Modernismo PDF
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Março, 2015
Maurienne Caminha Johansson
UNIVERSIDADE ABERTA
Março, 2015
AGRADECIMENTOS
A Ti, que não és para mim somente um mistério distante e muito menos um
romantismo religioso, nem mesmo um elemento secular de um credo. A Ti, que és, sim,
meu Mestre por excelência de todas as questões, o paráclito, advogado de todas as
causas... do labirinto de minha vida. A Ti, Espírito Santo do Deus vivo, tão vivo e tão
real como as fontes das águas e como a presença do ar, ou como a existência das
pessoas, quero dizer-te muito obrigada: com teu sopro permanente me puseste a mover-
me em frente num caminho onde de mim mesma eu nada poderia alcançar, em
condições tão adversas... e controversas para realizar tão pequena e tão grande tarefa a
um só tempo.
Meus filhos - Kjell Arne, Björn Kristian e Enne Hannele, razões de minha luta - com
extensão à minha nora Jéssica -, por como cada um, a seu próprio modo, pôde alimentar
em mim o compromisso do processo e pela ajuda pessoal, muito obrigada!
Meus pais - João Borges Caminha e Inocência Lustosa Caminha, pelo amor e apoio
incondicionais que me têm dado, mesmo com o Atlântico a separar-nos, pelas orações e
assistência nesta etapa e nas outras, pela juventude de sua energia - muito obrigada!
Meus irmãos – Maurélia, Marco Aurélio, Maura e Marco Túlio e famílias, obrigada
pela presença amável na distância e o bem-querer da minha prosperidade.
Meus sogros - Gustav-Arne e Ruth May, pelas intercessões e orações que têm
dedicado à família e a mim também, que tanto me ajudam a aguentar, agradeço-lhes.
A você, professor/orientador Carlos Castilho Pais, quero dizer-lhe que sua justiça,
sensibilidade e solidariedade foram decisivas para que eu não desistisse do Curso de
Mestrado em Literatura e Cultura de Língua Portuguesa. Portanto, muito obrigada!
Agradeço em seguida à Universidade Aberta-PT e a este Mestrado.
A você que não nomeei, que pensou em mim ou me quis o bem, obrigada!
A cada autor de livros, ensaios, artigos, com quem me “encontrei” na pesquisa – pela
presença que sustentou este debate frutífero, roubando-me mais ainda a possibilidade do
sono pelo insulto e curiosidade de cada pergunta, no desafio de querer conhecer, muito
obrigada. Finalmente, ao Piauí, de onde venho e ao Brasil /Portugal, parte do que sou,
agradeço.
ÍNDICE
Introdução........................................................................................................................1
3. O Futurismo……………………………………………………………….............60
Conclusão…………………………………………………………………………….113
Bibliografia…………………………………………………………………………………...128
Anexos
RESUMO
This paper introduces the research undertaken to meet the aesthetic, ideological and
social manifestations of the literary movements that became known as Modernisms,
both in Portugal and in Brazil. It aims to contribute upon tracing the contours of the
profiles of modernisms (Portuguese and Brazilian) so it can be understood as how those
movements took form of a modernization project of the nation, pursuing the resize of
their cultural identities through the renewal of aesthetics and expression, their common
target among a given time. Some questions might give us a more focused perspective
towards the positions adopted by the modernists regarding innovation. In this research
we came across topics we believe significant: the nature of the nationalism conducted
by both instances, the emotion and behaviour of poets against urbanism, the notion of
deceit/sincerity in the aesthetic expression, the proposed kind of cosmopolitanism; the
consideration to an international dialectics with former modernisms, the linguistic factor
and its "phobias", the religiousness, among others. The Futurism, and its reception, in
Portugal and Brazil become important in this scope to represent 'place' of agglutination
and aesthetic (and cultural) redefinition proposed by these movements. By largely
occupying space on the Portuguese and Brazilian vanguards, the literary manifestos
outline designs of the early modern face wished for themselves, Portugal and Brazil as
nation and people ahead of its time. These manifestos, by aiming the levelling of the
countries with the new aesthetics – mainly European – uncover a visible panel of the
options of modernities, claimed by modernists stemming from the sociocultural context
in which they are enrolled, which originally is its problematic nature. This lies at the
core of colonizer-colonized relationship or vice versa and requires solutions: plural
modernities that would paradoxically find in its own tradition, the germ for the renewal
in the shape of collective response. However, they are underpinned in the differentiation
that, between the two countries, has become the essential foundation that would
engineer its outputs: in the Portuguese situation, the new image of the empire, in the
Brazilian, the national self-assertion. Realizing these factors is equivalent to trace a self-
portrait of Portugal or Brazil.
1
INTRODUÇÃO
1
BUESCU, Helena Carvalho, Literatura Comparada em CEIA, Carlos (2010) - página website do Dicionário
de termos literários do autor.
5
1.
UM COTEJO POSSÍVEL ENTRE O MODERNISMO PORTUGUÊS E
O MODERNISMO BRASILEIRO: QUESTÕES DE PROEMINÊNCIA
NAS IDENTIDADES SOCIOCULTURAIS
7
Portugal é um velho parente, a quem nos prendem – como aos parentes mais queridos
– recordações gratas e dolorosas, e com quem sempre agrada tratar intimamente.
Estamos hoje em face um do outro, como homem para homem, e não como filho para
pai.
2
Cf. Comentário de Gilberto M. Teles (2009) sobre a comemoração do centenário do futurismo, com exposição
na França, no Centro Pompidou, da reavaliação do lugar e do estatuto do Movimento literário e artístico.
3
Op. Cit. por Ana Lúcia Freitas Teixeira (2009), Modernidades Confrontadas, tese de doutorado, em pdf,
referida na Bibliografia.n
8
4
Mário de Andrade desenvolveu uma teoria em 1939, portanto já passada a época de efervescência
‘revolucionária’ seja num ou noutro país, onde sugeria que a literatura portuguesa poderia provocar influências
opositivas à literatura brasileira quando esta estava no caminho de libertação da outra.
9
5
Op.cit : Saraiva, Id : 266.
10
“Nem Portugal pode prescindir do Brasil, nem o Brasil, por mais jovem e vigoroso,
pode substituir Portugal. Ambos se completam na comunidade da língua e na
diversidade do gênio”.6
Ronald de Carvalho
6
Ibid.
11
Entretanto, ainda há e por algum tempo ainda se acharão matizes e nuances imersos nos
dois Modernismos a ser iluminados e trazidos à superfície que revelem até que ponto eles
são tão divergentes ou tão convergentes, parecidos ou mesmo diferentes enquanto contornos
determinantes da sua gente em movimento de cultura nacional: ou melhor dizendo, até que
ponto ‘isto é Brasil’ e até qual ‘isto é Portugal’. É nessa linha de pesquisa que esta
investigação tem-se enquadrado.
7
- A questão da formação de uma literatura com identidade própria, separada de Portugal foi uma preocupação
séria no Brasil, especialmente desde a época do romântico José de Alencar até ao modernismo.
12
diferentemente saídas para problemas semelhantes, embora que muito peculiares em seus
contextos, pelos quais extraíam exatamente o seu modus agendi e levantavam a sua
bandeira. É como se o “problema”8 brasileiro fosse o mesmo português - embora que cada
um deles tivesse causas muito específicas e muito próprias - (e não o eximimos das outras
nações que deram às nossas os primeiros fundamentos à busca da modernidade) descrito em
forma panorâmica pelo primeiro órgão oficial do Modernismo brasileiro, a revista Klaxon:
Problema
Século XIX - Romantismo, Torre de Marfim, Simbolismo. Em seguida, o fogo de
artifício internacional de 1914. Há perto de 130 anos que a humanidade está fazendo
manha. A revolta é justíssima. Queremos construir a alegria. A própria farsa, o burlesco
não nos repugna, como não repugnou a Dante, a Shakespeare, a Cervantes. Molhados,
resfriados, reumatizados por uma tradição de lágrimas artísticas, decidimo-nos.
Operação cirúrgica. Extirpação das glândulas lacrimais. Era dos 8 Batutas. Do Jazz-
Band, de Chicharrão, de Carlito, de Mutt & Jeff. Era do riso e da sinceridade. Era de
construção. Era de KLAXON. ,
8
”Problema”- termo usado pela redação no editorial da revista Klaxon.
9
Destaques de não inclinação nossos dentro das citações: [...] “revolta justíssima” / “exílio de temperamentos”
[...],etc, intencionamos chamar a atenção para que o propósito das duas revistas relaciona-se à originalidade
com que previamente se dispõem em autoconhecer-se e construir alguma coisa bem deles (sincera) que lhes
falta, tanto a Klaxon quanto a Orpheu, - que resultará na procura estética de permutas, contra a fotografia do
realismo/naturalismo e as glândulas lacrimais do sentimentalismo romântico, visto isto num sentido amplo.
13
cogita principalmente de arte. Mas quer representar a época de 1920 em diante. Por
isso é polimorfo, onipresente, inquieto, cômico, irritante, contraditório, invejado,
insultado, feliz.10
KLAXON procura: achará. Bate: a porta se abrirá. KLAXON não derruba campanile
algum. Mas não reconstruirá o que ruir. Antes aproveitará o terreno para sólidos,
higiênicos, altivos edifícios de cimento armado.
KLAXON tem uma alma coletiva que se caracteriza pelo ímpeto construtivo. Mas cada
engenheiro se utilizará dos materiais que lhe convierem. Isto significa que os escritores
de KLAXON responderão apenas pelas ideias que assinarem.
Estas citações não são ainda o que teríamos de mais exato para ilustrar o que dissemos
anteriormente a elas no leque dos esboços modernistas, mas por uma questão metodológica
intencionamos visitar e rever aqui neste estudo e neste ponto dele aquilo que possa mais
diretamente revelar o que eram as intenções oficialmente expostas nos órgãos divulgadores
dos movimentos em seus começos. Acreditamos que estamos mais aptos desde agora a
visualizar fatores declarados (implícita ou explicitamente) como problemas que insuflaram
aqueles espíritos jovens numa profundidade suficientemente capaz de fazê-los reagir em
favor de uma mudança no comportamento artístico em seus países tal que, para construir o
novo deveriam antes fazer ruir o que estivesse obsoleto. Mas isto não ocorreria sem que se
tomassem posições estratégicas de intervenção no seio do aparelho ideológico dos sistemas
estabelecidos, tanto no caso português como no brasileiro, visto que o rompimento com
estruturas sistematizadas secularmente impõe necessariamente aos artistas a postura do
questionamento frente à sociedade e exigirá dos mesmos mostrar a esta mesma sociedade
suas diferenças, com criatividade e, acima de tudo, com a liberdade que reclamavam para a
autonomia da arte. Para criar algo novo haveriam que negar o ‘velho’ tanto com respeito ao
fato social como ao do fazer artístico, demarcando em primeira instância o choque com as
estruturas, ativando como elemento agônico11 desencadeador as atitudes vanguardistas, em
10
As características eleitas para Klaxon correspondem em alguns aspectos às do “exílio de temperamento” de
Orpheu e em especial o ecletismo, a contestação e a descentralização.
11
“Agônico”: este é um elemento de sentido muito vasto e profundo quando se trata do modernismo português,
mas por isso mesmo do brasileiro igualmente (mas de outro modo). Em Fernando Pessoa, por exemplo, quem
melhor representou o sentimento agônico, depois de Sá Carneiro, tinha a agonia a ver com o situar-se ele
mesmo no exterior e no interior da consciência cultural portuguesa ( veja-se Lourenço em “Da literatura como
interpretação de Portugal”), de sua ostensiva relação negativa com Portugal (Álvaro de Campos) e o seu
patriotismo profundo, o dilema que lhe exigia uma salvação mítica de Portugal , que levou Orpheu e mais
14
identifica a autonomia [da arte] com o atributo da arte burguesa sobre o qual a
instituição estabelece a sua estrutura ideológica. A vanguarda, enquanto autocrítica
da arte moderna, rejeita a instituição, procurando reintroduzir na prática da vida uma
arte defasada dela, instalada numa espécie de limbo estético, privada de função e de
efeito.
Como ‘categoria da crítica’ a vanguarda não é, para o mesmo autor um atributo da prática
artística – “Manifestação inseparável da vida, mas não menos testemunho consciente do
processo de emancipação social.” É deste mesmo pensamento que comunga Vila Maior
(1996:123) quando relembra sobre a necessidade de, “ao falarmos em vanguarda(s) ,
equacionarmos o problema que diz respeito à relação entre Arte e Vida que nesta(s) se
consubstancia”. Em outras palavras, o sujeito vanguardista insere-se no contexto
sociocultural (mas para influenciá-lo por uma ruptura com o mesmo), por meio de um
pragmatismo atuante “sobre as coordenadas políticas, sociais, estéticas e literárias do tempo
histórico-cultural” (Id.:191).
Dessa forma parece-nos razoável relembrar igualmente as configurações estratégicas
específicas que deram contornos aos modernismos português e brasileiro, e perceber
especialmente nas suas fases primeiras a intensidade do ativismo social ou engajamento
pelos quais os “modernistas” desejavam reconduzir a arte, especialmente a literatura, à
práxis da vida - em contínua transformação - o que paradoxalmente corroborará com a
autodestruição das próprias vanguardas, até que se tornem em cânone.12
Pessoa a tentar reconverter a imagem portuguesa da “pequena casa lusitana” a um projeto de alma e cultura
que extravasasse o ser somente português.
Por outro lado, a consciência ética de Mário de Andrade lhe punha no dilema entre a sublimação da estética
livre (de linguagem e de literatura) e de sua autonomia e a responsabilidade social de elevar a nação a um
modernismo multímodo, em meio a um movimento nitidamente aristocrático, mesmo não lhe cobrindo nenhum
“ salão de ricaços” e nem lhes acolhendo nenhum milionário estrangeiro. Trata-se da defasagem entre a práxis
artística e a práxis social, o tempo da criação e o tempo da ação. De acordo com BOSI (1992), “a atitude de
espírito dos modernistas [brasileiros], entre 22 e 30, qualificada como euforia e <<cultivo imoderado do
prazer>>, significa, para Mário de Andrade, uma expressão agônica, paroxística, duma classe aristocrática na
iminência de ver cair por terra o poder e a glória, a mesma inconsciência festiva que “reuniu Prados, Penteados
e Amarais aos iconoclastas de 22”.
12
O desvanecimento das vanguardas ocorre quando estas adentram numa fase de aceitação pelo púbico e
integram depois o código literário, penetrando no histórico ou no erudito, (Cf. Quadros, A.(1989:19); D‘Alge,
C.(1999:391) e Vila Maior, D.(1996:131-132)).
15
Entendemos que o contexto sócio-histórico deva ser lembrado aqui por uma questão
que se nos impõe no que refere a perceber os significados dos fenômenos no decorrer de
uma investigação como esta.
Assim, fácil é aceitar o que alguns já declararam - que a existência do homem
modificara-se a partir de acontecimentos que marcaram o final do século XIX e o início do
século XX. Em fins de XIX flagra-se o mundo moderno (tal como nós que vivemos nesses
séculos ‘pudemos conhecer’) nascendo com o ‘dna’ das correntes ideológicas que o
marcariam: o socialismo, o comunismo, o anarquismo e o associativismo, o estabelecimento
organizado do capitalismo e a política armamentista, andando lado a lado com o “avanço
científico-tecnológico intenso e sem precedentes e com um enorme desenvolvimento
industrial, comercial e das comunicações. É uma época caracterizada pelo dinamismo, em
que os valores do movimento e da velocidade são absolutizados”13.
Focalizando-se o Portugal da época, é visto o sentimento de crise profunda, herança da
experiência avassaladora da Geração de 70 que era, entre outros fatores (como a Revolução
Russa e a Primeira Guerra Mundial especialmente), provocado pela não adaptação dos
portugueses ao espírito moderno “respirado em toda a Europa”, na expressão de Ana
Nascimento Piedade (2011), que continua : “ao crescente progresso e aparente bem-estar
originado pela técnica não correspondia um equivalente desenvolvimento cultural”.
O <<Reino Cadaveroso>> [...] continua a aplicar-se ao Portugal do início do
século. Na verdade, fatos históricos como o Ultimato Inglês de 1890 (que obrigara
Portugal a entregar à Inglaterra grande parte das possessões coloniais em África),
espalhando um sentimento de humilhação no país, o Regicídio, em 1908, e a
proclamação da República dois anos depois, contribuíram para agudizar este período
de instabilidade económica, social e política.
É neste contexto, que configura um estado geral de crise de valores, que surge a
vontade de romper com os padrões oitocentistas, e que proliferam os “ismos”. A
eclosão do Modernismo não pode dissociar-se da instauração da República, sua
contemporânea, e aponta para o desejo de relacionar as artes plásticas e a literatura e
para a vontade de colocar Portugal ao ritmo da Europa, sem esquecer as raízes, i.e., o
que faz a sua originalidade nacional enquanto movimento estético.14
13
PIEDADE, Ana Nascimento, A Geração de Orpheu ou ”a única ponte entre Portugal e a Europa” , do
programa de Mestrado da Universidade Aberta/Pt , Lisboa, 2011.
14
Id., pp.1-2
16
moeda, o infortúnio no plano da economia e das finanças. Atinge o próprio espírito da época
e é interregno dramático a exigir superação”. Depoimentos como estes mostram vários lados
do prisma (Id.16):
Depois da bancarrota, o público brasileiro divide-se apenas em duas ordens: a dos que
tudo perderam e a dos que tudo ganharam. Os primeiros choram de fome e os segundos
tremem de medo pela sua riqueza mal adquirida. Uns se escondem para ocultar a
miséria; outros para fugir à justiça... Um belo carnaval! E ninguém lê livros.
Aluísio Azevedo, O Álbum,1893.
Pobre literatura nacional! Essa nem ao menos encontra quem lhe chore o triste fado.
[...]
Capistrano de Abreu, 1893.
consequente imigração que mudaria o perfil racial triplo do brasileiro, incluindo o italiano,
o alemão, o eslavo, o saxão, e outros, provocando também as primeiras agitações sociais nos
centros urbanos sob a agitação das vanguardas operárias anarquistas; a maquinização e a
indústria; a intervenção de Rio Branco nas fronteiras brasileiras definindo o mapa geográfico
do Brasil.
Há que se considerar ainda outros fatores determinantes de transformações sociais, tais
como15: o conflito entre tendências políticas diversas e contradições no interior das elites
agrárias dominantes; as insurreições desencadeadas pelos jovens oficiais contra o monopólio
do poder dos partidos republicanos regionais e dos chefes políticos que recorriam à fraude
eleitoral e às intervenções militares nos Estados para controlar o regime segundo seus
interesses; as divergências no bloco agrário dominante pela sucessão presidencial para o
equilíbrio dos interesses dos Estados de Minas Gerais e São Paulo pela “política do café-
com-leite” (1894-1930); a insatisfação das oligarquias não ligadas à indústria cafeeira;
desvalorização cambial e endividamento externo e a Reação Republicana no Rio grande do
Sul incluindo gaúchos, pernambucanos, cariocas e baianos; a indicação de Nilo Peçanha à
presidência; divergência entre as elites oligárquicas na república café-com-leite (que iria
culminar na revolução de 30); o automóvel; a chegada da “modernidade” cujas artes e
literatura deveriam ‘corresponder à altura’ – “mundo que o Modernismo cantaria,
glorificaria e temeria, consequência dele que era”, no dizer de Mário da Silva Brito (1974:
28).
O que retiramos destas ‘anotações portuguesas e brasileiras’ é em especial que:
enquanto o Brasil estava cuidando de chegar à frente, nas conquistas sociais, tecnológicas,
econômicas e políticas, Portugal já as tinha conquistado em época anterior – este tipo de
modernização no Brasil já ocorrera no Portugal da geração de 70 16 que Cesário Verde
anunciaria em 1886/87 na sua única obra, póstuma17, como chegada da modernidade e do
cosmopolismo no seu “Sentimento dum Ocidental”: “Batem os carros de aluguer, ao fundo,
/ Levando a via férrea os que se vão. Felizes! / Ocorrem-me em revistas exposições, países:
/ Madrid, Paris, Berlin, Sampetersburgo, o mundo!”– houve depois uma nova emergência: a
15
Revista Hominum , revista mensal de divulgação cultural, n° 10, novembro- 2012.
16
A tendência progressista ganhou anos áureos em Portugal especialmente desde o desempenho do engenheiro
e militar António Maria Fontes Pereira de Melo, na auçada do Ministério das obras Públicas e do Comércio e
Indústria, que, construindo estradas, pontes e linhas de ferro, entre 1852 e 1856 aproximadamente, pôde reduzir
a marcante distância entre a pobreza tradicional de Portugal e a prosperidade da industrialização europeia.
Todavia, D. Pedro V aproveitou-se deste quadro para ”promover o progresso material em detrimento até do
progresso sociocultural”, cf. PIEDADE e VILA MAIOR (2001:7).
17
Cf. MARTINS, Oliveira.”O fantástico Cesário” in Portugal, identidade e diferença (2007:123 -124).
18
nação vivia agora uma degenerescência, um atraso e uma estagnação culturais, uma situação
econômica em baixa, uma monarquia ofegando (como nos ilustra tão sintomaticamente o
teatro de O Fim (1909) de António Patrício) e entregando o mastro para o 1° presidente eleito
(1911, portanto próximo à guerra) em uma decadente rotatividade política e uma vida
cultural minguante e de desagregação de valores (a par de uma “agregação” de valores no
tempo brasileiro – em outro sentido) onde os interesses materiais burgueses sobrepunham-
se aos interesses da cultura, intelectuais ou artísticos (também isto era caso brasileiro) - isto
em nada parecido a uma grande nação europeia (e desde quando Portugal quis ser
pequeno?)...
Como recuperar seu império ? Criando outro: Fernando Pessoa apontava uma estratégia
(!) ao menos pela língua-pátria e pela poesia-pátria. Almada, outras mais, pela
‘europeização’.
18
Considerem-se as aspas para leitura do sentido intencionado.
19
Personagem burlesca de Rafael Bordalo (1875) com vocação pra inércia e fatalista, símbolo da sociedade
portuguesa do séc. XIX, por sua indiferença.
19
escândalo interior haviam de provocar um outro, bem maior e todo-poderoso. Tinham que
agir por um outro modo de ser, mistificar-se frente à mesmice. Era preciso então subverter
as ‘coisas certinhas’ (na literatura) do<<Reino Cadaveroso>> 20
, romper com ele
radicalmente, ainda que e necessariamente dialogando com o ‘passado’ estético,
consciencializando; revolucionar a realidade existente, recriar a cultura pelo único canal
viável – o da Arte e da Literatura, e em especial o da Poesia, já que, diante da insegurança
existencial, os “ismos” todos das ideologias da modernidade só podiam levar a uma única
certeza: a incerteza do mundo hodierno já pressentida na modernidade intrínseca de Orpheu,
onde as artes verbal ( e mais da poesia) e não verbal eram o absoluto altar de refúgio e
salvação da nova religiosidade onde se oferecessem os sacrifícios do eu desintegrado pelas
massas, de um sujeito todo fragmentado, e onde se recolhessem as graças do derramamento
(de suas partes recolhidas) pleno da Totalidade, para um mundo completamente novo!,
usando aqui de metáfora. Pois a fé e a ausência de fé eram questões seriamente encaradas
pelos modernistas em geral. No caso português a predominância é a ausência, ou diríamos,
a fé no ausente, a negação.
O desejo febril da Geração de Orpheu fora o de comungar artes plásticas e literatura
num ecletismo suficientemente europeu como universal, visível no seu programa ambicioso
idealizado por Fernando Pessoa (e na sua revista - ‘ponte’ Orpheu, publicada em 1915,
“sensacionista” e de “todas as literaturas”), para “criar uma arte cosmopolita no tempo e
no espaço”21, enquanto, ao tempo que tivessem “um pouco da Europa na alma”, também
revelassem na mesma arte e na mesma alma a seiva portuguesa das raízes étnicas
esteticamente modernizada, especialmente numa literatura que não só outorgasse seu país à
categoria de europeu, portanto de igualmente civilizado, mas, para além disso, elevasse
Portugal ao status do esperado Quinto Império, o “império espiritual” da língua-pátria e da
poesia-pátria do “Supra-Camões” de uma “Índia Nova”22 da “vindoura grandeza lusitana”,
para o que a inteligência seria um valor estético a aprender-se e a praticar-se, e o “sentir
20
Em 1777 em Portugal se dá o fato histórico da Viradeira. Sobe ao poder D. Maria, beata, e volta-se dessa
forma ao estilo de governo ”cadaveroso”, expressão como a retomou Raymundo Faoro, em Existe um
pensamento político brasileiro? (1994).
21
. [...] “A nossa época é aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez
intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceânia são a
Europa, e existem todos na Europa. [...] Por isso a verdadeira arte moderna tem de ser maximamente
desnacionalizada - acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna.”
PESSOA, Fernando, “ A arte cosmopolita de Orpheu” (1915?) in PESSOA, Fernando (1986) – Obras de
Fernando Pessoa, Org. António Quadros, Vol. II, p.1318, referido na Bibliografia.
22
[...] “que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos”, PESSOA,
Fernando. (1912) “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico” , A Águia. Ou PESSOA, Fernando
in Obras de Fernando Pessoa (1986)., Org. António Quadros, Vol.II, pp.1194-1195.
20
todas as coisas de todas as maneiras” seria lei para fazer da nova literatura “soma e síntese
de todos os movimentos literários modernos” 23 ( eu plural, tempo plural, espaço plural,
discurso plural e pátria plural) – um ponto nuclear do modernismo português: o da
intersecção entre sensação e conhecimento, característica que Orpheu inaugura. Não é
inoportuno, pois, mostrar um pouco de Mário de Sá Carneiro:
23
CAMPOS, Álvaro de. (1916) “Prefácio a uma antologia de poetas sensacionistas portugueses” [a ser
apresentada a um público britânico], não concretizado, in PESSOA, Fernando (1986). Obras de Fernando
Pessoa, Org. António Quadros, Vol II, pp. 1087-1088.
24
A tensão da subjetividade do poema de Sá-Carneiro, como quer PAIXÃO, Fernando (1995) é fluída de vasos
comunicantes onde o(s) poema(s) persegue(m) a “autonomia de um desenho imaginário a ser compartilhado
no ato da leitura” com sua maneira própria de “matizar” pelos versos o nervosismo intrínseco às sensações.
25
Cf. Explicitado por F. Pessoa em artigo édito sobre A Nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico,
publicado na revista A Águia em 1912.
21
gramatical e discursiva, de dispersão, etc. Tudo o que parecesse “normal”, como por
exemplo o teatro de Júlio Dantas (e os demais da época anteriormente próxima), seria
medíocre por só repetir-se nos séculos uniformemente. A blague foi um recurso fortemente
utilizado para expor a revolta!
Por tudo isso é que Orpheu fora severamente discriminado e criticado: “os doidos
varridos” e sua” literatura de manicómio”- manchetes publicitárias, fruto do insulto de Júlio
Dantas, representante máximo das letras portuguesas da época com tudo o que isso lhe
favorecia. Mas o preço a pagar de volta por Dantas e todo o sistema acadêmico fora alto, e
parece sê-lo até hoje, quando agora falamos de Orpheu. Não houve, ao que parece, aspecto
mais estimulante para o grupo do que ter conseguido gerar o escândalo tão agitador contra
o academismo. E que o diga a Vanguarda portuguesa – os manifestos de Almada Negreiros,
a figura mais polivalente artisticamente 26 ( Manifesto Anti-Dantas; Cena do Ódio;
Ultimatum Futurista às gerações Portuguesas do século XX), e de Álvaro de Campos
(Ultimatum), que falam por si mesmos toda a voz individual e simultaneamente polifônica
que requeria e agressivamente exigia, pelo direito de ser português, toda a modernidade de
ruptura, de destruição e de novo enquadramento de Portugal no mundo.
A própria Europa invejada era alvejada com ódio (contradição? sim e não), pois o que
Álvaro de Campos (Pessoa) repudia no Ultimatum (remissivo ao Ultimato inglês) é aquela
Europa dos mandarins,27 não a da mãe cultural grega que originou Portugal e a quem queria
de novo abraçar e com quem se parecer, transcendendo pela estética ao infinito
universalmente, combinando povos, línguas e pátrias, numa só - o destino de Portugal.
Mesmo que o ideal de Orpheu tenha sido a Arte, sua atuação não podia, no nosso olhar,
ser desprovida totalmente de um aspecto político, sob pena de nada influir, pois isso passa
pela dimensão mesmo histórica do homem. Porém, este aspecto político é o do sentido da
configuração e da essência da polis, da cidade, na concepção genuína da palavra, pois o
questionamento e a reflexão social existem numa perspectiva de caráter coletivo, portanto
político. Para Almada Negreiros mesmo, ”o futurista e tudo” e talvez o espírito mais livre
entre eles e muito iconoclasta, a arte é “alma legítima do coletivo e do individual” e por isso
tem que ser democratizada! Ele apelava contra a inconsistência e incoerência da nação e no
26
José de Almada Negreiros inventou novas linguagens e novos modos de conceber a história da existência
portuguesa, tal como no Brasil fez Oswald de Andrade. Mas Almada Negreiros, o “futurista e tudo” foi um
artista completo nas modalidades que abrangeu na arte: o “português sem mestre” (cf. J. Fernando Lopes) , que
era bailarino, pintor, desenhista, ator, escritor ( de manifestos, ensaios, novelas, peças, um romance), poeta,
decorador, retratista, humorista ou mais.
27
Cf. o pensamento de SEABRA (1985) em ”Ad Infinitum”.
22
plano mítico-artístico comprovava sempre que o artista não existe sem a sua pátria, estava
intrínseco o amor da pátria no seu fazer. Por isso também a mensagem de Orpheu e em
especial a da personalidade mística e mítica de Almada ainda é atual, e sua ingenuidade tão
cara aos nossos dias pós-modernos, já que o individualismo e a atmosfera de degradação de
valores não existiram só ontem, estão entre nós hoje no século XXI.
Assim como Fernando Pessoa em sua ‘loucura’ racional utilizou-se do fenômeno da
heteronímia para responder ao clamor de novas formas estéticas e discursivas, somando e
sintetizando o Universo na literatura, Almada em sua emotiva sensibilidade utilizou-se do
seu talento multímodo e privilegiado para viver os vários e diferentes artistas em um só ele
mesmo para dialeticamente fundir a tradição e a vanguarda28.
A propósito dos estudos de Fernando Pessoa, sobre a Poesia Portuguesa, acreditamos
que o autor-poeta deve ter alterado muito positivamente os ânimos espiritual e literário dos
escritores portugueses, nos tempos adiante, pois que usando da investigação, portanto
racionalmente, conseguiu comprovar os valores e o alcance latentes na obra poética daqueles
ao que a intuição de Teixeira de Pascoaes enunciara, exatamente quando eles emergiam de
um contexto social e político de extrema degenerescência e míngua. Não havia míngua de
valores no movimento poético atual de seu tempo29, nem de “nacionalidade e novidade”.
Mas não nos enganemos, pois estes ânimos se alterados só após cerca de vinte anos é que
tomaram algum impulso.
O idealizador de Orpheu não só almejou para Portugal o futuro glorioso pascoaeseano
com o seu Super-Homem, mas enveredou com seus amigos modernistas futuristas por
caminhos norteadores da clarividência de que Portugal tinha toda chance da
paternidade/maternidade civilizacional, atendendo ao chamado da “louca alegria”.
A atenção da geração de Orpheu, nas palavras de Piedade (2008:276) “desloca-se do
Portugal-presente e da sua realidade concreta para a realidade imaterial e simbólica do
Portugal-futuro”, a outra terra prometida, numa perspectiva diferenciada da Geração de 70
no que respeita ao referente Portugal, de dentro para fora (para a Europa), positivamente.
O amor, o intenso sofrimento patriótico sentido nos poetas órficos, como em outros que
lutam por causa similar, e referido por Pessoa pode dar-nos uma pista dos consecutivos
28
Cf. Expressão de PIEDADE, A. N. em Recursos didáticos da disciplina Cultura portuguesa II do curso de
Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas da Universidade Aberta 2010/2012, p.7.
29
De acordo com A. França, mas também com o próprio Fernando Pessoa que em seus famosos artigos sobre
a poesia portuguesa declarava em “Uma réplica Ao Dr. Adolfo Coelho” in República, 1912 (quando afirma)
que a <<nossa nova poesia [...] produz e produzirá grandes e máximas figuras de poetas>>[...]. PESSOA,
Fernando (1986) Obras de Fernando Pessoa, Org. António Quadros, Vol.II, p. 1203. Referido na Bibliografia.
23
suicídios entre eles e os de 70, já que a grande ambição de sua alma não conseguia ser
correspondida em realizações de seus projetos, suspensos do “fio de não ter território”, entre
a genialidade e a loucura, desejando ‘fazer a diferença’. E nos parece que a fez Orpheu. Por
amor patriota de Portugal ( e neste nacionalismo nos deteremos um pouco mais adiante) e
uma - como que - santa inveja das “nações pensantes” doar a vida e fazê-lo visto! Aquele
mesmo disse em outro momento...“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”
(Fernando Pessoa).
Desta forma temos panoramicamente o axioma configurativo da primeira fase do
modernismo português, cujos projetos não têm posteriormente o alcance desta fase
heroica30, quando a dinâmica de grupo já não era a mesma, desde a morte de Mário de Sá
Carneiro, em 1916. Como menciona Martuscelli em Modernism / modernity (2012: I-XXX)
The first Portuguese avant-gard movement, modernismo, also referred to as the “first
modernism” was born of the hands of Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro and
José de Almada Negreiros in 1915. While there were certainly others responsible for
the emergence of modernismo these three, men remain the most recognized and studied
artists to have partaken in it. Together, they published two volumes of the periodical
Orpheu, and also put together a third volume that was not published at the time because
Mário de Sá Carneiro’s father refused to continue funding the Project. Yet this short-
lived avant-garde periodical, edited mainly by young artists and surviving for only one
year, left an indelible mark on the history of Portuguese literature. It caused “a public
reaction of refusal and insult,” as Fernando Cabral Martins states in the foreword of a
1989 facsimile of Orpheu, which included a draft of the publication’s third volume. This
“public reaction” would become the essence, or even the trademark of avant-garde
literatures’ reception at the beginning of the twentieth century.
Como em Portugal, e no mais geral em todo caso, o Modernismo no Brasil não passou
incólume à realidade nacional e nem à realidade universal. E, fazendo uso das palavras de
Baptista (2008:482) 31
30
Veja-se SILVESTRE, Osvaldo. ”Modernismo”- artigo componente do Dicionário de Fernando Pessoa e do
Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins, 2008, Ed. Caminho, pp. 472-476.
31
Veja-se BAPTISTA, Abel Barros. “Modernismo Brasileiro”- artigo componente do Dicionário de Fernando
Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins, 2008, Ed. Caminho, pp-476-
482.
24
32
Arnaldo Saraiva trata deste assunto de forma detalhada em sua obra sobre os dois Modernismos (2004:102-
119) e é um dos críticos que não encontraram resposta para justificar o afastamento de Ronald de Carvalho e
Luís de Montalvor da direção de Orpheu, ou da ausência de outras colaborações brasileiras, apesar de que nos
dá , a mim pelo menos, claras pistas de certa ‘traição’ (?) (pois sem diálogo) por parte de Sá Carneiro e de
Fernando Pessoa, motivada por interesses que provavelmente não faziam jus à questão (estéticos?
circunstanciais? geográficos? financeiros?) no específico contexto.
25
33
Como alguns exemplos podemos citar (cf. Mário Brito): as “colaborações futuristas” de Oswald de Andrade
na revista Vida Moderna, ressonando na Academia de Letras como “formas literárias desconhecidas,
desconhecidos gêneros e [...] ainda a ressurreição dos de há muito esquecidos (1916); a primeira exposição não
acadêmica de pintura realizada no Brasil por Lasar Segall de seus quadros expressionistas, sem receptores à
altura daquela sensibilidade de consciência que impactasse (1913); a primeira exposição de Anita Malfatti com
estudos de pintura e com o primeiro nu cubista brasileiro pela pintora e o primeiro nu cubista norte-americano
por Boylisson (1914); a colaboração do italiano Ernesto Bertarelli no conservador jornal O Estado de São
Paulo, a analisar os fatos e sinalizar a chegada do Futurismo no Brasil (1915); O Pirralho, revista polêmica,
em frente Oswald, já se pronunciava em prol de uma pintura nacional (1915); o encontro de Ronald de Carvalho
com Luís de Montalvor (L. Da Silva Ramos) em Copacana e a idealização da revista luso – brasileira Orpheu
(1915); A cinza das horas, de Manuel Bandeira (1917); a decisiva “descoberta de Brecheret” (1920) sua
exposição e sua participação no Salon d‘ Automne em Paris; a aproximação consequente de Oswald com Mário
de Andrade a partir de um curto discurso e oração deste no ambiente oficial da campanha de participação do
Brasil na Guerra (1921); a publicação do livro de Mário de Andrade Há uma gota de sangue em cada poema,
“com rima inusitada, exagerada e agressiva” que causou impacto (1921); o poema Moisés de Menotti del
Picchia e mais Juca Mulato que, na busca da raça brasileira já causava estranhamento desde o seu título
mulato. Além do que já encontramos no corpo deste trabalho, podemos acrescentar , como sinalizador do
espírito da época, evitando citar aqui outras que surgiram ainda, a obra do ensaísta Andrade Murici (1918) –
Alguns poetas novos – onde declara a extinção do Parnasianismo e o abandono do Simbolismo, ainda que
classifique de “hesitantes, confusas, indefinidas” as novas gerações, ao que, contrariamente chama João
Ribeiro de “nova, de fato, diferente do Parnasianismo”.
26
Moderna para o Brasil – os nomes que vigoram até hoje como um divisor de águas na história
artístico-literária das duas nações.
Mas a Semana no Brasil34, que não fora o ponto de ruptura propriamente da estética mas
o passo inicial de sistematização do movimento, teve o seu “estopim”35, Anita Malfatti que,
após seus estudos em Berlim e Nova York regressa ao Brasil em 1917 e expõe no mesmo
ano obras de influência fauvista, cubista e futurista, provocando a “curiosidade, o ódio e o
entusiasmo” que a “tamanha inconsciência brasileira” não conseguiu fazer-se provocar no
aquando da exposição de Lasar Segall, precursor cronológico da arte plástica moderna no
Brasil (exposta primeiramente em 1912 em São Paulo e Campinas) na opinião de Mário de
Andrade, em artigo da Folha da Manhã, em paralelo à prioridade de “eficiência, de ação e
arregimentação [...]consciência de rebeldia, [e] de espírito novo” de Malfatti.
Também aqui neste contexto é a recepção que fundamenta o alcance e a validade da
manifestação vanguardista enquanto propósito de ruptura: enquanto Segall foi aplaudido
pelos jornais intransigentes e tradicionais, como O Estado de São Paulo e a Revista do Brasil
ou o Correio Paulistano, Malfatti na opinião de Nestor Pestana e Monteiro Lobato,
respectivamente, deixou-se ““emballer” pelas extravagâncias dos chamados futuristas” e, “a
pretexto de romper com as convenções da arte aceita, adotou sem discutir todo o estapafúrdio
convencionalismo de uma falsa arte em que só se exibem os “ratés” e os desequilibrados”.36
Segundo Brito (1974:68) “enquanto a arte de Segall, para [o dono do jornal] Nestor
Pestana e os seus contemporâneos, não ofendia os conceitos por eles esposados, a de Anita,
vinculada às inovações ora combatidas, rompia os padrões normalmente admitidos”.
Confirmando este juízo de valor, Mário diz que “nenhum papel exerceu Segall na eclosão
34
Oswald de Andrade em Obras Completas – Estética e Política (1991:99), de seu relato sobre ”Como se
produziu a Semana de Arte Moderna” expõe de forma muito familiar e brasileira o fato: ”Quereis saber com
certeza como é que se produziu a Semana de Arte de 22? Vou dizer: Antônio foi à casa de Paulo, que o levou
ao quarto de José, que lhe mostrou os versos de Pedro, que lhe contou que João era um gênio e que Carlos
pintava. E saíram todos para descobrir Maricota. Apenas, esses indivíduos entre outros chamavam-se Mário
de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti. Em fevereiro de 22, Paulo
Prado e Graça Aranha enquadram o nosso grupo e o do Rio de Janeiro. E manifestamos no Teatro Municipal,
ao lado de músicos e artistas. Somos vaiados num dilúvio. Resistimos. O ”terror” modernista começa. É
preciso chamar Antônio Ferro de gênio e Carlos Gomes de burro. Chamamos. […]”. Em outro momento
(p.125) acrescenta que ”a Semana[…] com grande alarido, particularmente a sessão em que foram
apresentados ao público os novos poetas e escritores (.): a ausência de qualquer padrinho nos atirou às feras”.
Importante ilustração de que o movimento modernista foi desde o seu princípio, no Brasil, uma energia
multiplicadora tida como necessária e levada a cabo como trabalho coletivo de mutirão, que por sua vez, e
sendo brasileiro, deveria contar com os jeitinhos nacionais de formação de parcerias e ativação de interesses
de adequação, sob pena de sucumbir. Ao contrário disto, o sucesso da empreita tem maiores chances. E de fato,
alastrara-se nos vários cantos do país em continuação.
35
Mário da Silva Brito (1974:72) usa esta expressão oportuna em sua referência à pintora brasileira, quando
explana sobre os antecedentes da Semana de Arte Moderna.
36
Op. Citados por Brito (1974:68) de artigos de Revista do Brasil- Vol.VII - janeiro- ano III-1918 -Resenha
do Mês – “Movimento artístico: Exposição Malfatti” - Págs. 83 e 84. /e ”Revista do Brasil”- artigo citado.
27
do movimento renovador das artes nacionais [enquanto] Anita se afirmará em sua posição
legítima de despertadora do movimento modernista” pela consciência de revolta e
coletividade para modernizar as artes brasileiras. Concordam categoricamente com este fator
propulsor outorgado a Malfatti os demais modernistas do grupo paulista, a exemplo do que
depõe Menotti del Picchia em crônica 37 onde se redime de ter sido influenciado por M.
Lobato em sua visão ofuscada contra a arte da pintora de “O Homem Amarelo” e reconhece
mais tarde na pintora a “chefe da vanguarda na arrancada inicial do movimento modernista
da pintura de São Paulo” e, aludindo à recepção como sinal de glória, complementa: “Sua
arte mereceu a honra consagradora do martírio: foi recebida a pedradas”.38
Não é difícil indagar se o fato de ter sido uma mulher a levantar tal bandeira no Brasil
naqueles anos não houvesse -como mais um fator- parcialmente contribuído para afetar ainda
mais os brios das inteligências opositivas e da crítica, geralmente masculina. Talentos mais
jovens, artistas com muita influência das escolas estrangeiras de pintura, mulher e “pintora
de talento” certamente mexeriam no brio de Monteiro Lobato (erudito com cargo no jornal
O Estado de São Paulo), o “grande contista com fama de mau pintor”39 que ao definir as
obras da pintora como ato de paranoia ou mistificação incitou indubitavelmente os ânimos
da intelectualidade brasileira à reflexão e à euforia em torno da atualização das artes, claro,
por efeito contrário ao seu intento no contexto. 40
Por efeito, uniram-se os modernistas literatas, o acadêmico escritor e diplomata Graça
Aranha, o escritor Paulo Prado e outros artistas jovens em torno do fato e da pessoa de
Malfatti e também de Victor Brecheret, o jovem escultor excêntrico e solitário ‘descoberto’
pelo grupo Di Cavalcanti, Hélios Seelinger, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia.
Situado como valor nacional e moderno, “força brasileira que se emparelha com as grandes
expressões mundiais contemporâneas”, o Rodin brasileiro considerado por Menotti, tendo
37
Menotti del Picchia- “Uma Palestra de Arte”. Correio Paulistano de 19.11.1920, referido por Mário da
Silva Brito na mesma obra.
38
Menotti del Picchia- ”Anita Malfatti”. Correio Paulistano de 20.02.1929
39
-Menotti del Picchia- ”Uma Palestra de Arte” , artigo citado.
40
Ironicamente Monteiro Lobato é uma das contradições internas do Modernismo brasileiro, pois ele mesmo
foi um escritor erudito que de forma muito inteligente conseguiu enquadrar as diretrizes de renovação na
literatura brasileira de forma original (lembremos do Jeca Tatu e do Saci Pererê, seus mitos literários,
consagrados hoje na literatura infantil e no programa infantil de televisão “O Sítio do pica-pau amarelo”) além
de que foi ele quem fez as críticas mais implacáveis à ”literatura do passado” (segundo MARTINS(1973:25)),
com muito senso de técnica estilística. No caso Malfatti parece que Lobato cumpriu também um interesse
social do diretor do jornal, Pestana, amigo da família de Malfatti, que não teve coragem de pessoalmente
criticar Anita, sem maiores fundamentos. Podemos ler sobre isto também em VALE (s/d)-” A Propósito da
Exposição Malfatti”, Edição Revisitada in Revista Urutágua N° 7, referida na Bibliografia.
28
41
Monumento às Bandeiras: hoje, muito polêmica homenagem por instigar à reflexão histórica em torno de
seu significado (os bandeirantes, brasileiros e portugueses, tanto heróis quanto assassinos (?) perseguidores
dos índios e exploradores sexuais das índias da selva brasileira que devastavam para alargar os limites
geográficos do Brasil). A construção da obra do escultor brasileiro de origem italiana, Victor Brecheret, embora
criado para as comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922, só teve concretização na
festa do IV centenário de São Paulo, em 1954, numa revisitação da história de São Paulo, de acordo com Irene
Barbosa de Moura em ”A cidade e a festa”, tese de doutorado (2010). Ali o bandeirante foi celebrado ”como
personagem chave do imaginário regional apto a reforçar as velhas tradições” (artigo da mesma autora, p.2).
A concretização foi morosa e iniciou-se a partir de 1936 no governo de Armando de Salles Oliveira ”imbuído
do desejo de recuperar o orgulho dos paulistas abalados com os acontecimentos de 1932”, e teve o incentivo
político dos modernistas Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, então acessores de Armando de Salles.
Depois do regime do Estado Novo é que foi possível ver-se de fato o Monumento às Bandeiras, que instala-se
no atual Parque do Ibirapuera.
29
imprensa envolvendo-o como foi em “vexames” inclusive por meio de um artigo de Oswald
no qual este jubila-se com 42 o “futurismo” de Mário, 43 provocando um efeito social
semelhante ao sofrido por Mafaltti.
Sincronizados entre si por suas obras, o modernismo brasileiro enquanto movimento
tem naquelas duas figuras – a da pintora e a do escultor- seus dois fulcros, suas raízes, em
torno dos quais giram os vanguardistas da “primeira hora”. É o que considera Mário de
Andrade em sua obra “Movimento Modernista” de 1942.
Martins (1973:53-61) considera que a atmosfera social e política favoreciam a eclosão
de um movimento de vanguarda. Desde 1917 já se via na literatura algo inusitado, como o
livro Poesias de Manuel Bandeira, considerado como o precursor do modernismo. Mas
Martins endossa o pensamento de Brito quando pontua que o ponto de ruptura como fato
tomado foi o manifesto do Trianon, “discurso de Oswald de Andrade a 9 de janeiro de 1921,
no banquete conservador oferecido a Menotti del Picchia, e no qual ele se declarava “falar
em nome de meia dúzia de artistas moços de S. Paulo e daí o meu cálido orgulho incontido”.
A Semana de Arte Moderna, sugerida como se sabe até hoje por Di Cavalcanti, realizada
entre 11 e 17 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo concentrou três
importantes festivais (13, 15, 17 de fevereiro) num clima sociopolítico favorável à sua
eclosão - o 1° centenário da independência do Brasil e suas comemorações, que davam o
tom entusiasta nacionalista - como podemos perceber na edição do dia 3 de O Estado de São
Paulo, embora tenha sido concebido como um antifestival44 frente às celebrações oficiais,
aliás era mesmo a Semana Futurista:
42
Oswald de Andrade- ”O Meu Poeta Futurista” – Jornal do Comércio, Ed. de São Paulo, 27.05.1921.
43
O artigo de Oswald ”O meu poeta futurista”, e cuja réplica de Mário, o artigo ”Futurista?!” tornaram-se por
demais significativos no tocante a flagrar um fato que tornou-se ponto nevrálgico nas contradições internas (e
externas) do movimento modernista brasileiro, pois suscitaram exatamente a discussão da problemática do que
seria concebido então como futurismo/futurista ou não na Estética e no Brasil: enquanto Oswald, um dos
propagadores do Movimento, ao lado de Menotti del Picchia, em primeiro plano, interpretava no artigo o
futurismo de ”forma particular até transformá-lo numa série de temas ”(ver melhor isso em Fabris ,1994:133),
na ótica de Mário, o futurismo não seria mais que uma arte visante do futuro ”sem possibilidade de atuação no
presente, de uma escola dogmática e iconoclasta, preocupada tão somente em promover uma tabula rasa sem
nenhuma proposta alternativa”. O modernista não queria então o rótulo de futurista, ao que rejeitava
enfaticamente, apesar de aceitar as premissas mais moderadas de Marinetti, não o lado revolucionário –
repudiava ele ”o futurismo funambulesco das Europas tal como o futurismo vago do Brasil” por ele mesmo
desconhecer as suas ideias, e as que conhece o ”horrorizam: o banimento de Deus, o desrespeito da língua, o
abandono da tradição e da noção de pátria em prol de um internacionalismo quimérico e sem caráter”,
definitivamente recusando-se a ser enquadrado numa escola. Mas ao fazermos um balanço dos princípios
aceitos ou não pelo grupo ‘modernista-futurista’ não será complicado perceber que todos estavam de acordo
com o que era amálgama no processo modernista no Brasil.
44
Em 1920 Oswald criticou o programa de comemoração da festa de 22 do 1° Centenário da Independência,
‘ameaçando’: ”Cuidado, senhores da camelote, a verdadeira cultura e a verdadeira arte vencem sempre. Um
pugilo pequeno, mas forte, prepara-se para fazer valer o nosso Centenário”. Isto significativamente já
denunciava por certo a meta da Semana de Arte Moderna de alguma maneira, conforme sinaliza Brito.
30
45
Destaque (não inclinado) nosso: aos poucos o Estado vem a apropriar-se política e ideologicamente do
Modernismo, tomando-o como preparador e criador de um estado de espírito nacional, como avalia Mário de
Andrade (1942,1974:244) em sua Conferência, 20 anos depois de ocorrida a Semana de Arte, brado coletivo
principal do Movimento.
46
Veja-se em artigo ”Semana de Arte Moderna” (2008:783-785), verbete do Dicionário de Fernando Pessoa
e do Modernismo Português, citado na Bibliografia.
31
47
Oswald de Andrade utilizava frequentemente os termos Totem e tabu extraídos de Freud tanto em seu
”Manifesto antropofágico” como jogava com esta linguagem em vários de seus textos jornalísticos do período
modernista.
48
Entre outras obras, podemos conferir em Maria Helena Grembégki, 1969 (referida na Bibliografia).
49
”Chuva de Batatas”, Revista Semear 4, disponível em http://www.letras.puc-
rio.br/catedra/revista/4Sem_10.html , acesso em 25.06.2012.
32
... ainda que se dissesse com Cassiano Ricardo – Ainda irei a Portugal.
50
- Somente quando o movimento havia se tornado- nacional e ”triunfante”, a partir de 1924, é que a Revista
do Brasil abriu suas páginas aos modernistas, inclusive para a resenha arrasadora de Paulicéia desvairada
(pertinente talvez em alguns aspectos até percebidos anos depois por Mário de Andrade), e o Estadão evitou
envolvimento, publicando somente as notas de abertura, o programa da Semana e um artigo da autoria de
Ronald sobre Villa Lobos, além de deboches e piadas ingênuas contra os modernistas na seção livre, como
mencionamos no texto. Veja-se a Introdução de BOAVENTURA SANTOS (2000).
33
2.
COSMOPOLITISMO E NACIONALISMO: CARIZES E
PECULIARIDADES
34
primeira obra citada, liga-se por íntimo laço com o paradigma do Simbolismo, sem a
aventura futurista, mas presa à Renascença portuguesa, tolhida ao espelho de si mesma. Ao
contrário da revista de n°.2, que faz extravasar a aventura e o escândalo, o impacto mais
desejado de uma provocação de ruptura. E havia que se ver isto mais nítido e estrondeante
no folhear dos Manifestos portugueses.
Semelhante àquela preparação (a transição-ruptura) deu-se com a “Belle époque”, em
descrevendo Teles (1972:10)
por onde se pode acompanhar a evolução das formas, das técnicas e das primeiras
concepções poéticas, cujos pontos relevantes são a convergência para o simbolismo,
e as experimentações formais, desintegradoras e inventivas, como em Mallarmé, e as
preocupações com as grandes sínteses ordenadoras e classicizantes, como no
unanismo de Romains.
Com a guerra, vem a desagregação (na atitude do niilismo dadaísta), e após a guerra, a
reorganização (um otimismo via “espírito novo” em busca da criticidade e do bom senso)
indo gerar o movimento surrealista. A desorganização do universo artístico era
ressignificado nos movimentos. Uns (futurismo e dadaísmo) representam a negação e a
destruição do passado com os valores estéticos do presente, e outros ( expressionismo e
cubismo) representam a construção. A literatura, além das outras formas de arte, era
renovada “pelas tendências organizadoras de uma nova estrutura estética e social”(ibidem).
A despeito do sujeito modernista, dos muitos eus polifônicos, esses fenômenos que o
circundam situam-se numa posição mediada pela modernidade e a problemática da ruptura.
Neste ângulo de vista, o moderno, espaço do sujeito de que falamos, é aquilo que é produto
de uma elaboração “comunicativo-ideológico”, visando o alcance do “discurso das
ideologias” ( Vila Maior,1996:120) . O autor considera que é desses códigos ideológicos do
Modernismo que inrompem-se os componentes da novidade, atualidade e
contemporaneidade, componentes estes que nas manifestações literárias portuguesas [e/ou
brasileiras desse(s) tempo(s)] e em especial nos Manifestos, veem-se caracterizados e
36
Iluminados pela mesma luz (vinda da Europa e da América do Norte) para o anseio de
libertação de tudo o que anteriormente balizava temas e formas, e agindo no mesmo frêmito,
Portugal e Brasil estavam sob o mesmo farol. No entanto, Cidade (1957:286) sugerindo uma
comparação de Ode Marítima de Fernando Pessoa com o poema Brasil de Ronald de
Carvalho considera uma diferença:
ao que questionamos: para além da obviedade, até que ponto podemos dizer que o
Modernismo português fora embriagado de cosmopolitismo (ou espírito cosmopolita) e o
brasileiro de nacionalismo? Ou de outra forma, que cariz de cosmopolitismo e de
nacionalismo um e/ou outro país informa(m) nos seus projetos de modernização?
51
JÚDICE, Nuno. ”A ideia nacional no período modernista português”(1996:323-333), artigo referido na
Bibliografia.
37
[...] dos caminos o tendências con un fondo común que les hermana, a pesar de su
diferencia en sus búsquedas y en sus resultados: la tendencia nacionalista y la
internacionalista. [...] Sin embargo no son tendencias completamente excluyentes. Si
bien este calificativo sirve para conceptuarlas, no las explica del todo.
Tudo isto representa – outro sentido não pode ter - uma instância da Hora da Raça,
que, sentindo a necessidade de realizar Cosmópolis em si, se vira para o único núcleo
de artistas que, além de darem ao seu instinto de Chefes a garantia primária de serem
quase todos homens de génio, que tomaram de nascença nas mãos o pendão da Raça
(há tanto tempo bolorejando no túmulo de Camões, de Garrett ou de outros bric-à-
brac), representam, manifestamente, uma plêiade luzida que nas suas obras enfeixa,
com o máximo utilizável do sentimento português, o máximo aproveitável nas actuais
correntes europeias.
52
António Machado Pires, em Luz e sombras no século XIX em Portugal (2007:151) coloca Fernando Pessoa
posposto a Nobre, Junqueiro e Pascoaes como modos diferentes de ”esperar tudo ou quase tudo o que a Poesia
como apelo pode ensinar e esperar. Que a missão do poeta é maior do que a dos governantes, precisamente
quando sabe ensinar aos governados a esperança para esperar…” e pontua o que salientou Jacinto do Prado
Coelho sobre que Pessoa teve em Teixeira de Pascoaes um dos seus mestres na dimensão místico-metafísica
que faltava ao Romantismo português, mas este próprio é combatido por Pessoa (veja-se em Júdice, citado na
nota anterior) quando da confrontação estético-filosófica que reporta à tendência nacionalista (vista pelos
Integralistas como ”racionalista e antinacional”) da Renascença Portuguesa( n’A Águia) do Saudosismo, dos
Poetas lusíadas e d’O Espírito Lusitano ( Pascoaes), que considera a Nacionalidade como filha do sangue e da
terra, cujo padrinho é o poeta, o que a batiza e lhe dá alma (simbiose entre homem e a paisagem); e à tendência
Integralista, que acredita num país regionalizado, cuja origem foi o municipalismo medieval, uma ”nação
criadora de nações”, onde a Nação composta de ”terra, mar e gente portuguesa” lhe daria a unidade. A
dimensão de sublimação do Futuro em A Mensagem de F. Pessoa faz do poema um emblema deste
nacionalismo ”místico” de que falamos.
53
Arquivo Pessoa. Obra Édita, http://arquivopessoa.net/textos.
38
cosmopolitismo. Isto nos remete a buscar algum suporte teórico que nos esclareça um pouco
melhor a ideia conceitual da última característica, para o que a Antropologia lança algumas
luzes.
O antropólogo Gilberto Velho (2010:15-23) em seu artigo “Metrópole, Cosmopolitismo
e Mediação” procura identificar o trânsito entre múltiplos domínios e diferentes correntes
de tradição cultural e, contextualizando o cosmopolitismo em contextos históricos e
culturais, tenta repensar a própria noção de cosmopolitismo. O que é decisivo neste
fenômeno é a mediação e o mediador – aquela (ou uma plasticidade sociocultural) é
manifestada na capacidade de transitar e em determinadas situações, no desempenho do
papel do mediador entre distintos grupos, redes e códigos. Velho (Id.: 20) salienta que
54
[...] “somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; “[...]. PESSOA, Páginas
Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, s/d, pp.121-122.
39
55
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade, Gradiva (2009:113).
56
REAL, Miguel. Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (1949-1947), QuidNov Ensaio, Lisboa, 2008,
p.16.
40
Adotando esta terceira espécie de nacionalismo, acrescenta Pessoa que o papel de uma
nação forte e civilizada é imprimir um cunho seu aos elementos civilizacionais comuns,
às nações do seu tempo (...) este caráter de nacionalismo cosmopolita (...) é comum à
primeira fase dos (...) doutrinários da nossa vanguarda.
e este nos parece ser o caso de Portugal, como o é do Brasil, como Culturas periféricas.
A metrópole (a nosso ver, júbilo do Modernismo) é lugar privilegiado de possibilidades
de expressão dialógica (também política), multicultural e multiétnica e este tipo de
humanismo subentende a recuperação da ideia de cosmopolitismo, de raízes antigas. A
mediação como ponte é fenômeno fundamental na reinvenção de códigos e redes de
significados e não se dá sem choques e conflitos, devido à tirania das circunstâncias a impor
limites.
57
António Quadros , apud SILVA, p.80.
41
58
SEABRA, José Augusto- (1985) O Quinto Império – Pessoa faz analogia entre a Grécia passada e o Portugal
futuro, aproximando-as como nação. Portugal seria potência guerreira e econômica que não necessitaria das
colônias [...] [pois] seu destino é um Império Espiritual, um Império de Cultura (1985:93-104). Consideramos
que aí reside o desembocar do cosmopolitismo nacionalista e do nacionalismo cosmopolita, afinal. Este Quinto
Império é considerado por José Augusto Seabra (Id.:214-216) como o Anti-Império e o Super-Camões como
o Anti-Camões, a “lógica da contradição complementar” ou as metáforas das metáforas, também da
coincidentia oppositorum de um “Fernando Pessoa que é enquanto poeta-político ou enquanto político-poeta”,
um cidadão do imaginário, como lhe chama Joel Serrão.
59
Grifos (inclinados) nossos.
42
essa agonia, esse fechamento contranatural expresso nesse reflexo para “a pequena
casa lusitana”, sugerem de si mesmos a salvação mítica, a reconversão da nossa
imagem e do nosso projeto de alma e cultura. O que há para ele de mais singular no
português é o seu esforço para se negar enquanto apenas português, o facto de
antecipar nessa autonegação a autonegação futura que abolirá como fantasmas
repressivos, no campo do poderio guerreiro, económico, científico, cultural, essa
intolerável genuflexão íntima que a geração de Eça julgava necessária para o nosso
resgate diante das “três grandes nações pensantes”, a Inglaterra, a França e a
Alemanha.
AO POVO PORTUGUEZ
60
Citação de Labirinto da Saudade (2009:110), de Conferência realizada na Fundação Gulbenkian, em 5 de
fevereiro de 1975, no âmbito do curso sobre ”Modernismo” promovido pela Universidade Nova de Lisboa.
43
Saint Paul/ J’adore cette ville/ Saint Paul est selon mon coeur /Ici nulle tradition/ Aucun
prejugé/ Ni ancien ni moderne/ Seuls comptent cet appétit furieux cette confiance
absolue cet optimisme cette audace ce travail ce labeur cette spéculation qui font
construire dix maisons par heure de tous styles ridicules grotesques beaux grands petits
nord sud egyptien yankee cubiste/ Sans autre préocupation que de suivre les statistiques
61
Op.cit. por Luciana Stegagno Picchio (1982) in ”Marinetti et le futurisme mental des portugais”, do
Dicionário de Literatura, cit., nota 30, p.1115, s.v. ”Ultimatum”, cf. ensaio de B. Telles, Do Ultimatum ao 31
de Janeiro, Porto, 1905.
62
Cit. em Júdice (ibidem) - de Manuscrito sem data publicado por Luísa Maria B. De M. de Brito Mendes,
”Fernando Pessoa e a língua portuguesa”, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, vol. Apêndice, Lisboa, 1990.
44
prévoir l’avenir le confort l’utilité la plus value et d’attirer une grosse immigration/
Tous les pays/ Tous les peuples/ J’aime ça/...63
(Blaise Cendrars, 1926)
63
Fabris (1994:93). Op. Cit. de Aracy Amaral, ”Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas”, São Paulo,
Livraria Martins Editora,1970, pp.141-146 in Fabris , Modernidade e Modernismo no Brasil.
64
Mário de Andrade, ”Noturno”, in Poesias Completas (Obras Completas de Mário de Andrade), São Paulo,
Livraria Martins Editora, 1966, p.115.
65
Antônio Cândido, Mário da Silva Brito, Aracy Amaral, José Aderaldo Castello, entre outros historiadores e
críticos, além dos modernistas participantes do movimento, consideram que até ao ano de 1924 se inscrevem
de uma forma específica os rumos tomados pela problemática da renovação estética, presente nos anos
anteriores. E de ali de 24 há uma mudança de rumos.
45
1924. O cariz deste cosmopolismo é definido na revista Klaxon66 como revista de vanguarda
pela pretensão de exprimir-se em uma linguagem que esteja à frente das linguagens artísticas
da época, e isto por uma necessidade de exprimir a realidade nova do Brasil 67 , uma
linguagem-vanguarda, moderna, atual - inscrita na vida presente - real, em oposição à
linguagem anacrônica utilizada antes desta revista, para o que São Paulo fora tomada como
locus de representação tanto estético-linguística como cultural e social. Isto implicava o
internacionalismo estético do Brasil e sua participação no cenário internacional igualmente,
o que explica a necessidade de contato com vanguardas de outros países por parte dos
modernistas e, especialmente, o entender do conteúdo da revista: 68 ”as representações
internacionais que ela mantém em outros centros de vanguarda, as colaborações de autores
estrangeiros, a atenção que é dada ao cinema, a correspondência remetida dos brasileiros na
Europa”. A implicatura geral do projeto de modernização-atualização encontra-se em
Klaxon, em todo o ideário de seu programa inicial: “a arte não é a cópia da natureza, mas é
uma lente transformadora e mesmo deformadora da natureza.” Deixam-se dessa forma, no
dizer de Moraes (1978:67), “os cânones estéticos do realismo e do naturalismo literários, o
academismo que imperava em nossas obras de artistas plásticos”.
O momento da renovação estética ou cosmopolita no processo modernista é bem distinto
do momento de elaboração de um projeto de cultura nacional. Se não o fosse ser-nos-ia mais
tranquilo aceitar o perfil que o próprio Mário de Andrade atribuiu em sua conferência O
movimento modernista ao mesmo: “seu caráter de jogo arriscado... seu espírito aventureiro
ao extremo... seu internacionalismo modernista... seu nacionalismo embrabecido... sua
gratuidade antipopular... seu dogmatismo prepotente...”. Presentes todos estes atributos no
movimento e na estética, eles não coexistem, no entanto, num momento único69- porém,
66
Revista Klaxon, n°1, São Paulo, 15 de maio de 1922, p.1 – começou a circular nessa data e teve seu último
número, duplo, oitavo e nono, com a data de dezembro e 22 de janeiro de 1923, o qual foi dedicado a Graça
Aranha (esta dedicação nos parece significativa diante das surpresas que vamos encontrando desta investigação
do modernismo brasileiro, tem a ver com a exigência de autoafirmação de Aranha como líder modernista).
Seus propósitos correspondem aos dos organizadores da Semana de Arte moderna que é vista já como o
resultado de lutas anteriores. De sua apresentação, na página citada, o texto se divide em quatro partes:
Significação, Estética, Cartaz e Problema – destes dois últimos fizemos citações anteriormente.
67
O Brasil vivia um tempo de fortalecimento na economia do café e suas oligarquias rurais, ditando a economia
então representada no eixo São Paulo - Minas Gerais. Chegada a industrialização depois da Primeira Guerra,
chegou também o processo de urbanização e o surgimento da burguesia, o crescimento da imigração e da
efervescência nas diversas camadas do pensamento político, social e intelectual, diversificando todo o cenário
brasileiro e exigindo do povo novas formas de comportamento e de pensamento. Era necessário rever o país e
renovar a expressão da cultura que se modificava. A literatura ofegava.
68
De acordo com Eduardo Jardim de Morais (1978:66-70) in A Brasilidade Modernista - sua dimensão
filosófica.
69
Eduardo Jardim de Moraes (1978) é bastante contundente em argumentar sobre a evidência desta
diferenciação (ainda que) dentro do mesmo processo, que opõe ao entendimento de Alexandre Barbosa em sua
obra A metáfora crítica (“Linguagem e realidade do modernismo de 22”) que coloca no mesmo patamar de
46
nação - nos remete necessariamente a alguns pressupostos que desde aqui vemos como
inevitável sinalizar, antes de adentrarmos propriamente no seu traçado.
Antônio Cândido72 em seu ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945: panorama para
estrangeiros pensa o Modernismo a partir da dialética entre o local e o universal constituindo
a par com o Romantismo um dos “momentos decisivos” na literatura brasileira, de mudança
de rumos e revigoração do pensamento, tendo como ponto em comum a priorização do local,
em consonância com os modelos europeus. Uma diferença o crítico registra: a singularidade
romântica era firmada por uma rejeição da herança portuguesa, entendida como já superada
e esquecida no Modernismo 73 , que se afirmava em combate contra o academismo
cosmopolita. Pela valorização vanguardista europeia do primitivo (mais francesa e italiana)
supunha a aceitação dos elementos de composição dos recalques da nacionalidade, em
especial os relacionados à condição brasileira etnicamente mestiça e com influência das
culturas primitivas, ameríndias e africanas, julgadas antes como obstáculos, “deficiência”74,
reinterpretadas então como “superioridades”.
Em se tratando da dialética do local com o universal Cândido vê nos anos modernistas
de 20 e 30 um “admirável esforço de construir uma literatura universalmente válida por meio
de uma intransigente fidelidade ao local”, como podemos averiguar nestas assertivas de
Mário de Andrade em carta a Milliet (1923) : “Não nego os benefícios que o modernismo
francês e europeu trouxe pra arte do universo. Questão de velha experiência cujo exemplo
nos repôs na liberdade sincera atual. Também é só isso.” E mais: “Agora livres, pelo exemplo
dos europeus, vamos seguir o nosso caminho que é todo diverso do da Europa
desinteressante”75. E ainda, mais adiante na mesma carta, comentando sobre o desafio a
considerar:
Problema atual. Problema de ser alguma coisa. E só se pode ser, sendo nacional. Nós
temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil.
Problema atual, modernismo, repara bem porque hoje só valem artes nacionais... E nós
só seremos nacionais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer para
riqueza universal76.
72
Veja-se em Literatura e sociedade. 8ª edição, São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 2000, p.109-138.
73
O crítico admite que a recorrência às fontes externas (e aqui a portuguesa) é necessária para a compreensão
das obras de alguns modernistas, citando por exemplo Manuel Bandeira, com influência de Cesário Verde,
António Nobre e dos simbolistas belgas.
74
Isto derivado em especial pela infeliz visão ideológica do colonizador (português) para com o colonizado, e
que, mais tarde, também foi a do colonizado que passara a colonizador na própria terra (o brasileiro ou o
português-brasileiro): o índio era ‘inferior’ e o negro, que o colonizador levou consigo, escravo, tratado como
‘animal de carga’ ou uma peça de propriedade. Isto nos constatam a Literatura e a História.
75
Localize-se em “O noturno de Belo Horizonte” e comentários nas cartas do autor.
76
Paulo Duarte, Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo, EDART,1971 Pp.300-301.
48
Voltando a Antônio Cândido, não podemos, porém, desconsiderar o que é lembrado por
Irenísia Oliveira 77 quando diz que o crítico brasileiro “optou, na tarefa de explicar e
sistematizar o Modernismo brasileiro, por uma lógica centrípeta, privilegiando elos e linhas
eficazes de renovação da literatura brasileira”. Ele próprio como intelectual via-se
comprometido com o processo empreendido pelo movimento.
Baptista (2008:476-482) em correspondência ao verbete modernismo brasileiro do
“Dicionário de F. Pessoa e do modernismo português” recomenda por primeiro a “quem
mais ou menos incauto, projetasse uma aproximação [ao português]: dar mais importância
ao adjetivo “brasileiro” do que ao substantivo “modernismo”. E ele próprio explica seu
raciocínio, sintetizando:
77
”O Primeiro Modernismo nos ensaios de Antônio Cândido” in Revista Letras, Curitiba, n°. 74, p.133-150,
jan./abr. 2008, editora UFPR.
78
Para POLLAK (1992) a memória é um fenômeno construído nos níveis individual e social e sua construção
associa-se à de uma identidade – no sentido de uma autorrepresentação para si e para os outros - e de um
sentimento de pertencimento, que, por sua vez possuem um caráter de investimento e de negociação, por serem
objetos de disputa entre grupos sociais e segmentos diversos. Finalmente, a constituição de uma memória sofre
transformações que são ”função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As
preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória”.
49
programáticos do movimento e das revistas literárias que foram publicadas ao longo dos
decênios de 1910 e 1920.79 Mas não só!
Para além de concordar com as conclusões de Abel Baptista, (Cândido analisa o
Modernismo numa formulação teleológica e não genealógica), torna-se igualmente perigoso
tomarmos os aspectos levantados por Baptista como configuração plena, resolvida,
arriscando-se considerar que o Modernismo brasileiro não aconteceria simplesmente se o
Estado dele não tivesse se apropriado. Seria como admitir que o modernismo não tivesse
de fato existido em outra esfera que não fosse a política, esquecendo-se do fator mais
preponderante: o povo brasileiro e a expressão de sua intelectualidade, a inquietação por
uma cultura própria, o desejo de liberdade, elementos presentes já nas obras de alguns nomes
antes mesmo da revolução nacionalista, como durante a própria revolução artístico-literária
(se parece irônico, “o futurismo” ‘chegou’ primeiro pelo Nordeste brasileiro, não por São
Paulo ou Rio de Janeiro!).
Não podemos negar a história, e nem a literatura que, já em Olavo Bilac ou Coelho
Neto80, mas desde José de Alencar mais precisamente (em Sonhos d’Ouro) anseia por uma
nação desobrigada da ex-metrópole, e isto já era concebido na cena literária brasileira.
Por outro lado, e concordando com a perspectiva de Baptista, citado por Teixeira
(2009:53)
se parece bastante plausível que o paradigma construído por A. Cândido pode ser
considerado herdeiro de muitas das proposições basilares do Modernismo brasileiro,
sobretudo na vertente originada por Mário de Andrade, isso não é o mesmo que afirmar
que é de seu paradigma que se pode fazer uma leitura do Modernismo brasileiro,
entendendo-o a partir de um desacoplamento radical em relação a Portugal, deslocada
das preocupações que efetivamente mobilizaram aquele movimento.
A mais equilibrada postura, entre outras, nos parece ser procurar os suportes mais
autênticos da posição dos modernistas inscritos em suas próprias obras, mas na evolução
destas também no contexto sócio-histórico inserido. E, se aqui parece que estamos
confundindo nacionalismo com modernismo, e com as razões de H. Cidade, não se dá ao
acaso, mas pelo fato incontestável dos largos objetivos modernistas que, a somar a renovação
estética e a elaboração de uma literatura de caráter nacional transformam-no em projeto de
79
Desde 1980 encontramos trabalhos de pesquisa que confrontam a memória instituída do modernismo, entre
eles Francisco Foot Hardman, Silviano Santiago, Abel de Barros Baptista - seus respectivos estudos: o artigo
Antigos modernistas; os ensaios Fechado para balanço - Sessenta anos de modernismo e A permanência do
discurso da tradição no modernismo; o ensaio O cânone como formação: a teoria da literatura brasileira de
Antônio Cândido.
80
Veja-se Mário de Andrade, ”Parnasianismo” in: O Empalhador de Passarinhos.
50
cultura nacional. Indagamos: ainda que de outra maneira, isso não ocorreria independente
de uma “legitimação” ou apropriação do Modernismo pelo Governo brasileiro deste tempo?
Na verdade, as vertentes estético-ideológicas surgidas dentro do Modernismo é que não
deixaram de ser utilizadas por interesses políticos de que os próprios intelectuais não
suspeitaram. Daí, a meia razão de Baptista em sua conotação ao adjetivo brasileiro na
descrição do Modernismo. A questão da brasilidade que adiante apresentaremos foi a partir
da década (de 20) em diferentes momentos da história
(Moraes, 1978:125)
Sabemos que este jogo político ocorreu também em Portugal no regime do Estado Novo.
As vanguardas europeias e a problemática política do período (até a revolução de 24 -
tenentismo, levante do Forte em 22, alicerce da Coluna Prestes, etc.) têm inevitável
importância na análise dos fatos modernistas, como na definição de novos rumos do
modernismo no Brasil, porém, subjazem a tudo isto outras categorias que devem ser
igualmente estudadas e que podem nos encaminhar à percepção da estrutura do pensamento
que reside no bojo das intenções modernistas de abrasileiramento do país, ou seja de sua
evolução cultural, e à compreensão dos motivos do movimento contrário ao das vanguardas
europeias como se desse, em função da nacionalidade, uma ruptura da própria ruptura,
embora não o fosse. O que percebemos como essencial para a nossa pesquisa é,
principalmente, considerar e compreender a maneira e os meios utilizados pelos modernistas
brasileiros em um determinado momento da história do país para realizar um projeto de
modernização que já se manifestava na ordem literária, assim como nos outros setores da
realidade nacional brasileira. Importa, portanto, estabelecer uma relação entre o
nacionalismo emergente em meados do primeiro e segundo modernismos e o material
ideológico já presente na cultura nacional.
Neste ponto que agora damos seguimento faz-se difícil não lembrar dos pressupostos
do Modernismo português (ou de seu ‘pré-modernismo’), nas assertivas de Pascoaes e de
Pessoa anteriores a Orpheu, no trato da alma portuguesa e de sua poesia, respectivamente (
o que nos remete a E. Lourenço, quando diz em um de seus ensaios que ambos, Portugal e
Brasil...cavam em direções opostas o mesmo túnel).
51
81
A ironia, entre outros fatores, ao que nos parece, está situada na contradição fundada nos desencontros do
pensamento do autor e dos outros modernistas que não conseguiam ver a ”modernidade” de Graça Aranha mas
tão somente o seu academismo filosófico-intelectual. No entanto, parece tratar-se tudo (e mais ainda com
relação a Mário de Andrade) de um complexo mal-entendido da história literária brasileira, pois exatamente
quando o modernismo esteve mais próximo das ideias defendidas na obra do autor (A estética da vida) – gerada
em outras condições e num tempo anterior – a sua figura foi afastada, segundo Jardim de Moraes, e quase
esquecida nos meios modernistas.
82
O desfecho desta conferência – ”O espírito moderno” – continuação da linha de pensamento de ”A estética
da vida” e que abarca a quase-totalidade de seus temas, levaria Graça Aranha a abandonar a Academia de
Letras: ”O movimento espiritual, modernista, não se deve limitar unicamente à arte e à literatura. Deve ser
total. Há uma ansiada necessidade de transformação filosófica, social e artística”. Por sua importância, citamos
aqui um fato esclarecedor nas contradições internas do movimeto modernista brasileiro, colocado por Moraes:
”Proferida em data posterior à da publicação do ”Manifesto Pau-Brasil” de Oswald de Andrade, tal definição
apresenta críticas veementes à postura nacionalista do romancista do Miramar e inaugura uma viva polêmica
que pareceu a alguns autores ter levado à separação dos grupos modernistas carioca e paulista. Esta polêmica,
em que a maior parte dos modernistas participou, teve como campo de batalha a questão da brasilidade.
Comentando a polêmica em carta de outubro de 1924 a Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira foi
quem, acima dos desaforos que caracterizavam o clima literário do momento, compreendeu melhor o problema.
Diz ele: <<pensando bem, creio que no fundo estão todos de acordo, e o problema é enquadrar, situar a vida
nacional no ambiente universal, procurando o equilíbrio entre os dois elementos>>"
52
propriamente o seu propósito e fundamentos. Por outro viés nos diz Moraes que “não
poderemos situar com precisão o projeto de elaboração de uma cultura nacional contido no
modernismo, se não levarmos em consideração o seu contato com o pensamento de Graça
Aranha”.83
E o pensamento do escritor maranhense, que o autor disseca e que acredita encontrar
ressonância com os ideais nacionais modernistas - que expomos desde agora - consiste
principalmente de detectar uma metafísica da alma brasileira, traçando a essência de seus
traços característicos; diagnosticar sua problemática existencial; sugerir uma solução
terapêutica a partir de sua história cultural, elencando os fundamentos do nacionalismo e
de uma proposta de modernização da nação por meio da arte84 e em especial da literatura.
Segundo percebemos, suas teses no que tange à dinâmica metodológica e ao veio
filosófico têm mais ou menos a configuração do trabalho de Teixeira de Pascoaes com
relação à “arte de ser português”. Partindo da Poesia, o tema é ampliado e o que é colocado
em questão é todo um projeto cultural e, apesar de longa a citação seguinte, entendemos
como fundamental conhecê-la literalmente, pelo que nesta investigação interessa:
[...]. A nossa produção literária é vasta e longa, mas ela se caracteriza infelizmente
pela falta de obras que pela universalidade da emoção ou da criação tenham entrado
no patrimônio coletivo da humanidade. É verdade que a literatura portuguesa também
não atingiu a essa alta situação, não porque fosse escrita em uma língua pouco
conhecida, mas porque os seus melhores escritores, limitando-se ao quadro português,
não souberam tirar das particularidades de seus assuntos a generalidade da emoção
indispensável para a comunicação com o espírito dos outros povos.(85) Não tiveram o
gênio dos escritores da Noruega e da Suécia que exprimiram nas suas obras o interesse
universal, permanecendo essencialmente escritores das suas pequenas nacionalidades.
É possível que a literatura brasileira transmita um dia o fluido que nos ponha em
comunicação com o universo inteligente. Por ora, ela não satisfaz plenamente à própria
alma brasileira.86
83
O autor considera que a avaliação do movimento modernista desconsiderou o possível legado da obra de
Graça Aranha ao projeto modernista, por ter-se fixado demasiadamente na consideração das declarações
explícitas dos modernistas em polêmica com esse (cf. Moraes, 1978:21).
84
Com relação às artes plásticas, num grande equívoco de empolgação para a crítica, mas principalmente pelo
fato de que só mesmo depois da geração modernista se pôde melhor conhecer as artes plásticas do período
colonial (como constata Eduardo Moraes) Graça Aranha avaliou a cultura nacional como carente/ausente neste
campo,‘esquecendo-se’ até mesmo do grande escultor Aleijadinho, ao contrário da literatura que constatava
como de grande e permanente produção no Brasil, mas cujo caráter criticava e desejava remediar. Assim,
refere-se às artes plásticas em: A estética da vida, p.630; na Conferência de 22 de O espírito moderno, p.743;
(e) na conferência de 24 na Academia, da edição da Obra completa do mesmo livro, p.745.
85
Não por acaso, relacionamos este fato ao chamado de Fernando Pessoa e de Orpheu à “europeização” de
Portugal.
86
A estética da vida, pp.631-632, op. cit. em Moraes, pp.37-39.
53
Aranha não só explica, mas coloca bases para, através de sua análise comparativa e de
suas constatações, já pontuando a problemática linguística que seria tomada com força pela
geração modernista, indicar o caminho aos artistas (mas não só a estes, como veremos
adiante) para imergir na nacionalidade como condição de comunicação igualitária com o
universo inteligente:
Por ora vagamos na fluidez dos elementos. Todo o idealismo profundo e misterioso que
se escapa na poesia triste e inquieta raras vezes chega a penetrar nas regiões da
literatura. A poesia culta, ou é extremamente formal, ou pela sua emoção lírica e às
vezes panteísta é tão superior que é sentida por poucos. Esse formalismo da nossa
poesia se propaga por toda a literatura. O brasileiro balbucia ainda uma língua em
que se sente estrangeiro, e como não escreve nesta língua hesitante, a literatura não
representa pela língua escrita a alma coletiva. Há uma língua escrita e uma língua
popular. Aquela, produto de cultura, é fria, acadêmica, gongórica, e nesse país em
formação, cuja alma procura manifestar-se com energia e por sinais precisos, que
sejam os signos fiéis das coisas exteriores da nossa vida e dos secretos anseios do nosso
espírito, volta-se estranhamente e sem esperteza ao classicismo ‘bárbaro’ dos
portugueses, como à suprema forma literária do Brasil. É uma vasta literatura de
pedantes. É o defeito da cultura artificial, vício que perdeu as modernas literaturas
italianas e espanholas, que foi constante em Portugal, e separa pela linguagem a casta
dos literatos do verdadeiro espírito nacional.87
Assim, a nossa inteligência, para se libertar dos elementos bárbaros, fez da cultura um
ato de mau gosto e um ato de covardia, produzindo uma literatura incolor, sem obras,
onde o idealismo do nosso espírito metafísico não encontra os seus símbolos, nem a
vida as suas criações ideais. E no entanto aqueles elementos bárbaros da nossa
formação espiritual e da nossa nacionalidade reclamam, antes de seu desaparecimento
87
Ibidem.
54
88
Ibidem, ibidem.
89
Na ideia do autor, o terceiro trabalho da arte consistiria na ligação dos homens entre si (p.29).
55
90
Difícil perceber aqui o que há de conceitual e de preconceito, todavia, ao nosso ver, nessas categorizações.
E isto também forma a mentalidade do povo.
91
As obras Losango Cáqui de Mário de Andrade; Pontos nos is de Sérgio Milliet; Toda a América de Ronald
de Carvalho; Um homem na multidão de Ribeiro Couto são alguns exemplos de ‘tratados’ de brasilidade.
56
Aí reside a visão sintética do operante de brasilidade, como em Plínio Salgado, que valoriza
a intuição e repudia o formalismo 93 , numa perspectiva psicologista do abrasileiramento,
onde são valorizados sobretudo os sentimentos94. Enquanto outra visão, analítica, pensa a
mesma ideia por outra perspectiva distinta da de Aranha, a exemplo Sílvio Romero e Mário
de Andrade que declara em carta a Manuel Bandeira: “Achei das observações mais finas
que fizeram sobre mim essa sobre o lado analítico da minha concepção de realizar Brasil”.
O escritor entendia que era através do levantamento investigativo dos elementos do
patrimônio cultural da nação que este
seria preservado e esta era a sua preocupação. Esta linha se destaca a partir de 1930.
Da mesma maneira psicologista, de processo idêntico, a Antropofagia apreende
sinteticamente a realidade da nação, a exemplo da obra de Paulo Prado, Retrato do Brasil,
bem característica da visão modernista e especialmente do Manifesto de Oswald de Andrade
e do menos conhecido Descida, de Oswaldo Costa, com ênfase na categoria da integração,
pela ‘defesa do homem biológico’, livre da falsa cultura europeia; a recusa do jesuitismo,
das formas sistemáticas da apreensão do real, e a adoção antropofágica das teses políticas do
marxismo (recusando sua institucionalização) e do fascismo que caminharem na direção da
92
Op. Cit. em Moraes, p.118.
93
Ruy Barbosa foi a figura escolhida que representava o saber livresco identificado à ideia de sistema na
literatura brasileira, utilizada enfaticamente por Cassiano Ricardo para ilustrar que ao se apreender a realidade
por formas sistêmicas, exclui-se a utilização da intuição e do saber por contato ( uma categoria da poesia Pau-
Brasil, dos movimentos Verde-amarelo, da Anta, e do Jabuti ou da Antropofagia). Esta transferência do sistema
à imagem do escritor clássico nos remete ao Modernismo em Portugal – Júlio Dantas, por Almada Negreiros.
94
Esta abordagem é explanada em O Curupira e o Carão, como orientação verde-amarelista, coleção de nove
artigos de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, publicada em 1927 pela Ed. Hélios, São
Paulo.
57
o que é uma oposição, até, ao primeiro momento modernista, que responde ao caminho
aberto deixado em A estética da vida.
95
Grifo nosso
96
Moraes, p.158.
97
Idem, 155
58
A realidade atual nos mostra, contudo, que a valorização do índio em toda sua dignidade
não existiu verdadeiramente até hoje no Brasil. Para exemplo, basta-nos um rápido olhar
para as obras de construção (no mandato presidencial de Dilma Rousseff) da terceira maior
usina hidrelétrica do mundo, a de Belo Monte, no Pará, apesar de toda a campanha social
dos intelectuais, do povo e dos artistas brasileiros contra o barramento do importantíssimo
rio Xingu, em sua biodiversidade de fauna e flora (com aliás aproximadamente quatro vezes
mais da diversidade de peixes encontrados em toda a Europa em sua bacia), o qual terá seu
leito natural desviado e comprometido com escavações de grandeza equivalente à do canal
do Panamá e largura à de um terço da cidade de São Paulo. Isto desembocaria, entre dezenas
de outros pontos conhecidos dos especialistas, na “perda irreversível de centenas de
espécies”, sem ainda tocar no seu equivalente fator de extrema importância: o impacto
cultural que motivado pela “transformação” do “rio mais indígena entre os rios brasileiros,
com a população de 13 mil índios e 24 grupos étnicos vivendo ao redor da bacia do Xingu,
o que de fato representa “a condenação dos seus povos e das culturas milenares que lá sempre
residiram” além da provocação de mais futuros desmatamentos e da ocupação desordenada
pela chegada de novos imigrantes” não indígenas [...] e a drástica redução da oferta de água
pela “redução de mais de 100km de rio”, de acordo com a fonte Resumido de Envolverde/
SOS Mata Atlântica.98 Qual seria o índio valorizado do modernismo?
Até nossos dias a polêmica travada na esfera do nacional que tentou definir a ideia de
brasilidade, de tradição nacional e de renovação ressoa como eco que ainda “viaja na onda
da imprecisão”. Todavia, nos aliamos ao pensamento de Helena (2003:63) quando considera
que
98
Veja-se em CI- Brasil – Ong Conservation International www.problemasambientais.com.br
59
3.
O FUTURISMO
60
99
Lacerba foi a revista literária ( de arte e pensamento) italiana futurista fundada em Florença por Giovanni
Papini e Ardengo Soffici, seus diretores, sendo que em 1915 tinha como diretor apenas Papini. Divulgava os
grandes princípios do Futurismo e apregoava a liberdade plena e autônoma da arte, a exaltação anárquica do
”gênio” e do super-homem e da renovação da literatura fragmentária. Com a Primeira Guerra adquiriu violento
caráter político. Os grandes nomes do Futurismo colaboravam na revista (como Marinetti ) até que o artigo
assinado por Papini, Soffici e Palazzeschi (Futurismo e Marinettismo, 1915) provocasse a separação dos
futuristas entre florentinos e milaneses, estes os ”marinettistas”.
100
Mário de Sá Carneiro já noticiava de Paris em cartas a Fernando Pessoa sobre o ambiente que seria o do
pré-futurismo português, no entanto, era cuidadoso e crítico quanto às ”extravagâncias” de Marinetti. Santa-
61
ambiente intelectual francês parisiense de fin de siècle por diferentes atores101, e do clima
pré-futurista na Península criado por escritores como Morasso102 e Papini, corroborando com
o posterior êxito do Manifesto Le futurisme de Marinetti estrategicamente publicado em
francês no jornal parisiense Le Figaro em 1909 que deram ao futurismo um significado
inicialmente francês, já que Marinetti encontra-se entre duas culturas, a francesa e a italiana,
filiando-se ele próprio à primeira:
Rita, como outro observador do Futurismo, já se mostrava convicto militante marinettiano e admirador dos
cubistas e em especial de Picasso.
101
Segundo Annateresa Fabris (1987:5) Marinetti, vivendo entre a França e a Itália pôde comparar a Paris da
Belle Époque, de fin de siècle com ”a atmosfera modorrenta e culturalmente retrógrada do país de origem de
seus pais, criticado num artigo de 1899 por sua falta de um centro intelectual, de cenáculos onde debater ideias,
confrontar visões poéticas. Enquanto que em Paris, desde os meados do século XIX, as ideias já se voltavam
para a ”busca de uma nova expressão estética, capaz de refletir as profundas transformações da sociedade da
industrialização, de exaltar a fisionomia renovada da cidade, verdadeiro centro propulsor de energias e
acontecimentos, profundamente modificada pela introdução do ”artifício” em larga escala, animada por uma
multidão febril, que lhe conferia continuamente novos aspectos, novos ritmos com suas idas e vindas, com suas
paradas, com suas aglomerações.”
102
Morasso, em Poesia (1906) enfocando diferentemente a temática, exerce possivelmente influência sobre
Marinetti, segundo Fabris: (n)o amor pelo perigo, a energia, a temeridade, a coragem, audácia, a rebeldia, o
movimento agressivo, a beleza da velocidade, o homem ao volante, a guerra estetizada, a vida moderna.
103
De acordo com Mendonça Teles (2009:107), e ”segundo a atuação de Marinetti, a história do futurismo
pode ser dividida em três fases: a de 1905 a1909, em que o princípio estético defendido é o verso livre; a de
1909 a 1914, quando se redige a maior parte dos manifestos e se luta pela imaginação sem fios e pelas palavras
em liberdade; e a de 1919 em diante, quando se fundou o Fascismo, e o futurismo se transforma em porta-voz
oficial do partido.” Teles destaca o ano de 1913 quando, entre muitos acontecimentos, e maior número de
manifestos lançados, sobressai em Marinetti o otimismo generalizado sobre a guerra, como que profetizada
pelo escritor como a ”única higiene do mundo”, tão remitente em, por exemplo, Pessoa/Álvaro de Campos e
Almada Negreiros, logo depois.
104
Fabris (1987:5) extraída da obra de B.ERULI ”Preistoria francese del futurismo”, Rivista di letterature
moderne e comparate, 23(4), dez. 1970, pp.245-49.
105
Id.:4, opúsculo citado de B. ROMANI, Dal simbolismo al futurismo, Firenze,1969,pp-7-8.
62
-o desprezo pelo antigo - remonta aos gregos, a Horácio, aos seiscentistas Perrault e Tassoni,
até encontrar a primeira declaração futurista no prefácio dos Chants d‘un moderne,
publicado por Maxime Du Camp em 1855, com a proposta temática do “esplendor
mecânico” das oficinas; na Itália: Parini e Monti, cantando o aeróstato; Zanella, exaltando
as novas descobertas físicas do século XIX; Carducci, celebrando a locomotiva a vapor e a
estação ferroviária; D’Annunzio, que estruturara as Laudi em torno do princípio da
transfiguração lírica das grandes metrópoles modernas; no âmbito internacional, Whitman e
Verhaeren, os “primeiros grandes poetas futuristas”, e o teórico da poesia da máquina, Mário
Morasso;
-a destruição de museus e bibliotecas – cabível lembrar do incêndio da biblioteca de
Alexandria, da destruição dos clássicos na Idade Média, do extremismo da “Comuna de
Paris”, do desejo de Pissarro de incendiar os museus, necrópoles da arte;
-o desprezo pela mulher - já presente em Tolstói, Strindberg, Shaw, Weininger;
-a invectiva contra a lua - em Baldelaire e Carducci;
-a glorificação da guerra - em Heráclito, De Maistre, Proudhon, Dostoiévski, Nietzsche;
-a ideia do artista funâmbulo – em Banville e Nietzsche;
-a decomposição das formas na pintura (já uma prática poética) – em Picasso e Braque, a
somar com duas “novidades” da escrita futurista:
-as palavras em liberdade – tendo como precursores Mallarmé (disposição bizarra das
palavras, caracteres tipográficos variados), os poetas alexandrinos (representação visual das
coisas através da escrita), Aristófanes, Ênio, Dante, Pascoli (onomatopeias);
-o teatro sintético – já realizado por Verlaine ao escrever um drama com duas cenas e duas
deixas.
Giovanni Papini (em concordância com Soffici) remete o Futurismo ao ambiente
intelectual de Paris, e o primeiro coloca que a originalidade do futurismo é apenas
quantitativa. Segundo ele, os “futuristas” fizeram com frequência o que os seus antecessores
“fizeram raramente e por brincadeira”, mas por outro lado o futurismo é relativamente novo
por ter redescoberto uma ideia antiga. Tanto percebeu isto, que em 1948 refere-se a Marinetti
da seguinte forma, aludindo ainda ao legado do mentor futurista ao seu país numa dimensão
de modernidade (como quiseram os modernistas futuristas - não por acaso - também em/para
Portugal):
Non parlerò dele sue teorie, spesso ingenue e confuse[...]. Ma chi ricorda l‘atmosfera
afosa e smaniosa degli anni che prepararono la prima guerra mondiale, dovrà
riconoscere che l‘irruzione del Futurismo, prima che si tramutasse in marinettismo,
63
ebbe qualche effetto salutare: Marinetti, non foss’altro, obbligò gran parte della
sonnolenta e anchilosata borghesia italiana ad appassionarsi anche a nuovi problemi
di arte e letteratura, e a entrare violentemente in contatto con le ricerche e le scoperte
del nuovo spirito europeo.
Papini (1994)
[...] Na Itália, parece-me tudo em desuso. Um enorme museu para as coisas da arte,
uma enorme loja de ferro-velho para aquelas em uso.
As ruas, as linhas, as pessoas, os sentimentos cheiram a ontem com a agravante do
odor indefinível do hoje. Vivemos num sonho histórico. Esta é a delícia dos forasteiros
que vêm justamente repousar, mas nos faz estremecer à lembrança de que os
historiadores no século XX não falarão da Itália.
U.Boccioni106
106
Op. cit. FABRIS (1987): U.BOCCIONI, Gli scritti editi e inediti, Milano,1971, p.236.
64
O futurismo vem a ser uma fotografia abstrata das coisas. Ora, toda a arte, seja como
for, é antifotográfica e concreta...
Não achamos que seja positivo ignorar neste espaço, antes de afirmarmos nossas
‘descobertas’, o que venha a informar a concepção portuguesa futurista ou para o futurismo
no contexto dos portugueses da época. Equivalentemente, entendemos como necessário
conhecer o mesmo para os brasileiros, para entendermos melhor a pertinência das propostas
e dos alcances nesta dimensão.
Picchio (1982: 305-330) entende que o futurismo em Portugal deu-se mentalmente,
“n’arrivera jamais à être réelle, que se termine I’histoire du Futurisme portugais”. Com efeito
poderíamos extrair disto e do que declara Pessoa acima, no mínimo duas coisas: uma, que
não houve um Futurismo de fato em Portugal, mas um “projeto, uma mentalização e uma
consumação solitária elevada a uma altura de ressonância filosófica”; outra, grosso modo,
o futurismo não é arte (ou não leva a ela) ou se o é, é uma contra-arte .
65
107
Reveja-se a nota de rodapé n° 22 .
108
Manucure – poema sensacionista-semifuturista, inspirado em Appollinaire (Alcools) - dele Fernando
Pessoa disse ser uma blague, mas D’Alge (1989, p.94) bem coloca que de fato Sá-Carneiro ”tentou, nesse
poema, conciliar os sinais do mundo exterior, da metrópole febricitante e embriagada com o progresso, com
o seu psiquismo”, através do que tece com as imagens justapostas por sua visão pessoal.
109
Mima-Fataxa e Litoral, declarados futuristas. O primeiro, também decadentista, joga esteticamente com a
intersecção de planos, sons e cores, utilização de diferentes tipos de letras e de seus espaços gráficos,
caracterizando o cosmopolitismo típico do primeiro modernismo de Paris, a cidade-luz, também pela exaltação
da luxúria. O segundo, dedicado ao pintor futurista Amadeo de Souza-Cardoso eleva e reduz ao nível poético
e com simultaneidade de imagens todos os elementos: pessoa, objeto, espaço (e tempo) (Cf. D’Algi, pp.127-
128) .Os dois ”consignam experiências de composição e recombinação de teor simultaneísta, dando origem a
uma espécie de narratividade por defeito, atomizada”(Silva, p.105).
110
Canção – diferentemente de subverter o discurso pela linguagem de agressividade escandalosa e
contestatória, Almada o subverte pela ingenuidade e inocência com que ‘veste’ e reveste a sua visão de mundo
(de conotação infantil e utópica), pela simplicidade e sinceridade, seja temática ou estilística, assim como pela
pluralidade de vozes e do próprio discurso (Veja-se Vila Maior, 1996, p.86). O poema reflete a busca do
trabalho literário do autor por meio desta poética da ingenuidade que situar-lhe-á no universo por um modo
próprio, seu, através da arte.
111
A cena do ódio, sensacionista – e futurista, (14.05.1915), uma ”performance de linguagens”, de Orpheu 3 e
dedicado a Álvaro de Campos foi publicado na revista Contemporânea (n°7) e é considerada por Gaspar Simões
”a peça que mais perto estava da estética de Marinetti” (em Vida e Obra de Fernando Pessoa, V.II p.112) e
foi elogiada por Fernando Pessoa que já considerava Almada como ”homem de génio absoluto, uma das
66
Ode Triunfal 112 , Ode Marítima, Saudação a Walt Whitman 113 , de Pessoa/Álvaro de
Campos; A Casa branca nau preta114, menos conhecido, inédito de Fernando Pessoa/ele
mesmo; A Criação do Nada115,pouco conhecido, de Francisco Levita. No Brasil, Cocktails,
Crepúsculo, de Luís Aranha; Uma gota de sangue em cada poema, Paulicéia Desvairada,
Losango Cáqui, Ode ao burguês116, de Mário de Andrade; Poemas da Vida e das Cidades117
(O Pássaro de aço, O que eu vi nessa noite..., Canto real da estrada de rodagem, Vida
boêmia), de Agenor Barbosa; Fragmento, de Menotti del Picchia; Nós, de Guilherme de
Almeida; Poesia (Os sapos)118, de Manuel Bandeira.
grandes sensibilidades da literatura moderna”, cf. carta sua a Côrtes Rodrigues (Neves, p.82 e D’Algi, 109,
Silva, 104).
112
Ode Triunfal – Sá-Carneiro em carta a Pessoa, 20.06.1914, destacou alguns versos de sua admiração,
justificando a imortalidade da Ode como obra-prima futurista, entre eles: ” Ah! como eu desejaria ser o
souteneur d‘isto tudo!” ou ”… A fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios”. E achou
maravilhoso o seu ”final com suas onomatopeias” (Veja-se em Neves (s/d) pp.123-124).
113
Saudação a Walt Whitman – A sensação é sublimada pela linguagem na exaltação do poeta por Álvaro de
Campos e adentra-se no campo da sexualidade erótica vivificada no ”gozo das máquinas”, onde o ”Grande
pederasta” é também ”grande herói entrando pela morte”, ”grande democrata”, grande camarada”, ”grande
libertador” a inspirar a atividade com a máquina e com a velocidade. (Veja-se em Lourenço, 2003: 87-120 e
D’Algi, pp.80-81).
114
A casa branca nau preta, do então diretor de Orpheu (11.10.1916) revela com clareza aspectos da poesia
que o próprio Pessoa desejou: com a marca do sentir-pensar, presente nos ismos inventados por ele, em especial
o sensacionismo. Uma amostra: ”Quem dera que houvesse/ Um estado não perfeitamente interior para a alma,
/ Um objectivismo com guizos imóveis à roda de em mim… / A impossibilidade de tudo quanto eu não chego
a sonhar /Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir…”. Veja-se completo em Júdice
(1993:173 -175).
115
A Criação do Nada, muito típica desse enquadramento da liberdade dos arranjos tipográficos onde registra
simbolicamnte uma filosofia niilista e nietzscheana com muitos pontos e quase nada de palavras, de acordo
com D‘Algi p.120.
116
Ode ao burguês, poema violento de características futuristas facilmente identificáveis: o tom agressivo e
exclamativo sugerindo gritos e revolta; a irreverência contra a estrutura social; o uso do verso livre; a
substantivação dupla. Arnaldo Saraiva (2004, pp.: 219-232) vê questões de transtextualidade entre a Ode ao
burguês de Mário de Andrade e A Cena do ódio de Almada Negreiros por suas impressionantes semelhanças,
embora que não haja fatos que comprovem influência de um sobre outro, no caso o português sobre o brasileiro,
mas sim de textos que serviram claramente de suporte teórico aos dois poemas em causa (os dos primeiros
manifestos futuristas) mas também podem dever ambos à influência, mais próxima, de Guerra Junqueiro, poeta
popular em Portugal e no Brasil.
117
Poema da vida e das cidades – assim como Mário da Silva Brito, não sabemos se foram editados. A despeito
da possível influência de António Nobre ou Cesário Verde, Brito considera que o importante é observar que
”[os versos] são lançados como representativos de uma nova concepção poética e que, como tal, foram aceitos
e, por isso mesmo, discutidos.”
118
Os sapos, de Manuel Bandeira - de 1918, (para lembrar, ano da morte dos pintores portugueses futuristas
Amadeu de Souza e Santa-Rita) uma amostra de fato futurista reconhecida principalmente pela provocação
corrosiva do poema (linguagem, estilo, tema) à estética parnasiana e à vaidade dos parnasianos, usando o
sarcasmo, a ironia e a intertextualidade com poemas clássicos ( Profissão de fé, de Olavo Bilac e Vaso grego,
de Alberto de Oliveira). Bandeira utiliza a assonância em b e p e a aliteração em u e a, remetendo ao pulo dos
diferentes sapos, pluridiscursivamente (para nós remete também à questão social), em quartetos (‘populares’)
que ‘insultam’ o soneto, e ainda faz alusão a uma cantiga popular brasileira. Estes últimos elementos incitaram
o público da Semana de Arte Moderna a interagir fortemente com o poema, seja em conivência ou em
zombaria, quando este fora recitado por Ronald de Carvalho no segundo sarau no Teatro entre vaias e gritarias
– em uníssono com o poema: ”Foi, não foi!”. O poema tornou-se um clássico da literatura brasileira do século
XX.
67
Estes exemplos literários não deixarão de nos parecer, a quem lê-los, a nós do século
XXI (no caso do Brasil, mas também no de Portugal para alguns itens), simplórias
realizações poéticas, mais acadêmicas que revolucionárias, tal como pôde refletir Mário da
Silva Brito (1974:245), mas, e segundo ele,
Neste sentido é que algumas vezes temos feito uso da locução autognose nacional tendo
como referentes tanto Portugal quanto Brasil!
O futurismo como tendência estética era um chamado a responder à modernização (ou como
não dizer uma ‘anteproposta’?), modernização esta que, para realizar-se tinha que passar
antes pelo “modernismo”, entendendo-se este como processo. Na verdade, ao lermos alguns
desses poemas com boa acuidade não será difícil a detecção de semelhanças com algum ou
outro detalhe da sombra da poesia de nosso tempo.
119
Veja-se em ”Sobre o Modernismo em Portugal e no Brasil: alguns problemas e clarificações” in SENA,
Jorge de (Obras de) in Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, Lisboa, Edições 70, pp. 363-369.
68
...Mas os Modernismos, os quais não são tão somente as suas vanguardas propriamente,
mas ainda o seu desdobramento, não são lineares nem homogêneos, como de alguma forma
já tem sido demonstrado neste trabalho. Pois, ainda que se tratem os discursos como
homogêneos, eles não garantem continuidade nem linearidade entre si. Foucault (1996:58)
ao tratar da ordem do discurso em livro de mesmo nome pontua que “os acontecimentos
discursivos devem ser tratados como séries homogêneas, mas descontínuas umas em relação
às outras”, onde os discursos, mesmo que se cruzem, podem se ignorar ou se excluir entre si
–
Por esta sentença torna-se mais fácil compreender que não houve a homogeneidade tão
bem imaginada e narrada nas histórias literárias dos nossos modernismos, e muito menos no
caso brasileiro quando, a começar pelas distâncias internas geográficas e as da miscigenação
social, entre outras, era muito mais fácil - do que num país menor geograficamente como
Portugal e menos miscigenado na época - toparmos com as diferenças entre grupos
inovadores, correspondente às regiões ou estados geralmente, como Rio, São Paulo,
Nordeste, Sul, Minas, etc. Dentro de mesmo grupo podíamos encontrar os que confrontavam
diretamente a Academia e os que eram aspirantes a ela, ou grupos que não tomavam posições
definidas politicamente, exceto a de prestar homenagens às autoridades que fizessem seus
“favores” (a própria obrigação) à causa cultural. Há os que fomentavam os valores regionais
e os que insistiam nos valores europeus, ou americanos.
Mas os que são tomados para marca do movimento, isto é, os considerados pela crítica
como modernistas são os que se inseriram no “espaço de divulgação da história”, que é o
mesmo espaço simbólico da arena de luta entre os diferentes discursos, onde se disputa a
memória e a identidade como valores a serem divulgados e consumidos.
Orpheu em Lisboa não é isento deste enquadramento, apesar de que seja inegável a
ruptura que provocou na literatura nacional. A subversão de seu discurso fora um dado
suficiente. Mas, paralelo ou em seguimento a ele, outras buscas de modernidade
possivelmente ocorreram no país. Coimbra e Porto podem ser espaços a pesquisar-se no
âmbito do impacto das vanguardas. Mas mesmo que essas (outras) prováveis leituras
diversas da modernidade sejam identificadas e reconhecidas, são aqueles grupos da Semana
69
[a geração de Orpheu] impôs-se em Portugal como uma plataforma de encontro entre o passado
e o futuro, já que entre os seus organizadores e participantes as posições estéticas pós-
simbolistas coexistiam com a preocupação de busca de novas formas de praticar a poesia, de a
comunicar e de a fazer atuante na cultura do tempo, nosso e europeu.
Melo e Castro,1980.120
120
MELO e CASTRO, E.M, As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século XX, Lisboa, 1980, p.37.
121
LAFETÁ, J. L., A Crítica e o Modernismo (1930), São paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000, p.21.
122
Mas também como já dizia Almeida Garrett (1799-1854) - ”Portugal na Balança da Europa – Do que tem
sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado” (cit. por Oliveira Martins
(2007,101).
70
Acontece que Modernismo – termo polissêmico – tem sido utilizado “para revestir, em
diversas convenções culturais, realidades históricas díspares e nem sempre sincrônicas”123.
Enquanto em Portugal o termo fora utilizado somente depois dos eventos (modernistas)
ocorridos na época, pelos críticos dos anos trinta quando tentavam atribuir analogicamente
uma nova semântica para os fenômenos literários e artísticos em geral que ali caracterizaram
as primeiras décadas do século, e cuja novidade e fecundidade estética foram, infelizmente,
tardiamente percebidas, no Brasil a analogia, ao contrário da portuguesa, faz-se de imediato
na aplicação do termo modernistas aos jovens intelectuais que levaram avante a Semana de
Arte Moderna.124Apesar de que antes da Semana já existia uma “tradição moderna” que se
formava no Brasil e de forma particular no Rio de Janeiro, no grupo “D. Quixote”,
especialmente por meio das charges e do humor.
Porém a alavanca vanguardista se deu de forma muito específica por meio dos
manifestos literários que muito bem se serviam a denunciar as crises culturais e mesmo
literárias . No caso de Portugal, era necessário destruir a tradição, revendo a literatura
nacional, e atualizar o futuro, transpondo o passado e saltando o presente 125 ,ser português
europeizando-se, então, numa dimensão “antitradicionalista e futurante” para uma arte
cosmopolita; – no caso do Brasil, devia-se conquistar a liberdade estética para atualizar as
letras e as artes (re)inventando pelo ‘primitivo’ a tradição brasileira e o próprio Brasil,
através de uma tomada de consciência do tempo presente em abertura natural ao futuro
universalizante, numa dimensão tradicionalista e modernizante ao mesmo tempo ou
‘antifuturista’ para uma arte eclética brasileira (ser genuinamente brasileiro e ainda
americano).
123
- Gerson Luiz Roani em artigo ”O Modernismo: Portugal e Brasil” in Revista Língua & Literatura, v. 6 e
7, 2004/2005 coloca que o termo Modernismo aplicado à literaura, nas culturas de expressão espanhola cobre
essencialmente o simbolistmo-decadentismo de 1890. Mas colocamos também que dentro do modernismo
português e até luso-brasileiro, se considerarmos a Revista Orpheu n° 1, o termo servia-se igualmente para
revestir as produções consideradas ”mais” modernas, mas que eram todavia produções embebidas do
simbolismo-decadentismo, ou pós-Simbolismo, isto podendo-se conferir desde a imagem da capa da revista,
desenhada por José Pacheco, como também na maioria dos poemas que a compõem, com as felizes exceções
que já destacamos em outro local. Assim, entendemos que o termo cobriu mais amplo espectro, considerando
o que complementa em seguida Roani, que, ”porém, nas culturas de expressão portuguesa, isto é, em Portugal
e no Brasil, designa convencionalmente duas épocas literárias sucessivas: o período das vanguardas históricas
dos começos do século XX em Portugal e o movimento surgido da Semana de Arte Moderna de 1922, no
Brasil”. Explica-se ainda mais com isto o que diz Melo e Castro (1980:37) quando argumenta que a geração
de Orpheu ”impôs-se em Portugal como uma plataforma de encontro entre o passado e o futuro”. Só não
podemos concordar com Soares Amora, tal como nos coloca Adolfo Casais Monteiro (1977:89), que só
considerou ter-se iniciado o modernismo em Portugal em 1926.
124
Id.:192.
125
Cf. Vila Maior, Introdução ao Modernismo (1996:128).
71
Poderíamos indagar sobre uma não necessária penetração do futurismo então, no Brasil
já que seu modernismo era ‘antifuturista’? Cremos que não, pois através dos contatos com
o futurismo, entre outras vanguardas europeias é que os intelectuais brasileiros, tal qual os
portugueses e mais povos, tomaram consciência de seu retardo estético em relação à arte
cosmopolita do presente (que para eles seria ainda um futuro) e por efeito sentiram a
emergência da ruptura com os padrões que lhes compunham a própria cultura. O Futurismo
deveria responder, mais que outras vertentes, às questões que os levassem a uma
transformação no cenário artístico-sócio-ideológico a um só tempo, pois, concordando com
o que pontua A. Fabris (1994:133) é o futurismo a escola que
propõe uma ruptura em vários níveis - temporal, social, técnico - estendendo sua
violência niilista não apenas à poética, mas à sociedade como um todo, levando a seu
ponto extremo a estratégia de combate inerente à modernidade.
126
De acordo com Fabris (1994), p.75.
72
adapte aos objetivos brasileiros e sua ambiência o movimento italiano. Nossa autora (p.76)
elenca alguns argumentos para a eleição da primeira bandeira da geração:
Estamos quase a perceber que muito do que nos confunde no dimensionamento dos
Futurismos em Portugal e no Brasil dá-se por uma questão primeira de concepção a despeito
da própria corrente em cada um destes espaços. Nem Klaxon, como órgão oficial do
(primeiro) modernismo brasileiro, nem Orpheu , o do (primeiro) modernismo português,
poderão ser compreendidos como futuristas sem que consideremos os espaços sociais em
que habitam e o dialogismo inerente ao ecletismo estético que as duas revistas demarcam
muito acentuadamente, e, no entanto, há ali a inegável novidade que trazem (inclusive
futurista) e isto é uma parcela significativa diante do que queriam fazer acontecer os
modernistas. O próprio Pessoa é incisivo em refletir sobre o ‘não-futurismo’ de Orpheu,
revista e geração:
O que quero acentuar, acentuar bem, acentuar muito bem, é que é preciso que cesse
a trapalhada, que a ignorância dos nossos críticos está fazendo, com a palavra
Futurismo. Falar em futurismo, [...] a propósito do n°1 ”Orpheu” [...], é a cousa mais
disparata que se pode imaginar. Nenhum futurista tragaria o “Orpheu”. O “Orpheu”
seria, para um futurista, uma lamentável demonstração de espírito obscurantista e
reaccionário.
127
Fabris (Ibidem) nos informa sobre um artigo de A Platéia sobre a crise econômica de 1920-21 como exemplo
eloquente do uso dos termos futurismo/futurista.
128
Apud Vila Maior, 1996 p.106.
73
Não podemos deixar de recorrer aqui, todavia, ao que Mário de Sá Carneiro, que
observava atentamente da França todas as ideias novas e escolas da época, comentou em
carta de Paris (29.06.14) ao seu amigo Fernando a despeito da recepção de Ode Triunfal de
Pessoa/Álvaro de Campos:
Não tenho dúvida em assegurá-lo, meu amigo, você acaba de escrever a obra-prima do
Futurismo. Porque, apesar talvez de não pura, escolarmente futurista – o conjunto da
ode é absolutamente futurista. Meu amigo, pelo menos a partir de agora, o Marinetti é
um grande homem... porque todos o reconhecem como o fundador do futurismo, e essa
escola produziu a sua maravilha. Depois de escrita a sua ode, meu querido Fernando
Pessoa, eu creio que nada mais de novo se pode escrever (para) cantar a nossa época.
[...]... Do que até hoje eu conheço futurista – a sua ode não é só a maior – é a única
coisa admirável.129
[...] Os futuristas visam o futuro. Futuro da humanidade, da Terra, da arte, que sei
lá?... Mas haverá por acaso um livro mais atual que “Paulicéia Desvairada” – análise
de um estado de alma momentâneo, passageiro e que não subsiste mais?
Não, o nosso poeta não se liga ao futurismo internacional, como não se prende a
escola alguma.
129
Op. Cit.: NEVES, João Alves das. (s/d) ”O pré-futurismo português” in O Movimento futurista em Portugal
- ensaios, 2ª ed. Dinalivro, Lisboa, p.26.
74
[...]
Quanto ao futurismo brasileiro, ou por outra de São Paulo, Oswald de Andrade
estará mesmo convencido que ele existe? Que produtos apresenta? Que idéias explora?
Que quer? Que bens produz? A que futuro se endireita? [...]...130
130
Em artigo-réplica a Oswald – ”Futurista?!” Transcrito por Mário da Silva Brito, in História do Modernismo
Brasileiro – antecedentes da Semana de Arte Moderna, 4ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp. 234-
238.
131
Embora João Alves das Neves ( s/d: 29-33) in ”Oito meses de futurismo” enquadre o movimento futurista
português num espaço cronológico de oito meses, encerrando-o no Portugal Futurista, e apesar de o autor
sinalizar ”outros textos” produzidos depois, o que percebemos é que as manifestações futuristas posteriores,
que nos parecem também relevantes, não foram compiladas como parte deste processo do Movimento dentro
da nação – por exemplo, o caso de Coimbra – onde as derradeiras manifestações, de 1925, ergueram o
Movimento futurista de Coimbra, que, por sinal nos permite compreender que tenha sido precursor da Revista
Presença, o segundo órgão oficial do (2°) modernismo português, e donde alguns manifestantes futuristas
seriam exatamente colaboradores mais tarde na Presença. Trata-se apenas de uma questão periodológica ou de
outros fatores? Ou Portugal ‘era’ Lisboa, como São Paulo ‘era’ Brasil?
132
Veja-se em D’ALGE, A experiência futurista e a Geração de Orpheu (1989: 31-32) Lisboa, Ministério da
Educação.
75
133
Cf. Nuno Júdice, na Introdução à edição facsimilada de Portugal Futurista, Lisboa, Contexto Editora, 1982.
76
mover o olhar para o Manifesto literário futurista como um “gênero literário” no aspecto que
nos fala Chemello (2010:91)
E no caso dos manifestos do movimento italiano Copetti (2010: 97-108) nos assegura que
Nas duas últimas ou três décadas, segundo o autor, é que tem sido dado maior relevância
e interesse pela “arte di far manifesti” (nomeada por Marinetti em 1913), cuja tradição
crítica outorgava-lhe somente a veiculação de declaração política, e que no entanto novas
interpretações assinalam ao texto uma transformação em um “construto literário”. Nesta
visão, Francesco Flora escrevendo em “Dal romanticismo al futurismo” (1925:198)134 citado
por Copetti (Id.:102) coloca que
“È possibile che un manifesto sia per gli spiriti mediocri un contenuto grezzo che
s’impone per diventare forma: in Marinetti è arte; negli altri può essere matéria
pratica: in lui è lírica; negli altri può essere cultura: in lui è sentimento; negli altri
scuola: in lui vita”.
134
FLORA, Francesco. Dal romanticismo al futurismo. Milano: Mondadori, 1925, p.198.
77
Zamperetti Copetti conclui que parece razoável perceber que os manifestos do futurismo
italiano, comparados aos dos seus predecessores, revelam uma “diferença crucial”
estabelecida por três elementos fundamentais viabilizadores de supor-se tratar de um novo
gênero literário, o que por efeito possibilita-nos examinar “não só algumas aporias do
futurismo, mas também algumas recorrências” e captar o movimento em “toda a sua riqueza”
– os elementos são: o insulto bem definido, a busca pela aproximação com o público de
massas e a estrutura retórica.
Talvez agora possamos melhor situar a produção e a ideia futurista de nossos países e
acolher melhor suas contradições internas e estético-ideológicas no que respeita a uma linha
demarcante nos contornos de seus projetos de modernidade, particularmente vista em seus
manifestos. Antes, porém, ousamos dizer que as ressalvas da maioria dos nossos modernistas
(dos dois países) à escola futurista dá-se muito pela ideia incompleta e fragmentada que
tiveram do próprio futurismo, que, por sua vez, se passa pelo fator da contemporaneidade
aos mesmos (compreensivelmente), visto que não tivessem, como nós temos hoje, a mesma
viabilidade de perceber que o Futurismo, sombrio como se tornara em Marinetti, não estava
somente confinado aos seus postulados e atitudes de sua segunda fase em diante até ao
fascismo como desfecho (por ter-se derivado do futurismo numa declaração política de pós-
guerra, do seu ‘húmus intelectual/anti-intelectual’), mas fora desenvolvido por mais gente...
e com outras ênfases.
O Manifesto, sendo uma teorização programática de manifestação vanguardista teria de
ser, pela própria etimologia do termo vanguarda, que o caracteriza, uma seta apontada para
o devir, em sentido oposto aos valores e tendências vigentes. Esta oposição não poderia, por
certo, dar-se apenas por uma só via, pois o público a quem se dirige também opõe-se. A este
elemento, inovação em oposição à tradição, D`Alge (1989:8) chama pressão.
A pressão inerente à pragmática do Manifesto está revestida de uma dimensão, antes de
outras, espáciotemporal, fundamentalmente histórica, na qual o passado, pesando sobre a
vida individual e sobre a realidade cultural, ao ser negado, é dialeticamente utilizado para
afirmar o presente, traduzido na ação do Manifesto que, por sua vez, radica-se no futuro. Os
elementos de novidade, liberdade e marginalidade do discurso aberto do gênero
”antigênero”135 são mesmo as formas definidoras das vanguardas que as projetam no futuro,
135
SILVESTRE, op. referido em nota de rodapé por VILA MAIOR, Dionísio (1996) in Introdução ao
Modernismo, Coimbra, Almedina, p.132.
78
136
PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, p-121-122; op.citado por
NASCIMENTO, Ana Piedade e VILA MAIOR, Dionísio (2001) in A Geração de 70 e a Geração de Orpheu:
Portugal em questão, Lisboa, Universidade Aberta, p.40.
79
“A Raça Portuguesa (...) precisa é de nascer pró século em que vive a Terra”. “(...) Nós,
os futuristas (...) só conhecemos da Vida que passa por nós.” “(...) Amadeu de Souza-
Cardoso pertence à Guarda Avançada na maior das lutas, que é o Pensamento
Universal.”137 As expressões maiusculizadas de “Raça”, “Vida”, “Pensamento Universal”
trazem a noção de amplidão e cosmopolitismo dos futuristas e a idolatração ao artista
Amadeu não deixa de ter conotações utópicas, respondendo às tradições já consideradas
insuportáveis, sedentos que estavam do novo;
Almada adverte ao povo a partir do próprio título sobre sua missão de destruição do
passado - ao qual reage contestando o fato histórico do Ultimato inglês de 1890, humilhação
nacional imperdoável que atingira demasiado as consciências nacionais -para criação de uma
nova pátria, moderna, do agora, mas insistindo conforme Vila Maior (1996:164), “na
importância de uma componente básica que impede esse “renascimento”: a necessidade de
uma atitude nacional consentânea com uma consciência criadora futurante”. Como vemos:
“É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita das nossas cidades e dos nossos
portos”. (...) ”É preciso ter a consciência exata da Actualidade. (...)”DIGO TERCEIRA VEZ:
é preciso criar a pátria portuguesa do século XX”;138
137
Id.:p.30.
138
Id.:p.37-43
139
Oswald de Andrade em Obras Completas - Estética e Política ( p.122 ) conta que ao tempo em que lançou
o seu artigo na imprensa (Jornal do Comércio, SP) ”O Meu poeta futurista” , tendo já o ”futurismo” se
desitalianizado, em Portugal acontecia que (a exemplo do paralelismo dos fatos e do conhecimento deles pelos
modernistas nos dois países ou ao menos no Brasil neste caso) Fernando Pessoa lançava o seu ”Ultimatum
Futurista” ( Vê-se apesar disto, que Oswald confundiu o título do manifesto de Campos com o de Almada,
somando-os . Como tudo tem seu sentido, requer perceber-se, porém, que os modernistas nos nossos países
estavam atentos, mas não fixados no fato do outro. Cada um ocupado por si).
80
140
Divulgado após o Manifesto Anti-Dantas, sem grande impacto fora de Coimbra, tem contudo suficiente
mérito para escrever na história do futurismo o nome de Levita: usa da linguagem agressiva, irreverente e
carnavalizada entre outros elementos de enquadramento futurista que destacamos na página que se segue.
141
FRIAS, Aníbal. ”Pessoa, Orpheu e o Modernismo de Coimbra: Une réévaluation” comentado por da
SILVA, Manuela Parreira, ”Regresso ao Futur(ism)o”, Gulbenkian Colóquio/Letras n° 180, Lisboa,
Maio/Agosto 2012, p.145-146.
81
companheiro anti-burguês de uma época possa rapidamente ser também ele uma figura como
aquela, burguesa.
Revela, contudo, uma importante faceta futurista – conforme o estudo de Marnoto
(2010:197-217) que procura ‘mapear o futurismo português’ e de acordo com o qual
retomamos alguns pontos de destaque - a linha pragmática deste manifesto revela soluções
ainda mais originais que vão desde o manuseamento do folheto, aparentemente tradicional
na forma, revelando gradativamente (como a preparar o leitor) no interior do material as
surpresas tipográficas dos abundantes procedimentos vanguardistas, em especial o uso da
onomatopeia, pela técnica do texto-espetáculo, até ao final incisivo do ataque ousado,
futurista a um futurista de convicção - Almada Negreiros.
Levita faz isto como que processando uma fotografia (observemos o campo semântico)
e focalizando o alvo mais almejado: torna uma convenção àquele que critica a convenção
(Almada x Dantas em o manifesto Anti-Dantas), através de um jogo dialético do qual não
deixa de fora elementos essenciais da escola de Marinetti, por um lado, e na linha de Pessoa
sensacionista, que faz de Levita par com a semelhança ao próprio Almada: a sátira
humorística mergulhada numa profusão de cores e de sons, sinestesicamente complexos em
seus sentidos e contra - sentidos142 pelo dialetismo que expõe com Orpheu, por meio da
caricaturação das técnicas vanguardistas que utilizava, destruindo deliberadamente as
convenções já conhecidas e elevando a um nível de complexidade os processos mediadores
patentes no manifesto de Almada, o Anti-Dantas, voltando-os, crítica, irônica e
surpreendentemente contra o seu próprio autor, o colega futurista, porém, sem um
posicionamento opinioso por um polo específico onde situar-se, no aquando do ‘sistema’
Dantas ou do ‘sistema’ Negreiros, se assim podemos chamar. Como quer Rita Marnoto: nem
condenação nem apologia (Id.:205). Talvez seja oportuno citá-lo melhor no excerto do texto,
onde vemos a tematização no campo fotográfico revelada no campo semântico que usa,
apesar de não estar presente aqui nesta parte o corpo visual que lhe é mais excêntrico e
enquadrado nas orientações futuristas:
142
Veja-se em MARNOTO p. 197.
82
de, W.C., em, dia, de beberagem da tal Magnésio, Dantas. Os meus pensares
confirmaram-se quando o pateta que se diz Futurista e Tudo, lançou praí um manifesto
ou imbecil, ou Dantas, ou cretino ou Almada Negreiros!!! / Julga o Dantas 30 milhões
de vezes BURRO./ O Cretino não sabe que se essas ceroulas forem de cor de ‘Nile’ dão
intelecto ao possuidor? / E diz-se futurista e diz-se Tudo!/ Burro, burro é que é V. é. /
Diz que o Dantas cheira mal da boca, e V. tem bidé no quarto?/ Esse Sterico que eu já
vi fazer de gaivota, bailando em noites de podridão, classificou-se agora, é o DANTAS
n°2.143
143
Apud D‘Algi (1989), p.120.
144
VILA MAIOR, Dionísio (2011) ”Le manifeste littéraire et la cohérence carnavalisée du discours moderniste
portugais et brèsilien”, in BESSE, Maria Graciete [org.], Le Futurisme et les Avant-gardes au Portugal et
Brèsil, Argenteuil, Éditions Convivium Lusophone, p.134
145
Cf. Theodor Adorno (s/d), op.cit. in Vila Maior, Id.:135.
83
le discous d’avant-garde mais également parce qu’ils représentent dans deux pays
respectifs, des exemples paradigmatiques de critique à l’orthodoxie esthético-littéraire;
et c’est dans ce sens que nous pouvons dire qu’ils auront contribué à ce qu’Adorno [...]
a dénommé de “transformation de la conscience” opérée par les oevres d’art [,]
146
Cf. Gilberto Mendonça Teles (2009), em obra já citada.
147
Cf. Ellen W. Sapega, ”Futurismo e identidade nacional nas obras de Almada Negreiros e Mário de Andrade”
in Coloquio/Letras: Cópia digital N° 149/150(jul.1998).
148
Em artigo citado anteriormente, na nota de rodapé de n°121, in BESSE (2011). Os textos referidos por
Dionísio V. Maior são: Ultimatum; Manifesto Anti-Dantas; Manifesto da Exposição de Amadeo de Souza-
Cardoso; Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX; Prefácio Interessantíssimo a Pauliceia
Desvairada; Manifesto da Poesia Pau Brasil e Manifesto Antropófago.
84
marinettiano, nem com sua “violência agônica” 149 porém cúmplice dos signos brasílicos
sistematizados e assimilados a partir das lições do passado150:
Canto da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho forças
bastantes para me universalizar? Paciência. [...] Nesse momento: novo Anfião moreno
e caixa d’óculos, farei que as próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu
cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.[...]
E está acabada a escola poética ‘Desvairismo’. Próximo livro fundarei outra. E não
quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.151
149
Vila Maior (id.:147).
150
Mário de Andrade, ”Prefácio Interessantíssimo a Pauliceia Desvairada” in Poesias Completas, São Paulo,
Livraria Martins Editora, 1966.
151
Idem.
152
Maria Aparecida Ribeiro (2006), ”Viagens ao primitivo no modernismo brasileiro: Villa-Lobos, Tarsiwald,
Mário e Bopp in Serra, Pedro (coord.), Modernismo & Primitivismo, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa,
pp.125-141.
153
Oswald de Andrade,”Manifesto da Poesia Pau-brasil ”in TELES, M., Vanguarda europeia e Modernismo
brasileiro (2009) Petrópolis, Ed.Vozes, pp.472-478.
154
Idem, Idem.
85
Une attitude identique de confrontation délibérée a été adoptée par Pessoa (par la voix
d’Álvaro de Campos) et Almada, dans leurs manifestes, soit en critiquant les mythes
culturels européens qui remplissaient alors les domaines artistico-littéraires, político-
philosophique, moral, religieux (Ultimatum), soit en pointant les traits qu’ils
considéraient négatifs de l’homme portugais, avec l’objectif de changer l’identité de
cet homem – le considérant, à la fois apathique envers la réalité actuelle (Manifesto
Anti-Dantas et Manifesto da Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso) et désintéressé
à l’égard des “maravilhas regionalistas” (Ultimatum Futurista às Gerações
Portuguesas do Século XX).
Já tendo comentado sua essência logo acima, convém-nos ilustrar com pequenos
excertos 159 do Manifesto como o fator crítico irônico do qual é repleto serve-se à
antropofagia cultural - para absorver os valores positivos, sejam estrangeiros ou brasileiros,
mas que refletissem uma verdade absoluta da essência cultural do Brasil e não de uma
155
Idem.
156
Vila Maior (ibidem)
157
Op. Cit. por Maria Aparecida Ribeiro (2006:136) referido de Queirós Siqueira in ”Un singulier manifeste”
in ”Destins du cannibalisme” Nouvelle Revue de Psychanalyse, 6, Automne 1972, Paris, Gallimard, p.273-
281.
158
Cf. Maria Aparecida Ribeiro (Idem).
159
ANDRADE, Oswald. ”Manifesto Antropófago” in Revista de antropofagia, 1ª dentição, 1928, São Paulo.
Todos estes fragmentos foram citados da fonte de Gilberto Mendonça Teles in Vanguarda Europeia &
Modernismo Brasileiro (2009), Petrópolis - RJ, 19ª ed. Editora Vozes, pp. 504-511.
86
“Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o”.
[...]
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI:- Meu
filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos
a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria
da Fonte.
[...]
“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos,
sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
160
De Portugal, referimos a ação de António Pedro, passando pela Távola Redonda, pelo grupo do Café Gelo,
por António Maria Lisboa, Mário Cesariny e Alexandre O’Neill (Surrealismo), seguindo ao Abjeccionismo
(satanismo surrealista), a António Maria Lisboa; Árvore; Poesia de 61; Poesia Experimental, até ao Visualismo
Popular.
Do Brasil, há que citarmos da mesma época eruptiva o grupo Verde de Cataguases, o Manifesto Nhengaçu
Verde-Amarelo; a seguir, a Procura da Poesia, o Manifesto para não ser lido (Joaquim), Orfeu, Poesia e
87
Composição (João Cabral de Melo Neto), o Plano – piloto para a Poesia Concreta, o Manifesto Neoconcreto,
o Poema-Práxis, o Manifesto da Poesia semiótica (Nova Linguagem, Nova Poesia), até ao Poema-Processo.
88
161
Patrícia Peterle, ”Repercussões futuristas na Terra Brasílis: questões de Literatura Comparada”, trabalho
apresentado no evento 100 anos do Manifesto futurista e suas repercussões no Brasil, Universidade Estadual
de Feira de Santana, Bahia, 8-10. 07. 2009.
162
Em ”Manifestações esparsas do futurismo de Marinetti na crítica literária brasileira anterior às vanguardas
de 22” in Cem anos de Futurismo (obra já referida), p.302.
89
Contudo, o termo “futurista” circulou de norte a sul, da Bahia a São Paulo [e mesmo,
de Natal e Manuel Dantas até lá], de Almáquio Diniz a Mário e Oswald de Andrade,
passando pelas inúmeras revistas modernistas.
163
Desenvolvemos neste ínterim um pouco mais além do foco da questão tratada, por entendermos ser oportuno
neste trecho dar resposta, igualmente, a outra questão colocada ao longo deste subtema de futurismo sobre -
que possíveis soluções encontraram os portugueses e brasileiros para chegar mais perto do público ou do leitor.
90
Assim é que, segundo Marnoto, a revista coimbrã O Trovão (1917) publicou composições à
maneira de Levita, caricaturando o seu futurismo.
“O movimento futurista de Coimbra” é notícia em Lisboa em 1925 no Diário de Lisboa,
que anuncia a sua “revolução artística”, “bomba” que estouraria para “reagir contra a
opressão conselheiral” e mostraria o “trabalho de novos talentos”, que contava com “a
participação de intelectuais e artistas de outras partes do país” tendo como seu líder Mário
Coutinho, ao qual associam-se José Régio, João Carlos Celestino Gomes, António de
Navarro e Abel Almada, autores do Coimbra manifesto 1925 (com exceção de Régio) de
acordo com Marnoto. Anunciavam-se as atividades projetadas, a contar: um manifesto (o
Coimbra(...)), a primeira de uma série de conferências de título Sol, uma revista de arte e
literatura (modernas) de mesmo nome a ser dirigida pelos autores do Manifesto e mais
Alberto de Serpa e José Régio.
Esses e outros nomes protagonizaram possivelmente trabalhos vanguardistas em suas
terras natais com filiação futurista marinettiana, o que nos deixa entender a autora em seus
estudos. Por exemplo, Mário A. N.Coutinho (Óscar), em colaboração com outros membros
do grupo, sobre que se tem “notícia de uma récita futurista em Caldas da Rainha, em 1928,
na qual participou Celestino Gomes”; Abel Almada de Nascimento, além de escrever para
publicações periódicas madeirenses, foi colaborador da Presença, com pseudônimos José
Qualquer, Tristão de Teive, António d’Outra Pessoa, João Sem Nome, José da Villa, e
António Senfim; João C. Celestino Gomes já animava um grupo de vanguarda em Ílhavo,
fundou o semanário Beira Mar (1920), participara em Porto da tertúlia de Leonardo
Coimbra, frequentava conceituados ateliers, fundou a revista Húmus ((1921) e destacara-se
como artista plástico, expôs obras e publicou livros. Em Ílhavo teve relevo a publicação de
Sobre o atavismo, folheto de 1924. Usou pseudônimos como: Pereira São Pedro (Pintor)
remissivo a Santa Rita - Pintor, presente no Manifesto, Carlos Dorherty, Carlos de Sousa, J.
Pires Branco, Leopoldino São Pedro, Vicente Ervanário; António de Albuquerque L. de S.
Navarro de Andrade, de Nelas, foi “colaborador assíduo” da revista Presença, usou o
pseudônimo Príncipe de Judá e sua obra literária,”invulgar” como informa Marnoto, fora
referida por Casais Monteiro e por J. Gaspar Simões com destaque pela “textura verbal,
emaranhada e anárquica”. Há ainda a citar o futurista coimbrão natural de Borba, Humsilfer
ou Humberto Silveira Fernandes e sua obra Guarda-sol, Exortação à mocidade futurista
precedida dum prefácio às frontarias. Abaixo a cor! Bendita a lua! Pragmaticamente
revolucionário (um octógono que se abre da esquerda para a direita), dedicado a Almada
Negreiros e parodiando Negreiros-Dantas e o próprio Coimbra manifesto 1925,
91
164
De acordo com Adolfo Casais Monteiro na ”Introdução” de A Poesia da Presença, Rio de Janeiro, MEC,
1959, pp. 11-15.
165
O Festival Futurista compôs-se de três partes que incluíam: na primeira, a leitura de ”Ultimatum Futurista
às gerações portuguesas do século XX” por seu autor Almada Negreiros; na segunda, a leitura do ”Manifesto
Futurista da Luxúria”, de Mme. De Saint-Point; e por fim a leitura de ”Music-Hall et Tuons le Clair de Lune”,
de Marinetti (cf. Neves, p.30).
166
Inclinados nossos.
92
entender, portanto, que se referia a Portugal, quando Coimbra foi um pouco além de 1925).
O que nos parece é que a História da literatura ou a Crítica não considerou o Futurismo em
Portugal como um todo numa linha axial que contasse seus segmentos (os movimentos
regionais ) como partes de um evento maior, ainda que tenha valorizado o evento lisboeta
de 1917 como a sua face “ortodoxa”, o seu “ponto mais alto”. Mas sim, tão somente, como
“manifestações esparsas” isoladas (Isto não se difere muito do ocorrido no Brasil em relação
ao futurismo/modernismo paulista e o restante da nação). Se olharmos o material produzido
paralelo ou isoladamente, mesmo considerando possíveis (mas não totais) carências
estilísticas, será que é sensato tal concordância, ainda mais considerando-se o contexto
sociopolítico que se mostrara após o presidencialismo de Sodónio Pais e do logo vindouro
mal do século português do militarismo?
Mas Rita Marnoto nos dá conta de um fac-símile (inédito até 1979) publicado sob o
título “O movimento literário de Coimbra. À volta de uma conferência”, que mostra uma
entrevista a António Navarro feita por José Régio (M.D.) e que fora publicada em
homenagem aos dez anos de sua morte, testemunhando a vanguarda:
É evidente que a Presença não saiu pura e incólume das ondas atlânticas , nem tão
pouco arrancada à coxa de Júpiter, para me servir desta imagem mítica. Petrus, no seu
volume-recolha-para-que-as-coisas-se-não perdessem, guardou alguns documentos
essenciais, antes de entrar, propriamente, no notabilíssimo texto de José Régio -
Literatura viva, com a bandeirola da Presença e a data de 1927, quando essa posição
foi tomada. Antes, referia-se Petrus ao movimento Sol, onde eu, António de Navarro,
proferira uma conferência sensacional. Logo a seguir, falando de texto epocal,
afirmava-se: “Brevemente Sol, revista d’arte moderna dirigida por Celestino Gomes,
Alberto de Serpa, Abel Almada, António de Navarro, José régio e Mário Coutinho”.
Era um estágio muito importante para o futuro da literatura nacional, e que deflagraria
167
Ou contrarrevolução
93
A autora cujo estudo nos forneceu maiores arcabouços para este ponto da questão do
futurismo português em outras localidades é da opinião de que
168
Rita Marnoto (Id.:p.208) cita alguns membros: António Mariano da Cunha Goulart; Luís Joaquim Pinto (
colegas de Levita , séries distintas, da Faculdade de Direito); o filósofo Joaquim de Carvalho, lincenciado
depois em Direito também em Coimbra. Segundo seus estudos, Marnoto afirma que Levita dedicara a este
último um exemplar da segunda edição de Negreiros-Dantas, o qual é conservado hoje no seu espólio, na Sala
Joaquim de Carvalho da Faculdade de Letras de Coimbra e ”reproduzi”(-o?) em ”Francisco Levita, Negreiros-
Dantas […] Coimbra manifesto 1925”. Enquanto Goulart ”juntamente com António Correia Pinto de Almeida
editou um livro de Sonetos mínero-metálicos, assinado por Amargo Doce [chaveta] ãa António [sic], que, logo
na sua dedicatória, adopta a mesma linha de provocação a Júlio Dantas: Ao Sr. Júlio Dantas, médico em
literatura e literato em medicina, ourives mimoso da forma e supremo joalheiro do ritmo”.
169
Do catálogo em ”Futurismo”: Mirly, Zarna e Rodrigue; Carlos Porfírio (”Cabeça de estudo futurista”), cf.
Nuno Júdice (1993:9).
170
JÚDICE, Nuno (Org., seleção e prefácio). Poesia Futurista Portuguesa, Vega, Lisboa, 1993, p.15.
94
Considera Sena (1974:363-364) que eram mais os movimentos e grupos artísticos que,
independentemente de todas as agitações literárias
Fora o que se passara com Guilherme de Santa Rita–Pintor e Amadeo de Souza Cardozo,
ou Lasar Segall, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, ou Victor Brecheret, para citar apenas
alguns exemplos.
A considerar o futurismo no Brasil, já não temos a dinâmica de movimento como fora
conferido a Portugal, o que não é muito difícil entender levando em conta a sua
especificidade de país então recentemente politicamente independente, sob cujos anseios de
modernidade deveriam pela própria lógica encontrar-se ainda no bojo da própria afirmação
nacional - para gerir os contornos de um ‘abrasileiramento’ (iniciado já no romantismo mas
diferenciando-se significativamente deste) o qual, aproveitando as lições futuristas da
vanguarda europeia e da italiana em parte, recebe pouco antes da Semana de Arte Moderna
sua formulação definitiva: não é dogmático, portanto, não segue o de Marinetti, mas tem
nele e no seu movimento o seu referencial, além do que isto tenha sido fundamental na
95
171
FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista, Ed. Perspectiva, USPI, 1994, pp.96 e 133.
172
O que coincide com a caracterização de Paulicéia Desvairada por Oswald de Andrade.
173
Itálicos nossos.
174
FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista – Hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil,
Editora Perspectiva, USP, São Paulo, 1994, p.96-98. Como diz Fabris, aquelas definições do futurismo
desejado (que pontuamos nesta página e na seguinte) foram repetidas incansavelmente por Oswald de Andrade,
Menotti del Picchia, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Foram declaradas na Klaxon, inclusive.
175
Id.:106.
176
PAPINI, Stroncature, 226 (apud. Fabris, Id.:119) – ”O Futurismo quer apenas libertar os poetas de certas
preocupações tradicionais e de seu espírito de imitação e de repetição. Não quer destruir o passado - o que
seria absurdo - e sim a adoração exagerada e, portanto, nociva do passado que domina a maioria dos espíritos
do presente. Encoraja todas as tentativas, todas as pesquisas; incita a todas as ousadias e a todas as
liberdades. Seu lema é, antes de tudo, originalidade”.
96
como movimento organizado com programas e objetivos mas o “momento futurista” tal
como proposto por Poggioli, como fase profética ou utópica”, como “arena de agitação e
preparação da revolução anunciada, se não para a própria revolução.”
Para Fabris, o que os paulistas tomam para si é o primeiro momento futurista que vai
de 1909 até a Primeira guerra mundial, sem qualquer interesse pelo segundo momento
futurista por volta de 1915 que apresentava algumas diferenças fundamentais da fase
heroica177. Del Picchia em campanha de afirmação e diferenciação nacionais do futurismo
paulista anunciava mais tarde a morte do “futurismo dogmático e extremado, com concertos
intonarumori, aberrações e burrices”, à transformação de um movimento que, de grito de
rebelião sincera [...] degenerou em blague”178 - embora que o futurismo italiano também se
transformara em outros aspectos independentes de Marinetti, o que não fora relevado nem
aprofundado ou bem compreendido no Modernismo pela vanguarda de 22. Se o fosse, quem
sabe, ter-se-iam semeado e colhido sementeiras de maior qualidade ainda.
Mas não podemos deixar de sinalizar que também a experiência iconoclasta portuguesa
de Orpheu (simbolicamente, uma “penetração interposta do futurismo no Brasil”179) num
aspecto considerável, não desconheceu o passado e a tradição enquanto apresentavam a
estética das vanguardas, como num movimento distópico de atração/repulsa. Santurbano
(2010:192) ao sinalizar Mário de Sá Carneiro como o mediador do futurismo português
declara que o poeta aceita de Marinetti
Vale dizer, neste sentido, que estamos apontando uma pauta comum nos dois
futurismos, em termos substanciais.
No Brasil o futuro ‘para além dos anos 20’ era já sentido e transcrito no livro de crônicas
Cinematographo nos anos de 1909 ou em Vida vertiginosa em 1911, especialmente na
crônica de abertura “Era do automóvel” por João do Rio, ou Paulo Barreto, jornalista e
cronista carioca, aderente entusiasta da “vida frenética e admirável” e da “vertiginosa ânsia
177
FABRIS, O Futurismo Paulista, Ed. Perspectiva, USPI, São Paulo, 1994, p.91.
178
HÉLIOS, “O Futurismo Paulista”, Correio Paulistano, 8 de novembro de 1921; “O Momento Literário
Paulista”, cit.: Fabris, 91.
179
Como quer Andrea Santurbano em “Viva ou morra o futurismo”, Universidade Federal de Santa Catarina,
in Cem anos de futurismo (2010), obra referida ao longo deste trabalho.
97
do progresso” como fator de transformação da própria sociedade. E desde 1905 em seu livro
O momento literário, que trata da relação do jornal com a literatura, fruto da compilação de
seus artigos no jornal do Rio Gazeta de Notícias o escritor revela com êxtase as suas relações
com o futurismo (antes do Futurismo italiano) num sentido substancial, afinado com muitas
propostas da vindoura escola, como bem elenca Renato Cordeiro Gomes (2010:308)180 com:
a industrialização, o universo da máquina, o desenvolvimento da fotografia, o surgimento
do cinema, a invenção do automóvel, do avião, o mito da velocidade, o desenvolvimento da
mídia impressa.
O autor recebera especial inspiração desde a Exposição Nacional de 1908, projeto
modernizador do país posto em prática pela República (tendo Afonso Pena na presidência),
a “vitrine do progresso”181 – “o momento do Brasil descobrir o Brasil”. O cinema e a cidade
tornam-se a obsessão para a imaginação (Gomes:308-317) e a base para a analogia com a
crônica. Pela mimese João do Rio “aponta para o leitor o objetivo geral de não se aprofundar
no âmago das coisas” desejando fixar a Capital Federal (o Rio de Janeiro) em transformação
e o modo fragmentado de fixar o instante enquanto (e promovendo um)
180
Renato Cordeiro Gomes, ”Um futurismo periférico: a velocidade e o imaginário da máquina em João do
Rio”, Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro, in Cem anos de futurismo (2010: 304-317).
181
Expressão de Margarida de Souza Neves (1986) utilizada por Renato Cordeiro Gomes, p.305. A Exposição,
que celebrava o centenário das livres transações marítimas contou com um milhão de visitantes ao longo de
três meses no Rio de 800.000 habitantes em 1908, deu-se como um inventário econômico, cultural e histórico
do país e também objetivava apresentar a nova Capital da República, urbanizada pelo prefeito Pereira Passos
e saneada por Oswaldo Cruz, segundo Gomes, ”a autoridades nacionais e estrangeiras que a visitaram,
revelando o Brasil, sua diversidade e seus contrastes, pela primeira vez em toda a sua complexidade”.
182
- Cf. CHARNEY, 2004, p.317 e GOMES,2008, apud GOMES, Id.:310.
183
RIO, 1909, p.x, apud GOMES (Idem).
98
encurtando tempo e espaço184 porque “ritmiza a vida vertiginosa, a ânsia das velocidades,
o desvario de chegar ao fim, os sentimentos de moral, de estética, de prazer, de economia,
de amor” (Rio, 1911b, p.4, apud Gomes). Nele havia lugar para a máquina, porém não era
o mesmo lugar que lhe dera o erotismo (dissimulado?) de Pessoa/Álvaro de Campos ou ao
menos de sua linguagem na Poesia (portuguesa) deste,
Como percebemos claramente, os excertos de textos atestam que estamos diante de dois
tipos de amores pela máquina: o do poema Ode triunfal em Campos, que se revela como
184
Segundo Gomes, João do Rio não chegou a praticar esta linguagem nos mesmos moldes do Modernismo de
22. Em sua prática escritural, ”bem distante das programadas pelo Manifesto de Marinetti, o texto parece ecoar,
em sua temática e em sua exaltação da máquina transformadora, a sensibilidade futurista”. O autor afirma ainda
que Rio assinaria certamente o aforismo do Manifesto que trata da beleza da velocidade em sua primeira parte
mas não a segunda que intenciona chocar e exortar com a boutade – ”um automóvel de corrida com seu cofre
adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr
sobre a metralha, é mais belo que a vitória de Samotrácia”.
185
”Textos de Álvaro de Campos” compilados por NEVES, João Alves das. (s/d) em O Movimento Futurista
em Portugal, Lisboa, Dinalivro, p.117s.
99
Eros186, cujo objeto do amor corresponde à satisfação das próprias necessidades – a máquina
é o próprio objeto de desejo (e de desejo sexual, ou libido, clarifiquemos) de Campos, ou de
sua linguagem, com ‘quem’ se quer fazer um, acoplar - pelo metaforismo erótico; o da
crônica A era do automóvel em João do Rio, que se configura como numa gradação
ascendente do amor Phileis (Fileos) para Agapeo (Ágape,) do amor-resposta-
correspondência entre os homens ao amor divino (de Deus e por Deus), o amor-veneração,
que tem o cronista pelo ‘Automóvel’, que é a metáfora ou a personificação do Ser superior
dotado de poderes para transformar e elevar a vida a outra dimensão, a outra qualidade e a
uma dimensão adorável - isto é, um deus, o automóvel – a quem se pode sacrificar a
existência gratuitamente, em nome deste amor, como “Ele” o fez por primeiro.
Sente o cronista, no entanto, que Satanás é a energia inconsciente que move a
transformação urbana e humana, elucidação futurista aliás presente nos dois escritos, um
implícito e outro explicitamente – na autoliberação de valores do poeta que não lhe são
intrinsecamente próprios (?), a considerar Fernando Pessoa ele mesmo (vemos ao longo do
poema pelo sensacionismo) - expressos por sua “autonomia discursiva” heteronímica e
“ajustando-se no universo pessoano”187.
Mas a tradição não era descartada nem destruída em João do Rio188apesar da ativação
de sua sensibilidade futurista para perceber as conquistas técnicas da modernidade. E é isto
que lhe permite (um) enxergar muito além, visível em sua sátira social como também na
ficção de Um dia de um homem em 1920, num futuro não tão distante, onde prevê, de forma
assustadora e impressionante para o então tempo presente, as consequências do mundo
tecnológico (e como que já globalizado) e da mesma velocidade que ama, publicado em A
Notícia (25.07.1909) e selecionado depois para a Vida vertiginosa (1911).
Aí evoca a desterritorialização e introduz o “Homem Superior” (que nos remete de outro
modo ao vindouro Super-Homem pessoano, o “Super-Camões” (1912) a sinalizar que, por
caminhos diversos, tanto ao Brasil como a Portugal urgia um tempo de ‘salvação’ e de um
‘salvador’ que fosse mesmo Super, superior suficientemente para resgatar o país da
186
Apesar de não termos buscado bases literárias nem filosóficas para este comentário, por entendermos como
bastante visível e lógico, considerando o poema, apontamos por nos confirmar e para aprofundamento do leitor:
LOURENÇO, Eduardo. ”Álvaro de Campos I ou as audácias fictícias de Eros”, Pessoa Revisitado - leitura
estruturante do drama em gente, Lisboa, Gradiva, 2003, pp.87-120, onde se incluem também referências a
Ode Marítima e Saudação a Walt Whitmam neste mesmo sentido.
187
VILA MAIOR, Dionísio. ”Heteronímia: o espaço da autonomia discursiva” in Fernando Pessoa:
heteronímia e dialogismo – o contributo de Mikhail Bakhtine, Coimbra, 1994, Livraria Almedina, Cap. IV. pp.
103-178.
188
FABRIS, Annateresa, Futurismo: Uma Poética da Modernidade, São Paulo, Ed.Perspectiva,
USPI,1987,p.63.
100
estagnação, seja de ordem cultural como social, mas tanto um como outro deveriam superar
o tempo ) , como dizíamos, o Homem Superior era o empresário que tudo pode e sabe pela
tecnologia avançada de que dispõe, implicando os “inferiores” na terra, locomovendo-se por
coupé aéreo na cidade futurista a qual, segundo Renato C. Gomes, organiza-se política,
social e topologicamente pelas dualidades baixo-alto, refinamento-selvageria, avanço
tecnológico-atraso, a partir de uma escrita que faz uso da hipérbole e do grotesco como arma
satírica capaz de exibir a desumanização do homem causada pelo ritmo, pela ganância e pelo
poder (nos moldes muito semelhantes ao século contemporâneo dos que vivem hoje nos anos
2014) no dia – “circuito infernal” do Homem Superior descrito na Capital Federal, como
protótipo de qualquer metrópole na era econômica e tecnologicamente globalizada que se
“caracteriza pelos inventos moderníssimos que ele prevê” (em1909!) num mundo onde
<<não mais se conversa e onde o sistema de palavras foi substituído por abreviaturas>>:
189
GOMES, Renato Cordeiro. ”Um futurismo periférico: a velocidade e o imaginário da máquina em João do
Rio”. Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro/CNPQ in Cem anos de futurismo (obra referida),
p.313.
101
O ‘João brasileiro’ lançara em 1911, segundo Ribeiro Couto e Saraiva, o livro Portugal
d’agora,” impressões ligeiras”, que dedicou ao ‘João português’ e a Manuel de Sousa Pinto,
“o único livro de um brasileiro sobre Portugal” naquele tempo, sobre o qual sentencia
Arnaldo Saraiva (p.83)192:
190
Expressão nossa, referência a João do Rio e a João de Barros respectivamente.
191
Ao nosso ver, esta importante proposta revela uma declaração também importante: a segunda ‘fala’ de João
do Rio escancara uma situação de fundo de pano sociocultural que o Modernismo brasileiro tomou para si
mesmo como necessidade lógica, não propondo originalmente este, portanto, por vontade - o afastamento
brasileiro da literatura portuguesa. A interrupção do diálogo e do intercâmbio é comprovado em Paulo
Barreto/João do Rio e certamente conhecido por João de Barros como algo já há muito tempo ocorrido. E mais:
não era algo aceito positivamente para muitos intelectuais, ainda que modernos ou futuristas. Apesar disto
Jorge de Sena não vê necessariamente este afastamento que não fosse mais propriamente gerado pelo
narcisismo isolacionista da crítica literária em função da cultura brasileira, como interpretamos, de ”Sobre o
Modernismo em Portugal e no Brasil: alguns problemas e clarificações” in Estudos de cultura e literatura
brasileira, pp.363-369.
192
Em continuação à citação, Saraiva ainda conta que João do Rio dedicou parte de sua ”curta vida” às relações
luso-brasieiras; que em jornais e revistas testemunhava seu amor por Portugal, a exemplo de a Gazeta de
Notícias, Atlântida e A Pátria, tanto quanto nos seus artigos, ensaios ou nos livros Fados, canções e danças de
Portugal e no Adiante!, no capítulo final, assim como em ações especiais ”como a que levou Epitácio Pessoa
a visitar Portugal”. O autor revela também que João do Rio fora algumas vezes homenageado por ou em
Portugal, e uma dessas homengens ocorreu no Club Ginásio Português, a qual ”não lhe trouxe menos antipatias
e ataques”, o que lembrara João de Barros: <<Foste vaiado, insultado, caluniado e até maltratado>>. Sobre isto
complementa Saraiva: …”que o não atemorizaram ou demoveram, mas talvez tenham contribuído para a sua
morte prematura. ” E aproveitamos neste ensejo a fechar: num táxi! Seu amor-veneração pelo Automóvel(??)
fê-lo morrer dentro de um carro, como informa R.C. Gomes no artigo já referido antes.
102
escrito no estilo leve, suave e sensual que caracteriza a obra do autor [...] está, não
obstante, povoado de observações e ideias cintilantes sobre a sociedade portuguesa -
sobretudo lisboeta e portuense – da fase de transição da Monarquia para a República,
e sobre as relações luso-brasileiras, que vê com tanta simpatia como realismo.
Seria essa carta traduzida para o espanhol, na Argentina, por Braulio Sanchez-Saez e
ali publicada, bem como na França por uma tradução do crítico Manuel Gahisto,
193
Diário de Pernambuco – Recife – 25/7/1924. Apud INOJOSA, Joaquim, O Movimento Modernista em
Pernambuco, 3° V., Rio, Guanabara, 1969, Gráfica Tupy, pp.42-43.
194
INOJOSA, Joaquim, ”A Arte Moderna, Carta literária dirigida a Severino de Lucena e S. Guimarães
Sobrinho, directores da revista ”Era Nova””, da Parahíba do Norte” (Recife, 5-7-1924) pp.4-33- in O
movimento modernista em Pernambuco, 3°v. Rio de Janeiro, Gráfica Tupy, p. 33. [1969].
195
A ”3ª parte” da obra O movimento modernista em Pernambuco com o título Crítica e Polêmica comporta
importante e rica discussão intelectual entre ”futuristas” e ”passadistas” ou simples intelectuais abertos a
compreender e examinar o convite proposto de Inojosa. Antes têm-se o(s) ”noticiário(s) de imprensa” (2ª parte)
que cobre especialmente o Norte/Nordeste brasileiros.
103
196
INOJOSA, Joaquim, 3°v. (Id.:XLIV-XLV).
197
João Pugliesi, ”A propósito de duas ”plaquettes”, Id.:89.
104
198
TELES (2009:520-521) transcreve ”Textos do Leite Criôlo” e em nota de rodapé afirma que tal preocupação
não está clara se contra ou a favor, o que como leitora também podemos perceber já que não vemos uma
argumentação muito precisa na referência ao negro e, na tentativa da agregação da raça negra como elemento
brasileiro os literatas acabavam por esbarrar no pensamento dominante do Brasil à época modernista, quando
se considerava quase unanimamente inferior o negro e se fazia a infeliz associação a ”males da nacionalidade”
tal como luxúria, cobiça, tristeza e preguiça. Na nossa opinião este equívoco se passa por meio de outra
associação – a escravidão, isto sim, de fato um mal nacional. O professor Miguel de Ávila Duarte, estudioso
da publicação do ”Leite Criôlo”, ao comentar para artigo da Revista Veja de 28.11.2012, de André Nigri, que
anuncia a sua reedição pelo Instituto Amílcar Martins (ICAM), afirma que a publicação (Leite Criôlo), apesar
de ter tido como suporte um grupo tão forte, caíra no esquecimento. Mas explica que o racismo ainda estava
presente no pensamento intelectual dos anos 20 e lembra que ”a eugenia, suposta ciência do melhoramento
genético da humanidade, era ainda amplamente considerada uma especialidade científica legítima” e, mesmo
que o Leite Criôlo não negasse a importância do legado africano, ele acreditava que ”uma miscigenação da
população brasileira eliminaria os supostos defeitos que ele carregava”. Como Diz Duarte, ”é necessário
enfrentar o triste passado racista da intelectualidade brasileira”. E de nossa parte dizemos: e o presente? Como
enfrentar o racismo brasileiro camuflado de belo exótico enaltecido mesmo pela intelectualidade ou pela
propaganda sociopolítica e acobertado em especial no turismo? Pois apesar das pesquisas atuais destacarem o
Brasil como nação de menor índice de discriminação racial, a democracia racial continua sendo ainda mito no
fundo dos fatos.
105
Nós, os Rebeldes, tínhamos um ponto de vista: queríamos uma literatura nacional, mas
com um conteúdo capaz de universalizar. Tivemos a revista Meridiano, que só saiu um
número e onde está o nosso manifesto. Quer dizer, vivemos o espírito do Modernismo
– mas tínhamos uma certa desconfiança desse movimento, aquela coisa de paulista, de
língua inventada. Os modernistas não conheciam a linguagem popular.
(Jorge Amado, 1986, p.15)
199
A ”vontade de versos futuristas”, explica-se pela impossibilidade do acesso aos recursos tipográficos em sua
cidade São Francisco de Assis, pequena, localizada na zona rural, palco de combates sangrentos na Revolução
de1923. A respeito da obra e de maior conhecimento do poeta e de sua obra podemos ler nas obras citadas ou
artigos na Bibliografia, entre elas: Pinto, Marco Aurélio Biermann. Oswaldrandeanos futurismos: A Poética
de vanguarda em Tyrteu Rocha Vianna. Santa Maria, UFSM/PPGL, 1995.
200
Entrevista-depoimento para o livro Literatura baiana – 1920-1980, organizado por Valdomiro Santana, cf.
Cid Seixas (2004-48).
106
O crítico literário também jornalista Cid Seixas201 em livros e artigos ocupa-se da Anti-
academia de 28: descreve seu perfil de formação e atuação; examina a essência de sua
proposta, aproxima-a com o modernismo de Monteiro Lobato, “na solidão caipira de São
Paulo” e com o de Gilberto Freyre, em Pernambuco, pela forma de construção de uma nova
realidade nacional, “propostas da modernidade que, por divergirem da gramática modernista
[de 22], foram inicialmente acoimadas de anacrônicas”; alerta contra o exame superficial
dos historiadores da literatura brasileira que não conseguiram enxergar o epidermismo
moderno de Sosígenes Costa, (alojando-o na única gaveta do simbolismo de suas obras
anteriores) em Iararana, cuja rebeldia diferencial afasta-o ou o faz ir “além dos inventos
pioneiros dos cosmopolitas Mário de Andrade, em Macunaíma, e Cassiano Ricardo, em
Martim Cererê”202, vacilando entre as propostas identitárias comuns ao grupo e o desafio de
aceitação das blagues e blefes da poesia modernista de 22 ou de 28; finalmente Seixas
sinaliza o significado e a importância dos Rebeldes e ainda o seu legado para as artes e a
cultura brasileira (e internacional), pela vertente sociopolítica do modernismo na Bahia, a
partir do que Nelly Novaes Coelho designou de olhar inaugural (Coelho,1987:154 apud
Seixas, Id.:44), constituindo o desejado modernismo de exportação pelo regionalismo dos
anos trinta, decorrente de tal diferencial que vinha atrelado à força da tradição social de
raízes populares, por sua vez mantenedora de uma categoria de artistas “sujeita à renovação
fundada na prática cultural” o qual, segundo Seixas (idem)
assegura ao então jovem Jorge Amado a possibilidade de inverter uma relação secular
entre as literaturas do Brasil e de Portugal. Se até então Lisboa estava investida no
papel de metrópole intelectual das relações bilaterais, Alves Redol vai buscar em Jorge
Amado alguns pontos de sustentação da insciente proposta que resultou na eclosão do
neorrealismo português.203
E até 1916, de acordo com Arnaldo Saraiva, os dois países tiveram interesses
simultâneos de futurismo, debruçando-se por si mesmos à causa, tanto aderindo
incondicionalmente quanto, e mais, rejeitando – já que entre o Futurismo e o Fascismo era
(e é) sintomaticamente estabelecida uma infeliz relação, especialmente após a primeira fase
do primeiro, quando a política partidária italiana assumiu os estatutos e fez uso dos
201
SEIXAS, Cid. Modernismo e diversidade: impasses e confrontos de uma vertente regional. Légua & meia:
Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, v.3, n° 2, 2004, p. 52-61.
202
Duas tentativas de compor imagens do Brasil, ao lado de Cobra Norato e Retrato do Brasil.
203
Reconhecendo com plenitude esta questão, Fernando Cristóvão (coord.) edita em Cadernos para Estudos
N° 3 (2013) em Portugal ”Do Romance Nordestino Brasileiro de 30 ao Neorrealismo Português” em
homenagem a Alves Redol e a Jorge Amado por seus centenários de nascimento e pela influência decisiva que
teve a literatura romancista nordestina da época modernista ao movimento neorrealista português.
107
[...] o grande mito do século passado não foi exatamente o do progresso, tão visível
era a sua realidade, mas sim o pensamento do futuro. [...] o futuro como ponta de fuga
da imaginação e da utopia que, parecendo a outra face da idolatria do progresso,
significava que a humanidade, nos seus sonhos, no seu desejo não apenas de
conhecimento da realidade, mas de domínio sobre o real – natureza ou história - , se
deportava para o avenir, para um outro tempo. Seria um tempo melhor, mais
harmonioso, de uma cidade enfim plenamente humanizada, humana que fosse e no
domínio do simbólico aquele “regresso ao paraíso” que um dos nossos melhores poetas
imaginou.
Mas no sentido do parágrafo mais anterior ousamos indagar: não terá tido o mundo
também grande ou alguma influência da leitura psíquica ‘maquiavélica’ dos princípios
futuristas? Se com tamanha altivez o futurismo contribuiu para fazer decolar as amarras do
tempo e do espaço emoldurados em diferentes universos artísticos e culturais, como poderia
esta mesma força não atingir as ânsias das almas pelas questões mais profundas e existenciais
da vida em relação à humanidade e seus valores? O amor pela máquina e pela mais nova
descoberta, pela mais inusitada aventura não poderia ter tomado algum espaço concreto não
artístico do amor fraternal do homem pelos homens e do respeito do ser humano por si
mesmo, promovendo um novo tipo de massificação e alienação, coisificando-nos para mais
aquém ainda no território de confinamento do mundo tecnológico ou capitalista? Afinal, o
conteúdo da arte, mesmo que a priori ignorado em prol da forma, é igualmente veiculado,
bom e ruim. Como não pensarmos de forma especial no cinema “abrindo caminhos para
204
”Agonia” tão bem explorada nos ensaios de Eduardo Lourenço, especial e mais especificamente no caso de
Portugal. Vejam-se, por exemplo, O Labirinto da Saudade e A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem
da Lusofonia, referidos na Bibliografia.
108
As cenas, por si, devem possuir a clareza demonstrativa da ação: e esta, por si, revelar
todas as minúcias dos caracteres e o dinamismo trágico do fato sem que o artista
criador se sirva de palavras que esclareçam o espectador. A fita que, além da indicação
inicial das personagens, não tivesse mais dizer elucidativo nenhum, seria
eminentemente artística e, ao menos nesse sentido, uma obra-prima.205
(Mário de Andrade in Klaxon)
Outrossim, até que ponto, até aos dias de hoje, ficaram isentos Portugal e Brasil (como
civilização) da nuance soberba e satânica do pensamento e sentimento de que o Futurismo
italiano, metaforicamente mal interpretado ou literalmente ‘bem’ interpretado já em forma
de fascismo fora porta-voz206 nas entrelinhas da renovação e da “higiene do mundo” ou do
repúdio à mulher? José Augusto França, ‘sondando’ os anos 20207 (p.837), pontua que
205
Op.cit. : FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1994 p.194.
206
Em 1923 a revista Ilustração Portuguesa ”debruçava-se ( na expressão de França ,1983) sobre a viabilidade
do fascismo em Portugal”. Realmente, como leitor não se precisa de muito esforço para perceber isto.
Lembramos pessoalmente agora de um alerta que em artigo de outra revista – A Vida Portuguesa (1913) cujo
diretor era Jaime Cortesão se fazia contra ”a mistura das raças”, em função do não enfraquecimento da Raça
portuguesa.
207
FRANÇA, José Augusto, ”Sondagem nos anos 20 – cultura, sociedade, cidade” in Análise Social, vol. XIX
(77-78-79), 1983-3°, 4°,5°, 823-844.
109
Resta A. Ferro, antigo companheiro destes e brilhante jornalista dos anos 20. Sidonista,
foi dedicado salazarista também, apesar da sua admiração sensacionista por
Mussolini, que entrevistara em 1923, vindo a publicar, quatro anos depois, uma Viagem
à volta das Ditaduras, que incluía a de Primo de Rivera – e, em 1932-33, a série de
entrevistas programáticas com Salazar, que foram primeira pedra da sua mitificação.
Foi este o único intelectual (tirando outros, menores) que levou uma atração fascista a
consequências práticas.
E no âmbito do Brasil, como tudo devia ser mesmo “bem abrasileirado” Graça Aranha
já esclarecera que o futurismo, não como na Itália nem como na Rússia, isto é, fascista ou
comunista respectivamente, seria, todavia, também algo em conformidade com a categoria
de realidade, isto é, nem fascista, nem comunista. “Será coisa nossa, uma fórmula que
corresponda à nossa espiritualidade liberta de todos os terrores, e à nossa suprema
realidade”.208 A isto chamou Ronald de Carvalho de “Integralismo” e Mário de Andrade,
“Integracionismo”209.
Mas Wilson Martins (1973:127) parece ‘desabafar’ finalmente o que confessa ser
“desagradável”:
208
Cf. O prefácio de Graça Aranha a ”Futurismo: Manifestos de Marinetti e seus companheiros”, pp. 8-9 in
MARTINS, Wilson, O Modernismo – a literatura brasileira, vol. VI, São Paulo: Cultrix.
209
Inclinado nosso (remissivo a G. Aranha).
210
TONUS (2011),”Le Modernisme et le fantasme futuriste: le cas Plínio Salgado” apud Manuela Parreira da
Silva in ”Regresso ao futurismo” Notas & Comentários, , Colóquio/Letras n° 180, p149.
110
implicações, mas dirige-se para a Esquerda, com Oswald de Andrade a princípio, mais
tarde com Jorge Amado e todos os incontáveis epígonos que se conglomeraram à volta
de uma ou outra dessas duas bandeiras. A curva vai da gratuidade estética de 1922 ao
compromisso ideológico dos anos 30; da revolução em literatura para a revolução em
política (que o clima revolucionário da época favorecia e de que as revoltas dos anos
20 foram apenas a manifestação mais rudimentar e frustra). O nacionalismo literário
ou a nacionalização da literatura (que substituiu o regionalismo imediato das duas
décadas anteriores a 22) desemboca insensivelmente no nacionalismo político e no
patriotismo exaltado de que são testemunho os livros e a formação política de Plínio
Salgado, a República dos EE.UU. que, na sua maior parte, se encarnou a pregação
comunista, amadurecimento das ideias de um regime sindicalista e corporativo que
iriam desabrochar no Estado Novo, mas também nos livros que ocupam a segunda
parte da carreira de Oliveira Viana, para não falar no favor que cerca a literatura
engajada e de que não escaparam nem mesmo os melhores espíritos da época.
Sendo em parte coincidência temporal, não podemos deixar de perceber que os períodos
cronológicos português e brasileiro encontram-se fundidos em maior parte no que concerne
a estes fatos sociopolíticos de então.
Compreendemos melhor hoje que a rejeição do ‘futurismo futurista’ tanto por Portugal
quanto pelo Brasil deve-se muito aos escândalos suscitados por Orpheu e pela Semana de
Arte Moderna.
Seja ao pensar na literatura, na pintura ou em outra arte moderna, como por exemplo o
cinema, e até na vida, é mister refletirmos, por destoante que nos possa parecer no contexto,
sobre o que bem nos diz Agamben (2007:8-10):211
a essência do meio visual é o tempo... as imagens vivem dentro de nós... nós somos
databases vivos de imagens... colecionadores de imagens – e uma vez que as imagens
entraram dentro de nós, elas não cessam de transformar-se e de crescer.
211
Op. cit: ANTELO, Raúl, ”O obsoleto ao avesso” in Bagno, Guerrini, Peterle (org.), Cem anos de Futurismo,
Rio de Janeiro, 2010; 7 letras, p. 333.
111
É que Agamben 212 referia-se ao tempo e não ao movimento como paradigma da vida
moderna. Por seu lado, o tempo envolve mais que o desejo pela arte que lhe atualize, envolve
tudo, enfim, na história dos homens.
Para mais, queiramos ou não, nos parece óbvio que - modernimos diferentes, Portugal
e Brasil os tiveram tão entrelaçados quanto independentes. Contradição? Isto mesmo foi uma
de suas marcas.
212
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bolatti Boringhieri, 2007 citado na nota anterior, mesma fonte.
112
CONCLUSÃO
113
Com a tecnologia, a história hoje é outra e os entraves caem mais para o terreno político-
econômico, a ponto de se desvirtualizarem os oficiais acordos e tratados de “amizade” luso-
brasileiros.
Partindo daquelas assertivas tentamos apresentar um enquadramento
assistematicamente sinóptico das propostas socioculturais modernistas portuguesas e
brasileiras e sinalizar as principais intervenções realizadas pelos escritores, artistas e
intelectuais, seja na língua, na literatura ou na poética, de forma relativamente mais
sistemática, dado o caráter mais abrangente desta pesquisa para o espaço que ela ofereceu.
Com isto, quisemos demonstrar o quanto os seus projetos literários confundiam-se com
projetos modernizantes das nações e de resposta ao questionamento de um plano maior do
ser português e do ser brasileiro.
Finalmente, conseguimos compreender que as novas ordens apontadas pelos primeiros
modernismos português e brasileiro e que lhe deram posterior valor canônico emergiam
paradoxalmente tanto da subversão do que era secular aos valores estéticos e ideológicos,
quanto do necessário resgate da tradição que quiseram inovar e transformar esteticamente
por meio do diálogo com a mesma, problematizados de formas (completamente) diferentes
nos dois países, mas idênticas no sentido da atualização que subentenda o cosmopolismo
inegavelmente inserido no enraizamento histórico-literário europeu, norte-americano e o
nacional em si mesmo.
No redimensionamento das identidades, tão decisivos parecem-nos ter sido o (confronto
do) fenômeno da “heteronímia pessoana” na Literatura portuguesa quanto o da
“antropofagia” e da “poesia pau-Brasil” na Arte e na Literatura brasileiras, por alavancarem
o impulso de corte do código anterior e ao mesmo tempo o caráter dialógico com outras
formas, as já existentes e as vindouras.
Vendo hoje, percebemos que a complexidade proposta da poética portuguesa e a
liberdade da poética brasileira (que com o tempo deixou a primeira livre e a segunda
complexa) prolongaram seus próprios projetos a uma dimensão de continuidade no sentido
da modernidade e da pergunta sobre a melhor literatura portuguesa e a brasileira, mas
também sobre a arte, caracterizando-os como revolução cultural e promovendo nova
imagem nacional que ia inserir-se como legado, após muitos entraves no Brasil e algum
tempo de estagnação em Portugal, como um retrato de Portugal ou um retrato de Brasil livres
de modelos preestabelecidos na literatura, e em algum aspecto, na cultura, que os conduzia,
independentes, à inserção estético-literária cada vez mais internacional e não menos nacional
- de forma ainda mais ambiciosa do que a que desejou o português Nemésio nos anos 40
115
nos disse Jorge Amado em sua “raiva existencial”, tomando-se a si próprio como um pós-
modernista, usando do critério temporal:
Quando ele surgiu e cresceu, era eu um aluno de escola primária e de curso ginasial.
E se figura como um marco do fim desse movimento o aparecimento de A Bagaceira,
em 1928 ( ano em que também foi escrito o Serafim Ponte Grande, de Oswald de
Andrade, romance que é um balanço do movimento), ficará claramente demonstrado
que estreando eu em 1931 213 , com 18 anos, não tive nenhuma ligação com o
modernismo.
213
A estreia de que fala Jorge Amado é com o seu O País do Carnaval (1931), quando o seu compromisso de
”primeiro Jorge Amado” se dava no plano dos conteúdos e divulgava o clichê do Brasil festivo carnavalesco.
Apesar de considerarmos a própria formação do escritor, não o vemos incólume à atmosfera brasílica do
Modernismo. Pelo contrário, ele reagiu a ela. Com 18 anos já se vive alguma coisa, ou se sente, reflete-se,
reage. E ele agia por um olhar à tradição, criticamente. Mas o seu tema (trans)versava na identidade. O da
geração de 22 também. São exemplos de modernidades plurais. E o País do Carnaval parece estar atualizado
em muitos aspectos, confirmando uma ”imagem” de realidade – mas não só aquela do pobre que passa o ano
inteiro trabalhando para preparar a(s) fantasia(s) ou a(s) alegoria(s), enquanto passa necessidades, mas,
assustadoramente o do país onde, (sem falar ainda da ‘política do carnaval’ como da ‘política do futebol’) por
exemplo, em 2013 uma das menores capitais, situada no Nordeste do país, Teresina (Piaui) com cerca de 900.
000 habitantes, cuja parcela significativa vai às praias no litoral que fica à cerca de 400km de distância, durante
o período pré-feriado carnavalesco (o principal, porque agora dura o ano inteiro na totalidade nacional) e ainda
que deixando a cidade meio vazia, ainda lhe fica uma parcela capaz de formar na avenida um corso
carnavelesco de 900 carros plenos de acompanhantes que, sem alegorias nem sambódramo, dançam e entram
no Livro dos Recordes como o maior corso carnavalesco do mundo. Isto não nos parece uma imagem distante
de clichê mas, fenomenalmente, mais uma questão no âmbito do imaginário popular e de uma concreta
realidade que pode ser refletida no plano sociocultural a par com a realização literária levantada.
117
estímulos por uma renovação cultural nacional. Talvez por isso, tem um tracejo de perfil
mítico relativamente depressivo. Mais profunda ainda e significante podemos ver, então, sua
intervenção, sua força revolucionária e subversiva, também dialética, ao considerarmos sua
carência de apoio, sabendo de sua efemeridade e solidão.
A revolução do modernismo português é “futurante”, especialmente na forma do
sensacionismo e do futurismo e simbolista e ultra-simbolista na visão e no cerne. Sua leitura
enquadra-se na “revolução poética de Baudelaire ao Futurismo, passando por Mallarmé”.
Fez da arte moderna uma “empresa dramática”, com tendência dupla – da criação individual
do artista, intuitiva, “filiável em Bergson”, e da intelectualista, “de construção”. É mais
marcada pela literatura, a poesia, e lutou contra o saudosismo, desconsiderando o
regionalismo. O Movimento não é nacionalista tradicional mas mítico, ideologicamente
complexo como movimento modernista por desejar uma “metamorfose total da imagem de
Portugal” para mais além do sentido da realidade moderna, que o faz pendular entre a
“nostalgia intemporal de paraísos perdidos ou futuros e a celebração dos tempos novos de
beleza e fascínio desconhecidos dos antigos”, ou a revolução de Pessoa do conceito de
realidade, de tendência da virtualidade.
Os modernistas portugueses não puderam ser lidos em tempo hábil, suas obras só foram
mais tardiamente conhecidas e publicadas, não tendo um público leitor até algumas décadas
atrás. E a obra de José de Almada Negreiros ainda é pouco conhecida ou estudada e mal
explorada214 (apesar de ter sido ele o legítimo modernista, no sentido concreto do termo,
entre os portugueses), como só um pouco mais tarde a de Mário de Sá-Carneiro, cujas Obras
Completas só há poucos anos foram editadas e no Brasil. De Santa-Rita Pintor e de Amadeo
de Sousa Cardoso não é muito que se conhece igualmente (mas é válido sinalizar aqui que
agora aos quase cem anos do modernismo em Portugal, a pintura de Amadeo tomou o lugar
de destaque na Fundação Gulbenkian em Lisboa e pôde mostrar as luzes vindas daquele
tempo e evento de Orpheu). Há escritores “modernos” portugueses no seu fazer literário,
anteriores ao movimento, que não foram até hoje enquadrados no reconhecido Modernismo
em Portugal, talvez por um critério relativamente limitado e periodológico, apesar das
evidências da modernidade presente em suas poéticas mesmo que ainda com o veio
decadentista, a exemplo, Camilo Pessanha, Cesário Verde e Raul Brandão, como também
há escritoras não valorizadas como mereceram em seu tempo (por ser do gênero feminino
214
Não podemos deixar de considerar, ao contrário, o muito relevante trabalho de Celina Silva sobre a poética
de Almada Negreiros (1994) referido no nosso.
118
tomamos isto como explicação) cuja obra, literatura ou pintura, reivindicam um olhar a mais
para o modernismo português. Desse modo,
A história da importância de Orpheu é cada vez mais inteligível. É cada vez mais
possível a proposta da sua leitura contextuada e a sua inteligência aberta, isto é, com
“entradas” adequadas que o validarão no panorama cultural e no campo específico da
literatura.
Maria Aliete Galhoz, 1975215 .
215 Em prefácio e notas a edição de ”Orpheu 2” [1975] – Para uma diversidade na história de Orpheu
referida na Bibliografia.
216
Veja-se ”O significado histórico do Orpheu” (Inquérito), in Cadernos da Colóquio/Letras, 2, 1984. Ou
Cópia digital n°26 (jul.1975)
119
[...] “Orpheu” tem sobreviventes. Além dos que restam do “Orpheu” toda a nossa mais
gente lhe é sobrevivente. E onde está esta nossa gente toda? Uma pequena parte dela
está de visita turística ao “Orpheu”. E ainda não foi disparada.217
Neste sentido é que a Geração de Orpheu como “o primeiro modernismo português” fez
jus ao poder simbólico que ‘tomou’ da Academia218 por meio de contestar-lhe o discurso
secular e, rompendo sob todo risco com o seu cânone, poder ‘ofertar’ de si mesma e de suas
práticas estéticas uma leitura discursiva polifônica de exploração e de provocação como
dimensão estética, e capaz de - efêmero que fosse - poder deixar a Portugal um legado
histórico e cultural 219que lhe contribuiu para uma identidade literária – e moderna.
E
Ainda faz falta, para os estudos que se farão cada vez mais sobre Orpheu, os elementos
para uma sua interpretação sociocultural e política, após a recolha e, igualmente, interpretação
de todos os “acontecimentos” que em artifício provocou e que proliferam ente 1915/1916”.
217
NEGREIROS, José de Almada (1993). Obras Completas – Textos de intervenção.V.VI, pp169-178.
218
Dionísio Vila Maior (1996, p.111) faz o parêntese -”embora continuando, no fundo, toda uma tradição da
antitradição”, que diz respeito ao que já foi levantado neste trabalho (capítulo I, p.15 e nota de rodapé n° 12)
sobre o paradoxo de o manifesto depois tornar-se cânone.
219
Cf. VILA MAIOR, Dionísio. ”A ‘morte’ de <<Orpheu>> e o seu legado histórico-cultural in Introdução
ao Modernismo (1996:109-111), obra referida na bibiliografia.
220
Em resposta à entrevista de Madalena Vaz Pinto, citada na Bibliografia.
121
(Teles, 2009:411)
221
Silviano Santiago argumentou assim no contexto - estética e política - de uma entrevista fornecida para uma
tese de doutorado (na linha de relações luso-brasileiras na literatura) a Madalena Vaz Pinto e referia-se à força
fatal de que fala Mário de Andrade no primeiro balanço do Modernismo, em 1942, quando Mário comentava
sobre o movimento artístico mais propriamente.
122
Reiterando o que já escrevemos, optamos por elencar neste espaço o pensamento deste
e de outras importantes figuras portuguesas sobre a identidade do Modernismo brasileiro, o
qual fazemos nosso para efeito de conclusão:
E por volta dos anos 40 tinha triunfado de tal modo que os grandes homens que o
começaram podiam dar-se ao luxo de olhar em volta e temer pela responsabilidade que
tinham chamado para si ao ter criado uma nova Cultura Brasileira. O Modernismo
brasileiro não estava tão atrasado como se possa pensar: aconteceu no momento certo
quando o movimento se espalhava por todo o mundo ainda na sua fase heroica e
conquistou uma coisa que não muitos outros conquistaram: um país.
[...] E uma das coisas mais sérias que o modernismo brasileiro ensinou aos próprios
brasileiros e pode ensinar também ao mundo é que o Brasil não é fácil e que ser um
brasileiro não é de modo algum dormir num leito de rosas. Na verdade o Brasil é como
um leito procustiano: pode nunca estar à nossa medida, mas temos de fazer o possível
por nos acomodarmos. Nada como o modernismo brasileiro – uns trinta anos
[contando de 1960] que criaram a única completa literatura na América Latina e
deram significado a tudo quanto tinha sido escrito antes – nos poderá ajudar.
Amarante era e é uma cidade pequena, mas na segunda metade dos Novecentos foi um
importante empório e porto fluvial. Dali iam para a Europa os produtos agrícolas e
extrativos do interior do Piauí – a carnaúba, a maniçoba, o algodão. E lá devia haver
um importador de livros, em cuja loja o meu pai ia recolher as novidades da Europa.
Que às vezes eram até mesmo raridade. As duas primeiras edições do Livro de Cesário
Verde, por exemplo, foram de apenas 200 e 705 exemplares, mas um deles quase com
certeza foi ter às mãos de Da Costa e Silva [pai] antes de 1908, provavelmente em
124
Amarante, se não em Teresina ou no Recife, para onde o poeta se deslocou aos 21 anos,
a fim de estudar Direito.222
222
Resposta do historiador, diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva à entrevista concedida ao Jornal
do Brasil, 2 de dezembro, 1985 (apud Arnaldo Saraiva, p. 264) sobre o seu pai, o reconhecido poeta Antônio
Francisco da Costa e Silva, autor do hino do seu Estado (Piauí) e de várias obras conhecidas no Brasil (de 1908
a 1934, em vida, 1950, póstumas).
125
Pessoa: “a concepção de língua que acaba por acentuar o plano espiritual, essencialista, da
língua portuguesa, [que desembocaria numa ] “comunidade traçada pelo diapasão da
unidade”, como entende Vila Maior (2008:260).
Muito dependemos dos governantes, de políticos, da ação e atividade das instituições
afins da Comunidade dos países lusófonos, do respeito e cumprimento do Acordo
ortográfico atual em cada nação, do cumprimento dos Tratados de Amizade e outros
existentes entre eles, que na prática não acontece bem. Dependemos de juristas sim, mas
igualmente de intelectuais, empresários, professores, pesquisadores, formadores, tanto da
escola secular quanto do ensino virtual e em rede; da política educacional do livro e de seus
similares tecnológicos e da cultura para todos (especialmente nos países cuja população em
maioria não dispõe de computadores e do uso da Internet); das políticas de formação e
capacitação com o saber usar das novas metodologias; da distribuição fiel dos recursos
educacionais pelos governos; da busca do melhoramento do nível e qualidade do ensino da
língua em perspectiva multicultural, virtual, internacional, e globalizada competitivamente.
Isto envolverá novos conhecimentos com abordagens para uma segunda forma (língua)
e outras variantes (linguísticas) do mesmo idioma português nos outros países com as
noções minimamente fundamentais, cursos de especializações de qualidade e seus
reconhecimentos legais, enfim - o interesse governamental de valorização do idioma em
todos os aspectos - e em especial através da literatura - dos que trabalham com ele e as
estratégias de parceria e intercâmbios.
Mas isto implica também e fundamentalmente no recebimento pelo profissional de
condições favoráveis de trabalho e de um salário que não corresponda no máximo ao dízimo
do de outro profissional no mesmo país, como ocorre no Brasil, tal como em Portugal; da
valorização da profissão do professor e do resgate do seu status; do cumprimento dos direitos
humanos nos “países lusófonos”, incluindo até e especialmente os fundamentais aonde ainda
não são realidade, só letra; do desmascaramento dos mitos da “democracia racial” e social
e da realidade democrática. Depende, da parte da Lusofonia, de uma política multilíngue e
multicultural, como bem coloca Castilho Pais (2010:4), quando sugere dois modos de
intervenção na Internet onde, pelo primeiro – o modo bilinguista – se possa promover a
criação e a manutenção de sites bilíngues que incluam uma segunda língua parceira no
espaço lusófono (e supomos assim todos), considerando-se até mesmo o objetivo
pedagógico; pelo segundo modo – a tradução bilateral (do português para a outra língua de
entre os países falantes do português e do seu próprio idioma, e daquela língua para o
português), para ajudar a afirmar e a elevar a sobrevivência das demais línguas originais
126
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