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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

AQUILOMBAR-SE
Panorama Histórico, Identitário e Político
do Movimento Quilombola Brasileiro

Bárbara Oliveira Souza

Brasília, setembro de 2008.

1
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

AQUILOMBAR-SE
Panorama Histórico, Identitário e Político
do Movimento Quilombola Brasileiro

Bárbara Oliveira Souza

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social da Universidade
de Brasília, como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. José Jorge de Carvalho (orientador)


Prof. Dra. Ilka Boaventura Leite
Prof. Dra. Maria da Glória da Veiga Moura

Brasília, 01 de setembro de 2008.

2
Ao Movimento Quilombola.

Para João Caetano.

3
“Eu quero uma história nova
Não este conto de fadas brancas e ordinárias
Donas de nossas façanhas
Eu quero um direito antigo
Engavetado em discursos
Contidos, paliativos
(cheios de maçãs e pêras)
Bordados de culpa e crimes.
Eu quero de volta, de pronto
As chaves dessas gavetas
Dos arquivos trancafiados
Onde jazem meus heróis
Uma “nova” história velha
Cheia de fadas beiçudas
Fazendo auê, algazarras
Com argolas nas orelhas,
De cabelos pixaim
Engasgando príncipes brancos
Com talos de abacaxi.”

Fadas Negras Nordestinas. In: Caxingulê, de Lepê Correia.

4
Agradecimentos

Agradeço às várias organizações do movimento quilombola de todo o País com


as quais tenho estabelecido relações bastante significativas nos últimos anos,
sobretudo ao que se relaciona à construção de um outro mundo possível.
Agradeço especialmente as lideranças que estabeleceram um diálogo mais
próximo na construção dessa pesquisa: Jhonny Martins, Ronaldo dos Santos, Ivo
Fonseca, Aparecida Mendes, José Carlos (Zeca Lula), Hildima dos Santos, Cledis
Souza, Sandra Santos e Luiza Santos. À Givânia Silva, em especial, agradeço pela
oportunidade do aprendizado, pela força inspiradora e pela amizade.

Agradeço às organizações que me receberam durante a pesquisa e que foram


fundamentais para o caminhar do trabalho. Destaco o Centro de Cultura Negra,
do Maranhão, nas pessoas de Ivan Costa e Maurício, a Associação das
Comunidades Negras Rurais do Maranhão (Aconeruq), a Federação Quilombola
de Estado de Minas Gerais (N`Golo), a Associação Quilombola do Estado do Rio
de Janeiro (Aquilerj), a Federação das Associações das Comunidades
Quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul (Facq), Comissão Estadual de
Comunidades Quilombolas de Pernambuco (Cecq), Coordenação Estadual
Quilombola do Amapá (Conerq/AP), Associação Ecológica do Vale do Guaporé
- Rondônia (Ecovale), Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do
Mato Grosso do Sul (Conerq/MS) e a Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Deixo meus agradecimentos à dedicada orientação do professor José Jorge de


Carvalho. As discussões sobre a questão racial e sua amplitude política foram
fundamentais para esse trabalho. À professora Rita Laura Segato, agradeço pelas
contribuições e reflexões feitos à pesquisa.

5
Agradeço à Professora Maria da Glória Moura por todos os incentivos e
estímulos ao trabalho de pesquisa com comunidades quilombolas ao longo de
minha vida acadêmica. À professora Ilka Boaventura Leite agradeço pela atenção
dedicada em sua participação na banca, pela inspiração que traz para o trabalho
e atuação com a temática quilombola na academia e para além dela. Agradeço,
também, ao professor Alfredo Wagner pelo apoio sempre solícito nas várias
etapas dessa pesquisa.

Agradeço o estímulo, as conversas, a atenção com a pesquisa e toda a dedicação


da amiga Edileuza Penha de Souza. À Paula Balduíno, agradeço com carinho os
diálogos e o partilhar da pesquisa. Agradeço ao Geraldo Horta por todo o apoio
dado nesses anos. Deixo agradecimentos a Tiago Eli e Marianna Holanda pela
divisão das angústias e pelas trocas. Sou grata, também, à Adriana Sacramento e
Rosa pela dedicação. Agradeço a atenção aos detalhes, os toques “Guimarães
Rosa” e a convivência leve durante o processo de pesquisa ao Daniel Brasil.

À minha mãe, Josélia Abreu, agradeço de maneira enfática por todo apoio e
estímulo intelectual que sempre manteve presente e pela ajuda no percurso dessa
pesquisa. Ao meu pai, Waldimiro de Souza, por ter me ajudado a construir o
embasamento fundamental para esse trabalho: consciência racial. Aos meus
irmãos, Paulo, José, Artur e Isabel, por todo carinho e companheirismo. Ao José,
em especial, agradeço a dedicação à transcrição das dezenas de entrevistas. Ao
meu filho, João Caetano, dedico esse trabalho e todo o meu amor.

6
Resumo

Palavras-chave: Comunidades Quilombolas – Movimento Social – Identidade

A luta pela garantia dos direitos quilombolas é histórica e política. Abarca uma
dimensão secular de resistência, na qual homens e mulheres buscavam o
quilombo como possibilidade de se manterem física, social e culturalmente, em
contraponto à lógica escravocrata. No período pós-abolição, a luta pelos direitos
quilombolas se somou às lutas da população negra de modo geral, sendo uma
forte bandeira dos movimentos negros organizados durante os séculos XX e XXI.
O processo de fortalecimento da luta pelos direitos desses grupos construiu,
todavia, uma outra faceta importante do ponto de vista político e organizativo
que é a constituição do movimento quilombola, com suas especificidades em
relação ao movimento negro urbano. O objetivo do presente trabalho é traçar um
panorama sobre as dimensões históricas, identitárias e políticas do movimento
quilombola no País. Tece, ainda, reflexões sobre as relações estabelecidas entre o
movimento quilombola, o Estado brasileiro, o setor privado, as organizações da
sociedade civil e demais atores imbricados no seu processo de afirmação de
direitos.

Abstract
Keywords: Quilombolas Communities – Social Movement – Identity

The struggle for the guarantee of the quilombola rights is historic and political. It
embraces a secular dimension of resistance, in which men and women seeked the
quilombo as a possibility of physical, social and cultural maintenance, in
opposition to the slavery logic. In the post-abolition period, the struggle for the
quilombola rights joined forces with the struggle of the black population in
general, figuring as a strong flagship of organized black movements during the
20th and 21st centuries. The process of strengthening the struggle for the rights of
these groups constituted, anyhow, another important facet from the political and
structural point of view, which is the constitution of the quilombola movement
with its particularities in relation to the urban black movement. The objective of
this present work is to trace a panorama of the historic, identitary and political
dimensions of the quilombola movement in the country. It fabrics, furthermore,
reflections over the established relations amidst the quilombola movement, the
Brazilian State, the private sector, the civil society organizations and other
stakeholders imbricated in the process of affirmation of their rights.

7
Sumário
Agradecimentos 05

Resumo/Abstract 07

Acrônimos 09

Introdução 12

Metodologia 16

Capítulo 1 - Quilombo: Perspectivas históricas 21

1.1 Quilombo nas Américas

1.2 A Relevância de Palmares para o “texto afro-brasileiro”

1.3. Abrangência da Resistência Negra

Capítulo 2 - Reversão do conceito de Quilombo: De categoria


de crime à de direito 46

2.1 Conflito e Tensão nos Territórios Quilombolas

Capítulo 3 - Povo Quilombola: Identidade e resistência 78

Capítulo 4 - Aquilombolar-se 106

4.1 Movimento quilombola e os novos movimentos sociais

4.2 Mobilizações anteriores à Constituição de 1988

4.3 Mobilizações quilombolas nos estados

4.4 Coordenação Nacional

4.5 Juventude

4.6 Movimento Quilombola e o Estado

Considerações Finais 175

Referências Bibliográficas 178

Anexos 189

8
Acrônimos

AA – Ato Administrativo

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

ACONERUQ - Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do


Maranhão

ACQUILERJ - Associação Quilombola do Estado do Rio de Janeiro

ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade

APA – Área de Proteção Ambiental

AQK - Associação do Quilombo Kalunga /GO

CCLF – Centro de Cultura Luiz Freire

CCN-MA – Centro de Cultura Negra do Maranhão

CECNEQ - Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da


Paraíba

CECQ - Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas de Pernambuco

Cedenpa – Centro de Estudos do Negro do Pará

CLA – Centro de Lançamento de Alcântara

CODENE - Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Negro

CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras


Rurais Quilombolas

9
CONERQ/MS - Coordenação das Comunidades Rurais Quilombolas de Mato
Grosso do Sul

CONERQ-AP - Coordenação Estadual Quilombola do Amapá

COQESP - Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado de São Paulo

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CRQ - Coordenação Regional das Comunidades Quilombolas da Bahia

ECOVALE - Associação Ecológica do Vale do Guaporé/RO

FACQ - Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Estado do


Rio Grande do Sul

FCP – Fundação Cultural Palmares

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

GSI – Gabinete de Segurança Institucional

IACOREQ - Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de


Quilombos

IN – Instrução Normativa

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

ITERPA – Instituto de Terras do Pará

MABE - Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara/MA

MALUNGU - Coordenação das Associações Remanescentes de Quilombos do


Estado do Pará

MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

10
MMA – Ministério do Meio Ambiente

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MNU - Movimento Negro Unificado

MPF – Ministério Público Federal

N`GOLO - Federação Quilombola de Estado de Minas Gerais

OIT – Organização Internacional do Trabalho

PDL – Projeto de Lei

PFL – Partido da Frente Liberal

QUILOMBO - Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí

SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

STF – Supremo Tribunal Federal

UFPA – Universidade Federal do Pará

UnB – Universidade de Brasília

11
Introdução
As organizações sociais que lutam pelos direitos territoriais e identificam-se
como “remanescentes de quilombos” constituem-se, não exclusivamente, por
pessoas negras, e localizam-se em todas as regiões do País. Parte dessas
comunidades volta-se para o cultivo das terras, e possuem, em sua grande
maioria, a sua posse, sem haver na maior parte dos casos regularização de seus
territórios.

O movimento de luta pela garantia dos direitos dessas comunidades é histórico e


político. Traz em seu íntimo uma dimensão secular de resistência, na qual
homens e mulheres buscavam o quilombo como possibilidade de se manterem
física, social e culturalmente, em contraponto à lógica escravocrata.

As lutas pela defesa dos territórios se fizeram presentes em diferentes períodos


históricos em muitas comunidades atualmente categorizadas e que se auto-
identificam como quilombolas. Estas possuem uma multiplicidade de
denominações em seus distintos contextos, tais como “terras de preto”, “terras de
santo”, “mocambos”, “quilombos”, dentre outras.

A luta pelos seus territórios, organizada a partir do Artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, traz
uma nova moldagem para essa mobilização. Permite que os processos de defesa
dos territórios, antes processados de distintos modos e tendo como base
diferentes legislações, passe a se dar a partir de um mesmo caminho legal e
identitário.

O objetivo do presente trabalho é refletir sobre a dimensão histórica, identitária e


político-organizacional das comunidades quilombolas e seus reflexos na
estruturação dos movimentos em prol dos direitos desses grupos.

12
A resistência quilombola traz em si um processo de construção que há muito se
dá na história do País, e que se processa de diferentes modos de acordo com os
contextos de cada período. A ocupação das terras brasileiras pelo poder colonial
data de mais de cinco séculos. Após a abolição formal da escravidão (Lei Áurea
nº 3.353, de 13 de maio de 1888), levou-se cem anos para que fossem
reconhecidos os direitos às terras aos descendentes dos antigos quilombos,
através do Artigo 68.

Hoje, após duas décadas de vigência do Art. 68, pouco mais de cem
comunidades tiveram seus territórios reconhecidos. São cerca de três mil
comunidades quilombolas identificadas pelo Governo Federal1, presentes nas
cinco regiões do País, que têm seu direito fundamental à terra não efetivado. A
fragilidade da efetivação desse direito se expressa nesse processo lento e árduo
de titulação das terras quilombolas.

Esse quadro tem amplificado sua complexidade com a conjuntura atual


apresentada na qual a identidade quilombola e o próprio conceito são
contestados por muitos acadêmicos, pela grande mídia, por alguns
representantes do Legislativo, dentre outros. Essa contra argumentação está, em
grande parte dos casos, calcada numa perspectiva enrijecida da idéia de
quilombo.

O movimento de aquilombar-se, de lutar pela garantia da sobrevivência física,


social e cultural, é histórico. Abarca uma dimensão secular de resistência e luta
dos africanos e seus descendentes, muitas vezes em conjunto com indígenas e até
brancos, e chega aos dias atuais na batalha pela garantia de direitos
fundamentais, como a titulação das terras que tradicionalmente ocupam as
comunidades quilombolas.

1
Base de dados da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e MDS
(Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), 2007.

13
Os objetivos da presente pesquisa abarcam quatro aspectos fundamentais: (1)
Abordar os processos mobilizatórios das comunidades quilombolas ao longo da
história do Brasil, que têm suas estratégias tecidas de acordo com os aspectos
históricos e políticos de cada período analisado; (2) Empreender um panorama
da construção da categoria quilombo, desde quando surge nos marcos legais
coloniais e imperiais, como categoria de transgressão, até os dias de hoje, quando
situa-se na perspectiva de direitos (após a Constituição de 1988); (3) Focar a
dimensão identitária da categoria ‘quilombo’ e seus reflexos nos processos
identitários e mobilizatórios de luta pelos direitos quilombolas; (4) Abordar as
dimensões político-organizativas estabelecidas entre as comunidades, no que
denomino “movimento quilombola”, e suas respectivas relações estabelecidas
com o Estado.

O caminho da presente pesquisa segue uma lógica histórica. Os processos


relacionados ao sistema escravista, registros históricos da formação das
comunidades nos períodos colonial e imperial e o panorama das comunidades
quilombolas no período posterior à Lei Áurea são abordados no capítulo 1,
intitulado “Quilombo: Perspectivas históricas”.

O capítulo 2 enfoca a dimensão dos direitos associados à questão quilombola, a


partir da Constituição de 1988, com foco no processo de reversão legal da ótica
estatal, que passa de uma categoria de transgressão (construída no Brasil Colônia
e Império) para uma perspectiva de direitos, no período pós-constituinte de 1988.
Aborda, também, a complexidade de se moldar organizações sociais múltiplas e
complexas na categoria “comunidades quilombolas”.

O capítulo 3 aborda a dimensão da constituição identitária das comunidades


quilombolas, os critérios político-organizativos que concebem o partilhar de
rumos e de caminhos e suas especificidades e delimitações que permitem
categorizá-las numa perspectiva de povo, de comunidade, distintamente
posicionadas em relação à “sociedade nacional”.

14
O movimento quilombola e sua dimensão organizativa e política é trabalhado no
capítulo 4, por meio da construção conceitual e teórica que é vinculada com a
perspectiva de lideranças estaduais e nacionais da Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, e de outras
organizações quilombolas estaduais e locais. Os diálogos e construções relativas
às políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas estão presentes
também no capítulo 4.

Levando-se em consideração a multiplicidade de complexidades e diferenças


sociais, históricas e culturais do universo que formam as hoje denominadas
“comunidades quilombolas”, e por serem os objetivos da presente pesquisa
voltados para aspectos, de certo modo, amplos, sinalizo que muito ainda precisa
ser explorado, o que efetivamente uma pesquisa desse vulto não seria capaz de
dar conta. Espera-se, contudo, que o presente trabalho seja uma contribuição a
essa questão fundamental para a sociedade brasileira.

15
Metodologia

O presente trabalho tem como foco analisar: (a) Os vários processos que
envolvem a construção da categoria quilombo, desde quando surge nos marcos
legais coloniais e imperiais até os dias de hoje; (b) Refletir sobre a dimensão
identitária e organizacional das comunidades quilombolas e os seus reflexos para
os critérios de pertencimento e identidade presentes na estruturação
organizacional e política dessas comunidades.

Para a realização da pesquisa, buscou-se acompanhar diversos eventos e


encontros que pautavam a questão quilombola, onde se faziam presentes
lideranças quilombolas de todas as regiões do País que representavam, nesses
espaços, tanto a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas - CONAQ, como federações, comissões e coordenações
estaduais e locais.

A minha participação esses encontros ocorreu desde 2004, sendo que em parte
deles eu me fazia presente por meio do projeto no qual atuava na Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da
República. Destaco, portanto, que parte significativa das relações por mim
estabelecidas com as lideranças quilombolas se viabilizou a partir de um projeto
governamental, e a percepção das lideranças comigo era, muitas vezes, de uma
gestora pública.

Os principais encontros nos quais foram realizadas as entrevistas e/ou as


observações para esse estudo ocorreram em 2007 e 2008. São eles: a Audiência
Pública, organizada pelo Ministério Público Federal, por meio da 6ª Câmara,
realizada no dia 19 de setembro de 2007, com a presença de aproximadamente
700 quilombolas de todo o País; o Ato em Defesa dos Direitos Quilombolas,

16
realizado pela Frente Parlamentar em Defesa da População Negra e pela
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, ocorrido no dia 20 de setembro de 2007, na Câmara dos
Deputados, com a presença estimada de 700 quilombolas; o Seminário
Preparatório para a II Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável da
Agricultura Familiar, realizado entre os dias 07 a 10 de dezembro de 2007, onde
se reuniram cerca de 150 lideranças de várias organizações quilombolas do país,
com destaque para a forte presença da Conaq; e a Consulta Nacional à Nova
Instrução Normativa do INCRA, realizada entre os dias 15 a 17 de abril de 2008,
em Luziânia, Goiás, onde estiveram presentes um número estimado de 300
lideranças quilombolas.

No período entre 2007 e 2008, nesses encontros com as lideranças, realizei, além
da observação participante, entrevistas diretas enfocando os temas trabalhados
na presente pesquisa. Empreendi um trabalho de campo, realizado entre os dias
20 a 28 de fevereiro de 2008, no Maranhão. Nesse estado, realizei visitas e
entrevistas com lideranças quilombolas do Vale do Itapecuru, na sede da
Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão -
Aconeruq e na sede do Centro de Cultura Negra do Maranhão - CCN, ambas em
São Luis.

O foco desse trabalho de campo se voltou para os aspectos que tecem os critérios
de pertença estabelecidos no âmbito das organizações políticas que unificam a
luta de comunidades quilombolas das mais distintas regiões do país. São
organizações de comunidades que possuem especificidades e características
próprias, e que compartilham metas e objetivos comuns e têm, a partir de um
histórico compartilhado e de uma luta coletiva, uma identidade que os aproxima
e os unifica em sua diversidade.

Outros pontos trabalhados durante as entrevistas abordaram os processos


históricos de formação das comunidades das quais são provenientes as

17
lideranças, e seus processos mais atuais de articulação em níveis estaduais e
nacionais. Além disso, foram trabalhados os aspectos que permeiam a identidade
quilombola e a conjuntura de oposição que tem crescido continuamente nos
últimos anos.

Nesta pesquisa, procurei estabelecer o debate entre as políticas públicas e o


movimento quilombola. Preocupo-me em responder como são, quem compõe,
como compõe e o que se estabelece como critério de pertença entre os sujeitos
que integram o movimento quilombola. Ressalto que o que aqui denomino como
movimento quilombola se apresenta a partir de uma heterogeneidade de formas
organizativas. Busco refletir, também sobre as ações e relações estabelecidas
entre as comunidades com o Estado, desde o ponto de vista legal até a efetivação
de ações e políticas publicas a elas dirigidas.

Como à pesquisa interessava também abordar o processo de reversão legal do


conceito de quilombo, com a entrada em vigor do Artigo 68 da Constituição
Federal, foram entrevistadas algumas lideranças do movimento negro que
acompanharam a Assembléia Constituinte, como também agentes públicos que
atuam com essa temática. O trabalho envolveu a pesquisa de documentos
referentes à questão quilombola em sua amplitude, como também a revisão
bibliográfica e análise das bases legais existentes.

A pesquisa está estruturada a partir dos parâmetros da pesquisa de campo,


seguindo os padrões de uma etnografia a partir da observação participante. As
técnicas utilizadas baseiam-se, primordialmente, na observação intensa e
participante dos espaços de discussão das lideranças quilombolas. A coleta de
dados etnográficos realizou-se por meio de entrevistas com as lideranças e de
observações relevantes. Buscou-se entrevistar pessoas de todas as regiões, com
vistas a abarcar a construção desse movimento quilombola a partir de distintas
perspectivas.

18
Entrevistas livres, gravadas e não gravadas, são parte importante da
metodologia. Além das entrevistas, gravação de depoimentos, as fotografias
também compõem a parte principal do material de pesquisa. Como instrumental
foi utilizado um gravador, máquina fotográfica e caderno de campo.

Foram entrevistadas dezenas de lideranças e outras pessoas que acompanharam


de algum modo a questão quilombola. Delas, se destacam as realizadas com
Givânia Silva, Jhonny Martins, Ronaldo dos Santos, Ivo Fonseca, Aparecida
Mendes, José Carlos (Zeca Lula), Hildima dos Santos, Cledis Souza, Sandra
Santos, Ivan Costa e Luiza Santos.

Ao empreender uma escrita etnográfica, busco evitar a representação dos


“outros” como sujeitos abstratos e a-históricos. Ressalto, contudo, que nem
sempre se faz possível escapar inteiramente do uso reducionista de dicotomias e
essências. Como formação identitária, diferentes povos e comunidades
constroem complexas e concretas imagens de si e dos outros que os cercam, bem
como das relações de poder e de conhecimento que os envolve.

As reflexões sobre os diálogos estabelecidos com o “outro” e a materialização


desses na escrita etnográfica, me remete a James Clifford:

“Com a expansão da comunicação e da influência intercultural, as pessoas interpretam os


outros, a si mesmas, numa desnorteante diversidade de idiomas. (...) Esse mundo
ambíguo, multivocal, torna cada vez mais difícil conceber a diversidade humana como
culturas independentes, delimitadas e circunscritas. A diferença é um efeito de
sincretismo inventivo” (Clifford, 1998: 58).

A ciência, em nenhuma de suas leituras, pode efetivar e ratificar a “verdade” de


tais imagens. Desse modo, em sintonia com reflexões de Doria (2001), deparo
com os impasses colocados pela impossibilidade do uso acrítico das teorias e dos
modos de operação de escrita que produzem, preservam, cultivam “verdades”
não perecíveis. A escrita etnográfica, fundamentalmente, se articula num enredo
de palavras que concretiza as relações estabelecidas com o “outro”.

19
Muito mais do que o método (que envolve a seleção de informantes, a transcrição
de textos, de genealogias, de campo, dentre outros), a escrita etnográfica envolve
nossa construção das construções de outras pessoas. Traz uma dimensão
relacional fundante. O fazer etnográfico é a tentativa de empreender uma leitura
a partir de outras leituras, percepções e inserções sociais.

20
1. Quilombo: Perspectiva Histórica

O sistema escravista nas Américas contabilizou cerca de 15 milhões de africanos,


homens e mulheres, arrancados de suas terras2. Esse empreendimento marcou
profundamente o continente africano e americano. Em relação ao Brasil, os mais
de trezentos anos de escravidão se refletiram (e refletem) intensamente na
realidade sócio-econômica-cultural, ao longo de toda a sua história.

O Brasil tem no âmago de sua história o tráfico e o comércio de africanos e


africanas escravizados. Foi o país que mais importou escravizados e aquele que
por último aboliu legalmente a escravidão. A profunda participação brasileira
está marcada na estimativa de que cerca de 40% dos africanos escravizados
tiveram como destino o Brasil (Reis, Gomes, 1996). Conseqüência de seu papel
dominante na escravização de povos africanos, atualmente cerca de 65% da
população negra nas Américas é constituída de brasileiros.

O sistema colonial tinha como base de sustentação o trabalho escravo africano. A


lógica escravista não apresentava contradições com o historicamente praticado
na Europa em períodos anteriores, tais como o feudal. De acordo com Funari
(1996), no período colonial a escravidão não havia desaparecido da Europa. No
feudalismo, admitia-se que pessoas pudessem ser consideradas propriedades e,
na língua erudita da época, o latim, termos como res e instrumentum uocale
identificavam essas pessoas, que nas línguas vernáculas eram chamadas de
escravos, slaves, esclaves, schiavi, sklaven. Do ponto de vista ideológico, não havia,
portanto, oposição à utilização da mão-de-obra escrava no final da idade média e
início do período moderno, e a sua utilização no dito “novo mundo” foi
largamente empreendida.

2Atualmente, a população negra na América ultrapassa 140 milhões de pessoas, constituindo um terço da
população total do continente, que é de 450 milhões de habitantes.

21
“A herança do direito romano permitiu que a Coroa portuguesa lançasse ordenações que
classificavam os africanos (e os índios) como coisas, como propriedade móvel, cuja
transmissão de posição social era estabelecida pela mãe (de acordo com o princípio partus
sequitur uetrem) que negava ao escravo qualquer condição humana (seruus personam non
habet)” (Fernandes, 1970: 279).

A mão-de-obra africana e de seus descendentes constituiu-se como a principal


durante o regime escravista no Brasil, mesmo havendo grande presença de força
de trabalho escravo indígena, principalmente em algumas localidades, como o
Grão-Pará.

Os interesses comerciais escravistas dos portugueses dirigiram-se com ênfase


para a região de Angola, principalmente na costa angolana, ao sul do rio Zaire,
em Luanda, a partir de 1570, e de Benguela, a partir de 1610. Estimulados pelos
comerciantes portugueses, parte das sociedades africanas escravizava os
prisioneiros de guerra, mas raramente os vencedores retinham-nos como
serviçais e a grande maioria era vendida para os comerciantes lusitanos de
escravos, ou trocada por mercadorias européias (Funari, 1996: 29).

Fernando Novais3 ressalta que a acumulação gerada pelo tráfico negreiro


acabava, em grande medida, nas mãos dos comerciantes metropolitanos
especializados na circulação dos cativos africanos. De acordo com este autor, “é
começando com o comércio de escravos que é possível entender a escravidão
colonial, e não o contrário” (Funari, Op. Cit. p. 27). A estrutura colonial
escravocrata tinha, pois, como um de seus alicerces os mercadores de escravos e
seus interesses. Para sustentar esse sistema, havia grande construção ideológica,
amparada em estudos científicos e em bases legais.

A lógica de violência e coerção aos negros era outro elemento estrutural do


regime escravista, como assinala Freitas (1978: 33), citado por Treccani (2006):

“Os castigos e tormentos infligidos aos escravos não constituíam atos isolados de puro
sadismo dos amos e seus feitores, constituíam uma necessidade imposta
irrecusavelmente pela própria ordem escravista, que, de outro modo, entraria em

3
Citado por Funari (1996: 27).

22
colapso. Pois, sem a compulsão do terror, o indivíduo simplesmente não trabalharia, nem
se submeteria ao cativeiro”.

O tempo médio de vida útil dos negros e negras escravizados no Brasil era de
sete anos, e sua a substituição era automática, sem que houvesse déficit na
produção econômica. O tráfico se dava em grandes proporções e a distribuição
de cativos abrangeu todo o território nacional4.

Para além de todo o aparato de repressão violento presente nas fazendas e nos
espaços onde havia escravos, existia grande legislação, tanto no regime colonial
como no imperial, que fundamentava a criminalização e penalização das fugas e
tentativas de rebelião de escravos.

As referências primeiras aos quilombos foram pronunciadas pela Coroa


Portuguesa e seus representantes que administravam o Brasil colônia. Essas
referências situam-se no contexto de repressão da Coroa aos negros
aquilombados. O seu marco inicial foi possivelmente o que consta no Regimento
dos Capitães-do-Mato, de Dom Lourenço de Almeida, em 1722: “pelos negros
que forem presos em quilombos formados distantes de povoação onde estejam
acima de quatro negros, com ranchos, pilões e de modo de aí se conservarem,
haverão para cada negro destes 20 oitavas de ouro” (apud Guimarães, 1988: 131).

Em 1740, em correspondência entre o Rei de Portugal e o Conselho Ultramarino,


quilombos ou mocambos foram definidos como “toda habitação de negros
fugidos, que passem de cinco, em partes despovoadas, ainda que não tenham
ranchos levantados, nem se achem pilões neles”. Essa perspectiva conceitual de
quilombo se fez presente em diversos outros documentos legais posteriores.

Almeida (2002) demonstra que os elementos básicos desse conceito jurídico-


formal de quilombo são: 1- fuga; 2- quantidade mínima de fugitivos; 3-
isolamento geográfico; 4- moradia habitual, o rancho; 5- capacidade de

4 Em 1819, conforme estimativa oficial, nenhuma região do Brasil tinha menos de 27% de
escravos em sua população (Moura, 1993: 7,8).

23
reprodução e de autoconsumo na figura do pilão. Esses cinco elementos se
reproduzem em muitas definições de quilombos que se seguiram na legislação
brasileira, apenas sofrendo um deslocamento de variação e intensidade entre eles
mesmos.

A implementação de tais códigos contava com atores centrais para a manutenção


da ordem escravista: os bandeirantes. Esses percorriam distâncias monumentais
na busca de escravizados fugidos, com atuação mais expressiva na área hoje
próxima ao Paraguai e no Nordeste brasileiro (Funari, 1996: 30).

As práticas cotidianas, a base legal e a bagagem ideológica que tirava a


humanidade dos africanos, homens e mulheres, e de seus descendentes, no
“Novo Mundo”, demonstram que esses foram submetidos a violências e
sacrifícios inomináveis. Calcular a dimensão dos níveis insuportáveis de
barbarismo associados à escravidão na América amplia a percepção do quão
importante foram os quilombos e as demais formas de resistências dos africanos
e de seus descendentes.

Em contraponto, todo esse aparato repressivo existente no Brasil colônia e


império marca o peso da resistência negra. Ao longo da história brasileira, negras
e negros resistiram e lutaram contra a opressão e a discriminação por meio de
uma multiplicidade de formas de resistência. Pensada em sentido amplo, a
resistência abarca as várias estratégias empreendidas pelos povos negros para se
manterem vivos e perpetuarem sua memória, valores, história e cultura.

São estratégias presentes nos costumes, no corpo, no falar, nas vestimentas, nas
expressões, nas organizações sociais, políticas e religiosas tais como os
quilombos, irmandades e terreiros de candomblé. Essas estratégias de resistência
são vivas e fortemente presentes nas manifestações e expressões da cultura afro-
brasileira.

24
Yorubá, Kimbundu, Kicongo, Benguela, Mina, dentre vários outros povos
africanos trazidos ao Brasil, convergiram em inúmeras formas de resistência, com
o objetivo de fortalecer suas identidades e coletividades.

Esse processo histórico aponta para um continuum de resistência que marca os


últimos séculos de história de nosso País. Os primeiros africanos escravizados
chegaram ao Brasil em 1554. Foram 316 anos de “tráfico negreiro”, o que
representa 63% do tempo de vida do País.

A resistência quilombola, durante o período da escravidão, exigiu estratégias


organizativas bastante intensas. Esses registros permeiam a construção
identitária de diversas comunidades e compõem a narrativa sobre suas lutas. A
ação contra os antagonistas, historicamente vivenciada, nos dias atuais também
se processa, só que de diferentes formas, conforme afirma Aparecida Mendes, em
relação à sua comunidade:

“A comunidade [Conceição das Crioulas] sempre teve a sua forma de organização,


sempre se articulou, e aí a articulação naquele tempo se dava de outra forma porque não
tínhamos nem apoio de parceiros externos e o que tinha de externo era interferência
mesmo. O poder político, executivo e de polícia mesmo sempre era contra os
quilombolas. Mas o nosso povo sempre se organizava entre si e partiam muitas vezes pra
luta, pra luta mesmo, e aí se destacava a fitura, que é a capoeira, e também a forte união e
a forte parceria com os povos indígenas. E por isso que Conceição das Crioulas tem hoje
nos seus traços, nos traços das pessoas dali, a mistura dos povos indígenas com o povo
negro. Isso não significa dizer que o território deixa de ser quilombola, pois isso também
vem desde o início da história.” (Aparecida Mendes, quilombola de Conceição das
Crioulas, Pernambuco).

José Carlos Neto, quilombola de Santo Antônio do Guaporé, Rondônia, relata o


processo histórico de sua comunidade, que traz também como fundamento as
estratégias de resistência e de contraponto ao sistema escravista de seus
antepassados:

“A comunidade de Santo Antônio teve origem em 1786. De início, chegaram os quatro


primeiros negros fugidos, que eram liderados pelo meu tetravô e viveram vinte e quatro
anos, só os quatro naquela localidade, mas antes eles viviam às margens do riozinho,
afluente do rio Guaporé, só que lá eles seriam presas fáceis dos caçadores de escravos
fugitivos, aí eles vieram pra onde existe a comunidade hoje. Posteriormente eles

25
conseguiram voltar e trazer mulheres, e foram constituindo família.” (José Carlos Neto,
liderança quilombola de Santo Antônio do Guaporé, Rondônia).

As comunidades quilombolas representaram, durante o regime colonial e


imperial, uma forte estratégia de resistência negra e um elemento de
desestabilização da lógica escravista, uma vez que se constituíam como ruptura
social, ideológica e econômica com o modelo vigente.

“O quilombo foi, incontestavelmente, a unidade básica de resistência do escravo.


Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região que exista a
escravidão, lá se encontra ele como elemento de desgaste do regime servil” (Moura, 1981:
87).

Os quilombos, historicamente, se constituíram como unidades de protesto e de


experiência social, de resistência e reelaboração dos valores sociais e culturais
dos africanos e seus descendentes em todas as partes nas quais a sociedade
latifundiário-escravista se manifestou. Os quilombos, em sua multiplicidade de
expressões, representaram, de acordo com Clóvis Moura (2001), um processo de
protesto radical e permanente, contribuindo, assim, para o agravamento da crise
do modo de produção escravista e apontando a necessidade de uma nova
ordenação social.

Clóvis Moura (2001) aponta que a radicalidade que caracteriza os quilombos


baseia-se na própria essência da sociedade escravista. Nessa sociedade, não há
possibilidade de negação ou ruptura a não ser por uma via radical. Moura
ressalta, ainda, que o quilombo se constituiu como módulo de resistência radical
ao escravismo, e que o continuum de quilombos por meio da história social da
escravidão, denominado por ele como quilombagem, representou um amplo
processo de desgaste do sistema escravocrata. “A quilombagem deve ser vista
como um processo permanente e radical entre aquelas forças que impulsionaram
o dinamismo social na direção da negação do trabalho escravo” (Moura, 2001:
109).

Creio que a perspectiva de conceber os quilombos como resistência negra radical


seja um elemento central para essas comunidades, uma vez que se apresentam

26
como um contraponto à crueldade que representou o empreendimento
colonialista e, mais recentemente, o neocolonialista, que mantém sua
configuração de negação aos direitos fundamentais à população negra. Em sua
multiplicidade de formas, os quilombos se apresentam muitas vezes como
espaços interétnicos, o que todavia não descaracteriza, ao meu ver, sua essência
de resistência negra, pela força que este elemento tem em sua constituição e
identidade.

Os quilombos também se contrapõem à idéia de que a escravidão no Brasil se


deu a partir de relações menos violentas e hostis. De acordo com Abdias do
Nascimento (2002), a persistência da cultura africana e das expressões sociais e
organizativas negras no Brasil não ocorreu devido à benevolência dos nossos
colonizadores, mas sim à inventividade e perseverança dos africanos e seus
descendentes brasileiros e à abrangência que a escravidão teve no Brasil. O
tráfico se dava em grandes proporções e a distribuição de escravizados abrangeu
todo o território nacional, o que reforça a relevância da escravidão ter sido tão
constitutiva na formação do nosso País e da presença da resistência negra ser tão
estrutural nesse processo.

1.1. Quilombos nas Américas

A resistência através da organização de quilombos não é uma experiência apenas


brasileira. De acordo com José Jorge de Carvalho (1996), nas diversas regiões das
Américas, nas quais o regime escravista se estruturou, registrou-se movimentos
de rebelião contra essa ordem. O primeiro deles é datado de 1522, na ilha de
Hispaniola: “Isso significa dizer que a história do cativeiro negro nas Américas se
confunde com a história da rebelião contra o regime escravagista” (Carvalho,
1996: 14).

27
As Comunidades Quilombolas receberam vários nomes nas diversas regiões do
Novo Mundo: Quilombos, mocambeiros ou Mocambos no Brasil; Palenques na
Colômbia e em Cuba; Cumbes na Venezuela; Maroons no Haiti, Jamaica e nas
demais ilhas do Caribe francês.

Essas designações (quilombos, maroons, palenques, mocambos) foram introduzidas


nos documentos coloniais, normalmente de forma depreciativa. O termo inglês
maroon, por exemplo, deriva do castelhano cimarrón, inicialmente utilizado para
denominar animais fugidos.

A etimologia original da palavra “Quilombo”, entretanto, costuma ser esquecida.


Conforme Lopes (2006): “Quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos
que vem sendo modificado através dos séculos (...) Quer dizer acampamento
guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão
administrativa” (Lopes, 2006: 27-28). No Brasil, o termo "quilombo" passou a
significar comunidades e agrupamentos autônomos de negros e negras
escravizados fugitivos.

A denominação "quilombo" provém dos termos "kilombo", da língua kimbundo,


ou "ochilombo", da língua umbundo. Ambas as línguas (kimbundo e umbundo),
bem como outras faladas na região de Angola, são provenientes do tronco
lingüístico Banto.

Os processos históricos dessas comunidades nos vários países da América Latina


se deram de formas bastante distintas. Jamaica e Suriname, por exemplo,
lograram a celebração de tratados de paz com os poderes coloniais, o que
permitiu o fortalecimento e a existência dessas comunidades com grande
autonomia, até os dias atuais.

O Suriname apresenta um dos enredos mais impressionantes de resistência negra


a toda a opressão sofrida nas agruras da escravidão. Os registros apontam que as
fugas massivas das fazendas se iniciaram nos primórdios do século XVII.

28
Passados cem anos de duras batalhas, foi possível assinar diversos tratados de
paz com o então Estado Holandês e garantir o amplo território negro. De acordo
com Carvalho (1995), constituíram-se seis nações, moldadas nas sociedades da
África Ocidental. Com grande autonomia, as seis nações (Saramacá, Djuka,
Paramaka, Matawai, Aluku e Kwinti) eram compostas de estrutura política
própria, por meio de seus respectivos reis, mantinham com a ex-colônia relações
comerciais e puderam, ao longo de sua história, efetivamente expressar-se a
partir de seus códigos culturais, sociais e políticos.

O Haiti, importante também nesse passeio às lutas afro-americanas, transformou


um projeto de resistência negra em prol da liberdade em um projeto nacional. Foi
o primeiro país a se tornar independente, em 1804, e esse marco tem em sua
trama uma intensa presença das lutas quilombolas. Traz até os dias de hoje
elementos estruturais de sua cultura tecidos pelo “texto afro-haitiano”, nas
palavras de Carvalho (1995), tais como a forte presença da língua Créole e da
religião Vodu, fruto do sincretismo entre a religião católica e religiões de matriz
africana.

Outro caso bastante relevante nesse percurso pelas históricas resistências


quilombolas à escravidão se passou na Jamaica. Por diversas partes do país,
encontram-se comunidades e povoados que descendem dos negros e negras que
ali constituíram núcleos de resistência antiescravista. Essas localidades
funcionam também de modo autônomo, com líderes e organização política
própria. A terra é comunal, desde meados do século XVIII, e a liderança da
comunidade (que anteriormente constituía-se como cargo vitalício) hoje é eleita a
cada cinco anos. Talvez, a principal referência dos quilombos, que na Jamaica
denominam-se maroons, foi Grandy Nanny. Esta mulher liderava os maroons da
parte oriental da ilha com impressionante estratégia militar e à ela eram
atribuídos, inclusive, poderes sobrenaturais. Em 1975, durante o governo

29
popular de Michael Manley, Nanny foi reconhecida como heroína nacional no país
(Carvalho, 1995: 31-37).

Resgatar e refletir sobre os processos de resistência afro-americanos constitui-se


como vital para compreender, de modo mais amplo, a perspectiva dessas lutas e,
nas palavras de José Jorge, o “texto cultural afro-brasileiro”.

“Esse grande texto cultural afro-brasileiro é, apenas, parcialmente autônomo, ou


exclusivamente brasileiro: não devemos perder de vista que nossas tradições (sobre as
quais ainda sabemos muito pouco) fazem parte de um discurso mítico-simbólico ainda
maior, que é o grande texto afro-americano.” (Carvalho, 1995: 45).

Estabelecer esse olhar amplo dos processos regionais é, portanto, fundamental


para refletir sobre os processos aqui empreendidos. Nas relações estabelecidas
entre as comunidades quilombolas com o Estado Colonial, vale destacar um dos
casos mais emblemáticos, o quilombo de Palmares.

1.2. A relevância de Palmares para o “texto cultural afro-brasileiro”

A partir dessa dimensão relacional entre os processos históricos desenrolados


nos demais países da América, cabe-nos refletir sobre como se deu a relação do
então Estado colonial, e mesmo do imperial, com os quilombos em nosso País.
Diferentemente do processo histórico das comunidades rurais negras da Jamaica
e do Suriname, no Brasil, não houve tratado de paz que, de forma justa, pudesse
ser assinado, que dirá efetivado. Refletir sobre Palmares, um dos grandes marcos
quilombolas do País, traz alguns apontamentos para essa questão.

No início de 1694, a conquista do quilombo do Macaco (tido como epicentro de


Palmares por vários historiadores5) causou euforia e regozijo na corte
portuguesa, o que desencadeou o festejo com seis dias de luminárias em Recife

5 Dentre eles, vide Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 1932.

30
(Péret, 2002: 47). Boa parte dos escritos sobre o Brasil, dessa época, trazia relatos
sobre esse fato.

Dentre os registros das iniciativas para a conquista e destruição de Palmares, há


um marco na historiografia brasileira que é o livro “História da América
Portuguesa”, de Sebastião da Rocha Pita, contemporâneo da invasão de
Palmares. Esse estudo tem como data de sua publicação o ano de 1730. Em seu
oitavo volume, de dez publicados, trata da repressão e destruição do que foi
definido por ele como “república rústica e a seu modo bem ordenada” (citado
por Péret, 2002: 48).

Outra publicação relevante para demonstrar o espírito e a perspectiva pejorativa


existente na época em relação aos quilombos e à própria cultura afro-brasileira é
a de 1860, de Haldelmann, “História do Brasil”. Em seus escritos, aponta:

“Deveríamos lamentar-lhe a triste sorte [de Palmares], porém a sua destruição foi uma
necessidade. Uma completa africanização de Alagoas, uma colônia africana de permeio
aos Estados europeus escravocratas, era uma coisa que não podia de todo ser tolerada,
sem fazer perigar seriamente a existência da colonização branca brasileira; o dever da
própria conservação obrigava exterminá-la” (Handelmann, 1978: 313).

Em a “Tróia Negra”, de Nina Rodrigues, um dos primeiros estudos modernos


sobre Palmares, incluído no livro “Os africanos no Brasil”, de 1932, o autor
propõe que as regiões que abarcaram os quilombos de Palmares teriam
agrupamentos desde o início do século XVII. É a partir da invasão holandesa de
Pernambuco que, em 1630, surgiu o que se poderia chamar República de
Palmares6.

Palmares, segundo aponta Nina, sofreu ações de destruição e passou por


processos de reconstrução por três vezes: (1) em meados de 1644, numa ação dos
holandeses; (2) entre 1675-1678, em iniciativas coordenadas pelo governador
Pedro de Almeida; e (3) nas ações que tiveram como fim a então chamada
6Derivado do Latim, o termo república (res publicae) na época classificava, do ponto de vista do
colonizador, os acampamentos de fugitivos. Este termo foi traduzido para as línguas modernas
como repúblicas, republics, republiques. O sentido de República de Palmares não tem, portanto,
nenhum sentido vinculado à idéia de regime republicano.

31
República Palmariana, coordenadas pelo bandeirante Domingos Jorge Velho
entre 1694 e 1695.

As iniciativas contra Palmares contabilizam cerca de dezoito expedições,


organizadas desde o período de dominação holandesa, para erradicar
definitivamente o Quilombo dos Palmares até 1695. No final do século XVII,
Fernão Carrilho ofereceu a Ganga Zumba um tratado de paz em 1677. Por seus
termos, era oferecida a liberdade aos nascidos no quilombo, assim como terras
inférteis na região de Cocaú. Grande parte dos quilombolas rejeitou os termos
desse acordo, nitidamente desfavoráveis e, na disputa então surgida, Ganga
Zumba foi envenenado, subindo ao poder o seu irmão, Ganga Zona, aliado dos
portugueses. O acordo foi, desse modo, rompido, tendo os dissidentes se
restabelecido em Palmares, sob a liderança de Zumbi.

Em fevereiro de 1694, após 42 dias de sítio, Macaco (epicentro de Palmares) caiu.


Os números desse ataque são, segundo Funari (1996:32), de duzentos
quilombolas mortos, outros duzentos se jogaram de precipícios e quinhentos
foram capturados e vendidos. Diversos outros quilombolas conseguiram fugir,
inclusive Zumbi. No dia 20 de novembro de 1695, Zumbi foi capturado e sua
cabeça exposta em local público como exemplo máximo de que o sistema
escravista deveria ser obedecido e não desafiado.

As ações impetradas contra Palmares representam, pois, um símbolo da conduta


dos poderes coloniais e imperiais com os quilombos. Não havia uma construção
ideológica, econômica e conjuntural no País que levasse os poderes coloniais a
estabelecer tratados de paz justos e exeqüíveis.

1.3. Abrangência da Resistência Negra

32
Desenvolver um olhar analítico sobre os processos históricos que permearam as
organizações sociais negras de resistência ao sistema escravista em outros países
latino-americanos e no Brasil amplia a percepção da conjuntura na qual se
constituíram as resistências de negros e negras nas diversas regiões do País.
Apesar da extrema coerção e do grande investimento estatal para conter esses
processos de oposição ao sistema escravista (e o caso do quilombo de Palmares
faz alusão a esse contexto), a resistência negra se manteve e pôde ser observada
em todos os locais onde houve escravidão.

“A memória de Palmares, além de ficar guardada na mente de autoridades e senhores na


virada dos Setecentos, propiciou mudanças na legislação escravista para a repressão de
quilombos e fugitivos. Outros Palmares não poderiam aparecer. De qualquer modo, se na
mente estava Palmares, autoridades e senhores viam cada vez mais, com seus próprios
olhos, mocambos se estabelecendo em todas as partes do Brasil” (Gomes, 2005: 25).

Nas regiões próximas a engenhos, fábricas de alimentos, nos morros, chapadas e


serras que cercavam áreas auríferas e de diamantes, nas pastagens e plantações,
avançando fronteiras, os quilombolas abriram suas estradas, seus caminhos, e
formaram suas comunidades, adaptando estratégias aos diversos cenários
existentes, nas mais variadas regiões do Brasil. De predominância negra,
destacam-se também as relações interétnicas na formação das comunidades
quilombolas, tais como as estabelecidas com indígenas e brancos.

As atividades agrícolas marcam os registros das comunidades quilombolas e,


com variações, se somam a extrativismo, garimpagem, dentre outras. Um ponto
central é que essas comunidades, em diversos casos, mantinham forte comércio
com as sociedades envolventes. Segundo Flavio Gomes (2005), os quilombolas
buscavam fixar-se em localidade não muito distantes de locais onde pudessem
realizar trocas mercantis. Por meio de relações econômicas estabelecidas de
forma clandestina, os quilombolas contavam com a proteção de taberneiros,
pequenos lavradores e especialmente daqueles que continuavam na condição de
escravos em determinadas regiões.

33
Em muitas áreas, de acordo com Gomes (2005), houve uma crescente integração
socioeconômica, envolvendo as práticas camponesas dos quilombolas com a
economia própria dos escravizados nas parcelas de terras e tempo a eles
destinados pelos seus senhores.

Tendo como base os aspectos específicos regionais, culturais, sociais e


demográficos, as atividades econômicas dos quilombos e cativos, por meio do
cultivo de pequenas roças e acesso a um pequeno comércio informal, deram
origem a uma economia camponesa. Essas comunidades camponesas,
predominantemente negras, formadas ainda sob a escravidão, foram
compartilhadas por libertos, escravizados, lavradores, comerciantes e,
especialmente, quilombolas. Exemplo disso é o que aponta Flavio Gomes
(Gomes, 2005: 33):

“Os quilombolas de Iguaçu, no Rio de Janeiro, participaram do comércio de lenha


daquela região ao longo de quase todo o século XIX. Por meio de negócios com
taberneiros e vendeiros locais e de relações com escravos das fazendas circunvizinhas e
até mesmo com cativos remadores, das embarcações que navegavam os rios daquela
área, e/ou escravos urbanos, os quilombolas conseguiam que seus produtos, no caso
sobretudo a lenha, chegassem até a corte”.

A resistência negra, através dos quilombos, se expressou de variadas formas. De


acordo com Gomes (2005), havia o aquilombamento vinculado aos protestos
reivindicatórios de escravizados em relação aos seus senhores, os pequenos
grupos de fugitivos que se dedicavam a assaltos às fazendas, aos povoados
próximos e às comunidades que buscaram se consistir como independentes com
atividades camponesas integradas à economia local. Estes últimos contribuíram
de modo expressivo para a formação do campesinato negro.

A repressão às organizações provenientes do protesto negro, com especial ênfase


no aquilombamento, se fez presente durante todo o período colonial e imperial.
Os quilombos foram violentamente oprimidos por representarem uma ruptura
da ordem jurídica, econômica e social vigente nos períodos coloniais e imperiais.
Eram uma constante ameaça ao sistema escravista, pois:

34
“Ao tomarem posse de um pedaço de terra, onde morando e trabalhando criavam o
quilombo, estavam revogando, através da luta, e na prática, a legislação imposta pela
classe dominante que os excluía da condição de possuidores da terra, fosse a que título
fosse” (Rocha, 1989: 45).

A dimensão da exclusão do acesso à terra fica mais nitidamente expressa na Lei


de Terras, de 1850, que proibia a aquisição das terras a não ser pela via da
compra. Esta Lei, em seu artigo 1º, determina: “Ficam proibidas as aquisições de
terras devolutas por título que não seja o da compra”. Nas várias regiões
escravistas, os negros escravizados, a partir de suas roças e economias próprias, e
os quilombolas, que estruturaram a partir da terra seus usos e costumes,
formaram um campesinato negro ainda durante a escravidão. Essas organizações
e comunidades negras foram diretamente atingidas pela Lei de Terras,
especialmente porque o acesso à terra se deu por diversas vias, tais como a
doação, ocupação e também a compra.

Com a instituição da Lei de Terras em 1850, grileiros, posseiros e supostos donos


de terras buscaram obter ou regularizar títulos de propriedade sem levar em
conta os direitos de comunidades que historicamente ocupavam seus territórios.
Nesse processo, muitas comunidades sofreram graves processos de
expropriação.

De acordo com Dimas Silva (1996), historicamente as formas de acesso à terra


aconteceram antes e após a abolição, o que varia de acordo com o motivo que
levou a comunidade a se fixar naquele território. Antes da abolição, as ocupações
aconteceram por meio da fuga e da constituição de quilombos, por prestação de
serviços em períodos de guerra, por desagregação de fazendas de ordem
religiosa, ocupação após desagregação ou falência de fazendas, sem qualquer
pagamento de foro (o que se dá antes e depois da abolição). No pós-abolição, o
estabelecimento das comunidades em seus territórios pode ter ocorrido por meio
da compra; de doação ou por desapropriação realizada por órgãos fundiários
oficiais (Silva, 1996).

35
O aspecto da multiplicidade de formas de acesso a terra é pontuado por várias
lideranças quilombolas, ao tratar da formação de suas comunidades:

“A comunidade [Campinho da Independência] foi formada por 3 mulheres, ainda no


período da escravidão. A gente não tem a data de início, mas a gente sabe que era um
período de crise econômica em Parati. Parati era uma região importante, com um porto
importante de escoamento, inclusive até hoje tem a rota de escoamento do ouro de Minas
Gerais para Parati, então era uma rota importante para a economia. Teve um período de
quebra dessa economia, muitas fazendas faliram. Parati tinha então mais de 200
engenhos de cachaça. Houve um período de falência das fazendas e a terra da fazenda
Independência foi doada pra vovó Antonica, Tia Marcelina e Tia Luiza, que eram as 3
escravas da casa grande. Só pra ter uma idéia, vovó Antonica era avó do meu avó. Então
começa aí a nossa história. Tem um relato da vovó Antonica que as terras do Campinho
nunca deveria ser desfeitas, vendidas, que deveriam ficar pras gerações” (Ronaldo
Santos, Comunidade Campinho da Independência, Rio de Janeiro).

Aparecida Mendes, liderança quilombola de Pernambuco, relata o processo de


aquisição da terra por sua comunidade:

“Conceição [das Crioulas] é um dos territórios quilombolas bem antigos, porque existe
desde o período da escravidão. Conceição, segundo nossos ancestrais, tem o seu primeiro
registro escrito de posse de 1802, em nome das crioulas que foram as primeiras negras
que chegaram e habitaram aquele local, e da qual delas somos descendentes. Acredito
que eu deva ser a sétima geração” (Aparecida Mendes, Conceição das Crioulas,
Pernambuco).

Hildima dos Santos, da comunidade quilombola Igarapé do Lago, Amapá, conta


a ocupação da área que deu origem à sua comunidade:

“Igarapé do Lago surge de uma comunidade tradicional que veio em 1770 da África
como escravos dos portugueses e de alguns marroquinos que eram bem de vida. E essas
comunidades vieram pra lá, direto para o Pará, depois eles foram pra lá para o Marzagão
velho, mas antes eles foram pra Vila Vistosa do Marzagão, e ai a ordem que veio de lá de
Márquez de Pombal que se não desse todo mundo lá que eles seguissem o contorno do
rio, é aonde a minha comunidade, que é o Igarapé do Lago, foi criada. E ai lá a minha
mãe e toda a minha família foi criada. A história é assim, Igarapé do Lago surge porque
três escravos, procurando um lugar para a portuguesa morar, encontraram um lugar com
igarapé e lago. Eles entraram na comunidade com o rio seco, que estava seco, ai formava
igarapé e lago, e quando enchia virava só um rio. Ai eles sempre viveram em uma
sociedade tipo quilombola, sem saber” (Hildima dos Santos, liderança da comunidade de
Igarapé do Lago, Amapá).

Maria de Jesus, da comunidade quilombola Oitero dos Nogueira, em Itapecuru –


Maranhão, aponta também o processo de formação de sua comunidade.

A comunidade tem 200 anos de existência, o pessoal mais velho dá essa data. Lá
começou, porque lá era da família nogueira, eram senhores de engenho, plantio de cana,

36
de algodão, forma também chamando os negros que trabalhavam com eles. Depois eles
foram se dispersando, foram acabando, pois foi acabando o recurso das fazendas. Daí os
negros é que ficaram trabalhando para a manutenção disso. Depois, com o decorrer do
tempo, foi acabando tudo e eles ficaram sem condições de tocar, aí saíram para as
cidades. Quem ficou foi os filhos deles, e foi dispersando as coisas. Quem ficou lá foi
quem trabalhava no engenho pra eles, vamos dizer assim os escravos. Ficaram lá e foram
formando famílias. Depois os filhos dos senhores quiseram vender as terras, e
negociaram as terras que por direito são nossas. As pessoas da comunidade então se
esforçaram pra comprar os lotes, pra não sair da comunidade. Isso foi em 1970, por aí.
Então algumas pessoas da comunidade se juntaram e compraram alguns lotes da
comunidade. Lá tem uma árvore antiga, onde tem aquelas argolas antigas, que eram pra
prender os animais dos senhores e também servia de tronco. Nós temos três árvores
seculares: 1 mangueira e 2 pés de sapucaia. Muito bonitas essas árvores. (Maria de Jesus,
Comunidade Oitero dos Nogueira, em Itapecuru, Maranhão).

Maria de Jesus acrescenta as intervenções realizadas mais recentemente no


território de sua comunidade:

“Com o decorrer do tempo, com os filhos dos senhores que queriam dispersar a terra e
obrigaram as pessoas a comprar um pedaço, outro comprava outro. Aí o INCRA7 chegou
e desapropriou a terra, em 1980, e loteou e deu pra pessoas que não tinham comprado e
para pessoas de outros municípios. Enquanto pessoas da comunidade ficaram sem nada.
Só 33 pessoas receberam esses lotes. Essa comunidade era muito grande, eram mais de
cinco mil hectares. E agora encolheu, que a gente não pode nem trabalhar. E todo mundo
vive na lavoura então todo mundo tem que trabalhar nessa terra pequena” (Maria de
Jesus, Comunidade Oitero dos Nogueira, em Itapecuru, Maranhão).

Os diversos usos e acessos à terra, trazidos nos relatos dos processos históricos
pelas lideranças quilombolas de distintas comunidades sinalizam para essa
multiplicidade de construções territoriais que não se reduziam ao posto na Lei de
Terras.

Outras pesquisas também sinalizam para essa diversidade de acessos à terra. Os


dados coletados durante a Chamada Nutricional Quilombola (2008), abordaram
a natureza das terras das comunidades quilombolas em 60 comunidades das
cinco regiões, sorteadas a partir de uma base amostral8. Segundo informações

7
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
8 Vide: Pereira, Lucélia; Souza, Barbara, e alli. Caracterização sócio cultural das comunidades
incluídas na Pesquisa Nacional Quilombola. In: Chamada Nutricional Quilombola. Brasília:
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2008.

37
fornecidas pelas lideranças comunitárias entrevistadas, a maioria das terras
dessas comunidades (64%) foi adquirida por meio de herança ou doação. Apenas
9% das terras foram compradas, 25% tiveram como origem a posse e 4% foram
arrendadas.

Os territórios das comunidades negras têm, portanto, uma gama de origens, tais
como doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de
monoculturas, como a cana-de-açúcar e o algodão; compra de terras pelos
próprios sujeitos, possibilitada pela desestruturação do sistema escravista; bem
como de terras que foram conquistadas pelos negros por meio da prestação de
serviço de guerra, como as lutas contra insurreições ao lado de tropas oficiais.

Há, também, as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima,


que indicam uma territorialidade derivada da propriedade detida em mãos de
ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras em
troca de serviços religiosos prestados a senhores de escravos por negros(as)
sacerdotes de cultos religiosos afro-brasileiros.

A concepção de que os quilombos seriam constituídos somente a partir de fugas,


processos insurrecionais ou de grupos isolados apresenta-se equivocada e reflete
os resquícios da construção conceitual colonial.

Os dados históricos e as narrativas sinalizam que os processos de


territorialização das comunidades quilombolas processaram-se por meio de uma
multiplicidade de formas. Entretanto, a Lei de Terras contrapunha e excluía
todas essas demais perspectivas territoriais. Esse fato dialoga com outros
interesses da época.

Como ressalta Treccani (2006), a Lei de Terras foi aprovada quase


simultaneamente à proibição do tráfico negreiro para o Brasil. Segundo Martins:

38
“A lei de Terras foi uma condição para o fim da escravidão. Quando as terras eram livres,
como no regime sesmarial, vigorava o trabalho escravo. Quando o trabalho se torna livre,
a terra tem que ser escrava, isto é, tem que ter preço e dono, sem o que haverá uma crise
nas relações de trabalho (...) O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o
responsável pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita, desde
então, uma reformulação radical de nossa estrutura agrária” (Martins, 2000: 15).

A luta contemporânea dos quilombolas pela implementação de seus direitos


territoriais representa o reconhecimento do fracasso da realidade jurídica
estabelecida pela “Lei das Terras”, que pretendeu moldar a sociedade brasileira
na perspectiva da propriedade privada de terras. A noção de terra coletiva, tal
qual são pensadas as terras de comunidades quilombolas, desestabiliza o modelo
de sociedade baseado na propriedade privada como única forma de acesso e uso
da terra. A incorporação no Estado da perspectiva privada da terra exclui vários
outros usos e relações com o território, tal como o dos povos indígenas e das
comunidades quilombolas.

A abolição formal da escravidão, oficializada pela Lei Áurea nº 3.353, de 13 de


maio de 1888, não representou o fim da segregação e do não acesso aos direitos
para negros e negras, e isso se refletiu fortemente nas comunidades quilombolas,
constituídas em todas as regiões do País. Segundo Ilka Boaventura Leite, o
processo é exatamente inverso:

“os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que escolheram
para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou foi herdada dos antigos
senhores através de testamento lavrado em cartório. Decorre daí que para eles, o simples
ato de apropriação do espaço para viver passou a significar um ato de luta, de guerra”
(Leite, 2000: 5-6).

São vários os casos de comunidades quilombolas que durante o século vinte


perderam suas terras, mesmo tendo documentos comprobatórios de sua posse,
alguns deles provenientes de doações e outros de compra, um forte reflexo da
Lei de Terras de 1850. A comunidade dos Amaro9 é um exemplo. Perderam suas

9
Comunidade Quilombola historicamente situada na zona rural do município de Paracatu, Minas Gerais,
teve ao longo do século XX um intenso processo de expropriação.

39
terras, mesmo tendo documentos comprobatórios da posse e hoje se encontram
na periferia de Paracatu, em Minas Gerais.

“A comunidade dos Amaros sofreu um processo de expropriação de seu território, ao


longo dos anos de 1940 a 1980, em função de continuadas pressões realizadas por
fazendeiros residentes na área, de maneira que os descendentes de Amaro Pereira foram,
aos poucos, migrando das terras. Atualmente, há uma família morando na região,
constituída por uma mulher descendente direta de Amaro4, seu marido e seus filhos –
que vivem em uma residência - e sua sogra, residente em outra casa. O espaço físico
correspondente às casas, uma pequena roça de milho e abacaxi, algumas árvores
frutíferas e dois galinheiros é de três hectares, dos quais a família possui apenas a posse,
não havendo registro formal de propriedade da terra” (Melo, Paula B., 2005).

Para Leite (2000: 5), “após a abolição, em 1888, os negros têm sido
desqualificados e os lugares em que habitam são ignorados pelo poder público,
ou mesmo questionados por grupos recém-chegados, com maior poder e
legitimidade junto ao Estado”.

Há grande diversidade de histórias de formação das comunidades quilombolas.


A historiografia registra comunidades formadas por negros que se negaram a
permanecer na condição de escravos, fugiram e se aquilombaram. O vínculo das
comunidades quilombolas com sua historicidade, baseada em resistência e luta, é
um aspecto fundante do universo simbólico e da consciência coletiva dessas
comunidades.

Entretanto, nem sempre a fuga e a memória da escravidão estão presentes em


suas narrativas e histórias. Algumas se formaram a partir da ocupação de locais
desabitados, como Furnas do Dionísio, Mato Grosso do Sul, cujo surgimento
remete-se a um negro chamado Dionísio Vieira que ocupou uma porção de terra
no sertão e formou com sua descendência a comunidade (Bandeiras e Dantas,
2002).

Glória Moura aponta que a maioria dos quilombos está baseada em culturas de
subsistência, e se situa em terra provenientes a partir de diferentes perspectivas,
sendo mais comum a existência de terras doadas, compradas ou secularmente

40
ocupadas. São comunidades que valorizam tradições culturais de antepassados
(religiosas ou não) e as recriam no presente (Moura, 1997).

Apesar de se apresentarem como espaços de predominância negra (dos africanos


e seus descendentes), os quilombos apresentam-se como espaços interétnicos,
com destaque para a participação de povos indígenas e até de brancos que se
encontravam em situações sociais de exclusão, como aqueles em situação de
pobreza e os desertores.

A dimensão da invisibilidade, no período pós-abolição, é outro ponto importante


do contexto que circunda as comunidades quilombolas. No imaginário nacional,
quilombo é concebido como algo do passado que teria desaparecido do País com
o término do sistema escravista. Essa dimensão de extinção é reforçada com a
grande invisibilidade que impera sobre a questão quilombola no período pós-
abolição. Essa invisibilidade se espelha na realidade dos descendentes das
comunidades quilombolas até recentemente:

“Daí que a resistência negra dos descendentes de quilombos brasileiros deveu dar-se
através do heróico, porque voluntariamente desumano, recurso da invisibilidade.
Enquanto os índios, ainda que injustiçados, alcançam uma visibilidade no imaginário
social, relativamente alta em termos de sua pequena presença demográfica atual, as
comunidades negras rurais, igualmente submetidas a injustiças, tiveram que se tornar
invisíveis, simbólica e socialmente, para sobreviver” (Carvalho, 1996: 46).

No Brasil, a sobrevivência pela invisibilidade historicamente esteve presente.


Exemplo disso é a “descoberta”, no início da década de 80, de uma comunidade
negra, no meio do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, chamada
Kalunga. Esse fato se repetiu em inúmeras outras comunidades quilombolas do
Brasil, como Oriximiná, Pará; Cafundó, São Paulo; Rio das Rãs, Bahia.

Ivo Fonseca, liderança quilombola da comunidade de Frechal – Maranhão,


ressalta a invisibilidade da questão quilombola promovida pelo Estado enquanto
recurso para desmobilizar a luta pelos direitos das comunidades:

“[o movimento quilombola] é um movimento que está vivo. Na proporção que escondem
nossa história buscam que não possamos nos movimentar e fazem de tudo pra secar esse

41
movimento. Só que não vão conseguir, porque nosso movimento hoje está consolidado.
O Estado vai pagar uma dívida porque ele escondeu muito esse povo e não está
conseguindo mais esconder, ele vai mudar a sua forma de pensar, porque é um
movimento que não pára de crescer e que não vai acabar. Está escrito: um dia ele vai ter
uma visibilidade maior”.

A invisibilidade reinou, também, nas políticas estatais e na legislação durante a


grande maioria do período republicano. Essa invisibilidade, do ponto de vista
legal e estatal, tem como marco inicial de seu rompimento a Constituição de
1988, com o Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O
artigo 68, do ADCT da Constituição, demorou, contudo, alguns anos para
começar a ser implementado e a garantia do território a maioria das
comunidades quilombolas mantém-se ainda bastante distante10.

Estudos historiográficos, sociológicos e antropológicos, situados durante o século


XX, trazem à tona outras dimensões sobre a população negra no meio rural.
Nesse sentido, relata-se a experiência de quilombos constituídos ao longo do
período escravista e posteriormente ao seu declínio, a partir da formação de
núcleos de famílias negras que habitaram terras abandonadas por senhores. Há
também estudos que apontam para a constituição de quilombos a partir da
doação de terras aos negros e também aos(às) santos(as) que os negros
cultuavam. Houve ainda casos de formação de quilombos em locais de refúgio
dos escravos e casos em que negros (escravos ou ex-escravos) conseguiram
arrecadar capital para comprar terras, onde se constituíram quilombos.

Tais estudos demonstram que surgiram quilombos durante todo o período


escravista, em praticamente todo o território nacional. Em seus diversos modos
de formação, destaca-se a existência de grupos dotados de uma lógica social,
econômica e cultural própria – a maior parte das vezes antagônica - vivendo no
seio da sociedade escravocrata. A continuidade desses grupos é fator
fundamental para o estabelecimento de uma relação com a terra com base na
posse comunal.

10 Este ponto será melhor trabalhado nos capítulos 4 e 6.

42
Durante a década de trinta, do século XX, sob a influência de Nina Rodrigues e
das teorias da Antropologia Cultural, foram realizados estudos importantes de
autores como Arthur Ramos, Roger Bastide, Edison Carneiro. Nos anos
cinqüenta, Benjamin Péret escreveu um ensaio sobre Palmares que teve uma
perspectiva bastante inovadora.

Nos anos sessenta, os trabalhos de Clóvis Moura, Décio Freitas, Alípio Goulart,
dentre outros, deram voz à perspectiva de que os quilombos se consistiu como o
grande marco do protesto negro em contraponto à lógica escravista.

O período dos anos 1970 e 1980 se destacou pela produção de estudos específicos
sobre “terras de negros”11. Abdias do Nascimento, com sua abordagem
quilombista, trouxe luz à perspectiva pan-africanista, que se destaca nesse
período. No ano de 1978, Abdias Nascimento publicou a obra Genocídio do negro
brasileiro: Um Processo de Racismo Mascarado, que já abordava o que o autor
conceituou como “Quilombismo”. Segundo Abdias do Nascimento, o
“Quilombismo” seria a rede de “associações, irmandades, confrarias, clubes,
grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras... esta
praxis afro-brasileira” (Nascimento, 2002: 264), situada pelo autor não apenas no
passado, mas também no presente. Os quilombos são, portanto, um lócus de
liberdade e de atualização dos laços étnicos e ancestrais afrobrasileiros.

Em 1977, o antropólogo, José M. A. Arruti escreveu A emergência dos


“remanescentes”: notas para um diálogo entre indígenas e quilombolas. Em 1979,
Neusa M. M. de Gusmão apresentou a dissertação Campinho da Independência: Um
Caso de Proletarização “Caiçara”. No ano de 1990, defendeu a tese de
doutoramento com o título: A dimensão política da cultura negra no campo: uma luta,
muitas lutas. Esse trabalho contribuiu significativamente para a organização

11 ALMEIDA, A. Wagner “Os quilombos e as novas etnias”. IN: O’DWYER (2000).

43
política da comunidade Campinho da Independência, no estado do Rio de
Janeiro.

Outro estudo de comunidade que deu grande contribuição ao processo


organizativo foi “Os Negros do Cedro: Estudo Antropológico de um Bairro Rural
de Negros em Goiás”, publicado em 1983 por Mari de Nazaré Baiocchi.

Além das publicações aqui citadas, muitas outras trouxeram reflexões e análises
sobre a discussão conceitual e identitária das comunidades quilombolas, sobre
aspectos territoriais e legais. Muitas influenciaram e contribuíram no processo de
luta pela entrada no texto constitucional do Artigo 68 e, posteriomente,
trouxeram contribuições nos debates voltados à sua implementação12. O diálogo
de muitas dessas produções com os movimentos sociais a elas contemporâneos
foi estreito.

A presença do debate sobre a discriminação racial no meio rural e sobre a


questão quilombola também foi marcante nos movimentos sociais, com ênfase
para o movimento negro urbano. Percebida como símbolo de luta do movimento
negro, a presença da questão quilombola foi marcante desde o início do século
XX.

A imprensa negra, nos anos 1920, e a Frente Negra, nos anos 1930, já traziam a
dimensão da discriminação racial à tona. Na década de 1940, o Teatro
Experimental do Negro também levanta esse debate. O crescente desse debate
tem uma forte presença nas décadas de 1970 e 1980, com o processo intenso de
organização do movimento negro. Nesse período, o Movimento Negro Unificado
(MNU), fundado em 1979, sob as bandeiras “afrocentrismo e do “pan-
africanismo” – representadas no “quilombismo” de Abdias do Nascimento –
busca incorporar às suas reivindicações étnicas a realidade de grupos isolados,
tais como os negros do campo (GUIMARÃES, 2002). Nesse processo, a questão

12 Sobre as publicações posteriores ao Artigo 68, trataremos mais a fundo no próximo capítulo.

44
quilombola é incorporada também como expressão da resistência e luta do povo
negro e como a valorização da história e cultura afro-brasileiras.

As lutas quilombolas, sempre presentes ao longo da história do Brasil, registram


durante o século XX um importante crescimento e diálogo com demais
movimentos, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Essas mobilizações
quilombolas foram fundamentais para qualificar as demandas históricas desses
grupos e para denunciar a situação de violência e de não respeito aos direitos
fundiários dessas comunidades. Nesse processo, dialogado especialmente com o
movimento negro urbano, as comunidades quilombolas do Maranhão, Pará, São
Paulo, Goiás e Rio de Janeiro tiveram bastante destaque.

Todas essas bandeiras de luta e processos organizativos do movimento


quilombola e do movimento negro urbano foram fundamentais para pautar a
questão quilombola na Assembléia Constituinte, no final da década de 1980, e
lograr a inclusão no texto constituinte do Artigo 68.

Esse processo reflete as distintas expressões da resistência quilombola ao longo


da história do Brasil, que se apresentaram por meio de uma multiplicidade de
formas nas várias regiões do País, de acordo com os contextos políticos, sociais e
históricos ali existentes.

A discussão histórica presente nesse capítulo tem como fundamento apontar


elementos reflexivos para as formas atuais de resistência e existência dessas
comunidades quilombolas, que a partir de uma dimensão histórica, cultural e
identitária constróem o seu existir atual e ressiginificam as suas lutas com base
nas estratégias contemporaneamente constituídas.

Os novos marcos legais que permeiam a questão quilombola ao longo de sua


história, e suas dimensões interpretativas, aprofundadas a seguir, são estruturais
para essas reflexões contemporâneas do aquilombar-se, ou seja, do resistir e do
existir das comunidades quilombolas no presente.

45
2. Reversão do conceito de Quilombo: Perspectiva de Direitos

No período republicano, a partir de 1889, o termo “quilombo” desaparece da


base legal brasileira, uma vez que com o fim da escravidão sua existência não
teria mais sentido. Reaparece na Constituição de 1988, como categoria de acesso
a direitos, numa perspectiva de sobrevivência, dando aos quilombos o caráter de
“remanescentes”.

São, portanto, cem anos transcorridos entre a abolição até a aprovação do Artigo
68 da Constituição Federal, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
cujo conteúdo reconhece os direitos territoriais das comunidades quilombolas.

Alfredo Wagner Almeida destaca que a Constituição Brasileira de 1988 opera


uma inversão de valores no que se refere aos quilombos em comparação com a
legislação colonial, uma vez que a categoria legal por meio da qual se classificava
quilombo como um crime passou a ser considerada como categoria de
autodefinição, voltada para reparar danos e acessar direitos (Almeida, 2002).

Ivo Fonseca, liderança da comunidade de Frechal, Maranhão, destaca que a Carta


Magna trouxe um processo de reversão de um histórico de não reconhecimento
da cidadania da população negra, e mais especificamente dos quilombolas:

“Se pegar as normas constitucionais e os decretos na história do Brasil, eles são muito
cruéis conosco. Nós só passamos a ser cidadãos brasileiros a partir da constituição de
1988. Antes nós não éramos cidadãos brasileiros”.

A Constituição de 1988 representa, portanto, um divisor de águas ao incorporar


em seu conteúdo o reconhecimento de que o Brasil é o Estado pluriétnico, ao
reconhecer que há outras percepções e usos da terra para além da lógica de terra
privada, e o direito à manutenção da cultura e dos costumes às comunidades e
povos aqui viventes.

46
Para além do mencionado Artigo, se fazem presentes também nas constituições
de vários estados da federação artigos que regem sobre o dever do Estado em
emitir os títulos territoriais para as comunidades quilombolas. Essas legislações
são resposta à mobilização dos quilombolas. Os estados que possuem em suas
constituições artigos sobre os direitos territoriais quilombolas são Maranhão,
Bahia, Goiás, Pará e Mato Grosso:

“O Estado reconhecerá e legalizará, na forma da lei, as terras ocupadas por


remanescentes das comunidades dos quilombos” (Constituição do Estado do Maranhão,
Art. 229).

“O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a


identificação, discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos” (Constituição do Estado da Bahia, Art. 51 ADCT).

“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras,
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos
no prazo de um ano, após promulgada esta Constituição” (Constituição do Estado do
Pará, Art. 322).

“O Estado emitirá, no prazo de um ano, independentemente de estar amparado em


legislação complementar, os títulos de terra aos remanescentes de quilombos que
ocupem as terras há mais de 50 anos” (Constituição Estadual do Mato Grosso, Art. 33
ADCT).

“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras,
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos
títulos” (Constituição Estadual de Goiás, Art. 16 ADCT).

Além desses artigos das constituições estaduais, há legislações posteriores


específicas em outros estados. Essas legislações estão presentes no Espírito Santo,
Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São
Paulo. São, ao todo, onze estados que possuem legislação específica (seja ela
constitucional ou não) que rege sobre o procedimento de regularização fundiária
dos territórios quilombolas.

Do ponto de vista regional, outros países latino-americanos também possuem


legislações que visam a efetivação dos direitos territoriais das comunidades
negras rurais, que são denominadas de distintas formas nos vários países. A
Nicaragua, por exemplo, efetiva os direitos das comunidades negras rurais de
seu território por meio da Lei nº 445/2002, voltada ao que nesse país se

47
denominam as comunidades étnicas. Na Colômbia, o direito das comunidades
negras consta na constituição Política de 1991, no artigo 55. No Equador, por
meio do artigo 83 da Constituição Política de 1998, são assegurados os direitos ao
que se denomina “pueblos negros o afroecuatorianos”.

Na Constituição Federal brasileira de 1988, a categoria ‘Quilombo’ ganha outra


conotação. A entrada em vigor do Artigo 68 suscita uma ampla discussão sobre
quem seriam os ditos “remanescentes de quilombos” e sobre como haveriam de
ser tituladas as suas terras. Esse debate ganha fôlego especialmente a partir de
1995, ano emblemático para a questão negra no País, pois é o ano que se realiza a
Marcha Zumbi dos Palmares e o I Encontro Nacional de Comunidades
Quilombolas.

Apesar dessa grande mudança de rumos do ponto de vista legal, no processo


constituinte e nos primeiros anos após a entrada em vigor do Artigo 68, o debate
sobre sua implementação e sobre outros assuntos correlatos a ele não tiveram
grande eco no Legislativo. Conforme Oliveira Jr.:

“Durante o processo constituinte, nem uma única discussão foi registrada nos anais do
Congresso sobre o futuro Art. 68 do ADCT. Incluído inicialmente em uma das propostas
sobre a proteção do patrimônio cultural brasileiro, a proposição de titulação das terras
dos remanescentes de Comunidades de quilombos foi deslocada para o ADCT devido à
sua própria natureza transitória (...) A primeira menção que se faz ao assunto no
Congresso, já posterior à Constituinte, foi em 1991, em um discurso do Deputado Alcides
Modesto (PT-BA) sobre o conflito fundiário na região do Rio das Rãs”. (OLIVEIRA Jr.,
1995: 224-225)

Entretanto, em outras instâncias, com ênfase para as organizações quilombolas,


organizações do movimento negro urbano e em estudos acadêmicos, o debate
sobre sua implementação e sobre seus aspectos conceituais ganha fôlego. O
termo quilombo, ou remanescente de quilombo, dado na Constituição, que
fundamenta direitos territoriais, tem, portanto, significativamente ampliada a
discussão sobre sua conceituação. Sai de uma perspectiva histórica de extinção,
visão esta que aponta para o fim dos quilombos com a Lei Áurea, para a
perspectiva de processo dinâmico e vivo, como fato do século XX e XXI.

48
Muitos desses estudos refletiram sobre a dimensão identitária da categoria
“quilombo”, ou “remanescente de quilombo”. Para além de uma identidade
histórica que traz o termo “remanescente”, quilombo expressa que esses sujeitos
históricos presumíveis existam no presente e tenham como predicamento básico
o fato de ocupar uma terra, que por direito deverá ser em seu nome titulada.
Assim qualquer invocação ao passado deve corresponder a uma forma atual de
existência, que pode se realizar a partir de outros sistemas de relações que
marcam seu lugar em um universo social determinado (O’Dwyer, 2004).

Segundo Leite (2004), faz-se importante considerar que o termo ‘quilombola’ não
emerge do nada, nem é fruto de imediatismos políticos. O rico debate
proporcionado pelo processo constituinte, fruto do processo de redemocratização
do País, permitiu o ressurgimento destas idéias. “As reivindicações dos
movimentos sociais encontraram eco no parlamento e permitiram o resgate de
lutas em favor do reconhecimento de direitos” (Leite, 2004: 19).

As mobilizações quilombolas tiveram um grande crescente nas décadas de 1970 e


1980, em resposta ao acirramento da violência no campo e ao avanço da grilagem
de terras. Elas dialogaram em muitos estados com a forte organização do
movimento negro urbano, com ênfase também no período dos anos 1970 e 1980.
Os desdobramentos políticos dessas mobilizações incidiram no processo da
Assembléia Constituinte.

Comunidades quilombolas mobilizadas de alguns estados (com destaque para


Bahia, São Paulo, Maranhão e Pará), com o apoio de organizações do movimento
negro, como o CCN (Centro de Cultura Negra do Maranhão) e o Cedenpa
(Centro de Estudo e Defesa do Negro do Pará), estabeleceram articulações para a
construção de uma proposta conjunta que desse conta dessa questão na Carta
Magna.

49
A proposta para que fosse reconhecido o direito das terras às comunidades
remanescentes de quilombos foi, como resultado de um amplo processo de
mobilização do movimento negro urbano, das comunidades negras rurais e
outras organizações, apresentada pelo movimento negro à Assembléia Nacional
Constituinte, por meio de uma emenda de origem popular. Uma vez não
alcançando o número mínimo de assinaturas, foi formalizada pelo então
Deputado Carlos Alberto Cão (PDT/RJ), e teve a participação de outros
parlamentares como Benedita da Silva (PT/RJ).

“De certo modo, o debate sobre a titulação das terras dos quilombos não ocupou, no
fórum constitucional, um espaço de grande destaque e suspeita-se mesmo que tenha sido
aceito pelas elites ali presentes, por acreditarem que se tratava de casos raros e pontuais,
como o do Quilombo de Palmares” (Leite, 2004: 19).

O processo de aprovação do Artigo 68 na Assembléia Constituinte, contou,


todavia, também com um processo de oposição à efetivação desse direito no
texto constitucional, o que aponta para o fato de que a oposição à regularização
fundiária de territórios quilombolas não é um fato recente, como afirma Ilka
Boaventura Leite (2004):

“(...) Assim que foi promulgada a Constituição, quando o tema entrou em pauta nos
debates, nas manchetes da imprensa brasileira, apareceram as primeiras reações
desfavoráveis ou de nítido estranhamento ao Artigo 68. Essas reações vieram
principalmente de setores mais conservadores, representados pelos latifundiários e
“grileiros”, que temiam uma drástica alteração no quadro de acesso e regularização
fundiária de terras no País; por lideranças governamentais, preocupadas com os recursos
que seriam necessários às indenizações das terras já expropriadas das comunidades
negras rurais; pelas instituições governamentais, supostamente responsáveis, disputando
entre si a gerência desses recursos que deveriam ser destinados às indenizações. A estas
reações seguiram-se outras, de viés “mais progressista”, representadas pelos árduos
defensores do arcabouço nacionalista de uma sociedade miscigenada – reacendendo a
velha chama da democracia racial, reapresentando-se não mais como a posição
assimilacionista dos modernistas, mas com nova roupagem pós-moderna da “nação
hibridizada”. (Leite, 2004, 21-22).

Como ressalta a autora, são estes defensores da “democracia racial”, que se


juntam aos segmentos mais conservadores da sociedade, aos latifundiários e às
grandes empresas para se oporem às políticas de ação afirmativa e às titulações
das terras de quilombos, baseadas num direito de grupos específicos,

50
etnicamente fundado. São direitos, tal como descritos por esses grupos, tidos
como “privilégios”.

O texto do Artigo 68 dispõe que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes títulos respectivos”. O Artigo se caracteriza como norma de
direito fundamental, não apresenta marco temporal quanto à antiguidade da
ocupação, nem determina que haja uma coincidência entre a ocupação originária
e atual.

O debate sobre a auto-aplicação do Artigo 68 mobilizou diversos movimentos


sociais, com ênfase para o movimento quilombola, além de especialistas sobre o
tema. Os argumentos favoráveis à auto-aplicação do Artigo 68 sustentam que sua
auto-aplicação deriva de que esse Artigo é uma norma de aplicação imediata.
Entretanto, a partir de entendimentos contrários, foram apresentados nos últimos
anos vários projetos de lei e decretos que tiveram como objetivo regulamentá-lo.

“Desde 1995, a gente apresentou ao Presidente da República da época documento


exigindo a regularização de nossos territórios, com base no Artigo 68. Nesse mesmo ano,
foram apresentados dois Projetos de Lei, um na Câmara, outro no Senado, que tratavam
desse artigo 68. (...) A partir disso, a Coordenação Nacional de Quilombos encabeçou
todo um processo de discussão nacional sobre a regulamentação do artigo 68. O que era
dito para nós, é que o Artigo não era aplicável e nós defendíamos o contrário, que ele era
auto-aplicável.” (Givânia Maria da Silva, Liderança Quilombola e integrante da
CONAQ).

Além do amplo debate sobre a sua auto-aplicação, ganhou fôlego também a


discussão sobre a dimensão interpretativa do artigo. O estabelecido no Art. 68,
do ADCT consiste como “norma aberta”13, no sentido de que necessita de
ampliação de seu entendimento a partir de outras perspectivas, tais como a das
ciências sociais. Essa ampliação traz em si um exercício interpretativo e de
atualização de conceitos, uma vez que há incompatibilidades estruturantes na
definição colonial de quilombo com a vivência atual destes grupos sociais.

13
Pedrosa, 2007.

51
De acordo com Luiz Antônio Pedrosa (2007), interpretar um ato normativo é
colocá-lo no tempo, integrá-lo à realidade. Desse modo, o texto do dispositivo
constitucional não pode ser simplesmente lido, mas necessariamente
interpretado, a partir de elementos contemporâneos. Para interpretar essa
realidade faz-se legítimo o recurso à contribuição teórica de outras disciplinas,
como os estudos das ciências sociais, com ênfase na antropologia.

Após a entrada em vigor do Artigo 68 houve uma ampla discussão acerca de


como categorizar as comunidades, de quem eram e como deveriam ser definidos
seus territórios. Esse último aspecto tem uma importância central nesse debate,
pois o processo de regularização fundiária estabelece estreita ligação com essas
definições.

A Constituição de 1988 e o Artigo 68 trazem à tona, no que concerne à dimensão


fundiária, a necessidade de que o Estado Brasileiro reconheça outros usos
territoriais, para além da terra privada. O Artigo 68, bem como o Artigo 231
referente aos povos indígenas, atribui um status especial na legislação para
territórios que se constituem em outra perspectiva, uma vez que o uso da terra
no Brasil é bastante heterogêneo.

A importância de se visibilizar na legislação brasileira os diferentes usos e lógicas


territoriais se evidenciou a partir da dificuldade de órgãos oficiais em catalogar e
classificar terras de uso comum, tais como as que são reivindicadas pelas
comunidades negras rurais de diversas partes do País, como as de Frechal
(Maranhão), Campinho da Independência (Rio de Janeiro) e as do Vale do
Ribeira (São Paulo).

De acordo com Alfredo W. Almeida (1989), as dificuldades na identificação das


terras comunais ganharam destaque a partir do Cadastro de Glebas, realizado pelo
INCRA no âmbito do Plano Nacional de Reforma Agrária, em 1985. O cadastro
dispunha apenas de uma categoria genérica – “ocupações especiais” – para

52
enquadrar todas as terras impropriamente documentadas e em que não havia
propriedade individual. Desse modo, territórios de povos indígenas e de
comunidades quilombolas não eram distinguidos, o que apontou para a
necessidade de uma reformulação dos métodos cadastrais até então empregados.
A Constituição de 1988 empreendeu uma adequação dessa questão, por meio do
Artigo 68, conferindo direito especiais às terras quilombolas.

Há outros artigos constitucionais que fundamentam a aplicação dos direitos


quilombolas, como é o caso dos Artigos 215 e 216, Seção II, da Carta Magna, que
estabelecem:

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e


afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação


para os diferentes segmentos étnicos nacionais.”

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e


imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória, dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às


manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,


arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o


patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores


culturais.

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.

53
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos.”

Os Artigos 215 e 216 tratam da dimensão cultural das comunidades quilombolas


e do direito à preservação de sua própria cultura. Aos artigos constitucionais se
somam o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, a Instrução Normativa nº 20
do INCRA14, em processo de revisão, e Convenções Internacionais ratificadas
pelo Brasil, das quais destaca-se a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (Genebra, 27 de junho de 1989) e a Convenção da UNESCO sobre
Diversidade Cultural (2007).

É necessário fazer uma reflexão sobre as interpretações e concepções legais,


posteriores ao Artigo 68, que muitas vezes tinham como fundamento o conceito
colonial de “quilombo”, o que não estabelecia necessariamente correspondência
com às atuais formas de existir das comunidades quilombolas.

Doria (2001) faz um apanhado dessas interpretações oficiais do que viriam a ser
as comunidades quilombolas. De acordo com a Fundação Cultural Palmares -
FCP, em texto tornado público no ano de 1993, quilombos são “os sítios
historicamente ocupados por negros e que hoje detém resíduos arqueológicos; os
sítios historicamente ocupados por negros e que são possuidores de conteúdos
culturais de valor etnográfico; as comunidades negras isoladas que contribuíram
para a segurança das fronteiras, e para com o processo civilizatório nas diversas
regiões do País”.

A Procuradoria Geral da República, em documento publicado também em 1993,


dispõe que: “são quilombos os territórios demarcados geograficamente e de
ocupação contínua, de negros que viviam livres no interior da ordem
escravocata”.

Em meio aos debates presentes sobre quem seriam as comunidades quilombolas


e em como processar a titulação de seus territórios, há uma crescente pressão

14 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA

54
para que o Estado implemente ao disposto no Artigo 68, ADCT da CF. Em
resposta às demandas por regularização fundiária, realizadas principalmente
pelas comunidades quilombolas, o INCRA em 1995 inicia seus trabalhos,
especialmente nas de domínio público. Essa atuação se realiza em parceria com
os Institutos de Terras Estaduais, em diálogo com a Fundação Cultural Palmares
e o Ministério Público.

Nesse período, o INCRA não consolida sua atuação em relação aos


procedimentos de regularização fundiária. Sinalização desse processo ocorre em
1999, quando a competência para titulação das terras de quilombo é atribuída à
Fundação Cultural Palmares.

O instrumento legal que marca esse período e esse desenho administrativo é o


Decreto 3912/2001, que legitima as comunidades também a partir de
reminiscências arqueológicas. A ruptura com essa dimensão interpretativa do
Artigo 68 e, por conseguinte, do conceito de comunidade quilombola se processa
com a entrada em vigor do Decreto 4887/2003.

A definição de quem são as comunidades quilombolas, de acordo com o Decreto


4.887, de 20 de Novembro de 2003, aponta que:

“Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais,


segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida15”.

Com dimensão à definição dos elementos que constituem o território quilombola,


o Decreto dispõe que:

“São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas
para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”16.

O Decreto concebe as comunidades quilombolas como territórios de resistência


cultural dos quais são remanescentes os grupos étnicos raciais que assim se

15 Decreto nº 4887, de 20 de Novembro de 2003, Art. 2o.


16
Decreto nº 4887, de 20 de Novembro de 2003, Art. 2o., § 2o .

55
identificam. Com trajetória própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a luta contra a opressão
histórica sofrida, esses grupos se auto-determinam comunidades de quilombos,
dados os costumes, as tradições e as condições sociais, culturais e econômicas
específicas que os distinguem de outros setores da coletividade nacional. O
Decreto apresenta, portanto, uma dimensão de existência atual dessas
comunidades.

A definição da territorialidade balizada em aspectos mais amplos que a


dimensão econômica se faz presente também na Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída
pelo Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que prevê, em seu art. 3º:

“os territórios tradicionais são espaços necessários à reprodução cultural, social e


econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e
quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações”.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho17, outro


importante instrumento legal que embasa o conceito legal de quilombos, foi
ratificada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20
de junho de 2002. Foi promulgada pelo Presidente da República, por meio do
Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. O governo brasileiro depositou o
instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de
2002. A Convenção entrou em vigor no âmbito internacional em 5 de setembro
de 1991 e, no Brasil, em 25 de julho de 2003. Foi recepcionada pelo ordenamento
jurídico brasileiro como lei ordinária, de acordo com o art. 5º, § 2º, da
Constituição Federal de 1988.

A Convenção 169 da OIT traz como um de seus pontos centrais, também


incorporado pelo Decreto 4887/2003, a dimensão da autodeterminação:

17
Genebra, 27 de junho de 1989.

56
“Artigo 1º, Convenção nº 169 da OIT18:

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como


critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção”.

Em diálogo com a Convenção da OIT, o Decreto 4.887/2003 define, portanto,


como critério para identificar os remanescentes de quilombos a auto-atribuição.
De acordo com o parágrafo 1º, Artigo 2º, do Decreto 4887/2003, a identificação
das comunidades se processa da seguinte maneira:

“§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades


dos quilombos será atestada mediante autodefinição19 da própria comunidade”.

A compreensão das comunidades quilombolas passa, no sentido atual de


existência, pela superação da identificação dos grupos sociais por meio de
características morfológicas. Tais grupos não podem ser identificados a partir da
permanência no tempo de seus signos culturais ou por resquícios que venham a
comprovar sua ligação com formas anteriores de existência. Argumentações
teóricas que caminhem nesse sentido implicam numa tentativa de fixação e
enrijecimento da concepção das comunidades quilombolas.

A perspectiva da autodefinição dialoga com os critérios postos pelos próprios


grupos, a partir de suas dinâmicas e de seus processos atuais. Portanto, é uma
dimensão que foca no existir atual e se relaciona com a perspectiva de grupo
etnicamente diferenciado, tais como são concebidas as comunidades
quilombolas. Aproxima-se, também, da idéia de diferença e de diversidade. De
acordo com Pedrosa (2007), o direito à diferença é o correspondente implícito do
direito à igualdade, princípio constitucional relevante para o Estado Democrático
e de Direito. Afirmar as diferenças significa perseguir a igualdade entre os
grupos. Nesse princípio se fundam as ações afirmativas.

19 Grifo meu.

57
O reconhecimento de que nossa sociedade é interétnica, heterogênea e plural está
presente também no rompimento com o paradigma colonial do quilombo. Essa
ruptura se funda na concepção e na afirmação de que o Estado brasileiro é
pluriétnico. Os conceitos dispostos nos instrumentos que se somam ao Artigo 68,
tais como os Decretos 4887/2003, 6040/2007 e a Convenção 169 da OIT,
apresentam essa perspectiva.

O movimento quilombola teve participação estreita nas legislações que


objetivaram a regulamentação do Artigo 68, sobretudo em relação ao Decreto
4887/2003. O marco dessa mobilização posterior ao Art. 68 foi o ano de 1995,
quando é criada a Comissão Nacional de Comunidades Quilombolas, durante o I
Encontro Nacional de Comunidades Quilombolas, parte da Marcha Zumbi dos
Palmares. Givânia Maria da Silva, liderança quilombola de Conceição das
Crioulas e fundadora da CONAQ, relata esse processo:

“A partir da criação da Comissão Nacional de Quilombos, esta assumiu o dialogo e a


construção do debate sobre temática do direito à terra. Em 1995, a gente apresentou um
documento exigindo o nosso direito à regularização das terras, com base no artigo 68 da
Constituição Federal. Nesse mesmo ano, foram apresentados dois Projetos de Lei, um na
Câmara, outro no Senado, que tratavam desse Artigo 68. Um era do deputado federal
Alcides Modesto (PT-BA) e o outro era da única senadora negra da história do Brasil,
Benedita da Silva. Em seguida, o deputado juntou os dois projetos e, a partir disso,
começou um processo de discussão nacional. Os deputados defendiam que o artigo não
era aplicável e nós defendíamos o contrario”.

Esse processo de mobilização do movimento quilombola e de parlamentares teve


como primeiro resultado, no que diz respeito à legislação de âmbito federal, o
Decreto 3.912/2001. Este Decreto, contudo, não correspondia às demandas do
movimento quilombola, conforme destaca Givânia Silva:

“Desse processo de debate no parlamento, foi elaborado e aprovado o decreto 3912, e nós
éramos contra o seu conteúdo. Estabelecemos, a partir daí, que qualquer diálogo com o
Governo só era possível com a anulação desse Decreto. O Governo não acatou e a
Fundação Cultural Palmares se configurou como único órgão do Brasil que poderia tratar
do processo de regularização fundiária. Nós fomos contra, porque quem tem que
regularizar terra é o órgão responsável pelo tema, ou seja, o INCRA”.

58
Esse processo de luta do movimento quilombola para a construção de novo
parâmetro jurídico que regulamentasse o Artigo 68 começou a dar frutos
concretos no início do Governo do presidente Lula, em 2003. Givânia Silva
também comenta esse período:

“Realizamos uma grande luta contra esse Decreto [3912/2001], que permaneceu até o
governo do presidente Lula20. Dialogamos com a Ministra da SEPPIR21, e falamos que o
único jeito de estabelecermos diálogo com o governo seria com a anulação do Decreto. O
presidente Lula criou um grupo de trabalho interministerial para construir um novo
decreto. Ele [o Decreto 4887/2003] foi publicado em novembro de 2003, e cria um novo
instrumento de regularização de terras. A responsabilidade pela regularização passa a
ser exercida pelo INCRA, a [Fundação Cultural] Palmares passa a emitir a certificação e a
SEPPIR fica com a coordenação da política [voltada às comunidades quilombolas]”.

Em relação ao processo de concepção do Decreto 4887/2003, cabe destacar que


este se deu por meio de grupo de trabalho do qual faziam parte diversos
ministérios, além da Advocacia Geral da União, representantes do movimento
quilombola, representados pela Conaq, e especialistas no tema, com especial
ênfase para a área jurídica e antropológica.

O Grupo de Trabalho, instituído em 13 de maio de 2003 pelo Governo Federal,


teve como finalidade rever as disposições contidas no Decreto 3912/2001 e
propor nova regulamentação ao reconhecimento, delimitação e titulação das
terras de remanescentes de quilombos. Concluídos os trabalhos do referido
Grupo, foi editado o Decreto n° 4887, de 20 de novembro de 2003.

Este instrumento legal substituiu o Decreto n° 3.912, de 2001 e regulamentava a


Lei nº 7.668, de 1988. Como mencionado por Givânia Silva, no Artigo 2º dessa
Lei22, era atribuído à Fundação Cultural Palmares a identificação dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, a realização do reconhecimento,
da delimitação e da demarcação das terras por eles ocupadas, bem como

20O primeiro mandato do Presidente Lula teve início em 2003.


21Matilde Ribeiro, então Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial,
vinculada à Presidência da República.
22 Redação dada pela MP nº 2.216-37, de 31 de agosto de 2001.

59
proceder a correspondente titulação. Com o Decreto 4887/2003, a atribuição para
a titulação dos quilombos passa da FCP para o INCRA.

O Decreto nº 3.912/2001 foi revogado pelo Decreto nº 4.887/2003 em razão das


várias críticas acerca da sua inconstitucionalidade. Dentre os vários pontos
presentes em seu texto que se constituíam como inconstitucionais, está a adoção
de critérios temporais para definir as terras pertencentes aos remanescentes de
quilombos.

No parágrafo único do Artigo 1º, o Decreto 3.912/2001 aponta que somente


poderia ser reconhecida a propriedade sobre terras das comunidades que eram
ocupadas por quilombos em 1888 e aquelas ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 198823.

“O equívoco do decreto aqui [no art. 1.º, parágrafo único, incs. I e II] é evidente e não
consegue salvar-se nem com a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico,
sustenta-se a formação de quilombolas ainda após a abolição formal da escravatura, por
(agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para onde ir ou não
desejavam ir para outro lugar. Então, as terras em questão podem ter sido ocupadas por
quilombolas depois de 1888. Ademais, várias razões poderiam levar a que as terras de
quilombos se encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um
quilombo anterior a 1888 que, por violência dos latifundiários da região, houvesse sido
desocupado temporariamente em 1888, mas voltasse a ser ocupado logo em seguida
(digamos, em 1889), quando a violência cessasse. Então, as terras em questão podem não
ter estado ocupadas por quilombolas em 1888. Tão arbitrária é a referência ao ano de
1888 que não justifica sequer a escolha em termos amplos, haja vista que a Lei Áurea é
datada de 13 de maio: fevereiro de 1888 não seria mais defensável do que dezembro de
1887. Não fosse por outro motivo, essa incursão no passado traria sérias dificuldades de
prova, e seria um despropósito incumbir os remanescentes das comunidades dos
quilombos (ou qualquer outro interessado) de demonstrar que a ocupação remonta a
tanto tempo”. (Procurador da República Walter Claudius Rothemburg, In: Sundfeld,
2002: 72).

A identificação das comunidades quilombolas não deve se dar por meio da busca
de provas arqueológicas e temporais. Contemporaneamente, o termo quilombo
não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou
comprovação biológica. Não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea.

23
Vide íntegra dos Decretos 3.912/2001 e o 4.887/2003 nos Anexos.

60
De acordo com O’Dwyer (1995), os quilombos atualmente não se caracterizam
como resíduos de organizações sociais do passado. O que é importante destacar
dessa discussão é que as comunidades quilombolas não podem ser definidas em
termos biológicos ou raciais, mas como condições sociais que se assentam na
posse e usufruto em comum de um dado território e na preservação e
reelaboração de um patrimônio cultural e uma identidade própria.

Em relação ao processo de formação das comunidades, Leite (1995), na mesma


coletânea da ABA24 em que está presente o artigo de O’Dwyer, ressalta que essas
comunidades nem sempre foram constituídas a partir de movimentos
insurrecionais rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus
modos de vida característicos num determinado lugar.

O aspecto do dinamismo do conceito de quilombo e de sua ressemantização e


construção a partir da lógica dos próprios grupos é bastante relevante. Briones
(2002) aponta para a abrangência que a noção de “aborígene” pode ter. São
centenas de povos e contextos bastante distintos que são incorporados na
categoria “aborígene” ou ”indígena”. Como na discussão que ora apontamos
para a questão quilombola, Briones salienta que:

“Por um lado, mesmo que distintos países tenham indígenas, não é a mesma coisa ser
índio na Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos. As condições de reprodução material
e de existência dos povos indígenas variam de país a país, não só em termos
socioeconômicos, como também em relação ao reconhecimento, representação, jurisdição
de sua alteridade” (Briones, 2002: 2)25.

Qualquer menção a uma fixidez do termo de quilombo, tal como o de indígena e


aborígene, aponta para um sentido reducionista e até certo modo evolucionista.
Em relação ao Artigo 68, da Constituição, há muita discussão sobre a sua
implementação e sobre os elementos que ele aponta, com vistas a desconstruir
qualquer interpretação enrijecida do conceito de quilombo.

24
Associação Brasileira de Antropologia.
25 A tradução de espanhol para português foi por mim realizada.

61
Conceitos têm uma historicidade própria. Longe de congelados, têm significados
diferentes em momentos distintos. Um conceito de definição congela algo que
não pode ser fixado, tal como a categoria de quilombo. Ter uma categoria de
quilombo estática reproduz, de certo modo, a mesma ótica do século XVIII. As
ressemantizações e remodelagens são estruturais para estruturar a idéia
conceitual de quilombo.

Mesmo a definição de época exige reparos. Embora tenha sido produzida


durante o século XVIII pelo Conselho Ultramarinho, como argumenta Almeida
(2002), e se popularize e se estabeleça como senso comum, cumpre lembrar que a
mesma contém a visão do colonizador, empenhado na repressão a qualquer
possibilidade de autonomia das populações negras no País.

O aspecto do isolamento, tão arraigado no senso comum e reflexo dos resquícios


das legislações coloniais, é fortemente contraposto em diversos estudos sobre as
comunidades quilombolas. Dos vários estudos que abordam o tema, destaco
Gomes (1996: 17), que é enfático em afirmar que “a relação dos quilombos com a
sociedade envolvente, e não o seu isolamento, explica sua formação e
sobrevivência”.

O trabalho de Flavio Gomes (1996) apresenta uma revisão bibliográfica sobre o


tema. Um dos estereótipos contestados pelo trabalho é a inexistência de
quilombos como ilhas de África no Brasil. Essas comunidades são frutos de
relações interétnicas bastante intensas, que se refletiam e se refletem inclusive em
sua composição. Muitos, como Conceição das Crioulas (PE), tem em sua
composição também povos indígenas. Outros trazem registros de brancos pobres
ou desertores que se uniram aos negros nos quilombos.

Novamente cabe lembrarmos o caso de Palmares. Os registros sinalizam para a


existência de múltiplas proveniências dos atores ali presentes. Faziam-se

62
presentes negros escravizados fugidos, indígenas, além de desertores e outros
excluídos brancos.

Além disso, as dinâmicas sociais, culturais e econômicas presentes na


constituição das comunidades se expressam por uma multiplicidade de fatores
presentes no contexto nacional e nas estratégias dos próprios grupos, o que torna
a idéia de ilhas de África no Brasil bastante contestável.

No que concerne à dimensão do isolamento, faz-se importante reforçar que


muitos desses quilombos encontravam-se em torno de cidades, nas suas áreas
suburbanas. Mesmo naquelas comunidades que estavam em localidades mais
longínquas, o comércio e as trocas com centros urbanos e fazendas fez-se muito
presente.

Um dos casos presentes que contrapõem a idéia de que os quilombos eram lócus
isolados e situados em rincões, é a presença de muitas dessas comunidades
próximas aos centros urbanos. É o caso, por exemplo, das existentes em Porto
Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. Em relação a Porto Alegre, Mário Maestri
afirma que:

“os quilombos teriam sido freqüentes nas cercanias dos principais centros urbanos – Rio
Pardo, Porto Alegre, Rio Grande (...) Os escravos fugidos seriam um problema para Porto
Alegre. Nos morros que cercavam a vila e nas ilhas próximas do Guaíba devem ter
havido pequenas concentrações de fujões, conforme nos demonstram os documentos da
Câmara da época” (Maestri, 2000: 323).

O Rio de Janeiro também traz histórias de composição de quilombos em seu


perímetro urbano. A comunidade de Sacopã surge no fim do período da
escravidão, por volta do ano de 1880. O casal Maria Rosa da Conceição do Carmo
e Manoel Pinto fugiu de uma fazenda de café em Friburgo (140 km a nordeste do
Rio de Janeiro) e se assentou no quilombo da Catacumba, que ficava a poucos
quilômetros de onde se encontra Sacopã. Catacumba, posteriormente, se
transformou em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. De lá o casal se

63
refugiou no Morro da Saudade, no bairro Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro.

“Meus avós já eram mestiços de africano com português e ficaram bem escondidos em
uma caverna, encravada no morro, no meio da mata. Quando exatamente chegaram aqui,
eu não sei. Ficávamos assentados a 200, 300 metros mais acima. Mas só aqui neste lugar
estamos há 105 anos” relata Luís Sacopã, liderança da comunidade.

Na década de 1960, na gestão do então governador Carlos Lacerda, houve uma


ampla ação para remoção das favelas. Essa ação impactou diversas favelas,
incluindo Catacumba, e abriu espaço à ampla especulação imobiliária. Nesse
período, a ação também se voltou para pequenas comunidades, como Sacopã,
mas devido à forte resistência dessa comunidade foi possível permanecer. Luis
Sacopã comenta esse período: “Nesta época comecei a liderar o movimento de
resistência”.

Como já destacado, além da comunidade de Sacopã, muitas outras também estão


próximas ou mesmo em perímetro urbano. A dimensão do isolamento, portanto,
não dialoga com a realidade de muitas comunidades, e sua consideração
enquanto critério para se pensar a categoria quilombo se torna um tanto
arbitrária.

Outro elemento fundamental nesse debate é a não existência de fixidez territorial


histórica em muitas dessas comunidades. A mobilidade demográfica das
comunidades e dos acampamentos foi uma constante em muitos casos. A
comunidade Frechal, Maranhão, é simbólica nesse sentido. Está hoje situada a
cerca de cem metros da casa grande. Entretanto, já promoveu uma mobilidade
ampla, a partir da conjuntura e das possibilidades de cada período.
“As comunidades quilombolas na época se afastavam, se distanciavam o máximo
possível da casa grande, por proteção. Por isso que sai o capitão do mato, ele ia apanhar
os quilombolas. Quando a política do Brasil vai tomando um novo rumo, que a
escravidão vai tendo suas quedas e os fazendeiros vão tendo suas quedas nos seus
produtos, o que o quilombola fica fazendo lá na ponta? Qual é o objetivo do quilombola,
não é voltar para aonde está o seu povo? Então o quilombo não era fixo, era aonde era
possível se instalar. Tiveram muitos que se instalaram longe e depois voltaram a se

64
instalar em locais mais próximos. Assim que os fazendeiros foram caindo, os
quilombolas foram se aproximando da casa grande. Com Frechal aconteceu isso, foi se
aproximando da casa grande. Mas apesar de estar próximo, ninguém consegue ficar na
casa grande, pra comunidade ela parece um monstro” (Ivo Fonseca, liderança da
comunidade de Frechal e fundador da CONAQ).

De acordo com Almeida (2007), nos séculos XVIII e XIX o projeto político era
voltado para que os quilombolas retornassem para dentro das grandes
plantações. Houve uma desterritorialização dos acampamentos de muitos
quilombo. Portanto, no local atual de muitas das comunidades quilombolas não é
possível encontrar vestígios ruiniformes, mas é onde os agentes sociais estão. No
século XIX, se os quilombolas se encontravam em locais distantes, foram
aquilombando a Casa Grande, pois com as falências de muitas fazendas o grande
proprietário abandonou suas terras. Esse processo ocorreu, por exemplo, em
Frechal e Alcântara.

Ronaldo Santos, liderança da comunidade Campinho da Independência e


integrante da CONAQ, relata em sua comunidade processo semelhante de
ocupação na fazenda, no período de falência dos grandes proprietários:

“A comunidade [Campinho da Independência] foi formada por três mulheres, ainda no


período da escravidão. (...) Parati [local onde está situada a comunidade] era uma região
importante, com um porto importante de escoamento. Inclusive até hoje tem a rota de
escoamento do ouro de Minas Gerais para Parati. Então era uma rota importante para a
economia. Teve um período de quebra dessa economia, muitas fazendas faliram. Parati
tinha então mais de 200 engenhos de cachaça. Houve um período de falência das
fazendas e a terra da fazenda Independência foi doada pra vovó Antonica, Tia Marcelina
e Tia Luiza, que eram as três escravas da casa grande”.

A percepção das residências reflete também a necessidade de mobilidade que


caracterizou muitas das comunidades quilombolas ao longo de sua história:

“O quilombo era isso, estava aqui armava sua barraca hoje. Se amanhã, o senhor de
escravo aparecesse, mandava acabar. A casa para nós não tinha tanto valor, pois a
qualquer hora era tocado fogo na casa. Até hoje, se você constrói uma casa de alvenaria
no interior ninguém entende. [Perguntam:] Mas o que passa na mente dele? Não tem
nada de importante pra ele fazer uma casa dessa no interior, agora imagina na época da
escravidão. Nós não tínhamos terra, éramos escravos, vivíamos nos escondendo, não
tínhamos estabilidade para construir uma casa. Será que essa cultura acabou assim? Tem
comunidades que você constrói casas de alvenaria, mas no fundo da casa está a casinha
dele, de barro, que é aonde ele mora. Porque aquilo é que é a cultura dele” (Ivo Fonseca,
Maranhão).

65
A dimensão do isolamento ao se pensar as comunidades quilombolas remete a
uma situação que não reflete o processo de muitas comunidades e reproduz a
construção da idéia de quilombo do séc. XVIII, época em que surge em
documentos oficiais a percepção de que quilombo é um agrupamento isolado,
situado em espaço longuíquo, remoto.

Cabe, portanto, uma problematização desse conceito de quilombo, que por vezes
traz em sua interpretação resquícios do conceito colonial. Pode-se perceber a
amplitude de processos históricos, políticos e sociais que permeiam a
constituição dessas comunidades, o que deve se refletir, portanto, na dimensão
que esse conceito pode ter.

O grande desafio hoje colocado é a busca pela real superação dos reflexos das
legislações e conceitos do Brasil Colônia e Império, que tinham como sustentação
econômica, cultural e social o racismo e a violência contra os africanos e seus
descendentes, bem como contra suas expressões organizativas, culturais e
simbólicas. Esses conceitos dos séculos XVII, XVIII e XIX ainda se fazem
presentes em interpretações e ações de alguns gestores, operadores do direito,
acadêmicos e meios de comunicação. Os esforços para a construção de um real
Estado de Direito passam fundamentalmente por esse exercício árduo de
reconhecimento da pluralidade em seus aspectos mais profundos.

2.1. Tensão e Conflito nos Territórios Quilombolas

Em muitas comunidades quilombolas, nas várias regiões do País, se faz presente


uma grave situação de vulnerabilidade e insegurança. Essa situação se relaciona,
em grande parte, ao conflito sobre a posse das terras por elas ocupadas e também
à precariedade do acesso à infra-estrutura básica, necessária para a efetivação de
condições de vida dignas. Os reflexos estão expressos, por exemplo, na não

66
efetivação do processo de regularização fundiária da grande maioria dos
territórios quilombolas, na falta de acesso à água potável, saneamento básico e
demais públicas, como as de educação e saúde.

Acredito que o elemento que cause maior impacto para as comunidades seja a
titulação dos seus territórios. É a principal reivindicação do movimento
quilombola, e é a partir do território que a comunidade constrói e concebe seus
mais importantes aspectos educacionais, de saúde, de sustentabilidade, enfim,
seus aspectos sociais, culturais, econômicos e históricos.

Os presentes conflitos de terras que envolvem as comunidades quilombolas não


as distinguem por localidade, nível de articulação e organização política ou
características do território. Em todas as regiões, nas mais diferentes conjunturas,
se apresentam graves conflitos fundiários. Os principais fatores dessa situação se
relacionam à sobreposição dos interesses territoriais das comunidades com os do
agronegócio, do mercado de terras e das elites políticas e civis regionais e
nacionais. Outro elemento que complexifica essa situação de conflito é a pouco
efetivação do procedimento de titulação das terras das comunidades
quilombolas por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela sua
implementação.

Esses são elementos que constituem uma constante ameaça ao direito à terra,
expressa nos permanentes processos expropriatórios que se concretizam por
ordens de despejo, deslocamento forçado ou outras formas de perda da posse da
terra pelas comunidades.

Abordo, a seguir, o que entendo como os principais elementos que fomentam


situações de conflito nas comunidades quilombolas. Várias são iniciadas por
processos de grilagem de terras, muitas vezes com ações intimidatórias e
violentas impetradas por grandes proprietários interessados em apossar-se das
áreas ocupadas pelas comunidades. A sobreposição dos territórios das

67
comunidades com títulos privados de propriedade e a incidência de alguns
territórios quilombolas em áreas de unidades de conservação ambiental, em
terras indígenas, em regiões de fronteira e em outras áreas concebidas como de
segurança nacional também são outros fatores que contribuem para agravar a
situação de conflito nos territórios quilombolas.

Outros conflitos se dão pela implementação de projetos oficiais de grande


impacto, como barragens, expansão da fronteira agrícola e desapropriações para
usos privados. Abordo dois territórios emblemáticos onde foram
implementados projetos oficiais que tiveram grande impacto para as
comunidades: Ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro, onde está instalada uma
base da Marinha desde a década de 1970, em sobreposição ao território da
comunidade de Marambaia; e Alcântara, Maranhão, onde foi instalado o Centro
de Lançamento Espacial, que provocou o deslocamento forçado de enorme
número de famílias quilombolas e proporcionou uma grave situação de conflito.

Muitos desses conflitos resultam em situações de homicídios, ameaças de morte,


perseguição e violência contra os moradores, destruição de suas roças e do
plantio por queimadas criminosas ou outras ações diretas de terceiros, além de
ampla mobilização para invalidar as legislações voltadas para a regularização
fundiária dos territórios quilombolas. Esses elementos debilitam severamente a
sustentabilidade das comunidades quilombolas em seus territórios e as expõem a
uma conjuntura de vulnerabilidade bastante acentuada.

A grande demora e a pouca materialização na emissão dos títulos das terras das
comunidades é outro elemento que fomenta as tensões nos territórios e nos
contextos políticos mais amplos. Essa demora potencializa o conflito entre os
vários sujeitos envolvidos e oxigena os embates e a organização daqueles que se
opõem à efetivação dos direitos das comunidades. Como resultado disso, se
estende a insegurança da garantia do território e a exposição da comunidade aos
conflitos.

68
Os últimos anos trazem de concreto um significativo avanço do ponto de vista
legal em relação à regulamentação do Artigo 68. Esse avanço tem na substituição
do Decreto 3912/2001 pelo Decreto 4887/2003 um grande símbolo. Esse Decreto
em vigência tem como um de seus objetivos principais “regulamentar o
procedimento de identificação, demarcação e titulação das comunidades
remanescentes de quilombos no País”. Os avanços consideráveis do ponto de
vista legal existentes na gestão do Governo Presidente Lula, todavia, não se
concretizaram com a dinâmica esperada.

De acordo com os dados apresentados por Girolamo Treccani, no I Seminário de


Políticas de Promoção da Igualdade Racial, na mesa redonda “O Direito à Terra
dos Remanescentes de Quilombos26, hoje existem 77 títulos de terras das
comunidades quilombolas emitidos, que relacionam-se a 150 comunidades. Esse
dado não incorpora os títulos emitidos pela Fundação Cultural Palmares que
foram contestados. Quase a totalidade desses títulos foram contestados na justiça
e, por conseguinte, apesar de o Decreto 3912/2001, ter consagrado a FCP como
entidade competente para a emissão desses títulos, na prática, eles não tem
efetividade. A FCP emitiu 16 títulos, abarcando 347.637,17 hectares, voltados a 28
comunidades, nos estados do Amapá, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso
do Sul, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, São Paulo e Sergipe. As maiores
concentrações dos títulos emitidos estão nos estados do Pará e do Maranhão,
respectivamente 36 e 20, o que engloba 88 e 22 comunidades. Em relação a
hectares, as maiores concentrações dos títulos em extensão estão nos estados do
Pará e Goiás: 541.756,77 hectares no Pará e 253.191,72 em Goiás.

Ainda de acordo com Treccani, em 1995 foram titulados 1.125,03 hectares dos
territórios quilombolas. No período de 1999 a 2001, ocorreram titulações que
abarcaram 588.616,47 hectares. O ano de 2007 fechou com um balanço muito
inferior, 17.805,57. Em 2006, mesmo com os dados estando abaixo do período de

26
Realizado na Câmara dos Deputados, Brasília, em 13 de maio de 2008.

69
pico das titulações, o quadro foi mais positivo do que o visto em 2007: 33.449,91.
Portanto, há uma desaceleração do ponto de vista da extensão territorial das
terras tituladas.

Com base nos dados da Coordenação Nacional de Regularização de Territórios


Quilombolas do INCRA, no período entre 2003 a 2006, apenas 24 títulos de
propriedade de terra foram emitidos. Esses títulos abarcam 31 comunidades
quilombolas.

Hoje estão certificadas pela Fundação Cultural Palmares 1209 comunidades e


identificadas 3554 comunidades, segundo a base divulgada pela Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Dessas, possuem o título
apenas 150. O mais grave desse processo é que apesar do avanço do ponto de
vista legal ocorrido nos últimos anos houve uma desaceleração em relação aos
títulos emitidos.

O papel da certificação, de acordo com o Decreto 4887/2003 é oficializar o auto-


reconhecimento da comunidade quilombola. Reza o Artigo 3º, §4º deste Decreto:

“A autodefinição de que trata o §1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro
Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do
regulamento”.

Mesmo se configurando como um documento administrativo simples, as


certificações muitas vezes são empreendidas com demorados processos. A
certidão de Alcântara, Maranhão, por exemplo, levou cerca de doze meses para
ser emitida. Outras comunidades também registram essa demora.

Fazendo uma análise dessa conjuntura, se a certificação, que se caracteriza como


um procedimento relativamente simples, tem, na prática, se prolongado
excessivamente, o processo de regularização fundiária, que possui uma
complexidade bastante maior, tem um progresso realmente muito moroso.
Somando-se todos os processos atualmente abertos de regularização fundiária

70
nas Superintendências Estaduais do INCRA, eles chegam a cerca de 600
processos. Na prática, contudo, são poucos os que efetivamente estão sendo
executados. Grande parte dessa conjuntura se deve às limitações estruturais do
órgão para atuar com essa questão e às crescentes pressões políticas para que se
estanquem os processos. Se são poucos os processos que estão sendo executados,
menos ainda são aqueles que são concluídos.

O panorama que permeia as comunidades quilombolas é complexificado com as


ações de contestação dos instrumentos legais que balizam o processo de
regularização fundiária. No âmbito do poder legislativo, foram apresentados por
diversos Deputados Federais projetos de lei que tem como objetivo inviabilizar,
do ponto de vista legal, a titulação das terras quilombolas. São eles: Projeto de
Decreto Legislativo 44/2007, de autoria do Deputado Valdir Colatto
(PMDB/SC), que pretende suspender a aplicação do Decreto 4.877/2003; o
Projeto de Lei 2471/2007, de autoria do Deputado Paulo Piau (PMDB-MG), que
prevê o pagamento do lucro cessante por 20 anos em caso de Desapropriação
para fins de Ocupação por Quilombolas, para Populações Indígenas, Reservas
Extrativistas ou por outros Segmentos Sociais; e a Proposta de Emenda
Constitucional - PEC 161, de autoria do Deputado Celso Maldaner (PMDB-SC),
que busca que o reconhecimento dos direitos territoriais dos índios e
quilombolas sejam realizados somente por meio de lei específica.

No que concerne ao judiciário, está em curso a Ação Direta de


Inconstitucionalidade n˚ 3.239-9600-DF, de 25 de junho de 2004, impetrada pelo
então Partido da Frente Liberal, hoje denominado Democratas. A ação tem como
foco a aprovação da inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003.

Além da ação existente no Supremo Tribunal Federal, há diversas outras ações


judiciais em curso que buscam embargar processos de regularização fundiária de
diversas comunidades quilombolas no País. Até dezembro de 2007, havia 24
ações de caráter possessório em curso, 17 ações civis públicas, 10 mandatos de

71
segurança, 7 processos de desapropriação, 2 de nulidade de Ato Administrativo
do INCRA, dentre outras.

Com relação ao poder executivo é fundamental mencionar o processo de


alteração da Instrução normativa n°20, do INCRA, que apresenta os
procedimentos necessários ao processo de regularização fundiária, de acordo
com o disposto no Decreto 4887/2003. Desde outubro de 2006, foi constituído
Grupo de Trabalho com diversos órgãos do poder executivo, tais como a
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR,
INCRA, Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, Gabinete de Segurança
Institucional - GSI, Fundação Nacional do Índio - FUNAI e Ministério do Meio
Ambiente - MMA, com a finalidade de apresentar proposta que vise à superação
dos conflitos internos no governo em relação ao entendimento legal dos
processos de titulação das terras quilombolas e da homologação das terras
indígenas.

Após vários meses de trabalho, em relação à questão quilombola, acordou-se que


deveria haver mudança da Instrução Normativa n°20, do INCRA, superando na
perspectiva do Governo Federal, os pontos de contradição interna no Governo e
aqueles que poderiam ser argumentados como contrários à constitucionalidade
do Decreto 4887/2003, na ADIN 3.239-9600-DF/2004.

Esse processo de revisão da IN apresentou uma ação bastante positiva no que


concerne à efetivação dos direitos das comunidades quilombolas com base nas
legislações existentes. Em acordo com o disposto na Convenção 169 da OIT,
deliberou-se a realização de uma consulta nacional às comunidades quilombolas,
levada a cabo nos dias 15 a 17 de abril de 2008, em Brasília, com a presença de
aproximadamente 300 lideranças quilombolas, para apresentação da nova IN.
Entretanto, os pontos não consensuais entre as comunidades e os representantes
governamentais talvez não possibilitem o desfecho esperado pelas comunidades.
Há muitas críticas ao novo texto em relação à burocratização dos procedimentos,

72
o que poderá tornar os trabalhos de regularização ainda mais morosos. Esse é um
dos pontos não consensuados entre as comunidades e os representantes do
Governo.

Em relação aos meios de comunicação, grandes veículos também têm fomentado


o debate sobre os direitos das comunidades quilombolas, do ponto de vista de
sua inconstitucionalidade e ilegalidade. No período de 2007 e 2008, alguns
exemplos midiáticos marcam esse processo27.

No cenário nacional, a questão quilombola é fortemente invisibilizada nos anos


posteriores à Lei Áurea, de 1888. É retomada de modo tímido e incipiente um
século mais tarde durante a Assembléia Nacional Constituinte, uma vez que o
debate sobre essa questão não teve grande repercussão no parlamento, nem
tampouco nos grandes meios de comunicação, conforme já discutido. Os grandes
debates sobre o tema são realizados em instâncias articuladas dos movimentos
negros urbanos, de especialistas e do movimento quilombola, mas não atingem,
nesse momento, o grande público.

Da perspectiva, no senso comum, de que os quilombos eram organizações sociais


extintas, essas comunidades, para o grande público, ressurgiram no final do
século XX e princípio do XXI como organizações sociais reais e atuais, ao
figurarem nas primeiras páginas de jornais e revistas de todo o País como os
vilões de uma “reforma agrária paralela”28.

O critério de auto-identificação, estabelecido pelo Decreto 4887/2003 e pela


Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2004, é um dos principais alvos.

27 Reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, nos dias 14 e 15 de maio de 2007 trazem essa
perspectiva de contestação da ocupação de quilombos na região do Recôncavo, na Bahia, e em Marambaia,
no Rio de Janeiro, e questionam inclusive a própria identidade quilombola. Cito alguns outros exemplos,
como a Revista de História da Biblioteca Nacional, edição de março de 2007; Revista Veja, edição de 04 de
abril de 2007; Diversos artigos de jornais como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo de 2007 e 2008.
28 Revista Exame, em matéria veiculada no dia 12/07/2007: “Apartheid no campo: A nova política de

desapropriação de terras para os quilombolas gera conflitos raciais e confusão por todo o País”.

73
As matérias de diversos veículos trazem essa abordagem. Destacarei, aqui, o
editorial de O Estado de São Paulo que abordou o critério de autodefinição como
fomentador de um grande nascedouro de quilombolas29, motivo esse que
justifica, na visão do veículo, a ampliação significativa do número de
comunidades identificadas em 2003 pela FCP (743 comunidades), para o hoje
existente (3554 comunidades identificadas e 1209 certificadas).

Em relação às articulações contrárias aos direitos das comunidades quilombolas


nos estados, vale citar um dos que possui uma situação bastante conflitiva, o
Espírito Santo. Nesse estado, mais especificamente na região de Sapê do Norte,
há um movimento que reúne proprietários de terras, representantes de grandes
empresas, dentre outros agentes, que organizam-se na articulação denominada
“Paz no Campo”. Essa articulação divulga e promove boletins, materiais,
campanhas e manifestações alegando que o pleito das comunidades quilombolas
de Sapê do Norte é infundado. Alegam, por exemplo, que "os brancos terão que
pagar uma conta muito alta pela escravidão que os antepassados dos brancos
impuseram aos antepassados dos negros" (Panfleto Paz no Campo, de julho de
2007). Contestam, também, a identidade negra e quilombola, o que, segundo
apontam em seus panfletos, estabeleceria uma ruptura numa suposta harmonia
multicolor brasileira: “o pleito quilombola é racista porque cria um país bicolor,
quando ele é multicor” (panfleto Paz no Campo, de julho de 2007).

Estes são apenas alguns exemplos de uma multiplicidade de outros existentes


nas várias regiões do País. Nos locais onde a organização social quilombola se
fortalece, por meio do processo de articulação pela garantia dos seus direitos, e
os sinais da efetivação dos direitos começam a florescer, as reações contrárias se
apresentam.

29 “A Proliferação de quilombolas” O Estado de São Paulo, em matéria veiculada no dia 08/07/2007.

74
Há, portanto, articulações presentes nos três poderes, bem como em outras
instâncias como a academia e a grande mídia que se opõem à questão
quilombola, e, portanto, ao movimento quilombola, conforme ressalta Ronaldo
Santos:

“Eu acho que o momento é muito crítico. (...) Eu tenho consciência que isso é uma
conjuntura, logicamente que isso não vai mudar automaticamente, que vai mudar com
um trabalho que precisa ser feito, mas não adianta se descabelar. É manter a luta e fazer o
trabalho que precisa ser feito. Temos grandes batalhas: No legislativo, em função do PDL
de Valdir Colato [44/2007], no judiciário, em função da Adin [ADI 3.239-9600-DF/2004],
e a outra no executivo, porque a gente sabe que nem todo o governo está alinhado com a
política quilombola. A gente luta com os 3 poderes instituídos. Então pode melhorar, mas
também pode piorar. Portanto, qualquer má notícia que nós tenhamos poderá servir de
combustão para a luta que virá” (Ronaldo Santos, Liderança Quilombola, integrante da
CONAQ).

Givânia Silva também comenta essa conjuntura e relaciona os processos hoje


vivenciados pelas comunidades quilombolas com os historicamente
empreendidos pelos seus antagonistas:

“Quando a grande imprensa, o latifúndio, setores conservadores da sociedade reagem


contra essa política, e aí o cenário de hoje é um cenário confuso, nós entendemos que o
que está acontecendo hoje é o mesmo que aconteceu ontem, só que por outros meios e
outros mecanismos. O que está posto é a certeza de que cada vez mais precisamos estar
unidos para que as conquistas que foram adquiridas não se percam” (Givânia Silva,
Liderança Quilombola, integrante e fundadora da CONAQ).

Um ponto importante da abordagem das duas lideranças supracitadas é que,


apesar de ser propagado que as comunidades “brotam”, conforme relatam
matérias, esse “brotar” não é fruto de um processo oportunista, mas de um
processo muito mais amplo de estabelecer-se enquanto resistência às forças
antagônicas. Portanto, as lutas hoje necessárias dialogam com as estratégias
utilizadas por esses grupos em períodos anteriores e presentes e demonstram
que o Estado brasileiro, para se concretizar como um Estado pluriétnico, deve
partir fundamentalmente do reconhecimento desses outros direitos (situados em
uma localização bastante distinta do direito meramente voltado para a
propriedade).

75
A conjuntura política de oposição à efetivação do direito à terra para as
comunidades, que se desenha em âmbito nacional, tem marcada a sua atuação de
modo diversificado, como ressalta Givânia Silva e Ronaldo Santos. São diferentes
atores, tais como parlamentares, jornalistas e seus respectivos meios de
comunicação, operadores do direito, proprietários de terra, representantes de
grandes corporações e empresas multinacionais.

As comunidades quilombolas, seus territórios, seus direitos postos na


Constituição e nas legislações posteriores e a questão toda que abrange esse
debate são hoje a mira de um grande cenário de oposição. As argumentações
postas, apesar de apresentarem uma discussão que muitas vezes sinaliza para
questões conceituais, refletem fundamentalmente a grande desigualdade da
estrutura fundiária historicamente construída no País e a imensa resistência em
redimensionar seus parâmetros.

As discussões conceituais apresentadas remetem, em sua grande maioria, à


perspectiva congelada e ultrapassada de quilombo, fazendo alusão a idéia de
comunidade de quilombo do período colonial. Outros debates postos nesse
cenário oposicionista são os argumentos que pautam a docilidade das relações
raciais em nosso País, argumentos que sustentam uma suposta democracia racial.
Esses argumentos, já bastante contestados por diversos estudiosos30, se fazem
presentes em matérias de periódicos com grande freqüência nos últimos meses.

Há outro fator que é expressivo para a construção do conceito de quilombo, e


para alguns elementos presentes em contestações da identidade e dos direitos
quilombolas, que é o contexto nacional. O conceito de quilombo, no senso
comum, reflete muitas vezes a perspectiva de extinto, de ‘coisa do passado’.
Diferentemente da identidade indígena que perpassa o século vinte fortemente

30 Vide: Clovis Moura (1981), Abdias do Nascimento (1978), Rita Laura Segato (2007), José Jorge de Carvalho

(XXX), Kabengele Munanga e Nilma Lino (2006), dentre outros.

76
presente no imaginário brasileiro31, a identidade e o conceito de quilombo como
vivo e dinâmico tem ganhado uma ampla discussão recentemente.

Essa emergência do conceito de quilombo e da identidade quilombola na


contemporaneidade dialoga com o que Briones pontua em seu trabalho em
relação à construção da identidade nacional e das identidades étnicas ou raciais:

“Toda nação como Estado reproduz desigualdades internas e renova consensos em torno
delas, tematizando certas diferenças e invisibilizando outras. Cada uma o faz
instrumentalizando uma economia política da diversidade que etniciza ou racializa
seletivamente distintos conjuntos sociais, fixando assim marcas de uniformidade e
alteridade que atribuem em cada caso disparidades, porosidades e fissuras aos contornos
(auto)descritivos desses conjuntos” (Briones, 2002: 2-3).

A dimensão da invisibilidade das comunidades quilombolas como fato do


presente na construção da identidade nacional é bastante marcante. Expressa o
histórico silenciamento dos espaços não hegemônicos no País. Exemplo disso é a
demora no reconhecimento das terras coletivas ocupadas pelas comunidades
quilombolas, as quais se contrapõem ao modelo construído como hegemônico,
que é a terra privada.

São cem anos que se passaram da Lei Áurea até a Constituição de 1988 para que
fosse reconhecido o direito à terra a esses grupos. Esse é um direito ainda
bastante contestado do ponto de vista jurídico, político e acadêmico e demonstra
as enormes fissuras e contradições que estão profundamente presentes na
construção do imaginário nacional. O movimento de aquilombar-se, histórico e
contínuo, se manteve e constitui-se, à revelia de um processo de silenciamento e
invisibilidade, a partir das dinâmicas próprias de seu tempo.

31 É relevante, contudo, ponderar que a identidade indígena, no senso comum, é concebida como

homogênea, o que não condiz com a multiplicidade de povos que a compõe.

77
3. Povo Quilombola: Identidade e Resistência

A noção de identidade quilombola está estreitamente ligada à idéia de pertença.


Essa perspectiva de pertencimento, que baliza os laços identitários nas
comunidades e entre elas, parte de princípios que transcendem a
consangüinidade e o parentesco, e vinculam-se a idéias tecidas sobre valores,
costumes e lutas comuns, além da identidade fundada nas experiências
compartilhadas de discriminação.

Há uma trama social tecida a partir das ações coletivas e representações que são
determinantes para o estabelecimento das noções que dão eco à idéia de que os
quilombolas constituem uma comunidade, um povo, que, por sua vez, possui
elementos estruturais que tornam este grupo distinto do que intitula-se
sociedade nacional.

A idéia de irmandade, de união entre as comunidades quilombolas das mais


distintas e longínquas localidades é ressaltada na teia de relações e
compartilhamentos existentes entre as comunidades, e é uma questão presente
em diversas narrativas de lideranças quilombolas. Esse ponto constitui-se como
fundamental para a construção da luta comum, que tem como principal ponto a
luta pelo direito à terra.

A fala de Ronaldo dos Santos, do Rio de Janeiro, aponta para esse sentido:

“Há uma coisa que une as comunidades de lugares tão diferentes. É uma coisa que está
em outro campo, você se identifica, se afiniza e vê o outro como um irmão. É uma coisa
de irmandade. Eu lembro quando assassinaram aquele companheiro de Rondônia32 que
foi uma dor pra todo mundo. É muito comum uma comunidade que não está vindo [aos
encontros do movimento quilombola] ter uma fala tipo assim “uma tal de CONAQ33”,

32
O assassinato ocorreu na comunidade quilombola de Vale do Guaporé, Rondônia. Foi no mesmo dia do
encerramento do I Encontro Nacional Quilombinho, de crianças e adolescentes quilombolas, em julho de
2007, no qual Ronaldo estava presente. Quando a notícia da morte chegou ao Encontro, formou-se grande
comoção.
33
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.

78
sem pertencimento. Quando ela tem uma oportunidade de participar de alguns
encontros, e aí não é a CONAQ instituição, organização, mas é essa coisa de estar junto
de irmãos de outros vários Estados algumas vezes, poucas vezes, naturalmente a fala das
pessoas já muda, as pessoas já passam a se sentir parte desse meio. Aí essas mesmas
pessoas reclamam “é mas essa informação não chegava lá” e a gente fala que é difícil
chegar e que é muito bom ela estar ali, pois será mais uma forma dessa informação
chegar. Daí vai se formando a rede” (Ronaldo, quilombola da Comunidade de Campinho
da Independência, RJ, e membro da Executiva da CONAQ).

Essa “irmandade”, esse sentido de união, traz um compartilhar identitário,


político, de comunhão de lutas comuns bastante intenso. A conjuntura hoje
vivenciada, na qual os direitos e a identidade quilombola são contestados com
grande ênfase por parte da mídia, parlamentares e outros atores ligados aos
poderes instituídos34 reforça nos quilombolas essa idéia de união através da
identidade e da luta pelos direitos.

A construção de uma identidade étnica quilombola que fundamenta a luta por


direitos através de articulações organizadas em nível nacional, tal como a
CONAQ, dialoga com a configuração da ideologia de “indianidade” que Barabas
trabalha no âmbito do México. Essa construção da ideologia da ‘indianidade
genérica’ é impulsionada pelos próprios indígenas e é pensada “não como uma
categoria homogeneizante, estereotipada e inferiorizada, e sim como uma
categoria unificadora” (Barabas, 1996: 2)35, tal como Barabas pontua em relação à
identidade indígena.

A insurgência de organizações nas últimas décadas, como as quilombolas, que


reivindicam o reconhecimento de sua identidade, de seus direitos, de seus
costumes pelo Estado, aponta para uma crise do modelo historicamente
construído e imposto de identidade nacional.

“Nosso continente, construído no século XIX pelas elites crioulas, se encontra, em nossos
dias, em um franco processo de desconstrução. Há evidências de um movimento de
reparação ou de religação com os elos cortados e de retorno a enredos históricos
abandonados. A emergência étnica é um despertar que implica um esforço de releitura
das “memórias compactas ou fraturadas, de histórias contadas desde um só lado que suprimiram

34
Essa questão foi melhor trabalhada no capítulo 4.
35 O texto original em espanhol foi por mim traduzido.

79
outras memórias, e histórias que se contaram e contam desde a dupla consciência que gera a
diferença colonial36” (Segato, 2007: 21-22).

O século XIX marca o processo de afirmação da nação brasileira. Nesse sentido,


as elites intelectuais estruturam sua percepção e seu olhar para a construção de
narrativas discursivas sobre o Brasil. No século XX, a nação e a cultura brasileira
passam a ser concebidas como a síntese dos elementos culturais, étnicos e raciais.
Nesse debate, Gilberto Freyre destaca-se, principalmente com sua obra “Casa
Grande e Senzala”, com a construção da argumentação da ‘democracia racial’.
Esses elementos foram constituintes da percepção ideológica da nação brasileira
hegemônica (Pechincha, 2006).

Em sintonia com o argumentado por Pechincha (2006), acredito que o discurso


de nação brasileira é um discurso hegemônico. Essa hegemonia se consolida pelo
alcance de seu discurso, pela abrangência e pela repetição de seus ideários. O que
se coloca, e o movimento quilombola é um forte elemento desse processo, é que
discursos e vozes dissonantes ecoam e apresentam-se como contraponto à
ideologia integradora de nação brasileira.

A nação apresenta um grande esforço homogeinizador, mas não consegue


sufocar as identidades outras que a compõem. A nação, em sua essência, produz
essa multiplicidade de discursos e identidades:

“Entendo a nação como um espaço que gera signos de identidade sob os quais se
organizam as relações entre pessoas e grupos. Assim definida, entendo que o discurso da
nação aponta, nos signos mesmos de sua identidade, as identidades daqueles que são
diferenciados dentro dela” (Pechincha, 2006:23).

Nessa perspectiva, o horizonte de uma nação possível emerge como um espaço


concebido a partir das heterogeneidades, que permita a visibilidade e garanta o
direito às diferenças. Essa nação possível se constitui a partir de uma aliança
entre os povos, administrada por um Estado pluricultural, por meio da
admissão, por parte do Estado, de que seu desenvolvimento futuro se concebe

36 O trecho em itálico na citação refere-se a uma citação de Mognolo (2000: 63), feita por Segato. A tradução

foi feita por mim.

80
com base nas comunidades e que a sua constituição efetiva se processa melhor
com o progresso das culturas (Segato, 2007: 21).

Esse movimento, todavia, se dá a partir do reconhecimento pelo Estado de que


esses povos e comunidades devem influir, ao seu modo e a partir de seus
costumes, nas estruturas políticas, jurídicas e sociais e reestruturar as várias
dimensões dos espaços de decisão e de poder, com ênfase na perspectiva
educacional, legal e administrativa.

Esses questionamentos à estrutura do Estado têm se fortalecido por meio da


concepção dos próprios sujeitos de que seus direitos só serão respeitados a partir
do reconhecimento de sua diferença.

“Em seus múltiplos aspectos, os processos de raiz local recentemente iniciados, cuja
característica principal é um retorno a fontes capazes de reconfigurar sua diferença em
um sentido radical, ameaçam progressivamente o que parecia ser o controle territorial
consolidado das elites regionais e nacionais, branqueadas e eurocêntricas” (Segato, 2007:
22).

A rede e os laços que concebem os quilombolas enquanto povo e comunidade


têm na dimensão político-organizativa uma força central, que dinamiza e
oxigena essa luta como coletiva das comunidades pela garantia de seus direitos.

A fala de dona Maria, quilombola de São Francisco do Paraguaçu, Bahia,


expressa a ânsia pelo reconhecimento, por parte do Estado, dessa luta, da
identidade quilombola e dos direitos dessas comunidades:

“Temos que ter o respeito aos nossos direitos, pelo amor de deus, porque o que nós
estamos passando, nós não queremos que nossos filhos passem. E sabem porque é que eu
estou falando isso, porque eu estou me sentido enganada. Sou mãe de nove filhos, tenho
cinco netos, nunca estudei, faço meu nome garranchado, porque eu sempre tive que
trabalhar. Uma coisa que eu queria falar, poucas coisas porque eu não sei falar direito eu
só fiz foi trabalhar, agora falar assim que a pele da gente, o nosso cabelo duro que deus
deu com muito orgulho, a nossa cor, a nossa origem, é isso, é isso que as pessoas têm que
entender, que seja governador, que seja ministro, que seja deputado, que seja senador,
porque a gente respeita ele mas ele também tem que respeitar a gente, porque os nossos
filhos, os nossos netos que vão parir, os que vão nascer, os que vão durar, tem que viver e
tem que ser respeitado” (Dona Maria, quilombola de São Francisco do Paraguaçu, Bahia,
em fala durante a Audiência do MPF em 19/09/2007).

81
A resistência como ato político também está presente no corpo e nos signos que
caracterizam o sujeito quilombola. Dona Maria aborda a importância de que a
sua identidade seja respeitada e reconhecida, e isso passa pelo seu ‘cabelo duro
que deus deu com muito orgulho’, pela sua ‘cor’, pela sua ancestralidade. São
elementos que se fundem na construção da identidade política de ‘quilombola’.

Essa identidade que marca a constituição do “outro”, de uma comunidade, isto é,


de um povo, é fruto de uma perspectiva de diferença profunda, estrutural:

“A luta dos movimentos sociais inspirados no projeto de “políticas da identidade” não


alcançarão a radicalidade do pluralismo que pretende afirmar, a menos que os grupos
insurgentes partam de uma consciência clara da profundidade de sua “diferença”, ou
seja, da proposta de mundo alternativa que guia sua insurgência. Diferença é aqui
entendida e definida não com referência a conteúdos substantivos em termos de
“costumes” supostamente tradicionais, cristalizados, imóveis e impassíveis em relação ao
desenvolvimento histórico, senão como diferença de meta e perspectiva por parte de uma
comunidade, de um povo” (Segato, 2007: 18).

A constituição dos critérios de pertença, que dão voz a essa “diferença radical”,
que apontam elementos para a concepção dos quilombos enquanto alteridade é
dada a partir dos próprios sujeitos. Alfredo Wagner de Almeida trabalha essa
idéia:

“A meu ver, o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios


agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos
sociais e agências com que interagem. Esse dado de como os grupos sociais chamados
“remanescentes” se autodefinem é elementar, porquanto foi por essa via que se construiu
e afirmou a identidade coletiva” (Almeida, 2002, pags. 67-68)

A perspectiva identitária que concebe as comunidades quilombolas como povo,


como comunidade, permite considerar que a afiliação é tanto uma questão de
origem comum quanto de orientação das ações coletivas no sentido de destinos
compartilhados. É uma questão que deve ser concebida e pensada no sentido de
romper qualquer perspectiva congelada, rígida.

Essa perspectiva da diferença é pontuada por Segato (2007) não como conteúdos
substantivos em termos de costumes supostamente tradicionais, cristalizados,

82
imóveis e impassíveis frente a transformações, mas como diferença de meta e
perspectiva por parte de uma comunidade ou povo (Segato, 2007: 18).

O’Dwyer (2002) ressalta que, como no caso precedente dos direitos indígenas, a
discussão sobre a identidade quilombola não pode prescindir do conceito de
grupo étnico, com todas as suas implicações37.

As contribuições de Barth (1969) foram fundamentais para o debate em torno da


etnicidade e para fortalecer as reflexões relacionadas à “auto-atribuição”, dada
pelo próprio grupo e por suas relações estabelecidas com agentes externos que
são estruturantes para o estabelecimento da identidade étnica. Os elementos que
dão conteúdo às fronteiras interétnicas, apontadas por Barth, entretanto não
refletem o papel do Estado nesses processos, seja ele colonial ou não.

As relações estabelecidas pelo Estado com as comunidades e povos que


constituíram e constituem a nação brasileira no período colonial e pós-colonial
são estruturais para os processos constitutivos da identidade desses grupos.
Pensemos a própria categoria genérica ‘quilombo’ ou ‘comunidade quilombola’.
Uma dimensão importante no processo identitário são os elementos dados pelos
próprios grupos. Outra dimensão distinta e também fundamental, contudo, é a
categorização genérica empreendida pelo Estado para uma leitura legal e restrita
dos grupos étnicos e reflexo dessa categoria nos processos identitários de como
os grupos se reconhecem e são reconhecidos.

A categoria ‘quilombo’, como a de indígena, apresenta uma normatização e um


enquadramento das múltiplas identidades das várias comunidades hoje
concebidas como ‘quilombolas’. Esse processo, todavia, longe de ser um processo
unilateral, reflete dimensões organizativas e mobilizatórias das comunidades
quilombolas que ressemantizam essas dimensões e as incorporam em suas

37O’Dwyer cita: Oliveira, João Pacheco. Indigenismo e territorialização. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998:
273-4.

83
estratégias de luta pelos seus direitos, a partir das diversidades fundantes das
comunidades em todo o País.

As comunidades remanescentes de quilombos são grupos sociais cuja identidade


os distingue do restante da sociedade. É importante explicitar que, quando se
fala em identidade, trata-se de um processo de auto-identificação bastante
dinâmico e não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos,
como cor da pele, por exemplo.

“No momento atual, para compreender o significado de quilombo e o sentido dessa


mobilização que está ocorrendo, é preciso entender como é que historicamente esses
agentes sociais se colocaram perante os seus antagonistas, bem como entender suas
lógicas, suas estratégias de sobrevivência e como eles estão se colocando hoje ou como
estão se autodefinindo e desenvolvendo suas práticas de interlocução. A incorporação da
identidade coletiva para as mobilizações e lutas, por uma diversidade de agentes sociais,
pode ser mais ampla do que o critério morfológico e racial (...) há agentes sociais que se
encontram lá mobilizados e que estão se autodefinindo como pretos. De igual modo,
podemos constatar que há situações outras em que agentes sociais que poderiam
aparentemente ser classificados como negros se encontram mobilizados em torno da
defesa das chamadas terras indígenas” (Almeida, 2002: 69).

Os procedimentos de classificação que interessam, que dão forma à perspectiva


do que são e de quem são os quilombos, são aqueles constituídos pelos próprios
sujeitos, a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são
produtos de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes.

“Isso é básico na consecução da identidade coletiva e das categorias sobre as quais ela se
apóia. Aliás, essas categorias podem ter significados específicos, como sugere a noção de
‘terra de preto’, que pressupõe uma modalidade codificada de utilização da natureza: os
recursos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não são individualizados;
tampouco são individualizados os recursos de pesca, caça e extrativismo” (Almeida,
2002: 68).

A perspectiva identitária tem íntima relação com a noção de territorialidade. As


Comunidades Quilombolas são circunscritas e estabelecem íntima relação vital
com seus territórios, denominados de diversas formas tais como terras de preto,
mocambo. Essa perspectiva territorial é conceituada como o espaço territorial
passado pelas várias gerações sem a adoção do procedimento formal de partilha,
e sem que haja posse individualizada.

84
Ronaldo dos Santos, liderança quilombola, aponta, a partir da especificidade de
sua comunidade, essa lógica de territorialidade:

“Tem um relato da vovó Antonica que as terras do Campinho [da Independência] nunca
deveriam ser desfeitas, vendidas, que deveriam ficar pras gerações. A comunidade de
Campinho sempre teve, no contexto do município, essa identidade de família. Essa idéia
do parentesco sempre foi muito forte na comunidade, na cidade sempre se falava isso,
Campinho sempre foi conhecido por ser terra de preto, não tinha essa identidade
quilombola, mas teve essa identidade de terra de preto e era unida em torno dos
objetivos comuns” (Ronaldo, Comunidade do Campinho da Independência, Rio de
Janeiro).

Os recursos hídricos, a pesca, a caça, o extrativismo, poços, são de uso coletivo.


Almeida (2002) ressalta, entretanto, que as roças e roçados são, em sua maioria,
de uso restrito à família nuclear, sendo outros recursos como rios e matas
coletivos. Esse dualismo entre o plano individual e coletivo e a coexistência
simultânea dos dois demonstra o quão complexo pode ser a análise territorial
dos quilombolas.

Hildima dos Santos, da comunidade quilombola Igarapé do Lago, Amapá,


pontua como se dá o plantio (em área da família nuclear) e o preparo dos
alimentos (coletivo) e posterior distribuição em sua comunidade:

“O povo vive como se fosse ainda nos tempos antigos, por que era assim que o povo
plantava e fazia o convidado. O convidado é o mutirão de hoje. Era assim, eles
plantavam, cada um no seu pedaço, mas na hora de fazer o Piracuí, que é a farinha de
peixe, todo mundo se juntava e faziam o convidado. Aí todo mundo arranca a mandioca
e vai junto fazer o piracui e depois todo mundo divide. Sempre foi assim, eles faziam o
convidado e quando era a meia, quem ajudava recebia” (Hildima dos Santos,
Comunidade Quilombola de Igarapé do Lago, Amapá).

As representações coletivas e as ações dos agentes envolvidos estruturam a


relação estabelecida com o território e, baseadas nelas, é possível buscar a noção
de territorialidade que vai muito além de fronteiras físicas. É o vínculo cultural,
histórico e social da comunidade com o espaço que habita.

Givânia Silva apresenta a reflexão sobre a dimensão da territorialidade para a


identidade quilombola.

85
“O pertencimento em relação ao território é algo mais profundo. A luta quilombola existe
porque há um sentimento por parte dos quilombolas de que aquele território em que eles
habitam é deles. Mas não deles por conta de propriedade, é deles enquanto espaço de
vida, de cultura, de identidade. Isso nós chamamos de pertencimento. Nem é porque
nossas terras sejam as mais férteis que nós lutamos por elas. Elas muitas vezes não são as
mais férteis, se nós concebermos o fértil no usual da economia. Mas ela tem uma
fertilidade que para nós que estamos ali ela é a melhor. A nossa luta pela terra não é
pautada por princípios econômicos e sim por fundamentos culturais, ancestrais. É o
sentimento de continuidade da luta e resistência”.

Os aspectos da territorialidade são delimitados por Almeida38 (2002: 45-46) como:

“agentes sociais que assim as denominam [terras de preto] o fazem segundo um repertório
de designações que variam consoante as especificidades das diferentes situações. Pode-se
adiantar que compreendem, pois, uma constelação de situações de apropriação de
recursos naturais (solos, hídricos e florestais), utilizados segundo uma diversidade de
formas e com inúmeras combinações diferenciadas entre uso e propriedade e entre o
caráter privado e comum, perpassadas por fatores étnicos, de parentesco e de sucessão,
por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-
organizativo e econômicos, consoante práticas e representações próprias. Assim ficou
aparentemente firmada a expressão oficial ocupações especiais, que designava, entre outras
situações, as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio, tal como definidas e
acatadas pelos próprios grupos sociais”.

A construção da identidade é, portanto, fundamentada no território e, também,


em critérios político-organizativos. Identidade e território são indissociáveis
nesse caso. A organização das comunidades quilombolas como um grupo étnico
tornou possível a resistência e defesa do território, além de singularizar sua
ocupação. O processo de territorialização das comunidades quilombolas está
estreitamente relacionado com a organização social.

Os aspectos identitários, entretanto, devem ser levados em consideração para


além da questão fundiária. A terra é crucial para a continuidade do grupo
enquanto condição de fixação, mas não como condição exclusiva para sua
existência39. E o território não se restringe apenas à dimensão geográfica, mas
abarca também elementos culturais, históricos e sociais mais amplos.

38 ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Os Quilombos e as Novas Etnias. In: O’Dwyer, Eliane Cantarino. Quilombos:

Identidade Étnica e Territorialidade. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2002.


39
Destaco, aqui, comunidades que foram expropriadas, como os Amaros, e que permanecem com seus laços
de pertença enquanto comunidade.

86
Retomando a discussão sobre as dimensões históricas e organizativas da
construção da categoria quilombo, temos, num primeiro momento, os mais de
três séculos de escravidão onde a identidade quilombola era violentamente
combatida pelas forças coloniais e, depois, imperiais. Após a Lei Áurea40, o
conceito de quilombo torna-se invisibilizado no escopo do Estado por um século,
apesar dos muitos trabalhos que apontavam para sua existência41.

Com a Constituição de 1988, são reconhecidos os direitos às terras aos


descendentes dos antigos quilombos, através do Artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Mesmo havendo a garantia legal dos
direitos, a identidade quilombola é hoje acentuadamente contestada por veículos
midiáticos, como já mencionado, e alguns pesquisadores. Apresenta-se a busca a
uma perspectiva de identidade congelada, estática ou a uma noção de que a
identidade quilombola se perdeu junto com a Lei Áurea.

Os elementos que constituem os grupos enquanto próprios e distintos da


sociedade nacional, como as comunidades quilombolas, deixam de ser colocados
em termos dos conteúdos culturais que encerram e definem diferenças. Conceber
as comunidades quilombolas a partir dessa perspectiva tem levantado algumas
ponderações sobre as manipulações que podem ser empreendidas pelos próprios
sujeitos sociais pertencentes à identidade étnica.

Essas questões norteiam, inclusive, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade –


ADIN, impetrada pelo partido dos Democratas (antigo PFL) no Supremo
Tribunal Federal – STF, ao decreto 4887/2003 que regulamenta a titulação de
terras de quilombos e se constitui na perspectiva da auto-declaração da
comunidade.

Os quilombos, todavia, fortalecem sua identidade contrastiva em contraponto à


idéia de assimilação ou de extinção. A diferença cultural não traz uma
40
Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888.
41 Clóvis Moura (1981); Edson Carneiro (1946); Décio Freitas (1973), dentre outros.

87
valorização por si só. Porém, a contraposição consciente das identidades e
culturas em relação à lógica homogeneizadora e controladora dos Estados-
Nacionais se constitui como uma antítese ao projeto pós-colonialista de
estabilização, uma vez que os povos lutam não apenas para marcar sua
identidade, como também para retomar o controle do próprio destino e construir
diretrizes de rumos comuns.

Essa contraposição cultural ao projeto hegemônico do Estado dialoga com a


emergência da organização do movimento quilombola nos últimos anos no País.
O movimento quilombola, institucionalizado em nível nacional a partir de 1996,
traz a retórica identitária como um elemento central de suas reivindicações e do
estabelecimento da coesão de grupo. A partir dessa identidade étnica, os
quilombolas construíram sua linha central de luta que é a defesa de seus
territórios. São critérios político-organizativos que estruturam essa perspectiva
de pertença étnica.

Há um ponto, entretanto, fundamental que constitui essa identidade quilombola


nacional, que é a imensa pluralidade de realidades e perspectivas locais de cada
comunidade quilombola. Uma fala, citada por Ilka Boaventura, dá luz a esse
elemento: “Negros de qualidade diferente” – “Não tem os índios? Os Bororo, os
Xavante? Eles todos são índios? São tudo índio, mas de ‘qualidade’ diferente. Os
de Matacavalos, de Onças, de Jacaré, de Brinquinho também são tudo negros,
mas de ‘qualidade diferente’”. (Mestre Antônio Mulato, Comunidade Mata
Cavalo, MS. In: Leite, 2004: 13).

Givânia Silva comenta também as especificidades e as particularidades que


marcam as comunidades quilombolas, que não se constituem de modo algum
num prisma de homogeneidade:

“É importante perceber que as comunidades têm especificidades locais e que as lutas se


deram de várias formas. Não é possível se chegar em um quilombo em São Paulo e
esperar encontrar ali todas as características que você encontra em um quilombo em
Pernambuco ou no Pará”.

88
As milhares de comunidades quilombolas possuem a sua própria história, a sua
tradição cultural específica concebidas no processo de constituição dessas
comunidades como grupo diferenciado. As comunidades apresentam entre si,
como elemento estrutural, o pluralismo e a diferença como fundamento.
Portanto, as diversas comunidades rurais negras trazem seu histórico, sua
tradição cultural, seus processos próprios que as caracterizam e definem.

A permanência das comunidades quilombolas no período posterior à Lei Áurea


apresenta alguns determinantes importantes, apontados por Ilka Boaventura
Leite (2004): (1) a permanência das comunidades quilombolas após 1888
simbolizou, numa perspectiva contestatória, a não adesão ao projeto da
sociedade pós-escravista destinado aos negros (ou à ausência dele); (2) a falência
do modelo de sociedade estruturado nesse período, com ênfase na conversão da
diferença como motor de desigualdade. Nesse sentido, a lógica etnocêntrica
estruturou a distribuição fundiária, o acesso aos direitos, aos lócus de poder e se
estruturou de modo profundo a partir dessa perspectiva desigual.

As comunidades quilombolas, muitas delas surgidas nos séculos XVII, XVIII e


XIX, chegam ao século XXI como uma forma alternativa de organização social,
etnicamente constituída, com dimensões histórica, social e culturalmente
distintas, e esses elementos tem vínculo profundo com o modo de acesso e com
os usos da terra.

Nos últimos tempos, as pressões enfrentadas pelas comunidades quilombolas


apresentam um grande peso dissociativo e embaralharam referências e, muitas
vezes, a meta comum de luta pela garantia dos direitos, com ênfase no direito à
terra.

Na conjuntura de alteridade que vivenciam, as pressões geram conflitos, tensões,


inseguranças, e, muitas vezes, se configuram como elementos de fragmentação e
ruptura, tanto internamente nas comunidades como nas suas organizações

89
representativas. Esses elementos são, em grande parte das vezes, manipulados
por outros atores que apresentam interesses divergentes, tendo grande influência
na trama de relações entre as comunidades e suas representações, o Estado e a
sociedade como um todo.

A questão da identidade quilombola, do reconhecer-se como quilombola, por


exemplo, é um ponto que vem sendo argumentado por acadêmicos,
parlamentares e outros como nevrálgico para a contestação dos direitos
quilombolas. Como o termo quilombo não é historicamente apropriado e
utilizado pela grande maioria das comunidades, ocorre que muitos desses
grupos (que tradicionalmente são conhecidos e se auto-denominam como terra
de preto, de santo, mocambo, dentre outras denominações) não se reconhecem
como quilombo por, inclusive, sequer conhecer o que o termo significa.

É fundamental, portanto, ressaltar que esse é um termo utilizado para denominar


essas comunidades que foi construído pelo poder colonial. Durante o século XX,
foi reapropriado pelas lutas de resistência dos movimentos negros e colocado em
pauta na Assembléia Constituinte, na elaboração do Artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Portanto, tal como conhecemos hoje, o
termo quilombo é uma construção exógena às comunidades. Entretanto,
exatamente esse ponto de identificar-se como quilombola tem gerado muitos
conflitos, tal como expressa Aparecida Mendes, liderança da comunidade de
Conceição das Crioulas (PE):

“Essa palavra quilombo não é tão conhecida, inclusive pra nós que estamos dia após dia
envolvidos em praticamente todas as articulações, nós não sabíamos. A partir da década
de 80, nós sabíamos que éramos de Conceição das Crioulas, sabíamos que somos
descendentes, e aí minha avó e as pessoas mais velhas sentam pra contar nossa história (e
é muito engraçado, pois elas fazem uma linha do tempo e chegam lá nas crioulas, nas
primeiras que chegaram). Mas nós não sabíamos, nós não conhecíamos essa palavra
quilombo. E as outras pessoas também não conheciam. Pra nós que estamos no dia-a-dia
ficou mais fácil porque a gente está sempre se encontrando, estudando. Mas para aquelas
pessoas que não tiveram acesso às informações, realmente elas não conhecem e passaram
a conhecer de forma antipática” (Aparecida Mendes, Comunidade de Conceição das
Crioulas, Pernambuco).

90
O processo de incorporação do conceito de quilombo como referência para
acesso a direitos, na Constituição de 1988, gerou uma categorização bastante
externa para muitas comunidades no País. Aparecida ressalta mais detalhes
desse processo a partir da perspectiva de sua comunidade e de sua vivência
junto ao movimento quilombola:

“Na medida em que foi publicado o artigo 68, e nós começamos a nos organizar nas
bases, nós sacudimos os poderes opressores e aí eles pegaram a palavra quilombo e
levaram para a maioria das comunidades dizendo para as pessoas menos informadas das
comunidades “vocês não podem ser quilombolas”, “tão com uma história de quilombola
e ser quilombola é voltar a ser escravo”, que “vão tomar a terra de vocês” e, olhe, foi uma
coisa colocada de forma muito pejorativa e de forma muito ruim para as comunidades,
daí a dificuldade de muitas pessoas assumirem. Já é difícil assumir a identidade por
conta da discriminação que se viveu e que se vive ao longo do tempo e aí quando você
chega com uma palavra nova, carregada de muita colocação negativa, fortalece mais a
resistência que você tem de assumir a sua identidade, por medo até” (Aparecida Mendes,
Comunidade de Conceição das Crioulas, Pernambuco).

O “estranhamento” em relação a uma categoria que é externa para muitas


comunidades, contudo, não significa que as mesmas não possam reivindicar o
seu direito territorial a partir dela, uma vez que o processo político-identitário e
histórico das mesmas as caracterizam como quilombo. A categorização externa,
tal como expressa na categoria quilombo, representa uma das distorções
impetradas pelo Estado, uma vez que as próprias classificações dos grupos é que
deveriam ser levadas em consideração.

Aparecida Mendes aborda outros pontos importantes para essa discussão:

“Então, pela palavra ser nova [quilombo], por não ter tido uma divulgação ampla feita
pelos quilombolas e por quem nos apóia. Você chega em Conceição das Crioulas, boa
parte assume a identidade quilombola. Mas algumas pessoas que têm mais resistência às
informações ou estão menos informadas vão dizer que não são quilombolas. Se você
perguntar para essas mesmas pessoas se elas são de Conceição das Crioulas, se são
descendentes das Crioulas, elas vão dizer que sim. E aí acontece uma injustiça muito
grande pela bancada ruralista e mais especialmente por algumas pessoas que chegaram à
universidade e conseguem produzir livros, aqui falo do livro do Nelson Barreto a
Revolução Quilombola, porque ali ele coloca justamente isso que eu estou falando pra
você. Segundo ele fala, ele vai às comunidades e pergunta justamente para aquelas
pessoas que estão menos informadas, que não tiveram acesso “você é quilombola?” e
jogam na pessoa toda aquela carga de coisas ruins. E aí é claro que a pessoa vai dizer que
não é. Mas pergunta pra essas pessoas quais são as origens delas, por que elas estão
naquela comunidade, quem é o avô, o tetravô, pergunta pra elas que elas vão afirmar sua

91
identidade. Eu acho que temos a necessidade de retrabalhar a palavra quilombo, divulgar
um pouco mais e tentar conscientizar a população e as pessoas de que ser quilombola
nada mais é do que ser negro, ser descendente do seu grupo étnico que ali viveu. A gente
só está afirmando justamente a negritude. Em muitas comunidades a gente pergunta
“você é quilombola?” e dizem “não” “você é negro?” “sou”, “Você é descendente de
fulano que é negro?”, “sou.” Já existe uma facilidade de assumir a negritude. Por isso,
que eu acho muito injusto a forma como as pessoas usam e querem destruir as nossas
bases legais com esses argumentos que são absurdos” (Aparecida Mendes, Comunidade
de Conceição das Crioulas, Pernambuco).

Como ressalta Aparecida, há uma diferença entre a identidade negra e


quilombola, pois as comunidades são compostas em sua ampla maioria por
negros e provém de uma identidade de resistência negra, mas nem todos os
negros são quilombolas:

“Nosso ponto de vista é que todo quilombola, a maioria dos quilombolas é negro. Mas
nem todo negro a gente tem condição de dizer que é quilombola, porque a gente sabe
como foi a formação dos quilombos e a gente sabe que no período da escravidão, muitos
quilombos foram formados e a gente sabe que na abolição da escravatura muitos negros
não saíram para roça, foram pra cidade. E ali tiveram que sofrer e sofrem até hoje todos
os tipos de discriminação, de seqüelas. Mas de certa forma eles tiveram que perder a
ligação com aquele território. Necessariamente, ele não formou um quilombo, mas teve
outras formas de vivencias e também de enfrentar outras dificuldades na cidade”
(Aparecida Mendes, Comunidade de Conceição das Crioulas, Pernambuco).

Ronaldo também aponta em sua fala o quanto a apropriação do significado da


palavra “quilombo” foi difícil em sua comunidade, historicamente reconhecida (e
auto-reconhecida) como terra de preto:

“A comunidade de Campinho [da Independência] sempre teve, no contexto do


município, essa identidade de família. Essa idéia do parentesco sempre foi muito forte na
comunidade, na cidade sempre se falava isso, Campinho sempre foi conhecida por ser
terra de preto, não tinha essa identidade quilombola, mas teve essa identidade de terra de
preto e era unida em torno dos objetivos comuns. (...) No Campinho, esse conceito de
quilombo veio com a pesquisadora42. Havia, inclusive, uma negação desse conceito. E eu
me lembro quando pra mim esse conceito não soava bem, era incômodo. Mas ao mesmo
tempo o conceito traz um direito e isso ajuda a se identificar com a questão” (Ronaldo,
comunidade de Campinho da Independência, Rio de Janeiro).

Jhonny Martins, quilombola de Mato Grosso do Sul, aborda um pouco do


processo de apropriação da palavra quilombo em seu Estado e relata o uso da
mesma por outros atores com um sentido depreciativo:

42Ronaldo refere-se à pesquisadora Neusa Gusmão, que escreveu sua tese de doutorado sobre a
comunidade de Campinho, a terra de preto.

92
“No Mato Grosso do Sul, a palavra quilombo as pessoas até pesquisavam. Mas, no
Estado do boi, nossos fazendeiros, nossos queridos racistas, diziam que isso ia deixar nós
como os índios que a nossa terra ia ser da União, que isso era coisa que não existia mais,
que nós íamos voltar a ser escravo, até mesmo faziam piadinhas dizendo que a Lei Áurea
foi assinada de lápis. Mas, a partir do momento que Furnas do Dionísio e Furnas da Boa
Sorte eram comunidades formadas que tinham uma opinião própria e já conheciam um
pouco desse nome, já conheciam um pouquinho da palavra quilombola, já sabiam que
existia, a gente começou a fazer troca de experiência. Pegávamos as outras 12
comunidades [do Estado de Mato Grosso do Sul] que ainda não eram reconhecidas e
levávamos até Furnas do Dionísio, Furnas da Boa Sorte para conhecer a nossa
experiência” (Jhonny Martins, Comunidade de Furnas do Dionísio, Mato Grosso do Sul).

Hildima dos Santos, liderança quilombola do Amapá, relata postura semelhante


de abordar de forma depreciativa a luta e a identidade quilombola por parte de
um agente público:

“Agora o pessoal está preocupado. O presidente do Instituto de Mobilização da Terra, o


Imap, do Amapá, ele desgranha você, diz que tu é fraco, que fica agora com essa
inventação de quilombola. Ele já tentou tomar as terras indígenas, os índios foram pra
cima dele, na época que ele era deputado, e agora ele está em cima das terras
quilombolas.” (Hildima dos Santos, comunidade Igarapé do Lago, Amapá).

Essa categoria por si só não deve ser o motor identitário para definir o que e
quem são as comunidades quilombolas, uma vez que a sua fixidez vai de
encontro à realidade múltipla das comunidades, e os desígnios que
historicamente são utilizados por esses grupos para se auto-identificarem.

“O recurso de método mais essencial que, suponho, deva ser o fundamento da ruptura
com a antiga definição de quilombo refere-se às representações e práticas dos próprios
agentes sociais que viveram e construíram tais situações em meio a antagonismos e
violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da análise critica é a indagação de
como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com
os grupos sociais e as agências com que interagem. Esse dado de como os grupos sociais
chamados ´remanescentes´ se definem é elementar, porquanto foi por essa via que se
construiu e afirmou a identidade coletiva. O importante aqui não é tanto como as
agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim
como os próprios sujeitos se auto-representam e quais os critérios políticos organizativos
que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os
procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios
sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produtos
de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da
atividade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apóia” (Almeida, 2002: 67-68).

93
Sobre essa questão, Arruti (1998), apresenta reflexões em relação à mobilização
política da “Comunidade do Mocambo”, localizada em Sergipe, em meio ao
processo para reconhecimento como remanescente de quilombo. O autor ressalta
que essa categoria exógena, completamente nova para esse grupo, causou
processos de estranhamento. Ressaltou, contudo, a importância da dimensão da
memória e dos laços de parentesco para fortalecer essa luta: “o direito do acesso
à terra [estrutura-se] na memória de uma ancestralidade e na malha de seus
parentescos” (idem: 28).

Givânia Maria da Silva, liderança quilombola de Conceição das Crioulas –


Pernambuco, apresenta suas reflexões sobre a categoria quilombo e os seus
reflexos identitários e políticos:

“As comunidades têm processos diferentes e características diferentes. Nós [movimento


quilombola] não trabalhamos com denominação fechada. Por exemplo, se alguma
comunidade se classifica como terra de preto, nós aceitamos porque a denominação de
quilombola veio do Estado. Essa é apenas a forma delas se definirem. É importante
trabalhar com o conceito amplo, como está na legislação que é o termo quilombo, mas
não desrespeitar as dinâmicas locais. No final os termos querem dizer a mesma coisa,
pois no conceito geral elas são quilombolas sim! Respeitamos essas peculiaridades, pois é
uma forma delas se auto-definirem. Isso ajuda as pessoas a se construírem suas histórias.
Isso nos leva mais uma vez a afirmar que os processos de luta se deram de vários
formatos. Ele se deu na luta pela resistência pela terra, ele se deu nas terras da igreja, por
isso as terras de santo, ele se deu nos engenhos e fazendas falidas, enfim, ele se deu em
vários processos, com características semelhantes, mas com suas peculiaridades. O que
nos une são outros significados. Para nós quilombo, terra de preto, terra de santo, ou
outros tem o mesmo significado que é a luta e resistência pela garantia de seus direitos”.

A perspectiva político-organizativa, a memória coletiva e as estratégias de luta


comum das comunidades são estruturais para que se busquem formatações mais
dialogadas no processo de construção dessas categorias, tais como a de
comunidade quilombola. A historicidade das comunidades quilombolas deve ser
fundamentalmente pensada quando se busca enquadrá-las em conceitos, tanto
pelo poder público como pela academia.

94
Pensar a historicidade dos conceitos que hoje são usados por esses atores estatais
e da academia também é importante, uma vez que a própria categoria quilombo
remete, muitas vezes, naquelas comunidades que a escutam, a um sentimento de
rejeição pelo histórico de sua construção.

O processo de criação de conceitos territoriais e étnicos dialoga com os processos


históricos presentes nesses conceitos, com as reflexões e análises elaboradas pela
atividade acadêmica, pelas construções realizadas pelo poder público que as
utiliza para o reconhecimento legal do que existe socialmente e pelos próprios
conceitos das comunidades em questão. Há, portanto, uma diversidade de
fatores que operam juntos entre as “criações sociais, feitas simultaneamente de
imaginação sociológica, criações jurídicas, vontade política e desejos” (Arruti
1997: 7).

Esse processo, contudo, apresenta um risco que é a sobreposição de conceitos


fixos, enrijecidos e exógenos às comunidades (construídos pelo poder público ou
pela própria academia) em relação às categorias das próprias comunidades.
Além dessa sobreposição, esse debate de categorias e conceitos apresenta, no
cenário político, complicantes no que concerne às iniciativas de impedir a
efetivação dos direitos a esses grupos, sobretudo em relação aos fundiários.

Para além dos cenários conflitantes gerados pelo conceito de “quilombo” no


processo organizativo das comunidades quilombolas, cabe destacar outros que
são gerados a partir das relações estabelecidas entre as comunidades, suas
lideranças e o Estado.
“Esse processo de reconhecimento da nossa comunidade enquanto quilombola não foi
fácil. Não sabíamos o que significava quilombo e os fazendeiros da região falavam pra
gente que a gente ia ser índio, que as nossas terras seriam da União, que a gente ia voltar
a ser escravo. Nesse processo, trazíamos pessoas das outras comunidades do estado e a
partir do momento que eles viam que Furnas do Dionísio43 tinha sinal digital, tinha
escola até o ensino médio, posto de saúde e que existia política pra isso, mas pra isso as
pessoas tinham que se identificar e batalhar pelos seus direitos. A gente procurou o
INCRA pra referendar esse processo, pra ter o documento base pra referendar. No

43
Comunidade Quilombola situada em Mato Grosso do Sul.

95
começo, a influencia de pessoas querendo destruir esse processo é muito grande, porque
algumas pessoas acham que vamos tomar os direitos deles. Ainda não está muito bem
consolidado, sofremos muita represália. Outra coisa que atrapalha é a demora das
políticas chegarem nas comunidades, a titulação da terra. O governo quando quer um
status faz a política bem rápida, como foi o caso de Dionísio, que ganhou bastante coisa
em 2 anos, porém ela era a menina de ouro do Governo. Com as outras comunidades, a
coisa é bem diferente, já não tratam mais como prioridade. Isso tem grande influência em
nossa organização” (Jhonny Martins, liderança da Comunidade de Furnas do Dionísio,
Mato Grosso do Sul e integrante da CONAQ).

Os cenários conflitantes externos se apresentam como elementos que


potencializam os enredos internos dos grupos quilombolas. As tramas que
envolvem os interesses políticos de agentes do Estado e de comunidades
quilombolas, na execução de políticas públicas, por exemplo, são fatores que
geram muitos desgastes no movimento e em sua representatividade junto às
comunidades.

A legitimidade das lideranças que atuam em cenários nacionais, tal como o da


Conaq, é intimamente influenciada pela viabilidade do acesso ou não das
políticas públicas existentes às comunidades que representam. Esse processo
gera, muitas vezes, uma correlação de forças desgastantes ao próprio quadro das
representações, pois as dinâmicas das organizações quilombolas acabam sendo
influenciadas por processos políticos maiores, que envolvem outras estruturas de
poder no âmbito das representações governamentais.

As contradições e conflitos internos ao próprio movimento, como os gerados


pelo conceito de quilombo, pelo acesso às políticas públicas e outros fatores, são
elementos importantes para compreender a dinâmica interna, também, para
complexificar a dimensão organizativa do movimento quilombola.

Josilene Brandão, durante a audiência pública coordenada pelo Ministério


Público Federal, por meio da 6ª Câmara, sinaliza o cenário de oposição à
implementação dos direitos quilombolas e dá ênfase aos elementos constitutivos
da identidade desses grupos:

96
“Pra nós do movimento quilombola, em nome da coordenação nacional, que é apenas
uma fala institucional, mas que é o resultado do que é o movimento quilombola no
Brasil, queríamos começar dizendo quem são os quilombolas. Porque nós estamos com
quilombos de mais de trezentos anos nesse País e até hoje nós temos gastado energia pra
dizer pra esse Estado brasileiro quem são os quilombos. E isso pra nós é motivo de
constrangimento porque isso significa dizer que esse Estado não reconhece os seus e não
sabe quem constitui essa sociedade. E pra dizer quem são os quilombolas eu queria dizer
que não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de africanos. A
Escravidão foi uma condição social que vocês [o Estado] nos impuseram. Portanto, os
quilombos não nascem apenas de uma herança escrava. Ele nasce de uma determinação
do povo negro de que nós não queríamos ser escravos. Nós nos rebelamos contra a
escravidão porque nós nascemos livres e queríamos ser livres, e uma das maiores
expressões de liberdade desse país foi a constituição dos quilombos. Portanto, nós somos
construtores da sociedade brasileira, somos parte fundamental do processo de construção
desse país, que a duras penas se constituiu e hoje nega seu passado, nega sua origem. Na
condição de herdeiros de africanos, nós trouxemos pra cá como parte de nossa memória
o processo cultural que contribuiu para a constituição do Brasil. E é exatamente porque
nós estamos aqui que nós dizemos que estamos cansados de sermos tratados como
estrangeiros, nós não somos estrangeiros, somos brasileiros e fazemos parte do
patrimônio cultural desse país. Portanto, os quilombos que se constituíram nesse país
não podem mais passar despercebidos das políticas públicas e ficar explicando em todas
as esquinas quem somos nós” (Josilene Brandão, liderança da CONAQ, durante a
audiência coordenada pelo MPF em 19/09/2007).

As dimensões de identidade e resistência estabelecem estreita relação na


abordagem feita por Josilene Brandão. A identidade quilombola nasce dessa
“determinação”, dessa estratégia de fazer frente às lógicas excludentes e
repressivas do Estado brasileiro. Portanto, a identidade de resistência quilombola
se constitui e se expressa como afirmação da cultura, da organização social, dos
usos e costumes, da territorialidade das comunidades quilombolas, em
contraponto àquelas que se concebem na dita ‘sociedade nacional’.

A identidade quilombola traz ao longo de sua história uma dimensão de


resistência. Por esse processo de resistência entendo que não seja apenas o
elemento histórico da fuga das fazendas, uma vez que muitos quilombos não
trazem esse elemento como constituinte de seu processo de formação. Por
resistência se entende os processos empreendidos por esses grupos para
manterem-se ao longo de sua história como sujeitos que se constituem enquanto
grupo diferenciado, com seus aspectos identitários específicos, com seu modo
próprio de viver.

97
Mais ainda, por resistência se entende a luta constante das comunidades
quilombolas pelo direito de existir, de um existir que pressupõe intrinsecamente
uma rede de relações estabelecidas que permeia a batalha cotidiana pelo direito
ao território, às tradições, à identidade.

Esse movimento histórico de resistência e existência tem uma relação profunda


com a dimensão étnico-racial. Acredito que seja fundamental ressaltar os
quilombos como resistência negra44, uma vez que esses se constituíram (e se
constituem) de modo contrastivo à crueldade que representou o
empreendimento escravista e pós-escravista, que permanece destinando à
população negra em sua diversidade um lugar social inferiorizado.

A reflexão sobre a identidade quilombola passa também pela identidade negra. É


importante ressaltar que muitas das comunidades quilombolas se constituem
como espaços interétnicos. Essa perspectiva, contudo, não descaracteriza a
identidade negra que é fundante para esses grupos.

A perspectiva identitária que molda o constructo de pertença à categoria étnico-

racial se dá numa esfera fundamentalmente relacional, na qual se é visto como tal

pelo grupo e assim é possível se ver. Fredrik Barth (2000) incita, em suas

ponderações, as fronteiras étnicas e a importância da relação com o “outro” para

a construção do “nós” e vice-versa. As distinções entre categorias étnicas

implicam efetivamente em processos de exclusão e de incorporação. Apesar das

mudanças de participação e pertencimento no processo histórico individual e

coletivo, as distinções que dão voz a “nós” e a “eles” são reificadas, porém

mantidas.

Munanga (1994) também ressalta o caráter relacional da identidade:

44É importante novamente pontuar que as comunidades quilombolas se caracterizam muitas vezes como
espaços interétnicos. Entretanto, sua predominância e marca fundamental é a resistência negra.

98
“Qualquer grupo humano, através de seu sistema axiológico sempre selecionou alguns
aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A
definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm
funções conhecidas: a defesa da unidade de grupo, a proteção do território, as
manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos. (Munanga,
1994: 177-178)

A identidade, portanto, é um constructo das relações sociais. Se refere a um


modo de ser no mundo e de ser na relação com os outros. A identidade resulta
também na ênfase na diferença, pois ao mesmo tempo que aproxima o ‘nós’,
distancia o ‘outro’.

Nessa perspectiva identitária, é fundamental, como pontua Segato (2005),


conceber o elemento ‘cor’ como signo. Se é um elemento semântico, portanto, é o
produto de uma atribuição, de um modo de ler socialmente compartilhado e de
um dado contexto histórico.

“Num país como o Brasil, quando as pessoas ingressam a um espaço publicamente


compartilhado, classificam primeiro – imediatamente depois da leitura de gênero
binariamente, os excluídos e os incluídos, lançando mão de um conjunto de vários
indicadores, entre os quais a cor, isto é, o indicador baseado na visibilidade do traço de
origem africana, é o mais forte. Portanto, é o contexto histórico da leitura e não uma
determinação do sujeito o que leva ao enquadramento, ao processo de outrificação. Por
outro lado, ser negro como “identidade política” significa fazer parte do grupo que
compartilha as conseqüências de ser passível dessa leitura, de ser suporte para essa
atribuição, e sofrer o mesmo processo de “outrificação” no seio da nação” (Segato, 2005:
4).

A auto-identificação política como negro e como quilombola, e o processo que a


permeia de negação e afirmação dessa identidade, está presente na narrativa de
várias das lideranças entrevistadas:

“O pessoal das comunidades há pouco tempo começou a se identificar como negro e


como quilombola. Ainda tem resistência, mas antigamente tinha muita gente com
vergonha de dizer que era negro e que era quilombola. Até hoje, muitos tem medo de se
apresentar como quilombola” (Cledis Souza, liderança quilombola da Comunidade de
Rincão dos Martimianos, integrante da CONAQ).

Sandra Silva, integrante da Federação Estadual de Quilombos de Minas Gerais e


representante desse estado na CONAQ, comenta a auto-identificação das
comunidades como um processo complexo, reflexo dos mais de três séculos de
escravidão e da reificação do racismo:

99
“Nas comunidades de Minas, muita gente tem medo de assumir sua identidade de negro
quilombola e voltar a ser escravo. Os mais antigos não gostam que mexa na história. A
gente fica dias na comunidade mostrando que isso não existe mais, que a escravidão
acabou, a lei mudou, agora tem proteção e tudo, a gente só quer lutar para garantir pras
comunidades o acesso à terra pra plantarem, pra terem uma vida mais digna. Aí, as
pessoas vão entendendo a nossa luta, mas é difícil. (Sandra Silva, liderança de Minas
Gerais na CONAQ).

A auto-afirmação da identidade negra e quilombola passa, em muitas das


narrativas presentes nessa pesquisa, por um processo de afirmação da luta
coletiva que tem a partir da afirmação identitária um grande pilar. Essa auto-
afirmação representa um radical rompimento com a invisibilidade desses
grupos, com a opressão histórica sofrida e com o racismo. Portanto, reconhecer e
afirmar a identidade negra e quilombola se situa como parte fundamental da
trama político-organizativa das comunidades pela luta de seus direitos45.

Essa identidade de resistência se configura ao longo da história de nosso País a


partir de uma multiplicidade de formas, com base nas lógicas de cada grupo e de
cada contexto. O diálogo e o estabelecimento de uma rede de relações mais
abrangente entre as comunidades quilombolas se fortalecem de forma crescente
nas últimas décadas do século XX e nesse princípio do século XXI. Um fruto
expressivo dessa organização é a mobilização para a inserção no texto
constitucional do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
em 1988.

Após a entrada em vigor do Artigo supracitado, a interação e a organização


política das comunidades quilombolas ganham proporções nacionais. A
identidade de resistência desses grupos atualmente estabelece redes cada vez
mais amplas de solidariedade, luta comum e caminhar partilhado na busca pela
garantia de seus direitos. A identidade de resistência é, portanto, fundante para a
identidade quilombola.

45
Nas narrativas das lideranças quilombolas, a identidade negra é reafirmada como pilar da identidade
quilombola e isso não contradiz o fato de as comunidades quilombolas apresentarem muitas vezes uma
composição interétinica (com a presença de brancos e indígenas).

100
Outro elemento presente na fala de Josilene Brandão remete-se às várias
iniciativas em curso, seja em âmbito local, como nacional, de questionar a
identidade quilombola, tendo como eixo central uma concepção enrijecida do
conceito de quilombo.

Essa abordagem oposicionista reflete, também, a não incorporação histórica por


parte do Estado brasileiro de sua pluralidade. O Estado brasileiro se constitui
sem conceber e reconhecer a pluralidade de povos e culturas aqui presentes. Esse
Estado, construído a partir de um viés embranquecido e eurocêntrico, que negou
a sua alteridade é apontada fortemente na abordagem de Brandão.

A constituição do Estado, apesar de serem os africanos (e seus descendentes) e os


indígenas elementares nesse processo, foi concebido a partir da negação dessa
parte fundamental. Essa negação expressou-se no não reconhecimento de outros
usos e concepções da terra para além da privada, a partir da Lei de Terras, de
1850; expressou-se na proibição de serem usadas línguas africanas e indígenas,
de serem praticadas outras formas de religião46. Ou seja, é um Estado que, nas
palavras de Josilene, concebe esses vários povos e comunidades aqui presentes
como “estrangeiros”, na medida em que não incorpora essas visões em sua
constituição e não os concebe como parte de seu corpo.

As reflexões de Stuart Hall, sobre as identidades e a diáspora são bastante


relevantes para a questão quilombola em nosso País. As questões relativas à
identidade cultural podem apresentar-se de modo bastante paradoxal, sobretudo
em sociedades compostas por diversos povos, como o caso da brasileira. As
origens dessa multiplicidade de povos são diversas e a associação civil
estabelecida foi inaugurada por um ato de vontade (e violência) imperial. Hall,
abordando o Caribe, pontua que esta região renasceu de dentro da violência e
através dela: “A vida para a nossa modernidade está marcada pela conquista,

46
Até meados do século XX, o candomblé era crime no Brasil, assim como a capoeira e as rodas de samba.

101
expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela
da dependência colonial” (Hall, 2006: 30).

A maioria dos povos que compuseram o dito ‘novo mundo’ provém de diversas
partes do globo, com ênfase na participação africana nessa mobilidade imposta.
A construção do próprio termo África, como ressalta Hall, provém dessa
percepção moderna, englobante e violenta, uma vez que refere-se a diversos
povos, culturas e línguas, cujo ponto de origem central é o próprio tráfico de
negras e negros em situação de escravidão.

As identidades culturais, em situações coloniais e pós-coloniais constituem-se


pelas relações interétnicas, através do processo denominado por Hall como
“zona de contato”, que estabelecem contato entre povos e culturas antes
geograficamente isolados. Um ponto central nessa conjuntura, contudo, é o
contexto colonial e pós-colonial no qual o estabelecimento dessa “zona de
contato” se constitui por relações de poderes extremadamente desequilibradas e
desiguais.

A constituição das identidades, segundo Stuart Hall, é, nesse complexo processo,


estratégica e posicional. O autor aponta que a identificação está vinculada de
modo mais intenso com questões ligadas às reflexões do que podem vir a se
tornar as comunidades e povos, a como esses grupos são representados e em
como essas representações incidem na forma de autorepresentação dos mesmos.
Essas construções identitárias, nos contextos pós-coloniais, são mais relevantes
do que aquelas relacionadas à busca pela origem ou pela essencialização presente
na idéia de quem somos. Hall destaca que o processo de construção das
identidades culturais não se trata do retorno às raízes pura e simplesmente, mas
nas possibilidades de negociação dos caminhos partilhados pela coletividade.

O processo de construção identitária, de acordo com Hall, estrutura-se a partir


das lutas discursivas, da legitimação de um discurso diante de outro discurso já

102
legitimado. Esse processo de identificação, pensado sob a ótica coletiva, se
constrói dialogicamente, e é um campo fundamental para identidades coletivas
construídas em contextos coloniais e pós-coloniais, nos quais o silenciamento,
englobamento e a violência foram fundantes.

Em seus processos de construção identitária, as comunidades quilombolas


constróem um locus no imaginário nacional que se define pela afirmação de sua
condição de alteridade, de diferença, de ‘outro’ em contraponto à dita ‘sociedade
nacional’47. Contrapõem, desse modo, a idéia do englobamento, do não existir,
da extinção e apresentam-se também como símbolo de lutas pela garantia efetiva
de suas diferenças, de seus usos e costumes.

Essa construção do ‘outro’ não parte, contudo, de uma oposição rígida, embora
radical. Citando Derridá, Hall reflete que em contextos pós-coloniais a diferença
não se constitui através de binarismos, fronteiras veladas, mas de significados
que são posicionais e relacionais.

“A diferença, como sabemos, é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura


(...) Sempre há um “deslize” inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura,
enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado. A fantasia
de um significado final continua assombrada pela “falta”ou “excesso”, mas nunca é
apreensível na plenitude de sua presença em si mesma” (Hall, 2006: 33).

Em relação à concepção dos campos discursivos, o processo de assumir a


identidade quilombola tem seu foco na diferença dialógica e no esforço de
reconstrução da história, enredado a partir do fio da memória desses grupos.
Essa dimensão tem permitido trazer à tona os campos de nossa sociedade e de
nossa história enquanto nação que foram suprimidos e silenciados.

Os freqüentes questionamentos à identidade quilombola, os trabalhos que


buscam apontar falhas e fraudes no processo de certificação das comunidades e
47
A percepção de identidade contrastiva, a partir das relações estabelecidas com outros grupos, ocorre em
alguns casos também com as comunidades quilombolas e povos indígenas. Exemplo disso é o vivenciado
em Conceição das Crioulas (Pernambuco).

103
nos de titulação das terras quilombolas direcionam, fundamentalmente, para a
tentativa de inibir a reconfiguração fundiária a partir de outros desenhos e outras
perspectivas e o reconhecimento da pluralidade étnico-racial brasileira.

Essa conjuntura estabelece relação com outros processos vivenciados em regiões


bastante distantes, e em contextos muito distintos. Segato (2007) aborda um
deles, denominado pela grande mídia como “limpeza étnica”, mas que
objetivamente foi caracterizado como um processo de expropriação da terra,
onde o interesse fundiário norteou todo o ocorrido:

“Nada melhor do que as palavras de Robert Fisk, a respeito do despejo dos mulçumanos
bósnios pelos sérvios: limpeza étnica! Facilmente nossos repórteres aceitaram essa frase quando
os mulçumanos estavam vivendo em lugares devastados e estavam sendo violados e assassinados
pelos sérvios, não porque eram etnicamente diferentes de seus agressores sérvios, mas porque os
sérvios queriam as terras dos mulçumanos, e as tomaram” (Segato, 2007: 15-16).

Os interesses contrários aos direitos quilombolas, que se insurgem contra a


identidade quilombola, lutam principalmente pela não garantia do direito às
terras que as comunidades têm, uma vez que a titulação significa que a terra se
torna inalienável, coletiva, contradizendo, dessa forma, os interesses do
agronegócio, do latifúndio e da especulação imobiliária.

As lutas e mobilizações quilombolas, contudo, ao longo da história do País se


fizeram presentes e, a partir dos contextos históricos de cada época, buscaram as
estratégias possíveis para estabelecer-se em contraponto aos seus antagonistas.
Portanto, o movimento quilombola, peça chave na construção da história de
nosso País, hoje dialoga com antagonismos distintos dos séculos anteriores, o que
pressupõe novas estratégias de luta.

A característica singular que aproxima a dimensão do quilombo no período


colonial às mais recentes formas organizativas dos quilombos contemporâneos
está presente nos usos e costumes, cujas práticas estabelecem uma necessária
integração da comunidade, com vistas à consolidação do território coletivo.

104
A identidade étnica de um grupo é a base para sua organização, sua relação com
os demais grupos e sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais
definem a própria identidade é resultado de uma confluência de fatores,
constituídos pelo próprio grupo, tais como a ancestralidade comum, formas de
organização política e social, elementos lingüísticos e religiosos. Em relação ao
movimento quilombola, essa identidade nasce da determinação de afirmar-se
como alteridade, de lutar pelo seu território a partir de sua perspectiva
constitutiva, de compartilhar lutas e caminhos comuns.

105
4. Aquilombar-se

Nos porões fétidos da história


Comi podridões. Endoideci. Adoeci.
Atiraram-me no mar do esquecimento
Agarrei-me às ancoras passadas-presentes
Cavalguei as ondas
Desemboquei
Rumo à vida
A Razão da Chama – Miriam Alves

A idéia central do movimento de aquilombar-se reside nas várias estratégias e


mobilizações impetradas pelos quilombos, mocambos, terras de preto, terras de
santo (dentre outras denominações existentes) ao longo da história do País, para
manterem-se íntegras física, social e culturalmente. A perspectiva de resistência é
intrínseca, porém a resistência traz em si a concepção fundamental de existência.
Essa existência histórica fundamenta-se e ressemantiza-se no presente, no existir
atual.

Aquilombar-se é, portanto, uma ação contínua de existência autônoma frente aos


antagonismos que se caracterizam de diferentes formas ao longo da história
dessas comunidades, e que demandam ações de luta ao longo das gerações para
que esses sujeitos tenham o direito fundamental a resistirem e existirem com seus
usos e costumes. Esse existir tem um movimento fortemente voltado para a
coletividade, para os laços que unem os quilombolas entre si e que, num
movimento mais amplo e recente, une as comunidades de distintas regiões.

A resistência e a autonomia, aspectos fundamentais da construção identitária das


comunidades quilombolas, são também as linhas motoras do movimento de
aquilombar-se. Por meio de estratégias as mais distintas possíveis, essas
comunidades se estabelecem enquanto lócus de alteridade em relação à dita
sociedade nacional e reivindicam o reconhecimento de sua cultura, de seus
costumes, de suas formas de organização. Essa busca por reconhecimento passa,

106
de forma elementar, pelo reconhecimento de seu território a partir da lógica que
o fundamenta, distinta da perspectiva privada, abarcando uma dimensão
holística dos aspectos sociais, culturais e econômicos desses grupos.

Ivo Fonseca, liderança quilombola da CONAQ e da Aconeruq, aborda o


movimento de lutas das comunidades quilombolas, numa perspectiva histórica
de processo: “O Movimento quilombola pode se associar ao movimento contra a
escravidão. Você pode ver que as nossas lutas de hoje não são muito diferentes [daquelas]
da época da escravidão”.

Givânia Silva também reflete sobre esse processo mais amplo de resistência das
comunidades quilombolas:

“Os desafios de hoje são os desafios de ontem. Porque os de ontem? Porque esses foram o
desafio da superação dos navios, da escravidão, do anonimato, do abandono, e etc. Os de
hoje não são esses, mas tem a mesma finalidade que é anular qualquer possibilidade de
que preto nesse País seja tratado como o restante da população. Quando a grande
imprensa, o latifúndio, setores conservadores da sociedade reagem contra essa política
nós entendemos que o que está acontecendo hoje é o mesmo que aconteceu ontem, só que
por outros meios e outros mecanismos. O que está posto é a certeza de que cada vez mais
precisamos estar unidos. É uma luta árdua e, acima de tudo, é uma luta coletiva”.

Creio que apresentar a dimensão de que o movimento quilombola compõe-se de


um processo histórico de luta pela existência, a partir de seus usos e costumes,
seja um elemento estrutural da perspectiva do aquilombar-se. Esse movimento
marca a oposição aos antagonismos que se fizeram e se fazem presentes nas mais
variadas situações vivenciadas pelas comunidades, seja no período escravocata,
seja no período posterior à dita “abolição” da escravidão.

Esses antagonismos marcaram e marcam as mobilizações, ações e o caminhar


dessas comunidades, exigindo uma adequação de iniciativas em diálogo com os
contextos de cada época. Nesse capítulo, serão enfocadas as mobilizações e
estratégias político-organizativas posteriores à Lei Áurea das comunidades
quilombolas, com ênfase no desenho de movimentos, coordenações, associações
e federações nas últimas décadas. Essas organizações, fruto das articulações nas e

107
entre as comunidades, refletem aspectos organizacionais desses grupos e as
respectivas relações estabelecidas com a dita ‘sociedade nacional’ e com o Estado.

Serão abordadas, também, as mobilizações negras urbanas que em diálogo com


as mobilizações negras rurais foram fundamentais para denunciar e desmistificar
a idéia de que após a assinatura da Lei Áurea a situação dos negros e negras
tornou-se harmoniosa e estável. Essa resistência negra ganhou, no período pós-
abolição, novos contornos e estratégias.

A sociedade brasileira, no pós-abolição, não efetivou um processo concreto de


reconhecimento da população negra em sua diversidade como parte constitutiva
sua e construiu ao longo dos séculos XIX, XX e XXI um complexo enredo de
desigualdade racial. Os segmentos e grupos empobrecidos de descendentes de
africanos, cuja boa parte era de escravizados, mesmo após a abolição da
escravidão e a proclamação da república permaneceram em completa e violenta
desigualdade. Todavia, não apenas a opressão marca os processos vivenciados
por esses grupos. É fundamental lembrar a importância que tiveram os
movimentos, resistências e reações por parte da população negra.

No período posterior a 1888, além da grande desigualdade, a população negra de


modo geral e as comunidades quilombolas, em especial, são fortemente
invisibilizadas no escopo do Estado. O debate e a tônica que trazem para a
sociedade brasileira a discussão sobre a questão quilombola, no século XX, são
frutos de um longo processo. Os movimentos negros urbanos tiveram grande
peso nesse contraponto à invisibilidade. Somado a isso, e caracterizando-se como
o grande marco desse processo, está a força e resistência das comunidades
quilombolas, que perpassaram a história do Brasil com uma diversidade de
formações e abrangendo todas as regiões do País e chegam ao século XXI
reinvindicando seus direitos fundamentais, com ênfase no direito à terra.

108
Os movimentos negros urbanos, nesse debate da questão quilombola, são muito
relevantes. A discussão sobre os quilombos tem voz na Frente Negra Brasileira,
nos anos 1930; surge em movimentos dos anos 1940, 1950, tais como o Teatro
Experimental do Negro (Abdias do Nascimento) e ganha fôlego no bojo da
institucionalização do movimento negro, nas décadas de 1970 e 1980.

Com o acirramento dos conflitos fundiários, reflexo do intenso levante grileiro48


das décadas de 1970 e 1980, as comunidades quilombolas se juntaram às
organizações do movimento negro urbano, às vinculadas à luta pela reforma
agrária e empreenderam forte mobilização pela visibilidade da questão das
comunidades negras rurais, terras de preto e mocambos em diversos estados do
País.

Essa mobilização se materializou de modo bastante significativo nos encontros


realizados pelas comunidades negras para discutir perspectivas legais visando
outras configurações fundiárias. Os Estados que marcaram as primeiras
mobilizações articuladas das comunidades quilombolas foram o Maranhão, o
Pará, Bahia, São Paulo, Goiás e o Rio de Janeiro.

A mobilização dos movimentos negros (abarcando os movimentos quilombola,


de mulheres, urbano, dentre outros) em conjunto com outros parceiros, colocou
em pauta o direito à terra às comunidades quilombolas e, por fim, levou à
aprovação do Artigo 68 medida de caráter de reparação aos negros pela dívida
histórica da sociedade brasileira para com a população afro-brasileira.

O Artigo 68 marca um divisor de águas da categoria quilombo no escopo legal


do Estado, uma vez que de categoria de transgressão e crime (presente nas
legislações coloniais e imperiais brasileiras), passa para categoria que reivindica
direitos.

48
As narrativas do acirramento do conflito fundiário nas comunidades quilombolas nesse período surge em
diversas narrativas das lideranças entrevistadas.

109
O período posterior ao Artigo 68 tem sido marcado por uma grande inoperância
do Estado no que diz respeito à sua implementação e por uma crescente
organização e mobilização das comunidades quilombolas, cuja pauta se volta
para a efetivação de seus direitos, com destaque para o direito à terra.

Nesse processo crescente de mobilização das comunidades quilombolas, é


importante mencionar que para além do fortalecimento de organizações em
âmbito local ou estadual, as comunidades passam a estabelecer articulações
nacionais. Em 1995, no I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, realizado durante a Marcha Zumbi dos Palmares, é criada a
Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais Negras Quilombolas.
No ano seguinte, durante o Encontro de Avaliação do I Encontro Nacional de
Comunidades Quilombolas, realizado em Bom Jesus da Lapa – Bahia, é
constituída a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas, que tem como caráter central se constituir como movimento
social, não se configurando como outras formas organizativas tais como
organizações não governamentais, sindicatos ou partidos políticos.

4.1. Movimento Quilombola e a perspectiva dos Novos Movimentos Sociais

As reflexões acerca dos movimentos sociais são múltiplos, não havendo,


portanto, uma única concepção do que sejam movimentos sociais. De acordo com
Gohn (2007), os movimentos sociais simbolizam o conjunto de ações coletivas
que objetivam a reivindicação de melhores condições de vida, a partir de um viés
contestatório, e buscam estabelecer a construção de uma nova sociabilidade
humana. Essas mobilizações sociais coletivas propiciam organizações e
expressões das demandas dos grupos sociais de variadas formas. Essas
diferentes maneiras se concretizam em denúncias, mobilizações, concentrações,
manifestações, distúrbios à ordem constituída, dentre outras.

110
As lutas sociais que emergiram na Europa, a partir do final da década de 1960,
provocaram o surgimento de novas abordagens que influenciaram de modo
significativo os estudos sobre os movimentos sociais. As lutas sociais passam a
pautar, nesse período, uma multiplicidade temática. São pautadas questões
relativas à discriminação racial, de gênero, etária, do trabalho, dentre outras. Os
chamados Novos Movimentos Sociais estruturam sua ação a partir das
demandas relativas ao direito à diferença, tais como o movimento feminista, os
movimentos negros, de pessoas com deficiência, o movimento indígena e o
movimento quilombola. A referência ao “novo”, nessa abordagem dos novos
movimentos sociais, é colocada por Gohn como “uma nova forma de fazer
política e a politização de novos temas.” (Gohn, 2007: 124).

Em contraponto à perspectiva de intervenção do Estado, para assistir ou tutelar


grupos sociais oprimidos e excluídos, os novos movimentos sociais reivindicam a
autonomia e a autogestão dos grupos. A construção da autonomia, de acordo
com Gohn (2007) é feita por meio de projetos pautados pelos interesses coletivos
que permeiam a autodeterminação; pela concepção de propostas de políticas
públicas a partir de suas especificidades; de construir criticas e também
propostas de resolução para os conflitos. A autonomia, de acordo com a autora,
também se constrói a partir do diálogo e da interlocução entre os representantes
dos movimentos nas negociações, fóruns de debates, diálogos com
representantes do poder público, de modo que suas demandas sejam audíveis
para os signos dos outros sujeitos que se relacionam com os movimentos.

Visualizo o movimento quilombola fundamentalmente a partir da ótica dos


novos movimentos sociais. Concebo o movimento quilombola, nessa perspectiva,
como uma mobilização pautada num referencial coletivo, que baliza suas ações
tendo como base critérios subjetivos, identitários e comunitários. Para além de
uma abordagem voltada para aspectos econômicos, o movimento quilombola se
constitui também a partir de aspectos culturais e sociais.

111
Os movimentos sociais têm parte de sua existência fundada a partir da
contestação constante do Estado. A reivindicação insistente e a posição
contestatória em relação ao Estado representam a espinha dorsal dessas
organizações (PETRAS&VELTMEYER, 2005). Apesar de serem organizações cuja
estrutura e dinâmica estão apoiadas totalmente na atividade política, os
movimentos sociais não se institucionalizam como outras formas de organização
política, como ONGs, sindicatos e partidos políticos (FELTRAN, 2005).

Os fundamentos dos movimentos sociais se baseiam em pressionar o estado para


que este produza, forneça e garanta políticas que ajudem a suprir as carências
que originalmente levaram à mobilização social daqueles que compõem o
movimento. Nesse contexto, percebo que o movimento quilombola se constitui
como agente de pressão social, que mobiliza o Estado para efetivar respostas às
suas demandas. A partir do momento em que é incitada, a atuação do Estado
passa também a reverberar sobre o movimento.

A aproximação das relações entre o movimento quilombola com o Estado


possibilitou novas atuações políticas para as comunidades quilombolas. As
novas leis, direitos e programas implementados contribuíram para a re-
estruturação social no interior das comunidades e, também, dos laços entre elas.
Esse crescente se fez possível após a promulgação da Constituição Federal de
1988, e das diversas legislações correlatas que se fizeram seqüentes. Nesse
sentido, as comunidades quilombolas se expressam mais do que definições
jurídicas, e se tornam instrumentos de luta.

4.2. Mobilizações anteriores à Constituição de 1988

Realizarei, nesse subcapítulo, um breve histórico das mobilizações do


movimento negro urbano e quilombola que antecederam o processo constituinte
e a própria Constituição Federal de 1988, durante o século XX. Cabe destacar a

112
importância dessas mobilizações no tocante à entrada na Carta Magna de 1988
do Artigo 68, do ADCT, que rege sobre o direito das comunidades quilombolas à
terra que tradicionalmente ocupam, como também nos Artigos das Constituições
Estaduais de diversas Unidades Federativas, que também regem sobre o tema.
São movimentos que incidem sobremaneira no fortalecimento do debate étnico-
racial na sociedade brasileira, bem como no debate referente às comunidades
quilombolas e aos seus direitos.

Como importante marco do início do século, em relação à mobilização em torno


da questão racial, a Frente Negra Brasileira, fundada em 1931, em São Paulo,
trazia uma estrutura organizacional bastante complexa. Além da estrutura
organizacional de conselhos, possuía uma organização paramilitar, com rígido
treinamento. Segundo depoimento coletado pelo historiador Clovis Moura
(1983), havia bastante incompreensão da sociedade em relação aos reais objetivos
da Frente. Alegavam que seus objetivos estavam focados em uma prática
discriminatória ao contrário, argumento esse ainda bastante presente nos
opositores das políticas afirmativas e, em especial, das políticas de quilombo nos
dias atuais.

A Frente Negra transforma-se em partido político em 1936. Estruturada


inicialmente em São Paulo, construiu núcleos em outros Estados, como Rio de
Janeiro, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, dentre outros. A proposta da
Frente estava voltada para uma filosofia educacional como motor propulsor da
integração da população negra. Teve grande importância para trazer à tona o
debate sobre a questão racial e sobre a situação da população negra no País. De
acordo com Abdias do Nascimento (2002), a Frente, contudo, partia de uma
perspectiva integracionista e não enfocava sua atuação na construção de uma
identidade específica, seja social, cultural ou étnica. Foi extinta com a repressão
do Estado Novo, em 1937.

113
No período de redemocratização, no fim do Estado Novo, surge em 1944 o
Teatro Experimental do Negro - TEN, no Rio de Janeiro, que tem como
fundadores Abdias do Nascimento e Solano Trindade. O TEN aliou à atuação
política a questão da afirmação cultural, tendo como referência a herança e
tradição africana. O TEN teve como um de seus produtos o jornal Quilombo, que
retratava o ambiente político e cultural da mobilização anti-racista no Brasil.

“Teríamos [nós do TEN] de agir urgentemente em duas frentes: promover, de um lado, a


denúncia dos equívocos e da alienação dos chamados estudos afro-brasileiros, e fazer
com que o próprio negro tomasse consciência da situação objetiva em que se achava
inserido. Tarefa difícil, quase sobre-humana, se não esquecermos a escravidão espiritual,
cultural, socioeconômica e política em que foi mantido antes e depois de 1888, quando
teoricamente se libertará da servidão” (Nascimento, 1997: 73)

O Teatro Experimental do Negro traz, portanto, uma dimensão importante na


mobilização pelos direitos de negras e negros no Brasil, que é a dimensão
cultural e identitária. O TEN influenciou a proliferação de várias organizações
negras de diferentes aspectos pelo País, que atuavam do ponto de vista cultural,
político, recreativo, intelectual e literário (Munanga e Gomes, 2006).

A partir da década de 70, a luta contra o racismo ganha novo fôlego, juntamente
com diversos outros movimentos de base popular. Um marco desse período é a
afirmação do ‘20 de novembro’ como dia da consciência negra, data essa que
marca o assassinato de Zumbi dos Palmares. O primeiro ato realizado em
homenagem ao quilombo de Palmares, feito no dia 20 de novembro de 1971, é
organizado pelo Grupo Palmares, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O ato teve
como objetivo contrapor a data estabelecida como ícone para a população negra,
o dia oficial da libertação da escravatura (13 de maio). Essa mobilização foi o
início da instituição do ‘20 de novembro’ como Dia Nacional da Consciência
Negra. Esse contraponto entre o ’13 de maio’ em relação ao ’20 de novembro’ tem
como fundamento estabelecer o contraponto à idéia de que a ‘abolição’
simbolizou realmente uma ruptura para a situação de violência e desigualdade

114
na qual vivia e vive a população negra, além de trazer à tona o líder Zumbi dos
Palmares, símbolo contemporâneo da luta contra todas as formas de
discriminação e opressão que continuam a impactar a vida dos descendentes de
africanos em nosso País.

Em 1978, durante um ato de protesto de vários grupos negros contra a morte sob
tortura do trabalhador Robson Silveira, foi fundado o Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial, posteriormente conhecido apenas como
Movimento Negro Unificado – MNU. Esta organização reúne diversos grupos
do movimento negro e possuiu um caráter nacional.

As mobilizações negras urbanas, além de trazer a discussão sobre a questão


quilombola, iniciaram as articulações com as mobilizações quilombolas nas
décadas de 70 e 80 do século XX. É importante ressaltar que a mobilização das
comunidades negras rurais teve um grande crescente nesse período, em resposta
ao acirramento da violência no campo e ao avanço da grilagem de terras das
comunidades.

“Depois da constituição de 1969, a disputa por terra fica maior, aumenta a grilagem. O
Estatuto de Terras dos militares [de 1964] e a constituição de 1969 dá início a muitos
conflitos. No Maranhão houve muita morte (...). Com essa luta pela terra, as
comunidades se levantaram, se organizaram. O Maranhão tinha três entidades, o Centro
de Cultura Negra (CCN), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Cáritas que, com o fim
da ditadura, foram trabalhar [com os grupos camponeses] pelo direito à terra. O objetivo
direto do CCN era trabalhar com a zona rural, com as comunidades quilombolas, pra
rever e lutar pelas terras. Aí nós começamos o movimento, fizemos levantamentos. O
movimento cresce a partir daí. Um dos trabalhos do CCN era diretamente com Frechal.”
(Ivo Fonseca, liderança quilombola da Comunidade de Frechal, MA, e um dos
fundadores da CONAQ).

A mobilização quilombola, que na fala de Ivo remete ao Estado do Maranhão,


tem forte crescente no final da década de 1970 e nos anos de 1980. A articulação
das organizações do movimento negro urbano com as comunidades quilombolas
foi bastante importante nesse período. Mobilizações semelhantes entre
organizações do movimento urbano negro e das comunidades quilombolas se
fizeram presentes nesse período em outros Estados, como o Pará. Os

115
movimentos campesinos também constituíram um forte elemento de articulação
dessa época.

A legislação a qual se refere Ivo Fonseca remete-se ao Estatuto da Terra criado


pela lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, e à Constituição de 1969, ambos
instrumentos do regime militar. Em relação ao Estatuto da Terra, sua criação
estava intimamente ligada ao clima de insatisfação reinante no meio rural
brasileiro e ao temor do governo e da elite conservadora de uma possível eclosão
de uma revolução camponesa.

As metas estabelecidas pelo Estatuto da Terra (1964) eram basicamente duas: a


execução de uma reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura. Três
décadas depois, é possível constatar que a primeira meta ficou apenas no papel,
enquanto a segunda recebeu grande investimento governamental,
principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da agricultura focada no
latifúndio e na monocultura.

Esse modelo teve grande impacto nas comunidades quilombolas. O foco


desenvolvimentista, voltado para o mercado, e a especulação da terra elevaram
os níveis de conflito e disputa por terra no País. Muitas comunidades
quilombolas, nesse período, tiveram significativas partes de seu território
tomadas por processos severos e violentos de expropriação, tal qual o apontado
por Ivo em sua fala. Esse levante violento das décadas de 70 e 80 fomentou a
mobilização quilombola e a luta pelos seus direitos. E essa mobilização dialogou
com outras entidades e organizações, tanto as do movimento negro urbano como
as ligadas ao movimento campesino.

Um dos marcos dessas mobilizações foram os encontros estaduais das


comunidades negras rurais do Maranhão. O 1º Encontro foi realizado em 1986 e
teve a participação de aproximadamente 46 comunidades, sindicatos de
trabalhadores e trabalhadoras rurais de varias regiões, com o apoio do Centro de

116
Cultura Negra do Maranhão. A principal reivindicação apresentada pelas
comunidades era a questão fundiária, que latejava com conflitos graves e
diversos processos de expropriação em curso. Os 2º e 3º Encontros das
comunidades negras rurais do Maranhão ocorreram, respectivamente, em 1988 e
1989.

O estado do Pará apresenta-se, também, como precursor ao abrigar encontros de


entidades do movimento negro e das comunidades quilombolas. Os primeiros
foram realizados em 1988 e 1989. A articulação das mobilizações quilombolas,
nesse estado, com organizações do movimento negro urbano também foram
fundamentais para o processo de defesa dos direitos das comunidades desse
estado, e para fortalecer a articulação na assembléia constituinte para efetivar o
Artigo 68, do ADCT.

Outros encontros e mobilizações regionalizadas das comunidades quilombolas, e


seus desdobramentos políticos incidiram no processo da Assembléia
Constituinte. Comunidades quilombolas mobilizadas de alguns estados (com
destaque para Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Goiás, Maranhão e Pará), com o
apoio de organizações do movimento negro como o CCN (Centro de Cultura
Negra do Maranhão) e o Cedenpa (Centro de Estudo e Defesa do Negro do
Pará), estabeleceram articulações para a construção de uma proposta conjunta
que abordasse essa dimensão, numa perspectiva de direitos, na Carta Magna.

Além dos marcos citados acima, outros encontros e seminários também


marcaram esse processo de mobilização para a questão quilombola que
antecedeu a Constituição de 1988:

“Em junho de 1988, realizou-se na Universidade de São Paulo, o Congresso Internacional


da Escravidão. Alguns antropólogos que trabalhavam com populações afro-brasileiras, a
partir das discussões suscitadas pelo trabalho “Terras negras: invisibilidade
desapropriada”(Bandeira, 1988), apresentaram à assembléia uma proposta de moção
relativa às terras negras, que foi aprovada e encaminhada à Constituinte” (Bandeira,
Maria de Lourdes. In: LEITE, Ilka Boaventura, 2004: O Legado do testamento: A
Comunidade de Casca em Perícia: 12).

117
As comunidades quilombolas, as organizações do movimento negro urbano,
organizações campesinas, pesquisadores e parlamentares se mobilizaram em
diversos eixos para articular a entrada de artigo constitucional que tratasse dos
direitos fundiários das comunidades quilombolas.

“Relançado por militantes e intelectuais afrodescendentes, [a questão quilombola]


tornou-se pouco a pouco um fato político, ao alcançar visibilidade e interagir com
diversos setores progressistas que tinham voz e voto na Assembléia Constituinte” (Leite,
2004: 19).

Os parlamentares tiveram um peso fundamental nesse processo. Além da


Deputada Benedita da Silva, destacam-se na Constituinte de 1988 a presença dos
deputados federais Carlos Alberto de Oliveira Caó (PDT/RJ) e Paulo Paim (PT-
RS).

O texto constitucional de 1988, ano no qual se marcava o centenário da


“abolição” da escravidão, traz conquistas relevantes (frutos dessas mobilizações)
no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que garante às
comunidades quilombolas o direito à terra; nos Artigos 215 e 216, que garantem
o direito à manutenção de sua própria cultura e tradição; e no tocante à
caracterização do racismo como crime inafiançável e imprescritível, no Artigo 5º,
inciso XLII, da Constituição Federal de 1988.

Outros marcos legais desse período, construídos também em resposta à


mobilização das comunidades quilombolas e das organizações do movimento
negro urbano, é a inclusão em várias Constituições Estaduais artigos que
garantem o direito à terra para as comunidades quilombolas. Os estados que
trazem em suas constituições artigos sobre os direitos territoriais quilombolas
são Maranhão (Art. 229), Bahia (Art.51 ADCT), Goiás (Art. 33 ADCT), Pará (Art.
322) e Mato Grosso (Art. 16 ADCT)49.

49
Para maior detalhamento dessa questão, vide capítulo 3.

118
Posteriormente, outros estados aprovaram legislações que tratam sobre o tema.
Os estados do Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo possuem instrumentos legais sobre a
regularização fundiária dos territórios quilombolas. Somando-se os estados com
artigos constitucionais e com legislações específicas, é possível chegar a onze
unidades federativas. Em muitos desses estados, registra-se, também, maior
avanço na emissão dos títulos territoriais das comunidades.

4.3. Mobilizações Quilombolas nos Estados

As organizações políticas das comunidades se proliferaram nos vários estados


durante as décadas de 1980, 1990 e durante os primeiros anos do século XXI. Em
algumas unidades federativas, as mobilizações datam de mais de duas décadas,
como o Pará e o Maranhão. Essas primeiras organizações estaduais tiveram
grande peso no processo mobilizatório das comunidades de outros estados e na
constituição da coordenação nacional. Em outros casos, a organização das
comunidades em nível estadual é mais recente e reflete, muitas vezes, a resposta
das comunidades aos constantes conflitos vivenciados em seus territórios e a
organização pela defesa do território. Fundada em 2007, a coordenação das
comunidades quilombolas do Espírito Santo é um exemplo emblemático dessa
situação, dado o forte conflito presente na região norte desse estado entre
empresas multinacionais e as comunidades.

Os processos organizativos nos níveis estaduais estabelecem-se como elo


fundamental na construção do movimento quilombola nacional. A condução da
luta está voltada para a garantia dos direitos das comunidades, para a superação
do racismo e da desigualdade e tem na garantia do território coletivo seu eixo
central. O território estabelece uma relação que abarca dimensões muito

119
profundas do existir e do resistir das comunidades. A garantia dos territórios
fundamenta o sentido da luta quilombola.

A luta pelos direitos quilombolas, dos quais se destaca o direito à terra, e o


processo político-organizativo que a permeia, reflete-se também nas conquistas
legais e na concretização de processos de regularização fundiária e de políticas
públicas.

Cada processo estadual tem suas especificidades que estruturam a organização


das comunidades em diferentes dinâmicas. Abordarei, a seguir, em maior
detalhe, os processos organizativos de alguns dos estados que possuem
comunidades quilombolas50.

Maranhão

No Maranhão, as mobilizações quilombolas nas últimas décadas do século XX se


estruturaram e se amplificaram em resposta ao levante grileiro que colocou
muitos territórios das comunidades quilombolas desse estado em situação de
vulnerabilidade e violência, como já mencionado anteriormente. Essa
mobilização teve grande apoio e parceria de organizações do movimento negro
urbano e de direitos humanos.

“A comunidade toda tem que lutar pela terra. Quando começamos a enfrentar os
latifundiários com apoio do movimento Negro, em 1979, 1980, 1981, vigorava no
Maranhão a chamada “lei de chumbo”, e Frechal acompanhou todo esse processo. Nessa
época tinha briga, pistoleiro, então passamos a lutar pela terra e ai trabalhamos e
divulgamos a história do povo negro que a comunidade não conhecia. Isso com ajuda do
CCN, da Cáritas, CPT. As duas últimas não trabalhavam a questão racial, apenas a da
terra e o CCN puxou a discussão racial. Antes não tinha nenhuma lei, A lei foi nascer em
1988, com a Constituição Federal. Mas antes dela, nós já estávamos lutando” (Ivo
Fonseca, liderança quilombola do Maranhão, integrante da CONAQ).

50
As pesquisas e dados existentes remetem à existência de comunidades quilombolas em 24 estados da
federação (Vide Treccani).

120
Uma das organizações do movimento negro urbano que teve um importante
papel na atuação conjunta com o movimento quilombola foi o Centro de Cultura
Negra do Maranhão – CCN, fundado em 1979.

“A luta do Centro de Cultura Negra (CCN) do Maranhão inicia-se a partir de 1979. O


CCN teve três eixos de atuação, no início: combate a discriminação racial, educação para
população negra e a garantia de território para as terras de preto do estado do Maranhão,
ou comunidades negras rurais como era utilizado. Nessa ação para as comunidades
negras rurais, havia um levantamento dos dados históricos e culturais das
comunidades.” (Ivan Costa, militante do CCN e técnico do Projeto Vida de Negro há 24
anos).

No processo de regularização fundiária dos territórios das comunidades


quilombolas, o Projeto Vida de Negro, parceira do CCN-MA com a Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos, iniciado em 1988, teve um papel
fundamental. Esse projeto desenvolve ações para os encaminhamentos legais,
estudos e identificação de áreas para titulação de posse definitiva das
comunidades quilombolas, ou terras de preto. O trabalho voltado às
comunidades negras rurais priorizou, num primeiro momento, os municípios de
Itapecurú Mirim e Santa Rosa de Preto, Cajueiro no município de Alcântara,
Mandacaru de Preto no município de Caxias, Jacaraí dos Pretos no município de
Icatu. Todos esses municípios estavam em conflito agrário, com focos iniciais na
década de 1970 e potencializado de modo intenso na de 1980, principalmente
entre os anos de 1984 até 1987.

O Projeto PVN foi uma iniciativa pioneira no Brasil em relação à aplicação do


Artigo 68 do ADCT, o que balizou esse processo em outros estados. Nesse
projeto, destacam-se o estudo de caso da Comunidade de Frechal, Município de
Mirinzal, desenvolvido entre 1990 e 1992, e o estudo de Jamari dos Pretos,
Município de Turiaçu, entre 1992 e 1994. Ambas as comunidades estão situadas
no estado do Maranhão. Um marco importante das mobilizações quilombolas do
Maranhão, e dos trabalhos realizados no PVN, foi a criação da Reserva
Extrativista do Quilombo Frechal/MA, em 1992, após uma história de resistência
à opressão e de luta pela afirmação da comunidade. Até o presente momento, o

121
PVN mapeou 527 comunidades e assessorou a produção de 33 processos de
titulação de terras junto ao INCRA e ao Iterma.

Outro marco das mobilizações quilombolas maranhenses, é a realização de


diversos encontros das comunidades desse estado. Ao todo, o movimento
quilombola do Maranhão organizou oito Encontros de Comunidades Negras
Rurais do estado, com a parceria de outras organizações como o CCN. O 1º
Encontro de Comunidades Negras Rurais do Maranhão, realizado em 1986,
contou com participação de aproximadamente 46 comunidades, sindicatos de
trabalhadores e trabalhadoras rurais de varias regiões. A principal reivindicação
apresentada pelas comunidades era a questão fundiária, que latejava com
conflitos graves e diversos processos de expropriação em curso. Essa
reivindicação se mantém como a principal do movimento quilombola desse
estado.

Os demais encontros foram realizados, respectivamente, nos anos de 1988, 1989,


1995, 1997, 2000, 2003 e 2006. Em 2006, foi realizado o VIII Encontro das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão, em Itapecuru-Mirim, e
foi coordenado pela Aconeruq.

Os encontros das comunidades quilombolas do Maranhão tiveram forte relação


com a mobilização de outros estados e com a construção do movimento nacional:

“Em 1986, o CCN organiza o primeiro encontro das comunidades quilombolas do


Maranhão, que teve quase cinqüenta comunidades. No ano seguinte, organizamos o
segundo encontro e depois o terceiro. No quarto encontro começamos a pensar a
organização do movimento em 1995, quando foi criada a Coordenação Provisória do
Estado e também a Nacional. Nessa época, Bahia, Goiás, Maranhão, Rio de Janeiro,
Pernambuco estavam à frente da luta, depois outros Estados, como Rio Grande do Sul e
Mato Grosso começaram a aparecer. Nós conseguimos mobilizar vários Estados em 1995
na Marcha [Zumbi]. O movimento no Maranhão se dá também com a localização de
outros movimentos no País, sempre buscando parceiros” (Ivo Fonseca, liderança
quilombola do Maranhão, integrante da CONAQ).

O peso da articulação quilombola do Maranhão é significativo para processos


vivenciados em outros estados e para a própria coordenação nacional de

122
quilombos. No estado do Maranhão, foi fundada a primeira articulação
quilombola em nível estadual. Em novembro de 1994, foi criada a Coordenação
Estadual Provisória dos Quilombos Maranhenses. Esta foi substituída, em 1997,
pela Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão -
Aconeruq. Mais de 430 comunidades maranhenses estão vinculadas à Aconeruq.

De acordo com dados sistematizados das comunidades quilombolas, a partir da


integração da base de dados de diferentes órgãos governamentais, da sociedade
civil e acadêmicos51, realizada por Girolamo Treccani (2006), existem 856
comunidades quilombolas no Estado do Maranhão. Se levarmos em
consideração as comunidades certificadas pela FCP, em processo no INCRA de
regularização, as tituladas e as que estão em situação de conflito, esse número é
de 287 no Maranhão52. Elas concentram-se principalmente nas regiões da
Baixada Ocidental, da Baixada Oriental, do Munim, de Itapecuru, do Mearim, de
Gurupi e do Baixo Parnaíba.

Fruto das lutas quilombolas desse estado, o Maranhão é um dos cinco no País
que possui texto constitucional que reconhece às comunidades quilombolas o
direito à terra, dado no artigo 229 na Constituição Estadual do Maranhão,
promulgada em 1989.

O Maranhão lista como o segundo estado brasileiro com mais terras de quilombo
tituladas. O primeiro estado em número de títulos emitidos é o Pará. São
conquistas que refletem a longa luta das comunidades quilombolas
maranhenses, articuladas em nível estadual na Aconeruq. Até o presente
momento, 20 títulos de propriedades das terras foram emitidos para 22
comunidades quilombolas do Maranhão. Os títulos foram emitidos pelo governo
estadual, por meio do Iterma - Instituto de Terras do Maranhão.

51
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA,
UFAP, Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
52
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

123
Apesar do avanço nas titulações em muitas terras quilombolas, há muitas outras
que ainda aguardam a finalização de seus processos e lutam pela garantia de
seus territórios. Há cerca de uma centena de processos para a titulação de terras
quilombolas situadas no Maranhão.

A dimensão do conflito, no cotidiano das comunidades é bastante intensa. O


conflito permeia, sobretudo, a disputa pelos territórios quilombolas. Em relação
ao estado do Maranhão, cabe mencionar o caso de Alcântara. Composta de mais
de uma centena de comunidades, essa ilha protagonizou nos anos de 1986 e 1987
um amplo deslocamento compulsório empreendido pelo Centro de Lançamento
de Alcântara - CLA. Os impactos desse deslocamento são fortemente presentes
nas comunidades e estes poderão ser amplificados, uma vez que existe a ameaça
de novos deslocamentos forçados na ilha.

As comunidades quilombolas maranhenses estão organizadas em nível estadual


na Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão, a
ACONERUQ. Esta associação tem como objetivo fortalecer a organização do
movimento quilombola e lutar coletivamente com as comunidades pela
regularização de suas terras. A atuação da associação está voltada para o
incentivo à participação política dos quilombolas, à realização de cursos de
capacitação e à troca de experiências entre as comunidades sobre seus desafios e
estratégias de lutas.

Como já dito anteriormente, entre as conquistas do movimento quilombola no


Maranhão, está a criação da Reserva Extrativista de Frechal e a emissão de 20
títulos para 22 comunidades quilombolas. Há grandes desafios a serem
conquistados, contudo, uma vez que a grande maioria das comunidades são
violentadas e expropriadas por processos de grilagem em seus territórios e por
conflitos originados dessa situação de instabilidade.

124
Pará
Ao dar ênfase às regiões nas quais a organização e a mobilização quilombolas
inicialmente se deram, cabe destacar o Estado do Pará, onde surge uma das
primeiras organizações quilombolas. Em 1989, foi fundada a Associação das
Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná –
Arqmo, que surgiu em resposta às invasões, processos de expropriações e de
violência contra os territórios quilombolas ali situados, a partir da década de 70.

Alguns outros fatores potencializaram essa mobilização quilombola no estado do


Pará. No final da década de 1980, a construção da barragem na Cachoeira da
Porteira, em Oriximiná, ocasionou a primeira audiência pública da história do
Pará para discutir os impactos de um grande projeto. Esta audiência marcou
fortemente a discussão sobre a implementação do Artigo 68. (Pereira, 2008).

Nas localidades onde a mobilização das comunidades quilombolas em defesa de


seus territórios se iniciou primeiramente, é possível visualizar maior avanço no
processo de regularização fundiária. No Pará, alguns territórios quilombolas
trazem essa característica, tais como a região do Trombetas, onde está situado o
município de Oriximiná.

É justamente em Oriximiná, Pará, que ocorreu a primeira titulação de terra


quilombola no País, em acordo com o disposto no Artigo 68, do ADCT da CF.
Esse título foi concedido à comunidade de Boa Vista, em 20 de novembro 1995,
pelo INCRA e corresponde aos 1.125 hectares de seu território.

O Pará é também o estado que possui o maior número de títulos emitidos. Até o
presente momento, foram emitidos 36 títulos que relacionam-se à garantia do
território de 88 comunidades quilombolas. Desse total, 27 títulos foram emitidos
pelo Iterpa – Instituto de Terras do Pará.

Desde 1998, o Pará conta com uma legislação que regulamenta o processo de
titulação dessa categoria de terras. Inovadora, essa legislação garante o direito à

125
auto-identificação das comunidades sem a necessidade do laudo antropológico -
algo que o governo federal só veio a reconhecer em 2003.

Tendo como base os dados de Treccani (2006), existem 389 comunidades


quilombolas no Estado do Pará. Ao se cruzar apenas as comunidades certificadas
pela FCP, em processo de regularização no INCRA, as tituladas e as que estão em
situação de conflito, esse número é de 170 no Pará53.

Mesmo com significativos avanços em muitos territórios quilombolas, o Pará


possui algumas comunidades em situação de conflito e vulnerabilidade bastante
acentuada. Dentre esses territórios quilombolas paraenses que apresentam
graves situações de conflito e um processo de organização das comunidades
mais recente, cito a Ilha do Marajó. De acordo com Luiza Betânia:

“Não existe uma associação quilombola da Ilha do Marajó, mas sim do município. A
gente está buscando fazer uma coordenação municipal. Na prática, ela já funciona, mas
não é legal. Em Marajó, temos muita dificuldade de locomoção e financeira. Um dos
motivos é a localização geográfica, tem muitos rios. Estamos tentando fazer essa
associação em nível da Ilha de Marajó, mas só de um lado da ilha. O outro lado, que fica
perto de Macapá, ainda não temos contato. Duas pessoas da nossa comunidade
participam da executiva estadual [Coordenação Estadual de Quilombos do Pará –
Malungu]. Nossa relação é boa, porque estamos sempre em contato. A gente está vendo a
dificuldade deles também e eles nos ajudam a divulgar a situação do Marajó, que é muito
difícil. A Malungu está priorizando a luta com os quilombolas do Marajó. A gente luta
pelo território e temos muitos fazendeiros em nossas terras. Mas hoje não queremos
confronto com os fazendeiros, porque eles têm muito mais aparato do que a gente”.
(Luiza Betânia, liderança quilombola da Ilha do Marajó, Pará, integrante da Malungu).

A fala de Luiza mostra a realidade complexa das comunidades quilombolas no


Pará. A situação das comunidades da Ilha de Marajó sinaliza para a grande
desigualdade hoje presente nesse território entre as comunidades e aqueles que
estão em seus territórios, os fazendeiros. Ter “mais aparato que a gente”
simboliza um nível de desigualdade bastante intenso, que apresenta reflexos,
inclusive, na mobilização desses grupos em relação à garantia dos direitos de
seus territórios.
53
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

126
As comunidades quilombolas do Pará alcançaram diversas conquistas pioneiras,
o que abriu caminho para a consolidação dos direitos das comunidades
quilombolas em todo o Brasil. As conquistas dos quilombolas paraenses, para
além das titulações, traduzem-se em leis estaduais e programas de governo
destinados especificamente a este setor da população.

Neste processo de lutas, a mobilização das comunidades quilombolas contou


com o apoio de diversas organizações, como o Centro de Estudos e Defesa do
Negro do Pará (Cedenpa), a Comissão Pastoral da Terra -Pará, a Comissão Pró-
Índio de São Paulo, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará
(Fetagri) e a Universidade Federal do Pará.

A Arqmo em conjunto com outras associações regionais do estado do Pará


integram a Malungu – Coordenação Estadual das Associações das Comunidades
Quilombolas do Pará.

Malungu, nome da Coordenação estadual, é uma palavra de origem africana que


significa companheiro. A representação estadual foi criada em Santarém em
novembro de 1999, em caráter ainda provisório. Em 2002, a Coordenação
Estadual realizou a sua primeira assembléia geral no Município de Baião. Em
março de 2004, a Malungu foi oficialmente criada com a aprovação de seu
estatuto, a eleição do Conselho Diretor e da Coordenação Executiva e a definição
das prioridades de trabalho da organização.

A Malungu tem como objetivos a promoção da articulação entre as associações e


as comunidades quilombolas no Pará bem como a apresentação e defesa de suas
reivindicações diante das autoridades municipais, estaduais e federais. Tem suas
estratégias de luta pautadas pela busca da titulação das terras de quilombo; pela
promoção do manejo sustentado dos territórios quilombolas; pelo fim de todas as
formas de preconceito e discriminação racial; pela valorização das tradições, da

127
cultura e da religiosidade das comunidades quilombolas; e pela eliminação das
desigualdades de direito e tratamento entre homens e mulheres.

Bahia

A Bahia é um dos estados que possui maior presença de comunidades


quilombolas do País. Os levantamentos sobre as comunidades quilombolas no
estado da Bahia apontam para a existência de 55354 comunidades quilombolas no
Estado da Bahia. Dados oficiais, sistematizados por Treccani (2006), obtidos pelo
somatório de comunidades certificadas pela FCP, em processo no INCRA de
regularização, tituladas e que estão em situação de conflito, indicam a existência
de 20055 comunidades na Bahia.

Na Bahia, foram emitidos seis títulos referentes a quatro comunidades. A maior


parte das titulações foi realizada pelo INCRA (cinco), sendo uma delas realizada
pelo Instituto de Terras da Bahia. Algumas das comunidades hoje tituladas no
estado da Bahia são Barra, Bananal e Riacho das Pedras; Parateca e Pau D'Arco;
Rio das Rãs; e Mangal.

Fruto da mobilização das comunidades quilombolas baianas, e de demais


organizações de apoio, esse estado possui um artigo referente à titulação das
comunidades quilombolas em seu texto constitucional. No Artigo 51, do ADCT,
está disposto que “O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação
desta Constituição, a identificação, discriminação e titulação das suas terras
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”. É possível hoje
visualizar que pouco do disposto na constituição baiana foi efetivado, o que
demanda maior atuação dos poderes públicos para esse fim.

54
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
55
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

128
A Bahia tem organizações de comunidades quilombolas que são referência para
o movimento nacional e para a questão quilombola no País, como a de Rio das
Rãs. A história de grande parte dos quilombos na Bahia, como em outros
estados, é marcada por disputas e conflitos com os grandes proprietários e
grileiros. Como reflexo disso, as comunidades se organizam em diversas
coordenações regionalizadas pelo estado, como a Coordenação Regional das
Comunidades Quilombolas da Bahia (CRQ).

Um dos marcos da luta quilombola no estado da Bahia é a comunidade


quilombola Rio das Rãs, situada no município de Bom Jesus da Lapa, entre o rio
São Francisco e o rio das Rãs. O território dessa comunidade foi titulado pela
Fundação Cultural Palmares no ano de 2000.

O processo mobilizatório das últimas décadas do século XX de Rio das Rãs


ganhou força em resposta aos novos conflitos que se iniciaram na região, no
início da década de 1970. A violência foi intensa e muitos quilombolas foram
expulsos, além de algumas localidades de Rio das Rãs terem se extinguindo. No
início da década de 1980, a compra dessas terras pelo Grupo Bial-Bonfim
Indústria Algodoeira agravou ainda mais essa situação de conflito.

Nesse processo, a mobilização dos quilombolas teve o apoio de organizações e


instituições como o Ministério Público Federal, o Movimento Negro Unificado e
a Comissão Pastoral da Terra. Os quilombolas de Rio das Rãs tornaram-se
exemplo de luta e estímulo para outras comunidades quilombolas da Bahia e do
Brasil por sua resistência e suas conquistas.

Há outras comunidades quilombolas que vivenciam situações bastante


emblemáticas, como a comunidade São Francisco do Paraguaçu, localizada no
Recôncavo Baiano, mais precisamente no Vale do Iguape. Essa região abarca
mais de uma dezena de comunidades remanescentes de quilombo.

129
No recôncavo, as comunidades quilombolas estão articuladas no Conselho
Quilombola do Vale e Bacia do Iguape. Tem como principais pontos de pauta a
luta pelo direito à terra e por acesso às políticas públicas. O conselho atua com a
parceria de organizações não governamentais tais como a Comissão Justiça e Paz
da Arquidiocese de Salvador, a Comissão Pastoral dos Pescadores, a Associação
de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia.

Há processos de regularização fundiária em curso nessa região em diversas


comunidades. Esses processos têm suscitado nas elites locais grandes ações de
oposição. Talvez a mais emblemática delas tenham sido as ações contra a
titulação da comunidade de São Francisco do Paraguaçu. Essa situação ganhou
notoriedade nacional com a edição de duas reportagens pelo jornal nacional56, e
demais veículos de comunicação, em 2007 e amplificou o conflito nesse
território57.

Minas Gerais

Os diagnósticos sobre as comunidades quilombolas apontam para a existência de


25058 comunidades quilombolas no Estado de Minas Gerais. Dados oficiais,
sistematizados por Treccani (2006), obtidos pelo somatório de comunidades
certificadas pela FCP, em processo no INCRA de regularização, tituladas e que
estão em situação de conflito, relatam a existência de 9659 comunidades. De
acordo com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva - Cedefes, existem
aproximadamente 400 comunidades quilombolas no Estado de Minas Gerais. As

56
Matérias veiculadas respectivamente nos dias 14 e 15 de maio de 2007, no Jornal Nacional da Tv Globo.
57
Para maior detalhamento da abordagem midiática de grandes veículos de comunicação sobre as
comunidades quilombolas, vide o Laudo Antropológico da Comunidade São Francisco do Paraguaçu,
realizado pela antropóloga do INCRA Camila Dutervil (2007).
58
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
59
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

130
maiores concentrações de comunidades no estado estão nas regiões norte e
nordeste do estado, com ênfase no Vale do Jequitinhonha e Vale do Gorutuba.

A grande diferença entre os levantamentos de comunidades identificadas


apontam para a importância de haver uma pesquisa oficial, em âmbito nacional,
que visibilize essa realidade. Esse grande desconhecimento dessa realidade até os
dias de hoje, sinaliza o peso da invisibilidade desses grupos em nosso País.

O estado de Minas Gerais possui um quantitativo bastante grande de


comunidades. A organização das comunidades em âmbito estadual tem como
marco a criação da N´Golo - Federação das Comunidades Quilombolas do
Estado de Minas Gerais, em 2004.

“A federação começou a ser criada no ano de 2004, novembro, no primeiro encontro das
comunidades quilombolas do estado de Minas Gerais. Nesse primeiro encontro
começamos a formar a federação, primeiro formamos uma comissão provisória e dessa
comissão começamos a trabalhar, fazer encontros, reuniões, pra ser formada a federação”
(Sandra Silva, liderança quilombola, integrante da N’Golo e da CONAQ).

O nome N’Golo possui origem africana. Como uma dança ritual dos mucopes em
Angola, região sul da África, N’Golo também é popularmente conhecido como
“dança da zebra”. Com base nos movimentos realizados por esse animal quando
os machos, em um combate violento, disputam entre si sua fêmea, N’Golo se
constituiu como uma dança ritual dos jovens homens mucopes para conquistar
suas esposas.

A idéia de criar uma organização estadual das comunidades quilombolas adveio


dos próprios quilombolas que entenderam ser fundamental sua articulação. O
movimento que culminou com a criação da Federação teve início em 2003,
quando vários eventos sobre os direitos quilombolas proporcionaram a
mobilização das comunidades.

Em 2004, foi realizado o “1º Encontro das Comunidades Negras e Quilombolas


de Minas Gerais”, organizado pela Fundação Cultural Palmares e pelo Instituto

131
de Defesa da Cultura Negra e Afro-descendentes – “Fala Negra”. Nesse
encontro, os participantes discutiram seu direito ao território cultural bem como
as políticas públicas direcionadas aos remanescentes de quilombo no País. Os
debates nesse encontro evidenciaram aos quilombolas a violação de seus direitos
básicos. Assim sendo, eles criaram uma Comissão Provisória Quilombola, com
eleição de representantes por região do estado, com a finalidade de representá-
los na luta por seus direitos.

A comissão eleita realizou duas reuniões ao longo do ano de 2004, para então, em
junho de 2005, finalmente, através de uma assembléia com ampla participação
quilombola, consolidar sua organização política e fundar a Federação Estadual
das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais.

A Federação atua por região, de forma descentralizada. O principal motivo da


descentralização é a amplitude do estado. Em cada região, há um coordenador
responsável. São, ao todo, cinco regiões: centro-oeste, a central, Paracatu,
Jequitinhonha e norte. Há articulação entre os coordenadores locais e os
estaduais, em encontros periódicos. Mas ainda há grande dificuldade de
circulação no estado e de compreensão do processo de organização das
comunidades:

“Não estamos ainda no plano ideal, até porque é uma federação nova com apenas três
anos e as comunidades estão esperando muito da gente. As comunidades querem que a
federação resolva todos os problemas da noite para o dia, cobram demais. A gente tenta
conscientizar que a coisa não é tão simples assim, têm dificuldades inúmeras, mas a
gente está avançando na luta” (Sandra Silva, liderança quilombola, integrante da N’Golo
e da CONAQ).

A Federação promoveu o “2º Encontro das Comunidades Quilombolas de Minas


Gerais”, realizado entre 30 de março a 1º de abril de 2007, no município de São
João da Ponte. A regularização fundiária das comunidades quilombolas de
Minas Gerais é o maior desafio e o grande motor da luta do movimento
quilombola.

132
A organização das comunidades quilombolas visibilizou a história e a realidade
dos quilombos desse estado. O grande desafio é o reconhecimento e a titulação
de seus territórios. Até os dias atuais, apenas uma única comunidade em Minas
Gerais foi titulada, Porto Corís.

A Federação mineira de quilombos inicia sua trajetória com um complexo


quadro em relação aos processos de regularização fundiária e com conflitos
provenientes de sobreposição de interesses diversos nos territórios de muitas das
comunidades desse estado. O objetivo da Federação é que, por meio da
articulação e da organização dos próprios quilombolas, a luta adquira maior
visibilidade e força política.

Pernambuco

De acordo com Treccani (2006), estão identificadas em Pernambuco 10660


comunidades quilombolas. Dados oficiais, sistematizados por Treccani (2006),
obtidos pelo somatório de comunidades certificadas pela FCP, em processo no
INCRA de regularização, tituladas e que estão em situação de conflito, relatam
5861 comunidades em Pernambuco. Segundo a Comissão Estadual das
Comunidades Quilombolas de Pernambuco, há aproximadamente 120
comunidades quilombolas no estado.

O processo organizativo das comunidades quilombolas de Pernambuco também


constitui-se como referência para a mobilização quilombola de outros estados e
para a constituição da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas, como ressalta Aparecida Mendes:

“Pernambuco vem desde o início da formação da CONAQ. Pernambuco se destacava


nessa formação com algumas pessoas como Givânia, Zé Carlos e Espedito. E também

60
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
61
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

133
serviu para nos fortalecer enquanto estado. Desses encaminhamentos todos, aconteceu o
I Encontro Nacional das Comunidades Quilombolas, em 1995, e em 1998 realizamos o I
Encontro Estadual das comunidades quilombolas de Pernambuco. Desse encontro
estadual, foi tirada uma Comissão de três pessoas para se dedicar à luta e continuar a
troca de experiências, além de manter os encontros com os quilombolas dos outros
estados para socializar as preocupações, problemas e buscar saídas conjuntas”
(Aparecida Mendes, liderança quilombola de Pernambuco e integrante da Comissão
Estadual e da CONAQ).

Esse processo de articulação estadual tem sido amplificado nos últimos anos, o
que tem se expressado na maior participação das comunidades pernambucanas
nos encontros estaduais, como coloca Aparecida Mendes:

“Em Pernambuco em 1998 foi realizado o I Encontro com a participação de 15


comunidades. Em 2003, realizamos em Salgueiro o II Encontro Estadual das
Comunidades Quilombolas. Nesse encontro, já contamos com a representação de 46
comunidades quilombolas. Em 2006, realizamos o II, e a participação subiu para um
número de aproximadamente 100 comunidades. O nosso processo de organização vem se
dando dessa forma, articulado com os outros estados e com o apoio de vários outros
parceiros.” (Aparecida Mendes, liderança quilombola de Pernambuco, integrante da
Comissão Estadual e da CONAQ).

Há um processo amplo de articulação das comunidades quilombolas de


Pernambuco. Givânia Silva, liderança de Conceição das Crioulas, relata o
processo de conhecimento dessa questão no estado e de articulação das
comunidades:

“Em 1995, nós tínhamos conhecimento de três comunidades quilombolas em


Pernambuco. Hoje, a quantidade passa de 100 comunidades quilombolas. Em nosso
processo de luta, o movimento tem pautado temas bastante significativos, como direito à
educação, educação diferenciada. Isso nasce ali em Pernambuco quando, em 1995, é
inaugurada a primeira escola na nossa comunidade [Conceição das Crioulas], de ensino
fundamental. Esse marco vira um referencial e é passado pra outras comunidades, com o
objetivo de construir um currículo diferenciado e de fortalecer nossa luta” (Givânia
Maria da Silva, liderança quilombola, integrante da CONAQ e da Comissão Estadual).

A maior parte das comunidades quilombolas, de diversas regiões de


Pernambuco, encontram-se representadas na Comissão de Articulação Estadual
das Comunidades Quilombolas de Pernambuco. Criada durante o II Encontro,

134
em julho de 2003, a representação estadual tem sede em Conceição das Crioulas e
atua na luta pela garantia dos direitos dos quilombolas.

Assim como Minas Gerais e Maranhão, Pernambuco tem em seu histórico uma
forte presença da resistência negra por meio dos quilombos. As lideranças
femininas representam uma face importante da luta dos quilombolas desse
estado. Nas comunidades de Conceição das Crioulas e Onze Negras, por
exemplo, os registros indicam que foram as mulheres que iniciaram a luta pelos
direitos das comunidades.

A Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de


Pernambuco tem como objetivo articular as comunidades do estado para que a
luta pela garantia dos direitos dos quilombolas avance de forma integrada. De
acordo com o disposto na carta redigida no final do encontro pela recém-
formada comissão estadual, as prioridades de atuação são a luta pela titulação
dos territórios quilombolas, por políticas sociais que contribuam para a inclusão
dos quilombolas e pela garantia de recursos para o desenvolvimento de
atividades geradoras de renda. A educação é outra pauta muito presente na
mobilização quilombola de Pernambuco.

A coordenação da comissão estadual é composta por 19 representantes de


diferentes regiões, eleitos nas comunidades a cada quatro anos. As relações entre
as comunidades com a coordenação é permanente e se realiza por meio de visitas
e encontros.

O processo de titulação das comunidades em Pernambuco não dialoga, ainda,


com o processo mobilizatório desse estado. Apenas duas comunidades
quilombolas de Pernambuco possuem o título de suas terras, emitido pela
Fundação Cultural Palmares em 2000. As comunidades são Castainho e
Conceição das Crioulas.

135
Devido aos problemas encontrados em muitos dos títulos emitidos pela
Fundação Cultural Palmares62, os títulos de Castainho e Conceição das Crioulas
não efetivaram a garantia dos seus territórios, uma vez que não houve a
indenização nem tampouco a retirada dos ocupantes particulares do território.

Uma das comunidades quilombolas do estado de Pernambuco que possui um


histórico de mobilização mais antigo junto às demais comunidades do País é
Conceição das Crioulas, situada no município de Salgueiro, no sertão
pernambucano, a uma distância de 550 quilômetros da cidade de Recife. O
povoado de Conceição das Crioulas é composto por 16 núcleos populacionais
onde residem aproximadamente 750 famílias.

Conceição das Crioulas tem grande destaque no cenário de Pernambuco no que


diz respeito à organização política e à mobilização em relação a luta pelos seus
direitos. Os reflexos disso são percebidos na constituição do movimento
quilombola no estado e no País. Essa comunidade tem registros que remetem à
década de 1980 de luta e despertar para essa questão:

“Até o final dos anos 1980, nós tínhamos essa características de quilombolas, mas não
ligávamos nossa vivência com nossa ancestralidade. Foi nesse período que começamos a
fazer um descoberta interior e nos perceber como grupo. A partir dali começamos a
compreender nosso papel dentro e fora da comunidade. Ali nasce a primeira associação
de moradores do município, nasce na comunidades a luta para pautar educação com
tema principal, pra que seus descendentes recuperassem a história e o processo de luta
que nos foi negado. Ali cria-se também uma consciência que tudo que vivia ali de
exclusão não era apenas por sermos uma comunidade rural, antes de tudo por sermos
uma comunidade negra. A compreensão, e esse encontro com as marcas do racismo, se
dá de forma bastante forte. Isso foi se espalhando, se ampliando, e hoje Conceição das
Crioulas é uma referência” (Givânia Maria da Silva, liderança quilombola de
Pernambuco, integrante da CONAQ e da Comissão Estadual).

Os movimentos eclesiásticos de base, a Pastoral da Terra, o Movimento de


Mulheres Trabalhadoras Rurais foram bastante importantes nesse processo
organizativo da década de 1980. Na década de 1990, se aproximaram do
Movimento Negro Unificado e participaram do I Encontro dos Negros do Sertão.

62
Tema discutido de modo mais profundo no capítulo 4 da presente dissertação.

136
Em 1995, iniciou-se os trabalhos com o Centro de Cultura Luiz Freire, que
caracteriza-se como um importante parceiro dessa comunidade e da Comissão
Estadual.

A Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC), fundada em 2000,


tem como objetivo promover o desenvolvimento da comunidade, fortalecer a sua
organização política e sua identidade étnica e cultural, e lutar pelos direitos das
comunidades quilombolas. A AQCC sedia, atualmente, a Comissão de
Articulação Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco.

Rio Grande do Sul

No Rio Grande do Sul, está localizado o maior quantitativo de comunidades


quilombolas da região sul. As comunidades desse estado somam 27 ao todo,
reunindo as informações de certificadas, tituladas, em processo e em conflito
(Treccani, 2006). De acordo com a sistematização de diversas bases de dados63, a
quantidade de comunidades identificadas nesse estado é de 146. A Federação das
Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul informa que
existem mais de 130 comunidades no estado.

Algumas regiões possuem grande concentração de quilombos rurais. São elas:


região central (municípios de Restinga Seca, Formigueiro e entorno); e a Serra do
Sudeste, a oeste da Laguna dos Patos litoral rio-grandense-do-sul (municípios de
São José do Norte, Mostardas, Tavares e Palmares do Sul). Muitos dos quilombos
urbanos conhecidos em nosso País estão localizados em Porto Alegre. O que
ganhou maior visibilidade talvez seja o Quilombo Família Silva.

O processo de identificação das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul


teve uma etapa importante no projeto intitulado “RS Rural”, iniciado pelo

63
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.

137
Governo Estadual em 1998. Esse projeto contou com a participação de
organizações quilombolas de diversas comunidades, organizações do
movimento negro urbano, bem como outras entidades. O projeto envolvia uma
articulação intensa de lideranças quilombolas de diferentes comunidades, como
relata Cledis Souza:

“No Conselho de Defesa dos Direitos do Negro – Codene/RS, trabalhamos a segunda


etapa do “RS Rural”, já no finalzinho do governo Olívio. Identificamos nessa época 98
comunidades. Eu trabalhei diretamente nisso, de comunidade em comunidade, só que
com os recursos disponíveis mapeamos 49 comunidades” (Cledis Souza, liderança
quilombola do Rio Grande do Sul, integrante da CONAQ e da FACQ/RS).

Como em demais estados do País, a principal pauta e a condução mobilizatória


do movimento quilombola gaúcho é a luta pelo direito à terra. Mesmo tendo um
movimento articulado e uma legislação estadual específica sobre o tema, o Rio
Grande do Sul não possui nenhuma comunidade titulada até o presente
momento.

As comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul estão articuladas na


Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul
– Facq-RS, desde 2007. A federação estadual é resultado de um processo de
mobilização e organização anterior, como coloca Cledis Souza:

“Em 2001, teve o I Encontro das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul. Nesse
Encontro nós tínhamos pouco mais de 30 comunidades que tinham sido mapeadas. Em
2002, houve eleição para o conselho estadual de defesa dos direitos do negro – CODENE,
e destinaram uma cadeira nessa diretoria para os quilombos, passando por uma votação
diferente dos demais grupos ali representados.(...) Em 2002, ano de eleição, tivemos o II
Encontro Estadual. Em janeiro de 2006, a gente fez o III Encontro Estadual e elegeu uma
coordenação provisória que tinha como objetivo agregar todas as comunidades. Mesmo a
gente tentando fazer um trabalho de renovação, acabamos no final ficando com as
mesmas pessoas eleitas nessa coordenação. Essa coordenação tinha como objetivo
organizar o próximo encontro para fundarmos nossa federação. Em janeiro de 2007,
oficializamos a nossa Federação, elegemos um coordenador geral e seis coordenadores
regionais. Esses coordenadores regionais têm o mesmo status do geral, tendo autonomia
para trabalhar junto e irem em suas regionais” (Cledis Souza, liderança quilombola do
Rio Grande do Sul, integrante da CONAQ e coordenadora adjunta da FACQ/RS).

Portanto, desde 2001, são promovidos encontros estaduais e regionais pelo


movimento quilombola do Rio Grande do Sul. Esses encontros pautam a

138
necessidade de articular as ações dos quilombolas de todo o estado e de ampliar
a mobilização em defesa da terra. Em janeiro de 2006, foi instituída uma
comissão provisória com o objetivo de discutir e organizar a fundação da
federação e em janeiro de 2007 foi oficializada a Federação.

O movimento quilombola do Rio Grande do Sul conta com o apoio de várias


entidades, dentre as quais se destaca a COHRE Américas no estado, o Instituto
de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos - IACOREQ e o
Ministério Público Federal.

Rio de Janeiro

Com base na sistematização de diversas bases de dados64, realizada por Treccani


(2006), estão identificadas no Rio de Janeiro 29 comunidades quilombolas em 15
municípios. A Aquilerj (Associação das Comunidades Quilombolas do Rio de
Janeiro) aponta a existência de 30 comunidades. De acordo com a união dos
dados das comunidades em processo de regularização, tituladas, certificadas e
em conflito, existem no Rio de Janeiro 16 comunidades quilombolas65. Parte
significativa dessas comunidades está situada na região litorânea do Estado, nos
municípios de Búzios, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro,
Mangaratiba, Angra dos Reis e Paraty. As demais comunidades estão
localizadas no interior no Estado. Dentre os municípios estão Quissamã,
Vassouras, Valença, Quatis e Rio Claro.

Os processos de regularização dos territórios desse estado não possuem grande


incidência em relação à sua efetivação em títulos. Somente duas comunidades
quilombolas do estado possuem os títulos de suas terras. As comunidades são
Campinho da Independência e Santana.

64
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
65
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

139
O processo organizativo do Estado, já bastante antigo quando analisamos as
histórias de comunidades em particular, como Campinho da Independência,
ganhou um escopo estadual a partir de outubro de 2003. Nesse período foi
fundada a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do
Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ). Ronaldo Santos relata o processo de
organização dos quilombolas em esfera estadual:

“A partir de 2001, inicio o diálogo de nossa comunidade com lideranças de outros


estados, em agendas de governo, e começamos a ver que já existem articulações estaduais
e que isso também é possível para o Rio de Janeiro. (...) Em 2002, houve uma atividade de
uma ong do Rio e essa atividade reuniu várias comunidades quilombolas. Então ali a
gente pode discutir sobre o que é ser quilombola, o que é ter esse direito. Nesse espaço,
eu pude dizer que existe uma coordenação nacional, que os outros estados estão se
organizando em articulações estaduais e que o Rio também poderia iniciar essa
articulação. Em 2002, é iniciada uma movimentação para formar a articulação das
comunidades do Rio” (Ronaldo Santos, liderança do Rio de Janeiro e integrante da
CONAQ e da Aquilerj).

Houve, portanto, um processo que envolveu uma articulação de lideranças


quilombolas do Rio de Janeiro com outros estados, com articulações estaduais e
nacionais mais antigas, para a estruturação da organização desse estado. Nesse
diálogo, o Maranhão, Pará, Pernambuco foram muito importantes como
referências organizativas.

“Em 2003, realizamos um Encontro Estadual das comunidades quilombolas, e na época


das 14 comunidades identificadas no Rio, oficialmente reconhecidas, 7 participaram do
encontro estadual que formou a Arquilerj. A partir dessa articulação da Arquilerj, a gente
passou de 14 para 30 comunidades. Uma comunidade que se incorporou nesse processo
foi o quilombo do Cabral, próximo a Campinho. Campinho da Independência começou a
se tornar uma referência, como modelo de desenvolvimento, de articulação social.
Inclusive essa referência não existe apenas para os quilombolas, mas para as demais
comunidades tradicionais. Hoje Campinho lidera um forum de comunidades
tradicionais. Hoje a Aquilerj passa de 7 para 16 comunidades filiadas, apesar das 30
presentes no Estado. A Aquilerj passou a assumir o papel de identificar novas
comunidades, trabalhar com as lideranças” (Ronaldo Santos, liderança quilombola do
Rio de Janeiro, integrante da CONAQ e da Aquilerj).

A comunidade de Campinho da Independência caracteriza-se, portanto, como


uma referência para a organização das demais comunidades quilombolas do
estado. A comunidade está localizada no município de Paraty, ao sul do litoral
do Estado do Rio de Janeiro.

140
Campinho da Independência foi a primeira comunidade quilombola do Estado
do Rio de Janeiro a ser titulada. Em 21 de março de 1999, os quilombolas de
Campinho receberam da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria de
Assuntos Fundiários do Estado do Rio de Janeiro o título definitivo de seu
território com 287,9461 hectares. Até abril de 2006, Campinho da Independência
era a única comunidade quilombola do Estado a ter seu título registrado em
cartório.

A luta pela defesa do território da comunidade de Campinho da Independência


tem inicio na década de 1960. Em 1994, é fundada a Associação de Moradores do
Campinho (AMOC) que mantém a luta pela titulação coletiva de suas terras.
Hoje a Aquilerj é sediada na AMOC.

O movimento do estado do Rio de Janeiro tem grandes desafios à frente. Desses


se destaca a delicada situação da comunidade Marambaia. Essa comunidade tem
origem em meados do século XIX. Desde o início da década de 1970, a
administração da ilha ficou sob responsabilidade do Ministério da Marinha. Em
1981 foi inaugurado o Centro de Adestramento da Ilha de Marambaia.

A presença da Marinha na ilha se reflete em um cerceamento contínuo dos


direitos da comunidade, por meio das várias restrições impostas. O acesso aos
serviços públicos básicos foi muito dificultado, há proibição de cultivo de roças
de subsistência e de que sejam construídas, reformadas ou ampliadas as
residências da comunidade.

Como resposta às ações da Marinha, a comunidade começou a organizar sua


resistência, contando com o apoio de diversos setores e organizações da
sociedade. Em 2002 o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil
pública contra a Marinha, exigindo a suspensão das ações contra os moradores.
Entretanto, a Marinha mantém o impedimento de que os moradores plantem
suas roças ou realizem reparos em suas residências.

141
A mobilização e a articulação em defesa do território de Marambaia e de outros
territórios quilombolas do Rio de Janeiro é a pauta das várias associações das
comunidades quilombolas do estado, bem como da Aquilerj.

Piauí

De acordo com sistematização de diversas bases de dados66, realizada por


Treccani (2006), estão identificadas no estado do Piauí 117 comunidades
quilombolas. Com relação aos dados oficiais, segundo o mesmo levantamento de
Treccani, que levou em consideração os dados das comunidades em processo de
regularização, tituladas, certificadas e em conflito, existem no Piauí 34
comunidades quilombolas67. A Cecoq (Coordenação Estadual das Comunidades
Quilombolas do Estado do Piauí) aponta a existência de 129 comunidades no
estado.

O Piauí tem uma significativa presença de comunidades quilombolas em seu


território, principalmente na região do semi-árido. Algumas lideranças
quilombolas desse estado articulam-se desde o início da criação da CONAQ com
organizações quilombolas de outros estados.

As comunidades quilombolas piauienses estão organizadas em nível estadual


por meio da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do
Piauí – CECOQ, institucionalizada através de sua configuração como pessoa
jurídica.

A regularização, por meio da titulação da terra das comunidades quilombolas, é


a principal bandeira da CECOQ. Até o presente momento, apenas dois territórios
quilombolas do Piauí foram titulados. Além dessa demanda, a coordenação

66
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
67
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

142
também luta pelo acesso às políticas públicas, como acesso à água de qualidade e
saneamento básico, educação, saúde, estradas e moradia.

A Coordenação tem sua atuação presente, principalmente, na região centro sul e


norte do Estado. Ela é composta por um representante da coordenação em cada
região, que tem como papel estabelecer a articulação, mobilização, sensibilização
e defesa dos territórios quilombolas. A Coordenação possui, portanto, um papel
fundamental de mobilização das comunidades no estado. Atua, inclusive, no
sentindo de visibilizar a história e a presença das comunidades quilombolas no
Piauí.

A Coordenação Quilombola do Piauí realizou diversos encontros regionais e


estaduais. Está previsto para 2008, a realização do 3º Encontro Territorial das
Comunidades Quilombolas, na região norte do Estado. O objetivo principal dos
encontros é estabelecer uma rede de trocas e relações entre as comunidades do
estado, com vistas a fortalecer a luta pelos seus territórios.

Os processos organizativos das comunidades do piauí são bastante diversos, e


cada comunidade tem o seu histórico e sua organização. Algumas iniciaram suas
ações junto às demais no estado mais recentemente e outras foram pioneiras
nesse processo. O quilombo Tapuio é uma referência nesse sentido,
configurando-se como uma referência para outras comunidades do estado, e
para outras do País.

Amapá

A presença do negro no Amapá tem como marco inicial a segunda metade do


século XVIII. É um estado que em sua história traz a presença de comunidades
negras rurais, inclusive de comunidades constituídas por negros provenientes
das Guianas.

143
Atualmente, o Amapá possui três comunidades quilombolas com os títulos
coletivos de suas terras. A primeira comunidade titulada no Amapá foi Curiaú.
Porém, antes mesmo do reconhecimento da comunidade, o governo estadual do
Amapá já havia criado a Área de Proteção Ambiental (APA) de mesmo nome. O
território de Curiaú abrange 3.321 hectares dos 21.676 hectares da APA,
composta por florestas, campos de várzea e cerrados. Na comunidade residem
cerca de 4 mil quilombolas.

Muitas comunidades no estado estão em processo de identificação. Os poderes


públicos e o movimento quilombola têm um papel importante nesse processo.
Estão identificadas 65 comunidades no estado do Amapá, de acordo com o
levantamento realizado por Treccani (2006)68. Levando-se em consideração os
dados das comunidades em processo de regularização, tituladas, certificadas e
em conflito, existem 13 comunidades quilombolas69 no estado.

As comunidades quilombolas do Amapá tem alguns marcos de seu processo


organizativo, tais como a titulação da comunidade de Curiaú. Todavia, o diálogo
em nível estadual é mais recente. Mesmo já existindo informalmente, e presente
como pauta importante em encontros e reuniões das lideranças quilombolas do
estado, a Coordenação ainda não está oficializada, nem tampouco possui
diretoria. São diferentes os processos organizativos existentes nos vários estados
do País. O Amapá possui um histórico que permite afirmar que essa mobilização
em âmbito estadual se encontra em curso. Hildima Santos relata o processo da
Coordenação Estadual de Quilombos:

“A Coordenação do Amapá já está pontuada, já tem estatuto, só falta formar a diretoria.


Porque nós lá estamos organizados em Fórum. O Fórum é maior, onde estão tanto os
negros urbanos, como os rurais e quilombolas. (...) Antes eu não sabia fazer a diferença
entre o negro urbano e o negro quilombola. Há uma diferença muito grande de anseios.
O negro urbano já tem emprego, já estudou, está dentro do movimento de um todo
urbano. Já o negro quilombola é de uma organização conjunta, ele precisa de muita terra

68
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
69
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

144
para plantar, porque ele é agricultor familiar, ele vive da terra, da pesca e o negro urbano
não precisa de muita terra, precisa de um terreno pra fazer a casa dele. Já o negro
quilombola precisa de muita terra”. (Hildima dos Santos, liderança quilombola do
Amapá, integrante da CONAQ).

As distintas pautas reivindicatórias dos movimentos negros urbanos e rurais, no


Amapá, estimulam as comunidades a se organizarem em uma Coordenação
Estadual que as represente. A luta pela terra também se constitui como a
principal demanda desse movimento ao Estado Brasileiro.

A articulação das comunidades do Amapá dialoga com comunidades


quilombolas de outros estados, desde a criação da CONAQ:

“Nós compomos a CONAQ, nós fomos convidados. Eu venho participando a partir de


2004. A Núbia já participava desde muito antes. Ai a gente vem participando direto e foi
muito boa essa nossa entrada na CONAQ pois eles orientam os quilombolas, tem todo
um processo de orientação e de peso” (Hildima dos Santos, liderança quilombola do
Amapá, integrante da CONAQ).

A rede estabelecida entre as organizações quilombolas dos vários estados é


fundamental para definir a luta comum, para fortalecer os processos locais de
cada comunidade e de cada estado. Essa perspectiva é ressaltada por diversas
lideranças, tal como pontuado por Hildima Santos em relação ao Amapá. Esse
processo, proporcionado pela articulação das comunidades em âmbito nacional,
é um motor que oxigena o processo político-organizativo desses grupos nas
várias regiões do País.

Espírito Santo

O Espírito Santo possui 57 comunidades identificadas, de acordo com o


levantamento realizado por Treccani (2006)70. Levando-se em consideração os
dados das comunidades em processo de regularização, tituladas, certificadas e

70
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.

145
em conflito, existem 18 comunidades quilombolas71 no estado. A Coordenação
Estadual de Comunidades Quilombolas do Espírito Santo indica a existência de
82 comunidades quilombolas, com aproximadamente 5 mil famílias. As maiores
concentrações de comunidades quilombolas estão na região norte, também
conhecida como Sapê do Norte, na região sul e na região centro-serrana.

As mobilizações das comunidades quilombolas desse estado têm como principal


objetivo o direito aos seus territórios coletivos e a superação dos conflitos hoje
presentes de modo significativo em alguns de seus territórios. Atualmente, o
Espírito Santo não possui nenhuma comunidade titulada. Para além do direito à
terra, as comunidades quilombolas do Espírito Santo reivindicam acesso à
políticas públicas nas diversas áreas, como educação e saúde.

O marco da mobilização das comunidades capixabas ocorreu em dezembro de


2007, com a realização do I Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do
estado. O I Encontro Estadual foi uma iniciativa das comunidades do Espírito
Santo. Teve o apoio de outras organizações da sociedade civil e do poder
público, como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (CONAQ), a Universidade Federal do Espírito Santo, a Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos, a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, a superintendência do INCRA no estado.

O Encontro teve como principal ponto de materialização da organização das


comunidades, a criação da Coordenação Estadual das Comunidades
Quilombolas do Espírito Santo. O encontro envolveu 200 participantes, dos quais
150 eram lideranças de comunidades quilombolas das várias regiões do estado.

A Comissão é constituída por 12 membros e tem sua atuação estruturada a partir


da lógica da presença das comunidades no estado. São três regionais: a sul, a
norte e a centro-serrana.

71
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

146
O estado do Espírito Santo registra um grave conflito entre as comunidades
quilombolas e a multinacional Aracruz, que possui extensas plantações de
eucalipto em sobreposição aos territórios quilombolas. Esse conflito está
localizado na região do Sapê do Norte. Uma das comunidades que sofreu grave
processo de expropriação de seu território foi Linharinho. Localidades
importantes de seu território, tais como o cemitério de ancestrais da comunidade,
estão hoje sob controle da Aracruz.

Segundo informações da Coordenação Estadual de Quilombos, existem 50 mil


hectares expropriados das comunidades quilombolas do estado, dos quais a
maior parte está em poder da Aracruz Celulose, que faz plantios intensivos de
eucalipto.

Mato Grosso do Sul

O Mato Grosso do Sul possui 29 comunidades identificadas, de acordo com o


levantamento realizado por Treccani (2006)72. Em relação aos dados das
comunidades quilombolas em processo de regularização, tituladas, certificadas e
em conflito, existem 1573 no estado.

Como resultado da luta das comunidades quilombolas desse estado, Mato


Grosso do Sul possui duas comunidades tituladas. Ainda é muito pouco em
relação ao número de comunidades no estado, mas é um símbolo da mobilização
das comunidades em prol de seus direitos.

As comunidades quilombolas do estado do Mato Grosso do Sul estão


organizadas em nível estadual na Coordenação das Comunidades Negras Rurais

72
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
73
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.

147
Quilombolas do Mato Grosso do Sul – CONERQ/MS. Essa Coordenação está
oficializada como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos.

A Coordenação Estadual foi fundada no dia 12 de janeiro de 2005. Tem como


objetivo se configurar como fórum de articulação e de representação das
Comunidades Rurais Negras Quilombolas do Estado do Mato Grosso do Sul.

As comunidades Furnas do Dionísio e Furnas da Boa Sorte são comunidades que


no estado se tornaram referência em relação à organização e mobilização em
defesa dos seus direitos. A partir da organização dessas duas comunidades, e dos
respectivos diálogos com mobilizações de quilombolas de outros estados e com
agentes do poder público, o movimento no estado se espandiu para outras
comunidades, como relata Jhonny Martins:

“A partir de 2000, a comunidade Furnas do Dionísio começou a ser identificada pela


Fundação Palmares como quilombo, e passamos a conhecer melhor nossos direitos,
começamos a nos identificar, aprofundar mais o assunto, conhecer melhor quem éramos.
Neste momento, com a Associação de Agricultores do município começamos a fazer um
trabalho de conscientização e aprofundamento da nossa história. Em uma oportunidade,
com a Universidade Católica dom Bosco, conhecemos a Comissão Pró Índio e de lá fomos
pra uma reunião dessa comissão em São Paulo pra entender melhor o orçamento da
união. Foi nesse encontro que conheci a coordenadora executiva da CONAQ.
Começamos a participar de algumas reuniões e, a partir daí, iniciamos nosso diálogo com
outras comunidades quilombolas, conhecemos o movimento e nos envolvemos numa
luta maior. Daí passamos a desenvolver esse trabalho em outras comunidades” (Jhonny
Martins de Jesus, liderança quilombola de Mato Grosso do Sul, integrante da Conerq e da
CONAQ).

A relação entre as comunidades, e a importância da troca de experiências entre


os estados que iniciam a mobilização entre as comunidades com aqueles que já
possuem um histórico mais amplo é um fator elementar da organização do
movimento quilombola. As relações estabelecidas entre as comunidades e
poderes públicos, também incita a demanda por organização:

“Em 2005, iniciamos um trabalho com a FUNASA para abastecimento de água para as
comunidades quilombolas de Mato Grosso do Sul. Nessa época, não sabíamos onde as
comunidades do Estado estavam, tínhamos só relatos. Em 2005 fizemos o primeiro
Encontro Estadual, com 14 comunidades do Mato Grosso do Sul, com mais de 200

148
pessoas. A partir daí, a coordenação estadual nasce, em janeiro de 2005, e começamos a
estimular que as comunidades formem associações e lutem por seus direitos. Depois
desse trabalho fomos convidados a participar da executiva da CONAQ e começamos a
mostrar pra outras comunidades como foi feito nosso trabalho de formar associações e a
Coordenação Estadual. Aí a gente começa a brigar mais pelas políticas publicas, já temos
rede de água nas 14 comunidades e estamos brigando agora para aumentar essa rede”.
(Jhonny Martins de Jesus, liderança quilombola de Mato Grosso do Sul, integrante da
Conerq e da CONAQ).

O movimento quilombola do Mato Grosso do Sul traz como pauta fundamental


o direito à terra e enfatiza também a importância de ampliar o acesso das
comunidades às políticas públicas, como saneamento básico e educação. A
mobilização realizada no estado permitiu que as comunidades das várias regiões
se estruturassem para pautar suas demandas e exigir seus direitos ao Estado.

Contexto Nacional

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais


Quilombolas (CONAQ) é a integração das organizações locais e estaduais de
quilombos. Os processos de algumas das organizações quilombolas estaduais
foram descritos acima de modo mais detalhado. Entretanto, a composição da
CONAQ é mais ampla. De sua composição se destacam associações, federações,
coordenações e comissões que têm como característica a luta pelos direitos das
comunidades quilombolas. Organizam-se de modo apartidário e autônomo, com
ênfase para o fato de que se figuram como instâncias das comunidades, voltadas
especificamente aos objetivos delineados nas localidades das quais provém.
Cada estado apresenta sua dinâmica e sua forma de estruturar sua rede de ação
política.

Destaco a seguir as organizações quilombolas que integram a CONAQ:

-Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão


(ACONERUQ);

149
- Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado de São Paulo
(COQESP);

- Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara/MA (MABE);

- Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santos;

- Federação Quilombola de Estado de Minas Gerais (N`GOLO);

- Coordenação das Associações Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará


(MALUNGU);

- Associação Quilombola do Estado do Rio de Janeiro (AQUILERJ);

- Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná;

- Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio


Grande do Sul (FACQ);

- Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba


(CECNEQ);

- Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ);

- Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas de Pernambuco (CECQ);

- Coordenação Estadual Quilombola do Amapá (CONERQ-AP);

- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do


Norte;

-Associação do Quilombo Kalunga/GO (AQK);

- Coordenação Regional das Comunidades Quilombolas da Bahia (CRQ);

- Associação Ecológica do Vale do Guaporé/RO (ECOVALE);

- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Mato Grosso do Sul;

150
- Comissão Quilombola de Mato Grosso;

- Comissão Provisória Quilombola do Estado de Santa Catarina;

- Comissão Quilombola de Alagoas;

- Comissão Quilombola de Sergipe;

- Comissão Quilombola do Ceará;

- Comissão Quilombola de Tocantins.

Muitos estados possuem uma organização e mobilização política que antecedem


a CONAQ e que, inclusive, foram fundamentais para a constituição da mesma.
Em outros casos, foi exatamente a constituição da CONAQ e as mobilizações
nacionais empreendidas que tornou possível a criação de organizações
quilombolas nos níveis regionais e estaduais, nas cincos regiões dos País.

No quadro, a seguir, estão sistematizadas parte das informações apresentadas


sobre as mobilizações nos estados. A partir dessa sistematização, é possível
observar que a existência de legislação específica nos estados, o avanço da
regularização fundiária e o processo de conhecimento e visibilidade da realidade
das comunidades passam, também, pela organização das comunidades nos
vários níveis (locais, estaduais, regionais e nacional).

151
UF Organização N° por UF N° Início da Existência de Ano de
Estadual Comunidades Comunidades articulação das Legislação Formalização
Identificadas74 Tituladas / UF75 comunidades Estadual da
na UF Específica Organização
Estadual
AL Comissão 58 - Déc. 2000 -
Estadual
AP Coordenação 65 3 títulos para 3 Déc. 1990 - -
Estadual comunidades
BA Não existe. Há 553 6 títulos para 4 Déc. 1980 Art. -
organizações comunidades Constitucional
regionais, como a
CRQ (Coord.
Regional das
Comunidades
Quilombolas da
Bahia)
CE Comissão 85 - Déc. 2000 -
Estadual
ES Coordenação 57 - Déc. 2000 Legislação 2007
Estadual Específica
GO Não existe. Há 93 1 para 61 Déc. 1980 Legislação -
organizações de comunidades Específica
territórios (ou
quilombolas localidades)
como a AQK
(Associação do
Quilombo
Kalunga)
MA Aconeruq 856 20 títulos para Início déc. Art. 1997
22 1980 Constitucional
comunidades
MG N’Golo - 250 1 título para 1 Déc. 1990. - 2005
Federação comunidade
MS Conerq 29 2 título para 2 Déc. 1990 Legislação 2005

74
Os dados referentes às comunidades identificadas e tituladas são de Trecanni (2006). Essa base de dados
foi elaborada a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA, Programa
Raízes, Cedenpa e NAEA. As Listagens sistematizadas por TRECCANI são de responsabilidade exclusiva
do autor que reuniu as diferentes informações disponíveis nas listagens anteriores. Em várias situações se
percebeu que existiam nomes muito parecidos, ou nomes de comunidades que hoje viraram sedes
municipais, ou ainda os mesmos nomes em municípios diferentes, mas se preferiu manter todos eles. Estas
listagens, portanto NÃO APRESENTAM A LISTA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO BRASIL,
mas sim uma listagens de nomes fornecidos por diferentes fontes e devem ser consideradas como um
instrumento de trabalho a ser aprimorado pela ação conjunta dos quilombolas, centros de pesquisa e órgão
dos poder público. É provável que nestas listagens se misturem nomes de comunidades já extintas e outros
de comunidades quilombolas presentes na atualidade.

75 Muitos dos títulos emitidos de regularização fundiária não se efetivaram na prática. Esses são os títulos

emitidos pela FCP, com base no Decreto 3912/2001, que não contaram com a indenização dos ocupantes
particulares, nem tampouco com a retirada dos mesmos.

152
comunidades Específica
MT Comissão 74 1 título para 6 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
PA Malungu 389 36 títulos para Início déc. Art. 2004
88 1980 Constitucional
comunidades
PB Coordenação 33 - Déc. 2000 -
Estadual
(CECNEQ);
PE Comissão 106 2 títulos para 2 Déc. 1980 Legislação 2003
Estadual comunidades Específica
PI Comissão 117 2 títulos para 2 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
PR Coordenação 14 - Déc. 2000 -
Estadual
RJ Aquilerj 29 2 títulos para 2 Déc. 1990 Legislação 2003
comunidades Específica
RN Coordenação 69 - Déc. 2000 -
Estadual
RO Associação 8 - Déc. 1990 -
ECOVALE
RS FACQ/RS 146 - Déc. 1990 Legislação 2007
Específica
SC Comissão 21 - Déc. 2000 -
Estadual
Provisória
SE Comissão 47 1 título para 1 Déc. 2000 -
Estadual comunidade
SP Coordenação 90 5 títulos para 6 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
(Coqesp)
TO Comissão 31 - Déc. 2000 -
Estadual
BR CONAQ 3524 204 (com FCP); Déc. 1990 Art. 1995
150 (sem FCP- Constitucional
titulações
questionadas)

153
Em relação ao processo de regularização fundiária, é possível perceber o tímido
avanço obtido, que abarca, até o momento, apenas alguns dos estados onde há
quilombos no País:

Quadro Regularização Fundiária em Comunidades Quilombolas

Totais Títulos Comunidades Hectares Famílias


Pará 36 88 541.756,77 4.001
Goiás 1 61 253.191,72 600

Bahia 6 8 45.888,58 1.312


Maranhão 20 22 21.043,62 701
São Paulo 5 6 20.122,32 220
Pernambuco 2 2 17.048,67 521
Amapá 3 3 14.426,42 194
Mato Grosso 1 6 11.722,46 350

Mato Grosso do Sul 2 2 2.434,28 130


Sergipe 1 1 2.100,00 130
Piauí 2 2 12.274,66 181
Rio de Janeiro 2 2 1.116,07 74
Minas Gerais 1 1 199,30 13
Brasil com FCP 84 204 943.325,40 9.233
Brasil sem FCP 77 150 614.381,11 7.052
questionadas
Fonte: Dados sistematizados por Treccani (2008).

As comunidades quilombolas apresentam um processo crescente de mobilização


e organização, cuja pauta é a busca pela efetivação dos seus direitos, com ênfase
no direito à terra. Esse processo permeia inúmeras dificuldades como a escassez
de recursos, meios técnicos e infra-estrutura, além dos graves conflitos presentes
em alguns dos territórios quilombolas. Contudo, é visível o crescimento dessa
rede que reúne comunidades de diferentes realidades, reunidas a partir de uma
pauta comum de reivindicação de direitos.

154
4.4. Coordenação Nacional

O processo Constituinte de 1988 propiciou uma ampla mobilização da sociedade


civil brasileira e é um marco histórico contemporâneo de extrema relevância. No
cerne desta mobilização estavam entidades do movimento negro urbano,
acadêmicos, parlamentares e comunidades quilombolas organizadas em diversos
estados. Essa mobilização em especial tinha como objetivo a inclusão, dentre os
princípios constitucionais, do direito à terra para as comunidades quilombolas e
visava, também, a ampliação do debate no campo das políticas públicas para a
população negra.

Os primeiros anos da década de 1990 são marcados por mudanças significativas


em relação à luta pela promoção da igualdade racial. Como reflexo das pressões
internas no País, protagonizadas especialmente pelas organizações quilombolas e
do movimento negro urbano, e externas, materializadas pelos compromissos
assumidos pelo Estado brasileiro por meio de tratados e convenções
internacionais para essa agenda, surge um novo cenário. Nesse sentido, ganha
maior visibilidade a temática de combate ao racismo na sociedade de modo
geral.

Como resultado desse processo de mobilização, nos dias 17, 18 e 19 de novembro


de 1995, foi realizado o I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, em Brasília, que teve como tema “Terra, Produção e Cidadania
para Quilombolas”. Ao final, uma representação foi escolhida para encaminhar à
Presidência da República um documento contendo as principais reivindicações
aprovadas.

No dia 20 de novembro do mesmo ano, a Marcha Zumbi dos Palmares, pela vida
e cidadania, reuniu cerca de 30 mil pessoas, na Praça dos Três Poderes, em
memória ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares. A Marcha marcou, de modo

155
impactante, as contribuições e reivindicações da mais expressiva manifestação
política do Movimento Negro na agenda nacional. O I Encontro Nacional das
Comunidades Quilombolas se constituiu como parte integrante do processo
mobilizatório da Marcha Zumbi.

Durante a realização do 1º Encontro Nacional, as comunidades quilombolas


superaram a capacidade de mobilização regionalizada exercitada nas últimas
décadas colocando sua problemática como questão nacional.

A criação da Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais Negras


Quilombolas é o produto central do processo mobilizatório do I Encontro
Nacional. Nesse período, a organização do 1º Encontro tinha conhecimento da
existência de quatrocentas e doze comunidades, e a partir disso foi pensada a
estrutura da Comissão Nacional. Alguns estados presentes traziam um histórico
de articulação e mobilização bastante significativo. Dentre esses, destacam-se o
Maranhão, que já havia promovido o 3º Encontro das comunidades quilombolas
desse Estado76, o Pará, que na região do Rio Trombetas possuía uma associação
bastante atuante, a Arqmo77, e Rio das Rãs, na Bahia, que trazia um histórico de
luta pelo seu território. A Comissão Nacional nasce com o objetivo de mobilizar
as comunidades nos vários Estados da Federação.

A secretaria da Comissão, e posteriormente da CONAQ, funcionou


primeiramente com apoio institucional do CCN-MA e da Sociedade Maranhense
de Direitos Humanos. Na seqüência, esse suporte institucional da CONAQ passa
para a Aconeruq (Maranhão) e para a AQCC (Pernambuco), duas organizações
quilombolas.

76
O I Encontro Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão foi realizado em 1986.
O segundo e o terceiro foram realizados, respectivamente, em 1988 e 1989.
77
Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná – ARQMO -
criada em 1989.

156
É neste contexto que a questão quilombola ganha peso no cenário nacional. O
reconhecimento legal de direitos específicos, no que diz respeito ao título de
reconhecimento de domínio para as comunidades quilombolas, ensejou uma
nova demanda, o que gerou proposições legislativas em âmbito federal e
estadual, e promoveu a edição de portarias e normas de procedimentos
administrativos consoante à formulação de uma política para a garantia dos
direitos das comunidades quilombolas.

Como resultado da Marcha Zumbi e do I Encontro Nacional, é elaborado um


documento que pauta as questões centrais da luta dos movimentos negros
urbanos e rurais. A ênfase na perspectiva histórica de resistência e luta das
comunidades está presente nesse documento, que também oficializa a criação da
Comissão Nacional Provisória das Comunidades Negras Rurais Quilombos. De
acordo com esse, a história dos quilombos é a “história de resistência que garantiu a
continuidade da existência de milhares de quilombos. Sem dúvida uma sobrevivência
sofrida, mas com vitórias”. O documento ainda ressalta a emergência das políticas
para comunidades, como frutos das reivindicações e lutas desse movimento:
“Diante da resistência tornou-se impossível para o governo brasileiro não responder às
demandas desse movimento. A luta do movimento quilombola caracteriza-se pela defesa
do seu território, conseqüentemente, de sua sobrevivência enquanto grupo específico
ameaçado pelo avanço da especulação imobiliária, dos grandes empreendimentos, que
afetam e alteram diretamente a existência desses grupos” (CONAQ, 1995: 3).

A noção de resistência é apresentada por essa coordenação nacional quilombola


como um processo histórico e contínuo. A resistência é bifocal: se localiza no
passado e também no presente como o fator elementar para a sua sobrevivência
atual.

Em 1996, durante o Encontro de Avaliação do I Encontro Nacional de


Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Bom Jesus da Lapa –
Bahia, a Comissão Provisória dá lugar à Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CONAQ, que tem como caráter
central se constituir como movimento social, não se configurando como outras

157
formas organizativas tais como organizações não governamentais, sindicatos ou
partidos políticos. Esse Encontro teve como objetivo definir o papel da
Coordenação.

“Como mecanismo de organização, constituíram a Coordenação Nacional de Articulação


das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CONAQ. A CONAQ foi criada em maio
de 1996, em Bom Jesus da Lapa/Bahia, durante reunião de avaliação do I Encontro
Nacional de Quilombos. É uma organização de âmbito nacional que representa os
quilombolas do Brasil. Dela participam representantes de comunidades de 22 (vinte e
dois) estados da federação”78.

O II Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado


em 2000, em Salvador – Bahia, se configura como de grande importância no que
concerne ao processo de afirmação do movimento quilombola. Desde a criação
da Comissão até o Encontro de 2000, essa representação quilombola em âmbito
nacional era composta por representações do movimento quilombola e, também,
do movimento negro urbano. A partir desse marco, as comunidades tomam para
si a representação nesse espaço.
“No II Encontro, fica essa marca de aproximar e reafirmar a parceria com todos os
movimentos, mas de assumir pra os quilombolas a representatividade do Movimento
Quilombola. Assumimos de forma bastante incisiva, no encontro de Salvador, que
enquanto representação de voto na Coordenação Nacional só poderia ser de quilombola.
Isso significava que reconhecíamos a importância de todas as outras organizações e
pessoas que contribuíam com o movimento, mas ao mesmo tempo chamávamos pra nós
a responsabilidade de nos representar” (Givânia Silva, liderança quilombola de
Pernambuco, integrante e fundadora da CONAQ).

Após o Encontro de Salvador, diversos Estados que ainda não estavam


constituídos enquanto organização quilombola em nível local passam a se
organizar e a construir esses espaços como de protagonismo das comunidades. A
CONAQ é composta pela união das organizações quilombolas nos níveis
Estaduais e regionais. Atualmente, a Coordenação Nacional reúne vinte e dois
Estados e, a partir do processo de identificação e visibilidade das comunidades

78 Disponível no sítio da internet: www.conaq.org.br

158
quilombolas, atua com um universo de mais de três mil e quinhentas
comunidades79 em todas as regiões do País.

Em 2003, de 04 a 07 de dezembro, realiza-se o III Encontro Nacional das


Comunidades Negras Rurais Quilombolas, em Recife, Pernambuco. O foco desse
encontro voltou-se para a nova legislação vigente no País para regularização de
territórios quilombolas, o Decreto 4887, instituído em 20 de novembro de 2003.
Esse decreto simboliza um grande avanço do ponto de vista dos direitos étnicos
das comunidades, em relação ao anterior, decreto 3912/2001, conforme já melhor
discutido no capítulo 4.

O III Encontro objetivou a reestruturação da mobilização das comunidades


remanescentes de quilombos a partir dessa nova legislação. Parte significativa
dos debates ficou em torno da implementação do Decreto. Nesse sentido, o
Encontro contou com a participação de representantes de diversos ministérios
que compuseram o Grupo de Trabalho que elaborou o Decreto 4887/200380,
como o INCRA e a FCP.

Numa conjuntura bastante diferente, a Coordenação Nacional realizou, em


março de 2008, na comunidade Linharinho, na região do Sapê do Norte, Espírito
Santo, seu IV Encontro Nacional, envolvendo as lideranças quilombolas de todas
as regiões do País.

O IV Encontro traz como pontos de pauta a conjuntura de oposição que se


apresenta nos últimos meses num crescente no Congresso (através do PDL
44/XX, de autoria de Valdir Colato), no judiciário (que tem como marco a ADIN
do Decreto 4887/2003, de autoria do Partido Democratas, que está em vias de ir a
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal), nos meios de comunicação (que
especialmente em 2007 e 2008, de modo contínuo e incisivo, apresentaram

79 O Movimento Quilombola trabalha com a estimativa de aproximadamente 4.000 comunidades

quilombolas. O Governo Federal tem identificadas 3554 comunidades. Mensurar de modo mais concreto a
quantidade de comunidades total no País ainda não é possível, dado a inexistência de pesquisa nacional
voltada para essa finalidade.
80 Ver maiores informações sobre esse processo no capítulo 4, do presente trabalho.

159
abordagem negativa sobre o tema), e na conjuntura política do poder executivo
(que tem como marco no final de 2007 e princípio de 2008, o processo de
alteração da Instrução Normativa do INCRA, sobre regularização de territórios
quilombolas, além da baixa concretude da emissão dos títulos das terras).
Somado a tudo isso, estão os conflitos localizados que têm exposto as
comunidades a situações bastante graves81.

A escolha do local do IV Encontro, inclusive, se dá pelo critério de visibilizar um


território em situação severa de conflito, que é o de Sapê do Norte, no Espírito
Santo. Também foi priorizado, nesse encontro, que sua realização se desse em
uma comunidade quilombola, o que possibilitou maior troca e estabeleceu maior
identidade entre as lideranças de todo o País que compõem essa Coordenação.

As organizações quilombolas, nos estados, são constituídas de diferentes formas.


Algumas estão organizadas enquanto Associação ou Federação, tal como o Rio
de Janeiro, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
com personalidade jurídica. Em outros Estados, essa organização está
materializada em Comissões, como em Pernambuco, Piauí, São Paulo e Pará.

A CONAQ, para além do processo mobilizatório que integra os vários estados


brasileiros, buscou nos últimos anos o estabelecimento de interlocução com
instancias e espaços internacionais, como o Fórum Social Mundial e a
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, à Discriminação Racial, à
Xenofobia e às Intolerâncias Correlatas – Conferência de Durban, em 2001,
pautando a questão quilombola em uma esfera mundial. Em 2007, a CONAQ
esteve na OEA abordando casos de violação dos direitos coletivos desses grupos,
que são impetrados pelo Estado brasileiro, como a situação hoje vivenciada nos
territórios quilombolas de Alcântara, Maranhão, e de Marambaia, no Rio de
Janeiro.

81
Essas questões foram trabalhadas de modo mais aprofundado no capítulo 4.

160
Como continuidade da mobilização da Marcha Zumbi, de 1995, a CONAQ
participou, em 2005, da Marcha Zumbi + 10, se fazendo representada com a
presença significativa de lideranças quilombolas de diversos estados do País.
Esses dez anos que separam a primeira Marcha Zumbi, e a respectiva realização
do I Encontro Nacional das Comunidades, para a Marcha Zumbi+10,
materializam o peso crescente da articulação do movimento quilombola.

A CONAQ atualmente possui 22 estados representados em seu corpo. Como já


mencionado, é composta por : Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás,
Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraíba,
Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, São Paulo e Tocantins. O Pará participa
de todas as articulações e é um estado fundamental no nascedouro do debate da
Coordenação. Não compõe formalmente a coordenação, mas é parte desse
movimento enquanto articulação sempre presente ao debate. O estado do
Amazonas, onde também existem comunidades quilombolas, está em processo
de organização estadual ainda muito incipiente, o que se reflete em sua ausência
até o presente momento no corpo organizativo da CONAQ. Os demais estados,
Roraima, Acre e Distrito Federal82 não possuem registros de comunidades
quilombolas.

De acordo com o disposto no sítio da CONAQ, na internet, os objetivos do


movimento são voltados para:

“(1) Lutar pela garantia do direito à terra e pela implantação de projetos


de desenvolvimento sustentável das comunidades; (2) Preservação dos costumes, da
cultura e da tradição entre as gerações das populações quilombolas; (3) Proposição de
políticas públicas levando em consideração a organização pré-existente das comunidades
de quilombo, tais como o uso comum da terra e dos recursos naturais, sua história e
cultura em harmonia com o meio ambiente, que são as referências de vida; (4) Zelar pela
garantia dos direitos das crianças e adolescentes como continuadores da cultura e

82
O Distrito Federal tem uma comunidade que possui um histórico que poderia levar a sua auto-
identificação como quilombola (Mesquita). Todavia, devido aos processos vivenciados pela comunidade e
seu entorno, hoje o grupo não se reconhece como quilombola.

161
tradição quilombolas; (5) Combater toda e qualquer discriminação racial e intolerância
religiosa;”83.

Como já debatido anteriormente, o movimento quilombola pauta sua luta a


partir do direito fundamental aos seus territórios. Essa luta permeia dimensões
amplas, para muito além do aspecto econômico, abarcando também a
perspectiva cultural e social. A demanda por políticas públicas expressa a
ausência de uma ação de Estado construída a partir das especificidades desses
grupos e de uma tímida efetivação das políticas hoje existentes. O foco na
infância e juventude é um dos aspectos centrais da perspectiva organizacional
das comunidades e tratarei mais a fundo esse tema, a seguir. Por fim, a luta
contra a discriminação racial também centraliza as estratégias organizativas e
políticas das comunidades, sendo esta uma bandeira central das organizações
negras ao longo da história do País, sejam elas urbanas ou rurais.

A CONAQ, do ponto de vista institucional, possui uma estrutura que é apontada


como frágil, o que é contraposto por Ronaldo:
“Nos quilombolas discutimos escola, ensino primário, enquanto o movimento negro
discute cotas. Poucos quilombolas tem e-mail e muitos dos que têm, não conseguem
acessar com freqüência. E quando vão no ciber, a R$4 a hora, ele demora um tempão para
ler o documento pois estudou muito pouco. Tudo é realidade que não está colocada.
Então o movimento quilombola tem todas essas dificuldades. São companheiros que
andam 3 dias de barco pra chegar na capital do Estado. Enfim, esse é o nosso movimento.
E não dá pra comparar o nosso movimento com movimento nenhum, porque cada
movimento tem a sua história e a suas possibilidades. Então a gente tem que perceber a
nossa realidade e encarar do jeito que der. Acho que o externo tem muitas vezes vindo
para apoiar, alguns outros vem mesmo para sacanear e penso que essa relação tem que
ser mesmo muito franca, precisamos hoje é de aliados. Não dá pra dizer que não tem
organização, há quantos anos estamos aí. O primeiro encontro reuniu 14 Estados. O 3º
reuniu 22 Estados. O 4º Encontro da CONAQ vai ser um grande marco” (Ronaldo Santos,
Liderança Quilombola, integrante da CONAQ).

Segundo Ivo Fonseca, liderança quilombola do Maranhão, a percepção do nível


de organização dos quilombolas deve se dar numa perspectiva mais ampla de
análise da situação histórica do País:
“Dizem que nós somos desorganizados, Mas que tipo de organização? Nós somos
desorganizados mas só pra estrutura do Estado que vem nos amarrando de todas as

83 Disponível no sítio da internet: www.conaq.org.br

162
formas. Se pegar as normas constitucionais e decretos na história do Brasil, eles são cruéis
conosco. Nós só passamos a ser cidadãos brasileiros a partir da constituição de 1988,
antes nós não éramos cidadãos brasileiros” (Ivo Fonseca, Liderança Quilombola,
integrante da CONAQ).

Para Luiza Betânia, quilombola da Ilha do Marajó, Pará, a luta quilombola


provém da força da coletividade e está ancorada na luta ancestral:
“Todos os estados tem que se organizar e se unir pra ficarmos fortes, pra conseguirmos
chegar no nosso objetivo, a vontade de resgatar a nossa cidadania que foi esquecida, o
que nossos antepassados não puderam fazer, estamos lutando pra conseguir. Estamos
perdendo parte da nossa história, porque os mais velhos estão morrendo e deixando
poucas lembranças ou historias pra gente. Temos que buscar a nossa história, em outras
comunidades e qualquer lugar. Os antigos morreram e a gente não sabia o que a gente
tinha perdido” (Luiza Betania, liderança quilombola da Ilha do Marajó, Pará).

A constituição da CONAQ lança o movimento quilombola no cenário nacional.


A partir daí, o movimento quilombola é reconhecido como um dos mais ativos
agentes do movimento negro no Brasil contemporâneo e introduz um debate que
busca fortalecer a perspectiva de que este País tem em suas estruturas mais
profundas uma grande pluralidade étnico-racial.

4.5. Juventude

A juventude se configura como um elemento central da concepção do processo


político-organizativo das comunidades quilombolas. Essa dimensão se reflete
também em relação à CONAQ e às organizações quilombolas estaduais e locais.
Há uma lógica de transmissão de conhecimentos, de troca dos espaços de
interlocução das lideranças quilombolas que envolve uma renovação que passa
também pela juventude.

Givânia Silva ressalta o peso da presença da juventude na construção do


movimento quilombola:

“Outra característica da CONAQ é que a maioria das lideranças é de jovens. Ou seja, não
está centrada apenas nas pessoas que iniciaram a CONAQ, como o caso de Simplício, Ivo

163
e eu. Quando eu vejo hoje, lideranças representando os seus estados com 23, 24 anos, ao
contrário de alguns pensamentos acharem que não são maduros, isso para nós do
movimento nos dá a certeza da continuidade, porque no quilombo um dos nossos
patrimônios é a continuidade. A CONAQ, enquanto uma organização de quilombos, não
pode imaginar que lideranças ficarão eternamente ocupando esses espaços, porque aí não
gera a continuidade. Para nós, o repassar é sempre uma tarefa e uma necessidade”
(Givania Maria da Silva, liderança quilombola, fundadora da CONAQ).

A luta do movimento quilombola caracteriza-se pela defesa do seu território,


pela defesa de sua identidade, de sua cultura. Pensar na continuidade do
movimento, em seu fortalecimento, implica numa potencialização dessa ação por
meio de uma atuação a partir de uma diversidade de sujeitos. Essa diversidade
também se reflete em relação à idade. Essa percepção abre caminho para novos
olhares e novas interpretações no construir do movimento quilombola.

Nas relações estabelecidas entre a CONAQ e agentes públicos ou outros


movimentos ou organizações, é recorrente, na abordagem de lideranças, que o
movimento seja pautado como ‘imaturo’ ou ‘jovem’. Além da referência ao
tempo de existência da CONAQ, essa reflexão refere-se também à grande
quantidade de lideranças jovens que estão à frente desse processo. Novamente,
Givânia Silva pontua a importância dessa participação jovem para a lógica de
transmissão de conhecimento e de dinamismo das comunidades:

“Quando as pessoas falam da imaturidade da CONAQ, acredito que essas pessoas não
devem conhecer a lógica de quilombo, que tem como tarefa essencial a continuidade. Nós
trazemos para CONAQ aquilo que é nosso cotidiano, que é o nosso real, onde os homens
e as mulheres, não importa a sua idade, têm o seu papel.” (Givania).

A percepção da juventude, no movimento, é construída como algo que o


estrutura, que representa a continuidade do potencial cultural dessas
comunidades e desse movimento. Diversas ações do movimento quilombola
marcam esse olhar sobre a juventude, como a realização do I Encontro Estadual
Quilombinho, no Maranhão, em 2002; o I Encontro Preparatório de Juventude
para o Quilombinho - Prepcom, em 2006, em Brasília; o I Encontro Nacional de

164
Crianças e Jovens Quilombolas – Quilombinho, em 2007, em Brasília. Em 2008,
foi realizado, no Rio de Janeiro, o Encontro Nacional de Juventude Quilombola,
onde se formou a Rede Nacional de Juventude Quilombola, organização também
vinculada à CONAQ. Essa atuação da CONAQ com a juventude simboliza um
fortalecimento da “nova guarda”, e nessa perspectiva, do movimento, como
ressalta Ronaldo Santos:
“A juventude aparece numa condição muito favorável ao movimento. (...) Tem tido uma
ampliação da participação da juventude e isso está mudando, pois o pessoal vem mais
preparado. O pessoal que participou do I Prepcom, do Quilombinho, da Conferência de
Criança e Juventude está pautando o tema de uma forma mais profunda. A nova guarda
está se montando” (Ronaldo Santos, liderança quilombola do Rio de Janeiro, Secretaria
Executiva da CONAQ).

A construção da categoria “juventude” não é algo dado e parte de uma


construção que permeia vários elementos. Segundo Abramovay, a juventude
caracteriza-se como o tempo ou período do ciclo da vida no qual os indivíduos
atravessam da infância para a vida adulta e produzem significativas
transformações biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que podem variar de
acordo com as sociedades, as culturas, as classes, o gênero, relações étnico-raciais
e a época, (Abramovay, 2006).

A definição do conceito de juventude é complexa e avessa a reducionismos. Há


fatores, todavia, que convergem para a formação de características próprias desse
período etário. De acordo com Abramovay e alli (2006) “(...) os jovens,
atualmente, compõem um segmento da população afetado por estruturas
“vulnerabilizantes”, o que lhes afeta em várias dimensões. Os jovens aparecem
em destaque em estatísticas de violência, desemprego, gravidez indesejada, falta
de acesso a atividades culturais” (Abramovay e alli, 2006: 11).

A Organização das Nações Unidas (ONU) define como jovens as pessoas entre 15
e 24, essa definição é fruto do Fórum Mundial de Juventude de 2001. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) apresenta parâmetros que levam em

165
consideração a juventude como uma categoria sociológica que implica
fundamentalmente na preparação dos indivíduos para a fase adulta.

Corti e Souza apresentam a juventude como “(...) uma categoria social representada
pelo vinculo entre os indivíduos de uma mesma geração, que formam um segmento
específico” (Corti e Souza, 2005:12). Todavia, este segmento é detentor de uma
diversidade de experiências, apresenta características particulares que
diferenciam o grupo a partir do lócus identitário de cada cultura. Portanto, o
conceito de Juventude não deve resumir-se aos aspectos do desenvolvimento
físico-biológico, como também cronológico, pois apesar de sua importância, esses
aspectos são insuficientes para definir a diversidade de características e
atribuições que compreende o universo da juventude. “Ser jovem implica possuir
determinadas características e exercer certos papéis sociais” (Corti e Souza, 2005: 22).

“Ser jovem” é uma condição construída socialmente, portanto variável e muito


mais ampla do que as características biológicas ou cronológicas possam
representar. Um conceito único, homogêneo, apresenta-se destoado desse amplo
significante. O conceito de Juventude deve revelar a complexidade que o termo
abriga, pois, enquanto categoria social ela é uma multiplicidade de significantes.
Ressalta-se a maleabilidade e a diversidade que o conceito “Juventude” traz, bem
como a necessidade de considerar as experiências e particularidade de cada
sociedade nessa construção.

A especificidade que busco refletir no presente estudo é a da juventude


quilombola. Portanto, para além de uma conceituação de juventude, cabe
também destacar as especificidades já refletidas melhor em capítulo anterior
sobre a identidade quilombola.

Discutir, portanto, a identidade da juventude quilombola é uma construção


social, histórica, cultural e plural. A identidade de juventude quilombola abrange
não somente a dimensão simbólica, mas substancialmente política. Faz parte de

166
um movimento de tomada de consciência de um segmento étnico-racial e,
também, etário.

4.6. Relações entre o movimento quilombola e o Estado

As articulações e mobilizações do movimento quilombola apresentam reflexos


organizativos não apenas nas relações entre as comunidades nos níveis estaduais
e nacional. Como resultado da luta desses sujeitos, é possível perceber uma
participação e um diálogo cada vez mais significativo das comunidades
quilombolas com os poderes públicos, com ênfase no poder executivo. Alguns
marcos do processo de relação com o Estado Brasileiro ampliaram a percepção
das especificidades e dos direitos desses grupos. Ao reconhecer que a escravidão
consistiu um crime contra a humanidade, durante a Conferência de Durban
(2001), o Estado brasileiro aponta para a existência de uma dívida histórica com a
população negra, fato que também se reflete sobre sua ação em relação às
comunidades quilombolas.

As reivindicações e a luta empreendidas pelo movimento quilombola pautam a


importância de ações do poder público voltadas à garantia do direito à terra, bem
como em relação à ampliação do acesso às políticas públicas, a partir de suas
especificidades. Como analisado no capítulo 3, as relações e o diálogo dessas
comunidades com o Estado não se fazia possível, dada a extrema violência que
pautava essa relação. E essa perspectiva da não relação se fez presente no
período colonial, imperial e na maior parte do período republicano.

É apenas após a Constituição Federal de 1988 que as comunidades quilombolas


no País são reconhecidas como sujeitos de direitos. Essa reversão da percepção
do Estado brasileiro para com esses grupos é fruto de um árduo processo de
lutas. A partir dessas mudanças, é possível haver abertura para o diálogo e para
a formatação de políticas públicas voltadas às especificidades das comunidades.

167
Apesar desses avanços significativos, é importante destacar que a maioria das
comunidades ainda não estabeleceu um diálogo mais efetivo com o Estado e que
o acesso às políticas públicas não se processa ou se efetiva por uma perspectiva
englobante, a partir das políticas voltadas às ditas “populações carentes”, tendo
como eixo norteador o critério econômico.

Apesar da escassa existência de diagnósticos e pesquisas sobre a situação sócio-


econômica-cultural das comunidades, é possível aferir a partir de algumas
pesquisas existentes que a situação de vulnerabilidade desses grupos se faz
presente, também, pela falta de acesso a políticas públicas essenciais e pela não
garantia do direito ao seu território.

Os conflitos territoriais, a falta de saneamento básico e de acesso a outras


políticas públicas, são elementos que incidem para a situação de insegurança
alimentar em muitas das comunidades, o que ficou latente nos dados obtidos na
1ª Chamada Nutricional Quilombola84. A desnutrição tem um impacto muito
severo nas crianças quilombolas. De acordo com a Chamada, a proporção de
crianças quilombolas de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que na
população brasileira e 44,6% maior do que na população rural. A incidência de
meninos e meninas com déficit de peso para a idade nessas comunidades é de
8,1% — maior também do que entre as crianças do Semi-árido brasileiro (6,6%).

A situação das crianças quilombolas é ainda pior quando analisada a desnutrição


por déficit de crescimento: 316 (11,6%) têm altura inferior aos padrões
recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). As crianças
quilombolas não crescem bem porque vão acumulando as conseqüências da
desnutrição e das infecções, como a diarréia. Os últimos dados desse tipo para as
crianças brasileiras como um todo estão na Pesquisa Nacional sobre Demografia

84 A Chamada Nutricional Quilombola é uma pesquisa antropométrica e socioeconômica de abrangência

nacional, estruturada a partir de uma mostra de 60 comunidades quilombolas. É resultado de uma parceria
do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, SEPPIR, UNICEF e CONAQ. Os dados foram
divulgados em maio de 2008.

168
e Saúde, de 1996: 10,5% das pessoas nessa faixa etária tinham déficit de altura —
o que significa que a situação das crianças quilombolas em 2006 era pior do que a
das brasileiras de dez anos antes.

Comparadas às crianças do Semi-árido brasileiro (região que concentra grande


parte dos municípios de pior situação socioeconômica do Brasil), as quilombolas
também apresentam uma situação nutricional inferior: a proporção de pessoas de
até 5 anos com déficit de altura é 75,7% maior. As comunidades quilombolas têm
uma situação de renda muito baixa, além de grande exclusão do acesso ao
saneamento básico. A desnutrição na faixa etária de 0 a 5 anos de idade é
resultado da alimentação e das infecções. A nutrição e o saneamento básico são
os binômios fatais para a desnutrição. A importância de ações como este projeto
nas comunidades quilombolas está ancorada em buscar reverter esse quadro no
que concerne à melhora nutricional.

De acordo com levantamento sócio-econômico realizado pela Fundação Cultural


Palmares com o apoio da Universidade de Brasília (2004), abrangendo cerca de
150 comunidades quilombolas, constatou-se que a renda mensal da maioria das
famílias não ultrapassa R$ 240,00 mensais.

As políticas públicas voltadas para as comunidades, como as atualmente


existentes no programa intitulado “Programa Brasil Quilombola85”, do Governo
Federal, são muito necessárias para reverter a situação de vulnerabilidade de
muitas das comunidades, e consistem, inclusive, em uma das grandes
reivindicações do movimento quilombola. Todavia, quando as comunidades
chegam efetivamente a atingi-las, as ações apresentam muitas vezes um perfil
genérico das políticas voltadas à população carente, baseando-se apenas na
perspectiva econômica.

85
O Programa Brasil Quilombola foi criado em 2004 e agrupa ações voltadas às comunidades quilombolas
em várias áreas: acesso à terra, educação, saúde, saneamento básico, eletrificação, geração de renda, dentre
outros.

169
As ações educacionais, por exemplo, que não dialoguem com a história e a
cultura das comunidades, apresentam uma face de violência com a dinâmica da
comunidade. Em relação à saúde, por sua vez, também apresenta-se uma
situação complexa, uma vez que ações de saúde que não se constituam
conjuntamente com os saberes de saúde das comunidades, como o das parteiras
e benzendeiras, agridem a lógica cultural desses grupos. Esses dois casos,
reproduzidos em políticas públicas voltadas para outros enfoques, representam
ações públicas que não se estruturam numa perspectiva pluriétnica, tal como
trata os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, bem como a Convenção 169 da
OIT.

Portanto, as poucas políticas públicas hoje existentes apresentam um desfoque


das perspectivas culturais e históricas desses grupos. Almeida (2005) destaca
ainda que:

“Recursos orçamentários vão ser encontrados nos chamados atos de “política social” (...).
Acionados sem a titulação definitiva dos territórios, eles têm sido implementados (saúde,
educação, bolsa de alimentos) como se as comunidades remanescentes de quilombos
pudessem ser reduzidas ao econômico, ou seja, como se tratassem de “comunidades
carentes” ou de baixa renda ou ainda de comunidades que podem ser classificadas como
“pobres”. (Almeida, 2005: 87).

Para além do reducionismo do formato das políticas para as comunidades


quilombolas, a partir do recorte econômico, Almeida também traz outro
elemento fundamental, que é a importância de garantir o território às
comunidades, sendo essa uma perspectiva fundamental para a implementação e
efetivação dos direitos desses grupos.

A inoperância do Estado para efetivar a titulação das terras das comunidades


quilombolas, a resistência e as barreiras para a efetivação de políticas
estruturadas a partir de uma ótica pluriétnica refletem o histórico silenciamento
promovido pelo Estado brasileiro com os “outros” aqui presentes. Nessa
perspectiva, ao reivindicarem sua existência e suas especificidades, as

170
comunidades lutam contra os antagonismos construídos na própria estrutura
estatal, como pontua Ronaldo Santos:

“A questão quilombola ela está colocada há muito tempo e ela tem sido conduzida com
avanços e retrocessos. A primeira coisa que nós temos que ter clara é que nós não
podemos desanimar, nossos ancestrais não desanimaram, por isso nós não podemos
desanimar. A segunda coisa que precisamos ter clara é que o Estado (e aqui eu não estou
falando de governo) não é nosso, não foi feito pra nós, não foi feito pensado para nós.
Então a gente está aqui lutando contra uma estrutura de Estado que está sendo moldada
há mais de 500 anos e que não foi pensada em nós” (Ronaldo, CONAQ, RJ, em fala
durante a Audiência do MPF, em 19/09/2007).

A partir de 1988, o Estado constitui para si um novo paradigma de visão em


relação aos grupos etnicamente distintos da sociedade nacional. A efetivação
desse olhar remete, ainda, a uma construção que tende à homogeinização desses
grupos. A execução de políticas públicas voltadas aos vários povos e
comunidades pressupõe uma categorização. Em relação às comunidades
quilombolas, creio ser possível afirmar que uma vez que o Estado, a partir dessas
mudanças paradigmáticas, busca atuar junto a grupos historicamente
invisibilizados e excluídos, o faz a partir de uma padronização desses grupos.
Esse processo subentende que as comunidades construam sua identidade a partir
das exigências do Estado.

O debate sobre a categoria “quilombo”, já feito de modo mais profundo no


capítulo 5, apresenta um ponto crucial que é o intuito do Estado em, na
constituição dos sujeitos de direito, “moldar” as comunidades em definições
acessíveis e palpáveis ao Estado. Para além do identificar-se como “quilombo”,
essa relação Estado x comunidades incita novos processos organizativos que, por
um lado, exigem das comunidades um discurso e uma estratégia de ação que
viabilize um diálogo com o Estado para pautar suas reivindicações e direitos, e,
por outro, exige desse mesmo Estado um esforço de se readequar e de ampliar os
seus horizontes de atuação.

As categorias apresentam-se como operadoras da realidade. Como coloca Arruti


(2006), o ‘reconhecimento oficial’ das comunidades ‘remanescentes de

171
quilombos’ coloca em pauta o poder de nomeação de que é instituído o Direito e
seu garantidor, o Estado, detentor da palavra autorizada por excelência. Essa
nominação, essa classificação das comunidades quilombolas enquanto categoria
reúne uma realidade heterogênea e a transforma em “objeto de ação do Estado”
(Arruti, 2006: 52).

O que se coloca como objeto dessa relação é que as comunidades, para a


aplicação do Artigo 68, do ADCT da CF, devem estar ocupando suas terras, e,
por outro lado, necessitam estar organizados politicamente para pautar e lutar
pela garantia dos seus direitos, ao exigir do Estado o cumprimento de ações que
levem à sua efetivação.

O papel do Estado brasileiro, sobretudo nos últimos anos, tem, de modo indireto,
fomentado a organização das comunidades quilombolas. Houve uma elevação
significativa de mobilizações das lideranças quilombolas de todo o País para
encontros, congressos, apoio a projetos nas várias áreas. A atuação do Estado,
principalmente financeira, visa teoricamente o fortalecimento institucional das
comunidades quilombolas.

Diversas políticas voltadas às comunidades quilombolas, e a outras comunidades


tidas como “tradicionais” têm como um de seus parâmetros o fortalecimento
institucional desses sujeitos enquanto coletividade. Cito aqui, como exemplo, a
Política de Promoção da Igualdade Racial (na qual se encontra o Programa Brasil
Quilombola) e Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais.

O Estado tem por obrigação promover o bem estar e a igualdade dos cidadãos e
cidadãs que o compõem. Esse processo passa pelo reconhecimento às diferenças
e para o esforço cada vez maior do poder público em efetivar os direitos desses
grupos. Entretanto, como estão envolvidos numa complexa trama de interesses
contraditórios, os representantes do Estado, que atuam em nome do poder

172
público, operam ações que visam, por outro lado, a desarticulação das
comunidades, como é o caso dos deslocamentos provocados pelo CLA em
Alcântara (Maranhão), ou pela Marinha em Marambaia (Rio de Janeiro). Há,
também, uma histórica omissão por parte do Estado em ser capaz de reverter
situações de conflitos em comunidades expostas à pressão dos latifundiários e do
capital em geral.

Essa situação contraditória parece ganhar maior volume com as reações da


sociedade em relação à efetivação dos direitos das comunidades. Parte dessas
reações estão presentes em reportagens86, projetos de lei contra legislações
voltadas a titulações das terras quilombolas87 e ações políticas que se refletem na
ampliação do conflito e da vulnerabilidade desses grupos.

A relação do Estado com as comunidades, por meio de seus movimentos,


apresenta uma silhueta contraditória. O esforço de ampliar seu espectro de ação
junto às comunidades demanda, contudo, um movimento de ampliar sua
percepção das comunidades, reconhecendo a diversidade fundante desses
grupos. A experiência das comunidades negras rurais é múltipla nas diversas
regiões do País. Há situações onde a vivência e a construção identitária e política
desses grupos os aproxima de modo mais efetivo de outros grupos camponeses
do que das demais comunidades quilombolas. Estão ancoradas em múltiplos
processos de formação, de territorialidade, de estratégias organizativas. Ao
categorizar as comunidades como “objetos de ação do Estado”, homogeiniza-se e
padroniza-se algo que não pode ser reduzido ou formatado.

O interessante nas relações estabelecidas entre o movimento quilombola e o


Estado é que, à medida que a ação coletiva de grupos sociais não-estatais e não-
partidários, como o movimento das comunidades, configura cenários políticos

86
Cito como exemplo, artigos de jornais como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo; e reportagens do
Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, vinculadas nos dias 14 e 15 de maio de 2007.
87
PDL 44/2007, de autoria do Deputado Valdir Colato (PMDB/SC).

173
diferenciados, constroem-se possibilidades e campos férteis para que as políticas
públicas sejam formatadas a esses grupos, demandando uma efetivação do
disposto na Constituição Federal de 1988, ou seja, demandando que o Estado
brasileiro se formate numa perspectiva pluriétnica.

174
Considerações Finais

Em oposição à lógica totalizante, imposta pelo sistema colonial e, mais


recentemente, pelo pós-colonial, as resistências negras historicamente lutam pela
sua identidade, por seu território e pela sua memória. Os quilombos, como
símbolo expressivo dessa resistência, entram no século XXI como um movimento
que, a partir de seus critérios de pertença, trilha metas comuns em busca da
garantia de seus direitos.

O Conceito de Quilombo ganha novo marco jurídico após a Constituição de 1988,


determinante para a garantia do direito à terra a essas comunidades. É também
um fator fundamental para o estabelecimento e organização do movimento
quilombola em nível nacional, que, a partir da construção de sua identidade
étnica, reivindica o direito à terra. São poucas as comunidades que alcançaram
esse direito. Das mais de três mil comunidades quilombolas presentes nas cinco
regiões do País, pouco mais de cem possuem o título.

Os interesses contrários aos direitos quilombolas contestam, principalmente, o


direito aos territórios das comunidades que, uma vez tituladas, se tornam
inalienáveis e coletivas. As terras das comunidades quilombolas cumprem sua
função social precípua, dado que sua organização se baseia no uso dos recursos
territoriais para a manutenção social, cultural e física do grupo, fora da dimensão
comercial. São territórios que contrariam interesses imobiliários, de instituições
financeiras, grandes empresas, latifundiários e especuladores de terras. Os
conflitos fundiários hoje existentes em algumas comunidades quilombolas
envolvem, na maior parte das vezes, esses atores.

Essa pesquisa buscou empreender um panorama da construção da categoria


quilombo ao longo da história do Brasil. Perpassou, também, por discussões

175
fundamentais que estão postas hoje: tal como a construção da etnicidade, os
elementos que constituem a identidade quilombola e as estratégias político-
organizativas das comunidades para lutarem em prol de seus direitos.

Atualmente, a principal luta dos quilombolas se volta para a implementação de


seus direitos territoriais. A noção de terra coletiva, tal como são concebidas as
terras de comunidades quilombolas, coloca em crise o modelo de sociedade
baseado na propriedade privada como única forma de acesso à terra, instituído
na Lei de Terras (1850). Cabe, portanto, ao Estado repensar sua estrutura agrária
a partir do reconhecimento de seu caráter pliriétnico também em relação à
ocupação territorial.

As dificuldades existentes para efetivar a titulação das terras das comunidades


quilombolas refletem uma capacidade administrativa frágil da máquina estatal.
Todavia, há disputas em jogo que superam as limitações administrativas e
orçamentárias, que se constituem numa ordem política mais ampla. São
obstáculos que, de modo explícito ou não, atuam no sentido de reter o
reconhecimento de direitos étnicos pela propriedade definitiva das terras das
comunidades quilombolas, e se expressam de variadas formas.

Estão identificadas no Brasil 3524 comunidades quilombolas88 nas cinco regiões


do País. Dessa totalidade, apenas 204 possuem o título de suas terras, sendo que
parte considerável desse quantitativo de títulos é contestada na justiça e não
possui validade na prática (em sua maioria, títulos expedidos pela FCP).
Portanto, excluindo os títulos contestados da FCP, o total de comunidades
quilombolas que têm garantido o seu direito constitucional à terra é de 150. São,
também, 1209 comunidades certificadas pela FCP e cerca de 600 que estão em
processo de regularização fundiária pelo INCRA.

88
Fonte: SEPPIR (2006).

176
As comunidades quilombolas simbolizam um outro modelo em relação à
dinâmica frenética de mobilização demográfica para os grandes centros. A
garantia de seus direitos fortalece, também, outras dinâmicas sociais que se
colocam em paralelo à crescente urbanização da sociedade brasileira e fortalece a
perspectiva de um Estado que reconhece sua pluralidade.

O panorama interétnico das “novas etnias” requer leituras críticas e uma


reinterpretação da base legal que possibilite dialogar com essa multiplicidade de
fatores. O que está colocado é a revisão desses conceitos étnicos, baseados em
novas redes de solidariedades, a qual, como afirma Almeida (2002), está sendo
construída consoante à combinação de formas de existência coletiva capaz de
impor às estruturas de poder que regem a vida social.

Há uma forte politização dessa questão com o processo de consolidação do


movimento quilombola enquanto força social. A compreensão do conceito de
quilombo, portanto, requer novos conceitos de etnia e de identidade capazes de
permitir esclarecimentos sobre esses fenômenos políticos em transformação.

O movimento de aquilombar-se reflete as estratégias e mobilizações das


comunidades quilombolas, em sua multiplicidade de expressões, ao longo da
história do País. Reflete, também, as ações de contraponto às forças antagônicas,
que em cada período histórico se expressaram à sua maneira.

Aquilombar-se relaciona-se fundamentalmente ao movimento quilombola,


pensando-o como proveniente da luta pela garantia dos direitos desses grupos.
Essa trajetória de luta tem múltiplas facetas, sendo uma delas a institucional, das
coordenações, associações e federações, o que se soma às outras formas de
resistência das comunidades. O central é que aquilombar-se remete à luta contínua
não pelo direito a sobreviver, mas pelo de existir em toda a sua plenitude. Trata-
se da luta pela existência física, cultural, histórica e social das comunidades
quilombolas.

177
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Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho –


OIT: promulgada pelo Decreto nº 5.051 de 19 de abril de 2004.

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Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964: Estatuto da Terra;

Portaria nº 06, de 04 de março de 2004, da Fundação Cultural Palmares, institui


o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombos

Decreto nº. 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para


identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art.
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF, 2003.

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www.iterpa.pa.gov.br

www.itesp.sp.gov.br

www.koinonia.org.br

www.palmares.gov.br

www.presidencia.gov.br/seppir

www.quilombo.org.br

188
ANEXOS

I. Documento final do I Encontro Nacional de Comunidades Negras


Rurais (1995)

I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais89

Brasília, 20 de novembro de 1995.

Exmo. Sr. Fernando Henrique Cardoso

MD Presidente da República

Exmo. Sr. Presidente,

Com este documento, ora encaminhado a Vossa Excelência, queremos ser


ouvidos. Nunca fomos em toda a história do Brasil. Somos negros e vivemos em
comunidades rurais. Descendemos de africanos que escravizados lutaram, fugiram das
fazendas, buscaram todas as formas para viver em liberdade e em plena harmonia com a
terra e a natureza. Nunca aceitamos que o escravismo retirasse nossa dignidade de ser
humano.

A terra que temos hoje foi conquistada por nossos antepassados com muito
sacrifício e luta. E passados 107 anos do fim oficial da escravidão, estas terras continuam
sem o reconhecimento legal do Estado. Estamos assim, expostos à sanha criminosa da
grilagem dos brancos, que são, na atualidade, os novos senhores de tão triste memória.
No papel somos cidadãos. De fato, a escravidão para nós não terminou. E nenhum
governante da Colônia, do Império e da República reconheceu nossos direitos.

O direito à terra legalizada é o primeiro passo. Queremos mais. Somos cidadãos e


cidadãs e como tais temos o direito a tudo que os demais grupos já usufruem na
sociedade. Sabemos que a cidadania só será de fato quando nós, nossos filhos e netos
tivermos a terra legalizada e paz para trabalhar; condições para produzir na terra; um
sistema de educação que acabe com o analfabetismo e respeite nossa cultura negra;
assistência à saúde e prevenção às doenças e um meio ambiente preservado da ganância

89
Realizado durante a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, nos dias 17, 18
e 19 de novembro de 2005.

189
dos fazendeiros e grileiros que destroem nossas florestas e rios. Não temos esses direitos
assegurados, portanto não somos reconhecidos como cidadãos!

O I ENCONTRO NACIONAL DE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS, o único


acontecimento do gênero realizado na história do Brasil, não poderia, neste momento
em que celebramos os 300 anos da imortalidade de Zumbi de Palmares, deixar de
apresentar ao Presidente da República nossas dificuldades para existir enquanto povo e
as soluções que compete ao atual governo dar como resposta.

Senhor Presidente, o que reivindicamos é um pouco diante da contribuição que temos


dado para a construção do Brasil.

A seguir, apresentamos nossas principais reivindicações.

1. Terra para os quilombolas

Desde o começo da história do Brasil, negros e índios estão sendo injustiçados. Até hoje,
muitas comunidades remanescentes de quilombos e povos indígenas não tem suas terras
garantidas.

A comunidade Kalunga reivindica que o governo cancele a instalação das hidroelétricas


de Foz de Bezerra e Boa Vista, que, se construídas, inundarão suas terras.

2. Saúde

Reivindicamos que:

- A Fundação Nacional de Saúde implemente um programa junto às


comunidades visando a erradicação de doenças como sarampo, tétano, febre amarela e
outras mais.

- O Governo Federal fiscaliza o repasse de verbas de saúde – SUS, que se tem


mostrado falho, com o sistemático atraso no repasse do pagamento aos agentes de
saúde.

3. Educação

Reivindicamos que o Governo Federal implemente um programa de educação de 1º e 2º


graus especialmente adaptado à realidade das comunidades negras rurais, com
elaboração de materiais didáticos e a formação e aperfeiçoamento de professores.

Extensão do programa que garante o salário base nacional de educação para os


professores leigos das comunidades negras.

Implementação de cursos de alfabetização para adultos nas comunidades negras.

190
4. Mulher Negra

Devido às denúncias de que as mulheres negras que trabalham como diaristas nas
fazendas recebem salários inferiores ao dos homens, solicita-se que o Ministério do
Trabalho apure a situação e tome as devidas providências.

Na certeza de que as reivindicações acima colocadas serão devidamente apreciadas e


consideradas por Vossa Excelência, subscrevemo-nos,

Respeitosamente,

Comunidade Rio das Rãs (BA)

Comunidade Frechal (MA)

Comunidade Kalunga (GO)

Comunidade Conceição das Crioulas (PE)

Comunidade Furnas da Boa Sorte (MS)

Comunidade Furnas do Dionísio (MS)

Comunidade Laje dos Negros (BA)

Comunidade Campinho da Independência (RJ)

Comunidade Barra do Brumado (BA)

Comunidade Fazenda Pilar (BA)

Comunidade Parateca (BA)

Comunidade Pau D’arco (BA)

Comunidade Bananal (BA)

Comunidade Entre Rios (MA)

Comunidade Sóassim (MA)

Comunidade Santo Antônio (MA)

Comunidade Pitoró dos Pretos (MA)

Comunidade Tingidor (MA)

Comunidade Guaraciaba (MA)

Comunidade Saco das Almas (MA)

Comunidade Santa Cruz (MA)

191
Comunidade Santa Joana (MA)

Comunidade São Benedito (MS)

Comunidade Santa Maria dos Pineiros (MA)

Movimento Negro Unificado

Centro de Cultura Negra do Maranhão

Grupo de Trabalho e Estudos Zumbi/MS

Grupo Cultural Niger Okam (BA)

Comissão Pastoral da Terra

Comissão Pró-Índio de São Paulo

192
II. Decretos pertinentes ao tema de regularização fundiária das terras das
comunidades quilombolas

II.1) DECRETO Nº 3.912 - DE 10 DE SETEMBRO DE 2001 - DOU DE


11/9/2001 - Revogado

Revogado pelo Decreto nº 4.887, DE 20/11/2003.

Regulamenta as disposições relativas ao processo


administrativo para identificação dos remanescentes das
comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a
delimitação, a demarcação, a titulação e o registro
imobiliário das terras por eles ocupadas.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, da
Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 14, inciso IV, alínea "c", da Lei nº 9.649, de 27 de
maio de 1998, e no art. 2º, inciso III e parágrafo único, da Lei n] 7.668, de 22 de agosto de 1988,

DECRETA:

Art. 1º Compete à Fundação Cultural Palmares - FCP iniciar, dar seguimento e concluir o
processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro
imobiliário das terras por eles ocupadas.

Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a
propriedade sobre terras que:

I - eram ocupadas por quilombos em 1888; e


II - estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de
outubro de 1988.

Art. 2º O processo administrativo para a identificação dos remanescentes das


comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a
titulação e o registro imobiliário de suas terras será iniciado por requerimento da parte
interessada.

§ 1º O requerimento deverá ser dirigido ao Presidente da Fundação Cultural Palmares -


FCP, que determinará a abertura do processo administrativo respectivo.
§ 2º Com prévia autorização do Ministro de Estado da Cultura, a Fundação Cultural
Palmares - FCP poderá de ofício iniciar o processo administrativo.

Art. 3º Do processo administrativo constará relatório técnico e parecer conclusivo


elaborados pela Fundação Cultural Palmares - FCP.

§ 1º O relatório técnico conterá:

I - identificação dos aspectos étnicos, histórico, cultural e sócio-econômico do grupo;

193
II - estudos complementares de natureza cartográfica e ambiental;
III - levantamento dos títulos e registros incidentes sobre as terras ocupadas e a respectiva
cadeia dominial, perante o cartório de registro de imóveis competente;
IV - delimitação das terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação;
V - parecer jurídico.

§ 2º As ações mencionadas nos incisos II, III e IV do parágrafo anterior, poderão ser
executadas mediante convênio firmado com o Ministério da Defesa, a Secretaria de
Patrimônio da União - SPU, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária -
INCRA e outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal ou empresas
privadas, de acordo com a natureza das atividades.
§ 3º Concluído o relatório técnico, a Fundação Cultural Palmares - FCP o remeterá aos
seguintes órgãos, para manifestação no prazo comum de trinta dias:

I - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN;


II - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA;
III - Secretaria do Patrimônio da União - SPU;
IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;
V - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA.

§ 4º Após a manifestação dos órgãos relacionados no parágrafo anterior, a Fundação


Cultural Palmares - FCP elaborará parecer conclusivo no prazo de noventa dias e o fará
publicar, em três dias consecutivos, no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da
unidade federada onde se localizar a área a ser demarcada, em forma de extrato e com o
respectivo memorial descritivo de delimitação das terras.
§ 5º Se, no prazo de trinta dias a contar da publicação a que se refere o parágrafo anterior,
houver impugnação de terceiros interessados contra o parecer conclusivo, o Presidente da
Fundação Cultural Palmares - FCP a apreciará no prazo de trinta dias.
§ 6º Contra a decisão do Presidente da Fundação Cultural Palmares - FCP caberá recurso
para o Ministro de Estado da Cultura, no prazo de quinze dias.
§ 7º Se não houver impugnação, decorridos trinta dias contados da publicação a que se
refere o § 4º, o Presidente da Fundação Cultural Palmares - FCP encaminhará o parecer
conclusivo e o respectivo processo administrativo ao Ministro de Estado da Cultura.
§ 8º Em até trinta dias após o recebimento do processo, o Ministro de Estado da Cultura
decidirá:

I - declarando, mediante portaria, os limites das terras e determinando a sua demarcação;


II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser
cumpridas no prazo de sessenta dias;
III - desaprovando a identificação e retornando os autos à Fundação Cultural Palmares -
FCP, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto
IV - desaprovando a identificação e retornando os autos à Fundação Cultural Palmares -
FCP, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no art.
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição.

§ 9º Será garantida à comunidade interessada a participação em todas as etapas do


processo administrativo.

Art. 4º A demarcação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos será
homologada mediante decreto.

194
Art. 5º Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, a Fundação
Cultural Palmares - FCP conferirá a titulação das terras demarcadas e promoverá o
respectivo registro no cartório de registro de imóveis correspondente.

Art. 6º Quando a área sob demarcação envolver terra registrada em nome da União, cuja
representação compete à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a titulação e o registro
imobiliário ocorrerão de acordo com a legislação pertinente.

Art. 7º Este Decreto aplica-se aos processos administrativos em curso.

Parágrafo único. Serão aproveitados, no que couber, os atos administrativos já praticados


que não contrariem as disposições deste Decreto.

Art. 8º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 10 de setembro de 2001; 180] da Independência e 113º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO


Francisco Weffort

Este texto não substitui o publicado no DOU DE 11/9/2001

II.2) DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003

Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,


demarcação etitulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84,
incisos IV e VI, alínea “a” da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, DECRETA:

Art. 1o. Os procedimentos administrativos para a identificação, o


reconhecimento, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o
estabelecido neste Decreto.

Art. 2o. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os


fins deste Decreto, os grupos étnicoraciais, segundo critérios de auto-atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§1o. Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria
comunidade.

195
§2o. São terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos as
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§3o. Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo
facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução
procedimental.

Art. 3o. Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do


Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência
concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§1o. O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da
publicação deste Decreto.
§2o. Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios,
contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública
federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não
governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§3o. O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por
requerimento de qualquer interessado.

§4o. A autodefinição de que trata o §1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no
Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na
forma do regulamento.

Art. 4o. Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade


Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do
Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir
os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos
termos de sua competência legalmente fixada.

Art. 5o. Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural


Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA
nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural
dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os
trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e
reconhecimento previsto neste Decreto.

Art. 6o. Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a
participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por
meio de representantes por eles indicados.

Art. 7o. O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação,


delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes
consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade

196
federada onde se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações:
I – denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos;
II – circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;
III – limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das
terras a serem tituladas; e
IV – títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras
consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.
§1o. A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde
está situado o imóvel.
§2o. O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada.

Art. 8o. Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o


relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de
trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas competências:
I – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;
II – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis –
IBAMA;
III – Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão;
IV – Fundação Nacional do Índio – FUNAI;
V – Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;
VI – Fundação Cultural Palmares.
Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e
entidades, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico.

Art. 9o. Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e
notificações a que se refere o art. 7o, para oferecer contestações ao relatório, juntando as
provas pertinentes.

Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o INCRA


concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das
comunidades de quilombos.

Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA
e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do
título.

Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de
segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a
Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural
Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas
comunidades, conciliando o interesse do Estado.

197
Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedades dos Estados, do
Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes
responsáveis pela titulação.

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades
dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou
comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e
avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação,
quando couber.

Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos


interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões surgidas em
decorrência da titulação das suas terras.

Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação


Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes
das comunidades dos quilombos para a defesa da posse contra esbulhos e turbações,
para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por
terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta
assistência.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos
órgãos da Defensoria Pública quando estes
órgãos representarem em juízo os interesses dos remanescentes das comunidades dos
quilombos, nos termos do art. 134
da Constituição.

Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante
outorga de título coletivo e próindiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput,
com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e
impenhorabilidade.
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações
legalmente constituídas.

Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos


antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação, devem
ser comunicados ao IPHAN.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo para
fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do patrimônio
cultural brasileiro.

Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa dias,
plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos
quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir indicado:
I – Casa Civil da Presidência da República;
II – Ministérios:
a) da Justiça;

198
b) da Educação;
c) do Trabalho e do Emprego;
d) da Saúde;
e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;
f) das Comunicações;
g) da Defesa;
h) da Integração Nacional;
i) da Cultura;
j) do Meio Ambiente;
k) do Desenvolvimento Agrário;
l) da Assistência Social;
m) do Esporte;
n) da Previdência Social;
o) do Turismo;
p) das Cidades;
III – do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à FOME;
IV – Secretarias Especiais da Presidência da República:
a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
b) de Aquicultura e Pesca; e
c) dos Direitos Humanos
1o. O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial.
§3o. A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço
público relevante, não remunerada.

Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das


comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial,
assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à realização de suas
atividades produtivas e de infra-estrutura.

Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os procedimentos


administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase em que se
encontrem.
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão regras
de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais anteriores à
publicação deste Decreto.

Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA
far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área.
Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados
em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários
específicos que respeitem suas características econômicas e culturais.

Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas neste


Decreto ocorrerão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei orçamentária

199
anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e empenho e de
pagamento.

Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 25. Revoga-se o Decreto nº 3.912, de 10 de setembro de 2001.

Brasília, 20 de novembro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Gilberto Gil
Miguel Soldatelli Rossetto
José Dirceu de Oliveira e Silva.
Publicado no DOU de 21.11.2003

200
III) Distribuição Espacial das Comunidades Quilombolas Identificadas

201
IV) Fotos do Ato em Defesa dos Direitos Quilombolas, realizado em Brasília
(setembro/2007):

202
203
204

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