pelo fim. Pedro vae a subir, Jacob começa a descer.
. . . .

Tinham approximadamente a mesma edade, egual caracter, mas Jacob


começara a viver mais cedo. . . Chegava a ella na volta da jornada... Pe-
dro fugira-lhe ao partir... Mas havia muitos pontos de contacto entre Pedro
e Jacob, apenas com a difterença de que Pedro era um bravo no cumpri-
mento d'um dever, e Jacob nas suas apaixonadas devoções. Pedro amara
Deborah, porque lhe experimentara o coração, Jacob adivinhal-a-hia. .

Pedro era um solitário, um triste; Jacob um arrebatado, um poeta.


Um era sublime de dedicação ; o outro um estouvado generoso.
Pedro começara por encontrar Deborah no começo das suas esperan-
ças; Jacob encontrara Sarah no fim das suas desillusões. .

Pedro amara Deborah pela sua bondade ; Jacob impressionara-se com


os olhos de Sarah.
E Sarah continuou pensando muito nos dois únicos homens que en-
contrara no alvorecer da sua mocidade — um a quem requestara amor e

de quem recebera amizade, outro a quem pedira amizade e que lhe offe-
recia amor!
Sua irmã taes palavras ouvira a Pedro, que já não tinha ciúmes, e
ella, conhecendo a felicidade de sua irmã, ainda lhe tinha inveja
. . . . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 207

Bem dissera Ignacio —a amizade resigna-se,'o amor resiste.

E a prova?
A prova era que Sarah, meditando muito sobre as palavras de sua
irmã, a si própria perguntou :

— Se ao ver Deborah, Jacob a preferisse ?. .

E Sarah levantando-se resoluta:


— Que Deborah fosse sua irmã. .

E' assim o coração humano, e é na mocidade que elle mostra mais


nitidamente as suas dedicações e os seus egoismos.
A pobre noviça sentia-se grata para com .Jacob. .

A gratidão é o principio do amor?. . .

Quando, pois, Sarah respondeu a sua irmã, começou assim :

— «Conheço Jacob Adibe, é um corajoso e leal mancebo, que poz o


seu braço ao serviço da minha causa. Sem me conhecer, desaffrontou-me...
sem me vêr, vigia-mc ; sem m'o dizer, ama-me. . .

«Dizes-me quem elle c ; já o conhecia, porque o tinha adivinhado...


Não se approxima nem me espreita ; espera o meu olhar na luz duma
vela, e o meu
n'um ramo doliveira
sorriso . .

oNão comprehendes tudo isto que eu te digo, minha irmã? Pois vem,
e conhecerás este m\'sterio.
«Como num conto de fadas, eu tenho dois talismans, duas varinhas
magicas com que posso chamar em meu soccorro. . .»

E Sarah deteve-se. .

Para que havia de participar a sua irmã talvez um gracejo de galan-


teador de mosteiro ? . .

Quem era Jacob ? um adónis expulso pelas monjas, por causa d"uma
noviça sem protecção ? . .

Uma aventura mais dum cavalleiro feliz... Chamava-lhe soccorro, e

talvez fosse uma ameaça.


E depois talvez uma vingança... Philippa repellira-o, e elle buscava
o desforço amando outra mulher. Quem lhe offerecera protecção ? O pas-
tor. Se tudo isso fosse um ardil ?. .

Sarah ficou perplexa. Era verdade não lhe ter ainda occorrido seme-
lhante idca!... Por que lhe inspirava tanta confiança Jacob, a ella, que
tão pouco o conhecia ?

Pois, era natural tanta dedicação por uma rapariga que elle vira apenas
num momento?
Não seria aquelle mosteiro um reguengo por onde aqueile caçador
andava na pista de caça nova ?

(^omo era fraco o coração das mulheres! Bastara um acto de dedica-


. . . .

2o8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

cão, talvez vulgar n'aquelles paladinos affeitos a brigas e contendas, para


que no coração d'um homem habituado a con-
ella se julgasse privilegiada

menos difticeis! Creancice!


quistas mais ou
Que perigos podiam ameaçal-a? Talvez o morgado de Travanca...
mas esse nem a corte lhe fizera, e não seria tão imprudente que tentasse
uma violência contra ella, que estava sob a tutela da justiça. . .

Aquillo, evidentemente, era um estratagema para lhe inspirar gratidão,


um pretexto para manter relações e influencia romanescas.
Era um plano muito hábil, que devia impressionar-lhe a imaginação.
Afinal elle fazia parte d'aquelle meio e podia ser tão bom como os ou-
tros ...

Sarah sentia um profundo desgosto ao fazer todas estas supposições.


Agradava-lhe muito mais a primeira impressão. . . Por que não havia ella

de ter mais encantos que as outras ?

Farto de mulheres levianas, era muito possível que Jacob, talvez mal
educado, mas fidalgo nos intentos, notasse a difterença profunda entre Sa-
rah e as suas companheiras. . . Talvez que até, conhecendo os perigos a

que ella estava exposta, a quizesse salvar de qualquer trama urdida pela
abbadessa e por sua filha. .

Receando uma vingança, era possível que aquellas mulheres, não po-

dendo exercel-a contra Jacob, a planeassem contra ella. . . Que afinal era

valente, impetuoso, e estas qualidades não se compadecem com a h\'po-


crisia e a traição!... O que lhe dissera o pastor, tinha o cunho da since-
ridade e do desinteresse. .

Ao principio da noite, Sarah conservava-se abysmada n'estas reflexões,

quando entrou na cella Philippa d'Eça, que vinha com ar solenne.


— Sarah, disse a filha da abbadessa, venho prevenir-te. .

— Senhora. .

— Venho prevenir-te de que a senhora abbadessa foi avisada, por de-


nuncia anonyma, de que está planeada uma fuga, ou um rapto para esta
noite. . . Tomei as minhas precauções. As condições em que aqui te achas
são diíTerentes d'aquellas em que se acham as tuas companheiras. Estás
depositada á ordem do Desembargo ... Se te concedi por homenagem todo
o mosteiro foi por fazer justiça á tua educação e á tua lealdade. Tenho o
direito de te isolar e prender. Não o farei. . . . .

—Mas, senhora, não sei a que vos estaes referindo. Creio que ninguém
poderá attribuir-me semelhante propósito. Juro-vos, senhora, que estou in-

nocente.
— Não duvido; o meu dever, porém, é prevenir-te de que se mallo-
graria qualquer tentativa, e de que a punição te seria muito incómmoda.
: . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 209.

— Dizei á senhora abbadessa que pode confiar em mim e procurar


n'outra cella a causa dos seus receios.
— Oxalá que assim seja.

E Philippa sem enviar á noviça um olhar de despedida.


saiiiu,

A noite adeantava-se, e o morgado de Travanca apeava-se á porta da


venda do Judeu, onde se achavam ainda os dois ciganos.
—Zampa, chamou elle, sem entrar.
— Senhor morgado, cá estamos para receber as suas ordens.
— São bem poucas bem fáceis de cumprir. e .

— Fáceis Já rondámos o mosteiro, estudámos


? a disposição interior,

c não achámos nada fácil chegar ás cellas das noviças, sem risco de ser-

mos descobertos. Pelo lado da cerca, ha pastores e luar — dois contra-


tempos.
— Enganas-te, pateta. E' exactamente isso o necessário. Ninguém te falou

em entrar no mosteiro, nem em escalar a cerca. A nossa obra é mais in-


teressante e menos perigosa. Não vamos praticar um crime, mas um acto
de justiça. Não venho á caça d'uma noviça, mas d'um judeu.
— E é valente ?

— Que importa?te Os meus cães não são ciganos; teem brial, capa-
cete e lança. .

— Não percebo, senhor morgado. . .

— Nem necessário. Basta que faças,


é e o teu companheiro, o que vou
indicar. A abbadessa foi prevenida de que o mosteiro será escalado esta
noite. Ella tomará as providencias que lhe aprouver... Já as tomou
provavelmente. . . Vocês, pouco depois da meia noite, rondem o mosteiro, e
se virem alguns homens a escalar o muro, atirem-sc a elles, e façam alarme
com as businas. O resto é commigo.
— Tenho entendido, senhor morgado.
— Não me chames morgado.
— Então quem meu amo sois, ?

— Jacob Adibe.
— Zampa ajudou o morgado a montar, e, quando o cavalleiro já ia dis-
tante, gritou da porta da venda, de forma que fosse ouvido por tod'os os

bebedores
— Até á vista, senhor Jacob, até á vista !

— Jacob de palestra com os ciganos de Travanca ! ? disse um dos fre-

guezes para o dono da casa.


— Não faz mal, disse o Judeu, enchendo um cântaro, aquelle só entra
em empresas d'amor. Faz elle muito bem! Gosa emquanto é novo. .

Zampa sahiu com o seu companheiro metteram-se á ribeira. ; . .


. . . . . ;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ainda nõo tinham chegado ao muro da cerca, pararam.


— Não ouves disse Zampa. ?

— Espera parece gente darmas,


;
que vae pela outra margem, a es-

conder-se no juncal.
Zampa, escondendo o corpo dos raios do luar, espreitou attenta-
mente:
— Não ha dúvida, disse elle, vi luzir uma lança. .

— Teremos o caldo entornado ?

— Qual o morgado falou-me


? ! em medidas tomadas pela abbadessa.
Deve ser isso. .

— Medidas contra nós ?

— Não contra outros.


;

— Quaes outros ?

— Não sei. Desconfio de que fingimos de feiticeiros e somos, afinal,

feitiços.

— Teremos dança rija, Zampa?


— Isso sim ! pouco trabalho e boa paga. Aquillo é que é um amo. Não
arriscamos a pelle, e ainda nos mettem na ordem de Christo.
— Cada vez percebo menos. .

— Eu também não percebo muito ; mas é como se percebesse . . . Va-


mos lá para deante.
— E as facas ?

— Devem estar dormir, para não a fazerem barulho.


— E se houver uma surpresa ?

— Não sabes que ellas teem um somno muito leve'. .

E os dois bandidos coseram-se com o muro, e foram-se escoando até


a oliveira, que já conhecemos.
— Quem vem lá ? gritou-lhes uma voz. .

— Quem vem la ! Nós é que devemos perguntar : quem está ahi atra-
vessado no caminho, a dormir como um cochino ?

— Estou no meu trabalho ;


guardo as ovelhas que andam no monte
não as vedes, nem as sentis ?

— Ah ! o pastor
sois ?

— Para vos meu servir, fidalgo.


— Viste passar alguém n'esta direcção, ha pouco tempo?
— Vi, sim ;
pelo garbo e fidalguia pareceu-me o senhor morgado de
Travanca.
— Tu conheces o senhor morgado ?

— Se conheço E' um dos meus melhores amigos. Ainda hoje me deu


!

um bom portiiguey d"ouro para eu vigiar a cerca do convento.


sPIriJi-inhfl^l -j Si*!

Zampa subiu com o auxilio de Pcpe

1 1/
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Então és dos nossos 1 nós também trabalhamos por conta do senhor


morgado. .

— Que me contam ? disse Pepe, levantando-se vagarosamente. Bem


vae ella, que seis olhos vêem mais que dois.
— E não haverá por aqui alguém que ande em trabalhos de emboscada ?

— Só se estiver dentro da cerca, mas não que entrasse por este lado.
— Seria bom observar. .

— Podeis subir e ver. A oliveira tem degraus como o throno, mas so-
be-se melhor por ella.

Zampa subiu com o auxilio de Pepe. A cerca estava inundada de luar ;

só o horto desapparecia na escuridão.


Pepe afastou-se dos dois ciganos, emquanto Zampa observava a cerca.
— Com a conversa esqueci-me das ovelhas, que já lá vão monte acima.
E' necessário chamal-as.
E, mettendo 'dois dedos na bòcca, soltou um assobio estridulo, que se
repetiu prolongadamente na serra.
Os cães ladraram com violência, e os quatro ou cinco irmãos mais
velhos de Pepe, mocetões armados de bons cajados, acorreram ao cha-
mamento.
— Traição ? disse Zampa, e tanto elle como o seu companheiro fizeram
logo brilhar as laminas das suas facas.
— Qual traição, nem meia traição, disse Pepe, tudo gente nossa. isto é
— Mentes.
— Quer minta quer não, deixem-se de ameaças. Larguem as facas se
querem entender- se comnosco.

Vaes pagar- m"a, disse Zampa, e, pondo o mantéo no braço esquerdo,
em guisa de escudo, formou o pulo para Pepe.
Não teve tempo ; o cajado de Pepe girou no espaço numa evolução
rápida, que fez gemer o ar, e apanhando o braço do cigano, fez-lhe voar
a faca a grande distancia. Zampa soltou um grito e cahiu, ou escorregou
pelo muro, com a força da dòr.
— Entrego-me, disse o outro cigano, arremessando a navalha para
dentro da cerca.
— O que querem de nós?
— Eu direi o que queremos, disse o capitão d"um troço de lanças, que
acabava de chegar ao logar do conílicto.
— Em nome da ki, estão presos. .

Os dois ciganos reanimaram-se ao verem o soccorro que lhes chegava,


e Pepe e seus irmãos julgaram, ao verem a gente d'armas, que o seu es-
forço ia ser secundado pela força pública.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Pepc, comtudo, não desejando ficar separado de Jacob, como era o


mais ligeiro e pequeno, aproveitou-se da confusão e desappareceu numa
volta do muro da cerca, sem que ninguém desse por falta delle.
Desarmados os desordeiros, e mettidos entre as lanças, novo troço de
guardas de segurança, acompanhados de servos com archotes, veiu jun-
tar-se ao grupo. Entre elles vinha Jacob Adibe, e á frente o morgado com

a sua ridícula arrogância.


— Capitão, disse o morgado, juntae aos vossos captivos mais este, au-

ctor e principal responsável dos assaltos planeados. Como vedes, o rapto


estava excellentemente preparado. O senhor Jacob Adibe guardava a en-
trada que communica com a galeria das noviças, emquanto os seus cúm-
plices preparavam a escalada da cerca. Se não fossem as denuncias, teriam
realisado os seus damnados intentos. Vede, senhor capitão, a luz que brilha
n'aquella fresta — é a da cella de Sarah. Querem-no mais claro? Perfeito
accôrdo entre a estrada e o convento. Felizmente chegámos todos a tempo.
Este fidalgo, judeu contumaz, apesar do baptismo a que fingiu submet-
ter-se, não podendo frequentar o mosteiro, de que foi expulso pelo seu
feitio brigão e insolente, resolveu raptar a pequena Sarah. Sahiu-lhe o gado
mosqueiro, e, ainda bem, que, se elle triumphasse, graves responsabilida-
des impendiam sobre a senhora abbadessa. .

— Senhor capitão, disse Jacob, esse bandido é o auctor duma traição


villã em que me vejo colhido. Ordenae-lhe que se cale, ou eu falto-vos ao
respeito e mato-o, como se deve fazer ao maior dos miseráveis.
— Assim será, disse o capitão, mas a verdade é que tinheis gente em-
boscada para um assalto, e gente do vosso agrado e confiança, e que
aquelle signal —e apontava para a cella de Sarah — dcHuncia accôrdo per-
feito entre vós e a noviça.
— Além de que, capitão, como sabeis, ainda ha pouco Jacob esteve
na venda do Judeu procurando corromper estes homens, e apontou para
os ciganos, que eu encarregara, de evitar o crime.
— Mentes, perro sabujo, não fui á venda do Judeu, nem falei a estes

bandidos que alliciaste para a armadilha em que se deixou cahir a minha


lealdade.
— Negal-o-heis se quizerdes, disse o capitão. A outrem, que não a
mim, deveis dar contas dos vossos actos. E' certo, porém, que todos os
freguezes da venda aftirmam que alli estivestes . . . pois vos viram e ouvi-
ram, e até commentaram a vossa presença e esquivança. .

— Pois, seja assim, disse Jacob. Estou ás vossas ordens, senhor capitão.
Peço-vos, todavia, me isoleis d'esse homem, a quem, só por deferência a
vós e aos vossos, eu dou este nome.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Senhor morgado, disse o capitão, a vossa missão está finda ; os cri

minosos estão sob a minha guarda. Cumpre-me guardal-os e fazel-os res-

peitar. . .

A guarda poz-se em movimento, e o morgado entrou no mosteiro, onde


as monjas estavam despertas e alvoroçadas.
— Contae-nos o que se passou, disse Philippa, mal o viu.
— Realisaram-se as minhas as vossas prophecias, e senhora; Jacob
Adibe tinha a sua gente a postos, e, se não houvéssemos procedido com
tanta energia e diligencia, a esta hora um grande escândalo "teria prejudi-
cado a fama do mosteiro.
— Sarah, disse Philippa, dirigindo-se á noviça, insistes em affirmar que
és extranha a tão audaciosa cilada ?

— Juro-o, senhora ; e mais vos juro que estou convencida de que Jacob
'isava a defender-me de quem me ameaçara na vossa presença, e não a
perseguir-me ou roubar-me.
— São graves as insinuações que fazes. Desculpo ou explico a tua in-

gratidão para o senhor morgado, que tão solícito foi em defender-te, e para
D. Pedro, que tão prompto auxilio nos prestou; mas não tolero que assim
calumnies teus bemfeitores.
— Não me interrogueis então, senhora. Não posso, entre os cobardes
que me insultam e os fidalgos que me desallVontam, ser por aquelles e
accusar estes.
— Retira-te, disse Philippa com voz soberana, farei superiormente as
communicações relativas ao vosso irregular procedimento.
— F^azei o que vos aprouver, senhora, que só muito instigada direi
quanto tenho visto em Lorvão... Muito agradará ao Desembargo de el-

rei conhecer pormenores da casa santa e honesta em que guarda e zela a

honra das orphãs, que devia proteger. Quem é fidalga por bastardia, monja
por leviandade e abbadessa por corrupção, faz o que vós fazeis — expulsa
os amantes de que se abhorrece, insulta a honestidade de que se divorciou,
e defendé-se com os rufiões que a exploram. Jacob é incapaz de uma vil-

lania. . . Já não digo tanto de uma fraqueza de que se arrepende e enver-


gonha. E' por isso que está innocente do aleive de que o accusam, e que
tanto se arrepende de vos ter amado, ou appetecido.
— Tens a linguagem de uma barregã, embora com o aspecto de uma
vestal.
— E' influencia do vosso exemplo e da vossa educação, senhora. "\'ir-

tudes com que aqui se entra, aqui se perdem. V^icia-nos até o ar que res-
piramos. Hei de contar a Pedro Soares, que é valido de el-rei, como n'esta
casa se adora a Deus com o ritual das saturnaes pagãs, e como numa
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. 27.
! . . ! ;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

casa destinada á moral e á conversão se educam as mulheres para o pros-


tíbulo, e enxameiam os devassos e os histriões. Nunca ouvistes tanto da
bôcca de uma
rapariga da minha edade, não é assim ? E' que julgaes agora,
e sempre julgastes, que só o vicio e o descaro davam energia e coragem
é que nunca tivestes pae que vos reconhecesse e educasse, nem mãe que
vos fizesse honesta e boa.
— Senhora D. Philippa, disse emfim o morgado, que tudo ouvira boqui-
aberto, mal vae o vosso prestigio e mando, se vos deixaes injuriar por uma
creança. .

— Prescindo dos vossos conselhos, senhor morgado. Isto é negocio


entre mulheres; a vossa intervenção molesta-me, e não me soccorre. . .

Philippa, ao contrario do que Sarah esperava, não se mostrava irri-

tada, e parecia apenas meditar. . .

— Dizei-me, senhora, como quereis que intervenha, em vosso beneficio


e defesa. . .

— Retirando-vos, senhor morgado, porque preciso de ficar a sós com


esta noviça.
— Se vos apraz.
isso . .

— Quereis que vol-o repita ?

— Está bem; eu me retiro; lembrae-vos, porém, do vosso nome e fu-

turo . .

— Pois é no meu futuro que estou pensando. Adeus, senhor morgado,


disse Philippa, indicando-lhe a porta.
Ficaram sós a filha da abbadessa e a noviça Sarah.
Houve um momento de silencio. Interrompeu-o Philippa, dirigindo-se
a Sarah, sem irritação, até com doce familiaridade.
Sarah não podia explicar o que via.

Reconhecia já que fora imprudente. Não pudera conter-se, mas fizera

mal. Indignara-a a certeza de que Philippa se associara com o morgado


na cilada de que Jacob fora victima.
Aquella mulher, que todas as monjas respeitavam, ou, melhor, temiam,
ouvira-lhe os insultos, e, se ao principio corara de raiva, depois se mos-
trava plácida e conciliadora.
Que transformação!
Sarah soprara um vendaval e surgira-lhe a bonança ! Arriscara-se ao
insulto e ao castigo, e annunciava-se-lhe o esquecimento e o perdão! Que
aquella mulher não tivesse pudor, comprehendia-se, mas que não tivesse
brio ?

Obrio não tem sexo, e ás vezes até não tem moral. . . Mas aquella
mulher não tinha nem uma nem outra coisa
. . 5

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 21

— Disseste-me, Sarah, que Pedro Soares era valido del-rei ?

— Disse, sim.
— Eile frequenta a Alcáçova, conversa com D. Manuel, ouve-lhe as
suas confidencias, dá-lhe os seus conselhos ?

— Sem dúvida ...


— E Pedro Soares é ? . .

— Meu tutor, amigo e irmão.


—E tu, Sarah, tens inHuencia no animo de Pedro ?

—A que resulta da minha estima. .

— Bem ; tudo te perdoo, Sarah, se nada contares a Pedro do que se


passa em Lorvão, e se me ajudares a conseguir de Pedro que traga el-rei

a este mosteiro, ou que receba na Alcáçova a filha da abbadessa de Lor-


vão.
— A que titulo, senhora ?

— A que titulo? olha bem para mim.


Creança ! Não me achas ele- . .

gante e formosa ! Não tenho eu encantos que apaixonem um príncipe ?


— Senhora D. Philippa de Eça, lembro-vos o que vos disse. Castigae-me
a injuria, mas não me injurieis com as vossas confidencias.
— Enganas-te — não A maneira como me falaste,
te quero castigar.
prova-me que és uma mulher capaz de me comprehender. Julgas, por

acaso, que eu amo os homens. Que illusão Os que faço cahir a meus pés ?

servem-me de degrau. Eu não quero reclinar-me nos braços dos amantes;


quero subir por elles, até me apoderar do que mais alto está, mais rico é,
mais poder tem !. . . Hei de ser abbadessa, mas antes d"isso, emquanto sou
nova e formosa, quero a influencia histórica das mancebas, que semeavam
de príncipes bastardos, e até de herdeiros presumptivos, os degraus do
throno portuguez. Quero que a cogula preta, que envergo, chegue a valer
. .

tanto como um manto de rainha Monja, ao serviço de Deus, ou mulher, !

ao serviço do rei! Já sou esposa do Rei dos Judeus, por que não serei
amante do rei dos chrisíãos-novos ?. . . Na galeria das abbadessas de Lor-
vão ha fidalgas de raça, princezas e infantas, beatas e santas... Querei
excedel-as, quero collaborar com el-rei no exercício do seu poder. . . Sarah,
ínsulta-me, se te apraz. Vejo que me conheces, mas faze mais : faze com
que, aos empurrões de Pedro, ou nos braços d"elle, eu suba os degraus
do throno real, ou que el-rei venha orar de joelhos no meu altar ! . . .

Sarah, que se levantara, ouvindo tal confidencia, foi recuando, recuando,


sem dizer uma só palavra, até quasi desapparecer na porta da grande
cella.

— Ouve-mc, Sarah, não fujas. Deves conhecer bastante o mundo, para


que não extranhcs o que vou dizer-te. Sou pouco mais velha que tu, mas
2i6 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

conheço o mundo, apesar de parecer afastada d'elle. A belleza é um the-


souro que se perde nas formalidades da moral. Na mulher ha virtudes m-il
vezes superiores á sua castidade. Tens visto os génios enramados de lou-
ros, mas de laranjeira nunca. Eu não ambiciono a parte do Céo destinada

aos innocentes, mas a outra onde o engenho tem o seu Onde podes
altar.

imaginar, Sarah, que são recebidos os homens de talento? No inferno?


por Deus, que o Céo seria então, sobre injusto. . . insupportavel. No Céo,

junto das creanças, das virgens e dos contrictos? Quem havia alli de com-
prehendel-os e amal-os ? . . . Crê, Sarah, ha no mundo bugigangas que só
valem aos olhos dos idiotas. Quando a natureza fez uma mulher bella,
impoz-lhe o dever de utilisar essa qualidade em proveito d'uma causa,

d'uma idéa, d'uma obra. A formosura equivale a um par de azas vigo-


rosas. Quem as tem, deve voar. Se até os mochos, que se arrastam, dão
os seus voos á roda da luz ! . . . Sabes d'onde vem a minha superioridade
e o meu dominio ? Julgas que da minha vontade ou dos meus talentos ?

Não ; é da frescura da minha pelle e do fulgor dos meus olhos. Comecei


pelos cortezãos, chegarei aos príncipes, e não esquecerei os pontífices. O
habito faz-me a ultima e a primeira entre as mulheres. Uma mundana
religiosa está em risco de ser canonisada. Vê a galeria do Céo ! . . . A victo-
ria não está no peccado, mas no arrependimento. Ora o arrependimento
só vem na velhice. Quando não ha resistências é fácil vencer.
. . E eu . .

hei de vencer, Sarah, o meu temperamento e a minha ambição, quando


não puder amar, ou fingir que amo. Julgas que os homens valem mais
que nós ? E's uma tonta. Toda a nossa força está na fraqueza que osten-

tamos. Um rei nos braços de uma mulher é utn homem como qualquer
outro; ás vezes até lhe é inferior. . . Bem presinto a tempestade que pode
erguer-se contra mim, e é por isso que me defendo. A'manhã, quando
vagar o logar de abbadessa, o reino votará contra mim, mas a Rota, mas
a corte de Roma defender-me-hão. Vencer sem luctar, fatiga menos. Sa-
rah, tu és formosa como eu, não sei se tanto ou se menos um pouco, em

todo caso d'outro género. A minha belleza esmaga, a tua prende. Os


meus olhos mandam, os teus supplicam; a tua audácia é levantada e no-
bre, a minha é impudica e chocarreira. Ora, o mundo não se compõe
apenas de homens viciosos ou sensuaes ; ha n'elle também os mysticos, os
apaixonados, os sonhadores. Em vez de nos combatermos, podemos asso-
ciar-nos. As nossas forças reunidas fariam o mosteiro invencível. Hei de
ter a meus pés o príncipe D. João, mas, antes d'isso, é indispensável que
ajoelhe el-rei D. Manuel. Isto é um sonho como outro qualquer, mas
pode chegar a ser uma realidade. . . Estás tão muda e immovel, que me
pareces assombrada ! E' que não sabes o que é um mosteiro. Infamam-n'o,
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Í17

é certo, mas é porque não o estudam. A natureza não se doma ;


quando
ella vive em liberdade, á luz do sol, na grande lucta do trabalho diário,
distrae-se, esquece-se; não tem rebates e appetites. Adormecem em pé os

homens que andam a cavar os campos, contentam-se com o leito conjugal


as mulheres que embalam os filhos e os amammentam. O seio da mater-
nidade não entretém olhares cubiçosos Desnudae o coUo da Virgem e !

lançae-lhe Jesus no regaço, e os homens respeital-a-hão. A belleza ociosa


é a belleza viciosa. Os mosteiros são viveiros; erraram-lhe o nome — vi-

veiros d'amores, mas viveiros occultos. E o amor, crê tu, Sarah, é noctí-
vago; vè melhor de noite, na sombra, a occultas. Ha homens que são como
os pavões, porque as fêmeas fazem ninho nos logares mais secretos. Desde
que se inventou o preceito da castidade, tornou-se indispensável o mos-
teiro para attender ás reclamações da natureza. A sociedade estúpida poz
entraves ao seu desenvolvimento. Emnome de Deus? Mente, que Deus
manda amar. Entre os seres da Creação, qual é o que se prende com as
regras que esterilisam n'uma vida inteira as suas formas e anceios ? De-
ves ter visto as flores?. . . Como nós as adoramos, e como ellas se amam
e multiplicam ! Ouves as aves ? Calcula que de segredos vão nos seus ni-

nhos, abençoados de Deus ! No fundo do mar, que de beijos e caricias,


velados pelas ondas!. Vamos, Sarah, se amas, ama, que o amor não é
. .

um sonho,mas um prazer. Queres o teu Jacob, pois entrega-te. E, en- . .

trando no mundo por esta porta, que é a mais sombria e discreta, coUo-
ca-te a meu lado, completa o arsenal com que combato, e eu juro-te que

reis, bispos, secretários, regedores de justiça, capitães, vigários, monges e

seculares formarão a nossa grande corte, já rica e fascinadora, mas que


pode tornar-se dominante e omnipotente!. . .

Philippa estava mais bella que nunca! A sua cabeça parecia duma leoa,

onde faiscava o olhar mais eloquente que as suas palavras.


Era eflectivamente a leoa de que fala a Historia e que encheu de pejo
os chronistas mais sisudos.
Adivinhava-se n'aquella phantasia e n'aquella ambição, podemos dizer,
até n'aquella impudência, a abbadessa que alguns annos mais tarde foi

presa por ordem de D. João III, na casa de um frade devasso, em Coim-


bra, em condições que a chronica vela, receosa de ser lida por geme ho-
nesta.

Era, n'aquelle discretear licencioso, a mesma abbadessa que, apesar


da fama que devia envergonhai- a, ganhou, com o favor do Papa, os seus
rePidimentos, o seu logar e a sua preponderância!
Se não logrou ver o príncipe D. João submettído aos seus encantos
de mulher, viu-o dobrar o joelho deante d'ella a um gesto do pontífice.
. . . . . : .

2i8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Sarah, graças á vivacidade com que Phiilippa lhe falava, não compre-
hendera todo o alcance das suas palavras. Parecia-lhe que estava ouvindo
uma possessa... Mas ia ouvindo-a... E depois quiz interrompel-a, mas
foi prevenida por uma sacristã que annunciava:
—A noviça Deborah, que a senhora abbadessa m.anda apresentar para
que lhe sejam indicados os seus aposentos.
— Deborah! disse Sarah, e lançou-se muito commovida nos braços de
sua irmã.
— Sarah, minha querida Sarah, perdòa-me a surpresa que te fiz. Ainda
não me esperavas, não é assim ?

— Escreveste-me, dizendo...
— Sim, mas essa carta só foi expedida de Lisboa, depois da minha
sabida... Emfim! eis-nos de novo juntas...
Deborah notou a presença de Philippa.
— Sarah, esta senhora é?. .

— D. Philippa d'Eça, que substitue a senhora abbadessa nos seus im-


pedimentos. .

— Oh! minha querida senhora, disse Deborah, e ia a lançarse nos

braços de Philippa. . .

Sarah, que viu este movimento, collocou-se entre ambas.


— Deborah, é contra a regra do mosteiro. .

Deborah recuou envergonhada.


— Desculpe, minha senhora. .

— Não, Deborah, a regra não contraria o vosso impulso. Vem a meus


braços, Deborah; minha filha, com a minha protecção
conta e amizade.
Deborah reanimou-se e avançou, mas Sarah deteve-a
— Não é a regra do mosteiro que se oppõe; é a regra do decoro.
Deborah não pode acceitar nem a vossa protecção, nem a vossa ami-

zade.
— Sarah, disse Deborah, em tom reprehensivo. .

— Não, minha irmã — sejquizeres morrer, dizeme, que eu própria te

darei o veneno mais violento; mas se não queres desmaiar o teu pudor,
nem macular a tua honestidade, não ouças essa mulher, nem d'ella te

approximes. E' o veneno mais subtil para matar a nossa honra.


— E Sarah, cingindo sua irmã pela cintura, a foi conduzindo pela ga-
leria que ia dar á sua cella.

Philippa ergueu-se arrebatadamente.


— Innocencias em Esperaremos o outomno. flor! . .

— Que quer dizer, Sarah? perguntou Deborah


isto entrando na cella.
— Nunca viste o inferno, minha irmã?
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 219

— Nem quero ver. .

— Pois então, disse Sarah, pondo a mão nos olhos de Deborah — fa-

ze-te cega, emquanto aqui estiveres.


— E visteo?
tu
— Sim, e ouvi quanto me aprouve,
vi e posso garantir-te que vivi n'es-

tes dias muitos annos de vida. Não me encaneceu o espirito, mas tenho
já na minha alma de creança os sulcos profundos da experiência e das des-
illusÕes. Ah! Não podes imaginar, minha irmã, o que se pensa, se diz e
. .

se faz! Se a industria religiosa só tem d'estas officinas, que vergonhosos


productos estão espalhados por esse mundo! Olha, minha Deborah, eu man-
tenho religioso o meu espirito, ainda cheio d'aquella uncção que veiu de
nossa boa e santa mãe; mas crê, se não visse Deus através da memoria e do
exemplo que ella nos legou, a flor das minhas crenças teria murchado no
meu coração ao bafo cálido e venenoso d'estes frades, d'estas monjas e
d'estes fieis, que enchem a egreja e o mosteiro. Se não fosse o templo das
nossas casas, o sacrário dos nossos corações, penso agora, que já vi isto

—o Christo não teria altar que o não estremecesse, prece que o não in-

famasse, culto que o não fizesse corar na cruz. Deborah, eu não sei o que
é ser mouro ou judeu, nem por que se accendem no mundo as fogueiras
contra os que communicam com o céo, por intermédio d"outros deuses,
porque, se para alguém ser christão é necessário ser cúmplice de tantas
vergonhas catholicas, eu prefiro o mouro na sua mesquita e o judeu na
sua synagoga a estes hypocritas sem pudor, n'estas tavolagens do vicio e
da fé. Jacob, o judeu, parece-me o melhor christão, e estes christãos, que o
perseguem, judeus de peor raça, os verdadeiros, os únicos, que crucifica-

ram Jesus. . . São estes os mesmos que ainda hoje o lanceiam com as suas
profanações e sacrilégios.
— Não me fales assim, Sarah. A lei de nossos pães. .

— Pois, dahi é que vem a sua santidade; é por ser d'elles, e não por
ser da Egreja, que faz do celibato a mancebia, do amor um vicio, da fé

uma arma e do culto uma armadilha I Deborah, interna-te na tua alma, e

cerra os olhos a este mundo, que c todo mais que uma fraqueza, uma ver-
gonha. A turba é ignara e os outros são maldosos.
— Cuidado Sarah, cuidado; paira sobre nós a trovoada da intolerân-
cia, e pode fulminar-te o raio da perseguição. Ainda tenho nos ouvidos o
crepitar das fogueiras, e vem de Hespanha, a todo o momento, o écho de
mil gemidos. Nas fogueiras de S. Domingos reflectiram-se os clarões da
inquisição hespanhola. . . Cuidado, Sarah, cuidado! Lembra-te de que
dorme no leito d'el-rci a filha de Fernando e Izabel... A peste está em
contacto comnosco... não a absorvamos... Sc a onda vem alta e im-
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

petuosa, baixemos a cabeça e defendamos o peito.. . Olha que eila pode


arrastar-nos. .

— Tens razão, Deborah, a tua vinda deu-me novos alentos. Defende-

rei o teu espirito das minhas desillusões, e tu defenderás a minha palavra


das revoltas mais imprudentes. Descança, pois, no meu leito as fadigas da
viagem, Deborah, que eu velarei por ti. Afinal nós todos que nos amamos,
somos deuses uns dos outros... Deita-te, dorme, e sonha... Emquanto
dormires, verás Pedro, e quando despertares, ver-me-has, a mim, que fi-
carei rezando. .

E as duas irmãs beijaram-se, fechando os olhos — Deborah, sobre a


branca almofada de Sarah, e ajoelhando Sarah diante da imagem do Na-
zareno. .
vil

A corte de D. Manuel

E^mquanto as ciuas irmãs se acompanham^e defendem, voemos de Lor-


vão á Alcáçova de IJsboa, onde o rei afortunado, com sua familia e a
sua corte, dispõe as luctas e as glorias que assignalaram o período áureo
da nossa vigorosa nacionalidade.
No opulento castello, que encimava o monte oriental, estava a Alcá-
çova, que fora durante muitos annos morada de nossos reis, e que affir-

mava, nas suas muralhas gigantes, e nos seus coruchéos polidos e multi-

cores, a arte vigorosa e exquisita de D. Diniz.


Quantas paginas de historia nacional poderiam ser escriptas com os
cchos d'aquelles baluartes e arcarias ?! AUi a mão de cada príncipe gravou
um nome e additou uma pedra, sem conseguir desmanchar o velho con-
torno que recordava a passagem dos povos que prepararam o advento e
o domínio da nossa gente. A velha architectura mourisca, que zombara
do tempo e do gosto artístico dos povos que dominaram e fugiram, lan-
çava ao espaço, como a sahir da formosa collina de Lisboa, o majestoso
•e phaniastico edifício, como se os nossos reis tivessem collocado o seu
throno magnificente onde poderiam dominar todos os degraus da velha
cidade !

Se não tivéssemos feita, garrida e opulentamente, pelo estylo encan-


tador de Júlio Castilho, a descripção do histórico castello, tal qual elle foi,

ou devia ter sido, no princípio do século xvi, daríamos azas íriadas á


nossa phantasia para deixar, nos quadros que temos colleccionado, um apa-
gado bosquejo de tanta riqueza e maravilha, ^"'ale, porém, em nosso logar,
o illustrado e elegante escriptor, que tão admiravelmente surprehendeu
Lisboa, na meninice .garrida da primeira cidade portugueza :

«Todo de cantaria, ostentava o edifício um desenho irregular, como


construído que tora sem plano, e aos poucos, conforme ás exigências da
vida dos successivos habitadores.
MYSTKKIOS IH INQIMSICÁO. — VOl.. I. fOL. ;-.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

«Das suas janellas estreitas e de ajimez, dos seus eirados como que sus-
pensos de tamanha altura, gosava-se, em cheio, a mais esplendida vista
do rio, cidade e campo. Em volta, uma cova funda, defendia de incursões
inimigas aquelles paredões históricos. A entrada, tal como ainda lá se vê,
estreita e tortuosa, aberta sobre uma atarracada porta de volta redonda,
ennegrecida dos invernos, conduzia, por uma ponte levadiça, a um pateo
interior, desafogado e espaçoso.
«Sobre o pateo, ou recebimento^ cahia em roda uma varanda de arcarias
cobertas, apoiadas em columnellos, á maneira de claustro. Para essa va-
randa, adornada de vasos e jarrões de Talavera, em que viçavam plantas
que iam enlaçar-se, aqui, além, na verga rendilhada, dava ingresso, a um
canto, uma escada de pedra, não larga, abafada de alcatifa da Pérsia, e
forrada de magníficos azulejos miidejar em relevo. A entrada da escada-
ria, em baixo, perfilavam-se as guardas em vistosos trajos que lembravam
o Oriente.
«Da mencionada varanda penetrava-se, por uma porta pequena, mas
muito trabalhada de laçarias, para os aposentos d"el-rei.

«O interior d'este interessantíssimo paço devia ser, e era sem dúvida,


primoroso nos enfeites. Aquellas salas e camarás, de ladrilho mourisco,
orladas de azulejos e relevados de cúpulas de cedro dourado e pintado,.
povoavam-se de toda a casta de mobílias marchetadas, ora nuas, ora pan-
nejadas de brocados de seda e ouro, e revestiam-se dos mais custosos pan-
nos de armar, que Arras e Córdova nos enviavam á porfia.»

Assim descreve, com tão lógica deducção, o auctor da Mocidade de


Gil Vicente, o velho palácio roqueiro do principio do século xvi.
N'elle vivia el-rei, durante alguns mezes do anno, com a rainha D. Ma-
ria, a fecunda princeza de Castella, filha dos reis catholicos, mais bondosa
que seus pães, mas como elles de invencíveis tendências ultra-religiosas
e intolerantes.

Havia apenas meia dúzia de annos que el-rei contrahira este segundo-
matrimonio, porque fora curta e ephemera a vida da rainha D. Jzabel. e
e já sobre as alcatifas da Alcáçova brincavam, além do príncipe D. João,
apenas com quatro annos de edade, as formosas infantas D. Izabel e D. Bea-
triz, que contavam três e dois annos, e os infantes, ainda de collo, D. Luiz
e D. F^ernando.
Como se vê, D. Manuel para em tudo ser afortunado, não só no mar
e na guerra ganhava notáveis victorias, não só na escolha dos seus capi-
tães, para a descoberta do mundo e governo das colónias, mostrava o fa-

vor da sorte, também na fecundidade da esposa, assegurava prodigamente


a successão do reino.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO •
223

As reaes miniaturas eram o enlevo da bondosa rainha, que, apesar


das tendências do seu espirito e dos conselhos da corte de Castella, tauto
com os hlhos entretinha cuidados e carinhos, que pouco tempo lhe so-
brava para inlluir nos negócios do Estado.
Dez filhos teve a pallida Maria, e a essa tarefa quasi annual, deveu a
pobre senhora estragos c desfallecimentos, que deram vaga muito transi-
tória no coração do monarcha. Não fructilicou sob o luxuoso tecto da
Alcáçova o exemplo desta princeza, porque a sua successora menos se
•occupou do amor e dos filhos, que da politica de Carlos V.
Havia no paço real, graças ao encanto mystico e humano ao mesmo
tempo, com que a joven rainha, que então^apenas contava vinte, ou vinte
e um annos, a todos tratava e acolhia, uma atmosphera saudável, que se-
ria um ideal de amoravel perfeição, se não fosse o exaggerado requinte

religioso e supersticioso d'aquella épocha..

Isto mesmo, porém, era por vezes attenuado pelo espirito aristocrático,
já brilhantemente litterario, que pairava n'aquelles salões onde os trovistas.

sob o commando de Gil Vicente, brilhavam mais que os lustres de pre-


ciosos metaes e pedrarias.
Até o grave secretario de Estado António Carneiro, que tão afanoso
andava sempre na resolução dos mais complicados negócios do reino, se
permittia, nos mais íntimos serões da rainha, recitar as suas voltas mais
felizes.

Andava a graça alhada á etiqueta de tal arte, que não teria as honras
de cortezão quem não alliasse á elegância da mesura o espirito lisonjeiro
da phrase.
Saudava-se alli um conceito e uma trova com o mesmo ardor com
que se acolhia a noticia d'um feito d armas em paizes longínquos.
Das filhas dos reis catholicos foi a rainha de Portugal D. Maria, a que
mais se retrahiu na inHucncia e mando, e mais se contentou em ser esposa
€ mãe.
I""oram rainhas todas as quatro filhas de Fernando \'1I. I). Izabel e
D. Maria, de Portugal, por D. Manuel; D. Joanna, a pobre louca, por Phi-
lippe. Formoso; e D. Catharina, que se sentou no throno de Inglaterra,
ao lado de (iuilherme Vlil.
A mais feliz foi, decerto, também esta, a cujos serões teremos de as-

sistir nos salões, da Alcáçova, porque muito se harmonisava o seu espirito


mystico e beato com as pacatas diversões da sua corte.
D. Manuel era homem brando, sem talento e sem iniciati\a, valendo-se,

por egoismo, dos bons conselhos dos seus secretários. Tinha vaidade na
sua fortuna e nos seus cabellos castanhos.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Quando António Carneiro, ou Jorge Garcez, lhe davam bom aviso e

sábio conselho, acreditava que, acceitando-os, os produzira, e provocava


então apreciações elogiosas dos entendidos que o rodeavam. Procedia com
as suas qualidades moraes, como com as outras. Ao espelho, admirando-
o azul dos olhos, todo se desvanecia, como se até o espelho lhe estivesse

dizendo que elle era um rei excepcional.


Porque era pequeno, endireitava-se muito, e estofava-se o mais possí-
vel para corrigir a magreza. E, apesar d'isso, afortunado sempre, tendo
estes defeitos próprios dos fátuos e presumidos, conseguia sempre pare-
cer elegante, e era até svmpathico, com a fronte levantada, espaçosa, ale-

gre, d'uma alegria um pouco jactanciosa. A sua illustração consistia, dizem


os chronistas mais lisonjeiros, em saber historia. . . Provavelmente o que
elle sabia, além da historia e da geographia do seu tempo, eram historias,
que fazem interessante a convefsação d"um fidalgo, mas njío bastam para
os créditos d'um príncipe. O que elle tinha a seu lado era um modesto
estadista, que, além de o ensinar a aproveitar-se da sua boa estrella, lhe

dizia cousas sábias e justas.


O que elle fez peor, e que o não acredita aos olhos mais benévolos^
foi o que resultou de suggestáo de mulheres, ou de intrigas, que só enve-
nenam o pensar e o sentir dos insignificantes.
Bastou que a sua D. Izabel, de envolta com um beijo, lhe pedisse os

iniquos firmans contra os judeus, para que elle logo parecesse um lacaio

de Fernando o Catholico. . .

Como a rainha D. Maria não ia tão longe no preço dos seus affagos,
logo se entregou á prudente direcção de António Carneiro.
Uma intriga mesquinha, sem provas, sem indícios, sem auctoridade,
bastou para que elle deixasse esmagado pela mais cruel ingratidão o grande

portuguez e servidor Duarte Pacheco.


Se não tivesse tido a felicidade de ser rei, que até a coroa lhe veiu por
um acaso, que não soube preparar nem prevenir, seria um excellente ho-

mem e um razoável marido. N'esse caso teria defendido a creação da?;


escholas, que honra o seu reinado, mas não teria neutralisado esse esforço

com a creação de tantos mosteiros de diversas ordens, que foram eschola


de ociosidade e perversão.

Todas as nossas glorias e façanhas na Africa e na Ásia succederam por


valentia, talento e. lealdade dos capitães portuguezes, e, emquanto os nossos
valentes e atilados cabos de guerra faziam maravilhas de táctica e coragem,
el-rei affagava, e preparava as ingratidões sobre o murmúrio das invejas.
Trocava a lhaneza pela lisonja, e fazia concessões aos appetites de
sua mulher para manter o favor com a corte de Castella.
:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 225

Estava longe de ser um soberano guerreiro como os seus antecesso-


res ; foi, por assim dizer, o primeiro rei de corte . . O que brilhara na
praia de Belém, na partida do (iama, foram as barbas do velho Restello
e as madeixas do príncipe.
Havia pouco, a partida de Albuquerque e de Tristão da Cunha, es-
treara el-rei dois fatos deslumbrantes, do velludo mais fino, e gastara, nos
seraphicos cabellos, dois frascos das melhores essências orientaes I

Acceitou o conselho para mandar traduzir os foraes para a leitura


nora, concertou os livros da Torre do Tombo e reformou as chronicas
antigas; mas, porque lhe indicaram que puzesse o lÀPVo da ? írmaria no
Real Archivo, logo, por sua conta, se lembrou de crear os Reis d'armas
e instituiu uma guarda de 24 cavalleiros, para o acompanhar a passeio
com clarins e charamelas. Apar d isto, por bondade ou fraqueza natu-
ral, transigia docilmente com pedidos ou conselhos.
Ao mesmo tempo que crcava muitos titulos de nobreza, entregava a
educação do príncipe, não a qualquer fidalgo da sua corte, mas ao mo-
desto Gonçalo Figueira, que, diz Francisco Andrada, nos Q/lnnacs de
1). João III, era tão honrado quanto plebeu, a ponto de não ter senão o
titulo de cidadão portuguez.
Para o ensino de leitura nomeou o padre Álvaro Rodrigues, e para a
escripta Martim Affonso, que era mestre de primeiras letras na cidade de
Lisboa.
F provável que esta escolha fosse feita pela rainha, que mais parti-
cularmente tombava a seu cargo a educação dos filhos.

Com o príncipe privavam então, bem despreoccupados da sua futura


missão nos negócios do reino, D. António d'Ataíde e D. Luiz da Sil-

veira,mas sempre sob o olhar vigilante da bondosa rainha, que presidia


d sua corte, mas sabia manter todo o luzimento e fidalguia.

O bispo Jeronymo Osório fala, com encanto, desses serões manueli-


nos. Sá de Miranda também allude a elles, (|uando escreve :

Os momos e serões de Portugal


tão famosos no mundo, onde são idos ?

La Clede, que nem sempre é em extremo lisonjeiro para D. Manuel,


encarece, nestes termos, os costumes e a galantaria da corte e dos se-
rões del-rei
'Sua corte era demasiado brilhante e galharda, sem que fosse impu-
dica. Os cavalleiros á porfia se tornaram pressurosos em agradarem as
damas; assim mesmo seus colloquios — delicados, enérgicos e galantes —
!

226 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

observavam todas as máximas do pudor: a deshonraria e a vergonha se-


guiam de perto todo aquelie que se olvidava do respeito devido ao decoro
do bello sexo. Aos jovens não era permittido accesso junto das donzellas,
sem que tivessem primeiro praticado algum acto de valor heróico nas
coisas da guerra: e este preceito os volvia sobre valorosos, emprehendedo-
res ; a honra de um bom acolhimento era então o mais nobre dos galar-
dões ; e por este, com primasia a todos os outros, os cavalleiros aftVonta-
vam os maiores perigos, até inauditas temeridades.»
Junte-se ao que diz La Clede o que se conhece do estimulo e acolhi-
mento que os poetas, como Gil Vicente, sempre encontravam na corte de
D. Manuel.
Comparem-se os serões da Alcáçova com os do mosteiro de Lorvão
Na corte figuravam damas, como a rainha D. Maria, que era mãe di-

versas vezes e d'isso não se cançava, de viuvas que buscavam, em novas


paixões e allianças, o esquecimento dos seus mortos, e de donzellas, que
só esperavam um feito guerreiro dos seus namorados para os attrahirem
com um sorriso.
E, em toda aquella gente, cavalleiros e donas, havia o mais profundo
e até vicioso espirito de beaterio Mas havia pudor I !

Que seria da immoralidade se não tivessem existido os mosteiros ?

Na Alcáçova havia os grandes e os pequenos serões.


Os mais agradáveis eram, por assim dizer, os quotidianos, e que se

passavam nos aposentos da rainha, sem illuminaçÕes especiaes e sem cor-

tejo. El-rei entrava só, e a rainha, ou ja lá estava, ou vinha depois acom-


panhada de sua dama camareira.
Eram dispensados nessas noites os porteiros das maças, os reis

d'armas, os arautos, os moços fidalgos, os passavantes e os ofticiaes-


móres.
Vinham damas, mas poucas, algumas das mais intimas, da famiiia dos
fidalgos mais adherentes aos negócios do paço. Appareciam até n'essas
noites pessoas notáveis, por seus talentos, mas ainda sem categoria para
a frequência official.

Eram esses os verdadeiros serões, porque el-rei os aproveitava, para


conversar ligeiramente sobre os negócios do reino e travar conhecimento
com gente que desejava ver e tratar.
Bastava que, além dos soberanos, estivessem o duque D. Jayme, os
secretários Carneiro e Garcez, o conde de Tarouca, o senhor de Villa Nova
de Portimão, e alguns dos moços fidalgos, alegres, e necessários pela varie-
dade de suas prendas.
Pedro d' Alcáçova, o futuro secretario de D. João III, também se habi-
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 227

tuara a essas palestras a que o levava seu pae, para lhe tornar conhecidos
os mais notáveis segredos do convivio com príncipes e cortezãos.
Menestréis havia sempre para os intervallos das trovas e da conversa-
ção, e que tangiam violões, e violas darco, com muito garbo e esmero.
Dispensava-se el-rei, para tão intimas diversões, de cingir a cabaça com
a sua coifa de rede d'ouro, nem punha a chamarra de setim sobre o pel-

lote de damasco.
A rainha D. Maria, como se estivesse apenas com as aias e damas, pre-
sidia ao serão trabalhando nos seus lavores, ou vigiando os lilhos, ou re-

zando. . .

Não havia danças, nem tinham, portanto, cabimento a moirisca e os


tordiaes; a musica era só para acompanhamento de trovas e romances.
Havia liberdade de jogar, senão o xadrez, que muito prendia a atten-
ção e arrefecia o convivio, pelo menos outros jogos, como aquelle de que
nos fala Garcia de Rezende, no dancioneiro.
D. Manuel era um homem do mundo, principalmente um homem do
mundo, affavel, doce, da mais fidalga galantaria. Jogava a lisonja e o epi-
gramma com muito garbo litterario; não sendo versado em sciencias, tinha
um raro dom assimilador, que o fazia audacioso no ataque das questões.
Como todos os reis, fala\a em tom dogmático, e aproveitava-sc do res-
peito dos seus vassallos para mudar de assumpto, quando era necessário
occultar ignorância.
António Carneiro conhecia-o bem, mas adquirira a grande arte de o
ensinar e corrigir, por forma que parecia apprender com elle, e aprovei-
tar-lhe as correcções.

D. Manuel conhecia os delicados processos do seu secretario, mas se


os agradecesse, inutilisava a bondade d"elles, e, por isso, se deixava na
illusão de que concebera as idéas do seu conselheiro.
Em paga, acceitava-lhe de bom grado a superioridade, e n'elle tinha a
máxima confiança. A habilidade d'el-rei consistia principalmente n"esta
delicadeza e neste tino.
Depois, D. Manuel olhava para a Historia, como olhava para os crys-
tallinos de Veneza, que lhe forravam o seu vestiário — alindava-se deante
d"elia, pagando bem aos chronistas da sua épocha. .

N'um dos serões da Alcáçova, a rainha D. Maria, sentada no seu logar


predilecto, tinha a seus pés as suas aias, que a ajudavam na bordadura dum
estandarte para o bergantim real — uma longa faixa branca onde, a pouco
e pouco, ia surgindo n'um escarlate vivissimo a cruz de Christo.
Os infantes a um lado do salão, sobre uma rica alcatifa da Pérsia, brinca-
vam alegremente, com longas tiras de brocado e grandes fiadas de coraes - . .
. .

2 28 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Junto duma pequena mesa, o príncipe D. João e D. Luiz da Silveira


follieavam coilecçóes de illuminuras, que representavam as caravelas mais
notáveis na exploração do mar indico.

Dois pagens imberbes, vestidos de seda, iam e vinham, acudindo aos


mil cuidados das creanças, e ás reclamações constantes da rainha, que,
a cada volta da sua agulha, lançava um olhar ao príncipe e aos infantes.
Não havia ainda muito tempo depois que entardecera, e n'estes apo-
sentos dava entrada, com passo brando, mãos no cinto, peito arcado,
D. Manuel, conversando com o seu secretario, mui próximo, em attitude

humilde, trazendo a cabeça mais vergada que o olhar. .

António Carneiro inventara este processo de dizer com submissão e

independência o que julgava necessário a seu amo e senhor.

A's vénias do salão respondeu el-rei, com um sorriso para a rainha, a

quem beijou a mão, sendo imitado por António Carneiro, e com um ges-
to de ã pontade para o movimento de respeito geral com que fora aco-
lhido.
— Sois então de parecer, meu caro António, que os negócios da hidia
Yoltam de novo a ser contingentes e embaraçosos?
— Sim, meu senhor, se é possível o embaraço á vossa vontade e re-

solução.
— Gosto de ti assim, sem medo, mas prevenido. Dize-me, então, Ço-
falla agita-se de novo ?

— Não, meu senhor, Çofalla está sob o domínio de Nuno^'az Pereira,


que tem por súbdito fie! o usurpador Ibrahim. .

— Mas Francisco Almeida não entregou o poder ao célebre Micante?


d'

— Assim mas Francisco Almeida arrependeu-se da preferencia.


foi; d'

O Micante sahiu-se peor que o Hocem, e teve de o depor.


— Elles lá se entendem, António. Tenho toda a confiança em Francisco
d' Almeida; elle metterá na ordem todos esses ridículos, em cujas cabe-
ças ponho coroas com a mesma facilidade com que poria o garrote, se os
temesse.
— Não são tão> fracos como os julgaes, senhor; se elles não molestam
o meu senhor e amo, que está longe de Quilôa, Çofalla e Calecut, mui-
tos bons portuguezes por lá os soffrem, perdendo sangue e vidas em con-
tinuadas refregas. Sabeis, senhor, que Calecut se revoltou outra vez?
— Pois ainda? Não lhes aproveitou a licção de Duarte Pacheco...
— E que licção Folgo de ouvir vossa alteza fazendo justiça ao bravo
!

capitão.
— Não lh"a nego, mas quizera que, pelo menos, tivesse dado menos
azo á male\olencia. A calumnia, meu caro António, é um achaque —e
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 229

OS achaques não atacam senão os coipos predispostos... Vede D. Fran-


cisco, como elle se mantém sem queixas, e sem embustes.
— Por agora, por agora. A guerra lhe virá com a inveja de seus
feitos.

— Que o seu dever.


resista, c
— Se Vossa Alteza o não auxiliar. . .

— Se eu tivera esse dever não lhe daria a graça de o nomear. Dizias,


então, que Calecut. . .

— Volve de novo as armas, depois de batida por D. Lourenço d'Al-


meida.
— Eu nunca mandei vencer, mas esmagar. . . Por que não os esmagou
D. Lourenço?. . .

— Para vencer, meu senhor. A guerra não se faz sempre com a guerra.
Muitas vezes tenho dicto a vossa alteza que o domínio da índia vae mais
assegurado com favor e geito, que com força e violência. E' muito grande
a índia, e para a fazer portugueza é mais necessário convencel-a, que es-
magal-a.
— Se o thesouro pudesse esperar. .

— O thesouro mais se queixa, que se consola, das pressas em sub-


metter povos e religiões. . . Ha quantos annos pagamos victorias, para
mais carecermos delias? A índia não é o reino. — Os mouros e índios
são tantos como as estrellas dos céos — se não podemos contal-os, como
havemos de destruil-os? — Aproveital-os é o segredo da conquista.
— Pois se te apraz, manda instrucções n'esse sentido ao viso-rei.
— Elle as tem do próprio conselho, até da própria experiência.
já e
— Arrependeu-se, então, de excessos mal pensados?
— Não mas de Gonçalo de Góes, um dos capitães da armada
d'elle,

de Lourenço d' Almeida, e que aprisionou no caminho de Cananor uma


embarcação mauritana, com salvo-conducto de Lourenço de Brito, gover-
nador da fortaleza. Gonçalo Góes enforcou toda a tripulação nas vergas
do seu navio. .

— E Lourenço Almeida? d'

— Accusou-o privou-o de e cargos e honrarias.


— E' pouco, disse el-rei... Lourenço d" Almeida parece mais culpado
que Gonçalo Góes...
— Era Gonçalo do parecer de vossa alteza, pondo o elíeito do terror
acima do respeito pelas convenções . . .

— Mas as instrucções não eram minhas. Devia cumprir as ordens do


viso-rei . . .

—A culpa foi remida, porque Gonçalo Góes se deixou morrer em


MYSTERIOS riA INQI!lS|i;ÃO. — \ OL. 1. FOL. 29.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

frente de cincoenta mil mouros e Índios, ao lado de cento e cincoenta


defensores da fortaleza de Lourenço de Brito!
— Então foi enxovalhada a bandeira nacional?
— Falam de victorias portuguezas as ultimas noticias, mas deve ser
ainda muito fraca a situação dos christãos.
— As violências de Gonçalo irritaram o rei de Cananor e os mouros
de Calecut, e o cerco deve estar fechado e angustioso. . . Ah, meu senhor,
não podeis calcular que de prodigios tem sido obrados por vossos intré-

pidos vassallos! Grande gloria deve ser a de um rei que preside a taes
actos de coragem e valentia!
— Mas, afinal, meu caro António, disse el-rei sentando-se n'um fofo
divan, olhando o espelho fronteiro, e emquanto sacudia vaidosamente os
cabellos castanhos, luzidios — afinal, perdem-se todas essas glorias e toda
essa forte gente, porque um louco suprou as cinzas do apagado ódio de
Mafoma!
— Já concordaes commigo, meu senhor?
— Concordo algumas vezes, concordaria e agora se tivesses acudido
a tempo com reforços a tão apertada situação.
— Podeis concordar comvosco, meu senhor, porque já concordastes
commigo na expedição da armada de Tristão da Cunha. . .


Ah! disse D. Manuel, vendo os dentes n'um pequeno espelho que
trazia no cinto; sim, a esquadra de Tristão pode chegar a tempo...
Oxalá elle veja a urgência. . .

— Tristão esteve cego, mas vae curado e apparelhado para grande


alcance. E, se a cegueira lhe voltar antes de dobrar o Cabo, lá tem a seu
bordo os olhos de lynce do grande Aftbnso d' Albuquerque.

— E o recurso bastante
é ?

— Até de sobra: sete naus — a Sanflago, a Garça, a Leitòa Velha, a


S. Vicente, a S. Jorge, a índia, e a Lagos, mal cheguem á ilha Sacotora,
não perderão tempo a cruzar no cabo de Guardafú, e seguirão imme-
diatamente para Cananor...
— Para salvar Lourenço de Brito e a sua gente ?

— Ou para a vingar. .

— Em que dia partiu Tristão?


—A seis d' abril. Sabe-se que passou em Bezeguiche, fez-se na volta
da Terra de Santa Cruz, em junho arribara para a rota da Guiné. Deve,
pois, ter chegado ha muitos dias a Moçambique, se na passagem da Boa
Esperança não soffVeu naufrágio serio.
— Para haver noticia do cerco em Lisboa, ha quanto tempo já deve ter
succedido a derrota de Lourenço de Brito!
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO aSi

—O soccorro não será para as serpes, que saberão defender-se por


muito tempo, mas para a armada de Lourenço d'Almeida, que ha de acu-
dir ás forças de terra e ver depois, a cavalleiro delia, os navios acastel-
iados que o Samorim empregou contra Duarte Pacheco.
— Foi de bom aviso o meu expediente! . . .

— Foi uma honra, senhor, que ao meu conselho. fizeste . .

— Vaidoso. Tu és vaidoso, António Carneiro. Perdòo-te, porque es-


. .

tamos na intimidade. Se eu tivesse contrariado o teu parecer, serias então

lisonjeiro ? Julgas que se não tivesses talento e não soubesses pensar, te


manteria no meu conselho e privançar
— Confundis, meu senhor, minha modéstia. a . .

— Ficaes, meu senhor, disse rainha, com bondoso a sorriso, falando

em coisas de tão longe . . . Não vos bonda a hora do sol para os negócios
do Oriente?... Ora vinde, vinde, meu senhor, ver os lavores que vos
preparo para o vosso real bergantim. .. Pudera eu bordar as chagas de
Christo n'esta cruz, que é d'elle !

— Eu vou começar por agradecer obra de tanta valia sabida de vossas


mãos, senhora minha.
E os pagens approximaram o divan del-rei da cadeira da rainha.
^Anda cá, António Carneiro, disse o pequeno D. João, mostra-me
neste mappa, onde tica essa índia de que tanto falas a el-rei. . . Mostras,
sim :

— Pois não, meu senhor. . .

E António Carneiro apontou no mappa o logar da terra indiana.


—E aqui, n'este ponto da Ásia. Vede, meu senhor. . . E esta linha in-
dica o caminho que seguiu D. Vasco... Foi por aqui que os vassallos
d'el-rei, vosso pae, se foram a descobrir mar e terra em poder da gente
mauritana. .

— Aqui não ha christãos ?

— Não havia, mas agora ha . .

— E esses Índios mouros e não adoram Jesus Christo, como eu e a

rainha nossa mãe e senhora ?


— Não, meu senhor. Existe Deus aqui, como em todo o universo, mas
não conhece esta gente a Jesus Christo. .

— E santos? Lá não ha santos como estes que adoramos?


— Ha d'esses. doutros. . . e
— Outros Quando eu homem, de mandar destruir esses outros
: fòr hei

tros e a gente que lhes rezar. . . Não é verdade, D. Luiz?


— Se o ordenar vossa alteza... respondeu Luiz com uma mesura
cortezã.
. !

232 MYSTERIOS D\ INQUISIÇÃO

— Sem dúvida que ordeno. Jesus é o Deus de todos os homens. .

E a rainha, com outro sorriso, ainda mais cheio de admiração e amor,


ouvindo o filho, exclamou :

— Que graça! Como elle é já piedoso e catholico! Dá-me um beijo,

D. João.
O pequeno príncipe correu a lançar a cabeça no regaço de sua mãe,
que o afagou ternamente. A loura cabeça do futuro rei de Portugual pou-
sou sobre a cruz vermelha do estandarte.
— Meu senhor, disse D. Maria a D. Manuel, vede a obra do acaso:
como fica bem o ouro d'esta cabeça sobre o vermelho desta insígnia
E a rainha beijou repetidas vezes a cabeça de seu filho, como se qui-
zesse fundil-a ao calor dos seus lábios. . .

— Que diz Gonçalo Figueira dos progressos do príncipe, na leitura e

na escripta? perguntou D. Manuel a sua mulher.


— Gonçalo Figueira louva-se muito no que lhe dizem Álvaro Rodri-
gues e Martim Aflbnso.
— E esses? insistiu el-rei.

— Molestam de mais com leituras e escriptas o pobre mocinho...


Quasi não lhe deixam tempo para as suas orações, disse a mãe.
— Ler e escrever, acudiu António Carneiro, são instrumentos que fa-

cilitam as rezas e fortificam a fé. Como ha de o senhor D. João conhecer os


livros sagrados, se não lhes conhecer os caracteres? Os mestres da Egreja
fizeram modelos de preces na sua beatifica eloquência.
— Pois sim, sim, António Carneiro, mas fatiga de mais a teimosia do
padre Rodrigues em guiar a pequenina mão de meu filho, e dá-lhe can-
ceiras á vista a demorada licção de Martim Atfonso.
— O melhor seria educar, por agora, e instruir depois ; mas, damno
por damno, antes o do braço applicado á escripta, que o dos joelhos em
tão demoradas devoções.
— Sou do vosso parecer, António Carneiro, disse el-rei. Que o prín-
cipe se recreie e exercite desinquietando mais o espirito que o corpo. Hei
de recommendar esse cuidado a Gonçalo Figueira.. . Elle ahi vem.
— Meu senhor, disse Gonçalo, approximando-se e beijando a mão pe-
quenina de D. João. Sua excellencia o príncipe, tanto se adeanta em
tino e prevenções, que parece adivinhar vossos desígnios, preferindo
desenvolturas da sua edade ás canceiras que lhe propõem o aio e os
mestres.
— Gonçalo, pareceis queixoso do príncipe, meu filho. . . Que aggravos
vos fez elle, que com tanta arte vos queixaes, observou a rainha.
— Não são aggravos, senhora, que não os fazem anjos tão gentis: re-
: . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 233

paros, quando muito, por ver, que lhe fica tSo impressa a doutrina da
Egreja, e tão apagadas as regras da nossa lingua.
— Tudo será corrigido, que em promessas a Nossa Senhora ponho
todo o empenho em lhe abrir o entendimento. Vereis, Gonçalo Figueira,
como, ao fim da minha novena, o príncipe ha de honrar os mestres, sem
esquecer o culto da religião.
— Tenho essa fé, senhora minha, e auxiliarei vosso empenho, impe-
dindo privanças com mentores, sem resguardo, nem methodo, que andam
enchendo a cabecinha de meu am.o com factos e idéas impróprios da sua
edade.
— Explicae-vos, Oonçalo, disse D. Manuel; entreguei-vos a educação
do príncipe, e se de vós a fiei, defendei-a de más licções e conselhos.
— Não basta a minha vigilância, que andam mentores na corte, com
mais auctoridade e poder. .

—E desconfiaes? . .

— De

ninguém; mas vejo cedo de mais idcas tristes e escuras em
cabecinha tão nova e loira.
— Meu pobre D. João, disse a rainha, pondo-o em pé, entre ella e
el-rei. Que podes tu saber, além do que vês e do que te ensinam teus
mestres?
— Vamos, Gonçalo, desterra meus receios. Se ha n"elle revelações,
só podem vir de Deus.
— Quereis, senhores meus, que eu interrogue?
— Seja, disse D. Manuel.
— E vulgar a adivinhação nas creanças, disse António Carneiro, ap-
proximando-se do grupo. Temos o nosso príncipe entre os doutores da
Egreja.
— Meu senhor, disse Gonçalo, vergando o joelho sobre a almofada
que estava próxima de D. João, como se escreve o vosso nome ?

O pequeno João ficou assustado e olhou para a rainha, como a pedir

misericórdia. Ao tim de alguns segundos, repetiu a pergunta que lhe ti-

nham feito

— Como se escreve o meu nome ?

— Sim, meu disse a rainha,


filho, como se escreve D. João ?

João olhou para el-rei, depois para António Carneiro, fez um movi-
mento de impaciência, e, afinal, fa/endo um signal a Luiz da Silveira, gritou:
—O Luiz, dize tu. .

Teve um acolhimento de hilariedade o expediente principesco.


A boa disposição da sua corte serenou o interrogado, que novamente
repetiu a pergunta que o incommodava.
. :

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como me chamo eu ?

— Não é isso, interveiu D. Manuel, affagando-o, o que se pergunta é


como escreves o teu nome, meu filho ?. . . Tu não te chamas João ?

— Eu Não, meu senhor.


? . .

— Então, como chamas? vamos, dá-nos essa novidade.


te

— Eu sou D. João III. . .

— Bravo! disse D. Manuel. uma surpresa magnifica! Isto é As cortes


reunidas nos aposentos da rainha, minha senhora, acabam de proclamar
a minha abdicação !

E os reis de Portugal, saudaram, beijando-o, o novo monarcha.


A creança não comprehendia o motivo de tal successo. Alguém lhe
ensinara a licção, sem a explicar.
— Estou demíttido, meu senhor, disse, sorrindo, António Carneiro.
— Com certeza, atalhou recostando-se, el-rei, e serás substituído por
D. Luiz da Silveira, ou, se quizeres, aproveita o valimento, e mette em-
penho para teu filho, Pedro da Alcáçova.
Gonçalo, o aio apprehensivo, insistiu na prova
— Meu senhor, quando fordes rei de Portugal, que monarcha imita-
reis ? El-rei o senhor D. Manuel, meu excellente amo ?

— Não; meu senhor e avô, o rei de Castella, D. Fernando II.


— Por que ? meu senhor.
— Porque elle é muito amigo de Deus e do Papa, e da Saota Inqui-
sição. .

D. Manuel ergueu-se vivamente irritado.


— Tendes razão, Gonçalo Figueira, ha na Alcáçova tutores e mento-
res que não escolhi e nomeei. De Castella, que me aperta reclamando fo-
ragidos do Santo Officio, vêem tramas á minha corte e familia. Meu so-

gro pensa em voz alta, e o écho d'esse pensamento chega a estes muros,
em que vivo. Gonçalo Figueira, leve o príncipe e guarde-o, e vigie-o de
maneira que ninguém lhe fale, ou que eu saiba quem lhe fala assim.
— Também me privaes de conversar a sós com o príncipe ? perguntou
resentida a rainha.
— Eu próprio me privarei, para que vingue a minha ordem e a nin-
guém ella ofienda.

— Mas, meu senhor, onde poderá elle ter conselho mais amigo e licções
mais proveitosas?
— Deixae-me, senhora, poupar vosso filho á exploração de hypocntas
e intrigantes. Castella não me dá licções de fé. E' vasta a terra de meu
sogro; que elle a governe com o seu engenho, que eu governarei Portugal
com o favor de Deus e de Roma.

I
Porque elle é muito amigo de Deus e do Papa, e da Santa Inquisição

^'
^ )
. ;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

D. Manuel continuou:
— Estou novo, e novo está o meu reinado, c, se em tão pouco tempo
me veiu arrependimento de minhas resoluções, foi por ter nellas, alguma
vez, mais escutado aíleições que argumentos. Levae o principe, (lonçalo
Figueira, vigiae-o, vigiae os mestres, a vós próprio deveis vigiar, a mim e

á vossa rainha, a lisonja e a galantaria, a rua e a Alcáçova. . . As crcan-


ças são anjos e os anjos são os mensageiros dos avisos do Céo. Estou
avisado. Ainda não estás demittido, António Carneiro; segue-me e aconse-
lha- me.

Emquanto chegam novas personagens aos aposentos da rainha e re-


colhem, aos seus próprios, príncipes e infantes, sigamos el-rei, que assim
imitamos António Carneiro, que obedeceu ao gesto de D. Manuel.
El-rei passou á sala onde costumava dar despacho aos seus secretá-
rios.

Nos momentos solennes, o monarcha gostava de se isolar, não só para

melhor pensar nas questões, mas ainda para não revelar a familiares e

atfins as hesitações do seu ânimo e a volubilidade do seu parecer.


A sós, ou com António Carneiro, o que era a mesma cousa, discutia
todas as dúvidas e não se envergonhava da sua ignorância e mais fraque-
zas.
A hora não era a mais própria, mas desde que el-rei se inquietava
com as respostas inconscientes de seu filho, as quaes, em todo caso, eram
ccho d'uma opinião descontente que lhe invadira a Alcáçova, não podia pas-
sar um momento mais sem que se aconselhasse com o homem da sua con-
fiança. O conselheiro dum rei absoluto é mais assistente que o medico
por isso, D. Manuel pouco cançava o physico com as consultas, mas nem
um momento se separava de António Carneiro. Ainda que lhe resistisse,

queria sernpre ouvil-o.


Depois, el-rei não tinha vistas largas ; dava-se por feliz quando adivi-

nhava os perigos do dia seguinte.


Admirava-se de que uma creança, o principe, repetisse o que ouvia a
muitos fidalgos da sua corte. Na Alcáçova era encarecida a todo o mo-
mento a piedade dos reis catholicos. .

Sua mulher citava, a miude, com grande enthusiasmo, o zelo do Santo


Ofhcio, principalmente o do Tribunal de Sevilha.
A rainha não sabia impor-se, mas não se submettia. Não podendo ar-
car com António Carneiro no conselho dado ao marido, dava nos seus
beijos o veneno, que julgava néctar, aos lábios do pequeno principe.
. . . . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Sorria-se a pobre fanática quando planeava vencer no filho o que não-


podia vencer no pae !. .

António Carneiro conhecia a força do inimigo, e fingia submetter-se,


mas de facto revoltava-se. A corte de Castella encontrava n'elle uma forte

resistência. .

Quando António Carneiro via el-rei hesitante, fazia mais que aconse-
lhar, explicava, e, se o plano não era efficaz, recorria ás prophecias pavo-
rosas sobre desastres para os interesses do reino, ou, em recurso extremo,
desconsolo para a alma do monarcha.
A matança de S. Domingos ficou arma poderosa na dialéctica do se-

cretario. El-rei fora victima da sua primeira mulher D. Izabel ; mas An-
tónio Carneiro não accusava as rainhas; pelo contrario, defendia-as — eram
victimas de seus pães, isto é, do throno hespanhol.
D. Manuel não sabia explicar bem a causa da sua irritação n"aquelle
momento. O que ouvira a seu filho contrariava-o, porque não estava bem
convencido de que seguia o melhor caminho.
A opinião pública era contra os judeus, e abhorrecia os christãos-
novos.
Quem estaria illudido? elle, ou a opinião do seu reino:
Conviria resistir, ou transigir?
Se havia conspiração contra a sua politica tolerante, nas veias dos
conspiradores corria o seu próprio sangue.
El-rei fez-se acompanhar de António Carneiro até a sala do despacho,
mas, chegado alli, não ousou interrogal-o. . .

Encostou os cotovellos á mesa, e a testa ás mãos, e conservou-se si-

lencioso. .

António Carneiro reconheceu a necessidade de intervir. . . No espirito

de el-rei havia uma tempestade que podia ser perigosa.


D. Manuel quando não via claro, julgava que estava cego.
— E' necessário obrigal-o a abrir os olhos — pensou o secretario.

Approximou-se então de seu amo e disse-lhe mui serenamente


— Em que pensaes, meu senhor?
— Em mil coisas, respondeu o qual delias a mais rei, grave.
— Se não receasse molestar-vos, pedir-vos-hia que me dissésseis algu-

mas d"ellas. — São sempre tão atilados os vossos pensamentos, que co-
nhecel-os é dever de quem tem de executal-os.
— Tenho sido tolerante de mais, António. .

— Tolerante, é má palavra, meu senhor — justo é que deve dizer-se.


Ora substitui a palavra, e logo vereis que nunca é demasiada a jus-

tiça.
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 23;

—E justo compadecer-me dos inimigos da Fé?


seria •

— Avaliae pelos resultados. Quizestes converter judeus, e os christãos


mataram-nos. . . Soprastes as fogueiras, quando era vosso desígnio apa-
gar o fogo das paixões. .

— Pois, sim, mas agora punindo os algozes, rcaccendo de novo esse


fogo . .

— Tendes razão, senhor, as vossas melhores intenções dão resultados


funestos. Quando as queixas são graves as mesinhas são perigosas. O ne-
cessário é assentar definitivamente num processo. Perseguir, primeiro, de-
fender depois, hesitar mais tarde — nem é tolerância, nem é justiça. Ha
sentenças que parecem eguaes e são bem contrárias. Falastes no fogo ?

pois bem, se o soprardes lentamente— avival-o-heis — com força e impeto,


elle se apagará.
— Ainda quereis cm mim maior energia e fôlego ?

— Não, meu senhor, mas quero mais confiança no conselho e mais


firmeza no propósito.
— A Historia me fará justiça, António- - .

— Assim o espero, muito e tem ella que engrandecer no vosso reinado.


A boa estrella que vos tem guiado continuará brilhando na justiça do fu-

turo. Mas, é porque tendes uma estrella propicia, que vos norteia, que julgo
necessário que não vos transvieis por fogos que saltam, incertos e fugiti-
vos, como os fogachos do mar. .

— A que chamas então os fachos de Sant'Elmo?


— As vossas hesitações em face de mouros e judeus.
— K' que lucto entre Deus e os homens. . .

— Kis o vosso achaque. Os christãos fizeram homem o seu Deus. Servi


os homens e bastará . . a Deus.
— Os homens reclamam de mim a imposição desse culto.
— Se quereis que a intenção vos salve, é necessário que vos decidaes.
Um rei que hesita é um rei que se perde.
— Eu não hesito; eu penso.
— Perdão, meu senhor, o vosso damno vem das vossas hesitações.
Quereis extinguir os judeus, isto é, quereis ser vassallo de Innocencio VIII
e do rei d' Aragão? quereis servir o throno de Castella, respeitar a me-
moria de minha fallecida rainha e senhora ? Não vos repugna ao senti-

mento ? julgaes isso útil ao vosso reino e ao vosso poder ? Pois bem, n'esse
caso, respeitae de novo a bulia Pessimum geuus, arrancae outra vez os
filhos aos judeus contumazes, mettei mais vinte mil desgraçados nos aca-
nhados Estáos, fixae uma só hora e uma só praia para a fuga dos infiéis,
sequestrae-lhes os bens, e açoutac-os na praça pública, lisonjeae Torque-
«YSTKKIOS DA INQLISIÇÃO. — VOl.. I. FOI_ 3o.

k
! !

j38 MYSTERIOS da INQUISIÇÃO

mada e Deza, seu successor, laçando no vosso reino os fugitivos das tor-

turas casteltianas, firmae com mais vigor o alvará de i5.o3. . .

— António Carneiro, fazeis-me remorsos, e abusaes da vossa memoria...


— Pinto-vos o quadro para que o apagueis, se vos incommodar. elle

Os reis devem ter uma opinião e uma acção. Vosso cunhado, o senhor
rei D. João II, resistiu sempre a Castella e a Roma, que lhe exigiam a

entrega e o castigo dos judeus internados. Não pensaes que fez bem? Pois
fazei o contrário. Tendes deante de vós o fogo da impiedade; soprae-.o
rija, violentamente, e apagae-o de vez.
— E as matanças. António Carneiro? . .

— São obra vossa, senhor, porque animastes o ódio que devia ter sido

atormentado. A provisão de 1497 foi o sopro lento. . . animou-o. . . Con-


demnar os dominicanos e a plebe de Lisboa c condemnar as bulias, os
alvarás, e as provisões! Lançae-vos, senhor, se vos apraz, no caminho
que vos traçaram, não eu, que vos amo e respeito. Restitui os foros á ci-
dade e o mosteiro aos pregadores, perdoae ao Aragonez e ao Moucho, em
nome do crucifixo que elles alçaram por entre ondas de sangue e de fumo,
lançae na terra portugueza os alicerces da Inquisição. . . Hontem revogas-
tes, obedecendo a um nobre impulso do vosso ânimo, todas as ordena-
ções de proscripção, devassa e flagício. . . Pois bem, revogae a revoga-
ção, e ficará assegurada a impunidade para o roubo, para a prostituição e

para o assassinio. . . A coroa deve ser feita de metaes brilhantes e precio-


sos, mas forte, resistente, erecta sempre, quer a topete a águia do poder,
a esphera terrestre, ou a cruz da fé

D. Manuel continuava com a fronte escondida nas mãos, emquanto


António Carneiro declamava, com o rosto vermelho, passeando agitado.
— E, se eu fizesse tudo isso ? perguntou el-rei sem affrontar o olhar do
seu ministro.
— Os lábios do futuro D. ,Ioão III repetiriam phrases que os cortezãos
de Júlio III e de vosso real sogro, aninhados na Alcáçova, lhe ensinariam,
exaltando vossa energia e talentos ; o povo, para melhor illuminar a vossa
fronte de rei, apagaria os archotes do vosso séquito nocturno, e faria pro-

jectar nos muros d'este castello o clarão das fogueiras, e a rainha de Por-
tugal encheria das mais gratas caricias a vossa alcova real
—E tu, António Carneiro, o que dirias ?

— Eu ! Que importa o meu parecer, no meio de tão universal concerto ?

Perguntae, antes : o que diria a Historia ?

—A Historia? disse D. Manuel, puxando para si o seu ministro. Sim,


António Carneiro, o que diria de mim a Historia ?

— Que el-rei D. Manuel I, primeiro em nome, em mérito e no amor


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 239

á terra de Portugal, o vencedor dos mares, o conquistador da terra,


aquelle que gravou, na sua coroa, os nomes da Africa, da índia, da Ará-
bia e da Pérsia, o que foi obedecido por Vasco da Gama e Affonso de
Albuquerque, o que fez as mais sábias ordenações e favoreceu as lettras

e as artesque esse rei afortunado pintou no estandarte real a cruz ver-


;

melha da ordem de Christo, com o sangue de milhões de martyres, re-


vogando, com os seus alvarás de ódio c de perseguição, a sentença com
que Jesus perdoou, no cimo do Calvário, á raça que o crucificara.
— Abraça-me, António Carneiro, que sou teu rei e teu amigo. Deste
a melhor fé ao meu espirito e maior vigor ao meu braço.
— Perdoae-me, senhor, exclamou António Carneiro, dobrando o joelho
€ beijando a mão d'el-rei, o vassallo não accusou seu amo, arrancoulhe o
segredo da sua consciência . . . Ide beijar o príncipe, meu senhor. D. João III

bemdirá um memoria de seu pae.


dia a
A' porta do salão assomou Gonçalo Figueira.
— Meu senhor, o príncipe D. João, meu amo, retira-se aos seus apo-

sentos e vem receber a vossa benção.


D. Manuel levantou o filho nos braços e beijou-o na testa.
— Que Deus te abençoe, neto dos reis de Castella, mas filho do rei

de Portugal ! . .
. .

Os serões

El-rei entrou novamente nos aposentos da rainha, onde havia já novas


personagens a animar o serão. Algumas damas, fidalgas e formosas, for-

mavam grupos de conversação animada, e, por vezes, segredavam, quem


sabe ? alguma perfidia piedosa contra o secretario António Carneiro. A'
proporção que a gente da corte ia chegando, e agrupando-se, ia circulando
a noticia de que D. Manuel se achava em conferencia com o seu valido,
como lhe chamavam, para assim melhor accentuarem a inHuencia do con-
selheiro no espirito do rei.

— Sabeis, senhores, dizia um fidalgo de pouco nome, que a corte de


Castella insta de novo pela entrega dos foragidos ?

— Consta que eftectivamente D. Miguel da Silva, nosso embaixador,


muito affeiçoado á corte dos reis catholicos, falara nesse sentido a Jorge
Garcez.
— Por que a esse ? extranhou o informador indiscreto.
— Por já se saber em toda a península que a sombra d'elrei, ou não
daria o recado, ou levaria el-rei a responder negativamente.
—A rainha deve sabel-o, disse o outro, em voz mais baixa, como se
a curiosidade o estivesse espicaçando.
— Se D. Guiomar quizesse. .

— Bem os adivinho, meus senhores. Não vedes que sua alteza está
preoccupada com a ausência d'el-rei ? Ella bem sabe que António Car-
neiro não é homem que perca tempo a estas horas da noite. Despacho em
serão não dá ordenações, dá intrigas. . .

—Abeirae-vos, senhora, de sua alteza, que deve precisar de entreteni-


mento e conforto.

E' preciso também que não percamos tempo. .

— Senhora, disse D. (iuiomar, fidalga affeita ás prédicas de S. Do-


mingos, dir-se-hia que tendes os olhos n'esse estofo e bem mais longe o
pensamento.
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 241

— E' assim, é; ao preparar a signa de meu senhor, lembro que glo-


riosas viagens poderia fazer el-rei, se navegasse no mar da fé christã, onde
ha tantas descobertas a fazer.
— Se essa viagem se não faz, a culpa c do timoneiro... Sabeis, se-
nhora, a que Palinuro me estou referindo?. . .

— disse a rainha, levemente enfadada.


Sei,
— Por que navega tão só? Mostraelhe
el-rei o perigo, senhora.
— Se não ha braço mais vigoroso, nem vista de mais alcance. . .

—E não temeis um naufrágio?.


A rainha fitou a sua interlocutora.
— Vedes signaes de máu tempo?
— Algumas nuvens que perturbam o animo dos mareantes.
já . .

— Más novas, D. Guiomar?. . .

— Boas não são. Os triumpham, o Céo não deve estar con-


infiéis e

tente. Emquanto os dominicanos se preparam para o supplicio, a mou-


rama fugida de Castella renova sacrilégios e infesta o reino. .

— Não lhes ficou licção dos malefícios que soffreram ?

— Qual? Pelo contrário, nascem as synagogas e as mesquitas por


baixo dos nossos altares, e Portugal é asylo de judeus proscriptos.
— Conheceis algum fructo malino da clemência real?
— Quantos?! Pede-se debalde o cumprimento das capitulações que
existiam para a extradicção dos criminosos, e mal se acredita que a filha
dos reis catholicos não possa evitar o damno.
— E' cioso el-rei das suas prerogativas, e o momento não asado para
renovação de ódios. Bem sabeis quanto os christãos novos se agitaram
com os favores recebidos.
— Quietos os da raça de ingratos?.' Se soubésseis, senhora, o que por
ahi se conta I. . . Redobram de audácia os inimigos da Cruz. .

— Contae-me o que sabeis e tanto vos magoa.


— Permittis, senhora, que vol-o diga ao ouvido ? O que conto para
vosso governo e geito, não pode ser uma delação. Basta que saibaes . .

E D. (ruiomar, chegando os lábios ao ouvido real, segredou uma longa


historia, acompanhando a narração de gestos violentos e olhar irado.
— Que me contaes, senhora? Pois chega a tanto a audácia dos con-
demnados? Pois o perdão é semente tão ruim? disse a rainha um pouco
alvoroçada.
— E' como vol-o digo. .Mais alguns dias e Mafoma e .Moisés serão os
Ídolos adorados nos vossos Estados, senhora. Mas não vos inquieteis, que
as reclamações de Castella hão de poder mais que os conselhos de Antó-
nio Carneiro.
.

24» MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

El-rei, n'este momento, apparecia, dizendo em voz alta as ultimas pa-

lavras da sua conversação.


— Descança, meu António, que assentarei por uma vez no rol dos meus
planos. Abrirei as minhas fronteiras aos perseguidos de todo o mundo, e

assim alcançarei mais conversos que inimigos.


— Receio muito que vos enganeis, senhor meu. Infelizmente os factos
não são de molde a esperar arrependimento e gratidão, disse a rainha.

— Sobre os estragos da guerra as virtudes da paz não germinam sem


demora . .

— E' que não conheceis Jacob Adibe.


— Conheço, conheço; d'elle me falou o conselho com louvor pelos fei-

tos do velho, em paragens bem perigosas.


— Bem dizia eu! Não vos disseram ainda que Jacob anda a marcar os
christãos com os diamantes dos seus anneis. Pedi a António Carneiro que
vos conte a façanha desse judeu entre as religiosas de Lorvão.
— Que sabeis a este respeito, António?
— Sei que o pae poupou muito sangue christão, e que o filho zela

muita honra ameaçada.


— Mas não sabeis que, tendo renegado na pia do baptismo a fé e o

berço, se pavoneia judeu, affrontando a vossa generosidade e a justiça de


Castella! Mais ainda: que, tendo atravessado o reino de meu pae, incorreu
no desagrado do Santo Officio, e se gaba, entre nós, de não temer amea-
ças nem perseguições. . .

— Senhora minha, taes queixumes não acertam com os dizeres de meus


informadores, que abonam virtudes de Jacob mais christãs que as de seus
inimigos.
—O que não impede que a estas horas esteja sob as lanças del-rei.

por ter tentado raptar uma noviça de Lorvão, informou D. Guiomar.


— António Carneiro, disse D. Manuel, informa-se de tudo, e, se de
facto Jacob Adibe tiver commettido os crimes de que o accusam, que soffra

as penas que determinei em meu alvará de ha três annos.


— Esse alvará, meu senhor, vós mesmo o acabaes de revogar.
— Que a corte de Castella o mande queimar em estatua, em nome
da Inquisição, e que Portugal o julgue pelo que elle tiver feito fronteiras

a dentro.
— Mas, senhor, o christão novo judaisa quando o deixam, e a vossa
bondade vae até a liberdade de viver christámente e hão chega á licença
de ter orgulho público da judiaria. Se sois catholico, senhor, defendei a
vossa fé, que não pode ser rei, á face do mundo christão, quem se faz
cúmplice de mouros ou judeus. Transijo comvosco, continuou a mansa e
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 243

beata rainha, emquanto poupardes á devassa os segredos da consciência


infiel, mas, se fordes mais longe, a ponto de permittirdes affrontas ao po-
der de meus pães e aos escrúpulos da minha devoção, para não perder
a minha alma, volverei á minha pátria, saudosa do vosso amor, quei-
xosa da vossa resistência. Por Deus vol-o juro, farei o que digo, por me
salvar e a meus filhos d'esta guerra que declaraes ao Céo, com as armas
da heresia.
— Basta, senhora minha, que se não entrego o judeu a Castella, não
me opponho a que a Inquisição o procure. A mão que revoga um alvará
é a mesma que o renova. Quero bem com Deus e comvosco. Não
estar
vale a sorte d'um homem a sorte d'uma família real na península. Além
de que, se Jacob está preso, como affirmam, é contumaz em profanações
e pode ser excepção á face das leis. Não é verdade, António Carneiro?
— Não ouvi o que dissestes, senhor; estava pensando n'outra verdade.
— Qual?...
— Já vol-a disse: um que hesita um que perde.
rei é rei se
— E' necessário António; minha tolerância deve ser pa-
distinguir, a

cificadora e não irritante. Para fazer a paz entre christãos-velhos e novos,


é bem cabida a minha intervenção transigente ; mas para açular ódios e
garantir audácias contra a Fé e a favor da heresia, não.
— Assim será, meu senhor; mas quem mór interesse deve ter na paz
são os governos e não os governados, acudiu a rainha. Como quereis, meu
senhor, resistir á corrente das nações mais amigas ? Não vedes Castella
a pugnar pelo catholicismo, a Itália a imitar Castella, a Allemanha na sua
tarefa religiosa ? Não vedes a Inglaterra trabalhada pelas intrigas das sei-

tas ? Que esperaes? Dar licções ao mundo? Poderão os reis catholicos gas-
tar seu esforço na punição dos infiéis, tendo nós ns fronteiras abertas aos
que fogem á justa punição? Quereis contar com Roma, amesquinhando o
poder papal ? Meu senhor, pensae, no que resolveis. Os secretários pas-
sam, e a crença fica. Quando a guerra explodir, com quem contaes? Com
António Carneiro? E' pouco. Consultae Miguel da Silva, que escuta a opi-
nião da corte de Roma. O que faz e o que diz elle ? Que Roma vê com
maus olhos a vossa generosidade.
— Senhora minha, disse António Carneiro, para contrariar a vossa
avisada opinião não posso manter-me nos conselhos d'el-rei. Teem as
damas, perdoae-me, o prestigio dos seus nomes e a influencia das suas
virtudes e dos seus «ncantos, mas nem sempre, por maiores que sejam
seus talentos, podem alcançar as previsões duma politica internacional
eivada de interesses contrários, e mesquinharias intrigantes. Não pode
vossa alteza lembrar, a meu rei e senhor, que a corte de Roma, traba-
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ihada por uma nova e forte opinião religiosa, não deseja em Portugal a
perseguição dos judeus. Tente, vossa alteza, meu senhor, arrancar, a Sua
Santidade, bulias para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, e nada
conseguirá. .

— Julgaes que Roma se opporia disse el-rei. ?

— Sem dúvida ?Roma está fortemente trabalhada pela nova influencia


que não se oppõe á Inquisição de Hespanha, porque está animando a

emigração para Portugal e para os Paizes-Baixos, mas não queria o es-


magamento dos judeus sobre a terra, por mais que elles contrariem o
culto da divindade que lhe preside.
— Então essa influencia ?

— Essa influencia não tem o fanatismo dos frades peninsulares; pelo con-
trário, promove com muito cuidado, o desenvolvimento dos interesses
materiaes que podem enriquecer o mundo e dar-lhe riquezas e preponde-
rância.
— Continua, António Carneiro, disse el-rei, já esquecido da proclama-
rão de sua mulher.
— E' uma nova doutrina, que vae começar a dominar o mundo, que
reclama braços, iniciativa, trabalho e riquezas ! O novo padre não é um
fanático — é um traficante. Presidido por Jesus, falo mestre da sua obra,
incentivo do seu progresso, fecundador do solo, cultor das artes, sophisti-
cador da sua doutrina, reproductor do seu capital. Apodera-se de Roma
com o seu intuito mundano, e leva na sua frente Jesus, antes do Calvário,
quando andava separando Deus de César, e a ambos prestando obediên-
cia e culto. Júlio III está a esta hora escutando essa gente e ensurdece á
voz do Senhor. E' uma nova phase religiosa, uma nova theocracia que
se explica e adopta. O que c o judeu ? Já pensastes nisso, senhor ? Ja lhe
medistes o valor e o alcance ? O judeu não é rigorosamente uma seita —
é uma raça — forte no corpo c forte no animo — que trabalha muito, que
economisa, que guarda, que enriquece —é

uma colónia vigorosa de obrei-
ros, embutida n'uma civilisação anciosa de prazeres e recheada de vicios.

O judeu não vem de Moisés, ou se vem, não é disso que enferma; vem do
paganismo, que adorava o bezerro de ouro. — E' mundano, egoista, on- é é

zeneiro, é servil — é quanto quizerem — mas principalmente um poderoso


é

elemento de trabalho e uma fonte caudal de riquezas. A nossa épocha alen-


ta-se nas energias burguezas, e essa burguezia tem por esteio principal a
cobiça d' essa raça errante e potente, que accumula capitães, desenvolve
o trabalho, e consolida a ordem! Todo o trabalho é uma riqueza, toda a
riqueza é uma força, toda a força é um poder. Reis e papas, que matam
os judeus, enfraquecem os povos, o que já é máu; mas também enfra-
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 243

quecern os reis, que é peor ainda. Vede, senhor, a classe média; percor-
rei as boticas da cidade, fazei appellos ás urgências do Estado, creae novos
tributos. . . A quem visaes, a quem tributaes, de quem recebeis, a quem
pedis, e quem vos serve ? Os christãos, entretidos na cavallaria, empenha-
dos na guerra, adormecidos nos prazeres? Não, os judeus, firmes nos seus
balcões, vigilantes sobre as suas uchas, garantidos na sua usura, preve-
nidos nos seus cálculos, e invencíveis no seu esforço. . . Julgareis, talvez,
meu senhor, que o iesuita, trepando a escada da fé, desde a missão orien-
tal até o throno do Papa, quererá esmagar, em vez de aproveitar, essa
gente, essa seita, essa raça, essa caravana, que deixa na sua passagem
sulcos de ouro e que forma no espaço nuvens de pedrarias ? Enganaes-vos,
senhor, e vós, senhora, também. Com a vossa gente de armas dominaes
a Africa e a índia, com os vossos mareantes sulcaes e venceis os mares.
Estão traçadas as linhas do planeta, meu senhor...
E estará finda a vossa obra? Vede o reino. Está pobre, desorganisado,
limitado ao commercio das suas possessões... Começam agora o culto
das sciencias e o exercício das artes, raros almargens irrompem pelos
matagaes, affirmando a riqueza e o lavor da vida rústica; definham as
industrias pequenas nos recantos dos bairros mouriscos, fecham-se de car-
dos e silvas os caminhos feudacs, caem envelhecidos os castellos das villas,

e correm ao acaso os rios mais caudalosos. A'manhã tereis vencido a índia


e a Africa, familiarisado os mares com os continentes e assegurado a nossa
independência na península ibérica. .. Que quereis então fazer? Inventar
outros mares, sonhar outras terras? Não, decerto; tereis de educar e ins-
truir o vosso povo, encher de sol as vossas cidades, erguer custosos mo-
numentos á vossa historia, organisar para a paz a vossa gente de guerra,
commerciar com o mundo inteiro as vossas conquistadas riquezas. Com
que gente contaes para essa empresa ? Com os soldados estropeados de
volta de Cochim e de Calecut? com os heroes de Ormuz? com a nobreza
ociosa e debilitada pela pujança de D. João II? com o povo de joelhos ás
portas dos templos e com as ordens religiosas no fabrico de conspirações
e de vicios, nos claustros dos mosteiros? Estaes illudidos, senhores meus
— haveis de precisar do sangue, e do braço, e do ouro d'esses judeus, e
de perdoar-lhes, ao contardes os recursos do thesouro publico, as diver-
gências da sua fé. Não sabeis o que se passa lá fora. O jesuita está na
casa de S. Pedro e o jesuita não põe a Inquisição sobre a bôcca d'esses
poços auríferos de que brotam fontes de riqueza, de força e de poder. . .

— Então o Papa, se eu lhe pedisse auctorisação para instituir em Por-


tugal o Santo Officio, negar-me-hia. .

— Sem dúvida — o novo frade c a intelligencia que aproveita, e não o


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. I. FOL. Jl.
. . .

245 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

fanatismo que estraga e prodigalisa. . Experimentae, senhor; abri á emi-


gração judaica de Castella as fronteiras lassas de Portugal e vereis a fe-

cundidade d'este solo. O judeu não deve ser odiado como uma seita, mas
aproveitado como uma raça. .

— Cançaes-me a cabeça vós ambos, rainha e senhora, e tu palavroso

conselheiro. Será o que Deus quizer, e que esse Deus me inspire, já que
tantas coisas contrárias vejo e não distingo. O Desembargo que diga de
sua justiça a respeito de Jacob e quejandos. . .

— Sim, é bem melhor, senhor, pedir ao Céo conselho, que aos homens
lettrados, disse a rainha ironicamente.
— Senhor, disse António Carneiro, fingindo não ter ouvido o remoque
de sua alteza, — os vossos parceiros aguardam que vos digneis. .

— Não jogo ainda; preciso de ouvir primeiro os novos tangedores e os


velhos trovistas . . Tens trovas novas, António ?

— Algumas que a D. Guiomar de Menezes


fiz ?

— Que pena não ser eu de Menezes, disse D. Guiomar.


— A vós, senhora, não voltas profanas, mas jaculatórias ao
teria feito

Menino Jesus.
— Estaes muito piedoso, senhor secretario. .

— Para as da piedade, madre Guiomar.


intrigas .

— Ha quantas noites não temos Gil Vicente ?

— Já vae passada uma dezena.


— Novos autos o entreteem ?

— Não que invente, mas em que


elle figura.
— Sempre muito faladora, D. Brites.
sois Ora, deixae o pobre . . Gil

com seus amores. Como ha de elle pintar o amor, se o não sentir ?

El-rei formou circulo de fidalgos a que presidia, emquanto as damas


rodeavam a rainha, que as acolhia com o seu melhor sorriso, entregando-se

todos á mais familiar conversação.


— Gil deve estar escrevendo o novo auto em que lhe falei, disse D. Ma-
nuel. Tenho ciúme de minha irmã, que se envaidece com o Auto dos Reis
Magos, que lhe pediu e tão facilmente o houve composto e corrigido.
— Em breve ahi o teremos com obra nova, que ha de desbancar a
festa da Epiphania, a que minha cunhada, a rainha D. Leonor, soube dar
tanto realce e brilho. Tendel-o visto D. Maria Cardosa ? perguntou a rai-

nha; andaes sempre sabedora de coisas novas. . .

— Gostando muito d'ellas, nem por isso acompanho as novidades dos


nossos trovistas; prefiro lhes as modas flamengas, que corrigem os nossos
velhos costumes. . .

— Por fora. . . não é verdade? perguntou um moço fidalgo.


. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 247

— Já assim não pensa D. Branca Coutinho que embelleza seus vesti-


dos, sem d'elles haver favor, accrescentou António Carneiro.
— Feris, senhor, a minha vaidade.
— Por que não modéstia?
dizeis
— Para vos respeitar o galanteio.
— Fizeste mal em Diogo Brandão, vir, disse el-rei, avistando o critico
portuense . .

— Meu senhor, vim para distrair maguas, que me vieram dos queixu-
mes do infeliz Gomes d' Abreu.

— Ainda chora a morte do ginete ?

— Ainda, c o desastre dos seus amores. .

— Não voltarei a Saragoça emquanto elle andar damores a saltar

muros da Alcáçova, insinuou sorrindo, el-rei.


— Já ouvistes, senhoras minhas, os queixumes do pobre cavalleiro,
gemidos em rimas do sr. secretario?
— Eu julgava que António Carneiro não cultivava a ironia. Achastes
bom o conceito? perguntou a rainha a Diogo Brandão.
— Mandae, senhora, que o diga, que eu, entretanto, irei regendo as
arcadas dos tangedores.
—E um gracejo sem alcance, tem mingua de graça e sobram-lhe im-
perfeições no improviso, disse Carneiro.
— Dizei, que eu voi-o rogo, disse Violante de Ataide, pondo a des-

coberto os seus dentinhos risonhos.


— Os negócios do Estado varreram hoje a memoria e o gosto. . .

— Meu senhor, intrometteu-se Brandão, chamae a despacho o vosso


secretario. . . Elle que redija um alvará em oitava. . .

— António, mandou el-rei, honrae os fidalgos da minha corte. A Alcá-


çova tem de chorar peccados do infeliz amante e a perda do seu corcel. .

— Envergonhaes-vos das musas ou de nós? perguntou a travessa Mar-


garida Henriques. Lembrae-vos de Affonso de Albuquerque, que tem bar-
bas tão grandes e encargos tão pesados, e ainda assim sabe trovar, sem
instancias, e guerrear sem timidez.
— Que me perdoe o grande Aiíonso. Dou homem por mim. . . Diogo
Brandão, que tem de cór os meus dizeres, far-vos-ha a vontade.
— E se eu vos estragar o favor?
— E' vosso costume corrigil-o.
— Lá vae então por vossa conta:
«Queixumes d'um donzel a quem morreu um cavallo, quando lhe nas-

cia uma esperança.»


— Diogo Brandão, achegando-se para os doi círculos que formavam
. . !

248 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

um oito de voltas elegantes a um lado do salão, inclinou o corpo para a


frente, e, dirigindo-se a suas altezas, começou:

De dois males deseguaes


me vejo tão combatido,
que perco todo o sentido,
sem saber nem ter sabido
que mal d'estes me doe mais
dom ambos me não leixaes
Coração não me repousa
Com desejar uma cousa . .

— Tem sabor a Garcia de Resende, disse Diogo Brandão.


— Não interrompam, reprehendeu interessada Margarida Henriques;
deixae Garcia de Resende a secretariar Tristão da Cunha. Secretario por
secretario, antes António Carneiro. .

— Querem que continue ?

— Continua, sim, mandou el-rei. No fim diremos nosso parecer.


— Bem! E Diogo Brandão, levantando os olhos, como quem recorda
idéa ou forma esquecida, repetiu:

Coração não me repousa


Com desejar uma cousa . . .

O pagem que guardava a porta principal do salão adeantouse.


— Perdão, senhores, está alli pedindo licença para ser introduzido, por
ter recebido convite d'el-rei, meu senhor, o padre Ignacio, do mosteiro de
S. Domingos.
— E' verdade, disse D. Manuel, esperava-o. Mas vem só? . .

— Não, meu senhor traz em sua companhia um moço


; cavalleiro, que
diz chamar-se. . . Pedro Soares.
— E' esse mesmo. Amanhã ouvirei as oitavas de António Carneiro.
E depois ao pagem :

— Manda-os entrar para o salão do conselho. . .

E el-rei, seguido de António Carneiro, sahiu por entre as alas dos seus
convidados e familiares.
— Senhor, disse António Carneiro, ides concertar negócios, a esta hora,
relativos a frades dominicanos?
— Que queres, António? pediste-me que recebesse esse moço, a quem
tanto elogiaste valor e brio, e é meu dever animal-o no empenho de fazer
carreira pelas armas, ou na diplomacia. Sobram-me capitães valorosos
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 249

para a conquista do mundo, mas faltam-me agentes para os favores dos


governos.
— Reservaes em Roma, ou em Castelia?
intuitos
— Nas duas cortes, sem dúvida. . .

— E quanto Ignacio a ?

— Pode ser em ambas as partes.


utii

— Com quê?
— Com a espada de Pedro.
— Comprehendo — tendes então, uma esperança ?

— Na cruz da espada . .

— Acautelae-vos, senhor, que o logar de inquisidor-mor c coroado como


o dos principes. . . Noto, senhor meu, que andaes ha tempo preoccupado
demais com as missivas de D. Miguel da Silva. Se tendes confiança em
mim, abri-me o vosso peito. Eu sou tão leal que vos affirmo ter approxi-

mado Ignacio, por ser contrario á influencia de Castelia. Se sonhaes com


o tribunal da Inquisição, por fazer graça, á rainha, minha senhora, seguis
caminho errado. Ignacio é agente da nova corte papal, e Pedro Soares
fidagal inimigo de perseguições intolerantes. Se ides com meu conselho,
bem ides com taes ajudas; se delle vos afastaes, perdereis vosso tempo.
Olhae o reino, a Africa e a índia, e não percaes espaço demasiado com
os negócios do Céo.
— Eu digo, como tu dizes, ou melhor como tu escreves:

Coração não me repousa


Com desejar uma cousa .

— E essa cousa é ? Senhor, dizei, pela vossa leal estima para commigo,
o mais sincero dos vossos vassallos.
El-rei e o secretario tinham chegado á porta do salão do conselho.
António Carneiro ia abril a. . .

— Espera, lhe disse el-rei. Vou dizer-te meu plano. Consiste cm pouco:
ganhar tempo.
— Como, meu senhor ?

— Lembras-te do que me disseste hoje a respeito da seita, que surge,


influente e poderosa, junto da côrtc de Roma ?

— Sim, então
e ?

— Castelia afflige-me e tenta arrastar-me á sua politica de sangue e


de fogo. Poderia responder-lhe, como lhe respondeu meu cunhado D. João II.
Era mais simples, mas também mais perigoso. Prefiro enredar governos
e embaixadores. Vou começar a fingir que avanço, e encarrego o Papa de
. : . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

me negar o que meu sogro de mim reclama. Assim direi que estava prom-
pto a ceder, mas que não posso. . .

— E' obscuro, mas com um esforço distingue-se . .

— Ignacio é um agente secreto d'essa força. Náo se revelou, e eu não


o descobri... Vaes entendendo?
— Sou avesso a comprehensão de tramas. .

— Ignacio fará o contrário do que lhe recommendo, porque é essa

missão que o trouxe até mim, receoso de que a outras mãos fosse o en-
cargo. .

— Quereis então experimentar o prazer de ser enganado ?

— E de enganar. Concordas ?

— Não, meu senhor. A conja de Portugal não deve dirigir-se na poli-

tica da Europa com os enredos e embustes que não estão nas suas tradi-
ções. Se tal fizerdes, perdereis no conceito do Papa e no dos reis catho-

licos. Ou continuaes a obra de D. João II ou principiaes a de D. João III.

Essa dúvida, ou essa fraqueza pode significar, perante a Historia, uma


lacuna no throno portuguez. Tendes feito a guerra, em nome da civilisa-

ção também em nome


; d'ella é que deveis fazer a paz. Mandae Ignacio e
Pedro a Roma, se isso vos agrada, mas sem que reveleis desígnios nem
concedaes poderes. Bastará que elles digam o que de vós se diz e se pensa.
Depois resolvereis.
— Pois seja, tratarás de tudo, e eu irei, entretanto, ouvir a continua-
ção dos queixumes de Abreu, o cavalleiro infeliz.

El-rei afastou-se.

António Carneiro, á porta, pensava


— Sou o secretario d'um rei, ou o aio d'uma creança ?
— Senhor secretario, disse Pedro Soares, mal António Carneiro entrou
no salão do conselho, uma simples coincidência permittiu que viesse in-

commodar el-rei á mesma hora em que o sr. padre Ignacio vinha por sua
alteza. Tendo de conduzir com urgência, por ordem de Ayres da Silva, a

menina Deborah, ao mosteiro de Lorvão, vinha pedir-vos, senhor, vos di-

gnásseis solicitar d'el-rei a satisfação de alguns desejos meus.


— Podeis dizer, Pedro Soares, estou á vossa disposição. Estima-vos
el-rei e ha de servir-vos em tudo que fôr justo e não contrariar os interes-
ses do Estado.
— Senhor, alistado na legião destinada á pacificação da Africa e da ín-
dia, deveria partir, sem que as urgências da guerra me reclamem, antes
de findar o mez, para o meu destino, com o commando da minha gente,
que ainda não está apparelhada. Lorvão não é um mosteiro, é um abysmo.

Alli a honestidade debruça-se no cairel. Deborah não deve demorarse lá,


. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO sSi

e as justiças do reino querem detel-a até que eu liquide as minhas respon-


sabilidades. . . Senhor secretario, venho pedir a el-rei licença para me ca-

sar, afim de poder confiar minha noiva á guarda e aos cuidados de mi-
nha santa mãe.
— Ficae descançado. El-rei auctorisou-me a deferir as vossas preten-
ções. Só partireis depois dos esponsaes. .

— Obrigado, senhor. Mas isto não á tudo. Sendo Deborah minha mu-
lher, ficará sui júris, isto é, apta para se administrar e, portanto, para
iniciar sua irmã mais nova. . . Desejava, pois, senhor, que Sarah fosse re-
tirada de Lorvão, antes da minha sahida. .

— Concedido, disse o secretario.


— Perdoae-me, senhor; estou hoje muito exigente. Tenho ainda outra
pretenção. .

— Dizei oxalá que eu possa


; conceder quanto pedirdes.
— E' coisa de pouca monta : em poucos dias devem ser executados
em Évora os frades dominicanos. Só depois d'essas e.xecuçóes eu deverei
receber Deborah por minha mulher. Permittir-me-heis que espere ?

— Se é só isso não tereis de esperar muito. Se o cumprimento da


sentença se demorasse, el-rei poderia hesitar em fazer justiça. Eu abre-
viarei a execução, para que não ganhe terreno a reacção que invadiu a Al-

cáçova.
— Que Deus vos pague o bem que me fazeis.
— Voltareis por aqui, Pedro Soares, antes de partirdes para Lorvão.
El-rei deseja ainda receber-vos, e talvez imcumbir-vos de tarefa menos
molesta que a de combater os mouros de Cananor. Tereis embaraço em
ir a Roma em missão secreta junto da corte de Júlio II ?

— Que el-rei disponha de mim como lhe aprouver.


— Voltae então ; depois ireis em caminho de Coimbra entretanto os ;

frades pagarão suas dividas, e vós em seguida regressareis á corte com

vossa mulher e cunhada.


— Senhor secretario. disse Pedro, cortejando sahindo.
. . e
— Agora nós, senhor padre Ignacio, temos muito que conversar, disse
Carneiro.
— Dizei, senhor.
— El-rei precisa de vós.
— E' grande honra, senhor. .

— Honra proveito. e .

— Basta-me a primeira. . .

— Seja; não se esquece de que qiiod el-rei abiiihiat. . .

— Podereis começar, senhor secretario.


. . .

252 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Tendes recebido noticias de Roma ?

— Frequentes vezes.
— Os amigos do Papa ?

— Trabalham — contentam-se com — o trabalho tudo. isso é

— Mas trabalham com ou por simples devoção?


êxito,
— A sociedade fomenta, mas não usa devoções.
— Faz bem em dividir os poderes.
— Quer e possuil-os a ambos.
dividil-os,

— Já tem Deus do seu lado?


-Já.
— E o Papa ?

— Espera conquistal-o. . . e o cerco vae já apertado.


— Eis o que interessa, disse António Carneiro. Sentemo-nos, sr. pa-
dre Ignacio. Consta que os christãos-novos, animados com a nova attitude
d'el-rei, julgaram opportuno recorrer a Sua Santidade... E' verdade?
— E'. Os nossos sabem quanto elles valem, e ajudam-nos.
— E Júlio II?

— Inclina-se para elles, mediante concessões.


— E Castella?
— Sopra cada vez mais as suas fogueiras, em nome da mais estupida
superstição; mas os reformadores hão de também invadil-a, e vencel-a.
— Nada se lucraria, então, em transigir com os reis catholicos?
— Pelo contrário, tudo se perderia. Em breve os thronos da Europa
hão de assentar sobre as consciências submettidas. Isso é que representa
força. Sobre cadáveres a realeza não tem firmeza.
— Sois do meu parecer, indispensável que e é el-rei seja do nosso.
— E a rainha r

— E' uma difficuldade, mas não invencível.


— A fraqueza do espirito do D. Manuel mais sr. é para temer. A ac-

ção fraca pode vencer quando a reacção é mais fraca ainda.


— Tendes razão. El-rei é volúvel, e tem medo do inferno. .

— Também receio o duque D. Jayme . .

— InofFensivo. Anda entretido na guerra, na piedosa obra de resgatar


a memoria de seu pae. .

,
— E o paiz ?

— Uma miséria! Se amanhã D. Manuel fundasse a Inquisição seria


acclamado com delirio. O povo, se não anda no mar, ou além d'elle, reza,
não sei se por amar o Céo, se poi' temer o inferno. Em todo caso parece
filho de Torquemada.
— Resta-nos, então, só uma esperança: Roma.
MYSTERIOS DA iNQUISIÇAO 253

— Sim, Roma, governada pelos novos.


— finge
El-rei finge condescender. A'manhã um beijo da
resistir, e rai-

nha, um recado de Castella, um murmúrio da corte, revira-lhe a opinião


e a vontade. E' preciso, portanto, aproveitar as disposições em que agora
está.
— Que preciso fazer?
é
— Partir para Roma, e lá, approximando-vos de Pedro Soares, que en-
trará na intimidade de D. Miguel da Silva, nosso embaixador, sabereis
das relações particulares del-rei de Portugal e dos reis de Castella.
—E depois ?

— Para que o perguntaes ? Sabeis de sobra qual é o alcance das mi-


nhas palavras. . . Depois falae com S. Pedro e tudo poderei contrariar. . .

Ha na yKIcáçova dois partidos —o do rei e o da rainha — isto é, o da po-


litica nacional, legada pelo algoz do duque de Vizeu, e o da corte caste-
lhana, intolerante, fanática e retrógrada. Precisamos de auxilio, venha
d'onde vier, comtanto que inutilise a surda intriga que põe em perigo a
paz do reino. Querem os reformadores fundar as novas sociedades na
exploração d'uma raça, que, convertida ou não, é um grande elemento de
força e de riqueza : Não discuto a moral d'estes intuitos ; c certo, porém,
que, neste momento, me convém. Estou comvosco, padre Ignacio.
—E podereis contar commigo ; serei contra el-rei, por causa d'elle e
em proveito do reino. E preciso defendel-o de influencias extranhas. E pos-
sível que os padres da seita um dia recommendem a Inquisição; mas,
n'esse dia, ella será estabelecida e sustentada por elles, e não quei-
mará gente por questões de fé, mas por interesses materiaes da huma-
nidade.
— Ides, pois, padre Ignacio, começar a vossa tarefa, tendo o cuidado
de não esquecer que farei duplas communicações — as que lerei em con-
selho — e as que guardarei para mim.
— Já conheço, senhor secretario, a honra que me dá el-rei. . . Podereis
indicar-m.e o proveito, se elle não é paga, mas gratidão ?

— Deixo á vossa escolha a situação futura . . .

— Sellaes com a vossa palavra esse direito ?

— Opponha-se Roma ás petições d'el-rei, se elle as fizer, sob a influen-


cia de C-astella, e sereis, na egreja portugueza, o que mais vos agradar e
dér proveito.
— Acceito. Quando deverei partir:
— Logo que parta para Almeirim,
el-rei e depois das primeiras novas
de Tristão da Cunha.
— Contae commigo, senhor secretario.
MYSTERIOS LIA INQIISIÇÁO. — VOI.. I. FOI.. 32.
. . : .

254 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Entretanto continuareis no mosteiro. Em breve elie será restituido


aos pregadores. .

— Incondicionalmente ?

— Cuidarei na exclusão dos que teem culpas no ultimo acontecimento.


Os dois homens separaram-se com um sorriso e um aperto de mão.
António Carneiro dispunha-se para a iucta, e ao regressar aos aposen-
tos da rainha, como se estivesse a recordar as suas ultimas rimas, ia di-

zendo mentalmente
Coração não me repousa
Com desejar uma cousa

. .
— Então? perguntou el-rei.

-^Acceitam e partem brevemente. Escolherei esse momento.


— António Carneiro, conversei na tua ausência com a rainha.
— Sobre o mesmo assumpto ?

— Não, sobre Jacob.


— E promettestes ?. . .

— Examinar o caso, que me parece grave. Talvez não valha a pena


discutir a entrega. . .

—E uma reconsideração. .

j — Mas não official. Imagina, António, que Jacob Adibe fugia de nós,
e se internava em Castelia ?

— Uma traição. . .

— Não vale discutir nomes. Jacob que fuja, e tu indica-lhe o caminho.


- — Entendei-vos directamente com Ayres da Silva. Poupae-me a mis-
são, que não é própria de minha magistratura, senhor.
1 — Pois
.
bem, o regedor das justiças cuidará n'isso. Bem vês, António
Carneiro, que se vou a negar tudo que me pedem. . . porque me pedem,^
repara bem. . . Não soffreria uma imposição, mas assim. Fechemos os
. .

olhos. . . Bem sabes, além de tudo, que, a justiça de Castelia já em tempo


veiu a Portugal buscar os fugitivos, por que isso lhe deixámos fazer, para
não violar as promessas feitas a judeus e a christãos.
— Sabeis quem é Jacob Adibe'
I
-— Disseram-me que filho d'um judeu proscripto. E' uma aggravantc . . ^

j — Mas é um judeu que poupou vidas de christãos na tomada de Aza-


mor. .

— Bem sei: prejuro~e traidor. E' bem certo que os filhos não teem as
eulpas dos pães ; nota porém, que nunca vi brancos filhos de pretos — os
mais felizes são pardos.
— Noto, senhor, que á roda da rainha, minha senhora, saltitam e
. . : :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 255

murmuram agentes de diversas origens, mas todos conspiram contra vós,


senhor. .

— Conspiram? conspiram? Que idéa! Que me importa isso ? Até me


lisonjeia a conspiração. E' signal de que tenho opinião e força ; se não a
opinião dos outros, a minha ; se não a minha força, a que me vem dos ou-
tros. Vem d'ahi, António, já ouvi os teus versos, — não são maus — são me-
lhores que os teus conselhos, e ouvem-se com mór agrado. Vem agora
ouvir os de Diogo Brandão.
El-rei bateu no hombro dum moço fidalgo, que o era por nascimento,
mas não por nomeação régia.
— Ruy Gonçalves de Castello Branco, sabemos que sois repentista.

Haveis de improvisar alguns villancetes esta noite.


— Senhor, obrigado ; tendes, porém, antes de mim, a Ruy da Gama,
que responde de prompto á pergunta de qualquer.. .

— Não vos escuseis d minha custa, Ruy Gonçalves. Onde esta Diogo
Brandão nenhum de nós deve invocar as musas sem afinar o metro com
a musica. . .

— Não haja ralhos por tão pouco, disse el-rei; ouviremos Diogo Bran-
dão... Senhoras, ditae um mote.
—O mote será meu, disse D. Guiomar de Menezes, mulher de pere-
grina belleza e razoável vaidade.
— Perdão -— Maria Cardosa. Já tivestes, senhora, resposta de António
Carneiro. Abraçaes o céo e a terra I Deixae agora D. Margarida de
Ataíde . .

— Attenção, meus senhores, disse el-rei soberanamente, venha o mote


de D. Margarida.
Fez-se silencio momentâneo.
D. Margarida de Ataide coUocou-se sentada em frente de Diogo
Brandão, e, depois de pensar um pouco, disse vagarosamente, accentuando
as palavras e até as syllabas

A\ío falando, ))uis morrendo,


confessaram.

Diogo Brandão levantou-se, ajustou o cinto, e compoz o gibão, passou


a mão nos cabcllos, sorriu-se para D. Margarida d Ataide, comprimentou
el-rei e a rainha e começou agitando o busto em requebros efteminados

Os que logo declararam


suas dores, em querendo,
muitas vejes se estimar'am,
. .

35b MISTÉRIOS DA INQUISIÇÃO

»ias inuiljs }}ijis se obrigaram


aquelles, que padecendo,

não falando, mas morrendo,


confessaram.

— Muito bem, muito bem! disseram diversas vozes, emquanto os ho-


mens e as mulheres trocavam olhares e gestos approvativos.

— Outra, disse Brandão, fazendo uma mesura de agradecimento:

Bem podem di^er fugidos


seus amores, os primeiros,
mas a que estes já vencidos

pela morte conhecidos


são seus males verdadeiros,
e se muitos confortaram
em suas penas dizendo
e d'isso se contentaram,
portanto, mais obrigaram,
aquelles que, padecendo,
não falando, mas morrendo
confessaram.

Uma salva de palmas encheu o salão, e o poeta, que na arte de amon-


toar palavras foi um dos mais distinctos dessa épocha e que mais paginas
consumiu no cancioneiro de Resende, foi cordialmente felicitado!
— Haveis de escrever isso para eu guardar, sr. Brandão, não é assim?
— Senhora minha, se me não falhar a memoria, cumprirei vossas or-

dens.
—^E

guardae uma cópia para Resende, disse Ruy da Gama, que faz
provisão do seu e do trabalho alheio. .

— Obra pobrinha e defeituosa não merece já os cuidados de quem


anda poetando pela índia em honra de Tristão e Albuquerque.
— Nãovalem os delle mais que os nossos, e aos d elle falta o mérito,
que teem estes.
— Qual? perguntaram algumas ^ozes.
— De serem delle. .

— Crivae-vos, senhores uns aos outros,


trovistas, com tanto desapego
e graça, que até dizeis bem quando dizeis mal. . .

— Ha um, senhor, entre nós, que esplende como o sol, e de quem to-

dos dizem mal por não saberem dizer melhor o bem que elle merece,
disse Castello Branco.
— Falaes do Gil?
: !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 1b^

— Pois de quem? De Gil, que faz versos de ouro, tão artisticamente


cinzelados em lingua hespanlioia e portugueza, como o outro Gil cinzelou
baixellas e sacrários para o paço de Santo Eloy.
O pagem, n'este momento, annunciou com voz sonora e alegre

—O sr. Gil Vicente !

Houve um movimento de curiosa vivacidade cm todo o salão.


Gil appareceu ao fundo. Era um moço gentil, delgado, alto, de bella
fronte, olhar vivo, cabello setinoso, em madeixas sacudidas sobre o estofo
azul do corpete que lhe alargava os hombros, e mais accentuava as linhas
do busto, apertadas na cintura, onde havia cadeias douradas e íivellas de
pedrarias. O resto do tronco, em largos tufos que lhe cobriam as náde-
gas — meia de seda rosa desde o borzeguim atacado até o alto da perna,
bem lançada e sem musculatura, como as dos pagens nas operas lyricas,
desempenhados por travestis da melhor plástica... Gorro na mão, de
longa pluma a roçar a alcatifa, sorriso nos lábios, feliz e triumphante
Gil avançou, com passo ligeiro ate junto da rainha, vergou um joelho
sobre o almofadão, segurou com a extremidade dos dedos a mão real, que
tocou, muito ao de leve, com os lábios. Levantou-se de novo, ergueu a ca-
beça, e, já a distancia, tendo recuado três passos, outra vez a inclinou,
levando o gorro até o peito, fazendo voar a pluma, que voltou a descer
rapidamente até o chão. Encaminhou-se depois até o diiwi d'El-rei. e em-
bora, com menor requinte e demora, cortejou D. Manuel.
Em seguida, n uma volta rápida, inclinando a cabeça sobre o peito tan-
tas vezes quantas eram as damas que cortejava, parou um momento deante
de cada uma. Einda esta volta, que foi feita em menos tempo do que o
necessário para a descrever, metteu o gorro debaixo do braço, arqueou o
peito, sacudiu o cabello, e, com as mãos extendidas, foi apertando as de
Diogo Brandão, Castello Branco, Ruv da Gama, etc, ao mesmo tempo
que cortejava, a distancia, o secretario e os fidalgos mais grados daquella
corte opulenta e alegre.
Os homens sorriam-lhe, face a face, uns batendo-lhe no hombro, ou-
tros nas mãos, outros saudando dos cantos do salão com gestos familiares
c carinhosos. . . as damas recebiam-lhc as vénias baixando os olhos, não
raras acolhiam com sorrisos os graves comprimentos, e outras o exami-
navam com viva curiosidade.
Quem lançasse n'esse momento um rápido golpe de vista por toda a
sala, veria na altitude dos grupos, na direcção dos olhares, nos segredos
mal disfarçados, nas indicações feitas, que (iil ^'icente era o alvo de todas
as attençóes.
Ninguém diria, no aspecto daquella corte, que assim adorava o crea-
358 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

dor do theati'0 nacional, o cultor e reformador da nossa lingua, o poeta


gracioso e conceituoso que enriqueceu, a sorrir, a nossa litteratura, que
estava em Portugal, a três mezes da horrível sedição em que morreram
duas mil pessoas! em dois dias! por questões de fé religiosa! e a dois pas-
sos apenas d'essa infernal intriga diplomática, que havia de levantar os
muros do Santo Officio!... Ninguém diria que estava no seio da corte
dum rei que symbolisava a descoberta de novos mares e de novos conti-
nentes, e no escurecer sinistro da consciência d'um grande povo!!
N'aquelle momento reinava Gil Vicente, o poeta!
Que prodigiosa é a influencia do talento!
Que magica supremacia exerce a grande arte!

Roma, Castella, Itália, Allemanha, Deus, Jesus, Moisés, Mafoma, a

Africa, a Índia, o mar, a guerra, a intriga, os conselheiros do príncipe, a


sociedade dos padres, o Papa Júlio, a perseguição dos judeus, a reforma
das ordenações; tudo, emfim, que prendia e dominava a politica daquella
épocha, tinha esquecido!
Gil Vicente enchia a Alcáçova, os aposentos da rainha, os olhos e os
espíritos, até o espaço a que elle lançava os versos dos seus autos, em
scenas, em declamação, em caracteres, em scenario, fazendo desabar no
abysmo da banalidade e da monotonia o velho jogo de vocábulos, sem
imagens, sem idéas, emmaranhado c enigmático!
Na palavra de Gil Vicente havia fogo, luz, movimento, \erdade . . .

Uma grande arte, uma nova musica, vinha deliciar o ouvido e commover
o coração. Ainda não se comprehendia bem o que aquillo era, tuas já se

adivinhava a grande revolução litteraria que havia de assignalar, na his-

toria, o período clássico italiano, que condemnação dos combatentes


foi a

do Cuidar e suspirar. Gil, que lançou a nossa lingua nos moldes mais
elogiados por João de Barros e Fernão d'01iveira, que democratisou a lit-

teratura palaciana com os quadros campesino*s da vida beirôa, e com os


perfis vigorosos da gente popular, deu á narrativa aquella síngelleza e en-
canto, tão difterentes do estylo falso e amaneirado das éclogas pastoris.
Assim como Luiz de Camões symbolísou o sentimento da nacionali-
dade, Gil Vicente symbolísou a liberdade de consciência. Adeantou-se Gil
no falar e no sentir, ao mesmo tempo e ao seu meio, e, quer elle tenha
sido, quer não, o Vinci e o Angelo portuguez, lavrando a custodia de
Belém e artirmando a ourivesaria da Renascença, o que alguém aftirma e
alguém nega, a verdade é que Gil, que surgira na corte de D. João II,

pela mão da rainha D. Leonor, n'essa corte se manteve e na de D. Ma-


nuel, com tal fixidez e fulgor, que foi a admiração do seu paiz.
K!le surgiu no tempo dos momos e entremezes, mas não se escravisou
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 25g

á influencia d'esses crochets-poeúcos. Fez obra sua, que foi até a funda-

ção do theatro portuguez, assim como Bernardim Ribeiro e Sá de Mi-


randa, que acataram a tradição provençal, foram até o espirito idealista
italiano.

Assim, o seu talento e o seu estro não se moldaram na velha eschola,


assim o seu caracter e a sua independência não se perderam em pérfidas
cortezanias.
Gil cingira a lyra como um rei impunhava um sceptro ! Deantc de prín-
cipes vergava a cabeça por galantaria, mas não o pensamento por servi-

lismo.
Os seus versos, recitados por elle, pareciam que tinham sido escriptos
a cores, e não a tinta preta sobre amarellado pergaminho. Era um poeta
que sentia, um versejador correcto, e um actor com voz, com figura e
com alma I

Com a mesma naturalidade com que, alguns annos antes, fizera o


monologo do Vaqueiro, na alcôxa da rainha, para saudar o nascimento do
principe D. João, se mostrava agora fidalgo da melhor estirpe e de garbo
mais captivante.
Estava no periodo aurco da sua inlluencia. Adoravam-n'o as duas rai-

nhas, D. Leonor e D. Maria, e cada uma disputava, com súpplicas e quei-


xumes, a presença do moço poeta nos serões dos seus paços.
Tivera um successo o seu monolos;o de Visitação, e a illustre viuva de
D. João II, pouco depois lhe applaudira, com grande enthusiasmo, em uma
noite de Natal, O auto pastoril castelhano! Em seguida ao dos iMagos
veiu o da Sybilla Cassandra, que arrastou toda a corte de D. Manuel ao-

templo da Madre de Deus ! E depois o de S. Martinho e ainda o dos


Qnatro tempos ! . .

E a gloria a illuminal-o cada vez mais com os seus fulgores n"uma


épocha tão cheia de odios e de lucto ! E, envolvidos nos esplendores da
corte, iam de Lisboa para Évora, Almeirim, Santarém e Coimbra, sem-
pre, a figura, a palavra, o gesto de Gil Vicente, alegrando o fanatismo
das Rainhas, as preoccupações conquistadoras dos reis, e as intrigas dos
fidalgos !

Parecia um sol a conservar eterno dia naquellas almas cheias de cre-


púsculos !

E, momento a momento, como se andasse a cerzir com versos gra-


ciosos a esplendida litteratura dramática, que resurgiu no espirito de Gar-
rett, ia aprimorando e modificando o gosto e os costumes da sua geração.
E, vestindo sedas e velludos, e cortejando príncipes e vassallos, ia estu-

dando e descrevendo typos, hábitos e consciências populares, apertando-


. !

26o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

assim, em faixas de conceitos, franjadas de rimas, a orgulhosa fidalguia e

o povo ignorante e esquecido


Por isso todos os oilios se fixavam em Gil Vicente, e delle se falava

era todos os grupos, e as mulheres e os homens lhe sorriam, e elle, cora

ar de alegre triumphador, acolhia saudações e emraudecia invejas. ..

A chegada de Gil Vicente representava nos serões da Alcáçova, desde


os mais Íntimos, até os mais solennes, ou o principio, ou o fim delles.
Emmudeciam os trovistas, depunham os tangedores as violas, arrefeciam
os idvllios silenciosos ! . . . Se elle chegava cedo parecia que era aquella a
hora em que se illuminava raais forteraente o salão ; se chegava tarde, pa-

recia que o dia jorrava de surpresa pelas adufas, empallidecendo as cham-


mas dos candelabros I

— Gil, disse tarde vieste.


el-rei, . . E por que, sendo aqui tão desejado?
— Senhor, perdoae-me, que hoje não vira por vós, nera para rae de-
ter. .

— Vindes então encerrar um serão, que seria um dos mais pobres, se


.durante elle não se tivesse falado em vós ?

— Talvez, meu senhor; e trago-vos chave de ouro para que o encer-


reis alegre e feliz.
— Vinde a mim, Gil, e entregae-ra"a. Não haveis de arremessar-ma
d' onde estaes.
— Se o permittirdes, senhor, será d'aqui, e era voz bem alta, que eu
vos direi o mote, para que o aproveiteis na vossa prosa real e magnânima.
E Gil collocou-se no meio do salão, como se fosse recitar um dos seus
autos, ou monólogos.
— E' o auto que vos encommendei, Gil perguntou a rainha. ?

— Ainda não, senhora minha. Deve haver mais cuidado em ordens de


vossa alteza.
— Pela alegria do rosto pareceis empenhado em tarefa de gosto, disse
António Carneiro.
— E não vos enganaes, sr. secretario. Ides ver.
— Ahi vae o mote, disse D. Manuel. Toraa tento. Podes responder
era verso, ou em prosa :

Reina Gil Vicente.

— Obrigado, meu senhor. Será em prosa dictada pela poesia do cora-


ção. Ouvi-me, senhoras, que sois virtuosas, pela fé e pelo amor; e vós se-
nhores, que sois sabedores e justos :

Noticias de Coimbra dizera-me parar naquclles sitios, um velho amigo,


tão velho como. só chegam a ser os amigos que tivemo* na infância, que
i>gn}_dní)bo/,ht'ji

Ahi v;ie o mote, disse D. Manuel


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 361

escutaram as nossas primeiras confidencias, que nos saudaram nas pri-

meiras glorias. Esse amigo, senhoras e senhores, é judeu pelo respeito á


crença de seus pães, mas judeu christianisado pelo respeito ás leis do reino.
Tendo o pae sido proscripto de Portugal, refugiou-se em Castella, e, ten
do-o Castella perseguido, refugiou-se em Portugal . . . Triste, desilludido,
christão perante as leis, judeu perante o povo, portuguez de lei á face da
sua consciência, ha muito que pensava em acolher-se aos braços de seu
pae, que se acha em terras do Oriente. Nasceu-lhe porém, no occidente, o
sol do amor, que vem dos olhos de uma mulher formosa, e lhe poz em
labaredas o coração. . . Nada mais simples, não é verdade ?. . . Deixar-se
consumir nesse fogo. . . Assim era, de facto, e a tanto estava disposto, se
o não reclamasse, com os acenos mais diplomáticos, o fogo da Inquisi-
ção de Castella. Sei eu, sabem todos, que se pede a extradicção delle,
christão-novo, não sei se por ser novo em christandade, se velho em ju-

daísmo. Eis o meu ataque n'essa liça do cuidar e suspirar, senhor.


— Como se chama o teu amigo, Gil ?

— Jacob Adibe. . .

— Effectivamente o reclamam, Gil; mas eu. .

— Senhor, que ides dizer? perguntou a rainha rapidamente.


— Calae-vos... disse em voz baixa. — Explicarei tudo.
el-rei

— Mas vós ? . .

— Eu, D. Manuel herdeiro e successor de D. João que nunca ce-


I, II,

deu a taes instancias de Castella, respondo-te, Gil, com o mote que te dei;

Reina Gil Vicente


— N'esse caso?
— Dizei o que vos apraz.
— Não será entregue a Castella o meu leal amigo ?

— Não será; repara no que digo: Se te Jacob estiver livre, sahirá do


reino, por qualquer ponto da fronteira terrestre.
— E, estiver captivo?
se
— As vossas redondilhas lhe abrirão o cárcere.
— Obrigado, senhor! Que Deus faça o vosso reinado o mais bello e

feliz!. . . Não o conheceis, senhor. . . Ah! mas se o conhecêsseis?!. . . Que


têmpera de portuguez e que alma de christão! Por essa vossa sentença,
senhor, dar-vos-hia a minha lyra, a minha musa, o meu futuro!
— Tudo

conseguis, Gil, quando pedis com interesse. A vossa eloquên-
cia, ou obedece a regras diabólicas, ou se mergulha em philtros divinaes.
Estaes nomeado, Gil Vicente, mestre de rhetorica do príncipe D. João.
Gil Vicente approximou-se de el-rci e beijou-lhe a mão, agradecido.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL 1. FOL. 33.
.. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Foi dando, e não recebendo, um beijo, que Judas atraiçoou. .

Gil Vicente ia a retirar-se.


— Tu próprio, Gil, ides a Coimbra ?

— Sim, meu senhor. Partirei amanhã.


— Para que tanta pressa?
— Sou tão leal, senhor, que sempre espero traições.
— Dizei-lhe, então, que o livro da inquisição, e que elle me livre do
embaixador de Castella. .

— Prometto por elle.

— E, se o amor o detiver ?

— Pela minha honra — juro com egual confiança na vossa palavra, se-

nhor, que sois meu rei, e na d'elle, que é meu par. . .

D. Manuel corou.
António Carneiro, que se approximara:
— Começa a punição mais cedo que o crime!. .

— Por que dizeis tal ? replicou el-rei, levemente contrariado.


— Porque faltaes, senhor, á vossa promessa, entregando a Castella
aquelle a quem promcttestes salvar.
— Quem sabe? Elle é audacioso e protegido... Poderá atravessar
Castella, sem que os esbirros do Santo Officio o alcancem e prendam.
— E se não puder ? . .

— Trocaes paz dum judeu pela paz duma nação?


a
— As nações também teem consciência... E, portanto, remorsos...
— Basta ; voltae cedo
Gil, Alcáçova vos aguarda sempre, ; vos
a e es-

pera a miude . . . disse el-rei. Que o vosso amigo vos inspire um auto como
sabeis fazer ...
E Gil Vicente recuando, de cabeça baixa, sahiu do salão. . .
VIII

Em ferros d'El-rei

Jacob, ao ser preso cm Loi"vão, seguiu, entre gente armada, para


Coimbra. Lorvão tica a pouca distancia da formosa cidade do Mondego,
o que não evitou que a viagem, feita a pé, e por maus caminhos, durasse
muitas horas.
Estava a tarde a declinar quando a guarda e o preso chegaram d porta
de Al-medina, que fica e communica com a
próxima da rua da Calçada
rua das Fangas e a do Quebra Costas hoje muito moditicada. Ao passar
o arco, a guai-da ajoelhou deante da imagem da Virgem, que el-rei D. Ma-
nuel alli mandou esculpir, junto das armas do reino e da cidade. Aos pés
da Virgem viam-sc a serpente e o leão, symbolos tradicionaes da velha
cidade mourisca. Jacob ajoelhou também, sem a isso ser compellido, e
no olhar que lançou á triste e formosa imagem ia o melhor baptismo da
sua fé ardente em todas as religiões de paz e d'amor.
No azul do céo, que ia a escurecer, sobresahiam as linhas da torre da
rrolacoin, de que nos fala Pinho Leal, e que depois foi, por muitos an-
nos, 43aços do concelho. Ainda hoje lá se vê o grande sino, que annun-
ciava a hora do silencio á cidade. . .

Depois desta rápida oração, a caravana seguiu para o castello, onde


hoje se acha estabelecido o observatório astronómico. Esse castello a.ssi-

gnalava-se na historia pela prova de bravura e fidelidade do alcaide-mór


Martim de Freitas.
Tinha desapparecido a velha torre de Hercules, onde se lia a inscri-

pção; Quinaria hirris Hercúlea fundata matiu, mandada fazer por D. Fer-
nando I, e que tícava junto á capella do Bom Jesus.
Ainda não existia a velha rua da Sophia, tão conhecida hoje, e que
constitue a parte principal da cidade baixa.
.\ guarda dirigiu-se ao castello. e alli entregou o preso, que foi reco-
lhido numa camarata, húmida e sombria.
! . . .

:64 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Por que não entraria eu em Coimbra pela porta da Traição ? pen-


sou Jacob, mal se achou no cárcere, sobre um escabelio tosco, encostado
a uma mesa grosseira e balouçante, onde ardia uma lâmpada triste e
agoirenta.
Despojou-se Jacob dos seus atavios mais incómmodos, e chamou uma
das atalaias que lhe passeavam, com andar pesado, junto da porta gra-
deada.
— Que quereis lhe disse francamente o guarda.
?

— E aqui, dizei-me, que deverei passar a noite?


— Decerto achaes incómmoda a estalagem
; ?

— Não, bom homem, parece-me até excellente mas, ; como julgo dif-
ficil passar uma noite sentado, e tão mal sentado, pergunto-vos : não ha
no castello uma enxerga, um catre, uma taboa, uma esteira, para que eu
não tenha que descançar os ossos na terra húmida ?

— Amanhã haverá tudo isso, mas hoje tereis de vos contentar.. . A


terra não é mais dura que a enxerga que cá temos, e que as taboas que
pedis.
— Tendes razão, homem de Deus. Já experimentastes a terra?
— Todas as Mal os presos
noites. se aquietam, sacudo as grades, para
ver que taes estão, e estiro-me ao comprido alli fora, que é mesmo um
regalo
— Já se vé, disse Jacob, sondando com o olhar a physionomia do
guerreiro, depois de terdes ceado. .

— Ceado!? Quem dera d'esses banquetes! A gente dorme mais de-


pressa com fome que com a ceia a bulir-nos. .

— Mas se ceasses ?. .

— Sacudia os ferros com mais força e aventurava-me aos pesadelos...


— Ahi tens, disse Jacob, atirando-lhe com uma moeda de prata, come
e bebe, e, se quizeres dormir, dorme, que eu só quero de ti um serviço.

O guarda levantou a moeda, olhou para ella admirado, e, mudando


a catadura e a voz, disse :

— Dizei, meu fidalgo ; no que pedirdes, sem prejuízo dos meus deve-
res, podereis contar commigc.
—E bem pouco: preciso de escrever algumas palavras, e depois fa-
zel-as chegar ao seu destino.
— Diabo, diabo, disse o guerreiro, tudo isto não vale nada. Podereis
escrever quanto vos aprouver. . . O peor é expedir a missiva. . .

— Ha ordem para eu não poder communicar ? . . .

— Ordens não ha, mas eu devo ser rendido lá para a madrugada, e o


meu camarada não \os conhece tão bem como cu . . .
. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO a65

— Percebo, disse Jacob ; encarrego-te de dizeres ao teu camarada quem


sou e quanto valho. . . Dá-lhe isto, e dize-ilie que tenho mais. . .

E deu-lhe outra moeda de prata.


— E para onde quereis que envie as vossas novas, meu tidalgo ?

— Para o mosteiro de Lorvão.


—È como se já lá estivessem. Ides então escrever?
— Logo que para isso me apparelhes. .

— E já; como se fósseis o sr. alcaide sereis servido.

O guarda ia a sahir.

— Vinde disse Jacob, sabeis por que estou preso


cá, "r

— Ora, por que ha de ser? E.vtendestes algum adversário...


— Não matei ninguém.
— Roubastes algum thesouro a algum judeu. .

— Não sou ladrão. . .

— Conspirastes contra el-rei?...


— Não, nada disso. Sou judeu!
O guarda recuou dois passos.
— Judeu! disse elle, isso é mais sério. Se sois judeu, e estaes piêso, é

signal de que sois reclamado pela Inquisição de Castella. .

— Por que dizeis isso? El-rei não entrega a Castella judeus refugiados
em Portugal ! A sua promessa . .

— Qual promessa, nem meia promessa... Tomara eu tantos jpo/'/?/-

gue^es de ouro, quantos judeus teem dormido n'este castello nas vésperas
de serem enviados clandestinamente á fronteira, c alli entregues aos es-
birros do Santo Officio.

Jacob estremeceu.
— Bem, disse, depois de ter serenado, os judeus pagam melhor. Acre-
ditae que matei e roubei e não me julgueis da lei de Mo3sés. Sou christão,
como vós, embora baptisado á porta da egreja. .

E Jar-jb entregou mais duas moedas de prata. . .

— isso vi eu logo, senhor fidalgo! Não tendes cara de judeu; lá isso

não tendes. Os judeus não emprestam, senão com juro, e vós até daes
com generosidade.
— Bem, trazei-me o que pedi. . .

— E não só No salão, do outro lado, ha


isso. uma enxerga e um xai-

rel, que parecem inventados para cama de príncipes . . . Não os tem me-
lhor el-rei na sua Alcáçova. . . \o\x por elles.
Poucos momentos depois, o guarda reentrou munido do que promet-
tera, e tudo dispòz nos seus respectivos logares.
— Quereis mais alguma coisa, meu fidalgo?
: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não; deixae-me em paz.


O guarda correu os ferrolhos da grade, pòz a lança ao hombro e co-
meçou a passear, na meia luz do corredor. Por vezes parava, batia com
a haste da arma na soleira da porta, e, mettendo a cara pela grade, per-

guntava com voz interesseira :

— Quereis alguma coisa, meu senhor ?

— Não vos esqueçaes de falar a quem vos render, ouvistes ?

— Não haja receio, que hoje não tenho somno;


— Obrigado pelo zelo.
— E por que não Não cuidado em vos
? émas em vos vigiar, servir.
— Dormi ou velae, que não me importa; deixae-me porém em paz.
isso

E o passeio continuou, a principio rápido, depois vagaroso, e afinal


tão fraco e irregular, que parecia apenas o ondular duma sombra proje-
ctada pela lâmpada da luz frouxa que illuminava o corredor.

Jacob mal pôde escrever, achegou-se á mesa balouçante e traçou eâte


lamento

«Senhora: — Escrevo, ao principio da noite, n"um dos cárceres do


castello de Coimbra, ouvindo os passos dos vigias, ao lado duma enxerga
miserável ! Estou calmo ;
penso em vós. Só uma idéa me tortura, idéa
que vae e vem, como uma borboleta escura que adejasse á roda da mi-
nha lâmpada fumarenta. Anda cila tão rápida, volve-se e revolve-se em
curvas tão diversas, são tantas as sombras em que passa, tantos os raios
de luz em que se atHige, que ainda não logrei vêr-lhe a còr das azas. Será
negra? julgar -me-heis culpado? Será branca? ter-me-heis por innocente ?

Perdi a liberdade por vos defender, e talvez perca a vida por me evi-
denciar. Que importa tudo isso ? l'm só pensamento me sobresalta :

se vós, senhora, me julgaes capaz do que aleivosamente me assacam.
«Disseram-me que estáveis em perigo, depois de vos ter visto. Antes
desta felicidade, injuriei um homem ; depois delia, desafiaria o meu e
o \osso Deus.
«Não sei quem sois, e quem sou. Não' obstante, os nos-
vós não sabeis
sos olhos reconheceram-se ; meu coração.
reconheceu-vos o
«Não quero dizer-vos nem uma banalidade, nem uma injuria — que se-
ria banal dizer-vos o que sinto, injuria prometter-vos o que não vale.
«Não sei se sois livre, e sei que estou captivo.
«Não posso libertar-me nem prender-vos. .
MYSTERIOS DA IM'^U1S1ÇA0 267

«Posso, comtudo, pedir-vos mais de uma lagrima de compaixão, uma


palavra de conforto. . .

«Aonde irei parar, n este declive cm qlie me lancei, n'este tempo em


que estamos, com o passado, que me impelle ? A vida ? d morte ? Se d
vida, quero renascer d luz dos vossos olhos ; se d morte, d extrema unc-

ção da vossa piedade. Senhora minha, softrerei, sorrindo, a pena injusta,


se com uma palavra triste me enviardes a absolvição...»

E Jacob ficou muito tempo a pensar se devia escrever quanto lhe acu-
dia ao pensamento, e, depois, bruscamente dobrou a escripta, e a sellou

com o mesmo anncl com que rasgara a lace do morgado insolente.


— Olá, gente, gritou para porta. a
— Meu disse o guarda estremunhado.
fidalgo,
— Ainda não rendido
fostes ?

— Parece-me que não, apesar de ter, em sonhos, dado o santo e a


senha d minha própria sombra.. .

— Aqui tens meu recado para o mosteiro ; se fordes leal dobrarei a pa-

rada.
— Ficae descançado que jd arranjei um escudeiro capaz de chegar ás
profundas do inferno, sem crestar os cabellos.
— E' da vossa confiança?
— E da vossa, pelo que vejo: c um rapazote que hoje chegou a Coim-
bra e que está dormindo como um cão, no portal do C^astello.
— E' de Coimbra :

— Não; de Lorvão.é
—^'Perguntae-lhe o nome.
— Jd o disse — Pepe. é
— Pepe exclamou Jacob; e
! apresentando ao guarda uma nova moeda
de prata -^ se elle viesse até aqui?...
— Diabo, diabo! só depois de passar a ronda...
— E' um momento ; falando com elle, explico melhor o que a escrever
gastava muito tempo.
— Pois seja, que o rapaz é vivo, fala depressa e anda ligeiro.

O guarda prolongou-se pelo corredor sombrio, e gritou d sentinella que


vigiava o pateo da entrada:
— Jonas, dei.xa entrar esse perro que fez canil do portal.
— O' rapaz, disse Jonas a um pequeno vulto abrigado n'um sombrio
recanto da arcaria, se queres ganhar um escudo, vem cá, que eu vou
abrir-te o caminho.
— Não é preciso incómmodo . . Como a grade não toca a abobada, e
. . . . .

208 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

as lanças, que a rematam, estão mais socegadas que as vossas, vou-me


por ellas acima e caio lá dentro sem cair. . .

E, ainda bem não tinha dicto isto, e já com a agilidade dum reptil tre-

pava os varões gigantescos, passava o corpo entre as pontas das lanças e


o arco da abobada, e escorregava rapidamente, pela parte de dentro, lan-
çando-se a meia altura sobre o lagedo do recebimento, com tanta elastici-
dade que o guarda o segurou pelos sovacos, parecendo recear que elle

tornasse a subir como se fosse uma pella.


— E's pássaro que já conhece a gaiola, birbante. .

— Como não dormi tive tempo para estudar a manobra. . . Lá na mi-


nha terra, para espreitar os ninhos, nas arvores e nas muralhas, trepo
mais depressa e salto de mór altura. Mas, quem precisa de mim ?

— Um judeu, que molhou a cabeça ha pouco tempo, para que não


lh'a cortassem. . . Ahi no fim do corredor, á tua esquerda. .

Pepe deitou a correr, e, ao avistar a luz da prisão, agarrou -se ás gra-


des, como se quizesse derrubal-as, e disse, em voz baixa e meiga:
— Sr. Jacob, ó sr. Jacob ! Pepe está aqui, para andar, correr, ou voar
cm. vosso serviço. . .

— Meu
bom rapaz, disse Jacob, approximando-se da grade e passan-
do-lhe amão pela cabeça, como se afagasse um cão, ou uma creança.
Pepe, ao sentir-se acariciado pela mão de Jacob, baixou a cabeça e
fechou os olhos, como costuma fazer o animal mais amigo do homem,
(juando o dono o afaga.
— Para que vieste, Pepe, tão longe e a pé, deixando sós as tuas ove-
lhas e cheia de cuidados tua familia ?

— Quiz saber para onde vos levavam, e vim por montes e atalhos, es-
preitando a escolta. . .

—E não me perdeste o rastro. .

— Isso, sim ! E admiro-me eu do nariz do meu Frade! Tem faro egual


o nieu coração de pastor. .

— Obrigado, Pepe ; fizeste bem em me seguir. Preciso de ti. E' ne-


cessário que voltes para Lorvão e leves noticias minhas á menina Sarah.
Informa-te de tudo quanto se tenha passado e traze-me resposta delia e
noticia do que ouvires.
—E se já aqui não estiverdes?
— Tens razão... sei eu por acaso para onde me levam: Mijdarei de
cárcere ? Sahirei do castello ? Deixarei Coimbra ? Que de surpresas poderei
ter emquanto tu vaes e vens?
—E se eu ficasse agarrado ás muralhas do castello, e mandasse alguém
ao mosteiro ? . .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 2G9

— Tenho conriança cm ti, Pepe, e tenho mais cuidado em Sarah que


em mim próprio. Parte, e voha depressa. Se me encontrares, ver-te-hei, se
me não vires... E Jacob ficou, por um momento, a pensar... Se não
me vires, disse elle, afinal, afagando novamente os cabelios negros do
pastor. . . busca-me, fareja, descobre-me. . . Nos casteilos, pelos caminhos,
•ou debaixo da terra, has de encontrar um vestigio da minha presença.
Preso, ouvirás lá fora os meus gemidos; fugitivo, verás na terra os meus
passos; deixarei a branquear na minha sepultura um pedaço da minha
jTiortalha. Trazcme noticias de Sarah e busca depois noticias minhas.
Pepe ficou calado e triste.
— Em que pensas, meu rapaz ?

— Que sou como o meu rebanho : á força de viver com elle, adivinho
o bom e o mau tempo.
— Então agora, que tempo annuncias?
—O peor de todos, o que se annuncia.
E Pepe, tendo dicto:
— Até á vista, sr. Jacob.
Guardou no peito a carta para Sarah, c sahiu do castello, esqueccndo-se
de saudar a sentiaella.

Vaes macambúzio como um frade, meu rapaz. Parece que te mor-
deu a tarântula, ou apanhaste febre quarta ! . . .

Pepe, sempre tão falador, que tinha sempre resposta acertada e

prompta, voltou a cabeça, fez um gesto de despedida ao guerreiro, e


afastou-se, com passo lento. .

Ainda Pepe não tinha desapparecido na ladeira e já a ronda torneava


a muralha, e interrogava as atalaias.
Jacob conservou-se algum tempo encostado á mesa, com o rosto illu-
minado pela lâmpada, e os olhos fixos na parede, núo como quem pensa
e vê, mas como quem sonha.
Por fim, obedecendo ao cançaço, estirou-se sobre a enxerga, adorme-
ceu, e sonhou deveras; sonhou que Sarah lhe escrevera, dizendo-lhe que
-o amava; que Gil Vicente, o seu grande amigo, viera vel-o e salval-o...
Com o grito das sentinellas despertou. Sonhara apenas. .. A verdade
era só aquella —a prisão com os seus muros negros, a lâmpada com a luz
mortiça, a grade com os ferrolhos, e o guarda a passear na penumbra,
com as rosetas das esporas a tilintar no lagedo. e a lança a descair-lhe no
hombro.
Que triste noite aquella, que século de afilicçóes e amarguras! Deante
delle o mysterio. . . A culpa que lhe attribuiam era uma pequena traição,
uma mesquinha vingança: era um supplicio que irritava, mas que não
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. l. FOL. 34-
. ! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

trazia o desespero. O que estaria, porem, atraz d'essa vil traição?..-


Quem sabe! Talvez outra maior. .

Estivera em Castella e cahira no inde.x inquisitorial. Era novo, ardente.^


e via seu pae proscripto. . . Falou alto... foi o bastante — ouviram-no,
denunciaram-no, perseguiram-no. Galgou a fronteira e veiu a Portugal.
Pensava em ir para mais longe, mas os braços de Philippa d'Eça prende-
ram-no. .

O amor christianisou-o, e, depois disso, converteu-se, primeiramente


em ciúme, depois em ódio, depois ainda em desprezo.
Começara a vida do paraíso confundindo o pra/.er com o amor. . .

Vira uma nuvem e adorou Juno. . . O fogo, quando é e.\plosão, não


deixa cinzas. Ha amores nos homens
. . que são como foi a maternidade
na Virgem, que ficou virgem, apesar da conceição.
Jacob, na sua vida aventureira, conhecera mulheres, mas não amara. .

Porque lhe ferveu o sangue julgou que lhe vibrara o cérebro. . .

Sarah veiu mostrar-lhe o engano. O amor era aquillo que ella lhe ins-
pirara; não pensava em beijal-a, e precisava de a adorar de joelhos.
Até alli fora todo egoísmo, agora era todo abnegação. Sentia-se mais
casto depois das suas aventuras da mocidade, que antes dos seus sonhos
de innocente
Até alli as mulheres tinham seio ; agora tinham azas 1 . . .

Começara por dormir com ellas. e abhorrecera a vida ; agora sonhava


com Sarah, e queria toda a vida em sonhos. .

Jacob quiz adormecer novamente; mas não pôde. Amava tanto a vida,
que já linha medo de perdel-a.
Se pudesse fugir? Dinheiro tinha que bastasse para corromper um ho-
mem, mas alli havia muitos a guardal-o. . .

E fugir para onde? Para longe de Sarah? E de Sarah, que elle jul-

gava em perigo ?

E depois, ou havia, ou não, desejo de o perseguir; no caso affirmativo,


iriam buscal-o onde elle estivesse ; se havia apenas a accusação falsa de
que tentara raptar Sarah, fácil lhe seria livrar-se sem culpa.
Além de que, escrevera a Gil Vicente, e appellara para a amizade d'elle
e para o valimento do poeta na Alcáçova.
Gil era-lhe dedicado; sabendo que elle estava preso, iria vèl-o. .

Jacob estava n'uma terrível indecisão — ora tinha uma esperança que
o resignava, ora o desespero que lhe amargurara o pensamento.
Assim se passou a noite — alguns momentos dormitou, e durante elles
a noviça lhe apparecia nas sombras da prisão, como uma imagem celeste
em um nimbo miraculoso.
MYSTKRIOS DA INQUISIÇÃO 371

P>, emquanto ella lhe sorria, Jacob não despertava... Tinha o êxtase
dos abstractos, via-a nitidamente! a mesma figura, a mesma voz... Elle
queria então dizer-lhe muitas palavras, fazcr-lhe muitas confidencias, in-

ventar respeitosos galanteios, elle ! que os fizera sempre com a grande elo-
quência fria dos que náu falam sinceramente... c ficava mudo! Tinha
vergonha de lhe dizer o que tantas vezes dissera a outras mulheres. Pare-
cia-lhe que ella o reprehendia,' não pelas palavras que elle não ousava
pronunciar, mas pelos pensamentos que o assaltavam.
O amor é sempre supersticioso; e por isso Jacob começava attri-

buindo o seu enleio a uma influencia magica, ou melhor divina, sobre o


seu destino.
Lembrava-se de que sentira alguma coisa parecida com uma revelação,
quando, pela primeira vez, á porta do mosteiro,'_ouvira falar em Sarah, e
na sua entrada .. Kra extraordinário! Nunca a vira, e n'esse momento,
via-a como ella se lhe apresentou depois — formosa — mais do que isso —
bondosa — ainda mais, ideal!
Por que se dera esse phenomeno?
Quantas vezes lhe tinham dado noticias eguaes a respeito doutras no-
viças e monjas, e logo sentia o desejo atrevido de as ver e lisonjear, de
lhes fazer a corte, de as requestar por divertimento c vaidade. . .

Quando lhe falaram em Sarah o que o alvoroçou não foi o desejo de


a vêr, foi o receio de que a vissem. P^izera o propósito de não voltar ao
mosteiro, e voltara irritado contra tudo e contra todos, ancioso porque Sa-
rah fosse aggredida, em vez de acariciada.
Quantas vezes perdoara elle as impertinências do morgado, e, em vez
de o ierir no rosto, o beliscara no orgulho?
Depois, e de repente, tomara ódio áquelle meio em que vivera, esque-
cera a mulher que o abandonara, perdoara ao rival que perseguira, e
ficara ab.sorto, contemplativo, deante d'aquella mulher — creança, que era
mais formosa que as outras, mas duma formosura, que elle vira de relance,
e que não era apparatosal
E, comtudo, Sarah era audaz, petulante, como um fidalgote imberbe;
tinha o másculo orgulho, que intimida pela humildade.
Não era uma creança timida, mas tinha da creança a franqueza que
vem da innocencia. O seu pudor não era d'aquelles que se intimidam, mas
dos que se defendem. Corando, mostrava no rosto o fogo da vergonha so-
prado pela indignação. Não era comparável ás raparigas da sua edade,
e que primavam em dissimulação de beatas, ou em audácias de impu-
dicas.

Não era innocente. mas casta, duma castidade consciente, como a pro-
! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

bidade dos homens de bem, que conhecem e abhorrecem a corrupção dos


biltres. Via-se bem que tinha a fibra de mulher temperada no infortúnio
e na dedicação. Quando ella amasse, como ella saberia amar!
. .

Elogiar-lhe o rosto e o vulto seria desmerecel-a. . . Aquelle bello estojo


guardava a jóia mais preciosa. . . Ao vér-lhe o olhar e o sorriso, era de-
ver avaliar as riquezas da sua alma. .

Donde viera ella?


Por que estava alli?

A sua historia devia ter sido curta — era apenas a historia d'uma in-

fância. . . Começava-lhe agora a morrer a adolescência, vida de dois dias,


começados e fechados em duas alvoradas! Era talvez apenas uma filha e

uma irmã, mas já com o tino de uma esposa. Mulher para a sorte mais
feliz, que ella saberia dourar com as magnificências da sua educação ou
intuição delicada e artistica; mulher para a desventura, que ella saberia
dulcificar com a sua corajosa resignação, e o seu carinho angelical! Como
havia de ser feliz o homem que a tivesse por companheira?! Honesta,
meiga, forte, dócil e altiva

A sua virtude não era como a sensitiva que se contrae, se respiramos


sobre ella, mas como o brazeiro que gera linguas de fogo!
Como era formosa quando erguia a fronte!

Ella ia decerto responder-lhe . . . Mas com que palavras?


Com as de uma confissão clara, precisa? Talvez não — elle' desejava e
não desejava isso.

Dizer que sim a primeira pergunta e resposta vulgar em mulheres im-


pressionáveis e fáceis. Nem elle lhe perguntara se ella o amava. Por ins-

tincto calculara as reservas d'aquelle espirito superiormente educado. .

Ella ia dizer-lhe que era grata e fazia justiça ao caracter d'ellc, mas
não diria mais. . . Nem devia dizer mais. Se ella o não conhecia! E n'essa
incerteza, para que desejava elle a liberdade?
Havia de voltar ao mundo, para não mais pensar em Sarah!
Jacob queria, e não queria. Esperava ancioso uma resposta . . em que
transparecesse uma esperança, mas temia que ella lhe mandasse uma cer-
teza. A certeza lhe tinham enviado as outras a quem elle requestara; Sarah
só podia mandar-lhe um agradecimento.
Ha coisas que não se dizem, adivinham-se ... O amor fala principal-

mente quando está calado.


O que elle queria era ver o rosto d'ella quando lesse as suas palavras.
Os olhos diriam tudo, então; um olhar, um estremecimento, um rubor,
um sorriso, surprehendido n"esse momento, seria a melhor resposta.
O que elle lhe disse não dizia nada. . . Se ella pudesse ler-lhe, n'aquelle
. . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 2/3

momento, lá dentro, no pensamento d'elle, havia de acredital-o. . . Mas


aquillo não se escreve, não se diz, não se acredita. . .

Uma noite inteira, n'uma prisão sob m3'steriosas ameaças, calumniado,


perseguido, perdido talvez, e de tudo esquecido, para só a ver, só pensar
n'ella!. .

Talvez que ella, áquella hora, na sua pequena cella, orando á Mrgem,
accordada ou em sonhos,também estivesse a vêl-o, a elle, e a pensar o
que elle pensava, n'um mundo de aspirações, de incertezas, de esperan-
ças. .

O que elle sentia, se era uma grande saudade, era sem dúvida um
grande amor.
Onde estava a arrogância do seu temperamento, a rigidez do seu ca-
racter, a sua desdenhosa compaixão para com affectos pueris, que se não
traduzissem em satisfação de desejos e em glorias de conquista? Parecia

uma creança, cheia de mimos, nervosa, desejando o desconhecido, com o


coração cheio de sorrisos, e com vontade de chorar ! . .

Sim, de chorar ; se não fosse impróprio, feio, ridículo, se não es-

tivesse accesa aquella lâmpada, se elle próprio não pudesse ver tal fra-

queza —a sua vontade era chorar por aquella viva, com aquella uncção
religiosa com que se chora por um morto
E se ella o visse!
Mas qile doença esta, meu Ueus, disse .lacob, que terrível doença!
E' febre, é delirio, c loucura!. . -

E não sabia que existia esse mal!

E o grito das sentinellas repercutia-se pelas abobadas do castello, e


.lacob, com os olhos cerrados, dormitando apenas, via em nuvens de luz
a imagem de Sarah, e movendo os lábios, dizia-lhe, com a difficuldade
tormentosa dum sonho:
— Sarah, minha querida Sarah! deve ser isto o que se chama amor...
.

IX

Céo toldado

Pepe metteu-sc a caminho para Lorvão, la triste e clieio de presentt-


mentos. A noite estava clara, e o luar é sempre o melhor guia e compa-
nheiro.
Percorrer umas três léguas approximadamente a pé, não era tarefa que
intimidasse o pastor. Se fosse necessário, faria a viagem a correr. . . Mas
para que, se apenas depois de nascer o dia teria de procurar Sarah...
P^altava-lhe o cão, e arrependeu-se de não o ter trazido; mas eile viera

a esconder-se da escolta, e o cão, que agora lhe seria bom companheiro,


então poderia ter-lhe prejudicado a espionagem.
Pepe, ao chegar ao Mondego, hesitou um momento sobre' o caminho
que deveria seguir. Resolveu-se, afinal, a seguir rio acima, pela estrada
que atravessava a serra do Dianteiro. N'essa travessia teve tentações de
voltar para traz . . .

— Pois não seria melhor vigiar Jacob que levar declarações de amor
á pobre Sarah ? Se não fosse Sarah, meu amo não estaria preso, e Deus
sabe exposto a quantos perigos !

Ia a lua em meio do firmamento, isto é, tinham desapparecido as gran-


des sombras das arvores, quando Pepe, tendo descido o monte de Santo
António dos Olivaes, entrou no valle de S. Romão, onde descançou para
retomar forças, que sentia quebrantadas. . .

Extendeu-se sob a ramaria amontoada n um recanto daquelle valle,


que é o enlevo dos viajantes, e, depois de comer alguma fructa que trazia
no seu bornal, fitou a lua e gemeu profundamente :

— Meu pobre amo! como serias feliz se esta lua te alumiasse agora,
em vez da lâmpada triste do teu cárcere ? ! Como tu havias de aspirar
esta briza fresca e perfumada, que desce do Espinhaço I . .

E Pepe ia a cerrar os olhos para dormir, quando ouviu o galope dura


cavallo, que vinha pela estrada, na direcção de Coimbra.
! . . .

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 275

Sem saber por que, talvez por imaginar que o cavalleiro viesse de Lor-
vão, levantou-se, pegou no cajado, c lançou-se a passo pela estrada fora,
ao encontro do inesperado viajante.
Áquella hora, por aquelle caminho, e a galope, só andava gente ex-
Tranha áquelles logares. A campo viaja com vagar. E o cavallo
gente do
era fino. . . e o cavallo é sempre uma feição do cavalleiro. .

Pepe avistava já o manto, que batia, com a velocidade e o vento, so-


bre as ancas do ginete. O homem que montava o fogoso animal parecia,
assim, ter azas e vir agitando-as para auxiliar a carreira.
Provavelmente ia passar- lhe próximo sem que o visse. . .

Talvez houvesse alguma novidade em Lorvão, ou viesse alguma noticia


grave para Coimbra. .

Se Jacob não estivesse preso, aquelle cavalleiro, que tão bem montava
e que tão veloz corria, devia ser .lacob. Mesmo de longe, notara como
elle descera o morro fronteiro e saltara alguns barrancos no valle. Era um
valente calção, e uma mão de rédea egual, ou superior, a poucos que já
admirara no corro de Coimbra.
Para dar na vista, chegou-se mais para o meio da estrada e procurou
em cheio a faixa do luar.
Emfim o cavalleiro passou-lhe próximo, e Pepe parou, para lhe admi-
rar a carreira, e principalmente lhe espreitar o rosto.
Impossível
Uma nuvem de poeira envolvia cavallo e cavalleiro, como se a terra

estivesse a arder e elles viessem suspensos na fumarada.


Pepe tomou uma resolução c gritou, agitando, ao mesmo tempo, o
cajado.
— Olá, viajante, cuidado com a ribeira!. ..

Pepe viu erguer-se a cabeça do cavalleiro, o cavallo empinar-se, e fa-


zendo uma volta rápida e firme, estacar a poucos passos, cmquanto a
nuvem descia rapidamente até assentar no chão.
O cavalleiro desenhou-se, então, nitidamente, firme no selim, e o ca-
vallo, coberto de escuma branca como a do sabão, respirava com grande
ruido, deitando pelas ventas pennachos fumarentos.
— Que é lá isso, rapaz? Temos ribeira a cortar o camioho.''
— A cortar o caminho, não, se acaso seguis para Santo António, mas,
se tiverdes de cortar á esquerda, correis o risco de cair. .

— Não aqui o yalle de S.


é Romão?
— E', sim, meu senhor.. . Depois de subirdes o monte haveis de ir

passar á serra do Dianteiro.


— Deve ser isso. . . Es destes sitios?
. . .

ajõ MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Estou próximo de casa. A minha choupana c em Lorvão.


— E então donde vens?
— De Coimbra.
— De Coimbra A que horas sahiste de
? lá ?

— Ha mais de duas porque tenho vindo contar as pedras.


iioras, a

— Ouviste na chegada dum preso remettido de Lorvão


falar ?

— Não ouvi coisa nenhuma, mas tudo. vi

— Tudo queres dizer


! ? . .

— Que com o preso, que meu amo, o meu melhor amigo...


estive é e

—E teu amigo ?

— Já vol-o disse; e dos melhores. Eu até devia estar preso com elle ;

e se fôr necessário, deixar-me-hei filar. .

— Tu falas do Jacob Adibe sr. ?

— Todo Conheceil-o, meu senhor


inteiro. ?

— Ouvi falar e vou saber onde


n'elle, pára. elle

— Nada mais simples em chegando a Coimbra, : dirigi-vos immediata-


mente ao castello. Elle lá está, coitadinho, mettido numa casa, que é peor
•que um curral. Valente, como elle é, alli preso, dentro de grades I Parece
um leão na jaula !

— Então, por que o deixaste ?

— Por que nem eu Porque sou


? sei. tolo. . . porque elle me pediu que
trouxesse um recado ao mosteiro. . .

— E esse recado é para Sarah ?

— Talvez : mas quem me está perguntando ? . . . Conheceis a menina


Sarah ?

— Sou seu irmão, rapaz.


Pepe tirou immediatamente o gorro.
— Salve-o Deus, sr. Pedro — que eu já sabia que existíeis. Falou de
vós, lá em casa, o sr. Jacob, e a vosso respeito disse maravilhas, que eu
não quero repetir.
— Levas, então, missiva de Jacob?
— Sem dúvida, e logo que a entregue, voltarei para Coimbra, e vou
deitar-me á porta do castello á espera do que der e vier.
— Dás-me essa missiva ?

•^Nem que me matásseis! Sei o que ella diz apesar de não a ter
lido...
— Então o que é ?

—O que dizem todos os namorados. Ainda que o sr. Jacob não é

como os outros ; mas eu sei quanto gosta da menina Sarah. . . Até o aju-

dei a defendel-a d'aquella manobra do morgado. .


. .

M^STEIÍlOS DA INQUISIÇÃO

— Vae, então, cumprir o teu dever, e dize em Lorvão que me encon-


traste no caminho de Coimbra.
— Ides ver meu amo ?

— Vou.
— Não o deixeis, emquanto eu não voltar ; receio que o mudem de pri-
são . .

— Vae descançado, Pepe, e não te arrependas de seres um homem de


brio e honra.
— Pepe Então sabeis o meu nome
? ?

— Não podias ser outro. O pastor que vigiou minha irmã devia pare-
ccr-se comtigo, meu valente rapaz.
— Sabeis, senhor, que me lembraes o Jacob sr. ?

— Por que ?

— Pelos conselhos que me daes, porque não e sois de imposturas. ..

— Bem sabes a que vou


;

— Consolar o preso ?

— Mais que isso; cuidar na sua liberdade.


— Reparae, senhor, que o cavallo pode esfria, e ter alguma dòr...
— Tens razão. Adeus.
E Pedro Soares partiu novamente a galope, pelo valle, e, poucos mo-
mentos depois, trepava o monte de Santo António, com a mesma veloci-
dade que Pepe lhe admirara.

Na dia seguinte ao da entrada de Jacob na prisão do castello, annun-


ciaram a este a visita dum moço cavalleiro.
— E' Gil, disse Jacob, e immediatamente: trazei-m'o.
Pedro Soares, mal lhe abriram a grade, entrou e ficou parado junto
d ella, com o manto descabido do hombro esquerdo e o gorro na mão di-

reita.

— E" ao sr. Jacob Adibe. . . que tenho a honra. .

— Sim, sou eu, senhor; e vós sois?


— Pedro Soares, de Lisboa, irmão, ou protector, como vos aprouver,
da noviça a cuja defesa sacrificastes a vossa liberdade. .

— Cumpri o meu dever, apenas. Conheço-vos por tradição, e sei que


farieis o mesmo, se tivésseis estado nas minhas circumstancias.
— Agradeço-vos o confronto, e, confesso-vos que tendes razão. Porque
eu não me comparo senão com gente da vossa elevação e lealdade.
— Sois irmão de Sarah?
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI. I. FOL. 35.
. .

278 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

• — Não; assim me chamo e ella me acceita, porque, como tal a amo


e protejo. Serei seu cunhado, graças ao meu amor por Deborah, sua irmã.
— Dae-me a vossa mão, senhor, e prometto que, dada a vossa situação
junto de Sarah. . . perdoae-me esta franqueza de trato... n'esta sohdão
tenho-me habituado a invocal-a assim . . dada a vossa situação junto de

Sarah, devo dizer-vos, senhor, que a vossa attitude me tranquillisa. . . Não


acreditaes no aleive de que fui victima?
— Sarah conhece a verdade toda, e as mulheres não se enganam. Di-
zei-me, porém, sr. Jacob Adibe, em que relações estaes para com minha
irmã ? . .

— Consultaes-me sobre factos, ou sobre sentimentos?


— Deixo-vos o direito de opção.
— Dir-vos-hei tudo. Defendi Sarah, e por ella me interessei, como faria,

no cumprimento d'um dever de cavalheiro, para com qualquer mulher


honesta, perseguida, indefesa. . .

— E' só isso? Daes-me a vossa palavra?


— Não; é mais: amo-a, sem que lho tenha dicto, como nunca amei ou-
tra mulher. . .

—E ella ?

— Nada sei... senhor.


— Só me faltava ver-vos para vos conhecer perfeitamente. Sarah con-
tou-me quanto vos deve, e, mal cheguei aLorvão, pediu-meque vos acudisse.
Acceitaes o concurso do meu braço e da minha vontade?
— Acceito.
— Que pensaes fazer?
— Esperar.
— E' pouco. Esperar pode ser a perdição. Conheço de sobra a incer-
teza que nos rodeia. Esperar o que? A liberdade? E vem ella sempre que
a esperamos? A liberdade procura-se, conquista-se.
— Confessando a culpa?
— Não que se
é d'isso trata. Sabeis que a Inquisição de Castella vos
reclama ?
— Sei; mas el-rei. .

— Não me tio em el-rei; Castella governa em Portugal na alcova do


rei. As negociações diplomáticas apertam o cerco á vontade de D. Manuel.
Fernando comprime com os lábios da filha a recusa do genro.. . E' pre-
ciso sair d'aqui quanto antes. Seja como fôr. A trama ou a violência; po-
deis contar commigo.
— Mas fugir para onde?
— Já vol-o disse — para fora d'aqui, e depois para longe, onde não
. . . . . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 279

seja fácil chegar, ou para perto, onde ninguém possa descobrir-nos. .

D'aqui á fronteira não lí grande a distancia, mas seria ir ao encontro do


inimigo. .

— Bem vedes a difficuldade. Por mar, como sabeis, não é fácil a sa-

bida.
— Inventarei um asylo em Portugal, bem secreto, bem occulto, onde
não chegue o faro dos aguazis. O melhor esconderijo seria em Lisboa.
Entretanto, a situação mudará talvez . .

— Confesso-vos, meu caro Pedro, que preferia atravessar a fronteira


quanto mais depressa melhor, pois temo mais a h\pocrisia de D. Manuel,
que a ferocidade de D. Fernando. Atravessar a Beira, escoando-me pela
serra da Estrella, ou pela da Louzã, e entrar em Castella velha por
S. Martin de Trevejo, ou Valverde dei Fresno, seria empresa longa, mas
muito menos arriscada. . .

— Tendo de abandonar o paiz, o melhor seria, disse Pedro, procurar


o mar, e aventurar-se a elle em qualquer barco da Figueira ou Buarcos.
Tenho em Montemor quem possa apparelhar-vos para a fuga. .


El-rei tem vigiado com cuidado todo o nosso littoral, e no mar os

castelhanos fazem incómmodas sentinellas. Decididamente, prefiro es- . .

perar. A Alcáçova ainda ha de saber resistir ás pressões cxtrangeiras, e os


últimos acontecimentos de Lisboa justificam a resistência de Portugal...
— Não vos fieis nisso, meu caro amigo. Cartas particulares de D. Iza-
bel mostram que a exigência aperta a hesitação e a fraqueza de D. Ma-
nuel . . .

— Kntão os últimos alvarás ? . .

— Teem a mesma força que os penúltimos, e os outros. . . Não ha a


menor estabilidade nas leis, a menor constância real. Palavras leva-as o
vento, e a do rei está cada vez mais leve. . .

— Comtudo, el-rei não faria uma traição. .

— Traição foi uma palavra que se inventou para os villcjes — os reis


nunca são traidores — são As infâmias, se as praticam, não lhes
hábeis.
pesam na consciência — ao engano chamase recurso... Convém estar
prevenido. .

Jacob ficou pensando alguns momentos. .

A situação era diflficil ; accumulavam-se as contrariedades — Fugir?


Como ? K para onde ?

Dois problemas sem solução são demais para um espirito attribulado.


F, comtudo, elle tinha dois grandes protectores — Pedro era homem para
o arrancar dalli á força, dalli principalmente, em que não eram grandes
os rigores com elle — Gil devia ter movido a opinião da Alcáçova. .
.

28o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

El-rei, se era violentado a qualquer acto menos correcto, esquecendo

as suas resoluções, havia, no caso de o entregar, de buscar garantias que


lhe attenuassem a responsabilidade. Náo se entregava assim um portu-

guez a um tribunal estrangeiro, para ser condemnado por factos niío pu-

niveis á face da legislação do seu paiz. Em Portugal, Jacob era um chris-

tão ; submettera-se á lei ; não podia ser expulso.


Era verdade que desrespeitara o alvará de i5o3, contra a entrada de
fugitivos de Castella. A bulia de Innocencio referia-se só a castelhanos, e

elle era portuguez.


Jacob communicou a Pedro Soares estes seus raciocínios.
— Tendes alguma razão; mas a razão não vale tudo. Nestes tempos,
pelo menos, nada vale. Dum para outro momento, tudo se transforma e
se desdiz. Lembrae-vos, por exemplo, de que el-rei transigiu permittindo
que os delegados do Santo Officio perseguissem em Portugal os fugitivos.
E' a suprema cobardia, mas é um facto. El-rei, não tendo coragem para
entregar os foragidos, deixa que os extrangeiros venham prendel-os ao seu
reino!
Jacob não conhecia -i politica ardilosa de D. Manuel, e, nas suas con-
siderações, prophetisava o que effectivamente succedeu, uns quatro annos
mais tarde, quando el-rei entregou alguns desgraçados a Fernando V, e.xi-

gindo, comtudo. carta de seguro, civil e ecclesiastico, para que elles

fossem restituídos a Portugal, sãos, salvos, sem terem softrido qualquer


pena.
Mas isto fez-se quando o conselho del-rei insistiu a valer pelos nos-

sos direitos, e tudo embaraçava a intriga particular da Alcáçova, posta ao


serviço de Castella, a despacho das leis e do conselho real.
— Vamos, meu caro Jacob, é urgente resolver. Livre deste cárcere,
occultar-vos-hei em qualquer parte ...
— E para sahir daqui?
— Ha muitos meios: um consiste era subornar os guardas. Se elles se

deixam vencer. . . bem está. . .

— E no caso contrário?
— No caso contrário, devemos empregar o outro recurso, vericel-os

pela força . .

— Importa isso o vosso sacrifício. Ides expor-vos. e comprometter-vos.


Não acceito. A vossa vida e a vossa liberdade são preciosas. . . O que se-

ria das vossas pupillas, se lhes faltásseis? Deborah deve ser vossa mulher.
e Sarah fugir d'aquelle abysmo. Não acceito tanta dedicação, Pedro
Soares. Deixae-me no meu propósito, esperarei. Só acceito um tavor, que
me fará profundamente grato. Se permittis?. . .

I
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 281

— Dizei; que poderei eu negar- vos, depois de vos ter offerecido a mi-
nha vida?
— Bem; peço-\os que, se eu não reconquistar em breve a liberdade,
se houver de cahir nas garras dos esbirros do Santo Oificio. permittireis

que eu veja, uma \ez só, a vossa Sarah.


— Contae commigo.
— Ainda: se eu não lograr essa felicidade, se as torturas e as penas
me roubarem a existência, direis a Sarah, que morri pensando nella...
— Prometto?
— Isso me basta. V^elae pelos nossos amores, Pedro Soares, e dei-

xae-me entregue ao meu destino. Adormecerei hoje mais tranquillo, mor-


rerei amanhã mais consolado.
Os dois amigos abraçaram-se com força, e despediram-se.

Jacob ficou sentado no seu miserável escabello, pensando que, se pu-


desse viver, que vida alegre e amoravel o esperava! mas, se houvesse de
morrer, que tristezas e que saudades n'esse terrivel momento! Os sonhos
de felicidade enfraqueciam-lhe o animo...
Quantas vezes buscara os perigos mais graves? Quantas vezes atVron-

tara a morte por caprichos e futilidades? Batera- se por galanteios; fora


ferido por vangloria . . . e agora sentia-se esfriar com a lembrança sinistra

de que teria de resignar ao amor e á liberdade!

K escondeu a cabeça entre as mãos... Para pensar melhor? Quem


sabe? Talvez para occultar alguma lagrima, que o surprehendera, quando
elle estava com os olhos muito abertos a olhar para. . . o futuro!
— Que vergonha, Jacob ! disse elle, erguendo-se, repentinamente, e es-
preguiçando os membros, como para revigorar os músculos, nem pareço
lilho d'essa raça maldita, que anda pelo mundo aos baldões, abandonada
de Moysés, perseguida de Jesus, insultada pelos homens ! Raça sem pátria
sem lar, sem amores, banida de toda a parte, castigada na sua fé, lapi-
dada na sua apostasia — na fé que herdou — na apostasia a que a violen-
taram !

— Vamos, Jacob, coragem, não suppliques, ameaça, — não te lamentes,


vinga-te. A justiça é uma também, e levanta os seus altares em
religião

nossa consciência. Julga também, prende também, executa as tuas sen-


tenças, Jacob. .

E, levantando os braços, como se tivesse uma vaga aspiração, ou in-


vocasse o Céo, exclamou :

— Tenho a consciência livre... e o corpo captivo. . . Ah! liberdade,


liberdade !

— Aqui a tens, Jacob, disseram-lhe do lado da porta.


. . . . . . —

282 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO •

Jacob voltou-se rapidamente para a grade, e soltou um grito de sur-


presa e alegria.
— Oh meu Gil E Deus que ! te envia ! . .

— Um enviado de Deus n'este inferno não pode demorar-se. .

E Gil Vicente, envolto n'um grande manto, e com farto gorro de plu-
mas a descançarem no hombro, entrou na prisão, e, batendo com o peito
no de Jacob, abraçando-o, envolveu o seu amigo nas pregas amplas do
seu manto escuro.
— Homem, disse (iil ; tens o rosto pallido e os olhos vermelhos ;
pa-
reces uma mulher. Judeu duma figa, comtigo mesmo estás judiando.
— Esperava-te, Gil. Preciso do teu conselho e da tua amizade. . .

— Ainda bem que não precisas do meu dinheiro. O meu conselho não
presta, a minha amizade não vale — preferi trazer-te, neste cantil, o né-
ctar dos deuses, capaz de dar coragem a um velho cheio de maleitas ; e,

n'esta capa e n'este gorro, a liberdade que estavas pedindo aos arcos
d'estas abobadas moucas, e malcreadas.
— Disseste a liberdade :

— Vamos por ordem. . . o que eu disse primeiro foi este iicclai', refe-

rindo-me á melhor geropiga, com que arranjo inspiração na feitura dos


meus autos. Vamos, bebe um gole. .

E Gil levou á bòcca de Jacob uma pequena cabaça que trazia a tira-

collo. Jacob obedeceu e saboreou um trago.


— Então, hein r sentes-te melhor ? Mais calor, mais força, não é ver-

dade ? Com isto Noé livrou-se do frio, quando o metteram na arca. . .

— E agora ? insistiu Jacob. Falaste-me em liberdade ?

— Fala baixo, que as lanças são agudas. . . de ouvido.


E Gil, dando o braço a Jacob, passeou com elle na prisão.
— Em Lorvão ha mais espaço e mais luz... Deves ter saudades
d'aquelle céo de Magdalenas reincidentes. . . Pois meu caro, resigna-te
vaes ver o sol e a lua, mas tão cedo não verás as estrellas que brilham
nos olhos das monjas bonitas. .

— Trazes-me boas novas ?

— Tão boas, como a abbadessa de Lorvão — boas, mas falsas... E


necessário muito cuidado com ellas!... Vá outro gole, Jacob... Que
diabo, tens ainda as mãos frias ! . .

Jacob bebeu novamente.


— Agora eu. . . e lá vae por nós ambos: á saúde del-rei !. .

— Seja: A' saúde d'el-rei, se elle ama a justiça. . .

— Tanto a ama, que vae livrar-te d'ella. El-rei é atilado e sabe, por-
tanto, que amar a justiça c poupal-a ás injustiças que ella pratica.
. . ! :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 283

— Devo, pois, ser grato quem faz da a justiça tal conceito?


— Evidentemente, que D. Manuel reconhece a existência dum novo
poder do Estado.
— A equidade ':

— Não, a amizade. Pedi-lhe por ti, pedi-lhe a valer, e el-rei fez-me


teu carcereiro. . . Estás preso emquanto eu quizer.
— Vaes, pois, dar-me a liberdade ?

— Ainda duvidas ?

— A liberdade incondicional a liberdade ? sem restricçóes ; a liberdade

sincera ? a liberdade livre r . . .

— Não, meu cubiçoso exaggerado: a liberdade de fugir é que eu


trago.
— Comprehcndo; foi assim que fez Pilatos — lavou as mãos e deixou

crucificar... E forçaste-me a beber á saúde d'el-rei


— Foi o mesmo que Deus disse aos homens — trabalha e eu te aju-

darei . .

— Diz el-rei que me põe na rua!. . . Uma illusão. . . A verdade é que


me expõe . .

— Seja como fôr, achas preferível defenderes-te dentro d'estes muros,


rodeado d'estes guardas, sem veres o céo, o sol, as mulheres :

— Tens razão, Gil. O mundo é muito maior que esta prisão ; mas o
mundo também tem muros, sentinelias, sombras, traições... Trazes-me
a liberdade dos. pássaros, que se apanham com a mão, e se soltam n'uma
gaiola. Tenho a liberdade de dois poleiros. O meu paiz gradeado pelo
oceano e por Castella.
— Ingrato
— Sou o que quizeres, mas vejo. Ver n"estas sombras não é ser in-

grato, é não ser cego.


— Então, que querias mais ?

— Se me julga innocente,
el-rei porque não ordena que me absolvam
de faltas' que não commetti, e não responde a Castella que c sagrado o
meu asylo ?

— E' assim mais simples.


— Mais simples!? A vontade omnipotente de um homem perde-se
n'um acto de justiça, para não contrariar uma tutela madrasta !


O tempo não c de mais para discussões bysantinas. Queres defen-
der-te ao ar livre, ou aqui sob as lanças da justiça ?

— Ao ar tens razão. livre ;

— N"esse caso, não percamos


um momento. Trago salvo-conducto que
impede que me sigam, vigiem, interroguem ou detenham. Deante de mim
. . . . . .

284 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

se abriram as portas d este castello e a porta d esta prisão. Quando qui-


zer sahir abrir-se-hão de novo, para me darem passagem. .

— Trata-se, então, de ti ? . . .

— Não, meu pateta ; é de ti. Gil Vicente, de noite e bem rebuçado,


não faz trovas, que me não ficava bem confundir-me com os tunos que
andam por essas ruas... Comprehendes, cabeçudo?
— Continua. .

— Ora, Gil Vicente, mudo, é pouco mais ou menos Jacob Adibe. Me-
nos judeu, mas estatura approximada. A natureza tem destas aberrações.
Debaixo d'este manto e deste gorro, o í\'po christão do poeta confunde-se
com o poeta judeu. Rimamos, por um acaso providencial, na estatura e
no passo. .

— Vae andando. .

— El-rei dará por b'ím quanto eu feito fizer.

— Em proveito d'elle ?

— E no Farei mais um papel. Jacob, eu


teu. com o teu gibão sou ca-
paz de arranjar a tua voz e até de ter os teus amores... Desaperta-te,
maldito, que eu quero provar-te o que te digo.
Jacob macliinalmente desapertou o gibão e o cinto.
— Vés este manto, escuro como a noite ? . .

O guarda n'este momento passava junto da porta, com passo lento.


— Este inanto, disse Gil, não é um manto, é um sopro...
E girando com elle no ar, passou-lhe as dobras sobre, a lâmpada, cuja
luz se apagou . .

— Depressa, disse passa-me Gil, o gibão, envolve-te n'esse sopro...


— Quereis que vos accenda a luz, disse o guarda, ao ver o cárcere im-
merso na escuridão.
— Com certeza, disse Gil, presta-me a lanterna que te allumia...
A sentinella arriou a lâmpada da abobada e passou-a á mão que lhe
extendiam.
— Eu accendo, deixa estar.. . dispenso-te o incómmodo...
E, com aquelle recurso, reaccendeu a lâmpada da prisão, restituindo
a outra.

— Gil Vicente, disse Gil a Jacob, que estava rebuçado no manto e ti-

nha o gorro sobre os olhos, agradeço-te as novas que me trouxeste^ e


peço-te que digas a el-rei que mui grato lhe estou por sua generosidade
e gentileza.
— E, depois: perguntou Jacob, que queres que eu faça, logo que te

deixe :

— Que vás para o diabo, e não voltes aqui, onde hei de ficar penando
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 285

e onde durante a noite concluirei o auto que me encommendou minha


rainha e senhora. Se não sabes, meu caro Gil, continuou o poeta, para
onde has de ir, eu também não sei. . . Só me lembro da cella d'alguma
monja de Lorvão, onde te agradecem, em vez de te castigarem, as judia-
rias de que és capaz.
E Gil, verificando a justeza do gibão de Jacob, deitou-se de costas so-

bre a enxerga, e em voz baixa ordenou:


— Nem uma palavra, emquanto atravessares o castello. Se te interro-
garem, dá o nome de chama d'aqui para que dêem sahida
Gil. Entretanto,

a Gil Vicente. Fora da porta está um cavallo, monta-o e parte. Ninguém


te perseguirá, mas occulta-te. Depois me dirás onde poderei procurar-te.
Marcha, Gil Vicente, dá arreganho a essa capa, levanta a cabeça, e passa

como senhor por entre esses esbirros imbecis. Na primeira estalagem onde
descançares não te esqueças de beber á saúde d'el-rei, e á minha. . .

— Rapaz, disse Jacob, emquanto se debruçava sobre a enxerga, para


apertar a mão de Gil, encaminha o sr. Gil Vicente.
— A's vossas ordens, meu fidalgo, disse o guarda.
— Até disse Jacob,
á vista, traçando o manto, até occultar metade do
rosto. . .

— Olha, respondeu Gil Vicente, imitando a voz de Jacob, por causa


do guarda, que esperava, por alma dos teus defunctos não faças versos,
nem á lua; não vás, pelo caminho, desacreditando o meu estro.

Jacob sahiu com passo largo, e, durante alguns momentos, Gil, sen-

tado sobre a enxerga, esteve a escutar-lhe os passos, que foram emmu-


decendo pelas immcnsas arcadas.
— Já deve estar na rua, pensou Gil. Pobre moço, que Deus vá na sua
companhia!
E, deitando- se novamente, com a cara para o lado opposto á porta tão
vigiada, soltou um suspiro:
— Agora, ó minha musa, vem dormir commigo! E começou a recitar

mentalmente finezas de Amadis.

Jacob atravessou elfectivamcntc toda a distancia do seu cárcere até a


rua, sem que ninguém lhe detivesse o passo.
Assim que sentiu no rosto o ar fresco da noite, recobrou o alento, que
lhe ia fugindo no seu captiveiro, e procurou com a vista o ginete de Gil
Vicente. Não perdeu muito tempo n'essa busca. O animal, conduzido á
mão pelo pastor, veiu ao encontro do seu novo cavalleiro.
MYSTKKIOS DA INQIUSIÇÂO. — VOl.. I. rOÍ.. 36.
. .

286 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Prompto, meu amo, disse Pepe. Dá-me licença?...



— Já sei; toma lá, e metteu-lhe uma moeda na mão.
— Náo era isto o que eu queria dizer. Desejava que me dissesse se viu
o sr. Jacob?
— Cala-te, Pepe. Não me chames Jacob; sou Gil Vicente.
— Por Deus, senhor! Eu não acredito o que vejo! O Jacob, livre? sr.

E o outro senhor?. .

— E' um bom amigo, como tu, um rapaz, que tomou o meu logar.

Então para onde ides agora?


— Não sei; amanhã pensarei n"isso; agora vou pernoitar a qualquer
logarejo próximo, e depois mandarei noticias para Lorvão. Tu volta para

o, teu posto, fazendo crer que ainda estou preso. Preciso de tempo para
me afastar. A' cabana de teu pae mandarei recado. Obrigado, Pepe.
Jacob metteu esporas no cavallo, e partiu a galope.
Pepe voltou para o recanto do castello, mas ainda lá náo chegara, vi-

rou-se rapidamente, julgando que Jacob voltara para lhe fazer alguma nova
recommendação.
Enganava-se; não era seu amo, era outro cavalleiro que surgira de um
massiço de arvoredo e que seguira, também a galope, a direcção que to-
mara o moço christão-novo.

Deve ser algum servo de Gil Vicente, que vae enganado; pensando
seguir o bondoso fidalgo. Antes assim. será guia e companheiro do
. . . .

pobre fugitivo. Ah! que se eu tivesse também um bicho daquelles!? Emfim,


o principal é que elle esteja longe d"estas muralhas malditas... Estava
sempre com medo de que o matassem. . .

E Pepe foi enroscar-se outra vez no seu esconderijo.


Entretanto o guarda, como de costume, parava á porta da prisão de
Jacob, e, mcttendo a cara na grade, dizia:
— Quereis alguma coisa, meu fidalgo?
Gil Vicente não respondeu.
— Se precisardes de mim, chamae, e, se eu dormir, ralhae com força.

Gil Vicente começou a levantar a respiração.


— E' o que eu dizia; já se vae acostumando. Como elle resona.
Jacob galopou toda a noite por caminhos e atalhos. Não levava des-
tino; seguia ao acaso, atravessando a Beira, na intenção de escapar á
vigilância da intriga portugueza. Receava menos a acção do Desembargo
que os ardis da corte da rainha. A situação parecia-lhe clara : D. Manuel,
collocado entre sua mulher e o seu poeta, isto é, entre a rainha e Gil Vi-
cente, sahira da difficuldade enganando ambos, e a ambos servindo. Era

necessário inutilisar essa dupla manobra fazendo triumphar o seu amigo. .


. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 287

Como durante a noite tinha encontrado raros viajantes, e não desejava


attrahir-lhes a attenção, não pôde orientar-se, nem reconhecer os logares
que ia atravessando. Por insiincto de defesa, sempre que avistava os cam-
panários das egrejas, se internava nos campos, ás vezes mettendo-se em
azinhagas, que o levavam- ora para o norte ora para o sul, senão o re-
punham no ponto da partida. .

Nas primeiras horas de viagem, como sentira bem perto o galope


d'outro cavallo, chegara a querer esperar por elle e seguir de camarada-
gem. . . Depois deixou-se disso. Tinha a certeza de ter passado em Pe-
nacova e Farinha Podre, mas ao nascer do dia, quando julgava ter-se
approximado muito da Covilhã, interrogou um viandante que lhe disse ir

elle no caminho de Foz dArouce. .. Era pois evidente que descera, em


vez de seguir a direito.
— Pareceis transviado, senhor. . .

— Talvez; verdade que me


é dirigia a Tortozendo. . .

— Então, ides errado Tortozendo ; fica lá para cima, próximo de Pêra,


e vós ides em caminho opposto.
— Deverei então voltar para traz ?

— Sem dúvida eu vou a Ceira, ; e, se quizerdes a minha companhia,


podeis acceital-a. Posso, para vos ser agradável, acompanhar-vos a Góes
ou a Pombeiro, onde podereis ter hospedagem razoável.
— Acceito o vosso olíerecimento. Sinto-me muito fatigado e desejava
continuar na minha viagem depois de algumas horas de descanço.
— Pois então segui-me, que o vosso cavallo ainda pede mais repouso.
Devereis ter andado muito, ou muito depressa. .

— Venho de Poiares...
— De Poiares Então não ? ha grande razão de queixa. Bem se vê que
não sois destes sities. .

— Não, sou... respondeu .lacob, procurando logo mudar o rumo ã

conversa. Vós é que conheceis isto a valer ! . . .

— Se conheço ! Não ha atalho que eu não tenha percorrido. Ainda ha


pouco ensinei outro cavalleiro a dirigir-se, sem perder um passo e um
momento, a Teixoso.
— E muito longe daqui?
— E um bom boccado ; fica para os lados de Sobral c de L'nhaes da
Serra.
— E esse cavalleiro vinha nesta mesma direcção :

— Vinha ; e, se não fosse eu, a esta hora estaria em P^oz d'Arouce, Sem
saber o que havia de fazer á sua vida. Esta noite parece que toda a gente
anda perdida ...
. . . . . :

a88 MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Tendes razão. são dois. . . já .

— Dois Três, se me ! esse favor. fazeis


— Falastes só em mais outro. . -

— Assim mas como esse outro me perguntou


é I se eu tinha encontrado
algum cavalleiro que viesse de Coimbra e que procurasse hospedagem, conto
três. .

— Tendes razão.
— E por isso foi que eu vos perguntei donde vínheis. Como vindes
de Poiares, não sois o mesmo. .

— Decerto. . .

— E o caso era urgente, porque o homem pediu-me que dissesse, se

eu encontrasse o tal fidalgo, que elle vinha de Lorvão. .

— De Lorvão ? ! disse Jacob, trahindo o interesse que esse nome lhe

despertava.
— De Lorvão, sim; parece que houve coisa séria no mosteiro. Tam- . .

bém quando será que alli passe uma semana sem grande escândalo?

Vamos então para onde vos aprouver. O que eu preciso é de uma
cama para mim e um estabulo para este valente animal.
E Jacob, dando a esquerda ao pobre aldeão, que montava uma aze-
mola, carregada com o cavalleiro, os alforges e uma cabeçada cheia de
guizos, foi arripiando o caminho que fizera nas ultimas horas da madrugada.
— Dizeis, então, bom homem, que esse tal cavalleiro sabia de qual-

quer facto grave occorrido em Lorvão . . .

— Emquanto elle esteve descançando contou-me essa historia, e até


me disse que se tratava do rapto d'uma noviça, ou freira, ou monja —
que isso é que me não lembra bem. .

Jacob disfarçou um estremecimento, espreguiçando-se, como se fosse


attribulado com somno, e, bocejando, voltou-se para o seu companheiro
— Isso não é para admirar: quantas vezes tem isso succedido! O que
deve causar espanto é haver em Lorvão, isto é, no mosteiro, necessidade
de roubar o que alli existe tão bem tolerado e até reconhecido. . . E qual
seria o fidalgo que, roubando coisas d'essas, deve ter ficado bem roubado ?

Quando o viajante me contou o caso, eu puz-lhe logo o dedo...
Não podia ser outro. Para aquellas proezas . . só homem muito rico e
muito banazola. . .

— E havia por lá algum desses?


— Pudera não. . . Eu, pelo menos, disse logo: Foi o morgado de Tra-
vanca. . .

Jacob, d'esta vez, occultou a commoção, conchegando a espora no pé


direito. E de cara voltada:
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E acertastes?
— Como se tivesse visto.
— Deixemos lá gosar a vida ao pobre morgado. As mulheres inventa-
ram-se para serem roubadas, não é verdade? As que casam também são
roubadas aos pães: é o roubo que os pães approvam á força.
— Em chegando a Ceira deve haver melhores informações. Talvez
seja alguma pequena da corte, ou de alguma família illustre das Beiras.
As mais finas são as que fogem mais, e as mais ricas as que teem mais
quem fuja com ellas.
— Mas, dissestes rapto, e o rapto c ;is vezes contra \^ontade das mu-
llieres.

— Quem acredita nisso? Quando uma mulher não quer é porque não
quer. Eu, pelo menos, lá cm casa, por mais que faça para fazer calar a
companheira, não o consigo. . . Mesmo tapando-lhe a bòcca ella grita mais
que eu. .

Jacob já não respondeu ao gracejo do guia : ia abysmado nos mais


tristes pensamentos. Quasi tinha a certeza de que se tratava de Sarah, e
o cavalieiro que andava errante não podia ser outro senão Pedro Soares.
Pedro ignorava que elle, Jacob, sahira do castcllo; logo não era a elle

que procurava, Jacob estava vendo os acontecimentos.


Pedro, ao voltar a Lorvão, soubera do desastre, e lançara-se na per-
seguição do seductor.
Tinha necessidade absoluta de ajudar o pobre moço naquellas pesqui-
sas... Onde encontrasse o morgado, matava-o. Já não se importava com
o futuro. .

O bandido apro\eitara a prisão de Jacob e a ausência de Pepe para


realisar o seu plano. .

E onde estaria elle agora com a sua victima ? Tendo muito ouro para
distribuir, em qualquer parte havia de encontrar cúmplices activos e dis-

cretos.

Jacob olhou disfarçadamente para o seu guia.


O pobre homem, como não lhe tinham respondido, adormecera ;
pelo
menos ia com os olhos fechados e a cabeça a baloiçar com os movimen-
tos da azemola ; as mãos iam cabidas sobre a sella e as rédeas bambas.
— O' camarada, disse Jacob, batendo-lhe no hombro com o cabo do
seu pequeno chicote; se dormis, ao chegar á encruzilhada, lico sem saber
para onde hei de voltar.
O guia sobresaltou-se, e, sorrindo, ainda com os olhos fechados, res-
pondeu, emquanto restituía vigor aos braços e ás pernas:
— Não ha novidade, meu fidalgo. Ainda que eu diirma, a besta vae
. . . . . .

290 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

sempre accordada, e ella sabe o caminho tão bem como eu. Quando a
monto digo-lhe ao ouvido para onde vou, e, depois, se é preciso dormir,
dorme-se á vontade. .

— Não poderíeis andar um pouco mais depressa ?

— Levaes muita vontade de almoçar, pelo que vejo. Estava prompto


para um trote razoável, mas esta maldita é que nunca varia de passo.
— E por que não metteis a espora?-. .

— Este diabo é como minha mulher: quanto mais a espicaço, mais


devagar anda; e, se apertar muito, começa a escoucear e espoja-se. .

— E' que eu precisava de partir cedo para Tortosendo, e talvez, se


tiver tempo, ainda vá a Penamacor. . .

— Se o morgado de Travanca viajasse com este passo, só no fim do


mez chegaria ao seu destino.
— Então, já se sabe a que ponto elle se dirigiu?

— Isso nunca se sabe; mas suspeita-se. Os raptos beirões dão sempre


pretexto para um passeio até a fronteira. .

— Gostam de passeios longos. .

— Longos, mas menos perigosos. Ainda não ha muito tempo uma fu-
gitiva de Santa Clara foi parar a Cilleros, uma pequena aldeia onde as
justiças portuguezas não puderam chegar.
— Que povoação é aquella, disse Jacob, apontando para um monte
de casinhas brancas.
— E' que nós
alli quatro iremos descançar.
— Por Deus, que já não posso conter-me com somno. Vou lá esperar-
vos. Este passo mata-me.
E Jacob partiu rapidamente pela estrada.
O guia endireitou o busto, rnetteu esporas no animal, que, arrebitando
as orelhas se largoutambém atraz do fugitivo de Coimbra.
Quando Jacob chegou á povoação, mal teve tempo para se apear.

O guia estava a seu lado.


— Aonde estamos? perguntou Jacob.
— Em Pombeiro. Podíamos ter-nos dirigido a Góes, mas, como sou
aqui mais conhecido, preferi este logar.
— Todos me servem. Preciso de tomar alguma refeição, e depois des-
cançar os ossos. .

— Ha aqui a venda de Joaquim Falerio. . . é uma estalagem modesta,


mas a comida é asseada e o gado bem tratado.
— Principalmente o gado. Quero boa ração para o meu Lucero...
chama-se assim o meu companheiro. E possível que elle tenha muito que
andar, e preciso de que não lhe faltem as forças.

I
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 291

— Ides vêr que tendes um tratamento de principe. O' mestre F^alerio,

disse o guia chegando-se á porta d'uma venda de vinho. Trago-Ihe aqui


um freguez, que não pode ser tratado como eu, ou qualquer outro valde-
vinos. Boa mesa e boa cama para elle — manjedoura baixa e cama de boa
palha para a cavalgadura, que é das melhores que tenho visto.
Falerio veiu á porta, desfazendo-se em cortezias.
— Que vossa mercê tenha muitos bons dias e se acolha já á minha ca-

bana, porque o sol está quente. .

E, depois, chamando para dentro:


— O' João, toma conta do ginete do sr. lidalgo e da azemola do...
(mestre Falerio hesitou um pouco) do tio Narciso.
— Liiccro é como um borrego. Passem-lhe a mão pela cabeça e depois
tratem d"elle como uma creança. Dispam-n'o todo, sellim e cabeçada, que
elle quando galopa, galopa, mas quando descança quer ticar d vontade.
E Jacob, dizendo isto, ia ajudando o João, um rapazote descalço e
peito nú, a despojar o Lucero dos atavios com que jornadeara.
O corcel de Gil Vicente, ouvindo falar em Lucero, não percebia que
era com elle; mas não atraiçoou o seu dono provisório — a tudo obede-
ceu, por saber que ia, emfim, descançar.
— Vá, disse Falerio, ao pequeno João, leva isso para a arribana.
E dirigindo-se a Jacob:
— Agora, meu fidalgo, se quereis lavar-vos atravessae a loja, que lá

ao fundo, á entrada da fazenda, tendes um tanque de boa agua. . . Vou


dar-vos um pedaço de linho, do meu casamento, com que podereis enxu-
gar o rosto e as mãos.
Jacob ficou admirado de tanta cortezia e limpeza em gente tão gros-
seira e miserável.
— Ahi tendes, disse Jacob atirando a Falerio com dois escudos, isto é
pelo acolliimento; depois faremos as contas.
Falerio guardou o dinheiro, fazendo uma demorada mesura.
— Não' vos arrependereis, senhor, de terdes escolhido a minha casa.
Agora vou cuidar do almoço.
Jacob estava, havia muitas horas, sem comer, e, apesar de lhe faltar o
appetite, sentia-se necessitado de adquirir novas forças.
Foi, pois, cuidar de se assear no tanque que lhe indicaram, e veiu sen-
tar-se a uma mesa, onde já, excepcionalmente, se via uma toalha branca
com abertos franjados nas extremidades.
O guia veiu ter com Jacob :

— Se me daes licença, aproveito um cantinho neste altar, mais lim-


pinho que a mesa da communhão, ao domingo, na egreja da terra.
. !

agi MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— A vontade, disse Jacob indicando o lado opposto ao seu.


— Não imaginaes que delicioso vinho tem este homem ! um pouco
carregado e forte, como todos desta região, mas puro, puro a valer.
Quando a gente está a bebel-o, parece mesmo que está a comer a polpa
da uva. D'aqui até o Fundão o vinho é todo assim. O que é necessário é

bebel-o com muita conta, porque pecca por traiçoeiro.


— Eu bebo pouco, por isso não me arreceio.
— Principalmente quem tem de cavalgar precisa de ter mais cuidado.
Partis hoje mesmo para Tortozendo, ou demoraes-vos alguns dias por es-
tes sítios ?

— Partirei hoje mesmo, e antes da noite.


— Pois eu ficarei até o jantar, se ao almoço não vierem dois amigos
de Coimbra, que vão até Boidobra. Estou ancioso por saber noticias de
Lorvão. Quem vive na província aprecia muito estes casos, que parecem
historias das que se contam á lareira. Além de que. quem viaja e anda
sempre a dormir pelas estalagens, precisa de saber muita cousa para en-
treter os companheiros.
— Pois eu nada me interesso por esses factos. São tantos, na roda do
anno, que, á força de serem vulgares, nem sequer me prendem a atten-

ção. . .

— Olá ! disse o guia voltando-se para a porta da estalagem e di-

rigindo-se a dois novos freguezes ; ora ainda bem que não faltaram
Chegaram agora, ou já estavam de hontem á noite :


Chegámos agora mesmo, e vimos moidos que nem saccos de farinha.
Os recem-chegados tinham o typo de recoveiros homens fortes, re- —
queimados, de altas polainas e gibões de pelles.
— Quereis almoçar, não verdade é :

— Sim; mas vamos para cima, lá que não queremos incommodar


quem está. .

— Mas eu precisava de conversar. . .

— Os vossos amigos ainda teem logar esta'mesa, observou Jacob. a


— Ouvem; rapazes? disse o guia.
— Ouvimos, sim, respondeu um delles. Obrigados, meu fidalgo. .

— Já que o desejaes, disse o outro, ficaremos por aqui. que, . . se es-

tavam conversando em particular., então não acceitamos.


— Qual em particular! disse o guia — Estávamos conversando em
cousas que para ahi se dizem.
— Então, com licença. . .

E, dizendo isto, os dois abancaram, depois de se descobrirem e cum-


primentarem amavelmente Jacob.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO igj

— Que novidades ha perguntou o guia aos seus amigos.


? .

— Novidades em barda em Coimbra não se falava em outra coisa


: ! . . .

— Mais que uma? contae que a segunda talvez me interesse.


la,

— Então cá chegou alguma


já ?

— A de Lorvão, disse o guia.


— Ah! essa não já Desde que se soube o caminho dos fugitivos,
vale.

ou estão agarrados a esta hora, ou já ninguém pensa em perseguil-os.


Jacob teve tentações de perguntar algo a tal respeito, mas disfarçou...
— Flntão, qual c a outra novidade?
— P^ugiu do castello um moço christão-novo, que se achava preso!... alli

— extraordinário! disse Jacob, deitando vinho n'uma gamellinha


¥,'

de barro.
— E o mais interessante é que encontrado no logar d"elle... foi

— Quem? Quem? disseram ao mesmo tempo Jacob e o seu guia.


— Nada mais e nada menos que esse poeta em que agora tanto se fala,

e que tem tanto valimento na Alcáçova!


—E o que lhe fizeram? perguntou Jacob.
— Ora, o que lhe haviam de fazer? mandaram-n'o á corte, e nada mais.
Elle contou que, tendo ido visitar o amigo, este lhe dera a beber uma ge-
ropiga que o adormeceu profundamente. O judeu — que ser judeu ou
christão-novo é a mesma coisa — mal apanhou o trovista a dormir deve-
ras, tirou-lhe o manto e o gorro. . . A' meia noite, em Coimbra, era grande
o alvoroço, e andava a gente d'armas em busca pelas couraças.
— E não o apanharam?
— Qual? Que também, disse um dos recoveiros, por lá se dizia á bôcca
pequena, que, desde que o tal manobra, era pro-
Gil Vicente se achava na
vável que não houvesse muito interesse em rehavel-o ás mãos. .

—Então todos os fugitivos se escaparam? disse Jacob, não podendo


esperar mais tempo noticias de Sarah.
— Nenhum, é certo; mas a noviça, já se sabe, atravessou a Beira e
entrou em Castella, na altura de Valverde.
— Como se sabe isso?
Por gente que hontem chegou a Coimbra e que disse tel-os encontrado
n'aquella direcção.
Jacob deu o almoço por findo, e esquecendo-se dos seus companheiros,
passeou agitadamente na estalagem.
Os recoveiros e o guia cntreolharam-sc rapidamente.
— Falerio, disse Jacob, quanto devo?
— Já vos senhor?
retiraes,
— Já; manda apparelhar novamente o meu cavallo...
MYSTEklOS [)A INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. JT.
. ! . .

294 MYSTERIOS DA INQUISIÇxVO

— Então, não quereis dormir algumas horas? Já vos tinha arranjado


uma alcova, que é mesmo uma belleza, roupas novas ,e frescas. .

— Mette tudo na conta. isso .

— Tinha disposto alguma caça para o


já jantar, e até comprei um vinho
mais fino para a vossa sobremesa. . .

— Já disse; mette tudo na conta; apparelha o meu I.ucevo; preciso de


partir immediatamente.
— Está bom, meu senhor, está bom, não quero que ralheis commi-
go. . . Vinte escudos é muito?
—O que quizeres, contanto que eu parta já. Aqui tens o dinheiro.

E Jacob deu vinte e dois escudos ao estalajadeiro.


—-Contastes com o almoço d'estes homens?
— E' verdade que me esqueci, mas, como elles continuam comendo,
á hora da partida vos direi quanto agora ficaes devendo.
Jacob foi para a rua esperar que lhe apromptassem o cavallo. . .

Os outros commensaes ficaram á mesa.


— Está em nossas mãos, disse o guia.
— E ganhámos bem o nosso tempo, ajuntou um dos recoveiros. .

— Vae partir em direcção á fronteira; preciso prevenir os nossos e é

patrões em Valverde e em S. Martim.


— Quem ha de ir a essa empresa ?

— Dois, pelo menos, disse o guia — um sahirá mais ao norte e o outro


mais ao sul.

— E tu ? perguntaram os recoveiros.
— Eu irei seguindo-lhe as pisadas, para ter a certeza de que não re-
considera . . .

— Ainda receias ?

— Sempre. Imagina que alguém lhe diz que Sarah ainda está em Lorvão ?

— Tens razão; bom é vigial-o.

E os três amigos encheram as gamellas e tocaram-nas com solennidade.


— A' saúde de Fernando V, disse o guia em verdadeiro castelhano.
— E á de Deza, o lustre presidente do Santo Otficio
il

— Obrigado, bons amigos., disse Jacob, montado, acenando, agra- já


decido, da porta, para os seus companheiros.
— Até á vista, responderam elles, bebendo o resto das grosseiras
taças, e pondo-se em movimento, como se fossem também partir.

Jacob partiu. Para onde ':


Para a fronteira, mas sem saber que levava
tal destino! Não era bem para a fronteira; era para perto de Sarah. Se
. . . ;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO agS

ella tinha sido roubada de Lorvão, se tinha atravessado o paiz, se entrara


em Castella, elle havia de ir até onde ella fòra.

E para o fim do mundo ? Mesmo para o fim do mundo ! Náo descan-


çaria emquanto lá não chegasse. Iria nas azas do amor ? Talvez. Mas
também nas azas do ódio ! A correr por aquelles caminhos incómmodos,
elle só via Sarah, a quem amava, e o morgado, a quem tributava o ódio
mais profundo.
N'elle as duas paixões eram egualmente violentas. Havia uma mulher
que o encantara, a quem dedicara adoração religiosa ; essa mulher, se não
quizesse ser d'elle, não seria, que esse amor era nobre e cheio de abne-
gação ; mas, não ser d"elic porque um bandido se oppunha, c a sacrifi-

cava, isso não! Sarah ainda lhe não tinha dicto que o amava, mas dera-lhe
a certeza de que não queria pertencer ao fidalgo de Travanca. .

Logo, o seu dever era libertar Sarah das mãos do seu algoz. Sarah
era para elle mais que uma mulher — era um idolo que lhe dera uma re-

ligião, que elle não tinha. Porque elle, atinai, não era judeu nem christão
nunca fòra um sectário como seu pae. E tanto que se resignara ao baptismo
catholicosem violência, sem ódio fizera-se christão para ficar em Portu- ;

gal, como quem paga um imposto para adquirir um direito.

Tudo isto explicava o sentimento do amor ?


Não era só isso.
Jacob exercia o sacerdócio que defende os pequenos e os fracos.
Nunca, junto d'elle, ninguém maltratara uma mulher ou uma crean-
ça, que não fosse castigado. Um dia espancou um homem que maltratara
um cão ! . .

Sarah era uma rapariga muito nova e muito bonita... mas, se não
fosse tudo isso, elle poderia não amal-a, mas havia de defendel-a. Aquillo
era um dos predicados da sua indolc.
Vira uma só vez Pedro Soares, mas, como formara delle uma idéá
lisonjeira, se alguém o atVrontasse, Jacob esbofetearia o insolente. .

E aquelle caso era demais complicado ao seu amor de rapaz, ; e á


sua compaixão de homem, alliava-se o seu brio e a sua dignidade, que é
de todos os tempos. O morgado roubara Sarah, mas, ao mesmo tempo,
vingara-se delle. O cobarde roubara a pobre menina para tirar a des-
forra do gilvaz que recebera. Tratava-se, pois, duma affronta que o vi-
sava. Tinha que salvar Sarah- e tinha que vingar-se. . . Por isso elle ia

voando nas azas do amor e nas azas do ódio!. ..

Nem se lembrava já de que estivera preso e fugira, sem absolvição e


sem julgaaiento ; de que, não lhe pertencendo Sarah, não tinha direito a
dcfendela com tanto zelo: de que até esse zelo poderia comprometter a
! .! . . .

igG MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

quem queria zelar ; de que corria atraz d'uma sombra, que não era a dos
fugitivos, mas apenas uma miragem da sua exaltada imaginação; e o peor
de tudo — de que entrando em Castella, entrava em terra inimiga. . . De
nada se lembrava Jacob !

Que certeza tinha elle dos factos que lhe contaram ? Quem eram esses
homens, que lhe tinham perturbado o espirito com taes novas ?

Mas, tudo aquillo era tão natural


Pois não planeara o morgado raptar a noviça, quando elle, Jacob, es-
tava livre, e podia oppor-se, como se oppoz ?

Por que não havia o algoz de voltar a perseguir a sua victima, depois
de afastados tão sérios obstáculos ?

Se o amor não tinha animado o morgado, o desejo da desforra havia


de, fatalmente, aconselhal-o a nova tentativa. Porque, afinal, elle, Jacob,
esmagara insolentemente o orgulho do atrevido fidalgo. .

Depois, aquelles recoveiros, que vinham de Coimbra, sabiam da sua


fuga, e sabiam do rapto de Sarah. .

Se a primeira noticia era verdadeira, por que não havia de ser a


segunda
Estes raciocínios passavam como um clarão pelo cérebro de Jacob.
P>am estrellas que o iam guiando, e elle seguia-as. .

Ou a febre lhe causava delírio, ou o cançaço o fazia dormir cora os


olhos abertos e os pés firmes nos estribos — porque a verdade era que
elle ia sonhando. . . E sonhava o melhor êxito para a sua arriscada em-
presa ! Sonhava que ia encontrar pelo caminho os passos que perseguia,
que chegava a tempo de salvar Sarah, que Sarah, reconhecida, o amaria
a elle só, e com os extremos idolatras de que elle já enfermava, que ha-
veria ás mãos o seu inimigo e lhe lavaria o rosto com todos os estigmas
que a sua cólera pudesse inventar!. .

E, n'esta excitação, n'este sonhar, n'este querer, n'esta esperança, que


parecia realidade, ia, de aldeia em aldeia, de villa em villa, de cidade em
cidade, descançando momentos, comendo migalhas, coberto de pó, rosto
macerado, corpo dorido, passando de noite como uma sombra das lendas
castellãs, de dia como um soldado batido, depois duma batalha, pela ma-
tilha dos vencedores!
A lançar-se em terras de Castella, nos princípios do século xvi, um
christão-novo, já queimado em estatua pelo Santo Officio, de Sevilha, rei-

nando Fernando V, e sendo Deza, o ínquisidor-geral ! . . . Só podia ir

n aquella vertiginosa carreira um desesperado que fosse ao suicídio, ou


um louco duplamente apaixonado, que se tivesse deixado arrastar pelas,
azas do ódio e do amor
Segurem-n'o bem, disse um d'enes em puro castelhano, e passem-lhe já as laçadas

I
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 297

Ao cabo d'estas canceiras Jacob, tendo trepado serras e alcantis e

atravessado rios e ribeiras, chegou afinal á fronteira, deixando Aranhas ao


sol posto, descançando um pouco nas margens de Erjas, que foi descendo
até Monfortinho, para evitar a travessia de S. Martim. Passou o rio em
Pedras Alvas, sem atravessar a povoação, e de novo parou na margem
direita do Tejo, junto de Alcântara.
Havia já algum tempo, desde que atravessara o Erjas, que se achava
em terras de Castella.
Nem contara o tempo passado n essa viagem fatigante ! sabia apenas
que era noite, e que tinha descido demasiado para seguir a direcção pro-

vável dos fugitivos.


Fora a isso forçado pelo receio de que mais acima houvesse vigihuicia
extraordinária para os emigrantes de Portugal.
Alcântara estava ao lado esquerdo do Tejo ; alli talvez pudesse instal-
lar-se, formar os seus planos e começar as suas pesquisas.
Passaria o rio ao amanhecer, para não despertar a curiosidade da
população . . .

Uma fila de salgueiros determinavam, mesmo na escuridão da noite,


as curvas do rio, onde a agua corria apenas em alguns sulcos pouco pro-
fundos do seu pequeno estuário.
Jacob prendeu o cavallo a um dos salgueiros, e extendeu sobre a terra
o xairel que trouxera dobrado sobre o sellim. Para se deitar dobrou pri-
meiro o joelho. . .

N'este momento, dos salgueiros próximos desprenderam-se algumas


sombras. . .

Jacob quiz erguer-se, mas já não pôde; duas mãos vigorosas lhe car-
regaram nos hombros, fazendo-o cahir de bruços ; e logo outras lhe pren-
deram as pernas.
Eram quatro homens vestidos de negro — negros o fato e os rostos,
que traziam cobertos com mascaras.
— Segurem-n'o bem — disse um d elies em puro castelhano, e passem- y
lhe já as laçadas. . .

Jacob, apesar da força que o esmagava, deu um esticão ás pernas, c,


n'um grito de leão ferido, torceu o tronco, conseguindo libertar-se.

Então o chefe, deitando as mãos aos cachaços de dois delles, arre-


messou-os sobre Jacob.
Os três homens revolveram-se sobre a terra, com uma fúria brutal.

Entretanto o terceiro, tomando posição ao lado da cabeça de Jacob, que


já ensanguentara com os dentes os assaltantes, apertou-lhe violentamente
o pescoço.
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—O maldito judeu tem dentes de tigre, e músculos de baleia! Judeu


amphibio é o primeiro que vejo. Façam-n'o calar, mas não o matem. Olhem
que a prenda é de subido valor.
Ainda que com difficuldade, conseguiram atar as pernas de Jacob. . .

— Cuidado com os braços, disse um.


— Com os braços e até com a testa, accrescentou outro, o maldito até

marrando é perigoso.
—E que Moysés tinha d'isso na cabeça. .

—A minha vontade era arrancar-te os dentes, maldito perro, prague-


jou o mordido.
— Pouco d"esse luxo, reprehendeu o chefe — inteirinho é que eu quero
entregal-o — Uma bòa dentadura pode render muito nos interrogatórios,
se fôr desmanchada com vagar.
— Agora o que havemos de fazer disto?
— Náo haja pressa. E' necessário experimentar
. . as ligaduras. . . Pi-

quem-n'o, a vêr se dão de si. .

Então um dos esbirros, com um punhal, feriu o preso, atirando-lhe um


golpe rápido a uma das pernas,
Jacob agitou-se violentamente, mas não se desprendeu. .

— Está na conta, disse o chefe, mas convém esperar um pouco mais.


Depois da lucta, não admira que esteja enfraquecido. . .

— Nós também precisamos de descançar. O bandido fez-nos suar de-


veras. Nos músculos parece hespanhol e christão!
— Descancem o Sevilhano e o Morenito, e tu, Garrovillas, que deves
estar folgado, entretem-te a despejar o bornal e o cinto, e todos os m3S-
terios d'esse diabólico gibão.

Os dois primeiros espojaram-se sobre a terra, tendo o Sevilhano o


cuidado de pensar o rosto na agua do rio. O terceiro debruçou-se sobre
Jacob, para cumprir as ordens do mysterioso director do assalto.
O peito de Jacob parecia uma montanha agitada pelos cyclopes; a res-
piração ruidosa e difficil dilatava-lhe as narinas; tinha o rosto congestio-
nado, e os olhos brilhavam na escuridão, como os d'um tigre já ferido, e

ainda açulado. Documentos, dinheiro, e relíquias que pertenciam ao velho


judeu proscripto — tudo foi arrancado ao preso e passado ásmãosd'aquelle
que parecia mais um chefe de salteadores que um agente das justiças cas-
telhanas.
— Fetiches e am.uletos da mais desaforada judiaria, sobre o peito d'um
christão-novo! ! Temos aqui uma mina! Ha de lhe arder melhor a carne
do que lhe ardeu a hgural Por isto se pode avaliar o que vae lá por essa
terra, que dá asj^lo, em nome do rei, a esta canalha impenitente. Para tão
. . : :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 190

pouco não valia a pena dar as princczas de Castella a príncipes de tal

raça . . . Não ha nada mais, Garrovilia


— Ksperae, que o melhor tem elle aqui, na cintura... Uma bella lâ-

mina! Tão bôa que até brilha á luz das estrellas. Do que nós nos livrá-

mos! Se elle tivesse tido tempo para se coçar, lá se ia pelo Tejo abaixo
todo o preço da nossa façanha.
— Deixa-te de lamurias, poltrão, e dá-me essa arma.
Garrovilia ao entregar o punhal passou-lhe a mão peio cabo e sentiu,
sob os dedos, o relevo de duas iniciaes.
— Reparae, senhor, que ha lettras n'essa prenda.
O chefe passou também os dedos sobre o cabo, e disse cm voz alta,

mas como se falasse comsigo mesmo


— G. V. está certo... Vê se nas pontas d'esse xairel ha também as
mesmas lettras. K Garrovilia percorreu com a mão as curvas das iniciaes
estofadas no xairel de Gil Vicente.
— Cá estão. P^izemos asneira, patrão?
— Não, imbecil. . -

— Então, Jacob Adibe escrcve-se agora com estas lettras?


— Escreve-se, sim. De Lisboa vieram explicações do Elrei ainda ca.so.

não entrega os refugiados, mas já os solta. E um systema que obriga o


sr. D. Fernando a maiores canceiras e despesas, mas, emfim, é um svs-
tema.
•lacob teve um estremecimento, que se fez notar. . .

— Vê lá esse morgado, que parece não gostar da conversa.


— Não ha novidade, respondeu Garrovilia, elle só mexe por dentro. . .

—K tem razão para isso. . . ver-se assim atraiçoado pelo seu rei e
pelo seu amigo I

— Jacob sentiu gelar-se-lhe o coração, e fechou os olhos para se con-


centrar na sua dòr.
— E, depois, coitado, comeu por boa a historia do rapto, e veiu mct-
ter-se na bôcca do lobo. .

Jacob, ouvindo isto, respirou e gemeu fortemente. Era um suspiro de


alegria. .

A noticia da liberdade de ,'^arah compensava-o bem da traição que o


perdera.
—A noite está arrefecendo muito, e não vá este diabo apanhar por
aqui algumas maleitas, que o façam mais barato.
Os três esbirros levantaram Jacob c puzeramno sobre o cavallo, de
maneira que a cintura ficava sobre o sellim, e a cabeça d'um lado e as
pernas do outro iam como dois ceirões a balouçar-se no espaço.
;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Vamos devagar até Alcântara. Lá entregaremos este fardo, e depois

que o façam viajar de castello em casteilo, de prisão em prisão, até Se-

vilha. Eia, rapazes, é raetter ao rio, a passo, para não entornar a carga...
Jacob, na tortuosa posição, sentia-se cheio de dores e de desespero
levando a cabeça pendida, ia olhando o céo, de fundo escuro, mas pro-
fundamente estrellado, como um manto de velludo recamado de brilhan-
tes; e, abrindo muito os olhos. n'um lamento intimo, que faria chorar quem
o adivinhasse, ia pensando :

—E é certo, que ha Deus, que pôde crear todos esses mundos de


luz, e não pode evitar tantos negrumes no coração humano ! . .
-
X

Sevilha

A velha cidade árabe e mourisca, a terra de S. Fernando, é das que


mais attrahem e captivam os excursionistas peninsulares.
Não ha em Hespanha pedaço mais cheio de tradições e mais tentador
de esperanças I Dentro de seus muros, coalhados de torres, a gente de
Sevilha mantém um paraiso que nada nos fala de velhice e de tristeza!
Encanta ouvir o touriste, que, ao regressar de Sevilha, nos fala, com o
mais vivo enthusiasmo.
Que de bellezas em monumentos, de variedade em costumes ! de vi-

vacidade e graça nas mulheres, ao atravessar a formosa cidade andaluza,


com os seus jardins, fontes, cathedraes, bazares, feiras, procissões c tou-
radas !

Crê-se bem não haver no mundo terra mais alegre e exquisita, mais
cheia de arte, de sol, de perfumes e de sorrisos ! A graça feminina e a
quente verbosidade dos homens, o matiz deslumbrante do vestuário da
população, a musica popular rebentando a toda a hora das ruas, dos ca-
fés, dos palácios... As flores debruçadas das janellas, dos balcões, e a
surgirem por entre as tranças negras das hespanholas —a pandeireta e a
castanhola estrugindo em todos os recantos da velha cidade árabe, o tor-
velinho industrial de gentis raparigas, que enxameiam nas fabricas de ta-
bacos e de faianças ! . . .

Como é accrescentada a briza do (iuadalquivir com o movimento ver-


tiginoso dos leques e o lançar provocador da mantilha !

Jorram ouro e pedrarias nas procissões^mais devotas, e soam palmas


e clarins ao sol, na grande arena, ao entrar a quadrilha de qualquer tou-
reiro de nomeada!
A moderna Sevilha, alegre, viva, trabalhadora, c o encanto dos mais
apreciados artistas. Cantam-na os poetas, illuminam-na os pintores, des-
crevem-na os folhetinistas, como se nunca sobre ella tivesse passado a aza
MYSTEUIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. I. FOI. 3S.
! ! . ;

3o2 MYSTERIOS DA. INQUISIÇÃO

negra da morte, o lucto que veiu d"um dos maiores crimes da humanidade,
commettido em nome de Deus e de Jesus
E que admira que hoje Sevilha seja a feição mais pronunciada na vi-

gorosa e alegre physionomia da Hespanha, se no fim do século xv ella já

era o enlevo e o encanto dos historiadores e geographos ?

Nos primeiros lustres d'este século, já um illustre escriptor hespanhol,


referindo-se a Sevilha, á Sevilha anterior ao negro domínio de Fernando
e de Carlos V, fala em estylo elegante — dos immensos terrados cobertos
de arbustos e flores, das varandas elegantes onde corriam, como tecidos
de renda, enrediças verdes e doridas, grenadilhas encarnadas, e jasmins de
Virgínia com largas corollas de oiro! Citava também os serões dos namo-
rados, em accordes de bandurra, debaixo das sacadas!. .

Houve, porém, um período, e por signal bem longo, em que Sevilha


entristeceu, chorou eram gemidos as suas cores, o lucto
; os seus cantares ;

o seu trabalho, a oração e a tortura As suas mulheres mais formosas !

eram perseguidas por isso, como as mais ricas pelos seus thesouros, e,
em vez de fabricas cheias de operários servindo a terra e o Céo com o
seu trabalho, havia cárceres cheios de miseráveis, captivos como os cães,
afflictos como os antigos martyres do christianísmo, tão desesperados de
justiça, tão desvairados com o softrimento, tão esquecidos do seu e do
Deus alheio, que os que não succumbíam na loucura, não acreditavam em
Deus, nem na Egreja, nem na moral, á hora extrema
A aragem do formoso rio parecia quente, como as línguas de fogo dos

autos de fé, e as aguas que jorravam das velhas fontes mouriscas pare-
ciam brotar vermelhas como o sangue de tantas víctimas.
Andavam rubros os olhos dos velhos por causa dos filhos, e das
creanças por causa dos pães, e o orvalho, o único que então refrescava a
gente n'aquella desgraçada terra, eram lagrimas, que faziam sulcos pro-
fundos nos rostos emmagrecidos. Havia no ar um denso nevoeiro de
hypocrisia, e, em vez das canções alegres, características da alegre gente
andaluza, apenas se ouvia entoar sinistramente o Benedictus e o De pro-
fundis . . .

Orava-se, nos templos, com mentido fervor, e os espíritos pragueja-

vam, mesmo em frente dos altares ! A espionagem espreitava, por todos os


centros e recantos, a surprehender palavras e a devassar intenções. A in-

triga chegara ao seu auge, o ódio ao seu fastígio ; só o amor tinha o seu
tormento ! O frade era o senhor da terra, que em vez de fecundar esteri-
lísava. A liberdade, nem na alcova mais escusa, nem no sacrário mais in-
timo, se julgava segura ! A vida era tão contingente como se uma grande
peste estivesse assolando aquelles bairros, outr"ora ruidosos e festivos.
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3o3

N"uni bcllo livro, I 'áj-ia hísíoi-ia, do lallecido escriptor Ribeiro Gui-

marães, nota-se um facto que não poderia comprovar-se com a historia


de Sevilha.
Diz o illustre escriptor que as meliiores cidades do norte de Portugal
foram as mais poupadas ás crueldades da Inquisição, e que esse facto se
deverá attribuir ao zelo devoto d esses povos que passavam então o me-
lhor da sua vida em visitas aos templos, e em procissões e romarias aos
santuários dos arrabaldes.
Essa tendência das populações do Porto, de Braga, e de (juimarães,
ainda hoje se aflirma e é objecto de especial commentario dos povos do sul.

Não buscou o sr. Ribeiro Guimarães fundamentar o argumento na his-


toria de Sevilha, com relação á Inquisição hespanhola.
Sevilha é uma terra onde a religião tem o seu culto mais extremo e

mais luxuoso, e, comtudo, foi a terra de Hespanha onde a Inquisição mais


cannibalmente exerceu as suas perseguições.
Ainda hoje o culto catholico na formosa cidade de Andaluzia tem as
máximas opulências e os melhores requintes, que, se não vêem da moral
mais religiosa, obedecem ás tradições mais beatas da velha Hespanha.
Em Sevilha, onde o Santo Officio exerceu a mais sangrenta influencia,
ainda hoje as festas religiosas, principalmente as da Semana Santa, bri-
lham tão esplendidamente que são o encanto de todos os toiíristes do mais
delicado gosto artístico.
O espectáculo que olíerece a praça de S. Francisco, nesses dias em
que os templos despejam nas ruas de Sevilha as suas imagens de primo-
rosa esculptura, com andores que representam hortos dos mais floridos e
perfumados, é o mais bello que os artistas de todas as crenças poderão
admirar em qualquer parte do mundo cathclico I

De dia, á luz dourada c quente do sol andaluz, e á noite, alta noite, á


luz das estrellas e dos candieiros monum.entacs da formosa praça, passam,
com toda a solennidade, as procissões, onde as galas das alfaias, o bor-
dado dos pendões e as myriades de lanternas põem um cunho indelével
de gosto e arte, sem prejuízo da gravidade do culto.
Ha, nas filas dos espectadores, nas alas do transito, nas colchas e fes-

tões das sacadas, aquelle aspecto rico e alegre, que não prejudica a uncção
religiosa de taes festividades.

As festas religiosas de Sevilha não teem o aspecto sombrio d"um culto


oppresso pela dòr, mas da commemoração triumphal duma conquistai
Toda a Semana Santa parece um domingo de Paschoa Jesus cruci- !

ficado, balouçando-se nos hombros dos lieis, sob uma chuva immensa de
pétalas de rosas e cravos, não tem a apparencia dum martyr, justiçado,
. . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

como homem, pela injustiça dos judeus, mas o d'i.im Deus, que para me-
lhor subir ao Céo, e velar pela humanidade, subiu o Calvário, e abriu os

braços na cruz, como poderia abrir as azas no seu vôo altaneiro.


A Paixão é o grande festim sevilhano. Emquanto a Virgem passa, de
rosto macerado, esmaltado de lagrimas, que parecem rubis, o Amor adeja
infantil e risonho, no rosto das raparigas e dos rapazes, como se aquellas
lagrimas representassem gòttas de orvalho refrigerante e fecundador
Os andores teem magnificos dóceis franjados de prata e ouro, como
de prata e ouro são as varas em que se apoiam.
Os mantos das madonas, que vão, de mãos postas, sobre esses jardins
aéreos, brilham e rebrilham com as projecções magicas da luz sobre as
pedrarias que os recamam. .

Andam as mulheres com graciosas mantilhas no caminho das egrejas,


mas, por baixo d'essas mantilhas, esfuziam sorrisos tentadores, que não
offendem o Céo, porque alegram o mundo.
Ha flores sêccas, como borboletas espalmadas, nos livros de orações,
que ellas lêem nas bancadas e junto dos retábulos das capellas, quando,
com a cabeça inclinada, escutam melodias do coro e aspiram as ondas de
incenso.
As festas religiosas são as grandes festas sevilhanas ; foram-no sem-
pre durante séculos ; e, comtudo, Sevilha teve durante três, e principal-

mente nos séculos xvi e xvii, a mão de ferro e o facho ardente da terrí-

vel Inquisição!

Bem se vè que o phenomeno que se deu em Portugal não. foi imitado


da Hespanha.
Parece que, sendo Sevilha a essência da historia e dos costumes hes-
panhoes, não podia deixar de ser a escolhida para theatro d'essa imm.ensa
tragedia, que fez tantas victimas, para que o sorriso que ella ostenta ti-

vesse todo o encanto duma fagueira convalescença.


Tendo existido, como existiu, a Inquisição em Hespanha, era indispen-
sável que ella assentasse o seu negro tribunal e os seus ardentes patíbu-
los nas ruas e praças da formosa e alegre cidade. Tem assim o drama
maior êxito nas situações, que não ha para entristecer um coração como
ver chorar uma cidade, ou uma pessoa habitualmente alegre. A tristeza
dos felizes é mais triste que nenhuma outra. .

Afastemos, pois, da nossa imaginação a Sevilha do século xv. ou a do


século XIX.
Estamos em pleno século inquisitorial. A fé é obrigatória; Deus não
sorri ;ameaça e vinga-se. Christo não o representa é o Papa. César dá ;

o braço á Divindade e domina o mundo. O perdão converteu-sc n'uma


! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3o5

fraqueza e a justiça n'uma tvrannia. O Evangelho apagou os seus dizeres


de paz, de tolerância e de amor! No frontispício da nova biblia lé-se
agora — Cré, ou morre. O catholicismo presente Reforma e defende-se.
a

Os grandes herejes estão no período da incubação. Vae na terceira phase


o protestantismo !

A Triana não tem descantes, seccaram-se as flores nos terraços, ca-


hiram as folhas sèccas dos livros de missa, não ha bailados nos bazares
nem namorados sob os balcões ; estão mudas as bandurras, fizeram-se
negras todas as mantilhas, começa a erguer-se a grande cathedral, os
frades acampam pelas ruas, as castanholas são gemidos, e, em vez dos
dedos negros das ciganas, batendo nas pelles das pandeiretas, erguem os
esbirros o açoite sobre as espáduas brancas das mouras e das judias, que
não renegam a sua fé, e das christãs cubicadas, que não renegam a sua
castidade
A cubica do ouro e do amor aninha-se no Palácio da Fé, e a cidade,
posta a saque, fornece carne humana ás fogueiras, que a consomem. Ri-
cos e pobres são captivos e condemnados —
os ricos, por causa do seu
ouro; os pobres, por causa da sua crença.
Os reis catholicos estão satisfeitos —o rei porque é máu — a rainha
porque é fanática. Roma embute-se em Castella, e tem uma das mãos no
sceptro de Fernando Vi
Sevilha, orlada dos seus prados, e emmoldurada nos seus montes, não
é o velho oásis da Andaluzia — é o cemitério da Hespanha. ..

Duas raparigas vestidas de negro cruzaram-se na esquina da praça


principal.
— Salve-te Deus, Mercedes! A tua mantilha branca?
— Fiz delia mortalha de meu pae. .

— Então, também r

— Também, sim; relaxado em carne, como o Cármen. teu, . .

— E por que? Pelos peccados do meu?


— Não, Cármen, por outros bem contrários.
— Bem contrários? Que outros descobriu o Santo Oftlcio no teu pobre
velho?
— Morreu teu pae por amar o meu, não assim? é

— K' certo.
— Pois o meu condemnado por amar teu pae.
foi . .

— E asora ?
. . . . .. . . . .

3o6 iMYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Esperemos . .

— Esperar na orphandade, sem carinho, sem pão, sem casa?


— Ah! filha, que ainda não mediste o abysmo... Esperar pela nossa
vez. .

— Jesus! Que idca! Mas ajustemos a defesa. . . Nega que me conheces.


— Matam-me por eu negar. . .

— Então confessa . . .

— Matam-te, depois de mim.


— Fujamos, Mercedes, fujamos d'este inferno! vamos de noite, pelos

campos, pedindo esmola. .

— A quem nos entregue?


— Então não pediremos . .

— Morreremos de fome . .

— Queimar-nos-hão os cadáveres e perderemos as almas. .

— Não digas que me Mercedes viste, . .

— Para que, se estamos sendo vistas?


Ao longe, dois esbirros da Inquisição tomavam notas, eraquanto as
desgraçadas raparigas se abraçavam chorando...
— Tens visto o Paço? perguntava uma mulher numa allu^^ião de so-
luços. »

— Paço está nos cárceres da Fé. .

— Quem o denunciou, Consuelo? Elle estava escondido!


— O pae desorientado na tortura.
d'elle,

— Que horror!
— Não digas isso... estavam deitando chumbo derretido nos pés do
miserável . .

Pelas ruas andam creanças famintas, quasi nuas . .

— Pelo amor de Deus, senhor. . .

— Não tens casa?


— Não, senhor; durmo na margem do rio.

— Então, tua mãe?


— Está a creança apontava para o palácio
alli; e sinistro.
— Que fez ella ?

— Disse, no mercado, que Deus era injusto para com os pobres.. .

— E por prenderam-na isso ?

— Ha muito tempo!
— E a sentença?
— Bateram-lhe com um chicote, desmaiar. até ella
E o transeunte deu-lhe uma esmola.
— Ouve, rapaz: não digas a ninguém que tive dó de ti, percebeste?
. . : : . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO So/

Uma pobre velha era conduzida entre dois esbirros


— Oliiem, dizia outra n'um grupo acampado n um portal do bairro ci-
gano, lá vae a Antónia Martinez, por delação do seductor da íilha. .

— Que para haver suspeita de


fez, ter judaizado ?

— Exercicio de maus costumes. Náo fosse t<Ma I Sendo christã-nova


não devia fazer o que Nicolau espreitou e viu . . .

— Coisa grave ?

— Nada mais, nada menos que tirar o cebo e a gordura da carne que
comprou para o jantar, e, não contente com isso, purificou-a na agua e
dessangrou-a ! . .

— Está arranjada! Quem judaiza por forma. tal . .

— E suspeita
é i'elu'»!ciile. .

— Pobre Joann.a I

— Boa mulher, muito mas também muito imprudente... infeliz,

— E a segunda delação
já ?

— E a primeira, porque eu tenho estado calado, disse um vizinho da


Joanna ; mas a verdade é que ha três dias eu próprio a vi tirar o tutano
d"uma perna de carneiro! ...
— Cala-te, doido, disse do lado um rapazote sabido cm regulamentos
e penalidades — se não fizeste queixa, podes ser filado. .

— Dessa estou eu livre, que ainda não passaram seis dias. . .

Pela calle de los Gilaiws vae um marrano perseguido pela villanagem


mais suja. Um espião convidara -o a beber, e dera-lhe o vinho Caser
para matar saudades, licor que era fabricado por gente de Moisés.
O marrano provou, e, conhecendo o logro, cuspiu. . .

Salvou-se do cárcere, mas teve de fugir, lapidado pela canalha !

Pablo, que já se não lembrava de que fora judeu, foi a passeio com
uma formosa' rapariga. . . Não se lembrou de que era um sabbado, e ves-
tiu camisa lavada e fato novo... Elle ia alegre, e ella mais bonita que
nunca. . . Ao passar á porta de Jerez foi preso, foram presos ambos ! Um
rival de Pablo utilisara o artigo 4.° do édito inquisitorial I

— Onde está Samuel ? perguntou um operário que andava trabalhando


na reconstrucção da cathedral.
Respondeu-lhe um companheiro
—A o sambenito.
vestir
— O que Também ? elle ?

— Pudera não Fez annos em Domingo de Paschoa,


! e festejou-os com
a família. E um homem perdido.
— Pobre moço Então isso I é heresia ?

— Isso velho... niava


é a c moti\o principal de delação.
: ! . .

3o8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Na praça da Explanada, a dois passos de distancia, um sereno narra


a uma ronda de civis, que áquelia hora. cinco pessoas de um e outro
sexo foram presas em suas casas e conduzidas, no hoi"egiiim, aos cárce-
res da Inquisição
Passeia-se com difficuldade na Plaza Mayor, porque é necessário evi-
tar as grandes manchas negras que ha na calçada, e que são vestigios
das ultimas fogueiras que alli crepitaram I . .

Os esbirros e aguazis andam pelos logares públicos, rodeando e atra-


vessando os grupos. Toda a gente lhes dá passagem, e a conversa muda.
logo que elles se approximaram. Olha de revés a maldita gente e inclina
por vezes a cabeça para ouvir melhor.
Era vulgar esta scena, ao principio da noite, nas encruzilhadas mais
concorridas
— Que ha de novo, D. José, por essas terras de Hespanha ':

—-Tudo bem, graças aos benefícios da nossa Santa Inquisiçãol Cae,


como tordos, a judiaria em Valência e em Granada, e Sevilha vae hon-
rando a sua historia, com bastante zelo e fogo. . .

— Philippe traz idéas de soprar ou de apagar fogueiras ?

— Diz-se que de embaraçar o inquisidor-geral. Tantas queixas o . . as-

saltam, foi tão grave o que disse o bispo de Córdova, são taes os attenta-
dos de Lucero, que Deza terá de se recolher ao nosso arcebispado. .

— Começa bem el-rei, mas Deza ha de resistir. ..

— Não creio até ; já se fala em o substituir por D. Diogo Ramires de


Gusman, bispo de Córdova; Lucero e outros ministros de Córdova terão
a sorte de Deza.
— Caluda, D. ,losé . . .

— Ninguém pode ouvir-nos. . .

— Mas que o niido escorredi:{o


é anda a voltear perto de nós.

Effectivamente, os negros esbirros adejam no sitio, e procuram, de-


certo, alguém.
—-Quem será?
E os grupos entreolham-se, e os homens se consultam sobre quem irá

recair a diligencia.
Começa a lenta, a disfarçada dispersão, e faz-se o silencio na rua, ou
na praça.
De súbito, dois ou quatro aguazis envolvem um homem só, e levam-no
para o carro especial, puxado por machos, com as patas forradas de peile
de búfalo, e atacadas com correias. Dahi o nome de hoi-eixiiim dado ao
vehiculo traiçoeiro.
Se o captivo não resiste, o iii/tio cscorredi\o não vem á acção ; no caso
! : — : . . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Sog

contrário, logo o laço envolve os braços da victima, ou, sendo necessário,


o pescoço.
Quantas vezes o borzeguim conduziu gente enforcada na violência da
captura ?

Pobre Sevilha I Como estavas triste e abatida !

Numa pousada, por exemplo, perguntava um viajante, que não conhe-


cia Sevilha, á estalajadeira amável
— Ha muito que ver nesta bella terra ?

— Se ha! caballero? Muito, e cada vez mais. Já viu as obras da


Cathedral ?

— Já.
— Então vá ver o Quemadero?
— O Quemadero. O que isso é ?

— E' o novo monumento construido no campo da Tablada. Um bcllo


cadafalso ! . . . uma grande guarida de boa cantaria e tijolo, como os fornos
das faianças, tendo lá quatro estatuas ocas, de gesso... os quatro pro-
pluias, como dizem os entendidos.
— E serve ? . . .

— Para queimar gente viva. Mette-se alli, nas estatuas, a gente de


^amarra e cora\ã^ e o fogo, por fora, coze os herejes e a heresia, como
se fossem jarros da melhor argilla. Só lhes falta o vidro e a cur. .

E a locandeira ria, com gosto, alvarmente. .

Que miserável século c miserável gente !

Ao serão, depois de fechadas portas e janellas, coniavam-se historias,

e faziam-se conjecturas sobre a sorte dos captivos.


Era vulgar a narração que começava assim :

— Quando teu pae foi queimado. . .

Ou então
— Teu irmão era tão fraco, tão doente! que, quando o subiram na'
corda, chamou por mim, e morreu ! . . .

Em festas — baptisados ou bodas — os convivas, durante o banquete,


tinham sempre os olhos pregados na porta. . .

Os esbirros, vulgarmente, vinham pôr a nota fúnebre nos ágapes das


famílias.

Os ricos simulavam pobreza, para não aguçar cobiças do Santo Officio,


e os pobres, que logravam juntar migalhas, escondiam-nas debaixo da terra
Os pães explicavam aos filhos que tinham visto autos de fé, havia uns
vinte e seis annos, os primeiros de Sevilha, em que, em menos de nove
mezes, tinham sido queimadas na cidade duzentas e vinte e oito pessoas
e encarceradas para sempre umas sessenta e nove !

MYSTERIOS n.\ INQUISIÇÃO. VOI.. I. FOL. Sg.


. ! . . . .

3io MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—E em toda a Hespanha. n'esse anno ? perguntavam os filhos aos


pães.
E os pães repetiam o que ouviam dizer a muita gente :

— Foram queimados mais de dois mil judaizantes, e mais de dezesete


mil penitenciados
E como as creanças ficassem absortas, elles diziam ainda :

— E em estatua ? até vae perdida a conta !. .

E, apesar d'isso, os mouros e judeus, até na egreja dos dominicanos,


de joelhos, assistindo á abjuração dos levemente suspeitos, emquanto o in-

quisidor pregava, e o accusado de pé, sobre um estrado, beijava a cruz e


os Evangelhos, oravam intimamente a Mahomet ou a Moisés I

Na rua da Inquisição, uma louca dizia, em altos gritos, blcisphcmiãi

heréticas, e pedia que lhe abrissem as portas daquelle inferno.


Um physico, que passava, mandou que a levassem dalli, e, para a dis-
trahir, foi perguntando:
— Como te chamas ?

— Judia. .

— E que mais ?

— Christã.
— Teu pae ?

— Morreu na Tablada.
— E tua mãe ?

— Com garrote, na Plaza Ma^-or.


— Não tens irmãos r

— Ouço-os gemer
gritar edentro; alli e apontava. .

— Não tens casa ?

— Roubaram-m'a.
— E o que fazes ?

— Morro de fome ...


E, depois, fechava o punho para o céo — gritava, chorando e e rindo:
— Oh! Jesus, tu também has de morrer queimado. .

— Levem-na d'aqui, o physico, á gente que passava.


dizia .

E essa gente olhava para a louca, com ar compungido, olhava depois


para o Palácio da Fé, e afastava-se depressa, deixando a energúmena no
chão, a contorcer-se, a gritar, a rir, a chorar, e a cuspir para o céo ! . . .

Era assim, a formosa cidade da Andaluzia, no principio do século xvi!


Nem cantares, nem flores, nem sorrisos, nem sonhos tranquillos, nem
paz na familia ! O ódio, o lucto, o medo, o desespero ! Quem fazia taes
damnos aos homens ? Deus ? Não os homens ; . .

Não eram brandos os costumes nos principios do século xvi ; a par da

i
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3ii

grande intolerância do Estado e da Kgrcja havia a intolerância religiosa


do povo. O que se fazia em Hespanha, por ordem do sangrento tribunal,
fazia-o Lisboa, sem Inquisição, a todos os seus christãos novos.
Evidentemente, se a formosa Sevilha não tivesse regulamentado os
autos de fé, o fanatismo popular faria a guerra mais encarniçada á raça
dos infiéis.

E bem certo que todas as instituições politicas são filhas dos povos que
as toleram.
N'aquelles tempos malditos, deixem-nos empregar este vocábulo absurdo
e odiento, a ignorância era tanta, que a maldade instinctiva e o fanatismo
contrahido em séculos de obscurantismo faziam dos povos os collaborado-
res da tyrannia de que estes foram victimas.
Affirmava-se, naturalmente, na evolução do espirito, que c tão natural
como o movimento da Terra, aquella transformação, que aperfeiçoa, escla-
rece, humanisa. Os cérebros abriam-se como os cálices das Hôres, que
nascem pelos campos, sem canteiros, sem cultivos, apenas com a seiva
da terra, o calor do sol c o orvalho da noite !

As sociedades, no seu movimento natural, fazem dos homens o que a


onda dos mares faz das pedras mais angulosas : a onda leva-as, tral-as,
revolve-as, bate-as, lima-as, gasta-as, no torno incessante do seu novelo,
até as lançar sdbre as areias das praias, redondas e polidas.
Que grande desenvoivimento intellectual e moral tem uma sociedade
quando ella começa a reclamar escholas ? A civilisação está no movimento
como está n elle o calor e a vida !

A proporção que a luz se faz, mais facilmente se multiplica I . . . Que


violência adquire um grande incêndio, que começou pela inflammação
lenta de pequenos pedaços de combustível!... Sevilha, que era intole-
rante para com toda a heresia, ia humanisando-se, á proporção que a sua
vingança se tornara feroz e fria.

Foi por isso que ella começou, como Lisboa, pedindo o fogo da terra
para os que desafiavam o fogo do Céo, e foi por isso que ella ia, dia a

dia, entristecendo, á proporção que enfraqueciam os que ella julgava fortes.

O povo é uma creança excessivamente irritável e excessivamente gene-


rosa . .

E, demais, a Inquisição aproveitara o excessivo zelo religioso para per-


seguir o pensamento em todas as suas manifestações ; o que era julgado
justiça para os infleis convertera-se n'um perigo para toda a gente. O fa-

natismo religioso brincara com o fogo, e elle próprio se sentia queimar I


.

XI

A Inquisição

Ver a Inquisição de Sevilha não é ver completamente a Inquisição era

Hespanha.
Para se avaliar os terrores d'essa instituição seria necessário espreitar
Madrid, Valência, Murcia, Toledo, Granada, Valladolid. . .

Já que a acção do episodio portuguez nos levou a terras de Hespanha,


e é em Sevilha que teremos de nos demorar, é nosso dever fazer uma
pequena excursão histórica pelas origens da Inquisição moderna n'aquelle
paiz.

Foi em Sevilha que resurgiu o velho tribunal perseguidor dos algiben-


ses, com a nova tarefa de perseguir mouros, judeus e christSos novos.
Ia no seu ultimo quartel o século xv, era indomável o poder papal,
altivos e ladinos os agentes da corte de Roma, e fanático e intolerante o

rei catholico. A rainha Izabel era de caracter mais brando, mas duma
cega piedade, que a fazia escrava da sua escrava consciência.
AUi por 1460 estava Castella limpa dos horrores, que depois soffreu
pelo espaço de tresentos e trinta e nove annos, e até frei Alonso Espina
arguia Henrique IV do abandono em que vivia a religião catholica, maltra-

tada pelos infiéis que a vilipendiavam.

Era tal a irritação e o zelo de Espina que este se deu ao pesado incóm-
modo de andar offerecendo-se a diversos bispos para syndicar as heresias
e denunciar os heréticos. Parece que este franciscano não logrou o seu
intuito, apesar de ter andado pelas dioceses a espionar a vida de mouros,
judeus e christãos-novos, que discutiam os dogmas do catholicismo. .

Comtudo, no pontificado de Paulo II, Frei António Riccio conseguiu ser


nomeado inquisidor de Castella, logar que foi honorário apenas, porque
não medrou a idéa de restabelecer as perseguições feitas na Antiguidade
á consciência dos povos.
Roma não viu com bons olhos este aborto das suas tentativas. Foi

I
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3i3

então que Pedro d'Osma, um erudito professor, deu ensejo a um ensaio


de violência contra a consciência do povo hespanhol.
Ia decorrendo o anno de 1473, quando D. Alonso Carrillo, arcebispo
de Toledo, inspirado pela corte de Roma, se lembrou de reunir cincoenta
e dois theologos para julgar as heresias do philosopho. Osma não resistiu

á pressão e abjurou oito das suas proposições. Immedidtamente Xisto W


declarou boa a condemnação, sem attender o parecer dos inquisidores.
Fernando e Izabel acabaram com todas as hesitações, e resolveram
reorganisar a Inquisição, que, no parecer de todos os historiadores, fez^-

sob pretexto de religião, mais lagrimas c sangue que as guerras e con-


quistas mais desastrosas para a humanidade.
As condições eram diversas, mas a Fernando uma bastava —
que fossem
repartidos com elle os bens confiscados! A mesma táctica, e a mesma poli-
tica que se planeavam em Portugal.
Alonso Ojeda, prior do convento dos dominicanos em Sevilha, o inqui-
sidor siciliano Philippe de Barberis, e Nicolau Franco, bispo de Treviso, e
núncio de Sua Santidade, conversaram sobre o assumpto e começaram so-

prando os ódios dos christãos-velhos sobre os convertidos.


Obtido o pretexto, o rei Fernando calculou os proventos e reclamou
o beneplácito papal. A rainha resistiu por algum tempo, e por fim cedeu. .

Procurou D. Izabel contemporisar com os processos suasórios, mas,


por mais que recorresse á propaganda do cardeal de Mendonza, do bispo
de Cadiz, Diogo de Solis, de D. Diogo Merlo, e outros funccionarios e digni-

dades da Fgreja, se conquistou a abjuração de Osma, não pôde evitar o


estabelecimento da Inquisição.
Estavam nesse propósito o rei c o Papa, e ella não pôde c não soube
resistir-lhes.

Em 17 de setembro de 1 4!^o, apparecem nomeados os primeiros inqui-

sidores : frei Miguel Murillo e frei ,)oão de S. Martinho; para conselheiro


da rainha o dr. João Ruiz de Medina de Rio Secco, c o capellão João
Lopes dei Barco.
Resistiram os povos a esta innqvação, e, para honra da Hcspanha,
convém não esquecer que ella soube, revoltando-se, crear sérias diiíicul-

dades á execução do plano.


Não era Fernando V hesitante como D. Manuel, e, por um decreto
datado de Medina dei Campo (27 de setembro), ordenou que os povos de
Sevilha prestassem auxilio aos inquisidores.
Conhecendo esta resolução, os infiéis dos bairros de Sevilha occulta-
ram-se nas ricas propriedades do duque de Medinasidonia, do marquez
de Cadiz e do Conde dos Arcos.
: :

3 14 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Os inquisidores tudo preveniram, e foram, com outro recurso, em busca,


dos desgraçados. . .

Mal passou, pois, o. dia de Anno Bom do anno de 1481, foi promul-
gado um édito inquisitorial, no qual se dizia
(I . . . Tendo chegado ao seu conhecimento a mudança de domicilio dos
ordenam ao marquez de Cadiz, ao conde dos Arcos, e a
christãos-novos,
todos os mais senhores dos reinos de Castella, que, no prazo de quinze
dias, prendam e enviem a Sevilha todos os fugitivos, e lhes sequestrem

os bens ; e, deixando de cumprir qualquer d'estas requisições, incorrem


em excommunhão e nas penas impostas por lei contra os fautores da he-
resia, especialmente na de confiscação e privação de dignidades e officios,

além de desligar os seus vassallos da obediência e vassallagem, não obstante


qualquer promessa jurada e homenagem, reservando para os inquisidores
e para o Papa a absolvição da censura.»
Estavam assim absorvidos tjdos os poderes. Até os prelados ficavam
despojados de seus direitos !

O Palácio da Fé não pôde comportar todos os christãos-novos apa-


nhados na rede d'este édito. Inventou-se então o Castello da Triana para
guardar o excedente.
No livro de D. Fernando Garrido — Perseguições ]''oli/icas e Religio-
sas — cita-se, como valioso documento daquelles bons tempos e de tão
memoráveis façanhas, a inscripção que os frades collocaram na fachada
daquelle castello
Eil-a, que é, na verdade, característica do nivel intellectual de tão
santa gente :

«O Santo Ofticio da Inquisição contra a iniquidade dos herejes, co-


meçou em Sevilha, no anno de 1481, sendo summo pontífice romano
Xisto IV, que permittiu a sua instituição, e reinando em Hespanha Fer-
nando V e Izabel, que a solicitaram.»
E depois de indicar o nome do primeiro inquisidor-geral, o celebre
Torquemada, termina assim :

«Permitta Deus que dure até o fim do mundo, para defesa e augmento
da Fé.
«Ergue-te, senhor, e julga a tua própria causa. Entregae-nos as raposas.»
Não permittiu Deus que ella durasse para além da grande revolução
que, no fim do século passado, abalou o mundo e. libertou a consciência
humana.
Cabe-nos agora, no gôso duma liberdade immorredoura, afugentar as
modernas raposas, ensinando ao povo a historia velha e feia.
Dado o primeiro passo, o segundo torna-se fácil.
! ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇxVO

Ao primeiro edito de que resultara a prisão summaria dos refugiados,


succedeu logo outro oíferecendo o perdão aos christãos-novos judaizantes
que se delatassem a si próprios.
O laço a poucos apertou, apesar da promessa de que a culpa seria
aggravada, se, passado o prazo concedido, fossem delatados por outrem.
Depois da perseguição aos refugiados, veiu logo o édito do perdão, que
exhortava os judeus novos, judaizantes, mediante a absolvição a delata-
rem-se a si próprios. Esgotado o praso, os que não tivessem aproveitado
o ensejo de se salvarem seriam rigorosamente punidos I

Era uma villissima rede armada aos crédulos pela traça dos inquisido-
res. E tanto que só lograram perdão, dos muitos que confessaram, os
poucos que se prestaram a denunciar os que não confessaram as próprias
culpas
Que honrada gente 1

Com a itdquirida velocidade, e animados pelo bom êxito das primeiras


tentativas, lembraram-se, os defensores da Fe, de pregoar novas leis, ex-
ploradoras do sórdido egoismo e de sórdidas invejas que pullulavam n'uma
sociedade mal educada.
Determinaram, então, sob pena de peccado mortal, excommunhão maior,
e outras, que toda a gente era obrigada a denunciar judaizantes, no prazo
de seis dias !

Foi assim creada a torpe industria da espionagem, que veiu destruir a


confiança e o amor, desmoralisar e impedir o convívio social, alluir pela
base o santuário da familia
Viram-se então os espectáculos mais vergonhosos. Os amigos atrai-
çoavam os amigos, os filhos os pães ! Quantos maridos, para se salvarem
das penas do Santo Officio, entregaram a ellas as próprias mulheres ?! E
quantos, por mais humanos, cederam no meio das maiores torturas, e aos
filhos arrastaram, afinal, para seu lado ?

Os desgraçados, batidos por esta forma, recorreram a Roma, e o Papa


aproveitou o ensejo para tirar aos reis catholicos o direito de nomearem os
inquisidores.
As solicitações de Izabel só conseguiram que as appellações fossem
julgadas por um juiz ecclesiastico, especial delegado de Xisto IV.
Em Sevilha ficou o arcebispo com essa faculdade.
A infeliz cidade andaluza estava á merco da justiça, que se abrigara
dentro de seus muros !

O resto da Hespanha, o resto do mundo, não lhe escutava os gemi-


dos !

A cgreja de Sevilha puzera a cidade em estado de sitio. Alli o rei era


!

MY3TERI05 DA INQUISIÇÃO

O arcebispo, que tinha o direito de rever os processos, e dispunha, a seu


talante,da vida e da fortuna d'aquelle povo
Passou, pois, o Papa a nomear inquisidores, e de facto nomeou Pedro de
Ocaíía, Pedro de Murillo, João de S. Domingos, João do Espirito Santo,
Rodrigo de Segarra, Bernardo de Santa Maria e Thomaz de Torquemada.
Em 4 de janeiro de 1441, foram sacrificados na Plaza Mayor seis con-
demnados ao fogo. E logo, em 26 de março, dezesete. Em 2Õ d'abril, uma
grande quantidade, que a historia não fixa, e, em 4 de novem.bro, duzentos
e vinte e oito foram queimados vivos, e sessenta e tantos condemnados a

cárcere perpétuo!
Em Hespanha, a Inquisição enluciou e arruinou mais de vinte mil ta-

milias!
V.m Sevilha, a mortandade attingiu taes proporções que foi necessário
construir o célebre Quemadero, na Tablada, em que os condemnados
eram queimados em turmas de quatro, em estatuas de gesso I

E isto na Europa, e isto na Hespanha, e isto no alvorecer do século


da Renascença, em que o mundo se alargou e as velhas civilisações volta-

ram a vida no culto das artes mais delicadas!


Esta fúria devia fatalmente dar em resultado a extraordinária emigra-

ção para Erança, Portugal e Africa.


Roma teve de intervir por causa dos abusos, mas interveiu aggravando,
e não suavisando, os rigores. Diversos breves do Papa afHuiram a Hes-
panha. O primeiro nomeava juiz de appellações o arcebispo de Sevilha
Domingos Manrique; em dois mais prohibia que qualquer bispo, descen-

dente de judeu, fosse juiz em causas de fé. O arcebispo de Toledo era


feito, em Saragoça, juiz, com attribuições eguaes ao- de Sevilha. N'este

arcebispado era administrador perpétuo D. Alonso de Aragão, uma creança


de 14 annos, filho natural de el-rei'

Taes questões se levantaram entre a corte de Castella e a de Roma.


que esta triumphou sempre, que os esforços de João de Sevilha, para que
triumphasse a bulia de 2 de agosto, foram infructiferos.
Em 2 de agosto de 1483, foi dada a forma de tribunal permanente á

Inquisição.
Para esse tribunal foi nomeado, pelo breve de 17 de outubro d"esse

mesmo anno, chefe geral, o célebre Torquemada, que também foi inqui-

sidor-geralda coroa de Aragão. Estes poderes foram confirmados por In-

nocencio VIU, em 1 de fevereiro de 148o.


1

Torquemada era o grande homem! Peruando estava radiante!


Não era fácil encontrar outro heroe mais apto para desenvolver as
confiscações de bens e a lorrefacção de herejes.

I
! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Logo surgiram quatro tribunaes subalternos em Sevilha, Córdova, Jaen


e Ciudad Real. Escolhidos, para assessores e conselheiros, João Gutierrcz
de Chaves e João de .Medina.
Para defesa dos interesses reaes creou-se logo o conselho real da
Inquisição, de que Torquemada foi feito presidente, e composto também
do bispo eleito de Mazara, radical Sancho Vclasquez, de Cuellas, e Poncio,
de Valência, com a formatura em Direito.

Foi em 2() de outubro de 1484 que foram promulgadas em Sevilha as


primeiras leis da inquisição moderna. Eram todas leis financeiras, que esta-

beleciam impostos, pela forma mais gananciosa.


Os principaes artigos dessas leis eram relativos a delações, estimulo

a denunciantes.
Referiam-se a toda a Hespanha — única dilTerença entre elles c os já
publicados.
No sexto artigo começava a cahir a máscara — a ganância substituia-se
á íé.

A penitencia do reconciliado devia ser a privação do exercício de todos


os empregos honoríficos, e do uso do ouro, prata, pérolas, seda e lã tina,

de modo que todos conhecessem a infâmia em que liariam incorrido pelo


crime de heresia.
A heresia consistia, ao que se deprehende de tão sábia lei, do uso do
ouro, prata e pérolas!
Ficava tão perto a Sierra Morena
A" vista disto, os christáos correram a Roma a comprar brevea de relia-

bililação.

Outro artigo impunha contribuições pecuniárias aos confidentes volun-


tários, e que eram destinadas á sustentação da fé catholica.

O descaro chegava ao ponto de dizer, o artigo oitavo, que o confessado


espontaneamente não ficava isento de confiscação de bens, em que por
direito Ihwia incorrido, commettendo o crime de apostasia ou heresia.
Que se punisse o crime de heresia, porque a heresia era um crime,
ainda se explicava, mas a apostasia, que era o arrependimento do crime,
c até o preço da promettida absolvição ? . . .

A ganância chegava a tal extremo que até os confessados espontanea-

mente eram obrigados a indicar á épocha em que tinham feito a heresia.

para se poder avaliar os bens que então possuíam


De maneira que os confessados que tivessem vendido bens ou dotado
com elles seus filhos, veriam desfeitas suas vendas e transacções. A liqui-
dação era feita, com todo o rigor, a favor do fisco.
Mais se dispunha que, se o hereje, preso, requeresse a reconciliação
UYSTliRlOS bA INQUISIÇÃO. — VOL. 1. POl . 40.
! ! ! ! ! !

3i8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

com sincero arrependimento, apenas lhe fosse imposta a pena de caixere


perpétuo!
E este arrependimento não dependia da confissão do preso, mas da
resolução dos inquisidores! Elles julgavam todos os casos de consciência!
No artigo decimo quinto, por exemplo, da barbara legislação, deter-

minava-se que os ricos fossem sujeitos a tortura, se confessassem, e depois,

ainda que ratificassem a confissão, fossem novamente sujeitos a tortura


para se ver se se desdiziam!
Também se prohibia aos rcos o conhecimento das accusações feitas

pelas testemunhas.
As torturas assistia sempre, pelo menos, um inquisidor, para tomar
nota das confissões.
O ausente, sem prazo determinado, não comparecendo, era julgado
e condemnado como hereje convicto.
Não havia tempo nem sequer para tomar conhecimento da accusação!
A heresia, verificada depois da morte do hereje, auctorisava a confis-

cação de bens, e a exhumação e queima do cadáver


E tudo isto em nome da religião do generoso Christo, todo perdão e
justiça

Também simulavam caridade as disposições das referidas leis. Até os


reis eram obrigados a dispor de parte dos bens confiscados a favor dos
filhos dos justiçados. E as pobres creanças eram recolhidas no seio de
famílias intolerantes, que, a todo o momento, ou as ensinavam a praticar
a intolerância, ou a odiarem a memoria dos pães!
Quando recordamos este passado ignóbil é que admiramos aquelle
clarão immenso da Revolução francezal Que sangrenta maravilha!
E a hypocrisia ia até o ponto de libertar os escravos dos confessados,
sem confiscação •

Já que não podiam confiscar-lhes os bens, destruiam-lhos. . . E que


liberdade, a d'esses escravos, no tempo em que só escravos havia, até
sentindo o azorrague na consciência
Como preceito mais hypocrita, também se determinava que os inqui-
sidores não recebessem presentes. Que medo de corrupção
Para que receberiam presentes os que tudo roubavam ?

E os herejes, ou confessos, punidos com maior generosidade, eram


condemnados a andar, em público, com o sambenito, assistindo com elle

á missa cantada em todos os dias festivos


Nas procissões não faltavam esses desgraçados com a ridícula deco-

ração, atraz das imagens de Jesus e da Virgem — de Jesus, que derruiu


o templo; da Virgem, que chorou o martyrio de seu filho!
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E assim a Inquisição, inventada para fazer a unidade catholica da Hes-


panha, provocou as guerras civis de Granada, de Valência e de Flan-
dres, que tanto concorreram para a desgraça d'aquelles reinos!
Que nos perdoe o jesuita Mariana esta condemnação, em nome das
conquistas do século xix.
Que nos perdoem os jesuítas deste século, que ainda andam soprando
os ódios de raça e de religião.
Não deixemos que o futuro seja espelho do passado.
Façamos a historia, mas não resuscitemos os factos.
Nega-se ás vezes a penna a contar o que então se passou I Armados
com taes éditos, os inquisidores exerceram os seus poderes com um re-

quinte de maldade em que difficilmente se acredita.

Ficou escripta, e estão nos archivos os documentos que a justificam,


a historia d'essa cpocha sombria, em que se commetteram as mais ferinas
atrocidades I

Como uma grande mancha d'azeite, alastrou a Inquisição cm toda a


Hespanha.
Hesita-sc em escolher o ponto onde elia mais se atlirmou, perseguindo
herejcs, que são innocentes, e até innocentes da heresia !

O reino de Aragão veiu engrossar prodigamente a obra inquisitofial,


e, para mostrar a sua força e independência, ao mesmo tempo que sa-

crificava a gente miserável e anonyma, que se perdia nos seus terríveis

recenseamentos, voava, como vampiro arrojado, a cobiçar e a prender,


nas suas garras ímmensas, pessoas das mais gradas, a quem nem a real
influencia podia servir de escudo.
Aragão ofiereceu mais resistência ao desenvolvimento da Inquisição.

O confisco de bens não podia realisar-se. A nobreza de Aragão provinha


quasi toda de antigos christãos-novos, sacrificados no Santo Officio.
O decreto de abril de 1484, de Fernando V, reformando o tribunal.
por indicação de Torquemada, explodiu entre essa nobreza, que appellou
paraRoma com toda a energia.
Torquemada não deu tempo a que as reclamações fructificassem, e no-

meou inquisidores frei Gaspar Juglar e o dr. Pedro Arbués, o grande


bandido, que Roma beatificou, quando Satanaz tinha direito a chamar-lhe
creatura do inferno !

Juglar era religioso dominicano, e Arbués cónego da cgreja metropolitana.


Todas as auctoridades aragonezas, inclusive o justiceiro-mór, em 19 de
setembro, juraram obediência. Mas a conspiração não parou. Partiram
para Roma e dirigiram-se aos reis catholicos os delegados de Aragão pro-
testando contra as leis iniquas.
! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Entre os reclamantes figuravam Luiz Gonzalez, secretario do rei, Phi-


lippe Clemente, proionotario, Aífonso de la Caballeria, vice-chanceller, e
Gabriel Sanchez, thesoureiro-mór, todos filhos de judeus que já se tinham
enlaçado nas casas mais nobres do Aragão.
Juglar e Arbués arrecearam-se do protesto e desenvolveram a máxima
actividade. Entenderam-se com o vigario-geral de Saragoça, João de Go-
medes, e condemnaram numerosos christãos-novos, que foram queimados
em diversos autos de fé.

O Papa e o rei não deram solução á pretenção dos fidalgos ameaçados,


e estes resolveram fazer justiça por suas mãos.
N'essa conspiração figuraram principalmente Sancho Paternoy, João
Âbbadia e D. Vasco de Aragão, senhor de Sástago. Quotisaram-se os des-
cendentes de judeus^^e entregaram a D. \ asco dez mil soldos, destinados
a gratificar o assassino de Pedro Arbués. Andava cheio de medo, embora
sem remorsos, o terrível inquisidor, que todos os dias vestia cotta de ma-
lha, por baixo do hábito, e um casco de ferro por baixo do barrete.
Em i5 de setembro de i68S, Arbués estava rezando na cathedrat,
quando João Esperanideo lhe vibrou uma punhalada n'um braço, e, era

seguida, Vidal de Oranso outra na cabeça, e que deu a morte ao t}Tanno


vinte e quatro horas depois.
A reacção foi tremenda ! O povo, o povo ! o grande mart3fr da Inquisi-
ção, levantou-se contra os christãos-novos ! Os reis catholicos aproveitaram
o ensejo para consolidar o Santo Officio
O assassinado começou a ganhar a aureola de.mart\ r, e, como as suas
victimas não podiam bradar, e os seus cúmplices o beatificavam, foi-lhe
erigido um grande jazigo !

N'esse jazigo, que foi inaugurado em 8 de dezembro de 14S7, fez-se

a seguinte inscripção, que é a synthese da outra esculpida na estatua de


Pedro d'Epila :

(iQuem descança n'este sepulcro? Uma segunda pedra fortíssima,


cuja virtude afasta de si todos os judeus; pois o sacerdote Pedro é a pe-
dra fortíssima sobre a qual Deus edificou a obra da Inquisição. O feliz

Saragoça I Alegra-te de teres aqui o que é gloria dos martyres. E vós, ó


judeus ! fugi d'aqui, fugi prestes, porque a pedra preciosa do jacintho tem
a virtude de afugentar a peste.»

Começou então a vingança tétrica, horrível


N'um pequeno esforço prenderam os esbirros mais de duzentas victi-

mas Todos os judeus e christãos-novos, ou descendentes


I d'estes, foram
1

MYSTERrOS DA /NQUISIÇAO 32

considerados cúmplices de homicídio. Foi rara a familia de Saragoça que


não teve uma pessoa a figurar nos autos de fé I

Dar fuga ou hospitalidade a algum fugitivo era crime que merecia a

fogueira.

Foram condemnadas as melhores figuras saragoçanas ! Entre ellas a

de D. Jayme Armandariz, senhor de Cadreita, cavalleiro de Navarra e


progenitor dos duques de Albuquerque, que foi penitenciado por ter rece-
bido, uma noite, em sua casa, Garcia de Moros e Gaspar de Santa Cruz,
que fugiam de Saragoça.
Por haverem, em Tudella, soccorrido o fugitivo .loão Pedro Sanchez,
tiveram egual sorte Fernando de Montesa, João de Magallon, Guilherme
Forbas, João Vasquez, Martinho de Aguas, e outros.
Também vestiu o sambenito o infante de Navarra, por causa dos fu-
gitivos de Aragão! E outros, e outros, como D. Lopez de Urrea, primeiro
conde de Aranda, D. ^'^asco de Aragão, a quem já nos referimos, D. Pe-
dro Urries, Beatriz Santángel, mulher do senhor de Sisamon, Luiz Gon-
zalez, o secretario-geral, Hilária Ram, mulher de AtTonso I.inan, todos
os conspiradores que indicámos e numerosos cavalleiros illustres de Tar-
ragona, Saragoça, Calataynd, Barbastro e Huesca!
João I-*edro de Sanchez e António Agustin foram queimados em es-

tatua. Agustin era pae do arcebispo de Tarragona e sogro do duque de


Gardona, e foi mais tarde chanceller d'AragãoI
Entre tantas crueldades, resalta a penitencia imposta ao tilho de Gas-
par de Santa Cruz, que havia fugido para Tolosa. Como tivesse auxiliado
a fuga de seu pae, foi preso, e foi de sambenito levar, aos dominicanos
de Tolosa, a sentença que condemnava seu pae, já então fallecido.
O pobre moço foi compellido a requerer a exhumação do cadáver e
a fazel-o queimar, e a levar depois a Saragoça a certidão passada pelos
inquisidores de que fora cumprida a sentença.
Os assassinos do pertido e fanático Arbués, que o romance de Fereal
fez morrer assassinado por uma mulher, foram arrastados pelas ruas, com
as mãos decepadas, enforcados depois, esquartejados, e afinal fazendo-se
exposição desses sangrentos despojos em alta estacaria na via pública!
João de .\badia encontrou no suicidio a isenção de taes martvriosi
E' interessante uma nota que algures encontrámos a respeito das pri-
sões realisadas e sentenças executadas até 1498.
N'essa data, diz um historiador hespanhol, já tinham sido verificadas
as prisões de mais de ccuto e qiiator:[e mil e quatrocentas i'ictimas,
que
representam outras tantas famílias, compostas de quinhentas w/V pessoas!
N'essa data já haviam sido queimados cie^ mil dii\entos e i'inte, em pes-
! . : !

322 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

soa, e seis mil oitocentos e sessenta, em effigie, por terem fugido, e con-
demnados noveiita e sete mil tresentas e rinte uma a diversas peniten-

cias, ao sambenito, a prisão temporária ou perpétua, e a confiscação de


bens!
Por isso os padres e os reis de Hespanha encontraram tão grandes
resistências para radicar, nas diversas provincias de seus reinos, o tribunal
da Inquisição. .

Em Teruel, depois de graves resistências, a victoria da religiosa tyran-


nia só foi decretada em 1485; em Valência, os cavalleiros e senhores de
vassallos lactavam com egual denodo; em Lérida, Fernando V só trium-
phou em Í487; Barcelona, embora ludibriada, por não querer um inqui-

sidor especial, e Roma ter nomeado especial, o geral Torquemada, só foi

vencida no fim desse anno; Maiorca aguentou-se até 1490; a Sardenha


foi mais longe — cahiu em 1492, e a Sicilia só muito mais tarde!
A Hespanha resistiu quanto pôde, mas os joelhos da realeza e do clero
cahiram-lhe sobre o peito e esmagaram-na.
Ao findar o século xv, em todos os cantos dos reinos unidos da Hes-
panha ardiam as piras inquisitoriaes.
Era o clarão d'essas immensas fogueiras que estava illuminando o céo
de Portugal nesses dias em que reinou D. Manuel, tendo tido a seu lado,

e sob o docel do seu throno, cada uma no seu período de caricias e sug-
gestões, três formosas e fanaticis princezas de Castella
O reflexo da Hespanha ameaçava a todo momento incendiar a terra
portugueza !

Para que se possa avaliar quanto eram summariamente processadas


as victimas da Inquisição, bastará repetir o que algures cita um escriptor
que viu em Saragoça os processos de mais de tresentas pessoas accusa-
das de auctoras, ou cúmplices, no assassínio de Pedro Arbués. Esses
processos não gastavam, cada um, mais de quarenta quartos de folha ! E
em tão pouco espaço se continham a delação, o mandado de captura, a
confissão do réo, a accusação do relator, a resposta verbal do preso e a
sentença
A's leis de Torquemada, Deza accrescentou algumas.
Uma amostra
Quando alguém abjurasse, como suspeito vehemente, promettesse não
se reunir com herejes, perseguil-os quanto pudesse, delatal-os á Inquisição
e cumprir a sua penitencia, consentindo que o castigassem como relapso,
se faltasse a ellal
Convém notar que o relapso era condemnado ás chammas, ainda que
se arrependesse.
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Na Chronica cios Reis Catholicos e nos Illtisíres Var-ôes de Casíella


ha pormenores interessantes sobre as reclamações contrárias a tão iniqua
legislação, apresentadas por Fernando dei Pulgar e dirigidas ao cardeal
Mendoza, arcebispo de Sevilha.
Houve um momento, n"esta lúgubre historia da inquisição hespanhola,

em que, havendo cançaço na mortandade de judeus, se organisou e esti-

mulou a vingança nos judeus contra os christãos-velhos e novos.


Custa a acreditar, mas é verdade ! Basta recordar o que se passou em
Toledo, em 14.HÒ.

Os judeus rabbinos da sjmagoga daquella cidade foram obrigados a


jurar, juramento feito em harmonia com a lei de Moisés, que dariam no-
ticias de todas as pessoas que soubessem professar o judaísmo depois de
receberem o baptismo, ameaçando-os cora diversas penas, e entre ellas a

de morte, ordenando-lhes, além d'isso, lançar nas synagogas excommu-


nhão, segundo o rito mosaico, contra os que não delatassem o que sou-
bessem sobre o assumpto.
A essas vinganças dos judeus corresponderam tantas perseguições que,
em i3 de fevereiro de 1486, se celebrou um auto de fé, em que figura-
ram setecentas e cincoenta pessoas, homens e mulheres, reconciliados em
sentença publica, descalças e com velas na mão, e nuas I

No meio de grande multidão, no caminho para a cathedral, os desgra-


çados choravam de vergonha. .

A maré foi subindo : em 2 d'abril, iisio é, dois mezes depois, houve


novo auto de fé — novecentos condemnados ! Em 7 de maio outro com
setecentos e cincoenta! em lõ d agosto foram queimados vinte e cinco e^
logo no dia seguinte, dois ecclesiasticos ; e assim a seguir até 10 de de-
zembro, em que foram penitenciados novecentos christãos-novos, e velhos !

Temos, em Toledo, n'um anno, um balanço de 27 queimados e 3:cco


pois,

penitenciados. Tudo isto julgado e executado apenas por dois juizes, ou


inquisidores
Sevilha, em actividade, não ficava atraz de Toledo. Note-se que, em
1481, diz Mariana, alli foram queimadas 2:000 pessoas, além d"outras
tantas em effigie —e dezesete mil penitenciados !

Vinte e um mil processos em um anno Que ! velocidade de cartórios !

Felizmente, a 16 de setembro de 1498, a Hespanha libertou-se da


maldade de Torquemada. Triste foi a missão d'este religioso assassino.
A sua memoria ainda hoje causa a mais profunda repugnância.
Hypocrita, como Judas, fanático, brutal, sanguinário, passou a sua
torpíssima vida arrancando vidas e atormentando consciências.
Só admira que os punhaes que abriram o craneo de Arbués não-
! ! !! .!
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

tivessem também vingado tanta innocencia perseguida, tanta dôr, tanto


lucto ! Encheu, aquelle sicário, o mundo de viuvas e de orphãos
Bastará citar estes terriveis algarismos, arrancados ao registo da in-

quisição hespanhola, e ao rol dos seus feitos na sua hedionda biographia


Emjquanto foi inquisidor-geral, aquelie heroe da fé catholica fez morrer
nas chammas do Santo Officio 10:220 indivíduos?

E até se comprazia em queimar as effigies de 4:840 das pessoas que


perseguia e lhe escaparam 1 A pequenas penalidades, por exemplo : infâ-

mia, privação de empregos e penitencia pública, uma insignificância. .

apenas 97:^21 I

A obra gloriosa d'este illustre varão pode ficar inventariada em 1 14:401


faitiilias desgraçadas, perdidas, espoliadas de bens, de esperanças e de
crenças
O medo rodeava este senhor da Hespanha de cincoenta cavalleiros e
duzentos infantes, que sempre o acompanhavam nas suas viagens e lhe

guardavam a mesa e a alcova

Ficou-lhe devendo a Hespanha o abandono das suas officinas e dos


seus campos.
As chammas lambiam mais que os corpos dos condemnados, os pro-
ductos da industria, os fructos dos pomares, as searas e os vinhedos I E
das cinzas, sempre quentes, surgiam a miséria e a fome, as sinistras com-
panheiras de uma sociedade escrava e perseguida 1

As façanhas de Deza, successor de Torquemada, foram dignas do seu


antecessor. Oito annos apenas exerceu elle o logar de inquisidor-geral, e,
tão bem aproveitou vontade e tempo, que levou para a sepultura a gloria
de ter queimado 2:5g2, em estatua 846, simplesmente penitenciadas .14:0:^8
pessoas ! Total : 38:440 victimas ! I !

Que esplendida bagagem para a eternidade I

Quantos volumes se poderiam escrever sobre esta terrível instituição


Os escândalos de Lucero, as conspirações dos bispos, e as reacções
esmagadas, são um montão de tragedias das mais violentas situações.
Entre os processos notáveis pullulam as maiores iniquidades
A Inquisição provocou, afinal, tantas resistências que a sua acção foi

cada vez mais avigorando-se com a ferocidade.


Pode-se citar, ao acaso, qualquer dos episódios que a Historia refere,
que todos elles repugnam aos costumes tolerantes e brandos dos nossos dias.
Só aquelle estupendo tribunal ousaria condemnar, por causa de atte-

nuantes, a simples pena de cárcere perpétuo e confiscação de bens, a


célebre octogenária Blanquina, viuva de Gonçalo Ruiz, perseguida pelos ii

inquisidores de Valência I

'lí
! ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 325

A causa allegada n"este processo foi haver a pobre dama, sempre tida
como boa catholica, praticado, quando maça, actos suspeitos de judaísmo !

A causa verdadeira foi a cobiça que a sua grande fortuna despertara...


tão grande que, graças a ella, acudiram á infeliz o rei Carlos V e o Papa
Leão XI
Os herdeiros tanto prometteram c tanto deram, que Blanquina foi

declarada levemente suspeita e absolvida, ncí caiiíelani, sem sambenito.


A confiscação foi feita por corrupção e abortou por sentença !

Um velho, Pedro Fernandez, com 70 annos de edade, passou por


muito tempo no cárcere, soffreu torturas, teve penitencia e foi, afinal, con-
demnado a pagar alguns ducados, só porque uma mulher disse que elle
comia toucinho
Era rico c disso tinha fama em ^'alladoIid.

Foi o bastante.
Fm Murcia, morreu, atormentado nos cárceres secretos, um mouro,
porque fora surprehendido a ler livros árabes da seita de Mahomet
Em Granada, sobre o estrado em chammas, morreu, abraçada a duas
tilhas, uma cigana, cujas lagrimas tanto commoveram os inquisidores, que
lhes fizeram a graça de as queimar juntas I. . .

Em Sevilha, ao subir o cadafalso, uma christã-nova foi assaltada pelas


dores de parto. Retirada da praça por alguns momentos, voltou de novo,
amparada, e com sambenito e samarra, a coliocar-se no poste e a esperar
as chammas I!I

Num auto de fé, em Toledo, em 1486, foram queimadas, á vista umas


das outras, cinco pessoas de uma só familia
Muitos dos condemnados eram conduzidos em carros até o cadafalso,
por causa dos estragos Só depois de bem amarrados
feitos pelas torturas.

ao poste da fogueira, desenrolavam o corpo, coberto de chagas e de mu-


tilações I

As raparigas formosas deixavam mais tempo expostas, e lançavam-lhes

o fogo com mais lentidão !

Desgraçada épocha ; maldita gente !

Desde 'a perseguição dos judeus até a expulsão dos mouros, desde os
reis catholicos até o Demónio do meio-dia, a lucta foi constante até chegar
o momento em que, á força de martyrios, se realisou a unidade religiosa
na Hespanha.
Foi então, no- desabar das synagogas e mesquitas, que as terras de
Hespanha mais se coalharam de conventos.
N'esse piedoso século xvi chegou a haver em Hespanha nove mil con-
ventos, com mais de noventa mil frades, trinta e quatro mil freiras, e

MYSTEKIOS HA INQIISIÇÃO. — VOL 1 FOL- 41-


326 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

duzentos mil indivíduos pertencentes á Egreja, e que eram de rodas as


classes e categorias I

Por isso a população baixou a seis milhões, ella que atiingira quinze
milhões antes da expulsão dos mouros I No bispado de Calahorra, com
sessenta mil habitantes, chegou a existir quatorze mil clérigos 1 Sevilha ex-
cedia em gente sagrada a prodigalidade de Calahorra, e em nove mil casas,
com que se enriquecia, sete mil pertenciam a conventos e egrejas.
A Inquisição deu todos estes bellos resultados : o deserto nos campos
e nas cidades, a fome, as luctas civis, a perda da marinha, do exercito, de
Nápoles, da Sardenha, da Sicilia e dos Paizes-Baixos I

Parecia que Deus, irritado com tantos crimes e vergonhas, se resol-


vera a castigar tanta fereza e iniquidade I

Foi por este caminho que irrompeu a heresia entre o clero, e a con-
sciência humana começou a revoltar-se fazendo a critica dos costumes e
da moral.
Sopravam com mais força os catholicos orthodoxos da Hespanha as
fogueiras da sua vingança.
Morreram, então, os martyres da reforma com o mesmo estoicismo
com que tinham morrido os martyres da religião christá.
A Hespanha fazia-se precursora da AUemanha, e as criticas de Fran-
cisco de Osuna e de Paulo de Leão evidenciavam a corrupção dos ser-

vidores da Egreja e preparavam o espirito público para a reforma luthe-


rana.
Juan Valdês e Rodrigo Valero desprezaram a bulia de Adriano VI. e

cuspiram, desdenhoses, nas fogueiras em que morreram.


Philippe II assiste ás execuções de Carlos de Sesa e de Domingos de
Rojas ; mas nada d'isso pode já deter a carreira.
O pensamento habituou-se ao fogo, e n'eile se alentou, luctou e ven-
ceu !
XII

Phenix

Vimos, n'um rápido golpe de vista, a inqLiisição hespanhoia nos prin-


cipaes centros da sua fiinebre acção.
C.ontámos as vespas, as abelhas, que andavam zumbindo, com o seu
ferrão venenoso em volta d uma sociedade assustada e afflicta ; resta-nos
entrar no cortiço, e ahi, envoltos nas trevas d'essa immensa oflicina, apre-

ciar esse trabalho mysterioso e diabólico.


Temos deante de nós, numa das ruas de Se\ ilha. o Palácio da Fé,
onde se estabelecera o tribunal do Santo Otticio, com as suas cavernas e

as suas torres, isto e, com os seus mvsteriosos subterrâneos e os seus altos


respiradouros !

Não era um palácio, nem um mosteiro; devemos adivinhal-o, já que


não temos vestígios da sua antiga arohitectura, como editicio mais pesado,
mais triste e mais forte que os mais velhos alcáceres e castellos do sé-

culo XV. Um pouco de convento, muito de fortaleza, mais ainda — um


grande morro de muralhas altaneiras, a defender-se no seio duma cidade
das ondas populares, como os grandes rochedos debruçados sobre o Oceano
defendem a terra das ondas do mar.
Castèllo sem ameias, muralhas sem setteiras, egreja sem fachada, al-

cácer sem gelosias e sem luz, ôco rochedo onde os açoutes de vendaval
faziam écho prolongado e sinistro !

Mal se distingue por onde se entra, e, ao descobrir-se-lhe a entrada, se

julga vér a bòcca d'uma caverna, onde se açoutam vampiros noctivagos,


de olhos redondos, bicos grandes, e aduncos, azas pesadas e cabidas. ..

E percebe-se que aquellas muralhas ennegrecidas, apesar da sua tir-

meza c rigidez, por cada mortal que as transponha, dilatam e contrahem


tão rapidamente a pedra, e a alvenaria que as forma, como se tivesse
nessa abertura de abvsmo um esphincter da mais prodigiosa elasticidade.
328 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Se mal se comprehende como se pode penetrar n'aquelle muro som-


brio, nem se acredita que possa delie sahir quem o tiver transposto!

Era aquella uma das velhas bastilhas do mundo nos tempos trium-
phaes da txrannia, que os séculos e as revoluções fizeram desabar, como
se a civillsação se tornasse incompatível com ellas.

Entalham-lhe o frontispício filetes de largo bojo, como supportes de


mais delgada muralha, e que ainda mais partem, com sombras verticaes,
o rosto d'estes brutaes monumentos. Uns restos de velho gosto mourisco
manteem a grande altura, e já na segunda muralha, que parece sahir da
primeira, laçarias quasi desfeitas em ogivas tapadas com grosseiros betu-
mes. Os velhos est\los amontoavam-se, trepando desordenadamente por
aquella ignóbil fachada, como se o Palácio da Inquisição tivesse sido feito
dos detritos de civilisaçóes perdidas.
Lá em cima, e nos rebordos dentados, cresciam e se enredavam her-

vas, que se debruçavam e descahiam em cachos, que, de dia, pareciam li-

mos a escorrer d'um pântano, e á noite frades pendurados a fugir do covil!

Aqui e alli rebentavam chaminés de forma cónica, como os barretes


dos^ villóes, e elevando-se, muito acima d'ellas, uma torre quadrangular,

com o feitio de atalaia, vigiando a açotéa immensa que rematava o edi-


fício.

Nivíla-se com a rua o portão da entrada, para dar accesso aos frades
de sandálias e aos machos de borzeguins, e a grade de grandes varões
de ferro mal se avista no fundo da afunilada abertura, em arcadas enne-
grecidas, feita na parte mais saliente do bojo da fortaleza.
A' flor da rua, sobre a arcada maior e illuminada por uma lâmpada,
espalma-se uma grande cruz, sem imagem, liza, negra I

Das excrescências dos muros, das hervas do terraço, das ogivas esbu-

racadas, e até dos braços da cruz, saem, ao principio da noite, morcegos


aos bandos, que volteiam ao redor da lâmpada balouçante.
Os esbirros, com a cor dos morcegos, a um e um, surgem, a todo

momento, da escura garganta; munidos de lanterna a bater-lhes no hábito,


saem e entram os frades dominicanos.
e sem ser presentido, pára em frente do portal o carro dos
Por vezes,
captivos, e, como succede á entrada dum formigueiro, quando algumas
formigas arrastam até lá algum insecto morto, uma multidão de gente,
negra como a noite, afflue a ver e a transportar a presa recemchegada.
Andam lanceiros bem equipados a rondar os cunhaes, e dois. posta-
dos ao lado do feio portal, tão firmes e defendidos fazem sentinella, que
parecem simples armaduras vazias a decorar o pórtico d" um castello.
Uma noite, pouco tempo depois da viagem que fizemos da Coimbra
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 329

portugueza ate Alcântara hespanhola, havia junto do Palácio da Fé exce-


pcional movimento e animação.
Apesar de já ter o sereno annunciado as doze da noite e da chuva miúda
que cahia, fora do portal havia um troço de frades, munidos de lanternas,
e os esbirros andavam mais assíduos nas esquinas das ruas próximas.
A direita do edifício, cincoenta cavalleiros, postados em fileira, susti-

nham os seus cavallos inquietos e rinchões, e, á esquerda, duzentos infan-


tes, com as lanças firmadas na terra, pareciam esperar alguém, aguardar
qualquer acontecimento.
Guarda tão luzida era indicio seguro de que o inquisidor-geral, o
poderoso Deza, o successor do Torquemada, viera a Sevilha e estava
demorado no seu paço ecclesiastico.

Negocio grave devia ser o daquella noite para que Sevilha tivesse tão
honrosa visita !

O povo, a distancia, fazia alas, encostando-se á casaria.

Em frente da. Inquisição era grande a clareira. Entre a gente d armas


ardiam alguns archotes.
— Temos obra de monta, observava um popular mettido entre duas
mulheres trepadas num degrau. Deza a fazer serão c que tem bonitas
historias a contar. . .

— Que ouviu dizer a este respeito, D. José ?

— Pouco, ou quasi nada. K grande o m\'sterio. c tem sido bem guar-


dado.
—O meu Paço, accrescentou a outra, ouviu esta manhã, á serva de
um familiar, que se trata... Ora, como disse elle : E um nome muito
exquisito. . . Que se trata . .

— Ora, muito obrigado, senhorita Manuela, assim ficamos na mesma.


— Eu não me lembro do nome mas o que quer dizer — um chris-; sei

tãonovo relaxado em carne, executado em eftigie, e que agora o Santo


Officio houve ás mãos, com as melhores artes.
— Ah, n'esse caso já sei ; trata-se de um parvo, que, tendo fugido da
fogueira, veiu novamente procural-a. O seu Paço devia ter dito que se
tratava de uma borboleta...
—E isso, c, mas não foi borboleta que elle disse. Elle explicou-me —
era um nome que se dá ao relaxado que sae das cinzas da sua effigie.

— —
Ah! já sei é uma Pheni.x. V. verdade que em Murcia se dá esse
nome aos que vêem offerecer o corpo fogueira que lhe queimou o es- ;i

pantalho.
— Alli, em baixo, disseramme que \iera hontem de Portugal um ju

deu entregue pelo rei de lú.


. : .

MYSTERIOS DA. INQUISIÇÃO

— Isso não pode ser. Ha quanto tempo estão elles a fugir para França
e para Portugal, e por lá se ficam, por muitos annos e bons ! . .

— Olhe. D. José, de Sevilha não é elle, e, se fosse, não se fazia este

extendal todo. Tanto luxo para receber um condemnado, é signal de que


a presa é graúda, e que os trunfos lhe andaram na pista com esbirros em-
plumados.
— Provavelmente, explicou com ar de importância D. José, os agentes
hespanhoes, espalhados no extrangeiro, deitaram-lhe a mão e trouxeram-n'o

;i fronteira. Meu cunhado já andou nessa empresa, -mandado por D. Fer-


nando e tolerado por D. Manuel. . .

— Mas isso foi n'outro tempo, acudiu a mulher.


E, depois, muito em segredo, ao ouvido da companheira
—O meu genro fugiu para o Algarve, e ainda o não apanharam.
— P'ie-se Tomara eu salvar-me tantas vezes do Santo Officio,
nessa.
quantas, com decretos ou sem decretos, os esbirros hespanhoes teem apa-
nhado pelas orelhas, até mesmo em Lisboa, judeus fugidos d'aqui, e os
trazem roubados.
— Olhe, D. José, lá vem o borzeguim, e traz peixe. .

Effectivamente, o borzeguim deslizou na praça e foi parar a porta do


Santo Ofiicio.

Os conductores abriram a portinhola do carro.


Approximaram-se algumas lanternas.
Dois esbirros puxaram por um homem, que estava amarrado, de pés
e mãos, como se puxassem por um cadáver.
Um frade chamou seis lanceiros, infantes, que secollocaram junto do
carro.
— Desatem-lhe as pernas, e levantem-no, disse o frade.
.\ssim se fez, e o preso foi posto de pé, mas teria cahido se o não tives-
sem amparado.
O desgraçado, depois de algumas tentativas, não podendo servir-se
dos braços, que continuavam presos, nem das pernas inchadas e trôpegas,
cahiu de joelhos junto das rodas do borzeguim.
O frade approximou-lhe do rosto a lanterna que tinha na mão.
O preso estava pallido e tinha os olhos fechados.

Era o martyrio, era a \ergonha, era a cólera :

Era tudo junto.


— Levanta-te, disse o frade.
— Não posso, respondeu, meia voz, o condemnado.
a
— Bem, replicou a negra personagem, voltando a examinar o desfalle-
cido. Se te desligarmos os braços, poderás mover-te?
! . . : 1

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 33

— Talvez . . .

— E promettes obedecer:. . .

— Prometto. .

— Pela tua fé ?

— Pela minha honra.


— Desliguem os braços desse homem, e, ao primeiro movimento hos-
til que elle fizer, que seis lanças o atravessem.
Os esbirros deslaçaram as correias que cingiam o tronco do infeliz,
que soltoLi um suspiro ao espreguiçar os braços, evidentemente com ditfi-

culdade e dôr.

Quantas dòies, por parecerem as ultimas, consolam como se fossem


um prazer
Com um pequeno auxilio, a victima ergueu-se, incerta, cambaleante,
como SC a açoutasse o vento da morte. .

— Es Jacob Adibe ? perguntou o frade.


— Sou.
E .lacob continuava com os olhos cerrados.
— Por que não abres os olhos Estás cego ?

— Não; não quero olhar para não ver.


— E's cobarde ?

— Não fujo de olhar para


; elles.

— O olhar não mata estamos habituados ao fusilar de grandes cóleras.


;

Temos o fogo que apaga esses raios irados e orgulhosos.


— Dize antes o gelo, que vem do cynismo e da deshumanidade.
— Deixa-te de aggravantes, que a pena não pode ser excedida. Abre
os olhos, .íacob, que tens de caminhar sem gula.
Jacob obedeceu, sem mesmo saber que estava obedecendo. O seu
olhar faiscava do fundo das orbitas roxeadas. Jacob viu a scena, que era
lúgubre, mas não viu o rosto dos homens que o ameaçavam. Os frades
tinham os capuzes descabidos sobre os olhos. . .

— Para onde me levam ? perguntou elle, fitando o portal, ou antes a


grande mancha na muralha de tijolo.

— Segue em frente, lhe disse uma voz.


Jacob extendeu os braços e penetrou na escuridão.
Alguns frades o seguiram. Ouviu-se o ranger dum ferrolho pesado, e
depois o bater d'uma grade. . .

As torres, que .se erguiam nas extremidades do edificio, pareciam dc-


bruçar-se para verem a scena.

O borzeguim volteou novamente e desappareceu numa das esquinas


das ruas. O povo foi afastado pelos esbirros, apagaram-se os archotes en-
. .

332 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

tre a guarda, voltaram ao seu giro as sentinellas, e os morcegos conti-

nuaram a bater com as azas nos vidros do lampeão. Persistia a chuva


cahindo miudinha, e, ao longe, ouvia-se a voz do sereno, annunciando o
primeiro quarto de hora, depois da meia noite . .

Jacob atravessou uma longa abobada, illuminada. apenas, com algumas


lanternas, a grande distancia umas das outras. Fizeram-no subir uma es-
cadaria, com degraus muito altos e irregulares. N'este trajecto, o christão-

novo observou que, pela galeria e pela escada, em cada arco da abobada
e em cada patamar, ha\ia um grande crucifixo, ou pintado, ou em re-

levo.

No primeiro pavimento a que subiu-, depois de lhe terem afastado um


immenso reposteiro preto, onde sobresahia a figura de uma caveira co-
roando dois íémures, Jacob entrou n um vasto salão, onde ardiam muitas
tochas de cera, e de cujo tecto pendiam pesados lampeóes. O salão tinha
o aspecto de um coro de egreja, por cai>sa da disposição dos coxins com
espaldares que o enchiam em filas lateraes. Ao fundo, sobre um estrado
e numa alta cadeira dourada com estofo carmezim, estava o inquisidor
Deza, com o habito da ordem, distinguindo-se apenas dos outros frades
por ter na cabeça um capello, quàdricorne.
Deza tinha a apparencia de um modesto pregador sagrado dos nossos
dias, ou de um austero juiz dos tribunaes superiores da Inglaterra.' Corpo
delgado, rosto sècco e pallido, cabeça pendida, mãos em beatifica posi-

ção.
Ao lado do inquisidor, e de pé, montões de monges, fazendo-lhe corte,
e a distancia, perfilados junto das paredes, fila de familiares, de mãos es-
condidas nos hábitos, e altos capuzes na cabeça com máscaras negras,
que consistiam apenas num toldo cabido, de panno preto, aberturas nos
logares dos olhos e da bòcca. . .

Jacob, ladeado por dois esbirros, parou a meio do salão.


Com os braços cruzados, a cabeça pendida, o prisioneiro parecia in-

difterente a tudo que o cercava.


A direita d'este tribunal e sentado a uma mesa forrada de tecido ver-
melho, um empregado, com ridículos atavios e com a penna d'ave mettida
na orelha, dispunha-se a escrever. .

Deza quebrou o profundo silencio que reinava naquella assembléa,


levantando-se :

— Em nome do Padre, do Filho, e do Espirito Santo, agradeçamos a


Jacob parou a meio do salão

-7 ^^
MYSTERIOS DA INQUISlÇAfJ 333

Jesus (>hristo o serviço prestado á Santa Egreja Catholica Apostólica Ro-


mana, permittindo que d justiça do Santo Officio não pudesse esquivar-se
um inimigo da fé, que, volvendo ds nossas mãos, poderá remir a sua
alma, e morrer na graça do Senhor, como é mister. Que a luz da Divina
Providencia iliumine este judeu apóstata e relapso, e afugente de seu es-
pirito o génio das trevas.
— Amen —respondeu em coro toda a fúnebre assembléa.
— Jacob Adibe, continuou Deza, depois de ter feito três vezes o signal
da cruz, este santo tribunal, a que presido, tanto zela o prestigio da re-
ligião, quanto os interesses políticos dos estados catholicos do mundo. São
estreitas e amigas as relações que entre si mantcem os reis de Hespanha
e o de Portugal ... A tua presença aqui importaria uma violação dos tra-
tados, se el-rei de Castella tivesse violado o direito de asylo, ou agentes
da justiça de Castella, ou de Aragão, tivessem e.xcrcido os poderes da sua
iilçada em terras portuguezas. Vaes, pois, responder, pela fé em Jesus, ou
em Moisés, se é ou não verdade teres sido aprisionado em terras da nossa
jurisdicção.

Jacob ergueu a cabeça, titou o inquisidor, e perguntou serenamente;


— Quando deverei morrer? E' isso o que me importa.
—E a nós o que menos interessa. Repito-te a pergunta: Sabes que o
acto temerário que praticaste significa a tua entrega voluntária á justiça
da Egreja ?

— Sei que !ui victima d'uma vil traição do vosso e do meu rei, e que,
emquanto eu viver, amaldiçoarei, de todo o coração, a cobardia de Manuel I,

c a ferocidade de P^ernando V, envolvendo na minha maldição, a vossa


hypocrisia. que profana a majestade de Deus e suja a dignidade dos ho-
mens.
— Onde foste preso ? disse Deza, como se não tivesse ouvido a res-
posta de Jacob, e depois de impor silencio ao murmúrio levantado pelos
frades.
— Em Lorvão.
— E quando? quando vos prendeu o Santo Officio?
— No dia em que a traição dum rei me entregou á vingança dum
frade.
— E' certo teres fugido do castello de Coimbra ?

— Não enxotaram-rne, para me prenderem no laço da liberdade.


fugi,

— Hssa liberdade era sincera até a linha da fronteira. Por que a ultra-
passaste?
— Porque me disseram que uma mulher, que eu amo, a transpuzera
antes de mim.
MYSTEKIOS DA INQUISUlÁO. — VOL. I. FOL. J.2.
. .

334 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Quem vos mentiu, Jacob ?

— O ódio!
— E como chama essa mulher?
se
— Amor!
— Estás, então, no propósito de não responder ao Santo Oificio, que
não admitte segredos em quem julga e condemna?
— Ides raatar-me — abri-me depois o coração.
— E' certo que estás condemnado morte; mas repara: á a pena maior
traz a morte, mas ha outras que trazem a vida a morrer. Pede a Deus
conselho, serve a Egreja e a justiça,' e salva a tua alma. desgraçado.
— Não me insulteis com a vossa piedade . .

— Pela ultima vez: queres responder? Curapre-me ajudar o Santo-


Officio a castigar os herejes e a rehaver os fugitivos. Se tal fizeres, poderei
recommendar-te á compaixão do tribunal.
— Qual o premio que ofterecercis á
é villania?
— Se prestares serviços á Egreja, poderás morrer com a consciência
tranquilla e o corpo são. .

— E" pouco. A minha consciência defende-se sem aleives e o meu


corpo não troca as chagas, que o esperam, pelas ulceras que vos todos
tendes n'alma.
— Renegaste a mosaica?
religião
— Baptisei-me na egreja christã.
— E' o mesmo. Mas tens judaisado depois disso ; ou, pelo menos^
tens-te abstido do culto catholico.
— Não vos reconheço o direito de me interrogar. Vencido, resigno-me ;

eis tudo. Fazei de mim o que puderdes ;


que o que depender da resistên-
cia da minha vontade não fareis.

— Consolava-me a esperança de poupar á tortura... não queres?


te

— Assaz a tenho experimentado, e sinto-me com coragem para arrostar


com ella. E já vos previno, a vós todos que me ouvis : se o corpo gemer e
o instincto da própria conservação me levar á prática de actos que signifi-
quem obediência, pela minha honra vos affirmo que farei restricções men-
taes em todos os meus juramentos, desde a primeira dòr que me causar-
des, até exhalar o ultimo suspiro.
— E, apesar de tanto orgulho e de tanta resistência, abjuraste, junto
dos altares christãos, a fé que teu pae njanteve intacta ?

— Meu pae é um crente, não é um pensador. Cré enn Deus, por causa
do seu Deus. E' um sectário, e eu sou um philosopho. A minha divindade
reflecte-se em todas as religiões, mas não depende d'ellas. Não confundo
o divino com o profano, e as religiões que se convertem em poder tem-
. :

MYSTERIO.S DA INQUISIÇÃO 335

poral, que governam os Estados, exploram fraquezas, espoliam fortunas,


ensinam o erro, contra a natureza e contra o amor ;
que fazem commer-
cio e industria, decretam a guerra e erguem cadafalsos, não são religiões
são ordenações que vêem de poderes intrusos, executadas por bandos de
sicários. Quereis saber se sou judeu ou christão ? Respondo-vos, porque
tendes as minhas palavras por heresia : sou um homem, e vós sois umas
feras.
— Não te le\'o cm conta a injuria, mas vou mandar escrever as here-
sias. E tenho fé, que estas paredes, que ouviram agora tão damnadas
doutrinas, que se triumphassem seriam a perda da humanidade na vida
eterna e da Egrcja verdadeira neste mundo, hão de ouvir a vossa con-
versão e arrependimento.
— Sois demais estúpidos e ignorantes para que me convençaes, discu-
tindo commigo sagradas theologias. . .

— Nem te consentiria que discutisses qualquer dogma. O que Deus


revelou está fora do domínio da razão humana. . .

— Então que quereis ? Deus' não quiz ainda revelar-me a bondade da


vossa obra ; vem dElle a luz do meu entendimento, eu comprehendo
e, se

e sei que, em nome de Deus, andaes deshonrando o Céo e a humanidade.


— Vè-se que não és apenas uma presa do inferno, mas até um dos
seus agentes. Ha reflexos satânicos no teu olhar, e intriga infernal no teu
dizer. Era nome de Jesus acceitamos a lucta e havemos de te submetter
á piedade.
— Acabemos com isto, disse Jacob com um mo\imento de hombros,
que indicava inditVerença, ou desprezo.
— Disseste que amavas uma mulher. Os Ímpetos do teu caracter an-
nunciam que em ti as paixões devem ser violentas.. .

— Tendes razão - o meu amor scj é compara\'el ao meu ódio !

— Pois, muito bem. Mantenho as mais bellas esperanças de que o


Santo Otticio logrará a salvação da tua ahna.
— As paixões, quando são nobres, não quebrantam, revigoram a resis-
tência ao absurdo e ao crime. .

— Mas nunca ao reconhecimento das verdades christãs.


— Quereis dizer catholicas?
— Quero dizer que, se tanto fôr preciso, que teus membros já não se
atemorísam com as provas a que os expões, ja que o teu desamor á vida
converte a morte de castigo em premio, a essa mulher que amas confia-
remos a tua salvação. ...
— Não alcanço a ameaça. . .

— Pois, admira! Por onde andam teus talentos c perspicácia?


336 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E' que este meio estonteia e embrutece.


— Náo tanto; ides ver. E's
e indomável? não te \'encem as nossas
ameaças ? Pois bem. O que não pudermos alcançar com o supplicio, que
a mim próprio magoa e compunge, alcançaremos com as supplicas de
Sarah.
— Quem pronunciou aqui o nome de Sarah r

— Eu, Deza, o inquisidor-geral dos reinos unidos da Hespanha I

— Sois um cobarde, inquisidor-geral, que ousaes pronunciar, além do


nome de Deus, o d'um anjo, que o Céo não mandou á Terra para que o
profane algum bandido da vossa laia e espécie. . .

Em toda a sala se levantou um demorado clamor.


Deza ficou tranquillo e mudo, fazendo apenas um gesto ao auditório
para que se acalmasse.
Restabelecido o silencio, Deza ia a continuar o interrogatório.
Os braços de Jacob tremiam sob as mãos dos esbirros que o estavam
segurando.
—O génio do mal revolve-se no teu corpo... Que estragos terá cUe
feito no teu espirito?! Descobri, ao acaso, ou talvez por inspiração divina,
a parte ainda sã do teu coração de homem. Quem sabe ? talvez algum
resto purificado nas aguas do baptismo. . . Fundiu-se o gelo das tuas ironias
ao ouvires o nome d'essa mulher. .. Dizes bem; pareceme que ella é

effectivamente um anjo, e será por isso o melhor instrumento para te


arrancar a alma perdida dos abysmos do purgatório. .. Havemos de encon-
tral-a e trazel-a, para que ella te convença. . .

Jacob nem sequer escutava tão h\pocrit(j discurso, e procurava, ape-


nas, certificar-se de que a sua razão não começava a vacillar. De repente,
pareceu-lhe ouvir a promessa de que lhe trariam Sarah, que viria conso-
lal-o n'aquelle abysmo. . . Os lábios ficaram-lhe immóveis, mas nos olhos
brilhou um sorriso — Um sorriso alegre confunde-se com um olhar
amoravel.
Deza continuou :

—A tua conversão, Jacob, é uma das mais preciosas para as glo-


riasda Inquisição de Sevilha. Tens fama de lettrado, és rebelde e contu-
maz. Relaxar-te em carne, queimar-te em estatua, fazer-te resuscitar das
cinzas havidas da própria effigie. é tarefa vulgar, e não abona demais
nem o zelo religioso nem a arte de justiça ; convencer-te, arrancar-te a
abjuração de doutrinas, que, apesar de falsas, podem- ser sympathicas,
como a máscara do inferno em obras de tentação, será o mais alto ser-
viçocom que eu hei de honrar o meu cargo. Eu poderia esmagar-te, des-
fazer-te, torturar-te o corpo e o espirito, obedecendo a impulsos ruins de
. . : ! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 337

despeito e de vingança. Prohibe-me o Céo que tal faça ! A tua abjuração


não so salvará a tua alma ; salvará também a de muitos infelizes que an-
dam a balouçar-se na dúvida sobre os direitos e poderes da Egreja. Jacob,
meu lilho, abjurarias de todos os teus erros, se a formosa donzella a quenn
amas te pedisse, para tua c alheia felicidades ?. .

Jacob não respondeu ; estava pensando em Sarah, e calculando quanta


lhe seria difíicil morrer sem tornar a vèl-a
— Vamos, Jacob, a esta hora, nos cárceres da Inquisição, gemem,
e choram, e desfallecem muitos criminosos, por não quererem submetter-se
aos conselhos da razão. Poupo-te a esses martyrios, morrerás na graça
de Deus, verás Sarah na hora extrema... abjuras?
Jacob continuou mudo... Estava pensando; quanto mais lhe custaria
a morte, se a essa hora avistasse o olhar de Sarah. .

— Ainda uma vez, Jacob ; o tribunal da Inquisição não pode, não deve,
n;'o ha de prescindir da tua abjuração. Escrevel-a-has no teu cárcere, e,

n;. egreja, deante do sacrário, sobre um /sstrado, para que todos te vejam,
has de lel-a, beijando o crucifixo e os Evangelhos. Se tudo fizeres volun-
uriamente, verás Sarah, que virá pedir-te antes, ou agradecer-te depois
— aiiás, definharás incommunicavel no teu cárcere, minado pelas sauda-
des!... Só consentiremos que os teus inimigos te visitem e escarne-
çam. .

Jacob parecia sonhar. . .

Estava pensando
— Quem sabe se, depois de morto, a minha alma poderá andar no
mundo, acariciando e defendendo Sarah ?. .

— Ainda outra noticia, Jacob, já que vão exgottadas as instancias. Se


lograrmos haver ás mãos a pobre Sarah, e já deves saber de que meios
nos podemos servir, ella soffrerá, na tua presença, as torturas de que tu
desdenhas. .

Jacob despertou sobresaltado.


— Que disseste, algoz, que tens o nome de juiz?
— Que Sarah nos será penhor da tua abjuração solennc. Se não
cederes, vel-a-has, não matando as tuas saudades, mas morrendo da tua
impiedade e obstinação.
Jacob esteve um momento perplexo, como se quizesse certificar-se do
que ouvira, e, depois, sacudindo fortemente os braços, fez oscillar os es-
birros que o seguravam.
O rosto tingiu-se-lhe de vermelho, como se uma grande onda de san-
gue lhe tivesse galgado a cabeça e tentado rebentar-lhe nos olhos. . . Ao
segundo esticão soltou os braços, e. quando os esbirros, assustados e prés-
. .

338 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

surosos, julgavam que elle ia aggredil-os, viram-n"o soltar um grito e levar

as mãos á cabeça... E, como um homem embriagado, trocou as pernas


para se equilibrar, e cahiu de bruços, desamparado e ruidosamente...
—^Levem-ri'o,

disse Deza, e sangrem-n'o. Tem sangue e vida que háo
•de chegar para tudo.
Deza, ao dizer isto, denunciou uma passageira perturbação. Não contava
com aquella crise. Podia ser um simples diliquio, mas também podia ser
a morte. Jacob era novo, forte, sanguíneo; a cólera perturbava-lhe a circu-
lação.. . O que teria succedido?
O inquisidor não pôde ficar no seu logar e dirigiu-se a Jacob para o
examinar com mais cuidado.
— Está vivo, disse elle, mais tranquillo. E' assim que preciso delle.
Levem-no para uma das camarás de misericórdia, e o physico que o trate
com prudência e zelo.
Os esbirros levantaram Jacob e levaram-no para fora do salão.
Deza deu por finda a audiência, e foi, rodeado dos mais elevados ofii-

ciaes do Santo Officio, recolher-se aos seus aposentos.


— Bem fizestes, monsenhor, lhe disse Pedro Ocana, que já gosara as
honras de inquisidor, empenhando-vos tanto na caça desta raposa. E' das
mais audaciosas, e não das menos arteiras.
— Acredita, frei Pedro, que são estes os herejes que mais devemos
temer. Intelligencia clara, leitura sem escrúpulos, animo rebelde!.. . São
temíveis! Teem o feitio especial de missionários... Tenho mais medo da
doutrina que deixam que da vida que perdem!
— Na polé, na corda e no cárcere temos argumentos que hão de con-
vencel-o. .

— Espero isso em Deus, mas não confio demasiado. . . Que dizes a isto,
Frei Rodrigo de Sagarra ? Olhae que tendes n'esta empresa ensejo para
perder ou firmar o vosso cargo. . .

— Bem vedes, monsenhor, que não tenho mingua de vontade. YWa


elle, que eu saberei matal-o. . .

— E' grosseiro esse pensar, frei Ilodrigo. Não se trata de João Mves,
com pública synagoga. . . Sabe o povo que os judeus não teem direito á

vida. . . Outra religião não se admitte. E' como uma invasão estrangeira.
Moisés não pode dominar em terras catholicas de Hespanha. .

— Poderemos proclamal-o possesso, observou frei Bernardo de Santa


Maria, inquisidor efiectivo de 1484, nomeado pelo Papa. e que conservava
as honras de auxiliar.
— Ainda te resentes, meu velho, da antiga camaradagem de Torque-
mada. Vão mudando os tempos. Pois não \'ès que, se ainda ha milhões
.

iMYSTERlOS DA INQUISIÇÃO .33t^

de almas que nos temem, começam jd a apparecer centenas que nos dis-

cutem? E' preciso ter cuidado com a heresia em nome de Christo. Não-
esqueçaes que as antigas feitiçarias, magias e superstições, inventadas para
punição da ralé, já não podem ir além dos ignorantes e rudes, e dos doentes
energúmenos. Os bispos já começaram a judaizar, dizemos nós, mas a
verdade é que começaram a obra da revolta. Lembrem-se de D. Joãa
Ávila, o bispo de Segóvia. . . A onda cresce. E' preciso queimar com as
Bíblias, muitos livros que por ahi começam a surgir, cheios de tactos e

critica.

— Taes pregadores de heresia terão a sorte de Jacob Barba. . .

— Continuacs no absurdo, vejo; Jacob Barba era um impostor, com


ambições de Messias. Os povos dcsadoram essas audácias. Nem Jesus


escapou a essa corrente . . . Para temer são os peccadores mortaes, que
interpretam o christianismo e o divorciam dos preceitos catholicos. E'
indispensável que Jacob Adibe renegue as suas doutrinas.
— Pois confiae em nós, disse sèccamente Pedro Murillo... Algum
tempo de clausura ha de enfraquecer-lhe o corpo e desalentar-ihe o ani-

mo. Além de que, a tortura será applicada com cuidado e arte. . .

— Será conveniente, antes de o expor a provas, que, na organisação


de Jacob, podem dar-nos surpresas, que elle veja, excepcionalmente, o
effeito d'el!as em outros impenitentes. O exemplo edifica, e é muito ne-
cessária e útil a abjuração solenne e pública.
— Podeis ficar descançado, monsenhor, se os meios directos não bas-
tarem, os indirectos produzirão resultados. Sem lhe rasgarmos o peito
poderemos feril-o no coração. . .

— Prefiro, por agora, esse recurso. Devo até explicar-vos que te-

nho recommendações especiaes de nossos reis para me haver com Jacob,


que é portuguez, por forma que D. Manuel se convença de que o Santa
Officio se empenha mais em conversões, que em maleficios. A rainha
D. Maria, com tal exemplo, mais depressa conseguirá o predominio d'esta
instituição em todos os reinos da Península.
— Quando partis, monsenhor? perguntou Murillo.
— A'manhã, ao nascer do Deixae quatro lanceiros sol. e outros tantos
esbirros á porta da minha cella. E não vos esqueçaes de vigiar a saúde
de Jacob ; dae-lhe mesmo pretexto para soprar a chamma amorosa que o
consome. Já o queimámos, em estatua, queimemol-o agora por dentro :

depois concluiremos a nossa obra. .

E o inquisidor-geral lançou a benção aos dominicanos, que deante


d'elle vergaram a cabeça, cruzando as mãos sobre o peito.

Ocana, Segarra e Murillo ficaram em conferencia.


. . .

i^o. MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Deza, disse o primeiro, começa a fraquejar. . . Tarde lhe chegou a

compaixão e a prudência !

— E' que já está sentindo sobre os hombros a máo pesada de Philippe I,

explicou, confidencialmente, Murillo.


— Os negócios de Córdova e as sympathias pela velhaca actividade
de Lucero talvez o obriguem a recolher-se a este arcebispado. . .

— Precisamos de adeantar o mais possível este negocio do judeu por-


tuguez. Todas as demoras podem vir a inutilisar a execução da sentença.
— Tens razão. Segóvia, Toledo, Córdova, Murcia, Granada e Valência
fazem o que querem, e Sevilha ha de estar com hesitações a respeito da
sorte dum relapso, já relaxado?!
— Tudo porque o rei de Portugal tem medo de António Carneiro, co-
mo se o nosso Ximenes devesse estar á mercê do menestrel sentimental.
— Exactamente por elle ser portuguez é que deve haver pressa em
corrigir o hereje. . .

— Que, afinal, para nada serve o auxilio da nossa princeza. A filha

auxiliando a impunidade dos que fogem á justiça do pae !

— Era até de bom aviso aproveitar as delações de Jacob para internai


mais fugitivos, que por lá andam a escarnecer de nós. .

— Imaginem, segredou Murillo, puxando pelo habito dos seus com-


panheiros, que Deza, mais dia menos dia, perde honras e poderes, e o
nosso trabalho vae todo por agua abaixo. .

— Estás sempre a sonhar surpresas.


— Surpresas Então não sabem que
? já se fala na intriga de João Desa .'

— Contra Deza ?

— Sim, contra Deza. Philippe I está irritado contra Lucero, e attribue a


culpa do escândalo de Granada, Córdova e Andaluzia, ao inquisidor geral . .

— Eez muito bem o íenebrero, inventando os confessos diminutos. Abu-


saram calumniando ? Pois, foi bem feito (jue considerassem os accusados
penitentes Jictos.
— Contaria então o bispo de Córdova a Philippe o caso das svnagogas ?

— Sem dúvida nenhuma. . .

— E' claro que o bispo e o teem por as procissões, as sv-


rei falsas

nagogas e a cumplicidade das famílias de christãos-velhos. Ou Lucero


não fosse alcunhado de tenebrero.
— Pois sim, mas emquanto Deza, lamentou Segarra, deixa alargar a
influencia de Lucero, recommenda-nos, a nós, abjurações solennes e
queimas de Biblias e pasquins! Gente, gente e sempre gente é que é ne-

cessário queimar. A"manhã revolta-se Córdova, depois Toledo, e a Egreja


íica transformada em synagoga e mesquita I
. ;
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Inferno! exclamou jMurillo. Vamos ter para ahi annullação de sen-


tenças. Phiiippe I é capaz de inventar as reconciliações secretas...
— Depois de diffamados, convictos, confessos e condemnados ao fogo ?

— Sim, sim ; já ouvi dizer que até poderão reconciliar-se, quantos o


pedirem, até mesmo depois da execução das sentenças I

— Is£0 é uma desgraça! disse um.


E logo um outro accresccntou :

— Quem acredita n'issor é a mesma historia de Domingos Manrique,


muito ancho por ser juiz único de appellações I. . .

— E' evidente, accrescentou o terceiro. São sempre as mesmas inno-


vações, que duram um momento. Lembrem-se dos auditores do Sacro Col-
legio a confirmar as absolvições. . . E' a piedade intermittentc que vem de
Roma ao cabo de algumas romarias?. . .

— Pois é, disseram os outros.


E Murillo também exemplificava :

— A bulia de -2 5 de maio cahiu no desagrado do Papa e a 2 de agosto


veiu tão generosa para com os judeus e christãos-novos que logo se viu
ter sido feita por engano. . . Nem a João Sevilha aproveitou !

— Então que devemos fazer ?

— E' simples. Emquanto Deza não é substituído, convém dizer-lhe que


governe; faça justiça rigorosa, rápida... Que assignale, com um largo
traço de sangue judeu, a sua passagem pelo throno de Torquemada.
E Murillo, que parecia ter mais auctoridade, rematou a conferencia :

— Tu, Ocana, toma conta de Jacob, que está numa camará de mi-
sericórdia ; eu e Segarra vamos esperar que monsenhor accorde para lhe
lembrar que o bispo de Catania pode, d'um para outro momento, despejar
os cárceres e apagar as fogueiras. Jacob está em nossas mãos — ha de em-
mudecer e falar, quando nos aprouver. Para que se inventou a mordaça
e o fogo ? Para Phiiippe I ser apenas o Bello? Reis bonitos e rainhas ciu-
mentas importam-se, acaso, com os perigos da Egreja ? ! Veremos se a
revotta triumpha ! Se temos aqui fechada a mão da Providencia !

K os três frades separaram-se lentamente.


Pelas innumeras galerias fez-se então um silencio de tumulo, isto é,

cheio de ruidos mysteriosos. Só os guardas que as percorriam adivinha-


vam, como n'uma praia se adivinha o mar ao longe, os murmúrios que sa-
biam das muralhas e dos subterrâneos. Éramos gemidos dos quesoflriam
despertos, era o deljrio dos que dormiam fatigados, o delirio dos febris
E tudo aquillo reunido, misturado, não dava uma voz humana
parecia apenas um écho do vento e das ondas, lá, muito ao longe I . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOI., ^'i.


XIII

Um amiffo

As camarás de misericórdia estavam no primeiro pavimento, em com-


panhia do cartório e do tribunal.
Eram os quartos dos ricos, dos poderosos e dos que tinham a maior
responsabilidade nas heresias endémicas da sociedade hespanhola.
Eram a ante-camara dos cárceres, dos segredos e das salas de tor-
tura.
Tinham as camarás de misericórdia todas as surpresas d um palco re-
cheado de bastidores e alçapões de theatro moderno, especialmente des-
tinado a representação de visualidades e magia. Transformavam-se de
grandes em pequenas, de luxuosas em pobres, de cárceres em boiídoirs,

de ateliers em cella de frade.

Se se tratava de mulher formosa, requestada por inquisidor audaz, ti-

nha a camará de misericórdia todos os adornos e louçanias d'um cama-


rim de actriz moderna. Se o preso era um philosopho, um estudioso, a ca-
mará se transformava n'uma bibliotheca fradesca, cheia de manuscriptos;
se d"um cabo de guerra, a camará se convertia n'um arsenal, onde as ar-
mas eram apenas decorações das paredes num symbolismo inoíiensivo.
A camará de misericórdia era uma estação cuidada para cada recluso, como
se então já fosse conhecida toda a therapeutica adoptada nos manicomios
do nosso tempo ! . . .

Jacob foi recolhido n"uma d'estas camarás. Para elle a cella estava es-
pecialmente preparada com emblemas religiosos, livros sagrados e quadros
que representavam autos de fé. Havia alli mappas de geographia nascente,
caravelas portuguezas e hespanholas, tudo encimado pela apparição de an-
jos entre nuvens e de Christos, aureolados em sarças ardentes. Havia
também, pelas paredes, quadros bíblicos, do novo e velho testamentos,
desde o peccado original até a resurreição de Jesus, desde a serpente do
Paraiso até o purgatório, onde as almas estavam representadas, por bus-
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 343

tos de gente gorda e corada que parecia tomar banho de fogo, com phos-
phorescencias amarellas ! Não faltava até a oração do Horto e o beijo de

Judas, a scena do Pretório, e o Calvário com os phariseus. . . O leito era

modesto mas limpo. . . Á cabeceira todos os utensílios da escripta. . . Um


grande crucifixo, o emblema obrigado, na parede principal.
Era uma cella quadrada, de paredes brancas.
Hesitava-se, ao vél-a, se era um quarto de hospital, ou uma cella de
frade, ou um cárcere secular.
O seu aspecto não causava terror; infundia tristeza. Havia um cheiro

a incenso, que é próprio da sacristia d'um templo. A um dos lados estava


um altar, com uma lâmpada, e a outro um confessionário de madeira es-

cura, com muita obra de talha.


.lacob tinha sido extendido sobre o leito e solVrcra uma sangria.

O physico deixara-o reanimado^e tranquillo.


O olhar estava sereno e percorria intelligentementc as paredes e o
tecto da pequenina sala. Voltara-lhe a memoria e, embora com difficuldade,

ia reconstituindo o passado.
Antes de abrir os olhos ouvira distinctamente:
— Vamo-nos, deixemol-o só.^O socègo poderá salval-õ.

— Eu não o excitarei... Por quem sois, senhores, deixae-me alguns


momentos junto deste martvr. Quero escutar-lhe a respiração e os primei-

ros gemidos. .

— E' contra a ordem, dissera uma voz áspera; o vosso logar é no vosso
cárcere; demais tendes abusado da nossa complacência. .

— Senhores, disse ainda meigamente o caricioso enfermeiro, bem sabeis


que não c com isto que attenuo''minhas desgraças. Se quizerdes. o guar-
darei cá dentro, como lá fora o guardam lanceiros e esbirros.
Jacob sentiu depois um murmúrio de vozes, que se ouvem melhor por
serem segredadas:
— Emfim, deixemol-o... Que perigo vem d"ahi? Ao nascer do sol os
separaremos. E' possível que a essa hora o inquisidor queira informar- se
do estado do preso. .

Depois a turba sahiu; a porta fechou-se com ruido, e o silencio se fez


de tal forma que Jacob só ouvia a própria respiração e a d' alguém que se
debruçava sobre elle, e que lhe tomava o pulso e lhe auscultava o coração»
e até lhe regaçava levemente as pálpebras.
Tendo recobrado algum alento, Jacob descerrou os olhos, e logo pro-
curou com intencional curiosidade a figura que o velava.
Em pé, no centro da camará, com desxelos femininos, o enfermeiro,
porque era um homem, com as vestes d'um recluso, procurava attenuar o
. . . . ; .

344 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

clarão da chamma, cobrindo com o próprio corpo os vidros da lâmpada,


onde uma luz quasi morta bruxoleava a custo.
— Náo vos incommodeis, senhor, disse Jacob. Aflronto com prazer
essa luz tão branda e amiga.
— Quanto folgo, sr. Jacob, de vos vèr, emtim, voltado á vida. .

— Estive então muito mal?


— Ai! Deus do Céo! Que susto nos causastes Nos causastes, modo 1 é

de dizer — me causastes — melhor. é

— Mereço-vos especial sympathia 1 . .

— Pelos tormentos da minha vida. pela minha pela liberdade da fé,

minha consciência, pelo martyrio dos meus, victimas innocentes d esta In-
quisição maldita, vos juro, sr. Jacob, que tremi nos poucos momentos em.
que estivestes entre a vida e a morte. .

— Obrigado, senhor. As vossas palavras consolam-me das brutalidades


dos homens!. . .

^-E chamaes a isto homens?!


Jacob, com um pequeno esforço, ergueu-se um pouco no leito, para
melhor poder examinar o seu amável interlocutor.
— Dizei-me, senhor, quem sois?
— Quem sou? Um infeliz como vós, mas com menos valor que vos.
— E chamaes-vos ? . .

— Nem já me lembro do meu nome. Fui, noutro tempo, Paço Rey-


nold, ou Francisco Reynold — um pouco hespanhol e um pouco francez.
— Estaes sob a alçada do Santo Oíticio
— Ha dez annos ! Desde que notei, entre alguns amigos, a coinci-
dência de terem nascido no Egypto Baccho e Moisés.
— Só por isso ? . .

— Só. E' possível que também tivesse notado que Baccho como
tinha,

Moisés, dois raios de luz sobre a fronte, e que Baccho e Josué mandaram
parar o Sol'. .

— E bem dissestes, Paço Reynold. Ha inteira semelhança entre a religião


pagã e a judaica, entre a judaica e a christã. . . E por isso vos prenderam
e vos martyrisam ?

— Sois de meu parecer, senhor ? ! E porque sabemos e pensamos nos


esmagam e atormentam ! Pois não é verdade que tanto valem os seis dias
da obra da creaçáo como os seis tempos dos phenicios, dos Índios e dos

chaldeus ? Pois a esses seis tempos não chamou o primeiro Zoroastro,


os seis Gambabars tão célebres entre os persas E ha quem conteste ?

essas verdades ? E vós as sustentastes, altivamente, em face dessa igno-


rância algoz, que nos persegue ? Pequeno, sem protecção, sem mesmo

J
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 845

medir o alcance das minhas afíirmações, disse o que me ensinaram, e


por isso aqui estou, atormentado e perdido I

— Mas vós tendes razão. Quem estuda a Historia encontra, a todo o


momento, estes pontos de contacto. Então, não estamos vendo o paraiso
terrestre no éden de Saana, na Arábia ? Não é verdade que o jardim das
Hespérides era guardado por um dragão, e o paraiso por um cherubim :

Antes de terem sido salvos Noé com sua familia, não salvaram os anti-

gos Deucalião e Pyrrha ?

— Também eu disse isso, também disse, sr. Jacob ! Até lembrei que
Hercules aos pés de Omphale era copiado servilmente por Sansão aos
pés de Dalila. .

— Estúpida gente, que só exalta os ignorantes. Que dilíerença de cra-


veira encontram elles entre Sansão e Hercules ?

— Ah I sr. Jacob, comvosco pode-se conversar, porque sois lettrado


na Historia e atilado no raciocínio. Pois, não é verdade que tanto faz
Abrahão sacrificando Isaac, quanto a historia de Agamemnon ?

— Sr. Reynold. O martyrio é coisa triste, mas a imbecilidade não o


é menos. Que hão de elles dizer-me ? Que Apollo, entrando nas portas do
Oriente, não lembra Elie, no seu carro de fogo?
E Paço foi sentar-se aos pés da cama de Jacob, para melhor con-
versar sobre o assumpto que tanto o interessava.
— Ah! disse elle. Ha quanto tempo não digo estas coisas a quem as
oiça com interesse e a quem as accrescente com tanto brilho. .

— Quanto poderi^imos dizer, meu amigo, sobre taes coisas, tão evi-

dentes quanto perigosas! O que elles vos fariam se lhes ensinásseis que
P^oê, deus da China, nasceu de uma virgem fecundada por um raio de

sol. . . Não Virgem Maria fecundada pelo Espirito Santo?


se está vendo a

Paço parecia suspenso dos lábios do seu infeliz companheiro ?


— Meu caro Jacob, eu, vosso companheiro no mesmo infortúnio, sinto-me
revigorar com o encanto da vossa corajosa investigação! E a Trindade?
Escrevi lealmente o meu pensamento, c levaram-me d abjuração da mi-
nha sciencia, a que deram o nome de té !

— Eizestes bem, meu caro Rcvnold. A Trindade é uma velharia. Per-

guntae por ella a Platão, que ja a conhecia da Ahua do Mundo. Eoi da


Trindade de Platão, ja copiada e modificada por elle, que sahiu a Trin-
dade dos judeus, que se converteu na Trindade christã.
— Sois deveras versado n'estas matérias, senhor Jacob!.. . E é a um
homem destes, de esclarecida intelligencia, sem sombra de fanatismo,
versado e consciente, que o tribunal da Inquisição quer abafar a voz e
apagar a consciência ! . .
! ! . . !

346 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—E como vos prohibem de pensar, meu pobre Reynold Pois ha for- !

ças na humanidade que impeçam o trabalho mental d'um homem, que,


craneo a dentro, profunda estas questões ':

— Oh! se ha! sr. Jacob. Milhões de forças! Tantas coisas nos dizem,
taes torturas nos fazem, que, por mais que a razão nos diga o que é ló-
gico, acabamos, afinal, por acceitar o absurdo... Quantas vezes tenho
dito, a sós, nas horas das minhas meditações : Quem sabe : Talvez elles

tenham razão
— Que diriam elles então se nós lhes disséssemos que, ao fazerem a
sua religião, nem ao menos tiveram o dom da originalidade Não crearam ?

elles Deus e o Diabo ! Que novidade Já no Eg\"pto e no Oriente essa


!

descoberta, ou invenção, tinha sido feita. Conheceis, Paço, disse Jacob


com affectuosa intimativa, Typhon e Osiris, Oramase e Arimane ?

— Sim, conheço... é isso que vós dizeis... E, não obstante, temos


que esquecer tudo isto!
— Sois judeu, não c assim, Reynold ?

— Sim, sou judeu, como poderia ser christão. O meu defeito vem do
meu baptismo, não da minha consciência. Quasi não distingo, tão pouco
fanático me fez a leitura de bons livros ! Os livros judeus são a base da
religião christã. .

— Sem dúvida, sem dúvida, disse Jacob, cuja palavra ia aquecendo, á


proporção que a heresia o dominava. Quem annunciou Jesus ? Os prophe-
tas judeus ! De quem descende Jesus ? Em linha recta de David I Estare-
mos todos doidos ? ! Jesus nasceu judeu, foi baptisado pelo rito mosaico !

E é por esta razão que nós queimamos os discípulos de Moisés ?

— Ah ! meu caro companheiro, pensar aqui é prohibido, e vós pensaes I

Admiro a vossa coragem e a vossa sciencia. Quão perigosa seria a vossa


palavra entre as multidões ! Nunca ensaiastes essa arma ? Foi com ella que
o christianismo triumphou... Retiro-me ao christianismo puro, e não a
esta industria que tem a sua sede em Roma c succursaes em todo o
mundo
— E nunca encontrastes n'esta casa quem vos escutasse applaudisse? e
— Isso sim! A cobardia aqui enorme! As dores corporaes esmagam é

os orgulhos do espirito. A carne corta os voos da alma. Foi porque me


disseram que vós éreis um revoltado, cheio de coragem, que eu quiz fi-

car junto de vós, uma noite, uma um momento, o bastante para ma-
hora,
tar as saudades que tinha de ouvir um homem, um verdadeiro homem
Um homem, como eu imagino que hão de ser aquelles que um dia hão de
fazer saltar estes muros, e deixar livre o pensamento ! . .

— Sabeis qual é a sorte que me espera ?


. !! ; .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Sei, senhor, infelizmente. Sei que a morte nos espera, com todos os
seus iiorrores, mas sei também que o mundo está cheio de surpresas.

Roma tem conHictos amiudados com os reis... A que chegará um dia

essa divergência r E quando chegará elia a produzir um conHicto grave e


sério ? Não são raros os perdões, e a intriga entre os inquisidores pode
desmanchar, n'um momento, a obra de séculos. Se Philippe I quizesse !?...

— Ah ! sabeis que Philippe I mostrou tendências para reagir : Como vos


chegou nova tão fagueira aos rigores do vosso cárcere
— Acasos inexplicáveis, senhor ; uma conversação surprehendida entre
familiares. . . Como sou mais lido e mais sabedor pedem-me que seja
inspirador dos herejes. Fizeram de mim uma espécie de enfermeiro das
almas. Oh meu ! caro sr. Jacob, tende dó de mim Para evitar as ! . . . tor-

turas que me causam horror, quantas vezes minto á minha consciência, e

faço a catechese cathoiica com todo o calor d' uma artificiosa argumenta-
ção?!
— Que sacrificio deves fazer?!... Ora, ahi está um supplicio que lá

fora não é conhecido : ensinar aos outros o que temos por falso e erró-
neo!. .

— Ainda hontem tive que explicar a creação do mundo. . .

— Estou vendo-vos, meu sábio, pintando Deus na obra de crear a ma-


téria !

— Narrando, sim, explicando não, que a consciência não sabe explicar


processos contra a natureza ! . . .

— Dissestes que Deus creou o planeta e o lançou no espaço. .

— Sim, disse isso, mas não disse mais, que não sabia explicar a posi-

ção e o equilíbrio dos outros corpos celestes ! . . .

— E falastes também na creação da luz ?

— Sim, tinha de dizer isso, e isso disse. Deus creou a luz?


—E só depois foi que Deus creou o sol
— Eis o absurdo, senhor; mas eu o sustento com a mais requintada

má fé. Crear primeiro a luz e o sol depois ! Valha-nos Deus ! Ou o sol

não é a luz, ou a luz foi absorvida pelo sol


— E, vós, infeliz Reynold, sendo judeu, attribuis toda a moral social
ao evangelho christãol Quanto vog ha de ter custado o sacrificio dos vos-
sos conhecimentos históricos ! Com quanto pesar tereis occultado que, se
Jesus pediu o perdão para as injurias, Pythagoras, muito antes d"elle,

disse o mesmo, sem revelação divina ? Confúcio também disse egual con-

selho. Fa:{e cios outros o que quiseres que te façatu, disse Zoroastro. Je-
sus, por outras palavras, disse isto mesmo mais tarde . . . E a eucharis-

tia ? . . .
. : .

34S MYSTERIOS DA INQLISIÇAO

Paco Reynold fez um movimento brusco e extendeu o corpo sobre o


leito de Jacob para lhe ficar mais próximo:
— Sr. Jacob, disse elle, é demais, não quero ouvir-vos. . .

— Irrita-vos a minha critica? A vós que a acompanhaes com tanto zelo


e convicção?!
E Paco, quasi em segredo, disse a Jacob:
— Perdão, meu amigo, mas a vossa lealdade, a vossa boa fé, castiga
de mais a minha cobardia. Perdoaeme, senhor, que me atormentam os
remorsos. Calae-vos, por quem sois! Deixae sem commentarios o meu
descretear traiçoeiro... Perdoae-me. .

E Paco, com as lagrimas nos olhos, e as mãos postas, fitava estupi-


damente Jacob.
— Sois um louco, decerto. Que receaes? Que vos comprometta e atrai-
çoe? Pensae em voz alta, senhor. Pesa-me o vosso infortúnio e consola-
me o vosso raciocínio. Ainda que as torturas me levassem ao ultimo
suspiro, pela minha honra vos affirmo que ninguém saberia o que me dis-

sestes . .

— Ainda que as torturas vos matassem, dissestes?


— Sim; e jurei-vos pela minha palavra de honra, de homem bom, e
pela minha alma, prestes a voar. . .

—E sois vós, que me dizeis isso?

E Paco Reynold, cahindo de joelhos á cabeceira do leito, e beijando


softregamente as mãos do doente, só dizia, soluçando:
— Perdão, senhor, perdão!
Jacob passou a mão enfraquecida pela cabeça de Paco.
— Bom amigo, disse elle. Qualquer que seja a vossa falta, eu vos
perdoo.
Na cella operou-se então uma mutação magica do mais extraordinário
effeito theatral.

O confessionário desdobrou-se, mostrando ser um movei articulado,


que perdia, ao movimento d'uma mola, a sua forma, desdobrando espal-
dares e braços e derrubando raios e talhas, para mostrar uma pequena
mesa, onde um frade de rosto coberto escrevia tranquillamehte.
Por detraz do altar, do lado oppqsto, e á luz da lâmpada que n"elle

se reflectia, appareceu um esbirro, de olhar penetrante e rosto descoberto.


Jacob sentou-se no leito, ouvindo tão extranhos ruidos:
— Traição! disse elle. O que quer esta gente?.. .

Paco recuara até a parede, e de mãos postas, dirigindo-se a Jacob,


supplicava
— Perdão!
: . ? .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 349

— Ah! miserável! disse Jacob.


K, depois d'um rápido momento, em que o fitou irado, accrescentou
tranquilio:
— Perdòo-tc. E' piedosa a tua obra. Abriste a sepultura a um morto! . .

Então o frade do confessionário disse pausadamente:


— Jacob Adibe, confirmas as heresias que acabas de proferir na pre-
sença desse homem, e de que fomos testemunhas
Jacob deixou cair a cabeça sobre o leito, e com os olhos cerrados, es-
tendeu a mão direita, como se quizessc jurar, e disse com voz sumida:
— Sim. . .

Paço, encostado á parede, trémulo e pallido, açoutava o rosto com


as mãos, e dizia, chorando:
— Cobarde, miserável, por que te não deixaste morrer pendurado ou
de pé, esmaf^ado no potro?. .

E como houvesse um momento de silencio, emquanto o frade escrevia


lentamente o auto, Jacob extendia novamente a mão, e com voz agora
firme e forte, repetiu
— Sim... Confirmo...

A espionagem interior da inquisição era um dos serviços mais cuida-


dosamente organisados, e era exercida por agentes effectivos, profissio-

naes, e por adventícios e voluntários.


Os profissiotiaes tinham, geralmente, as tarefas mais grosseiras; ordi-
nariamente se limitavam a espreitar e escutar.

A principal delação resultava do confessionário; mas, como era in-

dispensável conservar as apparencias de que era inviolável o segredo da


confissão, aquelle previdente tribunal buscava, na prova testemunhal dos
<:spiões, a ratificação do que não podia revelar o confessor.
Assim, cada frade confessor tinha a sua escolta de delatores, e bem a
instruía, de forma que os interrogatórios fossem feitos a provocar a reedi-
ção do que fora dicto no confessionário. .A.ssim, appareciam nos processos,
sem quebra do juramento sacerdotal, as confissões graves feitas pelos ac-
cusados.
Os profissionaes tinham ao seu dispor vastíssimos recursos para o
desempenho do seu torpíssimo mester.
Ora se vestiam de frades, ora de captivos — mudavam de cara e do
habito, como era necessário. O guarda do cárcere, o enfermeiro, o phv-
sico, o servo, as testemunhas chamadas a depor, eram muitas vezes esses
agentes educados e instruídos para especiaes investigações. Para as mu-
lUYSTKKIOS DA INQL'IS1Ç.\0. — VOL. I. FOL. 4J.
. . !

35o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Iheres havia mulheres, e, não raro, a infâmia empregou n esse trabalha


traiçoeiro creanças de rosto angelical e já de coração corrompido!
Havia espiões que dormiam nos cárceres, ao lado das suas victimas,
e que nada perguntavam, porque se fingiam mudos, e que nada respon-
diam — porque também eram surdos!
Eram esses os|que melhor escutavam as confidencias e o somno dos
seus companheiros! Nas pocilgas immundas havia muitas vezes uns idio-
tas, sempre acocorados, como seres inferiores, de olhar bestial e riso al-

var. . . Esses idiotas eram os mais hábeis rafeiros á caça de segredos. Quem
havia de recear a percepção de taes monstros ?

Tinha esta companhia artística os actores da mais rara aptidão! Co-


piavam todos os typos, edades e até sexos! Se era necessário tagarelar
alegremente, apparecia quem tivesse a graça natural e o riso communi-
cativo. Não faltava, n'aquelle theatro de melodrama, quem passasse ho-
ras a inventar máguas, e tivesse o raro dom de excretar lagrimas, com a

mesma frequência e facilidade com que poderia excretar saliva!


Para provocar as melhores sympathias, também a rebeldia tinha os seus
hábeis intérpretes. Esses mostravam desprezo pela vida e reagiam contra
os juizes e os guardas; planeavam conspirações, insultavam os frades e
fomentavam as resistências. Tinha dois fins, pelo menos, esta comedia
ignóbil: justificar as torturas dos innocentes, e explicar o desapparecimento
do espião, quando o seu trabalho já não era necessário.
Quando havia n'uma prisão cúmplices do mesmo crime reunidos, mas
vigiados para justificar essa ficelle, com um d'elles chamado a interroga-

tório, ia sempre, por coincidência, responder também o companheiro es-


pião. Só este voltava depois, triste., indignado, para contar que o traidor
se denunciara, a si, e aos co-réos!. . . E, n'esse momento, que de excla-
mações compromettedoras soltavam os innocentes e os criminosos!?
Importantes phenomenos de suggestão, com que a sciencia está hoje a
braços, eram alli provocados, por espiões, sobre raparigas de tempera-
mento nervoso, fracas de corpo, timidas de -animo, á mercê da \ontade
alheia. .

Desde o espião boçal, destinado á trasmissao inconsciente dos gestos


espreitados, até o lógico intérprete de gemidos, sorrisos, olhares, rubores,
estremecimentos e desmaios, aquelle exercito tinha gente com todos os
graus de educação litteraria e scientifica, para tratar com os accusados de
todas as categorias sociaes. .

Tinham os poetas quem lhes recordasse as voltas mais graciosas e as


elegias mais dolentes; os philosophos quem lhes falasse das escholas da
Antiguidade e dos theologos que andavam a organisar a reforma na Alie-
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 35i

manha do seu tempo; os artistas ouviam a critica da arte, e, aos pedaços,


a historia da sua evolução; os homens dotticio tinham quem lhes mostrasse
incorrecções de instrumentos, e principios rudimentares de mechanica!
Havia especialistas em lithurgias de religiões perseguidoras e perseguidas:

guerreiros que recordavam façanhas de Ormuz e Azamor, mareantes que


tinham andado na descoberta do mundo!
Este exercito de espionagem assaltava os accusados, á entrada d aquelle
inferno dantesco, e, por tal forma lhes envolvia os sentidos, que parecia
uma nuvem de vampiros diabólicos que, antes das torturas que macera-
vam o corpo, iam envenenando o espirito da pobre gente e sugando os
mais recônditos segredos das mais defendidas e reservadas consciências!

Entre os profissionaes, havia uma numerosa companhia recrutada nos


co)ideniiiados, ou nos escjiiecidos — os condemnados a penas longas, ou
perpétuas, de cárcere e penitencia; os esquecidos, que assim tinham privi-
légios e tolerâncias á custa de denuncias, que espontaneamente offereciam.
Chamavam as estes espiões roliiníarios — por uma terrível ironia d"
diccionario inquisitorial.
Que diriam a essa denominação os occasioiíacs, que eram um grupD
importante entre esses voluntários e que compravam com a villania a vida

desgraçada que lhes toleravam n'aquelle antro de misérias e de crimes;!


Os occasionaes eram os accusados de excepcionaes aptidões, que o
tribunal escolhia para qualquer serviço especial.
Sob diversos pretextes, votavam as torturas a um desses infelizes, por-

que a semelhança do delicto era indicio de que elle conhecia algum novo
accusado.
Ou o desgraçado soflria essas torturas, ou acceitava a tarefa de arran-.
car confissões, utilisando n"esse empenho, o seu ódio contra a Inquisição,
a sua fé religiosa, e até a sua compaixão pela nova victima.
N'esse caso, por mais sinceridade com que acompanhasse as contissões
do atraiçoado, nunca isso lhe seria levado em conta. .

Salvo se, para a outra vez, se negasse a torpeza egual ! . . .

Se era necessário devassar um mouro, era entre os mouros que se

apurava o traidor. . .

Jacob era judeu? E judeu intelligente, sabedor?


Era indispensável applicar-lhe Francisco Reynold.
Só no século xvui appareceu Hahnemann, a sustentar, contra Hippo-
crates, a theoria therapeutica do — Similia sitjulibiis. . . e já no século xv
Torquemada applicara esse principio á theoria da salvação das almas !

Francisco Reynold era um perfeito exemplar dessa espécie miserável


í-le homens que são eternos martyres, por medo do mart\TÍo!
! ! ! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Quanto elle teria de soffrer emquanto não acceitasse aquella maldita


missão ! E quanto softreu elle durante esses momentos em que esteve
arrastando, pelo sentimento da piedade, aos tormentos que elle fugia,
aquelle homem tão honesto, tão leal, tão generoso
Não queimaram os pés, nem lhe deslocaram os braços, nem o
lhe

apertaram no potro; mas alinal, tinham-ihe posto na alma todos esses hor-
ríveis apparelhos
Cahiam-lhe da testa bagas geladas de suor, e dos olhos lagrimas quen-
tes como o fogo Parecia-lhe que lhe parara a circulação tremia por
! ;

dentro com calafrios, e por fora a pelle se ouriçava, e as pernas não o sus-
tinham '

Tinha a respiração cortada e ruidosa, o olhar ora desvairado, ora


supplicante, e as mãos crispadas moviam-se desordenadamente ; ora as
levava á parede para se amparar, ora com ellas comprimia a cabeça, ora
as juntava sobre o peito, para rezar, ou pedir perdão...
Não, as torturas do corpo não o fariam soffrer tanto

E que isto a que nós chamamos espirito, matéria intangível que nos
abala como uma rajada de vento, e que nos faz sinistros vendavaes no
mar de sangue que nos palpita no peito, tem uma harpa delicadíssima, de
nervos tão sensíveis, tão contrácteis, que ao roçar por ella o sopro d'uma
idca, triste ou vergonhosa, se abala e vibra, e se despedaça !

Despedaçavam-se em Francisco Reynold todas as cordas da sua alma


delicada
E Jacob, inditferente á tarefa dos zelosos officiaes, que faziam, sorri-
dentes, a acta d' aquella triste sessão, olhava compungido para Paço, es-

tudando n'elle, que o fitava com carícioso terror, um dos mais sombrios e
mais horríveis m3'sterios d'aquelle tribunal da Egreja. .

Que poderia Jacob soffrer nos cárceres e nas torturas, que pudesse
comparar-se áquelle martyrio ? O remorso era o fogo mais impiedoso com
que se podia martyrísar o cérebro daquella victima !

Via bem Jacob que o seu espião, n'aquelle momento, desejava arden-
temente ou a morte ou a loucura.
E o moço christão-novo, esquecido de si próprio, fez um signal a
Paço para que se approximasse do leito.

O espião forçado voltou de novo a ajoelhar junto de Jacob, e, dei-

tando a cara sobre a roupa, soluçou amargamente.


— Pobre Reynold! disse Jacob, puxando-o para si e abraçando-o, não
te lamentes da tua fraqueza, que eu leio na tua alma os efteítos d'esse

martyrio. Não te quero mal por tão pouco. . . Tens soflrído muito, não c
verdade r
. .

AIYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 355

— Ah ! senhor, horrivelmente ! Três vezes me tenho recusado, e três


vezes me castigaram ! Da primeira açoutaram-me ate me ficarem os ossos
descobertos; da segunda passei oito dias de golHlha ouriçada. . . E horri-
vel ! Oito dias amarrado, na mesma posição, para não ferir o pescoço na
infame gargalheira ! . .

Mais tarde queimaram-me os pés com estanho fundido. . . Agora cedi 1...

Se eu não podia matar-m.el Se elles não querem que eu morra!. . .

Jacob apertou o espião nos seus braços vigorosos.


O esbirro approximou-se de Paço e puxou-o com violência:
— Já aqui não tens que fazer. Marcha para o teu covil. Não sabes que-
és como as sanguesugas ? Chupaste ? Vae despejar isso para não morre-
res envenenado. . .

— Um momento mais; eu me recolho. já . .

— Qual momento nem meio momento.. . Olha que vaes a toque de


azorrague . . .

E o esbirro alçou o açoite de coiro, que trazia debaixo do braço, para


castigar Reynold. . .

Não teve tempo para descarregar o golpe. . . Jacob deu um salto. .

O açoite estalou, mas foi na cara do esbirro.


O frade mascarado gritou ao aggredido:
— Firme! chiton! não lhe toques. Monsenhor não quer que o belisque-
mos. Retira-te, e entrega Paço ao teu companheiro. Monsenhor dorme no-

tribynal. Depois ajustaremos contas.


O esbirro abafou um movimento e um grito de cólera, e sahiu.

Paço sahiu á frente do seu irado vigia, e, ao chegar á porta, voltou-se


para enviar a Jacob um olhar supplicante.
Jacob ficou só com o phleugmatico escrivão, que assistiu a toda a scena
com a serenidade dum 'burocrata encarregado do mais inoftensivo expe-
diente.
— Jacob Adibe, disse o secretario do Santo Otlicio, vou deixar-te só,
n'esta camará, onde todas as paredes ouvirão os teus gemidos, e até o ar
que respiras devassará a tua consciência. A'manhã, depois da partida de
monsenhor Deza, escreverás a apostasia das doutrinas que ha pouco sus-
tentaste. . .

—E quem poderá obrigar-me a tanto?. . .

—O Santo Ollicio, que de melhores titulos se condecora, pois que re-


gista na siia historia abjurações de heréticos mais confessos e contumazes.
— Perdeis o vosso tempo, senhor, que não sei por que generosidade
vos trato tão impropriamente; pois que, se me falaes como a um servo,,

cu devo, por vos ser superior, tratar-vos como a um animal de carga. . .


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Perdes o teu tempo, que a força ainda não está constituída em Direito, e

tu nem força tens, que só a um cobarde cabem taes grossarias e alardes.


— Contava com essa resposta. A minha experiência me habituou a ou-

vir arrogâncias de desesperados com a generosidade que eiles pedem. . .

— Que te peço ? . .

— Sim, que me pedes! Ha no mundo variadas formas de pedir com-


paixão — Uns recorrem á humildade, outros á ameaça. No fundo é tudo
pedir, que o desespero impotente não pode fazer outra coisa. Os humil-
des pedem agradecendo, os orgulhosos exigem ameaçando. Em nossa arte
está o dever de distinguir as espécies. Tu és dos que ameaçam, julgando
que assim não tens o dever de ficar grato. . . Illusões! E's forte, és cora-
joso, e podes bem affrontar a cólera de meia dúzia de homens. Já com-
prehendi tudo isso. Mas, lembra-te de que estás nas mãos, não de seis

homens, nem de vinte frades, mas duma sociedade inteira. Aqui até o or-

gulho dos reis e dos príncipes tem sido eficazmente abatido. Se não sou
vosso amigo, admiro vos... A admiração faz parte da estima. E" quasi sem-
pre por ella que se começa. Quero dar-vos um conselho: não rebaixeis
essa fidalga altanaria! A muitos orgulhosos tem aconselhado a humildade,
para lhes evitar humilhações; a ti recommendoa para que não amesqui-
nhes o teu brio. Onde cederes, não haverá violência. Ora, sejamos razoá-
veis; ninguém põe em dúvida o teu denodo. E' necessário que ninguém
se convença de que podes ser submettido pela força brutal. Comprehen-
des o meu raciocínio r

— Comprehendo, disse Jacob. Continua. .

— Ora, ainda bem! disse o secretario, conchegando a máscara, és um


bravo, e podes sustentar a tua bravura com o esbirro a quem insultaste,
-commigo sobre quem podes cahir com um salto de tigre, com dois ou três
guardas que me acudam... Mas, depois? sim, depois, o que tencionas
fazer, Jacob Adibe? As portas estão bem cerradas, e dentro d'ellas está
um exercito de homens ecclesiasticos e seculares. Ha gente de fé, inoften-
siva, generosa, mas ha gente armada, boçal, guerreira, disciplinada e for-
te. Cahirás sob o peso d'ella, apenas sob o peso, que ella é tanta, que onde
«stiver não te deixará espaço. . . Serás vencido, afinal, e os aggredidos
vingar-se-hão. Alguém te espancará com o cabo da lança, alguém com o
bico do pé; laçar- te-hão os braços, as pernas; pòr-te-hão na bôcca a mor-
daça vil; jungir-te-hão a um poste, e ahi, captivo, até nas faces vos cus-
pirão irreverentes. O teu sangue andará em ondas revoltas e rugidoras, e
vibrarão loucamente os teus nervos; o pejo te inundará o rosto, e tu, forte,
fidalgo, orgulhoso, como o leão velho, sentirás passar junto de ti, insolente
e triumphante, o asno mais cobarde! Esbofetear-te-hão com dois dedos e
MYSTERI05 DA INQUISIÇÃO 353

um sorriso, os insolentes, simulando a chrisma, e açular-te-hao os que te


respeitariam se estivesses em liberdade.
Jacob ouvia, meditando profundamente.
— Sou um funccionario d'este tribunal. Ganho aqui a minha vida,
e, procedendo como procedo, estou livre de todos os perigos a que essa
gente lá fora anda constantemente exposta. Ha quinze annos que occupo
este iogar; ha pois quinze annos que assisto ás maiores revoltas e ás mais
estrondosas submissões. Quantas vezes tenho vontade de applaudir rasgos
de valente rebeldia?! São um esplendido indicio de caracter varonil! (Js co-
bardes causam-me nojo. Por isso mesmo, (]uando vejo baquear um forte

e fazer-se ludibrio dos fracos irreverentes, tenho pena, tenho sincera pena...
— Estou prevenido contra todos os teus ardis; mas é verdade que acho
lógica n'esses raciocinios. . . Es, sem dúvida, um velhaco refece. á altura
dos teus companheiros, mas tens razão, porque me estás convencendo.
— Tudo isso é prova de que és tão valente, quanto razoável. Se que-
res que te matem, e se aqui houvesse quem te quizessc matar, prezo tanto
a tua dignidade, que não hesitaria em aconsclhar-te a que te não sub-
mettesses. Em poucos segundos cahirias para ahi atravessado por uma lan-

ça, ou esmagado sob os pés dos esbirros. . . Mas não; acredita, poupar-te-

hão a vida e levar-te-hão de rastos ás torturas e ao patíbulo.


—A que me aconselha então a tua experiência?
—E bem fácil de adivinhar : a que adoptes a submissão voluntária.
Essa cáfila grosseira de agentes que representam a força seguir-te-hão
respeitosos. Serás mortificado,mas não insultado sentirás sobre o peito- ;

o joelho da mas não te incendiará o rosto a bofetada insolente. Cor-


lei,

rerá o teu sangue, mas não o aquecerá a vergonha Cahirás na arena !

como o gladiador romano, compondo a túnica, mas não de roldão aos


pontapés da turba. Sentirás nas carnes os dentes das feras, mas não o
. .

chicote do domador. Jacob Adibe é, sem dúvida, um homem superior. . .

Não quebres o ideal que de ti formámos antes de te vermos de perto . .

Os espíritos vulgares desejarão ver-te esmagado, supplice, ou submcttido


sem reagir, impotente : nós, que somos homens de espirito, preferimos-

ver-te tranquillo, resignado. Lembi-a-te de que ha duas coisas que fazem


um homem revoltado : a coragem c o medo. Força, a verdadeira força está
na serenidade com que se aiíronta uma catastrophe ! O que farias se a náu
em que navegasses estivesse a sossobrar ? Blasphemavas contra o Céo ? cus-
pias no vento e nas. ondas ? Serias um louco, e a loucura é fructo do terror.
AtVrontar o pélago com um sorriso seria a suprema essência da valentia
humana ? Morre-se de uma sentença no Santo Officio, como se morre em
liberdade de um ataque de peste. Quem julgas o mais forte ; O que, na
.

355 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

hora extrema, pragueja ou chora, ou o que sorri e espera o fatal desen-


lace ? És um homem e tens o dever de te distinguires entre essa multidão
de captivos que, a esta hora, ou fazem o que fizeste, ou pedem perdão
de joelhos. Já vês que sou mais teu amigo do que julgas. Es um vencido,
convence-te disso. Acceita o castigo de fronte erguida e serena, e não
consintas, revoltando-te, que te enxovalhem !. . Nem só as mulheres teem
a honra no corpo; também os homens. Ha mulheres que preferem mor-
rer a serem polluidas ; a virgindade dos homens está no rosto, que nunca
foi esbofeteado !

— Tens razão, diabólico conselheiro, tens razão. Dispõe de mim ; sub-


metter-me-hei. Que devo fazer ?

— Dormir tranquillo, e obedecer sem reservas. O Santo Oflicio pre-


cisa da tua abjuração. Dá-lh'a, se quizeres, e, se não, nega-lh'a... E
dever d'elle arrancar-t'a para salvação da tua alma e prestigio da Inquisi-
ção. . . Se não fossem as circumstancias especiaes em que aqui te encon-
tras, soífrerias gradualmente os processos que adoptamos para vencer re-
sistências ; assim terás primeiro de apreciar, de pistt, esses processos.
Amanhã deixar-te-has conduzir á sala das torturas, onde estudarás se te

convém abjurar sem oppressão. O triste espectáculo illuminará o teu es-


pirito. .

— Pois seja ; descerei a esse inferno, levando sobre o peito a cruz da


tua fé.

— Bem, fica em paz, e que a noite te seja conselheira leal, como eu


sou.
E Jacob, vencido pela doença e pelo cançaço, reclinou a cabeça, pen-
sando n'esta triste ironia — um amigo que me atraiçoa, outro que me
desarma !

E a lâmpada, bruxuleante, ficou como única companheira visivel do


infeliz condemnado. . .
!

XIV

A sala das torturas

Percorrendo as paginas sombrias da Historia da Inquisição, e quan-


tas historias do mundo que falam, com pormenores, desse infernal labora-
tório de dores e angustias, não esquecendo Lacroix nos seus Aloeurs,
iisages et costumes ati moyen-àíie et a lèpoque de la Renaissance, e nas Pe-
nalités aiicieiínes; siipplices, prisoiis, et liràce en France, de Ch. Desmaré,
não lográmos obter uma descripção nitida, suggestiva d esse pedaço ne-
gro do Santo Qfticiol
Duas palavras frias, com adjectivos deprimentes, duas citações de som-
bras e gemidos, como as que descrevem um cárcere do Poiic de S. Martin
ou dos nossos theatros secundários de tragedias grosseiras, teem bastado
para sensibilisar os leitores do nosso tempo.
E' muito pouco ! E' tão dilíicil de descrever, como qualquer das mon-
tanhas do Averno, que o Dante descreve nos seus versos de bronze, e que
só o buril de Gustavo Doré é capaz de interpretar nas suas gravuras de
maravilhosa phantasia,.
Aquelle antro diabólico, onde a maldade do homem se aninhou, como
uma fera no covil, para saborear as suas victimas, não pode ser apreciado
por um scenographo copista da vida real, nem traçado com as linhas sy-
metricas d'um constructor de subterrâneos, nem inventariado nos seus mo-
veis por um official do deposito público.
A sala das torturas é um s3-mbolo da barbaridade de alguns séculos,
producto lendário das gerações de escravos no corpo e na consciência
Não era uma sala, era um mundo, onde se projectava toda a sombra
immensa dos espíritos fanatisados e cegos Nos seus muros havia todos
. . .

os vestígios durna velhice vigorosa: nas suas alfaias o cunho ensanguen-


tado de todas as i\ rannias.
Plxistem rochedos e descrevem-se c\ clopes ; mas que rochedos deviam
ser esses, que se erguiam e despedaçavam sobre os hombros de taes mons-
MYSTERIOS UA INQUÍSIÇÁO. — VOI.. 1. FOL. 45.
! ! !

358 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

tros? Tinham o feitio de homens, esses gigantes, que revolviam a terra;


mas, que grandeza tinham esses hombros, que faziam taes maravilhas ?

Quem ha que não descreva o Emp3'reo? Quem não pinta o scenario do In-

ferno ? E comtudo, nada mais diflicil que desenhar o sonho mais poético,
luminoso, florido, cheio de cherubins e de harmonias, em que o Céo se
apresenta ao espirito religioso dos christáos!
Vela-se o Infinito, com uma abobada azul, e nada vemos através delia
senão com os olhos do espirito, esse immenso telescópio que devassa to-
dos os segredos do espaço I

Fala-se nas chammas infernaes, cujas línguas teem a forma das que
lambem a resteva nos campos, mas ignora-se a maneira de as descrever
na sua impetuosidade sibilante

Um philosopho. muito antigo, cujo nome se perdeu na noite doS tem-


pos, disse que Deus era um grande circulo, cujo centro estava em toda a
parte, e cuja circumferencia não estava em parte nenhuma! O impossível,
o absurdo, dá a idéa mais approximada dum ideal que é convicção de
todos os espíritos
O aspecto das coisas resulta menos delias que da vista de quem as olha.

Como é mais formosa que todas as outras a nossa aldeia natal ! Que de
perfeições inimitáveis nos filhos do nosso amor! E' dos nossos olhos, que
vêem a côr, o tamanho e a forma
Quem pretende descrever a forca? O algoz? EUa é apenas um pórtico
isolado, singello, nu, sobre um tablado vulgar. O condemnado? Elle é um
monstro esquelético, cujos braços semelham os da Morte, e onde o baraço,
a balouçar-se no espaço e a desenhar-se no céo, parece mais um látego
movido pela mão de Deus, que erguido da terra pela justiça dos ho-
mens!
A sala das torturas! Como havemo? de fital-a e descrevel-a? Com os
olhos do nosso século civilisado e brando, mais amoravel que forte, mais
tolerante que convicto, em que vi\em o perdão e o scepticísmo em vez da
fé e da intolerância?
Com o olhar frio do historiador, que se transporta á épocha e ao meio
que critica, e alli pormenorisa o aspecto vulgar dum covil de homens cheios
de ferocidade e ódio:

Já que temos de fazer essa digressão, olhemos então essa caverna de


crimes legaes, com os olhos das víctimas, que foi para elles que ella se

edificou nas entranhas d'uma sociedade endurecida.


Que sombras esvoaçam sob a immensa abobada, negra e húmida,
cheia de recantos e arcarias, por cujos muros trepam insectos nojosos,
pregos enferrujados e cruzes negras; e donde pendem cabos e roldanas,
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Sjg

lâmpadas e mordaças, máscaras e chicotes, n"uma promiscuidade de céo


e inferno, que fazia lembrar a estação intermédia do Purgatório.
Tem esta saia o aspecto triste da galeria d' uma mina, onde a luz
viesse a custo, coada pelas paredes d'um poço, ou scintillasse como py-
rilampos, nas excrescências da rocha. .

Mina onde os homens fossem biocos arrancados, com mão grosseira,


dum filão de sangue, que estivesse a denunciar-se nos laivos vermelhos
que clles mostravam á superfície. .

Ignora-se a extensão das arcarias, porque apenas se vè o plano que a


luz d'uma ou outra fresta, alta c empoeirada, escassamente illumina. So-
bre o lagedo do chão estremecem as sombras das grades, por onde o ar,
pouco e a custo, vem abanar as longas sanefas de teias d'aranhas.
Vê-se a agua a gottejar sobre a muralha negra, lembrando as lagrimas
d'uma viuva através do véo de lucto!

Rojam no chão cadeias que pendem de fortes argolas, como se aquillo

fòssc uma jaula ou um canil.

Apaga- se n'uma arcada, grande e muda como a b(3cca d'um tunnel, a


porta d'este recinto, massiço de madeira e ferro, com fortes escoras de

encontro ás fendas da abobada, e pesados ferrolhos, que fazem, ao move-


rem-se, echos prolongados e sinistros.
Empilham-se, a um lado, caixões, crivados de orifícios, destinados a

estojo de martyres, e a outro, tinas fixas, com agua immunda, e baldes e


lambazes, próprios da limpeza de navios.
Aqui e alli, numa desordem intencional, uma multidão de ferramentas
e utensílios, que lembram o espolio das officinas de Vulcano.

Fornalhas primitivas em desvãos grosseiramente aproveitados, brazei-


ros móveis com a chahima lenta a crepitar por entre carvão e lenha; bigor-

nas, massetas e gargalheiras, borzeguins desapertados, mostrando ainda


restos de sangue nos dentes que os forram; a grande roldana conjugada
por um cabo de couro a um molinete de madeira, apta para içar e preci-
pitar corpos na faina da deslocação; barras de estanho, calçado de couro
esponjo.so, para uso de agua fervente; martellos de longos cabos, encosta-
dos ao eixo d' uma grande roda, a cn/:; de Sí-diIo André, onde eram cru-

cificadas as victimas condemnadas ao esmagamento!


Em grossas escápulas, que rebentavam das juntas da cantaria, pen-

diam azorragues de diverso figurino, denunciando requinte de invenção e

de maldade. Havia alli açoutes de difíerente graduação na escala brutal


do tiagicio —o chicote vulgar, simples, entrançado para a resistência, e
rematado em pitas, que estalam no ar e rasgam a pelle ao paciente ; ao
lado, o seu irmão mais velho e cruel, reforçado com duas voltas de cor-
! . ! ! !

MYSTERiOS DA INQUISIÇÃO

reia embebidas em óleos, que lhes dão consistência e elasticidade, com


applicaçáo ao dorso das mulheres delicadas ; a seguir, as clássicas disci-

plinas, em bouqitet de pernadas rematadas em nós e revigoradas com te-

cidos d arame, isto é, mais nervosas e valentes que as que martyrisaram


Jesus; e ainda o látego nodoso, o tradicional Hagello, invenção infer-
nal do século V — um rosário de espheras metalHcas, ouriçado de pontas
agudas
A um canto, a granel, um molho de lanças, que serviam para reani-
mar os torturados, como faz o aguilhão aos animaes de carga, penetrando-
Ihe nos ilhaes.
Ao centro, como altar d este templo, throno d esta realeza, ou eça
desta camará ardente, estava o potro
Filho dilecto da forca, tinha d'ella a configuração, mas, como não lhe

chegava a estatura para suspender um homem pelo pescoço, esmagava-o


com cadeias de ferro na altura dos pulmões.
'

Prodigiosa in\ encão humana I

Piedosa cirurgia da egreja catholica I

Tosca e suja, também alli ha uma mesa destinada ao escrivão da In-


quisição, o estenographo de todas as confissões arrancadas ao medo, á dòr
e ao delirio.

Abundava, entre as victimas, gente que o terror desvairava, e a quem


o martyrio dava tal inconsciência do que estava vendo e ouvindo, que, ao
ser interrogada e torturada, dizia automaticamente, ou quanto lhe sug-
geriam, ou cousas contrárias e sem nexo. N'este caso o escrivão interpre-
tava, aperfeiçoando, um depoimento claro, lógico, convicto

Umas vezes este trabalho era apenas uma aleivosia profissional, outras,

producto duma vontade decidida e fanática de descobrir e punir crimino-


sos. No tempo de Carlos V, um desgraçado enlouqueceu durante a tor-

tura, e, taes respostas deu, que deixou de chorar afflicto, e, a rir alvar-

mente, denunciou duas filhas suas ! A Inquisição, para tirar partido desta
monstruosidade, como se o episodio de Abrahão e Isaac pudesse justifi-

car-se no mundo real, aproveitou-se da loucura do pae e obrigou-o a con-


duzir lenha para a fogueira das raparigas
Era alli, sobre aquella mesa tosca e suja, que se escreviam as palavras
d'esses martvres perdidos, atflictos, delirantes, loucos I

Quem nos diz de que era feito o chão d'essa masmorra ? Aqui parece
o fundo d' uma cisterna, limoso, enxarcado, coberto de detrictos e de ver-
mes ; alli, ha madeira apodrecida embebida no lodo : mais longe, cano de
exgôtto obturado e infecto. . .

Ha pedaços de tijolo com a còr da ardósia, e lagedo polido e estalado,


!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 36i

servindo de passadeira n'esta alcatifa immunda e sinistra ! A um lado,


onde os inquisidores que assistiam áquelle combate de feras, como os impe-
radores no iogar nobre do Coliseu, o chão era forrado de pedras de sepul-
turas, com inscripções quasi apagadas, deixando a grande dúvida de que
houvera alli o claustro dum mosteiro, ou o carneiro d'algum cemitério.
Ao centro tem a cobril-o uma camada lodosa, dum matiz limitado en-
tre o vermelho e o roxo. . .

Que diria a analyse chimica d'esta escara mysteriosa :

Aquelie cimento era amassado com sangue e lagrimas, sangue dos


corpos retalhados e das chagas gottejantes. lagrimas em que se desfaziam
os olhos dos que não podiam gritar por causa das mordaças, nem estre-
buchar por causa das algemas !

Estava n'aquelle pedaço de chão extracto de milhares de vidas, onde


se misturavam em percentagens deseguaes, sangrias de muitos homens de
coragem e pranto de muitas mulheres esmorecidas.
Raras vezes deixava de existir, lá ao fundo, onde a luz das frestas não
chegava, algum cadáver de torturado sem resistência, ainda com os olhos
abertos, na esperança de gritar por elles, ainda amordaçado para que a
caveira não lavrasse o seu protesto I

Andam junto das frestas, estonteados cm tão pouca luz, moscardos de


azas verdes, os pequenos corvos que denunciam as podridões que se
occultam ; e em todo o recinto um cheiro nauseabundo e venenoso
Ao pé d'este atelier da morte, chega a ser alegre e generoso o cada-
ialso, com a forca, ou a degollação, ou o garrote, ou o moinho dos empal-
lados, ou a roda forrada de cadáveres, ou a cruz de Santo André !

Alli, ao menos, a carne chagada, os ossos quebrados, o sangue, as la-

grimas misturam-se, é verdade, mas não ficam sobre o solo, convertidos

em monturo repellente ; a fogueira bem accesa fulgura, crepita, sobe, de-


vora cadafalso e victimas, e manda, em columnas de fumo, pelo espaço
immenso, na pingada do espirito, resíduos de todo esse combustível, dei-

.\ando, apenas, á espera que o vento as arraste também, cinzas leves, com
uma só còr e uma só forma !

Que differença ! Como se comprehendc bem com quanto anceio os


presos torturados appeteceram. nas horas passadas naquelle antro, a tra-
gedia final da praça pública ?

Quanto lhes sorria a morte á luz do sol I Sentir no rosto o ar livre é


o grande consolo dos escravos !

Ao menos, tendo o eco sobre a cabeça, talvez que Deus estivesse a


espreital-os, e ou lhes perdoasse pelo que tinham soffrido.

Na sala das torturas não estava Deus ; não podia estar I Aquellas cru-
. . !

3ba MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

zes eram falsas, falsas as imagens, falsas as preces que alli se rezavam. A
justiça não podia morar onde só a força se impunha. . .

Depois, o mundo sabia, na praça pública, o que a Inquisição lhes tinha


feito, quando elles iam no auto de fé; eram tambcm julgadas pela consciên-
cia dos seus! Talvez que elles tivessem razão; mas nas sombras do cár-
cere abafado em espessas muralhas, a sós com o algoz, soffrendo muito,
e depois mais, e mais, morrendo mil vezes, mil vezes resuscitando, para
ficarem longas horas moribundos, e, afinal, voltarem para o covil, sem
terem salvo a vida nem respeitado a consciência ! ? . .

E fala-se com horror da cova dos leões, para celebrar o milagre de Daniel ?

Quanto não seria melhor lançar o penitente ás feras?


Quem sabe? talvez que as feras se compadecessem, ou respeitando o
rei da creação, ou esmagando-lhe rapidamente o craneo nas suas garras
vorazes ?

Morrer luctando como os escravos romanos!. .

Só recordando a sala das torturas do Santo Officio se pode comprehen-


der como, nos circos ensanguentados, os luctadores, ao morrerem, sauda-
vam o seu príncipe
Como os judeus e christãos-novos saudariam os reis catholicos, se elles
viessem áquella sepultura de vivos, e mandassem apunhalal-os pelos sicá-
rios da sua lei?!

N'aquella viciada atmosphera, n'aquellas paredes infernaes, naquelle


chão, que era um abysmo de terrores, não havia só o que tão facilmente
se pode reproduzir; havia olhares que fusilavam pragas, dentes que ran-
giam ferozes, pranto que pedia perdão, sangue que ameaçava vinganças.
Guarida de feiticeiros, entregues a exorcismos e ao fabrico de venenos
subtis; caverna da barbaria onde se aninhavam os anthropophagos dos tem-
pos primitivos; ninhos de espectros que povoavam sonhos e delírios de
tantas gerações ignorantes e beatificadas — tudo isso tinha n'aquelle subter-
râneo inquisitorial a sua imagem repugnante!
Não era uma cadeia — era um abysmo; não era um confessionário —
era um potro; não era um tribunal — era um açougue!
Chamavam Santo Officio a essa instituição que mantinha a sala das
torturas! E' que confundiam o Palácio da Fé com o Palácio da Garduna,
os frades com os bandidos, a justiça com os L^'iíapos e ponteadores, isto é,

com a ralé de Sevilha, que roubava á força e matava por dinheiro.

No dia da partida do inquisidor-geral, dois frades, acompanhados de


alguns familiares, foram á camará de misericórdia, onde se achava Jacob.

i
:

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3«J3

la também com elles o escrivão do tribunal.


Jacob melhorara de saúde, isto é, recuperara algumas forças, apesar
da noite que passara, pensando na sua desgraçada situação e soffrendo as
mais cruciantes saudades dos seus dias de liberdade.
O secretario, ao entrar na camará, interrogou Jacob, que passeava
agitadamente.
— Em cumprimento das ordens recebidas do meu presidente, venho
perguntar-te se queres fazer a pública abjuração das tuas heresias '.

Jacob parou n'uma das voltas, e, fitando o inquisidor, disse com appa-
rente serenidade:
—Não; salvo se o inquisidor permittir que essa abjuração seja acom-
panhada da declaração de que fui obrigado a abjurar.
—Não gracejes com assumptos de tanta gravidade, que o prazo da
tolerância e do emprego dos meios suasórios é curto, e deve findar bre-
vemente.
— Já te disse; faze de mim o que te aprouver.
— Acompanha-me, pois, que preciso de te instruir sobre a sorte que
teem de sotírer aquelles que se não submettem á vontade do Santo Of-
ficio.

E, dep»is, voitando-se para os familiares e esbirros :

— Conduzam este homem á sala das torturas.

Jacob collocou-se, sem hesitação, entre aquella gente, que lhe poz as
algemas, com a rapidez e facilidade que denotavam longa prática profis-

sional.

Jacob não otVereceu a menor resistência ; apenas desviava, em pro-


testo, os olhos, de labor tão repugnante.
— Muito bem, Jacob, disse o secretario, vejo que agradeces o meu
conselho. E vaes praticamente verificar quanto elle foi razoável.
— Vamos, disse Jacob, erguendo a cabeça com majestosa resignação.
E, avançando para fora da camará
— Qlie Deus me dè coragem para \èr praticar tão infames cobar-

dias ! . . .

E levou as mãos ligadas até a altura do coração, para ver se elle

batia serenamente . . .

— Bem, esto calmo !

Apesar d'isso tinha o rosto pallido, os olhos vermelhos e. na testa


espaçosa, brilhavam xtlgumas gôttas de suor.
E o grupo seguiu pela galeria, e desceu as escadas, que communica-
vam com os subterrâneos.
Pelo caminho, os frades iam vergando o joelho deante dos crucifixos
! .

3(-,4 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

collocados nas paredes, e, depois de fazerem o signal da cruz, seguiam,


rezando em latim.

Jacob mal viu o caminho percorrido!... Se elle ia recordando o olhar


de Sarah, e, perguntando a si mesmo, se ella se lembraria delle e se te-

ria dó da sua miserável situação ! . .

Foi longa a viagem. . . e cada vez mais cheia de sombras.


Afinal, o pequeno grupo parou junto d"um portão chapeado de ferro.

O secretario mandou que um dos esbirros batesse fortemente com a

ponteira d'um bastão.


Ouviu-se, então, o correr agreste dos ferrolhos d uma porta interior c,
depois os de outra, e depois os d'aquel!a em que se dera o signal.

Era dia, mas, apesar disso, esta scena era apenas allumiada pela
chamma d um sujo lampeão pendurado na abobada que intervallava a pri-

meira e a segunda porta.


Percorrida esta distancia, .lacob viu nova abobada, nova lâmpada, e
nova porta
Essas arcadas eram os fossos da sinistra fortaleza. Como havia de trans-
pol-as qualquer gemido de dôr, ou grito de soccorro ?

Jacob comprehendeu a situação. Alli dentro, se Deus não quizesse sal-

val-o, ninguém poderia fazelo. A


com taes resguardos tinha as-tyrannia
segurada a impunidade dos seus crimes Homens, mulheres e creanças, I

fortes e débeis, corajosos e cobardes, eram todos eguaes As torturas !

graduavam-se por forma que a dôr se distribuía sempre a vencer coragens


e resistências.
Dois passos mais e o christão-novo estava, na casa maldita, nesse
extenso e escuro subterrâneo que já descrevemos.
A officina estava em laboração. Sentia-se correr agua e crepitar o fogo.
Andava alguém a arrastar correntes de ferro e a experimentar os moline-
tes grosseiros. Frades de negros capuzes, que lhe tapavam o rosto, tira-

vam das escápulas os azorragues e agitavam-nos no ar, experimentando os.


Um folheava o livro de orações e depois depunha-o aberto sobre uma das
hastes do potro ; outro, sentado á mesa, procurava, n'um monte de pro-
cessos, um d'elle, e neste a parte da accusação que ia ser investigada.

Nas bancadas, sentados, dois ou três juizes, condecorados com este


titulo para ludibrio da justiça humana. . .

Um frade, dos também mascarado, arrancava da pa-


mais velhos, e

rede um crucifixo, como um


pode arrancar uma grosa do seu
serralheiro
ferramental. Um servo procurava obter mais luz varrendo com alto espa-
nador as immundas teias que se balouçavam nas frestas. No chão, ao
acaso, no fundo d'esta caverna, havia lanternas accesas.
MYSIERIOS DA INQUISIÇÃO 365

Prèso pelo pescoço a uma corrente suspensa da cantaria, conno um cão


de guarda, junto do portão duma arrifana, estava um mouro, sentado,
envolto na sua túnica branca e grosseira e tendo na cabeça turbante do
mesmo tecido. Kra um homem novo, de rosto cobreado, faces cavadas,
olhar intelligente, mas amortecido ; dcscahiam-lhe os lábios numa desola-
dora ironia.

Havia já algumas horas que estava n aquella posição, e, por isso, a

fadiga o levou a tomar uma attitude contrafeita, que fazia com que o des-
graçado não estivesse nem sentado, nem de joelhos, nem acocorado. Era
uma posição insustentax cl durante um minuto ! Kra um minuto de des-
canço !

O tamanho da corrente e a altura da argola apenas lhe deixavam que


encostasse a cabeça ás lages da muralha, tendo sempre o tronco perfi-
lado, o pescoço extendido. . . Sempre que deixasse descahir o corpo, a gar-
galheira lhe repuxaria a cabeça e lhe afogaria a respiração... Tinha ao
lado um jarro, talvez de barro, que a côr não deixava determinar-lhe a
matéria, e, no regaço, para o não ter sobre a terra húmida, um pedaço de
pão, tão negro como o jarro, mais duro que a colleira Passara alli a ! . . .

noite: Talvez; mas não dormira, evidentemente, ou dormira de olhos aber-


tos, revolvendo-se no chão, i^emoiíio e clioratido, como se diz da Virgem

na Sali'c Rdinlia, com egual ou superior propriedade.


A verdade é que o martyr já não via a disposição da scena, nem ouvia
as vozes de commando d'aquella faina selvagem.
Numa das suas reviravoltas aconselhadas pelo instincto, extendeu as
pernas, encostou os hombros, apoiando o tronco sobre as mãos, assentes
n'uma faixa do lagedo,,e com a nuca encostada ;i pedra do arco, n'um
suspiro longo, soltou esta palavra ;

— Piedade:
E apesar de não a ter repetido o mouro, o écho da arcaria, ouvindo-a
lá no fundo, repetiu sinistramente — Piedade !

Foi o bastante ; a um gesto do secretario, um esbirro, que olhava pelos


buracos abertos na máscara negra, desprendeu, dum dos grosseiros ca-
bides, uma mordaça.
Não falam, com a necessária minúcia, deste brutal apparelho, os livros
que consultámos. Falam d'elle os historiadores da épocha, como dum
objecto vulgar, conhecido em todos os tempos. Ftfectivamente, o que a jus-
tiça empregou durante séculos foi, até nossos dias, empregado por ladrões
e assassinos. Mas que mordaças são as modernas? A palavra generalisou-se
a ponto de caber a qualquer coisa que tape a bòcca e impeça o uso da fala.
Amordaça-se com um lenço... As mordaças, ainda não ha muitos annos,
MYSTKKIOS DA INQUiSIÇÃO. — YOl.. I. FOI. 4I>.
.

366 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

empregadas pelos assassinos das nossas Beiras, consistiam numa peça de


couro, com atilhos nas extremidades. Não differiam portanto das vendas . .

Numa velha edição (i83o) do Dictionaire de la Penalité, de Saint-


Edine, faz-se uma referencia á antiga mordaça dos supplicios.
Ofterece ella alguma novidade, porque a placa de couro que se applica
sobre a bckca escancarada tem no centro duas aberturas em cruz, e, á roda
delia, quatro orificics destinados a permittir a respiração. Essa chapa, de
forma oval, está presa a duas tiras muito resistentes, que vão juntar-se e
enlaçar-se junto da nuca do paciente.
A cruz era a companheira inseparável de todas as torturas! Alli ao
menos, desempenhava a missão providencial de evitar a asphyxia.

O mouro foi immediatamente amordaçado, e, como o seu martyrio se


tivesse aggravado com o novo e mortificador apparelho, quando nova-
mente suspirou, supplicando piedade aos seus algozes. . . em vez d'aquella
Palavra humilde e triste, apenas se ouviu, por entre um rugido abafado, um
cicio enfraquecido assobiado nos braços da cruz ! . .

A presença de Jacob despertou e reanimou o mouro. Consola sempre


ter companheiros na desgraça!
Jacob fitou o martyr inundando-lhe o rosto com o seu olhar de pro-
funda compaixão, e, como se estivesse a falar a um moribundo, que nem
já falasse nem ouvisse, disse-lhe n'esse olhar, que tivesse força e paciência.
O secretario approximou-se de Jacob:
-
—O mouro, em vez de nos offerecer uma confissão, pediu-nos piedade.
Que a tua prudência, Jacob, te amordace também. . .

No cérebro de Jacob explodiu uma apostrophe; a bòcca ficou muda!


Preparou-se então a brutal assembléa. Os juizes sentaram-se nas ban-

cadas que estavam á direita da mesa do escrivão. Este tomou o seu logar,
e, levantando um pouco a máscara negra, para poder fazer leitura do pro-
cesso, bateu com a mão sobre o manuscripto para chamar a attenção dos
ajudantes.
O frade, que marcara uma folha no livro das orações, dispoz-se também
para a leitura. Os carrascos, bem velados, coUocaram-se junto do potro,
emquanto dois esbirros musculosos se punham de sentinella junto do
mouro acorrentado. Um servo de vestes seculares, de joelhos, junto do
brazeiro, soprava com um folie, que a custo se movia... Jacob ficou de

pé, rodeado dalguns familiares.


— Soltem esse homem, disse um dos juizes.
Logo os esbirros metteram uma chave á gargalheira do mouro, e a

corrente cahiu ruidosamente sobre o poial de lagedo que sahia da muralha.


O mouro, ao ver se livre do cruel apparelho, deixou pender a cabeça
! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 36;

sobre os joelhos, e ageitou o corpo para descançar os membros contra-


feitos. Denunciou-lhc a physionomia as dores que lhe vinham dessa liber-
dade. Alli até o bem, quando apparecia por momentos, se convertia em
tortura!
— Ponham-lhe agora as algemas, continuou o presidente.
E os esbirros, imraediata e bruscamente, prenderam os pulsos do infiel.

— Levantem-no. . .

— Não pode mexer-se. .

— Então, arrastcm-no e deitem-no nesse catre...


Os esbirros, tingindo levantar o mouro, levaram-no de rastos, para
cima d'um movei composto de quatro varaes, formando rectângulo, como
uma maca ou padiola. No centro d essa figura balouçava-se uma lona
do comprimento d'um homem.
— Tirem-lhe a mordaça. .

Ao desprender-se a mordaça, o peito do mouro levantou-se numa longa


c consoladora aspiração I

— Dèem-lhe um gole de licor. .

Mal tocou com os lábios a taça que lhe apresentaram, o mouro abriu
mais os olhos mostrando rcanimar-se.
O physico tomou o pulso da victima, deitou a cabeça sobre o peito,
no sitio do coração, e demorou-se auscultando-o.
— Pode começar o interrogatório, disse o tcchnico, afastando-se in-
difterentemente. . .

— Como te chamas? perguntou o seci'ctario com voz áspera.


—O meu nome mourisco?
— Não, o de christão-nbvo.
— Samuel Fernandez.
— Samuel? Esse judeu. é

— E" como o de Jesus. . .

— Responde simplesmente. Que edade tens?


— Trinta e três annos, é a de Christo.
— Estás com vontade de que te sacrifiquem ?

--Oxalá!
— Olha que não ha falta de vontade. . .

— Nem de phariseus
— Qual o teu Deus
c ?

— E' o nosso . . .

— Como se chama ?

— Deus do Céol
— Dize commigo: .lesus Chn^to.
. .

3Ó8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Jesus Christo. . • disse o mouro syllabando vagarosamente.


— Fizeste alguma restricção mental, ao pronunciar este nome?
— Fiz.
— Qual foi?

— Foi mental.
— Que o digas. VJ preciso que digas o que pensas.
— Se eu não penso o que digol . . .

— Ordeno que digas, em voz alta, o nome que calaste.


— A miOrdaça não deixa talar; para fazer falar não basta mandar.
— Vaes ver. .

E o escrivão olhou para o presidente.


— Que o açoitem no rosto, para que a lingua se mova.
Ainda o moiro não tinha comprehendido estas palavras, e já o látego,

movido pela mão d um dos carrascos, lhe estalava numa face, dcixando-

ihe um sulco vermelho.


O corpo do marrano contorceu-se como o d uma serpente a andar. .

.Tacob fechou os olhos, e encostou-se á parede.

O mouro parecia de sangue, tanto o rubor que o afogueava! .lacob


parecia de cera, tal a pallidez do rosto!
— Vamos, Samuel, disse o frade das orações, confessa o peccado do
teu pensamento. Confessaste meia verdade, completa-a.
— Tendes razão: Mahomet. . .

O secretario escreveu.
— Onde nasceste?
— Em Tanger.
— E's hespanhol!
— Fui.
— Porque dizes, fui?
— Porque não nossa pátria é a que nos persegue c Hagella.

— Teu pae?
— Morreu.
— Tua mãe?
— Seguiu-o.
— Onde morreram ?

— Na Inquisição.
— Queimados ?

— Não apodrecidos
•, ...
— De que foram accusados ?

— De innocentes. . .

— Tens irmãos!
.

MYSTEtílOS DA INQUISIÇÃO 36o

— Tenho, ou melhor, talvez ainda tenha.


— Onde vivem?
— Perguntae antes — onde morrem ?

— Pois seja; que procuras exgottar-nos


já a paciência.
— Não sei.

— São, como tu, mouros reíeces?


— São, como eu, forçados christãos-novos.
— Como se chamam ?

— Quereis chamal-osr Não sei.

— O Santo Officio não ignora que elles viviam em. tua companhia, e
oravam em mesquita secreta. Sabes onde elles estão?
-
— Não sei.

— Mas, ao seres preso, lizeste signal a alguém para os pre\enir...


— De que deviam fugir; mas não para onde foram... sei

— A'è se recordas. te

— Tenho a cabeça esvahida; se soubesse, ter-me-hia esquecido; igno-


rando, é impossível adivinhar...
— K' preciso que nos ajudes a salvar-lhes as almas.
— Perdendo-os, como vós me perdestes?
— Em tua casa havia uma mulher. . .

,
— Kra minha.
— Quem ta deu, para lhe chamares assim?

— Deu-se ella.

— Sabemos; era uma chrisiã que assim atraiçoava a moral, com a


mancebia, e a religião mourejando comtigo. Has de entregal-a ao Santo
Officio.
— chamas a
p] isso religião e moral ?

— Não pedimos te conselho; exigimos-te uma declaração.


— Matem-me. Isso podeis fazer. — Preciso de que ella viva para rezar
por m.im.
— Insistes? Repara bem! é caro o preço da obstinação. Vamos, que
temos mais que fazer. Dize, onde estão teus irmãos e tua mulher?
— Estão a salvo!
— Mais razão ainda para confessares. . .

— Confesso-me a Deus, e, emquanto vós me martxrisaes, elle já me


absolveu. .

— Ides ser torturado. . .

— Ainda mais? Tenho uma esperança — a insensibilidade. . .

— Se não respondes, vaes conhecer o supplicio da agua. . .

— Já solVri o foso da vergonha, e não morri!


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Meu filho, disse o frade das consolações, salvae aquelles que vos
amam. Nós os faremos arrepender e elles ganharão o Céo.
—E vós, que me daes taes conselhos, como esperaes salvar-vos do
inferno ?

Um dos juizes fez um rápido signal aos negros carrascos, e logo elles
se precipitaram sobre Samuel. Emquanto um lhe passava uma correia so-
bre o peito para o segurar ao catre, o outro lhe prendia os pés, com
muitas voltas de corda delgada.
Depois, um desses terríveis ajudantes collocou-se ao lado da cabeça,
tendo na mão um grande vaso cheio d'agua e com um longo rebordo
cahido.
— Então, Samuel, perguntou o frade das orações, para que nos obri-

gas a estas dores? Responde, meu filho, antes do sacrifício a que nos
obriga o nosso zelo pela fé catholica: onde estão teus irmãos e a tua con-

cubina :

— Na esperança de que eu os não atraiçoe.


— Se elles te vissem soffrer, Samuel, ou te desligariam do teu jura-
mento, ou não seriam dignos da tua lealdade.
— Matae-me, e eu vos agradeço ...
— Samuel, insistiu o frade, nada aproveitam elles com o teu martyno.
O tribunal os descobrirá e tu terás soffrido inutilmente. Se resistires á

agua, experimentarás o fogo, e depois, mais dores e afHicções. E quem


sabe, Samuel, se teus irmãos te esquecem e tua mulher te atraiçoa ?

— Calem-se, miseráveis, exclamou Samuel. Antes as torturas que vêem


das vossas mãos, que o veneno que vem da vossa lingua.
— Faça-se a tua vontade.
E o frade afastou-se, lendo monotonamente no livro das orações.
O supplicio da agua tinha, como todos os outros, as suas variantes.
A primeira, que era a mais simples, consistia em applicar ao paciente um
apparelho que o constrangia a manter a bôcca aberta.
Emquanto um dos algozes lhe apertava o nariz para o obrigar a engulir
com a necessidade da respiração, outro lhe deixava cahir successivamente,

e por algum tempo, um jorro d'agua. Esta operação, além de muito at-

flictiva. era perigosa.


E esse perigo não era só para os organismos doentes também nos
;

corpos sãos elles existiam, e a presença do ph}-sico nem sempre poderia


evital-os.

Era fatal consequência desta tortura a dilatação forçada do estômago,


levada até promover soffocação e ancicdade precordial. Devia-se, por con-
sequência, contar com a difficuldade na circulação do sangue, quer no co-
,f!nií'r„jh^^;

O supplicio da agua tinha, como todos os outros, as suas variantes


.

MYSTERIOS IJA INQUISIÇÃO

ração, quer nos pulmões, e até por vezes com a syncope e a congestão
cerebral.
Kstamos, pois, eín face dum occulto cadafalso, em que a pena de
morte se divertia com os condemnados, e em que a tyrannia, convertida
cm justiça, barbara e estupidamente, se arriscava, no empenho de fazer
falar as suas victimas, a emmudecel-as para sempre !

Samuel a três perguntas successivas, que lhe foram dirigidas, ficou


mudo, revelando assim, o firme propósito de não responder.
Quando um dos mascarados ia applicar-lhe á bòcca o apparellio que
deveria forçala a manter-se aberia, um dos juizes ordenou suspensão dos
preparativos, e, chamando o secretario, falou-lhe em segredo.
O olhar do mouro acompanhou todos estes movimentos, com mani-
lesta anciedadc.

O secretario, por sua vez, deu também alguma ordem, que dois iami-
liures sahiram a cumprir com toda a presteza.
Reinou então naquellc recinto o mais extraordinário silencio.

Jacob tinha o presentimento de maiores desgraças. O que elle solVrera


durante aquelles momentos em que se fez o interrogatório e as brutaes

sevícias de que tinha sido victima um homem incontestavelmente superior


a toda aquella gente que o opprimia I E tremia, ao lembrar-se de que lhe
faltasse a coragem para dominar os seus naturaes impulsos de revolta con-
tra tantas iniquidades !

No rol extenso das torturas do Santo Ofticio não estava marcada


aquella que lhe infligiam. A elle, que preferia morrer a vèr uma violência!'

A elle, que nunca medira as consequências dos seus desaggravos I

E' que a vida lhe parecia agora mais preciosa que nunca, e porque,
na verdade, verifica\a a sua grande fraqueza, que o expunha aos insultos
de qualquer daquelles cobardes. Quem sabe se elle, ainda um dia, po-

deria tirar uma desforra de tantos insultos e humilhações ? I

Se elle se visse livre d'aquelle captiveiro?. .. Ouvira falar na chegada


de Philippe I e nas suas tendências hostis contra a Inquisição. .

Quem sabe, pensava, talvez que toda aquella tolerância havida para
com elle significasse já a inlluencia do novo soberano ? K Icmbrava-se
também de que, sendo portuguez, seria possível que a diplomacia dos
agentes de D. Manuel lhe poupasse a vida. . . Não era a primeira vez que
tal succedia . . . H recordava-se de que um dia o rei de Portugal entregara
á Hespanha alguns foragidos hcspanhoes, e puzera a condição de que ellcs
não seriam nem mortos nem martyrisados !. . .

Amigos tinha-os... (li! Vicente fora victima duma traição... Que


admirava isso! Por que fugira elle para Hespanha ? E Pedro Soares? Esse
. : .

372 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

também tinha valimento na côrte. . . Também o teria esquecido : Se esses


dois homens se alliassem no empenho de o arrancarem áquelle supplicio,
haviam fatalmente de triumphar... Assim não devia perder a esperança
de voltar a ver a sua Sarah, que era a sua única estrella n'aquel!e céo te-

nebroso ! . . .

E os argumentos do frade, tão íihos e tão penetrantes, que lhe mos-


traram a coragem, a f(5rça, n'uma feição nova para elle, mas que era, na

verdade, soberba e majestosa?! SolTrer aquelles espectáculos era mil ve-


zes mais corajoso que revoltarse contra elles. .

Estava Jacob immerso n'estes pensamentos, quando ouviu o ruido de


portões que se fechavam e viu que o mouro Samaiel era vendado pelos
seus guardas, levantado do catre e coUocado a distancia, no chão, no re-
canto mais afastado e sombrio. . . Puzeram-lhe a mordaça novamente.
Viu então Jacob, entre dois esbirros, uma mulher de figura esculptu-

ral, com as vestes de moura e o rosto de andaluza. O busto decotado e a


cabeça apenas ornada de fartas madeixas negras, ondeadas e luzidias, que
se espalhavam sobre os hombros e coUo, brancos como jaspe... Havia
majestade real no passo desta madona, de olhos profundos e negros, e

de bòcca talhada para beijos e apostrophes.


O saiote curto, e o manto descabido, como se o houvera vestido mão
affeiçoada ao golpe de mantilha. Os braços mis, ornados de braceletes, de
que não fora possível despojal-os 1

Era nova, de uma mocidade exuberante e duma belleza casta, que


prendia o olhar, mas não auctorisava o galanteio. Baixava os olhos, mas
trazia a cabeça erguida. .

Ao verem-na, os frades fizeram um movimento de curiosidade, ou de


admiração. Bradaram-lhes os appetites de feras nos corpos insensíveis as
dores humanas.
Mal esta mulher se collocou cm frente do secretario, esle perguntou, de-

pois de a ter fitado com olhos cubiçosos


— Como te chamas ?

— Suzana Fernandez.
Ouvindo este nome, Samuel soltou um gemido, que parecia o urro
dum leão, ao cahir da tarde.
Suzana voltou a cabeça, mas viu apenas os vultos dos carrascos que
se tinham collocado atraz delia.
— De quem és filha?
— Não sei.

— Não sabes quem foi teu pae ?

— Um homem, que passou um dia pelo bairro da Triana. . .


! . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 373

— Só isso ?
'

— Não; e que não passou mais. . .

— Que nome tinha eile ?

— Tinha dois: F^rade e Seductor.


— E tua mãe Quem era ? ?

— Era minha mãe.


— Morreu ?

— Cahiu no Guadalquivir. .

— Matou-se, impia a ?

— Não, cahiu de fome!


— Com quem quando vivias, foste presa?
— Com um mouro, que passou pela minha porta, e voltou muitas \e-
zcs, c ficou para sempre!
— Para sempre ?

— Sim, para sempre — ou junto de mim, ou eu junto delle... elle

— E se um morrer?
— Morrerá o outro.
— E's christã ?

— Não ou melhor — talvez — o christianismo nada tem comvosco


sei, se

nem com a Inquisição.


— Mas tu fugiste ao veres Samuel nas mãos dos esbirros. .

— Mentes. Fui cumprir uma ordem delle.


— K essa ordem era. . .

— Avisar os irmãos de que deviam fugir. Bem sabes que . . voltei de-

pois, e me entreguei antes que me procurassem.


—E que vinhas fazer á porta do Santo Officio ?

— Buscar a sorte delle. .

— Vaes dizer-nos onde estão os fugitivos; deves saber.


— Sei...
— Dize, então. .

— Nunca!
— Para que recusas? Samuel já o disse.
— Mentes, ainda. Samuel nada sabe. . . Para o dizer tinha de mentir,
e elle nunca mentiu. Se soubesse tinha de atraiçoar um segredo, e elle
nunca foi traidor
— Torturámol-o, e vencido. elle foi

— Já disse que mentes; mas isso


te nada importa. Eu saberei. .

— Como ?

— I'erguntando-lh'o.
— E onde esperas falar com elle :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. 47


. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Lá em cima! E Suzana ergueu os olhos para a grande curva da


abobada.
— Lá em cima só poderão encontrar-se se ambos salvarem as suas almas,
entregando ao tribunal da Egreja os que fogem d'elle por motivos de fé.

— Faça-se a tua vontade. Por Deus o juro: se eu pudesse, matava-te . .

Como não posso, morro.


— Poderias morrer christãmente, purificando o espirito no arrependi-
mento e na delação, e o corpo insensível nas chammas que o consumis-
sem. Assim sentirás as chammas n'este mundo e no outro ! . .

— O espirito já é uma chamma que nos devora o corpo; arde, não se


queima.
— Mas o teu corpo' é belio e a chamma do teu espirito illumina-o, não
o destróe. Não te importa vel-o torturado, desfeito, chagado, negro, feito

em cinzas ?. . .

Suzana estremeceu . . .

Depois, recobrando serenidade:


—O meu corpo não é meu; é de Samuel. E só meu aquelle que em
Samuel tendes torturado.
— Queimando os dois corpos serão sacrificados ambos com as dores

que se reflectirem.
— E o vento, depois, confundirá as nossas cinzas I. . .

— Nada confessas ?

— Confesso que não.


— Pois bem, tu o disseste. Vamos torturar o corpo hercúleo de Sa-
muel nas tuas carnes delicadas.
No recanto escuro alguém soltou um gemido abafado.
Suzana fez-se mais pallida, e, porque lhe fraquejassem as pernas,
cahiu sobre o catre.
O presidente gritou :

— Aproveitem o tempo e o acaso. .

Suzana, em um momento, viu-se exactamente na situação em que


tinha estado Samuel.
Ligada ao catre, desde o pescoço até os pés, não podia fazer o mais
leve movimento.
A placidez que apparentava dava-lhe o aspecto de um cadáver. As al-

gemas prendiam-lhe as mãos sobre o peito, o seio levantado, mas insen-


sivelmente arquejante, a cabeça levemente descabida, os pés unidos e

ligados e o tronco despido dos hábitos superiores, davam a itiiagem fiel

de uma pobre mulher que houvesse succumbido e esperasse a hora da


sua inhumacão.
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 375

Antes assim fosse! Mas era o contrário; era o começo de uma vida.
de dores, cheia de contracções e agonias, que poderia rematar pela morte,
mas também pela vida mais afflictiva e incompleta.
Vieram, então, dois frades collocar-se — um junto de Suzana, outro
junto de Samuel, provocando confissões com rezas a Deus e súpplicas aos
pacientes!
K tudo isto para arrancar a duas creaturas de religiosa lealdade a
denuncia do logar em que duas victimas futuras tinham procurado refu-
giar-se!
Samuel sabia que Suzana, a sua amante, bella como uma rainha e fiel

como umi mulher de bem, por causa d'elle, e para morrer junto d'elle,

alli estava softrendo os mais cruéis martyriosi


E Suzana, que adivinhara, nos gemidos que ouvira, amores e ódios
de Samuel, avaliava quanto elle softreria entre as pontas cruéis daquelle
cruel dilemma — ou denunciar seus irmãos, ou matar sua mulher!
Quem ha ahi que nos empreste a penna privilegiada capaz de descrever
torturas d'esta natureza? O corpo e o espirito flagellados ao mesmo tempo!...
Essa lucta immensa que affirma a existência dos grandes heroes, porque
rasga ao mesmo tempo o musculo e o sentimento, que teem o nome de
coração, quem pode descrevel-a ?

Como se ha de pintar, com vivo colorido, o que c negro como a morte,


e como o mysterio?
Dentro da alma vigorosa de Samuel bradavam duas vozes em altos

gritos: uma era a do amor que tinha a Suzana, a outra era a do amor que
tinha a seus irmãos.
\] ambas, bradando ao mesmo tempo, n'aquella perturbada consciên-
cia, formavam o grito do dever, que é superior ás fraquezas do coração!
E os frades, argutos, subtis, hypocritas, cheios de dialéctica natural,
que vae ao encontro de todas as incertezas, que baralha e confunde todas
as dores, que vira e revira toda a justiça; os frades, falando da vida do
corpo e da vida do espirito, dos deuses e dos homens, do que se vê e do
que se conjectura, falando e rezando sempre, debruçados sobre as victi-

mas, ora lhes davam esperanças, ora lhes produziam o desespero; sempre,
sempre, com a persistência de um mosquito que sibilla e ameaça morder
— a dizerem aos'ouvidos de um e de outro:
— Confessa confessa confessa
! 1 ! . .

Era horrível
K umdos algozes, entornando o jarro sobre a bòcca de Suzana, que
não podia respirar, que engulia, estando cheia, que soluçava engasgando-se,
que não podia erguer-se, nem gritar, nem chorar, nem morrer! E Samuel
! . :

376 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

a ouvir gemer Suzana, e esta ouvindo rugir Samuel, e a agua a cahir, e


os frades a rezar, interrompendo-se apenas para dizerem:
— Confessa! confessa! confessai...
Isto fatiga, isto móe, isto adormece o pensamento, o sentimento, a

razão, o coração; entorpece o corpo e a vontade! . . . Geme-se, pragueja-se


e enlouquece-se! . . .

Os olhos já não vêem, os ouvidos já não ouvem, e apenas se sente o


estômago que augmenta, a garganta que estala, a cabeça que se conges-
tiona! E ha vontade de erguer os pés, e os pés não se movem! e os braços
contorcem-se, mas não se erguem! quer-se voltar o tronco, e elle está

coUado ao catre! Falar torna mais afflictiva a deglutição; ferem-se os pul-


sos nas algemas, doem horrivelmente os queixos desviados!
E quando o algoz pára um momento o jorro d'agua, e, emtim, a victima
logra um instante de relativo descanço, apesar das anciãs que a instigam
a que se volte, e a que vomite na posição própria para a salvação de um

naufrago, o zumbido impertinente continua:


— Confessa ! confessa I confessa ! . .

E de cada suspensão resulta uma observação do physico, que três ve-


zes foi chamado e três vezes respondeu friamente:
— Pode continuar o interrogatório. . .

Chamavam áquillo, as feras, interrogar a humanidade I

E durante todo este tempo de bárbaro sacrifício, nem o mouro, nem


a christã confessaram coisa nenhuma !

Jacob, cuja vigorosa e gentil cabeça se mantivera algum tempo erguida,


desfallecera nos braços dos familiares que o amparavam.
Vencem mais facilmente os homens valorosos as dores alheias, que as
próprias
Ao recomeçar a tortura, o algoz notou laivos roxos nos lábios de
Suzana. . .

Levantou o vaso e fez um signal ao physico.


Approximou-se este e mandou que a levantassem, voltando-a sobre a
grande cuba que tinha estado recebendo a agua corrente.
— Não podem continuar as provas? perguntou um dos juizes.

— Não podem, respondeu o physico.


— E outra applicação da agua ?

— Hoje impossível, disse o ph\sico. Sc insistirmos, o


é segredo mor-
rera afogado.
Sempre phleugmaticamente, disse o secretario
— Que Samuel volte para o seu cárcere, e Suzana tique até que as
provas possam continuar.
; . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 377

E, como quem carrega gado abatido no matadouro para o talho, ás


costas, desleixadamente, os esbirros levaram o corpo de Samuel. .

Suzana ficou entregue aos cuidados do fradesco galeno, que ordenou


fricções aos pés e lhe tez tomar alguns cordiaes.
Ia a dissolver-se a terrível assembléa quando se acercou do juiz pre-

sidente um frade açodado, mostrando vir encarregado de missão impor-


tante e urgente.
— Que ha, disse o principal dos três juizes que se tinham sentado na
bancada especial.
— Ha testemunha A^aliosa que diz conhecer o paradeiro dos fugitivos.
— Prenderamna ;

— Immediatamente, e já se acha a sombra do Santo Otficio.


— Quem é ella :

— Um moço, que terá uns dezesete annos, e que fala com demasiada
vivacidade.
— Onde estava elie r

— N'uma rua do bairro de Triana, conversando com um dos sócios


da Gardunha.
— E' sevilhano ':

— Parece que sim, e parece que não. Em todo caso diz conhecer
Samuel e Suzana, e prestar-se entregar os irmãos fugitivos. . .

— E' indispensável intcrrogal-o. . .

— Isso c dilHcil.

— Por que ?

— Porque o rapaz parece idiota: diz coisas sem nexo, por entre
muitas certas e verdadeiras.
— Diabo, diabo disse o inquisidor, sempre contrariedades
! ! . . .

— Em todo caso conta pormenores bem ligados algumas consi- e faz

derações bem deduzidas 1

— Por que lhe chamas, então, idiota :

— Porque tem o riso alvar c lisonjeia em alta voz o Santo Oflicio,


como se fosse um servidor d elle.

— Algum velhaco empenhado em desviar pesquisas. .

— Não parece. E é isso que o faz parecer desarranjado — com as li-

sonjas mistura blasphemias. . .

— Só isso
— E com as lagrimas solta estridulas gargalhadas I

— Diz pois
elle. ?

— Que ouviu dois mouros christianisados numa tavolagem, nas mar-


gens do 'l'ejo, em Alcântara, a planear a fuga para Portugal.
.

378 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— N'este caso, a estas horas, devem estar a salvo . .

— Ora, é issoque presumir, que, embora


faz idiota, c bom catholico.
o doido Pepe. . .

— Elle chama-se Pepe ?

— Assim o diz. Metteu-se na conversa e convenceu os mouros de que


estariam mais seguros escondidos na Andaluzia, que passando a fronteira.
— N'esse caso o rapaz hespanhol, de é e lei.

— Assim nos pareceu.


— Bem, amanhã o interrogaremos, .\ffirma elle que o seu conselho foi

acceito ?

— Que sim que ;


até foi acompanhal-os ao seu esconderijo.
— Guardem-no bem, e que não communique, nem com os familiares.
Esse rapaz poderá prestar-nos um grande serviço.
.

XV

Um familiar

No dia seguinte, a pavorosa ofticina recomeçou o seu labor. Povoa-


ram-na as mesmas figuras, algozes e victimas.

Samuel vinha muito enfraquecido, mas Suzana reaiiimara-se um pouco.


O frade escrivão, que na véspera dirigira o interrogatório, recomeçou
ii sua tarefa.
— Suzana, disse elle, sotVreste muito e o leu estado é melindroso.
Aconselho a que te poupes. . . Queres, cmfim, confessar onde estão os
fugitivos ?

— Não, disse Suzana serenamente.


— N'esse caso, teremos de recomeçar as provas. Frei 1'abio, approxi-
mae-vos da accusada e cumpri o vosso dever.
O frade piedoso, que já conhecemos, approximou-se de Suzana:
— Abandona, minha filha, essa perigosa obstinação. Diz a sciencia
que periga a tua vida, e, se o tribunal recorrer a novas applicações da
agua, com o sangue da tua garganta poderá vir a vida do teu peito. .

O frade alludia ao processo de fazer adherir ao palatino e ás amygda-


las uma tira de finíssima cambraia, e depois da agua produzir o terrível
efj-eito pneumático, arrancal-a subitamente como para arrancar com ella

o delicado apparelho daquella região. . .

Suzana não mediu todo o alcance daquella ameaça, mas adivinhou, in-

tuitivamente, que se tratava dum supplicio superior ao que já solTrera.


Apesar disso, sem hesitar, ella respondeu :

— Não, nada confessarei.


— Vamos a disse o secretario, dirigindo-se aos carrascos.
isto,

O physico adeantou-se para a bancada dos juizes, e, em voz baixa:


— Senhores, trata-se d uma mulher, cuja respiração se faz por forma
. :

38o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

diversa da do homem... Opto por nova tortura, pelo menos emquanto


não forem reparados ós estragos de hontem.
Os juizes conferenciaram. . .

Atinai disse o presidente:


— Suzana, o tribunal poupa-te a uma nova tortura physica. Espera
elle que a tortura moral te submetia mais facilmente. Vamos abalar-te o
coração por um processo indirecto, respeitando assim a fraqueza da tua
vida I Já que não queres entregar os infiéis ás penas da Egreja, verás softrer
o teu desventurado companheiro.
— Perdão, senhores, perdão! Martyrisae-me antes a mim, que, se me
obstino, emquanto estou sã de entendimento, é possível que a dòr me
perturbe a razão e eu seja vencida. Não receiem matar-me — ievae, ao
menos, até ahi a vossa generosidade. Quero softrer tudo, tudo. . . Samuel
nada sabe, e o seu martyrio será inútil. A mim, e só a mim, deveis tor-

turar. O segredo que desejaes conhecer está aqui.


E Suzana levando as mãos presas ao coração
— Rasguem-me o peito n'este sitio e vel-o-heis, já que pelos lábios não
conseguis arrancar-m'o. . . Perdão! senhores, perdão!
E Suzana chorava afflicta, pedindo que poupassem o seu amante.
— Perfeitamente, disse o presidente. Acertámos no ponto mais vibrante
da tua alma. Abate-se o teu orgulho, e já pedes perdão, só porque fize-

mos uma ameaça contra Samuel ! Serás vencida á voz do teu amor quando
ouvires estalar os ossos do mouro teu apaixonado. . .

Suzana soluçava angustiosamente...


Crispavam-se os dedos de .lacob, e nos olhos vermelhos bailavam duas
lagrimas. .

— Tragam o accusado, disse um dos juizes, e não deixem falar Suzana


senão quando fòr perguntada.
A manobra foi praticada com rapidez e pericia. Samuel foi posto de
pé, amparado por dois esbirros, em frente dos seus juizes.
Um dos carrascos poz uma das mãos sobre a bòcca de Suzana. Cahiu-
Ihe aos pés a mordaça de Samuel.
— Suzana, em breve iremos interrogar um dos nossos espiões que
descobriu o paradeiro dos dois irmãos. Sabemos que elles foram para o
norte, até o Tejo, na intenção de descerem o rio e refugiarem-se em Por-
tugal. Não lograram, porém, o seu desígnio, e esconderam-se nas proxi-
midades de Alcântara, de onde te enviaram noticias. Se confessares a
verdade, pouparemos Samuel á tortura que o espera; se não confessares,
ambos serão victimas delias, sem que evitem a prisão dos que preten-
dem salvar. Deixem responder essa mulher.

i
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Os carrascos desembaraçaram a bòcca de Suzana.


— Não, mil vezes não, gritou ella, mal o pôde fazer. .

—E tu, Samuel, por que não aconselhas tua mulher a que não te

sacrifique estupidamente ? . . -

— Suzana conhece o seu dever, como eu conheço o meu, disse o mouro.


— Dispam o marrano preparem corda o suppjicio terminará quan-
e a ;

do Suzana quizer. Que ella seja juiz e carrasco do seu amante, e que
todas as dores que elle solírer e todo o sangue que clie derramar vão á
conta d'ella na liquidação final.

A gente do terrível otticio despojou o mouro dos seus hábitos, deixar.-


do-lhe apenas uma peça de vestuário que lhe cobria o corpo dos joelhos
até a cintura.
Foi desviada da muralha a grande roldana que rematava um supporte
de ferro, e na qual passava um grosso cabo de linho, preparado para gran-
des resistências de peso e de esticão.
Uma das extremidades deste cabo foi passada ú cintura do mouro, o,

na laçada das costas lhe prenderam as mãos. A outra extremidade foi

confiada a dois homens possantes, que ficaram encarregados de puxar por


ella, fazendo subir, no espaço, o corpo da victima, até a altura da roldana.
D'aquella altura, depois, successivamente, e no intervallo de cada per-
gunta sem resultado, esses homens folgavam bruscamente a corda, e o
corpo descia, com a velocidade iiiaxima, e parava de repente quasi ao to-
car no chão!
Estava tudo preparado para começar a tortura, quando Suzana fez
signal de que desejava falar.

— Senhores, disse ella, confesso que elles fugiram para Portugal, e que
as noticias que recebi os davam internados. . . Dae-me tempo e eu alcan-
çarei informações mais certas e seguras. Repito-vos que Samuel nada
sabe, e que eu nada mais sei do que aquillo que confesso.
— Conheço o ardil, acudiu o presidente. Queres ganhar tempo. . . Pois
bem, fica sabendo que, por cada interrupção inútil, isto é, que não seja

para indicar definitivamente o couto dos criminosos, serás castigada, com


duas ascençÕes e duas quedas das mais violentas e cruéis... Vamos,
icem, e desabem-no, abandonando a corda até um pé, e depois em cho-
ques successivos. . .

— Vá, disse um dos homens.


E, cuspindo nas mãos, lançaram-se á corda com toda a energia e de-
cisão.

A corda saltou na cavidade circular da roldana, e o estremeção apenas


derrubou a victima, que ficou de bruços sobre o lagedo. . .

MYSTKklOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. 1.


,
FOL. 48.
.

382 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Jacob, que estremecera, como se fosse abanado por um cyclone, deu


um encomráo nos familiares que o cercavam, e que foram arredados para
longe, e precipitou-se sobre o mouro, para lhe acudir.

Esquecera-se Jacob de que estava algemado, e este movimento instin-

ctivo foi tão difficil e desordenado que lhe causou a queda abandonada
sobre o corpo da victima.
Não alterou este episodio a attitude dos assistentes.
— Levantem esses homens, limitou-se a dizer o presidente.
Os esbirros cumpriram esta ordem.
Houve um momento em que o rosto do mouro quasi tocou o de Jacob.
Samuel aproveitou-o:

Nas margens do rio, junto da ponte, ao norte, está o meu thesouro...

vinga Suzana.
Jacob foi reposto no seu logar. A queda e o segredo chamaram á razão
o christão-novo.
Tendo serenado, Jacob repetiu, para bem as decorar, as palavras do
mouro. Era uma indicação completa, clara, precisai

E logo lhe acudiu este triste commentario:


— Que uso poderei fazer d'esta inesperada revelação? A quem trans-

mittir a chave deste mysterio?


Da sombria galeria da entrada veiu o ruido das grades que se abriam,
ou fechavam, e, no meio de dois frades, de rostos cobertos, appareceu
Pepe, o alegre pastor de Lorvão.
A magreza augmentara-lhe a estatura, e os olhos grandes, orlados de
espessas sobrancelhas e de olheiras profundas e roxas, pareciam também
maiores. Cahia-lhe o cabello em desalinho sobre os hombros, dando ás
linhas fidalgas do rosto a moldura mais original.
—O fato, miserável, cheio de poeira e rasgões, dava-lhe o aspecto de
um vagabundo, que tivesse andado, pelos brejos e matagaes, morto de
fome e de cançaço.
Conservava, porém, aquelle aspecto vivo que lhe vinha dos movimen-
tos ágeis e da mobilidade da ph3'sionomia.
Pepe tinha agora uma expressão nova, que tazia pensar. . . A vivaci-

dade do pastor era triste, e o olhar, sempre brilhante, ora tinha uma fixi-

dez meditativa, ora a inconstância mais desordenada. Nos gestos havia


um desconcerto que impressionava ; repetia-os causticamente n'uma in-

consciência notável. Principalmente os dedos da mão direita, nos momen-


tos de maior abstracção, se moviam como se estivessem a torcer linhas. .

Se não era um idiota confirmado pelo sj^mptoma mais vulgar, era um


doente em cujo cérebro se manifestavam as mais graves lesões.
J

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 38

Quem vigiasse de perto, e com insistência, estes desequilibrios havia

de, por vezes, surprehender-lhe, no olhar, lampejos da mais perfeita lu-

cidez.
Passava esse s\mptoma de saúde no olhar de Pepe, como passa no
céo o meteoro mais veloz. Como uma estrella cadente, que deixa um rasto

de luz, que só depois d'ellã se apaga, no céo escuro, assim, depois d'es-
ses lampejos, ficava um sorriso de intelligencia nos lábios do pastor, um
pouco depois de se apagar o olhar vivo, intencional. . .

Pepe ria, com o aspecto mais grave, e, comquanto parecesse chorar


as suas maguas, regaçava os lábios, n um rictus, que era fatalmente d um
louco ou d'um dissimulado.
Que era Pepe, o dono do Frade, o pastor que vigiava Sarah na en-
costa fronteira ao mosteiro de Lorvão, não havia a menor dúvida.
Kra elle.

Ainda não tinha entrado na sala das torturas e já vinha falando em


voz alta, mas como se ninguém o escutasse.
— Maldita escuridão, dizia elle, caminhando a custo e pondo as mãos
em concha deante dos olhos, para devassar caminho; parece-me que vou
pelas entranhas da terra, a procura do inferno... Aqui é que eu queria
ver as minhas ovelhas. . . Começavam a balir, como se estivessem ás por-

tas do Céo! E o meu Frade? Esse havia de ladrar como o rafeiro mais
Ímpio, que não conhece estes primores das casas sagradas. Só os cães
não são catholicos n'esta terra feliz das Hespanhas. Todos os outros ani-

maes teem essa fé, que tudo quanto é bicho anda de bem com o Céo e

com a religião christã. E' ver a grande ninhada da arca de Noé, o cor-
deiro paschal, o pombo do Espirito Santo e a mula de Nossa Senhora.
Ah! é verdade, esqueciam-me ainda duas espécies — os mouros e os ju-

deus — de cuja mistura resultou a mula da christandade ,


que é como
quem diz —o christão-novo.
— Cala-te, idiota, lhe diziam os companheiros, agitando-lhe os braços.
Vae vendo, mas não fales.

— Pois aqui é que é falar, que anda no ar cheiro a sangue, como se

eu estivesse no açougue da minha terra.

Depois, Pepe olhou attentamente toda a sala, comprimentando com


exaggeradas mesuras todos que alli estavam.
— Isto parece a casa que Deus, arrependido da sua obra, estivesse
desmanchando, peça por peça. Salve Deus a todos, senhores meus, que
não quizestes receber- me na sala e me recebeis na cozinha, onde a caça
fina vae ser cozinhada com bom calor e divinos temperos.
Ao dizer isto, bamboleando o corpo e rindo alvarmente, Pepe fixou
. : ! .

384 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Jacob, e, num relance, trocou com elle um olhar que valeu por um dis-

curso cheio de noticias e a trasbordar de informações.


No peito de Jacob alvoroçou-se-lhe o coração em repiques festivos. .

— Arruma-te para um lado que já vaes contar o que sabes, disse a


Pepe o secretario.
— Estou aqui bem, disse Pepe encaminhando se para junto de Jacob,
quando chegar a minha vez, direi coisas terríveis do Céo e da terra.
— F^uncciona roldana? perguntou um dos frades
a assistentes.
— Está tudo em ordem, respondeu um esbirro.
Entretanto, Pepe resmungava banalidades misturadas com palavras que
Jacob escutava avidamente.
— Tudo que se faça a esta canalha da judiaria é pouco. Quem não crê
em Jesus Christo não é só judeu, é também judas
E sempre na mesma toada
— Philippe I corresponde-se corn Gil Vicente e Pedro Soares. . . Sarah
tenciona dar um passeio a Sevilha. Quem tem esperança tem perdão e
tem amor. .

E, logo, mais impertinente que nunca:


— AUi está uma corda que eu desejava puxar com força. . . Raça mal-
dita !

— Esse rapaz que se cale, disse o presidente; e, se continuar, amor-


dacem-no até que haja de responder.
Os familiares que rodeavam Jacob, reprehenderam Pepe, que fez uma
vénia cheia de ironia.
Os esbirros esticaram a corda, e o corpo do mouro ficou suspenso.
— Suzana, emquanto é tempo ; onde estão os mouros fugitivos ?

— Não sei, gemeu a infeliz mulher, com voz abafada e lacrimosa.

O mouro subiu, soltando angustiosos gemidos.


No principio da ascensão, fazendo um violento esforço, a victima con-
seguiu fixar as mãos, ou os pulsos, nos quadris e evitar assim a rápida
deslocação; mas, quando chegou á máxima altura, os braços destacaram-se

da cintura e o corpo, tomando a posição vertical, ficou suspenso dos hom-


bros que começaram a deslocar-se.
A mordaça não evitava os gritos do paciente. Ouviam-se também os
soluços de Suzana.
O desta tortura consistia, no primeiro grau, em manter
effeito terrível

a victima em tão dolorosa posição, durante alguns momentos Se ella ! —


insistia em não confessar o que lhe era exigido, deixavam-na cahir de toda
a altura, mas sem chegar a tocar no chão, de maneira que a paragem
repentina do corpo actuasse tão violentamente sobre a articulação dos hom-
Os esbirros esticarum a cordii, e o corpo do mouro ficou suspenso
.

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO

bros, que os ligamentos fossem lacerados, chegando os braços, como se

os hombros fossem eixos, a fazer uma rotação completa em volta d'elles.

Também este suppiicio se aggravava suspcndendo-se o suppliciado só

por um dos hombros, e pondo-se, no tornozelo do mesmo lado, um peso


equivalente a ()5 kilogrammas.
D'isto resultava a luxação do liombro e de todas as articulações da
perna, e um derrame de sangue, que muitas vezes invadia grande exten-
são de tecidos.
Paul Lacroix cita uma outra variante usada nos interrogatórios
ainda
extraordinários, e a que em Orléans se dava o nome de esirapadc.
Consistia esse flagicio em prender a uma corda, que ligava os dois

tornozelos, ura peso correspondente a iio kilogrammas, e que victimava


muitos pacientes... Tal era a intensidade da dòr e o exgottamento ner-
voso, produzido pela luxação c laceração simultânea de todas as articula-
ções de braços e pernas !

Custa acreditar em tanta crueldade ; mas, infelizmente, em milhares


de paginas da historia de todo o mundo cii'ilisado, se encontram os mais
eloquentes attestados da sua existência! Estão os archivos cheios desses
processos, e n'elles se pode ainda ler, como se tivessem sido lavradas
hontem, as sentenças que determinavam martyrios tão selvagens. . .

E havia carrascos que executavam essas sentenças I e gente, que dizia

servir a Egreja e obedecer a Jesus, assistia com indifferença a tamanhas


agonias !

Havia, por excepção, uma ou outra victima que tudo soffria em silen-

cio, resignadamente, n'uma beatitude angelical, oflerecendo tantas dores


e injustiças á salvação da sua alma! muitas desmaiavam antes da tortura
e até morriam mal ella começava. . .

Eram essas as mais felizes!


Que a morte nem sempre vinha interromper o espectáculo dos inqui-
sidores. .

Quantas vezes elles expunham os cadáveres ás mesmas provas a que


sujeitavam os corpos vivos !

Lavradas as sentenças ha\iam de ser cumpridas — no paciente, no ca-


dáver d'elle. ou na estatua dellc ?

E os fortes de corpo c de animo : Os que se não submettiam, nem


desmaiavam, nem morriam :

Os que luctavam com o carrasco, e rugiam por entre a cruz aberta


na mordaça ? Os que faziam os esgares mais contristadores, e que, a cada
novo soiTrimento, por exemplo, no suppiicio da corda, ao subirem ou ao
descerem, escancaravam os olhos, que pareciam saltar-lhes das orbitas :
!

386 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Os que entravam em contracções nervosas, ennovelando o corpo e man-


tendo, durante a suspensão, os cabellos gottejantes de suor a servirem- lhes
de máscara ?

E choravam como creanças, que punham os olhos supplican-


os que
que andavam, com esse olhar de martyr an-
tes nos juizes e nos algozes e

gustiado, a fitar os homens, na esperança de os commover, e a fitar


a abobada, para, através d'ella, appellarem para o Céo, a que preside
Deus.
E os homens, materiaes como os instrumentos da tortura, quanto
mais viam tão diabólico espectáculo, mais vezes despenhavam o pacientei
E Deus, que está em toda a parte, esquecia-se de estar alli, e, como juiz,

ficava martyr incarnado no Christo, sobre a cruz negra pregada na parede'.


Temos visto morrer muita gente, muita! E n'essa hora feia e triste em
que o moribundo se agarra á vida, porque lhe esvoaça no leito, até final,

o anjo da esperança, quantas vezes temos perguntado que lei cruel e fatal
não suspende a execução da sentença iniqua que nos rouba uma vida ne-
cessária e amada?! E, quando a esperança é só visivel para o agonisante,
quantas vezes n'uma prece bem intima, pedimos o termo d'essa existência,

que se despede a custo e chorando saudades d'este valle de lagrimas r

E não vemos a mão que flagella o doente, nem o veneno que lhe cir-

cula no corpo!. . . E' o grande mysterio da inquisição natural cjue converte


a a!côva em sala de torturas!

E' a lei fatal que cria e transforma o universo, que não pode preoc-
cupar-se com os pequenos pormenores da sua fatalidade. Desconhecer essa
força dá resignação aos que morrem e aos que vêem morrer!
Mas ter o corpo são, a mente lúcida, e assistir á destruição d'essa saúde,

aos rasgões da carne, á fractura dos ossos, á perturbação do sangue — e

com os olhos que ainda vêem, e com o cérebro que ainda pensa, ver a mão
brutal que está fazendo tudo e julgar o estúpido motivo da crueldade, sem
poder defender-se, sem poder vingar-se
E ouvir, porque a miserável victima ainda ouve, que, para evitar a
morte do corpo, já aleijado, já mutilado, ja inútil, lhe pedem que renegue

a sua fé, que é também a sua única esperança, e que avilte o seu caracter,
que é também o seu único consolo, é mil vezes peor que morrer da mais
cruel das enfermidades, na edade dos grandes desejos, deixando as mais
pungentes recordações.
Imagine-se, portanto, o que softVeu, physica e moralmente, o inteliz
mouro, cujo futuro estava ha muito alumiado pela fogueira que havia de
ser accesa numa praça pública!
A' terceira queda, o desgraçado já parecia insensível, e Suzana, com
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 387

OS olhos n'elle, se por vezes fazia signal para falar, logo se arrependia, e,
fechando os, deixava seguir o siipplicio.

Pepe amparou-se por vezes no braço de Jacob, segredando-!he.


— Coragem I . . .

— Tel-a-hei, respondia o christão-novo.


O physico examinou o paciente, e mandou que lhe applicassem um
cordial, e o deixassem para descançar alguns momentos.
Samuel pousou no chão. onde ficou enrolado e cabido como um cão aos
pés do dono.
— Pepe, chamou o secretario, dize-nos, entretanto, o que sabes a res-

peito do que esta gente recusa confessar.


— Prompto, disse o pastor, avançando para a frente dos juizes.
— Como chamas? te

— Pepe — por mim — Pepe Gonçalves, por meu pae, Pepe Gonza-" e

lez,por minha mãe, que Deus haja — D'esta mistura de meu pae com mi-
nha mãe — resultou Pepe Gonçalves y Gonzalez! Que grande luxo! Lem-
brava assim o nome d'um secretario de cl-rei, nosso senhor. Pareccu-me
de mais, principalmente tendo ficado em guardador de gado. . . Resolvi-
me, então, a cortar o Gonçalves e o Gonzalez, e a chamar-me simples-
mente — Pepe, Ordinariamente, na rua, ninguém me chama senão aquellc;
mas, como em minha casa todos me chamam Pepe, é assim que desejo
chamar-me.
— Bem, interrompeu o secretario, já não são necessárias tantas ex-
plicações, (^hamas-te Pepe Gonzalez.
— Peço perdão, m^eu senhor, isso não vale — eu sou Gonçalves } Gon-
zalez, ou apenas Pepe. Tenho pae e tive mãe, e por isso quero a certi-

dão de baptismo em nome da familia.


— E's hespanhol r

— Isso também precisa de explicação. Eu sou portuguez e sou hespa-


nhol — minha mãe era da Andaluzia e meu pae das Beiras. Tenho no
corpo sangue hespanhol c sangue portuguez. E" por isso que digo Gon-
çalves y Gonzalez, e não Gonzalez y Gonzalez. .

— Onde nasceste ?

— E' por isso que eu não seibem de que terra sou, nem a qual dos

reinos da Península pertenço. N'um dia em que minha mãe foi passear
com meu pae á fronteira, nasci eu
— Sendo teu pae portuguez, c tendo tu sido baptisado em Portugal,
és portuguez.
— Pois serei : não digo que não ; que eu amo egualmente as terras
dos meus velhos.

k
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Para que vieste a Sevilha ?

Pepe não respondeu ;


parecia estar pensando, cona os olhos no tecto
e o dedo sobre os lábios.
— Tu não ouves ? Que vieste fazer a Sevilha :

— Já lá vamos. Estou a pensar agora n'uma asneira que disse. . . Fa-


ça-nie o favor de emendar ahi o meu nome. .

— Estás com vontade de gracejar Ora, vamos lá ? \ se te fazes mais


idiota do que és, mando dar-te meia dúzia de açoutes. .

— Qual gracejar ! Eu sou Pepe, no


Errei o nome, não ha que vêr !

caso de ser hespanhol meu nome deve ser


; mas, como sou portuguez, o
José... Agora me lembro que foi effectivamente José o nome que me
puzeram. Minha mãe, coitada, é que embirrou sempre em me chamar
. .

Pepe.
— Estás, então, resolvido dizer que a a vieste r

— A Sevilha?
— Primeiro quero saber para que Hespanha vieste a ?

— E' bem simples — vim apartar carneiros, para o serviço do mosteiro...


— Qual mosteiro ?

— Ora, qual ha de ser ? O de Lorvão, que tem grandes pastagens. . .

Lorvão e arredores é tudo do mosteiro. A senhora abbadessa tinha falta

de carneiros hespanhoes, e, sabendo que eu tinha dedo para os escolher,


mandou-me em companhia do fidalgo de Travanca, que é muito de lá,

para arranjar a melhor lã. . .

— E's, então, muito estimado em Lorvão?


— Se sou ! Estimadíssimo ! Eu e toda a minha família estamos sempre
lá raettidos ! Pudera não ! Alli ha sempre festas de egreja tão bonitas ! . .

— Gostas muito de festas de egreja ?

— Se gosto! A senhora abbadessa que o diga... Ella e a filha, a

D. Philippa, que é uma dama que tem prestado muitos serviços á Egreja...
E eu ajudo-a muitas vezes.
— Serviços em Portugal ? ! resmungou o secretario.
— Serviços, sim, senhor. Alli o que nos falta é a Inquisição, que geme
beata e de fé ha bastante. Mas ainda havemos de tel-a, que a terra está

toda cheia de mouros e de judeus, e ainda d uma raça peor — a dos chris-
tãos-novos.
— E que serviços tens prestado ?

— Diversos.. Olhe, ainda não ha muito tempo,


. eu, a D. Philippa, e
o morgado, que é homem que está bem relacionado com o inquisidor ge-
ral, dêmos caça a um foragido da Inquisição — um judeu que fugiu d'aqui,
c que andava escondido em Coimbra e arredores.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como se chamava esse homem ?

— Jacob Adibe. Creio que veiu enviado elle ]ú para Hespanha. ..

— Se o visses, conhecial-o :

— Talvez não, porque o prendemos de noite, e eu tive dir, a correr,

arranjar-lhe commodo no casteiio de (^oimbra. . .

—E a Sevilha, que vieste fazer ?

Pepe riu estupidamente ao ouvir esta pergunta.



Então isso pergunta se Vim prestar um serviço ao Santo Oliicio
? . . . !

Por acaso, encontrei-me com dois mouros, que, sabendo que eu era por-
tuguez, me pediram para os guiar. Prometti-lhes que sim, mas que pre- . .

cisava de vir a Sevilha por causa de um negocio, e que depois os levaria

na minha companhia, ensinando-lhes o melhor caminho, e os esconderia


em logar seguro, lá próximo de minha terra.

—E onde
ellesesperam te ?

— No logar que lhes indiquei.


— E, sabendo que vinhas Sevilha, a não te pediram segredo d'esse
encontro ?

— Já se sabe que pediram, e que estiveram algum tempo desconfiados,

mas eu jurei-lhes pela minha honra, pela minha l'é, pelas cinco chagas de
Christo, que não os atraiçoava, e elles confiaram. . .

— Então atreves-te jurar sobre coisas tão sagradas


a falso, e ? !

— Pudera não Lá, em Lorvão, os santos frades, que vão ao mosteiro,


!

cnsinaram-me que, para servir a Fé, a Religião, a Egreja, o Santo Ofti-


cio, se pode jurar falso !

E Pepe, mostrando aspecto de piedade imbecil, pondo as mãos e fa-

lando baixinho, accrescentou :

— Até digo mais: se meu pae, ou meus irmãos, proferirem qualquer


heresia contra Deus, Nosso Senhor, ou contra a Immaculada, ou contra
algum santo da corte do Céo, logo que haja Inquisição em Portugal, de-
nuncio-os. Assim Deus me ajude e dê saúde aos iTieus rebanhos.
E'n'um momento rápido tirou do peito um rosário, que beijou três

vezes, ficando a olhar para elle n'uma abstracção de mystico. ou de


idiota. .

— Tens razão, rapaz, disse o juiz presidente, tens razão... Cumpriste


o teu dever. Vaes agora indicar o logar onde elles te esperam.
— Não, isso não... Dae-me os esbirros que forem necessários, e eu
irei com elles a essa santa empresa. Só depois d'elles me verem voltar

poderão ser surprehendidos. .

— Ficas esta noite no palácio e amanhã partirás bem acompanhado.


Pepe foi retirado da sala.
MYSTIiRIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. 40.
.

igo MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

O mouro continuava desfallecido no chão, com os braços ainda presos

á corda, abandonado. .

No olhar de Suzana havia uma scintillação de triumpho.


Evidentemente a historia de Pepe era falsa, e a pesquisa que se ia

fazer daria tempo aos fugitivos para realisarem o plano que Suzana lhes
fornecera.
Todas as b3'potheses admittiam os inquisidores, e a que alegrara Su-
zana não deixou de ser acceita por elles.

— Suzana, disse um dos juizes, ouviste este moço.


— Sim, respondeu ella.

— Será verdade o que diz elle ?

— Talvez.
'
— Mas se os nossos esbirros tomaram todas as sahidas de Se\ilha,
como lograram elles ir tão longe ?


Tinham bons cavallos que eu própria lhes forneci. . .

—^Fica, porém, sabendo, Suzana, que temos outras informações, e.

entre ellas a de que teus cunhados se esconderam em Sevilha . . .

— Não creio; salvo se voltaram para traz. ..

— Vaes dizer toda a verdade.


— Nada mais porque nada
direi, sei.

— N'esse caso, Samuel, em virtude da sentença ja lavrada, soffrerá


também a tortura da deslocação, até que tu confesses a verdade e elle
abjure da falsa fé em que se abysmou.
A desgraçada gemeu como se lhe tivessem applicado uma nova tortura.
— Reparae, senhor, que Samuel está quasi morto, e que nem sentirá
o novo supplicio.
— Isso pouco importa. Abamos a isto. Icem Samuel pelas mãos e pelos

pés. Ou elle se desconjunta completamente, ou nós apuramos toda a verdade.


Foi arriada a corda da roldana, e da abobada desceram quatro cabos,
que, ligados aos pés e ás mãos do paciente, que foi virado e revirado no
chão, como um corpo morto, içaram aquelle conjunto inanimado á altura
correspondente á de dois homens.
O supplicio da deslocação era uma das variantes do potro. Não tinha,

como este, o fim de produzir graves lesões nas partes molles e nas cos-
tellas da base do thorax, ou nas pleuras e na base dos pulmões, mas não
era menos afflictivo.

O paciente, suspenso pelo corpo e pelo tarso, isto é, pelos pulsos e


tornozelos, fortemente ligados por meio de cordas, soffria, em primeiro
logar, a suspensão da circulação venosa, ou de retorno, nas mãos e nos
pés, inchando-se-lhe umas e outros.
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

A congestão d"estes órgãos era acompanhada, primeiramente, de tor-

por e formigueiro, depois de dores violentas, nas mãos, nos pés e nos
pontos onde as cordas actuavam por constricção.
Quando estes meios não subjugavam o paciente, era augmentado o
peso do corpo, e, portanto, aggravados os soffrimcntos, por meio de pe-
sos suspensos duma corda, previamente passada em volta da cintura.

A' excepção da fractura das costellas, promoviam-se, então, todos os


phenomenos physiologicos causados pela compressão do potro, aggrava-
dos ainda pela distensão dolorosa das articulações, que podia ir até a lu-

xação, conforme o tempo que ao torturado faziam supportar este suppli-


cio e a grandeza do peso suspenso da corda.
Era esta uma das torturas que reclamavam maior attenção do pliysico,
por causa da sullocação, ou do exgottamento nervoso, sempre ameaçado-
res.

Samuel tinha os olhos abertos, mas não via licava mudo quando o
;

interrogavam, e o seu corpo subiu, sem a rigidez do cadáver, mas também


sem a resistência e as contracções de um corpo vivo. O corpo de Samuel
parecia um grande espantalho de trapo, dobrando-se em todos os senti-
dos. Içado pelos pés e pelas mãos, levava a cabeça pendurada e balou-
çante. Já não causava dó, causava horror! Aquella tortura já perdera o
cunho da crueldade ;
parecia apenas uma profanação. Não era compai-
xão o que este espectáculo provocava, era o nojo I

Suzana viu esta ascenção, que parecia obra de cannibaes alegres, e

ainda conseguiu, enorme prodígio physiologico! que as glândulas lacrimaes


segregassem o pranto que corria pelas faces maceradas e pallidas. . .

Klla, que havia já tanto tempo não fazia senão chorar de dòr e de raiva,
e até sem influencia d'essas causas, mas da acção nervosa, tão frequente
nas mulheres hystericas, como hoje se diria, chorava ainda !

Que grande transformação se operara n\'iquelles dois dias, principal-


mente emquanto durara aquella seci"eta tragedia passada nas sombras do
subterrâneo
Cavaram-se-lhe as faces, e as orbitas converteram-se em dois abysmos.
onde os olhos apenas tremeluziam frou.xos e húmidos. Nos cabellos, onde
a luz, até alli, batendo nas ondas negras e luzidias, punha reflexos brancos.
havia agora, mesmo na sombra, laivos prateados.
As grandes dores moraes tornam precoce a \elhice I. . .

A tortura phvsica ferira e deslocara o corpo de Samuel, e taes damnos


se reflectiram no espirito de Suzana ! Também ella se sentia desfallecer,

também ella tinha a mente perturbada, e já não comprehendia a sua des-


graça, e já começava a sentir-se indillerente, não cuidando nem em con-
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

fessar, nem em negar, o que lhe perguntavam ! Com a dos olhos, já lhe
bruxeleava a luz da razão, e, como a vida é formada por um circulo de

sorrisos e de lagrimas, á força de chorar, começavam já os sorrisos da


demência a esvoaçar-lhe nos lábios descorados. . .

Não havia a menor dúvida. . Samuel e Suzana eram duas vidas per-
didas ! O que houvesse de seguir na escala dos tormentos nem já tinha o
pretexto da investigação — era apenas uma vingança exercida contra a re-
sistência invencível.

A Inquisição não queria extinguir, ao mesmo tempo, os dois amantes;


era necessário que um ficasse para as provas mais terríveis. Matando Sa-
muel, a Egreja catholica desforçava-se das heresias do christão-novo; mas
a Inquisição precisava doutra compensação. . . Suzana tinha fama de abas-
tada. No bairro de Triana corria a lenda de que ella guardara, em uchas
de cedro, as mais notáveis preciosidades.
As buscas em casa da christã não deram resultados... Havia todas
as razões para suppôr que os fugitivos tivessem levado comsigo o encan-
tado thesouro, em que tanto se falava no populoso bairro.
Dahi o desejo de haver ás mãos do Santo Officio os irmãos de Samuel.
A avareza inquisitorial não perdoava a execução da sentença, princi-
palmente na parte relativa ao sequestro de bens.
Era muito garrotar, ou queimar, os marranos, mas espolial-os era
muito mais útil á pureza da fé catholica I

O physico, ao ver a ascenção de Samuel, advertiu o tribunal.


— Suzana tem razão — Samuel já não pode submetter-se senão com
o fogo do inferno. Deve estar morto.
— Talvez não, disse o juiz presidente — reforcem-lhe a carga, que é

agora o melhor processo de lhe tomar o pulso.


Os esbirros reuniram, n'um só laçada, alguns grandes pesos de bronze. .

Desceu um pouco a corda, que pendia da cintura da victima, ficaram mais


repuxados os braços e as pernas e mais roxos os pés e as mãos; mas a

cabeça ficou immovel, pendente I

— Não percamos tempo, disse o secretario; desçam esse corpo. .

Os esbirros largaram bruscamente as quatro cordas e o corpo de Sa-


muel cahiu do alto sobre o lagedo, fracturando o craneo.

Parecia o suicídio dum cadáver!


Um dos frades vergou o joelho junto do mouro e, pondo-lhe os braços,
deslocados e ainda quentes, sobre o peito, atou-lhe ás mãos negras e in-

chadas um pequeno crucifixo.

Suzana inclinou a cabeça para o lado de Samuel, e começou a rezar...

e a rir, a rir convulsamentc ...


XVI

o reverso da medalha

Se a humanidade se retiectisse no espelho da Inquisição, não teria esse

nome — chamar-se-hia barbaria, e o mundo — covil.

Felizmente, no meio de tanto ódio rancoroso e de tão brutaes egoísmos,


esplendiam, fora do fanatismo religioso, a religião e o amor.
Deus, em relações directas com o homem, dava-lhe as mais formosas
virtudes. Se o christianismo não tivesse o cathoiicismo, se Christo não ti-

vesse o Papa, se a Egreja não tivesse tribunal, a generosidade e a tolerân-


cia restituiriam á terra o Paraiso, e o Céo não seria apenas um sonho de
crentes e supersticiosos.
Nem o ódio seria tão repugnante, se o amor lhe não mostrasse a ruin-
dade do aspecto.
O martyrio até consistia mais na separação dos que se amavam do que
no sacriticio da vida.
A mão do algoz era menos condemnada por cortar o ho de muitas
vidas, que por quebrar os laços de tantos affectos!
Abundavam as perseguições e as dedicações; a fé fazia' muitos verdu-
gos, mas também muitos heroes.
O bem e o mal existiam então, como muitos séculos antes, como mui-
tos séculos depois. A differença consistia em que — a maldade era lei —ea
bondade — crime. Praticavam-se villanias á luz do sol, e consolavam-se
a occultas as dores alheias! Os maus formavam um exercito, e os bons
organisavam quadrilhas. Prégava-se o ódio, com a cabeça erguida, e fala-
va se do amor em segredo! A iniquidade tomava o logar da justiça, e a
justiça, expulsa dos tribunaes, triumphava nas consciências.
Kra a inversão do dinheiro, que punha a verdade no homisio e a men-
tira cm exposição... A bôcca, que mordia deante de gente, occultava-se
timidamente para beijar I

O amor era uma doença secreta — ninguém se queixava dellc sem


! ! . !

MYSTERIOS D\ INQUISIÇÃO

corar ; mas tinha premio e medrava o delator de taes achaques. Entre

dois olhares que se attrahiam, havia sempre um a separai os

Náo se creia, porém, que não havia, nos tempos que descrevemos, a^
grandes e generosas paixões que affirmavam a humanidade como a obr..

prima do Creador. . . Não se creia em tal

Regista a Historia a mais doce brandura de coração, a dedicação ma -

fervorosa, a abnegação mais nobre


O caso de Pepe não era uma excepção — era ate vulgar. As victi-

mas amavam-se com rara dedicação e aftecto — a di"u" congregava os dolo-


ridos !

Pepe náo era um prodígio i era apenas um exemplar dos submissos


amorosos, dos reconhecidos e infelizes. Em tempos de perseguição, com-
prehende-se bem, a protecção é mais valiosa.
Pepe serve para determinar essa espécie. Podíamos ter inventado um
cão, que nada comprehendesse do que era a tyrannia catholica ; preferi-

mos crear um homem na adolescência, isto é, entre a innocencia da in-


fância e o ódio da virilidade. Pepe ainda não era um caudilho, ainda mal
comprehendia os homens e a causa que guerreava, mas tinha a intuição

de que era injusta a guerra feita a gente boa e honesta.


O que entendia o modesto pastor das questões de fé religiosa que abo-
lavam o mundo? Nada; mas tinha já a religião do amor. que deificavj
aqueiles que o acarinhavam.
Elle dissera um dia que ofierecia a sua vida a Jacob. E offereceu-a, e

perdia-a a sorrir, muito satisfeito de ter cumprido a promessa.


Desde que soube que Jacob viera a Hespanba, em virtude duma trai-
ção, e que fura cahir no poder do Santo Officio, só pensou em approxi-
mar-se do seu protector e em levar-lhe o maior consolo.
Entendeu-se, pois, com Sarah, e partiu. .

A que perigos se expunha ? Não quiz pensar nisso — expoz-se. . .

Antes de partir, pediu a um dos inquisidores que lhe deixasse ver Jacob.
Pepe estava prestando serviços e, portanto, fizeram-lhe a vontade, e
levaram-no á camará de misericórdia, onde se achava o christão-novo por-
tuguez.
Além de que, havia-se formado um plano : o de aproveitar a abbadessi
de Lorvão, para haver Sarah, e, d custa d"ella, arrancar a Jacob a dese-
jada apostasia.
Ainda o sol estava a levantar-se no horizonte e já na camará de Jacob
entrava Pepe, acompanhado dum agente do Santo Officio.
— E' este? perguntou o frade.
Jacob estava encostado a uma mesa, com a cabeça descançada na.^
MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 3.,.5

Tiãos. . . Ao ver o pastor, teve um movimento de alegria; mas conteve-se,


lembrando-se das scenas da véspera.
— Deixe-m'o ver bem. . .

E Pepe rodeou Jacob, examinando-o attentamcntc.


— Não ha dúvida, é este. Está mais abatido, mas é o mesmo marrano
Tue entregámos ás guardas de (>oimbra. E' o mesmo, t|ue eu também o
', nesta mesma posição, na prisão do castelio. Agora, ja me não escapa. . .

— Quem este idiota? perguntou Jacob.


é

— Um novo valioso agente do Santo OfFicio,


e disse o frade.
— Mais um miserável que o fanatismo perdeu, para que possa perder
gente sã e razoável. . .

E Jacob emquanto di/ia isto. escrevia machinalmentc sobre a mesa.


Pepe debrucou-se para ver, e logo Jacob foi dizendo a meia voz: Xa
itiavíícDi do rio, junto da poiílc, ao norte, está o incii llwsonro, riiiL^ac
''i/:;anj.

Pepe ergueu a cabeça, e, pondo os olhos na fresta, pareceu repetir


incntalmente aqucllas palavras.
— Nada me daes, senhor, disse Pepe extendendo a mão (echada a
Jacob, parecendo mais que olVerecia do que pedia.
Jacob tirou do gibão uma moeda de prata e, ao depol-á na mão de
Pepe, sentiu sob os dedos um objecto, que recolheu e guardou com cau-
tela e rapidez.

—A correr, meu senhor, disse l^epe: uma mueda de prata, que para
iiiin \ale mais que um pininiiiw:; de ouro.
E, dando um salto, abraçou o frade, que ficou junto da porta.
— Vae o sol a subir depressa e temos que andar ate Las Brozas. ^'a
mos á caça dos infiéis, e viva a Santa Inquisição!
Jacob encostou novamente a cabeça' nas mãos, mas logo que a porta
^c fechou, olhou em redor a camará, e perguntou mentalmente:
— Quantos olhos estão espreitando-me ?

O que recebera era um recado. De quem? De Pepe ou de Sarahr


Tinha urgência de o ler ; mas, se era espreitado, como evitar que lho
pprehendessem? 'l'alvez fosse uma missiva innocente, que nem o com-
:r(imettesse a ellc nem a outra pessoa... E se fosse um segredo?! Te-
a tempo de o ler; mas poderia, com a mesma facilidade, destruil-o?
A curiosidade venceu todos os receios. Nem sequer podia fazer qual-
quer mo\imento de desconfiança. Se havia o perigo de ser surprehendido
na leituia, egual arrostaria elle com as suas precauções. Resolveu-se, por
uinto, a ler, quaesquer que fossem as consequências. Desdobrou o per-
gaminho sobre a mesa e, aproveitando a luz que da fresta lhe descia
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

numa nesga sobre a cabeça, aconchegou-se o mais possivei, tapando


as faces com as mãos e fincando os cotovellos, e começou avidamente a
leitura.

Eram palavras de Sarah. Pareceu a Jacob, ao saber isto, que um raio


de luz viera pousar sobre a escripta. Aquellas palavras, ditadas pela mu-
lher que elle amava, pareciam escriptas a ouro. Receando que os olhos
não vissem bem o que a dedicação de Pepe lhe trouxera, limpou com
um lenço os olhos húmidos, com o cuidado com que um m\'ope limpa as
lentes da luneta. Julgou que era por medo de ler mal que fizera aquelle

movimento; mas enganava-se, que a verdadeira causa estava em duas


lagrimas, que a alegria lhe debruçara das pestanas. .

Era n'aquelles caracteres que elle ia encontrar a compensação, a pri-


meira, talveZ' a única, para tantas amarguras do seu espirito I

Que lhe diria ella? Que o amava, ou que elle devia esquecel-a:
Que afinal todas as mulheres honestas amam os homens com quem
podem casar-se, e Jacob era um condemnado! Esperava o perdão:
Talvez. Mas esperava principalmente uma petja que lhe não poupasse
o nome ao estigma daquelle tribunal e a sua pequena fortuna ao seques-
tro infallivel! Amar um homem, quando a vida d'elle se lhe escurece em

scenas de infâmias e torturas, seria animar um sonho, que começa e finda


no espaço duma noite. Livre, Sarah poderia amal-o. Captivo, para que?
Sarah era generosa e grata, poderia ofterecer-lhe a sua piedade; mas não
era de piedade que elle necessitava. Não se amava impunemente, naquel-
les tempos, um condemnado da Inquisição. O amor é o principal cúmplice
de todas as virtudes e de todos os crimes. Só quem fosse um hereje pode-
ria amar um hereje. . .

Entre dois corações que se amam ha a mais prodigiosa suggestão.


Magdalena amou Jesus: prova evidente de que cria n'elle. Não men- . .

tem os que nós amamos. Se assim não fossem, como poderíamos acre-
. .

ditar em seus protestos?


Quando dois crentes se ligam pelo coração, o amor reconcilia os deu-

ses e funda uma nova fé. A inquisição hespanhola já estava em Portugal...


Como a herva trepadeira, plantada junto dum muro, o reveste, e galga,
e se debruça, e cáe do outro lado, enraizando-se na terra, a ponto de ser
difficil saber de que lado ella subiu, e de que lado desceu; assim o Santo
Officio ia galgando as fronteiras, firmado nas raizes lançadas em terras de
Hespanha. . .

A amante de Jacob podia ser accusada de judaizar, porque a agua do


baptismo deslizara sobre a cabeça dos christãos-novos, sem lhes humede-
cer os corações; correra á superficie como corre a chuva sobre as estatuas.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 397

Logo, as palavras de Sarah representavam — ou o principio d'um sa-

crifício, ou uma desesperança para o captivo.


Jacob foi n'um momento assaltado por todos estes pensamentos antes
de começar a leitura. Tinha desejo e medo de a começar. . .

Porfim resolveu-se,n'uma avidez doentia, ora lendo mentalmente,


e

ora n'um murmúrio, que só eile escutava, começou:

«Senhor:

«Disse-me Pepe, o nosso dedicado amigo, que vós, senhor, por minha
causa, sem dúvida, ou por minha maléfica influencia, que não tenho nem
dou felicidade, estáveis no tribunal do Santo Officio, por coisa que vos
condemna, mas não vos envergonha. Pelo contrário, permitti-me a fran-
queza, vos exalta a meus olhos e vos mostra mais innocente e leal.

«No meu pobre coração, onde a mocidade poz já demasiada experiên-


cia, gravei o vosso nome entre os d'aquelles a quem mais devo e mais
amo. Se o escrevi, talvez em logar onde os olhos dalma o podem ler

a todo momento, é porque a vossa fidalguia me salvou a honra, sem a

qual a vida é miséria de que se morre e vergonha que só o esquecimento


pode velar.

«Sei quanta coragem vos ha de minguar o martyrio, emquanto estiver-

des nas mãos de vossos inimigos; mas, se ella pode atíançar-vos maior re-

signação até o momento da justiça, permitti-me que attribua tanta paciên-


cia e conformidade ás minhas fervorosas orações. A's minhas orações, e

ás minhas lagrimas, únicas moedas do thesouro do meu espirito, que eu


vos offereço, meu querido martyr, em mesquinha recompensa da vossa
dedicação e do vosso affecto.
«Julgava, ha bem pouco tempo, vendo affirmar-se o desconsolo da mi-
nha vida na experiência do mundo, que apenas os maleficios de que fos-

sem victimas Deborah, minha irmã, e Pedro, vosso irmão em talentos


e virtudes, me desalentariam o coração e levariam os meus impulsos va-
ronis ao sacrificio da vida, que, por elles, eu tenho amado e defendido.
«Que mudança agora! Dilataram-sc os horizontes da existência, cheia
de lucto, e sinto-o hoje, e até já o experimentei em sonhos, que por vos
salvar, meu bom amigo, não haverá no mundo convenções nem perigos
que me detenham das mais arrojadas aventuras. /

«Adoro o vosso caracter, e tanto vos reconheço excepcional direito ao


meu sacrificio, que vos prometto e juro, pela memoria de meu pae, sacri-
ficado ao ódio brutal n'uma sociedade iniqua e feroz, que, como vós por
mim fizestes, hei de salvar-vos honra, orgulho e brio, quando não possa
MYSTERIOS HA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. 5o
. !

SgS MYSTERIOS DA iNQUISIÇAO

salvar-vos a vida. . . E' talvez a vossa vida a única que a Providencia po-
deria, para me indemnisar do esquecimento de que me queixo, associar á
minha, n'este mundo tão feio e tão triste
«Não me conheceis bastante, meu nobre paladino, que me vistes ape-
nas alguns momentos, com os olhos da mocidade carinhosa; se me co-
nhecêsseis bastante, fiaríeis d'esta mulher, já duramente martyrisada, o
que só vos é permittido esperar dum moço cavalleiro, que tivesse o vigor
do vosso braço e a dedicação do vosso peito.

«Deu-me a orphandade encargos tutelares junto de minha querida De-


borah, illuminou-me o coração a bondade de Pedro, e vós, emfim, fortifi-

caes minha vontade.


«Vejo, dia a dia, o mundo a amesquinhar-se, a vida a converter-se numa
tortura, e a moral a perverter corações . . . Livre, como as aves e como o
ar, livre como Deus, só reconheço a nossa consciência e os nossos ideaes.
«Se me amaes, senhor, se esse amor, que ainda não confessastes, mas
que adivinhei nas vossas ultimas palavras, é dos que nascem, ao acaso,
no coração, e que a nossa consciência applaude, dizei-m'o sem hesitar.

Acceito-o como um premio, como se Deus o houvera creado, independen-


temente de nós mesmos; como se existisse no mundo uma coincidência
justa e na eternidade um mundo de recompensas.
aNáo me pergunteis o que eu vos pergunto, que não saberia respon-
der-vos. Nós não somos nossos marcaram-nos logar no nosso berço, de-
:

ram-nos feições e caracter de herança, cingiram-nos á educação d'um


certo meio social, vestiram-nos galas e crepes, que não talhámos; sonha-
mos o que se não realisa, temos a realidade que nos atflige, e occultam-
nos a sepultura que nos espera! Acodem-nos idéas que não buscamos,
esquecemos o que nos apraz recordar, amamos os que nos não preferem,
fugimos de visões que se dissipam, e affrontamos inimigos que nos sub-
jugam. .

«Para que havemos de invocar liberdades n um mundo onde os homens


só falam de escravidão, e Deus nos rouba a iniciativa e a responsabilidade :

«Sei que mereceis esta confissão: se me amaes serei vossa. Aonde? Se


viverdes, aqui onde o amor tem leis, e mysterios, e pudor ! Se morrerdes,
lá em cima, onde o vosso e o meu Deus unirão nossas almas. Quando eu
era fraca, fostes o meu salvador; agora, que estaes enfraquecido, terei
eu coragem e energia... Salvar- vos-hei, ou morrerei comvosco. Juro-o.»

Jacob, pela primeira vez na sua vida, levou aos lábios uma carta de

mulher, e beijou-a.. . Pela primeira vez, não; fizera o mesmo, um dia, á


ultima carta de sua mãe.
! ! ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 399

Aquella carta tinha um duplo fim — alegrar o espirito, e fazer pensar.


Nada mais solenne, mais sincero c mais frio tinha a solennidade d um
grande affecto, a sinceridade d'um forte caracter, e a frieza d' uma inHexi-

vel resolução. Parecia uma carta de mulher, dedicada a um homem a


quem já pertencesse de facto, ou de direito; parecia uma carta de irmã
amiga e conselheira; parecia, emfim, a carta d'uma heroina, na véspera

d'um acontecimento emocionante.


Ninguém diria, ao ler aquellas phrases, que ellas tinham sido medita-
das por uma creança, boa e pura, formosa c fraca, porque as creanças
são timidas quando fracas, e fátuas e vaidosas quando bellas.
Jacob sentia mais virilidade n'aquellas palavras que nos seus próprios
pensamentos. . . Sarah era uma virago, digna dum guerreiro triumphante I

A mãe dos Gracchos devia ter falado assim aos dezoito annos! Nas luctas
moraes aquella mulher era uma luctadora, angelical, lendária; de capa-
cete e lança, montada no seu cavallo branco, não era mais bella, nem
mais maravilhosa, a donzella de Orléansl
Como ella falava a um homem com a hombridade duma compa-
nheira, a um desgraçado com os soccorros da esperança, a um amante
com a promessa mais desinteressada e incondicional!
Que de castidade n'aquella franqueza! que de reconhecimento naquel-
las recordações! que de sacrifícios n' aquellas promessas!
Que ofterecia ella? Offerecia-se E não! falava em paixão, nem sequer
em amor I Entregava-se a um homem, que a merecia, como se entregava
a Deus, cuja existência conjecturava apenas ! E tudo isto, que parecia tal-

vez o cumprimento d'um dever, envolvia preces e lagrimas, que denun-


ciavam devoção e affecto

Era um mysterio profundo aquelle coração de mulher... Escrevera


com mão firme e olhos enxutos, depois de ter sonhado e orado
Mais forte que um homem Tão ! fraca como uma mulher ! Que cxcel-
lente companheira
Nem uma^ banalidade das que puUulam no discretear feminino, mas
também nem uma confissão de amor enthusiasta e impulsivo!. .

N'aquella carta adivinhava-se mais a confiança e a decisão, que a es-


perança e a paixão. . .

Sarah escrevia com a solennidade e a reserva d'uma viuva, ainda


envolvida nos crepes. O que alli escrevera não era uma explosão da mo-
cidade, mas uma sentença de submissão ao destino.. .

Evidentemente na alma de Sarah havia um segredo, que lhe não ma-


culara a pureza, mas que lhe arrefecera o peito I . . Ou, então, pensava
Jacob, nas feridas da sua alma, que começavam a sarar, a pobre menina
.

403 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

tentava generosamente occultar suas maguas, para não maguar o coração


do prisioneiro.
Era isso, sem dúvida. Envergonhara-se de falar de si, quando preten-
dia alegrar um espirito tão atormentado. Era justo: —o sacrifício a que
ella queria votar-se, seria vulgar se proviesse do seu amor; era dos mais
generosos se derivasse da sua gratidão.
Em todo. caso, aquellas palavras traziam o cunho d'uma sensibilidade
original, exquisita, que affirmava uma mulher das que não se perfilavam
na frente d' um crystallino de Veneza, ou da superfície d'um lago, ou na
sombra desenhada pelo seu vulto nas pedras do caminho.
Tinha a consciência de que ella era uma mulher superior, e amoravel.

A sua dedicação a Sarah attrahira-lhe a attenção, e fizera-a grata mas; a

sua desgraça provocara-lhe o que poderia ser compaixão . . . Compaixão e

paixão são duas palavras muito eguaes; por que não hão de também
approximar-se os sentimentos que ellas determinam?
Sarah era uma mulher de juizo, e a sua experiência precoce vinha da
precocidade dos seus soffrimentos. — Na desgraça começa-se a viver mais
cedo, e aproveita-se mais tempo. Quanto adeantaria na vida a pobre creança,
n'aquella scena de cannibaes em que fora testemunha e victima? Não era
ella uma simples e ignorada rapariga, occulta e feliz nos bairros modestos
de Lisboa; era uma orpha posta em evidencia por uma scena trágica da
capital, eque tivera de chorar desgraças, próprias e alheias, desde a sua
casinha da Nova Gibraltar até o immoral mosteiro de Lorvão.
N'uma vida assim, cada dia corresponde a um século.
Jacob ia pensando e relendo e, quanto mais assim se entretinha, mais
se esquecia da sua melindrosa situação.
A carta de Sarah produzira este maravilhoso effeito — dera-lhe espe-

ranças na salvação e força para affrontar a desgraça. Ella puzera, com


eloquência carinhosa, as duas hypotheses —a salvação com ella, a perdi-

ção com ella!

N'aquelle tempo, os espíritos mais livres e illustrados soffriam da mys-


tica philosophin, que punha a vida eterna ao abrigo dos protestos contra
a intolerância religiosa.
Jacob, pensando na difficuldade de viver com Sarah, já encontrava
generoso consolo na esperança de morrer com ella! Morrer ao lado da
mulher que se amava, não era bem perder os gosos da mocidade, mas
recomeçal-os sem perturbações.
A desgraça é como a doença — enfraquece o corpo e o espirito — os
moribundos e os infelizes são mais crentes e religiosos que os outros . .

Jacob já não amava Sarah como a uma mulher; mas adoravaa como
! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 401

a uma santa erguida no altar do seu coração! Nem já pensava na liber-

dade, que o seu martyrio seria o melhor estimulo para o amor daquella
creatura ! Já preferia chorar com ella, a sorrir vulgarmente, como os ou-
tros amantes, n"um materialismo sensual, feliz, sujeito a todos os esmore-
cimentos e transformações próprios da vida mundana.
E Jacob lia aquellas palavras, primeiro, ao acaso — um trecho a'^ui,

outro alli; depois só o principio, e quando lia o fim, ficava triste, como se
lhe tivesse fugido dos olhos a vista que lhe dera tanto encanto e prazer

Depois, imaginava a mão de Sarah a escrever aquellas lettras. .. en-


costada á mesa, com o peito a arfar, o olhar. húmido, com certeza a pen-
sar n'elle... Via-a na sua pequena cella, ao lado do seu leito cheio de
rendas, brancas como a neve, em frente do seu Christo de marfim, sobre
a cruz d'ebano. .

E tudo isto illuminado pela pequena fresta, aberta em frente do oli-

val que coroava o monte, onde elle algumas vezes, ao nascer do sol, ou
ao subir da lua, se collocara, para lhe vigiar o somno n'uma doce piedade
fraternal
E, quando a vista se cançava de tão applicada leitura, licava, de cabeça
erguida, absorto, a desenhar na imaginação a figurinha de Sarah, elegante
e distincta, de curvas pequenas e gentis, trança abundante, olhos vivos e
meigos, vivacidade de creança, palavra duma castidade audaciosa, répli-
cas de conceituoso orgulho e de fidalga altivez !

Como não havia elle de amal-a ?

E depois mudava de attitude, deitava a cabeça sobre os braços, como


uma creança que quizesse adormecer, e pensava na belleza daquella alma
grata, meiga, devotada e nobremente sobranceira ! Educados a razão e o
sentimento, avigorado o animo em mil desastres, esclarecida a mente em
continuas desillusóes, como ella conservasse aquella fé, que não a deixava
ser livre, e aquella brandura, que não a deixava ser vingativa!
E por que não havia de ser ella o seu anjo tutelar ? Por que não esta-
ria ella pairando n"aquella camará, vendo o, ouvindo-o, perfumando aquelle
recinto tão sombrio e tão triste ?

Pois, era muito para extranhar que Sarah, que lhe estava enchendo o
cérebro e os olhos, andasse por alli a esvoaçar envolta n'aquelles raios de
luz, que lhe vinham illuminar a fronte emmagrecida e pallida ?

E assim, pensando, e até falando cm segredo a si próprio, Jacob ador-


meceu.
Encheu-se então de luz branca e dourada a camará de misericórdia, e
á cabeceira do leito, como se tivesse rompido a muralha e surgido d'um
nimbo, um anjo appareceu sorrindo, tendo nos olhos o brilho de duas es-
. .. . ! .

402 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

trellas. . . Tinha os cabellos soltos, e mal franzida a túnica azul presa na


cintura por um diadema scintillante de pedrarias multicores! Nos lábios
abria-se o melhor sorriso, e nas mãos um ramo de flores da cerca de
Lorvão.
Jacob fitou, enlevado, aquelle pedaço de céo, e viu no rosto do anjo
as feições de Sarah.
— Sarah disse Jacob. Es liberdade
! tu a ?

— A Liberdade o Amor, disse o anjo, atirou-lhe com as


e e flores. .

— Vamos, Jacob, disse um frade, batendo nos hombros do adorme-


cido, toca a almoçar, que ás 9 horas temos exercício de potro, com mis-
tura de sexos.
— Quem me chama ? perguntou Jacob, accordando sobresaltado.
— Que importa isso ? Quem chamavas, quando cheguei, não pode vir

tão cedo.
— Ouvistes-me, então ? . .

— Falar em Sarah. Ouvi, sim. Talvez alguma . . judia. Tens hoje duas,
cujos seios brancos de neve vão tingir-se de sangue... se não jurarem
respeito e fé á Religião e ao Santo Officio
— Oh ! meu Deus que terrível despertar
! !

E ainda, como se estivesse sonhando, procurou no chão, n'um olhar


muito triste, algumas flores dispersas.

Fora sonho, não havia dúvida !

— Queres tomar alguma cousa ?

— Não...
— Toma cuidado, que ha já muitas horas que não comes, e hoje tens
espectáculo que fatiga.
— Estou doente. .

— Sinto, sinto; mas a festa não é premio do Santo Otficio — é cas-

tigo.

— Não posso hoje conservar-me de pé — amanhã irei...


— Receio que não dispensem, salvo se resolveres a fazer
te te a decla-
ração . .

— Antes morrer. .

— Eu, no teu caso, tomava algum alimento e ia assistir ás provas. Não


se acaba tão cedo o programma das torturas.
— Ha, então, mais do que aquellas que vi?
— Não teem conta. Mais, e com variedade ; e todos os dias se desco-
brem, nos mais antigos e esquecidos flagícios, os que melhor se accommo-
dam aos apparelhos que já temos.
— Dizeis que hoje teremos o potro ?
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 40»

— Salvo se monsenhor, o arcebispo, fizer a sua visita.

— Oxalá ! . .

—É interessante, e oiíerece novidade. Has de confessar, quando vires


como elle funcciona, que te não fica vontade de teimar contra taes argu-
mentos.
— E as victimas, dissestes?
— São duas formosas raparigas, tão judias, quanto obstinadas. . .

— Deixae-me no logar d'ellas!. soffrer . .

— Mais tarde tratarás d'isso por vossa conta, sofírerdes, que, se em


verdade te digo, que tens no teu paiz amigos dedicados. São tantas as
recommendações a teu favor, que reis e papas .se movem por egual a
empenharem-se pela tua salvação. Está ainda a tua sorte dependente das
mais activas negociações diplomáticas. A alcáçova de D. Manuel, e as ante-
câmaras de Philippe, teem tido uma invasão de mendigos pedindo o perdão
para as tuas faltas julgadas. E' que elles não sabem que sois dos mais
contumazes na heresia, e, que, depois de teres entrado aqui, renovaste tuas
culpas com uma abjuração que te desgraça. .

— Eu não peço perdão, peço justiça. .

— Também a justiça usa o perdão, quando ao crime se segue o arre-

pendimento. .

— Arrepender-me de que?
— De não leres por única \'erdadeira a religião catholica.
— Julgo-as assim todas, a nenhuma... a e Se isso é crime; quero
soffrer a pena . . .

— Que as mulheres fanáticas c estúpidas pensem dessa forma, ainda


se comprehende ; mas que um homem com as tuas vistas, se prenda com
taes ninharias ?

— A que chamaes ninharias?


— A esse escrúpulo de fazer abjuração pública. .

— E, por uma ninharia, torturaes uma alma e sacrificaes uma vidai


Pertenceis á raça dos peores bandidos.
— Isso o que ha de perder.
é te . .

— Por uma ninharia, a agua, deslocação o potro a e ! ! . .

— E se fosse só Bem vê que não conheces isso! se o supplicio da


roda, o garrotei... Aposto que nunca viste empalar um judeu, atraves-
sando-o com um espeto e fazendoo girar no espaço! Afinal não passas
d'um piegas, mais fracalhão que uma mulher... E isto é só quando se
trata de ver torturar os outros..que será quando . soiTreres eguaes tor-

turas? Nunca viste queimar com chumbo derretido os pés dos pacientes?
Nem apertar-lhc nem em-
nas pernas os borzeguins revestidos de picos,
! ! ! ! .

404 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

paredar um corpo vivo, nem a vida dos carceres-segredos, num espaço


d'esta mesa, três e quatro accusados, sem ar, sem luz, a morrerem em
pé, envenenados uns pelos outros, emquanto novas vidas se geram na po-

dridão de seus corpos


— Oh ! calae-vos, calae-vos, que eu quero, por um momento só, vol-

tar a sonhar delicias de embriagado, n'este quarto infernal!. .

— Nem tu imaginas o que é o potro!... Viste o instrumento, não é


assim ? Pois o marrano perseguido, meio nú, é apertado pela cadeia de
ferro, sob a pressão do molinete, e a cadeia passeia sobre a pelle, depois

entra na carne, depois comprime os pulmões e o coração, e afinal, fra-


ctura as costellas ! E, se o peito oppresso é d' uma mulher, que pena faz
destruir tão bella esculptura no aperto e fricção dos elos da férrea cadeia I

Jacob, felizmente, não ouvia as palavras do frade. Accordado conti-


nuava sonhando
A influencia de Sarah estava poupando aquelle tormento ao desgra-
çado christão-novo
O que elle soífreria se ouvisse o frade na descripção minuciosa do
potro, encarecendo a importância dos estragos, lentos, progressivos, des-
truidores !

A compressão da base do thorax do paciente, encostado a uma barra


de madeira e supportando, sobre o estômago e hypocondrios, uma cor-
rente de ferro, que gradualmente ia sendo apertada, não tinha simples-
mente por effeito promover a dòr.

A respiração abdominal dos homens cessava, porque o diaphragma


era contrariado nos seus movimentos.
D'ahi a suffocação, que podia comprometter a vida do paciente. Essa
suffocação annunciava-se com cyanose dos lábios, traduzida pelo ennegre-
cimento.
Quando a constricção da base do thorax ia muito longe, as costellas
não resistiam, e, muitas vezes, se dava a sua fractura, assim como sobre-
vinha a pleurisia traumática; e tudo isto acompanhado de esmagamento
e laceração das partes molles superficiaes
Era este um dos martyrios mais cruéis, c de aspecto mais contris-
tador.
Quando o frade estava mais animado a descrever a acção das torturas
e a sua terrível efficacia sobre os corpos dos herejes obstinados, ouviu-se
o repicar alegre e crebo dos sinos, que annunciavam visita grada e de
exigente ritual.

— Estás livre, por hoje, disse o frade a Jacob. Podes sonhar á von-
tade e chamar a visão dos teus sonhos. Ha novidade, e grande novidade
! . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 4o5

no Santo Officio ! Temos visita de cardeal, e quem sabe ? talvez, de suas


altezas catholicas
— Estou livre hoje? Na posse da minha consciência? entregue ás mi-
nhas visões ?

— Sim, aquelle sino diz, badalando tão fortemente, que o dia vae ser
exclusivamente consagrado a cerimonias do ritual. Em taes dias, não ha
torturas ; os presos não são perseguidos . .

— Nem lembrados ? . .

— Tal qual.
— N'esse caso, o tormento. . .?

— Não pode além de fome para todos, de asphyxia para muitos.


ir e
— E se algum príncipe da Egreja
fôr ?

— Traz, sem dúvida, instrucções Philippe. d'el-rei .

— E se fôr el-rei ?

— Deve trazer a deposição de Deza.


— Ganhará com isso a Justiça?
— Que importa? Aproveita o feriado. Dorme sonha, durante estas
te e

horas em que brilha a tua boa estrella. .

Jacob, mal ficou só, voltou á sua leitura predilecta. — E, de cada vez
que lia, encontrava uma nova interpretação e uma nova virtude.
Lá fora, os sinos repicavam festivos, como se a realidade estivesse, com
aquelle pormenor, a completar o sonho do prisioneiro. . .

MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL.


XVII

Pena de Talliâo

Nos primeiros dias de julho, quando o sol, ao nascer, vinha já rubro


« quente, como se quizesse abrazar as terras do Alemtejo, Évora para-
mentava a sua população, da cidade e arrabaldes, como se houvesse fes-
tividade das que alegram os velhos e fazem cantar a mocidade! Muito
cedo appareceram abertas as adufas, e havia pelas ruas bandos de cam-
ponezes, com fatos vistosos e olhos cheios de curiosidade. Acampavam em
diversos pontos magotes de gente armada, e o mais grosso delia rodeava
o castello, como se estivesse fazendo cerco á Torre de Alconchel.
Encostados a grandes varapaus, como se fizessem parte da milícia,

gente do alto e baixo Alemtejo falava com vivacidade do espectáculo que


ia gosar.

Os rapazes da terra rodeavam os forasteiros e apontavam-lhes a torre,


como se d'ella houvesse de surgir o que movia a curiosidade eborense e
dos subúrbios. Nos campos famílias inteiras, á sombra das arvores, faziam
extendal no chão e preparavam almoços frugaes, com fartas libações de vi-
nho rosado e transparente.
Para os lados da porta de Machede o povo formava alas no caminho
do ferregial mais próximo, sem se importar com o calor nem com as cor-
rerias dos cavalleiros, que entravam e sabiam da cidade. No meio do campo
erguia-se um cadafalso d'uma cruel simplicidade, e que apenas constava
•de um estrado, ao centro do qual se erguia um poste a que estava gros-
seiramente amarrado um toro que deveria servir de escabello.
A pequena distancia do cadafalso formavam alguns carreteiros uma
pilha de lenha regularmente disposta, com as achas cruzadas e distantes
umas das outras, para que o ar e o fogo pudessem circular livremente e
auxiliar a combustão. Ao lado d'esta pyra, um molho d'archotes bem em-
breados. A gente d'armas formava um grande quadrado, em cujo centro
se erguiam os terríveis apparelhos.
. . . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 407

As liteiras eram frequentes a entrar na cidade, e entre ellas havia al-

gumas que denunciavam, pelos jaezes das mulas e pelo vestuário dos la-

caios, passageiros d'alta posição ecclesiastica e civil. Andavam nas ruas,


nas immediações do castello, muitos frades de diversas ordens, e, na praça,
em frente do nicho de Nossa Senhora, na esperança de que o cortejo pas-
sasse por alli, havia muitos bandos de mulheres com as suas vestes relu-
zentes.
— Vès aquella liteira? perguntou um aldeão, que espreitava os postigos
dos vehiculos que passavam, aquillo c um trunfo, que não podia deixar
de vir á festa.
— E' o bispo de Marrocos! respondeu ^uma mulher, puxando para a
frente um pcquenote.
— Qual bispo de^Marrocos! Esse foi o primeiro que chegou. Fiquei-o
conhecendo da outra vez... quando foi a exauctoraçao. Esse, por ser o
cónego d'Evora, tem "de receber as auctoridades civis. .

— Mas, então quem é?


— Ora, quem ha^de ser? Você, boa mulher, não lhe viu o habito?...
É o provincial da ordem de,S. Domingos.
— Ah! já sei. . . Então é D. Álvaro. .

— Está visto que sim. Como os condemnados são da sua ordem, é da


praxe que elle assista á execução da sentença. .

— E' pena que não o condemnassem também, intrometteu-se um villao,

com modos sentenciosos.


—Que culpa tem elle da patifaria dos frades?
— Aposto que você imagina que os frades de S. Domingos estão in-

nocentes nas matanças!... Ora adeus! Aquillo foi manobra dirigida por
todos.
— Ainda se matassem só mouros c judeus, vá, que essa raça tem en-
chido o reino de desgraças ;]mas o peor foi que mataram muitos christãos
dos melhores, só para lhes saquearem as casas. .

— Bravo, que luxo! disse o pequenito dando um salto para ver uma
grada personagem que entrava a porta. Como este vem guapo!
— E traz uma cruz sobre o peito. .

— Então cónego, ou bispo.


é .

— Não é explicou o
tal, mal ^villão, humorado, aquillo é a cruz de
Christo.
— Você conheçe-o?
— Se o conheço! Também já o vi no cadafalso da praça. E' o licen-
ciado Manuel Atfonso, do Desembargo d"el-rei.

— Vem assistir?. .
. . .

4o8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Pudera não, se foi elle quem lavrou a sentença, por andar ha mezes
com mór alçada nesta comarca!
— Você conhece a sentença, homemzinho, perguntou uma rapariga

muito rosada e de nádegas roliças . .


Está visto que sim. Hão de ser queimados, ao mesmo tempo, em
cima d'aquella fogueira.
E o informador apontava para o centro do ferregial.
— Mas queimam-n'os vivos, como na Inquisição de Hespanha? se faz
— Em Hespanha, como aqui, queimam-se mortos e vivos. Estes são
mais felizes, serão primeiro garrotados e depois é que passam para a fo-
gueira.
— Deus queira que possamos vêr tudo isso... Se vem muita gente
com elles e nos tapam a vista ! . . . lamentava a rapariga alegre, como se
se tratasse d'algum casamento na ermida da sua aldeia.
— Eu trouxe o meu pequeno, porque elle nunca viu isto, e é bom que
saiba como se castigam os maus. Quem com ferro mata, com ferro mor-
re. .

— Diz bem, senhora, diz muito bem, elles apunhalaram e afogaram


muita gente ? É bem feito que morram afogados e queimados. São mal-
ditos estes algozes porta-cruzes.
—O mãe, disse um rapaz que subira a uma arvore, e cujo peso fazia

balouçar um grande ramo, por que estará aberta a egreja de S. Francisco?


Passei lá e andavam os frades do mosteiro a forrar a porta de pannos ne-
gros. Os condemnados vão lá rezar antes de virem para aqui?
— Não, senhor, acudiu um velho, que bebia vinho por um cântaro, e
que deteve a libação para mostrar que conhecia o programma ; é que elles

hão de ser enterrados no claustro do Mosteiro. Já lá estão os carneiros


abertos. . . lá para a tarde, a Misericórdia carrega com as cinzas. E tam-
bém uma festa bonita, porque, depois de fechada a sepultura, haverá ser-
mão, por frei Domingos da Annunciação, que diz cousas em latim como
nenhum outro ! . .

— Era só o que faltava ver : era os christãos a rezarem por gente ladra
e assassina, exclamava, com ar enfastiado, uma velha beata, de rosto es-
condido em escura mantilha.
— Não merecem essas injurias os desgraçados, acudiu outra de egual
aspecto — que desde elles abril que softrem e se arrependem... Lá pelo
castello, toda a gente conta que elles estão santificados á força de rezas e
abstinências. Até o Aragonez, que era o mais duro de coração, tem pas-
sado todos os dias a beijar a imagem de Jesus e a castigar o corpo com
cilícios.
. . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 409

— E, emquanto elles se arrependem e choram, andam os judeus á

solta, ricos, bem vestidos, em passeios para Roma. . . rabujava outra ainda
mais velha e mais mal encarada.
— Olhe, menina, que bonito cavalleiro vae a entrar a cidade I Aquelle
é de Lisboa, com certeza, e é já capitão de boa gente ! Como lhe tica bem
o elmo e o arnez
— É já a segunda vez que passa por aqui. Ouvi que lhe chamavam
Pedro Soares. .

— Aquillo fidalgo da Alcáçova.


é .. «

— Virá el-rei ?

— Não, que D. Manuel não como é D. João II. Esse é que ficava no
alcácer, emquanto cortavam a cabeça ao duque, seu parente.
— E' verdade, D. Manuel manda matar os frades, mas fica-se em Se-
túbal. .

— Talvez a escrever ao Papa para que lhe dê a Inquisição...


— Que dúvida, se a rainha quizer. . .

Ouviu-se ao longe um grande borborinho, c, pela porta de Machede,


em turbilhão.
sahiu o povo
— Lá vem o cortejo, gritou o rapaz empoleirado. Já avisto o pendão I

Ena que de gente Que formigueiro de frades e aguazis Olhem, olhem,


! ! !

os condemnados vêem amparados e quasi de rastos.


— Querem vocês ver que elles morrem antes de cá chegarem?...
— Isso que não tinha graça,
é dizia a rapaziada alegre, no fim de tanto
trabalho! . . .

Os guardas lanceiros formaram alas, impellindo o povo para junto dos


muros, e o cortejo começou a desfilar.
Compunham-no as mesmas personagens ecclesiasticas, civis e militares,

que vimos na cerimonia da exauctoração.


O povo olhava avidamente para este desfilar de gente que levava dois
homens ao cadafalso, mâs mantinha-sc nas suas fileiras, como se estivesse
vendo uma passagem de tropa, para a guerra, ou um cirio em romaria!
Quando, porém, os frades appareceram, foram rotas todas as alas, e a
multidão precipitou-se, como as aguas d um rio quando se abrem os diques
que as deteem.
Os condemnados pareciam dois cadáveres. O Aragonez na cor e na
magreza — o Moucho em tudo, ate no queixo descabido e nos olhos parados
e torvos! O Aragonez ia trémulo, mas caminhava, desamparado, e o seu
olhar, ainda arrogante, cahia gelado sobre a multidão, que o apupava ; o
Moucho ia suspenso pelos sovacos, com as pernas vergadas, de rastos,
fingindo que ia em pé.
: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

A multidão acolhia com insultos os dois miseráveis, dos quaes apenas


um apreciava o acolhimento. Os rapazes dirigiam-lhes obscenas insolên-
cias, e as mulheres cuspiam-lhes de longe.
Havia também quem risse, em franca gargalhada, apontando o Mou
cho esquelético e desmanchado. Achavam-lhe graça e imitavam-no, os da
ralé, abrindo a bòcca e pondo os olhos em alvo!... D'um para outro lado
do caminho, d'arvore para arvore, cruzavam-se os commentarios . .

O Aragonez, esse era menos gracioso. Parecia mais um espectro que


um cadáver, porque os espectros movem-se, e os cadáveres não.
O hespanhol emmagrecera a ponto de nem sequer lembrar já o frade
espadaúdo, corado, forte, a respirar vida de touro, pelas narinas amplas,
dilatadas. . . Fôra-lhe sempre pequeno e traiçoeiro o olhar ; mas agora, ao
desenhar-se a caveira, brilhavam os olhos ferozmente, debaixo do farto
toldo de sobrancelhas.
Os frades de S. Domingos, para salvarem a honra do convento, tinham
espalhado a noticia de que o Aragonez se arrependera de seus crimes, e
acceitava piedosamente a sentença.
Era prudente lançar tal falsidade, para que não medrasse no beaterio
a antipathia pela ordem religiosa. Mas os frades mentiam ; e, por causa
delles, mentiram também Rodrigues Azenheira e a Chronica dos senhores
reis de Portugal, e o critério de Domingues de Mendonça, que se propoz
continuar a Historia de Schaelfer.
Frei Bernardo Aragonez não era homem que se arrependesse ; e até

difficilmente se acredita que fosse homem que se acobardasse.


Os seus crimes não tinham sido producto das suas paixões, nem fructo
do seu fanatismo ; tinham sido obra d'um plano longamente premeditado,
e friamente dirigido. Não se julgava um condemnado, mas um vencido.
Dispunha-se a ir morrer no cadafalso, como se fosse morrer no meio dum
combate. Quando a multidão o ameaçava de punho fechado, commentava:
—A canalha foi sempre cobarde! As feras engaioladas até as crean-
ças atiram pedras ! Se me visse solto, toda essa gente fugia de terror,
ou me seguia acclamando ! A sedição fez duas mil victimas, e eu não
manchei as mãos nem na lama da rua, nem no sangue dos judeus. Matei
tanta gente com a ferocidade d'essa turba e com os braços d'uma cruz I

Peçam a Christo contas da sua propaganda e influencia.


Um frade, que ia junto d'elle, pedia-lhe humildemente
— Não digas heresias, Aragonez; salva ao menos as apparencias, já
que não queres salvar tua alma.

Se me arrancaram o habito, por que temem o meu exemplo ? Direi
no inferno que pedi a minha demissão. . .
. : . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 411

E O frade
— Dize, dize commigo : poeniíet, poenitet . . .

— Do insuccesso, não é verdade ? Quando D. Álvaro e a sua gente

tiverem regulamentado, daccôrdo com el-rei, a morte dos marranos, a


estas festas da justiça chamar-se-ha culto de fé. .

— N'esse caso a justiça secular estará d'accòrdo com o interesse da


Egreja. .

— Não te esqueças então, frade, de mandar-me n esse dia, ás profun-

das do inferno, o farrapo que me despiram. . .

— Lembra-te que vaes morrer. .

— Só me lembro que o precursor d'esse tribunal, em que,


fui se hoje

já existisse, eu seria nelle inquisidor, e não relaxado.


— Beija esta imagem, Aragonez. O povo, vendo-te reverente, apiedar-
se-ha de ti.

— Pois sim; e dize, depois, a esse povo, que beijei o meu cúmplice,
e não o meu juiz.

Entrou, emfim, o cortejo no ferregial, e os clarins e as trompas deram


signaes, para que estivessem a postos os executores da justiça.
Junto ao poste, sobre o cadafalso, collocaram-se dois homens, de altos
gorros na cabeça e grossas polainas até acima dos joelhos, os braços mus-
culosos e mis... Na parte posterior do tablado collocaram-se o licenciado,
o privincial, e D. Pedro, o cónego d'Evora. A gente armada circumdou o
palco d'esta tragedia.
João Moucho subiu aos hombros dos aguazis, c logo foi sentado no
tronco largo e tosco. O miserável fechou os olhos, único signal de vida
que manifestou áquelle público, que o fitava, com a respiração suspensa,
para não perder um só pormenor da scena terrível — uma contracção, um
gemido!
O sacerdote que o acompanhava rezou-lhe ao ouvido uma prece, e
ajoelhou depois, a pequena distancia, de mãos postas.
Ouviu-se novo toque de clarim, e os dois carrascos, coUocados por
traz da victima, passaram o laço ao pescoço d'ella, e, agarrando cada um
n'uma extremidade do arrocho, giraram com elle lentamente. .

Em todo o ferregial apenas se ouvia o canto d'uma cigarra, ao longe...


O sol estava no zenith, e a multidão, nesse momento, para não per-
der o effeito d'aquelle espectáculo, deixava o suor a correr nas faces. . .

Lagrimas nem uma!


O iMoucho teve um leve estremecimento, extendeu as pernas, que nem
ligadas tinham sido, e deixou cahir os braços, que ficaram como duas man-
gas de gibão penduradas num cabide. . .
! . ! . ! ! .

412 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

O canto da cigarra foi então abafado pelo movimento da multidão,


que, como se tivesse ouvido a voz de —á vontade — se mexeu, e falou, e

tossiu, fazendo commentarios!. .

— Que o leve o diabo


— Nem para morrer serve !

— Morto já elle estava!


— Aquillo foi por terem dó d'elle; mataram-no na torre e fingiram que
o garrotaram.
— Isso não, que elle passou aqui com os olhos abertos, e, lá em cima,
fechou-os.
— Isso é illusão! Quando se olha attentamente para um cadáver pa-
rece sempre que elle abre os olhos . . .

— Se não houvesse o outro nem valia a pena vir de tão longe


— Caluda, caluda ; lá vae agora o Aragonez. Aquillo é outra fazenda ! . .

Está vivo, bem vivo.


e .

O corpo do Moucho tinha sido arredado com o pé de cima do tablado,,


e cahira sobre a terra.

Os carreteiros da lenha levaram mais aquella acha para cima da fo-

gueira.
O Aragonez subiu sósinho a escada do cadafalso, e, lá de cima, fitou

o povo, que o contemplava.


Da gente, cavalleiros e peões, que formava o quadrado, avançou Pe-
dro Soares, ficando com o elmo á altura do tablado. O cavallo rinchou com
força, como se tivesse substituído o clarim, e o Aragonez, que não ousou
falar, mal viu Pedro Soares tão próximo d'elle, recuou tão bruscamente
que foi cahir nos braços dos algozes.
Estes aproveitaram a situação, e, ao mesmo tempo que o sentavam na
terrível madeiro, lhe laçaram o pescoço.
Com as pernas e braços luctou o Aragonez, e tanto se moveu que, es-
capando-se-lhe o corpo do toro, ficou pendurado pelo pescoço.
Pedro Soares fez com a espada um signal, para que não houvesse
perda de tempo, e os carrascos, agarrados ao Aragonez, não tendo posição-
própria para moverem o garrote, com as próprias mãos ultimaram a sua
tarefa
A grande distancia se ouviam os gemidos d'aquella lucta!

Um momento mais e o Aragonez ficou, de joelhos


Quando rolaram o corpo garrotado para fora do cadafalso, para lhe
darem o mesmo destino que tivera o do Moucho, Pedro Soares apeou-se
e tocou-o com o pé, e voltou-o, como se quizesse verificar a identidade.
— Não ha dúvida, disse Pedro, é elle, ou melhor, foi elle! Que o fogo-
.

MVSl KRIOS UA INQUISIÇÃO

agora reduza a cinzas este terrível espectro, que povoa os sonhos de


Deborah ... e os meus I

E, montando de novo, voltou para o logar que occupava entre a gente


d'armas.
Os dois cadáveres, postos sobre o estrado que fecha\'a a meda de lenha,
foram desfeitos a machado.
Primeiramente foram decepadas as mãos, depois os pés... A pyra
parecia o cepo dum açougue!
Felizmente esta operação foi i-apidamente executada, e logo os archo-
tes inflammados penetraram nas aberturas da meda de lenha, e o fumo
começou a subir em grandes nuvens negras. .

A multidão nada mais esperava, c, por isso, foi dispersando lentamente.


\oltando-se, por vezes, emquanto se afastava, para ver como iam al-

tas as columnas de resíduos de madeira, e de carne e de sangue de dois


frades, que tantos imitadores e continuadores ti\'eram em Portugal, sob a
inlkiencia maligna de D. .loão III, beato e mau. ,

E era, nestes autos de fé, que a justiça de D. Manuel ia educando o


povo, para que de bom grado acolliesse os outros mais cruéis e especta-

culosos.
E o povo portuguez, graças á seh'ajaria dirigente das classes nobres,
como o das Hespanhas, da Iialia e da Inglaterra, mostrava-se bem disposto
a applaudir os planos dos seus príncipes.
Era assim que Horescia entre nós o catholicismo!
A multidão, ao sahir do ferregial, entrou pela porta de Machede e diri-

giu-se ao mosteiro de S. F^rancisco, alim de esperar alli a cerimonia do


enterramento.
Pedro Soares deixou a sua gente e partiu. Precisava de voltar a Lor-
vão para garantir a Deborah que, emíim, desapparecera o único obstáculo
que se oppunha d felicidade delia e d'ellc. Nunca mais entre ambos sur-

giria aquella terrível sombra. . .

O terror de Deborah ia desapparecer, como tinham desapparecido no


espaço as nu\ens de fumo da sinistra fogueira. Em todo o mundo iã não
havia logar para aquella fera. . .

l'>llc e Deborah poderiam \oar nas azas do amor por todos os recan-
tos da serra, que, do Aragonez, estavam extinctos os últimos vestígios.
O que descera ao carneiro de S. Francisco eram apenas cinzas de
toros humanos, mas misturadas com as dos toros de arvores velhas e inno-
centes. que tinham alimentado o brazeiro.
1^ do coi^açáo de Pedro brotaxa a mais franca alegria!
la galopando, e a briza que o açoutava, abria o seu melhor sorriso.
MYSTKKIOS n.\ INiinsiÇÂO. — VOI.. I. FOL. 5z.
. !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Aquella tristeza, que velava o rosto de Deborah, dissipar se-hia com o


sorriso de satisfação que ia provocar, noticiando, com todos os pormeno-
res, a execução do frade. Agora Deborah era apenas a victima dum ani-

mal, que passara na terra e a aggredira ferozmente. Para não haver dú-
vida de que se não trata\'a dum homem bastava saber-se que esse animal
fora reduzido a carvão!
Agora ciúmes, de quem ? ^'ingança, contra quem ':

Um homem só tocara nos lábios de Deborah, contra vontade delia,


violenta e cobardemente; mas esse homem morrera disso... Já não po-
dia gosar as recordações d esse momento, nem vangloriar-se em confiden-
cia, da torpe façanha.
Esse mysterio estava escondido no fundo de uma sepultura, sob uma
lapide pesada!. . . O tyranno fora esmagado, afogado, esquartejado, quei-
mado. . . Não podia haver destruição mais completa. Deborah era agora . .

sua; tão sua como se se tratasse d'uma viuva, que houvesse casado á for-
ça, e que nunca tivesse, amado, senão a elle, o seu primeiro e único amor.
A virgindade na mulher está principalmente na sua alma... e a alma
d'ell£ tinha todos os efHuvios da pureza.
Ha casos em que as mulheres hcam virgens, como ficou a mãe de
Jesus!... O espirito infernal, que toca o corpo duma virgem, deve ser
menos oftensivo que o Espirito Santo, que o fecunda I . .

Deborah ia esquecer tudo; e elle esqueceria também. Que admiração I

se nada e ninguém podia vir lembrar-lhes! . . .

Depois a situação era clara: fora vencida, sem saber que luctara! O
pudor enlouquecera-a, a fraqueza entregara-a, a brutalidade polluira-a

Que culpa tinha ella de tudo isso?. . .

Era por acaso menos honesta, menos casta, menos pura, que todas as
outras mulheres poupadas ao vandalismo bestial d'aquelle monstro? Com-
parara-a com uma viuva? Loucura! Nem a isso era ella comparável...
A mordedura d'um insecto nem sempre deixa vestígios; mas se deixa,
e elle morre espalmado depois do damno, que tem com issc a sorte do
mordido ?

E Pedro Soares ia caminhando e pensando na immediata realisação


dos seus sonhos.
Ia emfim chamar sua a Deborah, sem ter receio de ver a espreital-o o
olhar lascivo do frade de S. Domingos.
Dirigiu-se, portanto, a Lisboa, atim de regular alguns ilegocios da sua
vida, de prevenir sua mãe da opportunidade do seu casamento, e depois
seguir para Lorvão, em cujo mosteiro iria alliar o seu futuro ao da irmã
de Sarah.
!

XVIII

Vicios e virtudes

Quantas llòres das mais irisadas e aromáticas brotam e vivem nas


margens dos pântanos venenosos 1 Quantas podridões sobre a terra lhe

dão seiva e torça de que brotam as plantas mais delicadas e os fructos


mais saborosos I Até em terrenos arenosos, de aspecto árido e feio, reben-
tam os pâmpanos mais enramados e os cachos mais doces
A virtude, como se a Providencia veiasse por cila, conserva- se sem-
pi'c immune, nos focos mais insalubres!

Lorvão era o pântano, onde floriam plantas delicadas e aromáticas, o


areal onde despontavam vinhedos dulcíssimos 1 Os vicios do mosteiro
eram o guano, onde viviam o amor e a castidade, como brotam as espi-
gas louras nas terras adubadas com sujidades c detritos.
Alli, onde campeava a prostituição e o cynismo, a hypocrisia c o pra-
zer, a licença e a impenitencia, alli se tinham aninhado, e iam vivendo,
affagadas pelo sol da esperança, as duas irmãs Sarah e Deborah !

Acompanhavam-se sempre, de noite e dia, rezavam no mesmo altar,


dormiam na mesma cella, sentavam-se juntas á mesa do refeitório, ador-
meciam ouvindo-se na mesma prece, saudavam, á mesma hora, o sol que
nascia !

Percorriam o claustro de mãos dadas, trocavam os mesmos pensa-


mentos, enxugavam-se as mesmas lagrimas, narravam os mesmos sonhos,
mesmas noticias, tristes, como as de Jacob, alegres,
e liam, abraçadas, as

como as de Pedro.
Andavam ligados, estreitamente ligados, aquelles dois espíritos, palpi-
tavam da mesma forma aquelles dois corações, sentiam as mesmas do-
res, e sorriam-se, fitando-se ao mesmo tempo I

Nos lábios d'uma bailava o nome de Jacob, e logo. como um écho.


os lábios da outra o repetia, accrescentando o de Pedro, que se reflectia
nos lábios da primeira, com egual saudade e ternura 1
! ! :

4i6 MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Estavam, ás vezes, muito tempo mudas, talvez com o mesmo pensa-


mento,, e de repente explodiam uma palavra, uma phrase, que denunciava
esta secreta harmonia.

A timidez de Deborah quebrantava a vivacidade de Sarah, a coragem


de Sarah corrigia a timidez de Deborah.
No meio d'aquelle grande bulicio procuravam a máxima solidão ; e,

naquelle isolamento, acompanhavam-se cada vez mais !

Pedro, com as suas relações e influencia, impuzera, ao respeito d'a-

quella turba peccadora, aquellas creaturinhas innocentes.


A abbadessa conservava-se cada vez mais recolhida, e Philippa cada
vez mais buliçosa. . . O mosteiro continuava sendo um mundo, e a cella

de Sarah- um mosteiro ! . . .

As duas irmãs sabiam ao claustro como poderiam sahir a rua, em cum-


primento d'um voto, e logo voltavam a sua casa, sem que tivessem pro-
fanado o habito no contacto das mundanas.
Quando passavam, por entre as companheiras, ou\iam sibilar o mur-
múrio da maledicência, o riso do escarneo, o epigramma da inveja, mas
apressavam o passo, resguardando olhos e ouvidos, como se apenas as
açoutasse o vento e a chuva d'um terrível dia de inverno
Quando tinham de transitar por aquellas galerias, salas e camarás,

capellas e coros, por onde andava á solta o galanteio e a libertinagem,


punham os olhos no chão e levantavam o animo, como se fossem por
caminho enlameado, escolhendo os espaços mais enxutos e regacando
cautelosamente as saias.

A noite, á hora do serão, se pela sala do capitulo havia festa de bac-

chantes e as canções échoavam nas abobadas, as duas irmãs aconchega-


vam-se o mais possível na sua cella afastada, e, fechando a porta, conver-
savam, costurando, como em noite de inverno, a lareira, poderiam escutar,
ao longe, a chuva e a trovoada.

Quando não trabalhavam, enlaçavam as mãos e, uma á outra, se enga-


navam, occultando as mesmas tristezas e falando das mesmas esperanças.
— Sarah, que fizeste da tua alegria? Que fizeste d"aquelle ar infantil

e travesso, que era o remédio da minha mágua e o sol da nossa casa


— Que queres, Deborah: já sou uma mulher como tu, e preciso de
simular gravidade e juizo... Querias-me sempre irrequieta e banal, dis-

trahida e inconsciente, fútil como todas as creanças, e inútil para o conse-


lho e para a protecção ?

— Não, minha Sarah, só queria que não velasses tanto o teu coração
recheado de thesouros e de segredos, e me deixasses penetral-o com todos
os desvelos do meu amor
. . ;

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 417

— Não ves, Deborah, que acceitei o logar de teu pagem, louquinha,


para te seguir e defender, como se a minha mão pequenina, em vez do
prender a agullia com que laço estes lavores, manejasse uma espada em
defesa da minha dama ?

— Julgas-me então mais fraca que tu, mais fraca c mais limida, ou
mais innocente ?

— Talvez. Deborah, talvez. A dòr augmenta-me o alento e a resolu-


ção, e a ti quebranta e entorpece. Tu és mais nova, com mais edade mais ;

fraca com maior estatura ; mais sensivel com maiur coração, mais mulher
com maiores encantos I Pedro, que nos conhece, encarregou-me de velar
por ti me conservasse na petulância dos meus poucos annos, na
. . . Se
frivolidade do meu sexo, como poderia, inspirar-te confiança Não ouves ?

aquelles ruidos que se prolongam pelas arcarias do mosteiro? Tudo aquillo


é um dos muitos vcndavaes que eu já affrontei de cabeça erguida... Já
não tenho tempo para me sorrir dos revezes, porque preciso de pensar
na maneira de te defender d elles. Vamos, sr.' D. Deborah, confiae no
meu braço, mais que no meu sorriso. .

— Dé-me um beijo, meu nobre cavalleiro.


— Ahi o tens, do teu pagem, por conta de meu amo e senhor.
— A quem serves, mancebo, com tanta galhardia r

— Ao nobre capitão Pedro Soares, que estas horas a anda pelos re-

guengos do Alemtejo em torneios dalta justiça. .

— E por que dama andará elle nesse empenho


— Por minha Deborah ti, ;
por ti, que vaes ser sua mulher c voar
daqui nos braços do teu gentil heroe. . .

— Sarah ? Perdòas-me a alegria que me causam as tuas pala\^ras :

— Se te amo tanto, minha irmã!


— Dize me pois, Sarah, a minha felicidade com 1'edro não te entris-
tece ?

— Não, minha tonta, se lu desejas, anciosamente, o teu enlace, eu não


o desejo menos. Dás-me licença?. . . Elle, o Pedro, é o noivo de nós am-
bas. Que . . elle te ame e seja feliz, e eu feliz serei — Por que não ha de
uma mulher ter dois corações?... Imagina que somos duas a amal-o, e
que tu CS o deposito do teu e do meu atVecto. Isto não se comprehende
bem, mas é o verdadeiro — Ku dou-te a Pedro como a melhor recordação
do meu amor fraternal. Além de que, minha Deborah, Pedro é somente
leu... Ivstás tranquilla:
— Kstou; conheço a lealdade do teu coração... E queres que seja
franca, queix-s:
— Dize...
S . . .

41 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Confio agora em ti, mais que nunca . . . Nem sei por que ! .
. . Talvez
porque julgo o teu coração captivo doutro affecto. . . Eu não sei se digar

Doutro aftecto, que parece o desdobramento daquelle que Pedro foi ca-

paz de inspirar! Dize-me, minha Sarah, mas dize-m"o sem reservas, não é

verdade que, assjm como é fácil confundir o teu com o meu livro de missa,
a mesmacapa, os mesmos caracteres, o mesmo vermelho sobre as folhas,
as mesmas orações e signaes, se poderia confundir o meu Pedro com o
teu Jacob: Quantas vezes me tem succedido o engano! Se não fosse uma
flor sêcca que metti em certa folha, ou um pequeno geito que dei aos fe-

chos de prata!. . . quantas vezes eu não leria com a mesma devoção e fé.

no teu livro, como se estivesse lendo no meu!


—A differença está na flor, que raras vezes deixa de ser uma recor-

dação.
— Colhe outra, Sarah, arranca-lhe o pé, espalma-a sobre a tua prece
predilecta, fecha bem o teu livro, e deixa-a seccar... Agora abre-o, c
vè. . . Se é um amor perfeito, como podes distinguil o do meu, se elle tem
o mesmo velludo escuro e a mesma côr . . .


Minha querida Deborah, estás, innocente, provocando uma explica-
ção, ou melhor, uma confidencia, que eu tenho guardado tão cuidadosa-
mente, como se fosse um indicio da minha constância, ou da minha in-

sensibilidade!
— Sarah, não
F^ala, eu tua melhor amiga? serei a

— Pois bem. Sinto que, pelo menos, chegado o momento de é falar com
franqueza. . .

— Então, até agora ? . .

— Tenho-me deixado adivinhar... Não te tenho enganado, mas tam-


bém não me tenho confessado por forma a confirmar as tuas apprehen-
sões. .

—'(Juço-te, como quem espera ouvir-te a prophecia da minha felici-

dade futura. .

—E fazes bem; que eu ficaria muda, sempre que as minhas palavras


pudessem maguar-te o coração.
— Dá-me um beijo, Sarah!. . .

E as duas irmãs abraçaram-se e beijaram-se com ternura.


— Dize, então, começou Deborah.
— Reconheci em Pedro, continuou Sarah, qualidades tão distinctas,
que para ti as cubicei, desejando para mim outras eguaes.' Pedro foi, pois,

o original da minha phantasia apaixonada. Vaes comprehendendo;


- — Sim, continua. . .

— Pois bem; nunca fui tão generosa, que para ti cubicasse compa-
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 41.1

nheiro superior ao que para mim desejava.. . Se era até por mim, que
eu avaliava o que poderia fazer-te feliz. . . Sabes em que moldes dispuz o
meu Nos da cópia. Fica tu com o original, e eu contentar-me-hei
espirito?
com a reproducção. Tens tu a pessoa pois bem, eu ficarei com a im.a- ?

gem. Que diííerença haverá entre nós? Tu tens a obra do esculptor, e


. .

eu a do estatuário. Tens comprehendido, Deborah


. . ?

— Como não hei de comprehender, se te explicas tão bem?!


— Continuemos: Ku tinha sonhado Pedro, como quem sonha um ideal.

E achei-o tão perfeito, que só de ti o julguei digno. Accordando, vi .Ja-

cob, que me pareceu a sombra de Pedro projectada no caminho da minha


existência. . .

— Amai-o, não assim, minha Sarah? é

— Não — admiro-o— o que sei muito. c já Não c um ideal novo, é a


continuação do meu ideal. .lacob é para o meu coração de mulher o mesmo
que é duma mãe o filho que succedc ao que lhe morreu.
para o coração
t)s ideaes vêem do mesmo amoi-, como vem um segundo filho. Dá-sc-lhe
o mesmo nome do que fugiu, empresta-se-lhe o mesmo seio, dedica-se-lhe
os mesmos cuidados e desvelos, encastellam-se os mesmos planos!. .

K, afinal, estás percebendo, Deborah, o amor é o mesmo mata-sc a sau- ;

dade do que mon^eu, como se elle tivesse voltado!. . .

— 1*?', pois, Jacob, o teu segundo filho?


— Sim, o segundo rilho da minha phantasia de creança! Não sei

se o amo; sei o que lhe devo. Se o meu espirito e o meu corpo hão-
de pertencer a alguém, nmguem ha, livre como elle, a quem eu deva per-
tencer . .

— E serás com minha Sarah, assim o espero


feliz elle, I

— Mas não o espero cu!


— Não ama por acaso
te clic, ?

— Ohl se me ama! Digoo sem orgulho, mas com convicção, .\ma-me,


como elle nunca amou e como eu nunca merecerei.
— Disse to?
— Por mil formas, e sem palavras, quasi sem olhares ! Olhou-me
quando eu o não fitei —e eu senti-lhe o olhar. . . Mas, mais que no olhar,
e que nas palavras, elle me disse adorar-me, quando me defendeu, valo-
roso, contra insolentes cobardes e inimigos temerosos quando por mim
;

expoz e sacrificou a liberdade e a vida ! Como pode uma mulher pagar


estas dívidas? Amando? E' pouco. Sacrificando-se? Sim. Jacob, escravisado-
e perdido nos cárceres de Hespanha, já não é um homem que mereça ape-
nas uma palavra d'amor; c um heroe que espera uma solenne glorificação.
Se o amo não sei; mas sei que lhe pertenço: se lhe pertencerei, ignoro^
.

MYSTERIOS \)A INQUISIÇÃO

mas juro que não pertencerei a outro, que não ha na terra quem mais di-

reito conquistasse á posse inteira da minha vidai


— Esse fogo, essa energia, esse enthusiasmo, provam-me, Sarah, que
traçaste o teu caminho, que tanto pode levar-te á felicidade quanto á des-
graça . .

— Dizes bem, minha irmã. O que me alvoroça não é uma paixão, é


uma admiração; o que me aquece não será o amor, mas é o dever. Ja-
cob é um homem novo, illustrado, valoroso, elegante, nobre da melhor
nobreza, gentil no espirito, isto é, no caracter; pois bem, Deborah, explica
como puderes este phenomeno da minha alma — fosse eile um alquebrado
ancião, um plebeu grosseiro e deseducado, um fidalgo, ou um lacaio, e eu
pensaria da mesma forma... Tanto me lisonjeou e commoveu a heroici-

dade do seu animo, excitada pelo amor que eu, sem querer, lhe inspi-

rei! ! . . .

— Vamos, Sarah, não façamos prophecias que nos entristecem. Ima-


gina Jacob, livre, de \'olta -•.
Lorvão, ou a Lisboa, em busca dos seus
amores... Imagina isso, Sarah, e sorri, como eu sorrio, adi\inhando a
chegada de Pedro.
— Sim, minha irmã, tu és a captiva e o teu salvador de ti se approxi-
ma... Commigo c o contrário... L^m dia parto, mal não precises de
.mim, e irei por esse mundo a libertar Jacob. . .

—E esperas conquistar essa liberdade ?

— Espero cumprir a promessa que lhe fiz.. .

— E que promessa foi ?

— Viver, ou morrer com elle ! . . .

— Que grave trágico aspecto tomas, rainha


e Sarah, ao dizer taes pa-
lavras!. . . Afastemos estas nuvens. . . Agora sou eu o pagem, que, em
nome do meu amo e senhor, te dou um beijo. . .

—E a quem servis, gentil mancebo r

— Ao brioso cavalleiro Jacob Adibe, que, pela Inquisição de Hespa-


nha, anda atfirmando o valor do seu caracter e a nobreza da sua paixão...
E as duas irmãs, depois de se presentearem com um sorriso, cahiram
nos braços uma da outra, a soluçar, a soluçar, como duas creançasl
Extinguira-se o ruido festivo no claustro do mosteiro, e o sino, na
grande torre, fazia soar compassadamente a meia noite. . .

No dia seguinte, ao começar o dia, quando as duas irmãs voltavam da


sua reza, do coro da egreja, Sarah foi collocar-se, de pé. junto da pe-
. . : . . . .

íMYSTERIOS 1X\ inquisição 421

quena fresta que olhava para o monte, por onde Pepe costumava guardar
as suas ovelhas.
Deborah, com a fronte reclinada n'uma das mãos, junto do genutlexo-
rio, não despregava o olhar de sua irmã.
Sarah parecia abstracta. . . Olhava o monte e o vaile, com tanta tris-

teza e fixidez que nem parecia ver aquillo para que olhava ! . . .

O que se passaria n'aquelles momentos na cabeça phantasista da


pobre noviça ':

Que noticias pediria ella ás ervas do monte e ás flliveiras que o coroa-


vam Estaria recordando aquelles momentos em que Pepe e Jacob a vi-
?

giavam com tanto zelo, ou esperando que alguém viesse pela ribeira na
direcção do mosteiro ?

Que ella tinha os olhos vermelhos não offerecia dúvida. .

Não dormira, verdade seja; mas não era só da insomnia tamanho dam-
no. . . Com certeza ella sonhara accordada. .

— Sarah Que vês d'ahi f ?

— O a beijar o monte
sol c as o\elhas a procurarem a sombra. .

— Tão pouco ! ?

— Vejo a ribeira sequiosa, e o valie deserto.


— Esperas alguém ?

— Espero, disse Sarah, distrahida.


— Pedro ?

— Não Pepe. ;

— Não disseste que elle fora a Sevilha ?

— Disse. . .

— E se núo vier?. elle .

— Peor para nos todos ! . . .

— Tens razão; compartilhamos a tua dor.


— Dize antes: ficaremos com as tuas saudades. . .

— Não comprehendo. . .

— Se Pepe não vier, irei ter com elle.

E Sarah continuou a olhar com a mesma fixidez I. .

— Ha quanto tempo partiu o teu pastor


— Ha um século !

— O plano que levou era c acertado elle fácil ;

— Era simplesmente arriscado mas o ; isso c menos. Pepe é muito


audacioso e intelligente. O meu receio c de que tenha chegado tarde.
— Isso seria uma traição. Lembra-te do que escreveu Gil a respeito
da intervenção d'el-rci: Jacob será captivo muito tempo, mas não exe-
cutado. .

MVSTEKIOS DA liNlIUISIÇ-io. — VOl- I. FOI.. 5'.


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E OS marUTÍos ?

— Elle c forte, resistira ás torturas raoraes; ás outras o poupará a enér-

gica intervenção de António Carneiro. Sarah ! deixa essa posição, que te

fatiga. . . Não vês que me fazes soffrer. . .

— Isso Não quero aggravar, com as minhas,


não, Deborah, isso não.
as tuas saudades. Perdôa-me; adormeço ás vezes n'esta attitude, e bom é
que me accorde a tua voz amiga. Eu enganeite. a ninguém espero, e . .

espero o acaso, o mysterio, a surpresa Melhor direi, dizendo aguardo... 1

Que afinal a vida raão para, e alguém ha de vir, ou quem amamos, ou


quem abborrecemos. Hão de chegar noticias, boas ou más, que nos falem
de vivos ou de iTiortos, de esperanças, ou de desesperos. . .

— Senta-te aqui, Sarah, e olha para mim. N'essa cabecinha esvoaça


um plano que me occultas... Falaste em partir... Queres dei.xar-nos?
— Quero. . .

— E para onde vaes !

— A ver esse homem, para lhe reforçar o ânimo. Quero que elle me
veja no dia em que o soltarem, ou á hora em que elle succumbir!
— E a esse ponto me esqueces?
— Não esqueço, Deborah, e hei
te de estar junto de ti, emquanto não
tiveres o braço de Pedro para te defender. . .

— Mas Pedro, logo que eu seja.. sua mulher, partirá para a índia, onde
Albuquerque o espera. . . E eu? com quem ficarei durante essa longa e
perigosa ausência ?

—A velha Joanna adora-te; serão o amparo uma da outra, e Pedro


as recommendará aos seus melhores amigos. .

—Sarah, tu és egoista. Pois crês absolutamente na minha felicidade ?

—Por que não hei de crer? Vaes pertencer ao homem a quem amas,
e eu nasci para nem sequer pertencer a mim mesma!
—Como te illudes, minha Sarah Como te illudes Também eu, al- I !

gum tempo me illudi, mas essa illusão vae a desvanecer-se. Olha para
mim, Sarah, vê bem os meus olhos. Pois não adivinhas, pelo que elles . .

espelham, que a minha alma chora cá dentro, com as dores d'um grande
mvsterio ?

— Sim, minha irmã, cobre-te o rosto um vco de melancholia, tens no


olhar o reflexo das lagrimas, que não choras, porque as entornas sobre o
teu coração generoso; mas todas essas nuvens se hão de dissipar ao calor
dos beijos de Pedro, como se dissipou, ha pouco, a neblina da serra aos
raios da luz da manhã . . .

— Repito, como te illudes, minha Sarah! Amo Pedro, e tremo ao pen-


sar no dia em que serei sua mulher! Ha tempo já que guardo no intimo
! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

do peito um horrível segredo! O espectro da desgraça caminha para mim


implacavelmente, matando-me o sorriso e a esperança. O meu noivo as-
susta-me, apavora-me; quando elle se approxima, tenho tentações de fu-

gir; se elle me faia, parece-me ouvir o écho das suas palavras repetido por
algum monstro, que se abrigasse nas cavernas do meu seio!. . .

— Enlouqueceste, Deborah?
— Talvez, minha irmã; mas tu, que não possues o meu segredo, não
podes julgar a minha razão. .

— Ha quantas noites me espreitas para ver se eu durmo: e eu velo


com os olhos cerrados! Ha quantos dias me falas de venturas, e eu sor-
rio, emquanto os meus olhos retraem o pranto!
— Fõe a tua mão aqui, Sarah, sobre o meu coração — julgas que elle

palpita? Não: isso que sentes não é a vida que circula, são os soluços e
os gemidos que ahi tenho guardados, para que tu os não ouças!
— Valha-te Deus, creança. Para que recordas o passado? A vida é
como o céo. . . já o viste mais escuro na primavera, por causa das nuvens
do inverno? O tempo e a melhor nortada — \arre nuvens e desgraças. . .

e não deixa vestígios nem d'umas nem doutras


— E's ainda muito innocente, Sarah... Nunca viste uma estrella que
se desprende e cor:-e no (irmamento? Ha desgraças i.)ue dão em trevas o
que essas estrellas dão em lu/ — dcsapparecem rapidamente, mas deixam
um longo rasto atraz de si

— Perturbas-me o espirito, Deborah; pois não conhece Pedro o teu


passado intimo ? O que ha nelle de alegrias e tristezas, de lagrimas e sor-

risos, de venturas e desastres? Guardaste-lhe algum segredo? Culpa-te


elle do raio que te feriu, e não foi até elle quem te livrou do assombro e
te restituiu á vida? Não foi elle próprio assistir á execução da justiça dos
homens e de Deus, para elle só ficar juiz das tuas virtudes e senhor da
tua castidade? Se elle, bom e justo, rasga, cheio de enthusiasmo e de
amor, uma pagina negra da tua vida, e que a desgraça, e não tu. escre-
veu, por que te enches de terror deante de teu futuro marido? Que re-

ceias tu, Deborah ? Que os espectros \enham perturbar os sonhos da tua


felicidade? Que a justiça e o amor se convertam um dia em generosidade
c compaixão?. . . E's injusta, Deborah, para com o nosso Pedro, tão con-
stante nas suas crenças e affectos? Vamos, limpa essas lagrimas, e só as
deixes correr quando a consciência te disser que foste causa voluntária das
máguas de que te queixas. Guarda o teu segredo de toda a gente, mas
não o guardes de quem tem direito a conhêcel-o. Os teus receios partem
da delicadeza da tua alma. Nos braços de Pedro, em breve, sorrirás de
tão infantis preoccupações. . .
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—E tu, apesar de tudo, ficarás junto de mim, até o momento em que


te disser: «Podes deixar-me, Sarah; a consciência chama-me innocente,
Pedro ama-me sempre, sou feliz!» Promettes?
— Mas, Deborah. . . disse Sarah, voltando a examinar o monte e a ri-

beira.
— Preciso de Sarah; juras-me que não vaes abandonar-me?
ti,

— Juro, sim, disse Sarah alegremente, sem olhar para sua irmã.
— Elle vem! lá vem! depois, n'uma vivacidade
elle lá gritou, infantil. .

.íuro, sim; não te deixarei, já que assim o queres. .

E, continuando a atfirmar-se:
— E' elle, não ha dúvida; vem do lado do casal, e vae já descendo a
encosta... Queres vel-o, Deborah?
— Quem que vem? Pepe?
é
— Não; respondeu-lhe a irmã, sem desviar o olhar do monte.
— Pois, será possível? E' o teu Jacob, minha Sarah?
— Não, Deborah; anda ver. . .

— Mas quem então? é,

— Pois não vês, minha tonta? E' Pedro 1 o nosso Pedro!


E Sarah abraçou e beijou alegremente a irmã.
Deborah poz-lhe as mãos nas hombros e afastou-a, meiga, mas triste-

mente.
— Enganavame a tua alegria, minha irmã. . .

Sarah corou e baixou o olhar. . .

— Dir-sehia que esperavas anciosa o teu pastor ou o teu captivo; mas.


afinal, a ambos preferes o teu irmão. . .

— Dize sempre, Deborah, o nosso Pedro. .

— Sim, chamar-lhe-hei sempre nosso. E' pequena de mais nos meus


lábios a palavra meu. . .

— Deborah! injurias a minha dedicação.... Se queres, parto hoje


mesmo.
— Como parecem vicios, Sarah, as nossas grandes virtudes! Porque
nos amamos, nos illudimos! Quiz revelar-te o meu segredo, e não o com-
prehendeste! occultaste-me o teu, e eu adivinhei-o! Os nossos corações
são muito mais leaes que os nossos lábios!
— Deborah!
— Não cores, que não tens razão para isso. Não te en\ergonhes do
sacrificio, que eu reconheço nelle a grandeza do teu coração. Abraça-me
agora e beija-me, e vamos enlaçadas pelo mesmo amor e pelo mesmo
infortúnio, guiadas pela mesma estrella, ao encontro do nosso Pedro...
— Vae tu, vae tu só. . .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 42 =

— Não, vamos ambas; emquanto eu vou abraçar a obra do esculptor,


abraçarás tu a do estatuário. . . Eu saudarei o homem, tu pensarás na ima-
gem — Segue-me, Sarah, e verás a sombra de Pedro no caminho da tua
existência. . .

E as duas irmãs desappareccram na galeria do mosteiro.


Entretanto, Pedro subia rapidamente a escadaria principal, acompa-
nhado por um servo do mosteiro e uma monja da ordem.
Ao ver as duas irmãs saudou-as alegremente, e, n um so abraço, as
enlaçou, beijando-lhes os cabellos.
— Deborah, disse Pedro, minha adorada mulher! desfez-se em fumo o
espectro dos teus sonhos! O teu algoz morreu de joelhos sobre o cada-
falso! Não lhe dei o perdão, mas voto-o ao esquecimento.
Deborah empallideceu e deixou pender a cabeça no hombro do seu
noivo.
—E tu, minha Sarah, alegra o teu bello coração ; Philippe occupa o
throno de Izabel, e, aos rogos da formosa Joanna, vae perdoar as culpas
contra a Fé . . .

Sarah occultou o rosto no outro hombro de Pedro Soares.


Pedro conchegou a cabeça das duas irmãs de encontro ao peito. .

E este grupo ficou immovel c mudo no meio da grande galeria alu-

miada pelos raios de sol, que entravam pelas altas gelosias abertas na
abobada.

Depois d(j almoço, as tVeiras, monjas e noviças, desceram á cerca e fo-

ram, em grupos, procurar a sombra do jardim.


Sarah volteou entre as suas companheiras, e foi scntar-se, isolada,
perto do grande lago, debaixo da ramaria que o cercava.
A pouca distancia, no pequeno caramanchel natural, formado pela
grande oliveira, cujo tronco ficava além do muro, sentou-se Deboi'ah junto
de Pedro.
.\ndavam as abellias zumbindo no parreiral, e mudas, mas em voos
incertos, ora beijando-se no ar, ora pousando nos cálices das Hores, duas
borboletas brancas agitavam as azas como duas pennas levadas pelo vento,
ou as erguiam unidas, como duas mãos postas para rezar!...
Na mansamente um veio dagua, que mal encrespava a su-
fonte corria
perlicie do Num pequeno a\iario, quasi occulto em moita de ro-
lagi_i. . .

seiras, um casal de rolas apiiulialadas, isto é, com manchas vermelhas no

peito côr de leite, davam, no seu rolar e carpir, uma idéa da vida con-
. !

42G MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

ventual ; ora gemiam tristemente, ora riam em gargalhadas, sèccas e iró-

nicas 1. . .

Na horta andava cavando o hortelão, de mangas regaçadas e rosto

crestado. As oliveiras agitavam-se mui brandamente, como se não qui-


zessem perturbar tanto vozear do bando feminino, e, n'um castanheiro,
que assombrava a escadaria do convento, cantava, mais alegremente que
nunca, uma toutinegra real ! . .

O estio estava em toda a sua formosura e pujança!


Não era para admirar a presença de Pedro na cerca do mosteiro. Por
outros recantos da horta e do jardim, em id\'llios estivaes, alguns guapos
mancebos refrescavam á sombra os seus corações apaixonados!
E Pedro estava em condições especiaes; tinha privilégios que a corte

lhe concedera, e andava em cuidados e desvelos que anticipavam um en-


lace, que era breve seria rematado na egreja do mosteiro.
Sarah parecia uma sentinella entre os dois aviários —• o das rolas, que
gemiam, e o de Deborah e Pedro, que segreda\'am.
A formosa noviça compunha, com liores naturaes, uma grinalda de
noiva, e, por vezes, como para a afteiçoar á fronte de sua irmã, a cingia
sobre os cabellos, e lhe admirava o effeito, debruçando-se na borda do
lago e espelhando-se na agua parada e transparente. .

Depois sentava-se de novo, e, emquanto sobre os joelhos ia ageitando


em curvas as teores de laranjeira, enviava furtivamente um olhar de ale-
gria, ou de resignação, para o grupo que esta\a carinhosamente guar-
dando.
As faces de Deborah, ha tantos dias abatidas e pallidas, rosavam-se
em cores vivas, como se estivesse n'ellas a reHectir-se o sangue que lhe
batia no coração!
Pedro banhava, no seu olhar enternecido, o vulto da sua noiva, envol-
vendo-a, desde a coma dos cabellos até a fímbria do vestido
E, algumas vezes, emquanto, de soslaio, media aquelle êxtase, Sarah,
esquecida da sua tarefa, em movimentos convulsos, esfolhava, nervosa e
inconscientemente, as flores que tinha no regaço. . .

Pedro rompeu aquelle silencio.


— Deborah, levanta do chão os teus olhos, que teem sido as estrellas
da minha vida, e, repete-me, htando-me, aquella doce confissão, que soou
nos meus ouvidos, como um h\'mno de victoria nas luctas da minha exis-

tência.. . Foste tu que rasgaste o véo negro da minha orfandade, e que


descobriste, illuminando-o, o caminho do meu futuro ! Ao ver as tragedias
do mundo, a perfídia dos homens, eu chegaria a negar a própria existên-
cia de Deus, se tu não tivesses surgido, qual anjo da minha guarda, afíir-
!

MYSTERIOS UA INQUISIÇÃO 427

mando-me a piedade do Céo. . . Debonih, ninguém olha para nós — olha


tu para mim I

E Deborah, depois de ter olhado para Sarah, que via enu^egue á sua
faina de jardineira de amores, títou Pedro, tão triste, tão meiga e tão pie-

dosamente, como pode um doente fitar a imagem de Christo, na hora ex-


trema !

— Disseste-me, um dia, Pedro, que, apesar da minha desventura, me


acceitavas para tua mulher. Amava-te então, como hoje te amo. F^oste tão

bom, tão generoso, tão amoravel, que, ao veres-me desgraçada, não aos
olhos de Deus, mas aos meus próprios olhos, como quem lança um cabo
a um como quem dá luz. a um cego, me olVereceste os teus me-
naufrago,
lhores thesouros —
o teu braço, o teu amor, e o teu nome O mesmo raio !

que fulminou meu pae, te aureolou a meus olhos Ainda bem me não ti- !

nham envolvido os crepes da orfandade e já tu me lançavas sobre a fronte


a grinalda de noiva! Quando me julgava só, coUocaste a meu lado, tu, que
vales por toda a gente! Não quizeste só melhorar-me a existência; qui-
zeste dar-me uma existência nova ! (>om os teus carinhos velaste as minhas
noites, e procuraste apagar-me na memoria a minha vida passada. . . O
teu amor foi um baptismo purificador. . . Vai própria me julguei, quando
me abriste o teu peito, como se de novo renascesse do seio de minha mãe!
Na saudade, que viçava escura no meu orfanado espirito, foste tu quem
poz a corolla verde da esperança... Quem te não hade amar, Pedro?
Como meu bom amigo
poderia eu recusar-te, ?

— Fala-me em amor, Deborah, que a gratidão não se parece com



elle. Ha entre uma e outra tanta distancia quanta entre a devoção e o de-

ver. Não te offereço o meu coração; reclamo o teu. Como poderias tu de-
ver-me a existência, se eu vivo do teu viver Que me deves tu Protec- ? ?

ção? Pois não vês, que protegendo-te, me protejo; amando-te, me felicito


e premeio? Se tu me captivaste, como posso eu oííerecer-me Julgas, por ?

acaso, que a vida é sopro que anima um coração apaixonado A vida com ?

amor só palpita em dois corações... Separa-os, e com as raizes despe-


daçadas, morre toda a vida e todo o amori Hoje, porque te amo, amo
tudo — amo-me a mim próprio!. Acho bello o mundo, creio em Deus,
. .

quero a gloria, confio no futuro... Deixa-me, e levas comtigo a minha


luz, a minha voz, a minha alegria, a minha vontade; posso ficar no mundo,
como fica a arvore arrancada da terra, valor de commercio, matéria de
industria, transformada e trabalhada pela mão da arte —
mas sem raizes
que estremeçam, sem seiva que a accrescentc, sem ramos e sem folhas
que a embellezem, sem fructos que a enriqueçam
Deborah, não me fales em gratidão, que a gratidão não c uma voz.
! ! . .

428 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

é um écho ; não é uma luz, é um reflexo ; não c um impulso, é uma


vibração
— Amava-te antes de te agradecer. Dei-me a ti, antes de me conquis-
tares... Se te falo em reconhecimento, não é porque pretenda pagar-te
quanto devo, mas porque preciso de te lembrar quanto valho. .

— Tu vales, Deborah, mais que todas as mulheres da terra e que to-

dos os anjos do Céo ! Nenhuma me parece mais bella e mais casta ! . . .

— Pois bem, Pedro; vens repetir-me, sem hesitação, a confissão e a pro-


messa que me fizeste, com a mesma confiança, a mesma generosidade
ou o mesmo amor; jurando sobre a pureza da minha alma, livre, bem
livre de recordações tristes, de preconceitos, de fraquezas, de ciúmes das
sombras que fugiram, como se me tivesses levantado do meu berço e me
tivesses conservado nos teus braços até o dia do nosso casamento ?

— Sim, Deborah. sim. . . . .

— Vens hoje (deixa-me falar-te com toda a franqueza) com toda a lu-

cidez do teu espirito, com todo o fogo da tua paixão, zeloso da tua e da
minha honra, dizer- me que estás disposto, mais que disposto, votado á

consagração da minha honestidade e a softVer todas as consequências, to-


das, da infernal desgraça de que fui victima e de que tu, espontânea e nobre-
mente, assumiste a responsabilidade perante o mundo em que vivemos ?

— Duvidas de mim, Deborah?


— Não duvido; mas quero que fixes bem as minhas e as tuas palavras,

dietas a esta hora, tendo Deus por testemunha; a esta hora em que tanto
posso dizer- te — «serei tua mulher» como posso subir áquella torre e d'ella

me lançar sobre esta terra que pisamos. . . Quero que me jures, com as
tuas mãos entre as minhas, como se as tivéssemos sobre os nossos cora-
ções, pela memoria de teus pães, pela tua honra de cavalleiro, pela tua fé

christã, pelo teu amor, pela vida de Sarah, e até pela gloria da tua ban-
deira de soldado, que sob as lousas de S. Francisco e com as cinzas do
Aragonez fe Deborah, ao pronunciar este nome, baixou os olhos) ficaram
esquecidas todas as minhas desventuras, e nada accordará no teu animo o
sentimento do ódio, da vingança e do ciúme
—-Deborah, Pedro levantando-se e batendo com a mão nos co-
disse
pos da sua espada de cavalleiro, sobre esta cruz que representa a minha
religião, o meu dever, a minha gloria, o nosso futuro, a memoria de meu

pae e a honra do meu paiz — juro. . .

— Dá-me a tua mão, Pedro; serei tua mulher.


E. porque Sarah os olhava inquieta e febril, os dois amantes cruzaram
um olhar tão fixo e demorado, que bem se comprehendia que n"elles ti-

nham voado dois beijos de amor e de esperança. .


Deborah, disse Pedro levantando-se e batendo com a mão nos copos da sua espada
XIX

Os sonhos de Philippa

Passaram se alguns dias, e l'epe sem voltar a Lorvão! Isso não impe-

diu que de Sevilha chegassem noticias ao mosteiro, não trazidas pelo pas-
tor, mas morgado de Travanca, que sahira do reino em missão de con-
pelo
Hespanhas e arcebispo daquella cidade;
fiança junto do inquisidor-gcral das
não para Sarah, que as pedira com tanto interesse, mas para a lilha da
abbadessa, que apenas ambicionava obter alliados, em Hespanha e cm
Roma, para inutilisar a guerra que já lhe movia a corte de Portugal, ir-
ritada com os escândalos de que Philippa era a principal responsável.
N'um ponto, porém, se pareciam as noticias trazidas pelo morgado
com as que traria mais tarde o-alegre rapazito —
rio que se referia a .Jacob.

Deza era homem liiio e descobriu notável semelliança entre a situação


d'elle e a da formosa pretendente ao abbadessado de Lorvão.
Philippe, no tiirono de Izabel, poderia, d\im para outro momento, re-

duzir-ihe o poder ao governo do seu arcebispado; e a influencia da rainha


D. Maria no espirito do rei de Portugal, accrescentada com a reacção do
grupo de cortezãos, que já rodeava o príncipe real e reclamava a reforma
e a disciplina para os mosteiros portuguezes, poderiam então abalar o po-
der da velha dynastia das Eças, enfeudadas em diversas ordens relip:iosas.
O pensamento de Deza coincidiu, com o pensamento de Philippa.
Deza pensou na futura abbadessa, logo que falleceu a mulher de Fer-
nando V, e Philippa pensou no inquisidor, quando o morgado, para se vin-
gar de Jacob, se resolveu a preparar a entrega do moço foragido ao tri-

bunal do Santo Uflicio.


Philippa estava em condições de ser um agente maravilhoso dos inqui-
sidores hespanhoes. As mais gradas famílias de judeus christianisados na
Andaluzia emigravam para Portugal, e, se as mulheres procuravam os
mosteiros, para, na qualidade de conversas, darem a toda a Península
garantias de lldelidade catholica, os homens, por causa das mulheres con-
MYSTKUIOS HA INnnsU.ÃO. — VOl,. I. FOL. 34
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

vertidas, e das pervertidas que enchiam Lorvão, por alli pairavam a miude,
religiosos ou seculares, em volta de seus amores.
Além de que, Philippa era mulher de peregrina bclleza, e a fama dos
seus encantos chegara a todos os pontos do reino, onde a imaginação da
mocidade sonhadora e os appetites viris creavam uma lenda, que era o
iman mais enérgico para attrahir galanteadores dos mais ricos em dinheiro
e em aventuras.
Jacob tora a primeira presa, e boa presa, e dava garantias de que po-
dia ser a primeira de uma série ha muito cubicada pelo poder theocratico
hespanhol.
Eram frequentes as apresentações em Lorvão, de ricos christãos no-
vos, ou judeus e mouros contumazes, que confiavam demasiado na poli-

tica fraca e dúbia de D. Manuel e nos olhares seductores da ardilosa monja


lorvense.
Comtudo. Philippa d'Eça, so, e não tendo o menor interesse em asso-
ciar sua mãe aos trabalhos da sua agencia diplomática, reconhecera a ne-
cessidade de se associar a alguém, rico de fortuna e miserável de escrú-
pulos, que se encarregasse das missões externas, e fosse, ao mesmo tempo,
alcaiote em negócios de amor e espião na politica fradesca e inquisitorial.

O morgado de Travanca tinha todas as condições para esta dupla tare-


fa. Philippa lisonjeava-lhe o orgulho, distinguindo-o com o favor da sua in-
timidade e a sua estúpida ambição de figurar no mundo, offerecendo-lhe
ensejo para tratar, em seu nome, com as mais altas personagens, desde o

Tejo até o Tibre.


Por tudo isto o morgado, que viajara até Sevilha, com as credenciaes

de embaixador extraordinário da mundana religiosa, mal chegou ao mos-


teiro, foi logo recebido naquella sala secreta, que já surprehendemos, e

que tão disfarçadamente communicava com a cella de recepção da abba-


dessa sua mãe.
Philippa recostava-se já, com tão descuidada elegância e altivez, nos di-
vans da sua camará luxuosa, que, quem a visse, se, por vezes, a julgava

odalisca habituada aos haréns do Oriente, outras a confundiria com uma


princeza dos melhores thronos da Europa.
— Esperava ancioso o meu caro D. Sancho, e até já receara que o
tivessem perdido por essas terras os olhos das andaluzas.
— Não os vi eguaes aos vossos, minha querida Philippa, ou as sauda-
des que dos vossos levei me não deixaram guiar por aqiielles que com
elles se pareciam.
E o morgado, approximando-se, em vcnia de cortezão, beijou a extre-
midade dos dedos de Philippa.
: . .

MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO

— Kcpaiaste. meu caro morgado, que vos saudei pelo vosso nome de
baptismo
— Sim ; e, nisso \'i mais uma pro\a de que me anda a sorrir a cstrella

que me vae guiando. . .

— Trazeis, pois, boas novas :

— Das melhores, devia eu di/er, se não tivesse ainda a esperança de


trazer outras, que destas não terão inveja.
— Quero sei- generosa comvosco. hoje. Sentae-vos e beijae-me outra
vez, mas aqui. . .

K levou o dedo a um pequeno signal, negro como os seus olhos, e que


muito próximo delles lhe enfeitava a face direita.

O morgado inclinou-se sobre o rosto da monja, e, soltando um sus-


piro, tão banal como a expressão da sua physionomia, sentou-se no divan.
— \'amos ao que interessa, disse Philippa; falastes a Deza ?

— Mal cheguei. . . Acolheu-me ião distinctamente que logo vi quanto


a calumnia ainesquinha a tidalguia do honi'ado aixebispo. .

— Mostrastes-lhe
o meu recado ?

— Que com grande avidez e que guardou com o sorriso mais


elle leu

franco e alegre, como se ti\cssc leccbido uma promessa de namorada. . .

— Rebaixaes\'os a mcLis olhos, morgado, falando com tanto prazer de


tal acolhimento. O servilismo mata-vos a gentileza de fidalgo. . . l'm pouco
de ciúme seria mais nobre. .

— luiganaes-vos. minlia querida; encheu-me de orgulho que elle ti\'esse

por melhor esperança o que possuo por demorada conquista...


— Parece-me extemporâneo esse orgulho... O que pago por conta
não leva confissão de maior divida. ( ) principal é saber se Deza está sa-
tisfeito commigo.
— Satisfeitissimci, e tanto, que até deseja incumbir-vos d Uma nova
missão, que seria dillicil, e que elle não \os confiaria, se não conhecesse
já o vosso talento e engenhos.
— Trata-se de Pedro Soares r

--Nada disso. K' ainda a respeito de Jacob...



Que mais é necessário? Não o tem já em seu poder?
— Assim é: mas para se levantar no conceito do novo soberano, pre-
cisa Deza de arrancar a .lacob, uma solenne apostasia das doutrinas de

que elle faz alarde, e que estão gerando na Allemanha uma tal revolução
que ja chegam até nos os échos dos seus clamores. Como sabeis, a here-
sia começa a invadir o espirito de muitos padres da Egreja, e o scisma
vae ja inventando os seus apóstolos. Kssa revolta, minha formosa prin-
ceza. é mil vezes peor que os erros do judaísmo. Moisés e Mahomet não
. -

432 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

entram no reino do Céo... O perigo esta em despir o catiiolicismo dos


atavios dos concílios. A reforma insiste em deixar o Christo nú, sobre o
Calvário, ou apenas de túnica miserável, na barca de Pedro ! Do norte
vêem gritos de protesto contra o manto imperial que já cobre os hombros
de Jesus 1 Bem vedes que o christianismo primitivo não se dá bem com a

corte de Roma, nem com o tribunal do Santo OfVicio. . .

— Nada me interessa tudo isso... Que pretende elle que eu faça:


— Coisa muito simples: que concorraes para que Sarah, que Jacob
adora loucamente, escreva ou fale ao protestante, e o arraste á pública
confissão do seu arrependimento. .. Tendei comprehendido?
— Nada mais simples, disse Phiiippa. Sois meu camarada e sócio, não
é verdade: Pois bem, raptae Sarah, e levae-a aonde fòr necessário.
— Não é assim, violentamente, que elle deseja a empresa, ^'ão muda-
dos os tempos. . . Esse escândalo seria a vossa perdição, a minha, e não
daria o resultado que Deza appetece. Neste momento, desde que Phiiippe
substituiu sua mãe, a politica de António Carneiro está triumphante; D. Ma-
nuel resiste agora habilmente ás antigas reclamações de Castella. . . Cum-
pre-nos transigir com os acontecimentos.
—E por que não obrigam Jacob a submetter-st ? Tão enfranquecida
está já a Inquisição, que nem para isso serve ?
'
,

— Vejo que não comprehendeis estas Sempre vos digo, entre- coisas.

tanto, que Jacob se mantém nos cárceres da Inquisição, mas condicional-


mente, por ser portuguez. Não é caso novo. Ora, a prisão pode ir muito
longe, e até talvez além da vida do novo rei. .

— Pois começam essas esperanças?



— Sem dúvida; Phiiippe tem xida ameaçada. Tão licenciosa tem sido
a

que, ainda no começo do seu reinado, já os physicos lhe estão contando


os dias. O formoso príncipe é tão rico em amores e tão libertino em aven-
turas que Fernando V não deixa de limpar todos os dias a sua coroa im-
perial, na esperança de que lhe seja necessária brevemente. ..

— Estamos, pois, em férias ? . . .

— Exactamente, minha querida Phiiippa, estamos em férias. A forço


está agora desarmada, e, por isso, são indispensáveis a traça e a trama. . .

— E Deza indicou o processo?


— Se se tratasse de força, elle indicaria... mas de traçai... Valha
nos Deusl... Para isso é que se inventaram as mulheres bonitas e intel-

ligentes. Além de que, Sarah está aqui, sob as vossas ordens, ama Jacob...
Mas, para que estou eu ensinando o Padre-Nosso? . . .

Phiiippa íicou alguns momentos pensativa, e afinal continuou:


— Mas, se Phiiippe ameaça o poder de Deza, de que me serve uma
! . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 43>

alliança com uma força desarmada ? Amanha a corte de Lisboa, com


a intriga dos beatos e moralistas, expulsa-me daqui, e Deza não me
acode
— Que grande engano! De/.a pode perder-se no conceito do rei, mas
não no do Papa. Roma está com eile, e elle porá o Pontifice do vosso lado.
Então assim se expulsa uma Philippa d'Kça do mosteiro de Lorvão? Dae-me
o vosso nome e os vossos olhos e ser-me-hia mais fácil desthronar D. Ma-
nuel que D. Manuel tocar n um si) dos meus cabellos. .

— Posso, pois, contar com a C(")rtc de Roma ?

— F^oi Deza quem mo assegurou.


— Bem; acceito o encargo. Sarah . . irá a Sevilha.

— K quem ha de acompanhal-a :

— Ella escolherá.
— Será prudente isso ?. .
-.

— E', se vós a seguirdes. . .

— Dispondes de mim, senhora minha.


— Está bem. Conversarei com Sarah e hei de convencel-a de que a
liberdade de .lacob está dependente da intervenção delia na conversão
que se pretende. Poderei até inventar uma missisa do judeu... Sabeis
imitar a lettra de Jacob ?

— Ha uma coisa apenas que cu não sei, c desobedecervos. . .

— Tenho cartas d esse homem, e isso é um grande auxilio ! Podereis


copiar a lettra e o estylo. Houve tempo em que Jacob me escreveu, com
certeza, palavras apaixonadas como as que deve ter dirigido aos seus no-
vos amores. Ha nellas o reHexo d'aquelle feitio impetuoso, enthusiastico,
que todas lhe conhecemos. As phrases d'amor parecem-se todas umas
com as outras. Mais um pouco de vigor na linguagem dos novos. O meu
receio é o de que não as comprehendaes bem. . . Será bom que haja cui-
dado em ser menos sóbrio na Conheço bem os homens e as mu-
lisonja.

lheres. As virgens são as mais modestas, e os homens a essas exaltam


mais as prendas do coração que a belleza do corpo.
E Philippa abriu um pequeno cofre de prata, de que foi tirando alguns
rolos de pergaminho, cintaaos com lios de seda de diversas cores.
— Este é o do arcebispo de Coimbra. . . este de D. Álvaro de Cas-
tro, ah ?. . . parece que c agora. . . Pois não é, fio verde quer dizer que
foi n'este que tive maiores esperanças... é d' um cónego da Sé dEvoral
Olhe, morgado, v.è este amarello: Sabe o que quer isto dizer ? E" do phy-
sico-mór, que se demorou em Lorvão três mezes, para me tratar das sau-
dades que me fez soHrer um esbelto fidalgo que morreu na Índia ! . .

Até que cmlim, ca está o lio axul ; o ciúme nf.o pode ser senão de Ja-
. . . .

4'34 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

cob... um tigre ciumento este maldito marrano I E sempre assim: os


mais ciosos são sempre os mais volúveis. . .

— E o ultimo, D. Philippa?. .

— Esse não escreve ...

— Por que é mais cauto?


— Não-, porque me diz tudo quando me vê... E' homem de mais
acção que litteratura. .

— Dae-me, pois. um pedaço de fio azul. .

— Tomae-o, disse Philippa, imitae-o quanto puderdes: exercitae-vos as-

sim a dizer-me o que apenas traduzis habitualmente, em elogios aos meus


olhos. N'esse discurso amoroso não vos esqueçaes de affirmar que elle resis-

tirá ao Santo OíTicio, soffrendo todas as torturas, até a do cadafalso...


Mas que morrerá afflicto e impenitente, se não lograr vel-a antes da hora
fatal.

— E, como se lhe ha de explicar a chegada a Lorvão de tão impor-


tante documento! . . . Convém notar que Sarah tem Pedro por conselheiro.
— Esperae, disse Philippa. Sabeis que Pepe foi a Sevilha?
— Se sei!? Por alguns familiares fui informado da entrada delle na
Inquisição. Deve por lá demorar-se e até talvez mais tempo do que elle

imagina.
— Então não temos dificuldade. A súpplica de Jacob apparecerá mis-
teriosamente na cella das duas irmãs, ou alguma noviça a levantará na
cerca, se alguém a tivesse atirado por cima do muro. E' mais ro-
como
manesco, tem muitos precedentes na historia do mosteiro.
e
— Estão notadas todas as ordens. Agora a paga, minha querida Phi-
lippa?
— Heijae-me as duas faces. . .

O morgado passou nos lábios o lenço perfumado, regaçou petulante-


mente as guias do bigode, e com vagar e excessivo intervalio, como fazem
as creanças ao dentarem um doce, beijou duas vezes a formosa abba-
dessa. .

Depois sahiu, recuando em requebros e cortezias, como se fosse empur-


rado pelo olhar de Philippa, que parecia dizer:
— Já não preciso de ti, imbecil!.. .

Sarah foi chamada á presença de Philippa.


— Minha boa amiga, disse-lhe a filha da abbadessa, sabes quando se
realisa o casamento de tua irmã?
. . . .

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 455>

— Não sei; creio, porém, que mui brevemente. Pedro deve ir a Lisboa
pedir a auctorisação d'el rei, e, quando voltar realisará o seu feliz projecto.
— E Sarah, quando casas?
tu, te

— Não o espero, senhora; faltam-me dotes para merecer ventura. tal . .

— Estás gracejando. Talvez modéstia prejudique; mas as formo- a te

suras, que se escondem nesse véo, transparecem mais seductoras que as


outras. .

—A minha modéstia também c modesta, senhora. . . Como vedes, ha


um duplo viio cuja transparência adquire discreta opacidade. Não caso^
porque . .

— Estava anciosa por essa i^azão...


— Porque não tenho quem me ame. .

— vejo que o véo tem so uma


.lã face, e da maior transparência....
Bem sabes, Sarah, que és amada e com o mais vivo enthusiasmo.
— Então será por outra razão irrespondivel. . .

— Por que não queres?. . .

— Não; porque não amo! . . .

— Deves permittir-me esta franqueza — Jacob? e

Sarah baixou os olhos.


— Jacob está perdido. Perdeu-o a inveja, a intriga, e, quem sabe ? tal-

vez o ciúme . . .

— Dize antes — sua pertinácia o seu orgLilho. a e


— Resumindo: as suas virtudes.
— Ou melhor ainda, a sua leviandade.
— Não me pertence Jacob, e sou uma mulher. Podereis injurial-o, se
isso vos apraz. . .

— Não pertence; mas, te se pudesses, havias de salval-o, não c assim:


— De todo o coração. . .

— Pois bem; não hesito em re\elar-te os perigos que ameaçam esse


homem.
— Adivinho-os. A morte, não é assim ?

— Peor, Sarah, mil vezes peor que a morte: a tortura frequentemente-


e o cárcere cm toda a vida.
— E' na verdade horrível; mas, se nada posso fazer cm proveito delle,
para que vindes ai11igir-me com taes novas.
— Es ingrata, Sarah! Pois não comprehendes que é meu intuito ale-
grar-te, e não entristecer-te. .

— \'os ? . . .

— Sim, eu. ,Vs mulheres, atinai, são sempre generosas para os que
amam. Tens nas tuas mãos a \-ida de Jacob.
. . .

436 MVSTERIOS D\ INQUISIÇÃO

— Se assim é, farei o contrário do que vós lizestes — deixarei bem


livre essa vida tão honesta, e tão preciosa.
— Ficando muda e queda na vossa cella, não é assim? Nada mais sim-
ples e mais egoista! A vida dos nossos amantes são o ar que nos rodeia

e que vale porque nós o aspiramos. Aspirae Jacob, e elle levantará o vosso
peito.
— Que devo, pois, fazer?
— Pensaes n'elle ?

— Penso. .

— E's-lhe grata?
— Quanto a Deus!
— E por que não ides vel-o?
— Já pensei nisso. .

— E por que não realisas o teu pensamento?


— Porque receio perdelo.
— Enganas-te, Sarah. — A tua visita á Inquisição dar-lhe-hia coragem,
e talvez lhe alcançasse o perdão do Santo OtKcio. .

— Por que preço?


— Pelo que valessem as suas crenças. ..

—E julgaes, senhora, que eu aconselharia Jacob a que atraiçoasse a


sua consciência?
— Quererias, então, velo torturado, atHicto. moribundo, morto até,

para não transigir em juramentos, que podem estar recheados de restric-

ções mentaes?
— Tudo, menos cobardia vergonha.
a e a

—E o mesmo?
tu farias
— O mesmo.
— Então, se visses Jacob sacrificado no potro, na roda, no borzeguim,
queimado com o fogo, asphyxiado na agua, rasgada a pelle, macerada a

carne, partidos os ossos; se visses Jacob, ameaçado, insultado, escarnecido,


para ser obrigado a defender o santo tribunal, não lhe pedirias que pen-
sasse no teu amor, que salvasse a sua vida, que renegasse as suas pala-
vras, o que não é o mesmo que renegar as suas crenças? Então havias de
vel-o na mão dos seus algozes e não havias de arrancalo a elles?
— Não sei se comprehendereis bem o que vou dizer-vos, porque ha
sentimentos difficeis de explicar; mas sempre vol-os direi. O que admiras-
tes, senhora, em Jacob, quando elle \os am.ou, e vós vos' deixaste amar?
Calculo: a figura elevada, elegante, forte, o rosto moreno, audaz, gracioso,
os olhos pretos, vivos, ora scintillantes como um raio, ora meigos, como
o olhar da gazella —o braço forte, o peito arqueado, a testa espaçosa, a
: . : :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 437

palavra quente!. . . Poi' isso fostes, ou quizestes ser sua amante! Compre-
hende-se. Admirastes nelle o homem externo, por isso o querieis vivo, por
todo o preço, como um bom corredor quer agii e sadio o seu corcel, de
cabeça fina, mãos bem lançadas, cauda abundante, forte e rinchão. Não . .

é assim, senhora ?

— Não me julgas capaz de apreciar doutra forma o homem que se


ama ?

— Não julgo. Para que illudir-vos com h3pocritas lisonjas O amor é ?

um sentimento que reflecte o caracter de quem o sente. O meu amor tem


outros moldes, outro feitio, outro valor. . . Isto é difHcil de dizer, e prin-
cipalmente pela bckca d"uma mulher. l)ispensae-me, pois, de descrever o
vosso amor e pcrmitti que trate apenas do meu. Amando .lacob, amar-
Ihe-hia esse orgulho a que chamaes defeito, essa coragem, que dizeis au-

dácia, essa independência, que para vós é rebeldia. Aquella dignidade que
o fortalece, aquella altanaria, que o faz indomável, aquella Hrmeza, que
o faz invencível, é o que eu admiro, amo e adoro! Se elle pode viver or-

nado com todos esses dotes que o distinguem entre os outros homens, para
que elle viva, não hesitarei em ofterecer a minha vida; mas se elle hesita,

cede, transige e, pela gloria do seu nome, tem de trocar os prazeres do


mundo, melhor me parecerá Jacob torturado e morto! Onde vós, senhora,
admiraes o seu vulto, admiro eu o seu caracter e a sua historia. E' pos-

sível que eu \á dar-lhe alento e coragem; mas nunca para lhe debilitar a

inflexibilidade do seu brio, que é a sua melhor belleza.


— Já vejo que o não amas . .

— Talvez. Ha tantas maneiras de amar! Pretiro rezar-lhe pela alma


immaculada, que possuilo com uma \ida cheia de humilhações. . .

— K's original, na verdade. E, nesse caso, bem fazes em ficar em


Eorvão, emquanto elle espera em vão que lhe acudas com o teu con.selho
e estimulo.
— Nada mais quereis, senhora:. . .

— Nada mais. E se lhe escrevesses ..

— Dir-lhe-hia o que vos estou dizendo.


— N'esse caso apressas a execução da sentença . . .

— E' possível. Mas notae que apressar um acto de caridade... é

— E se eu pedisse que me ajudasses a salvar Jacob


te

— Perguntaria mim mesma — que interesse poderíeis em salvar


a ter

um homem que quizestes perder


—E a ti própria responderias que as acções imprudentes são sempre
seguidas do remorso que as condemna . .

— Tendes remorsos:
UYSTKKIOS D.* 1NQI!ISIÇÃ0. — VOI.. I. FOI.. Í>.
. . . . .

438 '
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não penso senão em salvar Jacob, exactamente porque ajudei a per-


del-o. . .

— Ainda o amaes ?

— Não, que se o amasse não quereria salval-o.


— Appellaes para mim para desfazer a traição, como para ella vos
servistes do meu nome ! Mais uma razão para a minha recusa. Jacob
nunca poderá dever-vos o favor que lhe quereis prestar. Se elle se salvar,

será por effeito da justiça, e não por se submetter á iniquidade. .

— Daes-me licença, senhora, perguntou fora da porta, timidamente,


uma monja, empregada no serviço especial da abbadessa.
— Entra, lhe disse Philippa.

E mal foi obedecida:


— Que nova trazes ? Algum recado impertinente de minha mãe ?

—^Não se trata de vos, nem da senhora abbadessa, mas da noviça


Sarah, que vejo presente.
— Podes dizer.
— Andando agora na cerca, dirigindo os trabalhos da horta e do jar-

dim, senti cahir uma pedra que alguém arremessara por cima do muro.
Olhei e vi que presa a ella vinha esta missiva. .

— A quem vem dirigida ?

— A' noviça Sarah...


— Lèste-a ?

— Não, porque vem fechada com cei\i e timbrada com duas iniciaes,

que deveis conhecer. . .

— Se é para Sarah, entrega-lha. .

— Perdão, senhora, não tenho culpa de tão mysteriosa correspondên-


cia, e, como não tenho segredos, dou- vos o direito de a abrir e ler. .

— Confio em ti, lè-a, e, se julgares conveniente dizer-me o que ella

contém, revela-m"o, que talvez eu possa acautelar-te de qualquer ardil de


namorado, ou de intrigante.

Philippa bem sabia do que se tratava. O morgado cumprira as suas or-


dens. Aquellas palavras representavam uma falsificação, que ella aconse-
lhara, e havia de resolver Sarah a partir para Sevilha clandestinamente.

Sarah quebrou rapidamente o sêllo, e começou a leitura. . .

Não havia dúvida — era a lettra de Jacob.


Philippa observava a physionomia da noviça, que, d proporção que a
leitura se adeanta\a, denunciava, n\im sorriso cheio de ironia, surpresa e
desgosto.
Ao acabar a leitura, Sarah entregou a carta a Philippa.
— Lede, senhora. .
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 489

— Nada tenho com os teus segredos. Sarah. . .

-
— E' possível que tenhaes. Conlieceis esse sinete r

Philippa examinou com cuidado a gravura de cera.


— Sim! parcce-me distinguir as iniciacs de Jacob. — Mais razão para
não invadir o domínio das tuas relações. — Podes guardar essa nova con-
fidencia d Lim homem que te estima... Díz-te. sem diJvida, que precisa
de te ver. . . !; natural. Mal sabe elle que em tão pouca conta tens a sua
salvação.
— Não percaes tempo em conjecturas... I)isseste-me que, se preci-
sasse de vós, vos mostrasse este documento. Preciso: — eil-o. Sois mulher
experimentada e podeis dar-me conselho. . .

—K Philippa leu, sob o dominio da mais \'iva curiosidade :

«Senhora.

«Se vos convidarem a vir a Se\ilha, recusae... }'i'epara-se tima trai-

ção contra vós ou contra mim, ou contra ambos Não allio ás vossas, as ?

minhas responsabilidades. Sabeis quanto vos amo e, por isso, que não
. .

ousarei arrastarvos a compartilhar commigo os martyrios que tenho sof-


frido. Sei que os nossos inimigos vieram a Hespanha a preparar a intriga

que voi traria ao meu cárcere, com o fim de me enfraquecerem o ânimo...


Se um dia vierdes aqui, fazei-vos acompanhar de Pedro, e trazei um salvo
conducto, que vos mantenha sob a protecção do rei de Portugal, .\caute-
lae-vos de l-^hilippa d'Eça, e não busqueis influir na sorte que me espera.»

Philippa ticou pensando naquclle m\sterio.


Atraiçoal-a-hia o morgado? Quem poderia ter trazido aquella denuncia?
— Que dizeis a isso, senhora ?

— Que nada comprehendo. Provavelmente é nisto que estão a traição


e a intriga. Conheces bem a lettra de Jacob?
— Como conheço a minha. . .

— Julgas-me, então, um instrumento dos vossos perseguidores.


— Nada julgo; recordo os vossos conselhos solicitações para que e eu
fosse auxiliar a obra da Inquisição. Senhora, descançae que Jacob não
morrerá sem que me veja, mas eu velo-hei sem que me captivem. En-
tretanto, devo pre\enir-vos de que estou na posse do vosso plano. Sei das
vossas relações com os frades de Hespanha e com a corte de Roma. e não
vos quero mal por buscardes dilatar o dia em que um poder justo e forte

vos afaste deste logar, que tendes desmoralisado e pervertido. Sei que es-
peráveis ter, em vez deste conselho de Jacob, que hoje me trouxe Pepe,
. :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

e que deixei propositalmente no meu caminho, o outro, que reconheci ser


falso, e que foi produzido por vossa ordem.. . Sou noviça, mas conheço
de sobra as artes das abbadessas cjue se vingam dos amantes, quando elles

lhes abhorrecem. Logo que Deborah seja mulher de Pedro, minha irmã
assumirá a minha tutela e eu irei para onde me aprouver, no propósito de
salvar Jacob e de explicar a todos os vossos alliados quem sois e como
vos conduzis. .

— Queres a guerra? E' isso que me propões


— Quero; não a temo.
— Pois conta commigo, e com ella. Se me ajudasses a resgatar a alma
de Jacob, obrigando-o á contricção, elle poderia ganhar talvez a liberdade.
Assim . . só deves esperar que a minha influencia lhe aperte a gollilha de

encarcerado.
— Não vos temo, ijue nada valeis nas regiões onde se governa o reino
e se administra justiça . . . Tenho do meu lado o valimento de Pedro, que
priva com o secretario de Estado, e o de Gil Vicente, que é protegido da
rainha. . . Elles arrancarão aos martyrios de Deza o innocente portuguez...
— Nada disso te pode valer, que valho mais que todos esses, e sobre
todos elles posso triumphar. Vós todos estaes na minha mão, que o meu
poder se consolida, dia a dia. Duvidas?
— Duvido. Irei ter com el-rei...
— Pois bem, vaes \ er.

E Philippa fez soar prolongadamente o timbre que tinha junto de si.

Appareceu uma freira.

— Que horas são?


— E' a hora das Trindades.
— Está alguém na minha cella particular?
— Está, senhora. . . elle, que me disse descançar aqui esta noite e vol-
tar de madrugada para Coimbra. . .

— De quem falas? Dize, que não tenho segredos para Sarah.


— Delrei sr. D. Manuel. . .

Sarah estremeceu.
— Fale Pedro a António Carneiro, Gil á rainha. São as tuas armas. . .

Sarah ? Vaes ser vencida. Eu sou mais que tudo isso sou a amante do —
reil e a alliada do Papa!
E Philippa abriu a porta secreta carregando no cravo dos pés de Jesus;
e Sarah, quando ia a retirar-se, ainda pôde ver lá dentro, mirando num
espelho de crystal as melenas cabidas e luzidias, o príncipe afortunado I

Philippa tinha realisado os seus sonhos!


: .

XX

o pastor

Aproveitando a entrada de Pedro no mosteiro, Pepe fcz-se apresentar


a Sarah.
— Aiii tens o teu pastor, disse Pedro Soares a sua irmã, como elle

lhe chamava ; entrou não demorar, que anda atarefado


commigo para se

e aíllicto, como se lhe perigasse a vida com a delonga. Deixo-os sós, que

tenho de conversar com Deborah e saber quantos cuidados reclamam a


sua saúde.
¥. Pedro subiu, deixando Sarah com Pepc, na salinha mais próxima do
refeitório.
— Bemvindo sejas, Pepe, que tão pouco te demoraste, se me lembrar
da grande empresa que te commetti, e tanto me impacientaste pelo in-
teresse que tinha na tua volta. Trazes-me boas novas ?

— Não, menina Sarah, não trago. Algumas esperanças, apenas, que


me apressei a trazer-vos, receoso de que se perdessem de todo, se por

lá me demorasse. .

— Viste Jacob
— ou melhor
\'i, olhei para elle, que olhar sem ver afflige menos. O
sr. Jacob não parece o mesmo 1 Fugiram-lhe os olhos pela caveira dentro,
apagou-se-lhe a còr das faces.. . Até parece menos moreno. .. E a vida,

aquella vida que parecia dançar-lhe no rosto, está lá ainda, não ha dúvida,
mas está deitada, ou desfallecida, sobre aquelle aspecto de saúde e vigor,
que lhe começava no cabello negro e revolto e acabava nos lábios verme-

lhos e risonhos. . .

E Pepe, ao dizer isto, ia revolvendo nas mãos o gorro pobrezinho, e


baixava os olhos, como se quizesse occultar a tristeza que o invadia.
— Também tu vens transtornado, Pepe: não pareces o mesmo rapaz
alegre e ladino. . .

— Não se trata de mim, menina Sarah, que nada sou e nada valho...
. . .

4^2 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Eu venho fatigado, eis tudo. . . Fiz uma longa viagem, na terra, e em so-

nhos... Andei léguas, impeliido pelo dever, voei outras tantas fugido á
perseguição... Vivi muito n'estes últimos tempos, menina Sarah, que se
vive sempre muito mais quando se vè softVer, do que quando se acompa-
nha gente feliz . . .

— Pobre Pepe ! . . .

—^ Não mereço a vossa compaixão, ou antes, devo merecer-vos tanta


quanta eu voto ao meu Frade, quando elle revolve, de noite e de dia, a
casa e a serra, em busca do seu dono. . .

— Conseguiste entrar no palácio da Fé : . . .

— Como a porta não se abria, bati a ella. Queria entrar como anjo
consolador, e não me deixaram. Alli ninguém entra por sua vontade.. .

Tomei então uma resolução: entrei como esbirro. Só assim Ou en- . . . .

tão como victima. Tanto disse, tanto fiz, tanto andei, que, ao segundo
dia da minha chegada a Sevilha, já se falava em mim, e ao terceiro era
preso. Alli só andam em liberdade os que não teem nome, ou não são
denunciantes. .

— Então entraste ?

— Entrei ? Não é assim que se deve dizer — precipitei-me, e cahi lã den-


tro. . .

— Aquillo é muito triste, Pepe: perguntou Sarah, com infantil e tris-

tonha curiosidade. . .

— Não imagina, menina Sarah, aquillo um abysmo, em que não se é

respira — Recebe-nos o Santo Officio apertando-nos o coração, como ca


fora se aperta a mão, com f(")rça. . .

—-E' peor que isto, não é, Pepe?


— Isto só é feio para mulheres honestas; aquillo é horrendo, até para
bandidos!. .

— Muitos homens... não é verdade?


— Quem dera d'isso! Muitas feras, isso sim. Aquillo parece um covil,

em que os tigres estivessem a devorar ovelhas, e a gente a sentir estalar


os ossos. . . e as bôccas mudas 1 e apenas os dentes, para cá e para lá. . .

—E tudo ás escuras, não, Pepe?


— Quasi, menina Sarah, quasi. Sombras que mexem, que são muito
peores que as trevas. Sombras, que lembram uma noite de vendaval, com
raios luminosos. Sombras que mettem mais medo, quando a luz as mos-
. .

tra, e as estremece. Corredores sem hm, salas sem tectos, paredes sem
. .

côr, chão de sepulturas ! . .

— Nunca tinhas visto isso, Pepe?


— Nunca, menina Sarah 1 E posso dizer que ainda não vi — Quando
!

MYSTERIOS DA INí^UISlÇAO 44-<

se cruzam aquellas portas, parece mesmo que a gente adormece e começa


a com um i^rande pesadelo.
sonhar Ha poucos . . dias que de lá sahi, e já

me não lembro bem como aquilio c. Nem aquillo se vè a seguir; vê-se aos

saltos — um pedaço aqui, um pedaço alli —e nos intervallos apenas a es-


curidão, ou o esquecimento. O coração bate tanto quando por lá se anda,
que de cançaço pára, e já o não sentimos, como se tivéssemos morrido!
Alli não ha homens, ha vultos; não ha caras, ha máscaras; não ha í^ritos,

ha bramidos!
Sarah ouvia a pinturesca nari-acão de l'cpe, c sentia-se acommettida
duma viva sensação de curiosidade.

O pastor, com o olhar, a principio timido e baixo, á proporção que in-

vocava as suas recordiçóes, ia animando-o, e já fixava o olhar de Sarah,


com scintillaçóes extranhas.
— Causou-te muita impressão essa casa, não é verdade, meu pobre
amigo ':

— Muita, menina Sarah, muita! iúiiquanto lá andei, ri, gritei, não sei

porque, nem o que — provavelmente para não ter medo — ou para que
me acreditassem inoftensivo; mas, a verdade c que, cá por dentro, andei
gelado, alllicto, sem poder respirar, como se tivesse engulido aquella herva
que ha pouco appareceu em Hespanha, a herva de Fernão Cortez
— K' grande a egreja? altas as abobadas dos claustros?
— Talvez, menina, talvez; mas eu não sei! De dia e de noite via-se,

num espaço escuro, ou a luz d'uma adufa ou d'uma lanterna. Kssa luz
não passava d'ahi, que logo morria apagada em ondas negras que vinham
de todos os lados. A egreja era pequena, e parecia um carneiro. Poucos
anjos nos dóceis c nos altares, e muitas caveiras em todas as columnatas.
As cruzes todas negras como as oliveiras, em noites de dezembro, e as

imagens de Christo, com a cabeça tão pendida e o peito tão chagado, que
parecia mesmo um crivo feito pelos judeus. O sacrário não brilha, as jar-
ras não teem ílores, e os tocheiros immensos vomitam chammas azues,
que não illuminam, como lentejoulas em manto de feiticeiro. . .

— Pobre Pepe! Tu habituado ao ar livre, a luz, aos grandes horizontes!...


— Ai! menina Sarah, que saudades da nossa egreja de Lorvão! Aqui
c um gosto; pela manhã, quando o sol atravessa as gelosias e vem bailar

alegremente sobre o ouro e a prata da sagrada baixeilal A Virgem, que


lá em cima sorri, entre grinaldas, para os anjinhos que a rodeiam, tão pe-
querruchos e tão corados, como as rosas das grinaldas ! . . . E os broca-
dos e as sedas descendo pelas cantarias! \\ a luz do portal, entrando a
jorros, a cahir sobre a grande bacia d agua benta ! E, no coro, as freiras e
as noviças, espreitando pela nuula e cantando com vozes frescas!. . .
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Que saudades de Lorvão, menina Sarah


— Não gostas, meu pobre Pepe. das egrejas tristes.

— Tristes, sim, mas não d"uma tristeza que mettc medo. Dizia minha
mãe que o Céo era uma aldeia, sempre verde e Horida como um jardim:
que o sol lá em cima era ainda mais claro e mais doce que aquelle que
adormece á tarde, alli, sobre o monte ;
que a vida era lá toda de risos, de

beijos e de canções!.. . Não tinha razão minha mãe? Eu julgo que sim.
E a prova era o oratório d'ella, láem casa: era uma capellinha de dois
palmos, coberta com um vco como o das noviças quando professam, e por
dentro pintado de a;iul, claro como o do Cco verdadeiro. Ao fundo, a cruz
feita d'um tronco musgoso, com peanha de riscos dourados e raios de sol

nas juntas dos braços... O Christo de marfim, amarellado pelo tempo,


com toalha de ló, e resplendor de prata, que olhava para nós com olhos
de crystal. . . Não mettia medo olhar para elle! Parecia até, que, apesar
de crucificado, gostava que lhe rezássemos, e não se enfadava de estar

assim I E a luz da lâmpada ficava-lhe sempre á altura do rosto, para que


lhe víssemos a expressão triste, mas resignada e carinhosa... Que difte-

rença entre estes Christos e os da egixja da Inquisição I

— E" então horrível estar n'essa casa, que se diz de religião e de jus-
tiça ?

— Diz bem, menina Sarah, é horrível. Nem aquillo é casa de Deus,


nem tribunal de justiça !. Se as chammas illuminassem tudo aquillo que
. .

está ás escuras, entrar allí seria o mesmo que entrar no inferno;


— E Jacob vive nesse abysmo ?

— Eu sei lá se elle vive 1 Allí não se pode viver. . . Alli morre-se de vêr
morrer os outros, sotVre-se de vêr sofirer. . . O sr. Jacob ainda não come-
çou o seu martvrio e é já um martyr! Se não fosse a vigilância que o
rodeia, e talvez alguma esperança que o anima, elle, com certeza, já teria

despedaçado a cabeça de encontro áquellas muralhas! Alli mata-se tanta


gente, que a que c poupada chega a só pensar em se matar. . . Desculpe,-

menina Sarah, mas até me faz mal estar recordando estas coisas... Mas
eu tenho tanta necessidade de dizer o que se passou, de pintar o que vi. .

— Ouvir-te-hei, meu bom rapaz. Nem tu avalias quanto desejo ouvir-te!


Preciso de fazer uma idéa dessa casa, d'essa gente, desse viver. Só ou-
vindo-te poderei avaliar o softrimento do sr. Jacob... Elle falou-te em
mim?
Nem fallou em outra coisa! E, pelo que fallou, bem se vê que só pensa
na menina Sarah! Até deante das torturas, as mais cruéis, elle, coitado,

parecia adormecer, com os olhos abertos, e sonhar. . .

— Pepe, acompanha-me, disse Sarah; quero que minha irmã ouça a


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 445

tua narração. Es da nossa família —-porque ella está formada, não pelos
laços do sangue, mas pelos da amizade e da dedicação.
E Sarah conduziu Pepe á presença de Deborah, que andava no jardim
ouvindo protestos de Pedro e fazendo prophecias d'um futuro tranquillo
e feliz.

— Deborah — Pedro — aqui lhes trago, para que o ouçam, o meu leal e

corajoso mensageiro. Começou a contar o que viu e sentiu por Sevilha...


Tem olhos e coração este excellente moço. . . Falta-lhe dizer o que mais
interessa á sorte de Jacob.
E Pepe, vermelho, ouvindo o elogio, e sem ousar fitar aquella gente
que ia ouvil-o, atreveu-se a dizer:
— Eu sinto o que senti, mas não sei talvez dizer o que quero.
Perguntae-me, e eu vos direi o que mais vos appetecer e cu melhor
.souber.
— Falae á vontade, Pepe; quem sabe se tu, 'narrando, no curso das
tuas recordações, não respondes melhor ao que queremos saber e não pre-
vines o que nos esquece? Anima-o, Pedro, que elle parece recear-te mais
o silencio que as perguntas.
— Não creias isso; Pepe é ladino e sabe já que o estimo pelo seu va-
lor e pela sua lealdade.
—E dizeis bem, senhor Pedro, que eu temo apenas os maus. . . Com
os bons me avenho, até sem falar, e com os maus nem falando, que elles
não sabem comprehender-me. .

— Contava-me Pepe as impressões da sua viagem, e por tal forma me


descrevia o que tão alterado nos chega, que ouvil-o era o mesmo que vêr
o que elle viu, e soffrer o que elle soflreu, disse Sarah.
— Nunca tinhas sahido de Lorvão, perguntou Pedro, batendo- lhe no
hombro.
— Nunca, senhor Pedro, nunca; isto é, já tinha andado por Coimbra,
e por aqui, nos arredores; mas atravessar o paiz e a fronteira, ver a Hes-
panha- com que eu sonhara, a terra de meus pães, nunca, senão em so-
nhos que mentem, fazendo mais bello o que é bonito, menos feio o que é
horrendo!
—E como chegaste até lá, se não sabias o caminho? perguntou De-
borah.
— Como? Os miseráveis e os ignorantes parecem-sc com os cães;
guiam-n'os o olhar e o faro. Eu meu dono, e não podia perder-me.
seguia o
As pedras e as árvores dos caminhos me diziam, quando eu passava, por
onde seguira o senhor Jacob. . . Julguei descobrir na terra o feitio do seu
pé, e ainda no ar o écho da sua respiração. Depois, o mundo esta cheio
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. F/JL. 56.
. .

446 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

de Pepes; em todas as serras ha pastores que comprehendem a nossa lin-

guagem, choupanas que nos abrigam. . . O sol de Lorvão, o sol de dia, e


á noite a lua, conheciam-me d'aqui, e ia a vêl-os e a conversar com el-

les. . . Quando se viaja, assim, acompanhado, nem as caminhadas fatigam,


nem a gente se transvia. .

— Aqui está um poeta, que era capaz de inspirar um auto a Gil Vi-
cente . . . disse Pedro, sorrindo á sua noiva e a Sarah.

— Por vezes cantei, sem' ser menestrel,, mas não cantei sempre ..

Quantas e quantas me senti entristecer com medo de chegar já tarde e


não encontrar quem ia farejando, por meu prazer e por ordem da menina
Sarah.
— Nunca esquecerei o teu sacrifício, Pepe . . .

— Não falemos n'isso, menina Sarah. Pena tive eu de ser obrigado a


gastar o dinheiro que me destes. . . Mas não foi possível. Para andar de-
pressa e poupar forças fui gastando pelas pousadas, como um príncipe .

Não tanto, é verdade, para não provocar suspeitas, que aos miseráveis
nem é dado gosar o que lhes dão! Parecem sempre roubados os prazeres
dos infelizes e dos pequenos! Dorrni nas arribanas, quando as encontrava^
ao acaso, e contentava-me com as covas das serras quando a fadiga me
obrigava a parar. No verão o céo é melhor lençol. Os pastores são como
as suas ovelhas: consola-os o relento. O nosso habito é o habito; deu-nos
a natureza esse fato, como deu a lã aos nossos rebanhos. . . Algumas ve-
zes tive banquetes, que me alegravam o espirito, e bebi pelo cântaro dos
recoveiros que andavam ganhando, e de judeus que emigravam em cara-
vanas. Encontrei famílias inteiras de gente tímida, que vinha de Hespanha,
magra, faminta, gafeira e assustada. Era gente que, fugindo, olhava cons-
tantemente para traz, como se ouvisse passos de inquisidores e ainda sen-
tisse o calor das fogueiras. Um mouro, com três filhos, arrastava-se como
um doido pelas portas das cabanas, que se lhe fechavam, como se elle

trouxesse a peste no seio das creancinhas! Deu-me esmola, que não pedi,,

um fidalgo christão-novo, que trazia, ás costas dos servos, as jóias que sal-
vara do confisco dos christãos. Comeu do meu bornal, mal fornecido, uma
louca, que vira queimar a mãe n'um auto de fé, e que tapava os olhos
afflícta, quando olhava para o céo, por confundir o sol com o fogo do
Santo Officio! Pelos campos e pelas aldeias contei mendigos aos milha-
res, que agradeciam a esmola com um gesto, para não invocarem o seu
Deusl De repente, a terra mostrou maiores torrões e as pedras maiores
arestas ! Tinham-se acabado as piteiras dos vallados, e as ermidas escure-
ciam as suas fachadas, passando de brancas como o leite a pardas como
a resteva. . .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 447

— Mas, quando chegaste a Sevilha, creaste uma alma nova, não é ver-
dade, Pepe ?

— Sim, senhor Pedro. Sevilha c uma bella cidade! Quando a vi, creei
uma alma nova, tão nova que até me esqueci da fadiga e da tristeza...
Nem sequer notei quando ella estava triste!... Andei pela margem do
rio, que corria preguiçoso, e depois deixei-me arrastar pelas ondas do povo
do bairro de Triana. O que eu ouvi então, santo Deus, o que eu vi! Anda-
vam os frades por entre aquella gente como o escalracho em terras de se-
meadura. . . parecia uma praga de gafanhotos n'uma ceara amadurecida!
Fui ver a Inquisição, por fora, na esperança de a atravessar com os
olhos e descobrir lá dentro o sr. Jacob. Perguntei como poderia entrar
alli, e disseram-me que não querendo entrar. . . Não percebi, e perguntei
mais longe, e, então, offereceram-me três chaves : a heresia contra a Fé,
a injuria contra a Inquisição, e a denuncia contra os judeus! As duas pri-

meiras abriam e fechavam; só a ultima poderia deixar aberta a porta por


onde eu entrasse... Comprehendi tudo, e tingi-mecom duas virtudes:
a loucura e a traição. Fazendo-me idiota, como muitos que andavam nas
ruas, c espião, como muitos que espreitavam as boticas, fui logo admittido
e interrogado. . . Que Deus me perdoe, mas fartei-me de mentir!
— ^'iste então o sr. Jacob? perguntou Sarah vivamente.
— Tinheis pressa de que eu chegasse a este ponto, e eu estava com
medo de cá chegar! O que vi é horrivel, e por mais que diga não saberei
contar. . . Tenho os olhos cheios de espectros e os ouvidos atordoados
com gemidos. Andei numa caverna de bandidos, e vi o inferno ás escu-
ras! Ah! menina Sarah! que eu não sei como se pode viver alli um mo-
mento!. . . E ha gente que alli passa a vida inteira! Estou capaz de apos-
tar que Deus não sabe que aquillo existe. . . Ou então Deus não é o que
eu julgo! Alli reza-se, como nós rezamos; até se usa o latim da missa!
Ha alli santos como nas egrejas, cruzes com o feitio das que temos á
cabeceira, frades como os que confessam e abençoam!... E, comtudo,
alli praticam-se malefícios e crueldades, maldades e villanias, como nunca
ouvi contar, ao serão, nas historias de salteadores, de bruxas e de assassi-
nos Matar
! gente, assim, a pouco e pouco, dôr a dor, apertando, ferindo e
esmagando a pelle, a carne, os ossos... só alli! Insultar, cuspir, esbofe-
tear, açoutar, feriç homens e mulheres, devagar, serenamente, com sangue
frio ... só alli, menina Sarah ! Eu e o sr. Jacob vimos tudo isso I

— E' horrivel ! disse Deborah, tapando os olhos com as mãos, como


se estivesse vendo o que Pepe descrevia . .

—E Jacob ? Como atirontava elle todos esses horrores ' perguntou


Sarah.
: .

44» MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como me ouve narral-os a menina Deborah: fechando os olhos. .

fechando-os, que elle não podia tapal-os, porque tinha algemas nos pulsos.
— Infeliz Jacob murmurou Pedro.
!

— E bem que nem gemer podia ao ver tanta maldade, que


infeliz, logo
lhe poriam a mordaça e o espancariam com o azorrague I . . .

— E para que o deixavam vêr essas torturas ?

— Para que elle saiba a que se arrisca não se submettendo ao Santo


Ofíicio. . . Meu pobre amo, como elle tem soffrido ! Voltei a Lorvão para
vos pedir, a todos, que lhe acudam, que elle morre de vergonha, de cóle-
ra, de horror, de vêr e de softrer taes sacrifícios! Ainda o conservam na
camará de misericórdia, ainda o poupam á agua, ao fogo, á deslocação,
ao cárcere immundo, á fome, ao açoutei E elle não pode matar-se, que
seria esse o seu melhor refugio, porque, accordado e a dormir, é sempre
vigiado. . .

—E elle já tem pensado nesse recurso ? disse Sarah vivamente excitada.


— Quem não pensa em tal, ao vêr-se alll, sem esperança e sem resi-

gnação ?

—E que é tão nobre, tão orgulhoso, tão altivo


elle I

— Olhe,
menina Sarah, eu vi-o a soffrer tanto, tanto, tão pallido, tão
trémulo, ora irado como um homem, ora commovido como uma creança,
que pensei commigo: se o insultam, se o torturam na minha presença, eu,
que estou livre, mato-o. . •

E Pepe, ao dizer isto, tinha tanto brilho nos olhos e tanto calor na
palavra I . . . fez o gesto tão rápido e tão enérgico, que Sarah, que o escu-
tava anciada e se movia com a declamação do pastor, quando elle disse

— mato-o — repetiu, abrindo muito os olhos e extendendo o braço como


quem vibra um punhal
— Sim, Pepe, sim mata-o. ;

— Pois não verdade, menina é Sarah? Não é melhor morrer que sof-

frer assim?. . . Dores, ainda, ainda. . . mas insultos, mas vergonhas, mas
violências?!... é de mais!
— Tens razão, Pepe, disse Pedro; pensas como um homem!
— E Jacob, sem poder fugir a esse martyrio I

E Sarah apertava as mãos com violência nervosa.


— Isso sim; nem deixam a gente morrer quando quer.
— E' que a vida, explicou Pedro, é um dos peores flagellos. .. Senti-
mol-a cá dentro, e ella tortura-nos por fora. Para que se soífra bastante, é
necessário viver. . . A vida é para a dôr o que a caixa dum instrumento
de corda, ou a campânula d'uma trombeta, é para o som. . . augmenta-a.
Se Jacob pudesse morrer, é que podia fugir — não se foge só para a liber-
. . . .

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 449

dade e para a vida; foge-sc também para a morte. Deixar o cadáver em


reténs, nada aproveita. As cinzas não são penhor que valha. Pepe obede-
cia a um bello impulso . .

—E sentias prazer nisso, não c assim, Pepe? Salvavas a victima e

logravas os algozes ! . .

—E então eu que conheço o senhor Jacob, como conheço os meus de-


dos! O que se estaria passando lá dentro, no peito de meu amo?! Cris-
pavam-se-lhe as mãos, mordia os lábios, e o corpo tremia-lhe, como se
estivesse com frio. . . Que o caso não era para menos! Estar alli um ho-
mem novo, cheio de vidae de força, e na sua frente um bando de cobar-
des a açoutar as faces d'um homem, c a affligir uma mulher, e a quebrar
e a torcer o corpo d'um velho! E de morrer, menina Sarah. .

— E depois? depois? Pepe? Anda, conta, dize... Que viste? que ou-
viste? que disse elle? que pensa Jacob no meio de tanta desgraça ?

— Que vi ? Tudo negro -^sombras e lucto; ou tudo vermelho — fogo na


forja, vergonha nas faces, sangue no corpo! Vi despir mulheres formosas
para as afogarem com agua, e vestir homens sãos com fatos de ferro,

cheios de espinhos, que penetram nas carnes! Que ouvi? Soluços, gemi-
dos, súpplicas e pragas ! Que disse elle ? Tudo o que o olhar pode dizer,
tudo o que se adivinha e não se ouve, tudo que traduz saudade e deses-
pero, amor e ódio! Em que pensava elle? Nos infelizes que soffriam, na
vingança, que não podia gosar, em vos, menina Sarah, em vós, com cer-
teza, que eu bem vi, na alegria com que me olhava, que não era a mim
que via. .

— E que mandou que me dissesses?


— Apenas o que \'os entreguei, e isso mesmo foi n"um instante; á hora
da despedida. .

—E como te deixarem partir, Pepe?


— Eis o meu segredo.
— Até de nós o queres guardar? Até de mim e de Deborah e de Pe-
dro, que somos teus amigos?
— De vós guardo apenas metade. .

— Corres algum risco ?

— Promettem não dizer a pessoa nenhuma o que vou contar?


— Promettemos. aftirmaram vozes.. . três
— Pois bem, fiquem sabendo que estou empregado! já

— Em Hespanha ?

— Em Hespanha, em Sevilha, na Inquisição... Aqui onde me vêem,


sou um agente do Santo Ofticio, encarregado d'uma alta missão junto da
futura abbadessa de Lorvão. . .
.

45o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— De Philippa d'Eça?
— Exactamente; de Philippa d'Eça; não para a servir, mas para a
espionar. Deza, o grande inquisidor, tem allianças terriveis com frades e
freiras de Portugal. Philippa está ao serviço delle . . O homem quer apro-
veital-a, mas primeiro conhecel-a. Emquanto Philippa descobre segredos do
rei e entrega judeus de Hespanha, eu devo vigiar Philippa, para que ella

não possa descobrir segredos de Deza ao senhor D. Manuel. Tenho de


espreitar as visitas do mosteiro, e descobrir, entre ellas, as que possam
ser suspeitas aos planos dos partidários do honrado successor de Tor-
quemada Como ! vedes, já tenho um modo de vida que não fatiga o corpo
e para que não é necessário ter os olhos muito abertos. Já não tenho que
olhar para o sol, mas espreitar as portas. . . Comecei por guardar ovelhas
e já passei a guardar os lobos ! Em Portugal, já me disseram, tenho mui-
tos officiaes d'este officio, pois é necessário ter uma d'estas prendas, em
grande quantidade, ou ser tolo, ou esperto.
— E estás satisfeito com o teu mester?
— Não me perguntem isso, por quem são .. Sim, estou contente...
Assim posso voltar a Sevilha quantas vezes quizer, emquanto meu amo . .

precisar de mim. Assim poderei entrar de dia e de noite n'aquella casa


maldita... Assim tenho dinheiro para manobrar em Lorvão, em Coim-
bra, em Lisboa. Assim, poderei . . talvez desarmar os nossos inimigos, e

quem sabe? talvez vingar n'elles os soffrimentos do senhor Jacob. .

— Não te demoras ?

— Não, senhores; amanhã, ou depois, irei para Lisboa a levar um re-

cado aos frades dominicanos, que já estão outra vez no mosteiro de S. Do-
mingos. . . E depois hei de voltar a Sevilha, onde tenho um negocio muito
importante a tratar. . . Como vedes, já pareço alguém! e, a respeito de di-
nheiro, é isto, nem mais nem menos.
E Pepe tirou do cinto uma pequena bolsa, que agitou, para que se

ouvisse o tilintar de algumas moedas de prata e ouro.


— Antes de voltares a Sevilha vens por aqui?
— Com certeza, menina Sarah — quero levar noticias e saudades.
— Dirás, disse Pedro, a esse desgraçado, que velo por elle.

— E, da minha parte, concluiu Sarah, dir-lhe-has que avalio o seu in-

fortúnio e que não esqueço quanto lhe devo. . .

— Que bella carga de consolações vou levar a meu amo e senhor ! Até
dá vontade de chorar, ver tanta gente boa neste mundo tão máu! Agora
vou por casa, a ver os meus pequenos... Salve-as Deus, meninas, e a

v'ós, senhor Pedro.


E o pastor retirou-se, sem a sua antiga vivacidade, mas triste e pensa-
. 1
.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 45

tivo. . . E lá foi serra acima, recordando os dias tranquillos em que julgava


os homens como julgava as ovelhas do seu rebanho — unidos e amoraveis.
E, para que não o amargurassem tanto as recordações desses tempos,
mal chegou ao renque das oliveiras, sentou-se num pequeno talude e pen-
sou . .

— Se eu pudesse ser útil ? Imaginei tanto tempo que o mundo era só


isto, e olhava em torno a linha do horizonte, que Deus me parecia mais
pequeno e os homens melhores I O que estará lá por cima r Quando é tão
difficil conhecer o que nos rodeia, como se poderá adivinhar o que tanto
se afasta ? Percorre-se a terra de rastos, e para alli é necessário voar I O
nosso corpo não pode ter azas, isso c verdade. . . E' mais leve o das aves,^

e por isso ellas andam no espaço. Mas, dentro de nós, não haverá alguma
. .

coisa tão leve como os pássaros, que saia de nós mesmos, e suba, e suba
por ahi acima? Será isso a que os frades chamam alma? Aquella gente,
que soffre na Inquisição e morre nos autos de fé, viria ao mundo só para
viver assim, victima da outra gente que é dona d'isto tudo, porque tem
quanto quer, faz o que deseja, e tudo obriga a todos, trabalho, logar e
pensamento? Por que será que na terra ha tantas religiões, e por que será
que entre ellas uma religião persegue e destróe as outras ? Aquelles mouros
e judeus, que vejo por ahi fora, são gente que oftende a Deus, mas, afinal,

é gente que não faz mal —e a outra até faz chorar!. . . Se eu pudesse
voar, ia lá acima fazer queixa d'isto tudo a Nosso Senhor!. . . Pois Deus
é tão bom, tão forte, tão poderoso, e deixa fazer o mal na terra, e deixa

os cobardes vencer os fortes! Elle, que pode tudo, se deixa a Inquisição


a governar-nos, é porque é também Inquisidor, ou não quer usar do seu
poder. Pois eu, que sou um pastor miserável, acudo aos que me amam, e
Deus é tão ingrato que deixa ao abandono os que o adoram! Estarão os
deuses lá em cima tão divididos como estão os homens cá em baixo?. .

Por exemplo, o sr. .lacob ha de soffrer tantos 'martyrios na terra, e, depois


de morrer, ha de ir para o inferno para solírer muito mais? Nesse caso é

o Diabo quem anda no mundo a prender gente para o seu reino de fogo! . .

Mas, se o martyr vae para o Céo por como ha de


ter soffrido na terra,

Deus desculpar-se de lhe não ter acudido ? Não comprehendo bem o que
é ser judeu, nem o que é ser mouro. . . Sei apenas que os judeus são fi-

lhos d' outros judeus, e os mouros filhos d'outros mouros! Ora, se Deus
deixou que os pães vivessem, para que deixa agora que matem os filhos ?

Peores que mouros c judeus são os animaes, e os frades ensinam as crean-


ças a tratal-os com amor e caridade ! Eu, que sou uma creança, quando
andava aos ninhos, tinha tanto dó depois de os roubar que ia pòl-os nas
arvores outra vez ! e as pessoas grandes, as mais velhas, as que nos ra-
452 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Iham, andam a desmanchar os ninhos dos homens, que é o mesmo que


matar as creanças I Toda a gente me tem falado de Jesus Christo, que sof-
freu, que perdoou, e agora, que sahí deste cantinho onde me ensinaram,
vou encontrar os frades christáos a fazer aos judeus o que os judeus fize-

ram a Jesus ?I E se eu não tivesse tido quem me ensinasse a doutrina e a


rezar? Era judeu, era mouro, era christão? Como ha de um pequenito evi-

tar que o baptisem na egreja, na mesquita, ou na sinagoga? Não me lem-


bro de quando me bapiisaram, mas sei que ainda não via, nem ouvia, nem
podia comprehender o que era um marrano, ou um catholicol Quem me
diria, quando eu por aqui andava conversando com o meu gado e com os

meus pássaros, que havia tanta gente perseguida por não rezar como eu?
Eu nem quem tinha razão! Acertei por acaso! Quem me
sabia que era eu
diria que o sr. bom a valer, generoso como poucos, amando
Jacob, sendo
como os outros homens, sorrindo como elles, protegendo-me por eu ser
pobre, defendendo me por eu ser fraco, aconselhando-me a que amasse
meu pae e meus irmãos, não era filho de Deus! Mas que differença ha
então? Serei também judeu ou mouro? Se o que vejo fazer, em nome do
Céo, é Deus que o quer, parece-me que tenho mais medo do meu que do
Deus dos infiéis ! . . . E eu nunca havia pensado n'isto I E quando tinha de
soccorrer alguém não pensava nesta differença ! Quantos judeus terei eu
soccorrido e amado? Isto deve ser heresia... Nem pode ser outra coisa...

Aquella gente, que os christãos perseguem, não pode ser soccorrida e

amada pelos christãos Por que me não adverte o Deus, que tenho em
!

mim, desses inimigos que eu não sei difterençar? E se os homens não


pensassem nisso ? Por que se não trabalha para viver, sem estabelecer
brigas por causa de questões do Céo, que não conhecemos? Não vale a
pena... Ah! que, se eu fosse rei, obrigava todos esses frades, que andam
a perseguir gente boa, a cavar a terra, ou a batalhar em Africa ou na ín-
dia. . Quando me campo, guardava com o olhar o gado que pas-
deitava no
tava, isto é, guardava a carne que se come, a lã que se tece, o leite que
se bebe, e até o estrume da courela e o trabalho das eiras ! Mas elles que
se mexem e falam constantemente, nada fazem de útil, e até embaraçam
os que trabalham: Para que serve prender e mart}TÍsar tanta gente !? gente
que se entretém a ganhar a vida, e a cuidar nos filhos ? Se um judeu tra-

balhar na azenha, no lagar, na horta, na lavoura, por acaso saem peores


os óleos e os fructos ? Pois se tudo se aproveita sobre a terra, desde o
homem até o esterco, e se aos animaes se dá a morte para interesse da
humanidade, para que andam os homens a destruir homens, sem proveito
para os homens? Aproveita-se tudo — a agua que corre, o vento que sopra,
as folhas sêccas, os troncos das arvores, a cortiça que as reveste^, o gado,
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 453

O que se alaga, o que se queima, o lixo que redemoinha, a agua da chuva,


a lama do caminho, os vermes, os pássaros, as piteiras dos vallados, a
urze do monte, as silvas e os cannaviaes, as hervas do campo, o barro
das barrocas, as lascas das pedreiras, a cera dos cortiços, a gomma das
plantas, e tudo para beneficio do homem, e só se ha de estragar e perder
o homem?! E tudo isto se faz em nome da religião! Que religião é esta
que poupa o boi, a ovelha, a cabra, a lebre, o coelho, as aves, o ouriço!
que ama o cavallo, adora o cão, explora o burro, e só estraga, sem lhe

aproveitar nem o trabalho nem a intelligencia, o homem, que vale mais


que todas as pedras ricas, que todos os fructos doces e todos os animaes
domésticos! Sou talvez um" rústico, um boçal, um estúpido, que não sabe
falar, nem pensar; mas, se comprehendo que os animaes se destruam uns
aos outros, que os brutos e as feras sejam nossos inimigos, não posso cora-
prehender para que é que o homem persegue o homem, e o mata, e o
despreza. . . Que o caçador mate a fera que teme, a lebre que lhe foge,
as aves que o alimentam,, explica-se; mas o homem a matar o homem,
seu companheiro, e seu amigo ! . . . Eu sabia que havia ladrões, assassinos,
gente má, invejosa, que roubava para não trabalhar, e que matava por
vingança; mas sempre imaginei que essa gente era pouca e andava escon-
dida... um cada terra, cem em cada reino, mil em todo o
ladrão em
mundo! F^m Lorvão, por exemplo, ha trinta casas, com as portas mal
fechadas, vinte gallinheiros junto dos muros, pomares ao alcance das mãos,
cearas debaixo dos pés, as encostas com os cachos expostos ao sol, gado
disperso pelos montes, e so um
dannos a annos, dia, se desgarrou uma
cabeça, foi arrombada uma ucha, andaram os ladrões ás uvas! O resto
devia ser como em Lorvão, onde não ha guardas nem justiça, e onde um
rapaz, como eu, guarda e defende a fortuna d'um casal, não dos homens
mas dos lobos ! Bem sei que na estrada de Coimbra, e lá embaixo, na
volta da ribeira, existem duas cruzes, mataram dois que dizem que alli

homens!. Bem sei isso! mas sei que ja não foi no meu tempo que isso
. .

succedeu, e que havia já muitos annos que não existia cruz nenhuma!
Tinham-me dicto que os que roubavam ficavam captivos e pobres, que os
que matavam morriam, porque a força, a gente toda, o mundo, não queria
que se roubasse nem matasse ! E, ao sahir d'aqui, ao atravessar as terras
mais ricas, mais bellas, onde está a justiça, a religião, a auctoridade, os
mestres, os que governam e mandam, não vi que se matasse e roubasse
ás escondidas ! Pelo contrário, vi que os alguazis roubam, que os padres
matam, isto é, que a justiça é criminosa, e que a religião não é moral!
Por aqui dava-se caça aos lobos e malfeitores; por lá succede o contrá-
rio Entre essa gente toda que sabe, que pode, que manda, que gover-
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI.. I. FOL. 57.


. . :!

^54 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

na, os muitos roubam e matam, e os poucos reclamam e choram ! Isto não


está certo, ou eu sou um alarve que confunde o joio com o trigo, o matto
com os oregãos, e o farello com a farinha ! O melhor gado, entre a gente
pobre e estúpida, é o que sae mosqueiro nas cidades e nos palácios ?

Eu sou christão pela graça de Deus; mas se, para ser christáo, é necessá-

rio ser mandrião, intrigante, rancoroso, perseguidor, ladrão e assassino,

como os frades de Christo, então, antes quero ser judeu e mouro. Pelo que
vi, Jesus não passa dum christão-novo, que ficou sempre judeu ! . . . Ora,
aqui está uma bella obra a que um rapaz como eu se poderia entregar

atirar-me a essa cáfila e arrancar-lhe das mãos algumas victimas innocen-


tes. . . Ja não me falta tudo, que sinto em mim o ódio mais tremendo I

Não me sae dos olhos aquella moura desgraçada, aquella pobre Suzana,
que assistiu ao supplicio do seu amante ! Se meu amo se perder e me cou-
ber a tarefa de devassar o segredo que me foi confiado, com certeza m^e
farei homem, e talvez possa ser homem rico- . . Por este sol que me allu-

mia, hei de vender cara a minha vida, e hei de castigar, por conta de
Deus, todos estes crimes de Satanaz ! Desde muito creança me habituei
a affrontar as violências do céo... Ainda não trepava bem estas escar-
pas e já me tinha habituado aos vendavaes mais furiosos. Os relâmpagos
não me faziam voltar a cara, a trovoada não me ensurdecia, e os raios,
que tanta vez se cruzaram por cima da minha cabeça, preferiram sem-
pre a cruz do campanário.. . Se cheguei a não temer os céos, por que
não hei de chegar a não temer os homens? Decididamente preciso de ser
útil. Quando eu julgava que o mundo era só isto, percorri e dominei isto
tudo. . . Agora, que sei o que está para lá d'estes montes, por que não irei

mais longe? As andorinhas, quando os filhos teem as azas completas, em-


purram-n'os para fora dos ninhos, para que elles voem. . . Eu já não tenho
mãe, mas a edade dá-me força ás azas da minha ambição. . . Vou levantar
o voo!
E Pepe poz-se a caminho na direcção da sua cabana . .

Ainda não tinha dado muitos passos, quando encontrou o morgado,


que vinha em sentido opposto, em trote regular.
— Olá, Pepe! estugou o e cavallo.
— Viva, respondeu Pepe, com sobranceria. . .

— Já não me conheces?
— Agora mais que nunca. Jocob Adibe assignou-lhe o rosto com ru-
brica e guarda!. .

— Não tenho tempo para castigar a te injuria. Preciso de ti. . .

— E eu só precisava do vosso cavallo.


— Es ambicioso?
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 455

— Como um morgado . .

— Toma; e o morgado atirou-lhe com uma moeda de prata.


— Acceito para meus irmãos. E levantou-a. O que estaes pagando?
— Um serviço. . .

— Ainda não prestado!. E imprudente. Mas, emlim, . . dizei.

— Trouxeste recado de Jacob para Sarahr


— Talvez.
— Jacob não pode proteger-te.

— Isso não importa; protejo-o eu.


— O que não impede que me sirvas também.
— Conforme a paga.
— Tu dirás. . .

— Borzeguins, gibão gorro, que me transformem de pastor em pa-


e

gem de conto de fadas.


— Estás servido.
— E um cinto com dez portuguezes d'curo. . .

— Conta com E' tudo? eiles.

— Ainda não — uma chave da escadaria da


e torre. . .

— Tens graça!
— Achaes graça!
— Sem dúvida; era mesmo que tencionava offerecer-te.
isso
— Já vejo que máu negocio. Estou capaz de pedir mais.
fiz

— Dize ainda. . .

— A certeza de que não quereis atraiçoar-me.


— Dou-te minha palavra de honra.
a
— Então depois de dez moedas d'ouro, apenas um maravedi?
— Tomarás todas as precauções. A missão muito simples. é
— Vamos ao resto.
— Conheces el-rei?

— Já o uma tarde, nas margens do Mondego, no meio d'uma caval-


vi

gada. •

— Bem; amanhã,
el-rei vira ao mosteiro. a noite,
— Temos o mosteiro alcáçova feito ?

— Subirás escada da
a depois entrar. torre, d'elle . .

—E da etiqueta. . .

— N'um esconderijo, que liça a meia altura, ha uma pequena rótula.


Demora-te ahi e applica o ouvido.
— N'essa altura devem os aposentos licar particulares de D. Philippa.
— E' mesmo.
isso
— Toma nota de quanto ouvires. . .
. . .

456 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—E se me surprehenderem ?

— Dirás á filha da abbadessa: Morreu ha muito Torquemada.


— Comprehendo. E ella responde-me logo: E Cysneiros está perdido...
O morgado abriu muito os olhos mostrando espanto.
— Quem te deu esse santo ?
— Quem recebeu de mim a senha. .

— Bravo Es então dos nossos


! ?

—-Isso é conforme. Mas como se entende que vigieis os sócios?


— E' que D. Philippa, tão próxima do rei, pode prescindir do mor-
gado. .

— E' uma patifaria, mas está-lhe nos hábitos. Está apostado. Man-
dae-me amanhã gibão, borzeguim, gorro, dinheiro e chave. .

E Pepe continuou o seu caminho, pensando:


— Bem dizia eu, largo o vôo, que já tenho as azas empennadas. . .

Batia em cheio o luar na fachada do mosteiro, e já tinha dado meia-


noite, quando dois cavalleiros se apearam do lado da torre e na facha de
sombra projectada por ella sobre a terra.
O primeiro que se apeou apressou-se a segurar o cavallo do segundo,
que, ao saltar, abriu o manto em que vinha rebuçado e deixou brilhar no
cinto guarnições de subido valor.
^Não te demores, meu caro César, nesta clareira, que é indiscreta

até a impertinência. Atravessa a ribeira e occulta-te por traz do zambujal.


— Por que não quer vossa alteza que eu vos acompanhe até lá cima ?

— Os olhos de Philippa illuminam a escadaria, na verdade, e, pretiro


que vigies o campo, por causa da curiosidade de meus súbditos.
— E nada teme, vossa alteza, dos rivaes ciumentos ?

— Os reis não fazem ciúmes ; o que vindo de outros é aggravo, vindo


d'elles não passa de honraria. . .

— Nem todos os amantes são d essa têmpera, meu senhor.


infelizes . .

— Tens medo por ou por mim? ti,

— Por vós, meu senhor, que por mim, bem o sabeis, nem temo a lucta,
a que estou aíFeito.

— Deves lembrar-te de que não trago o sceptro para estas aventuras;


basta-me a espada, que se ajusta bem á cinta do fidalgo edo rufião.
— Se apenas se tratasse do vosso braço, bem estávamos; mas trata-se
também do vosso nome. Sabeis, meu senhor, aparar valentemente um
golpe e responder a um sicário tão a propósito como se elle fosse um
. . . :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 457

embaixador; mas é mais difficil abafar um escândalo que atravessar um


homem.
— Estas tonto de todo ! Se alguém me detivesse o passo, nunca mais
poderia andar descançado. .

— E depois o alarme, os murmúrios ?

— Os mortos não pedem soccorro, e, se os vivos tivessem tempo para


isso, serias tu, D. César, a quem eu deixaria a honra da façanha.
—E poderia contar com o vosso perdão
— Com perdão e premio. Já notei que tens braço e peito de molde para
capitão da minha guarda. .

— Favores de vossa alteza. . . disse D. César, cortejando.


— Afasta-te, pois, vigia de e longe.
D. César encaminhou-se, levando comsigo os dois cavallos. De repente
estacou e chamou el-rei, que dera alguns passos.
— Meu senhor, meu senhor. . .

— Que temos? Subiram-te á cabeça os sermões de António Carneiro?


— Não, meu senhor, é que me esqueci de vos lembrar que entre os
amantes desprezados ha um capaz de não respeitar a coroa dos frades e
a dos reis.
— Bem vês que não trago nem coroa de rei, nem elmo de cavalleiro.
A lamina é que foi corrigida pelo alfageme da Alcáçova.
— Entretanto, deveis ter ouvido falar em Jacob, a quem entregaste a
Castella e roubaste a amante. . .

— Esse está seguro. .

— Se estiver! Quem sabe o que se terá pssado? A rainha D. Izabel


está no tumulo, e Philippe, que vive a galopar, faz surpresas todos os dias.
— Estou confiado; se o perdão não tiver sido ordenado, não aprovei-
tará aos reincidentes. . .

— Cumpri o meu dever. Cá vou para o meu posto.


E afiístou-se.

D. Manuel, ao chegar á pequenina porta da torre, abriu-a cauteloso


e empurrou-a sem entrar. Não se ouvia o menor ruido, e, na primeira volta
da escada, tremia a chamma de uma lâmpada suspensa num pequeno ni-

cho, ou capella aberta na muralha.


El-rci examinou os degraus, que pareciam oscillar com o etfeito das
sombras que desciam por elles. . . Entrou, e sem voltar as costas, fechou
a porta. Impressionado, talvez, com as prevenções do seu companheiro,
pôz o manto em descanço no hombro esquerdo, como para lhe servir de
escudo, ficando com o braço direito perfeitamente livre.. E subiu.
Ao chegar junto da lâmpada, quando ia a extcnder o braço para a pe-
.

458 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

quena capella, viu que a luz se movera rapidamente, como se fosse a apa-

gar-se com uma forte corrente d'ar. Voltou-se e viu então que a porta, que
eile deixara fechada, se fechava de novo. Apesar da escuridão, distinguiu,
um vulto no principio da escada.
— Quem está ahi ?

Houve um momento de silencio.


— Es tu, D. César ? . . .

El-rei já avistava alguém, evidentemente um homem, talvez um pagem.


— Não, meu senhor, respondeu o vulto falando em voz muito baixa.
— Dize, então, quem és, ou vou castigar-te o atrevimento.
E dizendo isto, D. Manuel fazia scintillar á luz da lâmpada a sua
espada polida como um espelho. . .

— Deixae-vos estar, senhor, que eu não darei um passo sem que o


ordeneis. .

— Mas quem afinal? és,


— Eu não sou ninguém; isto é, não tenho nome que conheçaes, nem
mesmo sou o que pareço.
— Não tenho tempo para conversas ; ou dizes a que vens, ou vou es-

petar-te de encontro a essa porta.


— Sois el-rei, e tal contra uma creança que vem aqui des-
não faríeis

armada, expor a vida, praticar uma acção boa, e não contra vós.
As palavras de Pepe tmham um tom tão suave e sincero, que el-rei
começou a tranquillisar-se. Affirmou-se mais D. Manuel e viu que, na ver-
dade, tinha na sua frente um pobre rapaz, um adolescente, cuja apparição
não sabia ainda explicar, mas já não temia.
— Estás só ?

— Mais acompanhado do que nunca, porque estou próximo de vós. . .

— Approxima-te então.
— Pepe subiu alguns degraus, quando a e, luz já lhe batia no rosto,
parou e poz os joelhos no degrau superior.
— Perdoae-me, senhor, mas sou portuguez, amo o meu rei e tenho que
pedir-lhe a vida dum dos homens mais honrados que existem no vosso
reino.
— De quem falas ?

— De Jacob, preso e condemnado na Inquisição de Sevilha.


— Mas como ousaste escolher este momento. . .

— Porque era necessário prestar um serviço a vossa alteza. . .

— Fala depressa.
— Leia, vossa alteza, estas provas; são documentos que trago de Deza,
e pelos quaes ficareis sabendo que estaes rodeado de agentes hespanhoes.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 459

que procuram sujeitar a vossa vontade... Fostes, meu senhor, attrahido


ao mosteiro para dar valimento á fillia da abbadessa, que está encarregada
de espionar os vossos pensamentos. . Para Hespanina vão contados, quasi
todos os dias, os beijos c as palavras com que honraes Philippa.
— Es novo de mais para seres um impostor. Es capaz de provar o
que dizes ?

— Lede este documento.


D. Manuel passou rapidamente a vista sobre um titulo de identidade,
que acreditava Pepe junto dos mais altos espiões de Hespanha. .

— Es então um d'esses agentes do Santo Officio?


— Assim logrei approximar-me de meu amo, assim posso aftirmar a
vossa alteza que fui encarregado de espreitar Philippa, por ordem do
inquisidor-geral, e de espionar vossa alteza, por ordem do morgado de
Travanca.
— Que bandidos! murmurou D. Manuel.
— Bem vedes, senhor, que não cumpri taes encargos. Pelo contrário,
a vós me apresento e entrego. A intriga alastra-se e da intriga pode nas-
cer uma conspiração contra o poder e a vida de vossa alteza.
— Que quererão de mim? disse D. Manuel, como se estivesse só e
pensando.
— Querem que Portugal seja um esbirro da Inquisição de Hespanha;
querem que, com urgência, o vosso reino accenda as fogueiras que ardem
por lá, com maior violência que a das queimadas dos nossos campos.
— Bem, se és sincero, como me pareces, abre essa porta, sae e chama
um cavalleiro que está emboscado no juncal da ribeira. Espero por ti. .

Pepe cumpriu rigorosamente as ordens de D. Manuel.


Em poucos momentos, voltava em companhia de D. César.
— D. César, disse el-rei, como dei.xaste que na minha piugada viesse
este pagem mysterioso?
— Senhor, não sei... ^''eiu decerto, de rastos, sobre a sombra do
vosso vulto.
— Bem, seguirei agora o teu conselho, D. César, faze, para que eu
não torne a ser surprehendido, o mesmo que elle fez para me surpre-
hender.
— Ficarei junto de vós, meu senhor. . .

—E tu, atrevido espião, que eu ponho ao meu serviço, ja que tão


habilmente me segues, prova-mc a tua lealdade, andando na minha frente.
Ficarei eu agora na sombra do meu pagem. .

E el-rei tirou do nicho sagradouma pequena chave.


— Toma este talisman, já que Hespanha e Roma conspiram contra
: .

46o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

mim. Entraremos, os dois, por esta porta magica... Tu irás surprehen-


der Piíilippa nos seus aposentos, e eu ficarei espreitando e escutando, junto
d'essa rótula cuja existência me tiniiam occultado.
— Vossa alteza manda, obedeço; mas. antes, pagae-me. senhor, deante
desta virgem, e á luz d'esta lâmpada, o meu zelo e a minha lealdade. . .

— Dize, pois. .

— Senhor, vós que me não receberíeis na Alcáçova, ouvi-me aqui, que


dir-vos-hei, a correr, o que mais desejo que a minha vida de amanhã.
Por vós, senhor, pelo vosso reino, pela felicidade da rainha, minha senhora,
pelo futuro do príncipe real o senhor D. João, acudi a meu pobre amo, que
é um moço cavalleiro dos mais nobres, um portuguez dos mais patriotas!
Senhor, sois novo e generoso, compadecei-vos de Jacob, que é da vossa
edade e ama a vida que lhe sorri, e uma mulher formosa que o adora. . .

Bastará uma palavra vossa, senhor, para que esse leal christão-novo seja
posto em liberdade . . . Mandae-o, depois, se isso vos aprouver, para a

índia, onde elle poderá honrar o vosso nome, ou fazei-o emigrar para
qualquer parte do mundo onde elle não incommode a Inquisição, nem a
Inquisição o persiga. Não imaginaes, senhor, quanto elle vale!... Que
bello coração! que excellenté alma! Fazei-o pagem ou cavalleiro, que elle

vos será fiel Se tendes necessidade, senhor, de entregar ao Santo


e grato.

Officio uma vida, ou uma^alma, das nascidas em terras portuguezas, tro-


cae-me por elle, que eu prometto agradecer-vos até a hora em que o fogo
crepitar sob o estrado do meu patíbulo. Eu faço falta a mim só, mas elle
deixa no lucto muitos corações, porque ama e é amado! Foi elle quem
salvou meu pae, foi elle quem me salvou a mim. E' bom, é ousado, e
mais nobre que os nobres que vos rodeiam, e, tendo sido judeu, por amor
á nossa terra, abraçou a nossa religião. E' filho do velho Adibe, que pou-
pou milhares de vidas na tomada de Azamor, apesar de ter sido proscri-

pto por um alvará de vossa alteza. Mandae que elle vos defenda, e elle

morrerá por vós! Não tendes no vosso reino vassallo mais dedicado! Sal-
vae-o,meu senhor, salvae-o, pela gloria de Deus! . .

E Pepe, fazendo tal súpplica, puzera-se de joelhos deante del-rei, de


mãos postas, com as lagrimas nos olhos, grandes como gôttas de orvalho
em folhas de roseira. . .

D. Manuel passou meigamente a mão na face de Pepc, e disse-lhe,


levantando-o
— Falaremos, falaremos. . . Em Coimbra, e com vagar, cuidaremos em
teu amo. Tem este moço rara dedicação que o recommenda á minha sym-
pathia. Recommendo-t'o, D. César, e quando elle apparecer, introduz-m'o,
que desejo ouvil-o, e, se puder, servil-o também.
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 461

— Daes-me alguma esperança, senhor?


— Es muito novo para que possas comprehender o meu embaraço.
Nem tudo depende de mim. Mas crê, bom moço, que farei quanto possa.
— Obrigado, senhor, muito obrigado!. . .

— Vamos, já que revelas tanta audácia, completa a tua obra. Anda


commigo.
El-rei, então, tendo aberto uma porta falsa, desappareceu num pe-
queno corredor escuro.
Pepe seguiu-o.
D. Manuel disse em voz muito baixa:
— Abre, e entra. Ouvirei quanto disseres.
Pepe empurrou um pedaço de parede no logar que elrei lhe indicou,
€, logo esse pedaço girou, mostrando um aposento fortemente illuminado.
— Entrae, meu senhor, disse uma voz feminina.
Pepe hesitou em avançar.
— Temos surpresa? Não vedes que ha muito vos espero, mais anciosa
que nunca?. .

Pepe deu mais um passo, e a porta, mal elle passou o limiar, girou
novamente, e fechou-se.

— Que c isto? disse Philippa, erguendo-se de um salto, e, vendo que


tinha deante de si, não el-rei, a quem esperava, mas uma figura extranha.

Pepe comprehendeu a difficuldade da situação e viu que era necessá-


rio falar, para evitar um alarme, senão perigoso, pelo menos incómmodo.
— No palácio d'uma fada são vulgares estas surpresas. Não me co-
. .

nheceis, senhoria?. . .

— Espera. reconheço esta cara. Tu és o pastor?


. .

— Exactamente — todo o pastor pagem encantado, para


inteiro, feito

merecer a honra de penetrar n'este eco aberto, diria eu, se se não tra-

tasse d'um céo fechado.


— Que abriste... Com que chave?
tu
— E' melhor perguntar com que chaves, porque, para chegar aqui, me
servi de duas. .

— Que tu roubaste ?

— Que ideal não tenho edadc para roubar, nem um beijo, sequer-..
— Trazes recado del-rei?
— D'el-reil Kntáo eu sou gente que conheça gente? Não, senhora tal

minha. Venho da parte do sr.- morgado, para vos participar que el-rei não
pode hoje vir ao mosteiro. . .

— Que contrariedade! disse Philippa, sacudindo ligeiramente os dedos,


em signal de impaciência. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. 90L. 58.


. . . .

462 , MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—O sr. morgado, continuou Pepe, encarregou-me de vos prevenir de


que está desconfiado de que alguém advertiu o sr. D. Manuel de que vós
estaes em relações directas com os frades de Hespanha. .

— O morgado contou-te isso


sr. ?

— Contou, porque, como sabeis — Torquemada morreu ha muito . .

Philippa olhou mais attentamente para Pepe.


— Noto a grande transformação que soffreste. . . Não pareces o mesmo í

Até estás bonito! Fica-te bem esse gibão. Tens a figura mais distincta
que muitos fidalgos da corte. Só agora reparo, Pepe, nos anneis do teu
cabello. . . Tens uma bella cabeça!
E Philippa mirou o falso pagem com grande attenção, e, durante o
exame, a physionomia, ordinariamente carregada e dura, se animou com
o seu melhor sorriso.
— E, de Cysneiros, disse tens algumas novas? ella,

— Tenho, mas não são boas. Cysneiros está perdido!


— Foi em Sevilha que soubeste d'esses desastres?
— Foi — contou-m'os o arcebispo, que ainda é inquisidor-geral.
— Visto isso, o morgado 'foi de parecer que eu podia conversar fran-
camente comtigo. .

— Como se falasses com elle, ou para melhor dizer, mais francamente^


que elle gosta de trabalhar sósinho, para ganhar sósinho as glorias das
empresas.
Philippa parecia não ouvir o pastor, mas continuava olhando-o com des-
velo.
— Que edade tens, Pepe?
— Ao certo, ao não certo, sei. . . Talvez uns dezesete. .

— Estás um mancebo guapo, e não pareces um simples guardador de


ovelhas. Volta-te, Pepe.
Pepe obedeceu.
— Sim, senhor... perna direita, cintura delgada, hombros bem lança-
dos, cabeça nobremente erguida!
— Este deu-m'o o
fato morgado. sr.

— Pois eu hei de dar-te outro melhor, que bem o mereces. Ha muito


que não vejo busto tão bem lançado. . . Olha para mim, Pepe.
Pepe fitou, ruborisando, o rosto formoso de Philippa.
— Como ella é formosa! pensou Pepe.
Mas não pôde aguentar-lhe o olhar.
— Sabes, Pepe, disse Philippa, os teus olhos são dignos de fitar os meus.
Es hespanhol?
— Por que me perguntaes isso, senhora?
! .
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 463

— Porque são raros em Portugal tal feitio, côr e brilho. São olhos an-
daluzes.
— São de minha mãe. .

— Devia ser muito formosa tua mãe ? . .

— Diz meu pae que tão formosa como ella, só conheceu a sr.* abba-
dessa D. Maria d'Eça. .

— E' notável que eu nunca tivesse olhado bem para ti. E' o fato que
te fez bonito. Pois hei de cuidar no teu adorno, visto deixares de ser pastor.
— Ficaes sabendo, senhora, que não deveis contar hoje com el-rei...
— Faz-me faltai

— Se o amaes. .

— Não isso; precisava de saber


é o que pensa na corte a d'elle se res-

peito da saúde de el-rei D. Philippe.


— Se quereis novas para Deza, poderei leval-as.
— Quando partes?
— Brevemente . .

— Pois bem, dir-lhe-has. Mas senta-te . . aqui, Pepe, junto de mim.


Pepe hesitou.
— Tens medo? Achas-me muito feia? Por que me não guardas? Sou
peor que as tuas ovelhas?
— Isso, sim! Sois até a pastora mais bonita para um rebanho de co-
rações !

— Bravo, bravo! as tuas falas são já mais garridas que o teu gibão!
Vamos, senta-te aqui. El-rei não vem? Melhor! Chamaste-me pastora? Pois
seja; pastor, dá-me um beijo por conta d'el-rei, que te enviou. .

Pepe ficou perplexo. . . Dar o beijo que lhe pedia Philippa seria o seu
desejo, mas el-rei estava vendo-o e escutando-o. . . Dar um beijo na amante
do rei! Era uma falta de respeito. . . Mas recusar, também lhe parecia gros-

seiro. . . Talvez que Philippa o considerasse uma creança. N'esse caso, um


beijo era a cousa mais innocente deste mundo! Elle podia beijal-a singel-
lamente, isto é, com indifferença ou respeito. Ainda não havia muito tempo
que recebera beijos d'algumas monjas e freiras, mulheres que tinham filhos

no mosteiro, e que talvez o beijassem como se eile fosse filho d'ellas...

Beijar immediatamente poderia ser impudor, mas deixar de beijar


seria talvez peor. . .

El-rei poderia attribuir a Philippa a idéa que quizesse, mas a ellc. .

Depois elle era o mensageiro do rei, ou dalguera em nome do rei. . .

Quem sabia explicar-lhe se aquelle beijo pedido era pedido a el-rei? Mas,
nesse caso, era atrevimento seu acceitar um beijo que ia para tão alta
personagem
. . . . . .

464 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Philippa estava mais bella que nunca. Olhal-a, era vêl-a, e vêl-a toda!
Estava vestida de nudez, que é um habito tentador! Esperava o rei, seu
amante, e não o pastor, seu serviçal. .

Mas, como não tivera tempo para se compor, apparecia um pouco^


como diremos ? descomposta . .

Quem podia explicar o que vestia Philippa? Tudo que poderia mostrar-
Ihe as formas e a graça.
Todo o corpo estava velado, mas como? De transparências. .

Na cabeça, larga juba de cabellos negros, regaçados em pregarias scin-


tillantes, o collo nu, completamente nu! Isto é, em nudez que é a peor
de todas, a que não deixa vêr, mas deixa adivinhar. As curvas teem essa
indiscreção: basta que se veja um raio, para se descobrir o circulo todo.
Em geometria, a curva é mais sincera que a recta. Ninguém sabe onde
esta linha vae parar; o principio d'uma curva denuncia a sua grandeza na
graduação do arqueado. . .

A cintura tinha a carne a rosar o tecido da túnica, tão fina, tão cruel,
que parecia molhada. .

Desenhava-se-lhe a perna desde a coxa até o joelho, e do joelho até o


artelho, apesar da rede que a envolvia, tão delicada, tão fina, que acom-
panhava todo o esboço. . . O pé nu, calçado de sandaUa dourada, que mal
se segurava. . . O braço, nu como o pé, cortado de pulseiras quasi desde
o hombro até o pulso; braço bem torneado, que vinha de cima amplo e
carnoso até a mão pequenina, de unhas rosadas a rematarem os dedos
bem talhados.
Por cima de tudo isto, um grande manto de pelles, de leão, urso, ou
raposa, pelles bem forradas de setim vermelho, mas que, em vez de se
fechar para que se visse o matiz do pêlo, se abria para mostrar as ban-
das setinosas.
Depois a posição 1. - . Philippa recostara-se negligentemente sobre uma al-
mofada negra, como os seus cabellos, onde mão hábil tinha bordado o ma-
tiz das cores mais vivas, como as de um biombo chinez. . . O olhar sahia-lhe
das pestanas negras, e os lábios vermelhos distendiam-se n'um sorriso
cariciador. .

Pepe, n'um relance, tinha visto tudo isto, e tinha adivinhado o resto. .

Aquelle espectáculo era novo para elle, completamente novo. Sabia o que
era amor, mas ignorava o que a arte podia melhoral-o. Não era um inno-
cente, era um inculto. O que tinha deante dos olhos era mais que uma vi-

são, era um deslumbramento. Aquillo não era uma mulher, era uma mulher
demónio!
Ao mesmo tempo que o attrahia, o repellia com violência. Puxava por
:. . . . ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 4^5

elle e arremessava-o para longe. Se lhe desse um beijo, quantos lhe daria
depois? Antes do convite acceito, lembrava-se de que el-rei o espreitava,
mas depois?
Podiam estar alli todos os reis do mundo e todos os deuses do céo,
que elle não deixaria de matar a sede n'aquella fonte crystallina
Não lhe chegavam os olhos para abraçar, n'um relance, a visão que o
perturbava. Ora fixava o olhar nas ondas do cabello, ora no movimento
frenético da sandália... E pelo caminho demorava-se. .

— Então, Pepe, não me ouviste? Dá-me um beijo e senta-te aqui a

meu lado. .

— Senhora, disse Pepe, mais vermelho que o forro do manto de Philip-


pa, não mereço tanta honra. Tenho os lábios crestados pelo sol, e receio
ferir-vos com elles a face, que parece mais fina e transparente que a ne-
blina da manhã, rosada pela luz da aurora. .

— Não era el-rei capaz d'esse galanteio, meu querido Pepe. . . El-rei,

que apenas me fala do seu poder absoluto e do valor das suas jóias ! Ah
que se as mulheres soubessem onde o amor guarda as suas aljavas...
Quem o pintou na figura d'uma creança bem soube o que fez Es I . . .

ignorante, Pepe, isto é, és innocente. Pois bem, olha aquelle quadro...


Repara bem n'elle. . .

Pepe voltou a cabeça e viu, por entre as ondas, a sahir, o busto de Vé-
nus, e Cupido, com azas pequeninas, beijando sua mãe.
— Imagina, Pepe, disse Philippa, que estes estofos, em que me reclino,
são ondas do mar, que estas rendas, que me envolvera, são d'essas ondas . .
.

esquece o teu gibão, e abre as tuas azas... Copia aquelle quadro, meu
rústico poeta ! . . .

E Pepe, boquiaberto, olhava o quadro e o divan, a Vénus e Philippa, e

sentia dentro de si tão alvoroçado o sangue, como se com elle se estives-

sem a formar e a abrir as azas de Cupido. . .

— Meu filho, abraça tua mãe, disse Philippa abrindo os braços e exten-
dendo-os a Pepe, com tal vivacidade que o manto de todo a abandonou,
e o vulto gracioso e elegante se mostrou, com todo o encanto das suas li-

nhas, sobre o estofo luxuoso do seu leito. . .

Pepe, cujo olhar tinha centelhas capazes de allumiar um sepulcro,


avançou dois passos, e, juntando as mãos, como n'uma prece, exclamou
ao deter-se
— Senhora ! por quem sois !

— Como te fica bem essa hesitação e esse enleio!... Repara que,


se não vieres até mim, visto te deter a timidez e não a insensibilidade, me
forçarás a que te dè. . . o que te peço. .
. . :

466 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Senhora, el rei, vosso amante, não pôde vir hoje, mas virá ama-
nhã. .

— Que me importa el-rei ! Julgas, por acaso, que qualquer mulher de


coração possa apaixonar-se por um homem que cinge uma coroa, no logar
onde tu cinges a magica cabelleira dos pastores napolitanos? Em el-rei

profundo segredos, como já sabeis, que hão de ganhar-me prestigio nas


cortes de Hespanha, e de Roma, e preparo influencia e pressão que hão
de leval-o á politica de Fernando V. El-rei não é o meu amor, é o meu
instrumento. Com elle firmarei o abbadessado de Lorvão e a auctoridade
de minha familia. Ha dentro de mim, Pepe, duas forças, que tu não com-
prehendes — a minha ambição e o meu prazer — aquella começa no escu-
deiro e vae até o rei ; n'este começo em qualquer homem e vou até o pas-
tor, que só conhece a vida dos ninhos e o beijo das flores. Dize o que
queres ser, e sel-o-has. Os meus encantos abrem todas as portas e fran-
queiam todas as ascensões . . . Vieste em nome dum cortezão, que abhorreço,
trazer-me novas dum príncipe que tolero. Fizeram de ti pagem da vai-

dade imbecil e da semsaboria real, e tu vales mais que tudo isso. . . Sou
nova, sou formosa e sou rica, e, na agencia, que me dá força e auctori-
dade, terei mais influencia no rei de Portugal que a filha dos reis catholi-

cos. Senta-te aqui, Pepe ... Já que o acaso te enviou a meus pés, adora-
me, tu que me trazes a nova sensação d'um corpo virgem e d'uma alma
apaixonada. . .

E Pepe estava já tão perto, que Philippa conseguiu prender-lheasmãos.


A este contacto, o pastor sentiu a maior revolta nos sentidos que elle

tentava dominar, e, ou porque enfraquecesse na resistência, ou porque a


freira avigorasse a attracção, Pepe cahiu de joelhos, junto do divan, bei-

jando as mãos que tinham prendido as suas.


Então Philippa, erguendo levemente o busto, conchegou a cabeça de
Pepe sobre o collo, e beijou, ou mordeu, os cabellos negros e luzidios que

cahiam sobre a fronte do pastor.


Ouviu-se um leve rumor, e a porta falsa girou rapidamente, deixando
aberta a galeria por onde Pepe tinha entrado.
O pastor, d' um salto se collocou a distancia de Philippa, levantando
do chão o gorro, que insensivelmente deixara cahir sobre a alcatifa. Phi-
lippa apenas se perfilou, erguendo o collo... como um cysne, que se
assusta, quando vae deslizando .

Houve um momento de silencio em que ninguém assomou á porta que


se abrira.
Afinal, a luz dos aposentos de Philippa illuminou o rosto de D. César,
que, com a solennidade d'um pagem de alcáçova, annunciou
Traição! murmurou Philippa

-^
6^'
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 467

— El-rei.
— Estou perdido! pensou Pepe.
'^'
— Traição ! murmurou Philippa.
El-rei fez-se esperar; mas, afinal appareceu, solenne na posição, mas
alegre na physionomia. O manto aberto, a mão sobre a espada, a cabeça
bem erguida, e coberta com o seu gorro de disfarce.
— Boa noite, Philippa, minha carinhosa amiga, trago-vos uma boa
nova : ides passear até outro mosteiro, emquanto não determino a succes-
são de D. Maria d"Eça. Podereis escolher o sitio mais bucólico, vista a

vossa predilecção pelos pastores das almas e pelos pastores d"ovelhas.


— Meu senhor. . . — tentou dizer D. Philippa.
r— Calae-yos, senhora, acudiu D. Manuel, mudando de tom, talvez que
o silencio possa velar o impudor.
E depois, dirigindo-se ao pastor:
— Meu rapaz, não me agrada que guardes ovelhas e te deixes roubar
pelas raposas. Quero defender-te e desaffrontar-me. Já que aproveitas os
restos dos meus festins, quero que vás para mais perto da minha ucharia.
Ha segredos que não devem passar da família. Tu és da minha. Ficas
sendo pagem, com licença para te disfarçares em pastor. Queres ?
— Se vossa alteza me perdoa?. .

— Perdôo-te e agradeço-te, que acabas de prestar um grande serviço


a mim e ao meu reino. .

— Mas, senhor, não me quereis ouvir?. ousou D. . . Philippa.


— De mais o através d'esta parede. Estou
fiz, instruído.
E voltando-se para D. César:
— Fecha essa porta, que hei de sahir por onde sae um rei quando, no
exercício do seu cargo, vem a deshoras tratar dos negócios do Estado.
D. Philippa, chamae as vossas monjas de serviço e mandae illuminar o
caminho que vae d'aqui á sala do Capitulo, e de lá á nave da egreja...
— E' mais de meia noite, meu senhor, e o meu habito não me permittc
sahir, dos meus aposentos.
— Dispenso-vos a etiqueta. Só desejo que a ordem assista á minha
passagem...
— Então, sempre quereis ?

— Se não me obedecerdes immediatamente, mandarei D. César alar-

mar o mosteiro . .

D. Philippa fez soar o timbre.

Appareceram duas monjas.



El-rei, disse ella, compondo o seu manto de pelles, deseja que a
ordem o acompanhe até o portal.
.

MYSTERIOS D\ INQUISIÇÃO

El-rei passou á sala de recepção da abbadessa, e logo duas alas de


freiras, de tochas accesas, lhe illuminaram o caminho.
— Que as minhas ordens sejam immediatamente transmittidas ao ar-

cebispo de Coimbra.
Fechou-se sobre el-rei o grande circulo de luzes, e D. César e Pepe
seguiram a pequena distancia el-rei, que, vagarosamente e traçando o
manto, desappareceu na vasta galeria do mosteiro.
— Cara me pagarás a villania, rei de Portugal, disse Philippa, ao ficar
só. Veremos quem vence... Felizmente ainda o throno não vale tanto
como o altar. Querem luctar ? Luctarei. O abbadessado é electivo, e Roma
ha de sanccionar a eleição!
E ficou recostada no divan, com os olhos fixos nas velas de cera dum
grande lampeão, a pensar na desforra . .
.

XXI

Os noivos

Alguns dias depois, voltava de Lisboa Pedro Soares, mais alegre que
nunca. Remoçara o gentil cavalleiro n'esta ultima viagem.
Trouxera em sua companhia Gil Vicente, e no cinto, bem guardada,
a auctorisação d'el-rei para desposar Deborah. Antes de partir dispuzera
tudo para a cerimonia, e, durante o pouco tempo que se demorara em Lis-
boa, preparara, em sua casa de Villa Nova, o futuro ninho dos seus amores.
A velha Joanna encarregara-se d'essa tarefa.
Como ella estava saudosa das suas queridas filhas, e bem contristada
com as ausências frequentes do seu Pedro! Levantava-se muito cedo e logo
SC empenhava em alindar os quartos dos noivos. Como tudo estava tão
asseado e elegante ! Pobrezinho, sim, mas d'uma singelleza artistica, em
que era aproveitada toda a luz. . . O enxoval era um mimo, que ella pre-
parava com. o próprio trabalho e com o trabalho de Sarah, que constan-
temente lhe estava enviando rendas, frioleiras, fitas, fronhas e bordados I .

As molduras dos santos tinham sido envernizadas, e as imagens, cujos


mantos se haviam desbotado com o tempo, reappareceram, com as faces
rosadas, e os hábitos estrellados a ouro e prata. Havia grinaldas no ora-
tório com delicadas flores artificiaes, e as que o não eram, como, por exem-
plo, as perpétuas amarellas e roxas, tão artificiaes pareciam que até em
algumas pousavam as joanninhas verdes e de furta-còres, apanhadas nos
cactos da açotca... Havia já alguns dias que n'aquelles quartos só ella
entrava; que o chão, em sobrado e tijolos, estava tão branco c vermelho,
que até sobre elle se podia comer sem toalha.

A ucha estava apinhada de boa roupa de linho, prensada e perfumada,


e por entre ella, resequidas e aromáticas, havia dispersas muitas pétalas
de rosa.
Por fora, a arca tradicional não admittia henericios, além da limpeza
MYSTEUIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. l. FOL. 5q.
!

470 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

da pregaria nas juntas do couro ; mas Joanna, por tal forma a ataviara,

que Deborah não podia reconhecel-a.


Envolvia-a toda uma cobertura de ramagem, em folhos macheados,
com guarnições de requife e lacinhos de seda ! O leito, o alto leito de páu
santo, o melhor da casa, com pés em volutas, com as columnas dós alta-

res, e a cabeceira trepando pela parede, em recortes rematados por mas-


sanetas de caprichoso torneado, e, no grande alçado, embutidos de madei-
ras claras, figurando um cesto cheio de tlôres entre curvas symetricas,

como as que ornam modernamente os monogrammas da mais exquisita


phantasia. . .

A ampla coberta, ampla e dupla, misto de brancos entremeios sobre


fundo azul, n'uma sarja tão macia como a seda, tufando como um estofo
e cahindo no chão em largas pregas, como as saias rodadas das tafues.

O travesseiro, branco e redondo como uma columna de mármore, mos-


trando ao centro, n"um enlace calligraphico, que denunciava paciência e
bom gosto, as duas lettras P. e D., marcadas a torçal também da côr do
céo, e que custara muito dinheiro no sirgueiro da rua Nova. Nas extre-
midades., um circulo perfilado em gomma forte, em tufos regulares, ouri-

çados de espiguilha, tendo no centro uma roseta em séries de canudinhos.

na regularidade d'uma dhalia grande e aberta 1

Em baixo, a um terço do comprimento do leito, um banco formado


por três degraus, forrados de velha tapeçaria persa ; degraus d'aquelle
throno por onde os príncipes d'aquelle pequeno reino haviam de subir na
festa nupcial

Do tecto pendia, fixa á trave central, uma lâmpada nova, prateada,


como uma que Joanna vira na frente da capella do Santíssimo na egreja
da sua devoção... A adufa com rótula delicada, por onde subia, enla-

çando-se, uma trepadeira, de flores miudinhas e embalsamadas.


E, durante o dia, aquelle santuário se conservava tão resguardado, que
apenas alli entrava a bondosa mãe, para accrescentar um novo adorno. No
quarto proximiO, na pequena ante-camara, o mesmo asseio, o mesmo gosto
e o mesmo desvelo. A poltrona, a dobadoura, a mesinha, de abas cabidas,
n'uma attitude resignada, a roca, a cuba dos novellos, o taleigo da roupa
lavada, e, ao canto, coberto com uma cortina de retalhos de seda, um pe-
queno órgão, deixando ver os pés marchetados de metaes amarellos.
•loanna não pensava noutra coisa nem tinha outros cuidados! Ia rever
as delicadas creaturas que a desgraça afastara do seu convívio; ia ser fe-
liz, viver alegre, esperar a morte com o sorriso nos lábios!
Sacrificara o quarto de Sarah aos aposentos dos noivos.
— A pequena dormirá a meu lado. . . São dois noivados!
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 47'

E por isso se entregara também aos incómmodos e ás despesas de


melhorar a sua alcova. Fez também vestido novo, menos escuro que o
outro, e arrancou das paredes os quadros sombrios do Novo Testamento,
e até um que representava a guerra de Tróia, e substituiu-os pelo retrato

da Virgem, no dia de Ascenção, e por outros três, ou quatro, que re-

presentavam a historia do José, do Egypto, porque elle era novo e meigo!

E, emquanto andava na sua faina, não deixava de falar só. •

— Deus queira que elles sejam felizes! Gostava immcnso de ter um


neto, que se parecesse com elles. . . Se elles forem felizes, hei de cumprir
uma promessa de S. Domingos até S. Roque! Pobres creanças! Hei de
vêl-as alegres, e não hei de crer!... E depcis, teremos o casamento de
Sarah. . . Então, para vivermos todos juntos, havemos de ir para uma casa
maior, com um pedaço de arrifana e muitos canteiros de tlores Agora
. . .

é que eu tenho pena de estar tão velha! Gostava de viver muito tempo
assim . . .

E a pobre Joanna contava pelos dedos os dias que faltavam para a

chegada dos seus amores. .

— Ainda
• falta a noite de hoje, o dia de amanhã, depois o outro, o ou-
tro, o outro. . . Ainda falta tanto, meu Deus! O que eu queria era ador-
mecer agora e só accordar quando elles me apparecessem, a correr, a cha-
mar por mim, muito risonhos, a beijarem-se, e a beijarem-me! . . Em que
hei de entreter todos estes dias? Depois Lorvão fica tão longe! Se lhes
succede alguma desgraça pelo caminho?! Deus não ha de querer seme-
lhante cousa. . . E' verdade que já nos teem succedido tantas desgraças. .

Pois é por isso mesmo. . . agora acabou -se todo o nosso infortúnio. Se eu
tenho pedido tanto a Nossa Senhora!. . . Emquanto elles não vierem, hei
de ter sempre a lâmpada accesa, de dia e de noite. . .

E depois d'este monólogo, ora alegre, ora triste, passeava pela casa,
e, insensivelmente, ia parar á porta da alcova dos noivos, e espreitava.
— Está pobre, mas está bonita. .

E. sorria-se, e, pouco depois, limpava uma lagrima, e acaba\a sempre


por cahir de joelhos deante do oratório a pedir por elles, por seus filhos,

pelos seus noivos. .

Foi n'essas disposições de espirito que Pedro deixou sua mãe c che-

gou a Lorvão.
Também elle ia radiante, cheio de saudades e de esperanças ! Dois dias
mais e Deborah seria sua mulher! e logo partiria com ella e com Sarah,
em caminho de Goimbra e de Lisboa! Ao lado da sua noiva passaria um
. ! . . .

472 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

ou dois mezes, e depois partiria para o Oriente, em busca de riqueza e


de glorias.
Sorria-lhe o futuro, e por isso julgava- se feliz, que um presente cheio
de esperanças faz esquecer as desgraças do passado e vale tanto como
a felicidade esperada. Nem se lembrava das tristezas da Jacob nem das
preoccupações de Sarah I

• E' tão egoísta o amor


Deborah cahiu-lhe nos braços, tão depressa, mal elle se approximou,
que Pedro não pôde ver-lhe a pallidez do rosto. .

Só quando elle ergueu a cabeça para lhe ler nos olhos a alegria que
devia causar-lhe a noticia de que vinha, emfim, buscala e dar-lhe o seu
nome e a sua vida, é que reparou no aspecto doentio da pobre creaturi-
nha.
— Que tens, tu, Deborah ? Estás doente ?

— Não, Pedro. Estou fraca, saudosa de ti e de Joanna, condoída de


Sarah e assustada, não sei de que. .

— Faces pallídas, olhos roxeados ? tu estás doente, e não dizes quanto


sentes. .

— Se estou doente é de mal passageiro. Isto foge, meu Pedro. Os


ares de Lisboa hão de restítuír-me a côr e a força.
— Serei o teu physico, Deborah ; rosarei o teu rosto com os meus bei-

jos, e o meu braço ha de amparar a tua fraqueza. Vamos, passeemos, á

sombra das arvores, e conversemos sobre a nossa felicidade . . .

Deborah deu apenas alguns passos e logo pediu que se sentassem.


Não se sentia bem, muita fraqueza, muita fraqueza ! Tanta, que ás vezes
parecia que ia cahir. - .

— Sentemo-nos, então, disse Pedro.


— Obrigado, Pedro, disse sentando-se ella, num banco de pedra, col-

locado n'uma volta do jardim.


— Deborah, tu sofíres e não te queixas! Quem deve, mais que eu,
ouvir-te os queixumes e prover-te de remédio?. . .

— Tenho mas logo esqueço.


isto ás vezes, Ando nervosa, com von- . .

tade de chorar, sem saber porque. Afila-se-me o nariz e roxeiam-se-me


. .

os olhos, que o espelho tudo denuncia; mas, afinal, passados alguns mo-
mentos, reanimo-me, aqueço-me e esqueço-me. .

— Es uma tonta; imaginas-te doente, e tens medo de morrer! Agora,


que a vida vae começar para nós, desterra essas tristezas, Deborah, e
iembra-te apenas de que, em breve, voltaremos para Lisboa, para a nossa
casa modesta, mas confortável, livre de todas as visões do passado.-.
Veremos juntos o nascer do sol e o crepúsculo da tarde — passarás todos
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 473

os momentos a meu lado... Pois isto não te alegra? não te dá saúde?


não te faz sorrir o espirito?. .

Deborah mal ouvia as palavras de I'edro. Estava anciada, perdida a


côr, o olhar erragte. . . Atormentavam-na vómitos incoerciveis, que a affli-

giam impertinentemente, symptoma de phenomenos pathologicos, que


podiam ser, ou não, de caracter alarmante... Fim todo caso, Deborah
soíFria. Tinha bocejos que ella dillicilmente contrariava, que tanto pode-
riam provir das insomnias dalgumas noites, quanto d'uma d3''spepsia aban-
donada. Naquelles tempos, tudo isto se detinia com o diagnostico vulgar
do enjoo, resultante de causas variadas. . .

— Não é nada, disse ella, passando o lenço de rendas pela fronte suada
e fria. Trovoadas de maio. . . Descança, Pedro, continuou, abrindo um sor-
riso contrafeito, já vem o sol a romper!. . .

— Tens sentido isso muitas vezes, minha Deborah I

— Algumas, Pedro, algumas; e, quando não são estas anciãs, sinto


uma labareda a fustigar-me o rosto, como um aftrontamento. . . Ainda
hontem senti isso duas vezes! Depois fico bem, como se nada tivesse. .

Dá-me uma gôtta d'agua, Pedro.


Pedro correu á fonte e, pegando no cântaro que trasbordava, trouxe-o
a Deborah, que o levou á bôcca, segurando-o com ambas as mãos.
Depois de beber, a doente respirou livremente, e, encostando a cabeça
no hombro de Pedro, com os olhos fechados, murmurou:
— Já lá máu tempo!
vae o . .

K como quem descança de uma longa fadiga.


ficou silenciosa,

Pedro passoulhe a mão na testa, apertou-lhe o pulso e, descahindo a

cabeça sobre o ouvido da sua noiva, perguntou cariciosamente:


— Estás melhor, Deborah?
— Pastou . .

— Posso então dizer que amo? te

— Dize, sim, que apressas a convalescença.. .

— Depois d'ámanhã, ao nascer do na egreja do mosteiro, alguém, que sol,

não eu, ha de perguntar-te se queres ser minha mulher. . . Estás ouvindo?


Deborah entreabriu os olhos, que levantou para Pedro, e, num sor-

riso triste, mas doce, respondeu:


— Depois de amanhã eu responderei — sim — com todas as forças da
minha alma!
— Obrigado, minha boa Deborah, obrigado.
— E Pedro?
tu,

— Eu com voz firme, enchendo com


soltarei, ella toda a nave immensa,
a minha voz apaixonada — sim, e por toda a vida I
. .

474 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E se eu morrer?
— Quem em morrer
fala ?

— Nada mais natura! ! Disseste — por toda a vida . . . Continuarás se.ndo


meu, sómeu, depois da minha morte?. . .

E, antes que Pedro respondesse, acudiu, pondo-lhe a mão na bôcca:


— Não respondas, meu Pedro, que podes jurar o que eu não desejo.
Não quero que jures o captiveiro do teu coração para depois da minha
morte. Sê meu emquanto eu fôr tua mulher ; mas se eu partir e tu fica-

res, quero que me honres a memoria e me alegres o tumulo, desposando


outra mulher, que seja digna de ti, e que honre o teu nome.
— Como estás nervosa e triste! Deborahl Que idéas te escurecem o
espirito! Para que falas em tumulo na^- vésperas de núpcias?
— Sou tão sincera, Pedro, tão leal, meu marido, que pretendo fazer-te
um pedido tão justo e tão solenne, n'este feliz momento, como se estivesse

na hora derradeira. .

— Fala, Deborah. . .

— Se me perderes, se o nosso enlace quebrar com se a minha morte,


por tua mãe peço — casa com Sarah, se
te ainda fôr ella livre!

— Sempre a mesma idéa, pobre amiga; para que falas de tua irmã,

quando só deves pensar em mim? Sarah, confio em Deus, ha de ser fe-

liz também. Jacob ganhará a liberdade e ofterecerá a sua mão á mulher


cuja recordação lhe tem illuminado o cárcere. Tu has de viver muitos an-
nos a meu lado, e juntos entraremos nos umbraes da velhice. Sarah aben-
çoa o ndsso casamento e ha de adorar comnosco os nossos filhos. Es uma
mulher, e serás minha em poucas horas... já posso falar-te assim. Ou-
ves bem, Deborah? os nossos filhos!... que hão de parecer-se comtigo
— os teus olhos, a tua bôcca, a elegância do teu vulto. . .

Pedro, ao dizer isto, sentia mover-se sobre o hombro d'elle a cabeça


de Deborah, como se ella chorasse convulsamente. . .

— Então o que é isto, minha louquinha... Choras por causa de Sa-


rah?... Valha-te Deus!... Então queres que eu jure casar com outra
mulher, quando ainda estamos nas vésperas do nosso casamento ? Es
uma creança... Preferia falar-te de nossos filhos, que hão de ser o teu
ou o meu retrato, e que eu, por isso mesmo, hei de amar doidamente. .

Deborah continuava soluçando.


—-Ora, tua, minha filha! Bem; não vale chorar;
que imprudência a
queres que eu prometta casarcom Sarah, se um dia te perder Pois seja, ?

casarei com Sarah, ou com quem tu quizeres. Mas mais tarde tratare- . .

mos esse assumpto, tão incómmodo e descabido. Por agora pensemos na


tua saúde e no futuro do nosso amor. Vamos, Deborah, levanta a cabeça,
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 475

limpa os olhos, e vae para o lado de tua irmã, que te adora, e que seria
a primeira a maguar-se se soubesse quanto és injusta para com ella.

Deborah obedeceu á suggestão de Pedro, e, quando já o fitava serena-


mente, perguntou-lhe, baixando o olhar:
— Amarias muito teus filhos, se elles se parecessem comnosco ?

— Principalmente comtigo I . . .

— se não se parecessem nem


E], commigo, nem comtigo ?

— Teria pena, muita pena ! . . .

— Então desprezal-os-hias ? . . .

— Que idéa Não eram meus


! filhos ? Ah minha
I querida Deborah, não
ha no mundo maiores prazeres e glorias que ganhar a felicidade de crear e
amar esses pequeninos entes, que são a continuação da nossa vida, o fructo
do nosso amor — essas crcanças em cujos corpinhos temos a certeza de
que corre o nosso sangue . . . herdeiras da nossa cor, do nosso coração, do
nosso caracter e do nosso nome Nellas vemos ! reflectirem-se as virtudes de
nossos maiores, os nossos sentimentos, os nossos pequenos defeitos —o
temperamento, a educação, a vontade, a Índole... no corpo o mais pe-
quenino signal, na alma a mais modesta virtude — Ah! minha querida
Deborah, acredita, nossos filhos hão de ter a côr do teu cabello de seda
apenas attenuada com a influencia da rebeldia do meu. . . a tua bondade
temperada na minha energia.
— Então os filhos, como dizes, reflectem sempre as virtudes e os de-
feitos dos pães ?

— Tu não vês na plumagem das aves as cores dos pães e das mães
que os geraram em seus ninhos. Não vês negros os filhos de negros ? ban-
didos os filhos dos bandidos ?

Deborah, cujo rosto se occultara no peito de Pedro, deixou descahir


os braços n'um abandono assustador, e a cabeça escorregou mais pesada
sobre o peito de seu noivo.
— Deborah ! Deborah I gritou Pedro. Que c isto ? Que tens tu ?

Deborah não respondeu.


Pedro ergueu-lhe a fronte. Estava tão pallida como se estivesse morta . .

Depois auscultou-lhe o coração. . . Estava viva. . . Chamou gente.


As monjas e freiras, que acudiram, levaram-n'a para a sua cella, onde,
depois dos primeiros soccorros, recuperou os sentidos.
Sarah, chorando, beijava-a atllicta.

— Estás melhor, minha irmã?


Deborah percorreu com os olhos os recantos da cella e fitou, descon-
fiada, toda a gente que lhe rodeava o leito.

Pedro junto da porta esperava ancioso o resultado.


.

476 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— A quem procuras, minha querida irmã perguntou ainda Sarah. ?

— Os bandidos disse a tremer, onde estão os bandidos


? elia ?

— Socega, minha querida Deborah, socega. Tens aqui a teu lado


pessoas que te estimam. Estou eu, está Pedro e estas boas irmãs que te

acudiram. Que sentes tu? Já estás tranquilla ?

Deborah tranquillisou-se um pouco, e, emquanto ia recuperando o seu


aspecto normal, deixava que duas lagrimas lhe rolassem pelas faces . .

Entretanto chegava o physico do mosteiro, que examinou muito super-


ficialmente a doente, receitando apenas um calmante.
Ao sahir, Pedro dirigiu-se-lhe :

— Acha melhor a doente ?

— Um simples desmaio, sem



importância. Coisa vulgar em mulheres
novas, mas sem consequências.
— A doente deve casar por estes dias... E deve adiar, não é assim?
— Pelo contrário, apressem-se. Se me tivessem dito . . isso, em vez
do calmante receitaria o casamento. Sois vós, senhor, o boticário ?

— Sou, disse Pedro.


— N'esse caso substitui-me. As mulheres que desmaiam só precisam
dos braços d'um homem que as ampare. O perigo não está em desmaiar,
está em cahir. .

Dois dias depois, logo ao nascer da manhã, começaram repicando viva-


mente os sinos do mosteiro.
Correra em Lorvão a noticia de que havia festa ruidosa na egreja do
sitio. Tratava-se do casamento da reclusa Deborah com um moço caval-
leiro de Lisboa.
Mal se abriu a porta da egreja afliuiu grande quantidade de povo, e os
mendigos acampavam aos montões á roda do convento. Estava adornada
com especial primor a capellamór, e no cruzeiro havia flores com profu-
são. Todas as capellas tinham accessos cirios novos, e pelo centro da
egreja extendia-se uma longa e vistosa alcatifa. No coro as noviças rodea-
vam o órgão, e os frades formavam longas alas desde a porta da sachristia
até o garda-vento.
Uma hora depois, appareceu Pedro com o seu novo uniforme de capi-
tão das tropas expedicionárias, ao lado de Gil Vicente com as galas mais
garridas, das que habitualmente ostentava nos serões da Alcáçova.
— Emfim, meu caro Pedro, vaes reahsar o teu grande sonho, o maior
e o mais solenne da nossa mocidade. . . Sentes-te feliz, não é assim?
— Feliz, tão feliz, que tu falas com propriedade quando chamas so-
!

MYSIEKIOS DA INQUISIÇÃO

nho a este episodio da minha vida ! Feliz por mim e por eila. Desde que
comecei a sonhar com este amor, que temo despertar antes de associar
ao meu destino o dessa infehz menina, tão virtuosa e tão perseguida pela
•desventura ! Quero eu ser a sua boa estrella, e escudal-a com o meu peito
para a defender das injustiças do mundo.
— E" formosa a tua noiva. \"\-a de relance, comtudo ílxei-lhe os encan-
tos. . .

— Também eu a julguei formosa quando me habituei a \'èla, mas hoje


não é a sua formusura que me seduz, é a perfeição da sua alma. Não ima-
.ginas, meu Gil, quantas prendas de coração cnnobi"ecem a minha Debo-
rah I Porque a conheço, acredito agora na existência dos anjos. .Modesta,
-casta, generosa, amoravel c resignada ! E' uma mart\'r consolada com o
seu martyrio. A saudade (io pae, que ella guarda em silencio para não
.maguar a irmã, o amor a irmã, a que ella é capaz de sacrilicar a própria
vida, a sua dedicação por mim — misto de amor, amizade e reconheci-
mento — são os únicos elementos que amparam aquella débil existência.
Vou ser muito feliz! Gil, tanto que não trocaria este momento por todas
as minhas venturas passadas I

—E aquella tristeza :

— E' o reflexo da ma estrella que a tem acompanhado. \'ou agora


apagar com o sopro da minha mocidade essa pallida companiieira. . . Tu
veras, Gil, como eu a farei alegre e feliz! Confiada aos cuidados de sua
irmã e de minha mãe, supportara, por algum tempo, a minha ausência, e,

se a hora da partida de novo a entristecer, a esperança na minha volta lhe


será remédio efHcaz ? . . .

—E Sarah ? que deliciosa creatura c essa que vaes tutelar;... Ah,


meu caro Pedro, muito ditiicil deve ser a escolha entre duas mulheres tão
-distinctas e tão clíeias de encantos
— A minha Sarah Adoro-a, Gil. ! ! . .

— Vaes, então, ser o depositário de dois grandes thesouros :

--Dizes bem, Gil, c ditlicil distinguil-as, que em ambas residem os


melhores dotes. . .

— Dá-tc este casamento uma noiva c uma irmã !

— E de tal forma carinhosas' para commigo, que Deborah tem por mim
todas as dedicações d'uma irmã, e Sarah todos os zelos de uma amante'
Chego ás vezes a perguntar a mim mesmo. . . .Mas falemos noutra coisa.
Conto com a felicidade, porque vou. emtim. alegrar a vida de Deborah.
e. se n'esse empenho, houver de me entristecer, espero que Sarah me
.conforte e alegre. . . Em conclusão, caso com as duas.
— Esplendida bigamia, auctorisada pelo teu bello coração . .

MVSTEHIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI. i. POI.. 'O.


. . . . ! .

4-S MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Dize antes — polygamia — que a velha Joanna tem em meu peito-

logar seguro e instransmissivel . . .

— Podes julgar-te feliz, e bem o mereces


— Sou um homem feliz, com triplice felicidade ameaçada. Esse receio
entristece-me.
— Receias três golpes num só coração- . . Apesai' de grande, não tens
nelle espaço para tanto. .

— Vae contando, ameaçam-me três- inimigos : a morte, que espreita


a velhice da minha primeira noiva, o amor, que ha de roubar-me a segunda,
e a tristeza m\'Steriosa na terceira. .

— Não falemos em coisas tristes... Eis que chega o Espirito Santo


da tua trindade amorosa. Até as luzes, ao \è]-a. parecem illuminar me-
lhor as imagens dos altares. .

— Não vès, Gil ?

— O que ?

— Como vem pallida e


ella triste I Descem-lhe pelas faces as lagrimas . .

— E' natural nos espíritos timidos, nestas solennidades. . . Desfa?:


aquelle pranto com o calor de teu olhar. .

— A" força de o tentar debalde, já se me vae apagando este sol. . .

E os sinos de novo repicaram com mais força, e o povo, seguido pe-


los mendigos, todos andrajosos e alguns de rastos, invadiu o templo, ale-
gremente.
Deborah trazia as galas d'un[ia noviça em dia de prohssf.o. As freiras
quizeram que ella se enfeitasse para o casamento como para os votos da
eterna clausura. Apenas lhe tinham substituído, na grinalda e no peito,
as rosas brancas pela flor dê laranjeira, e o véo que, no casamento com
Deus, devia cahir espesso sobre a cara, vinha deitado para traz è lhe co-
bria as fartas e negras madeixas.
Estava a candidez em toda a sua opulência! Branco o vestido, brancas
as flores, brancos o véo e o rosto! Sarah acompanhava sua irmã, ampa-
rando-a, e não vinha menos pallida que ella. . . Passava imperceptível este
symptoma de doença ph\sica, ou moral, porque, no rosto da noviça, abria-se
francamente um dos melhores sorrisos dos dias em que ella era vivaz e
alegre.

Gil, adeantando-se a Pedro, approximando-se das duas irmãs, e, diri-

gindo-se a Deborah, que deixara cahir o ramo que traria no peito:


— Permitti. senhora minha, que, com as homenagens do meu respeito,
vos restitua este ramo, que perdestes. . . Prendei-o bem sobre o coração,
que são estas as flores que mais agradam a Deus e aos amantes em festas
nupciaes.
: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Obrigada, senhor, disse Deborah, e com mão trémula segurou na


cintura o ramo de laranjeira.
E Deborah olhou, neste momento, para Pedro, tão alvoroçada, que
-as faces se lhe tingiram levemente. Pedro, que comprehendeu a situação,
íipressou-se a socegar a pobre menina.
— Segura-as bem, Deborah, que são ellas o svmbolo da sublime casti-

dade da tua alma 1 . . .

E os sinos não dcixa\am de soar festivamente!


Do altar-mòr desceu então vagaroso um padre dc\ idamente paramentado
para a cerimonia.
— Vamos, disse (iil \'icente.

E todos se encaminharam para o logar, próximo da entrada da egreja,


•onde já estavam alguns monges e serviçaes, com tochas accesas, e aos
quaes se foi juntar ("ill e o outro paranympho. Deborah deteve-se um mo-
mento, porque entre a multidão, que se afastava para a deixar passar, es-

tava um mendigo, que se rola\a sobre as mãos. como um reptil... Kra


um miserável, roto, sujo, de barbas compridas e cabello revolto.
— O' minha illustre senhora, dae uma esmolinha pela vossa felicidade
-e do vosso noivo. . .

— Deixa passar, bom homem, logo daremos esmolas a todos.. .

— Eogo ninguém me vê, porque ando de rastos! I.embrae-vos de mim,


•minha queiida menina, e chamae pelo meu nome.
— Como chamas, desgraçado? perguntou
te Deborah, compadecida.
— Eu sou a victima da azenha de baixo. alli . . (".hamae, minha querida
senhora, pelo Ai\7i(oiil':;. . .

Deborah cahiu de joelhos, tapando o rosto com as mãos. .

E o mendigo desappareceu serpenteando por entre toda a gente, que


veiu soccorrer a pobre noiva.
Pedro, notando a demora, veiu ao encontro de Deborah. Encontrou-a
^á erguida, procurando tranquillisar as pessoas que a rodeavam...
Quando Pedro chegou foi perguntando naturalmente:
—O que foi: O que aconteceu:
Deborah limitou-se a dizer que já estava meliior. . . uma tontura. . . es-
corregara-., nada importante.
Uma mulher do po\o c que explicou
— Ora, o que havia de ser: Foi aquelle estúpido do aleijado, o Ara-
d^oiw;, que Ihe.metteu medo, e com razão, pedindo-lhe esmola, de rastos,
por entre a gente . .

Pedro comprehendeu o desastre, e voltou para o seu logar, disfarçando


quanto pt')de o desgiisto que lhe causara a coincidência.
! .

4.So MYStÊRlÒS DÁ INQUISIÇÃO

E fora, apenas, uma coincidência. Nada mais nitural Km Portugal. . I

abundavam então os hespanhoes, e cada um tomava o nome do seu reino. .

Entre o povo abundavam os aragonezes.. .

Do outro nada havia a temer: esse tora bem reduzido a cinzas. Entre-
tanto a coincidência contrariava Pedro... Uma recordação triste é sem-
pre desagradável num dia de festa. Nos espíritos fortes ha sempre um
lado fraco — é desse lado que moram os preconceitos, os agouros, os-

enguiços, as coincidências, como hoje se diz.


Pedro Soares não teve o menor receio de que o mendigo fosse um
enviado do frade executado em Évora ; mas, a circumstancia de chegar
aquelle nome aos ouvidos de Deborah no dia e no momento em que elle

ia casar-se, era, pelo menos, um caso extranho.


Quando um homem extranha um facto, sem pensar, inconscientemente,
expõe-se a todas as crendices.
Deborah estava aterrada; Pedro pensativo. De facto ambos tinham sido
empolgados por uma recordação.
Deborah acreditava tudo — que o Aragonez morrera, mas que a sua
alma andava alli a perseguil-a, a atormental-a, a vingar-se. Eòra elle que-

lhe arrancara do peito a flor de laranjeira, como lhe puzera deante dos
pés o mendigo daquelle nome, que le\'ara Pedro a falar em phenomenos
de herança, ou atávicos.
Pedro não pensava assim; mas sentia, pouco mais ou menos. Não-
acreditava na alma do Aragonez, notava apenas que tudo aquiilo parecia
eflectivamente obra de uma alma. . .

Por que não cahiu do vestido de Sarah algum dos adornos que lhe
regaçavam a saia, algumas das pedras que lhe scintillavam no cinto, as.

pregarias do véo, o lenço, que ia na mão febril ? Só cahiu o ramo de í^ò-

res!. . . Eramo sem que nenhuma das pessoas que poderiam entre-
cahiu o
gal-o mudas, o visse cahir, e o entregasse sem recommendação. Que

extraordinário acaso o fez cahir por forma, e em tal momento, que só Gil
o viu e o apanhou! K era tão natural que Gil o entregasse, fazendo uma
vénia ! Mas, por acaso, tudo por acaso, lembrou se de fazer o elogio da
rtòr da virgindade, á pobre Deborah, que daria toda a sua existência por
um dia em que esquecesse não ter direito áquelle symbolo. . .

Já se via que era tudo obra do acaso!... A qualquer outra poderia


ter succedido o mesmo
Mas, depois, dois passos mais, e o miserável qiie a detém é um men-
digo, que, por acaso, se chama livagone::!
* Quantas vezes entrara e sahira Pedro do mosteiro sem ter encontrado-
aquelle mendigo, ou sem que elle lhe tivesse dic:o o nome!
.

MVSTKKIOS IJA INQUISIÇÃO 48!.

Se Pedro soubesse da existência daqiiellc homem ter-liíe-hia pago ge-


nerosamente, e afostado dalli ! Mas
. . . os pobres pedem esmola e não teem
o costume de dizer como se chamam. . . Por que o disse aqueiler Porque
andava de rastos e ficava esquecido na distribuição das esmolas!. . .

— Tudo o acaso, bem sei, dizia Pedro, mas é extraordinário. . .

E tanto pensou nisto que chegou até a dizer, muito a dentro da sua
consciência: que estúpido agouro!
Os sinos c que não paravam... Ksses cada vez repicavam com mais
torça... Dir-se-hia que a alegria dos noivos voara d elles e f(~)ra pousar
nas torres da egreja! . .

E Pedro, que era um espirito forte, a si próprio se enganava, julgando


que, ao pensar em tantos pormenores, so avaliava o vendaval que ia no
espirito da sua noiva... E achava-lhc razão... l-^lla devia, em virtude
d aqueiles dois tristes e casuaes episódios, estar recordando a trágica
scena da arrifana... a morte do pae, o rapto, a noite em convulsões,
a fuga com Pedro... Que tristes coisas vinham d mente, naquelle dia
tão feliz!

E não admirava que Dcborali, uma creança, uma mulher, iVaca, su-
persticiosa, se abalasse por tal forma; também elle, sem querer, se estava
lembrando de que aquella creança que elle amava, e que a Egreja lhe ia
entregar, já fora d'outro. . . Kra verdade que esse outro fora castigado. . .

E elle bem o vira, alli, sobre o cadafalso, de lingua de fora, de joelhos.


roxo, olhos escancarados, a morrer primeiro, e morto depois... 10, ate
depois de morto, lhe dera com um pc... e o voltara fazendo-o roçar a
cara pelo po!. . . i-^ ate o vira mais taide enviMto em chammas e fumo!. . .

Mas, que estúpida coisa! No dia do seu casamento, da realisação do


seu grande sonho, quando ia receber a sua companheira, o melhor dia da
sua vida ! em vez de pensar nos beijos de Deborah, e na sua alcova flo-
rida e perfumada, o ramo que cahiu, e o mendigo que andava de rastos,,
tinharn vindo obrigal-o a pen.sar no cadafalso, no morto, nas chammas ! . . .

Bem sabia que não era a alma do Aragonez que andava alli a entriste-
cel-o; mas a verdade c que a nossa memoria se parece muitas veze.s.

com as almas dos mortos que recordamos. . .

Os mortos, desde que os corpos lhes desapparecem, também deviam-


ficar esquecidos. . . Por que não vae tudo á sepultura: Quando uma pessoa
deixa de existir, devia desapparecor de toda a parte — dos nossos olhos
e da nossa memoria . . .

Mas nem dos olhos desapparece. . .

Elle ia jurar que, n"aquella occasião. Deborah estava vendo o Arago-


nez, vivo, ameaçador.. E não admirava que isso succedesse. . . Também.
! . . ! : : .

482 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

€lle O estava vendo.. . e tinha tentações de o matar e de o queimar ou-


tra vez . .

O que se estava passando no cérebro delle era cópia do que se pas-


sava no cérebro d'elia.

Pedro examinou-a. Deborali não estava aiii... Pelo olhar d'ella se


comprehendia isso... Estava muito longe. Nem de Pedro se lembrava!
A vida fugira-ihe toda para o coração e para a cabeça. Ella tinha
chammas nos olhos e tinha as mãos geladas.
Foi então que Pedro notou que tinha sobre a delle a mão da sua
noiva. . . Era um pedaço de gelo que o frade cobrira com a estola!. . .

Já se tinham dicto algumas phrases em latim, já os acolytos haviam


respondido automaticamente, e nem Pedro nem Deborah tinham dado por
jsso- . .

Quando o padre perguntou a Pedro se queria receber Deborah por sua


mulher, Pedro estava perguntando a si mesmo — se o Aragonez resusci-
tara, e estava alli, entre ambos, na figura do sacerdote:. . .

A pergunta foi repetida; e então Deborah fitou o seu noivo, como que
ii consultal-o se elle tinha coragem para luctar com um espectro, e am-
bos, em unisono, apertando as mãos sob o estofo sagrado, responderam,
com assustada vivacidade
— Sim, sim
Então o sacerdote fez em portuguez uma pequena pratica do ritual

sobre as vantagens d'aquelle sacramento:


—O primeiro bem do matrimonio são os filhos. . .

O padre continuou; mas Deborah não ouviu mais nada. . . hiclinou a


cabeça no hombro de Sarah, e esperou, dolhos fechados, o resto da ceri-

monia. .

Os sinos é que não paravam no seu repicar festivo!... Parecia que


uma nuvem de anjos alegres tinha tomado as torres á sua conta I . .

Finda a cerimonia vieram as felicitações.

Deborah abraçou, chorando, sua irmã, e ao beijar-lhe as faces com


ternura, foi dizendo-lhe ao ouvido
— Está salva a minha honra ; descança, Sarah, salvarei lambem o teu
amor
Gil beijou, vergando o joelho, a mão branca e fina da pobre Deborah.
Muitas monjas, freiras e noviças rodearam a noiva e afagaram-n'a com
alegria.

E divigiram-se então, Pedro e Deborah, d frente da sua comitiva, para


a capella-mór. Subiu o padre até o altar e desceu depois para lançar as
bênçãos.
: . . : . . .

MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO 4^*^

Entretanto, ajoelhados no primeiro degrau, trocaram os noivos algu-


mas palavras
— Que tens tu, Deborah
— Não sei .

— Sei eu: medo. é . .

— E Pedro
tu, ?

— Também não sei . .

— Sei eu: é ciúme.


Km seguida vergaram as cabeças para serem abençoados pelas mãos
mirradas do celebrante.
Deborah, erguendo-se, api-iou-se no braço de seu marido, e todos se
dirigiram para a sacristia, para a assignatura do termo.
Sarah ticou sósinha e foi ajoelhar-se deante da Imagem da Mrgcm.
— Senhora, disse pondo as mãos —
foi-se a minha ultima esperança ! . .

Tu, que tanto amaste e choraste, faze com que elles sejam felizes, e
abre-me este coração a outro amor, ou a outro sacrifício. . .

E levantou se, limpando os olhos.


— O' minha rica senhora, dae uma esmolinha ao Aragonez.. .

Era o aleijado que se arrastava em direcção á sacristia. .

Sarah foi ao encontro delle.


— Toma, miserável; e deu-lhc uma moeda de prata. Mas foge d'aqu).
Dar-te-hei mais, se me obedeceres.
— Sim, minha rica menina, eu vou...
E desceu a egreja, mendigando:
— Uma esmola ao Aragonez!
Nas torres os sinos desfaziam-se em repiques. .

Sarah fez o signal da cruz e ajoelhou outra vez.


Quem pudesse ou\ir-lhc as supplicas e os queixumes I
.

XXII

o partido da rainha

Na Alcáçova, em Lisboa, os partidos não descurávamos seus interesses.


Actuavam os dominicanos cada vez mais no animo da rainha, e de
Castelia soprava, cada vez mais impetuoso, o vento da reacção.
A morte de Izabel fizera quebrantar muitas esperanças, e as que fica-
Tam não vinham de Philippe, mas da próxima restauração de Fernando V.
De novo se levantava contra mouros e judeus o vendaval de ódios e
ántrigas que tinham provocado as matanças de S. Domingos.
O rei parecia mais distrahido; não queria obedecer a suggestões de sua
-mulher, mas também não contrariava os ardis da reacção.
Agentes secretos instigavam, por todas as formas, a restauração das
perseguições. Chegava-se até a exaggerar a protecção aos christãos-novos,
no propósito evidente de os fazer odiados. A elles eram de preferencia
•confiados os togares de cobradores de impostos e de agentes do fisco.

Os christãos tinham de lançar as rendas no saquitel da judiaria. E os que


os tinham nomeado eram os primeiros a impòr-lhes a violência como re-

gimen de cobrança.
A alguns destes perpétuos perseguidos, sem que as solicitassem, eram
dadas mercês e distincções. . . Pediram-nas os partidários da rainha — os
mesmos que depois faziam percorrer as boticas, e outros centros de con-
versação, os commentarios mais acerbos, sobre esses favores del-rei.
D. Manuel não tinha o bom senso necessário para se manter no justo
meio — entre a perseguição brutal e o favor irritante.

O ingénuo soberano vangloriava-se até, muitas vezes, junto de António


•Carneiro, de ter triumphado das antigas tendências da rainha.
— Já bem! Queriam fazer de mim um ty-
estão d'accôrdo! Ora, ainda
ranno para destruição de tantos innocentes.
Agora já reconhecem o erro, . .

€ vêem pedir-me premio, em vez de castigo! Assim estamos bem. Vé . .

lu. António, como eu os venci r . . .

— Julgaes isso, meu senhor?


. . .

MYSTERiOS DA INQUISIÇÃO 4f>5

— Então, que queres que julgue? Pois tu não vês? Aqui tenho um
novo pedido para o velho Pedro, que ha um mez foi feito corregedorl. .

N'outro tempo pediam-me que o mandasse queimar; agora que o louve


nas próximas ordenações!
— São mais hábeis que vos, resmungava António Carneiro.
— Mais liabeisr Está na minha mão acceder, ou recusar... E' claro
que não recuso. . . Quero até acompanhar as novas tendências da corte
de Hespanha. . .

— Meu senhor, tantas vezes vos tenho dicto, que ha muitos perigos em
todas as politicas extremas. E' possível que estejamos atravessando um
período de attenuação. . . periodo curto, mas emfim de attenuação. . . O
que nos convinha, meu senhor, não era lisonjear os judeus — era esque-
cel-os, isto é, não os fazer lembrados. .

— Es um homem sempre cheio de mvsterios.


— Serei; não vos contradigo, meu senhor; mas ou quereis, ou não,
que eu vos aconselhe ? Lembrae-vos de que não fostes vós que ordenas-
tes a sedição de abril e ella realisou-se, com muito desgosto vosso.
— Que quereis dizer com isso ?

— Quero dizer que as matanças dabril foram provocadas pela mesma


gente que agora recommenda os judeus á vossa munificência. Estaes sendo
governado, julgando que governaes. .\pagastes as fogueiras com a vossa
força e estaes de novo a accendel-as com a vossa fraqueza.
— Devo então expatrial-os. . .

— Valha-me Deus Deveis I contentar-vos com o restabelecimento da


ordem pública. Para defender os judeus é necessário não os fazer antipa-
thicos. O vosso povo christão tem ciúmes dos christãos validos... Se
forem validos os judeus, o ciúme toma a proporção de ódio I

— E o que pode succeder r

— Não conheceis a turba? Conheço-a eu. A turba c ignara e odienta.


Não quer a Inquisição regida pelos frades, mas quer ella dirigila. Ha efle-
ctivamente no reino a questão religiosa ; mas com relação a judeus a ques-
tão é nacional. Os crentes doutra fé são tidos como extrangeiros. Ser
portuguez é mais alguma coisa que nascer em Portugal, é ser catholico.
Ora, se o paiz estivesse cheio de hespanhoes, e vós, senhor, só de hespa-
nhoes vos cercásseis, só a hespanhoes distinguísseis, seria para extranhar
uma revolta ?

— Mas tu sempre me disseste que a guerra dos dominicanos era bru-


tal', injusta, impolitica.. .

— Evidentemente. Era tudo isso, mas a guerra faz-se por ditVerente


modo. .

MYSTERIOS DA INOLTSUlÁO. — VOL. I. FOL. 6l.


. . . :

4«ó MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

D. Manuel começou a ficar pensativo.

António Carneiro continuou


—A guerra aos judeus podia ter sido feita por vossa vontade, se ti-

vésseis cedido ao partido da rainha ; como não cedestes, será feita contra
vossa vontade. Não a fará o vosso governo, mas o vosso povo... Ora,
para que o povo a faça é indispensável que volte o velho ódio adorme-
cido. A sedição trouxe o dó ; a vossa protecção pode trazer perseguições.
Estaes sendo um instrumento dócil na mão de politicos habilidosos.
— Mas, se eu tenho os partidos da corte e o agradecimento dos judeus,
como não hei de ter força para sufíbcar uma revolta :


Não se trata duma revolta contra o vosso poder, mas contra os
marranos. Será a repetição da que tanto vos magoou. . .

— E que reprimirei sendo necessário.


— Reprimir não é evitar. E' certo que reprimistes, depois de terem
sido sacrificadas duas mil pessoas e de ter sido manchado o vosso reinado
-e enxovalhada a vossa auctoridade. . . Ha damnos que se não reparam
completamente. Vós ficastes, meu senhor, attiicto e prejudicado, e os vos-
sos inimigos, ou contrários, alegres e victoriosos ! Se vos apraz, dae-lhes
prazer egual á custa do prestigio do vosso nome.
— Quereis que me opponha á vontade da rainha ?

— A minha senhora illude-se, por que é illudida, e illude-vos, por que


vós, meu senhor, estaes cheio de illusões. Se sua alteza vos pedisse que
expatriásseis esse judeu, o que farieis
':

— Recusaria . .

— Pois o caso é o mesmo. Recusaríeis, dizendo-lhe que não convinha


ao vosso poder e ao vosso reino renovar as perseguições, não é assim ?

Pois dae-lhe agora a mesma razão — porque não quereis perseguições. No


primeiro caso — perseguições feitas por vós — no segundo, pelo povo. feitas

— Concluirá a rainha que estou inclinado a deixar-me vencer por meu


sogro . .

— Sua alteza concluirá apenas que sois o rei de Portugal, que podeis
fazer o que vos aprouver, mas que não quereis fazer senão o que m lis

convier aos interesses do Estado.


— Talvez tenhaes razão, António Carneiro. E' verdade que tenho ex-
tranhado tal mudança de opinião nos partidários de minha mulher e em
alguns fidalgos, que ha muito reconheço agentes de inquisidores de Hes-
panha. .

— Podeis também dizer — de Roma e de Itália. . . O principio está as-


sente: — quando os príncipes resistem á Inquisição, ensina-se aos povos
que a reclamem.
.. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO ^87

— Bem vês que tenho resistido. .

— E' por isso mesmo. . .

— Dize então á rainha que não posso attendel-a.


— Perfeitamente. E as outras recommcndações que me tizesteis a favor

de judeus e christãos-novos ? . .

-^ Que nenhuma attcndo. .

— Reparae, porém, meu senhor, que ha entre ellas algumas que são
actos de justiça, c não de favor.
— Pois não serão perigosos esses actos de justiça? Não me disseste

que era necessário fazel-os esquecidos, a esses marranos que tanto pedem?
— E' necessário distinguir. Não fazer justiça, é perseguição — fazer
mais do que isso, í favor. . .

— Seja o que tu quizeres. Alinal tu sabes mais disso que eu. \'è tudo
e resolve. Assignarei o que me apresentares; com uma condição, porém
— has de entender-te com a rainha... Sabes, ,'\ntonio, ti\e hontem
uma esplendida caçada!. . .

— Folgo com isso, meu senhor. Cxalá que vossa alteza procure dis-
trair o espirito, porque, quanto menos preoccupado o trouxerdes, melhor
podereis ouvir noticias do governo da índia e das guerras d'Africa.
— Amanhã falaremos n isso, c então me lembrarás um negocio que
desejo ver com urgência resolvido.
— O ^ue é urgente começa-sc hoje. .

— E' urgente, mas não tanto. Quero que seja transferida de Lorvão a
filha da abbadessa. . .

— Pertence esse negocio á jurisdicção de Roma. Para que ides, meu


senhor, envolver-vos em negócios de mulheres bonitas?
— Ah! conhécel-a!
— Tenho informações... Mas deixae-me esse negocio u meu cargo.
Entender-me-hei com sua alteza a respeito d elle e dos outros. . .

— ^.Esse não, António, esse será tratado commigo. .

E el-rei voltou as costas ao seu secretario.


— Seja tudo pelo amor de Deus, pensou António Carneiro, quando
licou so; governa o reino uma mulher, e o ministro faz de alcaiote. Feliz-
mente uma boa estrella vae guiando o reino nas suas arriscadas aventu-
ras! Mas se a estrella se apaga?
E era assim o rei; em verdade, os que são assim são os melhores
reis. Os outros,- os que tiveram vontade própria, ou se salvaram perante
a Histocia com o auxilio dos seus homens de Estado, ou, se delles pres-
cindiram, ganharam apenas a categoria de tyrannos.
D. Manuel foi dos melhores, porque não estragou de mais, com a pro-
488 MYSTERIOS DA. INQUISIÇÃO

pria iniciativa, o favor com que a fortuna afagou Portugal. Aproveitou,


até, um pouco casualmente, os fortes elementos de prosperidade e con-
quista, que vieram accumulando-se desde o mestre d'Aviz.
Mas a principal funcção d'um rei, mormente n"aquelles tempos em
que a successão estava tão garantida, porque todos acreditavam vir de
Deus o poder que elles exerciam, foi exactamente a que D. Manuel de^s-

curou —a educação da rainha, para a h3'pothese da regência, e a educa-


ção do príncipe, que havia de continuar a sua obra.
Pelo contrário, a educação do príncipe foi confiada a sua mãe, espirito
amoravel e bondoso, mas fanaticamente religioso, sem critério e sem agu-
deza. A rainha D. Maria era uma honesta senhora, capaz de ser uma ex-
cellente mãe de familia, se a sua influencia não fosse além da sua casa, e
a sua acção se limitasse a ensinar os filhos nas horas vagas do seu labor
domestico. Mas como se sentia sem cuidados de mãe, que nas rainhas são
profusamente divididos pelos cortezãos mais intrigantes e ladinos, sobejava-
Ihe o tempo para espalhar pelo reino as suas superstições e crendices, es-
íorçando-se por occupar um paiz inteiro nas puerilidades devotas, incom-
patíveis com o trabalho nacional.
Consumia a piedosa rainha a maior parte do seu dia em exercícios
religiosos; rezava a toda a hora, e todos os actos da sua vida eram pre-
cedidos e seguidos de genuflexões e preces. Como tinha isto por dever,
exigia o cumprimento delle a todos os seus familiares, e reclamava de
seu marido que o impuzesse ao seu povo. Confessava-se todos os dias,
commungava por vicio, e queria que as egrejas estivessem sempre cheias
de fieis e os sinos sempre annunciando missas, novenas e lausperennesl
El-rei, em vez de a contrariar, senão no culto a que ella se votava,
Alcáçova a dentro, ao menos na exhibição cáustica de tanta beatice, pelo
contrário a imitava, umas vezes, a principio, por fé, e outras por adulação,
mas, afinal, sempre por habito.
Essa educação fradesca da corte entristecia a vida da aristocracia por-
tugueza, e ensinava os mais rebeldes á máscara da hypocrisia. D'ahi aquella
piedade repugnante com que D. João II rezou por alma do duque de
Bragança, quando soube que este tinha sido executado I

O grande rei prendeu o duque, e rezou; condemnou-o, e rezou; e re-


zou também quando ouviu o pregão da morte!
A corte de D. Manuel sorriu um pouco mais que a de D. João II, mas
não deixou de seguir a velha tendência beata, fradesca e hypocrita.
Esta moda era animada e conservada pelo poder clerical, que, se mul-
tiplicava todos os dias, e os frades assaltaram a Alcáçova e n'ella fizeram
o seu quartel-general, para o plano de intriga e de lucta, que havia de
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 4?J

lhes assegurar a victoria. A rainha era o instrumento dócil e inconsciente


d'esses negros obreiros, tão sábios e tão previdentes, que da bondosa
dama se serviram com o fim de vencer as resistências do rei e de prepa-
rar o espirito fraco do principe para a politica futura.

O confessor da rainha era um delegado do Papa Júlio indicado por


Fernando V'. O principe tinha também o seu confessor especial, um frade

dominicano, que, por uma coincidência pouco explicável, pertencera ao


grupo dos que, em virtude das matanças d'abnl, tinham sido expulsos da
administração do mosteiro de S. Domingos. Como se vê, não foi dos mais
prejudicados. O que perdeu na administração do mosteiro, ganhou na di-

recção espiritual do futuro rei.

Entendiam-se admiravelmente os dois confessores, tão bem, como se


entendiam a mãe e o hlho. Havia entre elles a mais phenomenal harmo-
nia, que nem a differença de edades podia embaraçar.
E comprehende-se bem: onde a fé domina e cega, a edade não otVe-
rece embaraços.
Tma mulher que crê em tudo que lhe diz um frade, é exactamente
como uma creança que crê em tudo que lhe diz a mãe. Desde que a razão
fica ociosa, e so o sentimento actua, a edade é um pormenor secundário.
Uma mulher que não discute, é como uma creança ; é a eterna creança
que acceita por boas todas as razões que lhe dão das coisas que vc e
não comprehende.
Os companheiros do pequeno principe eram pequenos aspirantes ao
valimento da rainha. Applaudiam quanto ella ensinava, e, por suggestao
dos pães, havidos e achados na intriga mor, de largas vistas, copiavam
servilmente as tendências do pequeno D. João.
D. Manuel passava dias inteiros sem ver o filho, e a mãe, pelo contrá-
rio, raros momentos o deixava só. Espreitava-lhe os brinquedos mais inno-
centes, e associava-o constantemente á sua exaggerada devoção. Mal o prin-
cipe, a. horas matutinas, sahia dos seus aposentos, ia logo em busca de sua
mãe.
Saudavam-se -cariciosamente, e logo, de joelhos, .sobre o leito da rai-

nha, que lhe punha as mãos com beata correcção, o principe ia repetindo
quantas orações lhe eram habituaes, e sempre alguma nova, apprcndida na
véspera nos lábios do confessor.
K o pequeno não se mostrava contrariado; pelo contrário, ao findar
tão modesto exercício, elle próprio pedia anciosamente que lhe ensinassem
outros pedidos ao Céo, e até, por sua conta, apresentava apontamentos, ou
memoriaes, para novas pretensões I . .

L'm dia a rainha, depois das longas rezas, em que o principe perdera
. . . . . .

490 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

a hora mais própria para aspirar o ar da manhã nos jardins e parques da


Alcáçova, disse elie, com ar supplice, como se quizesse pedir desculpa
dalguma travessura:
— Se vossa alteza, mitiha mãe e senhora, me desse licença, eu rezaria
ainda uma prece, comvosco, porque preciso muito de que a vossa piedade
a recommende.
— Dize, meu filho, respondeu a rainha, que pretenderás tu de Deus,
que eu não peça também ?

— Queria pedir a Nosso Senhor t]ue illuminasse o espirito de el-rei e

o levasse a estabelecer no reino o tribunal do Santo (3fficio. .

A mãe beijou na testa o filho esperançoso. . .

— Bem vedes, senhora, que em todos os reinos catholicos a fé tem


essa força a defendel-a ! . . . Aqui, pelo contrário, sendo vós filha de Fer-
nando catholico, 03 infiéis teem mercês e prebendas. .

— Tens razão, meu filho. Que dirão de nós a Hespanha, a Allemanhu


e a Itália?. . . Portugal em tudo floresce, a todos os reinos da Europa ex-
cede em descobertas e conquistas, e só atraz d'elles todos fica em res-

peito á religião de Christo. .

—E até poderemos ser victima dessa blasphema tolerância. Quem


nos diz que Deus, tão nosso amigo, não se zanga, por tanta hesitação e
demora, e nos não manda outra peste, como a que temos sotfrido r . .

— Ou, o que é peor — não prefere armar o gentio contra o poder do


reino e nos expulsa do interior da Africa e dos paizes do Oriente onde ja
chegámos com muita força e prestigio ?

— Ou ainda, disse o pequeno animando-se como um m\stico em ex-

tasis, revolta o povo contra o poder real. e vos obriga, senhora, a assumir
a regência ? I

— Não sejas tonto, meu]João, não vão tão longe os perigos da fraqueza
d'el-rei. . . Tenhamos confiança em Deus, e os judeus hão de submetter-se
-para sempre, deixar as terras do reino. .

— Quem te ensinou tão bella doutrina, príncipe?


— O meu confessor! Disse-me elle que se eu concorresse para obra
tão meritória, obteríamos tantas indulgências do Céo, que viriam por inter-
venção de Roma, que poderíamos peccar á vontade até a edade em que
hei de empunhar as rédeas do governo... Estas indulgências são muito
necessárias, pois não são ?

— Isso pergunta-seP! Mais que o pão de cada dial Sem pão vive- se
muito tempo, sem perdão de Deus é que se não vive. O meu confessor
fez-me promessa egual. Assim, se juntarmos o teu premio ao meu, sere-
mos os mais zelosos defensores da religião e da paz!. .
! ! .! .

MVSTERIOS DA INQUISIÇÃO 4'.i'

— Vamos, senhora? a isto,


— E que Deus nos ouça.
— Quereis pedir a Nossa Senhora ou a Jesus crucificado
.'

— A Jesus tenho pedido tanto!


— Pois, \'irgem...
seja á
— Ainda hontem pedi pelo arcebispo de lhe Sevilha, que vae ser cas-

tigado pelo seu zelo. .

— Seja então á tua padroeira, queres?


— Pois seja.
— E tu pedes também em teu nome ?

— Não é preciso, tilho, a tua voz de príncipe e de innoccnte vale mais


que a minha na corte do Céo.
— Mas bem sabes que eu ainda não prestei juramento — sou tão pe-

queno. . .

— Jd que o queres, pedirei também; mas, já se sabe, sem prejuízo da


coroa de teu pae e da sahação da tua alma. . .

— Podendo ser, com essa condição... disse o príncipe, com a inten-

ção tão sublinhada, que bem se via que, se a condição não fosse acceita,
elle não desistia do pedido.
— Deves vir a ser um grande reli disse a rainha, beijando novamente
o filho.

E a rainha D. Maria e o príncipe D. João, de joelhos sobre o leito,

voltados para uma imagem, pendente numa das paredes, juntando as


mãos, oravam fervorosamente . .

Uma mulher e uma creança, ou melhor, duas creanças, pedindo ao C^éo


que mandasse um inferno á terral... Duas almas crédulas, innocentes —
diga-se inconscientes —a rezar uma blasphemia, em forma de prece
christã
A Deus, que não vinga, pedindo a vingança do Céo. que não persegue,
pedindo a perseguição
Mãe e lilho! que esplendido quadro! rezando o ódio á imagem da San-
tidade ! O fogo do Céo convertido em fogueira de penitencia ! O ódio em
lábios que falam damor !

A mulher — tudo que ha de mais bello e brando na creação — a impe-


trar a guerra! A mãe, de que sae a humanidade, a pedir a morte dos fi-

lhos! O filho, tudo que ha de mais respeitoso e amoravel, a cortar o laço


da familia! Uma mulher e uma creança —o amor e a innocencia conver-
tidos em instrumentos ensanguentados da intolerância! O seio da mulher
arfando na anciedade de roubar vidas —o que foi creado para fonte da
vida
! . ! ! .

402 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Mãos de creança, mãos do tamanho das dos anjos, que formam as nu-
vens da Virgem, postas em súpplica de crueldades e de tiagicios I

Espreitemos este quadro, que é edificante. .

A rainha, nova, formosa, com os cabeiios dispersos, cabidos, á hora


da manhã, emquanto o sol vae subindo, ainda rubro, e a neblina vae a
dissipar-se, no hymno do despertar, quando as aves ainda estão a saudar
o novo dia, de joelhos sobre o leito, ar piedoso, a mente em Deus, os
olhos no azul que se avista, mal dispersos os sonhos d'uma noite calma
—a pedir as fogueiras da Inquisição e a investigação sangrenta do Santo
Officio!!
E ao lado d'ella, também de joelhos, de loura cabelleira a cobrir-lhe os
hombros, uma creança branca, loura, rosada, três cores dispersas por uma
cabeça gentil. . . as mãosinhas súppiices, como as da mãe, os olhos levan-
tados e meigos, a bôcca a pedir beijos, e nos lábios, a tremer, um pedido
de morte para homens, mulheres e creanças, que não rezem á mesma ima-
gem que está alli pendurada, illuminada por uma lâmpada, a balouçar-se . .

Quem espreitasse este quadro e não soubesse o objectivo d'aquella


prece, que idea cariciosa abrigaria no cérebro?!
E era naquella altitude tão singella, tão meiga, que estava a formar-se
a pagina mais triste da. historia portugueza ! Era n'aquella piedade infan-

til que estava a gerar-se a fúria fanática e bestial do rei que estabeleceu
a Inquisição em Portugal, que destruiu milhares de vidas, que perseguiu
milhões de consciências, que atrazou séculos a obra da civilisação
Pobres creaturas, essas duas imperfeitas, que se moviam a um aceno
de dois confessores hypocritas e brutaes 1 E era sobre tanta ignorância,
ou innocencia, que pairava a aza negra da reacção, todo um passado de
barbaria, todo um futuro de selvajaria... Era sobre essas duas frontes
illuminadas de graça e de placidez que todo o poder rancoroso de Cas-
tella e toda a intriga sórdida de Roma esvoaçavam impertinentemente I

Lábios feitos para beijos, mordiam, rezando, no amor e na paz de tan-


tas famílias ! . . .

O coração da mulher é cera molle na mão do homem ardiloso e trai-


çoeiro — é como o coração das creanças na mão dos seus educadores. Mas
a mulher é um elemento perturbador de effeitos immediatos, e a creança
é um ser dominado, e a mulher uma creança que domina.
A influencia dos frades no espirito do pequeno príncipe so chegava a

el-rei, por intermédio de sua mulher.


Uma grande creança é a creança mais perigosa
A rainha de dia e de noite envenenava com a respiraçiTo das suas rezas

o espirito de seu marido


' . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Eni cada sorriso, e em cada beijo lhe transmittia um pedacinho de ve-

neno.
E' tão difficil dizer — não — á mulher que se ama!
A mulher que nos enlaça em seus braços, envolve-nos nas suas cren-
ças, arrasta-nos no seu caminho, abysma-nos nos seus erros ! . . . D. Manuel
sorria-se do exaggerado beaterio de sua esposa, explicava-o depois, passava
mesmo a desculpai-o, e, porfim, transigia, e adoptava-o. A rainha para
el-rei era um príncipe infante, já de coroa na fronte. . . participava da sua
auctoridade e do seu poder! Era ella que se sentava a seu lado, no throno,
era ella que representava a alliança de Castella, era ella que gerava os
filhos no seio. . . Como homem, e como rei, tinha de a respeitar. .

Depois o povo era outra creança, como o príncipe e como a rainha. Elle
rezava com fé, elle blasphema va sem saber o que fazia, elle reclamava o
que não era justo 1

Ora, D. Manuel não era rei de António Carneiro, nem de meia duzía
de phílosophos, que andavam planeando divisões da Egreja ; era rei dessa
rainha, d'esse príncipe e d'esse povo! . .

Além de que a dífficuldade estava em se conhecer quem tinha razão.


As grandes nações sabiam muito, mas, afinal, estavam fazendo exacta-
mente o mesmo que a mulher e a creança reclamavam!. .

Quando el-rei se sentia prestes a succumbir, chamava em seu soccorro


o seu secretario de Estado.
E António Carneiro não se fazia esperar.

A's vezes era a rainha que ia ter com o ministro.


— António Carneiro, dizia ella, para quando reserva el-rei a salvação
do catholicismo
— Para quando o catholicismo não escravisar o Estado á Egreja. Ha
dois feudalismos, que é indispensável extinguir o dos nobres, que el-rei —
D. João II esmagou —
e o dos frades, que el-rei meu senhor, ha de esma- ,

gar com a ponteira do seu bastão ou cora as armas do seu sceptro.


— Quero um pedido, António Carneiro.
fazer-te
— Ordene, senhora minha.
— Sê meu amigo. .

— Que mór respeito vos devo, senhora, que vos não tenha pago, por
affecto e por dever ?

— Não me ajudas. Tens por md a minha empresa?.


.. . .

— Quem vol-o disse? Sois a primeira dama do reino em prendas de


coração.
— Não me julgas má?
— Sois a santa da minha devoção.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL.^l.
. . . . . . . .

494 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Sou má esposa ?

— Não a teve superior. el-rei .

— E mãe ?

— Ganhaes em carinho, o que talvez perdeis em condescendência.


— Queres dizer que perco meu com afagos cedências filho e ?

— Não, senhora minha — vós não cedeis — mais — identificaes-vos fazeis

com elle. E' o vosso erro; não educaes vosso filho, submetteis-vos a elle.
Bem sei que o meu príncipe será o vosso rei, quando o sr. D. Manuel des-
cançar da tarefa de reinar, mas por agora sois vós a rainha d'elle — deveis
governal-o.
— E queres-me mal por tudo isto?
— Que me confundis com tão amáveis receios ! Não é para condemnar
os extremos do vosso coração de mãe que assim vos falo; é só para vos
advertir de que o joven principe ainda não tem. responsabilidade nas pala-
vras que diz. . .

— Não acreditas em revelações ? . .

— Sim, acredito — nas boas, que vêem de Deus, e não nas outras que
vêem de interesses inconfessáveis. .

— Suppões, então, que alguém segrede ao principe?. .

— Sem dúvida. Inimigos de sua alteza, sem escrúpulos e com grande


traça e engenho, inspiram no filho o protesto contra o procedimento do
pae. .

— E por que o dizes? Mover el-rei a mudar de vistas e procedimentos,


no intuito de lhe salvar o nome, o reino e a alma, não é de inimigos —é
de partidários leaes.
— Serei, pois, se isso vos apraz, o conselheiro desleal da coroa. .

— Não digo isso, António Carneiro, mas as intenções d'esses, que con-
demnas, poderão ser tão boas como as tuas.
— Permitti-me a vaidade. Fala por mim a lista de serviços prestados
aos negócios do Estado e a coragem com que tenho affrontado os murmú-
rios da corte. Nunca por meus conselhos el-rei se perdeu, e até por elles se
tem salvo de liames de intrigas e de confessadas traições.
— Não me envolves n'esse empenho?. .

— Não, senhora minha, mas é certo que de boa fé auxiliaríeis o que


tendes condemnado, se tivésseis no coração os olhos que tendes no enten-
dimento. .

— Ser contra mouros judeus ser contra meu e é rei e senhor?


— Em regra, não; como em regra não ser contra é el-rei pedir cargos
e prebendas exclusivamente para elles. Defender el-rei é deixal-o tolerar

tudo que aproveita ao bem do paiz — homens, trabalhos, riquezas, e paz


. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 495

no reino, para que elle possa melhor e mais rijamente conquistar e civi-

lisar as terras do gentio. Náo pode a attenção d'el-rei dividir-se por tal

forma peias questões de religião, de raça e de território. Precisa o reino


de dilatar o espaço das conquistas, e o throno o numero de súbditos e
vassallos. A coroa de Portugal, em nome do rei e de Deus, submette, mas
não extingue. A consciência que se não revolta é como a terra da con-
quista que se submette. Aproveita-se-lhe, na paz, a gente e os fructos!. .

— Entendes, pois, que a missão de D. Manuel é apenas a de armar


guerreiros para as conquistas dalém mar, deixando á solta a heresia e
a blasphemia ?

— A que chamaes á solta ?

— Quero dizer — sem tribunal que julgue, sem cadafalso que castigue?
— Olhae, senhora, para os reinos de Hespanha, onde o fogo alastra,
devorando infiéis, e onde os infiéis resurgem das próprias cinzas. Castella
sopra o fogo da heresia para o apagar, e ainda mais o inflamma.
— Mas ha de vencer um dia.
— Ou ser vencida. . .

— Será essa então a vontade de Deus I

— Quem vos senhora, que a vontade de Deus


disse, agora pela lucta é ?

— A inspiração revelada nos lábios do príncipe meu filho. .

— Chamaes inspiração do Céo ao écho das palavras de um confessor,


que o embaixador de Roma vos indicou ?

— Sempre essa desconfiança, António Carneiro!... Que julgas de


mim? Serei por acaso uma creança que não pense nem comprehenda o
que c dever de uma mãe e de uma rainha?
— Perguntaes para que vos responda, ou para que me cale ?

— Consulto-te como a um amigo d'el-rei.

— N'esse caso, dir-vos-hei, senhora, que sois a mais bondosa das mu-
lheres e a mais perigosa das rainhas. . . Conspiraes contra vosso rei e

senhor, com mais tenacidade e energia, do que poderia fazel-o o marrano


mais perseguido.
— António Carneiro. .

— Se quereis que me cale, melhor me irá o silencio que a franqueza...


— Fala, pois. .

— Sois um perigo para a coroa, senhora minha, que tendes na conspi-


ração contra a vontade de el-rei taes dotes physicos e moraes, que vos
fazem invencível.
— Não queres que me intrometia nos negócios do Estado?
— Francamente, francamente, achava preferível, por vós isso e por
meu senhor.
.

496 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Mas, quando uma mulher julga mal encaminhado o rei a que per-
tence e ama, não será seu dever aconselhal-o?. .

— Collocaes-me n'uma situação difficil. Coisas ha que se não podem


dizer. . . sois extremamente bondosa e eu talvez me animasse. . . as res-
ponsabilidades são de el-rei... deixae-o com ellas... As rainhas, que o
não são, como foi D. Izabel de Castella, que Deus haja, teem junto dos so-
beranos uma missão mais suave. . . Vós, por exemplo, deveis ser a mode-
radora das resoluções varonis d'el-rei. A administração da justiça que in-

cumbe a el-rei, é das tareias mais penosas. O prestigio do seu nome o


força a violências inflexíveis ... E n'essas circumstancias que a rainha
pode influir, não para mas para moderar a acção do governo.
excitar, O
contrário é que se não percebe. Nada ha peor para o desprestigio d'um rei

do que a fama de que elle se acha coacto por influencias extranhas. O po-
der pessoal do sr. D. Manuel tem de ostentar-se livre de pressões, ou de con-
selhos. O poder real, que a turba julga infallivel, não pode ser attribuido a

influencias secretas.Tomae o exemplo, senhora, que, sendo eu secretario


de Estado, converto o meu conselho em iniciativa real, que nada faço se-
não em virtude da vontade d' el-rei. De mim se murmura, mas não por-
que auctorise taes murmúrios. Cuidae em vós, senhora, e em vosso filho;
não vos preoccupeis demasiado com os negócios do Estado. Se um dia
houverdes a regência do reino, do vosso lado estarei, afastando extranhas
influencias. O' governo de um reino tem melhor monção, mesmo com os
erros do poder real, que com as correcções dos seus servidores.
— Pois se eu intervenho não é porque disso tenha vontade, mas por-
que me arreceio das distracções de el-rei!
— Bem vedes, senhora, que os actos d'el-rei não são espontâneos; re-

sultam do exame constante de mil factos e de mil circumstancias. Que


conheceis vós dos pormenores diplomáticos entre a vossa corte e a de Hes-
panha e a de Roma? Ledes, por acaso, a correspondência trocada entre
os diversos embaixadores ? Ouvis o vosso confessor, convenho, mas o vosso
confessor nem merece a confiança d'el-rei nem defende os interesses do
reino. Está bem com Deus, talvez mas com Deus está bem toda a gente,
;

principalmente os pobres de espirito.


— Queres dizer que é dementada a Europa e que só Portugal pensa
ajuizadamente ?

— Os governos da Europa são confiados a homens, e todos os homens


estão sujeitos a erro. Impressiona-vos a maioria? O grande numero não
quer dizer a verdade. Olhae para o passado! que de unanimidades a sus-
tentar os erros mais graves ! . . .

— António Carneiro, as mulheres não sabem discutir; mas presentem


. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 497

grandes desastres e cataclismos. Também as pedras não discutem, nem


sentem, e ellas escurecem quando o máu tempo se approxima. . . O meu
coração diz que el-rei se perde, que se perde o reino, se não purificarmos
a fé, castigando os que não acreditam em Jesus Christo e na religião de
Roma. A felicidade que tem bafejado Portugal, que o tem levado á des-

coberta dos mares e continentes, não é mais que solicitação de Deus para
que castiguemos os seus inimigos. Pois acreditas, António Carneiro, que
não exista Deus ?

— Senhora, confundis-me com taes perguntas! Que não exista Deus ?. ..

Julgaes, por acaso, que os mouros e os judeus o não reconhecem?...


Quasi me obrigaes a dizer coisas que parecem heresias! Sabeis quanto
sou catholico, mas porque o somos assim, crentes fervorosos, havemos de
exterminar os que vêem Deus através d'outras religiões ? . .
. Como per-

doareis, senhora, aos animaes — que são atheus? — se esse nome cabe ás

creaturas que não seguem a nossa religião? E comtudo elles vivem, e não
crêem com a nossa fé, atfirmam, com a própria existência, as maravilhas

da Creação. .

— Quantas vezes eu tremo por el-rei, por mim e por meu filho? Já
que as condições do nosso nascimento nos fizeram dirigentes e responsá-
veis,como havemos de ser absolvidos do peccado grave de tolerar que se
affirme como verdade o que temos por mentira ? Tenho medo, António !

Carneiro, que sobre a cabeça del-rei, meu muito amado, e de meu filho,
a minha vida, caia castigo do Céo, se não esmagarmos os infiéis.

—E julgaes assim agradar a Deus? Não vos lembraes que entre essa
horda de perseguidos ha amores, ha maridos, ha filhas que não teem um
palmo de terra amiga que lhes seja berço e sepultura?
— Também as feras teem ninhos nos seus covis, e vos, homens supe-
riores e fortes, lhes daes caça a toda a hora ! . .

— Que quereis de mim, senhora? disse António Carneiro, buscando


pretexto para terminar o debate, que quereis de mim?
— Quero que, pelo amor que tens a teu rei e ao reino, movas meu
senhor a levantar Portugal ao nivel das nações catholicas que ferem de
morte a impiedade e a blasphemia. Quero que faças causa commum com
o partido da Santa Sé. .

— Quereis uma resposta clara, precisa, de portuguez leal?


— Sim. . .

— Pois bem: Senhora, emquanto el-rei D. Manuel viver, e eu fôr seu


conselheiro, a Inquisição não entrará em Portugal. .

— E' a vossa ultima palavra?


— E'.
. . . . . .

498 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E, se eu tentar?
— Resistir-vos-hei. .

— E eu vencer?
se
— Retirar-rae-hei da corte e voltarei a fazer villancetes para entreter
o espirito, emquanto vós haveis de lacerar o coração de pomba, vendo
sacrificar todos os dias milhares de existências. O remorso será o vosso
futuro; eu dormirei com a consciência tranquilla. Quando morrer terei a

graça de Deus, que os rernorsos, por defender a fé, são obra do demónio,
de que Deus me compensará. .

E estes coUoquios eram frequentes, o que denunciava a grande preoc-


cupação daquelle espirito trabalhando por influencias dominicanas.
Com el-rei, a rainha constantemente abordava o assumpto, no meio das
palavras mais carinhosas.
Era uma idéa fixa esta de attribuir á sua vida a única missão de per-
seguir infiéis ! Se, em cada beijo que dava a seu filho, lhe insuíflava idéas
de intolerância, em cada caricia feita a seu marido envolvia uma súpplica
de castigo para a pobre gente perseguida!
Mal el-rei lhe beijava as mãos, logo ella acudia, com um sorriso ten-
tador :

— Meu senhor, quando vos resolveis a separar o trigo do joio?


— Quando o fôr mais que o joio trigo.

— Gracejaes com os perigos, como se não devêsseis temel-os. .

— Quem vos de perigos, quando a melhor


fala vae guiando estrella a
náu do Estado!
— De que vos servem os novos mares e as novas terras, se não lograes
a conquista do Céo?
— Mares e terras são o mundo dos reis; o Céo tenho eu na meiguice
do vosso olhar. . . Pois a meu lado não vedes o Céo na terra.
— Tenho medo de que Deus dê por isso, e nos roube esta felicidade. .

— Por que ha de elle ser ingrato, ou injusto?


— Porque o não merecemos. .

— Pois nós não o servimos, levando o império da Cruz aos povos sel-

vagens, ás terras sem altares?


—O que por lá accrescentaes, por aqui diminuis. . . E vale mais ven-
cer um crente contrário á nossa egreja, que trazer á Egreja os bárbaros
que não a conhecem.
Quereis que, de novo, expulse do reino essa gente, que, para o não dei-
xar, correu a banhar a fronte na pia baptismal ?

— Sem fé. .

— Quem o affirma? ou melhor como se aquilata?


Que os remorsos riara defender a fé são obra do demónio
. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO . 499

— Sendo sinceros, são de apostasia fácil; não o sendo, de hypocrisia

perigosa.
— Pois ahi tens a difficuidade. . .

— Que faríeis vós, se reinásseis cm meu logar?


— Pela vossa ventura, e pelo futuro do nosso principe, a todos castigava

e convertia.
— A' moda de Fernando V
— Por que não?
— Porque sou Manuel I.

— O ultimo em negócios de fé.

— E talvez ainda o primeiro catholico. rei

— Ao parecer de António Carneiro?. .

— A quem me confesso, por não meu contessor!


e, isso, é

— Bem sabeis que os meus confidentes merecem a vossa confiança. .

— Nunca vos contrariei, senhora; pelo contrário, tenho deixado á vossa


escolha, senão á de el-rei Fernando V, a direcção espiritual da rainha e

do principe. .

—E tendes tido em troca a mais sincera alliança do reino de Castella...


— Troca
. de favores e interesses . .

— Sem da vossa parte.


sacrifício . .

— Não contando com ordenações de expulsão, de que me arrependo


as . .

— Foi vossa culpa. Em questões de


a não ha meios termos. religião

A desordem que resultou da perseguição foi obra da fraqueza com que a


iniciastes.
— Ainda querieis mais ? Lembrae-vos de que até reduzi ao porto de

Lisboa os portos de embarque, que eu primeiramente estabeleci para a


emigração. . . Bem mal pago foi esse esforço! Por transigir com o povo e
com a corte dei azo ás violências que mancharam o meu governo. O que
presenciou e soffreu Lisboa foi licção que me ha de aproveitar. .

— Quereis, então, resistir á corrente do mundo?


— Se má, se me
é arrasta, se ameaça subvcrter-me, como não hei de

resistir-lhe?. .

— Que governeis em vossa casa, concedo, Deus vos tomará contas


d'essa liberdade, mas que deis guarida aos criminosos fugitivos, eis o vosso
grande erro.
— Não falemos n'isso; que me sobram aggravos vindos d"além das fron-
teiras ...
— De que vos queixaes ?

— Da ousadia com que me é constantemente reclamada a entrega de


portuguezes perseguidos em terras de Hespanha.
. ! .

5oo MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

—E que não entregaes, apesar dos escândalos com que elles abusam
da vossa piedade, ou fraqueza.
— Dizeis bem — fraqueza — que, não sabendo resistir ao conselho sá-
bio de António Carneiro, para não contrariar meu sogro, recorro á trai-
ção contra meus súbditos e os relaxo cobardemente ao poder da Hespa-
nha. .

— Ainda lamentaes a entrega de Jacob?


— Ainda, sim; o que não de nem fiz é rei, de fidalgo. Não me atrevi

a assignar o tratado de extradição, e atirei ás armadilhas dos esbirros,


quem devia julgar-se bem refugiado em terras de Portugal.
— Era talvez melhor auctorisar a reincidência, applaudir a ousadia com
que o judaísmo andava insultando christãos de melhor quilate.
— Dizei antes — espiões dos meus dcslcaes alliados...
— E' o vosso pesadelo! Tendes por espias, quantos defendem os in-

teresses do Céo! E ainda pensaes em defender o judeu?


— Ainda, sim. E que o diga Philippe II, se não tenho reclamado contra
ameaças de torturas, feitas a quem só deve declarações espontâneas.
— Imaginae Jacob livre, e em seguida internado... Pensae n'isso, e
dizei-me, se Deus terá que agradecer-vos a impunidade do hereje e o es-

tímulo do rebelde ! meu senhor, que


Acreditae, insisto menos por mim,
que por vós, a quem muito amo e prezo. .

— Estou tranquillo.
—E nosso filho? Pois não receaes que caia sobre a cabeça do inno-
cente a maldição que provocamos ? Eu sou mãe, meu senhor, e tenho medo
de que a vossa tolerância prepare a mais severa excommunhão para o her-
deiro do vosso nome e do vosso poder.
— Faço e prometto fazer o mais que posso, e irei até onde as circum-
stancias me arrastarem. Ir ao encontro dos acontecimentos não vou. Te-
nho, talvez, os vossos receios, mas falta-me talvez o vosso ódio.
— Julgaes-me então escrava de paixões ruins?
— Não disse ruins, mas posso dizer paixões.
— Que teem o fogo de Deus
— Mas são cruéis como os conselhos do inferno.
— Credo! que heresia!
E a rainha persignou-se rapidamente.
— Ora, dizei-me, senhora, vós que sois tão boa e tão religiosa, tão
christã e amoravel, como conciliaes as branduras do vosso coração com a
crueldade do vosso conselho?
— Não será a justiça obra de Deus ? E não serão bons os que castigam
os maus?
. !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Falaes assim porque imaginaes que a Inquisição converte, e não sa-


beis que ella faz a Egreja odiada! Que pensaes da Inquisição? Já vistes
como ella opera? Sabeis a quem ella condemna? Pois, se vós, senhora,

visseis martyrisar um animal de carga, havíeis de pedir castigo para o


algoz, e applaudirieis o martyrio se elle fosse recahir sobre um ignorante,

um inconsciente, que herdou uma crença, e n'ella respeita a de seus pães


e avós?
— Sabeis como eu considero os infiéis? (".omo empestados, cujo mal
se communica. Pela minha vida vos juro, que se meu próprio filho judai-

zasse, contra elle próprio reclamaria justiça. Era signal de que Deus o
abandonara e Satanaz lhe comprara ou roubara a alma. Sim, tenho dó,
muito dó de mouros e judeus, como tenho dos tristes que Deus dementou.
Para taes doentes, que não passam de possessos, é que a Inquisição tem
cárceres que isolam. .

— E as torturas?
— Não fazem o mesmo os physicos e os cirurgiões? Deixareis morrer
de maleitas uma creatura só para não a fazer soffrer com vesicatórios ?

Deixareis os gafos a contaminar um rebanho ? Não sei o que é a Inquisi-


ção? Sei, sim. E, quando sei o que ella faz, choro tanto a victima como o
algoz.
—O que fizeram do vosso coração, senhora ?

— Lembrae-vos de Torquemada, um santo! Quanto elle soffreu para


fazer justiça e defender Nosso Senhor?
— Já vos comparaes com esse frade?
^— Oh! pudesse eu comparar-me, que seria mais digna de vós.
Depois, mudando de tom:

Meu amado senhor! lembraes-vos dos primeiros dias do nosso amor?
Dos primeiros beijos que trocámos? Daquelles momentos em que confun-
dimos as nossas almas, enlaçadas por vontade de Deus, e sagradas aos
pés do altar? Lembraes-vos de tudo isso, meu senhor?
— Lembro sim, minha querida Maria; tinheis, então, a única preoc-

cupação do nosso amor, e só estudáveis a maneira de ser feliz neste mun-


do, a meu lado. Era então o melhor o meu conselho, e todos os vossos
anhelos eram pelo perdão e pela paz
— Dae-me, então, um beijo como penhor da nossa constância e fideli-

dade.
E extendeu a fronte para el-rei, que a beijou meigamente.
— Bem, disse ella, sorrindo, quereis dar-me uma nova prova do vosso
amor, uma prova de que o tempo não arrefeceu os nossos corações?
— Quero, dizei. . .

MYSTEKIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. 1. FOI- 6.^.


. . : .

5o2 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Enviae, então, a Roma, homem da vossa confiança. . .

— Quereis mais honras para as nossas egrejas? mais imagens para a


vossa capella?
— Não; quero que soliciteis do Santo Padre uma bulia com que pos-
saes estabelecer em Portugal . .

— Novos
^
privilégios porá a Ordem de Christo?
— Não — o tribunal da Fé.
— E só n'isso pensaes, rainha, esposa e mãe I

— Sim. Rainha d'um grande povo, esposa do melhor dos reis, mãe do
príncipe mais catholico — só penso na felicidade de todos três, n'esta vida

cheia de sacrifícios e na outra cheia de glorias.



Pois sim, pensaremos n'isso, disse el-rei, afagando-a. Tendes muito
tempo para cuidar n'esses negócios. Por agora, deixae-vos amar pelo
. .

povo, pelo rei e pelo príncipe. Não vos cabem responsabilidades, e con-
tentae-vos com isso. .

Mas a rainha não disistia das suas instancias, e, como conhecia bem
el-rei, deixava de pedir com tanta insistência, e apenas o entretinha com
os seus afagos e recordações, e, quando D. Manuel, já esquecido dos
grandes problemas do Estado, reclinava a cabeça no regaço de sua mu-
lher, ella, penteando-lhe com os dedos a macia cabelleira, ia beijando-o
na testa, e ao ouvido segredando
— Meu querido senhor, pelo nosso amor, purificae o reino de mouros
e judeus!- . . Amar-vos-hei mais, muito mais!. . .

E D. Manuel, que n'aquelles momentos facilmente se esquecia do seu


conselheiro prudente, pagava á rainha com beijos aquelles beijos, dizendo-
Ihe também, em voz muito baixa, esta promessa captivante:
— Pois sim, pois sim. Farei o que quizerdes, a pouco e pouco, disfar-
çadamente; quero estar de bem com Deus e comvosco. . .

— Meu rei, meu gentil D. Manuel, como eu vos adoro!. .

A'quella hora, por um vago presentimento, em todos os recantos de


Lisboa, os christãos-novos murmuravam, commentando os boatos que
'
corriam:
— Esperam-se novas ordenações restringindo os nossos direitos, di-

ziam uns.
— Já os dominicanos voltaram ao mosteiro de S. Domingos, diziam
outros.
— Conspira-se em S. Roque contra a nossa segurança! diziam todos.
— O que é feito de António Carneiro ? dizia um frade a um se-
cular.
— Foi roubado da Alcáçova pela alma do aragonez. . .
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como se chama el-rei ? perguntava um velho judeu a um christão-

novo.
— D. Maria Manuel, respondia este, mordazmente.
E tudo isto se dizia, porque na praça pública se escutavam os beijos
e as súpplicas, com que a rainha acariciava o monarcha nos salões da

Alccácova
XXIII

o coração da mulher

Quando não rezava com seu filho, ou não discutia com o secretario do

Estado, ou não afagava el-rei, a rainha entretinha-se com os fidalgos e


frades da sua corte privada.
Principalmente com as fidalgas e com os religiosos, que eram os mais
interessados no programma que D. Manuel não estava disposto a acceitar.
Os serões eram assembléas que estavam em permanente conspiração.
Por entre as maiores frivolidades, de todas essas frioleiras, que são assum-
pto obrigado nas conversações de mulheres fátuas e pretenciosas, surgiam,
a miude, planos e estratagemas destinados a submetter a vontade real á
politica reaccionária, ou clerical, da Hespanha.
As mulheres casadas promettiam actuar sobre os maridos e os filhos,

com a mesma boa vontade cóm que a rainha procedia.


Era assim que, á chegada d'el-rei, todos os debates terminavam, e se
passava rapidamente das grandes intrigas palacianas para os innocentes
epigrammas poéticos.
D. Manuel presentia toda essa guerra latente, e, quando as suas fúteis

distracções o não deixavam comprehender as dissimulações com que o aco-


lhiam, António Carneiro se encarregava de o advertir e acautelar.
A resistência d'el-rei não deve ser attribuida ao seu espirito reforma-
dor, nem á liberdade da sua consciência, que elle era tão religioso como
sua mulher, mas ao seu orgulho de rei.

A pressão do extrangeiro é que o contrariava e lhe fortificava o espi-


rito de contradicção.
Se na Europa não houvesse ja tribunaes do Santo Officio, cujo esta-
belecimento a diplomacia lhe estava impondo, elle sentiria muito orgulho
em ser rei do paiz que tivesse tomado tão triste iniciativa. . . O secretario
conhecia-lhe este fraco, e muitas vezes o excitava contra a intriga de Cas-
. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5o5

tella, lembrando-lhe que lhe cumpria governar o reino sem pressão de


extranhos.
N'esses momentos, talvez quando o seu espirito começava a vacillar,
a ponto de repetir argumentos que a rainha produzira entre caricias,
António Carneiro fazia-lhe vibrar a sua corda mais sensível 1

— Sabeis, meu senhor, o que o povo anda por ahi dizendo, chocarrei-
ramente, por entre sorrisos desdenhosos ? . .

— Que diz elle ?

— Que o reino se avigorou no tempo do sr. D. João II, que nunca se


deixou mover, nem por conselho d outros reis, nem por súpplicas da sua
rainha. .

— Por isso el-rei D. João fomentou resistências entre os nobres da sua


corte, e viveu atormentado. .

— Resistências, sim, que sua alteza soube vencer, para vos deixar o
poder desembaraçadamente da rebeldia dos castellões. N essa lucta por-
fiada em que sempre vencedor, havia o profundo respeito pelos
elle foi

direitos da sua magistratura. Castigou as ambições insolTridas dos fidalgos


orgulhosos, e manteve a independência do poder real e da vontade do
reino.
— K que tenho eu feito?
— Vós, meu senhor, que encontrastes o caminho desbravado, e que
não sentis necessidade de erguer cadafalsos ao duque de Bragança, tereis

estragado a obra do grande príncipe, se consentirdes que em vossa pró-


pria casa, se conspire contra vossa opinião e vontade. .

— Se o perigo augmentar.eu saberei cumprir o meu dever. Felizmente


ninguém attenta contra o meu poder... Que o diga o duque D. Javme,
que nem sequer me recorda a morte de seu pae I . .

— Digo-vos, meu senhor, que a rebeldia é como as ondas do mar;


vem uma, e outra, e outra, que não trepam de mais no areal, como se
estivesse limitado o seu fluxo e refluxo; mas, de repente, exactamente por-
que vieram diversas que não avançaram, alaga-nos os pés, uma alterosa e
rugidora. Contae, meu senhor, as pequenas ondas da resistência mansa,
. .

e esperae a da revolta, que pode alagar-vos. ,

— Tentaes metter-me medo, como se eu fosse uma creança.. .

— Mostro-vos o perigo. Eis tudo.


— Sonhaes conspirações! Será a rainha chefe desse movimento de
revolta ?

— Talvez; sem que o presintal ella

— E sub-chefe meu não é assim filho, ?

— Julgaes de pouca monta pedidos de mulheres e tendências de crean-


.

5o6 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

ças ? Oxalá que o futuro não vos traga surpresas lamentáveis. Perguntae
a vossa irmã sr/ D. Leonor, se algum dia ella foi escutada no conselho
d'Estado. . . O forte rei, em cuja cabeça se firmava a coroa de Portugal,
procedia por seu próprio alvedrio; quando dava a morte mettia um pu-
nhal no peito d'um e a coroa na fronte de outro, que a bondosa rainha
tanto amava e defendia 1

— Julgas, por acaso, António Carneiro, que, se algum d'esses fidalgos


que me rodeiam, em vez de pedir, ameaçasse, eu lhe supportaria o atre-
vimento ?

—E se pudésseis evitar a violência. . . Para um rei affirmar a sua von-


tade náo necessita de ser algoz, basta que seja firme e enérgico. Sabeis,
senhor, o que já se diz pelos recantos da Alcáçova? Que a alcova manda
mais que o throno. .

— Tendes ouvido isso ? . . .

— Por minha fé.

— E quem são esses ?

— Eu os vigio sem os denunciar. Mas de que serve vigial-os, se tra-


zem a espada embainhada e vós não vos defendeis das linguas intrigantes?
— Ouça-os eu, e, se lhes não cortar as cabeças no cadafalso erguido
por meu cunhado, posso mui bem cortar-lhes as linguas viperinas com a

espada de D. Manuel.

Se os ouvísseis! Julgaríeis que elles vos lisonjeavam e que só que-
riam servir-vos o poder e a alma. Elles só dizem palavras mansas, e só
fazem protestos de dedicação; mas é assim que pÕem em evidencia a vossa
fraqueza e vos tornam antypathico á opinjáo popular. Falam pela bôcca
innocente da rainha, minha senhora. O confessionário e o serão são as
duas lareiras em que elles aquecem as suas esperanças partidárias ! Apo-
deram-se de vós, affeiçoando aos interesses que defendem a esposa e o
filho, que amaes. E murmuram e escrevem, dentro do reino e para fora

d'el!e, affirmando que hão de vencer-vos, porque não tendes nem opinião
nem vontade próprias . . . Meu senhor, o povo a tudo prefere um rei forte,

audacioso, independente.
— E o povo acha-me fraco ?

— Pelo menos hesitante. No dia em que tiverdes um rasgo superior,


que firme a vossa altitude contra as intrigas da corte e os murmúrios da
praça pública, tereis do vosso lado fidalgos e plebeus, cavalleiros e peões,

o clero e os seculares. A paz do vosso espirito está nesse movimento de


energia, que intimide os audaciosos e vos attraia os indecisos.
—-E os feitos do meu reinado?
— Affirmam a vossa boa estrella, mas teem a rubrica dos grandes
: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO Í07

capitães. Feito vosso, só vosso, que a Historia possa registar, por não vir
do esforço ingente dos filhos do mestre d'Aviz, não será o descobrimento
dos mares, nem mas a pacificação das
o domínio dos novos continentes,
consciências e a paz e a ordem em todas as provincias do reino e da admi-
nistração. Mettei na ordem fidalgos e frades e deixae que D. Manuel go-
verne Portugal com toda a altivez e independência. Amae a Hespanha,
que já não é necessário batalhar contra ella, mas não consintaes, emquanto
houver portuguezes que nos governem, que o que ella não logra por con-
quista, possa lograr por amor. Enviae a Hespanha vistosos embaixadores,
enriquecei com os thesouros do oriente todos os papas de Roma, mas não
consintaes que elles invadam Portugal com as forças do seu ódio e os hor-
rores dos seus martyrios. Ponde, senhor, a vossa cabeça gentil na galeria
dos grandes homens do século XVf. Já vedes que não vos quebranto, nem
intimido, e que faço justiça á vossa energia de homem e de rei!

D. Manuel ouvia o seu leal amigo, com tão fixa attenção, que, quando
António Carneiro acabou de falar, ainda ficou a meditar nas suas ultimas
palavras.
Depois, ergueu-se, bateu no hombro do secretario, como a prometter-

Ihc o que a elle lhe pedira, e recolheu-se aos seus aposentos, vagarosa-

mente, de cabeça pendida, e com o dedo indicador entre os dentes...


António Carneiro seguiu-o com os olhos, e ficou pensando. .

— Está curado por vinte e quatro horas . . .

El-rei penetrou sósinho no seu opulento vestiário, collocou-se na frente


d'um grande espelho, de larga moldura entalhada em ébano marchetado,
e fi.xou a própria imagem.
Ergueu, então, a cabeça, sacudindo o cabello, adeantou a perna direi-

ta, arqueou o peito no seu gibão de velludo, desembainhou a sua pesada


lâmina, cuja ponta firmou na alcatifa e em cujos copos, em cru/, de pedra-
rias, pousou a mão direita, descançou a esquerda no cinto escuro, mas
garrido, e, dirigindo-se a si próprio, proclamou
— Pela cruz da ordem de Christo, juro e prometto que nem os reis
das Hespanhas, nem os papas de Roma, nem os fidalgos de minha corte,
nem os frades de todos os mosteiros, me obrigarão a transigir com as pre-
tenções de quem não tem direito a governar Portugal ! O meu poder será
enérgico e independente.
— Meu senhor, meu senhor. . .

— O que é? disse voltando-se


el-rei rapidamente.
Fora da porta continuou a voz dum
pagem:
— Sua alteza, a rainha, minha senhora, pede a vossa alteza vos di-
gneis visital-a nos seus aposentos antes de vos recolherdes.
.

5o8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Dize a sua alteza que eu vou.


El-rei, dirigindo-se aos aposentos da rainha, passou ao fundo do salão,
onde ainda se achava António Carneiro.
Este, ao ver seu amo, em direcção opposta á que houvera tomado,
continuou a pensar, e rectificou:
— Temos recahida em menos de vinte e quatro horas ! . .
XXIV

Intrigas e ódios

António Carneiro sentia-se, ás vezes, fatigado d'estas luctas constantes


com a volubilidade real.
Recorria então o secretario ao conselho dos ministros de D. Manuel,
€ a elles fazia os seus queixumes, pedindo-ihes que o auxiliassem na por-
fia contra as conspirações da rainha e do núncio.
Entre esses, os mais dedicados a el-rei eram o conde de Villa Nova,
D. Álvaro da Costa, e o escrivão da puridade D. António de Noronha, mais
tarde conde de Linhares.
Estes homens eram tão leaes á coroa e á pessoa de D. Manuel, que
este, no seu testamento, não se esqueceu de os recommendar a seu filho,

para que os deixasse continuar ao serviço do Estado.


E' pelo menos isto o que consta do Elogio de D. João III, de Casti-
lho, e das Mc)?iorias, de Trigoso, sobre os escrivães da puridade e sobre

os secretários dos reis.

Tinha a rainha que luctar contra este synhedrio, que, em sua teimosia
c eloquência, a todos os momentos conspirava a favor da politica de tole-

rância a que D. Manuel se deixara arrastar, depois dos actos imprudentes


que mancharam o principio do seu reinado.
Um dia, António Carneiro convidou esses amigos para lhes expor a
gravidade da situação.
— Cança-me demasiado este batalhar infructifero contra a intriga de
uma mulher e de milhares de frades. Mal posso attentar nos negócios da
Africa, c do Oriente! tantos os incidentes que resultam, na corte, desta
preoccupação doentia de sua alteza ! E' indispensável, meus senhores, que
nos decidamos a defender elrei d'estes assaltos femininos e fradescos.
— Em frequentes conversações com el rei, disse D. Álvaro, não tenho
poupado conselhos e prophecias, conselhos prudentes e prophecias bem
fundadas. Se fòr necessário, para declinar responsabilidades que me não
MYSTERIOS UA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOI. l'.).
.

5 IO MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

agradam, ou para convencer el-rei da sinceridade do meu propósito, não


hesitarei em despedir-me do serviço do meu cargo.
— Mal faríeis a el-rei e ao reino com a vossa fuga, acudiu D. António
de Noronha. Ficariam mais á vontade os partidários da rainha. . .

— Sem dúvida, accrescentou António Carneiro, abandonar a lucta seria

sacrificar o nosso trabalho de alguns annos. El-rei ficaria á disposição da


rainha, e Luiz da Silveira mais á vontade educaria o príncipe nos protes-
tos contra seu pae. E indispensável que nos unamos e nos deixemos em
o nosso posto.
— Que receaes de Luiz da Silveira: perguntou o conde de Nova. Villa
— Receio, disse o escrivão da puridade, que, por leviano em seus con-
selhos, o secreto conselheiro do príncipe D. João ainda venha a merecer
o desterro, por iniciativa de D. Manuel, e que nós devemos preparar com
a nossa traça bem delicada.
— Não o julgo perigoso, ponderou o secretario, ou tanto quanto o
pequeno D. António d'Athaide. Quem pode já dizer o que será o príncipe:
— Llm fanático perigoso, sem entendimento e sem aflectos. E d'aquelle
estofo que se fazem os hábitos de Torqucmada c de Pedro Arbués...
disse, de máu humor, o conde de Villa Nova.
— Para inutilisar a influencia da gdite fresca que anda na Alcáçova a
semear futuro, conto com meu filho, que ha de herdar-me os intuitos e a

teimosia.
—E tendes razão, António Carneiro, os talentos do vosso herdeiro
dão-nos esperanças de que a nossa obra ha de ter continuadores.
— Lisonjeaes-me, escrivão, e podeis fazer-me vaidoso.. .

— Faço justiça; D. Pedro d' Alcáçova tem um grande futuro, e, se


bem aproveitar os talentos que lhe illustrastes, feciíará na mão a coroa
de D João IIL
—-Não digo tanto... E mais ditlicil dominar um inepto, que um rei

voluntarioso. .

— Ahi vem el-rei, disse D. Álvaro da Costa. Aproveitemos a occasião


e tratemos o doente.
El-rei vinha de aspecto alegre e, porque vestia mais garridamente que
nos dias de conselho, revelava não vir disposto para os negócios do Estado.
— Que Deus vos salve, meus senhores. . . Folgo de encontrar-vos tão
unidos e conversadores. .
. Temos conspiração d"amigos ? Adivinho o que
estáveis dizendo: — que el-rei ha dois dias que não lê noticias da índia,
nem recebe lettras do seu embaixador em Koma. Descançae, que não tenho
perdido o tempo. Agora mesmo, ao lado da rainha e aos pés do núncio,
acabo de liquidar meus peccados.
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Bem poucos devem ser, meu senhor, disse D. António de Noronha,


pois que tão a miude os liquidaes.
—E quando sejam alguns, gracejou o conde, não devem ser velhos,

que lhes não deixaes tempo para tanto.


— Confesso-vos, meus senhores, que n'estes dias me sinto mais bem
disposto. Consola-me o coração a piedade do Céo! E quantas vezes eu
não a merecerei, por tão pouco cuidar n'eiie?
— São tantos os negócios do reino, que não admira que vos não sobre
tempo para as coisas celestes, sublinhou o secretario de Estado, sorrindo
maliciosamente.
— E que nos dizeis da penitencia perguntou D. Álvaro. ?

— Que tão grande a achei, que para a cumprir preciso do vosso au-
xilio. . .

— Não dissestes que ajoelhastes ao lado da rainha, nossa senhora ?

— Sim, meu querido conde, mas á rainha coube encargo não menos
pesado e urgente.
— Dizei o vosso, meu senhor, que a vosso serviço estamos todos...
— Ainda bem que foste o primeiro a offerecereste, meu António Car-
neiro. Deume sua cininencia a penitencia de copiar a bulia de Xisto IV,
com a data 1478.
— Perdeu-se, meu senhor, o original.
— A rainha tem-n'a na memoria. . .

— Não dictou, decerto, a lallecida


lh"a rainha Izabel, a quem esse pe-
sadelo de Sua Santidade repugnou deveras.
— Confundis minha sogra, com Pedro d'Osma. . .

— Não fala a bulia de Xisto IV^ de conselho de theologos, nem temos


cm Portugal o primaz das Hespanhas. . .

— Mas, para começar, os meios indirectos poderiam attenuar. .

— Está feita a experiência na Península, e deu o peor dos mallogros.


Agora seria maior o desastre.
— Comvosco, senhores, ao leme do Estado.'
— Comnosco peor — quem começa pela
seria matança de duas mil
creaturas, não se entretém jd a refutar heresias, disse D. Álvaro.
— Nem o confessor de sua alteza a rainha se chama Eernando de
Talavera, accrescentou o escrivão da puridade.
— Que grande alarido, meus senhores I Descancem... O meu confes-
sor não marcou prazo para a penitencia. . . Ainda me faltam .Miguel Mu-
rillo e João de S. Martinho.
— Pareceis-me hoje com a envergadura de Fernando V. Aventurac-
vos d empresa, meu senhor — não vos faltam prelados e ecclesiasticos de
. : .

5i2 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

bons costumes e theologos ou canonistas de profissão. E' o bastante para


exterminar herejes, apóstatas e seus fautores. Se vos não sentis, meu se-

nhor, continuou o conde, com a paciência de \'icente Ferrer para pro-


mover os triumphos do christianismo, podereis inventar um frei Affonso
de Hojeda. . . E' fácil encontral-o aiii por esses mosteiros. . .

— Já vejo, meus teimosos conselheiros, que nem em bulias quereis


ouvir falar. Pois, eu tinha pensado que a de 1478 não estaria de todo má
para uma conciliação com os elementos religiosos, que me rodeiam e ator-

mentam . .

— Bem vedes que a diíficuldade não está em vos aconselhar essa có-
pia, mas em reunir todas as emendas. Bem sabeis que o breve de 20 de
janeiro de 1482 declarou errada essa bulia, por engano da dataria aposto
liça. Depois, temos a de 2 de agosto de i4<S3, que também foi feita com
precipitação. E ainda tendes o breve de 1482, e depois outro breve, e
ainda outra bulia, a emendarem-se constantemente — tudo por engano e
precipitação. Ides ter muito trabalho de escripta, meu senhor. . .

— Bem se vê que escrivão, D. António.


sois . .

— Somos todos, disse o conde de Nova, Villa amigos dedicados de


vossa alteza, e queremos afastar do reino quem recorde as sentenças de
Arbués e as vinganças de Uranso. Estão em paz as terras do continente,
onde domina o vosso nome. Tendes, por acaso, inveja das resistências
de Valência, de Teruel e de Barcelona ? Não ficastes satisfeito com a obe-
diência ás ordens de Innocencio VlII, que vos encheu de sombras o cora-
ção, que depois tentastes illuminar de novo com a provisão de 14Q7 ?. .

Lembrae-vos, senhor, que foi a mão


uma rainha que vos levou á vio- de
lência e ao remorso. Tomae cuidado com as mãos brancas das feiticei-
ras. Para reis da vossa esphera valem bem mais as mãos negras, gran-
. .

des e feias dos homens que vos aconselham com seu juizo, tão dedicada e
lealmente, como poderiam fazel-o com as suas espadas.

E entendeis, pois, que não devo cumprir a penitencia que me im-
puzeram ? Que dizes, conde de Villa Nova ?

— Que tão grande peccado não pode remir as vossas pequenas faltas.
— E vós, D. Álvaro da Costa ?

-—Que melhor fora não conquistar o Céo. que tel-o por tal preço.
— E vós, D. António de Noronha
— Que teria de me penitenciar com mór damno, se tal aleivosia vos
aconselhasse.
—E tu, teimoso António Carneiro ?

— Que sim, que obedeçaes ao núncio e me envieis em seguida á fo-

gueira da Inquisição.
: :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5i3

— Está bem. Já que assim o quereis, irei a S. Domingos remir com ou-
tras pesadas devoções o meu desrespeito pelo conselho da Egreja.
— Explicae melhor a Deus: pelo conselho da ordem de S. Domingos.

E el-rei afastou-se, emquanto os seus conselheiros se entr olhavam, de-


pois de lhe terem beijado a mão.
K, emquanto pela Africa e pela índia o povo derramava o seu sangue,
a corte rastejava odiosa pelos degraus dos altares!

A rainha luciava. luctava, mas aíinal era sempre vencida.


El-rei, aconselhado pelos seus ministros, modificou a opinião que a
rainha lhe formara no seu espirito.
Diz Alexandre Herculano
«Os clamores daquella raça proscripta foram emfim ouvidos. A orde-
nação pela qual se estatuirá que nenhum christão-novo sahisse do reino sem
permissão régia, c que lhes vedava venderem os bens de raiz, e a que os
prohibia de converterem capitães em lettras de cambio, tudo foi revogado!»
O illustre escriptor nota a boa fé dos desgraçados christãos-novos
«Propensões, a bem dizer irresistíveis, levavam, portanto, assim os ju-
deus portuguezes, como os hespanhoes, que tinham adoptado Portugal por
pátria, a adormecerem na cratera de um vulcão que talvez suppunham ia

ser extincto, porque socegara depois de violenta erupção. Desprezando a


liberdade que num impulso de tolerância se lhes concedia, e, sacrificando,

por medo, o futuro ás vantagens transitórias do presente, nenhuns, ou


quasi nenhuns, sahiram do reino. . .

«Desde logo, porém, os indícios da malevolencia popular começaram a


apparecer de novo em tentativas isoladas contra alguns d'elles, não obs-

tante a severidade com que os magistrados tratavam de cohibir semelhan-


tes manifestações.)!

O sr. Alexandre Herculano, na sua boa vontade de defender el-rei

D. Manuel, chega a dizer:


«Todavia, pode-se dizer que o periodo de i5o7 até i.^-ii, épocha da
morte do sr. D. Manuel, foi comparativamente para os christãos-novos
uma épocha de paz. A protecção dada pelo governo aos neophytos era
efficaz, e esta protecção extendia se aos próprios refugiados das outras
regiões da Penin-sula.»
(>ita o illustre escriptor um successo occorrido em i?i5, que provou
quão esclarecida politica predominava nos conselhos de D. Manuel.
Tudo quanto escreveu o sr. Alexandre Herculano do governo, ou do
!

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

conselho de D. Manuel, está bem; já não succede o mesmo com relação


a D. Manuel. E tanto, que, referindo-se áquella mesma épocha, o solitário
de Valle de Lobos, esquecido da boa vontade com que lisonjeara o rei
afortunado, esquecido do tal periodo tranquillo de iSoy a i52i, escreveu
logo em seguida: — «... Em regra geral, o clero, o fanatismo e a vingança
alcançavam não só alimentar as idéas de perseguição entre o povo, mas
também ir dispondo o ânimo de el-rei para voltar, com inesperada des-
lealdade, ao systema com que deshonrara os primeiros annos do seu rei-

nado. Os efteitos d'estes esforços incessantes provam-nos a sua existência.

Os indícios de mudança no animo de el-rei começam a apparecer num


alvará, expedido no mez de junho de ifii2, pelo qual se prohibe a accei-
tação de novas querellas contra os implicados nos assassínios de i5o6 e se
mandam suspender os processos já começados.»
O sr. Alexandre Herculano, que tanto pretende defender el-rei D. Ma-
nuel, não pôde deixar de fazer estas confissões, porque as encontrou do-
cumentadas no Corpo Chronologico, que existe no Archivo Nacional.
F^ala o historiador na paz de iSoy a i52i, para nos convencer de que
D. Manuel era propenso á tolerância, e cita estes factos de i5io a \b\i.

A verdade impõe-lhe a contradicção, com tanta violência, que elle não


pode deixar de alludir á trama de i?i?.
Assistamos-lhe á penitencia.
«Este acto de misericórdia podia, comtudo, ser calculado para se con-
trapor ás concessões que, nessa conjunctura, se faziam aos christãos-no-
vos. Não assim a trama occulta que poucos tempos depois se urdiu. Ape-
sar das garantias de tolerância dadas pelas solemnes promessas de 1497,
revalidadas em i5oq, e prorogadas em i5i2, á vista das quaes parecia não
deverem os christãos- novos temer procedimento algum contra quaesquer
actos occultos de judaísmo, com os symptomas de novos Ímpetos popu-
lares contra os christãos-novos, coincidia a resolução tomada por el-rei,
de estabelecer em Portugal a Inquisição de Hespanha.»
Nem mais, nem menos. El-rei D. Manuel não se contentava com o
que desejara Fernando V, contrariado por D. Izabel — uma inquisição
d'ensaio, uma inquisição attenuada, que adoptasse meios indirectos, que
formasse conselho de theologos e canonistas para refutar heresias, obra
para vencer Osma e exaltar Talavera ; não, senhores, el-rei queria em
Portugal a Inquisição de Hespanha, com as suas fogueiras, cárceres c
torturas ! Este rei D. Manuel, que era tão affeiçoado ás coisas da religião,

quiz um tribunal da Fé, egual aos de Castella e Aragão


A boa vontade com que o sr. Herculado procurou attenuar a fraqueza

e velhacaria de D. Manuel, que, por todas as formas, ia resistindo á von-


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5i5

tade do seu governo atilado e tolerante —é a todo o passo contrariada


pela probidade do historiador. E, senão, vejamos:
«Tomada uma resolução definitiva, el rei escreveu ao Papa e a D. Miguel
da Silva, então embaixador de Portugal em Roma, sobre este negocio.
«Na carta ao Papa limitava-se a rogar-lhe instantemente quizesse annuir
ás súpplicas de D. Miguel sobre causas que tocavam á pureza da fé; na
que era dirigida ao embaixador ordenava-se-lhe que, solicitando uma bulia

para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, fizesse examinar, nos


archivos da Sé Apostólica, todos os diplomas expedidos para a creação da
de Hespanha, de modo que os expedidos agora fossem em tudo seme-
lhantes.»

O que era a hiquisição em Hespanha, já de mais se sabia. . . Era tudo


quanto havia de mais horrível! Pois era isso mesmo que elrei desejava
estabelecer no seu paiz 1

E com que motivos? Com estes:


Porque, apesar das providencias outr'ora tomadas para que os chris-

tãos-novos hespanhoes, perseguidos pela Inquisição, não entrassem ent


Portugal, mal se pudera obstar á entrada de grandíssimo numero delles;
Porque estes hospedes forçados, abusando da concedida hospitalidade,
continuavam a seguir os ritos judaicos mais ou menos occultamente e em
menor extensão;
Porque, entre os próprios conversos portuguezes, não se podia assegu-
rar fossem sempre respeitadas as doutrinas catholicas;
Porque, não só a consciência do rei de Portugal, mas também a do
Pontífice, eram interessadas em que a fc se conservasse em toda a sua
integridade e pureza.
Até se exigia do embaixador toda a actividade neste negocio 1

Todas estas instancias se mallograram, porque, a h\pothese geralmente


acceita, de que taes ordens tinham sido subrepticiamente obtidas d'el-rei,

seni annuencia do conselho, que depois as embaraçou em Roma, as in-


strucções dadas a D. Miguel não deram o menor resultado.
E assim se affirma quanto o partido clerical actuava no ânimo do rei,

e quanto António Carneiro e os ministros teimavam em contrariar o par-


tido da rainha.
O caracter de D. Manuel transparece nestes factos. — Era teimoso e
reaccionário, mas fraco. Só teria procurado ser um Fernando V portuguez.
Não lhe faltava nem Índole, nem vontade, e tinha a seu lado a princeza
mais catholica c mais intolerante que Izabel de Hespanha, a irmã de Hen-
rique IV. Se a sua obra não triumphou, esse beneficio deve-se á carência
d'aquellas qualidades vigorosas que assignalavam na Historia a vontade
5i6 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

resistente de F^ernando da Sicília, que ligou pelo amor as coroas de Cas-

tella e do Aragão, e conquistou com a espada as de Granada e de


Navarra.
Valeu a D. Manuel, para que a sua memoria não fosse tão condem-
nada como a de seu filho D. João III, ter tido a seu lado o grande e no-
bre ministro António Carneiro, que nunca deixou approximar-se do seu
rei qualquer Philippe de Berberis, que viesse pedir a perseguição das con-
sciências e ofterecer o confisco dos bens da gente hereje.
Calcule-se, por tudo isto que afiirmamos, jurando sobre tão auctorisa-
das informações, a densidade da máscara que D. Manuel afivellava no
rosto, sempre que os seus conselheiros lhe falavam nas impertinentes so-
licitações da rainha!
Com que prazer, não podendo elle entregar a Castella os foragidos do
Santo Officio, até a portuguezes armava laços para que elles cahissem
em poder dos esbirros !

A traição, por exemplo, feita a Gil Vicente, que elle convertera em


instrumento de perseguição contra Jacob, não era mais condemnavel que
as secretas instrucções dadas mais tarde ao embaixador D. Miguel da
Silva.

Eram tudo traições que el-rei sabia inventar, e que depois, por fra-
queza, e não por contricção, buscava remediar.
Com tal caracter, D. Manuel só pensava em enganar quem o servia,

e em servir quem o enganava.


A rainha não descançava; era ella a alma da conspiração contra a poli-
tica de D. Manuel. Hypocrita não era; faltava-lhe essa qualidade, com que
mais facilmente poderia conquistar influencias e augmentar o numero dos
seus adeptos. Dedicava-se, como vulgarmente se diz — de alma e coração
— á obra dos frades dominicanos, e para isso atacava tudo e todos. Pedia
ao rei e intrigava junto dos ministros. Onde ella calculava poder influir,
ahi estava com as suas palavras meigas, suggestionando carinhosamente.
Dava-se ainda a circumstancia de que a rainha, além de boa, era for-

mosa, e uma mulher formosa tem sempre grande influencia sobre as pes-
soas que a escutam.
N'aquelle tempo, como no de agora, o amor tinha o mesmo valor, que
o amor é eterno, é como Deus-, bem pode dizer-se delle, que nunca teve
principio nem jamais terá fim.
Não era o amor dos amantes, que as virtudes da rainha provocavam
respeito em todo o reino, e a sua formosura correspondia á sua casti-

dade. .. Era o amor cortezão, o mais platónico de todos, aquelle que se


contenta em merecer um sorriso em troca d'uma lisonja ou d'um pedido.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 517

Uma mulher formosa é sempre uma rainha, e, quando além de formosa


é também rainha, basta lhe um sorriso ou um chusma
olhar para que a
dos cortezãos a cerquem c a sirvam.

Convicções não eram necessárias; bastava um boccado de mocidade


exciíavel para que o partido da rainha ganhasse terreno dia a dia.

Depois, a rainha cercava-se de mulheres, natural, logicamente, de

mulheres também novas e também formosas, casadas e solteiras, e ate


das que eram as duas coisas ao mesmo tem.po, isto é, as viuvas e as

outras, as que conhecem muito o mundo, e o gosam.


Estas mulheres tinham os seus admiradores, se não os seus maridos,
filhos e amantes, c toda esta sociedade se aquecia ao sol da rainha, da
esposa de D. Manuel.
Por tudo isto se vê que a corte, ou o partido da rainha, era poderoso
e numeroso, progressivo e tiel.

Todas estas damas e todos estes fidalgos falavam na pureza da fé, sem
que isso muito lhes interessasse, mas só para lisonjear a vontade real.

A guerra contra os judeus era moda, e a galantaria mandava que, logo

que uma dama contra elles protestasse, todos os fidalgos as acompanhas-


sem indignados. Emquanto faziam os homens esse protesto de reforço,

iam olhando amorosos as estrcllas que adoravam.


Assim, a influencia da r.iinha ia atravessando insensivelmente todas as
camadas da camarilha real.

Até os ministros se sentiam illaqueados por essa influencia feminina e

amorosa, se não por elles directamente, pelos seus parentes e aifins.

Um dos cotezãos mais frequentes no conselho da rainha e na tutela do


principe era Luiz da Silveira, muito mais velho que D. António de .-Xthaide.
depois conde de Castanheira. Luiz da Silveira tão a serio tomou a sua
dedicação pela rainha e pelo principe, por tal forma se inclinou para o

partido contrário ao de D. Manuel, que este leve um dia necessidade de

o desterrar de Lisboa e de todas as terras onde a corte costumava esta-


belecer-se. E pelo menos isto o que referem os Annaes, de Sousa, que
muito d'elle falam e do conde de Portalegre, que foi mordomo-mór, e de
D. Pedro de Mascarenhas, estribeiro-mór de D. João IH.
Era, pois, Luiz da Silveira um galante mancebo, que platonicamente
se apaixonara pelas graças da rainha, e que, até para attenuar os impul-
sos da sua paixão, se dizia campeão esforçado da virtude angelical de sua
ama e senhora..'

Requintava o exaltado moço da corte de D. Manuel em fazer da poli-


tica da rainha a mais franca propaganda, arcando com a antipathia do
conselho d'elrei, a quem deveu, talvez o castigo que lhe deram.
MYSTflUOS DA INQUIS1I'..\0. — V0(-. 1. FOL. O."»
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Quando D. Maria, a filha de Fernando e Izabei, defendia os seus pro-

pósitos, Luiz da Silveira, logo, ardentemente lhe defendia a causa, e, mos-


trando a lâmina da espada, jurava sobre ella morrer na defesa dos ideaes
(chamava a isso ideaes o amoroso mancebo !) da primeira dama de Por-
tugal ! Era um madrigal muito respeitoso, mas que foi desde os primei-
ros protestos de dedicação e lealdade, até taes influencias e conselhos que
mereceram o desterro.
Fosse o que fosse, el-rei chegou um d' i :i lembrar-se de que, longe da
vista, longe do coração. Não se deixou, talvez, a rainha queimar no fogo
d'esse amor; mas, quando el-rei afastou o fidalgo da sua corte, muita gente
acreditou que a rainha se deixara crestar do lado do coração I Não de-

vassemos esses mysterios, porque elles não passaram d'isso. O que de-
vemos rejeitar é a viva sympathia (attenuemos o termo) que Luiz da Sil-

veira tinha pela rainha, que n'elle encontrara um dos mais denodados
campeões das suas idéas e desejos.

Não era o moço Luiz da Silveira um crente, suggestionado pela fé tei-


mosa e obcecada da rainha, era um rapaz que achava prazer e encanto
em arriscar liberdade e vida por um sorrisso de mulher bella e poderosa.
Quanto mais a maledicência lhe andava zumbindo impertinente no ou-
vido, mais elle se envaidecia, e tanto que, á mais pequena allusão, logo
insultava quem a proferia, e não raras vezes se bateu valentemente em
defesa de sua dama.
Tudo isto ia, pouco a pouco, chegando aos ouvidos del-rei, mas, como
não deixava de chegar aos ouvidos da rainha, esta agradecia tanta bra-
vura e dedicação, com o seu olhar piedoso e quente.
Alli não é fácil pegar por um braço n'um poeta embriagado, e pôl-o
fora do lar domestico; alli nem ha, podemos dizel-o, lar; são tão vastas as
lareiras que muitas vezes o marido e a mulher arrefecem a grande dis-

tancia um do outro.
Luiz da Silveira era vivo, alegre, intelligente e . . . persuasivo.
Via a imagem da rainha através do espelho do filho. Apoderara-se de
D. João e só lhe dizia e ensinava o que a sua mãe poderia agradar.
Deante da rainha beijava o príncipe com enternecimento, e elogiava-lhe
o sorriso, o olhar e as palavras. E, sempre que dava liberdade á sua admi-
ração, olhava a rainha,como a confrontar com ella as palavras, e o mais...
Apiedava-se a miude, o hábil cortezão, da sorte de sua alteza, que não
era comprehendida, e do futuro do príncipe, que estava sempre compro-
mettido. . .

E contava sempre prodígios do príncipe — perguntas, argucias, réplicas,


sentenças!. . . Nem pareciam d'aquella edade!
! . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5iy

Pela manhã cedo sahia a passeio com D. João, por forma que, ao
voltar á Alcáçova, pudesse elle também ser dos primeiros a saudar a for-
mosa princeza.
Evitava o convívio com D. Manuel, e quando a rainha lhe extranhava
tal abstenção, embaraçava-se calculadamente, baixava os olhos, e dizia
lamentoso:
— El-rei não gosta de mim!. . .

Quando a rainha sahia a passeio, por que eila levava o príncipe em sua
companhia, Luiz da Silveira não faltava. .

— Por que não ides, Luiz da Silveira, encorporar-vos no cortejo de


cl-rci? (^omo sereis bello na grande cavalgada!
— Ando triste, senhora minha, e prefiro, já que tão só vos deixam,
pôr meu braço ao vosso serviço; ao vosso e ao de Deus, a quem repre-
sentaes, como rainha da terra e anjo do Céo!
E a rainha, ouvindo taes palavras, sorria castamente, extendia-lhe a
mão, que elle beijava, c rematava:

—Quanto vos deve el-rei, meu caro amigo. Emquanto os outros fidal-
gos andam por montes e valles, em convívio alegre e em aventuras gra-
ciosas, preferis acompanhar minhas tristezas e abstracções! Quanto vos
deve el-rei

Luiz da Silveira, então, reconhecia que se lhe fechava o horizonte das


suas esperanças, e, em vez dos galanteios a uma mulher que se ama, di-

rigia-lhe homenagens de devoto.


—O vosso amor por el-rei meu senhor faz de vos, senhora, rainha
das rainhas, porque a vossa coroa de virtudes envolve e domina a coroa
do poder!
— Obrigada, meu caro Luiz.
E a conversação parava, até que resurgia de novo.
Andava alli uma seducção e uma virtude! A lucta era evidente. O as-

saltante não triumphava, porque o dever estava de atalaia

O coração da rainha, quando se via mais afflicto com o cerco, fazia


uma sortida, arvorando a bandeira da fidelidade a el-rei.
Luiz da Silveira, então, dava-se por vencido, retirando-se sem grandes
perdas.
Tudo isto, porém, era um jugo de palavras, que o jogo dos olhares
contrariava constantemente.
Convém definir esses olhares : os de L.uiz da Silveira diziam — resi-

gnação; e os da rainha — reconhecimento.


Eram tão semelhantes que se confundiam. E que a gratidão olha sem-
pre tão meigamente como o amor.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Luiz da Silveira conhecia bem o coração humano, que é como quem


diz o coração da mulher. Sabia parar a tempo; é nisso que está a virtude
dos que pretendem avançar.
Tornar-se a sombra da rainha era o seu plano; quando elle fosse con-
strangido a retirar-se, ella havia de olhar para traz. Converter o amor n'uni
habito, é o grande segredo dos anamtes.
Se Luiz da Silveira declarasse a sua paixão á rainha, podia muito bem
ser que a rainha se prevenisse, e recusasse —a franqueza é muitas vezes
uma fraqueza, com que se perde. A força está em saber esperar.
Luiz da Silveira esperava. O que ? Nem elle sabiaum acaso, um
!

episodio, uma phrase, ou uma palavra que escapasse; um dia triste, de


chuva, de trovoada, em que ha mais tristeza... Quem sabe? talvez al-
guma leviandade del-rei... a descoberta d'uma felicidade... um mo-
mento de impaciência — uma palavra desabrida, que a rainha confrontasse
com a meiguice e delicadeza das palavras do seu companheiro?
Luiz da Silveira sabia bem que as mulheres são como as cores, que
mudam durante o dia. Os maridos vêem, ás vezes, azul, mas o azul, a
noite, é verde, como o amarello é branco, emhm como todas as cores sem
luz se tornam negras. . .

Os maridos nem sempre são companheiros das mulheres. Em certos


meios, e a corte é um desses, os maridos são os maridos, e os compa
nheiros são os outros. . . A mulher não diz sempre qiie sim, nem diz sem-
pre que não. As vezes diz uma d'estas coisas, só porque se abhorrece de
dizer as outras.
A táctica de Luiz da Silveira ia mais longe — ia até evitar que ella

dissesse não. Não é palavra feia. O melhor é não a ouvir. Para isso o
expediente é conhecido — é não interrogar.
Quando um homem não interroga uma mulher, ella responde quasi
sempre. Não responde sim, nem não; mas responde coisas a que não
mede bem o alcance.
Se perguntarmos a uma mulher se nos ama, ella, ainda que queira
responder sim, nada responderá; se quizer dizer não, dirá que sim, ale-
gremente., com um leve tom de ironia. O que ella nunca fará, decidida-
mente, é dar um desengano. Rejeita-se muitas vezes o amor, mas, como
elle lisonjeia, nunca se rejeita completamente.
Fazer a corte a uma mulher
por forma que ella a comprehenda, mas
que não possa protestar contra ella, é a grande táctica dos homens hábeis.
As meias palavras são os grandes escudos. Quem recua, cobrindo sempre
o peito com ellas, tica sempre habilitado a avançar.
Luiz da Silveira andava sempre escudado. . .
Sabemos de que soffres, e és feliz
! : ! :

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Não ha nada mais vaidoso que o modesto calculista. O aio officioso do


príncipe não perdia ensejo de se mostrar modesto.
Em vez de dizer á rainha o que pensava e queria, deixava que os outros
o percebessem. Os outros são menos discretos que nós. O que não que-
remos dizer, dizem elies, e dizem entre si, primeiramente, e depois em
voz alta, de maneira que, em pouco tempo, o que temos cuidadosamente
reservado c denunciado por toda a gente.

Assim, devia chefiar aos ouvidos da rainha o que elle não julgava pru-
dente revelar-ihc.
O mundo, bem o disse l'xhegaray, é o grande Galeoto. Km elle que-
rendo que exista o que não existe, é como se existisse; e desde que toda
a gente diga que é, não vale a pena teimar em não deixar ser.

Luiz da Silveira não dizia á rainha que a amava, mas diziao a toda a

gente.. . E dizia-o sem o dizer, negando ate, oftendendo se até! Era um


mestre
As vezes os outros cortezãos batiam-lhe no hombro, com ar malicioso,

como quem diz


— Sabemos do que soiVres, e es feliz! j"

N'esses momentos Luiz da Silveira repellia o gracejo, intimava respeito


pela pureza da nuiliíer e jurava a innocencia das suas intenções. . . Se tei-

massem, tazia-se paladino e, numa fidalga excitação, exigia reparação da


injuria !

Ninguém se atrevia a sustentar a allusão, que não ha gentishomens


que se batam por sustentar o descrédito duma dama. E que dama í a

mulher d'el-rei

Correu, portanto, a fama de que Luiz da Silveira era a espada da


rainha, sempre orgulhosa e invencível.
A honra da rainha andava na bainha da espada... de D. AUmuel :"

Não; de Luiz da Silveira.

Assim os homens não se batiam, mas as mulheres murmuravam.


Quando as mulheres murmuram ferem mais que as espadas. . .

Quando a rainha sabia de taes brigas entre os homens, perguntava


por ellas ás mulheres. E as mulhereí. diziam tudo!
— Que honrado homem ! pensava D. Maria.
E, quando falava com Luiz da Silveira, agradecia-lh'o em monosylla-
bos, com olhares intencionaes, falando em sacrifícios, a fugir. . .

Luiz da Silveira, então, baixava os olhos modestamente e murmurava


a custo
— Perdão, senhora minha, cumpri o meu dever. . .

Era sóbrio no dizer e pi'olixo no olhar.


. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Entretanto, os ouvidos da rainha iam-se habituando a estes murnnurios.


da corte. .

Chegou-se até a falar com uma certa franqueza na paixão de Luiz

da Silveira... Nío se dizia qual o objectivo d'ella... Ninguém ousava


dizel-o; mas, sem que ninguém o dissesse, a rainha chegou a saber que a
paixão era por ella.

— Pobre rapaz, pensou, porque elle c mais dedicado, andam já a com-


promettel-o! . . .

Era a compaixão, que vem sempre na vanguarda d'outros alTectos.


Isto trazia Luiz da Silveira cada vez mais triste.

Estar triste deante duma mulher amável é provocar a pergunta:


— Por que?
E elle respondia logo:
— Não sei; calumniam-me. Parece que toda esta gente sabe mais do
que eu dos meus males.
— Dizem para ahi, Luiz da Silveira,, que andaes apaixonado... Não
entristeçaes por isso. Na vossa edade nada mais natural. E ha na corte
tantas damas formosas!. . .

— Talvez . . .

— Pois não attentaes n'ellas!? Das mais formosas e das mais nobres!
É vêl-as n'um serão a que assista Gil Vicente. - .

— Será por isso, senhora minha; esses astros enchemse tanto de luz,,

que eu, para não cegar, não as fito.

— Mas fitam-vos ellas, que eu bem as vejo. . . Sois ciumento, Luiz da


Silveira ?

— Sou um distrahido. Se tenho paixão não ma despertou uma reali-

dade, mas um sonho. Sou como os poetas — amo o meu ideal.

— Que é superior ás mulheres da corte?. . .

— Falemos n'outro assumpto, senhora minha. É tão profunda a ferida


do meu coração, que nem posso cural-a. . . Pensar nella é o mesmo que
revolvela.
— Tendes, então, um segredo!
— Um segredo, sim . .

— Por que o não revelaes?


— Porque um segredo. é

— Para toda a gente?


— Não: ha uma única pessoa para quem elle não é. . .

A rainha corou, arrependida de ter avançado tanto... Era tarde; o


silencio seria peor que a insistência.
—E para quem reservaes o privilegio?
: . ! ! .

MYSTERIOS DA ÍNQUISIÇAO 523

Luiz da Silveira pensou um momento se seria já opportuno descobrir


as baterias do cerco. . . Aproveitou o ensejo para mostrar embaraço com-
promettedor. . . Ksse embaraço era uma confissão, sem risco. De repente
segurou-se
— Para mim . . .

A rainha respirou; mas Luiz da Silveira bem comprehendeu que não


perdera o tempo.
Um dia a rainha perguntou a uma das suas damas:
— Que idéa fazes de Luiz da Silveira?
— Em que sentido, senhora?
— Da sua lealdade para commigo.
— Que vos adora
— Parece-me effectivamente que c amigo dedicado . . . Por que o dizeis ?

— Porque vos segue, como um poeta atraz da sua musa.


— É nosso amigo de facto — de mim e de el-rei. .

— De vós principalmente. Olhae, senhora, que ainda hontem o vi no


terraço da Alcáçova, emquanto vós passeáveis no jardiin, a envolver-vos

no seu olhar triste, triste, como se visse a partir o seu coração, sobre as
ondas, pelo mar fora. . .

— E que elle á dos nossos, e lamenta a lucta em que andamos empe-


nhados eu e el-rei .

— Ou me engano muito, senhora, ou elle pensa menos nessas luctas


da fé, que nos vossos encantos de mulher. . .

— Não era isso que eu perguntava. .. Basta.


E, comtudo, a rainha não pensava noutra coisa!
Ella tinha necessidade absoluta de adivinhar o segredo de Luiz da Sil-
veira.

Se dle a amasse, que esplendido general para as suas batalhas! De


cortezãos que a applaudiam, mas não batalhavam com denodo, estava ella
farta... Precisava dum homem que a seguisse como um escravo, e que
a defendesse como um leão! Nunca pensara n'essa arma o amor! —
Pois era, sem dúvida, a mais afiada e certeira. Com um sorriso, que
•é sempre uma esperança, tcl-o-hia ao seu serviço. Tinha elle o grande
mérito de fazer ciúmes a el-rei, isto c, de fazer el-rei mais apaixonado, c,

portanto, mais fraco.


Precisava d'um general... encontrara-o!
Luiz da Silveira requestava o coração da rainha. O que faria elle para
fazer a conquista? Tudo! Pois, era d esse tudo que cila precisava. . .

Para matar a pai.\ão do enamorado fidalgo?


Não ;
para estabelecer a hiquisição em Portugal
524 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Queria isto dizer que ella apenas pensasse n'um aulico, n'um partidá-
rio, n'um defensor:
Exclusivamente não, mas principalmente, sim. São coisas bem differentes.
A honestidade da rainha tinha o limite de todas as honestidades. . .

Felizmente, cm amor não se pecca pelas formas diversas de que nos fala
o catecismo christão, — por pensamentos, palavras e obras.
Quantas infidelidades faz o pensamento? Mais que as palavras e as
obras! No amor não ha policia preventiva.
Se os sonhos d'algumas virgens passassem do silencio da alcova, que de
prostituição por esse mundo!
O amor, quando precipita as suas victimas, embriaga-as primeiramente,
envenena-lhes a atmosphera, dá-lhes, depois, o pensamento secreto, que
ellas, coitadas! julgam actos seus voluntários; depois persegue-as em so-
nhos!. . . Uma mulher, quando accorda, é um palácio encantado! Que de
poemas e idyiios por alli esvoaçaram, durante uma noite immensa, em que
toda a gente poderia vel-a serenamente reclinada, fechados os olhos, calma
a respiração, os braços extendidos como os dos mortos, ou a mão sob a
face, como a das creanças?
Só quem nunca viu uma mulher dormente é que não calcula o ab}'smo
que está por traz n'aquelle sorriso que lhe regaça levemente os lábios!
Aquella bôcca a entreabrir-se é o addito d'um grande inferno, ou dum
grande céo!
Os sonhos dos homens são sempre reflexos da sua vida real, são échos
do que ouviram, imagens do que admiraram. Os das mulheres castas e
honestas são sonhos de sonhos. . . São temíveis! São mais, são revelações.
Os sonhos dizem á mulher, quando ella dorme, o que ella não comprehen-
deu accordada!
O que ella soffre de dia, diagnostica-lhe o sonho á noite!
A mulher, ás vezes, quando entristece, pergunta mentalmente, a si

própria: Que tenho eu?


E ninguém lhe responde, porque ninguém a ouviu. Ouviu-a, porém, . .

o coração, o que mais modernamente se diz, consciência, e como o cora-


ção também se envergonha, espera que ella não veja, nem ouça, e vae
então dizer-lhe, altas horas, entre nuvens, fumos, luzes, coisas confusas,
o segredo que a afflige! Ella, então, comprehende tudo, e estremece de

pejo e demedo! E, porque estremeceu, accordou, e, ainda accordada, busca


nos échos da alcova e nas sombras da noite, uma palavra ou uma imagem
do que ouviu e viu. Não fosse alguém escutai -a e espreital-a . .

Depois, cerra de novo os olhos, e vae em busca da mysteriosa mansão


por onde andou sem querer, e onde julga facil voltar. ..
! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO SzS

Já nada encontra!. . . Perdera-se a miragem, desfez-se o sonho!


Ora, a rainha, por honestidade e devoção, andava a embriagar-se com
a respiração de Luiz da Silveira.
Se elle andava sempre tão perto I E a culpa não era delia, nem delle.

Não era d'ella, porque uma rainha precisa dalguem que a acompanhe; e

uma rainha, que não abandona seu filho, não pode andar longe do aio
que el-rei escolheu. Delle não era também, que tinha o dever de a seguir
e defender. Era Luiz da Silveira mais dedicado que outro qualquer corte-
zão ! . . . Isso era razão para o preferir, por ella, pelo príncipe e pelo rei . .

Ousado ninguém lhe chamaria; mais respeitoso não havia outro na


Alcáçova. Conservava-se á distancia que a etiqueta marcava... Quando
vencia essa distancia, a culpa era de quem o attrahia. Depois, um fidalgo
não c o mesmo que um lacaio, e a rainha precisava mais d'um conse-
lheiro, que d'um escudeiro.
Luiz da Silveira era intelligente e possuia o grau de instrucção máxima
daquella épocha. Fora distincto nas Escholas Geraes, versejava com facili-
dade, e quando queria tinha graça ! Ensinava ao príncipe coisas que a rai-

nha não sabia ! Em latim era um portento, e tanto que o pequeno D. João,
de longe e rapidamente, traduzia a Biblia, como se fosse escripta em cas-
telhano I

Na corte, a rainha bem o sabia, era por cila.Lá isso era. .. Quem
delia murmurasse, com elle se havia de entender. Porque era valente,
. .

como um bravo capitão das guardas reaes, ou como o melhor mareante


da armada de D. Vasco
Quando ella não olhava para elle, ella bem via que elle olhava para
ella. O olhar d'um apaixonado é como o orvalho — não precisamos de
levantar a cabeça para que até as nossas pestanas se humedeçam.
O caso era que ninguém tinha culpa do que se estava passando. . . Se
alguém era culpado, era D. Manuel.
Esse sim, que andava sempre longe, por causa dos negócios do Estado
e das caçadas — umas para que partia açulando a matilha e mandando
elle

soar as businas — outras que resolvia de improviso, de noite, sem cães


e sem batedores, envolto no seu manto, pelas couraças de Coimbra, ou
pelos montes de Lorvão . . .

Havia damas no Paço que faziam a corte a el-rei. . . Tinha elle culpa
d'isso? Quçm poderia accusal-a porque a olhava com tanto affecto o moço
fidalgo da sua casa ?

Emquanto ella não lhe auctorisasse outras liberdades, as suas virtudes


haviam de ser respeitadas.
E quem sabia se elle pensava como ella? Pois o ser homem exclue o
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOI.. iV).
. . . ! .

526 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

coração? Se elle a seguia de preferencia, era, sem dúvida, porque, pelo


menos aos olhos d'elle, ella valia mais que as outras... Talvez não va-
lesse, mas o valor é uma coisa muito relativa. Talvez até que a sua
honestidade a realçasse aos olhos do moço fidalgo. . . A sua exaggerada
piedade, que tantos maldiziam, quem sabe, se a faria superior aos olhos
do pobre moço?
Amar os que amam a Deus podia muito bem ser uma inspiração do
Céo. Pois era necessário ser mãe, ou irmã, para consagrar a qualquer
homem um amor. .

E queria dizer a qualidade e não acertava... Um amor espiritual,

casto, desinteressado ? . .

Se nada mais que aquillo havia entre ambos, o que viesse a dizer-se

não passaria de uma calumnia. .

E entre os que calumniam e os que amam, quem vale mais ?

D. Manuel era muito capaz de duvidar das intenções da rainha Que . . .

grande injustiça! Como procederia elle então, para com uma mulher que
tivesse um Uma mulher chega bem para se defender. Luiz da
amante? . .

Silveira era um homem, e continha-se; logo ella, que era uma mulher, não
tinha que se preoccupar com isso. . . Aquillo não passava d'alli. . .

Podiam morder-lhe, isso era verdade; mas desde que lhe mordiam sem
motivo, tanto o fariam a propósito de Luiz da Silveira, como de outro
qualquer, que ella tratasse de mais perto.
E, depois, quem a mordia? A gente da corte de el-rei, as damas que

tinham sido ou queriam ser amantes de el-rei, e os homens que invejavam


a privança de Silveira... Dar-se por ferida, era mostrar fraqueza; era
mais — era confessar uma culpa.
O mellior juiz é a nossa consciência, e á consciência da rainha presidia
Deus! Deus bem sabia que ella era boa esposa e boa mãe!
E para que estava ella a devassar a consciência de Luiz da Silveira?. .

Quantos segredos, além d'aquelle, sabia elle guardar?


Porque se referia a ella, não significava isso que fosse delia?. . .

Era pensando assim, que D. Maria, muitas noites, já reclinada no seu


leito, não podia conciliar o somno.
Tremia pela sua reputação. Isso era muito sério
Até alli ninguém ousara ferir-lhe a honestidade... E assim havia de
morrer. Casara porque isso conviera á corte de Castella e á de Portugal.
I
Não casara por amor, mas conhecia bem os seus deveres. A sua missão
era a de educar o futuro rei de Pçrtugal, e seu marido, para que os rei-
nos da Península servissem de accôrdo os interesses da Egreja.
Se não fosse filha de rei, teria tom.ado o habito e seria esposa do Se-
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 527

nhor. N'um mosteiro estaria ao abrigo da gente ma, que procurava con-
fundil-a com as fidalgas amorosas, que esqueciam o marido e os filhos.
Deus e a fé I

Talvez se resolvesse a despedir Luiz da Silveira do seu convívio. .

Era até isso o melhor que tinha a fazer. Mais tarde que voltasse. .

E elle, provavelmente, era também da mesma opinião. Isso seria bom


para ambos. Por causa d'isso, havia já alguns dias que elle andava mais
esquivo. . . Nem lhe apparecera n'aquelle. . .

E fizera-lhe falta... Não admirava... estava habituada a vêl-o sempre...


E fechava os olhos, teimando em adormecer, mas não adormecia . .
. . ! .

XXV

o sonho

Quando a mente começou a turvar-se-lhe, n'esse momento crepuscular


da razão, em que ainda estamos accordados e já dormimos um pouco, um
certo desconsolo lhe entristecia o espirito.
Foi, então, que etia pôde redigir mentalmente esta pergunta, reveladora
do tal estado psychologico a que nos referimos.
— Mas, que tenho eu?
Já não pôde responder.
Descahiu-lhe levemente a cabeça, prolongou os braços pela rica colga-
dura de damasco, descerraram-se-Ihe um poucochinho os lábios, deixando
brilhar as extremidades alvíssimas dos dentes, e adormeceu. .

Seguiu-se o sonho, logo, mal adormeceu. E como começou elle ? Da-


mos um premio a quem se lembrar de como se lhe começou um sonho...
E' notável, pois não é ?

Quem sonha lembra-se sempre do ponto em que elle terminou, e uma


situação mais violenta desfal-o de súbito; e o grande enleio, ou o grande
pesadelo acabou, ou melhor apagou-se, que os sonhos são como as visões,
apagam-se. .

E' tão esbatido aquelle momento em que se passa do somno profundo


para o somno leve, diaphano, transparente!
For mais que queiramos, não podemos lembrar-nos como entrámos
n'esse palco em que se representa o sonho da nossa phantasia!
De surpresa achamo-nos a ver, a pensar, a falar, como quem vae pelo
ar, ou em chão movediço, num estado de delírio. . . Depois, a pouco e
pouco, o scenario firma-se, as personagens tomam vulto, a luz dá cores,
as palavras teem écho
Um sonho é uma embriaguez ; ha n'elle um pouco de consciência e de
loucura . .
. . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 529

E' uma espécie de quadro dissolvente, em que as scenas se misturam


e as figuras teem azas.
As imagens reaes vestem idealmente!
Ha metades confusas, verdades e mentiras, estrellas pela terra, ecli-

pses de Sol, gritos que se não ouvem, movimentos que se não mexem!
Um sonho é das coisas mais difljceis de descrever. Não se sabe bem
se assistimos a elle, como actores ou como espectadores, se estamos de
pé ou deitados, se vestidos, se nús. Um sonho é um delírio. N'e.lle anda-
mos a voar e de rastos ;
precipitamo-nos de telhados e subimos pelos po-
ços acima I Estamos a falar com uma pessoa, e essa se transforma noutra.
— Era uma mulher, e transforma-se n'um homem !.

No meio d' uma situação inuito dramática vem uma situação muito
cómica. Estamos a rir e a chorar! As vezes recebemos uma facada, e foi
apenas a unha d'um dedo que cravámos n'uma perna ! Quantas vezes
os bandidos nos afogam, n'uma estrada sem luz. . . é que tínhamos um
braço sobre o peito, ou pesávamos com força sobre o coração. .

Uma seccura dá-nos fúrias de morder, e mordemos alguém. . .

Uma pequena indigestão faznos cahir os dentes— um a um — que


vamos contando muito alllictos... Tão atllictos que accordamos. . . com
a dentadura completa.
Os espectros d», nossa imaginação, á imitação dos ratos em casa de-
serta, logo que adormecemos, começam a passear no nosso cérebro.
Quando adormecemos, tudo que estava adormecido accorda! Accorda,
e começa a passear, a falar, aos saltos... E que espectros! Os nossos
mortos não falham !

Abrem-se as sepulturas, falamos com os que morreram, contamos-lhes


o que se tem passado, choramos e rimos; tudo á mistura. . . No ar, então,

andamos quasí sempre, muito á vontade, como se tivéssemos azas; outras


vezes temos que atravessar aberturas angustiosas, de rojo, quasí sem res-
pirar. . .

O sonho tem um pórtico maravilhoso, phantastico. . . Ainda mal


adormecidos, mas já com os olhos cerrados, vemos o que se vê num ka-
leidoscopio — um grande firmamento com muitas estrellas, como se uma
multidão de vidrilhos de còr andasse de roda, a cahir, por forma diversa.
Por vezes, grandes auroras se formam na escuridão, onde ha prata e ouro
que rutilam, se accentuam e desvanecem, e afinal se apagam
Perde- se, depois, a memoria, e vem a resurreição I

A melhor parte da vida é a que se passa a sonhar. .

O corpo descançado, sobre colchão macio, a cabeça reclinada, a res-


piração quasí extincta, folgados os pés e os braços, e nos limites dum
! . . !

53o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

quarto tão pequeno como a nossa alcova, andando a percorrer n:iundos —


mundos mundos phantasticos
reaes e
A consciência, que de dia emmudece e se recolhe, á noite faz-se nossa
confidente. Andam-nos em sonhos o passado e o futuro
. . I

Quantas vezes estamos em sonhos, sabendo que sonhamos ? E até os

prolongamos, com medo de despertar... E quantas vezes, já despertos,


continuamos a sonhar, ouvindo ainda o que ouvíramos, vendo ainda o que
viramos ?

E, se temos um pesadelo, uma afflicção, que não chega a despertar-


tios, basta que nos voltemos um pouco, para que tudo desappareça
Que grande mundo é este mundo dos sonhos!
Que diremos, então, dos sonhos de amor? O coração (pois seja o co-
ração. . . ) que palpitou um dia inteiro e que nos disse coisas mysteriosas
e enigmáticas, mal nos apanha dormindo, começa a explicar se. .
. E diz

tudo, tudo ! Abre-se como a bôcca dum crente aos pés d'um confessor, e

fala alto, como n'um monologo de theatro, e explica-nos por que andamos
tristes, porque andamos, como diz Camões :

Solitários, por entre gente ...

por que choramos de contente. .

Diz-nos tudo.
Quanto o pudor emmudeceu fala em liberdade, quanto a phantasia so-
nhou se torna realidade em sonho I . .

A rainha dormia tranquilla, bella, com o seio e os braços descobertos,

de costas, com a trança sobre o travesseiro e o sorriso nos lábios.


Debruçava-se sobre ella um Christo de marfim, e pesava-lhe no coUo
um rosario-collar, ornado de medalhinhas de ouro, que representavam a
Virgem. Envolvia-a uma nuvem de rendas que tufavam da almofada do
linho mais alvo e fresco. . .

Quem diria o que se estava passando n"aquella formosa cabeça!.'


Aquellas pupillas cobertas de pálpebras lizas e pestanas negras, esta-
vam vendo um céo cor de rosa, ou de um vermelho doce, esbatido, ne-
voento de alvuras de cysne, e luminoso como um disco de sol !
Andava
por alli, n'aquella sarça de encantos, a imagem de Deus, com as barbas de

Jesus, e ao lado, gentil como sempre, a figura de Luiz da Silveira!

Christo sorrio, e Luiz falava. Mas que coisas que este dizia!

Já não era o tímido fidalgo que pisava a sombra da rainha, que lhe
apanhava o lenço cahido sobre a relva do jardim. . . Era um príncipe loquaz
e ardente, que dizia á rainha — mata-me se quizeres, mas a verdade é que
te amo !
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 53i

E a rainha fitava-lhe o olhar, que era tão parecido com o outro, hu-
milde, reservado e triste I

E elle continuava, sempre:


— Senhora: sois mais que minha rainha, sois o meu astro... lUu-
minaes-me a vida, guiaes o meu passo, aqueceis o meu coração I Nada
vos peço e tudo vos dou — desde o olhar até a vida !

E a rainha, alHicta, queria accordar, que lhe não era permittido ouvir
aquillo tudo!
Mas, em vez de accordar, cerrava mais as pálpebras era o movimento —
instinctivo dos que dormem e querem agarrar-se ao sonho que os de-
licia . . .

E, depois de umas sombras que apagam as imagens, como as inter-


mittencias da lanterna magica, de novo se firmava a figura de Luiz da Sil-
veira, que umas vezes parecia a d'elle, outras a de D. Manuel, e ainda ou-
tras a de Christo — porque o amor e a fé, em sonhos, andam sempre
confundidos; e então a rainha, posta de joelhos, rezava, confundindo o
Padre Nosso, com a resposta ãs palavras do seu adorador.
— Também eu vos amo, Luiz, e muito, mas não posso, santificado
seja o vosso nome. . . Sei quaes são os meus deveres de mulher honesta,
assim na terracomo nos Céos. Se me amaes, guardae comvosco o vosso
amor que eu morrerei com o meu segredo. Perdòo-vos, Luiz, assim como
perdoamos aos nossos devedores. .

A cruz, porque o Christo estava na cruz, já não era no eco e entre


nuvens que se sustinha; era na terra, junto delia, mettida na terra, entre
flores. . .

E a rainha sorria- se, lembrando-se de que occupava o logar de Magda-


lena!. .

^Mas, de repente, céos c terra, cruz e Christo, tudo se apagou, e a


rainha ia pelos jardins da Alcáçova contando a Luiz da Silveira o que se
passava . .

E elle explicava-lhe:
— Sabes, minha pobre louca, o que esse sonho significa? Que me
amas, como eu te amo, e que este segredo, que nos faz tristes e desgra-

çados, seria a nossa felicidade, se não fosses mulher de D. Manuel . .

E ella, sempre de olhos no chão, respondia:


— Quanto é triste ser princeza de Hespanha, e ca.sar, tendo os embai-
xadores por padrinhos! Não casei por amor. Luiz da Silveira, não casei,
juro-o; mas quero ser só de meu marido, que assim é preciso para que
mereça a graça de Deus ! . . .

E mal ella dizia estas palavras, logo Luiz da Silveira desapparecia, e


. ! ! . ! . . .

532 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

voltava o Christo, cora o rosto d'elle, a sorrir-lhe do alto do seu madeiro,


ora entre nuvens, a enviar-lhe beijos, ora firmado na terra, a falar-ihe
com palavras doces, puras, como as dos anjos
E a rainha queria accordar, e por isso agitava os braços e mordia os
lábios, mas as pálpebras cerravam-se cada vez mais, como se a dormente
quizesse prolongar esse martyrio delicioso. .

E, passado um momento, os braços de novo lhe descaiam na rica col-


gadura, emquanto a luz, da lâmpada de ouro, lhe punha luz e sombras
no rosto tranquillo, adormecido.
Lá dentro continuava o doce martyrio amoroso e mystico! . .

N'um momento d'uma noite, passa-se o sonho d'um século!


Nada mais incomprehensivel que esse relógio, que marca a vida que
não existe, a vida que se desfaz
Quantas vezes, porque ignoramos tão profundo mysterio, julgamos so-

nhar toda a noite ! E apenas n'um instante o cérebro nos pintou todos esses
quadros, que se apagam de repente, parecendo haver defeito no apparelho
que os produz
Quando a rainha acordou do seu primeiro somno, julgou que dormira
muitas horas. . . Fizera apenas a sua primeira viagem, veloz como a ele-
ctricidade, através do mundo da phantasia I

Enviando um olhar aos cortinados mal cerrados das grandes gelosias,


viu no céu ainda as estrellas a tremeluzirem, em fundo escuro.
Estava muito longe a madrugada.
E'n" estes momentos que nos julgamos completamente sós !. .

Tudo dormia. — Quem vela julga-se sempre superior a quem dorme.


^

Não tendo com quem conversar, a rainha fitou as estrellas, e, como


se ellas fossem olhares d'alguem, começaram a esfusiar raios luminosos
— que pareciam dizer — estivemos espreitando-te, e vimos o que sonha-
vas ! . .

Sentiu então a rainha, sobre o rosto, um leve sopro quente, como


aquelle que vem dos olhares que produzem rubor.
— Saberia o céo o que se passara ?

Mas não pôde fitar por muito tempo as estrellas... Ellas brilhavam
tanto, tinham tantas scintillações, que não podia resistir d sua acção hy-
pnotica ! . . . Começou por cerrar as pálpebras e acabou por adormecer de
novo.
Cahir n'um somno não é cahir, é levantar o vôo !. .

Mal a rainha adormeceu, foi logo por ares e nuvens, ouvindo harmo-
nias celestes, entre uma multidão de anjos vestidos de gaze, sobre que
incidiam projecções de diversos cambiantes. . .
. . : .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 533

A rainha ia subindo, subindo, com grandes azas brancas, atravessando


camadas atmosphericas e descobrindo maravilhosas estações do caminho
do Infinito ! E, á proporção que subia, via que atraz d'ella, com veloci-

dade quasi egual, subia também, a chamal-a, lamentoso e apaixonado, um


fidalgo da sua corte, vestido com gibão de ouro, e suspenso e puxado por
dois anjos, em tudo eguaes aos que a levavam, sorrindo, sorrindo muito,
e dizendo-lhe, por vezes:
— Foge, foge, que assim ganharás o Céo. . .

E, quando a rainha viu o grande espaço tingir-se de rosa, e as nuvens


transformarem-se em grandes festões de flores, multicores e aromáticas,

e brotarem d' um fundo azul e transparente, fontes de pedrarias, brilhantes


como estrellas, os anjos lhe disseram:
— Foge, foge, que estamos ás portas do Céo.
Foi então que a rainha, que até alli se deixara arrebatar com o sorriso
nos lábios, deteve-se n'um pequeno esforço, e disse supplice aos anjos
seus companheiros
— Mais devagar um
Não vedes aquelle companheiro que me
pouco. . .

segue, e que quer entrar no Céo commigo ?

Mas os anjos elevaram á bôcca, com a mão que tinham livre, a grande
tuba dourada, e, no espaço, ouviu-se um écho immenso cheio de melodia . .

Abriu-se então, o grande, o immenso fundo azul do espaço mais elevado,


e, em jorros de luz e de cânticos, a rainha viu um grupo de figuras escul-
pturaes, semi-nuas, de túnicas matizadas, finas, transparentes, como as
dos deuses do paganismo — homens de longas barbas brancas, mulheres
formosas de madeixas estrelladas, com grinaldas a tiracollo, e, aos pés
d'este grupo, em todas as posições, de bruços, em pé, suspensos, uma
multidão de cherubins muito gordos e rosados, com cabelleiras eguaes ás

do menino Jesus, a despejar, de cornucopias de prata, muitas flores e


muitos fructos ! . .

E atraz da rainha, cada vez mais alllicto e apaixonado, de mãos postas


como se viesse a rezar, com parte do corpo envolto em nuvens muito
brancas, o tal cavalleiro dourado, sempre a chamal-a, sempre a pcdir-lhe

que parasse! . .

E o grupo de deuses, que parecia ter vindo esperal-a ás portas do


Olvmpo, mal a viu tão próxima, espalhou no ar faixas compridas de ló,

que cahiam cm bambinellas e que vinham, sopradas por força ignota,


envolvel-a toda. . . E os cherubins, cantando sempre, puxavam essas fai-

xas, que pareciam feitas de luz, e ella sentia-se subir cada vez mais rapi-
damente emquanto os cabellos lhe esvoaçavam movidos por uma briza
muito suave, muito fresca . . .

MYSTKKIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. 1. FOL. 67.


! . . . .

534 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Ouviu então a rainha pronunciar o seu nome, que sahiu das tubas dos
anjos, e que foi échoando pelas regiões do Infinito, fazendo iris phantas-
ticos nas vibrações das nuvens!
Fluctuavam as roupagens dos deuses no sopro tépido daquelia região,
e rebentavam hymnos e cânticos por toda a immensidade, invocando o
nome da princeza de Castelia e rainha de Portugal!
Mas, por cima do ruido das nuvens que se chocavam alegres, e do
som das businas, e das vozes dos anjos, e dos cânticos sagrados, que re-
bentavam de mil órgãos occultos n'aquella encantadora cathedral, a voz
do fidalgo perseguidor ouvia-se sempre, e, ora parecia o allegro de uma
jaculatória, ora o grave entristecedor de um miserere.
E quando a rainha se voltava para ver se estava em perigo de ser al-

cançada, no olhar d'elle via as estrellas que a tinham adormecido, e as


vinham humedecer-lhe o rosto, e só se eva-
lagrimas, que elle derramava,
poravam ao calor do Céo, que estava próximo!. N'um immenso nimbo . .

alaranjado começou então a desenhar-se a mystica figura do Nazareno,


de túnica azul e loura cabelleira. . . Pousavam-Ihe os pés em novellos de
escuma, e rodeava-lhe a fronte um disco luminoso, tão vivo e reluzente
como o do Sol quando começa a erguer-se no horizonte! Tinha as mãos
erguidas em attitude de abençoar, e nos lábios, a descerrarem-se, havia um
sorriso alegre e meigo.
Mal o viu, a rainha, dobrou os joelhos sobre as faixas de gaze que a
envolviam, e rezou afflicta:

— Perdoae-me, Senhor, as minhas culpas. .

— Virtuosr. mulher, que peccados confessaes? lhe disse a figura divina,

com voz doce e olhar sereno.


— Tenho medo de amar!... Senhor meu!... respondeu a formosa
creatura.
— Chama-se amor a religião que preguei !... Só amando é que se ama
a Deus! ...
— Mas, Senhor de piedade, eu amo. .

Não pôde acabar. .

Apagou-se a visão no fundo azul. .

Chegaram, entretanto, junto da rainha, os anjos que conduziam o moço


apaixonado. Ella ergueu-se... Não foi ella; foi elle que a levantou nos
braços e a desenleou das ténues laçadas que a envolviam... Ouviu-se en-
tão um alarido immenso, como o tenir de muitas espadas, e o Céo apa-
gou-se de repente
E os dois amantes despenharam-se, n'uma descida vertiginosa, por
entre sombras, sentindo-se ella enlaçada pelos braços de Luiz da Silveira,
. . . . . . ! » .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 533

e escutando, no ouvido atormentado pelas lufadas do espaço, a palavra


amor — como se ainda estivesse ouvindo o verbo de Jesus !

Fechou os olhos a rainha ao sentir-se cahir por entre as nuvens, e só os


abriu quando na face gelada lhe bateu um raio de sol I

Enganara-se ! não fora o sol que lhe aquecera o rosto, mas um beijo
apaixonado do seu companheiro da Alcáçova !

Soltou a rainha um grito abafado, dos que parecem um trovão a quem


sonha, e não passa d'um gemido a quem nos guarda e vela, e. . . accordou.
— Senhora, senhora, despertae, que algum sonho vos afflige e me as-

susta. Vae alto o sol, as corças já andam aos saltos na matta, e os cysnes
banham se alegres nos lagos do jardim.
— Ah ! és tu, meu querido filho ? . .

E a rainha, puxando para si o infante D. João, beijou-o enternecida.


— Estáveis sonhando, senhora Commigo ou com ? el-rei ?

— Com ambos, disse a rainha, abafando um suspiro.


— Mas, estáveis Sonhastes talvez que me succedera
afflicta. . . algum
desastre. . . Oh ! ficae tranquilla ! Luiz da Silveira vela por mim constan-
temente. . . Ainda hontem elle me disse que, por mim e por vós, perde-
ria de bom grado a vida que lhe é tão cara.

— Já rezaste, meu filho?


— Ainda não. E hoje não hei de rezar nem por el-rci, nem por mim,
nem pelos padres da Egreja. .

— Então por quem ?

— Por vós, só por vós . .

— E por que, meu filho?


— Foi o Luiz quem me pediu. . •

— Pois bem, meu querido príncipe, reza por mim, que bem preciso
das tuas orações. .

E o pequeno D. João começou, como de costume, a rezar em voz alta:


— Padre Nosso, que estaes no Céo. .

E foi dizendo, de mãos postas, emquanto sua mãe o banhava com um


olhar de amor e de piedade.

De repente D. João parou . .

— Não me lembro do resto, minha mãe e senhora. .

— Tonto! Ora, dize commigo:


«Não nos deixeis cahir. Senhor, em tentação. . .

— Que coincidência, meu Deus! disse a rainha. Esqueceu ao filho,

accordado, o que a mãe esqueceu em sonhos


— Repete, D. João — não nos deixeis cahir, Senhor, em tentação. ..

E, ao repetir estas palavras, havia lagrimas nos olhos da desventurada...


!.

XXVI

Casamento politico

O casamento muitas vezes não tem contratos com o amor. E' desta
circumstancia que resulta, quasi exclusivamente, o adultério.
Dizemos quasi, porque o adultério também nem sempre é fructo do
amor. Assim como o casamento pode ser apenas um contrato feito pelo
interesse, também a infidelidade conjugal pode ser fructo, não d'um sen-
timento aífectuoso, mas d'uma reclamação viciosa. Ha exemplo para as
diversas hypotheses. Dumas fez um menos vulgar
romance sobre o a —
adultério casual, consequência d'um caso pathologico, momentâneo e trans-
itório, praticado por uma mulher que adora o marido e detesta o amante
Le roman d' une femme é uma excepção espantosa! Assim como um
cadáver tem diversas exhalações venenosas, assim o casamento produz
adultérios de diversa responsabilidade, porque é fácil averiguar que o adul-
tério é apenas um producto venenoso d'um casamento em decomposição.
O logar do amor é no casamento; mas o amor enche o mundo, e os

casamentos são tão poucos, que se registam.


Sempre que o amor deixa uma vaga em qualquer casal, dá-se logo uma
invasão.
Quando éramos creança imaginávamos que os ninhos das aves nasciam
nos troncos do arvoredo, e que depois as aves os vinham occupar. Ha ca-

samentos que nos dão a impressão do mesmo erro : parecem ninhos que
nascem para os amores que vêem depois I. . .

O casamento é, devia ser, um ninho, e como elle, feito, de sociedade,


por dois entes que se amam.
Vulgarmente, e principalmente em diversas regiões da sociedade hu-
mana, é o contrario, como se afigurava á nossa imaginação de creança.
Na corte, por exemplo, a illusão é perfeita — parece que o casamento
nasce sobre o throno, em condições de poder servir para o amor. . . mas
não é indispensável que sirva... Nem por isso deixará de ser casamento 1..
. !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 53;

Succede, ás vezes, que o amor anda por alli a esvoaçar, e aproveita esses

ninhos, como os pombos bravos aproveitam as empenas dos prédios, os


capiteis das coiumnas e as torres das egrejas! . . N'esse caso estabelece-se
e fica. . . O casamento, na grande escala zoológica, apresenta os mais ex-
traordinários aspectos! Ha pássaros que aninham só em os ninhos que
outros construíram... Tem o cuco essa estupenda noção do direito de
propriedade. Foi a própria natureza que decretou que assim fosse . . .

De todos os casamentos que a humanidade tem inventado, os dos prín-


cipes são os que ficam mais expostos á pilhagem natural dos cucos.
N'esses enlaces, o amor raras vezes é convidado para as bodas. . . fica

á porta dos paços reaes á espera de ver entrar alguém que o conheça e o
apresente. Depois de ter entrado, apresenta-se elle. . . Se o conheceu uma
dama apresenta-o ao noivo, e logo ella addiciona, aos seus titulos de no-
breza, o de favorita — se é um fidalgo, a apresentação é feita á noiva, e

logo elle se condecora com a gloria de valido. A favorita é o espelho onde


o príncipe revê a galantaria da sua amoravel educação. O valido é a
corbelha onde a princeza depõe a grinalda de laranjeira do seu seio.

E assim que o amor se vingai

Como não quizeram que elle assignasse o contrato, fez dos amantes
eternos paranymphos
Nos casamentos dos príncipes não se apertam duas mãos, approxi-
mam-se duas nacionalidades; não ha troca de allianças de ouro — ha uma
alliança de coroas de ferro —a estola que os envolve são as bandeiras dos
seus paizes — deitam-Ihes as bênçãos, em vez dos sacerdotes, os estadis-
tas, e ficam os noivos tão mal ligados como as nações alhadas — com uma
fronteira de permeio'.
Elle nunca viu a sua noiva; ella não lhe conhece o coração!
Caminharam um para o outro, levados pel-i mão das chancellarias, e
encontraram-se, aos pés dos altares, como dois generaes se encontram,
para parlamentar, no campo de batalha ! Falam linguas dilíerentes, ves-
tem-se de São m^is que extranhos um para o outro
modo diverso! são —
até extrangeiros! Namoram-se oito dias antes por cartas dos seus minis-
tros.Não vão para o thalamo, vão para o throno Não vão ter filhos para !

mas reis para o povo. A essas creanças não chamam fructos do seu
elles,

amor, mas penhores de herança e esteio de monarchias!. .. Os secretá-


rios de Estado, n'uma obstetrícia rudimentar e politica, fazem votos por
que seja um varão o primeiro desses penhores... Será annunciado, em
plena còrtc c cm pregões na praça pública, o primeiro vestígio da con-
ceição. .

Quem é elle? um homem; monos alguma cousa — um rei.


! . !

538 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

E ella ? uma creança, a quem se aproveita o primeiro phenomeno da


puberdade para a fazer mãe. Não é uma mulher, é um gérmen ; não vae
para sua casa — vae para o seu forno de incubação.
O rei é um creador; a princeza, sua noiva, um ôvo!
Deita-se uma rainha como se deita uma galiinha. . . A. nação d'el-rei

precisa de frangãos para os seus festins reaes I

Um casamento assim não é uma esperança damor, é uma prevenção


de pessoal governativo
El-rei dará o primeiro beijo na sua noiva com o mesmo intuito e a

mesma solennidade com que bate a primeira cavilha d'um barco, ou com
que lança o primeiro cimento no pedestal duma estatua!
Um rei não escolhe uma mulher, mas uma rainha. Por outra forma,
nomeia a sua collaboradora dynastica.
Escolhendo, se lhe é permittido escolher, pouco se importa com os
olhos d'ella, mas com a vastidão territorial de seu pae. Que tenha sorriso
meigo, alma innocente, figura esbelta, importa um pouco, porque é preciso

que a multidão a acolha. El-rei ama em nome da nação


Nada ha mais triste, que estes casamentos ruidosos, esplendidos, em
que toda a gente fala de ventura e sorri alegremente, com a mesma sin-

ceridade com que as carpideiras dos romanos lamentavam os mortos, por


algumas moedas de prata.
Temos dó profundo d'essas pobres donzellas, delicioso exemplar da
escravatura branca que traz ao mercado uma cria real, que tem de cingir
uma coroa, que lhe pesa na cabeça e no coração.
Era d'essas a rainha D. Maria. .

Pobre creaturinha que, na sua qualidade de princeza de Castella, viera


a Portugal a casar-se em obediência ao serviço obrigatório do amor.
Creara-se nos jardins opulentos do seu paiz para vir, logo ao alvorecer da
mocidade, ser planta exótica nas estufas de D. Manuel De D. Manuel, !

porque era este o rei momento em que a fêmea era


portuguez, n'esse
principalmente aproveitável. De D. Manuel, ou de outro homem, que ella
não viera amar, mas prolificar. Não casara com um coração, mas com
uma categoria.
Era princeza apenas, e, porque devia ser promovida, elevaram-n'a a
rainha, por concurso entre as outras princezas da Europa.
Entrara assim na sala do throno, com escala pela alcova real... O
diadema da sua virgindade convertera-se, ao calor dum beijo, em diadema
de realeza!
Ao entrar na Alcáçova, encontrara ainda alli as nuvens de incenso das
exéquias feitas á fallecida rainha. El-rei despira o seu lucto de viuvez para
íMysterios da inquisição 339

envergar os seus hábitos de noivo. Ou já esquecera el-rei a sua primeira


mulher, ou ainda a recordava com saudades. Um viuvo alegre é um
noivo volúvel — um noivo triste não pode ser um amante. Ninguém lhe
perguntara se ella amava alguém Que ao menos ! lhe fizessem isso, já que
ninguém lhe perguntara se amava seu marido. . .

As duas cortes tinham chegado a um accôrdo, sem que tivessem accor-

dado os dois corações. Sahira da infância a pobre princeza catholica, e, sem


que lhe dessem tempo para sonhar ideaes, impuzeramlhe o dever de
realisar planos.

O amor quando começa a conversar com a innocencia tem a figurinha

ainda d'um anjo. A' pobre princeza de Castella apresentaram Cupido,


coberto com o manto real e de espada á cinta, em vez de aljava e settas
a tiracoUo ! . . .

Quando ella ia começar a sorrir, mandaram-n'a que fosse grave e se-

vera I Ardiam-lhe os lábios em appetites de beijos colhidos a occultas, e


rodearam-n'a de cortezãos que lhe beijavam os dedos, nas grandes rece-
pções! As devoções entretinham-n'a, mas não a alegravam... Rezava
para não pensar.
Amava ella seu marido ?

Respeitava-o, e o respeito é muitas vezes a negação do amor. .Julgava


que um dia nascera lilha. Não tinha culpa d'isso, mas acceitava ambas as

tutelas.

Tivera um lilho. . . Quem lho dera ? Deus.


Foi neste estado dalma que a fitara o olhar de Luiz da Silveira.
Só então comprehendeu que tiriha coração como o das outras mu-
lheres.

Ficou sabendo que amava ?

Não foi bem isso. Ficou sabendo que existia o amor I

Não era o amor do pae, nem o do marido; era outro, para ella tão
novo e surprehendente como lhe foram as dores da maternidade !

Foi então que ella comprehendeu que o casamento nem sempre tem
contratos com o amor.
Luiz da Silveira não era um audacioso; era um hábil, e as conquistas

do amor não dependem tanto da coragem, quanto do geito.

Se elle tivesse tido uma audácia teria quebrado todo o encanto, accor-
dado de todos os sonhos, dispersado todas as esperanças.
Ha uma grande quantidade de cousas que nós todos desprezaríamos
se lhe citássemos, ou soubéssemos os nomes.
Os euphemismos são a peor invenção litteraria de todos os mundos
São elles o ouro que doura a pillula venenosa, de máu sabor, e ás vezes
. . .

540 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

até nauseante. A melhor maneira de fazer um crime acceitavel é não o


denominar. . . O euphemismo é como uma máscara no rosto de mulher
feia . .

Se Luiz da Silveira tivesse dicto um dia á rainha — amo-a, ella fugiria

d'elle, e iria acolher-se aos braços do marido, retemperar-se nos beijos do


filho, pedir protecção a Deus e ao seu confessor . . .

Mas Luiz não commettia esse erro. .. Quando chegasse o ensejo, ou


seria ella quem tal dissesse, ou o diriam os dois ao mesmo tempo!
E para que era isso necessário?
Para apressar um desenlace? Se não era fácil calcular qual elle fos-
se?!. . . Imagine-se o melhor êxito . . .

Que perigos, que luctas, que sacrifícios, que persiguições ! Imagine-se


o peor. .

Que decepção, que vergonha ! . .

O desenlace era uma tragedia. . . O menos que lhe poderia succeder

era a expulsão da Alcáçova, isto é, a perda do seu futuro, do seu presente,


e, por que não havemos de dizel-o? da sua alegria!. . .

Assim, n'aquella dúbia situação, Luiz sabia que amava e que era ama-
do. . . Toda a gente o invejava e ninguém podia accusal-o. . . Parecia ser
o amante da rainha, e, em tal caso, o parecer já é inuito, mas sentia-se

forte para resistir.. . Pelo menos, forte na consciência.


Pois, se nada havia ! ?

Nos amores prohibidos, quando não ha nada, ha tudo; ha, pelo menos,
o principal.
Elles não diziam amor, mas olhavam amor. Olhavam e pensavam e
— olhavam pensando, e pensavam olhando.
Ambos tinham d'isso a certeza. Sim, bem sabiam que, quando sonha-
vam, sonhavam ao mesmo tempo, diziam as mesmas palavras.
Ter os corpos separados não é o mesmo que separar as almas, isto é,
que separar o pensamento, que nos amantes coincide sempre, porque é
sempre o mesmo.
Está até averiguado que a melhor quadra do amor é aquella em que
os amantes se comprehendem, sem se explicarem... Quando elles se
adivinham é que se comprehendem. .

Depois, pode vir o arrependimento, o medo, o remorso; antes, não!


São peccadores da mesma forma. Já não amam quem deviam amar,
já não pensam em quem deviam pensar; mas, como não pensaram em voz
alta, nem deram ao corpo as liberdades que deram ao espirito, julgam-se
innocentes. . . Julgam até que estão sempre a tempo de recuar, e a ver-
dade é que é esse o peor desfiladeiro.
. . ! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

O crime do amor é um crime peor que todos os outros. Já temos


roubado, c ainda nos julgamos honestos. Porque não descobrimos o roubo,
julgamos que não roubámos! Ninguém sabe!... é o commentario.
E sabe-o toda a gente! O primeiro a sabelo é o nosso cúmplice.
Depois, emquanto ha o segredo, ha a lucta — a lucta em amor, c como
o morrão de uma vela que se apaga: ainda arde, mas já não allumia.
Comtudo, como ainda a vemos, imaginamos que cila ainda nos vè!...
A rainha sentia, cada dia que passava, uma indifterença por el-rei; ás

vezes esquecia-se do filho.. . Agarrava-se a Deus, porque precisava d'um


confidente, e, rezando, dizia que era innocente o seu amor... Tão inno-
cente que, de joelhos deante do confessor, contava-lhe tudo; mas so isso.
No tudo não entravam os seus sonhos amorosos e mysticos... Signal

certo de que não os julgava tão innocentes, como dissera a Deus.

Depois, um amor que se occulta c um sacrificio que nos engrandece,


pois não é
':

Quem lhe devassasse o peito havia de admiral-a mais ainda! Ser casta
quando se não ama é vulgar, mas amar, mas resistir, mas vencer, c he-

róico. . . Aos olhos de Deus devia valer mais.

E traçara a rainha o seu plano — amar em segredo.


Que extraordinária é a cegueira desta espécie d'amantes ! . . . Nem se

lembram de que um coração que arde suffoca de fumo toda n geme que
o rodeia ! . .

Na Alcáçova andavam todos a dizer cm segredo — ha fogo, ha fogo I

E havia... Era um incêndio! Os dois amantes estavam quasi asphy-

xiados. O que admirava era que elles não pedissem soccorro.


As labaredas do coração rebentam pelos olhos, como pelas janellus
rebentam as chammas dum prédio incendiado.
Quando Luiz da Silveira olhava, embora num relance, o olhar da sua
rainha, o rosto delia inflammava-se. . .

Mas não falavam n"isso... Pelo contrário, só diziam banalidades. As


banalidades, cm taeá casos, são profundos pensamentos. Dizer sábias idéas
só quando se não pensa n'outra coisa. .

A banalidade era, portanto, prova de que o que se queria dizer ficara


guardado.
A banalidade c meio silencio, e assim, depois de trocarem cada um a
sua, calavam se. .

Como são eloquentes os lábios mudos e a phrase vulgar quando os


olhos se encontram
E' certo, porém, que a banalidade não é tão banal como muitas vezes
SC julga. . .

MYSTIÍKIOS DA INQUISIÇÃO. — VOL. I. FOL. l S


! .. . . . . —

342 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

A's vezes parece uma creança a dizer inconveniências entre dois na-
morados. Quando os namorados não teem junto de si uma creança indis-
creta, que diga o que elles calam, a phrase banal toma o logar da creança.
Por isso, quando a rainha se encontrou com Luiz da Silveira, depois

de ter sonhado com elle, olhouo mais rapidamente.


N'esse momento, Luiz fitou-a com mais paixão; depois os dois baixa-
ram o olhar, e, afinal, encontraram-se de novo.
Quando subimos ou descemos por uma rua, e nos embaraçamos,
hesitantes, com um transeunte que vem em sentido opposto, reconhece-
mos a necessidade de parar. . .

Foi o que elles fizeram — pararam o olhar, numa certa direcção.


Por acaso, essa direcção era a dos olhares de ambos.
Como o amor tinha de estar mudo, saltou a banalidade por conta
d'elle.

— Como passastes a vossa noite, senhora? perguntou Luiz.


— Mal? Não Não dormi tranquilla — sonhei muito, muito!
sei. e

— Sonhos dourados'
— Não, azues!
— A còr do céo!
— E do manto da Virgem. .

— Sonhastes, então, com a vossa fé.

— Se o que tenho no coração.


é .

— Também tendes amores . .

— Sim . . . meu filho . • .

—E el-rei?

Luiz occupava o logar da creança indiscreta. Que de coisas sabemos^


sem que ninguém nos ensine!. .

^Não; ha tempo já que não sonho com el-rei. E vos, Luiz da Silveira ?

Também com a vossa fé ?



Também com os meus amores. .

— Vossa irmã, talvez ?

— Não, senhora minha.


— Resuscitastes vossa santa mãe? Não tendes filhos. .

— Tive um sonho azul como o céo, verde como a esperança, e negro-

como o impossível
— O impossível em sonhos? Não creio. . .

— Tendes razão, senhora, não ha impossíveis nos sonhos. Dissestes


uma grande verdade. Ha segredos. . . Sonhei com o meu segredo.

Não é verdade, Luiz, que os sonhos são a arca santa dos segredos
da nossa alma? I
. .

MY.VIERIOS DA INQUISIÇÃO i43

—A quem o dizeis? F,' n'elles que encontro todo o consolo para os


desesperos da minha vida . .

— Não sois feliz accordado?


— Ha muito já que entristeço quando accordado. A realidade é o meu
mart3'rio. . .

— Não agradeceis ao Céo as venturas que vos concede ? Não c bom ser

ingrato. Não vos dá a Alcáçova a felicidade que mereceis?


Senhora: a Alcáçova dá-mc tanto bem, que o receio de a perder
me faz o mais infeliz dos homens.
—K por que haveis de perdel-a? Não tendes aqui rostos amigos? Não
vos prezamos e distinguimos todos ?

— Todos, dissestes Também vós ? ?

— Também eu, sim. Por que duvidaes? . .

— Porque vos não mereço, senhora. Não quantas quci.xas me sei faz

íi consciência — que tanto vos querendo — me accuso de vos querer mal.


— Sois louco, decerto. E c dos vossos malefícios que devo temer?
— Quem sabe ? Também mal por bem querer, e eu tanto vos
se faz

prezo e respeito, que tremo com medo de que vossa alteza me condemne
por ser, junto de \ós, mais reser\ado que um cortezão, ou mais sincero
que um lldalgo.
— Alegra-me a vossa tristeza, Luiz; não temaes molestar-me com ella,

Mais triste ando em cada dia que passa, e agrada-me, quando vos avisto,
que não andeis risonho como a outra gente da corte- .

— !?' que eu não sou da corte: sou vosso. . . e de vosso filho. Não me
accuseis, senhora, de vos dizer assim; mas, a verdade, é que no dia em
que se apagasse o vosso olhai\ fecharia os olhos para sempre 1 Falo-vos
muito por aftecto mas muito mais por lealdade. . .

—E que sonhastes ? perguntou a rainha mudando intencionalmente o


curso da conversação.
— Sonhei que amava um astro... Eu! que só tenho direito a amar
uma mulher na terra ! . . .

— Amaes então o Sol ?

— Talvez, mas na forma gentil duma estrella. . .

— Tão alto! Se ella vos guia, por que não poderá amar-vos ?

— Vós dissestes a causa, senhora: tão altol...


— Voae então. Na vossa edade o coração tem azas como o olhar. Se
vedes a vossa estrella, mandae-lhe no olhar o vosso amor.
—A luz desse astro crestou-me as azas do coração. .

— Mas, em sonhos, passeamos no Infinito, deitamo-nos nas nuvens, e


toucamo-nos de estrellas!. . .
. . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— E' que VÓS sois irmã d'esses astros formosos I Sempre que em sonhos
a vejo e a procuro — quero subir, e arrasto-me, quero chamal-a, e cmmu-
deço, quero fital-a, e cego!
— Mas, se podesseis, voarieis?
— Sim, como o vento que lodos escutara, e ninguém vê. . .

— Costumaes contar os vossos sonhos ?

— Conto como quem os occulta; se os contasse como os sonhos, talvez


me arrependesse de contal-os. ..

— Parecem-se com as minhas as vossas noites! Também eu costumo-


viajar pelo espaço nas azas do pensamento, por entre as nuvens dos meus
segredos e as auroras das minhas esperanças. .

— Bem o senhora. sei, .

— Bem o sabeis?! Como assim, se apenas agora volo confesso?


— Não é minha a culpa. . . Já vos tenho encontrado nessas regiões lu-
minosas. .

— Vós?
— Sim, eu. Perdoae-me a indiscreção. Velo- vos de noite o pensa-
mento, como vos sigo de dia o vulto e a sombra. . . Até quando vos saúdo.^
senhora, á hora da manhã, logo vos adivinho no rosto as canceiras dessas
viagens.
— Sabeis então por onde ando á hora do silencio?
— Sei, por divina inspiração, que andaes por entre os anjos a contar as
vossas máguas. Ainda em a noite que passou vos vi partir tão triste e tão só I

— Tão só!. . . acudiu a rainha, como se acreditasse ter sido vista nos
voos da sua phantasia.
— Entre azas de dois anjos, que andam pelo ar ao ser\iço dos crentes
e dos tristes. . .

— Vistes-me de longe, ou seguistes-me de perto?


— Eoi, n'uma canceira n'um anceio! com medo de e que vos roubas-
sem aos vossos amores e á nossa terra. .


E quem vos acompanhava?
— Dois génios, dos que alentam pagens, sagrados pela dedicação e
pelo respeito. .

— E vistes pelo caminho?. . .

— Nada senão a vós, senhora, comquanto vos allumiassem mvriades


vi,

de estrellas, e vos traçassem o caminho festões de rosas e ondas de trans-


parências. .

— Continuae, Luiz, continuae.. Foi isso . a noite passada?


— Sim, esta madrugada, quando
foi já tremulava brilhantíssima a
estrella dalva. . .
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Como o sabeis ?

— ^'ia a na faixa do céo que cobre o terraço, cm frente da galeria da

minha alcova . .

— Que extraordinária coincidência ! Também eu a essa hora vi essa


estrella, e parti para a magia d'um sonho com o olhar preso a um dos
raios dessa luz... K, di/.eine d-jpressa, Luiz, alcançastes-me, ou per-
destes-me de vista r

— Confunde-se me a memoria neste ponto do mysteriol Se eu ia tão


queixoso ! Fundia-se á luz do sol a chuva das minhas lagrimas. Houve
momentos em que um nevoeiro còr de rosa vos en/olveu de tal arte que
accordei tão maguado, como«se o sonho fora realidade. E quem não o acre-

ditara ? Só fora falso, pensei eu, que o sol me tivesse enxugado o pranto...
— Por que? interrogou a rainha, olhando já muito anciosa para Luiz
da Silveira.
— Porque senti nos olhos, a sombra da minha lâmpada, as lagrimas

que eu chorava. .

— Luiz I exclamou a rainha, abraçando-o num olhar doce, meigo e sem


reservas— obrigada. . .

E os dois amantes ficaram por mcmentos mudos, a fitarem-se, como


que adormecidos, num somno de êxtase, feito de sorrisos, com as almas

a espelharem-se nas pupillas illuminadas. .

E, n'esse momento, sem que elles soubessem como, nem quando,


tinham as mãos dadas . . .

Nenhum delles as pedira, nenhum as acceitaral Fora delias a inicia-


tiva e a resolução!

Cahira dos hombros da mulher o manto da rainha, e voara-lhe ao en-


contro o respeitoso companheiro. .

Soou então, na torre da Alcáçova, o sino que annunciava a hora da


missa. .

Apertaram as mãos tremulas como se tivessem ouvido aquelle aviso,


e baixaram os olhos, que se espelhavam.
Luiz da Silveira, num lidaigo e hábil movimento, dobrou levemente o
joelho e, levando aos lábios a mão da rainha, recuou, dizendo:
— Não ha dúvida, senhora, vae começar o santo sacrifício. . .

— Dizeis bem, Luiz, santo esse que vae sacrifício celebrar-se no altar
da capella.
— São santos todos os porque são prova de que existe sacrifícios, o
amor — summula das três grandes virtudes— a que vos fortalece, fc a es-

perança que me foge, a caridade que vos supplico!


— A'amos pedir a Deus virtudes e resignação. . . ^'inde.
. . ;

546 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não por mim, mas por vós, ire: orar.


— Por vos rezarei eu, D. Luiz.
— Não rezeis pela minha vida, senhora. .

— Ingrato! Já esqueceste que, se Deus me roubou no Cêo, me resti-

tuiu á terra.
— Vivereis, vós, senhora, que sois del-rei e do principe. . . Eu não. . .

que, se ganhasse a minha estrella, morreria de prazer; se a perdesse,


morreria de saudade I

E o sino continuava badalando. . .

— Luiz, disse-lhe a rainha, já que me acompanhastes toda a noite, por


tão amplas e maravilhosas regiões, vinde commigo contar os nossos so-
nhos a Deus. .

— Elle conhece-os, que só delle poderia vir tanto enlevo á minha


alma. . .

—E tanta tristeza ao meu coração! \'amos, então, perguntar-lhe por


que nos não dá, na terra céo egual ao que nos mostrou lá em cima?
E, pouco depois, a rainha ajoelhava no balcão real, que se abria no
altar-mór, á direita do sacrário. Ao levantar o cálix, e, quando o acolyto
agitava por três vezes a campainha alegre e vibrante, inclinava a cabeça,
e, batendo sobre o coração, dizia triste e afflicta

— Perdoae-me, Senhor, se amei tão tarde . . . e apagae-me no peito


este fogo que accendestes. Dei o meu corpo a el-rei — oftereço-vos. Senhor,
este amor ! . . .

Notava-se na corte de D. Manuel que a tristeza da rainha augmentava


com a sua piedade. A maledicência começava a arrepender-se. As devo-
ções eram cada vez mais frequentes, e a rainha cada vez mais se entre-
gava aos cuidados de seu filho.

Luiz da Silveira andava desviado dos salões da Alcáçova, e já, por


vezes, tinha sido visto nas cavalgadas reaes.
Contavam-se proezas, que elle fizera nas caçadas mais apparatosas, e,

uma ou outra vez, o melancholico fidalgo se mostrava alegre e vivo no


convivio da corte que se ia aprimorando em galanteio e bellas artes.
El-rei rodeava-se, com cuidado, da flor da fidalguia portugueza, e,

n"ella enxertava, com pronunciado gosto litterario. os melhores poetas e


prosadores.
Adejava pela Alcáçova, numa alegria ruidosa, o amor, e até ao des-
pontar da mais innocente paixão, rebentava o escândalo do pregão e a
graça do epigramma.
. :

MYSTKRIOS DA INQUISIÇÃO 547

Os amantes estavam convertidos em motes deliciosos, e ás damas mais


formosas eram dedicados os mais artísticos raadrigaes.

Kra isto n'aquella épocina, que Gonçalo Çacoto descrevia nesta quinti-
lha, que licou célebre, e vem citada nas Amantes de D. João \'

lioni escrever, heni falar

Motejar e saber rir.

Bom dançar e bom bailar,


As coisas que são d olhar
Sabel-as mui bem sentir.

Estavam, por isso, no seu apogeu de esplendor e vivacidade os serões


da corte. E onde se escreve e fala bem, onde a graça anda de braço dado
com o talento, a intriga vè-se obrigada a fugir para os aposentos da poli-
tica, e por isso mesmo, a deixar d vontade, e d solta, os idvllios de co-

ração.
A tristeza era symptoma de m\sticismo, e não de paixão amorosa.
Se a rainha cada vez mais entristecia e rezava evidentemente, andava
mais preoccupada com as tentativas diplomáticas de Fernando \ que com
o olhar enamorado dalgum lidalgo, ou menestrel.
Affirmava-se até que D. Luiz da Silveira não lograra favores da rainha,
e que apenas se aproveitava de tão excepcional convivência, para se apo-

dei-ar do valimento de D. .loão.

Alguém, porém, andava a segredar a D. .Manuel que sério perigo havia


na influencia do moço fidalgo no animo da rainha, como conselheiro, e na
de educador do príncipe D. João.
Affirmava-se que D. Luiz da Silveira educava o filho ao sabor da mãe,
e taes coisas dizia e ensinava que o futuro rei, em tudo que pensava e
apprendia, era contrário á politica e aos intuitos de seu pae.
D. Manuel, que via seu filho rodeado da gente que lhe era mais
contrária, fingiu apenas irritar-se contra o fidalgo que, tão de perto^
acompanhava sua mulher.
O seu desagrado andava em busca d'um pretexto. .

Servia-lhe a intriga dos dominicanos. Dos dominicanos ? Dos partidá-


rios da fé? Dos impacientes instituidores da Inquisição?
Sem dúvida, que Silveira, com os seus amores, ia humanisando de mais
a princcza, que elles tinham elegido para chefe do partido espiritual da
Alcáçova.
Desde que a rainha tivesse o espirito mais preoccupado com a còrtc
assidua de Luiz da Silveira ; desde que ella pensasse na possibilidade de
mudar o eco para a terra, e de alliar o amor a Deus com o amor a um
. . .

548 MYSTERIOS DA DÍQUISIÇAO

homem, devia fatalmente arrefecer aquelle zèio religioso pelas cousas do


culto, e pelos interesses da Egreja.
Silveira podia ser um bello auxiliar, mas era necesario que se conser-
vasse no mundo das esperanças. . . Sc elle ia ganhando terreno, podia
perder-se e perder a melhor influencia que havia na corte. . .

Na opinião dos dominicanos, o Céo perde sempre alguma cousa, quando


na terra os seus servidores andam alegres e felizes. Por isso, a população
dos mosteiros era composta de gente que soffrera decepções. O scepti-

cismo e o desespero eram as grandes catapultas que arremessavam ho-


mems e mulheres para dentro dos claustros. Depois de lã estarem — ou
se arrependiam, ou se pervertiam.
De se terem pervertido é que nunca tinham arrependimento. .

O zelo dos agentes seculares, isto é, dos que andavam fora da vida
monacal a trabalhar pela Egreja, precisava de ser constantemente vigiado.
Se a rainha se apaixonasse a valer pelo aio de seu filho, corriam os frades

o grande perigo de perder a cooperação presente da rainha e a grande


força futura do príncipe real. Aquelle amor devia conservar-se n'um es-

tado latente. ..

Se aquelles dois corações chegassem um dia a entender-se, não seria


só D. Manuel o prejudicado. . . Isso era o menos!. . . Sel-o-hia também a
causa de S. Domingos, já tão prejudicada com o governo presidido por
António Carneiro. .

Por isso os dominicanos intrigavam, e, desde o núncio até o confessor


da rainha, andavam na tarefa assídua de chamar a attenção de el rei para
o valimento de Luiz da Silveira.
Percebeu este a táctica dos contrários e procurou illudir, quanto pos-
sível, a vigilância d'elles.

O estado da corte de D. Manuel favorecia-lhe.os intuitos. Os maldi-


zentesandavam todos entretidos nos seus próprios amores. Folgavam com
isso. Nos serões já não havia quem falasse dos próximos, porque an-
. .

davam todos entretidos em galanteios da sua especial predilecção. Cada


dama da Alcáço\'a tinha o seu cantor, o seu gi^ande paladino Solteiras e I

casadas subdividiam a grande corte em pequenos partidos.


Todas as noites, ao serão, havia concurso de belleza. Luctava-se com
as armas litterarias mais aceradas. As vaidades eram crivadas de epigram-
mas, e as beldades cantadas em rima nova e opulenta. Cada glosa era pre-
miada com um sorriso. . . Até os maridos se gabavam de que suas mulhe-
res tinham inspirado melhores conceitos, e perdoavam as settas, que os
feriam, por causa das tiòres que choviam sobre as consortes. O veneno
das settas litterarias era compensado pelo aroma das flores apaixonadas. .
MYSTERIOS UA INQUISIÇÃO 549

Ao fim do serão os casaes sobraçavam todos aquelles trophcos, e iam


para casa de braço dado. . .

Ficava tudo na famiiia!


A rainha começara a esquivar-se aquelles festins das musas, e a corte
folgava com isso. Estava mais à vontade I O amor anda melhor livre de
pragmáticas.
Perguntava-se, ao principio da noite:
— Onde está sua alteza?
— Recolhida nos seus aposentos...
Ou então:
— Na capella, cumprindo um dos seus votos. . .

Não fazia falta I Nem el-rei dava por isso.

Passavam-se assim as horas tão alegremente I

Bastava para isso que la estivessem D. Branca (>outinho, formosa c


presumida; D. Margarida Henriques, espirito travesso; a elegante e bem
ataviada D. Izabel Cardosa; as filhas do senhor de Villa Nova, D. Maria
Henriques e D. Francisca da Guerra, rivaes, em face dos galanteios de
(«onçalo da Silva; D. Beatriz da Silva, D. Leonor de Castro, que sorria
para D. Laiíz de Menezes e D. Genebra, que fazia o mesmo para Chris-
lovam Freire; D. Adelaide de Lima, e tantas outras de que nos fala o
.[iilo íÍlIs. I'aiias, de (}il Mcente, e os PokíjuJs, de Setúbal, e que, no li-

\ 10 sobre a mocidade do poeta, são citadas, com elegância e graça, pelo


sr. Júlio de Castilho.
Alli cada poeta tinha a sua musa, e cada D. Quixote a sua Dulcinéa.
Kntre as mais formosas, algumas havia que tinham nos olhos reflexos da
coroa real. . . Aquelles salões eram uma espécie de ilha dos Amores, onde
as nymphas trajavam galas mais tentadoras que a nudez, e, sendo perse-
guidas, se lançavam, sorrindo e não assustadas, nos lagos espelhemos da
graça levemente encrespada e da ironia mais galante. . .

A rainha, ás vezes, apparecia ao principio do serão, e logo se retirava.

Kra isso nos dias em que apparecia também D. Luiz da Silveira.


Nos outros, em que elle estava ausente, a rainha ficava toda a noite,

t iste, sim, mas risonha.


Quando os tristes sorriem é quando estão muito tristes 1

Uma noite, quando já as altezas se tinham retirado a um canto do


salão, um grupo conversava com mais accentuada vivacidade.
Falara de .preferencia Gonçalo da Silva, que chegara ancioso por dar
novidades. Fazia D. Maria Henriques taes gestos de surpresa e D. Luiz
de Menezes debruçava se tanto sobre ella, para lhe perguntar o que dis-
s.M'a Gonçalo, que Luiz da Silveira, que estava longe, se foi approximando.
MYSTKUIOS I'A INQUlSli:.\0. — VOL. l. TOL. ()0
. . . .

55o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Era delle, provavelmente, que falavam. . ,

O grupo ia crescendo com a conversação, que a todos parecia interes-


sar vivamente.
— Aonde ouvistes, D. Gonçalo, contar o episodio?
— Em S. Domingos, onde esta tarde, não se falava noutra coisa.
fui

— Invenções dos frades, invejosos do valimento da abbadessa! expli-


cava D. Christovam Freire.
— Talvez sejam, continuou o alviçareiro. Porque o facto é publicado
pela inveja, não quer dizer que não seja um facto. . .

— E' essa a minha opinião; os homens defendem-se sempre uns aos


outros . .

— Quereis, então, D. Violante, defender honestidade a de D. Philippa?


— Quanto menos honesta aienos provável ella fòr, é o escândalo,
acudiu D. Beatriz da Silva. Não é assim, D. Luiz de Menezes?
— E' meu dever ser por el-rei, na minha qualidade de vassallo; mas
sou homem e não devo associar-me ao desprestigio d'uma dama.
— Uma damal Não reparaes n'esta audácia, D. Margarida? Uma dama
a cortezã de Lorvão! Que nos chamareis então a nós?
— Vendo en como sabeis ferir, falando, chamarvos-hei dama de espa-
das.
— Acceitem, disse D. Margarida, sorrindo, somos damas de espadas,
porque merecemos que os homens se batam por nosso amor. .

— Ou porque feris com as vossas linguas finas e cortantes como as


melhores lâminas de Toledo. . .

— Em todo caso, insistiu a travessa Margarida, antes de espadas


que de ouros. Philippa é d'estas no baralho das mulheres! Os homens não
se batem por ella, pagam-lhe. .

— Razão de sobra teve Gil Vicente, treplicou Luiz de Menezes, quando .

disse de vós:

Por que é tão máu rapa^


D. Margarida Henriques f

— Digam o que disserem, insistiu D. Gonçalo. O caso fez ruido e já


chegou á Alcáçova. Não ha que duvidar — el-rei esteve em Lorvão numa
aventura nocturna, que as monjas e freiras presencearam envergonha-
das. .

D. Luiz da Silveira approximou-se mais do grupo.


— Se tal noticia chegou á Alcáçova, foi por vossa causa, D. Gonçalo,
que, quando entraes aqui, como se deixásseis a porta aberta, fazeis que
cheguem até nós os baixos murmúrios do soalheiro.
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Reparae, D. Luiz, que nada vos contei, e que, portanto, não vos
devo explicações do meu proceder.
— Nem vol as peço — commento a indiscreção, que tem o caracter de
aleive.
— Estaes falando com um tidalgo. . .

— Se vós, que o sois, vos esqueceis d"isso, como quereis que eu me


lembre? Reparae, senhoras, que, se el-rei sahiu de Lorvão allumiado pelos
brandões das monjas, é signal de que não teme a noticia da aventura.
Não ha, pois, motivos para murmúrios maldizentes. . .

— Quando tivésseis procuração de el-rei para o defender, deveríeis


esperar que eu o accusasse. Quem espiona por conta alheia não tem senão
o direito de denunciar. . .

— Faço-vos, senhores, juizes d'este aggravo, e espero que, ainda que


D. Gonçalo vos peça soccorro, lhe não acudaes, se longe destas damas
elle ousar- repetir-me o que agora disse. .

Ergueram-se as damas rapidamente, umas metteram-sc entre os con-


tendores, outras afastaram os que lhe eram dilectos, e outras percorreram
o salão pedindo a intervenção dos grupos diversos.
N'um momento, D. Gonçalo da Silva e D. Luiz da Silveira estavam
rodeados de muita gente.
— Tranquillisae-vos, senhores, saberei respeitar a casa del-rei. .\rran-
cae, se puderdes, egual promessa de quem a ditíama e enxovalha, ^'amos,
D. Gonçalo, dizei em voz alta, deante destes senhores, o que viestes con-
tar de animo leve e espirito venenoso.

D. Gonçalo ficou mudo, aíTrontando o olhar de Luiz.


— Então? saibamos, por junto, o que devíamos saber por partes. O
que ha a respeito de Lorvão? Deve ser uma bella historia para contar a

mulheres, contra um homem em cuja casa estaes ! Não tenhaes medo,


somos muitos e muito unidos para qne eu possa desembaraçar-me c ir

até perguntar-vos se sou eu quein espiona, ou vós que mentis. . .

—O que disse, senhores, foi que faz menos damno a um homem uma
aventura de claustro, que a uma mulher a perseguição d um apaixonado.
D. Luiz da Silveira levou a mão á espada. .

— Disse eu, continuou D. Gonçalo, que os que contam o que ouvem


são menos perigosos, e infamam muito menos, que os que infamam com
o olhar e calam por cobardia. Disse eu que repetir o que se diz d um
homem é mais nobre que obrigar a dizer duma mulher. .

— D. Gonçalo, disse, com voz forte, D. Luiz, levantando a espada,


essas palavras são mais que uma banalidade de que se soccorre a vossa

cobardia, ou visam, de facto, o meu nome e a minha vida?


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Que a vossa consciência vos responda, se, por acaso, ainda tendes
d'isso.
,
— Em guarda ! villão I gritou Luiz da Silveira.
E, rompendo violentam.ente por entre o grupo que o embaraçava, ia a

cahir a fundo sobre o peito de D. Gonçalo, quando viu que elle não
desembainhara a espada. . .

Recuou então. .

El-rei apparecera á porta do salão e dominava a scena com o olhar.


— Em bons tempos e bons costumes nos vamos todos, se os tidalgos
.se fazem brigões, e nem a Alcáçova respeitam ! Já que tivestes o trabalho
de despir a vossa espada deante de gente tão bem trajada, entregae-m"a,

D. Luiz da Silveira; quero mandar fazer-lhe bainha mais garrida e mais


justa. E vós, D. Gonçalo da Silva, ja que a vossa tem tanto pudor, ou
está tão fatigada, que a estas horas já dorme e com tal alarido não des-

perta, dae-m'a também. Quero pôl-as em convivio, durante algum tempo,


para que uma á outra corrijam seus defeitos.
— Senhor, disse D. Luiz, approximando-se d"el-rei e apresentando a
cruz da sua espada, aqui tendes, bem núa, a rainha honrada lamina. Não
treme de frio, porque a aqueceu o meu pulso, nem cora de vergonha,
porque não teve culpa de lhe faltar o desmaiado rubor do sangue adver-
sário. E' ella uma das vossas mais dedicadas e leaes amantes, senhor! Só
vos peço que m'a restituaes em breve, para que possa, como agora, de-
fender-vos de insidias e de aleives... Ainda mais: não lhe deis compa-
nheira que a macule, porque ha outras que são finas como a língua das

viboras, e, como ellas, peçonhentas e traiçoeiras.

E esperou que el-rei lhe acceitasse a espada. . .

D. Manuel fez o movimento para a acceitar; mas, quando, já com a

mão, lhe tocava os copos, como se tivesse sido movido por uma nova idéa:
— Guardae-a, por agora, D. Luiz, se não para defender a honra do
vosso rei, que ninguém, eu sei, ainda ousou atacar, ao menos para que
possaes ensinar o príncipe a esgrimir commigo, quando tiver pulso para a
suster. . .

— Guardo-a, senhor, por direito de cavalleiro e de fidalgo da vossa


corte; e, para vos obedecer, mandarei corrigir a que depuz, por cançada,
no braço de meu pae, que serviu el-rei D. João IL Com essa não duvido
ser mestre d'armas do príncipe D. João, meu senhor, não para elle esgri-

mir contra vós, mas para que possa defender seu pae, conlo eu defendo
o meu rei, de dia e de noite, nos campos da batalha, nos salões das alcá-
çovas, ou nos centros da intriga, que devassa intenções dos homens e

calumnía a honra das mulheres.


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 553

E, pondo de novo a espada na cintura, cortejou el-rei, em despedida.


— Um momento ainda, disse D. Manuel: já que falastes em dcfen-
der-me de intrigas e malevolencias. . . Quando cheguei, notei que defen-
dieis os vossos brios, e não os meus, e julgo que, falando-sc aqui de
mulheres, a vós, e só a vós, e não a mim, iria a allusão. Como é, pois,

que confundis negócios da vossa intimidade com os da minha pessoa e

categoria ?

— Ia retirar-mc, senhor, sem vos explicar, como acceitei por minha a


causa alheia; mas, já que insistis, contar-vos-hei tudo. Poreis, senhor, nas
intenções, o que em verdade faltar á narrativa. Sabeis, decerto, que ha
poucos dias vos acompanhei, a horas mortas, á faça de judeus refeces no
mosteiro de Lorvão. . .

El rei estremeceu, e logo serenou, conchegando o cinto e regulando,


distrahido, as pregas do gibão.
— Vamos, continuae, disse D. Manuel.
— Lembrae-vos, senhor, de que fomos, de surpresa, e em virtude de
denuncias relativas a abusos graves na ordem do mosteiro, penetrar nos
aposentos de Philippa d'Eça, pela escada da torre, Eu
e pela porta secreta.

mesmo quiz que vossa alteza visse de perto quanto os prazeres, com pre-
juízo da devoção, andavam por alli aninhando-se ousadamente. Commigo
entrastes, e commigo sahistes entre brandões que reclamámos, para que
ninguém envenenasse os intuitos da nossa travessia. Sabei, pois, meu se-

nhor, que a vossa superior vigilância e o vosso requintado zelo pelas


cousas do culto, havendo chegado ao conhecimento dos frades da ordem
de S. Domingos, com quem tendes sido severo e justo, deram entrada na
Alcáçova sob a forma duma accusação que eti tinha o dever de repcllir. . .

—E essa accusação ? . . .

— Dizia, que não o respeito por vossa alteza, mas o meu amor por
Philippa d Eça, alli me tinha levado e exposto á vossa censura e desagrado.
— E quem affirmou tal ? . . .

— Perguntaeo, senhor, a D. (lonçalo da Silva. .

— Que dizeis a isto, D. Gonçalo?. . .

— Que, se vossa alteza conlirmar a alVirmação de D. Luiz, do que eu


disse me penitencio . . .

— Está bem, está bem'. .lá vejo que ninguém aqui se entretém com o
uso que faço da minha liberdade e dos meus poderes. E' caso entre vós,
que tereis de liquidar, com as armas que vos pedi. Eicae ambos com ellas.

E, porque D. Gonçalo calumniou D. Luiz da Silveira, ou este o desarme


em lucta franca, com testemunhas de honra, ou aquelle se desculpe de sua
lc\iandade, ou fraqueza. . .
. . .

554 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— D. Luiz de Menezes e D. Christovam Freire, conto comvosco, disse


D. Luiz da Silveira.
—E vós, senhor de Villa Nova, com vosso primogénito — guardareis
as minhas escusas ou a lâmina da minha espada.
— Ide, pois, senhores, e procedei honradamente — e, já que pleiteastes
na Alcáçova negócios de vosso interesse, evitae voltar aos serões da corte
— um porque teria de vir desarmado, outro porque teria desarmado um
fidalgo da minha casa.
— Senhor, disseram os dois fidalgos inclinando a cabeça. .

E sahiram, em sentido opposto.


— António Carneiro, disse el-rei dirigindo-se ao seu secretario, com
quem estivera nessa noite em conferencia e que acabara de entrar, orde-
nae amanhã a deportação de Luiz da Silveira. .

— Insistis no plano, que me parece precipitado?


— Insisto — D. Luiz é audaz e hábil ; fizeram-no chefe de partido, e
pretende ser chefe de fíimilia.

— Reparae, senhor, que tal violência fará alarme na corte, e a male-


dicência. . .

— Emquanto é tempo... Começou por defender a rainha e anda já

defendendo o rei! E' zelo de mais para um aio do príncipe D. João!


—E a razão ?

— Maus conselhos dados ao príncipe... Sinto que se aperta o cerco


que me fazem os adversários. Será esta a minha primeira sortida.
— Daes mantimentos á calumnia. . .

— Antes calumnia hoje, que verdade amanhã.


a a
— Para fora do reino ?

— Para todas as partes onde corte não tenha o habito de a se demorar


uma hora sequer.
— Muito para o norte ?

— Muito para a fronteira . . .

— E sua alteza ?

— A rainha ?

— Sim... Nada receaes?


— Absolutamente nada! Não faço aggravos nem a cila nem a mim.
Defendo-a, que é esse o meu dever, defendendo-me.
— Tem sua alteza peregrinas virtudes de coração, que a elevam acima
das mais cruéis suspeitas. E é por isso que julgava mais prudente que não
alarmásseis, senhor, com rigorosas providencias, a intriga da corte.
— Não o faço sem pretexto. .

— Este fraco. é
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 555

— Um conflicto na Alcáçova !

— Por vossa causa, senhor. .

— Embora. Não ousou D. (lonçalo dizer que a mim se referira.


— Mas ouviu muita gente.
— Que
o não ter;i acreditado.
— Enganaesvos, senhor; — na cidade o que se começou segredando
já se refere em voz alta ! . .

— Diz-se então ?. . .

—O que os agentes de Roma entendem por melhor espalhar. — Por


exemplo — que perseguis por ciúmes a filha da abbadessa, que pretendeis
transferil-a para Odivellas por ser mais próximo, que a entrega de Jacob
a Castella foi mais obra de rival irritado que deferência pelo governo das
Hespanhas.
— Tudo assim será, António (^arneiro; mas o que é certo é que preciso
de afastar Euiz da Sih'eira.
— Não rcceaes que o escândalo chegue aos ouvidos de sua alteza ?

— Ninguém ousará tal . . .

—E Philippa d'P3ça?
— Ficará perdida.
— Com o Papa do seu lado ?

— Ainda assim.
— Expulso — aos olhos da rainha, minha senhora. Luiz da Silveira
deixará mais em saudades que levará em amor. O martyrio delle e a vossa
infidelidade são demasiados estímulos num coração de mulher. Prudência,
meu senhor. A compaixão é uma doença que ataca os grandes corações.
No vosso caso, antes de afastar Luiz da Silveira da corte, afastal-o-hia da
rainha.
— como?
li

— Afastando o príncipe de sua mãe. Ser adorador é mais perigoso que


ser mentor.
— Bem sabeis que D. .Maria não é o mesmo que D. Izabel. Já não
tenho no contrato nupcial servidão da vontade e da consciência. Não serei
jamais arrastado ás violências que pratiquei. E.xpulsei judeus, forcei após-
tatas, roubei creanças á tutela paterna, fomentei emfim as grandes matan-
ças, que apenas pude punir. .\ licção foi proveitosa. Vamos a isto, António
Carneiro — é preciso afastar Luiz da Silveira. E' novo, é intelligente, é
íidalgo pelo sangue e pela educação. Junto da rainha affeiçoar-se-lhe ha e
será seu instrumento nas intrigas da Alcáçova; junto do príncipe será um
perigoso conselheiro. Os frades invejam-lhe já o valimento e, por isso,
buscam compromettelo. Aproveitemos o ensejo — impellido por dois lados.
.

55G MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

partirá sem protestos. Vamos, ámanhià quero tudo acabado. Substituil-o-hei


junto da rainha. Onde está o marido affectucso não se sente a falta do ga-
lanteador occasional. E' a grande superioridade do senhor sobre a mulher
honesta.
— Tomaes, pois, a vosso cargo communicar a sua alteza essa resolução ?

— Esta noite mesmo... Retomo o meu logar, vereis como saberei e

manter a posição conquistada.


O salão estava quasi deserto. Toda a corte tinha passado deante d"el-rei,

durante este dialogo.


— Que sangue-frio em sua alteza! commentavam uns.
— Nota-se-lhe na physionomia a raiva contrahida, segredava uma dama.
— Feliz Pobre marido!
rei! outra acotovellando o seu parceiro.
dizia
— Como são as coisas d'este mundo! notava D. Margarida, depois de
cortejar el-rei. Luiz da Silveira quiz defender el-rei, e perdeu-se. D. Gon-
çalo quiz maldizei o, e salvou-se!
—E aqui está como a Philippa d"Eça recebeu el-rei na sua cella e poz
fora Luiz da Silveira da cella da rainha, remordeu D. Violante.
— Pois certo que
é elle estava lá? perguntou D. Luiz de Menezes.
— Adejava, adejava!. . . respondeu maliciosamente a Cardosa, tufando
a saia e lançando o collo com a elegância do cysne.
""
E fez-se o silencio em tjdo o salão.
António Carneiro também se retirou . . Ficou apenas el-rei, de bra-
ços cruzados e cabeça pendida, a pensar. . . a pensar. .

Seria o ciúme que o fez ser tão inflexível com o seu amável cortezão?
Quem sabe? Talvez. O orgulho toma, ás vezes, o logar do amor, e faz o
papel deste com toda a correcção. Elle amava a rainha? Impossível!

Acceitara-a, signa! de que a rainha lhe não repugnava Amava-a como


. . .

a uma mulher que se cubica, mas esquecia-a, como uma mulher que já
a

possuíra. Também amara D. Izabel, e essa era mais mulher, que é como
quem diz mais homem. Uma morrera cedo, e apesar disso quasi não lhe
deixara saudades!
F^òra mais seu ministro que sua esposa. Cahira, como, nos tempos
modernos, pode cahir um governo.
Casara novamente, e não estava arrependido; tanto que, se fosse ne-
cessário, casaria outra vez.
Ciúmes não tinha, que a piedade da princeza hespanhola não lhe dei-

xava tempo para pensar nos galanteios dos cortezaos. . . Por muito novos
e gentis que fossem, nenhum d'elles era rei Ser rei dá privilégios em
toda a parte, até no coração das mulheres.
Elle tinha esse privilegio.
MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 55;

Quem quizessc attcntar contra esses privilégios seria rco de lesa-raa-


jestade.

Se a rainha amava Luiz da Silveira, que o amasse á sua vontade. O


que era necessário era que fòssc sempre del-rei, exclusivamente del-reil
O seu leito real era como o seu coche de gala I

Ciúmes, verdadeiramente ciúmes, sentia sua alteza por outras mulheres


— peias que podiam ser d'elle e dos outros. . . A rainha era mais alguma
coisa que uma mulher — era uma alfaia da sua realeza.
Kra como a coroa que elle cingia nas grandes solennidades. . . Quem
ousaria pôr na cabeça esse emblema do poder?
Que Silveira estivesse apaixonado pela rainha também o não irritava...

Pelo contrário. O amor é muitas vezes apenas inveja —e a inveja é a


grande pedra de toque das preciosidades que possuímos.
Quantas vezes tinha ouvido phrases de admiração pelas pedrarias do
seu cinto? Se lh'o roubassem mataria o ladrão. Um rei não tem o amor
com o mesmo feitio do amor da plebe. K mais que amor por uma mu-
lher, c amor-proprio.
Tinha armas riquíssimas na sua panopiía. Kra só el-rei que as cingia
e esgrimia com ellas, mas toda a gente, ao passar na armaria, as admirava
e desejava! . . .

O que podia ter succedido? Confrontar a rainha a frieza d"el-rei como


quente enthusiasmo do seu moço fidalgo?. . .

Isso devia entretel-a apenas ! Também, quando foi negociado aquelle


enlace, lhe tinham dicto que a princeza acceitava, ao tempo, a corte d um
fidalgo hespanhol!. . . Signal certo de que não escolhera mulher sem bel-

leza e sem coração. Tudo se esquece neste mundo, e o casamento é uma


grande liquidação de paixões transitórias. O indispensável era, de tempos
a tempos, refrescar o coração da mulher, como se faz ao fato por causa
da traça. Algumas horas de assiduidade e galanteio junto da rainha, e o
afastamento immediato do impetuoso Adónis era o bastante. . .

E el-rei, seguindo o fio destas considerações, encaminhou-se para os


aposentos de sua esposa.
A rainha, que ainda se não recolhera, rezava junto do pequeno altar

erguido a um canto da sua vasta alcova.


D. Manuel fez-se annunciar, e, logo que teve permissão, entrou, indo
afagar a rainha, que vciu ao seu encontro.
— Vós?! disse ella, mostrando admiração. Ha quanto tempo vos não
dignaes, senhor, vir junto de mim, a contar-me vossas alegrias e tristezas,
e ainda o que mais pode interessar-vos sobre os negócios do Estado?
— \'enho su falar de alegrias, que me anda fatigado o espirito de
MYSTLRIOS DA INQUISIÇÃO. — VOl.. I. FOL. 70
. . .

558 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

cuidar em demandas, que me afastam dos encantos da. minha virtuosa


companheira.
— Tencionaes passar aqui a noite, ou vindes apenas saudar-me, como
tendes feito n'estes ultimes tempos ?

— Andaes sempre tão triste e devota que, para vos não contrariar, vos
tenho deixado vagar e tempo para as vossas devoções espirituaes e para
os cuidados constantes que vos merece o nosso querido principe.
— Porque sou mãe carinhosa junto de meu filho, não deixaes de ser
o meu senhor. .

— Molestam-me as saudades que resultam das nossas longas separa-


ções, e tenho pensado, senhora minha, que precisaes de dividir o vosso
tempo, por forma, que me caibam, entre os momentos que consagraes a
Deus, ao vosso confessor, a nosso filho e á vossa intimidade, alguns, por
mui breves que sejam, que me suavisem este terrível officio de governar
o reino.
— Aguardo-vos]sempre, mais alegre emquanto vos espero, e mais triste

quando só vos aguardo. .

— E' certo, porém, que a minha presença já vos não faz sorrir, como
outr'ora, e receio que tenhaes motivo de queixa do meu proceder des-
attento.
—A minha tarefa, creio eu, tem sido bem cumprida. Se, nobre como
sois, andaes desattento para os cuidados do coração, é que, outros, sem
dúvida, que mais interessam um rei, vos chamam e conservam longe de
mim . .

— Não tanto, não tanto! A confiança que me inspiram as vossas ele.

vadas e provadas virtudes me animam a esperar que não perco com as


minhas ausências forçadas. Vou, porém, reparar os passados erros e me-
recer de novo acolhimento e perdão.
— Senhor, por que vos desculpaes ?

— Agora, demais me parece azado o momento, pois que, por interesse


do Estado, ides ficar privada da assistência leal e alTectuosa de um dos nos-
sos melhores servidores.
— A quem vos senhor referis, ?

— Pouco importa, porque


isso sendo eu quem o substitua, o desgosto,
que vos deixar quem se afasta, será assaz compensado pelo prazer que vos
dou, substituindo-o.
— E assim é. Oxalá que sempre assim tivésseis em tão alta conta o
meu amor e lealdade.? Dizei-me, apesar d'isso, quem é o ingrato que se
cançou do meu habitual acolhimento. ..
— Sentemo-nos, em primeiro logar. E agora desejo ouvir o vosso . .
! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 55j

valioso parecer sobre a justiça que acabo de appiicar a D. Luiz da Sil-


veira. . .

— Justiça que applicastes ? Premio, não é assim ?

— Não, castigo. . .

— Castigo? a D. Luiz da Silveira? Que vos fez elle ?

— Coisa bem extraordinária Defendeu-me. ! . .

— por
¥. o castigastes
isso ?

— Que elle seja brigão, por vossa causa, senhora, comprehendo. Não
pode uma dama desaffrontar-se de apreciações menos gentis, nem soffrer

allusões á preferencia dos seus servidores. Por vós está bem, visto como
sois vós que o expondes aos epigrammas da corte ; mas, por mim, que
lhe não dou valimento ?

— Intrigaram-no sem dúvida, meu senhor. Justiça para elle só de lou-

vor e premio, que é fidalgo de Se vos disseram que elle delinquiu, lei. . .

mcntiram-vos, que não podereis encontrar na Alcáçova gentii-homem mais


cumpridor... Caracter de melhor têmpera, coração mais piedoso, man-
cebo mais sabedor e lettrado, cavalleiro mais valente, não tendes, senhor,
ao vosso serviço! Nada sei do que se passou, nada sei; mas, por aqucUa
imagem que tenho adorado, aftirmo que, se elle se revoltou, foi contra a

iniquidade; se elle feriu, foi para castigar a villania; se elle roubou, foi

alguma alma ao peccado. Mentiram-vos, com certeza, que a sua probidade


é infallivel, a sua razão esclarecida, a sua moral religiosa, o seu coração
generoso! Soldado fiaria d'elle a minha espada, rei pedir-lhe-hia conselho,
marido confiar-lhe-hia a esposa. Mandae-o ao Oriente e elle será alli o me-
lhor cabo de guerra e o mais honrado governador; confiae-lhe o erário e
elle não accrescentará os próprios reditos ; fiae delle a vossa honra e elle a

defenderá com a própria vida ! Fizcram-lhe cerco os intrigantes, e vós,


senhor, puzestes-vos ao serviço d'essa raça! Respiram os confessos nas
arcarias da Alcáçova e são affrontados os crentes e os bons! Não conhe-
ceis, senhor, D. Luiz da Silveira ; é altivo como um príncipe, doce como
uma creança, forte como um justo, crente como um martyr E castigas- !

tel o, vós, que lhe deveis, como rei e como homem, a educação do prín-

cipe e o respeito da rainhii ! Não foi a elle que castigastes, não; foi a vosso
filho, aos nossos mais fortes alliados, a mim, emfim, a mim, que vos
trouxe a coroa de Castella, e a tiara de Roma, isto é, a salvação do vosso
reino e da vossa alma I

— Tá, tá, tá ! . . . E, sem


que nobre excitação vos aquece a palavra I

rebuço, falaes com como se, á força de exercícios


tanto fogo e paixão,
espirituaes, tivésseis trocado Deus, feito homem, pelo homem, feito Deus!
Tinha prescntido escuros vendavaes na vossa alma piedosa, mas nunca
S6o MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

imaginei que tão longe fòra a influencia do cortezão. . . Senhora, acabe-


mos com isto; que pretendeis que eu creia, vendo-vos tão afflicta por uma
imaginária injustiça?
— Pois não me permittis que apresente minhas querellas contra a vio-
lência que praticastes, premeditada contra um homem que puzestes a meu
lado, para me servir e defender, servindo e defendendo a vós também!
Digo-vos, de cabeça erguida, affrontando o vosso olhar, que elle não atrai-

çoou aj,sua missão, e vós aggravaes a injuria contra elle com a vergonha
contra nós ambos! Que nova moral vem agora aos palácios reaes? A mo-
ral do coração, a vulgar, a que acceita a peonagera na sua modesta e amo-
ravel existência? ou a moral principesca, que inclue allianças de sexos nas
allianças politicas? Que mulher julgaes vós que eu sou? Capaz de não
manter minhas promessas, de falsear meus tratados, de ennegrecer a vossa
coroa, que brilha entre as de Fernando -e de Philippe? Que pedistes, se-
nhor? A minha mão? A mim? Para que? se eu não podia negal-a! Pe-
diste-a a quem podia dar-vol-a, e acceitastel-a, sem reparar, talvez, que
estava fria, n'esse momento solenne, porque me affluira ao coração e ao
rosto todo o sangue que poderia aquecel-a!. . .E que fiz eu? Passada a
primeira surpresa — mulher, joven, saudosa da minha terra, longe dos
meus primeiros affectos, fiz mais que entregar-me — amei-vos. Tendes a
certeza d'isso, senhor... A minha mão aqueceu entre as vossas, e a vossa
imagem, que me habituei a fitar, encheu-me os olhos e veiu fixar-se no meu
coração. . . Mas um rei é um rei —e a rainha uma mulher que elle apre-
senta ao povo e á corte num dos tamboretes do seu throno. ^'ivemos
separados — diversos aposentos, diversa servidão, corte bem distincta, in-

teresses inconfundíveis, o que entre o povo e a villanagem é um sacra-

mento, entre nós tem sido apenas um alvará firmado pela politica penin-
sular. Oífereci a Deus o meu coração, e elle acceitou-o. Se Deus o abriu
deve ter encontrado lá dentro a vossa imagem e a de meu filho. Sou de-
positaria do vosso nome e das vossas glorias — guardo-os com todo o
cuidado e zelo... Que mais quereis? Que me deixe aviltar com os vos-
sos resentimentos, que n'outras condições se chamariam ciúmes? Julgaes
que tenho corrido perigos? Por que me não tendes defendido delles? Jul-

gaes possível que ainda me alvoreçam no peito affectos, ou chimeras, que


n;'o tendes querido illuminar com os raios do vosso olhar disperso pelas
beldades dos salões e pelas riquezas dos mundos, que tendes descoberto
e andaes conquistando ? Por que me não cingis constantemente como fa-

zeis a espada, que nunca vos esquece e que sempre ostentaes? Quantos
filhos quizerdes para gloria da casa de Aviz e para aftirmação da raça
procreadora de Castella, eu vos darei, senhor. Espero-vos aqui, no meu
. .

MYSTl£íilOS DA INQUISIÇÃO i6t

elevado mester de mãe de príncipes, com a mesma dedicação com que


vos acompanham arautos c passavantes e com que vos annunciam os mais
vistosos charamcleiros. . .

— Acabastes, senhora?
— Que fizestes de D. Luiz da Silveira?
— Coisa simples, repito mandei que se I retirasse da corte... Não o
tiz por injuriar-vos: fil-o por vos servir. . .

—E o pregão da aventura não falará da minha ternura fraternal, mas


da vossa desconfiança imprudente. .

— Uma ruidosa pendência entre fidalgos c escândalo que se não perdoa.


Elle voltará mais tarde, e o vosso carinho de irmã estará então ao abrigo
de murmúrios e suspeições. Vamos, rainha de Portugal, esquecereis os

meus esquecimentos, e dae-me um beijo, que nos recorde os nos.sos pri-


meiros sonhos de amor c de paz.
A rainha olTereceu a face a el-rei, e tendo recebido o beijo, que não
pedira, ergueu-se c foi-se ajoelhar deante do seu pequenino altar.

El-rei, como se esperasse o íinal da oração, passeou agitadamente.


Passando junto da larga gelosia que dava para o jardina da .\lcáçova,

viu que ia alta e limpida a lua, que o espreitava. Abriu a adufa, e olhou o
arvoredo, que trepava lu.Kuriante e aromático...
Em baixo, n'uma pequena clareira, um grupo de homens movia-se
quasi mudo.
Ouvia-se apenas o tinir de espadas.
O luar, por momentos, esclareceu o vulto dos adversários.
— Senhora, disse el-rei. quereis ver como Luiz da Silveira procura averbar
a minha ordem de deportação com um salvo-conducto para a eternidade ?

— Que dizeis, senhor?


E a rainha correu precipitadamente, e, segurando o braço del-rei, de-
bruçou-se também, atfirmando-se anciosamente.
— Aquelles homens batem-se?
— Sem duvida, que mal escolhida a hora para licções de esgrima.
c

— E são ? . .

— Reparae bem. Um D. Gonçalo da Silva, e o outro D. Luiz da


c Sil-

veira. Deveis distinguil-os bem... Gonçalo mestre, Luiz ardente — c c

aquelle espera, este acommette. . .

— Senhor, disse a rainha muito nervosa e agitada, ordenae que sus-


pendam... Senhor, pela vida do príncipe, nosso lilho, gritae, que estão
cm perigo as vidas de dois homens. . .

— Não, isso não; a noite está serena, e o céo azul e estrellado. Da


vossa gelosia, neste balcão capaz de inspirar poetas e de e.\altar amantes,
. . . . . .

562 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

poderemos gosar tão garbosa lucta entre fidalgos bem armados.. . Vede
senhora, como rimam com tanto geito as voltas afiadas daquelles menes-
tréis. . . Senhora, repito o meu pedido: dae-me o vosso beijo, que o mo-
mento e a scena tomam mais desejado.
— Sim, meu senhor, eu vos beijo com todo o amor; mas, por Deus, se
não gritaes, fal-o-hei eu, que se me aperta o coração. . .

E el-rei, cingindo a rainha pela cintura, sentava-se no peitoril, á som-


bra do docel que cobria o balcão. Ficava-lhes o vulto encoberto pelos cactos
que trepavam.
— Eu vou por D. Gonçalo — tem bom pulso e sabe do officio. . . Olhae,
como se defendeu I E agora avança. .

— Jesus!
— Deixae-me beijar-vos a trança, senhora da minha vidai Lá cahiu a
fundo. . . Ah! patife, que fugiste a tempo. . .

— Senhor, eu chamo gente. .

— Nem uma palavra só nem um gemido ! I Tendes a minha imagem no


coração? Pois olhae para ella, e não vos importem as imagens que se
apagam ...
Entretanto, os dois adversários descançavam do primeiro assalto.
O peito da rainha arfava ruidosamente. El-rei sorria, passando a mão
pela sua longa cabelleira.
O luar continuava livre das poucas nuvens brancas, que lhe passavam
longe.
A rainha, afflicta, descançou a cabeça no hombro d'el-rei e quiz fechar

os olhos.
O ruido das espadas obrigou-a a attentar de novo. .

— Recom.eçam, disse ella.


—lE' a desforra que chega. . .

— Triumphará D. Luiz ?

— Não o creio.
— Tem menos braço ?

— Não; tem mais sangue.


— Então D. Gonçalo?
,
— Esco!hi-o, eu bem e sei quem escolho. Para governar a hidia, ou
para castigar um adversário, escolho sempre gente fria e cauta.
— Quanta d'essa tendes esquecida
-
I . .

—Quando o mérito os faz vaidosos... E' o defeito de Luiz da Sil-


veira. Andava muito depressa. .

—Vede, senhor, que se tocam ao mesmo tempo. Podem morrer am-


bos ! . .
! ! . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Não seria peor. Mas não tciihaes cuidado, são ambos destros no

jogo, devem estar algum tempo empatados ! . . .

—E consentis, senhoj, tal desacato, a vossos olhos, nos jardins da


Alcáçova, entre fidalgos da vossa corte I

— Dei-lhes poderes para desatYronta. sou testemunha, por acaso.


a . . e
— E param ao primeiro sangue ?

— Isso com é Que bello aroma exhala o arvoredo! Parece que


elles.

estas noites foram feitas para amar. . .

— Sois cruel, senhor! Que ganhaes na minha estima mostrando tanta


dureza de coração ! De que vos serve a perda d' um vassallo que vos res-
peita?. . . Ai! disse a rainha, tapando os olhos. .

— Não foi nada. Foi a lamina de Silveira que se amolgou no fio. Sal-

vou-se de boal Vede agora! D. Gonçalo prepara um golpe á cabeça.. .

Conheço-lhe o jogo... Vistes aquelle circulo que lhe fez a espada mais
luminosa? aquillo é um trabalho de fascinação!... A velha raposa até o
luar aproveita. . . Ora, ainda bem ! . . .

— Ferido?
— Não, pelo contrário; foi Silveira quem acommctteu e alcançou o
braço de D. Gonçalo. Até que emfim !

— Que interesse tendes nisso ?

— E' que D. Gonçalo, emquanto não fosse tocado, deixaria seguir o


episodio até que o luar fugisse. Assim, tocado de raspão, ha de impacien-
tar-se e vae, pelo menos, desarmar o adversário.
— Deixae-me ao menos sahir daqui, senhor. Quero rezar por ambos...
— Já não tendes tempo. Carregam com força. .

O ruido das espadas tornou-se mais frequente, e o silencio dos adver-


sários quebrou-se com vozes de provocação c pragas de insuccesso.
— Agora, agora! disse el-rei. Deus lembrou-se de vos, senhora. Se fôs-

seis de Luiz da Silveira, n"um momento estaríeis viuva.

No mais acceso da lucta a rainha deixou escapar um grito, angustioso,

terrível,- que echoou sobre o arvoredo...


Os dois adversários abateram as espadas. .

— Chiton, segredou el-rei, terei que vos tapar a bòcca com os meus
lábios, se por tal forma vos interessaes pela lucta. A vingança dos reis
parece-se com a vingança dos deuses
Tendo ouvido aquelle grito, D. Luiz ficou perplexo. . .

— Mudemos de logár, disse Christovam F>eire.


— Não, disse Silveira, el-rei assim o ordenou. O que ouvimos foi

apenas um écho da nossa imaginação. Talvez algum protesto da lua...


Vamos, D. Gonçalo, em guarda
! . : . .

504 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Acabemos com isto, disse o outro, e, levantando a espada, gritou: ^

— Por el-rei

Luiz da Silveira perfilou-se, na mais correcta continência, e levantando


a sua espada, como que apontando o balcão, gritou mais forte
— Pela rainha!
E cahiram um sobre o outro em golpes mais crebos que artísticos . .

A mão del-rei apertou convulsivamente a da rainha.


O orgulho, com a máscara do ciúme, agitava-lhe os músculos. .

E, no meio do maior silencio, cortado, apenas, pelo choque das lâmi-


nas, pelas respirações offegantes, e pelo bater dos pés na terra do jardim,
sentiuse baquear um corpo. .

— Senhora, disse el-rei, tentando erguer a cabeça que sua mulher dei-
xara cahir sobre o peito, recomecemos a nossa noite de núpcias I Amo-vos,
Maria, minha adorada esposa ! . . .

A rainha não respondeu.


Então el-rei, voltando-lhe um pouco o busto descabido, expoz-Ihe o
rosto a luz branca do luar. . .

Tinha as faces pallidas como marfim, os olhos cerrados, os lábios des-


cabidos. . .

Ergueu-se el-rei, serenamente, do peitoril, levantou a pobre senhora,


com o esforço mal geitoso com que se levanta um cadáver, e foi depòl-a
sobre o leito.

Depois cerrou a gelosia, e, voltando para junto de sua mulher, pousou


lhe a mão na testa e applicou-lhe o ouvido ao coração.
— E' um simples desmaio! Isto passa... Quando despertar, julgará
ter sonhado. . . A vida das mulheres é uma vida de sonhos. . . Os aman-
tes vivem de noite, como as estreitas, e apagam-se á luz da madrugada...
Os maridos são o sol d'esta hora bemdita!
E, depondo um beijo na face livida da rainha, reclinou-se ao lado delia,
bocejando:
— Vão-se apagando as estrellas que a esfriaram — eu sou o sol que
ha de reanimal-a. . .

Deu horas pausadamente o sino da Alcáçova. . .

E D. Manuel adormeceu.

3<x^'-^í>c::
Sentiu-se baquoor um corpo
.

XXXVII

A despedida

No dia seguinte, bem cedo, sahiu el-rei a passeio com a sua habitual
cavalgada. Foi pelo caminho do valle da Ameixoeira, até os campos de
Odivellas.
Entre a gente do seu cortejo falava-se em voz baixa da aventura da
véspera.
D. Luiz de .Menezes era dos mais interrogados, porque assistira ao
combate.
— Coisa de pouca monta o resultado, mas a lucta encarniçada e hábil.
Sãojdignos um do outro em coragem e destreza I

— E' grave o estado de D. Luiz:


— Não — o golpe que o derrubou devia ter-lhe produzido grande abalo;
mas não lhe poz a vida em risco. Fraco, sim, e por alguns dias, que foi

grande a perda de sangue e maior ainda a" commoção moral.


— Gonçalo não lhe visou' o peito?
— Para que se ? estava ferido no coração
elle já ? . .

— El-rei em deportal-o?
insiste

— Com certeza. Apenas consentiu que se demorasse na Alcáçova até


que esteja restabelecido.
— E' crueldade de mais!
— Por que dizeis isso?
— Cural-o, para o de novo!
ferir

— Depois do que se passou, para elle é melhor ausentar-se. que ticar.

E' provável que parta para a índia, aproveitando a companhia de Pedro


Soares, por quem Gil Vicente tanto se interessa.
—K a rainha? perguntou outro cavalleiro, falando mais contidencial-
mente?
—A rainha, se soiVre por amor, consola-se rezando. Teima em querer
MYSTKRIOS DA INQUISIÇÃO. — VOI . I. FOI .71.
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

ir passar o outomno em Évora, ou em Coimbra. . . Deixai a, emquanto


por lá andar, estamos livres da influencia dos frades e das reclamações e
queixumes dos marranos.
E o cortejo seguiu até Odivellas, levantando grandes nuvens de poeira
e chamando á estrada e aos muros dos casaes, os aldeãos que, ajoelhados,
como se assistissem á passagem do Viatico, gritavam:
—Viva el rei! Viva el-rei!

Não se divertia tanto a rainha, mas aproveitava os divertimentos de


D. Manuel.
Ia a cavalgada ainda bem perto da Alcáçova e já ella recebia nos seus
aposentos um enviado de Luiz da Silveira.
— Como está elle? perguntou a rainha vivamente.
— Demais queixoso, mas sem perigo, ao parecer do physico.
—-Não pode erguer-se ?

— Com grande pena e vagar, e tem recomraendação de não sahir dos


seus aposentos.
— Está bem; dize a D. Luiz que a rainha, que sente as dores que a
elle tanto affligem, irá velo em breve.
— Vós, senhora ? Bem sabeis que D. Luiz está installado na ala esquerda
da Alcáçova, junto ao terraço que communica com a matta. . .

— Não importa. .

— E ides sósinha ?

— Não — vou coinmigo ! . . .

— Senhora, está bem. . . eu vou dizer.


— Dize-lhe mais, que lhe mandarei o meu confessor para lhe dar
conselho e resignação. . .

— Mais

nada?
— Espera. Leva-lhe também esta medalha — é um amoleto que o Papa
me enviou ha dois dias. — Cura feridas profundas. .

— Nada mais, senhora?


— E as feridas da calumnia. . .

E, mal ficou só, a rainha preparouse para cumprir a sua promessa.


Quando sahia nesse propósito, foi-lhe annunciado o ferido.
Luiz da Silveira appareceu, nos braços de dois servos.
— Senhor! disse ella. Que temeridade! Violar assim as prescripções
de quem vos vigia e aconselha ! . . .

— Morria, com certeza, se vos não visse, senhora minha. Olhando o


céo, sobe-se melhor para elle , . .
.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 56-/

— Sêntem-no aqui. disse a rainha, indicando iim fofo coxim, abundante


de pelles e almofadões.
Os pagens cumpriram a ordem, e retiraram-se.

A rainha D. Maria conservou-sc de pé, a pequena distancia, fitando o


doente, cujo rosto estava mais pailido que entristecido.
No vasto saião havia apenas a meia luz que resultava do sol, que
atacava a larga gelosia em arcada, coando-se pelos cortinados vendes dum
grande reposteiro.
Aos pés do luxuoso catre exiendiam se as pelles irisadas de dois tigres
da melhor raça.
Luiz da Silveira, apoiando-se n'uma das almofadas, accommodara-se,
quasi de joelhos,, e lançando os braços sobre o espaldar da cabeceira,
fincava um dos pés sobre as fauces abertas d'uma d'essas feras.
A uma súpplica muda do seu olhar esmorecido, a rainha approximou-se
e extendeu-lhe a mão, que elle beijou.

— Estaes ardendo em febre, senhor. . .

l.uiz, excepcionalmente, não lhe largou a mão, que beijou de novo.


Esta adoração poderia parecer, pelo menos, impertinente, e, por isso,

Luiz se apressou a fazel-a religiosa. . .

Segurando sem.pre a mão branca da gentil princeza, ergueu para ella

os olhos tão cheios de dor e beatitude, que mais parecia, o moço fidalgo,

um crente, aos pés d'uma madona, que um homem apaixonado contem-


plando uma mulher.
— Sois uma santa, senhora minha, mais santa que as dos vossos alta-
res ! Tendes d'ellas a melhor esculptura e, j mais que ellas, a divina uncçáo
do vosso olhar... Fazeisme esquecer de que sois a minha rainha!...
A pobre creatura, ouvindo taes lisonjas. como se receasse uma con-
fissão imprudente, tentou afastar-se.
Debruçou-se Luiz um pouco no seu improvisado peitoril, e. pren-
dendo-a com mais vigor, continuou :

— hazeisme esquecer que sois a minha rainha, porque me inspiraes


mais respeito que nunca I Appareceis-mc a mais cariciosa e sagrada ima-
gem da rainha do Céo !

— D. Luiz da Silveira, suspirou ella, sem o olhar — sabeis quanto prezo


o vosso aiíecto. . . e, se tão santa me julgaes, ajudae-me a merecer a graça
de Deus. .

— Minha irmã, minha adorada irmã! ou morro d esia aventura, ou re-


nasço com o vosso alento: mas quer desfalleça, quer me reanime, apro-
veito este momento, para me despedir de vós. senhora, pedindo-vos uma
saudade e um perdão. Vou fugir da Alcáçova, e ainda não sei para onde:
. :

5Õ8 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

mas sei, que nunca mais vos acompanharei, ouvindo os vossos suspiros,
calmando os vossos queixumes. Ficam a rodear-vos a fímbria do manto, . .

a banharem-se no vosso olhar doce e luminoso, as cabeças do pequenino


príncipe, e as dos formosos infantes! D. João, D. Izabel e D. Luiz, com
as suas azas brancas, formarão a nuvem mystica, celeste, que vos serve
de throno, como se fôsseis a Virgem, que eu adoro fios meus sonhos de
amor e no delírio da minha fé . . .

— Adoraes, em mim, os encantos da minha virtude ?

— Sim, é isso que adoro ! Por vos conservar pura e santa aos olhos

do vosso povo, da vossa corte, e da própria consciência, mais faria que


adorar-vos e defender-vos ; de vós fugiria nas azas do desespero para o
exilio, ou para a eternidade Adoro-vos ! com a vossa tríplice coroa de rainha-
de esposa e de mãe, as três auréolas que vos fazem superior ás outras
mulheres... E, para vos merecer um olhar piedoso, quero cingir apenas
a coroa do martyrio . .

— Luiz, por que não falamos da vossa fenda e do vosso futuro ? Sa-
beis que me estaes maguando. . . Por acaso posso eu responder ás vossas

palavras, ou confessar-vos os segredos do meu coração ? Onde estaria a

virtude que exaltaes, se uma paixão mundana, das que nos afastam do
dever, e nos afastam de Deus, me confundisse com as mulheres vencidas
pela lisonja, ou desorientadas pela imaginação? Chamastes-me vossa irmã...
Fizestes bem. Sinto que vos amo, sem oflender o Céo. Tenho no cora- .

ção o vosso nome e elle não apaga nenhuma das inscripções sagradas que
o tempo aqui gravou. . . Ajudae-me, meu pobre Luiz, a completar a minha
obra de regeneração me chamastes irmã, ja vos
e santidade. Depois que
olho sem corar nem tremer. N'este momento nem o olhar de meus filhos
. .

fariam palpitar com mais força o meu coração.


— E o olhar d^el-rei ?

— Também. disse a rainha, depois de ter hesitado um momento...


. .

E depois, como se tivesse arrependido de haver faltado á verdade


— Ouvi-me, Luiz — preciso do vosso auxilio — soccorreime, por quem.
sois. Ha na minha consciência o que quer que seja, que não sei explicar,

mas que me perturba e entristece. . . Tenho remorsos, e não sei de que...


Estou doente, mas não sei de que mal. . . doe-me o peito, muito cá den-
tro, no coração... E' uma dôr que tanto gosto de sotfrer, que. se por
um momento não a sinto, logo a provoco, com receio de que não volte...
Tenho uma tristeza tão suave, que não sei chamar-lhe negra.' Parece feita

de sombras d'uma madrugada, que se desata em auroras e sol ardente!


sombras talvez dum crepúsculo, quando o céo tem mais encantos e ma-
tiz ! Nunca me senti assim! Nunca! E soffro tanto! Se me confesso d'este
! : . .

MYSTEFUOS DA INQUISIÇÃO 5Ó9

mal, dizme a Religião que anceio pela conquista do olhar de Deus. . . Re-
ceio até tornar-me impia, porque me engano quando rezo, e ha tempo já

que não sonho com os anjos. Nunca experimentei taes achaques, e não sei
a razão por que os ganhei. Preciso de uma alma boa, generosa, irmã,
.

que me comprehenda. . . Luiz da Silveira, pensei na vossa. .

— Ganhaste-a, senhora, ou melhor — roubaste-m'a com a vossa ternura


e sinceridade. Mas, senhora, não pode ella servir-vos para a cura de tan-
tos males
— Por que, Luiz
— A minha sotVre do mesmo damno, e só pode curar-se fugindo de
vós. Dois doentes tão juntos não se curam — morrem.
— Talvez tenhaes razão. . .

— Ides ver. Attentae bem e comparae meus queixumes com os que


soltaes, sondando o vosso peito. Entrei aqui tão fraco, tão dorido — tão de-
bilitado o corpo, tão preguiçoso o coração: Andava-me o pensamento por
ab}smos sombrios, e enchiam-me os olhos as imagens da desesperança e

da morte. . . E, porque vos encontrei e vi, e porque me acolheu o vosso


sorriso, brando e amigo, fugiram as dores e os desalentos, illuminou-se-me
o pensamento e esvoaçou a imaginação; converteram-se os cemitérios em
jardins, e a esperança veiu falar-me de venturas na terra ou no Céo. Tam-
bém sorrir, também eu banho de lagrimas a minha alegria!...
eu choro a
Vivo n'ummundo todo meu, tão intimo que não vejo quem me cerca, não
ouço quem me fala, não quero quem me procura! Amo a solidão como
nunca amei, e esta mocidade, que seria o paraíso dos velhos e das crean-
ças, não me prende á vida, como se o que amo e quero fosse uma vida
ideal, phantastica — resumida num só olhar, numa só imagem, num so
amor! Também eu tenho remorsos, minha sagrada rainha, remorsos de
ser ingrato para a felicidade que me dão, como se apena» cubicasse a fe-

licidade alheia. So vos comprchendeis este estado, porque só vos pade-


ceis d'elle. A ninguém amo, mas por vós amaria toda a gente. Pensando
em morrer, só de vós desejava despedir-me! Se viver, só por vossa causa
acceitarei esse gòso. Vedes, senhora, que solTremos do mesmo mal ? ! Deu-
nos a Providencia um atíecto, que pretendemos subjugar, dirigir, ou es-

quecer! Dissestes que tinheis necessidade de um coração amigo, leal,

franco, que vos comprchendesse . . . E' que vos atHige um segredo, não c
assim? Somos tão virtuosos, e afinal desconfiamos sempre dos sentimen-
tos que nos dominam. Minha boa irmã, quereis abrir o vosso coração para
que eu leia nelle o vendaval que o agita?
—E morrerá comnosco o segredo que n'elle encontrardes?. .

— Morrerá com o mvsterio da minha vida. . .


:

Syo MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Juraes pelo vosso nome?


— Juro-o, por Deus!
— Dae-me a vossa mão, Luiz; confessemo-nos, meu irmão.
E a rainha foi sentar-se ao lado de Luiz da Silveira, para conversar
sobre os segredos da sua vida.
Mas, em vez de falarem, ficaram mudos!
No meio d"esse demorado silencio olhavam-se, a principio furtivamente,

e depois fixamente.
Por vezes abriam os lábios para falar, mas arrependiam-se, e as pala-

vras desfaziam-se em sorrisos, tristes e meigos.

Uma vez Luiz ia a começar, e, n'um movimento de decisão, segurou os


dedos finos de sua alteza. . . Desistiu de falar, mas não abandonou a mão
amiga. Estavam-se confessando na sua "teimosa mudez!
Confessavam-se assim mais sinceramente. Emquanto estiveram falando
é que se enganaram. . .

Ser irmão é, entre amantes, um expediente do instincto, para se en-


ganarem um ao outro.
E é um expediente proveitoso —-approxima.
Para se entrar no coração duma mulher, o ultimo titulo que se invoca

é aquelle que nos não pertence.


Quando um homem diz a uma mulher:
— Creia, minha senhora, que sou muito seu amigo... adquiriu logo
licença para ser seu amante.
Ser irmão, ás escondidas, é ser tudo que quizerem, menos irmão.
E ha sinceridade n'esta mentira ; enganam-se um ao outro, e até se
enganam a si próprios.
Antes de tererh inventado que se amavam como irmãos, nenhum delles

se atreveria a falar em amor. am-. . Faltava-lhes licença para falar no que


bos sentiam Chamado, embora com sobrenome, o amor esvoaçou logo
. . .

entre elles. Depois. quando^descoberto, como era conhecido de ambos,


. .

ambos fingem que é o mesmo, e deixam-n"o ficar. O resto é com elle,


cheio de graça, de meiguice e de dissimulação ! . . .

Luiz da Silveira e a rainha chamaram a si o amor fraternal, e aquelle,


que d'elles se apoderara, fingiu não comprehender, e apresentou-se sem
demora.
Por isso estavam mudos, e, olhando-se, deviam estar pensando:
— Enganámo-nos não era este. ! . .

Esta reflexão acompanhou o enleio dos primeiros momentos.


Os sorrisos, que vieram, depois, queriam dizer
— Já agora, deixal-o!
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Soffreis muito, não é verdade, I.uiz? disse a rainha, para dizer al-

guma coisa.
— Não sinto a ferida do combate, mas os espinhos da saudade. Em
breve vos deixarei, senhora. . .

— Atastaes-vos apenas — dizei assim que é melhor dizer. Longe ou


perto, que importa, se nos não houvermos esquecido um do outro? Parece
que até a saudade santifica esta nossa innoceniissima alTeição... Sois de
meu parecer, Luiz?
— Por vós o sinto, que por mim vos asseguro que preferia morrer, a
viver tão longe.
— Assim mereceremos mais o favor de Deus. .

— Assim é já; mas não foi assim. Quando muito vos amei, nada vos
dizia e a pouco me resignava; agora demais vos amo, para que vos occulte
meu sentir e me não resigne ás penas que me impõem.
— Pois não me amaes agora da mesma maneira ?

— Não ; amei-vos menos, ou mais, como quizerdes, mas talvez por forma
diversa. Nem eu me atreveria a dizervol-o se se não tratasse de um sen-

timento passado. . .

— Não éreis meu irmão. . .

— Para que vos enganar? Não, não era... Tinheis, então, encantos
que me faziam criminoso a meus próprios olhos ! O que hoje me acalma
e corrige, então me aquecia e desconcertava ! Parecieisme mulher, como
as outras, apenas mais formosa e gentil... Minha boa irmã! perdoae-me
tem de peccaminosa e ousada. Como até hoje
a confidencia, que já nada
nenhuma imagem de mulher se enquadrara no meu coração, puz n'elle
uma grande galeria em que só o vosso rosto e o vosso vulto figuravam I

Recolhia-me constantemente para vos admirar! E era tão feliz, contem


plando-vos! Havia na minha alma um retrato vosso que me olhava sempre,
qualquer que fosse a distancia a que me collocasse. . . Conhecia todos os
movimentos da vossa physionomia, todas as linhas do vosso perfil. .. O
sorriso aberto, o dos lábios, o sorriso dalma, que se abre no olhar, a dòr
que orvalha, o enthusiasrno que illumina, a desconfiança que gela, a piedade
que extasia . . . N'um olhar só, e rápido, reconhecia o estado da vossa alma . .

—E já tudo isso esquecestes? perguntou a rainha com ar maguado.


— Que seria de mim, se o respeito e o dever não tivessem destruido
este enleio? Isto que estou fazendo — olhar- vos, dç frente, vendo a minha
magem nos vossos olhos, sentindo nas minhas as vossas mãos, tão calma,
tão serenamente, com o peito ião tranquillo e a consciência tão confiada,
não poderia fazel-o então. .

—E por que ?
. . . !

572 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Nem eu o sei ! . . . O amor faz creanças os homens mais experi-


mentados. O verdadeiro, o primeiro amor é um fructo da mocidade inno-
cente e casta. . . Olhae, senhora, eu corava, como uma donzella, quando
a sós pensava no momento em que vos poderia dizer : pisae-me, senhora
minha, deixae-me rojar a vossos pés, aquecel-os com os meus beijos. . .

Para vós não posso ser um homem; mas que importa is.sor. . . Também
um tigre vos faria fugir de medo, e comtudo. tendelos aqui, quedos e re-
signados, talvez felizes, como eu estaria, se vos agradasse calcar o meu gi-

bão de velludo e as madeixas do meu cabello. .

E apontava as pelles que pisava. .

E continuou:
— Seguia a vossa .sombra, como o criminoso que vos roubasse com a
vista cada um dos vossos encantos. Em cada dama da Alcáçova bus-
. .

cava descobrir dotes eguaes aos \'ossos — e eram todas tão differentes
Nenhuma pisava com o vosso andar senhoril Inenhuma erguia a cabeça
com tanta elegância e nobreza I . . . Quando deslizáveis na sala do throno,
nos cortejos solennes, fazieis lembrar um cysne de plumagem variada,
sobre a superficie d'um lago!
— Então, Luiz. . . prefiro que faleis do meu coração. . .

— O coração no peito tem apenas as raizes — as folhas, as flores, os


fructos d'essas raizes brotam em todos os movimentos, em todas as linhas,
em todo o colorido da nossa vida externa. . . O coração rebenta de nosso
peito, como uma arvore do seio da terra... Sois formosa, elegante e meiga,
porque é bom o vosso coração, delicada a vossa alma, fina a vossa intel-

ligencia. Não acreditaríeis na bondade de Jesus se o esculptor lhe cavasse


os traços de Judas! Não vedes, por acaso, a pureza da Virgem no olhar
da imagem que adoraes?
— Um madrigal, Luiz ? . .

— Uma recordação apenas... Parecia, senhora, n'esses tempos, que


tudo vos roubava a meus olhos e á minha admiração. Havia beijos no meu
olhar, beijos muito ternos. . . Tinha vontade de vos affagar, como se fôs-

seis uma creança! Era o meu amor um conjunto de amores, desde os


mais brandos até os mais violentos. Umas vezes cortava com o fio da mi-
nha espada o laço que vos prendia a el-rei — tinha sonhos de rapina, em
que voava comvosco, pelo espaço, para mundos desconhecidos — outras fi-

cava a vêr-vos, distante, triste, como se o meu olhar vos protegesse,


como o olhar do sol nos aquece! Quantas vezes vos imaginei em meus
braços, e, em vez de vos estreitar com Ímpetos apaixonados, como se fôs-

seis uma creança, vos balouçava docemente, e, doce e casta e fraternal-

mente, vos beijava depois as pálpebras cerradas.'. . .


! .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

L'ma noite inteira passei, noite de insomnia e de febre, em que tanto


se sonhai a desfazer-vos as tranças e a beijar-vos o cabeilol
— Tudo isso passou, felizmente; não é assim, Luiz.'
E a rainha, ao fazer esta pergunta, mostrava profunda tristeza ! . .

Coitada ! sentia terriveis saudades d"esse mal que não morrera


— Sim, minha adorada irmã. . . Foi uma nuvem que passou. . . Per-
doaes-me este vendaval ?

— Como não vos perdoarei eu, que tudo isso adivinhei, e que a tudo
isso correspondi? Agora já posso abrir-vos o coração, meu bom irmão...
K, olhando em torno de si, receosa, depois de ter olhado, de mãos
postas, para um crucifixo suspenso da parede, em voz baixa e bai.xo o
olhar, disse a Luiz da Silveira:
— Também eu, Luiz, cheguei a ter medo de mim. de nós ambos. . .

Que pensamentos tive, que sonhos! Via-vos sem vos aftrontar, lidava de
dia e noite com o vosso nome no pensamento e nos lábios... Quando
não apparecieis, tinha vontade de chorar. . . Se chorava, tinha vergonha...
e desejava que não voltásseis . . . Não desejava tal. . porque, não podendo
vêr-vos, a ninguém mais queria vêr. Eram bem innocentes os meus se-
gredos ! Por que não havia eu de vos amar Que mal faria isso O que eu
? ?

não sabia explicar era que tudo isto era um affecto de irmã, d'uma pobre
mulher com marido e sem confidente! Os meus filhos são ainda tão
pequeninos. . . os frades gelam o coração, porque só nos falam de coisas
tristes. . . E vós não. . . vós entretinheis tanto com o vosso dizer! adivi-
nháveis tantos mysterios do meu peito. . • Olhae, Luiz, vós faláveis por
mim; as vossas palavras pareciam ser échos da minha consciência...
Ainda ha poucos dias tivestes um sonho egual ao que eu tivera. . . Andá-
mos quando accordeil Mas
juntos a divagar pelo céo! Fiquei tão triste
cheguei a ter medo... porque eu sou uma mulher casada, e aquiilo
ficava-me mal ... Se alguém me adivinhasse, como poderia eu defcnder-
me ? Quem me acreditaria, quando eu explicasse que vos amava, como
ao melhor dos amigos, como a um confessor mais novo e mais gentil que
o outro, mas tão nobre e tão leal como elle Olhae, Luiz, cheguei a enver-
!

gonhar-me dos meus filhos 1 . . . e andava com tanto medo de que me


dissésseis qualquer cousa que me tirasse esta illusão!. . . O que eu queria
era isto: que nos entendêssemos, e depois de nos conhecermos, quando
Deus soubesse bem que não estávamos em peccado, poder pensar e sonhar
comvosco, á minha vontade... Assim, nem eu terei vergonha do que

penso, nem vós julgareis mal da minha virtude. Sc eu vos amasse de outra
forma, que triste idéa farieis de mim, meu bom amigo! Cheguei até a
suppôr que já não amava el-rei! E, quando percebi que tínheis d elle
MYSTKKIOS LiA INQUISIÇÃO. — VOL. 1. fOI.. 7:.
!

574 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Que eu não posso deixar de o amar, não


ciúme, não vos achava razão. . .

meu Luiz? Se é elle o pae de meus filhos, é evidente que elle


é assim,

me ama, e eu o amo também... Diz-se que os filhos amam sempre os


pães, porque escutam a voz do sangue . . E" talvez porque as mulheres

ouvem a voz dos filhos que ellas sempre amam seus maridos . . Pois não
é verdade ?

— Que maravilhosa eloquência brota de vossos lábios ! Oh como ! eu


creio na virgindade de Maria, depois da maternidade
E Luiz levou repetidas vezes aos lábios as mãos já ardentes da pobre
rainha, borboleta que estava, sem o saber, a crestar as azas da virtude no
fogo daquelles beijos.
E o sol continuava a espreital-os, e o reposteiro verde balouçava-se
aos sopros da briza da tarde, emquanto el-rei andava por Odivellas, em
correrias pelos campos, ou em galanteios amorosos pelos recantos do claus-

tro!
E de novo se ficavam a olhar os dois irmãos. .

Eoi assim que se chamaram, assustados, Adão e Eva, quando viram


enroscada, na macieira do paraiso, a tentadora serpente. . .

O silencio de novo se interrompeu.


— E' verdade que me casaram antes que cu tivesse sentido estas chi-
meras, que são a poesia do coração. Antes que eu soubesse o que era
amar, deram-me um marido. Era muito creança quando ouvi dizer a meu
pae, el-rei D. Fernando, que o cardeal D. Jorge da Costa reclamara a mi-
nha mão para D. Manuel, de Portugal. A vaidade de creança naturalmente
se lisonjeou com este pedido... Disseram-me que D. Manuel era novo, gen-
til e de grandes ambições de gloria. Meu pae e senhor accedeu boamente...
Um dia, sem que eu soubesse por que, disseram-me que D. Manuel re-

cusara a minha mão, e preferira para sua esposa minha irmã D. Izabel,
viuva recente do infeliz D. Aftbnso. Não me magoei; pelo contrário — mi-
nha irmã era tão boa e digna de ser feliz! Eu não conhecia el-rei de Por-
tugal. . . Talvez não gostasse d'elle. Explicaram-me então, que altos inte-

resses políticos moveram esta substituição. Cheguei a convencer-me de


que não se tratava dum contrato d"amor, mas d'um accôrdo entre as duas
coroas. Ouvi até falar num tratado relativo á expulsão dos judeus. Não . .

comprehendi bem como um casamento tivesse influencia n"esses trabalhos


diplomáticos. . . Depois comprehendi tudo, quando me deram noticia de
que D. Manuel amava loucamente minha irmã... Esta, pelo contrário,
mostrava-se-lhe indifferente, e quantas vezes lamentei o pobre noivo repu-
diado!. . . Que de intrigas se forjaram então na corte, ou melhor nas duas
cortes, porque meu pae queria aproveitar o ensejo para propor condições
!

MYSIERIOS DA INQUISIÇÃO

severas n'esse enlace, que D. Manuel tanto desejava I .. . Alinal, porque


triumphou a politica de Castella. e não o amor do rei de Portugal, soube
por D. Álvaro de Bragança que as escripturas de casamento tinham sido
em
assignadas Burgos, a jío de novembro de 1490, e em Medina dei Campo
em 4 dagosto de !4<j7. O que se passou durante esse tempo, mal eu pude
comprehender ; sei apenas que ha seis annos, em Valença d'Alcantara, a

princeza D. Izabel casava com D. Manuel, depois deste ter cuidado na


expulsão dos judeus! Nunca mereci este sacrifício á vontade del-rei
Bem se via que D. Manuel amava a princeza minha irmã, por quem elle
me trocara cm condições tão humilhantes. . . Minha irmã morreu cedo, e
eu novamente ouvi falar no meu nome . . . Kstava- então tão triste, tão
triste I que falarem-me em casamento, o mesmo era que aggravar os meus
males. Minha bôa irmã morrera de parto, e o noivo, que me offereciam,
era meu cunhado, que tanto chorava a perda de sua mulher! A minha
corte andava seriamente prcoccupada cem a morte de meu irmão, o prín-
cipe D. João de Ca.stella, que era penhor da alliança das diversas coroas
das Hespanhas, incluindo a de Portugal. Tudo era lucto n'essa épocha mal-
dita-D. Miguel da Paz morrera também... Lembraram-se então de
mim, tão triste e tão desconsolada!. As negociações correram velozes. . .

Levaram-me a Alcácer do Sal, e ahi celebraram o meu casamento. Os


negociadores deste contrato, por necessidade, firmaram as condições delle
em Sevilha e em Granada. Estava tudo de accôrdo, até os herdeiros d'a-

quelles reinos assentiram também, em Toledo, dois annos depois. Chegara


ao auge do seu esplendor o rei de Portugal ! E logo elle augmentou,
aos seus titulos de rei de Portugal e dos Algarves, d'áquem e dalém
mar em Africa, senhor da Guiné, estes outros: da conquista, navegação
e commercio da Ethyopia, Arábia. Pérsia e da Índia! Effectivamente, o
nome de meu senhor e a sua gente tinham já invadido essas vastas e lon-
gínquas regiões ! Calculae, meu bom D. Luiz. como se sentiria orgulhoso

o meu coração de mulher! E, comtudo, estava tão triste, tão triste, como
se tivesse faltado um passo na minha vida, um affecto, uma illusão, talvez

um amor! D. Manuel conservara-sc, por muito tempo, saudoso de minha


irmã. . . As suas caricias pareciam dizer o nome d ellí, e não o meu. • . Para
se distrahir entretinha-sc com os negócios de Veneza, e, em vez de pas-
sar algumas horas junto de mim. conferenciava a miude com o conde de
Tarouca, a quem confiou a esquadra que havia de navegar arrogante até
Orão ! . . Eoi nesta épocha que a minha missão de mãe me entretinha o
espirito e me consolava do abandono em que eu me via . . . Em que eu me via,
quando, já presa aos mais sagrados deveres, começava a alvorecer-me aquella
mocidade, que cu não conhecera! Apparecestes-me, então, meu bom irmão,
. . !

576 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

e por tal forma me perturbei comvosco, que até um dia, ao espelho, pela
primeira vez na minha vida, notei que era nova, tão nova como aquellas
damas da minha corte, que tinham escolhido seus maridos, ou que eram
requestadas pelos que as pretendiam para esposas. Assim tenho vivido,
mal conhecendo a vida, e tão ignorante dos aífectos que a tantas mulhe-
res entreteem e enlevam, que só, porque vos quiz muito, me assustei
tanto! . .

— Se fôsss príncipe, senhora, creio-o bem, a nenhuma outra mulher


eu amara, e, se vos amei, apesar de rainha, não serei mais que um dedi-
cado amigo, para vos defender d'essas vagas aspirações da vossa alma...
Calculae, senhora, a dor que me afflige n'este momento em que vou dei-

xar-vos, talvez para sempre... Minha irmã, dae-me o consolo do vosso


aftecto.
— Pensareis em mim ?

— Sempre. No reino, ou fora d'elle, quer me interne n"algum castello

de provincia, quer parta a batalhar no Oriente, por Deus vos juro que a
vossa imagem será a minha estrella, e o vosso nome a minha prece . .

— Sois novo; acena-vos a gloria, Luiz da Silveira... Da vossa liber-


dade podereis fazer o uso que vos alegre e felicite.
— Quem me dera, minha boa irmã, que n'esse caminho sombrio do
meu futuro, a Providencia me depare uma mulher que me ame, tão for-

mosa, e tão meiga como vós, como vós tão casta e tão pura. . .

— Não, disse a rainha n'um movimento involuntário — isso não...


E, depois, reflectindo. .

— Meu Deus! que disse eu! Por que não haveis de amar uma mulher,
se eu sou apenas vossa irmã ?

— Que loucos e desgraçados somos, senhora minha — somos duas


creanças que se illudem... Desgraçada como eu me sinto. Alaria'
sois,

se Deus nos perdoasse, aqui, em voz muito baixa, como se apenas o


Céo nos ouvisse, dir-te-hia: tu amas-me e eu adoro-te!
Nos olhos da rainha borbulharam duas lagrimas.
— Deixa-me beber esse pranto, imagem da minha adoração!
E Luiz, segurando, trémulo, a cabeça da amoravel princeza, inclinou-a
levemente, e beijou-lhe com indefinível transporte os olhos humedecidos.
— Querida mãe e senhora! onde estaes que ha tanto tempo vos não
vejo?
— Estou aqui, meu anjo, estou aqui!
E a infanta D. Izabel appareceu á porta do salão.
— Obrigada, meu Deus! disse Maria erguendo-se. E' a voz dos filhos
que guarda o coração das mães.
. . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 377

Luiz da Silveira levantou-se cambaleando. Estava pallido como se uma


grande dòv o aíHigisse. O rosto da rainha ardia em rubor.
— Não me acompanhaes ao jardim? El-rei já se avista... Já se ouvem
as charamelas e businas. . . Não vindes vel-o da varanda do terraço?
— Sim, minha fi'ha, eu vou.
E depois, dirigindose a Luiz da Silveira:
— Meu irmão — amae a primeira mulher que vos merecer, e, se um
dia chorardes a minha morte, lembrae-vos de que morri com a triplice
coroa que adoraes. .

E pegando em sua lilha, emquanto Luiz ditiicilmente se encaminhava


para a porta, ergueu a infanta nos braços ate a altura dos pés do (cruci-
ficado.
— Senhora, quereis que beije?
— Beija, sim, e agradece-ihc
lilha, ter-te enviado em meu auxilio.

E a infanta beijou a cruz.


— Agora vós. .

— Eu não. .

E da porta, Luiz, profundamente commovido, levou dois dedos aos lá-

bios, e afastando-os depois na direcção da pobre mãe, exclamou:


— Adeus, minha irmã! Dae este beijo a Jesus. .

E cahiu desfallecido nos braços dos pagens que vinham buscalo. .

:;>c^-i>c
XXX VIII

A Gardunha

Não se percebe bem, pelas informações que encontrámos na Historia


de Hespanha, o que fosse a Gardiinha. Era uma associação de malfeito-
res? Parece que sim. Mas parecia também uma succursal do Santo Offi-
cio . .

A Gardunha era uma associação ou uma quadrilha ?

Era uma quadrilha fortemente associada e que ajudava nas suas ex-
plorações o tribunal da Inquisição. Era uma succursal illegal e secreta do
grande partido catholico que explorava a Hespanha.
Havia crimes que a Inquisição não se atrevia a praticar. . .

A Gardunha encarregava-se delles.


Era necessário confiscar os bens de um christão-velho altamente pro-
tegido ?

Como a Inquisição não podia processai o, os sócios da Gardunha, ou


o assassinavam, simplesmente para o roubar, ou o rodeavam de agentes
secretos para o forçarem a doações públicas de grande alcance moral e
material.
Havia um christão-novo que sinceramente se convertera, e que não
auctorisava, com seu procedimento, a menor suspeita contra a sua ortho-
doxia catholica? Os sócios da Gardunha se encarregavam de o forçar á

heresia, justificando assim todas as perseguições do tribunal da Fé.


Era necessário casar um rico celibatário com uma virgem problemática
do bairro da Triana, cigana de formosura e vicios attenuados momenta-
neamente pelo interesse? No palácio da Gardunha se preparava o amor e

se redigiam as escripturas nupciaes.


Havia algum casal em que fosse necessário, por causa dalguma herança
fugitiva, que a consorte affirmasse a sua fecundidade ?

Na Gardunha, como n'um hospício misericordioso, havia creanças de


differentes bitolas, producto de amores viciosos alli preparados, ou de
! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO ^711

roubos praticados nos campos, ou nas cidades, nas feiras e romarias ; e

entre ellas se escolliia a de origem mais apropriada ao enredo da situa-


ção ! . . .

Kra necessário que um homem desapparecesse, por ser embaraçoso a


qualquer intriga lucrativa ?

Era na Gardunha que se fazia o julgamento e se lavrava a sentença,

preparando-se o crime, e até o criminoso provável perante as justiças do


reino ! . . .

D'uma cortezã explorada cm mil aventuras, se obtinha, no laboratório

da Oardunha, graças a uma milagrosa alchimia que convertia o chumbo


da prostituição no ouro da virgindade, a melhor das ingénuas, innocente
e ruborisada, para um drama de familia, em que a victima era um moço
de grossos cabedaes e de imaginação impressionavel
Explorava-se nesse antro de Sevilha, a febre da prodigalidade arran-
cando, mediante quantiosos empréstimos, o presente e o futuro de muitos
aventureiros e doidivanas, que sacrificavam a uma usura infernal o prazer
de um momento
A Gardunha era um inferno cheio de tentações I

Os vicios dos homens tinham n'ella a sua prodigiosa exploração. Os


amorosos eram attrahidos pelos olhares quentes das hespanholas mais for-

mosas, entre as quaes sobresahiam ciganas, de formas esculpturaes e de


requebros estonteadores.
O luxo tinha alli o seu ambiente mais próprio! O néctar jorrava em
lábios sequiosos, embriagando como o amor I

D"aquelle palácio encantado despejava a cornucopia das tentações todos


os seus fructos mais formosos e todas as suas Hores mais aromáticas I

Ninguém conhecia a Gardunha, e toda a gente pertencia a ella ! Os


tentaculos d'esta pieiírre envolvia os seus principaes inimigos. A sua in-

fluencia era como uma epidemia que se propagava pelo contagio, atacando
príncipes c povos, fidalgos e villanagem, cavallciros e peões ; empobre-
cendo uns, enriquecendo outros, assassinando alguns, não raras vezes, e
apaixonando outros pelos prazeres e pelos vicios !

Era um arsenal de todas as armas perigosas, desde o olhar e o beijo,


até o trabuco e- a faca . . .

Desapparecia de Sevilha, num momento, um homem qualquer, c era


depois encontrado, ou com o ventre rasgado por um bandido, ou conges-
tionado pela bebedice, ou suicidado pelo desespero. . .

E não eram corpos o que aiU de preferencia se inutilisavai o punhal


das reputações, que é o mesmo que dizer a caliimnia, andava no ar, vi-
brado por agentes daquella seita e feria, a todo momento, a reputação
! ! !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

dos homens e das mulheres, desgraçando gente honesta, polluindo don-


zellas e magistrados
Soprava constantemente do lado da Gardunha um ar inficioso, que
penetrava pelas frinchas das portas ou pelas chaminés das lareiras, e que
ia pôr o ódio onde havia amor, desconfiança onde estava o crédito, a
guerra onde reinava a paz 1

Era um tufão maligno que soprava sempre a chorar, como um dobre,


em todas as bodas, a rir como um repique em todos os funeraes
D'a!li sahiam o descrédito dos bons e a lisonja dos perdidos 1

Tinha dinheiro, dinheiro a rodo. como as cavernas mysteriosas dos


velhos contos calabrezes, ouro que era empregado em comprar braços e
consciências, em satisfazer cubicas e tentar virtudes!

Todo o amor alli ia parar; tinha a belleza das mulheres alli a sua co-
tação, e o pudor era lá que melhor se transformava em desvergonha
A Gardunha era um appendice da Inquisição, uma delegação secreta
servida por gente de todas as classes, edades, sexos e índoles. Havia alli

a mãe que vendia as filhas e a filha que se entregava para salvar a mãe.
Os jogadores perdidos em palácios e tavolagens lá iam empenhar a
alma e a honra.

Que mara/ilhosa organisação a d'aquelle instituto, que tinha a sua po-


licia sabiamente educada, e cujo ouvido estava constantemente applicado
a todas as officinas e alcovas.
Quanto se dizia e pensava, tinha o seu registo n'aquella caverna de Caco.
Um peccado de consciência, uma nódoa que se apagara, um crime que
se remira, tudo alli revivia nitidamente como se o tempo tivesse sido
impotente para tudo apagar !

Prostituiam-se, ao inBuxo dessa associação, as mulheres casadas, e pre-


paravam-se adultérios para a obra da prostituição.
N'um momento se processava um confisco, se premiava uma denun-
cia, se desvirtuava um intuito!

O roubo estava alli assombrosamente organisado! Roubava-se tudo —


o ouro, a liberdade, a paz, a honra, o crédito!
Quem se não associasse á Gardunha tinha de ser escravo delia! O
drama c as tragedias das familias era alli (]ue tinham os seus tyrannos !

O bando era composto de bispos, de simples frades, de magistrados,


de fidalgos, de judeus venaes, de mouros apóstatas, de espiões, de ban-
dalhos que viviam do amor das mulheres, de ladrões e assassinos de pro
fissão!

Os lucros eram divididos por quinhões, na proporção das categorias.


O seu melhor lucro era a impunidade!
. ! ! ! : !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Crime coramettido pela Gardunha nem ao menos softria investigação.

Luctar com ella era o mesmo que luctar com o Inferno!. . .

Desapparecia uma rapariga donzella, e ás vezes ainda impúbere, e logo


se explicava muito naturalmente :

— Foi a Gardunha ! . . .

Dizia-se isto com a mesma indillerença com que hoje se pode dizer do
desapparecimento dalgumas aves das capoeiras aldeãs : Foi a raposa.
A Gardunha era a grande raposa de Sevilha
Ao seu serviço estavam os esbirros do Santo OfVicio
Não arcava com ella o governo da Hespanha I

A Inquisição era uma figura negra no coração de Sevilha, e a Gardu-


nha era a sombra da Inquisição.
A quantos miseráveis teve a Inquisição de perdoar e que a Gardunha
sacrificou em seguida I

Tinha uma casa, um palácio, por signal ; mas não se via entrar nem
sahir gente. Aquella habitação só recebia hospedes a horas mortas — e

esses eram homens, de rosto sempre desviado da luz das estrellas.


Entravam resguardados, com medo de que o céo os visse, porque na
terra ninguém ousava espreital-os.
Os que se reuniam eram poucos, mas os principaes; o resto encon-
trava-se em toda a cidade pelas boticas, nos pardieiros da Triana, nas
margens do rio, nos invios caminhos dos arredores.
Os sevilhanos odiavam-na, não a maldiziam; respeitavam-na tanto, ou
mais que a Inquisição.
Se havia um incêndio, logo a turba segredava
— Foi a Gardunha que lançou o fogo
De quem morria de repente, com o estupor maldito, diziase que era
victima da terrível associação
As maleitas eram attribuidas ás aguas do (iuadalquivir en\enenadas
pela terrivel seita I

Tremia a terra por causa da sombra da Inquisição, e as trovoadas no


inverno eram protestos das victimas dessa mansão mysteriosa e impla-
cável !

A" lareira contavam-se historias d'essa gente traiçoeira, mas contavam-se


em voz baixa: não estivesse ella a espreitar no portal.

Era com ella que se intimidavam as creanças para as corrigir nas suas
travessuras.
Gardunha era synonymo de liagcllo!

As velhas benziam-se quando a citavam. Faziam o mesmo quando


falavam em Satanaz. .

MVSTFRIOS DA lNQi:iSlÇÃO. — \ OL. I. FOL. ~5


.

582 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Durante três ou quatro séculos, o bandidismo sevilhano teve uma orga-


nisação especial e complicada.
O crime não era exercido ao acaso, anarchicamente.
Os ladrões e os assassinos tinham uma constituição e os seus respe
ctivos regulamentos.
Os gatunos constituíam um povo dentro d aquelle povo.
Havia n'elles classes e categorias divididas pelas aptidões.

Não diz a Historia quem fundou essa sociedade e quem tão brilhante-
mente a regulamentou, embora lhe assignale a cores tenebrosas a sua
existência e lhe attribua a mais notável influencia.
P^eréal cita, muito a propósito, as referencias de Cervantes a esses ope-
rários do mal, nas suas interessantes novellas.
A Gardunha do século xvi, em hespanhol Gardi/íia, tinha quasi um
século de edade na épocha a que nos estamos referindo. Era uma conf)\i-

ria que a Inquisição não perseguia e até aproveitava.


Nascera em 1417, e só foi destruída em 1821.
N'urna interessante nota escripta por D. Manuel Cuendias, diz este :

«que os papeis d'esta singular e horrível sociedade, que consistiam em
muitos registos contendo as ordens cio dia, os estatutos da confraria e
numerosas cartas, foram depositados por mim no cartório criminal de Se-
vilha, nó dia i5 de setembro de 1821, e ainda alli estavam em iSaS.»
Francisco Cortina, mestre d'esta sociedade em 1S21, preso com uns
vinte dos seus cúmplices, foi enforcado na praça de Sevilha, com dezeseis
co-réos, a 26 de novembro de 1822.
Quando no século xix, um século já policiado, e em que a revolução

tinha desvendado todos os mysterios, ainda a Gardunha sabia occultar-se


e viver, o que succederia no século inquisitorial, em que a justiça apenas
curava dos delictos contra a fé, e só admittia ao seu serviço a ralé social,
isto é, os malfeitores de todas as camadas, desde a dos frades, que tinham
o apoio dos bispos e dos príncipes, até os ixitanos, que enchiam as espe-
luncas dos bairros mais miseráveis?!
Custa deveras acreditar na existência d'esta succursal do Santo Oftício;
mas os depoimentos são tantos e tão auctorisados, que se não pode apa-
gar esta nódoa na Historia de Sevilha. .

Na Historia de Sevilha? Na da Hespanha, porque os mais altos pode-


res d'aque!les reinos a acceitaram e mantiveram!
Em 1534, o chefe d'essa seita de malfeitores funccionava em Toledo,
e mais tarde veiu estabelecer-se em Madrid.
Este não teve a sorte de Francisco Cortina: não foi enforcado, mas
nomeado secretario de Philippe III, sob o nome de D. Rodrigo Calde-
. .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 583

ronl.. . Este bandido chegou tão alto, graças aos crimes que praticou e
dirigiu e que lhe deram a intiuencia do duque de Lerma, e do célebre ie-

suita Francisco Alliaga, que confessava o rei e presidia á Inquisição hes-


panhola.
Bons tempos esses em que a Religião servia para proteger tão vis ins-

tituições e miseráveis de taes prendas I

No archivo de Sevilha existiram elfectivamente os Estatutos d"essa seita


de bandidos, e foram publicados em hespanhol e traduzidos em portuguez.
Temos em nossa frente uma cópia traduzida e publicada em 1854 e
abonada pelo nome de Edgar Quinet.
Por eila se vê que essa constituição foi escripta em Toledo em 1420,
quando a confraria conta^^a apenas três annos de existência, e está assi-
gnada por El Colmilludo.
Provavelmente este Colmilludo foi mais tarde o secretario Calde-
ron . .

Teem nove artigos esses notáveis Estatutos, e todos elles se referem


a divisão de categorias e ao trabalho de roubar e matar.
Citaremos, ao acaso, o art. 2.":

«A confraria receberá também sob a sua pi-olccção toda a matrona


que tiver so(frido da justiça e que queira encarregar-se da conservação e

da venda dos diversos objectos que a Divina Providencia se dignar enviar


á confraria, bem como as raparigas que forem apresentadas por algum
irmão. Estas ultimas teem por condição, de toda a sua ah?!a e de todo o
seu corpo, defender os interesses da confraria.»
No artigo seguinte explica-se que as matronas seriam chamadas cober-
teras e as raparigas serenas. .

E diz mais:

«Estas devem ser jovens, espertas, fieis e appeteciveis».

O grupo mais notável d'este bando era formado pelos iruapos, homens
novos, (ortes, destros, jogando bem a navalha e esgrimindo a espada com
excepcional perícia. Provocadores e aggressivos de profissão, conhecendo
o segredo de traições e com artes e traças para graduar os golpes, desde

o que faz apenas escoriações até o que atravessa órgãos essenciaes na vida
do adversário.
Também lhe chamavam pi/nleadores.
Eram estes os que davam golpes de ferro, depois de armados os con-
flictos pelos fhi-eadores, uma cáfila, de lingua forte e pulso fraco, fugida

das galés de Sevilha, Málaga ou Melilla.


Os fuelles eram os espiões das casas e famílias, os denunciantes, os

que investigavam o andamento dos negocies, os que conheciam a fraqueza


. .

584 MYSTERIOS DA. INQUISIÇÃO

das portas, os segredos das uchas, os que surprehendiam as conversações


nas boticas e nas egrejas. .

Eram os beatos, velhos, de rosário nas mãos, quasi todos familiares do


Santo Officio, e que estavam sempre em contacto com o mestre e com
o inquisidor ?

,
Os chiratos prestavam excellente serviço, praticando roubos sem valor,
e empresas ágeis.
O grupo mais luzido, e que mantinha a receita ordinária da exploração,
era o formado pelas serenas.
Era o iman que attrahia os adoradores aos logares mais próprios para
serem explorados. Ciganas cheias de encantos, comediantes por instincto,

não se limitavam a essa industria grosseira de ladras aromatisadas; toma-


vam também posições accommodadas ás exigências de grandes empresas,
provocando paixões, caçando casamentos, desmanchando famílias, e tre-

pando do bordel á casa dos fidalgos e dos argentarios.


Que temivel inimigo tinha a gente de bem!
Que admirável instrumento servia a Inquisição!
O paço desta realeza, o quartel d'esta milicia, esta\a n um velho edi-
fício mourisco, já em ruinas, e que rematava o bairro da Triana, na parte
menos povoada e mais sombria.
Era um palácio, um mosteiro, uma fortaleza?
Era tudo isso, e d'isso tudo perdera o feitio e a apparencia. Muros que
desabaram deixaram morros, que não indicam linhas de architectura; plan-
tas, que trepam e se enroscam, occultam laçarias e columnatas. O musgo
e as hervas amortalham os restos d'esses monumentos que o tempo mor-
deu e despedaçou!
Eram ruinas; eis tudo.
Andavam por alli, aos enxames, os reptis; esvoaçavam sobre elles aves
noctívagas, sinistras, de voz agourenta e voos desordenados. Entrava-se
alli por todos os lados. No chão havia covas tão profundas que pareciam
sabidas.
Quando o luar se projectava sobre ac]uelle montão negro de pedra e
terra, e moitas de verdura, fazia-o mais escuro por fora e enchia de luz,

aos laivos, os espaços lá de dentro! Através d'essas ruinas, que tinham o


aspecto d'uma montanha do inferno, via-se em todas as direcções, uma
faixa de céo. .

Aquelle palácio tanto podia ser o resto dum incêndio, ou os despojos


d'uma batalha!
A's vezes parecia também uma caravela desfeita pelo vendaval, a flu-

ctuar sobre um mar de sombras!


.

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5sj

Havia alli frangalhos de muralha que se desenhavam no espaço com a

forma de atalaias, e as sombras d'esses frangalhos, extendendo-se pelo


chão, lembravam um gigante prostrado, mas ainda pavoroso.
Ninguém se approximava. . .

Os irmãos approximavam-se, e entravam, e moravam lá dentro.


De fora não se via luz. . .

Os irmãos entravam a um e um, e por diversos lados. . . l'!ram vigia-

dos, mas pelos consócios.


Para os lados da Gardunha ninguém passava de noite, c de dia pas-

sava-se distante.
Os forasteiros, ao sahirem das estalagens, eram logo prevenidos de que
deviam percorrer Sevilha em todas as direcções, menos n'aquella.
K, comtudo, se o povo de Sevilha quizesse espreitar aquelle sitio, veria
como elle era frequentado por .íiguazis, escrivães, procuradores, frades,
cónegos e até inquisidores! Toda esta gente era auxiliar d'aquelle impor-
tante estabelecimento. . .

O art. 1." dos Kstatutos dizia mui claramente:


— Todo o homem de bem que tenha bons olhos, bons ouvidos, boas
pernas e boa lingua, pode ser membro da Gardunha. Poderão sel-o tam-
bém as pessoas respeitareix, duma certa edade, que desejarem servir a
confraria, ou seja pondo-a ao facto das boas operações a fazer, ou seja
ministrando os meios de executar as dietas operações»
Ora, havia gente mais respeitável que a da justiça da Inquisição ? E, a

respeito de bons olhos e bons ouvidos, não seria fácil imital-a, quanto mais
excedel-a I

Vamos atú la. O tem medo de penetrar em todos os


historiador não
abysmos da Historia. E este é um dos mais negros, benza-o Deus. De dia
é menos perigoso, mas também menos interessante. Ninguém lá está; para
lá ninguém entra.
Os criminosos são como os morcegos, que so apparecem na sombra,
ou volteiam na luz artificial.

Hoje, principalmente, temos lua nova — um grande disco de prata,


rutilante, que desce a jorros sobre aquelle montão de ruínas, fazendo na
terra sombras caprichosas. Nada ha melhor para fazer sombras do que a
luz... llluminado, aquelle palácio tinha peor aspecto, porque parecia
vivo . .

Quando um cadáver se move é quando mais atemorisa. Hugo, em


L'honime qtii rit, pinta sinistramente um enforcado a mover-se com o
Í86 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

vento... Ora, o palácio da Gardunha, á luz do céo, parecia raover-se, como


se estivesse sobre ondas. . . de sombras. . . Era medonho 1

No ar havia gritos de aves nocturnas, e junto da folhagem, que tre-


pava pelas muralhas, sentia-se o ruido sêcco do esvoaçar sinistro!

O portal, um grande arco feito de cantaria, estava aberto, franco, en-


redado em plantas parasitas, que tombavam na curva, em cachos, como
festões. . .

Quem passasse, e quizesse entrar, podia fazel-o. . . Mas ninguém en-


trava . . .

D'aquelles festões parecia pender a inscripção do Inferno^ de Dante...


O silencio, com os n/idos que lhe são próprios, é o peor ferrolho em
moradas tenebrosas. A temeridade é a única gasúa que abre isso, que
está aberto.
N"esta noite em que nos aventurámos, não é só o luar que illumina o
palácio da Gardunha. Ainda a noite não vae era meio, e já na velha gale-
ria, que rodeia a ala esquerda e se debruça sobre o grande pateo da en-
trada, brilharam por vezes algumas luzes de tochas, que se perderam nas
aberturas do edifício.
Se seguissemos uma d'essas luzes, entraríamos num vasto salão, sem
mobília, de tecto alto, abobadado, cheio de fumo que sae em nuvens dos
brandões, que parecem sahir da terra, tão escuro é o chão onde assentam
os tocheiros que os sustéem.
Entram diversos vultos embuçados, de gorro até as orelhas e manto
traçado sobre o peito, a ponto de lhes tapar a bôcca.
A' entrada trocam os recem-vindos palavras enigmáticas e signaes ca-

balísticos, com o guarda, que defende, com o corpo e espada erguidos, a


negra abertura.
Vejamos este.

E' alto, forte, de pesados borzeguins, com )}iorijs de còr viva, polai-
nas, calção, gibão de velludo — um ma/o, no sentido mais verdadeiro da
palavra — um verdadeiro andaluz, um pouco fidalgo e um pouco barbeiro,
mais barbeiro no fato, mais fidalgo no porte. Conhece cl ctichillo, d piiual
e d albacde. Dança com graça a gere\ana e o fandango. Um majo á
D. Juan de baixa esphera e mais constante que o eterno conquistador.
Pródigo principalmente, e brigão por amor, ou por orgulho. Castiga um
baratero e farpeia um touro. Tem os movimentos rápidos e atrevidos. Na
Gardunha só pode ter um dos primeiros graus.
Era, com certeza, um guapo.
Chegando á porta, sem desmanchar a capa, e sem olhar para o guarda,
disse em aoz alta:
. . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 587

— Viva a Senhora do Rosário:


—E Maria Santíssima ! . .

K entrou.
A um canto, junto dum dos brandões, sentado n um escabello, estava

um homem velho, de aspecto severo, barbas grandes e brancas, cabeça


descoberta, de chapéo e de cabello. A calva brilhava d luz do archote,
como se fosse feita de marlim polido.
O recem-vindo dirigiu-se ao velho mestre da Gardunha ;

— Mestre. . . como direi hoje ?

— Pietro.
— Vae então em italiano? Pois seja, mestre Pietro, é necessário resol-

ver hoje negócios sérios.


— Para convidei.
isso te . .

— São necessários gimpos bem decididos e iim/os bem falantes. Mar-


caste a ordem do dia ?

— Marquei: o negocio da xcfena Suzana...


— Maldito negocio esse. Tendes noticias de Samuel? . .

— Morreu . .

— Patife! Nunca teve habilidade para servir a confraria, e estragou


Suzana, que era das í^iíaiuis mais formosas e gentis. Que futuro esperava
aquella mulher I

— Paixões em gente daquella raça são terríveis. Agarrou-se ao mouro


e deitou honestidade, que nem uma vestal. ..
— Mas guardou o dinheiro das ultimas empresas de ambos. .

— E bem guardado I . .

— Saberá Inquisição?
d'elle a

— Isso sim! Resistiu como um perro! Marrão de tamanha teimosia


nunca tivemos outro.
— Resistiu?
, — Até morte. Podiam esquartcjal-o que nada revelaria.
a elle . .

— Por essa razão faz-nos Mas Suzana vive? falta.

— Ainda. E' esperança que Se a paixão pelo mouro


a resta. tiver mor-
rido com elle, talvez que ella se resolva. . .

— Duvido! E' fanática como um frade, e ha de preferir morrer a legar


o thesouro aos seus consócios.
—O tribunal tem investigado, e a Gardunha não descura o negocio,
mas tudo baldado ! Parece que os malditos sumiram o ouro nas profun-
das do inferno. . .

— Talvez estejamos sobre elle . . . Estas ruinas teem segredos diabó-


licos.
. . .

588 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Já ordenei pesquisas em barda, mas sem resultado.


— Veremos o que dizem logo os irmãos . . .

— Que eu não levo este assumpto á confraria. E' negocio secreto...


— Quantos o conhecem ?

— Por agora apenas quatro. todos bons. . . e


— E o resto ?

— Qual resto ?

— CL outro negocio, o negocio de Estado Falaste Deza alto I corri ?

— Falei. Esse é mais grave.


— Tens medo?
— Medo eu? Tenho prudência.
— Gardunha sáe dos seus Estatutos em empresas tão arrojadas...
— Quem nos ha de perseguir ?

— Eu sei lá ? ! Não se trata de servir um príncipe e um inquisidor,


mas só um delles. Se ficar vencido o que não é nosso, vae a Gardunha
bailar á forca.
— Tudo se estuda.
— Tenho pensado muito. .

— Talvez que não seia necessário. Os príncipes são vários. D"um


momento para o outro podem mudar de opinião. . .

— Não o creio. Philippe é orgulhoso e homem de vontade



. . decidida.
Corre-lhe nas veias o sangue do imperador Maximiliano e de Maria de
Borgonha. . . Má herança ! . . .

— Tem mais coração que Fernando, e não tem a seu lado a formosa
Izabel. Tens razão.
— E ainda escuta Joanna, que morre de amores por elle.. .

— E de fora Se de fora viesse uma influencia


? ?. .

— Vem, essa a peor de todas. Não sabes que Philippe


e c é amigo
intimo de Luiz XIL . .

— Diabo, diabo ! Uma serena bem educada poderia talvez fazer o mi-
lagre. O rei é meigo, e apaixona-se com facilidade. Se lhe lançássemos,
no caminho, uma parceira no jogo da pella, e que se deixasse adorar. .

—•D'alguma forma ha de ser. E' indispensável repor no throno o in-

consolável viuvo. Joanna mirra-se de ciúme, como se estivesse sobre uma


fogueira do Santo Oíficio . .

— E conheces os planos delle


já ?

— Deza, demittido, conheceos de sobejo. Depois da perseguição do


arcebispo, teremos perdão geral, e, depois, pelo que para ahi se diz, a
hiquisição irá, dia a dia, perdendo as suas prerogativas, até ficar n'uma
chancellaria do throno.
. . . . . !

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 58o

— Precisamos de trabalhar muito e estar sempre vigilantes...


— Não é negocio para a intriga. Tudo isso leva muito tempo. Golpe
de mão c que é indispensável. Philippe é fraco de saúde, ma» está ainda

muito novo. E' certo que os prazeres lhe encurtarão a vida... Mais dois
annos que elle viva será mais que o bastante para derrubar todo o nosso
castello de plano e ambições. . .

— Sou desse parecer. O apoio da França pesa na balança dos desti-


nos da Inquisição. Luiz XII pode che^^ar a um accòrdo com Philippe I, e

Carlos V está em embryão. .

— Agora c que podemos avaliar asfalta que nos fez Torqucmada. Vi-
vesse elle, e a estas horas já a apaixonada Joanna teria n seu lado um
confessor de confiança.
— Já é tarde. Joanna só pensa nas infidelidades do marido. E" a sua
idéa fixa. Que se importa ella com o Céo ou com o reino? Namora a mo-
cidade de Philippe e anda accordada sonhando sempre que o vento .lh'o

rouba . .

— Kra um golpe de mestre...


— Qual ?

— O que derrubasse Philippe. . . Um só golpe fazia duas victimas. A.


rainha não resistirá á perda do seu adorado companheiro.
— Se não fosse a pressa que o caso reclama, talvez se pudesse espe-
rar. . . Mas, como sabes, para áquem e para além dos Pyrenéos, as coi-

sas não estão boas. Ora, repara : D. Manuel I, D. Philippe I e Luiz XII
— K' uma trindade para temer. .

— E não ha um inquisidor de pulso. . .

— Nem de cabeça.
— be até recorrem á dardunha para uma manobra que poderiam
elles

dirigir lá por cima! . .

— Bem, o que tem de ser, seja. A empresa c difllcil, mas pode ser

lucrativa. Podemos contar com gente segura ?

—O melhor que temos em todos os graus. Haja meslres que dirijam,


e um cliiralo só chegará para acabar com a firma que governa do Tejo
ao Sena.
— Quantos estamos já? disse o \ellio, franzindo o sobrolho para de-
vassar os recantos negros do salão.
— Quinze ou dezeseis. .

— Bastam. Manda que os ^//j»»;; vigiem as escadas c os arredores.


— Ha neophitos ?'

— Ha um. . .

— Quem o recommenda ?

MYSTKKIOS KA INQUISIÇÃO. — VOL. I. VO\ .74.


MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— O Santo Officio.
'

— Vem em boa occasião. . . estamos precisados de corclwtes. O caso


de Suzana é prova de que a espionagem tem andado descurada.
O velho levantou- se e percorreu o saião, examinando de perto, cada
um dos assistentes. Depois veiu coUocar o escabello no meio dos quatro
brandões fumegantes, e convidou, com um signal feito com a mão, a que
o cercassem os oito apenas que tinham ficado.
— Vamos a isto. A sessão deve ser curta e proveitosa. Em primeiro
logar, apresentovos o novo capatãy, ou chefe de provinda, que, pelos seus
serviços e pelas aptidões, mereceu dispensa dos seis annos de ser-

viço na sua elevada categoria de guapo. Vós todos o conheceis. E' aquelle
que, pela sua táctica politica e pelos seus especiaes conhecimentos dos ne-
gócios das diversas cortes, mais apto consideramos para as empresas mais
nobres da nossa confraria. Será elle um digno successor de Camilludo, e
conta com tão altas protecções, que da sua iníluencia dependerá, por mui-
tos annos, a impunidade da Gardunha. Não sabeis como elle se chama r

Nem eu! Tem tido vinte nomes e com todos, em pouco tempo, tem
honrado e servido os nossos interesses. Approvaes, vós todos que me
ouvis ?

— Sim, sim, disseram, em coro, os da pequena e sinistra assembléa.


— Está bem, a confio a direcção do negocio
elle relativo. . . e depois,

baixando a voz, a Philippe I.

— Agradeço-vos, irmãos, a vossa sympathia, disse, adeantando-se um


pouco, o nosso majo, que não era outro senão aquelle célebre grao-mestre,
que logrou mais tarde a estima do duque de Lerma e do inquisidor Aliaga,
e prometto levar a cabo tão árdua empresa, como é a de libertar as ter-

ras de Hespanha do brando governante que ameaça a melhor instituição

do século que findou. Temos contra nós a liga de Cambrai, isto é, o


abraço entre os reis catholicos, o Papa Júlio, o imperador, e Luiz XII...
O filho de Maximiliano deu a mão ao filho do duque de Orléans... O
alliado francez é mais que Orléans, é também Valois. E' homem empre-
hendedor e teimoso. . . Que o digam a conquista de Génova e do Milanez.
Apprendeu a desembaraçar-se dos inimigos com a mesma facilidade com
que se desembaraçou de sua mulher... Para vencer, aproveita todos os
alliados .
. . Que o diga César Borgia, o duque de Valentinos, que soube
arrancar a bulia do divorcio das mãos de Alexandre VI 1 . . . Cuidado com
elles . . . Emquanto a Inquisição correr algum perigo teremos a cabeça no
laço da forca e os membros amarrados ao potro. O acaso matou Izabel,
a Catholica. . O
também se imita. Tudo que se não espera é ca-
acaso
sual. Sejamos, pois, discretos e mandemos Philippe para os braços de
. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Izabel... Vamos, meus irmãos, estaes de accôrdo commigo ? A' morte


Philippe I. . .

— Sim, disse a lurba — d morte o alliado do Pae do povo!...


K o velho, tendo o iiiajo terminado o seu pequeno discurso, levantou-
se, e extendeu o seu punhal :

— Mesírcs, iiiuipos, piistiiLiiiíes e /'iwlles — jurem commigo.


Ouviu-se então um ruido indescriptivel, que parecia o que pode fazer
um bando de assassinos apparelhandose para o combate.
Alguém desembainhou uma espada, de apertada bainha; dos cintos ou
dos peitos, sahiram punhacs scintillantes; estalaram as molas das (:iicliillas,

grandes como lanças pequenas!. .

V. todas estas laminas vieram tocar o punhal do mestre. .

— .luramos, se tanto fôr necessário, para servir a inquisição hespa-

nhola, nossa fiel alliada, abater a orgulhosa cabeça de Philippe I ?

— Juramos I disseram todos.


E as armias voltaram de novo aos seus esconderijos.
— Lembrae-vos dos feitos do nosso fallecido mestre I Seremos todos
mavtyres, mas não confessores. Devemos tomar para exemplo a tenacidade
assombrosa do mouro Samuel, que morreu sem revelar a extranhos os
segredos de sua família.
—E o nosso dinheiro ? perguntou uma voz.
— Ser-vos-ha entregue no dia em que o (ilho de Maria de líorgonha
deixar cahir a coroa de Eernando V.
— Que devemos fazer, então ?

— Obedecer e esperar .

E o velho, com gesto imperioso, fez dispersar o grupo, que se perdeu


de novo nas sombras do vasto recinto.
—E tu, majo, disse elle dirigindo-se ao novo capala-, distribue a tua
gente, e que o inimigo de Deza, e que de perto nos ameaça, não mais
dê um passo, nem solte uma palavra, que a Gardunha não siga nem
ouça.
— Os gritos de Joanna annunciarão d Hespanha a execução desta
sentença.Por Nossa Senhora do Rosário e pela Virgem Santíssima, a
punhal ou a veneno, arredarei do meu caminho o único embaraço que o
inferno apresenta deante das minhas ambições. . .

E, repuxando as sara Liguei l es, as polainas, e envolvendo-se no amplo


capote, o )iii)/i> dcsappareceu pela abertura por onde entrara.
P2nu1o o velho mestre dirigiu a palavra a um rapaz ainda imberbe, que
parecia esperar a occasião de se approximar.
— Paço, que novas trazes ?
. . . . .. . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Quasi nenhumas, mestre Pietro. .

— Revolveram as margens do rio ?

— Começámos pelo lado da Triana e depois passámos para a de lá, e

nada ...
—E junto ás traves da ponte ?

— Também. Nem o menor vestigio.


— Esqueceram a cisterna que ha na arrifana do Samuel ?

— Arrifana, mina, fossos, subterrâneos da adega, sempre nadai


e e

— Já revistaram os fossos da Gardunha ?

— Em toda a volta. nem signal de pegada. O lodo está virgem. Se


. .

por alli está alguma coisa escondida, foram os moiros doutras eras que
se deram a esse trabalho. Gente do nosso tempo não fez por alli excava-
çÕes. ^

— Então nada viram?


— Alguma coisa... por isso vos respondi quando me pedistes novas
— quasi nenhumas. .

— E são de valor?
— Um chivato não tem competência... Se eu achasse coisa que luzisse,

o meu dever era apanhal-a e trazer-vol-a. Vós me dirieis depois se era


vidro ou diamante.
— Tens razão. Conta, pois.
— Ha duas noites que
)á notámos a presença dalguem nas margens
do rio, fazendo pesquisas como nós. .

— Algum agente do Santo Officio a disputar alviçaras. .

— Julguei principalmente algum espião da Gardunha, por vosso man-


dado, a rondar o nosso serviço. . .

— Não pode ser. Por que lhe não deitaram a mão?


— Assim o tentámos; mas, mal nos presentiu, voou como um pássaro.
— Fracos caçadores! Empenhem-se agora em presa. Também fazer a
ha thesouros na figura d'um homem. .

— Quereis, então, que vol-o traga?


— O mais cedo possível.
—E se elle resistir?...
— Far-te-has acompanhar por um piiapo, ou dois, que o enrolem, sem
o apertarem. E' preciso que cante. .


— N'aquelle sitio a ponte é muito frequentada, e elle pode deitar-se á
agua ....
— N'esse caso, uma serena amorosa, ou pedinte, que lhe tire a más-
cara. .

— Já nos lembrámos de tudo isso. Receámos delle, porque, não pelas


: .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO SgS

feições, mas pela figura, o achámos parecido com um pagem de bons


estofos, que lia dias topámos a sahir do palácio da Fe.
— E' então o que eu disse — os frades apertam Suzana e talvez já lhe

arrancassem alguns indicios... N'este caso, deixemos as violências para


mais tarde. . • Bem, vac, e não o percas de vista. . . Olha cá, elle é ágil?
— Como um gamo!
— N'esse caso novo. é Encarrega a pequena Eva de o vigiar e attrahir.

Para dentes novos nada ha como os fructos verdes. Pagem bem vestido,
que passeia a horas mortas, não mata o tempo — aproveita-o. Esperam
hoje a ciganita
— Deve vir pelos maravedis do salário vencido... Isto é, deve vir

porque a fome ha de apertar com eila... Se não fosse isso, passaria a


noite a chorar no portal do Santo Officio, julgando que Suzana lhe ouve
lá dentro os soiuços. A rapariga anda a estragar os olhos com as lamu-
rias; e a curtir maguas até se esquece de pedir 1 Era já tempo, mestre,
de a tirar da rua c de a enfarpelar com mais cuidado. Tem um palminho
de cara muito melhor que todas as iiiUiuas da confraria.
— E espertaé
'•'

— Ladina como um frade ! Depois da prisão de Suzana é que anda


esmorecida. Ainda hontem, á noite, na procissão do Terço, ia pela rua sem
cantar, ella, que tem uma voz que, quando canta a Ai'c Mai-ia Puríssima,
parece que são os anjos que respondem ás beatas do Rosário ! . .

— Seria bom ouvir uma cohertc)\i. Se Eva não mendiga e não canta,
morrerá de fome. Bem sabes que a Gardunha não pode dar-lhe mais que
seis maravedis por cada pcscía com que ella entre no cofre.
— I-cmbrae-vos de que tem direito ao gòso exclusivo das prendas que
lhe derem os nobres e os nhi/os de Sevilha?. . . E' dos estatutos I. . .

— Veremos como ella conclue esta empresa. Veste mal e tem lagrimas
a propósito. Está na conta. . . Sabes aonde poderás encontral-a ?

— Sem dúvida. O seu posto é á entrada da ponte. Quereis que vol-a


traga ?

— Sim; inquicta-mc esse passeantc nocturno, cujos destinos ignoro.


O lIi!i\iI(> paitiu.

O mestre approximou-sc dum fiwllc, que ainda conversava a um


canto.
— Estiveste em casa de .Martha ?

— Toda a noite passada . . .

— E o marido?
— Não appareceu. Dei.xei por lá vestígios de sobra de que alli passara
a noite um homem que não era da familia.
. . . ! . . . . . .

594 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

— Voltas hoje ?

— Com certeza; que até elle me encontre.


— E se levar o ciúme
elle até a aggressáo?
— Levo aqui a resposta, disse o fulle batendo no cinto. Mas não é

provável. O escândalo desmanchará o casal, e Martha será minha. .

— Dize antes, será nossa. Has de tu mesmo fazer o traspasse... E'


uma mulher deliciosa! O morgado já a viu e anda louco d'amor. . . Os
portuguezes e as hespanholas attrahem-se. Ha n'elles uma frivolidade tão
meiga e feminina, que contrasta com a nossa rudeza sensual. O morgado
deve pagar bem, e Martha, apesar de serena, em apprendizagem, pagará
dez por cento. .

— Convém não esquecer que o morgado de Travanca familiar... é


— Creio-o — parece homem respeitável. — Nós queremos dinheiro, e

elle só quer mulheres. . . Havemos de nos entender. .

—O que ha de Jacob ?

— Mestre, Jacob é um problema... Está parado. Nem vive nem morre,


e, a respeito de torturas, contentam-se em dar-lhe só as moraes, as que vêem
do captiveiro e da saudade. Elle é a medida da fraqueza de Philippe.. .

os inquisidores teem medo de lhe tocar... Receiam provocar os aconte-


cimentos... E teem razão... De Portugal sopra-lhe uma aragem de
geito...
— Da Alcáçova?
— Parece que sim.
— Mas tinha acalmado nestes últimos dias.
isso .

— Mas refresca de novo, porque se acha enfraquecido o partido da


rainha...
— Era de esperar. . . a morte de Izabel. .

— Isso um pouco; mas a causa principal está na deportação de Luiz


da Silveira. .

— Diabo, diabo! Luiz da Silveira era uma esperança... Eaz falta...


Tinha império no ânimo da rainha e do príncipe. . .


E D. Maria não resiste
— Não resiste ? ! Então a sua piedade ?

— Eundiu-se em lagrimas e perdese em orações. . . Poz Luiz da Sil-

veira na cruz e adora-o. . . E' um alliado que se perdeu. . .

— Precisamos de vigiar o príncipe D. João. .

— Esse ainda tem corte ! . .

— Tenho medo dos poetas. Fala-se muito por lá n'um célebre menes-
trel, chamado Gil Vicente, que anda a envenenar de rimas lutheranas a
philosophia dos fidalgos. .
! . . . . .

MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO 5g5

—E do povo, o que é peor. Anda o poeta a fazer autos, que a corte


encommenda e a villanagem applaude. D'ahi as idcas de reforma. Ellenada
sabe da Allemanha. E' tudo instincto; coincide o epigrammacoma critica. ..

Ganha com isso o pensamento, mas perde a Egreja e a Inquisição. . .

— Perdemos todos. .


Tendes razão. A cpocha é de crise. Sc não afogamos o século .\vi

á nascença, teremos de luctar muito com elle. O maldito, á força de re-

viver o passado, ameaça a reforma do futuro.


—O que se ha de então fazer ?

— Uma reacção de ferro e fogo.

— Sois bem avisado. Ninguém dirá, com esse feitio de fuellc .

— Que está aqui um inquisidor? Então que quereis? Desde que a


Gardunha foi embutida no Santo Ofticio, ha necessidade de accumular. .

Que, afinal, isto aqui é mais seguro, porque não respeita alvarás e orde-
nações. . . E' uma força c um Estado... Mas, não percamos tempo, e
segui a vossa fiscalisação. .

E os dois homens separaram-se, sem se despedir.

O mestre dirigiu-se ainda a outra personagem sombria.


— El Cuchillo ! Como está de saúde o avarento Munrod, que logrou
a liberdade á custa de corrupção no throno e no altar ?

— Mestre, Munrod vae mal, andava hontem a passear em Sevilha e a


receber felicitações. Estava linda a noite! Um luar esplendido I Fez-lhe
mal I . . . Não estava acostumado, e cahiu morto, á meia noite, ao pé da
(liralda. . . Coitado!
— V. feriu-sc ao cahir:
— Parece que se espetou, sem querer, no punhal d'um gardunho...
Era velho, e via pouco
— Está certo. E o Bornal ?

— Esse vive . . .

— E tem muita saudc ?

— Nem por isso!... Mil pesetas no bolso do mantco, e o salvo-con-


ducto para cahir de repente. .

— Convém salvar-lhe a memoria.


— Faz-se lhe a diligencia. \'amos hoje orar á synagoga, que é rica de
alfaias . .

— Façam com cuidado. isso . .

— Com todo. Pelo seguro, levamos comnosco um meirinho e dois


aguazis. sempre na
. . a justiça frente.
— Bem; concluam a obra, e lembrem se de que a confraria vae dar
balanço e repartir os lucros . .
. .

506 MYSTERIOS DA INQUISIÇÃO

Agora retirem-se todos, disse elle em voz alta, e apaguem esses bran-
dões. . . Cada um por seu lado. O que divisar caso extranlio volte a an-
nunciar. Eu vou para a galeria, na bancada do silvado que se debruça
sobre o fosso. Ha brandões no céo, sem mau cheiro e sem fumo. . . Va-
mos, depressa. . . andam no ar os morcegos; cosam-se com a terra, como
os reptis. Não se deixemmordam sempre que possam.
pisar, e .

E o velho, cobrindo a cabeça com um gorro de forma caprichosa


e distincta, emquanto os gardunhos se escoavam em diversos sentidos,
saltando os obstáculos do caminho, como se navegassem em mar de sar-
gaços, foi sentar-se num recanto da galeria, á sombra duma moita de
silvas, que o luar illuminava.
Via-se d'alli a grande arcada do pórtico, que parecia suster-se no es-
paço apenas segura pelas hervas que a enlaçavam.
O velho gardunho, um dos muitos bandidos anonymos que macularam
a historia de Hespanha e do século xvi, emquanto esperava a volta de
Paço, que fora em busca de Eva, passou as mãos pela longa barba branca,
e, fazendo o signa! da cruz, começou a rezar. . . E á roda d'elle, cm vol-

teios irregulares e bruscos, pássaros que piavam sinistramente, e que sa-

biam e entravam pelas fendas dos altos paredões, julgando o velho gar-
dunho seu companheiro e alliado, não lhe fugiam ouvindo-o murmurar:
Maria 'Puríssima
Aj'é, . . . cheia de graça . .

De repente parou a oração.

FIM DO PRIMEIKO \0I.UME


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