Revista de Investigações Constitucionais: Vol. 4 - N. 2 - Maio/Agosto 2017 - Issn 2359-5639 - Periodicidade Quadrimestral
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Investigações
Constitucionais
vol. 4 | n. 2 | maio/agosto 2017 | ISSN 2359-5639 | Periodicidade quadrimestral
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Licensed under Creative Commons Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v4i2.53437
Emerson Gabardo**
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil)
Universidade Federal do Paraná (Brasil)
e.gab@uol.com.br
Recebido/Received: 25.06.2017 / June 25th, 2017
Aprovado/Approved: 19.07.2017 / July 19th, 2017
Resumo Abstract
O artigo tem como objetivo analisar o princípio da The article aims to analyze the principle of supremacy of
supremacia do interesse público sobre o privado no public interest over the private in the context of administra-
contexto do Direito administrativo brasileiro. Utiliza tive law. It uses as a premise a contemporary vision, by mat-
como premissa uma visão contemporânea, cotejando a ching the traditional perspective with the criticism that has
perspectiva tradicional com as críticas que vem sendo been conferred on the idea of supremacy of the public inte-
atribuídas à ideia de supremacia do interesse público. rest. Its main focus is to demonstrate how should be done a
Tem como foco principal a demonstração de como deve correct application of the principle under a hermeneutical
ser realizada uma correta aplicação do princípio do pon- perspective. It makes an opposition to a liberal vision of the
to de vista hermenêutico. Finaliza contrapondo uma fundamentals of the administrative law. It concludes by un-
visão liberal dos fundamentos do Direito administrativo. derstanding that the public interest is at the core of a correct
Conclui pelo entendimento de que o interesse público conception of the welfare State, as well as its supremacy is
está no núcleo de uma correta concepção de Estado the essence of the “Brazilian social administrative law”. The-
social, bem como a sua supremacia está na essência da se are the reasons why the criticism of this principle, as well
corrente chamada “Direito Administrativo Social”; razões as the criticism of a subsidiary vision of administrative law,
Como citar esse artigo/How to cite this article: GABARDO, Emerson. O princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado como fundamento do Direito Administrativo Social. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol.
4, n. 2, p. 95-130, maio/ago. 2017. DOI: 10.5380/rinc.v4i2.53437.
* O presente texto tem como base em capítulo da obra “Interesse Público e Subsidiariedade”, com diversas adaptações e atuali-
zações. Cf.: GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a Sociedade Civil para além do bem e do
mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
** Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Professor Adjunto de Direito Admi-
nistrativo da Universidade Federal do Paraná (Curitiba-PR, Brasil). Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham Uni-
versity School of Law. Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Vice-presidente do Instituto Brasileiro
de Direito Administrativo. E-mail: e.gab@uol.com.br.
pelas quais tornam-se absolutamente equivocadas as become absolutely misguided, that is, based on private inte-
críticas desconstrutivas do princípio, bem como uma rest as a legal ground.
visão subsidiária do Direito administrativo, ou seja, pau-
tada no interesse privado como fundamento normativo.
Palavras-chave: interesse público; princípio da suprem- Keywords: public interest; principle of supremacy of public
acia do interesse público; Estado Social; Direito Adminis- interest; Welfare State; Administrative Law; constitutional
trativo; princípios constitucionais. principles.
Sumário
1. O princípio da supremacia do interesse público no contexto contemporâneo; 2. A supremacia do
interesse público sobre o privado como princípio fundamental do Direito administrativo; 3. A herme-
nêutica do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado 4. A contraposição entre uma
visão subsidiária (pautada na autonomia privada) e uma visão social (pautada no interesse público) do
Direito administrativo brasileiro; 5. Referências.
1 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 76 et seq.
2 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1958, t. 1, p 21.
3 ALESSI, Renato. Diritto Amministrativo. Milano: Giufrè, 1949 e ALESSI, Renato. Principi di Diritto amministrativo. Milano: Giu-
ffrè, 1966.
4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 33. ed., São Paulo: Malheiros, 2016, p. 53 e ss.
5 HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do Interesse público. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
6 OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo Brasileiro?
Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n° 220, abr./jun. 2000, p. 70.
7 DUGUIT, León. Manual de Derecho constitucional. Tradução de José G. Acuña. Granada: Comares, 2005; e HAURIOU, Maurice.
Princípios de Derecho Público y constitucional. Tradução de Carlos Ruiz de Castillho. Granada: Editorial Comares, 2003.
8 DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho (público y privado). Tradução de Adolfo G. Posada y Ramón Jaén. Buenos
Aires: Heliasta S. R. L., 2001.
9 Essa fonte constitucional dos fundamentos do Direito Administrativo é sublinhada, entre outros autores, por: CORREIA, José
Manuel Sérvulo. Os grandes traços do direito administrativo no século XXI. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitu-
cional, Belo Horizonte, ano 16, n. 63, p. 45-66, jan./mar. 2016.
10 WALINE, Michel. Traitè Élémentaire de droit administratif. 6. ed., Paris: Librerie Du Recueil Sirey, 1950, p. 271.
11 ALESSI, Renato. Principi di Diritto amministrativo. Op. cit.
12 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Elementos para um discurso de conceituação do direito administrativo. Campinas: Julex, 1988.
13 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1961, p. 169.
14 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 83.
15 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Op. cit., p. 170.
16 Sobre o princípio da moralidade administrativa, ver: BITTENCOURT, Marcus Vinícius Corrêa. Moralidade Administrativa: evo-
lução e conceito. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (Coord.). Direito Administrativo Contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum,
2004, p. 211 et seq.
17 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In: SARMENTO, Daniel
(Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 211.
18 GIANNINI, Massimo Severo. Istituzioni di Diritto amministrativo. 2. ed., Milano: Giuffrè, 2000. p. 24.
19PENNOCK, J. Roland. A unidade e a multiplicidade: uma observação sobre o conceito. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse
público. Tradução de Edilson Alkmin Cunha. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1996, p. 179.
20 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Revista Trimestral de
é um conceito que foi e continuará a ser utilizado pelo Direito administrativo de forma
ampla, ainda que diferente, em cada sistema jurídico concretamente considerado e em
cada sociedade na qual inserido.
A doutrina que trata dos conceitos jurídicos indeterminados é antiga. Na pri-
meira década do século XX autores como W. Jellinek tratavam do assunto.23 Conceitos
como “idoneidade”, “aptidão”, “ordem”, “segurança pública”, “valor histórico”, “moral pú-
blica”, sempre implicarão controvérsia, sem que isso implique a recusa de sua utilida-
de.24 Uma grande conquista da modernidade foi justamente o reconhecimento de que
a abstração de uma noção não é critério para o não estabelecimento de seu caráter
jurídico-normativo. Max Weber peculiarizou o sistema racional formal justamente pela
sua capacidade de distinguir o nível abstrato (empírico ou lógico) do nível subjetivo
(emocional, mítico, etc.).25
Portanto, esta controvérsia não é nova. Apesar de alguns autores demonstrarem
certa surpresa com a chamada “crise do conceito de interesse público”, chegando a afir-
mar que se trata de um fenômeno contemporâneo “típico da sociedade complexa”,26
por certo que mesmo em “sociedades simples” seria muito difícil estabelecer o sentido
de um interesse comum; ao menos em comunidades que pressuponham a adoção de
um direito racional e de um regime democrático, pois o conceito de interesse público
poderia ser claro e evidente apenas em sociedades teocráticas ou monolíticas, em que
há uma auto-evidência de valores.27 Do ponto de vista epistêmico, não resultam muito
distintos os debates sobre a crise do interesse público do século XXI em face daqueles
da década de 50 do século XX.28 As grandes distinções decorrem mais de uma perspec-
tiva fenomênica empírica que lógico-abstrata.
Em que pese esta conclusão, há certa tendência de recusa da existência da su-
premacia do interesse público como princípio constitucional do Estado contemporâ-
neo. Como afirma Bandeira de Mello, “acentua-se um falso antagonismo entre o inte-
resse das partes e o interesse do todo, propiciando-se a errônea suposição de que se
trata de um interesse a se stante, autônomo e desvinculado dos interesses de cada uma
mas, antes, um poder estritamente vinculado.” Cf.: SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito
administrativo. Coimbra: Almedina, 1994, p. 20.
23 SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito administrativo. Op. cit., p. 19.
24 Aliás, no Direito administrativo, a adoção destes conceitos de “interpretação difícil e aplicação ainda mais complexa” aparenta
ser mais abundante que em outras áreas. SOUSA, António Francisco. Conceitos jurídicos indeterminados no direito adminis-
trativo. Op. cit., p. 17.
25 WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. Tradução de José Medina Echavarría, Juan Roura
Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. 4 ed., México : Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 511.
26 ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica
do Direito Público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 6.
27 COLM, Gerhard. O interesse público: chave essencial da política pública. FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op.
cit., p. 126.
28 Sobre os debates da década de 1950 ver: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit.
das partes que compõe o todo”.29 Tendência esta recusada pelo autor, que procura de-
monstrar, detalhadamente, sua inconsistência do ponto de vista científico.
Sem deixar de considerar as adequadas locubrações de Bandeira de Mello aci-
ma apontadas (que se reportam à própria ontologia do princípio), não é possível con-
cordar com Paulo Schier quando afirmar que os “interesses públicos e privados não se
contradizem, não se negam, não se excluem”.30 Na prática, os indivíduos têm interesses;
e é muito comum que seus interesses se contraponham a interesses de outros indivídu-
os, assim como todos estes interesses de todos estes indivíduos muito comumente se
contrapõem ao interesse público.31 O único entendimento possível sobre esta relação
de perfeita harmonia de interesses defendida por autores como Paulo Schier ou Héctor
Jorge Escola seria restringi-lo à esfera do “dever ser”. Por outro lado, nesta hipótese, não
seria de grande utilidade a assertiva, pois a função do ordenamento positivo é justa-
mente a composição de interesses (isso por definição, desde o surgimento dos Estados
nacionais, da unificação do poder soberano e da proibição da autotutela privada, além
da submissão do soberano ao Direito).
Como não poderia deixar de ser, o direito positivo brasileiro não possui nenhu-
ma norma (regra ou princípio) que declare a impossibilidade jurídica da desarmonia
de interesses, ou mesmo que a proíba. E ainda que o fizesse, seria algo sem grande
repercussão fática. Aliás, mutatis mutandi, o plano jurídico atua justamente porque os
interesses privados e públicos em geral se contradizem, se negam e se excluem em um
sem número de vezes (o contrário é a exceção). E na exceção, muito pouco tem a dizer
o Direito. Portanto, não se pode concordar com a assertiva, mesmo entendendo-se (o
que não parece ser o caso) que ela remeter-se-ia ao plano do “dever ser”. Em suma, no
caso da esfera do “ser” a proposição seria incompatível com a realidade; no caso da
esfera do “dever ser”, seria redundante, senão inútil.
Bandeira de Mello especifica o caráter duplo da idéia republicana de interes-
se público como fundamento do regime jurídico administrativo, que deve ser pauta-
do tanto pela ideia de supremacia, quanto de indisponibilidade do interesse público.
29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 60.
30 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fun-
damentais. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 234. Esta posição também
é defendida por Héctor J. Escola. Cf.: ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo.
Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 243.
31 Como destacado por Edgar Bodenheimer “um indivíduo pode ter um interesse na redução ao mínimo de seus encargos fis-
cais, enquanto a realização de certas funções indispensáveis da comunidade ou do Estado (por exemplo, no campo da política
econômica, da educação ou da segurança nacional) possam tornar necessário o aumento dos impostos. Um indivíduo pode ter
interesse em conseguir ganhar facilmente colocando no mercado um produto de qualidade inferior, mas a comunidade está
interessada em manter um nível de produção que proteja pelo menos a segurança e a saúde dos membros do público. Um
indivíduo pode desejar retirar seus filhos da escola aos treze anos de idade, a fim de que possam ajudar a sustentar a família
num emprego rendoso, mas a comunidade pode considerar a extensão do período de educação compulsória além dessa idade
necessária para a formação de cidadãos bem informados e competentes. Um indivíduo pode ter interesse em pagar salários es-
tandartizados a seus empregados, mas o interesse da comunidade pelo equilíbrio econômico pode exigir um reforço do poder
aquisitivo da população.” Isso só para mencionar alguns exemplos ilustrativos. Cf.: BODENHEIMER, Edgar. Prolegômenos de uma
teoria do interesse público. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit., p. 208.
32 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 70 et seq.
33 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Administrativo. 4. ed. Saraiva, 2008, p. 37.
34 Afirma o autor: “El régimen del derecho (Rechtsstaat) se perfecciona em virtud del acto administrativo, el cual, con su fuerza
obligatoria, está ubicado dentro de las relaciones a regular entre el Estado y el súdito”. Cf.: MAYER, Otto. Derecho administrativo
Alemán. 2. ed. Tradução de Horacio H. Heredia y Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: Depalma, 1982, p. 125.
35 ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Op. cit., p. 11 e13.
36 OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no Direito Administrativo Brasi-
leiro? Op. cit., p. 97.
As escolhas políticas, ao contrário das jurídicas, são livres, inclusive, para presti-
giar o interesse privado na confecção de uma lei (interesse privado este que irá ser reco-
nhecido como público, caso os legisladores assim deliberem, como representantes que
são da vontade popular). Fato que não impede a existência de más escolhas, passíveis
de serem desconstituídas pela sua inconstitucionalidade. Vício este que não poderá,
todavia, ser identificado pela afronta de quaisquer princípios do artigo 37 da Consti-
tuição, inclusive o princípio da eficiência, pois estes se direcionam especificamente ao
exercício da função administrativa.37
O princípio ora em foco trata da supremacia do “interesse” público sobre o “inte-
resse” privado e não do “direito” público sobre o “direito” privado, ou mesmo do “interesse
público” sobre o “direito subjetivo privado”. Portanto, o princípio não trata de direitos, mas
sim de interesses, a partir de uma alocação do público em situação de preferência nor-
mativa e axiológica em face ao particular. Sobre o assunto, aliás, já tratou a jurista Raquel
Melo Urbano de Carvalho, refutando de forma percuciente as interpretações contrárias à
existência do princípio, pois “somente na medida em que os interesses da sociedade pre-
valeçam perante os interesses particulares torna-se possível evitar a desagregação que
fatalmente ocorreria se cada membro ou grupo da coletividade buscasse a concretização
dos seus interesses particulares”. A partir deste entendimento, a prevalência do interesse
público é justificada como um pré-requisito da própria sobrevivência social.38
Mas não só. A preferência pelo interesse público também precisa ser justificada
pelo princípio da felicidade, que é típico e necessário ao caráter republicano do Estado
democrático de Direito constituído na modernidade e, particularmente, no Brasil. Esta
razão, por si só, é suficiente para a não contemplação de qualquer critério análogo à
subsidiariedade do Poder Público como um efetivo princípio jurídico de atribuição ho-
rizontal de competências. O princípio da supremacia do interesse público, nos termos
em que dispõe o sistema constitucional brasileiro, possui forte caráter contestatório de
uma atuação do Estado de caráter meramente acessória ou desprestigiada; trata-se de
uma manifestação clara da alocação ao Estado do dever primordial de promoção dos
objetivos republicanos do artigo 3° da Constituição de 1988.
37E quanto a esta conclusão, discorda-se de Fábio M. Osório. Cf.: OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse
público sobre o privado no Direito Administrativo Brasileiro? Op. cit., p. 97.
38 A autora elabora um dos melhores estudos do Direito brasileiro contemporâneo a respeito da temática da supremacia do
interesse público (sem prejuízo de serem possíveis algumas discordâncias). Cf.: CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de
Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Juspodiun, 2009, p. 68 et seq.
39 O artigo de Dora Maria de O. Ramos é elucidativo neste sentido, além de apontar as principais características do princípio na
tradição brasileira. Cf.: RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Princípios da Administração Pública. A&C – Revista de Direito Adminis-
trativo & Constitucional, Curitiba, ano 01, n. 4, p. 89-105, set./dez. 2000.
40Demonstra o autor que “a doutrina juspublicista utiliza esse conceito em situações diferenciadas, empregando o mesmo termo
para explicar fenômenos jurídicos diversos”. Por este motivo, ele propõe distinguir duas categorias de interesse público sob a
óptica do Direito Administrativo: o “interesse público em sentido amplo” e o “interesse público em sentido estrito”, explicando as
consequências jurídicas dessa diferenciação. Cf.: HACHEM, Daniel Wunder. A dupla noção jurídica de interesse público em direito
administrativo. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, p. 59-110, abr./jun. 2011.
41 Sobre o assunto ver: ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de
prevalência ocorre no caso concreto.44 Não cabe aqui tratar das evidentes incongru-
ências do pensamento geral do autor; para este fim, remete-se ao excelente e didático
texto de Luís Virgílio Afonso da Silva sobre o assunto.45 Todavia, não é possível deixar
de tratar dos equívocos de algumas de suas conclusões aplicadas ao caso ora tratado.
Ávila contesta tanto a possibilidade de que a supremacia seja um princípio
quanto seja um postulado, em razão do que a distinção torna-se relevante apenas para
melhor elucidar as conclusões de sua argumentação. O autor afirma que, da forma
como considerada, a supremacia não seria um princípio na medida em que não ad-
mite ponderação nem concretização gradual; as suas possibilidades de concretização
consistiriam em exceções e não graus, considerando que a prevalência é sua única pos-
sibilidade.46 Nesta mesma linha de raciocínio, Gustavo Binenbojm elabora a estranha
afirmação de que “um princípio que se presta a afirmar que o que há de prevalecer
sempre prevalecerá não é um princípio, mas uma tautologia”.47 Não é preciso se alon-
gar na impropriedade formal da própria colocação, pois não resulta nada atípico que
um princípio “afirme que seja aquilo que é”, pois ele é um a priori, um pressuposto. Ima-
ginar a ocorrência de um princípio que seja condicional nos seus próprios termos é um
inaceitável silogismo. Seria difícil afastar tais teorias deste problema.
Claro que, em termos de conteúdo, é possível discordar da ideia de que exista
uma supremacia (o que os autores também fazem), mas não há qualquer sentido em
ser sugerido um equívoco lógico no fato de que o princípio se auto-afirma; ou seja, de
que o princípio da supremacia do interesse público propõe que “algo que deve preva-
lecer deve sempre prevalecer”.48 Por certo que o princípio da legalidade ao afirmar que
a lei deve ser cumprida, prescreve que ela deve ser cumprida sempre; o princípio da pu-
blicidade, ao afirmar que o ato administrativo deve ser público, propõe que ele deve ser
público sempre. Isso, por princípio. O que não afasta a possibilidade (1) da existência de
exceções legais estabelecidas pelo próprio sistema e (2) da potencial possibilidade da
presença da cláusula hartiana “a menos que...”).49 Assim sendo, o fato do princípio es-
tabelecer um pressuposto não indica que ele sempre será aplicado, pois o sistema não
admite decisões com base em apenas um pressuposto. Isso significa que o princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado não é um critério exclusivo de deci-
44 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 181.
45 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-americana de
estudos constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, n° 01, 2003, p. 607 et eq.
46 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 183.
47BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito
Administrativo. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados. Op. cit., p. 167.
48 Aqui cabe uma elucidação. A contestação do argumento do autor parte do pressuposto que ele quis se referir apenas à esfera
normativa do princípio, apesar da redação literal sugerir que ele também esteja tratando da esfera positiva. De todo modo, não
se ignora o fato (e nem o princípio defende a idéia) de que muitas vezes, no plano do ser, a supremacia não ocorrerá, pois o
conteúdo do princípio não se confunde com sua esfera de aplicabilidade ou efetividade.
49 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Op. cit., p. 153.
50 Sobre o conceito de “princípio”, ver: GABARDO, Emerson; SALGADO, Eneida. O princípio com fundamento no desenvolvimen-
to do constitucionalismo contemporâneo. In: MARQUES NETO, Floriano de A.; ALMEIDA, Fernando D. M. de; NOHARA, Irene;
MARRARA, Thiago (Org.). Direito e Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2013, p. 105-121.
51 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 202.
52PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização, sanção: fundamentos e requisites da delegação do exercício do
poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 38.
54ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular; e, SCHIER, Paulo Ricardo.
Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. Op. cit., p. 171-
215 e p. 217-245, respectivamente.
55 RODRÍGUEZ, Jorge L. Lógica de los sistemas jurídicos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 355.
56 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Tradução de Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008, p. 326.
57 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo; Max Limonad, 2003, p. 143.
58 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 4 ed., Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005, p. 153.
59 BAYÓN, Juan Carlos. Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? In: ______.; RODRÍGUEZ, Jorge. Relevancia normativa en
la justificación de las decisiones judiciales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 264.
60 BAYÓN, Juan Carlos. Derrotabilidad, indeterminación del derecho y positivismo jurídico. In: ______.; RODRÍGUEZ, Jorge. Re-
levancia normativa en la justificación de las decisiones judiciales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 163.
61 BAYÓN, Juan Carlos. Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? Op. cit., p. 284.
no plano axiológico. A segunda congrega as variações do contexto fático, ou seja, uma nor-
ma pode ser “vencível’ na medida em que sua aplicação ao caso seja só aparente, pois há
outra que de forma mais razoável deve prevalecer a partir de um critério de bom senso.62
No entendimento de Maccormick isso significa que quando se está diante da defeasibitity
implícita não é a lei, e nem mesmo um possível precedente, que está sendo excepcionado
em alusão aos respectivos direitos. “O que está sendo excepcionado (defeated) à luz do prin-
cípio é um pleito baseado na formulação ou interpretação particular da regra.”63
João Josué W. de Mendonça, todavia, discorda desta proposição. Segundo o au-
tor, há casos de normas “invencíveis”, quando a própria Constituição impõe tal caráter.
Exemplo do caso seria o do artigo 227, caput, da Constituição Federal, que assevera ser
“dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer...”, etc. Aparentemente, a ideia do autor decorre diretamente da expressão “absolu-
ta prioridade” (infelizmente, um raciocínio por demais simplificador); ou seja, segundo
sua percepção, estaria dada a supremacia dos direitos da criança, jovem e adolescente
e ponto final – e aqui não haveria que se falar em possibilidade de derrota.64
Entretanto, o argumento não convence. Primeiramente, já se reconheceu (como
antes asseverado) que são possíveis regras inderrotáveis em sua aplicação. Quanto a
isso, não há divergência. Ocorre que, do ponto de vista hermenêutico, a expressão “ab-
soluta prioridade” não consegue expressar qualquer norma em concreto. O curioso é
que em relação ao específico exemplo do autor já há decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral derrotando o artigo 227 com fundamento na discricionariedade administrativa
(e, ainda que no mérito possa ser uma decisão equivocada, ao menos demonstra clara-
mente a possibilidade hermenêutica de relativização).65 Em segundo lugar, o autor des-
considera as diferentes dimensões (subjetiva e objetiva) dos direitos fundamentais.66
Em terceiro lugar, equivoca-se ao achar que a decisão a respeito da concretização de di-
reitos implica a “supremacia” do “direito contido no texto”. Na realidade, o que importa
67 Novamente, para espancar a crítica do autor, basta uma leitura atenta à obra de Daniel Wunder Hachem, que de forma
impecável esclarece a distinção entre “direito fundamental como um todo” e “pretensões jurídicas jusfundamentais”. Hachem
sustenta com razão “que, em cada direito fundamental, algumas das pretensões dele decorrentes revelam-se como posições
subjetivas exigíveis individualmente, ao passo que outras encontram-se associadas à dimensão objetiva do direito, possuindo
titularidade transindividual. Diante disso, todo direito fundamental, quando considerado em sua integralidade, exibirá tanto
uma faceta individual quanto uma feição transindividual, a depender da pretensão em análise.” Cf.: HACHEM, Daniel Wunder. A
dupla titularidade (individual e transindividual) dos direitos fundamentais e econômicos, sociais, culturais e ambientais. Revista
de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 14, n. 14, Curitiba, p. 618-688, jul./dez. 2013.
68 MENDONÇA, João Josué Walmor de. Fundamentos da supremacia do interesse público. Op. cit., p.192.
69 A questão da distinção entre direitos e interesses pode ser aprofundada em: GABARDO, Emerson. A relação entre interesse pú-
blico e direitos fundamentais. Revista Argentina del Regimen de la Administración Pública. Buenos Aires. n. 394, 2011, p. 29-39.
Por outro lado, o resultado hermenêutico de uma situação como esta depende
da concepção jurídica que irá incidir no caso segundo o intérprete que analisará o plei-
to, tanto em nível administrativo quanto judicial. O fato é que “qualquer coisa pleitea-
da pode também ser refutada, mesmo que a refutação não mereça ser bem-sucedida,
e possa, de fato, falhar”. Afinal, “a decisão mais cuidadosamente construída e a mais
elegante justificação” podem ser simplesmente ineptas em razão do que exigirão uma
reformulação da tese original ou “uma nova e talvez radical exceção a ela”. Em nenhum
destes casos há motivo razoável para se supor que está negada a regra ou pressuposto
geral (universal). Como conclui Maccormick “universais excepcionáveis são, contudo,
ainda universais”.70
Considerando os princípios como normas de qualidade distinta das regras, não
é possível estabelecer relações absolutas de precedência.71 Na interação dos princípios
as alterações no entendimento do conteúdo de um deles podem produzir reflexos na
compreensão de algum ou alguns dos outros.72 Destaca Larenz que “o jogo concertado
dos princípios significa que, no conjunto de uma regulação, não só se complementam,
mas também se restringem reciprocamente.”73 O reconhecimento da derrotabilidade
produz a constatação de que as normas jurídicas estão sujeitas a “exceções implícitas”
que não podem ser identificadas antecipadamente, mesmo genericamente.74 O que
não significa que também não possam existir exceções expressas ao princípio e nem
que inexistam conflitos reais exteriores entre os princípios, em que um prevaleça em
detrimento do outro. Este raciocínio possibilita que sejam colocados os fundamentos
nos seus corretos eixos.
Quando Paulo Schier menciona exemplos constitucionais de supremacia do
interesse público sobre o privado,75 como o do artigo 5º, inciso XXV (requisição admi-
nistrativa),76 não ocorre um caso denotativo do princípio da supremacia do interesse
público sobre um mero “interesse privado”. Trata-se de exemplo do estabelecimento
formal de uma exceção constitucional que permite que o interesse público se sobrepo-
nha a “direito individual”. A exemplificação do autor se reporta à exceção, não à regra.
Deve-se notar que é uma pressuposição faticamente exagerada imaginar que o inte-
resse privado corresponderá necessariamente à inação do Estado no caso de iminente
perigo público (para se referir ao exemplo do autor: o instituto da requisição).
É perfeitamente possível que seja do interesse do particular o controle deste pe-
rigo e a respectiva intervenção do Poder Público. Entretanto, se é do interesse privado ou
não, isso é irrelevante, pois o fato é que o “direito do particular” estará obrigatoriamente
flexibilizado. E é totalmente diferente relativizar direitos e interesses. O ordenamento e o
agente público não têm como saber, a priori, qual será o interesse privado do proprietá-
rio. Mas o status de proprietário ou possuidor e a existência do seu direito à propriedade
pré-existem e serão, indiscutivelmente, flexibilizados no caso de uma requisição, ainda
que, por hipótese, o proprietário ou possuidor tenha todo o interesse em ser requisitado
(por exemplo, porque no caso concreto sua perda poderia resultar num futuro direito de
reparação – o que poderia lhe interessar mais do que a propriedade então requisitada).
Assim é que o princípio da supremacia do interesse público precisa ser entendi-
do como o resultado de sua interação com outros princípios e outras regras, sem que
com isso seja esquecida a relação de prioridade típica do ponto de partida da decisão.
Torna-se despicienda, portanto, a ressalva de que o interesse público, para que se colo-
que como superior ao privado, precisa de uma norma constitucional ou infraconstitu-
cional que assim autorize.77 A colocação é redundante, pois em todo e qualquer caso
que o Estado atue faz-se necessária uma disposição de caráter prévio e positivo no or-
denamento, conforme a clássica máxima de que ao particular é dado fazer tudo aquilo
que a lei não proibir e ao Estado é dado fazer apenas o que a lei prever (ressalvando-se,
é claro, que atualmente está muito difícil saber exatamente o que significa “lei”, pois a
ideia de vinculação genérica ao “Direito”, tornou este tema muito controverso).78
O interesse público dotado de supremacia, por força de seu regime peculiar, in-
depende da titularização de qualquer direito subjetivo a ele vinculado para prevalecer.
A grande questão é que a supremacia do interesse público fundamenta-se diretamente
no Direito objetivo. Quando o interesse público manifesta-se fora do regime jurídico de
Direito público, então ele está em situação de equivalência ao particular. Neste caso,
o ambiente é o regime jurídico de Direito privado e o interesse público para prevale-
cer dependerá da existência de um específico direito subjetivo a ele correspondente.
Direito subjetivo este que será considerado junto ao Direito objetivo em igualdade de
condições com os direitos subjetivos do particular a partir de um sistema, aí sim, de
ponderação objetiva (ou seja, uma ponderação que está adstrita ao sistema jurídico).
77 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos
fundamentais. Op. cit., p. 217-245.
78 MOTTA, Fabrício. O paradigma da legalidade e o Direito administrativo. In: PIETRO, Maria Sylvia Zanella di; RIBEIRO, Carlos
Vinícius Alves (Coords.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito administrativo. São Paulo: Atlas,
2010, p. 197 e ss.
84 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. Op.
cit., p. 110.
85 Conforme destaca Manoel de Oliveira Franco Sobrinho: “No excesso, respeitada a finalidade, o querer administrativo vai além
do que o previsto, resultando em autoritarismo ou arbítrio na atuação”. Cf.: FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Atos admi-
nistrativos. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 211.
86 Em resumo assim aduziu o autor: “la adecuada aplicación de la teoría del interés público sirve para garantizar la corrección
integral de los actos de la administración, en una esfera tan proclive a los excesos, como es la que se refiere al ejercicio del poder dis-
crecional, poder que debe ser reconocido como necesario y conveniente, cuando concurre a posibilitar tales fines de interese público,
y que debe ser invalidado cuando, so color de tal discrecionalidad, se dirige a pretender finalidades que no son de interese público, o
que no guardan una razonable relación con este.” Cf.: ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho
administrativo. Op. cit., p. 62.
87 Um verticalizado exame do assunto (um dos mais precoces do Direito administrativo típico do século XX), com indicação
de farta doutrina, pode ser encontrado no Curso de Zanobini. Cf.: ZANOBINI, Guido. Corso di diritto amministrativo. Milano:
Giufrè, v. 1, 1936.
prática.88 Se os operadores do Direito fossem romper com cada princípio, regra ou di-
reito mal utilizado, ou cujo sentido foi desviado no Brasil, muito rapidamente decorreria
uma anomia jurídica. A grande questão que se coloca na práxis jurídico-política con-
temporânea é saber o motivo pelo qual, apesar da realidade acima indicada, há pou-
ca preocupação com os demais conceitos e princípios que também possibilitam a sua
má utilização pelos agentes públicos. Não é a mesma a preocupação doutrinária com
o princípio da publicidade, por exemplo; é como se ele fosse muito menos “maléfico”
que o da supremacia do interesse público. Parte considerável da doutrina jurídica, da
imprensa, das instituições empresariais e da comunidade em geral tem fortes receios
quanto ao interesse público, mas é bastante condescendente com outros princípios e
conceitos (o que é correto, pois a culpa não é dos conceitos nem dos princípios, mas
dos atos indevidos neles alegadamente baseados).
Mas resta a pergunta: por que no caso do interesse público não há esta con-
descendência? A resposta não é simples, embora evidencie a própria história cultural
nacional inserida em um peculiar momento. Ou seja, a confusão entre a esfera do ser
e a do dever ser é uma decorrência de três fatores: 1. a existência de uma tradição au-
toritária e personalista no país; 2. a recorrência de casos de atuação dos agentes públi-
cos de forma ineficiente ou imbuídos de má-fé; 3. a presença contemporânea de uma
mentalidade pós-moderna que exalta as vantagens do liberalismo e da valorização dos
interesses particulares (em geral hedonistas) do indivíduo.
88Como bem salienta a professora Alice Gonzalez Borges. Cf.: BORGES, Alice Maria Gonzalez. Supremacia do interesse público:
desconstrução ou reconstrução. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte: Fórum, n° 01, abr./jun., 2003, p. 57.
89AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia: uma aproximação na perspectiva da filosofia social e política. Revista da Universidade
dos Açores: Ponta Delgada, 1995, p.126.
90 Sobre a noção de soberania na perspectiva do Estado Constitucional: CORVALÁN, Juan Gustavo. Soberanía y Estado Cons-
titucional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, n. 62, p. 45-71, out./dez. 2015.
91MARTINS, Margarida Salema d´Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Coimbra: Coimbra,
2003, p. 44-46.
92 AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia. Op. cit., p. 151.
93 AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia. Op. cit., p. 122.
94 ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Op. cit., p. 240-241.
95PIRES, Luis Manuel Fonseca. A pós-modernidade e o interesse público líquido. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 52, p. 133-144, abr./jun. 2013.
96 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Op. cit., p. 124.
97 FREIRE, André Luiz. A crise financeira e o papel do estado: uma análise jurídica a partir do princípio da supremacia do inte-
resse público sobre o privado e do serviço público. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte,
ano 10, n. 39, p. 147-162, jan./mar. 2010.
98 MORAIS, José Luis Bolzan de; BRUM, Guilherme Valle. Estado Social, legitimidade democrática e o controle de políticas pú-
blicas pelo Supremo Tribunal Federal. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 63,
p. 107-136, jan./mar. 2016.
99 Defendendo também um Direito Administrativo com essas características: BALBÍN, Carlos F. Un Derecho Administrativo para
la inclusión social. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 33-59, out./dez.
2014; RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. El Derecho Administrativo ante la crisis (El Derecho Administrativo Social). A&C –
Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, n. 60, p. 13-37, abr./jun. 2015; RODRÍGUEZ-ARANA
Entretanto, esta análise apurada nem sempre é feita pelos pensadores do assun-
to, que têm primado por uma visão “romântica” deste pseudo-princípio: a subsidiarie-
dade.101 E, em assim sendo, acabam filiando-se a um Direito Administrativo Individua-
lista ou a um Neoliberal, nem sempre de forma consciente – embora, em alguns casos
seja uma assumida opção ideológica com pretensões normativas.
Em um ambiente pós-moderno tornou-se esteticamente mais interessante de-
fender pressupostos subsidiários (em valorização ao aspecto individual da vida) do que
os relativos ao interesse público (cuja valorização é do aspecto coletivo). Notadamente
no Brasil da segunda metade do século XXI, a desconfiança da possibilidade de atua-
ção dos poderes públicos em benefício da coletividade faz do Estado um verdadeiro
“inimigo da nação” (a questão da corrupção no espaço público está no centro deste
problema).
Os argumentos contra a supremacia do interesse público desenvolvidos neste
locus pós-moderno ou se equivocam em termos lógicos (ao confundir direitos e inte-
resses) ou “argumentam pleonasticamente” (ao propor que o interesse público deve
respeitar os direitos fundamentais; que não pode afrontar a proporcionalidade; e que
não pode sobrepor-se às demais normas constitucionais). Mas alguns autores efe-
tivamente vão além: discordam da própria idéia de que o interesse público deva ser
MUÑOZ, Jaime. La participación en el Estado social y democrático de Derecho. A&C – Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 48, p. 13-40, abr./jun. 2012.
100 HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos sobre algumas
tendências do Direito Público brasileiro. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n.
53, p. 133-168, jul./set. 2013, p. 149.
101Mais detalhes sobre a oposição à existência da subsidiariedade como princípio podem ser encontrados em: GABARDO,
Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade. Op. cit.
102 ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Op. cit., p. 187.
103 BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Op. cit., p. 46.
104Embora reconheça que tais autores vão muito além da defesa de um Estado mínimo, inclusive preterindo o reconhecimento
efetivo dos direitos fundamentais (com o que o autor não concorda). Cf.: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses
privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. Op. cit., p. 69. A escolha do termo “libertários” também não
é uma peculiaridade do autor, mas de uso comum na doutrina. Cf.: GNASSOUNOU, Bruno. A partir de John Rawls, a querela
do utilitarismo e do antiutilitarismo. Liberais, libertários e comunitaristas americanos. In: CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SE-
NELLART, Michel (Orgs.). História argumentada da filosofia moral e política: a felicidade e o útil. Tradução de Alessandro Zir.
São Leopoldo: Editora Unissinos, 2004, p. 685.
105 ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; _____. (Orgs.). O Estado de Direito: história, teoria,
crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 5.
106ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica do
Direito Público contemporâneo. Op. cit., p. 19.
107ARAGÃO, Alexandre dos Santos. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na hermenêutica do
Direito Público contemporâneo. Op. cit., p. 22.
108HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses: argumentos a favor do capitalismo antes do seu triunfo. Tradução de Luiz
Guilherme B. Chaves e Regina Bhering. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 13.
por meio de políticas públicas que têm absoluta correspondência com os direitos indi-
viduais (como é o caso da saúde pública).109
Alguns teóricos aparentemente recusam o fato de que o interesse público está
muito mais conectado aos direitos de todo tipo que o interesse privado, pois este últi-
mo é totalmente descompromissado. O interesse privado pode se referir a direitos, mas
esta possibilidade é extrínseca. Ao contrário, a proteção de direitos é interna à essência
do interesse público, sob pena de sua desnaturação. Para o interesse público o respeito
aos direitos é uma condição necessária; para o interesse privado é apenas uma conse-
qüência possível.
O princípio da supremacia do interesse público a partir de uma perspectiva
constitucionalizada deve possuir diferentes níveis de significação, dentre os quais ne-
cessita reconhecer que: 1. a atuação do Estado deve se ocupar não só do bem-estar dos
indivíduos atuais, mas também das gerações posteriores; 2. o interesse público tem
que relevar não somente interesses nacionais, mas também os que ultrapassam esta
esfera, considerando a humanidade como um todo.110 Ademais, “um dos fatores funda-
mentais favoráveis ao sucesso de uma democracia é um público imbuído de interesse
público”.111 Logo, não basta um reconhecimento eminentemente jurídico se não existe
um “lastro social” que dê respaldo à existência de um interesse público formalmente
estabelecido.
Como pondera C. W. Cassinelli, “a palavra público significa que o valor ético no
padrão do interesse público se aplica a todo membro da comunidade política: é um
valor que deve ser distinguido de algo vantajoso para uma pessoa e desvantajoso para
outra”.112 Este seria o que Marçal Justen Filho chama de caráter “transcendental” do in-
teresse público, vinculado que é à dignidade humana nos seus aspectos da integridade
e isonomia mediante uma construção que não é natural, mas sim histórica.113
Segundo Orlando Gomes as ações humanas são motivadas por necessidades
e objetivos. Interesses que quando universalizados muitas vezes transformam-se em
valores que necessitam ser reordenados numa comunidade em desenvolvimento. Não
se ignora que as mudanças de caráter institucional concorrem para a evolução do sis-
tema de valores. Por outro lado, deve-se reconhecer que “a aceitação de novos valores
influi na estrutura institucional”. Da análise desta relação simbiótica, torna-se muito
mais aceitável “a tese dos que defendem o primado das inovações institucionais”.114
109 MUSGRAVE, R. A. O interesse público: eficiência na criação e manutenção do bem-estar material. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.).
O interesse público. Op. cit., p. 115.
110 COLM, Gerhard. Interesse público: chave essencial da política pública. Op. cit., p. 124.
111 GRIFFITH, Ernest S. Os fundamentos éticos do interesse público. Op. cit., p. 31.
112 CASSINELLI, C. W. O interesse público na ética pública. In: FRIEDRICH, Carl J. (Org.). O interesse público. Op. cit., p. 56.
113 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito administrativo. Op. cit., p. 126.
114 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. Salvador: Universidade da Bahia, 1961, p. 33.
Esta posição parte do pressuposto que os homens é que escolhem o seu caminho e ao
caminharem não podem estar sozinhos.
O equilíbrio entre o público e o privado, entre a sociedade e o Estado, e entre o
indivíduo e a coletividade está na colocação de diferentes pesos em todos os lados. Ao
tempo em que resta claro que o interesse público deve ser predominante ao privado,
também deve ser reconhecido que os direitos individuais, especialmente os fundamen-
tais, estabelecem uma barreira importante para a atuação do Poder Público; o que não
evita, por certo, a existência de casos concretos difíceis. Para estes cabe a ponderação
jurídica (objetiva e dentro do sistema), que consiste numa maneira perfeitamente com-
patível com o princípio da supremacia do interesse público, inibindo qualquer tentativa
de, pela negativa de sua incidência, ser preconizado o interesse privado.
Do resultado de um conflito entre o princípio da supremacia e outro princípio
protegido pelo Direito (como a própria autonomia privada – em casos resolvidos fora
do Direito público) pode ser que duas situações ocorram: 1) a supremacia prevaleça; e
2) a supremacia não prevaleça e neste caso a questão resolve-se com base na igualdade
de interesses, ou seja, são admissíveis duas sub-hipóteses: 2.a) a de que ocorra a preva-
lência do interesse público, no caso concreto (não por uma questão de princípio, mas
de resolução pragmática da controvérsia – a posteriori); 2.b) a de que ocorra a preva-
lência do interesse privado no caso concreto (também não porque se admita qualquer
precedência em abstrato da autonomia privada, mas porque seria adequada a adoção
desta precedência de forma tópica). A resolução do conflito de primeira ordem se re-
solve pela ponderação; no de segunda ordem, pela proporcionalidade. E é bom que se
reforce: nas duas análises, se está utilizando de critérios objetivos, como ressalta Daniel
Sarmento.
É preciso ainda ressalvar que somente se chegará a esta solução hermenêutica
em caso da inexistência de limites imanentes, pois há situações que serão resolvidas
pela própria essência do princípio, que já implica a permissão ou a proibição de algu-
mas condutas (e neste caso não haveria que se falar em conflito externo).115 O com-
plicado nestas situações é estabelecer exatamente qual o sentido prático dos casos
implicitamente resolvidos, principalmente em face do risco de ser efetuada uma inter-
pretação que não consiga diferenciar a moral subjetiva pessoal da moral objetiva, esta
sim, consagrada constitucionalmente.
Por exemplo, o jurista português José Carlos Vieira de Andrade, ao tratar das
“limitações imanentes implícitas” cita alguns exemplos de interesses que seriam ob-
viamente vedados. Interesses estes que nem mesmo entrariam em conflito com ou-
tro princípio ou direito subjetivo. Seriam eles: a) invocar a liberdade de expressão para
injuriar as pessoas; b) invocar a condição de preso político para membros de grupos
115 Sobre o assunto ver: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000,
p. 96 e 101.
116 Foram citados apenas alguns dos exemplos do autor; ainda são mencionados outros, tais como invocar a liberdade de cir-
culação para andar pelado. Cf.: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
3. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 294.
117 No acórdão exarado no processo 6284/06, julgado em 15 de fevereiro de 2007, o Tribunal entendeu que embora não sendo
casamento, as uniões de pessoas do mesmo sexo também consistem em uma forma de união familiar. Cf.: CUNHA, Paulo Ferrei-
ra da. Fundamentos da república e dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 58-60.
118 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 15.
119 É possível extrair da obra de Jaime Rodriguez-Arana Muñoz que as principais dimensões do Estado social seriam: 1. Tomar
a igualdade material como finalidade da intervenção pública, notadamente mediante a adoção de mecanismos de proteção
dos grupos vulneráveis; 2. Promover uma auto-responsabilização pelo atendimento das necessidades das pessoas que dele de-
pendem; 3. Garantir um governo democrático e participativo na tomada de decisões interventivas; 4. Atribuir à Administração
Pública o protagonismo na consecução dos direitos sociais; 5. Manter um compromisso com o bem estar do povo a partir da
noção de dignidade humana. Cf.: RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Dimensiones del Estado Social y derechos fundamentales
sociales. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 2, p. 31-62, maio/ago. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/
rinc.v2i2.44510.
120 MARTINS, Margarida Salema d´Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-política. Op. cit., p. 26.
prova o contrário e no presente não parece que o homem tenha encontrado melhor
alternativa. Não é sem razão que salienta Luis Roberto Barroso: “O Estado ainda é o
protagonista da história da humanidade”.121
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