JASPERS, Karl - Origem e Meta Da História
JASPERS, Karl - Origem e Meta Da História
JASPERS, Karl - Origem e Meta Da História
Karl Jaspers
Prólogo
A história dos homens em sua maior parte de-
sapareceu da lembrança. Ela só se fez acessível e,
em porção mínima, mediante algumas pesquisas
aprofundadas.
O presente, por um lado, está repleto do fundo histórico que em nós se atualiza
– a primeira parte do livro trata da história do mundo até nossos dias.
Por outro lado, o presente de forma latente está penetrado pelo futuro, cujas
tendências, seja em oposição ou em adesão, fazemos nossas – a segunda parte do
livro pretende tratar do presente e do futuro.
Todavia, este presente pleno procura lançar sua âncora em sua eterna origem.
Conduzir pela história para além da história, ao transcendente, o qual nos envolve, é
a última coisa que o pensamento não pode alcançar, mas sempre haverá de procurar
rever – constituindo-se, assim, na terceira parte do livro, que trata de esclarecer o
sentido da história.
Karl Jaspers
É possível também tentar compor uma imagem total, unitária e conexa da história
da humanidade. Desse modo, descobrem-se os círculos culturais que já existiram e
seu percurso, contemplamo-los primeiramente separados e depois em sua influência
recíproca, extraímos o elemento comum de seu sentido e inteligibilidade mútua e,
por fim, pensa-se num único sentido unitário no qual fique ordenada toda a multi-
plicidade (Hegel)1.
Assim, no século XIX, toma-se e se entende por história universal a que, depois
das etapas prévias do Egito e Mesopotâmia, começa na Grécia e na Palestina e chega
até nós. O restante pertence à etnologia e fica fora da verdadeira história. A história
universal era a história do Ocidente (Ranke).
1. Para a filosofia da história são de perdurável significação as obras penetrantes de Vico, Montesquieu – Les-
sing, Kant – Herder, Fichte, Hegel – Marx, Max Weber. Para uma visão de conjunto destas teorias: Cf. Johannes
Thyssen, Geschichte der Geschichtsphilosophie, Berlim, 1936; R. Rocholl, Die Philosophie der Geschichte, tomo
I, Göttingen, 1878.
2. O. Spengler, Der Untergang des Abendlandes, 1918. [Em português: A decadência do Ocidente: esboço de uma
história universal.3. ed. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.] Alfred Weber, Kulturgeschichte als
Kultursoziologie, Leiden, 1935; Das Tragische und die Geschichte, Hamburgo, 1943; Abschied von der bisherigen
Gechichte, Hamburgo, 1946; Toynbee, A study of history, Londres, 1935.
3. Toynbee é mais precavido nesta questão. Penetra, ou melhor, recobre sua imagem da história com a concepção
cristã. Segundo ele, uma cultura pode em princípio perdurar sem decadência. Ela não se aplica à cega necessidade
das idades biológicas da vida e da morte. O que acontecerá depende da liberdade humana. E Deus pode ajudar.
Spengler afirma que ele – e, segundo pensa, é o primeiro – diagnostica metodicamente com a precisão de um
astrônomo. Assim, prevê a decadência do Ocidente. Muitos encontraram nesta previsão o que já tinham em mente.
Pela sua imagem engenhosa, em que o jogo das comparações e referências vai do capricho à plausibilidade e se
afirma com segurança ditatorial, devem opor-se dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a interpretação
de Spengler por símbolos, comparações e analogias é, às vezes, apropriada para caracterizar um “espírito”, uma
maneira de pensar e de sentir; contudo, pertence à essência de toda interpretação fisionômica na qual não se
conhece metodicamente uma realidade, mas que se interpreta o infinito através de possibilidades. A ideia preten-
siosa da “necessidade” do acontecer está envolvida de forma subreptícia. As séries morfológicas são concebidas
causalmente e as evidências de sentido, como uma verdadeira inevitabilidade do acontecimento. Spengler não
pode sustentar-se metodicamente onde pretende fazer algo mais que caracterizar as manifestações históricas.
Na medida em que suas analogias às vezes contêm problemas reais, são apenas claras quando a declaração é
verificável causalmente em cada caso particular através de uma investigação e não por intuição fisionômica como
tal. O cuidadoso, que no particular sempre crê ter tudo na mão, deve ser determinado e estabelecido e, assim,
precisa renunciar à intuição do todo.
Em seguida, termina a substancialização ou hipostatização das unidades culturais. Não há mais que ideias de
um todo relativo e esquemas de tais ideias em construções ideais típicas. Estas, em princípio, podem colocar
em conexão uma grande variedade de fenômenos. Contudo, embora não formem sempre um todo, não podem
colocar tudo na mão, como se fosse um corpo inteiro.
Em meu esboço continuo inspirado, como por um artigo de fé, pela convicção de
que a humanidade possui uma origem única e uma meta final. Contudo, não conhe-
cemos em absoluto nem esta origem nem tampouco esta meta. Entrevemos apenas
esses dois polos num vislumbre de símbolos multívocos, entre os quais se move nossa
existência. Pela meditação filosófica, procuramos aproximar-nos de ambos, a saber,
da origem e da meta: Todos os homens somos parentes em Adão, procedemos das
mãos de Deus e fomos criados conforme sua imagem e semelhança.
Em segundo lugar, contra a ideia spengleriana da separação absoluta de culturas que estão umas ao lado das
outras sem se relacionarem, devem ser observados os contatos, as transmissões, as apropriações (o budismo na
China, o cristianismo no Ocidente) empiricamente verificáveis e, que, segundo Spengler, só conduzem a pertur-
bações e pseudomorfoses; contudo, indicam para um fundamento comum.
O que seja esta unidade fundamental é, para nós, um problema infinito, tanto para o conhecimento quanto para
a realização prática. Toda unidade concebida muito propositadamente – constituição biológica ou pensamento
intelectual de validade geral ou propriedades comuns do ser humano – não corresponde à verdadeira unidade
em absoluto. A hipótese de que o homem é, em potência, o mesmo em todos os lugares, é tão legítima como a
tradução
oposição de que o homem é diferente e diferenciado em qualquer lugar, mesmo na singularidade dos indivíduos.
Pertence à unidade, em qualquer caso, a compressibilidade mútua. Spengler nega-a: diferentes culturas são pro-
fundamente distintas, incompreensíveis entre si. Por exemplo, não nos é possível compreender os antigos gregos.
Contra esta estranha justaposição de culturas eternamente estranhas, fala a possibilidade e a realidade parcial
de compreensão e apropriação. O que os homens pensam, fazem e produzem repassam aos demais, porque, em
suma, trata-se dos mesmos homens, onde quer que se encontrem.
Dessa maneira, apresenta-se para nós uma imagem da história à qual a história
pertence: primeiramente, o que, como feito único e não passível de repetição, ocupa
um lugar intransferível no processo unitário da história humana e, em segundo lugar,
o que possui sua realidade e infalibilidade na comunicação ou na continuidade do
ser humano.
Esbocemos agora numa estrutura da história universal nosso esquema que trata
de dar à história da humanidade a máxima amplitude e a mais decisiva unidade.
4. Nota de tradução: a obra Origem e meta da história, de Karl Jaspers, divide-se em: Primeira parte: História
universal (oito capítulos); Segunda parte: Presente e futuro (três capítulos); Terceira parte: O sentido da história
(cinco capítulos). Na seleta aqui publicada, em primeira mão, optamos por traduzir respectivamente: o “Prólogo”
geral, a “Introdução” à primeira parte e, por fim, “4. Nossa moderna consciência histórica” e “5. Superação da
história”, que constituem os dois últimos capítulos da terceira parte e, portanto, o final da obra.
É certo, contudo, que atualmente ainda nos damos à leitura e deleite de meras
exposições narrativas. Por meio delas tratamos de preencher de imagens o campo
de nossa intuição interior. Porém, o essencial para nosso conhecimento é a intuição
unida à análise que hoje se resume sob o nome de sociologia. O representante é
Max Weber com sua obra, sua clara e multidimensional capacidade de compreensão
nesses amplos horizontes da intuição histórica, sem fixação de uma imagem total.
Aquele que conhece tal pensamento, já lhe custa trabalho ler muitas páginas de
Ranke por causa da forma vaga dos conceitos. A compreensão mais aguda exige
múltiplas informações de fatos e sua reunião pela aproximação de problemas que,
como tal, já são esclarecedores. Com isso, o antigo método comparativo, graças à
sutileza que tem alcançado, destaca o que é único na história de modo tão plástico
e impressionante. A profundidade no que é propriamente histórico eleva o mistério
do único à mais clara consciência.
b) Hoje está superada a atitude que via na história uma totalidade abarcável. Ne-
nhum esboço total que envolva a história pode ainda prender-nos. Não construímos
uma armação definitiva da totalidade da história, mas apenas uma possibilidade em
cada caso desmorona novamente.
Apesar disso, não temos, mas sempre buscamos um saber da história total, no
qual ocupamos um momento único e irrepetível. A imagem total fornece, em cada
caso, o horizonte à nossa consciência.
Diante disso está a moderna atitude de deixar em suspenso toda imagem total,
inclusive as negativas, para colocar diante de nossa imaginação todas as possíveis
imagens totais e tatear em que medida acertam. Dessa forma, obtém-se, em cada
caso, uma imagem amplíssima, general, na qual todas as demais são aspectos sin-
gulares, a imagem com a qual vivemos, tornando-nos conscientes de nosso presente
e, então, esclarecendo nossa situação.
Com efeito, a todo instante, realizamos intuições totais da história. Mas quando,
partindo delas, se desenvolvem esquemas da história como perspectivas possíveis,
deturpa-se seu sentido enquanto se toma uma concepção total como conhecimento
efetivo da totalidade, cujo curso é concebido em sua inevitabilidade. Somente alcan-
çamos a verdade quando, em lugar de investigar a casualidade total, investigamos
certas e determinadas casualidades até o infinito. Somente na medida em que algo
é concebível causalmente é conhecido neste sentido. Nunca se pode demonstrar a
afirmação de que algo acontece sem causa. Contudo, na história se oferecem, para
nossa visão, o salto da criação humana, a revelação de inesperados conteúdos, a
mutação na série de gerações.
O método do pensar total, ainda possível hoje, que a si mesmo analisa, contém
os seguintes momentos:
Os fatos são conhecidos e, por assim dizer, golpeados a fim de se escutar que som
possibilitam, permitindo então entrever o sentido que podem possuir.
Onde quer que seja, somos conduzidos até os limites, para alcançar os horizontes
mais longínquos:
Para além destes horizontes nos são apresentadas exigências. Disso resulta um
retrocesso do contemplador da história sobre si mesmo e seu presente.
nos importa; o que nela nos importa aumenta constantemente. E o que nos importa
já é, por isso mesmo, uma questão atual do homem. A história se atualiza para nós,
tanto mais quanto menos se reduzir a objeto de gozo estético.
A história do mundo pode ser vista como um caos de sucessos fortuitos – em seu
conjunto, como um dos redemoinhos de um rio –, como se avançasse sempre de uma
confusão para outra, de uma desgraça para outra, com certos clarões de felicidade,
ilhas que ficam protegidas por um momento pela corrente até que também são tra-
gadas; em suma, para dizê-lo por uma metáfora de Max Weber: a história universal
é como uma rua que o diabo pavimentou com valores destruídos.
Vista assim, a história não possui unidade e, portanto, nem estrutura e nem senti-
do, mas apenas as inumeráveis e inabarcáveis séries causais, tais como se apresentam
no acontecer natural, só que na história são muito mais inexatas.
Todavia, como ambos se entrelaçam? Por nenhum método racional. Pelo contrário,
o movimento de um controla o do outro, enquanto que ao mesmo tempo o suscita.
De onde venho, para que vivo, isso só experimento no espelho da história. “Quem
não se der conta de três mil anos, permanece inexperientemente na obscuridade,
embora possa viver seu dia-a-dia”. Isto significa uma consciência do sentido, uma
orientação e, antes de tudo, uma consciência substancial.
O enigma do agora pleno nunca será resolvido, embora possa ser aprofundado
pela consciência histórica. A profundidade do agora só se torna latente, identificando-
-se com o passado e o futuro, com a lembrança e a ideia pela qual vivo. Pelo eu sou
consciente do eterno presente através da forma histórica, da crença na veste histórica
que se adota em cada caso.
Ou, por acaso, será possível fugir da história, subtraindo-me dela no intemporal?
5. Superação da história
Até agora notamos o seguinte: a história não está acabada – o acontecer encerra
infinitas possibilidades; toda configuração da história como um todo conhecido cai
por terra, porque, o que recordamos, revela, em função de novos dados, uma ver-
dade antes ainda não percebida. O que primeiro havia sido colocado de lado como
essencial, cobra depois um caráter absolutamente essencial. Encerrar a história parece
impossível, pois transcorre do infinito ao infinito, e só uma catástrofe exterior pode
acabar absurdamente com tudo.
Contudo, para nós, nunca pode haver um ponto arquimediano conhecido fora
da história. Estamos sempre já inseridos nela. Recorrendo ao anterior, ao meio ou
ao depois de toda história, no que tudo envolve, no ser mesmo, buscamos em nossa
existência e na transcendência o que seria este ponto arquimediano, se pudesse tomar
a forma de um saber objetivo.
Nossa consciência está orientada pelo inconsciente, ou seja, tudo o que nós encon-
tramos no mundo, sem que se comunique desde isso algo interior. E nossa consciência
é sustentada pelo inconsciente, é um contínuo emergir a partir do inconsciente e volta
a deslizar no inconsciente. Entretanto, do inconsciente só podemos adquirir experi-
ência por meio da consciência. Em cada passo consciente de nossa vida, sobretudo
em cada ação criadora de nosso espírito, auxilia-nos um elemento inconsciente que
existe em nós. A pura consciência não pode nada. A consciência é como a crista de
uma onda, como um cume sobre um extenso e profundo subsolo.
Este elemento inconsciente que nos sustenta possui dois sentidos: o inconsciente
que é a natureza, em si e para sempre obscuro, e o inconsciente que é o germe do
espírito que aspira revelar-se.
A história é, pois, por sua vez, o caminho feito no e pelo transhistórico. Na visão
do grande – criado, feito, pensado – resplandece a história como presente eterno.
Então já não satisfaz uma curiosidade, mas torna-se força que instiga. O que de
grande há na história prende como objeto de veneração o fundamento que está
sobre toda a história.
Mas a resposta – impossível para nosso saber empírico – é supérflua para nossa
consciência do ser. Pois mesmo quando nossa imagem da história pode ser radical-
mente modificada – segundo vemos um infinito progresso ou as sombras do fim –, o
essencial é que o saber total da história não é o último saber. Trata-se da exigência da
atualidade como eternidade no tempo. A história está rodeada do amplo horizonte
no qual a atualidade vale como parada, conservação, decisão, cumprimento. O que é
eterno aparece como decisão no tempo. Pela consciência transcendente da existência
a história se esvaece no eterno presente.