Aquilombar Se PDF
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AQUILOMBAR-SE
Panorama Histórico, Identitário e Político
do Movimento Quilombola Brasileiro
1
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
AQUILOMBAR-SE
Panorama Histórico, Identitário e Político
do Movimento Quilombola Brasileiro
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social da Universidade
de Brasília, como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Banca Examinadora:
2
Ao Movimento Quilombola.
3
“Eu quero uma história nova
Não este conto de fadas brancas e ordinárias
Donas de nossas façanhas
Eu quero um direito antigo
Engavetado em discursos
Contidos, paliativos
(cheios de maçãs e pêras)
Bordados de culpa e crimes.
Eu quero de volta, de pronto
As chaves dessas gavetas
Dos arquivos trancafiados
Onde jazem meus heróis
Uma “nova” história velha
Cheia de fadas beiçudas
Fazendo auê, algazarras
Com argolas nas orelhas,
De cabelos pixaim
Engasgando príncipes brancos
Com talos de abacaxi.”
4
Agradecimentos
5
Agradeço à Professora Maria da Glória Moura por todos os incentivos e
estímulos ao trabalho de pesquisa com comunidades quilombolas ao longo de
minha vida acadêmica. À professora Ilka Boaventura Leite agradeço pela atenção
dedicada em sua participação na banca, pela inspiração que traz para o trabalho
e atuação com a temática quilombola na academia e para além dela. Agradeço,
também, ao professor Alfredo Wagner pelo apoio sempre solícito nas várias
etapas dessa pesquisa.
À minha mãe, Josélia Abreu, agradeço de maneira enfática por todo apoio e
estímulo intelectual que sempre manteve presente e pela ajuda no percurso dessa
pesquisa. Ao meu pai, Waldimiro de Souza, por ter me ajudado a construir o
embasamento fundamental para esse trabalho: consciência racial. Aos meus
irmãos, Paulo, José, Artur e Isabel, por todo carinho e companheirismo. Ao José,
em especial, agradeço a dedicação à transcrição das dezenas de entrevistas. Ao
meu filho, João Caetano, dedico esse trabalho e todo o meu amor.
6
Resumo
A luta pela garantia dos direitos quilombolas é histórica e política. Abarca uma
dimensão secular de resistência, na qual homens e mulheres buscavam o
quilombo como possibilidade de se manterem física, social e culturalmente, em
contraponto à lógica escravocrata. No período pós-abolição, a luta pelos direitos
quilombolas se somou às lutas da população negra de modo geral, sendo uma
forte bandeira dos movimentos negros organizados durante os séculos XX e XXI.
O processo de fortalecimento da luta pelos direitos desses grupos construiu,
todavia, uma outra faceta importante do ponto de vista político e organizativo
que é a constituição do movimento quilombola, com suas especificidades em
relação ao movimento negro urbano. O objetivo do presente trabalho é traçar um
panorama sobre as dimensões históricas, identitárias e políticas do movimento
quilombola no País. Tece, ainda, reflexões sobre as relações estabelecidas entre o
movimento quilombola, o Estado brasileiro, o setor privado, as organizações da
sociedade civil e demais atores imbricados no seu processo de afirmação de
direitos.
Abstract
Keywords: Quilombolas Communities – Social Movement – Identity
The struggle for the guarantee of the quilombola rights is historic and political. It
embraces a secular dimension of resistance, in which men and women seeked the
quilombo as a possibility of physical, social and cultural maintenance, in
opposition to the slavery logic. In the post-abolition period, the struggle for the
quilombola rights joined forces with the struggle of the black population in
general, figuring as a strong flagship of organized black movements during the
20th and 21st centuries. The process of strengthening the struggle for the rights of
these groups constituted, anyhow, another important facet from the political and
structural point of view, which is the constitution of the quilombola movement
with its particularities in relation to the urban black movement. The objective of
this present work is to trace a panorama of the historic, identitary and political
dimensions of the quilombola movement in the country. It fabrics, furthermore,
reflections over the established relations amidst the quilombola movement, the
Brazilian State, the private sector, the civil society organizations and other
stakeholders imbricated in the process of affirmation of their rights.
7
Sumário
Agradecimentos 05
Resumo/Abstract 07
Acrônimos 09
Introdução 12
Metodologia 16
4.5 Juventude
Anexos 189
8
Acrônimos
AA – Ato Administrativo
9
CONERQ/MS - Coordenação das Comunidades Rurais Quilombolas de Mato
Grosso do Sul
IN – Instrução Normativa
10
MMA – Ministério do Meio Ambiente
11
Introdução
As organizações sociais que lutam pelos direitos territoriais e identificam-se
como “remanescentes de quilombos” constituem-se, não exclusivamente, por
pessoas negras, e localizam-se em todas as regiões do País. Parte dessas
comunidades volta-se para o cultivo das terras, e possuem, em sua grande
maioria, a sua posse, sem haver na maior parte dos casos regularização de seus
territórios.
A luta pelos seus territórios, organizada a partir do Artigo 68, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, traz
uma nova moldagem para essa mobilização. Permite que os processos de defesa
dos territórios, antes processados de distintos modos e tendo como base
diferentes legislações, passe a se dar a partir de um mesmo caminho legal e
identitário.
12
A resistência quilombola traz em si um processo de construção que há muito se
dá na história do País, e que se processa de diferentes modos de acordo com os
contextos de cada período. A ocupação das terras brasileiras pelo poder colonial
data de mais de cinco séculos. Após a abolição formal da escravidão (Lei Áurea
nº 3.353, de 13 de maio de 1888), levou-se cem anos para que fossem
reconhecidos os direitos às terras aos descendentes dos antigos quilombos,
através do Artigo 68.
Hoje, após duas décadas de vigência do Art. 68, pouco mais de cem
comunidades tiveram seus territórios reconhecidos. São cerca de três mil
comunidades quilombolas identificadas pelo Governo Federal1, presentes nas
cinco regiões do País, que têm seu direito fundamental à terra não efetivado. A
fragilidade da efetivação desse direito se expressa nesse processo lento e árduo
de titulação das terras quilombolas.
1
Base de dados da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e MDS
(Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), 2007.
13
Os objetivos da presente pesquisa abarcam quatro aspectos fundamentais: (1)
Abordar os processos mobilizatórios das comunidades quilombolas ao longo da
história do Brasil, que têm suas estratégias tecidas de acordo com os aspectos
históricos e políticos de cada período analisado; (2) Empreender um panorama
da construção da categoria quilombo, desde quando surge nos marcos legais
coloniais e imperiais, como categoria de transgressão, até os dias de hoje, quando
situa-se na perspectiva de direitos (após a Constituição de 1988); (3) Focar a
dimensão identitária da categoria ‘quilombo’ e seus reflexos nos processos
identitários e mobilizatórios de luta pelos direitos quilombolas; (4) Abordar as
dimensões político-organizativas estabelecidas entre as comunidades, no que
denomino “movimento quilombola”, e suas respectivas relações estabelecidas
com o Estado.
14
O movimento quilombola e sua dimensão organizativa e política é trabalhado no
capítulo 4, por meio da construção conceitual e teórica que é vinculada com a
perspectiva de lideranças estaduais e nacionais da Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, e de outras
organizações quilombolas estaduais e locais. Os diálogos e construções relativas
às políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas estão presentes
também no capítulo 4.
15
Metodologia
O presente trabalho tem como foco analisar: (a) Os vários processos que
envolvem a construção da categoria quilombo, desde quando surge nos marcos
legais coloniais e imperiais até os dias de hoje; (b) Refletir sobre a dimensão
identitária e organizacional das comunidades quilombolas e os seus reflexos para
os critérios de pertencimento e identidade presentes na estruturação
organizacional e política dessas comunidades.
A minha participação esses encontros ocorreu desde 2004, sendo que em parte
deles eu me fazia presente por meio do projeto no qual atuava na Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da
República. Destaco, portanto, que parte significativa das relações por mim
estabelecidas com as lideranças quilombolas se viabilizou a partir de um projeto
governamental, e a percepção das lideranças comigo era, muitas vezes, de uma
gestora pública.
16
realizado pela Frente Parlamentar em Defesa da População Negra e pela
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas, ocorrido no dia 20 de setembro de 2007, na Câmara dos
Deputados, com a presença estimada de 700 quilombolas; o Seminário
Preparatório para a II Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável da
Agricultura Familiar, realizado entre os dias 07 a 10 de dezembro de 2007, onde
se reuniram cerca de 150 lideranças de várias organizações quilombolas do país,
com destaque para a forte presença da Conaq; e a Consulta Nacional à Nova
Instrução Normativa do INCRA, realizada entre os dias 15 a 17 de abril de 2008,
em Luziânia, Goiás, onde estiveram presentes um número estimado de 300
lideranças quilombolas.
No período entre 2007 e 2008, nesses encontros com as lideranças, realizei, além
da observação participante, entrevistas diretas enfocando os temas trabalhados
na presente pesquisa. Empreendi um trabalho de campo, realizado entre os dias
20 a 28 de fevereiro de 2008, no Maranhão. Nesse estado, realizei visitas e
entrevistas com lideranças quilombolas do Vale do Itapecuru, na sede da
Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão -
Aconeruq e na sede do Centro de Cultura Negra do Maranhão - CCN, ambas em
São Luis.
O foco desse trabalho de campo se voltou para os aspectos que tecem os critérios
de pertença estabelecidos no âmbito das organizações políticas que unificam a
luta de comunidades quilombolas das mais distintas regiões do país. São
organizações de comunidades que possuem especificidades e características
próprias, e que compartilham metas e objetivos comuns e têm, a partir de um
histórico compartilhado e de uma luta coletiva, uma identidade que os aproxima
e os unifica em sua diversidade.
17
lideranças, e seus processos mais atuais de articulação em níveis estaduais e
nacionais. Além disso, foram trabalhados os aspectos que permeiam a identidade
quilombola e a conjuntura de oposição que tem crescido continuamente nos
últimos anos.
18
Entrevistas livres, gravadas e não gravadas, são parte importante da
metodologia. Além das entrevistas, gravação de depoimentos, as fotografias
também compõem a parte principal do material de pesquisa. Como instrumental
foi utilizado um gravador, máquina fotográfica e caderno de campo.
19
Muito mais do que o método (que envolve a seleção de informantes, a transcrição
de textos, de genealogias, de campo, dentre outros), a escrita etnográfica envolve
nossa construção das construções de outras pessoas. Traz uma dimensão
relacional fundante. O fazer etnográfico é a tentativa de empreender uma leitura
a partir de outras leituras, percepções e inserções sociais.
20
1. Quilombo: Perspectiva Histórica
2Atualmente, a população negra na América ultrapassa 140 milhões de pessoas, constituindo um terço da
população total do continente, que é de 450 milhões de habitantes.
21
“A herança do direito romano permitiu que a Coroa portuguesa lançasse ordenações que
classificavam os africanos (e os índios) como coisas, como propriedade móvel, cuja
transmissão de posição social era estabelecida pela mãe (de acordo com o princípio partus
sequitur uetrem) que negava ao escravo qualquer condição humana (seruus personam non
habet)” (Fernandes, 1970: 279).
“Os castigos e tormentos infligidos aos escravos não constituíam atos isolados de puro
sadismo dos amos e seus feitores, constituíam uma necessidade imposta
irrecusavelmente pela própria ordem escravista, que, de outro modo, entraria em
3
Citado por Funari (1996: 27).
22
colapso. Pois, sem a compulsão do terror, o indivíduo simplesmente não trabalharia, nem
se submeteria ao cativeiro”.
O tempo médio de vida útil dos negros e negras escravizados no Brasil era de
sete anos, e sua a substituição era automática, sem que houvesse déficit na
produção econômica. O tráfico se dava em grandes proporções e a distribuição
de cativos abrangeu todo o território nacional4.
Para além de todo o aparato de repressão violento presente nas fazendas e nos
espaços onde havia escravos, existia grande legislação, tanto no regime colonial
como no imperial, que fundamentava a criminalização e penalização das fugas e
tentativas de rebelião de escravos.
4 Em 1819, conforme estimativa oficial, nenhuma região do Brasil tinha menos de 27% de
escravos em sua população (Moura, 1993: 7,8).
23
reprodução e de autoconsumo na figura do pilão. Esses cinco elementos se
reproduzem em muitas definições de quilombos que se seguiram na legislação
brasileira, apenas sofrendo um deslocamento de variação e intensidade entre eles
mesmos.
São estratégias presentes nos costumes, no corpo, no falar, nas vestimentas, nas
expressões, nas organizações sociais, políticas e religiosas tais como os
quilombos, irmandades e terreiros de candomblé. Essas estratégias de resistência
são vivas e fortemente presentes nas manifestações e expressões da cultura afro-
brasileira.
24
Yorubá, Kimbundu, Kicongo, Benguela, Mina, dentre vários outros povos
africanos trazidos ao Brasil, convergiram em inúmeras formas de resistência, com
o objetivo de fortalecer suas identidades e coletividades.
25
conseguiram voltar e trazer mulheres, e foram constituindo família.” (José Carlos Neto,
liderança quilombola de Santo Antônio do Guaporé, Rondônia).
26
como um contraponto à crueldade que representou o empreendimento
colonialista e, mais recentemente, o neocolonialista, que mantém sua
configuração de negação aos direitos fundamentais à população negra. Em sua
multiplicidade de formas, os quilombos se apresentam muitas vezes como
espaços interétnicos, o que todavia não descaracteriza, ao meu ver, sua essência
de resistência negra, pela força que este elemento tem em sua constituição e
identidade.
27
As Comunidades Quilombolas receberam vários nomes nas diversas regiões do
Novo Mundo: Quilombos, mocambeiros ou Mocambos no Brasil; Palenques na
Colômbia e em Cuba; Cumbes na Venezuela; Maroons no Haiti, Jamaica e nas
demais ilhas do Caribe francês.
28
Passados cem anos de duras batalhas, foi possível assinar diversos tratados de
paz com o então Estado Holandês e garantir o amplo território negro. De acordo
com Carvalho (1995), constituíram-se seis nações, moldadas nas sociedades da
África Ocidental. Com grande autonomia, as seis nações (Saramacá, Djuka,
Paramaka, Matawai, Aluku e Kwinti) eram compostas de estrutura política
própria, por meio de seus respectivos reis, mantinham com a ex-colônia relações
comerciais e puderam, ao longo de sua história, efetivamente expressar-se a
partir de seus códigos culturais, sociais e políticos.
29
popular de Michael Manley, Nanny foi reconhecida como heroína nacional no país
(Carvalho, 1995: 31-37).
30
(Péret, 2002: 47). Boa parte dos escritos sobre o Brasil, dessa época, trazia relatos
sobre esse fato.
“Deveríamos lamentar-lhe a triste sorte [de Palmares], porém a sua destruição foi uma
necessidade. Uma completa africanização de Alagoas, uma colônia africana de permeio
aos Estados europeus escravocratas, era uma coisa que não podia de todo ser tolerada,
sem fazer perigar seriamente a existência da colonização branca brasileira; o dever da
própria conservação obrigava exterminá-la” (Handelmann, 1978: 313).
31
República Palmariana, coordenadas pelo bandeirante Domingos Jorge Velho
entre 1694 e 1695.
32
Desenvolver um olhar analítico sobre os processos históricos que permearam as
organizações sociais negras de resistência ao sistema escravista em outros países
latino-americanos e no Brasil amplia a percepção da conjuntura na qual se
constituíram as resistências de negros e negras nas diversas regiões do País.
Apesar da extrema coerção e do grande investimento estatal para conter esses
processos de oposição ao sistema escravista (e o caso do quilombo de Palmares
faz alusão a esse contexto), a resistência negra se manteve e pôde ser observada
em todos os locais onde houve escravidão.
33
Em muitas áreas, de acordo com Gomes (2005), houve uma crescente integração
socioeconômica, envolvendo as práticas camponesas dos quilombolas com a
economia própria dos escravizados nas parcelas de terras e tempo a eles
destinados pelos seus senhores.
34
“Ao tomarem posse de um pedaço de terra, onde morando e trabalhando criavam o
quilombo, estavam revogando, através da luta, e na prática, a legislação imposta pela
classe dominante que os excluía da condição de possuidores da terra, fosse a que título
fosse” (Rocha, 1989: 45).
35
O aspecto da multiplicidade de formas de acesso a terra é pontuado por várias
lideranças quilombolas, ao tratar da formação de suas comunidades:
“Conceição [das Crioulas] é um dos territórios quilombolas bem antigos, porque existe
desde o período da escravidão. Conceição, segundo nossos ancestrais, tem o seu primeiro
registro escrito de posse de 1802, em nome das crioulas que foram as primeiras negras
que chegaram e habitaram aquele local, e da qual delas somos descendentes. Acredito
que eu deva ser a sétima geração” (Aparecida Mendes, Conceição das Crioulas,
Pernambuco).
“Igarapé do Lago surge de uma comunidade tradicional que veio em 1770 da África
como escravos dos portugueses e de alguns marroquinos que eram bem de vida. E essas
comunidades vieram pra lá, direto para o Pará, depois eles foram pra lá para o Marzagão
velho, mas antes eles foram pra Vila Vistosa do Marzagão, e ai a ordem que veio de lá de
Márquez de Pombal que se não desse todo mundo lá que eles seguissem o contorno do
rio, é aonde a minha comunidade, que é o Igarapé do Lago, foi criada. E ai lá a minha
mãe e toda a minha família foi criada. A história é assim, Igarapé do Lago surge porque
três escravos, procurando um lugar para a portuguesa morar, encontraram um lugar com
igarapé e lago. Eles entraram na comunidade com o rio seco, que estava seco, ai formava
igarapé e lago, e quando enchia virava só um rio. Ai eles sempre viveram em uma
sociedade tipo quilombola, sem saber” (Hildima dos Santos, liderança da comunidade de
Igarapé do Lago, Amapá).
A comunidade tem 200 anos de existência, o pessoal mais velho dá essa data. Lá
começou, porque lá era da família nogueira, eram senhores de engenho, plantio de cana,
36
de algodão, forma também chamando os negros que trabalhavam com eles. Depois eles
foram se dispersando, foram acabando, pois foi acabando o recurso das fazendas. Daí os
negros é que ficaram trabalhando para a manutenção disso. Depois, com o decorrer do
tempo, foi acabando tudo e eles ficaram sem condições de tocar, aí saíram para as
cidades. Quem ficou foi os filhos deles, e foi dispersando as coisas. Quem ficou lá foi
quem trabalhava no engenho pra eles, vamos dizer assim os escravos. Ficaram lá e foram
formando famílias. Depois os filhos dos senhores quiseram vender as terras, e
negociaram as terras que por direito são nossas. As pessoas da comunidade então se
esforçaram pra comprar os lotes, pra não sair da comunidade. Isso foi em 1970, por aí.
Então algumas pessoas da comunidade se juntaram e compraram alguns lotes da
comunidade. Lá tem uma árvore antiga, onde tem aquelas argolas antigas, que eram pra
prender os animais dos senhores e também servia de tronco. Nós temos três árvores
seculares: 1 mangueira e 2 pés de sapucaia. Muito bonitas essas árvores. (Maria de Jesus,
Comunidade Oitero dos Nogueira, em Itapecuru, Maranhão).
“Com o decorrer do tempo, com os filhos dos senhores que queriam dispersar a terra e
obrigaram as pessoas a comprar um pedaço, outro comprava outro. Aí o INCRA7 chegou
e desapropriou a terra, em 1980, e loteou e deu pra pessoas que não tinham comprado e
para pessoas de outros municípios. Enquanto pessoas da comunidade ficaram sem nada.
Só 33 pessoas receberam esses lotes. Essa comunidade era muito grande, eram mais de
cinco mil hectares. E agora encolheu, que a gente não pode nem trabalhar. E todo mundo
vive na lavoura então todo mundo tem que trabalhar nessa terra pequena” (Maria de
Jesus, Comunidade Oitero dos Nogueira, em Itapecuru, Maranhão).
Os diversos usos e acessos à terra, trazidos nos relatos dos processos históricos
pelas lideranças quilombolas de distintas comunidades sinalizam para essa
multiplicidade de construções territoriais que não se reduziam ao posto na Lei de
Terras.
7
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
8 Vide: Pereira, Lucélia; Souza, Barbara, e alli. Caracterização sócio cultural das comunidades
incluídas na Pesquisa Nacional Quilombola. In: Chamada Nutricional Quilombola. Brasília:
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2008.
37
fornecidas pelas lideranças comunitárias entrevistadas, a maioria das terras
dessas comunidades (64%) foi adquirida por meio de herança ou doação. Apenas
9% das terras foram compradas, 25% tiveram como origem a posse e 4% foram
arrendadas.
Os territórios das comunidades negras têm, portanto, uma gama de origens, tais
como doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de
monoculturas, como a cana-de-açúcar e o algodão; compra de terras pelos
próprios sujeitos, possibilitada pela desestruturação do sistema escravista; bem
como de terras que foram conquistadas pelos negros por meio da prestação de
serviço de guerra, como as lutas contra insurreições ao lado de tropas oficiais.
38
“A lei de Terras foi uma condição para o fim da escravidão. Quando as terras eram livres,
como no regime sesmarial, vigorava o trabalho escravo. Quando o trabalho se torna livre,
a terra tem que ser escrava, isto é, tem que ter preço e dono, sem o que haverá uma crise
nas relações de trabalho (...) O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o
responsável pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita, desde
então, uma reformulação radical de nossa estrutura agrária” (Martins, 2000: 15).
“os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que escolheram
para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou foi herdada dos antigos
senhores através de testamento lavrado em cartório. Decorre daí que para eles, o simples
ato de apropriação do espaço para viver passou a significar um ato de luta, de guerra”
(Leite, 2000: 5-6).
9
Comunidade Quilombola historicamente situada na zona rural do município de Paracatu, Minas Gerais,
teve ao longo do século XX um intenso processo de expropriação.
39
terras, mesmo tendo documentos comprobatórios da posse e hoje se encontram
na periferia de Paracatu, em Minas Gerais.
Para Leite (2000: 5), “após a abolição, em 1888, os negros têm sido
desqualificados e os lugares em que habitam são ignorados pelo poder público,
ou mesmo questionados por grupos recém-chegados, com maior poder e
legitimidade junto ao Estado”.
Glória Moura aponta que a maioria dos quilombos está baseada em culturas de
subsistência, e se situa em terra provenientes a partir de diferentes perspectivas,
sendo mais comum a existência de terras doadas, compradas ou secularmente
40
ocupadas. São comunidades que valorizam tradições culturais de antepassados
(religiosas ou não) e as recriam no presente (Moura, 1997).
“Daí que a resistência negra dos descendentes de quilombos brasileiros deveu dar-se
através do heróico, porque voluntariamente desumano, recurso da invisibilidade.
Enquanto os índios, ainda que injustiçados, alcançam uma visibilidade no imaginário
social, relativamente alta em termos de sua pequena presença demográfica atual, as
comunidades negras rurais, igualmente submetidas a injustiças, tiveram que se tornar
invisíveis, simbólica e socialmente, para sobreviver” (Carvalho, 1996: 46).
“[o movimento quilombola] é um movimento que está vivo. Na proporção que escondem
nossa história buscam que não possamos nos movimentar e fazem de tudo pra secar esse
41
movimento. Só que não vão conseguir, porque nosso movimento hoje está consolidado.
O Estado vai pagar uma dívida porque ele escondeu muito esse povo e não está
conseguindo mais esconder, ele vai mudar a sua forma de pensar, porque é um
movimento que não pára de crescer e que não vai acabar. Está escrito: um dia ele vai ter
uma visibilidade maior”.
42
Durante a década de trinta, do século XX, sob a influência de Nina Rodrigues e
das teorias da Antropologia Cultural, foram realizados estudos importantes de
autores como Arthur Ramos, Roger Bastide, Edison Carneiro. Nos anos
cinqüenta, Benjamin Péret escreveu um ensaio sobre Palmares que teve uma
perspectiva bastante inovadora.
Nos anos sessenta, os trabalhos de Clóvis Moura, Décio Freitas, Alípio Goulart,
dentre outros, deram voz à perspectiva de que os quilombos se consistiu como o
grande marco do protesto negro em contraponto à lógica escravista.
O período dos anos 1970 e 1980 se destacou pela produção de estudos específicos
sobre “terras de negros”11. Abdias do Nascimento, com sua abordagem
quilombista, trouxe luz à perspectiva pan-africanista, que se destaca nesse
período. No ano de 1978, Abdias Nascimento publicou a obra Genocídio do negro
brasileiro: Um Processo de Racismo Mascarado, que já abordava o que o autor
conceituou como “Quilombismo”. Segundo Abdias do Nascimento, o
“Quilombismo” seria a rede de “associações, irmandades, confrarias, clubes,
grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras... esta
praxis afro-brasileira” (Nascimento, 2002: 264), situada pelo autor não apenas no
passado, mas também no presente. Os quilombos são, portanto, um lócus de
liberdade e de atualização dos laços étnicos e ancestrais afrobrasileiros.
43
política da comunidade Campinho da Independência, no estado do Rio de
Janeiro.
Além das publicações aqui citadas, muitas outras trouxeram reflexões e análises
sobre a discussão conceitual e identitária das comunidades quilombolas, sobre
aspectos territoriais e legais. Muitas influenciaram e contribuíram no processo de
luta pela entrada no texto constitucional do Artigo 68 e, posteriomente,
trouxeram contribuições nos debates voltados à sua implementação12. O diálogo
de muitas dessas produções com os movimentos sociais a elas contemporâneos
foi estreito.
A imprensa negra, nos anos 1920, e a Frente Negra, nos anos 1930, já traziam a
dimensão da discriminação racial à tona. Na década de 1940, o Teatro
Experimental do Negro também levanta esse debate. O crescente desse debate
tem uma forte presença nas décadas de 1970 e 1980, com o processo intenso de
organização do movimento negro. Nesse período, o Movimento Negro Unificado
(MNU), fundado em 1979, sob as bandeiras “afrocentrismo e do “pan-
africanismo” – representadas no “quilombismo” de Abdias do Nascimento –
busca incorporar às suas reivindicações étnicas a realidade de grupos isolados,
tais como os negros do campo (GUIMARÃES, 2002). Nesse processo, a questão
12 Sobre as publicações posteriores ao Artigo 68, trataremos mais a fundo no próximo capítulo.
44
quilombola é incorporada também como expressão da resistência e luta do povo
negro e como a valorização da história e cultura afro-brasileiras.
45
2. Reversão do conceito de Quilombo: Perspectiva de Direitos
São, portanto, cem anos transcorridos entre a abolição até a aprovação do Artigo
68 da Constituição Federal, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
cujo conteúdo reconhece os direitos territoriais das comunidades quilombolas.
“Se pegar as normas constitucionais e os decretos na história do Brasil, eles são muito
cruéis conosco. Nós só passamos a ser cidadãos brasileiros a partir da constituição de
1988. Antes nós não éramos cidadãos brasileiros”.
46
Para além do mencionado Artigo, se fazem presentes também nas constituições
de vários estados da federação artigos que regem sobre o dever do Estado em
emitir os títulos territoriais para as comunidades quilombolas. Essas legislações
são resposta à mobilização dos quilombolas. Os estados que possuem em suas
constituições artigos sobre os direitos territoriais quilombolas são Maranhão,
Bahia, Goiás, Pará e Mato Grosso:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras,
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos
no prazo de um ano, após promulgada esta Constituição” (Constituição do Estado do
Pará, Art. 322).
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras,
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos
títulos” (Constituição Estadual de Goiás, Art. 16 ADCT).
47
denominam as comunidades étnicas. Na Colômbia, o direito das comunidades
negras consta na constituição Política de 1991, no artigo 55. No Equador, por
meio do artigo 83 da Constituição Política de 1998, são assegurados os direitos ao
que se denomina “pueblos negros o afroecuatorianos”.
“Durante o processo constituinte, nem uma única discussão foi registrada nos anais do
Congresso sobre o futuro Art. 68 do ADCT. Incluído inicialmente em uma das propostas
sobre a proteção do patrimônio cultural brasileiro, a proposição de titulação das terras
dos remanescentes de Comunidades de quilombos foi deslocada para o ADCT devido à
sua própria natureza transitória (...) A primeira menção que se faz ao assunto no
Congresso, já posterior à Constituinte, foi em 1991, em um discurso do Deputado Alcides
Modesto (PT-BA) sobre o conflito fundiário na região do Rio das Rãs”. (OLIVEIRA Jr.,
1995: 224-225)
48
Muitos desses estudos refletiram sobre a dimensão identitária da categoria
“quilombo”, ou “remanescente de quilombo”. Para além de uma identidade
histórica que traz o termo “remanescente”, quilombo expressa que esses sujeitos
históricos presumíveis existam no presente e tenham como predicamento básico
o fato de ocupar uma terra, que por direito deverá ser em seu nome titulada.
Assim qualquer invocação ao passado deve corresponder a uma forma atual de
existência, que pode se realizar a partir de outros sistemas de relações que
marcam seu lugar em um universo social determinado (O’Dwyer, 2004).
Segundo Leite (2004), faz-se importante considerar que o termo ‘quilombola’ não
emerge do nada, nem é fruto de imediatismos políticos. O rico debate
proporcionado pelo processo constituinte, fruto do processo de redemocratização
do País, permitiu o ressurgimento destas idéias. “As reivindicações dos
movimentos sociais encontraram eco no parlamento e permitiram o resgate de
lutas em favor do reconhecimento de direitos” (Leite, 2004: 19).
49
A proposta para que fosse reconhecido o direito das terras às comunidades
remanescentes de quilombos foi, como resultado de um amplo processo de
mobilização do movimento negro urbano, das comunidades negras rurais e
outras organizações, apresentada pelo movimento negro à Assembléia Nacional
Constituinte, por meio de uma emenda de origem popular. Uma vez não
alcançando o número mínimo de assinaturas, foi formalizada pelo então
Deputado Carlos Alberto Cão (PDT/RJ), e teve a participação de outros
parlamentares como Benedita da Silva (PT/RJ).
“De certo modo, o debate sobre a titulação das terras dos quilombos não ocupou, no
fórum constitucional, um espaço de grande destaque e suspeita-se mesmo que tenha sido
aceito pelas elites ali presentes, por acreditarem que se tratava de casos raros e pontuais,
como o do Quilombo de Palmares” (Leite, 2004: 19).
“(...) Assim que foi promulgada a Constituição, quando o tema entrou em pauta nos
debates, nas manchetes da imprensa brasileira, apareceram as primeiras reações
desfavoráveis ou de nítido estranhamento ao Artigo 68. Essas reações vieram
principalmente de setores mais conservadores, representados pelos latifundiários e
“grileiros”, que temiam uma drástica alteração no quadro de acesso e regularização
fundiária de terras no País; por lideranças governamentais, preocupadas com os recursos
que seriam necessários às indenizações das terras já expropriadas das comunidades
negras rurais; pelas instituições governamentais, supostamente responsáveis, disputando
entre si a gerência desses recursos que deveriam ser destinados às indenizações. A estas
reações seguiram-se outras, de viés “mais progressista”, representadas pelos árduos
defensores do arcabouço nacionalista de uma sociedade miscigenada – reacendendo a
velha chama da democracia racial, reapresentando-se não mais como a posição
assimilacionista dos modernistas, mas com nova roupagem pós-moderna da “nação
hibridizada”. (Leite, 2004, 21-22).
50
etnicamente fundado. São direitos, tal como descritos por esses grupos, tidos
como “privilégios”.
O texto do Artigo 68 dispõe que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes títulos respectivos”. O Artigo se caracteriza como norma de
direito fundamental, não apresenta marco temporal quanto à antiguidade da
ocupação, nem determina que haja uma coincidência entre a ocupação originária
e atual.
13
Pedrosa, 2007.
51
De acordo com Luiz Antônio Pedrosa (2007), interpretar um ato normativo é
colocá-lo no tempo, integrá-lo à realidade. Desse modo, o texto do dispositivo
constitucional não pode ser simplesmente lido, mas necessariamente
interpretado, a partir de elementos contemporâneos. Para interpretar essa
realidade faz-se legítimo o recurso à contribuição teórica de outras disciplinas,
como os estudos das ciências sociais, com ênfase na antropologia.
52
enquadrar todas as terras impropriamente documentadas e em que não havia
propriedade individual. Desse modo, territórios de povos indígenas e de
comunidades quilombolas não eram distinguidos, o que apontou para a
necessidade de uma reformulação dos métodos cadastrais até então empregados.
A Constituição de 1988 empreendeu uma adequação dessa questão, por meio do
Artigo 68, conferindo direito especiais às terras quilombolas.
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
I – as formas de expressão;
53
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos.”
Doria (2001) faz um apanhado dessas interpretações oficiais do que viriam a ser
as comunidades quilombolas. De acordo com a Fundação Cultural Palmares -
FCP, em texto tornado público no ano de 1993, quilombos são “os sítios
historicamente ocupados por negros e que hoje detém resíduos arqueológicos; os
sítios historicamente ocupados por negros e que são possuidores de conteúdos
culturais de valor etnográfico; as comunidades negras isoladas que contribuíram
para a segurança das fronteiras, e para com o processo civilizatório nas diversas
regiões do País”.
54
para que o Estado implemente ao disposto no Artigo 68, ADCT da CF. Em
resposta às demandas por regularização fundiária, realizadas principalmente
pelas comunidades quilombolas, o INCRA em 1995 inicia seus trabalhos,
especialmente nas de domínio público. Essa atuação se realiza em parceria com
os Institutos de Terras Estaduais, em diálogo com a Fundação Cultural Palmares
e o Ministério Público.
“São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas
para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”16.
55
identificam. Com trajetória própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a luta contra a opressão
histórica sofrida, esses grupos se auto-determinam comunidades de quilombos,
dados os costumes, as tradições e as condições sociais, culturais e econômicas
específicas que os distinguem de outros setores da coletividade nacional. O
Decreto apresenta, portanto, uma dimensão de existência atual dessas
comunidades.
17
Genebra, 27 de junho de 1989.
56
“Artigo 1º, Convenção nº 169 da OIT18:
19 Grifo meu.
57
O reconhecimento de que nossa sociedade é interétnica, heterogênea e plural está
presente também no rompimento com o paradigma colonial do quilombo. Essa
ruptura se funda na concepção e na afirmação de que o Estado brasileiro é
pluriétnico. Os conceitos dispostos nos instrumentos que se somam ao Artigo 68,
tais como os Decretos 4887/2003, 6040/2007 e a Convenção 169 da OIT,
apresentam essa perspectiva.
“Desse processo de debate no parlamento, foi elaborado e aprovado o decreto 3912, e nós
éramos contra o seu conteúdo. Estabelecemos, a partir daí, que qualquer diálogo com o
Governo só era possível com a anulação desse Decreto. O Governo não acatou e a
Fundação Cultural Palmares se configurou como único órgão do Brasil que poderia tratar
do processo de regularização fundiária. Nós fomos contra, porque quem tem que
regularizar terra é o órgão responsável pelo tema, ou seja, o INCRA”.
58
Esse processo de luta do movimento quilombola para a construção de novo
parâmetro jurídico que regulamentasse o Artigo 68 começou a dar frutos
concretos no início do Governo do presidente Lula, em 2003. Givânia Silva
também comenta esse período:
“Realizamos uma grande luta contra esse Decreto [3912/2001], que permaneceu até o
governo do presidente Lula20. Dialogamos com a Ministra da SEPPIR21, e falamos que o
único jeito de estabelecermos diálogo com o governo seria com a anulação do Decreto. O
presidente Lula criou um grupo de trabalho interministerial para construir um novo
decreto. Ele [o Decreto 4887/2003] foi publicado em novembro de 2003, e cria um novo
instrumento de regularização de terras. A responsabilidade pela regularização passa a
ser exercida pelo INCRA, a [Fundação Cultural] Palmares passa a emitir a certificação e a
SEPPIR fica com a coordenação da política [voltada às comunidades quilombolas]”.
59
proceder a correspondente titulação. Com o Decreto 4887/2003, a atribuição para
a titulação dos quilombos passa da FCP para o INCRA.
“O equívoco do decreto aqui [no art. 1.º, parágrafo único, incs. I e II] é evidente e não
consegue salvar-se nem com a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico,
sustenta-se a formação de quilombolas ainda após a abolição formal da escravatura, por
(agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para onde ir ou não
desejavam ir para outro lugar. Então, as terras em questão podem ter sido ocupadas por
quilombolas depois de 1888. Ademais, várias razões poderiam levar a que as terras de
quilombos se encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um
quilombo anterior a 1888 que, por violência dos latifundiários da região, houvesse sido
desocupado temporariamente em 1888, mas voltasse a ser ocupado logo em seguida
(digamos, em 1889), quando a violência cessasse. Então, as terras em questão podem não
ter estado ocupadas por quilombolas em 1888. Tão arbitrária é a referência ao ano de
1888 que não justifica sequer a escolha em termos amplos, haja vista que a Lei Áurea é
datada de 13 de maio: fevereiro de 1888 não seria mais defensável do que dezembro de
1887. Não fosse por outro motivo, essa incursão no passado traria sérias dificuldades de
prova, e seria um despropósito incumbir os remanescentes das comunidades dos
quilombos (ou qualquer outro interessado) de demonstrar que a ocupação remonta a
tanto tempo”. (Procurador da República Walter Claudius Rothemburg, In: Sundfeld,
2002: 72).
A identificação das comunidades quilombolas não deve se dar por meio da busca
de provas arqueológicas e temporais. Contemporaneamente, o termo quilombo
não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou
comprovação biológica. Não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea.
23
Vide íntegra dos Decretos 3.912/2001 e o 4.887/2003 nos Anexos.
60
De acordo com O’Dwyer (1995), os quilombos atualmente não se caracterizam
como resíduos de organizações sociais do passado. O que é importante destacar
dessa discussão é que as comunidades quilombolas não podem ser definidas em
termos biológicos ou raciais, mas como condições sociais que se assentam na
posse e usufruto em comum de um dado território e na preservação e
reelaboração de um patrimônio cultural e uma identidade própria.
“Por um lado, mesmo que distintos países tenham indígenas, não é a mesma coisa ser
índio na Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos. As condições de reprodução material
e de existência dos povos indígenas variam de país a país, não só em termos
socioeconômicos, como também em relação ao reconhecimento, representação, jurisdição
de sua alteridade” (Briones, 2002: 2)25.
24
Associação Brasileira de Antropologia.
25 A tradução de espanhol para português foi por mim realizada.
61
Conceitos têm uma historicidade própria. Longe de congelados, têm significados
diferentes em momentos distintos. Um conceito de definição congela algo que
não pode ser fixado, tal como a categoria de quilombo. Ter uma categoria de
quilombo estática reproduz, de certo modo, a mesma ótica do século XVIII. As
ressemantizações e remodelagens são estruturais para estruturar a idéia
conceitual de quilombo.
62
presentes negros escravizados fugidos, indígenas, além de desertores e outros
excluídos brancos.
Um dos casos presentes que contrapõem a idéia de que os quilombos eram lócus
isolados e situados em rincões, é a presença de muitas dessas comunidades
próximas aos centros urbanos. É o caso, por exemplo, das existentes em Porto
Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. Em relação a Porto Alegre, Mário Maestri
afirma que:
“os quilombos teriam sido freqüentes nas cercanias dos principais centros urbanos – Rio
Pardo, Porto Alegre, Rio Grande (...) Os escravos fugidos seriam um problema para Porto
Alegre. Nos morros que cercavam a vila e nas ilhas próximas do Guaíba devem ter
havido pequenas concentrações de fujões, conforme nos demonstram os documentos da
Câmara da época” (Maestri, 2000: 323).
63
refugiou no Morro da Saudade, no bairro Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro.
“Meus avós já eram mestiços de africano com português e ficaram bem escondidos em
uma caverna, encravada no morro, no meio da mata. Quando exatamente chegaram aqui,
eu não sei. Ficávamos assentados a 200, 300 metros mais acima. Mas só aqui neste lugar
estamos há 105 anos” relata Luís Sacopã, liderança da comunidade.
64
instalar em locais mais próximos. Assim que os fazendeiros foram caindo, os
quilombolas foram se aproximando da casa grande. Com Frechal aconteceu isso, foi se
aproximando da casa grande. Mas apesar de estar próximo, ninguém consegue ficar na
casa grande, pra comunidade ela parece um monstro” (Ivo Fonseca, liderança da
comunidade de Frechal e fundador da CONAQ).
De acordo com Almeida (2007), nos séculos XVIII e XIX o projeto político era
voltado para que os quilombolas retornassem para dentro das grandes
plantações. Houve uma desterritorialização dos acampamentos de muitos
quilombo. Portanto, no local atual de muitas das comunidades quilombolas não é
possível encontrar vestígios ruiniformes, mas é onde os agentes sociais estão. No
século XIX, se os quilombolas se encontravam em locais distantes, foram
aquilombando a Casa Grande, pois com as falências de muitas fazendas o grande
proprietário abandonou suas terras. Esse processo ocorreu, por exemplo, em
Frechal e Alcântara.
“O quilombo era isso, estava aqui armava sua barraca hoje. Se amanhã, o senhor de
escravo aparecesse, mandava acabar. A casa para nós não tinha tanto valor, pois a
qualquer hora era tocado fogo na casa. Até hoje, se você constrói uma casa de alvenaria
no interior ninguém entende. [Perguntam:] Mas o que passa na mente dele? Não tem
nada de importante pra ele fazer uma casa dessa no interior, agora imagina na época da
escravidão. Nós não tínhamos terra, éramos escravos, vivíamos nos escondendo, não
tínhamos estabilidade para construir uma casa. Será que essa cultura acabou assim? Tem
comunidades que você constrói casas de alvenaria, mas no fundo da casa está a casinha
dele, de barro, que é aonde ele mora. Porque aquilo é que é a cultura dele” (Ivo Fonseca,
Maranhão).
65
A dimensão do isolamento ao se pensar as comunidades quilombolas remete a
uma situação que não reflete o processo de muitas comunidades e reproduz a
construção da idéia de quilombo do séc. XVIII, época em que surge em
documentos oficiais a percepção de que quilombo é um agrupamento isolado,
situado em espaço longuíquo, remoto.
Cabe, portanto, uma problematização desse conceito de quilombo, que por vezes
traz em sua interpretação resquícios do conceito colonial. Pode-se perceber a
amplitude de processos históricos, políticos e sociais que permeiam a
constituição dessas comunidades, o que deve se refletir, portanto, na dimensão
que esse conceito pode ter.
O grande desafio hoje colocado é a busca pela real superação dos reflexos das
legislações e conceitos do Brasil Colônia e Império, que tinham como sustentação
econômica, cultural e social o racismo e a violência contra os africanos e seus
descendentes, bem como contra suas expressões organizativas, culturais e
simbólicas. Esses conceitos dos séculos XVII, XVIII e XIX ainda se fazem
presentes em interpretações e ações de alguns gestores, operadores do direito,
acadêmicos e meios de comunicação. Os esforços para a construção de um real
Estado de Direito passam fundamentalmente por esse exercício árduo de
reconhecimento da pluralidade em seus aspectos mais profundos.
66
efetivação do processo de regularização fundiária da grande maioria dos
territórios quilombolas, na falta de acesso à água potável, saneamento básico e
demais públicas, como as de educação e saúde.
Acredito que o elemento que cause maior impacto para as comunidades seja a
titulação dos seus territórios. É a principal reivindicação do movimento
quilombola, e é a partir do território que a comunidade constrói e concebe seus
mais importantes aspectos educacionais, de saúde, de sustentabilidade, enfim,
seus aspectos sociais, culturais, econômicos e históricos.
Esses são elementos que constituem uma constante ameaça ao direito à terra,
expressa nos permanentes processos expropriatórios que se concretizam por
ordens de despejo, deslocamento forçado ou outras formas de perda da posse da
terra pelas comunidades.
67
comunidades com títulos privados de propriedade e a incidência de alguns
territórios quilombolas em áreas de unidades de conservação ambiental, em
terras indígenas, em regiões de fronteira e em outras áreas concebidas como de
segurança nacional também são outros fatores que contribuem para agravar a
situação de conflito nos territórios quilombolas.
A grande demora e a pouca materialização na emissão dos títulos das terras das
comunidades é outro elemento que fomenta as tensões nos territórios e nos
contextos políticos mais amplos. Essa demora potencializa o conflito entre os
vários sujeitos envolvidos e oxigena os embates e a organização daqueles que se
opõem à efetivação dos direitos das comunidades. Como resultado disso, se
estende a insegurança da garantia do território e a exposição da comunidade aos
conflitos.
68
Os últimos anos trazem de concreto um significativo avanço do ponto de vista
legal em relação à regulamentação do Artigo 68. Esse avanço tem na substituição
do Decreto 3912/2001 pelo Decreto 4887/2003 um grande símbolo. Esse Decreto
em vigência tem como um de seus objetivos principais “regulamentar o
procedimento de identificação, demarcação e titulação das comunidades
remanescentes de quilombos no País”. Os avanços consideráveis do ponto de
vista legal existentes na gestão do Governo Presidente Lula, todavia, não se
concretizaram com a dinâmica esperada.
Ainda de acordo com Treccani, em 1995 foram titulados 1.125,03 hectares dos
territórios quilombolas. No período de 1999 a 2001, ocorreram titulações que
abarcaram 588.616,47 hectares. O ano de 2007 fechou com um balanço muito
inferior, 17.805,57. Em 2006, mesmo com os dados estando abaixo do período de
26
Realizado na Câmara dos Deputados, Brasília, em 13 de maio de 2008.
69
pico das titulações, o quadro foi mais positivo do que o visto em 2007: 33.449,91.
Portanto, há uma desaceleração do ponto de vista da extensão territorial das
terras tituladas.
“A autodefinição de que trata o §1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro
Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do
regulamento”.
70
nas Superintendências Estaduais do INCRA, eles chegam a cerca de 600
processos. Na prática, contudo, são poucos os que efetivamente estão sendo
executados. Grande parte dessa conjuntura se deve às limitações estruturais do
órgão para atuar com essa questão e às crescentes pressões políticas para que se
estanquem os processos. Se são poucos os processos que estão sendo executados,
menos ainda são aqueles que são concluídos.
71
segurança, 7 processos de desapropriação, 2 de nulidade de Ato Administrativo
do INCRA, dentre outras.
72
o que poderá tornar os trabalhos de regularização ainda mais morosos. Esse é um
dos pontos não consensuados entre as comunidades e os representantes do
Governo.
27 Reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, nos dias 14 e 15 de maio de 2007 trazem essa
perspectiva de contestação da ocupação de quilombos na região do Recôncavo, na Bahia, e em Marambaia,
no Rio de Janeiro, e questionam inclusive a própria identidade quilombola. Cito alguns outros exemplos,
como a Revista de História da Biblioteca Nacional, edição de março de 2007; Revista Veja, edição de 04 de
abril de 2007; Diversos artigos de jornais como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo de 2007 e 2008.
28 Revista Exame, em matéria veiculada no dia 12/07/2007: “Apartheid no campo: A nova política de
desapropriação de terras para os quilombolas gera conflitos raciais e confusão por todo o País”.
73
As matérias de diversos veículos trazem essa abordagem. Destacarei, aqui, o
editorial de O Estado de São Paulo que abordou o critério de autodefinição como
fomentador de um grande nascedouro de quilombolas29, motivo esse que
justifica, na visão do veículo, a ampliação significativa do número de
comunidades identificadas em 2003 pela FCP (743 comunidades), para o hoje
existente (3554 comunidades identificadas e 1209 certificadas).
74
Há, portanto, articulações presentes nos três poderes, bem como em outras
instâncias como a academia e a grande mídia que se opõem à questão
quilombola, e, portanto, ao movimento quilombola, conforme ressalta Ronaldo
Santos:
“Eu acho que o momento é muito crítico. (...) Eu tenho consciência que isso é uma
conjuntura, logicamente que isso não vai mudar automaticamente, que vai mudar com
um trabalho que precisa ser feito, mas não adianta se descabelar. É manter a luta e fazer o
trabalho que precisa ser feito. Temos grandes batalhas: No legislativo, em função do PDL
de Valdir Colato [44/2007], no judiciário, em função da Adin [ADI 3.239-9600-DF/2004],
e a outra no executivo, porque a gente sabe que nem todo o governo está alinhado com a
política quilombola. A gente luta com os 3 poderes instituídos. Então pode melhorar, mas
também pode piorar. Portanto, qualquer má notícia que nós tenhamos poderá servir de
combustão para a luta que virá” (Ronaldo Santos, Liderança Quilombola, integrante da
CONAQ).
75
A conjuntura política de oposição à efetivação do direito à terra para as
comunidades, que se desenha em âmbito nacional, tem marcada a sua atuação de
modo diversificado, como ressalta Givânia Silva e Ronaldo Santos. São diferentes
atores, tais como parlamentares, jornalistas e seus respectivos meios de
comunicação, operadores do direito, proprietários de terra, representantes de
grandes corporações e empresas multinacionais.
30 Vide: Clovis Moura (1981), Abdias do Nascimento (1978), Rita Laura Segato (2007), José Jorge de Carvalho
76
presente no imaginário brasileiro31, a identidade e o conceito de quilombo como
vivo e dinâmico tem ganhado uma ampla discussão recentemente.
“Toda nação como Estado reproduz desigualdades internas e renova consensos em torno
delas, tematizando certas diferenças e invisibilizando outras. Cada uma o faz
instrumentalizando uma economia política da diversidade que etniciza ou racializa
seletivamente distintos conjuntos sociais, fixando assim marcas de uniformidade e
alteridade que atribuem em cada caso disparidades, porosidades e fissuras aos contornos
(auto)descritivos desses conjuntos” (Briones, 2002: 2-3).
São cem anos que se passaram da Lei Áurea até a Constituição de 1988 para que
fosse reconhecido o direito à terra a esses grupos. Esse é um direito ainda
bastante contestado do ponto de vista jurídico, político e acadêmico e demonstra
as enormes fissuras e contradições que estão profundamente presentes na
construção do imaginário nacional. O movimento de aquilombar-se, histórico e
contínuo, se manteve e constitui-se, à revelia de um processo de silenciamento e
invisibilidade, a partir das dinâmicas próprias de seu tempo.
31 É relevante, contudo, ponderar que a identidade indígena, no senso comum, é concebida como
77
3. Povo Quilombola: Identidade e Resistência
Há uma trama social tecida a partir das ações coletivas e representações que são
determinantes para o estabelecimento das noções que dão eco à idéia de que os
quilombolas constituem uma comunidade, um povo, que, por sua vez, possui
elementos estruturais que tornam este grupo distinto do que intitula-se
sociedade nacional.
A fala de Ronaldo dos Santos, do Rio de Janeiro, aponta para esse sentido:
“Há uma coisa que une as comunidades de lugares tão diferentes. É uma coisa que está
em outro campo, você se identifica, se afiniza e vê o outro como um irmão. É uma coisa
de irmandade. Eu lembro quando assassinaram aquele companheiro de Rondônia32 que
foi uma dor pra todo mundo. É muito comum uma comunidade que não está vindo [aos
encontros do movimento quilombola] ter uma fala tipo assim “uma tal de CONAQ33”,
32
O assassinato ocorreu na comunidade quilombola de Vale do Guaporé, Rondônia. Foi no mesmo dia do
encerramento do I Encontro Nacional Quilombinho, de crianças e adolescentes quilombolas, em julho de
2007, no qual Ronaldo estava presente. Quando a notícia da morte chegou ao Encontro, formou-se grande
comoção.
33
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.
78
sem pertencimento. Quando ela tem uma oportunidade de participar de alguns
encontros, e aí não é a CONAQ instituição, organização, mas é essa coisa de estar junto
de irmãos de outros vários Estados algumas vezes, poucas vezes, naturalmente a fala das
pessoas já muda, as pessoas já passam a se sentir parte desse meio. Aí essas mesmas
pessoas reclamam “é mas essa informação não chegava lá” e a gente fala que é difícil
chegar e que é muito bom ela estar ali, pois será mais uma forma dessa informação
chegar. Daí vai se formando a rede” (Ronaldo, quilombola da Comunidade de Campinho
da Independência, RJ, e membro da Executiva da CONAQ).
“Nosso continente, construído no século XIX pelas elites crioulas, se encontra, em nossos
dias, em um franco processo de desconstrução. Há evidências de um movimento de
reparação ou de religação com os elos cortados e de retorno a enredos históricos
abandonados. A emergência étnica é um despertar que implica um esforço de releitura
das “memórias compactas ou fraturadas, de histórias contadas desde um só lado que suprimiram
34
Essa questão foi melhor trabalhada no capítulo 4.
35 O texto original em espanhol foi por mim traduzido.
79
outras memórias, e histórias que se contaram e contam desde a dupla consciência que gera a
diferença colonial36” (Segato, 2007: 21-22).
“Entendo a nação como um espaço que gera signos de identidade sob os quais se
organizam as relações entre pessoas e grupos. Assim definida, entendo que o discurso da
nação aponta, nos signos mesmos de sua identidade, as identidades daqueles que são
diferenciados dentro dela” (Pechincha, 2006:23).
36 O trecho em itálico na citação refere-se a uma citação de Mognolo (2000: 63), feita por Segato. A tradução
80
com base nas comunidades e que a sua constituição efetiva se processa melhor
com o progresso das culturas (Segato, 2007: 21).
“Em seus múltiplos aspectos, os processos de raiz local recentemente iniciados, cuja
característica principal é um retorno a fontes capazes de reconfigurar sua diferença em
um sentido radical, ameaçam progressivamente o que parecia ser o controle territorial
consolidado das elites regionais e nacionais, branqueadas e eurocêntricas” (Segato, 2007:
22).
“Temos que ter o respeito aos nossos direitos, pelo amor de deus, porque o que nós
estamos passando, nós não queremos que nossos filhos passem. E sabem porque é que eu
estou falando isso, porque eu estou me sentido enganada. Sou mãe de nove filhos, tenho
cinco netos, nunca estudei, faço meu nome garranchado, porque eu sempre tive que
trabalhar. Uma coisa que eu queria falar, poucas coisas porque eu não sei falar direito eu
só fiz foi trabalhar, agora falar assim que a pele da gente, o nosso cabelo duro que deus
deu com muito orgulho, a nossa cor, a nossa origem, é isso, é isso que as pessoas têm que
entender, que seja governador, que seja ministro, que seja deputado, que seja senador,
porque a gente respeita ele mas ele também tem que respeitar a gente, porque os nossos
filhos, os nossos netos que vão parir, os que vão nascer, os que vão durar, tem que viver e
tem que ser respeitado” (Dona Maria, quilombola de São Francisco do Paraguaçu, Bahia,
em fala durante a Audiência do MPF em 19/09/2007).
81
A resistência como ato político também está presente no corpo e nos signos que
caracterizam o sujeito quilombola. Dona Maria aborda a importância de que a
sua identidade seja respeitada e reconhecida, e isso passa pelo seu ‘cabelo duro
que deus deu com muito orgulho’, pela sua ‘cor’, pela sua ancestralidade. São
elementos que se fundem na construção da identidade política de ‘quilombola’.
A constituição dos critérios de pertença, que dão voz a essa “diferença radical”,
que apontam elementos para a concepção dos quilombos enquanto alteridade é
dada a partir dos próprios sujeitos. Alfredo Wagner de Almeida trabalha essa
idéia:
Essa perspectiva da diferença é pontuada por Segato (2007) não como conteúdos
substantivos em termos de costumes supostamente tradicionais, cristalizados,
82
imóveis e impassíveis frente a transformações, mas como diferença de meta e
perspectiva por parte de uma comunidade ou povo (Segato, 2007: 18).
O’Dwyer (2002) ressalta que, como no caso precedente dos direitos indígenas, a
discussão sobre a identidade quilombola não pode prescindir do conceito de
grupo étnico, com todas as suas implicações37.
37O’Dwyer cita: Oliveira, João Pacheco. Indigenismo e territorialização. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998:
273-4.
83
estratégias de luta pelos seus direitos, a partir das diversidades fundantes das
comunidades em todo o País.
“Isso é básico na consecução da identidade coletiva e das categorias sobre as quais ela se
apóia. Aliás, essas categorias podem ter significados específicos, como sugere a noção de
‘terra de preto’, que pressupõe uma modalidade codificada de utilização da natureza: os
recursos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não são individualizados;
tampouco são individualizados os recursos de pesca, caça e extrativismo” (Almeida,
2002: 68).
84
Ronaldo dos Santos, liderança quilombola, aponta, a partir da especificidade de
sua comunidade, essa lógica de territorialidade:
“Tem um relato da vovó Antonica que as terras do Campinho [da Independência] nunca
deveriam ser desfeitas, vendidas, que deveriam ficar pras gerações. A comunidade de
Campinho sempre teve, no contexto do município, essa identidade de família. Essa idéia
do parentesco sempre foi muito forte na comunidade, na cidade sempre se falava isso,
Campinho sempre foi conhecido por ser terra de preto, não tinha essa identidade
quilombola, mas teve essa identidade de terra de preto e era unida em torno dos
objetivos comuns” (Ronaldo, Comunidade do Campinho da Independência, Rio de
Janeiro).
“O povo vive como se fosse ainda nos tempos antigos, por que era assim que o povo
plantava e fazia o convidado. O convidado é o mutirão de hoje. Era assim, eles
plantavam, cada um no seu pedaço, mas na hora de fazer o Piracuí, que é a farinha de
peixe, todo mundo se juntava e faziam o convidado. Aí todo mundo arranca a mandioca
e vai junto fazer o piracui e depois todo mundo divide. Sempre foi assim, eles faziam o
convidado e quando era a meia, quem ajudava recebia” (Hildima dos Santos,
Comunidade Quilombola de Igarapé do Lago, Amapá).
85
“O pertencimento em relação ao território é algo mais profundo. A luta quilombola existe
porque há um sentimento por parte dos quilombolas de que aquele território em que eles
habitam é deles. Mas não deles por conta de propriedade, é deles enquanto espaço de
vida, de cultura, de identidade. Isso nós chamamos de pertencimento. Nem é porque
nossas terras sejam as mais férteis que nós lutamos por elas. Elas muitas vezes não são as
mais férteis, se nós concebermos o fértil no usual da economia. Mas ela tem uma
fertilidade que para nós que estamos ali ela é a melhor. A nossa luta pela terra não é
pautada por princípios econômicos e sim por fundamentos culturais, ancestrais. É o
sentimento de continuidade da luta e resistência”.
“agentes sociais que assim as denominam [terras de preto] o fazem segundo um repertório
de designações que variam consoante as especificidades das diferentes situações. Pode-se
adiantar que compreendem, pois, uma constelação de situações de apropriação de
recursos naturais (solos, hídricos e florestais), utilizados segundo uma diversidade de
formas e com inúmeras combinações diferenciadas entre uso e propriedade e entre o
caráter privado e comum, perpassadas por fatores étnicos, de parentesco e de sucessão,
por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-
organizativo e econômicos, consoante práticas e representações próprias. Assim ficou
aparentemente firmada a expressão oficial ocupações especiais, que designava, entre outras
situações, as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio, tal como definidas e
acatadas pelos próprios grupos sociais”.
38 ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Os Quilombos e as Novas Etnias. In: O’Dwyer, Eliane Cantarino. Quilombos:
86
Retomando a discussão sobre as dimensões históricas e organizativas da
construção da categoria quilombo, temos, num primeiro momento, os mais de
três séculos de escravidão onde a identidade quilombola era violentamente
combatida pelas forças coloniais e, depois, imperiais. Após a Lei Áurea40, o
conceito de quilombo torna-se invisibilizado no escopo do Estado por um século,
apesar dos muitos trabalhos que apontavam para sua existência41.
87
valorização por si só. Porém, a contraposição consciente das identidades e
culturas em relação à lógica homogeneizadora e controladora dos Estados-
Nacionais se constitui como uma antítese ao projeto pós-colonialista de
estabilização, uma vez que os povos lutam não apenas para marcar sua
identidade, como também para retomar o controle do próprio destino e construir
diretrizes de rumos comuns.
88
As milhares de comunidades quilombolas possuem a sua própria história, a sua
tradição cultural específica concebidas no processo de constituição dessas
comunidades como grupo diferenciado. As comunidades apresentam entre si,
como elemento estrutural, o pluralismo e a diferença como fundamento.
Portanto, as diversas comunidades rurais negras trazem seu histórico, sua
tradição cultural, seus processos próprios que as caracterizam e definem.
89
representativas. Esses elementos são, em grande parte das vezes, manipulados
por outros atores que apresentam interesses divergentes, tendo grande influência
na trama de relações entre as comunidades e suas representações, o Estado e a
sociedade como um todo.
“Essa palavra quilombo não é tão conhecida, inclusive pra nós que estamos dia após dia
envolvidos em praticamente todas as articulações, nós não sabíamos. A partir da década
de 80, nós sabíamos que éramos de Conceição das Crioulas, sabíamos que somos
descendentes, e aí minha avó e as pessoas mais velhas sentam pra contar nossa história (e
é muito engraçado, pois elas fazem uma linha do tempo e chegam lá nas crioulas, nas
primeiras que chegaram). Mas nós não sabíamos, nós não conhecíamos essa palavra
quilombo. E as outras pessoas também não conheciam. Pra nós que estamos no dia-a-dia
ficou mais fácil porque a gente está sempre se encontrando, estudando. Mas para aquelas
pessoas que não tiveram acesso às informações, realmente elas não conhecem e passaram
a conhecer de forma antipática” (Aparecida Mendes, Comunidade de Conceição das
Crioulas, Pernambuco).
90
O processo de incorporação do conceito de quilombo como referência para
acesso a direitos, na Constituição de 1988, gerou uma categorização bastante
externa para muitas comunidades no País. Aparecida ressalta mais detalhes
desse processo a partir da perspectiva de sua comunidade e de sua vivência
junto ao movimento quilombola:
“Na medida em que foi publicado o artigo 68, e nós começamos a nos organizar nas
bases, nós sacudimos os poderes opressores e aí eles pegaram a palavra quilombo e
levaram para a maioria das comunidades dizendo para as pessoas menos informadas das
comunidades “vocês não podem ser quilombolas”, “tão com uma história de quilombola
e ser quilombola é voltar a ser escravo”, que “vão tomar a terra de vocês” e, olhe, foi uma
coisa colocada de forma muito pejorativa e de forma muito ruim para as comunidades,
daí a dificuldade de muitas pessoas assumirem. Já é difícil assumir a identidade por
conta da discriminação que se viveu e que se vive ao longo do tempo e aí quando você
chega com uma palavra nova, carregada de muita colocação negativa, fortalece mais a
resistência que você tem de assumir a sua identidade, por medo até” (Aparecida Mendes,
Comunidade de Conceição das Crioulas, Pernambuco).
“Então, pela palavra ser nova [quilombo], por não ter tido uma divulgação ampla feita
pelos quilombolas e por quem nos apóia. Você chega em Conceição das Crioulas, boa
parte assume a identidade quilombola. Mas algumas pessoas que têm mais resistência às
informações ou estão menos informadas vão dizer que não são quilombolas. Se você
perguntar para essas mesmas pessoas se elas são de Conceição das Crioulas, se são
descendentes das Crioulas, elas vão dizer que sim. E aí acontece uma injustiça muito
grande pela bancada ruralista e mais especialmente por algumas pessoas que chegaram à
universidade e conseguem produzir livros, aqui falo do livro do Nelson Barreto a
Revolução Quilombola, porque ali ele coloca justamente isso que eu estou falando pra
você. Segundo ele fala, ele vai às comunidades e pergunta justamente para aquelas
pessoas que estão menos informadas, que não tiveram acesso “você é quilombola?” e
jogam na pessoa toda aquela carga de coisas ruins. E aí é claro que a pessoa vai dizer que
não é. Mas pergunta pra essas pessoas quais são as origens delas, por que elas estão
naquela comunidade, quem é o avô, o tetravô, pergunta pra elas que elas vão afirmar sua
91
identidade. Eu acho que temos a necessidade de retrabalhar a palavra quilombo, divulgar
um pouco mais e tentar conscientizar a população e as pessoas de que ser quilombola
nada mais é do que ser negro, ser descendente do seu grupo étnico que ali viveu. A gente
só está afirmando justamente a negritude. Em muitas comunidades a gente pergunta
“você é quilombola?” e dizem “não” “você é negro?” “sou”, “Você é descendente de
fulano que é negro?”, “sou.” Já existe uma facilidade de assumir a negritude. Por isso,
que eu acho muito injusto a forma como as pessoas usam e querem destruir as nossas
bases legais com esses argumentos que são absurdos” (Aparecida Mendes, Comunidade
de Conceição das Crioulas, Pernambuco).
“Nosso ponto de vista é que todo quilombola, a maioria dos quilombolas é negro. Mas
nem todo negro a gente tem condição de dizer que é quilombola, porque a gente sabe
como foi a formação dos quilombos e a gente sabe que no período da escravidão, muitos
quilombos foram formados e a gente sabe que na abolição da escravatura muitos negros
não saíram para roça, foram pra cidade. E ali tiveram que sofrer e sofrem até hoje todos
os tipos de discriminação, de seqüelas. Mas de certa forma eles tiveram que perder a
ligação com aquele território. Necessariamente, ele não formou um quilombo, mas teve
outras formas de vivencias e também de enfrentar outras dificuldades na cidade”
(Aparecida Mendes, Comunidade de Conceição das Crioulas, Pernambuco).
42Ronaldo refere-se à pesquisadora Neusa Gusmão, que escreveu sua tese de doutorado sobre a
comunidade de Campinho, a terra de preto.
92
“No Mato Grosso do Sul, a palavra quilombo as pessoas até pesquisavam. Mas, no
Estado do boi, nossos fazendeiros, nossos queridos racistas, diziam que isso ia deixar nós
como os índios que a nossa terra ia ser da União, que isso era coisa que não existia mais,
que nós íamos voltar a ser escravo, até mesmo faziam piadinhas dizendo que a Lei Áurea
foi assinada de lápis. Mas, a partir do momento que Furnas do Dionísio e Furnas da Boa
Sorte eram comunidades formadas que tinham uma opinião própria e já conheciam um
pouco desse nome, já conheciam um pouquinho da palavra quilombola, já sabiam que
existia, a gente começou a fazer troca de experiência. Pegávamos as outras 12
comunidades [do Estado de Mato Grosso do Sul] que ainda não eram reconhecidas e
levávamos até Furnas do Dionísio, Furnas da Boa Sorte para conhecer a nossa
experiência” (Jhonny Martins, Comunidade de Furnas do Dionísio, Mato Grosso do Sul).
Essa categoria por si só não deve ser o motor identitário para definir o que e
quem são as comunidades quilombolas, uma vez que a sua fixidez vai de
encontro à realidade múltipla das comunidades, e os desígnios que
historicamente são utilizados por esses grupos para se auto-identificarem.
“O recurso de método mais essencial que, suponho, deva ser o fundamento da ruptura
com a antiga definição de quilombo refere-se às representações e práticas dos próprios
agentes sociais que viveram e construíram tais situações em meio a antagonismos e
violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da análise critica é a indagação de
como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com
os grupos sociais e as agências com que interagem. Esse dado de como os grupos sociais
chamados ´remanescentes´ se definem é elementar, porquanto foi por essa via que se
construiu e afirmou a identidade coletiva. O importante aqui não é tanto como as
agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim
como os próprios sujeitos se auto-representam e quais os critérios políticos organizativos
que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os
procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios
sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produtos
de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da
atividade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apóia” (Almeida, 2002: 67-68).
93
Sobre essa questão, Arruti (1998), apresenta reflexões em relação à mobilização
política da “Comunidade do Mocambo”, localizada em Sergipe, em meio ao
processo para reconhecimento como remanescente de quilombo. O autor ressalta
que essa categoria exógena, completamente nova para esse grupo, causou
processos de estranhamento. Ressaltou, contudo, a importância da dimensão da
memória e dos laços de parentesco para fortalecer essa luta: “o direito do acesso
à terra [estrutura-se] na memória de uma ancestralidade e na malha de seus
parentescos” (idem: 28).
94
Pensar a historicidade dos conceitos que hoje são usados por esses atores estatais
e da academia também é importante, uma vez que a própria categoria quilombo
remete, muitas vezes, naquelas comunidades que a escutam, a um sentimento de
rejeição pelo histórico de sua construção.
43
Comunidade Quilombola situada em Mato Grosso do Sul.
95
começo, a influencia de pessoas querendo destruir esse processo é muito grande, porque
algumas pessoas acham que vamos tomar os direitos deles. Ainda não está muito bem
consolidado, sofremos muita represália. Outra coisa que atrapalha é a demora das
políticas chegarem nas comunidades, a titulação da terra. O governo quando quer um
status faz a política bem rápida, como foi o caso de Dionísio, que ganhou bastante coisa
em 2 anos, porém ela era a menina de ouro do Governo. Com as outras comunidades, a
coisa é bem diferente, já não tratam mais como prioridade. Isso tem grande influência em
nossa organização” (Jhonny Martins, liderança da Comunidade de Furnas do Dionísio,
Mato Grosso do Sul e integrante da CONAQ).
96
“Pra nós do movimento quilombola, em nome da coordenação nacional, que é apenas
uma fala institucional, mas que é o resultado do que é o movimento quilombola no
Brasil, queríamos começar dizendo quem são os quilombolas. Porque nós estamos com
quilombos de mais de trezentos anos nesse País e até hoje nós temos gastado energia pra
dizer pra esse Estado brasileiro quem são os quilombos. E isso pra nós é motivo de
constrangimento porque isso significa dizer que esse Estado não reconhece os seus e não
sabe quem constitui essa sociedade. E pra dizer quem são os quilombolas eu queria dizer
que não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de africanos. A
Escravidão foi uma condição social que vocês [o Estado] nos impuseram. Portanto, os
quilombos não nascem apenas de uma herança escrava. Ele nasce de uma determinação
do povo negro de que nós não queríamos ser escravos. Nós nos rebelamos contra a
escravidão porque nós nascemos livres e queríamos ser livres, e uma das maiores
expressões de liberdade desse país foi a constituição dos quilombos. Portanto, nós somos
construtores da sociedade brasileira, somos parte fundamental do processo de construção
desse país, que a duras penas se constituiu e hoje nega seu passado, nega sua origem. Na
condição de herdeiros de africanos, nós trouxemos pra cá como parte de nossa memória
o processo cultural que contribuiu para a constituição do Brasil. E é exatamente porque
nós estamos aqui que nós dizemos que estamos cansados de sermos tratados como
estrangeiros, nós não somos estrangeiros, somos brasileiros e fazemos parte do
patrimônio cultural desse país. Portanto, os quilombos que se constituíram nesse país
não podem mais passar despercebidos das políticas públicas e ficar explicando em todas
as esquinas quem somos nós” (Josilene Brandão, liderança da CONAQ, durante a
audiência coordenada pelo MPF em 19/09/2007).
97
Mais ainda, por resistência se entende a luta constante das comunidades
quilombolas pelo direito de existir, de um existir que pressupõe intrinsecamente
uma rede de relações estabelecidas que permeia a batalha cotidiana pelo direito
ao território, às tradições, à identidade.
pelo grupo e assim é possível se ver. Fredrik Barth (2000) incita, em suas
coletivo, as distinções que dão voz a “nós” e a “eles” são reificadas, porém
mantidas.
44É importante novamente pontuar que as comunidades quilombolas se caracterizam muitas vezes como
espaços interétnicos. Entretanto, sua predominância e marca fundamental é a resistência negra.
98
“Qualquer grupo humano, através de seu sistema axiológico sempre selecionou alguns
aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A
definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm
funções conhecidas: a defesa da unidade de grupo, a proteção do território, as
manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos. (Munanga,
1994: 177-178)
99
“Nas comunidades de Minas, muita gente tem medo de assumir sua identidade de negro
quilombola e voltar a ser escravo. Os mais antigos não gostam que mexa na história. A
gente fica dias na comunidade mostrando que isso não existe mais, que a escravidão
acabou, a lei mudou, agora tem proteção e tudo, a gente só quer lutar para garantir pras
comunidades o acesso à terra pra plantarem, pra terem uma vida mais digna. Aí, as
pessoas vão entendendo a nossa luta, mas é difícil. (Sandra Silva, liderança de Minas
Gerais na CONAQ).
45
Nas narrativas das lideranças quilombolas, a identidade negra é reafirmada como pilar da identidade
quilombola e isso não contradiz o fato de as comunidades quilombolas apresentarem muitas vezes uma
composição interétinica (com a presença de brancos e indígenas).
100
Outro elemento presente na fala de Josilene Brandão remete-se às várias
iniciativas em curso, seja em âmbito local, como nacional, de questionar a
identidade quilombola, tendo como eixo central uma concepção enrijecida do
conceito de quilombo.
46
Até meados do século XX, o candomblé era crime no Brasil, assim como a capoeira e as rodas de samba.
101
expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela
da dependência colonial” (Hall, 2006: 30).
A maioria dos povos que compuseram o dito ‘novo mundo’ provém de diversas
partes do globo, com ênfase na participação africana nessa mobilidade imposta.
A construção do próprio termo África, como ressalta Hall, provém dessa
percepção moderna, englobante e violenta, uma vez que refere-se a diversos
povos, culturas e línguas, cujo ponto de origem central é o próprio tráfico de
negras e negros em situação de escravidão.
102
legitimado. Esse processo de identificação, pensado sob a ótica coletiva, se
constrói dialogicamente, e é um campo fundamental para identidades coletivas
construídas em contextos coloniais e pós-coloniais, nos quais o silenciamento,
englobamento e a violência foram fundantes.
Essa construção do ‘outro’ não parte, contudo, de uma oposição rígida, embora
radical. Citando Derridá, Hall reflete que em contextos pós-coloniais a diferença
não se constitui através de binarismos, fronteiras veladas, mas de significados
que são posicionais e relacionais.
103
nos de titulação das terras quilombolas direcionam, fundamentalmente, para a
tentativa de inibir a reconfiguração fundiária a partir de outros desenhos e outras
perspectivas e o reconhecimento da pluralidade étnico-racial brasileira.
“Nada melhor do que as palavras de Robert Fisk, a respeito do despejo dos mulçumanos
bósnios pelos sérvios: limpeza étnica! Facilmente nossos repórteres aceitaram essa frase quando
os mulçumanos estavam vivendo em lugares devastados e estavam sendo violados e assassinados
pelos sérvios, não porque eram etnicamente diferentes de seus agressores sérvios, mas porque os
sérvios queriam as terras dos mulçumanos, e as tomaram” (Segato, 2007: 15-16).
104
A identidade étnica de um grupo é a base para sua organização, sua relação com
os demais grupos e sua ação política. A maneira pela qual os grupos sociais
definem a própria identidade é resultado de uma confluência de fatores,
constituídos pelo próprio grupo, tais como a ancestralidade comum, formas de
organização política e social, elementos lingüísticos e religiosos. Em relação ao
movimento quilombola, essa identidade nasce da determinação de afirmar-se
como alteridade, de lutar pelo seu território a partir de sua perspectiva
constitutiva, de compartilhar lutas e caminhos comuns.
105
4. Aquilombar-se
106
de forma elementar, pelo reconhecimento de seu território a partir da lógica que
o fundamenta, distinta da perspectiva privada, abarcando uma dimensão
holística dos aspectos sociais, culturais e econômicos desses grupos.
Givânia Silva também reflete sobre esse processo mais amplo de resistência das
comunidades quilombolas:
“Os desafios de hoje são os desafios de ontem. Porque os de ontem? Porque esses foram o
desafio da superação dos navios, da escravidão, do anonimato, do abandono, e etc. Os de
hoje não são esses, mas tem a mesma finalidade que é anular qualquer possibilidade de
que preto nesse País seja tratado como o restante da população. Quando a grande
imprensa, o latifúndio, setores conservadores da sociedade reagem contra essa política
nós entendemos que o que está acontecendo hoje é o mesmo que aconteceu ontem, só que
por outros meios e outros mecanismos. O que está posto é a certeza de que cada vez mais
precisamos estar unidos. É uma luta árdua e, acima de tudo, é uma luta coletiva”.
107
entre as comunidades, refletem aspectos organizacionais desses grupos e as
respectivas relações estabelecidas com a dita ‘sociedade nacional’ e com o Estado.
108
Os movimentos negros urbanos, nesse debate da questão quilombola, são muito
relevantes. A discussão sobre os quilombos tem voz na Frente Negra Brasileira,
nos anos 1930; surge em movimentos dos anos 1940, 1950, tais como o Teatro
Experimental do Negro (Abdias do Nascimento) e ganha fôlego no bojo da
institucionalização do movimento negro, nas décadas de 1970 e 1980.
48
As narrativas do acirramento do conflito fundiário nas comunidades quilombolas nesse período surge em
diversas narrativas das lideranças entrevistadas.
109
O período posterior ao Artigo 68 tem sido marcado por uma grande inoperância
do Estado no que diz respeito à sua implementação e por uma crescente
organização e mobilização das comunidades quilombolas, cuja pauta se volta
para a efetivação de seus direitos, com destaque para o direito à terra.
110
As lutas sociais que emergiram na Europa, a partir do final da década de 1960,
provocaram o surgimento de novas abordagens que influenciaram de modo
significativo os estudos sobre os movimentos sociais. As lutas sociais passam a
pautar, nesse período, uma multiplicidade temática. São pautadas questões
relativas à discriminação racial, de gênero, etária, do trabalho, dentre outras. Os
chamados Novos Movimentos Sociais estruturam sua ação a partir das
demandas relativas ao direito à diferença, tais como o movimento feminista, os
movimentos negros, de pessoas com deficiência, o movimento indígena e o
movimento quilombola. A referência ao “novo”, nessa abordagem dos novos
movimentos sociais, é colocada por Gohn como “uma nova forma de fazer
política e a politização de novos temas.” (Gohn, 2007: 124).
111
Os movimentos sociais têm parte de sua existência fundada a partir da
contestação constante do Estado. A reivindicação insistente e a posição
contestatória em relação ao Estado representam a espinha dorsal dessas
organizações (PETRAS&VELTMEYER, 2005). Apesar de serem organizações cuja
estrutura e dinâmica estão apoiadas totalmente na atividade política, os
movimentos sociais não se institucionalizam como outras formas de organização
política, como ONGs, sindicatos e partidos políticos (FELTRAN, 2005).
112
importância dessas mobilizações no tocante à entrada na Carta Magna de 1988
do Artigo 68, do ADCT, que rege sobre o direito das comunidades quilombolas à
terra que tradicionalmente ocupam, como também nos Artigos das Constituições
Estaduais de diversas Unidades Federativas, que também regem sobre o tema.
São movimentos que incidem sobremaneira no fortalecimento do debate étnico-
racial na sociedade brasileira, bem como no debate referente às comunidades
quilombolas e aos seus direitos.
113
No período de redemocratização, no fim do Estado Novo, surge em 1944 o
Teatro Experimental do Negro - TEN, no Rio de Janeiro, que tem como
fundadores Abdias do Nascimento e Solano Trindade. O TEN aliou à atuação
política a questão da afirmação cultural, tendo como referência a herança e
tradição africana. O TEN teve como um de seus produtos o jornal Quilombo, que
retratava o ambiente político e cultural da mobilização anti-racista no Brasil.
A partir da década de 70, a luta contra o racismo ganha novo fôlego, juntamente
com diversos outros movimentos de base popular. Um marco desse período é a
afirmação do ‘20 de novembro’ como dia da consciência negra, data essa que
marca o assassinato de Zumbi dos Palmares. O primeiro ato realizado em
homenagem ao quilombo de Palmares, feito no dia 20 de novembro de 1971, é
organizado pelo Grupo Palmares, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O ato teve
como objetivo contrapor a data estabelecida como ícone para a população negra,
o dia oficial da libertação da escravatura (13 de maio). Essa mobilização foi o
início da instituição do ‘20 de novembro’ como Dia Nacional da Consciência
Negra. Esse contraponto entre o ’13 de maio’ em relação ao ’20 de novembro’ tem
como fundamento estabelecer o contraponto à idéia de que a ‘abolição’
simbolizou realmente uma ruptura para a situação de violência e desigualdade
114
na qual vivia e vive a população negra, além de trazer à tona o líder Zumbi dos
Palmares, símbolo contemporâneo da luta contra todas as formas de
discriminação e opressão que continuam a impactar a vida dos descendentes de
africanos em nosso País.
Em 1978, durante um ato de protesto de vários grupos negros contra a morte sob
tortura do trabalhador Robson Silveira, foi fundado o Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial, posteriormente conhecido apenas como
Movimento Negro Unificado – MNU. Esta organização reúne diversos grupos
do movimento negro e possuiu um caráter nacional.
“Depois da constituição de 1969, a disputa por terra fica maior, aumenta a grilagem. O
Estatuto de Terras dos militares [de 1964] e a constituição de 1969 dá início a muitos
conflitos. No Maranhão houve muita morte (...). Com essa luta pela terra, as
comunidades se levantaram, se organizaram. O Maranhão tinha três entidades, o Centro
de Cultura Negra (CCN), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Cáritas que, com o fim
da ditadura, foram trabalhar [com os grupos camponeses] pelo direito à terra. O objetivo
direto do CCN era trabalhar com a zona rural, com as comunidades quilombolas, pra
rever e lutar pelas terras. Aí nós começamos o movimento, fizemos levantamentos. O
movimento cresce a partir daí. Um dos trabalhos do CCN era diretamente com Frechal.”
(Ivo Fonseca, liderança quilombola da Comunidade de Frechal, MA, e um dos
fundadores da CONAQ).
115
movimentos campesinos também constituíram um forte elemento de articulação
dessa época.
116
Cultura Negra do Maranhão. A principal reivindicação apresentada pelas
comunidades era a questão fundiária, que latejava com conflitos graves e
diversos processos de expropriação em curso. Os 2º e 3º Encontros das
comunidades negras rurais do Maranhão ocorreram, respectivamente, em 1988 e
1989.
117
As comunidades quilombolas, as organizações do movimento negro urbano,
organizações campesinas, pesquisadores e parlamentares se mobilizaram em
diversos eixos para articular a entrada de artigo constitucional que tratasse dos
direitos fundiários das comunidades quilombolas.
49
Para maior detalhamento dessa questão, vide capítulo 3.
118
Posteriormente, outros estados aprovaram legislações que tratam sobre o tema.
Os estados do Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo possuem instrumentos legais sobre a
regularização fundiária dos territórios quilombolas. Somando-se os estados com
artigos constitucionais e com legislações específicas, é possível chegar a onze
unidades federativas. Em muitos desses estados, registra-se, também, maior
avanço na emissão dos títulos territoriais das comunidades.
119
profundas do existir e do resistir das comunidades. A garantia dos territórios
fundamenta o sentido da luta quilombola.
Maranhão
“A comunidade toda tem que lutar pela terra. Quando começamos a enfrentar os
latifundiários com apoio do movimento Negro, em 1979, 1980, 1981, vigorava no
Maranhão a chamada “lei de chumbo”, e Frechal acompanhou todo esse processo. Nessa
época tinha briga, pistoleiro, então passamos a lutar pela terra e ai trabalhamos e
divulgamos a história do povo negro que a comunidade não conhecia. Isso com ajuda do
CCN, da Cáritas, CPT. As duas últimas não trabalhavam a questão racial, apenas a da
terra e o CCN puxou a discussão racial. Antes não tinha nenhuma lei, A lei foi nascer em
1988, com a Constituição Federal. Mas antes dela, nós já estávamos lutando” (Ivo
Fonseca, liderança quilombola do Maranhão, integrante da CONAQ).
50
As pesquisas e dados existentes remetem à existência de comunidades quilombolas em 24 estados da
federação (Vide Treccani).
120
Uma das organizações do movimento negro urbano que teve um importante
papel na atuação conjunta com o movimento quilombola foi o Centro de Cultura
Negra do Maranhão – CCN, fundado em 1979.
121
PVN mapeou 527 comunidades e assessorou a produção de 33 processos de
titulação de terras junto ao INCRA e ao Iterma.
122
quilombos. No estado do Maranhão, foi fundada a primeira articulação
quilombola em nível estadual. Em novembro de 1994, foi criada a Coordenação
Estadual Provisória dos Quilombos Maranhenses. Esta foi substituída, em 1997,
pela Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão -
Aconeruq. Mais de 430 comunidades maranhenses estão vinculadas à Aconeruq.
Fruto das lutas quilombolas desse estado, o Maranhão é um dos cinco no País
que possui texto constitucional que reconhece às comunidades quilombolas o
direito à terra, dado no artigo 229 na Constituição Estadual do Maranhão,
promulgada em 1989.
O Maranhão lista como o segundo estado brasileiro com mais terras de quilombo
tituladas. O primeiro estado em número de títulos emitidos é o Pará. São
conquistas que refletem a longa luta das comunidades quilombolas
maranhenses, articuladas em nível estadual na Aconeruq. Até o presente
momento, 20 títulos de propriedades das terras foram emitidos para 22
comunidades quilombolas do Maranhão. Os títulos foram emitidos pelo governo
estadual, por meio do Iterma - Instituto de Terras do Maranhão.
51
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA,
UFAP, Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
52
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
123
Apesar do avanço nas titulações em muitas terras quilombolas, há muitas outras
que ainda aguardam a finalização de seus processos e lutam pela garantia de
seus territórios. Há cerca de uma centena de processos para a titulação de terras
quilombolas situadas no Maranhão.
124
Pará
Ao dar ênfase às regiões nas quais a organização e a mobilização quilombolas
inicialmente se deram, cabe destacar o Estado do Pará, onde surge uma das
primeiras organizações quilombolas. Em 1989, foi fundada a Associação das
Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná –
Arqmo, que surgiu em resposta às invasões, processos de expropriações e de
violência contra os territórios quilombolas ali situados, a partir da década de 70.
O Pará é também o estado que possui o maior número de títulos emitidos. Até o
presente momento, foram emitidos 36 títulos que relacionam-se à garantia do
território de 88 comunidades quilombolas. Desse total, 27 títulos foram emitidos
pelo Iterpa – Instituto de Terras do Pará.
Desde 1998, o Pará conta com uma legislação que regulamenta o processo de
titulação dessa categoria de terras. Inovadora, essa legislação garante o direito à
125
auto-identificação das comunidades sem a necessidade do laudo antropológico -
algo que o governo federal só veio a reconhecer em 2003.
“Não existe uma associação quilombola da Ilha do Marajó, mas sim do município. A
gente está buscando fazer uma coordenação municipal. Na prática, ela já funciona, mas
não é legal. Em Marajó, temos muita dificuldade de locomoção e financeira. Um dos
motivos é a localização geográfica, tem muitos rios. Estamos tentando fazer essa
associação em nível da Ilha de Marajó, mas só de um lado da ilha. O outro lado, que fica
perto de Macapá, ainda não temos contato. Duas pessoas da nossa comunidade
participam da executiva estadual [Coordenação Estadual de Quilombos do Pará –
Malungu]. Nossa relação é boa, porque estamos sempre em contato. A gente está vendo a
dificuldade deles também e eles nos ajudam a divulgar a situação do Marajó, que é muito
difícil. A Malungu está priorizando a luta com os quilombolas do Marajó. A gente luta
pelo território e temos muitos fazendeiros em nossas terras. Mas hoje não queremos
confronto com os fazendeiros, porque eles têm muito mais aparato do que a gente”.
(Luiza Betânia, liderança quilombola da Ilha do Marajó, Pará, integrante da Malungu).
126
As comunidades quilombolas do Pará alcançaram diversas conquistas pioneiras,
o que abriu caminho para a consolidação dos direitos das comunidades
quilombolas em todo o Brasil. As conquistas dos quilombolas paraenses, para
além das titulações, traduzem-se em leis estaduais e programas de governo
destinados especificamente a este setor da população.
127
cultura e da religiosidade das comunidades quilombolas; e pela eliminação das
desigualdades de direito e tratamento entre homens e mulheres.
Bahia
54
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
55
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
128
A Bahia tem organizações de comunidades quilombolas que são referência para
o movimento nacional e para a questão quilombola no País, como a de Rio das
Rãs. A história de grande parte dos quilombos na Bahia, como em outros
estados, é marcada por disputas e conflitos com os grandes proprietários e
grileiros. Como reflexo disso, as comunidades se organizam em diversas
coordenações regionalizadas pelo estado, como a Coordenação Regional das
Comunidades Quilombolas da Bahia (CRQ).
129
No recôncavo, as comunidades quilombolas estão articuladas no Conselho
Quilombola do Vale e Bacia do Iguape. Tem como principais pontos de pauta a
luta pelo direito à terra e por acesso às políticas públicas. O conselho atua com a
parceria de organizações não governamentais tais como a Comissão Justiça e Paz
da Arquidiocese de Salvador, a Comissão Pastoral dos Pescadores, a Associação
de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia.
Minas Gerais
56
Matérias veiculadas respectivamente nos dias 14 e 15 de maio de 2007, no Jornal Nacional da Tv Globo.
57
Para maior detalhamento da abordagem midiática de grandes veículos de comunicação sobre as
comunidades quilombolas, vide o Laudo Antropológico da Comunidade São Francisco do Paraguaçu,
realizado pela antropóloga do INCRA Camila Dutervil (2007).
58
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
59
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
130
maiores concentrações de comunidades no estado estão nas regiões norte e
nordeste do estado, com ênfase no Vale do Jequitinhonha e Vale do Gorutuba.
“A federação começou a ser criada no ano de 2004, novembro, no primeiro encontro das
comunidades quilombolas do estado de Minas Gerais. Nesse primeiro encontro
começamos a formar a federação, primeiro formamos uma comissão provisória e dessa
comissão começamos a trabalhar, fazer encontros, reuniões, pra ser formada a federação”
(Sandra Silva, liderança quilombola, integrante da N’Golo e da CONAQ).
O nome N’Golo possui origem africana. Como uma dança ritual dos mucopes em
Angola, região sul da África, N’Golo também é popularmente conhecido como
“dança da zebra”. Com base nos movimentos realizados por esse animal quando
os machos, em um combate violento, disputam entre si sua fêmea, N’Golo se
constituiu como uma dança ritual dos jovens homens mucopes para conquistar
suas esposas.
131
de Defesa da Cultura Negra e Afro-descendentes – “Fala Negra”. Nesse
encontro, os participantes discutiram seu direito ao território cultural bem como
as políticas públicas direcionadas aos remanescentes de quilombo no País. Os
debates nesse encontro evidenciaram aos quilombolas a violação de seus direitos
básicos. Assim sendo, eles criaram uma Comissão Provisória Quilombola, com
eleição de representantes por região do estado, com a finalidade de representá-
los na luta por seus direitos.
A comissão eleita realizou duas reuniões ao longo do ano de 2004, para então, em
junho de 2005, finalmente, através de uma assembléia com ampla participação
quilombola, consolidar sua organização política e fundar a Federação Estadual
das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais.
“Não estamos ainda no plano ideal, até porque é uma federação nova com apenas três
anos e as comunidades estão esperando muito da gente. As comunidades querem que a
federação resolva todos os problemas da noite para o dia, cobram demais. A gente tenta
conscientizar que a coisa não é tão simples assim, têm dificuldades inúmeras, mas a
gente está avançando na luta” (Sandra Silva, liderança quilombola, integrante da N’Golo
e da CONAQ).
132
A organização das comunidades quilombolas visibilizou a história e a realidade
dos quilombos desse estado. O grande desafio é o reconhecimento e a titulação
de seus territórios. Até os dias atuais, apenas uma única comunidade em Minas
Gerais foi titulada, Porto Corís.
Pernambuco
60
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
61
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
133
serviu para nos fortalecer enquanto estado. Desses encaminhamentos todos, aconteceu o
I Encontro Nacional das Comunidades Quilombolas, em 1995, e em 1998 realizamos o I
Encontro Estadual das comunidades quilombolas de Pernambuco. Desse encontro
estadual, foi tirada uma Comissão de três pessoas para se dedicar à luta e continuar a
troca de experiências, além de manter os encontros com os quilombolas dos outros
estados para socializar as preocupações, problemas e buscar saídas conjuntas”
(Aparecida Mendes, liderança quilombola de Pernambuco e integrante da Comissão
Estadual e da CONAQ).
Esse processo de articulação estadual tem sido amplificado nos últimos anos, o
que tem se expressado na maior participação das comunidades pernambucanas
nos encontros estaduais, como coloca Aparecida Mendes:
134
em julho de 2003, a representação estadual tem sede em Conceição das Crioulas e
atua na luta pela garantia dos direitos dos quilombolas.
Assim como Minas Gerais e Maranhão, Pernambuco tem em seu histórico uma
forte presença da resistência negra por meio dos quilombos. As lideranças
femininas representam uma face importante da luta dos quilombolas desse
estado. Nas comunidades de Conceição das Crioulas e Onze Negras, por
exemplo, os registros indicam que foram as mulheres que iniciaram a luta pelos
direitos das comunidades.
135
Devido aos problemas encontrados em muitos dos títulos emitidos pela
Fundação Cultural Palmares62, os títulos de Castainho e Conceição das Crioulas
não efetivaram a garantia dos seus territórios, uma vez que não houve a
indenização nem tampouco a retirada dos ocupantes particulares do território.
“Até o final dos anos 1980, nós tínhamos essa características de quilombolas, mas não
ligávamos nossa vivência com nossa ancestralidade. Foi nesse período que começamos a
fazer um descoberta interior e nos perceber como grupo. A partir dali começamos a
compreender nosso papel dentro e fora da comunidade. Ali nasce a primeira associação
de moradores do município, nasce na comunidades a luta para pautar educação com
tema principal, pra que seus descendentes recuperassem a história e o processo de luta
que nos foi negado. Ali cria-se também uma consciência que tudo que vivia ali de
exclusão não era apenas por sermos uma comunidade rural, antes de tudo por sermos
uma comunidade negra. A compreensão, e esse encontro com as marcas do racismo, se
dá de forma bastante forte. Isso foi se espalhando, se ampliando, e hoje Conceição das
Crioulas é uma referência” (Givânia Maria da Silva, liderança quilombola de
Pernambuco, integrante da CONAQ e da Comissão Estadual).
62
Tema discutido de modo mais profundo no capítulo 4 da presente dissertação.
136
Em 1995, iniciou-se os trabalhos com o Centro de Cultura Luiz Freire, que
caracteriza-se como um importante parceiro dessa comunidade e da Comissão
Estadual.
63
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
137
Governo Estadual em 1998. Esse projeto contou com a participação de
organizações quilombolas de diversas comunidades, organizações do
movimento negro urbano, bem como outras entidades. O projeto envolvia uma
articulação intensa de lideranças quilombolas de diferentes comunidades, como
relata Cledis Souza:
“Em 2001, teve o I Encontro das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul. Nesse
Encontro nós tínhamos pouco mais de 30 comunidades que tinham sido mapeadas. Em
2002, houve eleição para o conselho estadual de defesa dos direitos do negro – CODENE,
e destinaram uma cadeira nessa diretoria para os quilombos, passando por uma votação
diferente dos demais grupos ali representados.(...) Em 2002, ano de eleição, tivemos o II
Encontro Estadual. Em janeiro de 2006, a gente fez o III Encontro Estadual e elegeu uma
coordenação provisória que tinha como objetivo agregar todas as comunidades. Mesmo a
gente tentando fazer um trabalho de renovação, acabamos no final ficando com as
mesmas pessoas eleitas nessa coordenação. Essa coordenação tinha como objetivo
organizar o próximo encontro para fundarmos nossa federação. Em janeiro de 2007,
oficializamos a nossa Federação, elegemos um coordenador geral e seis coordenadores
regionais. Esses coordenadores regionais têm o mesmo status do geral, tendo autonomia
para trabalhar junto e irem em suas regionais” (Cledis Souza, liderança quilombola do
Rio Grande do Sul, integrante da CONAQ e coordenadora adjunta da FACQ/RS).
138
necessidade de articular as ações dos quilombolas de todo o estado e de ampliar
a mobilização em defesa da terra. Em janeiro de 2006, foi instituída uma
comissão provisória com o objetivo de discutir e organizar a fundação da
federação e em janeiro de 2007 foi oficializada a Federação.
Rio de Janeiro
64
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFAP,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
65
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
139
O processo organizativo do Estado, já bastante antigo quando analisamos as
histórias de comunidades em particular, como Campinho da Independência,
ganhou um escopo estadual a partir de outubro de 2003. Nesse período foi
fundada a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do
Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ). Ronaldo Santos relata o processo de
organização dos quilombolas em esfera estadual:
140
Campinho da Independência foi a primeira comunidade quilombola do Estado
do Rio de Janeiro a ser titulada. Em 21 de março de 1999, os quilombolas de
Campinho receberam da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria de
Assuntos Fundiários do Estado do Rio de Janeiro o título definitivo de seu
território com 287,9461 hectares. Até abril de 2006, Campinho da Independência
era a única comunidade quilombola do Estado a ter seu título registrado em
cartório.
141
A mobilização e a articulação em defesa do território de Marambaia e de outros
territórios quilombolas do Rio de Janeiro é a pauta das várias associações das
comunidades quilombolas do estado, bem como da Aquilerj.
Piauí
66
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
67
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
142
também luta pelo acesso às políticas públicas, como acesso à água de qualidade e
saneamento básico, educação, saúde, estradas e moradia.
Amapá
143
Atualmente, o Amapá possui três comunidades quilombolas com os títulos
coletivos de suas terras. A primeira comunidade titulada no Amapá foi Curiaú.
Porém, antes mesmo do reconhecimento da comunidade, o governo estadual do
Amapá já havia criado a Área de Proteção Ambiental (APA) de mesmo nome. O
território de Curiaú abrange 3.321 hectares dos 21.676 hectares da APA,
composta por florestas, campos de várzea e cerrados. Na comunidade residem
cerca de 4 mil quilombolas.
68
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
69
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
144
para plantar, porque ele é agricultor familiar, ele vive da terra, da pesca e o negro urbano
não precisa de muita terra, precisa de um terreno pra fazer a casa dele. Já o negro
quilombola precisa de muita terra”. (Hildima dos Santos, liderança quilombola do
Amapá, integrante da CONAQ).
Espírito Santo
70
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
145
em conflito, existem 18 comunidades quilombolas71 no estado. A Coordenação
Estadual de Comunidades Quilombolas do Espírito Santo indica a existência de
82 comunidades quilombolas, com aproximadamente 5 mil famílias. As maiores
concentrações de comunidades quilombolas estão na região norte, também
conhecida como Sapê do Norte, na região sul e na região centro-serrana.
71
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
146
O estado do Espírito Santo registra um grave conflito entre as comunidades
quilombolas e a multinacional Aracruz, que possui extensas plantações de
eucalipto em sobreposição aos territórios quilombolas. Esse conflito está
localizado na região do Sapê do Norte. Uma das comunidades que sofreu grave
processo de expropriação de seu território foi Linharinho. Localidades
importantes de seu território, tais como o cemitério de ancestrais da comunidade,
estão hoje sob controle da Aracruz.
72
Esse dado foi elaborado a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA,
Programa Raízes, Cedenpa e NAEA.
73
Fonte: Levantamento de Treccani (2006), a partir das informações da FCP e do Diário Oficial da União.
147
Quilombolas do Mato Grosso do Sul – CONERQ/MS. Essa Coordenação está
oficializada como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos.
“Em 2005, iniciamos um trabalho com a FUNASA para abastecimento de água para as
comunidades quilombolas de Mato Grosso do Sul. Nessa época, não sabíamos onde as
comunidades do Estado estavam, tínhamos só relatos. Em 2005 fizemos o primeiro
Encontro Estadual, com 14 comunidades do Mato Grosso do Sul, com mais de 200
148
pessoas. A partir daí, a coordenação estadual nasce, em janeiro de 2005, e começamos a
estimular que as comunidades formem associações e lutem por seus direitos. Depois
desse trabalho fomos convidados a participar da executiva da CONAQ e começamos a
mostrar pra outras comunidades como foi feito nosso trabalho de formar associações e a
Coordenação Estadual. Aí a gente começa a brigar mais pelas políticas publicas, já temos
rede de água nas 14 comunidades e estamos brigando agora para aumentar essa rede”.
(Jhonny Martins de Jesus, liderança quilombola de Mato Grosso do Sul, integrante da
Conerq e da CONAQ).
Contexto Nacional
149
- Coordenação das Comunidades Quilombolas do Estado de São Paulo
(COQESP);
150
- Comissão Quilombola de Mato Grosso;
151
UF Organização N° por UF N° Início da Existência de Ano de
Estadual Comunidades Comunidades articulação das Legislação Formalização
Identificadas74 Tituladas / UF75 comunidades Estadual da
na UF Específica Organização
Estadual
AL Comissão 58 - Déc. 2000 -
Estadual
AP Coordenação 65 3 títulos para 3 Déc. 1990 - -
Estadual comunidades
BA Não existe. Há 553 6 títulos para 4 Déc. 1980 Art. -
organizações comunidades Constitucional
regionais, como a
CRQ (Coord.
Regional das
Comunidades
Quilombolas da
Bahia)
CE Comissão 85 - Déc. 2000 -
Estadual
ES Coordenação 57 - Déc. 2000 Legislação 2007
Estadual Específica
GO Não existe. Há 93 1 para 61 Déc. 1980 Legislação -
organizações de comunidades Específica
territórios (ou
quilombolas localidades)
como a AQK
(Associação do
Quilombo
Kalunga)
MA Aconeruq 856 20 títulos para Início déc. Art. 1997
22 1980 Constitucional
comunidades
MG N’Golo - 250 1 título para 1 Déc. 1990. - 2005
Federação comunidade
MS Conerq 29 2 título para 2 Déc. 1990 Legislação 2005
74
Os dados referentes às comunidades identificadas e tituladas são de Trecanni (2006). Essa base de dados
foi elaborada a partir da sistematização das informações da FCP, UnB, SEPPIR, INCRA, UFPA, Programa
Raízes, Cedenpa e NAEA. As Listagens sistematizadas por TRECCANI são de responsabilidade exclusiva
do autor que reuniu as diferentes informações disponíveis nas listagens anteriores. Em várias situações se
percebeu que existiam nomes muito parecidos, ou nomes de comunidades que hoje viraram sedes
municipais, ou ainda os mesmos nomes em municípios diferentes, mas se preferiu manter todos eles. Estas
listagens, portanto NÃO APRESENTAM A LISTA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO BRASIL,
mas sim uma listagens de nomes fornecidos por diferentes fontes e devem ser consideradas como um
instrumento de trabalho a ser aprimorado pela ação conjunta dos quilombolas, centros de pesquisa e órgão
dos poder público. É provável que nestas listagens se misturem nomes de comunidades já extintas e outros
de comunidades quilombolas presentes na atualidade.
75 Muitos dos títulos emitidos de regularização fundiária não se efetivaram na prática. Esses são os títulos
emitidos pela FCP, com base no Decreto 3912/2001, que não contaram com a indenização dos ocupantes
particulares, nem tampouco com a retirada dos mesmos.
152
comunidades Específica
MT Comissão 74 1 título para 6 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
PA Malungu 389 36 títulos para Início déc. Art. 2004
88 1980 Constitucional
comunidades
PB Coordenação 33 - Déc. 2000 -
Estadual
(CECNEQ);
PE Comissão 106 2 títulos para 2 Déc. 1980 Legislação 2003
Estadual comunidades Específica
PI Comissão 117 2 títulos para 2 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
PR Coordenação 14 - Déc. 2000 -
Estadual
RJ Aquilerj 29 2 títulos para 2 Déc. 1990 Legislação 2003
comunidades Específica
RN Coordenação 69 - Déc. 2000 -
Estadual
RO Associação 8 - Déc. 1990 -
ECOVALE
RS FACQ/RS 146 - Déc. 1990 Legislação 2007
Específica
SC Comissão 21 - Déc. 2000 -
Estadual
Provisória
SE Comissão 47 1 título para 1 Déc. 2000 -
Estadual comunidade
SP Coordenação 90 5 títulos para 6 Déc. 1990 Legislação
Estadual comunidades Específica
(Coqesp)
TO Comissão 31 - Déc. 2000 -
Estadual
BR CONAQ 3524 204 (com FCP); Déc. 1990 Art. 1995
150 (sem FCP- Constitucional
titulações
questionadas)
153
Em relação ao processo de regularização fundiária, é possível perceber o tímido
avanço obtido, que abarca, até o momento, apenas alguns dos estados onde há
quilombos no País:
154
4.4. Coordenação Nacional
No dia 20 de novembro do mesmo ano, a Marcha Zumbi dos Palmares, pela vida
e cidadania, reuniu cerca de 30 mil pessoas, na Praça dos Três Poderes, em
memória ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares. A Marcha marcou, de modo
155
impactante, as contribuições e reivindicações da mais expressiva manifestação
política do Movimento Negro na agenda nacional. O I Encontro Nacional das
Comunidades Quilombolas se constituiu como parte integrante do processo
mobilizatório da Marcha Zumbi.
76
O I Encontro Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão foi realizado em 1986.
O segundo e o terceiro foram realizados, respectivamente, em 1988 e 1989.
77
Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná – ARQMO -
criada em 1989.
156
É neste contexto que a questão quilombola ganha peso no cenário nacional. O
reconhecimento legal de direitos específicos, no que diz respeito ao título de
reconhecimento de domínio para as comunidades quilombolas, ensejou uma
nova demanda, o que gerou proposições legislativas em âmbito federal e
estadual, e promoveu a edição de portarias e normas de procedimentos
administrativos consoante à formulação de uma política para a garantia dos
direitos das comunidades quilombolas.
157
formas organizativas tais como organizações não governamentais, sindicatos ou
partidos políticos. Esse Encontro teve como objetivo definir o papel da
Coordenação.
158
quilombolas, atua com um universo de mais de três mil e quinhentas
comunidades79 em todas as regiões do País.
quilombolas. O Governo Federal tem identificadas 3554 comunidades. Mensurar de modo mais concreto a
quantidade de comunidades total no País ainda não é possível, dado a inexistência de pesquisa nacional
voltada para essa finalidade.
80 Ver maiores informações sobre esse processo no capítulo 4, do presente trabalho.
159
abordagem negativa sobre o tema), e na conjuntura política do poder executivo
(que tem como marco no final de 2007 e princípio de 2008, o processo de
alteração da Instrução Normativa do INCRA, sobre regularização de territórios
quilombolas, além da baixa concretude da emissão dos títulos das terras).
Somado a tudo isso, estão os conflitos localizados que têm exposto as
comunidades a situações bastante graves81.
81
Essas questões foram trabalhadas de modo mais aprofundado no capítulo 4.
160
Como continuidade da mobilização da Marcha Zumbi, de 1995, a CONAQ
participou, em 2005, da Marcha Zumbi + 10, se fazendo representada com a
presença significativa de lideranças quilombolas de diversos estados do País.
Esses dez anos que separam a primeira Marcha Zumbi, e a respectiva realização
do I Encontro Nacional das Comunidades, para a Marcha Zumbi+10,
materializam o peso crescente da articulação do movimento quilombola.
82
O Distrito Federal tem uma comunidade que possui um histórico que poderia levar a sua auto-
identificação como quilombola (Mesquita). Todavia, devido aos processos vivenciados pela comunidade e
seu entorno, hoje o grupo não se reconhece como quilombola.
161
tradição quilombolas; (5) Combater toda e qualquer discriminação racial e intolerância
religiosa;”83.
162
formas. Se pegar as normas constitucionais e decretos na história do Brasil, eles são cruéis
conosco. Nós só passamos a ser cidadãos brasileiros a partir da constituição de 1988,
antes nós não éramos cidadãos brasileiros” (Ivo Fonseca, Liderança Quilombola,
integrante da CONAQ).
4.5. Juventude
“Outra característica da CONAQ é que a maioria das lideranças é de jovens. Ou seja, não
está centrada apenas nas pessoas que iniciaram a CONAQ, como o caso de Simplício, Ivo
163
e eu. Quando eu vejo hoje, lideranças representando os seus estados com 23, 24 anos, ao
contrário de alguns pensamentos acharem que não são maduros, isso para nós do
movimento nos dá a certeza da continuidade, porque no quilombo um dos nossos
patrimônios é a continuidade. A CONAQ, enquanto uma organização de quilombos, não
pode imaginar que lideranças ficarão eternamente ocupando esses espaços, porque aí não
gera a continuidade. Para nós, o repassar é sempre uma tarefa e uma necessidade”
(Givania Maria da Silva, liderança quilombola, fundadora da CONAQ).
“Quando as pessoas falam da imaturidade da CONAQ, acredito que essas pessoas não
devem conhecer a lógica de quilombo, que tem como tarefa essencial a continuidade. Nós
trazemos para CONAQ aquilo que é nosso cotidiano, que é o nosso real, onde os homens
e as mulheres, não importa a sua idade, têm o seu papel.” (Givania).
164
Crianças e Jovens Quilombolas – Quilombinho, em 2007, em Brasília. Em 2008,
foi realizado, no Rio de Janeiro, o Encontro Nacional de Juventude Quilombola,
onde se formou a Rede Nacional de Juventude Quilombola, organização também
vinculada à CONAQ. Essa atuação da CONAQ com a juventude simboliza um
fortalecimento da “nova guarda”, e nessa perspectiva, do movimento, como
ressalta Ronaldo Santos:
“A juventude aparece numa condição muito favorável ao movimento. (...) Tem tido uma
ampliação da participação da juventude e isso está mudando, pois o pessoal vem mais
preparado. O pessoal que participou do I Prepcom, do Quilombinho, da Conferência de
Criança e Juventude está pautando o tema de uma forma mais profunda. A nova guarda
está se montando” (Ronaldo Santos, liderança quilombola do Rio de Janeiro, Secretaria
Executiva da CONAQ).
A Organização das Nações Unidas (ONU) define como jovens as pessoas entre 15
e 24, essa definição é fruto do Fórum Mundial de Juventude de 2001. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) apresenta parâmetros que levam em
165
consideração a juventude como uma categoria sociológica que implica
fundamentalmente na preparação dos indivíduos para a fase adulta.
Corti e Souza apresentam a juventude como “(...) uma categoria social representada
pelo vinculo entre os indivíduos de uma mesma geração, que formam um segmento
específico” (Corti e Souza, 2005:12). Todavia, este segmento é detentor de uma
diversidade de experiências, apresenta características particulares que
diferenciam o grupo a partir do lócus identitário de cada cultura. Portanto, o
conceito de Juventude não deve resumir-se aos aspectos do desenvolvimento
físico-biológico, como também cronológico, pois apesar de sua importância, esses
aspectos são insuficientes para definir a diversidade de características e
atribuições que compreende o universo da juventude. “Ser jovem implica possuir
determinadas características e exercer certos papéis sociais” (Corti e Souza, 2005: 22).
166
um movimento de tomada de consciência de um segmento étnico-racial e,
também, etário.
167
Apesar desses avanços significativos, é importante destacar que a maioria das
comunidades ainda não estabeleceu um diálogo mais efetivo com o Estado e que
o acesso às políticas públicas não se processa ou se efetiva por uma perspectiva
englobante, a partir das políticas voltadas às ditas “populações carentes”, tendo
como eixo norteador o critério econômico.
nacional, estruturada a partir de uma mostra de 60 comunidades quilombolas. É resultado de uma parceria
do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, SEPPIR, UNICEF e CONAQ. Os dados foram
divulgados em maio de 2008.
168
e Saúde, de 1996: 10,5% das pessoas nessa faixa etária tinham déficit de altura —
o que significa que a situação das crianças quilombolas em 2006 era pior do que a
das brasileiras de dez anos antes.
85
O Programa Brasil Quilombola foi criado em 2004 e agrupa ações voltadas às comunidades quilombolas
em várias áreas: acesso à terra, educação, saúde, saneamento básico, eletrificação, geração de renda, dentre
outros.
169
As ações educacionais, por exemplo, que não dialoguem com a história e a
cultura das comunidades, apresentam uma face de violência com a dinâmica da
comunidade. Em relação à saúde, por sua vez, também apresenta-se uma
situação complexa, uma vez que ações de saúde que não se constituam
conjuntamente com os saberes de saúde das comunidades, como o das parteiras
e benzendeiras, agridem a lógica cultural desses grupos. Esses dois casos,
reproduzidos em políticas públicas voltadas para outros enfoques, representam
ações públicas que não se estruturam numa perspectiva pluriétnica, tal como
trata os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, bem como a Convenção 169 da
OIT.
“Recursos orçamentários vão ser encontrados nos chamados atos de “política social” (...).
Acionados sem a titulação definitiva dos territórios, eles têm sido implementados (saúde,
educação, bolsa de alimentos) como se as comunidades remanescentes de quilombos
pudessem ser reduzidas ao econômico, ou seja, como se tratassem de “comunidades
carentes” ou de baixa renda ou ainda de comunidades que podem ser classificadas como
“pobres”. (Almeida, 2005: 87).
170
comunidades lutam contra os antagonismos construídos na própria estrutura
estatal, como pontua Ronaldo Santos:
“A questão quilombola ela está colocada há muito tempo e ela tem sido conduzida com
avanços e retrocessos. A primeira coisa que nós temos que ter clara é que nós não
podemos desanimar, nossos ancestrais não desanimaram, por isso nós não podemos
desanimar. A segunda coisa que precisamos ter clara é que o Estado (e aqui eu não estou
falando de governo) não é nosso, não foi feito pra nós, não foi feito pensado para nós.
Então a gente está aqui lutando contra uma estrutura de Estado que está sendo moldada
há mais de 500 anos e que não foi pensada em nós” (Ronaldo, CONAQ, RJ, em fala
durante a Audiência do MPF, em 19/09/2007).
171
quilombos’ coloca em pauta o poder de nomeação de que é instituído o Direito e
seu garantidor, o Estado, detentor da palavra autorizada por excelência. Essa
nominação, essa classificação das comunidades quilombolas enquanto categoria
reúne uma realidade heterogênea e a transforma em “objeto de ação do Estado”
(Arruti, 2006: 52).
O papel do Estado brasileiro, sobretudo nos últimos anos, tem, de modo indireto,
fomentado a organização das comunidades quilombolas. Houve uma elevação
significativa de mobilizações das lideranças quilombolas de todo o País para
encontros, congressos, apoio a projetos nas várias áreas. A atuação do Estado,
principalmente financeira, visa teoricamente o fortalecimento institucional das
comunidades quilombolas.
O Estado tem por obrigação promover o bem estar e a igualdade dos cidadãos e
cidadãs que o compõem. Esse processo passa pelo reconhecimento às diferenças
e para o esforço cada vez maior do poder público em efetivar os direitos desses
grupos. Entretanto, como estão envolvidos numa complexa trama de interesses
contraditórios, os representantes do Estado, que atuam em nome do poder
172
público, operam ações que visam, por outro lado, a desarticulação das
comunidades, como é o caso dos deslocamentos provocados pelo CLA em
Alcântara (Maranhão), ou pela Marinha em Marambaia (Rio de Janeiro). Há,
também, uma histórica omissão por parte do Estado em ser capaz de reverter
situações de conflitos em comunidades expostas à pressão dos latifundiários e do
capital em geral.
86
Cito como exemplo, artigos de jornais como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo; e reportagens do
Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, vinculadas nos dias 14 e 15 de maio de 2007.
87
PDL 44/2007, de autoria do Deputado Valdir Colato (PMDB/SC).
173
diferenciados, constroem-se possibilidades e campos férteis para que as políticas
públicas sejam formatadas a esses grupos, demandando uma efetivação do
disposto na Constituição Federal de 1988, ou seja, demandando que o Estado
brasileiro se formate numa perspectiva pluriétnica.
174
Considerações Finais
175
fundamentais que estão postas hoje: tal como a construção da etnicidade, os
elementos que constituem a identidade quilombola e as estratégias político-
organizativas das comunidades para lutarem em prol de seus direitos.
88
Fonte: SEPPIR (2006).
176
As comunidades quilombolas simbolizam um outro modelo em relação à
dinâmica frenética de mobilização demográfica para os grandes centros. A
garantia de seus direitos fortalece, também, outras dinâmicas sociais que se
colocam em paralelo à crescente urbanização da sociedade brasileira e fortalece a
perspectiva de um Estado que reconhece sua pluralidade.
177
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185
186
Documentos Jurídicos
187
Referências Eletrônicas:
www.ccnma.org.br
www.cohre.org.br
www.conaq.org.br
www.ibge.gov.br
www.incra.gov.br
www.iterpa.pa.gov.br
www.itesp.sp.gov.br
www.koinonia.org.br
www.palmares.gov.br
www.presidencia.gov.br/seppir
www.quilombo.org.br
188
ANEXOS
MD Presidente da República
A terra que temos hoje foi conquistada por nossos antepassados com muito
sacrifício e luta. E passados 107 anos do fim oficial da escravidão, estas terras continuam
sem o reconhecimento legal do Estado. Estamos assim, expostos à sanha criminosa da
grilagem dos brancos, que são, na atualidade, os novos senhores de tão triste memória.
No papel somos cidadãos. De fato, a escravidão para nós não terminou. E nenhum
governante da Colônia, do Império e da República reconheceu nossos direitos.
89
Realizado durante a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, nos dias 17, 18
e 19 de novembro de 2005.
189
dos fazendeiros e grileiros que destroem nossas florestas e rios. Não temos esses direitos
assegurados, portanto não somos reconhecidos como cidadãos!
Desde o começo da história do Brasil, negros e índios estão sendo injustiçados. Até hoje,
muitas comunidades remanescentes de quilombos e povos indígenas não tem suas terras
garantidas.
2. Saúde
Reivindicamos que:
3. Educação
190
4. Mulher Negra
Devido às denúncias de que as mulheres negras que trabalham como diaristas nas
fazendas recebem salários inferiores ao dos homens, solicita-se que o Ministério do
Trabalho apure a situação e tome as devidas providências.
Respeitosamente,
191
Comunidade Santa Joana (MA)
192
II. Decretos pertinentes ao tema de regularização fundiária das terras das
comunidades quilombolas
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, da
Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 14, inciso IV, alínea "c", da Lei nº 9.649, de 27 de
maio de 1998, e no art. 2º, inciso III e parágrafo único, da Lei n] 7.668, de 22 de agosto de 1988,
DECRETA:
Art. 1º Compete à Fundação Cultural Palmares - FCP iniciar, dar seguimento e concluir o
processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro
imobiliário das terras por eles ocupadas.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a
propriedade sobre terras que:
193
II - estudos complementares de natureza cartográfica e ambiental;
III - levantamento dos títulos e registros incidentes sobre as terras ocupadas e a respectiva
cadeia dominial, perante o cartório de registro de imóveis competente;
IV - delimitação das terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação;
V - parecer jurídico.
§ 2º As ações mencionadas nos incisos II, III e IV do parágrafo anterior, poderão ser
executadas mediante convênio firmado com o Ministério da Defesa, a Secretaria de
Patrimônio da União - SPU, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária -
INCRA e outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal ou empresas
privadas, de acordo com a natureza das atividades.
§ 3º Concluído o relatório técnico, a Fundação Cultural Palmares - FCP o remeterá aos
seguintes órgãos, para manifestação no prazo comum de trinta dias:
Art. 4º A demarcação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos será
homologada mediante decreto.
194
Art. 5º Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, a Fundação
Cultural Palmares - FCP conferirá a titulação das terras demarcadas e promoverá o
respectivo registro no cartório de registro de imóveis correspondente.
Art. 6º Quando a área sob demarcação envolver terra registrada em nome da União, cuja
representação compete à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a titulação e o registro
imobiliário ocorrerão de acordo com a legislação pertinente.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84,
incisos IV e VI, alínea “a” da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, DECRETA:
195
§2o. São terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos as
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§3o. Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo
facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução
procedimental.
§4o. A autodefinição de que trata o §1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no
Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na
forma do regulamento.
Art. 6o. Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a
participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por
meio de representantes por eles indicados.
196
federada onde se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações:
I – denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos;
II – circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;
III – limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das
terras a serem tituladas; e
IV – títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras
consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.
§1o. A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde
está situado o imóvel.
§2o. O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada.
Art. 9o. Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e
notificações a que se refere o art. 7o, para oferecer contestações ao relatório, juntando as
provas pertinentes.
Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA
e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do
título.
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de
segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a
Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural
Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas
comunidades, conciliando o interesse do Estado.
197
Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedades dos Estados, do
Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes
responsáveis pela titulação.
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades
dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou
comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e
avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação,
quando couber.
Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante
outorga de título coletivo e próindiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput,
com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e
impenhorabilidade.
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações
legalmente constituídas.
Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa dias,
plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos
quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir indicado:
I – Casa Civil da Presidência da República;
II – Ministérios:
a) da Justiça;
198
b) da Educação;
c) do Trabalho e do Emprego;
d) da Saúde;
e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;
f) das Comunicações;
g) da Defesa;
h) da Integração Nacional;
i) da Cultura;
j) do Meio Ambiente;
k) do Desenvolvimento Agrário;
l) da Assistência Social;
m) do Esporte;
n) da Previdência Social;
o) do Turismo;
p) das Cidades;
III – do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à FOME;
IV – Secretarias Especiais da Presidência da República:
a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
b) de Aquicultura e Pesca; e
c) dos Direitos Humanos
1o. O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial.
§3o. A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço
público relevante, não remunerada.
Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA
far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área.
Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados
em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários
específicos que respeitem suas características econômicas e culturais.
199
anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e empenho e de
pagamento.
200
III) Distribuição Espacial das Comunidades Quilombolas Identificadas
201
IV) Fotos do Ato em Defesa dos Direitos Quilombolas, realizado em Brasília
(setembro/2007):
202
203
204