Alterações Adquiridas Da Linguagem Na Infancia PDF
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Resumo
A linguagem é uma função superior e constitui um meio muito importante de comunicação. Quando ocorre uma
lesão cerebral, esta pode desencadear alterações do processamento da linguagem, uma afasia. Os autores
pretendem, para além de apresentar uma classificação das afasias, explanar a neuropatologia, as características
linguísticas das afasias, bem como os aspectos neuropsiquiátricos e o prognóstico das afasias nas crianças.
Abstract
Language is a superior function and it is very important for communication. When a cerebral lesion occur some
changes in language mechanisms happens, what is called aphasia. Authors pretend not only to present the
aphasia classification, but also to explain neuropathology, linguistic characteristics of aphasias and make an
approach to children aphasia prognosis.
Uma visão menos radical defende que os dois capsulares (anterior, posterior e global) e a talâmica,
hemisférios cerebrais contribuem para a linguagem, sobre as quais não nos ocuparemos neste trabalho.
embora um mais do que o outro.2 Acredita-se que o O diagnóstico diferencial baseia-se em algumas
hemisfério esquerdo seja dominante para a linguagem características da linguagem que são: a nomeação, a
em cerca de 90% da população em geral, participando fluência do discurso, a compreensão auditiva de
o hemisfério direito no processamento da mesma, material verbal e a repetição. 2
sobretudo nos aspectos da pragmática e prosódia Ponto comum a todas as afasias é a perturbação na
(ritmo e entoação da fala).3 nomeação, aliás, se não estiver alterada, não existe
afasia.
A neuropatologia Existem vários tipos de testes que podem ser aplicados
As alterações da linguagem que ocorrem na infância para o diagnóstico preciso das afasias, entre eles
são geralmente classificadas como: do desenvol- encontram-se: a Western Aphasia Battery (1982) de
vimento ou adquiridas (afasias) 4 Kertez, a Boston Diagnostic Aphasia Examination
Geralmente a expressão “alteração do desenvolvimento (1983) de Kaplan e a de Damásio, a Bateria de
da linguagem” é usada para descrever problemas que Avaliação da Afasia de Lisboa (BAAL) (1973). Esta
surgem nos estadios iniciais do desenvolvimento da última bateria é uma versão revista e adaptada para
linguagem. Portugal da Multilingual Aphasia Examination.
Existem duas características principais: a primeira é a de Em relação à nomeação, sabe-se que alguns doentes
que a lesão cerebral pode ter vários tipos de origem têm dificuldade na nomeação de objectos pouco
(traumatismo cranioencefálico, acidente vascular frequentemente usados (ex.: telescópio), outros têm
cerebral, tumor ou infecção), a segunda é a de que a dificuldade na nomeação de categorias semânticas
afasia surge geralmente após um período de linguagem específicas (ex.: partes do corpo humano, cores). A
nomeação por confrontação (ex. “o que é isto?”) pode
normal ou de aquisições normais da linguagem.
ser mais fácil do que pela evocação (ex.: “nomeie todos
Enquanto que nos adultos a causa mais frequente de
os animais que conheça”). É importante salientar que é
afasia é o acidente vascular cerebral (AVC), nas crianças
característica comum a todos os tipos de afasia a
é o traumatismo cranioencefálico (TCE). Refira-se que,
existência de perturbação na nomeação.
apesar de por afasia se entender uma perturbação da
No que à fluência do discurso diz respeito, geralmente
linguagem que resulta de uma lesão cerebral em
dividem-se as afasias corticais em: afasias fluentes e
estruturas que se supõe estar envolvidas no seu
não-fluentes. Com base em características da
processamento, cerca de 20% das afasias não se
linguagem verbal (número de palavras por ciclo
consegue explicar do ponto de vista anatomo-clínico.1
respiratório, uso da sintaxe, existência de parafasias,
entoação da fala e agilidade articulatória) podemos
Características linguísticas das afasias afirmar se a afasia é do tipo fluente (Wernicke,
As afasias caracterizam-se por determinados defeitos transcortical sensorial, anómica ou de condução) ou do
linguísticos: defeitos de compreensão auditiva e tipo não-fluente (Broca, transcortical motora ou
defeitos na “produção” verbal. Em relação aos global).
primeiros, estes parecem ser mais frequentes nas A compreensão auditiva de material verbal poucas
crianças que sofrem uma lesão cerebral antes dos 10 vezes está inteiramente preservada nas afasias, no
anos de idade.5 Em relação aos segundos, estes podem entanto, em algumas afasias a compreensão é
envolver alterações de sintaxe (relacionamento das relativamente melhor do que a produção de linguagem
palavras), de semântica (significado das palavras), de oral. Podem ser usados alguns testes para determinar
pragmática (uso apropriado da linguagem), de fonética alterações da compreensão auditiva, tais como: pedir
(regreas de funcionamento dos sons) ou da linguagem para identificar palavras isoladas que identificam
escrita. objectos, letras, números e/ou partes do corpo, pedir
Alguns estudos têm demonstrado que as perturbações para executar ordens simples e/ou complexas. Num
da linguagem escrita são mais graves do que as de doente afásico com linguagem oral escassa ou nula e
linguagem verbal. 4 com compreensão auditiva pobre estabelece-se o
diagnóstico provável de afasia global.
Como classificar as afasias A capacidade de repetição usa-se para diferenciar os
A equipa ideal para avaliar uma criança com afasia outros tipos de afasia cortical. Também podem ser
seria composta pelo médico, pelo terapeuta da fala e usados testes para determinar eventuais alterações da
pelo psicólogo. repetição, tais como: repetição de palavras que
Os sistemas de classificação das afasias mais usados representem actividades frequentes ou ocasionais da
dividem as afasias em: síndromes “corticais” e vida diária.
síndromes “sub corticais”. Assim, entende-se que as diferentes conjugações de
As afasias corticais são: a de Broca, a de Wernike, a de alterações atrás mencionadas constituem os diferentes
condução, as transcorticais sensorial e motora, a tipos de afasia que em seguida caracterizaremos, e que
anómica e a afasia global. As sub corticais são as afasias se encontram resumidas no quadro 1.
A repetição está preservada bem como a compreensão, compreensão de material verbal ou a atenção
mas está afectada a fluência. O discurso caracteriza-se hemiespacial, tendem a depender das mesmas áreas
por ser pouco fluente. Ou seja, aparentemente a nos diferentes períodos da vida. Pelo contrário, outras
linguagem do doente é normal, mas não a pode áreas, como a fluência do discurso, parecem não
utilizar de forma rápida, espontânea. O que diferencia depender das mesmas estruturas anatómicas em
este tipo de afasia da afasia de Broca é o facto de estar diferentes grupos etários. Existem também outras
preservada a capacidade de repetição na transcortical funções, como a leitura, a escrita, o cálculo ou as
motora. capacidades visuomotoras e visuoespaciais, que não são
directamente localizáveis a uma área específica dos
Afasia transcortical sensorial hemisférios cerebrais, provavelmente porque
Também é pouco comum e ocorre se houver qualquer dependem da integridade de múltiplas estruturas
lesão no córtex temporo-occipital que desconecte a anatómicas que estão interligadas.
área de Wernicke da área de associação temporal,
geralmente por diminuição do aporte sanguíneo nas Aspectos neuropsiquiátricos das afasias
zonas limítrofes da irrigação da ACM e artéria cerebral Perante um doente afásico é muito importante
posterior. considerar os aspectos psicológicos, pois estes podem
Está preservada a fluência do discurso bem como a influenciar negativamente o processo de reabilitação.
capacidade de repetição, mas seriamente afectada a Podem ocorrer alterações do comportamento e da
compreensão. O discurso caracteriza-se por ser raro, em personalidade em crianças com afasia e que vão iniciar
circunlóquios e incoerente. O que o difere da afasia de escolaridade. Os sintomas variam no tipo e gravidade,
Wernicke é estar preservada a capacidade de repetir. dependendo da personalidade bem como do seu
ambiente social e educacional.
Alterações da linguagem por lesões do Algumas crianças reagem agressivamente, com
hemisfério direito violência física sobre os colegas, outras regaem à sua
Hoje em dia sabe-se que não é apenas o hemisfério deficiência tornando-se no “palhaço da turma”,
esquerdo (ou o dominante) o responsável pela passando o seu tempo a divertir os colegas e a
linguagem. Também o hemisfério direito tem um papel importonar os professores, em vez de se concentrar no
importante, sobretudo na interpretação semântica e trabalho.
no significado global do discurso. Há crianças que podem ter estados de negativismo
As lesões no hemisfério direito provocam alterações intenso e violento, negando participar nas actividdaes
profundas na orientação e percepção que podem lectivas. Podem ocorrer reacções psico-somáticas, como
resultar da inatenção hemi-espacial ou “neglect”. O náuseas e vómitos, que resultam directamente em
hemisfério direito está também envolvido na análise da dispensa das aulas, que é exactamente o objectivo da
informação da imagem corporal, e consequentemente criança, evitando assim a exposição da sua deficiência
poderá originar anosognosia – impossibilidade de perante os colegas.
perceber os seus próprio défices. Crianças com personalidade menos robusta tendem a
Em 1978 Myers observou que os doentes com lesões no reagir ao “stress educacional” de uma forma menos
hemisfério direito ignoravam o contexto, não directa. Há casos de crianças com enurese nocturna,
conseguiam percepcionar para além das palavras, não que conseguiram entretanto resolver a situação e que
entendendo significados subtis, sendo “literários” na após a aquisição de uma afasia e quando ingressam na
interpretação das frases. Descreveu o seu discurso como escola, reiniciam o quadro de enurese nocturna.
“copioso, inapropriado e ocasionalmente bizarro”. De realçar que, para o próprio desenvolvimento da
Outra característica é a entoação/prosódia linguagem, é necessário e fundamental o contacto da
monocórdica destes doentes. criança, não só com os seus familiares, como também
Podem ser estabelecidas comparações entre crianças com os seus pares, nomeadamente na idade pré-
com lesões no hemisfério direito e as crinaças com escolar. As crianças afásicas que evitam o contacto
alterações semântico-pragmáticas. Ambos parecemter inter-pessoal estão desse modo a influenciar
dificuldade em integrar informação, o que se reflecte negativamente o desenvolvimento da mesma.
na sua produção verbal. Têm a linguagem normal no Percebe-se assim que, perante uma criança afásica é
que diz respeito à forma, fluência e gramática, mas necessário estar atento e avaliar a eventual necessidade
demonstram alterações no conteúdo e no próprio uso de suporte psicológico e/ou psiquiátrico, prevenindo
da linguagem. Tem, concomitantemente, a situações potencialmente negativas para o seu
compreensão de material verbal, prosódia e desenvolvimento psicossocial.
comunicação não verbal pobres.
Salientamos ainda que, mesmo nos nossos dias, não Prognóstico das afasias na criança
está claramente estabelecido que as correlações Algumas teorias têm sido sugeridas para justificar a
anátomo-clínicas nas afasias sejam sobreponíveis na diferença existente no grau de recuperação da afasia
infância e na vida adulta. Algumas funções, como a entre uma criança e um adulto.4 A teoria da
plasticidade cerebral defende que quando ocorre uma na recuperação. É nesta área que se processa a
lesão num cérebro ainda em desenvolvimento a função descodificação da linguagem (análise fonológica). A
da linguagem poderá ser assumida por uma zona não sua lesão poderá dificultar de tal forma a entrada de
lesada. Segundo a teoria da equipotencialidade, à informação verbal que toda a recuperação/
nascença ambos os hemisférios cerebrais têm o mesmo reaprendizagem da linguagem fique impossibilitada.
potencial para desenvolver a linguagem, e a A melhor capacidade de recuperação na criança pode
lateralidade vai-se definindo, pelo que, em relação aos ter várias explicações. Por um lado, há mais tempo para
adultos, as crianças terão maior potencialidade de efectuar a recuperação, desde que a criança não tenha
recuperação da função da linguagem. Por fim, a teoria a esperança média de vida afectada. Por outro lado, as
do “fenómeno de substituição” defende que os dois crianças têm um melhor estado geral e de circulação e
hemisférios cerebrais possuem mecanismos capazes de um sistema nervoso mais íntegro, o que poderá facilitar
processar a linguagem, e, quando o hemisfério a reestruturação tecidular. É também possível que na
dominante é lesado a inibição que este exercia sobre o infância haja mais mecanismos para a reorganização
outro desaparece, assumindo o hemisfério inibido o das redes neuronais (reparação e ramificação axonal e
papel de dominante. Segundo esta última teoria, entre dendrítica), de facto o período de máximo crescimento
os dois e os quatro anos de idade perde-se esta sináptio verifica-se pelo segundo ano de vida.
possibilidade. Mesmo havendo tendência para a recuperação dos
défices neuropsicológicos agudos, a lesão do sistema
Vários estudos têm constatado um bom prognóstico da nervoso deixa algumas sequelas e afecta
afasia na criança, podendo-se esperar uma evolução negativamente o desenvolvimento cognitivo, a
favorável em mais de metade dos casos. Estes aprendizagem escolar e a progressão socio-económica.
resultados são idênticos aos obtidos nos adultos jovens Estes efeitos são mais marcados nas crianças que
e muito superiores aos encontrados nos adultos, mantêm défices clinicamente evidentes, tal como
sobretudo no que diz respeito à patologia vascular. perturbação da linguagem oral.
Enquanto que nos adultos a percentagem de doentes Embora a maioria das crianças recupere dos defeitos no
que recuperam é de cerca de 25% ao fim de uma ano, período agudo, a doença tende a afectar a progressão
a recuperação em crianças pode ser de 100%.9 Na escolar. O insucesso escolar afecta sobretudo crianças
patologia traumática, por outro lado, a diferença já mais velhas, sendo possível que no primeiro ciclo
não é tão grande, havendo publicações que mostram determinados défices sejam mais facilmente aceites do
que a recuperação da afasia é idêntica nos que em anos lectivos mais avançados (maior
traumatizados craneo-encefálicos em diferentes repercussão nos critérios de passagem de ano). As
idades. crianças com afasia e com “surdez verbal” estão
Outra diferença para os adultos relaciona-se com o impossibilitadas da capacidade de aquisição da escrita,
tempo de recuperação. A criança afásica recupera pois o substrato anatómico desta função é o mesmo
rapidamente e mesmo na fase crónica da doença que da linguagem oral. Este facto tem levado alguns
também pode melhorar. Nos adultos, para além de em autores a defender o ensino da linguagem gestual a
geral demorarem mais tempo a recuperar, os quadros estas crianças. Existe também dificuldade importante
tendem a não se modificar depois dos seis meses de na aquisição da leitura. Alguns estudos têm apontado
evolução. para percentagens entre 15 a 25% de crianças com
O tipo e gravidade da afasia, no período agudo, não capacidades de leitura, escrita e de cálculo afectadas.(1)
tendem a influenciar o prognóstico, embora os defeitos Existe elevada prevalência de dificuldades de
de compreensão se possam associar por vezes a pior aprendizagem em crianças com lesão cerebral. A
recuperação. O tipo de afasia interage com a idade e integração de uma criança com este tipo de lesão numa
agravidade do quadro, por exemplo: afasias não escola normal pode desencadear uma atitude
fluentes surgem nas crinaças mais novas e influenciam protectora e de maior tolerância às dificuldades por
negativamente a apreciação subjectiva da gravidade da parte dos professores, levando-os a deixar essas
afasia. Na criança há uma modificação rápida do crianças progredir de ano.
quadro afásico tornando o índice de gravidade pouco Parece haver uma maior tendência para o abandono
fidedigno para prever o prognóstico. Nos adultos, pelo dos estudos em grupos de doentes afásicos, bem como
contrário, a gravidade inicial é um importante factor de dificuldades na obtenção de emprego, maior
prognóstico. dependência económica da família de origem. Os
Se considerarmos individualmente, a etiologia é um indivíduos que recuperam da afasia mantêm-se mais
factor importante do prognóstico, sendo a recuperação tempo na escola.
muito pior nos caos infecciosos do que nos traumáticos É dificil concluir sobre a vida social e organização
ou nos vasculares, talvez porque tanto as infecções familiar, dado estarmos perante crianças, no entanto,
como os traumatismos tendem a provocar lesões mais sabe-se que geralmente a afasia na criança não é factor
multifocais e/ou bilaterais. impeditivo de uma relação conjugal nem da vida
Existe uma importância particular da área de Wernicke familiar.
Conclusão
Os autores pretenderam com este trabalho rever a
informação existente na literatura sobre alterações
adquiridas da linguagem na infância, abordando desde
os sistemas de classificação das afasias, os aspectos
neuropsiquiátricos e psicossociais presentes nas
crianças afásicas, até ao seu prognóstico.
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