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Revista de Investigações Constitucionais: Vol. 4 - N. 2 - Maio/Agosto 2017 - Issn 2359-5639 - Periodicidade Quadrimestral

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Revista de

Investigações
Constitucionais
vol. 4 | n. 2 | maio/agosto 2017 | ISSN 2359-5639 | Periodicidade quadrimestral
Curitiba | Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR | www.ninc.com.br
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Licensed under Creative Commons Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v4i2.53437

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse


privado como fundamento do Direito Administrativo Social*
The principle of supremacy of the public interest over private
interest as the foundation of Social Administrative Law

Emerson Gabardo**
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil)
Universidade Federal do Paraná (Brasil)
e.gab@uol.com.br
Recebido/Received: 25.06.2017 / June 25th, 2017
Aprovado/Approved: 19.07.2017 / July 19th, 2017

Resumo Abstract

O artigo tem como objetivo analisar o princípio da The article aims to analyze the principle of supremacy of
supremacia do interesse público sobre o privado no public interest over the private in the context of administra-
contexto do Direito administrativo brasileiro. Utiliza tive law. It uses as a premise a contemporary vision, by mat-
como premissa uma visão contemporânea, cotejando a ching the traditional perspective with the criticism that has
perspectiva tradicional com as críticas que vem sendo been conferred on the idea of supremacy of the public inte-
atribuídas à ideia de supremacia do interesse público. rest. Its main focus is to demonstrate how should be done a
Tem como foco principal a demonstração de como deve correct application of the principle under a hermeneutical
ser realizada uma correta aplicação do princípio do pon- perspective. It makes an opposition to a liberal vision of the
to de vista hermenêutico. Finaliza contrapondo uma fundamentals of the administrative law. It concludes by un-
visão liberal dos fundamentos do Direito administrativo. derstanding that the public interest is at the core of a correct
Conclui pelo entendimento de que o interesse público conception of the welfare State, as well as its supremacy is
está no núcleo de uma correta concepção de Estado the essence of the “Brazilian social administrative law”. The-
social, bem como a sua supremacia está na essência da se are the reasons why the criticism of this principle, as well
corrente chamada “Direito Administrativo Social”; razões as the criticism of a subsidiary vision of administrative law,

Como citar esse artigo/How to cite this article: GABARDO, Emerson. O princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol.
4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. DOI: 10.5380/rinc.v4i2.53437.
* O presente texto tem como base em capítulo da obra “Interesse Público e Subsidiariedade”, com diversas adaptações e atuali-
zações. Cf.: GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a Sociedade Civil para além do bem e do
mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
** Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Professor Adjunto de Direito Admi-

nistrativo da Universidade Federal do Paraná (Curitiba-PR, Brasil). Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham Uni-
versity School of Law. Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Vice-presidente do Instituto Brasileiro
de Direito Administrativo. E-mail: e.gab@uol.com.br.

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pelas quais tornam-se absolutamente equivocadas as become absolutely misguided, that is, based on private inte-
críticas desconstrutivas do princípio, bem como uma rest as a legal ground.
visão subsidiária do Direito administrativo, ou seja, pau-
tada no interesse privado como fundamento normativo.

Palavras-chave: interesse público; princípio da suprem- Keywords: public interest; principle of supremacy of public
acia do interesse público; Estado Social; Direito Adminis- interest; Welfare State; Administrative Law; constitutional
trativo; princípios constitucionais. principles.

Sumário
1. O princípio da supremacia do interesse público no contexto contemporâneo; 2. A supremacia do
interesse público sobre o privado como princípio fundamental do Direito administrativo; 3. A herme-
nêutica do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado 4. A contraposição entre uma
visão subsidiária (pautada na autonomia privada) e uma visão social (pautada no interesse público) do
Direito administrativo brasileiro; 5. Referências.

1. O princípio da supremacia do interesse público no


contexto contemporâneo
A noção de interesse público adquiriu centralidade há pouco tempo, não fazen-
do parte das reminiscências proto-históricas do Direito administrativo.1 Mário Masagão
atribui a Waline e a Marcelo Caetano esta nova construção que chama de “moderna” e
que é fulcrada no interesse público como critério de definição do objeto do Direito ad-
ministrativo. No entanto, ao tempo em que o autor reconhece esta teoria, ele também
a critica, pois não vê como o interesse público possa especificar o Direito administrativo
no contexto geral do Direito público. 2 Esta é uma discussão antiga e que restou bastan-
te desenvolvida no Direito italiano, notadamente pela obra de Renato Alessi,3 trazida ao
Brasil pela lavra de Celso Antônio Bandeira de Mello.4 Atualmente, a melhor obra que
carrega esta discussão é a de Daniel Wunder Hachem.5
Inicialmente, cabe discordar parcialmente de Fábio Medina Osório quando afir-
ma que atual fundamento justificatório do Direito administrativo é o interesse públi-
co decorrente das duas principais escolas francesas (do serviço público – Duguit; e da
puissance public – Hauriou).6 Em que pese a importância das duas escolas no tocante

1 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 76 et seq.
2 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1958, t. 1, p 21.
3 ALESSI, Renato. Diritto Amministrativo. Milano: Giufrè, 1949 e ALESSI, Renato. Principi di Diritto amministrativo. Milano: Giu-
ffrè, 1966.
4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 33. ed., São Paulo: Malheiros, 2016, p. 53 e ss.
5 HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do Interesse público. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
6 OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo Brasileiro?
Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n° 220, abr./jun. 2000, p. 70.

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à construção e sistematização de um Direito típico da administração pública brasilei-


ra,7 seus postulados fundamentais não combinam com o modelo da segunda metade
do século XX, notadamente pela sua ênfase ontológica nos aspectos sociológicos (o
primeiro) ou institucionais (o segundo). Maior influência talvez seja advinda do posi-
tivismo kelseniano, apesar das constantes e descomprometidas citações de Duguit e
Hauriou (comuns na doutrina e na jurisprudência até a década de 1980).
Desse modo, o interesse público componente do atual princípio da suprema-
cia do interesse público não se confunde com uma noção incipiente característica da
filosofia política liberal-revolucionária, ligada à vontade geral do povo; nem mesmo
equivale ao “interesse geral” contido no conceito de “serviço público” (que compôs o
quadro jurídico das primeiras idéias coletivistas a respeito da intervenção típica do Es-
tado social).8
A perspectiva contemporânea e que é suscitada simultaneamente ao Estado so-
cial interventor do pós-guerra decorre de uma visão conceitual do Direito administrati-
vo pautada no seu regime jurídico (portanto, mediante a identificação de um interesse
público que é encontrado não diretamente na vontade do povo ou na ontologia da
solidariedade social, mas sim nos termos de um sistema constitucional positivo e sobe-
rano, cujo caráter sócio-interventor precisa conviver em um equilíbrio complexo com
direitos subjetivos).9 Sendo assim no Direito administrativo contemporâneo, em certa
medida, recoloca-se a ênfase na noção de “poder público”, porém, a partir de novos
contornos. Nesta empreitada, realmente parece mais próxima às origens da concepção
contemporânea a posição de Marcel Waline, para quem o Direito administrativo tem
como objeto atribuir aos agentes públicos os poderes necessários para o bom exercício
de sua missão de gestão dos interesses públicos a fim de satisfazer os bens coletivos.10
E também, merece destaque na sistematização desta matéria e mais propriamente da
própria idéia de um interesse público que deve prevalecer sobre os interesses privados
(desde que receba poderes para tanto por parte da lei) a doutrina de Renato Alessi.11
Com isso denotaram-se presentes todos os elementos, portanto, para que fosse forjada
a idéia de “poder-dever” tão característica do período pós-88.
Por todas estas colocações, procurar o estabelecimento de uma origem única (e
num passado distante) para a noção atual de interesse público (em qualquer período

7 DUGUIT, León. Manual de Derecho constitucional. Tradução de José G. Acuña. Granada: Comares, 2005; e HAURIOU, Maurice.
Princípios de Derecho Público y constitucional. Tradução de Carlos Ruiz de Castillho. Granada: Editorial Comares, 2003.
8 DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho (público y privado). Tradução de Adolfo G. Posada y Ramón Jaén. Buenos
Aires: Heliasta S. R. L., 2001.
9 Essa fonte constitucional dos fundamentos do Direito Administrativo é sublinhada, entre outros autores, por: CORREIA, José
Manuel Sérvulo. Os grandes traços do direito administrativo no século XXI. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitu-
cional, Belo Horizonte, ano 16, n. 63, p. 45-66, jan./mar. 2016.
10 WALINE, Michel. Traitè Élémentaire de droit administratif. 6. ed., Paris: Librerie Du Recueil Sirey, 1950, p. 271.
11 ALESSI, Renato. Principi di Diritto amministrativo. Op. cit.

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precedente ao século XX) reflete a promoção de um acentuado equívoco arqueológi-


co. É inafastável o reconhecimento de que são vários os elementos e fontes utilizados
para a conceituação do Direito administrativo e de seus institutos fundamentais tanto
na doutrina estrangeira em geral como na brasileira em particular. Clèmerson Merlin
Clève estudou o assunto com acentuada clarividência (aliás, no início da década de 80,
e mesmo em um regime constitucional em nada favorável, defendeu a necessária iden-
tificação do Direito administrativo a partir dos direitos humanos e das reivindicações
populares).12
Mais interessante do que a tentativa de identificação de um momento chave
para o nascimento da noção, é o estudo dos seus desdobramentos e dos elementos
que seriam estruturantes do modelo contemporâneo, considerando-se a sua incursão
em uma atualidade fortemente refratária à idéia do interesse público no seu sentido
republicano. Ao contrário do que previu Jürgen Habermas,13 é a esfera pública que
está sendo “colonizada” pela privada, pois a definição corrente em geral promovida
pela mídia e aceita por quase todos os setores da sociedade coincide, no máximo, com
um “dever de encenar dramas em público e o direito do público em assistir à encena-
ção”.14 A recusa pós-moderna a todo tipo de abstração, o individualismo hedonista e
a prevalência dos critérios econômicos e psicologizantes (sentimentais) nas decisões
da vida quotidiana fizeram com que perdesse sentido um interesse que ultrapassasse
a situação concreta de cada um rumo a um dever ser coletivo aprimorado. Segundo a
tendência atual, a perspectiva de um “interesse comum compartilhado” vem perdendo
sua utilidade prática.15 Recorre-se a este signo apenas em algumas situações de caráter
simbólico muito aclamadas no discurso, mas menos relevadas na prática do que seria
necessário.
Ao contrário da aparência ditada pela mentalidade pós-moderna, que recusa a
possibilidade de ser delimitado o interesse público, não é uma tarefa inglória a busca
por sua identificação jurídico-política (e até mesmo ética). Definir interesse público não
é mais difícil que conceituar “justiça”, “eficiência” ou mesmo “moralidade”; aliás, a este
último princípio constitucional tem-se conferido elevada importância e aplicabilida-
de jurídica.16 E nem por isso costuma-se recusar o caráter ético-jurídico condicionante
destas noções. Sendo assim, o caráter abstrato não pode ser tomado como óbice para
sua condição de princípio; mas esta é uma crítica recorrente.

12 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Elementos para um discurso de conceituação do direito administrativo. Campinas: Julex, 1988.
13 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1961, p. 169.
14 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 83.
15 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Op. cit., p. 170.
16 Sobre o princípio da moralidade administrativa, ver: BITTENCOURT, Marcus Vinícius Corrêa. Moralidade Administrativa: evo-
lução e conceito. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (Coord.). Direito Administrativo Contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum,
2004, p. 211 et seq.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

Alega-se que o interesse público retrata conceito jurídico indeterminado de di-


fícil concretização. Autores como Humberto Ávila advogam a tese de que “o interesse
público não é determinável objetivamente”.17 Ou seja, coloca-se como pergunta funda-
mental: como seria possível identificar o que é interesse público?
Na realidade, a crítica da imprecisão do conteúdo dos interesses públicos e suas
conseqüências negativas, na esfera das idéias, já está presente em autores importan-
tes do Direito administrativo clássico, como Massivo Severo Giannini.18 Contudo, esta
questão retrata um falso problema, pois o fato de o conceito de interesse público ser
vago não retira sua possibilidade de significação. Ao tratar do assunto, J. Roland Penno-
ck traça paralelo com o conceito “beleza”. Pondera o autor que os estudiosos da estética
muitas vezes estão em completo desacordo quanto ao que a constitui; no entanto, em
regra, há bastante consenso quanto aos padrões apropriados. Por certo é possível que
não exista concordância quanto ao veredicto de um júri de um concurso de beleza,
mas “ninguém sonha em definir uma mulher seja processualmente seja funcionalmen-
te e nem por isso precisamos negar a existência de uma mulher bonita”.19 Sendo assim,
grande parte da imprecisão do interesse público desaparece quanto contextualizada.
A indeterminação da noção é um aspecto que pode até mesmo ser conside-
rado positivo, pois fornece a flexibilidade necessária para a identificação, a partir dos
princípios incidentes no sistema jurídico, das melhores respostas no caso concreto.20
Segundo Gerhard Colm, a flexibilidade conceitual do interesse público é uma hipótese
vital para a existência de uma sociedade plural. Sua indeterminabilidade é típica de
uma república democrática. E, ainda, é preciso compreender que o conteúdo do inte-
resse público não pode ser melhorado ou mais bem especificado por meio algum de
aprimoramento do sistema eleitoral ou por alguma forma de amostragem estatística
(tipicamente majoritarista). Ele exige um debate público e um posicionamento institu-
cional típicos de uma realidade política consistente.21
O interesse público é um conceito que recebeu no decorrer da história signifi-
cações que vão da absoluta discricionariedade à total vinculação.22 De qualquer modo

17 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In: SARMENTO, Daniel
(Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 211.
18 GIANNINI, Massimo Severo. Istituzioni di Diritto amministrativo. 2. ed., Milano: Giuffrè, 2000. p. 24.
19PENNOCK, J. Roland. A unidade e a multiplicidade: uma observação sobre o conceito. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse
público. Tradução de Edilson Alkmin Cunha. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1996, p. 179.
20 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Revista Trimestral de

Direito Público. São Paulo: Malheiros, n° 26, 1999, p. 116.


21 COLM, Gerhard. O interesse público: chave essencial da política pública. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op.
cit., p. 128.
22 “O interesse público, por exemplo, tem sido considerado como um conceito estritamente político (directiva político-adminis-
trativa), como um conceito discricionário por excelência, como um conceito que em certos casos poderá atribuir um poder dis-
cricionário, como um conceito que atribui uma margem de apreciação, e finalmente, como não passando de um mero conceito
que, como qualquer outro, não atribui ao seu intérprete e aplicador qualquer poder discricionário ou margem de apreciação

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é um conceito que foi e continuará a ser utilizado pelo Direito administrativo de forma
ampla, ainda que diferente, em cada sistema jurídico concretamente considerado e em
cada sociedade na qual inserido.
A doutrina que trata dos conceitos jurídicos indeterminados é antiga. Na pri-
meira década do século XX autores como W. Jellinek tratavam do assunto.23 Conceitos
como “idoneidade”, “aptidão”, “ordem”, “segurança pública”, “valor histórico”, “moral pú-
blica”, sempre implicarão controvérsia, sem que isso implique a recusa de sua utilida-
de.24 Uma grande conquista da modernidade foi justamente o reconhecimento de que
a abstração de uma noção não é critério para o não estabelecimento de seu caráter
jurídico-normativo. Max Weber peculiarizou o sistema racional formal justamente pela
sua capacidade de distinguir o nível abstrato (empírico ou lógico) do nível subjetivo
(emocional, mítico, etc.).25
Portanto, esta controvérsia não é nova. Apesar de alguns autores demonstrarem
certa surpresa com a chamada “crise do conceito de interesse público”, chegando a afir-
mar que se trata de um fenômeno contemporâneo “típico da sociedade complexa”,26
por certo que mesmo em “sociedades simples” seria muito difícil estabelecer o sentido
de um interesse comum; ao menos em comunidades que pressuponham a adoção de
um direito racional e de um regime democrático, pois o conceito de interesse público
poderia ser claro e evidente apenas em sociedades teocráticas ou monolíticas, em que
há uma auto-evidência de valores.27 Do ponto de vista epistêmico, não resultam muito
distintos os debates sobre a crise do interesse público do século XXI em face daqueles
da década de 50 do século XX.28 As grandes distinções decorrem mais de uma perspec-
tiva fenomênica empírica que lógico-abstrata.
Em que pese esta conclusão, há certa tendência de recusa da existência da su-
premacia do interesse público como princípio constitucional do Estado contemporâ-
neo. Como afirma Bandeira de Mello, “acentua-se um falso antagonismo entre o inte-
resse das partes e o interesse do todo, propiciando-se a errônea suposição de que se
trata de um interesse a se stante, autônomo e desvinculado dos interesses de cada uma

mas, antes, um poder estritamente vinculado.” Cf.: SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito
administrativo. Coimbra: Almedina, 1994, p. 20.
23 SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito administrativo. Op. cit., p. 19.
24 Aliás, no Direito administrativo, a adoção destes conceitos de “interpretação difícil e aplicação ainda mais complexa” aparenta
ser mais abundante que em outras áreas. SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito adminis-
trativo. Op. cit., p. 17.
25 WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. Tradução de José Medina Echavarría, Juan Roura
Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. 4 ed., México : Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 511.
26 ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica
do Direito Público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 6.
27 COLM, Gerhard. O interesse público: chave essencial da política pública. FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op.
cit., p. 126.
28 Sobre os debates da década de 1950 ver: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

das partes que compõe o todo”.29 Tendência esta recusada pelo autor, que procura de-
monstrar, detalhadamente, sua inconsistência do ponto de vista científico.
Sem deixar de considerar as adequadas locubrações de Bandeira de Mello aci-
ma apontadas (que se reportam à própria ontologia do princípio), não é possível con-
cordar com Paulo Schier quando afirmar que os “interesses públicos e privados não se
contradizem, não se negam, não se excluem”.30 Na prática, os indivíduos têm interesses;
e é muito comum que seus interesses se contraponham a interesses de outros indivídu-
os, assim como todos estes interesses de todos estes indivíduos muito comumente se
contrapõem ao interesse público.31 O único entendimento possível sobre esta relação
de perfeita harmonia de interesses defendida por autores como Paulo Schier ou Héctor
Jorge Escola seria restringi-lo à esfera do “dever ser”. Por outro lado, nesta hipótese, não
seria de grande utilidade a assertiva, pois a função do ordenamento positivo é justa-
mente a composição de interesses (isso por definição, desde o surgimento dos Estados
nacionais, da unificação do poder soberano e da proibição da autotutela privada, além
da submissão do soberano ao Direito).
Como não poderia deixar de ser, o direito positivo brasileiro não possui nenhu-
ma norma (regra ou princípio) que declare a impossibilidade jurídica da desarmonia
de interesses, ou mesmo que a proíba. E ainda que o fizesse, seria algo sem grande
repercussão fática. Aliás, mutatis mutandi, o plano jurídico atua justamente porque os
interesses privados e públicos em geral se contradizem, se negam e se excluem em um
sem número de vezes (o contrário é a exceção). E na exceção, muito pouco tem a dizer
o Direito. Portanto, não se pode concordar com a assertiva, mesmo entendendo-se (o
que não parece ser o caso) que ela remeter-se-ia ao plano do “dever ser”. Em suma, no
caso da esfera do “ser” a proposição seria incompatível com a realidade; no caso da
esfera do “dever ser”, seria redundante, senão inútil.
Bandeira de Mello especifica o caráter duplo da idéia republicana de interes-
se público como fundamento do regime jurídico administrativo, que deve ser pauta-
do tanto pela ideia de supremacia, quanto de indisponibilidade do interesse público.

29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 60.
30 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fun-
damentais. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 234. Esta posição também
é defendida por Héctor J. Escola. Cf.: ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo.
Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 243.
31 Como destacado por Edgar Bodenheimer “um indivíduo pode ter um interesse na redução ao mínimo de seus encargos fis-
cais, enquanto a realização de certas funções indispensáveis da comunidade ou do Estado (por exemplo, no campo da política
econômica, da educação ou da segurança nacional) possam tornar necessário o aumento dos impostos. Um indivíduo pode ter
interesse em conseguir ganhar facilmente colocando no mercado um produto de qualidade inferior, mas a comunidade está
interessada em manter um nível de produção que proteja pelo menos a segurança e a saúde dos membros do público. Um
indivíduo pode desejar retirar seus filhos da escola aos treze anos de idade, a fim de que possam ajudar a sustentar a família
num emprego rendoso, mas a comunidade pode considerar a extensão do período de educação compulsória além dessa idade
necessária para a formação de cidadãos bem informados e competentes. Um indivíduo pode ter interesse em pagar salários es-
tandartizados a seus empregados, mas o interesse da comunidade pelo equilíbrio econômico pode exigir um reforço do poder
aquisitivo da população.” Isso só para mencionar alguns exemplos ilustrativos. Cf.: BODENHEIMER, Edgar. Prolegômenos de uma
teoria do interesse público. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit., p. 208.

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Ainda, reforça a perspectiva de que não se trata da mera somatória do interesse de


cada um.32 Romeu Felipe Bacellar Filho explica que se trata de uma noção abstrata,
porém com assento constitucional e que se remete ao ideal de obtenção de um “bem
comum”;33 ou seja, não surge do atendimento dos interesses específicos, porque estes
possuem uma natural condição de potencial contradição prática. Estes autores, na re-
alidade, seguem uma tendência típica do terceiro quartel do século XX, de valorização
do interesse público como critério de identificação do Direito administrativo, porém
mediante contornos distintos da construção defendida por autores da sociologia ou da
ciência política. Trata-se de uma perspectiva paralela à doutrina típica do período de
ampliação interventora do Estado e que, inspirada na doutrina de Otto Mayer, focava
o ato administrativo como aspecto nuclear do Direito administrativo (e a partir desta
característica peculiarizava o Direito administrativo em face do Direito civil).34 Segundo
Héctor Jorge Escola, este seria o caso de autores como Juan Carlos Cassagne e Miguel
S. Marienhoff.35
A doutrina predominante no período de redemocratização (auge dos ideais do
Estado social no Brasil) acabou sendo a de valorização do interesse público, seja como
contrapeso aos excessos da Administração Pública (e do foco no ato administrativo
como exercício de um poder público), seja como meio jurídico de equilíbrio entre li-
berdades, direitos individuais e bem comum. Equilíbrio este realizado nos contornos
internos da atividade administrativa, pois não há qualquer sentido em se imaginar a
aplicação do princípio da supremacia do interesse público fora desta atividade, por
exemplo, tomando-o como informador das atividades judicial ou legislativa.36
Não se discute que a atividade judicial controla a atividade administrativa e, no
exercício da função de controle, aplica o princípio. Isso não significa que a sentença do
juiz siga tal princípio como critério de decisão, até porque a judicatura pressupõe im-
parcialidade (ou seja, o juiz não parte do pressuposto de que sua decisão colocará em
vantagem sempre um interesse público; ela apenas verifica se a decisão administrativa
considerou tal princípio). Também não seria razoável supor que os legisladores partam
de um dado apriorístico quando em questão debates entre interesse público e inte-
resse privado. E isso pelo simples fato de que razões democráticas são absolutamente
suficientes para eliminar qualquer espécie de critério apriorístico (desde que a decisão
final não implique em inconstitucionalidade).

32 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 70 et seq.
33 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo. 4. ed. Saraiva, 2008, p. 37.
34 Afirma o autor: “El régimen del derecho (Rechtsstaat) se perfecciona em virtud del acto administrativo, el cual, con su fuerza
obligatoria, está ubicado dentro de las relaciones a regular entre el Estado y el súdito”. Cf.: MAYER, Otto. Derecho administrativo
Alemán. 2. ed. Tradução de Horacio H. Heredia y Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: Depalma, 1982, p. 125.
35 ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Op. cit., p. 11 e13.
36 OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo Brasi-
leiro? Op. cit., p. 97.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

As escolhas políticas, ao contrário das jurídicas, são livres, inclusive, para presti-
giar o interesse privado na confecção de uma lei (interesse privado este que irá ser reco-
nhecido como público, caso os legisladores assim deliberem, como representantes que
são da vontade popular). Fato que não impede a existência de más escolhas, passíveis
de serem desconstituídas pela sua inconstitucionalidade. Vício este que não poderá,
todavia, ser identificado pela afronta de quaisquer princípios do artigo 37 da Consti-
tuição, inclusive o princípio da eficiência, pois estes se direcionam especificamente ao
exercício da função administrativa.37
O princípio ora em foco trata da supremacia do “interesse” público sobre o “inte-
resse” privado e não do “direito” público sobre o “direito” privado, ou mesmo do “interesse
público” sobre o “direito subjetivo privado”. Portanto, o princípio não trata de direitos, mas
sim de interesses, a partir de uma alocação do público em situação de preferência nor-
mativa e axiológica em face ao particular. Sobre o assunto, aliás, já tratou a jurista Raquel
Melo Urbano de Carvalho, refutando de forma percuciente as interpretações contrárias à
existência do princípio, pois “somente na medida em que os interesses da sociedade pre-
valeçam perante os interesses particulares torna-se possível evitar a desagregação que
fatalmente ocorreria se cada membro ou grupo da coletividade buscasse a concretização
dos seus interesses particulares”. A partir deste entendimento, a prevalência do interesse
público é justificada como um pré-requisito da própria sobrevivência social.38
Mas não só. A preferência pelo interesse público também precisa ser justificada
pelo princípio da felicidade, que é típico e necessário ao caráter republicano do Estado
democrático de Direito constituído na modernidade e, particularmente, no Brasil. Esta
razão, por si só, é suficiente para a não contemplação de qualquer critério análogo à
subsidiariedade do Poder Público como um efetivo princípio jurídico de atribuição ho-
rizontal de competências. O princípio da supremacia do interesse público, nos termos
em que dispõe o sistema constitucional brasileiro, possui forte caráter contestatório de
uma atuação do Estado de caráter meramente acessória ou desprestigiada; trata-se de
uma manifestação clara da alocação ao Estado do dever primordial de promoção dos
objetivos republicanos do artigo 3° da Constituição de 1988.

2. O supremacia do interesse público sobre o privado


como princípio fundamental do Direito administrativo
A maioria absoluta da doutrina e jurisprudência administrativas reconhe-
ce o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como categoria

37E quanto a esta conclusão, discorda-se de Fábio M. Osório. Cf.: OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse
público sobre o privado no Direito Administrativo Brasileiro? Op. cit., p. 97.
38 A autora elabora um dos melhores estudos do Direito brasileiro contemporâneo a respeito da temática da supremacia do
interesse público (sem prejuízo de serem possíveis algumas discordâncias). Cf.: CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de
Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Juspodiun, 2009, p. 68 et seq.

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fundamental do Direito administrativo brasileiro.39 Por todos, merece destaque a obra


de Daniel Wunder Hachem na matéria, ao explicar a “dupla noção jurídica” do interesse
público no contexto do Direito administrativo.40
A doutrina minoritária, defensora da negação da supremacia do interesse pú-
blico, pode, no geral, bem ser inserida na mentalidade anti-estatista contemporânea.
As constantes postulações de revisão das bases do Direito administrativo construído a
partir da configuração do modelo de Estado de bem-estar têm fomentado demandas
por uma mudança de paradigma. Não é possível ignorar uma mentalidade de fuga para
o Direito privado incentivada por uma ideologia de mesmo sentido.41 Mesmo assim, e
ainda que de forma aparentemente paradoxal, o Direito administrativo está cada vez
mais amplificado, face do crescente incremento material das relações sob sua influên-
cia. As ideias e práticas neoliberais típicas da década de 90, e que vêm se reinventando,
têm como ponto nuclear a proposta de flexibilização do regime jurídico administrativo
a partir de uma postura reducionista com relação aos fins do Estado. A crítica ao princí-
pio da supremacia do interesse público é fruto (dogmático, ideológico ou mental), seja
de forma consciente ou não, desta tendência que vem sendo compartilhada por vários
autores do Direito público contemporâneo, ainda que nem sempre com os mesmos
fundamentos.42
São vários os argumentos apresentados para a defesa da “desconstrução do prin-
cípio da supremacia do interesse público”. Humberto Ávila parece oferecer a base desta
possibilidade de entendimento ao incorporar a classificação distintiva entre “princípios”
e “postulados”. Para o autor os postulados normativos seriam apenas a “condição de
possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico”.43 Já os princípios, normas que
são, consistiriam em razões prima facie para decidir, além de servir como fundamento
e aplicação do Direito. Deles decorrem normas de conduta, além de valores e fins. Os
princípios permitiriam a ponderação entre si, sendo que “a solução de uma colisão de
princípios não é estável nem absoluta, mas móvel e contextual”, ou seja, a relação de

39 O artigo de Dora Maria de O. Ramos é elucidativo neste sentido, além de apontar as principais características do princípio na
tradição brasileira. Cf.: RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Princípios da Administração Pública. A&C – Revista de Direito Adminis-
trativo & Constitucional, Curitiba, ano 01, n. 4, p. 89-105, set./dez. 2000.
40Demonstra o autor que “a doutrina juspublicista utiliza esse conceito em situações diferenciadas, empregando o mesmo termo
para explicar fenômenos jurídicos diversos”. Por este motivo, ele propõe distinguir duas categorias de interesse público sob a
óptica do Direito Administrativo: o “interesse público em sentido amplo” e o “interesse público em sentido estrito”, explicando as
consequências jurídicas dessa diferenciação. Cf.: HACHEM, Daniel Wunder. A dupla noção jurídica de interesse público em direito
administrativo. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, p. 59-110, abr./jun. 2011.
41 Sobre o assunto ver: ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de

direito privado da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996.


42 É o caso de Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila e Paulo Ricardo Schier. Cf.:
SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit. E também de Patrícia Baptista. Cf.: BAPTISTA,
Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
43 Desse modo, existiriam os postulados da coerência, da integridade, da reflexão, da razoabilidade, da proporcionalidade, etc.
Cf.: ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 178.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

prevalência ocorre no caso concreto.44 Não cabe aqui tratar das evidentes incongru-
ências do pensamento geral do autor; para este fim, remete-se ao excelente e didático
texto de Luís Virgílio Afonso da Silva sobre o assunto.45 Todavia, não é possível deixar
de tratar dos equívocos de algumas de suas conclusões aplicadas ao caso ora tratado.
Ávila contesta tanto a possibilidade de que a supremacia seja um princípio
quanto seja um postulado, em razão do que a distinção torna-se relevante apenas para
melhor elucidar as conclusões de sua argumentação. O autor afirma que, da forma
como considerada, a supremacia não seria um princípio na medida em que não ad-
mite ponderação nem concretização gradual; as suas possibilidades de concretização
consistiriam em exceções e não graus, considerando que a prevalência é sua única pos-
sibilidade.46 Nesta mesma linha de raciocínio, Gustavo Binenbojm elabora a estranha
afirmação de que “um princípio que se presta a afirmar que o que há de prevalecer
sempre prevalecerá não é um princípio, mas uma tautologia”.47 Não é preciso se alon-
gar na impropriedade formal da própria colocação, pois não resulta nada atípico que
um princípio “afirme que seja aquilo que é”, pois ele é um a priori, um pressuposto. Ima-
ginar a ocorrência de um princípio que seja condicional nos seus próprios termos é um
inaceitável silogismo. Seria difícil afastar tais teorias deste problema.
Claro que, em termos de conteúdo, é possível discordar da ideia de que exista
uma supremacia (o que os autores também fazem), mas não há qualquer sentido em
ser sugerido um equívoco lógico no fato de que o princípio se auto-afirma; ou seja, de
que o princípio da supremacia do interesse público propõe que “algo que deve preva-
lecer deve sempre prevalecer”.48 Por certo que o princípio da legalidade ao afirmar que
a lei deve ser cumprida, prescreve que ela deve ser cumprida sempre; o princípio da pu-
blicidade, ao afirmar que o ato administrativo deve ser público, propõe que ele deve ser
público sempre. Isso, por princípio. O que não afasta a possibilidade (1) da existência de
exceções legais estabelecidas pelo próprio sistema e (2) da potencial possibilidade da
presença da cláusula hartiana “a menos que...”).49 Assim sendo, o fato do princípio es-
tabelecer um pressuposto não indica que ele sempre será aplicado, pois o sistema não
admite decisões com base em apenas um pressuposto. Isso significa que o princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado não é um critério exclusivo de deci-

44 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 181.
45 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-americana de
estudos constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, n° 01, 2003, p. 607 et eq.
46 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 183.
47BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito
Administrativo. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 167.
48 Aqui cabe uma elucidação. A contestação do argumento do autor parte do pressuposto que ele quis se referir apenas à esfera
normativa do princípio, apesar da redação literal sugerir que ele também esteja tratando da esfera positiva. De todo modo, não
se ignora o fato (e nem o princípio defende a idéia) de que muitas vezes, no plano do ser, a supremacia não ocorrerá, pois o
conteúdo do princípio não se confunde com sua esfera de aplicabilidade ou efetividade.
49 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Op. cit., p. 153.

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Emerson Gabardo

são, assim como o da legalidade, o da publicidade ou da impessoalidade também não


são. Estas colocações indicam que a adoção de um a priori apenas fornece um “ponto
de partida” preferencial. Não é adequado atribuir um conteúdo dogmatista ao próprio
conceito de “princípio”.50
Impossível aceitar também a proposição de que “uma norma de preferência só
pode ser uma norma individual e concreta, algo bem diverso de uma tendência abstra-
ta”.51 Veja-se dessa forma: no momento em que se afirma que a Administração Pública,
por exemplo, tem que “agir publicamente”, isso significa que, segundo o princípio, ou
seja, a priori, a Administração Pública deve agir sempre publicamente. Porém não há
problema algum em que a este princípio atribua-se um sentido prático relativo como,
aliás, indicam geralmente as metodologias jurídica e constitucional contemporâneas.
Ou seja, a título de argumentação, não se nega que seja possível atribuir ao princípio
um caráter externo absoluto, a despeito de ser uma proposição facilmente contestável.
Portanto, o conteúdo da noção “princípio” só é axiomático internamente, sofrendo a
incidência de outros elementos conformadores a partir das práticas vividas. Assim é
que se torna adequado afirmar uma possibilidade de ponderação que pode até mesmo
concluir pela prevalência, no caso concreto, do sigilo ao invés da publicidade, quando
de um ato administrativo. Mas o fato é que nem por isso a intimidade passa a fazer
parte da ontologia da publicidade (a não ser como seu oposto – a sua “falta”); e mais:
nem por isso foi destruída a “regra geral”, o pressuposto, a obrigação prima facie, de que
a Administração Pública tem que agir sempre publicamente.
O argumento contra-principiológico parece decorrer de certa confusão teórica
entre a supremacia como conteúdo definitório do princípio (situação interna) e o seu
momento externo. Ou seja, imbrica-se de forma equivocada o aspecto ontológico com
o normativo. Seguramente não pode ser ignorado, nem contestado, que há casos de
decisão jurídica em que o resultado indicará a não incidência de supremacia do inte-
resse público. Fato este que não significa a sua inexistência como a priori. O elemento
a adquirir supremacia é o “interesse público”; não é o “princípio da supremacia do interes-
se público” que detém supremacia, como alguns autores têm asseverado equivocada-
mente. Uma ilustração paradoxal deste equívoco é a proposição levada a efeito Flávio
Henrique Unes Pereira, que defende uma releitura do princípio para dele excluir a pa-
lavra “supremacia”.52 Em sentido semelhante, Paulo Schier defende ”a existência de um

50 Sobre o conceito de “princípio”, ver: GABARDO, Emerson; SALGADO, Eneida. O princípio com fundamento no desenvolvimen-
to do constitucionalismo contemporâneo. In: MARQUES NETO, Floriano de A.; ALMEIDA, Fernando D. M. de; NOHARA, Irene;
MARRARA, Thiago (Org.). Direito e Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2013, p. 105-121.
51 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 202.
52PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização, sanção: fundamentos e requisites da delegação do exercício do
poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 38.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

“princípio material do interesse público”, segundo o qual o elemento de ponderação


deveria ser o próprio “interesse público” e não a sua “supremacia”.53
Se melhor analisado, o argumento dos autores denota-se incongruente, para
além de não se a melhor opção semântica. Se fosse como propõem, por uma questão
lógica, não deveria haver qualquer conteúdo apriorístico – o interesse público e o in-
teresse privado estariam em situação de igualdade de disposição. Por inferência, acei-
tar tal argumento implicaria admitir, por exemplo, que o Estado deveria seguir tanto o
princípio da legalidade, quanto o da autonomia, pois ambos devem ser ponderados na
situação concreta (afinal, não se costuma utilizar a expressão “princípio da supremacia
da legalidade”, embora tal expressão fosse mais precisa); ou ainda, que existiria tanto o
princípio da publicidade dos atos administrativos, quanto o do sigilo dos atos adminis-
trativos; ou que haveria tanto o princípio da impessoalidade quanto o da pessoalidade,
pois em algumas situações, a decisão pode pautar-se por um ou por outro (o que efeti-
vamente é possível de ocorrer na situação concreta).
Entretanto, sabe-se que não é assim. Um princípio da legalidade que não afir-
masse sua preferência, um princípio da publicidade que não afirmasse sua preferência
e um princípio da impessoalidade que não afirmasse a sua preferência, não seria um
princípio. Então, um princípio da supremacia do interesse público que não afirme a
preferência do interesse público, não é princípio (e isso por uma questão ontológica
imediata, antes mesmo da normativa). Mesmo que fosse mudado para simplesmente
“principio do interesse público”, ainda assim restaria como sua decorrência lógica, a im-
posição de uma supremacia de um interesse (o público), sobre outro (o privado).
Por outro lado, destacar esta racionalidade do sistema não retrata qualquer des-
conhecimento da possibilidade de existência de um “princípio do interesse público”,
cujo sentido pode ser diverso e pode ser extraído do sistema constitucional, como um
critério normativo geral que ultrapassa as fronteiras do Direito administrativo. Há várias
relações entre os particulares e o Estado que não estão definidas prioritariamente pelo
Direito administrativo (mas sim pelo Direito internacional, pelo Direito tributário, etc.).
Porém, qualquer conteúdo que possa ser atribuído a um “princípio geral do respeito ao
interesse público” seria inútil para regular as relações com o interesse privado dentro
do contexto do modelo brasileiro se extirpada a idéia de supremacia, que é justamente
a proposição que justifica sua existência. Sem a indicação de supremacia, o princípio
torna-se irrelevante como norte do Direito administrativo, embora pudesse ter outras
funções no contexto do sistema jurídico como um todo.
Conseqüência inerente a este raciocínio é também a impossibilidade de existir
alguma posição de igualdade entre o princípio da supremacia do interesse público e a
defesa dos interesses privados. Um dos argumentos principais de negação da natureza
53 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos
fundamentais. Op. cit., p. 242.

Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. 107


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de princípio da supremacia do interesse público reporta-se à idéia de que nem sempre


o interesse público prepondera sobre privado. Por conseqüência, acabam os críticos
defendendo a idéia de que os interesses públicos e privados alocam-se em igual nível
de hierarquia normativa e axiológica;54 o que é um equívoco.
Por certo que não se discorda do fato inexorável de que nem sempre o inte-
resse público prepondera sobre o interesse privado. Todavia, existem condições muito
específicas para que isso aconteça e, ademais, nem por isso o caso deixará de ser uma
exceção à regra geral, ou seja, ao princípio.

3. A hermenêutica do princípio da supremacia do inte-


resse público sobre o privado
Na realidade, a “argumentação desconstrutiva” padece de um problema meto-
dológico grave, pois ignora o caráter de “derrotabilidade” do sistema jurídico. O termo é
de Herbert L. A. Hart (defeasibility), e tem como característica retratar a “cualidad de cier-
tos enunciados condicionales, en los cuales su antecedente es sólo condición contribuyente
del consecuente”.55 Neil Maccormick explica que se o Direito “tem a função de regular a
coexistência social a serviço de certos objetivos e valores que são independentes da
atividade de regulação”, portanto, as regras que sejam estabelecidas por tais agentes
jurídicos “são sempre excepcionáveis (defeasible) em vista da melhor persecução desses
objetivos e valores”.56 Ou seja, há um caráter aberto tanto do sistema constitucional
-administrativo como um todo (incompletude/caráter fragmentário), quanto dos prin-
cípios, que exigiriam “um processo de densificação mais intenso e, logicamente, um
maior comprometimento do intérprete para que não incida em arbitrariedade”.57 Mas
é preciso reforçar: a arbitrariedade, no caso, resultaria da ação do intérprete e não do
princípio normativo.
De acordo com a teorização de Hart já enunciada na década de 60, esta textura
aberta se aplicaria inclusive e particularmente às regras, o que afasta a possibilidade de
uma interpretação formalista: “uma regra que termina com a expressão ‘a menos que...’ é
ainda uma regra”. Na realidade, aponta o autor que as regras podem admitir uma razão
adequada para não serem cumpridas (ou seja, carregam uma potencial exceção implí-
cita).58 Para Juan Carlos Bayón esta conclusão estabelece como característica essencial

54ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular; e, SCHIER, Paulo Ricardo.
Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. Op. cit., p. 171-
215 e p. 217-245, respectivamente.
55 RODRÍGUEZ, Jorge L. Lógica de los sistemas jurídicos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 355.
56 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Tradução de Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008, p. 326.
57 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo; Max Limonad, 2003, p. 143.
58 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 4 ed., Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, p. 153.

108 Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017.


O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

do Direito a indeterminação, pois os conceitos jurídicos requerem um método de eluci-


dação especial, sendo impossível o estabelecimento a priori de uma lista de condições
necessárias e suficientes à sua aplicação. Os princípios, pelo seu grau de generalidade
e abstração, intensificam esta característica, pois de forma contundente somente ofe-
recem certa possibilidade de conduta nas suas condições de aplicação, mesmo diante
de casos que correspondem à exata descrição normativa.59 Neste sentido há uma ultra-
passagem da perspectiva de Hart, para se considerar imputável a derrotabilidade não
somente para as regras, mas para qualquer espécie normativa. Por outro lado, é preciso
ressalvar que Bayón, na trilha de Hart, afirma que nem todas as regras são derrotáveis,
havendo no sistema jurídico normas inderrotáveis, segundo sua natureza.60 De todo
modo, o entendimento correto do sistema passa a ser a abertura do sistema como um
condicionante da “decisão a respeito da norma” e não da “norma em si”. Sendo assim,
a recusa do caráter de princípio à supremacia do interesse público aparenta decorrer,
ainda que inadvertidamente, da ausência de reconhecimento do caráter não-monotô-
nico do sistema jurídico.
Bayón esclarece que a derrotabilidade é baseada na tomada em consideração
do fato de que há uma potencial incompletude nos fundamentos de uma decisão. No
momento em que se obtém uma resposta jurídica está presente uma quantidade de
dados tanto de Direito quando de fato que conduzem a uma “inabarcabilidade da des-
crição”. Conforme afirma o autor, “nossas crenças são sempre derrotáveis”, ou seja, o
que está em jogo nesta situação não é a verdade, mas uma “crença justificada”. Adver-
te-se que esta circunstância de derrotabilidade não pode ser confundida com alguma
espécie de “falibilidade” do sistema, pelo contrário, pois a premissa original continua
sendo verdadeira.61 Quando se observa que o princípio da supremacia do interesse
público não fornece condição objetiva de colocar-se juridicamente em uma situação
de preferência ao interesse privado isso apenas significa que ele, naquela circunstância
específica e ocasional, foi derrotado. Destarte, a exceção faz parte da norma da mesma
maneira que as condições positivas de sua realização a partir do critério de preferência
adotado; e parece ser este o fato que não é compreendido pelos teóricos que refutam
a supremacia do interesse público como princípio.
A derrotabilidade pode ser intra-sistemática ou intersistemática. A primeira implica
a condição de uma norma de ser “vencível” em função de outra de hierarquia superior que
estabeleça uma exceção. As normas excepcionantes são sempre superiores devido à regra
de prevalência sobre as excepcionadas, ainda que a hierarquização se estabeleça apenas

59 BAYÓN, Juan Carlos. Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? In: ______.; RODRÍGUEZ, Jorge. Relevancia normativa en

la justificación de las decisiones judiciales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 264.
60 BAYÓN, Juan Carlos. Derrotabilidad, indeterminación del derecho y positivismo jurídico. In: ­______.; RODRÍGUEZ, Jorge. Re-

levancia normativa en la justificación de las decisiones judiciales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 163.
61 BAYÓN, Juan Carlos. Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? Op. cit., p. 284.

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no plano axiológico. A segunda congrega as variações do contexto fático, ou seja, uma nor-
ma pode ser “vencível’ na medida em que sua aplicação ao caso seja só aparente, pois há
outra que de forma mais razoável deve prevalecer a partir de um critério de bom senso.62
No entendimento de Maccormick isso significa que quando se está diante da defeasibitity
implícita não é a lei, e nem mesmo um possível precedente, que está sendo excepcionado
em alusão aos respectivos direitos. “O que está sendo excepcionado (defeated) à luz do prin-
cípio é um pleito baseado na formulação ou interpretação particular da regra.”63
João Josué W. de Mendonça, todavia, discorda desta proposição. Segundo o au-
tor, há casos de normas “invencíveis”, quando a própria Constituição impõe tal caráter.
Exemplo do caso seria o do artigo 227, caput, da Constituição Federal, que assevera ser
“dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer...”, etc. Aparentemente, a ideia do autor decorre diretamente da expressão “absolu-
ta prioridade” (infelizmente, um raciocínio por demais simplificador); ou seja, segundo
sua percepção, estaria dada a supremacia dos direitos da criança, jovem e adolescente
e ponto final – e aqui não haveria que se falar em possibilidade de derrota.64
Entretanto, o argumento não convence. Primeiramente, já se reconheceu (como
antes asseverado) que são possíveis regras inderrotáveis em sua aplicação. Quanto a
isso, não há divergência. Ocorre que, do ponto de vista hermenêutico, a expressão “ab-
soluta prioridade” não consegue expressar qualquer norma em concreto. O curioso é
que em relação ao específico exemplo do autor já há decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral derrotando o artigo 227 com fundamento na discricionariedade administrativa
(e, ainda que no mérito possa ser uma decisão equivocada, ao menos demonstra clara-
mente a possibilidade hermenêutica de relativização).65 Em segundo lugar, o autor des-
considera as diferentes dimensões (subjetiva e objetiva) dos direitos fundamentais.66
Em terceiro lugar, equivoca-se ao achar que a decisão a respeito da concretização de di-
reitos implica a “supremacia” do “direito contido no texto”. Na realidade, o que importa

62 RODRÍGUEZ, Jorge L. Lógica de los sistemas jurídicos. Op. cit., p. 383.


63 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Op. cit., p. 327.
64 MENDONÇA, João Josué Walmor de. Fundamentos da supremacia do interesse público. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2012, p. 194.
65 A ementa da decisão do TJPR é esta: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRECEITOS COMINATÓRIOS. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INSTALAÇÃO
DE ABRIGO EELABORAÇÃO DE PROGRAMAS DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AOS ADOLESCENTES EM REGIME DE ABRIGO.IMPROCE-
DÊNCIA. DECISÃO CONFIRMADA. 1. Em razão do princípio da discricionariedade, que rege a atividade do Executivo, este “goza
de total liberdade para eleger as obras prioritárias a serem construídas”. 2. Assim, não podendo a Administração Pública destinar
imóvel, para instalação de abrigo de menores, dotando-o de recursos materiais e humanos, sem prejuízo das demais atividades
municipais, improcede a ação proposta, destinada a obrigar o Município à efetivação daquela obra (BRASIL. Tribunal de Justi-
çado Estado do Paraná. Recurso de Apelação de Menores nº 105-9. Acórdão nº 7910. Relator Des. Accácio Cambi. Conselho da
Magistratura. Julgado em 09.02.1998. Disponível em: <http:// www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_14_4_1_1.php>.
A decisão do STF pode ser visualizada a partir da seguinte referência: A BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
nº 208.893/PR. Relator Min. Franciulli Netto. Segunda Turma. Julgado em 19.12.2003. DJ 22.03.2004. Acesso em 10 out. 2013.
66 Sobre o assunto, remete-se à leitura do excelente texto de Daniel Wunder Hachem: HACHEM, Daniel Wunder. A discricio-
nariedade administrativa entre as dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais sociais. Direitos Fundamentais &
Justiça. Belo Horizonte, ano 10, n. 35, p. 313-343, jul./dez. 2016.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

são as “pretensão jurídicas jusfundamentais” decorrentes do direito e não o direito em


si, para a análise da derrotabilidade no caso concreto.67 Desse modo, não existem nor-
mas absolutas em tese no sentido que são hierarquicamente superiores às demais; em
que pese poderão existir em concreto regras inderrotáveis pela sua própria natureza.
O princípio da supremacia do interesse público, por ser princípio, estipula um
condicionante a priori estabelecido, mas que não traduz como, aliás, ocorre com to-
dos os demais princípios, um caráter invencível. Dependendo do critério de preferência
adotado pelo sistema, é possível imaginar a prevalência de um interesse privado sobre
o público. Não obstante esta proposição exigir um pressuposto mínimo excepcional,
que é justamente a correspondência do interesse privado a um direito do particular
(que muitas vezes pode ser ligado a outro princípio focado no interesse privado). Mas
João Josué W. De Mendonça novamente não concorda. Para o autor, no caso em que há
um conflito entre o interesse público e interesse privado e teria prevalecido o privado,
“não é que foi vencido, mas que o interesse público no caso alterou-se e, alterando, não
deixou de ser supremo (...)”. Ou seja, nesta acepção qualquer decisão válida do adminis-
trador público, seria de interesse público ao final do processo hermenêutico.68
Novamente equivoca-se o autor. Por certo que, de um ponto de vista genérico,
claro, toda decisão de autoridade pública presume-se válida e consagradora do inte-
resse público, mesmo quando garante o interesse privado. Nesta acepção, todavia, o
princípio seria realmente irrelevante, pois só serviria para opor-se à atuações inválidas
(ou seja, concretizadas em atos administrativos em desvio de finalidade). Ocorre que
defender, garantir e concretizar interesses privados, pode ser de interesse público. En-
tretanto, é possível casos em que mesmo havendo um interesse público em jogo, ele
sucumba frente a um interesse privado em concreto que esteja protegido por um direi-
to. É de interesse da coletividade que interesses privados sejam garantidos, porém des-
ta regra geral mesma decorre o fato de que é possível, então, que a coletividade tenha
seus interesses bloqueados por interesses individuais. O processo formal de garantia
deste direito privado será sempre de interesse público, mas no mérito da questão não
há um transfiguração de interesse privado em interesse público sempre que a autori-
dade dá uma resposta ao conflito. Por isso é tão importante a distinção entre direitos
e interesses.69

67 Novamente, para espancar a crítica do autor, basta uma leitura atenta à obra de Daniel Wunder Hachem, que de forma
impecável esclarece a distinção entre “direito fundamental como um todo” e “pretensões jurídicas jusfundamentais”. Hachem
sustenta com razão “que, em cada direito fundamental, algumas das pretensões dele decorrentes revelam-se como posições
subjetivas exigíveis individualmente, ao passo que outras encontram-se associadas à dimensão objetiva do direito, possuindo
titularidade transindividual. Diante disso, todo direito fundamental, quando considerado em sua integralidade, exibirá tanto
uma faceta individual quanto uma feição transindividual, a depender da pretensão em análise.” Cf.: HACHEM, Daniel Wunder. A
dupla titularidade (individual e transindividual) dos direitos fundamentais e econômicos, sociais, culturais e ambientais. Revista
de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 14, n. 14, Curitiba, p. 618-688, jul./dez. 2013.
68 MENDONÇA, João Josué Walmor de. Fundamentos da supremacia do interesse público. Op. cit., p.192.
69 A questão da distinção entre direitos e interesses pode ser aprofundada em: GABARDO, Emerson. A relação entre interesse pú-
blico e direitos fundamentais. Revista Argentina del Regimen de la Administración Pública. Buenos Aires. n. 394, 2011, p. 29-39.

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Emerson Gabardo

Por outro lado, o resultado hermenêutico de uma situação como esta depende
da concepção jurídica que irá incidir no caso segundo o intérprete que analisará o plei-
to, tanto em nível administrativo quanto judicial. O fato é que “qualquer coisa pleitea-
da pode também ser refutada, mesmo que a refutação não mereça ser bem-sucedida,
e possa, de fato, falhar”. Afinal, “a decisão mais cuidadosamente construída e a mais
elegante justificação” podem ser simplesmente ineptas em razão do que exigirão uma
reformulação da tese original ou “uma nova e talvez radical exceção a ela”. Em nenhum
destes casos há motivo razoável para se supor que está negada a regra ou pressuposto
geral (universal). Como conclui Maccormick “universais excepcionáveis são, contudo,
ainda universais”.70
Considerando os princípios como normas de qualidade distinta das regras, não
é possível estabelecer relações absolutas de precedência.71 Na interação dos princípios
as alterações no entendimento do conteúdo de um deles podem produzir reflexos na
compreensão de algum ou alguns dos outros.72 Destaca Larenz que “o jogo concertado
dos princípios significa que, no conjunto de uma regulação, não só se complementam,
mas também se restringem reciprocamente.”73 O reconhecimento da derrotabilidade
produz a constatação de que as normas jurídicas estão sujeitas a “exceções implícitas”
que não podem ser identificadas antecipadamente, mesmo genericamente.74 O que
não significa que também não possam existir exceções expressas ao princípio e nem
que inexistam conflitos reais exteriores entre os princípios, em que um prevaleça em
detrimento do outro. Este raciocínio possibilita que sejam colocados os fundamentos
nos seus corretos eixos.
Quando Paulo Schier menciona exemplos constitucionais de supremacia do
interesse público sobre o privado,75 como o do artigo 5º, inciso XXV (requisição admi-
nistrativa),76 não ocorre um caso denotativo do princípio da supremacia do interesse
público sobre um mero “interesse privado”. Trata-se de exemplo do estabelecimento
formal de uma exceção constitucional que permite que o interesse público se sobrepo-
nha a “direito individual”. A exemplificação do autor se reporta à exceção, não à regra.

70 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Op. cit., p. 328.


71 Neste sentido, negando a hierarquia normativa entre princípios, também é a posição de Adriana Schier. Cf.: SCHIER, Adriana
da Costa Ricardo. O princípio da supremacia do Interesse público sobre o privado e o direito de greve de servidores públicos. In:
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coords.). Direito Administrativo e Interesse Público. Belo Horizonte:
Fórum, 2010, p. 389.
72 Raciocínio este há muito reconhecido por BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. Op. cit., p. 149.
73LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 2 ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989, p. 581.
74 BAYÓN, Juan Carlos. Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? Op. cit., p. 295.
75 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos
fundamentais. Op. cit., p. 218.
76 Artigo 5°, XXV da CF: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular,
assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”

112 Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017.


O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

Deve-se notar que é uma pressuposição faticamente exagerada imaginar que o inte-
resse privado corresponderá necessariamente à inação do Estado no caso de iminente
perigo público (para se referir ao exemplo do autor: o instituto da requisição).
É perfeitamente possível que seja do interesse do particular o controle deste pe-
rigo e a respectiva intervenção do Poder Público. Entretanto, se é do interesse privado ou
não, isso é irrelevante, pois o fato é que o “direito do particular” estará obrigatoriamente
flexibilizado. E é totalmente diferente relativizar direitos e interesses. O ordenamento e o
agente público não têm como saber, a priori, qual será o interesse privado do proprietá-
rio. Mas o status de proprietário ou possuidor e a existência do seu direito à propriedade
pré-existem e serão, indiscutivelmente, flexibilizados no caso de uma requisição, ainda
que, por hipótese, o proprietário ou possuidor tenha todo o interesse em ser requisitado
(por exemplo, porque no caso concreto sua perda poderia resultar num futuro direito de
reparação – o que poderia lhe interessar mais do que a propriedade então requisitada).
Assim é que o princípio da supremacia do interesse público precisa ser entendi-
do como o resultado de sua interação com outros princípios e outras regras, sem que
com isso seja esquecida a relação de prioridade típica do ponto de partida da decisão.
Torna-se despicienda, portanto, a ressalva de que o interesse público, para que se colo-
que como superior ao privado, precisa de uma norma constitucional ou infraconstitu-
cional que assim autorize.77 A colocação é redundante, pois em todo e qualquer caso
que o Estado atue faz-se necessária uma disposição de caráter prévio e positivo no or-
denamento, conforme a clássica máxima de que ao particular é dado fazer tudo aquilo
que a lei não proibir e ao Estado é dado fazer apenas o que a lei prever (ressalvando-se,
é claro, que atualmente está muito difícil saber exatamente o que significa “lei”, pois a
ideia de vinculação genérica ao “Direito”, tornou este tema muito controverso).78
O interesse público dotado de supremacia, por força de seu regime peculiar, in-
depende da titularização de qualquer direito subjetivo a ele vinculado para prevalecer.
A grande questão é que a supremacia do interesse público fundamenta-se diretamente
no Direito objetivo. Quando o interesse público manifesta-se fora do regime jurídico de
Direito público, então ele está em situação de equivalência ao particular. Neste caso,
o ambiente é o regime jurídico de Direito privado e o interesse público para prevale-
cer dependerá da existência de um específico direito subjetivo a ele correspondente.
Direito subjetivo este que será considerado junto ao Direito objetivo em igualdade de
condições com os direitos subjetivos do particular a partir de um sistema, aí sim, de
ponderação objetiva (ou seja, uma ponderação que está adstrita ao sistema jurídico).

77 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos
fundamentais. Op. cit., p. 217-245.
78 MOTTA, Fabrício. O paradigma da legalidade e o Direito administrativo. In: PIETRO, Maria Sylvia Zanella di; RIBEIRO, Carlos
Vinícius Alves (Coords.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito administrativo. São Paulo: Atlas,
2010, p. 197 e ss.

Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. 113


Emerson Gabardo

Autores como Patrícia Baptista, ao defenderem a inexistência de um princípio


de supremacia (ainda que sob os auspícios da proposição de um dever inerente ao
princípio da proporcionalidade que corresponderia à “máxima realização dos interes-
ses envolvidos como fundamento e como fim da atividade administrativa”) acabam ne-
gando a ideia central do Direito administrativo, que é ser um regime de prerrogativas
e sujeições especiais;79 ou seja, conforme bem coloca o clássico Jean Rivero, não é por
mera liberalidade do poder que a relação administrativa é especial e derrogatória do
Direito comum: “à diferença dos fins corresponde uma diferença dos meios”.80 Por outro
lado, como bem destaca Gustavo Assed Ferreira: “o reconhecimento de privilégios para
a Administração Pública na sua atuação encontra limites insuperáveis na legalidade,
bem como faz da aplicação do principio da supremacia do interesse público não só um
poder, mas também um dever do Estado”.81
Assim como Patrícia Baptista, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm afirmam
textualmente que o princípio da supremacia não é compatível com o da proporcio-
nalidade.82 Advertem, então, que deve ser descartada qualquer visão do princípio da
supremacia do interesse público que “desobrigue o Estado de agir moderadamente, e
de observar o princípio da proporcionalidade”.83 A frase citada está tão correta quanto
é um absoluto senso comum. Poderia, inclusive, ser continuada em termos mais espe-
cíficos: “... e também deve ser descartada qualquer visão do princípio da supremacia
que possibilite o Estado torturar, ameaçar e constranger os indivíduos”. A grande difi-
culdade será encontrar quem, atualmente, defenda o contrário (mesmo dentre aqueles
menos afetos ao regime democrático).
Uma visão do princípio da supremacia que possibilitasse ao Estado agir de for-
ma desproporcional só é válida num regime ditatorial, obviamente. Como há algum
tempo foi estabelecido um regime democrático no Brasil, tais afirmações acabam sen-
do, em larga medida, meramente retóricas ou anacrônicas. Isso não significa que o Es-
tado deixe de atuar, a todo instante, de forma desproporcional. Assim como o Estado
brasileiro infelizmente continua a torturar, a ameaçar e a constranger indivíduos por
intermédio de agentes que corrompem de forma inaceitável o exercício da função pú-
blica. Mas caberiam as seguintes perguntas: estas ações são atribuíveis ao princípio?
São por ele justificáveis? Será que a atuação arbitrária da Administração Pública pode

79 BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Op. cit., p. 204.


80 RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 15.
81FERREIRA, Gustavo Assed. A legitimidade do Estado e a supremacia do Interesse público sobre o Interesse particular. In:
MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 445.
82 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional.
Op. cit.; BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade. Op. cit., p. 99 e 138,
respectivamente.
83 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. Op.
cit., p. 111.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

ser evitada ao ser extirpado o princípio da supremacia do regime jurídico administrati-


vo? Certamente que não.
Muitas críticas ao interesse público decorrem de um erro a respeito do seu en-
tendimento. Um dos exemplos oferecidos por Sarmento dos problemas gerados pela
supremacia do interesse público é tão paradoxal quanto equivocado. Afirma o autor
que pode perfeitamente o Estado colocar um quebra-molas numa rodovia com o obje-
tivo de reduzir a velocidade dos veículos e prevenir atropelamentos (situação em que
o interesse privado do motorista, naturalmente, não pode prevalecer ao interesse pú-
blico, pois não existe qualquer espécie de direito que lhe proteja); no entanto, caso o
Estado colocasse uma quantidade exagerada de quebra-molas, para além do necessá-
rio e prejudicando o trânsito, então o interesse público não deveria prevalecer por estar
afrontando a proporcionalidade (esta é a conclusão do autor).84
A pergunta que fica é: “onde está o interesse público de se colocar uma quantidade
exagerada de quebra-molas a ponto de prejudicar o trânsito?” Será que realmente o caso
fornece um exemplo de aplicação da proporcionalidade? Parece que não, pois o abuso
de poder se dá tanto por desvio de finalidade, quanto por excesso, segundo a clássica,
tradicional e corriqueira doutrina do Direito administrativo. E não há interesse público
em caso de abuso, mas sim uma patologia passível de nulificação.85 Não há novidade
alguma neste raciocínio em termos da teoria do Direito constitucional ou administra-
tivo. Héctor Jorge Escola, por exemplo, tratou especificamente do assunto quando im-
plicou a própria existência do interesse público aos deveres de razoabilidade, boa-fé
e proibição do excesso.86 Mas as teorias inerentes ao controle do excesso são muito
mais antigas, datando do final do século XIX e início do XX, na França, na Itália e na
Alemanha.87 Do ponto de vista interno ao assunto, referir-se à necessidade de propor-
cionalidade acaba sendo no máximo uma “nova retórica”, sem qualquer significativa
incrementação em termos de teoria jurídica.
O simples fato de o princípio da supremacia ser usado como argumento (ou áli-
bi) de certos atos arbitrários não significa de modo algum a deturpação de sua essência
ou sua força ética e normativa. O problema não é do princípio, mas de sua aplicação

84 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. Op.
cit., p. 110.
85 Conforme destaca Manoel de Oliveira Franco Sobrinho: “No excesso, respeitada a finalidade, o querer administrativo vai além

do que o previsto, resultando em autoritarismo ou arbítrio na atuação”. Cf.: FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Atos admi-
nistrativos. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 211.
86 Em resumo assim aduziu o autor: “la adecuada aplicación de la teoría del interés público sirve para garantizar la corrección
integral de los actos de la administración, en una esfera tan proclive a los excesos, como es la que se refiere al ejercicio del poder dis-
crecional, poder que debe ser reconocido como necesario y conveniente, cuando concurre a posibilitar tales fines de interese público,
y que debe ser invalidado cuando, so color de tal discrecionalidad, se dirige a pretender finalidades que no son de interese público, o
que no guardan una razonable relación con este.” Cf.: ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho
administrativo. Op. cit., p. 62.
87 Um verticalizado exame do assunto (um dos mais precoces do Direito administrativo típico do século XX), com indicação
de farta doutrina, pode ser encontrado no Curso de Zanobini. Cf.: ZANOBINI, Guido. Corso di diritto amministrativo. Milano:
Giufrè, v. 1, 1936.

Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. 115


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prática.88 Se os operadores do Direito fossem romper com cada princípio, regra ou di-
reito mal utilizado, ou cujo sentido foi desviado no Brasil, muito rapidamente decorreria
uma anomia jurídica. A grande questão que se coloca na práxis jurídico-política con-
temporânea é saber o motivo pelo qual, apesar da realidade acima indicada, há pou-
ca preocupação com os demais conceitos e princípios que também possibilitam a sua
má utilização pelos agentes públicos. Não é a mesma a preocupação doutrinária com
o princípio da publicidade, por exemplo; é como se ele fosse muito menos “maléfico”
que o da supremacia do interesse público. Parte considerável da doutrina jurídica, da
imprensa, das instituições empresariais e da comunidade em geral tem fortes receios
quanto ao interesse público, mas é bastante condescendente com outros princípios e
conceitos (o que é correto, pois a culpa não é dos conceitos nem dos princípios, mas
dos atos indevidos neles alegadamente baseados).
Mas resta a pergunta: por que no caso do interesse público não há esta con-
descendência? A resposta não é simples, embora evidencie a própria história cultural
nacional inserida em um peculiar momento. Ou seja, a confusão entre a esfera do ser
e a do dever ser é uma decorrência de três fatores: 1. a existência de uma tradição au-
toritária e personalista no país; 2. a recorrência de casos de atuação dos agentes públi-
cos de forma ineficiente ou imbuídos de má-fé; 3. a presença contemporânea de uma
mentalidade pós-moderna que exalta as vantagens do liberalismo e da valorização dos
interesses particulares (em geral hedonistas) do indivíduo.

4. A contraposição entre uma visão subsidiária (pautada


na autonomia privada) e uma visão social (pautada no
interesse público) do Direito administrativo brasileiro
É com base na necessidade de garantir autonomia aos serem humanos e, por-
tanto, proteger a capacidade individual de indicação e de consideração dos interesses
privados a ela inerentes que se desenvolveu uma posição subsidiária da coletividade
na definição do bem público. A origem desta ideia remonta à antiguidade quando, pa-
radoxalmente, é aplicada apenas na relação de “Estados” em face de outros “Estados”,
pois a autonomia pessoal não existe neste período; é apenas uma “metáfora política”.
Neste contexto, trata-se de uma noção que acaba por ser um instrumento político de
integração. A própria palavra “autonomia” significa uma “liberdade interdependente”,
distinguindo-se, portanto, da “eleutheria”, que denota uma liberdade na total indepen-
dência.89 Dessa forma, vê-se que a autonomia não significa soberania, mas a garantia

88Como bem salienta a professora Alice Gonzalez Borges. Cf.: BORGES, Alice Maria Gonzalez. Supremacia do interesse público:
desconstrução ou reconstrução. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte: Fórum, n° 01, abr./jun., 2003, p. 57.
89AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia: uma aproximação na perspectiva da filosofia social e política. Revista da Universidade
dos Açores: Ponta Delgada, 1995, p.126.

116 Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017.


O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

de respeito ao interesse próprio no âmbito da comunidade maior, o que é conseguido


pela participação, em igualdade, nos processos de tomada de decisão.90 Ao contrário
do viés atual, a noção também se refere a uma forma especial de “integração do homem
na sociedade”. A autonomia de base subsidiária, ou porque não dizer a subsidiariedade
de base autonômica, pode retratar uma garantia de autocontrole da vida econômica e
política, porém sempre dentro do contexto de uma entidade superior.
Entretanto, atualmente, a noção de subsidiariedade como condicionante das
escolhas públicas possui inspiração diferente (influenciada tanto por correntes jusnatu-
ralistas religiosas quanto pelo liberalismo pós-absolutista). Particularmente importante
no estudo desta questão é a doutrina de São Tomas de Aquino quando sustenta que
autonomia é um bem que só pode receber a intervenção do poder em caso de neces-
sidade e, por conseqüência, deve ser adotada uma postura restritiva quanto ao Estado.
Na realidade, a teoria do pensador, como é típico da doutrina social da Igreja, denota
vários pontos paradoxais, quando não contraditórios, por exemplo, ao afirmar que o
bem das partes necessariamente deve se subordinar ao bem do todo. Se por um lado
deveria caber ao governo a promoção da perfeição da sociedade, por outro, a ele não
caberia salvar a sociedade de toda corrupção e maldade que são típicas do próprio
exercício da liberdade. Afinal, a providência não impediu o ser humano de ser mal; op-
tou por garantir-lhe o livre arbítrio.91
O conceito atual de autonomia é forjado a partir da presença de algumas ca-
racterísticas básicas, tais como: autogoverno, auto-direção, construção da identidade
própria, livre capacidade de formulação e execução dos próprios projetos e proteção
da individualidade.92 Todavia, a autonomia, na sua base, é uma noção vazia. Uma pes-
soa que se pretendesse autônoma não seria realmente uma pessoa, mas um mero in-
divíduo.93 Desse modo, o exercício da autonomia depende da realização do interesse
público a partir de uma base comunitária. E como aponta Héctor Jorge Escola, esta
base comunitária não retrata apenas a soma das posições individuais, ou a posição de
uma maioria interessada. O interesse público afirma de forma idêntica o respeito às mi-
norias, a partir de um sentimento de solidariedade e integração social. Por este motivo
é que o interesse em um regime autoritário jamais será realmente público.94
A autonomia pressupõe a integração a uma comunidade, porém resguarda-se
dela, em um processo centrípeto de proteção. E é neste ponto que pode ser tomada

90 Sobre a noção de soberania na perspectiva do Estado Constitucional: CORVALÁN, Juan Gustavo. Soberanía y Estado Cons-
titucional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, n. 62, p. 45-71, out./dez. 2015.
91MARTINS, Margarida Salema d´Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Coimbra: Coimbra,
2003, p. 44-46.
92 AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia. Op. cit., p. 151.
93 AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia. Op. cit., p. 122.
94 ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Op. cit., p. 240-241.

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como o fundamento filosófico para o critério de subsidiariedade; um critério antité-


tico ao que se pode chamar de Direito Administrativo típico do Estado social, pois se
presta justamente ao atendimento de princípios do Direito privado ou, ainda, de um
modelo de Estado que seja fundamentalmente liberal e que, portanto, não prescreve a
intervenção estatal na sociedade como meio de promoção de transformações sociais a
partir de uma agenda estabelecida juridicamente.
De modo inverso, a idéia de supremacia do interesse público encontra-se em
perfeita consonância com o modelo social de Estado; mesmo considerando a sua flui-
dez no contexto pós-moderno, como denuncia Luis Manuel Fonseca Pires.95 Isso por-
que, para além de não contrapor a autonomia privada (pois se trata de um Estado de-
mocrático e capitalista), não restringe sua atuação como se fosse uma entidade mera-
mente suplementar. O Estado social é tão protagonista da história quanto a sociedade
civil. Por este motivo, concorda-se com Marçal Justen Filho, quando o autor propõe que
“o conceito de interesse público não se constrói a partir da impossibilidade técnica de
os particulares satisfazerem determinados interesses individuais, mas pela afirmação
da impossibilidade ética de deixar de atendê-los”.96 Tal conclusão contraria totalmente
qualquer possibilidade de casamento entre prevalência do interesse público e a sub-
sidiariedade de base autonômica, como já esclareceu também André Luiz Freire.97 Há
que se adotar um ou outro para o escopo de justificar os fins do Estado social. Nestes
termos, adotar ou não a subsidiariedade não retrata apenas uma posição ideológica,
mas sim uma conclusão jurídico-dogmática. A posição ideológica é anterior: desejar ou
não um Estado social.98
A questão é que, no Brasil, a escolha já foi feita pelo constituinte e está consa-
grada na Constituição Federal de 1988. É possível discordar-se de tal decisão (afinal, há
aqueles que defendem valores opostos), mas não parece razoável negar a existência
de tal regime jurídico constitucional. A partir desta conclusão, Daniel Wunder Hachem
elabora uma classificação entre diferentes modelos substanciais de Direito Administra-
tivo, ressaltando a sua adesão à corrente do que passa a denominar de “Direito Admi-
nistrativo Social”99:

95PIRES, Luis Manuel Fonseca. A pós-modernidade e o interesse público líquido. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 52, p. 133-144, abr./jun. 2013.
96 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Op. cit., p. 124.
97 FREIRE, André Luiz. A crise financeira e o papel do estado: uma análise jurídica a partir do princípio da supremacia do inte-
resse público sobre o privado e do serviço público. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte,
ano 10, n. 39, p. 147-162, jan./mar. 2010.
98 MORAIS, José Luis Bolzan de; BRUM, Guilherme Valle. Estado Social, legitimidade democrática e o controle de políticas pú-
blicas pelo Supremo Tribunal Federal. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 63,
p. 107-136, jan./mar. 2016.
99 Defendendo também um Direito Administrativo com essas características: BALBÍN, Carlos F. Un Derecho Administrativo para
la inclusión social. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 33-59, out./dez.
2014; RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. El Derecho Administrativo ante la crisis (El Derecho Administrativo Social). A&C –
Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, n. 60, p. 13-37, abr./jun. 2015; RODRÍGUEZ-ARANA

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

“Essa corrente — aqui batizada de Direito Administrativo social — preocupa-se justa-


mente em traçar os contornos de uma Administração Pública inclusiva, afastando-se do
Direito Administrativo legalista anterior à Constituição de 1988, por priorizar a concreti-
zação dos valores constitucionais sem deixar de respeitar a lei formal (primordialmente
quanto às atividades administrativas restritivas de direitos, que invariavelmente devem
obedecer ao princípio da reserva legal). Aparta-se também do Direito Administrativo in-
dividualista, por preocupar-se não apenas com a realização dos direitos fundamentais
sob o prisma individual, nos moldes liberais atrelados à concepção de direito subjetivo,
mas também com a sua efetivação por meio de ações universalizadas da Administração,
que alcancem a todos os cidadãos necessitados, e não apenas aos que detêm condições
privilegiadas de recorrer ao Judiciário. De outra parte, ela colide com o pensamento vin-
culado ao Direito Administrativo neoliberal, que propõe a diminuição das incumbências
administrativas ligadas à prestação direta de utilidades materiais imprescindíveis à sa-
tisfação das necessidades da cidadania, conferindo ao Estado um papel subsidiário.” 100

Entretanto, esta análise apurada nem sempre é feita pelos pensadores do assun-
to, que têm primado por uma visão “romântica” deste pseudo-princípio: a subsidiarie-
dade.101 E, em assim sendo, acabam filiando-se a um Direito Administrativo Individua-
lista ou a um Neoliberal, nem sempre de forma consciente – embora, em alguns casos
seja uma assumida opção ideológica com pretensões normativas.
Em um ambiente pós-moderno tornou-se esteticamente mais interessante de-
fender pressupostos subsidiários (em valorização ao aspecto individual da vida) do que
os relativos ao interesse público (cuja valorização é do aspecto coletivo). Notadamente
no Brasil da segunda metade do século XXI, a desconfiança da possibilidade de atua-
ção dos poderes públicos em benefício da coletividade faz do Estado um verdadeiro
“inimigo da nação” (a questão da corrupção no espaço público está no centro deste
problema).
Os argumentos contra a supremacia do interesse público desenvolvidos neste
locus pós-moderno ou se equivocam em termos lógicos (ao confundir direitos e inte-
resses) ou “argumentam pleonasticamente” (ao propor que o interesse público deve
respeitar os direitos fundamentais; que não pode afrontar a proporcionalidade; e que
não pode sobrepor-se às demais normas constitucionais). Mas alguns autores efe-
tivamente vão além: discordam da própria idéia de que o interesse público deva ser

MUÑOZ, Jaime. La participación en el Estado social y democrático de Derecho. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 48, p. 13-40, abr./jun. 2012.
100 HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos sobre algumas
tendências do Direito Público brasileiro. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n.
53, p. 133-168, jul./set. 2013, p. 149.
101Mais detalhes sobre a oposição à existência da subsidiariedade como princípio podem ser encontrados em: GABARDO,
Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade. Op. cit.

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valorizado. A tendência é de que a autonomia justifique o interesse privado para o fim


de poder contrapor o interesse público. É o caso de Humberto Ávila, quando assevera
que se houvesse alguma regra de precedência (o que afirma que não há), seria em favor
dos interesses privados, pois “faltam fundamentos jurídico-políticos de validade” para
o princípio da supremacia do interesse público. Para o autor, “o asseguramento da po-
sição dos indivíduos e de seus interesses privados é estabelecido frente ao concorrente
interesse público”. O difícil é acreditar que esta conclusão do autor decorre do seu reco-
nhecimento da premissa de que “a Constituição brasileira, muito mais do que qualquer
outra, é uma Constituição cidadã”.102
A pergunta que fica é: como seria possível extrair uma noção válida de cidadania a
partir do interesse privado predominando sobre o interesse público? De há muito a socio-
logia política reconhece que “o indivíduo é o pior inimigo do cidadão”. O cidadão adota
como postura ética buscar seu bem-estar mediante o bem-estar da cidade; o indivíduo
é cético em relação à causa comum. Para o indivíduo não há sentido em “interesses
comuns” senão o de permitir que a autonomia privada satisfaça suas próprias neces-
sidades, em razão do que não lhe parece justo imaginar qualquer motivo para que o
interesse público prevaleça sobre o privado. Reacomodar o sujeito autônomo no corpo
republicano dos cidadãos não é tarefa fácil.103
Na realidade, a tese apresentada está muito mais próxima da perspectiva de um
Estado subsidiário do que de um Estado social. Daniel Sarmento reconhece esta ten-
dência, encampando expressamente a tese da “primazia dos indivíduos sobre a socie-
dade e o Estado” de autores que intitula como “libertários” (Friedrich von Hayek, Milton
e Rose Friedman e Robert Nozick).104 Trata-se justamente da tese liberal que demoniza
o Estado, estabelece uma separação rígida entre o sujeito e a sociedade em que está in-
serido e acaba por exaltar os valores econômicos da vida. Contudo, não é este modelo o
previsto pela Constituição em vigor, que garante expressamente uma República social,
ainda que no plano das mentalidades seja clara a tendência de subordinar a dimensão
pública à primazia das necessidades e expectativas individuais, sendo os valores decor-
rentes destes interesses que passam a legitimar o sistema.105

102 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 187.
103 BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Op. cit., p. 46.
104Embora reconheça que tais autores vão muito além da defesa de um Estado mínimo, inclusive preterindo o reconhecimento
efetivo dos direitos fundamentais (com o que o autor não concorda). Cf.: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses
privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. Op. cit., p. 69. A escolha do termo “libertários” também não
é uma peculiaridade do autor, mas de uso comum na doutrina. Cf.: GNASSOUNOU, Bruno. A partir de John Rawls, a querela
do utilitarismo e do antiutilitarismo. Liberais, libertários e comunitaristas americanos. In: CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SE-
NELLART, Michel (Orgs.). História argumentada da filosofia moral e política: a felicidade e o útil. Tradução de Alessandro Zir.
São Leopoldo: Editora Unissinos, 2004, p. 685.
105 ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; _____. (Orgs.). O Estado de Direito: história, teoria,
crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 5.

120 Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017.


O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

Esta forma de crença jurídico-política típica da mentalidade pós-moderna acaba


por propiciar exemplos práticos de desvalorização da coletividade. Alexandre Santos
Aragão expõe de forma coerente sua opção ideológica quando defende a refutação do
que entende ser um “argumento não-institucional” ou “subjetivista” na interpretação do
Direito. É ilustrativo que o autor elogie decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos
que rejeitou a recorrência à proteção da “saúde pública”, pois este seria um argumento
“não-institucional”.106 Verificando esta mesma decisão citada pelo autor, é possível ob-
servar que o fundamento prestigiado pelo intérprete (em detrimento da “subjetivista
saúde pública”) foi a “justiça das trocas comerciais”. Por certo o autor deve entender,
então, que a “justiça nas trocas comerciais” é um argumento válido e “institucional” ou
“não-subjetivista”, mas que a “saúde pública” não é.
Na realidade, o que o autor faz é estabelecer um juízo de valor; ou seja, aponta
para um critério de preferência – o que é perfeitamente legítimo (embora de discutível
constitucionalidade). O problema, então, decorre não de sua opção hermenêutica, mas
da pretensa neutralidade do argumento científico; neutralidade esta que é recorrente
quando se trata de fundamentar a subsidiariedade e que novamente é colocada em
xeque quando o autor, nas suas conclusões sobre o caso, afirma ainda preferir a “segu-
rança dos cidadãos e investidores” à “saúde pública” e outros “argumentos não-institu-
cionais”.107 Resta a dúvida sobre qual seria o critério para o entendimento sobre o que
seria institucional e o que não seria. Não há dúvida que no caso, o argumento prioritário
é de índole ideológica.
Veja-se que para esta perspectiva a defesa de valores coletivos tende a ser sem-
pre reservada ao espaço da subjetividade ou da irracionalidade, enquanto a defesa dos
valores individuais é elevada à condição de perfeita harmonia com a razão e com a
objetividade das instituições. Esta forma de ver o mundo não é nova e tende a emergir
sempre que o espaço político está fragilizado, seja pela força do poder econômico, seja
pela própria ineficiência ou ilegitimidade do poder público institucionalizado. Trata-
se de uma interpretação axiológica típica da teoria econômica dominante, que “utiliza
energicamente o pressuposto da procura vigorosa do interesse próprio”.108
Do ponto de vista jurídico não é essa a proposta axiológico-normativa da Cons-
tituição brasileira e que sustenta uma visão efetivamente pautada por uma cidadania
republicana. Não é nenhuma novidade que o mercado auto-regulado não apresenta
nem as condições de eficiência proclamadas pela economia clássica, muito menos as
de justiça. A conquista do interesse público requer a presença de medidas corretivas

106ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica do
Direito Público contemporâneo. Op. cit., p. 19.
107ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica do
Direito Público contemporâneo. Op. cit., p. 22.
108HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses: argumentos a favor do capitalismo antes do seu triunfo. Tradução de Luiz
Guilherme B. Chaves e Regina Bhering. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 13.

Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. 121


Emerson Gabardo

por meio de políticas públicas que têm absoluta correspondência com os direitos indi-
viduais (como é o caso da saúde pública).109
Alguns teóricos aparentemente recusam o fato de que o interesse público está
muito mais conectado aos direitos de todo tipo que o interesse privado, pois este últi-
mo é totalmente descompromissado. O interesse privado pode se referir a direitos, mas
esta possibilidade é extrínseca. Ao contrário, a proteção de direitos é interna à essência
do interesse público, sob pena de sua desnaturação. Para o interesse público o respeito
aos direitos é uma condição necessária; para o interesse privado é apenas uma conse-
qüência possível.
O princípio da supremacia do interesse público a partir de uma perspectiva
constitucionalizada deve possuir diferentes níveis de significação, dentre os quais ne-
cessita reconhecer que: 1. a atuação do Estado deve se ocupar não só do bem-estar dos
indivíduos atuais, mas também das gerações posteriores; 2. o interesse público tem
que relevar não somente interesses nacionais, mas também os que ultrapassam esta
esfera, considerando a humanidade como um todo.110 Ademais, “um dos fatores funda-
mentais favoráveis ao sucesso de uma democracia é um público imbuído de interesse
público”.111 Logo, não basta um reconhecimento eminentemente jurídico se não existe
um “lastro social” que dê respaldo à existência de um interesse público formalmente
estabelecido.
Como pondera C. W. Cassinelli, “a palavra público significa que o valor ético no
padrão do interesse público se aplica a todo membro da comunidade política: é um
valor que deve ser distinguido de algo vantajoso para uma pessoa e desvantajoso para
outra”.112 Este seria o que Marçal Justen Filho chama de caráter “transcendental” do in-
teresse público, vinculado que é à dignidade humana nos seus aspectos da integridade
e isonomia mediante uma construção que não é natural, mas sim histórica.113
Segundo Orlando Gomes as ações humanas são motivadas por necessidades
e objetivos. Interesses que quando universalizados muitas vezes transformam-se em
valores que necessitam ser reordenados numa comunidade em desenvolvimento. Não
se ignora que as mudanças de caráter institucional concorrem para a evolução do sis-
tema de valores. Por outro lado, deve-se reconhecer que “a aceitação de novos valores
influi na estrutura institucional”. Da análise desta relação simbiótica, torna-se muito
mais aceitável “a tese dos que defendem o primado das inovações institucionais”.114

109 MUSGRAVE, R. A. O interesse público: eficiência na criação e manutenção do bem-estar material. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.).
O interesse público. Op. cit., p. 115.
110 COLM, Gerhard. Interesse público: chave essencial da política pública. Op. cit., p. 124.
111 GRIFFITH, Ernest S. Os fundamentos éticos do interesse público. Op. cit., p. 31.
112 CASSINELLI, C. W. O interesse público na ética pública. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit., p. 56.
113 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Op. cit., p. 126.
114 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. Salvador: Universidade da Bahia, 1961, p. 33.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

Esta posição parte do pressuposto que os homens é que escolhem o seu caminho e ao
caminharem não podem estar sozinhos.
O equilíbrio entre o público e o privado, entre a sociedade e o Estado, e entre o
indivíduo e a coletividade está na colocação de diferentes pesos em todos os lados. Ao
tempo em que resta claro que o interesse público deve ser predominante ao privado,
também deve ser reconhecido que os direitos individuais, especialmente os fundamen-
tais, estabelecem uma barreira importante para a atuação do Poder Público; o que não
evita, por certo, a existência de casos concretos difíceis. Para estes cabe a ponderação
jurídica (objetiva e dentro do sistema), que consiste numa maneira perfeitamente com-
patível com o princípio da supremacia do interesse público, inibindo qualquer tentativa
de, pela negativa de sua incidência, ser preconizado o interesse privado.
Do resultado de um conflito entre o princípio da supremacia e outro princípio
protegido pelo Direito (como a própria autonomia privada – em casos resolvidos fora
do Direito público) pode ser que duas situações ocorram: 1) a supremacia prevaleça; e
2) a supremacia não prevaleça e neste caso a questão resolve-se com base na igualdade
de interesses, ou seja, são admissíveis duas sub-hipóteses: 2.a) a de que ocorra a preva-
lência do interesse público, no caso concreto (não por uma questão de princípio, mas
de resolução pragmática da controvérsia – a posteriori); 2.b) a de que ocorra a preva-
lência do interesse privado no caso concreto (também não porque se admita qualquer
precedência em abstrato da autonomia privada, mas porque seria adequada a adoção
desta precedência de forma tópica). A resolução do conflito de primeira ordem se re-
solve pela ponderação; no de segunda ordem, pela proporcionalidade. E é bom que se
reforce: nas duas análises, se está utilizando de critérios objetivos, como ressalta Daniel
Sarmento.
É preciso ainda ressalvar que somente se chegará a esta solução hermenêutica
em caso da inexistência de limites imanentes, pois há situações que serão resolvidas
pela própria essência do princípio, que já implica a permissão ou a proibição de algu-
mas condutas (e neste caso não haveria que se falar em conflito externo).115 O com-
plicado nestas situações é estabelecer exatamente qual o sentido prático dos casos
implicitamente resolvidos, principalmente em face do risco de ser efetuada uma inter-
pretação que não consiga diferenciar a moral subjetiva pessoal da moral objetiva, esta
sim, consagrada constitucionalmente.
Por exemplo, o jurista português José Carlos Vieira de Andrade, ao tratar das
“limitações imanentes implícitas” cita alguns exemplos de interesses que seriam ob-
viamente vedados. Interesses estes que nem mesmo entrariam em conflito com ou-
tro princípio ou direito subjetivo. Seriam eles: a) invocar a liberdade de expressão para
injuriar as pessoas; b) invocar a condição de preso político para membros de grupos
115 Sobre o assunto ver: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000,
p. 96 e 101.

Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. 123


Emerson Gabardo

terroristas; c) invocar a liberdade religiosa para efetuar sacrifícios humanos; d) invocar


o direito de educar os filhos para poder espancá-los; e finalmente: e) invocar o direito
de casamento para contrair matrimônio com pessoas do mesmo sexo.116 Pelo que se
vê, para o autor, o potencial lesivo do casamento entre pessoas do mesmo sexo asse-
melha-se ao reconhecimento de terroristas, à legitimação da injúria, à realização de
sacrifícios humanos e ao espancamento dos filhos.
Posição com a qual não se pode concordar. A situação do casamento diferen-
cia-se dos demais casos por uma razão ética e política. Ou ainda, a questão exigiria
uma análise externa, em que seria aplicada uma ponderação entre direitos subjetivos
e princípios constitucionais, como o da igualdade e o da dignidade (mesmo que fosse
para chegar à conclusão de que o direito deveria ser negado). Para não se alongar sobre
o assunto, remete-se às considerações juridicamente mais sensatas de Paulo Ferreira da
Cunha, quando analisa o assunto a partir da decisão do Tribunal de Relação de Lisboa
que resolveu a questão mediante a aplicação do princípio da razoabilidade.117
É interessante como a autonomia pode possuir sentidos distintos. As teses de de-
fesa da predominância da autonomia individual, fundadas em uma perspectiva em geral
jusnaturalista da vida, ao ignorar a base do princípio republicano, incorporam a tendência
de prestigiar os meios privados como garantia dos seus interesses. Todavia, esquecem-
se que “a liberdade pessoal só pode ser produto do trabalho coletivo”.118 E desta forma,
negando a atuação interventiva do Estado, muitas vezes propugnam por uma proteção
de sua autonomia e liberdade de exercício de direitos ainda que mediante a negação da
autonomia de outras pessoas. Neste contexto, são prestigiadas soluções valorizadoras de
um espírito privado egoístico em detrimento de um espírito público solidarístico. E tal
perspectiva é obviamente contra as dimensões típicas de um Estado social.119
Vários autores propõem que a subsidiariedade é uma idéia vinculada ao “mun-
do-de-vida social”, radicando-se “na referência a uma sociedade não construída pelo
Estado, mas que se constitui livremente por impulso natural do homem”.120 O passado

116 Foram citados apenas alguns dos exemplos do autor; ainda são mencionados outros, tais como invocar a liberdade de cir-
culação para andar pelado. Cf.: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
3. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 294.
117 No acórdão exarado no processo 6284/06, julgado em 15 de fevereiro de 2007, o Tribunal entendeu que embora não sendo
casamento, as uniões de pessoas do mesmo sexo também consistem em uma forma de união familiar. Cf.: CUNHA, Paulo Ferrei-
ra da. Fundamentos da república e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 58-60.
118 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 15.
119 É possível extrair da obra de Jaime Rodriguez-Arana Muñoz que as principais dimensões do Estado social seriam: 1. Tomar
a igualdade material como finalidade da intervenção pública, notadamente mediante a adoção de mecanismos de proteção
dos grupos vulneráveis; 2. Promover uma auto-responsabilização pelo atendimento das necessidades das pessoas que dele de-
pendem; 3. Garantir um governo democrático e participativo na tomada de decisões interventivas; 4. Atribuir à Administração
Pública o protagonismo na consecução dos direitos sociais; 5. Manter um compromisso com o bem estar do povo a partir da
noção de dignidade humana. Cf.: RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Dimensiones del Estado Social y derechos fundamentales
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rinc.v2i2.44510.
120 MARTINS, Margarida Salema d´Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Op. cit., p. 26.

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social

prova o contrário e no presente não parece que o homem tenha encontrado melhor
alternativa. Não é sem razão que salienta Luis Roberto Barroso: “O Estado ainda é o
protagonista da história da humanidade”.121

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