O Numinoso
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O Numinoso
l - O NUMINOSO
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Como, então, se dá o acesso racional ao divino? Deus não pode ser objeto
da razão pura. Na religião encontramos a idéia do sagrado, do santo. Aí o
sagrado aparece como idéia, portanto carregado de noções racionais. Mas
na idéia do sagrado propriamente não encontramos um objeto contido em
seus conceitos correspondentes. Assim, as noções racionais aparecem
apenas como predicados. Os predicados racionais esquematizam ou
racionalizam o elemento originalmente não-racional, o numinoso. O
numen é o objeto próprio da idéia do sagrado. Este não pode ser
apreendido em conceitos racionais, mas pelo sentimento numinoso, que é
um estado afetivo da alma. A essência da idéia do sagrado está no
numinoso.
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1.3.1 O tremendo
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Algo que faz gelar o sangue transparece como alguma coisa sobrenatural.
Este terror místico é inteiramente diferente dos estados psíquicos de medo,
de angústia, de temor. O pânico espectral, sinistro é diferente em grau e em
qualidade do temor natural. Este estado de alma particular do terror
demoníaco é o grau preliminar do temor religioso.
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Miguel Frederico Sciacca faz uma crítica feroz a Otto, que quer resgatar o
elemento do tremendum na concepção cristã de Deus.
"... Otto nunca chega a apreender a religião e o senso do divino senão nas
reações do 'tremendum', da 'ira dei', do temor, do aniquilamento, que são
justamente as reações peculiares das religiões primitivas, inferiores,
bárbaras. O 'numen', mesmo quando 'fascinans' e 'sanctum', é sempre o
Deus do terror, da ira, o Deus que aniquila e aterroriza, que petrifica,
emudece e faz recuar pelo pavor que desperta. Onde está aqui o Deus Pai,
Amor, Providência da Revelação Cristã?"[19].
O antropólogo inglês Robert Ranulph Marett entende, como Otto, que o
temor reverencial é o que melhor expressa o sentimento religioso
fundamental. Segundo Marett, "a maravilha, a admiração, o interesse, o
respeito e inclusive o amor, são, tanto como o medo, constituintes
essenciais do talante elementar do temor"[20].
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corpo e não podem matar a alma; temei antes aqueles que podem fazer
perecer no inferno a alma e o corpo" (Mt 10,28); "Quão terrível é cair nas
mãos do Deus Vivo" (Hb 10,31); "Porque o nosso Deus é um fogo
consumidor" (Hb 12,29). Jesus prega o Reino do Pai celestial. Diz Otto que
este nome pode soar hoje como uma expressão familiar, de doçura,
sinônimo de bom Deus. O Pai é o rei, santamente sublime. O Reino se
aproxima como ameaça obscura, carregada do temor de Jahveh.
"Desconhecer isso é transformar em romance o Evangelho de Jesus"[21].
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Este elemento, segundo Otto, tem causado as mais fortes reações entre os
místicos e os, filósofos. Os filósofos têm rejeitado este elemento da energia,
de orgé, como produto do antropomorfismo. Deus seria um produto das
formas humanas da paixão, da excitação, da vida etc. Por outro lado, os
homens religiosos voltam-se contra o Deus da filosofia por não
reconhecerem o caráter analógico dos termos tomados de diversos
domínios da vida humana. O racionalista é incapaz de reconhecer este
sentimento autenticamente não-racional. A bandeira anti-racionalista
coloca o Deus vivo em oposição ao Deus idéia da especulação filosófica.
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José Todoli faz igualmente uma crítica a Otto que nos parece
surpreendente ao se referir à teoria da divinização.
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"A verdadeira divinização nada tem a ver com as leis naturais. De fato, o
seu relacionamento com as leis naturais não é problema para ela. Ela não
busca saber como é produzido o fato, o evento, ou qualquer outra coisa, ou
como uma pessoa tomou-se o que é; ela se preocupa com a significação e se
o fato é um sinal do sagrado"[31].
A teoria de divinização a que Todoli se refere Otto chama de teoria supra-
naturalista, e concorda com a crítica de que é uma faculdade do raciocínio.
Otto afirma literalmente: "Essa teoria da divinização e do sinal é uma
teoria formada por conceitos massivos e uma demonstração"[32]. Também
na crítica de José Todoli não há clareza quanto à compreensão do supra-
natural e do anti-natural; do supra-racional e do anti-racional. O supra-
natural é demonstrado quando se tira, de premissas dadas (no mundo
natural), uma conclusão lógica. A verdadeira divinização é o
reconhecimento de um objeto qualitativamente diferente, sem vínculo com
a natureza.
1.3.3 O fascinante
O objeto numinoso tem como forma o mistério. Este elemento nuclear tem
um conteúdo qualitativo numinoso. Este conteúdo
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"O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem
não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (I Cor 2,9). O
amor, o consolo vividos no nível profano
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Este estado é descrito por figuras como: abismo do prazer mais perfeito,
delícia sem fim, sol magnífico. Aqui aparece o algo mais do fascínio que
não pode ser expresso por conceito. Este estado de bem-aventurança, de
fascínio encontra-se em todas as religiões que têm esperança na salvação.
A doutrina da salvação torna-se incompreensível ao homem natural.
Quando Paulo fala na esperança da ressurreição, culmina assim: "E,
quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho
se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em
todos" (I Cor 15,28). As doutrinas de salvação são expressas e ensinadas
por noções análogas, ou ideogramas do sentimento religioso. Quem não
possui esta visão beatífica de Deus, terá uma compreensão muito
imperfeita da salvação. Que Deus seja tudo em todos poderá não ter
nenhum sentido para o homem natural.
"Seja sob a forma de Reino de Deus que virá ou sob a forma de acesso do
sujeito à realidade supra-terrestre e beatífica; seja na espera e no
pressentimento ou na experiência presente; sob as formas e nas
manifestações as mais diversas, aparece uma tendência fundiária única,
estranha e poderosa, em direção a um bem (salvação) que conhece apenas
a religião e que não é racional"[35].
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"A vida deixa de ter valor; os fins mergulham no pego do irracional e do
inatingível; só resta ao homem deixar-se revolver do absurdo, que se toma
em 'fascinans'. O 'fascinans' do 'numen' de Oito é a atração que sobre nós
exerce um Deus inimigo, prepotente e tirano, ação essa que se cifra em nos
comunicar a consciência do nada que somos"[38].
Concordamos com Sciacca que na concepção ottoniana de Deus predomina
o elemento do terror. Mas a crítica não se justifica quando submete o
elemento fascinante do numen ao elemento do tremendo. Sciacca faz uma
interpretação errônea da descrição que Otto faz destes elementos. Em sua
síntese, Sciacca afirma: "O terrífico, o suprapotente, o maravilhoso atraem
e fascinam a alma até a ebriedade: é o momento dionisíaco, irracional, ..."
[39]. No texto de Otto temos: "Ao lado do elemento perturbador aparece
algo que seduz e cresce em intensidade até produzir delírio; é o elemento
dionisíaco da ação do 'numen'"[40]. Otto utiliza a expressão ao lado, que
deixa bem claro que está falando de dois elementos distintos: o elemento
fascinante atrai e o tremendo repulsa. Quer dizer, por um lado um
elemento que ativa e fascina e, por outro, um elemento repulsivo, o
tremendo. É o duplo caráter do numinoso. E Otto tala numa estranha
harmonia de contrastes. Para Sciacca, o elemento do tremendo também
fascina e atrai, o que não corresponde à exposição de Otto. Desta forma
chega a uma crítica injusta, reduzindo o numen de Otto ao terror, restando
ao homem revolver-se no absurdo, que se transforma em fascínio. Este
fascínio fatalístico faz a religião de Otto ser uma religião desumana e de
escravos. Essa crítica de Sciacca não passa de um reducionismo, de uma
parcialidade. Falta-lhe uma compreensão mais exata da distinção dos
elementos do numen e especial-
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