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Educação, Poder e Sociedade No Brasil Império

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

BIBLIOTECA
BÁSICA
da HISTÓRIA
da EDUCAÇÃO
BRASILEIRA

aeroestúdio 3a prova 19/05/2008



aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Conselho Editorial de Educação

José Cerchi Fusari


Marcos Antonio Lorieri
Marcos Cezar de Freitas
Marli André
Pedro Goergen
Terezinha Azerêdo Rios
Valdemar Sguissardi
Vitor Henrique Paro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gondra, José Gonçalves


Educação, poder e sociedade no Império brasileiro
/ José Gonçalves Gondra, Alessandra Schueler. —
São Paulo : Cortez, 2008. — (Biblioteca básica da
história da educação brasileira)

Bibliografia
ISBN 978-85-249-1404-1

1. Brasil — História — Império, 1822-1889


2. Educação — Brasil — História — Século 19
I. Schueler, Alessandra. II. Título. III. Série.

08-03685 CDD-370.98104

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Império : Educação : História 370.98104
2. Educação brasileira : Império : História 370.98104
3. Império : Brasil : Educação : História 370.98104

aeroestúdio 3a prova 19/05/2008


Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Educação, poder e sociedade


no império brasileiro
josé gonçalves gondra
alessandra schueler

aeroestúdio 3a prova 19/05/2008


Capa e projeto gráfico: aeroestúdio
Preparação de originais: Jaci Dantas
Revisão: Ana Paula Luccisano
Composição: aeroestúdio
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada


sem autorização expressa do organizador
e do editor.

© by Autores

Direitos para esta edição


CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 317 – Perdizes
05009-000 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
E-mail: cortez@cortezeditora.com.br
www.cortezeditora.com.br

Impresso no Brasil 2008

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Este livro nasce de nossas práticas
de pesquisa e de ensino. Por isso,
ele é dedicado a todos nossos (as)
alunos(as) e, de modo muito especial,
aos primeiros leitores deste livro ou
de suas partes que, de modo muito
generoso, ajudaram a torná-lo possível:
Aline Borges, Aline Limeira, Ana Luiza,
Ângela, Angélica, Beatriz, Cida, Dimas,
Giselle, Inára, Irma, Joli, José Cláudio,
Kelly, Madison, Marina e Zélia.

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Sumário

Introdução 9
1. Formas do Brasil e Formas da Educação 19
Formas da educação na construção
do povo e da nação 28
2. As Forças Educativas 41
O poder público 41
Ação religiosa 58
Ação dos homens ilustrados:
sociedades, academias, grêmios 62
3. As Formas Educativas 81
Escolas elementares 81
Internatos e asilos 107
Colégios e liceus 124
Faculdades e academias superiores 134
4. Sujeitos da Ação Educativa 155
Professores 155
Meninas e mulheres 199
Negros 220
Índios 256
Crianças 270
Desafios para a História da Educação 289
Bibliografia 295

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Introdução

Dialogar com a experiência do outro, eis um dos grandes


desafios da História. Expandir a experiência humana, eis uma das
belezas da História. No entanto, enfrentar os desafios e lidar com a be-
leza da História supõe atender a algumas exigências, como definir com
precisão um problema, estabelecer um questionário, explorar as possi-
bilidades de reflexão sobre os problemas a serem examinados, consti-
tuir um núcleo documental a ser trabalhado, explorar as relações entre
documentos de extração específica e, finalmente, escrever e divulgar
os resultados a que se chegou. Em linhas gerais, estas são as coordena-
das seguidas pelos historiadores e que legitimam esta “arte de fazer”
tão necessária em tempos de esquecimento, situação que se agrava
com o crescente bombardeio de informações, muitas vezes desconexas
e desarticuladas. Neste sentido, a História é uma forma de combater o
esquecimento e, ao mesmo tempo, esforço humano de produzir uma
compreensão mais alargada de nossa experiência.
Ao considerarmos as coordenadas do fazer histórico, cabe assi-
nalar alguns problemas com que nos deparamos na escrita deste li-
vro. Inicialmente, destacamos três pontos que nos parecem centrais:
o período a ser recoberto, o entendimento do que é educação e a
idéia de Brasil.
No que se refere à periodização, o desafio é pensar o ponto em
que a reflexão deveria ser iniciada e onde poderia ser encerrada. De
modo geral, a historiografia adota marcos político-administrativos
como critério geral para pensar a sociedade. Nesta direção, a História
do Brasil teria conhecido três formas: a Colônia (1500-1822), o Impé-


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A divisão tradicional derio (1822-1889) e a República (1889 aos dias


nossa História atuais), a partir do que todos os aconteci-
convencionou a existência
de três períodos largos:mentos poderiam ser compreendidos e expli-
a Colônia (1500-1822),
cados. Ao admitir e trabalhar com estes mar-
o Império (1822-1889) e
cos, nos vemos obrigados a considerar as
a República (1889 aos dias
atuais). No entanto, a
forças educativas, as formas de educação e
experiência educativa não
se encontra plenamente seus sujeitos submetidos a este clássico e po-
determinada por marcos
temporais tão rígidos deroso regime de verdade. A adesão a tais
ou pelas formas
princípios de inteligibilidade funcionaria para
administrativas.
apreender os acontecimentos no campo da
educação, mas também valeria como chave
de leitura para o exame dos fenômenos religiosos, econômicos, judi-
ciais e outras experiên­cias culturais. A repartição de nossa História
nestes três largos perío­dos funciona como uma espécie de chave-
mestra, que permitiria compreender todas as ações humanas. No en-
tanto, as pesquisas mais recentes têm demonstrado que o emprego
desses marcos e a unidade que a adoção deles sugere são insuficien-
tes para explicar a complexidade da ação social nos períodos assim
definidos. Nesta direção, propomos trabalhar com essa periodização,
sensíveis a perceber que a expe­riência educativa não se encontra
plenamente determinada pela forma administrativa vivida no que foi
uma “América portuguesa” que, de modo tenso, desde então, vem
construindo a forma de um Estado independente.
Uma segunda questão que precisa ser explicitada se refere à
própria noção de “educação”. Em nosso caso, procuramos descrever
este tipo de experiência considerando suas formas institucionaliza-
das e não institucionalizadas. Assim, a ação invisível que se processa
no espaço privado, no convívio íntimo, nas leituras comuns, nas con-
versas, músicas, danças, festas, procissões e jogos, por exemplo,
precisa ser considerada de modo a trazer uma população de aconte-
cimentos, freqüentemente esquecida nos estudos de História da
Educação, e que ajuda a compreender como o homem vem sendo
educado e como temos compreendido a própria possibilidade de

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

educar o homem. Ao lado desses, também A educação não esgota


devemos observar a heterogeneidade das seu significado na escola.
A educação, como prática
forças educativas e iniciativas específicas social e histórica, é plural
e adquire formas e
que elas organizam no vasto território que se sentidos diversos,
pretende unificar, sendo esta uma das fun- conforme os espaços,
os tempos, os sujeitos
ções atribuídas à educação que passa a se e os grupos que a
experimentam e
processar nas escolas. Com isto, também va- vivenciam. Assim, as
le chamar atenção para as iniciativas criadas, experiências educativas
no século XIX conheceram
mantidas e expandidas pelo aparelho do Es- formas institucionalizadas
e não institucionalizadas.
tado, pelas Igrejas, empresários, filantropos
e agentes da intelectualidade, como médi-
cos, juristas e militares, por exemplo. É por meio da ação articulada
desta gente que, pouco a pouco, vão sendo criadas escolas públicas,
privadas, subvencionadas (diurnas e noturnas), asilos, colégios e li-
ceus, internatos e cursos superiores no vasto território brasileiro. Do
mesmo modo, é preciso considerar o poder exercido pelas socieda-
des, academias e grêmios, instâncias educativas que organizam ini-
ciativas voltadas para educar a população, constituída pela “boa
sociedade”, mas também por crianças pobres, negros, índios, imi-
grantes e mulheres.
Essa nota breve procura demonstrar a complexidade do tecido
social a que nos referimos. Do mesmo modo, funciona como atestado
de que a educação ingressara definitivamente na agenda das preocu-
pações sociais, sendo objeto de soluções variadas para atender a uma
população heterogênea que precisava ser minimamente educada e
disciplinada.
Um dos aspectos da disciplina a ser adquirido pela educação de-
veria ser a construção da própria idéia de Brasil. Nunca é demais lem-
brar que esta tarefa inacabada não foi obra atribuída exclusivamente
à escola. De modo assemelhado a outras nações, este gesto ambicio-
so, a exigir esforço proporcional ao tamanho do território e variedade
de seu povo, supôs a imposição de um conjunto de monopólios por

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A invenção do Brasil e
parte do Estado, como foi (e continua sendo)
a invenção da escola o monopólio sobre a tributação, justiça, al-
constituem faces de uma
mesma moeda, ou seja, fândega, moeda e educação escolar para enu-
integram o conjunto de merar alguns. Articulado, este conjunto de
ações articuladas no
processo de formação ações procurou promover a unidade territo-
do Estado imperial. Por
isso, um dos aspectos da
rial, submetida a medidas variadas visando
disciplina a ser adquiridounificar língua, moeda, pesos, medidas, sím-
pela educação escolar
deveria ser a construção bolos nacionais e também alimentação, vestu-
da própria idéia de Brasil.
ário, regras de convívio social, por exemplo. É
por meio deste vasto arco de políticas que se
pretendeu construir uma nação. Se pretendeu construir o Brasil.
Mas qual Brasil foi imaginado por homens e mulheres do passado?
Foi um Brasil especial e único, que procurou conhecer experiências
internacionais, especialmente dos países considerados civilizados,
para implantar ao sul do Equador uma experiência assemelhada? Co-
mo veremos, a peculiaridade da política, da economia, da cultura, do
regime de trabalho e da educação, dentre outras, organizou aqui uma
sociedade singular, especial e única que fez combinar o sonho da ci-
vilização com escravidão e exploração aguda, associadas a um regime
de reprodução das desigualdades de longa duração, cujos sinais ainda
podem ser facilmente encontrados em nosso presente.
Nesse quadro, escrever uma História da Educação do século XIX
exige debater datas e categorias, ferramentas necessárias para de-
senvolver esta forma de reflexão. Portanto, como podemos descrever
o próprio século XIX? A resposta a esta questão, como estamos tentan-
do assinalar, exige atenção paciente e rigorosa no que diz respeito ao
problema que se pretende abordar. No nosso caso, estamos conside-
rando a impossibilidade de nos fixarmos nos marcos de uma História
político-administrativa. Para tanto, em cada aspecto destacado, pro-
curamos observar sua historicidade e as lutas de que resulta, recuan-
do a séculos anteriores e posteriores para tornar visível suas transfor-
mações, deslocamentos, descontinuidades e, também o que resiste,
aquilo que permanece.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Com este movimento, procuramos ressaltar que a própria idéia


de Brasil vem sendo construída ao longo do tempo e nem sempre foi
a mesma, para o que concorre o lugar reservado à educação no âmbi-
to deste audacioso projeto. Inversamente, cabe discutir o que a edu-
cação vem efetivamente fazendo para “inventar” o próprio Brasil.
Cabe sublinhar que este livro se beneficia de novas ferramentas
de pesquisa e avanços nos estudos no campo da História da Educação
nas três últimas décadas, o que tem criado ricas possibilidades para
se compreender “outros presentes”. Todavia, é forçoso reconhecer
duas dificuldades complementares decorrentes do atual estado dos
estudos históricos da educação. O crescimento da pesquisa na área
em quantidade e qualidade tem tornado quase impossível o acompa-
nhamento cuidadoso desta produção. Contudo, a despeito disto e
devido à extensão e à complexidade do assunto, ainda existem lacu-
nas consideráveis no conhecimento histórico disponível. Portanto, se
há crescimento, também detectamos rarefação e foi sob estas con-
dições que trabalhamos, o que fornece alguma medida do alcance
deste livro.
Este livro procura ser uma síntese da educação brasileira no perí-
odo do Império e, sobre esta marca, gostaríamos de destacar alguns
princípios que presidiram sua elaboração. Pro-
curamos estabelecer um distanciamento em
relação às reflexões sobre a educação no sé- A educação no século XIX
foi representada por parte
culo XIX que pontuam nos manuais de História da historiografia clássica
da Educação brasileira. Nesses manuais, a como signo do vazio, do
atraso e das trevas. A
educação oitocentista é, via de regra, repre- memória sobre a escola
sentada sob o signo do vazio, do atraso, das oitocentista emergiu como
penumbra, silenciada
trevas ou das sombras. Sob este registro, pou- pelas glórias dos projetos
republicanos de educação.
co ou nada havia sido feito, sendo que o modo No entanto, no Império
de medir as iniciativas do “antigo regime” fo- brasileiro, a instrução
apareceu como um
ram dadas ou arbitradas pelos que sonharam e problema geral, que
lutaram por uma determinada República. Nes- mobilizou agentes e
estratégias diversas
ta nossa “nova síntese”, procuramos não re- ao longo do século.

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petir as teses generalistas (por exemplo: a expulsão dos jesuítas no


âmbito da reforma pombalina fez com que se extinguissem todas as
iniciativas educacionais no Brasil; a instrução primária não se desen-
volveu porque estava nas mãos das elites provinciais; a educação no
Império esteve voltada apenas para a formação das elites etc.). Evita-
mos esse tipo de anacronismo, procurando examinar aquele presente,
explorando o que ele teve de especial, inédito e irrepetível. Para tan-
to, nos apoiamos em pesquisas acadêmicas atualizadas, manejando,
igualmente, um núcleo documental diversificado, de modo a fazer
aparecer a instrução como um problema geral, que mobilizou agentes
e estratégias diversas ao longo do regime monárquico.
Este livro também não nasce isolado. Ele integra uma coleção
que, por sua vez, pode ser compreendida em um movimento que,
principalmente, a partir da década de 1990, vem se esforçando na
construção e problematização de balanços e sínteses da produção de
conhecimento em História da Educação brasileira. Mais uma vez a
idéia de síntese, de uma inteligência total sobre um determinado
fenômeno. Ao assumir este desafio, menos que tomá-la como uma
solução definitiva, consideramos que a síntese deve ser vista, ela
mesma, como um problema. É um tipo de saber provisório e, como
qualquer outro, é filho de seu tempo, das condições de produção
existentes e da operação desenvolvida por seus autores.
A síntese pode ser entendida como uma experiência importante
do pensamento (da produção de conhecimento) que contribui para a
compreensão dos nossos próprios objetos, de modo a possibilitar sua
inscrição em redes de relações mais complexas, evitando que os mes-
mos sejam vistos de forma isolada. Nesse sentido, esta obra pretende
ser uma contribuição para estudantes de graduação e para estudiosos
e interessados na reflexão acerca da educação de modo geral.
Nesta direção, cabem ainda algumas observações adicionais so-
bre nossos gestos de criação. Procuramos relacionar um expressivo
conjunto de pesquisas de base feitas nos últimos anos sobre objetos

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

pontuais para, com isso, poder estabelecer um quadro geral e atuali-


zado do debate acerca da educação no século XIX. Na impossibilidade
de trabalharmos com tudo o que já existe, ao longo do livro indica-
mos uma farta bibliografia, base de dados e sítios na internet por
meio dos quais o leitor pode dar seqüência a seus estudos com uma
boa margem de segurança.
Por fim, chamamos a atenção para a or-
Para se pensar o Brasil há
dem da leitura que estamos propondo, cientes necessidade de uma
reflexão robusta acerca
de antemão de que os leitores vão abrir o livro de sua diversidade,
quando quiserem, na página que desejarem, reconhecendo as
desigualdades instauradas
submetendo nossa palavra às suas experiên- também em termos de
matéria educativa.
cias e expectativas. Ainda assim, gostaríamos
de assinalar que ordenamos nossa palavra em
torno de quatro núcleos fundamentais.
Inicialmente, trabalhamos com a hipótese de que seria impossí-
vel pensar as formas da educação no Império sem analisar o processo
de construção do Estado brasileiro. Para nós, o jogo social mais amplo
ajuda a compreender o jogo educacional, colaborando, inclusive, pa-
ra se perceber e aquilatar as funções atribuídas às diversas iniciativas
educativas. Neste caso, também trabalhamos com a tese de que para
se pensar o Brasil há necessidade de uma reflexão robusta acerca de
sua diversidade, reconhecendo as desigualdades instauradas também
em termos da matéria educativa. Neste sentido, o Capítulo 1 oferece
um quadro geral das tensões sociais que ajudaram a consolidar o Es-
tado Imperial e seu efeito na arena educativa.
No segundo capítulo, procuramos dar visibilidade às principais
forças organizadas que atuaram no terreno da instrução no Brasil Im-
perial. Ganham o centro da cena o aparato do Estado, as forças reli-
giosas e as forças organizadas em sociedades, agremiações, acade-
mias e clubes, por exemplo. Este conjunto de forças vai ser o principal
responsável pela emergência dos equipamentos escolares e por uma
vasta série de iniciativas de caráter educativo desenvolvidas no Impé-

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rio brasileiro. Ora aliados, ora em campos distintos, os aparatos pú-


blico, religioso e “civil” não podem ser vistos como forças isoladas,
completamente separadas. As ações que promovem se encontram ar-
ticuladas, embora nem sempre na mesma direção, com a mesma in-
tensidade e valendo-se dos mesmos recursos, como fica evidenciado
na produção das formas educativas do século XIX.
No terceiro capítulo, a heterogeneidade das formas educativas
foi constituída em objeto de nossa atenção. Neste momento, lança-
mos luz sobre os três níveis de ensino: elementar, secundário e supe-
rior, para dar a ver as condições particulares de desenvolvimento de
cada um. Emerge deste exame um quadro da malha escolar marcado
pela desigualdade, como desigual era a própria sociedade que produ-
zia a escola. Assim, com a criação de iniciativas educativas diferen-
ciadas, procurou-se construir um regime de disciplina geral, no qual
a escola passou a desempenhar a função de marcar, pelos saberes que
administra e crenças que difunde, a posição de cada um no tecido
social.
No penúltimo capítulo, as ações de sujeitos sociais bem precisos
são objeto de nosso estudo, chamando a atenção para a diversidade
de agentes sociais que atuam e/ou são afetados pelas iniciativas edu-
cacionais. São professores, mulheres, negros, escravos, libertos, indí-
genas, ingênuos e crianças que se movimentam na sociedade impe-
rial, sendo alvo e/ou patrocinando iniciativas educativas. São
brasileiros, mas também imigrantes e/ou naturalizados que atuam na
sociedade, que procuram interferir no mundo público e privado. São
famílias, mas também órfãos e abandonados que ganham visibilidade
e dizibilidade no âmbito das políticas gerais desenvolvidas na com-
plexa sociedade imperial.
Concluímos nosso livro, com alertas. A História da Educação se
constitui em uma forma de pensar a educação e em uma ferramenta
necessária para nos pensarmos enquanto sujeitos submetidos a deter-
minados padrões educativos. E ambos são transformáveis e flexíveis.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Portanto, o saber que ora temos a alegria de partilhar com um públi-


co mais extenso é rigorosamente datado e se encontra determinado
pelas nossas tradições de pesquisa, condições de trabalho e pelas
competências e limites dos autores. Ainda assim, e até por isto mes-
mo, esse é um saber imprescindível para quem deseja ultrapassar o
estágio atual da ciência disponível sobre a educação no surpreenden-
te, aberto e inapreensível século XIX.

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“Havia um país chamado
Brasil; mas absolutamente não
havia brasileiros...”
Saint-Hilaire. Viagem pelo distrito dos diamantes
e litoral do Brasil. Itatiaia: Edusp, 1974.

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1
Formas do Brasil e Formas
da Educação

Os historiadores da educação brasileira têm chamado a


atenção para os processos de constituição da forma escolar de
educação, implementada ao longo do século XIX, em meio a disputas e
tensões, associada aos projetos de nação e à formação do Estado bra-
sileiro. Exorcizando marcos cronológicos rígidos e lineares, os historia-
dores têm produzido um novo olhar sobre o Oitocentos, caracterizan-
do-o como um período fértil de debates,
iniciativas e práticas educativas. A educação, como prática
social e histórica, é
Estes novos estudos, em sua diversidade
constituída por processos
teórico-metodológica, se caracterizam pelo educativos formais ou
informais, intencionais
abandono de explicações generalizantes sobre ou não, diversificados
os supostos insucessos da história educacional e difusos entre os grupos
sociais, como a educação
brasileira, na medida em que enfocam a hete- familiar, as oficinas de
artistas e artesãos, os
rogeneidade das formas de educação e de
sistemas de aprendizagem
apropriação dos modelos edu­cacionais, enfati- do trabalho agrícola
e rural, os professores
zando a pluralidade das possibilidades históri- domésticos ou
cas e usos diversos que os agentes fazem das preceptores, as associações
religiosas
instituições educativas, escolares e não-esco- e leigas, entre outros.
Nesses processos
lares, remodelando e reconstruindo os espa-
educativos, participaram
ços, os saberes e os tempos sociais. indivíduos oriundos das
classes populares, brancos,
As pesquisas historiográficas recentes for- livres, indígenas, escravos,
necem subsídios para que possamos construir forros e a população
mestiça, não obstante a
outras percepções sobre a diversidade de for- exclusão e os preconceitos
sofridos por tais grupos
mas de educação e dos processos múltiplos de
sociais nas instituições
socialização de indivíduos e grupos sociais ao formais de educação.

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longo do tempo. Para tanto, como propôs Fonseca (2006, p. 58), foi
preciso romper com as perspectivas até então hegemônicas na histo-
riografia da educação brasileira, que vinham priorizando, desde a co-
lonização, a Igreja e o Estado como agências centrais, quase exclusivas
nos processos educativos. Tal abordagem, ancorada em concepções do
presente, dedicou pouca atenção aos processos educativos formais ou
informais, intencionais ou não, como as oficinas de artistas e artesãos,
os sistemas de aprendizagem do trabalho agrícola e rural, os professo-
res domésticos ou preceptores, entre outros. Nesses processos educa-
tivos, participaram indivíduos oriundos das classes populares, brancos,
livres, indígenas, escravos, forros e a população mestiça, não obstante
a exclusão e os preconceitos sofridos por tais grupos sociais nas insti-
tuições formais de educação.
Nesse sentido, é necessário problematizar os processos de circula-
ção de modelos de educação escolar, calcados nos ideais de civilização
e progresso, e considerar as experiências históricas singulares de im-
plementação numa sociedade mestiça, que se apropriou de modelos
estrangeiros no contexto de uma cultura plural e híbrida. Com isso, é
preciso perceber como o movimento dos defensores do modelo escolar
de educação para o Brasil do século XIX, o qual, em linhas gerais, im-
plicou apropriação e remodelação de espaços, conhecimentos e valo-
res próprios de instituições e concepções de educação, atuou no senti-
do de inventar e produzir a escola como um lugar próprio, específico,
destinado à educação de crianças e jovens.
No Império Português, inclusive na sua colônia americana, os pro-
fessores régios aportaram nas principais vilas,
ainda em fins do século XVIII, encontrando aqui
Na formação do Brasil e
dos brasileiros, inventar também a diversidade e a heterogeneidade
a forma escolar implicou
remodelar espaços,
das práticas educativas. No que se refere à ins-
tempos, conhecimentos, trução e ao ensino das letras, a inserção dos
valores, instituições e
concepções de educação, indivíduos na cultura escrita, em sociedades
produzindo a escola como de tradição predominantemente oral, se fazia
um lugar específico de
educação. no contato direto com os grupos originais de

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

convivência e a partir de iniciativas muito distintas, tais como a educa-


ção doméstica ou a contratação de mestres e preceptores, leigos e
religiosos, pelas famílias, as ordens religiosas, as irmandades, os semi-
nários, os recolhimentos e asilos, as associações filantrópicas, as cor-
porações de ofícios e as oficinas, entre outras (lopes e faria filho e veiga,
2003; vidal, 1999; fonseca, 2006).
No âmbito da educação escolar, a reforma pombalina (1759-1772)
desencadeou o processo de expulsão dos jesuítas de Portugal e de todo
o seu Império, o que acarretou a reorganização do ensino público oficial.
Tornava-se então obrigação do Império luso garantir a educação gratuita
à população, não de forma igualitária e homogênea, em todo o território
metropolitano e colonial. Para tanto, a reforma dos Estudos Menores
criou o sistema das Aulas Régias, que passariam a ser financiadas pelo
subsídio literário e coordenadas pelo Diretor Geral de Estudos.
Para a colônia americana, entre o final do século XVIII e as pri-
meiras décadas do século XIX, foram enviados cerca de 17 mestres
régios de ler e escrever, distribuídos entre Rio de Janeiro, Bahia, Mi-
nas Gerais, São Paulo, Pará e Maranhão. Estes professores régios con-
viveram aqui com a multiplicidade de práticas e formas educativas
coexistentes, inclusive com os mestres leigos e religiosos, padres e
capelães de engenhos, que nas áreas rurais e urbanas ensinavam as
primeiras letras ou lecionavam disciplinas isoladas (silva, 2006). Na
cidade do Rio de Janeiro, elevada à sede do
Vice-reinado em 1763, há indícios de que exis-
As aulas régias foram
tiam, entre 1702 e 1812, cerca de 55 mestres divididas em cadeiras
elementares de ler,
particulares. Quando D. João e sua comitiva escrever e contar e em
desembarcaram na cidade, em 1808, havia 20 cadeiras isoladas de
Humanidades, como
mestres régios, além dos mestres e profissio- Gramática Latina,
nais do ensino particular (cavalcanti, 2004, p. Retórica, Poética, Filosofia
Moral, Desenho, entre
166-167). outras.
Nas diferentes regiões do Império Portu-
guês, a idéia de educar e instruir a população, por meio de instituições
escolares formais, foi adquirindo consistência no âmbito das políticas e

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Gondra e Schueler

das iniciativas públicas, a partir do final do século XVIII. A reforma pom-


balina consistiu numa tentativa de criar um sistema de ensino capaz de
unir portugueses e europeus sob paradigmas da Ilustração, reinterpreta-
dos e apropriados conforme o modelo de Estado absolutista, estamental
e hierárquico, como o Império Português (almeida, 2003, p. 113).
O despotismo ilustrado procurava moder-
Os professores régios nizar o Estado e a sociedade tradicional portu-
conviveram aqui com a
multiplicidade de espaços, guesa por meio de um programa fundamenta-
práticas e formas
educativas.
do nas idéias iluministas visando à atualização
do sistema educacional, das políticas econô-
micas e da própria administração pública capazes de conservar e en-
grandecer o Império Português. A idéia era retirar Portugal do atraso e
reabilitar o “poderoso império luso-brasileiro”, sonho que vinha sendo
acalentado desde o final do século XVIII por grupos de intelectuais ilus-
trados, inclusive brasileiros como José Bonifácio de Andrada e Silva,
Hipólito José da Costa, Manoel de Arruda Câmara e o bispo José Joa-
quim de Azeredo Coutinho, tendo como principal defensor o ministro
Rodrigo de Souza Coutinho, à frente do governo português nos períodos
de 1796-1803 e 1807-1812.
A concretização da “utopia de um poderoso império” parecia estar
próxima, quando a guerra entre a França napoleônica e as monarquias
absolutistas continentais (Inglaterra, Áustria, Rússia e Prússia) apres-
sou os acontecimentos diplomáticos e políticos em Portugal, invadido
pelas tropas francesas em novembro de 1807. Diante desta situação, a
Coroa decidiu transferir a sede do Império para a América, desembar-
cando na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro, nos primeiros
meses de 1808.
A abertura dos portos em 1808 e a revogação das proibições à co-
mercialização e à produção de manufaturas em territórios coloniais
consistiram em medidas econômicas que, além de representarem o pro-
gressivo afrouxamento do exclusivo colonial, incrementaram a econo-
mia atlântica e a circulação de pessoas, comerciantes, cientistas, via-
jantes, mercadorias, escravos, livros e idéias entre os três continentes

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

— América, África e Europa —, movimentando A abertura dos portos em


ainda mais os portos das maiores cidades brasi- 1808 é considerada pela
historiografia um marco
leiras, como Salvador e Rio de Janeiro (amado e simbólico significativo
figueiredo, 2001, p. 47). Ao se transformar em no “processo de
interiorização da
sede do governo, o Rio de Janeiro adquiriu es- metrópole” e no
afrouxamento do exclusivo
tatuto de Corte, tornando-se o centro das deci- colonial.
sões políticas e sede da monarquia, o que acar-
retou céleres transformações na vida cultural e social da cidade. Cerca
de quinze mil pessoas tomaram parte na comitiva real e desembarca-
ram nos portos coloniais, principalmente no Rio de Janeiro, trazendo
sérios problemas urbanos, como crises no abastecimento, carência de
moradias e carestia dos aluguéis, posto que a cidade já contava, à épo-
ca, com uma população de aproximadamente 66 mil habitantes.
A Coroa, interessada em criar laços de solidariedade política com as
elites do Centro-Sul, cuja rede de comércio externo e interno já aponta-
va a hegemonia econômica do Rio de Janeiro desde o final do século
XVIII, providenciou a doação de terras e a distribuição de títulos de no-
breza. Analisando o desenvolvimento do abastecimento, Lenharo (1979)
demonstrou como as políticas de construção e reforma de estradas e de
doação de sesmarias contribuíram para interligar as zonas produtoras do
Centro-Sul (Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e região Sul) e para
a consolidação de produtores e comerciantes de mercado interno. Ou-
tros setores beneficiados pela burocracia da Corte foram a aristocracia
rural e os comerciantes de grosso trato, responsáveis pelo comércio
agroexportador e pelo tráfico africano, os quais desempenharam papel
fundamental no financiamento de companhias de seguro e navegação,
viabilizando as despesas do Estado em troca de mercês, honrarias, privi-
légios e monopólios (fragoso, 1992). Ao beneficiar o Centro-Sul, a Coroa
visava assegurar a integração econômica da região, garantindo bases de
sustentação para o governo, no momento em que as resistências e con-
testações regionais internas — sobretudo no Norte, no Nordeste (Mara-
nhão, Pará, Pernambuco, Bahia) e parte do extremo Sul (Cisplatina), e
os processos de independência das colônias espanholas —, indicavam as

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Gondra e Schueler

tensões e os riscos de fragmentação do Império e, mais do que isso, a


circulação de “perigosas” propostas de emancipação (lenharo, 1979).
O processo de “interiorização da metrópole”, expressão consagra-
da por Maria Odila da Silva (1972), acabaria por contribuir para a con-
solidação de um poderoso bloco de interesses dos grupos sociais e po-
líticos, que não apenas apoiaram a elevação do Brasil a Reino Unido a
Portugal e Algarves em 1815, como também, mais tarde, sustentaram
o projeto de independência e separação da metrópole. Nos anos de
1820 a 1822, as medidas recolonizadoras tomadas pela Corte portugue-
sa em relação ao território ultramarino, na chamada Revolução do Por-
to, tornaram insustentável o sonho de criação e conservação do pode-
roso Império Português (souza, 2000).
Para além da centralidade política representada pela transforma-
ção do território brasileiro em sede do Império Português e o seu papel
no complexo movimento de autonomização do Brasil, no que se refere
a políticas e medidas relativas à educação, a historiografia consagrou
o processo de “interiorização da metrópole”, decorrente da instalação
da Corte no Rio de Janeiro e da formulação da chamada “política joa-
nina”, como marco importante nas transformações sociais, políticas e
culturais pelas quais passaria a vida e a educação coloniais no início dos
Oitocentos.
Como sede do Império, o Rio de Janeiro assistiu à instalação de
uma série de instituições político-jurídicas e econômicas, tais como: o
Ministério e o Conselho de Estado, o Desembargo do Paço, a Casa de
Suplicação, a Intendência da Polícia, a Mesa de Consciência e Ordens,
o Erário Régio, o Conselho Real de Fazenda, a Junta de Comércio, Agri-
cultura, Fábricas e Navegação e o Banco do Brasil.
Nos campos educacional, científico e cultural instalaram-se insti-
tuições como a Academia Real de Marinha (1808), a Academia Real Mi-
litar (1810), os cursos de Economia, Agricultura e Química (1808/1810),
a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, a Biblioteca Pública (1810),
o Real Jardim Botânico (1810), a Missão Artística Francesa (1816), os
Cursos Médico-Cirúrgicos do Rio de Janeiro e da Bahia (1808) e o Museu

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Real (1818). A vinda de missões estrangeiras de A política joanina se


estudo e pesquisa e a implantação da Imprensa destacou pela criação de
instituições educacionais,
Régia intensificaram a circulação de livros e científicas e culturais, que
visavam transformar a
idéias, ao mesmo tempo em que aumentou o
cidade do Rio de Janeiro
interesse pela importação de livros para a for- em símbolo da civilização
e sede do Império
mação de bibliotecas particulares ou para o Português.
comércio (bessone, 1999). A Mesa do Desembar-
go do Paço, recém-instalada, era responsável pelo controle da circula-
ção de textos, exercendo a atividade de censura e licenciamento das
obras. No âmbito cultural e educacional, a política joanina também
indicava o interesse da Corte portuguesa em construir, nos trópicos, o
novo Império Português (lyra, 1994, p. 44).
As medidas do governo joanino se notabilizaram pela criação de
instituições científicas e culturais e cursos superiores, privilegiando a
formação das elites políticas e intelectuais, bem como de cirurgiões e
médicos, de militares para a defesa do território e de quadros burocrá-
ticos para a administração e o serviço do Estado, como engenheiros e
técnicos.
No que se refere à instrução pública e ao ensino das primeiras le-
tras, a historiografia aponta que não houve rupturas significativas em
relação ao conjunto das reformas pombalinas, permanecendo o siste-
ma de aulas régias, que foram assim denominadas entre 1759 e 1822,
momento em que passaram a ser chamadas de aulas públicas. Analisan-
do a montagem das aulas régias no território brasileiro, em 1772, Car-
doso encontrou um total de 44 mestres indicados para exercerem as
funções docentes na colônia, sendo a maioria deles destinada à Per-
nambuco (11 mestres régios), à Bahia (10) e ao Rio de Janeiro (7).
Conforme a autora:
O interesse do Estado monárquico, sob o reinado de D. João VI, era desen-
volver a formação de quadros dirigentes para a Administração e o Exército.
O acesso aos estudos continuava prioritário para aqueles que, por sua posi-
ção na sociedade, podiam vir a ocupar cargos na administração pública ou
privada (...). Assim, os Estudos Menores não tiveram maior significação (...)
(cardoso, 2003, p. 125).

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A idéia de um Império Apesar do caráter estatal e dos fins políti-


luso-brasileiro, nos anos cos da educação escolar, enunciados e almeja-
iniciais da década de
1820, começava a ceder dos pelo Império Português, remontarem aos
lugar a um novo projeto:
o projeto de constituição
finais do século XVIII, no Brasil, observa-se
da Independência e da que, na segunda década dos Oitocentos, se in-
construção do Império
do Brasil. tensificaram as discussões, os projetos e as
medidas legais direcionados à ampliação da
instrução pública, juntamente com os processos de construção do Es-
tado independente e do amadurecimento da idéia de formação de um
novo Império — o Império do Brasil.
De acordo com Mattos, a partir deste momento, e, sobretudo, com
os acontecimentos que levaram à concretização da emancipação políti-
ca em setembro de 1822, a palavra brasileiro adquiriu novos sentidos.
Deixava, então, de apenas qualificar uma profissão (aquela dos explora-
dores e comerciantes do pau-brasil) ou de designar o grupo de portugue-
ses e seus descendentes, os nativos e criollos da América, naturais da
terra, e os escravos africanos nascidos na colônia. A expressão deixava,
ainda, de se relacionar unicamente à posição política daqueles indivídu-
os que, no acirramento das disputas pela independência, defendiam a
permanência de D. Pedro I, visando à legitimação de uma nova ordem
monárquica independente de Portugal. Com a Independência do Brasil,
a palavra brasileiro passou, então, a expressar e a adjetivar um corpo
político autônomo. Assim, “o Império do Brasil parecia encontrar, final-
mente, o seu conteúdo — os brasileiros” (mattos, 2003, p. 152).
No entanto, como demonstra o autor, este conteúdo estava longe
de ser definido. Ao contrário do que normalmente se divulga nos ma-
nuais de história e na mitologia da fundação do Brasil, a Independência
não foi um processo tranqüilo e ordeiro, representação consagrada na
famosa tela “Independência ou Morte”, pintada por Pedro Américo e
apresentada em 1888, que acabaria por se tornar a versão oficial dos
acontecimentos:
O processo de autonomização não ocorreu da mesma maneira em todas as
partes do Brasil. As províncias coligadas primeiro selaram o acordo em torno

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

da soberania monárquica, desde que constitucional; mas este processo envol-


veu batalhas sangrentas e uma luta armada contra as tropas portuguesas aqui
instaladas. Em Pernambuco, na Bahia e no Pará, houve batalhas sangrentas
contra as facções contrárias à autonomização do Brasil (souza, 2000, p. 61).

Em vastas regiões coloniais, havia forças políticas favoráveis à ma-


nutenção da antiga ordem e contrários à hegemonia centralizadora exer-
cida pelo Centro-Sul, por meio da Corte. Havia, ainda, forças que busca-
vam defender outros projetos para a construção da nação, inclusive com
propostas radicais, republicanas e federalistas, que incluíam a amplia-
ção das liberdades públicas e a participação política dos caboclos da
terra, cabras, libertos e escravos, como atestam os movimentos revolu-
cionários de Pernambuco, de 1817, e a Confederação do Equador, em
1824. Posteriormente, as chamadas revoltas regenciais — Cabanagem
(1835-1840), no Pará; Balaiada (1838-1841), em Maranhão e Piauí; Caba-
nos (1832-1835) e Praieira (1840-1848), em Pernambuco; Farrapos (1835-
1845), em Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Revoltas Liberais (1842),
em Minas Gerais e São Paulo, além das revoltas escravas ocorridas em
Minas Gerais (Carrancas, 1833), na Bahia (Malês, 1835) e no Rio de Janei-
ro (Manoel Congo, 1838), demonstravam a efervescência das tensões
sociais e a pluralidade dos projetos políticos em conflito. O que estava
em jogo, nas guerras de Independência e nas re-
voltas regenciais, era a disputa pela interpreta-
Ao contrário do que
ção do Brasil e pela definição do ser brasileiro, normalmente se
divulgam nos manuais de
em meio aos embates pela delimitação dos pode-
história e na mitologia
res locais e provinciais (morel, 2003, p. 56). da fundação do Brasil,
a Independência não foi
Diante da complexidade e das tensões polí- um processo tranqüilo
ticas e sociais vivenciadas no processo de Inde- e ordeiro. O que estava
em jogo, nas guerras
pendência do Brasil, a partir de 1822, a emanci- de Independência e nas
revoltas regenciais,
pação e disputas pela constituição do Estado e era a disputa pela
suas instituições colocaram em questão o pro- interpretação do Brasil
e pela definição do ser
blema da construção da nação e do ser brasilei- brasileiro, em meio
ro. Aos olhos do naturalista Saint-Hilaire, via- aos embates pela
delimitação dos poderes
jante de uma expedição científica que percorreu locais e provinciais.

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territórios do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo,


Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, entre 1816 e 1822, havia
um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia ainda os brasi-
leiros. Era preciso, então, construir um povo e uma nação.

Formas da educação na construção do povo


e da nação
“A invenção do Brasil” constituía-se num projeto político que, gestado
no processo de Independência, foi incentivado no período regencial
(1831-1840) e ao longo de todo o Segundo Reinado (1840-1889), manifes-
to no incentivo às instituições educacionais, culturais e científicas e no
mecenato às artes e à produção cultural — ações que visavam promover
um corpo de especialistas produtores de conhecimento científico, os
quais colaborariam para difundir a língua pátria, constituir a literatura
nacional e conhecer a natureza, o território e a população do Império.
Um dos marcos desse processo de “invenção de tradições” nacio-
nais foi o constante apoio financeiro e concessão de privilégios da Coroa
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838.
Tendo como modelo as academias européias, o IHGB, de acordo com
Guimarães (2003), serviu à institucionalização da pesquisa histórica e
geográfica, assumindo o controle da produção científica nestes campos,
tornando-se importante lugar de construção da memória nacional.
A idéia de construir o Império do Brasil e a identidade nacional
também pode ser observada na elaboração de projetos e nas medidas
tomadas para a organização do ensino secundário no país. A criação do
Imperial Colégio de Pedro II, em 2 de dezembro de 1837, marcava a
produção de um “lugar de memória” nacional, não apenas pela asso-
ciação com a data de comemoração do aniversário do imperador D.
Pedro II e pelo próprio nome de batismo da instituição, mas, sobretu-
do, pela constituição de uma rede de símbolos e representações cultu-
rais que exaltavam o Império e a figura do rei, presente em variadas
ocasiões solenes ou em visitas inesperadas ao colégio.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

A construção do Império do Brasil exigia um aparato jurídico e


formação de quadros para a sua gestão. Nessa direção, os primeiros
cursos jurídicos brasileiros, após tenso processo de debates na Assem-
bléia Constituinte de 1823 sobre a sua localização, foram criados em
1827 e instalados nas cidades de Olinda (depois Recife) e de São Paulo.
Nas Faculdades de Direito, os bacharéis obtinham não apenas a forma-
ção para atuarem como juristas e advogados, mas também eram for-
mados na “aprendizagem do poder”, posto que grande parte dos egres-
sos destes cursos integrou a política e a burocracia estatais, ocupando
os cargos de deputados, senadores, diplomatas, presidentes de provín-
cia, além dos cargos relativos à Justiça, como os de juízes, promotores
públicos e chefes de polícia.
Ao mesmo tempo em que buscava governar, o Estado revalidava e
estabelecia hierarquias e distinções sociais marcadas pela criação de
instituições educacionais destinadas a públicos distintos, como foi o
caso do Imperial Colégio de Pedro II e dos cursos superiores de Medicina
e de Direito, por exemplo. Tais instituições foram erigidas para a forma-
ção de elites afinadas com o projeto civilizató-
rio do Império e para a constituição de quadros “A invenção do Brasil”
para o governo do Estado. A hierarquia entre constituía-se num projeto
político que demandava
cidadãos foi legitimada, como veremos a se- a construção da idéia de
guir, pelos critérios censitários para o exercício unidade nacional, a
conformação de um
da cidadania, pela exclusão de direitos políti- território e de um povo,
forjando um passado
cos aos escravos. Para o conjunto de cidadãos comum, sob a direção das
e súditos do Império, a instrução elementar, classes senhoriais e das
elites intelectuais e
por meio das escolas públicas de primeiras le- políticas. Neste sentido, é
tras, era consi­derada um dos mecanismos fun- que podemos compreender
o incentivo às instituições
damentais para a constituição de laços e iden- culturais e científicas, tais
como o Instituto Histórico
tidades entre os habitantes do Império e o e Geográfico Brasileiro
“mundo do governo”, ou seja, para a “forma- (IHGB), o Imperial Colégio
de Pedro II e os cursos
ção do povo” brasileiro (Mattos, 1990). superiores de Direito
O objetivo da política de estabelecimento (Pernambuco e São Paulo)
e Medicina (Bahia e Rio
da instrução pública nas primeiras décadas de Janeiro).

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que se seguiram à Independência consistia em produzir identidades e


laços de interdependência sociais, integrando os brasileiros, o povo,
conjunto dos cidadãos ativos e inativos ao Estado. Logo após a Indepen-
dência, uma das primeiras medidas do Primeiro Reinado no âmbito da
instrução foi o incentivo à abertura de aulas e escolas pelos particula-
res, por meio da Lei de 20 de outubro de 1823 (Mattos, 1990, p. 270). A
constituição de aulas públicas, escolas, liceus, colégios, instituições de
ensino primário, secundário e superior relacionava-se às preocupações
com a “formação do povo” e às intenções políticas mais amplas de
construção da nacionalidade e dos espaços públicos.
Por essa razão, a instrução surgiu como um dos direitos fundamen-
tais de garantia individual dos cidadãos brasileiros, estabelecido pela
Constituição outorgada em 1824, no artigo 179, parágrafo 32, logo após
a dissolução da Assembléia Constituinte de 1823: “a instrução primária
era gratuita a todos os cidadãos”.
Seguindo as diretrizes liberais que estabeleceram o direito à ins-
trução como uma das garantias da liberdade e da igualdade entre os
cidadãos, a Constituição imperial de 1824 definia, para a especificida-
de da realidade social brasileira, a abrangência e os limites da cidada-
nia. Conseqüentemente, também definia o direito à educação escolar.
É importante destacar que houve lutas e protestos em torno das
definições da cidadania imposta na Constituição de 1824, inclusive entre
negros e mestiços, assim como houve disputas pela delimitação do públi-
co-alvo das escolas e pelo alargamento dos di-
A instrução surgiu como
reitos à educação escolar ao longo de todo o
um dos direitos Oitocentos, abrangendo as propostas para edu-
fundamentais de garantia
individual dos cidadãos car e civilizar índios, libertos e rever a instrução
brasileiros, estabelecido oferecida às mulheres. O Período Regencial
pela Constituição de 1824,
no artigo 179, parágrafo (1831-1840), na cidade do Rio de Janeiro, por
32: “a instrução primária
exemplo, assistiu à proliferação de pasquins
era gratuita a todos os
cidadãos”. exaltados e radicais, como O Homem de Cor, O

  Na “Era das Revoluções” do século XVIII, isto pode ser evidenciado na Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão, estabelecida sob a égide da Revolução Francesa (1789).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Brasileiro Pardo, O Mulato e O Cabrito, os quais De acordo com a Carta


lutavam por igualdade de direitos entre os cida- Magna, os critérios
fundamentais para o
dãos brasileiros, independentemente da origem exercício dos direitos de
étnica. Para a Bahia, as pesquisas de João Reis cidadão, civis e políticos,
passavam pela posse dos
(1989) e Grinberg (2000) demonstraram o quan- atributos mais caros ao
to estas questões ainda eram debatidas, mesmo liberalismo clássico: a
liberdade e a propriedade.
após a regulamentação legal pela Constituição. Critérios que, de início,
As disputas sobre os significados do que excluíam os escravos.

consistia o ser brasileiro e os limites para a


cidadania derivaram das próprias disposições legais. De acordo com a
Carta Magna, os critérios fundamentais para o exercício dos direitos de
cidadão, civis e políticos, passavam pela posse dos atributos mais caros
ao liberalismo clássico: a liberdade e a propriedade. Critérios que, de
início, excluíam os escravos, que, até os anos 1850 representaram, em
termos quantitativos, a maior parcela da população do Império. A dis-
tinção entre liberdade e escravidão indicava uma das clivagens princi-
pais que caracterizavam a sociedade hierarquizada, aristocrática e
monárquica, atribuindo significados concretos aos monopólios que
constituíam a ordem senhorial escravista: o monopólio sobre as terras
e sobre os escravos (Mattos, 1990).
No entanto, as diferenciações não se resumiam ao critério da li-
berdade. A hierarquização dos cidadãos e os limites para a participação
política, por meio das eleições de representantes para ocupar os car-
gos públicos, também eram definidos pela propriedade. Pelas regras da
Constituição de 1824, as eleições se faziam em dois turnos, ou seja,
eram diretas, no âmbito local, e indiretas no âmbito provincial. Para
eleger juízes de paz, vereadores para a Câmara Municipal e também o
corpo de eleitores habilitados a escolher os representantes para a Câ-
mara dos Deputados e para as Assembléias Provinciais, estavam aptos
os cidadãos, maiores de 25 anos, que comprovassem obter rendimento

  O texto constitucional abriu exceções para o limite de idade, o qual caía para 21 anos no caso de chefes de
família, oficiais militares, bacharéis, clérigos, empregados públicos e em geral todos aqueles cidadãos qualifi-
cáveis que tivessem independência econômica (carvalho, 2007, p. 30).

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mínimo de 100 mil réis anuais. Em nível local, o primeiro grau das
eleições, os libertos podiam participar. Esta categoria de cidadãos,
também chamada de votantes, apesar de qualificados para votar nas
eleições paroquiais e escolher o colégio eleitoral para os cargos supe-
riores, não podia se candidatar aos altos cargos políticos do Estado.
Os cidadãos elegíveis às funções de Deputado e Senador deveriam
comprovar o rendimento de 400 mil réis e 800 mil réis anuais, respec-
tivamente. Para escolher estes representantes, compondo os colégios
eleitorais, o cidadão, também chamado de eleitor, deveria comprovar
o rendimento de 200 mil réis anuais. Nesta categoria, os libertos eram
impedidos de participar. Estes dois grupos — votantes e eleitores —
compunham o corpo de cidadãos ativos do Império. Apesar de o texto
constitucional não proibir explicitamente, mulheres e escravos não ti-
nham direito ao voto.
O dilema entre a idéia liberal de igualdade natural entre os homens
e a manutenção da escravidão, sob a égide de Constituições livres, não
foi específico ao Brasil, mas se desenrolou em toda a Afro-América. Em
relação ao Império brasileiro, Mattos (2000) demonstra que os critérios
censitários constitucionais, estabelecidos pela Carta de 1824, já em
meados do século se encontravam economicamente defasados, mesmo
após a atualização dos valores em 1846, permitindo que trabalhadores
pobres e mestiços, livres e libertos, tivessem acesso ao voto, pelo me-
nos, em nível local, para além das fraudes eleitorais. A autora sustenta
ainda que, a partir de meados do século XIX, com a complexificação da
sociedade imperial e o processo de abolição, se acirraram as contradi-
ções entre os direitos civis e políticos, tendo como conseqüências uma

  De acordo com Carvalho, o critério de renda não excluía toda a população pobre do direito de votar, ao
menos no que se refere às eleições locais, posto que a quantia de 100 mil réis anuais era acessível aos traba-
lhadores livres e libertos. Em Minas Gerais, por exemplo, dados de um município demonstraram que, em 1876,
apenas 24% dos votantes eram proprietários rurais, sendo a maioria composta por trabalhadores, artesãos,
empregados públicos e profissionais liberais (carvalho, 2007, p. 30).
  Os senadores vitalícios e eleitos em lista tríplice, da qual o Imperador nomeava o candidato de sua prefe-
rência. Os deputados tinham mandato de quatro anos.
  Os valores para exercer o direito de ser votante e para escolher o colégio eleitoral foram atualizados em
1846 para 200 e 400 mil réis anuais, respectivamente (nicolau, 2002, p. 11).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

grande indefinição sobre a condição jurídica dos libertos, a ambigüida-


de das relações raciais e o “sumiço” ou a raridade da cor dos indivíduos
nas referências documentais de época (Mattos, 2000).
De acordo com as hierarquias e as distinções entre os cidadãos, o
direito à instrução primária, garantido pela constituição aos membros
da sociedade política, foi sendo estabelecido no decorrer dos Oitocen-
tos, com base no processo de construção das leis educacionais e dos
sistemas de instrução pública provinciais. No entanto, em primeiro lu-
gar, os escravos, como não-cidadãos, eram expressamente excluídos
das políticas de instrução oficial. No que se refere ao conjunto dos ci-
dadãos, o artigo 179 não distinguia entre ativos e não-ativos, tendo,
portanto, ambos, na condição de livres ou de libertos, em princípio, o
direito à instrução primária.
Ao longo do século XIX, o processo de escolarização na sociedade
brasileira pode ser observado por meio de diversos mecanismos articu-
lados, tais como: a) legislação escolar e política educacional; b) a cons-
tituição de um aparato técnico e burocrático de inspeção e controle
dos serviços de instrução para recrutar e empregar, criar rede de poder
e saber e desenvolver uma economia política da educação; c) a produ-
ção de dados estatísticos para conhecer e produzir representações so-
bre o próprio Estado e a sua população, elementos fundamentais para
a governamentalidade moderna (Lopes e Faria Filho e Veiga, 2003).
Partindo desta perspectiva, os historiadores da educação têm ob-
servado que a partir da década de 1830, em várias localidades do país,
houve intensas discussões sobre a implantação de escolas públicas ele-
mentares, bem como debates sobre a pertinência ou não de se escolari-
zar crianças, negros, índios ou mulheres, em um momento em que se
procurava afirmar a necessidade da escola. Necessidade que foi se afir-

  Os debates sobre os projetos de educação para os escravos e índios apontam para as tensões sociais que
envolviam a construção do Estado nacional e o estabelecimento dos processos de escolarização na sociedade
imperial. Importantes documentos para analisar a questão foram os projetos de lei apresentados por José Bo-
nifácio de Andrada e Silva na Assembléia Constituinte de 1823, intitulados Apontamentos sobre a Civilização dos
Índios do Brasil e Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a
Escravatura. Para os projetos de José Bonifácio, ver Caldeira (2002) e para as práticas de educação dos índios no
Norte do Brasil imperial, consultar Rizzini (2002).

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De acordo com as
mando a partir, inclusive, da presença estatal,
que produzia, paulatinamente, a obrigatorieda-
hierarquias e as distinções
entre os cidadãos, o
direito à instrução de da instrução elementar, através, por exem-
primária, garantido pela plo, de um processo de normalização, no qual
constituição aos membros
se descortinam as relações entre os processos
da sociedade política, foi
intensamente discutido e
estabelecido no decorrer
de estruturação do Estado e a educação escolar.
dos Oitocentos, com base Em algumas províncias do Império, como
no processo de construção
as de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Pau-
das leis educacionais e dos
sistemas de instrução lo, Espírito Santo, Maranhão e Rio de Janeiro, a
pública provinciais.
instrução elementar foi regulamentada por leis
provinciais, sobretudo após o Ato Adicional de 1834 que redefiniu a com-
petência em matéria de educação, atribuindo às Províncias a autonomia
legislativa, ou seja, o dever de legislar, organizar e fiscalizar o ensino
primário e secundário, restando ao governo central, através da pasta do
Ministério do Império, a gestão de ambos os graus na Corte e do ensino
superior em todo o país. De acordo com a emenda constitucional, com-
petia às Assembléias Provinciais, então criadas, legislar sobre a:
Instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreen-
dendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmen-
te existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução, que para o
futuro forem criados por lei geral.

O Ato Adicional de 1834 constituiu-se na primeira emenda à Cons-


tituição de 1824 e atendia às demandas descentralizadoras resultantes
das tensões e dos conflitos políticos ocorridos no conturbado período
regencial, no qual algumas regiões do Norte e do Sul do Império reagi-
ram às propostas centralizadoras dirigidas pelos interesses dos grupos
políticos do Centro-Sul, que buscavam impor sua hegemonia na direção
do Estado e na construção da nação. Com a medida, as Assembléias
Provinciais foram criadas com maior grau de autonomia legislativa e
executiva, contemplando os poderes regionais. Entretanto, a reforma
constitucional avançou pouco no que se refere à distribuição de recur-

  Lei n. 16, de 12 de outubro de 1834.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

sos entre as diversas províncias, posto que os O Ato Adicional de 1834


tributos públicos permaneceram concentrados (Lei n. 16, de 12 de
outubro de 1834)
nas mãos do governo central (Lyra, 2000). redefiniu a competência
em matéria de educação,
O processo de descentralização na gestão
atribuindo às Províncias a
da instrução pública, provocado pelo Ato Adi- autonomia legislativa, ou
seja, o dever de legislar,
cional de 1834, tem sido interpretado por par- organizar e fiscalizar o
te da historiografia da educação como um obs- ensino primário e
secundário, restando ao
táculo ao desenvolvimento da educação escolar governo central, através
da pasta do Ministério do
no Brasil imperial, devido às diversidades re-
Império, a gestão de
gionais e à insuficiência de recursos destinados ambos os graus na Corte
e do ensino superior em
ao ensino nos orçamentos provinciais, ou, ain- todo o país.
da, em razão do desinteresse das elites políti-
cas provinciais na difusão da instrução primária e secundária, o que
teria acarretado uma enorme distância entre as leis e a prática educa-
cional, favorecendo, assim, o predomínio de formas heterogêneas de
educação e o acesso à instrução, via de regra no âmbito doméstico ou
familiar, ao longo do século XIX.
Em que pese o predomínio e a coexistência de múltiplas formas de
educação (familiar, religiosa, artesanal, profissional, entre outras) te-
rem sido características da formação social brasileira no decorrer de
todo o Oitocentos, pesquisas recentes têm apontado que a idéia de
educar e instruir a população livre por meio das instituições escolares
adquiriu consistência no âmbito das províncias e do Estado imperial.
Embora tenha havido o avanço das pesquisas, ainda permanecem lacu-
nas significativas para a compreensão do período de 1800 a 1840, so-
bretudo quando consideramos a diversidade das políticas educacionais
nas regiões brasileiras, o que dificulta as tentativas de produção de
uma síntese mais acabada a respeito desse período.
Na Província do Rio de Janeiro, desde 1835, o governo procurou
regulamentar a instrução pública. A criação da Escola Normal para a
formação de professores primários, na cidade de Niterói, então capital
da Província, naquele ano, foi uma das primeiras medidas tomadas. A
Lei Provincial de 1837, primeira a reorganizar o ensino após o Ato Adi-

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Gondra e Schueler

cional de 1834, estabeleceu os princípios fundamentais da instrução


primária e secundária, delimitando os currículos para as escolas de
meninos e meninas, o recrutamento do magistério, os livros e compên-
dios a serem utilizados, entre outros aspectos. Considerada pelos prin-
cipais grupos dirigentes como instrumento fundamental para a consti-
tuição da unidade do Império, a instrução primária viabilizaria a
formação do povo brasileiro e a aquisição de:
Certas noções, certas práticas e sentimentos que deveriam ser gerais assim
para as primeiras como para as classes superiores da sociedade. É essa ins-
trução comum, essa identidade de hábitos intelectuais e morais (...) que
constituem a unidade e a nacionalidade (Mattos, 1990, p. 271).

A Província do Rio de Janeiro tem sido considerada pela historiogra-


fia como “laboratório” para as políticas de instrução pública do Estado
imperial em construção e, portanto, modelo para todo o Império (Mattos,
1990). Tal posição vem sendo redimensionada em razão do avanço das
pesquisas que indicam a existência de iniciativas educacionais, regionais
e locais, desde as décadas de 1820 e 1830 — portanto, em momentos
anteriores ao processo de conquista da hegemonia conservadora e à cen-
tralização/consolidação do Estado imperial a partir do Centro-Sul.
Para a Província de Minas Gerais, por exemplo, os estudos têm
apontado que os discursos para a criação de cadeiras públicas de ins-
trução elementar, as escolas primárias, foram legitimadores do Estado
nacional em construção desde a década de
Educar e instruir a 1820 (Lopes e Faria Filho e Veiga, 2003 e Veiga,
população do Império 1999). Ao investigar a ação do Conselho Provin-
foram projetos e ações
consideradas fundamentais cial de Instrução de Minas Gerais entre os anos
para o Estado em de 1825 a 1835, Caldeira (2006) observou que
formação. No entanto, o
processo de construção as constantes discussões sobre a instrução in-
das formas de educação
escolar no Brasil do século
dicavam a centralidade da escola como ele-
XIX não foi uniforme, mento fundamental da formação do Estado e
indiferenciado ou
contínuo, o que resultou da nação. O estabelecimento de leis pelos con-
na desigualdade de selheiros significou uma forma de implementar
condições educacionais
entre as Províncias. políticas na formação do povo, dotando a pro-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

víncia mineira de um conjunto de leis próprias com normas jurídicas


baseadas nos países civilizados, para que fosse possível viabilizar a
constituição de um sistema educacional, que incluía primeiras letras,
ensino secundário, liceus, colégios, cursos técnicos, ensino superior e
colégio para a educação dos índios.
No Rio Grande do Norte, há indícios do processo de escolarização
e da instalação de professores vinculados à Igreja e de mestres que
ensinavam em suas próprias casas, desde o século XVIII. Segundo Araú-
jo e Medeiros (2002, p. 8), casas residenciais e fazendas nos sertões de
Caicó se organizaram como unidades de produção para suprirem não
apenas as necessidades cotidianas da sobrevivência alimentar, do ves-
tuário e do trabalho, mas também como “empresas de sociabilidade de
diversas artes de ofício manuais, entre as quais a arte de ensinar”. O
movimento de criação de escolas públicas e de subvenção e controle
pelos poderes públicos sobre os professores particulares, sobretudo em
Natal, foi intensificado a partir do período das reformas pombalinas e,
especialmente, no período de constituição do Estado imperial e do
governo provincial, entre 1834 e 1889 (medeiros, 2004).
Na Província de Mato Grosso, a organização da instrução pública
também integrou o movimento de constituição do Estado nacional e de
um “povo” que pudesse representá-lo. Os Regulamentos de Instrução
de 1836 e de 1854 atribuíam tanto ao governo provincial quanto à ini-
ciativa particular a responsabilidade pela organização, manutenção e
fiscalização das escolas, sendo mais evidente a intervenção do Estado
a partir da segunda metade do século XIX. No entanto, o processo de
escolarização não foi imposto à população do “sertão” sem resistên-
cias. Ao contrário, contou com respostas sociais variadas, nem sempre
de acordo com as propostas originalmente formuladas nas leis e nos
regulamentos, o que demonstra os limites e os contornos possíveis de
um projeto que se pretendia nacional em meio às diversidades regio-
nais e ao heterogêneo, multifacetado e silenciado universo cultural
(Siqueira, 2000, p. 8).
Em São Paulo, apesar de a primeira lei regulamentando a instru-
ção pública na Província ter sido decretada em 1846, desde o início do

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funcionamento da Assembléia Provincial, em 1835, a instrução pública


primária foi objeto de debates, de medidas legislativas e providências
administrativas. Com a tecnologia da norma, se procurou organizar e
resolver as questões, reclamações e demandas apresentadas pela po-
pulação e por professores, por meio de ofícios, requerimentos e repre-
sentações dirigidos às autoridades provinciais ou às Câmaras Munici-
pais. A Lei Provincial de 1846 representou o atendimento ao movi­mento
de defesa da intervenção oficial na constituição da estrutura da instru-
ção paulista, movimento que integrava a Província de São Paulo aos
projetos de construção do Estado nacional por meio da educação esco-
lar (ananias, 2004).
De acordo com Faria Filho, a partir de 1835, ao longo de todo o
Império, as Assembléias Provinciais fizeram publicar significativo nú-
mero de textos legais que visavam regulamentar a instrução primária e
secundária nas diferentes regiões, demonstração de que a produção
legislativa foi um dos mecanismos destacados da intervenção do Esta-
do. Por outro lado, além da construção do “Império das leis”, foi notá-
vel o desenvolvimento dos serviços de instrução, de rede de escolas
muito diversas (públicas, particulares, domésticas), conforme a reali-
dade de cada uma das Províncias, embora a historiografia afirme que a
aplicação de recursos esteve sempre muito aquém das necessidades
(Faria Filho, 2003, p. 137-138).
O processo de construção das formas de educação escolar no Brasil
do século XIX não foi uniforme, indiferenciado ou contínuo, o que resul-
tou na desigualdade de condições educacionais entre as Províncias, na
profusão de reformas e na complexidade de normas então produzidas.
No entanto, estas normas representaram importante instrumento de
construção dos variados sistemas públicos provinciais de ensino.
O processo de escolarização também não se resumiu à ação do
Estado, na medida em que houve a participação das famílias e parcelas

  Para acessar a legislação educacional de Mato Grosso, cf. Sá e Siqueira (2000), Paraná, cf. Miguel (2000) e
Miguel e Martin (2004), Paraíba, cf. Pinheiro e Cury (2004), e Rio Grande do Norte, cf. Bastos et al. (2004) e
Tambara e Arriada (2004).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

da população local, seja por meio da criação de escolas ou apoio aos


mestres particulares, seja pelas demandas encaminhadas aos poderes
públicos, contendo queixas e reclamações sobre as condições materiais
das escolas ou sobre os professores e seu trabalho docente (Veiga, 1999).
Neste aspecto, as tensões entre diferentes concepções e formas de
educação foram múltiplas, conforme apontaram Veiga e Viana:
A família configurou-se, portanto, no contexto de criação da rede de Instru-
ção Pública, como uma instância que, por um lado, mantinha-se firmemen-
te ligada à tradição, preservando seu espaço privado das interferências do
Estado, e por outro, constituía-se como instância avaliativa daquele mesmo
processo. Suas interferências na educação escolar funcionaram como meios
de redefinição das práticas docentes e até mesmo das determinações do
governo. Colocavam às autoridades a necessidade de criação de escolas e
de fiscalização da conduta dos professores e denunciavam a fragilidade de
um Estado que se erguia a partir dos ideais das Luzes, mas sobre uma estru-
tura marcada por uma tradição em que o público se inscrevia na esfera do
privado (2002, p. 10).

O mesmo movimento de disputa pela implementação de escolas ou


entre formas e práticas de educação distintas, por intermédio da ação
de indivíduos, famílias e grupos sociais, foi observado para outras Provín-
cias, como pode ser percebido nos relatórios ministeriais e de presiden-
tes de província.
A difusão de saberes elementares, da cultura escrita e as disputas
pelo acesso às escolas permaneceriam latentes em uma sociedade
marcada pela diversidade de culturas regionais e locais. Deste modo,
os dispositivos do maquinário escolar moderno conviveriam, de modo
tenso, com a multiplicidade de formas de educação e de instrução co-
existentes ao longo do século XIX.
A construção do Brasil e dos brasileiros, ao contrário do que nor-
malmente se divulga nos manuais clássicos de História, foi objeto de
lutas e confrontos entre projetos políticos distintos e de tensões entre
sonhos, caminhos possíveis e formas plurais da nação e da educação
brasileiras.

  Para ter acesso a esta documentação, consultar http://brazil.crl.edu/.

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“A Sociedade Amante da Instrução, fundada
em 5 de setembro de 1829, faz as suas sessões
em todas as quartas-feiras, das 6 às 9 horas
da tarde, na sua casa, na Rua d’Ajuda
esquina da rua de Santa Luzia. Na mesma
casa, ela sustenta uma aula para ensino
primário lotada para 150 alunos; e mais
duas, uma na rua dos Arcos, lotada para
60 meninas e outra, também para meninas,
na rua da Imperatriz, nas casas das
respectivas professoras. A terça parte desta
lotação é destinada a filhos e filhas dos sócios,
e as outras duas partes para pobres e órfãos.
A Sociedade, além de concorrer com as
despesas para papel, penas, livros etc. dá
socorros medicinais, vestuário e calçados
aos mais necessitados.”
Almanak Laemmert, 1844, p. 184.

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2
As Forças Educativas

O poder público
Pensar a educação supõe inscrever em nosso horizonte os
interesses que esse tipo de prática aciona e mobiliza. Nesse mo-
vimento, é possível observar que a vontade de educar, de interferir no
curso da vida de modo mais ou menos “racional”, mais ou menos “cien-
tífico”, está presente em lugares variados. Dessa forma, consideramos
a existência de forças distintas que, agindo de modo solidário ou con-
corrente, delineiam aquilo que encontramos em termos de iniciativa e
conteúdo educativo. Para sistematizar este ponto, privilegiamos o exa-
me de três forças que participaram do debate a respeito da educação
no século XIX no Brasil: o Estado, as Igrejas e a Sociedade Civil (grê-
mios, sociedades, academias). No exame dessas forças, procuramos
dar a ver o seu funcionamento e o modo como se relacionam entre si
para solucionar os problemas educativos, tomando como fonte estudos
existentes, mas também a legislação, relatórios, imprensa, literatura
e documentos diversos, como ofícios, cartas e iconografia.
No que se refere ao Estado, nosso recorte privilegia o Estado-na-
ção, dada a engrenagem extensa e complexa estabelecida por essa
forma de representar, organizar e fazer fun-
cionar a sociedade. Nesse sentido, privilegia-
O Estado, as Igrejas
mos o período que vai da Independência (7 de e a Sociedade Civil
setembro de 1822) até o final do Império (15 constituíram forças
educativas plurais e
de novembro de 1889). No entanto, estabele- distintas, que agiram
cer esse período como foco de nossa atenção de modo associado e/ou
concorrente, ao longo
não nos impede de observar particularidades do século XIX.

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aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

das iniciativas voltadas para a educação presentes em momentos pro-


jetados para trás ou para frente, como já apontamos. A própria idéia
de Estado independente, formalizada internamente em 1822 e conso-
lidada com o reconhecimento dos outros países, tem uma gestação que
nos faria recuar ao século XVIII, pelo menos.
Já nos referimos às insurreições mais ou menos organizadas que se
processaram em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.
Esses movimentos “sediciosos” empunharam a bandeira da liberdade,
sonhando com o fim do jugo da Metrópole, senão ainda para todo o
território, pelo menos sobre as respectivas regiões da Colônia. Sonho
acalentado pelas experiências contemporâneas de independência, co-
mo foi a das treze colônias inglesas no norte da América e que resultou
na organização dos Estados Unidos da América, em 1783. Não menos
importantes foram as notícias das lutas pela independência de São
Domingos e do Haiti que, em 1793, eliminou a escravidão de negros e
mulatos na colônia francesa. Também é necessário lembrar os efeitos
da Revolução Industrial e da Revolução Francesa que disseminavam
novos padrões para o mundo de trabalho e para o funcionamento da
vida em sociedade. Liberdade, igualdade e fraternidade foram pala-
vras que adquiriram sabor especial na colônia cada vez mais explorada
pela metrópole portuguesa, com o agravamento dos mecanismos de
repressão e de exploração dos homens e riquezas de “sua América”.
Assim, as notícias dos vizinhos, somadas com as que vinham da
própria Europa, funcionaram como fermento decisivo na organização
das conjurações mineira, fluminense, baiana e pernambucana. Todas
elas reprimidas, devassadas, com parte dos seus integrantes presos,
degradados e, alguns, exemplarmente supliciados, como foi o caso do
alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que, como sabemos,
foi enforcado a 21 de abril de 1792. Cumprindo a sentença, ele foi
conduzido com “baraço e pregão” pelas ruas públicas ao local da forca.
Depois de morto, foi levado para a Casa do Trem (atualmente parte do
Museu Histórico Nacional), onde foi esquartejado em quatro partes,
que foram pregadas em postes pelo caminho de Minas. Sua cabeça,

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

levada a Vila Rica, foi fixada em poste alto, em lugar público, dentro
de uma gaiola de ferro, até que o tempo a consumisse. O réu foi decla-
rado infame, assim como seus filhos e netos. Teve ainda seus bens
confiscados e sua casa foi “arrasada e salgada”, levantando-se no local
um “padrão” pelo qual “a memória e infâmia do abominável réu” de-
veria ser conservada.
Curioso notar que esses movimentos de insurreição contavam não
só com a participação de letrados, mas também de gente das camadas
populares. Por exemplo, na conjuração baiana, dentre os 33 presos e
processados, havia 11 escravos, 5 alfaiates, 6 soldados, 3 oficiais, 2
ourives e também um pedreiro, carpinteiro, bordador, negociante, ci-
rurgião e um professor (tavares, 1975).
Com isto, fica a pergunta: como os projetos de liberdade foram
disseminados e apropriados por sujeitos de extração social tão distinta?
Uma resposta a esta pergunta pode ser localizada nos próprios “autos
das devassas”, isto é, no conjunto de documentos que compõe os pro-
cessos instaurados contra os “conjurados”. Nesse núcleo documental é
possível localizar livros, jornais e manuscritos diversos que atestam a
circulação de uma literatura “perigosa” no Brasil colonial, a existência
de uma rede de relações entre “conjurados” e de outras práticas de
disseminação de idéias e de organização política desses sujeitos, como
reuniões, criação de sociedades, conversas e participação em lojas ma-
çônicas, por exemplo. A literatura “perigosa” era trazida ou copiada
clandestinamente pelos brasileiros em suas viagens à Europa, sobretu-
do nas viagens de estudos cujo destino era a metrópole (especialmente
os cursos de Direito e Filosofia em Coimbra), mas também a França,
com destaque aos cursos de Medicina em Montpellier.
Outro ponto a ser considerado e que cumpre uma função impor-
tante no complexo processo de construção da independência foi o fato
de termos passado pela experiência de sede do Império português. A

  Um aprofundamento desse tema se encontra bem desenvolvido no artigo de Villalta (1998), no qual explora
as relações entre língua, instrução e leitura na América portuguesa.

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chegada da Corte portuguesa ao Brasil se constitui em acontecimento


que dá a ver uma conjuntura européia, na qual se destaca a política
expansionista da França, com as invasões napoleônicas. Esse tipo de
ação provoca efeitos diversos. Em Portugal, a invasão culmina com a
saída de D. João VI e de parte expressiva do aparato burocrático da
Corte portuguesa que se fixa no Rio de Janeiro. Ao desembarcar no Rio,
a Corte portuguesa inicia um programa de reorganização da Colônia
que passa pela criação de novas capitanias (Alagoas e Sergipe) e mu-
dança de estatuto das capitanias existentes (Espírito Santo, Rio Grande
do Norte e Santa Catarina), pela expansão do Império português com
as conquistas da Guiana Francesa e da colônia de Sacramento, além de
inovações nos portos, com incremento no tráfico de escravos. No Qua-
dro 1, temos uma estimativa da entrada de escravos pelo porto do Rio
de Janeiro, de acordo com o estudo de fragoso e florentino (1993):

Quadro 1. Ingresso de escravos no Rio de Janeiro (1808-1814)

Ano Escravos traficados no Porto do Rio de Janeiro

1808 9.600 escravos

1809 13.170 escravos

1810 18.700 escravos

1811 23.200 escravos

1812 18.330 escravos

1813 17.390 escravos

1814 15.370 escravos

Como se pode ver, a chegada da Corte e suas demandas incre-


mentaram significativamente a vida na modesta “vila” do Rio de Ja-
neiro, a ponto de, em sete anos, totalizarmos a entrada de aproxima-
damente 115.760 escravos, sem contarmos com cerca de 15 mil
portugueses que aportaram, somados à chegada de uma massa de co-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

merciantes, artistas, diplomatas, agricultores, artesãos, colonos e mi-


litares ingleses, franceses, norte-americanos, suíços, suecos, italianos
e alemães, dentre outros, que imaginaram fazer fortuna na nova ter-
ra. Índice de uma economia e sociedade de base escrava que se con-
solidava, o que certamente diversifica o sistema de produção, circula-
ção e consumo de mercadorias, fazendo variar também o perfil da
população e dos interesses em jogo na nova sociedade que se forma-
va. Diversificação demonstrada pelos investimentos e iniciativas no
plano da cultura, com as viagens de estudos, inauguração da Bibliote-
ca Real, Teatro, Imprensa Régia, proliferação de tipografias e títulos,
a criação da Real Academia, do Real Jardim Botânico, Laboratório
Químico e Escolas Médico-cirúrgicas no Rio de Janeiro e na Bahia. No
conjunto, estas iniciativas recriaram tensões em vários pontos do país
que, em alguma medida, alimentavam reações regionais às medidas
colonizadoras promovidas pelo centro-sul, o que, mais uma vez, se
tentou efetivar na insurreição pernambucana de 1817 e outras inicia-
tivas assemelhadas que explodiram a partir de 1818, no Grão-Pará,
Santos, Rio de Janeiro e Pernambuco.
No entanto, o debate a respeito da Independência foi claramente
acentuado apenas a partir do retorno de D. João VI a Portugal, ocorrido
em 26 de abril de 1821, tendo explodido na imprensa autorizada e
clandestina que circulava neste mesmo ano, como o Conciliador do
Reino Unido, defensor da continuidade do Reino Unido; Revérbero
Constitucional, defensor da independência; Despertador Brasiliense,
porta-voz da causa de D. Pedro I; e Correio Braziliense ou Armazém
Literário, editado em Londres sob a responsabilidade de Hipólito José
da Costa que, distribuído na clandestinidade, apresentava conteúdo
favorável à tese da emancipação colonial. Portanto, os elementos aqui
expostos nos planos da economia, da política e da cultura permitem
problematizar o marco diplomático como fundamento para se com­
preender a sociedade imperial.

  Para saber mais sobre as ações de Hipólito da Costa, cf. PAULA (Org.), 2001.

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Ao lado destes prólogos, um aspecto adicional merece ser comen-


tado e se refere ao modelo de Estado desejado pelos que se levantaram
contra a Metrópole. Muitos dos defensores da liberdade eram brancos e
proprietários, inclusive de escravos, como era o caso de Tiradentes, e
outros estudaram ou viajaram ao exterior. Para estes, o modelo deveria
ser de uma monarquia constitucional que preservasse os seus privilégios
como, por exemplo, as propriedades e o regime de trabalho escravo.
Salvo exceções, a idéia de República ainda não havia seduzido os que
ousavam se insurgir contra o regime colonial, menos ainda a idéia de
fim da escravidão. E este foi o modelo de Estado implantado no Brasil:
uma monarquia constitucional, regida por homens brancos e com a ma-
nutenção do trabalho escravo. Foi esse o acordo geral firmado pelas li-
deranças mercantis e políticas, culminando em um abaixo-assinado com
mais de oito mil assinaturas recolhidas no Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais, que solicitava a permanência de D. Pedro I, enxergando
em sua continuidade a possibilidade de criar um Estado independente
nos moldes que desejavam. Com esse acordo, as lideranças procuravam
afastar um duplo risco: a manutenção do regime colonial e os perigos de
uma República, tal qual vinha se processando nos países vizinhos da
América Latina. Como efeito deste movimento, em 9 de janeiro de
1822, o príncipe regente, em frente a uma multidão reunida no Paço
Imperial, teria pronunciado a célebre frase: “Se é para o bem de todos
e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digo ao povo que fico”.
O acirramento da campanha anticolonial fez com que houvesse a
convocação de uma Assembléia Constituinte em 3 de junho de 1822. Em
sinal de protesto, os portugueses anularam a convocação da Assembléia
Constituinte brasileira, ameaçando com o envio de tropas e exigindo o
retorno imediato do príncipe regente. Esta reação precipita outros atos,
dentre eles a famosa declaração de Independência. Restava, então, o
desafio de criar o Brasil. Como sabemos, para dar conta desse audacioso
projeto e consolidar os interesses em jogo, a elaboração de dispositivos
jurídicos, associada a outras medidas, cumpriu papel decisivo, ao mes-
mo tempo em que exprimiu os arranjos políticos selados.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

A construção de leis gerais


Criar o Brasil. Experiência singular e única nas Américas e no Ocidente,
a invenção do Brasil exigiu manobras bem precisas, como medida para
organizar e disciplinar as forças vivas da sociedade brasileira. Vamos
retomar aqui três documentos gerais que dão idéia da forma e da força
que o Estado pretendeu assumir para evitar o estilhaçamento do vasto
território, à semelhança do que vinha se processando na América espa-
nhola. Tratava-se, assim, de fazer acordos para assegurar os interesses
existentes, do Amazonas ao Prata ou, como diríamos hoje, do Oiapoque
ao Chuí.
Inicialmente, abordamos o processo de Para compreendermos
construção de nossa primeira Constituição para, um dos mecanismos
fundamentais de ação
em seguida, destacar pontos de sua primeira re- dos poderes públicos, é
interessante a consulta
forma, materializada no Ato Adicional de 1834, a à coleção de leis que se
que já nos referimos. Ao olhar para esta docu- debruçaram sobre a
matéria da educação,
mentação, nos deteremos em uma caracteriza- com destaque às leis
ção geral do processo que levou ao seu apareci- gerais: a Constituição
de 1824, a Lei de 15
mento, ressaltando o tratamento que o Estado de outubro de 1827 e
as Leis e os Regulamentos
dispensa à matéria educacional. O foco na ques- Provinciais e Municipais,
tão da educação se encontra melhor explorado sobretudo após o Ato
Adicional de 1834.
quando examinamos a coleção de leis que se de-
bruçam sobre a matéria da educação, com des-
taque às leis gerais, como a que regula as escolas de primeiras letras, de
1827, mas também observando a proliferação dos dispositivos jurídicos
em nível provincial e municipal, sobretudo após o Ato de 1834. Em con-
junto, estas peças ajudam a pensar o monopólio exercido pelo Estado no
que se refere à matéria educacional, mas especialmente permite obser-
var os termos em que este poder procura ser exercido no século XIX.
Autoproclamado independente, esse novo estatuto foi sendo reco-
nhecido por outros países, ainda que internamente inúmeras batalhas
tivessem eclodido de norte a sul do Brasil, como foi o caso das rebeliões
provinciais ocorridas na Bahia, Piauí, Maranhão, Grão-Pará e Cisplatina.

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Gondra e Schueler

A independência parecia uma ficção, exigindo ações coordenadas das


elites locais e inglesas, sobretudo, para assegurar seus principais interes-
ses: unidade territorial, escravidão e estabilidade política. Nesse caso,
reprimir as ondas de violência da “periferia” com a força do “centro”
serviu para afirmar o modelo de Estado forte, centralizado e autoritário,
cuja expressão maior se encontrava na figura do jovem imperador e no
texto que veio a constituir formalmente o Brasil.
A elaboração de nossa primeira Constituição não se deu de forma
tranqüila. Convocada em 3 de junho de 1822, os trabalhos de nossa pri-
meira Assembléia Constituinte foram abertos onze meses depois, em 3
de maio de 1823. No entanto, ela foi dissolvida após seis meses de tra-
balho, em 12 de novembro de 1823, e o texto que conhecemos foi redi-
gido em quatro meses, tendo sido outorgado em 25 de março de 1824.
Já na Fala do Trono, de 3 de maio de 1823, o Imperador anunciava
o que esperava. Seu desejo era que os constituintes, em torno de 80,
elaborassem um texto que merecesse a “imperial aceitação” e que a
Constituição fosse “tão sábia e tão justa, quanto apropriada à realidade
e civilização do povo brasileiro”, estabelecendo barreiras aos despotis-
mos “quer aristocrático, quer democrático”, afugentando a anarquia,
plantando “a árvore da liberdade, a cuja sombra deveria crescer a união,
tranqüilidade e independência deste Império, que será o assombro do
mundo novo e velho”. Antecipava, deste modo, o que seria possível ad-
mitir. Não correspondia exatamente ao que se passava nas cabeças dos
constituintes. No projeto redigido e rejeitado, constavam os princípios
da câmara indissolúvel, caráter suspensivo do veto do Imperador, con-
trole das Forças Armadas pela Câmara, renúncia do Imperador caso as-
sumisse outro trono e um sistema eleitoral de dois turnos. Esses princí-
pios colidiam com a tese do Estado forte e centralizado, o que fez o
Imperador decretar a dissolução da Assembléia e nomear uma comissão
de dez homens (seis ministros e quatro notabilidades da política) para
que redigissem o texto a ser submetido à “imperial aceitação”.
Da Constituição “consentida”, podemos destacar alguns princípios
gerais, que dão a ver o funcionamento previsto para a jovem nação. Os

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

termos iniciais da “Carta de Lei” de 25/3/1824 definem o território,


governo, dinastia e religião em cinco artigos:
Art. 1o. O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos
brasileiros. Eles formam uma Nação livre e independente, que não admite
com qualquer outra laço algum de união ou federação, que se oponha à sua
independência.
Art. 2o. O seu território é dividido em províncias, na forma em que atualmen-
te se acha, as quais poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.
Art. 3o. O seu governo é monárquico, hereditário, constitucional e represen-
tativo.
Art. 4o. A dinastia imperante é a do Senhor Dom Pedro I, atual Imperador e
Defensor Perpétuo do Brasil.
Art. 5o. A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do
Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto domésti-
co, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior
de templo.

Após descrever o que seria o Brasil, forma e titularidade de gover-


no, assim como a relação entre Estado e Religião, o conteúdo seguinte
do texto constitucional aborda a própria definição do que deveria ser
compreendido por cidadão brasileiro.
Contudo, a condição de “brasileiro” não implicava no gozo de to-
dos os direitos de participação na vida política, isto é, votar e ser vo-
tado para as Câmaras Municipais, Senado e Assembléias Provinciais e
Gerais. Ao lado do rendimento anual mínimo (100 mil réis para votar
nas eleições primárias e 200 mil nas eleições provinciais, para Deputa-
do e Senador. Para se candidatar a Deputado, exigia-se o rendimento
anual de 400 mil réis e de 800 mil para o Senado), os candidatos tam-
bém deveriam provar idade mínima (25 anos para Deputado e 40 anos
para Senador) e probidade, isto é, ser uma “pessoa de saber, capacida-
de e virtudes”.
A composição do colégio eleitoral também restringia a participa-
ção de menores de 25 anos (com algumas exceções), libertos, crimino-
sos, escravos e dos que não professassem a religião oficial. Como se
pode ver, estas medidas, no conjunto, qualificam governados e gover-
nantes, estabelecendo hierarquias associadas a critérios bem distintos

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Gondra e Schueler

que, no fundo, reconhecem e reproduzem as desigualdades da Monar-


quia que se organizava.
No conjunto dos seus 179 artigos, a nossa primeira Constituição
define uma anatomia do poder, que acentuava o caráter centralizado
da Monarquia, solução compreendida como aquela que poderia manter
os privilégios das elites, como se pode ver na Figura 1, a seguir.

Figura 1. Anatomia do Estado Imperial em 1824

Organograma da Constituição de 1824

Poder Moderador

Imperador

Poder Legislativo Poder Executivo Poder Judiciário

Conselho de Supremo Tribunal


Assembléia Geral
Estado de Justiça

Presidente de Províncias

Câmara dos
Senado
Deputados
Conselhos Provinciais

Com esse esquema, fixava-se o princípio pelo qual o “centro” de-


veria conduzir a “periferia”, de modo a assegurar a unidade territorial,
religiosa e de regime de trabalho. Esse foi o grande acordo que ganhou
forma no ordenamento jurídico redigido pelas dez celebridades indica-
das pelo jovem Imperador.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Concebido nestes termos, não tardou a provocar reações e protes-


tos de norte a sul do Brasil, mais ou menos expressivos. Um primeiro se
deu no mesmo ano em que a Constituição foi decretada e mobilizou
interesses de províncias nordestinas não satisfeitas com a solução que
a Lei Magna apresentava para fazer funcionar a nova nação. O estopim
foi a não-indicação do presidente eleito da Província de Pernambuco,
Manuel de Carvalho Paes de Andrade. Preterido, este articulou um mo-
vimento em represália ao governo do “centro” e, para isto, compôs
com representantes da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, deixando
aberta a possibilidade de integrar outras Províncias interessadas em
contestar medidas do governo central. Localmente, para angariar apoio
da população negra e mulata, chegou a decretar o fim do tráfico de
escravos. No entanto, com isto, se afastava dos interesses dos proprie-
tários e comerciantes de escravos, o que facilitou a vitória das forças
imperiais. Resultado: repressão, perseguição, fuga, bloqueio, fuzila-
mento e forca para os que foram identificados como cabeças da cha-
mada “Confederação do Equador”.
Tais medidas encontraram acolhimento e reforço no núcleo do
poder central, como pode ser observado no relatório do Ministro dos
Negócios da Justiça de 1825. É muito interessante acompanhar a des-
crição que Clemente Ferreira França, o Marquês de Nazaré, homem do
governo, faz do movimento e do poder exercido no relatório de
1825:
Homens sediciosos, e ignorantes, tão ambiciosos, como desprovidos de ver-
dadeiro mérito, e da necessária moralidade, arvorarão o estandarte revolu-
cionário nas Províncias do Norte, e pregando aos Povos a liberdade, e os
princípios da infernal demagogia, se erguerão em seus mais cruéis, e inso-
lentes Ditadores.
A posteridade recordará com espanto os feitos dos intitulados filantropos,
falsos filósofos, e encarniçados inimigos da humanidade. Oh-Deus, que hor-
ror! O sangue corre, a paz se desterra, a inocência se oprime, confundem-se
os direitos, o merecimento se persegue, a confiança desaparece, até no cen-
tro das próprias famílias, os cofres públicos se exaurem, os particulares tor-
nam-se sem segurança, o direito da propriedade desvanece-se, e as Provín-
cias marcham a passo largo para a sua total ruína.

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Tratou-se, então, de reprimir sediciosos, ignorantes, ambiciosos,


demagogos, ditadores, falsos filósofos ou inimigos da humanidade.
Executavam-se assim os princípios gerais de nossa Monarquia centrali-
zada. Exemplo de como o Império se comportou na primeira metade do
século XIX para os que ousaram sonhar com um Brasil diferente. A pos-
sibilidade de um “outro Brasil”, experimentada nas diversas revoltas
ocorridas no período regencial, como já nos referimos, foi reprimida
com o monopólio da força, deixando claro o preço que se estava dis-
posto a pagar para manter a forma de uma monarquia centralizada,
patrimonialista, escravocrata e responsável pelo vasto território, cuja
unidade se procurou preservar à custa de muito sangue.
No que se refere à matéria educacional, esta foi tratada no último
artigo do último título do texto constitucional. O famoso artigo 179,
em seu inciso XXXII, como já chamamos atenção, prescreve que “a
instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Já o inciso XXXIII se
compromete com abertura de “Collegios” e Universidades, onde se-
riam ensinados os “elementos das Sciencias, Bellas Letras e Artes”.
Com esses dois dispositivos, o Estado assu-
me o princípio da gratuidade para o ensino
O artigo 179, em seu inciso
XXXII, prescreveu que elementar, ao mesmo tempo em que assinala
“a instrução primária é sua disposição em organizar uma malha de
gratuita a todos os
cidadãos”. Já o inciso XXXIII instrução secundária e superior. Quem deveria
se comprometeu com
abertura de “Collegios”,
freqüentar estes cursos, ensinar, os saberes a
e Universidades, onde serem propagados, as condições de funciona-
seriam ensinados os
“elementos das Sciencias, mento da organização escolar e do fazer de
Bellas Letras e Artes”. mestres e mestras em todos os níveis foram
objeto de preocupação de uma legislação es-
A Lei Geral de Ensino de
15 de outubro de 1827 pecífica e separada.
procurou criar escolas
de primeiras letras, ou
No que se refere à instrução primária, sua
escolas de ler, escrever, disciplina foi detalhada três anos depois de
contar e crer. Com isto,
o Estado pretendia atingir nossa primeira Constituição, por meio da Lei
a população que habitava Geral de Ensino de 15 de outubro de 1827. Este
vilas e lugares populosos
do extenso Império. texto recobre um conjunto geral de aspectos

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

que, combinados, procuraram dar uma forma às escolas de primeiras


letras, ou escolas de ler, escrever, contar e crer. Com base nas regras
de criação e manejo desta malha escolar, se pretendeu atingir a popu-
lação que habitava vilas e lugares populosos do extenso Império. Per-
ceptível, neste caso, o emprego do critério da densidade populacional
como forma de tornar eficaz a intenção de se “derramar a instrução
sobre toda a população”. Aliás, este é um desejo que será freqüente-
mente lembrado, para demonstrar a necessidade de novas interven-
ções na arena educacional, o que pode ser explicado pelo fato de se
conferir à instrução o estatuto de condição mais que necessária para
elevar o Império à condição de Estado moderno e civilizado.
Três outros pontos merecem ser destacados: quem poderia ensi-
nar? Quem deveria aprender? O que difundir e como ensinar?
Uma política para os mestres e mestras foi definida na Lei Geral
que supunha a submissão dos candidatos ao exercício deste ofício a um
concurso público que, no limite, era controlado pelo Presidente de Pro-
víncia, medida que perdura até os dias atuais, se considerarmos que os
resultados dos concursos precisam de uma sanção dos governantes e de
sua publicação nos diários oficiais. Concursos que supunham um exame
meticuloso da vida do candidato e das habilidades que possuía. Assim,
um exame prévio visava observar se o(a) candidato(a) atendia aos cri-
térios de idade, nacionalidade, estado civil e moralidade, por exemplo.
Outra etapa desta seleção supunha o exame das capacidades dos candi-
datos, intimamente articulado aos saberes que iriam disseminar.
O estatuto de “escolar” se encontra definido quando observamos
os impedidos de matrícula: escravos, doentes contagiosos e não-vaci-
nados. No primeiro caso, trata-se de uma medida que colabora para a
manutenção do regime de trabalho escravo,
impedindo que os submetidos a esta condição
tivessem acesso a qualquer outro tipo de sa- Escravos, portadores
de doenças contagiosas
ber. Nos dois últimos, trata-se de uma política e não-vacinados eram
à qual a escola se vê associada, de prevenir e expressamente excluídos
do acesso às escolas
evitar a propagação de doenças, sobretudo em públicas.

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Ao definir o repertório lugares em que se supunha contato direto e


de saberes da escola continuado em pequenos aglomerados. Por-
primária, o Estado
explicita o que pretende:tanto, a escola é convertida em lugar para li-
agir sobre meninos
vres e sãos, daí as exclusões previstas.
e meninas, criando e
recriando as diferenças Ler, escrever, contar e crer por meio de
de gênero, mas também
definindo funções sociaissaberes como a língua nacional, aritmética,
específicas para cada cálculos, geometria, história nacional, religião
indivíduo. Ação que busca
unificar a língua, selar católica, apostólica e romana, por exemplo.
ainda mais os vínculos
Para as meninas, uma redução no campo da
do Estado com a Igreja
católica e criar uma matemática e uma inclusão no campo da “ci-
história para o Brasil,
sendo o texto da ência da casa”. Ao definir o repertório de sa-
Constituição uma peça- beres da escola primária, o Estado explicita o
chave neste projeto,
a ponto de ser que pretende: agir sobre meninos e meninas.
recomendada, no corpo
Ação que busca unificar a língua, selar ainda
da lei, como leitura para
as escolas de primeiras mais os vínculos do Estado com a Igreja católi-
letras.
ca e criar uma história para o Brasil, sendo o
texto da Constituição uma peça-chave neste
projeto, a ponto de ser recomendada, no corpo da lei, como leitura
para as escolas de primeiras letras.
No que se refere às escolas de meninas, cabe problematizar a tese
do preconceito contido na Lei de 1827. Se considerarmos que o destino
social da mulher e sua ação privilegiada deveriam se processar na es-
fera do mundo privado e se esta esfera era descrita como “imperfei-
ta”, “corrompida” e imoral, como alterar o funcionamento deste mun-
do “invisível” e de difícil acesso? Como fazer com que o “olho do
poder/saber” ingressasse nas casas, de modo a proibir o que classifica-
vam como “erro ou desvio”? Preferimos pensar a educação feminina
como medida tida como necessária para impor ordem ao mundo priva-
do, com rebatimento em ações celulares como as de se vestir, comer,
beber, exercitar e também as de amamentar, dormir, lavar e amar,
dentre outras. Para desclassificar as práticas que o saber científico
julgava como inadequadas, se fez necessário construir alianças no te-
cido social e dentro dos lares, e nos parece que a escola funcionou

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

como um canal para educar a mulher na “ciência da casa”, com base


na ação de mestras públicas.
As matérias a serem ensinadas não poderiam ser disseminadas de
qualquer forma. Nesse sentido, o Estado também definiu um método
oficial para as escolas de primeiras letras, demonstrando, com isto,
mais uma vez, que as medidas oficialmente adotadas indicam que a
elite letrada estava atenta ao que se passava no velho mundo. Deste
modo é que se pode compreender a prescrição do Ensino Mútuo como
método oficial, posto que já havia sido experimentado na Inglaterra,
França e em outros países da Europa, e até mesmo nas Américas. Em
linhas gerais, ele conjugava três critérios que conquistaram nossos le-
trados: economia, rapidez e disciplina.
No entanto, dentro do aparelho do Estado é possível evidenciar
sinais da falência da lei ou, no mínimo, de seus limites. No que se re-
fere ao ensino secundário, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Minis-
tro dos Negócios do Império, cinco anos depois da Lei Geral de 1827,
propunha:
Dos estudos menores, existem, nesta cidade, doze cadeiras avulsas, que con-
vém reunir em colégio em um só edifício para que possam ser melhor dirigidas
e fiscalizadas. Cumpre, ao corpo legislativo, criar este colégio com um Diretor
e os mais empregados necessários, e, autorizar o Governo as despesas com as
construções do edifício ou apropriação de algum existente.

Esta solução vem em 1838 com a criação do Imperial Colégio de


Pedro II e de outro conjunto de medidas visando organizar e difundir a
memória da nação. A esse respeito, vale conferir os estudos de salgado
(2003) e haidar (1972).
Quanto às aulas de primeiras letras, no mesmo relatório, no que
se refere ao método, o “senador Vergueiro” atesta
Terminarei, Senhores, este objeto por algumas observações que me pare-
cem dignas da vossa consideração. O método do Ensino Mútuo não tem
apresentado aqui as vantagens obtidas em outros países. Por esta razão o

  Um panorama de trabalhos sobre a adoção deste método encontra-se na coletânea organizada por bastos e
faria filho (1999).

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Governo está disposto a não multiplicar as Escolas onde se ensine esse mé-
todo enquanto as existentes não aperfeiçoarem esse método.

No que diz respeito aos edifícios escolares, assinala


A segunda observação é relativa aos edifícios para estas escolas. A lei manda
aplicar para elas os edifícios públicos que houver. Ora, a falta de tais edifí-
cios é geral, mesmo nesta cidade. Resta, portanto, o recurso de tomá-los
por aluguel, porém, dificilmente se encontram com as proporções necessá-
rias. O remédio, pois, será construí-los consignando-se, para este fim, as
somas precisas. Os professores de ensino individual reclamam o mesmo be-
nefício e o suprimento dos utensílios. Mas, como a lei só trata daqueles
utensílios, necessário é fixar uma regra para todos.

Do mesmo modo, cabe destacar o diagnóstico a respeito das con-


dições do trabalho e ordenados dos professores:
Finalmente, Senhores, os ordenados de algumas cadeiras de primeiras letras
são diminutos. Convém que os menores se elevem pelo menos a trezentos
mil réis sem o que não podemos esperar que as solicitem pessoas idôneas
para o magistério, ou, antes, que se conceda ao professor uma gratificação
por aluno que freqüentar a maior parte do ano, o que o convidaria a empre-
gar maior zelo e proporcionaria melhor recompensa de trabalho.

A Lei Geral de 1827 se


Como estamos mais uma vez tentando de-
propunha a demarcar os monstrar, a lei não funciona como espelho da
critérios fundamentais
sobre o quê e como realidade, nem a realidade se constitui em re-
ensinar, além de definir
quem poderia ensinar e flexo da lei. A efetivação das normas se encon-
aprender no Império tra associada a forças diversas que terminam
brasileiro. No entanto, a lei
por definir possibilidades, limites e ajustes a
não é espelho da realidade,
nem a realidade se
que a vontade do poder central se vê submeti-
constitui em reflexo da lei.
da. Neste caso, a evidência parte do próprio
núcleo dirigente, sinal de uma economia e funcionamento do Estado,
que aposta na rotatividade dos gabinetes, ministros e presidentes de
Província como método que responde a conjunturas específicas. É
aquilo que holanda (1977) chamou de exercício de jardinagem exercido
pelo imperador, que, podando regularmente os galhos que ameaça-
vam, visava preservar a árvore frondosa do Império sob seus cuidados
e comando.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

A especificidade e proliferação dos atos formais ficaram ainda mais


acentuados na década de 1830, com a promulgação do Ato Adicional à
Constituição, a que já nos referimos. Tal ato foi mais uma tentativa, fren-
te aos riscos de desagregação, de firmar novo pacto entre o “centro” e a
“periferia”. A construção de um novo direito, contido no Ato de 1834,
procurou arrefecer os apetites regionais, funcionando como solução para
prevenir novas rebeliões e, finalmente, estabilizar o Império. A crença era
que, com o Império pacificado, todos seriam beneficiados e a nação po-
deria trilhar os rumos da civilização em paz.
No entanto, a efetivação desta reforma se deu sob tensões, pois
os adeptos da centralização disputaram a “verdade” do Ato, por meio
da chamada Lei Interpretativa, de 1840, que restaurava alguns princí-
pios dos “conservadores”.
Como se pode perceber, este novo ordenamento jurídico não foi
suficiente para “conciliar” forças e interesses em jogo, como também
não o foi o chamado “golpe da maioridade”, de 1840. Ainda que uma
História mais convencional insista em descrever o segundo reinado como
tempo de apogeu e de tranqüilidade do “novo Estado”, as contestações
prosseguiram, o que pode ser percebido nas lutas internacionais, como
as guerras com a Argentina, Uruguai e Paraguai, como também no com-
bate às insurreições locais, como a insurreição ou Revolta dos Queima-
dos, no Espírito Santo (1849), a Praieira, a Revolta do Ronco da Abelha,
envolvendo as províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Ceará e Ser-
gipe (1851-1852), o conflito do Teatro São João (1854) e o chamado
motim da “carne sem osso, da farinha sem caroço e do toucinho grosso”
ou “sedição dos chinelos” ou ainda “revolta das pedras” (1858), estes
dois últimos em Salvador, e a Revolta do Vintém, na Corte em 1881 (aqui-
no et al. 2001).

Como procuramos indicar, o Estado Imperial, mais ou menos con-


flagrado, procurou enfrentar o desafio de manter sua integridade, re-

  Para observar as estratégias dos conservadores na restauração do poder central, via reforma do Ato de 1834,
cf. Carvalho (Org.), 2002.

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gime de trabalho e monarquia constitucional dirigida por homens livres


e de posses. Para isto, a guerra contra os “inimigos” internos foi con-
vertida em objeto de preocupação crescente dos dirigentes. Neste
combate, a educação escolar deveria cumprir função estratégica. Com-
bate que também exigiu a configuração de um arco de alianças bem
definido. Nesta luta, o elemento religioso foi reconhecido, uma vez
mais, como aliado fiel e tradicional.

Ação religiosa
A pacificação do Império demandou também uma articulação generosa
e continuada com a Igreja Católica, que implicou pagamento dos orde-
nados de religiosos, sua contratação, construção de templos, imposi-
ção do ensino religioso nas escolas, dentre outras medidas. Neste sen-
tido, a Igreja se organizou por dentro do aparelho do Estado, marcando
uma relação de cumplicidade que, deste então, vem sendo mantida.
Não é gratuito, apenas a título de curiosidade, que a Constituição de
1824 tenha sido feita “em nome da Santíssima Trindade” e a última
Constituição de 1988 tenha sido promulgada “sob a proteção de Deus”.
Este tipo de vínculo esteve ausente na constituição republicana de
1891 e na de 1937. No entanto, o artigo 133 desta última prescrevia
que o ensino religioso poderia ser contemplado como matéria do curso
ordinário das escolas primárias, normais e secundárias, sem que fosse
constituído objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de
freqüência compulsória por parte dos alunos.
A mudança que se pretendeu operar nesta matéria fica explicita-
da em cinco parágrafos do artigo 72 da primeira constituição republi-
cana, por meio dos quais se procurava disciplinar alguns direitos dos
cidadãos:
§ 3º. Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e li-
vremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, obser-
vadas as disposições do direito comum.
§ 4º. A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gra-
tuita.
§ 5º. Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autori-
dade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos res-

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pectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral
pública e as leis.
§ 6º. Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
§ 7º. Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações
de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.

Como se pode perceber, liberdade de culto, casamento civil, en-


terros livres, ensino leigo e ausência de subvenção oficial marcam um
novo tempo nas relações do Estado com a Religião, sobretudo a católi-
ca. Tal evidência não nos autoriza a pensar que houve uma ruptura
geral com o que se praticava no regime imperial. O retorno de expres-
sões como “nossa confiança em Deus” (1934), “sob a proteção de Deus”
(1946) e “invocando a proteção de Deus” (1967) funciona como atesta-
do das tensões que marcam e caracterizam este debate no Brasil.
Observar as articulações entre Estado e Igreja, no entanto, não
esgota a reflexão sobre a relação entre educação e religião. Para tan-
to, cabe considerar as inúmeras iniciativas for-
mais e não formais desenvolvidas por vários As atividades educativas
das ordens religiosas,
grupos religiosos no sentido de preservar suas católicas e não católicas,
crenças e poderes, o que vale não só para ca- cumpriram papel decisivo
na difusão da instrução e
tólicos e suas diferentes ordens, mas também a aproximação com o
Estado foi uma estratégia
para religiões protestantes, espíritas, afro-
eficiente para o sucesso
brasileiras, indígenas, orientais e do mundo destas iniciativas.
árabe.
No que se refere à Igreja Católica, cabe observar a complexidade
que adquire e a sua ramificação em inúmeras ordens, como jesuítas,
franciscanos, carmelitas, barnabitas, lassalistas, salesianos, lazaristas,
capuchinhos, beneditinos, dominicanos, marianos, ursulinas e vicenti-
nos, por exemplo. As ordens religiosas — surgidas na Idade Média — fo-
ram formadas por sacerdotes que buscavam o isolamento para se dedi-
car mais às atividades religiosas e cada uma possui hierarquia e títulos
específicos. O aparecimento dessas ordens religiosas facilitou o traba-
lho de cristianização do mundo e de internacionalização da fé, objeti-
vando conquistar novos fiéis e expandir seu poder. Neste sentido, suas
atividades educativas cumpriram papel decisivo e a aproximação com

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o aparelho do Estado foi uma estratégia eficiente, o que vale para ca-
tólicos, mas também para as outras religiões. Para aprofundar as refle-
xões sobre o desenvolvimento da Igreja Católica no Brasil, recomenda-
mos a consulta aos trabalhos de beozzo (1992), azzi (2004) e Lopes, Faria
Filho e Veiga (2003).
No caso dos protestantes, sua organização também se complexi-
ficou desde do século XVI, fazendo surgir as igrejas luterana, anglica-
na, presbiteriana, batista, metodista, pentencostal e congregacional,
por exemplo. Cada uma com uma organização, ramificação e discipli-
na própria.
Semelhante ao pensamento católico, educadores e líderes pro-
testantes têm defendido a legitimidade e a necessidade de envolvi-
mento de suas igrejas na tarefa educacional. No entanto, não se ba-
seiam em documentos papais, apelando diretamente para a interpre-
tação da Bíblia.
Para viabilizar seu projeto, os protestantes também disputaram o
poder político, aliando-se ao Estado em vários países e conjunturas.
Aliança que não perdeu de vista a dimensão estratégica da educação
como parte das medidas de enraizamento do protestantismo nos pla-
nos nacional e internacional. Para o aprofundamento destas questões,
conferir Almeida (2002), Chamon (2005), Hilsdorf (1977) e Nascimento
(2001), dentre outros.
As religiões africanas são um complexo de crenças e práticas
oriundas de antigos habitantes da região da África subsaariana. Mais
reprimida, revestida de preconceitos, associadas à feitiçaria e à bruxa-
ria, as religiões afro-brasileiras, como a quimbanda, umbanda e can-
domblé, difundem suas crenças por meio de estratégias mais invisíveis,
como as atividades variadas promovidas nos/pelos terreiros.
Após o período do colonialismo europeu e do período da escrava-
tura, houve a disseminação dessas práticas por outras partes do mun-
do, sobretudo para o continente americano, desenvolvendo-se mais
nas ilhas do Caribe, Brasil e México. No Brasil, embora não houvesse
proibição de culto, a Constituição de 1824, além de assumir a religião

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

católica como a oficial, impedia a construção de templos de outros


credos. Mais grave, evidentemente, foram os efeitos da escravidão e
das violências a que a população negra foi submetida ao longo da His-
tória e, mais marcadamente, até o século XIX. Com isso, evidentemen-
te, a preservação da religiosidade africana se desenvolveu por meio de
táticas de resistência, dentre as quais podemos considerar o próprio
sincretismo religioso, como o que pode ser verificado na associação de
seu sistema de crenças ao sistema dos deuses/santos dos brancos.
Repressão semelhante sofreram os indígenas, pois os brancos-ca-
tólicos também compreenderam suas práticas ordinárias como abomi-
nações que deveriam ser eliminadas, dentre elas o nomadismo, a poli-
gamia, a antropofagia e o politeísmo.
Cada nação indígena possuía crenças e rituais religiosos diferencia-
dos, ainda que todas as tribos acreditassem nas forças da natureza e nos
espíritos dos antepassados. Para esses deuses e espíritos, faziam rituais,
cerimônias e festas, e o pajé era o responsável por transmitir esses co-
nhecimentos aos componentes da tribo. Evidentemente, a ação educa-
tiva das diferentes tribos precisou resistir face à violência que foi im-
posta a estes grupos, empresa difícil dado que a própria população
indígena foi sendo pouco a pouco exterminada. Para maiores informa-
ções a respeito da população indígena brasilei-
ra, consultar o endereço da Fundação Nacional Práticas culturais das
do Índio (Funai). nações africanas e dos
vários grupos étnicos
No que se refere às outras religiões, é pos- indígenas, bem como as
práticas e crenças
sível evidenciar a sua presença no Império Por-
professadas por cristãos-
tuguês desde o período colonial. Judeus, cris- novos, judeus, mouros
marcaram sua presença no
tãos-novos e mouros, por exemplo, foram alvos Império Português desde
de processos inquisitoriais e submetidos à con- o período colonial, e, não
raramente, foram alvos de
versão à religião católica (grinberg, 2005; no- processos inquisitoriais ou
obrigados a se submeter
vinski, 1972; vainfas, 1997). Cabe, desse modo,
à conversão pelas
inseri-las no debate para dar a ver a complexi- autoridades católicas.

  Neste caso, consultar o portal http://www.funai.gov.br/.

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Gondra e Schueler

dade da questão religiosa no Brasil e no mundo e a necessidade de re-


fletir acerca dos fundamentalismos nas sociedades e na educação para
poder criticar e enfrentar as novas formas de Império tão em voga em
pleno século XXI.
Para se ter uma idéia da distribuição das crenças no século XIX,
mesmo tendo em mente os limites do saber estatístico da época, cerca
de 16 mil homens e 11 mil mulheres foram identificados como sujeitos
que professavam outra religião diferente da católica, em uma popula-
ção estimada em 10 milhões de habitantes. Isto fornece uma medida
da força do catolicismo e das dificuldades provavelmente enfrentadas
por outros grupos religiosos no sentido de preservar sua fé.
O tema das relações entre educação e religião tem mobilizado a
atenção dos educadores e o interesse dos historiadores da educação.
Neste sentido, os Congressos Brasileiros de História da Educação e os
debates do Grupo de Trabalho de História da Educação da Associação
Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) têm trazi-
do contribuições significativas para se compreender iniciativas diver-
sas, associadas a diferentes religiões que vêm se processando no terri-
tório nacional.

Ação dos homens ilustrados: sociedades,


academias e grêmios
No decorrer do século XIX, a educação foi pensada no plural, como
também foram plurais as forças educativas que, de modo associado ou
concorrente, delinearam iniciativas e constituíram formas e práticas
diversas para promover os projetos de educação e de nação. Uma des-
tas forças educativas foi representada pela ação da própria sociedade
civil, por meio da criação de múltiplos espaços e redes de sociabilida-

  Para saber mais a respeito das estatísticas no Império, cf. senra, 2006.
  Para acessar estes trabalhos, recomendamos a consulta nos portais da Sociedade Brasileira de História da Educa-
ção (www.sbhe.Org.br) e da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (www.anped.Org.br),
bem como às revistas destas duas associações, a Revista Brasileira de História da Educação e a Revista Brasileira de
Educação, respectivamente.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

de, formais ou informais, que longe de se constituírem como lugares


estanques e isolados uns dos outros, estabeleceram entre si uma série
de interseções e relações, embates e confrontos. Investigar as forças
educativas oriundas da iniciativa da sociedade significa seguir as traje-
tórias de indivíduos e grupos, buscando mapear suas idéias, tradições,
comportamentos e formas de organização, de modo que seja possível
caracterizar e compreender seus esforços de reunião e de afirmação
de identidades em determinados momentos históricos (gomes, 1996).
Significa, igualmente, privilegiar as condições sociais em que essas for-
mas de sociabilidade foram produzidas, reconhecendo sua autonomia
relativa, sem esquecer que possuem vinculações com outros setores da
sociedade, como a família, a Igreja e o Estado.
No entanto, apesar da relevância das formas de sociabilidade e da
presença de variadas forças educativas na sociedade Oitocentista, o
tema ainda carece de problematização e de investimento de pesquisa
no campo da História da Educação, sobretudo se considerarmos as di-
versidades regionais e a multiplicidade de formas, iniciativas e experiên­
cias localizadas no interior das províncias, cidades e vilas imperiais.
Por isso, sem a pretensão de esgotar o assunto, nos interessa focalizar
as sociedades e associações culturais, filantrópicas ou pedagógicas
que, durante o Império, tiveram como finalidades declaradas a educa-
ção e a instrução, dirigindo-se ora à população em geral, ora a grupos
sociais específicos, como a chamada infância pobre e desvalida e os
adultos trabalhadores. Cabe salientar que destacamos, principalmen-
te, as iniciativas que tiveram lugar na Corte imperial, incluindo apenas
algumas referências a outras localidades, em razão das dificuldades
decorrentes do acesso às pesquisas e da dispersão das fontes documen-
tais para o vasto território brasileiro.

Redes de sociabilidades: a constituição dos espaços públicos


Ao investigar as transformações dos espaços públicos na Corte imperial,
Morel (2005) analisou o papel da imprensa, dos atores políticos e das

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Gondra e Schueler

múltiplas formas de sociabilidade, formais e informais, emergentes no


cenário brasileiro entre os anos de 1820 e 1840. Como espaços de so-
ciabilidade formais podemos caracterizar as associações estabelecidas
e institucionalizadas: as confrarias, as irmandades religiosas e leigas, as
lojas maçônicas, os grêmios, as academias, as sociedades corporativas
ou profissionais, científicas, literárias, filantrópicas, pedagógicas e
científicas, os institutos de pesquisa, bem como os espaços e lugares de
divulgação e circulação de idéias e projetos de civilização e educação,
que adquiriram significado crucial na sociedade oitocentista. Dentre
tais espaços, podemos ressaltar a imprensa periódica, jornais, revistas,
livros, panfletos, brochuras, impressos e manuscritos; as tipografias,
editoras e livrarias; os saraus dançantes, literários e musicais; o teatro
e as artes; e, mais para o final do século, os cafés. Já como formas de
sociabilidade informais, salientamos a multiplicidade de espaços e luga-
res, públicos e privados, tais como: as redes de relações familiares e
sociais, com seus ritos, cerimônias e comemorações; as festas, eventos
e procissões religiosas e profanas; os espetáculos e festejos da monar-
quia (comemorações familiares, como casamentos, batismos, aniversá-
rios, e os ritos de poder, como as coroações dos imperadores, as nome-
ações, as proclamações, as execuções e condenações públicas etc.); os
espaços públicos, como ruas, praças, mercados, largos, tabernas e
quiosques; as manifestações populares, os gritos, os gestos, enfim, as
vozes públicas e anônimas das ruas, entre outras redes de relações
sociais (morel, 2005, p. 18).
Quanto aos espaços de sociabilidade representados pela constitui-
ção de grupos, agremiações e sociedades, o autor encontrou documen-
tação que lhe permitiu demonstrar a expansão do movimento associati-
vo e, conseqüentemente, a ação de várias forças sociais no processo de
independência e na constituição da esfera pública no Brasil. No período
estudado pelo historiador, marcado por tensões sociais e graves emba-
tes entre projetos distintos de nação, emergiram agremiações e espaços
de reunião variados, formados por indivíduos e interesses plurais. As

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

sociedades secretas e as lojas maçônicas; as confrarias e as irmanda-


des; as sociedades científicas, artísticas, literárias e as academias10; as
sociedades políticas11; as agremiações profissionais, corporativas e de
assistência mútua12; as sociedades de beneficência nacionais e estran-
geiras13; as associações comerciais14, as sociedades de promoção da co-
lonização15; as associações filantrópicas, pedagógicas; as sociedades de
instrução e as associações de assistência e educação à infância — cons-
tituíram algumas das formas de sociabilidade institucionalizadas então
criadas pela sociedade civil.
Como salientou Morel (op. cit.), a tentativa de organizar uma tipo-
logia dessas agremiações, embora didaticamente necessária, esbarra

  A maçonaria surgiu na Inglaterra, na primeira metade do século XVIII, se difundindo pela Europa e pelos
Estados Unidos da América. Constituída por associações secretas, em princípio, sem fins políticos ou religiosos,
a maçonaria é considerada embrião da constituição dos espaços públicos modernos, viabilizando a formação do
“reino da crítica” no âmbito da sociedade civil. Em Portugal e na América Portuguesa, há indícios de sua pre-
sença desde finais do século XVIII. Após a Independência, nas décadas de 1820 e 1830, as lojas Grande Oriente
Brasileiro (1822), do grupo de José Bonifácio de Andrada e Silva, a Grande Loja Brasileira (1831), de oposição
política moderada, e as sociedades secretas radicais dos liberais chamados de Exaltados, foram as mais conhe-
cidas. Para compreender melhor a ação dos grupos maçons no Primeiro e no Segundo Reinados, consultar Bara-
ta (1999), Morel (2005) e o verbete Maçonaria (neves, 2002, p. 507).
  As confrarias e irmandades eram associações corporativas sediadas nas Igrejas. Poderiam reunir membros de
várias origens sociais e étnicas ou se organizavam como associações de grupos étnicos, de cor, de classe ou
profissão. Ao longo do século XIX, existiram irmandades ligadas a comerciantes e artesãos, bem como aquelas
relacionadas aos pertencimentos étnicos, como as de “pardos” e “pretos”. Conferir Abreu (2002a, p. 390).
10  Por exemplo, em Portugal, ainda no final do século XVIII, foram criadas a Academia Real de Ciências de Lisboa
e o Colégio dos Nobres. No Brasil, no período joanino (1808 a 1821), foram criadas a Academia Militar, de Marinha
e a Academia Fluminense das Ciências e Artes. Na década seguinte, surgiram a Sociedade Literária do Rio de Ja-
neiro, a Sociedade Beneficente Musical, a Sociedade Philarmônica e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
11  Na década de 1830, em todo o Império, várias sociedades e agremiações se reuniram em torno de interesses
e confrontos políticos, tais como: as Sociedades Defensoras da Liberdade e da Independência Nacional, ligadas
aos grupos liberais moderados e que chegaram ao número de 89 sociedades, espalhadas por São Paulo, Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Goiás, Alagoas, Ceará, entre
outras localidades; as Sociedades Federais ou Federalistas, que defenderam posições que variavam da organi-
zação federal do Estado à forma republicana de governo, cujas sedes foram encontradas nas províncias onde
ocorreram as principais revoltas regenciais, como Pernambuco, Rio de Janeiro, Bahia e Grão-Pará; Sociedade
Conservadora da Constituição, relacionada aos restauradores e regalistas. Sobre o tema, consultar: morel (2005)
e grinberg (2002, p. 680-682).
12  Por exemplo, a Sociedade dos Pintores do Rio de Janeiro (1827), a Sociedade de Bem-Estar dos Caixeiros
(1834), Sociedade Animadora da Corporação de Ourives (1836). As associações corporativas e profissionais ten-
deram ao crescimento ao longo do século, sobretudo a partir de 1850.
13  Associação Filantrópica dos Suíços, em Nova Friburgo (1819); Sociedade Francesa de Beneficência (1836);
Sociedade Inglesa de Beneficência (1837); e Sociedade Portuguesa de Beneficência (1840).
14  A Associação Comercial do Rio de Janeiro, inicialmente Sociedade da Praça do Comércio, foi responsável
pela criação do Instituto Comercial (1856) e do Asilo dos Inválidos da Pátria (1869). A esse respeito, cf. cunha,
2006.
15  Por exemplo, a Sociedade de Colonização (1833) e a Associação Auxiliadora de Colonização e Imigração, em
São Paulo (1871).

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Gondra e Schueler

em uma série de problemas, tais como: a heterogeneidade das formas


de sociabilidade então criadas; a instabilidade e existência efêmera da
maioria das instituições; a falta de fontes preservadas; e, sobretudo, a
multifuncionalidade dos fins sociais em alguns casos. Algumas agremia-
ções não se restringiram a fins específicos — como parece ter sido o
caso das associações mútuas profissionais e corporativas, destinadas a
promover a assistência e defesa dos interesses de seus membros asso-
ciados, e as sociedades de beneficência estrangeira (suíça, francesa,
portuguesa, italiana, alemã etc.), destinadas a amparar os imigrantes e
colonos recém-chegados ao Brasil. Mas, ao contrário, muitas associa-
ções cumpriram simultaneamente funções religiosas, pedagógicas, as-
sistenciais, filantrópicas, beneficentes, culturais ou científicas, como
indica a atuação da Sociedade Amante da Instrução e da Sociedade Au-
xiliadora da Indústria Nacional, que analisaremos com mais detalhes.
Ressalvadas a pluralidade das formas de sociabilidade e a hetero-
geneidade dos fins e objetivos das agremiações e das iniciativas da
sociedade civil, Morel (2005) propôs uma classificação a partir da qual
pôde analisar 73 associações registradas entre 1820 e 1840. Dentre
essas, o autor identificou 31 lojas maçônicas, 11 associações filantró-
picas, 9 sociedades políticas, 8 sociedades culturais e literárias, 4 as-
sociações profissionais, 2 sociedades científicas e 2 sociedades secre-
tas ou desconhecidas16.
No interior destas agremiações, atores de origem social, formação
intelectual e atuação profissional diversas interagiam. Grupos de inte-
lectuais e homens de letras, religiosos, políticos, médicos, juristas, pro-
fessores, militares e outros grupos profissionais e corporativos se reuni-
ram com o fim de atingir determinados objetivos, finalidades e interesses
compartilhados, apesar das diferenças internas, das divergências e ten-
sões observadas nestes espaços. Entre os integrantes das sociedades
analisadas, Morel encontrou 34% de bacharéis em Direito, 21% de douto-

16  O período de maior crescimento das agremiações se deu a partir do final da década de 1820: 5 em 1829; 6
em 1830, 19 em 1831, 25 em 1832, 21 em 1833, 25 em 1836, 19 entre 1837 e 1839 (Morel, 2005, p. 265).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

res em Medicina, 14% de eclesiásticos, 13% de militares, 6% de bacharéis


em Filosofia, 5% em Matemáticas, 3% em Letras, 2% em Farmácia e 2% de
autodidatas. Estes homens de letras, a maioria dos quais oriundos das
camadas médias urbanas, atuavam nas profissões liberais, como o direi-
to e a medicina, no ensino, na igreja, na burocracia e na política, sendo:
28% professores de vários níveis do ensino, 24% funcionários públicos,
13% médicos, 9% advogados, 8% eclesiásticos, 4% diplomatas, 3% de co-
merciantes, tradutores, impressores e profissionais diversos, cada um.
Quanto às origens sociais e familiares dos membros que compu-
nham as associações estudadas, Morel apontou a importância dos laços
de parentesco ampliados, isto é, não restritos à consangüinidade, pos-
to que as alianças pessoais e políticas garantiam diversas formas de
proteção e apadrinhamento. Com base nas distinções, oriundas do
acesso a instrumentos de saber e às relações de poder, os homens le-
trados constituíam camada restrita da população, pertencendo às eli-
tes culturais, o que, porém, não significava necessário pertencimento
às elites econômicas. No grupo pesquisado pelo autor, havia 10% de
letrados nascidos em famílias senhoriais e proprietários de terras e
escravos, 38% oriundos de famílias constituídas por profissionais libe-
rais e 38% de militares e padres. Neste grupo, também foi notável a
presença de negros e descendentes, referidos na documentação como
mestiços ou mulatos, como, por exemplo: Senador Felizberto Brant
Pontes (Marquês de Barbacena); Luiz José de Carvalho e Melo (Viscon-
de de Cachoeira); do médico Joaquim Soares de Cândido Meireles, fun-
dador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro; do Conselheiro An-
tonio Pereira Rebouças; do tipógrafo Paula Brito, entre outros (2005, p.
180-186). A visibilidade adquirida pelos homens de letras e os espaços
de sociabilidades formais e informais nos quais circulavam (a imprensa,
as sociedades, as relações pessoais e/ou familiares etc.) implicavam
na tessitura de laços complexos com as elites dirigentes do Estado e a
constituição de carreiras políticas. No grupo selecionado, a inserção na
política era marcante: 48% Deputados, 17% Senadores e 35% não exer-
ceram cargos eletivos.

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Gondra e Schueler

Os casos analisados por Morel indicaram uma ampliação da esfera


pública, com a incorporação, embora seletiva e restrita, das camadas
médias urbanas, formando uma espécie de “nobreza cultural”. Em co-
mum, estes indivíduos apresentavam a valorização da liberdade de ex-
pressão e circulação de idéias, advogando a difusão das luzes e a edu-
cação dos cidadãos. Percebiam no processo de transmissão e circulação
cultural uma ferramenta indispensável para a constituição da moderni-
dade política e da identidade nacional (morel, 2005, p. 169).
Embora não fossem constituídas a partir da ação do Estado, as
redes de sociabilidade formais e informais teceram relações e construí­
ram diversos mecanismos de contato, de diálogo e de obtenção de
apoio e proteção dos poderes públicos — e também, em alguns casos,
de conflito, oposição ou repressão. A configuração desses lugares de
sociabilidade como espaços públicos faz com que estas forças educati-
vas sejam compreendidas a partir de complexas trocas entre interesses
privados e a esfera pública (tidas como expressão do bem comum, do
povo ou da nação), interesses econômicos, sociais, literários, culturais,
filantrópicos ou educacionais, que se apresentavam por meio de inicia-
tivas coletivas (morel, 2005, p. 159).

Educar e instruir: as agremiações como instrumentos


de civilização
A difusão das luzes e o ideal de difundir a civilização entre camadas
mais amplas da população eram os objetivos declarados na maioria dos
estatutos e documentos oficiais das agremiações.
Desde o início da Era Moderna, a palavra civilidade havia adquirido
o sentido de cortesia, urbanidade, boas maneiras, polidez, etiqueta e
boa educação. Primeiramente difundidas nas sociedades de Corte eu-
ropéias do Antigo Regime como forma de demarcar normas de compor-
tamento, distinções e lugares sociais entre a nobreza, os estamentos
sociais intermediários e a plebe, as regras de civilidade e os ideais de
civilização, já no final do século XVIII, tenderam a ser utilizados tam-
bém como critérios de comparação entre sociedades, povos e nações.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Civilização, além de significar o autocontrole e a introjeção de deter-


minados hábitos e normas de conduta, de formas de comer, vestir,
morar, conversar, amar e sentir, passou também a expressar os níveis
de desenvolvimento artístico, tecnológico, econômico e científico da
humanidade, numa perspectiva claramente etnocêntrica, que conferia
superioridade à civilização ocidental européia (abreu, 2002b; elias,
1994a e 1994b; revel, 1991).
Para as elites dirigentes do Império, os ideais e os discursos em
prol da civilização tornaram-se fundamento para uma série de projetos
políticos e medidas administrativas que nortearam a constituição do
Estado nacional. A expressão tornou-se uma espécie de panacéia para
legitimar ações que se afirmavam como meio de superação para os
males e problemas nacionais, comparecendo com especial prestígio
entre os grupos que se preocupavam com a difusão de práticas de edu-
cação, com o ensino e a formação profissional. Aos olhos dos contem-
porâneos que compartilhavam os ideais de civilização, era urgente,
para o Império do Brasil, educar e instruir a população. Assim, logo nas
primeiras décadas do século XIX, sobretudo a partir do processo de in-
dependência política e em meio às disputas em torno de diversificados
projetos de construção da nação, emergiram grupos e agremiações
dispostos a promover a instrução e a educação, constituindo novos es-
paços de sociabilidade e novos mecanismos de contato entre as elites
políticas, as camadas médias urbanas e o “povo miúdo”.
Essas associações promoveram a aproximação entre pessoas que
partilhavam idéias e interesses comuns, como, por exemplo, os clubes
e grêmios abolicionistas e republicanos, que, disseminados por várias
cidades e regiões do Império, nas décadas de 1870 e 1880, congrega-
ram indivíduos e grupos oriundos de vários setores sociais e profissões,
incluindo os professores. De acordo com Lemos (2006, p. 172), havia
sutis diferenças entre os significados das palavras associar, associação
e grêmio encontrados no Grande Dicionário Portuguez, de 1873:
Associar (do latim associare) — Reunir em sociedade; congregar; ajuntar;
agregar; convocar para um centro ou grêmio;

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Associação (do latim associatio) — União estabelecida entre pessoas para


qualquer empresa;
Grêmio (do latim gremium) — Reunião de indivíduos que formam uma clas-
se de contribuintes, os quais estabelecem entre si, e segundo os rendimen-
tos de cada um, a quantia que deve entrar para preencher a contribuição
que lhes é imposta — ir ao grêmio — sujeitar-se às decisões do grêmio.17

Uma das primeiras agremiações educativas, e das mais impor-


tantes ao longo dos anos oitocentos, foi constituída em 1827. A Socie-
dade Auxiliadora da Indústria Nacional, também conhecida como So-
ciedade Promotora da Indústria Nacional, foi considerada por Silva
(1979) a primeira sociedade civil do Império. Fundada por iniciativa
de Inácio Álvares Pinto de Almeida, negociante do Rio de Janeiro, nos
seus estatutos, a sociedade afirmou o objetivo de contribuir para a
civilização e progresso da pátria por meio do auxílio à indústria, com
a aquisição de máquinas e o incremento das riquezas nacionais. Inau-
gurada em 1828, reuniu políticos e membros da Corte de Pedro I,
desfrutando, desde a sua criação, de proteção financeira e prestígio
junto ao governo imperial. Através da revista oficial, O Auxiliador da
Indústria Nacional, a sociedade divulgava suas idéias e suas ações,
destacando-se os artigos que condenavam a escravidão e a defesa de
uma mão-de-obra livre. Com esses fins, contribuiu para a organização
de outras instituições, como a Sociedade de Colonização (1835), o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e o Instituto Flumi-
nense de Agricultura (1860). A agremiação, recebendo subsídio gover-
namental, colaborou com a organização das Exposições Nacionais rea­
lizadas no Segundo Reinado (1861, 1866, 1872, 1875, 1881 e 1888) e
foi responsável pela criação e manutenção de estabelecimentos de
ensino primário, profissional, artístico e técnico, bem como de cursos

17  Ao analisar o movimento associativo docente na Corte, Lemos (2006) realizou um levantamento das agre-
miações existentes na Província do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Nas fontes localizadas
pelo autor, havia o registro de que, até 1879, havia aproximadamente 56 associações de auxílio mútuo, que
reuniram 138.174 associados. Nas décadas de 1880 e 1890 surgiram sociedades identificadas com categorias de
funcionários públicos e operários do Estado, representando 14,6% do total de agremiações. Na virada do século,
a tendência de diminuição das sociedades de auxílio mútuo deu lugar à emergência de agremiações profissio-
nais, como os grêmios e os sindicatos.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

noturnos para adultos. Em 1904, a Sociedade Auxiliadora reuniu-se ao


Centro Industrial de Fiação e Tecelagem, originando o Centro Indus-
trial do Rio de Janeiro (grinberg, 2002, p. 679).
Em 1829, foi criada a Sociedade Jovial Instructiva, cujo nome foi
alterado para Sociedade Amante da Instrução, na Corte imperial. Re-
gulamentada em 1831, funcionando no Beco da Lapa, a sociedade
tinha como finalidade estatutária oferecer cursos de instrução ele-
mentar e de formação profissional para alunos pobres. Entre seus
fundadores estavam o baiano Antonio Pereira Rebouças e o médico
genovês Luiz Simoni, sócio-fundador da Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro. Os sócios da Amante da Instrução, advindos de diversos
setores letrados, como padres, professores, médicos, advogados, de-
sembargadores, conselheiros, entre outros, eram voluntários no ofe-
recimento das aulas gratuitas. Em 1833, ao receber subsídios e prote-
ção imperial, tendo como seu patrono o Imperador D. Pedro II, já
havia 244 alunos matriculados que aprendiam primeiras letras, fran-
cês, música e arte tipográfica. A sociedade também oferecia educa-
ção agrícola, “dada às condições do país”. Além dos recursos adquiri-
dos com as mensalidades dos seus sócios, a Sociedade Amante da
Instrução contou com uma rede de benfeitores e doadores. A ordem
beneditina concedeu-lhes uma casa, em usufruto, para as aulas de
meninos e, do mesmo modo, os religiosos carmelitas destinaram uma
propriedade para as aulas femininas. O governo imperial, por sua vez,
fornecia subsídios e destinava recursos arrecadados da loteria. As pri-
meiras meninas pobres ingressaram nas aulas oferecidas pela Socie-
dade Amante da Instrução, ao que tudo indica, em 1846, quando da
criação do Colégio das Órfãs, para aprender as primeiras letras e a
costura simples (souza, 2006).
Nos anos 1830, houve também a fundação de outras sociedades,
como a Sociedade de Instrução Elementar (1831), fundada pelo regen-
te Pedro de Araújo Lima e José Bonifácio de Andrada e Silva, que tam-
bém tinha como intenção abrir cursos gratuitos de instrução primária e
formação profissional. Há notícias sobre outras duas agremiações fun-

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Gondra e Schueler

Figura 2. Sociedade Propagadora das Belas-Artes, fundada em 23 de novembro


de 1856

dadas em 1833, a Sociedade de Educação Liberal e Sociedade de Ins-


trução Gratuita. Em 1836, homens de letras, e profissionais ligados aos
grupos e ideais exaltados, criaram a Sociedade Auxiliadora das Artes
Beneficente, que prestava assistência e oferecia cursos de artes mecâ-
nicas e de trabalho manual. Entre seus fundadores, estava o ex-empre-
gado da tipografia Plancher, o mulato Francisco de Paula Brito, que se
tornaria destacado tipógrafo e editor em meados do século XIX, res-
ponsável, entre outras coisas, pela iniciação de outro mulato, este
bem mais conhecido, na arte da impressão e no mundo editorial, o li-
terato Machado de Assis.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Em meados do século XIX, a Sociedade Propagadora das Belas-


Artes (1856) foi responsável pela criação de uma importante institui-
ção particular de divulgação do ensino artístico e técnico na Corte
imperial, o Lyceu de Artes e Officios. Idealizado por Francisco Joa-
quim Bethencourt da Silva, o Lyceu iniciou suas atividades em 9 de
janeiro de 1858, com a finalidade de proporcionar a todos os indiví-
duos, independentemente de nacionalidade, raça ou religião, o estu-
do das artes e sua aplicação necessária aos ofícios e indústrias. Insti-
tuição de caráter privado, contava com o apoio oficial e recebia
subvenção do Estado, tendo a seguinte missão estatutária: “dissemi-
nar, pelo povo, educação, o conhecimento do — bello —, propagar e
desenvolver, pelas classes operarias, a instrucção indispensavel ao
exercício racional da parte artistica e technica das artes, officios e
industrias”.18
A ênfase no ensino do desenho não era uma questão exclusivamen-
te brasileira. O desenvolvimento da indústria, da técnica, da arte e das
ciências aplicadas ao progresso econômico e industrial era uma ques-
tão amplamente discutida pelos países europeus nas grandes Exposi-
ções Universais, as “vitrines do progresso”, das quais o Império do
Brasil fez parte. Não por acaso o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de
Janeiro seria fundado em 1856, um ano após a Segunda Exposição Uni-
versal, realizada em Paris, em 1855.
Segundo Costa (2007, p. 49), a criação do Lyceu de Artes e Offi-
cios, bem como de outras instituições organizadas com o fim de propa-
gar cursos e aulas noturnas para jovens e adultos trabalhadores, na
segunda metade do século XIX, integrava o movimento mais amplo de
formação e desenvolvimento da modernidade capitalista, a partir da
constituição simultânea do Estado e do mercado. Como pontos consti-
tutivos do projeto de educação e dos cursos noturnos dirigidos às clas-
ses trabalhadoras, a autora destacou:

18  Lyceu de Artes e Officios. O Paiz, Rio de Janeiro, 24 nov. 1885. In: Relatorios do Lycêo de Artes e Officios
apresentados à Sociedade Propagadora das Bellas-Artes pelas Directorias de 1885 a 1888, p. 1-138.

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Gondra e Schueler

A missão civilizatória é a construção do Estado imperial; a formação para o


mercado de trabalho; a formação para uma cidadania restringida e o con-
trole social. Mas estes pontos refletem apenas o que o projeto pretendeu
ser, e não o que efetivamente se tornou a partir de suas apropriações pelos
diferentes sujeitos sociais e dos resultados produzidos. Destas(es) algu­
mas(uns) deram-se a ver como: a interposição de interesses privados, tanto
dos beneméritos, por status, reconhecimento social e espaço de interven-
ção na vida pública, como dos próprios estudantes, por ascensão social; a
desvalorização da cultura popular; a divisão da sociedade entre povo igno-
rante e elites arrazoadas; a hierarquização derivada da separação entre
trabalho manual e trabalho intelectual (costa, 2007, p. 49-50).

O Liceu, de 1858 até 1883, de acordo com as estatísticas da insti-


tuição, recebeu o total de 23.026 alunos e possuía, no ano de 1882, 40
salas e 15 gabinetes para cursos relativos a 50 profissões. Os seus ex-
alunos, jovens e adultos, nacionais e estrangeiros, formavam a maior
parte de trabalhadores que integravam as oficinas particulares e os
arsenais do Estado. Em 1883, o Lyceu de Artes e Officios admitiria,
pela primeira vez, meninas e mulheres nos seus cursos noturnos de
Belas-Artes. Para comemorar tal iniciativa, os mantenedores da insti-
tuição, a Sociedade Propagadora das Belas-Artes, organizaram a im-
pressão da Polyanthéa Commemorativa, uma publicação na qual ho-
mens e mulheres que estiveram envolvidos com o empreendimento
prestaram suas homenagens e produziram depoimentos, em forma de
textos, frases ou poemas, sobre a importância, a extensão e os limites
da instrução profissional e da educação femininas19.
A Sociedade Propagadora da Instrução pelas Classes Operárias da
Lagoa, criada em 1872, também se destacou por ter sido uma proposta
para os trabalhadores com a criação de cursos noturnos de instrução
primária e profissional no Colégio São Clemente, em Botafogo. Entre os
alunos, havia jovens aprendizes de ofícios, menores e adultos, inclusi-
ve estrangeiros e africanos livres (martinez, 1997; costa, 2007). Outras
iniciativas promovidas por agremiações e clubes de criação de cursos

19  Polyanthéa Commemorativa da inauguração das aulas para o sexo feminino do Imperial Lyceu de Artes e
Officios. Rio de Janeiro, Typ. Lit. Laembert e C., 1881.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

noturnos para jovens e adultos nas últimas décadas do século XIX tam-
bém foram localizadas pela historiografia nas cidades de Pelotas e
Campinas (peres, 2002; souza, 1998).
Nas décadas de 1870 e 1880, os debates em torno do processo de
abolição da escravidão e, conseqüentemente, da reorganização das
formas de controle e do (re)ordenamento do trabalho foram problemas
que ecoaram, em todo o Império, tanto nos projetos de reforma edu-
cacional quanto no incremento das iniciativas da sociedade em prol da
instrução pública.
A idéia de civilizar e disciplinar a população estava diretamente
relacionada com a redefinição de percepções sociais a respeito da “ca-
ridade”, da “pobreza” e da “mendicância”. A partir de meados do sé-
culo XIX, a filantropia moderna questionava as práticas caritativas,
demonstrando a necessidade de intervir nos hábitos e comportamentos
das classes populares — não poucas vezes associadas às “classes peri-
gosas” —, por meio de campanhas educativas nas quais se exaltavam
princípios como a positividade do trabalho, do modelo familiar nuclear,
da economia, da moralidade e da religião. Cada vez mais a “pobreza”
e a “mendicância” eram associadas, nos discursos de médicos e higie-
nistas, a “vícios” e “degenerações” humanas. A filantropia ganhava
adeptos até mesmo no interior das irmandades religiosas, o que trouxe
mudanças nas perspectivas assistencialistas tradicionais. Nesse contex-
to, difundiu-se a idéia de que a educação das classes populares seria
um poderoso instrumento de “regeneração social”.
A preocupação com as crianças desvalidas e desamparadas, ter-
mos utilizados pelas elites dirigentes para legitimar suas estratégias de
intervenção sobre as infâncias das camadas mais pobres, incluía tam-
bém os filhos das escravas, nascidos de ventre livre a partir da Lei de
28 de setembro de 1871.
Uma destas agremiações, a Associação Municipal Protetora da In-
fância Desvalida, criada em 1871 sob a iniciativa da Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, foi uma das mais importantes no período. Coadjuvan-
do os poderes públicos locais, a associação foi responsável pela constru-

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ção e manutenção dos primeiros “palácios escolares”, como então fo-


ram popularmente chamados os prédios destinados às escolas primárias
administradas pela municipalidade na Corte — as Escolas de São José,
na freguesia de mesmo nome, e a Escola de São Sebastião, na Praça
Onze, região de Santana, lugar de moradia de significativa população
negra, livre e liberta, inclusive os baianos que formavam a Pequena
África.
Além da construção dos prédios escolares, com capacidade de
abrigar cerca de 600 crianças cada um, a Associação Municipal Proteto-
ra da Infância Desvalida visava também garantir a freqüência da infân-
cia desvalida por meio de doação de material escolar, calçados, vestuá­
rio e prestação de serviços médicos, com o que contava com o apoio de
seus associados e do governo imperial (schueler, 2000).
A construção de modernos prédios escolares na capital do Império
do Brasil destinados para a instrução primária e profissional também
foi uma iniciativa da Associação Comercial do Rio de Janeiro em cola-
boração com o Ministério do Império, pasta responsável pela instrução
primária e secundária no Município Neutro e pelo ensino superior em
todo o país.
A memória construída em torno da Escola de São Cristóvão regis-
tra que os recursos utilizados para a edificação foram decorrentes de
fundos que teriam sido arrecadados pela Associação Comercial para
erguer um busto em homenagem ao Imperador Pedro II. Tendo recusa-
do a honraria, Pedro II teria solicitado a construção do prédio escolar,
que ainda hoje abriga uma escola na cidade do Rio de Janeiro (atual-
mente Escola Estadual Gonçalves Dias, localizada no Campo de São
Cristóvão).
Outra associação voltada para a infância pobre surgiu na década
de 1880, com a pretensão de estender ramificações por todo o Impé-
rio. A Associação Protetora da Infância Desamparada, constituída na
Província do Rio de Janeiro, em 1883, tinha a finalidade de educar
crianças pobres encontradas nas ruas das grandes cidades, recolhendo-
nas em asilos agrícolas no interior das províncias. No Rio de Janeiro, o

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Figura 3. Acima, Escola Municipal de São Sebastião, inaugurada em 4/08/1872.


Ao centro, Escola Municipal de São José, inaugurada em 7/09/1874. Abaixo,
Escola Municipal de São Cristóvão, inaugurada em 25 de outubro de 1872

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Asilo Agrícola de Santa Isabel foi erguido numa antiga fazenda de café,
próximo a Valença (schueler, 2000). A iniciativa, assim como a Colônia
Orphanológica de Pernambuco (arantes, 2005), representou a concreti-
zação das propostas de instruir as crianças e jovens pobres em colônias
e institutos agrícolas, tão debatidas nos Congressos Agrícolas do Rio de
Janeiro e do Recife, realizados em 1878 (fonseca, 2002).
A emancipação dos escravos e a educação dos libertos foram pro-
postas presentes na iniciativa do Grêmio dos Professores contra a Es-
cravidão (1884), criado pelos proprietários e mestres do Colégio Hewitt,
instituição particular da Corte. Seu objetivo era angariar recursos a
partir das contribuições dos associados e de doações públicas e parti-
culares, para a compra de alforrias de escravos, e promover a educa-
ção dos alforriados. No mesmo sentido, o Club de Libertos de Niterói,
criado em 1881 pelos abolicionistas José do Patrocínio e João Clapp,
oferecia cursos noturnos para adultos, inclusive escravos, libertos e
livres. Visando congregar todos os clubes abolicionistas do Império,
João Clapp liderou o movimento de organização da Confederação Abo-
licionista, que agregou instituições de cinco províncias, além da Corte
(grinberg, 2002a, p. 402). Sociedades beneficentes criadas por indivídu-
os negros, livres, libertos e escravos no Rio de Janeiro, para além de
procurar estabelecer redes de solidariedade e ajuda mútua para a
compra de alforrias, também reivindicavam direitos sociais, incluindo
o acesso à instrução primária (chalhoub, 2007, p. 233).
Por meio das iniciativas pontuais aqui brevemente enumeradas,
pudemos perceber que, ao longo do século XIX, diversos setores da
sociedade imperial se reuniram em agremiações privadas, leigas e re-
ligiosas para organizar modos de intervenção visando à constituição de
escolas primárias e profissionais, cursos noturnos para trabalhadores,
asilos e educandários para a infância pobre. Na maioria dos casos, as
agremiações receberam apoio pecuniário do governo, por meio de sub-
venções ou concessões de espaços físicos, como, por exemplo, as casas
alugadas ou a doação de materiais, livros e objetos escolares. Dentre

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

elas, muitas foram “apadrinhadas” pela família imperial. Sob os auspí-


cios e a direção das autoridades administrativas, o princípio da liber-
dade de ensino fundamentava o impulso à atuação dos particulares,
medida que integrava a política geral da instrução pública. As iniciati-
vas do Estado imperial, através dos instrumentos legais de seus órgãos
de inspeção, de fiscalização e das sociedades, constituíram um conjun-
to de ações que se complementavam. Contudo, mais do que um apoio
mútuo, esses empreendimentos também representavam disputas por
idéias e, às vezes, defenderam maneiras distintas de encaminhar a
educação, discutindo sobre o quê, quem, como e quando educar. Dia-
logando com as autoridades públicas e disputando concepções, ações e
formas de educar e instruir a população, a iniciativa particular aponta-
va para a diversidade e a complexidade existentes em torno de um
projeto comum: a formação do povo e a civilização do país.

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“As casas para as escolas terão
acomodações para residência do
professor, sala para as classes e
exercícios de instrução, duas ou
três alcovas para dormitórios dos
discípulos internos, oratório para
a educação moral, e casa e quintal
para os exercícios de educação
física e ornicultura.”
(Regulamento da Instrução Primária da Província
do Amazonas, n. 1 de 8/3/1852)

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3
As Formas Educativas

Pensar as modalidades de intervenção Quando nos referimos


no curso da vida supõe imaginar que elas à forma escolar de
educação, consideramos
são variadas, específicas e que seu apareci- as escolas voltadas para
mento se constitui em resposta a um determi- diversos níveis de ensino
(primeiras letras,
nado diagnóstico do presente. Deste modo é secundárias e superiores),
estatuto das mesmas
que se pode compreender o aparecimento si-
(públicas, privadas e
multâneo das diferentes formas educativas e, subvencionadas) e
modalidades
ao mesmo tempo, as transformações a que fo- (profissionalizantes —
ram submetidas, bem como aquelas que aju- militares, comerciais —,
ou especiais voltadas para
daram a promover. Portanto, a ciência a res- o atendimento de cegos
peito das estratégias educativas exige um e surdos), além dos asilos,
seminários, conventos e
recuo para se tentar apreender as condições outros tipos de internatos.
de aparecimento das diferentes medidas edu-
cativas já experimentadas pela sociedade
brasileira.
Neste sentido, o quadro que procuramos traçar anteriormente a
respeito do movimento de construção da nação e das forças que tive-
ram atuação privilegiada no campo da educação deve funcionar como
ferramenta para se analisar a emergência e mutações pelas quais pas-
saram escolas elementares, colégios, liceus, faculdades e academias,
internatos, seminários, conventos e asilos. Para tanto, há que se consi-
derar aspectos importantes dessas diferentes formas educativas, pro-
curando examinar as transformações pelas quais passaram ao longo do
século XIX.

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Escolas Elementares
Das oito escolas que se haviam criado para a instrução primária aqui, acham-
se apenas com professores as das Vilas de Maués e Ega e, com professora, a
do sexo feminino nesta Capital, porque o de meninos aqui, com moléstia
grave, faleceu, e os dos outros lugares, sem a menor cerimônia, abandona-
ram as cadeiras (Presidente da Província do Amazonas, 1852).

O século XIX pode ser O século XIX pode ser caracterizado como o
caracterizado como o tempo de invenção e legitimação da forma
tempo de invenção e
legitimação da forma escolar moderna no Brasil, ainda que iniciati-
escolar moderna no Brasil.
vas nesta direção possam ser evidenciadas
desde o período colonial, seja por meio das
iniciativas católicas, seja por intermédio das aulas régias. Deste mo-
do, pode-se afirmar que a construção mais efetiva da escola elemen-
tar ocorre simultaneamente ao projeto de organização do próprio
Estado Nacional.
Quando nos referimos à escola, consideramos as escolas voltadas
para diversos níveis de ensino (primeiras letras, secundárias e superio-
res), estatuto das mesmas (públicas, privadas e subvencionadas) e mo-
dalidades (profissionalizantes — militares, comerciais —, ou especiais
voltadas para o atendimento de cegos e surdos), além dos asilos, semi-
nários, conventos e outros tipos de internatos.
No Brasil, ao observar a capilarização do modelo escolar ao longo
do século XIX, fica perceptível a adesão do Estado, da Igreja e da so-
ciedade civil a esta forma de interferir no curso da vida e no funciona-
mento geral da sociedade. Adesão que implicou um investimento na
construção de uma malha escolar diferenciada, acionada e voltada pa-
ra públicos específicos, o que permite pensar o jogo social no qual a
escola foi inscrita e que, desde então, vem ajudando a delinear. Neste
momento, vamos nos deter no exame das chamadas escolas de primei-
ras letras, para debater o modelo destinado ao conjunto da população,
como já vimos nas prescrições da Lei Geral de Ensino de 1827, concen-
trando nossa atenção nas iniciativas provinciais ocorridas a partir do
Ato Adicional (Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834), quando a competên-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

cia por criar, manter e expandir a malha das escolas elementares é


deslocada para as Províncias.
Para termos uma idéia geral do impacto desta medida no plano
provincial, vamos observar como a questão da instrução é descrita em
relatórios de presidentes de província de 1835 e de 1889. Trabalhamos
aqui com províncias situadas em pontos distintos do território nacional
para tentar avaliar o impacto da regionalização da instrução primária
e secundária.
Em 15 de março de 1835, o presidente da Província de Alagoas,
José Joaquim Machado de Oliveira, fez considerações gerais sobre o
quadro político da Província, chamando atenção para problemas ocor-
ridos nas eleições locais e desafios então colocados. Trata dos temas da
agricultura, da pesca, de estradas, pontes, navegação, porto e cadeias,
sendo a instrução o primeiro desafio a ser enfrentado. Para ele, dentre
os objetos que poderiam concorrer “mais poderosamente para o bem
e felicidade da Província”, a instrução pública deveria ter precedên-
cia, devendo contar com “o mais firme apoio moral”, o que demanda-
va “apurada solicitude e desvelos” dos deputados provinciais.
Em seguida, ao detalhar os problemas que encontra, observa que
a instrução pública é pouco difundida na Província. Atribui este fenô-
meno ao fato de o emprego do magistério, principalmente nas escolas
elementares, ser pouco procurado em virtude dos “tênues recursos” e
“mesquinhos salários” que lhes são atribuídos. Ao lado disto, a ambição
por empregos mais lucrativos prevalecia a qualquer desejo que houves-
se na instrução da mocidade. Na seqüência, ainda que reconhecendo a
precariedade das informações disponíveis, assinala que o método Lan-
caster e o Ensino Mútuo não eram aplicados pela inexistência de pro-
fessores capacitados e que os alunos das escolas primárias aprendiam
com imperfeição e negligência. A despeito da Lei Geral de 1827, admi-
te que o método individual era o mais seguido porque era o que se
encontrava mais ao alcance das “medianas capacidades” dos professo-
res e de seus acanhados conhecimentos. Ao mesmo tempo, reconhecia
que os professores repousavam na indolência em virtude da questão

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salarial. O problema se via agravado pela fiscalização precária e feita


por pessoas igualmente incapacitadas e mal pagas que não conseguiam
“discernir sobre a capacidade dos Mestres e sobre outros diversos ob-
jetos que são conexos com uma bem regulada educação pública”.
Diante de tal quadro, o presidente da Província de Alagoas apela
para a sensibilidade de seus conterrâneos, propondo a centralização dos
estudos secundários em um Liceu, fato reclamado em todo o Brasil, sob
uma direção capacitada. No que se refere ao ensino primário, reconhece
mais uma vez que o Método Lancaster em Alagoas, e supunha, em todas
as Províncias do Brasil, não apresentava as vantagens observadas em
outros países, o que fazia com que os professores dessem preferência ao
método individual. Em 1835, o presidente da Província de Mato Grosso
também atesta que “nenhuma vantagem” vinha sendo obtida com o
Ensino Mútuo nas duas únicas escolas da Província do Oeste que empre-
gavam o método oficializado e que se procurou nacionalizar em 1827.
O chefe do executivo alagoano atribui o insucesso do método ofi-
cial ao fato de a Escola Normal estabelecida na Corte em 1823 não
contar com “bons elementos em seu começo” ou pelo fato de não ser
adaptado à índole de “nossa juventude”. Com isto, chega à conclusão
de que o Ensino Mútuo deveria “ser procrastinado para um melhor fu-
turo”, sendo indispensável aplicar todos os meios possíveis para dar
incremento ao método individual, começando por estabelecer um sis-
tema de ordenados dos professores proporcional às localidades, como
previsto na Lei Geral de 1827. Ao mesmo tempo, sugere que estas me-
didas deveriam ser fiscalizadas pelas Câmaras Municipais. Conclui suas
propostas relativas à instrução, chamando atenção para a dificuldade,
transcendência e magnitude da matéria, aproximando-se dos que a
reconheciam como “fanal mais certo da razão e o mais poderoso sus-
tentáculo das instituições livres”.
No mesmo ano de 1835, o presidente da Província de Santa Cata-
rina, Nunes Pires, ao se dirigir aos membros da Assembléia Provincial,
destacava a divisão civil, judiciária e eclesiástica da Província, acentuan­
do os prejuízos decorrentes do número insuficiente de párocos, o que

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

impedia a administração dos sacramentos e o conforto espiritual, além


de privar os povos da moralização, exortações contra vícios e, sobretu-
do, dos exemplos decorrentes das virtudes daqueles párocos. Insinua,
pela via da religião, a preocupação com a educação local, sendo este
o segundo ponto a comparecer no relato do poder, assinalando contar
com uma malha de 15 escolas, sendo uma de latim. Ao mesmo tempo,
sublinha o descaso da população com a escola, pois as escolas implan-
tadas “não apresentavam todo o aproveitamento que seria de espe-
rar”, o que não era decorrente da falta de professores, mas da negli-
gência e falsos preconceitos dos pais, resultando daí a pouca freqüência
e aplicação dos meninos e mesmo sua falta de respeito em relação aos
mestres que não estavam habilitados a usar prêmios ou castigos. Tudo
isto, adicionado ao sistema dos salários fixos, concorria para o “desa-
proveitamento” verificado pelo Presidente da Província catarinense.
A questão salarial também é vista como um problema na Província
do Sul, embora sob outro ângulo. Para o Dr. Pires, a inspeção poderia
assegurar o cumprimento dos dias e horário das lições, mas tinha pouco
efeito no maior número e adiantamento dos alunos. Para ele, essa era
a questão maior e poderia ser equacionada com uma revisão do siste-
ma de salário fixo. Na visão do presidente da Província catarinense, o
salário docente deveria ser proporcional aos alunos que se apresentas-
sem “prontos” nos exames provinciais. Neste caso, o professor recebe-
ria um prêmio, em virtude da eficácia de suas intervenções pedagógi-
cas. Com esta política de produtividade, os professores seriam levados
a manifestar todo o interesse em ter muitos discípulos e adiantá-los,
aliciando mais alunos e empregando todo o desvelo no ensino.
Vamos observar uma terceira realidade para perceber o tratamen-
to dispensado à matéria da instrução em diversas Províncias do Impé-
rio. Em Mato Grosso, o presidente Antonio Pedro de Alencastro inicia
sua “fala” de 3 de julho de 1835, de modo semelhante a seu colega de
Alagoas. Ao traçar o quadro político, rememora os tempos sediciosos,
afirmando que o atual sossego da Província se devia à vigência do “im-
pério das leis”, ao respeito às legítimas autoridades e ao cumprimento
exato de suas ordens.

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No que se refere à legitimidade da escola, tem posição assemelha-


da ao do colega catarinense, quando registra que os pais eram os res-
ponsáveis na medida em que não obrigavam seus filhos à freqüência
das aulas, embora também admitisse que os mestres não se aplicavam
aos estudos como deveriam.
A questão salarial se constitui em outro ponto a interferir no fun-
cionamento da malha escolar mato-grossense. O tênue e insuficiente
ordenado de 150$000 anuais não atraía os professores para o preenchi-
mento de cadeiras vagas, ao mesmo tempo em que provocava demis-
sões de professores. Neste sentido, aponta para a necessidade de au-
mento de ordenados, proporcional à localidade e número de alunos, de
modo semelhante ao colega do Nordeste. Com isto, pretendia atrair e
evitar desligamento de mestres e, assim, preencher as cadeiras vagas
da instrução primária e secundária. A política salarial vinculada ao
aproveitamento dos alunos, nestes três casos, aparece apenas na Pro-
víncia catarinense. Dr. Alencastro também chama atenção para o des-
caso das Câmaras Municipais com a fiscalização da instrução, apontan-
do para a necessidade de se instituir a figura do Inspetor de Aulas.
Decorridos 65 anos, a questão da instrução permanece em lugar
de destaque nos registros dos poderes provinciais. Do mesmo modo,
este tema ainda aparece como problema a ser resolvido, de cuja solu-
ção dependia o futuro do povo e a construção da grande nação.
Em 1889, Dr. Manoel Victor Fernandes de Barros, presidindo a Pro-
víncia de Alagoas, registra a existência de 196 cadeiras de instrução
primária, freqüentadas por 2.805 meninos e 2.752 meninas. Refere-se
igualmente à existência de um curso normal misto, freqüentado por 58
estudantes. Já a instrução secundária era dada no Liceu provincial pa-
ra 229 alunos, havendo também mais duas aulas de latim e francês.
Chama atenção, contudo, para a necessidade de se reformar este ramo
da administração que muito necessitava de luzes e de um bom regula-
mento, dada “as disposições antiquadas” que não mais satisfaziam às
necessidades da instrução.
O Coronel Augusto Fausto de Souza presidiu a Província de Santa
Catarina, em 1889 e, no seu relatório, descreve o estado da instrução

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pública como “mau”, carecendo “de toda a solicitude”. De modo asse-


melhado ao colega nordestino, atribui o estado de “abatimento” da
instrução à confusão de leis e dispositivos que regiam esse importantís-
simo ramo do serviço, reconhecendo que o regulamento provincial de
1881 estava sendo alterado com base em “leis pouco meditadas”.
Em seguida, traça um quadro animador dos exames preparatórios,
chamando atenção para a extensão da malha escolar de instrução primá-
ria, com 41 escolas para o sexo masculino, 35 para o feminino, 43 mistas
e 12 particulares e/ou subvencionadas. No entanto, não se encontravam
preenchidas 11 escolas para meninos, 16 para meninas e 16 mistas. Tam-
bém há referência ao Liceu de Artes e Ofícios, uma instituição nova na
Província catarinense, que oferecia cursos para os dois sexos.
Na Província de Mato Grosso, em 20 de outubro de 1888, Dr. Fran-
cisco Raphael de Mello Rego abre a sessão da Assembléia Provincial
fazendo referências à família imperial, aos trabalhos da Assembléia, à
tranqüilidade pública e à segurança individual, à companhia policial, à
administração da justiça, aos negócios eclesiásticos, à naturalização, à
força de linha, ao corpo de saúde do exército, ao alistamento militar,
ao arsenal de guerra, à fábrica de pólvora, ao arsenal de marinha, flo-
tilha da província e guarda nacional. Também abordou o problema da
catequese e colonização, higiene pública, santa casa de misericórdia,
instrução pública, correio, temas das municipalidades, fazenda provin-
cial, hidráulica, obras públicas, secretaria de governo, encerrando seu
relatório com uma “conclusão”.
Como se pode perceber, o tema específico da instrução compare-
ce em meio a um vasto conjunto de questões destacadas pelo chefe do
poder local. Cabe lembrar, contudo, que o tema da instrução no caso
desta Província também se faz presente no modo como a questão indí-
gena é tratada, mantendo-se a perspectiva da colonização, por meio
da estratégia de criação de colônias para os indígenas em vários pontos
da Província. Do mesmo modo, a perspectiva da catequese é mantida,
articulada à religião oficial, que também deveria ser difundida junto à
comunidade indígena.

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Ao tratar da questão da instrução, o presidente da Província mato-


grossense o faz apoiado fortemente no relatório do Inspetor Geral da
Instrução, procedimento, aliás, bastante utilizado por outros presiden-
tes de Província, a partir do momento em que elas estabeleceram esta
instância de governo das escolas. Com base no documento da inspeto-
ria, ele destaca a matrícula de 1.324 alunos de ambos os sexos, regis-
trando a freqüência de apenas 746. Como outros colegas, recoloca,
deste modo, a questão da legitimidade e eficácia da escola quando
observa a saída de aproximadamente metade dos alunos.
Ao mesmo tempo, aponta para um excesso de exigência nas esco-
las, o que, em alguma medida, poderia estar gerando o desinteresse da
população em escolarizar seus filhos. Para ele, as freguesias e povoa-
dos deveriam ter apenas o ensino do chamado 1o grau, ou seja, leitura
corrente, escrita, aritmética teórica e prática até decimais e sistema
métrico decimal.
Como se pode perceber, há uma espécie de preocupação mais ou
menos comum no conjunto das iniciativas desenvolvidas no plano pro-
vincial, o que passa pela malha escolar, saberes, professores, salários,
condições de ensino, efeito da escolarização e ação das famílias, por
exemplo. Pauta esta igualmente encontrada quando alargamos nosso
campo de observação.
Na tentativa de apanhar um quadro mais geral, podemos acompa-
nhar discursos dos Ministros dos Negócios do Império, em 1835 e 1888,
como procedimento que dá alguma visibilidade ao modo como o gover-
no central descreve e procura interferir no plano da instrução em nível
nacional. Esse quadro deve levar em consideração um triplo condicio-
namento: o estado de desenvolvimento da instrução, a posição do re-
lator e a conjuntura da época. Observar esses aspectos ajuda a dimen-
sionar os termos que os ministros adotam para descrever a instrução,
oferecendo condições para avaliar o impacto das medidas educacionais
entre 1835 e 1888.
Em 1835, o ministro José Ignácio Borges trata da “deplorável situa­
ção” das Províncias do Pará e Rio Grande do Sul, a parte “mais desagra-

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dável” de seu relatório, como ele mesmo assinala. Na seqüência, ele


aborda questões da secretaria de Estado, assembléias provinciais, presi-
dências das províncias, municipalidades, educação e instrução pública,
saúde, correios e paquetes marítimos, obras públicas, estabelecimentos
de caridade, população e colonização, indústria e outros objetos, tais
como o jardim botânico (Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Pernambu-
co, Maranhão e Pará) e cartas topográficas das Províncias, por exem-
plo.
Dois pontos merecem ser destacados. O primeiro deles se refere
ao exercício da presidência da Província. Neste aspecto, o ministro
elabora um diagnóstico que, talvez, ajude a compreender parte dos
problemas da administração provincial.
Para ele, a criação dos chefes administrativos (Presidentes de Pro-
víncia), que substituíram os antigos governadores, não vinha corres-
pondendo às esperanças nele depositadas pela Constituição. Em um
esforço explicativo, ele enumera alguns dos vetores que poderiam ex-
plicar a má administração no plano provincial:
● Ausência de tempo de mandato definida, o que impedia a orga-
nização e execução de planos para o melhoramento das províncias.
● Ordenados diminutos, o que se via agravado pela “depreciação
da moeda”.
● Inexistência de uma carreira para o Presidente, reduzido a uma
espécie de “nulidade”, assim que via encerrada sua nomeação.
● Pouca moralidade dos empregados e executores subalternos, o
que se via agravado pela “fraqueza das leis repressivas” e “impunidade
em voga” que animava “o prevaricador, o ambicioso, o desatento e o
vadio” que até para adquirir celebridade não hesitavam em desacatar
e injuriar por palavra e por escrito a pessoa do primeiro magistrado da
Província, sem que se pudesse castigar satisfatoriamente tais atos cri-
minosos e “exemplarisar” assim outros indivíduos que quisessem imitar
os delinqüentes. Por fim, a desarmonia da legislação geral também
concorria para os procedimentos vacilantes e também para a falta de
concordância entre os atos do governo central e governos provinciais.

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Gondra e Schueler

Ao concluir esse tema, o ministro, frente aos desafios elencados,


aponta as dificuldades de encontrar quem aceitasse o encargo de pre-
sidente de Província. No conjunto, os problemas identificados pelo Dr.
Borges também auxiliam a compreender as razões do “acanhamento”
da instrução a que vários representantes do poder fazem referência em
seus discursos. Por fim, assinala não saber exatamente o que provoca-
va os problemas que identificara: se o complexo de todos os defeitos
ou se cada um deles isoladamente. No entanto, assevera que se não
fossem remediados, o Governo não acharia cidadãos idôneos que se
dispusessem a assumir as Presidências das Províncias. Esta pode ser
outra chave explicativa para se compreender a alta rotatividade nas
gestões provinciais e gerais.
No que diz respeito à instrução, o Ministro lamentava o estado em
que se achavam as escolas primárias “e mais lamentável ainda se re-
corda o princípio de que em tais escolas é que se lançam as sementes
de moral, costumes e bons hábitos que tem de formar o cidadão digno
de merecer tal nome”, afirma. Na seqüência, ele apresenta a fórmula
do que seria ou deveria ser a escola elementar:
Se no seu seio, além do hábito de ler, escrever e contar, se não adquire o
hábito da obediência regrada, o gosto de estudar, a emulação da competên-
cia do mérito, os preceitos da moral filosófica cristã, não poderemos ter
juventude preparada para maior instrução ou para satisfazer os encargos da
sociedade em que tem de viver.

Com isto, o Dr. Borges pauta o debate e afirma um princípio dou-


trinário para as escolas de primeiras letras, reconhecendo tentativas
de remediar o lamentável estado da instrução, como foi a Lei Geral de
15 de outubro de 1827. No entanto, segundo o Ministro, o legislador,
ainda que tivesse reconhecido a “gravidade do mal”, não havia propor-
cionado os remédios de que ele carecia, sendo um deles, talvez o mais
saliente, mas não o único, a criação de um regime de fiscalização per-
manente. E dá o exemplo, afirmando ter criado tal regime no Municí-
pio da Corte, “único teatro” na órbita de sua jurisdição.
Ao lado disto, combate o sistema de aulas avulsas, defendendo a
reunião delas nos liceus, com a fixação dos compêndios, disciplinas e

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

direção única. Deste modo, ainda que em tempos de descentralização


da matéria educacional, vemos um Ministro atuando de modo a pautar
as iniciativas provinciais, o que demonstra que o jogo de poder se pro-
cessa nos termos das leis, mas também em suas laterais, sinalizando a
existência de táticas, isto é, o jogo das invenções no momento em que
as normas são postas em funcionamento.
Como se pode perceber, as tensões entre centro e periferia per-
manecem. Para o homem do centro, as condições em que o poder vi-
nha sendo exercido no plano provincial eram inadequadas, insinuando
inclusive que muitos indicados não eram probos, honestos e/ou quali-
ficados para o exercício da função. No que diz respeito à instrução,
observa-se que a preocupação do homem do centro recobre também os
teatros, bibliotecas, laboratórios, museus que, consorciados às escolas
de diversos níveis, integram o programa educativo imaginado no nível
central.
Já em 1888, o Ministro e Secretário dos Negócios do Império apre-
senta um relatório, demonstrando que a burocracia do Estado possuía
uma nova anatomia, mais expandida e detalhada (não há relatório de
1889, o que pode ser explicado pela mudança de regime, que produz
esse efeito tanto no plano nacional como no plano provincial. Em algu-
mas províncias, também não há relatório oficial relativo ao ano de
1889). Neste sentido, Antonio Ferreira Vianna aborda temas da família
imperial, conselho de Estado, administração local e provincial, assem-
bléias provinciais, negócios eleitorais, Câmara Municipal da Corte, ins-
trução pública, instrução primária e secundária, instrução superior,
asilo dos meninos desvalidos, instituto dos surdos-mudos e instituto dos
meninos cegos. O seu texto também relata aspectos da academia de
belas-artes, conservatório de música, imperial observatório do Rio de
Janeiro, biblioteca nacional, arquivo público, IHGB, academia imperial
de medicina, museu escolar nacional, liceu de artes e ofícios, estabe-
lecimentos de caridade, negócios eclesiásticos, a seca nas Províncias
do Norte, saúde pública, naturalizações, registro civil, secretaria de
Estado, orçamento e créditos.

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Ao perscrutar esse amplo rol de problemas, o “olho do poder”


também se apóia em um conjunto de mapas e quadros, demonstração
complementar da adesão ao procedimento da “estadística” que quan-
tifica e qualifica as populações para melhor orientar o seu Governo.
No que diz respeito à matéria da instrução, como se pode ver no
índice do discurso do Ministro, ela se encontra cada vez mais especia-
lizada, consumindo 68 páginas do relatório ministerial. Ao tratar da
instrução primária e secundária, ele o faz destacando pontos relativos
à instrução primária, escola normal, imperial Colégio de Pedro II, curso
noturno para o sexo feminino e os exames gerais de preparatórios. No
que se refere à instrução superior, este tema é decomposto no registro
que recobre a faculdade de direito do Recife e de São Paulo, a faculda-
de de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, a escola politécnica, a
escola de minas de Ouro Preto e o controvertido tema da liberdade de
freqüência.
De modo geral, Ferreira Vianna trata da questão da instrução pú-
blica, sublinhando que as condições de nosso estado social exigiam,
naquele instante, a reorganização deste ramo do serviço público. Inicia
sua defesa, chamando atenção para a recente reforma pela qual pas-
sara a Escola Normal da Corte (Decreto n. 10.060, de 13/10/1887),
assinalando a insuficiência de seus princípios de modo a assegurar o
funcionamento satisfatório da escola. Para ele, era necessário conce-
der todos os recursos para que as necessidades da instituição fossem
atendidas e, com isto, assegurar às novas gerações a indispensável
educação física, moral e intelectual, racionalmente ministradas, como
ele propõe. Para ele, a reforma tinha sido um “tímido ensaio para acu-
dir” as necessidades da escola, revelando a desproporção entre fins e
meios, inconveniente que não se tornaria sensível no primeiro ano de
sua execução, quando só funcionaria o primeiro curso de estudos, mas
entorpeceria o ensino nos anos ulteriores, obstando os resultados que
se desejavam.

  A respeito das estatísticas imperiais, cf. Senra (2006).

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Como a execução da reforma que criticava estava sob sua respon-


sabilidade, ele imprime o tom com que pretendia lidar com o proble-
ma, dizendo-se profundamente convencido de que era preciso aceitar
em toda a extensão o dever de difundir e regenerar o ensino primário
no Império, formando professores com a necessária instrução científica
e profissional. Pautava assim o debate e insinuava as medidas que o
centro pretendia ver espalhadas nacionalmente. No entanto, a força
centrípeta se manifesta no modo como imagina o papel a ser exercido
pela escola da Corte. Para ele, dotada de uma “forte organização”, a
Escola Normal não deveria visar apenas ao interesse local de formar
professores para as escolas do Município Neutro. Considerando o largo
interesse nacional pelo ensino em todo o Império, a Escola Normal de-
veria prover as províncias de mestres mais habilitados do que aqueles
granjeados por meio de seus institutos especiais.
A intervenção imaginada no nível da formação de professores não
se restringe à formação inicial, pois o ministro prevê “dificuldades e
perturbações” decorrentes da ação do “novo professorado” na coexis-
tência com os elementos do passado. Nesta espécie de antevisão, pro-
põe medidas preventivas e que estimulassem o professorado a se aper-
feiçoar cada vez mais, de modo a que pudessem efetivamente
colaborar “com os poderes públicos e com os espíritos adiantados”
para a mais profícua educação popular.
Como se pode ver, o centro mais uma vez procura dar as coorde-
nadas gerais que deveriam guiar as ações em nível local. Dentre elas
também estavam as propostas voltadas para a constituição efetiva do
ensino secundário, posto que o Imperial Colégio de Pedro II havia se
transmudado, ao influxo de repetidas reformas, em um instituto pre-
paratório para os que se destinavam aos cursos superiores. Para ele,
era deplorável a decadência a que se havia chegado. A alternativa que
vislumbra para o secundário era a de uma instituição menos preparató-
ria, propedêutica e mais um equipamento que obrasse em favor da
promoção da cultura pois, em sua perspectiva, não havia mais bela
fonte de elevação moral, melhor escola de preparo viril para a vida

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social do que o estudo das humanidades, o contato com a antigüidade,


“cheia de grandes exemplos, os quais todos (...) estariam sepultados
nas trevas se não os iluminasse a luz das letras”. Ao lado disso, cabia
coordenar racionalmente os estudos, dando aos programas a forma
concêntrica que permite reconduzir o aluno, de grau em grau, ao cír-
culo já percorrido, de sorte a ampliar cada vez mais o horizonte dos
alunos, sem perder a possibilidade de síntese a ser obtida com os estu-
dos de filosofia. Com isso, advertia ser necessário pensar um secundá-
rio que evitasse a sobrecarga intelectual, o que não implicava supres-
são de matérias, mas flexibilidade nos programas e adoção de processos
didáticos adequados. Defende, igualmente, o retorno do exame termi-
nal, do exame de bacharelado por meio dos quais a cultura do aluno,
“verdadeiro objeto do ensino secundário”, seria verificada. Reabilita,
com isto, a concepção de secundário como curso de humanidades e
não sua redução a um longo curso preparatório. Do mesmo modo, rea-
bilita a posição do centro, como fonte e guia para as ações a serem
nacionalmente patrocinadas no que se refere ao ensino secundário.
Mantido no horizonte das preocupações
Os projetos educativos
dos homens do governo, a questão da educação
em discussão no século XIX
preocupavam-se com a é tratada de modo cada vez mais especializa-
difusão de escolas para
todos os homens e do, o que se vê rebatido na especificidade da
mulheres livres, prevendo malha escolar que vai sendo organizada. Trata-
uma inserção bem
determinada para cada se de produzir escolas para todos os homens e
um. Este foi o caso da
mulheres livres, prevendo uma inserção bem
criação de escolas
noturnas para determinada para cada um. Nessa linha é que
trabalhadores.
se pode compreender, por exemplo, a criação
das escolas noturnas para trabalhadores, tema ainda pouco estudado na
historiografia.
Neste registro, também é possível compreender a oferta diferencia-
da dos serviços educacionais por parte da iniciativa privada e, ao mesmo
tempo, o emprego do mecanismo da subvenção pública a uma parte das

  A respeito das escolas noturnas, cf. Costa (2007).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

escolas criadas por meio da iniciativa particular. Um quadro geral do


desenvolvimento da instrução em 18 províncias do Império ajuda a per-
ceber a presença e alcance destas iniciativas no plano nacional.

Quadro 1. Malha escolar provincial em 1875

Número de
Estabelecimentos Número de alunos
Províncias estabelecimentos
ou escolas
Meninos Meninas Total Meninos Meninas Total

Primárias Públicas 40 17 57 1.339 314 1.651


Amazonas Primárias Particulares 3 1 4 48 10 58
Liceu e Seminário 2 102 102

Primárias Públicas 149 77 226 6.774 2.367 9.141


Primárias Particulares 17 22 39 841 820 1.661
Pará
Secundárias Públicas 4 1 5 441
Secundárias Particulares 5 3 8 600

Primárias Públicas 88 51 139 3.775 1.228 5.003


Primárias Particulares 10 4 14 504 154 658
Cursos Noturnos 3 159
Maranhão
2 cadeiras de Latim 2
Secundárias Públicas 3 3 656 656
Secundárias Particulares 5 5 10 376 244 620

Primárias Públicas 140 96 236 6.107 4.223 10.330


Primárias Particulares 2 1 3 121 44 165
Ceará 8 cadeiras de Latim
Secundárias Públicas 2 1 3 947 704 1.651
Secundárias Particulares 1 1 2 157

Primárias Públicas 65 30 96 2.987 1.238 4.225


Primárias Particulares 31 12 43 956 121 1.071
4 Cursos Públicos de
Latim/Francês 4
Rio Grande
8 Cursos Particulares
do Norte
de Português/Latim/
Francês 8
Liceu 1
Escola Normal 1

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Número de
Estabelecimentos Número de alunos
Províncias estabelecimentos
ou escolas
Meninos Meninas Total Meninos Meninas Total

Primárias Públicas 71 39 110 2.493 971 3.464


Primárias Particulares 13 2 15 348 38 356
Paraíba Liceu/Escola Normal 2 152
Secundárias Particulares 4 .... 88
4 cadeiras de Latim 4 25

374
Primárias Públicas 200 174 6.072 4.404 10.566
137
Primárias Particulares 72 65 1.041 665 1.695
2
Pernambuco Secundárias Públicas 781
13
Particulares Subvenc. 781
53
Particulares s/ Subvenc. 540

Primárias Públicas 74 57 131 3.225 2.089 5.314


Primárias Particulares 42 63 105 416 779 1.195
Alagoas Liceu/Escola Normal 2
Secundárias Particulares 3 1 4 172 15 187
Cursos Latim/Francês 2 2

Primárias Públicas 88 67 155 2.798 2.083 4.881


Primárias Particulares 12 12 24 303 126 429
Secundárias Públicas 2 463
Sergipe
Secundárias Particulares 5 102
Cadeiras de Latim 2
Cadeira de Francês 1

Primárias Públicas 308 120 428 11.853 4.864 16.717


Primárias Particulares 14 12 26 718 492 1.210
Liceu Imperial de Artes
Bahia e Ofícios 1 104
Orfanato de São Joaquim 1 82
Secundárias Públicas 3 448
Secundárias Particulares 13 2.293

Primárias Públicas 339 223 562 15.587


Primárias Particulares 3.104
Rio de Escola Normal 1
Janeiro Cadeira de Inglês 1
Cadeira de Latim 1
Cadeira de Francês 1

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Número de
Estabelecimentos Número de alunos
Províncias estabelecimentos
ou escolas
Meninos Meninas Total Meninos Meninas Total

Primárias Públicas 398 240 638 8.193 4.999 13.192


Primárias Particulares 11 2 13 343 15 358
São Paulo Secundárias Públicas 3 329
Secundárias Particulares 6 257
Escola Profissional 1

Primárias Públicas 478 225 703 16.908 4.498 21.406


Primárias Particulares 90 44 134 504 116 620
Secundárias Públicas 9 1.924
Minas Gerais Secundária Subvenc. 9 1.924
Secundária Particular 26 317
Cadeira de Latim e
Francês 28

Primárias Públicas 63 34 97 1.158 659 1.817


Primárias Particulares 14 5 19 248 138 386
Curso de Inglês 2
Paraná Curso de História 1
Curso de Geografia 1
Curso de Latim 1
Secundária Pública 1 103

Primárias Públicas 60 47 107 2.298 998 3.296


Santa
Primárias Particulares 23 7 30 497 484 981
Catarina
Secundárias Públicas 1

Primárias Públicas 240 143 383 6.616 3.685 8.301


Primárias Particulares 14 8 22 2.029 1.598 3.627
Rio Grande
Primárias Particulares
do Sul
Mistas 68 2.029 1.598 3.627
Secundárias Particulares 4 4 8 192 95 287

Primárias Públicas 72 29 101 1.930 574 2.504


Primárias Particulares 3 2 5 35 32 67
Goiás Secundárias Públicas 2 392
Cadeira de Latim e
Francês 2

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Número de
Estabelecimentos Número de alunos
Províncias estabelecimentos
ou escolas
Meninos Meninas Total Meninos Meninas Total

Primárias Públicas 28 6 34 1.292 125 1.417


Mato Grosso
Primárias Particulares 7 4 11 92 56 148

Fonte: Pires de Almeida 1989, p. 167-169 (adaptação).

Dois destaques adicionais relativos à oferta de escolas primárias


dizem respeito àquelas mantidas pelo exército e marinha e as escolas
destinadas ao atendimento de alunos “especiais”, os institutos de ce-
gos e de surdos-mudos.
Preocupados em organizar as instituições que assegurariam o fun-
cionamento do Estado, via monopólio da força, foram criadas as aca-
demias da Marinha (1808) e a Real Militar (1810), os Arsenais de Guerra
da Marinha (1824) e do Exército (1832), marcados pela cultura da or-
dem e da civilidade.
No que se refere à escolarização patrocinada na esfera da ordem
militar, estes tiveram atuação na difusão do ensino mútuo e no ensino
dos ofícios que era desenvolvido nos arsenais da Marinha e do Exército.
É importante destacar que a aprendizagem destinada aos artífices es-
teve associada a uma perspectiva assistencialista. Nesse sentido, os
jovens aprendizes precisavam ser necessariamente órfãos, indigentes,
expostos da Santa Casa de Misericórdia ou filhos de pais reconhecida-
mente pobres.
Para pensar sobre a organização desses
A formação das forças de centros de formação de artífices, vamos con-
mar e guerra e a instrução
militar adquiriram siderar o caso da Casa dos Educandos Artífices
relevância na construção
do Estado. Nesse sentido
do Pará, criada em 1840. O sistema de ensino
foram criadas as compreendia uma formação básica elemen-
academias da Marinha
(1808) e a Real Militar tar, geralmente oferecida pela manhã, e a
(1810), os Arsenais de
aprendizagem dos ofícios propriamente, à
Guerra da Marinha (1824)
e do Exército (1832). tarde, nos próprios locais de produção: o ar-

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senal da Marinha, o arsenal de Guerra, o cais Os menores aprendizes


e o hospital. das forças militares
também aprenderiam a
Na escola se começava pelas “aulas de ler, escrever, contar, riscar
mapas e doutrina cristã
primeiras letras”, onde era oferecida a alfabe- com o capelão do arsenal
ou um oficial habilitado
tização dos artífices. Era preciso começar pela para este fim.
alfabetização, já que não havia nas Províncias
um sistema de ensino que atendesse a essa parcela da população. Da
aprendizagem das primeiras letras, o mundo do trabalho era o destino
do jovem pobre, órfão e desvalido. Associado aos conteúdos curricula-
res de desenho, escultura, aritmética, noções gerais de álgebra, geo-
metria e mecânica aplicada às artes, os alunos também deveriam
aprender o princípio do trabalho, como assinala o Presidente da Provín-
cia do Maranhão, João Antônio de Miranda, no momento da inaugura-
ção da Casa de Artífices do Maranhão. Para ele, os alunos deveriam
receber “muito rigor” na aprendizagem.
O trabalho nos arsenais deveria ser desenvolvido em um edifício
dirigido por um hábil, que recebia os moços pobres que lhe fossem
oferecidos, ou escolhidos dentre os recrutados pelos respectivos juízes
e órgãos competentes. Ali deveriam ser conservados e mantidos debai-
xo de ordem militar, recebendo instrução de primeiras letras e princí-
pios religiosos na primeira parte do dia, sendo encaminhados ao arse-
nal, obras públicas e particulares, a fim de serem competentemente
instruídos naqueles ofícios para que tivessem propensão.
Um exemplo mais preciso nos ajuda a melhor compreender a ação
educativa desenvolvida no âmbito dos arsenais. Em 1855, o Ministro da
Marinha, José Maria da Silva Paranhos, determina a criação da Compa-
nhia de Aprendizes de Marinheiro, na Província do Pará, para atender a
até 200 aprendizes que deveriam ser cidadãos brasileiros, ter entre 10
e 17 anos e apresentar constituição robusta e própria para a vida no
mar. Os menores de 10 anos poderiam ingressar desde que atendessem
à exigência do desenvolvimento físico. Eles deveriam ser menores vo-
luntários ou recrutados de acordo com os pais, além de órfãos e desva-

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lidos que atendessem às exigências gerais e fossem recomendados pe-


las autoridades competentes.
Mas, afinal, em que consistia a formação dos jovens marinheiros?
A instrução militar consistia em aprender a entrar em forma, per-
filar, volver à direita e à esquerda, marchar a passo ordinário e dobra-
do, até o pelotão, o manejo de armas brancas, a nomenclatura da
“palamenta, carreta e peças de artilharia”, bem como o uso dado a
cada um destes instrumentos.
A instrução náutica consistia na aprendizagem das artes próprias
do marinheiro, como fazer pinhas, costuras, alças, nós, coser pano,
entralhar, aparelhar e desaparelhar um navio. Os menores também
aprenderiam a ler, escrever, contar, riscar mapas e doutrina cristã com
o capelão do arsenal ou um oficial habilitado para este fim.
No que se refere aos institutos especiais, o primeiro a ser criado
foi o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atualmente, Instituto Ben-
jamin Constant), por intermédio do Decreto Imperial n. 1.428, de 12 de
setembro de 1854, tendo sido inaugurado, solenemente, no dia 17 de
setembro do mesmo ano, na presença do Imperador, da Imperatriz e de
todo o Ministério.
O regulamento provisório do Instituto estabelecia que aos alunos
seria oferecida instrução primária, educação moral e religiosa, ensino
de música, ensino de alguns ramos da instrução secundária e ofícios
fabris, seguindo o método Braille, adotado no
O Imperial Instituto
Instituto similar de Paris, em um curso de oito
dos Meninos Cegos anos, havendo a possibilidade de uma prorro-
(atualmente, Instituto
Benjamin Constant), gação por mais dois anos. Mas quais eram os
criado em 1854, visava alunos imaginados pela elite imperial para es-
oferecer aos alunos
instrução primária, te instituto especial?
educação moral e
religiosa, ensino de
Meninos, até o máximo de 30 nos três pri-
música, ensino de alguns meiros anos, sendo que até 10 poderiam ser
ramos da instrução
secundária e ofícios fabris, atendidos gratuitamente, desde que reconhe-
seguindo o método Braille, cidamente pobres. A estes, o governo fornece-
adotado no Instituto
similar de Paris. ria sustento, vestuário e curativo. A indigência

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deveria ser atestada pelo pároco e duas outras autoridades do “lugar


de residência” do menino cego. Os demais precisavam pagar pensão de
400$000 anuais e 200$000 no ingresso. No entanto, ter ou não ter di-
nheiro não se constituía na única exigência para o ingresso. Os meninos
também deveriam apresentar certidão de batismo ou documento que
provasse idade entre 6 e 14 anos e atestado médico que comprovasse
cegueira total. Além disto, deveriam possuir atestado de vacina “com
bom resultado”, não sofrer “enfermidade contagiosa” e não poderiam
ser escravos.
Aqui vale uma nota curiosa. Embora presente na designação do
Instituto, reforçada na previsão de pessoal (não se prevê contratação
de professora, nem inspetora e camareira), o Instituto recebe meni-
nas, como assinalado nos relatórios ministeriais. Em 1870, o Comissário
do Governo, o Barão do Bom Retiro, Ministro que decretara a criação
do Instituto, redige relatório endereçado a João Alfredo Correa de Oli-
veira, novo Ministro dos Negócios do Império, no qual destaca os pro-
blemas e avanços da instituição que ele ajudara a criar. Neste momen-
to, o que mais mobilizava o Comissário era a questão do espaço.
Mobilizado com este problema, ele se aproxima dos que lutavam em
favor de uma construção especializada para as escolas, seguindo o que
indicava a racionalidade médico-higiênica e a boa moral. Ainda que
reconhecesse as qualidades do edifício onde o Instituto estava instala-
do, julgava que o mesmo era inadequado para atender a 30 alunos do
sexo masculino e feminino em regime de internato, supondo as neces-
sidades de dormitórios, refeitório e rouparia, por exemplo. Ao mesmo
tempo, problematiza esta questão pelo ângulo da economia, insinuan-
do a especulação imobiliária e altos valores despendidos com o aluguel
de casas particulares, “as quais, como disse, por melhores que sejam,
ficam sempre muito longe de prestar-se por modo satisfatório às exi-
gências de estabe­lecimentos desta natureza”.
Outro aspecto lembrado pelo Comissário, apoiado no relatório de
Benjamin Constant Botelho de Magalhães, diz respeito à inexistência
da aula de canto. Menos pelo que este saber confere ao desenvolvi-

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Gondra e Schueler

mento humano e mais pelas possibilidades que o mesmo promovia do


ponto de vista de inserção dos cegos(as) na vida social. Cantar em co-
ros de igreja, teatros e divertimentos públicos consistia no “meio de-
cente de subsistência” imaginado pelo ex-ministro para os(as) egres­
sos(as) do Instituto.
Reconhecer a presença de meninas se constitui em um pequeno
detalhe que fortalece o princípio de que não devemos nos contentar
com a verdade de uma única fonte, posto que, neste caso, a confiar
exclusivamente no Regulamento de 1854, ficaríamos com a ilusão de
que o Imperial Instituto dos Meninos Cegos teria funcionado como um
internato masculino. Para se ter uma idéia, dos 16 internos de 1855,
três eram meninas, conforme consta no relatório ministerial. Do total,
4 provinham da própria Corte, 6 da Província do Rio de Janeiro, 3 da
Bahia e 1 do Ceará, São Paulo e Santa Catarina.
Em 1888, o Ministro, apoiado no relatório do novo Comissário,
Dr. Joaquim Antonio Fernandes de Oliveira (que substituiu o falecido
Dr. Antonio Candido da Cunha Leitão), atesta a existência de 47 alunos,
sendo 30 do sexo masculino e 17 do feminino. A presença das meninas
repõe a problemática do espaço, aparecendo igualmente rebatida na
questão do quadro de pessoal e dos saberes a serem difundidos nesta
escola especial.
O que deveria ocorrer com os cegos pobres, decorridos os 8 ou 10
anos no Instituto? O governo a eles daria o destino que julgasse conve-
niente ou seriam contratados como “repetidores” no próprio Instituto,
desde que tivessem reconhecido talento, estudo e procedimento compa-
tível com o magistério. Destino que precisava ser regulado, o que ajuda
a compreender a preocupação recorrente com os saberes disseminados
e com as oficinas que o Instituto deveria oferecer, como as de artes me-
cânicas, marcenaria, afinador de piano e sapataria, por exemplo.
Três anos depois de criado o Instituto dos Cegos, o Estado passa a
subvencionar o Instituto dos Surdos, como consta na Lei Orçamentária
939, de 26 de setembro de 1857. Esta lei previa a subvenção anual de
5 contos de réis e mais dez pensões de 500$000 cada uma em favor dos

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

surdos-mudos pobres que, nos termos do Regula- O Instituto dos Surdos,


mento interno do Instituto, fossem aceitos pelo inicialmente criado por
particulares, foi
diretor e comissão fiscalizadora e aprovados pe- subvencionado pelo
lo Governo. Como se pode ver, o traço assisten- Estado imperial a partir
de 1857.
cial era mais uma vez empregado para justificar
uma ação do Estado. No caso, o apoio a uma
iniciativa privada de um estrangeiro surdo, o francês Hernest Huet e
sua esposa. No entanto, o apoio de “homens distintos” à iniciativa do
francês teria tido início após o quarto mês de funcionamento. De acor-
do com Couto Ferraz (o futuro Barão do Bom Retiro), à época Ministro
responsável pela matéria da instrução, considerando o zelo, a inteli-
gência, a perseverança, e apreciando o rápido progresso dos discípulos
do Sr. Huet no primeiro quadrimestre, oito homens da “boa sociedade”
(Marqueses de Abrantes, Monte Alegre e de Olinda, Eusébio de Queirós,
o abade do Mosteiro de São Bento, o prior do Convento do Carmo, Dr.
Manoel Pacheco da Silva e o cônego Joaquim Caetano Fernandes Pi-
nheiro) formaram uma comissão promotora para animar o funciona-
mento do Instituto dos Surdos.
A ação implicou a chegada de dois novos alunos no mês de maio. A
sua manutenção decorria das pensões pagas pelo Mosteiro de São Ben-
to e Convento do Carmo. Estas duas instituições também assumiram o
aluguel do Instituto quando ele saiu das dependências do colégio Vassi-
mon, onde suas atividades tiveram início. Em dezembro de 1856, o
Instituto somava 7 alunos, sendo 4 meninos e 3 meninas, procedentes
de Minas Gerais (2), São Paulo (1) e quatro da própria Corte. Apenas os
de Minas e São Paulo eram mantidos pelas famílias. O recurso para
manutenção dos demais decorria do consórcio duradouro estabelecido
com as ordens católicas e de recursos advindos de atividades do Teatro
São Januário, Teatro Lírico e de renda arrecadada nos bailes de carna-
val deste Teatro, destinadas pelo Governo para o Instituto e Recolhi-
mento de Santa Teresa.
Em 1857, o Instituto recebeu mais 6 alunos pobres em virtude da
subvenção do governo central e também de uma pensão votada pela

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Gondra e Schueler

Província do Rio de Janeiro, de onde vieram dois alunos novos. Os ou-


tros quatro eram da própria Corte.
Decorridos dez anos de subvenção oficial, o Regulamento Provisó-
rio de 19 de dezembro de 1867, elaborado na gestão do Ministro José
Joaquim Fernandes Torres, estabelece que, a partir daquela data, o
Instituto dos Surdos-Mudos passa a ser uma instituição pública, oficial,
embora fosse gratuita apenas para os comprovadamente pobres, até o
limite de 16, e admitisse a figura do pensionista. Dentre os pobres, dar-
se-ia preferência para os órfãos, filhos de militares do exército e da
armada e dos empregados públicos que tivessem prestado serviços im-
portantes ao Estado, levando-se em conta o critério da antigüidade
para efeito de desempate.
Desde o início, o Instituto previa a admissão de alunos dos dois
sexos, ficando os surdos sob os cuidados do Sr. Huet e as meninas sob
os cuidados de sua esposa. No entanto, o acesso se encontrava na de-
pendência do atendimento a um conjunto de exigências, semelhante
às do Instituto dos Cegos, sendo impedida a matrícula aos considerados
“idiotas”. No que se refere ao tempo de duração do curso e idade, o
regulamento de 1867 previa curso de cinco anos, com possibilidade de
prorrogação, para alunos entre 9 e 16 anos.
Aqui também uma nota curiosa que dá o tom das forças em jogo
em, pelo menos, dois momentos do Instituto. Inicialmente, nos relató-
rios ministeriais, todas as referências ao diretor do Instituto eram elo-
giosas, laudatórias. No entanto, com a mudança de estatuto da insti-
tuição, este tom vai se alterar de modo expressivo, como se pode
perceber no relatório ministerial de 1870 e no do novo diretor do Insti-
tuto, Tobias Rabelo Leite.
Em 1870, o ministro assinala que a “zelosa administração atual do
Estabelecimento tem pelo modo possível corrigido os abusos que an-
teriormente se notavam e introduzido a ordem em todos os serviços”.
Portanto, a representação de “zelo, inteligência, perseverança e o
rápido progresso dos discípulos” registrada em 1857, deveria ser es-
quecida em nome da representação da “desordem” que presidia o

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

funcionamento da instituição. O diretor Tobias Leite, em 1871, chega


a empregar a expressão “regeneração” para se referir aos desafios
que estava enfrentando para dar uma nova organização ao Instituto.
Neste mesmo ano, o Comissário do Governo, Manoel Francisco Cor-
reia, registra que tinha satisfação em notar “o melhoramento que tem
tido o Instituto sob a atual zelosa administração”. Segundo ele, reina-
va o espírito de ordem e qualquer pessoa poderia visitar a instituição,
em qualquer horário, que encontraria regularidade no serviço, o esta-
belecimento com a escrituração em dia e munido com livros necessá-
rios ao ensino primário, estando ainda os alunos bem alimentados e
cuidados.
Outro ponto que merece ser destacado é o debate acerca da pou-
ca quantidade de alunos no Instituto. Tobias Leite procura identificar
as causas que levavam ao não preenchimento, inclusive, das 16 vagas
gratuitas, para pensionistas do Estado. Ele percebe uma articulação de
três vetores. O primeiro seria uma dupla ignorância, a da existência do
Instituto e a de que o surdo-mudo era tão susceptível de educação
como os falantes. Atribui a demanda reduzida, em segundo lugar, ao
problema social pois, segundo ele, os surdos-mudos eram, na quase
totalidade, filhos de “famílias indigentes ou de tão poucos meios” que
não podiam vencer a distância que os separavam da Corte. Por fim,
considera outro fator cultural que fazia com que “os pais desses infeli-
zes”, acometidos por uma “mal entendida compaixão”, preferissem
“vê-los junto a si, embora mergulhados em hedionda ignorância”.
No combate a estas causas, buscou apoio na Igreja para que, uti-
lizando seus recursos, dessem ciência aos fiéis da existência do Institu-
to e dos benefícios que o mesmo poderia trazer aos “infelizes privados
da palavra”. Segundo ele, o apelo dirigido aos párocos, via carta, em
nome da religião e da humanidade, não logrou êxito. No entanto, en-
tendia que os obstáculos que via poderiam ser superados com base em
uma aliança efetiva entre os poderes religiosos e os poderes locais, das
Câmaras Municipais. Contudo, na seqüência de seu relatório, ele apon-
ta outra razão.

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Segundo ele, a crença errônea de que no Brasil eram poucos os


“infelizes privados da palavra”. Ainda que contando com “deficientís-
simas” informações oficiais, apresenta um quadro do número de sur-
dos-mudos existentes em 15 Províncias. Mesmo com a precariedade da
informação, imaginamos que ela oferece alguma visibilidade aos sur-
dos-mudos do século XIX.

Quadro 2. Surdos-mudos existentes nas Províncias

Menores de 14 anos Maiores


Províncias Total
Masculino Feminino de 14 anos

Amazonas 7 7

Ceará 16 15 49 80

Pernambuco 20 7 52 79

Sergipe 11 4 33 48

Paraíba 6 3 34 43

Maranhão 7 1 34 42

Rio Grande do Norte 34 21 64 119

Alagoas 6 3 12 21

São Paulo 81 49 402 532

Minas Gerais 41 35 82 158

Rio de Janeiro 4 5 31 40

Espírito Santo 3 5 11 19

Santa Catarina 7 2 21 30

Paraná 30 27 58 115

São Pedro do Rio


16 9 34 59
Grande do Sul

Total 282 186 924 1.392

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Com esta demografia dos surdos, ainda que reconhecidamente de-


ficiente, o diretor visibiliza a população dispersa no território nacional.
Ao localizá-la, o diretor procura desfazer a idéia de que no Brasil não se
tinha surdos em quantidade e, desse modo, reforça o diagnóstico rela-
tivo à baixa quantidade de aluno no Instituto. Tratava-se, na perspecti-
va do diretor de, efetivamente, combater a ignorância e de mobilizar
os agentes sociais para que o Instituto ampliasse o raio de sua ação. Não
pretendia uma expansão ilimitada, o que fica claro quando assinala não
pretender que os 468 surdos-mudos menores de 14 anos fossem para o
Instituto e cujos nomes, filiação e residência constavam nas informa-
ções que possuía. Afirmava apenas que o orçamento do estabelecimen-
to admitia incorporar aos treze existentes, “mais quinze ou vinte infe-
lizes dessas centenas que por aí vegetam nas mais tristes condições”.
Como se pode perceber, o princípio da escolarização foi pouco a
pouco se capilarizando, se afirmando, de modo a atingir uma população
que sequer era considerada, como a dos cegos
e surdos-mudos. Para esta população, o progra- Ao longo do século XIX,
a escolarização adquiriu
ma da escola primária sofre poucas alterações, legitimidade, de modo a
salvo nos reparos metodológicos. Mantém-se abranger uma população
que sequer era
igualmente inalterada a perspectiva da educa- considerada, como a dos
ção oferecida à população pobre, seja ela dos cegos e surdos-mudos.
Na perspectiva dos
arsenais, seja das escolas especiais. A combina- homens ilustrados da
época, a aprendizagem
tória de uma instrução rala e rudimentos de das primeiras letras e
ofícios manuais seriam suficientes para assegu- de ofícios manuais era a
combinatória ideal para
rar existência decente e ordem civilizada, co- a realização da utopia de
mo não cansaram de repetir os homens ilustra- um Império fundado sob
os paradigmas de ordem
dos do Império brasileiro. e civilização.

Internatos e asilos
A difusão dos saberes elementares e aprendizagem de ofícios manuais,
ligados a postos nas manufaturas, indústria, comércio e oficinas, pare-
ce ter sido uma fórmula amplamente difundida no Ocidente, marcando

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Gondra e Schueler

experiências no velho e no novo continente, nas metrópoles e jovens


nações. Até hoje esta é uma fórmula acionada para lidar com a inclusão
regulada de crianças e jovens pobres na sociedade. Com esta estraté-
gia, evitam-se os perigos representados pela população posta à margem
e, ao mesmo tempo, abastece os postos de trabalho com uma “gente”
minimamente capacitada e disciplinada, cabendo ao mundo do traba-
lho dar seqüência ao controle iniciado na casa e na escola. Neste senti-
do, as autoridades competentes e o universo da filantropia percebiam
os asilos como uma forma de assistência social, mas também como me-
dida de controle social, posto que, freqüentemente, a população pobre
e desassistida foi representada sob os adjetivos de “arruaceira, capoei-
ra e delinqüente”. Deste modo, ao combinar rudimentos de instrução
com aprendizagem profissional, assistiam, controlavam o mundo da
“desordem” e, por tabela, ofereciam uma mão-de-obra minimamente
disciplinada, qualificada e, sobretudo, farta e barata. Educados nestes
termos, estariam sendo “úteis a si e a sua pátria”.
Com esta perspectiva, a forma de educação escolar do internato se
constitui em um dos equipamentos desenvolvidos para lidar com esta
fração da população, mas não exclusivamente. Tipo específico de equi-
pamento escolar que foi objeto de uma difusão geral, pois no correr dos
anos, houve a criação de internatos voltados para o atendimento da
gente da “boa sociedade”, mas também para
Tipo específico de religiosos, idosos, abandonados, infratores, al-
equipamento escolar, os
internatos possuíram fins
coólatras e dependentes químicos, estudantes
e públicos diversos, rurais, alienados, crianças portadoras de neces-
podiam atender tanto à
gente da “boa sociedade”, sidades especiais e formação de professores,
como também a religiosos, para indicar alguns.
idosos, abandonados,
infratores, alcoólatras e A criação desta forma escolar vem sendo
dependentes químicos,
estudantes rurais,
objeto de longas controvérsias, cujo legado
alienados, crianças chega aos dias atuais. Ao nos depararmos com
portadoras de
necessidades especiais. elas e com os desafios apresentados por este
Havia ainda internatos modelo de institucionalização, que separa to-
dedicados a formar
professores. talmente o indivíduo do convívio social, sub-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

metendo-o a esta espécie de “segunda sociedade”, cuja meta é prepa-


rar os sujeitos para a vida no exterior dos muros que internam, ainda
nos indagamos a respeito da necessidade desse tipo de equipamento.
Aliás, o muro ou portão têm funcionado como metáfora recorrente
para descrever a separação que o internato instaura e a nova experiên-
cia iniciada com esta espécie de “exílio” (pompéia, 2005).
Para dar seqüência à reflexão sobre esta forma escolar difundida
no Ocidente, podemos observar o debate contido em um tratado que
discute o problema da higiene nos internatos. Riant, seu autor, douto-
rou-se em medicina pela Faculdade de Paris, foi professor de higiene,
médico da escola normal, encarregado dos cursos de higiene no Liceu
Charlemagne e oficial da instrução pública. Publicou vários livros tra-
tando da relação entre higiene e educação, sendo um deles focado na
problemática dos internatos (liceus, colégios, pensionatos, casas de
educação, escolas normais, escolas especiais, universidades etc.). Ao
tratar desse tipo específico de estabelecimento, Riant se mantém fiel
ao programa da educação integral, organizando sua reflexão em três
grandes “livros”: I. Higiene Física, II. Higiene Intelectual, III. Higiene
Moral.
Ao iniciar o exame dessa questão, o médico parisiense lembra que
a admissão de um aluno em um internato não deve ser encarada como
uma simples e breve formalidade. Não se trata apenas de acertar pre-
ço e condições materiais necessários ao ingresso. Para ele, o dia de
entrada efetiva do aluno no internato significava, ao mesmo tempo,
que havia uma criança a menos no seio de uma família e uma a mais no
interior de um estabelecimento de instrução, que pouco sabia sobre o
novo aluno, exceto o que constasse no seu atestado de nascimento e
no certificado de vacina. O médico defende, então, que se realize uma
anamnese profunda da família, procedimento regular que funcionaria
como estratégia para melhor conhecer o aluno e, assim, poder orientar
com mais eficácia a ação dos mestres.

  Hygiène Scolaire, Leçons d’hygiène et Conférences d’hygiène, por exemplo.

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A entrada no internato consistia, portanto, em uma separação


que, no caso da França, como registra o Dr. Riant, tinha início, em
muitas situações, já no período do aleitamento: “é na França sobretu-
do que as mães, o mais cedo, não hesitam em confiar a outras mulhe-
res, a mercenárias, a tarefa de cuidar e de alimentar seus filhos que
tanto amam” (1877, p. 178). Isso implica reconhecer a existência de
internatos variados, havendo aqueles que recebiam crianças muito
pequenas. Para estes casos, o higienista apresenta algumas prescri-
ções, reconhecendo que tais internatos deveriam ter uma divisão es-
pecial, de modo a separar, afastar o mais possível os “minimes”, dos
“petits”, “moyens” e “grands”, posto que a divisão inferior, dos “mi-
nimes” era, segundo ele, e isso não poderia ser esquecido, um viveiro
de doenças eruptivas e, por conseguinte, uma vizinhança perigosa pa-
ra os outros alunos e um terreno sempre pronto a receber e a desen-
volver todos os germes. Desse modo, ancorado no saber médico-higiê-
nico, encena-se a produção de uma instituição na qual a pro­miscuidade
das idades deveria ser evitada, configurando os contornos do que vai
ser afirmado como modelo educativo ideal: as classes de idade, tidas
como fundamento para uma homogeneidade pretendida. Para ele, a
divisão dos menores deveria ter necessariamente as características de
um infantário, sendo necessários cuidados especiais, correspondentes
aos dispensados pela mãe. Nesse caso, a intervenção do professor
deveria ser rara e sóbria. Daí, a necessidade de local, horário, exercí-
cios, hábitos, regime e pessoal à parte. Em função disso, defende que
os internatos no campo eram os mais recomendados para os “jeunes
enfants”. Excelentes e indispensáveis, acentua, especialmente quan-
do contrastados com os das grandes cidades, por ele descritos pelas
características do ar viciado, corredores estreitos, altas muralhas e
ausências de verde e de alegria. As crianças pequenas necessitavam

  A ironia aqui tem como referente uma frase de Guizot, citada pelo autor, em que afirmava ser a França o
país em que: “As afeições e as virtudes domésticas dominam tanto, fazendo da educação das crianças o objeto
da vida e constante solicitude dos pais”. In: Guizot, Mémoires pour servir à l’histoire de mon temps apud Riant,
p. 171.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

de numerosas recreações, estudos muito curtos, alimentação equili-


brada, apropriada e de uma vigilância feita por um pessoal devotado
que, em sua prescrição, deveria ser feita por freiras, habituadas a
esse serviço e que a ele se dedicavam de modo geralmente admirável.
Como se vê, o programa higienista é ajustado ao modelo da instituição
total, valendo chamar atenção para a ênfase na dimensão dos cuida-
dos com a “mais tenra idade”, o que não exigiria uma profissionaliza-
ção para lidar com essa “etapa” da vida, sendo suficiente a devoção e
o celibato feminino.
No que se refere à idade dos internatos, salvo casos excepcionais,
o higienista defende que não deveriam ser admitidos jovens com idade
inferior a 7-10 anos, visto que a presença desses traria um incômodo
quanto às regras, à disciplina e representariam um perigo para a saúde
dos outros alunos. Ao mesmo tempo, reafirma a necessidade de uma
vivência no ambiente da família, distinguindo uma idade da casa e uma
idade da escola. Com isso, critica as famílias que desejavam esse tipo
de separação, afirmando não haver qualquer benefício fosse do ponto
de vista intelectual, físico ou moral. Para ele, a criança pequena, salvo
em casos graves, deveria permanecer no ambiente doméstico até que
adquirisse condições para o ingresso no internato. Até então, a melhor
das mestras era a própria mãe, assegura (1877, p. 329).
Na seqüência, o autor reforça a necessidade de que fossem perce-
bidos os lugares específicos de aprendizagem. Para ele, a higiene e a
moral estavam de acordo em solicitar às famílias de não arriscarem,
enviando uma criança muito pequena para um internato, de compro-
meter sua saúde, suas forças ou as disposições de sua inteligência,
deixando vazia a primeira página que deveria ser reservada à lembran-
ça dos pais, seus primeiros mestres. Do mesmo modo que marca uma
idade ideal para a vida em família e no internato, ele também chama
atenção para os perigos na admissão de alunos de mais idade, que se-
riam fatalmente rebeldes à disciplina neste tipo de forma escolar.

  A esse respeito, cf. Goffman (1999).

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A questão da idade também desliza para a questão do funciona-


mento do internato e de suas rotinas, sublinhando que a moralidade
exigia a separação dos alunos de idades diferentes, devendo cada faixa
etária ter um espaço próprio para estudar, dormir, se vestir, se alimen-
tar, ter aulas, passear e rezar, por exemplo.
No que se refere ao Brasil, o século XIX conferiu a este modelo
escolar um valor especial, promovendo prolongados e intensos debates
a respeito desta instituição, seja da parte dos que a defendiam, seja
da parte dos que viam neste equipamento elementos de corrupção,
excesso e má formação. Cabe, no entanto, assinalar desde já as enor-
mes diferenças entre os internatos existentes, como os representados
pelas Santas Casas de Misericórdia e os internatos privados, vinculados
ou não a ordens religiosas e destinados ao atendimento de uma elite
ilustrada, como o Caraça, na Província de Minas Gerais, e o Colégio
Abílio, na Corte, bem como aqueles espalhados pelas Províncias e cida-
des mais ricas e populosas do Império.
A rigor, a experiência dos internatos no Brasil pode ser pensada a
partir da experiência colonial, que encontrou nessa fórmula uma tec-
nologia para educar e disciplinar, de modos distintos, os segmentos da
sociedade que a instituição educativa criada e mantida pela Igreja Ca-
tólica ajudava a distinguir e hierarquizar. Nesses termos, ainda que
próximos no que se refere à forma, não é pos-
O internato foi uma sível tornar equivalentes o que se processava
experiência vivida no
território colonial,
nos seminários religiosos, aldeamentos e rodas
sobretudo por intermédio dos expostos. Os primeiros foram concebidos
da ação das Santas Casas
de Misericórdia e dos como “seminário perpétuo de ministros de
Recolhimentos e Asilos. Deus”, e os demais como internatos destinados
Ao longo do século XIX,
porém, a experiência dos a índios, mamelucos e órfãos e como institui-
internatos conhecerá
formas e finalidades
ção de recolhimento e criação de abandona-
diversas para públicos dos, respectivamente. Distinção que vai sendo
distintos, classificando,
distinguindo e amplificada com o atendimento a públicos que
hierarquizando a a forma escolar também ajudou a discriminar,
população para a qual
se destinava. como é o caso dos internatos destinados ao se-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

xo masculino e feminino. A título de exemplo, temos o Recolhimento


de Nossa Senhora da Glória, criado pelo Bispo Azeredo Coutinho, em
1802, em Pernambuco, para atender as filhas da nascente burguesia e
o Seminário de Meninas de Nossa Senhora da Glória de São Paulo, cria-
do em 1825, para atender a meninas órfãs e abandonadas.
No Seminário paulistano, ainda que pensado sob o signo da carida-
de, havia duas classes de alunas: as chamadas educandas, escolhidas
entre as órfãs de militares mais necessitadas, de idade não estipulada,
e as chamadas pensionistas, de idade entre sete e dez anos, que deve-
riam pagar uma quantia mensal. No entanto, este regime de atendi-
mento a esta parte da população foi sendo consolidado, legitimado e
transformado aos poucos, fruto das tensões estabelecidas em diferen-
tes momentos, como pode ser percebido no modo como a Câmara Mu-
nicipal descreve a instituição nos seus anos iniciais.
Os primeiros relatórios de visita da comissão fiscalizadora da Câ-
mara Municipal indicavam a necessidade de móveis, roupas e utensí-
lios e vários reparos destinados à manutenção do prédio: retelhamen-
to da casa, reparo dos muros, fechamento, com taipa, do quintal ao
lado da varanda (sala de jantar) e da cozinha, colocação de grades nas
janelas e portões na entrada e no quintal, “com fechaduras seguras”.
Na visita de fins de 1833, a precariedade das instalações da Chácara
da Glória ainda é referida: os canos de água da cozinha e do tanque
de roupas estavam arrebentados; faltavam bancos na sala de escrever,
de modo que as meninas trabalhavam em pé, apoiadas em uma grande
mesa; os dormitórios eram muito pequenos, o que obrigava as meni-
nas a dormirem aos pares na mesma cama. Bem distante, portanto,
dos preceitos da racionalidade médico-higiênica e da moralidade da
época.
No que se refere às egressas, para elas projetava-se o casamento
ou o trabalho em casas de família, para o que as meninas deveriam ser
preparadas. No entanto, o magistério também foi sendo desenhado
como opção, a ponto de se prever a transformação do Seminário de
Meninas em escola normal, fato que nunca se efetivou. Embora tal

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projeto não tivesse se realizado, um caminho alternativo para o magis-


tério foi legalizado por intermédio da Lei n. 35, de 16/03/1846, que
dava preferência às egressas do Seminário da Glória para o provimento
das cadeiras vagas de primeiras letras para o sexo feminino, como as-
sinala hilsdorf (2000).
Como se pode observar, a forma internato foi desenvolvida com o
concurso de iniciativas religiosas, que não abriram mão do auxílio pú-
blico e de apoios da iniciativa privada, por meio do apelo à caridade e
filantropia, que garantia aos proprietários e demais doadores um tipo
de capital e reconhecimento social decorrente da atitude humanitária
associada a tal gesto. Ao mesmo tempo, assistimos, também nesse do-
mínio, a execução do princípio da liberdade de ensino, pois alguns in-
ternatos foram criados e mantidos pela iniciativa privada e outros pela
iniciativa pública, como foi o caso do Imperial Colégio de Pedro II, os
internatos para cegos e surdos-mudos, o internato para meninos desva-
lidos e arsenais de guerra e de armada, como já nos referimos.
No que diz respeito às instituições voltadas para a população po-
bre, cabe lembrar que elas foram espalhadas no vasto território brasi-
leiro, com caráter distinto. As primeiras, como se sabe, se encontram
associadas às iniciativas das Santas Casas de Misericórdia, como insti-
tuição de recolhimento, criação e educação de crianças pobres, aban-
donadas e vários estudos já se ocuparam desse tema, como os traba-
lhos de marcilio (1997) e leite (1993, 1997) nos quais examinam este tipo
de experiência iniciada no século XVIII nas cidades de Salvador, Recife
e Rio de Janeiro. Uma curiosidade diz respeito ao fato de o Brasil ter
sido o último país do Ocidente a abolir as rodas
dos expostos, fato ocorrido nos anos 1960.
Os internatos foram
produtos de iniciativas A perspectiva asilar também marcou as
plurais: ordens religiosas,
particulares leigos
iniciativas das forças militares. A inauguração
e poderes públicos. do Asilo dos Inválidos da Pátria, no feriado de
Caridade, filantropia,
governo da população 29 de julho de 1868, aniversário da princesa
e controle dos “perigos” Isabel, pode ser tomado como um bom exem-
fundamentavam estas
ações. plo. De acordo com cunha (2006), a criação

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

deste Asilo se encontra inserida em um modelo Na Capital do Império,


assistencialista de formação e de atendimento na década de 1870, foram
criadas outras instituições
da população mais pobre e que acompanhou asilares, como o Asilo de
Mendicidade da Corte
um movimento de amplitude internacional. (1876), o Asilo de Meninos
Nesse movimento, foram criadas outras insti- Desvalidos (1875),
fundado a Associação
tuições asilares, como o Asilo de Mendicidade Protetora da Infância
da Corte, em 1876, conhecido como “mansão Desvalida, impulsionada
em 1871, pela Câmara
dos pobres”, o Asilo de Meninos Desvalidos, Municipal.
fundado em 1875, e a Associação Protetora da
Infância Desvalida, impulsionada em 1871, pela Câmara Municipal,
além daquelas destinadas a acolher e educar crianças consideradas
“incapacitadas”.
Essas iniciativas, entretanto, não se restringiram à Corte, confor-
me indica a pesquisa de rizzini (2004) sobre crianças desvalidas na Ama-
zônia. Podem também ser percebidas nas discussões da Câmara dos
Deputados, como, por exemplo, no projeto do deputado Manoel P. Mot-
ta que propôs a criação de um asilo para mendigos e indigentes em
Porto Alegre ou, ainda, os do deputado Henrique Limpo de Abreu, sen-
do que um deles previa a criação de um asilo para inválidos e, outro,
um asilo rural para expostos, órfãos e desvalidos.
A preocupação com o perigo representado pela pobreza também
esteve nas cabeças dos homens do Executivo, como podemos perceber
nas palavras do Presidente da Província do Rio de Janeiro, em 1841.
Para ele, era necessário converter aptidão de ébrios e mendigos, va-
dios, arruadores turbulentos, jogadores de profissão, órfãos desvali-
dos, filhos sem pai, moços sem ofícios, donzelas sem amparo, tidos
como parasitas da árvore social, em trabalho, que é riqueza.10 A tecno-

  Sobre o Asilo, ver Paulo Amarante (1982).


  Consultar Martinez (1997).
  Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 15/05/1855.
  Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 19/06/1865.
10  Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro, Manoel de Souza França, apresentado à Assem-
bléia Legislativa Provincial, 1841.

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Gondra e Schueler

logia de conversão forjada pela modernidade foi a institucionalização


maciça da população e, nesse sentido, as chamadas “classes perigosas”
deveriam ser disciplinadas, higienizadas, civilizadas. Perigo que vai
sendo acentuado com a progressiva alteração no mundo do trabalho,
que paulatinamente foi reduzindo o número de escravos. Um ato deci-
sivo nessa direção foi a Lei assinada pela Princesa Isabel em 1871, que
“declara de condição livre os filhos de mulher escrava” nascida daque-
la data em diante. Do mesmo modo, o Estado libertava “os escravos da
Nação e outros”, indicando também as providências com a educação e
tratamento dos filhos menores e libertação anual dos escravos. Esta
nova população de pobres “livres” precisava ser educada, mas não em
qualquer instituição, com bem demonstram os estudos de varella e uria
(1992). Talvez não seja gratuita a criação de um conjunto de institui-
ções voltadas para o atendimento de crianças pobres e órfãs, como é o
caso da Escola Doméstica Nossa Senhora do Amparo, em Petrópolis
(1871) e que, no Rio de Janeiro, quatro anos depois da “Lei do Ventre
Livre”, tenha havido a inauguração do Asilo dos Meninos Desvalidos da
Corte, cujo funcionamento adentrou o período republicano, já como
Instituto Profissional Masculino.
Para Almeida (1989), a constituição e funcionamento do Asilo foi
uma das grandes iniciativas do Ministro João Alfredo Correa de Olivei-
ra. Segundo ele, havia tempo que se sentia a necessidade de um esta-
belecimento desse gênero em uma cidade importante como o Rio de
Janeiro, onde tantas crianças viviam no abandono, seja porque haviam
perdido os pais, seja porque estes haviam deixado as mesmas na misé-
ria ou inumanidade. O tom laudatório que Almeida imprime às iniciati-
vas do Império faz com que o mesmo lamente que só tardiamente a
“benfazeja instituição” tivesse sido reconhecida, lembrando, para is-
to, o sucesso do plano traçado pelo “generoso e sábio Ministro”, o que
fez o asilo passar a ser “fonte de rendas” e não mais um “encargo para
o Estado”.
No entanto, para compreender o funcionamento das instituições
é necessário observar outros pontos de vistas, como os dos diretores,

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

professores e membros das famílias dos asilados. Há indícios de que o


funcionamento regular do Asilo dependia de doações de diversos ma-
teriais, como caixas com penas, resmas de papel pautado, garrafas
com tinta, cadernos do “Méthodos de Adles”, grosa de canetas e de
lápis, como consta nos relatórios dos diretores da instituição. O tom
laudatório pode ser igualmente calibrado com a carta de uma mãe,
provavelmente viúva, que se dirigiu ao Imperador nos termos que se
segue:

Imperial Senhor,
Venho aos pés de V.M.I. implorar que V.M.I. lance as sua vistas
para o Asilo dos Meninos Desvalidos de Vila Izabel que hoje são
muito maltratados com rigorosos castigos, andam muito mal ves-
tidos com roupa de algodão, servindo como presos da correição,
além disso, comem uma comida do gênero mais inferior11 que po-
de haver, os castigos são bárbaros que até fecham os meninos
dentro de um quarto e surram os pobres infelizes de correia.
Além disso, quando os meninos da banda acabam de tocar dão-
lhes um pão seco e ruim a cada um e nós, como mães, pedimos a
Proteção e esperamos de V.M.I. esse ato de bondade e caridade.
Nós, quando botamos nossos filhos lá, foi para eles terem educa-
ção, e não para servirem como negros escravos carregando pedras
na cabeça. V.M.I. tenha compaixão daquelas infelizes crianças
porque elas não são criminosas.
E. R. Mce.
Rio de Janeiro,...., de 1881.

11  No Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (Códice 13-4-19 — Título: Instrução Pública — Instituto Pro-
fissional Masculino — 1887–1909), há uma extensa documentação contendo um mapa com a tabela para a dis-
tribuição dos gêneros alimentícios dos meninos e dos empregados do Asilo, com os cálculos de consumo dos
alimentos e também os valores de cada refeição diária e anual. Alimentos: Açúcar refinado de 2ª; banha; arroz;
batatas; bacalhau; café em grão; “carne verde” e carne seca; fubá; massa para sopa; manteiga; toucinho; pão;
feijão preto; farinha; sal e vinagre; condimentos; “combustível”; sobremesa. A “carne verde” e o arroz compa-
recem em doze refeições semanais, seguida de carne seca que é servida oito vezes; batatas, sete; toucinho,
seis, e feijão preto, cinco. O pão e o “combustível” em quatro refeições; sobremesa uma vez na semana e ba-
calhau duas vezes semanais.

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Ao lembrar o estatuto das crianças, infelizes e não criminosas, a


mãe agrega elementos que reforçam a denúncia que faz em relação ao
tratamento indigno a que os meninos entre 6 e 12 anos de idade vi-
nham sendo submetidos no interior das quatro paredes do Asilo. Com
isso, a mãe flagra limites das leis, já que tanto no regulamento de
1875, como no de 1883, muitos princípios foram mantidos, dentre eles
o de que o internato ofereceria aos internos “vestuário e alimentação
sã e confortável” (Regulamento de 1875, artigo 8o) ou “vestuário e boa
alimentação” (Regulamento de 1883, artigo 14). A mãe também flagra
seu descontentamento com aquilo que seria a plena execução da letra
da lei no que se refere aos seus princípios punitivos, traço mantido nos
dois textos como consta no artigo 38 de 1875. No que se refere à puni-
ção, cabe observar a aplicação do fundamento do equilíbrio e propor-
cionalidade na “infração — penalidade”, para a “pena” ser considerada
justa e eficiente. Este fundamento se faz visível na hierarquia na “pe-
nas” em uma escala de 9 graus, bem como na definição de responsabi-
lidade pela aplicação de cada uma:

1. Advertência em particular;
2. Advertência em público;
3. Repreensão em particular;
4. Repreensão em público;
5. Privação simples de recreio ou de passeio;
6. Privação de passeio ou de recreio, com trabalho;
7. Privação de mesa;
8. Prisão até por três dias, sem prejuízo do estudo e trabalho;
9. Expulsão do estabelecimento.

Em 1883, o regulamento prevê o aumento do tempo de prisão pa-


ra 8 dias, o que indicia a permanência do encarceramento de alunos no
espaço escolar e uma espécie de reconhecimento da “fraqueza” da
medida anterior, o que pode ajudar a compreender seu endurecimen-
to. Alteração que nos faz pensar a respeito da recorrência da mesma e

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

da ineficácia da prisão de três dias. Outro ponto que merece ser obser-
vado se refere à possibilidade da expulsão, penalidade só aplicável
pelas autoridades máximas do estabelecimento, com anuên­cia do Mi-
nistro. Em 1883, o destino dos expulsos passa a ser o trabalho nas for-
ças armadas, no âmbito das companhias de aprendizes ou corpo de
imperiais marinheiros. Outro ponto a ser lembrado é a prescrição em
relação ao crime cometido no interior do internato, prática que tam-
bém levaria os superiores a retirar o aluno e definir seu destino.
Cabe lembrar a alteração na idade de ingresso imposta pelo Regu-
lamento de 1883, elevando de 6 para 8 anos a idade mínima de entrada
no asilo, mantendo-se, contudo, o limite máximo de 12 anos. O que
pode ter promovido esta alteração? Dois elementos podem ser conside-
rados: o limite de atendimento a 200 alunos e a questão do trabalho
infantil. Ao fixar em 200 o número máximo de internos, o novo regula-
mento reduz a faixa de atendimento e o tempo de permanência do
aluno em seu interior para quatro anos. Ao mesmo tempo, se conside-
rarmos a orientação do internato como de preparação para o mundo do
trabalho, o novo limite de idade retira do asilo crianças de 6 e 7 anos,
provavelmente menos aptas para freqüentar as oficinas de desenho e
escultura, música, alfaiataria, encadernação, sapataria, marcenaria e
empalhador, carpintaria, latoaria e ginástica. Ao lado da idade, os “de-
feitos físicos” se constituíam em outro critério que impedia o acesso ao
asilo, quando impossibilitava os estudos e aprendizagem de artes ou
ofícios.
Ingressar no internato, como já assinalado, supõe a submissão a
sua disciplina, dentre elas a que prevê a exclusão do incorrigível. A
“despedida” dos alunos era decorrente de uma tripla combinatória: a
conclusão dos estudos, a não aprendizagem e a incorreção, do ponto
de vista moral e disciplinar. A “despedida” parece ser uma medida ge-
neralizada nas instituições, bem como aquilo que a motiva, como po-
demos observar no quadro dos alunos demitidos em 1850 na Casa dos
Educandos Artífices do Maranhão.

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Quadro 3. Expulsos

Classificação dos educandos demitidos Números

Alienação mental 1

Obstrutos 3

Constituição deteriorada 1

Indomabilidade para o ensino 2

Inércia habitual 2

Acanhamento de idade e de inteligência 1

Rudez de entendimento 2

Aleijado de uma perna 1

Negação para aprender os ofícios mecânicos 1

Fonte: Falcão, 1851, p. 77 (In: Rizzini, 2001).

Os critérios de exclusão dão a medida do modelo de interno que se


desejava, isto é, o trabalhador exemplar que o internato almejava for-
jar. Para o caso do asilo-oficina da Corte, os trabalhos de lopes (1996) e
souza (2007) exploram e examinam outras mediações experimentadas
na implantação dessa iniciativa asilar e no seu desenvolvimento. Cabe
sublinhar que tal experiência não se encerra no Império. A República vai
representar novos capítulos na História desse asilo, impondo a ele um
novo deslocamento, com sua transformação em Instituto Profissional.
Além das experiências já citadas, outras assemelhadas estavam se
desenvolvendo no plano provincial, antes da que se processou na Cor-
te, como a do Asilo para a infância desvalida na capital da Província do
Rio de Janeiro e abertura de Casa de Caridade em Vassouras, ambos em
1854, e o asilo de Santa Isabel de 1886, por
exemplo.
A forma asilar de educação
também teve lugar em No que se refere aos Institutos Profissio-
outras localidades e nais, os trabalhos de rizzini (2001 e 2004) tra-
províncias do Império
brasileiro. çam um quadro importante, demonstrando a

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ramificação desse tipo de iniciativa no Brasil e a perspectiva assumida,


como se pode ver no levantamento que ao lado, o qual, aliás, deve ser
precisado com o desenvolvimento de mais estudos em cada uma das
províncias12.

Quadro 4. Algumas instituições asilares criadas no século XIX

Ano de
Província Nome da Instituição
criação

Casa de Aprendizes Artífices 1858


Amazonas Liceu de Artes e Ofícios 1884
Asilo Orfanológico Elisa Souto 1884

Casa das Educandas Período colonial


Casa de Educandos (Companhia de Jovens Educandos) 1840
Colégio Nossa Senhora do Amparo 1851
Instituto Paraense de Educandos Artífices 1872
Instituto de Artes e Ofícios e Agrícola da Providência 1882
Pará Companhia de Aprendizes Artífices/Arsenal de Guerra 1872
Companhia de Aprendizes Artífices/Arsenal de
Marinha
Instituto do Prata 1872
Instituto de Ourém 1904
1905

Casa de Educandos Artífices 1841


Maranhão
Escola Agrícola de Cutim 1858

Casa de Educandos Artífices 1849


Piauí
Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara 1873

Colégio dos Educandos 1856


Ceará
Colônia Cristina 1880

12  De acordo com Rizzini (2001), as províncias de Minas e Sergipe organizaram projetos para a instalação de
colégio/institutos de educandos, que não foram efetivados (Sergipe: Resolução n. 441 de 21/8/1856 e Minas
Gerais: Projeto de 1876 para criação de 3 institutos de menores artífices). Para o exame de Institutos Profissio-
nais femininos na cidade do Rio Janeiro, temos os trabalhos de câmara (1997) e bonato (2003). Para o caso minei-
ro, cf. faria filho e veiga (1999). No que se refere a outras formas de lidar com a infância pobre no Rio de Janei-
ro, no período republicano, cf. vianna, 2002.

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Gondra e Schueler

Ano de
Província Nome da Instituição
criação

Rio Grande
Colégio de Educandos Artífices 1859
do Norte

Paraíba Escola de Aprendizes Artífices 1865

Colégio de Órfãos de Santa Teresa 1871


Pernambuco
Colônia Orfanológica Isabel 1875

Alagoas Colégio dos Educandos Artífices 1854

Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim 1799


Bahia Escola Agrícola de São Bento das Lages (Imperial
Instituto Baiano de Agricultura) 1859

Colégios dos Índios 1832


Minas Gerais
Colônia Orphanológica N. Sa. do Carmo do Itabira 1884

Seminário das Educandas 1825


São Paulo Casa dos Educandos/Casa dos Educandos de Santana 1844
Instituto de Educandos Artífices 1874

Asilo da Infância Desvalida 1854


Rio de
Imperial Instituto Fluminense de Agricultura Década de 70
Janeiro
Asilo Agrícola Isabel 1886

Casa dos Expostos 1738


Recolhimento das órfãs 1740
Recolhimento das órfãs de Santa Thereza 1852
Órfãs brancas do Colégio Imaculada Conceição 1854
Orfanato Santa Maria 1872
Corte
Escola de Aprendizes de Marinheiros 1873
Asilo de Meninos Desvalidos 1875
Asilo Nossa Senhora de Nazareth 1877
Asilo Santa Maria 1877
Casa São José 1888

Rio Grande
Arsenal de Guerra do Exército 1774
do Sul

Colégio Isabel 1870


Goiás
Colônia Orfanológica Blasiana 1881

Companhia de Aprendizes Menores do Arsenal


Mato Grosso 1842
de Guerra

Fonte: Adaptação a partir de Rizzini (1993 e 2001).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Para as elites intelectual, religiosa e proprietária, as tecnologias


de autodisciplina não se restringiram à construção e legitimação do
internato, pois estas também educavam no espaço privado, recorrendo
à contratação de preceptores e preceptoras, definindo, no próprio nú-
cleo privado, a sociabilidade desejada para a prole, a ponto de dotá-
las de signos de distinção, equipando-as para manter e reproduzir o
capital material e simbólico de suas ordens. Algumas das experiências
relativas aos internatos freqüentados por meninos da elite foram imor-
talizadas nos chamados romances de formação, de traço autobiográfi-
co. Para Felgueiras (2004), a obra O vermelho e o negro, de Stendhal,
pode ser considerada o modelo desse gênero literário no Ocidente.
Se a produção de uma memória sobre internatos vem sendo feita
com base nos relatórios de viajantes, fotografias, regulamentos, ma-
nuais de higiene, ela também vem sendo constituída pelos romances
de internato, como o clássico O Ateneu, escrito pelo advogado Raul
Pompéia, já adulto, no qual rememora seus tempos de interno no afa-
mado Colégio Abílio, e Doidinho, de José Lins do Rego, que descreve a
vida em um pequeno internato em Itabaiana, na Paraíba13. Falange
gloriosa, de 1917, é outro romance de internato, escrito por Godofredo
Rangel, em que seu autor narra a experiência de um menino em um
internato no sul de Minas Gerais. Já Rachel de Queiroz, em As três
Marias, trata da vida feminina em um internato14. Publicado pela pri-
meira vez em 1939, o livro da escritora cearense discute o papel da
mulher na sociedade brasileira. A história tem início nos pátios e salas

13  O livro Doidinho (1933) é tido como uma continuidade do livro de estréia Menino do Engenho. Neste, o
protagonista, o menino Carlos de Melo — Carlinhos, em família — vai viver com seu avô, o Coronel José Paulino,
dono do engenho Santa Rosa e, de certa medida, também de seus moradores. No segundo livro, encontramos
o mesmo Carlos, um pouco mais velho, mas ainda menino, enfrentando outra instituição: o Instituto Nossa
Senhora do Carmo, mais conhecido como “o colégio do Seu Maciel”, onde ele se torna um dos alunos internos
e recebe o apelido de Doidinho. À exceção de umas férias passadas no engenho do avô, toda a ação do livro
transcorre dentro do colégio, cujo cotidiano é hábil e dolorosamente dissecado pelo narrador. Da péssima
comida (que não tinham o direito de recusar) aos piolhos de que todos estavam contaminados, dos banhos de
cuia aos “bolos” de palmatória, do professor autoritário ao colega de hábitos perversos, cada ação, pensamen-
to e sentimento de Doidinho exibem um nervo exposto da experiência de um menino submetido à disciplina
de um internato.
14  Outras experiências da formação escolar foram narradas, em textos de caráter autobiográfico, por Nabuco
(1947), Ramos (2003) e Amado (1966), por exemplo. Estas são fontes ricas para se poder pensar o efeito da
escola do ponto de vista do aluno.

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Gondra e Schueler

de aula de um colégio interno dirigido por freiras, tendo como perso-


nagens centrais três mulheres: Maria Augusta, Maria da Glória e Maria
José. Amigas inseparáveis, elas ganham de seus colegas e professores o
apelido de “as três Marias”. O romance é um importante marco na li-
teratura brasileira e um dos mais populares em toda a obra de Rachel
de Queiroz, tendo sido adaptado para novela, produzida e exibida pela
TV Globo, entre 1980-1981.
Representando o “exílio necessário”, co-
A sobrevivência desta mo descreve o médico-higienista Riant (1877),
forma escolar se constitui
em sinal de que tal o internato vai se afirmando como modelo
equipamento ainda embala educativo e/ou reeducativo, uma tecnologia
os sonhos de que a
reclusão total consiste inventada para a sociedade para proteger a in-
na melhor estratégia para
interferir no curso da fância pobre, preparando-a para o mundo do
vida, formando trabalho. Curiosamente, essa fórmula também
trabalhadores e dirigentes
exemplares. é adotada para bem educar a infância rica.
Ainda que não tenha se tornado dominan-
te, este modelo persiste, mantido pelo aparelho do Estado ou pela
iniciativa privada. A sobrevivência desta forma escolar se constitui em
sinal de que tal equipamento ainda embala os sonhos de que a reclusão
total se constitui na melhor estratégia para interferir no curso da vida,
formando trabalhadores e dirigentes exemplares.

Colégios e liceus
“Nós levamos nas mãos, o futuro
De uma grande e brilhante Nação
Nosso passo constante e seguro
Rasga estradas de luz na amplidão.
Nós sentimos no peito, o desejo
De crescer, de lutar, de subir
Nós trazemos no olhar o lampejo
De um risonho e fulgente porvir.
Vivemos para o estudo

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Soldados da ciência
O livro é nosso escudo
E arma a inteligência.
Por isso sem temer
Foi sempre o nosso lema
Buscarmos no saber
A perfeição suprema.
Estudaram, aqui, brasileiros
De um enorme e subido valor
Seu exemplo, segui companheiros
Não deixemos o antigo esplendor.
Alentemos ardente a esperança
De buscar, de alcançar, de manter
No Brasil a maior confiança
Que só pode a ciência trazer.
Vivemos para o estudo
Soldados da ciência
O livro é nosso escudo
E arma a inteligência.
Por isso sem temer
Foi sempre o nosso lema
Buscarmos no saber
A perfeição suprema”.
Hino oficial do Colégio Pedro II, executado e cantado pela primeira vez em 2 de dezembro de 1937.
Letra: Bacharel Hamilton Elia. Música: Maestro Francisco Braga.

— Pedro II, tudo ou nada?


— Tudo!
— Então, como é que é?
— É tabuada! — 3 x 9, 27
— 3 x 7, 21
— Menos 12, ficam 9
— Menos 8, fica 1
— Zum, zum, zum,
— Paratimbum,
— Pedro II!
Tabuada (grito de guerra dos alunos do Colégio Pedro II).

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A historiografia, ou parte dela, construiu uma representação do Impe-


rial Colégio de Pedro II como a de instituição modelar do ensino secun-
dário do Brasil desde o Império, como o clássico estudo de Doria (1997).
Mais recentemente, esta leitura tem sido problematizada, procurando
dar a ver, na própria História da instituição, os acontecimentos que edi-
ficaram essa memória, tão fortemente presente em seu hino oficial.
Memória que parece ter sido edificada após o centenário da instituição,
em 1937, em uma conjuntura de exceção que fabricou inúmeros símbo-
los para unificar a nação, dentre eles, o do Imperial Colégio, como gran-
de modelo a ser seguido no quadro da conjuntura do Estado Novo. O
hino oficial, também de 1937, recorrendo a metáforas da guerra, para
descrever o estudo como forma de combate às trevas, parece ser um
bom indicador da memória que se procurou construir da instituição.
Com isso não se quer dizer que o projeto de nacionalizar o ensino secun-
dário, tendo por base uma instituição central, deva ser descartado. A
questão a se pensar é até que ponto e em que grau esse ambicioso pro-
jeto precisou ser matizado em nome de interesses locais, como demons-
tra os estudos de Haidar (1972).
Em relação ao ensino secundário nas províncias do Império, Silva
(1969) afirma que o mesmo se caracterizou como um tipo autônomo de
educação, separado horizontalmente dos de-
O ensino secundário mais tipos de ensino médio (os liceus e aulas
funcionava como uma
ponte de passagem, avulsas) e sem articulação vertical com o ensi-
momento de preparação
para os exames de
no primário. Em geral, o ensino secundário —
ingresso nos cursos tanto os colégios e as aulas isoladas, como os
superiores do Império.
Colégios, liceus, aulas cursos de preparatórios — funcionavam como
isoladas e cursos de uma ponte de passagem, momento de prepara-
preparatórios tinham
prestígios sociais diversos ção para os exames de ingresso nos cursos su-
e visavam a objetivos
pedagógicos diferentes,
periores do Império. Em função dessa estrutu-
distinguindo-se ra, as escolas elementares e secundárias não
nitidamente em suas
organizações didáticas, representavam graus sucessivos e contínuos do
na preparação e nas processo educativo. Ao contrário, eram, em
condições de trabalho
de seus professores. larga medida, cursos justapostos, organizações

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

paralelas, que se diferenciavam à base do nível social das respectivas


clientelas e da finalidade social a que obedecia a sua formação educa-
tiva. Tinham prestígios sociais diversos e visavam a objetivos pedagógi-
cos diferentes, distinguindo-se nitidamente em suas organizações didá-
ticas, na preparação e nas condições de trabalho de seus professores
(Silva, 1969). Para exa­minar alguns traços do ensino secundário no Impé-
rio, vamos focar nossa reflexão no caso do Colégio Imperial.
Fundado à época do Período regencial bra-
sileiro, o Imperial Colégio de Pedro II integrava O Imperial Colégio de
Pedro II integrava um
um projeto civilizatório mais amplo, do qual projeto civilizatório mais
faziam parte a fundação do Instituto Histórico amplo — o de preparar os
quadros da elite nacional.
e Geográfico Brasileiro e o Arquivo Público do Desse modo, sob a forma
Império, seus contemporâneos. No que diz res- de um internato
masculino, a instituição
peito ao curso secundário oficial, localizado na deveria ser capaz de
formar homens para
Capital, pretendia-se alongar a formação esco- postos da alta
lar, de modo a melhor preparar os quadros da administração pública.

elite nacional. Desse modo, sob a forma de um


internato masculino, a instituição deveria ser capaz de formar homens
para postos da alta administração, principalmente pública.
O Colégio nasceu da reorganização do antigo Seminário de São
Joaquim, conforme projeto apresentado à Regência de Araújo Lima
(1837-1840) pelo então Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos. Inau-
gurado em 1837, na data de aniversário do Imperador-menino (2 de de-
zembro), foi denominado Imperial Colégio de Pedro II. O ato foi oficiali-
zado por Decreto Regencial a 20 daquele mesmo mês e as aulas tiveram
início em março do ano seguinte, em 1838.
A maioria dos alunos pertencia à elite econômica e política do
país, apesar de haver a previsão para estudantes destituídos de recur-
sos. Imbuído dos valores europeus de civilização e progresso, os alunos
do Imperial Colégio saíam com o diploma de Bacharel em Letras, aptos
a ingressar nos cursos superiores. A questão aqui é que saíam poucos,
já que se constituía em curso seriado com duração de sete anos e mui-
tos preferiam caminhos alternativos (mais rápidos e mais facilitados)

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Gondra e Schueler

Liceus e ateneus foram


para ingresso nos cursos superiores. Neste sen-
criados em diversas tido é que cabe a problematização de Haidar
províncias, como medida
para consolidar o (1972), quando chama atenção para as formas
secundário regular, o que concorrenciais e mais freqüentes de se obter a
indicia uma vez mais as
disputas existentes no quetitularidade correspondente à do secundário,
se refere à forma escolar
do ensino secundário
o que se processava por meio dos exames pre-
no Império. paratórios. Igualmente, há que se observar a
existência de liceus e ateneus em diversas pro-
víncias, como medida para consolidar o secundário regular, com cadei-
ras reunidas, o que indicia uma vez mais as disputas existentes no que
se refere à forma escolar do ensino secundário no Império. A respeito
dos liceus provinciais e ateneus, conferir Alves (1992), Amorim (2006),
Arriada (2004), Barros (2002), Gally (2002), Nunes (2000), Oliveira
(2000) e Vechia (2005), por exemplo.
A partir de 1857, a instituição dividiu-se em Internato e Externato,
sendo a primeira modalidade instalada no bairro da Tijuca no ano se-
guinte (1858), onde permaneceu até 1888, quando suas dependências
foram transferidas para o Campo de São Cristóvão. Ter funcionado co-
mo internato durante longos anos supõe considerar dois outros aspec-
tos que ajudam a problematizar a tese de colégio padrão e grande
formador da elite brasileira: a questão de gênero e a questão dos cus-
tos para se manter um aluno na instituição por sete anos. No primeiro
caso, trata-se de pensar a instituição como um internato de meninos,
sendo o caráter misto consolidado no período republicano, embora a
legislação não impedisse a freqüência de meninas.
No século XIX houve inclusive uma curta experiência com a presen-
ça de meninas, quando o Dr. Cândido Barata Ribeiro matriculou suas
filhas Cândida e Leonor Borges Ribeiro, em 1883, sendo elas aceitas por
não haver no regulamento do colégio nenhuma restrição quanto à ma-
trícula de meninas. Em 1885, o Imperial Colégio de Pedro II (CPII) já
possuía um total de 15 alunas e cinco ouvintes. O reitor Dr. José Joa-
quim do Carmo solicitou, então, a nomeação de inspetoras, consideran-
do mais conveniente, entretanto, que as alunas fossem transferidas ou

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

para a Escola Normal da Corte15 ou para o Liceu de Artes e Ofícios, ou


para o curso noturno secundário de fundação do professor José Manoel
Garcia. Esta ação se concretizou em 1885, quando o ministro Barão de
Mamoré16 proibiu o acesso das meninas à instituição, alegando que não
havia dinheiro para a contratação das referidas inspetoras.
Esse acontecimento permite pensar dois aspectos importantes. O
primeiro diz respeito ao regimento da Escola Normal da Corte de 1881,
no qual foi inserida a contratação de inspetores e inspetoras. Como a
presença feminina nessa instituição era bem aceita, esse regulamento
visou atender à solicitação da contratação de funcionárias que ocorre-
ra no ano anterior à sua promulgação. Enquanto isso, no CPII não havia
tal previsão por não se esperar matrículas do sexo feminino no estabe-
lecimento.
O segundo ponto se refere ao curso noturno secundário do profes-
sor José Manoel Garcia, inaugurado em 1883 e que funcionava no pré-
dio do Externato do CPII, oferecendo um conjunto de disciplinas a se-
rem administradas em cinco anos: português, italiano, francês, inglês,
alemão, latim, matemáticas elementares, geografia, história geral,
cosmografia, corografia do Brasil, história do Brasil, retórica e poética,
história literária, literatura nacional, gramática histórica da língua
portuguesa, filosofia racional e moral, ciências físicas e naturais, higie-
ne, economia doméstica, legislação usual e pedagogia. De acordo com
o secretário Theophilo das Neves Leão, o Curso Noturno Gratuito de
ensino secundário para o sexo feminino se comprometia em conservar
a mobília que fosse utilizada e indenizar a importância da despesa do
gás que excedesse ao uso do colégio.
As famílias que desejassem uma formação mais estendida para suas
filhas tinham três alternativas: a contratação de preceptoras, o envio à
malha de escolas privadas femininas existentes nas províncias ou a clau-
sura dos conventos. Uma consulta aos periódicos do século XIX das diver-

15  Sobre a Escola Normal da Corte, conferir trabalho de Uekane (2005).


16  Francisco Antunes Maciel, nascido no Pará. Graduou-se em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade de
São Paulo e presidiu diversas províncias do Império.

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Gondra e Schueler

As famílias que
sas províncias possibilita um reconhecimento
desejassem, e pudessem dos anúncios de contratação de professores(as)
pagar, uma formação mais
por parte das famílias abastadas, o anúncio de
estendida para suas filhas
tinham três alternativas:serviços docentes oferecidos por vários profes-
a contratação de
preceptoras, o envio à sores, bem como a propaganda feita pelos pro-
malha de escolas privadas
femininas existentes nas
prietários de escolas privadas, masculinas e fe-
províncias ou a clausura mininas. Os almanaques produzidos no século
dos conventos.
XIX são uma fonte importante para se observar
essa movimentação. Para aprofundar esse debate, recomendamos os
trabalhos de Haidar (1972), Lopes, Faria Filho e Veiga (2003), Pinho
(2005), Barreto e Pinho (2006), Menezes (2006) e Limeira (2007).
Outro aspecto diz respeito aos custos para se manter um menino
no colégio. Ao lado das mensalidades, há que se considerar também o
que se gastava com os “enxovais”. A título de exemplo, o regulamento
aprovado em 17 de fevereiro de 1855 estabelecia quatro classes de
alunos: pensionistas de 1a classe, pensionistas de 2a classe, meio-pen-
sionistas e externos. Para todos, a matrícula custava 12$000, sendo a
diferença evidenciada no valor pago a cada três meses, o que tinha
efeito naquilo a que cada aluno teria direito. Vejamos os valores:

Pensionistas de 1a classe: 100$000


Pensionistas de 2a classe: 75$000
Meio-pensionistas: 37$000
Externos: 24$000

Os pensionistas de 1a classe residiam no colégio e tinham direito a


repetidores para as horas de estudo, médico e botica nas enfermidades,
alimentação sadia e abundante, banhos de asseio durante todo o ano e
banhos especiais no verão, roupa lavada e engomada regularmente duas
vezes por semana e cama, cuja roupa seria trocada, pelo menos, todos
os sábados. Já os de 2a classe não teriam a roupa lavada e engomada,
sendo esta uma responsabilidade da família. Os externos só teriam direi-
to às explicações dos professores.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Para se apreender aspectos do funcionamento do Colégio, cabe


observar o enxoval exigido dos pensionistas. De acordo com o artigo 13
do Regulamento de 1855, o enxoval consistia em:

Uma casaca de pano verde ordinário com botões amarelos;


Seis jaquetas de duraque preto;
Dez coletes de fustão branco;
Quatro coletes de sarja de lã preta;
Seis pares de calça de brim cru traçados sem listras;
Seis pares de calça de brim branco traçado sem listras;
Três calças de pano preto ordinário;
Um chapéu preto;
Um boné de pano azul com pala;
Doze pares de ceroulas compridas de pano de linho;
Vinte e quatro camisas lisas de morim com dois botões
de madrepérola no peito;
Seis camisas compridas de riscadinho com dois botões
de madrepérola no peito;
Oito lençóis de pano de linho sem babados;
Quatro fronhas, de pano de linho sem babados;
Seis tolhas de mão de pano de linho, sem babados e franjas;
Duas colchas de chita com babados;
Um cobertor de papa encarnado;
Quatro guardanapos de algodão;
Vinte e quatro lenços brancos de assuar;
Quatro lenços de seda preta;
Quatro lenços de cassa branca lisa;
Trinta e dois pares de meias curtas de algodão brancas;
Três pares de suspensórios de meia de algodão;
Uma escova de facto e outra de sapatos;
Duas escovas de limpar dentes;
Um pente fino e outro de alisar cabelo;
Seis pares de sapatos grossos;

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Dois pares de botins finos;


Uma tesoura de unhas;
Uma bacia de arame de palmo e meio de diâmetro;
Uma bacia de louça branca;
Um par de ceroulas de baetilha branca.

Considerar os valores pagos para se manter no Imperial Colégio,


associado aos custos de um enxoval como o descrito, fornece alguma
idéia do público que podia ingressar e lá permanecer. Pertenciam à
chamada “boa sociedade”, embora seu regulamento previsse o atendi-
mento a alunos internos gratuitos, até o limite de 20, indicados pelo
Governo, ouvido o reitor do Colégio. No entanto, a presença de órfãos
e pobres, ainda que limitada a 12 alunos, não se efetivava, conforme
testemunha o médico, literato, homem da política e professor do CPII,
Joaquim Manuel de Macedo (1862). Quanto aos outros gratuitos, teriam
preferência os filhos dos professores públicos com bons serviços pres-
tados e alunos pobres das escolas primárias que tivessem se distinguido
por seu talento, aplicação e moralidade. Mas também os filhos dos
oficiais do Exército e da Armada até a patente de capitão ou primeiro-
tenente, assim como os empregados públicos que tivessem mais de dez
anos de serviço quando sobrecarregados de família e pobres. Ainda que
fosse considerado o ingresso do aluno pobre no secundário oficial, sua
permanência era dificultada pelas regras disciplinares voltadas para os
“gratuitos”. No caso do aluno gratuito, se fosse reprovado em qualquer
ano, perderia seu lugar no Colégio, exceto se o Reitor informasse haver
sido tal fato decorrente de doença. Previa-se, igualmente, o atendi-
mento a 12 meio-pensionistas gratuitos e também externos.
Como se vê, a gratuidade se constituía em exceção e, além disto,
a permanência só era assegurada aos que fossem bem-sucedidos. Mais
um indicador de que o ensino secundário público e gratuito consiste em
mercadoria escassa no século XIX.
Com a Proclamação da República no país (1889), o nome da insti-
tuição foi alterado para Instituto Nacional de Instrução Secundária e,

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

logo em seguida, para Ginásio Nacional. Mais tarde, em 1911, passou a


utilizar a designação atual de Colégio Pedro II.
Até a década de 1950, seu programa de ensino funcionou como
referência para os programas dos colégios secundários que solicitavam
ao Ministério da Educação o reconhecimento de seus próprios certifica-
dos, justificando a semelhança de seus currículos com o do Colégio
Pedro II.
Com as reformas sucessivas, o colégio deixou de funcionar como
internato e como colégio para meninos, alargando o raio de atendi-
mento ao público. Nos anos 1980, passou a atender a alunos a partir de
seis anos, iniciando o atendimento no primeiro ano do ensino funda-
mental, caracterizando-se como uma instituição de ensino básico e
não mais exclusivamente como de ensino secundário.
Não poderíamos encerrar esse ponto sem comentar que a consoli-
dação do ensino secundário, que passou de sete para três anos, a partir
de uma nova concepção do que seria o ensino fundamental, também
foi submetida a mudanças e que, atualmente, corresponde a nove anos
de escolaridade obrigatória. Também não poderíamos deixar de assina-
lar a manutenção do caráter propedêutico desse nível de ensino, a des-
peito das políticas voltadas para lhe impor uma terminalidade como, por
exemplo, com o ensino profissional obrigatório ou a não equivalência
entre o secundário profissionalizante e aquele considerado de formação
geral. Outro traço que se mantém e que se en-
contra associado à concepção preparatória do Nos séculos XIX e XX,
houve a consolidação do
ensino secundário remete aos chamados pré- ensino secundário. Como
vestibulares. Trata-se de uma forma de escola traço de permanência,
no século XXI, o ensino
existente fora do sistema formal de ensino, am- secundário ainda mantém
um caráter propedêutico.
plamente disseminada, cujo objetivo é prepa- Outro traço que se
rar os jovens para os processos de seleção ao mantém e que se encontra
associado à concepção
ensino superior, os chamados “vestibulares”. preparatória do ensino
secundário nos remete
Uma forma, enfim, que guarda alguma seme-
aos chamados pré-
lhança com os “preparatórios” do século XIX e vestibulares.

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Gondra e Schueler

que, de alguma forma, podem substituir ou suprir o que a escolaridade


formal não proporcionou.

Faculdades e academias superiores


O discurso científico, reivindicando para si o estatuto de saber especia-
lizado ou de verdade a conduzir os destinos da sociedade e dos indiví-
duos, também se fez presente na invenção do Brasil e dos brasileiros.
A mutação operada na ciência e nas sociedades ao longo dos sécu-
los XVIII e XIX teve efeito nos trópicos. Em nosso caso, trata-se da
criação de um Estado independente que, para ser levado a cabo, tam-
bém precisou modernizar o campo da ciência. Esforços nesta direção
podem ser evidenciados nas viagens regulares de brasileiros ao exte-
rior, sobretudo à Europa; nas expedições científicas de estrangeiros ao
Brasil; pela criação de equipamentos culturais como bibliotecas, mu-
seus, teatros, institutos, sociedades e imprensa; lugares de exploração
da flora exótica, como o Jardim Botânico; de minerais, como a Escola
de Minas de Ouro Preto, mas também escolas de formação superior,
como as escolas médicas, jurídicas e sociais, de comércio, militares,
de engenharia e belas-artes.
Por intermédio dessas ações, organizou-se no Brasil uma malha
que pouco a pouco foi se tornando mais complexa. Para tanto, basta
observar as reformas a que cada uma destas instituições foi submetida
ao longo do século XIX.
No caso da medicina, é possível reconhe-
cer três dispositivos complementares ativados
O discurso científico,
reivindicando para si pelos médicos no sentido de construir o campo
o estatuto de saber
da ciência médica ou da vida, de forma cada
especializado ou de
verdade a conduzir os vez mais autônoma: a instituição de formação
destinos da sociedade
e dos indivíduos, também (a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro —
se fez presente na FMRJ), a organização da corporação (a Acade-
invenção do Brasil
e dos brasileiros. mia Imperial de Medicina — AIM) e a produção

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

escrita dos médicos, com seus respectivos suportes materiais e modali-


dades narrativas (teses, livros, jornais, periódicos e literatura, dentre
outros). De modo geral, é possível evidenciar o emprego desses mesmos
dispositivos nos campos jurídico, da engenharia, belas-artes, literatura
e no do comércio.
Em conjunto, a Faculdade, a Academia e o impresso médico con-
correram para criar, identificar e combater o charlatanismo e o ocul-
tismo, ao mesmo tempo em que procuravam apresentar alternativas
ao modo de intervenção dos cirurgiões, curiosos e feiticeiros existen-
tes, representados pela ordem médica como charlatães. Com isto bus-
cavam, também, constituir certa unidade no pensamento e na ação
dos médicos e, deste modo, tornar especializado e unificado o discur-
so acerca do funcionamento deste campo do conhecimento. Sobre o
processo de institucionalização e legitimação social do conhecimento
científico, e particularmente da medicina no Brasil, Schwarcz consi-
dera que:
Misto de descobridores e missionários, esses cientistas ora encontravam
uma nova nação para admirar, ora se debruçavam com temor sobre o país,
propondo reformas e saídas que dependiam da atuação deles. Visto sob este
prisma, talvez o debate tenha se concentrado mesmo entre as escolas de
direito e medicina. Instaurada uma espécie de disputa pela hegemonia e
predomínio científico, percebem-se dois contendores destacados: de um
lado o remédio, de outro a lei; o veneno previsto por uns, o antídoto na mão
dos outros. Se para “os homens de direito” a responsabilidade de conduzir
a nação estava vinculada à elaboração de um código unificado, para os pro-
fissionais médicos somente de suas mãos sairiam os diagnósticos e a cura
dos males que assolavam a nação. Enquanto os pesquisadores médicos pre-
viam a degeneração, constatavam as doenças e propunham projetos higie-
nistas e saneadores, bacharéis acreditavam encontrar no direito uma práti-
ca acima das diferenças sociais e raciais (1995, p. 241).

Medicina e Direito, portanto, apresentavam-se à sociedade como


campos de conhecimento autorizados a solucionar os problemas da na-
ção. De certo modo, ambos se arvoraram como possuidores do “antído-
to” para os males sociais e, com isso, procuraram impor sua legitimida-

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Gondra e Schueler

Medicina e Direito
de para disciplinar a vida individual e social;
apresentavam-se à um com a Lei, outro com o Remédio.
sociedade como campos
de conhecimento Quanto à formação dos bacharéis, o tra-
autorizados a solucionar balho de Adorno (1988) problematiza a preo-
os problemas da nação.
Não por acaso, na cupação com a formação científica dos nossos
sociedade brasileira
o título de “doutor”
“homens da lei”. Ao analisar a estrutura curri-
permanece como cular, práticas de ensino-aprendizagem, meca-
representação simbólica
de distinção, poder nismos burocrático-administrativos, composi-
e autoridade. ção e relação entre corpo docente e corpo
discente, produção e práticas de qualificação
intelectual dos acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo
(FDSP), entre 1825 e 1883, conclui que as salas de aula não se consti-
tuíram em único espaço responsável pela profissionalização dos bacha-
réis. Neste sentido, ele afirma:
Conquanto os princípios lapidares da ciência do Direito fossem transmitidos
em sala de aula, o aprendizado foi caracterizado pelo autodidatismo, não
consolidou a formação de discípulos e sequer foi dotado de padrões mínimos
uniformes no desempenho de suas atribuições pedagógicas. A diversidade na
composição do corpo docente revela contradições relacionadas quer a uma
conformação ideológica que buscou conciliar, no mesmo espaço institucio-
nal, fundamentos filosóficos de distintas origens, quer às ambivalências de-
correntes do contraste entre a academia formal e a academia real. Essas
contradições desnudam, por sua vez, uma conclusão profundamente intimi-
dativa e, a um só tempo, perturbadora: o “segredo” do ensino jurídico no
Império foi, justamente, o de nada ou quase nada haver ensinado a respeito
de ciências jurídicas (p. 236-237).

Considerando-se que a Faculdade de Direito de São Paulo não se


constituiu em lugar exclusivo no qual os bacharéis adquiriam os instru-
mentos para a espécie de contenda a que Schwarcz se refere, como
analisar, então, a presença desses homens no processo de constituição
do Estado Nacional e na sua direção? O próprio Adorno cuida de deslin-
dar esse aparente paradoxo. Para esse autor, foi no espaço extra-esco-
lar que uma efetiva profissionalização dos bacharéis se processou so-
bretudo na ação desenvolvida junto ao “periodismo” e à literatura.
Para ele, o periodismo representou a ante-sala dos gabinetes executi-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

vos, da tribuna parlamentar, dos tribunais judiciários, além de ter pro-


movido a institucionalização da estética literária, sendo, do mesmo
modo, responsável pelo aprendizado da demagogia, na medida em que
proporcionava ao bacharel a oportunidade de burilar a linguagem fala-
da e escrita, instrumentos fundamentais da atividade política.
A precariedade na formação dos médicos na Corte e a ação dos
mesmos na imprensa e na literatura nos levam a perceber condições
semelhantes no processo de formação e no tipo de ações que desem-
penharam com vista a credenciar a ciência que representavam, a cor-
poração que integravam, as ações que desenvolviam, e a si próprios,
como autoridades investidas de poderes múltiplos. Estratégias asseme-
lhadas não apenas nesse aspecto, mas também em ações desenvolvidas
conjugadamente entre médicos e bacharéis, nomeadamente as volta-
das para a moralidade pública e as questões da medicina legal17. Sobre
este ponto, em epígrafe de sua tese, o Dr. Fonseca (1845) desenvolve
uma formulação e afirmação lapidares. Para ele, a medicina legal e a
jurisprudência seriam os “dois olhos da justiça”, pois sem ambos ela
não moveria o passo. Sem um deles ou com ambos anuviados, ela “va-
cilaria, tropeçaria, cairia e nunca sem os prejuízos dos direitos do ho-
mem”. Desse modo, reforça a tese de existência de uma zona de inter-
cessão entre a medicina e o direito, defendendo, com isso, a
necessidade de aliança entre os homens da razão, como mecanismo de
combate ao que considerava como “desrazão”.
A hipótese da presença do “periodismo” como agente controlador
das regras internas de um campo intelectual e de intervenção no mun-
do exterior é partilhada por Ferreira (1996). Ao referir-se à institucio-
nalização, legitimação e difusão do saber médico, esse autor destaca o
papel exercido pelo periodismo médico, aspecto que foi analisado em
sua tese de doutorado, quando ele examinou as estratégias utilizadas
pelos médicos na primeira metade do século XIX, chamando a atenção
para o papel desempenhado pela imprensa médica, especialmente a

17  Com relação a este último aspecto, recomendamos a leitura do trabalho de Antunes (1999), no qual ele
analisa a repercussão na imprensa de casos que podem ser incluídos no ainda impreciso campo da medicina legal.

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que teve como suporte material os periódicos18. Em seu trabalho, iden-


tificou seis periódicos que circularam entre 1813 e 1843.
Segundo esse autor, o periodismo médico cumpriu papel decisivo
na institucionalização, popularização e legitimação da medicina no
Brasil. Raciocínio correlato poderia ser desenvolvido para o caso dos
bacharéis e outros letrados. Com esta estratégia, procuraram conven-
cer a população acerca da positividade do conhecimento médico e da
negatividade dos outros discursos e práticas culturais existentes que se
voltavam para o alívio do sofrimento humano, cura dos males e prolon-
gamento da vida. Procuravam, com isto, construir uma legitimidade
que os elevasse à condição de “salvadores e construtores” da nação.
Ainda segundo Ferreira, em determinadas situações históricas os
periódicos, como foi o caso dos periódicos brasileiros no século XIX, po-
dem assumir uma dupla função no processo de institucionalização da
ciência, funcionando, ao mesmo tempo, como instância interna de regu-
lação e estratificação da comunidade científica e como meio de comuni-
cação com a sociedade envolvente. Dupla função que, na opinião desse
autor, foi fundamental para legitimar social, institucional e cientifica-
mente não apenas a razão médica, pois, como qualquer outra atividade
social, a ciência precisava conquistar uma audiência ampla, não restrita
apenas aos especialistas de uma determinada área do conhecimento.
Além do periodismo médico, é importante ressaltar que a popula-
rização e legitimação da medicina no Rio de Janeiro esteve ancorada
em outras duas organizações: uma de caráter mais corporativo/asso-
ciativo e outra de caráter mais formativo, embora tais características,
muitas vezes, encontrem-se imbricadas, cruzadas e/ou amalgamadas.
A própria história do periodismo médico, inclusive, encontra-se visce-
ralmente entrelaçada com a desses dois espaços organizacionais: Aca-
demia Imperial de Medicina e as Faculdades de Medicina do Rio de Ja-
neiro e da Bahia.

18  A presença do discurso médico na grande imprensa pode ser aquilatada pelo trabalho de Antunes (1999)
quando este analisa os casos médicos (1870-1930) que mereceram ocupar, alguns por um tempo significativo,
as páginas dos jornais, provocando o interesse dos editores e dos leitores.

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Cabe lembrar que o controle que a Academia Imperial de Medicina


exercia junto à comunidade médica incluía outros dispositivos, associa-
dos a sua posição e alinhamento oficial. Os processos de incorporação
dos sócios, os temas postos em discussão, os rituais das reuniões e das
comemorações realizadas sob os auspícios da referida corporação, com-
binados com os dispositivos editoriais próprios, da ação na chamada
“grande imprensa” e na literatura, assim como a presença de seus só-
cios e representantes no ambiente parlamentar e no exercício de cargos
executivos, todos se constituem em elementos que auxiliaram no pro-
cesso de unificação da medicina oficial, produzindo, desse modo, parti-
lhas conceituais nos seus procedimentos e na própria doutrina da racio-
nalidade médica que se pretendia oficial. Assim, mais que “tribuna
médica”, essa entidade dispôs-se a funcionar como núcleo formulador,
articulador, organizador, divulgador e legitimador da ordem médica.
De modo assemelhado, essa técnica pode ser evidenciada nas en-
tidades que representam bacharéis, com a fundação do Instituto dos
Advogados Brasileiros, e também nas que foram criadas por outros
letrados.
No que se refere ao Instituto dos Advogados, o Ministro do Supre-
mo Tribunal de Justiça, Conselheiro Francisco Alberto Teixeira de Ara-
gão, havia proposto a fundação de uma entidade brasileira nos moldes
da portuguesa, criada em 1838. Sugeria então a criação de uma enti-
dade que facilitasse, quando fosse oportuno, o advento da Ordem dos
Advogados. Ele próprio articulou esse empreendimento, fundando na
Corte, em janeiro de 1843, a Gazeta dos Tribunais, um periódico preo­
cupado com os atos da justiça e com questões importantes do Direito.
Já no primeiro número, a Gazeta publicou um artigo intitulado “A Ne-
cessidade de uma Associação de Advogados” e, em 16 de maio de 1843,
divulgou os estatutos da Associação dos Advogados de Lisboa, aprova-
dos por portaria de 23 de março de 1838. Após um mês, aproximada-
mente, teve início a discussão em torno da criação de uma corporação
que reunisse e disciplinasse a classe de advogados.
Profundamente influenciados pelo estatuto da associação portu-
guesa, “inclusive no que dizia respeito à finalidade primordial da insti-

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tuição: a constituição da Ordem dos Advogados”, um grupo de advoga-


dos, reunidos na casa do Conselheiro Teixeira de Aragão, organizou os
estatutos do Instituto dos Advogados Brasileiros. Submetido à aprecia-
ção do Governo Imperial, recebeu aprovação pelo “Aviso” de 7 de
agosto de 1843. O art. 2o dos estatutos da nova instituição dispunha:
“O fim do Instituto é organizar a Ordem dos Advogados, em proveito
geral da ciência da jurisprudência”.
A organização da corporação é uma das conseqüências de uma
classe que vinha se constituindo e se profissionalizando por meio dos
cursos jurídicos. Iniciativas nesta direção datam de 1825, quando o
Imperador instituiu, por decreto de 9 de janeiro, um curso jurídico na
cidade do Rio de Janeiro, regido pelos estatutos elaborados por Luís
José de Carvalho e Melo, Visconde da Cachoeira. Este curso, entretan-
to, não chegou a funcionar.
A questão foi retomada pelo Parlamento em 1826. Um projeto de
nove artigos, assinado por José Cardoso Pereira de Melo, Januário da
Cunha Barbosa e Antônio Ferreira França, que receberia várias emen-
das, transformou-se na Lei de 11 de agosto de 1827. Era mais um passo
de uma luta em favor da idéia semeada pelo Visconde de São Leopoldo,
(José Feliciano Fernandes Pinheiro, formado em direito pela Universi-
dade de Coimbra), na Constituinte “dissolvida” de 1823.
Os mesmos estatutos elaborados pelo Visconde da Cachoeira, por
ocasião do decreto que tencionara criar o curso jurídico do Rio de Ja-
neiro, regulariam os cursos de Olinda e São Paulo. O Curso de Ciências
Jurídicas e Sociais da Academia de São Paulo começou a funcionar em
1o de março de 1828 e o de Olinda em 15 de maio de 1828, represen-
tando marcos do processo de institucionalização do campo. Ambos vi-
savam à formação da elite político-administrativa brasileira, como
atestam vários estudos, dentre eles o de Carvalho (1996). A fundação,
em 1843, do Instituto dos Advogados procurou assentar em bases mais
sólidas a atuação desses bacharéis, funcionando como dispositivo adi-
cional de regulação do próprio campo jurídico.
No que se refere à formação prévia dos médicos, de acordo com
Santos Filho (1991, v. II, p. 49), é incompleto o conhecimento que se tem

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

da Escola Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro em virtude da ausência de


documentos, ressaltando, contudo, que esta foi mais bem aquinhoada
pelo Governo Real do que a congênere da Bahia: “Possui maior número
de cadeiras e assim pôde oferecer um curso mais amplo, com aulas de
Cirurgia e de Medicina”. Esse tratamento diferenciado talvez pudesse
ser explicado pela proximidade com a Corte e pelo tamanho da popula-
ção que aqui aportou com o príncipe. Em 1813, esta Escola foi reorgani-
zada e seus estatutos foram alterados, tendo sido transformada em Aca-
demia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (AMCRJ), encerrando, assim,
a curta existência de cinco anos da Escola que sucedera. Esta reforma se
deu após uma disputa entre os projetos de reformulação das escolas ci-
rúrgicas, em que, de um lado, encontrava-se a proposta de Navarro de
Andrade e, de outro, a do Dr. Manuel Luis Carvalho de Andrade, tendo
prevalecido o projeto deste último, embora menos elaborado. Credita-
se às rivalidades profissionais e intrigas políticas a não-aprovação, por D.
João VI, do Plano de Navarro, considerado mais abrangente, já que pre-
via critérios mais rigorosos para ingresso no curso, associado a uma grade
curricular mais extensa e variada. Para efeito deste estudo, cabe subli-
nhar que nesses dois projetos percebe-se a incidência de preocupações
comuns como, por exemplo, a inclusão da anatomia, fisiologia, cirurgia,
patologia, farmacologia, obstetrícia e terapêutica, sendo igualmente
verificado, já em 1813, a presença do tema da higiene nos dois projetos.
Desse modo, é possível perceber a existência de um projeto de medicina
preocupado em recobrir as questões da ordem social e que deveria ser
desenvolvido junto aos acadêmicos de medicina.
A AMCRJ foi instalada, no mesmo ano de 1813, em duas salas re-
cém-construídas junto ao Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro19,
tendo sido a da Bahia instituída dois anos depois, iniciando-se, assim,
no Brasil, a benemérita ação das Santas Casas em prol do ensino médi-
co. De acordo com estudos da História da formação médica, as exigên-

19  Digno de registro é o fato de que a SMRJ também começou a se organizar no interior da Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro, donde é possível reconhecer a condição de nucleadores no processo de organi-
zação da medicina no Brasil exercida por esses hospitais.

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Gondra e Schueler

cias para a matrícula no primeiro ano do curso não eram muito severas.
O candidato deveria ler e escrever correntemente, observando-se que
“bom será que entendam as línguas francesa e inglesa”, podendo, en-
tretanto, efetuar exames dessas duas línguas no decorrer do curso, que
se completava em cinco anos. Com isto, o plano do Dr. Carvalho rece-
beu o jocoso cognome de “Bom Será”.
A transformação das duas escolas em academias implicou, na ótica
de Schwarcz, uma maior institucionalização dos cursos médicos. O pro-
grama foi reformulado, ampliado, e novas regras foram implementadas.
Dentre elas, a mais relevante diz respeito ao estatuto profissional dos
alunos recém-formados: terminados os exames do quinto ano, os apro-
vados recebiam a carta de “cirurgião aprovado”, sendo que os bons
estudantes que desejassem repetir as matérias do quarto e quinto anos
receberiam o registro de “formados em cirurgia”, correspondendo a
uma espécie de bacharelado na área. Com isto, continua esta autora:
Criava-se, dessa maneira, uma nova rede de hierarquias, na medida em que
o cirurgião gozava de uma série de regalias que não se estendiam ao cirur-
gião aprovado, mas ambos deviam se submeter à avaliação e licença outor-
gada pelo cirurgião-mor do Reino (1995, p. 195).

Com relação a esse projeto de reforma do ensino médico, cabe


uma dupla observação. Primeiramente, observa-se que a transforma-
ção no processo de formação do médico não implicou, ainda nesse
momento, autonomia das academias para diplomarem seus alunos. Tal
tarefa ainda ficava sob o controle da Corte. No entanto, a hierarquiza-
ção dos saberes já se insinuava nesta primeira reforma do ensino mé-
dico brasileiro, quando no interior mesmo da formação médica já se
instituíam duas classes de profissionais: o cirurgião e o cirurgião forma-
do. Cabe observar também que a transformação no ensino médico não
implicou alteração substantiva no quadro de falta de cirurgiões, nem
no quadro da precariedade das condições de formação. Com isso, seja
pela subordinação da AMCRJ à Corte, seja pela insuficiência dos profis-
sionalizados, as pressões por novas reformulações ganharam força. Em
1830, a SMRJ, já constituída, tem participação decisiva nesse proces-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

so, como já tivemos oportunidade de registrar. Este novo movimento


culmina com a transformação da AMCRJ em Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro (FMRJ), ocorrida em 1832, a partir de projeto elaborado
e apresentado pela SMRJ. No entanto, de acordo com Santos Filho,
Pode-se concluir que para seu tempo, e para o meio no qual se desenvolveu,
[a AMCRJ] bem que cumpriu a sua missão. Formou cirurgiões que alcança-
ram posição relevante e profissionais que se espalharam pelas povoações
interioranas. Formou mestres que transmitiram o que aprenderam às novas
gerações (1991, p. 72).

Com a criação da FMRJ, através da lei de 03/10/1832, os seus cur-


sos de “Medicina, de Farmácia e de Partos” instalaram-se nas mesmas
acomodações da Santa Casa, na praia de Santa Luzia, onde até então
funcionara a AMCRJ20. Apesar de se poder reconhecer linhas de continui-
dade nas três fases iniciais pelas quais passou o processo de profissiona-
lização da medicina no Brasil, é possível perceber uma maior ancora-
gem institucional, o que ampliou a capacidade de formação e de pressão
no sentido de se superar a precariedade das condições nas quais o ensi-
no médico se desenvolvia à época. Com isto, se pode evidenciar uma
preocupação dos médicos em criar melhores condições para a qualifica-
ção dos que queriam ingressar nesta carreira e, desta forma, obter
maior legitimação da parte dos que demandavam a profissão, dos des-
tinatários do saber e intervenção médicas − a população em geral − e,
também, dos profissionais que já se encontravam em atividade.
Inicialmente, a FMRJ adotou os estatutos da escola de Paris, tendo
modificado o mesmo nos anos seguintes ao da sua criação. Com esta
modificação, o curso foi estruturado em três seções: ciências acessó-
rias, medicina e cirurgia, totalizando catorze cadeiras, cada uma com
um regente e dois substitutos, reservando-se aos lentes o direito de
jubilação (aposentadoria) aos 25 anos de trabalho. O novo currículo
previa, também, a ampliação e valorização da cadeira de Higiene que,

20  As instalações da Santa Casa de Misericórdia foram utilizadas para o funcionamento da FMRJ, ao longo de
grande parte do século XIX. Uma das tentativas de transferência para um espaço próprio deu-se com o aluguel de
uma casa situada na rua Santa Luzia, e outra deu-se com a transferência para a Rua dos Borbonos, 66 (atual rua
Evaristo da Veiga, onde funciona um batalhão da Polícia Militar). Esta medida não encontrou apoio junto aos
membros da Congregação que achavam o local distante, impróprio e de dispendiosa adaptação (Maia, 1995, p. 56)

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Gondra e Schueler

no final do século, viria a constituir uma das principais áreas de pesqui-


sa, sobretudo na FMRJ.
Às congregações foi garantida autonomia nas decisões e na elabo-
ração de regras internas à faculdade. A duração do curso, por sua vez,
foi estendida para seis anos. Para efetuar a matrícula, os candidatos
deveriam comprovar conhecimentos de latim, francês, lógica, aritmé-
tica e geometria. Os exames passaram a ser anuais, e para a obtenção
do título o aluno deveria defender tese em português ou latim21, con-
forme os registros de Schwarcz (1995, p. 196), evidenciando-se, contu-
do, a escrita em língua portuguesa e a presença do latim nas epígrafes,
citações e aforismos. Com exceção dos aforismos, verifica-se também
o uso da língua francesa nos outros elementos presentes no discurso
das teses médicas sustentadas na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro entre 1822 e 1900.
Deste modo, o diploma passava a funcionar como uma credencial e
não apenas uma carta ou licença para o “fazer médico”. Diploma como
atestado de acumulação cultural, de uma longa formação e de posse de
um saber fundado na razão. Diploma, enfim, como um documento ofi-
cial e oficializador, que, recoberto por essa tripla representação, con-
correria para desautorizar outro conjunto de discursos, procedimentos
e práticas, sendo, simultaneamente, um documento que indica a com-
posição de uma maquinaria do poder médico, sujeita a reparar tanto as
práticas dos profanos como a medicina dos físicos e cirurgiões. Compo-
sição que visava constituir aquilo que viria a ser reconhecido como um
campo de práticas e saberes especializados, o chamado campo médico.
Esse processo, a partir da reforma de 1832, recebeu um estímulo deci-
sivo com a extinção das Academias Médi­co-Cirúrgicas e com a criação
das Faculdades de Medicina. Nesta reforma, nascida do consórcio Go-
verno/SMRJ/AIM, as regras para a formação dos médicos são detalhadas
ao longo dos seus 35 artigos. Entre as competências das novas organiza-
ções escolares, encontra-se discriminada a de concessão dos títulos de

21  Na Faculdade de Medicina de Coimbra, só a partir de 1858 é que foi concedida a oportunidade aos acadê-
micos de escreverem as suas teses em língua portuguesa, de acordo com o estudo de Crespo (1990).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Doutor em Medicina, Farmacêutico e Parteira, ao mesmo tempo em que


se eliminava a concessão do título de Sangrador22. Esta reforma estabe-
lece ainda que os diplomas seriam passados pelas faculdades, em nome
das mesmas, no idioma nacional, e seus portadores poderiam exercer,
em todo o Império, indistintamente, qualquer dos ramos da “arte de
curar”. Não bastasse essa disposição, explicita também os impedimen-
tos, definindo que, sem o título conferido ou aprovado pelas faculda-
des, ninguém poderia curar, ter botica ou partejar enquanto disposições
particulares a respeito da regulamentação do exercício da medicina não
tratassem desse aspecto, excluindo-se do efeito dessa norma aqueles
que já tivessem obtido autorização pela legislação anterior.
No que se refere às disposições referentes ao ensino, é possível
evidenciar o ingresso das “luzes das ciências” naquilo que hoje desig-
naríamos como grade curricular do curso médico. Ciências que, asso-
ciadas, produziriam um conhecimento do homem e do meio suficientes
para derrotar as ameaças naturais (produtos de um clima, geografia,
vegetação, umidade e temperatura tropicais, por exemplo) e artificiais
(produtos das guerras, rebeliões e de um ambiente urbano inadequa-
do). Ciências como a física, botânica, química, zoologia, mineralogia,
história da medicina, partos e medicina legal23 passaram a integrar a
formação do “médico tropical”, além daquelas mais imediatamente
vinculadas à ação médica e que já integravam o currículo das Acade-
mias, como anatomia, patologia, fisiologia, medicina operatória, higie-
ne, clínica e anatomia patológica. No total, 14 cadeiras distribuídas ao

22  Esta medida representa uma alteração nos procedimentos terapêuticos até então em vigor, constituído
pelo uso de “bichas e sangrias”, de acordo com Maia (1995, p. 26). Neste sentido, a terapêutica médica ensi-
nada no interior das Faculdades deveria estar amparada em outros métodos, menos empíricos, e combater os
abusos cometidos em nome da medicina. Em 1848, o farmacêutico Dr. Sebastião Vieira do Nascimento ainda
demonstrava preocupação com a questão dos abusos cometidos pela ciência médica em tese que sustentou
junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, intitulada: Breves considerações sobre os abusos da Sciencia
em Geral, em particular sobre os da Medicina. Ao final de sua tese ele afirma: “Esta sciencia, cantada e endeo­
sada no culto Egypto, onde houve templos, sacerdotes, e altares, he entre nós o fóco da immoralidade, e o
flagelo do genero humano! Ao veneno, ao punhal, e ao ouro ouvimos muitas vezes dar o nome de Medicina! Á
um ascaroso covil o de templo da Medicina. Tal he a nossa illustração” (p. 11). Cabe registrar que a indignação
deste médico-farmacêutico coloca, no horizonte de combate, o charlatanismo e a homeopatia.
23  Embora a reforma de 1820 já tivesse contemplado os estudos de botânica e química, estes passam a ter um
tratamento mais destacado com a reforma de 1832.

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Gondra e Schueler

longo de seis anos. O ano letivo deveria ser iniciado no dia primeiro de
março e ser finalizado no último dia de outubro, o que não significava
término das atividades escolares, visto que estas incluíam os exames
anuais, os quais deveriam ser realizados até o dia 20 de dezembro.
Nesse calendário, estavam previstos “feriados” apenas nos dias santos
e nos de Festa Nacional, excetuando-se desta disposição o funciona-
mento das clínicas, para as quais não haveria feriado.
Conhecimentos ou matérias médicas mais especializadas, elevação
do seu número, fixação da necessidade de uma formação de longa du-
ração, estabelecimento de professores-médicos especializados para ca-
da uma das matérias, distribuição do tempo escolar, de regras de ava-
liação, separação de competências entre o médico, o farmacêutico e a
parteira, bem como a proibição da atividade dos leigos (posta em uma
região, não mais apenas de ilegitimidade, mas, desde então, também de
ilegalidade), tudo isto produzia uma nova arquitetura para a medicina
no Brasil. Em conjunto, tais procedimentos concorriam para a constitui-
ção de um monopólio sobre a “arte de curar”. Tudo isto contribuía para
que as faculdades passassem a ser reconhecidas como um espaço de
saber específico, como um templo do saber e da racionalidade médica.
Esse princípio, a despeito das reformas que se sucederam, não foi ja-
mais alterado. Como pedra fundamental do templo da razão médica, a
formação escolar é critério, exigência e condição necessária para o ple-
no exercício do fazer médico, embora isso não seja suficiente para as-
segurar o pleno êxito do ensino24 e das intervenções médicas, como
admitia, em 1848, o Dr. Nascimento.
O recurso a uma formação que se pretendia cada vez mais diferen-
ciada, mais especializada, não se constituiu em propriedade exclusiva
dos campos médico e jurídico. Ela também pode ser evidenciada na
formação dos militares e artistas, por exemplo.

24  Diferentes autores da história da medicina do Brasil salientam a fragilidade das condições em que a forma-
ção médica se dava. No caso do Rio de Janeiro, o problema do espaço físico da faculdade é, por exemplo, algo
que permanece indefinido até 1918, quando foi inaugurado o edifício próprio na Praia Vermelha. Até então, por
esse motivo, a parte de clínica e de anatomia enfrentava problemas para que tais disciplinas fossem ensinadas
de modo satisfatório.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

No caso dos militares, uma preocupação No caso dos militares,


com sua formação pode ser percebida quando uma preocupação com
sua formação pode ser
D. João VI, em 1811, substituiu a Real Acade- percebida quando D. João
mia pela Academia Real Militar que era a única VI, em 1811, substituiu
a Real Academia pela
Escola de Engenharia no Brasil. Onze anos de- Academia Real Militar,
que era a única Escola
pois, esta Escola passou a ser denominada Im- de Engenharia no Brasil.
perial Academia Militar. Reformas foram se su- Em 1823, esta Escola
passou a ser denominada
cedendo ao longo do século XIX, até que em Imperial Academia Militar.
1858 passou a se chamar Escola Central, sendo
que os engenheiros formados na Escola Central não eram apenas mili-
tares, havendo também a presença dos civis, pelo fato de ser a única
escola de Engenharia no Brasil.
De acordo com Cunha (2006), só a partir da reforma das Escolas
Militares, em 1858, é que a formação de oficiais desdobrou-se em duas
escolas: a Escola Militar tornou-se a Escola Central, que continuou a
funcionar no Largo de São Francisco, enquanto a Escola de Aplicação
do Exército foi transformada na Escola Militar e de Aplicação, estabe-
lecida nas fortalezas de São João e da Praia Vermelha, todas na Corte.
O curso de Cavalaria e Infantaria, que existia na província do Rio Gran-
de do Sul, foi reduzido a uma escola militar preparatória, para oficiais
subalternos.
Com a nova regulamentação, a Escola Central se destinava ao en-
sino das matemáticas e das ciências físicas e naturais e também ao
ensino das matérias próprias à engenharia civil. Já a Escola Militar e de
Aplicação da Praia Vermelha ficou encarregada do ensino teórico e
prático das doutrinas militares, aos oficiais e praças das diferentes
Armas do exército, a saber, Artilharia, Infantaria e Cavalaria. Era o
caminho que apontava para a separação entre a formação militar e a
de engenharia civil, como denunciam as justificativas apresentadas pe-
lo ministro Jerônymo Coelho:
A distincção da engenharia civil de engenharia militar em cursos diversos
desfaz o grave inconveniente, que resultava da accumulação destas duas
espécies em um só individuo, que de ordinário era militar, e que por este
modo ficava sendo um engenheiro encyclopedico, mal podendo habilitar-se

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Gondra e Schueler

com perfeição nas doutrinas, aliás vastas, difficeis e variadas, destes ramos
da sciencia do engenheiro, tão distinctos e de tão diversa applicação.25

Contudo, apesar das mudanças, continuava marcante a presença


de civis, primeiro na Escola Militar e, após 1858, na Escola Central,
como o quadro a seguir pode indicar:

Quadro 5. Matrículas civis e militares na Escola Militar da Corte (1855/1864)

Categorias/
1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861 1862 1863 1864
Ano

Militares 190 205 103 285 195 212 191 154 15 15

Civis 156 182 255 312 169 195 148 150 136 139

Fonte: Alves, 2002.

A preocupação com a formação militar não foi exclusiva do Exérci-


to. De acordo com Cunha (2006), a Marinha tomou uma iniciativa com a
criação do Colégio Naval e, em 1870, a Câmara dos Deputados aprovou
o orçamento da Marinha, autorizando o governo a criar um educandário
que preparasse candidatos para o ingresso na Escola de Marinha. Seus
alunos deveriam ter mais de doze anos e menos de quinze anos de idade
ao entrar, após prestarem provas de conhecimentos de gramática, arit-
mética, francês e inglês26. O externato instalou-se no dia 14 de julho de
1871, com trinta e quatro alunos, em prédio do Arsenal de Marinha da
Corte.27 Devido à pouca procura, esse externato não teve prossegui-
mento, pois somente jovens de recursos, habitantes da Corte, nele se
matriculavam, dado às exigências e aos conhecimentos requisitados pa-

25  Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na segunda sessão da décima legislatura pelo Minis-
tro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra Jerônymo Francisco Coelho. Rio de Janeiro: Typographia
Universal de Laemmert, 1858. (apud Cunha, 2006).
26  O externato foi autorizado através da Lei n. 1836, de 27/09/1870, e regulamentado em 17/01/1871.
27  Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na terceira sessão da décima quarta legislatura,
pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha Dr. Manoel Antonio Duarte de Azevedo. Rio de
Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1872.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ra a admissão. Além disso, ao fim do curso, O Colégio Naval foi criado


poucos seguiam carreira na Marinha. pela Lei n. 2.670, de
20/10/1875 e inaugurado
Em vista disso, as autoridades concluíram em fevereiro de 1877
com setenta e dois alunos
que o internato atenderia mais amplamente às
procedentes de várias
necessidades propostas, sendo capaz de inte- províncias. Na instituição,
os alunos assentavam
ressar maior número de brasileiros, principal- praça, recebiam soldo
mente aqueles residentes nas províncias. De e fardamento e, como
aspirantes, preparavam-se
acordo com o relatório do ministro da Marinha, para ingressar na Escola
de Marinha.
“assim, pois, concluirei, insistindo no pensa-
mento por mim apresentado no último relató-
rio, de transformar o externato em internato ou Colégio Naval”.28
Durante o Gabinete Caxias, foi autorizada a criação do Colégio Na-
val , o que foi efetivado por meio do Decreto n. 6.440, de 28 de dezem-
29

bro de 1876, assinado pela Princesa Isabel. Inaugurado em fevereiro de


1877 com setenta e dois alunos procedentes de várias Províncias, ocupa-
va o mesmo prédio onde funcionara o externato. Estabelecido como uma
organização militar em que os alunos assentavam praça, eles recebiam
soldo e fardamento, como os aspirantes e, durante três anos, reduzidos
para dois em 187930, preparavam-se para ingressar na Escola de Marinha.
Entretanto, ainda segundo Cunha (2006), a existência do Colégio
Naval foi curta. A elevada despesa que acarretava, o baixo índice de
procura, as constantes reprovações e a rígida rotina diária que a muitos
afugentava conduziram a sua extinção, em 1886. Pelo mesmo decreto31,
a Escola de Marinha passou a ser denominada Escola Naval e teve o seu
curso aumentado de três para quatro anos. O efetivo remanescente de
alunos matriculados foi remanejado para a Escola Naval, passando a
constituir um curso prévio, igualmente com três anos e com as mesmas
características do extinto Colégio Naval.

28  Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na quarta sessão da décima quinta legislatura, pelo
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Rio de Janeiro: Typo-
graphia Nacional, 1874.
29  Lei n. 2.670, de 20/10/1875.
30  Decreto n. 1.660, de 8/02/1879.
31  Decreto n. 9.611, de 26/06/1886.

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A criação da Academia No caso das belas-artes, a criação da Aca-


Imperial de Belas Artes -demia Imperial de Belas-Artes — AIBA, no Rio
AIBA, no Rio de Janeiro,
em 1826, inaugura o de Janeiro, em 1826, inaugura o ensino artísti-
ensino artístico no Brasil
co no Brasil em moldes semelhantes aos das
em moldes semelhantes
aos das academias de arteacademias de arte européias. As academias
européias.
procuram garantir aos artistas formação cien-
tífica e humanística, além de treinamento no
ofício com aulas de desenho de observação e cópia de moldes. São
responsáveis, ainda, pela organização de exposições, concursos e prê-
mios, conservação do patrimônio, criação de pinacotecas e coleções, o
que significa o controle da atividade artística e a fixação rígida de pa-
drões de gosto. No Brasil, em linhas gerais, a arte realizada na Acade-
mia corresponde a modelos neoclássicos e românticos aclimatados,
que têm que enfrentar as condições da natureza e da sociedade locais.
Entre as várias alterações no modelo encontra-se o predomínio das
paisagens entre os pintores acadêmicos no Brasil, a despeito da hierar-
quia de gêneros que considerava a paisagem secundária. No que diz
respeito à pintura histórica, vale destacar o papel da “arte acadêmica
nacional” na construção de uma iconografia do Império, sobretudo no
período de Dom Pedro II, entre 1841 e 1889. Ao lado da profusão de
retratos do imperador e do registro de comemorações oficiais, parte
dos artistas acadêmicos envolve-se na construção de uma memória da
nação, de timbre romântico, com a eleição de alguns emblemas: o ín-
dio é um dos mais importantes — por exemplo, Moema, 1866, de Victor
Meirelles, Iracema, 1881, de José Maria de Medeiros e O Último Ta-
moio, 1883, de Rodolfo Amoedo.
A história da AIBA acompanha os esforços de Dom João VI no sen-
tido de aparelhamento do Estado na colônia ultramarina, elevada à
categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves, em 1815. O decreto
de 12 de agosto de 1816 cria a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios
para a qual é contratada uma Missão Artística Francesa, que chega ao
país no mesmo ano para inaugurar as atividades da instituição. A Esco-
la, o próprio nome indica, possui dupla face: formar o artista para o

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

exercício das belas-artes e também o artífice para as atividades indus-


triais. A Missão tem origem no esforço de Joachim Lebreton, secretário
perpétuo do Institut de France que, com o apoio de Dom João e do
conde da Barca, traz ao país um grupo de artistas e técnicos, entre os
quais os pintores Nicolas Tauna, e Debret, o escultor Auguste Marie
Taunay e o arquiteto Grandjean de Montigny, autor do projeto da sede
da Academia e principal responsável pelo ensino da arquitetura. As
obras do arquiteto são exemplares do estilo neoclássico, no Brasil, co-
mo, por exemplo, a antiga Alfândega, hoje Casa França-Brasil e o Solar
Grandjean de Montigny, sua antiga residência, atualmente pertencen-
te à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC/RJ.
Enquanto durou, de 1826 até 1889, a Aiba teve sete diretores e
passou por duas grandes reformas (1831 e 1855), mas são as gestões do
pintor Félix Taunay — de 1834 a 1851 — e a do pintor e crítico de arte
Porto Alegre — de 1854 a 1857 —, que consolidam a academia.
Debret é o pintor mais importante da AIBA nos primeiros tempos.
Formado por Jacques-Louis David pelo ideário neoclássico, que tem na
pintura histórica e mitológica a sua pedra de toque, Debret inicia seu
trabalho no Brasil com a organização dos festejos de aclamação de
Dom João VI, em nada semelhantes às festas revolucionárias francesas
organizadas por David. Durante sua estada no país, observa-se um in-
teresse crescente pelo acompanhamento de aspectos variados da vida
social — o movimento das ruas, o interior das casas, o cotidiano dos
escravos etc. traduzido em desenhos e aquarelas, boa parte litografa-
das e reunidas no livro Viagem Pitoresca e Histórica do Brasil (1834,
1835 e 1839). A pintura histórica encontra nas obras de Victor Meirelles
e Pedro Américo seus maiores exemplos. Aluno da AIBA, onde ingressa
em 1847, Meirelles recebe o prêmio de viagem ao exterior e segue
para Roma em 1853, onde passa pela Academia de São Lucas e pelos
ateliês de Tommaso Minardi e Nicola Consoni. Em Paris, estuda com
Léon Cogniet e Andrea Gastaldi. Entre as suas obras mais importantes
encontra-se Primeira Missa no Brasil, 1860, reveladora dos traços ca-
racterísticos do pintor: a riqueza de detalhes e o predomínio do dese-

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Gondra e Schueler

nho sobre a cor na composição. A Batalha dos Guararapes, 1875/1879,


é outra tela significativa do pintor, que contribui para fazer do episódio
um dos marcos da nacionalidade, no que foi seguido por Pedro Améri-
co. A famosa tela de Pedro Américo, Batalha do Avaí, é apresentada ao
lado da Batalha dos Guararapes na Exposição Geral de Belas-Artes, em
1879. Pedro Américo se destaca precocemente na Academia, onde in-
gressa como aluno em 1856. Bolsista na Europa, estuda com Léon Cog-
niet e Horace Vernet, este último afeito aos temas de batalhas e às
paisagens exóticas. Marcas mais claramente românticas se fazem sen-
tir em sua produção em função do contato com Ingres, das cópias que
realizou de telas de Géricault e da viagem empreendida à Argélia. In-
dependência ou Morte [O Grito do Ipiranga], 1875/1879, é outra de
suas obras mais importantes32.
A música é outro campo convertido em objeto de política pública.
Neste sentido é que em novembro de 1841 o governo central criou na
Corte o Conservatório de Música que, em 1855, foi objeto de reforma.
Tal gesto indica que a formação especializada nesta área se mantinha
como ponto na agenda dos governantes.
Voltado para a formação de homens e mulheres que desejassem se
dedicar ao estudo da música, o Conservatório oferecia gratuitamente,
em horários específicos para cada sexo, aulas de rudimentos de músi-
ca, solfejo, noções gerais de canto, “regras de
Em novembro de 1841 acompanhar e de corda”, composição e aulas
foi criado na Corte o
Conservatório de Música. de instrumento de sopro e de corda. O plano
O Conservatório oferecia institucional de 1855 previa ainda a criação de
gratuitamente, em
horários específicos para outras aulas condicionadas à existência de re-
cada sexo, aulas de
rudimentos de música,
cursos e às exigências para “o progresso do en-
solfejo, noções gerais sino”. Progresso cujo modelo era a Europa,
de canto, “regras de
acompanhar e de corda”, como se pode ver na previsão das viagens de
composição e aulas de “aperfeiçoamento” de alunos ou “artistas na-
instrumento de sopro
e de corda. cionais”:

32  Dados gerais extraídos do portal www.itaucultural.Org.br. Acesso em: 20 de junho de 2007.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Artigo 11: Aos professores reunidos em junta compete:


1º. Fazer ao Governo as propostas de que trata o artigo 4o.
2º. Propor ao Governo, de cinco em cinco anos, o nome de algum aluno, ou
artista nacional, que se haja distinguido por seu talento transcendente, a
fim de ser mandado a Europa aperfeiçoar-se na música.
3º. Indicar, sem prejuízo da disposição do § 5o do artigo antecedente, as
medidas que julgarem convenientes ao melhoramento do Conservatório, e
formular o projeto de estatutos a que se refere o art. 15.
Art. 12. Nos casos do § 2o do artigo precedente, o proposto será enviado
para a Europa à custa do Conservatório se este tiver meios para isso.
Em caso contrário, o Governo, antes de expedir as ordens para a respectiva
viagem, solicitará, do poder Legislativo, os fundos necessários para a pen-
são que deva ser marcada.

Como se pode perceber, a formação superior no Brasil articula


iniciativas em vários domínios que possuem pelo menos um ponto em
comum: organizar um discurso especializado em campos específicos,
como condição para forjar também uma independência científica e
cultural em relação às metrópoles, ainda que se observem os vínculos
que as instituições mantinham com suas congêneres de além-mar. O
projeto de tornar-se independente, sabemos, não se encontra encerra-
do e, até hoje, encontra fortes resistências no exterior, posto que os
países imperialistas ainda adotam princípios e recursos para manter
vários países e povos sob seus domínios.

153
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
“Ninguém poderá ensinar primeiras
letras em escola pública ou particular,
sem licença do Presidente, e sem que
se habilite pelo tempo preciso para ser
examinado na Escola desta capital,
que será Normal pelo sistema do Barão
Degerando, devendo o método de ensino
em todas as escolas ser o simultâneo.
Os que ensinarem sem a dita licença
pagarão uma multa de 100 mil réis para
a Fazenda Provincial, e serão punidos
com as penas de desobediência se
continuarem.”
Regulamento da Instrução Primária da Província
do Amazonas, n. 1, de 8 de março de 1852.

aeroestúdio 3a prova 19/05/2008


4
Sujeitos da Ação Educativa

Professores
Ser professor no Império Português: das corporações
religiosas aos professores régios
Nos manuais de História da Educação Brasileira é comum encontrarmos
a afirmativa de que os jesuítas foram os nossos primeiros professores.
Através da língua e da linguagem, oral e escrita, os missionários encon-
traram terreno fértil para semear idéias e crenças consideradas como
padrão de uma civilização — a cultura cristã, católica e reformada,
branca, européia versus a natureza das terras virgens dos Trópicos e
animalidade dos corpos e mentes dos “infiéis” que nelas habitavam
(neves, 1978). A catequese, o ensino das primeiras letras, a leitura das
Sagradas Escrituras, o estabelecimento de formas modernas de educa-
ção escolarizada e institucional, como as escolas e os colégios, a cons-
tituição das aldeias e missões indígenas — todas estas estratégias edu-
cativas permitiram a construção, sempre tensa e contraditória, de
laços e nexos, complementares, porém, hierarquizados, entre as duas
faces da moeda colonial, os colonizadores e os colonos.
Sem dúvida, os jesuítas foram mestres na arte de ensinar e apren-
der. Com a função docente, inerente à reprodução da própria ordem
religiosa, os mestres jesuítas cumpriram seus objetivos de intercomu-
nicação e estabeleceram a ponte necessária para a realização de sua
missão. Souberam compreender, condensar e reelaborar a multiplici-
dade de línguas faladas pelas diversas comunidades étnicas destas ter-
ras americanas (todorov, 1992). A ação da Companhia de Jesus se cons-

155
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

Os jesuítas foram mestrestituiu num dos mais poderosos instrumentos


na arte de ensinar e de conquista e contato entre europeus e nati-
aprender. A ação da
Companhia de Jesus se vos no processo de aculturação imposto pela
constituiu num dos mais
expansão da Fé e do Império português na
poderosos instrumentos de
conquista e contato entreAmérica.
europeus e nativos no
processo de aculturação A história da missão jesuítica e do sistema
imposto pela expansão da educacional implantado pelos “soldados de
Fé e do Império português
na América. Cristo” na colônia, já bem conhecida, tem sido
compreendida a partir dos seus resultados vi-
toriosos no que se refere à concretização dos projetos europeus de
exploração colonial do Novo Mundo. Pela sua importância na formação
do Império português, não apenas na América, mas também na Ásia e
na África, e especialmente pela sua eficácia na elaboração de moder-
nos mecanismos institucionais de educação e transmissão cultural, a
história da missão jesuítica foi construída sob o mito da origem, consi-
derado, por muito tempo, como uma ação educativa pioneira, heróica,
hegemônica e singular, verdadeiro marco na História da Educação e da
profissão docente brasileiras. Por isso, a representação simbólica dos
jesuítas como nossos primeiros mestres é ainda muito presente no nos-
so imaginário.
De fato, os estudos sobre a História da profissão docente enfati-
zam as relações existentes entre a constituição das corporações e das
ordens religiosas e a conformação de determinados modelos de do-
cência. Desde o renascimento urbano e comercial, no final da Idade
Média (séculos XI e XII), algumas corporações religiosas se afirmaram
como ordens docentes, na medida em que foram responsáveis pela
reprodução dos próprios quadros religiosos e pela educação de nobres,
burgueses e aldeãos, por meio da constituição de diversas instituições
educativas, como os mosteiros, as escolas catedrais, as escolas paro-
quiais, as escolas de aldeias, as universidades e, nos séculos XV e XVI,
os colégios.
Nóvoa (1991) afirma que no conjunto das sociedades européias a
modernidade representou:

156
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Um período-chave na História da educação e, portanto, da profissão docen-


te. Apesar das especificidades de cada país e de cada contexto socioeconô-
mico, põe-se por toda parte a questão de saber o que significa ser um bom
docente: Deve ser leigo ou religioso? Deve fazer parte de um corpo docente
ou não ser mais que um mestre dentre os outros? Como deve ser escolhido
e designado? Como deve ser pago? De qual autoridade deve depender? (...)
O processo de secularização do ensino é antes de tudo a substituição de um
corpo docente religioso (ou sob o controle da Igreja) por um corpo docente
laico (ou sob o controle do Estado), sem que por isso as antigas motivações,
nem as normas e os valores que caracterizaram as origens da profissão do-
cente, tenham sido substancialmente modificadas: o modelo docente per-
manece muito próximo daquele do padre.

A Igreja não apenas formava os professo-


Os estudos sobre a História
res como também detinha o monopólio da con- da profissão docente
enfatizam as relações
cessão da licença para ensinar, mantendo o existentes entre a
controle sobre os professores religiosos e lei- constituição das
corporações e das ordens
gos. Com a Reforma protestante e uma série religiosas e a conformação
de determinados modelos
de questionamentos sofridos pela Igreja, no de docência.
início da época moderna, com o abalo aos seus
monopólios sobre a fé e a cristandade na Europa ocidental, consti-
tuem-se novas estratégias educativas e métodos de conversão, conven-
cimento e reconquista de fiéis, como o abandono progressivo do uso do
latim, a difusão de colégios e escolas e a expansão da fé pelo mundo.
A Companhia de Jesus, como sabemos, fez parte do projeto de reforma
da Igreja Católica, protagonista na nova cruzada moderna de ofensiva
contra o avanço da reforma protestante (julia, 2001). Em meio a dispu-
tas e embates em torno das questões religiosas e políticas, um novo
ideal missionário se constitui como projeto central das corporações
religiosas: a missão de educar, catequizar, converter e civilizar os “in-
fiéis”, os “bárbaros”, os “índios”, os “africanos”, os “outros” (todorov,
1992). A função docente, as estratégias e as práticas educativas se
constituíram, então, como instrumento fundamental para a ação das
ordens religiosas.
No entanto, se é inquestionável a presença e importância da ordem
jesuítica na colonização portuguesa na América, isto não nos permite

157
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

supor que a ação empreendida pela Companhia de Jesus representou a


única empresa educativa colonial e, muito menos, que os padres jesuítas
foram os únicos missionários e mestres do período. Outras ordens religio-
sas, como a dos franciscanos, por exemplo, também desempenharam
papel fundamental na conversão das almas e do “gentio”, embora sua
presença tivesse sido por longo tempo silenciada pela história oficial
(sangenis, 2006). Principalmente a partir dos séculos XVII e XVIII, outras
ordens religiosas se estabeleceram no território e constituíram lugares,
espaços e formas de educação, por meio da criação de aulas avulsas,
seminários, colégios, asilos, bibliotecas, confrarias e irmandades, como
foram os casos da Congregação do Oratório (Recife, fins do XVII) e dos
seminários episcopais do Rio de Janeiro (1739) e de Mariana (1750).
Franciscanos, carmelitas, oratorianos, beneditinos também exerceram
funções educativas, e se tornaram mestres e educadores, utilizando a
difusão da palavra e da instrução religiosa como veículo de intercomuni-
cação, de conquista e de troca culturais (martins, 2002, p. 126).
Além da ação das corporações religiosas, e da atuação dos cléri-
gos e padres como educadores, não podemos esquecer a heterogenei-
dade de sujeitos, formas, espaços e práticas educativas difusas, for-
mais e informais, que coexistiram nos variados grupos sociais e étnicos.
As práticas de educação dos meninos e meninas indígenas, das crian-
ças e escravos menores, dos camponeses, sitiantes e colonos livres e
pobres, dos meninos e meninas das casas senhoriais e dos engenhos; o
ensino das letras realizado no interior das famílias, pela ação das mães
e outras mulheres, de preceptores ou mestres
Além da ação das particulares; a aprendizagem dos ofícios nas
corporações religiosas oficinas, nas fazendas, nos campos, nas insti-
e da atuação dos clérigos e
padres como educadores, tuições de assistência e em múltiplos espaços
não podemos esquecer
a heterogeneidade de
sociais — todas essas formas educativas, como
sujeitos, formas, espaços vimos, conformaram outros modos e agentes
e práticas educativas
difusas, formais e do aprender e do ensinar.
informais, que coexistiram Como demonstrou Antonio Rugiu, o ofício
nos variados grupos sociais
e étnicos. da docência, para além de se constituir ativi-

158
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

dade relacionada aos grupos de letrados (for- O ofício docente, para


mados por uma minoria de homens livres, lei- além de se constituir
atividade relacionada
gos ou religiosos, dos burgos medievais e das aos grupos de letrados
urbanos, conservou, por
cidades renascentistas européias), conservou, muitos séculos, uma dupla
por muitos séculos, uma dupla feição, simulta- feição, simultaneamente
artística e técnica, o que
neamente artística e técnica, o que lhe impri- lhe imprimia
características artesanais
mia características artesanais e corporativas, e corporativas, tal qual
tal qual ocorria com outros ofícios urbanos, ocorria com outros ofícios
urbanos, propriamente
propriamente manuais (rugiu, 1998). Isto ocor- manuais.
reu porque, em primeiro lugar, não raras vezes
os mestres de primeiras letras se confundiam
com os próprios mestres e artesãos das corporações de ofícios especia-
lizados, como os carpinteiros, ferreiros, alfaiates, entre outros. A pró-
pria denominação — mestre — então atribuída aos docentes de todas as
ordens e graus, indicava a sua vinculação com as tradições das corpo-
rações de ofício e das corporações religiosas ou acadêmicas, formadas
pelas universidades e colégios medievais (le goff, 2003). Tendo apren-
dido com os mestres no interior dos sistemas de aprendizagem, ao
mesmo tempo em que exerciam suas profissões manuais, alguns arte-
sãos executavam a tarefa de ensinar as primeiras letras, ora gratuita-
mente, ora como mais uma maneira de garantir a sua sobrevivência.
De fato, pesquisas sobre a profissão docente na Europa e no Brasil de-
monstraram a inexistência de uma rígida especialização profissional no
século XIX, visto que não era incomum o exercício de outras atividades
e profissões pelos professores.
Assim, se nem de longe tencionamos minimizar a centralidade da
pedagogia jesuítica e da ação dos religiosos na História da profissão
docente na América Portuguesa, nos preocupamos, porém, em atentar
para outros sujeitos que atuaram como mestres, praticantes da ação
educativa, sejam eles religiosos ou leigos. A partir de meados do sécu-
lo XVIII, quando as Reformas Pombalinas desencadearam o processo de
expulsão dos jesuítas de Portugal e de todo o seu império (1759), e

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Gondra e Schueler

A expulsão dos jesuítas doestabeleceram as chamadas Aulas Régias, ou-


Império português pela tros religiosos e mestres leigos, preceptores,
política pombalina (1759)
não significou o professores particulares, artesãos e mestres
afastamento imediato e
de ofícios há muito já dedicavam parte de seu
definitivo dos padres e dos
tempo a ensinar, geralmente, por iniciativa
religiosos das suas antigas
funções de educar. Muitos
religiosos continuaram particular.
a exercer o ofício, sendo Do mesmo modo, a expulsão dos jesuítas
comum a sua presença
no magistério público do Império português pela política pombalina
e particular ao longo não significou o afastamento imediato e defini-
de todo o século XIX.
tivo dos padres e dos religiosos das suas antigas
funções de educar. Muitos continuaram a exercer o ofício nas suas casas
particulares, nas igrejas e capelas, nas fazendas e sítios, nas residências
e no âmbito dos espaços domésticos e familiares, sendo comum a sua
presença no magistério público e particular ao longo de todo o século
XIX. No Pará e no Amazonas, já em meados dos oitocentos, Rizzini (2004)
demonstrou o quanto a dificuldade em arregimentar pessoas preparadas
para lecionarem nas pequenas aldeias e lugarejos levou as administra-
ções a prover os lugares de professores primários com sacerdotes. Em
1850, das 42 cadeiras de instrução primária existentes no Pará, 11 eram
regidas por padres, 27 por não religiosos e 4 por mulheres. No Amazo-
nas, a composição do quadro de professores não era muito diversa: em
1858, de 18 professores das cadeiras masculinas, 10 eram religiosos. Em
Pernambuco, os primeiros professores régios que desembarcaram na co-
lônia, pelos idos de 1764, reclamaram da recepção “pouco calorosa” a
eles dispensada pela população local e do “afeto” que esta dedicava aos
mestres leigos brasileiros e aos jesuítas (silva, 2006, p. 61).
No Império Português, quando os professores régios aportaram nas
principais vilas, ainda na segunda metade do século XVIII, encontraram
uma diversidade de práticas educativas (faria filho; lopes e veiga, 2000;

  Alvará Régio de 28 de junho de 1759, que criou as aulas de gramática latina, retórica e grego, e a Lei de 6 de
novembro de 1772, que regulamentou as aulas de leitura, escrita e cálculo, além das cadeiras de filosofia. Sobre
as aulas régias, consultar, entre outros, carvalho (1978), neves (2002, p. 55-59), maxwell (1997) e cardoso (2003).
  Diretoria de Instrução Pública do Pará. Mappa das Cadeiras de Instrucção Primaria, 18/12/1850 (IHGB — Co-
leção Manuel Barata).

160
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

vidal,1999; fonseca, 2006). Estes professores régios conviveram, e dis-


putaram espaços, com os mestres leigos e religiosos, padres e cape-
lães, que nas áreas rurais e urbanas ensinavam as primeiras letras ou
lecionavam disciplinas isoladas. Na cidade do Rio de Janeiro, elevada
à sede do Vice-Reinado em 1763, há indícios de que existiam, entre
1702 e 1812, cerca de 64 mestres particulares, entre os quais 1/3 eram
padres (silva, 2006). Quando D. João e sua comitiva desembarcaram na
cidade, em 1808, havia 20 mestres régios, além dos mestres e profis-
sionais do ensino particular (cavalcanti, 2004, p. 166-167).
De acordo com Nóvoa (1987), os professores régios de gramática
latina, grego, retórica e filosofia e os mestres de ler, escrever e contar
representaram a primeira iniciativa do Estado português para promo-
ver o recrutamento, a seleção, o controle e a remuneração de profes-
sores. O autor, ao estudar o duplo processo de construção da escola
estatal e organização de um corpo de professores públicos em Portu-
gal, considerou-o como parte intrínseca das próprias transformações
históricas da docência, sublinhando quatro elementos organizacionais
que constituíram o que ele identificou como os diferentes estágios do
processo de profissionalização docente, quais sejam: o exercício a
tempo inteiro da atividade docente (ou, pelo menos, como ocupação
principal); a criação, pelas autoridades públicas ou estatais, de um
suporte legal para o exercício da atividade, sob a forma de diploma ou
licença; a criação de instituições específicas para a formação especia-
lizada e longa dos professores; a constituição de associações profissio-
nais representativas do grupo profissional, normalmente de caracterís-
ticas sindicais, que desempenham um papel decisivo no desenvolvi-
mento de um espírito de corpo e na defesa do estatuto socioprofissional
dos professores (nóvoa, 1987).

  De acordo com Garcia (2005), embora o estudo de Nóvoa tenha privilegiado os professores do ensino pri-
mário, sua análise pode fornecer elementos para a compreensão da profissão docente em outros níveis do en-
sino, levando em consideração o desenvolvimento precário do secundário e superior neste período. A autora
destaca que no Brasil a profissão docente também foi configurada a partir do seu grau elementar, embora re-
conheça a existência de dispositivos de recrutamento (exames, concursos, regulamentos) que indicam a pre-
sença do Estado na configuração do corpo profissional destinado ao ensino secundário e superior.

161
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

A partir do final do século Ao realizar um balanço historiográfico so-


bre os estudos de História da profissão docen-
XVIII, o traço fundamental
destas mudanças pode ser
observado nas crescentes te no Brasil, Catani assinalou semelhanças
disputas entre modelos e
com o processo transnacional de constituição
formas privadas,
da docência nas sociedades ocidentais, como,
artesanais e experimentais
de aprendizagem prática
do ofício e as formas por exemplo, a emergência de uma rica pro-
estatizadas e dução de imagens e representações sobre o
hierarquizadas de
profissionalização, com ofício, a estatização do magistério, a forma-
a introdução de novos
ção de associações profissionais, a prolifera-
saberes científicos e
instituições de formação,ção de revistas e periódicos pedagógicos e o
como as Escolas Normais,
processo de feminização do magistério. Con-
no decorrer do século XIX.
jugados, esses fatores indicariam um amadu-
recimento da docência rumo à profissionalização, ou seja, contribui-
riam para a formação do campo intelectual composto pelo corpo
profissional de professores e professoras (catani, 2003). Assim, a partir
do final do século XVIII, o traço fundamental destas mudanças pode
ser observado nas crescentes disputas entre modelos e formas priva-
das, artesanais e experimentais de aprendizagem prática do ofício
(tradicionais entre os religiosos e mestres particulares de primeiras
letras) e as formas estatizadas e hierarquizadas de profissionalização,
com a introdução de novos saberes científicos e instituições de forma-
ção, como as Escolas Normais, criadas em Portugal e no Brasil, no
decorrer do século XIX. Assim, se a gênese da profissão docente não
foi propriamente uma invenção do Estado-nação, o fato é que essa
intervenção viabilizou a constituição de corpos docentes vinculados
aos poderes públicos, representando momento significativo no proces-
so de funcionarização da profissão.
No entanto, em que pese o progressivo processo de constituição
de corpos docentes estatais, a permanência de uma diversidade de
agentes e de situações educativas difusas na sociedade indicava que os
sujeitos da ação educativa, longe de pertencerem a um estatuto pro-
fissional homogêneo, foram marcados pela pluralidade de lugares e
práticas sociais resultantes de profunda diferenciação e hierarquização

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aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

das funções docentes. A própria reforma pombalina, ao pretender cen-


tralizar o controle sobre os mestres particulares e criar a categoria de
professores régios, selecionados, recrutados e pagos pelos cofres do
Estado, foi responsável pela fragmentação dos estudos e pela hierar-
quização da profissão docente. Mendonça e Cardoso (2007), em texto
recente, demonstraram o quanto a política educacional do despotismo
esclarecido no Império português setecentista, baseada nos princípios
de hierarquia próprios ao Antigo Regime, atuou no sentido de promover
a fragmentação dos estudos e, conseqüentemente, a diferenciação in-
terna na profissão:
O modelo de organização adotado pela Reforma Pombalina para os estudos
menores, em oposição ao dos colégios jesuítas, foi o das aulas avulsas de
matérias que, ao menos em um primeiro momento, não guardavam entre si
nenhum tipo de articulação. A opção por este tipo de modelo determinou
uma série de clivagens internas ao próprio quadro docente que, em nossa
avaliação, viriam a dificultar a autopercepção dos professores como um
corpo integrado e, conseqüentemente, autônomo do Estado.

Segundo as autoras, esta diferenciação interna se justificava em


razão das relações de poder e da naturalização das desigualdades so-
ciais no Império português, em função de “uma série de critérios que
se apoiavam na correspondência entre a maneira como os estudos se
organizavam e a forma hierarquizada” segundo a qual se organizava a
própria sociedade. A Lei de 1772, que criou as diferentes cadeiras ou
aulas régias, distinguia os grupos a que se destinavam e os limites da
instrução oferecida a cada um destes grupos sociais:
Para a grande maioria, bastaria o do ler, escrever e contar, para outros, a
precisa instrução da Língua Latina, e apenas a poucos se destinariam as
aulas de grego, retórica e filosofia (apenas àqueles que pretendessem se-
guir os estudos superiores). Esta hierarquização se refletia tanto no respec-

  Segundo Mendonça e Cardoso (2006), a reforma de 6 de novembro de 1772 foi direcionada à concretização
de três objetivos principais: “O primeiro deles foi o esforço em reformar os Estudos Maiores, substituindo os
antigos Estatutos da Universidade de Coimbra; o segundo objetivo foi a criação de um imposto específico, o do
Subsídio Literário, para financiar as reformas então em andamento no campo da educação, principalmente as
relacionadas aos Estudos Menores. O terceiro objetivo da reforma dos estudos pode ser apreendido no empenho
em relançar na prática, em todo o Reino, o sistema de ensino criado com as Aulas Régias.”

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aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

tivo número de cadeiras oferecidas, quanto nos salários diferenciados dos


mestres e professores (tanto mais elevados quanto mais próximos dos estu-
dos superiores), ou na própria diferenciação que se estabelecia entre essas
duas denominações, os mestres de ler escrever e contar e os professores de
gramática latina, retórica, grego e filosofia (Mendonça e Cardoso, 2006).

O processo de seleção dos professores régios implicava o estabe-


lecimento do monopólio estatal para a concessão das licenças para
ensinar, demonstrando claramente as tentativas oficiais de submeter
os professores, públicos e particulares, às normas e diretrizes impostas
pelos poderes públicos. O concurso público para professores régios se
constituiu como mecanismo de certificação do ensino e fornecia a
chancela oficial, garantindo um novo estatuto profissional para o mes-
tre ou o professor. Mas a gênese deste estatuto profissional foi marcada
pela diferenciação interna entre professores régios e mestres de pri-
meiras letras, além de outras formas de distinção como, por exemplo,
a importância desigual atribuída a cidades, vilas e áreas rurais, pelo
estabelecimento de condições de trabalho e remuneração diferentes
ao professor (efetivo, proprietário da cadeira, ou temporário, substi-
tuto), e, ainda, pelo caráter definitivo ou precário da licença para
ensinar (mendonça e cardoso, 2007).
Como podemos perceber, a transformação dos professores em fun-
cionários públicos e as políticas de controle sobre sujeitos e práticas
educativas acarretaram diferenciações e tensões entre os mestres. Se-
gundo Mendonça (2004), a principal distinção que se estabeleceu, nes-
se primeiro momento, foi entre os professores régios e professores

  Conforme Mendonça e Cardoso (2006), os ordenados dos professores relacionavam-se diretamente à ordem
de importância atribuídas a cadeiras ou aulas régias. Quanto mais próximas dos Estudos Superiores, maiores
eram os salários. Do mesmo modo, os salários também eram maiores nas cidades e vilas consideradas mais
importantes. Além disso, a remuneração dos professores de uma mesma categoria não era fixa, apresentando
variações e alterações em função de determinadas situações específicas. A situação dos professores substitutos
se manteve instável e precária, percebendo estes os menores salários. Para Pernambuco, no início do século
XIX, Silva (2006, p. 92) apontou que os salários de professores de primeiras letras variavam entre 80$000 a
150$000, sendo este último valor relativo às principais cidades, como Recife e Olinda. Já os professores régios
das cadeiras isoladas percebiam entre 240$000 e 440$000. A remuneração dos professores de primeiras letras
era baixa se comparada ao preço de um escravo padrão (valor da “mercadoria” de maior qualidade, ou seja,
homem, entre 18 e 25 anos, saudável), que então chegava a 150$000 em Pernambuco.
  Os professores régios, pelo Alvará de 1759, possuíam foro de nobreza (fernandes, 1994).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

particulares, a partir de então licenciados e certificados pelo Estado


(mendonça, 2004):
A partir da carta de 6/11/1772, as denominações de mestre e professor fi-
caram claramente diferenciadas, aplicando-se a primeira aos mestres de
ler, escrever e contar, e, a segunda, aos professores das demais matérias
(que viriam, posteriormente, a se configurar como estudos secundários,
distintos do ensino das primeiras letras ou instrução elementar).

Ainda cabe mencionar a existência de uma enorme diferença quan-


titativa entre os professores régios, nomeados e remunerados pelos
cofres públicos, e os mestres particulares de primeiras letras. Estes
últimos se mantiveram em maior número ao longo de todo o período em
que vigorou a reforma pombalina no Império Português (1759-1821) e
também constituíram a maioria de mestres no Brasil oitocentista, du-
rante o período imperial. Portanto, ser professor no Império português,
inclusive nas terras americanas, significou a experimentação de estatu-
tos, situações e condições de trabalho extremamente variadas, vividas
por sujeitos educativos igualmente plurais. Professores régios; padres e
religiosos; preceptoras e preceptores leigos; mestras e mestres de au-
las, escolas e colégios particulares; profissionais de diversos ramos (co-
mo os ofícios manuais, as artes e as letras, o exército, a medicina, o
direito); enfim, indivíduos pertencentes a corpos e ordens profissionais
distintas podem ser encontrados, em algum momento de suas vidas,
exercendo o ofício de ensinar como meio de trabalho regular ou provi-
sório, nos vários níveis de ensino, ao longo do século XIX.
Garcia (2005), a esse respeito, destacou como as ordens religiosa,
militar, médica e jurídica procuraram intervir
na área social, como uma das principais estra-
tégias de legitimação de poder, buscando o re- Ser professor no século
XIX significou a
conhecimento dos saberes a elas relacionados, experimentação de
como verdadeiro caminho para civilização e estatutos, situações e
condições de trabalho
progresso da nação, pretendido pela política extremamente variadas,
imperial. Segundo a autora, o campo educa- vividas por sujeitos
educativos igualmente
cional foi conformado na integração dos pro- plurais.

165
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Gondra e Schueler

cessos de configuração daquelas ordens, das quais acabou incorporan-


do, de modo descontínuo, fundamentos dos diferentes campos de
conhecimento. As formas de recrutamento e a profissionalização no
interior das corporações demonstraram o quanto elas participaram no
tenso jogo de relações sociais e no interesse em conformar a sociedade
às normas monárquicas. A seu modo, encontravam-se todas elas inte-
gradas ao projeto de construção do Estado imperial:
Talvez, por esse motivo, durante muito tempo, considerou-se os profissio-
nais formados nas áreas religiosa, médica, militar, entre outras, como “na-
turalmente capacitados” para exercerem o ofício de professor nas escolas
de diferentes níveis de ensino. (...) foi possível destacar também as múlti-
plas funções dos agentes dentro de um mesmo campo. Como exemplo, um
sacerdote no exercício de suas funções deveria cuidar da saúde do corpo e
do espírito, ensinar nas escolas, atender aos necessitados de alimento
e abrigo, fazer parte da tropa nas batalhas enfrentadas pelo exército, entre
outros poderes. Ao militar e ao médico, igualmente, eram conferidas fun-
ções diversas, dependendo do momento e do lugar em que se encontravam.
Não havia, portanto, limites rígidos aos papéis que estas ordens exerceriam
na sociedade” (garcia, 2005).

No Brasil, a prática de seleção de professores para as escolas ré-


gias foram estabelecidas desde o final do século XVIII. Primitivo Moacir
(1936) assinala que tais concursos poderiam ser realizados tanto na
Corte Portuguesa quanto na Colônia, destacando o precário desenvol-
vimento dessa instituição, bem como as dificuldades em promover a
sua vulgarização. Pelo Decreto de 17 de janeiro de 1809, D. João VI
providenciou o provimento de professores para diversas aulas públicas
na colônia. De acordo com Cardoso (2003), as aulas régias permanece-
ram em funcionamento até 1822 e, o que antes pertencia aos estudos
menores como as aulas de primeiras letras e as de humanidades, após
a Independência transformam-se em aulas públicas, aparecendo sepa-

  O primeiro concurso para professores públicos realizado no Brasil aconteceu em Recife, a 20 de março de
1760, e a fim de que fossem aceitos ao exame os candidatos teriam que “apresentar documentação atestando
seus bons antecedentes, sendo submetidos a uma investigação de suas vidas e os seus costumes, não se permi-
tindo a inscrição daqueles cujas informações fossem desabonadoras de seu comportamento”. No Rio de Janeiro,
os primeiros exames para professores régios de Gramática Latina foram realizados em 7 de maio de 1760, con-
forme Garcia (2005, p. 111).

166
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

radas em dois níveis, as de instrução primária e as de instrução secun-


dária. Após 1835, essas aulas isoladas do ensino secundário tenderam a
ser reunidas em liceus, criados em Pernambuco (1826), no Rio Grande
do Norte (1835), na Paraíba e na Bahia (1836), no Rio de Janeiro (1847)
e em Santa Catarina (1857), por exemplo (vechia, 2005, p. 82).
Almeida (2003, p. 100) afirma que a maior parte dos estudos que
abordou a reforma de Pombal difundiu a idéia de que sua implementa-
ção no Brasil foi um fracasso. As razões do insucesso eram visíveis no
pequeno número de professores examinados pelo Estado, nas poucas
aulas efetivamente providas e na existência de uma significativa rede
privada de ensino (aulas, escolas, precetores, professores particula-
res), formada por religiosos e leigos em exercício no ofício docente.
Talvez por essas razões, ainda em 1821, o monarca português tenha
decretado o fim da obrigatoriedade dos exames, abolindo também a
exigência das licenças para a abertura de escolas de primeiras letras,
públicas ou particulares:
Atendendo que não é possível desde já estabelecer, como convém, escolas
em todos os lugares deste Reino por conta da Fazenda Pública, e querendo
assegurar a liberdade, que todo Cidadão tem de fazer o devido uso de seus
talentos, não seguindo daí prejuízo público, decretam: Que da data deste
em diante seja livre a qualquer Cidadão o ensino, a abertura de Escolas de
primeiras letras, em qualquer parte deste Reino, quer seja gratuitamente,
quer por ajuste dos interessados, sem dependência de exame, ou de alguma
licença. A Regência do Reino o tenha assim entendido; e o faça executar.
Paço das Cortes. (Decreto de 28 de Junho de 1821. Coleção de Leis do Bra-
sil, 1821, p. 115).

Ser professor no Império brasileiro: processos


de profissionalização docente
Garcia (2005), ao analisar as formas de recrutamento e seleção docen-
te na Corte imperial, apontou que, no final da década de 1820, a maio-
ria dos documentos relativos à instrução se relacionava com pedidos de
licença para a abertura de colégios de primeiras letras, de casas de
educação e aulas avulsas ou isoladas. Em 1829, uma relação de “Aulas,

167
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Gondra e Schueler

Collégios e Cazas de Educação” existentes na capital do Império indi-


cava a desproporção entre o pequeno número de estabelecimentos
públicos de ensino primário e secundário e a expressividade da presen-
ça dos particulares: dos 78 estabelecimentos, 35 pertenciam ao ensino
para meninos, 25 para meninas e 18 mistos. Dentre estes estabeleci-
mentos, apenas 11 eram públicos (garcia, 2005, p. 113).
Porém, com a deflagração do processo de
Independência, os rumos do ofício docente se-
A Constituição do Império,
em 1824, declarava livre guiram outras diretrizes. Contemplando gene-
qualquer gênero de
trabalho, indústria ou
ricamente o princípio da liberdade de ensino e
comércio que não se da atividade privada neste ramo, a Constitui-
opusesse “aos costumes
públicos, à segurança e ção do Império, em 1824, declarava livre qual-
à saúde dos cidadãos”. quer gênero de trabalho, indústria ou comér-
cio que não se opusesse “aos costumes públicos,
à segurança e à saúde dos cidadãos”. Contudo, ao longo do século XIX,
leis e regulamentos relativos à instrução pública e ao recrutamento
docente, em várias instâncias do ensino, buscaram impor certa regula-
ridade e controle nos mecanismos de constituição dos quadros docen-
tes, o que pode ser observado pelas regras de exame, concurso, sele-
ção e nomeação de professores públicos e pelo monopólio da concessão
de licença aos particulares. Neste conjunto de leis, destacam-se a im-
portância crescente que se atribuía à necessidade de formação escolar
específica, a definição dos objetos de interesse e saberes correspon-
dentes a cada uma das profissões e a formulação de exigências aos
candidatos que pretendessem o ingresso (como a comprovação de con-
duta moral exemplar e de capacidade técnica, por meio do exame).
A Lei de 15 de outubro de 1827 determinou que os candidatos ao
cargo de professor fossem examinados publicamente perante banca exa-
minadora, e que só fossem admitidos ao exame os cidadãos brasileiros
(natos ou naturalizados), livres ou libertos maiores de 25 anos, que esti-
vessem no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota na regularida-

  (Art. 174, § 24).

168
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

de de sua conduta. Tornou ainda o exame obri- A Lei de 15 de outubro de


gatório para aqueles professores em exercício 1827 definiu as condições
para o exercício do
que pretendessem se candidatar ao provimento magistério, como a
submissão aos exames
de cadeiras vagas.
de capacidade, a
Em relação aos saberes exigidos para o in- comprovação da idade,
da condição jurídica civil
gresso no ofício, a legislação de 1827 determi- e política, além dos
nou a realização de uma prova de leitura, na atestados de boa conduta
moral e social.
qual o candidato deveria ler um parágrafo de
um compêndio e responder, sobre ele, as ques-
tões formuladas pelo examinador a respeito da análise gramatical, sin-
taxe, regência e concordância, em um ou mais períodos. A seguir, se
procedia ao exame da escrita, com o ditado de um trecho do mesmo
compêndio, do qual o professor extrairia perguntas sobre a ortografia,
acentuação e pontuação. O exame de aritmética seria distinto para pro-
fessores e professoras. Estas deveriam cumprir somente os exames de
leitura, escrita, cálculo, doutrina cristã, trabalhos de agulha e bordado.
Os professores, por sua vez, prestariam exames sobre o conhecimento
das quatro operações, práticas de quebrados, decimais e proporções,
além de conhecimentos práticos sobre geometria. Os candidatos e as
candidatas, por fim, deveriam passar pelo exame da prática do ensino
mútuo “do qual o examinando explicará um só processo, fazendo-o exe-
cutar pelos meninos” (garcia, 2005, p. 122).
A primeira Lei Geral de Ensino previa que os professores que não
conhecessem o método de ensino mútuo deveriam fazê-lo às próprias
custas, ao informar que:
Em cada capital de província haverá uma escola de ensino mútuo; naquelas
cidades, vilas e lugares mais populosos, em que haja edifício público que se
possa aplicar a este método, a escola será de ensino mútuo, ficando o seu
professor obrigado a instruir-se na capital respectiva, dentro de certo pra-

  Quanto à regra da maioridade (25 anos), havia exceções constitucionais (art. 92, Capítulo VI, Constituição
do Império do Brasil de 1824): cidadãos maiores de 21 anos, desde que fossem casados e/ou Oficiais Militares,
Bacharéis e Clérigos das Ordens Sacras estavam aptos a ingressar nos cargos públicos. Em relação à comprova-
ção da conduta moral, os atestados e as cartas apresentadas pelos candidatos ao magistério deveriam ser obti-
dos com autoridades civis e eclesiásticas, bem como com pessoas influentes nas localidades em que residissem
ou que pretendiam lecionar.

169
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Gondra e Schueler

zo, e a custa de seu ordenado, quando não tenha necessária instrução desse
método.10

A Lei de 1827 buscou centralizar a educação pública sem, contu-


do, assegurar a uniformização da instrução nas diferentes Províncias.
Em relação à remuneração dos professores de primeiras letras, a legis-
lação pretendeu fixá-la entre 200$000 e 500$000 anuais, valores que
não foram uniformizados nas Províncias. Por exemplo, em Santa Cata-
rina, no ano de 1830, a Assembléia Provincial arbitrou para os mestres
o vencimento de 150$000 (fabiano, 2002), valor também encontrado na
mesma época em Pernambuco (silva, 2006).
A fragmentação dos cursos e as diferenças nos objetivos dos níveis
de instrução primária, secundária e superior reforçavam as hierarquias
internas da profissão docente no século XIX, as quais indicavam a exis-
tência de lugares sociais diversificados entre os profissionais do ensino.
No topo da hierarquia profissional, estava a minoria de docentes que
gozava de maior nível de remuneração e prestígio social, posto que
eles pertenciam às instituições destinadas à formação de elites inte-
lectuais e políticas, as faculdades do império e as instituições oficiais
de ensino secundário, sobretudo o Imperial Colégio Pedro II e os Liceus
e Atheneus Provinciais. No entanto, mesmo entre estes professores,
havia a diferenciação entre os proprietários das cadeiras (efetivos) e os
substitutos ou repetidores, professores contratados para reger tempo-
rariamente as aulas e que percebiam salários menores e exerciam o
ofício sob o signo da instabilidade, à espera dos exames e concursos e
da efetivação das nomeações para os cargos públicos (haidar, 1972).
Na base da profissão docente, os professores primários públicos
eram diferenciados conforme critérios variáveis, como a localização
das escolas (áreas urbanas centrais ou áreas suburbanas e rurais), a
efetividade ou a substituição no cargo, o número de matrículas, o valor
dos aluguéis das casas escolares (que, em regra, era descontado dos

10  BN — Brasil, Colleção de Leis do Império. Rio de Janeiro. 1882. Sobre o método de ensino mútuo, consultar
Bastos e Faria Filho, 1999 e Bastos, 2005.

170
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

vencimentos do professor). Sem falar ainda nas diferenças existentes


entre estatutos sociais de uma multiplicidade de profissionais que vivia
de ensinar em aulas isoladas, cursos preparatórios, escolas e colégios
primários e secundários, os quais possuíam condições de trabalho e
remuneração heterogêneas e extremamente distintas, conforme a fi-
nalidade, a localização e a clientela atendida pelos estabelecimentos
de instrução.
Segundo Limeira (2007), é possível encontrar vestígios das práti-
cas de ensino particular registradas em documentos, quase todas rea-
lizadas no espaço doméstico como, por exemplo: preceptorado (mes-
tres contratados para morar nas residências das famílias, geralmente
mais abastadas, e ministrar educação aos jovens da casa); professores
particulares (mestres que davam lições nos tempos estabelecidos, so-
bre conhecimentos específicos, como o ensino de piano, línguas etc. e
que eram pagos pela própria família); aulas domésticas (ministradas no
espaço da casa por membros da própria família, ou por religiosos, co-
mo padres e clérigos). A autora afirma que outras formas de educação
privada da sociedade oitocentista, por vezes, se aproximavam da edu-
cação doméstica, em seus métodos, práticas e espaço físico:
O mestre-escola, contratado para ministrar aulas de conhecimentos especí-
ficos de instrução primária ou secundária, recebia seus alunos em sua pró-
pria residência com horários e dias pré-estabelecidos, tendo sua remunera-
ção garantida pelos responsáveis por cada criança. Contrapondo-se a este
modelo, os colégios particulares possuíam espaços adaptados, uma singula-
ridade que o aproximava da forma escolar estatal emergente e que, em
alguns casos, servia de residência aos professores e diretores do estabeleci-
mento (limeira, 2007).

Embora submetidos a condições de diferenciação e hierarquiza-


ção, ao longo do século XIX, nas diversas Províncias do Império, foram
evidentes os esforços no sentido de promover a uniformização do tra-
balho docente, ao mesmo tempo em que se pretendia transformar a
forma escolar em modo privilegiado e obrigatório de educação, contro-

171
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Gondra e Schueler

A fragmentação dos cursos lado e fiscalizado pelo Estado.11 Dispositivos


e as diferenças nos disciplinares constituídos por um conjunto de
objetivos dos níveis de
instrução primária, regras, leis, regimentos e instruções normati-
secundária e superior
vas procuraram unificar a estrutura e o funcio-
reforçavam as hierarquias
internas da profissão namento da organização escolar no âmbito da
docente no século XIX,
as quais indicavam a Corte, incluindo as práticas de recrutamento
existência de lugares docente para os três níveis de ensino: primá-
sociais diversificados entre
aqueles que se dedicavam rio, secundário e superior. Nesse sentido, en-
ao ensino.
tre 1854 e 1856, foi elaborado o Regulamento
de 17 de fevereiro de 1854 para instrução pri-
mária e secundária da Corte e reformados os estatutos das Faculdades
de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, o Instituto Comercial, a Aca-
demia de Belas-Artes, o Conservatório de Música, além das Faculdades
de Direito nas Províncias de São Paulo e Recife. Em seu conjunto, estas
ações representaram uma das estratégias de construção do Estado im-
perial, por intermédio das medidas regulatórias da instrução em seus
três níveis de ensino.
Na maior parte do Império, em que pesem as diferenças regionais
e a diversidade de sistemas públicos provinciais constituídos, sobretu-
do, após o processo de descentralização das competências em matéria
educacional, os regulamentos e normas de instrução pública primária
e secundária procuraram estabelecer regras e princípios de seleção,
formação, recrutamento, licenciamento e controle dos professores pú-
blicos e particulares, tentando uniformizar, conformar, homogeneizar
e disciplinar os diversos modos de ser professor no século XIX.
Na capital e nas províncias do Império do Brasil, a partir de mea-
dos da década de 1830, a centralidade da docência para o Estado foi
insistentemente reiterada nos relatórios do Ministério do Império, dos
Presidentes de Província e das demais autoridades e inspetores da ins-

11  As leis provinciais, ao longo do século, instituíram a obrigatoriedade da instrução escolar primária, como,
por exemplo: Minas Gerais (1835), Ceará (1836), Rio de Janeiro (1837), Mato Grosso (1837), Piauí e Pernambuco
(1851), Pará (1851), Amazonas (1852), Corte (1854). O princípio da obrigatoriedade, pela sua ineficácia, foi
constantemente reiterado nos projetos e reformas educacionais posteriores, em todo o Império.

172
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

trução primária e secundária. Em Minas Gerais, em São Paulo, no Rio


de Janeiro, no Espírito Santo, no Amazonas, no Mato Grosso, no Rio
Grande do Norte, em Santa Catarina, no Paraná, na Corte — de norte a
sul do Brasil —, as leis provinciais de instrução pública tenderam a re-
gulamentar minuciosamente as formas de recrutamento e seleção de
professores públicos, bem como a estabelecer mecanismos de inspeção
e controle sobre os profissionais do ensino público e particular12.
De um modo geral, a leitura dos documentos oficiais nos dão a ver
um movimento de elaboração de representações sobre a missão social
da profissão, denotando estratégias de constituição de um lugar privi-
legiado para os professores na ação de civilizar o povo e construir a
nação. Em várias regiões do país, as autoridades do ensino demonstra-
vam confiança na ação docente para a difusão de determinados ideais
de moralidade, de civilidade e de pertencimento à pátria. Do centro
da Corte, os políticos conservadores, buscando impor uma direção
política para todo o Império, referendavam a nobre tarefa do mestre
na sociedade:
Cabe-lhes a delicada missão de colher a inteligência da criança, no momen-
to em que começa a desabrochar; e a de ir sucessivamente desenvolvendo
para construir o pedestal em que tem de assentar o futuro do homem, do
pai de família e do cidadão (Relatório do Ministério dos Negócios do Império,
1869, p. 87).

A idéia de missão procurava equiparar o docente ao sacerdote. A


imagem se via reforçada pela presença significativa da religião e da
moral cristã nos currículos da escola elementar e nos exames de sele-
ção e certificação do magistério. A sacralização do mestre se funda-
mentava nos modelos de comportamento dele esperados e, conseqüen-

12  A historiografia da educação, desde o final dos anos 1990, tem se dedicado a investigar o processo de cons-
tituição dos sistemas de instrução pública provinciais, notadamente quanto ao aspecto da profissionalização
docente, com esforços significativos para as províncias referidas, consultar, por exemplo: para o Rio de Janeiro,
Villela (2002), Villela e Gasparello (2006), Schueler (2002), Gondra (2004), Borges (2004), Teixeira (2004), Ueka-
ne (2005, 2006), Garcia (2005), Lemos (2006), Limeira (2007); para Minas Gerais, Rosa (2000, 2003, 2006), Nas-
cimento (2002), Veiga (2002); para Santa Catarina, Luciano (2000). Para uma visão mais abrangente, recomenda-
se a consulta aos Anais dos Congressos Brasileiros de História da Educação, disponíveis na página institucional da
Sociedade Brasileira de História da Educação: www.sbhe.Org.br

173
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Gondra e Schueler

temente, na produção de representações sobre


Associada à idéia religiosa
e missionária da docência o professor ideal, portador de atributos exem-
como um sacerdócio,
no século XIX, uma vasta plares, tais como a calma, a modéstia, a reser-
produção no campo da va e a discrição, a capacidade para adminis-
medicina e da higiene,
contribuiu para trar, disciplinar e vigiar os alunos, servindo-lhes
a proliferação de
representações da
de paradigma, na condução de sua vida priva-
profissão docente como da e pública (vilella, 2002, p. 130-131). Para
um ofício caracterizado
Veiga, a influência local do professor poderia
pela nobreza do sacrifício.
Traço reforçado pela explicar a construção de representações sobre
presença de inúmeros
religiosos no magistério o seu papel como exemplo a ser seguido pela
e na direção das escolas
e no aparelho do Estado.
comunidade e pelas famílias. Por essas razões,
na formação do Estado imperial, tanto em ní-
vel central quanto nas províncias, é possível
observar o “investimento na produção do lugar do professor como em-
pregado público” (veiga, 2002, p. 8).
Associada à idéia religiosa e missionária da docência como um sa-
cerdócio, no século XIX, uma vasta produção, no campo da medicina e
da higiene, contribuiu para a proliferação de representações da profis-
são docente como um ofício caracterizado pela nobreza do sacrifício,
marcado pelas precárias condições materiais de existência, pelos bai-
xos salários e pela pobreza de recursos, a despeito da dedicação e da
resignação dos mestres (sá, 2000). Tais representações, recorrentes nos
discursos de médicos, legisladores e dos próprios professores primários,
sem dúvida, buscavam amenizar o desprestígio econômico e social do
ofício, ao atribuir-lhe delicadas e essenciais funções na sociedade, co-
mo uma predestinada missão. Nesse momento, os docentes eram con-
siderados agentes fundamentais para o Estado, responsáveis pela viabi-
lização de um projeto educativo amplo que visava ao desenvolvimento
da “educação física, intelectual e moral”, a promoção da regeneração
dos indivíduos e da coletividade, para uma idealizada nação.
Na Corte, vale relembrar, o Regulamento da Instrução Primária e
Secundária de 1854 foi constituído em instrumento normativo crucial
ao estabelecer um conjunto de normas e regras para o recrutamento e

174
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

o exercício docente, nas escolas públicas e particulares. Dessa forma,


a legislação contribuiu para a construção de definições e de represen-
tações acerca das funções docentes, seus lugares e papéis na socieda-
de. Os dispositivos legais incluíam regras que estabeleciam os critérios
de seleção, a delimitação de saberes pedagógicos específicos exigidos
para o ingresso na docência, as exigências de moralidade e boa condu-
ta social, a fixação de vencimentos e de um plano mínimo para conces-
são de gratificações, as punições e sanções para as infrações e faltas
dos professores, entre outras determinações.
A capacidade e a habilitação para a função do magistério eram
avaliadas tanto na forma dos exames públicos escritos e orais, quanto
na comprovação, pelo candidato, de sua experiência profissional na
prática da docência associada ao atendimento dos demais requisitos
legais exigidos, no caso de o mesmo requerer às autoridades a dispensa
dos exames públicos. A dispensa destes exames era possibilitada por
algumas leis e regulamentos e, evidentemente, visava não constranger
aqueles professores e professoras que já exerciam a docência nas esco-
las públicas ou particulares, tendo adquirido reconhecimento social na
sua atividade.13 No entanto, apesar de valorizar a experiência profis-
sional, ao prever a hipótese de dispensa dos exames públicos àqueles
que exerciam a docência, o Estado mantinha para si o poder discricio-
nário de determinar quem seria agraciado, ou não, pela dispensa, de-
cisão que dependeria ainda do parecer favorável dos Conselhos Supe-
riores de Instrução. Quando indeferidos os seus requerimentos, os
professores e as professoras deveriam ser submetidos aos exames pú-
blicos, caso quisessem a licença para ensinar. Este procedimento indica
a tendência crescente de controle e delimitação do corpo profissional
docente e a importância atribuída aos exames públicos para aferir os

13  Os exames públicos eram realizados, periodicamente, por uma banca examinadora formada por professo-
res públicos e particulares, ou outras pessoas de notório saber nas disciplinas específicas de instrução primária
e secundária. Esta banca era nomeada pelo Ministério do Império, após a indicação do Inspetor Geral e a con-
sulta prévia ao Conselho Superior de Instrução. Os candidatos aprovados nestes exames, considerados capazes
e habilitados para a atividade docente, adquiriam a licença para lecionar ou dirigir escola pública ou privada,
cuja comprovação se dava através de um documento denominado Título de Capacidade, emitido pelos órgãos
executivos, isto é, a Inspetoria Geral e o Ministério do Império.

175
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Gondra e Schueler

conhecimentos teóricos dos candidatos ao magistério nas diferentes


disciplinas escolares do ensino primário e secundário (Garcia, 2005).
Para as mulheres, havia outras exigências reveladoras das relações
sociais entre os sexos. No caso das moças solteiras, era necessária a
apresentação de expressa autorização paterna ou de outro responsável
para que se candidatassem a uma vaga como professora adjunta ou
efetiva das escolas públicas de meninas. Se fosse casada, a candidata
deveria apresentar a devida autorização marital para dirigir casa de
escola e lecionar; se fosse viúva, o atestado de óbito do marido. Quan-
do separada, segundo as normas eclesiásticas, deveria apresentar a
certidão do pároco.
Fundamental para o Estado era a averiguação da moralidade dos
candidatos ao magistério. A moralidade se constituiu em requisito pre-
sente desde a Lei de 1827 e, após 1830, era exigida em todas as leis
provinciais de instrução pública no século XIX (vilella, 2002; faria filho,
2003). Na perspectiva das autoridades administrativas do ensino no
Império: “... O professorado exige muita moralidade, a par da instru-
ção sólida, vocação e talentos especiais” (sic) (Relatório do Inspetor
Geral de Instrução, 1860, p. 25).
O tema da moralidade, em que pesem
ambigüidades e diversas representações em
No caso das moças torno do que efetivamente descreve, não sur-
solteiras, era necessária
a apresentação de giu apenas no rol das intenções normativas e
expressa autorização
paterna ou de outro
controladoras das exigências legais estabeleci-
responsável para que se das pelo Estado imperial. A moralidade dos
candidatassem a uma vaga
como professora. Se fosse professores primários também foi objeto cons-
casada, a candidata tante de controle e de intervenção de grupos
deveria apresentar a
devida autorização marital distintos no interior das comunidades locais
para dirigir casa de escola
e lecionar; se fosse viúva,
em que os mesmos lecionavam, nas freguesias
o atestado de óbito do onde residiam e atuavam como docentes. Atra-
marido. Quando separada,
segundo as normas vés de um conjunto de abaixo-assinados dirigi-
eclesiásticas, deveria dos às autoridades do ensino público da cidade
apresentar a certidão
do pároco. do Rio de Janeiro, Gondra e Lemos (2004) ob-

176
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

servaram que as práticas sociais e pedagógicas dos professores e pro-


fessoras primárias foram, não raras vezes, questionadas e/ou apoiadas
por indivíduos que integravam a comunidade, muitos entre os quais
pais ou responsáveis pelos alunos e alunas das suas escolas. Nestes
abaixo-assinados, a moralidade era considerada uma competência pri-
mordial ao ofício e abrangia variados aspectos da conduta privada e
profissional dos professores. A moralidade do professor primário, por-
tanto, relacionava-se à totalidade dos aspectos de sua personalidade,
incluindo a sua conduta moral, familiar e sexual, os seus hábitos de
vestir e de falar, os seus gestos, os seus comportamentos na vida públi-
ca, as suas formas de ensinar e de administrar a escola, os espaços e os
tempos escolares e os exemplos que sua figura espelhava — para além
da sua apresentação e da sua inserção na vida social da comunidade,
do atendimento aos requisitos exigidos para o exercício da docência e
da obediência às normas e aos regulamentos estatais.
Para além das exigências de exames e concursos, e das regras le-
gais e burocráticas estabelecidas ao longo dos Oitocentos, na Corte e
nas Províncias, Souza encontrou indícios significativos da existência de
outros critérios de recrutamento docente, decorrentes da cultura clien-
telística imperial que resultava na indefinição e na imbricação entre a
administração pública e a política, entre o público e o particular. Esta
peculiar herança burocrática, embora não constituísse traço distintivo
da sociedade brasileira, deixou marcas profundas nas percepções sobre
a escola, tendo sido recorrentes as referências às nomeações de profes-
sores por força dos favores e pedidos inerentes às práticas políticas.
Desse modo, como bem resumiu a autora, os valores ligados ao mérito
(expressos nas regras de exame, concurso e certificação docentes) e os
valores patrimoniais conviveriam por largo tempo, na medida em que o
clientelismo permanecia profundamente arraigado na cultura adminis-
trativa do ensino brasileiro (souza, 2001, p. 73-96).
De acordo com Silva (2006, p. 116), ao analisar as transformações
do ofício docente em Pernambuco na primeira metade do século XIX, a
docência era ambiguamente localizada em algum lugar entre o sacer-

177
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Gondra e Schueler

A docência era
dócio, a burocracia, a militância política e o
ambiguamente localizada comércio, o que fazia com que os professores,
em algum lugar entre o
sacerdócio, a burocracia, públicos e particulares, estivessem sempre no
a militância política e o centro de disputas em meio a uma gama de
comércio, o que fazia
com que os professores, interesses políticos locais extremamente va-
públicos e particulares,
estivessem sempre no
riados (interesses da política local, do Estado,
centro de disputas em da Igreja, dos pais e das famílias). Em contra-
meio a uma gama de
partida, os professores buscaram usar o lugar
interesses políticos locais
extremamente variados que ocupavam na sociedade como porta de
(interesses da política
acesso às redes de clientela e meio de obten-
local, do Estado, da Igreja,
dos pais e das famílias).
Em contrapartida, os
ção de benesses do Estado. O que, em certa
professores buscaram usar medida, para os historiadores da profissão do-
o lugar que ocupavam na
sociedade como porta de cente, explicaria a vitória, ainda que contes-
acesso às redes de tada e turbulenta, do processo de estatização
clientela e meio de
obtenção de benesses e a conseqüente incorporação dos mestres ao
do Estado.
corpo de funcionários públicos — portanto, sua
adesão, em maior ou menor nível, ao controle
estatal (nóvoa, 1991; vilella, 2002).
Como argumentou Silva (2006), muito embora o magistério públi-
co de primeiras letras fosse exercido por homens e mulheres das cama-
das médias e pobres, ele permitia àqueles que a ele se dedicasse o
desfrute de um cargo vitalício; passível de ser exercido em todas as
Províncias; portador de um significativo prestígio social em meio às
camadas mais modestas da sociedade; e significativamente valorizado
para o ingresso nas redes locais de clientela e proteção.
Entre os privilégios estabelecidos pela legislação aos professores
oficiais estava o de solicitar ao Estado as gratificações por tempo de
serviço, além da aposentadoria do serviço público obtida, em média,
entre 21 a 25 anos completos de carreira, limites que variaram nas leis
provinciais do Império.14

14  Uma compilação das leis e reformas de instrução provinciais, de consulta sempre indispensável, foi reali-
zada por Moacyr (1940). Para algumas províncias, há publicações organizadas pela Sociedade Brasileira de His-
tória da Educação, em parceira com o Inep, nas quais se pode consultar a legislação educacional do século XIX,

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Quanto à definição dos deveres, incluindo normas de comporta-


mento moral e profissional, os regulamentos impunham uma série de
obrigações aos mestres e mestras. Além da missão de educar e instruir
as crianças matriculadas, os professores eram responsáveis pela limpe-
za e higiene, pela organização física e administrativa das escolas, na
medida em que deveriam produzir toda a escrituração escolar, isto é,
realizavam o preenchimento dos livros de matrículas de alunos, dos
mapas trimestrais de freqüência e aproveitamento, além do mapa ge-
ral anual das atividades escolares, documentação que era remetida às
autoridades administrativas do ensino, por meio de delegados e inspe-
tores de instrução. Os professores responsabilizavam-se também pelo
envio do orçamento anual das suas escolas, base para que a adminis-
tração pudesse calcular o material escolar necessário ao número de
alunos com freqüência regular, bem como os valores dos aluguéis das
casas, valor esse que era descontado nos vencimentos dos docentes.
A carreira docente, no Brasil e em outros países ocidentais, com a
emergência dos Estados modernos e a organização dos sistemas secu-
lares de ensino no século XIX, passaria por tentativas contínuas de ho-
mogeneização das variadas formas de exercício e de reprodução da
docência anteriormente existentes. Com base nos mecanismos de for-
mação, recrutamento e controle, o Estado foi, gradativamente, pro-
movendo a estatização da docência, submetendo os professores ao seu
controle, ao mesmo tempo em que lhes conferia o estatuto sociopro-
fissional de funcionários públicos.
Embora submetidos à ingerência estatal, os professores dispu-
nham de mecanismos institucionais, por meio dos quais poderiam via-
bilizar o diálogo com a administração pública, reivindicando, inclusi-
ve, a elevação do seu estatuto profissional. Uma das reivindicações
constantes no século XIX, referidas em fontes variadas, dizia respeito
às condições materiais e salariais do trabalho docente (lemos, 2006). As
denúncias e críticas contra a precariedade dos salários, das casas de

como já assinalado. Parte deste material pode ser consultado na página do Inep: www.inep.gov.br.

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Gondra e Schueler

escolas e do material escolar foram recorrentes em todas as localida-


des do Império ao longo dos Oitocentos. Na capital do país, por exem-
plo, entre 1820 e 1840, Cardoso (2003) encontrou o registro aproxima-
do de 40 professores públicos efetivos, atuantes nas 21 escolas públicas
primárias, sem contar os chamados professores adjuntos, os quais per-
cebiam, em média, 500$000 réis anuais (descontado o aluguel das
casas escolares). As distinções então observadas no valor dos salários
não se referiam ao sexo dos professores, mas sim à localização das
escolas, sendo maior nas escolas urbanas e menor nas suburbanas. A
remuneração era inferior àquela percebida pelos bibliotecários das
instituições públicas, tanto que era alvo de reclamações constantes
dos mestres. A partir do Regulamento de 1854, os salários de professo-
res urbanos e suburbanos foram elevados para 1$000.000, sendo
800$000 de ordenado e o restante de gratificação. Porém, o aumento
não era extensivo aos professores que já se encontravam em exercício
na cidade, mas apenas aos novos funcionários, nomeados e licenciados
após a norma. É possível imaginar a confusão desencadeada pelas dis-
tinções e desigualdades salariais entre os professores, até então dife-
renciados apenas pelos critérios da localização das escolas, urbanas
ou rurais. O fato é que, nos Relatórios posteriores do Ministro do Im-
pério e da Inspetoria Geral de Instrução, há constantes referências à
baixa remuneração dos professores públicos como um dos empecilhos
ao “progresso” da instrução pública. Aos olhos das autoridades do en-
sino, poucas pessoas estariam dispostas a se dedicar exclusivamente
ao magistério, o qual seria considerado um “simples acessório, e meio
apenas de aumentar os recursos da vida” (Relatório do Ministério do Impé-
rio, 1859, p. 57).

Os relatórios e os documentos das autoridades responsáveis pela


gestão da instrução pública na Corte, e também nas demais províncias
do Império, indicam as contradições existentes entre os programas ofi-
ciais de educação e a complexidade da realidade das escolas. Apresen-
tavam, não raro, opiniões divergentes, tanto quanto ao diagnóstico da
situação escolar nas suas localidades como quanto a respeito das me-

180
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

didas que deveriam ser tomadas visando trans- Reivindicações constantes


formar e superar as dificuldades. Para alguns, no século XIX, referidas
em fontes variadas, diziam
a questão da remuneração dos professores pú- respeito às condições
materiais e salariais do
blicos era crucial, posto que com os parcos sa-
trabalho docente.
lários, poucos indivíduos, habilitados e dedica-
dos ao magistério, se candidatariam, o que
ajuda a explicar o reduzido interesse pela docência, ou talvez, como
afirmavam delegados de instrução e ministros, indica uma tendência a
se considerar o ofício um meio para complementar a renda, uma alter-
nativa no mercado de trabalho manual urbano.
Aliás, este problema afetava também a chamada classe dos pro-
fessores adjuntos, os alunos-mestres, auxiliares das escolas públicas
primárias, os quais foram utilizados como modelo de formação e modo
de reprodução do ofício docente em algumas localidades do Império,
como, por exemplo, na Corte, na Província do Rio de Janeiro e no Pa-
raná. De acordo com Vilella (2002, p. 256-277), a prática de formar
professores auxiliares não apenas alimentou as escolas públicas primá-
rias, fornecendo-lhes os mestres, como também contribuiu para refre-
ar a política de implementação das Escolas Normais ao longo do século,
na medida em que o Estado buscou outros mecanismos de formação/
reprodução do magistério. Paradoxalmente, as irrisórias gratificações
desencorajavam os aprendizes do ofício, essenciais para o governo im-
perial, pois baixavam os custos com a criação de escolas públicas nas
freguesias mais populosas, e ainda substituíam os professores efetivos
em suas ausências, muitas vezes regendo, sozinhos, as cadeiras exis-
tentes. Tanto importava a manutenção dos adjuntos, que em Aviso de
março de 1859, o Ministério do Império igualava os seus vencimentos
aos dos professores efetivos das cadeiras rurais, em uma tentativa cla-
ra de estimular o ingresso dos alunos no corpo de auxiliares, garantindo
a continuidade dos serviços, principalmente nas regiões mais afastadas
do centro da cidade.
A manutenção dos professores em efetivo exercício era um pro-
blema para as autoridades do ensino, devido à precariedade das con-

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Gondra e Schueler

dições salariais e de trabalho docente, o que parecia se agravar no


caso das escolas de meninas. Através da análise dos relatórios oficiais,
apreende-se algumas das dificuldades enfrentadas pelas professoras
mulheres, incluindo a suposta resistência em assumirem a regência de
escolas públicas em áreas rurais. Em outros casos, as autoridades ar-
gumentavam que algumas professoras efetivas, julgando-se “proprie-
tárias” das cadeiras, recusavam-se a receber em suas casas de escola
meninas para servir como auxiliares que não integrassem suas rela-
ções pessoais de parentesco ou amizade, indicando a complexidade e
as tensões entre o público e o privado.
Portanto, como salientou Nóvoa (1995), o complexo processo de
funcionarização não ocorreu sem a intervenção e a atuação dos pró-
prios professores e professoras primárias, ou dos candidatos potenciais
ao magistério, seja aderindo, resistindo, burlando ou apresentando al-
ternativas a ele. Pelo menos é o que indicam um conjunto de abaixo-
assinados analisados por Gondra e Lemos (2004) sobre críticas elabora-
das por professores e professoras públicas contra a política de
organização docente promovida pela administração do ensino na Cor-
te, ao longo de toda a segunda metade do século XIX. O que sugerem
os abaixo-assinados analisados pelos autores é que, apesar dos alega-
dos esforços do governo no sentido de promover a modernização e a
racionalização do recrutamento docente — e, evidentemente, o con-
trole sobre as atividades escolares — estas “boas intenções” esbarra-
ram em complexas e múltiplas tradições docentes, nas tensões e nas
ambigüidades inerentes às próprias leis, e, sobretudo, às práticas e
experiências escolares, que escapavam à formalização e ao controle
estatais.
Sem dúvida, a atuação dos professores imprimia novas direções e
marcava especificidades ao complexo processo de construção do siste-
ma público de ensino primário na Corte, construção que se realizava
por práticas sociais e representações constantemente apropriadas,
(re)criadas, (re)elaboradas e experimentadas pelos próprios sujeitos
da ação educativa, envolvidos nos processos socioculturais formais de

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

educação, no espaço de suas escolas. As fontes Na segunda metade do


documentais indicam que o magistério público século XIX, podemos
observar iniciativas de
resistiu, de variadas formas e sob diversos as- organização da categoria
pectos, ao processo de controle e profissiona- profissional, por meio
da constituição de
lização dirigido pelo Estado. Em contrapartida associações de
professores. A investigação
à estatização da docência, nas últimas déca- sobre o movimento
das do século XIX, percebe-se um processo de docente e as formas
associativas de professores
construção de identidades simbólicas coleti- no século XIX ainda se
vas, ainda que provisórias e contraditórias, de constitui em uma lacuna
para a História da
professores e professoras públicas primários, Educação, especialmente
no que se refere às outras
os quais vinham se fazendo como um “ator cidades e Províncias
corporativo”. Neste momento, grupos de pro- do Império.

fessores e professoras buscaram caminhos de


organização coletiva, seja através da instituição da imprensa pedagó-
gica e das associações profissionais, seja através da participação nas
Conferências Públicas, no diálogo constante e tenso com a política
educacional conduzida pelo Estado (lemos, 2006; schueler, 2002).
Um bom exemplo da intervenção política em prol dos interesses da
instrução primária e da sua categoria profissional foi a do professor da
Corte, Manoel José Pereira Frazão. Desde a década de 1860, esse pro-
fessor público da escola de meninos da freguesia do Sacramento, centro
da Corte, mantinha o hábito de acionar a pena como arma, produzindo
e divulgando demandas às autoridades responsáveis pela instrução pú-
blica. As Cartas do professor da roça, publicadas pelo órgão vinculado
ao Partido Conservador, o Constitucional, entre 12 de março e 26 de
abril de 1863, assinalam o manejo exemplar das regras da escrita e da
leitura, e testemunham o uso político que o professor fazia da arte de
narrar. Naqueles anos, Frazão ganhou destaque entre os professores
primários por sua atuação em defesa dos interesses docentes, através
do Manifesto dos Professores Públicos de 1871, dos escritos na impren-
sa pedagógica e das palestras sobre o sistema de ensino de moral e cí-
vica que usava na sua escola de meninos (lemos, 2006). Já em tempos de
República, como membro do Conselho Superior de Instrução, o profes-

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Gondra e Schueler

sor da roça, designado para realizar visitas em escolas e instituições


educacionais na Europa, cumpriria a sua tarefa, uma vez mais utilizan-
do as práticas da escrita no seu relatório sobre a viagem pedagógica.15
No Manifesto de 1871, assinado por Frazão (relator), por Antonio
Moreira e Candido Matheus de Faria Pardal, e enviado aos poderes pú-
blicos em 28 de julho de 1871, os professores felicitavam a nova época
de reformas sociais, que parecia “despontar no horizonte da pátria”,
uma era na qual identificavam a “prosperidade” e a “justiça”. Esta,
segundo eles, manifestava-se na grande novidade do momento, que
consistia no reconhecimento dos direitos de uma grande parte da “hu-
manidade oprimida”, os escravos, indicando a euforia causada pelas
discussões da chamada Lei do Ventre Livre, correntes na Câmara, no
Senado e na imprensa, desde abril de 1871. As referências aos escravos
e aos projetos de abolição do ventre das mulheres cativas serviam para
a estratégia utilizada pelos professores no sentido de efetuar uma
comparação entre a escravidão e o seu próprio lugar social, isto é,
entre a condição social dos escravos e a dos professores primários,
ambos “humilhados” e “ludibriados” pelos poderes públicos. Na análi-
se que então realizavam, o governo lhes parecia um grande feitor, pois
mandava os seus inspetores para exercer sobre os professores primá-
rios uma vigília constante. Logo eles, que representavam a classe, “tal-
vez a mais importante dos funcionários públicos”.
Ao se dirigirem ao Imperador e ao Ministro do Império, em defesa
do ensino público, invocando o modelo das nações civilizadas, os pro-
fessores públicos da Corte possuíam um objetivo claro: o de afirmar a
essencialidade de sua profissão e de sua função para a reconstrução da
nação brasileira. Desse modo, tencionavam defender, para si, uma po-
sição naquela sociedade:
(…) é só ao professor que compete preparar a nação futura fazendo-a beber
um leite mais puro e mais digno das idéias liberais do século. No Brasil,

15  A respeito das viagens de professores, conferir os artigos da coletânea Viagens pedagógicas, organizada por
Mignot & Gondra (2007).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

portanto, o professor é tudo; e só por força do absurdo que nada vale pe-
rante uma sociedade constituída como nós somos!

Através deste Manifesto, três professores da Corte, apresentando-


se em nome dos colegas, demonstravam possuir opiniões próprias a
respeito da instrução pública e de sua função social. Revelavam conhe-
cer a situação do ensino em outros países e as “idéias liberais do sécu-
lo”, a despeito das repetidas depreciações do governo que os chama-
vam constantemente de “ignorantes”. Afastados desta representação,
estes três professores públicos apresentavam aos dirigentes do Estado
algumas críticas e reivindicações, notadamente de melhorias salariais
e materiais para as escolas primárias da cidade, além de sugestões as
quais apontavam para idéias e pensamentos nem sempre coincidentes
com os dos seus superiores, revelando que o embate em torno das
questões educacionais era muito mais dinâmico e contraditório do que
se poderia prever (martinez, 1997).
O processo de profissionalização da docência pública, em fins do
século XIX, apresentava a dupla face da moeda, que o constituía — a
funcionarização/estatização e a construção de identidades coletivas
do magistério como uma categoria profissional. Como demonstrou o
estudo realizado por Lemos (2006), na Corte, sobretudo a partir das
décadas de 1860 e 1870, houve uma multiplicação de iniciativas de
organização da categoria profissional, por meio da constituição de
associações de professores, algumas de caráter mais corporativo/as-
sociativo, outras de perfil formativo/científico, embora muitas vezes
tais características pudessem ser encontradas juntas numa mesma or-
ganização16.
Estas iniciativas indicam as tentativas de professores de forjar
certa unidade e coesão entre os docentes de instrução primária, a des-
peito das identidades e das experiências individuais, diversas; de sua

16  O autor encontrou indícios da organização de algumas associações docentes na Corte que procuravam repre-
sentar a classe, a saber: Caixa Beneficente da Corporação Docente do Rio de Janeiro (1875); Associação dos Pro-
fessores Públicos da Corte (1877); Instituto Pedagógico (1877); Sociedade Ateneu Pedagógico (1877); Grêmio dos
Professores Públicos Primários da Corte (1882); Comissão dos Professores Públicos de Instrução Primária do Muni-
cípio da Corte (1888). Cf. lemos, 2006, capítulo 5.

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Gondra e Schueler

composição heterogênea e das diferenças socioculturais de seus ele-


mentos; das divergências a respeito dos significados possíveis de edu-
cação; e das distintas representações, apropriações e práticas sobre os
sentidos e funções atribuídas ao ser professor e professora; do fazer-se
de uma profissão; do exercício de um ofício (nóvoa, 1995).
Cabe salientar, finalmente, que a investigação sobre o movimento
docente e as formas associativas de professores no século XIX ainda se
constituem em uma lacuna para a História da Educação, especialmente
no que se refere às outras cidades e Províncias do Império.

Modos de tornar-se professor: entre modelos de formação

A questão da qualificação
No decorrer do século XIX, intensificou-se a
docente no século XIX foibusca de maior definição na política de sele-
palco dos mais intensos
ção e recrutamento de professores, o que se
debates e conflitos, já que
diferentes modelos de
expressava nas reformas curriculares e nas dis-
formação de professores
estavam em pauta. cussões pedagógicas gerais sobre modelos dis-
tintos de formação docente. O tema da forma-
ção prévia dos professores foi recorrente nas discussões da época,
como se pode perceber nas diversas tentativas de introdução de um
modelo escolarizado de preparação para o magistério, por meio das
Escolas Normais.
A defesa das Escolas Normais pode ser observada nos Relatórios dos
Presidentes de Província e nos Relatórios do Ministério do Império:
A criação de uma escola normal para a habilitação do pessoal que se desti-
nar ao magistério é, a meu ver, a necessidade mais urgente do ensino pri-
mário. Na corte e nas províncias torna-se de dia em dia mais sensível a falta
de pessoas idôneas para o desempenho destas graves funções. Um estabe-
lecimento desta natureza que aqui se criasse em escala conveniente, pro-
duziria os melhores resultados e concorreria para a regeneração do magis-
tério, do qual depende essencialmente o progresso da instrução pública
(Relatório do Ministério do Império, 1861).

Na primeira metade do século XIX, a importância de se estabele-


cer uma Escola Normal justificava-se pela necessidade de habilitar os

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

professores em um método de ensino que fosse capaz de levar a instru-


ção à maioria da população de modo rápido, eficaz e com baixo custo
para as Províncias. De acordo com estudo realizado por Uekane (2005),
após o Ato Adicional de 1834, cada Província criou seus regulamentos
legais e mecanismos de recrutamento, seleção e formação de profes-
sores, definindo, igualmente, a maneira como as escolas de instrução
pública seriam organizadas.
Uma das primeiras iniciativas de criação de escolas de formação
de professores foi representada pela Escola Normal da Província do Rio
de Janeiro, criada em 1835, na cidade de Niterói. Segundo Villela
(2002), por sua posição geográfica privilegiada, devido à proximidade
com a Corte, a escola exerceu, por muitas décadas, uma função de
paradigma na formação de professores primários, em oposição às for-
mas tradicionais de aprendizagem do ofício pela prática e da admissão
de mestres leigos ao magistério público.
No entanto, da mesma forma que nas demais províncias do Impé-
rio, a escola normal de Niterói teve um funcionamento instável e inter-
mitente, sofrendo críticas quanto a sua organização, métodos e resul-
tados, insuficiência de recursos e falta de investimento público.
Segundo dados do relatório do Ministro do Império, após três anos de
funcionamento a escola teria formado 10 alunos, e era freqüentada por
17, o que caracteriza um baixo número frente às necessidades da ins-
trução. Este quadro pouco se alterou e a escola foi extinta em 1851,
sendo reaberta em 1862. A partir dos anos de 1870, a Escola Normal de
Niterói funcionou regularmente, passando por grandes inovações peda-
gógicas e curriculares, promovidas pelo diretor José Carlos de Alamba-
ry Luz (villela, 2002).
Na Província de Minas Gerais, após o Ato Adicional de 1834, tam-
bém foi proposta a criação de uma escola normal na capital. Entretan-
to, a Escola Normal de Ouro Preto só foi estabelecida em 1840. As pri-
meiras tentativas de organização dessa escola foram interrompidas em
1842, e retomadas em 1846. Mas, em 1852, a Escola Normal de Ouro
Preto foi novamente fechada, sendo reaberta de forma definitiva em

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Gondra e Schueler

1871 (rosa, 2000). Cabe notar que, na Província mineira, na segunda


metade do século XIX, outras escolas de formação de professores fo-
ram criadas nas cidades de Campanha, Diamantina, Montes-Claros e
Paracatu, o que se constituiu em mais um atestado dos esforços de
normalização dos professores via formação prévia que se procurou de-
senvolver em vários pólos urbanos.
Uma das escolas de formação docente que, ao longo do século,
viveu uma história institucional mais estável parece ter sido a da Pro-
víncia da Bahia. Criada em 1836, a Escola Normal funcionou regular-
mente até a década de 1860, formando professores primários de am-
bos os sexos, em regime de internato. Em 1868, houve uma reforma
que instituiu o regime de externato para o sexo masculino, mantendo
o regime de internato para a formação das professoras. Segundo Ueka-
ne (2005), o modelo escolarizado permaneceu como mecanismo para
formação dos professores primários na Província da Bahia até o final
do século XIX.
Entretanto, a relativa estabilidade encontrada na Escola Normal
da Província da Bahia não pode ser estendida às demais Províncias,
como podemos perceber por meio do quadro seguinte, organizado por
Uekane (2005):

Quadro 1. Síntese da criação e desenvolvimento das Escolas Normais no


Brasil — Império

Funcionamento
Províncias Criação oficial Interrupções
efetivo

Amazonas 1882

1839 a 1872 1872 a 1873


Pará 1839
1874 a 1882

Maranhão

Piauí 1871 1871 a 1882

Ceará 1881

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Funcionamento
Províncias Criação oficial Interrupções
efetivo

Rio Grande do
1873 1873 a 1881 1882
Norte

Paraíba 1864 1864 a 1881 1882

Pernambuco 1864 1865 a 1882

Sergipe 1870 1874 a 1882 1870 a 1873

Alagoas 1864 1868 a 1880

Bahia 1836 1836 a 1882

Espírito Santo 1873 1873 a 1882

1840 a 1841 1842 a 1845


Minas Gerais 1835 1846 a 1851 1852 a 1870
1871 a 1882

1835 1835 a 1851 1851 a 1861


Rio de Janeiro
1862 a 1882

1846 a 1878 1879 a 1880


São Paulo 1846
1881 a 1882

Paraná 1870 1871 a 1881 1882

Santa Catarina 1843 1882 1843 a 1881

São Pedro do Rio


1869 1869 a 1882
Grande do Sul

Goiás 1881

Mato Grosso 1873 1874 a 1882

Como podemos observar, as tentativas de se regulamentar a pro-


fissão docente e a criação de mecanismos institucionais para a forma-
ção de professores ocorreram em várias Províncias e, em quase todas,
as iniciativas estiveram sujeitas à instabilidade das reformas e das po-
líticas educacionais e às incertezas que caracterizaram a história das
Escolas Normais em todo o período. Nesse processo, a docência passa-
ria a ser, se não a única, a principal atividade desses professores que,

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em muitos casos, desenvolviam atividades complementares, devido


aos seus baixos salários.
Todavia, apesar da instabilidade institucional vivida pelas Escolas
Normais no Império brasileiro, o século XIX foi marcado por profundas
transformações no estatuto da profissão docente, decorrente da cres-
cente afirmação da forma escolar moderna, que passou a disputar a
legitimidade de educar com mecanismos tradicionais de formação e
recrutamento docentes. Um desses mecanismos era a aprendizagem
do ofício docente pela prática, por meio da qual alunos auxiliares e
monitores, também chamados de professores adjuntos, se preparavam
para iniciar o exercício da docência no interior das próprias escolas e
dos processos de ensino. Os aprendizes, alunos e alunas das escolas
primárias, na maioria das vezes, eram admitidos como substitutos e,
na medida em que auxiliavam os professores efetivos, adquiriam os
saberes, as técnicas, as regras e os segredos das práticas de ensino,
apreendendo, por impregnação cultural, pela experiência, as regras
do ofício.
Na Corte, capital do Império do Brasil, o modelo de formação ar-
tesanal permaneceu durante grande parte do século XIX, tendo sido
oficializado pelo Estado por meio da chamada Reforma Couto Ferraz.
Segundo o artigo 35 desta reforma, os professores adjuntos deveriam
ser recrutados entre os alunos das escolas públicas primárias da Corte,
meninos ou meninas com 12 anos de idade completos, que se encontra-
vam em processo de formação na instrução primária, que possuíam
bom rendimento escolar e correspondiam às normas de comportamen-
to exigidas para ser professor. Nas palavras de Uekane (2005):
A maneira como este modelo de formação se constituiu demonstra que aos
professores primários bastaria conhecer as noções de primeiras letras, acres-
cido de um certo domínio do método utilizado nas escolas sem, no entanto,
abandonar a questão da moralidade, vista como um requisito “essencial”
para que os candidatos fossem considerados qualificados para o exercício do
magistério. Este modelo de formação, ao exigir dos seus alunos-mestres o
domínio de poucos saberes, permaneceu como norma na Corte durante par-
te deste século, oficialmente de 1854 a 1879 (uekane, 2005, p. 33).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Após a nomeação, os adjuntos deveriam Os professores adjuntos


ficar ligados às escolas, pelo tempo mínimo de eram aprendizes, alunos
e alunas das escolas
três anos, como ajudantes do professor efeti- primárias. Na medida
em que auxiliavam os
vo, visando aperfeiçoarem-se teórica e prati-
professores efetivos,
camente nas matérias de ensino primário, adquiriam os saberes,
as técnicas, as regras e
exercendo o ofício em um processo contínuo os segredos das práticas
de aprendizagem na experiência escolar.17 Os de ensino, apreendendo,
por impregnação cultural,
vencimentos eram diferenciados de acordo pela experiência, as regras
do ofício.
com o nível ou classe dos adjuntos: no primei-
ro ano de exercício, eles percebiam, os meni-
nos e as meninas, 240$000; 300$000, no segundo ano, e 360$000 no
terceiro ano. A remoção dos adjuntos era sempre possível, conforme
as solicitações e as necessidades das escolas urbanas e suburbanas da
cidade.
Durante os três anos de exercício, os adjuntos deveriam ser sub-
metidos a exames perante uma banca examinadora presidida pelo Ins-
petor Geral, a fim de se verificar os graus de aproveitamento e apren-
dizagem dos saberes e disciplinas curriculares da escola primária. Com
resultados desfavoráveis, os adjuntos deveriam ser eliminados da clas-
se de auxiliares de ensino. O exame do terceiro e último ano de exer-
cício como adjunto seria em torno não apenas das matérias de ensino,
mas também de métodos e tecnologias pedagógicas adequadas ao en-
sino das respectivas disciplinas escolares. Aprovado nesse exame, o
adjunto ou adjunta das escolas públicas adquiria o “Título de Capaci-
dade” para o magistério, continuando adido às escolas até a abertura
de concursos para o preenchimento de vagas efetivas.
Na prática, a aprendizagem do ofício como adjunto significava o
ingresso na carreira do magistério público, na medida em que não ha-
via um limite claro de tempo para a atuação dos adjuntos nas escolas,

17  Philippe Ariès há muito havia observado que os sistemas de aprendizagem de ofícios, disseminados a partir
do período medieval, caracterizavam-se pela mistura das idades, na medida em que nesta modalidade de edu-
cação as crianças viviam no meio dos adultos, que lhes comunicavam o savoir faire e o savoir vivre (Ariès, 1981,
p. 16).

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Gondra e Schueler

pois eles seriam aproveitados como regentes das escolas vagas aos 18
anos de idade, momento no qual seus vencimentos passariam de
360$000 mil réis a 600$000 ou 800$000, conforme regessem escolas
suburbanas ou escolas urbanas, respectivamente. Além disso, os adjun-
tos das escolas públicas adquiriam o privilégio de poder requerer a li-
cença para dirigir escolas ou lecionar em colégios particulares, sem a
necessidade de comprovar a capacidade para o ofício, exigência que se
fazia aos demais professores particulares.
Como foi visto, os professores e as professoras escolhiam os assis-
tentes, a partir do exercício das atividades docentes, entre os meninos
e as meninas julgados mais aptos à aprendizagem do ofício, pelo domí-
nio que apresentavam das situações e das disciplinas elementares.
Nesse sentido, pode-se afirmar, como o fez Mariano Narodowski, que a
escola primária oitocentista “ensina por si mesma”, isto é, que era do
interior dos processos de ensino e das experiências escolares cotidia-
nas, que se realizava a formação prática e se viabilizava a reprodução
do ofício de mestre-escola (narodowski, s/d).
Um aspecto a ser destacado nesta política de formação pela prá-
tica era sua dimensão econômica. De acordo com os seus defensores,
este modelo de formação era uma opção de menor custo se comparado
ao modelo das Escolas Normais, implementado nas Províncias do Rio de
Janeiro e do Espírito Santo, sob a idealização do mesmo homem, o
saquarema Couto Ferraz. Ainda que esta opção não tenha sido aceita
com unanimidade no interior do próprio grupo que dirigia e executava
a política educacional — o que resultou numa tensão permanente entre
ambos os modelos de formação de professores no decorrer do século
XIX —, a economia do sistema de formação pela prática se expressava
na possibilidade de se atingir, ao mesmo tempo, os objetivos de esco-
larizar a população e garantir a reprodução do magistério, sem arcar
com as despesas necessárias à manutenção das escolas pedagógicas.
A regulamentação dos adjuntos implicava, por outro lado, a valo-
rização da reprodução da docência pela prática, no interior das esco-
las, através de um complexo e tradicional sistema de aprendizagem do

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ofício. Aprendizagem que, a rigor, prescindia de uma especialização


teórica formal, escolarizada, como a oferecida pelas chamadas Escolas
Normais, instituições que seriam progressivamente afirmadas como lo-
cus essencial de formação técnica e científica de professores primá-
rios, por variadas vertentes pedagógicas do século XIX.
A valorização do aprender-fazendo e da experimentação prática
na aquisição dos conhecimentos e saberes concernentes à instrução
escolar, bem antes de sua releitura nos termos da pedagogia nova, já
nos anos 1920 e 1930 do século XX, era encontrada nos textos de filó-
sofos e pensadores setecentistas, tais como Froebel, Pestalozzi e Rous-
seau, além de ser uma prática corrente na transmissão de variados
ofícios urbanos, inclusive o de mestre-escola. Refletir sobre as práticas
educacionais decorrentes dos sistemas de aprendizagem dos ofícios e
das artes liberais nos ajuda a pensar sobre a forma artesanal de repro-
dução da docência até, pelo menos, o final do século XIX, quando os
mestres das escolas primárias, de certa forma, detinham o monopólio
da transmissão das artes de ensinar, através da aprendizagem pela
prática. A aprendizagem pela prática garantiria a própria sobrevivência
do ofício pela sua capacidade de iniciar os aprendizes nos conhecimen-
tos e técnicas necessárias à formação e prática docente, mas também
pela sua atuação eficaz na socialização, na qualificação e na inserção
profissional dos novatos, futuros mestres responsáveis pelas suas pró-
prias escolas e, por sua vez, encarregados da transmissão dos “segredos
da arte” àqueles que seriam potenciais aprendizes do ofício.
Seguindo esta linha de raciocínio, a docência — e a sua reprodução
através dos sistemas de aprendizagem — deve ser compreendida, si-
multaneamente, através de suas complexas interfaces intelectual, ar-
tística e técnica, e, nestes últimos aspectos, como um ofício compará-
vel ao artesanato. A função do mestre na sua tarefa de transmitir o
ofício aos aprendizes da profissão docente não se resumia a ensinar (no
sentido etimológico, marcar com sinais, imprimir as marcas de conhe-
cimentos) as disciplinas escolares. Tal função também incluía a tarefa
de integrar os discípulos nas tradições sociais e culturais, transmitindo

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não apenas os saberes e as habilidades específicas às técnicas da escri-


ta e da leitura, mas também valores morais, normas de conduta e
comportamento corporais, regras entendidas como necessárias à inser-
ção na convivência social.
A formação de professores pela prática apoiava-se, portanto, mui-
to mais na educação dos sentidos, dos hábitos, das condutas e regras
(os “segredos”) do ofício do que, propriamente, em um suporte de
textos, livros ou manuais. Razão pela qual, aliás, a história da reprodu-
ção artesanal do ofício é tão obscura, desconhecida, silenciada. O pró-
prio conhecimento das práticas e das experiências docentes constitui,
para os historiadores, um desafio, no sentido de que é necessário um
esforço significativo de “imaginação histórica” para interpretar os
fragmentos, os sinais deixados por escassos documentos, em busca de
reconstruir possibilidades históricas, histórias verossímeis da reprodu-
ção do ofício (ginzburg, 1989).
Ao regulamentar o ingresso dos professores adjuntos às escolas
públicas, a reforma de 1854, na Corte, não instaurou simplesmente um
novo modelo de formação docente, nem somente buscou inspiração
em modelos e legislações estrangeiras, como se mantivesse o “olhar
fora do lugar”. Ao contrário, a reforma legislativa, para além de insti-
tuir uma nova política oficial de formação de professores, subtraindo
tal competência das Escolas Normais, referendava e consolidava práti-
cas tradicionais de aprendizagem e de reprodução do ofício, ao passo
que lhes conferia um caráter oficial, submetendo-as (ou tencionando
submetê-las) à racionalização e ao controle estatal.
Além das tradições educacionais dos sistemas de aprendizagem de
ofícios, do ponto de vista da política educacional, desde o final dos
anos 1820, pelo menos, a introdução do método monitorial/mútuo nas
escolas elementares já havia disseminado as primeiras experiências
oficiais com a utilização de alunos das escolas elementares como auxi-
liares dos professores. Nesta técnica, os monitores eram os responsá-
veis pela transmissão de conhecimentos escolares aos outros alunos,
ocupando a posição docente, que era regulada pelo mestre.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Assim, talvez seja possível supor que o método monitorial experi-


mentado nas escolas de primeiras letras nas décadas de 1820 e 1830
pode ter contribuído para disseminar ou, ao menos, para não afastar
práticas seculares de reprodução da docência através dos processos de
aprendizagem do ofício pela prática, nos quais se valorizava o apren-
der-fazendo, a face artesanal do mestre-escola. Para a capital do Im-
pério, bem como para a maior parte das províncias que vivenciaram a
instabilidade das escolas normais e as disputas entre modelos de for-
mação, esta hipótese não pode ser descartada, tendo em vista que,
pelo menos até meados dos anos 1870, não havia uma política oficial
estável no sentido de manter o investimento nas escolas especializadas
para a formação de professores primários — ainda que já houvesse,
desde meados do século, discursos distintos em defesa da profissiona-
lização, via escola, dos futuros docentes.
No que diz respeito à criação dos cargos de professores adjuntos
pela Reforma de 1854, consideramos fundamental o fato de se ter as-
segurado aos professores primários o exercício de um monopólio sobre
os processos de reprodução da docência, na medida em que mantinha
sob a sua direção e responsabilidade a formação dos aprendizes, os
futuros mestres das escolas. Com isso, importava não apenas garantir
aos seus filhos e parentes o acesso aos empregos oficiais, mas, sobre-
tudo, conservar, no âmbito restrito de seu grupo profissional, o mono-
pólio sobre os “segredos do ofício”, sobre os saberes, as técnicas e as
artes de ensinar, através das práticas tradicionais de aprendizagem e
transmissão. A permanência desta “traditio” na reprodução da docên-
cia pode oferecer uma explicação sobre o porquê do funcionamento do
sistema de formação de professores pela prática, com relativo sucesso,
apesar das críticas, até os anos 1880, quando, na Corte, lentamente
começou a se afirmar uma política oficial de formação escolar e peda-
gógica de professores, com a implementação da Escola Normal.
Por outro lado, apesar da permanência do peso das relações pes-
soais e da força das tradições do sistema de aprendizagem do ofício no
recrutamento docente, em todo o século XIX, é preciso não perder de

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vista que as indicações dos adjuntos pelos professores, a partir da re-


forma de 1854, não estiveram imunes às intervenções impostas pelas
novas regras jurídicas estatais. Através da regulamentação, o Estado
buscava não somente criar, mas, sobretudo, controlar, fiscalizar e diri-
gir a política de recrutamento de professores primários para as escolas
públicas e particulares. Afinal, a nomeação definitiva dos professores
adjuntos e efetivos era realizada pelo governo, cumpridos os exames,
através dos decretos e portarias emanadas dos órgãos administrativos
do ensino. Com a institucionalização da inspeção escolar buscava-se,
evidentemente, enfraquecer a autonomia e a autoridade dos mestres,
intervindo sobre variadas dimensões de sua atuação no interior da es-
cola, visando quebrar, aos poucos, o monopólio dos mais antigos no que
se refere à transmissão e à reprodução do ofício.
Isto ficou bastante claro a partir do crescimento, desde meados do
século XIX, das posições favoráveis ao modelo escolar de formação de
professores, em detrimento da formação pela prática oficializada pela
política de recrutamento dos professores adjuntos do regulamento de
1854. Para algumas lideranças políticas — como, por exemplo, para
Eusébio de Queiroz, Inspetor Geral de Instrução de 1855 a 1866, e Pau-
lino Soares de Souza, Ministro do Império de 1868 a 1870 — era preciso
que o Estado implementasse uma política formal e efetiva de controle
da formação docente (desde a preparação escolar e uma fiscalização
séria ao recrutamento oficial), transformando as práticas tradicionais
de reprodução artesanal do ofício (o “adestramento pela experiência”,
na expressão do Ministro Paulino) em uma aprendizagem ao mesmo
tempo teórica e prática, adquirida em instituições formais de educa-
ção pedagógica.
Este processo apontava para a existência de um embate entre dois
modelos de formação docente e para a progressiva constituição do
campo educacional como um campo de saberes científicos, cujo domí-
nio deveria pertencer a um corpo de especialistas, as autoridades da
ciência pedagógica, formado pelas modernas Escolas Normais. A pro-
posta de criação dessas escolas foi, como observou Gondra (2003), uma

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

reivindicação constante de Eusébio de Queiroz quando do seu exercício


no cargo de Inspetor Geral da Corte, aspecto no qual claramente diver-
gia das diretrizes da própria reforma de Couto Ferraz (1854). Ao criti-
car a prática dos adjuntos, o inspetor Eusébio de Queiroz, inicialmen-
te, buscou harmonizar este sistema com a introdução da formação via
Escolas Normais, defendendo uma espécie de “conciliação” entre dois
modelos de formação do magistério então em franca discussão.
Ainda que a idéia da criação de escolas para a formação do magis-
tério, no caso da Corte, tenha surgido no bojo mesmo das tensões na
elaboração e na implementação das políticas educacionais idealizadas
pelos reformadores de 1854, o fato é que as primeiras experiências de
formação escolar dos professores primários apenas se iniciaram, nesta
cidade, a partir de meados da década de 1870. Em 1874 surgiu a pri-
meira escola pedagógica da Corte, fundada por iniciativa particular da
Associação Promotora da Instrução, a qual era presidida pelo Conse-
lheiro da Coroa, Manoel Francisco Correia. Há indícios de que essa
iniciativa foi encampada pelo poder público, em 1880, com a criação
oficial da Escola Normal da Corte (uekane, 2005).
Heloísa Villela explicitou as razões segundo as quais foi possível a
reafirmação das Escolas Normais, na conjuntura dos anos 1860/1870.
Além das transformações no interior do campo pedagógico e na impor-
tância crescente atribuída à forma escolar de educação, os fatores que
explicam o ressurgimento da defesa das Escolas Normais na década de
1870, e a conseqüente (re)implementação da política de escolarização
docente nas províncias, foram: a efervescência política causada pelos
movimentos republicano e abolicionista; o enfraquecimento do poder
monárquico; o ideário liberal e positivista; as discussões sobre a refor-
mulação da cidadania eleitoral; o crescimento da matrícula feminina
nas escolas e da demanda das mulheres pelo ingresso no ofício docente;
e, finalmente, o crescimento significativo da rede de escolas elementa-
res e profissionais, privadas e públicas, diurnas e noturnas, escolas pro-
fissionais, tanto nas Províncias quanto na Corte imperial (villela, 2005).
Na sociedade oitocentista, ao mesmo tempo em que foi recorren-
te o discurso de valorização da formação docente pelas Escolas Nor-

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Gondra e Schueler

mais, foi necessário levar em conta os parcos recursos que as Províncias


dispunham para o desenvolvimento da instrução. Apesar do investi-
mento das Províncias, os resultados alcançados com a instrução deixa-
vam a desejar e a trajetória vivida na implantação das Escolas Normais
aponta para a fragilidade do processo de qualificação docente, bem
como para a dificuldade do estabelecimento de um sistema de ensino
fundado em preceitos metodológicos que uniformizasse as práticas do-
centes (gouvêa, 2001). Com todas estas dificuldades, no final do Impé-
rio, essas escolas permaneceram nos relatórios oficiais como uma ne-
cessidade e como solução para os problemas da instrução pública
(uekane, 2005).
A questão da qualificação docente foi palco de intensos debates e
conflitos, já que diferentes modelos de formação de professores esta-
vam em pauta. Os discursos da época tentavam imputar um caráter
“científico” à formação via escolas normais, atribuindo à formação do
mestre-escola o signo do atraso, já que ela se dava por meio da práti-
ca. Nas disputas entre os modelos de formação docente se configura-
vam os caminhos por meio dos quais o “velho” mestre-escola cedeu
espaço para um “novo” professor. Porém, não houve uma simples subs-
tituição de um modo de formação (artesanal) pelo outro (científico),
na medida em que os dois modelos coexistiram por um longo período
de tempo, disputando entre si a primazia dos processos de formação e
de conquista de autonomia para um campo em formação.
Assim, a reafirmação do modelo escolar
de formação docente nas décadas finais do sé-
Em relação à formação
de professores, podemos culo XIX não representaria nem a vitória das
observar que não houve Escolas Normais em face das práticas artesa-
uma simples substituição
de um modo de formação nais de formação do ofício, nem o fim da ad-
(artesanal) pelo outro
(científico), na medida em
missão de professores leigos e sem formação
que as duas modalidades específica para o exercício do magistério. Prá-
coexistiram por um longo
período de tempo, ticas e modelos de formação que podem ser
disputando entre si a observados ainda hoje, em várias regiões do
primazia dos processos
de formação. Brasil, e também em outros países.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Meninas e mulheres
Nas últimas décadas, as mulheres e a constituição das relações entre
os sexos têm sido objetos privilegiados da historiografia internacional
e brasileira. Neste aspecto, foi salutar a contribuição dos estudos re-
centes, que preocupados com os processos de construção de identida-
des coletivas, abriram caminhos para a investigação a respeito de uma
ampla variedade de grupos sociais até então “excluídos”, como mulhe-
res, crianças e jovens, operários, camponeses, escravos e pessoas co-
muns (perrot, 1988). Consideradas a partir da diversidade de suas expe-
riências e trajetórias e da multiplicidade de suas condições de classe,
etnia, faixas etárias, crenças religiosas, enfim, as mulheres foram al-
çadas à condição de objeto da reflexão histórica (soihet, 1997).
Pluralizando-se os objetos e os sujeitos da História, parte dos his-
toriadores proporcionou a reavaliação da produção escrita existente
sobre as mulheres, o que, felizmente, vem acarretando a necessidade
de investigar a construção social das relações de gênero, flexionando-
as no plural e conjugando-as a partir de uma perspectiva relacional. Tal
reviravolta na historiografia abandonou a idéia da suposta existência
de natureza feminina que, freqüentemente, opunha as mulheres/do-
minadas/submissas aos homens/dominadores (scott, 1991). Segundo
esta posição, as mulheres na história ora apareciam sumariamente sub-
jugadas ao poder masculino, ora como rebeldes e revolucionárias, pro-
tagonistas, uma espécie de heroína à frente de seu tempo.
Sem dúvida, o movimento feminista dos anos 1970 contribuiu pa-
ra a emergência da história das mulheres,
acompanhando as lutas e campanhas pela
Consideradas a partir
afirmação da identidade coletiva e ampliação da diversidade de suas
experiências e trajetórias
dos direitos civis, sociais e trabalhistas e a de-
e da multiplicidade de
fesa da liberdade de escolha individual das suas condições de classe,
etnia, faixas etárias,
mulheres a respeito de sua sexualidade, suas crenças religiosas, enfim,
funções na família e no exercício da materni- as mulheres foram alçadas
à condição de objeto da
dade. No entanto, se buscavam construir uma reflexão histórica.

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Gondra e Schueler

identidade feminina e assegurar importantes conquistas para as mu-


lheres, estes movimentos também sofreram críticas e questionamen-
tos sobre a viabilidade de uma visão homogênea e universal da mulher,
tendo em vista a fragmentação social, conflitos políticos e desigualda-
des de classe, etnia, religiosidade, trabalho e sexualidade. Desse mo-
do, se fez necessário considerar as diferenças, múltiplas identidades
e a pluralidade das vivências históricas das mulheres, o que pôs em
xeque não apenas a suposta natureza feminina, como também a exis-
tência de um sujeito histórico universal. Tal movimento levou à cons-
trução teórica da perspectiva de gênero para a análise das diferenças
e das relações entre os sexos, considerando-as na sua historicidade e
no processo permanente de construção e reconstrução das identida-
des sexuais (scott, 1991):
A palavra indica uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso
dos termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero se torna, inclusi-
ve, uma maneira de indicar as construções sociais — a criação inteiramente
social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. O gê-
nero sublinha também o aspecto relacional entre as mulheres e os homens,
ou seja, que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir
através de um estudo que os considere totalmente em separado. (...) Tor-
nam-se explícitas as preocupações de articular o gênero com a classe e a
raça (soihet, 1997, p. 279).

O desenvolvimento da História das mulheres e as inovações no cam-


po historiográfico brasileiro têm dado lugar à emergência de inúmeros
temas e problemas, ampliando-se a investigação sobre a inserção das
mulheres em vários espaços sociais, não apenas no âmbito doméstico,
familiar e privado (Del Priore, 1993), mas também nos espaços públicos,
nas práticas de educação formais e informais, nos movimentos de luta e
na ação social pelos direitos civis e políticos e no mundo do trabalho
(soihet, 1997, p. 285). Os estudos têm destacado a atuação significativa
das mulheres no mercado de trabalho urbano e rural, desde o período
colonial, bem como a importância de sua participação no sustento eco-
nômico e na subsistência das famílias. Não raras vezes, os domicílios e
famílias eram conduzidos somente por elas (del priore, 1993).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

No que se refere à História da Educação, o impulso inicial pode ser


atribuído a trabalhos como os de Guacira Louro (1992; 1997), que tam-
bém trabalha com a perspectiva de gênero. Segundo esta autora, o
conceito de gênero, tal qual o de classe, precisa levar em conta as
múltiplas relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres. A
sua utilização na pesquisa histórica da educação implica admitir que as
diferenças sexuais são uma construção que é simultaneamente social,
histórica e biológica. Com isto, integra o processo de formação humana
como um todo, interferindo nos processos formais de educação em sua
interação com a totalidade das contradições sociais de classe, gênero
e raça (louro, 1992, p. 53).
Na pesquisa histórica da educação, os estudos também têm apon-
tado a multiplicidade de experiências das meninas e mulheres de diver-
sos grupos étnicos e sociais em práticas e processos de educação for-
mais e informais, como, por exemplo, no caso de índios (schueler, 2000),
escravos (goés e florentino, 1999), libertos (silva, 2002) pessoas livres e
pobres (del priore, 1999), imigrantes e estrangeiros (louro, 1997; kreutz,
2005) e de setores das elites (gouvêa, 2004; mauad, 1999 e ritzkat, 2000).
Pesquisas que investigaram os processos educativos na sociedade
oitocentista brasileira observaram que nos espaços domésticos e fami-
liares, a educação e a instrução costumavam ser transmitidas pelas
mães, criadas e outras mulheres das famílias, ou, ainda, pela ação de
professores particulares e preceptoras, contratadas especialmente pe-
las camadas mais abastadas para a educação de meninos e meninas.
Para as meninas e mulheres das elites, o modelo de formação predomi-
nante consistia na aprendizagem de saberes dirigidos à administração
da vida familiar, bem como a aquisição de normas de conduta e hábitos
de civilidade e sociabilidade, cujos paradigmas eram apropriados da
cultura urbana e burguesa européia, o que resultava na valorização da
aprendizagem de línguas estrangeiras, sobretudo a francesa, além da
música, do canto e da dança de salão.
Nas redes de sociabilidade comunitária, nos diversos grupos indíge-
nas, nas famílias camponesas rurais e nas comunidades escravas, as

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Gondra e Schueler

mulheres mais velhas, geralmente, se responsabilizavam pelo cuidado e


pela educação das crianças, preparando as meninas para as funções
sociais atribuídas às mulheres nos seus contextos específicos. Nas insti-
tuições de caráter religioso, filantrópico e disciplinar, como conventos,
recolhimentos de órfãs, casas de expostos e asilos, houve distintos mo-
dos e formas de socialização, de controle e de educação das meninas.
Lugares em que mulheres, leigas e religiosas, exerceram inúmeras for-
mas de poder sobre corpos e almas femininas (algranti, 1993 e 2004).
Para as meninas das camadas populares, desde muito cedo, a
aprendizagem prática das atividades cotidianas nas tarefas domésti-
cas, na agricultura ou nos ofícios urbanos era prioritária. O trabalho
feminino (dias, 1984; engel, 1988; soihet, 1989) e a circulação das mulhe-
res nas ruas e nos espaços públicos (abreu, 1999), na maioria dos casos
em atividades do pequeno comércio (rendeiras, quitandeiras, ambu-
lantes, costureiras, floristas, doceiras), em atividades domésticas
(criadas, lavadeiras, damas de companhia, amas de leite, copeiras
etc.), no magistério (preceptoras, professoras das escolas e colégios
particulares e públicos de primeiras letras, mestras de música, de ar-
tes, de produção de flores e objetos decorativos, de línguas estrangei-
ras etc.), na imprensa e no mundo das letras (telles, 1997), além de
outras inúmeras atividades, eram uma realidade incontestável nas
principais cidades brasileiras do século XIX (louro, 1992; almeida, 1998;
chamon, 2005). Mesmo as mulheres pertencentes às elites, não raras
vezes, na ausência de pais, maridos, filhos ou outros responsáveis, as-
sumiram a administração dos negócios familiares, seja no âmbito da
produção doméstica, seja nas atividades de comércio e serviços urba-
nos (del priore, 1997).18
No século XIX, em uma sociedade marcada pela escravidão e por
profundas desigualdades étnicas, sociais e culturais, é impossível des-
considerar as diferenças que perpassavam as relações de gênero e a
diversidade de arranjos familiares, que implicaram distinções e hierar-

18  No que se refere à educação da mulher no período colonial, cf. Ribeiro (2000).

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quizações nas práticas e nas formas de educação, incluindo a formação


escolar. No Brasil oitocentista, como argumenta Gouvêa:
A diversidade étnico-social da população irá instaurar múltiplas possibilida-
des de construção da experiência feminina, não redutíveis a uma situação
de dependência e subjugação ao universo masculino, visão que perpassa os
tradicionais estudos sobre a história da família brasileira. As recentes inves-
tigações historiográficas, porém, demonstram a existência de uma plurali-
dade de arranjos familiares, possibilitadores da construção de diversas ex-
periências do feminino no Brasil ao longo dos séculos XVIII e XIX (gouvêa,
2004, p. 193).

As concepções, práticas e formas de edu- No século XIX, em uma


cação de meninas e meninos, mulheres e ho- sociedade marcada pela
escravidão e por
mens, integrantes de variados grupos sociais profundas desigualdades
étnicas, sociais e culturais,
naquela sociedade eram diversificadas, múlti- é impossível desconsiderar
as diferenças que
plas, plurais. Por isso, concordando com Lou- perpassavam as relações
ro, é imprescindível uma leitura da História da de gênero e a diversidade
de arranjos familiares,
Educação em que a pluralidade social esteja que implicaram distinções
e hierarquizações nas
contemplada, em que os sujeitos, individuais práticas e nas formas de
educação, incluindo a
ou coletivos, não sejam neutros, mas que, ao formação escolar.
contrário, se apresentem como homens e mu-
lheres, construindo-se no processo histórico, através de suas várias e
intrincadas relações de classe, gênero e raça (louro, 1992, p. 65).

Educar as meninas e formar professoras


A História da instrução pública no Brasil oitocentista foi permeada por
diversas tensões, como estamos tentando demonstrar. Uma delas era a
diferença entre os saberes escolares destinados aos meninos e às me-
ninas. A legislação educacional e as tradições da sociedade senhorial e
conservadora, com a influência marcante da Igreja Católica e da moral
religiosa, determinavam a permanência das relações sociais de gênero
e a educação diferenciada de meninos e meninas. Em regra, os regula-
mentos legais interditavam a “promiscuidade dos sexos” nas escolas
públicas primárias e nas escolas e colégios particulares.

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Durante quase todo o século XIX e nas décadas iniciais do século


XX, a maior parte das escolas e colégios brasileiros permaneceu sepa-
rada por sexo, tendo havido, porém, experiências esparsas de co-edu-
cação em escolas mistas em algumas províncias, como atestam, por
exemplo, pesquisas recentes sobre os processos de escolarização de
meninas em Minas Gerais (Gouvêa, 2004) e no Rio de Janeiro (chamon,
2005; limeira, 2007).
No que se refere à instrução elementar, as escolas ofereciam pro-
gramas diferenciados para meninos e meninas. A Lei Geral de Ensino de
15 de outubro de 1827 consagrou esta distinção ao estabelecer a exclu-
são do ensino de geometria e impor limites ao ensino de aritmética nas
aulas femininas. Para as meninas, a doutrina cristã, leitura, escrita e
cálculo elementar seriam ensinamentos suficientes, acrescidos, po-
rém, das “prendas que servem à economia doméstica” (art. 12), como
as aulas de bordados, agulhas e costura.
Manuais de civilidade e livros de educação moral e de difusão de
normas de comportamento para as meninas começaram a ser divulga-
dos entre as professoras e adotados nas esco-
No que se refere à
las públicas primárias. Produzidos com a fina-
instrução elementar, lidade de construir e afirmar um modelo ideal
as escolas ofereciam
programas diferenciados de mulher, predisposta a exercer a gestão da
para meninos e meninas. vida familiar e a função primordial de mãe de
A Lei Geral de Ensino de
15 de outubro de 1827 família e educadora dos filhos, futuros cida-
consagrou esta distinção
ao estabelecer a exclusão
dãos do Império, estas publicações, traduzidas
do ensino de geometria ou redigidas por autores e autoras nacionais,
e impor limites ao ensino
de aritmética nas aulas auxiliaram na divulgação da idéia de que as
femininas. Para as mulheres eram “educáveis” e precisavam ser
meninas, a doutrina cristã,
a leitura, a escrita e o educadas (gouvêa, 2004; veiga, 2004).
cálculo elementar seriam
ensinamentos suficientes,
Nas escolas primárias mineiras, no início
acrescidos, porém, das da década de 1840, por exemplo, o governo
“prendas que servem à
economia doméstica” provincial enviou às professoras as Cartas so-
(art. 12), como as aulas bre a Educação das Meninas por uma senhora
de bordados, agulhas e
costura. americana, obra escrita em 1824 por uma au-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

tora argentina não identificada e traduzida para o português, em 1838,


pelo professor João Cândido de Deus e Silva (faria filho et al., 2005).
À primeira vista, ao analisarmos os saberes prescritos para a for-
mação escolar das meninas, podemos salientar, como o fez grande par-
te da historiografia especializada na temática da escolarização, que a
preparação para vida doméstica era o ideal de instrução primária femi-
nina, pelo menos conforme foi estabelecido pela legislação. Estes es-
tudos afirmam que, durante todo o século XIX, tal diferenciação curri-
cular se relacionou à manutenção de um modelo dominante e
hierárquico nas relações sociais de gênero, que implicavam o domínio
patriarcal e a reserva de funções domésticas às mulheres naquela so-
ciedade. Segundo esta perspectiva, haveria um “discurso hegemônico”
segundo o qual, para o sexo feminino, era suficiente uma educação
moral sólida, visando à formação de esposas e mães, em detrimento da
instrução escolar propriamente dita, descrita como superficial e mera-
mente ilustrativa. Ao lado disto, afirma-se que
tal estudo era reservado às camadas médias e
superiores, não sendo cogitado para mulheres É preciso considerar a
hipótese de que para
das camadas populares (xavier; ribeiro; noronha, as meninas e mulheres
das camadas mais
1994). 19
desfavorecidas, a escola
Os estudos recentes têm trazido contribui- primária, ao pretender
promover a aprendizagem
ções que ajudam a rever estas afirmações, na dos trabalhos de agulha,
medida em que vêm buscando demonstrar que pode ter representado
um meio de preparo para
as experiências históricas das mulheres não po- o exercício de ofícios
remunerados, o que era
dem ser tomadas no singular. É preciso, então, fundamental para a
considerar a hipótese de que para as meninas e sobrevivência daquelas
mulheres e suas famílias.
mulheres das camadas mais desfavorecidas, a Para muitas meninas,
escola primária, ao pretender promover a a escolarização também
abriu as portas do
aprendizagem dos trabalhos de agulha, pode magistério primário.

19  De acordo com esta perspectiva, apesar de a legislação imperial prever escolas para meninas, “a população
feminina era de fato marginalizada do sistema escolar. Nas camadas populares obviamente nem se cogitava da
sua instrução, ao passo que, nas camadas médias e superiores, elas recebiam em graus variados uma educação
doméstica” (xavier, ribeiro, noronha, 1994, p. 75).

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Gondra e Schueler

ter representado um meio de preparo para o exercício de ofícios remu-


nerados, o que era fundamental para a sobrevivência daquelas mulhe-
res e suas famílias (gouvêa, 2004; mattos, 2002). Além disso, é preciso
considerar também que um dos modelos de aprendizagem do ofício
docente então vigente implicava o recrutamento de aprendizes, alunos
e alunas das próprias escolas que, na condição de monitores(as), auxi-
liares e professores(as) adjuntos(as), eram formados(as) pela prática,
por meio de processos de transmissão direta dos saberes do ofício. Nes-
se sentido, ao longo do século, grande parte das meninas e mulheres
que se fizeram professoras primárias, aderindo ao magistério em esco-
las e colégios públicos ou particulares, adquiriu os saberes da profissão
a partir da inserção nos processos de escolarização (muniz, 2003; gouvêa,
2004).
Assim, a despeito da hegemonia dos discursos que visavam cons-
truir o feminino sob o paradigma abstrato da domesticidade e da res-
trição das mulheres aos espaços privados e familiares, as representa-
ções sobre as mulheres e os modos de educá-las, bem como sobre suas
práticas sociais e funções naquela sociedade, eram múltiplas e contra-
ditórias. Louro (1997) chama atenção para, pelo menos, três maneiras
distintas de encarar a polêmica questão da educação feminina à épo-
ca, evidenciando disputas e tensões inerentes aos processos de cons-
trução das relações sociais de gênero na constituição da cultura escolar
na sociedade oitocentista.
A primeira, vinculada a uma tradição católica e jesuítica, negava às
mulheres a necessidade de instrução, advogando a importância da for-
mação moral e cristã para as futuras mães, acentuando o papel domés-
tico e privado das moças como guardiãs dos lares e das famílias. A segun-
da perspectiva, muito em voga a partir de meados do século XIX, sob a
inspiração do positivismo e do cientificismo, defendia igualmente a edu-
cação feminina para a formação das mães, porém, com base nas novas
ciências e saberes como a puericultura, a psicologia, a higiene, em de-
trimento das “ignorantes superstições” próprias da fé católica. A tercei-
ra visão, esta talvez mais acanhada, proclamava a igualdade entre os

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

sexos, inclusive reivindicando para as mulheres a participação em cursos


superiores e em profissões tradicionalmente relacionadas ao sexo mas-
culino, como o magistério, a medicina, a advocacia e a engenharia.
Os debates em torno da educação das meninas e da ampliação dos
direitos das mulheres contaram com a participação de várias professo-
ras, escritoras, jornalistas e intelectuais, mulheres que exerceram va-
riados ofícios no mundo das letras, a despeito das interdições e dos
discursos restritivos à atuação do sexo feminino na esfera pública.
Afastando-se do ideário que preconizava a obscuridade das mulheres
no século XIX, interpretado por determinado viés da historiografia co-
mo tempo de longa dominação e de absoluta submissão, os estudos de
Louro (1997), Telles (1997), Almeida (1998) Muniz (2003), Gouvêa
(2004), Chamon (2005), entre outros, permitem perceber a progressiva
inserção de mulheres no mundo letrado, nas escolas e na profissão
docente. Participando de múltiplas redes de sociabilidade intelectual,
algumas mulheres atuaram como jornalistas, escritoras e professoras,
utilizando as práticas da escrita como veículo de representações e con-
cepções distintas sobre as relações de gênero na sociedade oitocentis-
ta. Através da imprensa e da produção escrita de poesias, romances,
textos didáticos, manuais de comportamento e de civilidade, textos e
obras destinadas ao uso escolar, algumas mulheres acionaram a pena,
visando ampliar sua participação na sociedade e reivindicando direitos,
como o acesso à instrução e à educação formais (bicalho, 1989; silva,
2006; schueler, 2006).
Em 1832, a norte-rio-grandense Nísia Floresta Brasileira Augusta
(1810-1885), jornalista, escritora, professora e diretora de colégio de
meninas na Corte — o Colégio Augusto (1838-1855) — publicou Direitos
das mulheres e injustiças dos homens, texto que representa significa-
tivo ponto de inflexão nos discursos relacionados à educação feminina.
Destacando o protagonismo das próprias mulheres no processo de con-
quista de direitos, o documento criticava a educação colonial e a es-
cassez de escolas para meninas em todo o Império. Em 1853, Nísia
Floresta reiterava suas críticas e reivindicações no Opúsculo Humani-

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Gondra e Schueler

tário, clamando pela necessidade de se criarem escolas para oferecer


às meninas e senhoras uma educação similar a que era destinada ao
sexo masculino. Para tanto, a autora utilizou a estratégia de manejar
os dados estatísticos oficiais, divulgados nos Relatórios do Ministério do
Império de 1852 e no Relatório apresentado à Assembléia Geral por
Gonçalves Dias, na visita realizada às Províncias do Norte. Na sua nar-
rativa, o estado de atraso da educação das meninas no Império repre-
sentava grave entrave à civilização e à construção da nação. De acordo
com Duarte (2000), o diagnóstico então elaborado pela autora foi o
seguinte:
Para um total de 55.000 alunos das escolas públicas, apenas 8.443 eram
alunas. Em Minas Gerais, onde a instrução estava mais difundida, de 209
escolas apenas 24 destinavam-se às meninas. A Bahia contava com 184 esco-
las primárias, sendo 26 femininas; Pernambuco, 82 escolas, sendo 18 para
meninas; o Rio de Janeiro possuía 116 escolas, mas só 36 eram para o sexo
feminino e, na Corte, sede do governo imperial, havia nessa época apenas 9
escolas para meninas (duarte, 2000, p. 298).

Ainda segundo Duarte (2000), as propostas difundidas pela pro-


fessora Nísia Floresta expressavam os dilemas, contradições e lutas de
representações entre paradigmas liberais progressistas, ideais conser-
vadores e católicos e as novas idéias higienistas e positivistas do sécu-
lo. Por um lado, defendia a difusão massiva das escolas de primeiras
letras entre as meninas, exigindo fiscalização severa do governo impe-
rial sobre o ensino ministrado nestas escolas, em sua maioria abertas
por estrangeiros e professoras de baixo nível intelectual. Protestava
ainda contra a não oferta de ensino secundário público às mulheres.
Por outro lado, a autora partilhava dos preceitos tradicionais que nor-
teavam a educação das mulheres, ou seja, a formação para a gestão
da casa e da família e para o exercício das funções maternas na edu-
cação dos filhos:
A cultura geral, enfaticamente pleiteada, serviria tão-somente para melhor
preparar a mulher para assumir com responsabilidade o papel de mãe de
família, dentro de um rígido controle de sua moralidade. O “poder femini-
no” limitar-se-ia àquele obtido por meio da influência junto aos filhos. Tam-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

bém nessas postulações tão contraditórias, Nísia Floresta aproximava-se


tanto dos positivistas — que defendiam ao mesmo tempo uma ampla educa-
ção para a mulher e a limitação de sua atuação nos domínios do doméstico
— quanto dos higienistas, que só julgavam necessária a instrução feminina
para a aplicação junto aos filhos (duarte, 2000, p. 300).

Ao longo do século XIX, as propostas para formar professoras de-


sencadearam polêmicas e demonstraram a existência de posições e
discursos ambíguos e contraditórios em relação à educação feminina e
à sua atuação como docentes. Havia posições que variavam desde a
interpretação contrária à atuação de mulheres como mestras de crian-
ças, em razão de seus “cérebros frágeis” e “perigosos”, até a afirma-
ção da necessidade de se formarem mulheres para o magistério, devido
a sua natureza dócil e própria à maternidade e ao trato com as crian-
ças pequenas (lopes, 1991, p. 22).
Tais representações contraditórias, muitas das quais elaboradas
pelas próprias mulheres, como no caso das obras de Nísia Floresta, in-
tegravam os argumentos gerais sobre a educação feminina e ecoavam
os embates e percalços enfrentados pela afirmação de propostas edu-
cacionais para o sexo feminino ao longo do século. Por outro lado, é
possível pensar, refletindo com Roger Chartier (1998), mais do que ex-
pressão dos preconceitos sociais, estas representações também podem
ser interpretadas como estratégias discursivas, utilizadas pelas pró-
prias mulheres, para, por dentro mesmo da violência simbólica dos
discursos hegemônicos sobre as hierarquias e diferenças sexuais, abrir
uma frente de lutas e um caminho de atuação possível na sociedade e
no contexto em que viviam (soihet, 1999).
As representações das mulheres como responsáveis pela formação
dos homens, na qualidade de mães e educadoras, iam ao encontro das
teorias civilizatórias que pretendiam afirmar a necessidade de cons-
truir uma nação direcionada ao progresso material e cultural, um Brasil
onde o “povo” fosse elevado intelectualmente para figurar no rol das
“grandes nações cultas”. No bojo deste paradigma de formação de
mulheres para o exercício da docência, já no final do século XIX, proli-

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Gondra e Schueler

feraram debates em torno da co-educação dos sexos e da implantação


das escolas mistas no Império, propostas que em grande medida foram
inspiradas no modelo educacional dos Estados Unidos da América, país
pioneiro no desenvolvimento da experiência da co-educação.
A polêmica sobre a co-educação esquentou a sociedade imperial
com o decreto de 19 de abril de 1879, a chamada Reforma Leôncio de
Carvalho, que regulamentava a instrução primária e secundária na ca-
pital do Império e o ensino superior em todo o país. Esta reforma, à
época bastante polêmica devido ao seu caráter liberal e anticlerical,
pretendeu realizar mudanças significativas no ensino primário: intro-
duziu novas matérias como ginástica e economia doméstica, para as
meninas, e física, química, horticultura e agricultura, para os meninos.
Reflexo dos tempos de intensos debates sobre abolição da escravidão e
redefinição das relações sociais de trabalho, além de outros problemas
como a higiene dos espaços públicos e a saúde física e mental dos cor-
pos. O currículo escolar, decretado em abril de 1879, era inovador,
coerente com os novos ideais de “civilização” e “progresso”, tão pro-
pagados por frações das elites dirigentes e dos intelectuais envolvidos
com o campo educacional. Inovava também devido à introdução das
aulas mistas para meninos e meninas de até dez anos de idade, fato
que, aliado à revogação da obrigatoriedade do ensino de religião (dou-
trina cristã) nas escolas públicas, foi responsável pela grita generaliza-
da da Igreja e dos setores políticos mais conservadores, até então do-
minantes na direção da instrução pública na cidade.
As professoras primárias, e também os
professores, não assistiram passivos à formula-
A polêmica sobre a co- ção e à execução das reformas e das políticas
educação esquentou a
sociedade imperial com o educacionais, nem às inovações impostas ao
decreto de 19 de abril de
1879, a chamada Reforma
trabalho docente, representadas pelo ingresso
Leôncio de Carvalho, que dos meninos com até 10 anos de idade em suas
regulamentava a instrução
primária e secundária na escolas, já que, em regra, estavam acostuma-
capital do Império e o das a receber apenas as meninas. Alguns pro-
ensino superior em todo
o país. fessores explicitaram suas posições a respeito

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

da co-educação dos sexos, ponto que foi debatido nas Conferências


Pedagógicas da Corte nos anos de 1873 e 1883 (borges, 2005).
A título de exemplo, a professora primária de uma escola pública
de meninas da Corte, D. Thomásia Queiroz e Vasconcellos, no parecer
redigido para a Conferência de 1883, declarou que, desde 1879, expe-
rimentava a co-educação na sua escola, o que, segundo ela, havia dado
bons resultados, embora acreditasse que o povo brasileiro não estives-
se preparado para tal mudança. Segundo ela, na sociedade imperial
brasileira: “(...) a co-educação não deve ser absoluta, o povo não está
preparado porque a educação da mulher é desprezada. Essa diferença
cria entre os sexos uma profunda separação intelectual e moral, que
arrasta consigo as desordens do lar, como conseqüência inevitável a
não educação dos filhos”.20
Apesar de enfatizar as desigualdades existentes na educação dos
homens e mulheres como um empecilho à co-educação nas escolas
primárias, na opinião desta professora, a reforma de 1879, ao estabe-
lecer a abertura das escolas públicas de meninas aos meninos de até 10
anos, havia produzido algumas vantagens para o ensino. Uma das prin-
cipais vantagens era o fato de que os irmãos passaram a ir juntos à
escola, o que resultou em melhoria na freqüência, tendo em vista a
proteção que a companhia dos meninos oferecia às meninas no trajeto
escolar. Para a docente, a escola primária era “conveniente para os
dois sexos”, pois, ainda que ambos viessem a ocupar, no futuro, “posi-
ções diferentes na sociedade”, a educação elementar recebida nas
escolas não se destinava a preparar os alunos para seguir “esta ou
aquela carreira”, mas, ao contrário, visava formar as crianças com os
conhecimentos básicos necessários à vida em sociedade. Em conclusão
do seu parecer, a professora se dizia favorável à co-educação nas esco-
las primárias, na forma estabelecida pela lei, ou seja, desde que os
meninos tivessem até 10 anos de idade.

20  Conferências Pedagógicas. Trabalhos da Sétima. 18 a 20 de dezembro de 1883. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1883. p. 95.

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Gondra e Schueler

No entanto, nas Conferências Pedagógicas, a maioria de professo-


res e professoras participantes firmou posicionamento contrário à co-
educação dos sexos. Rosalina Frazão, professora pública da escola de
meninas da freguesia da Lagoa, em seu parecer sobre o tema, apontou
os motivos pelos quais era contra a mistura dos sexos nas escolas primá-
rias, conclusão que, alegava, era conseqüência de sua própria prática:
(...) nas casas acanhadas, devendo os meninos de ambos os sexos servirem-
se de uma mesma privada, é necessário fazer milagres de vigilância e de
atenção para que a co-educação não resulte grande quebra para o pudor das
meninas, que é consentimento o que, com mais zelo, deve a professora
manter nas suas jovens educandas (Conferência Pedagógica, 1883).

Para esta professora, a educação das meninas deveria primar pelo


controle da intimidade e pela manutenção do pudor, o que seria preju-
dicado com a freqüência dos meninos às escolas, pois as casas “aca-
nhadas” não estariam adequadas para atender às necessidades dife-
rentes de ambos os sexos, e estes se obrigavam a dividir a “mesma
privada”. No entanto, não apenas a preservação do pudor e do compor-
tamento sexual das meninas estava em jogo; era necessário também
guardá-las dos “perigos” representados pela presença masculina, pois:
(...) todos sabem que os nossos meninos, em sua maior parte, pela nenhuma
educação doméstica que recebem, e ainda mais, pelos estragos morais que
sofrem no abandono em que vivem fora da escola, em companhias mais
que suspeitas, já dos 8 anos em diante começam a ser perigosos (Conferên-
cia Pedagógica, 1883).

A perspectiva de Rosalina Frazão acerca dos meninos que freqüen-


tavam as escolas públicas primárias ia ao encontro daquelas representa-
ções sobre as grandes cidades do Império, especialmente a cidade do Rio
de Janeiro. Representações que contrastavam a “casa” e a “rua”, sendo
esta última identificada com o abandono, o desregramento, a imoralida-
de, a desordem e o perigo. Logo, os meninos, acostumados a circular
com maior liberdade nas ruas das cidades e nos espaços públicos, convi-
vendo com toda a sorte de pessoas — “no abandono em que vivem fora
da escola” — representavam o oposto da educação que deveria ser ofe-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

recida às meninas, na qual deveria prevalecer o recato, o pudor, a dis-


crição, a domesticidade. A própria escola, na visão de Rosalina Frazão,
era construída em contraste, e por oposição, ao mundo da rua.
Com todos estes problemas, a professora admitiu, em seu parecer,
que afastava de sua escola aqueles meninos que julgava não estarem
em “idade conveniente” para conviver com as suas alunas. Alegava,
ainda, que a melhor solução para que a co-educação dos sexos fosse
proveitosa, seria providenciar escolas mistas apenas nas localidades
em que os professores fossem casados entre si, como no seu próprio
caso, e, dessa forma, cada um dos docentes ficaria a cargo da educa-
ção das crianças de seu sexo. No fim das contas, a professora propunha
que os meninos e as meninas continuassem a freqüentar as aulas e a
ser educados em separado, ainda que reunidos no mesmo espaço esco-
lar, em uma única escola.
Tudo isto sugere que Rosalina Frazão parece não ter cumprido o
decreto de 1879.
Outro casal de professores públicos, lotados na freguesia urbana
de Santo Antonio — Gustavo José Alberto e Eliza Adelaide Sarmento
Alberto — também associou os “defeitos” da co-educação dos sexos às
origens e aos costumes populares das crianças que freqüentavam as
escolas primárias da cidade. Segundo o professor, afirmando observar
os acontecimentos na escola primária regida por sua esposa, os meni-
nos “sem educação doméstica” se dirigiam às meninas com “palavras
de mau gosto”, “diabrites aprendidas fora da escola”, e acrescentou:
(...) a maior parte dos meninos que freqüentam essas escolas, não obstante
a restrição da idade até os 10 anos, são meninos mal educados, moradores
de estalagens e assíduos freqüentadores de tavernas e das ruas, que apren-
dem os maus e indecentes costumes (Conferência Pedagógica, 1883).

O que as visões destes professores sugerem? Apesar de defende-


ram o acesso das mulheres à instrução e às escolas primárias, bem
como acentuarem a importância de sua própria missão social, e da
escola, como docentes, havia certo consenso em relação às diferentes

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funções sociais atribuídas aos sexos. Funções que exigiam comporta-


mentos, habilidades e hábitos específicos para meninos e meninas, o
que justificava, em certa medida, a naturalização das distinções na
educação e nos programas curriculares, e a separação dos sexos nos
estabelecimentos de ensino. Além disso, no Império havia o peso, bas-
tante significativo da moral religiosa e da Igreja Católica que, por mui-
to tempo ainda, combateria a co-educação, em contraposição, inclusi-
ve, à penetração da igreja e das instituições educacionais protestantes,
sobretudo, as de influência norte-americana.
No âmbito dos debates sobre a co-educação dos sexos estava em
jogo a construção de representações sobre a conveniência, ou não, da
profissionalização das mulheres, no sentido de garantir a salvaguarda
dos valores morais e a unidade do modelo moderno de família. Modelo
que, no século XIX, aliado à influência das novas ciências, como a me-
dicina, a higiene e a teoria positivista, compreendia a função materna
a partir de um triplo viés: o biológico, devido à sua própria natureza,
como educadora dos seus próprios filhos; o social, como educadora dos
filhos do povo, responsável pela disseminação da educação da infân-
cia, nas escolas e colégios; e, finalmente, o patriótico, pela associa-
ção, cada vez mais presente, entre a formação dos cidadãos e o papel
social das mulheres como figuras centrais no processo de (re)construção
da nação (muller, 2001).
No que se refere à educação dos filhos e da infância, por meio do
exercício da profissão docente, é interessante observar que, desde os
anos 1830, houve a defesa da implantação de Escolas Normais para a
formação escolar de professoras para as escolas primárias. Criadas em
várias províncias nas décadas de 1830 e 1840, como, por exemplo, no
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e São Paulo, a despeito da instabi-
lidade institucional pela qual passou a maioria destas instituições, no
final do século XIX, as Escolas Normais registraram significativa presen-
ça de mulheres, como ocorreu nas escolas da Província do Rio de Janei-
ro e de Porto Alegre. Tal fenômeno, identificado pelos historiadores da
profissão docente como processo de “feminização do magistério”, não

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ocorreu, porém, sem tensões, ambigüidades e retrocessos, como já


tivemos oportunidade de assinalar.
O processo de feminização do magistério na sociedade brasileira
oitocentista tem sido uma problemática bastante freqüentada pelos
historiadores da educação nas últimas décadas. De modo geral, estas
pesquisas têm chamado a atenção para o crescimento da atuação das
mulheres no magistério público e particular, nas várias localidades do
Império, sobretudo a partir das décadas finais do século XIX. Em Minas
Gerais, entre 1860 e 1910, houve um rápido crescimento do número de
mulheres exercendo a docência, fato que se relacionava a vários fato-
res, tais como a disseminação de discursos e políticas educacionais
voltadas para a legitimação da formação feminina para o ofício docen-
te nas escolas primárias e o aumento do número de meninas que fre-
qüentaram a escola pública (faria filho et al., 2005). O mesmo fenôme-
no foi observado em outras regiões do Império, como, por exemplo, em
São Paulo (almeida, 1998), em Santa Catarina (luciano, 2002) no Rio de
Janeiro (vilella, 2003) e na capital do país (muller, 2001).
A emergência de discursos que insistiam na defesa da existência
de uma singular missão feminina para cuidar e educar as crianças am-
pliou as possibilidades de conquista de espaços profissionais para as
mulheres (oliveira, 2003). O ofício docente, tradicionalmente exercido
por homens, membros das ordens e corporações religiosas, militares e
por intelectuais leigos, foi transformado com o ingresso das mulheres.
Já no início do século XX, a presença feminina se tornaria majoritária
nas escolas primárias e nas instituições de educação infantil, como
jardins de infância e creches instaladas em algumas capitais a partir da
década de 1870 (kulhmann junior, 1998).
O processo de feminização do magistério não pode ser compreen-
dido, porém, como uma “concessão” dos homens, que paulatinamente
teriam abandonado a carreira docente em busca de profissões bem
remuneradas e de maior prestígio social. Segundo Almeida:
A inserção profissional das mulheres no magistério não foi aceita tranqüila-
mente pelos homens que exerciam a profissão porque isso significava a per-

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da de um espaço profissional. (...) Pensar que o processo de feminização do


magistério foi resolvido pacificamente e instalou-se como uma concessão
feita às mulheres revela-se um equívoco por adotar uma visão que conside-
ra um aspecto parcial do fenômeno (almeida, 1998, p. 65).

Por outro lado, os historiadores que estudam o processo de femi-


nização consideram que o incremento do ingresso de mulheres na do-
cência não significou o abandono imediato do ensino primário pelos
homens, cuja presença permaneceu marcante ainda nas primeiras dé-
cadas do século XX. Além disso, a raridade de pesquisas que enfrentam
a temática da atuação masculina no ensino primário, e as relações de
gênero e poder que experimentaram os homens e as mulheres no pro-
cesso de transformação/“desmasculinização” do ofício, ainda dificul-
tam a compreensão e a análise do próprio fenômeno de “feminização
do magistério” (faria filho et al., 2005).21
Estudando comparativamente o fenômeno no Brasil e Portugal,
Almeida (1998) observou que o desprestígio econômico do magistério
transcende a questão meramente sexual. A baixa valorização do ofício
também pode ser explicada, entre outras coisas, pela expansão quan-
titativa do campo educacional, a partir de meados do século XIX, e
pelo fato de que, cada vez mais, a profissão passou a atender às popu-
lações de baixa renda, sendo a própria escola progressivamente desva-
lorizada na ótica da sociedade capitalista (almeida, 1998).22
Em que pesem as reservas e as polêmicas em torno dos limites da
instrução, das possibilidades de acesso das mulheres na docência e as
conseqüências de seu ingresso para o estatuto da profissão, o fato é
que aulas e escolas primárias, colégios e educandários de ensino secun-

21  Os dados apresentados pelos autores para Minas Gerais apontam para o crescimento tanto no número de
matrícula e freqüência de meninas nas escolas primárias quanto no número de mulheres exercendo a docência.
Neste caso, em 1857, havia 13,5% mulheres, percentual que se elevou para 44% em 1884. No decorrer do perío­
do, a participação masculina no magistério também se manteve elevada (faria filho et al., 2005, p. 61-62).
22  Os estudos sobre a profissão docente no século XIX brasileiro vêm redimensionando a propalada idéia de que
a carreira era valorizada economicamente, conferindo elevada remuneração e prestígio aos seus membros. No
que se refere ao exercício docente nas escolas públicas primárias, por exemplo, há indícios de que os salários,
ao longo deste período, eram baixos, sendo motivo de protestos e reivindicações constantes dos professores e
das professoras, em que pesem os discursos ideológicos que enfatizavam a centralidade da missão social, da
vocação, do status e do prestígio simbólico associados às representações sobre as funções docentes, como já
abordamos no item relativo aos professores.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

dário e Escolas Normais, no decorrer do sécu- De modo geral, as


lo, foram cada vez mais freqüentadas por mu- pesquisas relativas ao
processo de feminização
lheres. O processo de escolarização, ao integrar do magistério na
as meninas, ainda que de forma tímida, dife- sociedade brasileira
oitocentista têm chamado
renciada e hierárquica, impulsionou as deman- a atenção para o
crescimento da atuação
das de ampliação da instrução feminina e de das mulheres no
formação de professoras, fazendo com que magistério público e
particular, nas várias
muitas mulheres assumissem a profissão do- localidades do Império,
cente, tornando-se responsáveis pela educa- sobretudo a partir das
décadas finais do
ção de meninas e meninos. Exercendo a pre- século XIX.
ceptoria, administrando aulas avulsas, dirigindo
colégios e escolas particulares, as professoras vivenciaram múltiplas
práticas educativas, cujos indícios podem ser rastreados por meio da
análise de anúncios e ofertas de serviços nos principais jornais das
grandes cidades, como no Jornal do Commércio, o Diário do Rio de
Janeiro e o Almanak Laemmert, editados na Corte, por exemplo.
Como podemos perceber, a escola como dispositivo de educação e
modo de socialização das crianças angariou adeptos ao longo do século
XIX, o que se manifesta tanto no incremento das iniciativas públicas e
privadas quanto no crescimento do número de matrículas nas escolas
de meninos e, especialmente, das meninas. No entanto, a documenta-
ção da época e as representações dos contemporâneos a respeito do
estado da instrução da população brasileira, sobretudo das mulheres,
em regra, não se apresentavam tão otimistas.
Um dos mecanismos utilizados para a composição deste diagnósti-
co, utilizado por autoridades públicas, como Ministros, Presidentes de
Província, Inspetores de instrução, intelectuais e professores, era a
produção de dados estatísticos. Nesse sentido, é interessante observar
como foram representados e classificados os níveis de instrução de
homens e mulheres, pela atividade de recenseamento estatal oficial,
cujos dados correspondem às últimas décadas do século.
De acordo com os dados do primeiro recenseamento geral realiza-
do no Império (Censo de 1872), havia uma população de aproximada-

217
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

mente 10.100.000 almas no país, incluindo livres, libertos e escravos.


Deste total, estimava-se que apenas 1.564.981 indivíduos sabiam ler e
escrever, entre os quais foram registrados 1.013.555 homens e 551.426
mulheres. Ou seja, 80% dos habitantes do Império foram considerados
analfabetos, sendo 4.110.814 homens e 4.255.183 mulheres. A porcen-
tagem registrada de homens que sabiam ler e escrever remontava a
19,8%, enquanto o percentual relativo ao sexo feminino indicava que
11,5% das mulheres eram alfabetizadas na década de 1870.
Na virada do século, o censo realizado logo após o advento da Re-
pública apontou para um pequeno crescimento do número de homens
e mulheres alfabetizados. A população total de analfabetos, porém,
continuava alta, considerando-se que houve vertiginoso crescimento
demográfico, principalmente nas regiões Sudeste e Sul do país, devido
às migrações internas de escravos e libertos e do fomento oficial à imi-
gração estrangeira. Assim, em 1900, de uma população total estimada
em aproximadamente 17.318.554 habitantes, os dados censitários indi-
cavam a existência de 12.213.356 analfabetos, sendo 5.852.078 ho-
mens e 6.361.278 mulheres. Em linhas gerais, podemos observar que,
em termos percentuais, não modificou o quadro da população masculi-
na registrada como alfabetizada continuando em torno de 19,8%. En-
tretanto, em relação às mulheres, notamos relativo crescimento.
Estas estatísticas oficiais não podem ser tomadas como expressão
plena da realidade — como, aliás, nenhum documento, nenhuma fonte
histórica —, mas, são aqui lidas e interpretadas como uma das formas
de conhecimento da população e meio de exercício do poder pelo Es-
tado (senra, 2006). O que estes dados indicam é a emergência e a pro-
dução de um novo problema social no Brasil do final do século XIX: o
problema do analfabetismo e do analfabeto, desde então considerados
sérios obstáculos à concretização do ideário do progresso e da civiliza-
ção do Brasil.
Saber ler e escrever passava a significar para homens e mulheres, o
pertencimento à modernidade e ao “mundo das luzes” em contraposição
à ignorância e ao atraso colonial. Além disso, desde a reforma eleitoral

218
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

de 1881, a condição de alfabetizado foi constituída em requisito funda-


mental ao exercício da cidadania política pela população masculina livre
(as mulheres só passaram a ser consideradas capazes politicamente, no
Brasil, em 1932), verdadeira porta de entrada ao corpo de cidadãos. Na
prática, com a introdução do critério de alfabetização, a reforma eleito-
ral restabeleceu hierarquias sociais e criou novos mecanismos de distin-
ção social entre os brasileiros, na medida em que impediu o acesso da
maioria da população, incluindo os ex-escravos, de participar na vida
pública, medida que foi reafirmada pelo regime republicano.
Apesar dos diagnósticos que apontam para a permanência de alto
índice de analfabetismo entre a maioria da população brasileira e as di-
ficuldades na implementação do modelo escolar como mecanismo insti-
tucional de aprendizagem das práticas da leitura e da escrita, a pesquisa
em História da Educação tem demonstrado que, ao longo do século XIX,
o incremento da importância atribuída à educação escolar contribuiu
para a inserção das mulheres no mundo letrado e na profissão docente.
A valorização progressiva da educação feminina se expressava no cresci-
mento do número de estabelecimentos destinados à instrução primária
e secundária, sobretudo pela iniciativa particular, nas maiores cidades
do Império. Escolas e colégios, religiosos ou leigos, destinados à educa-
ção de meninas, existiram em diversas localidades do Império, como
atestam as pesquisas já realizadas, as fontes de época e as narrativas de
memorialistas e viajantes estrangeiros, que, não raras vezes, produzi-
ram relatos nos quais expuseram suas impressões sobre escolas geridas
por mulheres que dedicaram parte de suas vidas a ensinar (leite, 1997).
Apesar das lutas e desafios que seriam, e ainda são hoje, enfren-
tados pelas mulheres para garantir a efetividade de seus direitos civis,
sociais, políticos e sexuais no decorrer do “breve século XX” (hobsbawm,
1995), não podemos deixar de reconhecer a importância das experiên-
cias vividas por meninas e mulheres oitocentistas na luta pelo acesso à
instrução formal e pela inserção no ofício docente. Naquele contexto,
proclamar discursos e difundir práticas de escolarização das meninas,
visando ao apoio ao trabalho das mulheres como professoras primárias,

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aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

representavam um importante deslocamento no que se refere às visões


tradicionais e uma nova percepção sobre as relações de poder e de
gênero no tenso jogo de representações a respeito da presença das
“mulheres nas salas de aula” do século XIX.

Negros
Educação dos Negros e História da Educação

A história da educação e a história da escola não se faz sem uma problema-


tização de seus sujeitos, alunos e professores e isso implica necessariamen-
te na investigação de sua origem étnico-racial.
(Veiga, 2004a, p. 10).

Pelos idos de 1839, Cosme Bento das Chagas, quilombola, nas fazendas
da região do Itapecuru-Mirim, no Maranhão, liderou uma das principais
insurreições escravas do período regencial, em meio aos confrontos e
às guerras civis promovidas pela Balaiada. Embora não se conheça mui-
to sobre a sua vida, sabe-se que ele nasceu escravo, em Sobral, no
Ceará, no início do século. Alforriado, passou a viver no Maranhão,
onde foi preso, acusado pelo crime de homicídio, tendo fugido da ca-
deia de São Luís em 1830. Retornando a Itapecuru-Mirim, Preto Cosme,
como era então conhecido, teve papel fundamental na resistência qui-
lombola e na ação dos escravos e libertos que participaram do movi-
mento balaio (engel, 2002, p. 590).23
No entanto, a participação em conflitos sociais e a liderança exer-
cida nos movimentos quilombolas e nas insurreições escravas, por si só,
não é o que torna singular a trajetória de Preto Cosme, já que outros

23  Deflagrado no Maranhão no final de 1838, o movimento conhecido como Balaiada ganhou o nome de um de
seus líderes, Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio. Teve sua origem numa reivindicação democrática
— a descentralização das eleições de prefeitos, até então sob controle do governo conservador — encabeçada
pelos liberais de São Luís que editam o jornal de oposição Bem-te-vi. Os combates de rua se iniciaram quando
o mestiço Raimundo Gomes Vieira Jutaí invadiu a prisão de Vila Manga para libertar o irmão, aprisionado a
mando dos conservadores. Todos os prisioneiros escaparam com o apoio de Preto Cosme, negro liberto que co-
mandou um quilombo de 3 mil escravos fugitivos. O episódio generalizou o conflito, transformando-o numa
rebelião sertaneja que sacudiu o Maranhão, parte do Ceará e do Piauí entre 1838 e 1841. Sobre o tema, confe-
rir (engel, 2002, p. 590).

220
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

negros, libertos e escravos, muitos dos quais esquecidos pela História


tradicional, experimentaram e vivenciaram aqueles processos e ten-
sões sociais.
Desde o período colonial, a historiografia vem reconstituindo a
participação de escravos e de negros alforriados ou libertos na organi-
zação de quilombos, de revoltas e de comunidades de resistência es-
crava, assim como a atuação de diversos grupos sociais e étnicos (ho-
mens e mulheres livres e pobres, caboclos, índios, escravos) nas
chamadas conjurações de finais do século XVIII, nas guerras de inde-
pendência (décadas de 1817 a 1830), nas revoltas regenciais (1831-
1840) e nos conflitos sociais desencadeados pela resistência de várias
regiões à política de domínio e consolidação do poder promovido pelo
Império no Segundo Reinado (1840-1889).
O que torna a trajetória de Preto Cosme interessante é o fato de
que era um ex-escravo alfabetizado, condição rara no início do século
XIX mesmo para aqueles grupos sociais economicamente mais favoreci-
dos. Sabendo ler e escrever, proclamando-se “Tutor e Imperador da
Liberdade”, Preto Cosme abriu uma escola de primeiras letras, locali-
zada na fazenda Lagoa Amarela, para alfabetizar cerca de 3.000 negros
fugidos das fazendas ou aquilombados na região do Codó. Mais do que
a condição de alfabetizado, a breve experiência de Preto Cosme24, ao
criar uma escola para os negros insurretos que o apoiavam na revolta
balaia, nos faz refletir sobre as múltiplas formas de educação e estra-
tégias de acesso à escolarização e à aprendizagem das letras na socie-
dade oitocentista.
Considerando-se a escola criada pelo mestre Preto Cosme, é pos-
sível pensar na existência de outras iniciativas, modalidades e práticas
difusas de transmissão de saberes, ofícios e técnicas, diversos modos

24  Cosme Bento e seus seguidores (aproximadamente 2.000 escravos) foram derrotados na repressão coman-
dada por Duque de Caxias à Balaiada, em fevereiro de 1841. Com a maioria dos escravos exterminada, Preto
Cosme foi preso. Em 1842, foi executado por enforcamento, julgado como líder da insurreição escrava de Ita-
pecuru-Mirim, não tendo sido beneficiado pela anistia concedida pelo governo imperial em agosto de 1840 aos
balaios, grupos liberais que participaram da revolta e não reconheceram Preto Cosme como um dos seus inte-
grantes (engel, 2002, p. 591).

221
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Gondra e Schueler

de vulgarização da instrução, os quais podem ter aberto caminhos de


circulação de idéias, livros e letras, possibilitando, em alguma medida,
o acesso à leitura e à escrita por indivíduos pertencentes a grupos so-
ciais e étnicos variados, como no caso de crianças, homens e mulheres
negros, escravos ou libertos. Grupos que, até pouco tempo, não tinham
assento na história da educação ou eram considerados apenas sob a
perspectiva da exclusão, do silêncio, da dominação, da subalternidade
ou da anomia social.25
Das práticas pedagógicas, dos processos de aprendizagem, das re-
lações daqueles negros, escravos e libertos com a escola de Preto Cos-
me, infelizmente, nada sabemos. No entanto, o registro dessa expe­
riência nos impõe uma série de questionamentos relativos aos processos
educacionais no Brasil do século XIX, sobretudo, relacionados aos signi-
ficados sociais atribuídos à escola, à instrução e à aprendizagem formal
de técnicas de leitura e escrita para indivíduos e grupos sociais diversos.
Como Preto Cosme foi alfabetizado? Qual o significado que atribuía à
escola e ao acesso às letras para os projetos
políticos de constituição da liberdade para os
A breve experiência da
escola criada pelo mestre escravos e negros que liderava? Quais as pers-
Preto Cosme na Balaiada
nos faz pensar nas pectivas esperadas, os sonhos acalentados e
possibilidades de demandas deste grupo social? Que apropriações
existência de diferentes
iniciativas, modalidades aqueles indivíduos podem ter elaborado sobre
e práticas difusas de
as possibilidades de pertencimento ao mundo
transmissão de saberes,
de ofícios e técnicas, letrado e sobre a escola de primeiras letras?
diversos modos de
vulgarização da instrução Wissenbach (2002), ao investigar fontes
entre os grupos sociais criminais entre 1850 e 1890, verificou a exis-
e étnicos variados, como
no caso de crianças, tência de escravos alfabetizados nas cidades
homens e mulheres
brasileiras e destacou a importância da investi-
negros, escravos ou
libertos. gação sobre os usos e as práticas de leitura e

25  Segundo Fonseca, na historiografia da educação, as motivações para a pequena presença da temática sobre
a educação escolar dos negros se baseavam no argumento da ausência ou da raridade das fontes documentais e
numa crença generalizada, divulgada nos manuais, de que a escola primária oitocentista era “uma instituição de
caráter elitista e, portanto, era freqüentada por uma população freqüentemente branca” (fonseca, 2005, p. 93).

222
aeroestúdio 3a prova 19/05/2008
Educação, poder e sociedade no império brasileiro

escrita no contexto da sociedade escravista com objetivo de se pensar


os significados possíveis da educação entre as populações negras no
século XIX e no pós-Abolição (13 de maio de 1888).
Na sua pesquisa, a autora indica a incidência de significativo índi-
ce de letramento entre os escravos e libertos pertencentes ao clero
secular e às ordens religiosas (São Bento e Carmo) e também entre os
escravos e libertos que trabalhavam “ao ganho” (ou seja, em regra,
alugados ou cedidos pelos senhores para prestação de serviços varia-
dos). Nas cidades, o trabalho autônomo (realizado por escravos e tam-
bém por trabalhadores livres e libertos) impunha exigências mínimas
de habilidade como a leitura e escrita para o ingresso e sobrevivência
no mercado competitivo, no qual os indivíduos tinham que desempe-
nhar com destreza certos ofícios especializados, agenciando seus ser-
viços e administrando seus ganhos monetários. Naquele contexto, sa-
ber ler, escrever e a valorização da posse de “papel e de caneta de
pena” adquiriram simbologia e sentido quase mágicos para os escravos
e forros no processo de afirmação de sua identidade social:
Numa sociedade com baixos índices de letramento e entre frações sociais no
geral analfabetas ou semi-alfabetizadas, além de a compra de alforria ser o
grande objetivo da maioria dos escravos — a “carta” (...) transformava-se
em materialidade da liberdade desejada e obtida, constituindo-se, de fato,
no único documento capaz de distinguir os forros dos escravos (...) (wissen-
bach, 2002, p. 109).

A alfabetização, implicando a aquisição do código letrado até en-


tão restrito aos livres, adequava-se a valores e necessidades dos cati-
vos e transformava-se em elemento de distinção entre os vários grupos
sociais. Por isso, a habilidade com a leitura e escrita era exibida pelos
escravos e libertos com orgulho, do mesmo modo que ostentavam ou-
tros signos de distinção, como as suas relativas condições de autono-
mia, a posse de bens e o gozo da autonomia de ir, vir e “viver sobre si”.
Sem dúvida, saber ler e escrever podia, de fato, fazer parte do sonho
de liberdade de muitos negros, escravos ou forros, na sociedade impe-
rial escravista.

223
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Gondra e Schueler

Nas cidades, o trabalho Por isso, um dos grandes desafios atuais


autônomo (realizado por da História da Educação brasileira diz respeito
escravos e também por
trabalhadores livres e ao enfrentamento de temas e a busca de fon-
libertos) impunha
tes históricas que podem ampliar a compreen-
exigências mínimas de
habilidade como a leitura são de experiências educativas, escolares e
e escrita para o ingresso e
sobrevivência no mercado não escolares, de grupos afro-descendentes e
competitivo. A também dos indígenas. No Brasil, de acordo
alfabetização, implicando
a aquisição do código com Cruz (2005), vários problemas de pesquisa
letrado até então restrito
e questões a respeito da construção histórica
aos livres, adequava-se a
valores e necessidades dos das relações entre os negros e a escola ainda
cativos e transformava-se
em elemento de distinção aguardam a formulação de perguntas, estudos
entre os vários grupos e respostas, a exemplo dos quais:
sociais.
O estudo da conquista da alfabetização por esse grupo;
dos detalhes sobre a exclusão desses setores das instituições escolares ofi-
ciais; dos mecanismos criados para alcançar a escolarização oficial; da edu-
cação nos quilombos; da criação de escolas alternativas; da emergência de
uma classe média negra escolarizada no Brasil; ou das vivências escolares
nas primeiras escolas oficiais que aceitaram negros... (2005, p. 22).

Felizmente, estas questões têm estado mais presentes nas preo-


cupações dos pesquisadores da História educacional e vêm sendo deba-
tidas por importantes grupos de pesquisa. Desde a década de 1990,
observa-se significativo crescimento da temática da História da Educa-
ção dos negros na produção acadêmica, por meio de teses, disserta-
ções, artigos, revistas e livros, comunicações e trabalhos apresentados
nos principais congressos, seminários e encontros da área (Reuniões
Anuais da Anped: GT de História e GT Afro-brasileiros e Educação; Con-
gressos da Sociedade Brasileira de História da Educação; Congresso Lu-
so-Brasileiro de História da Educação, entre outros). Na maioria dos
estudos, emerge claramente o objetivo de investigar as formas plurais
e as relações possíveis estabelecidas entre os negros e a educação na
sociedade brasileira, em diferentes contextos históricos.26

26  Para o balanço da produção recente, consultar, por exemplo, o Dossiê Negros e a Educação, número 4 da
Revista Brasileira de História da Educação, além das coletâneas organizadas por romão (2005); oliveira, silva e
pinto (2005), müller (2006).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Em relação aos processos educacionais in- Processos de


formais e às práticas educativas difusas na so- aprendizagem ancorados
no convívio direto com
ciedade, a historiografia já indica alguns cami- os adultos, na observação
nhos para iluminar a diversidade das e na prática social,
indicavam a centralidade
experiências de educação vividas entre os gru- dos mecanismos difusos
de transmissão de saberes,
pos sociais negros, escravos e libertos em vá- tradições culturais,
rios espaços e instituições sociais, como, por brincadeiras e jogos,
técnicas, valores morais
exemplo, nas famílias; nas festas, rituais e e normas de conduta na
procissões religiosas católicas; nas irmandades educação de crianças e
jovens naquela sociedade,
de pretos e pardos; nas oficinas agrícolas e ur- não apenas para os negros,
escravos e libertos, como
banas; nas instituições asilares para órfãos; também para os grupos
nos internatos; nos arsenais de marinha e do indígenas e para a
população livre e pobre
exército; nas fazendas; nas senzalas e nas co- em geral.
munidades escravas. Trabalhos de pesquisa so-
bre a História da criança e da família, enfocando inclusive o cotidiano
de violência e dominação vivenciado pelas infâncias negras, escravas e
libertas, têm possibilitado a ampliação do conhecimento a respeito das
formas de educação e das práticas difusas de socialização e de contro-
le das crianças na sociedade (fonseca, 2002; del priore, 1999; goés e flo-
rentino, 2000; rizzini, 2002).

Em uma sociedade em que o tempo da infância era ainda impre-


ciso, fluido — e também plural e variável conforme a clivagem dos
grupos sociais e das condições de classe, etnia e gênero —, a vivência
das experiências de cuidado, brincadeiras e folguedos infantis ten-
diam a terminar cedo, sobretudo para as crianças escravas, mas tam-
bém para as livres e pobres, que ingressavam na aprendizagem dos
ofícios e na execução de tarefas variadas, em geral, por volta dos 4-5
aos 12 anos de idade, respectivamente (fonseca, 2002; del priore, 1990).
Para o ingresso no mundo do trabalho, as crianças escravas normal-
mente eram ensinadas pelos mais velhos, escravos e escravas, ou por
pessoas livres, empregados e feitores de seus senhores. Poderiam ser
também enviadas a aprender um ofício mecânico junto a um mestre,
em lojas e oficinas.

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Gondra e Schueler

Na Corte imperial, entre 1808 a 1850, Karasch (2000) encontrou


significativo número de escravos em sistemas de aprendizagem de ofí-
cios variados, o que muitas vezes incluía o ler, escrever e contar. Em
Minas Gerais, os trabalhos de Veiga (2004a e 2004b) e Fonseca (2005),
para o período de 1800 a 1835, registraram a presença de escravos
matriculados em escolas particulares pelos seus senhores, juntamente
com outros alunos classificados como livres, pretos, crioulos e pardos.
Em São Paulo, Barros (2005), Vidal e Souza (2006) também encontra-
ram indícios da presença de negros livres, libertos e alguns escravos
nas escolas públicas primárias, entre 1851 e 1888.
Como podemos perceber, a constituição da forma escolar como
modelo de educação, ao longo de todo o século XIX, conviveu com ou-
tros modos de aprender e ensinar, no bojo de múltiplos processos edu-
cacionais não escolares e de mecanismos institucionalizados, ou não,
de aprendizagem de ofícios. Processos de aprendizagem ancorados no
convívio direto com os adultos, na observação e na prática social, indi-
cavam a centralidade dos mecanismos difusos de transmissão de sabe-
res, tradições culturais, brincadeiras e jogos, técnicas, valores morais
e normas de conduta na educação de crianças e jovens naquela socie-
dade, não apenas para os negros, escravos e libertos, como também
para os grupos indígenas e para a população livre e pobre em geral27.
No que diz respeito à história dos processos formais de escolariza-
ção e da inserção das crianças negras nas escolas domésticas, públicas
ou particulares, a preocupação dos historiadores da educação, embora
já existente, é bem mais recente, como já salientamos. No entanto,
pesquisas que enfocam a constituição da cultura escolar na sociedade
brasileira oitocentista têm observado que, ao longo do século, em vá-
rias regiões do país, houve intensas discussões sobre a implantação da
educação escolar, bem como debates sobre a pertinência, ou não, de

27  De acordo com Fonseca (2002, p. 140), este processo de socialização dos indivíduos fazia parte das formas
de educação tradicional, nas quais se realizava uma “transmissão por impregnação”, com a partilha de tarefas
e responsabilidades das gerações mais novas com os adultos. Assim, era na convivência com os senhores e com
os escravos adultos que a criança escrava tomava conhecimento de sua condição.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

se estender a escolarização ao “povo miúdo”, homens e mulheres li-


vres e pobres, aos caboclos e índios da terra, e também aos negros,
escravos e libertos (lopes e faria filho e veiga, 2003; silva, 2002 e 2006;
veiga, 2004a; barros, 2005; cruz, 2005; fonseca, 2005, dentre outros).
Assim, por meio destes estudos, é possível pensar a difusão da
escolarização ou de acesso às letras por indivíduos e grupos pertencen-
tes à população negra ao longo dos oitocentos, o que nos ajuda a com-
preender melhor as condições históricas que permitiram a existência,
nos idos de 1839, daquela escola de primeiras letras, a escola do Preto
Cosme. No âmbito da radicalização das idéias de igualdade e liberda-
de, difundidas nas guerras de independência do Brasil e apropriadas,
nos processos de insurreição, pelos negros, escravos, libertos e quilom-
bolas, a escola balaia, mesmo tão efêmera, talvez tenha significado
um caminho possível de redefinição e de ampliação do acesso à cida-
dania. Ou quem sabe, a escola balaia possa ter representado, ao menos
para aqueles que a viveram, uma esperança, uma visão de liberdade.
Certamente, não tendo sido a única experiência escolar vivida
pelos negros no século XIX, a iniciativa de Preto Cosme nos indica que,
apesar da violência da escravidão, das discriminações e das interdições
legais, a escolarização de escravos e libertos esteve presente na dispu-
ta entre os vários projetos políticos que visavam construir a nação e
inventar o Brasil.

Escravo não é cidadão


No Brasil, ao longo do século XIX, a emancipação dos escravos e a in-
corporação gradual dos negros livres e libertos aos projetos de forma-
ção da nacionalidade desencadearam uma série de debates, propos-
tas, leis, conflitos, revoltas e tensões étnicas e sociais. Tais debates,
informados em grande medida pela circulação das idéias iluministas e
pelos paradigmas das revoluções liberais burguesas do século XVIII,
que ecoavam nos processos de independência das Américas, trouxe-
ram à tona o dilema entre a idéia liberal de igualdade natural entre os

227
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Gondra e Schueler

homens e a manutenção da escravidão, sob a égide de Constituições


livres. Dilema que, aliás, não foi específico ao Brasil, mas se desenro-
lou em toda a Afro-América, enquanto durou o regime da escravidão
(mattos, 2002).
Apesar dos processos diferenciados vividos nos países afro-ameri-
canos, como, por exemplo, os Estados Unidos da América, Cuba, Porto
Rico e Brasil, segundo Mattos (2000), ao longo do século XIX, delineou-
se uma tendência geral de equacionamento deste dilema, qual seja: 1)
a manutenção da escravidão com base no direito de propriedade; 2) a
proibição do tráfico africano; 3) a emancipação progressiva através de
leis que libertavam os nascituros, instituíam o pecúlio para a compra
de alforrias ou de experiências de transição regulada, com indenização
aos proprietários. Nesse processo, até a metade do século, a escravi-
dão foi abolida em grande parte da região afro-americana, com exce-
ção de países como Cuba/Porto Rico, Estados Unidos e Brasil, o que se
deve ao vigor da economia escravista nestes países.
Nos Estados Unidos da América, primeiro país americano a con-
quistar a independência política, ocorreu um processo singular de ade-
quação liberal à escravidão. Todos os líderes da Revolução Americana
eram proprietários de escravos. A Virgínia, de George Washington, era
o principal núcleo produtor de tabaco, matéria-prima de exportação
fundamental nas trocas comerciais de “carne humana” com a África. A
Declaração de Independência das Treze Colônias estabeleceu que to-
dos os homens nasciam livres e iguais, com direito à vida, à liberdade
e à busca da felicidade, mas, manteve a instituição da escravidão para
os africanos (mattos, 2000).
No caso brasileiro, de acordo com a Constituição de 1824, a opção
por uma monarquia constitucional de base liberal, teoricamente, con-
siderava todos os cidadãos livres e iguais. Mas, a escravidão, como
instituição social e jurídica, base econômica fundamental das regiões
de produção agroexportadora, sustentáculo das classes senhoriais, es-
tava disseminada na sociedade, presente em toda a sorte de serviços
urbanos e na produção de mercado interno. A historiografia especiali-

228
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

zada vem demonstrando como a propriedade de escravos era dissemi-


nada, não apenas pela sua importância econômica, mas também por
representar signos de status e distinção sociais (Silva, 2002). A proprie-
dade escrava, embora concentrada nas mãos da classe senhorial (com-
posta pelos grandes proprietários de terras, altos funcionários públi-
cos, burocratas e grandes comerciantes), encontrava-se disseminada
entre pequenos e médios camponeses, sitiantes e colonos; médios e
pequenos comerciantes; funcionários públicos; clérigos e instituições
religiosas; profissionais liberais e autônomos; entre vários grupos so-
ciais. Ao contrário do que se pensava, a propriedade escrava também
não discriminava a cor dos indivíduos: apesar da maioria de proprietá-
rios ter sido composta por homens e mulheres livres brancos, não foi
incomum a posse de escravos entre indivíduos pardos, mestiços, negros
livres e, inclusive, ex-escravos (mattos, 1998).
Desse modo, com a Independência do Brasil e a construção do Es-
tado imperial, o regime da escravidão continuou inalterado, garantido
como direito de propriedade reconhecido na Constituição outorgada
em 1824. Esse fato, por muito tempo interpretado como um dos maio-
res limites do pensamento liberal brasileiro, expressava a adequação
entre os princípios dos direitos de liberdade e de propriedade, apro-
priados e reinterpetados conforme o jogo complexo das forças e inte-
resses defendidos pelos grupos que conseguiram impor, sempre sob
forte tensões e contradições, a hegemonia na condução dos processos
de constituição dos Estados. O problema da emancipação dos escravos
e os anseios de liberdade expressos nos conflitos concretos vivenciados
por escravos e libertos que tomaram parte nas conjurações, sedições e
revoltas ocorridas em várias regiões brasileiras — e, também nas lutas
e resistências cotidianas de enfrentamento ao poder senhorial28 —, se-
riam questões latentes ao longo do século XIX.

28  Chalhoub (1988) já havia chamado a atenção para os limites das teorias de coisificação do escravo: longe
de aceitarem passivamente a escravidão, os escravos buscaram formas de luta e resistência cultural em todos
os espaços cotidianos e por meio das possibilidades encontradas dentro da sociedade escravista, e não somente
por meio das revoltas e confrontos diretos com o poder senhorial.

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Gondra e Schueler

No bojo destas tensões sociais, é que a temática da educação e da


instrução dos negros, incluindo escravos e libertos, como instrumento
de preparação da emancipação gradual, emerge como uma questão
fundamental para a construção da nação, ainda no momento das dis-
cussões para a elaboração da primeira constituição pela Assembléia
Constituinte de 1823, dissolvida pelo Imperador Pedro I. Naqueles de-
bates, uma das vozes que se levantaram para defender a instrução
para os escravos, expressando os interesses dos grupos mais modera-
dos, que advogavam a emancipação gradual, sem revoluções e trans-
formações radicais, foi a de José Bonifácio de Andrada e Silva, no seu
projeto de lei sobre a regulamentação da escravatura intitulado Repre-
sentação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do
Brasil sobre a Escravatura.
O projeto de nação de José Bonifácio tinha por fim último a inven-
ção de uma identidade para o Brasil, por meio da constituição de uma
utópica sociedade racial, social, política e culturalmente homogênea.
Por isso, seus discursos e propostas conferiam centralidade à temática
da educação e da incorporação progressiva dos negros escravos e liber-
tos, bem como dos índios, grupos étnicos por ele representados como
expressão da índole negativa do brasileiro que, “por natureza, clima e
vícios coloniais”, era “preguiçoso, indolente e ignorante”. Visões sobre
o povo brasileiro e sobre o país, que ainda hoje circulam no imaginário
social, emergem na representação do deputado como justificativa para
sustentar o projeto civilizatório que pregava o fim da escravidão, com
claros mecanismos de subordinação e controle dos negros, integração
dos índios à sociedade nacional e mestiçagem
como caminhos de construção de uma “raça
A temática da educação
e da instrução dos negros, superior”, numa sonhada e próspera civiliza-
incluindo escravos e
libertos, como
ção etnocêntrica. Para promover a civilização
instrumento de dos escravos, Bonifácio propunha o estabeleci-
preparação da
emancipação gradual, mento, pelo Estado e pelos senhores, de todas
emerge como uma questão as providências para que os escravos fossem
fundamental para a
construção da nação. “instruídos na religião e moral, no que ganha

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

muito, além da felicidade eterna, a subordinação e fidelidade devida


aos escravos” (dolnikoff, 2000, p. 37).
No entanto, os sonhos e projetos de José Bonifácio foram implo-
didos, juntamente com a Assembléia Constituinte. Contudo, as ques-
tões por ele levantadas permaneceram na pauta de discussões políti-
cas ao longo do século XIX.
O texto constitucional, outorgado pelo Imperador, em 25 de março
de 1824, sem mencionar uma única vez a palavra escravo ou escravi-
dão, definiu, para a especificidade da realidade social brasileira, am-
plamente ancorada na exploração da mão-de-obra africana, a abran-
gência e os limites da cidadania e, conseqüentemente, do direito à
instrução primária e à educação escolar. Nesse sentido, em primeiro
lugar, os escravos, como não-cidadãos, eram excluídos das políticas de
instrução oficial.
Como vimos, a instrução primária surgiu como um dos direitos
fundamentais de garantia individual dos cidadãos brasileiros, estabele-
cido pela Constituição de 1824. No artigo 179, parágrafo 32, prescre-
via-se expressamente: “a instrução primária era gratuita a todos os
cidadãos”. A distinção entre liberdade e escravidão indicava uma das
clivagens principais que caracterizavam a sociedade hierarquizada,
aristocrática e monárquica, atribuindo significados concretos aos mo-
nopólios que constituíam a ordem senhorial escravista: o monopólio
sobre as terras e sobre os escravos (mattos, 1990).
É importante relembrar, no entanto, que houve lutas e protestos
em torno das definições da cidadania imposta na Constituição de 1824,
inclusive entre os negros e os mestiços, assim como houve disputas
pela delimitação do público-alvo das escolas e pelo alargamento dos
direitos à educação escolar ao longo de todo o Oitocentos, abrangendo
as propostas para educar e civilizar os índios, os negros escravos ou li-
bertos e aperfeiçoar a instrução oferecida às mulheres.
O Período Regencial (1831-1840), na cidade do Rio de Janeiro, por
exemplo, assistiu à proliferação de pasquins exaltados e radicais, como
O Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O Mulato e O Cabrito, os quais

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Gondra e Schueler

lutavam por igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros, inde-


pendentemente da origem étnica (Ribeiro, 1997). Para a Bahia, as pes-
quisas de Reis (1989) e, para o Rio de Janeiro, os estudos de Grinberg
(1994, 2000, 2001, 2002 e 2006) demonstraram o quanto estas ques-
tões ainda seriam debatidas, mesmo após a regulamentação legal pela
Constituição, expressando as contradições e as ambigüidades que inci-
diam na definição da condição social e jurídica do escravo na socieda-
de oitocentista.29
Grinberg (2001) nos ajuda a compreender
Para o direito civil vigente
a ambígua condição jurídica do escravo, a qual
durante todo o século XIX, não prescindiu de contradições no que se refe-
as Ordenações Filipinas
(1603-1916) herdadas re às diferenças entre o estatuto civil e o penal
do Império português, dos africanos submetidos ao regime da escravi-
o escravo era definido
no âmbito do Direito dão. Para o direito civil vigente durante todo o
das Coisas, ou seja, dos
direitos que regulavam
século XIX, as Ordenações Filipinas (1603-1916)
os institutos da posse e herdadas do Império português, o escravo era
da propriedade de bens.
Qualificado com um bem definido no âmbito do Direito das Coisas, ou
semovente, tratado como seja, dos direitos que regulavam os institutos
animal, o escravo era uma
res (coisa): “escravo da posse e da propriedade de bens. Qualifica-
era escravo, propriedade
de alguém, obrigado a
do com um bem semovente, tratado como ani-
trabalhar sem receber mal, o escravo era uma res (coisa): “escravo
nada em troca”. Ao
mesmo tempo, no âmbito era escravo, propriedade de alguém, obrigado
do Direito Penal vigente a trabalhar sem receber nada em troca” (grin-
no Império (Código
Criminal de 1830 e Código berg, 2001, p. 48). Ao mesmo tempo, no âmbito
de Processo Criminal
de 1832), o escravo
do Direito Penal vigente no Império (Código
era considerado pessoa, Criminal de 1830 e Código de Processo Criminal
isto é, era capaz de
adquirir direitos de de 1832), o escravo era considerado pessoa, ou
proteção e deveres de seja, era sujeito imputável, posto que poderia
responsabilidade sobre
atos criminosos. ser responsabilizado pessoalmente pelos cri-

29  De acordo com Mattos (2002, p. 22) todas as lutas e as tensões sociais que implicaram participação popular
no século XIX estavam imbuídas pelo embate dos posicionamentos sobre a extensão dos direitos constitucionais,
entre os quais emergia, para alguns grupos, a defesa da igualdade entre brancos livres e a população não-bran-
ca livre.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

mes que cometesse, sendo levado a julgamento e à execução das pe-


nas. O escravo, como pessoa, era capaz de adquirir direitos e contrair
obrigações. Assim, o direito penal oferecia aos escravos mecanismos de
defesa contra o castigo excessivo, estabelecendo regras de punição aos
senhores que abusassem do direito de fruição sobre sua propriedade.
Nesse sentido, a ambigüidade da condição jurídica do escravo, entre
outras questões relativas à religião católica e ao estatuto das mulheres
e da família, trouxe uma série de problemas para a construção de um
Código Civil no século XIX. Embora previsto na Constituição de 1824,
apesar dos inúmeros projetos e tentativas de consolidação do direito
civilista, o primeiro Código Civil brasileiro só surgiria quase um século
depois, em 1916, já em tempos de República (grinberg, 2001).
As ambigüidades da condição jurídica do escravo — ao mesmo
tempo, coisa e pessoa — se expressavam, evidentemente, no âmbito
das relações sociais cotidianas e desencadeavam indefinições e ten-
sões permanentes em toda a hierarquia social. Nas grandes cidades do
Império, os escravos e escravas ao ganho, alugados(as) ou cedidos(as)
pelos senhores para a prestação de serviços a terceiros, realizavam
negócios cotidianos (de compra, venda, troca), adquiriam proprieda-
des e pecúlio, realizavam testamentos, deixavam legados e heranças
e, muitas vezes, viviam sobre si, isto é, eram obrigados a se sustentar
e a residir por conta própria, para além das
jornadas que deviam aos senhores. Sentiam na A escravidão, como
instituição social e
própria pele a condição precária e contraditó- jurídica, base econômica
ria de ser coisa e pessoa, simultaneamente ob- fundamental das regiões
de produção
jeto e sujeito de direitos. Na prática, os negros agroexportadora,
de ganho, com graus de autonomia relativa em sustentáculo das classes
senhoriais, estava
relação ao domínio senhorial, contribuíam, disseminada na sociedade.
A propriedade de escravos
ainda mais, para a confusão na definição jurí- não discriminava a cor dos
dica do escravo e para a indefinição das condi- indivíduos, não tendo sido
incomum a posse de
ções vividas por escravos e por negros livres e escravos entre indivíduos
libertos, pelo menos no que se refere às expe- pardos, mestiços, negros
livres e, inclusive,
riências sociais de escravidão urbana. ex-escravos.

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Gondra e Schueler

Ao longo do século XIX, com a progressiva intervenção do Estado nas


relações senhor/escravo, por intermédio de uma série de leis e mecanis-
mos judiciais que visavam regular a matéria, estas tensões se acirrariam.
Na justiça, a partir de 1870, não foram incomuns as chamadas Ações de
Liberdade, movidas por escravos, por intermédio de advogados e rábu-
las, muitos dos quais simpatizantes com causa abolicionista, buscando a
aquisição da alforria ou a comprovação da ilegalidade de seu cativeiro,
por terem nascido de ventre livre ou por já terem sido alforriados (cha-
lhoub, 1998; grinberg, 1994; azevedo, 1999). Estes mecanismos tornavam

fluidos e tensos os lugares sociais, trazendo ambigüidades não apenas


para os escravos, mas também para os negros livres e libertos, pois:
Não só o escravo era coisa e pessoa ao mesmo tempo, mas era também uma
coisa que podia virar pessoa, caso conseguisse a liberdade, e uma pessoa
que podia voltar a ser coisa, caso não cumprisse com as obrigações de todo
o liberto, como o reconhecimento da devida gratidão ao seu senhor, e fosse
reescravizado (grinberg, 2001, p. 55).

Em meio à indefinição no estatuto social dos escravos, às tensões


e aos embates pela manutenção ou pela implosão das hierarquias e das
distinções sociais, o direito à instrução primária gratuita, garantia da
Constituição de 1824, foi sendo estabelecido
A Constituição de 1824, no decorrer dos Oitocentos, no lento processo
sem mencionar uma única de construção das leis educacionais e dos sis-
vez a palavra escravo ou
escravidão, definiu, para temas de instrução pública provinciais.
a especificidade da
realidade social brasileira,
A política educacional oficial adotada nas
amplamente ancorada províncias do Império, após a autonomia legis-
na exploração da mão-de-
obra africana, a lativa determinada pelo Ato Adicional de 1834,
abrangência e os limites em matéria de instrução primária e secundá-
da cidadania e,
conseqüentemente, ria, como regra, excluiu expressamente os es-
do direito à instrução
primária e à educação
cravos do direito de freqüentar as escolas pú-
escolar. Nesse sentido, blicas. No entanto, apesar das restrições, uma
em primeiro lugar, os
escravos, como não- minoria de escravos parece ter sido instruída
cidadãos, eram excluídos
nas fazendas ou matriculada nas escolas primá-
das políticas de instrução
oficial. rias, às custas dos senhores, como ocorreu, por

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

exemplo, em Minas Gerais (veiga, 2004a; fonseca, 2005), em São Paulo


(barros, 2005; vidal e souza, 2006) e no Rio de Janeiro (martinez, 1997)30.

Nem todo negro é escravo


Como vimos até o momento, nas leis educacionais do Império, a regra
— referimo-nos agora às normas jurídicas, e não às práticas sociais —,
para os negros escravizados era a exclusão do direito à escola. Escravo,
como não-cidadão, como coisa, não tinha direito à instrução pública.
No entanto, é preciso refletir um pouco mais sobre este silogismo e
prestar também atenção para o fato de que nem todos os negros africa-
nos e seus descendentes, que viviam no Brasil, ou para cá foram compul-
soriamente trazidos, viveram na condição de escravos, ou permanece-
ram ao longo de toda a sua vida nesta condição. Reduzir a sociedade
brasileira oitocentista ao binômio senhores (brancos) e escravos (negros)
se constitui em uma visão empobrecedora, que atualmente vem sendo
superada em virtude do crescimento das pesquisas historiográficas — o
que não significa negar a centralidade da escravidão e a da desigualdade
racial naquela sociedade. Estima-se que, no início do século XIX, quando
ainda havia uma enorme parcela de escravos concentrados nas regiões
de maior atividade econômica, a população de negros livres e libertos
chegava a 1/3, em todo o Império, sendo bastante significativa nas pro-
víncias de Minas Gerais e da Bahia e na cidade do Rio de Janeiro.
As alforrias, pelas doações, pela compra pelo próprio escravo ou
por outrem, foram comuns em todo o período em que vigorou a escra-
vidão31. No século XIX, a interferência do Estado na relação senhor/es-
cravo tornou possível a configuração de mecanismos judiciais, como as
Ações Cíveis de Liberdade, por meio da qual alguns escravos e africa-
nos livres questionaram na justiça a legalidade do seu cativeiro (cha-
lhoub, 1990; grinberg, 1994). Os ex-escravos, quando alforriados, e seus

30  Veiga (2004) cita um Relatório de 1852, que fornece indícios de práticas de aprendizagem das letras
pelos escravos em diferentes espaços sociais: “Em todas as fazendas há mestres particulares da família. Os
próprios escravos têm seus mestres. Não é raro encontrar-se nas tabernas das estradas, nas lojas de sapatei-
ros e alfaiates 2,3,4 meninos aprendendo a ler.”
31  Para a compreensão das alforrias no século XIX, consultar Grinberg, 2002b, pp. 33-35.

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Gondra e Schueler

filhos nascidos no Brasil, compunham o conjunto da população de li-


vres, descendentes de africanos também chamados de crioulos livres,
como eram comumente denominados os libertos, nascidos no país.
Qual era a condição jurídica dos libertos numa sociedade em que a
própria condição jurídica do escravo era marcada por contradições e
ambigüidades? Pela Constituição de 1824, os libertos, nascidos no Bra-
sil, eram considerados cidadãos brasileiros. Embora não gozassem de
plenos direitos políticos, pois não podiam atuar como eleitores na esco-
lha do colégio eleitoral, nem se eleger para o exercício dos cargos pú-
blicos que exigiam o nascimento sem a “mancha de sangue” (ou seja, o
nascimento de ventre livre), os libertos poderiam atuar como votantes
nas eleições distritais. Como ressaltamos anteriormente, os votantes
eram aqueles brasileiros que, além de preencher os demais requisitos
constitucionais, como a maioridade, alcançavam o rendimento anual de
100.000 réis. Deste modo, portanto, estavam aptos para atuar nas elei-
ções em nível local, escolhendo aqueles cidadãos que, por sua vez,
poderiam eleger e ser eleitos para o colégio eleitoral e exercer os car-
gos de direção do Estado — os chamados cidadãos ativos (nicolau, 2002).
Assim, do ponto de vista jurídico, os libertos, embora brasileiros,
sofriam uma série de restrições no que se refere aos direitos políticos.
Quanto ao exercício de outras capacidades jurídicas, como os direitos
civis e obrigacionais, o direito de acesso à instrução pública, a condi-
ção jurídica do liberto, permanecia ambígua e indefinida, em decor-
rência da multiplicidade de formas assumidas pela experiência da es-
cravidão no Brasil. Na administração pública, incluindo os serviços de
instrução de algumas localidades, não era raro o encaminhamento de
consultas e perguntas, por parte de inspetores, professores e membros
das comunidades, sobre a possibilidade, ou não, de negros livres e li-
bertos ingressarem nas escolas públicas e particulares32. Durante todo

32  Hilsdorf, por exemplo, indicou as dúvidas apresentadas por escrito às autoridades provinciais, pelo profes-
sor João Francisco, do Seminário das Educandas e da escola pública de Santa Ifigênia, em São Paulo, nas déca-
das de 1820 e 1830, no sentido de saber se a lei permitia receber os libertos nas escolas, pois era freqüente-
mente procurado por estes para matriculá-los (1999, p. 211).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

o século, intelectuais, políticos, advogados, Pela Constituição de 1824,


juristas demonstraram preocupação em deli- os libertos, nascidos no
Brasil, eram considerados
mitar a condição jurídica dos libertos, como cidadãos brasileiros.
foi o caso, por exemplo, da família do Conse- Embora não gozassem de
plenos direitos políticos,
lheiro Antonio Pereira Rebouças, descendente pois não podiam atuar
como eleitores na escolha
de africanos (grinberg, 2002a)33. Não havia cla-
do colégio eleitoral, nem
reza em relação à condição jurídica desta po- se eleger para o exercício
dos altos cargos públicos,
pulação, o que acirrava ainda mais a complexi- que exigiam o nascimento
dade, tensões e antagonismos sociais. sem a “mancha de
sangue” (ou seja, o
O que parece ter sido claro, aos olhos dos nascimento de ventre
contemporâneos, foi o fato de que o exercício livre), os libertos
poderiam atuar como
de direitos civis pelos negros livres e libertos votantes nas eleições
distritais. Assim, do ponto
dependia da capacidade de comprovar perma-
de vista jurídico, os
nentemente a sua condição de liberdade. Em libertos, embora
brasileiros, sofriam uma
caso contrário, na ausência de comprovação série de restrições no
da condição de livre, poderiam ser submetidos que se refere aos direitos
políticos.
à reescravização, mecanismo que não poucas
vezes foi usado pelas classes senhoriais e pelos
antigos senhores (grinberg, 2006). Como argu-
menta Mattos:
A manutenção da escravidão e a restrição legal de direitos civis e políticos
aos libertos tornavam o que hoje identificamos como “discriminação racial”
uma questão crucial na vida de amplas camadas populacionais, rurais e ur-
banas. Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos brasileiros,
reconhecida pela Constituição, os brasileiros não-brancos continuavam a ter
até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente dependente de sua
condição de liberdade (mattos, 2002, p. 21).

33  Antonio Pereira Rebouças (1798-1848), filho de liberta e de alfaiate português, nasceu na Bahia, autodidata
no estudo das leis, tornou-se rábula, advogado provisionado e especialista em direito civil na monarquia. Seu filho,
o abolicionista André Rebouças, até pouco tempo, era mais conhecido pela história. Nas décadas de 1830 e 1840,
Antonio Pereira Rebouças foi Deputado, Conselheiro da Coroa e atuou como advogado do Conselho de Estado.
Escreveu autobiografias e produziu discursos, artigos em jornais, além de comentários jurídicos. Os seus três ir-
mãos também foram beneficiados com a supressão da mancha de sangue pela Constituição de 1824 e ingressaram
em processos de escolarização formal (formaram-se um médico, um engenheiro e outro escrivão). Era membro da
Sociedade Amante da Instrução (1829). Entusiasta do liberalismo, do direito de propriedade, e defensor das res-
trições censitárias para a cidadania. No entanto, partilhando da ideologia liberal que valorizava os “talentos” e
“virtudes” individuais, lutava pela entrada de libertos nos cargos públicos mais altos do Estado, desde que com-
provassem suas posses. Considerava o critério da “ingenuidade”, estabelecida para o cidadão ativo pleno, uma
exceção odiosa. Sobre a trajetória de Rebouças, o pai, ver o estudo de Grinberg (2002).

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Gondra e Schueler

Além da interdição aos escravos, apoiada na Constituição de 1824,


em algumas Províncias e na Corte imperial, houve medidas legais que
restringiram ainda mais o direito de acesso à instrução, estendendo a
proibição de freqüência às escolas públicas e particulares aos “pretos
africanos livres ou libertos”. Na Província do Rio de Janeiro, Mattos
(1990) indica que a determinação de interdição aos escravos e “pretos
africanos livres ou libertos” data de 1835. Para a Corte, Moacyr (1936)
refere-se à lei de 21/01/1837. No Rio Grande do Sul, a legislação de
dezembro de 1837, em termos ainda mais imprecisos e ambíguos, ve-
tava os “escravos e pretos ainda que livres e libertos” (moacyr, 1940).
As interdições aos escravos e aos grupos étnicos compostos por
aqueles identificados por “pretos africanos livres ou libertos” foram
tradicionalmente interpretadas por parte da historiografia da educa-
ção como representativos dos processos de exclusão de todos os negros
nos mecanismos de instrução e educação formais, sobretudo, das esco-
las, no decorrer do século XIX. Entretanto, como ressaltamos, pesqui-
sas mais recentes já refutam esse argumento, apontando indícios da
presença de crianças mestiças, negras e pardas, livres e libertas e, até
mesmo, em alguns casos, de crianças escravas, nas escolas elementa-
res, nos asilos e em instituições educacionais de várias Províncias do
Império (silva, 2002 e 2006; schueler, 2002; veiga, 2004a; fonseca, 2005;
barros, 2005; silva e araújo, 2005).
Portanto, para compreendermos o alcance
Além da interdição aos das restrições legais aos “pretos africanos livres
escravos, em algumas e libertos”, é preciso enfrentar as dificuldades
Províncias e na Corte
imperial, houve medidas e assumir os riscos de tentar decifrar os signifi-
legais que restringiram
ainda mais o direito de cados possíveis atribuídos pelos contemporâne-
acesso à instrução, os à expressão “pretos africanos”, bem como
estendendo a proibição
de freqüência às escolas definir, na medida do possível, a condição jurí-
públicas e particulares
aos “pretos africanos dica de libertos e africanos negros livres no sé-
livres ou libertos”, como culo XIX. Comecemos, então, pelas condições
no Rio de Janeiro, Corte
e Rio Grande do Sul. de africano e de africanos livres.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

De acordo com Mattos (2002, p. 32), a construção da categoria de


africanos para designar uma identidade comum aos variados grupos
étnicos oriundos da África subsaariana foi uma realização do século
XIX, consolidada nas últimas décadas dos Oitocentos, quando a difusão
das teorias raciais científicas veio a reforçar o paradigma da existência
de desigualdades e hierarquias entre as raças humanas.
No período colonial, os negros escravos provenientes do tráfico
atlântico eram identificados simplesmente pelo porto ou região africa-
na de origem na qual tinham sido embarcados, como Mina, Congo,
Angola, Benguela, Moçambique. Esta classificação por área de proce-
dência funcionou como mecanismo de reconstrução de identidades e
identificações, em parte também assumidas pelos cativos, que permi-
tiram à empresa colonial reordenar as relações sociais, violentas e ten-
sas daquela sociedade. A historiografia especializada vem identificando
que os próprios escravizados se organizaram a partir da demarcação de
fronteiras entre as diferentes tradições africanas, o que se refletia na
própria organização social das irmandades negras, separadas por na-
ções e por critérios de maior ou menor pertencimento ao regime escra-
vocrata. Assim sendo, não havia uma unidade entre os africanos, e a
designação de africano não era aplicada diretamente para reconhecer
a condição de escravo.
O termo crioulo, ao contrário, já era utilizado como forma de dis-
tinguir os escravos e seus filhos nascidos no Brasil daqueles africanos
recém-chegados no país. Em parte, o uso político da construção de
identificações distintas para o africano e crioulo se deveu ao fenômeno
que ficou conhecido como “africanização do Brasil”, decorrente do
crescimento vertiginoso do tráfico negreiro, com o incremento das áre-
as de produção agrícola nas áreas açucareiras do Recôncavo Baiano, no
final do século XVIII. Foi no período da independência e das lutas pela
afirmação do Estado imperial que, pela primeira vez, a oposição entre
os africanos (recém-chegados do tráfico) e os crioulos (escravos brasi-
leiros) assumiu conotações políticas. Em meados do século XIX, esta
distinção era bem mais nítida, resultando numa divisão classificatória

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Gondra e Schueler

A historiografia tem mais simples entre escravos crioulos e escra-


apontado que a percepção vos de nação africana (mattos, 2002, p. 29-32).
das diferenças entre os
africanos se diluiu ainda Assim, apesar da permanência do uso de
mais após a interrupção
identificações dos africanos por nações, nos
legal do tráfico pela lei
de 7 de novembro de documentos da época — o que facilitava, in-
1831. Embora não tenha
criado a categoria de clusive a construção de representações e de
africanos livres, a lei políticas de controle sobre os indivíduos per-
de 1831 formalizou
a sua condição jurídica, tencentes às nações consideradas “potencial-
na medida em que dizia
mente mais perigosas” (como nagôs, hassuas,
textualmente, no art. 1o,
“Todos os escravos que preto-minas e malês) — a historiografia tem
entrarem no território
apontado que a percepção das diferenças en-
ou portos do Brasil, vindos
de fora, ficam livres.” tre os africanos se diluiu ainda mais após a
interrupção legal do tráfico pela lei de 7 de
novembro de 1831. Embora não tenha criado a categoria de africanos
livres, a lei de 1831 formalizou a sua condição jurídica, na medida em
que dizia textualmente, no art. 1o, “Todos os escravos que entrarem
no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.34. Co-
nhecida tradicionalmente como “lei para inglês ver”, pela sua ineficá-
cia, esta lei serviu para a repressão internacional ao tráfico, sobretu-
do, para legitimar o apresamento dos navios negreiros pela

34  A categoria de africanos livres teve origem nos tratados bilaterais assinados entre Portugal e Grã-Bretanha
para a abolição do tráfico de escravos. Entre os procedimentos acordados, estava a criação das Comissões
Mistas dos dois lados do Atlântico para julgar os responsáveis pelos navios apreendidos. Na convenção de 1817,
determinou-se que os escravos apresados ilegalmente seriam emancipados, ficando sob tutela do governo onde
o navio tivesse sido julgado. Nesse sentido, D. João assinou o Alvará de 1818 determinando que “durante 14
anos os africanos emancipados seriam preparados para o trabalho livre”. Segundo o estudo de Mamigonian
(2006), com base nas regras de direito internacional e nas leis brasileiras de 1831 e de 1850, foram emancipados
cerca de 11 mil africanos, pessoas que cumpriram o período de trabalho compulsório estabelecido, prestando
serviços em instituições públicas e particulares. A maioria dos africanos traficados (o cálculo é de cerca de
760.000 almas), no entanto, foi escravizada, ao arrepio da lei. Os debates sobre a lei de 1831 no parlamento
brasileiro, e suas conseqüências, foi extremamente rico e revelou as estratégias dos defensores do regime es-
cravista em garantir a sua ineficácia. A pressão britânica sobre o Império para que providenciasse a emancipa-
ção dos africanos permaneceu nos anos 1840 e 1850, o que acarretou no Decreto n. 1.303, de 28 de dezembro
de 1853, declarando a emancipação parcial dos africanos livres. Aqueles que tivessem completado os 14 anos
de serviço compulsório deveriam ser emancipados definitivamente. Após 1853, a seção do Ministério da Justiça
responsável pela administração dos africanos livres passou a receber petições encaminhadas por estes, visando
à comprovação do direito à liberdade. Nas décadas de 1870 e 1880, alguns advogados abolicionistas, como Luiz
Gama, ao impetrar ações de liberdade em nome de escravos e africanos, lançaram mão de uma interpretação
singular da lei de 1831, e obtiveram sucesso em alguns casos, argumentando que todos os escravos que entra-
ram no país após a publicação da lei seriam livres, posto que traficados ilegalmente. As disputas em torno das
concepções de direito estabelecidos pela legislação e a apropriação realizada pelos africanos livres constituiu
tema profundamente analisado por Mamigonian (2006). A respeito da ação de Luiz Gama, ver Azevedo (1999).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Grã-Bretanha. A repressão interna ao tráfico de escravos só veio a ser


efetivada de forma mais concreta com o apoio da Lei Eusébio de Quei-
roz, em 1850. Apesar destas restrições, como sabemos, o contrabando
ilegal continuou, de forma massiva, a alimentar o trabalho escravo,
destinando os africanos, sobretudo, para região agro-exportadora do
Centro-Sul, com a expansão das lavouras de café. Entre 1830 e 1850,
estima-se que foram escravizados ilegalmente cerca de 760 mil africa-
nos que, por lei, possuíam a condição jurídica de africanos livres (ma-
migonian, 2006, p. 130).

Do ponto de vista jurídico, os africanos livres possuíam o status


semelhante ao de pessoas livres sob tutela e submetidas a trabalho
compulsório. Portanto, estes africanos eram considerados pessoas li-
vres, porém, sob condição. No entanto, o fato de estes indivíduos se-
rem livres, obtendo estatuto jurídico diferente dos escravos, introdu-
ziu uma nova forma de distinção e desigualdade entre eles, o que foi
considerado pelos setores escravistas um extremo risco para a manu-
tenção da paz e da ordem senhoriais. Ainda mais naqueles anos de
graves tensões e revoltas regenciais, que não prescindiram da partici-
pação ativa de negros, escravos crioulos, africanos e libertos, sendo a
mais representativa dentre elas a chamada Revolta dos Malês, na Bahia,
ocorrida em 1835 (reis, 1989)35.
Ora, é evidente que os africanos livres representaram “um novo
barril de pólvora”, prestes a esquentar ainda mais os conflitos sociais
na sociedade imperial. Não seria por outra razão que, nos debates rea­
lizados no Senado em torno da lei de 1831, o senador Rodrigues de
Carvalho lembraria aos demais colegas a respeito dos riscos da eman-
cipação abrupta destes africanos livres, tendo em vista que o tráfico
(ilegal) fizera ingressar na Bahia cerca de “10 a 15 mil” novos africa-

35  Durante as primeiras décadas do século XIX, várias rebeliões de escravos explodiram na Província da Bahia.
A mais importante delas foi a dos Malês, uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da
religião católica, que ocorreu em Salvador, em janeiro de 1835. Nessa época, a cidade de Salvador tinha cerca
de metade de sua população composta por negros escravos ou libertos, das mais variadas culturas e procedên-
cias africanas, dentre as quais a islâmica, como os haussas e os nagôs. Foram eles que protagonizaram a rebe-
lião, conhecida como dos “malês”, pois este termo designava os negros muçulmanos, que sabiam ler e escrever
o árabe e difundiam o Alcorão (reis, 1989).

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Gondra e Schueler

nos. Os seus argumentos tornam perceptíveis os “perigos” representa-


dos pelos africanos livres. Senão, vejamos:
se tal acontece [a emancipação imediata dos africanos livres], entram já
todos em revolução, porque basta um que saiba ler para que, vendo esta
disposição, cite todos os outros; e ainda que nenhum preto saiba ler há
de falar quem por espírito de revolta, de que há agora tanta abundância,
procure onde existem esses pretos para os aconselhar (apud mamigonian,
2006, p. 134) (os grifos são nossos).

De fato, a questão dos africanos livres representava para a socie-


dade imperial, sobretudo naquela década de revoltas regenciais e in-
surreições escravas, um enorme nó. Os temores apresentados pelo se-
nador soteropolitano podem nos indicar pistas sobre as motivações
concretas das interdições impostas aos africanos livres pela legislação
educacional de algumas localidades do Império. Não por acaso, esta
legislação emerge exatamente na década de 1830 — Província do Rio
de Janeiro, em 1835, Corte imperial, em 1837, São Pedro do Rio Gran-
de do Sul, também em 1837 (veiga, 2004a). Sobre essa questão, inves-
tigando a presença de crianças negras na instrução elementar mineira
entre 1800 e 1835, Veiga (2004a) já havia alertado para a diferença
existente entre as condições sociais do africano livre e do crioulo, ne-
gro livre ou liberto brasileiro, o que permitiu a esta historiadora ques-
tionar as “conclusões apressadas” que inferiram a total ausência da
população negra e mestiça da escola imperial.
É possível, então, pensarmos na hipótese de que a proibição das
matrículas aos chamados “pretos africanos livres e libertos” tenha si-
do motivada pelo medo das elites senhoriais em relação aos perigos da
propagação das letras entre os africanos livres, o que poderia acalen-
tar os sonhos de liberdade não apenas nestes indivíduos submetidos ao
regime da lei de 1831, mas também despertar inconvenientes inquie-
tações entre os escravos crioulos nascidos no Brasil.36 Assim, cabe per-

36  A hipótese já foi aventada por Chalhoub (1998) a partir da leitura de documentos policiais da Corte imperial
que, em 1835, demonstravam o medo das elites ao acesso à leitura pelos africanos livres e escravos de nação
Mina (preto-minas). Estes grupos eram temidos em razão das revoltas regenciais e, sobretudo, pela suposta
participação na Revolta dos Malês, na qual africanos escravos de tradições islâmicas tiveram acesso aos textos
do Alcorão e outros escritos incendiários (reis, 1989).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

guntar: será que ainda podemos afirmar que a É possível, então,


interdição ao acesso às escolas se estendeu a pensarmos na hipótese
de que a proibição das
todos os “pretos” livres e libertos, inclusive os matrículas aos chamados
“pretos africanos livres
brasileiros? Ou será que os dispositivos proibi- e libertos” tenha sido
tivos visavam impedir o acesso apenas aos afri- motivada pelo medo das
elites senhoriais em
canos livres recém-chegados no território bra- relação aos perigos da
sileiro após a lei de 1831? A análise criteriosa propagação das letras
entre os africanos livres,
de como foram apropriados, compreendidos e o que poderia acalentar
os sonhos de liberdade não
aplicados tais dispositivos, em termos empíri- apenas nestes indivíduos
cos, ainda é um enorme desafio a ser enfren- submetidos ao regime da
lei de 1831, mas também
tado pela historiografia da educação. Será que despertar inconvenientes
estas restrições legais serviram para ampliar, inquietações entre os
escravos crioulos nascidos
ainda mais, os obstáculos de alcançar a instru- no Brasil.
ção elementar ao conjunto da população de
negros livres e libertos, ou será que foram questionados, burlados,
reinterpretados pelos sujeitos da ação educativa na prática cotidiana?
Embora estas questões, e o tema dos processos de inclusão/ex-
clusão dos negros, africanos livres, libertos brasileiros e escravos nas
escolas, careçam ainda de maior investimento para a totalidade das
regiões do Império, algumas Províncias parecem não ter estendido a
interdição de freqüência aos “pretos africanos livres e libertos”, ainda
que tivessem mantido a proibição aos escravos. Foi o caso, por exem-
plo, de Minas Gerais, conforme indica o estudo de Veiga (2004a). Esta
pesquisa, bem como outras já existentes sobre o tema, oferece ele-
mentos importantes para refletirmos a respeito de práticas de inserção
de negros livres, libertos e escravos nas escolas oitocentistas, a despei-
to das interdições legais, dos preconceitos sociais e das barreiras en-
frentadas pela maioria da população para atender às demandas por
escolarização e alfabetização37.

37  A presença das crianças negras tem sido demonstrada pela historiografia em várias regiões do Império,
como em Minas Gerais (veiga, 2004a; fonseca, 2005), na Corte imperial e na Província do Rio de Janeiro (silva,
2002; schueler, 2002), em Pernambuco (silva, 2006); em São Paulo (barros, 2005; vidal e souza, 2006), em Campi-
nas (souza, 1998), entre outras.

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Gondra e Schueler

A presença dos negros na escola imperial


Contrariando a idéia de que os negros foram completamente excluídos
da escola imperial, Veiga (2004a) sustenta a hipótese de que, no proces-
so de constituição do Estado imperial, a produção do imaginário de uma
nação civilizada ocasionava a necessidade de estender a escolarização a
toda a sociedade. Por isso, na maioria das Províncias, em que pese a
existência de leis restritivas, a questão da origem étnica das crianças
não se constituiu em um impedimento de freqüência à escola pública.
Neste processo, a clivagem principal que marcava a interdição estava
relacionada à condição jurídica de liberdade das crianças, ou seja, se
escravas ou livres.38 Neste caso, sendo consideradas livres, as crianças
negras, mestiças e pardas (designações comuns das cores das crianças
encontradas nos registros de matrículas mineiros até 1835) estavam in-
cluídas no projeto de homogeneização cultural das populações. Nos ma-
pas escolares analisados pela autora, há indicativos de uma significativa
mestiçagem nas escolas mineiras, posto que em documentos elaborados
pelos mestres de escolas particulares e públicas de algumas localidades
mineiras, para os anos de 1823, 1825 e 1832, foram registrados 64 bran-
cos, 58 pardos, 11 crioulos, 3 negros, 1 mestiço,
Na maioria das Províncias, 1 “filho de preto forro”, além de 3 escravos le-
em que pese a existência vados pelos seus senhores (veiga, 2004a, p. 4).
de leis restritivas,
a questão da origem Como podemos perceber pela variação na
étnica das crianças não
indicação das supostas origens étnicas (pardos,
se constituiu um
impedimento de mestiços, crioulos, preto, negros) dos alunos,
freqüência à escola
pública. Neste processo, as designações de cor nos documentos do sé-
a clivagem principal que culo XIX não podem ser tomadas como expres-
marcava a interdição
estava relacionada à são exata da cor-de-pele dos indivíduos, posto
condição jurídica de
que constituíam construções sociais fluidas e
liberdade das crianças, ou
seja, se escravas ou livres. representações ambíguas, nas quais a etnia e

38  Na legislação educacional do século XIX, além do critério de liberdade, outras clivagens e interdições vão
ser inscritas, como a proibição aos não-vacinados e portadores de moléstias contagiosas e a demarcação das
idades adequadas à freqüência (gouvêa, 2004; veiga, 2004; gondra, 2004).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

as condições de lugar e status social estavam indissociavelmente liga-


das. De acordo com Mattos (1998), ao investigar as relações inter-ra-
ciais entre os negros, escravos e libertos e a população livre, a partir
de processos criminais e fontes cartoriais no Sudeste escravista, verifi-
cou-se o progressivo silêncio em relação à cor dos indivíduos, notável
principalmente a partir de meados do século39. A sua hipótese para
explicar o “sumiço da cor” é a de que esta ausência estava diretamen-
te relacionada ao processo de implosão das diferenças e das hierar-
quias sociais entre brancos e negros, com o crescimento progressivo
das alforrias, das correntes de migração interna e da imigração externa
e, conseqüentemente, da população livre e liberta no Sudeste escra-
vista. Segundo a autora, quando havia referências à cor na documenta-
ção, via de regra, a designação preto, pejorativa, identificava a condi-
ção de forros recentes, africanos livres ou escravos, enquanto que
pardo tenderia a designar os libertos ou os descendentes livres de ven-
tre escravo (mattos, 1998).40
A escolarização em Minas Gerais, na medida em que também pro-
moveu o “sumiço da cor”, pode ter representado, para parcela da po-
pulação mestiça que conseguiu ingresso nas escolas, a possibilidade de
“desfazer-se” do estigma que relacionava a ascendência africana à
escravidão, aproximando cada vez mais os negros, mestiços e os pardos
das experiências de liberdade. Como demonstrou Veiga (2002), naque-

39  As designações de cor no século XIX, como construções sociais, se constituíram foco de tensões e disputas.
Segundo Mattos (2002, p. 23), a simples tentativa de introduzir a categoria “cor” nas primeiras experiências de
recenseamento da população imperial gerou protestos generalizados. Um primeiro regulamento para institui-
ção do registro civil de nascimento e óbito (1850) gerou revoltas armadas em vários municípios do Nordeste,
baseadas na crença de que o regulamento — apelidado de “Lei do Cativeiro” — teria por objetivo escravizar a
“gente de cor”.
40  De acordo com a autora, a categoria pardos foi construída no final do período colonial, e abrangia mais do
que mulatos e mestiços (estes últimos ligados à ascendência africana). Surgiu no momento em que já havia uma
enorme população afrodescendente livre, a qual não se enquadrava mais no estatuto de escravo ou liberto: “A
emergência de uma população livre de ascendência africana — não necessariamente miscigenada, mas disso-
ciada, há algumas gerações, da experiência do cativeiro — consolidou a categoria pardo livre como condição
lingüística para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o estigma da escravidão, mas também
sem que se perdesse a memória dela e as restrições civis que implicava. Pardo livre assinalará para a ascendên-
cia africana, assim como cristão-novo assinalava para origem judaica: era, portanto, condição de diferenciação
em relação à população escrava e liberta, e também de discriminação em relação à população branca; expres-
são da mancha de sangue”. Já negro e preto foram termos usados mais comumente para designar escravos e
forros recentes, até o avançar do séc. XIX (mattos, 2002, p. 14-15).

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Gondra e Schueler

la Província, a partir de 1835, os registros de cor-de-pele das crianças


tenderam a desaparecer dos mapas de matrícula escolar.
De modo diverso, para a Província de São Paulo, entre os anos de
1851 e 1888, Vidal e Souza (2006) encontraram séries documentais con-
tínuas contendo mapas de matrícula escolar e relatórios de professores
e inspetores, nos quais havia o registro detalhado a respeito da cor e
condição civil dos alunos. A existência de dados que informavam sobre
as mesmas escolas públicas primárias para períodos aproximados de dez
anos possibilitou às autoras o levantamento de questões fundamentais
para a História da escolarização, relacionadas às práticas e às experiên-
cias concretas vividas pelos sujeitos da ação educativa. A riqueza da
documentação permitiu a percepção de problemas inéditos sobre a in-
fância escolarizada, tais como: as cores dos alunos e sua condição civil
(se livre, liberto ou escravo); as idades de ingresso; a permanência, o
abandono ou as intermitências na freqüência escolar; as relações entre
as famílias e a escola; os saberes ensinados e as representações sobre o
comportamento e o desempenho escolar dos alunos.
Buscando investigar quem era a infância que freqüentara as esco-
las primárias oitocentistas em São Paulo, as autoras encontraram refe-
rências detalhadas e variadas sobre cor e condição civil dos alunos,
então registrados como brancos; pardos livres; pardos libertos; pretos
livres; pretos libertos; e escravo. Seguindo o raciocínio proposto por
Mattos (2001), é provável que os alunos pardos e pretos designados
como livres fossem aqueles afro-descendentes cuja condição social se
encontrava mais distante da experiência da escravidão, já tendo nas-
cido livres. Por outro lado, pardos libertos e pretos libertos parecem
indicar uma condição social mais próxima da escravidão, podendo ter
se tratado de forros recentes. Ou, quem sabe, como propuseram Vidal
e Souza (2006), as designações podem ter dito respeito às representa-
ções dos professores sobre a miscigenação e a heterogeneidade encon-
trada na cor-de-pele dos alunos? Quem sabe? Impossível precisar.
No entanto, a variação nas indicações das cores e condições das
crianças afro-descendentes nos mapas escolares e nos relatórios pau-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

listas analisados por Vidal e Souza (2006) de- A variação nas indicações
monstra, em primeiro lugar, o quanto é proble- das cores e condições das
crianças afro-descendentes
mático utilizarmos concepções rígidas e nos mapas escolares e nos
relatórios oficiais do século
abstratas a respeito das identidades étnicas e
XIX demonstra, em
das origens raciais, na medida em que podem primeiro lugar, o quanto
é problemático utilizarmos
indicar não apenas o fenótipo dos indivíduos, concepções rígidas e
mas também, constituem as representações abstratas a respeito das
identidades étnicas e das
historicamente construídas na experiência so- origens raciais, na medida
em que podem indicar
cial, expressando clivagens sociais, culturais e
não apenas o fenótipo
econômicas. Em segundo lugar, a heterogenei- dos indivíduos, mas
também, constituem
dade étnica encontrada pelas pesquisadoras as representações
nas escolas primárias paulistas, e também por historicamente construídas
na experiência social,
estudos referentes a outras Províncias do Im- expressando clivagens
sociais, culturais e
pério, sugere a fragilidade da idéia, tão divul-
econômicas.
gada, de que a escola primária oitocentista foi
criada para educar apenas as crianças brancas, e, sobretudo, as elites
senhoriais.41 Cabe, ainda, considerando a diversidade regional, educa-
cional e social do país, avançar mais nas pesquisas sobre os sujeitos da
ação educativa, buscando investigar quem eram os professores, as pro-
fessoras, os alunos e as alunas que passaram pelas instituições educa-
cionais, e como experimentaram a constituição da cultura escolar no
século XIX. Como argumentou Cruz (2005, p. 27):
A necessidade de ser liberto ou de usufruir a cidadania quando livre, tanto
durante os períodos do Império quanto nos primeiros anos da República,
aproximou as camadas negras da apropriação do saber escolar (...) embora

41  A historiografia indica uma série de experiências de escolarização de negros no século XIX, entre outras: 1.
Maranhão — aulas públicas mantidas pela Irmandade de São Benedito, criada em 1821, e escola de escravos do
Preto Cosme, criada em 1839; 2. Campinas — Colégio Perseverança, escola feminina regida pelo professor e mé-
dico Antonio Cesariano Jr. e sua esposa, ambos pardos livres; cinco escolas para libertos e escravos em 1871 (cruz,
2005) e cursos noturnos (peres, 2002); Colégio São Benedito, criado em 1903; 3. Corte — escola particular de Pre-
textato dos Passos, entre 1853-1873 (silva, 2002); 4. Província do Rio de Janeiro — escolas nas fazendas do Comen-
dador Souza Breves e na Fazenda Vista Alegre, em Valença, e Asilo Agrícola de Santa Isabel, criado em 1886 (marti-
nez, 1997); 5. Minas Gerais — presença de crianças negras nas escolas primárias públicas e particulares (veiga,
2002a; gouvêa, 2004; fonseca, 2005); 6. Província de São Paulo — presença de crianças negras nas escolas públicas
primárias (barros, 2005; vidal e souza, 2006) e nas escolas profissionais, técnicas e tecnológicas, criadas pelos ne-
gros ou pelo Estado (silva e araújo, 2005); 7. Pernambuco — Colônia Orfanológica Isabel, 1874 (arantes, 2005). Para
uma visão de conjunto sobre o tema, consultar o Dossiê Negros e a Educação, número 4 da Revista Brasileira de
História da Educação, além das obras de Romão (2005); Oliveira, Silva e Pinto (2005); e Müller (2006).

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Gondra e Schueler

não de forma massiva, camadas populares negras atingiram níveis de instru-


ção, quando criavam suas próprias escolas; recebiam instrução de pessoas
escolarizadas; ou adentravam a rede pública, os asilos de órfãos e as escolas
particulares.

No mesmo sentido, Silva (2002), ao pesquisar as relações existen-


tes entre a aquisição de instrução primária e as possibilidades de negros
livres e libertos de ascenderem a ofícios e profissões que os distinguis-
sem da marca do cativeiro, recuperou a história do professor Pretextato
dos Passos. Este professor particular da Corte, que se apresentava como
“preto” — indicando, possivelmente, sua condição de liberto ou descen-
dente de libertos —, manteve uma escola para ensinar primeiras letras
aos “meninos pretos”, filhos de libertos da sua freguesia (Sacramento)
no centro da cidade. Na documentação que apresentou ao governo para
solicitar autorização para abertura da escola, o professor alegava que
seu objetivo era fazer com que seus alunos “aprendessem com perfei-
ção” os conhecimentos elementares, já que, segundo ele, em muitas
escolas da cidade eram estes meninos preteridos pelo preconceito étni-
co-racial e sua relação com a escravidão. A aquisição da instrução ele-
mentar, via escola, emergiu como uma estratégia possível de distancia-
mento e superação da condição cativa, passada ou recente, apesar das
dificuldades sempre existentes de acesso às letras em uma sociedade
escravista e hierarquizada (silva, 2002). A autora, ao reconstruir a histó-
ria de Pretextato dos Passos, e de seus alunos, sugere a hipótese de que
a sua experiência representou um indício significativo que nos dão a ver
lutas, tensões sociais e também limites em torno da implementação da
escolarização formal dos negros no século XIX.
Sem dúvida, não foram poucos os limites e os obstáculos enfrenta-
dos pelos negros brasileiros e seus descendentes, não apenas escravos,
mas também livres, libertos e africanos chegados após 1831, para ob-
terem acesso ao processo de escolarização formal na sociedade escra-
vista. Ao lado das restrições legais e dos instrumentos de interdição
impostos pelas políticas oficiais de instrução pública, alguns estudos
vêm demonstrando os diversos mecanismos sutis de discriminação e as

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

práticas cotidianas de exclusão e hierarquiza- A heterogeneidade étnica


ção pulverizadas na sociedade oitocentista. encontrada nas escolas
oitocentistas sugere a
De acordo com Barros (2005), os discursos fragilidade da idéia, tão
divulgada, de que a escola
das elites (a “ação branca”) indicavam a neces-
primária oitocentista foi
sidade de inserir os negros no projeto civilizató- criada para educar apenas
as crianças brancas,
rio, via educação escolar, juntamente com a e, sobretudo, as elites
população branca livre e pobre, ao mesmo tem- senhoriais.

po em que grupos sociais variados se incomoda-


vam com a presença dos negros e seus descendentes nas escolas, expres-
sando preconceitos e discriminação étnico-racial. As dificuldades para o
ingresso nas escolas ocorriam desde a matrícula ao cotidiano escolar,
manifestando-se na dúvida sobre a condição de liberdade das crianças e
nos perigos de instruir a população escrava;42 na falta de material esco-
lar, de merenda, de vestuário e calçados; na pobreza das famílias e na
necessidade do trabalho das crianças; nas diferenças, resistências cultu-
rais e nas tensões sociais, que recriavam formas variadas de distinção de
classe, etnia, e também de gênero, na sociedade imperial.
A questão da inclusão dos vários grupos étnicos afro-descendentes
na escola primária desencadeava tensões e contradições, havendo opi­
niões contrárias entre os professores. Por exemplo, é interessante o re-
lato apresentado pelo professor Antonio José Rhormens, em 1877, ao
noticiar à inspetoria de instrução a respeito das atividades na escola sob
sua responsabilidade, a escola pública de meninos do Largo do Arouche
(capital da Província de São Paulo). Segundo este professor, na sua esco-
la estaria ocorrendo uma situação desagradável, posto que “certos ne-
grinhos que por ahi andão, filhos de Africanos Livres que matriculam-se
mas não freqüentam a escola com assiduidade” estariam espalhando
“vícios” e usando de linguagem e “expressões abomináveis”, prejudi-

42  Barros (2005, p. 83) cita um relatório de inspetor da instrução pública paulista (1855) determinando aos
professores que só matriculassem as crianças das quais tivessem “certeza” de sua condição de livre. A autora
também se refere a fontes que apontavam resistências de grupos sociais às escolas públicas e particulares que
aceitavam crianças pobres e negras. Na Corte, já nas décadas de 1870 e 1880, também encontramos determi-
nações oficiais aos professores para certificarem a condição civil das crianças como requisito legal para a ma-
trícula (schueler, 2002).

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Gondra e Schueler

cando a educação e a aprendizagem dos outros meninos. Demonstrando


aversão ao convívio entre os filhos de africanos livres e os demais alunos
de sua escola, o professor não negava a necessidade de educar aqueles
“negrinhos”, mas, para isso, sugeria a existência de escolas “à parte”
(barros, 2005, p. 84). Ou seja, aventava-se, neste caso, a proposta de
educar as crianças negras, descendentes de africanos livres, em institui-
ções específicas e em regime separado — como, aliás, estava se consti-
tuindo o modelo de educação para os libertos no sul dos Estados Unidos,
a segunda maior nação escravista das Américas.
Diante destas contradições, é preciso refletir sobre o fato de que
a escola oitocentista, para os negros, pode ter representado, ao mes-
mo tempo, um veículo de afirmação social, lugar de distinção/mobili-
dade social e instrumento de discriminação e de recriação de hierar-
quias. Como alerta Fonseca (2005, p. 110), o fato de encontrarmos
significativo número de afro-descendentes e indícios de diversidade e
heterogeneidade étnica e social nas escolas do século XIX, não nos
permite sugerir que a escola naquela sociedade era democrática nem
tampouco destituída de mecanismos de afirmação dos preconceitos,
que efetivamente ocorreram no interior dos espaços escolares — como
também atestam os trabalhos de Souza (1998), Barros (2005), Silva e
Araújo (2005), entre outros já referidos.
Segundo Fonseca (2002), não é possível esquecer que a maioria
das propostas de instrução e educação escolares (escolas primárias,
institutos de formação profissional, escolas técnicas, asilos e colônias
agrícolas etc.), fomentadas, inclusive, por frações das classes senho-
riais, pretendiam, em regra, instaurar práticas pedagógicas com cará-
ter fortemente disciplinar, que visava infundir comportamentos tidos
como “civilizados” e desqualificar os sujeitos e culturas diferenciadas
do modelo difundido pela escola43.

43  Além do ensino primário e profissional para as camadas populares, inclusive libertos, em cursos noturnos,
asilos e/ou colônias agrícolas, o incremento de indústrias ou oficinas e o incentivo à pequena propriedade agríco-
la, foram também propostas feitas por alguns reformistas conservadores, liberais e republicanos, como Joaquim
Nabuco, André Rebouças e Tavares Bastos. Sobre as propostas encaminhadas pelos fazendeiros e senhores de
terra nos Congressos Agrícolas de 1878 (Recife e Rio de Janeiro), consultar o estudo de Fonseca (2002).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

A partir da década de 1860, a emergência Como vemos, não foram


de discursos e de uma instável legislação dire- poucos os limites e os
obstáculos enfrentados
cionada a reformar o ensino público imperial pelos negros brasileiros
estava diretamente relacionada às graves e seus descendentes,
não apenas escravos, mas
questões políticas e sociais daquele contexto, também livres, libertos
como o abolicionismo, o controle social dos e africanos chegados
após 1831, para obterem
ex-escravos e libertos, as políticas de subsídio acesso ao processo de
escolarização formal
oficial à imigração estrangeira para a “substi- na sociedade escravista.
tuição” da mão-de-obra nas lavouras e o movi-
mento republicano.
O desenvolvimento da instrução pública estava sendo reclamado
na Corte, mas também nas demais regiões do Império, nas quais se ele-
vava o número de escolas primárias e secundárias, criavam-se Escolas
Normais de ambos os sexos, Escolas Noturnas de Adultos, Liceus de Ar-
tes e Ofícios e outros estabelecimentos de ensino. O impulso para tal
movimento foi originado, segundo os redatores do periódico pedagógico
A Instrução Pública, editado na Corte (1872-1879), por motivações polí-
ticas, recrudescidas na cena imperial no alvorecer da década de 1870:
(…) A lei de 28 de setembro do ano próximo findo, que inaugurou uma nova
era nos fatos da história pátria, reclama instantaneamente a reforma e o
melhoramento do ensino, de modo a ser ministrado também àqueles
para os quais acabam de ser quebrados os ferros da escravidão.
Uma lei da divina harmonia que preside o mundo, como já disse Tavares
Bastos, prende as grandes questões sociais: emancipar e instruir é forma
dupla do mesmo pensamento político. O que havemos de oferecer a es-
tes degradados que vão nascer para a liberdade? — O batismo da instru-
ção. O que reservaremos para suster as forças produtoras esmorecidas
pela emancipação? — O ensino, esse agente invisível que, centuplicando
energia do braço humano, é, sem dúvida, a mais poderosa das máquinas de
trabalho44 (grifos nossos).

A emancipação impulsionada pelo gabinete Rio Branco e a conse-


qüente aprovação da lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como
Lei do Ventre Livre, colocaram o problema da instrução popular em

44  A Instrução Pública, 05/05/1872, p. 25-26.

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Gondra e Schueler

evidência, incluindo os filhos livres dos escravos, então conhecidos co-


mo “ingênuos”. No texto da lei, as crianças nascidas livres deveriam
ser criadas pelos senhores de suas mães até a idade de 8 anos, quando
poderiam ser entregues ao Estado para que fossem educadas em esta-
belecimentos de educação primária e aprendizagem de ofícios. Em ca-
so de continuarem com os senhores, os libertos prestariam seus servi-
ços até completarem 21 anos, como a historiografia afirma ter sido o
que, de fato, ocorreu, na maioria dos casos (fonseca, 2002).
Ao longo das décadas de 1870 e 1880, a educação das crianças e,
também de adultos das camadas populares, incluindo os negros livres,
libertos e escravos, permaneceu constituindo um projeto de reforma
pensada/implementada pelos dirigentes do Estado e debatida por ou-
tros setores da sociedade imperial (souza, 1998; peres, 2002; costa,
2007). Na Corte, houve diversos projetos do
A lei de 28 de setembro de Ministério do Império neste sentido, como as
1871, conhecida como Lei
do Ventre Livre, colocou
reformas de João Alfredo (1874), de Leôncio
o problema da instrução de Carvalho (1879), de Rui Barbosa (1883), de
popular em evidência,
incluindo os filhos livres Almeida de Oliveira (1884), do Barão de Ma-
dos escravos, então moré (1886) e, já na República, a de Benjamin
conhecidos como
“ingênuos”. Constant (1890).
No entanto, os projetos de reforma edu-
cacional e as propostas de reconstrução nacional por meio da difusão
da instrução aos negros livres e libertos não significaram, nos anos fi-
nais do Império, a extensão dos atributos de cidadania plena. Ao con-
trário, nas disputas pela redefinição dos direitos de cidadania, em ja-
neiro de 1881, o acesso às letras e o critério da alfabetização, pela
primeira vez na História brasileira, seriam transformados em critério
para o exercício do direito de voto, por meio da reforma eleitoral de
1881. A relação entre direitos políticos e instrução não existia na Cons-
tituição de 1824, ainda que algumas leis posteriores exigissem a capa-
cidade de assinar o próprio nome como condição de participar nas
eleições (nicolau, 2002). A reforma eleitoral de 1881, exigindo a alfabe-
tização como requisito para a cidadania, reduziu a 1% por cento o nú-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

mero de eleitores no país, e, na prática, acar- Nas disputas pela


retou a exclusão da maioria da população dos redefinição dos direitos
de cidadania, o acesso
direitos políticos. O Censo de 1872 indicava a às letras e o critério da
existência de cerca de 83% de analfabetos, in- alfabetização, pela
primeira vez na História
cluindo a população livre, liberta e escrava. O brasileira, seriam
transformados em critério
índice de analfabetos, segundo dados de 1890, para o exercício do direito
continuaria altíssimo, em torno de 74% da po- de voto, por meio da
reforma eleitoral de 1881.
pulação total. Entre os 25,3% de brasileiros re- Esta reforma reduziu a
gistrados como alfabetizados, constavam 1% o número de eleitores
no país, e, na prática,
42,99% brancos, 11,85% pretos e 20,6% pardos, acarretou a exclusão da
maioria da população
somando estes dois últimos grupos 32,45% do dos direitos políticos.
total da população alfabetizada45.
Como pudemos perceber, projetos e prá-
ticas sociais de inserção de escravos e libertos nas escolas públicas
primárias, associadas ou não a outros projetos de desenvolvimento da
instrução profissional para o conjunto das classes populares, estiveram
presentes nos debates educacionais do século XIX. Muitos intelectuais,
políticos, juristas, professores públicos e particulares, entre os anos de
1870 e 1888, debateram e se engajaram na luta pela instrução e pela
incorporação dos negros livres, libertos e escravos, por meio de várias
frentes, como a imprensa, as Conferências Públicas, o ingresso em So-
ciedades de Instrução, Clubes Abolicionistas, a abertura de aulas no-
turnas nas suas próprias escolas, entre outros. Como homens de seu
tempo, difundiram representações ambíguas sobre negros, escravos e
ex-escravos, que oscilavam entre perspectivas paternalistas e concep-
ções pejorativas, mas que não deixavam de reconhecer a sua força
enquanto sujeitos, em uma sociedade que experimentava a implosão
de antigas hierarquias e a crise do domínio senhorial, impondo a for-

45  Menezes (2002), preocupada em investigar os índices de alfabetização entre a população negra na Bahia,
analisando dados dos Censos de 1872 e 1890, aponta que o índice de alfabetização entre a população livre
brasileira era de 15%, 47% e 25,3%, respectivamente. Entre aproximadamente 70.000 escravos, segundo dados
de 1872, foram registrados apenas 1.403 indivíduos alfabetizados (pouco mais de 1%), sendo 329 na Corte, 107
na Província do Rio de Janeiro, 104 na Província de São Paulo e 64 na Bahia. No final do século XIX, as regiões
brasileiras com o maior índice de alfabetização entre a população livre e liberta eram a Corte, Rio de Janeiro,
Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Pará.

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Gondra e Schueler

mulação de novas práticas e a reatualização das políticas de controle


social.
Ao longo do século XIX, os próprios negros, sujeitos da ação edu-
cativa, elaboraram estratégias e ações variadas para viabilizar o acesso
mundo das letras, construindo suas próprias representações sobre a
escola e conferindo múltiplos sentidos à escolarização. Em 1889, me-
nos de um ano após o 13 de Maio (data da assinatura da Lei Áurea em
1888), uma comissão formada por libertos do Vale do Paraíba, na Pro-
víncia do Rio de Janeiro, enviou uma carta ao jurista e jornalista Rui
Barbosa. Os libertos reivindicavam o apoio daquele ilustre intelectual
para fazer cumprir a legislação de 1871 (Lei de 28 de setembro) no que
se referia à aplicação efetiva dos recursos do fundo de emancipação,
destinados à educação das crianças nascidas de ventre livre, filhos dos
libertos. A carta da comissão, demonstrando a inexistência de políticas
educacionais para os negros no pós-Abolição, terminava com um tom
de alerta, revelando as graves tensões e as lutas sociais que ainda es-
tariam por vir:
Para fugir do grande perigo que corremos por falta de instrução, vimos pedi-
la para nossos filhos e para que eles não ergam mão assassina para abater
aqueles que querem a República, que é liberdade, igual-
Ao longo do século XIX,
dade e fraternidade (apud gomes, 2005, p. 10).
os próprios negros,
sujeitos da ação
educativa, elaboraram As demandas dos negros, livres e libertos,
estratégias e ações
variadas para viabilizar
no pós-Abolição não seriam poucas, posto que,
o acesso ao mundo das para além da liberdade, que garantiu o acesso
letras, construindo suas
próprias representações aos direitos civis, ainda seria preciso enfrentar
sobre a escola e batalhas para a efetivação de outros direitos
conferindo múltiplos
sociais — como o direito ao exercício do traba-
sentidos à escolarização.
lho livre e à proteção legal ao trabalho, habi-
tação, saúde, ao lazer, que foram constituídas em bandeiras do movi-
mento operário e sindical na Primeira República. Seria preciso, também,
não esmorecer na conquista pelo acesso à educação e aos direitos po-
líticos, na medida em que a alfabetização permaneceria critério de
exclusão da cidadania com a Constituição de 1891. Ao contrário do que

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

esperavam os libertos do Vale do Paraíba, a República, instaurada com


o golpe militar de 15 de novembro de 1889, não se constituiu em sinô-
nimo necessário de “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Mas, logo, os “13 de Maio”, como eram chamados os negros liber-
tos pela Lei Áurea, perceberam que os caminhos para a afirmação da
cidadania e para a reconstrução de (novas) identidades sociais seriam
longos e tortuosos. Ainda no final do século XIX, a “imprensa negra”
denunciava os preconceitos étnicos e sociais, e reivindicavam para os
ex-escravos a liberdade de exercer, com plenitude, os direitos de cida-
dania. Jornais editados por negros alfabetizados, como O Treze de Maio
(1888), A Pátria (1889), O Exemplo (1892), A Redenção (1899), o Balu-
arte (1903), refletiam sobre os desdobramentos do pós-emancipação e
a situação dos “homens de cor”, demonstrando que a “ação negra”46
pela conquista de direitos e pela afirmação de identidades sociais não
passava longe da arena política (gomes, 2005, p. 28).
Embora já existam pesquisas que apontem indícios irrefutáveis da
“ação negra” pela ampliação das próprias oportunidades formais de
educação na sociedade brasileira oitocentista, ainda há muito a inves-
tigar. Por isso, convém reiterarmos que vários problemas de pesquisa e
questões a respeito da construção histórica das experiências educati-
vas escolares e não-escolares de grupos afro-descendentes ainda aguar-
dam a formulação de perguntas e respostas. A História das relações
entre os negros e a educação — relações que, como vimos, implicaram
complexos e contraditórios procedimentos de exclusão, de estranha-
mento e de esquecimento, mas que também implicaram mecanismos
de inclusão, de conquista, de resistência e de lutas pelo acesso — per-
manece constituindo um dos grandes desafios47.
Desafios que se apresentam não apenas para a escrita da História
e para a reconstrução dos fios da memória educacional dos afro-des-

46  Tomamos de empréstimo a expressão “ação negra” proposta por Barros (2005) para designar as demandas
e iniciativas dos próprios grupos negros pelo acesso à educação.
47  A lei n. 10.639, de janeiro de 2003, ao determinar a inclusão da temática “História e cultura afro-brasilei-
ra” no currículo da rede oficial de ensino, vem ao encontro de desafios de nosso presente, com efeitos na es-
crita e no ensino da história.

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Gondra e Schueler

cendentes no Brasil. Mas, sobretudo, desafios que ainda hoje se im-


põem, para todos nós, brasileiros e brasileiras, para a reinvenção do
nosso presente.

Índios
Do Diretório dos Índios à construção da nação: a política
indigenista imperial

Os índios são um rico tesouro para o Brasil se tivermos juízo e manha para
aproveitá-los.
(José Bonifácio de Andrada e Silva. Apontamentos para a civilização dos
índios bravos do Império do Brasil).

Com o fim do Império português e o processo de Independência do


Brasil, o Estado imperial retomou, em vários aspectos, a política indi-
genista proposta pelas reformas ilustradas setecentistas, especialmen-
te no objetivo de integrar os índios ao projeto de construção da nação
e do Estado, fomentando o ingresso das populações no mundo do tra-
balho e a civilização dos costumes.
Na segunda metade do século XVIII, a política indigenista conduzi-
da pelo Império Português, por meio da ação de missionários e religio-
sos no território colonial americano, teve seu principal ponto de infle-
xão com a Criação do Diretório dos Índios (1755) e com as reformas
pombalinas. Centrada na catequese e na tentativa de civilizar e “do-
mesticar” os índios, a política de aldeamento até então coordenada
pela Companhia de Jesus passou às mãos do Estado português48.
O Diretório dos Índios, no bojo das reformas iluministas que busca-
vam o fortalecimento econômico e político do Império Português, pre-
tendeu reorientar o governo das populações indígenas americanas, lan-
çando as bases dos discursos e práticas assimilacionistas, que visavam
tornar “as aldeias em vilas e lugares portugueses e os índios em vassalos

48  Diretório, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão. Lisboa, Oficina de Miguel
Rodrigues, 1758, apud Almeida, 1995. Esta legislação inicialmente direcionada aos povos nativos da Amazônia
foi também aplicada nas demais regiões da América Portuguesa, conforme Alvará de 17 de agosto de 1758.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

dos reis” (almeida, 2005, p. 241). A intenção da A denominação “índio”


Coroa consistia em tecer alianças com os nati- ou “indígena” foi utilizada
pelos colonizadores
vos e colonos para a preservação das fronteiras como instrumento de
identificação, classificação
territoriais e incremento da agricultura. A ilus-
e homogeneização cultural
tração portuguesa tencionava transformar não em face da enorme
diversidade de grupos
apenas os índios, mas também os colonos ame- étnicos, tribos, nações
ricanos, em súditos portugueses, identificados e comunidades nativas no
vasto território americano.
pela língua comum, pela religiosidade e pelas Esta denominação, que
regras de conduta e comportamento (neves, porta representações
e significados diversos e
1978). contraditórios, permanece
Retirados da tutela das ordens religiosas, até hoje, e tem sido
reinterpretada pelos
com a expulsão dos jesuítas em 1759, os índios movimentos indígenas,
no sentido de articular
considerados rústicos e incapazes pela lei fo-
e conferir uma unidade,
ram tutelados pelos diretores, intermediários demarcando uma fronteira
étnica e identitária
entre colonos e comunidades responsáveis pe- entre os povos nativos
la “civilização” do gentio49. A educação e a di- originários das Américas.

fusão da língua portuguesa entre os grupos in-


dígenas e a interdição de práticas culturais,
como ritos e crenças e a bigamia, foram estratégias de controle e inte-
gração de parte desta população ao Império português, juntamente
com a agricultura, a comercialização de produtos e o pagamento de
tributos. A mudança principal na política do Diretório foi o incentivo à
miscigenação e à presença de não-índios nas aldeias, medidas conside-
radas necessárias para promover a assimilação dos nativos e romper
com o isolamento dos mesmos. O alvará de 4 de abril de 1775 aboliu as
distinções entre brancos e índios, possibilitando a atuação destes últi-
mos como juízes ordinários e vereadores das Câmaras Municipais.

49  A própria denominação “índio” ou “indígena” foi utilizada pelos colonizadores como instrumento de iden-
tificação, classificação e homogeneização cultural em face da enorme diversidade de grupos étnicos, tribos,
nações e comunidades nativas no vasto território americano. A atribuição do apelido genérico “índio” teria
resultado do “erro náutico” de Cristóvão Colombo que, em 1492, em nome da Coroa espanhola, no contexto da
expansão marítima e comercial européia, tencionava conquistar as Índias. Porém, devido a uma tempestade, a
frota em viagem, à deriva, foi trazida para o continente americano. Esta denominação, que porta representa-
ções e significados diversos e contraditórios, permanece até hoje, e tem sido reapropriada pelos movimentos
indígenas no sentido de articular e conferir uma unidade, demarcando uma fronteira étnica e identitária entre
os povos nativos originários das Américas. Sobre a discussão, ver Luciano (2006) e Oliveira e Freire (2006).

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Rizzini (2004), ao investigar as políticas de instrução pública na


região norte do Brasil, sobretudo no Pará e no Amazonas, entre 1830 e
1880, recupera algumas pesquisas que se dedicaram ao estudo da edu-
cação escolar dirigida aos índios naquelas regiões. Assim, Domingues
(1995) afirma que, na segunda metade do século XVIII, com o advento
do Diretório, a educação foi inserida no contexto de um processo de
colonização da Amazônia e de civilização dos índios. Vista como um
meio de transmissão da língua portuguesa, a escola era utilizada como
um instrumento de política — um elemento de unificação e de identifi-
cação dos nativos ao Império português. O Diretório proibia às crianças
e a quem estivesse apto a falar o português, o uso da língua geral ou da
língua da própria etnia. A autora sustenta que escolas foram instaladas
na capital, nas vilas e povoados, a despeito das dificuldades para o
cumprimento do objetivo educacional, pois não havia mestres prepara-
dos, fazendo com que em muitas povoações o ensino ficasse a cargo de
padres, que autorizavam aos jovens a falar a língua geral. A resistência
indígena à escola era significativa, posto que suas culturas valorizavam
um sistema de educação baseado no valor da tradição, no exemplo e na
ação, que se contrapunha ao sistema metropolitano, dissociado da vida
cotidiana. As crianças tinham participação importante nas atividades
das coletividades indígenas, como colheita, caça e pesca e como mão-
de-obra alugada para particulares (apud rizzini, 2004, p. 19).
De um modo geral, a historiografia aponta as dificuldades encon-
tradas pelo Império português na execução da política indigenista pro-
posta pelo Diretório dos Índios. Apesar das transformações legislativas,
a sua aplicação sofreu inúmeras variações, dadas as diversidades de
situações das populações indígenas e seus variados níveis de integração
na sociedade colonial. Segundo Raminelli (2001, p. 187), na prática, os
índios convertidos à “civilização” não encontraram melhores condições
de vida do que os escravizados. A ênfase da reforma se dirigia ao obje-
tivo de transformar as comunidades indígenas em trabalhadores, di-
luindo-se os benefícios previstos pela lei, incluindo a não execução da
política de educação escolar para os nativos, fracasso que levou à abo-
lição do Diretório em 1798.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

De acordo com Almeida (2005, p. 242), a própria política do Dire-


tório utilizou procedimentos variados para lidar com as diversas situa-
ções locais, destacando-se: a formação de novas aldeias, o desencadea­
mento de guerras com os grupos nativos e o estímulo à extinção das
aldeias de colonização mais antiga, com o argumento de que os índios
já se encontravam misturados e civilizados50. Essa variedade de proce-
dimentos persistiu durante o século XIX, posto que o Império acentuou
o caráter assimilacionista da política indigenista, num contexto marca-
do pelo recrudescimento das tensões e conflitos pelas terras aldeadas
e devolutas, questão crucial nos Oitocentos (cunha, 1992).
No alvorecer do século XIX, as populações indígenas vivenciavam
condições precárias no que se refere ao isolamento de grupos étnicos
nas florestas ou à submissão a política de aldeamentos, ao baixo índice
demográfico das comunidades e à exploração do trabalho sob várias
formas de servidão. Enfrentavam, ainda, guerras coloniais e conflitos
travados pela política joanina, com a chegada da Corte portuguesa em
1808, que desencadeou uma série de ofensivas contra os índios do Vale
do Rio Doce, no Espírito Santo, Minas Gerais e no Paraná, então chama-
dos de botocudos, e contra os bugres, de São Paulo e Minas Gerais,
grupos considerados bravos em oposição aos mansos, índios ditos civi-
lizados e integrados ao Império português (vainfas, 2002, p. 170).
Segundo Almeida, durante o Oitocentos, as discussões sobre os
índios e as possibilidades de sua integração foram intensas, como reve-
laram a política indigenista oficial e a produ-
ção acadêmica e historiográfica do Instituto A escola era utilizada
Histórico e Geográfico Brasileiro. Estas discus- como um instrumento de
política indigenista — um
sões, no entanto, não foram homogêneas, elemento de unificação
apresentando diversos pontos divergentes. e de identificação dos
nativos ao Império
Embora houvesse o predomínio de idéias pre- português.

50  “Essas variadas práticas de aplicação da política indigenista coexistiram e se sucederam, desde as reformas
pombalinas até a segunda metade do século XIX. A intenção era integrar os índios, assimilando-os à massa po-
pulacional e para isso três procedimentos foram freqüentemente utilizados: combatê-los, aldeá-los, civilizá-los
e decretá-los misturados, civilizados, diminutos, extintos” (almeida, 2005, p. 249).

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Gondra e Schueler

conceituosas e discriminatórias que afirmavam a inferioridade dos in-


dígenas, o fato é que houve proposições distintas para encaminhar a
questão. As propostas de “assimilação branda” dos grupos nativos
acentuavam a necessidade da educação e da extensão da escolariza-
ção elementar e profissional, bem como da catequese e da distribuição
de terras nas aldeias. Por outro, em vários pontos do território nacio-
nal, não foi incomum a ocorrência de ações contínuas e violentas de
guerra e invasão de terras, sobretudo contra os índios bravos. Os inte-
resses das Câmaras Municipais e das elites locais nas terras ocupadas
pelos índios, não poucas vezes, constituíram-se em obstáculos à políti-
ca indigenista, que oscilou, ao longo do século, entre a manutenção e
a extinção das aldeias, pressionada, inclusive, pela luta dos nativos
pela conservação dos seus direitos à terra (almeida, 2005, p. 245).
Diante das políticas ambivalentes do Estado, parcelas da popula-
ção indígena se colocaram, na medida de suas possibilidades, como
protagonistas no século XIX brasileiro, não apenas pela resistência à
tomada de suas terras e pela participação nas rebeliões e guerras re-
genciais, mas, sobretudo, pela elaboração de uma série de estratégias
de sobrevivência e integração ao meio urbano e rural, realizando ativi-
dades e ofícios diversos na multifacetada sociedade imperial (morel,
2003, p. 45).
Em relação aos projetos educacionais e às possibilidades de incluir
os índios, e em certos casos também os escravos, nos processos de es-
colarização, os debates então travados apontam para as tensões sociais
que envolviam a construção do Estado nacional numa sociedade, simul-
taneamente, hierárquica e desigual, multiétnica e plural. Importantes
documentos para analisar a questão foram os projetos de lei apresen-
tados por José Bonifácio de Andrada e Silva à Assembléia Constituinte
de 1823 intitulados Apontamentos sobre a Civilização dos Índios do
Brasil e Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa
do Império do Brasil sobre a Escravatura.
Para o caso dos índios, o “patriarca da Independência” defendia a
adoção de uma política sistemática de aldeamento e civilização, con-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

duzida com brandura e sem a violência das in- A política indigenista do


vasões e guerras coloniais, além da inserção no Império português, e
posteriormente do Império
mercado de trabalho e a submissão às leis do brasileiro, foi marcada
pela ambigüidade. Por um
Estado. Ao abordar a questão, Bonifácio partiu
lado, as propostas de
de uma perspectiva que atribuía ao Estado “a “assimilação branda” dos
grupos nativos acentuavam
sagrada obrigação de instruir, emancipar e fa- a necessidade da educação
zer dos Índios e Brasileiros uma nação homogê- e da extensão da
escolarização elementar e
nea e igualmente feliz”. Para a construção da profissional, bem como da
catequese e da
nação e a integração dos índios, José Bonifácio
distribuição de terras nas
idealizava que aldeias. Por outro lado, em
vários pontos do território
Nas grandes aldeias centrais, além do ensino nacional, não foi incomum
de ler, escrever e contar, e catecismo, se le- a ocorrência de ações
contínuas e violentas de
vantarão escolas práticas de artes e ofícios,
guerra e invasão de terras,
em que irão aprender os índios dali, e das ou- sobretudo contra os índios
tras aldeias pequenas, e até os brancos e mes- bravos.
tiços das povoações vizinhas... (apud costa,
2000, p. 4).

Para José Bonifácio, as dificuldades em civilizar os índios bravos


decorriam não apenas das representações construídas sobre as supos-
tas tendências “naturais” para a “indolência” e a “preguiça”, mas,
sobretudo, do modo como brancos, colonos e portugueses trataram os
grupos nativos no processo histórico da conquista. Na sua concepção, o
modelo de educação jesuíta, embora devesse ser imitado pela “paci-
ência” e “brandura” dispensada aos índios, pecava pela sua manuten-
ção nas aldeias o que, segundo ele, inviabilizava a “completa civiliza-
ção” — e controle — de vastos contingentes da população nativa. A
incorporação dos índios deveria então ser realizada por meio da cate-
quese e da escolarização, com o auxílio do mestre-escola da aldeia,
bem como pelo direcionamento dos nativos para ofícios e atividades
mais adequadas a sua “natureza” e cultura:
Como os índios, pela sua natural indolência e inconstância, não são muito
próprios para os trabalhos aturados da agricultura, haverá para com eles
nesta parte alguma paciência e contemplação; e será mais útil a princípio ir
empregando em tropeiros, pescadores, pedestres, peões e guardas de gado,

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aos que forem mais frouxos e desleixados; como igualmente em abrir valas,
derrubar matos, transportar madeiras dos montes aos rios e estradas, e
abrir picadas pelo sertão, para o que são próprios, ou também ensinando-
lhes aqueles ofícios para os quais tiverem mais habilidade e jeito (andrada e
silva apud costa, 2000, p. 6).

De acordo com José Bonifácio, a civilização dos índios bravos e sua


incorporação à sociedade e ao Estado imperial em formação passavam
tanto pela difusão da religião cristã, da língua portuguesa, da leitura e
da escrita, por meio da escolarização elementar, quanto pela sua pre-
paração para o exercício de atividades e ofícios rurais e urbanos. Se-
gundo Costa (2006), seus projetos educacionais demonstraram o desejo
de construir na América um país culturalmente homogêneo, com forte
identidade nacional, ao mesmo tempo em que buscavam manter as
hierarquias sociais, com base em uma proposta de educação e instru-
ção para o trabalho. Submeter a “barbárie do sertão” — os índios bra-
vos, os bugres, os cabras da terra, os caboclos, o povo mais ou menos
miúdo, como eram freqüentemente nomeados nas fontes e registros
documentais da época — à ordem, ao progresso e à civilização consti-
tuiu o programa então idealizado (costa, 2006, p. 7).
No entanto, os projetos de José Bonifácio não foram incorporados
à Constituição outorgada em 25 de março de 1824, cujo texto final
sequer mencionou a palavra índio. Com o Ato Adicional de 1834, a com-
petência para legislar sobre terras e aldeias indígenas passou para as
províncias, datando de 1845 o primeiro e único regulamento geral do
Império sobre a questão. Como legislação específica para o tratamento
da política indigenista, este conjunto normativo centralizou a compe-
tência para o governo das missões e aldeias indígenas no âmbito do
Ministério dos Negócios do Império51.
O Regulamento Geral das Missões (Regulamento n. 426, de 24 de
julho de 1845, do Ministério dos Negócios do Império) manteve o siste-

51  Em 1861, o encargo da catequese e da civilização dos índios do sertão passou ao Ministério dos Negócios,
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, pela centralidade da questão das terras para o Estado imperial (cunha,
1992).

262
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ma de aldea­mento, entendendo-o como caminho para a assimilação dos


grupos indígenas à civilização imposta pelas classes dirigentes do Esta-
do. A lei proibiu o antigo sistema de “repartição” do trabalho indígena
que, na prática, conduzia às formas variadas de exploração da mão-de-
obra, e garantiu direito às terras ocupadas pelas aldeias, desde que
produtivas, ou seja, lavradas e cultivadas pelos nativos. Recriou a figura
do diretor das aldeias e reintroduziu a ação dos missionários, religiosos
de várias ordens, responsáveis pela educação e catequese. Para tanto,
o regulamento determinou a criação de escolas de primeiras letras nos
aldeamentos existentes em todas as Províncias do Império, nas quais
deveriam se ensinar a ler, escrever e contar aos meninos e adultos, re-
comendando a dispensa do uso de violência nos processos de instrução.
Aliada à instrução elementar, a lei propunha ainda a formação para o
trabalho agrícola e para vários ofícios ligados às artes mecânicas, esti-
mulando também o treinamento militar e o alistamento dos nativos nas
companhias de comércio e navegação (silva, 2002, p. 10).
Durante o Segundo Reinado (1840-1889), já na segunda metade do
século XIX, em algumas províncias do Império foram criadas institui-
ções que visavam instruir a população livre e pobre, difundindo a ins-
trução primária, saberes elementares e fornecendo formação profis-
sional para o trabalho. Asilos, institutos, casas de educandos artífices,
escolas e externatos foram criados em diversas províncias, promovidos
e mantidos por iniciativas específicas, como já nos referimos.
De acordo com Cunha (1999), os objetivos econômicos e técnicos
da formação dos artífices se mesclavam a objetivos de cunho ideológi-
co, transformando o ensino de ofícios numa
obra de filantropia e controle social, destinada
a assistir e a governar desvalidos e pobres. Com o Ato Adicional de
1834, a competência
Nestas instituições, a disciplina e a direção para legislar sobre terras
moral das classes populares eram finalidades e aldeias indígenas
passou para as Províncias,
importantes, promovidas pelo respeito às hie- datando de 1845 o
rarquias sociais, regras de civilidade, tentati- primeiro e único
regulamento geral do
vas de civilização dos hábitos e costumes e de Império sobre a questão.

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Gondra e Schueler

introjeção do “amor ao trabalho e à pátria”. Em alguns casos, estes


estabelecimentos receberam crianças e jovens indígenas, sobretudo,
nas Províncias do Norte, como no Amazonas e no Maranhão (rizzini,
2002, p. 13-14).
No entanto, em relação aos processos de educação nas aldeias,
decorrentes da política indigenista imperial, e mesmo em relação às
outras iniciativas, públicas ou particulares, para a educação dos povos
indígenas no Brasil do século XIX, há, ainda, muito a se investigar52. De
acordo com Silva (2002), a maior parte dos estudos existentes se refere
aos três séculos de colonização, ou seja, o período sob a vigência do
Império português nas Américas, sendo exíguos os trabalhos sobre a
História da Educação indígena brasileira para os períodos subseqüentes.
Pesquisando vasta bibliografia sobre a História dos povos indígenas
na região das Minas Gerais, Silva (2002) aponta para as lacunas existen-
tes no enfrentamento das discussões sobre a política indigenista de
educação, enfatizando o predomínio de trabalhos históricos que acen-
tuam o aspecto da dominação nas relações entre os índios e os não-
índios e as inúmeras perdas culturais e demográficas sofridas pelos
nativos. Argumenta ainda que a historiografia e a antropologia, com
freqüência, construíram representações segundo as quais índios e não-
índios aparecem como entes opostos e irredutíveis. As situações de
contato, os conflitos e as trocas interculturais ora são interpretadas
pelas concepções assimilacionistas, nas quais se enfatiza a introjeção
dos valores da cultura dominante por parte dos nativos, ora são enca-
radas sob a ótica restrita da dominação e da violência. Neste aspecto,
a autora apresenta o instigante alerta de um historiador que, abordan-
do especificamente o domínio espanhol, chamou atenção para a com-
plexidade do processo de colonização nas Américas:
Mesmo subjugados ou até mesmo consentindo, muitas vezes estes indígenas
usavam as leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas

52  Por exemplo, destaca-se a atuação de José Vieira Couto de Magalhães no Serviço de Catequese do Vale do
Araguaia, em Goiás, projeto que resultou na criação do Colégio Isabel às margens do rio, em 1870, já com o
apoio da Província de Goiás e do governo imperial (rizzini, 2000, p. 5).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

pela força ou pela sedução, para outros fins que não os dos seus conquista-
dores (certeau, 1996, p. 94, apud Silva, 2000, p. 6).

Compartilhando tal perspectiva, Amoroso (2001) trouxe contribui-


ções importantes para a compreensão e a reavaliação da política indi-
genista e dos processos de escolarização direcionados aos índios, no
Império brasileiro. Segundo a autora, já nas primeiras décadas dos Oi-
tocentos, os discursos em prol da educação dos índios foram marcados
por uma nova intencionalidade, não se tratando mais apenas de con-
vertê-los ao cristianismo, mas, sobretudo, de incliná-los a uma outra
ordem moral e à civilização conduzida pela ação do Estado nacional em
construção. As diferenças para o período colonial se inscreviam então
em novas propostas e em novos termos como, por exemplo, nos proje-
tos de criação de escolas exclusivamente destinadas aos índios, nos
quais as diversas línguas e os dialetos fossem ensinados por professores
nativos (amoroso, 2001, p. 134).
Pesquisas recentes também vêm chamando a atenção para a ne-
cessidade de reinterpretar leis, normas e regulamentos relativos às
reformas educacionais do Império, no sentido de ampliar a compreen-
são dos significados da escola para os diversos grupos sociais, as de-
mandas pela educação e a pluralidade das dimensões possíveis do pro-
cesso de escolarização.
Neves (2006, p. 3) argumenta que os termos “vulgarizar” e “es-
tender o ensino” entre as “classes inferiores”, presentes nos textos das
reformas e nos relatórios da instrução primária e secundária da década
de 1850 em Minas Gerais, Mato Grosso e na Corte imperial, podem ser
interpretados como mecanismos para submeter a população livre e
pobre à escola e aos seus conteúdos, uma nova tecnologia de poder sob
controle do governo. Ao mesmo tempo, as expressões contribuíram
para criar representações, e quem sabe, criaram possibilidades de am-
pliar anseios e esperanças para vários grupos — negros, caboclos, ín-
dios, mestiços — de terem acesso às escolas e à instrução formal. A
educação escolar destinada a estes grupos não objetivava apenas regu-

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Gondra e Schueler

larizar e controlar efetivamente a população livre e pobre, mas, tam-


bém, tencionava impedir transgressões, legitimar certas representa-
ções e lugares e recriar identidades, produzindo novos sujeitos sociais.
Nesse sentido, índios, caboclos, mestiços, negros e escravos foram ca-
tegorias freqüentemente tratadas de modos diversos e ambivalentes
pelas políticas e reformas educativas ao longo do século XIX, que osci-
lavam entre os projetos de inclusão e as interdições e impedimentos ao
acesso às escolas, sobretudo, no caso dos escravos (neves, 2006, p. 5).
Se parecem indiscutíveis o reconhecimento da violência imposta
pelos processos de colonização e o desaparecimento de inúmeras etnias
ao longo da história colonial e imperial, não é menos relevante o silen-
ciamento que a História da Educação e o ensino de História vêm impondo
à atuação dos homens, mulheres e crianças pertencentes aos variados
grupos indígenas como sujeitos históricos. No longo processo de contatos
e metamorfoses interculturais, as diferentes etnias, misturadas nas al-
deias ou com outros grupos sociais, de formas complexas, diversas e
contraditórias, elaboraram e reelaboraram seus modos de viver, resistin-
do à imposição de modelos e às condições adversas de dominação e es-
cravidão, reconstituindo identidades e significados culturais, modifica-
dos pelas experiências por eles vivenciadas (almeida, 2005, p. 237).
Nas últimas décadas, os movimentos sociais e as lideranças indíge-
nas têm discutido as políticas de educação escolar, enfatizando o cará-
ter colonial e tutelar representado pelo modelo escolar ocidental. Ini-
cialmente implementado pelas agências religiosas ao longo do processo
de colonização, este modelo foi reelaborado no contexto da formação
do Estado Imperial, porém, manteve a perspectiva assimilacionista,
buscando promover a homogeneização cultural em face da diversidade
e das diferenças existentes entre as tribos, etnias e nações indígenas.
Em contrapartida, desde os anos 1970 e 1980, os movimentos in-
dígenas formularam críticas aos processos pedagógicos adotados pela
escola formal, as quais podem ser sintetizadas nos seguintes aspectos:
a) a recusa da forma escolar ocidental, nacional, que não contempla as
necessidades locais e regionais, além de ignorar as tradições culturais,

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

os valores e os processos pedagógicos plurais das comunidades indíge-


nas; b) a inadequação dos currículos, programas, objetivos de ensino,
que se distanciam da realidade social e cultural das crianças e jovens
indígenas; c) o material pedagógico insuficiente, ineficaz e elaborado
a partir da perspectiva etnocêntrica dos educadores não índios; d) as
dificuldades de fixação dos professores não-índios nas comunidades
locais e a precariedade da formação de professores indígenas locais; e)
a desvalorização das línguas e das culturas nativas criam barreiras in-
terculturais, dificultando as relações pedagógicas entre professores
não índios e as comunidades indígenas (luciano, 2006, p. 134-135).
Diante desses questionamentos sobre a política educacional oficial,
nos anos 1980 e 1990, as organizações formais indígenas têm promovido
encontros de reflexão, discussão, formação e troca de expe­riências en-
tre professores e educadores, lideranças e outros grupos interessados na
educação escolar indígena. Um exemplo desta ação é o Conselho dos
Professores Indígenas da Amazônia (antigo Movimento dos Professores
Indígenas da Amazônia), que desde 1988 vem analisando a situação es-
colar na região, além de promover asssembléias e reuniões com as co-
munidades indígenas de outras regiões do país. Em 1991, durante o IV
Encontro Nacional de Manaus, a “Declaração de Princípios dos Professo-
res Indígenas do Amazonas, Roraima, Acre”, reafir­mada no VII Encontro
Nacional de 1994, estabeleceu diretrizes gerais
para uma proposta de política educacional indí- Nas últimas décadas,
os movimentos sociais e
gena, visando à criação de uma escola afinada as lideranças indígenas
com os interesses das comunidades. Entre estes têm discutido as políticas
de educação escolar,
princípios, destacaram-se: 1) as escolas indíge- enfatizando o caráter
nas devem ter regimentos e currículos específi- colonial e tutelar
representado pelo modelo
cos, elaborados pelos professores e comunida- escolar ocidental. Desde
os anos de 1980 e 1990,
des indígenas; 2) a direção e a supervisão das as organizações formais
escolas devem ser indicadas pelas comunida- indígenas têm promovido
encontros de reflexão
des, professores e organizações indígenas; 3) a e troca de experiências
educação escolar indígena deve valorizar cultu- sobre os rumos da escola
desejada e sonhada pelos
ras, línguas e tradições de seus povos; 4) garan- diversos grupos indígenas.

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Gondra e Schueler

tia de participação paritária de professores, comunidades e organizações


indígenas em todas as instâncias consultivas e deliberativas de órgãos
públicos responsáveis pela educação escolar indígena; 5) formação de
professores específica para a educação indígena, com aperfeiçoamento
profissional permanente; 6) isonomia salarial entre professores não ín-
dios e professores índios; 7) continuidade da formação escolar para to-
dos os alunos indígenas; 8) integração da saúde e da medicina indígena
nos currículos; 9) fornecimento de laboratórios e equipamentos pelo Es-
tado para ensinar os cuidados com a saúde e a prevenção de doenças nas
escolas; 10) as escolas indígenas devem ser criativas, promovendo o for-
talecimento das artes como forma de expressão dos seus povos; 11) ga-
rantia do uso das línguas indígenas e de processos próprios de aprendiza-
gem; 12) as escolas indígenas devem desempenhar papel relevante na
defesa, conservação, preservação e proteção de seus territórios; 13) nas
escolas de não-índios deverá ser tratada e veiculada a história e a cultu-
ra dos povos indígenas, a fim de dirimir preconceitos e perspectivas ra-
cistas ainda existentes na sociedade brasileira; 14) os municípios, esta-
dos e a União devem garantir a educação escolar específica às
comunidades indígenas, reconhecendo oficialmente suas escolas de
acordo com a Constituição de 1988; 15) garantia de uma Coordenação
Nacional de educação escolar indígena, com participação paritária de
representantes dos professores indígenas (luciano, 2006, p. 144-145).
Segundo dados do Censo Escolar Indígena de 2005, existem atual-
mente 2.324 escolas indígenas de Ensino Fundamental e Médio, aten-
dendo a 164 mil estudantes. Na Educação Superior há cerca de 2.000
estudantes indígenas, muitos dos quais ingressaram nas licenciaturas
interculturais oferecidas pelas Universidades Públicas, como a primei-
ra turma de 198 graduados formada pela Universidade Estadual de Ma-
to Grosso, em julho de 2006.53 No entanto, a grande maioria dessas

53  Cursos de Licenciaturas Interculturais são oferecidos atualmente nas seguintes instituições: Universidade
Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), Universidade de Roraima (UFRR), Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Universidade Estadual do Amazonas (UEA), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de
Goiás (UFG) em parceria com a Universidade Federal de Tocantins (UFT) e Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD).

268
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

escolas não trabalha com os princípios defen- Estabelecer escolas


didos pelas organizações indígenas, embora indígenas que atendam
às suas próprias demandas
88% dos professores tenham origem indígena e interesses, respeitando
(luciano, p. 137). a diversidade cultural,
regional e local e
Como pudemos perceber, estabelecer es- garantindo autonomia
e participação das
colas indígenas que atendam às suas próprias comunidades na
demandas e interesses, respeitando a diversi- formulação das políticas
educacionais, ainda
dade cultural, regional e local e garantindo permanece um desafio
autonomia e participação das comunidades na para a educação escolar
no Brasil do século XXI.
formulação das políticas educacionais54, ainda
permanece um desafio para a educação esco-
lar no Brasil do século XXI. Romper com o objetivo de assimilar e inte-
grar os índios à sociedade nacional, sem considerar as diferenças cul-
turais e lingüísticas e sem impôr um modelo de educação que sirva
para o “branco ensinar ao índio a ser e a viver como ele”, eis aí um
enorme desafio (luciano, p. 148).
Desafio que também se coloca para a escrita da história e para o
avanço das pesquisas sobre as formas de educação e a educação esco-
lar das comunidades indígenas55. Para Kreutz (1999), uma das maiores
questões colocadas à História da Educação, no que se refere às aborda-
gens dedicadas ao estudo das relações entre etnia e educação, é o
enfrentamento dos limites dos referenciais de análise e das fontes, no
sentido de produzir uma história capaz de captar a complexa trama da
dinâmica social, valorizando as tensões socioculturais e a capacidade
inventiva dos agentes e suas dinâmicas de representação do social
(apud silva, 2002, p. 11).

54  As comunidades indígenas mantêm práticas e formas educacionais tradicionais, entre as quais se destacam
os seguintes valores: a família e a comunidade são os principais agentes de educação dos filhos; aprende-se a
fazer roça, a caçar, a pescar, a plantar, a fazer canos, cestarias, farinha; aprende-se a cuidar da saúde, benzer,
curar doenças, conhecer plantas medicinais; aprende-se, na experimentação e na prática, a geografia das
matas, rios, serras, a matemática e a geometria para elaborar canoas, remos, casas, roças; os conhecimentos
dos pajés são transmitidos e devem ficar a serviço de todos; aprende-se a lutar, a guerrear e a proteger crianças
abandonadas, famintos e mendigos; alunos e professores das escolas ensinam novos conhecimentos aos povos
indígenas, pajés e caciques tradicionais, bem como aprendem com eles seus saberes (luciano, 2006, p. 147).
55  Apenas recentemente, a lei n. 11465/08, alterando o texto de lei n. 10.639, de janeiro de 2003, determina
a obrigatoriedade da temática “História afro-brasileira e indígena”, no currículo da rede oficial de ensino.

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Gondra e Schueler

Uma História que possa, afinal, recusar o silenciamento dos sujei-


tos sociais e oferecer novos caminhos para a compreensão dos proces-
sos de (re)construção de identidades étnico/culturais, mesmo onde
ainda hoje se revelam marginalizadas e excluídas56.

Crianças
Muitos bacharéis, políticos, literatos, médicos e religiosos abraçaram a
causa da instrução no século XIX. Para eles, a instrução como necessi-
dade se encontrava pautada pelo modo como liam e/ou testemunha-
ram as experiências de parte da Europa e América. Invertendo a dire-
ção, a descrição do país e costumes de seu povo, feita por viajantes
estrangeiros, também forneceu chave para ler o Brasil. Leitura que,
em função dessa visão etnocêntrica, descreveu o Brasil como uma vas-
ta massa a ser plasmada à luz do que percebiam no mundo tido como
polido, culto e civilizado. Ao mesmo tempo, as ações de reconheci-
mento da população local confirmavam o diagnóstico da elite tropical.
Ainda que considerada precária por Ministros, Presidentes de Pro-
víncia e outras autoridades, a estatística cumpria o papel de ciência
que mapeava e oferecia um quadro de síntese da situação em que se
encontravam os brasileiros e seus problemas. Um dos problemas que
emergiam dessa ação do Estado era a diferença entre a densidade da
população escolar dos países tidos como adiantados e a do Brasil.
Estes números são visibilizados nos relatórios de Ministros, Presi-
dentes de Províncias, Inspetores de Instrução e também na pena de
homens empenhados na manutenção do regime monárquico, como Pi-
res de Almeida (1989), ou em sua transformação em República, como

56  Dados da Fundação Nacional do Índio demonstram a existência de cerca de 218 povos indígenas espalha-
dos em milhares de aldeias por todo o país, além da concentração de etnias na Amazônia e no Pantanal, tota-
lizando uma população estimada em 500 mil indivíduos (menos de 1% da população brasileira). Tais grupos falam
180 línguas e dialetos. A política de Educação Escolar Indígena tem buscado valorizar as culturas nativas, incen-
tivando a apropriação da escola pelos povos indígenas, que podem construir novos significados e sentidos ao
modelo ocidental de educação escolar. Sobre a questão, consultar o documento do Ministério da Educação,
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998) e lopes da silva e ferreira (2001).

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Almeida de Oliveira (2003). Da mesma forma, podem ser encontrados


de modo abundante no relatório sobre a reforma de 1882 os famosos
“pareceres de Rui Barbosa”. Nesses diferentes registros, o tom do
avanço do monarquista ou de atraso dos republicanos/reformadores
demonstrava a necessidade de se adensar a população nas escolas. O
problema da densidade populacional e, portanto, da legitimidade con-
quistada pela forma escolar nos trópicos também compareceu nos tes-
temunhos de viajantes, como o que pode ser percebido no livro do
norte-americano Christopher Andrews. No final o Império, em 1887, o
norte-americano diagnosticou como deplorável a situação da instrução
pública no Brasil.
Para Andrews, que parecia reproduzir os relatórios oficiais e dis-
cursos de parte da intelectualidade brasileira, o Brasil contava com
uma população livre de mais de sete milhões. Neste caso, existia uma
escola para cada 1.356 habitantes o que, segundo ele, estava longe de
satisfazer às necessidades de uma população dispersa num território
enorme e separada por grandes distâncias. Ao prosseguir seu censo,
destaca:
Muitas das escolas não têm professores; quase todas ficam em casas aluga-
das e mal situadas do ponto de vista sanitário. Alunos de sexo diferente não
podem freqüentar a mesma escola. Em todo o país existem 1.315 escolas
para meninas. A população escolar, composta de meninos e meninas de
seis a 15 anos chega a 1.902.005 dos quais apenas 321.449 estão registrados
nas escolas (apud leite, 1993) (grifos nossos).

Ao chamar atenção para a exclusão de mais de um milhão e meio


da população na idade escolar, o norte-americano sublinha que apenas
16% da população era atendida, apontando assim para a rarefação da
educação escolar no Brasil, o que reforça o adjetivo que emprega para
descrever o que viu: deplorável. Ao chamar atenção para a necessi­
dade de se intensificar a ação escolar, ele também marca o raio de
cobertura da mesma, seu início aos seis anos, e fim, aos quinze anos.
Com isto, a reflexão acerca da necessidade de adensamento da
escola supõe definir quem poderia freqüentar e até quando deveria

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Gondra e Schueler

durar a ação da escola. Neste caso, trata-se de uma escola para livres,
sendo igualmente estabelecida a idade de entrada e de saída, preven-
do-se nove anos de escolarização. Neste ponto, diferentemente do que
faz supor o viajante norte-americano, não havia consenso. As represen-
tações da infância eram diversas, indício de que esta própria idéia não
se constitui em um universal, sendo objeto de descrições distintas por
parte dos adultos.
O clássico estudo de Ariès (1981) procurou demonstrar como a
idéia de infância foi socialmente construída. Nesta linha, Ariès chama
atenção para os elementos da fantasia, tradição e exatidão que envol-
vem a inscrição de um novo ser no mundo civil. Fantasia na escolha do
nome.57 Tradição no sobrenome e exatidão na definição das idades.
Exatidão que convive, segundo ele, com a heterogeneidade dos crité-
rios adotados para descrever/compreender o desenvolvimento huma-
no. Assim, a vida já foi repartida de acordo com o número de planetas,
signos do zodíaco, ou mesmo, meses do ano. Repartição e terminologia
que podem nos parecer estranhas, mas que à época traduziam noções
partilhadas pelos representantes da “ciência”, correspondendo igual-
mente a um sentimento popular e comum da vida (1981, p. 38).
Com a popularização das “idades da vida”, indicada pela icono-
grafia e outras fontes consultadas por Ariès, estas passaram a ser asso-
ciadas não apenas a etapas biológicas, mas também às funções sociais.
Para esse autor, a repetição das imagens, pregada nas paredes, ao lado
dos calendários e entre objetos familiares, alimentava a idéia de uma
vida dividida em etapas bem delimitadas, correspondendo a modos de
atividade, tipos físicos, funções e as modas do vestir. Desse modo, o
pesquisador francês assinala que a periodização da vida tinha a mesma
fixidez que o ciclo da natureza ou a organização da sociedade (p. 40),
a despeito de uma proliferação nas formas de designar as idades. De-

57  De acordo com o estudo de Gélis (1997), perdurou por muito tempo o hábito de dar às crianças os nomes
dos avós, como forma de assegurar a continuidade da família. Referindo-se ao caso inglês, assinala que, por
vezes, se dava o mesmo nome aos três filhos de um casal, pois se o mais velho morresse, seu homônimo man-
teria este bem simbólico da família.

272
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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

bate possível de ser percebido na iconografia e nos discursos dos sécu-


los XIV-XVIII, prolongando-se para o século XIX, sendo mantido como
um problema no interior das ordens médica e religiosa. Para o caso
religioso, basta observar o tratado de educação de meninas, de Féne-
lon, publicado pela primeira vez em 1687, ao lado de suas 48 fábulas e
opúsculos pedagógicos, dos diálogos para a educação de um príncipe,
dos fragmentos espirituais, das exortações, conversões e sermões, do
projeto de comunidade segundo suas idéias e da explicação das máxi-
mas dos santos em relação com a vida interior58.
Da parte médica, dentre outros manuais utilizados na formação
dos futuros doutores, vale assinalar o do professor agregado da Facul-
dade de Medicina e médico do hospital de Paris, A. Becquerel, intitula-
do Traité elémentaire d’hygiene privée et publique59. O capítulo II,
“Des âges”, da primeira parte de sua extensa obra, com um total de
893 páginas, tem início com uma reflexão conceitual acerca da idade:
“Nós atribuímos, em geral, o nome idades aos diversos períodos de
desenvolvimento, de estado estacionário e de decréscimo, que se suce-
dem durante a evolução orgânica do homem desde seu nascimento até
sua morte” (1864, p. 9). Ele acrescenta que toda divisão das idades é
necessariamente artificial, na medida em que a evolução completa de
um ser humano se faz sem transição, de uma maneira insensível, sem
haver tempo de paradas/interrupções determinadas. Todavia, segundo
ele, sempre se procura estabelecer para as idades uma divisão que re-
laciona épocas entre as quais haveria uma certa similitude, com base
nas relações anatômicas e fisiológicas e separar aquelas entre as quais
existiria uma dessemelhança muito grande e muita marcada. A partir
daí, refere-se a uma classificação antiga que admitia 4 idades (infân-
cia, adolescência, idade viril e velhice), a de Hallé (com 5 repartições)

58  Cabe registrar também a obra Aventuras de Telêmaco, que consiste em um livro escrito com base na expe-
riência de Fénelon como preceptor do filho de Luiz XIV. No Brasil, essa obra foi um best-seller durante um sé-
culo, na virada do XVIII para o XIX, de acordo com estudos de Abreu (2007).
59  Obra organizada em 2 partes e 1 apêndice: I. Objeto da higiene — estudo do homem e o estado de saúde
(contendo 10 capítulos), II. Matéria da higiene (com 30 capítulos), e Apêndice. Higiene aplicada (com 14 capí-
tulos).

273
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Gondra e Schueler

e Daubeton (com seis etapas) para, em seguida, apresentar aquela com


a qual efetivamente opera, que descreve a vida em sete fases.
Becquerel admite ser a divisão de Hallé60 uma das primeiras ver-
dadeiramente científicas, a qual reparte a vida em 5 etapas, cabendo
ainda subdivisões e variações, conforme o sexo.

Quadro 2. Idades da vida, segundo Hallé

Terminologia Descrição Idades


1a infância 1-7 anos
2a infância Meninos 7-15 anos
— Puerícia Meninas 7-13 anos
Puberdade ou
adolescência Homens 15-25 anos
(aptidão para Mulheres 13-21 anos
reprodução)
Para os homens Virilidade crescente 25-60 anos
Virilidade Para as mulheres Virilidade confirmada 21-50 anos
Virilidade decrescente
1a fase — velhice 60-70 anos
2a fase — velhice avançada (época
Velhice das enfermidades)
3a fase — decrepitude (transição
da vida à morte)

A classificação de Daubeton, segundo o professor parisiense, de-


senvolve e regulariza a divisão antiga. Daubeton distribui a vida em 6
fases: infância (do nascimento à puberdade), adolescência (até 20-25
anos), juventude (25-30/35 anos), idade viril (até 40-45 anos), idade
de retorno (45-60/65 anos) e idade da velhice ou caducidade. Na se­
qüência, apresenta a grade de idades com a qual trabalha, organizando
a vida em sete épocas:

60  Trata-se de Jean-Noël Hallé, higienista e professor da Faculdade de Medicina de Paris que, em 1787,
formulou uma classificação das idades que, de acordo com Luc (1998), marcou grandemente o século XIX.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Quadro 3. Idades da vida, segundo Becquerel

Fases Terminologia Idades


1a
Época do nascimento Criança recém-nascida
2a Primeira infância Do nascimento até 2 anos
3 a
Segunda infância 2-12/15 anos
4a Adolescência Idade da puberdade, de 12-15 a 18-20 anos
5 a
Idade adulta 20-60 anos
6a Velhice 60 anos até morte
7a
Época da morte Morte

No entanto, ciente da artificialidade da repartição, conclui essa


primeira reflexão61 acerca das idades lembrando que as divisões são
feitas apenas para facilitar o estudo e que não se deve atribuir mais
importância do que elas merecem, dedicando cerca de 60 páginas para
caracterizar cada uma das idades de sua cronologia, descrevendo e
debatendo a situação de cada uma das etapas, ao mesmo tempo em
que prescreve as práticas adequadas para cada nível.
Esse debate, instalado no chamado velho continente, atravessou o
Atlântico, sendo apropriado pelos professores e futuros médicos dos
trópicos, o que pode ser evidenciado em um conjunto de teses no qual
o tema das idades comparece. Dentre elas, nas 8 que tratam direta-
mente da higiene da infância ou da primeira infância.
Com exceção da tese de 184062, nas demais, Becquerel é constitu-
ído em autoridade nas questões de higiene, sendo a reflexão acerca
das idades um tema obrigatório em todas elas, como assinalado na

61  Ao fim de cada seção, o autor apresenta uma bibliografia relativa ao assunto. Para o tema das idades, ele
lista: GORDON (Bernard de), De conservatione vitae humanae, a die nativitatis usque ad ultiman horam mortis
(vers. 1300). Lipsiae, 1570, in-12. BUFFON, De l’homme, de l’enfance, de la puberté, de l’âge viril, de la viel-
lesse et de la mort, in Oeuvres completes. HALLÉ, Encyclopédie. Méth., Art. Ages, t. I, p. 358. DAUBETON,
Leçons professes aux Écoles normales, t. VIII, p. 314. ESPARRON, Essai sur les âges de l’homme, thèse inaug.
Paris, 1803, in-8o, n. 257. DENDRIN, De l’influence des âges sur les maladies, these de concours. Paris, 1840.
ESTÈVE, Considérations générales sur les âges étudiés, etc. Thèse inaug. Paris, 1859, in-4º, n. 69.
62  Isso pode ser atribuído ao fato de a 1a edição do livro do médico parisiense datar de 1851.

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Gondra e Schueler

tese do Dr. Leitão (1840). Ele se limitara a alguns dos pontos mais im-
portantes relativos à primeira infância63, fase que, segundo Mr. Hallé,
recobria o período que vai do nascimento até a segunda dentição. Na
seqüência, defendia a importância da ação dos adultos: “A Higiene
d’esta época da nossa vida merece muita consideração; porquanto é
ela, que vai plantar os alicerces de uma existência feliz, é ela que fará
gozar um lisonjeiro porvir.
Nessa linha de raciocínio, a existência feliz e o lisonjeiro porvir
justificam a periodização da vida e, mais que isso, funcionam como
argumento para que a racionalidade médica se debruçasse sobre a
“flor da infância”, de modo a construir um discurso especializado a
respeito desse período, do qual se poderia extrair as regras para asse-
gurar a continuidade da vida, afastando as crianças das práticas e su-
jeitos convertidos, na lógica da ciência, em ignorantes, curiosos e in-
discretos. Esse movimento da racionalidade médica, procurando
instituir as verdades da ciência ou da razão, ao acompanhar a lógica da
natureza, encontra-se igualmente atento para os problemas da cultu-
ra. Nesse sentido, ao discorrerem sobre o tema da infância, torna-se
perceptível a preocupação desses homens com as crianças submetidas
a condições desiguais. No caso dos discursos autorizados pela FMRJ,
isso pode ser evidenciado no conjunto das oito teses já referidas, como
também nas cinco que abordam o ponto das “crianças expostas”64 e em
um outro conjunto que trata da higiene dos colégios65.
O ingresso nos colégios obedeceria a critérios também variáveis,
tomando-se como baliza elementos do desenvolvimento biológico, co-
mo o aparecimento da segunda dentição, sinal de um amadurecimento
que tornava o indivíduo capaz de aprender os saberes disseminados na
escola. Outros argumentos se voltam mais para os aspectos neurológi-

63  De acordo com a estrutura da tese, organizada em 5 capítulos, os pontos considerados mais importantes
são: banhos, vestimenta, aleitamento materno (vantagens, escolha de uma ama, aleitamento artificial, princí-
pio e terminação do aleitamento), o leito do recém-nascido e alimentos.
64  A esse respeito, cf. Gondra 2004a.
65  Para aprofundar a reflexão acerca da higiene dos colégios, cf. Gondra, 2004.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Quadro 4. Higiene da infância em teses da FMRJ

Tese Autor Ano

Higiene da infância Antonio Gonsalves d’Araujo Leitão 1840

Higiene da primeira infância José Marciano da Silva Pontes 1863

Higiene da criança do nascimento


Francisco Basilio Duque 1864
à queda do cordão umbilical

Higiene da primeira infância Ildefonso Archer de Castilho 1882

Higiene da primeira infância Nicolao Barbosa da Gama Cerqueira 1882

Higiene da primeira infância José Vieira Martins 1882

Higiene da primeira infância Severiano Martins de Oliveira Urculu 1882

Higiene da primeira infância José Cypriano Nunes Vieira 1882

cos, base para se defender que o princípio da atenção e capacidade de


raciocínio exigia um tempo de 6-7 anos para aquisição de amadureci-
mento suficiente, que permitisse o ingresso nas escolas. Tal debate,
presente na Europa, ganhou contornos variados, comparecendo em
momentos distintos, como pode ser observado na excelente coletânea
organizada por Becchi e Julia (1998).
Becchi e Julia (1998), ao fazerem uma espécie de apresentação da
coletânea por eles organizada, produzem uma reflexão em torno de
três coordenadas. Na primeira, destacam as questões atuais que afe-
tam a infância, como tentativa de demonstrar a morfologia dessa “eta-
pa” da vida e dos desafios contemporâneos, observando o trabalho in-
fantil, os abandonados e a prostituição, por exemplo. No segundo
momento, dedicam-se a analisar a inscrição da infância como proble-
ma da História, destacando o trabalho de Ariès e sua circulação, regis-
trando as críticas que foram produzidas em relação ao mesmo. Por fim,
refletem sobre a historiografia da infância produzida após o trabalho
de Ariès. Nesse ponto, chamam atenção para elementos que se modi-
ficaram consideravelmente na relação da sociedade européia em rela-

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Gondra e Schueler

A infância, como ção à infância66. O primeiro deles67 diz respeito


construção histórica, a uma modificação considerável na distribui-
experimentou, no século
ção das idades, convidando à realização de
XIX, diferenças no estatuto
social e na duração. Como
ainda hoje observamos, as
análises históricas da flutuação das fronteiras
formas de representação que separam as idades da vida68.
e os tempos sociais de
viver a infância são Ao analisar a infância no século XIX, Bec-
plurais, fluidos, variandochi assinala que crianças de todas as idades
conforme a clivagem dos
grupos e das condições de estão presentes na cena social, conseqüência
classe, etnia, geração e
gênero.
do crescimento demográfico. Por toda a Euro-
pa, um poderoso discurso sobre a infância
acompanha esse fenômeno, reconhecendo a
necessidade de se programar a passagem do estado da natureza (a in-
fância) ao estado social (o adulto), da vida selvagem à vida civilizada.
Esses desafios são objeto de tratados na filosofia e na ciência, como o
de Rousseau, Itard e Fourier, para trazer apenas três exemplos indica-
dos por Becchi.
A presença da infância na cena social também vai ter um rebati-
mento nas reflexões relativas aos espaços específicos destinados à
criança na casa, na rua, no trabalho e na escola. Lugares para brincar,
para assistir a espetáculos e para se exercitar, por exemplo. Debate
que também tem desdobramento diferenciado no espaço privado, na
medida em que nas camadas médias e superiores há uma tendência a
separar uma peça da casa para as crianças que, progressivamente, vão
sendo ensinadas a circular por outros espaços, integrando-se paulati-
namente à vida dos adultos. No caso das crianças pobres, elas possuem
outros lugares, outra iniciação ao mundo adulto, são submetidas a ou-
tro tipo de vigilância. O resultado é que se tornam grandes mais cedo,

66  Para observar aspectos dessa questão no caso norte-americano, conferir o trabalho de Popkewitz e Bloch
(2000, p. 33-68).
67  O segundo remete ao problema da hipermedicalização da procriação e o terceiro se volta para as trans-
formações no âmbito da família ocorridas nos últimos 30 anos.
68  No que se refere à dificuldade de designar os cortes precisos das idades da vida, os autores remetem à
coleção organizada por Levi e Schmitt (1996), em que os autores insistem no fato de que a “juventude” por eles
estudada não encontra definição clara nem na quantificação demográfica, nem na definição jurídica.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

sua infância é encurtada inclusive em sua dimensão material e a peda-


gogia que resulta dessa organização do espaço é diferente: a aprendi-
zagem dos costumes do mundo adulto é mais rápida, sobretudo, no que
se refere ao uso do corpo. A promiscuidade das idades ensina experiên-
cias práticas, afetivas e sexuais que, de um modo geral, se procura
omitir das crianças das classes superiores.
A entrada da criança na cena social também tem rebatimento na
produção, comercialização e recomendação de jogos e materiais lúdi-
cos, dotados de valor moral e socializante.69 De acordo com Becchi, o
impacto desta pedagogia dos jogos é tão grande que, na Alemanha,
Inglaterra e na própria França, a produção em série desses materiais
superou, há tempos, sua produção artesanal. Os jogos vão sendo diver-
sificados, aperfeiçoados, adaptando-se cada vez mais à idade e ao se-
xo: “Cada idade tem seu equipamento, cada vez mais preciso em seu
objetivo de aprendizagem de comportamentos, de hábitos, de papéis
sociais, até chegar ao estágio do jogo científico” (1988, v. II, p. 171). A
diferenciação dos sexos e das idades também se relaciona à vestimen-
ta adotada e que se encontra igualmente associada aos livros sobre as
crianças e os destinados a elas. Com todos esses dispositivos de dife-
renciação dos sexos e das idades, é a escola que se torna o principal
lugar de aculturação da infância, na medida em que é uma instituição
que se torna cada vez mais presente e na qual os indivíduos tendem a
passar um tempo cada vez mais alongado. A Europa Ocidental civiliza-
da construiu, a partir do século XIX, uma escola maternal (antes dos 6
anos) e uma escola elementar (dos 6 aos 12 anos), cuja distinção tam-
bém é evidenciável na própria arquitetura dos prédios escolares. Re-
partição das idades na escola que colabora para fortalecer a tese de
uma vida em etapas e da especificidade de cada uma. Em linhas gerais,
é esta repartição que também vai ser adotada no Brasil, construindo
uma forma escolar especializada para cada idade da vida.

69  Para o caso brasileiro, vale conferir as coletâneas organizadas por freitas (1997), freitas e kuhlmann jr. (2002)
e del priore (1999).

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Gondra e Schueler

Com os esforços de se descrever a vida em tempos/períodos mais


ou menos homogêneos, a condição social e, particularmente, o mundo
do trabalho vão trazer evidências do arbitrário dessa repartição, na
medida em que muitas crianças trabalham em tecelagem, fábricas, no
campo e mesmo no invisível espaço da casa. Com o avanço do discurso
em favor da especificidade da infância e seu rebatimento na esfera da
legislação, o trabalho infantil vai paulatinamente sendo caracterizado
como pernicioso, posto que impede o pleno desenvolvimento das po-
tencialidades humanas. Chassagne (1998), ao demonstrar que o pro-
cesso de regulamentação do trabalho infantil ocorrido na Europa foi
longo, assinala que o mesmo foi resultante do esforço de se fazer ad-
mitir o direito de intervenção do Estado no tema do trabalho infantil.
Esse direito do Estado obteve legitimidade, apoiado nos discursos de
moralistas, pedagogos, higienistas, cientistas e filantropos que, no li-
mite, procuravam estancar problemas demográficos (como a alta mor-
talidade infantil) e o da degeneração social. Nesse sentido, as novas
“gerações” deveriam ser efetivamente educadas. Com isto, o trabalho
infantil passou a ser considerado como obstáculo a um projeto educa-
tivo mais dilatado.
A educação das novas “gerações” deveria se processar em sintonia
com as idades da vida. É com esta inteligência que homens e mulheres
da ciência e das letras vão se esforçar para decifrar a infância, descre-
vendo suas características, sua natureza. Esse jogo de classificação vai
criar condições para se definir instituições, materiais e práticas espe-
cíficas para cada fase da vida, como bem assinala o estudo de Luc
(1998). Na Inglaterra, Itália, Alemanha e França há um impulso na
construção de escolas de “jeunes enfants”, voltadas para o atendimen-
to de crianças de 3 a 6 anos, cuja criação vai contar com a participação
decisiva dos médicos, intervindo no funcionamento dessas escolas,
examinando seus usuários, redigindo manuais de higiene. As esposas,
espécies de inspetoras benévolas, também acompanharam seus mari-
dos-médicos para assegurar a eficácia dos novos equipamentos volta-
dos para esta faixa de idade.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

A presença médica, contudo, se faz de modo polimorfo, como


também assinala Luc em seu estudo. Compulsando 277 obras produzi-
das por 93 autores entre a metade do século XVIII e o fim do XIX, Luc
reconhece que os homens da ciência tomam evidências distintas para
repartir a vida em idades mais ou menos homogêneas. Para uns, a pri-
meira infância (3-6 anos) corresponderia a um determinado número de
anos, para outros seria finalizada com a segunda dentição e, para ou-
tros, com o aparecimento da razão70. A despeito da variação, preo­
cupados com a manutenção da vida e produção de uma geração sadia,
haverá uma defesa mais ou menos generalizada, em muitos países da
Europa, da necessidade de se tratar esta fase em sua suposta parti­
cularidade, como acentua Luc (1998, p. 338).
Antes, portanto, do aparecimento e legitimidade da psicologia in-
fantil, saber que reclama para si a capacidade de decifração da alma da
criança pequena, a escola infantil e o olhar pedagógico profissional par-
tilhado por diferentes sujeitos contribuíram para demonstrar a especifi-
cidade dessa idade da vida. Particularidade que se vê reforçada pela
emergência de instituições não voltadas para o
atendimento da infância, como é o caso dos in-
Com todos esses
ternatos, equipamento ou forma escolar71 que dispositivos de
diferenciação dos sexos
também demanda uma reflexão sobre as idades
e das idades, é a escola
da vida, como aparece no tratado de Riant que se torna o principal
lugar de aculturação da
(1877). De modo equivalente, a criança deposi- infância, na medida em
tada nas rodas de expostos, a asilada e a traba- que é uma instituição que
se torna cada vez mais
lhadora também ajudam a pensar as idades da presente e na qual os
indivíduos tendem a
vida. Portanto, menos que natureza, a idade
passar um tempo cada
deve ser analisada como uma construção social. vez mais alongado.

70  Nesse sentido, este estudo pode ser aproximado ao de Ariès quando este chama atenção para o arbitrário
das idades, para sua dimensão social e histórica.
71  Aqui nos aproximamos da definição de forma escolar de Vincent, Lahire e Thin (1994), em que estão preo-
cupados em compreender como um modo de socialização, não sem dificuldades, foi imposto aos outros modos,
esforçando-se para discernir seus traços principais e o que faz parte desta configuração histórica singular no
que se refere à pedagogia, disciplinas etc. (p. 14). Também é possível ver essa preocupação em um outro en-
quadramento, no estudo de Varella e Alvarez-Uria (1992).

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Gondra e Schueler

Para reforçar esta idéia, ao observar a trajetória de uma menina


ou menino da “boa sociedade” do século XIX, sua formação seguia, via
de regra, uma educação que se processava na casa, seguida da educa-
ção nos internatos e colégios. Para os meninos, ela teria seguimento
nas academias, seminários ou na escola militar. Para as meninas, ela se
encerrava aos 12 ou 13 anos com um casamento, via de regra, arranja-
do pelos pais, como fartamente descrito em romances de época. Casa-
mentos precoces significavam proles igualmente precoces, sendo co-
mum a experiência da maternidade aos 15 anos.
Segundo Freyre (1977), o menino também crescia como se fosse
adulto ou homenzinho, desde os oito anos. Desde muito cedo era o me-
nino de família patriarcal, abastada, rica ou simplesmente remediada,
enviado para o colégio, onde ficava submetido ao regime do internato.
De acordo com Freyre (idem), recebia de casa caixas de bolos e de do-
ces, mas nunca brinquedos: “Brinquedos eram para crianças. Ele tinha
nove ou dez anos; já era um homenzinho. Ou quase homem.” (p. 90)
No final do século XIX, inspirado em iniciativas européias (france-
sas, inglesas, italianas e alemãs) e norte-americanas, assistimos no
Brasil ao aparecimento das creches (para atender à criança até dois
anos), escolas maternais e jardins de infância (para as crianças entre
três e seis anos). Na esfera pública, este tema foi objeto de discussão
no parlamento, em congressos e na imprensa. Também foi objeto de
atenção da iniciativa privada, como é o caso do médico Joaquim José
Menezes Vieira e sua esposa, Carlota de Menezes Vieira, que abriram
em 1875, na capital do Império, o primeiro jardim de infância particu-
lar. Também vale lembrar a experiência de Maria Guilhermina Loureiro
de Andrade. Ela, depois de manter um jardim de infância e um curso
para jardineiras no Rio de Janeiro, foi trabalhar no kingergarten pau-
lista, criado pela Escola Americana, em 1877. Para saber mais detalhes
sobre estas iniciativas, cf. kuhlmann jr. (2003), chamon e faria filho (2007)
e bastos (2002).
Ao lado destas, outras iniciativas voltadas para a educação da crian-
ça pequena foram realizadas ao longo do século XIX, como pode ser ob-

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

servado nos trabalhos relativos às Províncias do Maranhão (Castro, 2006)


e Minas Gerais (Gouvêa e Simões, 2002; Rodrigues e Lima, 2002; Jinzenji, 2002;
Santos e Faria Filho, 2002). Para acessar um levantamento das instituições
de assistência à infância no Brasil entre as décadas de 1880 e 1960, com
base em um estudo da legislação federal, confira Rodrigues e Lima
(2002).
Como vimos, pensar a infância implica trabalhar com a idéia de
uma vida segmentada, impõe reconhecer marcos que tornem possível
identificar começo e término de diferentes fases, constituindo, assim,
um verdadeiro gradiente das idades, evolutivo e linear. Procedimento
que, pela busca do que é semelhante em cada etapa, ao repartir a vida
de modo mais detalhado do que a clássica idéia de ciclo, expresso no
fluxo inevitável do nascimento-crescimento-reprodução-morte, con-
corre para unificar o que se encontra recoberto em cada uma das ida-
des da vida.
Unificação que não corresponde às experiências culturais pelas
quais passa cada sujeito, em diferentes momentos da vida. Com os
mesmos 7 anos há, por exemplo, crianças na rua, sem teto, sem terra,
prostituídas, abrigadas, em instituições de caridade, em lares sem pai,
sem mãe, sem família nuclear, sem cuidados, trabalhadoras, submeti-
das às mais variadas formas de violência e de privação, havendo, do
mesmo modo, crianças bem alimentadas, bem vestidas, protegidas,
atendidas, consumidoras, recobertas de atenção, integrantes de uma
rede de serviços de saúde, educação e lazer.
A homogeneização da infância pode ser percebida nos manuais e
guias de higiene do século XIX, ainda que nem todos produzam esse
efeito, o que não consiste em uma propriedade do passado. Uma rápi-
da e incompleta lista de revistas, programas de tv, vídeos, filmes,
propagandas, músicas, peças de teatro, páginas da internet, brinque-
dos, jogos, literatura infantil e salas de aula, por exemplo, ainda tra-
balha com a crença (e a reforça) de que a infância se constitui em um
tempo homogêneo, porque recobre uma mesma cronologia. Assim,
basta um exame minimamente atento para detectarmos a representa-

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Gondra e Schueler

No final do século XIX, ção dominante e universalizante de infância


inspirado em iniciativas que circula por intermédio desses diferentes
européias (francesas,
inglesas, italianas e veículos, tentando definir o modo como deve-
alemãs) e norte-
mos conceber e lidar com os sujeitos da mais
americanas, assistimos
no Brasil ao aparecimentotenra idade.
das creches (para atender
à criança até dois anos), Unificação que também tem rebatimento
nas ações do Estado e no modo como o mesmo
escolas maternais e jardins
de infância (para as
se dispõe a prestar determinados serviços à
crianças entre três e seis
anos). Na esfera pública,
mais “tenra infância”. Nesse sentido, a defini-
este tema foi objeto de
discussão no parlamento, ção da infância pode estar articulada com a
em congressos e na
imprensa. Também disposição política do Estado em atender a
foi objeto de atenção uma determinada faixa etária ou nível de es-
da iniciativa privada,
em várias localidades colarização. Parece-nos que as formas plurais
do Império brasileiro.
de arranjos familiares e a inserção da mulher
nos diversos campos do trabalho criaram novas
exigências de serviços, o que supõe a expansão de formas institucionais
para lidar com a criança pequena. A mutação na condição social da
mulher tem obrigado a rever as relações entre o mundo da casa e o
mundo da escola, deslocando para as escolas de educação infantil a
educação até então proporcionada por aquela que era tida como a
“primeira grande mestra da vida”.
No Brasil, recentemente, um dos sintomas da relação entre a de-
finição de infância e ação do Estado pode ser percebido no debate
acerca do raio de cobertura do Fundo Nacional de Desenvolvimento do
Ensino Básico (FUNDEB). A tensão se manifesta entre os que defendem
a verticalização no oferecimento da forma escolar para crianças de 0 a
4 anos, contra os que defendem a presença do Estado na educação da
infância a partir dos 4 anos72. Neste caso, os argumentos dos que se
opõem à oferta da escola pública para crianças entre 0 e 4 anos são
menos pedagógicos ou de ordem moral, e mais de ordem orçamentá-

72  Este debate fez aparecer o curioso movimento dos “fraldas pintadas”, reunindo os que lutam pela extensão
desse direito, cada vez mais colocado como uma exigência das famílias mais empobrecidas que, a seu modo, vêem
na creche uma alternativa mais segura e de melhor qualidade para o atendimento e educação de seus filhos.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

ria. Para eles, o aparelho estatal não conseguiria cobrir a demanda por
este tipo de serviço que, em linhas gerais, continua a ser oferecido
pela iniciativa privada e creches comunitárias.
Outra manifestação na direção de se pensar a atualidade do debate
acerca das idades da vida e da própria idéia de infância pode ser obser-
vada no decreto do ditador Saparmurad Niyazov. Este é um caso emble-
mático da ação do Estado e do arbitrário da repartição das idades da
vida e nos remete à experiência em curso no Turcomenistão, a mais po-
bre das antigas repúblicas soviéticas (Ásia Central). Lá o ditador Sapar-
murad Niyazov, ou Turkmenbashi, em 2002, decretou a reclassificação
das idades dos seus cidadãos. De acordo com esse decreto, as idades da
vida passaram a ter a seguinte configuração: 0-13 anos (Infância), 13-25
anos (Adolescência), 25-37 anos (Juventude), 37-49 anos (Maturidade),
49-62 anos (Idade do Profeta), 62-73 anos (Idade da Inspiração), 73-85
anos (Idade das Barbas Brancas), 85-97 anos (Velhice) e 97-109 anos (Ida-
de de Oguz Khan — monarca ancestral dos povos turcomanos)73.
Estes dois últimos exemplos apenas confirmam que o debate acer-
ca da escolarização da infância não pode ser desenvolvido no vazio. Há
que se considerar onde e quando o mesmo se processa, sob o risco de
promoção de uma reflexão anacrônica, a-histórica.
Enfim, a cronologia da vida deve levar em consideração a base,
carga e tempo de amadurecimento biológico dos sujeitos, não sendo
menos necessário reconhecer as variantes culturais (negros, índios, po-
bres, escravos, meninos e meninas, crenças, costumes, religiões e es-
trutura familiar, por exemplo) e a história que também definem de
modo decisivo as possibilidades de compreensão da vida e de sua racio-
nalização, por intermédio da “invenção” das idades. Nesse jogo, móvel
e imprevisível, cabe prestar atenção para a função exercida por dife-
rentes instituições (médicas, jurídicas, religiosas, familiares) na confi-
guração das idades da vida e seus efeitos na definição da forma da
própria escola. Exercício que nos levaria, imaginamos, a tomar a forma

73  Cf. Folha de S. Paulo, 15 ago. 2002.

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Gondra e Schueler

escolar e outras tecnologias de institucionalização da vida mais como


problema e menos como substância natural.
Finalmente, cabe registrar que o raciocínio polar voltado para
classificação da vida possui uma larga tradição. Na Antigüidade, essa
polaridade se manifestava nos pólos da velhice e juventude, ambos
descritos por meio de traços ambíguos. Se a velhice teria um valor, um
reconhecimento, este é representado como limitado, restrito, parcial:
velhice é sabedoria, mas também fraqueza. Por contraste, o jovem é
vitalidade, mas também imaturidade. Neste jogo, o que a cultura an-
tiga procurou fazer foi tentar promover um deslocamento desta repre-
sentação da vida. Neste sentido, a velhice não mais seria considerada
como um termo da vida, nem percebida como uma fase em que a vida
definha. No interior dessa nova ética, ser velho deveria ser considera-
do como uma meta, e uma meta positiva da vida. De acordo com Fou-
cault (2004), um dos representantes desse esforço foi Sêneca74 que pro-
blematizou a separação pitagórica entre criança, muito jovem, jovem
e idoso, cada qual com duração de 20 anos. Em desacordo com os que
repartiam a vida em fatias, Sêneca propôs considerar a vida como uma
espécie de unidade dinâmica: unidade de um movimento contínuo que
tenderia para a velhice. Velhice que passava a ser descrita como um
lugar que ofereceria um abrigo seguro. Assim, esta etapa da vida não
estaria apoiada apenas na cronologia. Ela também deveria ser uma
idade ideal, que de certo modo fabricamos e para a qual nos prepara-
mos. No fundo, nessa nova ética,
É preciso que, a cada momento, mesmo sendo jovens, mesmo na idade
adulta, mesmo se estivermos ainda em plena atividade, tenhamos, para
com tudo que fazemos e somos, a atitude, o comportamento, o desapego e
a completude de alguém que já tivesse chegado à velhice e completado sua
vida (foucault, 2004, p. 137).

74  Nasceu em Córdoba, na Espanha, no ano 4 a.C., suicidando-se em Roma no ano 65 d.C., a pedido de Nero,
de quem tinha sido preceptor e, mais tarde, seu principal conselheiro. É considerado uma das grandes expres-
sões da filosofia estóica, caracterizada, sobretudo, pela consideração do problema moral, constituindo a ata-
raxia, serenidade, o ideal do sábio.

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

Nessa linha, o idoso é quem se apraz consigo e a velhice, quando


bem preparada por uma longa prática de si, seria o ponto em que o eu,
como diz Sêneca, finalmente teria atingido a si mesmo, em que teria
se reencontrado, tendo para consigo uma relação acabada e completa,
de domínio e de satisfação (op. cit., p. 135).
O projeto de Sêneca, milenar, de “unidade dinâmica” e da “velhi-
ce como ponto desejável”, ainda não foi bem-sucedido, pois a classifi-
cação da vida permanece apegada ao regime pitagórico, descrita por
meio de ciclos, etapas, momentos, fases, níveis, estágios e períodos.
Tais termos remetem e reforçam a tese de que é possível, valendo-se
de recursos variados, reconhecer aspectos comuns nas diferentes par-
tes da cronologia da vida e, a cada uma delas, fazer corresponder um
modo de vida particular. É, portanto, no interior dessa crença que a
idéia de infância vem sendo formulada e reproduzida, acoplada à cria-
ção e à reordenação de instituições que passaram a ser estreitamente
vinculadas à etapa “mais tenra da vida”, como diria Fénelon, no final
do século XVII.
É no âmbito deste debate que instituições A desnaturalização das
foram forjadas, profissionais formados, méto- idades da vida e as
experiências históricas
dos e materiais legitimados, bem como rotinas plurais das crianças nos
colocam frente ao desafio
de trabalho com a infância, a partir de discur-
de continuar pensando a
sos derivados das ordens jurídica, religiosa, respeito da necessidade
da infância e dos atributos
pedagógica e médica, para indicar alguns. De- empregados para defini-la.
bate que se torna mais complexo na medida Também nos impele a
refletir permanentemente
em que assistimos inúmeras iniciativas volta- a respeito da escola e
da sociedade.
das para esta “idade da vida” que, reforçando
a especificidade da mesma, constrói nichos
para difundir valores e vender produtos. Esta percepção nos coloca
frente ao desafio de continuar pensando a respeito da necessidade da
infância e dos atributos empregados para defini-la, e também refletir
permanentemente a respeito da escola, de qual escola, para que tipo
de sujeito e de que idade.

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“A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
É um trem riscando trilhos
Abrindo novos espaços
Acenando muitos braços
Balançando nossos filhos”
Canción por unidad latinoamericana,
Pablo Milanés/Chico Buarque.

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Desafios para a História da Educação

Ao concluirmos este livro, retomamos alguns Educação, Poder,


problemas com os quais nos deparamos para Sociedade e Império,
analisados a partir de uma
enfrentar os desafios de pensar a educação na perspectiva relacional,
sociedade brasileira oitocentista. Desde o iní- foram aqui compreendidos
como fenômenos que
cio, destacamos determinados aspectos que resultam da complexidade
e da pluralidade dos
seriam centrais para a compreensão dos cami- processos históricos,
nhos propostos, tais como: os projetos para a da ação e das lutas entre
formas, forças, sujeitos
Nação e os marcos cronológicos adotados para e práticas sociais diversos.
a análise, a reflexão sobre a pluralidade de
formas, ações e forças educativas e, finalmente, as relações entre o
modelo escolar e a construção e os projetos políticos voltados para a
“invenção” do Brasil.
No que se refere aos marcos temporais adotados para análise, um
primeiro desafio foi trabalhar suas possibilidades e limites. Acompa-
nhando as formas convencionalmente utilizadas para a demarcação
dos tempos históricos, apoiadas em critérios político-administrativos,
estivemos atentos para não cair no anacronismo de uniformizar e ho-
mogeneizar o fenômeno educativo, de modo a afastar a idéia de uma
suposta unidade nos projetos e nas experiências educacionais e sociais
no Brasil oitocentista.
Nesta direção, mesmo dispostos a trabalhar com o período tradi-
cionalmente conhecido como Império (1822-1889), destacamos a ne-
cessidade de perceber que as experiências educativas não se encon-
tram plenamente determinadas pela formas administrativas ou pelos
regimes de governo. Esta decisão impôs a necessidade de adotarmos

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Gondra e Schueler

uma perspectiva que considerasse a dinâmica, pluralidade e simulta-


neidade dos tempos sociais e históricos. Operando com este jogo inces-
sante do olhar que observa continuidades e descontinuidades, perma-
nências e rupturas, em certos momentos ultrapassamos os marcos
cronológicos determinados, na medida em que objetos e fontes nos
interrogavam sobre a fertilidade de dialogar com outros presentes.
Um segundo desafio deste trabalho consistiu em afastar uma con-
cepção restrita dos processos educativos. Assim, procuramos com­
preender a educação como uma prática cultural, que adquire facetas
e formas diversas, de acordo com a pluralidade dos espaços, tempos,
projetos sociais, grupos e sujeitos sociais envolvidos com a ação edu-
cativa. Ao invés de educação, pensamos em educações, considerando
as iniciativas institucionalizadas e não institucionalizadas.
Como já salientamos, a ação educativa se processa nas escolas,
colégios, educandários, asilos, academias, faculdades e outras formas
escolares, mas também nos espaços privados, familiares, nos jogos,
clubes, teatros, nas leituras comuns, conversas, nas festas leigas e re-
ligiosas, procissões, danças, tabernas, ruas, imprensa e outros espaços
sociais. Com isto, ao longo do texto, chamamos atenção para iniciati-
vas criadas, mantidas e expandidas pelo Estado, Igrejas, empresários,
filantropos e agentes da intelectualidade como médicos, juristas e mi-
litares, sociedades, academias e grêmios. São estas instâncias educati-
vas que organizaram empreendimentos voltados para educar a popula-
ção, constituída pela “boa sociedade”, mas também por mulheres,
negros, índios, imigrantes e crianças pobres.
Entretanto, a respeito da heterogeneidade das agências, formas,
forças e sujeitos da ação educativa, há, ainda, muito trabalho a ser
realizado. Estudos sobre a ação civilizatória difundida pelo teatro, ce-
rimônias e festividades cívicas e religiosas, revistas, jornais, imprensa
periódica comum e pela chamada imprensa pedagógica; a história dos
impressos, dos livros e das práticas de circulação e de leitura — todas
estas constituem temáticas já freqüentadas pelos historiadores, mas
que ainda precisam ser mais aprofundadas no que diz respeito às suas

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dimensões educativas e às suas relações com a História da Educação na


sociedade brasileira.
Do mesmo modo, as dinâmicas sociais das relações entre as clas-
ses, gêneros, etnias, gerações, os processos de construção e (des)cons­
trução de subjetividades e identidades por meio das experiências edu-
cativas escolares e não-escolares de crianças, jovens, adultos, índios,
negros, mulheres, imigrantes, professores e alunos, constituem-se re-
levantes, e instigantes, problemas históricos. Apesar dos significativos
passos já iniciados pela historiografia da educação, a história das prá-
ticas socioculturais e das iniciativas educacionais projetadas ou imple-
mentadas para e pelos diferentes sujeitos sociais ainda permanecem
como questões em aberto nas agendas de pesquisa.
Em nossa perspectiva, é preciso continuar a enfrentar os limites
dos referenciais de análise, arquivos e fontes, adotando abordagens
multidisciplinares nas quais se alarguem as fronteiras entre os campos
acadêmicos, no sentido de produzir uma história capaz de tornar pen-
sável e inteligível a complexa trama da dinâmica social. Para tanto, se
faz necessário valorizar o exame das tensões socioculturais e da capa-
cidade inventiva dos agentes e de suas estratégias de representação do
social.
Ao longo do livro, trabalhamos com a tese de que para se pensar
o Brasil há necessidade de uma reflexão profunda acerca de sua diver-
sidade, reconhecendo as desigualdades instauradas também em ter-
mos da matéria educativa. Para isso, procuramos desenvolver a hipóte-
se de que é impossível pensar as formas da educação no Império sem
analisar o processo de construção do Estado brasileiro. Seguindo este
caminho, pudemos compreender como os dispositivos do maquinário
escolar moderno conviveram de modo tenso com a multiplicidade e a
desigualdade de formas de educação e de instrução coexistentes ao
longo do século XIX.
Nesse sentido, foi possível problematizar os processos de circula-
ção de modelos de educação escolar, calcados nos ideais de civilização
e progresso, e considerar as experiências históricas singulares de im-

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Para se pensar o Brasil, plementação numa sociedade mestiça, que se


há necessidade de uma apropriou de modelos estrangeiros no contex-
reflexão profunda acerca
de sua diversidade, to de uma cultura plural e híbrida. Como sa-
reconhecendo as
lientamos, a construção do Brasil e dos brasi-
desigualdades instauradas
também em termos da leiros foi objeto de lutas e confrontos entre
matéria educativa. Para
isso, procuramos projetos políticos distintos e de tensões entre
desenvolver a hipótese de sonhos, caminhos possíveis e formas plurais da
que é impossível pensar
as formas da educação nação e da educação brasileiras.
no Império sem analisar
No entanto, embora já se perceba expres-
o processo de organização
da sociedade e construção sivo incremento das pesquisas sobre os proces-
do Estado brasileiro.
sos de institucionalização do Estado e suas im-
bricações com a implementação de um modelo
educativo escolarizado, há lacunas significativas para a compreensão
de importantes períodos, tais como o de 1800 a 1840, por exemplo.
Esta percepção se amplifica quando observamos a diversidade das po-
líticas educacionais nas regiões brasileiras, as diferenças sociais e cul-
turais e as desigualdades econômicas. Estes são fatores adicionais que
têm dificultado e imposto limites às tentativas de produção de uma
síntese da História da Educação.
Este, talvez, tenha constituído um dos maiores desafios a nós
apresentado neste trabalho, e que consideramos, ainda permanece co-
mo inquietação provocativa, qual seja: o de pensar a heterogeneidade
das forças educativas e iniciativas no imenso território, que se preten-
deu inventar e unificar, a despeito das especificidades regionais, locais
e da pluralidade das práticas culturais experimentadas. Assim, ao lado
do esforço de síntese aqui realizado na tentativa de refletir sobre a
totalidade — e os limites — de nossa formação nacional, é preciso in-
vestir na historicização dos processos educativos ocorridos em espaços
geográficos e territorialidades plurais.
Neste aspecto, a tarefa para os historiadores da educação ainda é
longa, no sentido de reconstruir “histórias locais”, nas quais sejam
consideradas as iniciativas de diferentes sujeitos e grupos sociais (indi-
víduos, famílias, igrejas, irmandades religiosas, sociedades etc.), bem

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Educação, poder e sociedade no império brasileiro

como as medidas adotadas em instâncias políticas e administrativas


diversas, como vilas, cidades, municípios e poderes regionais e provin-
ciais. Nesta direção, investimentos acerca da atuação das Câmaras Mu-
nicipais, Assembléias Provinciais, Inspetorias e Conselhos de Instrução
Pública precisam ter continuidade, como procedimentos que podem
fazer aparecer a complexidade de uma educação e instrução construí-
das sob os marcos de um ambicioso projeto de Nação e de Civilização.
Como argumentou Revel (1998), seguir a pista metodológica de
pensar as práticas históricas considerando a pluralidade dos tempos,
espaços e experiências sociais, trabalhando com permanentes jogos de
escalas, permite lançar luz sobre fenômenos singulares, aparentemen-
te insignificantes, mas, sobretudo, possibilita trazer à reflexão histo-
riográfica inter-relações, articulações e tensões entre a micro e a ma-
croanálise do social. Ou ainda, em outra perspectiva, o jogo com
diferentes escalas de investigação permite observar a imposição, cir-
culação e práticas de apropriação de modelos e projetos educativos
que tiveram lugar nas alianças e nas disputas de poder entre culturas
políticas locais, regionais, nacionais e transnacionais.
Educação, Poder, Sociedade e Império, analisados a partir de uma
perspectiva relacional, foram aqui compreendidos como fenômenos
que resultam da complexidade e da pluralidade dos processos históri-
cos, da ação e das lutas entre formas, forças, sujeitos e práticas so-
ciais diversos. Buscando produzir uma síntese, ainda que provisória e
incompleta, da educação brasileira no período do Império brasileiro,
nossa abordagem se distancia de algumas reflexões relativas ao século
XIX, segundo as quais a educação oitocentista, via de regra, se encon-
tra representada sob o signo do vazio, do atraso, das trevas ou das
sombras. Para trabalhar sob um novo registro, as contribuições deriva-
das de estudos recentes no campo da História da Educação foram fun-
damentais.
No entanto, convém lembrar as dificuldades decorrentes do verti-
ginoso crescimento da pesquisa na área nas últimas décadas, o que
impôs inúmeros obstáculos ao mapeamento da produção acadêmica.

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Portanto, operamos com os limites impostos pelo aumento quantitati-


vo e qualitativo das pesquisas, dos objetos e das formas de abordagem
das temáticas analisadas. É neste novo quadro da ciência histórica da
educação que este livro se inscreve. Quadro que tornou possível as
reflexões aqui desenvolvidas e que, por sua vez, lança novas indaga-
ções que precisam ser enfrentadas com cuidado e rigor.
Por essas razões, à guisa de conclusão, pedimos licença aos leito-
res e às leitoras para, uma vez mais, reiterar os alertas iniciais: o livro
que ora temos a alegria de partilhar foi condicionado pelas nossas prá-
ticas de pesquisa, condições de trabalho e, sobretudo, pelas compe-
tências profissionais dos autores. Estes elementos fornecem a medida
do seu alcance e da nossa responsabilidade diante dos resultados apre-
sentados, que compreendemos sempre inacabados e cambiáveis, posto
que históricos.
Com isso, esperamos que a viagem pelas páginas deste livro se
constitua em oportunidade privilegiada para refletirmos a respeito das
relações entre a nossa experiência atual e outros presentes. E, quem
sabe, possa estimular novas sementes que, ao germinarem, contribu-
am para inventar outro tempo, um novo presente no qual o ensino e a
pesquisa em História da Educação funcionem como ferramenta perma-
nente de crítica e reinvenção dos sujeitos, da educação, do poder e da
sociedade.
Este é o nosso desejo e, sem dúvida, ele se constitui em um desa-
fio adicional para todos os que se encontram envolvidos com os encan-
tos, possibilidades e limites de se fazer história da educação no Brasil.

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