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O Anarquista de Apipucos

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O ANARQUISTA DE APIPUCOS

Entrevista concedida a Lêda Rivas em 15 de março de 1980.

Gilberto Freyre não poderia deixar de falar ao Diário, na festa nacional dos 80 anos.
Uma entrevista, tipicamente, gilbertiana, sem medo de tabus, corajosa como
pensamento, tanto como documento humano. Um dado a mais para inteligir sua
fascinante personalidade, a extraordinária riqueza de sua cosmovisão, tudo que o faz
inimigo da banalidade, sempre um "harmonizador de contrastes", percuciente nas
análises em que ilumina toda uma cultura, ou, simplesmente, uma alma. No Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Gilberto Freyre retorna, em nosso diálogo, ao
seu velho jornal, tão vivo, ágil, versátil, profundo, como se o tempo só tivesse feito
enriquecer a sua luminosa percepção.
Se o senhor fosse um estranho, como veria Gilberto Freyre?
- Eu o veria como um caso singular de um harmonizador de contrários, que tanto se
presta a ser considerado, como sou considerado, um reacionário, como a ser
considerado, por outros, um comunista. Eu não sou, realmente, nem um desses extremos
nem outro. Não porque os considere desonrosos, mas porque não correspondem a minha
tendência de harmonizar contrários. E qualquer um desses extremos é um extremista, ao
meu ver, simplista. Eu detesto simplismo. Amo a simplicidade. Tanto que não escrevo
nem em Sociologês, nem, em Antropologês, nem em Filosofês, nem em Economês. Eu
escrevo num Português gilbertiano e essa gilbertização, sem deixar de ser um pouco
sofisticada, é na sua expressão um verdadeiro arrojo, por vezes, de simplicidade. Nunca
simplista, mas na expressão simples para quem escreve, como escrevo, sobre assuntos
complexos.
O senhor se propõe um anarquista. Como é que o senhor concilia isto com a sua
postura de chefe de família exemplar?
- Fico muito grato a você por me considerar um chefe de família exemplar. Espero que
esta também seja a opinião de dona Madalena, dos filhos e de todos. Um anárquico não
quer necessariamente dizer um antifamília, você sabe. O conceito de família é um
conceito muito vasto. Há quem. confunda formas de famílias com o essencial da
família, o essencial do qual talvez a condição humana nunca possa se libertar. Portanto,
o meu modo de ser anárquico não exclui o fato de ser um homem de família. Eu
realmente amo, a família, amo a esposa, amo os filhos, amo os netos. Gosto do convívio
deles, mas a abrangência da minha maneira anárquica de ser, essa permanece dentro do
homem de família, sem que sequer isso signifique que eu não seja anárquico. Eu sou,
como me defino, criativamente anárquico. Uso a qualificação de criativo, porque para
muita gente, quando você diz anarquista ou anárquico, significa, alguém que lança
bomba, assassina, príncipes e presidentes da República. Tudo isto está muito longe de
correspondente a minha maneira anárquica de ser. O meu anarquismo, consiste, em
termos gerais, no seguinte: em desejar, não para o tempo imediato, porque na situação
mundial seria impossível uma Nação como o Brasil tornar-se uma expressão de
anarquismo construtivo, cercada, de imperialismos como está, por duas formidáveis
superpotências que não brincam com a oportunidade de se tornarem donas de pequenas
nações. De modo que essas pequenas, nações, na atual circunstância internacional,
precisam de ter governos ou executivos capazes de agirem imediatamente em defesa de
seus valores nacionais. Daí eu admitir, como venho admitindo para o Brasil de hoje,
governos militares. Não que me encante qualquer espécie de militarismo, mas porque
em 64 o que me pareceu é que o Exército era a única força organizada capaz de
defender o Brasil de uma incursão semelhante à que houve em Angola, na Etiópia, em
Moçambique, em tantas outras partes do mundo nossas conhecidas, já depois de ter
havido o mesmo em Porto Rico, em Cuba, vítimas de dois imperialismos, e várias partes
da América Latina. De modo que há essa necessidade em termos imediatos de defesas
das nações que não são potências contra as superpotências. Agora, em termos ideais,
para mim o que o mundo precisa é de um mínimo de status, um máximo de
espontaneidades não estatais de várias espécies: religiosas, econômicas, culturais,
esportivas, que, como espontaneidades não estatais constituam, de fato, comunidades
que sejam o mais possível criativas sob o estímulo dessas espontaneidades. Eu creio,
que o mundo atual está pecando muito por falta de criatividade ligada à espontaneidade
e enquanto for necessário às pequenas nações esse máximo de poder executivo
defensivo, essa criatividade será inevitavelmente prejudicada.
Como o senhor definiria, neste momento, o tropicalismo como gênero, e o luso-
tropicalismo, como espécie, no quadro geral das ciências do homem?
- Há quem pense que minha concepção de luso-tropicologia, aprovada pela Sorbonne,
que não é um lugarzinho qualquer, aprovada pelo Instituto Internacional de Civilizações
Diferentes, que é também um centro que reúne altas competências em assuntos
internacionais, aprovado de um modo entusiástico no último de seus livros pelo grande
Roger Bastide (Antropologie Apfiquée), está absolutamente destruída pelo fato de as
antigas colônias portuguesas terem deixado de estar sob o jugo, político de Portugal. Eu
creio que não. Ainda há pouco, tive informações, através de um intelectual indiano que
está hoje em São Paulo, de que há uma preocupação do próprio Governo atual da Índia
em reconhecer a identidade luso-tropical na antiga, índia portuguesa. O Estado-Nação
indiano não conseguiu, como a1guns dos seus adeptos fizeram, reduzir um fenômeno
luso-tropical indiano a uma sujeição tão desejada por eles, ao todo supostamente
monolítico - não é - da união indiana. De modo que há uma, ressurgência na própria
Índia da identidade luso-tropical. Essa ressurgência me parece que vai se verificar logo
que uma parte hoje oprimida, quer de Angola, quer da Guiné, quer de Moçambique,
quer de Cabo Verde, possa ter uma voz ou meio de expressão. Nós sabemos que a
descolonização dessas antigas colônias portuguesas de modo a1gum significou uma
autonomia política, econômica ou cultural. Essas passaram de um jugo português, aliás
pouco compreensivo do problema, para um jugo, não digo comunista, mas da União
Soviética, que não brinca com os povos ou grupos humanos que consegue sujeitar. Os
exemplos saltam à vista, tanto na Europa, como fora da Europa. Ora, esse jugo está
causando, segundo informações idôneas que eu tenho, já grandes insatisfações, revoltas
e desejos que essas antigas colônias portuguesas voltem a a1guns dos seus valores,
agora sob forma nacional, descolonizada, mas com um essencial luso-tropical já
característico, de suas culturas prénacionais, como eram no tempo do salazarismo ou do
domínio português sobre elas. De modo que considero o conceito luso-tropical, em
termos culturais, que para mim são mais importantes que os apenas políticos ou
somente econômicos, como um conceito válido.
Como o tropicalista Gilberto Freyre explica ser um homem formal e solene, de
paletó e gravata?
- O tropicalista, Gilberto Freyre explica que não está entre suas vocações ser um
individualista excêntrico. Seria, se eu começasse a usar tanga ou um traje todo tropical.
Mas tenho apoiado o mais possível a adoção, pelo Brasil, de um traje tropical ou
eurotropical. Dei todo apoio ao grande Flávio de Carvalho, paulista, que ideou um traje
dessa espécie. Convidado, ele veio aqui expor no Seminário de Tropicologia suas idéias
e nós lhe demos todo apoio. Mas você vê como há uma resistência das convenções. As
convenções sociais são muito fortes, e com relação ao traje em particular são
fortíssimas, embora elas possam ser quebradas. Agora mesmo, o topless é uma quebra
em convenções que pareciam indestrutíveis. Mas estão sendo de algum modo
quebradas, ainda que com alguma resistência. Eu, por exemplo, sou pelo topless. Eu me
lembro que no meu tempo de menino era um escândalo ver pernas de mulher, pernas de
fora eram coisa para mulher da vida alegre. Hoje, quem é que não está cansado de ver
pernas de mulher? E a1gumas até nem são para serem exibidas. Como alguns seios de
mulher não devem ser exibidos. Elas precisam recorrer a sutiã para conter exuberâncias
nada estéticas. Mas, de modo geral, eu repito que sou pelo topless, e creio que para o
trópico, especialmente, é uma conveniência ecológica absoluta, nas praias, sobretudo.
Não digo que noutras ocasiões seja a apresentação do tipo feminino mais desejado, mas
nas praias, para o banho de sol completo, sem dúvida que é. E creio que vamos nos
acostumar aos seios de mulher assim apresentados, como já nos acostumamos às pernas
de mulher inteiramente francas. Mas, com relação ao problema do traje - e eu sou uma
vítima do antitropicalismo - creio que o Brasil está na obrigação de dar um exemplo ao
mundo euro-tropical, desenvolvendo o que o meu querido amigo, que era um artista e
engenheiro ao mesmo tempo, Flávio de Carvalho, quis dar início. Mas não conseguiu,
porque a resistência se apresentou muito forte. Veja que também até Jânio Quadros,
quando quis instituir um traje quase euro-tropical nas repartições públicas, falhou. E era
aquele homem com um prestígio carismático, um político carismático extraordinário.
Ele próprio, hoje, não usa um traje euro-tropical, teve que se deixar vencer pelas
convenções que, no caso, são antiecológicas. Você sabe que a ecologia começa a ser
uma força que não era, e eu me gabo de ter sido o primeiro a usar a palavra ecologia em
língua portuguesa, o primeiro a defender para o Brasil, aqui no Recife em 1937, um
critério ecológico (que inclui no nosso caso de país situado em grande parte em regiões
tropicais) que deve ser seguido pelos brasileiros.
Certas declarações chocantes que o senhor fez seriam provocações ou simples
divertimento com a chamada burguesia? Ou o senhor realmente acredita no que
diz?
- (risos) Você se refere à Playboy?
Eu me refiro à Playboy, entre outras... Aliás, a revista esgotou no Recife, o senhor
sabe...
- É verdade. Esgotou em São Paulo, também. Minhas declarações? São absolutamente
sinceras. Por que eu teria, ainda, de épater le bourgeois? É uma coisa tão banal, sabe?
E eu fujo tanto da banalidade, você há de me fazer essa justiça, que não me ficaria bem
fazer declarações só chocantes. Se elas são chocantes é porque não me falta coragem de
tocar em certos assuntos para os quais os tabus são mais absolutos ou absolutos. Não, de
modo nenhum. São declarações sinceras e absolutamente honestas.
O senhor acredita no valor do Banco de Sêmen dos Prêmios Nobel, visando criar
uma geração de aristocratas da inteligência?
- Acredito como experimento. É, realmente, uma experimentação no plano biológico,
com conseqüências sociais interessantes, mas tenho minhas dúvidas, porque não sei se é
realmente possível, calculadamente, sistematicamente, cientificamente, se criarem
gênios ou superioridades. Se você ler as biografias de homens de gênio (como
Beethoven), verá que eles emergiram de pais e de ambientes que não faziam de modo
algum prever um gênio. Em quantos casos os gênios tem saído de pais, de famílias, de
ambientes medíocres e antigeniais? A meu ver, o fenômeno gênio é um fenômeno de tal
modo singular, que não me parece que os cientistas possam controlá-lo ou resolver o
problema de criação de gênios. Em todo caso, como experimento, é válido. A
experimentação é sempre uma coisa que pode concorrer para um avanço científico com
relação ao próprio homem, como com relação a plantas e animais.
Por falar em Prêmio Nobel, para quem o Nobel da Paz: Chico Xavier ou Dom
Helder?
- É difícil a resposta. Eu acho que cada um deles tem o seu mérito, tanto Chico Xavier,
como Dom Hélder. Mas não creio que este mérito vá ao ponto de merecer o Prêmio
Nobel da Paz, um dos quais foi dado a uma figura extraordinária de uma freirinha,
metida lá na Índia, e realizando um trabalho, realmente, extraordinaríssimo. A paz
estará sendo promovida por Dom Hélder, que é um temperamento tão polêmico, ou
promovida por Chico Xavier, que é tão ele mesmo na sua maneira de ser místico? Não
sei. Repito que, para mim, cada um deles tem o seu mérito, cada um deles está
cumprindo uma missão que não deixa de ser de interesse humano e social, mas não vejo
em nenhum deles altura ou alcance para ser distinguido com o Prêmio Nobel da Paz.
O senhor declarou, numa entrevista, ano passado, que se reconhecia um católico
sociológico sem ser teológico. Com isso, o senhor repudia, apenas, a Teologia
católica ou toda Teologia? Ou o senhor diria, também, como Sartre, que a hipótese
de Deus não lhe é necessária?
- Não, eu não digo como Sartre. Eu aceito Deus como um místico, um intuitivo. Deus
pra mim existe porque minhas intuições reclamam que Ele exista. Fora de toda
Teologia. Creio que os teólogos só tem feito atrapalhar a compreensão humana de Deus.
Eu acho que os teólogos são, realmente, tecnocratas da pior espécie. Eles querem
tecnocratizar o Mistério.
E não acreditam em Deus...
- É, eu acho que eles não acreditam em Deus.
Os teólogos da Libertação acham que existe duas Igrejas Católicas: a Igreja da
Europa e a Igreja do Terceiro Mundo. O que o senhor pensa dessa divisão?
- Eu vejo aí, exatamente, o exemplo da tecnocratização da Teologia: eles estão
pensando em assuntos que são essencialmente místicos. Não há, verdadeiramente,
religião que não signifique mistério. Portanto, que não seja envolvida em misticismo e
este misticismo não me parece que seja assunto para explicações logicamente políticas
ou mesmo logicamente sociológicas. Escapam à lógica, à racionalidade, e eu creio que o
exemplo, agora do Irã, desafiando duas superpotências, e as desafiando com vantagem,
mostra que o mundo está cansado de racionalidade, cansado de lógica, cansado de
ciência e sedento de misticismo.
Ate que ponto nós somos uma democracia racial?
- O nosso ex-presidente Geisel disse, mais de uma vez, que a democracia política é
relativa - e estou com ele. Sempre foi relativa, nunca foi absoluta. Esse negócio de
democracia plena é uma bela frase demagógica, de demagogos que não tem
responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre assuntos políticos. Você vê, os
gregos aclamados; como democratas do passado clássico conciliaram sua democracia
com a escravidão. Os Estados Unidos, que foram os continuadores dos gregos como
exemplo moderno de democracia no século XVIII, conciliaram essa democracia
também com a escravidão. Os suíços, que primaram pela democracia pura, até há pouco
não permitiam que a mulher votasse. São todos exemplos de democracias consideradas,
nas suas expressões mais puras, relativas. Ora, você pode dizer que o Brasil (e eu o digo
com o meu conhecimento de várias partes do mundo) é o país onde há uma maior
aproximação A democracia racial, quer seja no presente ou no passado humano. Eu
acho que o brasileiro pode, tranqüilamente, ufanar-se de chegar a este ponto. Mas é, um
país de democracia racial perfeita, pura? Não, de modo algum. Quando fala em
democracia racial, você tem que considerar o problema de classe, se mistura tanto ao
problema de raça, ao problema de cultura, ao problema de educação. Você tem que
considerar que isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas,
educacionais, culturais e sociais, é quase impossível. Você pode admitir, por exemplo,
que um brasileiro de origem carregadamente africana, preto ou quase preto, seja aceito
na intimidade dos mais refinados brasileiros, se ele próprio for um refinado na sua
educação, nas suas maneiras e no que chegou a ser a sua classe. Mas é muito difícil
você encontrar no Brasil brasileiros que tenham atingido essa situação... Por que?
Porque o erro é de base. Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de
maio, quem cuidou da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à
sociedade brasileira? A Igreja? Era inteiramente ausente. A República? Nada. A nova
expressão de poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal agrário e que
era a urbana industrial? De modo algum. De forma que nós estamos, hoje, com
descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Marginalizados na sua
condição social. E não se pode dizer que exista, um preconceito puramente racial. É um
preconceito contra um ser, um brasileiro, compatriota nosso, deseducado, sem as
maneiras que correspondem as nossas, às vezes sem saber comer de garfo e faca, sem se
comportar culturalmente como nós desejamos que uma pessoa já integrada no nosso
meio se comporte. E daí o preconceito: é o fato de que eles não são da classe a que o
brasileiro mais desenvolvido socialmente pertence, mas não pela sua pigmentação ou
sequer pelo seu cheiro característico de uma etnia (cada etnia tem um cheiro
característico). Não há pura democracia no Brasil, nem racial nem social, nem política,
mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em
qualquer outra parte do mundo. Talvez haja uma situação assim no Havaí, mas o Havaí
é uma ilhota e o Brasil é um continente.
Mudando de assunto: é verdade que o senhor sempre sonhou ser governador de
Pernambuco?
- Como é que você soube disso? É verdade, sim. Sonhei. E olhe que me foram
oferecidos Ministérios, Embaixadas, não sei quantas vezes. Nada disso me interessou.
Ninguém, porém, se lembrou de me oferecer o Governo de Pernambuco. Que eu teria
aceito e que gostaria de ter exercido. Acho que teria dado um bom governador. É uma
frustração minha.
E no caso das eleições diretas, o senhor se candidataria?
- Não. Eu só teria sido governador de Pernambuco através de um caudilho que me
indicasse. A eleição é uma postulação e eu me gabo de nunca ter sido um postulante. Eu
nunca me candidatei a coisa alguma. Sabe que eu tenho meus graus universitários, em
Universidades das melhores e mais sérias do mundo, e não me apresentei para receber o
grau no momento devido? Foi um escândalo. Porque era o momento máximo, mas em
ambos os casos as Universidades, pelas suas congregações, revelaram-se inteligentes e
me deram in absentia os graus dos quais eu muito me orgulho. E chegando ao Brasil,
nunca disse que tinha esses graus. Num livro muito interessante de um companheiro
meu de geração, Sílvio Rabelo, que foi dos que primeiro se aproximaram de mim
quando eu cheguei da Europa, depois de cinco anos de estudos, ele diz que veio anos
depois saber que eu era graduado de Universidades e até pós-graduado de
Universidades. Eu próprio nunca disse que era, porque o que me interessava - e aí entra
o meu quixotismo - era me afirmar no Brasil como escritor. E quanto a isto, me chamou
a atenção um grande crítico norte-americano de quem fui amigo, Henry Mencken. Ele
disse: "Deixe esta história de Universidade e vá para a Europa e tenha os seus contatos
culturais livres. Você já não será um autodidata, porque já tem uma formação
universitária, mas não continue, não faça da sua tese de mestre uma de PhD. Esse
negócio de Phdeísmo - já ele dizia àquela época - é uma deformação da cultura
americana, como o foi por algum tempo da cultura alemã. Cria especialistas num mundo
necessitado de generalistas". Isto me deu boa impressão. Ele dizia que o título
acadêmico perturba o escritor e o leitor não acredita muito num escritor que se apresenta
como mestre ou como doutor ou como titular acadêmico. Prefere a revelação do escritor
como escritor tão somente. Então, eu adotei isto. Era uma coisa quixotesca. Eu sempre
me lembro do espanto do meu amigo Oliveira Lima, quando eu disse a ele que vinha
para o Brasil. Ele, muito contrário a que eu viesse, disse que eu ficaria desapontado, (ele
próprio se exilara), que, se quisesse ser escritor, teria que ficar na Europa. Mas eu queria
experimentar. E não é que deu certo? Não é que eu vim a viver de direitos autorais? Não
é que eu vim a ter uma independência, permitindo-me recusar Ministérios, Embaixadas,
Presidências remuneradas, como, a do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais?
Deu certo. Agora mesmo, Gallimard quer publicar minhas obras completas em Francês.
O livro se chama Maitres et Esclaves, que já está com 14 edições. Gallimard se
espanta: não há livro dessa espécie que tenha alcançado esse sucesso. De modo que, por
este lado, eu me considero muito feliz, dou muitas graças ao meu Deus místico, com
quem me comunico misticamente, fora das teologias.
Seu Deus não tem religião...
- Não. Meu Deus não tem religião.
O senhor é tido como uma pessoa de grandes amigos e de grandes inimigos. Quem
é o melhor amigo de Gilberto Freyre?
- É difícil dizer. Eu posso citar alguns dos meus amigos de hoje. Por exemplo, Lula
Cardoso Ayres é um grande amigo. Também Edson Nery da Fonseca. O meu editor
fracassado, José Olympio (ainda há pouco, eu dizia a ele que, sentimentalmente, devido
a esta amizade, eu sou até prejudicado). Acho que devo incluir entre meus grandes
amigos meu filho Fernando. O que hoje é raro. Em São Paulo, Osmar Pimentel,
secretário da Academia Paulista de Letras, foi crítico literário muito ativo na Imprensa.
Há um brasileiro que vive há muitos anos em Paris, mas que não deixa de ser de
Pernambuco, Cícero Dias. Houve um que morreu, que foi grande amigo meu, José Lins
do Rêgo. Um amigo francês, chamado Régis de Bollier. Tenho uma grande capacidade
para a amizade, o que é preciso não confundir com a capacidade para a camaradagem.
Qual é, na sua opinião, a única coisa que não merece perdão?
- A deslealdade.
Uma clássica pergunta: se o senhor ficasse isolado numa ilha, que livro levaria?
- Eu hesitaria entre Guerra e Paz, de Tolstoi, o Dom Quixote, e Shakespeare.
Algum preconceito com o autor nacional?
- Não, de modo algum. Eu vivo muito preocupado com a criatividade literária no Brasil.
Admirei muito o meu amigo, José Lins do Rêgo. Machado de Assis ... acho que poderia
ter sido, mais brasileiro, mas foi, realmente, um grande escritor. Euclides da Cunha está
entre minhas grandes admirações. Guimarães Rosa também. E entre os poetas... dos
poetas antigos não consigo admirar nenhum e isto vai, talvez, escandalizar você. Não
consigo admirar Gonçalves Dias. Acho Castro Alves multo mais orador, às vezes
bombástico, do que poeta. Agora, a começar de Manuel Bandeira, acho, que os poetas
estão dando uma nova força lírica à literatura em língua portuguesa.
Para finalizar: nem ao Diário de Pernambuco o senhor daria a sua famosa receita
do conhaque de pitanga?
- Eu poderia fazer o que antigamente se tornou clássico em Pernambuco em torno das
receitas de doces e bolos que as sinhazinhas peritas de certas famílias faziam. Ante
muita insistência, elas davam a receita, mas ensinavam errado. Eu, simplesmente, no
caso do meu conhaque de pitanga, cultivo, um certo mistério. Podia, sim, lhe dar a
receita. Mas não dou. E você podia perguntar por que razão cultivo um mistério. Ora,
por que não cultivar um mistério?

Fonte: RIVAS, Lêda. Parceiros do tempo. Recife: Universitária, 1997. p. 179-191.

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